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FOTOGRAFIA RITUAL:

DOI
UMA EXPERIÊNCIA COM
10.11606/issn.2525-3123.
gis.2022.185779 O POVO HUNI KUIN
DOSSIÊ RELIGIÕES: SUAS IMAGENS,
PERFORMANCES E RITUAIS

BÁRBARA MILANO
ORCID Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Pau-
https://orcid.org/0000-0002-6144-9325 lo, SP, Brasil, 01140-070 – posgraduacao.ia@unesp.br

A PRIMEIRA VEZ QUE UM ASHANINKA


me disse que as propriedades medi-
cinais das plantas se aprendiam in-
gerindo um preparado alucinógeno,
achei que simplesmente zombava de
mim. Estávamos em plena floresta,
agachados, conversando, e ele expli-
cou que as folhas de um arbusto ao
nosso lado podiam curar a picada de
uma serpente mortal.

- Bebendo ayahuasca é que aprende-


mos essas coisas – ele disse e, afinal,
não estava zombando (Narby 2018, 9).

Eu já havia entrado em contato com a Ayahuasca,


mas a partir dessa experiência seria diferente. Era
janeiro de 2017, região de reserva da cidade de Cotia
(Grande São Paulo), me apresentaram o indigenista
Txai Macedo e esperávamos no quintal a chegada dos
quatro Huni Kuin que passariam conosco aquele tempo.
Pajé Ninawá, Txuã, Bixku e Yakã, a única mulher do
grupo, casada com Bixku, que era estudante de Pajé (o
estudo da pajelança se dá por meio de dietas e acom-
panhamento por um ancião ao jovem que virá a ser
curador em sua comunidade); Txuã, que já havia sido
cacique de sua aldeia e, Pajé Ninawá, curador ancião
conhecedor de mistérios. O povo Huni Kuin se encontra
no território que chamam Brasil, predominantemente
no estado do Acre (tronco linguístico: Pano); de com-
plexa imaterialidade, nessa cultura, o contato com os
seres encantados é base de sua experiência vivencial,
realidade não apenas para os xamãs, mas para toda
a comunidade - vindos da região do Médio Rio Envira,
auto-organizados pelo CCEFYY (Centro Yurabaka Naibai

1 São Paulo, v. 7, e185779, 2022.


Yuxibu Baibu) e auto-representados pela FEPHAC (Federação do Povo Huni
Kuin no Acre), buscavam com a estada de três meses por São Paulo, fazer
trocas e fortalecer a rede apoio que torna possível a realização de projetos
comunitários de forma autônoma ao Estado piromaníaco. Passamos esse
tempo, dedicados à prática da cura...

Eu, atenta especialmente à experiência do processo imersivo como cura,


e da prática sobretudo da poesia, por intermédio da fotografia. Viven-
ciei algumas dezenas de rituais em finais de semanas subsequentes,
onde a partir do uso das plantas de poder amazônicas (Rapé, Sananga,
Ayahuasca) produzi o trabalho que venho a mostrar como ensaio junto
a essas palavras que buscam acolher o leitor na [contação] particular
de minha vivência, que deu origem ao projeto de mestrado que venho
desenvolvendo, “Fotografia Ritual”. Busco sintetizar uma forma capaz de
reverberar ao expectador o vislumbre da cura como ação, que se expande
para além de seu momento próprio. Seria possível criar sensorialmente
aspectos parecidos aos meus sentimentos de lembrança a aqueles que
não estiveram nessas situações? Seria possível propagar a cura a partir
da imagem?

Em nenhuma medida a imagem solitária seria capaz de reconstituir uma


cena em sua inteireza. Os sons podem me trazer imagens... bem como, as
imagens podem me trazer sons, contudo, a partir na necessária escolha,
acredito que este trabalho poderia ser desenvolvido de outras formas, a
partir de outras linguagens no que se refere a sua intenção. Mas como
só posso fazê-lo sendo eu, é a fotografia, a criação da imagem luminosa
o que cabe. Construo imersa, depois de me perder, o que seria o caminho
do encontro. Um encontro ao que não tem nome, nem fim, e talvez nem
exatamente um sentido. As indagações que costuram meu pensamento
são norteadas pela ideia do rito como objeto fotografável, e, da fotografia
em si como um rito a partir do gesto performativo de fotografar. Sendo a
experiência de imersão, parte fundante desse processo criador; a prática
relacional, atua como criadora de espaços onde tal realização intima se
torna possível. Os grafismos tradicionais Huni Kuin são chamados de
Kene, e feitos exclusivamente por mulheres; antecedendo a cerimonia, a
pintura corporal já é parte do rito, uma preparação:

“[...] Trazem no corpo pinturas exclusivas: cada qual se


apresenta como a representação do espírito da natureza
(animal ou outro) que o protege e lhe transmite os ensina-
mentos mágicos que lhe dão o poder da cura e da premoni-
ção [...] O sistema de pinturas corporais Xerente constitui
uma linguagem ativa, estritamente vinculada à estrutura
social e que é tomada como referência na definição de pa-
péis e de relações sociais. [...] Uma vez pintados, porém, os
corpos expressam uma classificação que é clânica (e con-
seqüentemente, de metades) e inequívoca. Nesse sentido,

2 São Paulo, v. 7, e185779, 2022.


a pintura corporal diz algo de fundamental sobre essa so-
ciedade e corresponde a uma perspectiva que ilumina as-
pectos da vida social Xerente, tornando-os evidentes”. (Vidal
1992/2007, 100).

Há também imagens do feitio de Rapé: tabaco moído com cinzas e cas-


cas de folhas soprado nas narinas com um instrumento chamado tepi;
cuja função física primária é descongestionar as vias respiratórias, essa
sagrada medicina tem tido nos últimos anos uso acentuado em grandes
cidades, sendo utilizada inclusive no tratamento à dependentes químicos.
Os cantos de rezo chamam os “espíritos da floresta”, e cura se faz aos pla-
nos etéreos. Entre minhas motivações para a realização deste trabalho, é
sem dúvida contribuir de modo se não extinguirmos, ao menos possamos
amenizar a aura de desentendimento e preconceito sobre o uso milenar
das citadas plantas de poder. Na sequência, mais alguns registros das
circunstâncias especificas que investigo, a fotografia ritual em situações
cerimoniais com o uso da Ayahuasca. Utilizada por 72 grupos indígenas da
Bacia Amazônica, é conhecida por cerca de 42 nomes diferentes; também
utilizada pelas religiões de origem brasileira: Santo Daime, Barquinha e
União do Vegetal. Descreve um Pajé Huni Kuin em Una Isî Kayawa: o livro
da cura do povo Huni Kuin do rio Jordão:

O uso da bebida é um meio de aprendizado, que faz parte do


treinamento necessário para se adquirir coragem, habilida-
de na caça e na guerra, ver os espíritos, e aprender a conhe-
cer o mundo, viajar e ver as coisas que existem para além da
aldeia. É também utilizada pelo pajé para obter informação
a respeito da causa de uma doença, evocar os espíritos e se-
res da floresta para as curas dos males físicos e espirituais.
(Ika Muru et al 2014, 153)

Em David Kopenawa e Bruce Albert (2015, 119) “[...] Esses espelhos cobrem
a floresta desde o primeiro tempo, e os espíritos se deslocam sobre eles
sem parar, brincando, dançando ou guerreando. Foi nesses espelhos que
vieram à existência e é deles que descem em nossa direção. É também
neles que depositam nossa imagem quando nos fazem xamãs.”. Para
finalizar essa apresentação, trago uma pequena reflexão sobre a fotografia
de Claudia Andujar, cuja trajetória influenciou a produção da pesquisa:

[...] a partir da percepção, a fotógrafa intui que sua dura-


ção tem essencialmente o poder de revelar outras durações,
de englobar as outras e de englobar ela mesma ao infinito,
como descreveu Deleuze.

Nas últimas fotografias desta exposição, acedemos à Duração


única, de que falava Bergson. Porque, como lemos em Lapou-
jade. E agora precisamos repetir: “só a intuição pode me pôr
em contato com durações outras que a minha, pois ela me
revela que não sou apenas duração interior, mas também
élan vital e movimento material ou esforço do universo in-
teiro para retomá-la paradoxalmente em um monismo que

3 São Paulo, v. 7, e185779, 2022.


atesta a prodigiosa plasticidade do espírito e da extensão de
seus circuitos de reconhecimento. (Garcia dos Santos 2005)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Garcia dos Santos, Laymert. 2005. Experência estética e simpatia bergsoniana. In A Vulner-
abilidade do ser/ Territórios Interiore: A fotografia de Claudia Andujar. São Paulo: Cosac
Naify / Pinacoteca do Estado. https://www.galeriavermelho.com.br/pt/artista/49/
claudia-andujar/textos
Ika Muru, Agostinho Manduca Mateus; Alexandre Quinet (Org.). Ika Muru, Agostinho Manduca
Mateus; Manuel Vandique Dua Buse e o povo Huni Kuin do rio Jordão. 2011/2019.
Una isi kaiawa: o livro da cura do povo Huni-Kuin do Rio Jordão. Rio de Janeiro: Dantes.
Kopenawa, Davi; Bruce Albert. 2015. Aqueda do céu: palavras de uma xamã Yanomami. São
Paulo: Companhia das Letras.
Narby, Jeremy. 2018. A serpente cósmica: O DNA e a origem do saber. Rio de Janeiro: Dantes.
Vidal, Lux. (Org.). 1992/2007. Grafismo Indígena. Silva, Aracy Lopes da; Agenor T. P. Farias.
Pintura corporal e sociedade: os “partidos” Xerente. São Paulo: Studio Nobel: EDUSP:
FAPESP.

4 São Paulo, v. 7, e185779, 2022.


5 São Paulo, v. 7, e185779, 2022.
6 São Paulo, v. 7, e185779, 2022.
RESUMO
A investigação do rito como objeto fotografável e da fotografia em si como
um rito a partir do gesto performativo de fotografar são os norteadores
deste trabalho. Fruto de uma experiência de imersão junto ao povo Huni
Kuin em 2017, e o desenvolvimento de um trabalho fotográfico realizado em
circunstâncias cerimoniais com uso das plantas de poder amazônicas, o
texto/contação “Fotografia Ritual: Uma experiência com o povo Huni Kuin”.

ABSTRACT
The investigation of the rite as a photographable object and photography
itself as a rite from the performative gesture of photographing are the
guidelines of this work. Fruit of an immersion experience with the Huni
Kuin people in 2017, and the development of a photographic series carried
out in ceremonial circumstances using Amazonian power plants, the
text/story “Ritual Photography: An experience with the Huni Kuin people”.

BÁRBARA MILANO é fruto entre o preto, o branco e o ancestral da terra Pindorama. Mes-
tranda em Artes pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP,
2020) onde desenvolve o trabalho “Fotografia Ritual” na linha de pesquisa: Processos
e Procedimentos Artísticos. Cursou graduação em Artes Visuais pela mesma instituição
(UNESP, 2015). Atualmente atua como artista em exposições e residências, a costura entre
diferentes linguagens desafia a forma – do corpo como ato [performatividade] à fotografia
como registro silencioso. Seu corpo é suporte de vivências imateriais. Integra os grupos
de pesquisa GIIP/CAT (UNESP) na área de artes e tecnologia e o coletivo independente de
mulheres racializadas Nacional Trovoa. E-mail: barbara.milano@unesp.br

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Recebido: 15/05/2021
Aprovado: 14/09/2021

7 São Paulo, v. 7, e185779, 2022.

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