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novembro-dezembro de 2016 – ano 57 – número 312

A alegria do amor

03 Oe não
agir pastoral que integra
marginaliza
Pe. Geraldo Martins Dias
21 Ocontribuições
sacramento da reconciliação:
teológico-pastorais
Pe. Francesco Sorrentino

11 Anotações teológico-pastorais
sobre “Amoris Laetitia” 29 Dom Helder: um testemunho
para os presbíteros
Uma apreciação do capítulo IV Pe. Ivanir Antonio Rampon
Pe. Márcio Pimentel

33 Roteiros homiléticos
Pe. José Luiz Gonzaga do Prado
SAZONAL
PAULUS 2017
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3 5 6
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7

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Imagens meramente ilustrativas.

Calendários Dia a dia com o Evangelho


1 Calendário de parede paisagem 8 Livro
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7 Agenda Catequética 15 Capa Devocional Maria – Cristal
16 Capa Devocional Jesus, o Salvador – Espiral
17 Capa Devocional Jesus, o Salvador – Cristal

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Prezados irmãos e irmãs,


Graça e Paz! seres viventes repletos de Deus. O pecado,
Antes de tudo, o amor. Aquele amor pa- porém, é o que estraga a alegria. Mas não tem
ciente, prestativo, que não se vangloria. Não poder sobre quem está entusiasmado, sobre
se alegra com a injustiça. Alegra-se com a quem tem em si o sopro de Deus.
verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espe- Jesus ressuscitado, a plenitude da alegria,
ra, tudo suporta (1Cor 13). Nada de palavre- dá aos discípulos o dom da verdadeira ale-
ado rebuscado ou uso da língua com termos gria: soprou sobre eles, dizendo: “Recebam o
arcaicos, por vezes distantes do cotidiano da Espírito Santo” (Jo 20,22). O mesmo Espíri-
vida, com suas alegrias, tristezas, angústias e to, presente na criação, renova e impele a co-
esperanças. Muito rebuscamento, bom sinal munidade no caminho. Os que seguem Jesus
não é. O que conta, de verdade, é o amor. são guiados pelo espírito da paz, da ternura,
Tudo mais são enfeites. E enfeitar em dema- da misericórdia. “Deus não nos deu um espí-
sia cansa a visão e enjoa o coração. O amor é rito de covardia, mas de força, amor e sobrie-
simples. Por isso, marca a existência com o dade” (2Tm 1,7).
gosto da eternidade. O amor tem íntima rela- Por meio do espírito, a comunidade é fe-
ção com a alegria. Quem tem amor tem ale- liz, é fértil. É produtiva. E produtividade aqui
gria, e vice-versa. E isso não quer dizer au- não se relaciona a esta coisa que o mercado
sência de problemas e sofrimentos. tanto explora. Trata-se de produzir no senti-
O papa Francisco, em sua primeira exor- do de gerar coisas boas para o mundo. Não
tação, fez da palavra alegria o ponto de partida permitir que o nosso coração se endureça;
do seu ministério como bispo de Roma: “A mas que seja sensível. E haja mais amor às
alegria do Evangelho enche o coração e a vida pessoas do que às máquinas. Mais amor à na-
inteira daqueles que se encontram com Jesus. tureza do que às máquinas. Mais amor às for-
Quantos se deixam salvar por ele são liberta- migas do que aos aviões, aos carros velozes.
dos do pecado, da tristeza, do vazio interior, Nesse sentido, concluindo mais um ano,
do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem renovemos em nós a alegria verdadeira. No
cessar a alegria” (EG 1). No início da exortação início, no meio e no fim do caminho, a liberda-
após o Sínodo da Família, retoma o termo: “A de é a meta. Somente os livres são felizes, e
alegria do amor que se vive nas famílias é tam- quem tem a alegria do alto é livre. Nada nem
bém o júbilo da Igreja” (AL 1). ninguém pode deter quem se deixa guiar pelo
A alegria, pois, é o combustível que nos Espírito. Por isso, o caminho é aberto, é hori-
impulsiona no caminho da vida. Ser alegre zonte de amor. Quem persiste nesse horizonte
tem que ver com ser animado, vivaz! Tem que espera atento a chegada do Amor. O Amor
ver também com ânimo, isto é, ter alma. A ale- bate à porta. Acolhê-lo é ser plenamente feliz.
gria, portanto, é o estado de estar vivo, de es- Nosso sincero desejo de alegria verdadei-
tar repleto do Espírito. “Deus modelou o ho- ra para você!
mem com o pó do solo, soprou-lhe nas nari-
nas um sopro de vida” (Gn 2,7). O sopro divi- Pe. Antonio Iraildo Alves de Brito, ssp
no nos enche de entusiasmo, isto é, torna-nos Editor
Revista bimestral para
sacerdotes e agentes de pastoral
Ano 57 — número 312
novembro-dezembro de 2016

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Diretor Pe. Claudiano Avelino dos Santos
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O agir pastoral que integra
e não marginaliza
Pe. Geraldo Martins Dias*

O objetivo deste artigo é ajudar os agentes de pastoral a ter visão


geral da Amoris Laetitia e apontar-lhes algumas chaves de leitura
na perspectiva vivencial e pastoral. Inicio com uma breve
contextualização do processo que a precedeu. Em seguida, dou
uma visão geral de sua estrutura e convido o leitor a mergulhar
em seu conteúdo em três momentos. No primeiro, queremos
descobrir a intenção do papa ao reafirmar o pensamento da Igreja
sobre a família. No segundo, buscaremos as novidades
apresentadas na Exortação para, finalmente, determo-nos nas
chamadas situações “de fragilidade ou imperfeição”.

*Pe. Geraldo Martins Dias, presbítero da Introdução

A
Arquidiocese de Mariana, é coordenador
arquidiocesano de pastoral e pároco da
guardada com expectativa e ansiedade, a
paróquia Nossa Senhora da Glória, em Exortação Apostólica Pós-Sinodal do
Passagem de Mariana (MG). Formado em papa Francisco, Amoris Laetitia, tem desper-
jornalismo, foi assessor de imprensa e político
tado grande interesse dos mais variados gru-
nº- 312

da CNBB. E-mail: martinsdias1988@gmail.com.


pos. Muitos especialistas, teólogos, pastora-
listas, sociólogos, entre outros, têm se pro-

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nunciado a seu respeito, avaliando suas novi-


dades e limites. Ofereço também minha con-

tribuição, simples, despretensiosa, nascida


Vida Pastoral

de um olhar pastoral, e não acadêmico ou

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técnico. O objetivo é ajudar os agentes de de, própria de quem é livre no Senhor. A se-
pastoral a ter uma visão geral da Exortação e gunda foi a realização de um Sínodo extraordi-
apontar-lhes algumas chaves de leitura na nário que preparasse o ordinário a partir das
perspectiva vivencial e pastoral. Assim, apre- respostas ao questionário sobre o tema enviado
sento breve contextualização do processo às dioceses do mundo inteiro. A terceira, se-
que a precedeu para, em seguida, mostrar gundo relatos de padres sinodais, ficou por
sua estrutura. conta da metodologia adotada no Sínodo, mui-
Iniciando a reflexão sobre o to inspirada nas Conferências Ge-
conteúdo do documento, con- “Uma leitura rais dos Bispos da América Latina.
vido o leitor a perceber, em pri- Por todas essas características
apressada da
meiro lugar, a intenção do papa e pela relevância do tema, é pro-
Francisco ao reafirmar o pensa- Exortação privará o vável que esse tenha sido o Síno-
mento da Igreja sobre a família leitor da riqueza deste do mais acompanhado pela po-
e a realidade que a envolve. pulação mundial desde que foi
Num segundo momento, dese- documento que fala instituído, há cinquenta anos. É
jo provocar a busca das novida- mais pelas entrelinhas, natural, portanto, que fosse
des apresentadas na Exortação aguardado com ansiedade e ex-
numa sutileza própria
para, finalmente, deter-me na pectativa o documento que o
questão relativa aos que vivem de quem quer propor papa publicaria após o Sínodo
nas chamadas situações “de fra- caminhos novos sem como resultado de suas reflexões.
gilidade ou imperfeição”. Que surpresas sairiam das mãos e
rupturas, divisões ou do coração de Francisco depois
1. Surpresas de Francisco traumas.” de ouvir os padres sinodais? O
“Deus surpreende-nos sem- mistério se desfez no dia 8 de
pre, rompe os nossos esquemas, põe em crise abril, pouco mais de cinco meses após o en-
os nossos projetos.” Essas palavras pronun- cerramento do Sínodo, com a publicação da
ciadas pelo papa Francisco na missa da Jor- Exortação Pós-Sinodal “A alegria do amor”.
nada Mariana, em outubro de 2013, bem que Tão logo foi publicada, Amoris Laetitia
poderiam aplicar-se a ele mesmo. Afinal, tornou-se manchete na grande imprensa
desde que foi eleito bispo de Roma, Francis- mundial, que, focada em apenas um aspecto
co não cessa de surpreender, seja pelos ges- do documento, condicionou o olhar dos mais
tos simples e eloquentes, seja pelos pronun- desavisados a um único ponto do que disse o
ciamentos proféticos e ousados ou pelas papa num texto de 325 parágrafos. Uma lei-
atitudes que revelam sua determinação em tura apressada da Exortação, desaconselhada
tornar a Igreja “pobre para os pobres”, “em pelo papa (n. 7), privará o leitor da riqueza
saída”, “hospital de campanha”, que dialoga deste documento que, em muitos momentos,
com o mundo e serve tendo a misericórdia fala mais pelas entrelinhas, numa sutileza
como sua “arquitrave”. própria de quem quer propor caminhos no-
Não foi diferente quando anunciou o Síno- vos sem rupturas, divisões ou traumas.
nº- 312

do sobre A vocação e a missão da família na Igre-


ja e no mundo contemporâneo, que se realizou 2. Conhecendo para amar

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em outubro de 2015. Nesse caso, a primeira A alegria do amor chama a atenção, em


surpresa foi seu desejo de ouvir “as bases” da primeiro lugar, por sua extensão, com seus
Igreja por meio de um questionário aberto e mais de trezentos parágrafos distribuídos em

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corajoso, em preparação ao Sínodo. Essa atitu- nove capítulos e 200 páginas. Alguns capítu-

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los têm a leitura mais pesada por causa de
extensas citações, que somam 391 ao longo Amoris Laetitia:
do texto. O destaque dessas citações fica por sobre o amor na família
Exortação Apostólica Pós-
conta dos relatórios dos dois Sínodos, num
Sinodal do Papa Francisco
total de 133 (53 de 2014 e 80 de 2015) e 142
Papa Francisco
dos papas Francisco (81), João Paulo II (51)
e Bento XVI (10). Aparecem ainda entre os
papas, mas com poucas referências, Paulo VI,
Leão Magno e Pio XI. Citado 19 vezes, Santo
Tomás aparece especialmente no capítulo IV
(15 vezes), em que Francisco discorre sobre
“O amor no matrimônio”. Aparecem, ainda,
entre as citações, Conferências Episcopais
(9), o Catecismo da Igreja Católica (14), além
de outros, incluindo o Vaticano II, especial-
mente a Gaudium et Spes, e até poetas.
A variedade de citações de nove Confe-
208 págs.
rências Episcopais (espanhola, coreana, ar-
gentina, mexicana, colombiana, chilena,
australiana, italiana e do quênia) e de outros O livro Amoris Laetitia é fruto
autores confirma o estilo de Francisco, que de dois sínodos nos quais papa
pensa uma Igreja realmente universal. Em Francisco discorre sobre a
capítulos como o primeiro, o quarto e o importância do amor na família.
Para o Sumo Pontífice, a alegria
nono, em que cita menos ou nem cita os re-
do amor que se vive nas famílias
latórios dos dois Sínodos, o texto é mais é também o júbilo da Igreja.
leve, de leitura mais agradável, além de pro- Apesar dos numerosos sinais de
fundo e atraente, como é próprio de Fran- crise no matrimônio – como foi
cisco. Nesse momento, especialmente, ele observado pelos padres sinodais
deixa falar sua alma de pastor que percorria –, Francisco observa que “o
desejo de família permanece vivo
as periferias de Buenos Aires para levar mi-
nas jovens gerações”.
sericórdia aos que se encontravam nas “peri-
Imagens meramente ilustrativas.

ferias existenciais”.
A disposição dos capítulos sugere que
Francisco seguiu o método ver, julgar e agir,
tão próprio da Igreja na América Latina, mes-
mo considerando a inovação do papa ao abrir
a Exortação com o olhar bíblico. Assim, o ca- Vendas: (11) 3789-4000
pítulo segundo (“A realidade e os desafios da 0800-164011
família”) seria o ver; o terceiro (“O olhar fixo SAC: (11) 5087-3625
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em Jesus: a vocação da família”), o quarto (“O V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


amor no matrimônio”) e o quinto (“O amor se paulus.com.br

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torna fecundo”) estariam na ordem do julgar;


o sexto (“Algumas perspectivas pastorais”), o
sétimo (“Reforçar a educação dos filhos”), o

Vida Pastoral

oitavo (“Acompanhar, discernir e integrar a

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fragilidade”) e o nono (“Espiritualidade conju- ferentes de interpretar alguns aspectos da
gal e familiar”) apontam para o agir. doutrina ou algumas consequências que
Perceber essa arquitetura da Exortação decorrem dela [...]. Além disso, em cada
certamente facilitará sua leitura e assimila- país ou região, é possível buscar soluções
ção, mesmo que alguém opte por lê-la a par- mais inculturadas, atentas às tradições e
tir do capítulo que tenha lhe despertado aos desafios locais (n. 3).
maior interesse.
Sua palavra faz-nos lembrar Jesus, no
3. Não revogar, mas “Uma coisa é Sermão da Montanha: “Não pen-
aperfeiçoar sem que vim revogar a Lei e os
O processo de preparação compreender a Profetas. Não vim revogá-los,
e realização do Sínodo, nas fragilidade humana mas dar-lhes pleno cumprimen-
suas duas fases, com grande to” (Mt 5,17). Vai na direção de
colaboração da imprensa, aju- ou a complexidade uma Igreja de porta aberta e não
dou a criar muita expectativa da vida, e outra é controladora da graça, como se
em relação a mudanças na fosse uma alfândega (FRANCIS-
aceitar ideologias
doutrina da Igreja em ques- CO, 2013, p. 42). É com esse
tões relativas à situação dos que pretendem dividir espírito que devem ser lidos es-
que vivem sem o sacramento em dois os aspectos pecialmente os capítulos tercei-
do matrimônio, no que diz ro, quinto e oitavo, em que Fran-
respeito, especialmente, à sua inseparáveis da cisco retoma a doutrina da Igreja
participação nos sacramentos realidade.” sobre o sacramento do matrimô-
da confissão e da eucaristia. A nio e a vocação da família.
expectativa não era menor também em re- A diferença está no seu olhar de pastor,
lação à posição da Igreja sobre a união ho- com o qual revisita o pensamento da Igreja e
moafetiva, ao uso de contraceptivos e a lhe dá uma roupagem nova, como ocorre ao
participação dos homossexuais na comuni- dizer, por exemplo: “Quando dois cônjuges
dade eclesial. não cristãos recebem o batismo, não é neces-
O papa parece jogar um balde de água sário renovar a promessa nupcial, sendo sufi-
fria nos que alimentavam essa expectativa ou ciente que não a rejeitem, pois, pelo batismo
outras semelhantes quando afirma logo no que recebem, essa união torna-se automatica-
início de seu documento: “Recordando que o mente sacramental” (n. 75).
tempo é superior ao espaço, quero reiterar O mesmo ocorre quando trata da chama-
que nem todas as discussões doutrinais, mo- da ideologia de gênero. “Uma coisa é com-
rais ou pastorais devem ser resolvidas através preender a fragilidade humana ou a comple-
de intervenções magisteriais” (n. 3). Ele deixa xidade da vida, e outra é aceitar ideologias
claro que não é sua proposta mudar a doutri- que pretendem dividir em dois os aspectos
na da Igreja nessas questões. Os caminhos inseparáveis da realidade” (n. 56). Ou ainda:
parecem, então, fechar-se, mas, imediata-
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mente, ele esclarece e revela o caminho que É preciso reconhecer que há casos
percorrerá ou convidará a Igreja a trilhar: em que a separação é inevitável. Por ve-

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zes, pode tornar-se até moralmente ne-


Naturalmente, na Igreja, é necessária cessária, quando se trata de defender o
uma unidade de doutrina e de práxis, mas cônjuge mais frágil, ou os filhos peque-

Vida Pastoral

isso não impede que existam maneiras di- nos, das feridas mais graves causadas

6
pela prepotência e a violência, pela hu- bre como guiar e ajudar os noivos, os casais e
milhação e a exploração, pela alienação as famílias a fazer do matrimônio um caminho
e a indiferença (n. 241). de santidade. O mais interessante é o tom ter-
no e acolhedor dado pelo papa, sobretudo si-
Ao que parece, o papa propõe retirar a tuações mais exigentes, que ele classifica como
ênfase que, por longo tempo, ficou na doutri- “algumas situações complexas” (n. 247-252).
na e trazê-la para a pessoa, a exemplo da prá- É o caso, por exemplo, das famílias que vivem
tica de Jesus. Ele chama a Igreja a fazer uma a experiência de ter em seu seio pessoas com
autocrítica a esse respeito logo no início da tendência homossexual.
Exortação, quando analisa a realidade e os Reconhecendo tratar-se de uma questão
desafios da família. “Muitas vezes apresenta- difícil tanto para os pais quanto para os fi-
mos de tal maneira o matrimônio que o seu lhos, o papa mostra que a solução está na
fim unitivo, o convite a crescer no amor e o acolhida, e nunca na discriminação:
ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por
uma ênfase quase exclusiva no dever da pro- Desejo, antes de tudo, reafirmar que
criação” (n. 36). E acrescenta: cada pessoa, independentemente da pró-
pria orientação sexual, deve ser respeitada
Durante muito tempo pensamos que, na sua dignidade e acolhida com respeito,
com a simples insistência em questões procurando evitar “qualquer sinal de dis-
doutrinais, bioéticas e morais, sem moti- criminação injusta” e particularmente toda
var a abertura à graça, já apoiávamos sufi- forma de agressão e violência (n. 250).
cientemente as famílias, consolidávamos o
vínculo dos esposos e enchíamos de senti-
do as suas vidas compartilhadas. Temos 4. Jeito novo de falar
dificuldade em apresentar o matrimônio sobre coisas antigas
mais como um caminho dinâmico de cres- Embora toda a Exortação seja merece-
cimento e realização do que como um far- dora de nossa atenção, dada a riqueza de
do a carregar a vida inteira. Também nos seu conteúdo e o modo como é apresenta-
custa deixar espaço à consciência dos fiéis, do, destaco os capítulos primeiro, quarto e
que muitas vezes respondem o melhor oitavo como os que mais evidenciam o estilo
que podem ao Evangelho no meio dos pessoal de Francisco. Ao contrário do oita-
seus limites e são capazes de realizar o seu vo, os outros dois trazem apenas brevíssima
próprio discernimento perante situações citação do Sínodo.
onde se rompem todos os esquemas. So- Inspirado no Salmo 128, o papa inicia
mos chamados a formar as consciências, sua Exortação discorrendo sobre quatro rea-
não a pretender substituí-las (n. 37). lidades fundamentais da vida familiar: o ca-
sal, os filhos, o sofrimento e o trabalho. Tra-
De maneira especial, o capítulo seis é um ta-se de um jeito novo e leve de falar da voca-
convite a rever a prática pastoral junto às famí- ção da família à luz da Bíblia. Nada pesado
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lias, constituindo referência de primeira gran- nem maçante. Ele fala dos deveres do casal
deza, especialmente para os responsáveis pela de forma mística. “O amor fecundo chega a

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preparação dos que são vocacionados ao ma- ser o símbolo das realidades íntimas de Deus
trimônio. A Pastoral Familiar e os movimentos [...]. A capacidade que o casal humano tem
ligados à família têm aí a novidade do olhar de gerar é o caminho por onde se desenrola a

Vida Pastoral

paternal, diria mesmo maternal, do papa so- história da salvação” (n. 11).

7
Fonte salutar para a vida das pessoas e dos caristia, seja para ser padrinhos de batismo ou
casais, de maneira particular, é o capítulo desempenhar outras atividades na Igreja. As
quarto, em que Francisco navega de forma po- famílias que protagonizam essas situações
ética sobre as virtudes do amor. Com seu jeito também devem ter sentido uma espécie de
paterno de tratar o cotidiano, de maneira sim- frustração, sobretudo se ficaram com a “ver-
ples e direta, ele nos ajuda a mergulhar no dade” divulgada pela imprensa acerca da
profundo mistério do amor. Anima-nos a fazer Exortação.
uma revisão de como o pratica- Contudo, se soubermos ler
mos em nosso dia a dia, ou me- “Faz falta rezar a bem o que Francisco propõe,
lhor, de como às vezes nos fal- própria história, constataremos que ele revolucio-
tam as virtudes que de fato ca- na na forma e no conteúdo. An-
racterizam o amor cristão. aceitar a si mesmo, tes de tudo, apresenta o princí-
“Enquanto o amor nos leva a saber conviver com as pio que deve fundamentar a ação
sair de nós mesmos, a inveja leva da Igreja e, consequentemente, a
a centrar-nos em nós próprios” próprias limitações e de seus pastores: reintegrar, e
(n. 95), lembra ele, por exem- inclusive perdoar-se, não marginalizar. “O caminho da
plo, em relação à inveja, tão pre-
para poder ter essa Igreja é o de não condenar eter-
sente na vida humana. “Ser amá- namente ninguém” (n. 296). Eis
vel não é um estilo que o cristão mesma atitude com aí o critério à luz do qual todas
possa escolher ou rejeitar: faz os outros.” as chamadas situações “irregula-
parte das exigências irrenunciá- res” (entre aspas, como escreve o
veis do amor” (n. 99), exorta acerca da amabi- papa) devem ser tratadas:
lidade. “Deve-se evitar dar prioridade ao amor
a si mesmo, como se fosse mais nobre do que Trata-se de integrar a todos, deve-se
o dom de si aos outros” (n. 101), adverte em ajudar cada um a encontrar a sua própria
relação ao desprendimento que cada um deve maneira de participar na comunidade
ter de si mesmo. “Faz falta rezar a própria his- eclesial, para que se sinta objeto de uma
tória, aceitar a si mesmo, saber conviver com misericórdia “imerecida, incondicional e
as próprias limitações e inclusive perdoar-se, gratuita”. Ninguém pode ser condenado
para poder ter essa mesma atitude com os ou- para sempre, porque essa não é a lógica
tros” (n. 107), ensina sobre o perdão. do Evangelho! Não me refiro só aos di-
vorciados que vivem numa nova união,
5. O novo olhar mas a todos seja qual for a situação em
que pode gerar nova prática que se encontrem (n. 297).
O capítulo oitavo é, sem dúvida alguma, o
mais procurado da Exortação. Para os que só O papa propõe, então, um itinerário a
sentem segurança com normas bem determi- ser percorrido pelo pastor junto à sua ovelha
nadas, o papa foi uma decepção nessa parte. mais sofrida a fim de ajudá-la a se encontrar
Afinal, ele não definiu o que pode e o que não no amor de Deus. O objetivo é integrar a
nº- 312

pode com relação às situações concretas que ovelha ao rebanho, fazê-la sentir-se membro
angustiam pastores zelosos. Muitos desses do redil. O discernimento é que iluminará a

ano 57

pastores vivem cotidianamente o constrangi- norma para levar à integração. Nesse senti-
mento de dizer não a casais sem o sacramento do, toda possibilidade parece aberta. É o que
do matrimônio que se apresentam seja para se pode deduzir quando fala a respeito dos

Vida Pastoral

receber o sacramento da confissão ou da eu- “divorciados e recasados”:

8
A lógica da integração é a chave do dos, provocará revisão profunda no exer-
seu acompanhamento pastoral, para sa- cício de seu ministério em relação a esses
berem que não só pertencem ao Corpo casos que há anos os afligem, bem como
de Cristo que é a Igreja, mas podem aos que neles se encontram. Como não re-
também ter disso mesmo uma experiên- ver nossa posição quando o Papa diz, por
cia feliz e fecunda. São batizados, são exemplo, que “já não é possível dizer que
irmãos e irmãs, o Espírito Santo derra- todos os que estão em uma situação cha-
ma neles dons e carismas para o bem de mada ‘irregular’ vivem em estado de peca-
todos. A sua participação pode expri- do mortal, privados da graça santificante”
mir-se em diferentes serviços eclesiais, (n. 301)? Ou quando sustenta que o pas-
sendo necessário, por isso, discernir tor “não deve sentir-se satisfeito apenas
quais das diferentes formas de exclusão aplicando leis morais aos que vivem em
atualmente praticadas em âmbito litúr- situações ‘irregulares’, como se fossem pe-
gico, pastoral, educativo e institucional dras que se atiram contra a vida das pesso-
possam ser superadas. Não só não de- as” (n. 305)?
vem sentir-se excomungados, mas po- Este mesmo parágrafo 305 mostra que
dem viver e maturar como membros vi- uma pessoa, “no meio de uma situação obje-
vos da Igreja, sentindo-a como uma mãe tiva de pecado”, pode não ser subjetivamen-
que sempre os acolhe, cuida afetuosa- te culpável, vivendo assim na graça de Deus.
mente deles e encoraja-os no caminho O caminho é o do discernimento, e os pa-
da vida e do Evangelho (n. 299). dres são chamados a ajudar a trilhá-lo. Há
uma nota explicativa dessa afirmação, de
Se, por um lado, o papa reconhece ser autoria do próprio papa, que merece toda a
impossível estabelecer uma norma única atenção. Segundo Todd A. Salzman e Micha-
para uma variedade de situações, por outro, el G. Lawler (2016), essa nota oferece a pos-
ele encoraja a busca do discernimento para sibilidade de que casais sejam admitidos aos
os casos particulares. Já que os graus de res- sa­cramentos em certas circunstâncias.
ponsabilidade são diferentes (e isso é reco-
nhecido pelos próprios padres sinodais), Em consonância com esse tema ge-
“as consequências ou efeitos de uma norma ral da misericórdia e caridade, ele [papa
não devem ser necessariamente os mesmos” Francisco] ressalta que a eucaristia “não
(n. 300). Eis a chave revolucionária da é um prêmio para os perfeitos, mas um
Amoris Laetitia! remédio generoso e um alimento para os
Essa afirmação do papa fica ainda mais fracos”. O papa não chega a expressar
clara quando nos voltamos para a nota que a uma permissão geral da admissão à co-
acompanha, de autoria do próprio Francisco: munhão das pessoas divorciadas e reca-
“E também [as consequências e os efeitos] não sadas sem anulação, mas está claro que
devem ser sempre os mesmos na aplicação da ele deixa a admissão aberta em casos
disciplina sacramental, dado que o discerni- com dis­cernimento. Não abre automati-
nº- 312

mento pode reconhecer que, numa situação camente a porta para a mudança, mas
particular, não há culpa grave. Nesse caso, certamente nos informa onde está a cha-

ano 57

aplica-se o que afirmei noutro documento ve da porta, a saber, como já explica-


[Evangelii Gaudium, n. 44-47]” (nota 336). mos, sob o capacho do discernimento
A leitura atenta desse capítulo, espe- pastoral orientado e da de­cisão de uma

Vida Pastoral

cialmente por parte dos ministros ordena- consciência informada.

9
O que deve prevalecer, portanto, é a Conclusão
misericórdia, e isso vai exigir da Igreja ver- O que mudará na Igreja com a Amoris La-
dadeira conversão, uma vez que temos di- etitia? É difícil prever. Pode-se, contudo, afir-
ficuldade, na pastoral, de dar lugar “ao mar que provocará muitas inquietações e
amor incondicional de Deus”. “Pomos tan- suscitará novo olhar sobre questões que pare-
tas condições à misericórdia que a esvazia- ciam cristalizadas. Daí a esperança de que
mos de sentido concreto e real significado, também ajude a descobrir novas práticas,
e esta é a pior maneira de frustrar o Evan- considerando as brechas sugeridas pelo papa
gelho” (n. 311). Francisco. Segundo Francis DeBernardo, em
O caminho é longo e está apenas come- entrevista à Revista IHU, Amoris Laetitia “pode
çando. A tríade estabelecida pelo papa Fran- transformar a Igreja se os bispos aplicarem os
cisco – acompanhar, discernir e integrar – seus princípios nos cuidados pastorais”. Tra-
exigirá, sobretudo, dos bispos e presbíteros, ta-se, em sua opinião, do documento mais
o compromisso de novas leituras e práticas poderoso publicado pelo papa Francisco.
do que até então vigora nas orientações da “Ele tem o potencial de transformar a Igreja.
própria Igreja. Os princípios estão postos, É um radical deslocamento do caráter julga-
as diretrizes estão dadas. E tudo de acordo dor e punitivo do passado. Será o documento
com a prática de Jesus conforme nos ensina pelo qual Francisco será mais lembrado” (De-
o Evangelho. BERNARDO, 2016, p.45).

Bibliografia

DeBERNARDO, F. “Potência transformadora e conservadorismo num mesmo ato”. IHU Online — Re-
vista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 483, ano XVI, p.45 abr. 2016.
FRANCISCO, Papa. Amoris Laetitia — sobre o amor na família. São Paulo: Paulus, 2016.
______. A alegria do Evangelho. São Paulo: Paulus:Loyola, 2013.
SALZMAN, T. A.; LAWLER, M. G. “Sinalização do início de abertura na Igreja”. IHU Online — revista
do Instituto Humanitas Unisinos, n. 483, ano XVI, p.30 abr. 2016.

Liturgia diária
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na liturgia e na leitura pessoal; favorece uma melhor assimilação
e compreensão da liturgia da missa.
As edições são mensais e trazem as leituras e orações da missa de cada dia,
comentários, preces, pequenas biografias dos santos das memórias a serem
celebradas, partes fixas da missa, orações eucarísticas e roteiros
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Vida Pastoral

10
Anotações
teológico -pastorais
sobre “Amoris Laetitia”
Uma apreciação do capítulo IV
Pe. Márcio Pimentel*

A Exortação Apostólica do Papa Que amor?


Francisco, Amoris Laetitiae (AL),
resposta e apelo pastorais ao Sínodo
S eguindo o conselho de Thomas Reese,
padre jesuíta e jornalista (IHU, 2016),
tomo como referência o capítulo IV, no qual
Extraordinário e Ordinário dos Bispos o papa discorre sobre o amor. Sua referência
primeira é a Sagrada Escritura, a primeira
– 2014/2015, não versa carta de são Paulo aos Coríntios, o “Hino ao
exclusivamente sobre “família”. Seu Amor”. Com uma rápida exegese, retoma e
esclarece as notas próprias do amor: pacien-
assunto é o amor, suas concreções e, te, serviçal, humilde, amável, não ciumento,
dentre estas, sua realização na vida e desprendido, pacífico, reconciliador, honro-
so, atenuante, confiante, esperançoso e resi-
relações familiares.
liente. Esses termos denotam as vias de rea-
lização do amor. Por essas características, o
nº- 312

* Pe. Márcio Pimentel é presbítero da Arquidiocese de Belo amor deixa de ser ideal e torna-se possível.
Horizonte, assessor eclesiástico para a Liturgia e pároco das
Isso é importante porque o pontífice deseja

Paróquias São Sebastião e São Vicente. Especialista em


ano 57

Liturgia pela PUC-SP e em Música ritual pela Faculdade checar a aplicabilidade desse amor na vida
Campo Limpo Paulista. Músico e compositor, licenciando em
Educação Musical pela UEMG. É articulista do Jornal de
matrimonial.

Opinião (revista eletrônica da Arquidiocese de Belo Curiosamente, o papa não faz exegese
Vida Pastoral

Horizonte). E-mail: mafpimentel@gmail.com do termo grego empregado por Paulo no

11
trecho bíblico em questão para dizer “amor”. mais do que estes? [...] apascenta meus
Na verdade, nesse capítulo, o papa arrisca cordeiros” (Jo 21,15ss).
uma tradução simples, embora interessante.
Citando Tomás de Aquino, escreve: “O amor Jesus, que deseja confiar a Pedro o
de amizade chama-se ‘caridade’, quando cuidado dos que creem, solicita primeiro
capta e aprecia o ‘valor sublime’ que tem o a confirmação do seu amor e, portanto,
outro” (AL 127). Mas, antes de ser caritas, o de sua fidelidade irrestrita a ele mesmo,
amor de que Paulo fala se escreve “ágape”. Pastor único. A tripla pergunta: “tens
Ágape é uma dessas palavras curiosas amor a mim?” é feita na linguagem joani-
que, na Sagrada Escritura, se na do amor; na terceira vez, po-
reservava para alguns usos. Em “Amar os outros rém, com o verbo fileo, que ge-
grego, pode-se dizer amor de ralmente exprime a ternura das
é a característica
várias formas: porneia, eros, filia relações humanas, e que tam-
e agape. Bom exemplo para mais importante bém pode incluir tanto o elã
captarmos a diferença entre da vida cristã e o meramente humano quanto o
ágape e os outros tipos de amor amor inspirado por Deus (DU-
encontramos no diálogo de Je- centro do modo de FUOUR, 1998, p.207).
sus com Pedro, após a Páscoa. vida cristão. Todo
Quando pergunta a Pedro se ele A pergunta à qual o pontífi-
o ama, o evangelista põe na conceito paulino ce tenta nos encaminhar seria:
boca do Senhor a palavra aga- de vida santa é em que medida nossas relações
pe. Pedro responde, as três ve- e, nelas, nossos amores tradu-
dominado pelo
zes, utilizando a filia. zem o nosso amor de Jesus ou
amor.” são impelidos por esse amor?
Jesus quer iniciá-lo ao Seja no amor entre irmãos, entre
Agape, ao Agape que é o amor gratuito, amigos ou entre esposos. O Hino ao Amor é
que não espera retorno [...]. Pedro ainda transmitido por Paulo aos cristãos de Corinto
não está à altura do Agape. Este é um como um lembrete. Sendo uma comunidade
ensinamento interessante para nós. Nós enriquecida em tudo pelo Evangelho, é ad-
estamos num caminho, e quanto mais moestada pelo apóstolo para que não se per-
avançamos, mais formas de amor nós ca na divisão. Seus membros pertencem so-
descobrimos (LELOUP, 2013, p.184). mente a Cristo, e ele é a medida do amor e o
nexo das relações. Distinções ideológicas não
A nosso ver, Francisco propõe uma ati- devem ferir esse princípio de unidade e co-
tude pastoral pautada na compreensão munhão. Para Paulo, a comunidade se funda
qualificadora do amor agape. Uma vez que, no amor de Cristo. Para ele, “amar os outros
na Sagrada Escritura, este amor gratuito e é a característica mais importante da vida
também solidário coincide com o jeito de cristã e o centro do modo de vida cristão. [...]
Deus amar, o pontífice o toma como norma Todo conceito paulino de vida santa é domi-
nº- 312

na consideração de todas as outras formas nado pelo amor” (MOHRLANG, 2008, p.67).
de amor. Sendo “amor de Deus”, é necessa-

ano 57

riamente o amor com o qual Jesus ama e, O contexto do “Hino ao Amor”


consequentemente o amor, que solicita a ontem e hoje

seus discípulos no cuidado que devem O segundo capítulo da Exortação Apos-


Vida Pastoral

prestar ao rebanho: “Pedro, tu me amas tólica é dedicado à contextualização. Francis-

12
co pauta sua reflexão em dois polos: a Sagra-
da Escritura (capítulo primeiro) e os fatos Os sacramentos na Igreja
(capítulo segundo). Quando, no capítulo Subsídio teológico-pastoral para
formar e educar na fé
quarto, enfatiza o amor em perspectiva escri-
turística, o faz depois de argumentar sobre os Everaldo Cescon e Paulo César Nodari

acontecimentos pertinentes à vida matrimo-


nial e familiar.
Na primeira Carta aos Coríntios, são Pau-
lo utiliza o mesmo recurso. Encontramos es-
palhadas por toda a carta as ponderações do
apóstolo, pondo de um lado a realidade da
vida de fé da comunidade coríntia, e de outro
a perspectiva vocacional à qual foram chama-
dos. A comunidade coríntia experimentava
tensões muito sérias. O grande problema era
uma espécie de gnosticismo pneumático: a
posse do Espírito Santo, manifesta das mais
128 págs.
variadas formas, sobretudo por meio dos ka-
rismata, ou “dons do Espírito”, que fornecia
um determinado tipo de conhecimento sobre Este livro é fruto de uma reflexão
as coisas: “Essa posse separa os cristãos em amadurecida ao longo do anos,
duas classes, os pneumáticos ou ‘perfeitos’, especialmente a partir da atuação
por um lado, e os sárquicos (carnais) ou de pastoral junto às comunidades
do povo de Deus em diversos
menoridade (os imaturos) de outro lado”.
lugares e regiões. Busca auxiliar
(VIELHAUER, 2015, p.162) as pessoas na sua formação
A crítica paulina ao partidarismo, extre- pastoral cristã, iniciando sua
mamente nocivo à vida comunitária, transpa- reflexão com a indagação a
rece como fio condutor da carta. O papa respeito de quem é o ser humano
Francisco toca essa questão em AL logo de e de sua possibilidade de chegar
a Deus. Jesus Cristo, plenitude do
início. Ao manter o caráter sinodal na Exorta-
acolhimento do amor do Pai, deixa
ção, recolhendo todas as contribuições possí- à Igreja o compromisso de ser no
Imagens meramente ilustrativas.

veis para jogar luz sobre a pluralidade de si- mundo sinal desse acolhimento.
tuações pelas quais passam a vida matrimo-
nial e familiar, o pontífice se posiciona contra
qualquer tipo de polarização. O partidarismo
é prejudicial exatamente por identificar a ver-
dade com a idiossincrasia de um grupo. Ou- Vendas: (11) 3789-4000
tro elemento importante é a propensão de 0800-164011
Francisco a ampliar o debate ao invés de en- SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

cerrá-lo em definições legais ou doutrinais. V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


Também não o satisfaz aceder às decisões rá- paulus.com.br

ano 57

pidas, sem suficiente estudo e construção co-


letiva de um consenso que permite – é claro
– governabilidade de um lado e aplicação

Vida Pastoral

consciente na pastoral, por outro (AL 2).

13
Mas é AL 3 que merece uma atenção de ras que nascem da criatividade do Espírito do
maneira mais especial. A nosso ver, são as Senhor. Dessa teologia tão fiel ao Mistério da
poucas palavras de Francisco nesse número Encarnação — o próprio Filho de Deus cres-
que melhor oferecem o espírito da Exorta- cia... — brota uma pastoral, isto é, uma for-
ção. Curto, direto e denso. Este número, em ma de cuidar do rebanho, das pessoas.
especial, rendeu ao papa uma crítica do O terceiro aspecto: nenhum documento
controvertido Cardeal Burke segundo o qual do Magistério eclesial tem as respostas para
de Amoris Laetitia não ser magisterial, o que tudo, e – conforme as palavras do papa –
equivale a não ser um ensino oficial da Igre- não se pode, simplesmente, esperar por
ja. Nossa análise do número eles. Na colegialidade em no
três é exposta a seguir: “O que é pleno em respeito à unidade tanto dou-
Primeiro, considerar que
Jesus é ainda iniciação trinal quanto práxica, há que
o tempo é superior ao espaço se deixar espaço àquilo a que
é de grande importância no para nós. Até que Cristo Deus mesmo nos possa impe-
que tange ao elemento convi- seja tudo em todos, há lir a partir dos lugares onde
vial, que é o escopo de um estamos e respeitando o con-
ensino que verse sobre matri- que respeitar o ritmo de texto em que vivemos. Isso
mônio e vida familiar. Como nossa vida.” nos parece uma tentativa de
na maioria dos fenômenos levar os bispos das Igrejas lo-
humanos, as coisas não estão cais à responsabilidade de ou-
prontas. A dimensão histórica, processual sar pelo bem do Evangelho, pela felicidade
deve ser ressaltada e considerada seriamen- da criação inteira, e não permanecer à espe-
te. Não há receitas que dão conta da dinami- ra de posicionamentos pontifícios.
cidade da vida. Não há regras que definam Parece-nos bastante positiva a avaliação
exaustivamente um relacionamento. Pode- de Andrea Grillo sobre este número da AL:
mos propor balizas. Vislumbrar horizontes.
Nesse sentido, o tempo é fundamental. Pen- É preciso notar que, enquanto a auto-
sando, por exemplo, no casamento, isso ser- limitação do magistério que tivemos que
ve tanto para os que apressadamente que- registrar com João Paulo II e com Bento
rem se unir ou separar quanto para os que XVI estava propensa a encerrar os deba-
pensam ter todas as soluções ou arrogam tes, a reprimir a liberdade de palavra, a
para si o direito de se considerarem casal/ marginalizar a dissidência, neste caso,
família perfeita. Estamos todos a caminho, Francisco quer quase estimular a discus-
em peregrinação, até que o Espírito nos são, renunciando a intervir com um “pro-
conduza à verdade completa. nunciamento resolutivo”.
Um segundo elemento, que não é menos No primeiro caso, a autoridade está
importante e mais de cunho teológico, é res- pela proteção do status quo, enquanto, no
peitar a progressividade da Revelação. Embo- segundo caso, a autoridade permite uma
ra completa em Cristo, está em desvelamento mudança e uma variação. Neste caso, po-
nº- 312

em nós. O que é pleno em Jesus é ainda ini- deríamos dizer, assume-se a autoridade
ciação para nós. Como afirma o salmista, so- de reconhecer outras autoridades, para

ano 57

mos obra começada. Até que Cristo seja tudo deixar iniciar, no tempo, processos de
em todos, há que se respeitar o ritmo de nos- autoridade.

sa vida. Esse ritmo é plural porque suas nar- O princípio da superioridade do tem-
Vida Pastoral

rativas são múltiplas, e variadas são as cultu- po sobre o espaço é, na realidade, uma

14
precisa e poderosa teoria do exercício do
magistério. Que reconhece a prioridade Manual de liturgia III
paciente do fato de iniciar processos inclu- A celebração do mistério pascal
– Os sacramentos: sinais do
sivos, em vez da de ocupar espaços exclu-
mistério pascal
dentes e exclusivos. “Dar prioridade ao
tempo é ocupar-se mais com iniciar pro- Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM)

cessos do que possuir espaços” (Evangelii


Gaudium, n.223). (GRILLO, 2016).

As características do amor
Citando o Catecismo da Igreja Católica,
Francisco afirma objetivamente que o matri-
mônio cristão visa “aperfeiçoar o amor dos
cônjuges”. (AL 89) O Ritual do Matrimônio
fala em “enriquecimento” do sacramento do
batismo, dotando a relação conjugal e fami-
liar de eclesialidade e livrando-a da autorre-
ferência.(Ritual do Matrimônio.) Casa-se na 372 págs.

Igreja, isto é, no contexto de uma vida fra-


terno-familiar, como desdobramento daque-
Os sacramentos são os sinais
la relação operada por Cristo entre ele e o
sensíveis produtores da graça,
Pai, aberta a todos os que desejem tomar instituídos por Jesus como auxiliares
parte, o que se realiza pelos sacramentos da indispensáveis para a pessoa
iniciação: batismo-crisma-eucaristia. Essa conseguir a salvação eterna. Por
referência do papa ao Amor é axial. Esse isso, é de fundamental importância
amor, já o sabemos, não diz respeito apenas penetrar no verdadeiro valor
e significado de cada um dos
à afetividade do casal, mas é a presença do
sacramentos. O volume III da
Espírito Santo que em nós faz conhecer as série Manual de Liturgia, fruto do
palavras e gestos do Filho e, por ele, o abra- trabalho de renomados liturgistas
ço santificador do Pai. latino-americanos, aborda os sete
Francisco passa à explicação do “amor sacramentos cristãos, analisando-
os a partir da perspectiva da
Imagens meramente ilustrativas.

cristão”, tomando como referência um tre-


iniciação cristã.
cho breve da primeira carta aos coríntios.
Uma coleção de atributos é apresentada e,
um a um, são interpretados. É importante
compreendermos que não se trata de um
“ideal” de amor, mas de um amor possível Vendas: (11) 3789-4000
porque é realização do ágape de Jesus. O 0800-164011
pontífice o diz com todas as letras: “Isso se SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

pratica e cultiva na vida que os esposos par- V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


tilham dia a dia entre si e com os seus filhos” paulus.com.br

ano 57

(AL 90). Pelos sacramentos da iniciação e,


claro, pela celebração do matrimônio por
motivo de enriquecimento, somos todos

Vida Pastoral

mergulhados nesse amor. No entanto, é pos-

15
sível estarmos nele submersos, mas revesti- cramento não é uma autocelebração, isto é,
dos de impermeabilidade. Deixar-se empa- uma experiência autorreferencial do amor,
par por esse amor é condição para o sucesso também a liturgia que os legitima e insere
da vida matrimonial e familiar, e isso Fran- nesse caminho não pode esgotar-se no ro-
cisco deixa claro ao abordar a necessidade mantismo dos cônjuges.
de crescer na caridade conjugal: Mas, conforme se autodefiniu em seu dis-
curso aos luteranos, Francisco experimenta
O cântico de são Paulo, que acabamos seu ministério de confirmar os irmãos e irmãs
de repassar, permite-nos avançar para a na fé como um pároco universal; move-se com
caridade conjugal. Esse é o o coração de pastor. Por essa ra-
amor que une os espo- “Não se deve atirar zão, após iluminar a vida matri-
sos, amor santificado, enri- monial e familiar com a beleza do
quecido e iluminado pela para cima de duas amor de Cristo, deixa claro que
graça do sacramento do ma- pessoas limitadas o isso não pode ser vivido como
trimônio. É uma “união afe- uma carga: “Não se deve atirar
tiva”, espiritual e oblativa,
peso tremendo de
para cima de duas pessoas limita-
mas que reúne em si a ter- ter que reproduzir das o peso tremendo de ter que
nura da amizade e a paixão
perfeitamente a união reproduzir perfeitamente a união
erótica, embora seja capaz que existe entre Cristo e a sua
de subsistir mesmo quando que existe entre Cristo Igreja”. (AL 122) O jugo do amor
os sentimentos e a paixão e a sua Igreja.” há que de ser leve. Como na tra-
enfraquecem.(AL 120) dição rabínica, o jugo diz respeito
àquela característica mais específica do mestre
Ao destrinchar o significado bíblico do que o discípulo é chamado a imitar e, por essa
amor conjugal e familiar – que, na verdade, imitação, absorver e tornar um traço próprio.
diz respeito ao amor de Cristo que foi derra- O matrimônio, como enriquecimento da vida
mado no coração dos cristãos, parafrasean- batismal, não pode se tornar um peso. Por essa
do são Paulo –, Francisco apresenta a sacra- razão, faz-se necessário lembrar-se das fragili-
mentalidade própria do matrimônio. Em dades de toda experiência humana e – com
algumas homilias, por ocasião de núpcias compaixão e misericórdia evangélicas – expe-
em nossa comunidade paroquial, costuma- rimentar o avanço gradativo no exercício dessa
mos dizer que o relacionamento dos espo- vocação.
sos é tornado pela celebração da Igreja, a
pedido dos cônjuges, um monumento. Qual Onde está a “glória” de Deus
obra de arte, esculpida na dureza da rocha, no relacionamento conjugal?
é um registro e um lembrete da beleza do Em A arte de se salvar, o rabino Nilton
Amor de Deus, que se tornou claro como o Bonder traz dois conceitos judaicos provoca-
dia, em Jesus. O casal, nessa perspectiva, as- tivos que desejamos utilizar aqui para inter-
sume o compromisso de ser, permanente- pretar algumas afirmações de Francisco sobre
nº- 312

mente, para a comunidade de fé e para to- a vida matrimonial e familiar e o exercício do


dos quantos com ele convivam, a prova viva Amor ao qual são vocacionados. São eles a

ano 57

desse amor. As leituras bíblico-litúrgicas, a noção de Aié e Malé.


eucologia, os cantos na celebração matrimo-
nial devem explicitar essa vocação. Assim A primeira expressa dúvida e angús-

Vida Pastoral

como a vida conjugal e familiar tornada sa- tia, e a segunda, certeza e fé. A palavra

16
Aié (“onde?”) denota a busca existen-
cial. A mesma palavra – aieka – é utili- Sacramentos em sua vida
zada na Bíblia, no episódio em que o Padre José Bortolini
Criador procura Adão no Paraíso, logo
após este ter provado da Árvore da Sa-
bedoria. “Aieka” significa: “Onde está
você, Adão?”, no sentido existencial
(em vez de espacial) “neste momento?
Por onde anda a tua alma?”. (BONNER,
2011, p.22)

O rabino, com esse trecho, fala do as-


pecto de velamento que a vida possui no
que diz respeito ao seu sentido, às suas
possibilidades, aos direcionamentos possí-
veis. Não há no mundo clareza ou obvieda-

200 págs.
de para tudo. Assim é a vida matrimonial e
familiar tal e qual conduzida na reflexão de
Francisco. Muito embora o pontífice paute
e estabeleça o horizonte teológico e tam- Este curso versa sobre os sete
bém doutrinal do matrimônio cristão como sacramentos, em linguagem
tradução existencial do amor de Cristo, ele simples e popular. O livro é
mesmo exprime seu caráter desafiante. O destinado à catequese e às
comunidades sem padre. É
número 122 da Amoris Laetitia trata exata- uma coletânea dos artigos
mente disso, de conceber o amor matrimo- publicados em O Domingo – Culto
nial como tarefa para além do dom. O con- Dominical. O texto foi revisto,
trário disso é um amor enfermo que se tor- corrigido e desenvolvido. Obra
na “incapaz de aceitar o matrimônio como de fundamental importância
um desafio que exige lutar, renascer, rein- para a formação catequética,
apresenta uma visão completa dos
ventar-se e recomeçar sempre de novo até a sacramentos, seus fundamentos
morte” e, é claro, não consegue “sustentar bíblicos e teológicos, seus
Imagens meramente ilustrativas.

um nível alto de com­promisso”. (AL 122) elementos simbólicos e suas


Estamos diante da exigência do cuidado, implicações pastorais.
da verificação permanente, da vigília cari-
nhosa do vínculo. O pontífice parece dizer:
“pergunte-se, sempre, onde você está em
relação ao Amor que é dom e tarefa”. Este Vendas: (11) 3789-4000
amor que “‘não foi instituído só em ordem 0800-164011
à procriação’, mas para que o amor mútuo SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

‘se exprima convenientemente, aumente e V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


chegue à maturidade’”(AL 125) necessita paulus.com.br

ano 57

ser buscado, discernido, compreendido,


educado, transformado. Os números 126 a

141 vão tratar basicamente do desafio labo-


Vida Pastoral

rioso do amor.

17
Voltando ao rabino Nilton Bonder, tome- consequên­cias, bem como a vida sexual — e
mos o segundo termo judaico, Malé: lendo-as à luz do conceito judaico Malé, po-
demos chegar à constatação de uma ordem
Por sua vez, o conceito Malé (a terra nas relações, bem como da gratidão neces-
está repleta da Sua glória) representa o sária para que o matrimônio se sustente e a
mágico momento em que a ordem se de- convivência siga em frente.
codifica de maneira clara e cristalina. O matrimônio, portanto, não pode ser
Como na visão do profeta Isaías (6,3), lido e experimentado isoladamente apenas
de onde a frase é retirada, os seres celes- com base em um dos conceitos, mas somen-
tes anunciam a presença da te na dinâmica dialógica dos
glória divina sem máscaras “As emoções das quais dois: Aié e Malé. Utilizando as
ou véus. Tal conceito re- referências do próprio papa ao
presenta os momentos em decorrem opções e falar, por exemplo, da violência
que somos tocados pela consequentes atos e da manipulação nos números
existência, em que não te- 153 a 157, podemos constatar
devem ser observadas
mos dúvida sobre a exis- que a degradação da relação
tência da ordem, ou os mo- e verificadas como conjugal e familiar se estabelece
mentos nos quais o prazer realização livre, quando o amor se perverte. Em
e a alegria de estar vivo são quaisquer dos aspectos que o
tão sólidos que nos fazem consciente, límpida do revelam: sexualidade, afetivida-
perceber o mundo como amor de Cristo.” de, alteridade. Essa percepção
calçado por um chão de surge do uso de uma boa dose
paz e certeza. (BONNER, de Aié e Malé, isto é, da capaci-
2011, p.23) dade de buscar sentido e reconhecê-lo. Sa-
bedoria ao aplicar as seguintes frases ao re-
Na Exortação Apostólica, os números lacionamento: onde está a glória de nosso
142 ao 152 evocam aqueles aspectos da re- relacionamento? Aqui está a glória de nosso
lação amorosa que causam prazer e são ex- relacionamento! Sobretudo tendo como re-
plicitamente belos. O papa comenta sobre o ferência o amor de Cristo, modelo e meta
mundo das emoções como sendo uma das para a vida conjugal e familiar.
características mais basilares de nossa hu-
manidade: “O ser humano é um vivente Conclusão
desta terra, e tudo o que faz e busca está Nos últimos números do capítulo IV, o
carregado de paixões”. (AL 143) Assim, não papa fala da “transformação do amor”.
sendo intrinsecamente bom ou mau – seja a Francisco aborda a necessária metamorfo-
atração, seja a repulsa –, as emoções das se pela qual o amor dos cônjuges deve
quais decorrem opções e consequentes atos passar para que a relação se sustente e seja
devem ser observadas e verificadas como re- fecunda. Depois de quatro, cinco décadas
alização livre, consciente, límpida do amor juntos, como manter a vitalidade no casa-
nº- 312

de Cristo, ao qual estão chamados os espo- mento quando já não vicejam aqueles as-
sos e a família como um todo. Em particu- pectos “originais”: quiçá a paixão, a libi-

ano 57

lar, fala-se do exercício da sexualidade como do, as expectativas...? O papa afirma que é
dom que embeleza a vida conjugal. Toman- possível ter “um projeto comum estável”,
do como referência estas concreções da vida de modo que o amor não seja apenas abor-

Vida Pastoral

matrimonial — as emoções e suas dado pelas vias da afetividade, mas como

18
um compromisso motriz. É nesse ponto
que nos vem à memória uma breve consi- As noites de um profeta
deração do Rabino Bonder ao tratar da re- Dom Hélder Câmara
no Vaticano II
lação entre o amor e a verdade. Contando
uma pequena parábola sobre um paciente José de Broucker
que, medicado em sua enfermidade, deve-
ria tomar pílulas que vinham recobertas
por uma camada de açúcar e aromatizan-
tes, mas simplesmente não melhorava
porque, em vez de engoli-las, chupava-as,
absorvendo apenas o doce e cuspindo o
remédio, ele nos oferece a seguinte cons-
tatação: “Absorvemos nossas experiências
do dia a dia de maneira semelhante, pois
integramos o doce (a estrutura do amor) e
‘cuspimos’ a componente Verdade”. (BON-
NER, 2011, p.42) A verdade em um rela-

168 págs.
cionamento matrimonial e familiar é a
vida divina à qual são convocados a parti-
cipar e anunciar existencialmente. Essa Quando um homem fora do comum
graça, que é sacramental, isto é, dá-se a – Dom Hélder Câmara – encontra
conhecer “nas alegrias e tristezas” da exis- um acontecimento excepcional – o
tência concreta da família, respectivamen- Concílio Vaticano II –, a história
que eles escrevem juntos vale a
te, ora como epifania (Malé: Aqui está!),
pena ser contada. Noite após
ora desvelando-se (Aié: Onde está?), é su- noite, Câmara, que ainda não era
portada virtude da estrutura oferecida a “voz dos sem voz”, não cessou
pelo amor de Cristo. Um amor pascal, que de “conscientizar” e de “articular”
não mascara porque não é puramente cos- os atores do Concílio, teólogos e
mético e, portanto, superficial. É estrutu- bispos, até o papa, acerca de um
programa claro: a edificação de
rante e orientador de uma vida inteira
uma outra Igreja, servidora e pobre,
para a verdade sobre os cônjuges, sobre a por um mundo mais justo e fraterno.
Imagens meramente ilustrativas.

família, sobre o mundo, sobre Deus. Um


amor que é puro Espírito porque é memó-
ria da oblatividade do Filho nas experiên-
cias vitais do casal. Um amor que excede o
sentimento e evoca a razão da mútua en-
trega celebrada diante do altar, entoada Vendas: (11) 3789-4000
pelos enamorados no Cântico dos Cânti- 0800-164011
cos: Ani le dodi ve dodi li: Eu sou do meu SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

Amado e o meu Amado é meu. V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


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ano 57

Vida Pastoral

19
Bibliografia

BONDER, N. A arte de se salvar. ensinamentos judaicos sobre o limite do fim e da tristeza. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011.
GRILLO, A. Descobrindo a “Amoris Laetitia”: como muda o Magistério e como se traduz a doutrina. Dis-
ponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/553719-descobrindo- a-qamoris- laetitiaq-como-
muda- o-magisterio- e-como- se-traduz- a-doutrina- artigo-de- andrea-grillo. Acesso em: 19 de
abr. de 2016.
LELOUP, Jean-Yves. Caminhos da realização. Petrópolis: Vozes, 2011
LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João. Vol. IV. São Paulo: Loyola, 1998.

VIELHAUER, P. História da literatura cristã primitiva. introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Aca-
demia Cristã, 2015.

Dia a dia com o Evangelho 2017


Texto e comentário – Ano A – São Mateus
Padre Luiz Miguel Duarte

O Dia a dia com o Evangelho é uma ótima


opção para quem busca um modo de
organizar as atividades diárias e meditar a
leitura do evangelho do dia com uma reflexão
do Pe. Luiz Miguel Duarte. O material traz
espaço para anotações, trecho da Boa-nova
de cada dia lido na liturgia, uma reflexão,
centrada no texto bíblico ou no tema da liturgia
do dia e indicações das leituras da liturgia do
dia. Dia a dia com o Evangelho é um auxílio
precioso para que, no cotidiano cada vez mais
marcado pela pressa, nossas irmãs e nossos
irmãos possam sentir a presença de Cristo e,
Imagens meramente ilustrativas.

assim, animar-se na missão de amar a Deus e


ao próximo como a si mesmo.
nº- 312

ano 57

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dá gosto de ler! vendas@paulus.com.br

Vida Pastoral

20
O sacramento
da reconciliação: contribuições
teológico-pastorais
Pe. Francesco Sorrentino*

Este artigo ressalta, em primeiro lugar, a gratuidade do amor


de Deus que se faz presente no sacramento da reconciliação.
Em seguida, quer oferecer uma compreensão teológica do pecado
e da conversão e, finalmente, tenta apontar possíveis
desdobramentos catequéticos, litúrgicos e pastorais.

*Missionário do Pontifício Instituto das Missões Introdução

A
(Pime), mestre em Teologia pela Faculdade
proxima-se o encerramento do Jubileu
Jesuíta de Filosofia e Teologia, Faje (Belo
Horizonte [MG], 2014). É autor do livro Em que Extraordinário da Misericórdia. Desde a
posso servir?: O serviço no testemunho de Dom proclamação do Ano Santo, o papa Francisco
Luciano M. de Almeida (Paulinas, 2015). Na
Diocese de Macapá (AP), coordena a Pastoral exortou-nos para que, “com convicção, ponha-
Universitária e a Equipe a Serviço da Palavra, e é mos novamente no centro o sacramento da Re-
vigário paroquial da Paróquia São José. E-mail:
conciliação, porque permite tocar sensivel-
nº- 312

sorrentino.francesco@pime.org
mente a grandeza da misericórdia” (MV 17).
Apesar de todos os sacramentos serem

ano 57

canais de transmissão da Misericórdia de


Deus, essa função é desempenhada, por ex-

celência, pelo sacramento da reconciliação.


Vida Pastoral

Contudo, “nenhum outro sacramento esteve

21
e ainda está em tão sério perigo como o sa- terno, onde a vida humana é amada e acolhida
cramento da reconciliação; isso talvez por antes de nascer e de poder retribuir. Nesse
causa de seu rígido esquema ritual e de uma sentido, então, Paulo escreve a Tito:
praxe mais ou menos legalista, dissociada da
vida” (HÄRING, 1998, p. 32). Além disso, Mas quando a bondade e o amor de
em muitas paróquias, já não é mais praticado Deus, nosso Salvador, se manifestaram,
como antigamente. Quem até décadas passa- ele salvou-nos não por causa dos atos
das se confessava com frequência atualmente justos que houvéssemos praticado, mas
não se confessa mais. porque, por sua misericórdia, fo-
Diante dessas observações, “O sacramento da mos lavados pelo poder regene-
percebe-se a relevância do tema reconciliação torna rador e renovador do Espírito
abordado nas páginas que se se- Santo, que ele ricamente derra-
guem.
visível o amor primeiro mou sobre nós, por meio de Je-
de Deus que se sus Cristo, nosso Salvador, a fim
1. Reconciliação:
manifestou em Jesus de que fôssemos justificados
sacramento do amor pela sua graça e nos tornássemos
primeiro de Deus Cristo: “Tudo nele fala herdeiros da esperança da vida
O Novo Testamento concei- de misericórdia.” eterna (Tt 3,4-7).
tua a plenitude do amor entre
Deus e o ser humano e dos se- O sacramento da reconcilia-
res humanos entre si através do termo “ága- ção torna visível este amor primeiro de Deus
pe”, que indica um amor descentrado de si, que se manifestou em Jesus Cristo: “Tudo
totalmente voltado ao bem do outro, oblativo nele fala de misericórdia. Nele, nada há que
e gratuito (Mt 5,38-48). Este amor que não seja desprovido de compaixão” (MV 8). Por
conhece fronteiras é o eixo hermenêutico de isso, antes da confissão dos pecados vem a
toda a mensagem cristã. João escreve: confissão do amor gratuito de Deus, ou, para
usar uma expressão da Igreja oriental, a con-
Nisto se manifestou o amor de Deus fessio laudis.
por nós: Deus enviou o seu Filho único
ao mundo para que vivamos por ele. Nis- Confissão dos pecados para o louvor
to consiste o amor: não fomos nós que da misericórdia divina, da qual resulta a
amamos a Deus, mas foi ele quem nos conversão para uma espiritualidade na
amou e enviou-nos o seu Filho como ví- qual o homem que foi perdoado conti-
tima de expiação pelos nossos pecados nua louvando a Deus na sua vida, princi-
(1Jo 4,9-10). palmente por causa da sua pronta dispo-
sição para perdoar, restabelecer as rela-
Trata-se de um “amor primeiro”. Brota, ex- ções desarticuladas, tornando-se um ins-
clusiva e diretamente, da bondade de Deus. trumento de paz e de reconciliação para a
Não é suscitado pelas qualidades humanas. vida inteira (HÄRING, 1998, p. 36).
nº- 312

Paulo o explicita muito bem quando afirma:


“Mas Deus demonstra seu amor para conosco Na dinâmica desse sacramento, o prima-

ano 57

pelo fato de Cristo ter morrido por nós quan- do não é do arrependimento do ser humano,
do éramos ainda pecadores” (Rm 5,8). Tal afir- apenas após o qual seria seguido pelo perdão
mação possui como pano de fundo a visão

de Deus. Se fosse assim, o “ágape” divino per-


Vida Pastoral

hebraica de misericórdia, ligada ao útero ma- deria sua dimensão de gratuidade, porque

22
estaria submisso ao bem-querer humano.
Cair-se-ia numa forma legalista de celebrar a Dom Helder Câmara
reconciliação. Na realidade, o arrependimen- Profeta para os nossos dias
to do pecador é possível porque a bondade Marcelo Barros
de Deus o precede.
Na parábola do Pai Misericordioso (Lc
15,11), é evidente que, antes da tomada de
consciência do próprio pecado, o que move o
filho ao retorno à casa paterna, se por um lado
é a fome, por outro é a lembrança da bondade
do pai até com os empregados, aos quais ofe-
rece comida com fartura (Lc 15,16-17).
Finalmente, com base em uma visão que
prioriza a gratuidade do amor de Deus será
possível recuperar a dimensão pascal do sa-
cramento da reconciliação. Com efeito, o
perdão dos pecados, a intervenção de Deus

224 págs.
que perdoa, em nossa existência, acontece
antes de tudo e uma só vez por todas e ape-
nas na Cruz de Cristo; todo o resto é só o “Não deixe cair a profecia!”
tornar-se eficaz dessa ação reconciliadora de Essas foram as últimas palavras
Deus em Cristo (Rahner apud RAMOS-REGI- que Dom Helder Câmara disse
DOR, 1989, p. 293). a Marcelo Barros, monge que
havia muitos anos o assessorara
Dissociado do evento pascal, do qual é
para assuntos ecumênicos. Este
sinal, o sacramento da reconciliação se reduz livro foi escrito como um modo de
a um mero ato judicial no qual o pecado só cumprir aquele pedido. Marcelo
espera sua condenação. Dentro de uma pers- se dirige especialmente aos
pectiva pascal, o pecado qualifica-se como jovens e leitores que não puderam
“feliz culpa”, isto é, a oportunidade para ex- conhecer diretamente Dom Helder,
lembrando as experiências de
perimentar o perdão salvador de Deus. Nesse
convívio e a colaboração pastoral
sentido, pode ser considerado a porta de vividas com esse grande profeta.
Imagens meramente ilustrativas.

acesso ao sacramento da reconciliação.

2. O pecado: porta de acesso


ao sacramento da reconciliação
Quando o assunto é “pecado”, a pastoral
se encontra diante de um dúplice desafio. Por Vendas: (11) 3789-4000
um lado, percebe-se certa necessidade de su- 0800-164011
peração da visão tradicional objetivista que SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

apresentava as coordenadas necessárias para V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


pautar a vida moral. Sabe-se que a modernida- paulus.com.br

ano 57

de é contrária a uma objetividade que não en-


volva o todo do ser humano. Por outro lado,
sabe-se que uma negação da realidade do pe-

Vida Pastoral

cado levaria a uma desvalorização da redenção

23
de Jesus Cristo e a uma relativização da res- não aceita o pecado é uma tautologia. Ele
ponsabilidade humana diante do mal que é uma realidade teológica que só pode ser
acontece (cf. LIBANIO, 1976, p. 15). entendida à luz da Revelação, sob o influ-
Do ponto de vista da fé, o pecado, antes xo da graça (LIBANIO, 1976, p. 22).
de ser uma transgressão de normas e precei-
tos, é um estado no qual a pessoa, livre e A correta interpretação teológica cristã de
espontaneamente, se encontra no relaciona- ser pecador começa quando a pessoa se en-
mento com Deus. O Antigo Testamento o contra com a certeza de que “Deus é amor”
identifica como orgulho do ser humano (1Jo 4,8). Tal hermenêutica não se satisfaz
diante de Deus (Gn 11,1-9; Dt com a análise do sentimento de
7,25; 11,35) e causa de relação “O pecado pode culpa. Vai além da dimensão me-
perversa para com Deus (Gn ramente psicológica. Consegue
2,18-23), com a natureza (Gn ser considerado, mostrar que, diante do “não” do
4,24) e com o semelhante (Gn metaforicamente, a ser humano (a experiência de
4,8). Dessa forma, o pecado, pecado), há um “sim” perene,
“porta” de acesso
traduzido com o hebraico het’ pronunciado por Deus em Jesus
(lit. “errar o alvo”), impede a ao sacramento da Cristo (a salvação).
pessoa de alcançar seu objeti- reconciliação, onde Nesse sentido, então, o peca-
vo, distorcendo seu juízo sobre do pode ser considerado, meta-
a realidade. Para o Novo Testa- “Deus não se cansa foricamente, a “porta” de acesso
mento, o pecado é uma reali- de estender a mão.” ao sacramento da reconciliação,
dade que jaz no coração huma- onde “Deus não se cansa de es-
no (Mc 7,21ss); como uma força que leva a tender a mão” (MV 19). Para muitos, infeliz-
preferir as trevas à luz (Jo 3,19) e se mani- mente, esse caminho de retorno libertador a
festa como ódio, homicídio e mentira (Jo Deus parece ficar fechado. E as razões são
8,4; 1Jo 3,12-15). Desde Adão, escraviza o diversas.
ser humano e em Cristo encontra sua supe-
ração (Rm 5,12-19; 7,1-25) (MACKENZIE, A dificuldade de aceitar existencial-
1984, p. 705-709). mente como pecado pessoal algo estipu-
lado como tal nos questionários dos
Quanto mais o homem se fecha em exames de consciência tem levado, entre
si, menos aberto se encontra diante de outras razões, a uma queda bem notável
Deus, menos possibilidade tem de com- na prática do sacramento da penitência,
preender o pecado. Daí que, teologica- mesmo por parte de pessoas que antiga-
mente falando, o pecado, sendo a nega- mente se confessavam com frequência.
ção do amor, o fechar-se em si mesmo, Houve um esvaziamento da concepção
provoca naturalmente a atitude parado- antiga de pecado, ainda que muitas ve-
xal de sua autoignorância. Quanto mais zes não percebido, que não foi preenchi-
pecador, tanto menos se sente pecador. do por uma visão mais real, mais autên-
nº- 312

No momento em que alguém se julga re- tica, mais exigente. Não menos funesta
almente pecador, nesse momento a graça tem sido uma benignidade sentimental

ano 57

de Deus o atingiu e ele começou a cami- dos confessores, que confundem com-
nhada de ascensão do pecado para a gra- preensão, abertura, com o minimizar da

ça e se torna de fato menos pecador. Afir- realidade tremenda do pecado. Outros


Vida Pastoral

mar que quem vive de fato no pecado não menos esclarecidos continuam ator-

24
mentando as consciências com uma ca- belecer a aliança rompida com uma resposta
suística que corresponde a uma visão do livre do ser humano ao convite generoso de
homem de outra época (LIBANIO, Javé, o primeiro que se converteu à humani-
1976, p. 22). dade (cf. MARCHETTI-SALVATORI, 2012,
p. 605). Não há dúvida: a conversão se reali-
Na Bula de proclamação do Jubileu Ex- za por meio da saída de si mesmo.
traordinário da Misericórdia, o papa Francis-
co ressalta, entre outras coisas, a urgência de O perigo básico de nossa vida consis-
um renovado empenho na celebração do sa- te em girarmos demais ao redor de nós
cramento da reconciliação. Tal empenho exi- mesmos, apenas nos perguntando o que
ge confessores prontos para ser “sempre e por a vida pode nos dar. Assim, as coisas
todo lado, em cada situação e apesar de tudo, sempre se concentram em nós e em nos-
o sinal do primado da misericórdia” (MV 17), so bem-estar. Para Jesus, esse é um cami-
para que, no sacramento da reconciliação, o nho equivocado que leva a um beco sem
pranto do pecado se transforme, verdadeira- saída (GRÜN, 2006, p. 59).
mente, na alegria da conversão.
Por isso, ele começa a atividade pública
3. A conversão: porta de saída convidando à conversão, à metanoia, isto é,
do sacramento da reconciliação à mudança de mentalidade: “Convertam-se
(metanoeite) e acreditem no Evangelho, por-
Não basta entrar no sacramento da re- que o Reino de Deus está próximo” (Mc
conciliação pela porta do pecado. É necessá- 1,15). Segundo o Novo Testamento, o moti-
rio sair pela porta da conversão. vo básico dessa mudança não somos nós, e
sim a proximidade do Reino de Deus. É a
Não é totalmente ausente da mentali- pertença a esse Reino que determina a con-
dade cristã contemporânea uma compre- versão como experiência de ressurreição ou
ensão grosso modo legalista da conversão vida nova, até o ponto de poder dizer com
[...]. O momento celebrativo sacramental Paulo: “Não sou mais eu que vivo, mas Cris-
precisa se inserir numa continuidade de to que vive em mim” (Gl 2,20), ou também:
atenção espiritual e pastoral no qual se “O que sou, devo-o à graça de Deus, e a sua
traduza o cuidado para uma conversão graça não foi vã a meu respeito; pelo contrá-
real e profunda, o cuidado para um con- rio, eu trabalhei mais do que eles todos: não
tínuo aprofundamento da vida de fé e, eu, mas a graça de Deus que está comigo”
igualmente, para um contínuo afinamen- (1Cor 15,10).
to da sensibilidade ética e da capacidade O sacramento da reconciliação deve
de escolha moral positiva (BASTIANEL, conduzir a essa sinergia entre a graça de
1990, p. 147, tradução nossa). Deus e a liberdade humana, para chegar a
um seguimento real e radical de Jesus Cris-
É útil recuperar o sentido bíblico da con- to. Nesse sentido, a Introdução Geral ao Sa-
nº- 312

versão. Para o Antigo Testamento, converter- cramento da penitência afirma: “Para que
-se é muito mais do que reconhecer o próprio este sacramento de salvação produza real-

ano 57

pecado e arrepender-se. Significa, positiva- mente seus efeitos nos fiéis cristãos, deve
mente, dirigir-se para Javé. Comporta a obe- lançar raízes em toda a sua vida, impelindo-
diência à sua Lei e à voz de seus profetas, fu-

-o a servir com maior fervor a Deus e aos


Vida Pastoral

gindo da idolatria. Afinal, consiste em resta- irmãos” (IGSP, n. 7). Com efeito,

25
o valor fundamental que deve sempre ricordiosos como o Pai” (cf. Lc 6,36), isto é, a
estar presente, na prática e na teologia da sair do próprio egoísmo para assumir a vida
penitência, é a conversão, como dimensão do outro e, sobretudo, do outro desvalido.
própria da vida do cristão, já que a Palavra O sacramento da reconciliação, então,
de Deus nos revela todos como pecadores não termina com a absolvição. Continua a ser
e continuamente necessitados de conver- celebrado ao lado dos últimos e empobreci-
são e de reconciliação. O sacramento da dos, cuja dignidade foi desfigurada pelo nos-
penitência, como toda outra forma eclesial so pecado pessoal e social, ou estrutural.
de viver este valor, não teria sentido se não Quem se reconcilia com o Pai deve se recon-
fosse autêntica realização da ciliar também com os irmãos e
conversão. Utilizando termi- “A conversão tanto irmãs, e sobretudo:
nologia tradicional, poder- de quem cometeu
-se-ia dizer que é mais im- Abrir o coração àqueles que
portante a res sacramenti (a crimes graves quanto vivem nas mais variadas perife-
conversão e a reconciliação de quem cometeu rias existenciais, que muitas ve-
do cristão) do que o sacra- zes o mundo contemporâneo
mentum (sua celebração
erros leves não fica cria de forma dramática. Quan-
eclesial) (RAMOS-REGI- enclausurada numa tas situações de precariedade e
DOR, 1989, p. 353).
dimensão intimista. sofrimento presentes no mundo
atual! (MV 15).
Da graça da conversão, nin- Manifesta-se numa
guém é excluído. Na Misercordiae vida pautada pelo Conclusão
Vultus, o papa Francisco lançou É necessário, conforme o
um apelo de conversão até para Evangelho.” papa Francisco escreveu na Mi-
quem cometeu crimes graves: sericordiae Vultus, que “a palavra
do perdão possa chegar a todos, e a chamada
Este é o momento favorável para mu- para experimentar a misericórdia não deixe
dar de vida! Este é o tempo de se deixar ninguém indiferente” (MV 19). Tal meta exi-
tocar o coração. Diante do mal cometido, ge uma reconsideração do sacramento da re-
mesmo crime grave, é o momento de ou- conciliação à luz de três dimensões: catequé-
vir o pranto das pessoas inocentes espo- tica, litúrgica e pastoral.
liadas dos bens, da dignidade, dos afetos, A dimensão catequética resgata o senti-
da própria vida. Permanecer no caminho do salvífico e eclesial da reconciliação sacra-
do mal é fonte apenas de ilusão e tristeza. mental. A recuperação do sentido salvífico
A verdadeira vida é outra coisa. Deus não mostrará a reconciliação como evento pascal
se cansa de estender a mão. [...] Basta e encontro com Jesus Cristo, que não veio
acolher o convite à conversão e subme- para chamar à conversão os justos, mas os
ter-se à justiça, enquanto a Igreja oferece pecadores (cf. Lc 5,32). A reafirmação do
a misericórdia (MV 19). aspecto eclesial terá a vantagem de eviden-
nº- 312

ciar o horizonte comunitário que possui


Em suma, a conversão tanto de quem co- tanto o pecado quanto a reconciliação. Se

ano 57

meteu crimes graves quanto de quem come- por um lado o pecado de um só fere toda a
teu erros leves não fica enclausurada numa comunidade, por outro lado, a busca de per-
dimensão intimista. Manifesta-se numa vida

dão se encontra com a reconciliação que a


Vida Pastoral

pautada pelo Evangelho que leva a ser “mise- comunidade toda lhe concede, por meio da

26
celebração sacramental.
Reconsiderar o sacramento da reconcilia- Introdução ao Novo Testamento:
ção à luz da dimensão litúrgica comporta História, Literatura e Teologia –
manter vivo o espírito de renovação litúrgica Volume 1
do Vaticano II, que, a respeito desse sacra- Questões Introdutórias do Novo
Testamento e Escritos Paulinos
mento, exorta para de que “os ritos e as fór-
mulas da Penitência sejam revistos de tal for- M. Eugene Boring
ma que exprimam mais claramente a nature-
za e o efeito deste sacramento” (SC 72), per-
mitindo uma visibilidade maior da reconci-
liação do penitente com a comunidade e o
exercício do sacerdócio de toda a comunida-
de (cf. RAMOS-REGIDOR, 1989, p. 363).
Nessa perspectiva, o Novo Ritual da Penitên-
cia contempla três formas de celebração do
sacramento: 1) reconciliação individual dos
penitentes; 2) reconciliação de vários peni-
tentes com confissão e absolvição individu-
ais; 3) reconciliação de vários penitentes com
750 págs.

confissão e absolvição geral.


A celebração comunitária da reconciliação
é ainda uma opção pouco explorada. Às vezes, Defendendo que todo o Novo
é adotada mais pela carência de ministros or- Testamento é um conjunto formado
pelos gêneros Carta e Evangelho,
denados do que pelo valor que tal forma cele- inclusive o Apocalipse, M. Eugene
brativa tem em si. Quando isso acontece, dois Boring elabora esta Introdução
perigos podem surgir. O primeiro é que, por ao Novo Testamento, obra
causa de um número excessivo de penitentes, monumental e referencial no que
a confissão individual aconteça de forma me- tange aos estudos do NT. É um
cânica e apressada. O segundo é que, em vez livro que vem marcar a segunda
década deste terceiro milênio
de ser uma celebração de comunidade, se tor- e que certamente veio para
ne uma celebração de massa, com perda do colaborar muito com os estudos
Imagens meramente ilustrativas.

empenho pessoal de conversão de cada mem- sobre o Novo Testamento.


bro (cf. RAMOS-REGIDOR, 1989, p. 366-
367). Já em 1977 os Bispos do Brasil, no do-
cumento Pastoral da penitência, alertavam:

As celebrações podem tomar caráter Vendas: (11) 3789-4000


autenticamente comunitário ou ter ape- 0800-164011
nas cunho coletivista. Um exame de SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

consciência individualista considera só V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


sua relação com Deus, faz da celebração paulus.com.br

ano 57

ato coletivo, mas não comunitário. À me-


dida que todos tomam consciência da di-
mensão comunitária do pecado e de suas

Vida Pastoral

implicações sociais e querem contribuir

27
para que a comunidade saia do pecado, Nesse sentido, é ainda valida a exortação
então temos uma celebração comunitária que o papa Francisco nos dirigiu no começo
(CNBB, 1977, p. 406). do Jubileu Extraordinário da Misericórdia:

Para dar continuidade ao espírito do Ano Abramos os nossos olhos para ver as
Santo da Misericórdia, será muito proveitosa a misérias do mundo, as feridas de tantos
revalorização de outras celebrações de reconci- irmãos e irmãs privados da própria dig-
liação não sacramentais, como as liturgias peni- nidade e sintamo-nos desafiados a escu-
tenciais, que podem ser vividas em pequenos tar o seu grito de ajuda. As nossas mãos
grupos ou famílias. apertem as suas mãos e estreitemo-los a
A terceira e última dimensão à luz da qual nós para que sintam o calor de nossa
queremos reconsiderar o sacramento da re- presença, da amizade e da fraternidade.
conciliação é a dimensão pastoral. Sabe-se Que o seu grito se torne o nosso e, jun-
que, a partir do Vaticano II, a moral rompeu o tos, possamos romper a barreira de indi-
esquema individualista tradicional, assumin- ferença que frequentemente reina sobe-
do uma concepção mais personalista e com- rana para esconder a hipocrisia e o ego-
prometida com a história. À medida que o sa- ísmo (MV 15).
cramento da reconciliação atingir também os
pecados sociais e estruturais, seguirá uma ação Dessa forma, a comunidade, alimentada
pastoral sempre mais moldada por uma re- pelo perdão recebido no sacramento, faz se si-
conciliação transformadora que não deixará as nal da gratuidade do amor de Deus para os que
coisas como estão. vivem às margens da sociedade e da Igreja.

Bibliografia:

BASTIANEL, S. Conversione. In: COMPAGNONI, F.; PIANA, G.; PRIVITERA, S. (Org.).


Nuovo dizionario di teologia morale. San Paolo: Cinisello Balsamo, 1990, p. 145-159.
FRANCISCO, Papa. Misericordiae Vultus: bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da
Misericórdia. São Paulo: Paulinas, 2015.
GRÜN, A. Penitência: celebração da reconciliação. São Paulo: Loyola, 2006.
HÄRING, B. A dimensão terapêutica da liturgia. Liturgia como terapia, saúde e salvação no
universo ritual. In: DAL PINO, F. et al. Liturgia e terapia: a sacramentalidade a serviço do homem
na sua totalidade. São Paulo: Paulinas, 1998. p. 23-40.
nº- 312

LIBANIO, J. B. Pecado e opção fundamental. Petrópolis: Vozes, 1976.


MACKENZIE, J. L. Pecado. In: ______. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 1984, p. 705-

ano 57

709.
MARCHETTI-SALVATORI, B. Conversão. In: ANCILLI, E. et al. Dicionário de espiritualida-

de. V. 1. São Paulo: Paulinas, 2012. p. 605-608. v.1


Vida Pastoral

RAMOS-REGIDOR, J. Teologia do sacramento da penitência. São Paulo: Paulinas, 1989.

28
Dom Helder: um testemunho
para os presbíteros
Pe. Ivanir Antonio Rampon*

Quão alegres são os presbíteros que escolhem como exemplo de vida a pessoa
de Dom Helder Camara, este expoente da profecia, símbolo mundial da não
violência ativa, místico, poeta, Dom de Deus... O papa Paulo VI frisava que
Dom Helder era um grande homem do Brasil e da Igreja; um místico que
havia recebido de Deus a missão de pregar a justiça e o amor como caminho
para a paz. João Paulo II, por sua vez, o intitulava, com muita propriedade,
“Irmão dos Pobres, meu Irmão”. Certamente, a abrangência do testemunho
de Dom Helder para os presbíteros é ampla.

*O autor é presbítero da Arquidiocese de 1. Dom Helder tinha consciência


Passo Fundo (RS). Mestre em Teologia pela
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
de que sacerdócio e egoísmo
(Belo Horizonte) e doutor em Teologia não combinam

“S
Espiritual pela Pontifícia Universidade er padre” exige da pessoa o “colocar-se a
nº- 312

Gregoriana (Roma). É autor de O caminho


espiritual de Dom Helder Camara, Paulo VI e serviço.” Significa não buscar honras,
Dom Helder Camara – exemplo de uma aplausos, fama, vaidades pessoais de nenhum

ano 57

amizade espiritual, e Francisco e Helder –


sintonia espiritual, publicados pelas Paulinas.
tipo. Esse modo de pensar e de ser, Helder
Estes e outros elementos foram herdou de sua família, especialmente do pai.

desenvolvidos nos livros citados acima. Quando tinha entre 7 e 9 anos, o pai lhe disse
Vida Pastoral

iarampon@yahoo.com.br
algo inesquecível, e que sempre procurou vi-

29
ver: “Filho, você está crescendo e continua a com Maria, com anjos e com santos e santas;
dizer que quer ser padre, mas você sabe de preparava homilias e conferências, escrevia
verdade o que significa ser padre?”. O menino meditações, cartas e circulares. Diante de e
ficou quieto, meio acabrunhado com o ques- unido a Jesus e unido a ele, escrevia, dança-
tionamento do pai, que prosseguiu: “Você sa- va, chorava, brincava. Através da vigília, con-
bia que para uma pessoa ser padre ela não templava as verdadeiras dimensões do mun-
pode ser egoísta, não pode pensar só em si do, tal como “os anjos e Deus contemplam”.
mesma? Ser padre e ser egoísta é impossível, Às 5 horas, retornava a dormir e acordava as
eu sei, são duas coisas que não combinam”. 6 para a Santa Missa – momento que consi-
Atento, Helder não sabia o que derava o mais importante e alto
dizer. O pai continuou: “Os pa- “Dom Helder de todo o seu dia.
dres acreditam que, quando ce- geralmente acordava Durante a missa, emociona-
lebram a eucaristia, é o próprio va-se – às vezes sorria e outras
Cristo que está presente. Você já
às 2 da manhã e até chorava – ao tocar o Corpo
pensou nas qualidades que de- permanecia em oração de Cristo que se faz comunhão,
vem ter as mãos que tocam dire-
até as 5 horas. Nesse partilha, alimento, vida, doação,
tamente no Cristo?”. Helder, sacrifício... Durante a jornada,
convicto, disse: “Pai, é um padre momento, avaliava o geralmente, dedicava-se a aten-
como o senhor está dizendo que dia anterior e planejava der e conversar com as pessoas
eu quero ser”. “Então, filho”, dis- (lideranças, religiosos, jornalis-
se o pai, “que Deus o abençoe! o futuro, conversando tas de muitos países). Estava
Que Deus o abençoe! Você sabe com Jesus, com Maria, sempre cercado pelos pobres,
que não temos dinheiro, mas, pelos excluídos. Portanto, antes
mesmo assim, vou pensar como
com anjos e com santos de ser profeta, ou peregrino da
ajudá-lo a entrar no seminário.” e santas.” paz, ou bispo, ou fundador da
CNBB e do Celam, ou um dos
2. Dom Helder, antes de tudo, mais importantes padres do Vaticano II... era
foi um místico um místico.
Desde menino, Helder se enveredara
pelo caminho da oração, do contato profun- 3. Dom Helder viveu profundamente
do e amigável com Deus. Mas foi sobretudo a profecia
quando estava perto da ordenação presbiteral A profecia foi, em Dom Helder uma ex-
é que percebeu que, graças ao seu tempera- pressão de sua experiência mística. De fato,
mento e sua vontade de servir e doar-se, seria sem a vigília e a Santa Missa, ele não teria
“engolido pela vida”. Resolveu, então, ma- sido o bispo das favelas no Rio de Janeiro, o
drugar para realizar as vigílias. Nada fazia arcebispo do Nordeste miserável, o advoga-
sem consultar o seu maior amigo. Empresta- do do terceiro Mundo, o apóstolo da não
va seus olhos, ouvidos, boca, coração a Jesus. violência, a esperança de uma sociedade re-
Tinha consciência de que sua ação e sua pa- novada segundo o ideal cristão, o poeta e o
nº- 312

lavra eram expressões da sua união mística profeta de uma fé jovem e forte; não seria o
com Cristo. dom da justiça, da paz, do amor, da liberta-

ano 57

Dom Helder geralmente acordava às 2 da ção... o Dom de Deus!


manhã e permanecia em oração até as 5 ho- A profecia é a expressão mais conhecida

ras. Nesse momento, avaliava o dia anterior e da mística helderiana, tanto que parece –
Vida Pastoral

planejava o futuro, conversando com Jesus, como disse Dom Antônio Fragoso – quase

30
uma redundância associar Dom Helder ao
profetismo. Parodiando Tomás de Celano, o Introdução ao Novo Testamento:
primeiro hagiógrafo de Francisco de Assis, História, Literatura e Teologia –
Dom Helder não apenas profetizava, mas era Volume 2
a profecia feita homem. Pouco antes de mor- Cartas católicas, Sinóticos
e Escritos Joaninos
rer, fez-nos seu último pedido: “Não deixe
cair a profecia”. M. Eugene Boring

4 Dom Helder realizava um trabalho


pastoral orgânico e em conjunto
Desde o seminário, Helder tinha uma ca-
pacidade enorme de trabalhar em equipe. Ele
aglomerava, liderava, despertava para o bem,
para a verdade, para o belo, para a unidade.
Com isso, Deus fez grandes maravilhas em sua
vida e, por meio dele, na vida da Igreja e do
mundo. Esse seu modo de ser, essa sua espiri-
tualidade e mística foram extremamente im-
portantes para que fundasse a CNBB e o Ce-
750 págs.

lam, que conduzisse o Congresso Eucarístico


Internacional de 1955 e a renovação da Ação
Católica Brasileira e fosse um dos grandes arti- Neste segundo volume da
culadores dos padres no Vaticano II. Introdução ao Novo Testamento, o
autor se debruça sobre as cartas
Em Puebla, Dom Helder – com Dom Eva- católicas, os sinóticos e os escritos
risto Arns, Dom Ivo Lorscheiter, Dom José joaninos. Além de toda a parte
Maria Pires, Dom Aloísio Lorscheider, Dom específica de cada livro do Novo
Luciano Mendes de Almeida – conseguiu “sal- Testamento, que o autor defende
var Medellín”, quando forças conservadoras ser um livro narrativo de história
queriam abafar a profecia que brotava das que a Igreja editava, ele também
apresenta uma primeira parte,
CEBs, da Teologia da Libertação e da educação bastante ampla, sobre questões
libertadora, os quais cresciam em todo o país introdutórias referentes ao Novo
Imagens meramente ilustrativas.

e continente, apesar das reações das ditaduras Testamento, com diversos mapas,
militares e de grupos direitistas. fotos e quadros ilustrativos.
O estilo helderiano de “governar” desper-
tava para a “eclesiologia do povo de Deus”,
na qual o clero se sentiu presbítero, corres-
ponsável com seu bispo pela caminhada lo- Vendas: (11) 3789-4000
cal, enquanto os leigos se organizavam em 0800-164011
comunidades, em pastorais, em associações, SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

em movimentos e setores paroquiais e, em V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


comunhão com a hierarquia, assumiam suas paulus.com.br

ano 57

responsabilidades na evangelização, dando


conscientemente sua indispensável contri-
buição para a construção do Reino de Deus

Vida Pastoral

– Reino de paz, justiça e amor.

31
Citamos apenas quatro aspectos, saben- ros que querem: a) ser padre para servir, do-
do que em muitos outros Dom Helder é tes- ar-se, sabendo que “padre” e “egoísmo” são
temunha e modelo espiritual para os presbí- uma horrível (des)combinação; b) experi-
teros. Basta lembrar, por exemplo, sua fide- mentar a força do Mistério Trinitário e do
lidade e resistência incondicional à causa da Mistério da Encarnação libertadora do Fi-
democracia quando difamado, execrado e lho de Deus; c) não deixar morrer a profe-
silenciado pelo regime militar, cia, mas, ao contrário, atiçá-la
que o viu como o “maior ini- “As vocações neste tempo capitalista-neolibe-
migo político”, o “arcebispo sacerdotais e religiosas ral; d) trabalhar pastoralmente
vermelho”; a sua atuação mis- de modo orgânico, fecundo, ar-
merecem de todos nós
sionária pelo mundo afora ticulado, promovendo as forças
como “missionário da justiça e cuidados especiais e da vida, da justiça, da liberta-
da paz”; ou a sua amizade es- orações. Não porque ção, da fraternidade.
piritual com várias expoentes Finalizo recordando que
da fé e da humanidade, como padres, religiosos e pre­cisamos dedicar cuidados
o papa Paulo VI. religiosas são mais especiais aos seminaristas. No
Neste tempo de mudança dizer do próprio Dom Helder,
de época, no qual se “carece de importantes, mas pelo “as vocações sacerdotais e re-
grandes testemunhas”, o teste- papel que exercem ligiosas merecem de todos nós
munho espiritual do Servo de cuidados especiais e orações.
dentro da Igreja e junto
Deus1 e dos Pobres é um farol a Não porque padres, religiosos e
iluminar a estrada dos presbíte- à humanidade.” religiosas são mais importantes,
são maiores, mas pelo papel que
exercem dentro da Igreja e junto à humani-
1 Desde 25 de fevereiro de 2015, Dom Helder foi declarado
“Servo de Deus” pela Congregação para a Causa dos dade. Quer dar uma alegria especial a Cris-
Santos. A mesma Congregação autorizou o Processo de to? Trabalhe pelas vocações religiosas: nu-
Beatificação e Canonização de Dom Helder, que está em
andamento (cf. RAMPON, I. A. Francisco e Helder, sintonia
merosas e santas! Vocações sacerdotais: san-
espiritual, São Paulo: Paulinas, 2016. p. 24-25). tas e numerosas!”.

Madre Teresa
Tudo começou na minha terra
Cristina Siccardi

Madre Tereza não foi uma assistente social, como alguns a veem,
confundindo a missionária com uma enfermeira voluntária da
Cruz Vermelha. Ela mesma sempre repetia: “Tudo o que fazemos
o fazemos por amor, com amor e por Jesus”. Este livro conta a
história dessa mulher que dedicou toda a vida aos necessitados, a
Imagens meramente ilustrativas.

servir o mundo e a Cristo. Uma mulher de fé, esperança, caridade


e indizível coragem, com uma espiritualidade cristocêntrica e
nº- 312

eucarística: “Eu não posso imaginar nem mesmo um instante da


minha vida sem Jesus. O maior prêmio para mim é amar Jesus e

servi-lo nos pobres”.


ano 57

paulus.com.br
PAULUS, 11 3789-4000 | 0800-164011

dá gosto de ler! vendas@paulus.com.br


Vida Pastoral

32
homiléticos
Roteiros

Pe. José Luiz Gonzaga do Prado*

Também na internet:
vidapastoral.com.br
Todos os santos
6 de novembro

Os santos preparam
o Reino
* Mestre em Teologia pela I. Introdução geral
Universidade Gregoriana de A solenidade de Todos os Santos é tão importante que tem
Roma, e em Sagrada Escritura
pelo Pontifício Instituto Bíblico.
precedência sobre o domingo do Tempo Comum. Ela celebra
Autor dos livros A Bíblia e suas todos os santos, não só os canonizados. A canonização de um
contradições: como resolvê-las e
santo é algo custoso em todos os sentidos, e muitíssimos de
A missa: da última ceia até hoje,
ambos publicados pela Paulus. nossos pobres perseguidos, que contribuíram fortemente para
o advento do reinado de Deus no mundo, não deixaram recur-
nº- 312

sos suficientes para serem canonizados. De Dom Oscar Rome-


nº- •312

ro, ainda não canonizado em razão de protelações no proces-


57 •57

so, até as humildes, analfabetas e desconhecidas Donas Sebas-


• ano

tianas, todos os santos são comemorados hoje.


• ano

Eles mereceram ser assinalados para que escapassem da se-


Pastoral

gunda morte, a morte definitiva. Os trabalhos de sua vida,


Pastoral

quando não sua morte em favor das vítimas deste nosso mun-
VidaVida

33
Roteiros homiléticos

do, uniram-nos ao sangue do Cordeiro e de- que não os deixou ser vítimas do castigo que
ram-lhes a faixa de campeões e o troféu da vi- virá para os opressores. Além deles, estão pre-
tória. Viveram como fiéis filhos de Deus. Essa sentes também as multidões incontáveis dos
grandeza de serem filhos de Deus, a qual pro- santos de todas as outras tribos e nações.
curaram preservar contra tudo e contra todos, Todos eram vencedores, vestiam mantos
agora se abriu, como o botão de uma rosa, na brancos, a cor dos vencedores nas competi-
glória de Deus. Entre eles, pobres e persegui- ções esportivas – poderíamos dizer hoje: tra-
dos que enxugaram as lágrimas dos que cho- ziam a faixa de campeões – e tinham o troféu,
ravam, mataram a fome dos famintos da ver- a palma, nas mãos. Não cultuavam mais
dadeira justiça, tornaram senhores os que não Roma e o imperador; passaram a cultuar a
eram ninguém neste mundo. Fizeram a sua Deus e ao Cordeiro. De onde vieram eles?
parte, construíram a verdadeira paz. Vieram da grande tribulação, a pobreza uni-
da à exclusão social e à perseguição. Sua
II. Comentários morte, seu sangue, unidos ao sangue e à mor-
aos textos bíblicos te do Cordeiro, deram-lhes o manto branco
da vitória. A resistência até a morte deu-lhes
1. I leitura: Ap 7,2-4.9-14 a vida sem fim.
O livro do Apocalipse foi escrito para dar
esperança às comunidades cristãs da Ásia 2. II leitura: 1Jo 3,1-3
Menor, comunidades pobres e vítimas de Os que nós chamamos de santos e hoje
perseguição. Eram perseguidas por não ado- celebramos são os nossos irmãos que estão
rarem o império. na glória. Como diz a segunda leitura de
As cidades da Ásia Menor, onde surgiu o hoje, a graça de ser filhos de Deus, o botão
primeiro templo dedicado à deusa Roma, ali que estava dentro deles, já se abriu em flor.
é que estava “o trono de satanás”, o lugar Essa graça, esse dom de amor do Pai em nos-
onde se cultuava a imagem do divino impera- so favor, faz-nos diferentes, como o mundo
dor, o “deus acessível”. Quem participava distante do Pai não é capaz de entender.
desse culto recebia uma marca que lhe abria Falta-nos hoje apenas aquilo que não falta
todas as portas. Quem não participava, além aos santos que celebramos: ver Jesus Cristo.
de excluído, poderia ser até mesmo condena- Só nos falta ver segundo o conceito joanino de
do à morte. Os cristãos não participavam e experimentar, conviver, ter comunhão plena
por isso eram marginalizados e perseguidos. com o Filho, Jesus. Isso nos tornará totalmen-
Chamava-se João o missionário itinerante te semelhantes a ele. E é essa convicção que
que animava essas comunidades, incentivan- nos faz manter-nos distantes do mal, tal como
do-as a não ceder ao culto ao império. Por ele fez e como todos os santos fizeram.
isso, ele foi preso na ilha de Patmos e de lá
enviou o escrito, numa linguagem que os po- 3. Evangelho: Mt 5,1-12a
bres e perseguidos poderiam entender e as Um detalhe, geralmente não observado
autoridades do império não. Deu-lhes ânimo na maioria das traduções, faz grande diferen-
nº- 312

e aumentou-lhes a autoestima. ça na interpretação do Evangelho de hoje.


No trecho da primeira leitura de hoje, ele Trata-se da primeira frase. Em geral, dizem as

ano 57

fala de uma visão do céu. Multidões, milhares traduções: “Vendo as multidões”. O tempo
de cada clã (12), de cada uma das doze tribos do verbo grego utilizado (aoristo), porém,
(12 x 12 = 144) do povo hebreu que não cede- pede que se traduza: “Tendo visto as multidões,

Vida Pastoral

ram ao culto imperial, receberam outra marca Jesus subiu à montanha”. Foi porque viu

34
aquelas multidões que Jesus subiu à monta-
nha e passou a dar a instrução aos discípulos, Tomás de Aquino e Paulo Freire
como Moisés, da montanha, deu ao povo a Pioneiros da inteligência,
mestres geniais da educação
Lei ou Instrução de Deus. À vista das multi-
nas viradas da história
dões, ele faz o Sermão da Montanha.
Que multidões eram essas? Eram as mul- Frei Carlos Josaphat
tidões de sofredores da Judeia e da Galileia,
como também de fora, que, no final do capí-
tulo 4 de Mateus, vinham buscar em Jesus
uma solução para os seus problemas. Pode-
mos dizer que são toda a humanidade sofre-
dora. Por causa dela, para benefício dela, Je-
sus se senta como mestre, rodeado pelos dis-
cípulos, sobre uma montanha que lembra o
monte Sinai. Ele instrui os discípulos não
para que estejam voltados para o próprio
umbigo, mas para que cuidem das multidões
sofredoras que acorrem de toda parte.
Isso ajuda a entender a instrução. Note
240 págs.

que, das oito bem-aventuranças básicas, a


primeira e a última se referem ao tempo pre-
sente: “deles é o Reino dos céus”. Seria oportuno, ou mesmo viável,
É preciso ter bem claro que “Reino dos confrontar Tomás de Aquino, frade
céus” não é o céu, a glória eterna. “Reino dos dominicano do século XIII, e Paulo
céus”, frequente no Evangelho de Mateus, é o Freire, mestre e filósofo de nossos
mesmo que reino ou reinado de Deus. Ele co- dias? Este livro aposta que sim,
analisando como dois gênios,
meça aqui na terra, onde o que se liga ou des- atentos aos diferentes momentos
liga é confirmado no céu; assemelha-se ao históricos, souberam enfrentar
campo de terreno bom e terreno ruim, à rede os problemas fundamentais da
que pega peixes bons e maus, à lavoura na inteligência, do estudo, da cultura,
qual o joio se mistura ao trigo. Só o respeito da linguagem e da consciência.
Fundamental para estudantes e
Imagens meramente ilustrativas.

judaico pelo Nome o faz ser substituído pela


interessados em Filosofia e nas
palavra “céus”. A eles – aos pobres e aos per- Ciências Humanas.
seguidos – pertence, portanto, o reinado de
Deus, que tem início aqui na terra.
Os primeiros são os “pobres por espírito”,
isto é, por força interior, por convicção, e os Vendas: (11) 3789-4000
últimos são os “perseguidos por causa da jus- 0800-164011
tiça”, perseguidos por buscarem a justiça do SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

reinado de Deus, tema caro a Mateus. Assim, V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


os pobres e os perseguidos, de certo modo, paulus.com.br

ano 57

identificam-se. E quem diz que aquele que


aceita a pobreza, que não faz caso do dinheiro,
não incomoda a sociedade e não sofre por

Vida Pastoral

isso? Mas destes é o reinado de Deus; eles é

35
Roteiros homiléticos

que estabelecem o reinado que não é dos césa- Quando, na eucaristia, celebramos a morte
res nem do dinheiro. São os santos que hoje do Cordeiro pascal, com ele celebramos o mar-
celebramos. tírio, os trabalhos e a pobreza dos santos de on-
Nas bem-aventuranças seguintes estão as tem e de hoje. O pão e o vinho partilhados, que
consequências disso. Os que agora estão celebram o horizonte da comunhão perfeita e
chorando mais adiante vão parar de chorar, plena, sem lágrimas, sem fome e sem exclusão,
serão consolados. Os que têm fome e sede de significam também a pobreza de quem se parte
ver acontecer a verdadeira justiça hão de ma- em pedaços e a coerência que torna capaz a re-
tar essa fome. Os carentes, em geral traduzi- sistência à mais cruel perseguição.
dos por “mansos”, os que não são ninguém, Feliz não é o rico, o que tem tudo, mas
que não têm vez nem voz, serão senhores, não tem a si mesmo, pois pertence ao seu di-
serão os donos da terra. nheiro.
Na sequência, outras três bem-aventu- Feliz não é o elogiado por todos, o aprova-
ranças: os que colaboram, ou seja, os que do por todos os poderosos do mundo, aquele
têm misericórdia, os que têm intenções retas que por ninguém é perseguido, porque nada
(“coração puro”) e os que promovem a paz tem para dizer, em nada colabora, nada acres-
ou a felicidade plena também terão sua re- centa, só sabe negar-se a si mesmo e à própria
compensa. São a quinta, a sexta e a sétima consciência para agradar aos que podem. Pare-
bem-aventurança. ce agradar a todos, só não agrada a si mesmo.
Voltando-se depois para os discípulos – Felizes são o pobre e o perseguido, e,
nós e os santos hoje festejados – Jesus nos diz com eles, muitos outros também serão feli-
que somos felizes quando perseguidos por zes. Isso é ser santo.
causa dele. É pena que o Lecionário tenha
cortado o final do v. 12, que dá o motivo da 33º Domingo do Tempo Comum
bem-aventurança da perseguição: “Porque 13 de novembro
foi assim que sempre trataram os verdadeiros
profetas”. Quem não é perseguido, quem não O dia do Senhor
incomoda os senhores deste mundo, sejam
pessoas, sejam instituições, não é profeta,
não é santo.
está próximo
III. Pistas para reflexão I. Introdução geral
São oito as bem-aventuranças. Oito está No dia 11 de setembro de 2001, talvez
além da plenitude, que é o sete. Oito é Jesus mais completamente do que tinha sido plane-
Cristo, só ele vai além da plenitude. Ele é o jado, foram destruídos os dois prédios do cha-
primeiro pobre por opção e o primeiro már- mado centro do comércio mundial. Foi um
tir, o primeiro perseguido. Só ele põe os fun- fim de mundo. Entretanto, ninguém viu no
damentos do reinado de Deus. Só ele tira os fato a necessidade de uma mudança nos ru-
pecados do mundo. Na cruz, o príncipe des- mos da humanidade: fazer que não seja o co-
nº- 312

te mundo, o que manda neste mundo, é pos- mércio, o “mercado”, o único governante do
to para fora. nosso mundo. A reação foi apenas mais vio-

ano 57

Nossos irmãos, os santos, “lavaram seus lência, agressão armada e econômica. A possí-
mantos no sangue do Cordeiro”, alcançaram vel razão dos “inimigos” nem foi considerada.
a vitória, assemelhando-se à pobreza e à per-

O Evangelho deste domingo fala da des-


Vida Pastoral

seguição de Jesus. truição de Jerusalém, ocorrida no ano 70. Co-

36
meça com a admiração das pessoas pela gran- anunciam é apenas para os maus, pois, para
deza, beleza e riqueza do Templo e com a pre- “os que temem o Senhor”, o Dia traz “o alívio
visão de Jesus: “Não ficará pedra sobre pedra”. em suas asas”.
No final, diz que os discípulos devem sobrevi-
ver por sua perseverança ou resistência. 2. Evangelho: Lc 21,5-19
Estamos chegando ao final do ano litúr- A destruição do Templo e da cidade de
gico, e isso nos faz pensar no fim, pois nada Jerusalém foi um fim de mundo. É disso que
deixa de ter o seu término. As grandes cri- o Evangelho nos fala. Firmes até o fim, os
ses, as catástrofes da natureza ou das estru- cristãos escapam da destruição. O Evangelho
turas humanas são ocasião de nova tomada não fala do fim do mundo, do final da histó-
de posição. A própria palavra crise quer di- ria da humanidade, mas de um fim que é
zer julgamento. E tudo nos lembra o fim de novo começo, de um fim que está sempre
cada um e a necessidade de mantermos a acontecendo.
coerência, pois só a fidelidade a si mesmo e A destruição de Jerusalém foi, para o cris-
ao projeto de Deus é capaz de salvar da des- tianismo inicial, algo parecido com a morte
truição total. Mantida essa coerência, a cri- da mãe antes do corte do cordão umbilical.
se, o Dia, é de salvação. Os primeiros cristãos estavam ainda muito
ligados à religião judaica. Com a grande re-
II. Comentários volta do ano 66 e a destruição do Templo e
aos textos bíblicos da cidade de Jerusalém no ano 70, toda a es-
trutura física e humana daquela instituição
1. I leitura: Ml 3,19-20a judaica foi demolida. Foi um fim, mas tam-
O último livro da coleção dos Profetas bém um novo começo.
termina anunciando o Dia do Senhor, dia de Sinais de que a hora da destruição está
condenação dos perversos e de alívio para os chegando serão os fatos ligados à revolta ju-
justos. Responde aos que pensavam: “Não daica. Na Galileia, grupos de pequenos pro-
vale a pena servir a Deus! Que proveito a prietários, em consequência da exploração
gente tira guardando os seus mandamentos exercida pelo império romano e das altas ta-
ou caminhando amargurado na presença do xas de juros cobradas pelos judeus ricos, per-
Senhor? Pois, então, vamos dar os parabéns deram tudo o que possuíam e passaram a
aos atrevidos, eles progridem praticando in- formar quadrilhas de assaltantes, então cha-
justiças, desafiam a Deus e acabam salvando- mados de lestês, bandidos. Chegavam a assal-
-se” (vv. 14-15). tar uma caravana romana e depois repartir os
O Dia do Senhor há de chegar “como for- alimentos nas aldeias, pois o povo morria de
no aceso a queimar”. Há de destruir os atrevi- fome. No ano 66 (36 anos depois da morte
dos, como se fossem palha. Mas, “para vocês de Jesus), eles entraram em Jerusalém, quei-
que buscam seguir a lei do Senhor, o sol da maram os documentos de suas dívidas, que
justiça há de brilhar”, diz o texto. lá estavam, e dominaram a cidade. Foi a
Quando se fala hoje em apocalipse, em grande revolta.
nº- 312

julgamento final da humanidade, geralmente Seus líderes passaram, logo em seguida, a


se pensa em destruição indiscriminada de competir entre si, cada qual reivindicando para

ano 57

tudo e de todos. Frequentemente se cita a Bí- si o título de Messias, pretendendo ser a realiza-
blia como testemunha que anuncia uma pró- ção das esperanças de todo o povo. Cada um
xima catástrofe final e universal. Contudo, o dizia: “ó Messias, o salvador da pátria, sou eu!”,

Vida Pastoral

castigo que os profetas, como Malaquias, “chegou a hora!”. O Evangelho aconselha os

37
Roteiros homiléticos

discípulos de Jesus a não acreditar nisso, nem ses (2,9), ele lembrava que, quando lá esteve
se apavorar com a guerra em curso. evangelizando da primeira vez, trabalhava
Como era de se esperar, Roma não ficou dia e noite para não ser pesado a ninguém.
passiva; ao contrário, mandou seus exércitos Como disse no capítulo 9 da primeira
que estavam na Síria invadir a Palestina e aca- carta aos Coríntios, Paulo teria o direito de
bar com a “brincadeira”. Isso, em decorrência ser mantido pela comunidade, mas o dispen-
também da momentânea instabilidade políti- sou. Fez isso em Corinto para manter sua in-
ca em Roma, demorou algum tempo: só no dependência e não prejudicar a pregação do
ano 70 (quatro anos depois) a cidade de Jeru- Evangelho; fez isso em Tessalônica por coe-
salém foi destruída e os últimos focos de resis- rência com os fatos e por solidariedade com
tência, alguns anos depois, foram eliminados. os trabalhadores braçais, os primeiros a acei-
E os cristãos? Não devem participar da lou- tar sua pregação. O texto lido hoje vê aí o
cura da revolução nem ficar apavorados, apesar exemplo de amor ao trabalho, que sustenta e
de perseguidos por todos os lados. Especial- dignifica a pessoa. Era isso que aqueles cris-
mente nessas circunstâncias, a fidelidade a Je- tãos precisavam ouvir.
sus cria problemas até mesmo dentro de casa.
Quantas vezes os mais próximos é que vão de- III. Dicas para reflexão
nunciar o discípulo, que age e fala de maneira Quando leem essas passagens do Evange-
contrária aos critérios deste mundo (que são os lho, muitos ainda pensam em um fim de
mesmos tanto do lado dos revoltosos quanto mundo como catástrofe final da humanida-
do lado do império romano)? Devem, no en- de, que ninguém quer ver. Há os que, apoia-
tanto, os discípulos ficar firmes no testemunho dos nessas palavras da Escritura, vivem
de Jesus e ser coerentes até o fim. O que salva, anunciando que o fim do mundo está próxi-
diz Jesus, não é filiar-se a um dos dois lados, mo. Nada disso. A crise pode ser dura, difícil,
mas a coerência resistente até o fim. dolorosa, mas é um novo começo, abertura
de novos horizontes.
3. II leitura: 2Ts 3,7-12 A cada momento, um mundo está aca-
Entre as comunidades que são Paulo ha- bando e outro, começando. O importante é
via fundado, muitas pessoas insistiam na ex- saber ler os sinais dos tempos e estar prepa-
pectativa próxima da parúsia, ou segunda rado para o novo começo.
vinda de Jesus. Daí surgiu esta maneira de É preciso saber descobrir em cada acon-
pensar: “Como Jesus volta logo e resolve to- tecimento, por menos importante que pare-
dos os nossos problemas, ninguém precisa ça, o mundo velho que está acabando e a no-
mais cuidar de ter um trabalho, nem se pre- vidade de vida que começa, o horizonte novo
ocupar com os rumos que o mundo vai to- que se abre. Em todo acontecimento, uma
mando; é só esperar mais um pouco, que crise se revela, e em toda crise, uma ou mais
tudo estará resolvido. Para sobreviver até lá, portas se abrem.
dá-se um jeito, outros ajudam, falta pouco Quando uma porta se fecha, duas se
tempo para a vinda gloriosa de Jesus...”. abrem, basta ter olhos para ver.
nº- 312

Foi então que a segunda carta aos Tessa- Porque esperamos de Deus a intervenção
lonicenses veio esclarecer a questão com a final e decisiva na história para estabelecer o

ano 57

autoridade do próprio Paulo. O trecho a ser seu reinado, não vamos ficar omissos, deixar-
lido hoje vai direto ao assunto. -nos vencer pela preguiça, desistindo da bus-
O testemunho do próprio Paulo é funda- ca por outra Igreja possível e por outro mun-

Vida Pastoral

mental. Na primeira carta aos Tessalonicen- do possível.

38
Da mesma forma que rezamos no Pai-
-nosso “o pão nosso de cada dia nos dai Paulo de Tarso na filosofia
hoje”, mas não deixamos de ir à luta pelo pão política atual e outros ensaios
de cada dia, assim também, porque pedimos
Enrique Dussel
que sua vontade aconteça “na terra como no
céu”, não vamos abandonar a luta pela cons-
trução da nova sociedade, diferente da que aí
está, de outro mundo, que comece a realizar
no presente o que esperamos para o futuro.
Na última ceia, Jesus estava para ser pre-
so e condenado à mais humilhante das mor-
tes. Sabia que iria ficar sozinho. Mesmo as-
sim, ao passar o pão para que cada qual tiras-
se seu pedaço, disse: “É o meu corpo, sou eu,
que me entrego por vocês”. Na missa, lem-
bramos o que ele fez, mandando-nos fazer o
mesmo. Aí está a resistência que salva.

34º Domingo do tempo comum –


240 págs.

Cristo Rei
20 de novembro

O reinado Este conjunto de trabalhos


recentes mostra alguns aspectos

da justiça, do dos temas que estão sendo


tratados na filosofia atual.
Certos temas tabus na tradição
amor e da paz secularista do Iluminismo vêm
perdendo sua essência, e se
inicia uma nova maneira de
encarar a realidade cultural, com
I. Introdução geral novo olhar. Essa temática, unida a
No fim da Copa de 1958, ao receber os uma busca da origem da cultura
ocidental, que não pode referir-
Imagens meramente ilustrativas.

cumprimentos do rei da Suécia, Pelé colo-


se nem única nem principalmente
cou-lhe a mão no ombro. Os comentaristas à filosofia helênica ou romana,
esportivos, num primeiro momento, escan- apresenta a possibilidade de
dalizaram-se com a quebra do protocolo, abordar novos problemas.
pois ninguém podia tocar o rei. Logo em se-
guida, concluíram: “Não faz mal! Hoje o rei é Vendas: (11) 3789-4000
ele!”. A partir de então, Pelé passou a ser cha- 0800-164011
mado de rei do futebol. Algum tempo depois, SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

a popularidade do cantor Roberto Carlos V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


rendeu-lhe também o título de rei. paulus.com.br

ano 57

Hoje, os reis não governam, são apenas


chefes de Estado, representam a nação. Quem
governa é o primeiro-ministro ou o conselho

Vida Pastoral

de ministros. No passado, não era assim. O

39
Roteiros homiléticos

rei tinha todo o poder; a vontade ou até mes- união de Israel e Judá, de todo o povo de
mo um capricho do rei eram lei. Deus; foi o reinado do consenso.
O papa Pio XI instituiu a solenidade de
Cristo Rei para incentivar os cristãos a fazer 2. II leitura: Cl 1,12-20
da presença de Cristo no mundo uma força de É na sua morte de cruz (sangue de cruz,
transformação. Por meio dos cristãos, Jesus na maneira bíblica de falar) que Jesus se tor-
deve governar o mundo. O objetivo não é dar na rei do universo, centro de toda a criação,
brilho e poder à instituição eclesiástica, mas razão de ser de tudo o que existe.
trazer ao mundo o reinado de Deus com os Essa carta, ditada por Paulo ou, mais pro-
critérios de Jesus Cristo. Contrário à busca de vavelmente, por um de seus discípulos, pro-
brilho, fama e poder, critérios deste mundo, o cura responder a uma questão surgida nas
reinado de Cristo se manifesta na vergonha e primeiras comunidades: uma confusão entre
no fracasso da cruz. a mensagem de Jesus Cristo e as religiões cós-
A paz, tão sonhada hoje, é fruto da justi- micas. Segundo essas antigas religiões, os as-
ça e do amor, como diz o prefácio da oração tros é que governam o mundo. E são os an-
eucarística desta solenidade. A busca da ver- jos, em suas diversas categorias – Tronos,
dadeira justiça e a coerência do amor levam Dominações, Potestades etc. –, os condutores
inúmeros cristãos ao martírio, à morte seme- dos astros que governam o mundo. Não so-
lhante à de Cristo. É por esse caminho, e não braria muito espaço para o Messias Jesus. O
pela participação nos poderes temporais, que texto da carta, diferentemente do linguajar
seu reinado vai acontecer no mundo. de Paulo, é carregado de semitismos, de ma-
neiras semitas de falar. Assim, “o Filho do seu
II. Comentários amor” quer dizer “o seu Filho amado” (v. 13);
aos textos bíblicos “o sangue de sua cruz” quer dizer “sua morte
de cruz” (v. 20).
1. I leitura: 2Sm 5,1-3 O mundo, governado pelos anjos e pelos
A primeira leitura narra como as tribos astros, não muda, não admite mudança, por-
do Norte aceitaram o reinado de Davi. A un- que o sol, a lua, as estrelas sempre fazem a
ção de Davi como rei de Israel lembra hoje o mesma órbita, o mesmo giro. Tudo se repete
reinado de Cristo. e tudo está em ordem. Não há nada para mu-
Davi era o menor e o mais humilde de dar. Jesus vem fazer o que aí?
oito irmãos da aldeia de Belém. Quando Sa- Se nada há para mudar, podemos nos dei-
muel, guiado por Deus, foi escolher um dos xar guiar cegamente pelos astros, anjos ou po-
oito filhos de Jessé para ser o novo rei, apre- deres deste mundo. Pode-se dizer que este é o
sentaram-se os sete maiores; o menino Davi reino das trevas, onde todos são cegos. O rei-
foi deixado no campo, olhando as ovelhas. no da luz, onde todos enxergam, é o reino de
Mas foi a ele que Deus escolheu. É por meio Jesus Cristo – por isso o batismo era chamado
dos fracos que Deus reina. Davi se tornará, de iluminação. Os que antes seguiam as religi-
depois, o modelo dos reis. ões cósmicas e se tornaram cristãos passaram
nº- 312

Suas façanhas (1Sm 17; 1Sm 18,20-36; do reino das trevas para o reino da luz.
1Sm 24; 1Sm 26) já lhe tinham alcançado a Jesus torna visível o Deus invisível, existe

ano 57

aprovação por parte da sua tribo, Judá (2Sm antes dos anjos e de qualquer outra criatura
2,1-4a). O episódio narrado na leitura de de Deus. Por ele e para ele, Deus criou tudo;
hoje fala de sua aprovação pelas dez tribos do

ele é a nossa cabeça, cabeça da Igreja, o pri-


Vida Pastoral

Norte. O reinado de Davi foi o reinado da meiro renascido da morte; ele resume tudo,

40
tudo só tem sentido nele. Isso não se dá, po- temunhas de sua entronização são dois cri-
rém, em virtude de nenhum grandioso espe- minosos. Ele reina porque perdoa; seu poder
táculo. É por meio de sua morte de cruz que se manifesta acima de tudo no perdão, jamais
ele realiza a reconciliação, quer dizer, a reor- na crueldade, como era próprio da onipotên-
ganização de todo o universo material e ima- cia de César.
terial, como os anjos. Jesus tudo governa, Um dos criminosos ou malfeitores com
mas, antes de tudo, ele reina pela cruz. ele crucificados reproduz os insultos das au-
toridades judaicas e dos soldados romanos.
3. Evangelho: Lc 23,35-43 O outro o recrimina e chama-lhe a atenção.
Na cruz vai morrer o Rei dos Judeus, a Apela para o “temor de Deus”, expressão que,
esperança de um salvador da nação judaica em toda a Bíblia, traz a conotação de respeito
apenas. Na cruz podemos chamar Jesus de ao mais fraco. Eles estão sendo punidos por
rei, não dos judeus, mas da humanidade in- seus crimes; Jesus, não: ele é inocente.
teira, a começar pelos criminosos crucifica- Em seguida, esse malfeitor dirige-se a Je-
dos com ele. sus, pede-lhe que se lembre dele quando en-
Jesus, na ocasião, é visto como um rei de trar em seu reino ou reinado. Na Ceia, Jesus
palhaçada, é objeto do olhar curioso do povo, havia dito aos apóstolos: “Assim como o Pai
olhar de desinteresse e de desprezo. É tam- me confiou o reino, assim também eu vos
bém objeto de zombaria por parte das autori- confio o reino. Havereis de comer e beber em
dades judaicas e dos soldados romanos. minha mesa no meu reino e de vos sentar em
A zombaria por parte dos dirigentes judeus tronos para julgar as doze tribos de Israel”
é, em Lucas, mais discreta do que em Mateus e (Lc 22,29-30). Agora, morrendo na cruz, ele
em Marcos, Evangelhos nos quais eles fazem toma posse do seu reino.
alusão ao título de “rei de Israel” e desafiam Je- Assim é que ele responde ao criminoso:
sus a descer da cruz. “O Cristo”, “o Ungido”, de “Hoje estarás comigo no paraíso!”, hoje esta-
Lucas, contudo, também lembra a esperança de rás comendo e bebendo comigo em meu rei-
um Messias rei. Lucas acrescenta o título de no. É o último “hoje”, tão presente nos lábios
“Eleito” ou Escolhido, o querido de Deus. Nem de Jesus em todo o Evangelho de Lucas (“hoje
por isso o que dizem as autoridades dos judeus se cumpre essa palavra”, “hoje devo me hos-
deixa de ter o caráter de zombaria e de tentativa pedar na tua casa”, “hoje a salvação entrou
de desmoralizar o “reinado” de Jesus. nesta casa”). Hoje, morrendo na cruz, Jesus
Os soldados romanos, representando o toma posse do seu reinado.
império, os senhores deste mundo, caçoa-
vam da placa que chamava Jesus de rei dos III. Pistas para reflexão
judeus, rei incapaz, um rei totalmente fracas- Na homilia (conversa) de uma missa em
sado. Oferecem ao “rei” o vinagre ou vinho sua comunidade, dona Julieta disse: “Nem
azedo dos soldados e dos escravos. que vivesse mais duzentos anos a gente aca-
Entretanto, o vinagre que lhe oferecem baria de entender o significado da morte de
lembra o Salmo 69,22, que diz: “para a mi- Jesus”. Não vamos acabar de entender, mas
nº- 312

nha sede deram vinagre”, fazendo eco ao v. 5 vamos procurar entender cada vez melhor.
do mesmo salmo: “odiaram-me gratuitamen- “É rei pela sua cruz.” Essa ideia não cabe

ano 57

te”. A resposta ao ódio gratuito é um amor bem na nossa cabeça. Para nós, rei é o que
mais gratuito ainda. está no topo do prestígio e do poder, não um
Vem, então, o outro lado, o verdadeiro pobre coitado de braços pregados numa peça

Vida Pastoral

reinado do Cristo. Seu trono é a cruz, as tes- de madeira, pendurado entre o céu e a terra e

41
Roteiros homiléticos

considerado pela Bíblia (Dt 21,23) um mal- está se preparando para o Natal há bastante
dito de Deus. tempo. Advento significa vinda, chegada. É
Os caminhos do prestígio e do poder hu- tempo de celebrar a vinda de Jesus, do Senhor,
manos jamais levarão o mundo a alguma mu- do Filho do homem. O Natal é apenas o mo-
dança, só farão reafirmar o reinado do di- mento e a motivação privilegiada para, nos
nheiro e da arrogância. Outro mundo e outro quatro domingos, celebrarmos essa vinda.
reinado só poderão vir dos caminhos opos- Para as comunidades primitivas, a des-
tos, os caminhos da humildade e do serviço. truição de Jerusalém e do Templo ocorrida
A cruz significa o caminho novo que se abre. no ano 70 significou uma vinda do Messias
Quem pensa que a festa de Cristo Rei Jesus, o “Filho do Homem”. O cristianismo
deve motivar maior prestígio e poder para a nasceu da religião judaica, centralizada até
instituição eclesiástica está redondamente então no Templo de Jerusalém. Assim, a
enganado; está querendo levar a Igreja pelos destruição da cidade e do Templo, embora
caminhos do mundo, e não trazer o mundo tenha sido um grande choque também para
para os caminhos de Jesus Cristo. os cristãos, um fim de mundo, abriu, ao
“É rei pela sua cruz.” Isso dificilmente en- mesmo tempo, novos horizontes, foi um
tra na nossa cabeça. É preciso primeiro de- novo começo.
sarraigar da nossa mente as ideias de prestí- Todo acontecimento, de pouca ou grande
gio e de poder. O reinado de Cristo há de monta, deve ser considerado uma vinda de
chegar ao nosso mundo por meio das peque- Jesus. Em tudo o que acontece, ele está vindo
nas coisas, escondidas, ignoradas, relegadas à ao nosso encontro, está mostrando-nos nova
humilhação do esquecimento, tal como a esperança e novo caminho, está lançando
morte de cruz era a humilhação máxima. diante de nós um desafio e nos pedindo de a
No mundo governado pelo dinheiro, pela resposta de uma atitude nova, diferente. Nós
injustiça, pelo saber, aproveitar-se do outro, é é que muitas vezes não percebemos.
a ferramenta principal. Amor não existe; isso é Estaremos preparados para o encontro final
considerado sentimentalismo tolo, que só leva com Jesus se soubermos atender a esses apelos
a perder dinheiro. Paz é inércia, inatividade, é que ele nos faz por intermédio dos fatos.
ficar parado; o que movimenta o mercado é a
guerra, a competição. O reinado de Jesus Cris- II. Comentários
to é o reinado da justiça, do amor e da paz. aos textos bíblicos
1. I leitura: Is 2,1-5
1º Domingo do Advento Em meio às guerras e ameaças de guerra,
27 de novembro o profeta fala da Lei divina e da comunidade

É sempre de fé, chamada de Sião ou Jerusalém. Tanto a


do seu tempo como a de hoje devem ser es-

a vinda do Filho perança e luz para todas as nações.


A maneira pela qual Isaías fala de Sião ou

do homem Jerusalém, da “montanha da casa do Senhor”,


nº- 312

de onde vem o ensinamento, a lei de Deus


para todas as nações, dá a entender que ele

ano 57

pensa mais numa comunidade ideal do que


I. Introdução geral na realidade física da cidade. Isso se torna
Advento não é simplesmente tempo de claro até pelo fato de falar de um futuro, “nos

Vida Pastoral

preparação para o Natal. O comércio, aliás, já últimos dias”.

42
A “montanha da casa do Senhor” não é
apenas aquela montanha que se eleva oito- Viagem aos céus
centos metros acima do nível do mar Medi- e mistérios inefáveis
terrâneo (onde está Jerusalém), mas um lugar A religião de Paulo de Tarso
de encontro com Deus que se situa muito
Sebastiana Maria Silva Nogueira
acima de qualquer alta montanha ou serra; é
uma comunidade de fé ideal, presença de
Deus no mundo. Esta é que atrai para si todas
as nações.
Todos vão à sua procura para encontrar
os melhores caminhos. Todos querem apren-
der dela. Todos buscam a paz, e isto é o que
ela ensina: “fundir suas espadas para fazer
bicos de arado, fundir as lanças para delas
fazer foices”, transformar as armas em instru-
mentos de trabalho, mudar a força de des-
truição em força de construção, abandonar as
guerras e partir para a colaboração.
O profeta-poeta projetava essa comuni-
256 págs.

dade ideal, promotora da harmonia univer-


sal, para um futuro, os “últimos tempos”. Es-
ses “últimos tempos” não podem ser apenas o
momento final da história, o fim da humani- O livro de Sebastiana Nogueira
dade no planeta. É o futuro que já deve estar apresenta uma abordagem
interdisciplinar, com as vantagens
presente, é o futuro-presente que podemos
e os riscos que esta decisão
hoje entender e pôr em prática como a etapa apresenta. Trata-se de uma
decisiva da humanidade após a ressurreição detalhada exegese de um
do Crucificado. dos textos paulinos que maior
dificuldade traz ao intérprete: o
2. II leitura: Rm 13,11-14a relato de 2 Coríntios 12 sobre
um homem que, no corpo ou
As comunidades de Roma, apesar de po-
fora dele, subiu ao terceiro
Imagens meramente ilustrativas.

bres, viviam na capital do império. Ali não céu e ouviu palavras inefáveis!
havia limites para o consumo e o gozar a Pode haver texto paulino mais
vida. Paulo as convida a não cair na tentação. misterioso e enigmático?
Quanto mais escura a noite, mais próxi-
mo está o clarear do dia; quanto mais difícil a
situação (era o tempo do imperador Nero em Vendas: (11) 3789-4000
Roma), mais perto está uma solução. 0800-164011
Paulo tinha falado em 1Ts 4,15 na possi- SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

bilidade de estar vivo na segunda vinda de V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


Cristo. Depois, sentindo provável sua conde- paulus.com.br

ano 57

nação à morte, desejou-a (Fl 1,23) para estar


com Cristo. Agora ele fala da proximidade da
salvação. Seria a vinda final de Cristo? Seu

Vida Pastoral

propósito, no entanto, era encerrar sua mis-

43
Roteiros homiléticos

são na parte oriental do império, passar por com o Cristo juiz. O trecho que lemos hoje
Roma e ir evangelizar a Espanha, o lado oci- faz exatamente essa passagem.
dental (Rm 15,22-24). Ele não teria esses Ele havia falado da comparação com a
grandes e arriscados projetos se esperasse planta que começa a brotar, anunciando a
para breve o fim do mundo. chegada da primavera e do verão (vv. 32-36).
Os problemas internos nas comunidades Sinais do dia decisivo seriam a autoprocla-
de Roma também não eram poucos. Os cris- mação messiânica dos líderes da revolta ju-
tãos judeus tinham sido expulsos da cidade e daica (vv. 5-8), dificuldades, incompreensões
agora podiam voltar. A situação da Palestina e perseguição aos cristãos, além da divulga-
era cada vez mais grave, estava se tornando ção do Evangelho (vv. 9-14) e da violação do
explosiva. Eles voltavam para Roma influen- Templo (v. 15). Mas, nos vv. 34-35, é dito
ciados pelas ideias de revolução e muito mais que os fatos acontecerão ainda “nesta gera-
aferrados à sua identidade judaica. Enquanto ção”, o que só pode ser entendido com a des-
isso, os cristãos gentios de Roma, sem dúvida, truição de Jerusalém.
tinham se afastado mais e mais dos costumes Depois de dizer que o dia e a hora só
judaicos. Os dois grupos iriam se entender? Deus sabe (v. 36), o Evangelho entra no texto
Roma, a capital do mundo, era, além dis- de hoje comparando a situação de então com
so, uma tentação: tentação, acima de tudo, a do tempo de Noé. No episódio bíblico do
de consumismo, pois tudo o que se produzia dilúvio, ninguém se interessou pela arca que
de melhor em todo o império era carreado Noé preparava, ninguém pensou que sua
para Roma. Cair nessa tentação seria deixar- vida seria interrompida: todas continuavam
-se envolver pelo mundo das trevas. sua rotina até que Noé entrou na arca – e, em
Estão dormindo aqueles que não têm es- seguida, veio o dilúvio e todos se foram.
perança de que o mundo possa mudar nem É uma advertência para estarmos cons-
nisso pensam. Um mundo novo está chegan- cientes de um fim inevitável, mas de data e
do, está para ser construído; é preciso, então, hora imprevisíveis. E estar conscientes disso
estar acordados, viver como em pleno dia – significa estar atentos aos apelos de Deus por
alerta Paulo –, fugir do consumismo, que não meio dos fatos. O fim vem, é certo. Quando?
dá nenhum sentido à vida. Como o mesmo Só Deus sabe. As duas certezas nos preparam
Paulo disse em 1Ts 5, os que dormem, é de para ir ao encontro do Senhor que vem.
noite que dormem; os que se embriagam, é Por ocasião da invasão do exército ro-
de noite que se embriagam. Estes serão pegos mano, nas proximidades ou dentro de Je-
de surpresa. Nós, ao contrário, somos da luz rusalém, dois homens no campo ou duas
e, como tais, vivemos unidos ao Senhor e mulheres em casa, exercendo a mesma ati-
Messias Jesus. vidade, têm sortes diferentes. Essa afirma-
ção leva naturalmente a uma reflexão: o
3. Evangelho: Mt 24,37-44 que importa não é exatamente o que estão
A vinda de Cristo, quando será? O Evan- fazendo, mas o modo como cada um está
gelho responde que ninguém pode saber, é agindo na sua rotina cotidiana. Está vigi-
nº- 312

imprevisível. Diz, porém, que precisamos ficar lante, com o pensamento voltado para
atentos, ligados a Deus e seu projeto, mesmo Deus e seu projeto, ou voltado apenas para

ano 57

no trabalho cotidiano, dentro ou fora de casa. si mesmo e seus sonhos?


O Evangelho, das palavras de Jesus que Vem a comparação do ladrão, que chega
se referem diretamente à destruição de Jeru-

sempre quando menos se espera. Para não


Vida Pastoral

salém, passa a falar do encontro final do fiel ser pegos de surpresa, é preciso vigiar, ficar

44
acordados, atentos, alertas. Paulo (1Ts 5,1ss) aos apelos de Deus por meio dos fatos.
já fazia a comparação com o ladrão, que vem O que importa não é o que as pessoas
à noite. E dizia: “Mas nós não somos das tre- estão fazendo, mas o modo como cada um
vas nem da noite, nós somos do dia e da luz”. está agindo. Está vigilante, com o pensamen-
to voltado para Deus e seu projeto, ou volta-
III. Pistas para reflexão do apenas para si mesmo e sua cobiça? Isso é
Em tudo o que acontece, Jesus está mos- o que vai definir a sorte de cada um.
trando-nos nova esperança e novo caminho, “Nós não somos das trevas nem da noite,
está lançando diante de nós um desafio, está nós somos do dia e da luz.” Que significado
nos pedindo de nós a resposta de uma atitude tem isso no nosso dia a dia?
nova, diferente. É o seu advento, a sua vinda Os “últimos tempos” são o futuro que já
que celebramos. Nós é que muitas vezes não está presente, são o futuro-presente que po-
percebemos. demos hoje entender e pôr em prática. São a
O desafio de hoje é a violência, uma or- etapa decisiva da humanidade após a ressur-
dem social violenta, de pura competição, que reição do Crucificado, que celebramos.
explode em acontecimentos trágicos, mas
está no coração da sociedade e no coração de 2º Domingo do Advento
cada um. A comunidade que acredita em 4 de dezembro
Deus e não no dinheiro ensina a transformar
as armas em instrumentos de trabalho, mu- Preparados
dar a força de destruição em força de cons-
trução, abandonar a violenta guerra da com-
petição e partir para a colaboração.
para o Natal?
A “montanha da casa do Senhor” não é I. Introdução geral
apenas aquela montanha que se eleva oito- Os noticiários já falam nas previsões para
centos metros acima do nível do mar Medi- o Natal deste ano, se será bom ou ruim, me-
terrâneo, mas um lugar de encontro com lhor, igual ou mais fraco que o do ano passa-
Deus, uma comunidade de fé que deve ser do. Isso para o comércio, que, sem dúvida, já
luz para a humanidade. se preparou de acordo com as previsões mais
Quanto mais escura a noite, mais próxi- realistas. Esse Natal é um grande motor da
mo está o clarear do dia; quanto mais difícil a economia, é a grande festa do consumo, a
situação, mais perto está uma solução. grande festa do capitalismo.
Aqueles que não têm esperança em outro O nosso preparar-nos para a vinda do Se-
mundo possível estão dormindo. Um mundo nhor é outra coisa. Neste domingo, já apare-
novo está vindo, está para ser construído; é ce a figura de João Batista, o anticonsumo. A
preciso estar acordados, viver como em ple- austeridade com que ele se apresenta, a sua
no dia, fugir do consumismo, que não dá ne- roupa e sua comida já revelam sua mensa-
nhum sentido à vida, e fazer da sobriedade gem: mudar de mentalidade.
ferramenta de partilha. A palavra grega metanoia, que, nos três
nº- 312

O fim vem, é certo. Quando? Só Deus primeiros Evangelhos, resume a pregação de


sabe. A certeza é que vem e a certeza é que não João e também a de Jesus, é fácil de entender.

ano 57

podemos saber quando vamos ao encontro do Meta é o mesmo prefixo grego que encontra-
Senhor. É preciso estar conscientes de um fim mos em “metamorfose”, indica mudança, sig-
inevitável, mas de data e hora imprevisíveis. E nificando aqui “mudança de forma”. Noia

Vida Pastoral

estar conscientes disso significa estar atentos nós conhecemos de “paranoia” e refere-se à

45
Roteiros homiléticos

cabeça. Metanoia é, então, “mudança de ca- derio crescente da Assíria. Falando em ramo
beça”, mudança de mentalidade, de maneira familiar, o de Jessé estava reduzido a quase
de pensar e agir. nada, a um toco cortado quase rente ao chão.
Assim, a nossa preparação para a vinda Como de uma velha parreira decepada, do
do Senhor – não apenas para a celebração do toco ou até das raízes, ainda pode surgir um
nascimento de Jesus – vai remar contra a cor- broto novo, assim também surge aqui o broto
rente do capitalismo, que governa o nosso novo do ramo familiar de Jessé.
mundo. E essa corrente não é um filete de O Espírito do Senhor lhe dará as qualida-
água, mas um caudal imenso, que vai arras- des dos famosos antepassados, a sabedoria e a
tando tudo com sua força avassaladora. É perspicácia de Salomão, as qualidades bélicas
contra essa corrente que remamos. de prudência e ousadia de Davi, e ainda vai lhe
Diz a antiga fábula: o lobo e o cordeiro acrescentar outras duas: o temor e o conheci-
foram ao mesmo córrego beber água. Vendo mento de Javé. O próprio texto vai explicar o
o cordeiro, o lobo diz: “Vou te matar porque que é “temor de Javé”: é não julgar por interes-
estás sujando a minha água!”. O cordeiro res- ses escusos (v. 3), mas fazer justiça aos fracos e
ponde: “Não pode ser, eu estou mais embai- castigar o opressor. “Conhecer Javé”, Jeremias
xo, a água está correndo daí para cá”. O lobo explica em 22,15-16. É praticar o direito e a
diz: “Então eu vou te devorar porque na se- justiça, fazer justiça ao humilde, ao indigente.
mana passada teu pai me insultou!”. “Não Inspirado no temor de Javé, o novo rei
pode ser”, responde o cordeiro, “faz dois me- vai acabar com a estória do lobo e do cordei-
ses que meu pai morreu.” “Ah! Se não foi teu ro, quando o mais forte sempre tem razão e
pai, foi teu irmão, teu tio...” E avançou sobre sempre encontra um motivo para devorar o
o cordeiro. O fabulista conclui: “O mais forte mais fraco. Então, “o lobo será hóspede do
sempre acha uma razão para devorar o mais cordeiro, o leopardo vai se deitar ao lado do
fraco”. Não será esse o princípio que governa cabrito...”. As pessoas deixam de ser bichos
o nosso mundo? umas para as outras.
Inspirado no temor de Javé, ele vai usar
II. Comentários de sua autoridade para fazer justiça ao fraco e
aos textos bíblicos reprimir o opressor. Assim, o resultado será
1. I leitura: Is 11,1-10 que, não só ele, mas o país inteiro estará
Isaías depositava grande esperança no fu- inundado do “conhecimento de Javé”, todos
turo rei. Com ele, a lei do mais forte vai aca- sabendo respeitar os direitos dos fracos.
bar, pois tanto o rei como o país inteiro, to- Aquilo em que o profeta foi além em seu
dos vão defender os fracos. Deixaremos, en- poema ficou como esperança messiânica, es-
tão, de ser bichos uns para os outros. Isso perança de um salvador definitivo para o
resume o belo texto de Isaías, motivo de mui- porvir. Será que o Cristo já realizou isso?
tos cânticos de Advento.
Isaías era familiar ao palácio de Acaz e 2. II leitura: Rm 15,4-9
conhecia bem seu filho Ezequias, em quem Os cristãos judeus tinham sido expulsos
nº- 312

depositava grande confiança. Ezequias foi re- de Roma. Agora, autorizados a voltar, retor-
almente um dos melhores reis de Judá, mas o navam para Roma e para as suas comunida-

ano 57

poema de Isaías que expressa sua confiança des. Seriam bem recebidos pelos irmãos que
nele vai muito além. não eram judeus?
Essa situação é que nos dá o contexto ge-

A dinastia de Davi, o filho de Jessé, estava


Vida Pastoral

enfraquecida, quase liquidada diante do po- ral da carta aos Romanos. Aqui, já na parte

46
parenética ou nas recomendações finais, Pau-
lo diz que é tempo de esperança, esperança Adultos na fé
fundamentada na palavra de Deus, nas Escri- Pistas para a
catequese com adultos
turas. Nelas encontramos encorajamento e
firmeza, palavras frequentemente traduzidas Ir. Mary Donzellini, mjc
por “paciência” e “consolação”.
O Deus do encorajamento e da firmeza é
que deve levar os cristãos a ter um mesmo
pensar, seguindo o Cristo Jesus. Só assim se
podem superar as dificuldades de relaciona-
mento entre os cristãos judeus que voltam e
os cristãos gentios que ficaram. Só assim po-
derão participar unidos numa mesma cele-
bração para louvar a Deus.
A prática é esta mesma, saberem acolher
uns aos outros, sem discriminação e sem pre-
conceitos. Assim é que o Cristo nos acolhe.
Ele se pôs a serviço dos judeus para realizar as
esperanças consubstanciadas nas promessas
72 págs.

contidas em suas Escrituras Sagradas. Nem


por isso os não judeus, “gentios” ou “nações”,
são esquecidos, pois as mesmas Escrituras os Adultos na fé apresenta pistas
convidam também a louvar o Senhor. para a catequese com aqueles
adultos que ainda não foram
3. Evangelho: Mt 3,1-12 evangelizados, vieram de outras
religiões, eram indiferentes à
Estamos nos preparando não para a festa
questão religiosa, não foram
do Natal, mas para a chegada de Jesus, o iniciados na fé e na vida da
Messias, o Salvador! O Evangelho vai nos res- Igreja, se afastaram da Igreja e
ponder quem é esse que prepara os caminhos desejam retornar ou, por fim, com
do Senhor, como é que ele vive, qual a sua aqueles que aprenderam a viver
mensagem. a religião como um ato social,
sem compromissos. É urgente e
Imagens meramente ilustrativas.

Aparece João Batista. Ele prega no deser-


essencial fortalecer a catequese
to da Judeia, num lugar ermo e sem vida. Sua com adultos para formar pessoas
mensagem se resume em metanoia, a mudan- e comunidades maduras na fé.
ça de cabeça, mudança de mentalidade, a co-
ragem de remar contra a corrente do pensa-
mento dominante, a coragem de pensar e Vendas: (11) 3789-4000
agir diferente. 0800-164011
O motivo é que o reinado de Deus está SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

chegando. O Evangelho de Mateus, sendo de V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


cristãos judeus, fala de “céus” para substituir paulus.com.br

ano 57

a palavra Deus, por respeito ao Nome. Quan-


do diz reino dos céus, então, está dizendo

reinado de Deus, mundo onde manda Deus,


Vida Pastoral

não o dinheiro ou um de seus súditos.

47
Roteiros homiléticos

João prepara os caminhos do Senhor. Sua mo Evangelho, ele vai dizer: “Vinde, ben-
figura é sua mensagem e já contrasta forte- ditos” e “ide, malditos”.
mente com o pensamento dominante do seu
tempo, quanto mais o de hoje. Como o pro- III. Pistas para reflexão
feta Elias, ele veste uma roupa tecida de pelos Advento não é tempo de preparar as co-
de camelo, com uma cinta de couro. Seu ali- memorações do Natal, os presentes, as comi-
mento também não combina com os banque- das, bebidas e roupas. É tempo de caminhar
tes e as bebedeiras dos poderosos do seu ao encontro pessoal e comunitário com o
tempo nem do nosso Natal consumista. Ele Cristo, o Messias Jesus. Seu berço foi um co-
prega a metanoia. cho, dentro de um estábulo, e seu leito de
Representantes de dois poderosos mo- morte foi a cruz.
vimentos religiosos rivais – o dos fariseus, Nossa caminhada ao encontro do Cristo
que dominavam a consciência do povo, e o exige a metanoia, a mudança de cabeça, por-
dos saduceus, que comandavam o Templo e que o reinado de Deus está chegando. Se é
o sinédrio – vão à procura do batismo de Deus, Pai de todos, e não o dinheiro, pai só
João. Estarão também querendo mudar de de alguns, que deve comandar, então é preci-
mentalidade? so mudar as cabeças.
João os aborda sem meios-termos: ban- Metanoia nos leva a nadar contra a cor-
do de cobras venenosas! A metanoia tem de rente, embora esta seja mais volumosa que o
ser efetiva, produzir resultados práticos; rio Amazonas. Na minha prática cotidiana,
não é mero ritual, o batismo, para tentar en- na chegada do próximo Natal, por exemplo,
ganar os outros, a si mesmo e a Deus! O tí- o que isso significaria?
tulo de filho de Abraão (ou de cristão) não Jesus realizou as palavras de Isaías e aca-
dá isenção a ninguém, todos têm de mudar bou com a estória do lobo e do cordeiro? To-
de mentalidade. dos já deixamos de ser bichos uns para os
Não adianta parecer uma árvore frondosa outros? Que fez Jesus? Que falta ainda para
e bonita; o machado já está ao pé das árvores, esse sonho acontecer? Quem será o responsá-
e a que não estiver produzindo frutos vai ser vel por levá-lo a cabo? Basta cantar: “Da cepa
cortada e jogada ao fogo. Frutos de verdadei- brotou a rama...”?
ra metanoia! Celebrações vazias, que não movem o co-
Depois, João fala de Jesus. “Não sou dig- ração e a mente nem dos que as presidem,
no de carregar suas sandálias” pode significar quanto mais dos participantes, tornam todos
também: não mereço ficar no lugar dele, as- semelhantes aos fariseus e saduceus que fo-
sumir a função dele. Como em Rt 4,7ss: o ram pedir o batismo a João.
que desiste da tarefa e a passa a outro tira e João cobrava deles o fruto ou resultado,
lhe entrega a sandália. que é uma metanoia verdadeira, sincera. A
“O Espírito Santo e o fogo”, no contex- vinda de Jesus é a vinda do juiz que não se
to da comparação com o lavrador que aba- engana, pois sonda os rins (os sentimentos) e
na o seu cereal, poderia significar “o vento o coração (a mente).
nº- 312

e o fogo”, o vento que carrega a palha e o Na eucaristia, celebramos um mundo di-


fogo que vai queimá-la. Jesus, que vem, é o ferente, que vem por um caminho diferente;

ano 57

último juiz da humanidade; ele separa o a mesa comum da humanidade, que vem da
grão da palha, ele guarda o grão no seu ce- partilha de si, do partir-se em pedaços como
leiro e joga ao fogo a palha, o que não tem

aquele pão. O caminho é a austeridade, não


Vida Pastoral

serventia. No final do capítulo 25 do mes- o consumo exasperado; é o sacrificar-se pelo

48
outro, não o aproveitar-se da situação. A che- Alguns termos são de extrema importân-
gada é a mesa comum. cia e nos ajudam a compreender melhor o
sentido profundo desse texto.
Imaculada Conceição de Nossa Senhora A saudação contém duas expressões im-
8 de dezembro portantes: “cheia de graça”, uma alusão à ale-
Por Aíla Luzia Pinheiro Andrade gria messiânica que ora se inicia, e “o Senhor

O Senhor está está contigo”. Esta última expressão não é


dita a pessoas em circunstâncias normais,

contigo! ainda que possa haver exceções (cf. Rt 2,4),


mas se refere ao povo de Deus em sua totali-
dade ou a alguma pessoa que Deus tenha
convocado para realizar um trabalho árduo.
I. Introdução geral A presença eficaz de Deus dirige a pessoa à
O pecado e a encarnação aparecem na Bí- finalidade proposta por ele.
blia como dois movimentos que têm por obje- A expressão “cobrir com sua sombra” faz
tivo a eliminação do abismo entre o Criador e alusão à nuvem que cobria o tabernáculo no
a criatura. O pecado significa que o ser huma- deserto, representando a glória de Deus que
no quis superar a distância existente entre ele ali habitava (cf. Ex 40,34). A mesma expres-
e seu Criador, pretendendo fazer-se igual a são é utilizada no texto da transfiguração (cf.
Deus. A encarnação é o movimento inverso. Lc 9,34), porque era símbolo da presença de
Deus, de fato, superou a distância entre nós e Deus. O tabernáculo no deserto era chamado
ele, quando o Verbo eterno se fez homem. de Tenda do Encontro (cf. Ex 27,21), pois ali
Deus se encontrava com o ser humano por
II. Comentário meio da representação da nuvem. Dessa for-
aos textos bíblicos ma, quando o texto, ao se referir a Maria, uti-
1. Evangelho(Lc 1,26-38): Faça-se liza a expressão “cobrir com sua sombra”, a
em mim conforme a tua palavra identifica-a com a Tenda do Encontro, signi-
O Evangelho de hoje nos apresenta um ficando que no útero dela Deus e o ser huma-
modelo de colaboração no propósito de Deus no se encontram no Menino que vai nascer.
para a salvação humana. O texto enfatiza Ante a vontade de Deus, Maria deu a res-
dois aspectos principais: a presença eficaz de posta: aceitou. Ela proclama-se “serva do Se-
Deus, que realiza o seu propósito, e a colabo- nhor”, frase usual no ambiente oriental quando
ração humana que diz “sim”. Em Maria, ve- um subalterno se dirige ao seu superior com o
mos esses dois aspectos se realizarem. A ati- propósito de aceitar seus desígnios. Essa dispo-
tude dela se torna, para nós, um paradigma a sição para a obediência é uma manifestação de
ser seguido. confiança (fé) na Palavra de Deus.
O texto é bem estruturado e nos apre-
senta a realização das promessas feitas ao 2. I leitura (Gn 3,9-15.20):
povo de Israel no passado. Todo o discurso Onde estás?
nº- 312

está permeado de alusões às profecias messi- O texto de Gn 3,10-11 alerta sobre a invia-
ânicas do Antigo Testamento (cf. Is 7,14; bilidade atual do propósito divino de habitar

ano 57

49,6; 2Sm 7,12-14). Com isso se quer co- com a criação, pois o casal humano, em decor-
nectar o cumprimento das promessas salvífi- rência do pecado, se esconde de Deus. E como
cas ao menino cujo nascimento constitui o o ser humano é o responsável pela criação, en-

Vida Pastoral

início de sua efetivação. tão, esta, em sua totalidade, fica afastada de

49
Roteiros homiléticos

Deus. Por isso, para a fé de Israel, a presença não foi determinada pelo ser humano, não é
divina na criação somente poderá ser eficaz consequência de suas ações. A eleição que re-
quando o ser humano parar de se esconder de cebemos para nos tornar filhos de Deus faz
Deus, isto é, quando a humanidade ouvir a voz parte do propósito divino desde toda a eter-
daquele que a interpela: “Onde estás?” (Gn nidade. A eleição do ser humano em Cristo é
3,9). A escuta da voz de Deus possibilitará ao anterior à criação. Deus tomou a iniciativa de
ser humano o arrependimento que, no sentido nos tornar filhos no Filho.
bíblico, significa “retorno” à aliança ou à “cola- Por isso, desde toda a eternidade, cada
boração” (trabalhar junto) com Deus. ser humano é chamado a ser “sem mancha”
O pecado, muito mais que uma revolta (imaculado, v. 4). Esse termo (ámomos), no
contra Deus, é um aviltamento da natureza Antigo Testamento, designava o cordeiro do
do ser humano. O chamado de Deus procura sacrifício (cf. Lv 1,3.10) e muitas vezes é tra-
reconduzir a humanidade – e, com esta, a duzido em português por “sem defeito” ou
criação inteira – à sua própria dignidade. As- “irrepreensível”, mas literalmente significa
sim, o arrependimento (ou a colaboração) do “sem mancha” ou “imaculado”. No Novo Tes-
ser humano significa a criação retornando ao tamento, o mesmo termo se refere à vida da-
seu verdadeiro propósito. quele que se une a Cristo.
Quando cada ser humano se arrepender, É fato que o ser humano sempre pecou,
então, manifestar-se-á toda a beneficência da apesar de ter recebido um chamado, desde
criação. E quanto mais se retarda o arrependi- toda a eternidade, para ser santo e imaculado.
mento do ser humano, mais demora a presença E já que “todos pecaram” (Rm 3,23; 5,12), a
divina na criação. Assim sendo, a plena mani- graça da encarnação (a vida inteira de Jesus) se
festação da criação em sua beneficência depen- tornou redenção, libertação da tirania do pe-
de da decisão humana. O mundo vindouro não cado que escraviza o ser humano.
significa apenas a vinda de Jesus, mas é tam- Como a graça é anterior ao pecado, pois
bém o retorno do ser humano para Deus. É o é anterior à criação (v. 4), a eleição significa
retorno do Criador (cf. Is 52,8) e da criatura. que somos atingidos pela graça desde o pri-
meiro momento de nossa existência. Disso
3. II leitura (Ef 1,3-6.11-12): Santos decorre que a vivência do batismo é a adesão
e imaculados diante de Deus consciente e livre à graça da eleição eterna,
A segunda leitura consiste num hino cris- que se opõe ao pecado e realiza em nós aqui-
tológico (a Cristo) com forte teor batismal. lo a que fomos chamados: ser santos e imacu-
Seu tema principal é a obra de Deus através lados diante de Deus.
de Cristo. As consequências dessa obra no
ser humano são a filiação divina, o perdão III. Pistas para reflexão
dos pecados, o tornar-se membro do Corpo Maria, dotada de “uma santidade inteira-
de Cristo e a ação santificadora do Espírito mente singular” (LG 56), representa a humani-
Santo. Todos esses temas fazem parte de uma dade nova redimida por Cristo, ou seja, a Igreja.
catequese batismal. Portanto, o hino também A homilia deve mostrar que essa festa ma-
nº- 312

esclarece o sentido do batismo para nós. riana harmoniza com o espírito do Advento.
À luz desse texto, fica esclarecido que, Enquanto a Igreja se prepara para a vinda do

ano 57

antes de tudo, a eleição (vocação à filiação Senhor, é adequado celebrar Maria como figura
divina) não é algo acidental. A encarnação da Igreja, ou seja, da nova humanidade redimi-
não aconteceu para resolver o problema do da por Cristo e chamada a ser santa e sem man-

Vida Pastoral

pecado humano. Quer dizer, a encarnação cha, conformando-se à vontade do Criador.

50
Uma exaltação exagerada a Maria pode
quebrar o dinamismo litúrgico do Advento, A hora de Deus
que enfatiza a espera pelo Senhor. Uma ênfase A crise na vida cristã
exagerada nos privilégios de Maria pode tam- Amedeo Cencini
bém favorecer uma devoção desraigada de
Cristo. Pode, além disso, ofuscar o papel da
graça da eleição à filiação divina, vocação de
todo ser humano, a qual foi decidida desde
toda a eternidade, age desde a criação e vai se
consumar na segunda vinda de Cristo. Maria
teve papel singular na história da salvação e
não deve ofuscar a obra redentora de Cristo. A
homilia deve remeter-se a Cristo, o protago-
nista, e deixar a Maria o papel de coadjuvante,
a saber: representante da humanidade renova-
da pela redenção realizada por Jesus.

352 págs.
3º Domingo do Advento
11 de dezembro

Os sinais Há quem afirme que o verdadeiro


problema da vida religiosa ou

do Salvador
sacerdotal reside no fato de
muitos consagrados viverem
tranquilamente situações críticas,
sem aparentar nenhum tipo de
incômodo. Para o autor, “seria
I. Introdução geral verdadeiramente coisa boa aceitar
Quando dirigimos pelas estradas ou pe- entrar em crise, pelo menos
las ruas das cidades, encontramos muitos uma vez”. Neste livro, ele nos
sinais de trânsito. Seria extremamente ridí- explica justamente aquilo que
torna a crise, e o faz mediante
culo a pessoa parar o carro em frente a um
um caminho amplo, oferecendo
sinal verde para admirar a cor. O resultado análise aprofundada dos possíveis
Imagens meramente ilustrativas.

seria uma batida. E se a pessoa parasse para percalços que ainda estão para se
examinar se a placa é de latão ou de madei- revelar em nossa caminhada.
ra, se os símbolos ou as letras estão bem ou
mal desenhados? O sinal não é para ser ad-
mirado ou discutido, mas para ser entendi-
do e seguido. Vendas: (11) 3789-4000
Fazemos isso frequentemente com as 0800-164011
narrativas de milagres nos Evangelhos. Che- SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

gamos a pensar que talvez Jesus tenha feito V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


curas e mandado seus discípulos fazer curas paulus.com.br

ano 57

como demonstrações de poder em favor dos


que nele cressem. Estamos cansados de ver
“igrejas” que curam a torto e a direito, não se

Vida Pastoral

sabe por quais interesses.

51
Roteiros homiléticos

Depois do episódio dos pães no capítulo Aí já não haverá cego, surdo, mudo ou
6 do Evangelho de João, muitas pessoas vão pessoas com deficiência física. Estas não ape-
à procura de Jesus. Ele as acolhe, dizendo: nas vão andar por si: vão pular como cabri-
“Vocês me procuram não porque viram si- tos; os mudos vão soltar a voz e cantar um
nais, mas porque comeram e ficaram satis- hino. Acabou a cegueira, a mudez, a surdez,
feitos”. O que interessa não é a placa, mas o a invalidez a que eram submetidos no cati-
que ela indica; não é o milagre ou seu resul- veiro; a libertação que chega faz a todos vi-
tado, mas o que aquilo significa dentro da dentes, ouvintes, falantes, caminhantes, até
mensagem de Jesus. saltitantes e agentes. Deixam de ser objetos,
No Evangelho de hoje, reaparece a figura tornam-se sujeitos, senhores de si. Vivam!
do Batista. Ele manda seus discípulos per-
guntar a Jesus se este é o Messias esperado e 2. II leitura: Tg 5,7-10
recebe de Jesus os maiores elogios. Depois de fazer fortes ameaças aos ricos
A resposta de Jesus é indireta: fala dos si- (vv. 1-6), o escrito de Tiago parece se dirigir
nais que estão acontecendo. Abrir os olhos aos pobres. Para a gente sofrida e cansada, ele
aos cegos, soltar a língua dos mudos, abrir os fala de esperança, paciência e resistência,
ouvidos dos surdos, soltar os braços e as per- confiantes na vinda do Senhor, juiz justo.
nas dos entrevados, enfim, dar nova vida aos A comparação com o agricultor é clara. A
mortos é o núcleo da missão do Messias. certeza do agricultor de que a semente lança-
Nós não esperamos um simples curandei- da na terra vai produzir frutos é que lhe dá
ro; esperamos o Messias, que dá nova vida à segurança de esperar até o dia da colheita. A
multidão cega, muda, surda, inválida e morta. natureza não dá saltos, já dizia o antigo dita-
do, e o agricultor sabe bem disso: por isso,
II. Comentários espera tranquilo e seguro.
aos textos bíblicos A expectativa próxima da vinda do Se-
1. I leitura: Is 35,1-6a.10 nhor, justo juiz, significa a certeza da vitória
O povo estava no cativeiro. Os inimigos da justiça, por mais que demore e por mais
tinham vazado os olhos de alguns, outros es- que a injustiça pareça prevalecer. Isso leva ao
tavam mutilados, todos desiludidos e desani- comportamento mais moderado e maduro de
mados. O profeta canta de maneira espetacu- quem não se queixa dos outros, atribuindo-
lar a esperança de saída do cativeiro e retorno -lhes os próprios males, mas aguarda seguro
para a própria terra. Será para nós símbolo de o verdadeiro juiz, que está às portas.
uma esperança maior.
O caminho da volta é o deserto, tal como 3. Evangelho: Mt 11,2-11
o caminho da escravidão do Egito até a Terra João Batista tinha dito, no texto lido do-
Prometida. É um novo êxodo. O caminho é o mingo passado, que depois dele viria um
deserto, mas a certeza da esperança faz do mais forte que ele, pronto para cortar e quei-
deserto um jardim. mar as árvores que não estivessem produzin-
A esperança é a força para a caminhada: do e para abanar o cereal, guardar os grãos no
nº- 312

nada de braços cansados ou joelhos cambale- celeiro e pôr a palha para queimar. Seria o
antes, nada de medo, coragem! É Deus que juiz definitivo e implacável.

ano 57

vem para salvar! Se o caminho da liberdade e O que João ouviu falar de Jesus, entretanto,
da vida é difícil, é um deserto, a certeza de parece não corresponder exatamente a essa
que a salvação vem de Deus dá força e cora- ideia de juiz rigoroso. Donde o sentido da per-

Vida Pastoral

gem e transforma o deserto em jardim. gunta que ele manda fazer a Jesus: é você mes-

52
mo ou virá outro para o julgamento definitivo?
João ouviu falar das curas, sem dúvida, e Ecoteologia: um mosaico
da compaixão de Jesus pelas pessoas, também
pelos pecadores. A resposta de Jesus aponta Afonso Murad (org.)
para esses sinais. Ele primeiro veio salvar, liber-
tar. As curas são sinais da solidariedade com os
sofredores e do mais importante de sua missão:
abrir os olhos a todos os cegos, mesmo aos que
tenham olhos perfeitos; abrir os ouvidos a to-
dos os surdos, mesmo aos que tenham ouvidos
perfeitos; fazer andar e agir os inválidos, mes-
mo os que têm mãos, pés e pernas perfeitos;
purificar todos os leprosos, tirar da exclusão
social todos os “sujos” postos à margem; enfim,
dar vida a todos os que vivem mortos.
Tudo isso se resume numa palavra: anun-
ciar a Boa-nova aos pobres. Alguém perguntou
certa vez por que se fala tanto em evangelizar os 248 págs.

pobres, já que eles geralmente estão mais perto


da fé do que os ricos. É que “evangelizar” signi-
fica levar boa notícia. E que melhor boa notícia
há do que fazer os oprimidos ver, ouvir e agir, A ecoteologia é, hoje, uma
algo proibido na sua atual situação? das grandes esperanças para
Muitos não gostam disso, de dizer que a a recuperação e a preservação
missão de Jesus é levar boa notícia aos po- da nossa Casa Comum: o
bres, levar esperança e força aos que são o planeta Terra. Esta obra reforça
a formação de uma nova
refugo da sociedade, abrir os olhos, os ouvi-
consciência necessária, sem a
dos, a boca aos que são proibidos de fazê-lo. qual poderemos conhecer crises
Muitos se escandalizam com a afirmação de ecológico-sociais de graves
que Jesus veio para libertar os oprimidos. consequências. Textos de grandes
Mas Jesus termina: “Felizes os que não se es- personalidades promovem
reflexões atuais sobre temas como
Imagens meramente ilustrativas.

candalizam comigo!”.
ecologia, consciência ambiental e
Depois que os discípulos de João se afas-
o papel da religião na formação
tam, Jesus se dirige ao povo para falar de dessa consciência coletiva.
João. Pergunta inicialmente o que foram ver
no deserto e responde: não foram ver um
bambu agitado pelo vento, de um lado para o Vendas: (11) 3789-4000
outro, nem alguém vestido com roupas finas. 0800-164011
No deserto estava um profeta; mais do que SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

um profeta, aquele que abre os caminhos. V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


“No entanto, o menor no Reino dos céus paulus.com.br

ano 57

é maior do que ele.” Reino dos céus é o mes-


mo que reino de Deus, conforme está no tex-
to paralelo de Lucas. Esse reino de Deus aqui

Vida Pastoral

se entende como a comunidade cristã. Assim,

53
Roteiros homiléticos

qualquer membro da Igreja do Novo Testa- ficar de pé, com o entendimento disso como
mento é maior do que João Batista. milagres ou manifestações de poder, em pou-
O reino sofre violência, diz o versículo co ou nada modifica o nosso comportamento
12, que segue o trecho do Evangelho lido e a caminhada da humanidade. Quando es-
hoje e faz parte da mesma perícope. A afir- sas coisas são sinais do objetivo de fazer to-
mação soa um tanto misteriosa. Significa que dos se tornarem sujeitos, senhores da própria
a comunidade dos discípulos de Jesus é per- vida, já incomodam bem mais.
seguida, vítima de violência? Parece, no en- O reino sofre violência. Não é fácil a busca
tanto, que se trata da violência exigida de do reinado de Deus. O mais difícil talvez seja
quem quer conquistar ou arrebatar o reino. É desembaraçar-se do reinado do dinheiro e de
a práxis contra a entranhada mentalidade tudo o que ele oferece. “Só os violentos o arre-
deste mundo e dos que o dominam. Não sig- batam”, só os fortes raptam esse reinado.
nifica exercer essa mesma forma de violência, Trata-se da força usada por João, o pre-
mas vencê-la com firmeza por meio do amor. cursor, que preparou a vinda daquele que
haveria de começar o reinado de Deus no
III. Pistas para reflexão mundo. Ele não era um ramo agitado por
Será que estamos prontos para conquis- qualquer vento, nem vestia roupas chiques:
tar, raptar, como diz o texto evangélico, o era um profeta, já pela própria austeridade e
Reino de Deus? firmeza, e mais do que um profeta, pois pre-
A ação de evangelizar os pobres constitui o parava os caminhos do Senhor.
principal sinal de que Jesus é o Messias espera- Mais violento ainda foi Jesus, ao entregar-
do pela humanidade. Evangelizar não é impor -se livremente à morte de cruz a fim de rasgar
a alguém um conjunto de doutrinas ou subme- os caminhos para uma humanidade nova.
tê-lo a enorme código de leis e regulamentos. Essa sua violência e o mundo novo celebra-
Evangelizar é levar boa notícia, levar esperança mos na eucaristia.
e ânimo a quem precisa, aos pobres, aos sofre- Advento não é preparação para comemo-
dores, às vítimas deste mundo. rar o Natal. Advento é celebrar a chegada do
A um morador de rua, você não vai dizer Senhor e reunir forças para arrebatar o reina-
que ele deve ir à missa todo domingo; você vai do de Deus.
dizer que Jesus também era “trecheiro”, não
tinha nem uma pedra onde encostar a cabeça. 4º Domingo do Advento
A boa notícia para os oprimidos pode ser 18 de dezembro
má notícia para os opressores, mas é a men-
sagem de Jesus. Quando ficamos com medo
de magoar os opressores, não nos estamos
A mãe do Salvador
I. Introdução geral
escandalizando com Jesus? O quarto domingo do Advento nos traz,
É preciso saber combinar a ideia do juiz todo ano, a figura de Maria, a mãe do Senhor.
implacável, que separa o que presta – o grão Neste ano A, seguimos o Evangelho de Ma-
– do que não presta – a palha, que vai para o teus. Nesse Evangelho, ela aparece realizan-
nº- 312

fogo –, com a ideia daquele que vem curar a do em plenitude as palavras de Isaías pro-
todos, abrir os olhos aos cegos, os ouvidos nunciadas mais de setecentos anos antes. A

ano 57

aos surdos e purificar os “sujos”, enfim, tra- roupagem literária com que o profeta vestiu a
zer boas notícias para os pobres. mãe e o filho que ele anunciava era grande
Abrir os olhos aos cegos, os ouvidos aos demais: só Maria e Jesus preenchem as pala-

Vida Pastoral

surdos, a boca aos mudos, fazer os inválidos vras do profeta.

54
A jovem mãe torna-se virgem mãe; o nome
“Emanu-el”, de simples grito de guerra, passa História dos saberes psicológicos
a significar verdadeira presença de Deus no
meio da humanidade. O nascimento já ocorri- Marina Massimi
do, ou que Isaías previa para breve, torna-se
geração e nascimento totalmente imprevisí-
veis, possíveis apenas por intervenção direta
de Deus.
E a origem em Davi é assegurada por José,
o homem justo. A origem em Davi é relembra-
da por Paulo, que anuncia em Jesus a realiza-
ção de todas as esperanças do povo judeu.
José, justo, pratica a justiça do reinado de
Deus, tema central do Evangelho de Mateus:
justiça que, mais do que observância rigorosa
da Lei, é toda uma ordem social justa, fundada
no respeito ao outro e na misericórdia.
376 págs.
Todo filho traz à mãe a lembrança do pai.
O nascimento virginal faz Maria, ao ver Jesus,
lembrar-se não de José, mas de Deus e do seu
Espírito. E seu Filho realiza, não só para ela,
O que é a psicologia? Quais
mas para toda a humanidade, aquilo que di- são os fenômenos de que ela se
zia o nome da criança anunciada a Acaz: ocupa? Em História dos saberes
Emanuel, Deus-conosco. psicológicos, a professora da
USP Marina Massimi responde
II. Comentários a essas perguntas sob a
aos textos bíblicos perspectiva histórica. O livro
reconstrói o caminho através do
1. I leitura: Is 7,10-14 qual o homem buscou atingir
O rei Acaz estava com medo dos reis de Is- o conhecimento de si e do
rael e da Síria, que planejavam derrubá-lo do outro, da vida mental e dos
poder e pôr outro em seu lugar. Isaías vai dar- comportamentos – os “saberes
psicológicos”. Obra essencial
Imagens meramente ilustrativas.

-lhe coragem. Diz que o plano deles vai fracas-


sar, pois os dois reinos não têm forças para isso, para a formação crítica do
psicólogo contemporâneo.
nem para resistir aos assírios, e diz também que
“quem não crê não sobrevive” (vv. 7-9).
Em seguida, diz a Acaz que peça um sinal
de Deus, seja de vida (“das alturas”), seja de Vendas: (11) 3789-4000
morte (“das profundezas”). Acaz não crê e ar- 0800-164011
ranja uma desculpa religiosa para não pedir o SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

sinal, não tentar o Senhor. Mesmo assim, Isa- V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


ías lhe indica qual será o sinal. paulus.com.br

ano 57

Fala de uma moça que terá um filho.


Essa moça pode ser a esposa de Acaz e o fi-
lho, Ezequias, talvez até já nascido. Toda a

Vida Pastoral

esperança se concentra numa pessoa que,

55
Roteiros homiléticos

mais tarde, na tradição judaica, será o Mes- ção e resposta positiva aos apelos de Deus na
sias. O nome simbólico dele será Emanuel, vida, como aconteceu consigo mesmo.
Deus-conosco. Na época, isso poderia ser A boa notícia do reinado de Deus levada
apenas um grito de guerra: antes de atacar, o a todo o mundo (Evangelho) se resume,
comandante gritava por três vezes emanu pois, nesse judeu nascido de Maria, incluído
(conosco), e os soldados, El (Deus). É o si- na descendência de Davi mediante José e
nal da vitória na guerra. por Deus ressuscitado dos mortos como
Na introdução (v. 10), Javé aparece como Messias e Senhor.
o Deus de Acaz: “Pede um sinal a teu Deus
Javé”, mas, como o rei se recusa a se socorrer 3. Evangelho: Mt 1,18-24
dele, Javé se torna o Deus apenas do profeta: O Evangelho de Mateus é um Evangelho
“passais a incomodar até o meu Deus!” (v. de judeus cristãos. Começa com a genealogia
13). Deus, sem que Acaz queira ou peça, dar- de Jesus, filho de Abraão, como todo judeu.
-lhe-á o sinal de que os dois reis que o amea- Numa sociedade patriarcal, na árvore ge-
çam não passam de “dois gravetos em brasa nealógica só aparecem os homens. Na de Je-
fumegantes”. sus, aparecem quatro mulheres que conquis-
Esse sinal será a jovem que vai gerar um taram seu espaço por meio da geração de um
filho e dar-lhe o nome de Deus-conosco. A filho ou da relação sexual. São elas: Tamar,
jovem mãe é que dá nome ao filho. Essa “jo- que conseguiu permanecer na família de Judá
vem” do texto hebraico tornou-se “virgem” por gerar um filho deste; Raab, a prostituta
na tradução grega dos Setenta e, assim, de Jericó que protegeu os espiões hebreus e
abriu o caminho para a interpretação que os salvou sua família; Rute, a moabita que recu-
Evangelhos lhe dão: a virgem mãe é Maria e perou sua ligação com os clãs de Belém me-
o filho é Jesus. diante seu casamento com Booz, tornando-se
avó de Davi; Betsabeia, a mulher que Davi
2. II leitura: Rm 1,1-7 tirou de Urias.
Paulo escreve às comunidades nas quais Além dessas quatro, aparece Maria, com
conviviam cristãos judeus e gentios. Os ju- grande destaque. Ela é a mãe de Jesus, ao
deus tinham sido expulsos de Roma e agora, passo que José é apenas seu esposo; na con-
autorizados, estavam voltando em situação cepção patriarcal, apenas faz a ligação dela
de grande inferioridade. A fim de dar-lhes com a casa de Davi.
apoio, Paulo inicia a carta lembrando que Je- No texto lido hoje, um anjo do Senhor
sus é a boa-nova de Deus há tempos anuncia- anuncia o nascimento de Jesus por intervenção
da nas Escrituras sagradas dos judeus, é Fi- direta de Deus. Várias grandes figuras da Bíblia,
lho de Deus, mas judeu de nascimento, da como Ismael (Gn 16,7-12), Isaac (Gn 17,1-19)
família de Davi. e Sansão (Jz 13,3-22), tiveram seu nascimento
Ele é definido Filho de Deus com poder a anunciado por mensageiros divinos.
partir da ressurreição, a partir de sua vitória O nome “Jesus” quer dizer “Deus salva”.
sobre a morte, quando Deus ratificou sua O nome lembra que “ele vai salvar seu povo”.
nº- 312

obra e mensagem. A partir daí o judeu cruci- Seu povo é o povo judeu? Salvar de quê? Do
ficado é Messias e Senhor nosso. poder de Roma? Dos seus dirigentes corrom-

ano 57

Com base no entendimento de que o pidos? Vai salvar “dos seus pecados”. O evan-
Crucificado é o Messias, Paulo foi chamado a gelista vai mais fundo, chega ao pecado, raiz
levar a todas as nações, a todos os não ju- de toda opressão. E, mais adiante, a visita dos

Vida Pastoral

deus, a fé, que se traduz em obediência, aten- magos vai mostrar que “seu povo” não é ape-

56
nas o povo judeu, mas abrange os mais dis-
tantes e estranhos povos. Alívio para o sofrimento
Maria, já comprometida com José, en- e a depressão
contra-se grávida antes que passem a convi- O papel da compreensão
e da fé
ver. A primeira etapa do casamento estava
realizada; faltava passarem a morar juntos. James F. Drane
Deve-se notar que o evangelista chama José
de seu marido, o que significa que o casa-
mento estava realizado.
Por ser justo, por pôr em prática a jus-
tiça do reino, que não é o simples segui-
mento do rigor da Lei – a qual o levaria a
denunciar Maria como adúltera – ficou
pensando na possibilidade de deixá-la sem
provocar escândalo.
Tudo isso prepara o anúncio da geração
divina de Jesus. A mensagem do anjo vai
além do que José imaginava: nem a denúncia
pública nem a saída discreta; ao contrário,
264 págs.

acolher a esposa, pois o que ela traz no ventre


vem de Deus.
E o Evangelho toma o texto de Isaías 7,
o sinal do Emanuel, para demonstrar como O sofrimento e a depressão
são questões muito presentes
tudo o que acontece agora realiza plena-
na vida do ser humano da
mente o que está no livro do profeta, so- pós-modernidade. Mas como
bretudo ao considerar a tradução dos Se- lidar com esses problemas?
tenta que diz “virgem” em vez de “jovem”. Neste livro, Dr. Drane, valendo-
Aquilo que poderia parecer bem misterioso -se de seu vasto conhecimento
no diálogo entre Isaías e Acaz aqui adquire da natureza humana e de sua
extraordinária competência nas
sentido total.
áreas da psicologia, filosofia,
O Filho da virgem mãe será chamado Ema- literatura, arte e religião,
Imagens meramente ilustrativas.

nuel. Se no diálogo de Isaías com Acaz esse demonstra que a compreensão e


nome poderia lembrar apenas um grito de a fé podem ter um papel potente
guerra, aqui tem significado pleno. Ele é Deus no alívio da depressão em todas
conosco, não apenas nos dando forças — tal as idades do indivíduo.
como a aclamação guerreira pretendia conven-
cer os soldados —, mas também sendo a pre- Vendas: (11) 3789-4000
sença de Deus no meio da humanidade, sendo 0800-164011
Deus que vem caminhar com a gente. Jesus é a SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

presença vitoriosa de Deus no meio da humani- V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


dade, é o Emanuel, o Deus-conosco. paulus.com.br

ano 57

III. Pistas para reflexão


Emanu! El! Emanu! El! Emanu! El! Ata-

Vida Pastoral

car! O antigo grito de guerra passa a ter ago-

57
Roteiros homiléticos

ra um significado mais profundo. Antes sig- Nosso amor não é puro; nada fazemos
nificava apenas confiança no Deus que sem um pouco de interesse próprio, sem
apoiava o povo em suas guerras. Visava ape- uma ou mais segundas intenções. A fecundi-
nas dar coragem aos soldados. Agora signifi- dade de Maria é tão grande, a ponto de gerar
ca que Jesus é presença de Deus entre nós, Deus, porque é virginal, porque é pura, isen-
que nele Deus veio acampar conosco. ta de qualquer segunda intenção.
A luta de Jesus parecia tê-lo levado ao fra-
casso da cruz. Mas Deus estava com ele tam- Natal do Senhor – Missa da noite
bém aí: prova disso é que o ressuscitou dos 24 de dezembro
mortos, fazendo dele o Senhor da vida e da
morte. Com ele estava Deus, e ele é Deus co- O pobre, salvador
nosco. Nossa luta para estabelecer no mundo
o reinado de Deus não vai fracassar. Emanu-
-El, Deus está conosco.
dos pobres
Na eucaristia, lembramos a luta que cul- I. Introdução geral
minou na cruz e a vitória da ressurreição, fa- Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro.
zendo, na comunhão, partilha da vida em No Oriente, o Natal é celebrado no dia 6 de
plenitude para todos igualmente. janeiro. A Igreja do Ocidente optou por cele-
José era um homem justo. Sua justiça, brar a memória do nascimento do Senhor no
porém, não se reduzia àquela coisa pequeni- dia 25 de dezembro porque nele se celebrava
na de só ver a Lei. Se ele só visse a Lei, teria o nascimento do Sol Invicto. No hemisfério
denunciado Maria publicamente. Sua justiça, norte, essa é considerada a noite mais longa do
muito além da Lei, era deixar-se reger pelos ano. O sol vinha se escondendo, os dias cada
critérios do reinado de Deus, Pai de todos, vez mais curtos, agora o sol começa a voltar.
que respeita a todos, que a todos entende e Jesus é o sol que nasce. É o verdadeiro sol in-
compreende. Sua justiça “superava de muito victo, que não se deixa vencer pelas trevas.
a justiça dos escribas e fariseus”. Essa justiça Por isso, as três missas de Natal. A da
nos faz muita falta. meia-noite lembra o livro da Sabedoria:
Maria passa quase despercebida. É a figu- “Quando... a noite chegava ao meio do seu
ra principal, e nós quase nem a notamos. É a curso, a tua palavra todo-poderosa vinda do
figura principal exatamente por isto: não céu...” (18,14-15). A do raiar do dia lembra
pretende aparecer, não está em busca dos ho- Jesus, o dia que nasce, e a missa do dia é a
lofotes nem das câmeras. É a figura principal claridade de meio-dia da Palavra encarnada.
porque foi na sua humildade, em todos os Os textos da missa da noite falam de luz
sentidos, que Deus quis se fazer presente na e de trevas. O cativeiro era um mundo de tre-
humanidade. vas, próximas das trevas do hades ou sheol,
“A virgem conceberá e dará à luz.” Se, que nossa versão do credo transformou em
para a mãe, o filho sempre lembra o pai, para “mansão dos mortos”. A libertação é a luz
Maria, Jesus não lembra José, mas o Espírito que volta a brilhar. A luz volta a brilhar por-
nº- 312

de Deus; não lembra uma experiência vivida que um menino nos foi dado.
com o marido, mas Deus, que a quis. Seu A noite dos arredores de Belém é ilumi-

ano 57

amor ao filho não passa pelo amor do mari- nada pelo clarão do anjo do Senhor. A vida
do, mas vai direto ao Filho. Seu amor a Jesus escura dos pobres pastores se ilumina, por-
é isento de qualquer segundo interesse, é to- que para eles nasceu um salvador, em tudo

Vida Pastoral

talmente puro. semelhante a eles.

58
II. Comentários Mobilidade humana
aos textos bíblicos e identidades religiosas
1. I leitura: Is 9,1-6 Fábio Baggio, Paolo Parise, Wagner Lopes
Para Isaías, a esperança de sair do cativei- Sanchez (coords.)

ro é como uma luz que brilha na escuridão.


Hoje, Jesus deve ser a luz que brilha na noite
da humanidade, ainda debaixo do peso de
um cativeiro sempre renovado.
O povo havia sido levado para o cativeiro
da Babilônia passando pela Galileia – domina-
da pelos gentios –, precisamente pelas regiões
de Zabulon e Neftali. Agora volta do cativeiro
pelos mesmos caminhos. Isso foi dito no final
do capítulo 8. No texto de hoje, esse retorno é
a luz que brilha para os que já se considera-
vam na caverna escura debaixo da terra, como
400 págs.
imaginavam o lugar dos mortos.
Sua alegria se manifesta na presença de
Deus. É a alegria da colheita. Se o plantio foi O fenômeno da migração
duro e sofrido, a alegria da colheita compensa compulsória tem sido uma
e muito. A canga que lhes pesava no pescoço, constante na história da
a vara com que lhes batiam nos ombros, o chi- humanidade, mas, nos últimos
anos, no entanto, tem se
cote dos capatazes, tudo foi quebrado. Se no
despontado com muita força em
cativeiro viviam como bois de carro ou ani- virtude do “êxodo sírio” desde que
mais de carga, agora tudo isso acabou. começou a guerra civil na Síria.
No episódio de Madiã (Jz 7), Gedeão, Este livro traz reflexões acerca do
para mostrar que era Javé quem lutava por papel das religiões no acolhimento
eles, derrota, com um pequeno grupo de daqueles que são forçados a
deixar seus países de origem em
combatentes, o poderoso exército dos madia-
busca de uma vida melhor.
nitas, que oprimiam os israelitas. Agora, tam-
Imagens meramente ilustrativas.

bém, a libertação é obra de Deus.


Acabou o clima de guerra, acabou o tempo
das armas, das botas barulhentas dos soldados,
das fardas sujas de sangue. Isso deve desapare-
cer, deve ir para o fogo. Chegou o tempo da
paz e da felicidade completa para todos. Vendas: (11) 3789-4000
A alegre esperança se concretiza na pes- 0800-164011
soa de um menino nascido para trazer a feli- SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

cidade completa, a paz, para todo o povo. V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


Quem seria esse menino na mente do poeta- paulus.com.br

ano 57

-profeta não se sabe com certeza. A verdade é


que essa esperança em um personagem con-
creto vai se firmando na tradição judaica até

Vida Pastoral

tornar-se esperança no futuro Messias.

59
2. II leitura: Tt 2,11-14 Seu nascimento dá glória a Deus e traz a ple-
As palavras atribuídas a Paulo falam da na realização aos pobres.
ternura de Deus que se revela na encarnação Pouco interessa a exatidão histórica desse
de Jesus. Só a mansidão de Deus pode vencer “primeiro recenseamento, quando Quirino
a nossa arrogância. governava a Síria”. A referência aos podero-
As chamadas epístolas pastorais supõem sos do mundo de então vai contrastar com a
uma situação eclesial bem posterior ao tempo pobreza e humildade do nascimento daquele
de Paulo. As comunidades cristãs já podem que se tornou realmente o centro da história
ser identificadas no meio do mundo gentio da humanidade.
ou pagão, já têm certa visibilidade. O com- O Evangelho de Lucas é o Evangelho do
portamento dos cristãos é um testemunho amor de Deus, o Evangelho dos pobres, dos
positivo ou negativo de sua fé. pecadores, das mulheres, de todos os discri-
A epístola a Tito manda dar orientações minados e excluídos. José, que é da descen-
aos idosos (2,2), às idosas (2,3), às jovens e dência de Davi, está submetido às ordens dos
às esposas (2,4-5), aos jovens (2,7) e aos cris- senhores deste mundo e vai com Maria, grá-
tãos escravos (2,9-10), todas reforçadas pelo vida, até Belém. É preciso que o Filho de
bom exemplo do destinatário da epístola Davi venha de Belém.
(2,7-8). De todos se pedem humildade e mo- Não há lugar para eles na hospedaria. Fi-
deração, para que sua fé não seja objeto de cam fora, como tantos outros. Vão dormir na
críticas, mas de elogios e de simpatia. estrebaria, e o berço do Menino será um co-
Tudo desemboca no trecho lido na missa cho, um lugar onde se põe alimento para o
da noite de Natal. O Menino do presépio é a gado. Não nasce num berço de ouro; ao con-
manifestação da graça salvadora de Deus. trário, nasce pobre entre os mais pobres.
Aquele que teve como berço um cocho, Os pastores eram pobres, temidos e dis-
onde se coloca alimento para os animais, e criminados. Sua situação era semelhante à
teve como leito de morte a vergonhosa cruz, dos ciganos de hoje. Eram nômades, iam de
ele é que nos revela a graça salvadora de um lugar para outro, conduzindo suas ove-
Deus, ele é que mostra à humanidade o ca- lhas. Passavam as noites ao relento, olhando
minho da vida, ele é que mostra como é gra- seus rebanhos. Eram temidos pela suspeita
tuita a salvação. de serem ladrões de gado.
Ele não nos tira deste mundo, mas não nos A eles aparece o anjo do Senhor. No Pri-
deixa ser arrastados pela cobiça e pela arrogân- meiro Testamento, o anjo do Senhor é como
cia que governam o mundo. Ao contrário, sua que uma duplicata de Javé, que diretamente
pobreza e humildade nos ensinam a viver com ninguém pode ver, senão morre. É a manei-
moderação, sem a gastança em que se conver- ra de o próprio Deus Javé aparecer. O anjo
teu a celebração do nascimento do Menino: a do Senhor diz aos pastores que nasceu um
viver humildemente, procurando a justiça e a salvador para eles, um salvador para os últi-
piedade, sem procurar a glória do presente, na mos da sociedade.
serena expectativa da glória que virá. De onde virá o salvador dos pastores? O
nº- 312

sinal será este: um recém-nascido envolto nas


3. Evangelho: Lc 2,1-14 faixas comuns dos recém-nascidos e deitado

ano 57

Jesus nasceu na extrema pobreza e foi num cocho, dentro de uma estrebaria. É aí,
anunciado por Deus como salvador dos po- não em um palácio, que vão encontrá-lo. Num

bres pastores. Nasceu no meio da história palácio, os pastores não poderiam entrar. Só
Vida Pastoral

humana, submisso aos poderosos do mundo. mesmo numa estrebaria, num ambiente que

60
lhes era familiar, vão encontrar o seu salvador.
Ele será também uma alegria para todo o Catequese no mundo atual
povo. Ele não deixa ninguém constrangido; Crises, desafios e um novo
paradigma para a catequese
dele todos podem se aproximar, a ele todos
podem procurar. A pobreza é o sinal da sal- Solange Maria do Carmo

vação que chega. Isso abala os critérios da


nossa sociedade humana, contrasta com a
mentalidade reinante, vai contra a corrente
do pensamento único. Isso não combina com
a maneira atual de celebrar o Natal. Choca.
Incomoda. Mas é fato incontestável.
E a multidão de anjos que se une ao anjo
do Senhor diz, cantando, que esse nascimen-
to significa a glória de Deus nas alturas e, na
terra, o bem, a felicidade, a plena realização
– pois shalom significa plenitude – daqueles
que se encaixam nesse projeto de Deus. A pa-
264 págs.
lavra grega eudokia, traduzida antigamente
por “boa vontade” e atualmente por “bem-
-querer” – daí queridos, amados por Deus –, Se a Igreja, de fato, deseja
parece significar algo mais, o próprio projeto transmitir a Boa-nova de Jesus
do bem-querer de Deus. Por isso foi dito: Cristo, já é hora de pensar em
“aqueles que se encaixam no projeto compas- um novo paradigma catequético,
capaz de falar ao coração das
sivo de Deus”, aqueles que, sem arrogância,
pessoas hoje. É sobre esse novo
se veem carentes do amor compassivo e sal- paradigma catequético que este
vador de Deus. livro fala. Ele é o resultado da
tese de doutorado da professora
III. Pistas para reflexão Solange Maria do Carmo mas
A alegre esperança daqueles que, em to- ganhou versão mais popular, com
texto leve, poético e muito claro. A
dos os tempos, buscam a verdadeira paz se
partir da teologia catequética do
concretiza na pessoa de um menino nascido francês Denis Villepelet, Solange
Imagens meramente ilustrativas.

para trazer a felicidade completa, a paz, para propõe repensar a catequese hoje.
todo o povo.
A ternura de Deus se revela no presépio.
Só a mansidão de Deus pode vencer a nossa
arrogância. Paz na terra àqueles que, sem ar-
rogância, se veem carentes do amor compas- Vendas: (11) 3789-4000
sivo e salvador de Deus. 0800-164011
O Menino do presépio é a manifestação SAC: (11) 5087-3625
nº- 312

da graça salvadora de Deus. Aquele que teve V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL


como berço um cocho e teve a cruz como lei- paulus.com.br

ano 57

to de morte, ele é que nos revela a graça sal-


vadora de Deus, ele é que mostra à humani-
dade o carinho de Deus, ele é que nos revela

Vida Pastoral

como é gratuita a salvação. O anjo do Senhor

61
diz aos pastores que nasceu um salvador para de alguém sem ter de justificar seu ato. Somos
eles, um salvador para os últimos da socieda- tentados a imaginar Deus como um rei orien-
de. Mas de onde virá o salvador dos pastores? tal das Mil e uma noites, cuja riqueza é inco-
Não é em um palácio que vão encontrá-lo. mensurável. Não. Deus é frágil e pobre como
Num palácio, os pastores nem poderiam en- o Menino nascido num refúgio de animais.
trar. Só mesmo numa estrebaria eles vão en- Somos tentados a imaginar Deus ao lado dos
contrar o seu salvador. ricos e poderosos. Não. Ele é reconhecido Sal-
A pobreza é o sinal da salvação que chega. vador dos pobres pastores, dormindo num
Isso abala os critérios da nossa sociedade hu- cocho, não em um berço de ouro.
mana, contrasta com a mentalidade reinante, Ele é a fala de Deus. A fala eterna: ante-
vai contra a corrente do pensamento único. rior à criação e a fala que agora se manifesta.
Isso não combina com a maneira atual de ce- Ele é a fala e é o Filho. Se Deus havia falado
lebrar o Natal. Choca. Incomoda. Mas é o fato por meio dos profetas, agora nos fala direta-
incontestável que celebramos esta noite. mente no Filho, que é a sua fala. Ele é o Filho
Na missa celebramos aquele que teve que nos faz filhos, nascidos de Deus, livres de
como berço um cocho e por leito de morte a qualquer escravidão. Ele é o Filho que realiza
cruz. Nasceu na estrebaria, não num berço o que a Lei manda, mas não faz. Ele é o Filho
de ouro. Celebramos como ele assume a mal- reclinado à direita do Pai, que nos faz a exe-
dição que era a cruz a fim de abrir-nos o ca- gese do Deus que ninguém jamais viu.
minho da vida, da salvação.
Ele vem ao nosso encontro não numa II. Comentários
“Noite feliz” que cantamos, nem apenas na aos textos bíblicos
comunhão ritual de que participamos. Ele 1. I leitura: Is 52,7-10
vem ao nosso encontro em tudo e todos os O poema lido na primeira leitura de hoje
que encontramos. canta a esperança próxima do fim do cativeiro
da Babilônia e a volta para Jerusalém ou Sião.
Natal do Senhor – Missa do dia Feliz é o mensageiro que traz a notícia da liber-
25 de dezembro dade e do retorno à pátria! Que belos são os pés

O pobre menino daquele que vem ligeiro, trazendo a Boa-nova!


O que ele anuncia é que agora Deus reina.

é a fala de Deus Talvez seja um dos primeiros empregos


na Bíblia da expressão anunciar a Boa-nova,
evangelizar. O verbo hebraico utilizado che-
I. Introdução geral gou à nossa língua por meio do árabe, lín-
As leituras da missa do dia do Natal nos gua irmã do hebraico. No hebraico, a raiz
dizem quem é esse Menino nascido na extre- verbal é vsr. Ela chegou para nós na palavra
ma pobreza. É a comunicação eterna de Deus, “alvíssaras”, usada classicamente para falar
que acampa no meio de nós para caminhar da recompensa de quem traz boas notícias.
conosco. É a fala, a palavra, a sabedoria, o pro- Alvissarar é dar boas notícias; alvissareiro é
nº- 312

jeto de Deus que existiu antes de o mundo ser quem dá boas notícias ou faz boas previ-
criado. O Menino nascido no estábulo é quem sões. O grego e o latim traduziram esse ver-

ano 57

nos explica como é o Deus invisível. bo por evangelizar. E aqui o Evangelho ou


Somos tentados a imaginar um Deus todo- notícia alvissareira é o fim do cativeiro e o
-poderoso como os césares, que podiam, com retorno a Jerusalém, sinal de que Deus vol-

Vida Pastoral

um simples gesto, decretar a vida ou a morte tou a reinar.

62
O poema se desenvolve imaginando a realizou de uma vez por todas a purificação
chegada dos exilados de volta a Jerusalém. As que todos os anos os judeus celebravam no
sentinelas da cidade são os primeiros a ver. dia da expiação.
Ao verem o grupo de exilados que retornam, Agora, porém, ressuscitado, ele está recli-
estão vendo frente a frente Javé de volta para nado à direita do Pai no banquete celeste, em
Sião: é a salvação, a vitória de Javé acontecen- lugar superior a todos os outros habitantes
do. Seus gritos de alerta se transformam em do céu. Esse Jesus morto e ressuscitado, que
algazarra de alegria, em cânticos e dança. Até teve como berço um cocho e como leito de
as ruínas da cidade deserta são convidadas a morte a cruz, fala-nos de Deus e da sua salva-
jubilar com o alegre coro. É Javé que arrega- ção. É nele que Deus se revela. Acima de to-
çou as mangas para enfrentar as nações e sal- dos os outros profetas, ele é a Fala definitiva
var o seu povo. É a sua esperada salvação que do Pai. Não precisamos de outros profetas,
chega inesperada. basta Jesus para nos falar de Deus.

2. II leitura: Hb 1,1-6 3. Evangelho: Jo 1,1-18


O texto da segunda leitura não é uma O evangelista colocou na abertura do seu
carta ou epístola; costumeiramente chamado Evangelho um hino da sua comunidade, que
de homilia, é apenas um texto exortativo di- é, como nas grandes obras musicais, o que se
rigido a judeu-cristãos. chama de ouverture. Apenas dá as primeiras
Com a destruição de Jerusalém, no ano notas, passando brevemente por alguns dos
70, pelas forças romanas comandadas por motivos mais significativos da obra.
Tito, os judeu-cristãos consideravam ter O hino já era estruturado de acordo com
perdido o que tinham de melhor e mais a retórica semita (o paralelismo quiástico ou
atraente: as celebrações festivas e o culto no cruzado), em que o primeiro tópico está em
Templo. Pensavam também em abandonar o paralelo com o último, o segundo com o pe-
cristianismo, um pouco descrentes de tudo. núltimo, e assim por diante. Podemos com-
O escrito pretende reanimá-los e fazê-los pará-lo a um sanduíche, aqui bem grande:
entender que Jesus realiza tudo o que espe- nos dois extremos, duas fatias de pão, depois
ravam de melhor e supera o que tinham de duas fatias de queijo, duas folhas de alface,
mais valioso. duas fatias de tomate etc. e, no centro, a car-
Eles valorizavam muito a Bíblia, a palavra ne ou presunto, o que é mais suculento.
de Deus que lhes chegou por meio dos profe- O evangelista apenas acrescentou ao hino
tas, os quais falaram aos seus antepassados duas referências a João Batista, que não era a
em nome de Javé. Assim é que o escrito co- luz, como poderiam pensar discípulos seus,
meça lembrando que Javé nos fala hoje, já mas, ao contrário, testemunhou que Jesus,
não por meio de um intermediário, mas por que veio depois, é anterior a ele. No entanto,
seu próprio Filho. Esse Filho é também a Pa- o evangelista fez isso respeitando a estrutura
lavra, a fala, a sabedoria de Deus existente anterior do hino. Inseriu as duas observações
antes da criação do mundo e por meio de sobre o Batista em dois pontos que se corres-
nº- 312

quem o próprio mundo foi criado. pondiam, mantendo inalterado todo o res-
Ele é a Palavra, a Fala, o Resplendor, a tante do poema. Fez como se, no nosso gran-

ano 57

Revelação, a Comunicação de Deus. Essa sa- de sanduíche, colocasse mais duas rodelas de
bedoria, esse projeto de amor é que sustenta ovo, uma de um lado e outra do outro. Basta
o universo. Presente neste mundo, com sua observar que, retirando as duas referências

Vida Pastoral

morte de cruz ele desfez os laços do pecado, ao Batista, a sequência das ideias corre me-

63
lhor. Não é difícil notar neste esquema a es- Verbo é quem pratica, realiza, faz (o mesmo ver-
trutura do hino: bo utilizado para dizer que a Palavra criou o
Na Criação Na Nova Criação mundo) o amor e a fidelidade (B’). Se ninguém,
O VERBO O FILHO nem Moisés, viu a Deus, foi o Filho que – agora
A - em Deus A’ - no Pai reclinado à direita do Pai, voltado para o colo
(vv. 1-2) (v. 18) do Pai – nos explicou quem é Deus (A’).
B - na Criação B’ - Na Graça
III. Pistas para reflexão
(v. 3) (v. 17)
O Menino nascido no estábulo é quem
C - luz para os C’ - plenitude nos explica como é o Deus invisível. Ele é a
homens (vv. 4-5) para nós (v. 16) fala de Deus. A fala eterna: anterior à criação e
D - o Batista D’ - o Batista a fala que agora se manifesta. Ele nos fala ain-
(vv. 6-8) (v. 15) da hoje, basta prestar atenção, estar alertas.
E - vem ao mundo E’ - encarna-se Ele é a fala e é o Filho. Se Deus havia fala-
(vv. 9-11) (v. 14) do por meio dos profetas, agora nos fala dire-
F - e deu-lhes o tamente no Filho, que é a sua fala. Ele é o Fi-
poder de se torna- lho que nos faz filhos, nascidos de Deus, livres
rem filhos de Deus de qualquer escravidão. Ele é o Filho que rea-
liza o que a Lei manda, mas não faz. Ele é o
O centro do hino, a carne ou o presunto do Filho reclinado à direita do Pai que nos faz a
nosso sanduíche, é o tópico “deu-lhes o poder exegese do Deus que ninguém jamais viu.
de se tornarem filhos de Deus”. Esse é o ponto É preciso vencer a tentação de ver Deus
de chegada, a dignidade de filhos de Deus para no poder como os poderes podres deste
os que creem em Jesus. Até aí, o Verbo, a Pala- mundo, de ver Deus nas grandezas monu-
vra, a Fala, a divina Sabedoria de Deus, antes mentais de pés de barro deste mundo, de
do mundo, já estava voltada para Deus (A). Foi ver Deus nos espetáculos fúteis e enganado-
ela que criou o mundo e nada se fez sem ela (B). res deste mundo. É preciso aprender a ver
Era a luz e a vida para a humanidade (C), e essa Deus em Jesus. Só ele, nenhum imperador
luz vem ao mundo, que não a acolhe (E). Até deste mundo, nos revela quem é Deus.
então, o mundo, eles, a humanidade. Que belos são os pés daquele que vem li-
Depois o hino se volta para nós, que aco- geiro trazendo a Boa-nova! O que ele anuncia
lhemos o Verbo-Filho. O Verbo encarnado que é que agora Deus reina. O reinado de Deus se
veio participar do nosso êxodo – literalmente, manifesta quando os cativos deste mundo ad-
“acampou entre nós” – é o Filho, cuja glória vi- quirem a liberdade, os desalojados voltam para
mos, cheio de amor e fidelidade (E’). Recebe- casa, os expatriados voltam à sua cidade. A
mos da sua plenitude (C’) e ele nos faz cumprir Boa-nova, o Evangelho, é que Deus liberta os
a Lei de Deus, pois Moisés, que queria ver a face cativos e repatria os exilados, deixa a todos li-
de Deus, mas não a viu, apenas trouxe a Lei. O vres e em casa.
nº- 312

O Domingo – Celebração da Palavra: O objetivo deste periódico é celebrar a


presença de Deus na caminhada do povo de Deus e servir às comunidades eclesiais na


ano 57

preparação e realização da Liturgia da Palavra. Ele contém as leituras litúrgicas de cada


domingo, proposta de reflexão, cantos do Hinário litúrgico da CNBB e um artigo que

Vida Pastoral

trata da liturgia do dia ou de algum acontecimento eclesial.

64
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