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Nossa cultura é débil porque, diante da tristeza, fica impotente’, diz o ps... https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/09/15/nossa-cultura-e-debil-p...
Christian Dunker: “Nossa cultura é débil porque, diante da tristeza, �ca impotente” — Foto: Gabriel Reis/Valor
“Para minha mãe.” Essa singela dedicatória, escrita no 11º livro do professor de
psicopatologia da USP Christian Dunker, ganha uma camada muito mais profunda
quando se envereda pelas quase 500 páginas de “Lutos finitos e infinitos” (Paidós).
Escritor profícuo e premiado, o psicanalista parte da dolorosa vivência pessoal de
perder a mãe para atravessar as várias formas de lidar com a morte.
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Ao mergulhar nos diferentes lutos, sua leitura é que há situações em que o processo
se complexifica. Alguns caminham para uma dimensão patológica, mas outros não.
Assumem posturas “éticas” de, por exemplo, perpetuar “um amor do qual não
queremos renunciar”, como escreveu Sigmund Freud sobre a morte de sua filha
Sophie. “É uma decisão subjetiva de manter esse luto aberto”, diz. O luto sem fim
também pode estar ligado a suicídios, mortes com sentimento de injustiça e
desaparecidos.
Para Dunker, o luto se conecta com outras experiências humanas da perda, não só
da pessoa amada, mas de uma sucessão de separações: perdas de paixões, fases da
vida, um ideal, da condição de filho único e do corpo que nos teria sido possível.
Narrar essa trajetória pessoal pode ser um modo de elaborar a falta, diz Dunker. Seu
novo livro, admite o professor, teria sido uma embocadura final da perda de sua
mãe, a quem presta uma homenagem e dedica seu trabalho.
Christian Dunker: O luto finito segue certa continuidade entre o evento de perda e
as perdas pregressas. Parte significativa da literatura é sobre o processo individual:
como alguém faz a recomposição dessa experiência, que começa pela dor, passa
pela angústia, pelo desespero, envolve processo de recriação da história daquela
relação e investigação sobre o que foi perdido. Envolve um elemento criativo e de
condensação da experiência e tem um final. De certa forma, claro e distinto.
Dunker: As pessoas dizem: “Encontrei tal pessoa, comecei a falar e, quando vi, a dor
tinha passado”. Não é que você se esqueça, mas é o momento em que pode
estabelecer que o luto, enquanto processo, termina, porque se encadeia em
processos anteriores, formando novo traço, aquela pessoa você carrega dentro de si.
A partir daí, vem a ideia de que, se você não completa o luto, se ele se torna meio
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Dunker: Quando morre a filha de Freud, Binswanger, que havia perdido um filho, diz
que vai doer, mas vai passar. E Freud responde: “Não quero que passe”. É uma
decisão subjetiva de manter esse luto aberto. Se quisesse, poderia deixar o luto
caminhar, mas o trava por decisão ética. O modelo que a gente poderia ter para isso
é: falta o corpo, será que sim, será que não?
Valor: O senhor cita três casos de luto infinito. A perda de um filho, de um parente
por suicídio e mortes por catástrofe coletiva. Pode nos explicar as diferenças?
Dunker: A primeira vez que se usou a expressão luto infinito foi um historiador que
acompanhou um massacre na Guerra da Secessão e se perguntou como era
possível fazer o luto, posto que tem menos sobreviventes do que pessoas que se
foram. A maior parte das histórias que seriam necessárias para reconstruir não
estavam mais disponíveis. Ele intuiu que levaria a um luto interminável e infinito. É
uma discussão mais com a memória, que tentei trazer para a clínica em função de
observações do [Jacques] Lacan, por exemplo, sobre Hamlet. Ele [Hamlet] não entra
em luto até que o luto dele se conecte com o de Laertes, que perdeu Ofélia. Um luto
se conecta a outro. A definição do luto infinito, em contraste com o em que se fecha
uma cadeia, é quando você cria cadeia de articulações do seu luto com o luto do
outro.
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difícil que isso seja decidido pela pessoa. Às vezes depende um pouco do bilhete, das
circunstâncias em que a coisa se deu, mas é um convite para que tenha uma espécie
de enlaçamento transindividual dos lutos. Daí ser comum que o suicídio se repita
transgeracionalmente, porque algo daquela carta vai adiante. A sua relação com os
lutos em geral fica tocada por esse ponto.
Valor: Essa carga que fica pode se tornar ainda mais pesada se o assunto vira tabu e
não se fala mais desse tema na família?
Dunker: O luto negado, interrompido, é quando não pode coletivizar porque gera
vergonha, culpa, sentimento de que se for recuperar aquela pessoa, vou magoar.
Vou tocar num luto que é presumidamente infinito para os outros também. Isso gera
uma cadeia que pode tomar uma direção mais patológica, mas que convoca de
forma mais radical a possibilidade de que isso me ponha uma tarefa que quero
deixar em aberto. Como parte dos lutos infinitos, passam por uma espécie de
decisão, que pode não ser consciente, de fazer do processo de luto uma posição de
existência.
Valor: Luiz Cláudio Figueiredo, seu orientador na USP, fala que somos um “mausoléu
de perdas” acumuladas. Quando a sociedade tenta tamponar essa condição por
uma espécie de “hipervida”, como diz Figueiredo, já que sempre estamos felizes nas
redes sociais, não se perde contato com as perdas?
Dunker: À medida que a morte vai sendo silenciada, vai acontecendo em hospitais,
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vai sendo retinta de vergonha, à medida que você entende esse período como
curável pelo trabalho - o DSM [Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais] diz isso, 15 dias ou está no patológico -, as pessoas têm déficit narrativo. Em
vez de lembrar, articular os lutos, o repudiam por um processo de reingresso na
produção. De negação da morte, da finitude. “Trabalhe que passa.” “Tome um
antidepressivo que não dói.” Isso desqualifica paixões tristes, no sentido de [Baruch]
Spinoza, e a tristeza em particular como afeto que deve ser vivido em sua inteireza.
Nossa cultura é débil porque, diante da tristeza, fica impotente.
Dunker: Falta narrativa. Como a gente conta uma história triste juntos e que vale a
pena ser contada? Não está no repertório. A gente espetaculariza o luto, a gente o
força no sentido de se transformar em outra coisa, dizendo: “O enlutado quer ficar
sozinho, precisa ficar com suas lembranças. Porque se for falar, vou fazê-lo lembrar,
e não é bom lembrar”. Isso individualiza, redunda num momento em torno da morte
em que se agrupa, mas o difícil não é ali. Naquele momento a gente tem os
esquemas, as pessoas, o que sobrou dos ritos religiosos. Agora, e três meses depois?
Seis meses depois? Ninguém mais lembra, mas aquela pessoa está em luto. É uma
receita para o luto se perpetuar enquanto processo de ruminação, pervasivo,
daqueles que trabalham em silêncio.
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luto.
Dunker: O luto passa pelo testamento e pela distribuição dos bens. O que acontece
quando a gente ignora isso? Você ignora que, na partilha dos bens, tem partilha
amorosa. Vamos olhar para o Brasil, patrimonialista, a maior parte dos terrenos que
estão judicializados estão em encrencas. O inventário não termina, não deixo que
aconteça. É mais um indício da nossa patologia social com o luto. Na hora em que
termina a discussão há outro encerramento. O luto são vários encerramentos. Você
fica com a caixinha de joias, com a coleção de selos. Mas “não, não quero acabar,
não quero que termine assim tão facilmente”.
Valor: Como se dá essa espécie de luto de si, da pessoa que sente que a própria
morte está chegando?
Dunker: Lacan vai dizer: “O que você tem é a morte do outro, só vê a morte do
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outro”. A sua, você vai dizer que “sou especial, alguém vai vir, vão inventar alguma
coisa”. Para que isso forme unidade capaz de falar de um luto de si, tem que ter
certas habilidades narrativas, intersubjetivas. Tem que ter percurso de
encadeamento das suas perdas, para poder se cercar desse impossível e transmiti-lo
para os outros. Que é o que fazem os filósofos velhinhos quando se põem a meditar
- Sócrates é o modelo. No fundo, por que posso falar da minha finitude? Porque ela
se liga com a infinitude de vocês que recebem isso que estou dizendo. É a ideia
recuperada pelos românticos de que, quando a gente morre, se integra numa
comunidade simbólica. Existe uma espécie de pacto entre os que vieram, os que
estão e os que virão. Geralmente a gente pensa o luto para trás, e não para frente. O
seu luto é parte de uma cadeia que você não vai ver, mas em nome de que você
aposta que pode continuar.
Valor: Muitas vezes os médicos e a família dizem a uma pessoa que sente que está
morrendo que vai ficar “tudo bem”.
Dunker: Há um código entre médicos. Você fala a partir da pergunta que seu
paciente faz. O quanto de verdade ele suporta? Se a pessoa não faz a pergunta, vai
receber o básico. “Estamos tratando, fazendo o possível.” Não vão prometer, mas
vão fazer discurso edulcorado. E aí vem sua relação com a sua finitude e com o luto.
Valor: Mas isso não faz com que o doente se sinta mais solitário na hora da morte,
ao não ser ouvido?
Dunker: A pessoa não consegue ser ouvida, mas também não quer.
Valor: Há alguns casos em que a pessoa diz que não interessa mais viver. É possível
elaborar diferentemente o suicídio?
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Valor: No Brasil temos uma questão de não elaborar lutos históricos, como a
ditadura. O que isso diz sobre nossa forma de lidar com os processos que trazem a
morte em nós?
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