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Nos Braços De Um Estranho

SWEET SENSATIONS
Julie Tetel Andreson

Eles precisavam desesperadamente um do outro.


Vivendo sozinha em sua fazenda do Maryland, Bárbara
Johnson só tinha filha a quem dedicar afeto. Embora fruto da
brutalidade da guerra, a criança havia libertado o coração de
Bárbara para o amor. Mas agora, o passado ameaçava-lhe a
paz conseguida a duras penas. Foi quando apareceu 1
estranho,, maltratado pela vida, a única pessoa que poderia
devolver lhe a felicidade...
Morgan Harris era 1 homem perseguido pelo passado hostil,
até transpor a porta de Bárbara. Soube, então, que sua fuga
chegara ao fim... Ali, junto dessa mulher extraordinária,
encontrou a coragem e a energia que salvariam seu coração
destroçado!
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Digitalização e revisão Joyce
CAPITULO I

North Point, Maryland Fazenda Johnson Novembro de 1815

Ela acreditava não poder amar ninguém com tanta pureza, ou profundidade, quanto a filhinha de cinco
meses.
Aconchegou-a bem entre os braços, por apenas mais um momento, observando-lhe as pálpebras fechar
de satisfação sonolenta. Suspirando com o próprio contentamento, a mulher levantou-se da cadeira de
balanço e tirou a criança do seio em que a tinha amamentado. Em seguida, deitou-a no berço próximo á
lareira de pedra a fim de receber-lhe o calor, mas afastado o suficiente para não ser atingido por
fagulhas.
Enquanto arrumava os seios sob a camisa e abotoava a blusa do vestido, olhou amorosamente para a
filha. Depois, ajeitou o xale sobre os ombros, alisou a saia e dirigiu-se para a mesa de cavalete, do outro
lado do aposento, com a intenção de jantar.
Nesse instante, ouviu-se uma batida na porta.
Não esperava ninguém e raramente recebia visitas. Sentiu uma leve ansiedade e hesitação e imaginou se
deveria abrir a porta. Sacudiu a cabeça e censurou-se: Não seja tola, Bárbara! A preocupação não
passava de um resíduo da época, mais de um ano atrás, quando os casacos vermelhos infestavam a
região, ameaçando capturar Baltimore. A pessoa à porta só podia ser um dos fazendeiros vizinhos, vindo
trazer alguma novidade, ou pedir um favor. Com certeza, tratava-se do velho Ben Skinner, ou Michael
Gorsuch, ou ainda Jacob Shaw.
Atravessou o aposento ate a porta da frente e abriu-a. Na sombra do terraço, estava um homem cuja
altura e silhueta não pertenciam a nenhum de seus conhecidos. A ansiedade retornou, porém era tarde
demais para recuar. Ouviu uma voz grave e sonora perguntar-lhe:
— Sra. Johnson?
— Sim, sou a sra. Johnson — confirmou com voz seca.
O homem deu um passo à frente, entrando no retângulo de luz projetado através da porta aberta. Tirou o
chapéu e Bárbara viu os traços viris e bem marcados. Os olhos eram de uma tonalidade azul muito
escura.
— Segundo me informaram, a senhora perdeu dois arrendatários e talvez esteja precisando de alguém
para ajudá-la, aqui na fazenda, durante o inverno.
— Quem lhe disse isso? — indagou Bárbara.
O estranho apontou para a direção de Long Log Lane.
— Um homem na casa de culto. Se não me engano, chama-se Ben Skinner. Ele ainda me informou que
Jacob Shaw também precisava de alguém. Fui procurá-lo primeiro e estou vindo de seu sítio, mas ele já
tinha contratado dois empregados na semana passada. Por isso, vim falar com a senhora.
Bárbara Johnson percebeu que o homem falava a verdade. Também deu-se conta de que ele não era da
região de Baltimore, pois se fosse, saberia que um fazendeiro dali não chamava sua fazenda de "sítio",
por menor que fosse.
Observou-lhe o corpo. Apesar do volume do sobretudo modesto, teve a impressão de tratar-se de um
homem forte e musculoso, embora magro. O rosto confirmava a idéia e os olhos revelavam fome.
Como se mantivesse calada, ele prosseguiu:
— Os homens na casa de culto me fizeram as perguntas que devem estar lhe ocorrendo agora e ficaram
satisfeitos com minhas respostas. Só então, mencionaram seu nome. — Um leve brilho iluminou-lhe os
olhos extraordinários. — Jacob Shaw repetiu as indagações antes de me explicar o caminho do sítio para
cá. — Fez uma pausa. — Todos sabem que estou aqui e eu sei que a senhora é viúva — acrescentou
olhando para sua aliança.
A maneira direta e natural de informá-la desses dois detalhes a agradou. O estranho não estava ali para
importunar uma mulher que morava sozinha. Ele, apenas, buscava trabalho.
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E isso era o que ela podia lhe oferecer. Saiu para o terraço e puxou bem a porta a fim de impedir a
passagem do frio, mas conservou a mão na maçaneta.
— Temos de conversar sobre as condições.
— Claro — concordou ele. — Para facilitar seu entendimento, quero explicar já que não pretendo
permanecer aqui por muito tempo, só durante o inverno. Como estou procurando trabalho temporário,
sairá mais barato para a senhora.
Mais uma vez, Bárbara apreciou-lhe a franqueza. O sujeito não se sentia forçado a contar a história de
sua vida, nem as razões pelas quais batia a sua porta agora e partiria tão logo chegasse a primavera.
Simplesmente, estava ali. Poderia aceitar ou dispensá-lo. Sabia que ele esperava ficar, mas não
imploraria nem, muito menos, a bajularia.
— Acho desnecessário informá-la que a ajudarei até o início das plantações — disse ele.
Bárbara hesitou só mais um instante. Começava a ficar com frio ali fora, por isso, tomou uma decisão.
Empurrou a porta às costas e, com um leve movimento de cabeça para o estranho, declarou:
— Muito bem. Vamos entrar e conversar sobre as condições. Podemos fazer isso enquanto jantamos.
Percebeu uma pequena reação de alívio nas feições do homem. Talvez fosse provocada pela perspectiva
da refeição, ou pela idéia de escapar do frio.
— Certo. Mas se vamos gastar algum tempo, eu gostaria de levar meu cavalo ao estábulo.
Como não o tivesse ouvido se aproximar, Bárbara havia imaginado que ele viera a pé. Olhou para fora
do terraço e, apesar da quase completa escuridão do anoitecer, viu a forma de um cavalo grande, mas
magro. Devia estar com tanta fome quanto o dono. Dava para ver também um saco de dormir enrolado e
preso atrás da sela. Apontou para o telheiro do outro lado do caminho em frente à casa.
— Pode deixá-lo lá. É onde largo a charrete e o cavalo quando não tenho tempo para ir até o estábulo.
Este fica longe.
Enquanto o homem descia os degraus do terraço, ela acrescentou:
— O capim no telheiro está mais ou menos fresco e, ontem, pus lá um balde grande de água. Use os dois
à vontade.
— Sim, senhora — respondeu ele ao soltar o cavalo da grade do terraço e afastar-se.
Bárbara entrou depressa. Friccionou os braços enregelados e, automaticamente, olhou para o bebê que
continuava a dormir, sossegado.
Pôs na mesa, ao lado oposto ao seu, mais um prato, talheres, guardanapo e uma caneca.De posse de uma
jarra de cerâmica azul, foi enche-la de sidra de maçã, guardada no alçapão do lado de fora da porta de
trás. Lá, a bebida mantinha-se bem fria.
Ao pôr um pão e a faca de serra na mesa, Bárbara deu-se conta de ser essa a primeira vez em que um
homem jantava em sua casa depois da morte de Jonas. Estranho ter feito o convite, pois não era dada a
rasgos de generosidade. Com certeza, motivara-se pelo aspecto faminto do sujeito. Achou melhor
iluminar mais o aposento e colocou uma vela em cada ponta da mesa.
Pouco depois, ouvia os passos do homem no terraço e uma batida leve na porta anunciando sua entrada.
Ele trazia o mosquete que encostou na parede ao lado da porta. Aí, verificou se a tranqueta estava bem
fechada e, só então, tirou o sobretudo. Pendurou-o num cabide na parede ao lado do de Bárbara e pôs o
chapéu de couro sobre ele. Sua presença encheu o ambiente.
Vendo-o sob uma claridade melhor, Bárbara Johnson notou-lhe os cabelos negros, quase com reflexos
azulados. Ele os tinha puxados para trás e amarrados à nuca. Depois, observou-lhe as roupas. Calça de
pelica de gamo, manchada em vários lugares, colete de couro, camisa branca e limpa, jaqueta azul-
marinho já um tanto surrada e botas bem gastas. O rosto, apresentava a barba por fazer há vários dias.
Pelos moldes convencionais, não era um homem atraente, porém ela achava que as feições meio
irregulares tinham um certo encanto. Não era jovem. Já devia ter passado dos trinta e cinco. Ocorreu-lhe
tratar-se de um homem tranquilo. Não, não muito. Talvez até um pouco vibrante.
Atencioso também, reconheceu ao vê-lo junto à porta, esperando uma palavra sua para se aproximar.
— Venha. Sente-se ali — disse ela ao indicar-lhe o lugar à mesa. Ele acomodou-se no banco e Bárbara
levou os pratos até a lareira onde o ensopado borbulhava num caldeirão de ferro pendurado num gancho.
Serviu os dois sendo a porção dele o dobro da sua. Depois de deixá-los na mesa, voltou à lareira de cuja
prateleira interna de tijolos, tirou uma tigela de cerâmica posta lá para aquecer o conteúdo. Dessa vez,
teve de usar um pegador de panela. Posta na mesa, mexeu-a com uma colher, provocando uma nuvem de
vapor.
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— Quiabo e tomate. O ensopado é de coelho — explicou. Encheu as canecas de sidra e, em seguida,
cruzou as mãos acima da mesa e agradeceu a Deus pelo alimento. O seu "amém" foi repetido por ele.
Já ia começar a comer quando lhe ocorreu algo.
— Desculpe, esqueci de oferecer-lhe água para se lavar antes de comer.
— Não tem importância. Fiz isso lá no telheiro.
— Que horror! Aquela água deve estar quase congelada! — exclamou Bárbara desapontada com sua
falta de hospitalidade.
Tanto tempo sem receber ninguém a tinha deixado sem prática.
— Ainda não, mas vai congelar esta noite, sem dúvida.
O comentário a levou ao primeiro ponto de informação a ser dado.
— O senhor poderá dormir na casa ocupada pelo casal que foi embora. Fica no fim do caminho, atrás do
estábulo e de frente para o oeste. Não é grande, tem apenas um cômodo, mas a chaminé da lareira é
muito boa e o senhor pode mantê-la bem aquecida.
Bárbara começou a comer e ele seguiu-lhe o exemplo. Depois do primeiro bocado, indagou:
— A senhora cobra aluguel pela casa, ou ela faz parte do pagamento a combinar?
— Eu a considero condição essencial para esse tipo de trabalho.
— Uma questão a barganhar, então?
— Como assim? Está considerando uma forma alternativa de acomodação, tal como acampar o inverno
todo?
— Talvez. Depende de suas condições. Bárbara surpreendeu-se um tanto com a resposta.
— Pretende exigir muito?
Ele ofereceu um sorriso simpático.
— Não. Estou apenas tentando me recuperar por haver jogado minhas melhores cartas quando lhe disse
que meu trabalho valia menos por ser temporário.
— Por que explicou isso no início?
— Para poder passar logo pela porta — respondeu ele, mas ao ver sua expressão, acrescentou depressa:
— Uma figura de linguagem, sra. Johnson.
Ele baixou os olhos e concentrou a atenção no prato.
Bárbara apreciou-lhe o tato em esconder o olhar desconcertante. Mais uma vez, ele mostrava não ter a
intenção de tirar vantagem de uma mulher sozinha. Talvez, se a ocasião exigisse, ele pudesse ser
perigoso, mas as palavras e o porte relaxado, ao mesmo tempo contido, não provocavam sensação de
ameaça.
— Como vou saber se o senhor não vai repetir a cartada se obteve bons resultados com a primeira? —
perguntou em tom seco.
Os cílios negros levantaram-se revelando uma ponta de humor nos olhos azul-escuros. Havia entendido
bem a implicação da pergunta, porém era um homem cauteloso.
— Como assim, sra. Johnson?
— Por ter jogado cartas altas no início e me contar isso agora, talvez o senhor suponha ser possível me
levar a pagar mais do que eu pretendia sem sua interferência.
— De fato, mas não farei isso. Sempre jogo dólar por dólar. — Apontou para o prato. — Excelente o
seu jantar durante o qual tenho a oportunidade de barganhar pelo meu salário. Em retribuição, vou rachar
lenha quando terminarmos.
A pilha estava bem baixa e essa era uma tarefa que ela detestava.
— Feito — disse depressa.
— E vou empilhá-la ao lado da lareira. — Olhou para lá e, só então, viu o berço. Voltou a fitá-la. — A
senhora tem um bebezinho?
— Tenho. Uma menina. Chama-se Sarah — respondeu Bárbara, sorridente.
— De quantos meses?
— Cinco.
— Filha única?
— Sim.
Ele respirou fundo e olhou novamente para o berço. Quando retornou a atenção para a mesa, evitou
observar-lhe os seios volumosos que, aliás, já havia notado. Então, ela estava amamentando.
— Não deve ter sido fácil para a senhora nestes últimos meses — comentou.
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Bárbara continuou a sorrir.
— Sarah não significa problema algum. É um prazer cuidar dela. No começo, eu me cansava um pouco,
mas os vizinhos foram muito bons e me ajudaram bastante. Com a chegada do inverno, ficou mais
difícil, pois tenho medo de levá-la comigo para as tarefas lá fora. Por isso, preciso de alguém para me
ajudar. Pronto, mostrei minhas cartas, senhor.
— Mesmo sem um bebezinho, a senhora precisaria de alguém — disse ele, amável.
— E verdade, mas agora a necessidade é mais premente.
— Nesse caso, vamos acertar tudo. Que trabalhos espera de mim?
Bárbara passou a descrever as tarefas que ele esperava ser de um homem, proprietário ou capataz, de
uma fazenda de tamanho médio, durante o inverno. Não contava, entretanto, com a impressão de que as
tirava dela e não do marido morto. Enquanto continuavam a comer, indagou sobre o andamento de
várias atividades como o cuidado com os animais, a manutenção das cercas e das várias construções, o
tratamento da terra e o armazenamento dos cereais. Surpreso, descobriu estar tudo quase em dia.
— Pelo jeito, a senhora tem feito muito apesar de ser mãe viúva.
— Eu já estava acostumada a fazer essas coisas antes de Sarah nascer.
Ele apanhou o pão e a faca. Mais por interesse pelo trabalho do que por curiosidade, perguntou:
— Há quanto tempo o sr. Johnson morreu? Depois de um instante, Bárbara respondeu:
— Quatro anos.
Ele não cometeu o erro de olhar para o berço. Com mão firme, cortou o pão e ofereceu-lhe a primeira
fatia que ela aceitou.
— Muito bem. Espero que me pague tanto por mês — disse ao nomear uma quantia. — Mais a casa
atrás do estábulo.
Bárbara não aceitou. Em tom amigável, discutiram até chegar a um acordo satisfatório para ambos. Ela
teve a impressão de que o dinheiro era secundário para o homem. Tratava-se apenas de manter uma certa
aparência. Ele trabalharia por qualquer ninharia, pois queria somente um lugar para passar uns meses,
um refúgio talvez, e o tinha encontrado ali, concluiu com uma sensação estranha.
Terminada a negociação, ele estendeu a mão sobre a mesa e disse:
— A senhora me ofereceu um negócio decente e talvez queira saber que meu nome é Morgan Harris.
O seu sorriso o fascinou. Era a primeira expressão totalmente descontraída que via em seu rosto. Desde
o primeiro instante, a tinha considerado uma mulher muito bonita. Mas com esse sorriso, ela irradiava
uma beleza sem par, os cabelos loiros lembrando os de uma fada e os olhos tão azuis como um lago num
dia claro de primavera, não escuros como os seus. Ninguém havia lhe dito que a viúva Johnson era tão
jovem e desejável. Refletiu sobre o questionário feito pelos homens na casa de culto. Naquela hora, ele
devia ter desconfiado que a sra. Johnson era muito especial.
O sorriso de Bárbara foi provocado não só por constrangimento como também por um de seus raros
momentos de humor. Não se lembrar de perguntar como o homem se chamava significava estar mesmo
com falta de prática. Aceitou o aperto de mão oferecido por sobre a mesa e disse:
— Muito prazer em conhecê-lo, sr. Harris. Com certeza, o senhor me considera irresponsável por não
indagar seu nome.
— Não, eu a classifico como uma mulher interessada primeiro nos negócios, aliás, como deve ser —
respondeu ele sem lhe segurar a mão mais do que o necessário.
Ainda sorrindo, Bárbara levantou-se.
— Para compensar minha falta de boas maneiras, vou lhe oferecer uma xícara de café. Ela lhe dará mais
energia para rachar lenha.
Morgan agradeceu e, após levantar-se também, passou para o lado do cômodo usado como sala.
Apanhou o espeto de ferro a fim de ajeitar as achas na lareira. Feito isso, acrescentou mais uma. Por um
instante, observou o bebê aconchegado entre os cobertores no berço e dormindo tão tranquilamente. Mãe
e filha formavam uma dupla interessante. Sentiu uma leve curiosidade pela presença da criança neste
mundo.
— Como gosta de seu café, sr. Harris?
— Preto e sem açúcar — respondeu ele ao sentar-se no sofazinho marrom, encostado na parede oposta á
da lareira.
Apesar do estofamento duro, tentou ficar á vontade. Passou o braço sobre o encosto e esticou as pernas
para a frente. Sob tensão, havia cavalgado uma longa distância nesse dia. Desde a madrugada, este era o
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primeiro momento em que se sentia relaxado. Na verdade, a primeira vez nestes últimos quatro dias.
Impassível, observou a simplicidade e a ordem do aposento. Olhou para as duas porta, uma de cada lado
da lareira. Naturalmente, elas davam para os dois outros cômodos da pequena casa. Com uma ponta de
interesse, notou os dois violões e o banjo pendurados na parede transversal à da lareira e em cujo centro
ficava a porta de entrada, seguida pelos cabides para casacos. Os instrumentos constituíam a única
decoração e quebravam, um pouco, o aspecto prático do aposento. Num canto, havia um pequeno tear.
Um tecido ocupava um terço da esquadria, a urdidura em verde e a trama em azul. Uma roda de fiar,
vazia, ocupava um outro canto.
Semicerrou os olhos e fixou-os no fogo. Tinha consciência dos movimentos domésticos da sra. Johnson
no lado usado como cozinha. Sentia se bem. Tão bem quanto um homem em sua situação precária
poderia se sentir.
Ela aproximou-se com a xícara de café. Morgan deu-se conta de estar com certa expressão, pois quando
se fitaram, a sra. Johnson fez menção de recuar como se tentasse escapar de labaredas de fogo. Ele
endireitou-se um pouco, apanhou a xícara, tendo o cuidado de não tocar-lhe a mão, e murmurou um
agradecimento.
Bárbara sentou-se a sua frente, na cadeira de balanço, junto ao berço. Estava mais calma e sugeriu-lhe
para descrever alguns de seus empregos anteriores. Morgan percebeu ter disfarçado a tal expressão que a
tinha amedrontado. Atendeu o pedido direta e francamente. A certa altura, ela perguntou:
— Qual é a sua terra natal, sr. Harris?
Ele já ia usar a resposta habitual quando ouviram passos de botas no terraço, seguidos por uma forte
batida na porta. Absolutamente surpresa e com olhar interrogador, Bárbara o fitou.
— Não, sra. Jolinson, não estou sendo seguido assim tão de perto — explicou ele percebendo que, se a
porta fosse aberta, o recem-chegado o veria de frente.
A uma segunda batida insistente, Bárbara levantou-se e, um tanto nervosa, pós a xícara no mantel da
lareira.
Morgan ergueu-se também. Achava ter escapado de uns dois homens que talvez o seguissem. Mas por
precaução, deixou a xícara na mesa da cozinha e foi postar-se do lado da porta cuja folha, se aberta, o
esconderia.
Bárbara respirou fundo e entreabriu apenas uma fresta. Nada poderia deixá-la mais atônita do que o
reconhecimento da pessoa a sua frente.

CAPITULO II

-Tenente Richards?! — murmurou Bárbara mal acreditando em seus próprios olhos.


- Sra. Johnson, boa noite — cumprimentou ele em tom frio. O som da voz e o sotaque britânico a
convenceram da identidade do homem. Não respondeu a saudação e disse a primeira coisa que lhe veio à
mente.
— Isto não é uma surpresa agradável.
— Não imaginei que fosse — respondeu o tenente sem se importar com a recepção rude.
— Então, por que veio? — demandou ela mantendo a porta semicerrada.
— Para visitá-la e me inteirar das últimas novidades a seu respeito.
Bárbara não guardava boas recordações desse homem. Não gostava dele e, muito menos do fato de estar
ali. Sua aparição inesperada transformava a ansiedade, sentida nessa noite, em medo tão forte quanto o
amor pela filha. Tentou controlá-lo e refletir com lucidez a fim de livrar-se depressa do sujeito.
— Não tenho novidade alguma — declarou, ríspida.
— Então, não há de se opor em compartilhar comigo sua vida insípida.
— Pois me oponho não só a isso como também a continuar perdendo meu tempo com o senhor. Os
casacos vermelhos foram expulsos do país há mais de um ano e convidados a não retornar. Suas
maneiras deixam muito a desejar e eu apreciaria se fosse embora.
Bárbara começou a fechar a porta, mas o tenente, com o pé, a impediu. Todavia, ele não forçou a
passagem.
— Entenda, sra. Johnson, minha insistência em falar com a senhora deve-se ao fato de que venho em
nome de outra pessoa.
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— Sua missão não seria vingar os mortos?
— Não, mas de certa forma, represento um — respondeu o tenente em tom mais cordial.
— Como assim? Seja mais claro.
— Quero lhe falar em nome de uma mulher — adiantou ele.
— Sei. Ela está morta?
— Ela não, mas o marido.
A sensação de perigo dominou Bárbara.
— De quem se trata? — indagou.
— Da sra. Ross.
— Onde está ela?
— Em Baltimore.
A sensação transformou-se em pânico e Bárbara tentou fechar a porta. Nesse instante, Sarah acordou.
Seu choro distraiu a atenção da mãe e animou o tenente.
— A senhora tem um bebe! — exclamou ele num misto de repreensão e interesse.
A resistência de Bárbara cedeu e o intruso deu um passo à frente. Só então, ela viu, no terraço, a silhueta
de dois outros homens que acompanhavam o tenente.
— Bondade sua me deixar entrar — disse ele com espantosa falta de ironia.
Ciente da derrota e aceitando o inevitável, Bárbara o fitou antes de ir pegar Sarah, cujo choro a
influenciava mais do que o desprezo. Sentia a necessidade premente de estreitar a filha ao peito e jamais
se separar dela.
— Homens — chamou o tenente ao fazer um sinal aos dois indivíduos no terraço para entrar também.
Eles o atenderam e ficaram ao lado do sofazinho.
Só após fechar a porta, o tenente Richards viu Morgan Harris que o fitava calma e curiosamente.
O tenente olhou do homem alto e forte para a sra. Johnson que levantava o bebê nos braços. Ele meneou
a cabeça num gesto interrogativo e fez um cálculo rápido da situação.
Bárbara percebeu e teve um lampejo de inspiração que a deixou leve e meio atordoada. Tinha a
explicação perfeita para as perguntas humilhantes e amedrontadoras do tenente Richards. Seu plano era
audacioso, brilhante e óbvio. Afastou-se do berço e aproximou-se do intruso.
- Surpreso, tenente Richards? Quero apresentá-lo a meu marido - Fitava-o bem dentro dos olhos, dando
tempo a Morgan de absorver o impacto de suas palavras. Bem devagar, recitou os nomes: — tenente
Richards e Morgan Harris. — Só então, virou-se para o novo empregado. — Morgan, querido, este é o
tenente Richards que
e steve acampado em North Point no ano passado.
Morgan Harris não estendeu a mão. Não se mexeu e nem exibiu reação imediata. Continuou estudando o
tenente por mais alguns segundos e, depois, olhou para os dois sujeitos ao lado do sofá. Avaliou-os por
uns instantes. Só então, falou em voz grave e pausada:
— O senhor ouviu minha mulher. Sua presença aqui é indesejável.
Bárbara sentiu um alívio imenso. O tenente Richards, constrangido por encontrar um homem na casa,
tornou-se mais atencioso.
— Mas ainda não ouvi suas novidades e, se não me engano, ela tem muitas.
Morgan não fazia a mínima idéia do que estava acontecendo, porém sua capacidade de adaptação era
grande. Sem desviar os olhos do rosto do tenente, insistiu, ríspido:
— O fato de minha mulher não querer falar com o senhor continua inalterado.
De maneira expressiva, olhou para o mosquete ao lado da porta. O tenente, entretanto, não se
impressionou. Tirou o sobretudo, exibindo roupa de civil. A elegância londrina destacava-se no
ambiente rústico. O cabo de uma pistola podia ser visto pela abertura do paletó, o cano enfiado na
cintura da calça. Os dois homens, junto ao sofá, entenderam o gesto e entreabriram os sobretudos.
Ambos portavam armas semelhantes.
— Mesmo assim, e implorando sua indulgência, eu gostaria muito de conversar com a sra. John..., quer
dizer, sua esposa. Vim de muito longe e, como disse, representando uma viúva cujo marido sua mulher
conheceu. Apreciaria alguns minutos de sua atenção.
Considerando a linguagem muda e forte das três pistolas, Morgan comentou, lacônico:
— Persuasivo! — Virou-se para a nova patroa e disse: — Deixo a decisão para ela.
Bárbara mudou Sarah para o outro braço. Percebeu a vantagem da uma nova tática. Contando com a
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segurança da presença de Morgan Harris, talvez fosse melhor conversar com o tenente. Ele não cederia
facilmente do propósito da visita.
— Cinco minutos de meu tempo não vão perturbar nossa privacidade. Você tem algo contra, Morgan?
— Não, caso você não tenha, meu amor.
Fitaram-se por um momento breve e eletrizante antes de Bárbara, constrangida com o tratamento
carinhoso, desviar o olhar.
— Pois então, vamos convidar o tenente para nos acompanhar numa xícara de café — disse ela e
dirigiu-se ao recém-chegado — Aceita, senhor?
— Sim, obrigado. Com um pouco de creme, se tiver. Recebendo sua mensagem silenciosa, Morgan a
acompanhou à área da cozinha, do lado oposto ao da sala. Com a mão livre, Bárbara apanhou outra
xícara. Disfarçadamente, olhou para o tenente e viu que ele, de costas, falava com os dois homens.
Aproveitou para cochichar a Morgan:
— O que está achando?
— Seria bom se a senhora arranjasse um cachorro.
Ela não escondeu o espanto com a irrelevância da resposta.
— Um cachorro, no futuro, a avisará da aproximação de um visitante a tempo de conceber uma história
que a exponha ao menor risco possível — explicou ele bem baixo para, em seguida, falar em tom
normal: — Vou pegar o bule.
Enquanto Morgan fazia isso, Bárbara foi buscar creme no alçapão do lado de fora da porta de trás.
Refletiu sobre a sugestão de arranjar um cachorro. Morgan Harris conseguira dar uma ponta de humor à
situação que ele próprio parecia reconhecer como perigosa, sob vários aspectos, para ela.
Reencontraram-se junto à mesa onde Bárbara preparou a xícara do tenente.
Ao atravessar o cômodo em direção a ele, sentiu-se como urna criminosa a caminho do banco dos réus.
Apesar de Morgan Harris aceitar seu plano, a apreensão com a visita do tenente Richards crescia a cada
segundo.
O visitante ficou em pé e só voltou a se sentar após receber a xícara c Bárbara se acomodar na cadeira de
balanço. Morgan Harris ficou em pé, atrás dela, e os dois sujeitos postaram-se um de cada lado da porta.
— Vim de muito longe para lhe contar esta história — começou o tenente Richards — E sobre a sra.
Ross a quem não conhece, não é, sra. John...
Com a mão no ombro de Bárbara, Morgan aparteou:
- Antes de o tenente continuar, meu amor, você quer mais café?
Ela esforçou-se para disfarçar a surpresa provocada pelo contato, virou-se para trás e levantou os olhos
com expressão de ternura.
— Não, obrigada — agradeceu menos ansiosa.
— Desculpe a interrupção, tenente. Pode prosseguir — disse Morgan em tom calmo.
Embora o tenente houvesse testemunhado a cena afetiva com ceticismo, ela lhe causou algum impacto.
Ao recomeçar a falar, já não mostrava a mesma autoconfiança.
— Bem, como eu dizia, a história é sobre a sra. Ross começou cinco meses atrás quando ela acordou,
de manhã, após haver tido um sonho. Este foi tão estranho e nítido a ponto de a sra. Ross se convencer
de que ele lhe mudaria a vida.
Bárbara ouvia com um misto de atenção e desinteresse.
— Um sonho?! — exclamou com um leve sarcasmo.
— Exato. Ela sonhou que havia dado á luz um filho do marido. Curioso, pois ele morrera há nove meses
e, antes disso, estava longe da mulher há uma longa temporada.
O coração de Bárbara começou a bater mais depressa. Entretanto, ela manteve o olhar impassível. —
.Sei. E daí?
— A sra. Ross ficou certa de que o marido deixara um filho neste mundo.
— Um ou vários — comentou Bárbara em tom indiferente.
— Durante os vinte anos de casamento, a sra. Ross não recebeu a bênção da maternidade e o marido,
que se saiba, não deixou filhos - explicou o tenente.
— Sinto muito pela sra. Ross — comentou Bárbara de maneira convincente, embora o medo retornasse.
— Pois é, a esterilidade foi sempre motivo de tristeza para ela. Até ter o tal sonho.
— Não entendo por quê — disse Bárbara.
— Ele lhe deu a esperança de que exista uma criança do marido — explicou o tenente com um olhar
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significativo para o bebê em seus braços.
— As mulheres, muitas vezes, tem esse tipo de sonho e a sra. Ross pode ter sonhado a mesma coisa
antes — opinou Bárbara sem desviar o olhar.
— Ela me garantiu nunca haver tido tal sonho.
— Para ser franca, tenente, não faço idéia por que esteja me contando essa história.
— Talvez antes de continuar, sra. Harris — fez uma pausa e olhou para Morgan atrás de sua cadeira —
a senhora prefira conversar em particular.
— De forma alguma, tenente! — declarou ela com firmeza.
— Mas o assunto é de ordem pessoal e data de uma época anterior a seu segundo casamento.
— Não guardo segredos para meu marido. E se fôssemos conversar em particular, o senhor teria de
mandar seus dois companheiros para o terraço — argumentou Bárbara sem, ao menos, piscar.
Como o tenente não tivesse a intenção de fazer isso, deu de ombros
— Muito bem. A sra. Ross está procurando o filho.
— O do marido, o senhor quer dizer. Na melhor das hipótese
— Aí é onde entra a interpretação desses assuntos delicados. No sonho, a mãe da criança tinha cabelos
loiros e olhos azuis como os da sra. Ross, mas também como os seus, sra. Harris. Lembrei-me de que o
marido dela estivera aqui em Maryland. Faz um ano em agosto e ele morreu em setembro. Nesse mês,
ele a conheceu intimamente, por isso, comecei a imaginar...
Calou-se e Bárbara o interpelou:
— Sobre o que?
— A respeito da interpretação de sonhos e leis. Refleti também sobre a questão de paternidade e de
arranjos financeiros. Essas coisas.
Ele acabava de lhe fazer uma ameaça vaga e, por isso mesmo, perigosa. Bárbara custava a dominar o
medo.
— O senhor veio bater em porta errada — declarou, mas sem impedir o tremor da voz.
O tenente Richards percebeu a abertura e tirou proveito. Brusco, indagou:
— Quantos meses tem o seu bebe?
Barbara controlou-se. - Três — mentiu. - Por acaso ele nasceu atrasado?
Barbara não se deixou ofender pelo insulto e respondeu tão calmamente quanto podia:
-Não. Minha filhinha nasceu na época certa. — Sabia que o tenente, por enquanto, não podia desmentir
sua afirmativa. Novamente, fitou Morgan com expressão afetuosa. — Estamos casados há um ano.
-Isso mesmo — concordou Morgan retribuindo-lhe o olhar. — Vamos comemorar nosso primeiro
aniversário de casamento esta semana.
O tenente franziu as sobrancelhas e jogou uma carta perigosa.
-Para um marido, o senhor está se mantendo calmo demais em relação a minha conversa com sua
mulher.
Morgan enfrentou o desafio.
-Ela não escondeu nada de mim e um bom marido sabe quando deve deixar a mulher cuidar de seus
próprios assuntos.
O momento pedia algo mais veemente, percebeu ele. Ao olhar para a sra. Johnson, um segundo antes,
notara-lhe o medo. Embora soubesse que a criança poderia estranhar seu colo e protestar chorando,
estendeu os braços e a pegou.
- Devia ter se dirigido ao pai do bebê, tenente. Como estou certo de que Sarah é minha filha, o assunto
está encerrado — concluiu satisfeito por ter se lembrado do nome da criança.
— Sarah?! — balbuciou o tenente entre encantado e incrédulo.
— Sim, Sarah — Bárbara conseguiu confirmar, apesar de assustada.
— Incrível! Esse é o primeiro nome da sra. Ross e também da criança do sonho — contou o tenente.
— E ainda o de minha mãe — mentiu Bárbara outra vez.
— Aliás, um nome bem comum e uma coincidência interessante que não prova nada. Como eu disse,
sou o pai.
— Tal afirmativa pode ser contestada — salientou o tenente.
— O senhor está pisando em terreno perigoso e por várias razões — Morgan Harris disse com
veemência suficiente para deixar clara a intenção.
Calada e num gesto automático, Bárbara estendeu os braços em direção a Sarah. De boa vontade,
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Morgan devolveu a filha à mãe.
Bárbara sentia-se atônita, além de amedrontada. Lembrava-se da madrugada em que acordara com as
primeiras contrações. Sem razão alguma, tinha decidido dar o nome de Sarah ao bebê, caso fosse
menina.
O tenente enfrentou o olhar de Morgan Harris.
— O que quer dizer? — demandou.
Morgan aproximou-se do sofazinho a fim de encarar o tenente mais de perto. Este, para não ficar em
posição inferior, levantou-se.
— Há dois homens ladeando a porta — começou Morgan em voz calma. — Um deles está bem na
frente de meu mosquete. Os dois e o senhor estão armados. Há instantes, mencionou interpretações. Se
pretende interpretar minhas palavras como uma ameaça e quiser desafiá-la, não espero conseguir
persuadi-lo do contrário. — Calou-se por um instante, antes de prosseguir: — O senhor também
mencionou considerações financeiras. Imagino que a sra. Ross o esteja pagando muito bem pelo trabalho
desta visita.
Os olhos do tenente fuzilaram.
— A sra. Ross é riquíssima! — afirmou, zangado e em tom afrontoso.
Sem se mostrar impressionado e habilmente, Morgan mudou o tom da conversa de confronto para
negociação.
— Muito bem. O que o senhor deseja de nós? Ou melhor, o que a rica sra. Ross deseja após uma
viagem longa inspirada apenas em um sonho? Ela se contentaria em ver a criança?
O tenente Richards não soube responder logo. Não tinha imaginado encontrar um homem ali e, a bem da
verdade, a existência de um bebê não passara de mera suposição. A sra. Ross, por outro lado, só se daria
por satisfeita quando embarcasse de volta para a Inglaterra com a filha do marido.
Bárbara teve de lutar contra o pânico e não gritar: "A sra. Ross não pode ver Sarah! Caso isso aconteça,
vai ficar fascinada e lutar por sua posse!"
— Não sei. Isso vai depender da vontade da sra. Ross — declarou o tenente.
— E da nossa — rebateu Morgan que, perseguido por demônios bem mais perigosos, não sentia um
pingo de medo da inglesa rica.
-O senhor disse que ela está em Baltimore. Traga-a aqui amanhã para acabar, de vez, com essa fantasia.
Sua alta suscetibilidade abrandará quando conhecer o pai da criança.
O tenente refletiu sobre a proposta. Sua idéia era convidar a sra. Johnson a acompanhá-lo a Baltimore na
manhã seguinte a fim de conhecer a sra. Ross. Isso, entretanto, fora antes de saber de seu novo
casamento.
Seria verídico? Tinha suas dúvidas. E de quem seria o bebê em seus braços?
A situação tornava-se interessante. As apostas eram altas e sua posição, segura o suficiente para ele por
em cheque as várias indagações.
- Falarei com a sra. Ross amanhã cedo. Embora Baltimore não fique longe, já é bem tarde. Por isso, vou
continuar a abusar de sua hospitalidade. — Ao ver o choque estampar-se no rosto da jovem mãe,
perguntou mansamente: — Tem alguma razão para não me acomodar por uma noite, sra. Harris? —
Olhou para o homem alto e forte a seu lado. — Sr. Harris?

CAPITULO III

Morgan Harris raciocinou depressa enquanto relanceava o olhar pelos dois homens junto à porta.
— Nossa casa não é hospedaria para receber três homens. Os senhores não são visitas convidadas.
— Está nos negando hospitalidade? — demandou o tenente com um olhar significativo para os outros
dois sujeitos.
— Não. Recuso apenas a aceitar sua pressuposição de passar a noite aqui sem pagar nada.
Com ar condescendente, o tenente disse:
— Ofereço cinco libras pela pousada.
— Cinco por pessoa, levando-se em consideração a riqueza da sra. Ross. Se for assim, negócio feito.
Como o tenente não respondesse, Morgan acrescentou após um instante:
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— Não somos obrigados a deixar a sra. Ross ver o bebê. Em caso negativo, a longa viagem para cá terá
sido inútil.
— O senhor é um negociante e tanto — comentou o tenente. Morgan sorriu como se tivesse recebido
um elogio.
— Queremos em dólares o equivalente às quinze libras. Metade adiantada.
Mais uma vez, o tenente não respondeu logo e Morgan aproveitou para dar uma explicação.
— É pelo trabalho de minha mulher. Não concordo em incomodar as pessoas desnecessariamente e,
muito menos, sem compensação.
Tratava-se de um insulto e o tenente respondeu com outro:
— Durante meu ano de ausência, esqueci como os americanos são rudes e grosseiros.
Nesse caso, foi bom eu lembrá-lo — comentou Morgan rindo. Depois de contar umas moedas e entregá-
las a Morgan, o tenente dirigiu-se a Bárbara:
- Foi esta, então, a razão de seu choque quando anunciei a intenção de passar a noite aqui? Minha
pressuposição de que a senhora me oferecesse acolhida?
Embora Bárbara estivesse aborrecida com o fato de Morgan Harris aproveitar da situação para ganhar
dinheiro, os poucos minutos de negociação tinham lhe dado tempo para se acalmar um tanto.
Encontrava-se numa posição desagradável e perigosa. Precisava controlar-se para não revelar qualquer
ponto fraco de sua história.
Com ódio refinado, lembrava-se da pressuposição dos ingleses, quanto à hospedagem, durante sua
invasão de Maryland no ano anterior.
- Claro! O que mais, além disso, poderia me afetar?
A divisão dos quartos, por exemplo — disse o tenente observando-a com cuidado.
— Nesse ponto não poderia haver surpresa. A casa não é grande e conta apenas com um quarto extra
onde o senhor poderá dormir. Seus companheiros, sinto muito, terão de se acomodar no chão aqui do
lado da sala. — Virou-se para Morgan, dando as costas para os outros três. Fitou-o bem dentro dos
olhos. — Será melhor se você rachar um pouco de lenha para esta noite. Mas antes de ir lá para fora, não
quer levar o berço de Sarah para nosso quarto?
Foi até a porta e abriu-a. A intenção do gesto era indicar-lhe por qual das duas, nas laterais da lareira, ele
deveria passar sem correr o risco de mostrar ignorância. Agradeceu-lhe quando, terminado o serviço, ele
voltou à sala.
Morgan atravessou o aposento a fim der apanhar o sobretudo e o chapéu no cabide ao lado da porta de
entrada. Enquanto isso, Bárbara dirigiu-se à de trás, mas depois de lhe lançar um olhar por sobre o
ombro. Esperava que ele entendesse sua intenção. Morgan não a desapontou e seguiu-a. Aos três
hóspedes, ela disse:
— Com certeza, precisam ir buscar sua bagagem lá fora. Se quiserem abrigo para as montarias, podem
deixá-las no telheiro do outro lado do caminho em frente à casa.
A Morgan Harris, ao abrir-lhe a porta de trás, cochichou:
— Se olhar para a esquerda, vai ver a pilha de lenha para ser rachada ao lado do poço.
O ar frio estava transparente. A lua, um disco prateado bem no alto do céu, distribuía sua luz pela terra
abaixo. Morgan sacudiu a cabeça em sinal de compreensão e ela fechou a porta, deixando-a destrancada.
Ao virar-se para o centro do aposento, seu olhar chocou-se cor o do tenente. Este tinha mandado os dois
sujeitos cuidar dos cavalos e trazer as mochilas para dentro.
— Confesso estar surpreso com as mudanças em sua vida desde que a vi pela última vez.
— Quatorze meses são um bom tempo e a vida não fica parada — contestou Bárbara, aborrecida por
estar a sós com ele. Depressa, acrescentou: — Com licença, vou pôr o bebê no berço e, então, arrumarei
sua cama.
Desapareceu pela porta do quarto e permaneceu imóvel um instante, tentando dominar o medo. Depois,
foi até a janela a fim de fechar a cortina. Olhou para fora e viu a silhueta de Morgan Harris. Estranho a
presença de um homem lá, banhado pelo luar. Quase podia vislumbrar a figura fantasmagórica de Jonas,
o marido morto, ao lado dele.
Afastou a idéia da cabeça e concentrou-se nos preparativos para a noite. Trocou a roupa de Sarah e,
muito contragosto, acomodou-a no berço. Detestava separar-se da filha em tal situação, porém não podia
arrumar o quarto para o tenente com ela no colo. No canto do cômodo, havia uma lareira pequena, na
qual tinha acendido o fogo à tarde. Como estivesse reduzido a brasas, reavivou-o. Em seguida, apanhou
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lençóis e um cobertor na arca de roupa de cama.
De volta ao aposento central, Bárbara explicou a divisão da casa ao tenente.
— A chaminé central permite que os dois quartos tenham uma pequena lareira. Como tem feito muito
frio e o quarto extra ainda não foi usado neste inverno, deve estar gelado. Mas tão logo eu acenda o fogo
lá, vai melhorar.
A um sinal seu, o tenente apanhou uma das velas na mesa e a seguiu ao quarto onde dormiria. Era
minúsculo. Comportava apenas uma cama de solteiro e um criado-mudo sobre o qual ele pôs o castiçal.
Em silêncio, aceitou o travesseiro e o acolchoado que estavam sobre a cama e que ela lhe entregou.
Depois de estender os lençóis e o cobertor, Bárbara retomou os dois itens e os recolocou
Na cama.
- Pronto, senhor. Vai ficar uma boa acomodação assim que eu acender o fogo.
Nesse instante, ela ouviu o barulho dos homens do tenente voltando para dentro de casa. Não gostou da
expressão de seu inimigo sob a luz bruxuleante da vela. Seguida por ele, saiu depressa do quarto.
Felizmente, Morgan também já voltava. Trazia uma braçada de lenha rachada. Ao vê-lo entrar, Bárbara
pediu:
- Por favor, traga umas achas ao quartinho e me ajude a acender a lareira lá antes de cuidar da nossa.
Assustada, percebeu que quase dissera da minha". Morgan empilhou quase toda a lenha, exceto uns
poucos pedaços, junto à lareira da sala. Levou o resto para o quarto do tenente. Num Instante, ele e
Bárbara tinham um bom fogo crepitando. Embora estivessem a sós, não se atreveram a trocar palavras.
Ao retornar ao outro cômodo, depararam-se com os três homens, em pé, encarando-os. O tenente deu um
passo à frente e indagou:
- Estamos curiosos para saber, sr. Harris, por que tem um saco de dormir amarrado á sela de seu cavalo.
Não mora aqui?
Como Morgan havia deixado a montaria no telheiro com a intenção de voltar logo depois do jantar, não
o tinha desencilhado. Passou um braço possessivo sobre os ombros de Bárbara e a puxou para bem
perto.
— Fiquei três dias fora de casa, caçando, e quando cheguei, tinha mais pressa de entrar aqui, por razões
óbvias, do que de cuidar de meu animal. Chame isso de entusiasmo de um recém-casado. Esta noite, não
vou precisar do saco de dormir, graças a Deus.
— E onde está a caça? — o tenente quis saber.
— Vendi. Aqui temos carne suficiente para nosso consumo — explicou Morgan sem se perturbar.
O tenente Richards observou o casal abraçado intimamente e quase acreditou na história. Aliás, não
havia razão para duvidar, exceto uma sensação curiosa de algo errado na situação aparente.
— Para ser franco, a chegada dos três interrompeu nosso reencontro agradável — acrescentou Morgan.
Com a mão livre, ergueu o queixo de Bárbara e a fitou. Ela conseguiu retribuir o olhar com um também
apaixonado. Como não o esperasse, Morgan não conteve uma leve onda de desejo. Retornou a atenção
aos três homens e, apressadamente, disse:
— Como já têm o que precisam, e eu também, boa noite. Ainda abraçado a Bárbara, levou-a rumo à
porta do quarto. Já iam transpô-la quando o tenente o chamou:
— E os instrumentos ali na parede, sr. Harris, são seus?
— De quem mais poderiam ser? — respondeu Morgan por sobre o ombro.
— Não quer tocar para nós agora? Um pouco de distração seria agradável.
— Sinto muito. Nós aqui costumamos dormir e acordar com as galinhas. Já é bem tarde para quem se
levantou ao amanhecer. Além disso, minha noção de divertimento é bem outra agora. Traga a sra. Ross
amanhã e eu a distrairei como umas canções americanas. Boa noite, outra vez.
Com o peito tocando-lhe as costas, Morgan Harris impulsionou a esposa temporária para dentro do
quarto. A porta fechou-se com um clique claro e definitivo.
De repente, estavam a sós no aposento iluminado apenas pelo brilho das brasas na lareira. Ele
continuava com o braço em seus ombros. Ergueu a mão e tapou-lhe a boca. Quando com a livre tomou
uma das suas, Bárbara sentiu medo. Com os lábios em seu ouvido, ele murmurou:
— Não se assuste. Isto é para a senhora.
Apertou-lhe a mão enfatizando as palavras. Bárbara mal se dava conta de que ele lhe entregava as
moedas, recebidas do tenente Richards, quando Morgan continuou:
— Desculpe tapar-lhe a boca, mas eu não queria que falasse, pois deveríamos estar entretidos com um
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beijo apaixonado.
Bárbara sacudiu a cabeça em sinal de compreensão e ele baixou a mão. Permaneceram imóveis, ouvindo
os ruídos vindos do resto da casa. Os homens trocavam palavras abafadas e preparavam-se para dormir.
Morgan voltou a cochichar:
— Não tenho escolha senão passar a noite neste quarto. Vou dormir na poltrona junto à janela.
-Sei. Mas talvez seja melhor puxá-la para perto do fogo — murmurou ela na ponta dos pés para poder
alcançar-lhe o ouvido.
- Não posso mexer nela sem fazer barulho suspeito. Temos de deixar tudo como está. Agora, tenho uma
pergunta. Urgentíssima. Qual é seu primeiro nome?
- Bárbara — murmurou ela antes de morder o lábio para não rir,mas o riso contido sacudiu-lhe um
pouco o corpo.
O movimento a fez roçar os seios em Morgan. Bárbara não percebeu, ele, porém, sentiu-os
perfeitamente.
- Muito bem. Então, Bárbara. " Meu amor" Não poderia servir o tempo todo.
Afastou-se achando melhor pôr distância entre ambos.
Bárbara ficou satisfeita com o fim da proximidade perturbante. Sem fazer barulho, foi até a cômoda e
guardou as moedas na gaveta de cima. Quando Morgan as tinha cobrado do tenente, ela duvidara de suas
intenções. Sabia agora que o novo empregado, vendo a intuição do tenente de passar a noite ali,
resolvera aproveitar e lhe arranjar um dinheirinho extra. Aliás, bem necessário.
Abriu a segunda gaveta e tirou a camisola de flanela. Olhou por sobre o ombro e viu Morgan Harris de
frente para a janela. Ao manter-se de costas, ele lhe dava a oportunidade de trocar de roupa. Fez, isso
depressa. Em seguida, soltou os cabelos e escovou-os.
Bárbara puxou as cobertas e já ia se deitar quando se deu conta de, mais uma vez, falhar como dona de
casa. Aproximou-se de Morgan que continuava em pé e de costas.
— Não tenho um cobertor para lhe oferecer. O único disponível dei ao tenente Richards. Talvez
pudéssemos compartilhar a colcha de e minha cama. Se puxar a ponta, dará para cobrir seus pés e
pernas.
Ele apenas sacudiu a cabeça indicando-lhe não ser necessária sua preocupação, mas não se virou de
frente.
Bárbara já estava deitada, com as cobertas puxadas até o queixo, quando Morgan, finalmente, sentou-se
na poltrona. Não olhou para ela. Com muito cuidado, tirou as botas. Depois, mexeu-se várias vezes
como se tentasse encontrar uma posição confortável.
Acordada, Bárbara mantinha os olhos bem abertos. Pela falta de barulho no resto da casa, os hóspedes
deviam estar dormindo. Todavia, tinha certeza de que Morgan não conseguia conciliar o sono.
De repente, sentou-se na cama e, devagar, arrastou-se pela superfície até a extremidade perto da
poltrona. Ao ver o empregado com os olhos abertos, murmurou:
— O senhor não pode passar a noite sentado aí no frio. Amanhã, vai estar com o corpo dolorido, sem
poder se mexer direito e não conseguirá disfarçar a noite mal dormida.
— O que a senhora sugere? — indagou Morgan depois de alguns segundos.
— Venha dormir na minha cama. É confortável e quente. Posso lhe emprestar um dos camisolões de
Jonas. Entenda o que quero dizer. Minha sugestão, o senhor sabe, limita-se apenas a...
Não conseguiu se explicar.
— Eu sei — disse ele continuando a fitá-la.
Não se apressou em aceitar a oferta. Sob um aspecto, o conforto melhoraria sua condição física e, sob
outro, a pioraria.
Como ele não respondesse, Bárbara sentiu-se constrangida.
— Não quis insinuar qualquer atitude sua. Não foi minha intenção, insultá-lo, sr. Harris.
Ele sacudiu a cabeça e fez um sinal, com o dedo nos lábios, pedindo silêncio. A sra. Johnson tinha razão.
Se passasse a noite ali, estaria imprestável no dia seguinte. Concordou com a idéia e levantou-se da
poltrona.
Bárbara foi até a cômoda. Depois de apanhar um camisolão de Jonas na gaveta de baixo, retrocedeu para
junto da poltrona. Ao entregar a peça a Morgan, as mãos de ambos se tocaram, o contato produzindo
uma fagulha que os surpreendeu, embora por razões diferentes.
Foi a vez de Bárbara manter-se de costas. Novamente sob as cobertas, fixou o olhar num canto escuro.
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Ouviu o farfalhar suave de roupas enquanto Morgan se trocava. Em seguida, sentiu-o sentar-se na cama.
O peso de um homem ali era, ao mesmo tempo, familiar e estranho, repulsivo e excitante. Quando ele se
enfiou sob as cobertas, o medo atingiu proporções imensas. O coração disparava e as mãos transpiravam.
Onde estava com a cabeça ao convidá-lo para se deitar a seu lado? Com inimigos ocupando-lhe a sala e
o outro quarto, não precisava de um estranho invadindo-lhe a cama.
Após alguns minutos, com Morgan deitado a uma boa distância, imóvel e respirando normalmente, ela
começou a se acalmar. Já menos atemorizada, convenceu-se de ter agido bem.
Ambos estavam acordados e cientes da condição mútua.
Ele havia encontrado um travesseiro em seu lado. A cabeça descansava nele e o corpo aquecia-se sob as
cobertas. Todavia, estava longe de se sentir à vontade na cama da sra. Bárbara Johnson. Havia previsto
esse tipo de desconforto, mas teria sido insensato não aceitar a sugestão. Precisava muito de uma boa
noite de sono. Sentia-se exausto após quatro longos dias de viagem a cavalo. Cansado, mas não morto.
Apenas a morte o impediria de não sentir o efeito de estar deitado ao lado de uma mulher linda e
atraente, porém sem o direito de tocá-la. O desejo provocado por ela era só carnal, sem estimulo afetivo,
admitiu. Um paraíso paradoxal.
A situação tinha seu lado engraçado, refletiu Morgan. A cama de uma mulher linda era o único lugar
onde não imaginara passar a noite. Uma cela de prisão, ou um caixão de pinho, talvez. No entanto, ali
estava ele aspirando-lhe o leve perfume, com o camisolão do marido morto que não era o pai de sua
filha.
Sentiu-se satisfeito por, na madrugada desse dia, ter tomado um banho e lavado os cabelos. Pelo menos,
estava limpo e não sujaria a cama. Equilibrava-se â beira de muitas coisas, como da morte, do sono, da
fome, mas era puxado para longe delas. Não sabia discernir se estava contente ou perturbado, satisfeito
ou faminto, sonolento ou excitado. Poderia passar a noite inteira suspenso nesse estado complexo entre
consciência e sonho, estímulo agudo e relaxamento, porém o choro exigente de um bebê com fome
desfez o equilíbrio delicado de sua tensão.
Quase no mesmo instante, a mãe levantava-se e pegava a criança, trouxe-a para a cama e, recostada à
cabeceira, arrumou as cobertas em volta. Morgan virou um pouco a cabeça e, sem acanhamento algum,
viu desabotoar a camisola, expor o seio e oferecê-lo à boquinha
ávida do bebê. Fascinado pela beleza da cena, continuou olhando.
Sentia honra por testemunhá-la, inveja do bebê e desejo pela mãe.
Nem para salvar a alma do inferno, seria capaz de desviar os olhos.
Quando Sarah saciou-se, Bárbara trocou-lhe a fralda e a pós de volta ao berço. Ao deitar-se novamente,
Morgan estava de lado, mas costas para ela. Esticou-se e observou-lhe a forma física.
Amedrontadora e reconfortante ao mesmo tempo. Envolta pelas sombras, foi tomada pela necessidade
de falar.
— Estou com medo — murmurou.
Morgan a ouviu, mas como não dissesse nada, Bárbara ficou na dúvida. Vagamente, ele imaginava seus
temores, pois tinha perdido tudo que lhe era precioso há muito tempo. Depois de uns segundos, mexeu-
se e disse por sobre o ombro:
— A senhora não precisa ter medo de mim.
As palavras levantaram um grande peso do coração de Bárbara. Ele estava certo. Não tinha motivo para
temê-lo. Morgan havia concordado com sua história louca sobre o casamento e a paternidade de Sarah.
Não tinha tomado dinheiro do tenente Richards e fugido quando saíra para rachar lenha. Não tirava
vantagem de sua vulnerabilidade agora, quando ela não se encontrava em posição de negar-lhe o
exercício de seus "direitos conjugais", pois os inimigos a espreitavam, aguardando um passo em falso.
— O senhor entendeu as insinuações do tenente?
Morgan acomodou-se de costas, mas não virou a cabeça para ela. Manteve o olhar no teto, embora mal o
visse na escuridão.
— Até certo ponto.
Bárbara achou que ele merecia uma explicação.
— Foi no ano passado, durante a invasão de Maryland pelos britânicos. O marido da sra. Ross era o
comandante geral das tropas inimigas. Eu não pude fazer nada. Não tinha defesa alguma — confessou
sem disfarçar a angústia, a vergonha e o desprezo.
— Não a estou julgando.
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— Mas muitos o fizeram e outros ainda o farão. Morro de medo que tomem Sarah de mim.
Morgan ignorava o que acontecia a uma mãe solteira quando a guarda do filho era contestada. Não
conhecia as leis em relação a bastardos e não podia calcular os efeitos de uma sólida conta bancária
inglesa na interpretação da justiça. Sua experiência limitava se a causas perdidas. Talvez estivesse diante
de mais uma.
— O tenente conseguirá desmentir sua história? — indagou.
— Vou me levantar antes do amanhecer e avisar os vizinhos. Basta falar com um e ele espalhará a
notícia — murmurou confiante, mas então, menos segura, tocou em outro assunto: — Eu... quero lhe
dizer... isto é, sr. Harris...
A paciência e a cordialidade de Morgan atingiam o limite. Brusco, ele a interrompeu:
— Considere minha colaboração como parte de meus serviços, senhora.
Bárbara respondeu com a mesma presteza:
— Metade do dinheiro pago pelo tenente é sua. Morgan resmungou algo incompreensível.
Aliviada pela conversa, Bárbara sentiu um cansaço relaxante invadir-lhe o corpo. Porém antes de
entregar-se ao sono merecido, ocorreu-lhe que, pela terceira vez nessa noite, falhava com as boas
maneiras sociais. Num ciciar lento, disse:
— De todo o coração, Morgan Harris, quero lhe agradecer por sua ajuda bondosa.
Ele continuou olhando para o teto sombreado. Após alguns segundos, virou a cabeça e viu a sra. Johnson
de olhos fechados, já dormindo profundamente. Esquivava-se, assim, do esforço de responder-lhe.
Procurou e encontrou a ligação entre a sonolência e a excitação. Esperava que, sob o efeito da primeira,
não se entregasse à segunda e cometesse algo imperdoável, ou seja, conjugal.

CAPÍTULO IV

O sono provocava uma sensação deliciosa. Lembrava um campo florido sob o sol. Ouvia também o
zunir agradável do verão. Entreabriu os olhos e fechou-os depressa, ofuscado por um brilho dourado.
Estava deitado à margem de um riacho e olhava para o leito arenoso que refletia o brilho do sol, filtrado
pela água borbulhante. O dia quente estimulava a indolência. Alguém, entretanto, estava faltando. Ele
não sabia quem. A ausência e o esquecimento o perturbavam. Nuvens cobriram o sol. Sentiu-se triste.
Mais do que isso. A vida tinha perdido o significado. Abriu os olhos para fugir do sonho lindo
transformado em pesadelo. Ficou desorientado por encontrar-se deitado numa cama de um quarto
estranho. O aposento estava na penumbra e apesar das cortinas fechadas, Morgan calculou que devia ter
amanhecido já há algum tempo. Havia perdido a hora e precisava pôr-se a caminho depressa. Correu os
olhos pelo quarto e viu uma mulher em pé do outro lado da cama. Os cabelos loiros prendiam-se num
coque à nuca, Poderiam ser eles o lampejo dourado visto no sonho?
Então, notou o que ela fazia e lembrou-se de onde estava, Mentalmente, praguejou por ter aberto os
olhos alguns minutos tardes demais. Junto ao berço aos pés da cama, ela abotoava a blusa dd vestido,
sinal de que acabava de amamentar o bebe. Na noite anterior ele havia apreciado a cena de rara beleza e
gostaria de tê-la testemunhado mais uma vez. Não deixava de ser injusto almejar a contemplação desse
quadro lindo, de intimidade e segurança, agora que a vida não tinha mais nada para lhe oferecer.
Sentou-se e o movimento fez a sra. Johnson erguer a cabeça. Pôs as pernas para fora da cama, mas
continuou sentado. Agora, estava de costas para ela. Deixou a nebulosidade do sono e da tristeza esvair-
se enquanto passava os dedos pelos cabelos e pela barba por fazer já há alguns dias. Imaginava onde
conseguiria uma navalha quando uma idéia mais urgente lhe ocorreu. Por sobre o ombro, perguntou
baixinho:
— Como vamos avisar os vizinhos sobre meu papel em sua vida?
— Já fiz isso.
— Como?
— Fui à fazenda de Ben Skinner, expliquei a situação e lhe pedi para contar a história para os outros na
casa de culto.
Morgan franziu a testa. Tinha dormido mais do que imaginara. Levantou-se, caminhou ate a janela e
entreabriu a cortina. Devia estar olhando para o oeste, pois apenas um leve avermelhado coloria o
horizonte. Um galo cantou na distância. Não podia ser tarde e sim bem cedo ainda.
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— Que horas são? — indagou.
— Cinco e meia, mais ou menos — respondeu Bárbara. Ele virou a cabeça e a fitou. A mente já estava
bem clara.
— A que distância fica a fazenda de Ben Skinner?
— A uns cinco quilômetros. Cortando pelos campos, bem entendido. Não pela estrada.
Sem desviar os olhos de seu rosto, Morgan comentou:
— Ainda bem que Sarah não acordou. Eu não saberia o que fazer com ela se começasse a chorar.
— Eu a levei comigo.
Surpreso, Morgan arqueou as sobrancelhas numa indagação.
— Ah, Sarah foi bem agasalhada. Refleti sobre o risco de expô-la ao frio, mas já fiz isso outras vezes.
Acho até que ela gostou do passeio.
— Mesmo sendo de madrugada?! — perguntou Morgan com a sensibilidade de um adulto.
— Sarah é muito novinha ainda para saber as diferenças horárias. Só se importa em ser alimentada e
receber meus cuidados.
— Não foi um tanto difícil cavalgar essa distância com ela nos braços?
— Fui a pé — respondeu Bárbara, mas ao ver-lhe a expressão de espanto, explicou: — Um cavalo faria
barulho e acordaria os homens.
— É verdade. Mas como conseguiu sair em silencio? Nem mesmo eu percebi.
Bárbara apontou para a janela e deu de ombros. Incrível, considerou Morgan impressionado. A sra.
Johnson devia ter saído antes das quatro e meia e retornado ainda há pouco.
— Uma caminhada de dez quilômetros, numa madrugada fria de novembro e com um bebê no colo?!
Não sou tão inepto assim. Podia ter confiado em mim. Eu a teria carregado caso acordasse chorando.
As feições de Bárbara enterneceram-se.
— Não foi por falta de confiança e sim pela situação que levei Sarah comigo. Pensei em deixá-la aqui,
mas eu não iria sossegada por causa daqueles três. Com minha filhinha nos braços, não tive de me
preocupar.
Morgan deu-se conta da profundidade do amor materno da sra. Johnson. Admirava-a por isso. Chegava a
compreender o sentimento forte, vivo, mas era como se fosse uma faca separando-o dela. Causas
perdidas, refletiu. Sacudiu a cabeça aceitando a explicação e tornou a olhar pela janela. Só agora havia
uma claridade perceptível do dia.
— Preciso me vestir — disse ele vendo como as mangas do camisolão lhe ficavam curtas.
Se não calçasse as meias logo, os pés ficariam gelados.
Bárbara concordou com um monossílabo inarticulado. De costas, ocupou-se em reacender a lareira no
canto, proporcionando-lhe a privacidade necessária.
Morgan não perdeu tempo. Pós a calça, as meias e as botas antes de tirar o camisolão. Já sem ele, vestiu
o camisão da qual não tinha se apossado por meios muito honestos. O fato, de forma alguma, o
aborrecia. Não chegou a abotoá-la. Uma forte batida na porta o impediu.
Bárbara e Morgan trocaram um olhar rápido. Ele aproximou-se, tomou-lhe as mãos nas dele e entrelaçou
os braços entre ambos, deixando-os numa posição aconchegante e amorosa.
— Entre! — disse numa voz abafada, pois tinha a boca sobre os cabelos de Bárbara.
O tenente Richards abriu a porta e deparou-se com a cena de intimidade meiga.
Indiferente à presença do homem, Morgan o fitou por sobre a cabeça de Bárbara.
Para ela, o momento era de alarme. Morgan ainda não tinha abotoado a camisa, nem suspendido a calça
acima dos quadris. Segurava-a de forma que seus braços encostavam-lhe no peito nu e quente ainda da
cama. Seu odor acre e agradável lhe provocava uma sensação curiosa. O rosto encostava-se parte no lado
da camisa e parte na pele exposta. O coração disparava e ela não sabia se provocado pela aparição do
tenente, ou pelo contato com Morgan.
— O senhor ainda está aqui — comentou o tenente.
— Claro. Moro nesta casa — respondeu Morgan calmamente. — Dormiu bem?
— Sim. Cama confortável, quarto aquecido e casa silenciosa. Aliás, demais.
— Se estamos no campo, não é de se admirar — disse Morgan com o queixo apoiado na cabeça de
Bárbara. — Apreciamos a tranquilidade e o horário de trabalho do campo. Está quase na hora de eu
enfrentar minhas obrigações. — Afastou um pouco a cabeça a fim de olhar para Bárbara. — Depois de
me alimentar. Temos tudo, meu amor, para oferecer um típico café da manhã americano a nossos
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hóspedes? — Sorriu-lhe após seu aceno afirmativo e voltou a olhar para o tenente. Fingindo distração,
encostou uma das mãos de Bárbara no rosto. — Vamos sair do quarto daqui a uns instantes. Ainda
estamos nos desejando bom dia e eu preciso acabar de me vestir.
Tratava-se de uma dispensa cortes, mas com uma ponta de indolência insolente que Morgan achava ser o
melhor tratamento a ser dispensado ao tenente Richards. Na verdade, o homem lhe era indiferente. Sabia
apenas duas coisas a respeito dele, ambas significativas. Primeira: o sujeito não conseguira ir além do
posto de tenente. Segunda: havia acompanhado uma mulher na travessia do Atlântico baseado apenas
em um sonho dela.
Ao ver Morgan Harris retornar a atenção à mulher adorável em seus braços, o tenente Richards irritou-
se. Se continuasse ali parado, observando o casal amoroso, faria um papel ridículo. Fechou a porta
exatamente como Morgan desejava.
Tão logo ficaram a sós, Bárbara e Morgan separaram-se. Ela respirou fundo e, distraída, olhou para a
mão. Percebendo e achando que a tinha arranhado com a barba, ele disse:
— Sinto muito. Qualquer dia destes, vou ter de me barbear.
— Eu ia trazer seu saco de dormir quando entrei pela janela. Imagino que seus objetos pessoais estejam
dentro dele, pois é sua única bagagem. Mas achei que pareceria estranho se ele, deixado no telheiro
ontem à noite, amanhecesse aqui.
— Não tenho uma navalha. Para ser franco, não tenho nada dentro daquele saco de dormir - confessou
Morgan.
Bárbara teve vontade de lhe perguntar por que viera até tão longe sem trazer nada, porém achou não ser
de sua conta. Por isso, disse apenas:
— Tudo bem. Pode usar a desculpa de estar deixando a barba crescer.
— Uma idéia — concordou ele.
Abotoou a camisa, puxou a calça e colocou os suspensórios nos ombros. Em seguida, pôs o colete e o
surrado paletó azul-marinho.
Vendo-o se vestir, Bárbara percebeu melhor a intimidade da situação do que na noite anterior quando o
imaginara despindo-se. Reação curiosa que salientava a enormidade do passo dado ao atribuir-lhe a
condição de marido e recebe-lo em sua cama. Preocupada com o efeito da aparência desalinhada de
Morgan Harris em suas visitas, tomou uma decisão.
— Ainda guardo os apetrechos de barbear de meu marido. Se desejar, poderá usá-los — informou ao
ajoelhar-se perto da cama e puxar uma grande mala guardada embaixo.
Depois de abri-lo, remexeu o conteúdo até encontrar uma navalha, a tira de couro para afiá-la, o pincel e
uma tigelinha de ágata. Procurou mais e achou um espelho enrolado numa toalha. Colocou tudo em cima
da cômoda e enfiou a grande mala embaixo da cama outra vez.
Ao levantar-se, sentiu as faces arder. Devia ser a movimentação, concluiu. Mas deu-se conta de que
ficaria mais a vontade em companhia do tenente e seus dois capangas do que na intimidade do quarto ao
lado de Morgan Harris. Apressada, dirigiu-se à porta.
— Espere. Obrigado pelos apetrechos de barbear. Vamos ver o que vai acontecer no decorrer do dia.
Não importa o que façamos, mas agora, é melhor deixarmos o quarto juntos. — Passou o braço sobre
seus ombros e, com intenção de levantar-lhe o ânimo, murmurou-lhe ao ouvido: — Hoje vamos nos
livrar do tenente Richards, e de seus dois homens e da sra. Ross. Vai ver só. Agora, calma e con fiança.
Ansiosa, Bárbara olhou para trás.
— E Sarah?
— Enquanto a senhora começar a preparar o café, levo o berço para a sala. Quando der jeito, me avise o
que devo fazer para ajudá-la.
Bárbara aquiesceu com um gesto de cabeça e, abraçados, os dois deixaram o quarto. Apoiada em
Morgan, ela sentiu uma certa segurança, sensação que persistiu enquanto preparava a refeição. Ele a
ajudava no que podia e, a certa altura, saiu pela porta da frente. Voltou alguns minutos depois trazendo o
saco de dormir e desapareceu, com ele, pela porta de seu quarto.
Quando terminaram de tomar o café, os planos para o dia já estavam feitos. O tenente Richards,
acompanhado de um de seus homens, iria a Baltimore buscar a sra. Ross. O segundo capanga ficaria na
fazenda para vigiar a movimentação do lugar. Naturalmente, a incumbência do sujeito não foi explicada,
mas tornou-se óbvia após a partida dos outros dois. Enquanto enfrentava as tarefas domesticas, Bárbara
irritava-se com a presença do indivíduo que, de olhos bem abertos, mantinha-se ao lado da porta de
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entrada. A vigilância contínua, além de afrontosa, aumentava-lhe a ansiedade em relação à visita da sra.
Ross.
Para piorar a situação, Sarah mostrava-se irritadiça e manhosa. Bárbara tinha a impressão de levar o
dobro, do tempo para fazer qualquer serviço. Sempre tinha de interrompê-lo para acalmar a criança.
Pelo menos, contava com a presença de Morgan por perto. Depois de levar o cavalo ao estábulo, ele
trouxe feno para o telheiro, deu de comer às galinhas e rachou mais lenha. Achou outras coisas para
fazer, mas entre um serviço e outro, entrava em casa. Bárbara sempre se sentia mais segura ao ouvir-lhe
os passos na escadinha da porta de trás.
Numa dessas vezes, Morgan entrou quando o sujeito tinha ido à casinha. Chorando, Sarah acordou de
um sono agitado. Na área da cozinha, Bárbara preparava uma fornada de bolinhos, mas largou tudo a fim
de pegar a criança no colo. Preocupada, comentou com Morgan:
— Talvez os dentinhos estejam começando a nascer.
— Isso seria pouco provável num bebê de três meses — disse ele, pensativo.
Bárbara estremeceu ao pensar nas consequências caso oferecesse tal explicação do comportamento de
Sarah à sra. Ross.
— Tem razão. Ela só tem três meses — afirmou, categórica, a fim de gravar bem o dado na mente.
— Sarah é grande para a idade — continuou Morgan ao acrescentar detalhes à história falsa. — Já
nasceu grande. Puxou minha família. Eu era enorme.
Bárbara ia perguntar algo, mas considerou o assunto pessoal demais e desistiu.
— Não quer carregá-la para ela se acostumar a seu colo? — sugeriu.
Nesse instante, o capanga retornou pela porta da frente, assumindo a posição de guarda.
Aliviado com a interrupção, Morgan sacudiu a cabeça negando-se. Passara alguns momentos de tensão,
na noite anterior, ao tomar Sarah nos braços quando alegara ser seu pai.
O fim da manhã e o início da tarde transcorreram sem contratempos. Morgan encontrou várias coisas
para fazer em casa, tais como afiar facas e tirar cinza das lareiras. Logo após o almoço, ele resolveu
fazer a barba. Bárbara tomou cuidado para não observá-lo e também não verificou o resultado depois
que ele terminou. Notou apenas que ele guardou os objetos numa prateleira ao lado da pia.
Quando chegou a hora de amamentar Sarah, ela se retirou para o quarto a fim de fazê-lo em privacidade.
Enquanto estava lá, ouviu sons do violão. Morgan afinava o instrumento para tocá-lo, como prometera,
durante a visita da sra. Ross. Já fazia mais de vinte anos, um antes da morte do pai, que o violão não era
tocado. Os acordes desafinados davam-lhe a sensação de desastre iminente.
Ao terminar de amamentar Sarah, trocou-a de roupa e voltou para a sala. Morgan ergueu a cabeça
quando a ouviu entrar. Bárbara teve de abafar uma exclamação de surpresa ao ver-lhe o rosto barbeado.
Morgan continuava não sendo um homem bonito no sentido clássico, mas estava muitíssimo atraente ao
fitá-la com um sorriso iluminando-lhe os olhos azul-escuros. Era como se ele reconhecesse sua reação.

Bárbara pôs Sarah no berço e começou a arrumar a bandeja para o café e Morgan continuou a se ocupar
com a afinação do violão.
Quando soou a batida na porta e o capanga do tenente Richards apressou-se em abri-la, o coração de
Bárbara disparou enquanto Morgan levantava-se e pendurava o violão na parede.
Para a surpresa de Bárbara, seu vizinho mais próximo entrou e a cumprimentou:
— Sra. Harris, como vai? Trouxe-lhe um presente, aliás, para seu marido.
Ignorando o homem carrancudo que lhe abrira a porta, aproximou-se de Morgan com a mão estendida.
— Ben Skinner, boa tarde! — disse Morgan depressa ao aceitar o aperto de mão.
— Boa tarde, Morgan Harris. Como você anda procurando um cachorro e minha cadeia deu cria,
separei o melhor da ninhada para lhe dar — explicou o visitante enquanto desabotoava o sobretudo e
tirava um cachorrinho de dentro.
O animal, branco com manchas marrons, tinha olhos castanhos e focinho preto brilhante.
Morgan aceitou o presente e perscrutou o semblante do fazendeiro vizinho. Viu um homem já um tanto
idoso, magro e de olhar astuto e vivo que lhe retribuía o exame.
Bárbara trocou algumas palavras convencionais com Ben Skinner. Quando o procurara naquela
madrugada, tinha mencionado a sugestão de Morgan quanto a ter um cachorro em casa que latisse
avisando a aproximação de alguém.
O cachorrinho ainda não aprendera a fazer isso, pois não dava sinal de ouvir o barulho de uma
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carruagem que acabava de parar em frente da casa. Curioso e abanando a cauda, olhava para Morgan e
lambia-lhe as mãos.
Bárbara relanceou o olhar pelo berço e resistiu à tentação de pegar Sarah nos braços. A pele áspera e
avermelhada dos dedos chamou-lhe a atenção. A aliança no anular esquerdo pareceu-lhe um círculo
mágico de proteção. De ombros erguidos e expressão calma, ficou à espera.
E então, ouviu-se a temida batida na porta.

CAPITULO V

Bárbara fez um sinal a Ben Skinner e Morgan, indicando que atenderia à batida. Com outro, ordenou ao
capanga para afastar-se de seu caminho. Ele obedeceu.
Com o semblante composto, abriu a porta. Todavia, não conseguiu esconder um olhar de admiração ao
contemplar a mulher apoiada no braço do tenente Richards.
Tratava-se da criatura mais elegante já vista por Bárbara. Exibia um chapéu lindo, de feltro preto,
enfeitado com uma fita azul cujas pontas terminavam em um laço. Ele coroava os cabelos loiros que,
encaracolados, rodeavam o rosto de pele acetinada e alva. Os olhos azuis brilhavam realçados pelo
casaco de cashmere da mesma cor, com gola e punhos de pele de zebelina. Ela carregava um pára-sol e
usava botinhas de pelica finíssima.
A sra. Ross regulava de altura com Bárbara e devia ser uns dez anos mais velha. Estava no auge da
beleza da maturidade. Não era o monstro temido por Bárbara, nem a viúva desolada. Linda, elegante.
Mas rica, poderosa e determinada. Inspirada num sonho, havia cruzado o oceano para se apossar da filha
de outra mulher. Pelo olhar satisfeito, seguro e insinuante, Bárbara a imaginou perversa.
— Tenente Richards, o senhor voltou com a sra. Ross — disse ao dar um passo para o lado a fim de
permitir a entrada dos recem-chegados.
— Ah, sim. Sra. Ross, esta é a sra. Harris.
A visitante entrou e o tenente ordenou aos dois homens para aguardar no terraço. Só quando a porta foi
fechada, a sra. Ross deu uns passos à frente enquanto dizia numa voz melodiosa:
— Não deixa de ser interessante, sra. Harris, conhecê-la após esse tempo todo. Confesso ter a sensação
de não me ser estranha.
Suspirou e olhou para os outros dois homens. Bárbara apresentou Ben Skinner primeiro e, então, virou-
se para Morgan Harris.
— Este é meu marido, sra. Ross.
— Muito prazer — disse ele com expressão de quem a desafiava a duvidar de sua posição de pai de
família.
Ela respondeu com um sorriso cativante de quem aceitava o desafio.
— É de Maryland, sr. Harris? — perguntou ela.
— Não, minha senhora — - respondeu Morgan sem oferecer mais informações.
— De onde vem, senhor? — indagou diretamente.
— Da colônia de Quebec — respondeu ele surpreendendo Bárbara.
— Ah, sim, do Baixo Canadá — corrigiu a sra. Ross, insistindo na divisão britânica do território. —
Nasceu lá?
— Em Massachusetts. Na parte ocidental — contou ele para nova surpresa de Bárbara.
— Entendo — comentou ã sra. Ross como se o detalhe fosse muito importante.
Virou-se para Bárbara.
— E quanto a senhora? — indagou, mas amenizou a questão explicando que a tendência itinerante dos
americanos fascinava os europeus.
— Nascida e criada aqui em Maryland.
— Casada também?
— Naturalmente — respondeu Bárbara sem hesitação. — E a senhora, de onde é?
A inglesa riu um pouco.
— Sou uma Winthrop e a história longa e cansativa de minha família pode ser encontrada, em detalhes,
no livro Debretfs Peerage.
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O insulto gratuito não passou despercebido a Bárbara. Tomaria cuidado para não oferecer oportunidade
para outro.
— Não quer tirar o casaco? Se está mesmo determinada a ficar.
— Forçada seria uma palavra melhor — sugeriu a sra. Ross com um sorriso triste como se sua vontade
estivesse sujeita a um forte poder superior.
A custo, Bárbara reprimiu duas exclamações de admiração. A primeira, ao tocar o tecido macio do
casaco e, a segunda, quando viu o vestido da sra. Ross. De seda pura azul, numa tonalidade mais clara
do que o casaco, era de uma elegância sem par. Não fazia idéia da moda dominante nas capitais
européias, mas a toalete da sra. Ross só podia ser um dos melhores exemplos.
— Muito amável de sua parte — disse a visitante ao entregar-lhe o casaco para, em seguida, tirar o
chapéu.
De posse das duas peças, Bárbara foi guardá-las em seu quarto. Colocou-as sobre a cama, coberta pela
colcha rústica de algodão. Num misto de fascínio e temor, admirou-as. Elas pareciam vivas.
No instante seguinte, a própria cama criava vida. Bárbara lembrou-se do que havia ocorrido nela com o
general Robert Ross. Um tremor percorreu-lhe o corpo. Seria de medo, ou de ganância desmedida?
Bárbara sorriu. Tinha sentido a mesma fúria naquela tarde de verão, quatorze meses atrás, ao chegar em
casa e encontrar o atraente general britânico esperando-a ali no quarto. Jamais esqueceria como o
vermelho odioso, do casaco de uniforme, havia ferido seu olhar. Lembrava-se de que, com a ponta da
espada, ele a forçara a se despir e, depois, a tirar-lhe a roupa.
Sim, ela fora tomada por um anseio incontrolável naquele dia. Sede de sangue. E tinha vivido para vê-lo
morto.
O medo cedeu e a determinação retornou. Armou-se mentalmente para a batalha contra a viperina Sarah
a fim de conservar a posse da pequenina.
De volta à sala, encontrou Morgan Harris conversando educadamente com a sra. Ross, indagando-lhe as
impressões sobre o novo mundo.
Sentada no sofazinho feio, a inglesa lembrava uma jóia num estojo modesto.
Ao atravessar o aposento, Bárbara notou que ela lançava um olhar furtivo para o berço.
— Posso lhe oferecer café e bolinhos, sra. Ross, mas antes preciso atender meu vizinho. — Virou-se
para Ben Skinner e perguntou: — Veio ajudar meu marido a consertar a cerca do lado sul, não é?
Ben Skinner não era capaz de entender insinuações e já ia protestar quando Morgan, com a mão em seus
ombros, tomou a indicação dada por Bárbara.
— Nosso vizinho não é de ficar sentado, no meio da tarde, tomando café. Nem eu — declarou com
olhar firme para o tenente Richards. — Ainda mais se posso contar com mais três pares de mãos para me
ajudar. O que me diz, tenente?
Morgan fez a pergunta como um convite, mas algo em sua maneira deixava claro que ele não pretendia
abandonar Bárbara entre o grupo de inquisidores formado por três homens e uma mulher.
— Que idéia interessante, Timothy, você passar umas horas trabalhando numa fazenda americana. Será
uma boa experiência para você e seus homens — opinou a sra. Ross.
O tenente curvou a cabeça em sinal de obediência. Os homens dispuseram-se a sair e Morgan, ainda
segurando o cachorrinho, pegou o chapéu e o sobretudo no cabide. Depois de examinar os bolsos
espaçosos, colocou o animalzinho dentro de um deles.
— Que tal batizá-lo de Bolso, Ben Skinner?
— Qualquer nome serve. Aliás, não íamos dar nenhum — respondeu o velho fazendeiro.
— Por quê? Pretendiam afogar o coitado?
Ben Skinner percebeu ter se traído e, ficando vermelho, tentou desculpar-se:
— Ora, trata-se de um cachorrinho bem esperto. Por isso, resolvi lhe dar.
— E você é um bom vizinho. Sempre digo e repito para minha mulher — afirmou Morgan ao abrir a
porta.
Ben Skinner agradeceu o elogio, embora risse como se tivesse ouvido uma boa piada.
Morgan já ia fechar a porta, deixando Bárbara e a sra. Ross a sós, quando esta lhe perguntou:
— Vai tocar violão para mim, sr. Harris? O tenente Richards contou que o senhor prometeu.
Morgan Harris dirigiu-lhe um sorriso cativante.
— Após meu retorno do campo ao sul e de minha mulher solucionar suas indagações, sra. Ross.
Com um clique distinto, a porta fechou-se.
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A voz de Morgan Harris demonstrava confiança, porém Bárbara não tinha certeza se o concerto musical
convenceria a inglesa de que os instrumentos pertenciam a ele. Firmada apenas nos próprios argumentos,
teria de levar a sra. Ross a acreditar que Morgan era o pai de sua filha. Com um leve tom autoritário,
disse:
— Fique à vontade, sra. Ross. Vou preparar o café. — Precisa de ajuda?
— Não, obrigada. A bandeja está arrumada e a água, fervendo.
— Sabe os motivos de minha vinda, não é, sra. Harris? —perguntou a visitante a suas costas.
— Sei — respondeu Bárbara sem se virar.
— Seu marido não usa aliança.
Ataque fraco. As mãos de Bárbara não tremiam ao apanhar a bandeja. Com passos firmes, dirigiu-se á
mesinha colocada junto ao sofá.
— Ele trabalha com as mãos e acha, por várias razões, muito incomodo usar aliança — respondeu
Bárbara com um sorriso plácido.
A sra. Ross deu de ombros, mas não questionou a explicação. Bárbara serviu-lhe uma xícara de café e,
ao entregá-la, perguntou abertamente:
— Por que fez esse comentário sobre a aliança de meu marido?
A sra. Ross aceitou a xícara e sorriu sem o mínimo sinal de
constrangimento.
— Eu a insultei, minha cara?
— Essa não é uma resposta a minha pergunta — protestou Bárbara. O sorriso da sra. Ross foi substituído
por um início de compreensão.
— Certo. Eu quase posso ver o que meu ma... Quer dizer, entendo o que existe entre seu marido e a
senhora. Ele é um homem bonito. Não, exatamente. Mas nós mulheres reagimos a algo em um homem
que o torna irresistível. Digamos que o sr. Harris não seja bonito, mas a falta de beleza clássica o torna
mais interessante. — Sorriu com olhar observador. — E a senhora, minha cara? O que ele vê em sua
pessoa está evidente em cada detalhe de sua aparência fascinante.
Bárbara corou um pouco com a referencia à atração de Morgan Harris. A fim de prosseguir na linha de
indagação, reprimiu o constrangimento.
— Levando isso em consideração, por que a senhora duvida da veracidade do nosso casamento?
A sra. Ross voltou a sorrir e a voz revelou uma certa displicência.
— Talvez porque eu não saiba se os americanos têm uma noção mais elástica do relacionamento entre
homens e mulheres do que os ingleses, se cultivam hábitos mais livres, se... - Bárbara a interrompeu.
— Está na terra dos Puritanos, sra. Ross. Mais de um viajante inglês, neste país, baseado nos moldes de
conduta reinantes nas capitais europeias, julgou mal os americanos.
Foi a vez de a sra. Ross enrubescer, pois a alfinetada, provavelmente em relação ao marido morto, não
lhe passara despercebida. Estrategicamente, tomou um gole de café. Bárbara aproveitou-lhe o silêncio
momentâneo para insistir:
— Meu marido e eu estamos casados há um ano e nossa filha tem três meses. Como a senhora pode vir
procurar a mim, uma mulher a quem não conhece, e duvidar de minha história?
A sra. Ross colocou a xícara no pires e sacudiu a cabeça. Algo em seu semblante mudava. Com
expressão abstraía, olhou para o teto e falou num tom aveludado e seguro como se fosse inspirada pela
autoridade divina:
— Entenda, sra. Johnson, nunca tive antes tal sonho. Timothy não lhe contou sobre ele, a respeito de
meu marido ter deixado um filho? Contei a ele na manhã seguinte, pois o sonho fora tão real que eu não
podia pensar em outra coisa. Descrevi-lhe todos os detalhes, até a cor dos cabelos da mãe do filho de
meu marido. Foi quando Timothy me falou na senhora — concluiu ao baixar os olhos e fitá-la.
Bárbara sentiu o coração disparar, mas manteve o controle da feições. Preferiu não corrigir a sra. Ross
por usar seu nome de viúva. Como a visitante tinha feito, deu de ombros indicando sua descrença na
qualidade profética dos sonhos. Percebeu ser esse o momento oportuno para perguntar:
— Gostaria de ver minha filhinha, sra. Ross?
— Ah, sim, muitíssimo! — respondeu a outra com voz trêmula. Apesar de todos seu refinamento e
elegância, ela não foi capaz de esconder a emoção e a ansiedade.
Tal reação mostrou a Bárbara a extensão da força desesperadora que havia impulsionado essa mulher a
cruzar o oceano.
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Dirigiu-se ao berço onde Sarah, acordada, reclamava. De costas para a sra. Ross, tomou seu bem mais
precioso e amado entre os braços. Não queria revelar o amor desmedido por sua filha à visitante.
Quando se virou, a expressão era de naturalidade.
— Esta é Sarah. O nome é em homenagem a minha mãe — disse ao sentar-se novamente.
Foi-ihe doloroso ver o rosto da sra. Ross quando ela olhou para o bebê. Era a expressão mais nua que já
observara. O ar aristocrático da inglesa tinha desaparecido. Até a beleza da mulher elegante parecia
menor. Bárbara via apenas as feições de uma criatura amargurada que lamentava a perda do marido e a
perspectiva de uma vida vazia, sem a realização da maternidade.
— Uma coincidência interessante que ela tenha meu nome, não acha? — comentou a sra. Ross
mecanicamente enquanto observava com um olhar, ao mesmo tempo, crítico, amoroso, de cobiça, mes-
quinho, terno e maligno, o bebê indefeso, carne do marido morto.
Bárbara tinha a resposta preparada.
— Não mais do que o fato de nós ambas termos os cabelos loiros e os olhos azuis.
O momento de nudez reveladora tinha passado. A beleza elegante, rica e refinada estava de volta. A sra.
Ross desviou os olhos do bebê e fitou Bárbara com expressão fria.
— Talvez não seja coincidência. Pode-se argumentar que o que atraiu meu marido a mim também o
tenha atraído à senhora.
Bárbara manteve uma dignidade silenciosa e a sra. Ross assumiu um tom confidencial e amistoso.
— Vamos falar de mulher para mulher, sra. Harris. Naturalmente, não vai negar que meu marido e a
senhora gozaram de intimidade.
— Sra. Ross — começou Bárbara, mas foi interrompida.
— Não negue, minha cara, pois destruirá minha credibilidade na senhora — advertiu a sra. Ross. — Pelo
tenente Richards, fiquei sabendo tudo sobre a senhora e meu marido. Como, onde e sob que
circunstâncias.
— Não me lembro de ter visto o tenente Richards... — Bárbara recomeçou para ser cortada novamente.
— As cartas de Robert ficaram diferentes. Ao lê-las, tive certeza de que ele havia encontrado alguém.
— Nas várias ocasiões em que possa ter encontrado seu marido — Bárbara conseguiu concluir.
— Tê-lo encontrado. — exclamou a sra. Ross.
— Como esperava que eu me expressasse?
— Ter feito amor com ele — respondeu a outra com uma ponta de aspereza na voz melodiosa.
Seria inútil Bárbara negar que o general Ross havia lhe invadido o corpo, a exemplo da invasão de
Maryland por suas tropas, e ocupado North Point em agosto e setembro do ano anterior. A negativa
parecia-lhe irônica se segurava, entre os braços, o produto maravilhoso da invasão de seu corpo.
Todavia, Bárbara podia contestar as palavras.
— A mim, não pareceu amor.
O olhar da sra. Ross tornou-se ferino.
— Meu marido era um homem atraente e poderoso. Fomos casados por muitos anos, durante os quais,
pude observar o efeito de sua pessoa nas mulheres e como reagiam a ele.
Outra ironia. Bárbara, tivera o privilégio de alertar os exímios atiradores americanos sobre as manobras
do general Ross no dia em que ele caiu numa cilada e foi morto.
— Este país estava em guerra, sra. Ross, e seu marido era o comandante das forças inimigas.
A voz da inglesa soou áspera.
— A senhora nega que esta criança, Sarah, tenha sido gerada por meu marido?
Bárbara não gostava de mentir, pois violava seu hábito de honestidade. No ano anterior, tinha conhecido
a violação unicamente possível através do corpo de um homem. Agora, deparava-se com um novo o
tipo, o infligido por uma mulher. Essa violência feminina feria tão profundamente quanto a masculina.
Era tão aguda e humilhante como o estupro.
— Nego, sra. Ross — respondeu em voz baixa, mas calma e firme. A inglesa controlou-se. Não contava
com provas, apenas com a intuição. Nessa manhã, ficara eufórica ao saber da existência do bebê.
Contudo, ela e o tenente Richards reconheciam que a presença de Morgan Harris na casa de Bárbara
Johnson apresentava uma dificuldade inesperada. Mas mesmo nesse país selvagem, devia haver meios
de se investigar a legalidade de um casamento.
— Persiste em negar embora saiba que eu darei a essa criança tudo que a senhora não pode? Educação,
roupas finas, entrada na alta sociedade, um nome famoso e respeitado por todos?
22
Bárbara nunca tinha visto, por ângulo tão nítido, a miséria material de sua vida. Jamais se sentira tão
pobre e vulnerável. A violação tornava-se completa. Seu coração amoroso de mãe sangrava indefeso. A
hemorragia espalhava-se pelo corpo e molhava-lhe a língua.
Sentiu a respiração morna do bebê no pescoço e seu cheiro adocicado de leite. Numa reação natural, os
seios intumesceram-se prontos para amamentar. Não se importava que o leite vazasse e manchasse seu
vestido grosseiro diante dessa bruxa elegante. Sabia como resistir a ela, assim como o fizera ao marido.
Sacudiu a cabeça e disse com piedade calculada:
— Veio numa missão inútil, sra. Ross.

CAPITULO VI

Algum tempo mais tarde, os homens retornaram do acampo sul. A essa altura, as duas mulheres, taci-
tamente, conversavam sobre assuntos gerais e não lamentaram a interrupção. A sra. Ross podia ter
provocado o primeiro derramamento de sangue, mas Bárbara tinha-lhe enfrentado a ofensiva,
defendendo uma posição firme. Mantinha-se alerta, pois sabia não ter ainda derrotado a inimiga.
Entretanto, achava que o pior já havia passado. Ao menos temporariamente.
Morgan Harris entrou acompanhado pelo tenente Richards. Por ordem deste, os dois capangas ficaram
no terraço. Ben Skinner encontrava-se a caminho de casa.
Antes de pendurar o sobretudo no cabide, Morgan tirou o cachorrinho do bolso. Ofereceu-se para ajudar
o tenente também a se livrar do agasalho e, então, dirigiu-se às senhoras:
— Para grande alívio meu, a cerca está consertada. Já devia ter feito isso há muito tempo. — Abaixou-
se e pôs o cachorrinho no chão. — Vá procurar um lugar perto do fogo, Bolso.
Como por instinto, o animal correu para a lareira.
Morgan arrumou uma bacia de água morna, na borda da pia, e lavou as mãos. Depois de enxugá-las,
trocou a água e ofereceu-a ao tenente. Em seguida, sentou-se no braço da poltrona de Bárbara,
encostando-se nela com a maior naturalidade.
— Só posso estar satisfeito por ter contado com a ajuda de seus homens, sra. Ross. Muito obrigado —
agradeceu ele.
Da área da cozinha, o tenente perguntou:
— Nesse caso, não acha que não lhe devo a outra metade do pagamento pela pousada dessa noite?
__ Tudo bem. Afinal, seu trabalho foi eficiente — concordou
Morgan. — Sorrindo, fitou Bárbara enquanto apanhava um bolinho no prato ainda intato. - Tudo em
ordem por aqui?
De repente, Bárbara sentiu-se suscetível ao sorriso de Morgan e, surpresa, piscou.
__Sim, claro — respondeu e fez um leve sinal em direção ao berço onde havia recolocado a criança. —
Sarah está meio manhosa hoje, mas fora isso, tudo correu bem. — Virou-se para a sra. Ross. — Nós nos
entendemos e concordamos uma com a outra.
O sorriso da inglesa podia ser tudo, menos compreensivo e cordato.
— Sem dúvida — disse ela, porém recusou-se a tocar no assunto. Olhou para os instrumentos na parede
e perguntou:
— Não vai cumprir sua promessa e tocar para mim, sr. Harris? O ânimo de Bárbara fraquejou-. Os
acordes do violão poderiam provocar o colapso de sua história. Manteve a expressão impassível, esforço
inútil, pois a sra. Ross concentrava a atenção em Morgan. Ele levantou-se do braço da poltrona e dirigiu-
se à parede onde estavam os instrumentos. Apanhou o mais valioso, marchetado de marfim, e indagou:
— Algum pedido?
Bárbara sentiu o coração pesado. Disfarçou servindo café e bolinhos ao tenente que, tendo terminado de
lavar as mãos, sentara-se no sofazinho, ao lado da sra. Ross.
— Eu não saberia escolher de seu repertório. Naturalmente, prefiro algo típico e nativo — disse a
inglesa.
— Bárbara, meu amor, alguma sugestão?
— Não, meu querido. Escolha uma canção que possa agradar nossas visitas — respondeu ela, intrigada
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com a atitude de Morgan.
— Nesse caso, cabe a mim escolher — disse ele ao atravessar o aposento em direção à mesa de
cavalete.
Puxou o banco, pôs um dos pés nele e apoiou o violão no joelho. Depois de uns acordes, seguidos de
ajustes das cravelhas, começou a tocar.
A abertura floreada e a agilidade dos dedos pelas cordas chamaram a atenção de Bárbara. Seu coração já
não batia de medo e sim de expectativa.
— Vou cantar uma canção chamada "O índio na Fronteira".

Sem mais olhar para os dedos e com voz afinada, Morgan entoou a primeira estrofe que conclamava os
homens a defender suas terras. Na segunda, limitou-se à música.
— Esqueceu as palavras, sr. Harris? — perguntou a inglesa com ar malicioso, na opinião de Bárbara.
Ele sacudiu a cabeça, os extraordinários -'olhos azul-escuros exibindo um brilho encantador.
— Não, minha senhora. As palavras amedrontadoras não são para uma reunião como esta em casa de
família.
— Escolheu essa canção para me assustar e forçar minha volta para a Inglaterra, sr. Harris?
— De forma alguma, sra. Ross. Apenas tentei não ofendê-la. Sabe, a maioria de nossas canções típicas
falam muito de política — explicou ele com um sorriso cativante.
A seguir, tocou uma versão animada de Yankee Doodle, a canção popular durante a guerra de
independência. Mas limitou-se ao início, parando depois de uns acordes floreados.
— Entende o que quero dizer?
Aliviada com o fato de Morgan Harris ser um músico muito bom, Bárbara quase riu alto. Desenvoltos,
os dedos dele percorriam as cordas arrancando sons a esmo, embora melodiosos. A expressão dos olhos
tornou-se distante como se a mente, a exemplo dos dedos, vagasse sem propósito. Como não iniciasse
outra canção, a sra. Ross comentou:
— Mas não é possível que todas as músicas americanas falem de política e violência.
Um tanto alheio, Morgan a fitou dando a impressão de pesar suas palavras. Após uns segundos, disse:
— Uma canção de amor, então.
No instante seguinte, as notas vagas do violão convergiam na forma de uma toada popular. Embora as
palavras fossem tristes, sobre um amor perdido, Bárbara percebeu que Morgan cantava, animado.
Da última nota, ele passou para uma outra melodia mais complexa e desconhecida de Bárbara, Os versos
descreviam um lugar ao norte, de montanhas azuladas, regatos cristalinos, invernos rigorosos e ha-
bitantes intrépidos. Morgan a entoava com um leve toque de melancolia na voz e como se conhecesse o
mapa da região de cor.
Quando terminou, fez-se um breve silêncio, quebrado pela sra.Ross.
— Ah, esse foi uni verdadeiro cântico de amor!- Morgan arqueou as sobrancelhas.
— De amor pela terra de sua juventude — esclareceu ela. — Canadá, não é? Gosta muito de lá?
O semblante de Morgan não revelava nada além do prazer sentido por um cantor ao sensibilizar os
ouvintes.
— Só quando estou longe. Para ser franco, gosto de qualquer lugar.
Baixou o violão, encostando a extremidade arredondada no chão e segurando-o pelo braço. Era um gesto
casual, mas definitivo.
A sra. Ross reconhecia sutilezas. Não abusaria da hospitalidade oferecida. Levantou-se, seguida pelo
tenente Richards.
— Bem, nós vamos embora.
Bárbara ergueu-se também, porém mais devagar. Começava a sentir os efeitos da tensão sofrida nesse
longo dia.
— Embora? — perguntou, cautelosa.
— Para Baltimore — respondeu a inglesa.
— E, naturalmente, de lá para a Inglaterra — disse Bárbara cometendo o primeiro erro desse encontro
penoso.
— Não tão cedo. Não estou com pressa e mal cheguei ao país — alegou a sra. Ross.
— Entendo — disse Bárbara.
Felizmente, pôde disfarçar o embaraço indo até o quarto a fim de pegar o casaco e o chapéu da visitante.
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Da porta, ouviu Morgan perguntar em tom amável:
— Pretende passar muitos dias em Baltimore, sra. Ross? Vale a pena conhecer a cidade. O porto é bem
movimentado.
— Não sei ainda. Tenho amigos na região e gostaria de visitá-los — respondeu ela, meio ambígua.
Já de volta com o casaco e o chapéu, Bárbara sentiu-se menos desanimada. De maneira vaga, deu-se
conta das despedidas, embora notasse alguns detalhes. Morgan segurou-lhe a mão enquanto, do terraço,
acenavam para a sra. Ross e o tenente Richards; o dia acinzentado de novembro chegava ao fim; a
despedida das visitas, ou melhor, dos inimigos, era temporária.
Quando Bárbara e Morgan já estavam dentro de casa outra vez, com a porta fechada, ele não lhe largou a
mão e, com o indicador sobre os lábios, pediu silêncio. Só quando o ruído da carruagem e o tropel dos
cavalos se tornaram distantes, ele a soltou.
— Daqui a uns minutos vou segui-los. Quero ter certeza se estão mesmo a caminho de Baltimore e não
têm a intenção de voltar para cá esta noite — disse Morgan. f
— Boa idéia — Bárbara murmurou.
Estava exausta e não via o momento de se atirar na cadeira de balanço. Todavia, os fatos do dia
continuavam a martelar-lhe a mente e, ao lembrar-se de um deles, correu em direção ao quarto. Tirou
uma caixa de couro de uma das gavetas da cômoda, abriu-a e procurou algo dentro. Encontrado o que
desejava, voltou à sala.
Sem uma palavra, dirigiu-se a Morgan e tomou-lhe a mão esquerda na sua. Levantou a outra mostrando
o aro de ouro.
— Acho melhor você usar isto por enquanto. Morgan fez uma careta.
— A aliança do sr. Johnson?
— Sim, de Jonas. Ele não era tão alto como você, mas tinha mãos grandes. Por isso, talvez a aliança
sirva.
Meio encabulada, Bárbara percebeu não ter tratado Morgan por "senhor". Mas depois de passar horas
chamando-o de "você" diante das visitas, nada mais natural do que enganar-se. Aliás, seria melhor
dispensar o formalismo antes de cometer um erro e se trair.
— Acha mesmo necessário eu usar a aliança? - indagou ele, contrafeito.
— A sra. Ross comentou o fato de você não usar uma. Não se trata de um detalhe importante e eu
inventei uma desculpa. Mas por uns dois dias, seria melhor exibi-la.
Morgan passou a aliança pela ponta do anular e da primeira junta, mas teve de forçá-la â volta da
segunda.
— Está um pouco justa — comentou ao tentar, sem conseguir, tirá-la. — Justa demais — corrigiu-se.
— Machuca o dedo?
— Não, só aperta um pouco.
Novamente experimentou tirá-la, mas sem sucesso. Tentou várias vezes e acabou com o dedo vermelho
e meio inchado. Bárbara segurou-lhe a mão e rodou a aliança, com um pouco de pressão, ao longo do
dedo. Não passou da junta.
— De fato está apertada, mas acabará saindo. Vamos deixar descansar uns minutos antes de fazer nova
tentativa. Talvez um pouco de manteiga ajude, mas agora, não tenho ânimo para ir buscá-la lá no
alçapão. Só quero me sentar por alguns minutos e relaxar um pouco.
Vendo-a dar uns passos incertos, Morgan amparou-a até a cadeira de balanço. Após ajudá-la a se
acomodar, sentou-se no sofazinho. Com o braço sobre o encosto e as pernas esticadas para a frente, ele
sugeriu:
— Agora, conte tudo sobre a conversa com a sra. Ross. Bárbara piscou e o encarou. De repente, foi
tomada por uma grande perplexidade. Aturdida, disse a primeira coisa que lhe veio à mente:
— O que eu teria feito se você não houvesse batido em minha porta uma hora antes do tenente
Richards?
— Talvez inventado um segundo marido morto.
— Pode ser. Mas um vivo é muito mais convincente. Morgan olhou para a aliança e sentiu a coerção do
aro como se fosse o laço de uma corda em seu pescoço. Flexionou os ombros para livrar-se da repressão
e da leve, mas perceptível, tristeza que a acompanhava. Fitou Bárbara e esqueceu a aliança.
Ela sorria daquela forma espontânea que o tinha fascinado na noite anterior. Ia falar, mas a resposta
sobre seu comentário fugira-lhe da mente. Manteve-se calado.
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— E um homem morto não pode cantar. Ainda mais tão bem quanto você.
— Muitíssimo obrigado — agradeceu ele sem se lembrar de quando fora tão amavelmente lisonjeado.
Bárbara começou a rir. Tantos disparates num só dia! O absurdo das horas martirizantes passadas com a
sra. Ross e, agora, não só o elogio como também a resposta de Morgan, ambos fora de propósito. Imersa
num misto de alívio e exaustão, riu à vontade e teve de fazer um grande esforço para parar. A
experiência recente ainda a perturbava demais para ser contada, por isso, fez uma pergunta típica de
esposa:
— E a cerca, Morgan, ficou boa?
Foi a vez de ele rir e o fez da normalidade absurda da indagação, porém a respondeu.
— Disfarçadamente, Ben Skinner, que Deus o abençoe, me mostrou o caminho pelo pasto. Chegamos lá
do lado sul sem que aqueles três notassem minha ignorância. O tenente não é de fazer trabalho pesado,
mas muito bom para dar ordens aos capangas. Os dois me ajudaram com as estacas mais pesadas. A
cerca ficou em ordem. Há quanto tempo caiu? f
— Menos de um ano — respondeu Bárbara, distraída, enquanto flexionava o pescoço a fim de aliviar os
músculos tensos. Tornou a rir, mas com menos animação. — Imagine dizer calmamente "menos de um
ano"! O que você deve pensar de mim?
— Que tem trabalho demais.
— Ah, sem dúvida! E imaginar que uma mulher achou-se no direito de chegar aqui e torná-lo de mim!
Assim, com a maior facilidade! Apenas pedindo! Não consigo entender.
— Tem razão, mas por outro lado, é compreensível.
— Pode ser - murmurou Bárbara já pensando em outra coisa. — Você nasceu na colônia de Quebec?
— Nasci.
— Com esse nome de Morgan Harris?!
— Que tal Jack Carter, ou Jacques Cartier? Bárbara repetiu os dois nomes e, depois, disse:
— Não sei. Mas se você nasceu em Quebec deve ter sangue francês.
— Tenho, sim.
Bárbara não insistiu. O tópico da identidade de Morgan alterava o espírito de camaradagem criado entre
eles após o alvo contra o inimigo ser atingido. Ela fez, então, uma pergunta menos ameaçadora:
— Você canta músicas canadenses?
— Só em francês.
— Que eu não entendo — declarou Bárbara abandonando também o assunto delicado da origem de
Morgan. — Você deve estar morto de fome. Trabalhou lá na cerca e só comeu um bolinho desde o
almoço. Vou cuidar do jantar — acrescentou ao levantar-se com esforço.
Morgan também ficou em pé.
— Ben Skinner me mostrou a casa atrás do estábulo. Vou levar o saco de dormir para lá e...
— Acha sensato?
— Só vamos saber depois de eu ir verificar se os ingleses seguiram, de fato, para Battimore.
Bárbara o viu puxar a aliança outra vez, mas sem sucesso.
— Certo. Não precisa ir além da casa de culto. Alguém lá deve ter visto se eles foram, ou não. Não se
preocupe com a aliança. Ela vai sair depois de alguns minutos no frio lá fora.
Morgan concordou, pegou o sobretudo e o chapéu, saindo em seguida.
Bárbara já ia sentar-se novamente quando Sarah acordou com um choro enérgico. Em qualquer outra
circunstância, o aviso estridente seria incomodo, mas no momento, foi um som abençoado. Ela sabia o
que a filhinha queria e quanto prazer sentiria ao satisfazê-la.
Um minuto depois, já amamentava o bebe. O fluxo do leite provocava-lhe uma sensação maravilhosa,
física e emocional. Enquanto Sarah saciava-se com algo tirado de seu corpo, Bárbara sentia-se realizada
e em paz e não violentada como com a atitude da inglesa e, mais ainda, com a do general Ross.
O período não se alongou por muito tempo. Ávida, Sarah satisfez-se depressa e armou uma grande
confusão nas roupas, obrigando Bárbara a levantar-se da cadeira para trocá-la. Felizmente, terminou
antes de Morgan voltar. Queria convencê-lo a jantar. Mal terminava de pôr Sarah no berço, ouviu o
ruído de suas botas na escada do terraço. Ele bateu de leve na porta antes de abri-la e entrar.
Ao vê-lo, Bolso abandonou o canto perto da lareira e foi correndo fazer festa ao novo dono, mas Morgan
o ignorou.
- A carruagem foi vista passando pela casa de culto bem antes de eu chegar lá. Existe outro caminho
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para se vir até a fazenda? — indagou Morgan com o chapéu na mão e sem tirar o sobretudo.
__Só pelo rio Patapseo. O tenente teria de arranjar um barco e dar um jeito de atracar em Old Roads
Bay.
— Ele é esperto o suficiente para conseguir um em Baltimore, subir o rio e aparecer aqui ainda esta
noite, não acha?
- O tenente teria de tomar a balsa para completar a travessia do rio e nosso balseiro é muito parcial. Ele
não deixaria estranhos passar por lá durante a noite. Os ingleses não voltarão pelo rio nem nesta noite,
nem em outra ocasião qualquer, tenho certeza.
— Otimo. O homem com quem falei na casa de culto chama-se Gorsuch. Disse que mandará avisá-la
caso a carruagem volte esta noite. Ele sabia quem eu era. À tarde, Ben Skinner foi daqui à casa de culto
e lhe falou a meu respeito.
— Que bom — comentou Bárbara.
Já ia insistir com Morgan para jantar quando ele entrou no quarto, de onde saiu logo trazendo o saco de
dormir.
— Vou dormir na casa atrás do estábulo. Tenho ainda um resto de alimentos que trouxe comigo. Se não
comer, eles vão se estragar.
Passou por ela, sem lhe dar a oportunidade de protestar. Já estava à porta de trás quando ouviram passos
no terraço e uma forte batida na da frente.
Morgan franziu a testa e praguejou contra Bolso. O cachorrinho, alheio à aproximação de alguém,
continuava tranquilo junto ao calor da lareira.
De olhos arregalados, Bárbara aproximou-se de Morgan
— Serão eles? Espere um pouco — murmurou.
Ele já tinha aberto o trinco, mas manteve a mão na maçaneta enquanto a via atravessar o aposento.
Bárbara abriu a porta e deparou-se com um estranho. Apesar da pouca luz vinda de dentro, ela viu tratar-
se de um homem de estatura média. Não se vestia com elegância, nem com desleixo.
— Boa noite. Por acaso é a sra. Harris?
Bárbara ficou perplexa. Ele não tinha sotaque britânico e sim bem americano. Sentia-se confusa. Por que
um americano a trataria por sra. Harris? O título existia apenas para enganar os ingleses.
— Sim — respondeu, cautelosa.
— Desculpe incomodá-la, senhora, mas estou procurando um homem chamado Jack Carter e tenho
motivos para achar que ele se encontra nesta região.
Às costas de Bárbara, a porta de trás fechou-se com um clique suave.

CAPÍTULO VII

Sem coragem para se virar e ver se Morgan Harris tinha deixado a casa, ou não, Bárbara manteve os
olhos no homem a sua frente.
- Jack Carter? Existe alguma razão para eu conhecê-lo? — perguntou com um grande peso no coração.
— Não, minha senhora, ele não é daqui, mas do Norte. Eu o venho seguindo há quatro dias —
respondeu o estranho em tom atencioso.
Bárbara observou-o bem.
— O senhor é da polícia?
— Não, senhora.
Embora ficasse aliviada, Bárbara continuou a sentir o coração confrangido. Ofereceu um pequeno
sorriso.
— Lamento não poder ajudá-lo, mas não conheço ninguém chamado Jack Carter.
__Não viu nenhum estranho por aqui nos últimos dois dias? — insistiu o homem.
Inquieta e com medo de não manter a firmeza, ela apenas meneou a cabeça num gesto negativo.
Indicando não ter mais nada a dizer, começou a fechar a porta.
— Só um instante, por favor — pediu o homem. — Existe alguma coisa para aquela banda? —
perguntou apontando para o lado oposto ao que tinha vindo.
Bárbara viu o estranho olhar por cima de seu ombro e sentiu a presença de Morgan Harris às costas.
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Então, ao ouvir o nome Jack Carter, ele não tinha saído. Estava sem o sobretudo e mostrava-se à vontade
como qualquer homem na própria casa.
Antes de Bárbara responder a pergunta, Morgan o fez utilizando-se das informações recentes:
— Esse caminho vai dar no rio Patapseo. Por que quer saber? Se está pensando em atravessar agora à
noite, desista. Nosso balseiro em Old Roads Bay é muito parcial e desconfia de desconhecidos.
Morgan olhava para o sujeito calmamente e Bárbara notou que nenhum dos dois dava sinais de
reconhecimento. Virou-se e respondeu pelo desconhecido:
— Este senhor está procurando um homem chamado Jack Carter. - Morgan nem piscou. Num gesto
típico de marido protetor, passou o braço pelos ombros de Bárbara. Quando falou, foi em voz calma,
mas com uma leve entonação de desafio, muito natural na situação.
— Nunca ouvi falar nele. Também não sei por que o senhor veio bater em minha porta.
O estranho não perdeu as boas maneiras.
— Peço que me perdoe, senhor, mas venho seguindo Jack Carter há quatro dias. Todas as indicações me
fizeram chegar a Baltimore ,ontem à noite e, hoje, a North Point. Há menos de uma hora, eu cavalgava
por Long Log Lane quando vi um cavaleiro, cuja aparência corresponde vagamente à descrição de Jack
Carter, vindo nesta direção. Segui-o até aqui. Acho que cometi um engano. Desculpem, por favor.
— Deve ter sido eu quem o senhor viu em Long Log Lane. Fui até lá para verificar se nossas visitas
desta tarde tinham encontrado o caminho para Baltimore. Cheguei em casa uns dez minutos atrás. Por
acaso não viu uma carruagem quando vinha de Baltimore?
— Sim, cruzei com uma. Ia bem depressa, acompanhada por dois cavaleiros.
— Isso me tranquiliza. Nossas visitas não se perderam. Bem, o senhor enfrentou quatro dias penosos,
mas até agora, seu esforço foi em vão.
— Enquanto cavalgava há pouco, o senhor não viu ninguém mais? — perguntou o homem com um resto
de esperança.
— Em minha opinião, o senhor teve o azar de estar apenas me seguindo — respondeu Morgan.
— E o que parece — disse o fulano entre desapontado e perplexo com o engano cometido.
— Existe algum motivo para tomarmos cuidado com esse tal Jack Carter? — indagou Morgan fingindo
apreensão.
— Duvido. Ele está metido em uma questão pessoal e alguém quer ajustar contas com ele. Jack Carter
não é um criminoso e nem prejudicará as pessoas com quem entrar em contato. Foi o que me
informaram.
— Ouvi o senhor dizer a minha mulher que não é da polícia. Confirma isso? — Morgan quis saber.
— De fato não sou, sr. Harris. O senhor deve querer saber por que um indivíduo, apesar de não ser
criminoso, seja seguido por um civil. Mas há coisas que ficam à margem da lei.
— Tem razão. Mas como já disse, seu trabalho dos últimos quatro dias, resultou em nada até agora.
Infelizmente, não temos informação alguma para lhe dar.
Preocupado, o homem olhou de Morgan para Bárbara,
— Os senhores foram muito bondosos respondendo minhas perguntas e eu não deveria importuná-los
mais. Contudo, já é tarde e estou muito longe da pousada mais próxima. Imagino se poderia abusar de
sua hospitalidade e...
Bárbara olhou para Morgan em busca de orientação, porém a expressão dele também era interrogativa.
Ela, então, fez uma avaliação rápida das circunstâncias. Achava mais sensato negar o pedido do
estranho, mas a curiosidade a dominou:
— Nosso jantar vai ser simples, mas poderá compartilhá-lo conosco.
O estranho não escondeu o alívio.
— Ah, sra. Harris, nem sei como lhe agradecer a compreensão — disse ao curvar a cabeça para, em
seguida, estender a mão a Morgan. — Também lhe agradeço, sr. Harris. Será um prazer jantar em sua
casa. Sou Evan Rollins. De Boston.
Morgan aceitou o aperto de mão, disse as palavras convencionais e indicou onde o recém-chegado podia
pendurar o sobretudo e o chapéu. Bárbara soltou-se do braço de Morgan e ofereceu:
— Enquanto preparo o jantar, o que prefere tomar, café ou sidra?
— Café, por favor, sra. Harris.
— Posso ajudá-la, meu amor? — indagou Morgan. — Com a movimentação das visitas à tarde, você
deve estar cansada.
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Bárbara o fitou, mas desviou o olhar depressa. Queria distância de Morgan, das indagações sobre ele e
não só das emoções sentidas à tarde como também das que a afligiam agora sob a tensão da nova
surpresa. A exaustão tinha desaparecido e ela se sentia bem alerta.
— Não, não, Morgan, não estou cansada — afirmou ela, porém no instante seguinte, Sarah acordou
choramingando.
— Não se preocupe, eu cuido dela — ofereceu-se Morgan. — A não ser que esteja com fome.
— Impossível. Mamou há pouco.
Bárbara viu Morgan tirar Sarah do berço e balançá-la no ar enquanto a admoestava a comportar-se bem
na presença do sr. Rollins. O semblante demonstrava ternura.
— Eu a troquei também. Você tem sorte:
Os olhos azul-escuros a fitaram.
— Tenho, sim — concordou ele.
Bárbara não respondeu e nem refletiu sobre o agradecimento implícito nas duas palavras. Ocupou-se em
arrumar o jantar e pôr a mesa. Sentia-se aliviada em não tomar parte na conversa entabulada pelos dois
homens. Apenas a ouvia. Morgan ofereceu o sofazinho ao sr. Rollins e, muito à vontade com o bebê no
colo, acomodou-se na cadeira de balanço. Não mostrava dificuldade em conversar com o sujeito, o que,
na opinião de Bárbara, poderia ser perigoso.
Após algum tempo, ocorreu-lhe que Morgan tinha razão para não se preocupar. Ali estava ele,
aparentemente na própria casa, carregando a filhinha enquanto a mulher ocupava-se com o jantar.
Bárbara notou que ele tinha a cabeça de Sarah recostada no ombro direito e amparava-lhe as costas com
a mão esquerda. A aliança estava bem visível.
Apesar da naturalidade, a expressão faminta poderia despertar a desconfiança do sr. Rollins. Bárbara
imaginou como a aparência de Morgan Harris ficaria caso ele engordasse uns quilos. Porém deu-se conta
de que o aspecto desnutrido não era provocado pela magreza física e sim pela fome da alma revelada
através do olhar. Pela conversa, ficou sabendo que Morgan era agricultor, ou fora, concluiu. Ele entendia
bem do assunto. Portanto, o sr. Rollins não tinha motivo para desconfiar de não estar sentado diante do
verdadeiro dono da casa.
Todavia a certa altura, o homem revelou uma ponta de suspeita.
— Há pouco, fiquei surpreso quando o senhor apareceu à porta.
Os homens, na casa de culto, não mencionaram um sr. Harris ao me indicarem o caminho até a fazenda
da sra. Harris.
Morgan enfrentou a comentário sem dificuldade. Fitou Bárbara enquanto dizia.
— Os homens lá têm a mania de esquecer minha existência.
— Não diga! Por quê?
— Minha mulher era a viúva Johnson e eu ainda não fui perdoado por chegar aqui e me casar com a
mulher mais bonita de North Point.
— Ah, isso explica por que um dos homens se referiu a ela como sra. Johnson e um outro, irritado,
cutucou-o dizendo que, agora, ela era a sra. Harris.
— Preciso ir à casa de culto com mais frequência. Só assim, os rapazes se lembrarão de que continuo
vivo — Morgan disse fingindo aborrecimento.
— Estão casados há muito tempo?
— Um ano.
— Comemoramos nosso primeiro aniversário de casamento esta semana — aparteou Bárbara da área da
cozinha.
Enquanto o sr. Rollins lhes dava parabéns, Morgan levantou-se e pôs Sarah, já adormecida, de volta no
berço. Mas antes, sorriu para Bárbara em resposta a seu comentário.
— E Sarah tem três meses — contou ele ao sentar-se outra vez na cadeira de balanço.
— Bem grandinha — observou o sr. Rollins. — Tenho sete filhos, de cinco a vinte cinco anos de idade.
Só uns dois meninos eram tão grandes como sua filha aos três meses, eu acho. Eles crescem muito
depressa e acaba-se esquecendo certas coisas.
Morgan concordou e mudou de assunto, numa tentativa de levar o sr. Rollins a falar sobre si mesmo.
Porém o homem estava mais interessado em conhecer melhor a família Harris.
— Segundo entendi, o senhor apareceu por aqui e conquistou a linda viúva Johnson. De onde veio, sr.
Harris?
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— De Quebec.
— Como veio parar nesta região?
Bárbara não se atreveu a olhar para Morgan, mas notou-lhe o tom de displicência ao responder:
— Por mero acaso da sorte.
O sr. Roilins deu-se por satisfeito. Se precisava de mais alguma prova para confirmar o quadro
doméstico da família Harris, os instrumentos pendurados na parede forneceram outra oportunidade de
investigação.
— Os violões e o banjo são seus, sr. Harris?
Morgan respondeu afirmativamente e, quando o sr. Rollins sugeriu um pouco de música, confessou:
— Estava esperando que me pedisse. Tocar sempre me dá prazer e nunca me faço de rogado. Minha
mulher é testemunha. Desculpe a modéstia, mas me considero um músico bom e gosto de minha voz.
— De fato, ele é excelente, como o senhor verá — confirmou Bárbara, ocupada com o jantar.
— Ouviu? Mas a opinião de minha mulher é suspeita. Morgan começou a tocar. O violão já estava
afinado e ele sentia-se mais à vontade do que à tarde. Escolheu canções conhecidas e bonitas.
O sr. Rollins, exausto dos quatro dias de viagem a cavalo, logo entregou-se ao embalo da música.
Fascinado, deixou-se envolver pela ilusão de domesticidade desse casal feliz. Se alguém mais aparecesse
para acusar Morgan de ser o mulherengo e tapeador Jack Carter, Evan Rollins o convenceria de estar
enganado e o mandaria de volta a Baltimore.
Quando Morgan já estava no meio da terceira canção, Bárbara os chamou para jantar. Ela havia posto o
lugar de Morgan ao lado do seu e o do sr. Rollins, em frente. Tão logo se sentaram, ela percebeu o erro
cometido. Embora não se fitassem e Morgan não desse sinal de notar a proximidade de ambos ela sentia
algo diferente. A mudança entre eles era muito sutil, mas perceptível. Havia uma certa tensão no ar
causada pela presença do desconhecido que, ao procurá-los, provocara-lhe indagações sobre a identidade
de Morgan Harris.
Naturalmente, ela não podia revelar a verdade sem se expor ao perigo. A história forjada na véspera,
para seu benefício e com a colaboração de Morgan, seguia agora um caminho estranho e de
consequências imprevisíveis. Sentados lado a lado, o contato físico era inevitável, embora mínimo.
Situação perigosa. Sentia calor da perna de Morgan ao longo da sua, sob a mesa, e atraída pelos mo-
vimentos dos braços e das mãos dele ali em cima.
Porém o pior era a curiosidade. Não se tratava de um sentimento simples e puro, mas complexo e
constrangedor. Envergonhava-se por essa vontade incontrolável de saber quem era o homem que
compartilhara de sua mentira e de sua cama na noite anterior. Queria descobrir de onde vinha, por que
estava ali e as razões pelas quais Evan Rollins procurava um homem chamado Jack Carter.
Morgan também se dava conta da mudança e da tensão no relacionamento de ambos. Seria impossível
ignorá-las. Sabia muito bem como a noite terminaria com o cansado e atencioso sr. Rollins dormindo no
quarto extra. Em outras circunstâncias, consideraria a perspectiva muito estimulante, mas nas atuais,
poderia ser um inferno. Pensou no saco de dormir, largado do lado de fora da porta de trás quando
ouvira o estranho perguntar por Jack Carter. Gostaria bem de apanhá-lo e ir dormir na casa lá atrás do
estábulo. Possibilidade remota.
Durante a refeição, Morgan manteve-se sob controle e afastado de Bárbara o quanto o espaço exíguo
permitia. Mas era impossível não sentir seu perfume, ou notar-lhe a silhueta tão próxima. Nas poucas
vezes em que se fitavam, ela desviava o olhar depressa. Sinal desencorajado!.
Contudo, Bárbara comportava-se com calma e discrição. Morgan imaginou se, caso algum aspecto
sombrio do passado de Jack Carter fosse revelado, ela se descontrolaria.
Entretanto, como não tivesse nada de valor a perder, a deixaria conduzir a conversa com o sr. Rollins
para onde bem entendesse. Ela não havia se traído ao ouvi-lo indagar por Jack Carter. Por outro lado,
achava que Bárbara estava interessada em descobrir algo sobre uma pessoa errante que lhe viera bater à
porta e que, minutos atrás, tinha se associado ao nome de Jack Carter.
Morgan não a subestimava. Lá pelo meio da refeição, ela perguntou com interesse comedido:
— Afinal, quem é esse Jack Carter que o senhor vem seguindo? Ou por outra, o que ele fez para forçá-
lo a vir tão longe em seu encalço?
— Tapeou num jogo de cartas, isso foi o início de tudo.
— As apostas deviam ser muito altas para compensar essa sua viagem de quatro dias e, sem dúvida,
mais pela frente, pois ainda não o encontrou.
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Evan Rollins tinha relaxado com a música antes da refeição e jantava bem. Isso o deixava mais
comunicativo.
— Digamos que o incidente á mesa de jogo precipitou os acontecimentos.
— O senhor está começando a despertar meu interesse — confessou Bárbara provocando um aparte de
Morgan.
— Minha mulher gosta de uma boa história, sr. Rollins. Portanto, dê-lhe o prazer de ouvir a sua.
Bárbara relanceou o olhar por ele e notou-lhe a expressão calma de desafio.
— Bem, cinco noites atrás, Jack Carter estava numa taverna jogando. Jogando e ganhando. Aliás,
ganhou muito.
— Trapaceando? — Bárbara quis saber.
— Não, minha senhora! Ele era conhecido por não trapacear.
— Um homem com fama de trapaceiro não conseguiria ganhar a vida em mesas de jogo. Não
encontraria parceiros — comentou Morgan.
— É verdade, sra. Harris. Para um sujeito se sustentar com as cartas precisa ser não só bom jogador
como honesto também.
— Então, até cinco dias atrás, Jack Carter gozava de boa reputação quanto a honestidade?
— Impecável, mas só nos círculos de jogatina, não em outros — disse Rollins com uma piscadela
maliciosa.
Bárbara percebeu que Morgan mexeu-se um pouco.
— Está se referindo ao de mulheres? — indagou ela.
— Chegarei lá. Segundo me informaram quando fui incumbido de procurar Jack Carter, as
circunstâncias não poderiam ter sido mais estranhas, uma noite bem pouco comum na taverna Kelly's.
Com a maior calma, Jack Carter perdia quantias altas e as recuperava em seguida. As apostas eram altas.
De repente, entrou um rapazola na taverna.
Roilins fez uma pausa significativa instigando Bárbara a repetir, perplexa?
— Um rapazola?!
— Não se tratava de um moço comum, mas de um índio. Apesar dos cabelos e olhos negros, dava a
impressão de não ser um pele vermelha puro. Mas também não se parecia com um branco. Vestia-se,
entretanto, como índio, tinha o rosto pintado em cores de guerra, calções e jaqueta enfeitados de contas
coloridas. Era da nação Onondaga, disseram, e chegou a Boston vindo do norte. Sozinho! Nem tinha
sinal de barba, mas isso é comum em índios. Não devia ter mais de quinze anos, me contaram.
— Ele nunca tinha aparecido lá antes? — perguntou Bárbara.
— Não, sra. Harris.
— E desafiou Jack Carter para um jogo de cartas?
— Também não. Nem chegou perto da mesa dele. Mostrava-se muito agitado. Uns dizem que estava
bêbado, outros, que procurava alguém, ou apenas uma briga. Como hoje em dia não se vêem muitos
índios em Boston, este causou um grande alvoroço naquela noite.
— Não entendo por que a chegada desse rapaz à taverna tenha algo a ver com as trapaças de Jack Carter
— disse Bárbara.
— Diretamente, nada. Mas quando o rapaz estava prestes a ser espancado, correndo risco de vida, Jack
Carter foi apanhado trapaceando.
— Pego em flagrante?! — exclamou Bárbara. — Então, devia estar familiarizado com trapaças. Por
que, se era um bom jogador?
Mais uma vez, Morgan aparteou:
— Um homem, que ganha a vida com jogos de carta, precisa conhecer várias formas de trapaça para
percebê-las quando lhe aplicam uma.
— Isso mesmo, sr. Harris. E aí está a parte estranha dessa questão com Jack Carter. Ele tapeou da
maneira mais simplória, dando a idéia de querer ser apanhado.
— E foi — observou Bárbara. — E então?
— Estabeleceu-se o maior pandemônio na taverna .Kelly's, uma briga jamais vista lá. Enquanto isso,
Jack Carter escapou — contou Rollins.
— E o rapazola indígena? — Morgan indagou sem grande interesse.
— Fugiu também, ou foi atirado fora. Se estava querendo brigar, ficou frustrado, pois Jack Carter
tornou-se o centro das atenções. Engraçado, foi quase como se ele tivesse começado tudo apenas para
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salvar o rapaz. Logo surgiram boatos sobre ele, anos atrás, ser simpatizante dos índios.
— Agora, começo a entender. Jack Carter fugiu e o senhor está atrás dele a fim de recuperar o dinheiro
roubado — disse Bárbara.
-Não.O dinheiro fiocu lá na mesa,ou melhor, espalhado pelo chão. O parceiro tapeado, o maior rival de
Jack Carter, jurou segui-lo
— Também vem por aí? — Bárbara quis saber.
- Não faço idéia — respondeu Rollins.
- Sua missão, nesse caso, é cobrar pelos estragos feitos na taverna ? – foi a nova tentativa de Barbara
para descobrir o propósito do sr. Rollins.
- Não, sra. Harris. Aliás, é melhor Jack Carter não aparecer tão cedo em Boston. Se Jim Kelly não o
matar primeiro, a polícia o prendera por perturbar a ordem pública
Barbara tinha certeza de que algum elemento da história estava faltando.
— Então, por que o senhor o está seguindo?
Evan Rollins sorriu.
- Eu lhe disse que chegaria à parte referente às mulheres. Estou a trabalho da sra. Layton. De
acordo com ela , Jack Carter não tapeou apenas na mesa de jogo.

CAPÍTULO VIII

A menção do nome da sra. Layton, Morgan mexeu-se um pouco e Bárbara voltou a sentir-lhe a perna
junto a sua. Não o fitou. Apenas comentou com um sorriso:
— Naturalmente devia haver uma mulher envolvida na história!
— Mais de uma, como acabou se descobrindo — revelou o sr.Rollins.
— É mesmo? Estaria Jack Carter traindo a mulher com a sra.Layton?
— Que se saiba, não existe uma esposa. Mas o fato de Jack Carter ser solteiro não o favorece.
— Por que não?
— Bem, minha senhora, qual é a sua opinião sobre um homem que não consegue se assentar na vida?
Ainda mais não sendo muito jovem? Instável, eu considero. Sou casado há muitos anos e com a mesma
mulher. Sempre fui um marido fiel e pai amoroso de sete filhos. Mas não preciso convencê-la das
virtudes da vida conjugal. Afinal, a senhora é uma respeitada mulher casada, e pela segunda vez.
Bárbara pensou em seu casamento com Jonas Johnson, um viúvo de meia-idade sem nada para lhe
oferecer. Nem amor, carinho ou filhos. Se isso significava posição de respeito, não desejava se casar
outra vez.
— Mas falávamos de Jack Carter — continuou Rollins diante do silêncio de Bárbara. — Ao mesmo
tempo em que namorava a sra. Layton, ele recebia os favores de uma outra mulher do lado oposto da
cidade. Lá de perto do cais, se entende o que quero dizer, sra. Harris.
Bárbara sentiu-se dividida entre a vontade de encerrar a conversa e a curiosidade vergonhosa de saber
mais. Virou-se para Morgan. Os olhos azul-escuros a fitavam como se a desafiasse a prosseguir. Ela
aceitou o desafio e perguntou, encarando-o, como se respondesse as últimas palavras de Rollins:
— Parece que Jack Carter queria ser apanhado trapaceando a sra. Layton como fez nas cartas. O que
acha, Morgan?
— Ah, isso depende do relacionamento dele com a sra. Layton, eu penso — respondeu ele, impassível e
sem desviar o olhar para, em seguida, dirigir-se a Rollins. — Qual é a alegação da sra. Layton?
— Bem, ela pretendia se casar com Jack Carter.
— Nesse caso, a sra. Layton é viúva — concluiu Bárbara. Rollins sacudiu a cabeça.
— Não exatamente, ou melhor, ainda não. O marido está muito doente, á beira da morte.
— A sra. Layton tinha um relacionamento com outro homem enquanto o marido morria?! — exclamou
Morgan fingindo choque diante de tal infidelidade. Virou-se para Bárbara: — Espero, minha querida
mulher, não me inflija essa ignomínia quando eu estiver á morte!
Bárbara não desviou o olhar e sorriu.
— Isso vai depender de sua fidelidade no decorrer de nosso casamento e da força da tentação com que
eu me deparar.
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Rollins, ao ouvir essa troca de palavras, assumiu ar benevolente.
— A sra. Layton pensava assim, sra. Harris. O marido era, quer dizer, e um dos homens mais ricos e
influentes de Boston. Mas dizem que a primeira mulher morreu de desgosto provocado pelas aventuras
amorosas dele. A atual sra. Layton é muito mais nova e até podia ser sua filha. Nem por isso, ele deixou
de ser mulherengo. Então, quando apareceu Jack Carter, a sra. Layton sentiu uma forte atração e...
— Por esse indivíduo de caráter instável?! A experiência com o marido não tinha lhe ensinado nada? —
perguntou Bárbara, incrédula.
— Bem, jamais conversei com a sra. Layton sobre o assunto, claro, porém minha mulher a conhece
desde que nasceu. Segundo ela, embora seja de família muito boa, a sra. Layton foi dominada por um
grande sentimento amoroso ao conhecer Jack Carter. Ele só a visitava à noite e em seu quarto, se não me
engano. De acordo com as informações que me deram, o homem alto, magro, com cabelos pretos e olhos
azuis, exercia grande atração nas mulheres. Ora, sr. Harris, ele deve ser como o senhor, mais ou menos.
Não sei julgar essas coisas.
Bárbara tornou a olhar para Morgan que ouvia a história sem constrangimento algum. Ele sacudiu a
cabeça e comentou:
— Também não sei avaliar tais questões. Mas fico imaginando se Jack Carter prometeu algo mais à sra,
Layton além das visitas noturnas a seu quarto.
— Não sei. Contudo, como ele é pobre e ela, rica, ficou a impressão de que o sujeito só queria tirar
vantagem. A sra. Layton, por seu lado, quer se casar com ele — explicou Rollins.
— Algum dia, o senhor quer dizer. Depois de o marido morrer — corrigiu Morgan.
— Claro. Caso contrário, seria ilegal — concordou Rollins. Por um instante. Morgan manteve o olhar
no prato vazio. Baixinho, repetiu:
— Ilegal. — Fitou Rollins. — Não consigo compreender por que o senhor está atrás de Jack Carter.
— Para levá-lo de volta a Boston e à sra. Layton — respondeu o outro, surpreso como se afirmasse o
óbvio.
— Caso o encontre, por que Jack Carter há de voltar com o senhor? Se ele partiu, sinal de que não
queria ficar com a tal senhora, suponho.
— Ele a deixou numa situação embaraçosa. A cidade inteira sabia do relacionamento deles. É uma
questão de orgulho e compromisso.
— Compromisso por parte de Jack Carter? — perguntou Morgan, porém como não esperasse uma
resposta, continuou com outra indagação mais pertinente: — O que vai fazer quando o apanhar?
— Mandar prende-lo — respondeu Rollins sorridente.
— Por perturbar a ordem pública de Boston? E se o encontrar aqui em Maryland? O braço da lei de
Massachusetts é tão longo assim?
— Não. Mas eu tenho uma lista de nomes de homens para entrar em contato em cada estado. Eles
arranjarão a acusação necessária para prender Jack Carter e mandá-lo a Massachusetts.
Bárbara sentia-se chocada com a indiferença de Morgan Harris e a falta de escrúpulos da sra. Layton.
— Falsificar acusações? Isso não é ilegal? — demandou Morgan forçando Rollins a desviar os olhos.
— O sr. Layton é advogado. Durante os quinze anos em que estão casados, a sra. Layton aprendeu
muita coisa sobre leis. Ela vai encontrar uma maneira de agir dentro da legalidade.
— Fico mais descansado. Não dormiria em paz se imaginasse que as leis deste país estariam sendo
deturpadas por seus cidadãos mais respeitáveis — afirmou Morgan.
— A sra. Layton não faria nada ilegal. É uma mulher muito inteligente. Linda também. Mas tem sofrido
bastante nos últimos anos e já não é mais tão jovem. Agora, ela deseja apenas um pouco de felicidade.
— E como o senhor disse antes, algumas coisas estão fora do alcance da lei — comentou Morgan
pensativo.
Num gesto distraído, estendeu a mão e tirou um pedaço de casca do pão. Bárbara atreveu-se a observar-
lhe o perfil. Era bem delineado e nítido. Uma linha ia do lado do nariz ao canto da boca.
Satisfeito por ter o mesmo ponto de vista que o dono da casa, o sr. Rollins concordou.
— Quem mais, alem do senhor, está atrás do homem? A polícia de Boston? O parceiro tapeado?
Alguém por parte da moça do cais? — perguntou Morgan com certo desdém.
— Apenas os dois últimos, pois como o senhor falou, a lei de Massachusetts não alcança além dos
limites do Estado. Lamento não haver tido sorte. Esperava apanhar Jack Carter antes deles.
— De fato, é uma pena, considerando-se seu esforço — concordou Bárbara.
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De repente, a tensão sofrida nesse dia tumultuado começava a cobrar seu preço. Ela não sentia a mínima
energia para se livrar do presença do sr. Rollins a não ser convidando-o para passar a noite ali. Quando
lhe falou sobre o quartinho sobressalente, notou o movimento de Morgan. Fitou-o, porém ele olhava
para Rollins e repetia o convite, embora de maneira inexpressiva.
O homem aceitou e agradeceu a extensão da hospitalidade. Ofereceu-se para ajudar a lavar a louça e
Bárbara concordou. Morgan também colaborou, embora evitasse troca de olhares e qualquer contato
físico casual.
Em questão de minutos, a cozinha estava em ordem, o quartinho arrumado, o sr. Rollins dava boa noite e
se retirava. Novamente, Bárbara e Morgan encontravam-se a sós.
Tão logo entraram no quarto e ele fechou a porta, uma onda colorida de azul e vermelho escuro a
engolfou, Embora estivesse bem perto, ele não a tocou. Limitou-se a murmurar em tom de censura:
— Não precisava ter convidado o homem para passar a noite aqui.
A luminosidade avermelhada vinda das brasas produzia uma intimidade envolvente. Bárbara não sentia
o medo experimentado na noite anterior, quando o tenente e seus capangas ocupavam o resto da casa.
Mas as batidas do coração, nesse momento, mostravam-se tão irregulares quanto às da véspera. Contudo,
elas não eram provocadas pelo mistério do homem a sua frente e sim pelas revelações sobre sua vida e
seus amores feitas pelo sr. Rollins.
Bárbara sentiu-se irritada com Morgan, consigo mesma e com o mundo.
— Foi mais fácil fazer o convite do que mandá-lo embora. Eu estava exausta demais para convencer o
homem a voltar para a estrada e continuar na perseguição a Jack Carter.
— Também estou cansado, mas poderia ter encontrado um jeito de forçá-lo a partir.
— Para encontrar sinais de Jack Carter?!
— Jack Carter acabou — afirmou ele, lacônico para prosseguir depressa: — Sinto muito que tenha sido
forçada a ouvir tudo aquilo.
Bárbara não achou resposta para dar e o fitou. Antes, o tinha considerado um homem atraente, embora
não pelos moldes clássicos. Agora, o encarava como um homem sensual, capaz de seduzir a mulher de
um advogado rico, em sua própria casa, e de ir para a cama com uma rameira de beira do cais. Ficaria
surpresa se descobrisse que ele preferia os encantos da última e que, nos últimos vários meses, tinha
evitado as duas.
— Como? Nenhum comentário sobre as aventuras de Jack Carter? — provocou ele semicerrando os
olhos.
Bárbara mantinha-se atenta à proximidade de Morgan. Notava-lhe o corpo, a postura, a curvatura dos
ombros e a distribuição do peso nas duas pernas. Desde sua chegada, ele se mostrara reservado e não
mudara. Mesmo assim, ela começava a entender-lhe a facilidade em encontrar o caminho para o quarto
de uma mulher rica.
Apesar de não sentir a mínima simpatia pela infiel sra. Layton, Bárbara considerava muitíssimo injusta a
atração exercida por esse homem. A irritação cresceu.
— Não. Nenhum comentário além da observação do quanto é fácil para um homem ir e vir e mudar de
nome, Morgan Harris!
— Esse é o meu nome!
— E Jack Carter, não?
— Jack Carter acabou! — repetiu ele. — Por que você fugiu?
Estava muito escuro para Bárbara interpretar-lhe a expressão dos olhos antes de Morgan baixá-los. Ele a
rodeou e foi até a janela.
— Vou dormir na cadeira.
A irritação tornou-se insuportável. Vou dormir na cadeira, Morgan havia dito como se fossem um casal
tendo uma briga, como se, na cadeira, ele representasse uma ameaça menor, como se quisesse se
proteger contra ela, ou contra as mulheres que o perseguiam.
Pois que dormisse onde bem entendesse, pouco se importava! Depois de alguns segundos, aproximou-se
e disse-lhe ás costas:
— Vai encontrar os mesmos problemas de ontem. Nós dois estamos cansados e precisamos de um bom
repouso a fim de enfrentar os trabalhos de amanhã. Vou sair do quarto por alguns minutos, mas antes,
deixo o camisolão nos pés da cama. Por favor, feche as cortinas — acrescentou notando o tom ríspido de
voz.
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Fora do quarto e enquanto se preparava para dormir, Bárbara descobriu estar menstruada. Ficou
aborrecidíssima. Após a gravidez e o parto, essa era a primeira vez e ela já havia se habituado á falta de
tal incômodo. Justamente nesse dia, quando um homem, representando o papel de seu marido,
encontrava-se lá no quarto, a menstruação voltava. Quase explodiu de irritação. Concluiu que, de
maneira vaga e misteriosa, Morgan Harris era responsável pelo retorno dessa sua função física e de
mulher.
De volta ao quarto, viu que Morgan tinha feito a escolha sensata e mais confortável para dormir. Estava
deitado na cama. A atitude, em vez de diminuir a irritação, aumentou-a. Se tivesse boas maneiras, ele
teria rejeitado sua sugestão. Considerava-o um intruso e, mentalmente, o maldisse por não perceber que
ela queria a cama inteira para si mesma nessa noite.
Entretanto, quando entrou sob as cobertas, já aquecidas pelo calor de Morgan, quase se sentiu contente
por tê-lo ali ao lado. O ritmo da respiração e o peso do corpo no colchão davam-lhe um certo conforto.
Deitou-se de lado, virada para ele, em sua posição habitual. Antes de fechar os olhos, viu que os dele
estavam abertos e fixos no teto. Tinha certeza de que Morgan, como na noite anterior, não a tocaria.
Estaria desapontada por esse mulherengo, também conhecido como Jack Carter, não se sentir atraído por
ela? Estava exausta demais para analisar as emoções. Por isso, entregou o espírito atribulado ao calor,
conforto e escuridão do quarto onde dormiam, a julgar pelas aparências, o marido, a mulher e a filhinha.
Mal entregava-se ao repouso merecido, a criança acordou chorando, agitada. Bárbara quase gemeu alto.
Arrastou-se para fora da cama, apanhou Sarah e voltou a se deitar, com ela aconchegada ao corpo.
Talvez assim, se acalmasse. Porem, foi inútil. O choro contínuo e os movimentos enérgicos à procura do
seio materno indicavam fome.
Bárbara suspirou e começou a amamentar o bebê. Pensando bem, a filhinha tinha todo o direito de estar
com fome. Já fazia algum tempo desde que fora alimentada pela última vez. O reconhecimento aliviou-
lhe um pouco a irritação. Enquanto Sarah, ávida e barulhenta, mamava, o alívio transformou-se em
contentamento por estar segurando a filha tão amada. Lembrou-se da vida vazia da sra. Ross e deu
graças a Deus por Sarah ter enriquecido sua existência solitária. Jamais deixaria que lhe tirassem a
criança, refletiu com os olhos marejados de lágrimas.
Sentia-se imersa numa mistura úmida de leite, sangue e lágrimas. Mulher alguma poderia se mostrar tão
pouco atraente a um homem como, nesse momento, ela deveria ser aos olhos de Morgan Harris. Bárbara
virou o rosto e o fitou na semi-escuridão. Ele não desviou os olhos, nem se desculpou pela observação
desinibida. Em silencio, encararam-se. Bárbara foi tomada por um desejo indescritível. Era azul,
delicioso e novo. Não se tratava do branco familiar do leite, ou do vermelho aborrecido do sangue, mas
de uma mescla de azul da atração, de verde do receio e de roxo do desejo misterioso. Consciente de que
a criança, ao seio, era o símbolo de sua sexualidade
prendeu a respiração e afastou os olhos dos de Morgan. Não se sentia embaraçada, mas exposta.
Quando falou, não foi mais em tom ríspido:
— Ninguém, nem mesmo o sr. Rollins, o criticaria se você fosse dormir lá na sala. Pelo jeito, Sarah vai
resmungar a noite inteira e nós duas fazemos muito barulho.
Morgan não respondeu logo, nem desviou os olhos de seus seios branco-azulados.
— Ela pode chorar o quanto quiser, não tem importância. Só não me force a sair daqui.
— Está bem.
— Eu não conseguiria. Não até amanhã cedo.
— Eu só queria avisá-lo.
— É uma pena não podermos nos revezar cuidando de Sarah — disse ele numa voz grave e sonolenta.
Não trocaram mais palavras. Sarah terminou de mamar e Bárbara fechou a camisola com ela nos braços.
Estava sem coragem de levá-la de volta ao berço. Tinha a sensação agradável de haver sido drenada do
leite, da emoção e das preocupações com o passado, o futuro e o presente.
Finalmente, Morgan voltou a fixar os olhos num ponto vago do teto. Estranho o sentimento de inveja
que o dominava. Não era como o da véspera, provocado pela filha desfrutando dos seios fartos e lindos
da mãe. Nesse momento, tinha inveja da mãe e de sua maternidade. Ela possuía a filha, uma nova vida.
Era feliz. Tinha a fazenda, terra sob seus pés. Enfim, tudo que havia sido tirado dele.
Afundou a cabeça no travesseiro e fechou os olhos. Uma visão repentina de fogo o dominou. Chamas!
Destruição! Queimavam sua casa. Suas terras. Sua mulher. Seu filho. Consumidor, o fogo rugia.
Roubava-lhe o amor e as razões para uma existência digna de ser vivida.
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Abriu os olhos depressa e, com esforço, controlou o coração disparado. Alegrou-se com a distração
oferecida por Bárbara ao levantar-se para deitar o bebê no berço e voltar para a cama.
Mas então, surgiram as perturbações previsíveis. A silhueta deitada a seu lado, o suspiro cansado, a
beleza inegável e o fato de Bárbara saber mais sobre sua vida do que ele pretendera revelar.
Se fossem realmente casados, não deixaria de ser um requinte de luxo não fazer amor. Estar deitado com
a mulher a quem possuíra na noite anterior e certo de fazê-lo na seguinte, tornaria o amor desnecessário
no momento. Como seria dormir verdadeiramente com uma mulher, imaginar as satisfações passadas e
futuras, sempre á disposição, confiáveis e presentes, tornando preterível o desejo do momento?
Algo vibrou em seu âmago. O eco de uma emoção. Interessante. Depois de todos esses anos de esforços
para manter plano o panorama emocional, sem variações, sem declives íngremes. Evitara vales e
montanhas. Preferira a planície.
Alguma coisa mais vibrou em seu âmago. Interesse sexual. Irritante. Afinal, acabava de admitir a
satisfação sutil do prazer deferido. Tinha, agora, de enfrentar a excitação. Aí estava o inferno previsto à
mesa do jantar, quando ficara óbvio que teriam outro hóspede c ele entraria, novamente, no paraíso
paradoxal da cama de Bárbara Johnson. Na noite anterior, a excitação fora física, não emocional. E nessa
noite? Física com uma pitada do emocional? Poderia o desejo ter algo a ver com a vibração sentida há
pouco? A idéia matou a excitação no mesmo instante.
Engraçado. Aí estava um desvio, impotência diante do desvelo. Mas por que, nos últimos meses, não
sentia mais desejo por Mary Ann Layton? Ou pela instigante Roxanne? Sem dúvida, não fora por
solicitude pelas duas mulheres. Concluiu que o desinteresse prejudicava o desejo tanto quanto o desvelo.
Visualizou a silhueta esguia e os cabelos negros da rica Mary Ann. Não sentiu nada. Pensou em
Roxanne, ruiva e exuberante, mas continuou impassível. E então, foi a vez de uma outra mulher de
cabelos negros. Lembrou-se de solicitude profunda, amor e vida. Nem sombra de excitação... Virou-se e
relanceou o olhar por Bárbara. Seu interesse por ela não era muito, nem pouco, apenas o suficiente para
quere-la. Impotência coisa nenhuma! Satisfeito, reconheceu que ainda tinha disposição e era capaz.
Porem sentiu-se frustrado, pois nem a disposição, nem a capacidade entrariam em ação. Não era o
inferno, afinal, mas muito menos, céu. Purgatório.
Um novo estado para ele. Não exatamente satisfatório. Mentalmente, Morgan pôs-se a rachar lenha.
Havia gostado muito de fazê-lo ali na fazenda. Já não se lembrava mais de como era bom levantar o
machado e baixá-lo, num golpe certeiro, no centro da tora de madeira. O movimento exercitava os
músculos das costas, dos ombros e dos braços. Repetia-o num ritmo preciso e estimulante.
Interrompeu a linha de pensamento, pois este não estava ajudando a abafar o desejo. Talvez pensar em
música fosse melhor. Também achava ótimo segurar o violão e percorrer os dedos pelas cordas. Tinha
vendido o seu anos atrás. Nesse dia, fora um prazer tocar e cantar, provocando reações inesperadas nas
pessoas.
Percebeu que essa idéia também não conseguia acalmar-lhe o sangue agitado.
Relanceou o olhar por Bárbara. Nova mãe linda! Nova mulher linda em sua vida! Nova emoção linda em
seu peito! Nem demais, nem de menos, mas o suficiente para que ele a desejasse.
Ia ser uma noite longa.

CAPÍTULO IX

Bárbara acordou no meio da noite. Na primeira fração de segundo, apurou os ouvidos para descobrir o
ruído que a tinha despertado. Reinava o mais profundo silencio e Sarah dormia tranquilamente.
No instante seguinte, ainda submersa na contusão do sono pesado e insatisfeito, ela não era mais a mãe
acordada para atender a filha. Sentia-se como a viúva, de um ano e pouco atrás, quando as tropas
britânicas tinham invadido North Point e ela despertara o interesse do general Ross. Estava nos braços
dele, em sua cama, na última noite antes de ele ser morto.
Na visão dos sonhos do meio sono, Bárbara lembrou-se da primeira vez em que o vira. Ela estava na
charrete perto da casa de culto e ele, na companhia de dois outros oficiais. A primeira coisa que notou
em Robert Ross foi o casaco vermelho. A segunda, o olhar de apreciação franca. Ela reconhecia bem
essa expressão pois já a tinha visto inúmeras vezes antes em outros homens. Como nas ocasiões
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anteriores, não a desejava naquele instante. Contudo, sabia que não conseguiria afastar o oficial com o
simples e peremptório "não" dado aos demais homens.
No sonho, ele montava o garanhão. Mantinha-se ereto, os cabelos pretos amarrados á nuca com uma fita.
Nas têmporas, eles já mostravam fios prateados. Os olhos cinzentos eram incisivos e bonitos, o nariz,
afilado e aristocrático, a boca, uma linha enérgica, o queixo, firme. Ele era atraente, distinto e o
comandante das tropas inimigas. Bárbara sentiu uma muralha de ódio contra ele erguer-se em seu peito.
No sonho, era de manhãzinha, no lindo dia de setembro em que ela o mandara a caminho da morte.
Depois de havê-la forçado a curvar o corpo sobre o dele e recebê-lo, o general Ross tinha lhe contado os
planos para atacar Baltimore nesse dia.
Tão logo ele saíra, com a paixão saciada, ela havia ido à casa de culto e alertado Ben Skinner e Michael
Gorsuch sobre o avanço das tropas inglesas á tarde.
Mas... Não. A mente, na periferia do sono, confundia-se mais. O general Ross não estava morto como
desejava. Continuava vivo. Ali a seu lado. Respirava regularmente. Podia sentir-lhe as batidas do
coração às costas, as coxas encostadas nas suas, o braço sobre os ombros, a mão em um dos seios, a
respiração morna no pescoço.
Continuou a sonhar. Agora, revivia claramente aquela noite vil de agosto, quando o general Ross e o
Quadragésimo Quarto Regimento de Infantaria tinham entrado em Washington e incendiado a capital.
No sonho, o general aparecia na casa em Riverdale, nos arrabaldes da cidade, onde ela estava hospedada,
e a forçava a aceitar-lhe a vontade. De maneira magistral, ele a possuiu. E mais de uma vez.
Sobressaltada, Bárbara acordou completamente. Estava em sua cama. Sentia-se acalorada, úmida e
dominada por sentimentos que jamais permitira subir à tona. No sonho, havia confundido os lugares em
que o general a submetera a sua vontade. Descobriu que não estava junto ao homem que deixara esta
vida quatorze meses atrás e sim de um outro, bem vivo, chamado, ou não, Morgan Harris.
A vergonha e a excitação deram lugar a uma sensação curiosa de divertimento e de alívio. Havia sido o
corpo de Morgan o instigador do sonho louco e não a lembrança do general poderoso, um homem
casado e morto, cuja viúva ameaçava sua felicidade.
Mais tarde, tentaria descobrir por que havia confundido as lembranças de Robert Ross com o corpo
adormecido de Morgan Harris. No momento, tinha uma razão mais concreta e urgente para escapar dos
braços de Morgan. Precisava trocar a toalhinha higiênica.
Alguns minutos mais tarde ao voltar para a cama, Bárbara viu que Morgan tinha retomado a posição
anterior e rolado para o lado dele. Notou, numa reflexão distraída e absurda, que uma outra pessoa na
cama a deixava bem mais quente. Seus pés, expostos ao frio quando se levantara, aqueciam-se depressa.
Já recomeçava a dormir quando Sarah acordou. Bárbara levantou-se e a tomou no colo. Foi difícil
aquietá-la. Ofereceu o seio, ninou-a cantarolando, perdeu a paciência e sacudiu-a. Tudo em vão. Acabou
andando de um lado para o outro enquanto murmurava palavras acalentadoras, um recurso cansativo. O
único consolo era o calor de Morgan que a aguardava na cama.
Assim passou a noite, tão longa para Bárbara quanto para Morgan. Ambos acordaram cedo e cansados.
Ela, especialmente, sentia-se fora de forma. Quando afastou as cobertas, quase gemeu alto ao ver a
mancha de sangue no lençol de seu lado. Embaraçada, cobriu-a depressa e relanceou o olhar por Morgan
a fim de verificar se ele tinha visto. Felizmente, ele estava de costas, olhando pela janela.
Esse dia, pensou Bárbara, não seria tão enervante como anterior, caso se livrassem do sr. Rollins o mais
depressa possível.
Não foi fácil. O homem tinha simpatizado muito com o jovem casal Harris. O café da manhã transcorreu
mais ou menos. Preocupada com o lençol manchado, Bárbara deixou os ovos passar do ponto e quase
queimou os pãezinhos de minuto. Estavam comíveis e os homens não reclamaram.
Quando finalmente o sr. Rollins já tinha se despedido e Morgan o acompanhava ate o terraço, Bárbara
correu ao quarto a fim de pegar o lençol sujo. Examinou a mancha e achou melhor lavá-la primeiro com
água fria do poço. Enrolou a peça e saiu pela porta dos fundos.
Morgan voltou para dentro de casa e, ao não encontrar Bárbara, resolveu aproveitar a oportunidade e se
mudar para a casa atrás do estábulo. Apanhou o saco de dormir no quatro e já ia sair pela porta de trás
quando Bárbara entrou.
Encararam-se. Antes de trocarem palavras, ele olhou para o lençol e viu a mancha, já menos forte com a
primeira lavagem. Por um instante, ficou perplexo, mas logo compreendeu. Num gesto delicado, meneou
a cabeça e Bárbara enrubesceu. No instante seguinte, o sr. Rollins batia na porta da frente e anunciava
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ter esquecido algo.
Morgan afastou-se de Bárbara com um pensamento irônico: Nada mais conjugal do que se dormir com
uma mulher quando ela está menstruada! Tentou lembrar-se de quando isso lhe acontecera antes. A
recordação custou-lhe uma dor surda.
— Pois não, sr. Rollins, esqueceu alguma coisa? — perguntou ao abrir a porta.
— Meu canivete. Acho que o deixei no criado-mudo — disse o hóspede ao cruzar o aposento e entrar
no quartinho, de onde saiu logo. — Não está lá. Onde o guardei? — perguntou-se enquanto apalpava os
bolsos. — Ora. está aqui, no bolso do colete. Que distração a minha. Sempre o ponho no da calça.
Morgan sorriu e bateu-lhe no ombro.
— Canivetes são assim mesmo. Sempre estão no lugar errado. O sr. Rollins repetiu os agradecimentos e
despedidas, aos quais Bárbara respondeu, e Morgan tornou a acompanhá-lo até o terraço.
— Que direção vai seguir agora, sr. Rollins? — perguntou com naturalidade.
— A do Sul. A sra. Layton disse que Jack Carter mostrava um grande interesse pela região. Ainda não
entendo como perdi os sinais do homem ontem. Vou voltar para Baltimore e, talvez, lá encontre indícios
de que ele tenha ido para Richmond. Veremos.
— Os outros dois sujeitos já podem ter passado a sua frente, quer dizer, caso tenham chegado a
Baltimore.
— Pode ser. Mas se eu os encontrar e eles não tiverem novidade alguma, eu os aconselharei a fazer uma
visita à fazenda Harris, a fim de gozarem uma noite de música e hospitalidade.
— Eu preferiria que não fizesse isso, sr. Rollins.
— Não?! — exclamou o outro com um leve tom de suspeita.
— Trata-se da sra. Harris. Por uns três dias, ela não estará com disposição para receber hóspedes.
Entenda. E aquele período desagradável do mês — confidenciou Morgan.
— Ah, claro. Isso explica tudo. Pensei que os dois tivessem brigado. Agora compreendo o que havia
com a sra. Harris. Os ovos e os pãezinhos fora do ponto. Sendo casado há tantos anos, tenho experiência
nesse assunto. Quer um conselho?
— Naturalmente, por favor — respondeu Morgan.
— Agrade sua mulher durante esses poucos dias do mês. Jamais lhe diga que compreende por que está
irritada e chorosa nesse período, pois ela terá vontade de esganá-lo. Minha mulher ficava intratável!
Graças a Deus, isso já passou!
— Não vou me esquecer de seu conselho — afirmou Morgan em tom sério enquanto Rollins montava.
— Talvez a sra. Harris precise de outra criança. Nunca, vi mãe tão amorosa. Seria bom se ela pudesse
repartir esse afeto com mais uns dois filhos — opinou Rollins.
— Vou ver o que posso fazer nesse sentido — disse Morgan bem humorado.
Da sela, Evan Rollins dirigiu-lhe um olhar pensativo.
— Sabe, se o senhor já não estivesse casado, aliás com uma mulher de mão cheia no fogão, eu o
aconselharia a sossegar e pôr um pouco de care em cima desses ossos. Veja meu exemplo. Ser casado
com a mesma mulher, durante anos, não é a pior coisa deste mundo. Portanto, aproveite as regalias que
tem. Adeus, sr. Rollins.
Morgan despediu-se de maneira cordial e o hóspede virou a montaria. Mas antes de partir, ainda
acrescentou:
— Fique sossegado. Se eu encontrar os dois sujeitos de Boston, não vou mandá-los para cá. Não vejo
razão para abusar de seu tempo, nem de provocar mais trabalho para a sra. Harris. Mais uma vez, muito
obrigado, senhor.
Morgan observou seu perseguidor afastar-se a galope. Quando sumiu de vista, entrou em casa para
enfrentar a sorte.
Tão logo fechou a porta, Bárbara virou-se da tina onde lavava roupa. Por seu olhar, ele percebeu que a
conversa não ia ser fácil.
— E então, o sr. Rollins foi mesmo embora?
— Foi. De uma vez por todas. Pelo menos, espero.
— Não diga! Foi uma visita interessante.
— Bem interessante — concordou Morgan, lacônico.
Ele atravessou o aposento e foi cuidar de Bolso que, a sua entrada, tinha se levantado e abanava a cauda.
Explicou ao cachorrinho que ele precisava reagir à chegada de estranhos e não à do dono. Apanhou a
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tigelinha de água e foi enche-la no balde entre a tina e a pia.
Como Bárbara não se afastasse, esbarrou nela sem querer. Ela também não escondeu o lençol manchado
que esfregava. Quando ia voltar com a tigelinha cheia para junto da lareira, Bárbara barrou-lhe a
passagem.
— É só o que você tem a dizer sobre a visita do sr. Rollins? Bem interessante? — demandou ela
encarando-o.
Morgan não fugiu de seu olhar, mas como sempre, não estava disposto a fazer confissões.
— Você ouviu tudo que o homem disse e pode tirar as próprias conclusões.
— Acha que é muito fácil? — demandou ela, entre surpresa e impaciente.
— O que você não entende sobre as atividades de um homem chamado Jack Carter? — indagou ele,
impassível.
— Sei muito bem que ele apareceu em North Point, Maryland, com o nome de Morgan Harris.
— Eu tinha certeza de que não lhe faltaria entendimento — comentou Morgan exasperando-a com a
indiferença.
— Você ou considera minha inteligência tão grande a ponto de juntar alguns detalhes e descobrir a
história toda, ou tão pequena que pensa poder escapar sem explicação alguma.
— Está me colocando numa posição difícil quanto a avaliar sua inteligência — desconversou ele.
— Grandes palavras, Morgan Harris! Ou estou falando com Jack Carter?
— Jack Carter, ou Jacques Cartier caso prefira precisão, é o nome que minha mãe me deu quando nasci.
Uma homenagem à família de meu pai. Ele era franco-canadense, de origem bretã. — Deu a volta por
Bárbara e levou a tigelinha de água até Bolso. — Alguns anos atrás, renunciei esse nome e adotei o do
pai de minha mãe, ou seja, Morgan Harris. Ele era galês. O nome me foi útil por algum tempo, mas
quando deixou de ser, voltei a me chamar Jack Carter.
— E agora, é Morgan Harris.
— Por razões óbvias.
— Só vejo uma, o fato de você estar fugindo de acusações, legais e financeiras, por trapacear e perturbar
a ordem pública. Ah, e por quebra de promessa!
— Para quem? — Morgan quis saber.
— Para a sra. Layton.
— Jack Carter jamais lhe fez uma.
Bárbara continuou a fitá-lo com firmeza ao dizer:
— Ainda insisto que é muito fácil para um homem mudar de nome e desaparecer.
— Se não me engano, acabo de detectar um certo tom de inveja.
— Acertou — disse Bárbara, levada pela frustração. Jamais admitira isso a ninguém. — Você não pode
imaginar, nem de longe, o pouco caso com que sou tratada aqui. Apesar da boa vontade de meus
vizinhos em me ajudar, continuo sendo considerada uma mulher perdida, mais ainda agora com a filha
do general Ross. Eu já era uma, anos atrás, antes de Jonas se casar comigo. Como seria maravilhoso ir
para qualquer lugar e recomeçar de novo! Sem História! Sem passado! Um novo nome! O que me deixa
mais furiosa é o fato de, antes de ontem à noite, eu ter lhe contado tudo sobre o general Ross e você não
me contar nada a seu respeito! Não precisaria ser algo muito detalhado. Uma pequena explicação
serviria. Mas sou obrigada a reconhecer que me senti muitíssimo aliviada depois de revelar minha
história.
Sem a mínima mudança de expressão, Morgan a observava. Manteve o tom de indiferença quando falou:
— Aí está a diferença entre nós.
Havia sido contratado para executar determinados trabalhos na fazenda. Sem questionar, ajudara Bárbara
a enfrentar o tenente Richards e a sra. Ross. Não lhe devia explicação alguma sobre sua vida e ações. Foi
até o lado da cozinha, apanhou restos de comida para Bolso e o alimentou. Já ia apanhar o saco de
dormir a fim de levá-lo para a casa atrás do estábulo, quando algo o fez mudar de idéia.
Calado, sentou-se na cadeira de balanço e virou-a de frente para a porta do terraço.
— O que está fazendo? — demandou Bárbara, exasperada e com as mãos nos quadris.
— Nada. Estou apenas sentado.
— Com todo o trabalho esperando para ser feito?! — exclamou ela como uma verdadeira esposa
contrariada.
Balançando-se calmamente, ele respondeu:
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— Sei muito bem. Fui fazendeiro antes de ser jogador, como você deve ter concluído. Mas os trabalhos
vão ter de esperar ate recebermos nosso próximo visitante.
Bárbara sentiu ganas de sacudi-lo e chegou a dar uns passos em sua direção.
— Como assim?
— Aposto cinco contra um como vai chegar uma nova visita hoje.
— Aposta também quanto a identidade dela? — ironizou Bárbara. Ele lhe relanceou um olhar matreiro
que explicava bem seu sucesso nas mesas de jogo e com as mulheres,
— Pode ser John Finch, um dos meus perseguidores.
— O jogador rival?
— Ele mesmo. Ou Bobby Dale, o homem de minha namorada do cais. Não sei por que ele se deu ao
trabalho de me procurar. Deveria estar muito satisfeito com meu desaparecimento de Boston. Mas
Rollins disse que mais dois homens me seguiam, portanto...
Nesse instante, como se obedecesse um horário determinado, ouviu-se o tropel de um cavalo
aproximarido-se da fazenda. A expressão de Morgan não mudou, mas ele olhou para Bolso que,
calmamente, continuava a comer. O animalzinho era um inútil.
Bárbara não conteve uma exclamação de surpresa.
— Você também tem poderes psíquicos?
— Não. Mas hoje de manhãzinha, tive certeza de que outro homem vinha para cá. Não me pergunte
como, eu apenas sabia. E não errei. — Fez uma pausa enquanto ouvia o ruído de botas no terraço e, em
seguida, a batida na porta. — Aqui está ele.
— E com você, eu acho — murmurou Bárbara.
— É, sim — disse Morgan tranquilamente.
Enquanto ele se dirigia à porta, Bárbara estava longe de sentir a mesma calma. Se fosse um dos dois
homens que conheciam Morgan Harris como Jack Carter, sua história para enganar o tenente Richards e
a sra. Ross corria perigo.
Morgan abriu a porta e deparou-se com um homem de aspecto muito estranho. Ele tinha o corpo no
formato perfeito de uma pêra sustentada por duas varetas. Na cabeça pequena, assentava-se um retesado
chapéu preto, do qual escapavam cabelos loiros. No rosto pequeno e gorducho, destacavam-se os olhos
miúdos e o queixo saliente que se desdobrava em papadas pelo pescoço. O corpo disforme estava
coberto pelo mais sóbrio preto.
— O senhor deveria estar muito envergonhado! — disse o indivíduo sacudindo o indicador para
Morgan.

capitulo x

Morgan nunca tinha visto o homem antes, mas pelas roupas, calculou quem fosse.
— Sem dúvida. Não quer entrar? — convidou.
O indivíduo, satisfeito com a admissão de Morgan, ao passar pela porta, pôs-se a amenizar a acusação.
— Pelo menos imagino que o senhor deva se sentir envergonhado. Isso, caso eu tenha entendido bem
dois pontos. Primeiro, quem o senhor é e segundo, a explicação do que faz aqui.
Morgan estendeu a mão enquanto resolvia a primeira questão.
— Às vezes sou conhecido como Morgan Harris.
— Certo, certo! Conhecido às vezes! — concordou o homem rindo e sacudindo-lhe a mão com vigor.
À entrada do habitante mais ilustre de North Point, Bárbara se aproximou.
— Muito bom dia, reverendo Austin!
— Bom dia, sra. Johnson. Ou devo chamá-la de sra. Harris como me informaram seus vizinhos? —
Franziu as sobrancelhas, mas logo o semblante clareou. — Aliás, foi isso que me trouxe à fazenda, ou
seja, o segundo ponto. Já elucidamos o primeiro. — Virou-se para Morgan. — O senhor, dependendo da
ocasião, chama-se Morgan Harris. Agora, vamos tratar de suas razões para estar aqui.
— Eu o contratei para executar os trabalhos de inverno na fazenda — adiantou Bárbara.
— Mas isso não esclarece o falo de estarem casados — alegou o reverendo.
Bárbara o conhecia desde criança e estava acostumada a suas manias.
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— Não estamos casados, naturalmente. Apenas dizemos que estamos.
O sacerdote não escondeu o alívio.
— Fico muito satisfeito pela senhora reconhecer a diferença entre estar e dizer que está casada. Um
casamento deve ser oficiado por autoridade competente e de acordo com a lei.
— Certo. Como não tivemos a cerimônia adequada, repito, não estamos casados — declarou Bárbara.
— Nesse caso, não preciso tomar mais seu tempo — disse o reverendo Austin ao virar-se para a porta,
porém parou e tornou a fitar Bárbara. — Contudo, o fato de saber que não está casada, não melhora nem
um pouco a situação! — afirmou em tom severo.
— Não? Por quê? — indagou ela trocando um olhar desanimado com Morgan.
— Aliás, a deixa bem pior, graças a sua história, sra. Johnson - disse o sacerdote.
— Talvez precisemos discutir melhor o assunto — opinou Morgan. Seguindo a sugestão, Bárbara
estendeu a mão para o sofazinho, dizendo:
— Não quer se sentar, reverendo Austin? Mas antes, tire o sobretudo.
Ele concordou prontamente. Acomodou-se e pôs, sobre os joelhos, um livro que trazia nas mãos.
— Não faz a mínima diferença se teve uma filha sem ser casada, sra. Johnson. O fato de errar uma vez
não lhe dá o direito de continuar desrespeitando as regras. Torna-se inaceitável que não esteja casada
com este homem se ambos dedicam-se às práticas conjugais!
Bárbara estava sentada na cadeira de balanço e Morgan, num dos bancos da cozinha puxado a seu lado.
Ela não se atreveu a fitá-lo.
— Mas não estamos executando tais práticas — conseguiu dizer com expressão e voz firmes.
Como se lembrasse do propósito da visita, o sacerdote ergueu os ombros e sacudiu o livro.
— Essa é a razão de minha vinda. Casá-los. Adequadamente. Diante dos olhos de Deus.
— O senhor entendeu mal, reverendo. Não fizemos nada que exija nosso casamento — insistiu Bárbara
pacientemente.
— Nada?! Mas este homem está sob seu teto há duas noites, não é verdade?
— E — admitiu ela em tom de cautela.
— Pois então. Vim unir pelos laços legais o que já fizeram na prática.
— O senhor pretende nos casar?! — indagou Bárbara, aborrecida e surpresa.
— Pretendo, sim.
— Esse livro em sua mão é a Bíblia? — perguntou Morgan, desconfiado.
O reverendo Austin olhou para o volume que sacudia para dar ênfase às palavras.
— Não, não! É um tratado de Trapping Reeves intitulado "A Lei do Marido e da Mulher; do Pai e do
Filho; do Guardião e do Tutelado; do Senhor e do Servo". Apareceu este ano e eu mandei buscar
diretamente na editora em New Haven.
— Se tem a intenção de oficializar um casamento, não deveria estar carregando a Bíblia em vez de um
texto jurídico? — perguntou Morgan.
Expansivo, o sacerdote riu.
— Sinto tanto interesse em interpretar as leis dos homens como as de Deus. Tenho grande facilidade
para isso. Mas entendam, não foi minha intenção apressá-los. Antes de dar um passo tão sério, têm o
direito de refletir.
— Então, a sra. Johnson e eu podemos pensar primeiro? — Morgan quis ter certeza.
— Naturalmente. Não pretendo fazer a cerimônia aqui e sim na casa de culto. Mas não percam tempo
para tomar uma resolução, porque todos estão nos esperando lá.
— Está querendo dizer que temos os vinte minutos de trajeto até a casa de culto para nos decidir? —
questionou Bárbara, aborrecida.
Nesse último ano, e mesmo antes, tinha suportado a desaprovação dos vizinhos. Não a culpavam
abertamente, pois conheciam as circunstâncias da invasão de North Point pelos ingleses e do interesse do
general Ross por ela. Mesmo assim, fora horrível reconhecer-lhes o horror quando descobriram sua
gravidez. Havia experimentado o próprio horror ao entender-lhes a crítica silenciosa por ela recusar-se a
"perder" a criança indesejável.
A sua Sarah, sua vida. tinha sido querida com devoção apesar das circunstâncias de sua concepção. Por
amor à filha. Bárbara sujeitara-se ao ostracismo dos vizinhos. E por causa disso, não tinha a mínima
intenção de se casar a fim de satisfazer a dignidade dos mesmos vizinhos.
— Precisam de uma hora para chegar a uma conclusão? — indagou o reverendo Austin, disposto a
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ajudá-los.
— Casamento entre nós está completamente fora de questão — declarou Bárbara olhando de soslaio
para Morgan.
— Algum impedimento? — perguntou o sacerdote.
— Não, mas... — começou ela, sendo interrompida.
— Como não é casada, sra. Johnson, qualquer obstrução deve ser do lado do sr. Harris. — Dirigiu-se a
Morgan: — É casado, senhor?
— Não.
— Nunca se casou?
— Sim, uma vez.
— Mas atualmente não está casado?
— Não.
— Ora, não me diga que é divorciado — disse o reverendo, esperançoso.
No caso de uma resposta afirmativa, ele teria a oportunidade de lazer algumas interpretações jurídicas do
caso.
— Não, não sou divorciado.
— Sua mulher morreu, então — comentou ele, desapontado.
— Sim.
Bárbara olhou para Morgan. A voz era tão fria quanto o inverno canadense, mas o semblante mantinha a
indiferença.
— Sofre de insanidade mental?
Morgan não se deu ao trabalho de responder.
— Não é nem um pouco bobo?
— Que eu saiba, não.
— Doenças contagiosas?
— Não.
— Essa é uma pergunta importante. Há casos registrados de anulação de casamento porque o marido
sofria de doença contagiosa, impotência?
O olhar de Morgan teria desconcertado um homem menos seguro de si, mas o reverendo apenas deu de
ombros e disse:
— Apenas perguntei.
Bárbara já tinha passado do ponto de constrangimento. De pé e com as mãos nos quadris, expressou-se
com energia:
— Olhe aqui, reverendo, aprecio suas boas intenções, mas o senhor tem de compreender que o sr. Harris
e eu alegamos estar casados a fim de eu poder dizer à viúva do general que a minha Sarah era filha de
Morgan,
— A viúva do general Ross?! — exclamou o reverendo percebendo não saber de todos os detalhes da
história. — Ela está em North Point?
— Encontra-se em Baltimore e quer assumir a tutela de minha Sarah por ser filha de seu marido —
explicou Bárbara.
Pensativo, o sacerdote sacudiu a cabeça.
— Nesse caso, a senhora não há de querer alegar impotência ao sr. Harris a fim de impedir o casamento.
Entretanto, sua filha é também do general morto, certo? Ilegítima.
Bárbara controlou a impaciência.
— Sim. Mas se o sr. Harris afirma ser o pai, a criança não pode ser filha ilegítima do general. Portanto,
a sra. Ross não terá o direito de requerer a tutela.
O reverendo continuou a sacudir a cabeça.
— Sinto dizer que a presença do sr. Harris agora não vai livrar sua filha da mancha da ilegitimidade,
sra. Johnson.
— O senhor se esquece de que apenas alegamos a paternidade do sr. Harris e só para a sra. Ross. Não
estamos sob a ilusão de que ela seja legítima e filha do sr. Harris.
O reverendo Austin ficou confuso.
— Por que estão dizendo uma coisa dessas à sra. Ross?
— Porque ela, convencida de que Sarah é filha do marido, quer tirar a tutela de mim.
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— A sra. Ross não pode fazer isso. A tutela de um filho ilegítimo vai automaticamente para a mãe até
ele completar dezesseis anos.
Bárbara foi engolfada por uma onda imensa de alívio. Cedo demais.
— A não ser — continuou o reverendo — que a mãe não queira a criança e o pai requeira seus direitos.
— O pai de Sarah está morto e a mãe a quer muitíssimo.
— Mas o pai pode ter feito um testamento, deixando a filha como sua herdeira. Nesse caso, tudo fica
diferente.
— Como assim?
— Se uma herança está em jogo, um filho ilegítimo, adquire grande importância quando não há outros.
O alívio de Bárbara persistia.
— Ao morrer, o general Ross não podia saber da futura existência da filha.
— Um testamento pode ser escrito de maneira geral para um possível herdeiro, ou vários, legítimos e
ilegítimos.
Bárbara começou a ser tomada pelas dúvidas.
— Seria possível o general ter feito tal testamento?
— Para homens de sua posição, isso é muito comum.
— Mas eu tenho o direito de manter a tutela de minha filha até ela completar dezesseis anos.
— Correto. E ao estipular isso, a lei é muito justa, pois se baseia em uma da natureza. O filho é produto
do corpo da mãe. Entretanto, tudo isso pode ser contestado em um tribunal, caso a viúva do general
esteja preocupada com a questão de herança.
-Quanto a isso, não posso dizer nada, porém acredito que
ela queira Sarah para si mesma — murmurou Bárbara tomada novamente pelo medo.
O sacerdote era um homem prático e foi direto ao âmago da questão:
— A sra. Ross é rica?
— Muitíssimo.
— Nesse caso, o melhor é se casar e dizer que o sr. Harris é o pai da criança. Essa estratégia é um tanto
irregular e não pode ser encontrada nos livros jurídicos. Seria classificada de mentirosa por muitos.
Entretanto, em questões como essa, a lei de Deus é superior a dos homens. O que é certo, é certo. A mãe
tem o direito de ficar com o filho se assim o desejar. A todo custo se for preciso — acrescentou menos
piedosamente.
Bárbara pôs-se a andar de um lado para o outro. Longe de achar absurda a idéia de se casar com Morgan,
a considerava, agora, conveniente e necessária. Sua condição de esposa legítima e a suposta paternidade
de Morgan seriam de grande utilidade em um tribunal, caso a sra. Ross apresentasse um testamento do
general reconhecendo qualquer e todos os herdeiros. Ela confiava no sistema judiciário de seu país, mas
como o reverendo Austin, reconhecia os direitos que o dinheiro podia comprar.
Ao chegar a uma decisão, parou de andar e aproximou-se de Morgan. Em seus olhos, havia uma súplica
franca e desinibida.

CAPITULO XI

- Você aceitaria discutir a sugestão do reverendo Austin? — perguntou Bárbara. Morgan levantou-se
devagar e a fitou.
— Sobre nos casar?
— Não é uma idéia má — disse ela depressa.
Morgan sentiu algo apertá-lo como uma corda. Seria á volta do pescoço? Não. Do coração? Não sabia.
Provavelmente dos pés impedindo-o de ir embora da fazenda. Tinha a intenção de passar poucos meses
ali e não pretendia se casar no momento, ou jamais.
— Uma coisa foi fazer o papel de marido diante da sra. Ross e do tenente Richards, outra bem diferente
é me enforcar própria e legalmente — contestou ele.
Morgan viu o lampejo de uma idéia brilhar nos olhos de Bárbara.
— Aí está, própria e legalmente. O reverendo afirmou que há muitas maneiras para a cerimônia ser
errada e anulada mais tarde.
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— Como assim, sra. Johnson? — indagou o sacerdote erguendo os olhos do livro aberto.
— Há várias coisas que podem sair erradas numa cerimônia de casamento, não é verdade?
— Claro! Basta uma pequena irregularidade para se anular um casamento de aparência normal —
esclareceu ele.
Bárbara sacudiu a cabeça e pediu licença para conversar a sós com Morgan. Concedida de boa vontade,
os dois se afastaram para o lado da cozinha. Ela o fitou com um renovado apelo nos olhos e murmurou:
— Sabe, não teria de ser um casamento verdadeiro.
— De que tipo, em sua opinião? — Morgan quis saber.
— Um falso, por qualquer motivo. Mas o impedimento só ficaria conhecido publicamente depois de a
sra. Ross ter partido. Dessa forma, nem precisaríamos nos divorciar. Não acha simples?
Morgan não tinha certeza. Mas Bárbara ofereceu aquele sorriso radioso e raro, já visto nos dois dias
anteriores. Ele sentiu o laço soltar-se à volta dos pés e foi tomado pela sensação deliciosa de deslizar
encosta abaixo.
Morgan deixou-se envolver pelo espírito do momento, uma mistura de ameaça e extravagância.
Entretanto, se ia atender o pedido da sra. Johnson para servir de marido e pai por umas semanas, tinha
uma exigência a fazer.
— Embora eu ache que conseguir um casamento legal não seja tão difícil como o reverendo Austin diz,
acredito que um erro proposital possa ser usado a nosso favor. Contudo, eu me nego a concordar que o
motivo, publicamente conhecido para a anulação, seja impotência.
Morgan ficou surpreso e encantado ao ver Bárbara enrubescer.
— Naturalmente podemos escolher algo menos inconveniente. Seu nome, por exemplo. Se usar o de
Morgan Harris e esse não for o verdadeiro, o casamento não será válido.
— É possível. Mas a declaração pública de qualquer outro nome me exporia à investigação da qual estou
fugindo — argumentou Morgan.
— Afinal, qual é seu nome real, Morgan Harris ou Jack Carter?
— Isso depende de onde são as leis invocadas — respondeu ele, meio confuso.
— Bem, e se arranjarmos qualquer outro nome a fim de ter um motivo legal para a anulação? Não
precisa ser Jack Carter.
— Eu ainda teria de explicar por que usei um nome falso ao chegar aqui. Seria perigoso.
— Tem razão. Poderíamos, então, dizer que você... — prosseguiu Bárbara, porém Morgan a
interrompeu.
— Não temos de, invariavelmente, usar minha pessoa como causa da nulidade do casamento. Deve
existir outra menos pessoal.
— Claro. No momento, não me lembro de nenhuma, mas ainda temos tempo — disse Bárbara, animada.
— Não mais do que meia hora — avisou Morgan.
— Não quero discutir detalhe tão insignificante se meu plano é perfeito e magistral! — A expressão
tornou-se terna. — Também me nega a questionar como você apareceu a minha porta, oferecendo a
oportunidade de evitar o maior sofrimento de minha vida já tão atribulada. Mas aqui está você!
Morgan deu-se conta de que os acontecimentos adquiriam movimento próprio. Viu a aliança no dedo e,
para surpresa sua, conseguiu tirá-la. Resolveu recolocá-la e apreciar o passeio no carrinho emocional
deslizando encosta abaixo.
— Muito bem — disse ao tomar o braço de Bárbara e levá-la de volta à área da saía. — Acho melhor
irmos embora para a casa de culto, já que todos nos esperam lá.
Mais uma vez, o reverendo Austin levantou os olhos do texto jurídico.
— Ora, já ia me esquecendo! Isso mesmo, a casa de culto! Estamos atrasados! Apressem-se!
Apesar dessas palavras, Bárbara foi até o quarto a fim de sei aprontar. Durante sua ausência, Morgan
verificou se não faltava nada para Bolso e abafou o fogo para evitar um incêndio.
De volta à sala, Bárbara trocou a fralda de Sarah e enrolou-a em um cobertor dobrado para protegê-la
contra o frio lá de fora. Ao erguer a filhinha no colo, sentia-se confiante. Com a ajuda de Morgan Harris,
tudo daria certo. O grande amor por Sarah dava- lhe a sensação de ser invulnerável.
Não havia razão para tal otimismo, pois tanta coisa tinha dado errado em sua vida. Em momentos como
esse, em que estreitava a filha de encontro ao peito, lembrava-se do dia, quatorze meses atrás, quando
havia renascido ao saber da morte do general Ross. Pela primeira vez em muito anos, permitira-se
chorar.
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Não tinham sido lágrimas por Robert Ross, ou por um amor que poderia ter existido entre ambos em
outras circunstâncias e lugar. Ele fora um homem atraente, elegante e educado, mas seu inimigo.Se não
fosse por isso, talvez o tivesse amado. Todavia, antes de sua morte e do nascimento de Sarah, ela se
sentia incapaz de tal sentimento.
A morte do general tinha vingado seu coração empedernido e tornado-o meigo, acessível. Sua vida,
desde o início, não conhecera afeto. Havia nascido após a morte dos cinco irmãos na Primeira Guerra de
independência. A mãe falecera ao dá-la à luz e o pai, pouco tempo depois, vitimado pela tristeza de
perder a família quase inteira. Mais tarde, ela fora a jovem linda estuprada pelo filho de um negociante
rico de Baltimore. Ao se casar com o viúvo velho e insensível, Jonas Johnson, ela era considerada uma
mulher perdida. O marido não tinha lhe dado filhos. Sua beleza persistia quando o general Ross a
descobriu e violentou, embora não de maneira agressiva.
O comandante inglês queria e soubera despertar-lhe o desejo. Bárbara nunca tinha experimentado antes
tal emoção, mas não o havia amado. Naquela manhã de setembro do ano anterior, após provocar-lhe a
excitação e satisfazê-la, o general tinha contado os planos para atacar Baltimore e garantir a vitória da
guerra para os ingleses. Bárbara sabia o que fazer. Tinha alertado os compatriotas e os exímios
atiradores americanos haviam alvejado o comandante na estrada para Baltimore.
Ela havia lhe provocado a morte e o general, lhe dado sua vida preciosa.
Com seu falecimento, Bárbara redimira-se do ódio profundo pelos ingleses, provocado pela morte dos
cinco irmãos. À noite, ela havia chorado de alívio por se ver livre dos aros de ferro á volta do coração.
As lágrimas tinham começado a fundi-los. O riso terminara de fazê-lo. Sem dúvida, tinha se tornado,
mais vulnerável, mas também mais perceptiva, consciente das possibilidades da vida, do poder do amor,
da magia do riso.
Seis semanas mais tarde, tinha voltado a rir, quando se permitira acreditar no milagre da gravidez.
Levantou Sarah no ar e, rindo, sacudiu-a um pouco. A criança respondeu com seus murmúrios próprios
de contentamento. Bem-humorada, Bárbara foi dominada por uma felicidade imensa.
Quando Morgan a viu, pronta para ir, dirigir-se a ele, prendeu a respiração. Verdadeira revelação essa
mulher despreocupada e radiante. Ela segurava a filha com um amor que lhe parecia, nesse momento,
menos amedrontador e estranho, Ela estava tão diferente da beleza comportada com a qual se deparara
até então.
— Seu casaco, senhora — disse ele ajudando-a na tarefa de vesti-lo com o bebê ora em um braço, ora
em outro.
Pôs o sobretudo enquanto falava ao reverendo:
— Como o senhor veio a cavalo, vamos segui-lo na charrete.
Já saiam para o terraço quando Bolso os alcançou correndo. Achando que o cachorrinho precisava
procurar o tronco de uma árvore, Morgan deixou-o sair, mas Bolso continuou pulando à volta de suas
pernas. Tentou, em vão, faze-lo entrar em casa e, ao perceber que não iriam a lugar algum sem levar o
animal também, apanhou-o e o meteu no bolso.
— Satisfeito agora, criatura imprestável? — perguntou ele, irritado.
— Não vejo mal algum em levar o pobrezinho — disse Bárbara -para em seguida, assumir um ar
interesseiro e perguntar ao sacerdote— Diga uma coisa, reverendo Austin, seria considerado ilegal se
nos casássemos na presença de um cachorro?
O reverendo, que já se preparava para montar no pangaré, parou, abrupto. Depois de um segundo de
reflexão, declarou: — Não, sra. Johnson, um casamento diante de animais não apresenta irregularidade.
Conversaram mais um pouco enquanto Morgan foi buscar a charrete no telheiro. Ele não demorou muito
a voltar. Desceu c ajudou Bárbara a se acomodar no veículo e tornou a subir. Já partiam quando notou o
ar divertido de Bárbara.
— Qual é a graça — indagou seguindo-lhe o olhar e vendo o reverendo equilibrar-se na montaria de
andar irregular.
— Acho que nunca dei o devido valor ao reverendo Austin. Incrível sua conversa sobre erros e questões
legais ordinárias não dando certo. Foi muito esclarecedora. Bem, já descartamos um impedimento que
poderíamos invocar para a anulação do casamento. Como ambos somos viúvos, não existe problema
algum sob esse aspecto. — Fez uma pausa e, então, perguntou: — Há quanto tempo sua mulher morreu?
— Quinze anos — respondeu Morgan mantendo o olhar à frente. Bárbara não insistiu nesse tópico.
— Ah sim, também não vamos usar a questão de seu nome duplo. Que outra coisa poderá nos ajudar?
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— O reverendo Austin tem, de fato, autoridade para oficializar casamentos? — aventou Morgan.
— Com toda a certeza. Caso contrário, já teriam descoberto. Isso sem falar em um número muito grande
de casais vivendo em pecado — acrescentou ela rindo.
Ficaram em silencio refletindo sobre as possibilidades. Depois de um certo tempo, Morgan disse em tom
desanimado:
— Talvez se o reverendo confundisse as palavras de praxe, o casamento perderia a validade.
— Pode ser. imagine ele esquecendo de dizer "Eu os declaro marido e mulher"! Mas isso jamais
aconteceria.
— Tem razão. E quanto à licença? Não precisamos ter uma? — lembrou Morgan.
— O reverendo Austin a providenciou antes de nos procurar na fazenda. Ele me contou enquanto você
foi buscar a charrete.
— Então, só resta a certidão. Tem de haver uma assinada e datada.
— Isso mesmo! — exclamou Bárbara, animada. — A certidão! Os nomes estarão certos, mas a data,
não! A única razão para nos casar é convencer a sra. Ross de que somos marido e mulher há um ano.
Portanto, a data na certidão tem de ser 1814 e não 1815. Se conseguirmos isso, o casamento será
considerado ilegal e anulado quando revelarmos o erro. O dia e o anos não apresentam problemas, pois
dissemos que comemoramos nosso primeiro aniversário de casamento nesta semana.
Contagiado pelo espírito despreocupado e o entusiasmo de Bárbara, Morgan sentiu o carrinho emocional
deslizar suavemente e, depois, acelerar a velocidade, por uma encosta muito agradável.
— Como vamos convencer o escrivão a pôr o ano errado? — perguntou ele.
— Sei lá! Talvez fazer-lhe cócegas, ou pôr pimenta em pó sob seu nariz quando estiver escrevendo —
brincou Bárbara. Morgan sorriu e ofereceu uma idéia mais prática.
— Por que você, simplesmente, não pede ao escrivão?
— Detesto pedir favores.
— Quem é ele? Você o conhece?
— Claro. É Michael Gorsuch — respondeu Bárbara.
— E muito antipático?
— Não, de forma alguma. Mas é muito difícil pedir favores a qualquer um de meus vizinhos.
— Entendo. São todos esse anos em que à trataram com desdém, como me contou. Mas Michael
Gorsuch sabe das circunstâncias do nascimento de Sarah, imagino. Ele também mostrou boa vontade em
confirmar sua história de ser minha mulher para a sra. Ross.
Portanto, ele é o tipo do sujeito a quem você pode pedir para escrever 1814 em vez de 1815. Caso
contrário,não há razão para nos casar hoje.
Bárbara refletiu e, bem devagar, concordou.
— Você tem razão. Michael, sem dúvida, fará isso por mim. Mas acho que não devemos mencionar
nada ao reverendo Austin.
— Não, de jeito nenhum! O coitado se divertiria tanto com o detalhe que poderia morrer do coração —
ironizou Morgan.
Resolvido o ponto crucial, percorreram o resto do caminho com Bárbara mostrando os lugares que
Morgan deveria reconhecer nos próximos meses e descrevendo a vida em North Point de Chesapeake
Bay.
Na casa de culto, encontraram um bom grupo de pessoas. Ben Skinner tinha trazido a mulher e também
estava lá Jacob Shaw, o maior proprietário de terras da região. Depois da morte de Jonas Johnson, ele
tinha cortejado Bárbara inutilmente. Jane, a filha, fora uma grande amiga de Bárbara, mas havia se
casado e mudado para o Oeste, deixando saudades. Vários outros homens tinham vindo à casa de culto
por acaso, porem ao saber da cerimônia inesperada, resolveram ficar para testemunhá-la.
Morgan, depois de ajudar Bárbara a descer da charrete, cumprimentou Ben Skinner e foi apresentado aos
outros homens que o olhavam com um misto de curiosidade, suspeita, inveja e admiração. Mas todos
foram amáveis e lhe mostraram a casa de culto. Havia pouco para ser visto na estrutura de um único
salão que servia a vários propósitos, religiosos c de administração pública. O teto, baixo e abobadado,
assentava-se cm caibros e as janelas, altas e estreitas, deixavam ver o céu azulado de novembro.
Bolso, posto no chão logo após a chegada, corria de um lado para outro festejando as pessoas. De nada
adiantavam as repreensões do dono.
Pelo canto dos olhos, Morgan viu Bárbara conversando, em voz baixa, com um homem de costas,
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provavelmente, Michael Gorsuch.
Em questão de instantes, o grupo ocupava o lado extremo do salão. A sra. Skinner incumbiu-se de
carregar Sarah durante a cerimônia que foi rápida e simples, mas com todos os requisitos legais. A única
parte diferente foi com as alianças. Como os noivos já as tinham nos dedos, tiveram de tirá-las e as
recolocar depois das pa-
lavras de praxe. Antes de Morgan se dar conta, o reverendo Austin dizia: "Eu os declaro marido e
mulher. O senhor pode beijar a noiva".
O detalhe não fora previsto por Morgan. Ele hesitou um instante, mas decidiu enfrentá-lo. Esquivar-se
não seria considerado um erro que justificasse a anulação da cerimônia, porém constituiria um insulto à
noiva.
Delicadamente, puxou Bárbara pelos ombros, de encontro a ele, e curvou a cabeça. Além da expressão
de surpresa, algo interessante brilhava em seus olhos azuis. Ela porém os fechou para receber o beijo.
Morgan tocou os lábios nos seus e, no momento em que ela retribuiu a carícia, o carrinho emocional
adquiriu uma velocidade inesperada pela encosta abaixo. Isso o deixou desnorteado. Levantou a cabeça
imediatamente e virou-se de lado para Bárbara. Não conseguiu registrar, com precisão, os minutos
seguintes. Sabia estar ao lado de uma noiva sorridente e entre pessoas amáveis que o congratulavam.
Alguém colocou um copo cm suas mãos e ele descobriu que a bebida era fogo puro. O álcool ingerido
provocou a sensação de um tiro cm suas entranhas. Absorveu o choque e disse as palavras certas sobre
os vários comentários dirigidos a ele.
Dentro de pouco tempo, ele, a mulher com a filha e o cachorrinho imprestável estavam na charrete de
volta para a fazenda. Fizeram o trajeto quase todo em silencio. O carrinho emocional sacoleja pela
descida perigosa e Morgan não sabia como impedir-lhe a marcha veloz.
Quando pararam diante da casa, ele não respondeu o convite de Barbara para tomar um café em sua
companhia. Ao entrar e ver a ordem do aposento, Bolso pulando a sua volta, a esposa linda com a filha,
que não era dele, percebeu que não suportaria aquele ambiente, nem a presença de Bárbara, por um
instante sequer. Em voz ríspida, disse:
— Perdemos quase a manhã inteira com esse negócio. Felizmente, acabou. O trabalho continua à espera.
Sabia estar sendo indelicado, mas não conseguiu evitar. Saiu pela porta de trás sem dirigir um único
olhar para Bárbara. Mesmo se o tivesse feito, não teria lhe notado o ar de incompreensão e mágoa.
Estava alheio demais.

CAPÍTULO XII
Morgan rodeou a casa e voltou ao telheiro onde havia deixado a charrete. Foi direto a seu cavalo.
Em poucos minutos, galopava rumo ao estábulo. Ultrapassou-o alcançando campo aberto.
Sua intenção era ser útil e inspecionar todas as cercas à volta da fazenda. A vontade, contudo, resumia-se
em distanciar-se o mais possível da casa, do cachorrinho, da criança e de sua mãe jovem c fascinante.
Ele não os queria. Não queria um cachorrinho de que precisasse cuidar e domesticar. Queria um outro de
uns poucos anos, fiel e no qual pudesse confiar. Não queria um bebe de cinco meses para criar e
sustentar, uma filha que teria de amar c perder. Queria um filho, o seu filho, que já seria um rapazinho
de dezesseis anos, para arar a terra, plantar, cavalgar a seu lado. Não queria uma esposa de unia hora
atrás, ou dois dias, a quem precisaria conhecer para convive em paz. Queria uma mulher de dezesseis
anos, ou mais, passado; companheira c íntima, ciente do que exigir, ou relevar. Não queria vida do atual
Morgan Harris, embora fosse melhor do que a Jack Carter. Queria a vida do Morgan Harris que havia
adotado nome do avô materno para poder se casar com uma jovem Iroquois linda, de tez escura e
cabelos negros.
Também almejava um mundo sem preconceitos, mas sabia tratar-se de algo tão impossível quanto voltar
no tempo para salvar mulher e o filhinha e impedir que os homens lhe incendiassem fazenda.
No momento, desejava apenas parar de despencar pela encosta da desesperança. Já a tinha percorrido
vezes incontáveis e encontrado alívio apenas em longos períodos de bebedeira e jogo. Mas não linha
meios para beber agora e o cavalo era o único recurso para a fuga emocional. Sentia-se surpreso e bravo
consigo mesmo. Geralmente, conseguia prever quando a depressão se avizinhava. Devia ter adivinhado,
algumas horas atrás, ao sentir o fascínio da companhia de Bárbara Johnson impulsionando-o a deslizar,
tão feliz, por uma encosta agradável.
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Morgan alcançou a primeira cerca e puxou as rédeas do cavalo, fazendo-o parar. Montaria e cavaleiro
estavam ofegantes. A respiração condensava-se no ar. Fazia frio, mas não como no Canadá, nas terras
dos Iroquois.
Olhou ao redor e sentiu desdém. Tempo de novembro? Impossível! não estavam os primeiros flocos
firmes e cintilantes de neve? Por onde andaria o vento que arrancava gritos de seu peito para estranhá-
los a seguir? O novembro de Maryland era úmido e flácido.Sem corte. Sem espinha dorsal. Panorama
plano.
Panorama plano. Muito bom. O deslizamento pelo declive íntimo começava a parar. Estava novamente
na planície. Sem subidas estimulantes. Mas sem descidas perigosas. Otimo! Reconheceu o lugar. O
mesmo onde estivera na véspera com Bcn Skinncr, o tenente e os capangas.
Havia sido no dia anterior? Ou há um ano?
Não importava. O terreno era plano. Nesse dia, a queda acontecera sem premonição alguma e ele ainda
não se sentia seguro.
Sacudiu as rédeas levando a montaria ao longo da cerca. Não gostava desse tipo feito com estacas de
madeira. Preferia as cercas de pedra. Respirou o ar úmido de Chesapeake.. Frio seco era muito melhor.
Olhou para a terra adiante das patas da montaria, Não era escura o suficiente para ser fértil.
Dirigiu o animal rumo a um grupo de árvores. Não tinham a beleza daquelas deixadas quinze anos atrás,
em sua fazenda no oeste de Massachusetts. A bem da verdade, naquele dia, elas assemelhavam-se a
palitos de fósforo queimados, pois o incêndio as tinha esgalhado e enegrecido-lhes os troncos. Mas há
dezesseis anos, quando vivia em paz com a mulher indígena e o filhinho...
Aquelas, sim, eram árvores lindas, copadas. Bétula. Bordo. Freixo. Não esses pinheiros esguios que
cresciam por ali. E então, ele viu unia árvore curvada.
Parou imaginando um menino pendurado em um dos galhos, balançando-se, curvando o tronco
repetidamente até que tomasse essa forma para sempre. Lembrou-se das árvores em que se balançara na
infância. Como gostava delas! Pensou no menininho a quem desejara uma infância feliz e alegre. Como
o tinha amado!
Diante de seus olhos, a árvore curvada transformou-se na imagem de uma jovem índia, graciosa, de pele
escura, nua, apoiada nas mãos e nos joelhos enquanto atirava a cabeleira negra para a frente a fim de
secá-la. A visão lindíssima foi substituída por outra horripilante da mesma moça, em posição idêntica.
Mas os cabelos eram jogados sobre o rosto para cobrir a vergonha sofrida por haver sido estuprada pelos
cinco homens brancos, vindos para incendiar a fazenda.
As chamas. Brilhantes, aterradoras, invencíveis!
A planície emocional inclinou-se loucamente até tornar-se vertical
De repente, ele reencetava a descida vertiginosa pela montanha negra, rumo ao inferno.
Bárbara não tinha gostado do semblante de Morgan ao deixar casa. Ele havia lhe dirigido um olhar
acusador como se ela houvesse feito algo errado, ou pretendesse levar a sério esse casamento.
Resolveu não perder tempo pensando em Morgan. Tinha muito trabalho para fazer, tarefas
negligenciadas por causa das visitas inoportunas. Todavia, gastou boa parte da hora seguinte pensando e
Morgan. A indagações mais variadas enchiam-lhe a mente. Onde ele comeria e passaria a noite? O que
ambos fariam no dia seguinte Quando anulariam o casamento? Michael Gorsuch estaria aborrecido por
ter posto data errada na certidão? Ele a acusaria de tê-lo forçado? Sua reputação estaria pior do que
antes? Seria possível tornar-se mais humilhante do que quando fora violentada aos dezessete ano e desde
então?
Quando terminou de amamentar Sarah no final da amanhã e levantou-se para deitá-la de volta no berço,
afastou as perguntas indesejáveis e resolveu: "Não, não vamos começar dessa forma! Não vou deixá-lo
fazer isso comigo!" Sentiu uma contração no estômago provocada pela fome. Tomou uma decisão. "Isso
mesmo. Ele vai almoçar cómigo!
Mas surgiu outro problema. O que fazer com Sarah quando saísse para procurar Morgan? Caso não
estivesse no campo, onde seria avistado, e sim na mata, não deveria levar a menina e expô-la ao frio por
tempo indeterminado. Ainda mais tendo passado boa parte da manhã fora.
Mas Bárbara detestava a idéia de deixar Sarah sozinha, especialmente com a presença da sra. Ross na
região. E se a inglesa aparecesse durante sua ausência e encontrasse a criança sem ninguém por perto?
Resistiria à tentação de levá-la embora? E se...
Bárbara reagiu e censurou-se. Estava sendo ridícula. Proteger a filha era uma coisa e encontrar Morgan,
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outra. Sarah estava mais segura agora do que seu relacionamento com Morgan. Vestiu o casaco, dirigiu
um último olhar para o berço e saiu pela porta de trás.
Seguiu em direção ao estábulo de onde pretendia ir ao campo sul. Ao rodear a construção, viu Morgan
desmontando em frente da casa de empregados. Com certeza, ele pretendia instalar-se logo lá.
— Aí está você! — exclamou ela.
Morgan a fitou por sobre as costas do cavalo. O olhar atingiu-a como uma lasca de gelo azulado.
Estremeceu, mas reagiu. Sentia-se mais brava e insultada do que amedrontada. Refreou a vontade de
deixá-lo sozinho na casa fria e sem almoço. Porém, tinha vindo com um propósito em mente e não
deixaria que o mau humor dele a dissuadisse.
A expressão hostil de Morgan deixava clara a pergunta rude: O que você quer? Antes que ele tivesse
tempo de fazê-la, Bárbara disse:
— Vim convidá-lo para ir almoçar comigo. Você não comeu nada depois daquele café ruim desta
manhã e deve ter pouca coisa aí — acrescentou apontando para a casa.
Ele virou-se para prender as rédeas do animal numa estaca e, quando voltou a fitá-la, Bárbara notou que
a expressão de alma faminta estava mais acentuada. Mas percebeu também tratar-se de algo muito além
de fome ocasional. A alma dele parecia famigerada, desnutrida, lembrando uma coisa incivilizada,
rudimentar. Embora Morgan não tivesse falado ainda, Bárbara podia entender, por sua postura e
semblante, que ele queria recusar o convite e ver-se livre dela o mais depressa possível.
Era uma expressão fria e amedrontadora. Ela teve de firmar a resolução de não se deixar ser tratada
dessa forma. Repetiu:
— Quero que você vá almoçar comigo.
Ele abriu a boca para falar, mas Bárbara o impediu levantando a mão. Não o convidou pela terceira vez.
Apenas disse em tom autoritário:
— Eu o espero dentro de quinze minutos. Você pode tocar violão, ou distrair Sarah, enquanto preparo a
comida — acrescentou por sobre o ombro e já meio virada para se afastar.
Mas antes, pensou ver uma leve mudança na expressão faminta. Não achou conveniente verificar com
um segundo olhar. Decidida, tomou o caminho de casa.
Novamente na cozinha, enquanto descascava os legumes para o ensopado, imaginou se Morgan viria. Os
quinze minutos determinados já se alongavam em meia hora quando ela ouviu os passos na escada de
trás e a batida leve na porta antes de ele entrar.
Bárbara sacudiu a cabeça em sinal de aprovação e dirigiu-lhe o olhar firme. A expressão faminta não
tinha amenizado, percebeu ela.
— Você estava certa. Não havia nada comível lá na casa — disse ele na voz profunda e ressonante, mas
ainda com uma ponta de aspereza.
Atravessou o aposento para pendurar o sobretudo e o chapéu no cabide.
— Eu sei. Foi por isso que insisti para vir comer aqui. Pelo menos, o almoço de hoje — esclareceu
Bárbara em tom casual.
De costas para ela, Morgan apanhou o violão. Os ombros ergueram e baixaram-se indicando um suspiro
profundo, notou ela.
— Depois da movimentação desta manhã e o trabalho a sua espera, achei, melhor você fazer uma boa
refeição —disse Bárbara certa de provocar uma resposta, mas como isso não acontecesse, perguntou
diretamente: — Que tarefas escolheu para fazer hoje?
— Remover entulho, teias de aranha e montes de caco de vidro — respondeu Morgan meio de lado para
ela.
As palavras não fizeram o mínimo sentido para Bárbara. Não lhe entendia o estado de espírito, admitiu
ressentida. Achava merecer uma resposta clara, pois afinal, pagava-o para isso. Aborrecida, continuou a
preparar a refeição.
Ouviu-o tirar acordes do violão e cantarolar. Eram melodias esparsas e pedaços de versos em que havia
palavras como desamparo, desalento, abatimento. Provocavam um efeito misterioso, embora de uma
certa beleza. Traziam à mente imagens de cristal estilhaçado, ou dos cacos de vidro mencionados por
ele. Ao ouvi-lo, o coração, transformado pela maternidade, entemeceu-se. Não estava mais ressentida
com Morgan e seu estranho estado de espírito. Não o entendia, mas não continuava fora de sintonia com
ele.
Quando Bárbara pôs os pratos na mesa, a música parou. Ela ergueu o olhar e viu Morgan com um dos
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pés apoiado na borda protetora da lareira, o violão firmado na coxa levantada. Distraído, ele fitava as
chamas.
— Onde deixou seu violão? — perguntou Bárbara.
— Vendi.
— Em Boston, como Jack Carter, você nunca tentou ganhar a vida com a música?
Devagar, ele levantou o olhar do fogo e a fitou. A expressão dos olhos azul-escuros era surpreendente.
Morgan dava a impressão de ler visto todo o lado mau da vida e resistido. Bárbara costumava pensa que
seu sofrimento e provações tinham sido piores do que os de qualquer homem, mas nesse momento,
sentiu a necessidade de reavaliar a convicção arraigada. Enquanto Morgan a observava, como se a visse
pela primeira vez desde o beijo no final da cerimônia de casamento, algo mexeu-se cm seu peito dando-
lhe a sensação de brasas revolvidas.
— De vez em quando, eu cantava a troco de meu jantar — admitiu ele com o semblante menos
carregado e dando a impressão de a lembrança ser agradável...... Mas jamais vendi minha voz.
— Só o violão?
— Certo. Não se tratava de uma parte inalienável de meu ser.
— Ontem á noite, morri de vontade de perguntar a Evan Rollins sobre a carreira musical de Jack Carter
— confessou Bárbara.
— Não diga!
— Bem, uma curiosidade natural — disse ela sentindo o rubor subir pelo pescoço.
Morgan ergueu um pouco as sobrancelhas num gesto entre interrogativo e namorador. Ele parecia estar
reconhecendo a diferença, de homem e mulher, entre ambos.
O fato de haver tocado violão tinha lhe aplainado um tanto as arestas e alimentado a alma, percebeu
Bárbara. Morgan mostrava-se menos áspero e ela o preferia assim. Todavia, não tinha certeza se queria
entreter-se com esse jogo. Em tom natural, perguntou:
— Você também não está curioso a meu respeito, a pessoa para quem trabalha agora?
Antes de responder, ele tocou uns acordes floreados, a aliança refletindo o brilho do fogo.
— Por que não fala sobre o general Ross?
Como Morgan não admitisse estar curioso, ela escolheu um detalhe impessoal.
— Ele foi morto por atiradores americanos de elite, no dia do ataque a Baltimore.
— Agora me lembro. Foi em setembro do ano passado. Só se falava nisso em Boston. E você, ficou
satisfeita com a morte dele?
Bárbara deu de ombros. Essa era uma questão complicada. Felizmente, não teve de responder, pois
Sarah começava a resmungar. Morgan pendurou o violão e aproximou-se do berço a fim de distrair a
criança. Bárbara o observou por um instante. Ainda se sentia um pouco confusa com a estranha
disposição dele, apesar de um tanto insinuante. Não continuou a falar sobre Robert Ross e, em instantes,
anunciou que o almoço estava servido.
— Por favor, traga o berço de Sarah para perto da mesa. Posso balançá-lo com o pé enquanto comemos
— disse ela.
Pouco depois, o homem, a mulher c a criança encontravam-se a mesa. Um cheiro apetitoso espalhava-se
com o vapor saído da tigela do ensopado. Após dar graças e servir a ambos, Bárbara comentou:
— Começamos a falar sobre você e terminamos falando a meu respeito.
— Curiosa outra vez?
— Ainda. Afinal, você não contou nada sobre si mesmo.
— Ora, você já sabe mais do que eu poderia lhe revelar — protestou Morgan.
— Ou gostaria — disse cia rindo. — Saber algumas coisas sobre o jogador Jack Carter não esclarece
nada a respeito do lavrado Morgan Harris.
Bárbara o viu hesitar, parando o garfo a caminho da boca e xando o olhar. Mas logo voltava a fitá-la
enquanto indagava tom cordial.
— O que quer saber?
— Para começar. Onde ficava sua fazenda?
— No distrito de Berkshire, Massachusetts.
Bárbara achava que Morgan a corrigiria, informando ter apenas trabalhado em fazendas. Pela resposta,
ele fora dono de uma. Nesse caso, não tinha perdido o emprego e, sim, as terras antes de se tornar
jogador profissional.
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— O que você cultivava?
— O mesmo que aqui, exceto tabaco. Mas tínhamos mais gado tio que vocês nesta área.
— Não é lucrativo.
— Mas a falta de gado mais a plantação contínua de trigo, milho e tabaco, como Ben Skinner me
descreveu, acaba com a fertilidade do solo.
— Pode ser. Mas faço rodízio com as plantações.
— Quando a terra já está cansada, imagino. Qual é a sua colheita de milho por acre?
— Uns setenta litros.
— E a porcentagem de lucro sobre o investimento? Bárbara fez uma careta.
— Cerca de três por cento.
— Sem dúvida, isso provoca a descrença geral, aqui, na agricultura. Ela não dá lucro — comentou
Morgan para, em seguida, oferecer um sorriso simpático. — Você teve sorte em me contratar. Por mais
de uma razão.
— Pode ser — repetiu ela ao perceber que estava sendo levada por uma trilha falsa. — Não quero
defender minhas técnicas de agricultura, mas aprender as suas.
— Exceto pela utilização do solo, não são muito diferentes. Nós tínhamos mais pastagens, claro. E aqui,
vocês usam um tipo de vala para drenar água muito fechado. Lá no Norte, são mais abertas. Quanto aos
implementos agrícolas que vi lá no estábulo há pouco, achei todos conhecidos e em bom estado. Você
tem feito um trabalho admirável.
— Obrigada. Mas não pense que vai desviar minha atenção do assunto inicial.
— Como? Sua curiosidade ainda não ficou satisfeita?
— Não. Quantos empregados você tinha? O semblante de Morgan anuviou-se.
— Por acaso disse algo a esse respeito?
— Não. Porem você mostra entender bem mais de lavoura d que um simples trabalhador rural. Portanto,
concluí que você tinha uma fazenda e contava com a ajuda de empregados. Não acho que, lá no Norte,
vocês tenham escravos negros.
— Não de forma alguma - - concordou Morgan.
— E escravos indígenas?
Bárbara sentiu a tensão tornar forma do outro lado da mesa. Porém, desapareceu depressa.
— Também não — respondeu ele. Sorriu com ar meio sedutor. — Agora, é sua vez, Você me contou
bem menos de sua vida do que eu da minha. Estou curioso a respeito do famoso general Ross. Quero
saber detalhes que ainda ignore.
Bárbara percebeu ter tocado num ponto sensível com suas indagações. Por isso, questionou:
— Está curioso de fato, ou apenas mudando de assunto?
— Realmente curioso — afirmou ele, mas ao ver a expressão cética de Bárbara, acrescentou: — Se
quiser, posso jurar com a mão sobre a Bíblia.
Bárbara arregalou os olhos. Horrorizada, dava-se conta de não ter se lembrado de um detalhe
importantíssimo.
— Ai, não! A Bíblia! Como me esqueci dela? E ninguém percebeu! Isso pode pôr tudo a perder!
Surpreso, Morgan tornou a parar o garfo a meio caminho da boca.
— Qual é o problema?
— A Bíblia de família! Não me lembrei de levá-la, hoje de manha, para Michael Gorsueh registrar o
casamento com data igual à da certidão. Basta a sra. Ross pedir para ver os casamentos de minha família
para descobrir que criei uma história!
Morgan a fitou longamente.
— Você teria coragem de profanar sua Bíblia com um registro falso?
Bárbara notou-lhe o tom de surpresa. Constrangida, mordeu o lábio. Mas então, assumiu uma expressão
resoluta.
— Tenho, sim. Já falsifiquei um documento e não vejo razão; para não dar o passo seguinte nessa trilha
de mentiras.
Levantou-se e fez um gesto para Morgan continuar sentado. Com o peito apertado pela ansiedade,
atravessou o aposento em direção a uma prateleira ao lado do tear. Sentia dificuldade em respirar e
precisou fazer um esforço para se acalmar.
— Por favor, termine seu almoço. Lamento ser tão indelicada, ainda mais depois de ter insistido com
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você para fazer a refeição aqui. — Apanhou a Bíblia e apertou-a de encontro ao peito. — Preciso voltar
à casa de culto e tenho a sensação de estar indo tarde demais.

CAPÍTULO XIII

Morgan levantou-se no mesmo instante.


— Não se preocupe. Vou à casa de culto para você.
Bárbara fechou os olhos a fim de refletir. Não conseguia encontrar uma resposta para a sugestão lógica.
Sentia-se incapaz do raciocínio mais simples. Era como se fosse um poço profundo cuja água secara de
repente.
— Ali, sim, acho uma boa idéia, mas não sei... Bem, se você foi à casa de culto procurar Michacl
Gorsuch, posso ficar em casa com Sarah. Por outro lado, não quero ficar aqui. Acho melhor eu mesma
cuidar desse assunto. Talvez você possa tomar conta de Sarah enquanto levo a Bíblia. Não. Quem sabe
não é melhor a criança ir comigo para você poder voltar ao trabalho? Ou talvez...
interrompeu as palavras e olhou para Morgan. Em seguida, co mentou:
— Estou me comportando como o reverendo Austin. Mas ele está certo. As coisas são mais
complicadas do que imaginei. Sei que estou desrespeitando as leis dos homens e a de Deus ao querer a
data falsa na Bíblia. Pouco me importo. Nesse caso, como não sei o que fazer? Por que está tão difícil
me decidir?
Morgan percebeu que Bárbara estava á beira do pânico. Habituada a solucionar grandes problemas
muito bem, sentia-se incapaz de enfrentar o menor dos detalhes. Estranho,mas natural, refletiu ele.
Ao atravessar o aposento em sua direção, Morgan esclareceu-lhe as dúvidas de maneira calma e firme:
— Parece difícil por tratar-se de algo inconsequente. O importante é a Bíblia chegar às mãos de Michaei
Gorsuch. Através de quem, é secundário. Sugiro irmos juntos à casa de culto. Dirijo a charrete e você
carrega Sarah. Está bem?
As palavras ponderadas surtiram efeito. Bárbara caiu em si e viu desaparecer o abismo entre a reflexão e
a capacidade de agir. Com olhar de gratidão, sacudiu a cabeça concordando.
Morgan apanhou-lhe o casaco, vestiu o sobretudo e foi providenciar a charrete enquanto ela preparava
Sarah para a nova saída. Bolso, percebendo a movimentação, animou-se. Mas quando Morgan retornou a
fim de chamar Bárbara, pôs-lhe fim ao entusiasmo. Dessa vez, ele ia ficar.
Novamente nesse dia, Morgan ajudou Bárbara a subir na charrete. Alem de Sarah, ela carregava a Bíblia
e sentia-se absolutamente imprestável. Jamais poderia contar as vezes em que fizera esse trajeto ate a
casa de culto. Sob sol escaldante ou frio glacial, casada, viúva, grávida, mas sempre sozinha, a não ser
após o nascimento de Sarah. Neste dia, entretanto, não teria conseguido. Como era bom contar com a
companhia de outro ser humano, um adulto responsável e capaz de tomar decisões.
Tão logo partiram, Bárbara começou a falar:
— Não sei por que me sinto péssima. Curioso, também estava angustiada na noite em que você e o
tenente Richards apareceram, embora não tanto quanto hoje. Não acha estranho?
Morgan concordou em tom de simpatia e isso a encorajou a continuar:
— Jamais tive tais sensações. Aliás, não sou dessas mulheres de sensibilidade aguçada, dadas a
pressentir acontecimentos. Sob esse aspecto, sempre fui uma criatura um tanto apática, fazendo questão
de só cuidar de minha vida e de encarar as coisas como vinham. A bem da verdade, nunca tive escolha.
Morgan murmurava palavras de compreensão, revelando-se atento. Essa era sua maneira de mostrar
gratidão. Bárbara ignorava, mas ao exigir sua presença no almoço, ela o tinha salvado de uma encosta
íngreme, de sombras e desolação. Ele estava, outra vez, em terra plana. A sensação era ainda muito
frágil e talvez, temporária. No momento, contudo, encontrava-se numa planície emocional.
— Mas então, Sarah nasceu — prosseguiu ela como se pensasse em voz alta — Tudo mudou. Imagine,
na manhã do dia do parto, resolvi inesperadamente dar-lhe o nome de Sarah. Nunca havia pensado nele
antes. Em minha família, ninguém tinha esse nome. O de minha mãe era Abigail. Mas lá estava Sarah
em minha mente. E pensar que a sra. Ross pode haver tido aquele sonho estranho no mesmo dia! Parece
existir uma força à volta do nascimento de Sarah que eu não compreendo. Duas noites atrás, eu sabia que
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algo estava errado. Tenho a mesma certeza agora. Será que estou louca?
— Não. Você está sendo prudente. Faz muito bem em providenciar o registro na Bíblia de família —
disse Morgan.
O semblante de Bárbara iluminou-se.
— Isso mesmo, estou certa e não, louca! Considero o detalhe importante e fico aliviada por ter me
lembrando dele a tempo. Tenho certeza de que a sra. Ross vai voltar e pedir para ver a Bíblia, ou então,
exigir seu exame em um tribunal. Em seu lugar, eu faria isso. Tenho a mais estranha sensação de contato
com essa inglesa, como se intuísse o que ela está pensando-e sentindo.
Com expressão pensativa, ficou uns instantes em silencio e, depois, comentou:
— Não tive mãe, nem irmãs. Quanto a amigas, foram bem poucas, apenas duas. Eleanor Shaw, a mulher
falecida de Jacob, e Jane, a filha. Nunca pensei nisso antes. Curioso, não acha?
— Nunca precisou — argumentou Morgan.
— É verdade — disse Bárbara. Suspirou fundo e olhou para o rostinho lindo da criança em seus braços.
Foi tomada por uma compreensão feminina para a qual palavra alguma fora criada. — Mas agora, tenho
minha filha. Sou sua mãe. Somos tudo uma para a outra. — Por um instante, refletiu sobre a afirmativa.
— Mas suponho que a sra. Ross se ache no direito de alegar um tipo de ligação com Sarah. Eu não
saberia como classificá-la.
Imersa em reflexões, Bárbara finalmente caiu em silêncio. Quando alcançaram Long Log Lane e, logo
após, a casa de culto, sua determinação e firmeza tinham voltado. Esses minutos, durante os quais
Morgan havia assumido o controle da situação, tinham sido suficientes para reencher de água seu poço
de energia.
Como fizera horas atrás, Morgan ajudou Bárbara a descer da charrete. Sorridente, ela o fitou.
— Graças a você, eu me sinto muito melhor. Obrigada.
Não era o sorriso radiante e raro, mas havia algo estável nele e no fato de reconhecer o apoio de Morgan.
Isso o fez sentir-se eficiente.
— Precisa de minha ajuda lá dentro?
— Não, obrigada. Só vou demorar uns minutinhos.
— Nesse caso. eu a espero aqui.
Depois de uma batida leve na porta. Bárbara entrou e logo viu Michael Gorsuch conversando com um
grupo de velhos sentados à volta de uma mesa, perto da lareira, Cumplimentou um a um, pelo nome,
recebeu parabéns pelo casamento e pediu licença para conversar com o magistrado cm particular. Este
reencheu depressa o cachimbo antes de acompanhá-la a um canto do salão, onde ela entregou-lhe a
Bíblia acompanhada de sua petição blasfema.
Ao vê-lo hesitar por um instante. Bárbara ergueu um pouco mais o bebê no colo e sorriu. Em tom
amável e confidencial, murmurou:
— É a minha alma, Michael.
Este homem da lei, que conhecia Bárbara desde a infância,não era imune a seu sorriso e a sua
determinação persistente. E como os outros da região, todos conhecedores das ocorrências do ano an-
terior, Michael achava que lhe devia um favor: Tirou o cachimbo da boca e estendeu a mão para pegar a
Bíblia..
— Num instante, faço isso.
Enquanto Michael Gorsuch dirigia-se à escrivaninha. Bárbara afastou-se até uma janela por onde entrava
sol. Queria expor Sarah ao calor. Distraída, deixou os olhos vagar pela mata além do terreno da casa de
culto. A ansiedade tinha passado e ela achava que tudo daria certo.
De repente, Bárbara notou um movimento nas árvores, a uns dez metros de distância. Não passava do
balançar de galhos mais baixos, como se um animal de porte, um gamo talvez, tivesse se aproximado
demais do território humano e se preparasse para embrenhar-se novamente na floresta.
Entretanto, o movimento de retirada não aconteceu. Outra vez, Bárbara viu os galhos sacudir e, então,
teve quase a certeza absoluta de vislumbrar o perfil de um rapaz levantando-se um pouco acima da
vegetação ressequida á volta. A atitude indicava estar espionando a casa de culto. As linhas do queixo e
dos ossos inalares, vistas tão ligeiramente, a assustaram. Afastou-se da janela, pois não queria ser
apanhada, por ele, observando-o.
Pensativa, caminhou a esmo pelo salão, refletindo se não deveria investigar. Resolveu faze-lo e saiu pela
porta de trás. Caso não se embrenhasse pela mata à procura do rapaz e pudesse ser vista do interior da
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casa de culto através das janelas, não correria perigo.
A passos lentos, pôs-se a andar ao longo da parede, em direção à entrada da frente. Regularmente, corria
o olhar pela mata. Como não notasse nada estranho, começou a imaginar se não havia se enganado. Ao
chegar ao pátio da frente, sentia-se mais curiosa do que preocupada. Lançou um último olhar às árvores.
Não tinham voltado a balançar.
Quando rodeou o canto do prédio, Bárbara tinha a intenção de ir ao encontro de Morgan onde o deixara.
Contudo, ao olhar para a estrada de Baltimore, viu uma carruagem luxuosa aproximando-se depressa.
No mesmo instante, soube.
Estava certa ao ter sentido ansiedade, ao trazer a Bíblia para Michael Gorsuch, ao se casar com Morgan
Harris. Ajeitou melhor Sarah nos braços e, com um sorriso de segurança, foi encontrar-se com os
passageiros da carruagem. Sabia estar em pé de igualdade com eles.
O tenente Richards foi o primeiro a descer. Estendeu a mão a fim de ajudar a sra. Ross, atrás de quem,
surgiu um outro homem.
Confiante, Bárbara cumprimentou a inglesa.
— Que surpresa inesperada, sra. Harris! — exclamou a recem-chegada, também segura de si.
— Sem dúvida! — concordou Bárbara. A sra. Ross franziu as sobrancelhas.
— Sim, mas a surpresa deve ser de ambos os lados, pois a senhora também não podia esperar me ver
aqui.
Bárbara deu de ombros. De forma alguma revelaria que nada a surpreenderia menos do que a chegada da
sra. Ross à casa de culto nessa tarde. Poderia até lhe dizer estar ciente de seus propósitos nesse local e
que Michael Gorsuch já estava desimpedido para ajudá-la a pesquisar registros. Por um instante, Bárbara
imaginou se a tinta de escrever, usada nessa manhã, estaria diferente de uma outra de um ano atrás.
Pouco provável. A da Bíblia, talvez, porém Michael não seria bobo de devolvê-la diante da sra. Ross.
Ele não o fez. Tendo terminado a inscrição na Bíblia e não vendo Bárbara no salão, saiu pela porta da
frente a sua procura. Nesse momento, ela se aproximava da carruagem. Dirigiu-se, então, a Morgan
Harris, ao lado da charrete, que observava a esposa, quase legal, recepcionar a inglesa. Entregou-lhe o
volume grosso dizendo:
— O feito está consumado. Morgan aceitou a Bíblia e indagou:
— O feito pecaminoso?
Michael Gorsuch tirou e expirou uma longa baforada do cachimbo. A fumaça branca flutuou por uns
segundos antes de dissolver-se no ar frio e um ido.
— A alma não é a minha, como... — o magistrado hesitou um pouco antes de concluir: — sua mulher
argumentou.
Morgan sorriu.
— Ela afirmou isso?
— Afirmou, sim.
Morgan escondeu a Bíblia sob o banco da charrete e volveu o olhar para a cena interessante a alguns
metros de distância. As duas mulheres, de grande força de vontade, conversavam amável e civi-
lizadamente. Ele admirava a maneira pela qual Bárbara se dirigira à carruagem, com costas eretas e
passos firmes. Algo ondulou-se em seu íntimo. Um movimento horizontal. Nenhuma inclinação. Nada
perigosamente vertical, ameaçador, mas tranquilizante. Provocava sensação de bem-estar. De orgulho
pela atitude de outro ser humano. De querer bem.
Fitou Michael Gorsuch.
— Ela tem coragem.
— Muitíssima — concordou Michael.
Ambos puseram-se a observar as duas mulheres.
— Essa encenação nossa vai surtir o efeito desejado? — perguntou Morgan.
— Talvez. Bárbara vai precisar de muita perseverança e habilidade para frustrar os planos da viúva do
general.
— E se isso não for suficiente? A sra. Ross pode alegar legitimidade?
— Não, de jeito nenhum. Mas talvez conte com o aspecto legal do caso.
Os dois fitaram-se novamente e Morgan disse:
— Bem, além de corajosa, Bárbara é muitíssimo determinada.
— Você não faz idéia do quanto. Ela foi responsável pela morte do general.
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Morgan arregalou os olhos.
— Ela o matou?! — exclamou entre surpreso e incrédulo.
— Providenciou para que fosse morto. O general Ross foi alvejado pelos atiradores de elite americanos,
em Long Log Lane, não muito longe daqui, na tarde do ataque a Baltimore.
— Em setembro do ano passado. Nove meses antes de Sarah nascer — murmurou Morgan.
— Certo. E como, você imagina, os americanos sabiam onde e quando o general estaria naquele dia?
As sobrancelhas de Morgan ergueram-se enquanto o olhar dirigido a Bárbara enchia-se de admiração. Lá
estava ela confiante, conversando com a mulher que queria tomar-lhe a filha e cujo marido era o pai da
criança, o homem a quem ela provocara a morte. Uma nova onda de orgulho por ela o dominou.
Michael Gorsuch prosseguiu:
— Bárbara Johnson jamais contou a alguém o que tinha feito. Ora, nós nem sabíamos que o general a
tinha notado até ela estar grávida de cinco meses. Quer dizer, sabíamos que ele a admirava, mas Bárbara
nos garantiu ser tratada com respeito. Disse isso por pura bondade, para nos poupar, pois não tínhamos
meios para protegê-la sem correr risco de vida. Bem, Jane Shaw tinha organizado uma corrente de
comunicações que saía da casa de Jacob, seu pai, onde os ingleses haviam instalado o quartel-general.
Bárbara foi um dos primeiros elos dessa corrente, pela qual passavam informações sobre os planos
militares dos britânicos. Na manhã do dia do ataque a Baltimore, Bárbara passou o aviso, ao elo da
corrente aqui da casa de culto, sobre a hora exata em que o general comandaria as tropas por Long Log
Lane. Dois dias depois, Jane Shaw deixou escapar que a notícia não tinha partido da fazenda do pai.
— isso quer dizer... — começou Morgan, mas Michael o inteirompeu:
— Quando a gravidez de Bárbara tornou-se parente concluímos que ela só podia ter recebido a
informação diretamente do general.
— E ela o traiu.
— Entenda. Os cinco irmãos de Bárbara foram mortos na Primeira Guerra de independência — Michael
disse depressa. — E os ingleses, por causa de sua ocupação insolente, não contavam com a mínima
simpatia por aqui. Por isso, ninguém a condenou.
— Não me interprete mal — protestou Morgan. — Não a estou acusando. Ela tem toda minha
admiração.
Olhou outra vez para Bárbara e viu uma mulher corajosa, determinada, destemida e independente.
Pensou em Roxanne, linda e vazia, que o amava cegamente. Lembrou-se da rica e atraente Mary Ann
Layton e de como precisava dele com desespero. Ambas não haviam conseguido matar-lhe a fome, ao
contrário, a tinham aumentado. Quanto mais as via, mais faminto ficava. Algum tempo atrás, na primeira
atitude positiva de sua vida nos últimos quinze anos, ele havia decidido não procurá-las mais.
Então, o mestiço pintado e bêbado tinha invadido a taverna, avivando-lhe as lembranças das perdas
dolorosas. Isso quase havia lhe custado a vida e o deixado sem forças para prosseguir existindo.
Entretanto, poucos dias depois, ali estava ele envolvido com uma mulher diferente e linda, que precisava
dele, mas não desesperada-mente. Gostava dele o suficiente para tê-lo acomodado em sua cama.
A planície emocional estendeu-se e tornou-se forte e espaçosa como a terra sob seus pés.
— Apenas sua admiração? — perguntou Michael.
Outras emoções, há muito não sentidas, fortes, ricas e viris, ocuparam a planície acolhedora. Contudo,
não estava disposto a mostrar as cartas ao magistrado, nem como pretendia jogá-las. Em tom solene,
respondeu:
— Meu respeito também.
— Você não está bem legalmente casado — lembrou Michael Gorsuch.
— Então, nesse caso...
— Olhe, ontem esteve um homem aqui que passou a noite com vocês lá na fazenda. Procurava um tal
de Jack Carter.
— Chama-se Evan Rollins e veio de Boston. Mas não encontrou o sujeito — disse Morgan com sua
expressão de jogador de pôquer.
— Morgan Harris, você não conheceria alguém chamado Jack Carter?
— Nunca ouvi falar nele.
— Você disse ter vindo do Norte. De onde, exatamente?
— De Quebec.
— Nunca esteve em Boston?
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Morgan não pôde responder. Bárbara, tendo terminado a conversa com a sra. Ross, aproximava-se.
— Conseguiu o que precisava na casa de culto, Morgan? — indagou ela.
— Sim e já estou pronto para voltar.
— Muito bem, vamos, então.
Ao ajudá-la a subir, Morgan viu-lhe os olhos azuis brilhando de determinação e alegria. Foi um
momento eletrizante para ele. Uma sensação nova e notável tomava forma em seu íntimo.
O panorama plano sumia. O carrinho que o tinha levado, tantas vezes, pela ladeira sombria a assustadora
do desânimo, começava a escalar a colina.
Ia muito, muito devagar, mas certamente, subia.

CAPITULO XIV

Bárbara agradeceu a ajuda de Morgan e sentou-se na charrete, feliz e eufórica. Embora conseguisse não
sorrir, era-lhe impossível esconder o ar de satisfação. Olhou para o rostinho da filha adormecida em seus
braços e sentiu-se triunfante.
Enquanto Morgan rodeava o veículo a fim de tomar seu lugar, ela conseguiu murmurar para o
magistrado:
— Muito obrigada, Michael, pela sua boa vontade e ajuda. — Fez um gesto em direção aos recém-
chegados. — Você vai ter visitas. Como deve ter imaginado, trata-se da sra. Ross. O tenente Richards é
o da esquerda e o outro homem, um advogado trazido por eles.
Michael Gorsuch não se mostrou impressionado.
— Ora vejam só, um advogado! Os documentos e certificados da região estão sempre à disposição do
público. Mantenho meu trabalho em dia e em ordem para quem quiser examiná-lo. — Baixinho,
acrescentou: — Sua Bíblia está embaixo do banco.
Sem desviar o olhar de Michael, Bárbara abaixou o braço e passou a mão sob o banco até tocar o volume
grosso.
— Até qualquer dia, Michael. Não sei quando Morgan e eu vamos ter tempo para voltar aqui. O trabalho
na fazenda está ficando atrasado.
Morgan, já sentado a seu lado, apanhou as rédeas.
— Por sua expressão, vejo que o encontro com a sra. Ross correu bem.
Em vão, Bárbara tentou assumir ar preocupado.
— Está assim tão óbvio?
— Já ouviu falar da cara de um gato que comeu um passarinho?
Barbara sorriu.
— Não vou me desculpar por não ser sutil.
Morgan não disse mais nada. Despediu-se de Michael Gorsuch e pôs a charrete em movimento. Mas
para a surpresa de Bárbara, ele rodeou o pátio e parou junto aos visitantes. Com a maior naturalidade,
debruçou-se sobre ela a fim de falar com os três que estavam de seu lado da charrete.
— Olá, Richards, então voltou a North Point? Boa tarde. sra. Ross.
— Voltamos por insistência de nosso advogado — respondeu o tenente ao apontar para o outro homem.
Sem perceber, Bárbara tornou a esticar o braço e tocou a Bíblia. Sentiu-se muitíssimo melhor.
— Bem, imagino que tenham algo para tratar aqui, portanto, não vou lhes tomar tempo. — Olhou para o
céu no lado oeste.......-Se o seu negócio demorar muito e ficar tarde para voltarem a Baltimore antes do
jantar, apareçam lá na fazenda. Poderão fazer a refeição conosco. Será um prazer.
Bárbara baixou os olhos depressa. Teria ouvido bem? Morgan estava, de fato, convidando-os para jantar
em sua casa?
— Meu amor? — disse ele fitando-a.
Bárbara recuperou-se e retribuiu-lhe o olhar antes de dirigir-se ás pessoas a quem tanto odiava.
— Ora, naturalmente. Se precisarem, apareçam lá na fazenda para jantar conosco.
- Eu sempre aprecio uma audiência para minha música - afirmou Morgan.
— Obrigada, sr. Barris. Veremos como a tarde vai transcorrer — disse a sra. Ross.
— E se não tiverem lugar para dormir, sabem que temos um quarto extra para a senhora. Os outros
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poderão se acomodar na sala. O tenente Richards conhece nossa hospitalidade — Morgan ainda
acrescentou para o maior espanto de Bárbara.
— Vamos ter de pagar pela pousada? — indagou o tenente em tom condescendente.
— Não. Aquela conta já foi acertada, no que me diz respeito. Desta vez, trata-se de um convite
amistoso.
O tenente não escondeu o ceticismo e coube à sra. Ross agradecer a amabilidade.
— Bem, vamos indo. Boa sorte nos negócios. Verão como Michael Gorsuch é um magistrado
competente - disse Morgan.
Despediram-se e a charrete logo seguia por Long Log Lane, rumo a fazenda.
Quando já não corriam o risco de serem ouvidos e antes de Bárbara questioná-lo sobre os convites
absurdos, ele pediu como se estivesse ansioso para saber das novidades:
— Agora, me conte tudo sobre sua conversa com a sra. Ross. Bárbara sentiu-se estimulada a reviver a
experiência.
— Nem um único engano! A sra. Ross não conseguiu me apanhar em ponto algum, embora tentasse e
estivesse bem instruída sobre o se me perguntar. Naturalmente, teve a orientação do advogado. E agora,
vai ver tudo confirmado nos registros de Michael Gorsuch - contou ela entusiasmada. — Mas o que eu
quero saber...
— Michael Gorsuch nos prestou um favor inestimável.
— Sem dúvida, mas...
— Ele está determinado em proteger você e Sarah.
— Sim, eu sei, mas...
— Ele me disse que já arquivou nosso casamento entre os registros do ano passado para tudo estar em
ordem no caso de uma inspeção da sra. Ross. Sabe, você subestima o quanto a consideram por aqui,
apesar de ter sido tratada com desdém por causa da gravidez. Michael Gorsuch não é o único que se
preocupa com seu bem-estar e mostrou-se disposto a protegê-la até o fim.
— Eu nunca disse que meus vizinhos não me apoiavam durante os períodos de dificuldade — protestou
Bárbara.
— Ah, mas você é muito orgulhosa para receber-lhes a ajuda.
Boquiaberta, ela "o fitou.
— Michael disse isso !
Morgan sorriu de sua surpresa ofendida.
— Não. Ele afirmou que você é uma mulher de caráter independente. Deduzi que você enfrenta muitas
coisas como falta de sorte, doença, pobreza, antes de aceitar ajuda. Naturalmente, você mostra-se mais
razoável quando a questão diz respeito a Sarah.
Se a intenção de Morgan era provocá-la, tinha acertado. Foi preciso uma grande força de vontade para
Bárbara não prosseguir no assunto. Tinha um outro seu mais importante para tratar no momento.
— Mais tarde, vou perguntar-lhe sobre o que você e Michael conversaram ainda há pouco. No
momento, quero saber...
Morgan voltou a interrompe-la.
— Eu sei, chegarei lá. Mas antes, quero enfatizar como foi idéia excelente esse nosso casamento.
Quando o reverendo apareceu hoje de manhã, eu não era a favor. Agora, percebo como você foi sensata
ao me convencer.
Fitou-a e sorriu. Bárbara achou o sorriso encantador, mas difícil de ser interpretado. Na superfície, dava
a impressão de apreciar uma idéia boa, bem executada. Mas o sorriso parecia ter uma correntes submersa
muito atraente. Sem dúvida, um gesto de homem para mulher. Ou talvez o sorriso de um homem
parando durante um jogo de pôquer antes de pedir novas cartas. Em tom seco, ela disse:
— Imagino que vai querer me elogiar também por me lembrar do detalhe da Bíblia! Não se dê ao
trabalho. Prefiro que me explique essa história de convidar a sra. Ross e os dois homens para jantar
conosco e dormir lá em casa - Queria mesmo que eles passassem a noite lá? — indagou antes de
avaliar as implicações da pergunta.
Morgan continuava a fitá-la sem mudar de expressão. Como não lhe respondesse a pergunta, ela teve a
sensação curiosa de entender as profundezas do sorriso. Sentiu o ambiente, como se tocado por uma
fagulha, adquirir novo brilho. Estavam numa charrete aberta e não num cenário íntimo e aconchegante,
porém ela dava-se conta de encontrarem-se sozinhos. Pela primeira vez, estavam a sós sem um novo
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visitante á porta, um novo acontecimento a ser absorvido, ou um novo detalhe para se resolver. Só então,
ocorreu-lhe que, se a sra. Ross e seus dois acompanhantes dormissem na fazenda, ela teria de
compartilhar a cama com Morgan pela terceira noite consecutiva. Não seria essa a intenção dele ao
convidá-los? indagou-se
A idéia despertou-lhe algo há muito adormecido. Pensou na noite a ser enfrentada. Não era uma
perspectiva desagradável, mas intrigante. Até desejável. Depressa, desviou o olhar do de Morgan pan o
panorama dos campos castigados pelo inverno. Lembrando-se de calor dele a seu lado na cama, não
percebia o ar frio de novembro!
Olhou para a criança adormecida em seus braços e conscientizou-se não ser apenas os dois retornando
para casa. Formavam um trio: homem, mulher e criança. Não lhe escapou o fato de, pela primeira vez
nos últimos meses, ter pensado primeiro em outro ser humano e, depois, em Sarah.
Contudo, no momento seguinte, refletiu se não tinha imaginado a pausa de Morgan, pois ele lhe
respondia a indagação.
— Naturalmente, não quero que eles durmam lá na fazenda.
— Então por que os convidou?
— Para mostrar-lhes que não tínhamos nada a esconder. Não foi uma boa estratégia?
— Sei lá? — respondeu Bárbara em tom de dúvida.
— Pensei que você acharia, pois apenas continuei sua ofensiva sensata.
O comentário arrancou-lhe os pensamentos das possibilidades agradáveis daquela noite.
— Que ofensiva? — demandou ela.
— Foi uma encenação perfeita ir recepcionar a sra. Ross. Naquele instante, eu e Michael conversávamos
e, entre outras coisas, admitimos o quanto admirávamos sua coragem.
Bárbara virou o rosto para Morgan que, por um instante, desviou o olhar da estrada a fim de fitá-la. De
fato, os olhos azul-escuros brilhavam. Seria apreciação, ou algo diferente? Ela não tinha experiência
suficiente para saber se Morgan flertava e, em caso afirmativo, como fazer o mesmo.
Num tom franco e bem pouco romântico, disse:
— Caso eles aceitem o convite, as acomodações para esta noite vão ser bem incomodas.
— Não aceitarão — disse ele, confiante.
— Como pode ter certeza? — demandou Bárbara, aliviada das suspeitas sobre os motivos de Morgan.
— Por mais de dez anos, ganhei a vida como jogador profissional de sucesso. Sei como fazer minhas
apostas.
Apesar do tom grave, Bárbara teve a sensação de que o melancólico e veemente fazendeiro Morgan
Harris era substituído pelo jogador mulherengo Jack Carter. Com os acontecimentos desse dia,ela havia
esquecido as indagações provocadas pela visita de Evan Rollins. Uma situação, em particular, desafiava
sua compreensão. Tratava-se do estranho incidente na taverna Kelly's.
— Suas apostas valeram até poucas noites atrás, quando você permitiu que o apanhassem tapeando.
Morgan virou-se para ela. O brilho dos olhos estava mais acentuado.
— O que a leva a pensar que eu me deixei apanhar trapaceando?
— Você é um indivíduo ponderado e não roubaria a não ser que quisesse, por alguma razão, ser
apanhado.
— Por falar em pessoas ponderadas — começou ele numa cartada magistral — Michael Gorsuch me
contou que você foi responsável pela morte do general Ross.
— Ele contou isso?! — perguntou Bárbara, confusa.
Ao vê-lo fazer um gesto afirmativo, ela sentiu-se contrariada esqueceu o assunto anterior. Era horrível
admitir ter matado, mesmo indiretamente, o pai da filha. Contudo, recusava-se a esconder verdade. Isso
seria compactuar com as violações sofridas nas mão do general, no ano anterior, e nas de sua viúva
agora. Confessar verdade talvez ajudasse a limpar a sujeira que sentia permeá-la por haver se envolvido
numa teia de mentiras, embora necessárias.
- Está bem — disse finalmente. - Fui eu quem informou os passos do general naquele dia.
— A sra. Ross suspeita de sua colaboração na morte do marido!
— Não.
— O tenente?
— Duvido.
— Nesse caso, eles não podem ter vindo procurá-la com idéia de vingança — comentou Morgan.
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— Não. Apenas de roubo.
— De qualquer forma, sua participação no extermínio do general dificilmente será usada, pela sra. Ross,
contra você num tribunal.
Bárbara riu um pouco.
— A grande ironia é a sra. Ross imaginar, sem dúvida, que meu relacionamento com seu marido era por
amor.
— E não foi.
Pela inflexão de Morgan, Bárbara não sabia se ele afirmava, ou indagava. Olhou para Sarah. O general
Ross tinha lhe dado a filha na manhã do dia de sua morte. Não tinha uma resposta, pois o amor; ou ódio,
pelo pai de Sarah não podia ser resumido em um simples “sim” ou “não”.
Morgan não insistiu.
— Para cumprir o que considerava seu dever, você, claro, precisou de muita coragem — comentou ele.
— Resolução — respondeu Bárbara, satisfeita por ter certeza nesse ponto. Então, para mudar o rumo da
conversa, disse: — Mas esse é um assunto doloroso, sobre o qual já conversamos mais de uma vez.
— Não chegamos a nos aprofundar nele hoje na hora -do almoço, pois você, bem a tempo, lembrou-se
da Bíblia de família.
— Isso mesmo! Eu me esforçava para descobrir fatos sobre sua vida movimentada e você tentava me
distrair.
— Mas no fim, acabei respondendo suas perguntas.
— Nem todas.
— Não importa. Agora é sua vez.
— Curioso?
— Como qualquer ser humano sobre outro. Além do mais, você me disse, ontem eu acho, que se sentiu
muito melhor depois de haver se aberto comigo. Você havia tomado a resolução, mas não deve ter sido
fácil executá-la.
Então, ele a fitou com absoluta atenção e simpatia. Esse tipo de intercâmbio com um homem era novo
para Bárbara. Surpreendente seu efeito e a maneira pela qual ele despertava lembranças de seu desejo
angustiante pelo general Ross. Também era reconfortante, pois ninguém jamais tinha lhe perguntado
algo sobre o comandante britânico, ou comentado o quanto devia ter sido difícil para ela. Os homens
sentiam-se constrangidos por não poder defender uma de suas mulheres contra o invasor inglês. As
mulheres ficavam embaraçadas porque Bárbara tinha de carregar sua vergonha com a maneira evidente
do ventre dilatado.
— Não, não foi fácil. Nem agradável — concordou ela.
Mas então, Bárbara deu-se conta de não haver permitido que pessoa alguma lhe fizesse perguntas sobre
o general Ross. Apenas Jane Shaw tinha se atrevido a oferecer-lhe simpatia e apoio. Aceitara-os de má
vontade.
Teria ela sido, de fato, tão orgulhosa como Morgan sugerira? Refletiu sobre esse ponto e não gostou
muito da própria imagem vista sob tal ângulo.
— Contudo — começou, mas calou-se.
Refreava a vontade de dizer que não tinha sido muito desagradável ser desejada tão completamente. Não
podia mencionar isso a Morgan sem dar a impressão de o estar provocando. Também ignorava quanto de
seus sentimentos pelo general Ross tinha se suavizado com a alegria da gravidez.
— Contudo? — instigou Morgan.
— Ele me deu Sarah — concluiu Bárbara sentindo-se mais segura com essa explicação.
— Você nunca teve outros filhos?
— Não. Meu marido, um viúvo inconsolável e sem filhos, em bem mais velho do que eu. Casamos dez
anos atrás e ele não me deu filhos, mas me deixou a fazenda.
— E as alianças — disse Morgan levantando a mão esquerda. — Isso sem falar nos apetrechos de
barbear e os camisolões para dormir. Sei que morreu há quatro anos e se chamava Jonas.
— Já sabe bastante a respeito dele — comentou Bárbara rindo.
— Exceto como morreu.
— Foi no inverno. Ele saiu, sem o sobretudo, para rachar lenha e morreu duas semanas depois de um
resfriado muito forte. — Como achasse não haver mais nada para contar sobre sua vida, perguntou com
naturalidade:
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— E sua mulher, do que morreu?
— Não foi o frio, mas o fogo que lhe provocou a morte — respondeu ele, impassível.
Bárbara o fitou depressa, mas Morgan mantinha a atenção na estrada esburacada. Mais uma vez, sentia-
se envergonhada por considerar sua vida mais difícil do que a de qualquer homem. Tal vez seu quinhão
não passasse das vicissitudes habituais enfrentadas pela maioria das mulheres. Quem sabe o fato de se
achar sofredora ,
resultasse da incapacidade de aceitar o auxílio do próximo. Sempre se considerara de uma independência
nobre, mas possivelmente, isso não passasse de um orgulho banal. Apesar das indignidades sofridas nas
mãos dos homens, um lhe deixara a fazenda e outro, a filha.
Contemplou o homem a seu lado. Ele virou-se e a encarou. Não pronunciou palavra alguma. Nem
precisava. Com a nova intuição que lhe permitira prever os pensamentos e ações da sra. Ross, Bárbara
adivinhou-lhe as perdas imensas e a mágoa incurável. Sabia não poder aliviá-lo, porém nada a impedia
de compartilhar de sua dor
através de um olhar compreensivo. Seria apenas por um momento, pois a fragilidade da comunhão
humana não se sustentava indefinidamente.
Uma das rodas da charrete passou por um enorme buraco, sacudindo-os horrivelmente e forçando
Morgan a prestar atenção à estrada. O momento de comunhão passou, mas fora suficiente e Bárbara
sentia-se satisfeita. Todavia, ainda sentia uma ponta de interesse pela vida de Morgan Harris.
— De volta ao trabalho — disse ela quando pararam na frente da casa.
— Isso mesmo. Vou outra vez ao campo do lado sul e devo voltar dentro de duas, ou três horas. A
tempo de jantar — informou Morgan ao ajudá-la a descer.
Bárbara arregalou os olhos.
— Ainda não tenho comida lá na outra casa — desculpou-se Morgan.
— Não mesmo. Eu devia ter convidado você. Acha mesmo que a sra. Ross e os outros dois não vão
aparecer?
Devagar, ele sorriu, os olhos azul-escuros refletindo meiguice. Ainda lhe segurava a mão, percebeu
Bárbara.
— Sem sombra de dúvida — garantiu ele ao soltar-lhe os dedos e tornar a subir na charrete a fim de
deixá-la no estábulo.
— Devo calcular duas, ou três horas para sua volta? — indagou Bárbara.
— Vou tentar duas, mas provavelmente, serão três.

CAPITULO XV

Enquanto entrava em casa, Bárbara chegou à conclusão de que Morgan, caso quisesse ganhar acesso a
sua cama, não teria usado estratagema tão tolo quanto o convite feito à sra. Ross e os companheiros. Se
estivesse empenhado cm sedução, não haveria de querer audiência.
Mas estaria ele?
Não saberia dizer. Sua experiência nesse campo era muito limitada. Pensou nos homens conhecidos
durante a vida e não encontrou nenhum cujo estilo e atitude fossem semelhantes aos de Morgan Harris.
Aliás, não se lembrava de homem algum tão interessante, sensível às emoções alheias, veemente,
reservado e atraente, de maneira particular, como ele.
Na verdade, não se tratava de falta de experiência com homens. Mas as suas tinham sido inexpressivas,
planas, sem contornos, ou cantos de onde o desejo pudesse espreitar e lançar ramificações como a hera.
Não era falta de experiência, apenas de um certo tipo, reconheceu.
Sentiu um arrepio ao lembrar-se da primeira, horrível e traumatizante. Ela havia completado dezessete
anos e morava em Baltimore com a tia, irmã do pai e mulher severa. Jonathan Harlan a tinha conhecido
na igreja e durante meses tentara, em vão, arrancar-lhe um olhar, ou uma carícia. Como Bárbara o
achasse insistente demais, não havia sentido a mínima atração, embora ele não fosse feio. Também não
confiava nas intenções de um rapaz rico de Baltimore em relação a uma moça pobre de North Point.
Estava completamente certa. A constatação humilhante deu-se durante uma reunião social da igreja, num
domingo à noite. Sabendo que Jonathan estaria lá, Bárbara não queria ir, mas a tia a forçara a
comparecer. Temia encontrar o rapaz, pois ele não mais apenas a aborrecia como também intimidava.
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Porém ela foi e dançou com um rapaz atraente com quem simpatizava. A certa altura da festa, quando os
dois respiravam o ar fresco no terraço e apreciavam o luar, Jonathan Harlan apareceu. Como o jovem
atraente tivesse a falta de sorte de trabalhar para o velho Harlan, não hesitou em obedecer a ordem para
retornar ao salão. Antes de poder resistir, Bárbara viu-se sendo arrastada, pelo braço, para trás de uma
cerca viva. Jonathan jogou-a de costas no chão e atirou-se sobre seu corpo. Com a arrogância de um
rapaz rico e mimado, acostumado a ter o que desejava, invadiu-lhe o corpo. Nem remotamente, Bárbara
poderia relacionar aquele ato ao amor.
A satisfação dele e sua humilhação não foram a pior parte do incidente. Jonathan tinha voltado à festa e
proclamado a conquista. Quando Bárbara, depois de algum tempo havia conseguido se recompor um
pouco e entrava no salão à procura da tia, fora recebida por olhares curiosos dos homens e de desdém
das mulheres. Sabia que a reputação estava perdida. A expressão do rapaz atraente era de mágoa e
rejeição.
Bárbara reconhecia a sorte de um homem tão respeitado em North Point como Jonas Johnson, dois anos
depois, precisar de uma mulher para ajudá-lo na fazenda. Durante os dez anos de casamento, ela e o
marido levaram uma vida normal, imaginava. Mas jamais diria que o relacionamento físico era afetivo.
A união não passava de um arranjo de negócios e não produzira filhos, nem mágoas, ou prazer. Ela
jamais poderia dizer que o marido lhe "fizera amor".
Depois da morte de Jonas, Bárbara surpreendeu-se com sua popularidade. Tinha a impressão de que
cada homem livre de North Point a queria, ou a fazenda. Talvez ambas. Contudo, não tinha a mínima
intenção de se casar outra vez, pois não entendia por que uma mulher deveria se submeter ao domínio
legal de um homem se não precisava dele financeiramente. Aliás, fugiam-lhe à compreensão os motivos
de uma mulher para querer um homem em sua vida. Assim sendo, rejeitava os pretendentes com
firmeza.
Então, o general Robert Ross chegou á North Point. Ele a viu e desejou. Bárbara reconheceu-lhe no
olhar o que tantas vezes vira no de outros homens. Entretanto sabia que, dessa vez, o homem venceria.
Mas ele não era grosseiro, maldoso e arrogante como Jonathan Harlan. Bonito, habilidoso, experiente e
educado, conhecia a arte do desejo. Era o primeiro homem com quem ela poderia dizer ter feito amor.
Entretanto, não o amara porque, até sua morte acertar a contagem de pontos com os ingleses, ela era
incapaz desse sentimento.
De repente, Bárbara sentiu-se imunda e necessitada de um bom banho de imersão. Caso se apressasse na
execução das tarefas que a aguardavam, teria tempo até para lavar os cabelos.
Antes de mais nada, pôs bastante água para esquentar no fogo. Terminado o trabalho, estendeu o oleado
no chão para proteger a madeira e foi buscar a banheira de cobre no telheiro. Sentia-se excitada e
censurava-se pelo prazer ilícito. Ainda não era dia de tomar esse banho. Geralmente, lavava-se por
partes, e à noite, antes de se deitar. Quebrava a rotina apenas para satisfazer um capricho impulsivo. No
emaranhado das reflexões e lembranças, surgiu a indagação se não estaria purificando o corpo para
Morgan.
Pouco depois, com a cabeça recostada na banheira, os cabelos já lavados pendendo para fora a fim de
secar com o calor do fogo, e o corpo submerso na água morna, Bárbara pensava no enigma apresentado
por Morgan. Imaginava-o cm atitudes condizentes a seu estado de nudez ali na banheira. Contudo, sentia
dificuldade em encontrar a trilha do prazer nas várias cenas criadas, nas quais se via entre os braços de
Morgan, os lábios nos dele, pronta para matar-lhe a fome. Mas sempre chegava ao ponto em que ele,
exigente, demandava algo alem de seu conhecimento.
Então, Bárbara ouviu passos na escadinha de trás, uma batida leve e a porta abrindo-se.
Num movimento brusco, virou-se de bruços para verificar se o ouvido não a tinha enganado. Num misto
de interesse e medo, viu Morgan dar uns passos pelo aposento, parar e observá-la. A expressão dos olhos
azul-escuros desapareceu antes que ela pudesse decifrá-la.
— Eu não o esperava ainda por um bom tempo — declarou depressa por sobre o ombro.
Não queria dar a impressão de ter planejado o banho com o intuito de provocá-lo.
— Não podia mesmo já estar me esperando — concordou ele com um leve sorriso. — Vim perguntar
onde você guarda os instrumentos para limpar as valas.
— Ah, sei. No estábulo — respondeu Bárbara numa voz meio ofegante.
— Procurei lá e não encontrei. Por isso, vim indagar — explicou Morgan ao dar mais um passo à frente.
Bárbara virou-se na banheira de forma a ficar de frente para a parede oposta a ele. Bolso aproximou-se
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do dono para fazer-lhe festa e, por um instante, Morgan ocupou-se dele. Quando o mandou deitar-se
outra vez no canto da lareira, ela perguntou:
— Não vai voltar lá para fora?
— Não.
Ela ouviu-lhe os passos atrás de si, indo pendurar o sobretudo e o chapéu. Depois, tornou a percebe-los,
mas em sua direção. Manteve-se imóvel sob a água, com o olhar fixo nos instrumentos na parede em
frente. Entre todas as cenas imaginadas momentos antes, Bárbara não encontrava uma que achasse
prazerosa o suficiente para viver na realidade. Alem do mais, sentia-se furiosa por ser apanhada nua
quando Morgan estava vestido. Não era de sua índole fazer-se de sedutora. Ele deu mais uns passos. A
fúria transformou-se em constrangimento e este, em pânico.
— Por que não vai sair outra vez? — indagou.
— Porque não quero expor você a mais um golpe de ar frio ao abrir a porta — explicou Morgan.
Haveria uma nota de bom humor na voz dele? Já estava bem atrás da banheira. Ao lado. E então,
continuou adiante indo parar em frente aos instrumentos na parede. De costas para ela, acrescentou:
— Para ser sincero, achei ótima sua idéia para relaxar um pouco agora à tarde e estou tentado a lhe
seguir o exemplo.
Ainda de costas, apanhou o banjo, tentou afiná-lo e tocou uns acordes.
— Não é meu tipo predileto de instrumento — declarou ao pendurá-lo de volta e pegar o violão já
afinado. — Prefiro este.
Com os braços cruzados sobre os seios a fim de escondê-los, Bárbara seguiu Morgan com o olhar
quando ele passou novamente do lado da banheira, em direção à área da cozinha. Ouviu-o puxar o banco
de sob a mesa, firmar um dos pés sobre ele e começar a tocar e a cantar.
Ela não fazia idéia de como reagir. O pânico tinha passado. Aliviada, sentia vontade de rir, mas não a
ponto de fazê-lo. Mas também estava confusa por causa do alívio, de Morgan e do inexplicável
ressentimento pela indiferença aparente dele por sua nudez que, tinha certeza, podia ser vista através da
água e da espuma do sabonete.
Sem saber como agir. Bárbara resolveu relaxar os músculos tensos na água morna e deixar-se embalar
pela música. Aos poucos, o ambiente tornava-se aconchegante, de uma intimidade palpável.
A certa altura, Morgan parou de cantar e perguntou:
— As ferramentas para a limpeza das valas não estariam no telheiro?
— Não sei. Pode ser — respondeu Bárbara em voz pausada.
— Amanhã, vou ver — disse ele demonstrando a mesma falta de pressa que ela.
Recomeçou a cantar. Após alguns minutos, parou outra vez Bárbara percebeu que ele largava o violão
em cima da mesa. Seu coração disparou ao ouvir novos passos em direção à banheira. Porém, Morgan
dirigia-se à lareira onde reavivou as brasas e colocou mais lenha. Provocado, o fogo esmorecido encheu-
se de chamas crepitantes. Não estaria ele provocando-a também? indagou-se Bárbara. Morgan
retrocedeu á área da cozinha voltando a cantar.
Finalmente, quando terminou uma canção, Bárbara disse:
— A água está esfriando.
— Nesse caso, você deve sair do banho. Caso contrário, arrisca-se a apanhar um bom resfriado.
As palavras foram seguidas por acordes floreados.
A suas costas, ela percebeu os movimentos de Morgan indo sentar-se no sofazinho, mas sem interromper
a música. Ficou atônita. Ele havia se posicionado para poder vê-la em sua completa nudez quando saísse
da banheira. Continuou na água. Ouvia o estalar do fogo e os sons melodiosos do violão. A temperatura
desconfortável da água a expulsava e o calor do fogo renovado a chamava. Sentia o olhar de Morgan
como se ele a encorajasse a deixar o esconderijo da água, expondo-se a ele, dando-lhe a oportunidade de
provar que ela não tinha nada a temer e de admirar sua nudez linda.
— Caso precisasse, eu iria apanhar sua toalha, mas vi que você a deixou aí na mesinha ao lado.
Ele a tranquilizava e desafiava ao mesmo tempo. Mas em sua opinião, Morgan não deixaria o ponto
vantajoso de observação. Ela não se rebaixaria pedindo-lhe para desviar o olhar. Não seria atendida, sem
dúvida, e perderia a autoridade. O medo antigo, de ser humilhada ao expor-se a um homem, dominou o
desejo quase imperceptível de ter o corpo acariciado pelos olhos de Morgan. Finalmente, não lhe restou
escolha a não ser sair da água.
Estendeu a mão para apanhar a toalha e, quase ao mesmo tempo em que saia da banheira, enrolou-se
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nela, prendendo as pontas sob os braços. Foi até a frente da lareira onde se enxugou, de costas para
Morgan, com a toalha protegendo-a como uma cortina. Pressentido que ele lhe dedicava atenção idêntica
à dispensada na charrete, não dominou um arrepio ao longo da espinha. Extraordinário o efeito de tal
atenção que encerrava tão pouca ameaça e tanta promessa e expectativa.
Por um segundo, Bárbara hesitou quanto ao que fazer em seguida, mas logo decidiu agir como se
Morgan não estivesse presente. Sem pressa, pegou a camisa e a blusa deixadas numa banqueta ao lado.
Vestiu-as e apanhou o calção. Conseguiu colocá-lo por baixo da toalha e, só então, livrou-se desta. Em
seguida, pós a anágua e a saia. Teria Morgan, ao presenciar a cena, experimentado um interesse igual ao
seu ao vê-lo se vestir na intimidade do quarto?, indagou-se. Quando se virou para enfrentar-lhe o olhar,
teve a resposta.
Sentado no sofazinho, com o braço estendido no encosto, as pernas esticadas para a frente e cruzadas
nos tornozelos, o violão esquecido ao lado, Morgan não mexia um músculo, mas dava a impressão de
ler-lhe tocado o corpo inteiro com os olhos. O azul-escuro destes estava mais profundo, com algo
enigmático e sutil que, atravessando o aposento, eletrizou-a.
— Cuido disso para você — disse ele.
Era como se houvesse dito: "Quero você". A voz baixa e profunda acentuou tanto o efeito eletrizante
que, no primeiro instante, Bárbara não entendeu a que ele se referia. Já ia se trair avisando-o para não ser
presunçoso quando o viu apontando para a banheira. Morgan prontificava-se para esvaziá-la e não para
satisfazer-lhe o desejo supostamente presumido por ele, percebeu Bárbara.
De repente, ela sentiu o desejo tomar forma. Era apenas uma sensação delicada, como se uma onda azul,
acariciante, se espalhasse em seu âmago. Tantos fatores contribuíam para sua formação. O impulso
indulgente do banho, a surpresa da interrupção, o efeito de mostrar-se nua a Morgan, a atitude evasiva
dele, a certeza de que o general Ross, nesse ponto, já a teria sob ele, numa posse magistral.
Todavia, o maior estímulo ao desejo era não saber as intenções de Morgan para quando terminasse de
jogar fora a água do banho. Como a intenção dos outros homens de sua vida tinha sido óbvia, o
desconhecimento desse instante tornava-se estimulante e sedutor.
Ele levantou-se e tirou o paletó surrado que deixou no sofazinho. Deu uns passos pelo aposento na
direção geral da banheira, do fogo e de Bárbara. Cada vez mais surpresa, ela o viu desabotoar o colete e
a camisa. Despiu-os também, largando-os no chão. Ela afastou-se um pouco da banheira e viu a escova
de cabelo no mantel da lareira. Resolveu usá-la em vez de protestar contra o comportamento de Morgan,
ou pedir-lhe para cobrir-se. Escovar os cabelos foi a escolha mais acertada, pois enquanto o fazia, ele
explicou a atitude:
— Como é bom poder lavar-se em uma água que não seja gelada! — Ajoelhou-se ao lado da banheira e
começou a molhar o peito e os braços. — Embora você tenha se queixado da temperatura fria, para mim
ela está ótima!
Ocupada em prender os cabelos, Bárbara distanciou-se mais a fim de deixá-lo à vontade. Pelo barulho,
percebia que ele esfregava a cabeça, enxaguava-a e tornava a esfregá-la.
— E sabonete também! — exclamou Morgan, satisfeito.
— Se queria se lavar em água quente, por que não me pediu?
— Até ver você na banheira, eu nem imaginava que queria. Mais uma vez, parabéns por sua idéia
excelente para relaxar esta tarde.
Deixando-o entregue ao prazer da água morna, Bárbara dirigiu-se à área da cozinha a fim de começar o
jantar. Morgan, porém, também terminava o banho inesperado e pegava a toalha que ela deixara, outra
vez, na mesinha. Enquanto enxugava a cabeça, Bárbara ob-i servou-lhe o torso magro e musculoso. Viu,
sob o braço direito uma cicatriz larga e típica de queimadura, mas não teve muito tempo para olhar, pois
ele baixava a toalha para os ombros.
Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, ele virou-se e sorriu-lhe levando-a a retribuir o gesto.
Calado, Morgan vestiu-se e levou a banheira para fora, pela porta de trás. Para não formar uma poça
indesejável, ele teve o cuidado de jogar a água longe do caminho. Depois, encostou a banheira, em pé,
na cerca para secar. De volta ao interior da casa, enrolou o oleado e o colocou no canto, junto à mesinha.
Mal ele terminou, Sarah acordou com choro de fome. Bárbara largou a faca e os legumes para ir atendê-
la. Ergueu-a do berço e disse:
— Nós também estamos com fome, menininha! Mas já vi que você está disposta a atrasar nosso jantar.
— Enquanto cuida de Sarah,"eu me incumbo da comida. É só me falar o que devo fazer — ofereceu
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Morgan.
Bárbara aceitou e deu as instruções necessárias. Meio hesitante, levou alguns segundos para decidir onde
amamentar a criança. Mas se tinha tomado banho na frente de Morgan, por que iria para o quarto agora?,
refletiu com certa lógica, Além disso, achava mais confortável amamentar na cadeira de balanço.
Acomodou-se nela, pronta para satisfazer a filha.
Sentia-se relaxada, por causa do banho, e com uma certa expectativa em relação à companhia de
Morgan. A amamentação aumentava-lhe o bem-estar, pois aliviava a pressão nos seios.
Quando foi mudar Sarah de um para o outro, Morgan veio sentar se no sofazinho a sua frente. Ambos os
seios estavam expostos. Ele a fitou abertamente, com interesse, desejo, sem se mexer, ou falar. Bárbara
ainda ignorava as intenções dele, embora percebesse claramente o desejo. O desconhecido intensificou a
sensualidade de uma forma que ela nunca havia experimentado, forçando-a a pensar menos na criança
do que no homem a sua frente. Não se cobriu logo. Queria forçá-lo a agir, declarar-se, mostrar as cartas
como faziam outros homens.
Morgan quebrou o silêncio dizendo:
— Sabe, não posso deixar de pensar como você conseguiu coragem para provocar a morte do general
Ross.
Brava, Sarah sacudiu a mãozinha enquanto a boca procurava o mamilo. Bárbara mudou-a de braço, deu-
lhe o seio e enfiou o outro sob a camisa e a blusa.
Morgan estava disposto a provocá-la por mais algum tempo.
— Afinal, ele lhe deu a filha — acrescentou. Bárbara deu de ombros.
— O general me deu Sarah umas horas antes de ser morto. Naturalmente, eu ainda não sabia da dádiva.
O azul-escuro dos olhos de Morgan estava mais profundo do que nunca.
—- Ele a maltratava?
A pergunta apanhou Bárbara de surpresa. Com o bebê ao seio, a atenção de Morgan, o corpo desperto
pela sensualidade, ela lembrou-se dos detalhes íntimos daquela manhã com o general, a última vez em
que se deitara com um homem, tantos meses atrás. Ele tinha lhe feito muitas coisas, menos maltratado.
Sem querer, enrubesceu.
— Entendo — murmurou Morgan. — Você se arrepende do que fez?
Para essa pergunta, Bárbara sabia a resposta.
— Não. O general Ross merecia morrer.
Morgan arqueou as sobrancelhas.
— Devo tomar essas palavras como um aviso?
Bárbara prendeu a respiração. O desconhecido elucidava-se.

CAPITULO XVI

Bárbara resistiu à tentação de perguntar se era uma ' proposta. Preferiu dizer:
— Precisa de um?
Sorridentes, os olhos azul-escuros a fitaram.
— Isso depende de como morreram os outros homens de sua vida. Você teve coragem para provocar a
morte do general Ross e...
— Precisava vingar as perdas de minha família na Primeira Guerra de Independência — defendeu-se
Bárbara interrompendo-o.
— Ah, sim. Michael Gorsuch me contou que você perdeu alguns irmãos.
— Cinco ao todo. Antes de eu nascer.
— Justo, então. Digamos que o general merecia morrer. Jonas, eu sei, faleceu de um forte resfriado.
Quanto tempo estiveram casados?
— Dez anos.
— Bem, se quisesse matá-lo, teria feito isso muito antes de esse tempo todo passar. Portanto, eu a
inocento de qualquer maldade contra ele.
Morgan a provocava. Talvez flertasse, considerou Bárbara sem saber, exatamente, como era isso.
— Obrigada. É um conforto sua boa fé em minha bondade — ironizou ela.
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Acariciante e sensual, o olhar de Morgan prendeu o seu.
— Para mim, também é um conforto saber que você não matou seu marido.
Baixou os olhos e percorreu-os pela forma e pelo rosto da criança, pelos braços que a aconchegavam e
pelo seio exposto. O tópico sobre a possível participação de Bárbara na morte de homens de sua vida
destoava da cena de alimentação maternal apresentada por ela. Ao prosseguir, a voz grave de Morgan
soava tão acariciante e sensual quanto o olhar.
— Você me contou, não me lembro quando, que já era uma mulher perdida antes de se casar com Jonas.
E o homem que a desgraçou? Ou foram homens?
— Homem. Apenas um — garantiu ela com firmeza.
— Muito bem. O que aconteceu a ele? Continua vivo? — perguntou Morgan com um sorriso sedutor.
— Não faço idéia. De qualquer forma, eu não o matei e se ninguém mais o fez, ele deve continuar vivo.
— Uma pena! Era um salafrário das redondezas?
— De Baltimore. Filho de um negociante rico. Com certeza, tornou-se um também.
Morgan passou os dedos pelos cabelos úmidos.
— E deve ter ficado gordo — caçoou ele.
Bárbara riu. Imaginava o contraste entre um bem alimentado Jonathan Harlan e o faminto Morgan
Harris. Sentiu um novo impulso de desejo por esse homem de alma desnutrida. Surpreendia-se como
essa conversa, séria c frívola ao mesmo tempo, podia provocá-lo. Isso era flerte, concluiu, satisfeita.
— Provavelmente. Mas é rico, e como não era feio nos tempos de magreza, ainda deve ter jeito para
dominar as mulheres.
Morgan franziu a testa.
— Eu não imaginava que você fosse suscetível a aparências.
— Não, no caso desse indivíduo — declarou Bárbara.
— Então, você não sucumbiu a um rosto atraente, nem foi apanhada pelas lisonjas do filho de um
negociante rico?
Bárbara percebeu estar sucumbindo rapidamente à atração diferente do rosto de Morgan e sendo
apanhada por sua sedução incomum. Sarah já tinha terminado c ela a levantou, apoiando-a no ombro. Só
então, pôs o seio para dentro da camisa, fora do olhar de Morgan.
— Não, não foi uma submissão voluntária — respondeu.
— Mesmo assim, ele escapou de seu belo senso de vingança. Bárbara o fitou bem dentro dos olhos.
— Se eu, uma jovenzinha inexperiente naquele tempo, tivesse a coragem da mulher adulta de hoje, eu o
teria matado com minhas próprias mãos e satisfeito minha noção de justiça.
Levantou-se e deitou Sarah no berço.
Com o olhar, Morgan seguiu-lhe os movimentos.
— De fato, bem diferente de submissão voluntária. Se contava com aspecto atraente e a conta bancária
do pai, o sujeito não devia ser muito fino para não conquistá-la.
— Não passava de um grosseirão — disse Bárbara dirigindo-se à área da cozinha. — Além do mais,
comportava-se de maneira óbvia e não despertava o mínimo interesse — acrescentou por sobre o ombro.
Morgan levantou-se também e a acompanhou.
— Não me importo em ser óbvio, mas desinteressante, jamais! Isso é fatal! — Tirou a fita do bolso da
calça e amarrou os cabelos, já secos, na nuca. — Tenho minhas razões.
— Tem mesmo? — perguntou Bárbara.
— Estou com fome.
— Eu também — aventurou-se ela.
— O que posso fazer para ajudá-la?
— Ponha os pratos na mesa.
— Só isso?
— Por enquanto.
— Promete dizer se houver algo mais? — insistiu Morgan. Bárbara não respondeu logo. Ele estava
sendo óbvio e bem interessante.
— Prometo.
Morgan pôs não só os pratos como também tudo o mais. Antes de servir a comida, ela colocou os dois
castiçais com as velas acesas na mesa. Em instantes, sentavam-se um cm frente ao outro.
No início, conversaram sobre assuntos gerais e os trabalhos da fazenda. Bárbara tinha consciência de
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que, com a satisfação gradual da fome física, seu desejo por Morgan crescia. Achava surpreendente um
homem conseguir provocar tanta excitação e esperar um longo tempo. Graças a Morgan, ela descobria
novas dimensões desse jogo de expectativa e desejo.
Até os gestos mais banais, como passar a comida ou servir a sidra, aumentava-lhe o efeito da presença,
de seu desejo por ela tão interessante e controlado. Bárbara imaginava se uma posse violenta, provocada
por excitação desenfreada, seria horrível. Para surpresa, vergonha e aumento do desejo, concluiu que
poderia ser imensamente prazerosa.
Durante a refeição, ela resolveu mostrar como era boa aluna.
— Agora, me fale sobre os acontecimentos em Boston. Aqueles que afugentaram Jack Carter de lá para
North Point.
— Acontecimentos, ou mulheres? — indagou Morgan.
Por alguma razão, Bárbara não precisava tanto saber das mulheres deixadas para trás quanto da história
do novo homem em sua vida.
— Mulheres, não. Acontecimentos — repetiu. — Continuo confusa com o tal jogo na taverna e a
acusação de trapaça. Ela foi o ponto central do caso, concluí, e a razão para sua fuga.
Morgan sentia-se bem desde o momento em que tinha terminado de conversar com Michael Gorsuch, no
pátio da casa de culto. O panorama emotivo estendia-se firme sob seus pés. Logo a seguir, Bárbara havia
se aproximado, posto a mão em seu braço e fitado-o com expressão corajosa e inflexível nos olhos azuis.
Naquele instante, o carrinho iniciara, bem devagar, a escalada da colina.
Havia sido uma tarde extraordinária. Um pouco antes do almoço, ele fora salvo da descida horripilante
para o inferno. Enquanto voltavam, pela segunda vez, da casa de culto, ele havia quase se sentido feliz
ao poder admitir que a mulher morrera queimada. Ao contar o fato em voz alta, a mágoa não tinha mais
o travo amargo. Mais tarde, quando entrava em casa e via Bárbara no banho, a escarpa dera a impressão
de ser sólida e real.
A tração do carrinho mostrava-se boa e a velocidade, moderada, mas excitante. Embora não soubesse a
distância ate o topo da colina, ele não tinha pressa de chegar lá. A descida do outro lado devia ser
agradável, satisfatória e bem diferente da queda cega no horror sombrio experimentada naquela tarde.
Entretanto, a indagação de Bárbara o lembrou do momento em que o mestiço, com o rosto pintado,
bêbado e procurando briga, entrara na taverna. De repente, a antiga dor dilacerante e a sensação de
futuro roubado o dominavam. A terra sólida sob os pés estremeceu e rachou. Sentia-se entre dois
mundos e duas vidas. Continuava na encosta da colina, mas não sabia que direção seguia e se o carrinho
resistiria.
Morgan valeu-se da estratégia habitual para controlar o estado de espírito. Era-lhe fácil assumir o papel
de Jack Carter, o jogador mulherengo. Sorriu com ar misterioso e disse:
— Estava na hora de deixar Boston. Bárbara imaginou que ele ainda a provocava.
— E preferiu partir de maneira desonrosa?
— A indignidade cometida foi apenas superficial. Não saí com o dinheiro de ninguém, ganho
desonestamente, em meu bolso.
— Mas por que manchar a reputação? Não acredito que você tenha se envolvido, antes, em incidente
semelhante — argumentou Bárbara.
Apanhado entre dois mundos e duas vidas, com o solo sacudindo sob os pés, Morgan ouviu as palavras
escapar.
— É verdade. Mas eu nunca tive, antes, de proteger um rapazinho mestiço.
Surpresa, Bárbara lembrou-se do que achava ser um detalhe insignificante na narrativa colorida de Evan
Rollins sobre a última noite de Jack Carter em Boston. Contudo, antes de poder questioná-lo, Morgan
prosseguiu depressa:
— Para sair de Boston, eu precisava que um motivo indigno chegasse aos ouvidos da sra. Layton.
— Para que ela se considerasse com sorte por se livrar de você? O jogador charmoso, amante e fugitivo,
sorriu com sedução.
— Mais ou menos isso.
— Não surtiu o resultado esperado.
— Tem razão — concordou ele fitando-a.
Morgan continuava a provocar Bárbara, atraindo-a, esquivando-se, levando-a pelos meandros da
excitação e do desejo. Ela reagia magnificamente. Não a apressava, pois sabia intuir o quanto uma
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mulher precisava de. tempo e espaço para se deixar seduzir. Ele havia desenvolvido os sentidos como
medida de segurança para a própria preservação. Durante esses anos todos, quando a mágoa tornava-se
insuportável, havia aprendido perder-se no corpo de uma mulher a fim de conseguir alívio e resistência
para continuar vivendo por mais algum tempo.
No caso de Bárbara Johnson, havia adivinhado que ela nunca experimentara as delícias de uma
conquista, ou a sedução vagarosa e sensual. Embora ela não precisasse dele de maneira desesperadora,
ou o amasse cegamente, encontrava-se ali à disposição e muitíssimo desejável, de uma forma nova para
ele.
Ela havia sido violentada pelo filho de um negociante rico e dominada, mais de uma vez, pelo general.
Entre esses dois casos, calculava Morgan, Bárbara cumprira o dever de esposa sem ser afetada. Porem
nunca estivera com um homem que a excitasse e a levasse a dar o primeiro passo. Continuaria a ser
paciente, Ele próprio sentia-se seduzido e encantado com sua hesitação, dignidade, resistência e
perplexidade um tanto imatura.
Diante da expressão inequívoca de Morgan, Bárbara levantou-se, dominada pela curiosidade,
preocupação e desejo. Resolveu tirar a louça. Pegou seu prato e deu a volta pela mesa para apanhar o
dele. Quando estava bem atrás de Morgan, esticou o braço. Ele o segurou, puxando-a até seus seios o
tocarem nos ombros e o ouvido roçar-lhe a boca. Baixinho, murmurou:
— Vai ter de me dizer o que deseja de mim.
Meio perdida, Bárbara prendeu a respiração. Já ia responder uma bobagem qualquer quando ele lhe
acariciou o pescoço com o queixo e acrescentou:
— Não me refiro a ajudá-la a arrumar a cozinha.
A pressão no braço e a aspereza da barba de um dia, no pescoço, a fizeram estremecer. Da respiração
morna em seu ouvido, partiam línguas de fogo incendiando-lhe o corpo inteiro.
— Sei o que quer dizer, mas ignoro por que — sussurrou ela. Morgan afrouxou os dedos em seu braço,
mas não a soltou.
— Porque os outros homens abusaram de você — disse ele baixinho em seu ouvido.
— E mesmo? — Bárbara balbuciou, atônita e fascinada com a percepção de Morgan em relação à
verdade.
— Sim e eu pretendo mudar isso — afirmou ele calmamente.
— Tem certeza?
— Tenho. Quero que você experimente algo muito diferente comigo.
Isso já estava acontecendo, mas novamente, ela o questionou:
— Por que?
— Muito simples. Eu a desejo e quero que você me deseje.
— E...?
— Mais nada.
— Não mesmo?
— Você sabe o que quero dizer, eu acho, mas posso ser mais claro.
Bárbara sacudiu a cabeça, negando a necessidade de Morgan explicar que apenas o corpo, jamais o
coração, tomaria parte na experiência.
— O que propõe? — perguntou ela.
Os olhos azul-escuros de Morgan estavam baços de desejo.
— Eu? Nada.
O desapontamento de Bárbara estimulou a excitação. Morgan era excelente nesse jogo.
— Nada? — conseguiu murmurar.
— Nada, exceto sua vontade. Você propõe e eu obedeço.
A idéia de ser ela quem deveria desejar, iniciar, pressionar e consumar era absolutamente nova e isso a
deixava sem saber como agir. Recuou um pouco e ele a soltou imediatamente. Outra vez, ficou
desapontada, mas ao mesmo tempo, segura. Morgan fora sincero.
— Preciso de ajuda.
— Já é um começo — respondeu ele ao levantar-se e ficar a sua frente.
Curvou como se fosse beijá-la, mas não a tocou. Bárbara deu um passo para trás e ele se afastou,
recostando-se na mesa.
— Não foi um bom começo — reconheceu ela, trêmula e atônita com as forças que se digladiavam
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dentro de si.
O medo lutava contra o desejo e este com a parte de seu ser jamais dada a homem algum. Contudo, sabia
que Morgan não queria o que ela guardava sob proteção férrea. Almejava-lhe apenas o desejo a fim de
satisfazê-lo, como também saciaria o próprio com ela. Nada mais.
Gostava desse "nada mais". Na verdade, estavam na noite de núpcias, porém o casamento deles
realizara-se sob falsas intenções. Não existia nada entre eles além do desejo momentâneo. Isso o tornava
mais exacerbado. E mais excitante ainda era o fato de não ser ela a primeira mulher a se deixar seduzir
pelo excelente jogador de cartas.
Morgan resolveu ajudá-la.
— Gostaria de me beijar? — indagou, mas sem se aproximar. Bárbara observou-lhe os lábios
sorridentes e convidativos. Depois, olhou para o queixo sombreado pela barba por fazer.
— Beijar você? Isso iria arranhar minha pele.
— Nesse caso, talvez prefira me barbear — sugeriu ele. A idéia a agradou.
— Confia em minha mão passando a navalha por seu pescoço?
Morgan gostou da implicação de raiva e vingança femininas. Ela estimulava algo forte, profundo e viril
há tanto tempo adormecido.
— Um único movimento falso seu, retiro minha oferta de obediência — avisou ele ao aproximar-se,
mas sem tocá-la. — Será você quem obedecerá.
Bárbara ia caçoar perguntando se ele se arriscaria a ter a mesma sorte do general Ross, mas o brilho nos
olhos azul-escuros a fez mudar de idéia.
— Está dizendo que devo barbeá-lo enquanto tenho oportunidade.
— Enquanto a escolha ainda é sua — explicou Morgan. Não será por muito tempo, concluiu ela ao
notar a entonação
aço quente na voz dele, tão diferente da usada até agora nas provocações. Entretanto, como preferisse a
pele macia na sua, foi buscá-los apetrechos de barbear. Pôs tudo em cima da mesa, inclusive tigelinha
cheia de água quente. Em seguida, mandou-o sentar no banco, de costas para a mesa.
Satisfeito, ele obedeceu. Depois de afiar a navalha, Bárbara molhou a toalha na água quente e fez uma
compressa no rosto e pescoço de Morgan. O suspiro dele provocou-lhe uma reação intensa pelo corpo
inteiro, deixando-a em dúvida se conseguiria barbeá-lo, ou exigiria que ele lhe fizesse amor ali mesmo
no banco.
Retirou a toalha e começou a passar o pincel ensaboado pela pele, cobrindo-a de espuma. Morgan a fitou
com tal expressão que ela quase desistiu da tarefa para fazer a exigência. Todavia, prosseguiu. Quando
chegou a vez da navalha, ele fechou os olhos, levantou bem o rosto para a pele do pescoço ficar esticada.
Como estivesse com as pernas estendidas para a frente, dificultava os movimentos de Bárbara de um
lado para o outro. Sem abrir os olhos, segurou-a pela cintura e a pôs sentada, de lado, no colo.
— Para você não ter de rodear minhas pernas — explicou.
— Ah, ficou mais fácil.
— Não o suficiente — disse Morgan ao abrir os olhos e levantar-lhe a saia acima dos joelhos.
Com destreza, virou-a de frente para ele, colocando-lhe cada uma das pernas de um lado seu.
Ao ver-se montada em Morgan, Bárbara não conteve uma exclamação. Ele sorriu e convidou:
— Continue.
Naquela posição íntima, sentindo o calor de ambos unindo-se, ela se achava incapaz de prosseguir com a
tarefa iniciada. O desejo, como uma chama líquida, percorria-lhe o corpo inteiro, tornando difícil
empunhar a navalha com segurança.
— Não sei se posso continuar sem cometer um desastre — admitiu.
— Fique calma. Não vai me matar com essa navalha — garantiu Morgan, confiante. — Abriu os olhos e
a fitou com expressão ardente. — Espere, vou ajudá-la.
Tirou as mãos de sua cintura e percorreu-as pelos seios, ombros e pelas costas abaixo até as nádegas.
Puxou-a para bem perto do corpo de forma que o ângulo interno de suas pernas ficasse em cima do
penis. Então, segurou o pulso da mão que empunhava a navalha e murmurou:
— Firme, agora. Devagar. Movimentos longos. Assim. Pelo queixo. Agora, o pescoço. Isso mesmo. —
Com a outra mão, acariciava-a, movendo-a de encontro a ele, excitando-a de maneira irresistível,
inundando-a de desejo e expectativa. — Movimentos longos. Devagar. Para cima de um lado, para baixo
do outro. Está quase terminando. Pronto.
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Bárbara nunca tinha imaginado um despertar tão completo dos sentidos. O seu era absoluto e eles nem
tinham tocado a pele um do outro, ou começado a beijar. Queria terminar logo essa tarefa estimulante
para ter Morgan completamente. Tocou-lhe o rosto e o pescoço para ver se nenhum lugar tinha escapado
ao fio da navalha. Satisfeita, tornou a molhar a toalha em água quente e fez nova compressa. Com
movimentos acariciantes, aplicou-a.
Depois de pôr a toalha na mesa, Bárbara afastou-se um pouco para apreciar o trabalho. Morgan abriu os
olhos e ambos fitaram-se com alegria e satisfação mútuas.
Como ele havia lhe dado permissão para tomar a iniciativa, segurou-lhe o rosto entre as mãos e
encostou-o no seu. O gesto tinha o mesmo carinho dispensado à filha. Em seguida, afastou a cabeça para
fitá-lo com desejo e indagação.
Morgan assentiu com um gesto de cabeça. Ajudou-a a passar uma das pernas para junto da outra e os
dois levantaram-se ao mesmo tempo. Não se afastaram do banco. Embriagados, quase em transe, felizes,
surpresos, meigos, hesitantes, ansiosos, olhavam-se.
Encantada, Bárbara murmurou:
— E ainda nem nos beijamos.
— Já sim, uma vez hoje — afirmou Morgan.
Ela o fitou com ar de dúvida até se lembrar do fim da cerimônia de casamento e do beijo estranho e
vigoroso recebido.
As mãos de Morgan a tocaram nos ombros. A cabeça baixou sobre a sua, bloqueando o resto do mundo.
Finalmente, com promessas de paixão, os lábios se uniram.

CAPITULO XVII

Através de seus lábios, Morgan saboreou-lhe o vigor, o desejo e a carência simples por ele. Beijaram-se
demoradamente. Um beijo extraordinário. Forte em sua falta de reserva, dadivoso no cumprimento de
promessas, inédito em sua revivificação, antigo na evocação de um passado morto, mas não sepultado.
De certa forma, já não se tratava mais da sedução habitual para Morgan. Tinha feito tudo para Bárbara
querê-lo, mas seu desejo físico por ele não era mais suficiente. Não bastava a sedução fácil e vagarosa,
com a satisfação previsível e o esquecimento momentâneo da fome constante. Não bastava excitar uma
mulher e extinguir-lhe a carência do corpo com o dele ao mesmo tempo em que também se saciava. Ele
precisava ainda alimentar o coração, a alma.
Este beijo, com sua paixão, desejo e carência, era muito mais do que tinha esperado e querido. Demais.
Ou insuficiente. Não sabia. Estava entre duas vidas e dois mundos. Desabalado, o carrinho emocional
corria fora de controle e das experiências anteriores. Não percorria nenhum cenário geográfico
conhecido, nem mesmo a descida escabrosa para o inferno. Não obedecia as leis da física e ameaçava
explodir, desaparecer. Ele desejava sua perda, pois o carrinho carregava-lhe as emoções insepultas. Só
assim, ficaria livre, sem angústia.
Todavia, tinha de impedir, com firmeza, o desaparecimento do carrinho porque, quando ele despencava
encosta abaixo, causando terror, significava a única parte sua ainda viva. Ao sumir, não restaria nada.
Até recentemente, um mês, uma semana atrás, ou na véspera à noite, ele teria rezado para conseguir esse
"nada". Mas agora, não. O nada já não era mais suficiente.
Por que, de repente, surgia a vontade por algo cm lugar do nada?
A terra rachada continuava a tremer sob seus pés. Dois mundos e duas vidas colidiam. Não era apenas
uma escarpa vertical que lhe ameaçava o equilíbrio. Havia centenas de fendas e aclives verticais. Esse
choque entre dois mundos e duas vidas produzia uma geografia complexa. Com Bárbara nos braços,
sentindo-lhe o perfume, as curvas, o desejo, ele via a terra como um prisma colorido, cujas facetas
agudas o tolhiam, cegavam e confundiam. Com os lábios presos nos seus, numa oferenda extraordinária,
a terra tornava-se assustadora desejável.
Morgan sabia o que tinha acontecido, mas não como, exatamente. Os dois mundos haviam colidido
quebrando a superfície de ambos Na véspera, ao dizer que Jack Carter acabara, ele ignorava a extensão
da verdade da afirmativa. Jack Carter era filho de Jacques Cartier, homem rude e encantador que
ganhava a vida como caçador peles.
Com o pai, Jack Carter tinha aprendido a atrair e apanhar a raposa o lobo e o castor prateados do
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Canadá. E ainda as mulheres, numerando-as como as peles dos animais caçados. Jacques Cartier ainda o
havia ensinado a jogar cartas, beber, sorrir, encantar, vagar, caçar e viver do estômago para baixo.
Mas a vida aprendida com o pai não tinha sido suficiente. Ou melhor, fora excessiva. Brutal. Sem
propósito. Inconcebível. Ilícita!
Com Morgana, filha de Morgan Harris, a mãe com quem o pai nunca se casara, tinha aprendido a cantar,
amar e lavrar a terra.
Ao descobrir que estava grávida, a mãe tinha emigrado do Canadá para o oeste de Massachusetts. O pai
da criança, rude e encantador tinha rido divertido de seu estado. Ela batizara o filho de Jack Carter o
nome do pai em inglês. Ficara com ele durante os dez primeiros anos, mas não havia conseguido retê-lo
quando Jacques Cartier apôssara-se da criança rejeitada antes.
Ela havia chorado e suplicado para ficar com o menino. Argumentara ter direitos legais. Muitas coisas
estavam acima da lei, ele tinha alegado. Qualquer menino, após sobreviver a infância, pertencia ao pai.
Se a amorosa e delicada Morgana Harris queria tanto uma criança, Jacques Cartier lhe daria uma com o
maior prazer.
Essa fora a última vez em que Jack Carter, ainda menino, tinha visto a mãe. Nove meses depois, ela
falecia ao dar à luz uma menina , natimorta.
O filho amoroso e delicado de Morgana Harris cresceu e transformou-se no encantador e rude Jack
Carter que podia caçar, atrair e beijar. Havia tido duas vidas diferentes e nunca pensara em integrá-las
até ser atingido pelo coup de foudre, como os franceses chamavam o golpe súbito do amor. Estava com
vinte anos e era inverno quando se adentrou pelo território Iroquois, na perseguição de uma raposa
prateada que, muito esperta, escapava-lhe há dias. Então, avistou a jovem Iroquois e ficou fascinado. À
procura de frutas silvestres de inverno, ela havia se afastado de seu acampamento.
Ele a levou para sua barraca e a possuiu nessa noite. Na manhã seguinte, disposto a sujeitar-se às leis de
seu povo, acompanhou-a até seu acampamento. Nada poderia ser mais fácil do que abandonar o nome do
pai e adotar o do avô materno a fim de se casar com a moça, ou esquecer o mundo de Jack Carter e
abraçar o de Morgan Harris.
Todavia, nada poderia ser mais difícil do que voltar à pacífica região no oeste de Massachusetts, com
uma esposa indígena e um filho mestiço a caminho.
Após a fazenda ser destruída pelo fogo e sua pele marcada pelas chamas do preconceito, ele retomara a
vida de Jack Carter. Com algumas diferenças. Já não mais caçava animais de pele valiosa, nem seduzia
mulheres. Não precisava. Sabia conversar, sorrir, manejar as cartas. Elas o procuravam. Jamais olhava
para uma que não. o fitasse primeiro. Queria uma cujo interesse não fosse maior do que o seu. Não se
juntava a uma mulher que precisasse de seu cuidado e proteção, ou que lhe despertasse a mínima fagulha
de paixão.
Não existia antagonismo entre o mundo de Jack Carter e o de Morgan Harris. Mas separados, eles eram
incapazes de se comunicar. O sofrido fazendeiro Morgan Harris sabia apenas que o caçador Jack Carter
precisava domar sua paixão agressiva.
A paixão passiva de Jack Carter tinha lhe garantido o acesso à cama de muitas mulheres. Durante os
últimos quinze anos, existia sempre uma querendo capturá-lo entre as pernas e outra tentando prendê-lo
com as amarras do casamento. Passivamente, ele havia escapado de todas as armadilhas e laços.
Mas agora, ele beijava uma mulher forte, responsável pelo choque de seus dois mundos. Um dos homens
desejava possuí-la sem demora, ali mesmo no banco, ou no chão. Embora a idéia grosseira o atraísse, a
execução, não. Sem interromper o beijo, as carícias e o desejo, o poder desse homem empurrou-os ate a
porta do quarto. A cama estava a poucos passos. As roupas logo seriam despidas. A satisfação dos
sentidos não demoraria.
O outro homem em seu íntimo desejava levar Bárbara a querê-lo com mais intensidade do que ele. Mas
talvez fosse tarde demais para isso. Algo o fez esquivar-se dela. Ainda desejava possuí-la, porem já
havia desespero no desejo.
Ele não sabia mais que homem era quem, qual deles seguia em frente c o que recuava. Com movimentos
violentos, o panorama continuava a transformar-se a sua volta.
Um terceiro homem surgiu, familiar nos detalhes todos, mas não na composição geral. Esse homem
sabia que ele amava a mulher a quem beijava. Ela, porem, não lhe retribuía o sentimento da mesma
forma, pois não tinha razão para amá-lo como ele ansiava. Sabia que o caminho para a conquista de seu
amor não era através da união física, embora esta saciasse a carência de ambos.
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A antiga agressividade inflamou-se. A passividade provocada retaliou. Os dois impulsos anularam-se
mutuamente, deixando-o com o corpo inteiro estimulado, os lábios, o coração, o estômago, o cérebro,
todos os órgão, exceto o entre as pernas. O menos e o mais importante! O menos governável. O mais
ingovernável.
Impuissant ! um dos homens em seu íntimo percebeu, horrorizado.
Impotente! o outro identificou com um alívio curioso.
Ele soltou um pouco os braços e interrompeu o beijo a fim de afastar a cabeça e fitá-la. O coração
confrangeu-se ao contemplar os lindíssimos olhos azuis que se abriam devagar. Lembravam águas de
um lago encantado onde ele poderia purificar os velhos ferimentos, matar a sede, submergir sem se
afogar, deixar-se envolvei sem sufocar.
O desejo por ela não havia passado, ao contrário, aumentado. Contudo, o corpo ainda não estava ligado à
alma e o membro não se estimulava com seu apetite animal por ela. O olhar devia revelar a dificuldade
física, pois Bárbara o fitou com um misto de perplexidade e compreensão.
Ele não se sentia constrangido pela condição, mas culpado e fora de foco. Já ia dizer algo, jamais
mencionado a outra mulher, quando várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Mais tarde, ele não
saberia explicar a ordem em que tinham ocorrido.
Sarah acordou e começou a chorar. Bárbara virou-se para o berço e suspirou.
Num gesto rápido, Morgan pôs o dedo sobre seus lábios num aviso de silêncio. Ao mesmo tempo, Bolso
levantava a cabeça ganindo amedrontado.
A porta da frente escancarou-se sob o impacto de um pontapé violento e um grito ensurdecedor cortou o
ar. Podia muito bem ser esse barulho todo que acordava Sarah e assustava Bolso, pois tudo ocorria
simultaneamente.
Num ímpeto, Bárbara correu para o berço e tomou a filha nos braços a fim de proteger seu bem mais
precioso, ou morrer tentando. Virou-se ainda a tempo de ver a porta balançando-se nas dobradiças
entortadas.
Bárbara nunca tinha visto a criatura que entrava aos gritos. Cobria-se de peles de animal, tinha o rosto
pintado com cores vivas e penas de pássaros enfiadas nos cabelos.
As veias de Morgan ainda pulsavam com a energia preservada. Alerta e pronto para defender o ataque,
sentia-se curiosamente preparado para esse choque. Não precisou mais do que um relancear dos olhos
para notar os detalhes amedrontadores da criatura e a faca longa em sua mão.
— Jaeques Cartier! — bradou o estranho.
O nome intensificou o estado de alerta dos sentidos de Morgan. Entre as várias imagens surgidas na
mente, estava a do mestiço, embriagado e à procura de briga, que tinha entrado na taverna Kelly's menos
de uma semana atrás.
— Morgan Harris! — gritou a criatura com desdém.
Morgan lembrou-se de Evan Rollins dizer que mais dois homens o procuravam. Um, o jogador rival,
provavelmente fora afastado pela informação segura daquele de que Jack Carter não seria encontrado em
North Point. O outro, este com toda a certeza, não se deixara enganar, pois sabia seus dois nomes.
Morgan não lhes negaria a verdade. Com cada célula do corpo vibrando, a virilidade fluindo nas veias,
ele deu um passo à frente. Embora desarmado, não temia a criatura apavorante. Abaixou-se uni pouco e,
com as mãos levantadas prontas para o combate, começou a mover-se de lado, em direção à área da
cozinha. Mesmo sem olhar para a mesa, lembrava-se do lugar onde estavam a faca de pão e a navalha de
barbear. O instinto de caçador surgiu para ajudá-lo a avaliar os pontos fracos da criatura e o ponto exato
de seu pescoço em que deveria cortá-lo.
Mas então, o estranho começou a falar. Morgan lembrava-se da língua. Não era francês. Tratava-se de
uma que não aprendera na infância, mas na juventude. Era...
— Vim para matar você, Morgan Harris — disse a criatura na tal língua, o idioma de um povo antigo,
orgulhoso, lindo e agonizante.
Morgan entendeu, porém não se lembrava das palavras para responder. Usou o francês.
— Meus ancestrais me protegerão contra os seus — declarou lembrando-se do prelúdio ritual de
combate.
Havia esquecido as palavras, mas não as formalidades.
— Não tenho ancestrais — disse o guerreiro quebrando a tradição e também abaixando-se, com as mãos
erguidas, e andando em círculo.
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— Então, você veio numa missão desonrosa — Morgan respondeu finalmente em Iroquois e satisfeito
por lembrar-se das palavras certas do ritual. — Você não terá como corrigir o erro.
Ele tinha ouvido a mesma coisa na manhã em que fora ao acampamento Iroquois, após possuir a jovem
indígena. O pai da moça, no início, havia lhe negado permissão para se casar com a filha, pois Morgan
se apossara do que não lhe pertencia. Ele tinha agido numa atitude ignóbil e desafiadora. Mais tarde,
quando a fazenda fora queimada e a mulher, humilhada e morta, ele tinha se lembrado das palavras do
sogro. A morte havia sido o resultado brutal de sua atitude desonrosa. O sogro estava certo. Não havia
como corrigir o erro e ele tinha ficado com uma vida vazia, sem valor algum.
Agora, entretanto, ele queria viver e estava disposto a lutar por isso.
— Vim para matar você, Morgan Harris, e não haverá desonra para mim — repetiu o guerreiro
circulando mais perto.
— Não cabe a você julgar onde está sua honra —- contestou Morgan com desdém pelo jovem que
desrespeitava os costumes antigos.
Sentia-se um adulto sensato, pronto para viver daí cm diante.
— Agora, cabe a mim julgar onde fica minha honra. Quero vindicar os ancestrais que me foram negados
pouco depois de meu nascimento.
Morgan quis insistir no ponto da missão desonrosa, mas não encontrou as palavras. Talvez nunca as
tivesse aprendido. O intruso prosseguiu de maneira cuidadosa, como se tivesse ensaiado milhares de
vezes o que dizer:
— Vindicarei meus ancestrais quando tiver matado você que me abandonou.
— Eu o abandonei?! — ecoou Morgan atônito e sem se importar por cometer o erro grave de repetir as
palavras do oponente.
— Sim. Você é o pai que não é pai, cujos ancestrais vindicarei quando o matar — declarou o guerreiro
sem piedade.
— Pai — balbuciou Morgan em Iroquois e com a maneira incerta de uma criança aprendendo a falar.
O rapaz estava mais perto e Morgan, estupefato, arregalava os olhos num reconhecimento absurdo. Não
sentia o mais leve traço de medo. De repente, vislumbrou sob a pintura do rosto, a poucos passos, traços
do seu próprio. As mesmas faces largas, o mesmo nariz aquilino, o mesmo porte da cabeça sobre o
pescoço, cujo ponto vulnerável já fora localizado como alvo da intenção assassina. Era o seu rosto que o
jovem guerreiro apresentava sob a pintura. Mas com uma diferença marcante. Os olhos tinham a cor e o
repuxado dos de uma jovem e linda Iroquois.
— O pai que não é pai, cuja alma se queimará — repetiu o jovem guerreiro com olhar feroz.
Morgan imobilizou-se e completou as palavras do ritual:
— Para que os ancestrais se libertem e protejam o filho sem pai.
Ainda sentia o corpo cheio de vitalidade e, de maneira surpreendente, tinha pouca dificuldade em
compreender o impossível. Numa fração de segundo, sua percepção do mundo mudava
irrevogavelmente. Sem a mínima sombra de dúvida, via o rapaz, seu filho, com pouco mais de dezesseis
anos, disposto a anular a desonra com a qual se deparara a vida inteira. Morgan observou o rosto do filho
e seguiu um arabesco pintado de vermelho que, partindo do nariz, atravessava a face, atingia o lado da
orelha e descia pelo pescoço. A pintura terminava onde iniciava uma cicatriz de queimadura que devia
continuar no peito. Ela se parecia com a sua sob o braço e Morgan foi tomado pelo mesmo desespero
daquela noite distante.
Voltou a sentir as chamas entre o peito e as costas. Então, ouviu uma criança, seu filho, chorar de dor e
desamparo. Sofria a própria queimadura e a do filhinho imaginado morto no incêndio, mas que escapara
com vida. Trazia as cicatrizes como prova do fato. Não o questionou para saber como havia se salvado e
as perguntas ignoradas triplicaram o fogo em seu íntimo. A dor queimava, mas não se consumia.
Transformou-se em angústia. Quase intolerável. E das chamas dessa angústia inextinguível, surgiu o
pensamento claro e objetivo. Mil vezes, eu teria dado minha vida para que meu filho vivesse. Agora,
preciso dá-la apenas uma.
Morgan estendeu as mãos com as palmas viradas para cima. A cabeça erguia-se com orgulho e o queixo,
levantado, deixava a veia jugular desprotegida. Sentia-se feliz por ter salvado o rapaz, seu filho, através
de uma atitude reprovável, mas da qual se orgulharia ao morrer. Dava-se conta de que ele tinha ido à
taverna Kelly’s para matá-lo. Caso houvesse conseguido o objetivo lá, num salão cheio de homens
brancos, teria perdido a vida também.
72
Morgan mal conteve as lágrimas de felicidade. Controlou-se. Não se degradaria, nem banalizaria a
ocasião. Sorriu demonstrando boa vontade e compreensão. Finalmente, o erro ia ser corrigido e ele
encontrou as palavras certas do ritual.
— Faça o que deve. — Queria muito acrescentar "meu filho” mas sabia não ter esse direito. Disse então
— Laurence Harris.
Mais palavras seriam desnecessárias. O jovem guerreiro não tinha idade, ou experiência, para aceitar o
convite com propriedade, porém isso não perturbou Morgan. O filho levantou a faca bem acima da
cabeça. Em seguida, abaixou-se a fim de pular com impulso necessário para cravar a lâmina no pescoço
de seu mais ignóbil inimigo.
Bárbara não fazia idéia do que acontecia entre os dois homens.
Mesmo se soubesse traduzir as palavras, não a entenderia a situação: Calculou, corretamente, que o
invasor de sua casa era o mesmo da taverna Kelly"s e o causador dos acontecimentos responsáveis pelo
aparecimento de Morgan na fazenda. Podia também compreender o significado da coreografia pavorosa
que testemunhava. O rapaz pretendia matar Morgan e este ia permitir.
Jamais tinha visto um ato de coragem como o de Morgan. Lindo e extraordinário. Para ela, foi um
momento de transformação. Mesmo se nunca mais pudesse cometer uma ação de valor na vida, agiria
para salvar-lhe a vida.
Antes de formar um plano de ação, correu até a mesa e apanhou a navalha. Nem se deu conta de que,
com o outro braço, carregava um bebezinho assustado e chorando. No instante em que o invasor
levantou a faca, alvejando o pescoço de Morgan, ela avançou até os dois e, brandindo a navalha no ar,
gritou em tom ameaçador:
— Não se atreva a atacar meu marido!

CAPITULO XVIII

O brilho da navalha, o movimento brusco e as palavras enérgicas de Bárbara desviaram a atenção do


jovem guerreiro. Ele relanceou o olhar para avaliar o ataque lateral e perdeu a precisão do golpe. A faca
não cortou o pescoço de Morgan, mas atingiu-o no ombro, descendo para o peito, acima do coração e da
axila, indo ate a parte superior do braço.
Sob o impacto, Morgan caiu ao chão com o filho sobre ele. O rapaz tinha perdido e equilíbrio, mas
recuperou-se logo, rolando para o lado. Na queda, derrubara a faca e Bárbara,
depressa, chutou-a para longe. Numa fúria incontrolável, ela encarou a criatura que viera para matar
Morgan. Sacudia a navalha, vociferava e dava pontapés no rapaz ainda caído no chão. Mal podia ouvir a
própria voz acima do choro de Sarah e do ganir de Bolso.,
— Saia! Fora de minha casa, seu assassino! Não tenho medo de você! Sou capaz de matá-lo! Saia
enquanto pode!
Um dos pontapés acertou-o nas costelas e ele gemeu alto. Levantou-se gritando e gesticulando como se
fosse atacá-la. Dominada pela raiva, Bárbara o desafiou:
— Se der mais um passo em minha direção, terá de me matar e à criança! Vamos, tente!
Fitou-o bem dentro dos olhos negros. Ele observou Sarah e não escondeu uma ligeira hesitação.
Percebendo, ela tornou a brandir a navalha.
Sem nem mais um som, a criatura pintada virou-se e saiu com a mesma velocidade com que tinha
entrado. Após alguns segundos, Bárbara ouviu o relinchar de um cavalo, seguido pelo tropel que se
distanciava aos poucos.
Correu para o lado de Morgan. No caminho, largou Sarah, que ainda soluçava, no berço. Ajoelhou-se e
colocou a cabeça dele no colo enquanto murmurava, aflita: — Meu Deus! Meu Deus, Morgan!
Ele tinha os olhos fechados, respirava com dificuldade e gemia de dor. O sangue corria do ferimento
sujando a roupa de ambos. Ela examinou o corte e Morgan encolheu-se ao sentir o toque dos dedos. O
talho longo era regular e profundo apenas no início. Não seria fatal se recebesse cuidados certos e
imediatos, considerou Bárbara.
Com esforço, pôs a cabeça e ombros de Morgan outra vez no chão e foi buscar fraldas limpas. Ele estava
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perdendo muito sangue e era preciso estancá-lo. Sem se atrever a usar muita pressão, apertou o pano
sobre o ferimento e trocou-o tão logo ficou encharcado. Continuou nesse processo por algum tempo.
O vento entrava pela porta aberta, o fogo estava quase apagado, Sarah ainda chorava, Bolso andava a
esmo, o ferimento continuava a sangrar e a cabeça de Bárbara latejava.
Pense! advertiu-se. Não desista! encorajou-se. Em primeiro lugar, as coisas mais importantes, repetiu
várias vezes ate resolver quais eram elas.
Morgan começava a tremer de frio. Bárbara levantou-se do chão e foi apanhar o martelo na caixa de
ferramentas. Tentou e conseguiu endireitar as dobradiças da porta o suficiente para fechá-la. Passou a
tranca e encheu as rachaduras maiores da madeira com trapos. Em seguida, trancou também a porta de
trás. Foi então, a vez do fogo. Reavivou-o primeiro e, depois, colocou mais lenha.
Tanto Sarah quanto Bolso, levados pela exaustão, começavam a aquietar e Bárbara, menos agitada,
voltou a cuidar do ferimento Morgan.
Depois de acomodar-lhe a cabeça no colo outra vez, trocou a fralda encharcada por outra seca.
Permaneceu ali até não suportar ais a dor nas costas e nas pernas. Pensou em arrastar Morgan até quarto
e tentar deitá-lo na cama, mas isso só aumentaria a hemorragia. Também não se arriscaria a ir buscar um
médico. Não seria sensato deixar Morgan sozinho, pois o rapaz poderia vê-la sair e voltar a fim de
terminar o serviço começado. Embora a respiração dele não fosse mais ofegante, os gemidos
continuavam. A dor devia ser intensa. Ele estava meio inconsciente e murmurava palavras
incompreensíveis o tempo todo. O cansaço e o desânimo de Bárbara já se tornavam insuportáveis
quando seus olhos caíram nos instrumentos pendurados na parede. Teve uma idéia brilhante.
Novamente, pôs a cabeça de Morgan no chão e, animada, disse:
— Você vai ficar bom. Vou consertar esse seu ferimento. Levantou-se e foi examinar os instrumentos
para ver o que tinha as cordas de cutgut mais longas. Resolveu-se pelo banjo.
— Eu o conheço há muitos anos, meu velho, mas você não é o tipo de instrumento preferido por
Morgan. Meu pai vai se revolver no túmulo, mas seu sacrifício valerá a pena — murmurou ela ao pegá-
lo.
Bárbara ferveu água, apanhou a cesta de costura e remexeu armário de cozinha até encontrar uma velha
garrafa de conhaque. Era do tempo de Jonas, estava pela metade e a rolha já tinha sido um tanto corroída
pelo álcool. Ela respirou fundo e tentou se convencer de ser capaz de executar a tarefa necessária.
De volta ao lado de Morgan, ajoelhou-se e começou a falar a fim de tranquilizar não só a ele como a si
mesma também:
— Sabe, vou ter de costurá-lo. Não se preocupe, pois estou usando a corda do banjo. Naturalmente, é
uma judiação estragar um instrumento tão bom, mas antes ele do que o violão, não acha?
Enquanto isso, cortava a corda e a limpava com uma fralda embebida em conhaque. Fez o mesmo com
uma agulha antes de enfiá-la.
— Sei tecer melhor do que costurar, mas vou tentar fazer um bom serviço nesse corte e em poucos
minutos. Você vai ficar agradecido.
Obrigou Morgan a beber uns goles de conhaque. Ele tossiu e resmungou, porém acabou engolindo o
líquido ardente como fogo. Quando não mais gemia, talvez não mais consciente da dor, Barbara suspirou
aliviada.
— Você só vai sentir a agulhada inicial. Depois, se acostuma. Preciso de toda a minha coragem e de
resolução. Pronto. O pior já passou. O primeiro ponto saiu muito bom. Vamos ao segundo.
Suas mãos tremiam. Devagar, dava pontos pequenos, uniformes, rindo e chorando alternadamente a cada
um deles. Queria que Morgan sofresse o menos possível e só dessa vez. Se ficasse firme, a sutura não
teria de ser refeita.
— Se isto aqui der certo, você vai poder sair do chão e ir para a cama sem perder sangue. Não é uma
idéia convidativa?
Entre suspiros e murmúrios, continuou dando os pontos.
— Olhe, Morgan, já estou passando da metade.
O cutgut acabou e ela teve de enfiar outro pedaço na agulha. Durante essa pausa, Morgan empalideceu
muito e ficou imóvel. Pensando que tivesse morrido, Bárbara estremeceu. Pôs a mão sobre o coração
dele e mal sentiu as batidas. Estavam fraquíssimas. Aflita, sem saber o que fazer, massageou-o ao longo
do peito até os pulsos e juntas dos dedos estalar.
— Judiei demais de você nessa primeira metade. Estava ansiosa, mas já me acalmei. Vou fazer o resto
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mais devagar. A parte mais profunda do corte está suturada e a hemorragia, praticamente, parou. Não
acha ótimo?
Aos poucos, a cor voltava ao rosto de Morgan e Bárbara respirou aliviada. Tinha dito a verdade quanto
ao sangue parar de correr e a parte mais perigosa estar terminada. Por isso, acrescentou cm voz severa:
— Você não corre mais o perigo de morrer, Morgan, e nem existe razão para isso. Aposto como não
sente mais os pontos, pois daqui para a frente, o corte não passa de um arranhão. Quando se sentir
melhor, vai ter de me explicar o que aconteceu aqui esta noite. Naturalmente, vou esperar com paciência.
Amanhã, depois de eu lhe dar um caldo de carne suculento, você poderá contar tudo. Bem alimentado,
se sentirá muito melhor e será capaz até de tocar violão.
Quando as mãos começaram a fraquejar, Bárbara tentou se encorajar dizendo:
— Estou quase terminando. Só mais uns pontinhos no braço. Vai ficar tão bom quanto antes, apesar da
cicatriz. Pronto! Acabei!
Foi preciso um grande esforço para não apoiar a cabeça nas mãos. Estava exausta, mas resistiu à onda de
fraqueza e alívio que a dominava. Observou o trabalho e surpreendeu-se com sua precisão. Uma vontade
histérica de rir a assaltou. Não podia se submeter a ela, pois ainda restava muita coisa para fazer.
Devagar, levantou-se da posição forçada e mantida por tanto tempo.
Empurrou o berço até o quarto, onde acendeu o fogo na lareira e preparou a cama para receber Morgan.
De volta ao outro aposento, providenciou água e comida para Bolso. Só então, entregou-se tarefa difícil
e delicada de remover Morgan do chão para a cama. Vezes incontáveis, chegou à beira do fracasso.
Certa de que os músculos não aguentariam mais puxar, ou empurrar, o corpo pesado, ela pensava em ir
buscar travesseiros e cobertas e deixar Morgan dormindo no chão. Mas ao lembrar-se do aconchego da
cama e de como poderia confortá-lo a noite inteira, encontrava forças para prosseguir.
Quando, finalmente, conseguiu levá-lo até junto da cama, despiu-o, limpou-lhe o corpo com a camisa
estragada e, com grande dificuldade, vestiu-o com o camisolão de Jonas. Tudo isso, além de levar um
tempo enorme, minou-lhe o resto das energias. Num tom desconsolado, mas amoroso, disse:
— Morgan, você vai ter de ficar em pé. De forma alguma, posso carregá-lo do chão para a cama. Sei que
estou sendo malvada, mas não tenho escolha.
Ou ele a ouviu e foi, fisicamente, capaz de atendê-la, ou uma nova onda de energia a dominou. Ao
colocar a mão sob o braço bom a fim de ajudá-lo a se levantar, Morgan soergueu-se o suficiente para
cair, atravessado, em cima da cama. Não foi mais tão difícil ajeitá-lo sob as cobertas, a cabeça apoiada
no travesseiro.
Quando voltou à área da sala para reavivar o fogo da lareira deparou-se com o chão imundo de sangue.
Sabia que, se não lavasse, não conseguiria fechar os olhos a noite inteira sem ver mancha horrível.
Passou-se quase uma hora inteira antes de esvaziar o balde de água pela última vez e guardar o sabão, a
escova e pano de chão. Quase esqueceu a lareira, mas acabou enfrentando última tarefa.
Durante a limpeza do chão, Bárbara ia, com frequência, verificar o estado de Morgan. Como continuasse
dormindo e não mostras sinal de febre, ela resolveu preparar-se para a noite e deitar. Despiu as roupas
sujas de sangue, amontoou-as sobre as dele no chão vestiu a camisola. Ao enfiar-se sob as cobertas, não
conteve o misto de gemido e suspiro. Tinha se esquecido como seu colchão era macio. Os ossos e os
músculos, exaustos pelo esforço enfremntado relaxavam finalmente.
Virada de lado, ajeitou Morgan de encontro a ela. Não percebeu reação alguma, tocou-o na testa à
procura de febre, mas achando a temperatura normal, examinou o corte com a ponta dos dedos. Não
tinha voltado a sangrar, porém a pele estava um pouco inchada entre os pontos. E então, procurou-lhe a
mão e entrelaçou os dedos nos seus.
Bárbara estava cansada, mas sem sono. A agitação passada a mantinha acordada. Os olhos abertos,
fixavam-se no teto e, depois de algum tempo e sem se dar conta de que falava, murmurou:
— Três visitantes em três dias. Mal posso acreditar.
Uma voz fraca e grave acrescentou:
— E o último nem bateu na porta.
Uma sensação de alegria a dominou levando-a a se esquecer do cansaço.
— Morgan? Deus misericordioso, você está consciente? — sussurrou, eufórica.
Tendo absorvido o fato de que ele voltara a si, Bárbara percebeu-lhe o gracejo.
— Ah, esse último não tinha um pingo de boas maneiras. Sabe, vou ter de substituir a porta — brincou
também.
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Ele fez um leve movimento de cabeça concordando.
— Quem é ele? — perguntou Bárbara, preocupada com o ataque e com uma ponta de curiosidade.
Além de ter gasto muita energia com o comentário anterior, Morgan sentia a cabeça latejar de dor. Com
enorme dificuldade, respondeu:
— Meu filho.
A revelação a deixou perplexa. O filho queria matá-lo? Por esse motivo, fugira de Boston? Isso não fazia
sentido, pois Morgan se mostrara disposto a ceder ao impulso assassino do rapaz. Pelo que tinha
aprendido a seu respeito nesses poucos dias, ele era um homem solitário, sem família.
— Você sabia que tinha um filho?
— Não.
— Tem certeza que é pai do rapaz?
— Tenho. — Fez um esforço e explicou: — Tive um, uma vez. A história era fantástica. Bárbara
lembrou-se de ter vislumbrado alguém escondido na mata e espionando a casa de culto. Mas não fora o
suficiente para identificar a pessoa como o invasor selvagem dessa noite.
Um índio selvagem. Seria o mestiço que aparecera na taverna Kelly a quem Morgan salvara?
— Você teve um filho e o perdeu?
Morgan fez um gesto negativo com a cabeça.
— Ele fugiu?
Novo gesto, seguido por um suspiro de frustração.
Bárbara condoeu-se de Morgan, de seu sofrimento, das circunstâncias penosas que o tinham levado a
aceitar ser assassinado pelo próprio filho. Ela o tinha deixado angustiado com as perguntas. Podia
esperar a noite inteira pelas respostas. Ate pelo resto da vida, caso ele não quisesse lhe contar.
— Vamos deixar essa história para depois. É muito complicada, não é?
— E — balbuciou ele.
— Tudo bem, Morgan. Descanse agora. Você precisa de repouso — afirmou enquanto o acariciava e
beijava-lhe os cabelos com ternura maternal.
— Não, preciso saber — disse ele com dificuldade.
Bárbara preferia que ele dormisse, porém, percebendo-lhe a agitacão, perguntou:
— Precisa saber de alguma coisa?
Morgan respirou fundo e tentou reunir as energias.
— Preciso saber o que pensou sobre aquilo tudo — disse e bem devagar e dirigindo o olhar para o
aposento além da porta.
Bárbara entendeu o que Morgan tentava lhe perguntar. Sorriu pouco e o afagou nos cabelos enquanto
rememorava o momento que ele abaixava os braços e erguia o queixo para o agressor, uma atitude de
dignidade. Com toda a sinceridade, afirmou:
— Você foi magnífico.
Morgan ouviu as palavras como se estivesse tendo um sonho lindo. Bárbara não tinha ficado
horrorizada, aborrecida, ou confusa. Não. Ela o tinha achado magnífico.
Talvez ele tivesse morrido e ido para o céu. Havia pensado isso ao renascer em seus braços poucos
minutos atrás. Recobrara a conciencia ao sentir-lhe os dedos examinando-o com desvelo maternal
certificando-se de que tudo estava bem.
O primeiro contato com seus dedos, de que tinha consciência, que ao longo de uma linha áspera e meio
insensível, do ombro até a parte superior do braço, passando pelo peito acima da axila. A sensação fora
muito estranha. Ele levou outro momento para perceber, com admiração e numa nova dimensão de afeto
por Bárbara, O que ela devia ter feito após a agressão sofrida. A dor lancinante inicial, associada à da
sutura, voltou a dominá-lo por uns instantes. Depois, passou. Agora, as têmporas latejavam com um tipo
diferente de dor.
A tarde, ele a tinha considerado forte e corajosa. Mesmo assim,a subestimará.
Mas antes daquele momento, quando o toque de seus dedos o haviam trazido de volta à terra dos vivos,
existira um outro em que se sentia aconchegado em seus braços e em sua cama macia. A ultima
lembrança desta vida era o momento anterior ao que devia ter morrido. Portanto, ao ter se encontrado
nesta cama, aconchegado os braços desta mulher, parecera-lhe a recompensa celestial pela
atitude virtuosa e final. A ascensão fora o prêmio divino, tinha imaginado. A última vez em que se
deitara na cama de Bárbara Johnson,havia experimentado o estado impreciso do purgatório.
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Porem, ela o havia tocado, trazendo-o de volta a esta vida. Os minutos finais de consciência revolviam-
se na mente. Não sabia qual as experiências analisar primeiro, pois todas faziam parte do mesmo
emaranhado. Os fatos de haver escapado da morte certa, de o filho continuar vivo, de desejar algo mais
desta mulher do que seu corpo.
Achava-se vivo, em segurança e amparado. Tinha estado preparado para morrer, porem Bárbara o
salvara. De acordo com a lei iroquois, obedecida pelo filho, devia a vida a ela. Todavia, achava que
Bárbara não o queria nesses termos e nem ele desejava ser seu escravo. Afinal, não vivia pelos conceitos
dos Iroquois. Quanto ao filho...
Havia se sentido imensamente leve, como se criasse asas e voasse, ao saber que o filho estava vivo.
Ignorava se viria a saber como o menininho Laurence Harris tinha escapado do incêndio, mas tinha
certeza de que o milagre devia-se à intervenção divina.
Apesar da alma faminta, considerava uma gulodice indelicada desejar umas poucas migalhas da história
do filho, vê-lo outra vez e inteirar-se do que não merecia saber. Entretanto, sentia a fome marcada no
corpo como palavras, esculpidas na pedra. Uma mensagem fora cortada do ombro ao braço pelo filho.
Tinha sido respondida por uma mulher, em letras miúdas, ponto por ponto, numa revelação de coragem,
devoção e daquele algo mais pelo qual ele ansiava, mas não tinha esperança de encontrar.
Você foi magnífico, ela dissera. A forças que lhe haviam causado impotência foram destruídas num
único golpe. Ali estava ele na cama de Bárbara Johnson, em seus braços, alvo de um amor
extraordinário. Lembrou-se do desejo ardente por ela e deu asas á fantasia, imaginando como seria fazer-
lhe amor de maneira sincera, louca e apaixonada. Não lhe faltava a virilidade, nem estímulo emocional,
apenas energia física.
O novo Morgan Harris achou graça na ironia da situação. Teve vontade de rir, mas com medo de sentir
dor, controlou-se. Contentou-se em repetir o gracejo anterior:
— Aquele meu filho não tem modos.
Bárbara exultou ao notar a nota de bom humor.
— Nenhum! Quando ele aparecer de novo, você vai ter de lhe ensinar boas maneiras. Se você não fizer
isso, eu faço.
— Ele voltará?
Feliz e exausta, Bárbara suspirou e Morgan deliciou-se com movimento de seus seios.
— Não sei, Morgan. Mas se seu filho voltar, espero que não seja amanhã. Gostaria de passar um dia,
pelo menos, sem alguém aparecer batendo ou dando pontapés em minha porta.
A vontade de Bárbara seria atendida.

CAPITULO XIX

Como houvesse esquecido de fechar as cortinas, Bárbara deparou-se com a luminosidade azulada do
amanhecer ao entreabrir os olhos. No ar, flutuavam flocos pequenos da primeira nevada do ano.
Ela se sentia renovada após uma noite de sono, milagrosamente, não interrompido por Sarah. Mas a
filhinha já proclamava, em alto bom som, a fome sentida. Embora os ossos e músculos ainda estivessem
doloridos, Bárbara levantou-se lépida e de boa vontade.
Ao voltar para a cama com Sarah nos braços, a felicidade aumentou, pois Morgan estava ali. Era uma
alegria simples e pura o fato de vê-lo deitado ao lado, dormindo em paz o sono merecido.
Abriu a camisola e ofereceu o primeiro seio a Sarah. O movimento quase imperceptível das pálpebras de
Morgan chamou-lhe a atenção, virou-se e ambos trocaram um longo olhar, gratos pelo milagre que lhes
permitia ver um novo amanhecer.
Quando Sarah terminou o primeiro seio, Bárbara deu-lhe o segundo. Para os olhos de Morgan, a cena
continuava a ser de grande beleza. Ele respirava calma e profundamente. Às vezes cerrava as palpebras,
porém voltava a abri-las para se certificar de que a criança linda estava sendo amamentada. Mas Sarah
acabou se saciando e Bárbara pôs o seio de volta sob a camisola.
Dominada pela sensação de felicidade e contentamento, ela se virou e beijou a cabeça de Morgan. Ele a
fitou com expressão de quem desejava uma carícia mais significativa. Bárbara o atendeu. O beijo nos
lábios, amoroso e suave, com seus seios roçando-lhe o ombro e a criança entre ambos, quase foi demais
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para Morgan, quando se separaram, disse:
— Você é cruel.
— Por quê? — perguntou ela ao levantar-se para trocar Sarah.
— Por me beijar dessa forma sabendo que não posso fazer nada.
Já com os pés no chão e com um sorriso sedutor, Bárbara olhou por sobre o ombro.
— Você me provocou cruelmente ontem à noite, eu acho. Morgan sentiu uma ponta de constrangimento
ao lembrar-se de que teria sido incapaz de cumprir as promessas de amor apaixonado, caso não os
tivessem interrompido.
— Posso fazer melhor — garantiu meio sem graça.
— Não estou preocupada — disse ela.
O estímulo sentido por Morgan na junção das coxas era inconfundível, tranquilizante, glorioso e
frustrador ao mesmo tempo. Por um lado, sabia que poderia agir a contento, por outro, não ignorava o
quanto se prejudicaria, sem forçosamente, satisfaze-la. A expressão devia revelar os pensamentos, pois
Bárbara o fitava com severidade
— O que você precisa agora de manhã é de um bom caldo de carne. Mais tarde, veremos se pode comer
outras coisas.
Terminando de trocar Sarah e acomodá-la no berço, ela se vestiu, escovou e prendeu os cabelos, tudo
sob o olhar carinhoso de Morgan. Em seguida, apanhou a pilha de roupas sujas de sangue e comentou
antes de sair do quarto:
— Vou ver o que posso fazer com isto aqui. A camisa, já sei, ficou imprestável.
Embora sozinho, Morgan sentia-se contente. Da cama, deixou o olhar correr pelo quarto e pela paisagem
vista através da janela. A luz do amanhecer, os acontecimentos que o tinham trazido até ali as múltiplas
cicatrizações em seu íntimo, a própria vida o deixavam tão satisfeito que se sentiu forte o suficiente para
levantar-se a fim de atender às necessidades físicas.
No instante em que ficou de pé, foi dominado por uma dor de cabeça forte que lhe minou a pouca
energia restante. Percebeu ser impossível não só chegar até a porta de trás e sair como também não se
aliviar da pressão fisiológica. Em vez de se deitar outra vez resolveu ir até a janela, abri-la e urinar para
fora. Fez isso. Entretanto o esforço deixou-o completamente atordoado. Não fechou a janela e só
conseguiu chegar à cama aos tropeções. Tentou gritar chamando Bárbara, mas nenhum som saiu de sua
boca.
Felizmente, ela ouviu o barulho e correu ao quarto, onde fechou a janela depressa, antes de se aproximar
de Morgan a fim de verificar-lhe a temperatura. Ao senti-la normal, indagou:
— Se não estava com febre, por que abriu a janela? Ainda lívido, ele desviou o olhar.
— Funções do corpo — respondeu.
Palavras de censura quase escaparam pelos lábios de Bárbara, porem ela as refreou. Entendia a vontade
de Morgan de exercer controle, pelo menos, sobre uma parte do corpo. Viu, então, uma manchinha
vermelha no camisolão. Os movimentos dele deviam ter arrebentado um ponto. Munida de paciência e
tato, ela tornou-lhe o rosto entre as mãos.
— Tudo bem, Morgan. Mas da próxima vez, me chame para ajudá-lo a se levantar e abrir a janela.
Agora, deixe eu examinar o corte.
Os pontos estavam todos intactos e o sangramento fora mínimo. Limpou-o e já ia recomendar a Morgan
para tornar a dormir, mas não foi preciso. Enfraquecido, ele já começava a ressonar.
Algumas horas mais tarde, ele acordou e reconheceu os ruídos domésticos vindos do outro aposento.
Correu os olhos pelo quarto e não viu o berço. Era reconfortante saber que mãe e filha encontravam-se
do outro lado da porta. Há quantos anos não tinha a oportunidade de gozar do aconchego familiar?
A certa altura, o rosto de Bárbara apareceu no vão da porta. Ao vê-lo acordado, ela perguntou:
— Está com fome?
A um gesto negativo dele, sorriu e disse:
— Uma pena, porque eu preparei um caldo de carne e você vai ter de tormá-lo.
Ela desapareceu e voltou com uma tigelinha fumegante. Sentada na beirada da cama, começou a dar-lhe
pequenas colheradas do caldo. Com palavras de encorajamento, foi aumentando as porções.
— O apetite surge quando se começa a comer.
Morgan tomou uma boa parte, porém não conseguiu ingerir tudo. Bárbara não insistiu. Como ele
estivesse recostado nos travesseiros, ajudou-o a se deitar outra vez.
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Após amamentar Sarah no final da manhã e de almoçar, Bárbara levou o berço e a cesta de costura para
o quarto. Lá, puxou a grande mala de sob a cama, do qual tirou uma pilha de camisas e outra de calças
de Jonas. Largou-as num dos lados da cama e sentou-se na poltrona perto da janela, com a cesta de
costura à mão.
— Você não tem o que vestir quando se levantar daí, Morgan; Vou descer os punhos e mudar os botões
das camisas para que elas lhe sirvam. Quanto às calças, não sei ainda o que posso fazer.
Começou a costurar e o tempo foi passando num silêncio agradável. De vez em quando, Bárbara se
levantava ou para avivar o fogo da lareira, ou para cuidar de Sarah. Morgan cochilava
intermitentemente, mas mesmo sob o sono leve, não se desligava da presença de Bárbara. No meio da
tarde, despertou completamente e, um tanto inquieto, começou a flexionar as mãos e o braço bom.
Bárbara deixou o quarto, mas voltou logo depois trazendo o violão preferido por ele. Entregou-o
dizendo:
— Ontem, afirmei que você se sentiria melhor depois de se distrair com um pouco de música.
— É mesmo? Não me lembro — disse ele, com os olhos brilhando, ao pegar o instrumento.
— Está desculpado por não prestar atenção em mim naquela hora. Aliás, tive uma conversa fascinante
comigo mesma enquanto cuidava de seu ferimento.
Antes de tocar o primeiro acorde, Morgan apalpou os pontos do corte. Curioso, perguntou:
— O que você usou na sutura? Orgulhosa de si mesma, Bárbara sorriu.
— As cordas do banjo.
Morgan arregalou os olhos. Tinha um grande respeito por todo e qualquer instrumento. Em tom triste,
comentou:
— Sinto muito. Ele era uma peça linda e não merecia perder a voz.
— Valeu a pena o sacrifício.
— Obrigado — agradeceu ele após uns instantes. — De quem era o banjo?
— De meu pai.
— Jonas não tocava?
— Não. Nem os violões. Quando me casei, não tinha nada e só trouxe os instrumentos para cá. Jonas
jamais lhes deu valor.
Morgan não comentou. Recostado em travesseiros, apoiava o violão no peito e, naturalmente, não sentia
dificuldade em tanger as cordas com os dedos da mão direita. Os da esquerda, o lado afetado pelo
ataque, não enfrentavam grande movimentação. Ele tocava melodias esparsas, reunindo-as como
retalhos de uma colcha.
De repente, fez uma pausa e fechou os olhos. Deu-se conta de que a dor de cabeça havia passado.
Bárbara julgou ser esse o momento apropriado. Largou a costura e perguntou:
— E então, Morgan?
Ele abriu os olhos e a fitou, percebendo-lhe a intenção. Suspirou profundamente.
— Por onde começar?
— Pelo começo, claro.
— Ela era Iroquois — contou ele fixando o olhar no teto. Sem esperar, Bárbara sentiu ciúmes da mulher
exótica a quem Morgan tinha escolhido para se casar. Em sua vida anterior, antes de conhecê-lo, teria
rejeitado tal sentimento mesquinho. Agora, entretanto, aceitava-o e o compreendia como indicação de
seu amor por Morgan. Queria muito saber o nome da moça, porém não o indagou. Talvez ele preferisse
guardar parte da mulher para si mesmo.
— E morreu queimada — acrescentou ela ao lembrar-se do detalhe.
Morgan baixou os olhos do teto e a fitou. Avaliava sua culpa na morte da mulher.
— Foi irresponsabilidade minha levá-la para Massachusetts. Os fazendeiros vizinhos não gostaram. Não
queriam saber de uma indígena na área, ainda mais grávida.
— Por que irresponsabilidade?
— Eu sabia do preconceito e o ignorei. Durante um ano inteiro, não dei importância aos sinais de aviso
e às ameaças. Então, os homens apareceram e atearam fogo na fazenda.
Consequência previsível, refletiu Bárbara apesar de chocada.
— Você se culpa pela tragédia?
— Até certo ponto, sim, e durante esses anos todos. Podia ter sido evitada.
— Você não provocou o fogo — argumentou Bárbara.
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— Provoquei, sim, ao levar minha mulher para lá.
Bárbara sacudiu a cabeça.
— Isso é assumir uma sobrecarga pesada demais. Não ter preconceito não é defeito e sim, qualidade.
Você não poderia prever a violência gerada pela discriminação das outras pessoas.
Morgan não sabia se tinha, ou não, assumido uma parte pesada da sobrecarga. No momento, o
sofrimento parecia bem mais leve.. O alívio podia ser provocado pelo fato de saber que o filho
continuava vivo, embora isso causasse um tipo diferente de culpa.
Bárbara já tinha peças suficientes para formar o mosaico.
— Você achou que seu filho também havia morrido?
A voz grave de Morgan tinha um timbre de tristeza pela última perda, a da paternidade.
— Ele ainda era um bebezinho, com pouco mais de um ano. Engatinhava e começava a dar os primeiros
passos, mas durante todos esses anos, jamais imaginei que ele houvesse escapado com vida. Pensava que
estivesse no quarto com a mãe. Quando o fogo já crepitava e os homens foram embora, corri para salvá-
los. Era tarde demais, pois a cama fora a primeira coisa a ser incendiada.
— E aí, você se queimou também?
— Isso mesmo.
Bárbara sentiu um arrepio ao longo da espinha.
— Quantos homens eram?
— Cinco.
Sem poder fitá-lo, ela baixou os olhos para a costura no colo.
— Tem certeza do número?
— Absoluta. Fui arrancado da cama no meio da noite e forçado, antes de ser arrastado para fora, a ver o
primeiro homem violentar minha mulher. Depois, os outros quatro repetiram a brutalidade enquanto eu
era mantido seguro além da porta aberta. Eu conhecia cada um deles.
— Que possam queimar para sempre no fogo do inferno! — praguejou Bárbara.
— Seria minha esperança, caso acreditasse em um Deus justo.
Ficaram em silêncio por alguns minutos. Bárbara recomeçou a costurar e Morgan tangeu uns sons
melancólicos no violão.
— E seu filho, como se chama?
— Nós lhe demos o nome de Laurence, mas agora, não sei. Ele pensa que o abandonei.
Bárbara não acreditava nisso. Notando o ar cansado de Morgan.
Não fez mais perguntas. Ele dormiu e, quando acordou mais tarde, disse que precisava "ir até a janela".
Ela a abriu e o ajudou a se levantar. Em seguida, saiu do quarto, deixando-o á vontade por alguns
minutos. Retornou a tempo de acomodá-lo de novo na cama e de fechar a janela antes que o cômodo
esfriasse. Pouco depois, trouxe-lhe mais uma tigelinha de caldo de carne, mas dessa vez, com uns
pedacinhos de pão dentro.
A tarde já ia adiantada. O dia transcorrera em paz, reconheceu Bárbara. Morgan se recuperava e Sarah
mostrava-se de um comportamento exemplar. Mesmo assim, ela sentia uma ponta de ansiedade.
Nada mais natural após a invasão da criatura pintada e de sua tentativa de matar Morgan, ela tentou se
convencer. Não importava o fato de o rapaz ser filho da vítima. Gostaria de saber se a intenção de
assassinato tinha ficado satisfeita com a atitude da véspera. Contudo, não queria questionar Morgan
sobre pontos de honra dos lroquois. Um filho decidido a matar o pai mereceria uma segunda
oportunidade?
Bárbara não ia se arriscar. As trancas continuavam barrando as portas e as armas disponíveis, inclusive o
mosquete de Morgan e o bacamarte enferrujado de Jonas, ocupavam lugares estratégicos da casa. Volta
e meia, ela espiava pelas janelas à procura de algum movimento lá fora. Chegou ate a entreabrir a porta
de trás na expectativa de ver um rosto jovem e pintado entre a vegetação ressequida. Nada!
O sol foi baixando e, finalmente, desapareceu. Morgan melhorava com o passar das horas e, no jantar,
atreveu-se a experimentar alimentos sólidos, embora continuasse de cama. Quando precisou, outra vez,
"ir á janela", Bárbara ajudou-o novamente. Sentindo firmeza nas pernas, ele. andou pelo quarto.
Entusiasmado, resolveu passar ao outro aposento, onde examinou a porta estragada e prometeu fazer não
só outra como também novos batentes. Não querendo se exceder, voltou para o quarto e deitou-se. Ao
acomodar a cabeça no travesseiro, suspirou satisfeito.
Bárbara cobriu-o, cuidou de Sarah e, pela última vez, verificou a segurança da casa. Com as trancas, as
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portas não ofereciam perigo, porém as janelas poderiam ser arrombadas num abrir e fechar de olhos. A
ansiedade crescia. Estava cansada, mas relutava em ir para a cama.
Finalmente, deitou-se ao lado de Morgan. Ele respirava profunda e pausadamente. Nesse sono,
recuperava-se de quinze anos de sentimento de culpa, de tristeza pela perda da esposa, pela paternidade
frustrada. Deixava para trás uma vida de sofrimento e continuava a reestruturação da geografia íntima,
iniciada na véspera e que lhe daria coragem para continuar a viver.
Bárbara, entretanto, não conseguia relaxar, apesar de sentir-se bem em compartilhar a cama com Morgan
pela quarta noite consecutiva. Parecia-lhe certo e natural. Havia sido uma alegria vê-lo recuperar a cor, a
energia e o brilho dos olhos. Mesmo assim, a ansiedade crescia. Dormiu pouco e mal, mas não porque
Sarah demandasse cuidados. Pela segunda vez, a criança varou a noite sem acordar.
Ao abrir os olhos na manhã seguinte, Morgan viu o mundo sob uma luz diferente. Sabia, exatamente, o
que devia fazer. Embora o ferimento não estivesse cicatrizado, outro dia de cama não aceleraria o
processo. Experimentou mexer o braço esquerdo e percebeu logo suas limitações. Levantou-se e sentiu
firmeza nas pernas. Enquanto vestia as roupas reformadas de Jonas, que lhe serviram satisfatoriamente,
relanceou o olhar pela aliança. Notou que ela não estava mais tão apertada.
Depois de calçar as meias e as botas, aproximou-se do lado da cama de Bárbara. Num misto de fascínio
e amor, admirou a mulher linda e forte. Um desejo imenso por ela o invadiu. Estendeu a mão e tocou-a
no ombro.
Bárbara acordou e viu Morgan em pé a seu lado, com um brilho animado nos olhos azul-escuros. A
mente ainda entorpecida pelo sono procurou uma razão para ele despertá-la.
— Se pensa que vamos fazer aquilo agora, está... Morgan pôs o dedo sobre seus lábios e advertiu-a:
— Não faça barulho. Aquilo vai ter de esperar. Eu a acordei para ver seus olhos. Também quero avisá-la
de que vou passar o dia na casa de empregados, atrás do estábulo.
— Por que? — demandou ela com a mente desanuviada pela informação.
— Porque Laurence não virá a esta casa novamente, mas me procurará na outra, tenho certeza.
Como se fosse segurá-lo, Bárbara sentou-se depressa com as mãos estendidas.
Sorrindo, Morgan sacudiu a cabeça e escapou de seu alcance.
Deixou o quarto sem dizer mais nada.

CAPITULO XX

Bárbara levantou-se logo. Enquanto se vestia, tentou f se convencer de que a ansiedade era infundada e
não passava do resultado natural dos fatos perturbadores dos últimos dias. Contudo, não conseguia
livrar-se da sensação desagradável de espera, como se algo terrível estivesse por acontecer.
Quando saiu do quarto, deu por falta do sobretudo e do chapéu de Morgan no cabide junto à porta de
entrada. Iniciou as tarefas da manhã, mas com frequência, apanhava-se olhando para o espaço vazio ao
lado de seu casaco.
Bárbara esforçou-se por se distrair com o trabalho, mas de nada adiantou. A expectativa nervosa, num
crescendo, acabou por dominá-la, levando-a às janelas várias vezes e até a sair pela porta de trás para
inspecionar os arredores da casa. Ficou um pouco aliviada ao ver fumaça azulada saindo pela chaminé
da casa de empregados.
Numa das idas à janela, teve certeza de ver a vegetação se mexer ao longe, no início da estradinha a leste
da casa. Firmou a vista e imaginou vislumbrar um rosto atrás das moitas. Ah, era por isso que vinha
esperando, concluiu.
Sem pensar duas vezes, apanhou o casaco e vestiu-o. Só então, lembrou-se de Sarah. Ficou indecisa
quanto a levar a criança para o frio lá de fora, ou deixá-la no aconchego do berço junto à lareira da sala.
Na véspera, ao ir procurar Morgan na casa atrás do estábulo, não a tinha levado e nada lhe acontecera.
Além do mais, tendo acabado de ser amamentada e trocada, Sarah dormia tranquilamente. Na verdade,
corria menos perigo ali dentro do que lá fora. Caso se deparasse com Laurence, Bárbara não tinha
certeza se ele a pouparia como na noite anterior. Decidiu-se por deixar a filha no conforto e na segurança
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da casa.
Antes de sair pela porta de trás, Bárbara escondeu a faca de cozinha sob o casaco. Dirigiu-se à frente da
casa e, de lá, caminhou pela estradinha até seu início, onde tinha visto a vegetação mexer. Embrenhou-se
por ela, andando a esmo, na esperança de encontrar o rapaz. Nem sinal dele. Percebeu, então, estar
anunciando a presença com o barulho feito a cada passo. Apesar da neve fofa acumulada no chão, havia
muitos galhos secos que se quebravam sob seus pés. Voltou à estradinha, percorreu-a e examinou o
interior do telheiro. Convencida da futilidade da busca, concluiu ter imaginado os movimentos no mato.
Menos aflita, foi à casa de empregados e rodeou-a como se fizesse um círculo de proteção para Morgan
em seu interior. Novamente, pensou ver movimentos na moita, do lado oeste dessa vez. No instante
seguinte, teve certeza. Correu até a porta de entrada, bateu e entrou.
Morgan encontrava-se em pé, no centro do aposento, com olhar sereno fixo no teto. Baixou-o ao
perceber-lhe a entrada. Bárbara notou que ele havia se barbeado.
— Laurence está aí por perto.
— Eu sei.
— Você tem de fazer alguma coisa.
— Já estou fazendo ao esperá-lo — respondeu Morgan calmamente.
— Não. Você precisa se preparar. Olhe, trouxe isto — disse Bárbara tirando a faca de sob o casaco.
Morgan olhou para a lâmina como se fosse algo repugnante.
— Jamais usaria uma faca contra meu filho!
— Calculo. Fique com ela para impor medo, caso Laurence o ameace de novo.
— Ele não fará isso.
— Como pode saber? — perguntou Bárbara, exasperada.
— Simplesmente, sei.
Ela desistiu. Largou a faca na mesa e foi embora. A ansiedade igualava-se, em proporção, à calma de
Morgan. A situação era péssima. Ele estava fraco e não aguentaria outro ataque. Também não se
defenderia de um.
A racionalidade desapareceu e Bárbara entregou-se a um emaranhado de emoções. Sem razão alguma,
caminhou em várias direções, inclusive ao campo sul, sempre à procura de sinais de Laurence. Na
mesma busca,entrou no estábulo e surpreendeu-se ao verificar como Morgan tinha feito a maior parte
das tarefas matinais, apesar de contar apenas com um dos braços.
Saiu do estábulo e olhou para a casa de empregados. Não conseguiu se conter e voltou lá. Olhando pela
janela, viu Morgan, ainda em pé, com o mesmo ar sereno como se meditasse.
Sacudindo a cabeça, Bárbara afastou-se em direção de casa. Desejava que a angústia sufocante a
abandonasse e a deixasse respirar melhor. Caminhava de cabeça baixa a fim de ver onde punha os pés,
pois a mistura perigosa de lama e neve tinha aumentado muito. A poucos passos da porta de trás,
arregalou os olhos.
Havia mais de um par de pegadas indo dali para a frente da casa, ou seriam apenas as suas? A porta
estava entreaberta? Teria ela deixado-a assim? Quanto tempo ficara fora? Meia hora? Mais? Não
importava a duração exata, pois ela sabia ser o suficiente para...
Correu os últimos passos, rejeitando o temor pavoroso. No momento em que pôs o pé dentro de casa, a
ansiedade inexplicável, sentida desde a véspera, tomou forma definida. De repente, ela soube o que a
vinha perturbando. Com as emoções e cuidados focalizados em Morgan, ela não fora capaz de
identificar a causa da angústia. Sabia que seu maior pavor acontecera. Sabia que o berço estava vazio.
A certeza não a impediu de atravessar o aposento e ir verificar, com os próprios olhos, a perda da filha.
Cada célula do corpo estremeceu sob a dor profunda.
A corrente de certezas continuou. Sabia que o tenente Richards tinha aparecido ali durante sua ausência
oportuna. Ao descobrir Sarah sozinha, não resistira à tentação de levá-la embora. Sabia que a sra. Ross o
recompensaria regiamente. Estremeceu ao imaginar a bruxa linda e má sorrindo, carregando e beijando
Sarah, dando-lhe o sobrenome Ross.
Bárbara entrou em pânico e, por pouco, o mundo não escureceu. Salvou-a a lembrança de não estar mais
sozinha, de não precisar recorrer ao resto de sua reserva emocional para enfrentar a crise. Um nome
brilhou em sua mente. Morgan!
Morgan viu o filho entrar na casa de empregados. A expressão do rosto sem pintura era de orgulho e a
atitude, de desafio. Enquanto se aproximava, Morgan observou-lhe o semblante sombrio e determinado.
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Após uma noite e um dia de recuperação extraordinária na cama e nos braços de Bárbara, Morgan sentiu
o terreno interior nivelar-se, pronto para ser escavado. Imaginou as possibilidades de uma estrutura
espaçosa e linda tomar forma em sua alma. Iniciou o diálogo em francês.
— Você veio, Laurence.
O filho rejeitou o nome estrangeiro e declarou o indígena. Morgan sacudiu a cabeça.
— Não falo mais Iroqueis — explicou em francês.
O rapaz o xingou na língua nativa, provocando-lhe um sorriso.
— Não, mas ainda entendo — afirmou ao abrir a camisa e mostrar o ferimento. — Não posso lutar
contra você hoje.
— Nesse caso, minha vinda foi inútil — declarou o rapaz em íroquois.
— Não, de jeito nenhum. Você veio para me contar o milagre de sua vida. Ignoro tudo a esse respeito.
— Como o filho não respondesse logo, acrescentou: — Pelo que me lembro da tribo de sua mãe, os
jovens guerreiros falavam francês.
O rapaz deu um passo a frente brandindo os punhos.
— Que história é essa de não saber nada sobre minha vida? — demandou em francês, mas em tom
arrogante.
— Pensei que tivesse morrido no incêndio que lhe provocou essas cicatrizes na pele — explicou
Morgan.
— Então, admite o fogo?! — indagou Laurence arregalando os olhos.
— Claro! Ele continua a queimar em meu coração. Eu também carrego suas marcas sob meu braço.
— Você não sofreu queimaduras — protestou o filho. Morgan tirou a jaqueta, desabotoou o colete de
couro e puxou a nova camisa velha para fora da calça. Virando-se de lado, levantou-a expondo a cicatriz
avermelhada do lado do peito. Feito isso, arrumou as roupas novamente.
— No início, os homens que incendiaram a fazenda me mantiveram preso. Só quando as labaredas já
fugiam ao controle e tinham causado os danos maiores, eles me soltaram. Corri para salvar sua mãe e
você. Era tarde demais. Ela estava morta. Pensei que você também tivesse morrido.
— Você me largou com aquela mulher quando o fogo começou.
— Que mulher? — perguntou Morgan franzindo a testa. O rapaz não disfarçou a expressão de ódio.
— Aquela branca que me mandou de volta para meu povo depois do incêndio e de você fugir me
abandonando.
Embora perplexo, Morgan expressou-se com calma.
— Não sei de nenhuma mulher branca envolvida com o incêndio Sei apenas de cinco homens brancos.
Em sua ignorância cega, eles destruíram tudo que me era caro. Quase tudo, já que você se salvou. Um
verdadeiro milagre.
O rapaz estava decidido a contradizer cada palavra do pai.
— Milagre coisa nenhuma. Segundo a história que me contaram, eu acordei com os gritos, dos homens
ateando fogo e engatinhei para longe da casa. Você já tinha fugido. Uma mulher branca, senhora cristã,
havia ido ate lá para impedir o marido de cometer aquela atrocidade. Não conseguiu, mas me encontrou
com parte das roupas em chamas. Cuidou de minhas queimaduras e me mandou de volta para meu povo.
Uma mulher branca tinha salvado o filho?! Uma explicação simples assim? Seria possível? A mulher de
um dos homens que havia lhe destruído a vida? Confuso, só conseguiu dizer:
— Eu não podia imaginar que tivesse sobrevivido, Laurence.
— Você me abandonou! Sabia que eu tinha escapado do fogo e foi embora! Não me queria mais! Meu
avô me contou.
Naturalmente, Morgan ignorava que o filho tivesse se salvado, mas de fato, não havia ficado na fazenda
o resto daquela noite tenebrosa. Não queria ver tudo reduzido a cinzas. Se houvesse permanecido lá por
mais algum tempo, sua vida teria seguido um rumo diferente, percebeu, atônito.
— Não sabia que estava vivo. Laurence — repetiu. As acusações do filho continuaram a fluir.
— Você nunca voltou! Devia ter procurado meu povo para implorar perdão ao pai de minha mãe e me
pedir de volta! Você não fez nada!
Durante esses anos todos, jamais ocorrera a Morgan ir ao acampamento Iroquois. A ruína desse tempo
amontoava-se ao redor de seus pés. Tinha vivido um engano e a existência, agora, parecia-lhe
duplamente desperdiçada.
Enquanto tentava formular uma resposta para o filho, Bárbara irrompeu, em prantos, pelo aposento.
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— Meu Deus, Morgan! Ai, meu Deus! — soluçou agarrando-lhe as lapelas da jaqueta.
Ele fitou seu rosto angustiado. A primeira reação foi de aborrecimento. Não precisava, nem queria, sua
intervenção. Entretanto, deu-se conta de que ela não havia notado a presença de Laurence. Observou-a
melhor e pressentiu o que ela lhe contaria.
— Sarah sumiu! Foi o tenente, tenho certeza. Ela deve estar com a sra. Ross. Por que saí andando por aí
como se não soubesse que eles tentariam roubar minha filha? Isso vai alem de minhas forças! Nem
consigo pensar!
Bárbara fitava Morgan com o desespero de um náufrago lutando para não submergir. Quando ele
desviou os olhos dos seus para algum ponto atrás de si, fraquejou. De repente, ela sentia, ao longo da
espinha, a turbulência da tempestade emocional que sacudia o ambiente. Morgan, entretanto, mantinha
expressão serena, lembrando o olho do vendaval. Ainda agarrada a ele, virou-se devagar. Um
estremecimento de pavor percorreu-lhe o corpo inteiro ao deparar-se com uma réplica mais jovem de
Morgan.
Mas havia diferenças. Os ossos malares eram mais altos, os olhos, negros e a pele, sem pintura, tinha cor
de tijolo claro. Uma cicatriz mais avermelhada marcava-lhe o pescoço. Era quase tão alto quanto o pai e
transpirava o mesmo vigor.
Nesse instante de reconhecimento, sua extrema depressão emocional lhe deu um discernimento
impossível em outras circunstâncias. Já não via o rapaz como ameaça à vida de Morgan e sim como um
milagre extraordinário. Afastou-se do pai e aproximou-se do filho sem ter consciência de que
atravessava um abismo perigoso. Repetindo o gesto feito com Morgan, segurou as lapelas da jaqueta or-
dinária de Laurence.
— Você pode me ajudar — disse em voz veemente. — Contra todas as probabilidades, você achou seu
pai em Boston. Depois, seguiu-o até aqui sem perder seu rastro. Você percorreu centenas de quilômetros
e gastou muitos dias. Não lhe será difícil seguir o tenente Richards e a sra. Ross que roubaram minha
filha.
Com expressão perplexa, o rapaz não respondeu. Bárbara não esmoreceu. Tinha notado a determinação e
a firmeza de propósito dele. Queria usá-las a seu favor.
— Ao achar seu pai, você mostrou capacidade. Por favor, me ajude. Sei que pode — insistiu.
Morgan trocou umas palavras com o filho. Bárbara não as entendeu e lembrou-se das ouvidas na noite
anterior. A expressão de Laurence perdeu a perplexidade, embora se mantivesse sombria. Com ar
interrogativo, ela olhou para Morgan.
— Ele quase não entende inglês. Só fala francês e Iroquois — explicou o pai.
Bárbara não sabia nenhuma das duas, porém a força de sua angústia a levou a ignorar a diferença. Bem
devagar, repetiu:
— Por favor, me ajude. Não sei falar sua língua, mas isso não tem importância. Apenas me ajude. Por
misericórdia.
Morgan tornou a falar ao filho. Ao entender, o jovem Laurence Harris a fitou com desdém e orgulho.
Bárbara não perdeu o ânimo e enfrentou-lhe o olhar soberbo com um misto de meiguice e infle-
xibilidade.
— Sei que pode me ajudar a encontrar minha filhinha. Ela tem só cinco meses e foi roubada por uma
mulher má. — Fitou Morgan e disse: — Traduza, por favor.
Morgan a atendeu, porém a expressão de Laurence não mudou. Ela persistiu:
— Sei muitas coisas, mas não como encontrar minha filha. Entre outras coisas, sei que você foi
mandado por Deus. Traduza, Morgan.
Ele o fez. De nada adiantou. O semblante do rapaz continuou o mesmo, provocando nova onda de pavor
em Bárbara.
— Morgan, diga lhe que precisa me ajudar. Explique que você, ferido, não está em condições de ir atrás
do tenente Richards.
As dúvidas de Morgan sobre o valor de sua vida e ações dissiparam-se de repente. Bárbara o salvava
outra vez. Na véspera, fora o corpo e, nesse momento, a alma. Sua angústia e necessidade extremas
davam significado à existência dele. Via, claramente, como todas as experiências terríveis tinham trazido
não só a ele como ao filho também à porta de Bárbara. Laurence poderia ajudá-la de uma forma que ele,
fisicamente, não conseguiria.
Morgan sentiu o coração inflamar-se de amor pelas duas pessoas a seu lado. Saboreou o sentimento e
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descobriu que ele não tinha escarpas perigosas. Amor. Glorioso e abençoado. Humilde e humano. Os
alicerces de sua estrutura emocional aprofundaram-se e as paredes subiram ás alturas. Confiante, disse
ao filho.
— Se você ajudar esta mulher atribulada, minha vida será sua, Laurence.
De maneira consciente e de boa vontade, Morgan oferecia a vida em troca da de Sarah. Não se tratava de
uma permuta leviana, ou fácil, mas de uma que dava novo valor à existência.
Bárbara viu um leve brilho de interesse nos olhos do rapaz e apressou-se a aproveitá-lo a seu favor.
— Não há tempo a perder — disse puxando Laurence rumo à porta. — Você tem o resto da vida para
acertar as contas com seu pai. Agora, vai me ajudar a encontrar Sarah. Diga Sa-rah.
— Sa-rah — repetiu o rapaz.
Bárbara o encantou com seu sorriso raro.
— Mais tarde, você poderá me agradecer por haver salvado a vida de seu pai de suas mãos. Talvez sua
ajuda agora seja a recompensa. Traduza, Morgan.
— Intraduzível — respondeu ele.
— Não tem importância. Explique-lhe como são o tenente e a sra. Ross.
Esses detalhes, Morgan não teve dificuldade em traduzir. Já se afastavam da casa de empregados quando
Bárbara, aflita, viu Laurence embrenhar-se no mato.
— Ele vai indo embora, Morgan! Vá buscá-lo.
— Não. Ele foi pegar o cavalo e vai nos encontrar na estrada. Barbara respirou fundo e murmurou:
— Não sei se vou resistir.
— Sem sombra de dúvida, vai! —garantiu Morgan com olhar firme e voz confiante.

CAPITULO XXI

Bárbara e Morgan rumaram depressa ao telheiro. Lá, vendo-lhe a dificuldade Em atrelar o animal à
charrete, ela encarregou-se do serviço. Quando terminou, subiu e, com
as rédeas nas mãos, anunciou:
— Eu dirijo.
Morgan não protestou, mas sorriu ao acrescentar:
— E eu lhe direi o que fazer.
Seguiram pela estradinha E no fim, encontraram Laurence esperando-os. Morgan trocou palavras com
ele enquanto apontava para a estrada de Baltimore. Com olhar perspicaz, o rapaz observou o terreno à
volta deles e sacudiu a cabeça. Em seguida, apontou para Old Roads Bay e o rio Patapsco. Disse
qualquer coisa ao pai e partiu a galope naquela direção.
— Meu Deus, Morgan, eles vieram de barco! Já devem estar deixando a baía de Chesapeak. Logo
alcançarão mar aberto e eu nunca mais verei minha Sarah! — balbuciou Bárbara no auge da aflição.
— Não sabemos ainda que direção eles tomaram no rio, mas pelo menos, sabemos por que Michacl
Gorsuch, ou alguém lá da casa de culto, não nos avisou da chegada deles.
Bárbara respirou fundo e quase desmaiou. Mas determinada a enfrentar a tragédia com dignidade,
ergueu os ombros e a cabeça, j Após alguns minutos, explodiu:
— Estou apavorada, Morgan, morta de medo!
— Eu sei, mas meu filho e eu vamos ajudá-la. Deixaram-se envolver pelo silêncio e pelos pequeninos
flocos de neve que rodopiavam no ar. De repente, o filho de Morgan reapareceu. Seu ar de satisfação
levantou o ânimo de Bárbara.
— Não daquele lado — afirmou o rapaz apontando para onde o Patapsco desaguava na baía de
Chesapeak. — Daquele — acrescentou indicando a direção de Baltimore.
— Retornaram à cidade? — perguntou Bárbara respirando aliviada.
Laurence confirmou com um gesto de cabeça e, frustrado por não poder falar inglês, dirigiu-se ao pai em
francês. Depois de contar algo que fez Morgan franzir a testa, ele voltou pela Old Roads Bay.
— Meu filho descobriu o barco do tenente. E muito pequeno para enfrentar mar aberto. A sra. Ross não
está com ele, só os dois capangas. Sem dúvida, o plano é voltar a Baltimore para encontrá-la e, só então,
embarcarão num transatlântico. Laurence vai acompanhar o barco por terra.
— Impossível! Não existe uma única trilha estreita por lá que chegue a Baltimore! — gemeu Bárbara.
— Não creio que isso seja problema para meu filho — garantiu Morgan.
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Bárbara sentiu-se dividida entre a esperança de Laurence obter êxito em achar Sarah e ódio pelos três
homens que fugiam com ela num barquinho. Vendo o rapaz se distanciar, afastou Sarah do pensamento
por uns instantes e perguntou a Morgan:
— Como ele sobreviveu ao incêndio?
— A mulher de um dos cinco homens o salvou.
— O que ela fazia lá?
— Foi à fazenda para impedir o marido de cometer aquela barbaridade. Não conseguiu, mas salvou meu
filho.
— Você sabia que ela estava lá?
— Não. Quando o fogo já tinha destruído quase tudo, eu já estava além do desespero. Roubei a montaria
de um dos homens e fugi para o Sul, em direção a Filadélfia. Lá, morei algum tempo com o nome de
Jack Carter. Depois, me mudei para Boston. Se alguém quisesse me encontrar, não me acharia com esse
nome. Talvez ninguém tenha tentado.
Bárbara não tinha o que dizer. Limitou-se a fitá-lo num misto de tristeza e compreensão.
— Temos de encontrar meu filho na enseada de Baltimore. Se não partirmos logo, ele perderá um
tempo valioso.
Aliviada por ter algo para dedicar atenção, ela sacudiu as rédeas, pondo a charrete em movimento.
Iam em silêncio, mas quando já alcançavam Long Log Lane, Morgan pediu:
— Pare, por favor.
— O quê? Parar agora?
— Isso mesmo, aqui em frente da casa de culto.
— Não quero. Temos de chegar logo em Baltimore.
— Pare, Bárbara — repetiu Morgan com firmeza. — Preciso falar com Michael Gorsuch. Também
temos de alertar os vizinhos sobre o desaparecimento de Sarah. Eles poderão nos ajudar.
Bárbara já ia dizer que o problema era apenas seu e de ninguém mais. Nunca pediria aos vizinhos para
ajudá-la a recuperar a filha ilegítima, cujo nascimento todos haviam reprovado. Morgan, entretanto, não
lhe deu tempo.
— Não seja teimosa. De um jeito, ou de outro, precisa do auxílio que eles estão dispostos a lhe dar. Você
os subestima e se valoriza demais. Pare!
Ela não desejava obedecer e, orgulhosa, detestava a idéia de pedir algo aos vizinhos, embora os
conhecesse a vida inteira. Estranho, refletiu. Não tinha hesitado um segundo em implorar a ajuda de um
rapaz a quem nunca vira até a véspera. Relutante e por insistência de Morgan, parou a charrete diante da
casa de culto.
Manteve-se imóvel enquanto ele descia e ia ao encontro de Michael Gorsuch que, tendo ouvido a
aproximação do veículo, saíra ao pátio. Ela entendeu apenas palavras esparsas da conversa rápida dos
dois homens. Michael disse que tomaria providências e, no instante seguinte, Morgan acomodava-se
novamente na charrete.
— Valeu a pena parar — comentou ele.
Na estrada mais larga, Bárbara aumentou a velocidade o quanto pôde. Embora Baltimore ficasse a
apenas uns doze quilômetros, a distância parecia interminável. Isso lhe dava a oportunidade de avaliar a
amplitude da situação. Sentindo-se indefesa, tentou lembrar a tristeza de outras perdas. Não conseguiu.
Pensou na infância sem pai e mãe, mas não se comoveu. Rememorou a doença e a morte de Jonas.
Nenhuma emoção. Essa ausência a surpreendeu. Teria sido sempre insensível?Tentou readquirir esse
estado de tristeza emocional, no qual estaria em segurança, invulnerável ao sofrimento. Impossível.
Então, lembrou-se da morte do general Ross. Naquele dia, ela havia chorado pela primeira vez em
muitos anos. As lágrimas não eram por ele, mas por todas os sofrimentos anteriores, suportados sem
amparo de ninguém.
Agora, amava. Amava a filha mais do que a própria vida e não tinha defesas contra os efeitos penosos
desse amor. Pensou em trocar a suavidade do afeto materno pelo lugar seguro e frio onde passara grande
parte da vida. Considerou a possibilidade de abrigar-se nele, livre da dor que a atormentava agora.
Mas Bárbara fitou Morgan. Os olhos azul-escuros a observavam, compassivos. Sob esse exame, ela
descobriu um outro espaço frio em seu íntimo, atrás do coração. Ele abrigava sua independência
absoluta e arrogância. Ficou atônita. Sempre desejara fazer tudo sozinha e melhor do que ninguém.
Orgulhava-se disso, porém nunca tinha percebido a natureza negativa da atitude.
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Envolta pelo olhar amoroso de Morgan, conscientizou-se do desmoronamento da torre de cristal cm que
abrigava o orgulho e a arrogância. No lugar vazio, rcccbcu-lhc o afeto. Sentiu-se humilde, vulnerável e
sem a antiga proteção.
Não estava familiarizada com esses sentimentos e não os apreciava inteiramente. Contudo, não podia
alterá-los, pois dependia da ajuda de Morgan e Laurence. Sem ela, não encontraria Sarah.
Morgan mantinha-se em silêncio ao lado de Bárbara. Nada do que lhe dissesse, a ajudaria. Tinha certeza
de que encontrariam a criança, avaliava seu sofrimento, era testemunha das mudanças bruscas de sua
vida, sabia que ela teria mais filhos — os de ambos — porém não podia lhe dizer essas coisas, pois elas
não a consolariam.
Quando o sol já se aproximava do poente, eles chegaram à região leste de Baltimore, nas cercanias de
Hampstead Hill, e descobriram, surpresos, que Laurence já os esperava num bosquete. Morgan traduziu
depressa as notícias para Bárbara. O tenente e os dois capangas tinham desembarcado e ido ao encontro
de uma senhora elegante que os aguardava. Um deles lhe entregara uma espécie de trouxa. Pela maneira
com que ela a segurou, devia ser a criança. Mas aí, ocorreu algo curioso. Em vez de embarcar num dos
navios atracados no porto, eles subiram numa elegante carruagem e seguiram em direção norte.
O filho de Morgan tinha esperado ali, na encruzilhada da estrada seguida pelo veículo, para informá-los.
Em sua opinião, a carruagem ainda não estava muito longe.
Morgan avaliou a situação. Não se via nada, exceto a estrada deserta e os flocos de neve. Esfriava e
escurecia depressa. O ombro e o braço doíam muito e a aparência de Bárbara era péssima. Seu estado
físico igualava-se ao emocional. Tomou uma decisão. Disse ao filho que seguisse a carruagem e, depois
de descobrir-lhe o destino, voltasse para encontrá-los na primeira hospedaria da estrada.
Laurence partiu a galope, enquanto Morgan e Bárbara seguiram mais devagar. Ela estava enregelada e
sentia dificuldade em continuar dirigindo a charrete, porém negava-se a admitir isso. Felizmente, a nova
informação deu-lhes motivo para conversar.
— Não entendo por que a sra. Ross não embarcou no primeiro navio com destino á Inglaterra —
comentou Bárbara.
— Talvez por ser muito óbvio. Um transatlântico rumo á Europa seria o primeiro lugar em que nós os
procuraríamos. Eles podem ter ido a Wilmington a fim de tomar um veleiro no rio Delaware. Muito
esperto da parte deles não partir de Baltimore. Com certeza, imaginam que nós estamos no porto à
procura deles.
— Tem razão. Mas não sei como o tenente Richards e os capangas conseguiram passar pelo velho John,
o balseiro, lá em Old Roads Bay. Ele estará bem? — perguntou Bárbara, desconfiada.
— Ele vai sobreviver. Lá na fazenda, quando Laurence voltou do rio, contou ter visto um homem caído
no fim da estrada. Imaginei tratar-se do balseiro e pedi a Michael Gorsuch para ir verificar — explicou
Morgan.
Bárbara sentiu o coração apertar-se mais e o ódio pelo tenente crescer.
— Por que não me contou antes? — indagou em tom ressentido.
— Bem, eu...
— Achou que eu já tinha preocupações suficientes — concluiu ela.
— Isso mesmo.
Bárbara não insistiu. No fundo, Morgan tinha razão.
Pouco depois, ele avistou uma hospedaria. Era pequena e simples, sem um lampião à porta para atrair
viajantes. Mas pelas frestas das venezianas, escoava alguma luz. Ali poderiam se esquentar e descansar
um pouco. Explicando ter combinado com Laurence encontrarem-se na primeira hospedaria à beira da
estrada, pediu a Bárbara para parar no pátio.
Exausta e consciente de não poder prosseguir na busca, ela o atendeu sem protestar. Desceu da charrete
e comentou:
— Seria tão bom se a sra. Ross tivesse resolvido parar a carruagem aqui e passar a noite na hospedaria.
— Mas não há sinal dela. Nem de Laurence, por enquanto.
— Eu não esperava encontrá-la num lugar como este. A sra. Ross disse ter amigos em Baltimore. Deve
ter ido a uma das grandes mansões do lado norte.
Dirigiram-se a porta e Morgan bateu. Em instantes, um homem, atarracado e enxugando as mãos no
avental, abriu-a. Observou o casal mal vestido, mas não de aspecto perigoso.
— Boa noite. Em que posso servi-los?
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— Minha mulher e eu precisamos de um lugar para descansar algum tempo e nos abrigar do frio —
respondeu Morgan ao conduzir Bárbara pela porta.
Entraram num aposento espaçoso, de teto baixo, mobiliado com simplicidade, mas de ambiente
acolhedor. Chamas crepitavam numa grande lareira, panelas de cobre reluzente pendiam de uma das pa-
redes e o longo balcão de um bar ocupava uma outra. Acima dele, uma prateleira exibia canecões de
cerâmica enfileirados. Alguns pares de olhos curiosos fitaram os recém-chegados.
— Só querem um lugar para descansar um pouco? — perguntou o dono da hospedaria sem esconder o
desapontamento.
Morgan lamentou os bolsos vazios e se maldisse por não ter lembrado. Bárbara de trazer o dinheiro
ganho com a hospedagem do tenente. Observou os ocupantes da mesa, entre eles umas três mulheres de
aspecto duvidoso, entretidos com um jogo de pôquer. Calculou a possibilidade de se juntar a eles e
ganhar o suficiente para pagar o jantar. Mas não se animou. Tinha perdido o gosto pelas cartas.
Viu, então, um violão encostado na parede, ao lado da lareira. Tomou uma decisão rápida.
Cumprimentou as geral, mas não recebeu muitas respostas. Em seguida, levou a mão esquerda de
Bárbara aos lábios, de forma que a aliança fosse notada.
— Como já expliquei ao proprietário, minha mulher está exausta e precisa descansar. — Largou-lhe a
mão e cruzou o aposento a fim de pegar o violão. — Somos fazendeiros pobres, de North Point, a
caminho de Hampton. — Tocou uns acordes. — Não temos dinheiro e eu gostaria de cantar a troco de
nosso jantar.
O hospedeiro resmungou que, se fosse alimentar cada fazendeiro com pretensão a cantor, acabaria a vida
no asilo. Estava disposto a deixá-los descansar, mas qualquer outra coisa, teria de ser paga.
— Diz isso porque ainda não me ouviu — garantiu Morgan sem se intimidar. Piscou para duas das
mulheres e dirigiu-se à terceira, sentada na ponta de um banco. — Algum pedido, madame?
Ela enrubesceu e, entre risinhos encabulados, sugeriu " O Jogador Errante", uma canção popular.
Ofereceu-se para cantarolar o início da melodia, caso ele não se lembrasse, mas Morgan já entoava a
primeira estrofe.
As palavras falavam de um jogador que ia de cidade em cidade, quase nunca se demorando em
nenhuma.
— É esta? — perguntou Morgan fazendo uma pausa. Alegre, a mulher bateu palmas.
— É, sim! O senhor tem uma voz linda!
— Obrigado. Também gosto dela e adoro cantar. Mas, vamos ao resto da canção.
A segunda estrofe contava como o jogador, fugindo aos hábitos, fica em Washington por mais tempo.
Lá, conhece uma jovenzinha e ambos se apaixonam.
Surpresa, Bárbara observou como Morgan começava a prender a atenção de todos com sua capacidade
de músico excepcional. Até o dono da hospedaria não escondia o entusiasmo. Apesar de fraco e do
ferimento dolorido, Morgan enfrentava a situação de maneira encantadora, reconheceu ela. Embora triste
e preocupada, sorriu ao ouvir as palavras da última parte.
A jovenzinha confessa à mãe a paixão pelo jogador. Enfrenta a resistência e os apelos maternos, mas
jura ir embora com ele. Se algum dia voltasse, haveria de ser com seu amor.
Acompanhado por todos, inclusive pelo hospedeiro, Morgan repetiu as palavras finais.
Essa foi a primeira de muitas outras canções apresentadas por ele. Algum tempo depois, o próprio
hospedeiro levou o sr. e a sra. Morgan Harris a uma mesa, perto da lareira, onde lhes serviu um ótimo
jantar: sopa de legumes e pernil assado com purê de batata doce.
Bárbara tinha consciência plena da extensão do gesto de Morgan ao cantar a troco de alimento.
— Você nunca fez isso antes — comentou em voz triste.
— Esta situação é diferente — contestou ele.
— Não, não é. Além do mais, não estou com fome, o que torna tudo pior.
— Coma — ordenou Morgan.
Ela sacudiu a cabeça num gesto negativo.
— Vai ofender o dono da hospedaria — argumentou ele.
— Eu sei, mas não posso.
Morgan apanhou a colher e começou a tomar a sopa. Estava faminto.
— Se não se alimentar, Bárbara, vai acabar doente.
— Já estou — queixou-se ela.
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Morgan não desejava ser cruel a fim de convencê-la a comer, porém não tinha escolha. Em voz suave,
disse:
— Se não jantar, não terá leite para amamentar Sarah quando a encontrarmos.
Bárbara ficou lívida. A perspectiva de perder o leite e de se tornar incapaz de matar a fome da filha, a
deixou apavorada. Morgan percebeu e tentou animá-la.
— Coma, Bárbara. Seja confiante. Você terá Sarah de volta e ela precisará de você.
Com grande esforço, reprimindo as lágrimas e não sentindo o saber de coisa alguma, ela obedeceu.
No momento em que o hospedeiro acabava de pôr um pudim de melado diante deles, a porta de entrada
abriu-se e Laurence surgiu. Tentando não chamar atenção, o rapaz aproximou-se da mesa. O olhar de
Morgan se desviou do dele apenas por uma fração de segundo, quando disse ao dono da hospedaria:
— Meu filho.
Amável, o homem ofereceu servir jantar a Laurence, mas Morgan não aceitou, alegando que o rapaz já
havia comido. O hospedeiro se afastou e Bárbara estranhou a recusa de Morgan. Contudo, ao ver
Laurence manter-se a um metro da mesa, intuiu que ele não se sentaria ali. Por sua expressão, percebeu
que ele trazia novidades. Foi preciso lutar contra a vontade de levantar-se para ir questioná-lo. Mas com
medo de provocar suspeitas, não queria revelar a ansiedade.
Calmo, Morgan aproximou-se do filho. Conversaram em voz baixa por algum tempo, o rapaz quase não
fazendo gestos. Ao observá-los, Bárbara tinha certeza de estar presenciando um milagre. O pai não
escondia a satisfação e o orgulho. O filho já não apresentava a expressão de raiva e de desafio. Para ela,
esse era um momento revelador. Nos olhos de Morgan, brilhava a emoção por haver encontrado um
amor perdido. Sua tristeza das últimas horas fundiu-se à dele de quinze anos. Sua perda não diminuía de
intensidade, porém tornava-se mais universal e, curiosamente, mais rica.
Quando Morgan virou-se do filho para ela, Bárbara murmurou:
— Sei exatamente como você se sentiu ao perdê-lo. — Dirigiu-se a Laurence e falou bem devagar: —
Sei como seu pai se sentiu ao perder você.
O rapaz não respondeu, porem ela viu um lampejo de compreensão em seus olhos negros.
Morgan apenas aquiesceu com um gesto de cabeça e, em seguida, disse:
— Vamos agradecer ao hospedeiro e nos pôr a caminho.

CAPITULO XXII

Uma hora mais tarde, Bárbara e Morgan percorreram a larga alameda, ladeada por árvores frondosas, e
pararam diante da imponente Lloyd House. Pelas janelas incontáveis, filtrava luz suficiente para se ver
que a mansão era de tijolos à vista. De ambos os lados da construção principal, saiam alas mais baixas,
em cujas extremidades erguiam-se outras maiores, mas não tão grandes como a central.
Bárbara sentia-se intimidada e indignada ao mesmo tempo. Não perdia a coragem porque, nas sombras
ao lado da porta, escondia-se o jovem guerreiro Iroquois.
Morgan ergueu a aldrava e deixou-a cair com estrondo. Segundos depois, a porta abriu-se e apareceu o
mordomo negro, de cara arredondada.
— Estamos aqui para falar com a sra. Ross e o tenente Richards — anunciou Morgan sem preâmbulos.
O homem não escondeu a surpresa e a hesitação.
— Respondendo suas prováveis indagações: Não, eles não estão nos esperando. Sim, ninguém deveria
saber de sua presença aqui na mansão — acrescentou Morgan.
O homem arregalou os olhos.
— Posso saber quem são?
— Sr. e sra. Morgan Harris.
— Bem, tenho de falar com a patroa, a sra. Lloyd — informou o criado ao observar o casal de aparência
humilde, antes de fechar a porta diante dele.
Desanimada, Bárbara olhou para Morgan.
— Não somos obrigados a entrar pela porta. Apenas seria mais fácil — disse ele.
Esperaram e esperaram.
Quando Morgan já ia bater a aldrava novamente, a porta abriu-se. Dessa vez surgiu uma senhora de
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meia-idade, vestida com a máxima elegância e, obviamente, a dona da mansão. Sorriu-lhes com ar
condescendente e, ao falar, exibiu o sotaque refinado da alta classe de Maryland.
— Lamento muito, mas não conheço a sra. Ross ou o tenente.
— Richards — completou Morgan vendo-a hesitar.
— Bem, a sra. Ross e o tenente Richards não se encontram aqui. Os senhores devem estar enganados,
ou erraram o caminho.
— A senhora quer dizer, claro, que eles não estão recebendo visitas e, muito menos, esperando alguma.
Mas eles estão aqui e a senhora sabe disso — declarou Morgan sem se impressionar com atitude
negativa da dona da casa.
Esta levou uns segundos para se recuperar da surpresa provocada pela audácia do indivíduo em
contradize-la. Mas voltou a sorrir começou a fechar a porta enquanto dizia em voz firme:
— Sinto muitíssimo...
Morgan fez um gesto para o arvoredo ao lado e, para o espanto e horror da sra. Lloyd, surgiu um índio
selvagem, com o rosto pintado em cores de guerra e o corpo coberto por peles de animais. Aos gritos, ele
escancarou a porta, prendeu-lhe as mãos às costas e pôs uma faca em seu pescoço antes que ela pudesse
emitir um único som, ou ordenar ao mordomo apavorado que a defendesse.
Morgan tomou a mão de Bárbara e ambos entraram no vestíbulo. Em tom cortês, ele dirigiu-se à sra.
Lloyd:
— Por favor, nos leve ate a sra. Ross. — Ao mordomo, recomendou: — Não faça nada que possa pôr a
vida de sua patroa em perigo. Não viemos aqui para prejudicá-la. Queremos só falar com a sra. Ross.
Embora a faca junto a seu pescoço não a impedisse de falar, sra. Lloyd concordou com um gesto de
cabeça. Aflito, o criado implorou:
— Não machuquem a patroa, pelo amor de Deus.
O grupo estranho de cinco pessoas começou a atravessar o vestíbulo, mas era impossível andar depressa.
Bárbara, apesar de eufórica por estar prestes a encontrar Sarah, sentia medo de que algo ruim houvesse
lhe acontecido. Nesse estado emotivo, nem notava a decoração rica e linda dos aposentos por onde
passavam.
Morgan, sempre amparando Bárbara, encarregou-se da conversa.
— Compreendam, a sra. Ross tirou alguma coisa nossa hoje e nós viemos recuperá-la. Não pretendemos
fazer mal a ninguém.
— E o índio? — perguntou o mordomo.
— É perigoso, devo avisá-lo. Se ninguém interferir, ele não machucará a sra. Lloyd, mas caso se sinta
ameaçado... — Morgan fez um gesto com o dedo no pescoço imitando uma faca. — Bem, quando
conseguirmos o que queremos, vamos embora e levamos o índio conosco.
— Está bem, está bem — balbuciou o mordomo ao parar à porta de uma saleta e fazer ,um gesto para o
grupo entrar.
A reação produzida pela chegada de Bárbara, Morgan e do índio, com a faca no pescoço da sra. Lloyd,
foi tragicômica. O tenente Richards soergueu-se um pouco e murmurou algo incompreensível. O rosto
tornou-se rubro de choque e constrangimento, ou talvez de sentimento de culpa. Um outro homem, sem
dúvida o sr. Lloyd, levantou-se, abrupto, e gritou:
— O que significa isto?! Solte minha senhora imediatamente! Morgan tocou a aba do chapéu.
— Tenente Richards, sr. Lloyd, fico satisfeito por encontrá-los em casa. — Calmo, percorreu os olhos
pela sala. — Mas não vejo a sra. Ross.
Em silencio, o tenente e o dono da casa trocaram um olhar consternado. Mas o sr. Lloyd apontou para o
índio e declarou em tom ameaçador:
— Ninguém verá a sra. Ross até que você solte minha mulher, seu selvagem! Já! Neste instante!
— Ah, ele quase não entende inglês, mas fala um francês excelente. Por que não se dirige a ele nessa
língua? — sugeriu Morgan.
A fúria no semblante do sr. Lloyd não tinha limites e a voz elevou-se mais.
— Você traz um selvagem para dentro de minha casa, põe em risco a vida de minha mulher e diz que
essa coisa fala francês?!
— Exatamente.
— Isso é ultrajante!
— Não, eu lhe garanto que o francês dele é fluente — insistiu Morgan. — Eu gostaria...
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— Você está transgredindo a lei! Você e esse selvagem!
— Transgredindo a lei? — repetiu Morgan arqueando as sobrancelhas.
— Isso mesmo. Forçando entrada numa casa particular e ameaçando a vida de uma mulher inocente —
vociferou o sr. Lloyd.
Morgan continuava segurando a mão de Bárbara. Levando-a consigo, deu mais uns passos para o
interior da sala e substituiu o tom cortês por um ríspido.
— Por falar em inocentes, viemos para recuperar nossa filha. Richards teve a idéia maluca de roubar —
isso mesmo, roubar — a criança do berço, em nossa casa, esta tarde. Não o acuso diretamente pelo
crime, pois ele apenas obedecia ordens da sra. Ross. Contudo, eu o culpo por seus métodos desastrados.
Sem dúvida, ele se considera muito esperto por chegar a nossa casa e ir embora pelo rio. De nada
adiantou. Nós o seguimos até aqui. Quanto a transgredir a lei, o senhor poderá ser acusado por ajudar a
esconder um ladrão e assassino.
— O roubo tem de ser provado. A sra. Ross nos explicou ter vindo à America a fim de salvar a filha do
marido da ilegitimidade e da pobreza. Não pode haver atitude mais nobre! Agora, assassinato! Você não
pode culpar um oficial inglês pelas mortes ocorridas durante a guerra terminada há mais de um ano! —
contestou o sr. Lloyd.
— Não estava me referindo á guerra e sim á vida do balseiro em Old Roads Bay, no rio Patapsco. O
tenente Richards e seus dois capangas o espancaram até quase matá-lo. Queira Deus que ele continue
vivo.
O sr. Lloyd relanceou o olhar pelo calado tenente Riehards, mas voltou a encarar Morgan.
— Isso não lhe dá o direito de invadir minha casa e pôr em risco a vida de minha mulher e de outras
pessoas!
Morgan estava apreciando a discussão, porém não podia desperdiçar o impacto da surpresa. Precisava
agir.
— No momento, tenho o direito de fazer o que bem quiser. E o que quero agora é ver a sra. Ross e a
criança. — Apontou para o filho. — E melhor sermos rápidos, pois o rapaz ali fica irritado quando o
fazem esperar.
O sr. Lloyd estremeceu de raiva e lançou um olhar de ódio para Laurence. Em seguida, dirigiu-se à porta
batendo os pés.
Antes de acompanhá-lo, Morgan ordenou ao tenente:
— Fique sentado quieto aí.
Bárbara e Morgan foram levados por um corredor bem iluminado e uma escada. No segundo andar,
atravessaram um vestíbulo amplo e seguiram por outro corredor. O coração de Bárbara já disparava mais
de expectativa feliz do que de medo. Tentava detectar sons da vozinha de Sarah, ou melhor, seu choro
forte e exigente. Até esse barulho irritante seria música a seus ouvidos.
Pararam diante de uma porta pela qual não passava o mínimo ruído. Bárbara estremeceu com o silencio
agourento.
Logo após uma batida rápida do sr. Lloyd, a sra. Ross abriu a porta. Sua expressão agitada, de desafio e
culpa, apavorou Bárbara.
Minha filhinha morreu! foi seu primeiro pensamento. Depois veio uma sucessão das prováveis causas.
Morreu de frio no barquinho, de tristeza por se separar da mãe, pelas mãos da sra. Ross, a bruxa que
inveja minha felicidade!
A inglesa tentou barrar-lhe a entrada no quarto, porém Bárbara a empurrou e correu para a cama sobre a
qual estava Sarah imóvel e enrolada num cobertor. Certa de só lhe restar chorar pela perda preciosa e
maldizer as forças cruéis que haviam lhe desgraçado a vida e provocado esse desenlace amargo,
levantou-a nos braços.
— Minha Sarah — soluçou desejando morrer também.
A criança mexeu, entreabriu os olhos e choramingou num fio de voz.
Aturdida e feliz, Bárbara mal se atrevia a respirar. Com olhar interrogativo e acusador, virou-se para a
sra. Ross que retorcia as mãos. A inglesa, ao falar, o fez numa voz beirando a histeria.
— Não consegui alimentá-la. Ela não aceitava nada. Nada! Eu não sabia o que fazer. Ela só chorava.
Chorou quase sem parar e até perder as forças. Isso já faz horas. Mandamos procurar uma ama de leite,
mas...
— Como pôde cometer tamanha maldade? — indagou Bárbara num murmúrio ríspido.
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— Teria dado certo se eu conseguisse alimentá-la. Tentei tudo.
Ela dormiu um pouco e a fralda foi trocada. Sei que está com fome, mas não pude fazer nada. E o choro?
Ai, meu Deus, o choro!
Bárbara não suportou continuar olhando para a bruxa e virou-lhe as costas. Sarah, inquieta em seus
braços, mexeu a cabecinha num movimento fraco, os lábios e a face numa procura patética. Bárbara
desabotoou depressa o casaco e a blusa a fim de dar à filha o que ela mais precisava. Os olhos brilhavam
de alívio. Os seios, latejando com o leite acumulado, iam saciar, finalmente, a pobrezinha.
Com firmeza, Morgan segurou o braço da sra. Ross e a levou para fora do quarto. Depois, fechou a
porta.
Bárbara não calculava há quanto tempo já amamentava Sarah quando respirou profundamente. Era como
se fosse o primeiro sopro de ar em sua nova vida. Inclinou a cabeça para trás. Os braços aconchegavam a
filha, os ouvidos deliciavam-se com os ruídos de sua sofreguidão, as faces brilhavam úmidas. Através
das lágrimas, sorriu e virou a cabeça para agradecer a felicidade ao homem mais maravilhoso do mundo.
Mas o quarto estava vazio.
Sarah largou o seio e, mexendo-se com mais energia, exigiu o outro.
Morgan levou a sra. Ross ao vestíbulo no topo da escada. Largou-a tão de repente que ela cambaleou de
encontro á parede.
— Deixe-me olhá-la bem — disse ele encarando-a com ar crítico. Sentia raiva, mas também compaixão,
pela mulher a sua frente.
Com os cabelos desgrenhados, as roupas desalinhadas, o olhar aflito, ela mostrava-se envelhecida.
— Aprova o que vê? — demandou ela.
— Não. A senhora cometeu um erro perigosíssimo.
— Mas mandei procurar uma ama de leite. Eu não ia deixar a criança morrer de fome! — protestou a
sra. Ross em tom exaltado.
— Estou me referindo ao fato de a senhora se apossar de algo que não era seu. E nós a apanhamos!
Ela não conseguia manter as mãos paradas. Alisava os cabelos, a blusa, a saia, endireitava o decote, os
punhos das mangas.
— Mas como nos apanharam?! Não posso acreditar! A sra. Johnson, quer dizer, sua mulher, não estava
em casa quando o tenente tirou... recuperou minha Sarah para mim. Ninguém o viu entrar, nem sair —
argumentou ela numa voz áspera, despida do antigo refinamento.
— Meu filho o rastreou até aqui — informou Morgan com uma nota de orgulho na voz.
A sra. Ross teve vontade de bater os pés no chão.
— O senhor não está me entendendo. Timothy foi e voltou de North Point de barco. Ninguém de sua
útil casa de culto o viu passar.
— O tenente deixou sinais de sua passagem em todos os lugares e meu filho é um ótimo rastreador —
explicou Morgan. — Ou talvez, tenha sido a vontade de Deus.
O olhar da sra. Ross tornou-se raivoso.
— Ora, não me venha falar na vontade de Deus! Ela não me deu filhos e tirou meu marido!
— Por isso a senhora resolveu apossar-se do que não era seu? — indagou Morgan.
A pose da sra. Ross retornava e a expressão louca do olhar desaparecia. Porém ela não podia fazer nada
quanto ao aspecto desalinhado.
— Sempre tive o que queria. Tudo! Vim buscar a filha de meu marido e, como sua mulher não tivesse o
bom senso de me atender, peguei minha criança.
Apesar de não gostar dessa mulher, Morgan entendia, até certo ponto, seu desespero. Ele também tinha
enfrentado a tristeza e o desânimo, porém escondera as emoções magoando apenas a si mesmo. A sra.
Ross, ao contrário, as tinha usado contra outras pessoas sem se importar em feri-las, desde que se
poupasse.
— Quer dizer, a senhora veio, exigiu, apossou-se. Pegou, não pediu.
— Pedir?! O que?! — indagou ela com sarcasmo.
Morgan sentiu a alma instalar-se na estrutura luminosa em seu âmago. Ainda alimentava raiva por essa
mulher, mas o sentimento enfraquecia sob a influencia da piedade. Pensou numa outra a quem não
conhecia e não podia agradecer por ter salvado a vida do filho quinze anos atrás. Observou essa a sua
frente, que lamentava a perda do marido e, desesperadamente, queria-lhe a filha. Não achava que, ao
mostrar-lhe misericórdia, estaria saldando a dívida com a outra.
92
Mas também era de opinião que algum tipo de justiça poderia ser ferecido à sra. Ross.
Ele reconhecia a paixão sombria e incontrolável que a impulsionava e lembrava-se de como a própria
escuridão o forçara a agir durante quinze anos. Mas as trevas tinham se dissipado e ele permitiu que a
luz o guiasse.
— A senhora poderia ter se oferecido para ajudar, para compartilhar dos cuidados, das despesas, das
atribulações inerentes ao desenvolvimento de uma criança. — Apontou para trás. — A senhora vem
agindo na esperança de que aquele bebezinho lindo seja filha; de seu marido, a criança que anseia
aconchegar nos braços e amar.; Não tem certeza de que seja e baseia-se em sua instuição. Esta e a
esperança a fizeram agir cegamente.
A sra. Ross abriu a boca para falar, porem Morgan prosseguiu:
— E se aquela criança linda, lá no quarto,fosse filha de seu marido? E daí?
Ela esbugalhou os olhos.
— Está querendo dizer... — começou num murmúrio, incapaz de absorver a implicação completa da
pergunta. — Finalmente admite...
— Não admito nada. Declarei ser pai de Sarah e sou o marido de Bárbara. Vamos conversar sobre a
hipótese...
No rosto da sra. Ross, a expressão de astúcia foi substituída pela de fascínio.
— Se a criança for filha de meu marido, farei qualquer coisa por ela.
— Até deixá-la com a mãe, de quem ela tão obviamente precisa?
— Sim, claro — respondeu ela depressa. — Até Sarah desmamar ! Então, a pegarei!
— Pegará, sra. Ross?! — disse Morgan em tom de advertência!
— Ajudarei — ela se corrigiu. — Compartilharei. Ai, não sei ! O que quer de mim? — perguntou
desanimada. — Ela é filha de Robert?
— A senhora terá de conversar com minha mulher.
Ela lançou um olhar ansioso em direção ao quarto no corredor.
— Agora, não. Temos de ir embora e vamos levar Sarah. A sra. Ross agarrou-se a Morgan.
— Não, não levem a criança! Vou ajudar! Colaborar! Deixe eu falar com sua mulher! Nós chegaremos
a um acordo!
Ele soltou-lhe os dedos e sacudiu a cabeça.
— Agora, não. Mais tarde. Talvez na semana que vem. Depois de a senhora refletir sobre o tipo de
ajuda, de colaboração que desejaria oferecer, que acordo gostaria de fazer,
— Vou mandar meu advogado procurá-los — disse ela animada.
— Não, não. Nada de advogados. Algumas coisas estão acima da lei e esta questão é somente entre
minha mulher, a senhora e Deus.
O semblante da sra Ross murchou e sua confusão tornou-se evidente.
— O que o senhor quer? Dinheiro? Tenho muito.
Morgan tinha certeza absoluta não só da riqueza material da sra. Ross como também de sua pobreza
espiritual.
— Não quero seu dinheiro — respondeu bem devagar. — Desejo que reflita muito sobre a melhor
maneira de demonstrar seu afeto por Sarah. Quero que pense antes de tomar qualquer atitude.
— Eu errei? — perguntou ela ao fitá-lo com olhar vago, na procura esperançosa de absolvição e como se
sentisse sua luminosidade íntima.
— Errou, sim, mas pode reparar o mal. — Ele virou-se para voltar ao quarto, dando a conversa por
encerrada, mas ainda acrescentou: — Reflita bastante e com cuidado. Agora, vá lá para baixo consolar a
sra. Lloyd.
— Mas o que devo fazer quando chegar a uma conclusão? — indagou ela, aflita.
— Sabe onde moramos. Vá nos procurar. Porém, não leve o tenente Richards. Não gosto dele.
Poucos minutos depois, Morgan, Laurence e Bárbara, carregando Sarah, transpunham a porta de entrada.
Na mansão ficavam: o sr. Lloyd esbravejando no auge da fúria, sua mulher, calada e em estado de
choque, o mordomo resmungando a incredulidade, o tenente Richards num constrangimento culposo e a
sra. Ross vagamente esperançosa.
Uma vez lá fora, sentindo-se segura no ar frio, com a filhinha nos braços, Bárbara fitou Morgan e o
fascinou com seu sorriso raro. Foi um momento de comunhão e felicidade. Ele o interrompeu ao desviar
os olhos para o filho que se afastava.
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Num gesto inesperado, Bárbara pôs Sarah nos braços de Morgan e correu em direção a Laurence
tornando-lhe o rosto pintado entre as mãos. Pela primeira vez na vida, ela se sentia parte de uma família.
Dava-lhe um grande prazer o fato de pedaços de várias outras juntarem-se na formação de uma nova,
apesar das emendas e costuras.
— Obrigada, Laurence. Obrigada por Sarah, minha filha. Eu não teria conseguido reavê-la sem sua
ajuda. Ficarei devedora a você para sempre. — Abraçou-o e o beijou nas duas faces. Sorridente e com
olhar amoroso, repetiu: — Obrigada, Laurence. Filho de Morgan. Meu filho.
Para surpresa sua, o rapaz arrancou-se de seu abraço. Ela teve a impressão de ver incerteza, beirando o
horror, estampar-se nos olhos negros. Deixando-a mais perplexa ainda, ele correu até o cavalo, preso a
uma árvore, soltou-o e, montando, desapareceu nas sombras da noite a galope.
Bárbara voltou para o lado de Morgan e perguntou:
— Por Deus, o que eu fiz? O que eu lhe disse para que fugisse desse jeito? Será que o ofendi?
Antes de responder, Morgan ajudou-a a subir na charrete, entregou-lhe Sarah e, com as rédeas nas mãos,
acomodou-se a seu lado. Por causa da criança, ele dirigiria na volta. Só então, disse:
— Acho que você acaba de me salvar outra vez.

CAPITULO XXIII

Bárbara não registrou as palavras de Morgan. Enquanto iniciavam o trajeto de volta, ela perscrutava o
caminho à frente, procurando a silhueta do rapaz.
— Não entendo. Pensei que tudo estivesse resolvido entre você e Laurence. E muito bem. Eu nos vi,
nós quatro, formando uma nova família. De pedaços de outras, você pode alegar, mas como uma colcha
de retalhos, forte e bonita.
Calou-se e o fitou surpresa e desconfiada. E então, demandou:
— O que você disse?
— Que talvez você acabe de salvar minha vida outra vez.
— Como assim?
— A fim de convencer meu filho a nos ajudar, troquei minha vida pela de Sarah. E você colocou
Laurence numa posição difícil ao considerá-lo seu filho - explicou Morgan.
Bárbara estava tendo dificuldade para entender tudo ao mesmo tempo, por isso, resolveu esclarecer,
primeiro, a última parte.
— Por que coloquei Laurence numa posição difícil?
— Desconfio que nenhuma das mulheres da tribo quis assumi-lo como filho. Sendo assim, ele não tinha
pais a quem obedecer, ou dar satisfações. O avô havia, mais ou menos, deserdado a filha quando fomos
do Canadá para Massachusetts, portanto, não admitiu as condições de parentesco com o neto. Quando
Laurence atingiu a maioridade, de acordo com as dos Iroquois e há pouco mais de uma semana, o avô
deve tê-lo mandado me procurar a fim de se vingar e adquirir o direito de tomar seu lugar na
comunidade.
— Mas como, ao chamá-lo de meu filho, eu o coloquei numa posição difícil em relação a você?
— Ele, agora, precisaria de sua permissão para dispor de minha vida e calcula que você não a daria.
— Pois calcula corretamente — Bárbara afirmou com veemência. — Mas acha que Laurence entendeu
bem minhas palavras?
— E provável. Não eram difíceis e ele entende mais inglês do que fala.
Bárbara intuiu que isso fosse verdade. Olhou para Sarah, parcialmente enfiada sob seu casaco. O amor
materno tornou-se mais sólido.
— Se eu assumi Laurence como filho e ele me deve obediência, por que fugiu sem me pedir permissão?
— Já expliquei, você o colocou numa posição difícil.
— Ainda bem! Como ele pôs na cabeça essa idéia absurda de que você o abandonou, vou usar minha
autoridade de mãe para convencê-lo do contrário. Farei isso quando aparecer de novo. Mas não consigo
entender bem por que você ofereceu sua vida para Laurence.
— Ela me pareceu uma troca justa pela de Sarah e eu não estava em condições físicas para rastrear o
tenente Richards.
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A segunda parte era verdadeira, porém Bárbara recusava-se a considerar o valor da vida de Sarah contra
a de Morgan.
— O que Laurence teria feito com sua vida? Ele ainda pretendia matá-lo?
— Não sei. Talvez ele, simplesmente, voltasse para a tribo me levando como escravo seu.
— Você se submeteria a isso?
— Sim.
Ficaram em silêncio por algum tempo. A charrete sacolejava na estrada lamacenta e esburacada, rumo
ao Sul. A neve tinha parado de cair, deixando uma camada de ar frio e úmido. Já não estava tão escuro,
pois as nuvens esgarçadas filtravam um luar pálido. Finalmente, Bárbara disse:
— Eu não permitiria que Laurence matasse ou levasse você como escravo.
— Você já o impediu, ou adiou os planos dele.
— E o que seu filho, quer dizer nosso filho, pretende fazer?
— Não tenho idéia.
Dada a potencialidade dessa notícia ruim e a incerteza quanto á próxima atitude de Laurence, Bárbara
tentou concentrar raiva e indignação, ou quaisquer outros sentimentos sombrios que a pressionavam há
tantos anos. Não conseguiu. Tinha a sensação de que algo pesado levantava-se de seus ombros, não mais
forçando-a a curvar-se e lutar. Olhou para Morgan ao lado e, depois, para Sarah no colo. Sorriu.
— Eu queria censurar você por ter colocado a vida sob perigo maior, mas as palavras se negam a sair —
confessou ela.
— Nesse caso, deve concordar com minha decisão de trocar a vida pela ajuda de meu filho.
— De jeito nenhum! Foi uma atitude louca! Ou nobre! Sei lá. Talvez neste caso, tenha sido louca e
nobre ao mesmo tempo! Não, não sinto vontade de criticá-lo. Estou muito feliz. Apesar de todas as
coisas horríveis que poderiam ter acontecido, continuo com minha filha e, ainda por cima, ganhei um
filho. Pouco mais de um ano atrás, eu era uma viúva sozinha neste mundo, sem ter com quem contar, ou
alguém para cuidar e querer bem. Agora, eu me sinto enriquecida e abençoada com minha família.
— E pode ter ganho mais um membro para ela esta noite — comentou Morgan.
— Como? Ou melhor, de quem se trata? — Um tipo de mãe, ou tia talvez.
Algo na voz grave dele lhe provocou um arrepio. Observou-o, mas sob o luar tênue, o perfil de Morgan
não revelava nada.
— Não conheci minha mãe e não gostava de minha tia.
— Por que não?
— Ela morava em Baltimore.
— E isso era motivo? — perguntou Morgan, porém antes de Bárbara responder, acrescentou: — Ah,
deve ser consequência da história com o filho do negociante rico de Baltimore.
— Não, nada disso. Fui criada por minha tia, pois perdi meu pai muito cedo.. Ela era severa, implicante,
não apreciava a vida e, o pior, não gostava de mim.
— Ela a marcou como mulher perdida quando o rapaz bonitinho a desgraçou, não foi?
— Acertou. Mas você está tentando mudar de assunto e eu não vou deixar — protestou Bárbara. —
Você disse que, talvez, eu tenha ganho um novo parente, contudo, não explicou nada. Por acaso isso tem
alguma coisa a ver com a sra. Ross? — perguntou desconfiada
— Tem, sim.
— O que?
— Ela e eu tivemos uma boa conversa enquanto você amamentava Sarah.
— Sei. E daí?
— Eu lhe sugeri que refletisse sobre algumas coisas.
— Por que estou ficando apreensiva sobre o que você vai dizer a seguir?
— Não sei. Por quê?
— Porque o dia inteiro, Morgan, você vem tomando as atitudes mais estranhas possíveis. Onde já se viu
oferecer a vida a Laurence para salvar a de Sarah?
— Ora, deu certo. Você conseguiu sua filha de volta.
— Está bem e você continua vivo. Mas que história é essa sobre a sra. Ross? E por que você se esquiva
em vez de falar às claras?
Morgan a fitou enquanto um sorriso imenso expandia-se por seu rosto.
— Porque quando tive minha conversinha com ela, eu não sabia qual seria meu destino. A estas horas,
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poderia estar me afastando com meu filho. Não calculei que teria de enfrentar as consequências de
minhas palavras para a sra. Ross.
— O que, exatamente, você disse a ela?
— Expliquei-lhe que ela havia procurado você com a intenção de tomar e não, de pedir. Aconselhei-a a
ponderar sobre o tipo de relacionamento que desejaria ter com a criança.
Aborrecida, Bárbara indagou:
— Você admitiu que Sarah era filha do general?
— Não. Reafirmei ser seu pai e, depois deste dia, considero minha alegação válida. Assim como você
arranjou um filho, eu arranjei uma filha. Entretanto, me ocorreu que a sra. Ross tem alguma ligação com
a criança, mas não sei definir qual seja. Gosto da idéia de nossa família ser como uma colcha de retalhos.
A sra. Ross poderia ser um de seus pedaços coloridos. O que você acha?
Bárbara sentiu um nó na garganta. O coração confrangia-se e as emoções agitavam-se. Cada instinto seu
protestava. Não queria essa mulher em sua vida, ou na da filha. Desejava muito dizer "não", mas como
as palavras de censura a Morgan não tinham se formado, a de negativa também se recusava a ser
pronunciada.
Refletiu sobre o sonho estranho de Sarah Ross e no vigor das emoções que a tinha levado a cruzar o
oceano. Lembrou-se da própria idéia inesperada, na manhã do parto, de dar o nome de Sarah à criança.
Sentiu uma ligação com a sra. Ross, indesejável, mas evidente. Mãe e rival. Admitiu que certos
relacionamentos transcendiam a água e o sangue.
Estava disposta a reconhecer que Sarah Ross tinha alguma ligação com a filha do marido morto, mas
como Morgan, Bárbara não saberia defini-la. Visões horríveis dos tentáculos da inglesa rica inundaram-
lhe a mente.
— Advogados — murmurou apavorada.
— Não, nada de advogados. Essa foi uma de minhas condições — esclareceu Morgan.
— Que condições? — Bárbara quis saber.
— Expliquei-lhe a necessidade de pensar sobre o que gostaria de dar a Sarah, de compartilhar com ela,
e de conversar com você a esse respeito. A decisão seria sua.
— Minha?!
— Claro. Você é a mãe da criança.
— Preciso refletir.
— E só o que peço.
Mas antes de fazê-lo, Bárbara permitiu que a pequena fagulha de raiva contra Morgan se transformasse
em chamas. Entretanto, elas se apagaram depressa. Olhou para a filha e pensou: Sarah Ross pode lhe dar
o que não posso. Compreendeu, então, que a raiva não a dominava porque o medo e a inveja eram
maiores.
O que aconteceria quando Sarah crescesse? Por ser sua mãe, teria ela o direito de negar-lhe uma vida
mais segura materialmente e os benefícios da hereditariedade? Não estava invejando tudo que a sra.
Ross podia proporcionar à filha? Não lhe tinha sido fácil adotar Laurence Harris porque ele não a
ameaçava como a inglesa?
Tais sentimentos não eram lisonjeiros, mas Bárbara não se envergonhava deles, pois refletiam seu amor
ferrenho pela filha. Por tê-los reconhecido, conseguiria supera-los, caso fosse preciso.
— A mulher é uma bruxa! — disse finalmente.
— Reabilitada, talvez — sugeriu Morgan. — Ela levou um bom susto hoje. Estava convencida de poder
dar tudo à criança e não conseguiu nem alimentá-la.
— Mas a amamentação não dura para sempre — argumentou Bárbara.
— Quem sabe se o que a sra. Ross possa dar a Sarah, no futuro, também não esteja em seu alcance?
— Ela não merece um segundo da vida de minha filha, nem um fiapo de sua afeição!
— Não posso julgar isso — afirmou ele e, depois de uma pausa bem calculada, acrescentou: — Pobre
sra. Ross.
Bárbara resmungou qualquer coisa, porém compreendeu o ponto de Morgan. Sentia-se imensamente rica
em comparação à viúva do general.
Em silencio, continuaram a viajar pelo frio. Bárbara empenhou-se em refletir a fundo sobre a família
emendada a que passara a pertencer de repente. Pensou sobre si mesma, Sarah, Laurence e a sra. Ross.
Então, concentrou-se no membro mais importante, o que tornara possível a formação da família, o seu
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quase marido. Observou-o e, apesar do luar fraco, notou que as energias dele, após esse dia longo e
cansativo, tinham se esgotado.
A hospedaria, onde haviam jantado, apareceu um pouco mais adiante. Bárbara imaginava que Morgan
continuaria dirigindo para chegar à fazenda ainda essa noite, mas ele não conseguiria sem se expor a um
grande risco. Já era muito tarde e o lugar estava imerso na escuridão, porém ela o convenceu a parar a
charrete no pátio. Daí em diante, incumbiu-se das negociações.
Apesar de o hospedeiro resmungar um pouco por ser tirado da cama e se mostrar confuso ao ver um
bebê acrescentado à família Harris em poucos minutos, Bárbara, Morgan e Sarah estavam instalados
num pequeno quarto. Além de acender a lareira, o homem providenciou um berço e vários cobertores.
Bárbara examinou o cômodo e o achou limpo. Tratava-se de um abrigo extraordinário na situação em
que se encontravam.
Como Sarah houvesse sido amamentada uma hora e pouco antes, na Lloyd House, os primeiros cuidados
de Bárbara foram para Morgan. O esforço físico desse dia o tinha deixado lívido. Estava tão extenuado e
com tanta dor no ombro e no braço que permitiu sua ajuda para se despir e deitar.
Acomodado sob as cobertas, ele fechou os olhos, mas não adormeceu. Prestava atenção aos sons
abafados de Bárbara movendo-se pelo quarto. Eles o tranquilizavam. Esforçava-se por ouvir seus
últimos cuidados a Sarah, o farfalhar de suas roupas sendo tiradas e o escorregar de seu corpo na cama.
E então, encontrava-se junto a ele. O peso, o odor, a sua Bárbara. Virou a cabeça e abriu os olhos. Ela o
fitava na luz bruxuleante da lareira. A sua Bárbara. Os cabelos loiros como os de uma fada, os olhos da
cor de um lago encantado. Sentiu o espírito do amor avolumar-se e tornar-lhe o coração. Foi dominado
pelo desejo irresistível de...
Dormir.
O riso formou-se no peito, mas não escapou pelos lábios. Tinha a impressão de ser o personagem de uma
história engraçada. Esta era a quinta noite em que dormia com a sua Bárbara, linda e desejável e, pela
quinta vez, não lhe podia fazer amor.
Quando estava disposto, ela não quisera. Quando o desejara, ele se mostrara impotente. E nesse instante,
via-lhe o desejo maravilhoso nos olhos, porém ele não tinha forças.
Morgan sentiu-se amaldiçoado. Não verdadeiramente, pois estava feliz, confortável e com sono. A dor
no ferimento tinha diminuído bem. Procurou a mão de Bárbara sob as cobertas e seus dedos en-
trelaçaram-se nos dele. Os braços de ambos se tocavam e, embora os corpos estivessem separados, algo
em sua proximidade o fez perceber que ela também estava nua.
Desejava-a muitíssimo. Jamais sentira tanto amor por uma mulher. Estava faminto por ela, mas uma
sensação de contentamento, nunca experimentada antes, subjugava-o completamente. E apesar da viri-
lidade forte o estimular, o corpo tinha se exaurido com os esforços feitos nesse dia. As emoções o
ajudariam mais a se entregar a um sono profundo e restaurador do que a fazer amor.
— Bárbara — murmurou com o rosto ainda virado para-ela e os olhos entreabertos. — Não posso.
— Eu sei. Você está cansado.
— Mais do que isso. E meu braço.
"E o que: seu "braço tem a ver com isso?", ela teve vontade de perguntar. Mas apenas disse ao apertar-
lhe a mão:
— Acredito. Durma, Morgan.
— Já estou quase...
Momentos depois, ele já respirava profunda e cadenciadamente e Bárbara tinha a sensação de haver sido
abandonada com uma tocha acesa nas mãos. Deus, refletiu ela sem sono, ao determinar tão bem sua vida
nesse dia, esquecera-se do detalhe importante que coroaria a satisfação sentida. Nunca tinha conhecido
desejo tão forte por um homem. Dominava-lhe o corpo inteiro e ela chegava a sentir seu gosto na boca.
Como gostaria de ser beijada, tocada, possuída por Morgan, retribuir-lhe as carícias, entregar-se
completamente.
Mas ali estava ela dominada por uma carência ilimitada e sem perspectiva de satisfazê-la. Jamais
imaginara ser possível um anseio amoroso tão grande.
Como não importasse o que fizesse, encostou-se ao corpo nu de Morgan. Aliviada por ser o braço
direito, pôs a cabeça sobre ele, os seios prensados no lado e no peito e as pernas entrelaçadas nas dele.
Morgan não acordou e só lhe restou sonhar com ele, seu amor e seu corpo. Assim aconchegada, os
lábios tocando-o no pescoço, Bárbara entregou-se a um sono leve e excitado.
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Muito mais tarde, Morgan abriu os olhos. Sem sombra de dúvida, tinha entrado no paraíso. Lembrou-se
de haver pensado a mesma coisa na última vez em que acordara na cama de Bárbara e em seus braços.
Mas naquela ocasião, sofria uma dor horrível e, agora, não. A libertação do sofrimento físico só podia
significar a ascensão de seu corpo nu para receber a recompensa celestial pelas boas ações praticadas.
Achava muitíssimo adequado que o prêmio fosse o corpo nu de Bárbara aconchegado ao seu. Lembrou-
se de nunca ter acreditado que a parte carnal e a espiritual existissem em reinos separados. Alegrava-se
por ter essa prova gloriosa.
Não deixava de ser maravilhoso ter morrido, alcançado a santidade e ainda sentir a explosão de vida
entre as pernas. Tratava-se de uma experiência abençoada virar a cabeça, só um pouco, e tocar-lhe os
lábios com os seus. Como ele esperava de uma carícia santa, o beijo, foi suave, lindo, alem de provocar
nova manifestação de virilidade. Sentia-se grato por merecer recompensa pelas boas ações.
Mas então, virou-se a fim de complementar a realização do prêmio celestial e, ao fazê-lo, forçou o
ombro e o braço esquerdos. Uma dor tremenda neles provocou-lhe um gemido alto. Nesse instante, deu-
se conta de não ter morrido e ido para o céu.
Bárbara acordou com o movimento e o gemido. Ao abrir os olhos e fitá-lo com o amor mais puro e
sensual deste mundo, Morgan sentiu-se feliz por não ter morrido, apesar da dor.
Mas dessa vez, o desejo imperou soberano. Ele queria a recompensa merecida e se apossaria dela, com
Bárbara, nesta terra.
Fitou-a de tal forma que ela arregalou os olhos.
— Morgan? Você está bem? — questionou, hesitante.
— Sim — garantiu ele com firmeza.
A mão direita acariciou-lhe os seios, a cintura, o abdómen e escorregou por entre as coxas, enlaçadas na
dele. Ao procurar uma posição melhor, a dor e a vida enfrentaram-se em seu íntimo. Mas ele encontrou
uma abertura e os dedos apressaram-se em envolver-se na umidade deliciosa e feminina.
— Morgan — murmurou Bárbara tentando se retrair, mas incapaz de resistir às carícias dos dedos. —
Não quero que você se machuque.
— Sentirei uma dor muito pior se não penetrar seu corpo dentro de segundos.
As brasas que se queimavam lentamente no corpo de Bárbara irromperam em chamas, incendiando-a.
Pouco depois, juntavam-se finalmente, os corpos unidos como os corações e as almas.
— Verdadeiro céu — murmurou Bárbara.
— O próprio paraíso — concordou Morgan.

CAPITULO XXIV

Na manhã seguinte, depois de alimentados, Bárbara, Morgan e Sarah puseram-se a caminho da fazenda.
Não estavam descansados, pois uma vez tendo começado a fazer amor, prosseguiram amando-se pela
noite adentro. Porém sentiam-se satisfeitos e muitíssimo contentes consigo mesmos e com o mundo em
geral. Fitavam-se e sorriam, desviavam o olhar e sorriam. Não conseguiam parar de sorrir.
Enternecida e como se fosse uma adolescente, Bárbara estava ardorosamente apaixonada. Morgan
sentia-se vigoroso e comedido, o seu amor, rico e duradouro.
Viajavam sem contar os quilômetros, ou notar a lama na estrada. Morgan dirigia para que Bárbara
carregasse Sarah. Quando se aproximaram da casa de culto, ela disse:
— Pare!
Embora estivesse preocupado com o trabalho que os aguardava na fazenda e não quisesse perder tempo,
ele a atendeu. Ao ver Michael Gorsuch sair para o pátio, Bárbara desceu da charrete, foi-lhe ao encontro
e beijou-o nas duas faces. Com os olhos brilhando, murmurou:
— Obrigada, Michael, por tudo.
Atônito, o magistrado quase derrubou o cachimbo da boca. Relanceou o olhar por Morgan que
continuava sentado na charrete. Vários outros homens também saíram ao pátio e Bárbara ocupou-se em
lhes mostrar Sarah, contando as peripécias para recuperá-la. Eles, por sua vez, a informaram sobre o
estado de saúde promissor do balseiro em Old Roads Bay. Nesse meio tempo, Michael aproximou-se da
charrete.
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— Parabéns. Vejo que tiveram êxito no resgate do bebê — disse ele esforçando-se para manter o rosto
sério.
— Obrigado. Foi um plano ousado. Tivemos de entrar à força na Lloyd House, onde a sra. Ross estava
hospedada. — explicou Morgan sem descer, pois isso lhe custaria muito.
— Lloyd House? Não diga!— exclamou Michael impressionado. — Quando vocês passaram por aqui
ontem, não tinham idéia onde encontrar a inglesa e o tenente Richards. Por acaso eles deixaram uma
flexa indicando a direção tomada? — gracejou.
— Não, foi meu filho quem os descobriu. Ele é um ótimo rastreador.
— Ah, sei. Olhe, você vai ficar contente ao saber que, por causa de seu aviso ontem à tarde,
conseguimos acudir o balseiro a tempo. Ele quase morreu esvaído em sangue — contou Michael.
— Isso também devemos a meu filho.
— Vou ter oportunidade de agradecer-lhe pessoalmente? Morgan deu de ombros c sorriu.
— Não sei. Talvez na semana que vem.
Michael Gorsuch precisaria ser surdo, mudo e cego para não perceber como tudo estava entre Bárbara e
Morgan. Ela mostrava-se radiante e ele, apaixonado. Sentiu uma pontinha de ciúmes, pois também
gostava um pouco de Bárbara. Contudo, achava-se um tanto velho para essas bobagens e afastou a idéia
da cabeça. Observou as mãos desagasalhadas de Morgan. Apontando-as, perguntou:
— Tenho um par de luvas extra lá dentro. Acha que poderia usá-las?
— Talvez, quando o inverno chegar.
— Mas já está aqui!
— Não diga! Nem percebi — afirmou Morgan olhando à volta com ar cético.
— E mesmo. Você me contou que era de Quebec. O inverno lá deve ser terrível.
— Nem queira saber.
— Pretende voltar para lá?
— Tão cedo, não.
— E quanto ao casamento, tem intenção de legalizá-lo qualquer dia desses?
— Está se referindo à data na certidão?
— Sim, e na Bíblia de família também. Olhe, só estou pensando na alma imortal de vocês.
Não passou despercebida a Morgan uma ponta de malícia no olhar do magistrado.
— A minha alma encontra-se em excelentes condições atualmente. Naturalmente, não posso falar por
Bárbara — afirmou Morgan ao relancear o olhar por ela. — Talvez, qualquer dia desses, eu lhe faça um
pedido formal para ser minha mulher. Mas no momento, não quero fazer nada que possa entornar o
caldo, se entende o que quero dizer.
Michael entendia. Ficara chocado, e aliviado ao mesmo tempo, ao ver a expressão de Morgan Harris ao
olhar para Bárbara. Considerava um privilegio constatar um amor como o desse homem por sua mulher.
— Bem, vocês estão morando juntos legalmente na superfície, mas isso, para mim, é válido.
Morgan sacudiu a cabeça e tocou a aba do chapéu em reconhecimento à aceitação amável, do
magistrado, de sua união irregular. Viu Bárbara aproximar-se da charrete e sentiu-se grato por Michael
ajudá-la a subir. Só apanhou as rédeas depois de arranjar a manta sobre suas pernas.
Enquanto lhes acenava adeus, Michael Gorsuch perguntou em tom provocador:
— Veremos o sr. e a sra. Harris no culto amanhã cedo? Surpresa, Bárbara exclamou:
— Misericórdia! Amanhã é domingo?! — Olhou para Morgan como se considerasse os planos para o
dia seguinte, mas sua expressão era tão transparente que provocou uma ferroada de inveja em Michael.
Com ar sério, virou-se para ele. — Infelizmente, deixamos muito trabalho acumulado esses dias todos.
Não vai ser possível vir amanhã. Talvez na próxima semana.
O magistrado teve de se esforçar para não rir de sua seriedade.
— E quanto a suas convicções religiosas, Morgan Harris? Uma semana a mais, ou a menos, fará
diferença?
— Nem vinte anos! — respondeu Morgan rindo. — Mas quem sabe, daqui a uma semana, eu tenha
adquirido alguma convicção religiosa.
Com um último aceno, virou a charrete rumo a Long Log Lane.
Bárbara mal podia acreditar que quase uma semana havia se passado desde a chegada de Morgan Harris.
Tinha sido há seis dias, no domingo à noite, quando ele batera em sua porta à procura de trabalho. De
manhã, ela havia ido à casa de culto, feito suas orações, reservada e tranquila, sem interesse algum por
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nada além da filha. Como resultado de seis dias tumultuados e inimagináveis tudo estava mudado. Tinha
a sensação de haver vivido um ano fantástico nesses poucos dias.
E amanhã era o dia glorioso de descanso.
Sabia muito bem onde queria passá-lo.
Olhou para Morgan e ele a olhou.
Tomada pelo desejo, Bárbara prendeu a respiração.
— Será que aguentamos chegar em casa? — sussurrou ela. Morgan olhou para trás onde a casa de culto
já tinha desaparecido.
Depois, observou os campos à volta que sumiam no horizonte. Estavam numa charrete aberta, fazia
muito frio, Sarah estava com eles e seu braço doía. Todos impedimentos sem importância, considerou.
— Não estou com pressa de voltar e este lugar é tão bom como qualquer outro para parar — respondeu
ele.
— Morgan, não! — protestou ela ao vê-lo se aproximar.
— Foi você quem começou — acusou ele ao segurar-lhe o queixo a fim de beijá-la.
— Eu, não!
— Ora, você me olhou.
— E isso é "começar"?
— Claro. Acho provocação deliberada e não vejo razão para não aceitá-la.
Morgan já tinha a mão dentro de seu casaco, mas não da blusa, e tocava-lhe os lábios. Embora o beijo
ainda não fosse profundo, ambos sentiam-se excitados e lutavam para se ajeitar na situação
desconfortável. De repente, ouviram barulho vindo de trás e separaram-se depressa.
— Laurence — murmurou Bárbara.
— Ele não seria tão descuidado.
— Então, Ben Skinner. Ele sempre usa esta estrada.
— Também pode ser alguém da casa de culto indo ver como está o balseiro.
A disposição arrefeceu, mas não o desejo.
— Vamos logo para casa, longe de olhares indiscretos — disse Bárbara em tom irritado.
Morgan sorriu de sua impaciência e tez o possível para aumentar a velocidade da charrete na estrada
irregular e lamacenta. Mas o trajeto parecia interminável, pois o desejo insaciável continuava a fustigá-
los. Quando estavam perto de casa, o suficiente para ver a porta rachada e trancada por dentro, Bárbara
exclamou:
— Chegamos! Ainda bem que esperamos. Vai ser melhor agora, Primeiro, tiveram de levar a charrete ao
telheiro e desatrelar o cavalo.
Só então, entraram em casa pela porta de trás. Nem deram atenção à recepção alegre de Bolso, o pobre
cachorrinho abandonado por quase vinte e quatro horas. Ele conseguira encontrar comida, mas tinha
provocado o maior caos na cozinha. Bárbara viu e não se importou.
Ela e Morgan foram para o quarto, acomodaram Sarah no berço e, depois de se livrarem das roupas,
caíram na cama com um indiscreto Bolso, abanando a cauda, de audiência.
Quando terminaram, sentindo-se relaxados e rindo felizes. Bárbara passou a mão na superfície da cama.
— Não quero mais esta colcha — declarou inesperadamente. Morgan não entendia de colchas e não
tinha objeções quanto a essa.
— Alguma razão em particular? —. perguntou por curiosidade.
— Não. É velha e muito usada, mas continua em bom estado. Talvez eu não a queira mais porque o
casaco da sra. Ross ficou em cima dela alguns dias atrás.
— Vai esperar ate a primavera, ou tem uma outra para pôr no lugar? Bárbara sorriu.
— Estou me sentindo muito inspirada para continuar a tecer. Ganhei, uns tempos atrás, umas meadas de
lã azul-esverdeada, linda. Comecei algo, mas sem uma idéia determinada. Também não tinha muito
tempo. Porem com o inverno aqui...
— É mesmo. Sempre me esqueço em que estação estamos.
— Você pode achar que não faz muito frio, mas para nós, é suficiente. Ainda vai esfriar bastante e, em
janeiro, sempre temos nevascas muito fortes. Não importa. Eu estava falando sobre tecer, uma atividade
útil para me ocupar dentro de casa, durante os meses de inverno.
Morgan sorriu e pensou como poderiam gastar o tempo dentro de casa, de maneira útil e agradável, nos
meses seguintes. Não disse nada, apenas acomodou a mão sobre seus seios.
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— De qualquer forma, já sei que quero uma colcha nova — continuou Bárbara ao dirigir um olhar
sensual para Morgan. — Sintomático e sugestivo, não acha?
Morgan gostou das palavras. Acariciou-a e perguntou:
— O que vai fazer com esta? Como você disse, a colcha ainda está em bom estado. Sem dúvida, vai
achar alguma utilidade para ela.
— Talvez eu de para alguém. Tenho certeza de que alguma família necessitada fará bom uso dela.
Bárbara havia mudado tanto nesses últimos dias que nem se deu conta de, jamais, ter dado alguma coisa
para alguém num ato de generosidade. Sempre achara não ter o suficiente para compartilhar com outras
pessoas. Considerava sua vida muito difícil e, se desse algo, reduziria seus parcos pertences.
Agora, livre do peso nos ombros, sentia uma grande disposição para apreciar a vida. Os dias, a sua
frente, estendiam-se tranquilos, luminosos e, pensar nos outros, ajudá-los seria uma parte natural deles.
Com Morgan ao lado, Sarah no berço, um teto sobre a cabeça e os campos a sua volta, sentia-se
imensamente rica. A idéia de dar, de compartilhar causava-lhe prazer. Mentalmente, viu-se lavando a
colcha, passando-a a ferro, enfim, deixando-a pronta para o uso de alguma família necessitada.
Mas, esses anos todos de uma existência emocionalmente afastada da comunidade em que vivia, a
tinham deixado alheia quanto a situação de outras pessoas. Havia frequentado o culto todos os domingos
e não ignorava que, em North Point e Baltimore, existia muita gente pobre. Contudo, não podia
visualizar ninguém. Com ar sério, fitou Morgan.
— Vou ter de pedir ao reverendo Austin uma lista de pessoas que precisem de ajuda.
Porém, a menção do nome do sacerdote excêntrico anulou a seriedade do comentário. Por algum tempo,
não controlaram a hilaridade difícil de ser explicada a outra pessoa. Quando pararam de rir e enxugaram
as lágrimas, o apetite mútuo tinha se renovado. Não hesitaram em fazer amor novamente, mas dessa vez,
foi de maneira vagarosa, sensual, sem a intensidade faminta das uniões anteriores, porém com muito
mais sentimento.
Algum tempo depois, quando as reclamações de Sarah não podiam mais ser ignoradas, levantaram-se
para se vestir e trabalhar durante o tempo que restava do dia. Bárbara ficou pronta primeiro e apro-
ximou-se de Morgan que, sentado na beirada da cama, tentava calçar as meias. Com as mãos nos ombros
dele, beijou-o na testa. No mesmo instante, ele tocou-lhe os seios por cima da blusa. O choro da criança
aumentou de volume.
— Sarah — disse ele virando a cabeça para o berço.
— Menina mimada. Ela pode esperar. Estou beijando você. Mas Sarah insistiu mais alto.
— O que pretende fazer hoje? — indagou Bárbara conseguindo ignorar a filha.
— Rachar lenha — foi a resposta imediata.
Ela curvou-se para ajudá-lo a calçar as meias. Depois, foi a vez da camisa. Antes de abotoá-la, Bárbara
examinou a cicatrização do corte.
— Será que vai conseguir rachar lenha? — indagou sem fitá-lo.
— Não — admitiu Morgan sacudindo a cabeça.
— Também acho, mas não quis dizer nada. Você mesmo terá de determinar os limites de sua capacidade
— afirmou ela perdendo-se, então, no extraordinário azul-escuro dos olhos de Morgan.
— Eu sei. Não vou cometer excessos que possam atrapalhar minha recuperação — garantiu ele.
— Otimo. — Afastou-se dizendo: —Já estou indo, menininha exigente!
Levantou Sarah do berço e a beijou amorosamente. Morgan terminou de se vestir, apanhou o sobretudo
largado no chão e estalou os dedos chamando Bolso para acompanhá-lo. Já ia saindo quando Bárbara lhe
perguntou:
— O que quer para o jantar?
— Qualquer coisa — respondeu ele dirigindo-se à porta de trás, por onde saiu com Bolso pulando à
volta.
Lá fora, foi inspecionar a pilha de lenha para rachar, junto ao poço. Viu o machado cravado na tora
usada como suporte. Imaginou-se levantando a ferramenta, com ambas as mãos, acima da cabeça e
baixando-a sobre a lenha. Quase chegou a sentir a distensão dos músculos nos ombros, nas costas e nos
braços.
Ansioso, tentou flexioná-los e percebeu que levaria dias, talvez semanas, para se encontrar em condições
de enfrentar esse trabalho. Fez um cálculo rápido da reserva de lenha rachada. Não era muita. Resolveu
pedir a Ben Skinner, o vizinho prestativo, para executar a tarefa.
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Suspirou e pôs-se a caminhar sem outro propósito a não ser inspecionar os campos. Enquanto andava,
pôs as mãos nos bolsos, embora elas não estivessem frias.
Morgan respirava fundo e devagar, tentando sentir o aroma de inverno no ar úmido. Inútil. Olhou para a
terra marrom-escura sob as botas e para Bolso, o vira-lata. Na distância, observou um grupo de árvores
finas e sem beleza alguma. Imaginou se o filho estaria escondido entre elas. O que Laurence pretendia
fazer era um desafio.
Chegou o momento de minha paz e felicidade terminar, refletiu Morgan. Esperava que a alegria das
últimas horas estivesse destinada a desbotar e perder a forma. Contemplou os campos com os quais,
talvez, tivesse de se contentar pelo resto da vida. Deu-se conta de que jamais reaveria a fazenda no oeste
de Massachusetts. Nunca mais sentiria o frio seco e estimulante do inverno no norte, nem o odor acre da
terra fértil, não se encostaria no tronco largo de árvores frondosas, não caçaria com um cão de raça, não
criaria o filho pequeno até se tomar homem. Percebeu que havia sonhado com o retorno do passado
intato, sem marcas e esse sonho servira de combustão para sua depressão negra, durante a noite sombria
dos quinze anos.
Então, era isto que tinha agora, este tipo de vida, o ar úmido, a terra marrom, o cachorro vira-lata. Viu-se
na planície sólida e segura. Sentiu-se bem, mas imaginou se isso seria suficiente. Afinal, existia limite
para o que uma mulher e uma criança poderiam oferecer.
Agora chegaria, voltou a pensar, o fim de minha paz e de minha felicidade, juntamente com o fim de
meu sonho perfeito e irrealizável.
Morgan sentiu-se no vértice de uma espiral emocional. Numa expectativa amedrontada, parou de andar.
Sabia o que aconteceria no instante seguinte.
A espiral, entretanto, não o puxou para baixo, direção tão conhecida sua. Não o atormentava, mas
confortava-o. Também não subia, pois já estava no topo. Ela rodopiava para fora, expandindo-se. De
repente, ele deixou de se preocupar por estar em seu vértice. Ela era agradável, estimulante e prendia-se
na estrutura luminosa, ampla, de alicerces sólidos em seu âmago.
Permaneceu imóvel absorvendo a sensação, enchendo a alma e o coração de harmonia e contentamento.
Reconheceu-a, embora nunca a tivesse experimentado.
Olhou para o grupo de árvores e notou uma pequena movimentação entre elas. Laurence estava
acampado lá, tinha certeza. Ele rodearia a casa, cada vez mais perto, até poder entrar nela novamente e
ser repreendido pelo pai. Morgan o aguardaria com paciência, pois tinha, diante de si, a vida inteira.
Nesse instante, o desperdício dos quinze anos desapareceu e ele viu o futuro desenrolar-se a sua frente.
Ouviu um chamado vindo de trás. Virou-se e, apesar da distância, viu Bárbara acenando-lhe da porta.
Com certeza, queria lhe perguntar algo. Adivinhava seu sorriso encantador e não mais, raro. Olhou de
volta para as árvores, pensando no filho e, de relance, na sra. Ross. Acenou para Bárbara enquanto
começava a andar para casa a fim de responder-lhe a pergunta. Quanto mais se aproximava, mais a
espiral se expandia. Ele já não previa seu fim, nem se preocupava com uma possível descida. Aceitava-a
simplesmente, ajeitando-a sobre os ombros como se fosse uma jaqueta leve.
Correu os últimos metros com Bolso, o vira-lata, esforçando-se para acompanhá-lo. Foi tomado por uma
vontade paternal imensa de entrar em casa, levantar Sarah nos braços, estreitá-la de encontro ao peito e
dar-lhe um beijo.
Ao passar pela porta, Bárbara falou-lhe.
Ele respondeu.
Entretanto, a palavra que ecoava em sua mente, inundando-lhe a alma e o coração, ele nunca havia
pronunciado, nem experimentado sua emoção. Reconhecia-a, porém.
Alegria!

FIM

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