Você está na página 1de 18

A INACREDITÁVEL HISTÓRIA DO PESCADOR

T. Dalpra Jr
“Não acredite tanto nos seus sonhos, eles podem virar realidade.
E a realidade nunca é tão bonita quanto um sonho”. Chico

Personagens:
JANGADA: Velho jangadeiro que vive de transportar pessoas até áreas inóspitas no norte
do Brasil. Conhecedor profundo das águas, é delas que tira o sustento, as histórias e toda
a sabedoria acumulada. Sereno e misterioso, desvenda como ninguém as lendas e as
verdades da região.
CHICO: Homem, cerca de 50 anos. Líder de uma comunidade de pescadores esquecida
pelo homem. É ele quem dita as regras e delega as leis. Áspero, rude, amargurado.
Demonstra a dureza de seu coração em cada gesto, fala ou atitude.
MÁRIO: Filho de CHICO. Jovem, cerca de 30 anos. Aos 14, contra a vontade do pai,
abandonou a isolada vila onde nasceu e foi tentar a vida na cidade grande. Trabalhou,
estudou, se formou e hoje é diretor em uma grande agência de propaganda da capital.
Transita entre os sonhos que joga no papel para sobreviver e aqueles que nunca sairão da
sua cabeça.
Tempo : Atual
Espaço: A ação acontece em dois momentos/espaços. A cena inicial, no proscênio, se
passa em uma velha jangada, como se estivesse perdida em meio à imensidão de um
grande rio.
A partir da segunda cena, apresenta-se por detrás das cortinas uma embarcação de
madeira, velha, gasta, de proporções razoáveis. Esse barco deve estar disposto
lateralmente, com sua proa (aparente ou não) apontando para as coxias da direita (visão
da plateia).

CENA I – Enquanto Tritão nadava.


Cortinas fechadas. No proscênio, durante a entrada do público, temos apenas uma velha
jangada de madeira, que “flutua” sobre um rio. Ao terceiro sinal, as luzes do teatro se
apagam por completo. Trilha sonora. A luz vai voltando aos poucos. Agora já podemos ver
em cena, sobre a embarcação, o velho JANGADA e MÁRIO. O primeiro canta seus versos
de forma rimada, enquanto navega lentamente. MÁRIO está impaciente. Olha no relógio
sistematicamente. Levanta-se, passeia pela embarcação. Leva consigo uma grande mala
de viagem.

18
JANGADA
Meu canto vem / de um rio de água barrenta / Muito mestre vem e tenta / atravessá-lo de
nado e só no ano passado / se afogou mais de quarenta... Barco e navio / a correnteza levou
Mas um gaiato tentou / nadar na raça e no peito / afundou do mesmo jeito / que o Titanic
afundou... / Poeta veio / pescar porque tinha estudo / E eu fiz um verso graúdo / do jeito de
um peixe lindo / que terminou engolindo / poeta, anzol, vara e tudo...

MÁRIO - Quanto tempo? Quanto tempo mais?


JANGADA - De rima? Posso ficar o dia todo se quiser. Se pagar por isso. É lógico.
MÁRIO - De água! Quanto tempo mais até chegar à vila?
JANGADA - Tá com pressa, curumim?
MÁRIO - (Para si mesmo) Curumim...
JANGADA - É o filho de Chico, não é? Mário...
MÁRIO - Sou. Sou sim.
JANGADA - Lembro de ti menino ainda. Num deve se lembrar.
MÁRIO - Não muito.
JANGADA - Quando fizeste o caminho contrário fui eu que te levei também. E agora que tá
voltando...
MÁRIO - (Interrompendo, ríspido) Eu não to voltando. To só de passagem.
JANGADA - Veio por causa de tua mãe, Tereza? (MÁRIO não responde. Breve silêncio).
MÁRIO - Quanto tempo?
JANGADA - Tamo chegando, curumim.
MÁRIO - Chegando quanto?
JANGADA - Bem vi que tá mesmo com pressa! Medo de perder alguma coisa, curumim?
MÁRIO - Ainda não descobriram como medir o tempo por esses lados? Horas, minutos,
segundos... (O velho JANGADA apenas sorri).
JANGADA - Estamos perto. Uns dez minutos e tua pressa acaba. (Breve silêncio).
MÁRIO - (Arrependido) Me desculpa, tá? É que foi uma semana difícil.
JANGADA - Na cidade elas costumam ser...
MÁRIO - E vou ser sincero, nunca me senti muito à vontade sobre as águas. Ainda mais
numa...
JANGADA - Jangada! Uma jangada velha e carcomida. Mas saiba, curumim, essa é a única
forma de te levar ao seu destino.
MÁRIO - E nunca se falou em construir uma estrada por aqui? Uma ponte, talvez...
JANGADA - Pra quê? Esse lugar foi esquecido pelo homem, curumim. É como se não
existisse. Teu pai é o único que ainda acredita nele. (Breve pausa) Nem você acreditou. Não
foi?
MÁRIO - Não há nada pra se acreditar aqui.
JANGADA - (Sorri) Também acho, curumim. Também acho... (Pausa) Lembro bem quando
saiu daqui. Num fazia questão nenhuma de esconder essa descrença. Mas achou lá embaixo
alguma coisa pra acreditar?

18
MÁRIO - Lá embaixo há vida, meu velho! Coisas pra ver, fazer, tocar... Quando se conhece
o mundo de verdade, fica mais fácil acreditar nas coisas.
JANGADA - E por isso nunca tinha voltado...
MÁRIO - Não é motivo suficiente?
JANGADA - Pode ser... Mas parece que um motivo maior fez com que acabasse voltando...
Quero dizer, de passagem, como disse.
MÁRIO - Tem coisa que é mais difícil deixar pra trás...
(Quebra de clima. Efeito sonoro de estrondo, águas agitadas, tormenta. Corpo e expressão
dos atores indicam que a velha jangada bateu em algo grande. Efeitos mecânicos podem
reforçar essa impressão. O velho JANGADA está agitado, corre de um lado para o outro
do pequeno barco, como se procurasse algo. MÁRIO se agarra como pode.)
MÁRIO - (Gritando) Quê isso? Batemos em alguma coisa!
JANGADA - Alguma coisa bateu na gente!
MÁRIO - O quê?
JANGADA - Te agarra aí, curumim.
MÁRIO - O que tá acontecendo?
(Temos um certo caos na cena, até que o velho JANGADA encontra o que procurava. É
uma velha flauta de bambu, da qual começa a tirar uma suave melodia. À medida que a
melodia se desenrola, o clima vai se tornando mais ameno. Os efeitos sonoros caóticos vão
cessando. Temos agora apenas o som da flauta. MÁRIO vai se acalmando.)
MÁRIO - Que diabos foi isso?
JANGADA - (Sereno, pede silêncio a MÁRIO e continua a tocar) Shiiiiiii...
MÁRIO - O que foi aquilo? O que bateu na gente?
JANGADA - (Toca por mais algum tempo e finalmente guarda a flauta) Não vai querer
saber.
MÁRIO - Claro que vou!
JANGADA - Agora só acredita nas coisas da cidade, curumim. Não vai acreditar nas coisas
daqui.
MÁRIO - Que coisas? Seja o que for aquilo lá, me pareceu bem real.
JANGADA - Achou mesmo? Já é alguma coisa então, curumim...
MÁRIO - Para de me enrolar. Eu vi o que aconteceu. E sem essa de curumim, tá?
JANGADA - Tritão.
MÁRIO - O quê?
JANGADA - Tritão. Foi o que bateu na gente. Tritão...
MÁRIO - Um peixe?
JANGADA - O peixe.
MÁRIO - Então deve ser dos grandes. Porque pelo jeito como bateu na...
JANGADA - Uns cinquenta metros... Perto de uns dois mil quilos... (Breve silêncio).
MÁRIO - (Ameaça um sorriso debochado) E desde quando as baleias passeiam por águas
doces?
JANGADA - (Devolve com debochada paciência) Não! Baleias não são tão grandes.

18
MÁRIO - Tá legal. Não me importa! Não quero nem saber o que bateu na gente. Só me diga
que não vai bater de novo.
JANGADA - Não posso! Eu não controlo Tritão. Ninguém controla.
MÁRIO - E essa flauta aí? O barco quase virando e você tocando essa porcaria de flauta!
JANGADA - É um pífano.
MÁRIO - Que seja!
JANGADA - O som acalma Tritão.
MÁRIO - (Nervoso) E que merda é essa de Tritão?
JANGADA - Quer mesmo saber?
(Breve silêncio. MÁRIO busca uma lembrança em sua memória).
MÁRIO - Peraí. Eu lembro disso. A tal lenda que o pai contava.
JANGADA - Lendas não derrubam jangadas, curumim. Ou não te contaram isso na cidade?
MÁRIO - Do tal peixe gigante! Eu lembro disso. Besteira...
JANGADA - Se já sabes o que aconteceu, podemos seguir... Estamos quase lá.
MÁRIO - Não... Vamos lá! Conta. Quer dizer, se o senhor quiser.
JANGADA - Sabe qual a diferença entre uma lenda e um fato, curumim?
MÁRIO - As lendas não existem...
JANGADA - Acredita em Deus, Mário?
MÁRIO - Sim, claro.
JANGADA - E já viste teu Deus?
MÁRIO - Não, mas...
JANGADA - Conveniência, curumim. Essa é a diferença entre uma lenda e uma verdade. Se
é conveniente, a gente acredita. Se não, vira lenda...
MÁRIO - Tá querendo me dizer que o tal peixe de cinquenta metros não é uma lenda?
JANGADA - Se lhe servir de alguma coisa acreditar...
MÁRIO - Só se for pra fazer um sushi gigante.
JANGADA - Assim como na terra, a água também tem seus reinos, curumim.
(Nesse momento, temos uma abrupta mudança de luz. A ideia é, através da iluminação e
da trilha sonora, criar um ambiente onírico, distante da realidade. JANGADA pega um
pequeno pedaço de galho e começar a narrar enquanto “desenha” com o galho na
“água”. De cada lado do palco entram bailarinos, representando, de um lado, a água doce
e, de outro, a água salgada. Eles encenam cada momento da fantástica história criada
pelo velho. Fantasias, alegorias e marcações contam a lenda de Tritão, numa estética
muito próxima às encenações festivas do folclore de Parintins.)
JANGADA
De um lado, o grande reino dos mares, de água salgada.
Do outro, o pequeno reino dos rios, de água doce.
No meio, na fronteira, só marasmo. Mistura insossa, nem sal nem doce.
O que é dos rios é do Caboclo D’água. / O que é dos mares é de Netuno.
E assim foi-se. Até o amor estremecer com tudo.
Deu-se que um dia o peixe-boi, gigante dos rios e filho preferido do Caboclo D’água, decidiu
se aventurar até a fronteira entre os dois reinos.
18
O que coincidentemente aconteceu no mesmo maldito dia em que a baleia, gigante dos mares
e xodó de Netuno, teve a maldita mesma ideia.
E foram-se os dois até o tranquilo e sereno encontro das águas.
Até aí mal nenhum. Estavam cada qual no seu reino, cada um no seu cada um.
Mas amor é amor... E quando duas almas gêmeas se cruzam, ou sai faísca ou deságua desejo.
E como tamo falando de água e não de fogo, é lógico que desaguou!
O gigante dos rios e a gigante dos mares ficaram então pequenininhos, perto da grandeza
desse troço chamado amor. / Mas amor com fronteira não é amor.
Só que reino sem fronteira também não é reino.
Deu-se aí o dilema. Toda noite a história se repetia. Baleia de um lado, peixe-boi de outro.
Se olhando, se amando, se declarando, mas não se podendo.
Isso porque Caboclo D’água e Netuno estavam sempre de butuca.
Misturar doce e salgado não convinha ao paladar nem de um nem ao de outro.
Mas amor é amor...
E todo amor que é reprimido ou se apaga em chama ou transborda em paixão.
E como tamo falando de água e não de fogo, é lógico que esse aqui transbordou.
Não se aguentando de amor, o peixe-boi ignorou a fronteira entre doce e salgado e foi se
encontrar com a baleia. Se olharam, se amaram, se declararam e, finalmente, se puderam!
Por pouco tempo.
Netuno que não era bobo nem nada percebeu aquele cheiro doce no teu reino salgado.
Num berro que se ouviu pelos sete mares, clamou pelo Caboclo D’água, que chegou num
nado só. / E noutro nado foi dado o veredicto ao peixe-boi invasor.
Ficaria ele preso, pelo resto dos dias num laguinho pequeno, sem fronteiras com sal ou doce.
Só terra. / E a baleia que sofresse por solidão, com a falta de seu amado.
Assim tava restabelecida a paz entre os dois reinos.
Mas amor é amor... E quando é de verdade ou renasce das cinzas ou cria seus afluentes.
E como tamo falando de água e não de fogo, é lógico que esse amor criou afluente.
Do único encontro de amor entre peixe-boi e baleia, nasceu Tritão.
Que foi criado pela mãe na fronteira entre os dois reinos, onde nem Netuno nem o Caboclo
D’água pudessem desconfiar. E lá cresceu. Cresceu. Cresceu. E dizem que cresce até hoje.
Bem na fronteira entre as águas doce e salgada. Na nascente desse amor todo.
E desde então, o encontro de rio e mar, de doce e salgado tem sido agitado. E caudaloso.
MÁRIO - A pororoca... O encontro do rio com o mar. É assim que ensinam na cidade.
(Quebra de clima. Muda luz. Cai trilha. Saem bailarinos. Estamos de volta à “realidade”).

MÁRIO - Gostei. Um jeito meio diferente de explicar um fenômeno da natureza. Mas


gostei. Tem uma dessas pros furacões também? Pros terremotos talvez... Minhocas gigantes!
Que tal?
JANGADA - (Sorri, paciente) Quem sabe na volta... Chegamos. Te prepara pra
desembarcar, curumim. Tua pressa acaba logo ali na frente.
(MÁRIO se ajeita, pega sua mala, preparando-se para o desembarque. A luz vai caindo
lentamente, até o blackout).
18
CENA 2 – Enquanto Tritão dormia.
Abrem-se as cortinas. Trilha sonora. A jangada já não está mais no proscênio. Em cena,
temos uma velha embarcação pesqueira, toda em madeira, muito gasta. Está ancorada.
Pode-se ler em seu casco o nome “Tereza”. Sobre ela, CHICO faz os preparativos finais
para mais um dia de pesca. Amarra cordas, prepara iscas, anzóis... MÁRIO entra em cena.
CHICO, distraído, não percebe sua entrada.

CHICO - É você, Jangada? O vento me diz que vai ter peixe brigando pelo meu anzol hoje!
(Silêncio. MÁRIO apenas observa o trabalho do pai).
CHICO - E me disse também que tem uma corrente trazendo um cardume inteiro de
curimbatá. Bem na minha direção. Vai ser peixe até num poder mais, meu velho.
(Novo silêncio).
CHICO - E pelo visto o único que tem alguma coisa pra me dizer é o vento mesmo.
(Por um momento deixa os afazeres e vai na direção de MÁRIO, até perceber sua
presença).
CHICO - Vamos, diga alguma coisa. Você conhece esses rios melhor do que eu, sabe muito
bem quando o vento mente e quando tá falando a verdade...
(Silêncio. Pai e filho se encaram, após mais de 15 anos).
MÁRIO - Parece que o vento tem mentido muito pro senhor. (Silêncio).
CHICO - (Meio que acordando de um transe) Mente. Mas pelo menos tem sempre alguma
coisa pra dizer.
MÁRIO - Não vai dar um abraço no seu filho?
CHICO - Mais tarde. Agora to sujo e suado. Num quero estragar tua goma.
MÁRIO - São mais de quinze anos, pai.
CHICO - É... São mais de quinze anos, Mário... E o que te trouxe? A correnteza? Se foi,
dessa vez o vento não me disse.
MÁRIO - E a mamãe? (Silêncio. Encaram-se novamente).
CHICO - Quem lhe contou?
MÁRIO - Ela mesma.
CHICO - Como? Ela não sai dessa vila!
MÁRIO - Mandou carta. Deve ter enviado pelo velho Jangada. Como ela tá?
CHICO - Não acha que tá um pouco atrasado?
MÁRIO - Onde está ela?
CHICO - (Seco) Enterramos tua mãe anteontem. No mesmo buraco de tua vó.
(Silêncio. Há uma ligeira comoção, muito comedida. A frieza impera em ambas as partes).
MÁRIO - (Reflexivo) Dois dias...
CHICO - Quinze anos, Mário. Já são mais de quinze anos. (Silêncio).
CHICO - Se quiser ver a cova de tua mãe... Tá enfeitada. Coberta de flor. E Djalma fez um
desenho dela pra pôr em cima. Com cor e tudo. A chuva de ontem borrou um pouco, mas dá
pra ver ainda. Tua mãe era muito querida aqui.
MÁRIO - Eu sei...
18
CHICO - Deve ter um bocado de gente querendo de te ver. Lucinda se casou. Então tire o
olho. E você, casou também? Ainda existe isso na cidade... Ou não?
MÁRIO - (Abre um primeiro sorriso, discreto) Não, pai... Quer dizer. As pessoas ainda se
casam na cidade sim. Eu é que não me casei ainda.
CHICO - Não ficou esperando esse tempo todo por Lucinda, ficou? Se ficou, danou-se. Tá
muito bem casada.
MÁRIO - Não, pai... Pra falar a verdade, eu nem me lembrava dela.
CHICO - Pra quê, né? Guardar lembrança disso aqui...
MÁRIO - Depois eu passo pra ver os outros. E a mamãe.
CHICO - Mas não se demore. Tá armando chuva. Se borrar mais o desenho de tua mão num
vai dar pra ver é nada.
MÁRIO - E as coisas por aqui? Os peixes...
CHICO - Tão bem... Nadando. Aliás, o vento me disse que hoje...
MÁRIO - (Interrompendo) A mãe me disse outra coisa. Na carta.
CHICO - E o que ela lhe disse?
MÁRIO - Disse que a situação tá pior que nunca. Nada de peixe.
CHICO - Se ela disse...
MÁRIO - Pouca comida.
CHICO - O necessário. A vila é pequena, Mário. O pouco que tem tá de bom tamanho.
MÁRIO - É... Se as pessoas continuarem morrendo por aqui, a comida realmente vai sobrar
cada vez mais.
CHICO - O que tá dizendo?
MÁRIO - To falando de fome, pai! A vila tá passando fome. A mãe também escreveu isso na
carta. Há anos que os peixes sumiram. E essa terra podre não pega nada.
CHICO - Coisas de tua mãe. Exagero dela!
MÁRIO - Exagero nada, pai. Até quando o senhor vai manter essa gente isolada nesse fim
de mundo? Sem comida, sem saúde, sem chance nenhuma!
CHICO - A gente sabe se cuidar, Mário.
MÁRIO - (Cínico) Eu vi como cuidaram bem da mamãe!
CHICO - (Explode) Cala a tua boca, moleque! (Breve pausa).
CHICO - Tua mãe morreu porque era assim que tinha que ser! E morreu aqui com a gente,
feliz. No meio de tudo o que ela mais gostava! A gente fez tudo que podia. Mas pra morte
isso não interessa.
MÁRIO - Podiam ter levado ela pra cidade...
CHICO - Pra quê? Pra ela morrer por lá? Longe de tudo que ainda valia alguma coisa pra
ela? Não... Já bastou pra ela ter que ficar esse tempo todo sem o filho.
MÁRIO - Não começa.
CHICO - Não. Não vale a pena.
MÁRIO - Eu conheço gente. Gente importante da cidade. Posso conseguir comida. Quem
sabe até um posto médico pra vila.
CHICO - Então cuida da sua gente importante da cidade, que eu cuido da minha aqui.
MÁRIO - Isso é burrice, pai!
18
CHICO - Então eu sou burro! Aqui todo mundo é burro! Mas quer saber? Melhor ser um
burro entre cem, do que uma ovelha desgarrada. Perdida.
MÁRIO - Eu só estou querendo ajudar, pai.
CHICO - Teria ajudado muito se tivesse ficado aqui. Com tua gente, com tua família.
MÁRIO - Ou teria morrido de fome, igual à mamãe. (Breve silêncio).
CHICO - Vá ver tua mãe. Ou que sobrou dela antes que a chuva leve o resto.
MÁRIO - Depois. Tá saindo pra pescar?
CHICO - Gosto de insistir nas mentiras do vento. Burrice, lembra?
MÁRIO - (Abrindo um sorriso) Talvez hoje ele tenha falado a verdade. Às vezes vale a pena
acreditar.
CHICO - (Surpreso) Hum... Vindo de você...
MÁRIO - E vai até muito longe?
CHICO - Pouca coisa. Como disse, tem corrente trazendo um cardume pra cá.
MÁRIO - E posso ir contigo?
CHICO - (Muito surpreso) O quê?
MÁRIO - Embarcar contigo. Já que não vai longe...
CHICO - (Desconversando) Vá ver sua mãe.
MÁRIO - O desenho pra mim não importa. Tenho o rosto dela muito bem guardado...
CHICO - Pare de besteira.
MÁRIO - Eu to falando sério, pai. Quero ir.
CHICO - Olhe, moleque, se tá de gozação com a minha cara...
(MÁRIO vai subindo no barco).
MÁRIO - Ainda fabricam daquela cachaça por aqui? (Acha uma garrafa) Claro! A melhor
companhia do pescador.
CHICO - Quer mesmo ir?
MÁRIO - Estou aqui não estou? (Silêncio. Encaram-se por segundos).
CHICO - A cidade te deixou doido...
(Trilha. Os dois ajeitam os últimos detalhes no barco. Cai a luz).

CENA 3 – Enquanto Tritão sonhava.


Trilha sonora. Sonoplastia de “água” indica que o barco já está navegando. CHICO ajeita
algumas coisas na embarcação, enquanto MÁRIO apenas contempla a paisagem. CHICO
pega a maleta de MÁRIO, que está muito pesada.
CHICO - O que pode ter de tão pesado na cidade? Me diga!
MÁRIO - Só alguns papéis, pai. Ideias, rabiscos...
CHICO - Ideia só pesa assim dentro da cabeça da gente.
MÁRIO - Tem também meu notebook... Celular, carregador, bateria...
(CHICO apenas estranha, não entendendo muita coisa).
MÁRIO - Deixa pra lá!
CHICO - Coisa da cidade...
MÁRIO - É, pai... Coisas da cidade. O problema é que não dá pra viver sem elas nem lá,
nem em lugar nenhum.
18
CHICO - Bobagem. Tudo que um homem precisa pra viver cabe na cabeça e no estômago.
Quando um dos dois esvazia, o homem já não é mais homem. Vira bicho.
MÁRIO - Eu sei, pai. Lembro de quando me falava isso. Só que no meu trabalho, o que tá
na minha cabeça não pode ficar só nela. Tem que sair de alguma forma...
CHICO - Mas que diabo de trabalho é esse? Coisa da cidade, né?
MÁRIO - É, pai... Mais coisas da cidade...
(Breve silêncio. MÁRIO retoma a maleta e pega alguns de seus rabiscos, layouts de
anúncios publicitários).
MÁRIO - Eu sou publicitário, pai!
CHICO - E isso é bom?
MÁRIO - Eu trabalho com ideias. Ideias que fazem as pessoas comprarem coisas.
CHICO - Que tipo de coisas?
MÁRIO - Todo tipo de coisa. Por exemplo, se o senhor vai comprar um carro...
CHICO - E pra quê eu preciso de um carro?
MÁRIO - Tá... Uma bebida então. Olha aqui. (Mostra um de seus layouts ao pai) Esse é um
anúncio pra vender cerveja. A ideia foi minha. Não tá finalizada ainda...
(CHICO olha por um tempo).
CHICO - E cadê a cerveja?
MÁRIO - Tá aqui, no cantinho de baixo.
CHICO - E pra quê essa mulher de todo o tamanho, ocupando a folha inteira? E com quase
tudo de fora!
MÁRIO - (Rindo) É pra vender, pai! Mulher desse jeito é o que mais vende cerveja!
CHICO - (Conclusivo, irônico) Então quando vê uma mulher bonita, o homem da cidade
sente vontade de beber, não de trepar... E você querendo que eu saia da vila!
MÁRIO - (Rindo muito) Tá certo, pai. O senhor tá certo...
CHICO - Prefiro eu cá, com minhas ideias que ficam guardadinhas só aqui ó
(aponta para a cabeça. MÁRIO continua rindo. Pausa).
MÁRIO - A gente já num andou demais não?
CHICO - Quem disse?
MÁRIO - O senhor disse! Disse que o cardume tava perto. Vindo com a correnteza.
CHICO - Deve estar chegando. Se tá com pressa, devia ter ficado em terra firme.
MÁRIO - Não... Só que o senhor sabe que eu não...
CHICO - Num gosta das águas. Eu sei, Mário. Há 15 anos você me disse isso. E aí se foi...
MÁRIO - Não fui só por isso...
CHICO - Agora me diga como o “não gostar” de água pode ser maior do que o “gostar” de
uma mãe, de um pai?
MÁRIO - Essa é a tua vida, pai. Foi a da mamãe e eu respeito. Mas não é a minha!
CHICO - Porque não quis que fosse!
MÁRIO - Eu nasci pra muito mais do que isso aqui, pai!
CHICO - Pra oferecer cerveja quando o homem pede sexo?

18
MÁRIO - Pelo menos minhas ideias servem pra alguma coisa! Não viram esses devaneios
seus e desse povo daqui.
(Chico pega uma garrafa de cachaça. Dá um generoso gole).
CHICO - Quer beber?
MÁRIO - Não vai mostrar nem uma mulher pelada pra tentar me convencer?
CHICO - Já disse... As minhas ficam só na minha cabeça.
(Os dois riem juntos. MÁRIO dá um gole na garrafa. Faz careta, mas volta a beber).
MÁRIO - Continua queimando. Como antigamente...
CHICO - Envelheceu comigo, com o barco, com a vila. Mas no caso dela, o tempo só fez
bem. (Vão bebendo alternadamente enquanto conversam). É verdade que na cidade
vendem de tudo?
MÁRIO - Quase tudo.
CHICO - Até mulher?
MÁRIO - Ô, pai... Mas isso o senhor num precisa ir muito longe pra encontrar...
CHICO - Respeito, moleque.
MÁRIO - Eu tenho... Só to tentando te explicar. (Breve pausa. Bebem mais).
CHICO - É que dizem que na cidade tem loja que é só pra isso!
MÁRIO - Loja?
CHICO - É! De mulher!
MÁRIO - (Rindo) Ah... É, mas tem outro nome.
CHICO - E quanto custa?
MÁRIO - O quê?
CHICO - O produto!
MÁRIO - Aí depende.
CHICO - Do quê?
MÁRIO - Ah... Da qualidade, né? (Os dois riem).
MÁRIO - Tamanho, formato, acabamento... (Riem mais).
MÁRIO - Se tem uma proa vistosa... (Riem mais).
MÁRIO – Uma popa empinada... (Mais risos).
MÁRIO - (Taxativo) Mas pra mim o que vale mesmo é o tamanho do airbag!
(Os dois riem ainda mais. De repente, CHICO para de rir. MÁRIO também para,
repentinamente).
CHICO – O que é airbarg? (Cai a luz abruptamente. Risos apenas de MÁRIO).

CENA 4 – Enquanto Tritão lembrava.


Alguns minutos se passaram desde a cena anterior. Há uma garrafa quase vazia na mão
de cada um. MÁRIO e CHICO estão visivelmente bêbados.
CHICO - (Impaciente) Mas da onde é que saem essas porcarias dessas bolas cheias de ar?
MÁRIO - Da painel do carro, eu já disse! Na parte da frente. Daí quando o carro bate –
pow! – as bolas enchem de ar. (Pausa).
CHICO - E quem sopra?
MÁRIO - O quê?
18
CHICO - E quem sopra o tal do airbag?
MÁRIO - Ele enche sozinho!
CHICO - Impossível! Tem que ter alguém pra soprar! O ar tem que sair de alguém.
MÁRIO – Ele enche sozinho, pai!
CHICO - Mentira, isso deve ser alguma lenda da cidade. Não dá pra acreditar numa
bobagem dessas. (Os dois riem. Sentam-se, bêbados. MÁRIO tira sua carteira do bolso).
MÁRIO - (Num tom mais sério) Lembra de quando eu te disse que tinha o rosto da mamãe
bem guardado comigo?
CHICO - Na tua cabeça...
(MÁRIO retira uma fotografia dele com a mãe de dentro da carteira e entrega ao pai).
CHICO - O que é isso? Quando é que foi isso?
MÁRIO - Pouco antes de eu ir embora. Um dia que o senhor saiu pra pescar. Aí fui com ela
até a cidadezinha aqui perto.
CHICO - Mas como pode?
MÁRIO - O velho Jangada levou a gente.
CHICO - Desgraçado...
MÁRIO - Foi ela que insistiu com o velho.
CHICO - Duvido. Aposto que foi ideia tua. Queria levar tua mãe embora contigo...
MÁRIO - Não! De jeito nenhum. Ela amava isso aqui! Mais do que qualquer um. Nunca
teria saído. (Acalmam-se. CHICO contempla a foto).
MÁRIO - No dia dessa foto aí, a gente brigou. Brigou feio. Foi quando eu disse pra ela que
ia embora. Repara os olhos dela. Até inchados de choro.
CHICO - De tristeza...
MÁRIO - Aí fomos à cidadezinha, pra tirar essa foto. E voltamos. Só isso. Nunca pedi que
fosse embora comigo. Nunca. (Silêncio. CHICO está hipnotizado com a foto).
Preciso mijar! Onde se mija nessa merda? (CHICO não responde). Eu vou mijar na água
mesmo. (Sonoplastia. MÁRIO, ainda bêbado, chega à beirada do navio para urinar).
Ahhhh... Que alívio... Hei... Olha só... A aguardente invadindo a água doce. Igualzinho falou
o velho Jangada: o encontro das águas! Agora só falta aparecer o peixe gigante pra comer
meu pinto...
CHICO - (De supetão) Não fala merda, moleque! (Silêncio. Apreensão).
CHICO - Respeita a tua mãe! Respeita pelo menos a tua mãe!
MÁRIO - O que foi?
CHICO - Pra você isso pode ser tudo um monte de merda! Mas pra nós não é...
(Nesse momento CHICO sente uma forte pontada no coração. Leva uma das mãos ao
peito e se abaixa com muita dor).
MÁRIO - Pai? O que foi pai?
CHICO - Me deixa...
MÁRIO - Peraí, pai... O que foi? Tá doendo onde?
CHICO - (Grita) Me deixa! (Cai a luz abruptamente. Gritos de CHICO).

18
CENA 5 – Enquanto Tritão chorava.
Anoitece. MÁRIO e CHICO estão adormecidos em cena, com suas garrafas quase vazias,
ainda em mãos. Sonoplastia indica um rio mais revolto, com águas mais caudalosas.
Mário acorda e se dirige ao pai
MÁRIO - Pai! Pai... Acorda, pai!
CHICO - (Levantando-se) O que foi? Chegamos?
MÁRIO - Levanta, pai... O que tá acontecendo?
CHICO - Chegamos?
MÁRIO - Chegamos onde? Pra onde a gente tá indo? E o que foi aquilo ontem à noite?
CHICO - Nada de mais...
MÁRIO - “Nada de mais” droga nenhuma. O senhor colocou a mão no peito... E tava com
falta de ar. E com dor... Isso não foi a primeira vez, foi? (Silêncio).
MÁRIO - Responde, pai! Já sentiu isso antes, não foi?
CHICO - O coração do homem não dura pra sempre, Mário...
MÁRIO - Ai, meu Deus... E por que não me falou isso antes? Antes de a gente embarcar!
CHICO - E teria feito alguma diferença?
MÁRIO - A gente tem que atracar, pai! O senhor precisa ver um médico.
(Chico dá pouca atenção ao filho. Está mais concentrado em saber onde estão).
CHICO - Na volta. Talvez.
MÁRIO - Na volta? Talvez? O que tá acontecendo pai?
CHICO - Estamos perto, meu filho!
MÁRIO - Perto de quê, pai? Do tal cardume que o senhor falou?
CHICO - É...
MÁRIO - Estamos nesse barco há quase um dia e nada dessa droga desse cardume.
CHICO - Estamos perto...
(Mário segura o pai pelos ombros, de forma firme, mas serena, buscando sua atenção).
MÁRIO - Chega pai! Chega. O que a gente tá fazendo aqui tão longe? Onde é que estão os
peixes? Até agora não mandamos nenhuma isca ao fundo do rio... O que a gente tá fazendo
aqui, pai? (Breve pausa).
CHICO - (Taxativo) Vamos pescar Tritão!
MÁRIO - Ah, não... Não começa.
CHICO - Agora tem sua resposta. Pode me largar?
MÁRIO - Eu to falando sério, pai!
CHICO - E o que é “falar sério” pra você, Mário? É inventar história pra vender cerveja? O
que você entende sobre “falar sério”, Mário?
MÁRIO - Não existe peixe nenhum, pai. Isso é uma lenda.
CHICO - E quem disse?
MÁRIO - O velho Jangada me contou a história toda. Dos reinos. Do peixe-boi com a
baleia. É uma história muito bonita, mas é só história, pai!
CHICO - E tuas histórias? Teus sonhos? São o quê?
MÁRIO - São reais, pai! Por mais que não sejam tão coloridos como as histórias do teu
povo...
18
CHICO - Do teu povo!
MÁRIO - Por mais que não sejam como as histórias daqui, meus sonhos têm vida!
(Pausa. MÁRIO reflete). Eu quis sair daqui pra conhecer o mundo, pai.
CHICO - E foi como você sonhou? Tudo bonito como você sonhou?
MÁRIO - Mas aconteceu! Está acontecendo!
CHICO - Que bom, Mário. Que bom pra ti. (CHICO se afasta do filho).
MÁRIO - Vamos voltar pai...
CHICO - Se hoje eu te pedisse pra voltar... Você voltaria?
MÁRIO - Isso é loucura, pai!
CHICO - Isso é o meu sonho, Mário. Meu! Que bom que o teu está aí, vivo. Agora me deixe
cá com os meus!
MÁRIO - Eu não tenho nada a ver com essa sua loucura.
CHICO - Eu não te obriguei a subir no barco. Pelo contrário.
MÁRIO - Mas não disse que era pra isso!
CHICO - Você veio porque quis!
MÁRIO - (Gritando) Eu vim pra me despedir da mamãe!
CHICO - (No mesmo tom) Você veio porque eu te chamei!
(Silêncio. MÁRIO começa a desvendar a situação).
MÁRIO - Como é que é?
CHICO - Fui eu que escrevi aquela carta pra você! Fui até a cidadezinha, pedi pra alguém te
localizar e mandar a carta. Tua mãe não tem nada com isso. Fui eu!
MÁRIO - Mentira!
CHICO - Se não quiser acreditar nisso também... Pouco me importa.
MÁRIO - Pra quê tudo isso, pai?
CHICO - Se eu não te mandasse aquela carta, com tudo que tava escrito lá, você nunca
voltaria, Mário.
MÁRIO - Esse não é meu mundo, pai!
(Silêncio. MÁRIO está visivelmente nervoso, esfrega as mãos sobre a cabeça). Tudo bem!
Se o tal peixe gigante for real mesmo, pra quê alguém ia querer pescar ele?
CHICO - Nossa gente tem fome, Mário.
MÁRIO - Uma lenda não vai encher a barriga de ninguém.
CHICO - É um peixe muito grande, Mário. O velho Jangada te falou? Mais de cinquenta
metros. Perto de duas toneladas. É comida pra um bocado de gente. Por um bocado de
tempo.
MÁRIO - Loucura, pai!
CHICO - Loucura é deixar meu povo morrer de fome!
MÁRIO - Eu já disse que posso ajudar...
CHICO - Você vai ajudar...
MÁRIO - Não desse jeito, pai. Não assim!
CHICO - Quando tu nasceste, Mário, choveu durante uns trinta dias seguidos. Os rios
ficaram agitados. Pareciam que faziam festa. Festa pra ti, Mário.
MÁRIO - Para com isso, pai.
18
CHICO - Mas o diabo do menino não abria os olhos. Ouviu, Mário? Tu não abria os olhos
nem por reza braba. Todo mundo aqui, até mesmo Mestre Ambrósio, dizia que tu ia ficar
cego. Ver preto pelo resto da vida. Já imaginou? Ver preto pelo resto da vida?
MÁRIO - Não, pai...
CHICO - Mas dessa vez até Mestre Ambrósio errou. Errou feio. Um dia, do nada, tu abriste
os olhos. Arregalou mesmo, feito olho de peixe. E olhou tua mãe bem no fundo dos olhos
dela. Depois olhou pra mim, com a mesma fundura. O moleque tava olhando pra nossa
alma... (Breve silêncio).
CHICO - E nessa mesma hora que tu abriste os olhos, a chuva parou. Na hora mesma! Nem
uma gota mais. E os rios pararam de festejar. Me diga, Mário, porque acha que os rios
pararam de festa, bem na hora em que abriste os olhos?
MÁRIO - Não sei, pai...
CHICO - Foi ali que tu parou de sonhar. Quando a gente abre demais os olhos, nunca mais
volta a fechar. (Pausa) Na cidade, os homens dormem de olho aberto...
MÁRIO - Preferia que eu tivesse continuado de olho fechado? Vendo preto pelo resto da
vida...
CHICO - Eu não prefiro nada...
MÁRIO - E mamãe? O que achava?
CHICO - Sua mãe nunca foi de achar muita coisa. Inda mais depois que foste embora.
MÁRIO - Não começa a encher meus ombros de culpa...
CHICO - Não... Nem ela te culpava, Mário. No fim das contas acho que ela ficou até feliz
com a tua ida. Tomava partido de ti. Nunca me falou. Pra não me contrariar, talvez. Mas eu
sei. O vento me contou.
MÁRIO - Ele costuma mentir, pai. O senhor o conhece bem.
CHICO - Mas conhecia mais ainda tua mãe.
MÁRIO - Vocês se amaram de verdade né?
CHICO - E ela nunca mais quis saber de outro filho nenhum. (Pausa) Sabe o que ela me
pediu um pouquinho antes de morrer, Mário?
MÁRIO - Isso não tava na carta, pai...
CHICO - Me pediu pra que fechasse os olhos dela. E que não a deixasse abrir até a hora de
sua morte.
MÁRIO - E o senhor?
CHICO - Obedeci... Então, já de olhos fechados, ela me disse que não via mais preto. Disse
que tava vendo Tritão. E que você tava montado em cima dele. Depois me disse que os dois
viraram uma coisa só. Que nunca tinha visto tanto amor junto na vida.
MÁRIO - Tava delirando, pai...
CHICO - Que fosse.
MÁRIO - É comum...
CHICO - Não, filho. Não é... (Pausa. Os dois se olham com profundidade).
MÁRIO - Me chamou de filho.
CHICO - Eu tava delirando. É comum.

18
(Nesse momento CHICO sente novamente a dor no peito, dessa vez com maior
intensidade.) Ahh...
MÁRIO - Calma, pai! Pressiona com a mão.
CHICO - Diabo de dor que me rasga o peito.
MÁRIO - A gente precisa voltar, pai. Se não o senhor vai morrer aqui. Se não nós dois
vamos morrer aqui.
CHICO - E que diferença faz morrer aqui ou em qualquer outro lugar?
MÁRIO - Pra mim faz!
CHICO - Então vai, Mário. Se tu nada uns mil metros chega na margem. Aí é só andar mais
um pouco até alguém te achar.
MÁRIO - Eu não sei nadar, pai. O senhor sabe disso!
CHICO - Achei que a cidade tivesse lhe ensinado isso também.
(CHICO está encostado em alguma parte do barco, com muitas dores. MÁRIO está
agachado, com a cabeça entre as duas pernas, em visível aflição. Silêncio por alguns
segundos. O barulho de águas e ondas começa a ficar mais intenso.)
MÁRIO - E como vamos pescar o peixe?
CHICO - O quê?
MÁRIO - Tritão. Como vamos pescar um peixe desse tamanho? Não to vendo nenhum
arpão no barco.
CHICO - Não precisamos de um arpão.
MÁRIO - E como vai ser? Na paulada?
CHICO - Um pescador de verdade pega qualquer peixe na vara. O que conta mesmo é a
isca.
(Mário levanta-se. Procura nas caixas do pai que estão espalhadas pelo barco).
MÁRIO - E a isca? Vamos precisar de coisa grande. Eu só to vendo umas manjubinhas aqui.
Assim não da pra pegar o peixe, pai.
CHICO - Nós já temos a isca.
MÁRIO - (Descontrolando-se, à beira do choro) E onde é que tá, pai? Onde tá a merda
dessa isca? Sem isca não dá pra pegar porcaria de peixe gigante nenhum!
(Silêncio. MÁRIO se acalma. Começa a entender a situação).
CHICO - Nós já temos a isca.
(Mário começa a rir, numa mistura de devaneio e nervosismo).
MÁRIO - Ah... Claro. Agora eu entendi.
CHICO - A travessia do rio não foi longa o suficiente pra que o velho Jangada lhe contasse
tudo...
MÁRIO - Tudo o quê, pai?
CHICO - Pra pegar Tritão, qualquer varinha de bambu serve. Quando se tem a isca certa.
MÁRIO - E deixa eu adivinhar: a isca somos nós.
CHICO - Não, Mário. A isca é você!
MÁRIO - Eu?
CHICO - Tritão não é um peixe qualquer. Foi nascido do maior amor que essas águas já viu.
Como você, Mário.
18
MÁRIO – Então foi por isso que me mandou a carta! Por isso me trouxe até aqui. Pra me
fazer de isca desse teu devaneio ridículo. Pra ser comido por um peixe gigante!
CHICO - Você tem uma dívida com essa gente.
MÁRIO - Dívida merda nenhuma! Se eles escolheram viver nesse fim de mundo o problema
é deles. E seu também! Se não querem ir à cidade buscar ajuda, que morram de fome! Eu
não tenho nada com isso!
CHICO - Só o fruto de um amor tão bonito quanto aquele que uniu mar e rio pode atrair
Tritão. E agora você está aqui, Mário...
(CHICO sente nova e mais intensa fisgada no coração. As luzes caem).

CENA 6 – Enquanto Tritão nascia.


É noite. As águas estão mais turbulentas do que nunca. O barco balança muito. CHICO
está suando, com muitas dores no peito. MÁRIO está a seu lado. A essa altura, parecem
não se preocupar com a virilidade da embarcação. Apenas se deixam levar pelas águas.
MÁRIO - Como tá o peito?
CHICO - Eu aguento.
MÁRIO - Então estamos indo bem na direção da pororoca.
CHICO - No encontro das águas. É lá que mora Tritão.
MÁRIO - E o barco aguenta? As ondas...
CHICO - Uns cinquenta metros de largura. Quase seis de altura. E rápidas. Muito rápidas...
Deve aguentar. (Breve silêncio).
MÁRIO - Por que a gente não se entende, pai? Por que a gente nunca se entendeu? Se no
passado, talvez... Se a gente se entendesse, quem sabe eu num tivesse continuado na vila.
Com vocês!
CHICO - Acredita mesmo nisso?
MÁRIO - Na verdade não, mas quem sabe...
CHICO - Eu sempre amei você, Mário. Mesmo você sendo de um mundo diferente do meu.
MÁRIO - Eu sei, pai. Eu amo o senhor também.
CHICO - Você é de Netuno, filho. Da água salgada. Eu, sua mãe e toda essa gente aqui
somos dos rios, da água doce. Mas isso não impede o amor de acontecer. Torna tudo mais
difícil, mas não impede... (Pausa).
MÁRIO - E o que vai fazer com o peixe? Com Tritão... Quer dizer, como vai distribuir pro
povo?
CHICO - Sabe que nem pensei nisso ainda. (Pausa) O velho Jangada vai levar uma parte
boa. Bom homem aquele. A família de Diógenes... São os mais precisados. Djalma leva
outro belo pedaço por conta do desenho bonito que fez de tua mãe. O resto se divide aos
poucos. E o que sobrar a gente pode salgar e guardar. Esse povo nunca mais vai sentir fome.
MÁRIO - Lembra quando me perguntou se na cidade tinha mesmo de tudo pra vender?
CHICO - Minha memória é boa, filho. É o coração que tá faltando.
MÁRIO - E eu lhe disse que sim. Que tinha quase tudo! Até mulher se vendia por lá.
CHICO - (Rindo) De todos os tipos...
MÁRIO - Eu menti. Tem uma coisa que a cidade não tem... Homens como você, pai.
18
(Sonoplastia de água. Uma grande onda atinge a embarcação. Os dois caem. A dor de
CHICO aumenta). Aguenta firme, pai. Tamo chegando!
(Nesse momento temos uma brusca mudança de ambiente. Deve-se repetir o mesmo clima
do momento em que, na primeira cena, o velho JANGADA conta a lenda de Tritão para
MÁRIO. A ideia é, através da iluminação e da trilha sonora, criar um ambiente onírico,
distante da realidade. MÁRIO, numa espécie de transe, chega a uma das beiradas do
barco) (Grita) Tritãããoooo! Tritãããoooo! (Para o pai) Estamos perto, pai! E Tereza
continua firme. Firme como mamãe! (Grita para as águas) Não vai derrubar a gente,
Netuno! Pode tentar, Caboclo D’água! Pode tentar, mas Tereza nunca vai virar! Tritãããoooo!
CHICO - (No auge de sua dor) Filho...
MÁRIO - Aguenta, pai!
CHICO - Filho, vem aqui...
MÁRIO - (Indo na direção do pai) Só mais um pouco, pai...
(Breve pausa. MÁRIO e CHICO se encaram).
CHICO - Não acredite tanto nos seus sonhos, filho. Eles podem virar realidade. E a
realidade nunca é tão bonita quanto um sonho.
MÁRIO - Eu sei, pai. Agora eu sei. (A dor de CHICO aumenta ainda mais).
CHICO - Ahh...
MÁRIO - Fecha os olhos pai. Fecha os teus olhos e só abre quando eu mandar!
CHICO - Tá bom, filho.
(Uma nova onde bate na embarcação. MÁRIO balança, mas vai novamente até à beira do
barco).
MÁRIO - To vendo ele, pai! To vendo ele!
CHICO - Tritão?
MÁRIO - É! Tritão! Tá vendo, pai? Tá vendo agora?
CHICO - (De olhos ainda fechados) To vendo, filho! To vendo!
(Com muita dor, CHICO se levanta e vai até o local onde o filho está). É enorme!
MÁRIO - E verde...
CHICO - Azul!
MÁRIO - Azul! Azul esverdeado...
CHICO - É lindo!
MÁRIO - É agora, pai! Vai começar a maior pescaria que esse mundo já viu!
CHICO - Rápido, filho...
MÁRIO - (Procurando) Onde está a vara? A varinha, onde está?
CHICO - Atrás das caixas. Ali atrás. A maior. De bambu!
MÁRIO - Não tire os olhos dele, pai! De olho em Tritão!
CHICO - To de olhos fechados, mas não to vendo preto, filho! To vendo todas as cores do
danado!
MÁRIO - De olho nele, pai! De olho no desgraçado!
(Enquanto CHICO, de olhos fechados, vive uma espécie de transe à beira da embarcação,
MÁRIO pega uma pequena varinha de bambu e prepara o anzol. Olha ao redor. Pega sua
pesada maleta de viagem, com tudo que há dentro e amarra o anzol em sua alça, para que
18
o peso da mala faça com que seu pai – e talvez até ele mesmo – acredite que, de fato,
fisgaram Tritão. Atira ao rio-mar. Segura com firmeza a ponta da varinha, que faz muita
força devido à corrente e ao peso da mala. Para as águas, já segurando a varinha) -
Vamos lá, desgraçado! Tua isca tá aqui, de pé, só te esperando!
CHICO - Paciência, filho...
MÁRIO - É ele, pai! É ele! Eu sei que ele vai morder... Ele me quer, pai. Eu sei que ele vai...
(Pausa. MÁRIO encena a fisgada. ) Mordeu! O desgraçado mordeu!
CHICO - Segura filho! Não solta. Tem que cansar o bicho!
MÁRIO - Mordeu! Ele é meu, pai! Ele é meu!
CHICO - Não solta agora!
MÁRIO - Não tá dando pai! O bicho é forte demais! Me ajuda! Me ajuda aqui, pai!
CHICO - Te segura, Mário. Não solta.
(Agora pai e filho seguram a mesma vara, numa feroz briga contra “Tritão”. Eles gritam
sem parar.)
MÁRIO - Pegamos Tritão, pai! Pegamos Tritão...
(CHICO vai perdendo as forças. MÁRIO começa gritar em meio a um choro crescente).
Pegamos, pai... É grande e azul... Pegamos Tritão, pai. Segura, pai. Não solta! Pegamos
Tritão!
(Muda luz. Cai trilha. Estamos de volta à “realidade”. CHICO está morto nos braços do
filho, que joga a vara, com mala e tudo pra dentro do rio. Calmaria. Aos poucos, o suave
som da flauta do velho JANGADA vai preenchendo o ambiente. A luz cai enquanto, em
meio a um choro agora suave, MÁRIO balbucia as últimas palavras. A flauta já se
sobrepõe à voz do filho. A luz continua caindo, enquanto as cortinas vão se fechando).
MÁRIO - Pegamos, pai! Pegamos o peixe gigante! Nossa gente nunca mais vai ter fome,
pai. Pegamos Tritão, pai. Pegamos Tritão...
(As cortinas estão fechadas. Blackout. O som da flauta vai ficando cada vez mais intenso
em meio à escuridão. De repente, a flauta cessa. Foco de luz no proscênio, onde está o
velho JANGADA sobre sua parca embarcação, com a flauta em mãos. Ele fala para a
plateia.)
JANGADA - Minha senhoras. Meus senhores. Curumins... Essa foi a inacreditável história
do pescador Chico. Que poderia muito bem terminar aqui. Assim. / Mas amor é amor...
E quando o amor vira motivo de história, é porque ou teve uma realidade pra lá de salgada,
ou um desfecho bem doce. E como tamo falando de teatro e não de vida real, é lógico que
aqui vamos ter final feliz!

Abrem-se as cortinas novamente. Em cena, pendurado na parte mais alta do barco, um


enorme peixe, do qual podemos ver apenas a metade, como se a outra parte ainda estivesse
submersa. Uma trilha sonora épica indica o fim do espetáculo. Em cena, no alto do barco,
MÁRIO e CHICO, posando como autênticos pescadores ao lado de Tritão, agradecem ao
público.

FIM
18

Você também pode gostar