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O BEIJO

Sílvia Monteiro

Pessoas:

Velho Simão;
Jovem Simão;
Teresa;
Anajé, a bruxa;
Timoneiro;
Marinheiros;
Bodegueiros;
Gente do porto.

Lugares:

O convés do Piedade;
O cais do Porto de Paranaguá;
O jardim de Teresa;
A taverna;
A casa de Anajé.

MEMÓRIAS AO VENTO

Noite. Mar revolto. O Piedade luta contra as ondas. O Velho Simão fala ao vento. O Jovem Simão
vive no convés.

VELHO SIMÃO - Ano da graça de 1825. Piedade cortava o mar alto a caminho do Porto de
Santos. Saímos de Montevidéu sob um céu nublado. Três dias de chuvas e ventos fortes.
Tudo borrasca. Açoite de vento. Eu, Simão Baltazar, agarrado ao mastro, molhado e
oscilante, olhava para a verga que cortava como uma cruz, o mastro principal. Nuvens negras.
O pássaro buscava refúgio no mastro. Prendeu os pés no cordame'. Lá no alto, lutava para
viver. Eu podia ver…

A TORMENTA

JOVEM SIMÃO - Ivan, Ivan! Me ajude! Um passarinho ficou preso no alto do mastro!
Eu posso ver. As asas se esgarçam. A cabeça avança de um lado para o outro.
IVAN - Semanas no mar... Você devia saber que neste mundo, o que cada um tem que fazer é
cuidar de si e nunca, nunca esperar a ajuda dos outros.

VELHO SIMÃO - A luta muda e mortal me fascinou por mais de uma hora... Que ave era
aquela, Senhor?...

MARINHEIROS:

- Os pássaros se prendem no mastro.


- Andorinhas e codornizes.
- Pelicanos e falcões.
- Muitas aves morrem neste cordame.

JOVEM SIMÃO - Perto de casa vi um falcão pousado numa pedra.

IVAN - Não, não pode ser a mesma ave…

JOVEM SIMÃO - Bem de perto vi.

IVAN - Não é o mesmo, garoto,

JOVEM SIMÃO - Não sangrava como ele. Mas olhava como ele, voava como ele…

IVAN - O sangue da luta pela vida foi o que tingiu sua plumagem... (Sai rindo.)

JOVEM SIMÃO - Ele é como nós, Ivan... Não tem parada... Numa hora, estava lá, e agora,
está aqui…

VELHO SIMÃO - A sensação de uma tragédia comum entre mim e a ave peregrina; com o
coração na boca, olhei para o pássaro tinto de sangue. Não havia mais nenhum marinheiro no
convés para caçoar de mim. Alisei o cabelo para trás, arregacei as mangas, dei um longo
olhar em torno, e subi. O vento continuava forte, o cordame balançava, e eu tive que parar
muitas vezes para não cair. Quando a minha cabeça chegou à altura da cabeça da ave, ela
abandonou a luta.

JOVEM SIMÃO (Fala com a ave.) - Meu nome é Simão. Pra conseguir soltar você, primeiro
eu vou ter que prendê-la com a minha mão... Calma... Eu preciso apertar com força... Veja só,
com a outra mão estou pegando minha faca, vou cortar o fio da adriça", eu vou soltar você…

A marujada volta e observa a luta.

MARINHEIROS:

- No mastro!
- O garoto está subindo!!
- Desce, garoto...
- Garoto maluco, quem mandou você subir!

JOVEM SIMÃO - Isto será apenas entre você e eu.

VELHO SIMÃO - Ninguém me deu ordem alguma. Não pare, Simão! Não olhe para baixo,
esta é a sua aventura!

IVAN - Esta não é uma boa hora para ser orgulhoso…

VELHO SIMÃO - Eu estava seguro. O mar e o céu, e o barco, e o pássaro e eu mesmo


éramos todos uma coisa só…

JOVEM SIMÃO - Ele bica com força!

IVAN - Solte a ave, menino…

VELHO SIMÃO - Meus dedos em sangue…

IVAN - Bata na cabeça dele que ele te solta!!.

Com raiva do pássaro, Simão lhe-dá uma pequena pancada na cabeça. O Jovem Simon guarda o
pássaro na jaqueta e começa a descer ao convés. O russo Ivan e o Velho Simão entram na cena,
gritando e olhando para cima.

IVAN - Desce já daí, garoto maluco

JOVEM SIMÃO - Por que me machuca? Quero lhe salvar, pássaro bobo.

IVAN - O frangote acha que é homem... Ri muito.) Onde já se viu um homem encher os olhos
de lágrimas desse jeito…

JOVEM SIMÃO - É cansaço, cansaço…

IVAN - O que você está escondendo aí? (Simão tira o pássaro de dentro da jaqueta.) Vamos
ver se o passarinho do Simão é bonzinho.

Ivan pega o pássaro da mão do menino e põe ele no chão.

VELHO SIMÃO - Os homens riam, eu só pude recuar e ficar olhando. Achei que o falcão
vermelho jamais conseguiria se levantar do convés escorregadio. (O Velho fala. O Jovem
vive.) Passei pelo russo e coloquei a ave sobre um monte de lona. A ave começou a alisar as
penas, deu dois ou três saltos, se agitou... Minha respiração em suspenso. Então, de repente,
ele voou. O russo ria, ria…

IVAN - Adeus passarinho…

VELHO SIMÃO - Lá se foi o meu falcão. O voo sobre as ondas do mar cinzento…

JOVEM SIMÃO - Lá se vai o meu falcão…

O PORTO DE PARANAGUÁ

VELHO SIMÃO - O Piedade partiu. Fui grumete de outros barcos. Dois anos depois, eu era
marinheiro no Malagueta. Atracado na foz do Taguaré. Paranaguá era um bom porto, as
embarcações ancoravam perto do cais, apesar do rio ter areado naquele ano.

GENTE DO PORTO:

- Farinha!!!
- Genebra!!!!
- Couros com pelo!!!
- Cachaça!!!
- Paçoca!!!
- Banana de cacho!!!

VELHO SIMÃO - Barcos de todos os cantos chegavam ao mercado; uma floresta de mastros,
em terra uma turbulenta demonstração de vida, com a fala de muitas línguas, e brigas ferozes.
A Rua da Praia, era marginada por um cais de pedra, nela se arruavam casas miúdas,
armazéns. Caboclos pequenos e amarelados, silenciosos em seus movimentos
aproximavam-se para vender suas mercadorias. Era abril, o céu e o mar estavam tão claros
que era difícil olhar para eles. Lá no céu, por todo lado, alguém incessantemente amolava
facas.

MARINHEIROS:

- Veja a luz desse crepúsculo.


- Esta luz é um sinal de boa vontade do universo.
- Isso é geografia, agradeça à latitude e à longitude...
- Não há nenhum favor de Deus nessa luz, garoto…

IVAN - Você cresceu, pequeno Simão, ganhou corpo, isso é que é boa sorte... Benevolência
do mundo…
Vão pra terra.

VELHO SIMÃO (Um espectro do futuro.) - Uma benevolência do mundo. Era o estímulo
que me faltava. Eu era tímido; agora não precisava de mais nada; o resto era problema meu.
Aproveitei minha permissão para desembarcar e saí caminhando, lento, orgulhoso.

IVAN - Vamos, frangote, comprar um relógio de ouro e chupar umas laranjas.

O Velho Simão observa a dança do povo, vendedores, marujos, prostitutas. O Jovem Simão chega a
uma barraca na feira do porto.

VELHO SIMÃO - Na Rua da Praia, o Ibrahim vendia relógios de ouro de péssima qualidade
e que não funcionavam. Mesmo assim os homens compravam e se exibiam com eles.

JUDEU IBRAHIM - Relógios, berloques, ametistas, ouro da ribeira, contas de coco da serra,
sedas do oriente... Mocinho, compra perfume. Pomada para cabelo…

JOVEM SIMÃO - Não quero relógio…

JUDEU IBRAHIM - Mas Ibrahim tem outras mercadorias... Bananas, farinha, mel e uma
caixa de laranjas.

JOVEM SIMÃO - Eu só provei laranja uma vez; vou levar uma comigo.

JUDEU IBRAHIM - Menino sobe no topo da colina, dá pra ver toda a baía…

JOVEM SIMÃO - No topo da colina... É lá que eu vou chupar a laranja.

Simão perambula pelas ruelas de Paranaguá. Ouve o canto…

TERESA, MINHA LINDA

A melodia cantada cresce, a agitação do Porto se desmancha... Até restar sozinha no palco, do outro
lado de uma cerca, Teresa, a menina que canta.

VELHO SIMÃO - Vasculhei os arredores do lugar. As três barras que levavam às formosas
baías. Ilha do Mel e Ilha das Pecas. A Barra do Sul ficava entre o Pontal e a Ilha do Mel. A
Barra Grande entre a ponta norte, a Ilha do Mel, e a ponta sul da Ilha das Peças.
Lindas! Entre as lindas.. Superaguy e a praia do Superaguy. Fui tirado da minha fantasia de
aventura, ao ouvir aquela canção... A voz de mel... Como a ilha... O Jovem Simão vai atrás da
voz, quando o vê, ela para... É uma menina de vestido azul. Uns quinze anos, delgada, com
um rosto redondo e um par de longas tranças... Ele, mudo, ela, só olha...
Teresa começa a rir e faz um gesto com as mãos sobre os olhos como se estivesse tentando
enxergar ao longe.

JOVEM SIMÃO - Quem você está procurando?

TERESA (Com largo sorriso.) - O homem com que eu vou me casar, é claro.

JOVEM SIMÃO - Por que procurar tão longe?

TERESA (Com falsa surpresa.) - Você sabe onde devo procurar?

JOVEM SIMÃO - Talvez ele esteja por aqui

TERESA - Ah, não! Eu saberia... Eu o reconheceria assim que o visse.

JOVEM SIMÃO - Talvez esse homem seja eu.

TERESA - Há, há, ele é bem maior que você, com certeza.

JOVEM SIMÃO - Ora, você não é tão crescida assim.

TERESA (Solene.) - Não. Mas quando eu crescer vou ser belíssima e vou usar sapatos
marrons de salto e chapéu.

JOVEM SIMÃO (Olha para ela meio desamparado.) - Você quer uma laranja?

Pega a laranja, canta, ri.

TERESA - Tome de volta sua laranja!

JOVEM SIMÃO - São muito boas de se comer.

TERESA - Então por que você não come?

JOVEM SIMÃO (Contando vantagem.) - Eu já comi muitas, quando estive em Salvador, no


Rio de Janeiro. Aqui tive que pagar um conto por esta.

TERESA - Mentiroso…

JOVEM SIMÃO (Sem graça) - Só pude comprar uma…

Teresa pega a laranja e sopra nela. Devolve a Simão.

TERESA - Ela vai ficar mais doce... Qual é o seu nome?


JOVEM SIMÃO - Meu nome é Simão. Qual é o seu?

TERESA - Teresa. E agora, Simão, o que você quer pela sua laranja?

JOVEM SIMÃO - Você me dá um beijo pela laranja?

TERESA - Você é sempre atrevido, Simão?

JOVEM SIMÃO - Eu ouvi o meu nome na sua boca... Agora, eu sou um marinheiro.

TERESA - Então, não é atrevido... É corajoso?

JOVEM SIMÃO - Fui encantado…

TERESA - Um beijo...?

JOVEM SIMÃO - O seu beijo.

TERESA - Está bem. Pega a laranja. Simão encantado.) Eu posso lhe dar um beijo.

VELHO SIMÃO - O tempo parou, senti um calor como se tivesse corrido veloz por muitos
caminhos, o rosto de Teresa estava muito perto do meu. Entre nós, somente a cerca de
madeira... Teresa…

VOZ DO PAI DE TERESA - Teresa, a água já ferveu…

TERESA - Tome a sua laranja.

JOVEM SIMÃO - Não! Ela é sua.

TERESA Rapidamente.) - Então volte amanhã, e eu lhe dou o beijo.

Teresa sai e o Jovem Simão permanece em silêncio encantado até vê-la desaparecer.

VELHO SIMÃO - Teresa, minha linda... Como saber do futuro?... O sentido da vida era,
naquele momento, a promessa do beijo de Teresa... O futuro naquele meu encantamento
mudo.

JOVEM SIMÃO - Eu não posso, eu nunca fiz planos para o futuro. Eu tenho que ficar
A bordo, enquanto os outros marinheiros desembarcam mercadorias... Aí, Teresa, eu não sei
se voltarei para você ou não.
O LENÇO AZUL

O jovem Simão senta no convés e toca a sanfona até o anoitecer: O céu levemente rosado e o mar
inteiramente calmo, como leite e água.

VELHO SIMÃO - Na tarde seguinte eu tive que ficar a bordo, enquanto os outros
marinheiros desembarcavam, mas não me importei. Como se a própria música tivesse pedido,
parei de tocar, me levantei e olhei... A lua cheia estava alta, no céu. O céu tão claro que a lua
parecia desnecessária; era como se ela tivesse surgido por capricho; redonda, recatada e
presunçosa. Naquele momento eu percebi que tinha que descer a terra, custasse o que
custasse. Eu não sabia como escapulir, os homens levaram o pequeno escaler.Permaneci um
longo tempo no convés. Até que avistei outro escaler vindo de um barco mais adiante, acenei
até eles entenderem que eu queria ir com eles para a terra.

MARINHEIROS:

- Vamos rapaz...
- Vamos catar mulher...
- Não precisa dar dinheiro...
- Camaradagem de lobos do mar, moleque...
- Vamos catar mulher…

JOVEM SIMÃO - Esse pessoal deve achar que eu vou para a terra à cata de mulheres.

VELHO SIMÃO - Eles estavam certos, embora ao mesmo tempo estivessem infinitamente
errados e não soubessem nada de nada.

MARINHEIROS:

- Você vai beber conosco...


- Não pode recusar...
- Vamos encontra o Ivan na taverna…

VELHO SIMÃO - Na taverna, encontramos Ivan, o meu amigo russo. Um gigante, grande
como um urso…

IVAN - Este aqui é Simão, meu amiguinho. É mirrado, mas é muito valente... (O russo já
embriagado cai em cima do rapaz com patadas afetuosas como as de um urso. Ri na cara
dele.) Tome aqui este presente, garoto. Dá a Simão uma corrente de relógio de ouro e beija-o
nas duas faces.)

JOVEM SIMÃO - Um presente... Tenho que dar um presente à Teresa... Quando voltar pra
Teresa....
MARINHEIROS:

- Teresa...
- O garoto já arranjou uma franga.
- O garoto pensa que é homem…

Simão levanta. Eles o seguram. Arrastam Simão aos trancos para fora do barco.

IVAN - Este ouro que dei é seu... Pra lembrar sempre do seu amigo Ivan…

JOVEM SIMÃO - Quero um lenço de seda azul, a cor dos olhos dela.

MARINHEIROS:

- Já quer enroscar um anel no dedo da franga...


- Vá na tenda do Ibrahin...
- Lá tem espelhos, berloques,
- Iscas boas pra pegar mulher…

Anoitece. Durante a cena da fuga desenha-se ao fundo o cenário da cidade. Simão se desvencilha
quando a bebedeira e a cantoria derrubam os marinheiros. Simão compra o lenço do mascate. Simão
junta a fuga do barco, a lua e a bebida forte e sente a cabeça flutuar.

JOVEM SIMÃO (Aperta o lenço em seu bolso.) - É seda, Teresa. Eu nunca toquei em nada
assim antes. Um presente para a minha garota.

Simão continua andando inebriado entre as pessoas.

JOVEM SIMÃO - Não consigo lembrar do caminho. Voltei para o lugar de onde havia saído.
(Com muito medo.) Não, não... E se for tarde demais? (Corre e, de repente, está sozinho.)
Teresa, minha linda, o que é que eu faço?

O URSO

O Jovem Simão escolhe outra direção e corre, até que esbarra no russo que sai do escuro. É Ivan. O
russo abraça o Jovem Simão e o mantém preso.

IVAN - Que bom! Que bom! (O russo com grande alegria.) Te encontrei, meu frangote.

JOVEM SIMÃO - Eu tenho um compromisso Ivan, não posso ficar…

IVAN - O pobre Ivan chorou porque tinha perdido seu amiguinho.


JOVEM SIMÃO - Eu tenho que chegar na ladeira do trapiche.

IVAN - Oh! Oh! Eu vou com você e arranjo o que você quiser... Meu coração e meu dinheiro
são todos seus, todos seus, já tive os meus dezessete anos, um carneirinho de Deus é isso o
que eu quero ser de novo esta noite.

JOVEM SIMÃO - Me solta, Ivan, estou com pressa.

IVAN - É o que eu sinto, conte comigo, meu menino. Nada vai separar você de mim.

JOVEM SIMÃO - Me solta, Ivan, os camaradas já estão voltando... Fique com eles.

Ivan o prende até doer e, com a outra mão, o afaga.

IVAN - Meu menino, nossa noite juntos vai ser um presente que você vai se lembrar quando
for um velho vovô.

Ivan aperta o menino como um urso que carrega um carneiro. A asfixia do corpo bruto enfurece o
jovem magro. Simão pensa em Teresa, esperando, como um navio esbelto no ar enevoado. Pensa em
si mesmo ali, apertado no abraço quente de um animal peludo. O rapaz bate em Ivan com toda a
força.

JOVEM SIMÃO - Vou lhe matar, Ivan, se você não me soltar.

IVAN - Ah! Você vai me agradecer mais tarde. (Começa a cantar.)

Simão remexe no bolso procurando sua faca. Consegue abri-la. Não pode levantar a mão, mas
consegue enfiar a faca, com fúria, debaixo do braço de Ivan. Sente o sangue escorrendo pela manga.
Ivan pára bruscamente de cantar, liberta o menino e dá dois longos e profundos grunhidos; um
segundo depois, o russo cai.

IVAN - Pobre Ivan, pobre Ivan. (Geme o russo. E cai de rosto no chão.)

MARINHEIROS:

- Vamos catar mulher...


- Não precisa dar dinheiro...
- Camaradagem de lobos do mar…

O menino fica quieto por um minuto, limpa a faca, e vê o sangue escorrendo para uma poça escura
embaixo do corpanzil; depois, corre. Quando para um segundo para escolher o caminho a seguir;
ouve os marinheiros, atrás dele, berrarem pelo camarada morto.
O BEIJO

Simão corre perdido até chegar ao jardim de Teresa.

JOVEM SIMAO - Tenho que chegar até o mar para lavar minhas mãos.

MARINHEIROS:

-Quem é esse aí ?.
- E o Ivan, caiu de bêbado..
- Acorda...
- Ele está sangrando...
- Acertaram o velho urso...
- Vamos pegar o assassino.

JOVEM SIMÃO - Tenho que encontrar Teresa... Teresa.

VELHO SIMÃO - Pouco depois, descobri que estava no caminho por onde andara no dia
anterior, e essa trilha me pareceu tão familiar como se por ela tivesse andado dezenas de
vezes na minha vida.

O Jovem Simão diminui o passo para olhar à sua volta e vê Teresa parada do outro lado da cerca; ela
estava bem próxima a ele quando a viu a luz da lua. Cambaleando e sem ar, ele caiu de joelhos; por
um momento, não pôde falar: A menina olhou para ele.

TERESA - Boa noite, Simão, esperei muito tempo por você... Comi a laranja.

JOVEM SIMÃO - Ah, Teresa! (Lamentou-se.) Matei um homem.

Teresa olha para ele fixamente, mas não se mexe.

TERESA - Por que você matou um homem?

JOVEM SIMÃO - Para poder chegar aqui. Porque ele tentou me impedir. Mas era meu
amigo. (Vagarosamente, o menino se põe de pé.) Ele me amava! (Simão desfaz-se em
lágrimas.)

TERESA - É... Porque você não podia esperar…

JOVEM SIMÃO - Você pode me esconder? Eles estão atrás de mim.

TERESA - Não posso esconder você. Meu pai é o gerente do Porto, e se souber do crime,
com certeza entregará você a eles. Você estará perdido.
JOVEM SIMÃO - Me dê alguma coisa com que eu possa limpar minhas mãos.

TERESA - O que há com as suas mãos? (Simon mostra as mãos.) O sangue é seu?

JOVEM SIMÃO - É dele. (Teresa dá um passo atrás. O tempo para.) Agora você tem medo
de mim?

TERESA - Não... Ponha as mãos para trás.

Ele obedece, ela se aproxima da cerca, e passa os braços no pescoço dele. Encosta seu rosto no de
Simão.

JOVEM SIMAO - Eu só preciso dizer, em nome da verdade... Teresa, você é linda e


acetinada como a pele do desejo…

TERESA - Você é um encanto…

JOVEM SIMÃO - Ai, Teresa, Teresa, linda... O velho urso…

TERESA - Ninguém precisa ficar com ciúmes…

JOVEM SIMÃO - Ah, Teresa, me perdi no tempo…

TERESA - Se uma mulher não pode dizer ao seu homem que ele é um encanto, como
os pássaros e os mares... Então o mundo fica muito triste…

Teresa beija Simão. Quando ela o solta, a cabeça de Simão oscila.

TERESA - Prometo a você que nunca me casarei com ninguém, enquanto viver.

JOVEM SIMÃO - Passou um segundo ou uma hora?

TERESA - E hora de você fugir, porque eles estão vindo. (Olham-se.) Não se esqueça de
mim, Simão.

JOVEM SIMÃO - Nunca!

Ele sai correndo sem saber para onde ir

NA TAVERNA

Uma lâmpada pende do teto sobre os que dançam, o ar é espesso e turvo do pó que se levanta do
chão. Há muitas mulheres na sala.
VELHO SIMÃO - Esquecer minha linda, como? Quando ela me soltou, minha cabeça girava.
Perambulei até chegar em uma casa de onde jorra música e barulho...
O Jovem Simão entra lentamente numa taberna. A sala cheia de gente.

BODEGUEIROS - Vamos levantar poeira!

Os homens dançam com outros homens e batem os pés no chão. E cantam.

Lá vai o mar
No grande mar
A embarcação
No barco eu vou
Vou visitar Itiberê
É lá que eu vou
Vou te encontrar
Paranaí Paranoá.

Quando Simão entra, o bando se afasta, encostando-se nas paredes, para dar espaço para dois
marinheiros que dançam.

JOVEM SIMÃO - Logo, logo, os homens do barco vão chegar para procurar o assassino de
seu camarada e vendo as minhas mãos, saberão que fui eu.

VELHO SIMÃO - Fiquei cinco minutos encostado à parede do salão de dança, em meio aos
alegres e suados dançarinos. E foi como se nesses minutos eu tivesse crescido e me tornado
igual aos outros. Não supliquei ao destino, nem me lamentei. Ali estava eu; matara um
homem, e beijara uma menina, nada mais pedia da vida, nem a vida agora pedia mais nada de
mim. Eu era Simão, um homem como os homens à minha volta, e ia morrer, como todos os
homens vão morrer um dia.

A algazarra do salão de dança fica tensa, muitas vozes anunciam a chegada de alguém…

BODEGUEIROS:

- Anajé está vindo para cál


- Ela só aparece em noites de névoa...
- O rosto chato e escuro, como que untado de sujeira...
- Em sua rede de rugas finas.
- Os olhos amarelos.
- A velha mão pelancuda e morena...
- Quero ver quem ri na frente dela...
- Todos respeitam a Anajé.
- Todos têm medo dela…
A gritaria cessa quando a mulher entra e para no meio do salão, olhando em todas as direções.

- Deixem Anajé passar

ANAGÉ - Onde está o meu filho?

Seu olhar se detém em Simão, ela vai até ele e pega-o pelo ombro.

ANAJÉ - Vamos para minha casa, agora. Você não precisa dançar aqui. Pode ser que daqui a
pouco você tenha que dançar outra dança bem animada.

JOVEM SIMÃO (Afasta-se.) - Está embriagada, minha velha?

A mulher o olha diretamente com seus olhos amarelos.

JOVEM SIMÃO (Como se a reconhecesse.) - Eu não quero dançar... Mas posso escutar o que
a senhora quer me dizer.

BODEGUEIROS:

- Não dê uma surra muito forte nele, Anajé.


- Ele não fez mal nenhum, só queria olhar a dança.

Quando saem pela porta, veem uma agitação na rua, um bando de pessoas vem correndo; uma delas,
ao entrar na casa, esbarra em Simão, olha para ele e para a velha, e foge. Na rua, enquanto os dois
caminham, a velha levanta a saia, e põe a barra na mão do rapaz.

ANAJÉ - Limpe sua mão na minha roupa.

O NINHO DO FALCÃO

A bruxa e o menino saem e chegam a uma casinha de sapé. A porta da casa é baixa, eles precisam
curvar-se para entrar. O cômodo é estreito e escuro, uma única janela pequena; um lampião ilumina
em torno. Por todo lado há peles e chifres. O ar é abafado. A mulher vira para Simão, segura-lhe a
cabeça, e, com seus dedos tortos, reparte-lhe o cabelo, penteando-o para baixo, à maneira dos índios.
Rapidamente, Anajé põe um gorro na cabeça de Simão e se afasta para vê-lo melhor.

ANAJÉ - Agora, sente. Mas primeiro tire sua faca do bolso.

Simão senta no banco e não tira os olhos dela. Muita gente anda lá fora. Alguém bate, espera um
momento e bate de novo. A velha fica parada, escutando, quieta como um camundongo.
JOVEM SIMÃO - Não. (Se levanta.) Isso não vai adiantar, é atrás de mim que eles estão.
É melhor você me deixar ir até eles.

ANAIÉ - Me dê sua faca. (Ao receber a faca, sem hesitar, enfia-a no próprio polegar; o
sangue que jorra ela deixa pingar por toda a saia.)

ANAIÉ (Gritando.) - Então entrem!

Dois marinheiros se aproximam da entrada; a marujada do lado de fora.

MARINHEIROS:

- Alguém entrou aqui?


- Estamos atrás de um homem que matou nosso companheiro e fugiu.
- Você viu ou ouviu alguém por esses lados?

A velha volta-se para eles, os olhos brilhando como ouro à luz do lampião.

ANAJÉ - Se vi ou ouvi alguém? Ouvi vocês berrarem o assassinato pela cidade toda.

MARINHEIROS:

- Está ferida, Anajé?...


- Todo este sangue…

ANAJÉ - Vocês me assustaram, a mim e a esse pobre tolinho aqui, por isso cortei meu dedo
quando estava aparando o tapete de pele que costurei. O garoto está apavorado demais para
me ajudar, e o tapete, estragado. Vocês me pagam por isso. Se procuram o
assassino, entrem e deem uma busca aqui em casa para mim, e eu me lembrarei de vocês
quando a gente se encontrar outra vez.

Tão furiosa ela está que dança, sem sair do lugar, e sacode a cabeça como uma ave de rapina
enraivecida. O imediato entra e olha o cômodo, a velha, e a mão e a saia dela, manchadas de sangue.

MARINHEIROS:

- Não nos amaldiçoe, Anajé.


- Sabemos que, quando você quer, pode fazer muitas coisas.
- Toma aqui esta moeda pelo sangue que você derramou.

Ele lhe dá uma moeda. A mulher cospe no dinheiro.

ANAJÉ - Então, podem ir embora que não haverá nenhum sangue ruim entre nós.
Anajé fecha a porta quando saem. Ela enfia o dedo na boca e dá um risinho. O menino levanta e a
encara.

JOVEM SIMÃO - Por que você me ajudou?

ANAIÉ - Você não sabe? Ainda não me reconheceu? Mas você deve se lembrar do falcão
peregrino que ficou preso no fio de vela do seu barco, o Charlote. Naquele dia de vento forte
e mar alto, você galgou o mastaréu para ajudar a ave a se soltar. Aquele falcão era eu. Nós, os
falcões, muitas vezes voamos para ver o mundo. A primeira vez que o vi, eu estava a
caminho da África para ver minha irmã mais moça e os filhos dela; minha irmã, quando quer,
também se transforma em falcão. Naquela época, ela vivia no Oriente, numa velha torre em
ruína que lá é chamada de minarete.

A velha ata uma tira de pano da saia no polegar e dá-lhe uma mordida.

ANAJÉ - Nós não nos esquecemos. Mordi seu polegar, quando você me agarrou. Nada mais
justo que, esta noite, eu corte o meu por você.

Ela se aproxima de Simão e esfrega dois dedos morenos na testa do rapaz.

ANAJÉ - Então, você é um rapaz que prefere matar um homem a chegar atrasado a um
encontro com a namorada? Nós, as fêmeas desta terra, nos mantemos sempre unidas.
Marcarei agora sua fronte, assim, as moças vão saber disso quando olharem para você e vão
gostar de você por isso.

Ela brinca com o cabelo do rapaz e o enrola entre os dedos.

ANAJÉ - Ouça, Simão passarinho, meu bisneto está com o Trocador no embarcadouro; ele
tem que levar um carregamento de peles para um barco dinamarquês. Ele pode levar você de
volta para o seu barco, a tempo, antes que o imediato volte. O Malagueta parte amanhã de
manhã, não é? Mas quando você chegar a bordo, devolva a ele meu gorro; faça isso por mim.

Anajé pega a faca de Simão, enxuga-a na saia e a devolve ao rapaz.

ANAJÉ - Tome aqui sua faca. Não vá mais enfiá-la em nenhum outro homem, isso não será
mais necessário, porque a partir de agora você irá singrar os mares como um valoroso homem
do mar. Nossos filhos já nos deram trabalho demais.

JOVEM SIMÃO - Muito obrigado.

ANAJÉ - Vou trazer um café para refrescar suas ideias enquanto lavo o casaco.

A mulher vai até a lareira de onde veio o retinir de uma velha chaleira.
VELHO SIMÃO - O líquido era quente, negro e forte.

ANAJÉ - Agora você bebeu com Anajé. Você bebeu um pouco de sabedoria, para que, no
futuro, seus pensamentos não venham a cair como gotas de chuva no mar salgado.

Simão acaba. Anajé o leva até a porta. Simão estende a mão para se despedir.

VELHO SIMÃO - Era quase dia claro…

ANAJÉ - Nós não nos esquecemos. E você, bem, você bateu na minha cabeça lá no
alto do mastro. Esse golpe eu vou lhe devolver.

Dizendo isso, ela bate no ouvido do rapaz, o mais forte que pode.

VELHO SIMÃO - A pancada fez minha cabeça girar…

ANAJÉ - Estamos quites.

Com um olhar demorado e malicioso, dá-lhe um pequeno empurrão em direção à saída. Anajé
acompanha a corrida do Jovem Simão.

ANAJÉ - O homem não procura a felicidade, Simão... O homem procura o seu des-
tino…

VELHO SIMÃO - Chovia. Eu andei com passos ligeiros. Cheguei ao porto e lá fiquei parado
no quebra-mar, agarrado ao gorro que a velha bruxa me deu, olhando para a água escura e
profunda. E assim devia ser. Fiquei parado lá muito tempo, ouvindo os navios.

ANAJÉ - Precisa escutar os contos da existência, Simão... E saber responder com vida
sublime, graciosa e impiedosa.

VELHO SIMÃO - O Malagueta zarpou na manhã seguinte. Eu com ele... Atravessei mares,
naveguei vida, cruzei o tempo. Ator e cúmplice.

O mar. O céu. O fim.

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