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Só Tanakh ‫רק תנ״ך‬ 10.06.20

Teologia do Livro de Rute


Chandler Tiago dos S. Sant’ Ana1

1 INTRODUÇÃO
A autoria do livro de Rute é incerta. Segundo o Talmud o livro seria da autoria de
Samuel (Baba Bathra 14b), mas é pouco provável; parece que Davi era bem conhecido na
época em que o livro foi escrito e Samuel já estaria morto. Uma data possível para o livro
seria o século 10 a.C., visto que o livro não cita Salomão. (CUNDALL et al., 1968, pp. 218 –
219; GLEASON, 1974, p. 204).2
A história narrada no livro de Rute se passa no período dos juízes. O período dos
juízes foi marcado por diversas apostasias do povo de YHWH. Quando Josué morreu o
povo ficou sem um líder, e por diversas vezes seguiu as práticas pagãs dos povos vizinhos
(Jz 2. 11, 17, 19; 3. 6; 4. 1 – 2; 6. 1; 8. 33; 10. 6; 13. 1; 17. 6, 21, 25). Toda vez que Israel se
corrompia, YHWH mandava nações pagãs para subjugá-los, como havia sido previsto no
contrato de aliança (Dt 28; Lv 26). Porém, assim como Israel caía em pecado e era
subjugado, também se arrependia, e quando isso acontecia, eles clamavam a YHWH por
socorro; Ele, então, levantava juízes para libertar Seu povo e lhes dar descanso (Jz 2. 16,
18; 3. 15; 4. 3; 6. 7; 10. 1). Os juízes não eram como os juízes dos dias atuais; antes, eram
líderes militares guiados pelo Espírito de YHWH para libertar o povo (LASOR et al., 2002,
p. 166).
No período dos juízes Elimeleque e sua família migram de Belém para as terras de
Moabe por conta de uma fome em sua terra natal. Os dois filhos do casal, Malom e Quiliom,
se casam com mulheres Moabitas, Rute e Orfa. Por motivos não mencionados no livro
Elimeleque e os dois filhos morrem em Moabe e Noemi, sua esposa, ao saber que a fome

1 Graduando em Teologia pelo Seminário Adventista Latino Americano de Teologia (SALT); graduando
em História pelo Centro Universitário UNINTER.
2 Para um estudo detalhado sobre a autoria e datação do livro de Rute ver. Cooke, G. A. (1918); Bush,

F.W. (2002).
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havia cessado em Belém decide voltar. Ela insiste para que suas duas noras retornem para
a casa de seus pais; Orfa volta e Rute decide acompanhar sua sogra para sua terra natal.
Estabelecidas em Belém elas precisam de comida e Rute vai até as plantações de Boaz, um
parente de Noemi, para respingar cevada e trigo. Boaz como parente próximo é lembrado
por meio de uma estratégia engenhosa de que ele deve resgatar a terra e a jovem Rute. O
resgate acontece e os dois se casam dando um neto para Noemi.

2 ESTRUTURA LITERÁRIA

Em sua teologia Bruce Waltke (2015, pp. 949 – 950) propõe uma estrutura de
quiasmo para o livro que será apresentada abaixo.

A Noemi: idosa demais para ter filhos (1.1-22)


B Apresentação de um possível resgatador (2.1)
C Rute e Noemi fazem um plano (2.2)
D Rute e o campo de Boaz (2.3)
E Boaz vem de Belém (2.4)
F Boaz indaga: “Quem é esta moça?” (2.5-7)
G Rute se torna parte do clã de Boaz (2.8-18)
H Noemi abençoa Boaz (2.19)
I Boaz, um resgatador em potencial (2.20)
J Rute se junta aos trabalhadores de Boaz (2.21-23)
X O plano feito por Noemi e Rute (3.1-8)
J’ Rute desafia Boaz a agir como resgatador (3.9)
I’ Rute se identifica como serva de Boaz (3.9)
H’ Boaz abençoa Rute (3.10)
G’ Boaz promete casar-se com Rute (3.11-15)
F’ Noemi pergunta; “Quem és tu?” (hebr.) (3.16-18)
E’ Boaz vai a Belém (4.1)
D’ Rute e o campo (4.2-12)
C’ O plano de Rute e Noemi se realiza: casamento (4.13)
B’ Aceitação do resgatador (4.14-16)
A’ Noemi tem um filho! (4.17)
Epílogo; que filho — Avô do rei Davi! (4.19-22)

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A estrutura quiástica do livro está em harmonia com sua estrutura narrativa. O


enredo se desenvolve ao longo de cinco atos:

1. Rute emigra de Moabe para Belém (1.1-22)


2. Rute colhe no campo de Boaz (2.1-23)
3. Rute propõe casamento a Boaz (3.1-18)
4. Boaz resgata Rute (4.1-12)
5. Rute dá à luz Obede/Davi (4.13-17)

O enredo é dominado pelos diálogos dos personagens. Lasor (2002, p. 572) destaca
que “os vários diálogos da história, não a narrativa do autor apresenta os eventos”. No
presente artigo apresentaremos a ideia de que a teologia do livro está presente nos
diálogos dos personagens.3

3 TEMAS TEOLÓGICOS

3. 1 YHWH é Soberano e Mantenedor

Os diálogos dos personagens no livro de Rute estão repletos de declarações acerca


da Soberania de YHWH. No prólogo do livro o narrador informa que após a morte do
marido e de seus dois filhos Noemi decide voltar para Belém com suas duas noras pois
soube que YHWH estava provendo alimento para seu povo (Rt 1. 6). Entre a saída de
Moabe e a chegada a Belém há declarações significativas sobre YHWH nos diálogos.
Na primeira após a saída de Moabe Noemi deseja as duas noras que YHWH as trate
com bondade, pois, foi desta forma que elas trataram sua família (Rt 1. 8 – 9). Neste
diálogo ela convida suas noras a voltarem para suas famílias e Noemi destaca que a “mão
de YHWH está sobre ela” (Rt 1. 13). Tal declaração parece indicar que ela entendia que as
adversidades vividas em Moabe eram frutos da mão de YHWH.
As duas noras não queriam voltar, mas com a insistência de Noemi Orfa resolve
voltar e Rute decide ficar. Neste momento Rute faz uma das declarações mais conhecidas
de seu livro: “teu povo é o meu povo e teu Deus é o meu Deus” (Rt 1. 16). Ela complementa
dizendo que ficará com Noemi e que se YHWH quiser lhes separar deverá castigá-la pois
só a morte irá lhes separar (Rt 1. 17). A declaração de Rute é importante para o presente

3 Para um estudo detalhado sobre a importância dos diálogos ver. (ALTER, 2007, pp. 102 – 136).
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estudo, pois, após ela reconhecer o Deus de Israel como seu Deus ela reconhece que ele
pode mandar uma calamidade para separa–las.
Na chegada de Noemi e Rute a Belém; Noemi faz declarações significativas sobre o
Deus de Israel. Noemi atribui todas as calamidades que acometeram em Moabe a mão de
YHWH (Rt 1. 19 – 22). Tais declarações exibem a realidade de que elas acreditavam que
YHWH estava no controle de suas vidas.

Noemi concluiu que Shadday havia e voltado contra ela. É significativo o uso da
palavra Shadday nestas circunstâncias. Esse é um dos teônimos do Deus de Israel na Bíblia
Hebraica (BH) e aparece quarenta e oito vezes. As ocorrências desse vocábulo nos livros
Bíblicos anteriores a juízes estão geralmente relacionadas a aliança, a benção em relação
a família e a descendência daquele que teme a Shadday (Gn 17. 1; 28. 3; 35. 11; 43. 14; 48.
3; 48. 3; 49. 25; Êx 6. 3; Nm 24. 4, 16) (HAMILTON, 1998, p. 1530; RÖMER, 2016, p. 84;
METTINGER, 2015, pp. 108 – 113; BUSH, 2002, p. 92). Robert L. Hubbard (2003, p. 176)
destaca:
E mais, o nome era apropriado ao contexto aqui, visto que a BH associava
Shadday com o governo cósmico de Deus (Nm 24.4,16; Sl 68.15; Jó 40.2;
cf. 34.12,13). Por natureza, grande e misterioso (Jó 11.7), Shadday
dispensa bênçãos, promete grandes destinos (Gn 17.1; 28.3; 35.11;
43.14) e distribui destinos aos maus e aos retos (Jó 27.14; 31.2). Como
regente cósmico, ele também supervisiona a manutenção da justiça (Jó
8.3; 24.1; 27.2), distribuindo terríveis castigos (Jó 6.4; 23.16; 27.14–23;
cf. o terror de sua voz, Ez 1.24; 10.5). As pessoas apelam para ele por
vindicação legal e socorro (Jó 8.5; 13.3; 31.35). (Cf. também seu lado
terno, Sl 91.1.) Em suma, Noemi referiu-se a Shadday corretamente neste
contexto. Sua sorte não poderia ter vindo de outra fonte – como também
a futura inversão da sorte dela.

A viúva angustiada acreditava que Shadday que abençoa a família e a descendência


havia se posto contra ela. Essa realidade era comum no mundo antigo onde as pessoas
acreditavam que tanto as maldições quanto as bençãos eram obras da divindade
(WALTON et al., 2018, p. 361). YHWH sendo criador de tudo e mantenedor é visto como
Aquele que pesou a mão contra ela. Nesta época ainda não havia uma teologia
desenvolvida sobre as forças malignas que agem sobre a terra. O livro de Jó contribui

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significativamente para a ideia de que existem poderes além de YHWH agindo sobre a
terra.
Estabelecidas em Belém elas precisam de alimentos e Rute decide respingar cevada
e trigo (Rt 2. 2, 23). Neste contexto YHWH novamente é apresentado como Soberano. É
necessário destacar que a primeira fala de Boaz no livro é: “Que YHWH esteja convosco!”
e a dos servos dele é: “Que YHWH te abençoe” (Rt 2. 4). No diálogo entre Boaz e Rute ele
deseja que YHWH retribua a ela tudo que fez por sua sogra e destaca que ao ir para Belém
ela buscou refúgio em YHWH (Rt 2. 12). As falas de Boaz indicam que ele é um homem
temente ao Deus de Israel e que crê que esse Deus intervém na história de uma pessoa.
Ainda pode se destacar que em sua fala é expressa a ideia de que YHWH cuida de Belém;
realidade exibida na fala do narrador no início do livro (Rt 1. 6). O Deus de Israel está
atento para as necessidades das pessoas de forma individual e para as do seu povo.
Ao final daquele dia de colheita Rute relata para sua sogra como Boaz lhe foi
favorável (Rt 2. 19). Quando Noemi soube de tudo que Boaz fez para ajudar Rute ela
salienta: “Bendito seja ele de YHWH, que ainda não tem deixado a sua benevolência nem
para com os vivos nem para com os mortos.” (Rt 2. 20 ARA). A fala de Noemi revela que
ela entendia que YHWH estava por trás dos atos de bondade de Boaz, isto é, ele foi usado
por YHWH para favorecer elas.
Terminada a colheita da cevada e do trigo Noemi instrui Rute a ir até Boaz e deitar-
se aos seus pés para que ele as resgate (Rt 3. 1 – 5). Rute seguiu as instruções de Noemi e
se deitou aos pés de Boaz na eira. Neste contexto Boaz e Rute tem uma conversa na qual
ele se alegra pela escolha de Rute; ela poderia ter buscado um homem mais jovem para
lhe resgatar, mas não foi o caso. Boaz interpreta esse fato como um gesto de bondade por
parte de Rute (3. 6 – 11). Ele declara: “Bendita sejas tu de YHWH” (3. 10). Na sequência o
narrador conta sobre o resgate de Noemi e Rute por parte de Boaz (4. 1 – 12). Os homens
da cidade após presenciarem o resgate e sabendo que Rute iria se casar com Boaz desejam
a ele que YHWH abençoe o lar dele por meio de Rute (4. 11 – 12). Percebe – se nesta
narrativa que os personagens não só acreditavam que Rute foi abençoada por YHWH por
meio de Boaz, mas que ele também seria abençoado por YHWH por meio dela.
Rute e Boaz se casam e ela fica gravida. O fruto do ventre de Rute é apresentado
como benção de YHWH para eles e para Noemi que a partir de então teria um resgatador
(Rt 4. 4. 13 – 16). Cundall, A. e Morris, L. destacaram (1968, p. 302):

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Observe que o filho que nasceu é considerado um presente de Deus. Ao


longo deste livro, existe o pensamento consistente de que Deus está acima
de tudo e realiza sua vontade. Acabamos de ver que os anciãos e outros
consideravam as crianças como um presente de Deus (4.12) e agora
vemos o mesmo pensamento do autor.

Os personagens do livro de Rute apresentam a crença de que YHWH estava cuidando


deles e lhes abençoando. YHWH pode abençoar ou não e isso pode se dar diretamente por
sua mão ou por meio de outras pessoas que temem a Ele. YHWH é soberano e mantenedor
daqueles que o temem. Nas palavras de William S. Lasor (2002, p. 573): “Em suma, o livro
ensina “plena causalidade” de Deus – uma direção contínua e soberana de tudo.”

3. 2 O Go’el

O resgate de Rute e Noemi é um tema singular. O narrador introduz a segunda parte


do livro com um anúncio de enredo: “Tinha Noemi um parente de seu marido, senhor de
muitos bens, da família de Elimeleque, o qual se chamava Boaz” (Rt 2. 1). O escritor da
inicia a segunda parte do livro de tal forma para criar expectativa no leitor. Os leitores
antigos ao lerem tal declaração podiam vislumbrar o futuro resgate e de fato ele acontece.
No mundo antigo o papel do parente resgatador era ajudar a recuperar as propriedades
da família; se uma pessoa precisasse vender uma propriedade para pagar uma dívida, o
Go’el deveria resgatar para manter a propriedade na família e isso também servia como
um sinal de que a pessoa era parte da comunidade da aliança. No caso de Noemi há um
agravante, pois, não se tratava apenas do resgate da terra, mas também de Rute, a
Moabita. Uma vez que o Go’el regatasse a terra, também resgataria Rute e o filho dessa
relação seria filho do falecido e teria direito a terra da família que foi resgatada. Assim o
resgate da terra implica em uma generosidade singular por parte do Go’el (VAUX, 2003,
pp. 143 – 145; WALTON et al., 2018, p. 362 – 363; WALTON, 2009, p. 261).
O hebraísta Luís Alonso Schökel (1997, p. 125) em seu dicionário de hebraico faz a
seguinte observação sobre o termo Go’el: “Resgatar. Em sentido próprio significa a ação
legal pela qual um responsável, perante, ou substituto, recupera bens alienados, livra
escravos ou cativos, vinga assassínios, recupera bens consagrados, casa – se com uma
viúva sem filhos.”. O uso desta palavra no tronco qal no hebraico é de cunho legal e assim
ao que tudo indica nossa palavra foi tomada de um contexto legal e de tal forma é usada

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na Torá. A palavra está relacionada ao resgate de uma propriedade (Lv 25.47 – 49); ou de
uma pessoa que se vende como escravo (Lv 25. 48 – 49); ainda é usado para o resgate de
Rute (Rt 3.12; 4.4, 9, 10)4 (WESTERMANN et al., 1997, p. 401; HUBBARD, 2011, p. 769).
Um uso recorrente de Go'el na Bíblia Hebraica é o teológico. Em diversos texto
YHWH é o redentor de Israel (Is 41. 14; 43. 1, 14; 44. 6, 22). YHWH foi considerado pelos
escritores Bíblico como o Go'el de Israel.
O texto do livro de Rute exegeticamente e teologicamente não se refere a uma
redenção como vista nas páginas do Novo Testamento, porém é inegável a ideia de uma
redenção para além das fronteiras do Israel étnico e que é vista de forma clara nas páginas
do Novo Testamento (MERRILL, 2009, p. 413; MCGEE, 1991, p. 88).

3. 3 Resgate para os Gentios


O livro de Rute exibe a realidade de que YHWH não queria salvar apenas Israel.
YHWH salva os descendentes de Abraão como também os gentios que entram em
relacionamento com Ele. Rute é chamada de Moabita no livro que leva seu nome sete vezes
(1. 22; 2. 2, 6, 21; 4. 5, 4. 10). O autor parece querer chamar a atenção do leitor para o fato
de Rute ser uma Moabita e tal ideia parece ser reforçada pelo fato de a palavra
“Mo’aviyyah, Moabita” aparecer dezesseis vezes na Bíblia Hebraica, ou seja, praticamente
a metade das ocasiões em que a palavra aparece então concentradas no livro de Rute (Dt
2. 11, 29; 23. 4; 1 Re 11.1; Ed 9. 1; Ne 13. 1, 23; 1 Cr 11. 46; 2 Cr 24. 26).
A primeira fala de Rute na narrativa merece atenção neste momento. As falas dos
personagens Bíblicos revelam quem eles são. A declaração inicial “teu povo é o meu povo
e teu Deus é o meu Deus” (Rt 1. 16) revela quem é Rute e qual será seu relacionamento
com YHWH. Hubbard (2003, pp. 166 –167) ao comentar sobre a fala de Rute bem
salientou:

Ela renunciou suas raízes étnicas e religiosas e adotou a nacionalidade e


a religião de Noemi. Dali em diante, seus parentes seriam israelitas; seu
deus, Yahweh. Como isso surpreende em vista da acusação amarga que
Noemi fez de seu Deus, no v.13! E mais, como é sem paralelos essa
afirmação na Bíblia. Enquanto que algumas pessoas estrangeiras
louvaram o Deus de Israel (a rainha de Sabá, 1Rs 10.9; Nabucodonozor,

4Por motivos de espaço não será oferecida uma discussão sobre esses significados. Para mais detalhes
ver. (HUBBARD, 2011, p. 765 – 769; BRIGGS, 1977, p. 145).
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Dn 2.47; 3.28,29; 4.34 [port. 37]; Dario, Dn 6.27,28) ou buscaram sua


misericórdia (o rei da Assíria, Jn 3.7–9) só duas realmente confessaram
lealdade a ele (Raabe, Js 2.11; Naamã, 2Rs 5.15; cf. v.17). Em todo caso,
não se deve minimizar o sacrifício e dor envolvidos. Qualquer que tenha
sido a motivação dela ou seu conhecimento de Yahweh, ela
voluntariamente abandonou a família, o ambiente e arredores
conhecidos e suas tradições religiosas. Ela assumiu o futuro incerto de
uma viúva amargurada numa terra onde não conhecia ninguém, gozava
de poucos direitos legais, e – dada a tradicional rivalidade moabita-
israelita – enfrentava possível preconceito étnico (para detalhes, ver o
comentário em 2.2).

A realidade de que Rute abandonou os deuses de sua terra e decidiu servir ao Deus
de Israel é evidente. Naomi se esforça para que Rute voltasse a seus próprios deuses. Não
era incomum as mulheres que se casarem com famílias estrangeiras buscarem a proteção
contínua de suas deidades nativas (Gn 31.19; 1 Rs11. 8; 16. 31) (WALTON et al., 2018, p.
360; FLEENOR et al., 2008, p. 338; KEIL et al., 1996, pp. 346 – 347). No diálogo de Boaz
com Rute é confirmada essa ideia quando ele destaca que ao ir para Belém ela estava
buscando refúgio no Deus de Israel. Ao falar da confissão de Rute é dito de forma
inusitada no Talmud5:

Naomi disse a ela: Somos ordenados a observar seiscentos e treze


mandamentos. Rute respondeu: “O seu povo é o meu povo” (Rt 1.16).
Noemi lhe disse: A adoração idólatra é proibida para nós. Rute
respondeu: "Seu Deus é meu Deus" (Rt 1.16). Naomi disse-lhe: Quatro
tipos de pena de morte foram entregues a um tribunal com o qual punir
aqueles que transgrediram os mandamentos. Rute respondeu: "Onde
você morrer, eu morrerei" (Rt 1.17). Naomi disse a ela: Dois cemitérios
foram entregues ao tribunal, um para os executados por crimes mais
graves e outro para os executados por crimes menos graves. Rute
respondeu: "E ali serei enterrado" (Rt 1.17). Yevamot 47b

Bruce Waltke (2015, p. 965) acertadamente observou que “a clássica confissão de fé


em Eu Sou (1.16) e seu compromisso com Israel apresentam-na como uma viúva

5 Todas as citações do Talmud Babilônico seguem a numeração de Neusner (2011).


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desamparada que [...] toma decisões com base num compromisso deliberado com Eu Sou
(1.20,21).” A decisão dessa gentia foi acertada de tal forma que ela entrou para a
genealogia do rei Davi e para a do Messias de Israel (4. 18 – 22; Mt 1. 1 – 17).
Eugene Merrill (2009, pp. 412 – 413) bem salientou que a genealogia ao final do livro
demonstra como uma gentia, Rute, a semelhança de Raabe pode fazer parte da aliança
entre YHWH e seu povo. Merrill ainda destaca que a “ligação entre Abraão (ou Perez aqui,
filho de Judá) 6e Davi, são as alianças que eles, respectivamente, representam que têm
mais relevância teológica.”.7 Assim parece razoável sugerir que a entrada de Rute na
aliança de YHWH com seu povo exibe a realidade de que Ele não pretendia salvar somente
o Israelita, porém também o não israelita.

4 INTERTEXTUALIDADE

Há uma tensão entre os Moabitas e os filhos de Israel desde o surgimento de ambas


as nações. YHWH prometeu para Abraão que dele faria uma grande nação e fez (Gn 12. 1
– 3; 15. 1 – 11; Dt 1. 9 – 11). O nascimento da descendência de Abraão foi miraculoso desde
o início, Sara esposa de Abraão não poderia ter filhos e YHWH lhe abre o ventre (Gn 11.
30; 18. 1 – 15). O contexto da promessa de que Sara ficaria gravida é contraposto ao
nascimento de Moabe (Gn 18 – 19).
Jacques Doukhan (2016, p. 242) destaca uma relação literária em Gênesis 18 e 19
que merece atenção. Esse vínculo exibe uma dessemelhança desde a origem entre a
descendência de Abraão e a de Ló.

A Visita dos anjos a Abraão (18: 1-8)

B Nascimento sobrenatural de um filho para Sara e Abraão (18: 9-15)

C O encontro de Abraão com o Senhor (18: 16-33)

A’ A visita dos anjos a Ló (19: 1 -29)

B’ nascimento incestuoso dos filhos das filhas de Ló com Ló (19: 30-38)

6 Na tradição judaica a genealogia de Perez é diretamente ligada ao Messias: “R. Berekiah disse em
nome de R. Samuel B. Nahman: Pensei que essas coisas foram criadas em sua plenitude; contudo,
quando Adão pecou, elas foram estragadas, e elas não voltarão à perfeição novamente até que o filho
de Perez [Messias] vem [...]” Midrash Rabbah, Gênesis XII, 6. Ver. (HUCKEL, 1998).
7 Ver também Roy Zuck (2009, pp. 127 – 128).

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O contraste está organizado da seguinte forma: 1) A visita hospitaleira dos anjos a


Abraão (18. 1-8) contrasta com a visita inóspita dos anjos a Ló (19: 30-38) e 2) o
nascimento sobrenatural de um descendente para Abraão (18. 9-15) contrasta com os
nascimentos incestuosos dos filhos de Ló com suas filhas (19. 30-38). Os descendentes de
Ló são Moabe e Amom.
As relações entre Israel e Moabe ao decorrer da história foram de tensão. Quando
o povo de Israel saiu do Egito eles contrataram Balão para amaldiçoar os filhos de Israel;
Balão não foi bem sucedido, então eles mandam mulheres Moabitas para corromper os
filhos de Israel. Por conta dessa atitude YHWH determinou que nenhum Moabita deveria
se assentar na assembleia dEle por dez gerações (Dt 23. 1 – 6). Carl Friedrich Keil e Franz
Delitzsch (1996, p. 344) argumentam que o casamento com as filhas dos Moabitas não era
proibido na lei, como os casamentos com mulheres cananeias (Dt 7. 3); foi apenas a
recepção dos Moabitas na congregação de YHWH que foi proibida (Dt 23. 4). Os antigos
rabinos interpretaram da mesma forma (Chullin 62b:7; Gittin 85a:9; Horayot 10b:13;
Kiddushin 67b:6; Yevamot 77a:4).
Roy Zuck (2009, pp. 129 – 130) argumenta que a interpretação de que a proibição
só referia ao sexo masculino é aceitável, porém parece mais razoável que os Moabitas que
foram proibidos de entrar na assembleia de YHWH era os descrentes. Segundo ele aqueles
que manifestassem uma fé semelhante a de Abraão seriam aceitos uma vez que esse era
o requisito para se fazer parte da aliança. Seja como for, o fato de que Rute se tornou parte
da aliança entre YHWH e Israel permanece.
A narrativa da família de Elimeleque parece ser uma quebra nessa tensão. O livro
começa de forma bastante irônica dizendo que faltou alimento em Belém e uma família de
Israelitas vai até Moabe em busca de comida, o lugar menos indicado para tal empreitada
(Rt 1. 1). Eles ficam lá durante um tempo e só voltam quando passa a ter pão em Belém
que é a “casa do pão” (1. 6).
Mais tarde Rute, a Moabita, vai se aproximar de Boaz, o Israelita. Mas ao contrário
do que aconteceu em Beor, de Petor, quando as Moabitas tiveram relações sexuais ilícitas
com os israelitas para lhes fazem pecar contra YHWH ela se porta de forma digna (Nm 25.
1 – 18; Rt 3. 1 – 18). Boaz e Rute se casam e ela passa a fazer parte da genealogia do
Messias de Israel (4. 18 – 22; Mt 1. 1 – 17).

5. APLICAÇÃO

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O livro de Rute apresenta a ideia teológica de que Deus é o gestor da história e que
mesmo em situações desafiadoras pode tirar o melhor. YHWH usa pessoas para auxiliar
de formas diferentes aqueles que Ele quer salvar. Neste sentido aqueles que servem ao
Deus de Israel devem estar atentos para as necessidades alheias pois são um veiculo de
benção na vida de pessoas desoladas pelas adversidades de um mundo de pecado.
Há no livro a indicação clara de que YHWH não é exclusivista e seu plano de salvação
inclui o israelita e o gentio. Essa verdade é vista nas páginas da Bíblia Hebraica quando
com Israel sai um misto de gente do Egito (Êx 12. 38), no discurso de Moisés quando é
salientado que a aliança também envolvia os estrangeiros (Dt 29. 1 – 16), na inclusão de
Raabe na linhagem do Messias. Outros exemplos poderiam ser citados, porém esses são
suficientes para demonstrar que o plano de YHWH não envolvia apenas os israelitas. A
narrativa de Rute neste sentido se soma a um corpo literário mais amplo que também
apresenta essa verdade. O Deus de Israel prove os meios para o resgate e não o homem.

6. CONCLUSÃO

A teologia encontrada nos diálogos do livro de Rute nos permite concluir que Deus
é Soberano e Mantenedor. YHWH está por de trás dos acontecimentos históricos; seja
permitindo algo ou causando algo. Ele prove os meios para suprir as necessidades dos
seus filhos seja abençoando a colheita ou provendo um casamento e um neto.
O resgatador provido pelo Deus de Israel resgata o israelita e o gentio, Noemi e Rute.
Essas duas mulheres são um exemplo de como YHWH envolve todos no seu plano de
resgate. Plano que atinge seu clímax no Novo Testamento com Jesus se entregando por
judeus e gentios.

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REFERÊNCIAS

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