Você está na página 1de 138

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE PSICOLOGIA E CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

DISCURSOS SOBRE A LEITURA


ANÁLISE DA POLÉMICA EM TORNO DO
PLANO NACIONAL DE LEITURA

Manuel Filipe Leal Conceição

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

Área de especialização em Educação e Leitura

2006
2

UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE PSICOLOGIA E CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

DISCURSOS SOBRE A LEITURA


ANÁLISE DA POLÉMICA EM TORNO DO
PLANO NACIONAL DE LEITURA

Manuel Filipe Leal Conceição

Orientador: Professor Doutor Jorge do Ó

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

Área de especialização em Educação e Leitura

2006
3

Liberdade

Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.


Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...


Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto


É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa
4

Resumo

A dissertação tem por objecto de estudo «Os discursos sobre a leitura veiculados por textos
surgidos na comunicação social a propósito do Plano Nacional de Leitura». O texto está or-
ganizado em torno de quatro capítulos. Num primeiro capítulo é definido o enquadramento
teórico e metodológico, que tem na Análise Crítica do Discurso (ACD) o seu elemento estru-
turante. No segundo capítulo é feita uma abordagem ao tema do discurso sobre a leitura a
partir de uma revisão da bibliografia sobre o assunto. Num terceiro capítulo, tendo como
quadro teórico de referência a ACD, o autor aborda um conjunto de dezasseis artigos numa
dupla perspectiva. Numa primeira perspectiva, analisando o discurso sobre a leitura confor-
me um conjunto de temas-chave: o fenómeno de não-leitura; os estatutos das leituras e dos
leitores; o papel da escola e o estatuto do professor; o papel da biblioteca e o estatuto do
bibliotecário; a relação leitura, desenvolvimento, cidadania. Numa segunda perspectiva, ana-
lisando o discurso sobre a leitura numa lógica de polémica, recenseando o posicionamento
dos envolvidos perante: o Plano Nacional de Leitura, a intervenção estatal, os outros envol-
vidos na polémica. O autor constata que existe um discurso sobre a leitura que é dominante,
nomeadamente entre a elite cultural que tem nos jornais o seu principal espaço de opinião.
Esse discurso condiciona fortemente (de um ponto de vista ideológico) a definição das polí-
ticas nacionais de leitura, das quais o Plano Nacional de Leitura é um exemplo. Outra cons-
tatação do autor é sobre a existência de uma tensão entre os discursos e as práticas em
torno da leitura. Numa lógica de investigação-acção, o autor posiciona-se sobre a forma a
de ultrapassar esta tensão defendendo que é necessário mudar os discursos e mudar as
práticas em torno da leitura.

Palavras-chave
Discurso sobre a leitura / Plano Nacional de Leitura / Análise Crítica do Discurso / Leitura
pública / Desenvolvimento do leitor / Bibliotecas públicas / Bibliotecários
5

Abstract

The object of this dissertation thesis deals with ―the discourse about reading, in texts pub-
lished by the Media about the National Reading Plan‖. This work is divided in four chapters.
The first will focus about the theoretical and methodological framing of the subject, having in
mind the Critical Discourse Analysis (CDA), as its structural element. The second chapter will
try to approach the reading discourse theme through a literature review on the subject. In the
third chapter, having CDA as theoretical framework, the author refers to a set of sixteen arti-
cles on two perspectives. The first, analyses the discourse about reading through a set of
key-subjects: the non-reading phenomenon; the position status between reading and read-
ers; the school role and the teacher status; the library role and the librarian status; the rela-
tionship between reading, development and citizenship. The second perspective, analyses
the discourse about reading under a polemic logic, examining the intervenients point of view
of the National Reading Plan and the State intervention. The author states that there is a
dominant discourse about reading, mainly out of the cultural elite, which use the newspapers
as their ground for their opinions. This discourse, strongly limits (from an ideological point of
view) the definition of the national reading policies, which the National Reading Plan is an
example. The other evidence is the existence of a tension between the discourses and the
reading practice. In a investigation-action logic, the author suggests ways of overcoming this
tension by saying that it‘s necessary to change both the discourses as the practices about
reading.

Key words
Discourse about Reading / National Reading Plan / Critical Discourse Analysis / Public Read-
ing / Reader Development / Public Libraries / Librarians
6

Agradecimentos

A produção de uma dissertação de mestrado é um percurso de reflexão lento e sinu-


oso que acarreta em si mesmo expectativas, descobertas, frustrações, avanços e recuos.
Todavia, é um percurso que não fazemos sós. Gostava pois de agradecer a todos os que
partilharam este percurso.

Aos colegas da Rede de Bibliotecas Municipais de Oeiras que me acompanham na


aventura diária de transformar as bibliotecas públicas em instituições vivas, fazendo da leitu-
ra uma das suas mais profundas razões de ser e de estar.

Aos colegas do mestrado, pela troca de ideias e de experiências. Pelas conversas de


circunstância, que foram criando entre nós um espírito de camaradagem.

Aos docentes do Mestrado em Ciências de Educação – especialização Educação e


Leitura, pelos conhecimentos transmitidos, pelos estimulantes debates e pela generosidade
colocada na relação humana. Ao Professor Doutor Justino de Magalhães, pela forma empe-
nhada e dedicada com que tem dirigido o Mestrado. Ao meu orientador, Professor Doutor
Jorge do Ó, por me ter aberto novas perspectivas para reflectir criticamente sobre a minha
prática profissional.

Last but not least. Um agradecimento muito especial à Tatiana, por ter acreditado em
mim, por ter insistido e persistido. Pelas muitas sugestões e pela troca de impressões. Tam-
bém pela forma paciente e diligente com que fez a revisão do texto. À Diana e ao Lucas um
pedido de desculpas pelo tempo roubado.
7

Sumário

Resumo ............................................................................................................. 4

Abstract .............................................................................................................. 5

Agradecimentos ................................................................................................. 6

Sumário ............................................................................................................. 7

Introdução .......................................................................................................... 9

1. Enquadramento teórico e metodológico .................................................. 12

1.1. Definição do objecto de estudo........................................................................... 15

1.2. Objectivos da investigação ................................................................................. 16

1.3. Quadro teórico de referência .............................................................................. 16

1.4. Definição do corpus documental......................................................................... 24

1.5. Estabelecimento de uma grelha de análise ........................................................ 26

2. Discursos sobre a leitura .......................................................................... 29

2.1. O discurso sobre a leitura estrutura-se em torno da não-leitura.......................... 29

2.2. Os estudos desmentem o discurso sobre a leitura dominante ............................ 31

2.3. O estatuto das leituras e dos leitores assentam em juízos de valor .................... 33

2.4. O discurso sobre a leitura dominante tem uma matriz ideológica ....................... 36

3. Análise do corpus documental ................................................................. 42

3.1. O Plano Nacional de Leitura ............................................................................... 42

3.2. Análise dos temas-chave.................................................................................... 43

3.3. Análise da polémica ........................................................................................... 63

4. Leitura: entre os discursos e as práticas.................................................. 78

4.1. Do excesso dos discursos à pobreza das práticas ............................................. 78

4.2. Mudar os discursos, mudar as práticas .............................................................. 85

Conclusão ........................................................................................................ 97
8

Bibliografia ..................................................................................................... 100

Anexo 1: corpus documental ......................................................................... 104

Anexo 2: documentos complementares ........................................................ 132


9

Introdução

A dissertação de mestrado que agora se apresenta surge no âmbito do Mestrado em


Ciências da Educação – Educação e Leitura, realizado na Faculdade de Psicologia e Ciên-
cias da Educação da Universidade de Lisboa.

A produção desta dissertação de mestrado foi assumida como uma oportunidade


única para poder encetar uma reflexão crítica sobre a nossa prática profissional, colocando
um especial enfoque nas problemáticas relacionadas com a leitura. Essa reflexão crítica
procurou cruzar duas perspectivas complementares: numa primeira perspectiva (de enfoque
local), partiu do ponto de vista do profissional responsável pela concepção, implementação e
avaliação de projectos de promoção da leitura desenvolvidos nos últimos vinte anos em di-
versas bibliotecas públicas portuguesas (Setúbal, Alcácer do Sal, Vendas Novas e Oeiras);
numa segunda perspectiva (de enfoque nacional), partiu do ponto de vista do observador
atento às políticas nacionais de leitura que têm na implementação da Rede Nacional de Bi-
bliotecas Públicas, no Programa Nacional de Promoção da Leitura e no Plano Nacional de
Leitura algumas das suas mais substantivas expressões.

Interessava-nos mormente analisar a relação paradoxal existente entre os discursos


e as práticas que envolvem a leitura, que podem ser recenseados tanto ao nível dos deciso-
res de topo (responsáveis políticos e responsáveis institucionais) como ao nível dos profis-
sionais no terreno (bibliotecários e professores). Esse interesse decorre da constatação que,
num país onde não existe um corpus teórico-prático consolidado em torno das problemáti-
cas da leitura, se assista a uma clara preponderância dos discursos sobre as práticas.

Escolha do tema

A escolha do tema da dissertação (Discursos sobre a leitura: análise da polémica em


torno do Plano Nacional de Leitura) obedeceu a razões de ordem afectiva e a razões de
ordem metodológica.

Em primeiro lugar, porque foi no âmbito de um projecto de promoção da leitura reali-


zado na Biblioteca Municipal de Oeiras (Café com Letras) que José Saramago se pronunci-
ou acerca da inutilidade do Plano Nacional de Leitura (PNL). Estas afirmações, efectuadas
na véspera da apresentação pública do PNL (1 de Junho de 2006), acabariam por desenca-
dear uma forte polémica que envolveu a maior parte dos fazedores de opinião da imprensa
portuguesa.
10

Em segundo lugar, porque o PNL se constitui como a mais recente iniciativa estatal
de grande dimensão em prol da leitura, o que nos permitiria analisar os pressupostos teóri-
cos e metodológicos que subjazem às politicas nacionais de leitura extraindo-os ao discurso
oficial sobre a leitura veiculado pelos decisores políticos e pelos decisores institucionais.

Em terceiro lugar, porque os diversos artigos de opinião que surgiram nos meios de
comunicações social (a pretexto do PNL) eram susceptíveis de serem integrados num cor-
pus documental consistente, delimitado no tempo e mutuamente referenciado. Esses artigos
de opinião poderiam ser analisados de uma forma muito profícua pois continham os grandes
temas-chave que consubstanciam o discurso sobre a leitura e deram uma dimensão pública
ao debate em torno da leitura.

Em quarto lugar, porque se constatou, através da análise preliminar dos artigos de


opinião, que estávamos perante um discurso sobre a leitura que consegue exercer o seu
domínio devido a dois factores: por ser veiculado nos meios de comunicação social por co-
nhecidos fazedores de opinião; por se sobrepor a outros possíveis discursos veiculados pe-
los especialistas ou pelos profissionais que abordam as questões ligadas à leitura.

Estrutura do texto

Estruturámos o texto em quatro capítulos: Capítulo 1 – Enquadramento teórico e me-


todológico; Capítulo 2 – Discursos sobre a leitura; Capítulo 3 – Análise do corpus documen-
tal; Capítulo 4 – Leitura: entre os discursos e as práticas. No final, para além da bibliografia,
anexamos os textos que compõem o corpus documental que foi alvo da nossa análise.

No Capítulo 1 são apresentadas as grandes opções teóricas e metodológicas que


efectuámos. Começamos por definir, no ponto 1.1, o objecto de estudo e, no ponto 1.2., os
objectivos da investigação. No ponto 1.3, apresentamos de forma sucinta o quadro teórico
de referência (análise crítica do discurso) que suporta a nossa investigação fazendo também
a ponte para a abordagem ao discurso polémico. No ponto 1.4, procedemos à enunciação
dos critérios que utilizámos para constituir o corpus documental e indicaremos os documen-
tos seleccionados. Por fim, no ponto 1.5, apresentamos a grelha que utilizámos para a aná-
lise do discurso sobre a leitura presente no corpus documental.

No Capítulo 2, iremos referenciar os grandes temas ligados ao discurso sobre a leitu-


ra. Para tal utilizaremos como fio condutor um artigo da Associação de Leitura do Brasil
(Múltiplos objectos, múltiplas leituras). Serão também convocados outros autores e outras
perspectivas. O capítulo foi organizado em torno dos grandes temas: a crise da leitura, os
sintomas, as causas e as consequências; os factos e os argumentos que fundamentam o
discurso dominante e o discurso alternativo; os diferentes estatutos atribuídos às leituras e
aos leitores; a intervenção estatal e sua fundamentação ideológica.
11

No Capítulo 3, procedemos à análise do corpus documental segundo duas perspecti-


vas. Numa primeira perspectiva, analisamos o discurso sobre a leitura segundo um conjunto
de temas recorrentes: o fenómeno de não-leitura; os estatutos das leituras e dos leitores; o
papel da escola e o estatuto do professor; o papel da biblioteca e o estatuto do bibliotecário;
a relação leitura, desenvolvimento, cidadania. Numa segunda perspectiva, analisamos o
discurso sobre a leitura segundo uma lógica de polémica, recenseando o posicionamento
dos actores-chave perante: posicionamentos face ao PNL e posicionamentos face à inter-
venção estatal. Com esta segunda perspectiva de análise tentaremos caracterizar a institu-
cionalização do discurso dominante, a dinâmica das relações de poder e a matriz ideológica
que subjaz ao discurso dominante sobre a leitura.

No Capítulo 4, procedemos a uma reflexão crítica sobre a relação paradoxal que se


estabelece entre os discursos e as práticas ligadas à leitura. Este posicionamento crítico em
tudo é devedor à análise crítica do discurso. No ponto 4.1, partiremos de um artigo de Antó-
nio Nóvoa (Os professores na virada do milénio: do excesso dos discursos à pobreza das
práticas) para analisar as tensões excesso-pobreza existentes entre os discursos e as práti-
cas ligadas à leitura. No ponto 4.2, apresentarmos a perspectiva do investigador sobre a
mudança dos discursos e, paralelamente, apresentarmos a perspectiva do bibliotecário so-
bre a mudança das práticas.

No final, anexámos todos os documentos que constituem o corpus que foi alvo da
nossa análise crítica do discurso. Tendo em atenção a diversidade de origens dos documen-
tos (artigos de opinião publicados na imprensa, posts colocados em blogs, notícias publica-
das na imprensa), procedemos à sua conversão para formato de documento Word e à sua
formatação uniforme, de modo a facilitar a sua citação e a uniformizar a mancha gráfica.
12

1. Enquadramento teórico e metodológico

Em 1986 foi constituído um Grupo de Trabalho, por despacho da Secretária de Esta-


do da Cultura (Teresa Patrício Gouveia), a que foi incumbida a tarefa de definir as bases de
uma política nacional de leitura pública, a qual assentaria ―fundamentalmente na implemen-
tação e funcionamento regular e eficaz de uma rede de bibliotecas municipais, assim como
no desenvolvimento de estruturas‖ que, a nível central e local, mais directamente as pudes-
sem apoiar. (Despacho nº 3/86, de 11 de Março).

No 1º Relatório apresentado pelo referido Grupo de Trabalho, sugeriram-se medidas


imediatas de intervenção, bem como orientações conceptuais e programáticas. Assim, o
Instituto Português do Livro e da Leitura desenvolveu e aplicou desde 1987 um plano de
leitura pública, através do apoio à criação de bibliotecas municipais. Este plano foi directa-
mente inspirado no exemplo francês das bibliotecas de leitura pública, tendo sido importa-
dos os modelos de organização espacio-funcionais que estiveram na base da constru-
ção/adaptação dos edifícios.

Todavia, a implementação da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP) ficou


tão-somente por um registo de construção/recuperação de edifícios tendo sido descurada a
criação de uma visão estratégica e de uma filosofia de funcionamento adequadas à realida-
de portuguesa. O substrato técnico, político e ideológico, que suportava o conceito de leitura
pública em França1 perdeu-se no processo de transplante para Portugal. O conceito de leitu-
ra pública não foi suficientemente assimilado, reflectido e debatido por uma nova geração de
bibliotecários recém chegados à profissão por via dessas novas bibliotecas municipais. Co-
mo consequência da não consolidação do conceito de bibliotecas de leitura pública, a rela-
ção umbilical entre as bibliotecas públicas e a leitura pública foi progressivamente perdendo
terreno, ao ponto do conceito inicial de «bibliotecas de leitura pública» (de matriz francesa)
ter sido substituída pelo conceito de «bibliotecas públicas» (de matriz anglo-saxónica).

Note-se ainda que os políticos da tutela e os decisores de topo adoptaram, ao longo


dos anos, um discurso triunfalista (validado internacionalmente pelo facto da RNBP ser con-
siderada um caso exemplar). Esta retórica estatal fez desviar o enfoque sobre o deficiente
funcionamento das bibliotecas públicas portuguesas. Em muitos casos, depois de inaugura-
das, as novas bibliotecas públicas apresentavam limitações estruturais no seu funcionamen-

1 Sobre a matriz técnica, política e ideológica do conceito de leitura pública em França, leia-se a este propósito o artigo de Marine de
Lassalle ―Les paradoxes du succès d‘une politique de lecure publique » in Bulletin des Bibliothèques de France. Paris : BBF, 1997. T 42, nº 4, p.
10-17.
13

to (falta de recursos humanos qualificados, falta de verbas para actualização de colecções,


deficiente prestação de serviços ao público, falta de programas de promoção da leitura,
etc.).

Em 1996, um Grupo de Trabalho, nomeado para o efeito pelo Ministro da Cultura


(Despacho nº 55/95, de 12 de Dezembro), apresentava o «Relatório sobre as Bibliotecas
Públicas em Portugal», no qual se procedia a uma reflexão sobre o contexto — nacional e
internacional — e se propunham novas linhas de acção (atendendo sobretudo às recentes
inovações tecnológicas) para o desenvolvimento futuro da RNBP, a promover pelo Instituto
Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB), cuja lei orgânica aguardava publicação.

Na altura foram tomadas em consideração diversas inovações tecnológicas. Estas


estavam relacionadas com o armazenamento e a disponibilização da informação em suporte
digital, com os novos documentos multimédia e com o advento da Internet. O referido Rela-
tório concluía que, continuando a ser fundamentais as funções básicas de promoção da lei-
tura e do acesso à informação, para que a biblioteca pública as pudesse desempenhar ca-
balmente seria necessário que os respectivos serviços utilizassem as tecnologias modernas
apropriadas, como recomendava o Manifesto da Unesco sobre as bibliotecas públicas, na
sua versão de 1994.

Nota-se a partir deste relatório uma inflexão estratégica na forma de pensar as biblio-
tecas públicas portuguesas: a tónica deixa de ser colocada na leitura pública e passa a ser
colocada na sociedade de informação. A leitura é arredada dos discursos doutrinais e pro-
gramáticos que enquadram o desenvolvimento das bibliotecas públicas, tornando-se uma
referência meramente residual. Um novo aparato conceptual surge dando expressão uma
nova visão de biblioteca pública (porta de acesso local à sociedade de informação) que as-
sume a informação como conceito estruturante e as tecnologias de informação e comunica-
ção como o seu instrumento privilegiado.

Curiosamente, é neste contexto que surge o Programa Nacional de Promoção da


Leitura, que dá corpo, pela primeira vez, à implementação efectiva de uma política de leitura
pública em Portugal. Uma mesma instituição (IPLB) adopta duas linhas de rumo estratégico
aparentemente contraditórias: bibliotecas públicas versus promoção da leitura. Os documen-
tos doutrinários e programáticos e as posturas institucionais dos decisores de topo são tes-
temunhos destes discursos diversos e tantas vezes opostos. As bibliotecas públicas portu-
guesas chegavam a uma encruzilhada.

Quando partimos para a produção desta dissertação de mestrado era nossa intenção
fazer a análise das dinâmicas de aproximação/afastamento entre os conceitos de biblioteca
pública e de leitura pública, adoptando uma abordagem de carácter diacrónico balizada cro-
14

nologicamente entre os anos de 1986 e 1996. No entanto, esta abordagem deparou-se com
diversas dificuldades de ordem teórica e metodológica, que passamos a enumerar.

Por um lado, a dificuldade de definir clara e inequivocamente um objecto de estudo


que fosse passível de ser abordado no âmbito de uma dissertação de mestrado. Entre as
várias possibilidades inventariadas destacamos algumas: O desenvolvimento das bibliotecas
públicas durante o período entre 1986 e 1996? A história das políticas governamentais para
a leitura pública? Os hábitos de leitura dos leitores de uma biblioteca pública? Os projectos
de promoção da leitura realizados pelas bibliotecas públicas? Todas estas abordagens eram
interessantes, mas não eram essencialmente aquilo que nos interessava investigar. Assim
sendo, como poderíamos definir um objecto de estudo onde fosse possível abordar as apro-
ximações/afastamentos entre leitura e biblioteca? Como poderíamos investigar os pressu-
postos que estavam por detrás das visões e das decisões estratégicas?

Por outro lado, a dificuldade de escolher uma abordagem metodológica que permitis-
se a recolha, o tratamento e a interpretação de dados, de uma forma válida de modo a sus-
tentar uma série de conclusões credíveis. Eram várias as possíveis abordagens metodológi-
cas: A realização de inquéritos. A realização de entrevistas. A análise documental. A obser-
vação directa. Estas metodologias são habitualmente utilizadas no âmbito de investigações
que são realizadas tendo por objecto a leitura pública ou as bibliotecas públicas. Todavia,
era por demais óbvio que a metodologia a utilizar estava totalmente dependente do objecto
de estudo que fosse abordado.

À medida que efectuávamos a pesquisa bibliográfica e a leitura dos textos seleccio-


nados fomos dando conta que, em Portugal, com a excepção dos relatórios dos grupos de
trabalho anteriormente referidos e da produção editorial de um número muitíssimo reduzido
de profissionais (do qual destacamos o nome de Henrique Barreto Nunes), não existe um
corpus teórico-prático onde se possa alicerçar uma reflexão crítica sobre a relação entre
leitura e biblioteca em Portugal.

Este vazio pode ser constado pela ausência: de documentos de enquadramento (le-
gislação aplicável às bibliotecas públicas, documentos programáticos para a promoção da
leitura, etc.); de uma reflexão e discussão profissional (falta de produção editorial de matriz
técnica, inexistência de encontros especializados sobre o tema, etc.); de uma avaliação das
práticas e dos resultados (não existe uma cultura de avaliação dos projectos e das acções,
não são identificadas e disseminadas boas práticas); uma abordagem teórica e metodológi-
ca (são poucos os estudos de âmbito académico que cruzem leitura e biblioteca, são poucos
os investigadores especializados nestas áreas).

Tal vazio torna-se ainda mais evidente quando se compara a produção editorial naci-
onal com a produção editorial internacional. São inúmeros os exemplos: França (com as
15

reflexões e debates em torno das políticas de leitura pública); Inglaterra (com a emergência
de uma nova abordagem à leitura na biblioteca expressa no conceito do desenvolvimento do
leitor); Espanha (com a reflexão e debate em torno das práticas da animação da leitura);
América Latina (com o Brasil, a Argentina, a Colômbia, a lançarem iniciativas nacionais em
torno dos eixos leitura – desenvolvimento – cidadania)2.

Assim sendo, perante este vazio, onde poderíamos procurar os pressupostos e os


fundamentos que sustentam a definição das políticas nacionais de leitura? A nossa percep-
ção foi a de que devíamos analisar os discursos veiculados pelos actores-chave que estive-
ram por detrás das grandes opções estratégicas, mas, na ausência de documentos progra-
máticos ou de intervenções públicas por parte daqueles, como poderíamos fazê-lo? Ainda
colocámos a hipótese de analisar alguns dos textos edificadores do discurso sobre a leitura
em Portugal (Manifesto A Leitura Pública em Portugal de 1983; Manifesto da Unesco sobre
as bibliotecas públicas de 1994; Manifesto Leitura, Liberdade, Cidadania de 1996). Mas veri-
ficámos que esta abordagem seria bastante redutora, devido ao escasso número de docu-
mentos e sua dispersão temporal e devido ao facto de serem textos retóricos.

Só muito recentemente surgiu a oportunidade que esperávamos. Estamos a falar da


apresentação pública do Plano Nacional de Leitura (PNL) e da polémica que se gerou em
torno do deste nos meios de comunicação social. Foi então possível criar um enfoque para a
nossa investigação, a partir do qual estabelecemos: o objecto de estudo; os objectivos da
investigação; o quadro teórico de referência; o corpus documental; a grelha de análise; a
abordagem da polémica. Tudo isto enquadrado pelo quadro de referência teórico e metodo-
lógico que está ancorado na análise critica do discurso.

1.1. Definição do objecto de estudo

Tendo por base o enquadramento anteriormente efectuado, assumimos como objec-


to de estudo «Os discursos sobre a leitura veiculados por textos (que constituem o nosso
corpus documental) surgidos na comunicação social a propósito do lançamento do Plano
Nacional de Leitura».
A definição deste objecto de estudo tem duas implicações metodológicas: não pre-
tendemos estudar o PNL propriamente dito (expresso no relatório-síntese) mas os artigos de
opinião, editoriais, entrevistas e posts em blogs, produzidos em torno da sua apresentação;
não pretendemos enquadrar a nossa análise dentro do contexto escolar mas sim no contex-
to mais geral da opinião pública veiculada pelos fazedores de opinião.

2
Veja-se a este propósito: PEÑA, Luís; ISAZA, Beatriz Helena – Una región de lectores: análises comparado de planes nacionales de
lectura en Iberoamérica. Colômbia: CERLALC, 2005. 223 p. ( http://www.cerlalc.org/region_lectores.pdf)
16

1.2. Objectivos da investigação

Tendo em atenção a abordagem ao objecto de estudo anteriormente definido, assu-


mimos os seguintes objectivos para a nossa investigação:

 Encetar uma nova abordagem na investigação das problemáticas da leitura (com


enfoque nos discursos sobre a leitura) a partir dos contributos teóricos e metodo-
lógicos da análise crítica do discurso;

 Caracterizar, sucintamente, os temas-chave do discurso sobre a leitura, efectu-


ando uma revisão bibliográfica dos trabalhos publicados em Portugal e no Es-
trangeiro sobre o tema;

 Analisar os textos sobre o PNL segundo duas perspectivas: enumerando a pre-


sença/ausência de um conjunto de temas-chave; recenseando o posicionamento
dos autores envolvidos na polémica;

 Realizar uma reflexão crítica (na perspectiva do investigador e na perspectiva do


profissional) sobre a relação existente entre os discursos e as práticas que se es-
truturam em torno da leitura;

 Estabelecer algumas linhas de continuação para o nosso trabalho, que extrava-


sem o âmbito desta dissertação, que nos permitam sustentar uma linha de inves-
tigação-acção em torno da leitura.

1.3. Quadro teórico de referência

Temos plena consciência da fragilidade do nosso domínio sobre o quadro teórico de


referência: Análise Crítica do Discurso (ACD). Todavia, não quisemos deixar de fazer um
primeiro esquisso de um mapa conceptual que possa ser utilizado para trilhar os caminhos
de futuro da análise crítica do discurso sobre a leitura. Para tal, iremos ancorar o nosso texto
em vários autores portugueses (Pedro, 1998; Nogueira, 2001; Gouveia, 2001; Coelho, 2004,
2005) e num autor estrangeiro de referência (van Dijk, 2005).

O que é a Análise Crítica do Discurso?

Apesar da complexidade das problemáticas envolvidas e das várias tendências que


lhe dão corpo, tentemos delinear uma primeira acepção que seja simultaneamente clara e
abrangente (Coelho, 2004):
17

«É por assim dizer uma forma de estudar o discurso como uma consciência e causa, a de revelar a for-
ma como a linguagem é usada e abusada na produção e reprodução do poder e da desigualdade soci-
al, fazendo-o sempre que possível a partir da perspectiva dos oprimidos (Fairclough e Wodak, 1997).».

Podemos constatar que existe uma relação umbilical entre três vectores (linguagem
– discurso – sociedade) que confluem num sujeito discursivo, que não é um agente passivo
e neutro mas sim um actor-chave na produção e reprodução dos discursos. Isto faz com que
a análise crítica do discurso (ACD) aborde a linguagem na sua dimensão de uso social, em
que o indivíduo surge como elemento de uma comunidade discursiva (Pedro, 1998: 21):

«Na Análise Crítica do Discurso (ACD), encontramos um processo analítico que julga os seres humanos
a partir da sua socialização, e as subjectividades humanas e o uso linguístico como expressão de uma
produção realizada em contextos sociais e culturais, orientados por formas ideológicas e desigualdades
sociais.».

Daqui decorrem algumas constatações sobre a ACD: é uma abordagem interdiscipli-


nar ao discurso; assume a linguagem como uma prática social; analisa como a dominação
se reproduz e resiste com os discursos; pretende aclarar os fundamentos ideológicos do
discurso; assume um posicionamento crítico face às desigualdades no acesso aos recursos
linguísticos e sociais. Acima de tudo, há que perspectivar a análise do discurso na sua di-
mensão teórica e metodológica.

O posicionamento crítico da ACD

Para melhores entendermos as especificidades da ACD, podemos também comparar


a sua abordagem crítica ao discurso em relação a outras abordagens à análise do discurso
(Pedro, 1998: 23):

«Todas as formas de análise do discurso tomam o texto como o domínio adequado da teoria e da des-
crição linguísticas. Em todas encontramos um interesse na compreensão de textos extensos, social ou,
pelo menos, culturalmente situados e uma atenção a aspectos sociais, co-textuais e culturais que permi-
tem a garantia de categorias de explicação para a descrição dos textos.

A ACD partilha estes objectivos com as diferentes abordagens da análise do discurso, visando dar con-
ta quer da estrutura interna quer da organização global dos textos. Mas, para além destes aspectos,
tem o objectivo de fornecer uma dimensão crítica à análise dos textos. Como nota Kress (1990: 85), ―os
praticantes da ACD têm, de forma explícita ou implícita, o objectivo político mais vasto de questionar as
formas dos textos, os processos de produção desses textos e os processo de leitura, juntamente com
as estruturas do poder que deram azo a esses textos‖.».

A assumpção da dimensão crítica remete a ACD para além de um mero programa de


investigação, reivindicando para si mesma um programa político (potencialmente polémico,
cientificamente consciente) (Pedro, 1998: 24):

«Como observa ainda Kress, ―a ACD afirma-se abertamente político e, portanto, potencialmente polémi-
co‖. Aliás, como observa, uma ciência livre de valores – e consequentemente, a-histórica – sempre foi, e
18

hoje é-o talvez ainda mais, profundamente questionável. Mas se a ACD se reclama de uma actividade
política comprometida, essa actividade não é menos adequadamente científica. É mesmo possível que
o seja mais ainda, dada a consciência que caracteriza a sua posição política, ideológica e ética.».

As implicações teóricas e metodológicas deste posicionamento crítico da ACD são


diversas. Entre as quais surge primeiramente uma abordagem supralinguística, que conside-
ra o contexto discursivo de uma maneira não restritiva, ou seja, interessa à ACD o uso da
linguagem em contextos diversos (político, comunicação social, económico, publicitário, etc.)
(Pedro, 1998: 20):

«A Análise Crítica do Discurso opera, necessariamente, com uma abordagem de discurso em que con-
texto é uma dimensão fundamental. Mas, ao contrário de outras abordagens, conceptualiza o sujeito
não como um agente com graus relativos de autonomia, mas como sujeito construído e construindo os
processos discursivos a partir da natureza de actor ideológico (cf., a este propósito, por exemplo
Fairclough 1989, 1992, Kress 1996, Pedro 1996-a e b, Wodak 1996).».

Surge também como estruturante a análise do discurso na perspectiva da identifica-


ção das desigualdades sociais decorrentes do exercício do poder social (Pedro, 1998: 25):

«Um dos objectivos da ACD é o de analisar e revelar o papel do discurso na (re)produção da domina-
ção. Dominação entendida como (van Dijk, 1993) o exercício do poder social por elites, instituições ou
grupos, que resulta em desigualdade social, onde estão incluídas a desigualdade política, a desigualda-
de cultural e a que deriva da diferenciação e discriminação de classe, de raça, de sexo e de caracterís-
ticas étnicas. (…) E embora estejam conscientes da importância das estratégias de resistência e desafio
no seio das relações de poder e de dominação e, portanto, da importância da sua análise e da inclusão
dessa análise numa teoria mais alargada do poder, do contra-poder e do discurso, a abordagem crítica
tem, até agora, preferido concentrar-se nas elites e nas estratégias que estas põem em funcionamento
para a manutenção da desigualdade.».

A manutenção dessas desigualdades passa pela reprodução de discursos formata-


dores da própria realidade social, para tal é fundamental o acesso, por parte das elites, aos
instrumentos institucionais de controlo do discurso (Pedro, 1998: 29):

«O poder e a dominação estão organizados e institucionalizados, implicando esta organização social,


política e cultural da dominação também uma hierarquia de poder, já que alguns membros de grupos e
de organizações dominantes assumem um papel especial no planeamento, na tomada de decisões e no
controlo das relações e processo de activação do poder. Estes grupos, necessariamente pequenos, são
entendidos na ACD como elites de poder, que se caracterizam por terem um acesso particular ao dis-
curso, já que, literalmente, são aqueles que mais têm a dizer. Elites são aqui conceptualmente entendi-
das em termos do seu poder simbólico (Bourdieu, 1982), medido nomeadamente pelos seus recursos
discursivos e comunicativos.».

O discurso é, deste modo, encarado como um factor estruturante das realidades so-
ciais, ou seja, o discurso estabelece uma relação umbilical com a estrutural social permitindo
a sua manutenção, inclusive nos seus desequilíbrios, desigualdades e relações dominado-
res/dominados (a que subjaz uma matriz ideológica) (Gouveia, 2000: 6):
19

«As práticas discursivas têm grandes efeitos ideológicos. Pelo modo como representam a realidade e
posicionam os sujeitos podem ajudar a produzir e a reproduzir relações de poder desiguais. A associa-
ção das questões de poder e de ideologia com o discurso é tornada evidente pelo carácter de princípio
estruturante da realidade que a este está associado: enquanto prática social, o discurso estabelece
uma relação dialéctica com a estrutura social, na medida em que se afirma como um dos seus princí-
pios estruturadores, ao mesmo tempo que é por ela estruturado e condicionado.».

Mas este autor vai mais longe ao afirmar que estrutura social e prática discursiva são
mutuamente dependentes (Gouveia, 2000: 6):

«Ou seja, a estrutura social é uma condição para a existência do discurso, mas é também um efeito de
tal existência: por um lado, o discurso é constrangido e formado por relações ao nível da sociedade, por
relações específicas a instituições particulares, por sistemas de classificação e por várias normas e
convenções, de natureza quer discursiva, quer não-discursiva, de tal forma que os eventos discursivos
variam, na sua determinação estrutural, de acordo com o domínio social particular ou enquadramento
institucional em que são gerados; mas, por outro lado, o discurso é um princípio estruturador, no senti-
do em que Foucault usa o termo discurso, i. e., os objectos, os sujeitos e os conceitos são formados
discursivamente. O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social
que, directa ou indirectamente, o modelam e constrangem: as suas próprias normas e convenções, as-
sim como as relações, identidades e instituições que lhe subjazem (cf. Fairclough, 1992: 63-64; Wodak,
1996: 15).».

ACD – Problematização teórica e a abordagem metodológica

Mas como é que se pode relacionar estas noções programáticas (como a dominação
e a desigualdade) com o desenvolvimento da análise? Entramos aqui na zona de confluên-
cia entre as dimensões teórica e metodológica da ACD (Pedro, 1998: 26):

«A relação entre macro-noções, como grupo, poder e dominação institucionais ou, mesmo, desigualda-
de social e micro-noções, como texto, fala ou interacção comunicativa, não é de fácil articulação. Daí
que se procure, na ACD, encontrar modos conceptuais para a resolução deste problema que é, simulta-
neamente, teórico, metodológico e analítico.».

A complexidade dos problemas sociais abordados pela ACD remete, necessariamen-


te para a elaboração de um aparelho teórico de grande sofisticação e complexidade. Toda-
via, ao contrário do que poderia ser expectável, a ACD liberta a análise de discurso dos
constrangimentos laboratoriais (próprios dos estudos linguísticos) para o estudar nas dimen-
sões sociais, psicológicas e cognitivas (Pedro, 1998: 27):

«De modo claro, como sugerimos atrás, o projecto teórico da ACD é fundamentalmente diferente de
formas de análise textual fundadas na noção de um sistema linguístico autónomo. Para a ACD, a ideia
de autonomia não faz sentido e a noção de sistema linguístico é, como referi anteriormente, bastante
problemática. A ACD trabalha considerando o linguístico no interior do social. No entanto, esta dimen-
são de foco central que o social tem na ACD não retira a atenção a outros aspectos do discurso, nome-
adamente as componentes psicológicas e de processamento do discurso.».
20

Não sendo um receituário, podemos referenciar uma série de critérios gerais que
norteiam os princípios teóricos da ACD (Pedro, 1998: 27):

«Determinados critérios dão corpo ao trabalho, politicamente engagé, da ACD. Digamos, com Kress
(1990: 85-86), que esses critérios são, em síntese e em termos gerais, os seguintes:

1. a linguagem é entendida como o primeiro e o mais importante tipo de prática social e, junto
com as imagens visuais, a música e os gestos, entre outros, é uma de entre muitas práticas
sociais de representação e significação;
2. os textos são entendidos como o resultado das acções de falantes e escritores socialmente si-
tuados, operando estes com graus relativos de possibilidades de escolha, sempre no interior
de estruturações de poder e dominação;
3. as relações dos participantes na produção dos textos são, em geral, desiguais e vão de esta-
dos, hipotéticos, de total igualdade à completa desigualdade;
4. os significados resultam da (inter)acção dos leitores e ouvintes com os textos – de género, por
exemplo – e a relações de poder que regulam essas interacções;
5. os traços linguísticos – enquanto signos –, a qualquer nível, são o resultado de processo soci-
ais, por esse motivo, conjunções motivadas de formas e conceitos e nunca conjuntos arbitrá-
rios de forma e significado;
6. também a qualquer nível, na sua ocorrência em textos, os traços linguísticos são sempre ca-
racterizados pela sua natureza opaca, também os textos partilham desta característica;
7. os utentes linguísticos, pelo seu posicionamento sociocultural, enquanto indivíduos socialmen-
te localizados, não têm acesso ao sistema linguístico como tal, mas apenas um acesso parcial,
selectivo e seleccionado a configurações particulares desse sistema. Em consequência, na
maior parte das interacções, os produtores textuais transportam diferentes disposições em re-
lação à linguagem, diferente conhecimento de sistemas de configuração diversa e diferente
conhecimento de formas textuais. Diferenças que devem ser entendidas na sua relação com os
posicionamentos diferenciados dos utentes linguísticos;
8. estes aspectos justificam a consideração de que a noção de sistema linguístico – à semelhan-
ça de outras noções, nomeadamente a de norma – seja muito problemática na ACD. E justifi-
cam ainda a visão implícita subjacente a estas considerações de um entendimento da lingua-
gem que tem sempre em consideração a história, quer a micro-história de uma interacção fala-
da quer as histórias mais vastas das instituições sociais e humanas;
9. a ACD apoia-se sempre em análises rigorosas e em descrições da materialidade da lingua-
gem.».

A ACD trabalha com uma grande diversidade de categorias descritivas e metodológi-


cas, dependendo dos autores que estamos a referenciar, todavia, todas estas abordagens
consideram o texto como a unidade linguística mais relevante. Decorre daí o princípio meto-
dológico de usar o texto como matéria de análise. No nosso caso a análise dos diversos, e
de cada um, dos textos que suportaram os discursos sobre a leitura a pretexto do lançamen-
to do Plano Nacional de Leitura.

A dimensão polémica dos artigos de opinião sobre o PNL


21

Quando analisamos os discursos sobre a leitura de âmbito mais restrito (âmbito aca-
démico ou âmbito profissional), constatamos que existem consensos básicos sobre os te-
mas abordados (crise da leitura, intervenção estatal, boas leituras / más leituras, clássicos /
best-sellers, estatuto do leitor e da leitura, pedagogia da leitura, etc.). Apesar de serem dis-
cursos compósitos, com diferentes graus de consistência, que são veiculados por comuni-
dades discursivas muito específicas (saliente-se o exemplo dos bibliotecários ou o exemplo
dos professores), o processo de debate surge mais como uma possibilidade de validação e
fixação do que como uma possibilidade de confronto. Isto fica-se a dever precisamente à
sua própria propensão para criar consensos (tentativa de escorar tomadas de posição cor-
porativas ou de sustentar pontos de vista científicos ou técnicos).

Todavia, no caso concreto que vamos analisar, ganha particular relevo a utilização
da comunicação social como espaço de debate generalista de âmbito público (com um cariz
marcadamente polémico), onde o que mais interessa é a veiculação de uma opinião pessoal
(Nogueira, 2001: 28):

«A controvérsia é a base desta quarta abordagem [Análise Crítica do Discurso], porque envolve o estu-
do do poder e da resistência, da contestação e da luta. A assunção básica é que a linguagem que está
disponível para as pessoas utilizarem permite e constrange, não só e apenas a expressão de ideias
mas também aquilo que as pessoas fazem. É através da linguagem que as pessoas são categorizadas,
são segregadas, consideradas diferentes, ―anormais‖ ―doentes‖, sendo que a própria linguagem dá valor
atribuindo existência ou negando essas categorizações.».

Mas, para além das opiniões pessoais de cada um dos intervenientes, interessa-nos
explorar o facto de que eles assumem um estatuto de porta-voz de uma corrente da opinião
pública, sendo este estatuto que lhes confere autoridade para defenderem o seu ponto de
vista. A dimensão polémica que os artigos consubstanciaram desde o início, permite-nos
também fazer a clivagem das posições pessoais em confronto, que muitas das vezes são
afirmadas por oposição, por negação e por confrontação com outras posições expressas
acerca do mesmo tema (Nachbauer, 2000: 123):

«Lorsque ces échanges laissent des traces dans les écrits, ces textes sont porteurs de sens et méritent
qu'on s'y attarde. L'affrontement des idées joue un rôle fondamental dans la construction du savoir en
éducation. Au sein des discours argumentés, le discours polémique révèle, à travers sa virulence, des
enjeux de première importance et permet de mieux comprendre les changements.».

Assim sendo, considerámos que, para além de analisarmos cada um dos textos per
si, seria interessante fazermos uma análise do corpus documental como um todo, referenci-
ando as aproximações/afastamentos e as continuidades/rupturas entre as várias posições
em confronto na polémica. Nesse sentido, partindo do quadro de referência teórico fornecido
pela análise crítica do discurso, partimos em busca de um complemento metodológico que
nos permitisse analisar mais profundamente as diversas dinâmicas da polémica em torno da
22

apresentação do Plano Nacional de Leitura que decorreram, em grande medida, na impren-


sa (Ramos, 1999):

«Os grandes jornais nacionais apresentam-se como o local estratégico da constituição do discurso polí-
tico-social, substituindo por vezes as instâncias oficiais, dando voz e acesso directo à opinião pública
aos políticos eleitos e aos diversos porta-vozes e líderes de opinião mais ou menos formalmente institu-
ídos.».

As polémicas, que se desenrolam nos meios de comunicação social, revestem-se de


um carácter único (Ramos, 1999):

«A polémica é, então, uma guerra metafórica, uma guerra em que a arma é a palavra e o seu suporte fí-
sico é, sobretudo desde 1820, o jornal.

O que define o discurso polémico é que o conjunto das suas propriedades semânticas, enunciativas e
argumentativas se encontra ao serviço de um objectivo dominante, o de desqualificar o objecto que
constitui o seu alvo, ―matar‖ metaforicamente o adversário discursivo. (...) Não é de admirar, portanto,
que alguns textos polémicos se revistam de um carácter por vezes excessivamente truculento, onde o
insulto pessoal substitui a defesa e ataque de ideias, onde a injúria se sobrepõe à argumentação.

A guerra metafórica ainda hoje se encontra presente nos seus semas inerentes:

a) a polémica é um objecto de natureza verbal, as armas a terçar são as palavras;

b) este objecto verbal é de natureza dialógica, implicando a existência de dois antagonistas;

c) o discurso é, assim, visto como um contra-discurso.».

O jornal (e cada vez mais os blogs) é o púlpito a partir do qual é possível aos fazedo-
res de opinião enunciarem de forma regular o seu discurso, consubstanciado principalmente
em artigos de opinião. A persistência das suas opiniões permite identificar uma matriz ideo-
lógica que subjaz sistematicamente às tomadas de posição sobre os mais diversos temas.
Essa característica permite antever algumas das posições futuras pois está aliada a uma
certa coerência interna, que em grande medida dá autoridade ao seu autor (Ramos, 1999):

«Toda a vida social, política na sua acepção ampla e primeira, se rege por relações de consen-
so/conflito. Também o jornal se define e pronuncia nesses termos, reflectindo uma parte substantiva da
imprensa actual sobretudo a relação de conflito com o poder, desvelando o atractivo lado negativo das
relações, explorando sentimentos de desconforto ou desagrado com a autoridade política, empolando
reacções comuns anti-governo. Daqui resulta a omnipresença do discurso polémico, enquanto discurso
desqualificante, discurso do conflito e da persuasão.».

Assim sendo, o texto de opinião, devido ao contexto em que surge, encerra em si


mesmo um posicionamento maniqueísta: ―estar contra‖ ou ―estar a favor‖; ―ser aliado‖ ou
―ser adversário‖ (Ramos, 1999):

«O discurso polémico reveste-se de um carácter maniqueísta, onde se define uma instância que con-
grega todas as qualidades e todas as virtudes, pertinentes ou não para o fim evocado, e uma outra (o
alvo definido) acusada, mais ou menos declaradamente, de simbolizar o oposto. Mesmo que sejam re-
23

feridos aspectos positivos do alvo, tal facto estará ao serviço de uma estratégia argumentativa que terá
sempre por fim a sua desqualificação, assim como a edificação de uma imagem de imparcialidade e jus-
tiça para o LOC (locutor).».

É precisamente este posicionamento maniqueísta que nos interessa analisar, estabe-


lecendo a relação com o nosso quadro teórico de referência, com o recurso a uma matriz
designada por ―quadrado ideológico‖ (van Dijk, 2005: 197):

«Esta estratégia de polarização – descrição do endogrupo positiva, e descrição negativa do exogrupo –


tem portanto a seguinte estrutura abstracta avaliativa, que podemos denominar de ―quadrado ideológi-
co‖:

 Enfatizar as nossas propriedades/acções boas

 Enfatizar as propriedades/acções más deles

 Mitigar as nossas propriedades/acções más

 Mitigar as propriedades/acções boas deles.».

Os meios de comunicação social, em particular os jornais, tornam-se num meio de


mediação entre as elites e a sociedade em geral construindo, sobre a forma de discursos,
uma visão dos factos que conduz à própria formatação ideológica da realidade que passa a
ser perspectivada segundo um conjunto predeterminado de finalidades, de valores e de po-
sições (Ramos, 1999):

«O jornal funciona como mediador cultural entre uma cultura ―de elite‖ e as culturas práticas e como
mediador ideológico. O discurso de opinião vulgariza temas até aí reservados a minorias (elites políti-
cas, económicas e culturais), construindo-se a partir de discursos já constituídos, discursos ―terceiros‖ e
assume-se como local estratégico de produção de realidade. Através da opinião dos porta-vozes, é cri-
ado um efeito de real discursivo: esse poder evocativo da linguagem cria realidade, na medida em que
condiciona a apreensão e compreensão dos factos pela opinião pública. A apreensão da realidade, a in-
terpretação que os indivíduos fazem dos estados de coisas é, assim, mediatizada pela visão subjectiva
dos líderes de opinião.».

Podemos pois afirmar que os discursos sobre a leitura, veiculados nos artigos de
opinião sobre o PNL, tentam, antes de mais condicionar as políticas nacionais de leitura de-
finidas pelo actual Governo, não tanto ao nível da sua definição mas ao nível da sua imple-
mentação, não tanto ao nível das suas intenções mas ao nível da avaliação dos seus resul-
tados, não tanto ao nível da sua refutação técnica e/ou metodológica mas ao nível dos seus
pressupostos sociais. São discursos de condicionamento, logo de exercício do poder. Não
nos podemos esquecer que muitos dos autores dos artigos estão inscritos em quadros ideo-
lógicos e políticos específicos (Ramos, 1999):

«O discurso de opinião e a inerente discussão levam vários actores sociais (no caso de que nos ocu-
pamos, os responsáveis políticos) a tomar partido, mesmo a alterar rumos de actuação, face à consa-
gração de um espaço público (o jornal) como representante da opinião pública. Se as instâncias políti-
24

cas constituem o verdadeiro destinatário dos artigos de opinião, que apresentam um discurso persuasi-
vo, e se este for de alguma forma eficaz, os resultados da sua acção terão de ser reconhecíveis. É sa-
bido o peso dos grupos de pressão junto das instâncias do poder, e a imprensa é frequentemente apeli-
dada de ―quarto poder‖, sobretudo pela capacidade de criar realidade, mediando/explicando o que acon-
tece, e por ser a imagem incarnada do poder delegado da opinião pública.».

1.4. Definição do corpus documental

A presença do Plano Nacional de Leitura na comunicação social teve dois tipos de


registos distintos mas complementares: através da cobertura noticiosa nos diversos meios
de comunicação social (imprensa, televisão, rádio); através da publicação de um conjunto
de textos de opinião pessoal (sobre a forma de editoriais, artigos de opinião, entrevistas,
cartas ao director, posts em blogs, etc.).

Tendo em conta o objectivo de estudo e os objectivos da investigação, decidimos


constituir o nosso corpus documental com base no conjunto de textos de opinião pessoal.
Por um lado, porque este tipo de textos tem uma maior perenidade temporal (Ramos, 1999):

«De todos os tipos de artigos jornalísticos, os artigos de opinião serão, provavelmente, os de maior es-
perança de vida. Enquanto que a notícia é tendencialmente uma pura descrição de determinado estado
de coisas, o artigo de opinião apresenta características próprias: baseia-se na realidade, nos aconteci-
mentos reais externos ao texto para, a partir deles, tecer comentários, explicar causas, relações e con-
sequências, criar casos políticos. É essa componente narrativa e criadora que foge à simples mostração
referencial do mundo e dos estados de coisas, para constituir comentário, definir valores, criar realida-
des. Mas continuarão todos marcados – fortemente marcados – pelo momento zero da sua enunciação,
o ponto de intersecção das linhas definidoras do campo enunciativo.».

Por outro lado, os textos de opinião pessoal (que gravitavam em torno do lançamento
do PNL) interessavam-nos particularmente porque através deles poderíamos analisar a ma-
triz ideológica do discurso sobre a leitura que é dominante (van Dijk, 2005: 187):

«De uma maneira geral, presumimos que os editoriais e os artigos de opinião na imprensa expressam
opiniões. Dependendo do tipo e da posição do jornal, as opiniões podem variar consideravelmente nas
suas pressuposições ideológicas. Esta formulação bastante familiar parece implicar que as ideologias
dos jornalistas influenciem de alguma forma as suas opiniões, as quais por sua vez influenciam as es-
truturas do discurso dos artigos de opinião».

Assim sendo, pesquisámos (com recurso privilegiado à web) sistematicamente textos


de opinião pessoal que se incluíssem nos seguintes critérios:

 Tivessem o Plano Nacional de Leitura como temática central

 Estivessem contidos num intervalo de tempo (Maio – Julho de 2006)

 Fossem representativos da diversidade de posições


25

 Participassem na polémica gerada em torno do Plano Nacional de Leitura

Na sequência desta pesquisa de textos para integrar no corpus documental, selecci-


onámos um conjunto diversificado, mas bastante consistente e mutuamente referenciado, de
textos (no Anexo 1 estão na sua versão integral). São os seguintes, por ordem cronológica
de publicação:

 MOURA, Vasco Graça – ―Português 1 X 2‖ in Diário de Notícias, 17 de Maio

 VALENTE, Vasco Pulido – “Os Violinos de Ingres‖ in Público, 21 de Maio

 VILARINHO, Fernando – ―Opinião acerca de uma crítica ao PNL‖ in Bibliotecas


em Portugal [blog], 22 de Maio

 MOURA, Vasco Graça – ―Quarenta e oito por cento‖ in Diário de Notícias, 31 de


Maio

 FERNANDES, José Manuel – ―Ler mais e mais… em casa‖ in Público, 2 de Ju-


nho

 VALENTE, Vasco Pulido – ―O eterno retorno‖ in Público, 3 de Junho de 2006

 FERNANDES, João Morgado – ―Ler e crescer‖ in Diário de Notícias, 4 de Junho

 COELHO, Eduardo Prado – ―Você quer um plano?‖ in Público, 5 de Junho

 VIEGAS, Francisco José – ―A leitura e a virtude cívica‖ in Jornal de Notícias, 5 de


Junho

 ABRANTES, José Carlos – ―O Prazer das Palavras‖ in Diário de Notícias, 5 de


Junho

 BUESCO, Helena Carvalhão – ―Carta ao Director‖ in Público, 6 de Junho

 SARAMAGO, José – ―Protagonismo para a Escola― [entrevista] in Jornal de Le-


tras, 7 de Junho

 MOURA, Vasco Graça – ―Os livros, pois‖ in Diário de Notícias, 14 de Junho

 PEDROSA, Inês – ―Em voz alta‖ in Expresso, Revista Única, 17 de Junho

 GERALDES, José – ―A paixão da leitura‖ in Urbi @ Orbi [Jornal Online da UBI],


20 de Junho

 BRÁS, Rui Manuel – ―O que vale o Plano Nacional de Leitura‖ in Jornal da Nova
Democracia [jornal on-line], 31 de Julho

Incluímos textos de autores menos conhecidos e sem um verdadeiro estatuto de fa-


zedores de opinião porque correspondiam aos critérios previamente estabelecidos para
26

além de proporcionarem um maior leque de perfis profissionais e de posicionamentos ideo-


lógicos.

Anexámos também (Anexo 2) outros textos que, não fazendo parte do corpus docu-
mental que será alvo da nossa análise, abordam questões directamente relacionadas com o
PNL:

 Discurso da Ministra da Cultura no Dia Mundial do Livro

 Notícia da Agência Lusa sobre as declarações de Saramago em Oeiras

 Discurso da Ministra da Cultura na apresentação do Plano Nacional de Leitura

Não incluímos estes textos no corpus documental pelas seguintes razões: no caso
dos discursos da Ministra da Cultura, porque são textos institucionais que, apesar de pode-
rem veicular uma opinião pessoal, estão condicionados à partida pelos objectivos circuns-
tanciais para que foram produzidos; no caso da notícia da Agência Lusa, porque tem um
carácter informativo que é completamente contrastante com o texto de opinião pessoal (Pe-
dro, 1998: 293):

«Quando assim definimos o texto informativo, queremos dizer que o entendemos como algo que, su-
postamente, estabelece (e se estabelece em) contraste com outros géneros, por exemplo, editoriais, en-
trevistas, comentários desenvolvidos pelos chamados «fazedores de opinião» – tão na moda também
entre nós – e outros.».

Refira-se ainda que todas as notícias que reproduziram as declarações de José Sa-
ramago na Biblioteca Municipal de Oeiras (fazendo-as chegar aos principais meios de co-
municação social portugueses, espanhóis e brasileiros), tiverem origem na peça da Agência
Lusa que, por sua vez, descontextualizava as declarações do escritor, amplificando o seu
alcance e envolvendo-as em polémica (basta referir que as declarações de Saramago foram
feitas na véspera da apresentação pública do PNL).

1.5. Estabelecimento de uma grelha de análise

O estabelecimento de uma grelha de análise foi um trabalho dialéctico (grelha-


análise-grelha): partimos para a análise dos textos com uma primeira versão da grelha, vol-
támos à reelaboração da grelha à medida que íamos analisando os textos, e assim sucessi-
vamente.
O processo de definição dos temas de análise foi difícil, pois a nossa tendência natu-
ral era a de criarmos um conjunto exaustivo de temas gerais para depois os especificar com
subtemas. Todavia, esta subdivisão criava falsas subordinações hierárquicas e espartilha-
27

mento de subtemas por vários temas gerais. Como consequência, optámos por proceder à
análise em duas perspectivas complementares.

Numa primeira perspectiva, analisamos o discurso sobre a leitura segundo um con-


junto de temas recorrentes:

 O fenómeno de não-leitura (=crise da leitura);

 Os estatutos das leituras e dos leitores;

 O papel da escola e da biblioteca;

 O estatuto do professor e do bibliotecário;

 A associação leitura, desenvolvimento, cidadania).

Numa segunda perspectiva, analisamos o discurso sobre a leitura segundo uma lógi-
ca de polémica, recenseando o posicionamento dos actores-chave perante:

 O Plano Nacional de Leitura,

 A intervenção estatal,

 Os outros actores-chave da polémica.

Com esta segunda perspectiva de análise tentaremos caracterizar a institucionaliza-


ção do discurso dominante, a dinâmica das relações de poder e a matriz ideológica que sub-
jaz ao discurso dominante sobre a leitura.
Temos consciência de que, apesar de não existir um modelo único para efectuar a
Análise Crítica do Discurso, existem um conjunto de critérios e de fases para proceder à
análise dos textos (Nogueira, 2001: 34):

«Apesar de não haver uma grelha estruturada e passos claramente definidos sobre como fazer análise
do discurso, Parker (1992) refere a possibilidade de se recorrer a um conjunto de critérios associados a
fases, que podem ajudar os analistas a começar a análise. Estes critérios não sendo rígidos são indica-
dores importantes. Apesar de haver análise do discurso que não recorre necessariamente aos últimos
critérios e fases, na Análise Crítica do Discurso estes são fundamentais e cruciais.

Critérios e Fases
Textos
1 – tratar objectos de estudo como sendo textos (colocados em palavras)
2 – explorar conotações, associação livre
Objectos
3 – procurar objectos nos textos
4 – tratar a fala acerca desses objectos como objecto de estudo
Sujeitos
5 – especificar sujeitos (pessoas, assuntos, etc.), como tipos de objectos no texto
6 – especular acerca de como eles podem ―falar‖
Sistema
28

7 – traçar uma imagem do mundo, redes de relações


8 – indicar as estratégias defensivas desses sistemas contra possíveis ataques
Ligações
9 – identificar contrastes entre formas de ―falar‖
10 – identificar pontos de sobreposição, fala dos mesmos objectos
Reflexão
11 – relacionar maneiras de falar para audiências diferentes
12 – escolher rótulos ou designações das formas de falar, os discursos
História
13 – analisar com atenção como esses discursos emergem
14 – questionar como os discursos contam a sua história acerca da sua origem
Instituições
15 – identificar instituições reforçadas pelos discursos
16 – identificar instituições que são atacadas pelos discursos
Poder
17 – analisar que categorias de pessoas ganham e perdem
18 – questionar quem os promoverá e quem se lhes oporá
Ideologia
19 – analisar como eles se ligam com outros discursos opressivos
20 – descrever como eles justificam o presente».

Tentaremos seguir estas várias fases e critérios na análise dos textos de opinião
pessoal que consubstanciam o nosso corpus documental.
29

2. Discursos sobre a leitura

Por vezes, durante um processo de produção de um texto, deparamo-nos com um


livro, com um artigo ou mesmo com uma frase, que se constitui como um verdadeiro fio de
ariane que nos auxilia a sair do labirinto das ideias e opiniões, das citações bibliográficas e
dos dados empíricos, que entretanto fomos acumulando de forma mais ou menos desorde-
nada.

No nosso caso esse papel foi desempenhado pelo artigo ―Múltiplos objectos, múlti-
plas leituras‖ da Associação de Leitura do Brasil (ALB)3. O contacto com este artigo permitiu-
nos estabelecer um paralelismo entre a situação brasileira e a situação portuguesa, criando
um distanciamento do olhar que nos levou a ver mais nítido o que antes era turvo.

Permitiu-nos também sistematizar um conjunto de ideias-chave relacionadas com o


discurso sobre a leitura, que irão funcionar como elementos organizativos deste capítulo: o
discurso sobre a leitura que é dominante estrutura-se em torno da não-leitura; os estudos
desmentem o discurso sobre a leitura que é dominante; a atribuição de estatutos às leituras
e aos leitores baseia-se em juízos de valor; o discurso sobre a leitura que é dominante tem
uma matriz ideológica. Vejamos cada uma destas ideias-chave seguindo muito de perto o
citado artigo.

2.1. O discurso sobre a leitura estrutura-se em torno da não-leitura

Apesar da leitura, no discurso sobre a leitura que é dominante, ter uma conotação
implícita extremamente positiva (ler = conhecimento; ler = auto-descoberta; ler = prazer; ler
= desenvolvimento; ler = cidadania), quando se fala sobre a dimensão social da leitura fala-
se pelo reverso, isto é, a não-leitura é assumida com uma clarividência irrefutável: ―Os por-
tugueses não lêem!‖ ou ―Os jovens não lêem!‖ são duas das afirmações mais usuais.

Esta ideia é reforçada negativamente através de uma dupla comparação: ―No es-
trangeiro lê-se mais do que em Portugal‖ ou ―No passado lia-se mais do que no presente‖.
Este discurso sobre a leitura é dominante e cria um estereótipo que pode ser rastreado nos
diferentes países, de Portugal a Espanha, de França a Inglaterra, da Colômbia ao Brasil
(ALB, 1999):

3
Associação de Leitura do Brasil – ―Múltiplos objectos, múltiplas leituras‖ in Portal das Letras. Consultado, no dia 17 de Agosto de
2006, no endereço: http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=artigos/docs/artigos1 .
30

«A sentença está dada: o brasileiro não lê. Em qualquer debate sobre leitura em encontros pedagógi-
cos, até mesmo em conversas informais aqui e ali, nas perguntas dos jornalistas aos especialistas, aí
está uma frase que não é difícil de ouvir. Ela tornou uma espécie de verdade inquestionável, marca da
falta de cultura, assim como outras do tipo ―o brasileiro não sabe votar‖.».

A constatação da não-leitura conduz ainda à tentativa de identificar as suas causas e


de vislumbrar as suas consequências, de modo a alterar essa realidade através de uma in-
tervenção deliberada, que pressupõe a possibilidade de se operar a mudança social subs-
tantiva enunciada pela comunidade discursiva dominante – elite cultural – (Furtado, 2000:
187):

«Mas é neste século XX, em que se assistiu no mundo ocidental a uma crescente preocupação com o
ensino formal, a uma progressiva erradicação do analfabetismo clássico, à tentativa de generalizar o
acesso à leitura e à reflexão sobre o conceito de biblioteca e suas missões nos novos tempos, que se
multiplicam os estudos, inquéritos e análises sobre a leitura e que, mais ou menos em uníssono, se
aponta para uma crise do livro, da edição e da leitura. Essa crise afectaria hoje uma grande variedade
de competências, de atitudes e de representações face à leitura, traduzir-se-ia em práticas cada vez
menos consolidadas e hábitos de familiaridade com o escrito cada vez mais escassos.».

Os dispositivos discursivos são calibrados de modo a perpetuarem uma perspectiva


cristalizada da realidade: a eterna crise da leitura. Para fundamentar o fenómeno da não-
leitura, este discurso sobre a leitura alinhava um conjunto de causas: baixo nível educacio-
nal da população, deficiência do sistema de ensino, falta de hábitos culturais, concorrência
da televisão e da internet, preço elevado dos livros, encerramento de editoras e de livrarias,
etc. Alerta também para as consequências nefastas de um novo fenómeno directamente
associado à não-leitura (analfabetismo funcional, iletrismo ou iliteracia): atrasos no desen-
volvimento económico e social do país, limitações ao desenvolvimento pessoal dos indiví-
duos, restrições ao pleno exercício da cidadania, etc. (Furtado, 2000: 187):

«Ainda mais, assistiu-se a uma súbita tomada de consciência de um «novo» fenómeno, com implica-
ções evidentes na dificuldade que percentagens significativas da população encontram em dominar as
competências da leitura, escrita e cálculo, apesar da frequência, na grande maioria dos casos, de, pelo
menos, a escolaridade mínima obrigatória. Essa realidade, designada por «analfabetismo funcional»,
«iletrismo» ou «iliteracia» (realidade e termos que mais adiante analisaremos), viria pôr em causa, se-
gundo Jean-Marie Besse, a ideia, então corrente nas sociedades pós-industriais, segundo a qual «a al-
fabetização generalizada e a escolarização tinham favorecido a emergência de uma referência cultural
comum à maioria da população, obrigando a uma interrogação sobre a homogeneidade das práticas
culturais e, particularmente, no que nelas tem a ver com a cultura escrita.».

Todavia, podemos questionarmo-nos sobre se existe verdadeiramente uma crise da


leitura, as suas causas e sobre as suas implicações (Basanta e Hernández, 2002):

«Hablar de la crisis de la lectura en medios profesionales resulta desde hace tiempo un tópico con de-
masiados lugares comunes. Si convenimos que la lectura está en crisis, vamos concretar el alcance del
término a su significado original de mutación, de cambio. Y vamos a partir de que hablar de una pobla-
31

ción lectora es, incluso en países como España, un fenómeno recientísimo. No puede olvidarse, al es-
tablecer y analizar los índices de lectura, que la escolarización universal de la población y la erradica-
ción del analfabetismo se alcanzan en países como Inglaterra a finales del siglo XIX, en España en los
años setenta del pasado siglo, y en muchos países del planeta son todavía una esperanza del XXI. Sin
una alfabetización generalizada es difícil pensar en una sociedad que mantenga una relación estable y
fluida con el libro y la lectura.

Cuando hablamos, alarmados, de la reducción o la trivialidad de las prácticas lectoras y nos parapeta-
mos en defensa de la lectura como un valor en peligro, puede ser que tan solo estemos desviando la
mirada del núcleo de un cambio en las prácticas de lectura, que conocen nuevas formas, nuevos espa-
cios, nuevas funcionalidades y nuevos sujetos.».

Resumindo, o discurso sobre a leitura que é dominante serve-se também da não-


leitura como justificativo para pedir a intervenção directa do Estado através dos seus múlti-
plos dispositivos (regulamentar o mercado editorial; apropriar os meios de comunicação so-
cial; reajustar o sistema de ensino; lançar campanhas, programas e planos de leitura). O
discurso sobre a leitura que é dominante é pois veiculado institucionalmente (pelo Estado,
pela Escola, pela Academia, etc.) e sanciona uma visão contaminada ideologicamente (Fur-
tado, 2000: 225):

«Referia-se, no início deste capítulo que, neste século XX, se tem apontado recorrentemente, para além
de uma crise do livro e da edição, para uma crise da leitura. Multiplicam-se, cada vez com maior regula-
ridade, os estudos, inquéritos e análises sobre a situação da leitura e, como escreve Martine Poulain,
lastima-se a diminuição dos hábitos de leitura, deplora-se o desinteresse dos jovens pela leitura, prediz-
se o fim do livro, alerta-se para os ―analfabetos do audio-visual‖ e desespera-se perante o fenómeno do
iletrismo nos países desenvolvidos. Mas ―serão novos estes receios? Serão novos estes discursos?
Não tanto como algumas Cassandras gostariam de fazer crer‖.».

2.2. Os estudos desmentem o discurso sobre a leitura dominante

No discurso sobre a leitura que é dominante prevalece uma visão de senso comum
que, apesar de desmentida pelos indicadores estatísticos e pelas conclusões dos estudos
sociológicos, persiste em ancorar-se nas ideias de não-leitura e de crise da leitura (Furtado,
2000: 199):

«Perante esta descrição algo cândida, e que nalguns passos se afasta completamente do que são as
posições gerais sobre as ameaças ao livro e à leitura, e refiro-me designadamente às provocadas pela
concorrência na ocupação dos tempos livres pelos novos meios de comunicação de massa, a conclusão
de Poulain é lapidar: ―os sociólogos, ao longo do século, vão levar a cabo pacientemente estudos para
chegar a conclusões comparáveis e a maior parte das vezes opostas ao ―senso comum‖ ou às vulgatas
de certos editores e de certos intelectuais. A leitura não lhes parece nem ameaçada nem em vias de
desaparecimento, as evoluções dos géneros de produção, dos modos de difusão, dos gostos e das prá-
ticas não apresentam sintomas de declínio.».
32

Na verdade, os estudos (nomeadamente os da sociologia da leitura) têm identificado


padrões recorrentes que pouco variam temporalmente e geograficamente. Estes resultados
remetem para uma maior complexidade das inserções sociais das práticas de leitura, que
variam em função da idade, do nível de escolaridade, do sexo, etc. Ou seja, não é possível
afirmar cabalmente «Os portugueses não lêem!» sem especificar de que portugueses se
está a falar (idade, sexo, profissão, habilitações, etc.) e de que tipo de leitura se trata (jor-
nais, livros, legendas de televisão, relatórios, etc.). Contextualizar as práticas sociais da lei-
tura é uma das formas de desconstruir o discurso sobre a leitura que é dominante (Furtado,
2000: 199):

«Quando se cruzam estes dados com as variáveis socioprofissionais habituais, manifestam-se certas
constâncias que ainda hoje nos são familiares: quanto maior o grau de educação formal maior o hábito
de leitura; quanto menor o rendimento maior a leitura exclusiva de jornais e a não leitura; o número de
leitores de livros cresce significativamente em função do aglomerado urbano; uma taxa de leitores de li-
vros (eventualmente associados à leitura de outros concorrentes impressos) mais forte nas profissões
liberais e quadros médios; é nas idades mais jovens que se encontram com maior frequência leitores de
livros; a leitura de livros denota uma relação mais forte com o impresso: por um lado, o leitor de livros lê
mais a imprensa e, por outro lado, pratica outras formas de ―lazer‖; por fim, compra-se mais do que se
lê. Poulain chama ao grosso destas conclusões a ―vulgata sociológica‖, tal a persistência com os resul-
tados semelhantes nos virão a acompanhar até hoje.».

Muitas das vezes, quem faz o exercício de desconstrução desse discurso, utiliza os
indicadores estatísticos como principais ferramentas: tiragens elevadas de livros (best-
sellers), aumento dos hábitos de leitura, aumento dos níveis de escolaridade da população,
expansão da rede de bibliotecas públicas e bibliotecas escolares, número de visitantes de
livrarias e de feiras do livro, etc. Citando o artigo (ALB, 1999):

«Basta examinar alguns números para ver a mesma realidade de outra maneira: dados oferecidos pela
Câmara Brasileira do Livro no Boletim da Bienal 98, nº 19, informam que um milhão e quatrocentas mil
pessoas visitaram a 15ª Bienal Internacional do Livro em São Paulo.

Outros números, tomados mais aleatoriamente da imprensa ou das próprias capas de livros, também
impressionam: exemplos de O Xangô de Baker Street. de Jô Soares, traziam, em junho de 1998, tarja
anunciando 4 milhões de livros já vendidos no Brasil. Na capa da 4ª edição, de 1996, do Manual do Esti-
lo e Redação de O Estado de São Paulo destacava-se que haviam sido vendidos mais de 500.000 mil
exemplares. Segundo a revista Veja de 15 de abril de 98, os oito livros publicados por Paulo Coelho fo-
ram comprados por 7 milhões de brasileiros; a mesma revista, em sua edição de 13 de maio de 98, no-
ticiava que O Mistério do Cinco Estrelas, de Marcos Rey, vendeu 1,1 milhão de exemplares desde
1980. Pesquisa desenvolvida no interior do projeto Memória de Leitura (IEL – UNICAMP) registra que
em 1996, lançavam-se, mensalmente, 35 títulos de séries como Sabrina, Bianca, Júlia, Momentos ínti-
mos.».

Todavia, o discurso sobre a leitura que é dominante contrapõe, emitindo um juízo de


valor sobre as leituras que são retratadas nos números: não interessa a quantidade da leitu-
ra (e dos livros) mas sim a qualidade da leitura (e dos livros). As leituras da maioria da popu-
33

lação são leituras fora do cânone literário, logo, de qualidade e de gosto duvidoso. Por isso,
apesar de se poder referir aumentos quantitativos nas práticas da leitura eles correspondem
a decréscimos qualitativos. Existe claramente um posicionamento ideológico: visitantes de
feiras do livro não é o mesmo que leitores de livros; compradores de livros não é o mesmo
que leitores de livros; leitores de jornais e revistas não é o mesmo que leitores de livros; lei-
tores de best-sellers não é o mesmo que leitores de clássicos; pequenos leitores não é o
mesmo que grandes leitores.

Assim sendo, em que terreno se enraíza o discurso sobre a leitura que é dominante?
Como se pode, apesar dos indicadores estatísticos e dos estudos sociológicos, sustentar a
ideia de não-leitura?

2.3. O estatuto das leituras e dos leitores assentam em juízos de valor

A resposta às duas questões anteriormente enunciadas liga-se aos diferentes estatu-


tos que se atribuem às leituras e aos leitores, que, por sua vez, são contrapostas segundo
juízos de valor: boas leituras versus más leituras; bons livros versus maus livros; bons leito-
res versus maus leitores. Voltemos ao artigo (ALB, 1999):

«De onde vem, então, a idéia de que a gente não lê, ou não gosta de ler? Para nós, há um equívoco no
modo de como se coloca a questão. O debate sobre leitura tem se centrado em torno de um certo tipo
de leitura e de leitor, o qual traria benefícios de toda ordem para as pessoas e para o país. Sem expli-
car de que leitura se fala e sem apoio de estudos objetivos sobre as práticas sociais de leitura, constrói-
se um discurso que, ignorando os modos de inserção dos sujeitos nas formas de cultura, estabelece em
torno da questão da leitura juízos do tipo ―bom‖ ou ―mau‖. Em outras palavras, torna-se ler como verbo
intransitivo, associando-se a esta representação valores sempre positivos, como ―Ler é bom‖, ―ler torna
os sujeitos críticos‖, ―ler faz com que se escreva melhor‖.».

As leituras efectivamente praticadas pela maioria dos leitores são exercidas fora do
cânone (escolar, académico, literário), como tal não só não são legitimadas pelo discurso
sobre leitura dominante como são apontadas como exemplos cumulativos de uma degene-
rescência social e cultural. A leitura exercida deste modo é uma não-leitura, o que a torna
culturalmente desprezável e discursivamente marginalizável; paradoxalmente, o não exercí-
cio da leitura encerra em si mesmo uma possibilidade de redenção, que se prenuncia numa
visão salvífica (combate ao iletrismo, conversão à leitura, promoção da leitura, etc.). Volte-
mos ao artigo (ALB, 1999):

«Entretanto, tais virtudes só são garantidas àqueles que lêem os livros certos, os livros positivamente
avaliados pela escola, pela academia, por uma certa tradição literária, ainda que em nenhum momento
se explicitem que critérios sustentam estas avaliações. Curiosamente, o preenchimento do objeto só se
faz ao se discutirem as leituras repudiadas: ―os alunos só se interessam por gibis‖, ―as meninas só que-
34

rem ler novelas sentimentalóides‖. Assim, a leitura efetivamente observada é negada em nome de uma
certa leitura que jamais se define positivamente. Todos os demais escritos – mesmo que materialmente
idêntico aos livros certos – são não-livros. Da mesma forma, aqueles que os lêem – embora leiam – são
não-leitores, pois lêem o que não deveriam ler. Por se realizar em torno a objetos desvalorizados, tais
leituras são apagadas em favor da preservação da leitura mítica.».

O estabelecimento de um cânone é também uma forma de ditar as leituras prescritas


e as leituras proscritas, logo de criar dinâmicas de pertença e de exclusão. Esta lógica pode
ser transposta para um plano maniqueísta: bons livros + bons leitores = boas leituras versus
maus livros + maus leitores = más leituras. Neste sentido, torna-se possível categorizar leitu-
ras e leitores, atribuindo-lhes diferentes estatutos e inserindo-os numa hierarquia social e
culturalmente legitimada. A subtileza máxima no estabelecimento desta hierarquia revela-se
na aplicação incisiva de um duplo estatuto: ledores (os que exercitam a leitura ao nível da
descodificação) versus leitores (os que exercitam a leitura ao nível da compreensão).

O próprio discurso que é dominante é modelador da percepção social que existe em


torno das leituras e dos leitores, permitindo a manutenção do status quo. Só assim se com-
preende que, apesar dos números contraporem factos a argumentos, o discurso sobre a
leitura que é dominante continue a prevalecer.

Mesmo as bibliotecas públicas, enquanto instituições estatais concebidas e geridas


pela elite cultural, incorporam essa visão assumindo claramente a necessidade da prescri-
ção das boas leituras, efectuada através da selecção de bons livros para integração e dis-
ponibilização aos seus leitores e do aconselhamento de boas leituras (Furtado, 2000: 197)

«Salienta particularmente [Walter Hoffman], nesta linha de investigação, que o que importa não é que
as pessoas leiam, mas que leiam bons livros e que disso tirem benefícios (esta perspectiva vai ser, co-
mo veremos adiante, um persistente ponto de controvérsia a partir de então, não apenas no que se re-
fere a discordâncias teóricas, mas com consequências práticas, em particular no que isso implica, por
exemplo, em termos de constituição e manutenção do acervo das bibliotecas públicas e de uma filosofia
da sua missão perante os seus leitores e a comunidade em geral). Para esse fim, é necessário que os
bibliotecários, esses conselheiros de leitura, conheçam a psicologia dos leitores e lhes proponham livros
que lhes convenham, correspondendo aos seus gostos e às suas capacidades, cruzando o estudo dos
leitores com o dos livros publicados para que a partir daí possam confeccionar «catálogos» adaptados
aos diferentes tipos de leitores.».

Levada às últimas intenções, essa vontade de prescrever as boas leituras pode dar
azo a abordagens como a da bibliopsicologia (Furtado, 2000: 193):

«Roubakine, que começou por ser bibliotecário e veio a ser criador do Instituto de Bibliopsicologia, tem
pretensões científicas e acredita poder fabricar o homo lector, ou pelo menos vir a conhecer as suas
menores atitudes, desejos e comportamentos. Qual é o seu objectivo? Fornecer a esse homo lector os
tipos de obras que corresponderão à sua psicologia a partir de um repertório bibliográfico mundial.».
35

As bibliotecas públicas também têm variado a sua posição sobre o estatuto a atribuir
às diversas leituras: para informação, para instrução, para recreação. (Dionísio, 2000: 33):

«Mas a valorização da leitura ultrapassa geralmente as dimensões funcionais, pragmáticas (dimensões


muitas vezes causadoras de medidas redutoras onde prevalece a concepção de que aos sujeitos deve
apenas exigir-se o saber ler em função das suas necessidades ocupacionais) e atinge as práticas de lei-
tura gratuita, de lazer. Apesar de esta ser apenas uma de entre as várias modalidades de leitura, não
deixa de ser por ela que muitas vezes se afere o nível cultural de uma sociedade e, por isso, não é raro
que seja na leitura como ocupação de tempos livres, como acto voluntário, que se pensa quando se er-
guem as vozes denunciando a falta de hábitos neste domínio. E, mesmo aqui, não podemos esquecer
que, quando se fala de não leitores, de atitudes positivas para com os livros e a leitura, estamos, ainda
muitas vezes, colocados ao nível de uma determinada leitura, designadamente, a leitura da literatura na
sua modalidade de apropriação estética (ainda que nem sempre isso seja trazido à discussão, por pres-
suposto, certamente).».

A forma como a leitura de recreação tem sido encarada ao longo dos tempos é para-
digmática do posicionamento institucional das bibliotecas públicas perante os seus leitores.
Não é de estranhar que, ainda hoje, os bibliotecários se sintam mais habilitados (diríamos
mesmo, mais compelidos) a referenciar uma obra de carácter técnico ou científico (de uma
área que não dominam) do que a aconselhar uma obra literária (apesar de já a poderem ter
lido). Para além da questão ética (pudor em influir nos gostos do leitor) há uma questão ide-
ológica: a leitura de recreação tem uma conotação negativa, principalmente agora que está
associada aos best-sellers e à literatura light (Furtado, 2000: 226):

«Esta desconfiança em relação à leitura de romances, considerada como uma leitura de pura evasão,
vai ser um tema persistente ao longo do século e encontrar um acolhimento assaz favorável junto dos
bibliotecários. Tenha-se em conta a regra sistematicamente adoptada pelas bibliotecas públicas no sen-
tido de regulamentar o empréstimo. Como refere Poulain, essa atitude ―é característica de uma visão
técnica de leitura partilhada por muitos bibliotecários: o romance, a literatura, repousam, não educam e
não formam o cidadão moderno e informado. O interesse exclusivo ou demasiado forte pelo romance é
sinal de uma imaturidade do leitor que não lê para se instruir‖.».

Mais do que as ―boas leituras‖ ou as ―más leituras‖ teremos que reequacionar o con-
ceito de leitura em função da sua polissemia, ou seja, falar de leituras e não de leitura (Ba-
santa e Hernández, 2002):

«Porque lo que parece cada vez más claro es que el concepto de lectura es víctima, con demasiada
frecuencia, de un considerable reduccionismo semántico. Las más de las veces, asociamos lectura a la
lectura de impresos y, de manera más específica, a lectura de libros, o más bien de libros de creación li-
teraria. Demasiado a menudo, consideramos lector tan solo a quien lee una obra literaria, despreciando
como utilitaria o banal gran parte de las prácticas de lectura. Sin embargo, la realidad nos muestra que
la lectura no es un todo integrado y unívoco. Una cosa es leer un poema y otra, muy distinta, leer el ma-
nual de instrucciones de un electrodoméstico; leer una revista y una novela; una bibliografía y una sin-
fonía; un informe estadístico y una película; un cómic y una disposición gubernamental sobre impuestos;
son distintas prácticas, pero, si son ―lectura‖ al fin y al cabo, tal vez deberíamos comenzar a hablar de
36

distintas tipologías de lectura y abrir el término lectura a un concepto capaz de ayudarnos a comprender
lo que pasa hoy día en el ámbito de la comunicación humana.

Así pues, deberíamos empezar a pensar en la lectura como el proceso de descodificación de cualquier
mensaje humano, al margen del código lingüístico y del soporte tecnológico en que se exprese y trans-
mita, y al margen del contenido y forma de la información que contenga, sea ésta El Quijote, un contrato
de arrendamiento, un informativo televisivo o un bolero. Cada vez se hace más difícil hablar de lectura
sin tener en cuenta la lectura audiovisual o la lectura en los nuevos soportes electrónicos. En especial
en la información digitalizada, la imagen, el sonido y el texto se articulan en un mismo mensaje o con-
junto informativo que genera nuevas formas de lectura sobre las que será preciso reflexionar, máxime
cuando el lector interactúa con esa información, decidiendo extensión, formato, diseño, funcionalidad o
soporte final.».

2.4. O discurso sobre a leitura dominante tem uma matriz ideológica

A enunciação de uma não-leitura só é imaginável por oposição a um ideal de leitura


que se projecta numa visão utópica: a sociedade leitora. Nesta visão a leitura (a par da es-
crita) é um substrato civilizacional que sustenta a ideia de modernidade (homem leitor = ho-
mem moderno) e fundamenta uma virtude cívica (homem leitor = cidadão consciente)
(Mäkinen, 2004: 2):

«The modern man can, among many other features, such as rationality and individuality, be defined also
as a reading man possessed by the desire to read, a concept almost non-existent in premodern times.
‖The desire to read‖ should be seen as a historically conditioned social construction, not as an inherent
attribute of man. It didn‘t attain all people at once, but wandered under a long period of time like a conta-
gious disease from a country to another and from a group of people to another.».

Numa primeira abordagem podemos dizer que fora desta sociedade leitora estão
todos os que não se inscrevem no conceito delimitador de homo lector, entendido aqui como
o praticante das boas leituras (canónicas). Isto sublinha a ideia de que as boas leituras per-
mitem a inclusão dos sujeitos leitores nesta dita sociedade e de que, por outro lado, as más
leituras tornam proscritos aqueles que as praticam. Nesta perspectiva o discurso sobre a
leitura, mais do que modelador, é um regulador social.

A leitura pode, efectivamente, contribuir para uma elevação social ou espiritual, toda-
via, também pode servir para a subversão social ou para a perversão espiritual. Um bom
leitor não é necessariamente um bom cidadão, embora seja essa a afirmação primordial, em
termos ideológicos, do discurso sobre a leitura que é dominante. Esta afirmação torna-se
necessária para regular os processos de exercício do poder e para validar o processo de
prescrição de leituras (Furtado, 2000: 226):
37

«Na verdade, como já sublinhámos, não existe a leitura, mas sim leituras, diversas, plurais e, sobretudo,
possuindo diferentes legitimidades. Por isso sempre houve leituras ‖perigosas‖, só que não historica-
mente fixadas, sendo diferentes em diferentes momentos e contextos. Mas o que é certo é que ―ler po-
de ser perigoso‖. Assim, na transição entre o século passado e este nosso século, quando a ―alfabetiza-
ção era generalizada, quando se assistia a um desenvolvimento sem precedentes da imprensa e da
edição que possibilitava a abertura de todo um mercado de novos leitores‖, quando se pode constatar
que ―toda a gente lê‖, aumenta o receio de ―esses novos alfabetizados se dedicarem a más leituras‖.
Importa assim que, depois de ter ensinado a ler esses novos leitores, ―neófitos e influenciáveis, se lhes
ensinasse a ler bem e indicar-lhes o que deviam ler.».

Todavia, quando elevada a um estatuto de elemento civilizador, a leitura arrasta con-


sigo uma visão ideológica, pois é assumida como um elemento regulador tanto ao nível indi-
vidual como ao nível social (Furtado, 2000: 193):

«Disso depende ―a evolução intelectual moderna da humanidade‖. E, assumindo que só o livro poderá
salvar a humanidade, é na bibliopsicologia [conceito introduzido por Roubakine] que se encontra o meio
de ―humanizar a humanidade‖, pois ela ―indica a via que leva às profundezas da alma humana, profun-
dezas onde se encontram a consciência moral, a verdade e, em geral, o próprio princípio da vida espiri-
tual‖ (...)».

Podemos ainda constatar que a comunidade discursiva que veicula o discurso sobre
a leitura que é dominante (a elite cultural) transporta um projecto social (sociedade leitora),
que passa pela afirmação do homo lector (Britto, 2004):

«O mito do sujeito leitor resulta de um tipo de discurso que, sem explicitar o que se entende por leitura e
sem apoiar-se em estudos objectivos sobre as práticas sociais de leitura, ignora os modos de inserção
dos sujeitos nas formas de cultura e estabelece em torno da questão da leitura juízos de valor do tipo
―bom‖ e ―mau‖. Com isso, vulgariza noções vagas sobre a importância de ler que, funcionando como
adágios dificilmente negáveis, porque validáveis na mesma medida em que podem ser refutados inclu-
sive e preenchíveis com valores diversos de acordo com o arbítrio de quem o ouve, produzem um con-
senso aparente pouco interessante do ponto de vista da democracia social.».

A formulação da noção leitor ideal (homo lector) pela elite cultural serve mais os pro-
pósitos de um discurso marcado ideologicamente do que como uma tipificação de um leitor
real que possa ser resgatado a um estatuto de menoridade cultural e social. Mais do que a
redenção pela leitura interessa a emancipação do sujeito leitor (ALB, 1999):

«Na base destes discursos, estão relações de poder que necessitam reafirmar posições sociais, cultu-
rais e identitárias. A leitura realizada por muitos deve ser reconhecida como não-leitura, enquanto se
cria o mito de uma leitura redentora capaz de tornar os sujeitos melhores. ―Esquece-se‖ que a leitura
não é prática neutra, que no contato de um leitor com um texto estão envolvidas questões culturais, po-
líticas, históricas e sociais, que as diferentes leituras são condicionadas por diferentes formas de inser-
ção nas formas de cultura.».

Mas, não somente ao nível do adágio se faz a afirmação do homo lector, esta tam-
bém pode ser inscrita num âmbito científico, de que uma das primeiras formulações conhe-
38

cidas, no início do século XX, é a da bibliopsicologia. O seu fim último passava por conhecer
cientificamente o leitor real para o transformar num leitor ideal. Através deste movimento
seria possível as elites conduzirem as massas rumo a uma sociedade leitora. Este projecto,
para além da sua pretensa dimensão científica tinha uma dissimulada dimensão ideológica
(Furtado, 2000: 193):

«(…) a bibliopsicologia ―recomenda que se estude mais e mais o leitor, e estudá-lo cientificamente, com
exactidão, com o apoio de todos os métodos que fazem a glória da ciência contemporânea: observa-
ções, experiências, hipóteses, deduções, verificações experimentais e outras, inquéritos estatísticos e,
por fim, análise matemática dos dados. Através do emprego do conjunto destes procedimentos poderão
assim introduzir-se ―correcções do leitor‖ rigorosas em todas as ciências filológicas, sociais e outras, em
todos os manuais escolares e em todos os livros destinados a meios determinados e, desse modo, es-
tudar a influência de qualquer discurso cristalizado enquanto função de um dado leitor‖. E, graças a esta
ciência, as elites poderão cumprir o seu dever de ―conduzir as massas populares, instrui-las e guiá-las
espiritualmente.».

A transformação do leitor real em leitor ideal transporta consigo a promessa de con-


cretização de um ideário que perspectiva a sociedade leitora como uma sociedade solidária
(Britto, 2004):

«Uma das características mais marcantes da representação de leitura do senso comum é a idéia de que
as pessoas, se verdadeiras leitoras, ficam melhores, libertas de um estado de alienação, o que possibili-
ta o seu engajamento, a partir da vontade despertada pela própria leitura, em movimentos de solidarie-
dade ou de transformação da sociedade. Criam-se em torno desta ideia correntes de leitores e movi-
mentos por leitura que em muito se assemelham aos grupos de proselitismo religioso ou de acção be-
neficiente e organizam-se campanhas de leitura, à semelhança de clubes de assistência e filantropia,
para levar aos presídios, hospitais, parques, etc., para que todos fiquem melhores.».

Mas mesmo ao nível da sociedade terrena em que vivemos é possível identificar a


leitura como forma de inclusão, ou, pelo menos, de não exclusão, visto que podemos operar
dentro dos parâmetros ditados por uma sociedade letrada, que exige o domínio da leitura,
da escrita e do cálculo, para um pleno usufruto dos seus mecanismos e das suas possibili-
dades (Dionísio, 2000: 35):

«Na controvérsia há quem afirme que ―ler humaniza o homem‖, que ―somos um pouco mais humanos –
compreenda-se, um pouco mais solidários com a própria espécie (um pouco menos ―animal selvagem‖)
do que antes, depois de termos lido Tchekhov. Independentemente de ser Tchekhov ou não o objecto
da leitura, ler é sempre participar num acto social e, por isso, a incapacidade de ler constitui um factos
de exclusão social (de que atrás se falava), agora vista a dois tempos: por um lado, estamos impedidos
de participar nesse acto social e, por outro lado, não podemos aceder a outros modos de ver o mundo.

Apesar de, por vezes, se pretender apresentar a leitura e, por ela a literatura, como uma panaceia, ela
não resolve problemas sociais, o que ela faz é possibilitar o envolvimento e o esclarecimento. Ler é um
processo activo e criativo e também um constante juízo de valor, residindo neste ―a chave para a igual-
dade e a chave para a liberdade. O seu fim é a manutenção da consciência consciente que é a base da
liberdade individual e da dignidade humana‖ (Frey, 1998, p. 100).».
39

Numa segunda abordagem podemos perspectivar os movimentos de emancipação


social dos novos leitores, através de um desejo individual que emerge sobre a forma de ―de-
sejo de ler‖, assim como as tentativas das elites para controlar esses movimentos. Este de-
sejo de ler manifesta-se na sua dimensão social sendo alvo de uma lenta progressão que
atravessa diferentes grupos sociais e diversos países. Mais uma vez, é ao nível do discurso
que se estrutura socialmente a auto-representação do novo leitor, que sai de classes sociais
tradicionalmente analfabetas (Mäkinen, 2004: 5):

«The traditional distinction between those, who were supposed to read (les hommes policés), and those,
who were not supposed to read, was shaken only after a deep restructuration of the prevalent discourse.
This restructuration was needed both for the elites and for the common people themselves, because the
old representation that they had about themselves did not include reading. Even the reader and the
readership was a construction that had to be created. The new readers had to construct a self-
consciousness as members of a particular audience.».

O acesso aos materiais de leitura passou a ser o ponto de tensão entre o desejo de
ler (por parte das massas) e o controlo desse desejo de ler (por parte da elite). Os movimen-
tos filantrópicos conduziram à criação de escolas públicas e de bibliotecas públicas que,
mais tarde, seriam integradas numa lógica estatal. Não sem muitas reservas e receios por
parte da elite cultural e política (Mäkinen, 2004: 5):

«It seems that it was as much a question of manners to speak about the common people‘s reading than
material obstacles blocking the way. There were no proper concepts to legitimize a more general reading
for the uneducated common people. Firstly, it was a lack among the educated people who were in the
key position to enhance the promotion of reading and libraries: they could not attribute individual, free
and active reading to the common people—or they did not find it suitable. There was hardly anybody,
however liberal, who would have considered it possible or suitable for the common man to read as ex-
tensively, e.g. novels, as the educated people did. Secondly it was a lack among the common people
themselves: they did not know that there existed in themselves an active desire to read.».

Mesmo numa fase posterior em que os bloqueios, ao nível do discurso, foram ultra-
passados havia que tomar acções concretas para o estabelecimento de instituições de
acesso generalizado à leitura, tanto ao nível da sua aprendizagem (escola pública) como ao
nível do seu usufruto quotidiano (biblioteca pública) (Mäkinen, 2004: 5):

«Acceptable ways to speak about popular enlightenment in the 1840s were unfavorable for the practical
implementation of extensive library campaigns or popular enlightenment in general. There were rhetori-
cal blocks against seeing mass schooling or a general provision of libraries for the common people as
feasible, not only in principle, but also in practice. Those who advocated primary schools were convinc-
ing only in principle, not in practice. The same applies to libraries for the common people: when they
were discussed both in the dominant Swedish-language press and the emerging but weak Finnish-
language press during the 1840s, there was hardly anybody who opposed them. There was no active
opposition, but on the other hand no authoritative backing either.».
40

Todavia estas instituições acabaram por se afirmar (fazendo parte integrante da so-
ciedade moderna), e consubstanciando o ideal de uma sociedade leitora movida não pela
retórica das elites mas pelo desejo de ler das massas (Mäkinen, 2004: 11):

«Popular or public libraries and the ‖desire to read‖ have been closely connected until the present day.
Reading has characterized modern man and the public library has been an institution par excellence of
free and democratic societies, hand in hand with mass education. Until now the voluntary and spontane-
ous reading habit, desire to read, has been conquering more ground.».

Numa terceira abordagem podemos perspectivar que discurso sobre a leitura que é
dominante é veiculado pela escrita (artigos de opinião, trabalhos académicos, documentos
programáticos, etc.) e consumido através da leitura, o que faz dele um discurso autofágico
que alimenta uma comunidade discursiva, permitindo a sua afirmação identitária (Nós-
leitores versus Eles-não-leitores). Esta comunidade é, por assim dizer, a elite dominante que
detém as chaves do acesso ao poder através do saber, veiculado tradicionalmente pela lei-
tura (Britto, 2004):

«A supervalorização da leitura em si, como espécie de comportamento sempre saudável e desejável,


conduz à mitificação da leitura e à fetichização do livro e do ato de ler. Mais ainda, faz com que perca
completamente a crítica histórica e a percepção de que a leitura tem sido muito mais instrumento de
denominação (as classes dominantes sempre tiveram a leitura a seu serviço) do que de redenção de
pessoas ou de povos. Ninguém fica melhor ou pior, mais solidário ou misantropo, mais crítico ou aliena-
do porque passa a ser leitor. Pode ser, mas não há relação de necessidade. Objectivamente, ao contrá-
rio do que quer fazer crer o discurso da leitura redentora, não há vínculo necessário entre leitura e com-
portamentos saudáveis, positivos.».

Se historicamente este acesso estava naturalmente vedado pelo analfabetismo, pela


inexistência da imprensa, pela restrição das comunicações e transportes, limitando-se a uns
poucos o saber, e logo, o poder, hoje a democratização da leitura torna mais volátil este po-
der e faz com que os mecanismos que o asseguram e o sustentam se tornem mais exigen-
tes. Um destes mecanismos é a definição do cânone do que se pode considerar leitura.
Através desta definição é possível criar condições de hegemonia desta comunidade discur-
siva sobre os restantes sujeitos (ALB, 1999):

«Enfim, o discurso sobre a precariedade da leitura no Brasil funda-se no estereótipo de um certo modo
de ser burguês. Resulta daí a insistência sobre a atividade pouco definida de ler e a desconsideração
dos objetos lidos. Deste ponto de vista, grande parte dos brasileiros não teria efetivamente condições
sociais de ser leitores. A desqualificação dos objetos implica a desqualificação das pessoas que os to-
mam para ler, tornando a leitura um capital individual e de classe, com valor de mercado e de status no
meio social imediato.

É certo que parcelas da população têm pouco ou nenhum acesso a materiais escritos. É certo também
que outra parcela tem pleno acesso. A questão que se levanta, contudo, é se a representação do que
seja leitura no discurso pedagógico não está ofuscando o fato de que a gente lê mais do que se supõe,
mas talvez não leia aquilo que a tradição letrada considera importante.».
41

A clivagem social não é feita somente ao nível das práticas da leitura mas também
ao nível dos discursos sobre essas práticas. Os discursos enformam a realidade dentro de
uma visão redutora da diversidade das práticas de leitura. Somente as leituras ―politicamen-
te correctas‖ são valorizadas, sendo todas as outras marginalizadas discursivamente e, em
última instância, obliteradas socialmente. Assim sendo, o discurso prevalece sobre as práti-
cas, os argumentos prevalecem sobre os factos.

A questão central é a de saber se é possível intervir sobre estas tendências aparen-


temente contraditórias. Para responder, as comunidades discursivas organizam-se em torno
dos dois pólos opostos do discurso, ideologicamente determinados (Furtado, 2000: 197):

«Encontramos assim persistentemente uma relação com a leitura que oscila entre a resistência a su-
cessivas ameaças que lhe são exteriores e uma atitude militante que, depositando na leitura um conjun-
to de expectativas quase messiânicas, quer pôr toda a gente a ler. Como refere Poulain, é nesta época
que aparecem os primeiros inquéritos e estudos sobre a leitura e sobre o discurso sociológico, que re-
cusa o alarmismo e partilha com os bibliotecários e militantes da época um certa fé na possibilidade de
melhorar as qualidades das leituras da população.».

No entanto, numa perspectiva mais realista, que fica aquém dos discursos sobre a
leitura, há que ponderar se a leitura não é um pré-requisito para qualquer cidadão poder
entrar na dita sociedade da informação (conceito em que antevemos um discurso concorren-
te ao discurso sobre a leitura) (Basanta e Hernández, 2002):

«Por el contrario, las consideraciones propuestas hasta aquí se encaminan a considerar que la cons-
trucción de una sociedad lectora es el requisito básico para edificar una sociedad de la información para
todos los ciudadanos, permitiendo su participación activa y equilibrando los factores latentes de exclu-
sión que conlleva el actual desarrollo tecnológico. Fomentar la lectura, incrementar los hábitos lectores,
mejorar la calidad de lectura de los ciudadanos es, por tanto, una actuación decidida para integrarles
activamente en un mundo en el que la capacidad de generar y transmitir información y conocimiento se
ha convertido en el motor de desarrollo económico y bienestar social por excelencia.».
42

3. Análise do corpus documental

Neste capítulo iremos proceder à análise do corpus documental segundo duas pers-
pectivas. Numa primeira perspectiva, analisamos o discurso sobre a leitura segundo um
conjunto de temas-chave: o fenómeno de não-leitura; os estatutos das leituras e dos leito-
res; o papel da escola e o estatuto do professor; o papel da biblioteca e o estatuto do biblio-
tecário; a relação leitura, desenvolvimento, cidadania. Numa segunda perspectiva, analisa-
mos o discurso sobre a leitura segundo uma lógica de polémica, recenseando o posiciona-
mento dos actores-chave perante: posicionamentos face ao PNL e posicionamentos face à
intervenção estatal. Com esta segunda perspectiva de análise tentaremos caracterizar a
institucionalização do discurso dominante, a dinâmica das relações de poder e a matriz ideo-
lógica que subjaz ao discurso dominante sobre a leitura.

Para enquadrar a análise iremos proceder, no ponto 3.1, à apresentação sumária do


Plano Nacional de Leitura: optámos por não colocar em anexo informação sobre o Plano
Nacional de Leitura (nomeadamente o Relatório e o Relatório-Síntese), por estes serem de
fácil acesso a partir do sítio web do PNL (www.planonacionaldeleitura.com).

Gostaríamos também de deixar aqui duas notas de ordem metodológica. Para facili-
tar a leitura dos extractos dos textos que utilizamos na análise, optámos por colocar o nome
completo do seu autor e a data de publicação e optámos por colocar a negrito as ideias-
chave. Para melhor sistematizar os resultados da nossa análise, optámos por organizá-los,
dentro de cada um dos temas, em três momentos: caracterização, onde são apresentadas
as diversas ideias-chave; síntese, onde são sistematizadas ideias-chave; comentário, onde
se tecem considerações sobre as opiniões dos comentadores.

3.1. O Plano Nacional de Leitura

«Chegámos a um patamar em que a Leitura, ou mais precisamente a Não Leitura, se tornou factor de
exclusão. Esta constatação exige dos governantes uma tomada de posição, uma atitude. Em defesa de
valores tão altos quanto a paz social, a qualificação dos portugueses, o desenvolvimento sustentado da
4
nossa sociedade. A atitude que tomámos tem um nome: chama-se Plano Nacional de Leitura.».

O Plano Nacional de Leitura foi estabelecido através da Resolução do Concelho de


Ministros nº 86/2006 (de 1 de Junho) e tem como principal missão aumentar os níveis de
literacia da população portuguesa. No seu relatório síntese apresentam-se diversas medidas

4
Extracto do discurso proferido pela Ministra da Cultura aquando da apresentação do Plano Nacional de Leitura
43

que visam desenvolver competências no domínio da leitura e da escrita e incentivar hábitos


de leitura, em especial na população escolar.

No Plano Nacional de Leitura são traçados objectivos que se prendem essencialmen-


te com uma mudança social assente na criação de condições propícias à leitura, à promo-
ção da leitura e ao reforço dos hábitos de leitura. Para a concretização destes objectivos são
apontadas as seguintes estratégias: alargar e diversificar as acções promotoras de leitura
em contexto escolar, na família e em outros contextos sociais; contribuir para criar um ambi-
ente social favorável à leitura; assegurar formação e instrumentos de apoio; inventariar e
optimizar recursos e competências; criar e manter um sistema de informação e avaliação.

Com base nos objectivos traçados e nas estratégias desenhadas indicam-se desde
logo acções concretas dirigidas a diversos públicos-alvo, que se definem entre a população
escolar (crianças e jovens, mas também professores) e outros agentes e instituições ligadas
directa ou indirectamente à leitura (mediadores de leitura, bibliotecas públicas, museus, en-
tre outros).

O Plano Nacional de Leitura aposta ainda numa vertente de formação que contribua
para a persecução dos objectivos definidos, bem como na angariação de apoios diversos
(através de mecenas, fundações, por exemplo) e na difusão da sua imagem de forma positi-
va nos meios de comunicação social.

3.2. Análise dos temas-chave

O fenómeno de não-leitura [ Caracterização ]:

Para melhor procedermos à análise deste tema-chave iremos perspectivá-lo na rela-


ção que é estabelecida entre a literacia e a leitura, pois a principal razão apontada para a
implantação do Plano Nacional de Leitura (PNL) foi a do baixo nível de literacia da popula-
ção portuguesa (cujos últimos resultados conhecidos são referentes ao PISA – Programme
for Internacional Student Assessment).

A primeira constatação que podemos fazer é a de que alguns articulistas têm uma
visão extremamente negativa da situação do país, assumindo que os baixos níveis de leitura
dos jovens portugueses são um indicador a somar a muitos (Rui Manuel Brás, 31 Julho):

«O panorama é, na verdade, negro. De acordo com os dados do PISA (Programme for Internacional
Student Assessment), lançado pela OCDE em 1997 para medir a capacidade dos jovens de 15 anos
usarem conhecimentos na vida real, os níveis de leitura em Portugal são muito baixos. No ano 2000,
48% dos jovens portugueses estavam nos níveis inferiores (1 ou 2) de uma escala de 5 níveis.
Três anos depois, os resultados não haviam melhorado. Outro dado importante, este com origem no
Ministério da Educação e baseado nos resultados das provas de aferição, mostra que a maioria das cri-
44

anças transita do 1º para o 2º ciclo ―sem ter adquirido competências básicas no domínio da leitura e da
escrita‖.

A falta de aquisição de competências ao nível da leitura é uma constante ao longo de


todo o percurso escolar de grande maioria dos alunos portugueses. E esta situação tende a
manter-se, pois os resultados das crianças do 1º ciclo já indiciam o replicar da actual situa-
ção dos jovens. Existe mesmo quem aponte (Francisco José Viegas, 5 de Junho) que se
atingiu um ponto de não retorno:

«Uma das notícias da semana passada foi, sem dúvida, a apresentação das ideias gerais que hão-de
presidir ao Plano Nacional de Leitura. O país interessou-se vagamente pelo assunto, porque che-
gou à conclusão de que se atingiu – nas escolas e na vida familiar – uma espécie de ponto de
não-retorno, cujo diagnóstico é certamente pessimista.».

Outros (Vasco Graça Moura, 31 Maio) vão ainda mais longe afirmando que a situa-
ção é crónica, ou seja, mantém-se desde há décadas. Este mesmo articulista não se inibe
de apontar responsabilidade directa ao sistema de ensino:

«No blogue de José Pacheco Pereira, duas professoras tomaram, há poucos dias, posições aparente-
mente contraditórias quanto ao Plano Nacional de Leitura. Mas o que ambas dizem, quanto ao fundo da
questão, acaba por ser complementar. E uma delas, louvando-se no PISA 2003, chama a atenção para
o seguinte: "A competência de leitura de 48% dos jovens de 15 anos é mínima. Apenas lhes permi-
te localizar uma informação ou identificar o tema principal do que leram.". Esta situação tornou-
se crónica. Há décadas que, mais ou menos de seis em seis meses, novos relatórios, novos es-
tudos e novas análises vêm sistematicamente concluir pelo falhanço total do nosso sistema de
ensino e pela impreparação clamorosa dos que o frequentam ou frequentaram. Nem vale a pena
repisar o tópico, de tão óbvio que se tornou.».

A responsabilidade do sistema de ensino não é vista de uma forma genérica ou indi-


ferenciada. Segundo um dos articulistas (Francisco José Viegas, 5 de Junho) os baixos ní-
veis de literacia têm a ver essencialmente como o facto e se preterir a leitura literária em
favor da leitura instrumental. Este facto decorre das opções pedagógicas ao nível do ensino
da língua portuguesa, ou seja, assumir a disciplina de português para ensinar a língua e não
para ensinar a literatura:

«Precisamente, alguns ideólogos estapafúrdios do ensino do Português (aqueles que dizem que
a matéria curricular trata do "ensino do português" e não do "ensino da literatura") garantem que
interessa acabar com a iliteracia e que a literatura não tem nada a ver com o assunto. Provavel-
mente, nesse sentido, não haverá "vantagem cívica" em ter estudantes que saiam da escola a saber
quem é Cesário Verde, a conhecer alguns trechos da "Peregrinação" ou de Fernão Lopes, a ter decora-
do dois ou três versos de Sá de Miranda ou de Tomás António Gonzaga. Por isso, os manuais do ensino
e os livrinhos dos professores estão cheios de banalidades, de algaraviadas e de português deficiente.».
45

Se a imagem que se cria e se projecta do país é negativa (através da análise dos


referidos estudos internacionais), a comparação Portugal/Estrangeiro só serve para reforçar
negativamente essa imagem (Vasco Graça Moura, 31 de Maio):

«Outros países têm problemas semelhantes [iliteracia], mas em percentagem muito menor, e por
isso é que o caso português é tão grave. Deixa-nos irremediavelmente no fim da tabela e prepa-
ra-nos para um futuro sem saída. Faz prenunciar que a chamada Estratégia de Lisboa irá por água
abaixo nestas paragens e que o nosso país vai ter um lindo enterro.».

Existe mesmo uma certa tendência para associar os níveis de literacia aos níveis de
desenvolvimento em cada um dos países. Apesar de ser referido que existem outros países
que também têm problemas ao nível da iliteracia, rapidamente esse aspecto passa para
segundo plano e são evocados exemplos positivos de como esses países estão a lidar com
a situação. Esse articulista estabelece claramente uma comparação com um duplo sentido:
existem problemas de iliteracia em vários países; no caso nacional a situação é crónica (ou
seja, vem desde há várias décadas); nos casos estrangeiros estão a ser encontradas solu-
ções para o problema. No caso citado, e mais uma vez, parece que a literatura é que é a
solução para o problema dos baixos níveis de literacia entre os jovens (Vasco Graça Moura,
14 de Junho):

«Em França, os miúdos do secundário são obrigados a ler sete a oito livros por ano, para além
das matérias que integram a disciplina de Francês. E têm de falar deles nas aulas... E, como nota
José Augusto Cardoso Bernardes, no seu recente e importante livro Como Abordar a Literatura
no Ensino Secundário/Outros Caminhos (ASA, 2006), a que tenciono voltar nesta coluna, "a Lite-
ratura é hoje menos prezada nas escolas portuguesas do que nas suas congéneres espanhola,
francesa, inglesa ou italiana, para citar apenas os exemplos onde a presença no cânone escolar
é mais forte".».

Também não se deixa de apontar, pela positiva, o paradigma mundial do sucesso


através do sistema de ensino: a Finlândia. E, a esse pretexto, não deixam de ser sublinha-
das as causas do sucesso finlandês: a longa tradição de se contar histórias em voz alta em
ambiente familiar, evitando ao máximo os efeitos perniciosos da televisão. O raciocínio é de
um esquematismo imbatível: as famílias lêem histórias aos filhos, isso contribui para colocar
os finlandeses no topo do ranking mundial da literacia, o que consequentemente lhes dá as
competências para reagir à modernidade, o que explica o facto de serem um dos países
mais desenvolvidos do mundo (José Manuel Fernandes, 2 de Junho):

«Porquê? Porque o verdadeiro segredo para que os finlandeses surjam no topo da escala da literacia
mesmo utilizando uma língua estranhíssima e rara é porque ouvir ler, depois ler, depois declamar, é al-
go que integra a sua cultura há séculos. No passado, quando o país ora estava submetido pelos sue-
cos, ora pelos russos, os que tinham autoridade nas comunidades eram os que mais poemas consegui-
am declamar. Hoje, quando os vemos no topo de todos os rankings, devemos lembrar-nos que
isso sucede em boa parte porque nas longas noites dos seus Invernos (ou ao sol da meia-noite
46

dos seus Verões) os pais e as mães lêem histórias aos filhos. Não os entregam às televisões -
cativam-nos com contos eternos e fábulas encantatórias. Nisso batem todos os recordes do
mundo. Por isso estão depois entre os povos mais capazes de reagir à modernidade, porque
desde muito novos estão treinados para ler, compreender e raciocinar.».

Assim sendo, tenta-se desde logo estabelecer uma relação causal entre literacia e
desenvolvimento, sendo que esta relação pode ser constatada na comparação Portu-
gal/Estrangeiro: elevados níveis de literacia equivalem a elevados níveis de desenvolvimen-
to; baixos níveis de literacia correspondem a baixos níveis de desenvolvimento. Entre as
diversas componentes da literacia tradicional (ler, escrever, contar) a leitura é, aparentemen-
te, a que mais contribui para esta relação umbilical.

Outra comparação que tendencialmente se estabelece, no que diz respeito aos índi-
ces de leitura, é entre o passado e o presente. Aqui as opiniões dividem-se entre os que
consideram que a situação sempre foi má e é irremediável (Vasco Graça Moura) e os que
consideram que a situação actual é melhor do que a do passado porque foram feitos esfor-
ços nesse sentido (Eduardo Prado Coelho, 5 de Junho):

«É preciso muita imaginação na promoção da leitura. Mas garanto-lhes que vale a pena. E se hoje se
lê mais, o que é um facto, há duas observações que é preciso avançar: será que os esforços que
já têm sido feitos não têm grande influência nisto? E ainda: têm a noção do que lê normalmente um
jovem estudante universitário?».

Alguns articulistas (Inês Pedrosa, 17 de Junho) são muito incisivos, contextualizando


esta comparação entre o passado e o presente numa perspectiva mais global. Neste caso a
imagem que se veicula é a de que na prática a situação evoluiu para melhor em todos os
domínios da vida pública, embora os discursos dominantes apontem para uma mistificação
do passado:

«A desculpa das décadas de ditadura não pode continuar a ser aceite: minhas senhoras e meus senho-
res, o fascismo acabou há 32 anos. Desde 1974 que estamos, gostemos ou não, por nossa conta, sem
um tirano a quem culpar todos os males ou sem um protector permanente a quem lamber os pés e fazer
queixinhas. A democracia tem os seus defeitos; a nossa tem experimentado atávicas dificuldades - mas
o fascismo acabou. Há várias gerações que, felizmente, já nem se lembram dele. São as mesmas ge-
rações que, infelizmente, nem sabem o que ele foi, porque os paizinhos digeriram tão mal a liber-
dade que até dizem que estamos pior do que antigamente. É mentira, mas é fácil de provar: há
mais desemprego (porque já não há a miséria da emigração em condições degradantes), aumentou a
insegurança no emprego (porque o mérito passou a contar - embora ainda pouco, e já nem todos os lu-
gares passam de pais para filhos), o ensino piorou (porque se democratizou, e os filhos dos estivadores
passaram a ter direito a estudar e a disputar os empregos aos filhos dos doutores), a criminalidade e as
tragédias parecem ter aumentado (ou antes, passaram a ser noticiadas, quando antigamente até os
mortos das cheias eram censurados).».
47

No extracto anterior denota-se claramente um posicionamento ideológico que, em


grande medida, passa pela defesa do regime democrático enquanto gerador de desenvolvi-
mento aos diversos níveis, entre os quais ao nível do ensino.

Embora não partilhe da ideia de uma evolução positiva da sociedade portuguesa em


geral, um dos articulistas (Vasco Pulido Valente, 3 de Junho) aponta o facto de que também
no passado a educação tradicional não incentivava a leitura e dá como exemplo o facto de a
maior parte das pessoas da sua geração não lerem. Este articulista situa a causa do pro-
blema da não-leitura não ao nível educacional mas ao nível cultural, tendo um enraizamento
na própria postura pessoal (esforço versus passividade). Assim sendo retira o problema da
esfera social e coloca-o na esfera pessoal. E, na sua opinião, esta situação não pode ser
mudada, daí concluir pela inutilidade do Plano Nacional de Leitura:

«Não conheço muita gente, gente da minha idade, que leia, apesar de uma educação tradicional.
Porquê? Porque ler implica um esforço: de atenção, de inteligência, de memória. Ler é uma acti-
vidade e a nossa cultura é quase inteiramente passiva. A televisão, o DVD, a música popular ou a
conversa de computador não exigem nada, deixam a pessoa num repouso imperturbado e bovino. Mu-
dar isto equivale a mudar o mundo. Não se faz com um "plano".».

Da situação da literacia (caracterizada no PISA) rapidamente se extrapola para a


situação da leitura em Portugal que, por arrastamento, é considerada de forma taxativa uma
situação de não-leitura: «Os portugueses não lêem!». O exemplo citado é o dos índices de
leitura de jornais diários (José Manuel Fernandes, 2 de Junho):

«Não são só os nossos maus resultados nos testes de literacia: todos os índices revelam, de al-
guma forma, que estamos na cauda da Europa, e por vezes chegamos a estar mal classificados
quando nos comparamos com países muito mais pobres. Os portugueses lêem, por dia, propor-
cionalmente, pouco mais de metade dos jornais que os espanhóis, um terço dos franceses, um
quinto dos ingleses, um décimo dos nórdicos ou dos japoneses. Não lemos, ponto. Nem jornais,
nem livros. Quem, mesmo assim, anda com um diário desportivo debaixo do braço corre o risco
de passar por um intelectual.».

A constatação da situação de não-leitura é também baseada em outros estudos, co-


mo são exemplo os estudos sobre os hábitos de leitura dos portugueses. Todavia, no caso
concreto deste articulista (José Geraldes, 20 de Junho) estes dados servem como justificati-
vo para a implementação do Plano Nacional de Leitura, no qual é depositado alguma espe-
rança:

«Os resultados da maioria das sondagens sobre os hábitos de leitura em Portugal não são muito
animadores. Daí que este Plano tenha a sua razão de ser. E certamente a seu tempo dará frutos. E,
como reza o provérbio, ―em pequenino se torce o pepino‖.».
48

Outros articulistas (Vasco Graça Moura, 14 de Junho) pronunciam-se nessa mesma


linha, reforçando a ideia de que para além do Plano Nacional de Leitura será necessário
implementar outras medidas:

«Mas, numa altura em que se deplora o papel negativo da televisão no tocante à regressão alar-
mante dos hábitos de leitura, fará sentido falar do Plano Nacional de Leitura sem considerar o
papel que a televisão e a rádio (tanto a de grande audiência como as rádios locais) podem e de-
vem ter?».

É também referido por outro articulista (Eduardo Prado Coelho, 5 de Junho) que a
intervenção estatal (através do Plano Nacional de Leitura) pode ser alargada também às
livrarias e à edição de livros:

«Mas é possível apoiar as novas livrarias, sobretudo dando condições para que surjam em cida-
des que ainda não têm uma presença de qualidade neste domínio. E é possível estabelecer e
desenvolver a formação profissional dos livreiros, para que estes não pensem que O Príncipe de
Maquiavel é o título de um romance e saibam que a Fenomenologia de Fernando Echevarría não se ar-
ruma na secção de filosofia, mas na de poesia.

E é possível tentar fazer chegar livros portugueses junto das novas gerações das comunidades
portuguesas no estrangeiro. E articular o trabalho a realizar no Brasil com aquele, notável, que é
feito pelos professores brasileiros de literatura portuguesa.».

Opinião de sentido contrária a intervenção estatal é defendida por um só articulista


(Vasco Pulido Valente, 21 de Maio), que para além de refutar a ideia da crise da leitura ao
afirmar que nunca se leu tanto em Portugal como actualmente conclui que, por essa razão,
não existe qualquer utilidade no Plano Nacional de Leitura:

«Em terceiro lugar, não aceito por que o Plano é inútil. Nunca se leu tanto em Portugal. Dan Brown,
por exemplo, vendeu 470 000 exemplares, Miguel Sousa Tavares, 240 000, Margarida Rebelo Pin-
to vende entre 100 e 150 000 e Saramago, mesmo hoje, lá se consegue aguentar. ».

Quando se assume que há uma crise da leitura, tentam identificar-se as suas cau-
sas. Entre os factores que são sistematicamente apontados, para além das deficiências do
sistema de ensino (já aludida anteriormente), podemos referir a televisão, a internet e o te-
lemóvel (João Morgado Fernandes, 4 de Junho):

«Porquê ler as centenas de páginas de Os Maias, se algumas editoras e outros tantos especialis-
tas descobriram esse fabuloso negócio daqueles pequenos manuais que fazem o resumo do tex-
to, organizam a temática, estruturam a problemática? Porquê perder tempo com quatro ou cinco Au-
tos de Gil Vicente se a Wikipedia já tem (ou há-de ter...) o digest de cada um deles?

Esta geração foi ensinada a encarar o saber como algo de adquirido, preexistente. Não é neces-
sário estudar os clássicos porque já alguém os estudou por nós e agora esse saber está dispo-
nível, organizado, acessível.».
49

Este extracto permite também fazer algumas comparações ao nível da relação saber
/ informação; tradição / inovação; clássicos da literatura / conteúdos multimédia; construti-
vismo / imediatismo; reflexão / acriticismo. Subentende-se que: à leitura são associados o
saber, a tradição, a literatura, o construtivismo e a reflexão; à tecnologia são associados a
informação, a inovação, o multimédia, o imediatismo e o acriticismo (João Morgado Fernan-
des, 4 de Junho):

«A tendência já viria de trás, mas o boom das novas tecnologias acentuou a ideia de que não necessi-
tamos de sujar as mãos na realidade. E a democratização da Net faz-nos crer que tudo, incluindo o sa-
ber, está acessível a todos, em todo o lado, a todo o momento.

Os que nasceram antes dos computadores sabem que não é bem assim. Que o conhecimento, o sa-
ber, a cultura são processos aquisitivos, constroem-se, dão trabalho. E que o gozo, a fruição es-
tão mais vezes no processo de descoberta do que no produto adquirido.».

Como já vários articulistas deixaram transparecer (nomeadamente Vasco Graça


Moura e José Manuel Fernandes) o consumo de televisão é uma das causas que é aponta-
da de forma recorrente para justificar a falta de hábitos de leitura. Existe mesmo quem, para
além de apontar a televisão como causa da não-leitura, sugira num tom bastante irónico que
a intervenção do estado devida reduzir a utilização da televisão, do computador e do tele-
móvel, como forma das crianças serem levadas a ler mais (Vasco Pulido Valente, 21 de
Maio):

«Claro que se o Estado proibisse a televisão e o uso do computador (do "Messenger") e do tele-
móvel, as criancinhas leriam ou pelo menos, leriam mais. Na impossibilidade de tomar uma me-
dida tão drástica, o Estado pretende "criar um ambiente social favorável à leitura", com uma es-
pécie de missionação especializada.».

Outra sugestão é que a própria televisão passasse de adversária a aliada da leitura.


Tal seria conseguido, na opinião deste articulista (Vasco Graça Moura, 14 de Junho), se o
Estado intervencionasse os canais das televisões públicas de modo a consagrar à leitura
tempos no horário nobre:

«Se há um serviço público de televisão, neste aspecto deveria haver uma ditadura implacável do
Ministério da Educação sobre esse serviço público em todos os canais dependentes do Estado.
Bastava que estes consagrassem à leitura, em horário nobre, a quinquagésima parte do tempo
que dedicam ao futebol para se alterar o panorama desolador que enfrentamos...».

Num registo bastante diferente um dos articulistas (José Carlos Abrantes, 5 de Ju-
nho), considera a relação entre, por um lado, a leitura e, por outro lado, a televisão e a inter-
net, não numa perspectiva de concorrentes / aliados mas numa perspectiva mais abrangen-
te do que é a leitura, ou melhor, do que são as diferentes acepções de que se revestem as
leitura(s). Deste modo é evidenciado que actualmente as práticas de leitura não se limitam à
50

leitura de materiais impressos (com especial destaque para os livros, de preferência de lite-
ratura):

«Associa-se a queda da leitura em Portugal à televisão e à internet. Vale a pena lembrar que a te-
levisão em Portugal é legendada? Que as crianças e os jovens lêem legendas, desde muito no-
vas, nos desenhos animados e nos filmes? A internet, incluindo imagens e sons, não é o reino
da escrita e da leitura? Já Umberto Eco, numa entrevista ao Nouvel Observateur do início dos
anos 90, contestava o entrevistador dizendo que os computadores nos estavam a introduzir na
civilização da escrita, não na civilização da imagem.».

O fenómeno de não-leitura [ Síntese ]:

No que diz respeito ao tema-chave o fenómeno da não-leitura, podemos constatar a


presença nos textos analisados das seguintes ideias-chave:

 Uma primeira constatação é a de que quase todos os articulistas utilizam de uma


forma indiscriminada o conceito de literacia e o conceito de leitura, ora estabele-
cendo uma sobreposição completa entre conceitos, ora estabelecendo uma dife-
renciação subtil. Na análise demos maior importância à sua relação com outras
ideias-chave (por exemplo, identificação de causas, comparação Portu-
gal/Estrangeiro, comparação passado/presente, implicações e consequências);

 Em relação à constatação dos baixos níveis de literacia da população portuguesa


em geral e dos jovens em particular existe um consenso em relação ao posicio-
namento de todos os articulistas. Muitos consideram que é necessário haver uma
intervenção estatal no sentido de inverter os baixos níveis de literacia da popula-
ção portuguesa, nesse contexto vêem com bons olhos o Plano Nacional de Leitu-
ra;

 Um segundo posicionamento consensual diz respeito à constatação de que a si-


tuação portuguesa é mais negativa se comparada com a estrangeira, apesar de
se reconhecer que nesses países o iletrismo também existe. Todavia são desde
logo apontados exemplos de como nos outros países se está a tentar inverter a
situação, sublinhando o papel da abordagem obrigatória da literatura nas escolas
como uma das formas mais eficazes para tal;

 Em relação à evolução da situação da literacia, os posicionamentos dos articulis-


tas divergem. De um lado estão os que consideram que esta é uma situação ne-
gra, com um carácter crónico e que se chegou a um ponto de não retorno, do ou-
tro lado estão os que consideram que a situação do presente é melhor do que a
do passado. Um articulista chega mesmo a defender que não existe crise da lei-
tura, evocando alguns exemplos de best-sellers para sancionar a sua posição;
51

 Entre os articulistas que afirmar a existência de uma crise da leitura, vários são
os que apontam como causa principal a falência do sistema de ensino. A principal
linha de argumentação passa pela defesa da ideia de que deve haver uma apos-
ta numa leitura em profundidade virada para a educação da pessoa humana (em
que a literatura tem um papel fundamental) e não uma leitura instrumental virada
para a instrução de mão-de-obra para o mercado de trabalho;

 A televisão e a internet são relacionadas com a leitura de três modos distintos:


enquanto concorrentes da leitura, sendo apontado o facto de incentivarem a pas-
sividade e de possibilitarem a falta de reflexão; enquanto aliados da leitura, sendo
apontado por dois dos articulistas a necessidade da intervenção estatal directa
para alterar o tipo de programação; enquanto formas diferentes de leitura, sendo
referidos por um articulista que na televisão lêem-se as legendas e que os conte-
údos da internet são essencialmente para ler.

O fenómeno de não-leitura [ Comentário ]:

Podemos constatar que a maioria dos articulistas defende a ideia de que existe uma
crise da leitura que funciona como causa/consequência dos baixos níveis de literacia da
população. Nesta perspectiva defende-se a necessidade da intervenção directa do Estado,
não somente através da implementação de política nacionais de leitura (como o Plano Naci-
onal de Leitura) como através da intervenção em outros domínios (por exemplo, na televisão
pública ou no sistema de ensino). A justificação para esta intervenção passa em grande me-
dida pelo facto destes articulistas estabelecerem uma relação directa entre os níveis de lite-
racia e os níveis de desenvolvimento dos países. Deste modo, para assegurar o desenvol-
vimento do país, o Estado (mais concretamente o Governo) deverá apostar no aumento dos
níveis de literacia da população. Curiosamente, é feita uma extrapolação dos níveis de lite-
racia (nomeadamente no que diz respeito à utilização de competências de leitura na vida
quotidiana) para os hábitos de leitura (neste caso para a falta deles). Nesta óptica tam-
bém a não-leitura conduz à exclusão social pela falta de domínio de competências individu-
ais básicas.

Somente um articulista tem uma perspectiva distinta. De modo a refutar a necessida-


de de intervenção estatal, através da implementação de uma política nacional de leitura
(Plano Nacional de Leitura), não só afirma que não existe uma crise como reforça esta ideia
defendendo a opinião de que nunca se leu tanto em Portugal como actualmente. Para tal
cita exemplos que vêem do mercado editorial, ou seja, o fenómeno dos best-sellers (Dan
Brown, Margarida Rebelo Pinto, Miguel Sousa Tavares). Esta perspectiva é embebida de
uma visão ideológica clara que passa pela defesa do liberalismo económico e social: os ci-
dadãos encontram no mercado a resposta aos seus interesses e necessidades, tanto que
52

continuam a comprar livros; a intervenção estatal é desnecessária e condiciona as escolhas


dos cidadãos (nomeadamente, prescrevendo leituras politicamente correctas).

Os estatutos das leituras e dos leitores [ Caracterização ]:

A atribuição de estatuto às leituras e aos leitores assenta num juízo de valor sobre a
qualidade intrínseca das práticas de leitura e sobre quem as pratica. A nossa análise sobre
o tema incidirá sobre uma das dicotomias mais recorrentes ao longo dos textos: best-sellers
versus cânone literário, sendo que os best-sellers são identificados com as más leituras e o
cânone literário é habitualmente identificado com as boas leituras. Comecemos por um dos
articulistas (Francisco José Viegas, 5 de Junho) que aborda precisamente a questão do ler
bem:

«Certamente que "ler muito" é bom - mas "ler bem" é muito melhor. É claro que ninguém, no seu
perfeito juízo, está em condições de definir o que é "ler bem", embora se perceba que se trata de
ler bons autores, de conhecer a grandeza dos clássicos da nossa língua e das outras línguas, da
nossa cultura e das outras culturas. Ninguém é melhor cidadão por ter lido Fernando Pessoa ou João
de Barros. Mas a capacidade de entender o mundo melhora consideravelmente. Ler bem é, também,
aproveitar a felicidade de ler, se se é feliz ao ler um livro que se amou. Mas não se trata de uma vir-
tude cívica.».

Mas quem define o que é ler bem? Referindo-se a alguns best-sellers um articulista
(Vasco Pulido Valente, 21 de Maio) opina sobre as diferenças entre as escolhas do Estado
(leituras orientadas efectuadas através da escola e da biblioteca) e a própria lógica do mer-
cado.

«O Estado não gosta da escolha? Uma pena, mas não cabe ao Estado orientar o gosto do bom
povo. No interior, não há livrarias? Verdade. Só que a escola e a biblioteca, ainda por cima “ori-
entadas”, não substituem a livraria. E um hipermercado, se me permitem a blasfémia, promove a lei-
tura mais do que qualquer imaginável intervenção do Estado.».

A oposição cânone / best-sellers é sistematicamente abordada pelos vários articulis-


tas, a maioria dos quais referencia positivamente o cânone e referencia negativamente os
best-sellers. O cânone surge assim como a institucionalização da boa leitura (Vasco Graça
Moura, 14 de Junho):

«E, como nota José Augusto Cardoso Bernardes, no seu recente e importante livro Como Abordar a Li-
teratura no Ensino Secundário/Outros Caminhos (ASA, 2006), a que tenciono voltar nesta coluna, "a Li-
teratura é hoje menos prezada nas escolas portuguesas do que nas suas congéneres espanhola,
francesa, inglesa ou italiana, para citar apenas os exemplos onde a presença no cânone escolar
é mais forte".».

Outro articulista (Fernando Vilarinho, 22 de Maio) vai mais longe tentando evidenciar
que os best-sellers são um fenómeno atípico do mercado editorial:
53

«Certamente a maioria desses petizes não terão como „livros de cabeceira‟ os best-sellers de Mi-
guel Sousa Tavares, José Saramago, Dan Brown, etc. Por outro lado, na globalidade, muitos
desses best-sellers são lidos em sistema „fast-food‟ e a Leitura é muito mais que isso. As eleva-
das tiragens desses livros podem de certo modo camuflar, ou dar a ilusão que os índices de lei-
tura em Portugal incrementaram-se acentuadamente, mas numa análise ponderada do mercado
livreiro observa-se cada vez mais uma maior dualidade no mercado entre esses dois a três best-
sellers que surgem a cada dois meses (e que no geral têm muita parra mas pouca uva) e muitos
dos restantes cerca de trinta livros que são publicados a cada dia e dos quais muito pouco
exemplares são comercializados.».

Neste contexto há quem defenda (Vasco Graça Moura, 17 de Maio) que o sucesso
do PNL está dependente da reabilitação da literatura no ensino da língua:

«O primeiro tem a ver com a reformulação dos programas escolares de Língua Portuguesa: o PNL não
poderá ser levado a bom termo enquanto não se fizer essa reformulação, reabilitando devida-
mente o papel da Literatura no ensino da língua.».

Esta ideia que é reforçada por outra articulista (Inês Pedrosa, 17 de Junho) que de-
fende que a leitura instrumental que se tem praticado nas escolas é uma não-leitura:

«Não se pode obrigar ninguém a ler, mas o que se tem feito nas últimas décadas é obrigar as
crianças e jovens a não ler - porque instrumentalizar a leitura (ler «a matéria» ou ler «para a dis-
ciplina A ou B») ou banalizá-la (considerando equivalentes não só literatura e a notícia de jornal,
como Camões e as novelas «light») é a melhor maneira de a matar. Mesmo assim, e ao contrário
do que se diz, as crianças e os adolescentes gostam de ler; vão perdendo esse prazer à medida
que percebem que os adultos não lêem, ou só lêem «a matéria» (que é o mesmo que, efectiva-
mente, não ler).».

A alternativa apontada pela referida articulista passa pela abordagem, em âmbito


escolar desde a mais tenra idade, de obras com qualidade, isto é, obras literárias:

«Não é a mesma coisa ler a uma criança de 3 anos um livro de escritores como Sophia de Mello
Breyner ou Manuel António Pina ou uma historieta de cá-rá-cá-cá, do mesmo modo que não é a
mesma coisa ensinar música a partir de Mozart ou a partir de um êxito pimba.».

Há que vá mais longe e não só defenda a aposta indispensável nos clássicos da lite-
ratura como considere que isso é fundamental para o sucesso do PNL (Francisco José Vie-
gas, 5 de Junho):

«Distingo, aí, algumas vozes a chamarem-me reaccionário. É um argumento e tanto, mas advirto não
vale nada. Penso que o conhecimento dos clássicos é um dos melhores caminhos para conhecer
a nossa história, a nossa língua e a nossa cultura. E que a leitura de um clássico é melhor do
que a leitura de um regulamento do Big Brother, um artigo de jornal ou cartaz publicitário. Mas
estes anos de insistência nas "virtudes cívicas do ensino do português" em vez do ensino da li-
teratura, "produz técnicos de ensino" do português mas não forma professores disponíveis para
cativar estudantes do secundário para os desafios da leitura. Um dos argumentos é triste e ver-
gonhoso: o de que os estudantes do secundário, por exemplo, "não compreendem" o texto de
54

um clássico, "não entendem" a linguagem dos autores do cânone da nossa literatura. Por isso,
tratam de "facilitar o caminho" e de modelar a cabeça das criancinhas (infantilizadas e maltratadas por
anos de erros ortográficos). Se o Plano Nacional de Leitura não devolver os clássicos da nossa
língua à escola, não terá sucesso.».

Vasco Pulido Valente (3 de Junho), como habitualmente, tem uma posição comple-
tamente oposta:

«Com eterno retorno, em que se tornou a vida portuguesa, volta a leitura, desta vez com um "plano".
Pôr a criançada a ler e o público em geral. Muito bem. A ler o quê? Os "clássicos", dizem. Mas que
espécie de "clássicos"? Gil Vicente, Camões, Vieira, Garrett, Camilo, Eça, Oliveira Martins, Cesá-
rio, Pessoa? Infelizmente, não há "clássicos" que se possam ler: tirando a poesia (um caso
complicado), um pouco de Eça, de Camilo e Oliveira Martins, quanto muito. E o inevitável Júlio
Dinis, se conseguir passar por "clássico" e se alguém hoje o aturar. O facto é que a literatura
portuguesa é pobre. Ainda por cima, os "protegidos" do "plano" não a percebem: nunca viram grande
parte das palavras, tropeçam na sintaxe, ignoram as referências. Pegue, por exemplo, um dos promoto-
res do "plano" em, por exemplo, Viagens na Minha Terra ou A Relíquia e explique o que lá está (um
centésimo basta). Gostava de assistir.».

A resposta não se faz esperar através de uma opinião sancionada academicamente


(Helena Carvalhão Buesco, 6 de Junho):

«Diz V. P. V.: "Ler o quê? Os "clássicos", dizem. Mas que espécie de "clássicos"? [...] Infelizmente não
há "clássicos" que se possam ler." Não é verdade, V. P. V. Há-os, e bem para lá da lista dos nove no-
mes inquestionáveis que alinha (Gil Vicente, Camões, Vieira, Garrett, Camilo, Eça, Oliveira Martins,
Cesário, Pessoa), e do outro que parcialmente lhes agrega para logo o afastar (Júlio Dinis). Bem sei
que afasta a poesia (mas não Camões, Cesário e Pessoa?) por a considerar "um caso complicado".
Complicado é, a meu ver, este afastamento, além de simbólica e sociologicamente curioso. Sem querer
entrar em demasia no século XX (ainda no outro dia ouvi alguém defender, com a habitual arrogância,
que a noção de "clássico" acaba no século XIX, e essa pessoa justamente não estuda nem muito lê a li-
teratura do século XX, menos ainda a do XXI...), que faz V. P. V. de nomes como Camilo Pessanha,
Teixeira-Gomes, Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Alexandre O´Neill, Carlos de Oliveira, Luiza
Neto Jorge (e não venho aos vivos, que os há!)? Então para trás: que tal Fernão Lopes, a espantosa
lírica medieval, Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda (com poemas, os tais complicados, que valem por
toda uma literatura!), Francisco Manuel de Melo, muita da poesia maneirista e barroca (que fomos
aprendendo a amar apesar de dantes no-la ensinarem como "descartável" pela sua ligeireza), a poesia
burguesa do século XVIII, sem a qual Cesário e Pessoa são bem amputadamente incompreensíveis, o
desconhecido conto romântico, Alexandre Herculano, até mesmo, sim, Júlio Dinis? É bom evitar redu-
zir os clássicos (que não escrevo entre aspas, note-se) a um cânone pessoal, embora seja legítimo que
cada um de nós encontre, neles, um conjunto de afinidades electivas que são, justamente, aquelas que
levam à leitura. Mas sem conhecimento não pode haver compreensão, nem mesmo daqueles pontos
negros de incompreensão de que o mundo e a literatura são feitos.».

E vai subir de tom pela voz de outro articulista, que tenta expor algumas as contradi-
ções nas posições de Vasco Pulido Valente (Fernando Vilarinho, 22 de Maio):
55

«VPV que ordinariamente nas suas crónicas fala do “duvidoso gosto do Povinho” nas suas op-
ções culturais e afins, quando lhe convém dá o dito por não dito, e aparece como o primeiro de-
fensor de toda a libertinagem de escolhas.».

Também a relação entre a elite e o povo é perspectivada tendo por base a sofistica-
ção do gosto (Inês Pedrosa, 17 de Junho):

«Portugal tem uma carência evidente de elites exemplares (passe o pleonasmo), mas o pior é
que o povo continua a desculpar-se com a ignorância das elites para continuar - quer se trate da
leitura ou do civismo na estrada - a refocilar na alarvidade.».

Os estatutos das leituras e dos leitores [ Síntese ]:

Em relação aos estatutos das leituras e dos leitores interessa salientar as seguintes
ideias-chave:

 Existe uma clara dicotomia entre as boas leituras (associadas ao cânone literário)
e as más leituras (associadas aos best-sellers). Poucos são os articulistas que se
posicionem em defesa dos best-sellers como modelo de uma boa leitura, que cor-
respondem aos mesmos que consideram que o cânone literário (clássicos da lite-
ratura portuguesa) seja uma má leitura;

 Não se consegue estabelecer uma relação directa entre boas leituras = bons lei-
tores / más leituras = maus leitores, mas ela está subentendida no facto de se en-
tender que as leituras escolares devem ser prescritas e obrigatórias (sendo esta-
belecido um cânone escolar de que fazem parte os clássicos). O cânone funciona
assim como um padrão de gosto e como um referencial cultural (por oposição ao
ditames do mercado editorial).

Os estatutos das leituras e dos leitores [ Comentário ]:

O estabelecimento de juízos de valor em relação às leituras e aos leitores é uma das


formas pelas quais a elite cultural exercita a matriz ideológica veiculado pelo discurso sobre
a leitura que é dominante. O carácter fortemente identitário que se constitui através da parti-
lha de um padrão de referência (cânone literário) é determinante para a fixação de um para-
digma de gosto e de competência leitora. Existe pois uma oposição Nós (os que lemos os
clássicos) e Eles (os que não leiem os clássicos). Para manter o status quo da cultura elitis-
ta e conversadora dominante, a elite força discursivamente à adopção, por parte do Estado,
do seu paradigma de gosto que deverá ser veiculado através da escola.

O papel da escola e o estatuto do professor [ Caracterização ]:

A imagem da escola e o estatuto do professor têm uma carga muito negativa nos
artigos dos dois articulistas que lhes dedicam mais espaço (Vasco Graça Moura e Francisco
56

José Viegas). Os discursos produzidos são muito incisivos e críticos a tal ponto que um dos
articulistas (Vasco Graça Moura, 31 de Maio) defende que o sistema de ensino é o respon-
sável pelos baixos níveis de literacia e que é preciso mudar tudo:

«O choque de que o nosso país precisa nessa matéria reconduz-se à varredela: é preciso varrer
radicalmente do sistema a maior parte dos actuais programas, manuais, livros de estudo, méto-
dos de ensino, teorias pedagógicas, talvez mesmo as próprias bases em que funcionam as esco-
las superiores de educação, formando professores cuja actuação, a despeito de boas classifica-
ções, de empenhamentos sinceros, das maiores boas vontades e dedicações, redunda global-
mente nos famigerados resultados referidos.».

Este articulista não se inibe de apontar o dedo aos professores enquanto responsá-
veis pela actual situação. Defende também que é preciso recomeçar tudo desde o início
(Vasco Graça Moura, 31 de Maio):

«Se tudo falha, é preciso recomeçar tudo desde o princípio, é preciso mudar os materiais didácticos, é
preciso inscrever os professores e demais responsáveis pela educação numa reciclagem vigorosa e
completa, hoje que a palavra de ordem é a formação ao longo da vida. O que se aprendeu com o ob-
jectivo de ensinar e o que se ensina com o objectivo de educar não presta para nada e a melhor
prova disso é o que está a acontecer.».

Conclui apontando os equívocos pedagógicos no ensino no português, entre os


quais está o facto de se ter preterido a leitura literária em favor da leitura instrumental (Vas-
co Graça Moura, 17 de Maio):

«Leio agora, no suplemento Educação do JL, de 10 a 23 de Maio, uma entrevista de Paulo Feytor Pin-
to (PFP), presidente da Associação de Professores de Português (APP), que me deixa ainda mais pre-
ocupado. (…) Continuam os equívocos pedagógicos numa área tão sensível. Não sei que luminá-
rias os engendram. Mas sei que não se pode aceitar que os exames de Português obedeçam ao prin-
cípio do Totobola.».

Também um outro articulista (Francisco José Viegas, 5 de Junho) partilha desta vi-
são, acrescentando que a literatura é indispensável para o ensino do português e para a
aquisição de competências de leitura:

«Precisamente, alguns ideólogos estapafúrdios do ensino do Português (aqueles que dizem que
a matéria curricular trata do "ensino do português" e não do "ensino da literatura") garantem que
interessa acabar com a iliteracia e que a literatura não tem nada a ver com o assunto.».

Na sua opinião (Francisco José Viegas, 5 de Junho) o ensino do português não pode
ser posto ao serviço da instrução para o mercado de trabalho:

«Mas estes anos de insistência nas "virtudes cívicas do ensino do português" em vez do ensino
da literatura, "produz técnicos de ensino" do português mas não forma professores disponíveis
para cativar estudantes do secundário para os desafios da leitura.».
57

O papel das escolas e o estatuto dos professores [ Síntese ]:

No que diz respeito ao tema-chave o papel das escolas e o estatuto dos professores,
podemos constatar a presente nos textos analisados uma perspectiva crítica muito incisiva
em relação à responsabilidade da escola e dos professores nos baixos níveis de literacia:

 O sistema de ensino é, em grande medida, responsabilizado pelos baixos níveis


de literacia, defendendo os dois articulistas que se deve proceder a uma ampla
reforma daquele e à adopção de novas abordagens no ensino do português (com
uma clara aposta na literatura). Ambos têm também uma postura muito exigente
em relação ao desempenho dos professores.

O papel das escolas e o estatuto dos professores [ Comentário ]:

Apesar de todas as críticas efectuadas às escolas e aos professores, podemos sali-


entar dois aspectos. O primeiro refere-se à constatação que o sistema de ensino é determi-
nante para a aquisição de competências leitoras, ou seja, é da responsabilidade do Estado
(através das escolas) dotar os cidadãos das competências que lhes permitam serem soci-
almente activos e economicamente produtivos. O segundo refere-se ao facto de que é reco-
nhecida nos professores a capacidade de produzir e veicular discursos sobre a leitura alter-
nativos, ou seja, apesar de sistematicamente criticados, os professores veiculam a possibili-
dade do ensino do português não passar exclusivamente pela literatura. Deste modo é pos-
sível contrapor a um discurso de senso comum um discurso de cariz técnico sobre a leitura,
o que incomoda os membros da elite cultural representada através dos articulistas cujos
textos temos estado a analisar.

O papel da biblioteca e o estatuto do bibliotecário [ Caracterização ]:

Apesar dos artigos de opinião só abordarem o papel da biblioteca e o estatuto do


bibliotecário de forma lateral, parece-nos importante referenciar as opiniões expressas pelos
articulistas.

Centrando a sua argumentação na rentabilização dos esforços que o Plano Nacional


de Leitura pode trazer, um dos articulistas (Eduardo Prado Coelho, 5 de Junho) sustenta
que as bibliotecas públicas são uma boa maneira de o fazer, pois elas já desenvolvem um
conjunto de iniciativas que podem ser ampliadas:

«Que é um Plano Nacional de Leitura? É algo extremamente vivo e sensível à evolução da realidade,
que tende a coordenar e dar uma linha de rumo ao que já existe em termos de iniciativas do Estado
(que, por vezes, se sobrepõem) e a suscitar novas iniciativas nesse mesmo plano, e que tende a apoiar
as muitas iniciativas que existem a nível privado. Para dar alguns exemplos, podemos lembrar que é
possível racionalizar o que se passa nas bibliotecas públicas, poupando esforços e dinheiro do
Orçamento do Estado, fazendo circular exposições, ou criando ciclos comuns de conferências e
58

debates, ou desenvolvendo essa excelente ideia que foi o lançamento das comunidades de leito-
res.».

A aposta na promoção da leitura, por parte das bibliotecas públicas, produz resulta-
dos. Reforça esse mesmo articulista:

«É preciso muita imaginação na promoção da leitura. Mas garanto-lhes que vale a pena. E se ho-
je se lê mais, o que é um facto, há duas observações que é preciso avançar: será que os esfor-
ços que já têm sido feitos não têm grande influência nisto?».

Um outro articulista (José Manuel Fernandes, 2 de Junho) vai ainda mais longe clas-
sificando de notável o trabalho que tem sido realizado nos últimos anos pelas bibliotecas
públicas e pelas bibliotecas escolares:

«É natural e salutar que isto preocupe as autoridades e é notável que nos últimos anos se tenha de-
senvolvido um esforço continuado, teimoso, de criar redes de bibliotecas municipais e de biblio-
tecas escolares. Ter um livro à mão é, pelo menos, um começo.».

Este articulista reconhece também a importância dos serviços prestados pelas biblio-
tecas públicas em prol da difusão da leitura (José Manuel Fernandes, 2 de Junho):

«Sejam pois bem-vindas as iniciativas previstas no Plano Nacional de Leitura - mas sejam ainda mais
bem-vindos todos os que tirarem proveito dos livros que têm começado a estar ao alcance de um
empréstimo, à distância de um braço capaz de escolher a leitura que em centenas de bibliotecas
públicas lhes é ou será oferecida.».

Mais uma vez, somente um articulista (Vasco Pulido Valente, 21 de Maio), dos que
se pronunciaram sobre as bibliotecas e os bibliotecários, tem uma opinião completamente
oposta. Na sua opinião as bibliotecas são um desperdício de dinheiro e os funcionários só
servem para espatifarem milhões:

«Parece que as criancinhas do básico e do secundário não lêem, apesar do dinheiro já desperdi-
çado no ensino e em bibliotecas. (…) O Plano Nacional da Leitura não passa de uma fantasia pa-
ra uns tantos funcionários justificarem a sua injustificável existência e espatifarem milhões, que
o Estado extraiu esforçadamente ao contribuinte.».

A opinião sobre os bibliotecários e sobre os mediadores de leitura não podia ser


mais negativa (Vasco Pulido Valente, 2 de Junho):

«O Estado missionário não leva com certeza a parte alguma. Ou leva, leva a uns milhares de empre-
gos para burocratas, bibliotecários, "mediadores de leitura" (um truque novo) e para a tropa fan-
danga do costume.».

O papel das bibliotecas e o estatuto dos bibliotecários [ Síntese ]:

No que diz respeito ao tema-chave o papel das bibliotecas e o estatuto dos bibliote-
cários, podemos constatar a presente nos textos analisados de duas perspectivas:
59

 As bibliotecas: por um lado, são vistas como tendo um trabalho notável ao nível
da promoção da leitura, podendo ser uma forma de suportar o PNL; por outro la-
do, são apontadas como exemplo do desperdício de dinheiro pelo Estado;

 Os bibliotecários: por um lado, são vistos como funcionários públicos geradores


de despesa; por outro lado, são vistos como geradores de dinâmicas culturais e
sociais.

O papel das bibliotecas e o estatuto dos bibliotecários [ Comentário ]:

Nenhum articulista reconhece aos bibliotecários um estatuto de veiculadores de um


discurso sobre a leitura alternativo que, necessariamente, decorra da sua condição de técni-
cos especializados. As problemáticas da leitura são associadas aos professores mas não
aos bibliotecários, pois a leitura é equacionada na sua dimensão escolar e educativa e não
na sua dimensão social e cultural. Todos os articulistas atribuem aos bibliotecários o estatu-
to de meros funcionários públicos. Na opinião de alguns articulistas a sua função social e
cultural é positiva e de relevo, pois contribui decisivamente para mudar o panorama da não
leitura; na opinião de um dos articulistas a sua função é irrelevante, logo dispensável.

As bibliotecas são entendidas como instrumentos colocados ao serviço do Estado.


Neste contexto são entendidas, pela positiva, como suportes institucionais às políticas naci-
onais de leitura, pela negativa, como sorvedouras de dinheiros provenientes dos bolsos dos
cidadãos que supostamente devem servir. A dimensão social da biblioteca não é tomada em
conta mas tão-somente a sua dimensão cultural que, por sua vez, é vista como não sendo
essencial. A mudança dos níveis de literacia do país é papel da escola e não da biblioteca.

A relação leitura, desenvolvimento, cidadania [ Caracterização ]:

Este tema é formado por uma relação triangular leitura – desenvolvimento – cidada-
nia. Podemos analisá-lo em duas perspectivas diferentes mas complementares: numa pers-
pectiva individual, em que se entende a leitura como uma forma de crescimento intelectual e
espiritual de cada pessoa; numa perspectiva social, no sentido que já referimos anteriormen-
te (cf. análise do tema O fenómeno da não-leitura), em que se associa os níveis de literacia
(ler, escrever e contar) com os níveis de desenvolvimento dos países. Como elemento de
ligação entre estas duas perspectivas (individual e social) surge a noção da leitura ligada à
cidadania.

Dentro da perspectiva do desenvolvimento individual, podemos constatar que estão


presentes nos artigos analisados uma série de ideias recorrentes. A ideia de que um livro
pode mudar uma pessoa (entendido aqui como mudar para melhor) está muito enraizada
nos discursos sobre a leitura (José Geraldes, 20 de Junho):
60

«Um livro pode mudar a vida de uma pessoa. Multiplica o saber, abre novos horizontes à mente
humana, introduz-nos nos caminhos da ciência. Na expressão do padre António Vieira, ―o livro é o
mestre mudo‖. E Romano Guardini sublinha: ―Os livros são fonte imprescindível de conhecimento‖ e
causa de prazer e distracção‖. Ler os livros na pré-primária e no 1º ciclo vai criar hábitos que em
estado adulto não se esquecerão. Assim funciona a natureza humana. E, com toda a certeza,
nascerá a paixão da leitura.».

Outra ideia recorrente é a de que a leitura é indispensável para a formação e afirma-


ção da pessoa, tanto no plano individual como no plano social (Inês Pedrosa, 17 de Junho):

«É infinitamente triste ver - como eu já vi, por este país fora, centenas de vezes - rapazes e rapa-
rigas de 15 e 16 anos a soletrarem arduamente um texto literário. Saber ler em voz alta é a primei-
ra condição para uma pessoa conhecer a cor e a densidade da sua própria voz - ou seja, para ser
inteiramente pessoa.».

Alguns articulistas apresentam outras das ideias, a de que a leitura trás consigo a
promessa de alegria, de prazer e de companhia (José Geraldes, 20 de Junho)

«Marcel Proust apresenta um testemunho curioso: ―Talvez não haja na nossa infância dias que te-
nhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem vivê-los,
aqueles que passamos na companhia de um livro preferido”.».

Mas se há quem afirme (Helena Carvalhão Buesco, 6 de Junho) que quanto maior o
nível de sofisticação das leituras (o que implica esforço) maior o nível do prazer e o grau de
alegria, também reconhece que isso não é acessível a todos:

«O que sim é verdade é que nem todas as pessoas poderão pegar nessas (e outras) obras com o
mesmo grau de alegria e exigência de pensamento que outras. Também o reconheço.».

Para tornar isso acessível a todos, o Plano Nacional de Leitura pretende elevar os
níveis de competências leitoras da população portuguesa, começando pelas crianças, até a
um nível que garanta a plenitude das competências e a sofisticação das práticas. Isto signi-
fica empreender um processo individualizado de formação de leitores em âmbito escolar
(José Geraldes, 20 de Junho):

«O Governo lançou um Plano Nacional de Leitura que pode conter virtualidades de grande alcance. O
Plano prevê que obrigatoriamente as crianças da pré-primária e do 1º ciclo leiam livros todos os
dias durante uma hora na sala de aula. Os alunos do 2º ciclo terão também um período de carác-
ter obrigatório para a leitura, mas só uma vez por semana durante 45 minutos.».

Paradoxal é a ideia de se pretender formar leitores, para descobrirem o prazer de ler,


através da imposição de leituras (Vasco Graça Moura, 14 de Junho):

«Os livros, pois. Levar a população, sobretudo os jovens, a ler mais. Tornar obrigatória a leitura de
um conjunto de livros para cada ano escolar. Em França, os miúdos do secundário são obriga-
dos a ler sete a oito livros por ano, para além das matérias que integram a disciplina de Francês.
E têm de falar deles nas aulas... ».
61

Outro articulista segue a mesma linha de argumentação (José Manuel Fernandes, 2


de Junho):

«Mas não chega, pelo que o Plano ontem anunciado procura ir mais longe e criar hábitos (força-
dos) de leitura nos diferentes graus de ensino. Como ideia é positivo, corresponde mesmo a uma
ruptura com a aceitação passiva de que "não se pode fazer nada".».

A plenitude desta linha de argumentação é apresentada de uma forma pormenoriza-


da no próximo extracto (Inês Pedrosa, 17 de Junho):

«Nesse mesmo fórum [TSF], a ministra da Educação afirmava que, quando se trata de estimular
crianças dos primeiros graus de ensino, «não pode falar-se propriamente em literatura». Ora, pa-
rece-me exactamente o oposto: pode e deve. Não é a mesma coisa ler a uma criança de 3 anos
um livro de escritores como Sophia de Mello Breyner ou Manuel António Pina ou uma historieta
de cá-rá-cá-cá, do mesmo modo que não é a mesma coisa ensinar música a partir de Mozart ou a
partir de um êxito pimba. Os primeiros anos são, como sublinham hoje todos os especialistas do cére-
bro, fundamentais. A literatura não é apenas uma questão de sentido, é também uma questão de som,
ritmos, mistérios. Uma das coisas que tem contribuído para afastar os mais jovens da leitura (e de
toda a miríade de descobertas e capacidades que ela acarreta) é o paternalismo dos mais velhos,
que à força de quererem «orientar» os seus rebentos no sentido de um suposto sucesso e de
uma pretensiosa felicidade os abarrotam de ocupações circum-escolares e livros «lúdicos». A
graça da leitura - como de quase tudo na vida - está na dificuldade, no mistério, no obstáculo.».

Todavia, levada às suas últimas consequências, esta imposição do Estado pode tor-
nar-se excessiva. Alguns dos articulistas tentam estabelecer o limite defendendo que a for-
mação de bons leitores não pode ter a presunção de formação de bons cidadãos.

No âmbito social, uma das relações que é estabelecida com maior frequência é a
relação entre leitura e cidadania. É ideia corrente que um bom leitor é tendencialmente um
bom cidadão (João Morgado Fernandes, 4 de Junho) não somente pelas competências que
possui como também pelo facto de ter uma consciência de si e do mundo mais aprofundada,
que o liberta de uma certa alienação:

«Sem saber ler (e saber ler não é apenas saber ler...), ou sem saber matemática, por exemplo, te-
remos excelentes pesquisadores do Google, autênticas esponjas absorvedoras de conhecimen-
to pré-estruturado, mas não teremos estudantes a sério, e, logo, cidadãos plenos, activos críti-
cos.».

A leitura, enquanto virtude cívica, pode significar que o Estado tem possibilidade de
interferir nas leituras dos cidadãos prescrevendo leituras (cânone escolar, por exemplo),
decidindo gostos ou definindo competências. Todavia, para alguns articulistas esta ligação
leitura-cidadania é muito contestável (Francisco José Viegas, 5 de Junho):

«As opiniões de Vasco Pulido Valente e de José Saramago, manifestadas de forma corajosa
(bem como, por exemplo, Abel Barros Baptista) vieram trazer alguma polémica, sempre bem vin-
62

da a um universo onde são todos bonzinhos e se acha que a leitura tem a ver com a cidadania,
numa espécie de aliança de virtudes cívicas.».

O mesmo articulista afirma taxativamente que não se é melhor cidadão por ter lido
algumas das obras-primas da literatura (Francisco José Viegas, 5 de Junho):

«Essa ideia é, além de irritante ("bons cidadãos, bons leitores"), perversa e ruim para a própria
leitura. A leitura é fonte de inquietação, de ruína, de descalabro - e também de felicidade e de
preguiça. Nenhuma destas coisas faz bons cidadãos. Certamente que "ler muito" é bom - mas "ler
bem" é muito melhor. É claro que ninguém, no seu perfeito juízo, está em condições de definir o que é
"ler bem", embora se perceba que se trata de ler bons autores, de conhecer a grandeza dos clássicos
da nossa língua e das outras línguas, da nossa cultura e das outras culturas. Ninguém é melhor cida-
dão por ter lido Fernando Pessoa ou João de Barros. Mas a capacidade de entender o mundo me-
lhora consideravelmente. Ler bem é, também, aproveitar a felicidade de ler, se se é feliz ao ler um livro
que se amou. Mas não se trata de uma virtude cívica.».

A relação leitura, desenvolvimento, cidadania [ Síntese ]:

No que diz respeito ao tema-chave a relação leitura, desenvolvimento, cidadania,


podemos constatar a presença nos textos analisados das seguintes ideias-chave:

 A leitura é apresentada numa dupla dimensão: individual, afirmando-se a ideia de


que a leitura contribui para o desenvolvimento da pessoa humana, contribuindo
para uma tomada de consciência de si mesma, dos outros e do mundo, que con-
tribui para a alegria e o prazer individuais, que é decisiva na elevação do espírito
humano e na sedimentação do conhecimento; social, afirmando-se a necessida-
de de elevar os níveis de literacia dos portugueses como condição indispensável
para o país atingir um mais alto nível de desenvolvimento e uma maior afirmação
internacional tanto em termos económicos como políticos;

 A relação leitura-cidadania é estabelecida na confluência entre a dimensão indi-


vidual e a dimensão social do desenvolvimento. Parte-se do pressuposto (contes-
tado por alguns dos intervenientes na polémica) que um bom leitor será tenden-
cialmente um bom cidadão, ou seja, assume-se que a leitura promove as virtudes
cívicas. Esta ideia tem como raiz a visão de que a leitura contribui para a eleva-
ção do espírito e para a sedimentação do conhecimento dos indivíduos, logo, pa-
ra o desenvolvimento da sociedade.

A relação leitura, desenvolvimento, cidadania [ Comentário ]:

A leitura, devido ao seu carácter individualista e íntimo, é, por excelência, um espaço


de livre arbítrio, de construção de uma cosmovisão e de uma identidade pessoal, que se
pode subtrair a imposições externas. Quando a leitura é julgada como uma boa leitura (seja
63

através de uma chancela cultural, política ou religiosa) pode assumir um carácter redentor
ou salvífico, ou seja, é tida como principal forma, senão a única, de elevação do espírito e
de progressão intelectual. Esta visão mítica da leitura é a matriz para a construção da ideia
de desenvolvimento individual e, consequentemente, social. Nesta perspectiva ser um bom
leitor é necessariamente ser um bom cidadão. Há mesmo quem considere que uma socie-
dade leitora será necessariamente uma sociedade onde há paz, solidariedade e progresso.

Quem contesta a relação leitura-cidadania afirma que ser um bom leitor não corres-
ponde necessariamente a ser bom cidadão. A leitura pode trazer consigo a indolência, a
delinquência, a insanidade ou a subversão (em algumas obras que fazem uma alegoria ao
totalitarismo o livro surge como elemento portador de roturas, veja-se o exemplo de Mil No-
vecentos e Oitenta e Quatro ou de Fahrenheit 451). Neste sentido, a leitura deve ser deixa-
da numa esfera individual porque quando colocada numa esfera social (embebida de uma
matriz ideológica e sujeita a um intervencionismo estatal) a tendência é para formatar leito-
res para serem aptos enquanto produtores de riqueza: maiores níveis de literacia = maior
potencial de desenvolvimento = afirmação do país = afirmação do Estado.

Algumas das questões que se colocam são estas: A abordagem instrumental à leitu-
ra, com o objectivo de aquisição de competências leitoras, não deve ser privilegiada nas
escolas? Se a escola não serve para preparar pessoas para se integrarem socialmente
(com um estatuto de cidadania plena) então para que serve? Para criar amantes da literatu-
ra? Ou a literatura só deve servir de suporte à aquisição de competências de leitura e de
domínio da língua?

A resposta a estas questões não é linear, todavia estamos em crer que a aquisição
de competências de leitura e a aquisição do gosto pela leitura são duas faces da mesma
moeda. Ou melhor, somos de opinião que a aquisição de competências de leitura é uma
condição necessária mas não é suficiente. Todavia, podemos ser socialmente operativos se
tivermos elevados níveis de literacia (principalmente no que diz respeito à leitura e à escrita)
e no entanto optarmos por não fazer da literatura de romances a nossa prática cultural prin-
cipal.

3.3. Análise da polémica

Posicionamentos face ao PNL [ Caracterização ]:

Iremos analisar a polémica em torno do Plano Nacional de Leitura de dois ângulos


diferentes, tentando sempre posicionar o articulista num dos lados da polémica: adesão (as-
64

sumpção da necessidade) / rejeição (assumpção da inutilidade); prognósticos em relação ao


futuro sucesso / fracasso.

A maioria dos articulistas considera que o PNL é necessário, como tal declaram a
adesão à ideia (Vasco Graça Moura, 17 de Maio):

«Recebi na semana passada um ofício assinado pelos ministros da Educação, da Cultura e dos Assun-
tos Parlamentares convidando-me para integrar a Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura
(PNL). Aceitei o convite muito penhorado, tanto mais que se prevê a possibilidade de a referida
comissão aconselhar na execução do plano e participar em acções e iniciativas que venham a
ser lançadas no seu âmbito. ».

A adesão ao PNL é declarada sem reservas por parte de um articulista (José Carlos
Abrantes, 5 de Junho) devido à sua convicção que é possível mudar algo em relação à situ-
ação da literacia:

«Fui convidado para integrar a Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura, convite que
aceitei na convicção de que se pode actuar positivamente neste domínio.».

A implementação do PNL é vista como uma ruptura com a habitual atitude de indife-
rença para com a situação da literacia (José Manuel Fernandes, 2 de Junho):

«Mas não chega, pelo que o Plano ontem anunciado procura ir mais longe e criar hábitos (força-
dos) de leitura nos diferentes graus de ensino. Como ideia é positivo, corresponde mesmo a uma
ruptura com a aceitação passiva de que "não se pode fazer nada".».

O próprio Governo é elogiado pela iniciativa de lançamento do PNL (João Morgado


Fernandes, 2 de Junho):

«Vem isto a propósito de uma das mais interessantes iniciativas governamentais anunciadas
nos últimos tempos - o Plano Nacional de Leitura.».

Um outro articulista (José Geraldes, 20 de Junho) também tem uma opinião muito
favorável sobre a iniciativa governamental:

«O Governo lançou um Plano Nacional de Leitura que pode conter virtualidades de grande al-
cance. (…) Por isso, tudo o que se faça a favor do aumento dos hábitos de leitura, merece aplau-
so e incentivos.».

A iniciativa estatal é também considerada necessária não somente por causa da si-
tuação dos baixos níveis de literacia mas também porque os cidadãos individualmente não
se mobilizam para o fazer (José Manuel Fernandes, 2 de Junho):

«O que não formos capazes de fazer não devemos esperar que outros façam por nós. Elementar,
dir-se-ia. Não em países com a nossa cultura: por cá espera-se que aquilo que não somos capa-
zes de fazer o Estado, ou o Governo, ou o presidente da junta, faça por nós. Se não fôssemos
como somos não necessitaríamos de um Plano Nacional de Leitura pois ler regularmente seria
como comer, ou ver televisão, ou assistir a um espectáculo de futebol.».
65

O Plano Nacional de Leitura é entendido como uma intervenção essencial (ao nível
de um curso básico) para desenvolver as competências de leitura da população portuguesa
(Inês Pedrosa, 17 de Junho):

«Isabel Alçada, comissária do Plano Nacional de Leitura, explicava ao «JL» que a competência da
leitura «tem de ser desenvolvida até aos 9, 10 anos», e acrescentava: «É como nadar: está provado
que é muito difícil estar à vontade dentro de água na idade adulta se não se aprender a nadar em crian-
ça. Ou como andar de bicicleta ou dançar». O que este Plano oferece é exactamente esse curso bá-
sico de natação, dança ou ciclismo em torno das palavras.».

Apesar de considerar que o Plano Nacional de Leitura pode produzir alguns resulta-
dos, um dos articulistas é da opinião que o que deve de mudar são os hábitos da escola
(Francisco José Viegas, 5 de Junho):

«Por isso, mais do que um plano nacional de leitura apresentado como uma prioridade nacional e cívica,
com a sua inevitável pompa cheia de valores politicamente correctos, é necessário que a escola mude
alguma coisa nos seus hábitos. A escola e as famílias. Mas a escola cumpre um papel essencial, ra-
zão porque há a esperar alguma coisa desta iniciativa, uma vez que na sua base está também o
trabalho de uma das pessoas que mais fez pela qualidade das bibliotecas escolares, Teresa Cal-
çada, além de uma autora que pôs muitos adolescentes no caminho da leitura, Isabel Alçada.».

Esse mesmo articulista tem uma posição equívoca em relação ao seu posicionamen-
to face ao Plano Nacional de Leitura: por um lado, considera que se pode esperar alguns
resultados na iniciativa, mais não seja por ter Isabel Alçada e Teresa Calçada a liderar o
processo; por outro lado, coloca-se do lado dos maiores críticos do PNL que o consideram
inútil:

«As opiniões de Vasco Pulido Valente e de José Saramago, manifestadas de forma corajosa (bem
como, por exemplo, Abel Barros Baptista) vieram trazer alguma polémica, sempre bem vinda a
um universo onde são todos bonzinhos e se acha que a leitura tem a ver com a cidadania, numa
espécie de aliança de virtudes cívicas.».

As posições desfavoráveis ao PNL são defendidas por menos articulistas. Na verda-


de só dois articulistas se rejeitam a utilidade do PNL (isto claro sem esquecer a presença
implícita das declarações de José Saramago durante toda a polémica). Um destes dois arti-
culistas apresenta os seus argumentos de uma forma inequívoca, num plano ideológico,
num plano financeiro e num plano de programação (Rui Manuel Brás, 31 de Julho):

«O País não pode manter-se impávido perante estes factos [dados do PISA]. A resposta do governo
foi apresentar o Plano Nacional de Leitura (PNL). Com vista a combater os baixos níveis de literacia
de leitura, este plano pretende mobilizar os alunos e respectivas famílias, os professores, os escritores,
as bibliotecas públicas, enfim, todos os que, de algum modo, possam ajudar a resolver o problema. De-
vo confessar que tenho grandes dúvidas quanto à viabilidade do PNL. Em primeiro lugar, porque
desconfio sempre dos grandes “planos” gerados pelo Estado. Considero que neste caso o Estado
assume demasiado protagonismo, procurando dirigir o processo todo, deixando pouca margem de ma-
66

nobra a iniciativas que lhe fujam ao controlo. Nada de novo, tendo em consideração que os socialistas
descendem ideologicamente do Iluminismo e daquele Republicanismo que atribuía ao Estado o papel
decisivo na ―iluminação‖ das mentes populares. Em segundo lugar, questiono-me sobre a viabilidade
financeira de semelhante esforço estatal. A menos que as ministras da Educação e da Cultura te-
nham conseguido que tudo fique ―de graça‖, o Plano implicará custos que ou não foram divulgados ou
ainda não foram calculados. Em terceiro lugar, penso que o Plano está desfasado da realidade so-
cial nacional e, por isso, é utópico.».

Para além de José Saramago, a outra reacção desfavorável que mais eco teve foi
sem dúvida a de Vasco Pulido Valente, expressa em dois momentos diferentes (21 de Maio
e 3 de Junho):

«Recebi uma carta assinada por três ministros (a sra. Ministra da Cultura, a sra. Ministra da Edu-
cação e o sr. ministro Santos Silva), que me convidava para ser membro de uma Comissão de
Honra do Plano Nacional de Leitura. Com a carta vinha uma síntese do dito Plano. O papel da Comis-
são de Honra seria dar o seu "prestígio e aconselhamento à execução do Plano". Por outras palavras,
fazer alguma propaganda à coisa, como de resto o dr. Graça Moura, "muito penhorado", já começou a
fazer. Propaganda por propaganda, resolvi responder em público que não aceito. Por várias ra-
zões. Em primeiro lugar, porque a carta e a "síntese do Plano" estão escritas num português ma-
carrónico e analfabeto (frases sem sentido, erros de sintaxe, impropriedades, redundâncias, por aí fo-
ra). Quem escreve assim precisa de ler, e de ler muito, antes de meter o bedelho no que o próximo lê ou
não lê.

Em segundo lugar, não aceito por causa do próprio Plano. O fim "essencial" do Plano é "mobilizar
toda a sociedade portuguesa para a importância da leitura" (a propósito: como se "mobiliza" alguém "pa-
ra a importância"?). Parece que as criancinhas do básico e do secundário não lêem, apesar do dinheiro
já desperdiçado no ensino e em bibliotecas. Claro que se o Estado proibisse a televisão e o uso do
computador (do "Messenger") e do telemóvel, as criancinhas leriam ou pelo menos, leriam mais.
Na impossibilidade de tomar uma medida tão drástica, o Estado pretende "criar um ambiente so-
cial favorável à leitura", com uma espécie de missionação especializada. A extraordinária estupi-
dez disto não merece comentário.

Em terceiro lugar, não aceito por que o Plano é inútil. Nunca se leu tanto em Portugal. Dan Brown,
por exemplo, vendeu 470 000 exemplares, Miguel Sousa Tavares, 240 000, Margarida Rebelo Pinto
vende entre 100 e 150 000 e Saramago, mesmo hoje, lá se consegue aguentar. O Estado não gosta da
escolha? Uma pena, mas não cabe ao Estado orientar o gosto do bom povo. No interior, não há li-
vrarias? Verdade. Só que a escola e a biblioteca, ainda por cima ―orientadas‖, não substituem a livraria.
E um hipermercado, se me permitem a blasfémia, promove a leitura mais do que qualquer imagi-
nável intervenção do Estado.

O Plano Nacional da Leitura não passa de uma fantasia para uns tantos funcionários justificarem
a sua injustificável existência e espatifarem milhões, que o Estado extraiu esforçadamente ao
contribuinte. Quem não percebe como o país chegou ao que chegou, não precisa de ir mais longe: foi
com um número infinito de ―causas nobres‖ como esta. ―Causas nobres‖, na opinião dos srs ministros,
convém acrescentar.».

Muitas foram as reacções a esta posição. Um dos articulistas chega mesmo a fazer o
quadro-síntese das várias posições em confronto (José Geraldes, 20 de Junho):
67

«José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, que integra a comissão de honra, não acredita nas in-
tenções do Plano pois a ―leitura sempre foi e será coisa de uma minoria‖. Neste caso sublinha que ―o
voluntarismo é inútil‖. O historiador e articulista Vasco Pulido Valente discorda também da iniciativa re-
cusando o convite para dar a sua colaboração, argumentando que não é assim que se estimula o hábito
da leitura. No lado oposto, o poeta e escritor Vasco Graça Moura encontra méritos no Plano. Igualmen-
te Marçal Grilo, ex-ministro da Educação e responsável pelo Programa da Língua Portuguesa da Fun-
dação Gulbenkian, com a experiência adquirida neste organismo considera ―muito positiva‖ a acção das
bibliotecas escolares. Mas ressalva que os resultados dos estudos revelam que os estudantes até ao
início da adolescência mantêm níveis de leitura razoáveis em consonância com a média europeia. A
partir daqui os leitores perdem-se.».

Outros participantes na polémica não se inibem de se alinhar por diferentes tomadas


de posição (numa lógica «estou contra» / «estou a favor»), entre elas destacamos a de um
bibliotecário (Fernando Vilarinho, 22 de Maio):

«Por outro lado faço questão de lembrar a VPV que os diversos planos de promoção da Leitura e
afins nunca assumiram a pretensão de atingir determinados fins em si mesmo mas funcionam
como meios, móbiles de estimular a Leitura. Como elementos agitadores de uma pronunciada le-
targia cultural que sempre perpassou o nosso país, e que o VPV com certeza está interessado
que se prorrogue para não lhe „destaparem a careca‟.

VPV arrasa com um Plano que ainda nem público é, limitando-se a verberar as vulgares críticas a
este género de projectos do Governo, e que se ouvem a qualquer esquina do País.

Primeiro, VPV agradeça a Deus ou a quem lhe parecer melhor, que quem lhe corrige previamente
as incorrecções de Língua Portuguesa das suas crónicas ainda ter paciência para o fazer (neste
caso aturar). Segundo, inútil é a sua crónica deste Domingo. Terceiro, VPV esforce-se por apre-
sentar argumentos mais plausíveis, menos chico-espertos e mais respeitosos (até em função
dos seus, ainda, leitores). Por último, sorte a nossa que VPV não é membro da Comissão de
Honra do Plano Nacional de Leitura.».

O registo da resposta passa muitas vezes pela desqualificação do adversário, neste


caso não são utilizadas meias-palavras (Fernando Vilarinho, 22 de Maio):

«Afigura-se-me que somente numa certa nação do mundo ocidental uma personagem como Vasco Pu-
lido Valente (VPV) conseguiria sobressair. Esse país, Portugal, em parte pelos circunscritos índices de
leitura que continua a manifestar, é o terreno ideal para tão jactanciosa personagem continuar a pa-
vonear-se. Ontem, dia 21 de Maio Vasco Pulido Valente, na sua coluna do Público (que pode ser lida
na reprodução que Eduardo Pitta efectuou no Da Literatura), argúi relativamente a uma carta pessoal
que recebeu, asseverando que contém inúmeros e graves erros de Língua Portuguesa. É mais um tes-
temunho da sua inurbanidade efectuar tais acusações sem apresentar a mínima prova, pois numa
simples carta da responsabilidade de ministérios de ‗áreas de âmbito cultural´, será praticamente im-
possível constarem tantas incorrecções. Mas nisso VPV é um bom demagogo!

VPV que ordinariamente nas suas crónicas fala do “duvidoso gosto do Povinho” nas suas op-
ções culturais e afins, quando lhe convém dá o dito por não dito, e aparece como o primeiro de-
fensor de toda a libertinagem de escolhas.»..
68

Mais ainda, a reacção às posições de Vasco Pulido Valente traz para a polémica
alguns articulistas referenciais da imprensa (Eduardo Prado Coelho, 5 de Junho):

«A minha ingenuidade é ilimitada. Eu pensei que um Plano Nacional de Leitura era um projecto
que suscitaria um aplauso unânime. Existe há muito nos outros países e corresponde no nosso
caso a uma necessidade premente. Mas logo um conjunto de vozes se alevantou com as objec-
ções que qualquer coisa, seja ela qual for, suscita neste país: que é inútil, que é para uns tantos
ganharem uns dinheiros, que é uma intervenção na vida social que deve ser livre como um pas-
sarinho, que cada um deve ler o que lhe apetece, e assim por diante, na extensa imaginação que
o disparate sempre tem. (…) Tanta coisa a fazer, e meia-dúzia de espíritos conservadores a ros-
narem contra a iniciativa! Não se trata de dizer às pessoas o que devem ler (leiam o que quise-
rem), nem de nenhum voluntarismo (ao contrário do que me dizem que Saramago terá afirmado,
mas eu não acredito).».

E mesmo alguns académicos de referência a nível dos estudos literários (Helena


Carvalhão Buesco, 6 de Junho) prenunciam-se sobre algumas das opiniões de Vasco Pulido
Valente, neste caso sobre a sua noção de clássicos:

«Poderia ainda responder a V. P. V.: "Pegue ele, por exemplo, em obras como Guernica, de Picasso,
ou Las Meninas, de Velásquez" (um pouco ao acaso, entre tantas outras). Conseguirão muitos "expli-
car" (não gosto da palavra, mas ela é a de V. P. V.) "um centésimo do que lá está"? E uma resposta ne-
gativa invalidará que elas sejam e devam continuar a ser-nos apresentadas como outros tantos clássi-
cos? Não julgo que seja nisso que V. P. V. acredita, aquilo que quer, ou até mesmo faz. Não é cer-
tamente aquilo em que eu acredito, o que quero e o que faço.».

As reacções às declarações de José Saramago também são bastante fortes e incisi-


vas (José Manuel Fernandes, 2 de Junho):

«É também um grito de revolta contra atitudes tão reaccionárias como elitistas como as de José
Saramago, a quem talvez incomode que a multidão do "povo" ascenda ao seu nível. Porque, como sa-
bemos de outros países e outras sociedades, é mentira que leitura sempre tenha sido e esteja con-
denada a ser "coisa de uma minoria".».

Ou ainda (Inês Pedrosa, 17 de Junho):

«É curioso observar como as mesmíssimas pessoas que fazem vida de zurzir no analfabetismo
crónico do país se abespinham quando surge uma medida de combate a esse analfabetismo -
vide o agora enunciado Plano Nacional de Leitura. Da Esquerda à Direita, várias vozes doutas se
prontificaram a futurar a inutilidade do Plano, alegando que a leitura sempre foi e será coisa de
minorias. Entre essas vozes, para minha surpresa, incluiu-se a do nosso Prémio Nobel da Litera-
tura, apesar de figurar na Comissão de Honra do mesmo Plano - por Nobel obrigação, segundo
esclareceu, embora o regulamento do Nobel não obrigue a tais sacrifícios. Outras, mais arreve-
sadas, chegam a alegar que a democratização da leitura é, em si mesma, perniciosa, porque faz
crescer a interpretação de grau zero e a submissão ao senso comum. Esta afirmação não resiste a
um minuto de raciocínio - porque, se é verdade quem nem toda a gente consegue ler em profundidade
textos de maior exigência, não é menos verdade que a democratização concede uma oportunidade de
florescimento às mentes incomuns abafadas por um meio ambiente pobre.».
69

A questão da democratização da leitura é também abordada por outro articulista (Jo-


sé Carlos Abrantes, 5 de Junho):

«Parece estranho que se considere inapropriado dar um impulso à escrita e à leitura, que se
ache utópico tentar democratizar e alargar este gosto.».

De modo a contrapor a algumas vozes discordantes (José Saramago e Vasco Pulido


Valente são os mais visados) é apresentada o argumento dos investimentos estratégicos
para o país, ou seja, se não é melhor investir em iniciativas como o PNL em vez de gastar
dinheiro em casinos e estádios (José Carlos Abrantes, 5 de Junho):

«Se temos dinheiro para casinos e estádios, porque haveria de faltar em sectores que aumentam a inte-
ligência colectiva? A língua é terreno de afirmação profissional para os jornalistas e escritores, para os
professores e artistas, para os homens de negócios. E veículo de expressão para todos os cidadãos. A
sua apropriação colectiva origina mais e melhores leitores. Será que fica mal aos poderes públicos
quererem estimular a leitura, seja por um plano específico com esta finalidade, seja pela criação
de dispositivos como as bibliotecas públicas e escolares, por iniciativas como a criação de um
museu da língua portuguesa?».

Perante estas duas posições, fortemente contraditórias, sobre a necessidade e a


utilidade do Plano Nacional de Leitura, interessa-nos também analisar o posicionamento dos
vários articulistas em função dos prognósticos de sucesso ou de insucesso da iniciativa go-
vernamental. A ideia geral com que se fica é a de que, apesar da adesão à iniciativa gover-
namental por parte de muitos dos articulistas, poucos são os que acreditam verdadeiramen-
te no seu sucesso.

Um primeiro posicionamento está ligado àquilo que poderíamos apelidar de sucesso


condicional, fazendo depender este prioritariamente da escola (Francisco José Viegas, 5 de
Junho):

«Por isso, mais do que um plano nacional de leitura apresentado como uma prioridade nacional e cívica,
com a sua inevitável pompa cheia de valores politicamente correctos, é necessário que a escola mude
alguma coisa nos seus hábitos. A escola e as famílias. Mas a escola cumpre um papel essencial,
razão porque há a esperar alguma coisa desta iniciativa, uma vez que na sua base está também o
trabalho de uma das pessoas que mais fez pela qualidade das bibliotecas escolares, Teresa Cal-
çada, além de uma autora que pôs muitos adolescentes no caminho da leitura, Isabel Alçada. (…)
Se o Plano Nacional de Leitura não devolver os clássicos da nossa língua à escola, não terá su-
cesso.».

Outro articulista (José Manuel Fernandes, 2 de Junho) tem uma posição idêntica à
anterior, fazendo depender o sucesso do envolvimento das famílias, para além do Estado e
da escola:

«Mas por mais perfeito que seja o plano que desenharam e o Governo adoptou e apresentou, só
se lerão mais livros, mais jornais, mais autores eruditos ou mais literatura de cordel se o acto de
ler, de declamar, de elaborar sobre o que se leu, e também de escrever, for tão natural como res-
70

pirar. Ora, sejamos directos, para isso não chega nem o Estado nem a escola: é necessária a fa-
mília, é fundamental o papel dos pais.».

Por outro lado, vários são os factores apontados para o previsível fracasso da inicia-
tiva governamental, como sejam a dificuldade de implementação do PNL no terreno e ainda
as dificuldades de financiamento (Fernando Vilarinho, 22 de Maio):

«O programa efectivo do Plano só irá ser apresentado dia 4 de Junho na Feira do Livro de Lisboa mas
pelo que ao longo do tempo foi escapando cá fora, ajuízo que o plano persistirá essencialmente no
papel, o espectro de instituições e organizações envolvidas apesar de alguns quadrantes vir a
estar muito bem representados noutros pecará por escassez, a própria duração do Plano deveria
ser ainda mais extensa. Mas principalmente não é um programa estruturante mas mormente um
conjunto de medidas e iniciativas. Por outro lado o montante financeiro destinado Plano será relati-
vamente reduzido e não como VPV afirma mais uma causa relevante para a nossa crise económica. Os
diversos documentos associados aos programas de promoção da Leitura estão sempre impreg-
nados de um tom essencialmente retórico e formal, em face da sua inerente natureza e dos pro-
pósitos em que se direccionam. Não são propósitos quantitativos, rigidamente balizados mas
são sobretudo um manifesto de intenções que visa mobilizar o máximo de recursos materiais e
humanos para esse desígnio.».

Há mesmo quem não tenha dúvidas sobre o fracasso do PNL, apontando a profundi-
dade do problema da iliteracia e a dificuldade em o resolver (Rui Manuel Brás, 31 de Julho):

«Na minha opinião, e apenas com base no que está escrito no Relatório Síntese do Plano Nacio-
nal de Leitura, estamos perante mais um fracasso anunciado. Vai-se gastar mais dinheiro em
programas, campanhas de sensibilização da opinião pública e acções de formação, para ter re-
sultados muitíssimo limitados. A intervenção do Estado, ainda por cima desta forma, não resol-
verá o problema. Ele é mais profundo e a solução só virá com uma verdadeira revolução das
mentalidades.».

Posicionamentos face ao PNL [ Síntese ]:

Em relação ao tema-chave posicionamentos face ao PNL, interessa referenciar al-


guns aspectos que consideramos extremamente interessantes:

 Em relação ao Plano Nacional de Leitura existem dois posicionamentos opostos:


de um lado, estão os que o defendem, afirmando a sua necessidade e utilidade
(entre os quais destacamos: Vasco Graça Moura, Eduardo Prado Coelho, Inês
Pedrosa, José Manuel Fernandes e João Morgado Fernandes); do outro lado, es-
tão os que atacam, contestando a sua utilidade (José Saramago e Vasco Pulido
Valente);

 Muito do debate extravasa as questões ligadas directamente ao Plano Nacional


de Leitura, abordando a seu pretexto questões como a situação da educação e
do país, ou mesmo opinando sobre a intervenção estatal e a iniciativa governa-
71

mental. As opiniões assumidas pelos vários intervenientes são claramente condi-


cionadas por posições ideológicas que, de uma forma simplista podem ser descri-
tas da seguinte forma: elementos do status quo = defensores do PNL; elementos
outsiders = atacantes o PNL).

 A polémica é desencadeada pelas tomadas de posições públicas por parte de


José Saramago (na véspera da apresentação do PNL) e de Vasco Pulido Valente
(que aborda o PNL em dois artigos de opinião publicados no jornal Público). Pra-
ticamente todos os articulistas se posicionam contra essas opiniões. Francisco
José Viegas tem um posicionamento um pouco dúbio.

 Os grandes argumentos utilizados por quem defende o PNL são os seguintes:

o É necessário intervir para aumentar os níveis de literacia dos portugue-


ses, o PNL pode ser uma forma de o fazer;

o O Estado, através das escolas, desempenha um papel fundamental, pois


a sociedade civil não o consegue fazer (por exemplo, as famílias);

o Argumenta-se que o PNL vem rentabilizar os investimentos já feitos ao ní-


vel das bibliotecas e da promoção da leitura;

o Defende-se a credibilidade e a capacidade dos promotores do PNL para a


obtenção de resultados.

 Pelo contrário os argumentos utilizados por quem ataca o PNL são os seguintes:

o A situação dos níveis de literacia é má mas não há grande coisa a fazer, a


não ser que se mude radicalmente a sociedade portuguesa

o A intervenção do Estado é desnecessária porque a leitura é uma prática


que deve ficar ao critério de cada um

o Salienta-se o facto de que será dinheiro esbanjado, que servirá para sus-
tentar o funcionalismo político sem que hajam resultados assinaláveis;

o Põe-se em causa a competência técnica das pessoas envolvidas na con-


cepção, planeamento e implementação do PNL;

 Já em relação ao sucesso ou fracasso do PNL as posições são mais diversas e


oscilam entre um sucesso condicionado (fazendo-o depender de uma intervenção
estatal mais ampla ao nível do sistema de ensino e também da adesão das pró-
prias famílias) e o fracasso garantido (reafirmando a ideia de que a situação é ir-
reversível a não ser que existam transformações sociais profundas).

Posicionamentos face ao PNL [ Comentário ]:


72

Da análise dos artigos de opinião constata-se que poucos são os articulistas que
conhecem efectivamente o texto do Plano Nacional de Leitura, mas, mesmo os que o co-
nhecem, utilizam-no como um pretexto para tecer considerações de outra ordem. O que se
nota é que existe uma dicotomia previamente estabelecida entre os que são a favor e os
que são contra. Muitos destes fazedores de opinião esgrimem argumentos numa base regu-
lar, sendo que as suas opiniões são mais condicionadas por questões de natureza ideológi-
ca (e mesmo pessoal) do que de ordem teórica ou conceptual.

A forma como o PNL é avaliado por cada um dos intervenientes na polémica (no que
diz respeito à sua necessidade e utilidade, aos seus pressupostos e estratégias de imple-
mentação, às suas possibilidades de sucesso) está completamente dependente do posicio-
namento prévio daqueles. Ou seja, não se está a dar uma opinião sobre uma política nacio-
nal de leitura está-se a tomar posição sobre o Governo e sobre o Estado. Esta questão é
central pois dela depende todo o decurso da polémica.

Nota-se que certos articulistas tomam primeiro a posição, de matriz ideológica, para
depois procurarem os argumentos que servem a defesa dessa posição. Com isto queremos
dizer que, independentemente dos contornos que uma política nacional de leitura pudesse
tomar, as posições de cada um dos articulistas seriam provavelmente as mesmas. Assim
sendo, podemos afirmar que a polémica tem uma natureza ideológica e mesmo pessoal.
Vasco Pulido Valente e José Saramago são assumidamente outsiders no regime
político português. A radicalidade de algumas das suas posições é conduzida por essa pos-
tura anti-establishment. Estamos em crer (aliás denota-se isso nas estrelinhas dos seus dis-
cursos) que não fora esse comprometimento é as suas posições face ao Plano Nacional de
Leitura seriam bem mais moderadas. Na verdade, tanto um como o outro estão embebidos
no paradigma cultural dominante. Este aspecto é particularmente interessante quando anali-
samos as dinâmicas dos discursos dominantes e alternativos. Nenhum destes dois articulis-
tas consegue enunciar um discurso alternativo, limitam-se a contestar o discurso dominante.
Somos de opinião que a fundamentação de um discurso sobre a leitura que seja alternativo
terá que ter uma base teórica e prática e subtrair-se às opiniões de senso comum veicula-
das pelos fazedores de opinião.

Posicionamentos face à intervenção estatal [ Caracterização ]:

Uma das questões mais debatidas ao longo da polémica foi a da legitimidade da in-
tervenção estatal na área da leitura, corporizada através da implementação do Plano Nacio-
nal de Leitura. Mais uma vez estabeleceram-se duas posições opostas: os que considera-
ram que a intervenção não só era necessária como devida efectuar-se em diversas áreas
(sistema de ensino, mercado editorial, bibliotecas públicas, televisões públicas, etc.); os que
consideraram que a intervenção estatal não só era desnecessária como inútil.
73

A principal forma de intervenção estatal é através do sistema de ensino impondo a


leitura como uma prática obrigatória e diária nas escolas dos diversos graus de ensino (José
Manuel Fernandes, 2 de Junho):

«Mas não chega, pelo que o Plano ontem anunciado procura ir mais longe e criar hábitos (força-
dos) de leitura nos diferentes graus de ensino. Como ideia é positivo, corresponde mesmo a uma
ruptura com a aceitação passiva de que "não se pode fazer nada".».

Mas mesmo essa intervenção estatal esteve sujeita a críticas, apontando-se o facto
de que ela não traz grandes novidades e as poucas novidades que traz são irrealistas (Rui
Manuel Brás, 31 de Julho)

«As actividades previstas para as escolas não trazem nada de particularmente novo. A leitura diá-
ria na aula, as actividades de expressão com livros, os jogos, os concursos, as Feiras do Livro, os Clu-
bes de leitura, e mesmo os encontros com autores, já fazem parte do quotidiano de algumas escolas.
Talvez interesse generalizá-las à escala nacional. O que é novo, é o apoio a blogs e chat-rooms
sobre livros, jornais e revistas e sobre leitura, previsto para os tempos livres dos alunos do 3º
Ciclo e do Ensino Secundário. Interessante mas irrealista, pois não tem em conta o perfil do alu-
no médio daqueles níveis de ensino.».

Uma das outras áreas que alguns articulistas sugeriram que fosse alvo de uma inter-
venção estatal foi a dos canais públicos de televisão. Nesta vertente um dos articulistas é
taxativo (Vasco Graça Moura, 14 de Junho):

«Se há um serviço público de televisão, neste aspecto deveria haver uma ditadura implacável do
Ministério da Educação sobre esse serviço público em todos os canais dependentes do Estado.
Bastava que estes consagrassem à leitura, em horário nobre, a quinquagésima parte do tempo
que dedicam ao futebol para se alterar o panorama desolador que enfrentamos...».

Também a intervenção estatal no mercado editorial foi sugerido por mais do que um
articulistas, seja numa abordagem mais restrita (Vasco Graça Moura, 14 de Junho):

«A terceira, possivelmente mais eficiente e mais barata, consistiria em o Ministério da Educação


convencer os grandes jornais e as editoras de livros para quiosque a publicarem séries comple-
tas desses livros em formato de bolso, com grande tiragem, promoção e distribuição garantidas
e preço muito baixo.».

Ou numa abordagem mais abrangente (Eduardo Prado Coelho, 5 de Junho):

«E é possível tentar fazer chegar livros portugueses junto das novas gerações das comunidades
portuguesas no estrangeiro. E articular o trabalho a realizar no Brasil com aquele, notável, que é
feito pelos professores brasileiros de literatura portuguesa.».

Outra forma sugerida para a intervenção estatal no mercado editorial é através do


apoio a livrarias (Eduardo Prado Coelho, 5 de Junho):
74

«Mas é possível apoiar as novas livrarias, sobretudo dando condições para que surjam em cida-
des que ainda não têm uma presença de qualidade neste domínio. E é possível estabelecer de-
senvolver a formação profissional dos livreiros, para que estes não pensem que O Príncipe de Ma-
quiavel é o título de um romance e saibam que a Fenomenologia de Fernando Echevarría não se arru-
ma na secção de filosofia, mas na de poesia.».

Também aqui há articulistas (Vasco Pulido Valente, 21 de Maio) que têm uma opini-
ão contrária à intervenção estatal. Defendendo a ideia que não só não é necessário intervir
no mercado editorial como o próprio funcionamento de mercado pode ser uma alternativa à
implementação do Plano Nacional de Leitura:

«Em terceiro lugar, não aceito por que o Plano é inútil. Nunca se leu tanto em Portugal. Dan Brown, por
exemplo, vendeu 470 000 exemplares, Miguel Sousa Tavares, 240 000, Margarida Rebelo Pinto vende
entre 100 e 150 000 e Saramago, mesmo hoje, lá se consegue aguentar. O Estado não gosta da esco-
lha? Uma pena, mas não cabe ao Estado orientar o gosto do bom povo. No interior, não há livra-
rias? Verdade. Só que a escola e a biblioteca, ainda por cima “orientadas”, não substituem a li-
vraria. E um hipermercado, se me permitem a blasfémia, promove a leitura mais do que qualquer
imaginável intervenção do Estado.».

Opinião que é rapidamente rebatida por outros articulistas salientando o facto de que
o livro não é somente um bem de consumo mas também um bem cultural (Fernando Vilari-
nho, 22 de Maio):

«Se os hipermercados contribuíram de forma marcada para o fabrico ou o exponenciar de auto-


res best-sellers a verdade é que também têm induzido o asfixiar do mercado dos livros de pe-
quena tiragem e geralmente de maior qualidade literária, didáctica ou académica.».

Ainda no âmbito da intervenção alargada, sublinha-se que o Estado está a fazer a


sua parte cabendo também aos cidadãos assumirem protagonismo (José Manuel Fernan-
des, 2 de Junho):

«Sejam pois bem-vindas as iniciativas previstas no Plano Nacional de Leitura - mas sejam ainda mais
bem-vindos todos os que tirarem proveito dos livros que têm começado a estar ao alcance de um em-
préstimo, à distância de um braço capaz de escolher a leitura que em centenas de bibliotecas públicas
lhes é ou será oferecida. Porque o Estado fez o que devia - agora cabe aos cidadãos, e sobretudo
aos pais, deixarem de pedir e fazerem o que lhes compete. Só eles podem ler histórias aos filhos
antes de estes adormecerem...»

Também aqui há opiniões contrárias à intervenção estatal, que é acusado de ter uma
atitude paternalista ao tentar interferir nas opções familiares (Rui Manuel Brás, 31 de Julho):

«Uma novidade reveladora do papel paternalista do Estado, são os programas para as famílias.
O programa ―Leitura a par‖ (famílias com crianças no Jardim de Infância, 1º e 2º anos), prevê activida-
des de leitura entre pais e filhos e o empréstimo domiciliário com base na biblioteca escolar. O progra-
ma ―Há sempre tempo para ler‖ (famílias com crianças entre o 3º e o 6º anos), inclui o incentivo à leitura
em tempo livre, concursos e jogos on-line e presenciais, ―que tomem como base a leitura domiciliária‖.
Ambos os programas prevêem a definição de ―listas de livros recomendadas para leitura familiar, orga-
75

nizadas por nível de dificuldade‖ e ―orientações para actividades‖. Não é este um caso de tentativa de
interferência do Estado “iluminado” na vida privada das famílias? Programar a leitura de pais e
filhos?! Criar listas de livros recomendados?! Eu falo por mim quando afirmo que não preciso
que o Estado me diga o que o meu filho deve ler, nem quando, nem com quem.».

Este articulista reforça a sua opinião apresentando um raciocínio deveras intrigante


(Rui Manuel Brás, 31 de Julho):

«A quem se destina o Plano? Aos “outros”, isto é, aqueles que não têm “competências básicas
no domínio da leitura e da escrita”, e/ou para quem ler é uma perda de tempo? Quantos desses
encarregados de educação vão, de um ano para o outro, “ver a Luz” e aderir às maravilhas da
leitura em família?! Não se estará a construir uma imagem idílica dos encarregados de educa-
ção?».

Deixámos para o fim a opinião que os vários articulistas têm acerca do papel das
bibliotecas públicas na intervenção estatal (Eduardo Prado Coelho, 5 de Junho):

«Para dar alguns exemplos, podemos lembrar que é possível racionalizar o que se passa nas bi-
bliotecas públicas, poupando esforços e dinheiro do Orçamento do Estado, fazendo circular ex-
posições, ou criando ciclos comuns de conferências e debates, ou desenvolvendo essa excelen-
te ideia que foi o lançamento das comunidades de leitores.».

Vistas como um intervenção estatal estruturante, as bibliotecas pública disponibili-


zam materiais de leitura para os cidadãos (José Manuel Fernandes, 2 de Junho):

«Sejam pois bem-vindas as iniciativas previstas no Plano Nacional de Leitura - mas sejam ainda mais
bem-vindos todos os que tirarem proveito dos livros que têm começado a estar ao alcance de
um empréstimo, à distância de um braço capaz de escolher a leitura que em centenas de biblio-
tecas públicas lhes é ou será oferecida. Porque o Estado fez o que devia - agora cabe aos cida-
dãos, e sobretudo aos pais, deixarem de pedir e fazerem o que lhes compete.».

Mas também as bibliotecas são vistas como um desperdício de dinheiro (Vasco Puli-
do Valente, 21 de Maio):

«Parece que as criancinhas do básico e do secundário não lêem, apesar do dinheiro já desperdiçado
no ensino e em bibliotecas. Claro que se o Estado proibisse a televisão e o uso do computador (do
"Messenger") e do telemóvel, as criancinhas leriam ou pelo menos, leriam mais. Na impossibilidade de
tomar uma medida tão drástica, o Estado pretende "criar um ambiente social favorável à leitura",
com uma espécie de missionação especializada. A extraordinária estupidez disto não merece
comentário.».

São posições como esta que acabam por desencadear reacções por parte de outros
articulistas e dão origem à polémica em torno do Plano Nacional de Leitura (Eduardo Prado
Coelho, 5 de Junho):

«Mas logo um conjunto de vozes se alevantou com as objecções que qualquer coisa, seja ela qual for,
suscita neste país: que é inútil, que é para uns tantos ganharem uns dinheiros, que é uma intervenção
76

na vida social que deve ser livre como um passarinho, que cada um deve ler o que lhe apetece, e
assim por diante, na extensa imaginação que o disparate sempre tem.».

Ou como esta outra reacção por parte de um bibliotecário que considera a interven-
ção estatal incontornável (Fernando Vilarinho, 22 de Maio):

«Não cabe ao Estado orientar o gosto do bom povo? No seu essencial não, mas o Estado (no
sentido lato) ao assumir as suas responsabilidades conformes à instrução, educação e à produ-
ção e difusão de instrumentos, produtos e matrizes de natureza cultural, neste sentido imbrica
com a orientação cultural dos seus cidadãos. Deste modo VPV limita-se a apresentar sonsos
maniqueísmos!».

Todavia também reconhece que muitos dos textos programáticos ligados à promo-
ção da leitura estão repletos de lugares-comuns com objectivos meramente panfletários:

«Se VPV tivesse lido com alguma atenção os programas afins precedentes denotaria que ex-
pressões como por exemplo “mobilizar toda a sociedade portuguesa para a importância da leitu-
ra” são lugares-comuns nesses textos, mormente panfletários. Não são muitos desculpáveis tais
chavões mas são meras reproduções de textos anteriores, mesmo de governos de suas cores partidá-
rias.».

Mas uma das questões centrais acerca da intervenção estatal prende-se com a visão
ideológica ligada a essa intervenção: a defesa da democratização da leitura em oposição a
uma visão elitista (José Manuel Fernandes, 2 de Junho):

«É também um grito de revolta contra atitudes tão reaccionárias como elitistas como as de José
Saramago, a quem talvez incomode que a multidão do "povo" ascenda ao seu nível. Porque, co-
mo sabemos de outros países e outras sociedades, é mentira que a leitura sempre tenha sido e
esteja condenada a ser "coisa de uma minoria".».

Exemplos de iniciativas governamentais são alinhados em defesa da democratização


da leitura, neste caso vindos do Brasil (José Carlos Abrantes, 5 de Junho):

«O Museu da Língua Portuguesa de S. Paulo corresponde a uma concepção moderna e nada eli-
tista de relação com o público. “O objectivo maior é fazer com que as pessoas se surpreendam e
descubram aspectos da língua que falam, lêem e escrevem, bem como da cultura do país em que
vivem, nos quais nunca haviam pensado antes. Que se espantem ao descobrir que sua língua
tem todos aqueles aspectos ocultos. O alvo é a média da população brasileira, mulheres e ho-
mens provenientes de todas as regiões e faixas sociais do Brasil e cujo nível de instrução é, na
maioria, médio ou baixo.” (2) Há portanto quem pense que a língua pode ser descoberta, com
prazer, pela maioria da população, em vez de ficar confinada às elites.».

Posicionamentos face à intervenção estatal [ Síntese ]:

Podemos claramente identificar dois posicionamentos face à intervenção estatal (ma-


terializada através do Plano Nacional de Leitura):
77

 Por um lado, estão aqueles que consideram indispensável a intervenção estatal


em diversas áreas (escola, bibliotecas, mercado, televisão, família). O articulista
mais defensor desta postura é Vasco Graça Moura;

 Por outro lado, estão os que contestam a necessidade da intervenção estatal,


deixando ao mercado, às famílias e aos cidadãos, as dinâmicas de suporte às da
leitura. O articulista que melhor encarna esta postura é Vasco Pulido Valente.

Posicionamentos face à intervenção estatal [ Comentário ]:

O posicionamento discursivo face a intervenção estatal tem um de dois objectivos:


estar a favor é uma tentativa de fazer pressões junto dos governantes, no sentido de fazer
prevalecer uma visão do que devem ser as políticas nacionais (neste caso, referentes à lei-
tura); estar contra é posicionar-se ideologicamente face ao poder dominante, ou seja, é es-
tar contra esse mesmo poder (atacando as políticas governamentais ou defendendo outras
políticas).

O discurso dominante sobre e leitura veicula um posicionamento profundamente eli-


tista (mesmo quando é feito em defesa da democratização da leitura) e conservador (que
tenta impor um paradigma cultural em declínio). A intervenção do Estado (com a sua sujei-
ção às elites) viabiliza a institucionalização do discurso dominante sobre a leitura através do
estabelecimento de políticas nacionais de leitura, que implicam a imposição de uma padro-
nização ao nível das competências de leitura (níveis de literacia), das práticas de leitura (lei-
tura obrigatória nas escolas) e dos gostos de leitura (cânone literário).

Não admira pois que sejam os porta-vozes das elites dominantes a reclamar uma
maior intervenção do Estado e a ditar a forma e o método com que essa intervenção deve
ser efectuada.
78

4. Leitura: entre os discursos e as práticas

4.1. Do excesso dos discursos à pobreza das práticas

Depois de termos procedido no capítulo anterior a uma abordagem do discurso sobre


a leitura numa perspectiva analítica, colocando um especial enfoque na polémica gerada em
torno da apresentação do Plano Nacional de Leitura, interessa-nos agora efectuar uma re-
flexão crítica sobre a relação paradoxal que se estabelece entre os discursos e as práticas
associados à leitura.

Para iniciarmos esta reflexão crítica tomaremos como referência a ideia central abor-
dada no artigo de António Nóvoa5 (do excesso de discursos à pobreza das práticas). Embo-
ra a análise do autor se centre nas problemáticas relacionadas com a educação, surge-nos
como extremamente profícua a possibilidade de transpor para as problemáticas relaciona-
das com a leitura essa mesma tensão entre os discursos e as práticas. Refere o autor
(Nóvoa, 1999):

«Não pretendo, obviamente, sugerir uma oposição entre ―discursos‖ e ―práticas‖, como se estivéssemos
perante dois mundos distintos. Bem pelo contrário. Quero demonstrar de que forma os ―discursos‖ indu-
zem comportamentos e prescrevem atitudes ―razoáveis‖ e ―correctas‖ (e vice-versa). Mas quero mostrar,
também, o modo como eles constroem uma ideia de profissão docente que, muitas vezes, não corres-
ponde à intencionalidade declarada. A chave de leitura do artigo é o par excesso-pobreza, aplicado à
análise da situação dos professores:

 do excesso da retórica política e dos mass-media à pobreza das políticas educativas;

 do excesso das linguagens dos especialistas internacionais à pobreza dos programas de for-
mação de professores;

 do excesso do discurso científico educacional à pobreza das práticas pedagógicas;

 do excesso das ―vozes‖ dos professores à pobreza das práticas associativas docentes.».

Inspirados pelo citado artigo, interessa-nos recensear as tensões excesso-pobreza


dentro de quatro áreas de análise relacionadas com a leitura:

 do excesso da retórica dos mass media à pobreza das políticas estatais;


 do excesso do discurso científico à pobreza das práticas profissionais;
 do excesso de casos de sucesso à pobreza da formação profissional;
5
NÓVOA, António – ―Os professores na virada do milénio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas‖ in Educação e Pesquisa.
São Paulo, 1999. v. 25, n. 1, p. 11-20.
79

 do excesso de intervenções isoladas à pobreza de uma acção concertada.

Do excesso da retórica dos mass media à pobreza das políticas estatais

Como foi possível constatar anteriormente, o discurso sobre a leitura que é dominan-
te é veiculado pelos mass media, sendo um discurso que obedece a uma lógica muito pró-
pria:

 é formulado por fazedores de opinião, que, na sua esmagadora maioria, não são
especialistas nas matérias que comentam (comentam leitura como comentam fu-
tebol, economia, literatura, política, terrorismo, justiça, etc.), o que os impele mui-
tas das vezes para posições pouco fundamentadas;

 é possível constatar a ausência de um quadro teórico de referência que precise


os conceitos e dê rigor às opiniões formuladas, a maioria das quais não conse-
gue subtrair-se ao senso comum (ambiente propício à proliferação do discurso
sobre a leitura que é dominante);

 é notório que falta um certo distanciamento temporal em relação às matérias que


são alvo de comentário, normalmente o que prevalece é o momento presente (a
opinião vale pela sua actualidade face aos acontecimentos), não sendo efectuada
uma genealogia dos factos nem um exercício prospectivo de longo prazo;

 é enformado de um carácter polémico, mais ligado a uma filiação ideológica ou


mesmo partidária do que a uma defesa de diferentes perspectivas teóricas ou
metodológicas sobre as questões abordadas;

 poucos são os comentadores que têm uma voz independente e que se subtraíam
ao papel de porta-voz de posições «do contra» ou «a favor».

O excesso de retórica só pode ser contrabalançado pela constituição de um discurso


sobre a leitura alternativo que funcione como fundador de uma nova opinião pública sobre o
assunto.

As políticas estatais estão, em grande medida, enraizadas no discurso sobre a leitura


que é dominante, concedendo campo de acção a muitas das ideias-chave dos fazedores de
opinião. Apesar da tentativa de exibir um novo aparato teórico e metodológico (veja-se a
utilização de conceitos estruturantes cujos limites não são precisados: promoção da leitura,
mediadores de leitura, leitura a par, etc.), o raciocínio de base que serve de fundamento às
políticas estatais de leitura é o mesmo que já anteriormente identificámos, a saber:

 estamos perante a identificação um fenómeno de não-leitura sobre o qual urge in-


tervir, em regra esta constatação é feita através da divulgação de estudos nacio-
80

nais e internacionais (níveis de literacia, hábitos de leitura, competências de leitu-


ra, etc.);

 a intervenção estatal deve ser assumida como causa nacional e bandeira política
(sob a forma de uma grande iniciativa), ao que nem sempre equivale a afectação
dos recursos financeiros e humanos necessários;

 a intervenção estatal deve ser concretizada prioritariamente através da instru-


mentalização da escola, seja pela integração de novos conteúdos programáticos
como pela adopção de novas atitudes pedagógicas (por exemplo, prescrição de
leituras obrigatórias, desenvolvimento de actividades de leitura a par ou de leitura
em voz alta, assumpção da existência de diversos níveis de competências leito-
ras em alunos do mesmo nível de escolaridade, etc.).

Também ao nível da transposição das políticas estatais do discurso para a prática é


possível detectar algumas vicissitudes da própria lógica de intervenção estatal. Estamos
perante uma dinâmica que é lançada do centro para a periferia (diríamos mesmo, do Terrei-
ro do Paço para a Província) e é instituída através de vários organismos estatais (que estão
envolvidos em todas as fases do processo: planeamento, implementação, avaliação). Esta
lógica de intervenção, que muitas vezes não deixa raízes no terreno, é uma das principais
razões para a efemeridade de muitas das iniciativas estatais. Logo que os financiamentos
são retirados é como se fosse desligado o sistema rega gota-a-gota. Voltaremos a esta
questão mais adiante.

Do excesso do discurso científico à pobreza das práticas profissionais

Não existe em Portugal propriamente um excesso de produção de discurso científico


sobre a leitura, existe sim um desfasamento excessivo entre essa produção e a sua aplica-
ção nas práticas profissionais. A produção do discurso científico sobre leitura está enqua-
drada pelas disciplinas académicas que lhe dão origem (sociologia, história, linguística, psi-
cologia, ciências da educação, etc.) regendo-se por programas de investigação que não
obedecem a imperativos de aplicação prática. Tirando raras excepções (que normalmente
acontecem por encomenda estatal), como são os casos dos estudos dos hábitos de leitura e
dos níveis de literacia, o discurso científico sobre a leitura é produzido e reproduzido em
âmbito académico e tem como principal enfoque o sistema de ensino (em particular o ensino
da língua materna).

Falta-lhe sobretudo uma dimensão social da leitura, ou seja, uma capacidade anali-
sar as práticas de leitura da população e influir sobre as políticas nacionais de leitura. Esta
circunstância é mais evidente quando tomamos contacto com as situações que se vivem
noutros países (Inglaterra, França, Espanha, Brasil, etc.), em que a leitura é alvo de um
81

aceso debate que envolve especialistas e profissionais. Esta falta de reflexão crítica e de
debate circunstanciado também não contribui para a tomada de consciência sobre um con-
junto de problemáticas, abordadas por uma série de autores e de obras de referência.

Realçamos ainda o facto de que nem os especialistas nem os profissionais que


abordam a leitura (na sua dimensão teórica e na sua dimensão prática) conseguirem veicu-
lar um discurso sobre a leitura alternativo ao discurso que é dominante. A polémica em torno
da apresentação do Plano Nacional de Leitura é disso exemplo. Fora dos jornais (onde o
púlpito está reservado para os fazedores de opinião oficiais), a leitura superficial dos posts
colocados nos blogs acerca do PNL (conseguimos recensear cerca de uma centena) permi-
te-nos catalogá-los em dois registos: a mera reprodução digital dos artigos dos jornais (vei-
culando deste modo o discurso sobre a leitura que é dominante); a apresentação de comen-
tários de senso comum (tomando posição sobre as questões mais quentes da polémica nos
jornais). Estes posts são produzidos maioritariamente por professores e, mais raramente,
por bibliotecários. Regra geral, denotam uma falta de rigor dos conceitos utilizados, de ca-
pacidade para desconstruir o discurso veiculado pelos jornais e, mais interessante, um des-
conhecimento dos contornos do PNL.

Essa situação torna-se ainda mais evidente quando atendemos ao facto de que o
discurso científico das ciências documentais nunca se apropriou das problemáticas ligadas à
leitura, relegando-as para a periferia da sua reflexão sobre as bibliotecas públicas ou sobre
as bibliotecas escolares. Mais recentemente, com o advento da internet, ganhou preponde-
rância o discurso sobre a biblioteca pública enquanto porta de acesso local à sociedade da
informação, ou, numa formulação mais recente, à sociedade do conhecimento. Este é tam-
bém o período em que conceito de biblioteca de leitura pública (matriz francesa) é substituí-
do pelo conceito de biblioteca pública (matriz anglo-saxónica). No âmbito deste discurso as
problemáticas ligadas à leitura foram marginalizadas pelas próprias bibliotecas públicas, que
as remetem para a esfera da educação, da escola e dos professores. Refira-se novamente
que durante a polémica que envolveu a apresentação do PNL os bibliotecários, de um modo
geral, primaram pela ausência.

Numa primeira perspectiva, a pobreza das práticas, por parte dos bibliotecários, justi-
fica-se pelo desconhecimento de um corpus teórico-prático que subjaz ao trabalho de pro-
moção da leitura. Muitas das práticas padecem de uma falta de suporte conceptual e pecam
por um mimetismo acrítico. Os modelos mais divulgados são descontextualizadas e aplica-
das vezes sem conta (hora do conto, encontro com o autor, feira do livro, exposição biobibli-
ográfica, curso breve de literatura, etc.) não sendo avaliados nem a sua pertinência nem a
sua eficácia. Esta abordagem à promoção da leitura foi reforçada pela lógica de intervenção
do Programa Nacional de Promoção da Leitura que, depois de uma fase inicial muito pro-
missora (com uma forte aposta na formação de profissionais e no estudo sociológico sobre
82

as realidades intervencionadas), ficou circunscrito a um programa de itinerâncias culturais


que cria dependências e incentiva indolências.

Numa segunda perspectiva, podemos afirmar que a pobreza das práticas decorre do
estatuto de menoridade que é atribuída a promoção da leitura. Raros são os bibliotecários
que encaram a promoção da leitura como uma actividade com vital importância para a con-
cretização das missões de uma biblioteca pública. Na melhor das hipóteses, a promoção da
leitura está circunscrita a uma intervenção desarticulada e incipiente que tem nas crianças
do primeiro ciclo do ensino básico o seu alvo preferido ou é assumida numa dimensão de
evento para colocar a biblioteca pública sob a atenção dos autarcas. Longe vão os tempos
em que a leitura era o elemento estruturante do próprio conceito de biblioteca (bibliotecas de
leitura pública).

Numa terceira perspectiva, podemos constatar que a pobreza das práticas decorre
da ausência de um reflexão circunstanciada sobre as práticas de promoção da leitura que
são realizadas. Não existe o hábito de proceder à avaliação das acções realizadas, nem
existe a aposta na realização de estudos de acompanhamento. Não existem também fóruns
que agendem o debate de ideias e a troca de experiências entre profissionais a pretexto da
leitura. Não existem publicações especializadas sobre leitura que difundam mapas concep-
tuais ou dêem a conhecer os caminhos traçados por outros. Assim sendo, torna-se extre-
mamente difícil proceder à identificação e disseminação das boas práticas a nível nacional.
Como consequência, cada biblioteca pública inicia o seu trabalho no grau zero da promoção
da leitura, deparando-se com os mesmos obstáculos e cometendo os mesmos erros que os
outros que a precederam.

A tudo isto não é estranho o facto de que a abordagem das problemáticas ligadas à
leitura não faz parte dos conteúdos programáticos dos cursos de especialização em ciências
documentais ou dos cursos de formação de técnicos profissionais de biblioteca e documen-
tação.

Do excesso de casos de sucesso à pobreza da formação profissional

A ausência de uma inventariação sistemática de boas práticas, que tenha por base
uma avaliação rigorosa e independente (com critérios claros e inequívocos, que se subtrai-
am a uma lógica meramente quantitativa), conduz a uma proliferação excessiva de casos de
sucesso.

Muitas das vezes não são conhecidos os pressupostos teóricos e metodológicos em


que assentam nem são validados os resultados efectivamente alcançados. Deste modo não
é possível destrinçar o sucesso aparente do sucesso efectivo. Habitualmente estes casos de
sucesso são divulgados pela mão dos seus mentores (em encontros e congressos, em re-
83

vistas e livros) sem que haja um aconselhável distanciamento crítico. São também alvo de
um mimetismo acrítico por parte de todos aqueles que andam à procura da fórmula mágica
para formar leitores. Podemos também aqui incluir a importação de casos de sucesso es-
trangeiros que, desenraizados do terreno que lhe deu origem, não chegam a dar frutos. Es-
tas importações estão mais sujeitas a fenómenos de moda do que à pertinência dos mode-
los e dos métodos, tanto mais que é regra ignorar o contexto específico em que estão inse-
ridos.

O mimetismo acrítico substitui (aparentemente) a necessidade de desenvolver o tra-


balho de promoção da leitura em função do público-alvo, do contexto sociocultural, dos re-
cursos disponíveis e do saber e experiência dos técnicos envolvidos. Daqui decorre uma
natural desvalorização da necessidade de aquisição de formação, na área da leitura, por
parte dos técnicos que trabalham nas bibliotecas públicas.

Esta constatação aplica-se ao nível da formação inicial (por opção corporativa, plas-
mada nos programas de formação do Curso de Especialização em Ciências Documentais e
do Curso de Técnicos Profissionais de Biblioteca e Documentação) como ao nível da forma-
ção contínua (por opção individual, os bibliotecários não frequentam as acções de formação
disponíveis pois consideram que estas são dirigidas tão somente aos técnicos profissionais)
dos técnicos superiores de biblioteca e documentação e dos técnicos profissionais de biblio-
teca e documentação. É aceite como sendo perfeitamente normal (será?) ser bibliotecário
numa biblioteca pública sem nunca ter abordado (em sede de formação profissional) ques-
tões como: a história da leitura, os hábitos de leitura, o desenvolvimento psicolinguístico da
criança, a literatura para crianças e jovens, as dinâmicas de grupo que estruturam as rela-
ções entre os jovens, as estratégias e os modelos de promoção da leitura, etc.

A formação profissional ligada às problemáticas da leitura está refém da aplicabilida-


de prática dos conceitos, dos métodos e dos modelos. O que se procura são fórmulas de
aplicação imediata e de sucesso garantido. A oferta de formação contínua na área da leitura
é muito escassa e é composta por um aglomerado de temáticas (literatura infantil, animação
da leitura, contos tradicionais, leitura em voz alta, etc.) sem uma contextualização ao nível
de um quadro teórico de referência ou de uma metodologia de implementação.

Esta situação decorre directamente do facto de não estar constituído um corpus teó-
rico-prático sobre a leitura para onde confluam a dimensão teórica (necessariamente alimen-
tada por contributos multidisciplinares) e a dimensão prática (entendida aqui como a inter-
venção institucional em torno da leitura, ou seja, das escolas e das bibliotecas). Não haven-
do este corpus, o que se transmite são experiências pessoais (numa perspectiva do técnico
ou numa perspectiva do especialista) e experiências institucionais (experiência de sucesso
A, experiência de sucesso B, método A, método B, etc.). Inibe-se, deste modo, os forman-
84

dos de adquirem a autonomia de conceberem, implementarem e avaliarem, as suas próprias


práticas profissionais em torno da leitura.

Por último, gostaria de deixar uma nota acerca do Mestrado em Ciências da Educa-
ção – especialização em Educação e Leitura. Este mestrado é o primeiro em Portugal que
faz da leitura o seu centro de atenção, todavia, o que acontece é que muitos dos mestran-
dos buscam não o aprofundamento de uma abordagem teórica (que suporte um percurso de
investigação) mas uma abordagem prática (que suporte uma prática profissional) às ques-
tões da leitura. Esta distorção da função do mestrado fica-se a dever, como já referimos, à
falta de oferta ao nível de formação inicial e de formação contínua adequada aos actores do
terreno (principalmente para os professores e para os bibliotecários). A instituição deste
mestrado constitui-se como uma oportunidade única para o estabelecimento e consolidação
de um corpus teórico-prático, que alimente um discurso científico sobre a leitura mais voca-
cionado para a sociedade e que suporte um conjunto de estratégias de intervenção tanto ao
nível nacional como ao nível local.

Do excesso de intervenções isoladas à pobreza de uma acção concertada

Todas as bibliotecas públicas, ou quase todas, disponibilizam actividades de hora do


conto dirigidas a crianças do primeiro ciclo do ensino básico. Todavia, este tipo de interven-
ções sofre de um múltiplo isolamento: não estão contidas em projectos de continuidade,
cada acção para cada grupo escolar é única e efémera; não estão ligadas a outro tipo de
intervenções para esse mesmo público ou para públicos diferentes (adolescentes, jovens e
adultos); não estão entroncadas numa política local, regional ou nacional, estando circuns-
critas a si mesmas sem um enquadramento teórico ou metodológico; não são avaliadas,
discutidas e partilhadas, tanto nos seus pressupostos como nos seus resultados. Este é um
exemplo paradigmático do tipo de intervenções isoladas de que estamos a falar.

As explicações para esta situação de isolamento têm sido referenciadas por nós ao
longo deste capítulo. No entanto, gostaríamos de reforçar novamente a ideia de que se isto
acontece é em grande medida devido a três factores.

Em primeiro lugar, devido à inexistência de uma abordagem integrada, ao nível teóri-


co e ao nível prático, das problemáticas ligadas à leitura que, em nossa opinião, deveriam
confluir para a constituição de um corpus teórico-prático que alimentasse as práticas profis-
sionais e sustentasse os discursos sobre a leitura.

Em segundo lugar, acontece também devido à fraca cooperação entre bibliotecas


públicas e entre estas e as bibliotecas escolares. Esta fraca cooperação nota-se na falta de
projectos (com uma definição clara ao nível do público-alvo, dos objectivos, das estratégias,
das acções, dos recursos, da calendarização, dos financiamentos, das formas de avaliação
85

e de disseminação de resultados) com base em parcerias locais ou regionais que envolvam


directamente várias bibliotecas públicas, bibliotecas escolares, centros de formação de pro-
fessores, universidades, etc. Estes projectos devem ser alicerçados num conjunto de pres-
supostos teóricos e metodológicos credíveis e com potencial de futuro. Uma forma de incen-
tivar o surgimento deste tipo de projectos é através da criação de linhas de apoio para a sua
implementação. A Fundação Calouste Gulbenkian já faz isso, embora apoie os projectos de
bibliotecas municipais e os projectos das bibliotecas escolares de forma isolada. Esta é,
quanto a nós, uma fragilidade. Outro aspecto que seria de melhorar era o da avaliação dos
projectos por comissões de peritos e a disseminação das boas práticas.

Em terceiro lugar, devido ao facto de não se realizarem experiências-piloto em con-


dições controladas. Ou seja, aplicar no terreno novas práticas, que partam de pressupostos
teóricos e metodológicos inovadores, com um acompanhamento ao nível dos processos e
dos resultados, se possível por agentes externos ao próprio projecto (por exemplo, investi-
gadores de uma universidade). A excepção a esta regra passa por algumas experiências
realizadas no âmbito de uma parceria entre o Instituto Português do Livro e Bibliotecas e do
Gabinete de Coordenação da Rede de Bibliotecas Escolares.

Como consequência, entendermos que é fundamental apostar numa acção concer-


tada, que se consubstancie na realização de programas de promoção de leitura tendo por
base uma cooperação efectiva e consolidada ao nível local (entre biblioteca – escola – famí-
lia), ao nível regional (entre diferentes bibliotecas públicas) ou ao nível nacional (entre diver-
sos tipos de instituições e organismos). Esta acção concertada parte da base para o topo,
ou seja, da cooperação local para a cooperação nacional. Só com base neste tipo de coope-
ração é possível pensar em intervenções que façam a diferença, tanto ao nível da imple-
mentação das políticas como ao nível dos resultados alcançados. As próprias políticas naci-
onais deveriam ser formuladas em função das dinâmicas do terreno e em função dos resul-
tados alcançados. Deveriam também ter em atenção o envolvimento das instituições e dos
profissionais aos mais diversos níveis.

4.2. Mudar os discursos, mudar as práticas

«Mudar os discurso, mudar as práticas». A plena materialização desta máxima impli-


ca o despoletar de dois processos paralelos e mutuamente referenciados: a desconstrução
do discurso com recurso a um novo referencial teórico e metodológico, no âmbito do qual
seja possível apreender o discurso enquanto objecto de estudo (plano da investigação aca-
démica); a assumpção de uma postura interventora que esteja comprometida com a valori-
86

zação social e cultural da diversidade das leituras e dos leitores (plano da acção profissio-
nal). Vejamos o que poderia ser um esboço programático para esta mudança (ALB, 1999):

«A suposição de que a gente não lê porque não conhece os segredos maravilhosos do mundo da leitu-
ra, porque não tem o estímulo apropriado, porque não tomou o gosto pela leitura, não resiste à análise
isenta e sincera.

O que nos parece necessário, mais do que campanhas promocionais de prática de leitura, é indagar,
sem pré-juízos, quem, o quê, como, em que condições, por que razões lê, ou não lê, isto ou aquilo, em
outras palavras, trata-se de verificar que fatores sociais, políticos, econômicos, culturais, promovem ou
desfavorecem esta ou aquela leitura. Trata-se de abandonar a postura magistral de quem sabe o que
outro deve ser ou fazer e permitir que aflorem as contradições, os interesses, os valores que informam
as práticas leitoras na sociedade contemporânea. Trata-se, enfim, de pôr em questão tanto as leituras
quanto os discursos sobre leitura, permitindo que se manifestem as práticas veladas, desautorizadas e
desconsideradas. Talvez, desse modo, se torne possível o debate franco e sem preconceitos sobre a
leitura e cultura, leitura e sociedade.».

Estamos perante um programa de investigação-acção em que o papel do investiga-


dor/profissional é determinante tanto ao nível da mudança dos discursos, como ao nível da
mudança das práticas. Neste contexto, gostávamos de referir cinco factores que nos pare-
cem determinantes para o sucesso deste programa:

 constituir um discurso sobre a leitura alternativo, baseado num corpus teórico-


prático de referência, onde confluam as reflexões dos especialistas e as práticas
dos profissionais e onde se contraponham factos a argumentos, reflexão crítica a
senso comum, análise de realidades a projecções ideológicas, especialistas e
profissionais a fazedores de opinião;

 afirmar esse discurso sobre a leitura alternativo num duplo sentido: junto dos de-
cisores políticos e institucionais, de modo a influir sobre a definição, implementa-
ção e avaliação das políticas nacionais de leitura; junto dos professores e dos bi-
bliotecários, que têm um papel determinante na aplicação prática do corpus teóri-
co-prático sobre a leitura;

 repensar a formação académica de base dos bibliotecários, assumindo, de uma


vez por todas, a abordagem das problemáticas ligadas à leitura como parte es-
sencial da preparação para o exercício de uma actividade profissional, principal-
mente no âmbito das bibliotecas públicas, em que a leitura continua a ser um
elemento estruturante;

 assumir a necessidade de alicerçar as práticas do terreno em pressupostos, em


métodos e em estratégias, que sejam passíveis de ser avaliados e revistos, cri-
ando linhas de investigação comprometidas com a dimensão social da leitura,
87

que sejam posteriormente divulgadas e debatidas, de modo a identificar e a dis-


seminar boas práticas;

 assumir uma postura profissional mais consciente e proactiva socialmente, que


defenda a diversidade das leituras e a diversidade dos leitores, assumindo um
discurso e desenvolvendo práticas que fundamentem essa diversidade, devol-
vendo às bibliotecas públicas o seu carácter de instituições-âncora de uma políti-
ca de leitura pública (na sua dimensão política, social e técnica).

Revemo-nos pessoalmente neste programa. Deste modo, gostaríamos de enunciar


quais as linhas de desenvolvimento futuro do nosso trabalho de investigador e do nosso
trabalho de bibliotecário.

A perspectiva do investigador: mudar os discursos

Não basta mudar as práticas, há que rever o discurso sobre a leitura que é dominan-
te, o que implica necessariamente tomar o discurso como objecto de análise crítica, percep-
cionar os seus mecanismos de legitimação, de reprodução e de perpetuação. Caso contrá-
rio, corremos o risco de, apesar de todas as medidas e do sucesso efectivo de algumas de-
las, daqui por dez, vinte ou trinta anos, continuarmos a ouvir exactamente as mesmas ideias
feitas veiculadas pelo discurso sobre a leitura que é dominante (ALB, 1999):

«Mais ainda, ela justifica programas de ensino e de promoção à leitura, legitima campanhas de mídia,
estimula produção de teses e projetos de pesquisa, ações beneficentes e, com isso, num processo vici-
oso, alimenta-o (e se alimenta do) mito de que este é um país sem cultura e sem valores. Curiosa-
mente, se fizermos uma análise acurada dos resultados das campanhas de promoção de leitura nos úl-
timos 30 anos, a única conclusão possível é que o problema não tem mesmo solução. Dizia-se, há trinta
anos, ou cinqüenta, ou duzentos anos, exatamente o que se diz hoje. E por isso mesmo, já há algum
tempo, a Associação de Leitura do Brasil vem batendo na tecla de que é preciso rever o discurso ainda
dominante do que ler é e de quem é leitor.».

Para além da dimensão linguística do discurso interessa-nos a sua dimensão social.


Somos de opinião que a Análise Crítica do Discurso pode materializar essa nova abordagem
teórica e metodológica. O contributo da ACD passa pela abordagem de temas-chave do
discurso sobre a leitura numa perspectiva crítica: a definição do que é ler (encarada aqui
como prática sociocognitiva e sociocultural); a recensão e valorização dos diferentes estatu-
tos da leitura e dos leitores; a prescrição das leituras (dentro da lógica boas leituras / más
leituras); as implicações da ideia do prazer de ler; a crise da leitura (equacionada dentro das
transformações do acto de ler e dos suportes de leitura); o papel das bibliotecas enquanto
instituições centradas na leitura; o estatuto dos bibliotecários enquanto profissionais da leitu-
ra; as políticas de leitura e os modos de intervenção estatal; a filosofia de leitura e as condi-
ções institucionais, programáticas e metodológicas para a sua efectiva implementação.
88

Para tal, teremos que dar continuidade ao processo investigativo agora iniciado pro-
cedendo à aplicação do quadro teórico e metodológico de referência a uma maior diversida-
de de corpus documentais.

Num primeiro momento, analisando manifestos e declarações (sobre bibliotecas pú-


blicas, leitura pública, promoção da leitura, sociedade de informação): Manifesto da Unesco
sobre as bibliotecas públicas (versões de 1949, 1972, 1994); Manifesto leitura pública em
Portugal; Manifesto leitura, cidadania, liberdade; Declaração de Copenhaga, etc. Neste tipo
de documentos podemos verificar o modo como é construída a ideia utópica da leitura (e da
sociedade leitora).

Será igualmente importante proceder á análise de documentos institucionais do Es-


tado, produzidos no âmbito de diversos organismos públicos: Instituto Português do Livro,
Instituto Português do Livro e da Leitura; Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro; Instituto
Português do Livro e das Bibliotecas; Rede Nacional de Bibliotecas Escolares; Plano Nacio-
nal de Leitura. E também produzidos por organismos subsidiários do Estado, por exemplo, o
Conselho Nacional de Educação (onde convergem a visão dos decisores, dos especialistas,
dos professores e dos bibliotecários) ou o Conselho Superior de Bibliotecas (com a visão
dos decisores de topo, dos representantes das associações e de alguns profissionais do
terreno). O objectivo será o de recensear os pressupostos em que assentam as políticas
nacionais de leitura.

Por outro lado, analisando as intervenções dos profissionais sobre as questões da


leitura, em artigos de opinião, em comunicações a congressos e a encontros e em relatórios.
Daremos especial atenção ao discurso fundador da leitura pública em Portugal, pela voz do
seu principal ideólogo (Henrique Barreto Nunes). Interessa-nos aqui identificar o discurso
dos profissionais, que trabalham nas bibliotecas públicas, sobre a leitura.

Além destas, analisando as intervenções em órgãos de comunicação social dos fa-


zedores de opinião, tal como é exemplo recente a polémica em torno da apresentação pú-
blica do Plano Nacional de Leitura. O objectivo primeiro passa pela identificação do substra-
to ideológico que alimenta o discurso sobre a leitura que é dominante.

Por fim analisando os discursos políticos em torno da leitura (de membros do Gover-
no e da Oposição, assim como dos autarcas) que, por exemplo, estão registados nos dis-
cursos oficiais aquando da inauguração de bibliotecas municipais ou de momentos de parti-
cular simbologia (por exemplo, Dia Mundial do Livro). Mais uma vez, numa perspectiva um
pouco diferente, interessa-nos identificar os pressupostos em que assentam as políticas
nacionais de leitura.

O nosso fim último será o de efectuar a análise crítica dos discursos sobre a leitura
produzidos no Portugal democrático.
89

A perspectiva do bibliotecário: mudar as práticas

Somos de opinião que a mudança das práticas nas bibliotecas públicas, no que diz
respeito à leitura, passa pela assumpção por parte dos bibliotecários que trabalham nessas
bibliotecas de uma postura interventora que esteja comprometida com a valorização da di-
versidade social e cultural das leituras e dos leitores.

Esta valorização, no nosso entendimento, concretiza-se na implementação efectiva


nas bibliotecas públicas portuguesas de duas ideias-chave: a leitura pública (lecture publi-
que), entendida neste contexto como uma política nacional de leitura que assume as biblio-
tecas públicas como principais instituições de suporte; o desenvolvimento do leitor (reader
development), entendido aqui como uma filosofia de funcionamento das bibliotecas públicas
que coloca o leitor no centro de tudo. Vejamos cada uma destas ideias-chave, nas suas
principais características e nas suas implicações práticas.

Em 1987 quando começaram a ser abertas ao público as novas bibliotecas munici-


pais, a leitura pública era uma ideia estruturante, de tal modo que se convencionou chamar-
lhes bibliotecas de leitura pública.

Numa perspectiva técnica, estas bibliotecas consubstanciavam um novo modelo de


organização dos espaços (biblioteca sectorial, com espaços diferenciados para adultos e
para crianças, com espaços para jornais e revistas mas também para audiovisuais); das
colecções (com carácter enciclopédico e generalista, constantemente actualizadas, repre-
sentando diversos pontos de vista, englobando diferentes géneros, disponibilizadas em livre
acesso); dos serviços (em que a grande novidade era o empréstimo domiciliário) e das acti-
vidades (entre as quais se destacavam as que tinham o livro e a leitura por mote).

Numa perspectiva política, estas bibliotecas assumiam-se claramente como institui-


ções democráticas: que estavam ao serviço de todos os segmentos da população; que arro-
gavam a leitura como um direito que a todos assiste; que faziam do combate às desigualda-
des sociais e culturais uma bandeira; que ofereciam os serviços de forma totalmente gratui-
ta; que procuravam elevar os níveis de leitura das comunidades que serviam; que queriam
fazer parte de um modelo de desenvolvimento sustentável; que acreditavam no poder trans-
formador das bibliotecas públicas.

A leitura pública tornou-se uma realidade social, tal como os estudos sociológicos,
encomendados pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas ao Observatório das Acti-
vidades Culturais, o demonstram (Lopes e Antunes, 1999-b):

«De forma sintética (e correndo o risco de algum reducionismo) poderíamos resumir nos seguintes ei-
xos o novo modelo de biblioteca consubstanciado nos estudos de caso:
90

 polivalência, assente, antes de mais, na multiplicação de espaços, de diferentes funções e por


vezes com públicos específicos (auditório, cafetaria, sector audiovisual – incluindo vídeos,
CD‘s, CR-ROM‘s e internet –, espaço infantil, centro de recursos pedagógicos, etc.);

 divulgação e animação cultural, assumindo o seu papel de mediação e de aproximação a pú-


blicos alargados, mediante a proliferação de iniciativas, directa e indirectamente relacionadas
com o livro (leitura dramatizada, debates e conferências com escritores e outros criadores cul-
turais, feiras do livro, exposições, comemoração de datas simbólicas, realização de concertos,
animações de rua, etc.);

 estratégias inclusivas de democratização cultural, baseados no princípio explicitado pelo direc-


tor da biblioteca de Beja, de que a lógica prioritária será a de servir os interesses das pessoas
e não a das instituições ou dos objectos (o que constituiria um grave sinal de alienação…),
com reflexos no regime de livre acesso a qualquer publicação ou documento, na multiplicação
de serviços e, ainda, na diversidade de géneros literários e de suportes, do livro ao jornal, pas-
sando pela revista. Pretende-se, desta forma, afastar qualquer tentação de exercício de violên-
cia simbólica pela imposição de uma determinada modalidade de gosto;

 aposta forte no marketing e na “sedução”, através do estabelecimento de cumplicidades com


os utentes e de ―surpresas‖ que subvertem o quotidiano;

 estabelecimento de redes de contactos e de parcerias, de forma a estimular o intercâmbio e a


abertura ao exterior, possibilitando a circulação de informação e a co-organização de iniciati-
vas;

 atenção especial às populações desfavorecidas ou debilitadas, como é o caso de certas fran-


jas de idosos, desempregados, populações prisionais e minorias étnicas.

Em suma, as bibliotecas em estudo adoptam uma postura de intervenção social activa (não são institui-
ções neutras nem tão-pouco actuam num vácuo social), assumindo o seu estatuto de biblioteca pública,
com a responsabilidade de uma acção territorialmente delimitada, aberta às dinâmicas sociais emergen-
tes, dirigindo energias para a fidelização e alargamento de utentes numa óptica de desenvolvimento
democrático.».

Em 1999, o balanço que era possível fazer permitia concluir a existência de uma re-
lação positiva existente entre as bibliotecas municipais e a leitura (Lopes e Antunes, 1999-
b):

«Em síntese, parece-nos que terá validade a pertinência de considerar como profícuos os princípios de
acção cultural que colocam a ênfase no cruzamento de reportórios e referências associados às redes
de inserção dos praticantes culturais. Do mesmo modo, fará todo o sentido apostar em equipamentos
estruturantes, geridos de acordo com estratégias de inclusão social direccionadas para a reconversão
democrática de habitus primários. O desenvolvimento cultural – o desenvolvimento em geral – também
passa por aqui.».

Todavia, somos de opinião que, para revitalizar a importância estruturante da ideia-


chave de leitura pública, há que a reequacionar tendo em conta alguns aspectos que consi-
deramos fundamentais:
91

 apostar na leitura pública como uma política de âmbito nacional mas de aplicação
local, ou seja, criar as condições efectivas para que as bibliotecas públicas pos-
sam funcionar como instituições-âncora das dinâmicas sócio-culturais em torno
da leitura;

 repensar os conceitos de leitura e de leitor no contexto da sociedade contempo-


rânea, marcada pela emergência das tecnologias de informação e comunicação
e, paralelamente, pelos novos suportes e formatos dos materiais de leitura;

 ter uma abordagem mais pragmática e realista em relação aos objectivos que se
propõe atingir, ou seja, abandonar a utopia de uma biblioteca para todos em favor
de uma biblioteca para os que querem ler;

 não ceder à tentação das abordagens fáceis tendo como horizonte os resultados
imediatos, isto é, conseguir um equilíbrio entre o aproveitamento das lógicas do
mercado editorial sem abdicar das missões de âmbito cultural.

Em relação a estes pontos, gostaríamos de reforçar a ideia que a leitura pública não
pode funcionar como contra-discurso ao discurso sobre a leitura que é dominante. O seu
estatuto é diverso, pois estamos perante uma politica nacional de leitura que deverá definir
claramente os seus objectivos, as suas estratégias, os seus métodos, os seus modelos e os
recursos estratégicos indispensáveis à sua concretização (Carvalho, 2002):

«O professor Paulo Freire através de vários livros, tem procurado mostrar que há uma saída para esca-
par dos mecanismos de reprodução rotineiras e automáticas: fazendo da sua prática profissional um
processo que possibilite uma emergência cultural. Achar as brechas para uma pratica de ação cultural
tem sido quase uma obsessão para muitos profissionais, principalmente aqueles ligados a área de edu-
cação e comunicação.

Os bibliotecários por sua vez procuraram desenvolver programas que estimulassem o usuário a desco-
brir suas verdadeiras necessidades, mantendo-se sempre dispostos a receber novas criações. Para que
isso se efetive realmente, é necessário que os bibliotecários tenham uma posição lúcida a respeito da
sua prática; é necessário reconhecer a dominação invisível nas "entrelinhas" dos discursos para poder
decodificá-los, e também conservar uma postura crítica diante do que se chama "cultura popular‖, para
não fomentar uma aura de romantismo que se cria em torno da "cultura do povo".

Esta visão fomenta o populismo e termina por destruir a autonomia da luta dos dominados; nem sempre
por ser cultura do povo significa libertadora.».

Outra ideia que queríamos reforçar é a de que as bibliotecas públicas são indispen-
sáveis para sustentar o lançamento de políticas nacionais de leitura (Basanta e Hernández,
2002):

«Pero, en definitiva, la mejor campaña de fomento de la lectura que puede haber en una comunidad es
la creación y desarrollo de una red de bibliotecas públicas modernas, con una adecuada dotación de re-
cursos informativos, humanos y materiales. Por el contrario, cabe dudar razonablemente de la eficacia y
92

procedencia de las campañas de promoción de la lectura que no tengan en su base una BP que las
promueva o sean, cuando menos, el esfuerzo de sensibilización social e institucional para la creación de
una biblioteca.».

Todavia, a implementação em todas e em cada uma das bibliotecas públicas portu-


guesas de uma política de leitura pública só será efectivamente concretizada se estas adop-
tarem uma filosofia de funcionamento que coloca o leitor no centro de tudo (reader-centred
approach). Ou seja, se a leitura for estruturante não somente ao nível do conceito mas tam-
bém ao nível do quotidiano da biblioteca pública. Na prática isto significa que os espaços, as
colecções, os serviços e as actividades, devem ser pensadas em função do leitor e não em
função dos livros (www.openingthebook.com):

«Traditionally, literature promotion has always started with the book and the author. Library services
were designed to accommodate and manage the product - the book. The advent of reader deve-
lopment, and the reader-centred approach, challenged all that.

In literature promotion, being reader-centred means starting with the reader and the experience of read-
ing - giving them an insight into the experience awaiting them within the pages of the book. In libraries,
the reader-centred approach offers a level of customer care which can inform and reinvent services
across the board.».

Esta abordagem, embora esteja implícita na forma de organização das modernas


bibliotecas públicas, não tinha sido sistematizada até agora numa filosofia de funcionamento
coerente e sistemática. A Opening The Book desenvolveu essa filosofia que intitulou de rea-
der development (desenvolvimento do leitor) (www.openingthebook.com):

«Reader development means active intervention to:


 increase people's confidence and enjoyment of reading
 open up reading choices
 offer opportunities for people to share their reading experience
 raise the status of reading as a creative activity

Reader development is audience development for literature


Reader development sells the reading experience and what it can do for you, rather than selling in-
dividual books or writers. It builds the audience for literature by moving readers beyond brand loyalty
to individual writers, helping them develop the confidence to try something new.

A mission statement for reader development


The best book in the world is quite simply the one you like best and that is something you can dis-
cover for yourself, but we are here to help you find it.».

As implicações da adopção desta nova filosofia de funcionamento pelas bibliotecas


públicas são as mais diversas. Vejamos sucintamente o impacto em algumas áreas essen-
ciais: organização interna dos espaços e das colecções; apresentação/exposição dos livros;
utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC); organização dos grupos de
leitura.
93

Organização interna dos espaços e das colecções. Tradicionalmente as bibliotecas


públicas organizam os seus espaços em função dos documentos: o sector de adultos con-
tém os livros destinados aos jovens adultos e aos adultos; o sector infanto-juvenil contém os
documentos destinados às crianças e aos jovens; o sector audiovisual contém os documen-
tos áudio e audiovisuais. Por sua vez as colecções estão organizadas em função de siste-
mas de classificação documental. Em Portugal o sistema utilizado é a Classificação Decimal
Universal. É um sistema estático, complexo e antiquado, que não corresponde às necessi-
dades e aos interesses dos leitores.

A proposta da Opening The Book é substancialmente diferente, baseando-se no


princípio de que os espaços e as colecções devem estar organizadas em função das carac-
terísticas dos leitores. Para além disso são adoptadas muitas das estratégias utilizadas pe-
las modernas livrarias, não só ao nível do design de interiores como do ambiente informal
criado, na forma como as colecções são apresentadas e ainda na forma como os circuitos
de circulação dos leitores são organizados (www.openingthebook.com):

«Traditional library layout is stock-driven; stock allocation determines what goes where. Reader-centred
layout is user driven; it starts from understanding the different ways people use the library space.».

Essencialmente estamos perante duas concepções opostos do que deve ser a orga-
nização espacio-funcional de uma biblioteca pública: no primeiro caso, a biblioteca é organi-
zada em função dos livros (o leitor adapta-se à biblioteca); no segundo caso, a biblioteca é
organizada em função dos leitores (a biblioteca adapta-se ao leitor).

Selecção e aquisição de livros. As bibliotecas adquirem os seus livros tendo por base
um conjunto de critérios de selecção, entre os quais destacamos: o carácter enciclopédico
das colecções (ou seja, são contempladas todas as áreas do saber), a pluralidade dos pon-
tos de vista e das correntes de opinião, a actualidade dos conteúdos, a qualidade literária
das obras, etc. Procura-se essencialmente ter um colecção diversificada e actualizada que
possa corresponder às necessidades e aos interesses de todos os tipos de leitores. A selec-
ção dos livros é feita pelos bibliotecários (tendo por base os critérios anteriormente enuncia-
dos), os leitores raramente conseguem interferir nessa selecção (por exemplo, através da
sugestão de aquisições). É entendido que a biblioteca pública tem uma função cultural a
cumprir, daí ser mais fácil encontrar nas suas colecções clássicos da literatura do que best-
sellers, José Saramago do que Margarida Rebelo Pinto, poesia do que banda desenhada.
As bibliotecas públicas não têm também por hábito a aquisição de mais de um exemplar de
cada livro, assim sendo, pode-se dar o caso paradoxal: as bibliotecas públicas adquirem
muitos livros que ninguém está interessado em ler e, pelo contrário, tem poucos livros dos
que as pessoas realmente estão interessadas em ler. O argumento mais comum é o de que
94

o clássico irá permanecer (embora ninguém esteja interessado em o ler) e o best-seller é um


fenómeno de moda (o que significa que muita gente já o está a ler).

O ponto de partida da filosofia da Opening The Book é completamente oposto, o que


interessa é disponibilizar livros que os diferentes grupos de leitores estão interessados em
ler, sejam os clássicos como os best-sellers (www.openingthebook.com):

«Reader-centred stock selection chooses a range of books for a range of different audiences. This ap-
proach uses a reader-centred definition of quality. Instead of attempting to determine the quality of each
individual title, (on what grounds? literary merit? popularity?) we define a quality stock as one which rep-
resents a range of kinds of book in relation to a range of different audiences.».

O que está aqui em causa, sem margens para dúvidas, é se os livros são adquiridos
numa lógica pretensamente cultural (em que imperam as noções de cânone, de clássico e
de literatura séria) ou numa lógica comercial (em que imperam as noções de novidade edito-
rial, best-seller e de literatura light). Mais uma vez estamos perante o binómio boas leituras /
más leituras, bons livros / maus livros. O que muda é decididamente a perspectiva com que
se olha para estes conceitos. Na perspectiva da Opening The Book, um bom livro é um livro
que proporciona uma boa experiência de leitura e esta varia imenso de pessoa para pessoa.
Na prática, isto significa que um mesmo livro pode proporcionar experiências opostas a duas
pessoas diferentes, porque a leitura é, antes de mais, uma experiência íntima e circunstan-
ciada social e culturalmente (www.openingthebook.com):

«What makes us think that the reader of romances is stuck in a dream world, an escapist, probably
deeply unhappy with no social life? What makes reading a non-fiction serious book a virtue? What
other prejudices have you noticed? What are science fiction readers like? What kind of life do readers
of true crime lead? Have you ever heard someone apologise for their reading, 'Oh, I just read rub-
bish?'».

Apresentação/exposição dos livros. Habitualmente o primeiro contacto que os leito-


res têm com os livros é na sua busca por entre as estantes. Durante o percurso até aí che-
garem é comum existirem exposições bibliográficas, normalmente comemorativas de dias
mundiais ou de efemérides ou por ocasião de aniversários de autores famosos, que utilizam,
não raramente, vitrinas de exposição. Estes dispositivos permitem mostrar os livros que
existem nas bibliotecas, mas não permitem que o leitor aja por impulso e leve no momento o
livro que lhe despertou curiosidade. Mais recentemente existem já bibliotecas que expõem
as suas novidades de forma mais apelativa, mostrando a capa dos livros e posicionando-os
em expositores situados em zonas de passagem. Esta abordagem aproxima-se mais da
filosofia expressa pela Opening The Book, que recomenda que os livros se mostrem acessí-
veis e apelativos (www.openingthebook.com):

«Making effective displays in libraries can be difficult because of lack of space, lack of suitable display
units and lack of money for attractive promotional materials.
95

The solution is often to collect a variety of props together round a theme to create a beautifully staged
montage. This usually incorporates only a small number of books which people assume they can't touch
so the point of the display is lost!

Reader-centred display puts the books first, selecting paperbacks and displaying them face-on. It seeks
to make choosing easy, presenting books in tempting ways to catch passing interest. Reader-centred
display brings books from different parts of the library together, liberating them from their fixed and often
hidden locations. Book covers are designed to convey clear messages to their target audiences; reader-
centred displays work with the book covers not against them.

Reader-centred displays require less staff time than traditional displays and result in higher impact visu-
ally and more books borrowed.».

Utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). É recorrente que


nas bibliotecas públicas a utilização das TIC seja utilizada complementarmente em três
áreas: no suporte à gestão das várias rotinas de funcionamento (gestão de emprésti-
mos/devoluções de documentos, catalogação de documentos, etc.); na disponibilização de
acessos públicos à Internet (usufruídos directamente pelos leitores nas instalações das bi-
bliotecas); na disponibilização de conteúdos e de serviços via web (entre os quais destaca-
mos: informações sobre a biblioteca, acesso ao catálogo, serviços interactivos, etc.). Menos
habitual é a utilização das TIC na promoção da leitura. Raras são as bibliotecas que dispo-
nibilizam nos seus sítios web sugestões de leitura, divulgação da agenda de actividades,
promoção de destaques para colecções ou mesmo para autores. As poucas bibliotecas pú-
blicas que o fazem adoptam como postura serem os seus técnicos ou especialistas convi-
dados a elaborar e apresentar essas sugestões.

A Opening The Book faz a afirmação das potencialidades das TIC como veículos de
divulgação da leitura (www.openingthebook.com):

«Books and computers are allies not enemies. They are means to the same end. They offer the same
independence to the user - go where you like, when you like, by yourself, for your own private reasons.
And they give people similar problems - with all those books/sites out there, how do you choose a direc-
tion to go in?

Websites are often designed from the inside looking out - the structure of the organisation determines
the structure of the website. A reader-centred website starts from the reader, what they want to do,
where they want to go.

Current web thinking is all about user-focus and pulling key visitors through to play an active role. Rea-
der development websites are ahead of the game here. Putting readers at the centre, reader-to-reader
communication - these are the basics of reader development practice. In the next few years they will
become the basics of successful web practice too.».

Dinamização dos grupos de leitura. Não existe uma tradição de organização de gru-
pos de leitura por parte das bibliotecas públicas portuguesas. As poucas experiências que
existem baseiam-se quase em exclusivo no modelo das comunidades de leitores introduzido
96

em Portugal pelo IPLB. Este modelo está estruturado do seguinte modo: existe um líder da
comunidade (normalmente é uma figura conhecida do meio cultural) que define um tema
que enquadra a escolha de um conjunto de livros para serem lidos por todas as pessoas
que irão participar; a participação é gratuita mas implica uma inscrição prévia e o compro-
misso de assistir à maioria das sessões; as sessões decorrem ao longo de três ou quatro
meses com uma regularidade quinzenal; as sessões são conduzidas pelo líder da comuni-
dade que tem um papel de dinamizador; a abordagem aos livros é (muitas vezes) feita com
um pendor académico.

Os grupos de leitura (na filosofia Opening The Book) são substancialmente diferen-
tes, não só nos pressupostos em que assentam como também no modelo de funcionamento
que implementam (www.openingthebook.com):

«A reader-centred approach emphasises the quality of the reading experience rather than the quality of
the book.

The reader-centred reading group:

 respects everybody's individual reading experience


 makes no assumptions about what people have already read, their knowledge of literary theory
or who said what in last Sunday's papers
 enables people with different reading preferences to talk to each other on common ground
 encourages honest exploration of responses instead of a pressure to perform
 accommodates varying levels of time commitment and reading appetite

The reader-centred reading group focuses on the experience of reading, not how the book is put toget-
her. It is not a literature study group – that is already available elsewhere. Only you know how you feel
about a book; no-one else can be expert about your reading experience. The aim is not just to under-
stand the book better but to understand what the experience was for other readers in order to illuminate
our own.».

A grande diferença entre os dois modelos está precisamente no estatuto dos leitores
e das leituras: no primeiro caso, os leitores submetem-se a um programa de leitura definido
por outros, as leituras são leituras exemplares (porque são catalogadas como boas leituras
a partir de bons livros); no segundo caso, os leitores têm total liberdade de escolha das suas
leituras que, à partida, não são catalogadas como boas ou como más, os bons livros são os
livros que proporcionam uma boa experiência de leitura àquela pessoa em concreto.
97

Conclusão

O nosso propósito ao elaboramos esta dissertação de mestrado era a de podermos


realizar uma reflexão crítica sobre a nossa prática profissional em torno da leitura. Chegados
a esta fase, interessa sublinhar que estendemos este nosso trabalho como o início de um
percurso, do qual nos propomos agora efectuar um primeiro balanço.

Começamos por referir que este foi um percurso lento e sinuoso, que nos conduziu à
descoberta de um território mais vasto do que aquele que inicialmente poderíamos antever.
Identificámos problemáticas, referenciámos conceitos, testámos metodologias, descobrimos
autores. Por fim, concentrámo-nos no que consideramos nuclear para a visão que temos
hoje do que é a leitura: o discurso sobre a leitura que é dominante (nomeadamente ao nível
da elite cultural, política e profissional que toma as decisões sobre as políticas nacionais de
leitura) com a sua capacidade de produzir uma visão de realidade e, como consequência,
influenciar ideologicamente um programa de acção.

Tivemos na Análise Crítica do Discurso um quadro de referência, ao nível teórico e


metodológico, de grande fecundidade, que, para além de colocar a análise do discurso nu-
ma esfera social (o que nos permitiu relacionar as três dimensões linguagem – discurso –
sociedade), deu-nos uma perspectiva crítica para efectuar essa análise. A Análise Crítica do
Discurso, que assume um programa de intervenção social (potencialmente polémico, cienti-
ficamente consciente), tem na análise da reprodução do domínio através do discurso, uma
das suas mais importantes linhas de investigação.

No caso concreto que analisámos interessava-nos sobretudo compreender porque é


que, apesar dos estudos (nomeadamente os de âmbito sociológico) desmentirem as evidên-
cias do senso comum, o discurso sobre a leitura que é dominante veiculado pelos fazedores
de opinião nos meios de comunicação social portugueses continua a reproduzir uma série
de ideias feitas (os portugueses não lêem, existe uma crise da leitura, etc.) e de preconcei-
tos (a leitura dos clássicos é mais nobre do que a leitura dos best-sellers, a leitura eleva os
patamares da cidadania, etc.).

Conforme pudemos constatar no Capítulo 3 da nossa dissertação, muitas foram as


opiniões defendidas a propósito do Plano Nacional de Leitura. Não nos interessa (nem é
esse o nosso papel) entrar na polémica tomando partido ou tecendo considerações sobre a
pertinência ou sobre as hipóteses de sucesso do Plano Nacional de Leitura. Interessa-nos
sim olhar para o Plano Nacional de Leitura como um exemplo de uma política nacional de
leitura e equacioná-lo em função dos discursos e das práticas que enuncia.
98

Ao nível dos discursos, pudemos constatar que o Plano Nacional de Leitura radica
sobre muitas das ideias-chave do discurso sobre a leitura que é dominante, talvez pela ine-
xistência de discursos sobre a leitura alternativos, que suportem a definição de um programa
de acção credível e politicamente defensável. O discurso oficial sobre o Plano Nacional de
Leitura é contraditório, balançando entre um registo político (completamente embebido de
uma ideologia em tudo idêntica à matriz que estrutura o discurso sobre a leitura que é domi-
nante) e um registo técnico (que procura enraizar novos modos de olhar e de fazer a forma-
ção de leitores e a promoção da leitura). Falta-lhe talvez um maior suporte teórico e metodo-
lógico que facilite a sua interiorização pelos principais agentes da sua implementação (bi-
bliotecários, professores e educadores). Neste sentido é decisiva a importância da forma-
ção, não somente como forma de passar competências e de dar a conhecer metodologias e
técnicas mas essencialmente como um momento privilegiado para veicular um discurso so-
bre a leitura de cariz teórico-prático que suporte uma intervenção continuada no terreno.

Ao nível das práticas, interessa referir que o Plano Nacional de Leitura traz consigo
(conforme se constata no seu documento programático: Relatório do Plano Nacional de Lei-
tura) um conjunto de programas de acção claramente delineados, fica a dúvida sobre a for-
ma como serão implementados no terreno. Outra dúvida tema ver com a afectação de re-
cursos estratégicos: pessoas e dinheiro. Para dar resposta às necessidades detectadas e
vencer os obstáculos existentes há que garantir a sustentabilidade da sua implementação
no médio/longo prazo. Esta é talvez a sua maior fragilidade e também a diferença entre o
plano das intenções e o plano das acções. Estabelecer dinâmicas de âmbito local (com um
sólido suporte ao nível téorico-prático, dos recursos humanos qualificados e dos métodos e
das técnicas) é a melhor forma de forma de garantir resultados duradouros. Estes resultados
deverão ser validados por instrumentos de avaliação rigorosos que permitam identificar boas
práticas que possam ser alvo de disseminação, só assim se garantirá a sustentabilidade do
Plano Nacional de Leitura. Talvez a sustentabilidade passe pela consideração do papel basi-
lar das bibliotecas públicas e das bibliotecas escolares. Todavia, esse papel só pode ser
plenamente desempenhado se as próprias bibliotecas tiverem a capacidade de se pensarem
a si mesmas como instituições da leitura, o que implica, necessariamente levar os bibliotecá-
rios a reflectirem criticamente sobre as suas práticas.

Por último, queríamos deixar uma nota que se prende com o facto de que conside-
ramos que é fundamental desconstruir o discurso sobre a leitura que é dominante. Caso
contrário, corremos o risco de todos os nossos esforços e os resultados que daí advenham
serem terraplanados por uma visão elitista e conservadora sobre o que é ler e sobre quem é
leitor. Para tal torna-se fundamental consubstanciar um discurso sobre a leitura alternativo,
que esteja suportado num corpus teórico-prático sobre a leitura, cuja constituição deve ser
efectuada a partir da interacção entre uma vertente teórica e uma vertente prática da abor-
99

dagem às problemáticas da leitura. Mais do que isso é determinante para o sucesso deste
processo a nossa capacidade de equacionarmos a leitura na sua dimensão social, assumin-
do plenamente e em igualdade de estatutos a diversidade das leituras e dos leitores. A defi-
nição de políticas nacionais de leitura não pode deixar de ter este aspecto em consideração.
Defendemos que os bibliotecários, enquanto técnicos especializados da leitura, podem (e
devem) ter um papel activo neste processo, cujo lema poderá ser: «Mudar os discursos,
mudar as práticas».
100

Bibliografia

ALB (1999) – Múltiplos objectos, múltiplas leituras in Portal das Letras. Consultado no dia 17
de Agosto de 2006, no endereço: http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=arti-
gos/docs/artigos1.

ÁLVAREZ ZAPATA, Didier; GUILLERMO GÓMEZ, Juan (2000) – ―El discurso bibliotecario
público sobre la lectura en América Latina (1950 - 2000): una revisión preliminar con énfasis
en Colombia‖ in Revista Interamericana de Bibliotecología. Vol. 25, n.1, p.11 – 36;

ÁLVAREZ ZAPATA, Didier (2006) – Seis ensayos para una bibliologia de la lectura. No pre-
lo. Trabalho apresentado à Universidade de Antioquia (Colômbia) para obtenção da catego-
ria de Professor Associado;

ÁLVAREZ ZAPATA, Didier; GUILLERMO GÓMEZ, Juan (2005) – ―Una revisión del discurso
bibliotecario público sobre la lectura en América Latina y Colômbia‖ in Biblioteca pública y
lectura pública.

BASANTA, Antonio ; HERNÁSDEZ, Hilario (2002) – ―Diez reflexiones en torno a la lectura y


la información en las bibliotecas públicas‖ in Educación y Biblioteca. Nº. 128, Marzo- Abril,
pp. 30- 34;

BRASÃO, Inês Paulo Cordeiro et all (2004) – Leitores de bibliotecas públicas: inquérito à
rede de leitura pública na região de Lisboa. Lisboa: Edições Colibri;

CARVALHO, Lívia Marques (1991) – ―Biblioteca: instituição preservadora da cultura domi-


nante?‖ In Informação & Sociedade: Estudos. Vol. 1, Nº 1;

CASTRO, Rui Vieira (2000) – Discours about reading. Consultado on-line no seguinte ende-
reço: http://www.ectep.com/literacias/discourses.html ;

CHARTIER, Anne-Marie; HÉBARD, Jean (2000) – Discours sur la lecture (1880 - 2000).
Paris: Bibliothèque Publique d' Information;

COELHO, Maria Zara Pinto (2004) – ―Análise de conteúdo e análise crítica do discurso‖ in V
Congresso Português de Sociologia;

DIONÍSIO, Maria de Lourdes da Trindade (2000) – A construção escolar de comunidades


de leitores. Coimbra: Almedina;
101

DIONÍSIO, Maria de Lourdes da Trindade (2000-b) – Condições sociais de produção de


leitores: tijolo a tijolo num desenho (nem sempre mágico). Consultado on-line no seguinte
endereço: http://www.ectep.com/literacias/leitores.html ;

ELKIN, Judith; TRAIN, Briony; DENHAM, Debbie (2004) – Reading and reader develop-
ment: the pleasure of reading. London: Facet;

FURTADO, José Afonso (1999) – ―As bibliotecas públicas, as suas missões e os novos re-
cursos de informação‖ in Liberpólis. Nº 1;

FURTADO, José Afonso (2000) – Os Livros e as Leituras: Novas Ecologias da Informação.


Lisboa: Livros e Leitura;

GASCUEL, Jacqueline (1987) – Um Espaço para o Livro: Como Criar, Animar ou Renovar
uma Biblioteca. Lisboa: Dom Quixote;

GIL, Teresa (1997) – ―Leitura, uma causa nacional‖, in Publicação Mensal da APEL. Outu-
bro;

GOUVEIA, Carlos (1997) – O Amansar das Tropas: Linguagem, Ideologia e Mudança Social
na Instituição Militar. Lisboa: Universidade de Lisboa. Tese d doutoramento ;

LAHARY, Dominique (2003) – ―La lecture publique à la recherche de territoires : regards sur
le dernier demi-siècle― In Colloque Lecture publique et territoires. Montbrison : Conseil géné-
ral de la Loire et Enssib. On-line: http://membres.lycos.fr/vacher/profess/conf/ montbri-
son/lahary-montbrison.htm;

LASSALLE, Marine de (1997) – ―Les paradoxes de succès d´une politique de lecture pu-
blique― in Bulletin des Bibliothèques de France. T. 42, Nº 4, pp. 10-17;

LOPES, João Teixeira; ANTUNES, Lina (1999-a) – Bibliotecas e hábitos de leitura: balanço
de quatro pesquisas. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais, 1999;

LOPES, João Teixeira; ANTUNES, Lina (1999-b) – ―Bibliotecas e leitores: alguns resultados
que nos interpelam in OBS. Nº 5, pp. 7-10;

MANIFESTO DA LEITURA PÚBLICA EM PORTUGAL (1983) In Cadernos de Bibliotecono-


mia, Arquivística e Documentação. Nº 1, p. 11-14;

MAKINEN, Ikka (2004) – ―From the revolutionary France to the awakening Finland: Desire to
read as a construction in the discourse on public libraries during the 18th and 19th centuries‖
in 70th IFLA General Conference and Council.
102

MELO, Daniel (2004) – A leitura pública no Portugal contemporâneo (1926-1987). Lisboa:


Imprensa de Ciências Sociais;

MOURA, Maria José (1987) – “Para uma política de leitura pública‖ in A integração europeia:
um desafio à informação: actas. Vol 1, p. 521-528;

NACHBAUER, Martine (2000) – ―Quelques suggestions pour l‘analyse du discours scolaire


polémique― in Actes du colloque Renaissance et retombées de la recherche au collégial ;

NOGUEIRA, Conceição (2001) – ―A análise do discurso‖ in Métodos e técnicas de avaliação:


novos contributos para a pratica e investigação. Braga: CEEP;

NÓVOA, António (1999) – ―Os professores na virada do milénio: do excesso dos discursos à
pobreza das práticas‖ in Educação e Pesquisa. Vol. 25, n. 1, p. 11-20.;

NUNES, Henrique Barreto (1998) – ―A Oferta Pública de Leitura‖ in OBS – Revista do Ob-
servatório das Actividades Culturais. Nº 3;

NUNES, Henrique Barreto (1996) – Da Biblioteca ao Leitor: Estudos Sobre a Leitura Pública
em Portugal. Braga: Autores de Braga, 1996;

PEDRO, Emília Ribeiro (1998) – Análise Crítica do Discurso. Lisboa: Editorial Caminho;

PEÑA, Luis, ISAZA, Beatriz Helena (2005) – Una región de lectores: análises comparado de
planes nacionales de lectura en Iberoamérica. Colômbia: CERLALC;

POULIOT, Susanne; SORIN, Noëlle (1996) – "Le discours éditorial sur la lecture des jeunes
(1960-1980)― in Canadian Children's literature/Littérature canadienne pour la jeuness. Vol.
24:3/4, p. 103-114;

POULIOT, Susanne; LAFRANCE, (1999) – "Le discours éditorial québécois sur la lecture
des jeunes, de 1980 à aujourd'hui" in Lurelu. Vol. 22, no 1, p. 8-17;

RAMOS, Rui (1999) – ―O discurso de opinião como discurso polémico: aspectos da sua con-
figuração e da interacção social‖ in Aspectos da configuração do discurso de opinião na co-
municação social. Dissertação de mestrado.

REBELO, Carlos Alberto (1999) – A Difusão da Leitura Pública: As Bibliotecas Populares


(1870-1910). Lisboa: Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa;

SOUSA, Jorge (1994) – ―A biblioteca pública e a pós-modernidade: arquitectura e gestão‖ in


Cadernos BAD. Vol. 3 , p. 91-110.

SOUSA, Rita Tavares Guedes Vieira de (2004) – Discursos sobre a leitura. Braga: Universi-
dade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia. Dissertação de mestrado;
103

STURGES, Paul (1994) – The Public Library and Reading by the masses: historical perspec-
tives on the USA and Britain 1850-1900. http://www.ifla.org/IV/ifla60/60-stup.htm;

USHERWOOD, Bob (1999) – A biblioteca pública como conhecimento público. Lisboa: Edi-
torial Caminho;

USHERWOOD, Bob (2004) – The public library and the reading experience. Acedido on-line:
http://www.ifla.org/IV/ifla68/papers/115-082e.pdf;

UTARD, Jean-Claude (1997) – Le succès dês bibliothèques publiques: dês exigences à pre-
ciser in BBF. Paris: Bulletin des Bibliothèques de France. T 42, Nº 4., pp. 24 à 29;

Van DIJK, Teun (2005) – Discurso, notícia e ideologia : estudos na Análise Crítica do Dis-
curso. Porto: Campo das Letras;

VENTURA, João J. B. (2002) – Bibliotecas e esfera pública. Oeiras: Celta Editora;

VESTHEIM, Av Geir (1994) – ―Public Libraries: Cultural Institutions on the Crossroads be-
tween Purposive and Humanistic Rationalit" in The Future Librarianship. 2nd International
Symposium. Acedido on-line: http://www.hum.uit.no/dok/ntbf/ve.htm
104

Anexo 1: corpus documental


105

Português 1 X 2 [ 17 de Maio ]

Vasco Graça Moura

Recebi na semana passada um ofício assinado pelos ministros da Educação, da Cultura e dos Assuntos Parla-
mentares convidando-me para integrar a Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura (PNL). Aceitei o con-
vite muito penhorado, tanto mais que se prevê a possibilidade de a referida comissão aconselhar na execução do
plano e participar em acções e iniciativas que venham a ser lançadas no seu âmbito.

O PNL «concretiza-se num conjunto de medidas destinadas a promover o desenvolvimento de competências nos
domínios da leitura e da escrita, bem como o alargamento e aprofundamento dos hábitos de leitura, designada-
mente entre a população escolar». Da leitura da síntese do relatório que me foi facultada resulta a impressão de
que o PNL articula bem as medidas e os objectivos que se propõe.

Na carta que dirigi à ministra da Educação tive, no entanto, ocasião de fazer dois reparos genéricos. O primeiro
tem a ver com a reformulação dos programas escolares de Língua Portuguesa: o PNL não poderá ser levado a
bom termo enquanto não se fizer essa reformulação, reabilitando devidamente o papel da Literatura no ensino da
língua. Sobre este ponto, muito se tem escrito, pelo que não vale a pena desenvolvê-lo aqui. O segundo reparo
manifestava a minha apreensão pela anunciada adopção do sistema de testes de escolha múltipla (multiple choi-
ce) nos exames de Português. Artigos de Maria do Carmo Vieira e de Eduardo Prado Coelho já falaram disto,
que, diga-se desde já, se afigura absolutamente contraproducente quanto aos objectivos visados pelo PNL. Leio
agora, no suplemento Educação do JL, de 10 a 23 de Maio, uma entrevista de Paulo Feytor Pinto (PFP), presi-
dente da Associação de Professores de Português (APP), que me deixa ainda mais preocupado.

PFP procura justificar o novo sistema pela distinção entre "avaliação da leitura" e "avaliação da escrita", por, diz
ele, "o facto de se avaliar a leitura através da escrita faz com que por vezes não saibamos se os erros ou incor-
recções se devem à dificuldade de compreender ou à dificuldade de produzir um texto". E considera que as per-
guntas "que são assim são para um tipo de avaliação específica que é a avaliação da leitura", embora também
possa haver "perguntas relacionadas com a avaliação da leitura que não sejam de resposta fechada".

A justificação não colhe. Ao nível escolar daquilo que é de exigir-lhe, pois não é de esperar que se exprima como
Demóstenes, se um aluno tem dificuldade na escrita é porque não aprendeu bem... Se não teve aproveitamento
e não é capaz de produzir um texto, o teste de resposta múltipla só vai dissimular esse problema e contribuir
para um resultado injusto. Isto para não falar na situação escandalosa de o aluno ter 25% de hipóteses de acer-
tar logo à partida (em quatro quadradinhos para pôr a cruzinha, um deles há-de corresponder à resposta certa...).
Além disso, a pergunta, a que terá de responder com a tal cruzinha, não lhe dá qualquer possibilidade de desen-
volver uma leitura diferente da insinuada na própria questão. O sistema cerceia a manifestação da personalidade
do estudante e da sua capacidade interpretativa. O examinador não avalia assim nada de relevante.

Há também uma clara e chocante depreciação do papel da memória na aprendizagem: diz PFP que até agora só
são utilizados como textos de referência os dados na aula, "o que faz com que não estejamos na realidade a
avaliar a competência de leitura. Avalia-se se [os alunos] conseguiram memorizar o que foi dito na sala de aula
sobre os textos". Então não é também para isso que eles têm aulas? Isto é verdadeiramente bizarro numa altura
em que se valoriza cada vez mais o papel da memória na aprendizagem... Sem recurso à memória é que não há
nem capacidade de leitura, nem capacidade de escrita.
106

Se o novo sistema se aplica à interpretação dos conteúdos dos textos, ele só irá reforçar a lei do menor esforço,
a pretexto de dispensar os alunos de se exprimirem correctamente, de se lembrarem seja do que for e de mos-
trarem o que sabem. Se se aplica apenas à gramática, não faz qualquer sentido a distinção entre avaliação da
leitura e avaliação da escrita e cria um perigoso precedente que virá a alastrar inevitavelmente às outras áreas
da disciplina.

Continuam os equívocos pedagógicos numa área tão sensível. Não sei que luminárias os engendram. Mas sei
que não se pode aceitar que os exames de Português obedeçam ao princípio do Totobola.

Fonte: Diário de Notícias, 17 de Maio de 2006


107

Os Violinos de Ingres [ 21 de Maio ]


Vasco Pulido Valente

Recebi uma carta assinada por três ministros (a sra. Ministra da Cultura, a sra. Ministra da Educação e o sr.
ministro Santos Silva), que me convidava para ser membro de uma Comissão de Honra do Plano Nacional de
Leitura. Com a carta vinha uma síntese do dito Plano. O papel da Comissão de Honra seria dar o seu "prestígio e
aconselhamento à execução do Plano". Por outras palavras, fazer alguma propaganda à coisa, como de resto o
dr. Graça Moura, "muito penhorado", já começou a fazer. Propaganda por propaganda, resolvi responder em
público que não aceito. Por várias razões. Em primeiro lugar, porque a carta e a "síntese do Plano" estão escritas
num português macarrónico e analfabeto (frases sem sentido, erros de sintaxe, impropriedades, redundâncias,
por aí fora). Quem escreve assim precisa de ler, e de ler muito, antes de meter o bedelho no que o próximo lê ou
não lê.

Em segundo lugar, não aceito por causa do próprio Plano. O fim "essencial" do Plano é "mobilizar toda a socie-
dade portuguesa para a importância da leitura" (a propósito: como se "mobiliza" alguém "para a importância"?).
Parece que as criancinhas do básico e do secundário não lêem, apesar do dinheiro já desperdiçado no ensino e
em bibliotecas. Claro que se o Estado proibisse a televisão e o uso do computador (do "Messenger") e do tele-
móvel, as criancinhas leriam ou pelo menos, leriam mais. Na impossibilidade de tomar uma medida tão drástica,
o Estado pretende "criar um ambiente social favorável à leitura", com uma espécie de missionação especializa-
da. A extraordinária estupidez disto não merece comentário.

Em terceiro lugar, não aceito por que o Plano é inútil. Nunca se leu tanto em Portugal. Dan Brown, por exemplo,
vendeu 470 000 exemplares, Miguel Sousa Tavares, 240 000, Margarida Rebelo Pinto vende entre 100 e 150
000 e Saramago, mesmo hoje, lá se consegue aguentar. O Estado não gosta da escolha? Uma pena, mas não
cabe ao Estado orientar o gosto do bom povo. No interior, não há livrarias? Verdade. Só que a escola e a biblio-
teca, ainda por cima ―orientadas‖, não substituem a livraria. E um hipermercado, se me permitem a blasfémia,
promove a leitura mais do que qualquer imaginável intervenção do Estado.

O Plano Nacional da Leitura não passa de uma fantasia para uns tantos funcionários justificarem a sua injustifi-
cável existência e espatifarem milhões, que o Estado extraiu esforçadamente ao contribuinte. Quem não percebe
como o país chegou ao que chegou, não precisa de ir mais longe: foi com um número infinito de ―causas nobres‖
como esta.

―Causas nobres‖, na opinião dos srs ministros, convém acrescentar.

Fonte: Público, 21 de Maio de 2006


108

Opinião acerca de uma crítica ao PNL [ 22 de Maio ]


Fernando Vilarinho

“Um burro com muito amigos eruditos passa por um douto!”

Afigura-se-me que somente numa certa nação do mundo ocidental uma personagem como Vasco Pulido Valente
(VPV) conseguiria sobressair. Esse país, Portugal, em parte pelos circunscritos índices de leitura que continua a
manifestar, é o terreno ideal para tão jactanciosa personagem continuar a pavonear-se.

Ontem, dia 21 de Maio Vasco Pulido Valente, na sua coluna do Público (que pode ser lida na reprodução que
Eduardo Pitta efectuou no Da Literatura), argúi relativamente a uma carta pessoal que recebeu, asseverando que
contém inúmeros e graves erros de Língua Portuguesa. É mais um testemunho da sua inurbanidade efectuar tais
acusações sem apresentar a mínima prova, pois numa simples carta da responsabilidade de ministérios de
‗áreas de âmbito cultural´, será praticamente impossível constarem tantas incorrecções. Mas nisso VPV é um
bom demagogo!

Por outro lado faço questão de lembrar a VPV que os diversos planos de promoção da Leitura e afins nunca
assumiram a pretensão de atingir determinados fins em si mesmo mas funcionam como meios, móbiles de esti-
mular a Leitura. Como elementos agitadores de uma pronunciada letargia cultural que sempre perpassou o nos-
so país, e que o VPV com certeza está interessado que se prorrogue para não lhe ‗destaparem a careca‘.

Os diversos documentos associados aos programas de promoção da Leitura estão sempre impregnados de um
tom essencialmente retórico e formal, em face da sua inerente natureza e dos propósitos em que se direccionam.
Não são propósitos quantitativos, rigidamente balizados mas são sobretudo um manifesto de intenções que visa
mobilizar o máximo de recursos materiais e humanos para esse desígnio.

VPV que ordinariamente nas suas crónicas fala do ―duvidoso gosto do Povinho‖ nas suas opções culturais e
afins, quando lhe convém dá o dito por não dito, e aparece como o primeiro defensor de toda a libertinagem de
escolhas.

Não cabe ao Estado orientar o gosto do bom povo? No seu essencial não, mas o Estado (no sentido lato) ao
assumir as suas responsabilidades conformes à instrução, educação e à produção e difusão de instrumentos,
produtos e matrizes de natureza cultural, neste sentido imbrica com a orientação cultural dos seus cidadãos.

Deste modo VPV limita-se a apresentar sonsos maniqueísmos!

Se VPV tivesse lido com alguma atenção os programas afins precedentes denotaria que expressões como por
exemplo ―mobilizar toda a sociedade portuguesa para a importância da leitura‖ são lugares-comuns nesses tex-
tos, mormente panfletários. Não são muitos desculpáveis tais chavões mas são meras reproduções de textos
anteriores, mesmo de governos de suas cores partidárias.

Se os planos/programas de promoção da leitura desde logo nas suas enunciações teoréticas dão uma ênfase a
estratos etários mais baixos, por razões sobejamente sabidas e facilmente compreensíveis; a verdade é que na
implementação prática de tais programas o enfoque nos adolescentes e jovens é ainda acrescido. Certamente a
maioria desses petizes não terão como ‗livros de cabeceira‘ os best-sellers de Miguel Sousa Tavares, José Sa-
ramago, Dan Brown, etc.
109

Por outro lado, na globalidade, muitos desses best-sellers são lidos em sistema ‗fast-food‘ e a Leitura é muito
mais que isso. As elevadas tiragens desses livros podem de certo modo camuflar, ou dar a ilusão que os índices
de leitura em Portugal incrementaram-se acentuadamente, mas numa análise ponderada do mercado livreiro
observa-se cada vez mais uma maior dualidade no mercado entre esses dois a três best-sellers que surgem a
cada dois meses (e que no geral têm muita parra mas pouca uva) e muitos dos restantes cerca de trinta livros
que são publicados a cada dia e dos quais muito pouco exemplares são comercializados.

O programa efectivo do Plano só irá ser apresentado dia 4 de Junho na Feira do Livro de Lisboa mas pelo que
ao longo do tempo foi escapando cá fora, ajuízo que o plano persistirá essencialmente no papel, o espectro de
instituições e organizações envolvidas apesar de alguns quadrantes vir a estar muito bem representados noutros
pecará por escassez, a própria duração do Plano deveria ser ainda mais extensa. Mas principalmente não é um
programa estruturante mas mormente um conjunto de medidas e iniciativas. Por outro lado o montante financeiro
destinado Plano será relativamente reduzido e não como VPV afirma mais uma causa relevante para a nossa
crise económica.

VPV arrasa com um Plano que ainda nem público é, limitando-se a verberar as vulgares críticas a este género de
projectos do Governo, e que se ouvem a qualquer esquina do País.

Mas não é por mais uma vez o Plano não estar a ser delineado da forma mais eficiente que se deverá abandonar
a ideia de projectos de promoção da Leitura. Pelo contrário!

E depois VPV deveria estar mais actualizado e saber que a Leitura desde há umas décadas não se resume ao
Livro, nem sequer ao formato impresso (jornais, revistas, folhetos, etc.) mas a uma miríade de formatos (multi-
média, vídeo, sonoro, gráfico, digital, electrónico, etc.), até pela marcada mescla na actualidade desses formatos.

Se os hipermercados contribuíram de forma marcada para o fabrico ou o exponenciar de autores best-sellers a


verdade é que também têm induzido o asfixiar do mercado dos livros de pequena tiragem e geralmente de maior
qualidade literária, didáctica ou académica.

Primeiro, VPV agradeça a Deus ou a quem lhe parecer melhor, que quem lhe corrige previamente as incorrec-
ções de Língua Portuguesa das suas crónicas ainda ter paciência para o fazer (neste caso aturar).

Segundo, inútil é a sua crónica deste Domingo.

Terceiro, VPV esforce-se por apresentar argumento mais plausíveis, menos chico-espertos e mais respeitosos
(até em função dos seus, ainda, leitores).

Por último, sorte a nossa que VPV não é membro da Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura

Fonte: Blog Bibliotecas em Portugal, 22 de Maio de 2006


110

Quarenta e oito por cento [ 31 de Maio ]


Vasco Graça Moura

No blogue de José Pacheco Pereira, duas professoras tomaram, há poucos dias, posições aparentemente con-
traditórias quanto ao Plano Nacional de Leitura. Mas o que ambas dizem, quanto ao fundo da questão, acaba por
ser complementar. E uma delas, louvando-se no PISA 2003, chama a atenção para o seguinte: "A competência
de leitura de 48% dos jovens de 15 anos é mínima. Apenas lhes permite localizar uma informação ou identificar o
tema principal do que leram."

Esta situação tornou-se crónica. Há décadas que, mais ou menos de seis em seis meses, novos relatórios, no-
vos estudos e novas análises vêm sistematicamente concluir pelo falhanço total do nosso sistema de ensino e
pela impreparação clamorosa dos que o frequentam ou frequentaram. Nem vale a pena repisar o tópico, de tão
óbvio que se tornou.

Outros países têm problemas semelhantes, mas em percentagem muito menor, e por isso é que o caso portu-
guês é tão grave. Deixa-nos irremediavelmente no fim da tabela e prepara-nos para um futuro sem saída. Faz
prenunciar que a chamada Estratégia de Lisboa irá por água abaixo nestas paragens e que o nosso país vai ter
um lindo enterro.

Se os resultados são esses, pode concluir--se com segurança que o que está errado é o sistema educativo, são
os programas, são os manuais e os livros de estudo, são os métodos de ensino e as teorias pedagógicas em que
tudo isso delirantemente se baseia, mais os promotores e ministradores dessas teorias, aliás, desenvolvidas num
jargão abstruso e ininteligível, mesmo para os professores: veja-se o caso recente da Terminologia Linguística
para os Ensinos Básico e Secundário (TLEBS), leiam-se alguns manuais pedagógicos, passe-se a vista por
alguns exercícios e pontos de exame, e fica-se amplamente elucidado.

Sobre tudo isto, publicou Nuno Crato, há dois meses, uma síntese modelar que tem feito um curso surpreenden-
te e saudável, embora se venha defrontando com o mutismo prudentíssimo dos responsáveis pelas várias moda-
lidades do "eduquês" que tem cancerizado o nosso ensino básico e secundário.

O choque de que o nosso país precisa nessa matéria reconduz-se à varredela: é preciso varrer radicalmente do
sistema a maior parte dos actuais programas, manuais, livros de estudo, métodos de ensino, teorias pedagógi-
cas, talvez mesmo as próprias bases em que funcionam as escolas superiores de educação, formando professo-
res cuja actuação, a despeito de boas classificações, de empenhamentos sinceros, das maiores boas vontades e
dedicações, redunda globalmente nos famigerados resultados referidos.

Se tudo falha, é preciso recomeçar tudo desde o princípio, é preciso mudar os materiais didácticos, é preciso
inscrever os professores e demais responsáveis pela educação numa reciclagem vigorosa e completa, hoje que
a palavra de ordem é a formação ao longo da vida. O que se aprendeu com o objectivo de ensinar e o que se
ensina com o objectivo de educar não presta para nada e a melhor prova disso é o que está a acontecer.

Entregava-me eu a estas lúgubres cogitações, quando vi na televisão o primeiro-ministro a negar muito enxofra-
do ao deputado Miguel Frasquilho que a alienação do património do Estado corresponda ao mesmo princípio de
realização de receitas extraordinárias que ele tão acidamente tinha criticado na campanha eleitoral.

Eu também me lembrava das juras solenes de Sócrates, de que o seu Governo nunca, mas nunca, recorreria a
receitas extraordinárias, e da profética entrevista de Manuela Ferreira Leite, há um ano, sobre a inevitabilidade
111

desse recurso, e dei comigo a exclamar: "- Mas este gajo não tem a mínima vergonha na cara e é de um impudor
que ultrapassa tudo!" Todavia, depois pensei melhor e admiti uma conclusão mais caridosa.

Já se viu que Sócrates não consegue conter o défice e precisa de mais recursos, custe o que custar, para o
aumento galopante da despesa pública que o seu Governo tem vindo a promover. Mas, para ter misturado assim
um juízo de natureza política, sobre a justificação ou a inconveniência da alienação de determinado património
do Estado, com a natureza técnica de determinado tipo de receitas, a mais provável explicação é outra.

É a de ele se encontrar nos 48% daqueles cuja competência de leitura é mínima. Na altura em que criticava o
Governo PSD, já não percebera bem o que tinha lido. Na altura em que nega estar a recorrer a receitas extraor-
dinárias, continua a não perceber bem o que anda por aí a dizer.

Fonte: Diário de Notícias, 31 de Maio de 2006


112

Ler mais e mais… em casa [ 2 de Junho ]


José Manuel Fernandes

Para gostar de ler é preciso começar por ouvir ler.

E quem melhor do que os pais para fazê-lo?

O que não formos capazes de fazer não devemos esperar que outros façam por nós. Elementar, dir-se-ia. Não
em países com a nossa cultura: por cá espera-se que aquilo que não somos capazes de fazer o Estado, ou o
Governo, ou o presidente da junta, faça por nós. Se não fôssemos como somos não necessitaríamos de um
Plano Nacional de Leitura pois ler regularmente seria como comer, ou ver televisão, ou assistir a um espectáculo
de futebol.

Mas não é. Não são só os nossos maus resultados nos testes de literacia: todos os índices revelam, de alguma
forma, que estamos na cauda da Europa, e por vezes chegamos a estar mal classificados quando nos compa-
ramos com países muito mais pobres. Os portugueses lêem, por dia, proporcionalmente, pouco mais de metade
dos jornais que os espanhóis, um terço dos franceses, um quinto dos ingleses, um décimo dos nórdicos ou dos
japoneses. Não lemos, ponto. Nem jornais, nem livros. Quem, mesmo assim, anda com um diário desportivo
debaixo do braço corre o risco de passar por um intelectual.

É natural e salutar que isto preocupe as autoridades e é notável que nos últimos anos se tenha desenvolvido um
esforço continuado, teimoso, de criar redes de bibliotecas municipais e de bibliotecas escolares. Ter um livro à
mão é, pelo menos, um começo. Mas não chega, pelo que o Plano ontem anunciado procura ir mais longe e criar
hábitos (forçados) de leitura nos diferentes graus de ensino. Como ideia é positivo, corresponde mesmo a uma
ruptura com a aceitação passiva de que "não se pode fazer nada". É também um grito de revolta contra atitudes
tão reaccionárias como elitistas como as de José Saramago, a quem talvez incomode que a multidão do "povo"
ascenda ao seu nível. Porque, como sabemos de outros países e outras sociedades, é mentira que leitura sem-
pre tenha sido e esteja condenada a ser "coisa de uma minoria".

Teresa Calçada e Isabel Alçada são duas mulheres com saber de muita experiência feito e que há muito, percor-
rendo caminhos bem diferentes, muito têm feito para que os livros se tornassem, na casos dos portugueses, algo
tão comum como ter leite no frigorífico. Mas por mais perfeito que seja o plano que desenharam e o Governo
adoptou e apresentou, só se lerão mais livros, mais jornais, mais autores eruditos ou mais literatura de cordel se
o acto de ler, de declamar, de elaborar sobre o que se leu, e também de escrever, for tão natural como respirar.
Ora, sejamos directos, para isso não chega nem o Estado nem a escola: é necessária a família, é fundamental o
papel dos pais.

Porquê? Porque o verdadeiro segredo para que os finlandeses surjam no topo da escala da literacia mesmo
utilizando uma língua estranhíssima e rara é porque ouvir ler, depois ler, depois declamar, é algo que integra a
sua cultura há séculos. No passado, quando o país ora estava submetido pelos suecos, ora pelos russos, os que
tinham autoridade nas comunidades eram os que mais poemas conseguiam declamar. Hoje, quando os vemos
no topo de todos os rankings, devemos lembrar-nos que isso sucede em boa parte porque nas longas noites dos
seus Invernos (ou ao sol da meia-noite dos seus Verões) os pais e as mães lêem histórias aos filhos. Não os
entregam às televisões - cativam-nos com contos eternos e fábulas encantatórias. Nisso batem todos os recor-
113

des do mundo. Por isso estão depois entre os povos mais capazes de reagir à modernidade, porque desde muito
novos estão treinados para ler, compreender e raciocinar.

Sejam pois bem-vindas as iniciativas previstas no Plano Nacional de Leitura - mas sejam ainda mais bem-vindos
todos os que tirarem proveito dos livros que têm começado a estar ao alcance de um empréstimo, à distância de
um braço capaz de escolher a leitura que em centenas de bibliotecas públicas lhes é ou será oferecida. Porque o
Estado fez o que devia - agora cabe aos cidadãos, e sobretudo aos pais, deixarem de pedir e fazerem o que lhes
compete. Só eles podem ler histórias aos filhos antes de estes adormecerem...

Fonte: Público, 2 de Junho de 2006


114

O eterno retorno [ 3 de Junho ]


Vasco Pulido Valente

Com eterno retorno, em que se tornou a vida portuguesa, volta a leitura, desta vez com um "plano". Pôr a crian-
çada a ler e o público em geral. Muito bem. A ler o quê? Os "clássicos", dizem. Mas que espécie de "clássicos"?
Gil Vicente, Camões, Vieira, Garrett, Camilo, Eça, Oliveira Martins, Cesário, Pessoa? Infelizmente, não há "clás-
sicos" que se possam ler: tirando a poesia (um caso complicado), um pouco de Eça, de Camilo e Oliveira Mar-
tins, quanto muito. E o inevitável Júlio Dinis, se conseguir passar por "clássico" e se alguém hoje o aturar. O
facto é que a literatura portuguesa é pobre. Ainda por cima, os "protegidos" do "plano" não a percebem: nunca
viram grande parte das palavras, tropeçam na sintaxe, ignoram as referências. Pegue, por exemplo, um dos
promotores do "plano" em, por exemplo, Viagens na Minha Terra ou A Relíquia e explique o que lá está (um
centésimo basta). Gostava de assistir.

Não conheço muita gente, gente da minha idade, que leia, apesar de uma educação tradicional. Porquê? Porque
ler implica um esforço: de atenção, de inteligência, de memória. Ler é uma actividade e a nossa cultura é quase
inteiramente passiva. A televisão, o DVD, a música popular ou a conversa de computador não exigem nada,
deixam a pessoa num repouso imperturbado e bovino. Mudar isto equivale a mudar o mundo. Não se faz com
um "plano". Claro que o romance de aeroporto se continua a vender, e bem: não puxa pela cabeça e vai matan-
do o tempo. Talvez que Miguel Sousa Tavares (300 mil exemplares só em Portugal, mandou ele corrigir) e Mar-
garida Rebelo Pinto levem a melhor. O Estado missionário não leva com certeza a parte alguma. Ou leva, leva a
uns milhares de empregos para burocratas, bibliotecários, "mediadores de leitura" (um truque novo) e para a
tropa fandanga do costume.

José Manuel Fernandes lamenta que os portugueses não leiam jornais, sentimento que do coração partilho. Mas
também não existe em Portugal uma verdadeira discussão política (nem no Parlamento). A sério, a sério, não se
discute coisíssima nenhuma: nem o regime, nem a ideologia do regime, nem religião, nem moral, nem moral
social, nem sequer os deploráveis costumes da tribo. Porque iria um cidadão comprar sofregamente o jornal? E
por que raio de lógica ler Eça e Camilo (que, de resto, execravam jornalistas) convenceria um adulto (ou uma
criança) da bondade da imprensa? Desde o "25 de Abril", Portugal sofreu uma série infinita de obras de miseri-
córdia, para chegar ao poço. É altura de acabar com a brincadeira.

Fonte: Público, 3 de Junho de 2006


115

Ler e crescer [ 4 de Junho ]


João Morgado Fernandes

Quem tem filhos em idade escolar sabe como é. Chegam a casa e vão à Internet porque o professor pediu para
fazerem uma pesquisa destinada a um trabalho. Não é difícil de imaginar os milhares de "trabalhos" idênticos
produzidos semanalmente pelas máquinas de pesquisa do Google... Alguns deles, presume-se, redigidos em
"brasileiro" corrente.

Para a geração que actualmente se encontra no chamado ensino obrigatório, o saber é algo que se encontra ao
alcance de uma tecla, devidamente depurado, sistematizado, mastigado, pronto a digerir. Porquê ler as centenas
de páginas de Os Mais, se algumas editoras e outros tantos especialistas descobriram esse fabuloso negócio
daqueles pequenos manuais que fazem o resumo do texto, organizam a temática, estruturam a problemática?
Porquê perder tempo com quatro ou cinco Autos de Gil Vicente se a Wikipedia já tem (ou há-de ter...) o digest de
cada um deles?

Esta geração foi ensinada a encarar o saber como algo de adquirido, preexistente. Não é necessário estudar os
clássicos porque já alguém os estudou por nós e agora esse saber está disponível, organizado, acessível. Não é
necessário dissecar a rã porque (além de ser uma atitude ecologicamente incorrecta...) já alguém a dissecou
antes e até meteu tudo num muito didáctico e premiado DVD.

A tendência já viria de trás, mas o boom das novas tecnologias acentuou a ideia de que não necessitamos de
sujar as mãos na realidade. E a democratização da Net faz-nos crer que tudo, incluindo o saber, está acessível a
todos, em todo o lado, a todo o momento.

Os que nasceram antes dos computadores sabem que não é bem assim. Que o conhecimento, o saber, a cultura
são processos aquisitivos, constroem-se, dão trabalho. E que o gozo, a fruição estão mais vezes no processo de
descoberta do que no produto adquirido.

Vem isto a propósito de uma das mais interessantes iniciativas governamentais anunciadas nos últimos tempos -
o Plano Nacional de Leitura.

Sem saber ler (e saber ler não é apenas saber ler...), ou sem saber matemática, por exemplo, teremos excelen-
tes pesquisadores do Google, autênticas esponjas absorvedoras de conhecimento pré-estruturado, mas não
teremos estudantes a sério, e, logo, cidadãos plenos, activos críticos.

Para já, tirando um ou outro caso, a intelectualidade votou o Plano ao silêncio. É pena. Apesar de o mérito que
claramente tem, beneficiaria do olhar crítico de quem habitualmente pensa sobre estas matérias. Talvez desper-
tem quando for divulgada a lista de obras seleccionadas para leitura nas escolas...

Fonte: Diário de Notícias, 4 de Junho de 2006


116

Você quer um plano? [ 5 de Junho ]


Eduardo Prado Coelho

Não se trata de dizer às pessoas o que devem ler, nem de nenhum voluntarismo. É preciso muita imaginação na
promoção da leitura. Mas garanto-lhes que vale a pena.

A minha ingenuidade é ilimitada. Eu pensei que um Plano Nacional de Leitura era um projecto que suscitaria um
aplauso unânime. Existe há muito nos outros países e corresponde no nosso caso a uma necessidade premente.
Mas logo um conjunto de vozes se alevantou com as objecções que qualquer coisa, seja ela qual for, suscita
neste país: que é inútil, que é para uns tantos ganharem uns dinheiros, que é uma intervenção na vida social que
deve ser livre como um passarinho, que cada um deve ler o que lhe apetece, e assim por diante, na extensa
imaginação que o disparate sempre tem. Que é um Plano Nacional de Leitura? É algo extremamente vivo e sen-
sível à evolução da realidade, que tende a coordenar e dar uma linha de rumo ao que já existe em termos de
iniciativas do Estado (que, por vezes, se sobrepõem) e a suscitar novas iniciativas nesse mesmo plano, e que
tende a apoiar as muitas iniciativas que existem a nível privado. Para dar alguns exemplos, podemos lembrar
que é possível racionalizar o que se passa nas bibliotecas públicas, poupando esforços e dinheiro do Orçamento
do Estado, fazendo circular exposições, ou criando ciclos comuns de conferências e debates, ou desenvolvendo
essa excelente ideia que foi o lançamento das comunidades de leitores. Mas é possível apoiar as novas livrarias,
sobretudo dando condições para que surjam em cidades que ainda não têm uma presença de qualidade neste
domínio. E é possível estabelecer desenvolver a formação profissional dos livreiros, para que estes não pensem
que O Príncipe de Maquiavel é o título de um romance e saibam que a Fenomenologia de Fernando Echevarría
não se arruma na secção de filosofia, mas na de poesia.

E é possível tentar fazer chegar livros portugueses junto das novas gerações das comunidades portuguesas no
estrangeiro. E articular o trabalho a realizar no Brasil com aquele, notável, que é feito pelos professores brasilei-
ros de literatura portuguesa.

Tanta coisa a fazer, e meia-dúzia de espíritos conservadores a rosnarem contra a iniciativa! Não se trata de dizer
às pessoas o que devem ler (leiam o que quiserem), nem de nenhum voluntarismo (ao contrário do que me di-
zem que Saramago terá afirmado, mas eu não acredito). É preciso muita imaginação na promoção da leitura.
Mas garanto-lhes que vale a pena. E se hoje se lê mais, o que é um facto, há duas observações que é preciso
avançar: será que os esforços que já têm sido feitos não têm grande influência nisto? E ainda: têm a noção do
que lê normalmente um jovem estudante universitário?

Fonte: Público, 5 de Junho de 2006


117

A leitura e a virtude cívica [ 5 de Junho ]


Francisco José Viegas

Uma das notícias da semana passada foi, sem dúvida, a apresentação das ideias gerais que hão-de presidir ao
Plano Nacional de Leitura. O país interessou-se vagamente pelo assunto, porque chegou à conclusão de que se
atingiu – nas escolas e na vida familiar – uma espécie de ponto de não-retorno, cujo diagnóstico é certamente
pessimista. As opiniões de Vasco Pulido Valente e de José Saramago, manifestadas de forma corajosa (bem
como, por exemplo, Abel Barros Baptista) vieram trazer alguma polémica, sempre bem vinda a um universo onde
são todos bonzinhos e se acha que a leitura tem a ver com a cidadania, numa espécie de aliança de virtudes
cívicas.

Essa ideia é, além de irritante ("bons cidadãos, bons leitores"), perversa e ruim para a própria leitura. A leitura é
fonte de inquietação, de ruína, de descalabro - e também de felicidade e de preguiça. Nenhuma destas coisas
faz bons cidadãos. Certamente que "ler muito" é bom - mas "ler bem" é muito melhor. É claro que ninguém, no
seu perfeito juízo, está em condições de definir o que é "ler bem", embora se perceba que se trata de ler bons
autores, de conhecer a grandeza dos clássicos da nossa língua e das outras línguas, da nossa cultura e das
outras culturas. Ninguém é melhor cidadão por ter lido Fernando Pessoa ou João de Barros. Mas a capacidade
de entender o mundo melhora consideravelmente.

Ler bem é, também, aproveitar a felicidade de ler, se se é feliz ao ler um livro que se amou. Mas não se trata de
uma virtude cívica.

Por isso, mais do que um plano nacional de leitura apresentado como uma prioridade nacional e cívica, com a
sua inevitável pompa cheia de valores politicamente correctos, é necessário que a escola mude alguma coisa
nos seus hábitos. A escola e as famílias. Mas a escola cumpre um papel essencial, razão porque há a esperar
alguma coisa desta iniciativa, uma vez que na sua base está também o trabalho de uma das pessoas que mais
fez pela qualidade das bibliotecas escolares, Teresa Calçada, além de uma autora que pôs muitos adolescentes
no caminho da leitura, Isabel Alçada.

Precisamente, alguns ideólogos estapafúrdios do ensino do Português (aqueles que dizem que a matéria curricu-
lar trata do "ensino do português" e não do "ensino da literatura") garantem que interessa acabar com a iliteracia
e que a literatura não tem nada a ver com o assunto. Provavelmente, nesse sentido, não haverá "vantagem cívi-
ca" em ter estudantes que saiam da escola a saber quem é Cesário Verde, a conhecer alguns trechos da "Pere-
grinação" ou de Fernão Lopes, a ter decorado dois ou três versos de Sá de Miranda ou de Tomás António Gon-
zaga. Por isso, os manuais do ensino e os livrinhos dos professores estão cheios de banalidades, de algaravia-
das e de português deficiente.

Distingo, aí, algumas vozes a chamarem-me reaccionário. É um argumento e tanto, mas advirto não vale nada.
Penso que o conhecimento dos clássicos é um dos melhores caminhos para conhecer a nossa história, a nossa
língua e a nossa cultura. E que a leitura de um clássico é melhor do que a leitura de um regulamento do Big
Brother, um artigo de jornal ou cartaz publicitário. Mas estes anos de insistência nas "virtudes cívicas do ensino
do português" em vez do ensino da literatura, "produz técnicos de ensino" do português mas não forma professo-
res disponíveis para cativar estudantes do secundário para os desafios da leitura. Um dos argumentos é triste e
vergonhoso: o de que os estudantes do secundário, por exemplo, "não compreendem" o texto de um clássico,
"não entendem" a linguagem dos autores do cânone da nossa literatura. Por isso, tratam de "facilitar o caminho"
118

e de modelar a cabeça das criancinhas (infantilizadas e maltratadas por anos de erros ortográficos). Se o Plano
Nacional de Leitura não devolver os clássicos da nossa língua à escola, não terá sucesso.

Fonte: Jornal de Notícias, 5 de Junho de 2006


O Prazer das Palavras [ 5 de Junho ]
José Carlos Abrantes

O jornalismo estabelece relações com a realidade. Isto significa que tem uma dimensão social e uma dimensão
narrativa. Pretende também revelar a complexidade do mundo. Esta é dita pela linguagem e, em particular, por
uma língua, código comum aos habitantes de um ou vários países. O jornalismo terá por isso que dar constante
atenção à língua portuguesa e a novas iniciativas que possam mudar a sua relação com os públicos. É o caso da
criação do Museu da Língua Portuguesa, inaugurado este ano, em S. Paulo. A iniciativa pode parecer irrelevan-
te, vista de longe. Mas uma visita deste Museu muda, radicalmente, este entendimento: vitalizar a imagem da
língua portuguesa traria novos leitores, até para os jornais. Sabemos como vão diminuindo, drasticamente, o
número de leitores da imprensa escrita. Em dois meses o Museu acolheu dois mil visitantes por dia, quatro mil
nos dias de fim-de-semana, sendo a grande maioria jovens das escolas. Alguns deles tornar-se-ão novos leitores
depois de experimentarem os prazeres das palavras que aí manipulam.

Se temos dinheiro para casinos e estádios, porque haveria de faltar em sectores que aumentam a inteligência
colectiva? A língua é terreno de afirmação profissional para os jornalistas e escritores, para os professores e
artistas, para os homens de negócios. E veículo de expressão para todos os cidadãos. A sua apropriação colec-
tiva origina mais e melhores leitores. Será que fica mal aos poderes públicos quererem estimular a leitura, seja
por um plano específico com esta finalidade, seja pela criação de dispositivos como as bibliotecas públicas e
escolares, por iniciativas como a criação de um museu da língua portuguesa? (1)

Parece estranho que se considere inapropriado dar um impulso à escrita e à leitura, que se ache utópico tentar
democratizar e alargar este gosto. Para quem quiser ver, é claro que mais leitura significa melhor escrita na
imprensa, nos media, na literatura - e maior exigência dos leitores.

Se quer expandir o número de leitores, o jornalismo não pode estar de costas voltadas para a inovação no domí-
nio da língua ou defender um olhar indiferente. Tem de formar cada vez melhor os seus profissionais, inventar
iniciativas que envolvam os leitores na leitura e na escrita, pugnar por maior dignidade e pertinência nos gastos
dos dinheiros públicos, escrutinando a sua aplicação em bens úteis aos cidadãos. É bom sinal que o DN de on-
tem tivesse uma notícia sobre leitura em primeira página.

O Museu da Língua Portuguesa de S. Paulo corresponde a uma concepção moderna e nada elitista de relação
com o público. ―O objectivo maior é fazer com que as pessoas se surpreendam e descubram aspectos da língua
que falam, lêem e escrevem, bem como da cultura do país em que vivem, nos quais nunca haviam pensado
antes. Que se espantem ao descobrir que sua língua tem todos aqueles aspectos ocultos. O alvo é a média da
população brasileira, mulheres e homens provenientes de todas as regiões e faixas sociais do Brasil e cujo nível
de instrução é, na maioria, médio ou baixo.‖ (2) Há portanto quem pense que a língua pode ser descoberta, com
prazer, pela maioria da população, em vez de ficar confinada às elites.

Da visita do Museu retira-se uma impressão forte: cada detalhe foi minuciosamente planeado. A sua localização
na Estação da Luz, uma estação de caminhos-de-ferro na qual transitam 300 mil pessoas por dia, é disso exem-
plo. Esta estação, ―considerada a porta de entrada da capital paulista, era o espaço onde se dava o primeiro
contacto dos imigrantes com o idioma do país no fim do século XIX‖ (3). Planear uma instituição implica pensar
no seu sentido simbólico, prever conteúdos adequados e permitir o seu crescimento num universo apropriado.
120

Olhar para as boas práticas ajuda-nos a perceber o que poderia ser feito, em Portugal, para benefício da leitura
e, logo, da imprensa escrita.

(1) Fui convidado para integrar a Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura, convite que aceitei na con-
vicção de que se pode actuar positivamente neste domínio.

(2 e 3) http://www.estacaodaluz.org.br/

BLOCO NOTAS

Conteúdos apropriados

Os conteúdos do Museu são tratados com o auxílio das tecnologias mais modernas e possibilitam uma constante interactividade ao utiliza-
dor. Terminais de computador ajudam a descobrir as raízes de palavras portuguesas com origem no inglês, no francês, no falar índio. Um
jogo interactivo, o Beco das Palavras, permite que se juntem radicais, sufixos e prefixos a partir de movimentos das mãos, repercutidos
num ecrã horizontal. Duas pessoas desconhecidas podem assim formar uma palavra, que depois mostra os seus significados através de
curtos filmes e animações. Quem não pensa em formato telenovela vai pôr o Museu no seu roteiro ao visitar S. Paulo. Sobretudo, estão a
fazê-lo muitos jovens paulistas e brasileiros a quem ajudará a construir outra relação com a língua e, também, com os jornais.

A leitura não existe só nos livros e jornais

Associa-se a queda da leitura em Portugal à televisão e à internet. Vale a pena lembrar que a televisão em Portugal é legendada? Que as
crianças e os jovens lêem legendas, desde muito novas, nos desenhos animados e nos filmes? A internet, incluindo imagens e sons, não é
o reino da escrita e da leitura? Já Umberto Eco, numa entrevista ao Nouvel Observateur do início dos anos 90, contestava o entrevistador
dizendo que os computadores nos estavam a introduzir na civilização da escrita, não na civilização da imagem. Podemos sublinhar, como
fez Rui Tavares, num debate recente na casa Fernando Pessoa, que os clássicos já se ensinam nas escolas? ―E, por isso, quando me le-
vantei para falar só fui capaz de debitar a lista de clássicos que estudámos na minha escola secundária em finais da década de 80, numa
escola pública que nunca entrou sequer nas 200 melhores do ranking e em plena terra queimada dos "filhos de Rousseau": o cancioneiro
galaico-português, Fernão Lopes, Gil Vicente, a tragédia Castro, a lírica e a épica camoniana, a parenética vieiriana e por aí adiante até
Herculano, Garrett, Camilo, Eça e - ai de nós - Fernando Pessoa. Pelo menos estes, quem quis aprender aprendeu.‖ In Público de
27/06/2006. Poderão ser mais e melhor ensinados, mas não se faça tábua rasa.

Fonte: Diário de Notícias, 5 de Junho de 2006


121

Carta ao Director [ 6 de Junho ]


Helena Carvalhão Buesco

Publicou Vasco Pulido Valente (V. P. V.) no PÚBLICO de sábado passado uma crónica em que produz algumas
afirmações curiosas em torno da leitura e da sua eficácia, bem como dos "clássicos" que (pouco) teríamos. En-
quanto pessoa ligada, por gosto, entusiasmo e profissão, a estas questões, quero aqui deixar algumas reflexões,
que eventualmente possam levar a esboçar um quadro menos a preto e branco (podemos fazer um quadro a
preto e branco, mas depois de trabalharmos a cor).

1. Diz V. P. V.: "Ler o quê? Os "clássicos", dizem. Mas que espécie de "clássicos"? [...] Infelizmente não
há "clássicos" que se possam ler." Não é verdade, V. P. V. Há-os, e bem para lá da lista dos nove no-
mes inquestionáveis que alinha (Gil Vicente, Camões, Vieira, Garrett, Camilo, Eça, Oliveira Martins, Ce-
sário, Pessoa), e do outro que parcialmente lhes agrega para logo o afastar (Júlio Dinis). Bem sei que
afasta a poesia (mas não Camões, Cesário e Pessoa?) por a considerar "um caso complicado". Compli-
cado é, a meu ver, este afastamento, além de simbólica e sociologicamente curioso. Sem querer entrar
em demasia no século XX (ainda no outro dia ouvi alguém defender, com a habitual arrogância, que a
noção de "clássico" acaba no século XIX, e essa pessoa justamente não estuda nem muito lê a literatu-
ra do século XX, menos ainda a do XXI...), que faz V. P. V. de nomes como Camilo Pessanha, Teixeira-
Gomes, Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Alexandre O"Neill, Carlos de Oliveira, Luiza Neto Jorge (e
não venho aos vivos, que os há!)? Então para trás: que tal Fernão Lopes, a espantosa lírica medieval,
Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda (com poemas, os tais complicados, que valem por toda uma literatu-
ra!), Francisco Manuel de Melo, muita da poesia maneirista e barroca (que fomos aprendendo a amar
apesar de dantes no-la ensinarem como "descartável" pela sua ligeireza), a poesia burguesa do século
XVIII, sem a qual Cesário e Pessoa são bem amputadamente incompreensíveis, o desconhecido conto
romântico, Alexandre Herculano, até mesmo, sim, Júlio Dinis? É bom evitar reduzir os clássicos (que
não escrevo entre aspas, note-se) a um cânone pessoal, embora seja legítimo que cada um de nós en-
contre, neles, um conjunto de afinidades electivas que são, justamente, aquelas que levam à leitura.
Mas sem conhecimento não pode haver compreensão, nem mesmo daqueles pontos negros de incom-
preensão de que o mundo e a literatura são feitos.

2. Diz V. P. V.: "Pegue, por exemplo, um dos promotores do "plano" em, por exemplo, Viagens na Minha
Terra ou A Relíquia e explique o que lá está (um centésimo basta). Gostava de assistir." Também isto
não é verdade, V. P. V. O que sim é verdade é que nem todas as pessoas poderão pegar nessas (e ou-
tras) obras com o mesmo grau de alegria e exigência de pensamento que outras. Também o reconheço.
Mas nem todos os médicos têm a mesma "iluminação" de diagnóstico, pois não? E isso não nos leva a
considerar que é o diagnóstico ele mesmo que se torna impossível e até indesejável... Conheço mo-
mentos de pura emoção de descoberta com as obras que V. P. V. refere e, felizmente, muitas outras
que não refere. Poderia ainda responder a V. P. V.: "Pegue ele, por exemplo, em obras como Guernica,
de Picasso, ou Las Meninas, de Velásquez" (um pouco ao acaso, entre tantas outras). Conseguirão
muitos "explicar" (não gosto da palavra, mas ela é a de V. P. V.) "um centésimo do que lá está"? E uma
resposta negativa invalidará que elas sejam e devam continuar a ser-nos apresentadas como outros
tantos clássicos? Não julgo que seja nisso que V. P. V. acredita, aquilo que quer, ou até mesmo faz.
Não é certamente aquilo em que eu acredito, o que quero e o que faço.
122

3. Para que conste: faço parte da Comissão de Honra do famigerado Plano Nacional de Leitura, e absolu-
tamente ninguém me encomendou (nem eu o aceitaria) nenhuma das observações que, a título estrita-
mente pessoal, acima entendi fazer.

Fonte: Público, 6 de Junho de 2006


123

Protagonismo para a Escola [ 7 de Junho ]


Entrevista a José Saramago

A polémica surgiu no próprio dia 1, quando o governo se preparava para apresentar publicamente o Plano Naci-
onal de Leitura: segundo alguns órgãos de Comunicação Social, José Saramago teria declarado que «o volunta-
rismo não vale a pena, é inútil» e que «o estímulo à leitura é uma coisa estranha, não deveria ter que haver outro
estímulo além da necessidade de um instrumento que permita conhecer. Mal vão as coisas quando é preciso
estimular». O JL/Educação ouviu o Prémio Nobel da Literatura para esclarecer a sua posição.

Jornal de Letras: É verdade que questionou a utilidade ou a vantagem do Estado estimular a leitura, co-
mo alguns órgãos de comunicação social noticiaram, pondo em causa ou questão o Plano Nacional ago-
ra apresentado pelo Governo e cuja Comissão de Honra integra?

José Saramago: Não dei o meu apoio ao Plano Nacional de Leitura para depois o retirar. Recordei na Biblioteca
Municipal de Oeiras as várias campanhas de promoção de leitura que foram lançadas no país em tempos recen-
tes e menos recentes, e a prática inutilidade de todas elas, como é facilmente demonstrável, tanto pelo elevadís-
simo número de analfabetos funcionais existente como pelas altas taxas de insucesso escolar e de abandono do
estudo. Repeti o que tenho vindo a dizer há anos: que o único lugar onde o interesse pela leitura ainda tem pos-
sibilidade de ser suscitado é, desde o primeiro dia, a escola, sob condição de que os professores saibam do que
falam quando mandem ler os seus alunos e de que sejam capazes de criar na aula ambientes de trabalho que
não acabem em mera e aborrecida obrigação. E que se isto não for feito, sustentado e defendido a todo o custo,
o Plano Nacional de Leitura se arriscaria a ser uma inutilidade mais. Disse também que ler é e sempre foi coisa
de minorias, e isso parece que escandalizou a cultíssima comunicação social que temos? Trata-se de uma evi-
dência histórica que não pode ser negada, a não ser por interesses de barata demagogia ou pelo habitual truque
de pôr palavras a fingir de factos e esperar que a operação cosmética resulte.

Embora não conhecendo decerto em pormenor esse Plano Nacional de Leitura, está ou não de acordo
com as suas linhas gerais de orientação? Acha ou não positivo, por exemplo, que a partir do passe a
dedicar-se uma hora por dia à leitura de um livro, pelo professor no pré-escolar, e pelo próprio aluno a
partir do 1º ciclo?

José Saramago: Em conversações telefónicas com as ministras de Educação e de Cultura quando me convida-
ram a integrar a Comissão de Honra do Plano, e antes de conhecer as linhas gerais respectivas, disse-lhes pre-
cisamente que considerava a leitura em voz alta dentro das aulas (note bem, em voz alta) como um factor fun-
damental para a formação do gosto de ler. Uma hora por dia, diz-se, mas falta saber como se organizará a ocu-
pação dessa hora em classes tão numerosas e heterogéneas como as que temos. Creio que os professores
terão de ser preparados para uma tarefa que só no papel parecerá fácil.

Em sua opinião, que papel é que a escola deve desempenhar na educação para a leitura?

José Saramago: Se a escola não cumprir essa função fundamental, ninguém mais o fará. Essa é a sua respon-
sabilidade. E, já agora, se for permitido ao sapateiro subir acima da alpargata, direi que sociedade portuguesa
deveria iniciar um debate sério sobre as consequências negativas que resultaram da alegre confusão que se tem
vindo a estabelecer entre instrução e educação. Qualquer pessoa perceberá que a escola não tem condições
(nem sequer mínimas) para educar. Pretende-se que ela se substitua à família e à sociedade no processo edu-
124

cativo, esquecendo, ou fazendo de conta, a diferença básica que existe entre instruir e educar: instruir é transmi-
tir conhecimentos, educar é inculcar valores. Suponho que a ministra da Educação não terá dúvidas a este res-
peito. E se as não tem, em que ficamos?

Pensa que é possível, como o Plano pretende, seduzir para a leitura adultos pouco familiarizados com os
livros?

José Saramago: Talvez. E mais não digo.

Fonte: Jornal de Letras, 7 de Junho de 2006


125

Os livros, pois [ 14 de Junho ]


Vasco Graça Moura

Os livros, pois. Levar a população, sobretudo os jovens, a ler mais. Tornar obrigatória a leitura de um conjunto de
livros para cada ano escolar. Em França, os miúdos do secundário são obrigados a ler sete a oito livros por ano,
para além das matérias que integram a disciplina de Francês. E têm de falar deles nas aulas... E, como nota
José Augusto Cardoso Bernardes, no seu recente e importante livro Como Abordar a Literatura no Ensino Se-
cundário/ /Outros Caminhos (ASA, 2006), a que tenciono voltar nesta coluna, "a Literatura é hoje menos prezada
nas escolas portuguesas do que nas suas congéneres espanhola, francesa, inglesa ou italiana, para citar apenas
os exemplos onde a presença no cânone escolar é mais forte".

A grande questão todavia desdobra-se em duas: quais os livros a indicar para leitura obrigatória em cada ano
escolar? E como torná-los disponíveis rapidamente, em termos de qualidade editorial mínima, cobertura do terri-
tório e acessibilidade de preço?

O primeiro aspecto carece de uma reflexão aprofundada e evolutiva. Isabel Alçada e Teresa Calçada abordam-
no em entrevista ao último JL/Educação. Quanto ao segundo, uma solução consistirá em pesquisar a oferta
editorial corrente no mercado e organizar os programas de leitura em função dela. Outra, em deixar as coisas a
cargo dos editores e não apenas dos de livros escolares. A terceira, possivelmente mais eficiente e mais barata,
consistiria em o Ministério da Educação convencer os grandes jornais e as editoras de livros para quiosque a
publicarem séries completas desses livros em formato de bolso, com grande tiragem, promoção e distribuição
garantidas e preço muito baixo. Devidamente negociado e calibrado, um programa deste tipo poderia dar exce-
lentes frutos.

Mas, numa altura em que se deplora o papel negativo da televisão no tocante à regressão alarmante dos hábitos
de leitura, fará sentido falar do Plano Nacional de Leitura sem considerar o papel que a televisão e a rádio (tanto
a de grande audiência como as rádios locais) podem e devem ter? Se há um serviço público de televisão, neste
aspecto deveria haver uma ditadura implacável do Ministério da Educação sobre esse serviço público em todos
os canais dependentes do Estado. Bastava que estes consagrassem à leitura, em horário nobre, a quinquagési-
ma parte do tempo que dedicam ao futebol para se alterar o panorama desolador que enfrentamos... Eduardo
Prado Coelho acaba de escrever um artigo notável sobre o que há de enjoativo e obsceno na overdose de fute-
bol que nos é servida como pão nosso de cada dia. E, quanto aos canais privados, seria possível o Estado incluir
como contrapartidas contratuais da concessão princípios que garantissem a contemplação devida dos interesses
em questão.

Sem desvalorizar, muito pelo contrário, o mérito de programas como o de Francisco José Viegas e outros, é
evidente que nem o problema do défice cultural (que implicaria também uma palavra mais forte do Ministério da
Cultura na área do audiovisual) nem o problema da leitura se resolvem com um simples magazine semanal,
emitido lá para as tantas, nem com micronotícias sobre a actividade editorial. Ao invés, e para dar só três exem-
plos, pode imaginar-se o êxito que teriam séries de programas sobre a Ilíada e a Odisseia, por Frederico Louren-
ço, sobre Os Lusíadas, por Amélia Pinto Pais, sobre Gil Vicente, por J. A. Cardoso Bernardes, incitando à leitura
a partir das aliciantes descobertas que poderiam proporcionar.

Os melhores recursos humanos e culturais da televisão deviam ser investidos com engenho e capacidade de
sugestão numa acção continuada desse tipo, relegando-se o futebol para a uma ou as duas da manhã e pas-
126

sando a produzir-se, com a linguagem televisiva adequada, programas social e culturalmente úteis do ponto de
vista específico e prioritário do Plano Nacional de Leitura, que ocupariam a vez dos concursos idiotas e da tralha
imunda que é habitual ver-se nos melhores blocos horários.

Afinal, num país de nível cultural medíocre e de nível escolar desgraçado, num país que se preocupa tanto em
proibir o tabaco que acabará por fazê-lo ao nível da próprias retretes, não haverá ninguém que se preocupe em
disciplinar, ao menos, a poluição dos espíritos no espaço público, abrindo segmentos televisivos e radiofónicos
frequentes e adequados para coisas mais saudáveis e, sobretudo, escolarmente mais produtivas já no médio
prazo?

Fonte: Diário de Notícias, 14 de Junho de 2006


127

Em voz alta [ 17 de Junho ]


Inês Pedrosa

Quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva se gabou de não ler jornais e confundiu Thomas Mann
com Thomas More, muita gente se escandalizou ou fez troça dele. A mim, o que me escandalizou particu-
larmente foi a resposta que davam essas mesmas pessoas quando lhes perguntávamos que textos dos
jornais do dia tinham lido ou o que tinham a dizer das obras de Mann ou de More: engasgavam-se, des-
culpavam-se, mudavam de assunto, entupiam. Portugal tem uma carência evidente de elites exemplares
(passe o pleonasmo), mas o pior é que o povo continua a desculpar-se com a ignorância das elites para
continuar - quer se trate da leitura ou do civismo na estrada - a refocilar na alarvidade. A desculpa das
décadas de ditadura não pode continuar a ser aceite: minhas senhoras e meus senhores, o fascismo
acabou há 32 anos. Desde 1974 que estamos, gostemos ou não, por nossa conta, sem um tirano a quem
culpar todos os males ou sem um protector permanente a quem lamber os pés e fazer queixinhas. A de-
mocracia tem os seus defeitos; a nossa tem experimentado atávicas dificuldades - mas o fascismo aca-
bou. Há várias gerações que, felizmente, já nem se lembram dele. São as mesmas gerações que, infeliz-
mente, nem sabem o que ele foi, porque os paizinhos digeriram tão mal a liberdade que até dizem que
estamos pior do que antigamente. É mentira, mas é fácil de provar: há mais desemprego (porque já não
há a miséria da emigração em condições degradantes), aumentou a insegurança no emprego (porque o
mérito passou a contar - embora ainda pouco, e já nem todos os lugares passam de pais para filhos), o
ensino piorou (porque se democratizou, e os filhos dos estivadores passaram a ter direito a estudar e a
disputar os empregos aos filhos dos doutores), a criminalidade e as tragédias parecem ter aumentado (ou
antes, passaram a ser noticiadas, quando antigamente até os mortos das cheias eram censurados).

É curioso observar como as mesmíssimas pessoas que fazem vida de zurzir no analfabetismo crónico do
país se abespinham quando surge uma medida de combate a esse analfabetismo - vide o agora enuncia-
do Plano Nacional de Leitura. Da Esquerda à Direita, várias vozes doutas se prontificaram a futurar a
inutilidade do Plano, alegando que a leitura sempre foi e será coisa de minorias. Entre essas vozes, para
minha surpresa, incluiu-se a do nosso Prémio Nobel da Literatura, apesar de figurar na Comissão de
Honra do mesmo Plano - por Nobel obrigação, segundo esclareceu, embora o regulamento do Nobel não
obrigue a tais sacrifícios. Outras, mais arrevesadas, chegam a alegar que a democratização da leitura é,
em si mesma, perniciosa, porque faz crescer a interpretação de grau zero e a submissão ao senso co-
mum. Esta afirmação não resiste a um minuto de raciocínio - porque, se é verdade quem nem toda a
gente consegue ler em profundidade textos de maior exigência, não é menos verdade que a democratiza-
ção concede uma oportunidade de florescimento às mentes incomuns abafadas por um meio ambiente
pobre.

Não se pode obrigar ninguém a ler, mas o que se tem feito nas últimas décadas é obrigar as crianças e
jovens a não ler - porque instrumentalizar a leitura (ler «a matéria» ou ler «para a disciplina A ou B») ou
banalizá-la (considerando equivalentes não só literatura e a notícia de jornal, como Camões e as novelas
«light») é a melhor maneira de a matar. Mesmo assim, e ao contrário do que se diz, as crianças e os
adolescentes gostam de ler; vão perdendo esse prazer à medida que percebem que os adultos não lêem,
ou só lêem «a matéria» (que é o mesmo que, efectivamente, não ler). Há dias, num fórum da TSF, um
128

professor declarava tranquilamente que a literatura tem os dias contados, porque o cinema é muito mais
atraente; com esta mentalidade, mais expandida do que se pensa, não se criam de facto leitores (nem
cinéfilo, aliás, porque as duas coisas estão ligadas). Nesse mesmo fórum, a ministra da Educação afirma-
va que, quando se trata de estimular crianças dos primeiros graus de ensino, «não pode falar-se propria-
mente em literatura». Ora, parece-me exactamente o oposto: pode e deve. Não é a mesma coisa ler a
uma criança de 3 anos um livro de escritores como Sophia de Mello Breyner ou Manuel António Pina ou
uma historieta de cá-rá-cá-cá, do mesmo modo que não é a mesma coisa ensinar música a partir de Mo-
zart ou a partir de um êxito pimba. Os primeiros anos são, como sublinham hoje todos os especialistas do
cérebro, fundamentais. A literatura não é apenas uma questão de sentido, é também uma questão de
som, ritmos, mistérios. Uma das coisas que tem contribuído para afastar os mais jovens da leitura (e de
toda a miríade de descobertas e capacidades que ela acarreta) é o paternalismo dos mais velhos, que à
força de quererem «orientar» os seus rebentos no sentido de um suposto sucesso e de uma pretensiosa
felicidade os abarrotam de ocupações circum-escolares e livros «lúdicos». A graça da leitura - como de
quase tudo na vida - está na dificuldade, no mistério, no obstáculo.

Isabel Alçada, comissária do Plano Nacional de Leitura, explicava ao «JL» que a competência da leitura
«tem de ser desenvolvida até aos 9, 10 anos», e acrescentava: «É como nadar: está provado que é muito
difícil estar à vontade dentro de água na idade adulta se não se aprender a nadar em criança. Ou como
andar de bicicleta ou dançar». O que este Plano oferece é exactamente esse curso básico de natação,
dança ou ciclismo em torno das palavras. Que parte de algumas práticas muito simples e essenciais,
como essa de dar obras literárias completas aos jovens em vez de migalhas avulsas de textos. E da expe-
riência fundamental da leitura em voz alta. É infinitamente triste ver - como eu já vi, por este país fora,
centenas de vezes - rapazes e raparigas de 15 e 16 anos a soletrarem arduamente um texto literário.
Saber ler em voz alta é a primeira condição para uma pessoa conhecer a cor e a densidade da sua pró-
pria voz - ou seja, para ser inteiramente pessoa.

Fonte: Revista única, Expresso, 17 de Junho de 2006


129

A paixão da leitura [ 20 de Junho ]


José Geraldes

O Governo lançou um Plano Nacional de Leitura que pode conter virtualidades de grande alcance. O
Plano prevê que obrigatoriamente as crianças da pré-primária e do 1º ciclo leiam livros todos os dias du-
rante uma hora na sala de aula. Os alunos do 2º ciclo terão também um período de carácter obrigatório
para a leitura, mas só uma vez por semana durante 45 minutos.

José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, que integra a comissão de honra, não acredita nas intenções
do Plano pois a ―leitura sempre foi e será coisa de uma minoria‖. Neste caso sublinha que ―o voluntarismo
é inútil‖. O historiador e comentador Vasco Pulido Valente discorda também da iniciativa recusando o
convite para dar a sua colaboração, argumentando que não é assim que se estimula o hábito da leitura.

No lado oposto, o poeta e escritor Vasco Graça Moura encontra méritos no Plano. Igualmente Marçal
Grilo, ex-ministro da Educação e responsável pelo Programa da Língua Portuguesa da Fundação Gul-
benkian, com a experiência adquirida neste organismo considera ―muito positiva‖ a acção das bibliotecas
escolares. Mas ressalva que os resultados dos estudos revelam que os estudantes até ao início da ado-
lescência mantêm níveis de leitura razoáveis em consonância com a média europeia. A partir daqui os
leitores perdem-se.

A prática da leitura em público não é nova. Alberto Manguel, na sua magnífica obra Uma História da Leitu-
ra, mostra que esta prática existia na Grécia, antes de Roma. O mesmo se passava com Charles de Or-
leães no séc. XV, Ariosto e o nosso Camões (séc.XVI). Mas foi no séc. XIX que a prática da leitura em
público atingiu o apogeu. O escritor Charles Dickens, na Inglaterra, treinava no mínimo dois meses a voz
e os gestos. Depois, quando lia em público, arrancava lágrimas ao seu auditório.

Marcel Proust apresenta um testemunho curioso: ―Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos
vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem vivê-los, aqueles que passa-
mos na companhia de um livro preferido‖. Os resultados da maioria das sondagens sobre os hábitos de
leitura em Portugal não são muito animadores. Daí que este Plano tenha a sua razão de ser. E certamen-
te a seu tempo dará frutos. E, como reza o provérbio, ―em pequenino se torce o pepino‖.

Por isso, tudo o que se faça a favor do aumento dos hábitos de leitura, merece aplauso e incentivos.

Um livro pode mudar a vida de uma pessoa. Multiplica o saber, abre novos horizontes à mente humana,
introduz-nos nos caminhos da ciência. Na expressão do padre António Vieira, ―o livro é o mestre mudo‖. E
Romano Guardini sublinha: ―Os livros são fonte imprescindível de conhecimento‖ e causa de prazer e
distracção‖.

Ler os livros na pré-primária e no 1º ciclo vai criar hábitos que em estado adulto não se esquecerão. As-
sim funciona a natureza humana. E, com toda a certeza, nascerá a paixão da leitura.

Fonte: Urbi @ Orbi (Jornal Online da UBI), 20 de Junho de 2006


130

O que vale o Plano Nacional de Leitura [ 31 de Julho ]


Rui Manuel Brás

O panorama é, na verdade, negro. De acordo com os dados do PISA (Programme for Internacional Stu-
dent Assessment), lançado pela OCDE em 1997 para medir a capacidade dos jovens de 15 anos usarem
conhecimentos na vida real, os níveis de leitura em Portugal são muito baixos. No ano 2000, 48% dos
jovens portugueses estavam nos níveis inferiores (1 ou 2) de uma escala de 5 níveis. Três anos depois,
os resultados não haviam melhorado.

Outro dado importante, este com origem no Ministério da Educação e baseado nos resultados das provas
de aferição, mostra que a maioria das crianças transita do 1º para o 2º ciclo ―sem ter adquirido competên-
cias básicas no domínio da leitura e da escrita‖.

O País não pode manter-se impávido perante estes factos. A resposta do governo foi apresentar o Plano
Nacional de Leitura (PNL). Com vista a combater os baixos níveis de literacia de leitura, este plano pre-
tende mobilizar os alunos e respectivas famílias, os professores, os escritores, as bibliotecas públicas,
enfim, todos os que, de algum modo, possam ajudar a resolver o problema.

Devo confessar que tenho grandes dúvidas quanto à viabilidade do PNL (www.rbe.min-edu.pt/eventos
/plano_nacional_de_leitura.htm). Em primeiro lugar, porque desconfio sempre dos grandes ―planos‖ gera-
dos pelo Estado. Considero que neste caso o Estado assume demasiado protagonismo, procurando dirigir
o processo todo, deixando pouca margem de manobra a iniciativas que lhe fujam ao controlo. Nada de
novo, tendo em consideração que os socialistas descendem ideologicamente do Iluminismo e daquele
Republicanismo que atribuía ao Estado o papel decisivo na ―iluminação‖ das mentes populares. Em se-
gundo lugar, questiono-me sobre a viabilidade financeira de semelhante esforço estatal. A menos que as
ministras da Educação e da Cultura tenham conseguido que tudo fique ―de graça‖, o Plano implicará cus-
tos que ou não foram divulgados ou ainda não foram calculados. Em terceiro lugar, penso que o Plano
está desfasado da realidade social nacional e, por isso, é utópico.

As actividades previstas para as escolas não trazem nada de particularmente novo. A leitura diária na
aula, as actividades de expressão com livros, os jogos, os concursos, as Feiras do Livro, os Clubes de
leitura, e mesmo os encontros com autores, já fazem parte do quotidiano de algumas escolas. Talvez
interesse generalizá-las à escala nacional. O que é novo, é o apoio a blogs e chat-rooms sobre livros,
jornais e revistas e sobre leitura, previsto para os tempos livres dos alunos do 3º Ciclo e do Ensino Se-
cundário. Interessante mas irrealista, pois não tem em conta o perfil do aluno médio daqueles níveis de
ensino.

Uma novidade reveladora do papel paternalista do Estado, são os programas para as famílias. O progra-
ma ―Leitura a par‖ (famílias com crianças no Jardim de Infância, 1º e 2º anos), prevê actividades de leitura
entre pais e filhos e o empréstimo domiciliário com base na biblioteca escolar. O programa ―Há sempre
tempo para ler‖ (famílias com crianças entre o 3º e o 6º anos), inclui o incentivo à leitura em tempo livre,
concursos e jogos on-line e presenciais, ―que tomem como base a leitura domiciliária‖. Ambos os progra-
mas prevêm a definição de ―listas de livros recomendadas para leitura familiar, organizadas por nível de
dificuldade‖ e ―orientações para actividades‖.
131

Não é este um caso de tentativa de interferência do Estado ―iluminado‖ na vida privada das famílias?
Programar a leitura de pais e filhos?! Criar listas de livros recomendados?! Eu falo por mim quando afirmo
que não preciso que o Estado me diga o que o meu filho deve ler, nem quando, nem com quem. Penso
que o mesmo dirão as mães e os pais que tenham um nível de instrução superior ou que têm o gosto pela
leitura. A quem se destina o Plano? Aos ―outros‖, isto é, aqueles que não têm ―competências básicas no
domínio da leitura e da escrita‖, e/ou para quem ler é uma perda de tempo? Quantos desses encarrega-
dos de educação vão, de um ano para o outro, ―ver a Luz‖ e aderir às maravilhas da leitura em família?!
Não se estará a construir uma imagem idílica dos encarregados de educação? Afinal, a Ministra da Edu-
cação considera-os aptos a avaliar o trabalho dos professores, por isso deve acreditar no que diz o Plano.

Na minha opinião, e apenas com base no que está escrito no Relatório Síntese do Plano Nacional de
Leitura, estamos perante mais um fracasso anunciado. Vai-se gastar mais dinheiro em programas, cam-
panhas de sensibilização da opinião pública e acções de formação, para ter resultados muitíssimo limita-
dos. A intervenção do Estado, ainda por cima desta forma, não resolverá o problema. Ele é mais profundo
e a solução só virá com uma verdadeira revolução das mentalidades.

Fonte: Jornal da Nova Democracia, 31 de Julho de 2006


132

Anexo 2: documentos complementares


133

Inauguração da Biblioteca Municipal da Golegã [ 23 de Abril ]


Discurso da Ministra da Cultura

Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal da Golegã, Dr. Veiga Maltez


Exmo. Senhor Director do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, Prof. Dr. Jorge Martins
Autoridades Locais
Senhores Jornalistas
Minhas Senhoras e Meus Senhores,

É extraordinariamente grato a uma ministra da Cultura visitar um concelho que assume a intervenção na
área cultural como uma das suas prioridades estratégicas. A Golegã tem-se afirmado e distinguido, nos
últimos anos, como uma autarquia que cuida da sua História, do seu Património, e que intervém activa-
mente na qualificação dos seus habitantes. Em meu entender, este é o caminho certo, o caminho do
futuro. Investir na Cultura é investir nas Pessoas. Por este motivo, antes de mais, quero dirigir à actual
equipa camarária, e em particular ao Senhor Presidente, Dr. Veiga Maltez, os meus sinceros Parabéns
pela visão, pelo trabalho desenvolvido e pela obra feita!

A Biblioteca Municipal da Golegã, cuja inauguração nos traz hoje aqui reunidos, começa por ser feliz na
ocasião escolhida para o seu "nascimento": o Dia Mundial do Livro. Trata-se de uma data, como o próprio
nome indica, assinalada à escala planetária, e plena de simbolismo para todos quantos tiveram, têm, a
felicidade de saber que a vida, com livros, é mais colorida.

Que essa descoberta possa ser feita por cada vez mais e mais pessoas, é missão dos governos e dos
governantes. Em sociedades cada vez mais complexas e exigentes, em que a tecnologia progride a um
ritmo veloz e a torrente de estímulos externos constantemente nos desafia, ter a capacidade de ler já não
é apenas saber ler. É preciso fazer coincidir o universo da Leitura com o universo da Literatura. Transfor-
mar cada pessoa capaz de ler, num Leitor de facto. Criar gerações de leitores militantes, passo à expres-
são. Cidadãos que, além de saberem ler, lêem com gosto e por gosto. Porque a aptidão para a leitura é
somente o princípio do caminho que conduz ao admirável mundo dos Livros. E o nosso desejo é que
ninguém fique a meio dessa estrada.

E o que nos traz, afinal, esse admirável mundo dos Livros? Tudo. Com os livros, através dos livros, po-
demos transgredir os limites físicos da nossa condição humana. Viajar no tempo e no espaço. Tanto já se
disse sobre o objecto Livro, que se torna difícil não repetir ideias. Mas talvez haja vantagem, precisamen-
te, em repeti-las. O Livro é um legado maior da nossa Civilização. Fonte de conhecimento, de espirituali-
dade e de intelectualidade, ele representa simultaneamente a abertura ao outro e a capacidade de cada
um se encontrar consigo próprio. A leitura de um livro, seja ele de poesia, ficção literária, ensaio ou banda
desenhada, é um exercício irrepetível e inimitável, em qualquer momento da nossa vida. Ler Faz Bem e
torna-nos melhores pessoas. Pessoas mais qualificadas, mais criativas e mais sensíveis. Logo, mais
felizes e mais construtivas. O benefício é de cada um, mas também da sociedade no seu todo.

As Bibliotecas são templos de Livros, casas onde cabem muitos mundos, e a obra que hoje se inaugura é,
estou certa, um dos investimentos mais profícuos que esta Câmara Municipal oferece à sua população.
As gerações presentes e as futuras dela usufruirão, e certamente muitos serão aqueles que, neste lugar,
vão despertar ou avivar o gosto pela Leitura.
134

Por este motivo, a Rede de Leitura Pública é há vários anos, e atravessados vários governos, um projecto
de importância maior ao nível das políticas culturais. As Bibliotecas municipais são garante do acesso dos
cidadãos aos livros, superando condicionalismos de ordem diversa, nomeadamente geográficos e eco-
nómicos.

Neste momento, o Ministério da Cultura, através do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, já apoi-
ou um total de 261 Municípios (incluindo Açores e Madeira), suportando 50 por cento dos custos envolvi-
dos na viabilização destes equipamentos. Esta cifra representa já a cobertura de 84,7 por cento do territó-
rio nacional, composto por 308 Municípios. A Biblioteca da Golegã vem elevar para 149 o número de
Bibliotecas Municipais abertas ao público ao abrigo deste programa, o que perfaz 57 por cento dos projec-
tos apoiados. Só em 2005 foram inauguradas 14 bibliotecas, e ao longo do presente ano esperamos
inaugurar pelo menos outras 12.

A Rede de Leitura pública constitui, por todas as razões já explicitadas, uma forte aposta governamental
em matéria de política do Livro e da Leitura. Mas muito mais há para fazer nesta área, sempre tomando
como objectivo maior a aproximação dos cidadãos ao livro e o incentivo à Leitura. Este é, aliás, um pro-
cesso no qual toda a sociedade pode ser envolvida. Hoje mesmo, durante a manhã, pude observar in loco
o esforço meritório de instituições hospitalares que apostam em apetrechar as suas unidades de pediatria
com bibliotecas destinadas às crianças.

O ministério que dirijo propõe-se também apostar numa estratégia de fomento da edição para deficientes.
No tempo em que vivemos, a multiplicidade de meios tecnológicos ao nosso dispor permite-nos superar
em larga escala as técnicas tradicionais de edição destinadas às pessoas com deficiências visuais, men-
tais ou físicas. Não podemos permitir que estes cidadãos sejam excluídos.

O sector livreiro e da edição há muito que reclama, a meu ver justificadamente, a publicação de dados
estatísticos sobre o Livro. Estou em condições de anunciar que, a partir de Julho deste ano, o Ministério
da Cultura, através do IPLB, em articulação com o Instituto Nacional de Estatística e com as associações
representativas do meio, APEL e UEP, irá iniciar um estudo destinado à definição de modelos de levan-
tamento da informação estatística relativa ao Livro, tanto ao nível da oferta editorial como das aquisições.
Essa informação será actualizada e publicada com regularidade, através de suporte informático.

Por outro lado, vamos também trabalhar no sentido da elaboração de um estudo aprofundado sobre Hábi-
tos de Leitura dos Portugueses. Este é um trabalho que surge enquadrado num outro grande projecto
governamental, este partilhado entre a Cultura e os ministérios da Educação e dos Assuntos Parlamenta-
res: refiro-me ao Plano Nacional de Leitura, cuja apresentação pública está agendada para o próximo dia
02 de Junho.

Em 2007, lançaremos em Portugal um Prémio de Edição. Esta é outra novidade que tenho para vos
anunciar. Trata-se de um galardão, instituído já em muitos outros países, que incide especificamente
sobre a qualidade editorial, no plano gráfico, técnico e estético.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Não queria terminar estas minhas palavras sem me dirigir em especial aos escritores e autores de Língua
Portuguesa, aqueles que, dedicando-se ao ofício da escrita, renovam e revigoram o nosso gosto pelos
livros e pela leitura. A expressão literária, ensaística ou poética do nosso idioma deve ser, para todos nós,
motivo de orgulho. Cada vez mais o nome de Portugal cruza fronteiras através do seu trabalho, da sua
criação. São autores-embaixadores, os nossos escritores.
135

Considero portanto prioritário que se criem incentivos a uma maior promoção internacional do Livro e da
Literatura Portuguesa, marcando presença em eventos relevantes, como Festivais e Feiras do Livro, ou
reforçando programas de apoio à edição do Livro Português no estrangeiro, como sucede, com grande
êxito, no caso do Brasil.

Não me alongo mais. Estou certa que, com esta Biblioteca agora aberta ao público, o espírito do Dia do
Livro permanecerá vivo na Golegã durante todo o ano.

Obrigada a todos, muitos Parabéns e Boas Leituras!

Fonte: Portal do Governo


O estímulo à leitura é inútil [ 2 de Junho ]
Notícia sobre declarações de José Saramago

Lisboa, 01 Jun (Lusa) - O prémio Nobel da Literatura José Saramago questionou quarta-feira a utilidade
de o Estado dar "estímulos" à leitura, afirmando que "voluntarismos" não valem a pena numa área que
"sempre foi e será coisa de uma minoria".

Num debate na Biblioteca Municipal de Oeiras, Saramago afirmou não saber "o que vai ser" o Plano
Nacional de Leitura arquitectado pelo governo, referindo apenas que "há dinheiro para gastar", mas resta
"esperar para ver que resultados vai ter".

"Não vale a pena o voluntarismo, é inútil, ler sempre foi e sempre será coisa de uma minoria. Não vamos
exigir a todo o mundo a paixão pela leitura", afirmou, caracterizando o facto de pertencer à comissão de
honra do plano como "uma fatalidade, como as bexigas", decorrente do seu estatuto como vencedor do
prémio Nobel.

"O estímulo à leitura é uma coisa estranha, não deveria ter que haver outro estímulo além da necessida-
de de um instrumento que permita conhecer", opinou.

"Mal vão as coisas quando é preciso estimular", defendeu, contrapondo que "ninguém precisa de estímu-
los para se entusiasmar com o futebol", que tem por trás uma "operação de propaganda fabulosa".

O escritor afirmou que actualmente se vive "uma situação confusa", em que se confunde a "instrução",
ligada ao conhecimento, com a "educação", ligada aos valores.

"Onde está a educação na escola em que os professores são agredidos, humilhados, desprezados",
questionou, argumentando que os docentes "são os heróis do nosso tempo".

Saramago ressalvou que há "professores incompetentes", que trabalham "sem vocação", e que hábitos
como "ler em voz alta" nas aulas deveriam ser encorajados.

O Nobel da literatura criticou os argumentos segundo os quais a correcção na ortografia não é importan-
te, lembrando que "qualquer operário sabe que tem que ter as suas ferramentas limpas e em condições
de serem usadas" e que "a língua é a ferramenta por excelência".

Questionado pela audiência de cerca de duzentas pessoas sobre aspectos do mundo e da sua obra, o
escritor lamentou ainda a situação de instabilidade que se vive em Timor-Leste, um contraste com "a
alegria" dos portugueses com a conquista do direito à autodeterminação dos timorenses.

"Não há ninguém que tenha a lucidez suficiente de dizer que isto assim não pode ser", apontou José
Saramago, lamentando ainda que "quem manda no mundo não seja o Blair nem o Bush, mas uma pluto-
cracia" em que "os órgãos democráticos são governados por poderes não democráticos", nomeadamente
"o poder do dinheiro".
137

Apresentação do Plano Nacional da Leitura [ 1 de Junho ]


Discurso da Ministra da Cultura

Exma. Senhora Ministra da Educação, Prof. Maria de Lurdes Rodrigues

Exmo. Senhor Ministro dos Assuntos Parlamentares, Prof. Augusto Santos Silva

Exma. Senhora Comissária do Plano Nacional de Leitura, Dra. Isabel Veiga Vilar

Senhores Jornalistas,

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

O Plano Nacional de Leitura é uma prioridade política deste governo. No entanto, é nossa ambição que, de prio-
ridade política, se torne prioridade de toda a sociedade portuguesa. Os objectivos nele delineados só poderão
ser cumpridos mediante o envolvimento dos vários sectores sociais, das diversas classes profissionais, da co-
municação social, de todos e de cada um de nós.

O Plano Nacional de Leitura é um projecto à escala nacional onde ninguém fica de fora: dirige-se a todas as
idades, e extravasa os contextos convencionais de leitura. Ao governo coube conceber esta estratégia de dimen-
são sem paralelo. É dever dos governantes, é sua obrigação concentrar esforços e investimento na promoção
dos níveis de literacia da população, níveis esses que, sabemos, estão aquém do patamar desejado.

Apelamos agora à participação dos portugueses. Precisamos que adoptem esta causa. O Plano Nacional de
Leitura só existe se passar a porta dos ministérios e chegar às escolas, às bibliotecas, às instituições de cultura,
às empresas, às prisões, aos centros de dia, às ruas, às famílias.

As gerações futuras exigem de nós este empenho. Há muito que Ler é sinónimo de Saber. Mas hoje temos plena
consciência que Ler é também uma forma de Poder. Porque o conhecimento, no mundo em que vivemos, se
tornou bem vital, alavanca de progresso pessoal e social, uma espécie de chave mestra que nos abre muitas
portas, muitos caminhos. Falamos, portanto, de um poder que é força construtiva. Um poder que nos torna mais
fortes, seres humanos mais completos, cidadãos mais preparados, logo mais participativos.

Note-se que, quando falamos em Ler, já não nos referimos apenas à capacidade de soletrar e combinar letras,
reconhecendo símbolos convencionados, palavras e frases. O uso mecânico de uma capacidade nem sempre
envolve a apropriação consciente de informação. Estamos a falar em Leitura que propicia uma maior auto-
consciência da Língua, uma mais ampla compreensão de mundos.

Transformar cada pessoa capaz de ler num efectivo leitor é o nosso desígnio. Nós queremos que os portugueses
adquiram essa capacidade de Leitura crítica, intrínseca e espontaneamente interpretativa. Que dominem o uni-
verso das palavra escrita, enquadrada nos mais diversos registos, do coloquial ao literário, do técnico ao institu-
cional. Porque a realidade é que a palavra escrita há muito que nos domina. A cada minuto que passa somos
inundados com símbolos diversos e seus múltiplos significados.

Chegámos a um patamar em que a Leitura, ou mais precisamente a Não Leitura, se tornou factor de exclusão.
Esta constatação exige dos governantes uma tomada de posição, uma atitude. Em defesa de valores tão altos
quanto a paz social, a qualificação dos portugueses, o desenvolvimento sustentado da nossa sociedade. A atitu-
de que tomámos tem um nome: chama-se Plano Nacional de Leitura. Envolve esforços de três ministérios, aqui
representados ao mais alto nível, e pressupõe, permitam-me a imodéstia de o sublinhar, a coragem política de
138

olhar mais longe. Este é um projecto cujos frutos se colhem no médio e longo prazo, imune, portanto, à lógica do
imediato e a propósitos eleitoralistas. Há muito que Portugal precisava de um projecto assim, com rasgado e
assumido sentido de futuro.

Ler é Preciso. Ler livros, ler jornais, ler artigos de ciência, ler relatórios, ler documentos, ler regulamentos, ler
programas, ler apelos. Ler é viver. Quem lê, quem efectivamente lê, Sabe Mais e Pode Mais. Ou, para usar uma
expressão cara aos nossos jovens, extraordinários reinventores da Língua, quem lê está «mais à frente». Com o
Plano Nacional de Leitura, a nossa aposta é que ninguém fique para trás.

A literatura é a expressão mais elaborada da aplicação da palavra escrita e tem uma capacidade antecipativa
singular. No Ministério da Cultura, temos particular empenho em motivar as pessoas para o contacto com esse
universo verdadeiramente fantástico e estimulante, o da criação literária.

Fonte: Portal do Governo

Você também pode gostar