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T. Dalpra Jr
“Não acredite tanto nos seus sonhos, eles podem virar realidade.
E a realidade nunca é tão bonita quanto um sonho”. Chico
Personagens:
JANGADA: Velho jangadeiro que vive de transportar pessoas até áreas inóspitas no norte
do Brasil. Conhecedor profundo das águas, é delas que tira o sustento, as histórias e toda
a sabedoria acumulada. Sereno e misterioso, desvenda como ninguém as lendas e as
verdades da região.
CHICO: Homem, cerca de 50 anos. Líder de uma comunidade de pescadores esquecida
pelo homem. É ele quem dita as regras e delega as leis. Áspero, rude, amargurado.
Demonstra a dureza de seu coração em cada gesto, fala ou atitude.
MÁRIO: Filho de CHICO. Jovem, cerca de 30 anos. Aos 14, contra a vontade do pai,
abandonou a isolada vila onde nasceu e foi tentar a vida na cidade grande. Trabalhou,
estudou, se formou e hoje é diretor em uma grande agência de propaganda da capital.
Transita entre os sonhos que joga no papel para sobreviver e aqueles que nunca sairão da
sua cabeça.
Tempo : Atual
Espaço: A ação acontece em dois momentos/espaços. A cena inicial, no proscênio, se
passa em uma velha jangada, como se estivesse perdida em meio à imensidão de um
grande rio.
A partir da segunda cena, apresenta-se por detrás das cortinas uma embarcação de
madeira, velha, gasta, de proporções razoáveis. Esse barco deve estar disposto
lateralmente, com sua proa (aparente ou não) apontando para as coxias da direita (visão
da plateia).
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JANGADA
Meu canto vem / de um rio de água barrenta / Muito mestre vem e tenta / atravessá-lo de
nado e só no ano passado / se afogou mais de quarenta... Barco e navio / a correnteza levou
Mas um gaiato tentou / nadar na raça e no peito / afundou do mesmo jeito / que o Titanic
afundou... / Poeta veio / pescar porque tinha estudo / E eu fiz um verso graúdo / do jeito de
um peixe lindo / que terminou engolindo / poeta, anzol, vara e tudo...
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MÁRIO - Lá embaixo há vida, meu velho! Coisas pra ver, fazer, tocar... Quando se conhece
o mundo de verdade, fica mais fácil acreditar nas coisas.
JANGADA - E por isso nunca tinha voltado...
MÁRIO - Não é motivo suficiente?
JANGADA - Pode ser... Mas parece que um motivo maior fez com que acabasse voltando...
Quero dizer, de passagem, como disse.
MÁRIO - Tem coisa que é mais difícil deixar pra trás...
(Quebra de clima. Efeito sonoro de estrondo, águas agitadas, tormenta. Corpo e expressão
dos atores indicam que a velha jangada bateu em algo grande. Efeitos mecânicos podem
reforçar essa impressão. O velho JANGADA está agitado, corre de um lado para o outro
do pequeno barco, como se procurasse algo. MÁRIO se agarra como pode.)
MÁRIO - (Gritando) Quê isso? Batemos em alguma coisa!
JANGADA - Alguma coisa bateu na gente!
MÁRIO - O quê?
JANGADA - Te agarra aí, curumim.
MÁRIO - O que tá acontecendo?
(Temos um certo caos na cena, até que o velho JANGADA encontra o que procurava. É
uma velha flauta de bambu, da qual começa a tirar uma suave melodia. À medida que a
melodia se desenrola, o clima vai se tornando mais ameno. Os efeitos sonoros caóticos vão
cessando. Temos agora apenas o som da flauta. MÁRIO vai se acalmando.)
MÁRIO - Que diabos foi isso?
JANGADA - (Sereno, pede silêncio a MÁRIO e continua a tocar) Shiiiiiii...
MÁRIO - O que foi aquilo? O que bateu na gente?
JANGADA - (Toca por mais algum tempo e finalmente guarda a flauta) Não vai querer
saber.
MÁRIO - Claro que vou!
JANGADA - Agora só acredita nas coisas da cidade, curumim. Não vai acreditar nas coisas
daqui.
MÁRIO - Que coisas? Seja o que for aquilo lá, me pareceu bem real.
JANGADA - Achou mesmo? Já é alguma coisa então, curumim...
MÁRIO - Para de me enrolar. Eu vi o que aconteceu. E sem essa de curumim, tá?
JANGADA - Tritão.
MÁRIO - O quê?
JANGADA - Tritão. Foi o que bateu na gente. Tritão...
MÁRIO - Um peixe?
JANGADA - O peixe.
MÁRIO - Então deve ser dos grandes. Porque pelo jeito como bateu na...
JANGADA - Uns cinquenta metros... Perto de uns dois mil quilos... (Breve silêncio).
MÁRIO - (Ameaça um sorriso debochado) E desde quando as baleias passeiam por águas
doces?
JANGADA - (Devolve com debochada paciência) Não! Baleias não são tão grandes.
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MÁRIO - Tá legal. Não me importa! Não quero nem saber o que bateu na gente. Só me diga
que não vai bater de novo.
JANGADA - Não posso! Eu não controlo Tritão. Ninguém controla.
MÁRIO - E essa flauta aí? O barco quase virando e você tocando essa porcaria de flauta!
JANGADA - É um pífano.
MÁRIO - Que seja!
JANGADA - O som acalma Tritão.
MÁRIO - (Nervoso) E que merda é essa de Tritão?
JANGADA - Quer mesmo saber?
(Breve silêncio. MÁRIO busca uma lembrança em sua memória).
MÁRIO - Peraí. Eu lembro disso. A tal lenda que o pai contava.
JANGADA - Lendas não derrubam jangadas, curumim. Ou não te contaram isso na cidade?
MÁRIO - Do tal peixe gigante! Eu lembro disso. Besteira...
JANGADA - Se já sabes o que aconteceu, podemos seguir... Estamos quase lá.
MÁRIO - Não... Vamos lá! Conta. Quer dizer, se o senhor quiser.
JANGADA - Sabe qual a diferença entre uma lenda e um fato, curumim?
MÁRIO - As lendas não existem...
JANGADA - Acredita em Deus, Mário?
MÁRIO - Sim, claro.
JANGADA - E já viste teu Deus?
MÁRIO - Não, mas...
JANGADA - Conveniência, curumim. Essa é a diferença entre uma lenda e uma verdade. Se
é conveniente, a gente acredita. Se não, vira lenda...
MÁRIO - Tá querendo me dizer que o tal peixe de cinquenta metros não é uma lenda?
JANGADA - Se lhe servir de alguma coisa acreditar...
MÁRIO - Só se for pra fazer um sushi gigante.
JANGADA - Assim como na terra, a água também tem seus reinos, curumim.
(Nesse momento, temos uma abrupta mudança de luz. A ideia é, através da iluminação e
da trilha sonora, criar um ambiente onírico, distante da realidade. JANGADA pega um
pequeno pedaço de galho e começar a narrar enquanto “desenha” com o galho na
“água”. De cada lado do palco entram bailarinos, representando, de um lado, a água doce
e, de outro, a água salgada. Eles encenam cada momento da fantástica história criada
pelo velho. Fantasias, alegorias e marcações contam a lenda de Tritão, numa estética
muito próxima às encenações festivas do folclore de Parintins.)
JANGADA
De um lado, o grande reino dos mares, de água salgada.
Do outro, o pequeno reino dos rios, de água doce.
No meio, na fronteira, só marasmo. Mistura insossa, nem sal nem doce.
O que é dos rios é do Caboclo D’água. / O que é dos mares é de Netuno.
E assim foi-se. Até o amor estremecer com tudo.
Deu-se que um dia o peixe-boi, gigante dos rios e filho preferido do Caboclo D’água, decidiu
se aventurar até a fronteira entre os dois reinos.
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O que coincidentemente aconteceu no mesmo maldito dia em que a baleia, gigante dos mares
e xodó de Netuno, teve a maldita mesma ideia.
E foram-se os dois até o tranquilo e sereno encontro das águas.
Até aí mal nenhum. Estavam cada qual no seu reino, cada um no seu cada um.
Mas amor é amor... E quando duas almas gêmeas se cruzam, ou sai faísca ou deságua desejo.
E como tamo falando de água e não de fogo, é lógico que desaguou!
O gigante dos rios e a gigante dos mares ficaram então pequenininhos, perto da grandeza
desse troço chamado amor. / Mas amor com fronteira não é amor.
Só que reino sem fronteira também não é reino.
Deu-se aí o dilema. Toda noite a história se repetia. Baleia de um lado, peixe-boi de outro.
Se olhando, se amando, se declarando, mas não se podendo.
Isso porque Caboclo D’água e Netuno estavam sempre de butuca.
Misturar doce e salgado não convinha ao paladar nem de um nem ao de outro.
Mas amor é amor...
E todo amor que é reprimido ou se apaga em chama ou transborda em paixão.
E como tamo falando de água e não de fogo, é lógico que esse aqui transbordou.
Não se aguentando de amor, o peixe-boi ignorou a fronteira entre doce e salgado e foi se
encontrar com a baleia. Se olharam, se amaram, se declararam e, finalmente, se puderam!
Por pouco tempo.
Netuno que não era bobo nem nada percebeu aquele cheiro doce no teu reino salgado.
Num berro que se ouviu pelos sete mares, clamou pelo Caboclo D’água, que chegou num
nado só. / E noutro nado foi dado o veredicto ao peixe-boi invasor.
Ficaria ele preso, pelo resto dos dias num laguinho pequeno, sem fronteiras com sal ou doce.
Só terra. / E a baleia que sofresse por solidão, com a falta de seu amado.
Assim tava restabelecida a paz entre os dois reinos.
Mas amor é amor... E quando é de verdade ou renasce das cinzas ou cria seus afluentes.
E como tamo falando de água e não de fogo, é lógico que esse amor criou afluente.
Do único encontro de amor entre peixe-boi e baleia, nasceu Tritão.
Que foi criado pela mãe na fronteira entre os dois reinos, onde nem Netuno nem o Caboclo
D’água pudessem desconfiar. E lá cresceu. Cresceu. Cresceu. E dizem que cresce até hoje.
Bem na fronteira entre as águas doce e salgada. Na nascente desse amor todo.
E desde então, o encontro de rio e mar, de doce e salgado tem sido agitado. E caudaloso.
MÁRIO - A pororoca... O encontro do rio com o mar. É assim que ensinam na cidade.
(Quebra de clima. Muda luz. Cai trilha. Saem bailarinos. Estamos de volta à “realidade”).
CHICO - É você, Jangada? O vento me diz que vai ter peixe brigando pelo meu anzol hoje!
(Silêncio. MÁRIO apenas observa o trabalho do pai).
CHICO - E me disse também que tem uma corrente trazendo um cardume inteiro de
curimbatá. Bem na minha direção. Vai ser peixe até num poder mais, meu velho.
(Novo silêncio).
CHICO - E pelo visto o único que tem alguma coisa pra me dizer é o vento mesmo.
(Por um momento deixa os afazeres e vai na direção de MÁRIO, até perceber sua
presença).
CHICO - Vamos, diga alguma coisa. Você conhece esses rios melhor do que eu, sabe muito
bem quando o vento mente e quando tá falando a verdade...
(Silêncio. Pai e filho se encaram, após mais de 15 anos).
MÁRIO - Parece que o vento tem mentido muito pro senhor. (Silêncio).
CHICO - (Meio que acordando de um transe) Mente. Mas pelo menos tem sempre alguma
coisa pra dizer.
MÁRIO - Não vai dar um abraço no seu filho?
CHICO - Mais tarde. Agora to sujo e suado. Num quero estragar tua goma.
MÁRIO - São mais de quinze anos, pai.
CHICO - É... São mais de quinze anos, Mário... E o que te trouxe? A correnteza? Se foi,
dessa vez o vento não me disse.
MÁRIO - E a mamãe? (Silêncio. Encaram-se novamente).
CHICO - Quem lhe contou?
MÁRIO - Ela mesma.
CHICO - Como? Ela não sai dessa vila!
MÁRIO - Mandou carta. Deve ter enviado pelo velho Jangada. Como ela tá?
CHICO - Não acha que tá um pouco atrasado?
MÁRIO - Onde está ela?
CHICO - (Seco) Enterramos tua mãe anteontem. No mesmo buraco de tua vó.
(Silêncio. Há uma ligeira comoção, muito comedida. A frieza impera em ambas as partes).
MÁRIO - (Reflexivo) Dois dias...
CHICO - Quinze anos, Mário. Já são mais de quinze anos. (Silêncio).
CHICO - Se quiser ver a cova de tua mãe... Tá enfeitada. Coberta de flor. E Djalma fez um
desenho dela pra pôr em cima. Com cor e tudo. A chuva de ontem borrou um pouco, mas dá
pra ver ainda. Tua mãe era muito querida aqui.
MÁRIO - Eu sei...
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CHICO - Deve ter um bocado de gente querendo de te ver. Lucinda se casou. Então tire o
olho. E você, casou também? Ainda existe isso na cidade... Ou não?
MÁRIO - (Abre um primeiro sorriso, discreto) Não, pai... Quer dizer. As pessoas ainda se
casam na cidade sim. Eu é que não me casei ainda.
CHICO - Não ficou esperando esse tempo todo por Lucinda, ficou? Se ficou, danou-se. Tá
muito bem casada.
MÁRIO - Não, pai... Pra falar a verdade, eu nem me lembrava dela.
CHICO - Pra quê, né? Guardar lembrança disso aqui...
MÁRIO - Depois eu passo pra ver os outros. E a mamãe.
CHICO - Mas não se demore. Tá armando chuva. Se borrar mais o desenho de tua mão num
vai dar pra ver é nada.
MÁRIO - E as coisas por aqui? Os peixes...
CHICO - Tão bem... Nadando. Aliás, o vento me disse que hoje...
MÁRIO - (Interrompendo) A mãe me disse outra coisa. Na carta.
CHICO - E o que ela lhe disse?
MÁRIO - Disse que a situação tá pior que nunca. Nada de peixe.
CHICO - Se ela disse...
MÁRIO - Pouca comida.
CHICO - O necessário. A vila é pequena, Mário. O pouco que tem tá de bom tamanho.
MÁRIO - É... Se as pessoas continuarem morrendo por aqui, a comida realmente vai sobrar
cada vez mais.
CHICO - O que tá dizendo?
MÁRIO - To falando de fome, pai! A vila tá passando fome. A mãe também escreveu isso na
carta. Há anos que os peixes sumiram. E essa terra podre não pega nada.
CHICO - Coisas de tua mãe. Exagero dela!
MÁRIO - Exagero nada, pai. Até quando o senhor vai manter essa gente isolada nesse fim
de mundo? Sem comida, sem saúde, sem chance nenhuma!
CHICO - A gente sabe se cuidar, Mário.
MÁRIO - (Cínico) Eu vi como cuidaram bem da mamãe!
CHICO - (Explode) Cala a tua boca, moleque! (Breve pausa).
CHICO - Tua mãe morreu porque era assim que tinha que ser! E morreu aqui com a gente,
feliz. No meio de tudo o que ela mais gostava! A gente fez tudo que podia. Mas pra morte
isso não interessa.
MÁRIO - Podiam ter levado ela pra cidade...
CHICO - Pra quê? Pra ela morrer por lá? Longe de tudo que ainda valia alguma coisa pra
ela? Não... Já bastou pra ela ter que ficar esse tempo todo sem o filho.
MÁRIO - Não começa.
CHICO - Não. Não vale a pena.
MÁRIO - Eu conheço gente. Gente importante da cidade. Posso conseguir comida. Quem
sabe até um posto médico pra vila.
CHICO - Então cuida da sua gente importante da cidade, que eu cuido da minha aqui.
MÁRIO - Isso é burrice, pai!
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CHICO - Então eu sou burro! Aqui todo mundo é burro! Mas quer saber? Melhor ser um
burro entre cem, do que uma ovelha desgarrada. Perdida.
MÁRIO - Eu só estou querendo ajudar, pai.
CHICO - Teria ajudado muito se tivesse ficado aqui. Com tua gente, com tua família.
MÁRIO - Ou teria morrido de fome, igual à mamãe. (Breve silêncio).
CHICO - Vá ver tua mãe. Ou que sobrou dela antes que a chuva leve o resto.
MÁRIO - Depois. Tá saindo pra pescar?
CHICO - Gosto de insistir nas mentiras do vento. Burrice, lembra?
MÁRIO - (Abrindo um sorriso) Talvez hoje ele tenha falado a verdade. Às vezes vale a pena
acreditar.
CHICO - (Surpreso) Hum... Vindo de você...
MÁRIO - E vai até muito longe?
CHICO - Pouca coisa. Como disse, tem corrente trazendo um cardume pra cá.
MÁRIO - E posso ir contigo?
CHICO - (Muito surpreso) O quê?
MÁRIO - Embarcar contigo. Já que não vai longe...
CHICO - (Desconversando) Vá ver sua mãe.
MÁRIO - O desenho pra mim não importa. Tenho o rosto dela muito bem guardado...
CHICO - Pare de besteira.
MÁRIO - Eu to falando sério, pai. Quero ir.
CHICO - Olhe, moleque, se tá de gozação com a minha cara...
(MÁRIO vai subindo no barco).
MÁRIO - Ainda fabricam daquela cachaça por aqui? (Acha uma garrafa) Claro! A melhor
companhia do pescador.
CHICO - Quer mesmo ir?
MÁRIO - Estou aqui não estou? (Silêncio. Encaram-se por segundos).
CHICO - A cidade te deixou doido...
(Trilha. Os dois ajeitam os últimos detalhes no barco. Cai a luz).
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MÁRIO - Pelo menos minhas ideias servem pra alguma coisa! Não viram esses devaneios
seus e desse povo daqui.
(Chico pega uma garrafa de cachaça. Dá um generoso gole).
CHICO - Quer beber?
MÁRIO - Não vai mostrar nem uma mulher pelada pra tentar me convencer?
CHICO - Já disse... As minhas ficam só na minha cabeça.
(Os dois riem juntos. MÁRIO dá um gole na garrafa. Faz careta, mas volta a beber).
MÁRIO - Continua queimando. Como antigamente...
CHICO - Envelheceu comigo, com o barco, com a vila. Mas no caso dela, o tempo só fez
bem. (Vão bebendo alternadamente enquanto conversam). É verdade que na cidade
vendem de tudo?
MÁRIO - Quase tudo.
CHICO - Até mulher?
MÁRIO - Ô, pai... Mas isso o senhor num precisa ir muito longe pra encontrar...
CHICO - Respeito, moleque.
MÁRIO - Eu tenho... Só to tentando te explicar. (Breve pausa. Bebem mais).
CHICO - É que dizem que na cidade tem loja que é só pra isso!
MÁRIO - Loja?
CHICO - É! De mulher!
MÁRIO - (Rindo) Ah... É, mas tem outro nome.
CHICO - E quanto custa?
MÁRIO - O quê?
CHICO - O produto!
MÁRIO - Aí depende.
CHICO - Do quê?
MÁRIO - Ah... Da qualidade, né? (Os dois riem).
MÁRIO - Tamanho, formato, acabamento... (Riem mais).
MÁRIO - Se tem uma proa vistosa... (Riem mais).
MÁRIO – Uma popa empinada... (Mais risos).
MÁRIO - (Taxativo) Mas pra mim o que vale mesmo é o tamanho do airbag!
(Os dois riem ainda mais. De repente, CHICO para de rir. MÁRIO também para,
repentinamente).
CHICO – O que é airbarg? (Cai a luz abruptamente. Risos apenas de MÁRIO).
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CENA 5 – Enquanto Tritão chorava.
Anoitece. MÁRIO e CHICO estão adormecidos em cena, com suas garrafas quase vazias,
ainda em mãos. Sonoplastia indica um rio mais revolto, com águas mais caudalosas.
Mário acorda e se dirige ao pai
MÁRIO - Pai! Pai... Acorda, pai!
CHICO - (Levantando-se) O que foi? Chegamos?
MÁRIO - Levanta, pai... O que tá acontecendo?
CHICO - Chegamos?
MÁRIO - Chegamos onde? Pra onde a gente tá indo? E o que foi aquilo ontem à noite?
CHICO - Nada de mais...
MÁRIO - “Nada de mais” droga nenhuma. O senhor colocou a mão no peito... E tava com
falta de ar. E com dor... Isso não foi a primeira vez, foi? (Silêncio).
MÁRIO - Responde, pai! Já sentiu isso antes, não foi?
CHICO - O coração do homem não dura pra sempre, Mário...
MÁRIO - Ai, meu Deus... E por que não me falou isso antes? Antes de a gente embarcar!
CHICO - E teria feito alguma diferença?
MÁRIO - A gente tem que atracar, pai! O senhor precisa ver um médico.
(Chico dá pouca atenção ao filho. Está mais concentrado em saber onde estão).
CHICO - Na volta. Talvez.
MÁRIO - Na volta? Talvez? O que tá acontecendo pai?
CHICO - Estamos perto, meu filho!
MÁRIO - Perto de quê, pai? Do tal cardume que o senhor falou?
CHICO - É...
MÁRIO - Estamos nesse barco há quase um dia e nada dessa droga desse cardume.
CHICO - Estamos perto...
(Mário segura o pai pelos ombros, de forma firme, mas serena, buscando sua atenção).
MÁRIO - Chega pai! Chega. O que a gente tá fazendo aqui tão longe? Onde é que estão os
peixes? Até agora não mandamos nenhuma isca ao fundo do rio... O que a gente tá fazendo
aqui, pai? (Breve pausa).
CHICO - (Taxativo) Vamos pescar Tritão!
MÁRIO - Ah, não... Não começa.
CHICO - Agora tem sua resposta. Pode me largar?
MÁRIO - Eu to falando sério, pai!
CHICO - E o que é “falar sério” pra você, Mário? É inventar história pra vender cerveja? O
que você entende sobre “falar sério”, Mário?
MÁRIO - Não existe peixe nenhum, pai. Isso é uma lenda.
CHICO - E quem disse?
MÁRIO - O velho Jangada me contou a história toda. Dos reinos. Do peixe-boi com a
baleia. É uma história muito bonita, mas é só história, pai!
CHICO - E tuas histórias? Teus sonhos? São o quê?
MÁRIO - São reais, pai! Por mais que não sejam tão coloridos como as histórias do teu
povo...
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CHICO - Do teu povo!
MÁRIO - Por mais que não sejam como as histórias daqui, meus sonhos têm vida!
(Pausa. MÁRIO reflete). Eu quis sair daqui pra conhecer o mundo, pai.
CHICO - E foi como você sonhou? Tudo bonito como você sonhou?
MÁRIO - Mas aconteceu! Está acontecendo!
CHICO - Que bom, Mário. Que bom pra ti. (CHICO se afasta do filho).
MÁRIO - Vamos voltar pai...
CHICO - Se hoje eu te pedisse pra voltar... Você voltaria?
MÁRIO - Isso é loucura, pai!
CHICO - Isso é o meu sonho, Mário. Meu! Que bom que o teu está aí, vivo. Agora me deixe
cá com os meus!
MÁRIO - Eu não tenho nada a ver com essa sua loucura.
CHICO - Eu não te obriguei a subir no barco. Pelo contrário.
MÁRIO - Mas não disse que era pra isso!
CHICO - Você veio porque quis!
MÁRIO - (Gritando) Eu vim pra me despedir da mamãe!
CHICO - (No mesmo tom) Você veio porque eu te chamei!
(Silêncio. MÁRIO começa a desvendar a situação).
MÁRIO - Como é que é?
CHICO - Fui eu que escrevi aquela carta pra você! Fui até a cidadezinha, pedi pra alguém te
localizar e mandar a carta. Tua mãe não tem nada com isso. Fui eu!
MÁRIO - Mentira!
CHICO - Se não quiser acreditar nisso também... Pouco me importa.
MÁRIO - Pra quê tudo isso, pai?
CHICO - Se eu não te mandasse aquela carta, com tudo que tava escrito lá, você nunca
voltaria, Mário.
MÁRIO - Esse não é meu mundo, pai!
(Silêncio. MÁRIO está visivelmente nervoso, esfrega as mãos sobre a cabeça). Tudo bem!
Se o tal peixe gigante for real mesmo, pra quê alguém ia querer pescar ele?
CHICO - Nossa gente tem fome, Mário.
MÁRIO - Uma lenda não vai encher a barriga de ninguém.
CHICO - É um peixe muito grande, Mário. O velho Jangada te falou? Mais de cinquenta
metros. Perto de duas toneladas. É comida pra um bocado de gente. Por um bocado de
tempo.
MÁRIO - Loucura, pai!
CHICO - Loucura é deixar meu povo morrer de fome!
MÁRIO - Eu já disse que posso ajudar...
CHICO - Você vai ajudar...
MÁRIO - Não desse jeito, pai. Não assim!
CHICO - Quando tu nasceste, Mário, choveu durante uns trinta dias seguidos. Os rios
ficaram agitados. Pareciam que faziam festa. Festa pra ti, Mário.
MÁRIO - Para com isso, pai.
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CHICO - Mas o diabo do menino não abria os olhos. Ouviu, Mário? Tu não abria os olhos
nem por reza braba. Todo mundo aqui, até mesmo Mestre Ambrósio, dizia que tu ia ficar
cego. Ver preto pelo resto da vida. Já imaginou? Ver preto pelo resto da vida?
MÁRIO - Não, pai...
CHICO - Mas dessa vez até Mestre Ambrósio errou. Errou feio. Um dia, do nada, tu abriste
os olhos. Arregalou mesmo, feito olho de peixe. E olhou tua mãe bem no fundo dos olhos
dela. Depois olhou pra mim, com a mesma fundura. O moleque tava olhando pra nossa
alma... (Breve silêncio).
CHICO - E nessa mesma hora que tu abriste os olhos, a chuva parou. Na hora mesma! Nem
uma gota mais. E os rios pararam de festejar. Me diga, Mário, porque acha que os rios
pararam de festa, bem na hora em que abriste os olhos?
MÁRIO - Não sei, pai...
CHICO - Foi ali que tu parou de sonhar. Quando a gente abre demais os olhos, nunca mais
volta a fechar. (Pausa) Na cidade, os homens dormem de olho aberto...
MÁRIO - Preferia que eu tivesse continuado de olho fechado? Vendo preto pelo resto da
vida...
CHICO - Eu não prefiro nada...
MÁRIO - E mamãe? O que achava?
CHICO - Sua mãe nunca foi de achar muita coisa. Inda mais depois que foste embora.
MÁRIO - Não começa a encher meus ombros de culpa...
CHICO - Não... Nem ela te culpava, Mário. No fim das contas acho que ela ficou até feliz
com a tua ida. Tomava partido de ti. Nunca me falou. Pra não me contrariar, talvez. Mas eu
sei. O vento me contou.
MÁRIO - Ele costuma mentir, pai. O senhor o conhece bem.
CHICO - Mas conhecia mais ainda tua mãe.
MÁRIO - Vocês se amaram de verdade né?
CHICO - E ela nunca mais quis saber de outro filho nenhum. (Pausa) Sabe o que ela me
pediu um pouquinho antes de morrer, Mário?
MÁRIO - Isso não tava na carta, pai...
CHICO - Me pediu pra que fechasse os olhos dela. E que não a deixasse abrir até a hora de
sua morte.
MÁRIO - E o senhor?
CHICO - Obedeci... Então, já de olhos fechados, ela me disse que não via mais preto. Disse
que tava vendo Tritão. E que você tava montado em cima dele. Depois me disse que os dois
viraram uma coisa só. Que nunca tinha visto tanto amor junto na vida.
MÁRIO - Tava delirando, pai...
CHICO - Que fosse.
MÁRIO - É comum...
CHICO - Não, filho. Não é... (Pausa. Os dois se olham com profundidade).
MÁRIO - Me chamou de filho.
CHICO - Eu tava delirando. É comum.
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(Nesse momento CHICO sente novamente a dor no peito, dessa vez com maior
intensidade.) Ahh...
MÁRIO - Calma, pai! Pressiona com a mão.
CHICO - Diabo de dor que me rasga o peito.
MÁRIO - A gente precisa voltar, pai. Se não o senhor vai morrer aqui. Se não nós dois
vamos morrer aqui.
CHICO - E que diferença faz morrer aqui ou em qualquer outro lugar?
MÁRIO - Pra mim faz!
CHICO - Então vai, Mário. Se tu nada uns mil metros chega na margem. Aí é só andar mais
um pouco até alguém te achar.
MÁRIO - Eu não sei nadar, pai. O senhor sabe disso!
CHICO - Achei que a cidade tivesse lhe ensinado isso também.
(CHICO está encostado em alguma parte do barco, com muitas dores. MÁRIO está
agachado, com a cabeça entre as duas pernas, em visível aflição. Silêncio por alguns
segundos. O barulho de águas e ondas começa a ficar mais intenso.)
MÁRIO - E como vamos pescar o peixe?
CHICO - O quê?
MÁRIO - Tritão. Como vamos pescar um peixe desse tamanho? Não to vendo nenhum
arpão no barco.
CHICO - Não precisamos de um arpão.
MÁRIO - E como vai ser? Na paulada?
CHICO - Um pescador de verdade pega qualquer peixe na vara. O que conta mesmo é a
isca.
(Mário levanta-se. Procura nas caixas do pai que estão espalhadas pelo barco).
MÁRIO - E a isca? Vamos precisar de coisa grande. Eu só to vendo umas manjubinhas aqui.
Assim não da pra pegar o peixe, pai.
CHICO - Nós já temos a isca.
MÁRIO - (Descontrolando-se, à beira do choro) E onde é que tá, pai? Onde tá a merda
dessa isca? Sem isca não dá pra pegar porcaria de peixe gigante nenhum!
(Silêncio. MÁRIO se acalma. Começa a entender a situação).
CHICO - Nós já temos a isca.
(Mário começa a rir, numa mistura de devaneio e nervosismo).
MÁRIO - Ah... Claro. Agora eu entendi.
CHICO - A travessia do rio não foi longa o suficiente pra que o velho Jangada lhe contasse
tudo...
MÁRIO - Tudo o quê, pai?
CHICO - Pra pegar Tritão, qualquer varinha de bambu serve. Quando se tem a isca certa.
MÁRIO - E deixa eu adivinhar: a isca somos nós.
CHICO - Não, Mário. A isca é você!
MÁRIO - Eu?
CHICO - Tritão não é um peixe qualquer. Foi nascido do maior amor que essas águas já viu.
Como você, Mário.
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MÁRIO – Então foi por isso que me mandou a carta! Por isso me trouxe até aqui. Pra me
fazer de isca desse teu devaneio ridículo. Pra ser comido por um peixe gigante!
CHICO - Você tem uma dívida com essa gente.
MÁRIO - Dívida merda nenhuma! Se eles escolheram viver nesse fim de mundo o problema
é deles. E seu também! Se não querem ir à cidade buscar ajuda, que morram de fome! Eu
não tenho nada com isso!
CHICO - Só o fruto de um amor tão bonito quanto aquele que uniu mar e rio pode atrair
Tritão. E agora você está aqui, Mário...
(CHICO sente nova e mais intensa fisgada no coração. As luzes caem).
FIM
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