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A CANÇÃO DOS SHENLONGS

DIOGO ANDRADE
Para Carolina, por acreditar

SUMÁRIO
PARTE I
PARTE II
PARTE III
EPÍLOGO

Parte I
Era a primeira vez que eu assistia à expulsão.
O réu era Ruk. E Ruk era meu irmão.
Como shenlong, acredito que todos somos irmãos em jornada. E
para Ruk e eu, essa era uma forte verdade até então. Eu o conheci ainda
criança, antes mesmo de chegarmos em Shanjin. Eu subira na carroça que
passava pela estrada em direção ao norte, tentando viajar de graça sem ser
notado. Ruk, no entanto, chegara antes e já estava escondido em meio aos
barris de cerveja e lonas de couro. Brigamos pelo espaço e, por fim, o
condutor nos expulsou. Não havia nada por perto. Caminhamos o dia inteiro
sob o sol, sem água ou comida, até chegarmos à cidade mais próxima.
Nunca mais nos separamos.
Os pais dele haviam sido mortos por bandidos da montanha. Eu
nunca conheci os meus. Dormíamos onde permitiam; comíamos o que nos
davam; e pegávamos o que sobrava. Até roubamos quando foi necessário.
Um dia, enquanto tentávamos levar a tigela de moedas de um
shenlong, acabamos no Templo da Montanha, Shanjin. Por muito tempo
não entendi como aconteceu. Em nenhum momento o monge nos obrigou.
Nós simplesmente o seguimos, primeiro pela cidade, depois pela estrada,
depois por outras cidades e outras estradas até aqui, e aqui ficamos, como se
já pertencêssemos ao local. Na época, eu tinha sete anos, Ruk seis, e mais
de quinze anos passaram desde então.
Agora, meu irmão estava ali. Ajoelhado. Seus dedos percorriam as
contas do rosário na mão esquerda. Era difícil ler a expressão em seu rosto,
mas parecia resignado. Os olhos, sempre vivos, refletiam as chamas das
lanternas de pedra do pátio externo. A yantra gravada com a figura do
cavalo em suas costas estava desbotada. Por diversas vezes eu vira Ruk
treinar, executando formas onde aquela imagem esteve prestes a ganhar
vida e saltar da pele. Difícil acreditar que eram a mesma pessoa.
Somente shenlongs graduados podiam participar da expulsão. Os
mais de cinquenta monges presentes formavam um semicírculo em torno de
Ruk, vedando-lhe a entrada do templo. O simbolismo era claro: “Nós agora
impedimos sua passagem”. O silêncio e a luz fraca tornavam a noite mais
intensa.
Ruk sempre fora inquieto. Gostava de sair escondido de madrugada
para jogar e beber em Vila da Mata. Não era o único, claro, muitos monges
faziam isso. Eu mesmo já estivera no vilarejo diversas vezes em
comemorações. Todavia, a frequência começara a incomodar. Na maior
parte do tempo, os superiores faziam vista grossa contanto que
cumpríssemos as obrigações no dia seguinte. E, apesar de tudo, Ruk
cumpria. Não só realizava as tarefas como ainda se destacava nos treinos.
Até mesmo Shizu o elogiara em sua forma das quatro estações; o que, todos
sabíamos, significava muito vindo de Shizu.
Mas desta vez era diferente. Ruk havia matado um homem.
Entrara numa confusão no restaurante do vilarejo, quando Yat
mexeu com a filha do dono. Enfurecido, o homem partiu para cima deles
com um cutelo. Ruk o matou; segundo ele, por acidente, enquanto tentava
se defender. Os aldeões, irritados, perseguiram os dois shenlongs. Yat foi
morto. Ruk conseguiu escapar, retornando a Shanjin. A Barreira na floresta
fez com que os homens de Vila da Mata não conseguissem segui-lo. Todos
os aldeões se perderam na montanha procurando pelo Caminho da Serpente.
Logo que retornou, os outros monges perceberam que havia algo errado.
Então, Abade Kame foi chamado.
Ruk ainda tentou fugir ao perceber o que aconteceria, mas o
impediram. Eu não estava no alojamento nessa hora. Sarujin me obrigara a
ajudá-lo a costurar novas sapatilhas para as crianças. “As velhas estão
muito gastas. Vão acabar se machucando”. Eu o amaldiçoei por aquilo.
Apenas soube do ocorrido no dia seguinte. A notícia me afetou de tal forma
que nos primeiros dois dias mal comi. Eu me cobrava por não estar presente
assim que meu irmão voltou. Mas, depois de muito pensar, entendi que, na
verdade, fora o destino, a vontade de Heiwa. Caso contrário, eu também
estaria ali, de joelhos ao seu lado.
Karma. Aquele era o de Ruk.
Nili e Aga disseram que naquela noite, na hora em que Abade Kame
apareceu, Ruk desatou a chorar se encolhendo como uma criança. Pedia
desculpas, dizendo que não queria que nada daquilo tivesse acontecido. Foi
um acidente, gritava. Depois emudeceu. Não respondia a nenhuma das
perguntas. Abade Kame o questionava sobre o que havia ocorrido, onde
estava Yat, mas ele nada dizia. Após insistir por algum tempo, o abade
pressionou o polegar bem entre os olhos de Ruk e o indicador na lateral da
cabeça. Na ponta dos dois dedos surgiram chamas azuis, foi o que Nili e
Aga disseram. Em seguida, os olhos de Ruk adquiriram um tom leitoso,
fugidio, e ele começou a falar. Contou tudo. A confusão no restaurante. A
morte do dono que os atacara com um cutelo. A perseguição dos moradores
e como haviam matado Yat. A volta para Shanjin.
“Depois”, Aga disse, “Abade Kame retirou a mão e Ruk caiu
desacordado. Daí ele nos mandou colocá-lo num dos quartos privados e
trancar a porta, deixando alguém de vigia”.
“Desceu a montanha sozinho até a vila para conversar com os
moradores”, continuou Nili. “O mais impressionante é que em nenhum
momento ele pareceu irritado com Ruk. Mesmo depois, quando voltou de
Vila da Mata e disse que havia tido trabalho para acalmar os ânimos por lá.
Garantiu aos moradores que os monges nunca mais causariam problemas”.
No dia seguinte, três monges levaram uma oferenda à família do
dono do restaurante. Na volta, trouxeram o corpo de Yat. O funeral
aconteceu naquela tarde.

O portão de Shanjin rangeu atrás de nós antes de Velha Gilga surgir.


Não me virei para olhar, ninguém virou, mas sentimos sua presença. No
silêncio da noite, eu podia ouvir os passos lentos e regulares; uma cadência
espaçada, como gotas pingando do telhado após a chuva. A anciã cruzou a
fila de monges, e vi que trazia as ferramentas. Os objetos eram grandes
demais em suas mãos enrugadas. Abade Kame se destacou do grupo,
avançando com ela até o centro do pátio, onde Ruk aguardava. Por algum
tempo, observaram o homem ajoelhado. Ruk mantinha os olhos fixos à
frente, ignorando-os como se pudesse ver através de seus corpos.
“Que Heiwa nos abençoe e ilumine nossas mentes”, disse o abade,
quebrando o silêncio. “O verdadeiro adversário de um shenlong surge no
reflexo da água. Nossa maior batalha não é contra os demônios do mundo,
mas sim contra aqueles que trazemos no coração. Heiwa nos concede a
liberdade. Todavia, somos sempre responsáveis pelo karma que dela advém.
O fruto colhido surge da semente no plantio”.
Enquanto o abade falava, Velha Gilga preparava as ferramentas ao
seu lado. Ruk permanecia impassível, como se nada daquilo lhe dissesse
respeito.
“Shenlong Ruk”, continuou. “Você violou o Shendo, a lei monástica
do Templo da Montanha, Shanjin. Heiwa é sempre justo e, por tal, você
deve sofrer as consequências de seus atos. Assim, eu, shenlong Kame,
abade de vigésima terceira geração, sucessor de Abade Taolon, em honra ao
Templo da Montanha, Shanjin, e ao Fundador, grão-mestre Wudan Sanfeng,
o destituo do título de shenlong de Shanjin, proibindo-o, a partir de agora,
de envergar o hábito monástico e sua yantra”.
Um monge trouxe a bacia com água. Velha Gilga mandou que Ruk
se virasse. Mesmo de joelhos, ele era maior que a anciã, cuja compleição
diminuta se assemelhava a uma criança curvada. Ela respirou
profundamente e em seguida, unindo as ferramentas à frente, murmurou
palavras incompreensíveis. Então, com o cinzel de ponta larga, começou a
raspar as costas de Ruk. Uma passada por vez, de cima para baixo, como se
cobrisse uma faixa. O brilho sobrenatural em seus olhos denunciava o uso
do chi. A imagem do cavalo perdia sua forma a cada nova passagem e, aos
poucos, o sangue começou a surgir. Primeiro em gotículas brotando da pele
vermelha e arranhada. Depois, em veios que escorriam pelas costas.
Se Ruk sentiu qualquer dor, não demonstrou.
Manteve-se firme enquanto removiam sua alma. Pois era isso que a
yantra representava: o espírito de um shenlong.
Todos nós, ao final do treinamento, recebíamos uma. Havia poucos
meses eu conquistara a minha. Abade Kame me chamara em sua sala. E,
depois de dizer algumas palavras sobre a responsabilidade de ser um
shenlong, me fez recitar todo o Shendo e jurar segui-lo. Terminado, ordenou
que eu fosse até Velha Gilga, na floresta. Outros shenlongs já estavam
reunidos no Jardim da Montanha para me parabenizar. Sarujin estava lá;
Nili e Aga também; mas Ruk não apareceu. Após os cumprimentos, saí pelo
portão em direção à cabana na floresta onde a anciã já me aguardava. De
início, ela apenas me olhou sem dizer nada; os olhos âmbar eram duas joias
imensas e desproporcionais, encrustadas no rosto enrugado. Ordenou,
enfim, que eu tirasse a camisa. E, com o cinzel de ponta larga, gravou o
cavalo em minhas costas. Um cavalo. Não muito diferente daquele que
agora ela apagava das costas de Ruk. O mesmo cinzel. A yantra era a alma
de um shenlong. E o cavalo revelava o espírito aventureiro do artista
marcial habilidoso.
Eu não era assim. Ruk era assim.
No dia seguinte, como já virara tradição, fomos à Vila da Mata
celebrar. Ruk apareceu pouco depois que chegamos ao restaurante. Ele me
encheu de elogios pela conquista da yantra. “O cavalo é o símbolo
definitivo em Heiwa de que somos irmãos, Mu”, disse. Pediu vinho de
gengibre para todos. “Brindemos!” E eu brindei. Todos nós brindamos. Na
noite de comemoração da minha yantra, foi Ruk quem mais uma vez
comandou os festejos. Eu me sentia grato, mas também estranho com tudo
aquilo. Todos estavam felizes e, para falar a verdade, eu não tinha nada
contra ninguém ali, principalmente meu irmão, óbvio. Mas de alguma
forma, não sei bem explicar, tinha dificuldade em acreditar em suas
palavras.
Embora mais novo, Ruk já era um shenlong graduado havia mais de
dois anos. Sempre gostou de festas. Sempre fomos muito próximos e por
um bom tempo cheguei a acompanha-lo nas idas até Vila da Mata. Outros
também iam conosco. Contudo, eu não gostava da atitude de alguns quando
bebiam e, ao perceber que não havia nada a fazer, resolvi me afastar.
Passado algum tempo, principalmente depois que comecei a ajudar Sarujin
com as crianças, nosso contato diminuiu. Sarujin sempre reforçou a ideia de
que devemos dominar nossos instintos. E quando recebi a notícia de minha
yantra, senti como se tivesse feito a escolha correta. Ruk ainda era meu
irmão, sem dúvida, e nos víamos com frequência. Contudo, não era mais
como antes.
Ruk sempre foi mais hábil, mais esperto e mais forte. Todos
gostavam dele.
As lembranças surgiam nítidas. Eu não queria estar ali. Não queria
que nada daquilo estivesse acontecendo. Não queria presenciar. Minha
mente me traía. Cada pequeno detalhe reavivava memórias que traziam à
tona a dor que eu me esforçava para ocultar. Com a ponta dos dedos eu
pressionava as contas do rosário em minha mão. Assim como o de Ruk, ele
era feito das sementes da paineira-branca. Por diversos momentos pensei
em intervir na cerimônia, gritar para que parassem. Mas não fiz nada.
Quando Velha Gilga terminou, as costas de Ruk eram apenas
sangue. A tinta que soltava da pele ferida tingia manchas escuras no
vermelho intenso. Pingos gordos e pesados caíam do cinto da calça
encharcado, manchando o chão.
Bem lá no limite do horizonte, a luz se esforçava em surgir e trazer a
manhã. Velha Gilga molhou o pano na bacia, passando-o nas costas de Ruk.
Naquele momento, eu senti toda a dor que ele escondia.
Ao meu lado, Nili também estava agitado. Aguardamos em silêncio
enquanto a mulher recolhia os instrumentos. Logo terminado, ela se
posicionou ao lado de Abade Kame.
“Ruk, você está banido”, disse ele. “De agora em diante, não é mais
um shenlong de Shanjin”.
O abade ergueu a mão espalmada.
“Que a misericórdia de Heiwa o acompanhe. Mayar ti tao”.
“Mayar ti tao”, respondemos.
Os olhos de Ruk encontraram os meus, e ele sorriu.
Senti no rosto o peso das lágrimas que não consegui conter. Ruk
ergueu-se, e eu vi o sangue que ainda escorria. Ele matinha o sorriso no
rosto. Encarou a todos. Um por um.
Esperei por palavras que não vieram. Mais uma vez, Ruk olhou para
mim. Então, por fim, meu irmão começou a se afastar em direção ao
Caminho da Serpente. Alguns monges também choravam. O sol surgiu
sobre as árvores à frente.
Brancas são as flores.
Onde seu tesouro conduz.

Alguém disse.

Sou o espírito da montanha.


Guardião do dragão de luz.

Outros acompanharam. Então, cantamos.

Meu caminho de vida


Traz as cores do dia
Sou o espírito da floresta
Cuja alma irradia.

Nas águas do tempo


Serei forte até o fim.
Cantem, shenlongs de Shanjin!

Ruk se afastava. As gotas de sangue seguiam seus passos formando


uma trilha.
Nós cantávamos.
Ele desceu os degraus, e a floresta o engoliu. Em nenhum momento,
Ruk olhou para trás.
Parte II

Na manhã seguinte, as marcas de sangue ainda estavam no chão.


O grosso havia saído. Esfregamos o pátio por várias horas depois
que a cerimônia terminou. Ainda assim, leves manchas, como finos e
transparentes pedaços de papel turvo, permaneciam ali. Durante um bom
tempo, tentamos removê-las, mas sem sucesso. Não havia mais o sangue,
mas onde quer que ele tivesse caído, lá estavam as marcas. Provavelmente
ninguém as notaria, mesmo que olhassem diretamente para elas, mas nós
sabíamos. E deixá-las ali seria perdurar a lembrança do ocorrido. Por isso,
esfregávamos. Eu esfregava.
“Não adianta, não vai sair”, dissera Velha Gilga, antes de se retirar
para floresta.
E em algum momento desistimos.
Naquela noite no dormitório, ninguém falou nada. Mesmo Aga, que
sempre era o primeiro a puxar conversa e propor jogos, fora direto para
cama. Ele não estivera na expulsão, mas, como muitos outros, havia se
escondido na floresta para assistir. Sarujin me chamou num canto, dizendo
que eu estava dispensado de ajudá-lo no dia seguinte. “Não precisa vir ao
treino das crianças logo de manhã, sei que deve estar sendo difícil para
você”. Eu não respondi, não sabia o que dizer. Estava cansado e abatido.
Ainda assim, demorei a pegar no sono. A todo instante minha mente parecia
forçar meus olhos a se abrirem, fugindo dos pesadelos. De madrugada,
acordei agitado, transportado de volta para a realidade de onde não havia
como escapar. Todos ainda dormiam, seus corpos eram contornos escuros
em meio ao breu do dormitório. Saí em silêncio, sentindo como se não
tivesse repousado nem por um segundo. Por boa parte da noite fiquei ali na
varanda, observando o Jardim da Montanha. Mesmo no outono, os galhos
da paineira branca estavam repletos de folhas. Tão verdes durante o dia,
àquela hora se transformavam numa trama de pontas negras perfurando o
céu em várias direções. Voltei para a cama pouco antes do amanhecer. E
quando os outros começaram a despertar, fingi dormir. Ninguém me
incomodou.
Quando decidi sair, estava sozinho no alojamento. Meu corpo tão
dolorido que tive dúvidas se realmente conseguiria. Levantei-me com
esforço. Depois, fui até o refeitório, vazio àquela hora, onde consegui um
pouco do que sobrara da papa de arroz com frutas secas servida no café da
manhã. Comi sem vontade, de maneira automática, empurrando tudo com
um pouco de chá escuro. Não tinha disposição para nada, a única coisa que
eu queria era voltar para a cama, mas sabia que ocupar a mente era o
melhor que eu podia fazer. Voltei ao alojamento e guardei meu rosário
dentro da caixinha de madeira que escondia no lugar de sempre - uma
reentrância na parede logo acima da janela. Eu não conseguiria fazer nada
se ficasse olhando para ele.
No dia em que tentamos levar as moedas de Sarujin, desistimos
quando ele nos contou a história de seu rosário. “Achei que fosse um
enfeite de monge”, eu dissera. E Sarujin riu, explicando que o rosário
ajudava os monges nas orações e que aquele tinha um significado único.
Fora um presente que seu mestre lhe dera antes de fazer a última viagem.
Contou que o rosário era especial por ser feito com as pedras olho de tigre
encontradas no lago de um grande mestre místico; depois soube que ele se
referia ao Fundador, Wudan Sanfeng. Porém, naquele momento, eu apenas
olhava para o cordão castanho imaginando que tipo de poder teria e se
seríamos amaldiçoados por roubar um monge. Quando a história terminou,
já estávamos em Shanjin. Uma semana depois de chegarmos ao templo,
Sarujin nos deu uma caixinha de madeira com a insígnia de Shanjin gravada
na tampa - uma para Ruk e outra para mim. Dentro havia um rosário. “São
feitos com as sementes da sagrada paineira-branca”, ele disse. “É uma
grande honra”. Mas eu o olhei torto. “O seu é bem mais bonito”, reclamei.
“Veja, as pedrinhas são ocas e todas têm tamanhos diferentes. Quero um
como o seu”. Sarujin riu. Ruk não reclamou, nem disse nada, parecia
imensamente satisfeito com o presente. Por algum tempo ficamos os dois
simulando sessões de oração e comparando nossos rosários. Eram quase
iguais.
Segui pelo pátio principal, cruzando o portão do templo para a área
externa. As marcas no chão ainda estavam lá e eu me esforcei para ignorá-
las. Virei à esquerda, retornando pela trilha que seguia em direção à
floresta. Ao chegar na clareira, as crianças já haviam terminado a corrida, o
que dizia que eu estava pelo menos uma hora atrasado. Algumas pareceram
surpresas em me ver enquanto outras olhavam para Sarujin, prontas para
indagá-lo; ele certamente dissera a elas que eu não viria.
“Mu”, disse Sarujin, vindo em minha direção com um sorriso. “Que
bom que veio”.
Ele me entregou uma das pontas da corda que trazia na mão.
“Se está aqui, então vamos trabalhar”, disse e mandou amarrar a
ponta na árvore.
Assenti. Sarujin seguiu com o resto da corda para o outro lado e fez
o mesmo. Deu a ordem, e as crianças começaram a atravessar, correndo
sobre a corda estendida entre as duas árvores. A maioria caiu na metade do
caminho. Apesar disso, havia algumas que pareciam gatos, esguias e ágeis.
Ao final do trecho, elas deveriam saltar e chutar o alvo preso na árvore ao
meu lado. O resultado foi desastroso. Quase ninguém conseguiu. Da
extremidade oposta, Sarujin ria se divertindo a cada nova tentativa
frustrada, o que irritou cada vez mais os garotos. Eu tentava incentivá-los,
mas não ajudava muito.
“Vocês devem aprender a ter controle”, disse Sarujin depois do
exercício. “Controle do corpo e, principalmente, controle da mente. O
espírito controla a mente, a mente controla o corpo”.
As crianças assentiram, várias delas tinham as roupas sujas pelas
quedas no chão. Um dos meninos, mais velho e que teve muita dificuldade,
não pareceu convencido com as palavras do professor.
“O que foi, Fae?”, perguntei.
Como o garoto não respondeu, Sarujin insistiu.
“Pode dizer, vamos”.
“Só acho que é muito mais fácil falar”, disse Fae, finalmente.
Os outros olharam para ele surpresos. Realmente aquilo era uma
grande falta de respeito. Já ia chamar-lhe a atenção quando, sorrindo,
Sarujin me impediu. Seguindo até a árvore oposta ao alvo, ele saltou sobre a
corda e, de um único pique, atravessou toda extensão. Ao final, saltou
girando, desferindo um chute preciso no alvo. O impacto fez a árvore
inteira sacudir, despejando uma chuva de folhas sobre a cabeça do monge.
“Acho que exagerei”, disse rindo.
O garoto ficou envergonhado. Depois disso ninguém questionou
mais nada; pelo contrário, as crianças pareciam querer treinar com mais
afinco.
“Fae tinha razão, devemos sempre ensinar pelo exemplo, Mu”,
Sarujin me disse mais tarde, naquele mesmo dia, enquanto almoçávamos.

Os dias seguiam seu curso. As atividades nos mantinham ocupados.


No entanto, havia algo no ar, um desconforto presente por toda parte.
Ninguém falava, mas todos sentíamos. Mesmo a sós com Nili e Aga, eu
evitava falar sobre Ruk. Às vezes, alguma referência ou lembrança surgia
involuntária e causava tristeza.
Somente um mês depois do ocorrido é que alguém falou
abertamente do incidente. Num dos treinos da tarde, no exato momento em
que praticávamos a forma das quatro estações, uma das preferidas de Ruk,
Shizu interrompeu as atividades.
“A habilidade marcial não é suficiente ”, ele disse. “Através do
karma de nosso irmão Ruk, Heiwa nos demonstra sua grande sabedoria. A
retidão e a busca por harmonia devem sempre pautar o caminho de um
shenlong. A prática marcial é o meio, não o fim”.
Em seguida, Shizu se dirigiu ao centro do pátio e executou a forma.
Todos os monges pararam para observá-lo. Não era algo comum que ele
demonstrasse abertamente. Talvez quisesse nos provar que deveríamos nos
unir, que todos erámos irmãos e iguais em Shanjin. Ou, talvez assim,
vendo-o ali, não lembraríamos mais de Ruk no momento da execução das
quatro estações. Não sei ao certo.
Shizu era alto como eu, porém quase duas vezes mais largo. Mais
habilidoso dentre todos os shenlongs de Shanjin, fora o monge mais novo a
se graduar nos últimos cento e cinquenta anos. Abade Kame lhe concedera
o título depois de sua atuação na defesa de Shanjin contra o ataque de
bandidos, quase vinte anos atrás. Na época, Shizu tinha apenas doze anos.
Também era o mais novo dentre os instrutores. Sua especialidade eram as
formas de mãos livres, embora dominasse com maestria diversas armas. Era
o único que continuava a treinar com Abade Kame, depois que ele abdicara
do posto de instrutor em virtude da idade. Todos nós o respeitávamos,
muito embora detestássemos seus treinos, eu principalmente. Eram rígidos
demais: seis horas seguidas, muitas vezes sem intervalo. Além disso, para
Shizu, eu parecia estar sempre fazendo algo errado. Por mais que me
esforçasse, por vezes até quase desmaiar, nunca parecia ser suficiente.
“Abaixe a postura, Mu”, advertia, sempre acompanhado de uma pancada na
cabeça. “Tem que se esforçar mais, só assim o corpo será mais forte”. E eu
me esforçava. Até meu limite. Tanto que não era incomum eu pegar no sono
durante a prática de meditação que vinha logo a seguir. Às vezes Sarujin
aparecia nos treinos. Gostava de zombar de nós durante os momentos de
dor. Alguns monges o odiavam por isso, outros o achavam engraçado. Eu
pertencia ao segundo grupo. Nessas ocasiões Shizu se irritava pedindo que
fosse embora, mas vez ou outra o deixava ficar sob o pretexto de nos fazer
treinar concentração e força de vontade. Eu tinha a impressão que o
principal objetivo de Sarujin com as visitas era irritar Shizu, sempre tão
sério. Na maioria das vezes, Shizu parecia o instrutor mais velho, não o
contrário.
Os movimentos, suaves no começo da forma, se intensificaram. Seu
espírito era tão forte que parecia conjurar diante de nós a cena do combate
simulado. Adversários invisíveis caíam, um a um, derrotados pelos golpes
precisos que fulminavam o ar. Mesmo cobertas pelo hábito monástico,
podíamos sentir o chi emanado pelas yantras do tigre e da serpente que
certamente surgiam vivas em suas costas naquele momento. Socos e chutes.
Saltos e giros. Aos poucos, o ritmo diminuiu até parar.
Eu estava sem palavras.
Shizu fez um cumprimento, olhando firme para cada um.
“Lembrem-se de nossa responsabilidade como shenlongs de
Shanjin”.

***

O espadachim chegou ainda bem cedo.


Nili, Aga e eu varríamos o pátio externo logo depois da primeira
sessão de meditação, antes do café da manhã. O vento havia acumulado as
folhas durante a noite e, ainda sonolentos, nós as devolvíamos para a mata.
Nili enchia um saco com as folhas que levaria para mestre Gao usar para o
adubo da horta.
Foi Aga quem primeiro viu o vulto e chamou nossa atenção. Surgiu
do outro lado, próximo ao Caminho da Serpente. O homem tinha o rosto
encoberto por um chapéu de palha e se aproximava devagar. A capa verde
envolvia o corpo, deixando apenas as botas à mostra. Parecia cansado.
Em princípio, pensei que fosse Ruk que retornava ao templo para
pedir perdão ou algo do tipo. Então notei a espada presa à cintura. Nili e eu
ficamos em guarda, improvisando as vassouras como bastões. Apenas os
shenlongs conseguiam chegar em Shanjin. Ninguém mais. A Barreira no
Caminho da Serpente fazia com que qualquer um que não fosse um
shenlong se perdesse pelo caminho.
“É um espírito da floresta”, disse Aga, assustado.
“Não seja idiota, isso não existe”, disse Nili. “Vá chamar Shizu”
Aga correu em direção aos portões.
O espadachim estacou a alguns metros de distância se apoiando
numa das lanternas de pedra. Eu não conseguia sentir nenhuma hostilidade
ou chi emanando dele.
“Bom dia jovens monges, como vão?”, disse com a voz um pouco
ofegante. “Por Heiwa, quantas escadas. Acho que preciso de um minuto”.
“Quem é você? E o que faz aqui?”, perguntei.
Nili e eu chegamos junto um do outro. Olhávamos em volta à
procura de possíveis companheiros do homem.
“Exato. Quem é você?”, disse a voz atrás de nós.
No momento em que me virei para olhar, vi Shizu se aproximar
correndo. Ele saltou sobre nossas cabeças, aterrissando a poucos passos do
espadachim.
Por alguns instantes, o intruso pareceu estudá-lo. Em seguida,
empurrou para trás o chapéu, revelando os cabelos castanhos presos em
uma trança. A pele clara sugeria que provavelmente não era alguém da
região.
Então, sorriu.
“Você deve ser, Shizu, não é mesmo? Ouvi falar de você. O Tigre da
Montanha. O título tem força, sem dúvida”.
Shizu não disse nada, mas percebi que contraía a postura.
“Ora, vamos. Sou apenas um mensageiro”, continuou o espadachim.
“Trago assuntos urgentes para o abade. Mas antes, se não se importarem,
gostaria de descansar um pouco. Vim de longe. Talvez com alguma coisa
para beber. Estou morrendo de sede”.
O homem retomou a caminhada, vindo em nossa direção. E foi
então que Shizu atacou.
Antecipando a passada do espadachim, ele desferiu um soco com o
peso projetado em busca do estômago do homem. Porém, de alguma forma,
o intruso conseguiu desviar.
“Não estou aqui para isso”, disse a Shizu. “Você! Vá chamar Kame,
por favor”, ele apontava para Aga, que, confuso, voltou correndo para o
templo. “Não me importo de esperar aqui fora, mas preciso de algo para
beber. Poderia...”
Não conseguiu terminar o que dizia. Naquele instante, Shizu
avançou com um chute em pleno ar. O espadachim ergueu a bainha da
espada rapidamente, contendo o impacto do golpe. Era impressionante que
conseguisse resistir à força do shenlong apenas com uma das mãos.
“Pés-de-serpente é realmente um estilo impressionante”, disse o
espadachim, tranquilo. “Mas por favor, não estou aqui para isso. Já disse.
Tenho uma mensagem urgente para o abade”.
“Como você chegou aqui?!”, insistiu Shizu.
“Por favor...”
Shizu atacava, mas o espadachim era rápido. Desviava dos golpes
com tal destreza e naturalidade que parecia prever os movimentos do
shenlong. Shizu, por sua vez, não perdia a calma e intensificava as
investidas. Seus ataques eram firmes. Os pés e punhos se projetavam
contundentes contra o adversário. O espadachim não revidava. Esquivava-
se com habilidade, realizando movimentos fluídos. Eu nunca vira algo
assim. Seus pés se deslocavam como se estivesse numa dança. Era cada vez
mais claro que nenhum dos dois usava toda a força. Apenas estudavam um
ao outro. Ainda assim, eu vira Shizu derrubar oponentes muito maiores com
bem menos. Aquele espadachim não era um qualquer. E Shizu sabia disso.
Fiz menção de entrar na luta, mas ele ordenou que eu recuasse.
O monge investiu contra o intruso mais uma vez. O espadachim,
percebendo o avanço, mudou de postura, expondo todo o lado esquerdo.
Então, como se de súbito entendesse algo, Shizu refugou, saltando para trás.
Por que ele havia feito aquilo?
O monge abriu um sorriso que foi retribuído pelo espadachim.
Eu nunca vira Shizu recuar antes.
“Está bem”, disse o espadachim. “Se quer tanto assim lutar, vou
satisfazer seu desejo”.
Ele acertou a postura, a mão direita firme sobre a espada
embainhada.
Nili arremessou o bastão improvisado para Shizu.
O espadachim aguardou o movimento do shenlong. Eu sabia que
Shizu procurava uma brecha para o ataque. Podia sentir a tensão entre os
dois. Cada um respondia ao mínimo movimento do outro.
“Parem já com isso!”
A voz ressoou grave pelo pátio. Virei-me e vi Abade Kame, que
vinha a passos ágeis pelos portões. Aga estava logo atrás.
“O que está acontecendo?”, perguntou.
“Um intruso, mestre”, falei.
Abade Kame apertou os olhos, como se tentasse identificar quem
era.
“Você”, disse, se dirigindo ao espadachim. “Por que está aqui?”
O velho monge disse algumas palavras ao ouvido de Shizu que logo
mudou de expressão. Sem demora, pediu desculpas ao homem com uma
mesura rígida.
“Não tem problema, não tem problema”, respondeu o espadachim
sorrindo, enquanto devolvia a espada ao cinto. Em seguida virou-se para o
abade. “Trago uma mensagem da Ordem da Lótus”.
O chefe de Shanjin ponderou as palavras.
“Venha, vamos conversar lá dentro”, disse. “Vocês também. Aga,
peça a Sarujin que nos encontre em minha sala.
Aga assentiu e mais uma vez correu pelo portão.
A Ordem da Lótus. Eu já ouvira o nome antes, mas naquele
momento não conseguia lembrar o que era. Atravessamos o pátio interno,
onde outros shenlongs iniciavam as tarefas diárias. O dia estava quente e o
céu claro. O calor era um intruso naquela época do ano quando o frio já
deveria ter chegado. Eu torcia para que continuasse assim. Não gostava do
inverno. Raramente nevava em Shanjin, porém a montanha trazia um vento
que gelava até os ossos.
Na entrada do templo, Shizu fez menção de recolher a espada do
visitante, contudo, Abade Kame disse não haver necessidade. Viramos à
direita no salão de entrada, até a Câmara do Céu. Ali, a estátua de Heiwa
em prata e bronze nos observava. No canto oposto, dezenas de pequenas
almofadas estavam dispostas lado a lado no chão. O sol entrava pela janela,
filtrado pelas cortinas douradas, banhando de luz os pés da figura de mais
de cinco metros. Sentado, o pai dos deuses erguia a mão direita aos céus
enquanto a esquerda repousava sobre o ventre. Seguimos pelo corredor
formado entre a imagem e as almofadas, em direção às escadas.
Ao chegarmos à sala, no segundo andar, Abade Kame pediu que
todos se acomodassem. Nili e eu preferimos ficar de pé. Shizu e o
espadachim se dirigiram às poltronas, desviando dos livros e instrumentos
de aparência frágil amontoados por toda parte. Eu nunca me sentia à
vontade naquele lugar. Recendia a canela, anis e folhas de artemísia. Não
era uma sala grande, embora, possivelmente, fosse bem maior do que
aparentava. Havia coisas demais ali.
A chaleira apitava no braseiro. O abade foi até o móvel de boticário
e retirou um punhado de ervas de uma das inúmeras gavetas. Durante
alguns instantes, o velho monge se esqueceu completamente de todos,
absorvido pelo ato de despejar as folhas secas na água. Mexeu a infusão
com esmero antes de servir o chá a cada um de nós. O espadachim foi o
único a recusar. Perguntou se não havia algo quente para beber. A atitude
irritou Shizu. No entanto, o abade riu e em seguida pegou a garrafa de
cerâmica da estante atrás da mesa.
Quando Sarujin entrou na sala, Abade Kame fez sinal para que se
juntasse a eles.
“Antes de mais nada”, disse o abade, “gostaria de pedir desculpas
pela recepção”.
“A culpa foi toda minha”, disse o espadachim. “Sei que devia ter
anunciado minha chegada, mas, infelizmente, uma série de razões me
impedem, espero que compreenda. Ainda assim, a mensagem que trago é
urgente, não podia esperar”.
O velho monge tomou um gole do chá, aguardando que o homem
continuasse.
“Não há como dizer isto de outra forma, então serei direto”,
prosseguiu o espadachim. “O imperador planeja atacar Shanjin”.
“Isso é impossível”, disse Shizu. “Que motivos ele teria para isso?
Além do mais, a localização do templo é secreta, ninguém, exceto um
shenlong, conseguiria chegar até aqui”.
Ele tinha razão. Teoricamente essa era a verdade. Contudo, bem ali,
na frente deles, estava um homem que não era um shenlong e havia
chegado ao templo. O que mais me intrigava era que tal fato não parecia
importante para Abade Kame e os outros. Comentei baixinho com Nili que
me respondeu que talvez o espadachim também fosse um shenlong. “
Talvez venha de outro templo”, disse. Eu também considerara a hipótese,
mas cada vez menos parecia provável. Sabia das diferenças entre os
shenlongs dos quatro templos. E aquele homem não tinha qualquer traço de
um monge.
“Confesso que também não sei como fariam para burlar a Barreira”,
disse o espadachim, “mas o Império tem seus métodos”.
Abade Kame não expressava reação. Era difícil ter certeza se ao
menos ouvia.
Shanjin ameaçada pelo Império? A ideia era inimaginável. Eu ouvia
tudo aquilo como se discutissem alguma história fantástica.
“Tudo bem que Tensui Marumori nunca gostou dos shenlongs”,
disse Sarujin. “Todo mundo sabe que sua adesão à Doutrina é mera fachada.
Mas daí a destruir um dos Templos? Vivemos longe dos assuntos do
Império. Não nos metemos em política, nem tomamos partido. Por que o
imperador faria isso?”
“Ainda não sabemos. Mas tenho uma suspeita pessoal”.
Shizu perguntou qual seria.
“Isso direi apenas a Abade Kame. Ele pode escolher com quem
compartilhar a informação, mas a decisão é dele. Da forma como vejo,
quanto menos souberem melhor”.
“Em Shanjin todos somos irmãos”, disse Abade Kame, finalmente.
“E como irmãos não temos segredos. Deve dizer aqui tudo a que veio”.
O espadachim fitou o abade com interesse.
“Está bem”, disse, se ajeitando na poltrona. “Acredito que o
imperador esteja atrás dos Tomos das Formas”.
Na mesma hora, todos voltaram a atenção para o abade. A princípio,
ele apenas anuiu. Então, passados alguns instantes de completo silêncio, foi
até a janela. Shizu ia se levantar, mas Sarujin o conteve. Se aquilo era
mesmo verdade, a situação era muito mais séria do que se poderia imaginar.
Shanjin tinha pouco mais que cem monges, talvez cento e cinquenta, se
contássemos as crianças. Por mais que muitos fossem artistas marciais
habilidosos, não seríamos capazes de conter um ataque imperial. As tropas
do Império eram famosas por seu poder de destruição. Mesmo a mais
simples das guarnições superaria em muito a quantidade de monges no
templo. Eu nunca as vira em ação, mas ouvira histórias. Histórias que
falavam de soldados-demônios com chamas frias no lugar dos olhos.
Evidente que serviam apenas para espalhar o medo. Há muito eu aprendera
que os homens eram os verdadeiros demônios. Ainda assim, a tarefa era
quase impossível. A Barreira, certamente, nos protegia, mas se os soldados
tinham meios para transpô-la, o que poderíamos fazer? Nem mesmo a Lótus
era páreo para o Império. Foi então que me dei conta. Sim, a Lótus, agora
me lembrava, a Ordem da Lótus, aqueles que ainda resistiam ao imperador
Tensui. Os descendentes dos Antigos, filhos de um tempo apagado da
memória de quase todos. Então, aquele espadachim era um deles? No
entanto, mesmo eles, o que poderiam fazer? Desde a época dos Três Reinos
sua força apenas diminuía, derrota atrás de derrota, ao ponto de hoje toda a
Ordem ter se tornado um mero boato. Muitos nem ao menos acreditavam
que ainda existisse.
Como poderiam proteger Shanjin? Proteger o Tomo das Formas?
Era do livro sagrado dos shenlongs que estávamos falando . O abrigo do
Shendo, as leis do caminho, trazidas ao templo pelas mãos do próprio
Wudan Sanfeng; além de todo o conhecimento adquirido pelos monges
durante séculos: as formas do estil o shejiao , ou pés-de-serpente, como
frequentemente era chamado ; os conhecimentos sobre astronomia,
matemática, medicina e herbologia; as técnicas de meditação, controle e
mapas de fluxo de chi. Tudo. Se o templo era o corpo físico de Shanjin, o
Tomo das Formas era seu espírito. A ideia de tê-lo removido era
assustadora. Seria a ruína do monastério. Nossa ruína.
Ao meu lado, Nili parecia prestes a entrar em pânico.
“A Ordem da Lótus está pronta para ajudá-los”, continuou o
espadachim. “Podemos enviar tropas para defender o templo”.
Abade Kame sorveu um gole de chá. Lá fora o dia continuava
agradável. As poucas nuvens no céu eram embaladas como ilhas brancas no
mar. Contudo o cheiro úmido no vento traía a calma aparente. Iria chover.
“Proteger Shanjin é dever dos shenlongs”, disse o abade, tranquilo,
depois de considerar as palavras do espadachim. “Agradeço sua oferta, mas
podemos cuidar de nossos assuntos. Não queremos nos envolver em
conflitos, muito menos tomar partido em questões políticas. Durante mais
de mil anos Shanjin esteve em Linshen, a Montanha da Floresta, e se
depender de nós, continuará por mais mil”.
O espadachim terminou sua bebida num só gole.
“Vocês, shenlongs, são todos iguais”, disse, sorrindo, sem qualquer
agressividade nas palavras. “Em Taojin, Abade Taisen disse a mesma
coisa”.
Ele se levantou.
“É uma pena. Mas saiba que nunca escolhemos onde o incêndio irá
queimar. A oferta estará sempre de pé, acredite. Não vamos deixar que
Shanjin seja destruído”.
“Nós também não”, respondeu Abade Kame.
O espadachim uniu a mão direita sobre o punho esquerdo fechado: o
cumprimento característico dos shenlongs. Nós retribuímos o gesto.
“ Mayar ti tao ”, disse.
“ Mayar ti tao ”.
Abençoado seja o caminho . Se tudo aquilo fosse verdade, o voto
seria mais necessário do que nunca dali em diante.
Nós o acompanhamos até a saída de Shanjin.
“Envie pelo menos uma lebre para os outros Templos, Kame”, disse
o espadachim em frente ao portão. “Se não querem nossa ajuda, talvez
vocês monges possam ajudar uns aos outros.”
Abade Kame sorriu em resposta.
Observamos o homem se afastar pelo Caminho da Serpente com os
mesmos passos tranquilos que o haviam trazido a Shanjin.

Os treinos se intensificaram nos dias seguintes. Shizu estava mais


severo que nunca; o que, para mim, significava sofrimento. Alguns,
inclusive eu, reclamaram, mas a pancada que levei na perna em resposta foi
suficiente para que ficasse quieto. O golpe doeu por semanas. Naquele
mesmo dia, Shizu me fez ficar em postura baixa por várias horas. Minhas
pernas queimaram de dor e houve momentos em que achei que iria
desmaiar. Eu sabia que ele estava fazendo aquilo para me envergonhar na
frente dos outros. Em se tratando de treinamento, Shizu era louco, ainda
mais quando tinha a liberdade de fazer o que quisesse. “Temos que estar
preparados”, ele dizia em justificativa. Se eu não aguentasse, Shizu não me
daria paz. Então, aguentei. Naquela noite quase não dormi em virtude da
dor. Só tive um pouco de alívio depois de usar o remédio que Nili pegou da
dispensa de mestre Gao.
“Você é louco”, ele disse. “Deveria ter desistido, sabia que era isso
que mestre Shizu queria. Como vai treinar amanhã?”
Eu não respondi. Também não sabia como iria treinar no dia
seguinte, mas daria um jeito. E dei. O remédio deve ter ajudado. Pois, na
manhã seguinte, a dor ainda era intensa, mas ao menos eu conseguia andar.
Os treinos das crianças foram interrompidos. Até segunda ordem,
teriam apenas aulas teóricas e estavam proibidas de sair do templo. Os mais
velhos foram alocados como ajudantes em qualquer atividade que
precisasse deles. Sarujin tinha agora a missão de reforçar a estrutura de
segurança do templo. Ele me escolheu como seu assistente. Minha primeira
tarefa foi recrutar voluntários para ajudar na expansão dos muros, o que foi
bastante fácil. O trabalho era duro, mas certamente bem mais interessante
que as tediosas tarefas diárias do templo. Além disso, Sarujin sempre
mantinha o espírito elevado, fazendo piadas e brincadeiras, e ainda
recebíamos uma refeição extra. Ao todo, reunimos mais de trinta monges.
Aga era um deles. Foi um dos primeiros a aceitar a oferta, feliz por deixar
por um tempo o trabalho na cozinha, onde, segundo ele, as condições eram
desumanas. “É quente demais e a louça sempre sobra para mim. Você tem
que ver o que os outros fazem enquanto cozinham. Bando de porcos”,
reclamava. Já Nili não podia deixar o posto de assistente de abade Kame,
porém também reclamava que o trabalho havia aumentado.
“Ele enviou lebres aos outros templos?”, perguntei a Nili,
lembrando-me das palavras do espadachim. Duas semanas haviam se
passado desde então e estávamos deitados no Jardim da Montanha,
esperando Aga para almoçar.
“Sim. Uma a Yujin e outra a Taojin”.
“Será que virão?”
“Abade Kame acha que não. Disse que Taojin fica longe demais e
que os shenlongs de Yujin são fechados demais”.
“E quanto a Huanjin?”, perguntei.
“Não faço ideia”, respondeu Nili.
Eu tentava imaginar como seriam os shenlongs dos outros templos.
Sabia que não tinham yantras , pois eram exclusivas dos monges de
Shanjin. No entanto, certamente deveriam ser muito habilidosos. Ouvira
histórias sobre eles. Histórias inclusive sobre os feitos dos shenlongs de
Taojin, berço do poderoso estilo longquan, o punho-do-dragão. Será que
viriam a Shanjin? Por um lado, a possibilidade me animava, mas por outro,
eu preferia que as circunstâncias fossem diferentes. Shenlongs estrangeiros
em Shanjin significava que a chance de sermos atacados era grande.
Pessoalmente, mesmo com ajuda, eu achava pouco provável que
conseguíssemos conter o exército imperial.
Shanjin não era uma fortaleza, muito pelo contrário. Os muros eram
baixos, facilmente transponíveis. O trabalho de Sarujin era reforçar as
defesas do templo e para isso ele planejava erguer um segundo muro, feito
de madeira, com o dobro da altura do atual. Árvores não faltavam. Além
disso, a floresta crescia próxima ao templo por todos os lados; seria bom
que houvesse um pouco de espaço livre para avistar qualquer um que se
aproximasse. Shanjin era como uma joia de pedra encrustada no coração de
Linshan, a Montanha da Floresta. A área era tão vasta que sempre pensei
que mesmo que não houvesse a Barreira, qualquer um que tentasse chegar
ao templo sem saber o caminho, acabaria perdido.
“Se me permite dizer, mestre, acho que vai ficar horrível”, eu disse a
Sarujin quando ele me mostrou o projeto dos muros, desenhados num
grande pedaço de pergaminho.
“Temos que ser práticos, Mu”, ele respondeu. “Essa é a forma mais
rápida. Não estou preocupado com a beleza”.
“Sim, mas vamos perder toda a vista da floresta. Hoje dá para ver as
árvores sobre o muro”.
“Se quiser ver as árvores, vá lá fora”.
Expliquei a Sarujin como eu gostava de ficar no Jardim da
Montanha e observar as copas que surgiam acima do muro dos fundos. Com
a nova estrutura, muito mais alta, não daria para ver nada. Ele não deu
importância e disse ainda que se eu queria tanto olhar para a floresta,
poderia me conseguir um lugar cativo numa das torres de vigia. “Posso
garantir que você sempre passe a noite numa delas”, disse, depois saiu,
rindo sozinho da própria esperteza.

***

A construção do muro avançava bem, exceto pelas chuvas. O


outono era complicado. Sempre chovia forte. Às vezes conseguíamos
trabalhar; outras, era impossível e perdíamos o dia. Nessas horas,
simplesmente torcíamos para que pelo menos a água não arruinasse o que já
havia sido feito.
Numa dessas ocasiões, a tempestade foi tão forte que derrubou toda
uma sessão do novo muro, já praticamente finalizada. Faltava apenas
reforçar a sustentação. Aquilo nos custou quase duas semanas de trabalho
para refazer. Aga ficou tão irritado que queria desistir e voltar a trabalhar na
cozinha. Tive de convencê-lo a ficar. Ainda por cima, ele reclamava que a
comida do templo havia piorado depois que deixara seu antigo posto. Para
os outros monges e eu, continuava igual como sempre. “Está sem sabor”,
Aga insistia. Foi até reclamar com Fae, o monge que o havia substituído
como ajudante. O garoto não tinha mais que quinze anos e chegara ao
templo há menos de um.
Percebi que para Aga, assim como muitos ali, a construção do muro
era apenas um trabalho como outro qualquer. Na verdade, a maioria não
estava preocupada com a possibilidade de um ataque. “Se quer saber, não
acho que vai haver ataque algum. Tudo isso é perda de tempo. O
espadachim queria que nos juntássemos aos rebeldes, isso sim”, ele disse,
enquanto jantávamos certa noite. Depois olhou para os lados para ter
certeza que não havia ninguém ouvindo. “O pessoal do alojamento ouviu
Shizu dizer que já faz algum tempo que a Ordem da Lótus vem tentando
convencer os monges a lutar contra o imperador”.
Nili assentiu, sem tirar os olhos do livro. Mas eu sabia que ele não
prestara atenção. Desde a visita do espadachim, ele pesquisava maneiras de
burlar os efeitos da Barreira. Estava obcecado com o assunto. “Você sabia
que todos os Quatro Templos têm Barreiras? Que todas foram criadas pelo
Fundador, Wudan Sanfeng?” Tínhamos que ouvi-lo a cada nova descoberta.
Ainda assim, até o momento, ele não havia encontrado nada que explicasse
como evitar a Barreira.

Os dias seguiam. Pela manhã meditávamos antes mesmo do sol


nascer. Logo após o café, seguíamos para o treino de Shizu. A seguir, mais
meditação e, à tarde, depois do almoço, trabalhávamos no muro até o fim
do dia. Dois grupos grandes se revezavam: um fazia o trabalho pela manhã;
e o segundo, do qual Aga e eu fazíamos parte, continuava no período da
tarde. À noite revezávamos entre aulas de astronomia, medicina, herbologia
e matemática, com mestre Gao. Às vezes, Shizu nos obrigava a fazer um
treino noturno. Contudo, Sarujin logo interveio junto a abade Kame,
alegando que com mais aquela prática, em breve não sobraria ninguém para
trabalhar na construção do muro.
O ritmo era pesado, e depois de algum tempo eu já não aguentava
mais. As atividades me deixavam tão ocupado que pelo menos não tinha
muito tempo para pensar em Ruk. Quando nos davam qualquer folga, eu só
queria descansar. Nunca nos deixavam dormir o dia inteiro, então eu ia para
o Jardim da Montanha e lá deitava sob a paineira branca, observando as
árvores e o céu. Conforme o muro era erguido, eu tinha que me virar cada
vez mais para ver as árvores, até que restou apenas o céu e a paineira do
jardim.
Sentia falta da vida de antes em Shanjin. Antes tínhamos mais
tempo livre e nos enfiávamos na floresta em busca de castanhas selvagens.
Antes plantávamos as amoras-de-outono que o pessoal da cozinha usaria
para fazer geleia e biscoitos. Ou, ainda, apenas deitar no jardim mascando
lasquinhas de gengibre enquanto lia. Quando a paineira florescia e os
crisântemos surgiam, fazíamos a festa para celebrar a chegada da
primavera. Em minhas lembranças, tudo parecia mais feliz antes. Naqueles
dias, nem de longe o clima era de tanta cobrança e agitação. Agora não
havia festas, nem mesmo amoras, e todos estavam sempre preocupados. Eu
me perguntava se Shanjin algum dia voltaria a ser como antes.

O muro ficou pronto em seis meses.


O mosteiro parecia agora uma fortificação; bem mais protegido e
seguro que antes. Eu estava parado do lado de fora, observando a estrutura
externa de madeira que ajudara a construir. O novo muro era uma couraça
que se erguia por mais de dez metros, envolvendo todo o templo com
estacas pontiagudas. Atrás dele, a estrutura de pedra se mantinha, e agora
tínhamos todos os portões de acesso em dobro. Era impossível ver o prédio
principal do templo, como antes. A primavera já estava quase no fim. O
trabalho no inverno fora especialmente difícil, com as chuvas que se
iniciaram ainda no outono. Quando o vento da montanha chegou, muitos
quiseram desistir. Grande parte dos shenlongs não via muita finalidade no
trabalho. A principio, a grande motivação fora poder fugir das tarefas do
templo, o dia de folga e a refeição extra; todavia, o estímulo nem de longe
era forte suficiente para resistir à chuva e, principalmente, ao frio. Ainda
assim, Sarujin nos motivou a continuar. É engraçado como, depois de
terminado, todo o esforço não pareceu tão ruim. O projeto estava pronto. E
embora eu não acreditasse que o muro seria suficiente para conter um
exército, sem dúvida, seria muito mais difícil alguém entrar no templo sem
ser convidado. Nili e Aga duvidavam que os soldados imperiais sequer
subissem a montanha, em virtude da Barreira. Mas o espadachim
conseguira, não?
Um dia, questionei Sarujin sobre como ele fizera aquilo.
“Não faço a menor ideia. Ninguém faz. Também não foi a primeira
vez. Ele já viera aqui antes, você ainda nem vivia no templo. Chegou
andando, da mesma forma relaxada, como se fosse de casa. Shizu estava em
viagem nesse dia, ou talvez estivesse no templo, não lembro. Mas
certamente não viu acontecer. Com razão ficou agitado ”.
Agitado era como Sarujin sempre se referia aos momentos
agressivos de Shizu. Perguntei se talvez Abade Kame soubesse.
“Talvez saiba, deve saber, mas não diz. Shizu e eu perguntamos
depois que o espadachim se foi. Você pode tentar ver com ele, Mu. Mas
duvido que vá lhe receber. Abade Kame anda bastante recluso, quase não
sai mais da sala, apenas para visitar Velha Gilga”.
Nili já havia me dito isso. Então me dei conta como quase não vira o
abade nos últimos dois meses. A última vez havia sido há mais de dez dias
quando eu fora entregar os mantimentos de Velha Gilga. Todo dia de
manhã, logo após o treino de Shizu, um de nós ficava encarregado de levar
até a floresta as provisões da anciã. Eu odiava aquilo, e a maioria dos
monges também. Sorteávamos para decidir quem iria. Naquele dia, eu fui o
escolhido.
Cansado em virtude do treino, fui até a cozinha buscar o fardo que
deveria ser entregue. Aproveitei para roubar um dos pães que cozinhavam
no vapor. Fae viu, mas não disse nada. Ao sair do salão do refeitório, ouvi
alguém me chamar. Era mestre Gao.
“Mu, está indo visitar Velha Gilga, não é?”, perguntou.
Quis responder que não chamava aquilo de visita, mas achei melhor
me calar.
“Entregue a ela essas agulhas, por favor. Já tem mais de um mês que
fiquei de mandar e sempre me esqueço”, disse e me entregou uma caixinha
de madeira.
Despedimo-nos, e eu segui em direção à entrada dos alojamentos.
Na oficina, shenlong Wuky, o mestre de armas, colocava para secar os
bastões de primavera, feitos de alfeneiro. Mais dois meses e estariam
prontos. Eu esperava que o meu estivesse ali entre eles. O bastão era a arma
símbolo de qualquer shenlong. Obviamente, cada um tinha sua favorita e
alguns preferiam as mãos livres, como Shizu. Todavia, sem sombra de
dúvida, o bastão era a principal arma de combate dos monges guerreiros.
Shenlong Wuky acenou para mim e retribui o gesto mostrando a ele a bolsa
que carregava. Ele entendeu na hora e começou a rir, emitindo grunhidos
incompreensíveis que era o máximo que conseguia articular, pois era mudo.
Ali no Jardim da Montanha, bem no centro entre os dois prédios do
fundo, vi que as flores brancas da paineira começavam a cair, salpicando o
chão de pontos brancos, como gotas de leite. A grama ainda estava bastante
verde, mas era provável que perdesse a cor viva com o calor do verão. Eu
olhava desanimado para os crisântemos que ladeavam o caminho de pedra
até o centro do jardim. Tudo o que eu queria, naquele momento, era me
deitar ali. Relaxar embalado pelo perfume das flores. No entanto, segui em
frente, saindo pelo portão dos fundos.
A pequena trilha na floresta me levou direto à casa Velha Gilga.
Minhas pernas reclamavam doloridas, como se insistissem para que eu
voltasse ao jardim. Aqui e ali, meus pés afundavam em poças de lama
sobreviventes da chuva do dia anterior. Não queria estar ali, muito menos
encontrar Velha Gilga. Ela sempre me deixava desconfortável. Era como se
aqueles olhos enormes atravessassem a superfície até enxergar o que se
passava no fundo da nossa alma. Uma sensação nada agradável.
Pensava em como abreviar minha visita quando meu pé prendeu
numa raiz no meio da trilha. Caí, ainda tentando equilibrar o fardo com as
coisas, mas não consegui, ou pelo menos não totalmente. A maior parte do
conteúdo permaneceu intacto, embora dois nabos e a caixa de agulha
tivessem caído. A caixa se abriu, espalhando todas as dezenas de pontinhas
de ferro pelo chão enlameado. Agachei para catá-las, tentando não me sujar
mais do que já havia feito. Depois de recuperar quase todas as agulhas, ou
pelo menos assim achava, me levantei. Abade Kame estava parado bem à
minha frente. Ele me olhou com uma expressão perdida. Parecia não me
reconhecer. “Bom dia, Mu”, disse distante e seguiu em frente. Eu o observei
se afastar até desaparecer na trilha.
Segui em frente e ainda estava na porta da cabana quando Velha
Gilga mandou que entrasse. “Deixe as coisas sobre a mesa e venha até
aqui”, disse, sem ao menos se virar. Sentada embaixo da única janela, ela se
debruçava pequena sobre a mesa à frente. O cheiro de especiarias e ervas
tinha um efeito entorpecente. As formas ali dentro recortavam sombras na
luz onírica que invadia a sala. Atravessar a entrada da cabana era como
cruzar um portal místico para outro plano, um lugar etéreo que não
pertencia a este mundo. Sempre me senti assim.
Eu me aproximei como ordenou. Vi sobre a mesa um macaco. Ela
passava um unguento na pata do animal, fazendo uma espécie de curativo.
O bicho tinha uma série de agulhas, como as que eu derrubara na trilha,
espetadas pelo corpo, especialmente perto do curativo. Estava consciente,
os olhos moviam-se agitados, mas o corpo se mantinha estático.
“Pronto”, disse ao terminar. Retirou uma a uma as agulhas e o
macaco voltou a se mover. Ela lhe deu um pedaço de pêssego, e ele, em
seguida, pulou para a janela. “Ele tem medo de mim. Como você”.
Fiquei sem saber o que responder. Não compreendia ao certo se era
medo, embora Velha Gilga gerasse em mim um desconforto. Talvez ela
estivesse certa. Eu lembrava da primeira vez que fora levado ali, ainda
pequeno. Caíra do muro, quebrando o pé durante a comemoração do ano
novo. A mesma sensação de estar num sonho. As mesmas agulhas. O
curativo. Em pouco tempo eu já estava recuperado.
A prateleira ao lado da janela guardava os potinhos com as tintas e a
caixa do cinzel com o qual fazia as yantras. O procedimento não era
realizado ali, mas lá fora, na clareira: uma janela aberta na floresta para o
céu. Era Velha Gilga quem escolhia o dia. Simplesmente lhe diziam quem
seria o shenlong , e ela marcava a data. Preparava a clareira com a tocha, a
cadeira, o incenso, as tintas e o cinzel. Todos os shenlongs vivenciaram o
mesmo na noite de suas yantras. A atmosfera insólita transpunha os limites
da cabana e dominava todo o entorno. O cheiro mudava. O chi mudava.
Embora lúcidos, nos sentíamos anestesiados, quase em transe. Um sonho
onde Velha Gilga dizia apenas uma única palavra. “Cavalo”. Foi a que ouvi
ao final. Talvez ela também entrasse em transe, seus grandes olhos âmbar
iluminados pelo chi, mas era difícil lembrar. Na manhã seguinte
deixávamos a clareira. As costas provavelmente soltavam sangue e tinta,
como continuariam a fazer por alguns dias. Contudo a única lembrança era
o momento do retorno: o sol iluminando o Templo da Montanha.
Eu sentia o desenho coçar como se ainda cicatrizasse. Parado ali,
sem saber o que dizer, queria perguntar se aquilo era tudo, se estava
dispensado, mas as palavras travavam na garganta. Velha Gilga se levantou,
servindo um pouco de chá. Ela me entregou a xícara junto com alguns
biscoitos e foi recolher o material ainda espalhado sobre a mesa.
“Tudo o que fazem é sem sentido”, ela disse, numa voz tranquila.
“Shanjin será destruído”.
A princípio não entendi direito o que queria dizer. Sobre que estaria
falando? Tinha ouvido suas palavras, claro, mas não faziam sentido algum.
Depois achei que talvez ela tivesse finalmente enlouquecido. Mas então,
pensei nos esforços de defesa, na ameaça do exército imperial. Por acaso
era isso? Lembrei-me de Abade Kame, seu olhar perdido, e me perguntei se
ela não dissera o mesmo para ele. Eu achava pouco provável até mesmo que
houvesse um ataque e, mesmo que sim, Shanjin não seria destruído. O
Templo da Montanha tinha mais de mil anos e já havia resistido a dezenas
de ataques ao longo da história.
A lucidez nos olhos de Velha Gilga revelava que sabia exatamente o
que eu trazia nos pensamentos.
“Shanjin será destruído”.
A frase repetida firme pareceu gravar-se em minha mente,
reverberando até desvanecer.
Assustado, agradeci o chá, saindo de lá o mais rápido que pude. No
entanto, dali em diante, aquelas palavras de Velha Gilga se tornariam meu
pesadelo.
Shanjin será destruído.

***

No dia em que o muro ficou pronto, mestre Kame convocou todos


ao refeitório.
Parecia bem melhor que da vez na trilha. O sorriso voltara ao rosto,
e os olhos estavam mais leves. Agradeceu o esforço de todos,
parabenizando-nos pela rápida adaptação à nova rotina e, ao final, ressaltou
a importância do novo muro.
“Sei que vivemos um momento de incerteza. Porém, é nessas horas
que Heiwa espera que os shenlongs provem seu valor. Sejamos firmes como
as raízes da montanha. Preparados para tudo, mas sem nos esquecermos de
cultivar a harmonia”.
“ Mayar ti tao ”, saudaram os monges.
Logo depois, Abade Kame se retirou. Eu me perguntava se ele sabia
de algo a mais que não quisesse nos revelar. As palavras de Velha Gilga me
perseguiam. Não contara a ninguém sobre o encontro, nem a Nili e a Aga, a
quem eu teria dito qualquer coisa. Não queria ter que falar sobre aquilo.
Nas semanas seguintes, Sarujin e Shizu definiram os grupos que
seriam responsáveis pela segurança do templo. Revezariam em turnos, tanto
na guarda do perímetro quanto na torre de vigia. Quase todos os shenlongs
foram escalados. Nili e Aga ficaram no mesmo grupo, e eu em um
diferente; o que era bem ruim, pois agora nossos horários eram totalmente
distintos. Apenas nos encontrávamos nas refeições. Para mim, Shizu havia
feito de propósito, ainda por conta da minha reclamação no treinamento.
Nili e Aga acharam que eu estava exagerando. “Shizu tem muito mais com
o que se preocupar, Mu”, disse Nili. “Exato”, concordou Aga. “Até porque
não acho que ele tenha se irritado de verdade”. Talvez tivessem razão.
Mesmo assim, existindo ou não um motivo, odiei a decisão.
Conforme os dias passaram, nos adaptamos à nova rotina. Não
tínhamos mais que construir o muro, mas os horários da guarda acabavam
compensando. As aulas com as crianças foram retomadas, e Sarujin me
deixava cada vez mais no comando, já que ainda estava muito envolvido
com o projeto de defesa.
Shenlong Wuky recebera novos ajudantes na oficina, que estava
sendo expandida. Abade Kame, inclusive, mandara trazer o ferreiro de Vila
da Mata para ajudar na produção de armas e ensinar as técnicas de
metalurgia que shenlong Wuky não dominava. Armas de metal não eram
produzidas em Shanjin até então. Em geral, as armas desse tipo foram
trazidas ao templo pelos monges, de suas viagens. Assim, agora também
treinávamos com a lança. Pessoalmente, gostei da nova arma, mas no fim
ainda preferia o velho e tradicional bastão.
Ganhara o meu havia poucos dias. Ganhar é uma palavra estranha,
uma vez que eu mesmo o fizera a partir da madeira de um alfeneiro.
Shenlong Wuky me instruíra durante o processo e o resultado não havia
ficado tão ruim para uma primeira vez. Depois de alguns meses, voltei lá
para que me entregasse a arma, com direito à cerimônia, ainda que bem
simples e improvisada. Levei as crianças para aprender como um bastão era
feito e sua importância para os shenlongs.
Gravei meu nome nele e, desde então, o carregava comigo para onde
fosse.
Shizu mantinha o ritmo intenso de treinos, mas estávamos cada vez
mais adaptados. Sentia-me mais forte. A seu pedido, carne fora
acrescentada às refeições e isto também ajudava. Treinar era uma tortura
apenas nos dias seguintes à vigia noturna, quando eu quase não dormia.
Na época em que Sarujin concluiu o plano de defesa, uma guarita
foi instalada no Caminho da Serpente, próxima à Vila da Mata. Assim, caso
alguém tentasse subir para Shanjin por ali, uma lebre seria enviada com o
aviso. Nenhum de nós gostava de ficar lá embaixo e, como para as visitas à
Velha Gilga, também sorteávamos. Graças a Heiwa, eu ainda não havia sido
escolhido. Aga fora duas vezes. Nili uma.
Os shenlongs de Shanjin estavam preparados. Contudo, a ameaça
não veio.
Os meses seguiram seu curso e um novo inverno chegou e se foi.
Aos poucos, a vida em Shanjin voltou ao normal.

Certa noite, eu me encolhia embaixo da manta na torre de vigia sul,


lutando contra o resquício do inverno. Dali, observava o mar escuro de
árvores, onde um único vagalume piscava. Um arauto singelo que
contrariava o frio, revelando a nova estação. Em meio ao que sobrara dos
troncos na clareira aberta, ele era como uma estrela diminuta. Pequenos
ramos apareciam nos pontos na terra onde a vida fora ceifada - logo
teríamos que apará-los novamente. Meus olhos já pesavam de sono quando
ouvi a voz reclamar atrás de mim:
“Odeio esse frio”.
Virei-me e vi Sarujin surgir pela escada. Ele veio se sentar ao meu
lado enquanto esfregava as mãos uma na outra.
“Gosta da vista?”, perguntou.
“Até que não é ruim”.
Observávamos a floresta à frente e por algum tempo ficamos em
silêncio.
Aquilo era algo incomum entre nós. Um misto inusitado de
inquietação e acolhimento. Por um lado, eu sempre me sentia à vontade
com Sarujin. Por outro, era evidente o desconforto. Sem dúvida ele estava
ali por algum motivo, no entanto, estranhamente, o sempre direto Sarujin,
se mantinha calado. Lá fora, o vagalume era uma pequena e intermitente
gota luminosa suspensa no ar.
“Você ainda têm o rosário?”, por fim, ele perguntou.
“Como?”
“O rosário, aquele que dei para você e Ruk. Você ainda o tem?”
“Sim, está guardado no quarto”, respondi sem jeito.
“Que bom”, Sarujin disse, satisfeito. “Você lembra de quando nos
conhecemos? Lembra que vocês tentaram roubar minhas moedas e lhes
contei sobre o meu rosário?”
Ele sorriu, enquanto me mostrava seu cordão de pedras castanhas. E
eu também sorri.
“Você acha que ele está bem, mestre?”, perguntei, depois de um
novo silêncio.
“Ele sabe se cuidar”.
“Mas também sempre foi imprudente”, eu disse. “Às vezes me pego
pensando o que poderia ter feito para evitar o que aconteceu. Naquela noite,
na cerimônia, pensei em intervir. Nos dias seguintes passei a me perguntar
por que não havia feito nada. Cheguei até a pensar em ir atrás dele. Juro.
Mas não consigo.”
Ele se demorou, mexendo as contas do rosário entre os dedos, antes
de dizer:
“Sabe Mu, por um bom tempo sofri pensando que fomos muito
severos ao expulsar Ruk. A expulsão é a maior punição dentro do shendo .
Todos têm conhecimento das idas à Vila da Mata, você sabe disso. Então,
mais cedo ou mais tarde, aconteceria algum problema. Já poderíamos ter
impedido os monges de descerem à vila, não acha? Mas sabe por que não
fazemos?”
Fiz que não com a cabeça.
“Livre-arbítrio, Mu”, ele disse. “O caminho de Heiwa é o caminho
de paz, harmonia e liberdade. Cada um de nós escolheu estar em Shanjin. É
uma escolha. Ninguém é obrigado. Se estamos aqui é porque de alguma
maneira queremos vivenciar os ensinamentos. Ao mesmo tempo, somos
diretamente responsáveis por nossas ações. Por isso treinamos a mente e o
corpo. Para desenvolvermos nossa capacidade e não nos deixar pressionar
pelas forças do mundo. Para que possamos ser livres”.
“Mas a liberdade de um shenlong é limitada pelas leis, mestre. Pelo
shendo” .
Sarujin sorriu.
“O shendo é algo que deve ser cultivado dentro de nós,
independente de onde estivermos. O caminho do espírito, isso é shendo.
Justamente por isso, permitimos aos monges que saiam. Talvez, nesse
aspecto, Shanjin seja o mais flexível dos Quatro Templos. Para nós não
importa se o monge consome carne, bebe ou se diverte. Para nós o
importante é o que traz no coração. Em qualquer lugar, Mu, devemos
sempre ser Shanjin ” .
“Ruk insistiu que foi um acidente, que apenas se defendeu”, eu
disse, pois de certa forma suas palavras pareciam reforçar que haviam sido
severos demais.
“Em sua conduta, Ruk assumiu os riscos. Ele era treinado e
conhecia a lei”, disse Sarujin. “Abade Kame é um homem sábio e justo. Ele
viu o que Ruk viu, o que trazia na mente”.
“E o que foi, então?”
“Não sei. Ele não contou a ninguém. Mas confiamos em seu
julgamento. E eu também passei a aceitar”.
“Queria apenas que tudo voltasse a ser como antes. Ainda assim, às
vezes me pego pensando que talvez tenha sido melhor para mim que ele
tenha ido. E me sinto horrível por isso.”
Eu olhava para ele em busca de algum alento. Era como se algo me
consumisse por dentro; um desconforto, uma dor, culpa. Sim, culpa. Uma
sensação que eu lutava em reprimir. Queria que Sarujin me libertasse. Que
suas palavras me redimissem. Bem lá no fundo, queria ouvir que Ruk era o
culpado, somente Ruk. Mas ele não disse nada disso.
Ele olhava para a floresta.
“Criei vocês como meus filhos. Mesmo sem deixar de lado minhas
obrigações como shenlong, sempre tentei orientá-los. Em alguma parte
desse caminho, falhei. Não me sinto culpado pelas mortes que Ruk foi
responsável. Esse karma é dele. Porém, talvez pudesse tê-lo guiado melhor.
Esse é o meu. Karma é a lei do universo. Assim como o chi permeia tudo, a
sabedoria de Heiwa também está em todo o lugar”.
Sarujin virou-se para mim. E tive a impressão de que ele
compreendia.
“Todos temos um potencial autodestrutivo, Mu. Em maior ou menor
grau, é algo presente em qualquer pessoa. Às vezes conseguimos canalizar
essa energia de maneira positiva. No entanto, quando sucumbimos ao
impulso, talvez a maior caridade esteja em não levarmos ninguém
conosco”.
Então Sarujin se levantou.
“Não se sinta culpado, Mu. Queria ter lhe dito isso há muito tempo”
Eu não sabia o que responder. Ainda assim, as palavras me
trouxeram conforto. Queria dizer algo, talvez dividir com ele o que a Velha
Gilga havia dito. Mas, antes disso, Sarujin começou a descer as escadas.
“A propósito”, comentou ao se despedir, “seus amigos estão vindo
aí. E trazem boas notícias”.
Logo eu ouvi as vozes que sussurravam lá embaixo. Debrucei-me
sobre o parapeito, vendo Sarujin descer as escadas, enquanto Aga e Nili se
aproximavam vindos do alojamento. Foram pegos de surpresa ao se deparar
com o monge; o que tentaram disfarçar com um cumprimento exagerado.
“Achei que Sarujin fosse nos advertir por estarmos fora do
dormitório”, disse Aga logo que chegaram à torre. “O que ele queria, Mu?”
Eu dei de ombros. Não queria falar sobre o assunto.
Nili pareceu entender.
“Passar a noite aqui é ruim, mas eu gosto da vista”, disse, mudando
de assunto.
“Que vista?”, Aga quis saber. “Está tudo escuro, não se vê nada”.
“Dá para ver aquele pontinho de luz ali”, brinquei. “Um vagalume”.
Ele virou os olhos. Em seguida, Nili mandou Aga abrir o embrulho
que haviam trazido. Estava repleto de comida. Frutas, pães, queijo e até
uma pequena torta de frango ainda quente. Nili retirou do hábito uma
moringa de bambu cheia de chá.
“Aga ficou amigo de Fae, o assistente da cozinha”, explicou.
“Achei que não gostasse dele, Aga”.
“Ah, é um garoto esperto”, respondeu, sem dar importância. “Além
do mais, depois que o ajudei com algumas dicas, ele ainda me deve favores.
Reparou como os pães melhoraram?”
Concordei, mas na verdade não fazia a mínima ideia.
Nili serviu o chá em tigelas com fatias de laranja. Tomei um gole
acompanhado de um pedaço de queijo.
“Só não entendi a que devo a honra da visita”, eu disse. “Por mais
que me agrade, se forem pegos vamos passar um mês limpando a cozinha,
sabem disso. Ainda mais se descobrirem que andam roubando comida”.
“Ninguém vai saber”.
“Sarujin sabe”, eu disse.
“É só dessa vez. Uma ocasião especial”, acrescentou Nili.
“Por quê?”, perguntei, mas já suspeitava qual seria a resposta.
“Aga vai fazer sua yantra daqui a três dias. Temos que comemorar”.
A confirmação da notícia era fantástica. Olhei para Aga que não
conseguia conter o sorriso. Eu o parabenizei e durante algum tempo
tentamos adivinhar qual seria seu animal. Ele mesmo não conseguia opinar.
“Talvez seja um gato ou lebre, Aga é muito ágil”, disse Nili.
“Realmente uma lebre combina, mas também é um dos mais fortes.
Talvez um touro”.
“Pode ser, mas nunca dá para saber o que Velha Gilga vai decidir”.
“Se é que é ela mesmo quem decide”, disse Aga. “Já viu como os
olhos dela ficam quando usa o chi ? Parecem duas lanternas. Para mim, ela
incorpora um espírito da floresta, e é ele quem decide qual vai ser” .
“Lá vem você outra vez com essa história de espírito da floresta”, eu
disse. “De qualquer forma, nunca imaginei que a minha seria um cavalo”.
A perspectiva de Aga conseguir sua yantra me animou tanto que até
me senti mais leve. Nili e eu tínhamos as nossas, e agora Aga teria também.
Nili fora o primeiro. O carneiro de chifres longos gravado em suas costas
combinava com ele: inteligente, mas ao mesmo tempo pronto para a luta se
fosse necessário”.
“Hoje celebramos a notícia”, disse ele. “A comemoração oficial será
amanhã”.
Sorri, pois já sabia o que viria a seguir.
“Nós vamos à Vila da Mata”, disse Aga, empolgado.
Aquilo virara uma tradição. Começou quando Ruk recebera sua
yantra , depois com Nili e também na minha vez. Sempre nós quatro.
Agora, nós três. Obviamente, as outras vezes haviam sido antes do
incidente com Ruk, mas com o passar do tempo a desconfiança dos
moradores da vila arrefeceu, e sabíamos que alguns monges voltaram a
frequentar o local.
Terminamos de comer, e os dois se foram. Eu voltei a me encolher
sobre a manta. O vagalume solitário havia desaparecido. Pensar nos meus
amigos e na perspectiva de ir à Vila da Mata me trouxe um conforto como
há muito tempo não sentia. Contudo, havia em minha mente um incômodo
constante. Um desconforto, como o de uma pequena ferida que custa a
sarar, sempre presente. Ouvia no fundo dos pensamentos o murmúrio que
dizia:
“Shanjin será destruído”.
Parte III

Na noite seguinte, depois que as últimas luzes se apagaram, eu saí


do alojamento. A lua ia alta e não fazia tanto frio. Circundei o Jardim da
Montanha, em direção ao corredor lateral do outro lado. Os shenlongs de
guarda nas torres de vigia provavelmente me viram, mas eu sabia que não
diriam nada. Em outras épocas, eu teria simplesmente pulado o muro em
direção à floresta. Agora se tentasse saltar o primeiro, daria de frente com o
segundo, bem mais alto e com pontas no topo. Assim, não havia outra
alternativa a não ser sair pelo portão da frente. Cruzei o pátio interno,
trazendo comigo o bastão de alfeneiro e a bolsinha que continha algumas
garças-de-bronze. O dinheiro não era muito, mas daria para pagar pelo
menos uma rodada de vinho de gengibre. Também usava meu rosário –
depois da conversa com Sarujin, voltara a carregá-lo comigo. Não havia
ninguém nos portões, o que me pareceu estranho. Saí para o pátio externo,
em direção à floresta. Nili e Aga me aguardavam próximos ao Caminho da
Serpente. Perguntei porque não havia ninguém lá atrás. Aga me disse que os
monges do turno consentiram em deixar o caminho livre por alguns
instantes. “Concordam que devemos celebrar”. Parecia especialmente
animado. Eu sabia bem o que estava sentindo. Também vivi o mesmo misto
de ansiedade e euforia quando segui para fazer minha yantra, embora
tentasse afastar da cabeça a parte desagradável de passar a noite toda
sozinho com Velha Gilga na floresta.
Seguimos pelo Caminho da Serpente. Levaria quase duas horas para
descermos até Vila da Mata. A volta era ainda pior: mais de três horas de
subida. Certa vez, na vila, eu exagerara no vinho de gengibre de tal forma
que Aga e Ruk tiveram que me carregar por mais da metade do caminho.
Quando chegamos em Shanjin, eles me esconderam na floresta quase até de
manhã, porque, segundo eles, eu não queria parar de cantar. Passei a
semana seguinte inteira ouvindo-os reclamar. Não lembrava de quase nada
daquela noite. No entanto, naquele momento, a volta nem de longe era uma
preocupação.
A estrada era cheia de curvas suaves que, vez ou outra, se
debruçavam sobre a encosta revelando o traçado escuro da montanha à
noite. Do lado certo, conseguíamos ver Vila da Mata: um aglomerado de
pontos luminosos afunilados na entrada do vale. A claridade da lua era
suficiente para nos guiar.
Descemos por um bom tempo. Já não faltava muito até a guarita.
Nili dissera que hoje era Kumonin quem estava de guarda. Ele concordara
em nos deixar passar sob a condição de que lhe trouxéssemos bolinhos de
feijão branco da vila. Kumonin adorava bolinhos.
Aga viera boa parte da descida ressaltando as coisas que faria
quando chegássemos. “Primeiro vou comer truta, sabe há quanto tempo não
como peixe? E estamos justamente na época delas”.
“A época das trutas é no outono, Aga”, respondeu Nili.
“Que seja. Truta com vinho de gengibre para acompanhar. O que
acham? Nada mal, não é?”
Eu ria. O clima era agradável. E me sentia satisfeito por estar com
meus amigos. Era como nos velhos tempos.
Porém, de repente, notei algo estranho.
A estrada fazia outra curva mais à frente. Ouvi um ruído difuso,
afastado. Forcei os olhos tentando enxergar através da noite, mas não
percebi nada além da floresta ao redor. O som cresceu conforme
avançamos. E logo eu já não tinha qualquer dúvida.
Vozes.
Fiz sinal para que Aga e Nili se calassem. Então eles também
notaram. Entramos na mata, nos escondendo atrás das árvores. Seguimos
devagar, tentando ser os mais cautelosos possíveis. Passada a curva, vimos
a guarita. Não era mais do que um minúsculo casebre de tábuas pintadas de
amarelo. Destoava completamente das árvores ao redor, projetando-se sobre
o caminho. Era impossível não notá-lo. Contudo, não havia apenas a
cabana.
Um grupo de centenas de soldados, diria que pelo menos uns
trezentos, estava parado no Caminho da Serpente, em frente à guarita.
Tinham os rostos cobertos por máscaras com feições demoníacas.
Exceto dois deles.
Destacando-se do grupo principal, eles seguiram em direção à
guarita; eram os únicos a cavalo. Não conseguia distingui-los com clareza
na penumbra da noite. Um deles usava uma capa e, exceto pela espada cujo
cabo se projetava acima do ombro, era como um monge andarilho. O outro,
uma mulher sem dúvida, vestia uma armadura negra.
O homem desceu do cavalo e chamou. Passados alguns segundos,
Kumonin saiu assustado do casebre com a lanterna erguida. Concordou com
a cabeça em resposta às palavras que de longe não consegui entender. O
estranho jogou o capuz para trás. A luz iluminou seu rosto no exato
momento em que fez a saudação característica dos shenlongs.
“Por Heiwa, é Ruk!”, disse Aga.
Sem dúvida, era Ruk.
Fiquei sem reação. Ali, parado em frente à guarita estava meu
irmão. Dezenas de questionamentos me atingiram de uma só vez. Nada
daquilo fazia sentido. O desconforto revirou meu estômago e achei que
fosse vomitar. Eu arquejava buscando o ar que parecia cada vez menos
suficiente. Minhas pernas começaram a se mover involuntariamente. Eu só
conseguia ver Ruk. Naquele momento, para mim, os soldados não
passavam de um borrão. Um borrão que se fundia com a floresta recortando
a figura daquele que achei que nunca mais veria. Quis correr até ele, mas
Aga me conteve.
“São muitos”, censurou.
Eu não queria saber se eram muitos. Isso não importava. “É Ruk”,
ouvi as palavras saírem de minha boca.
Nili me puxou de volta ao chão, fazendo sinal para que nos
calássemos.
“Acalme-se, Mu”.
Respirei fundo. E olhando mais uma vez à frente, encontrei um
Kumonin amedrontado que retribuía a saudação. Ele fez um gesto claro de
que Ruk e os soldados deveriam voltar. Meu irmão sorriu. O monge ainda
tentou fugir. Porém, Ruk puxou a espada e, saltando sobre o shenlong,
desferiu um golpe de cima para baixo. Kumonin caiu com as costas abertas
em um rasgo.
“Por Heiwa, precisamos ir até lá. É Ruk. Não podemos deixar
Kumonin morrer”, eu disse, confuso. Buscava em Nili algum apoio, mas ele
se limitou a discordar com a cabeça, fazendo sinal para que nos calássemos.
Eu me encolhi em meio aos arbustos quando os soldados começaram a
avançar pelo Caminho da Serpente. A mulher vinha à frente, montada, seus
cabelos presos numa trança que caía pelas costas. Ruk, ao seu lado, era o
único que não vestia o uniforme com a insígnia do escorpião bordada no
peito. As máscaras dos soldados eram bestiais. Muitos traziam um macabro
brilho azul no lugar dos olhos. Enquanto passavam, senti meu desconforto
mudar de forma e se intensificar. Prendi a respiração, me encolhendo ainda
mais. Naquele momento, eu apenas rezava para que não fossemos
descobertos.
“Por Heiwa, são demônios, são demônios!”, disse Aga depois que
haviam passado.
“Não são demônios”, retrucou Nili. “Aqueles são os Escorpiões
Negros. E a mulher à frente é Hei Shie, a líder”.
“Escorpiões Negros?”, perguntei. Nunca escutara aquele nome,
muito menos o de Hei Shie.
Corremos ao encontro de Kumonin, mas já era tarde demais.
“O ferimento foi profundo”, constatou Nili, examinando o corte.
“Está morto?”, perguntei. “Droga, o que está pensando Ruk?!”
“Temos que voltar”, disse Aga, nervoso.
Eu também estava nervoso. O coração batia acelerado. Por alguns
instantes observei fixamente o caminho por onde os soldados haviam
seguido na expectativa de que pudessem retornar. Então entrei na cabana
onde a lebre se agitava na jaula sobre a mesa. Usando o papel e a tinta,
escrevi:
Soldados subindo Caminho da Serpente. Ruk com eles. Kumonin
morto.
Enquanto fazia a nota, as palavras de Velha Gilga ressoavam em
minha mente. Retirei a lebre da jaula. Deu algum trabalho até que eu
conseguisse prender a mensagem. No instante em que a soltei lá fora,
passou rápida por Nili e Aga, dardejando pela estrada antes de sumir na
mata.
“Vamos rezar para que chegue primeiro”, eu disse, já de volta ao
caminho. “Precisamos chegar antes dos soldados. Vamos pela trilha”.
“Pela trilha? Pelo meio da mata a essa hora da noite, Mu?”,
questionou Nili. “Vamos nos perder”.
“É o único jeito de chegarmos antes.”
“Ele tem razão Nili, você quer dar de cara com trezentos soldados
no caminho?”, disse Aga.
Ele conhecia a trilha melhor que ninguém, lembrei a Nili, e ainda
teríamos o auxílio da lanterna de Kumonin. “Vamos logo. Não há outra
escolha, e não podemos perder tempo”.
Avancei pela mata, torcendo para que eles me seguissem. Eu estava
nervoso, mas ao mesmo tempo agitado, alerta. Aquela talvez não fosse a
decisão mais brilhante, no entanto não via outra alternativa. A trilha
certamente era a opção mais rápida. Mas também era a melhor forma de nos
perdermos na Montanha da Floresta; tínhamos que correr o risco.
Felizmente, os dois vieram logo atrás. Começamos a correr. A lanterna era
de alguma ajuda, mas iluminava somente alguns passos à frente - suficiente
apenas para nos desviarmos de raízes, arbustos ou qualquer coisa que
pudesse nos fazer tropeçar. Aga nos guiava, depois vinha Nili, e por último
eu com o bastão. Estava tão preocupado que mal tinha tempo para temer a
escuridão da floresta ao redor. Sabia que meus amigos também estavam
angustiados. Forçávamos o ritmo o melhor possível. Sempre que
chegávamos a uma bifurcação, Aga prontamente escolhia o caminho. E eu
confiava em suas escolhas.
Não sei dizer por quanto tempo corremos até ver a luz por entre as
árvores. Apertamos ainda mais o passo até que chegamos à clareira. Levou
alguns segundos para que conseguisse me localizar, mas logo percebi que
havíamos saído nas plantações ao sul do templo. Mais à frente, o muro de
estacas se erguia acima das árvores.
Estávamos cansados. As roupas pesavam encharcadas de suor.
Corremos os últimos metros com os pés chapinhando na terra molhada. O
vento soprava intenso, e por vezes achei que apagaria a lanterna. O silêncio
da noite evocava uma sensação ruim que eu lutava para afastar dos
pensamentos. O monge na torre de vigia nos avistou e desceu correndo até
o portão lateral. Ouvi o som metálico do trinco se abrindo. Era Fae.
“O que vocês estão fazendo aí fora?”, perguntou. “Vão se meter em
confusão”.
“Não temos tempo para isso”, disse Aga, abrindo caminho.
“Precisamos falar com abade Kame”.
“Mas está muito tarde. O que está acontecendo?”
Fae veio atrás de nós. Então, virei-me.
“Soldados imperiais. Volte para seu posto e avise aos demais”.
Fae se assustou. Nós corremos em direção aos aposentos de Abade
Kame. Quando ainda cruzávamos o pátio interno, Shizu apareceu.
“Mestre Shizu!”, Nili chamou.
“O que vocês estão fazendo fora do dormitório?!”
Então contamos a ele tudo o que havia acontecido. Nili explicou que
soldados subiam pelo Caminho da Serpente. Também sobre a morte de
Kumonin e a lebre enviada.
“Subimos pela trilha na mata, senhor”.
“Por Heiwa, vocês perderam o juízo?”, disse Shizu. “Não chegou
nenhuma lebre. Isto é grave”.
Ficou em silêncio por algum tempo como se digerisse o teor das
palavras.
“Mu, encontre Sarujin e diga para ir à sala de Abade Kame. Nili e
Aga, avisem a todos. Soem os sinos. Quero todos em seus postos”.
Shizu não estava nervoso, pelo contrário, sua voz transparecia uma
excitação que visivelmente tentava suprimir. De alguma maneira, aquilo me
acalmou. Corremos em direção ao prédio principal. Depois do portal, vi
Aga, Nili e Shizu se afastarem, seguindo para o lado oposto. Ao invés de
continuar para a saída que daria no Jardim da Montanha, subi as escadas à
esquerda. Bem na metade do caminho, o primeiro sino soou. Quando
cheguei ao corredor, Sarujin abria a porta do quarto.
“Mu? O que está acontecendo?”
“Soldados imperiais, mestre. Ruk está com eles”, respondi. “Mestre
Shizu pede que o encontre na sala de Abade Kame o mais rápido possível”.
Sarujin assentiu. Antes de se dirigir às escadas, retornou ao quarto,
saindo de lá com um bastão.
“Vamos”.
Eu o seguia pelo salão principal quando o segundo sino soou.
Muitos monges já estavam do lado de fora. Todos corriam para
assumir seus postos nas torres ou junto aos portões. No pátio interno,
Mestre Gao organizava uma brigada com shenlongs armados com lanças e
bastões. Alguns traziam escudos com a insígnia de Shanjin: a árvore branca
sob a montanha.
Sarujin e eu cruzávamos a Câmara do Céu no momento em que a
voz clamou na noite:
“Shenlongs de Shanjin!”
Os Escorpiões Negros haviam chegado.
Disparamos até o portão principal, abrindo caminho em meio aos
outros monges. Sarujin fez sinal para que eu o seguisse, e corremos para a
lateral, subindo na torre de vigia leste.
Então, nós os vimos.
Dezenas de soldados, talvez centenas, armados com lanças e
espadas, estavam perfilados em frente ao portão principal. Olhando dali,
achei o grupo menor que antes; e eu me perguntava se havia exagerado o
número. À frente de todos vinha Hei Shie, com Ruk logo ao seu lado.
Agora, sob a luz das chamas, podia vê-lo melhor. Usava a capa de
monge sobre o gibão de couro onde havia duas insígnias gravadas: de um
lado a árvore branca sob a montanha, de Shanjin; e do outro o dragão sobre
a lótus, do Império. Trazia uma lança nas mãos. A espada que havia usado
em Kumonin retornara à bainha nas costas. Parecia mais velho. A frieza
estampada no rosto sério e marcado contrastava inteiramente com o Ruk
que eu conhecia. Aquele homem havia matado Kumonin sem hesitar. Seria
realmente a mesma pessoa? O Ruk que eu conheci era impulsivo, sem
dúvida, mas nunca teria feito aquilo. No mesmo instante, me lembrei das
palavras de Sarujin: “Abade Kame é um homem sábio e justo. Ele viu o que
Ruk viu, o que trazia na mente”. Difícil acreditar que aquele era meu irmão.
“Hei Shie e seus escorpiões”, murmurou ele ao meu lado, apertando
com força os punhos sobre o bastão. “Por Heiwa, Ruk. Não faça isso”.
Eu nunca vira Sarujin tão sério.
Hei Shie avançou alguns passos. Ruk a acompanhou.
“Shenlongs de Shanjin”, bradou uma vez mais. “Em nome do
imperador, Tensui Marumori, reclamo estas terras como propriedade do
Império de Housai”.
A mulher se fundia à noite. Do alto do cavalo, sua armadura de
escamas refletia o brilho das tochas como dezenas de olhos negros. O
emblema do escorpião gravado no peito lembrava uma yantra macabra. Fez
o aceno e um dos soldados se adiantou, desfraldando a flâmula com a
insígnia do Império.
“Meus irmãos”, disse Ruk. Sua voz ainda era a mesma de sempre.
“Hoje é o início de uma nova era. Devemos seguir em direção ao futuro.
Evoluir em busca de harmonia e equilíbrio. A verdade se apresenta de
muitas formas, agora compreendo. Juntos tornaremos o Templo da
Montanha grandioso. Muito além do que qualquer um de nós já imaginou”.
A forma como dizia aquelas palavras revelava uma devoção e
sinceridade que eu nunca antes vira nele.
“Todos os shenlongs devem vir até aqui e se curvar. Devem jurar
lealdade única ao grande imperador Tensui Marumori”.
Ruk aguardou.
No entanto, o silêncio. Nenhum monge respondeu.
Irritado, puxou as rédeas. Já ia conduzir o cavalo adiante, quando o
portão se abriu. Dele saíram Shizu, Abade Kame e Velha Gilga.
“O que ela está fazendo ali?”, pensei.
Shizu e Abade Kame pararam próximos ao portão. Velha Gilga
continuou em direção aos soldados. “Shanjin será destruído”, eu ouvia em
minha mente.
Grande parte dos shenlongs já se reunia no portão.
Por um instante achei que Velha Gilga fosse se render. Curvar-se ao
imperador. Contudo, parou entre Hei Shie e Ruk. O ex-shenlong fez
menção de avançar sobre ela, mas Hei Shie o conteve com um gesto.
Então, Velha Gilga disse:
“O que está nos céus não se curva perante a terra. O que tem vida
eterna não teme a morte”.
Seus olhos brilhavam como chamas douradas.
“Heiwa e seus tienlongs conduzem nosso caminho. O dragão de sete
estrelas já está entre nós”.
Velha Gilga fechou os olhos e, abrindo um sorriso, saudou:
“Mayar ti tao”.
Sua voz ecoou em nossas mentes. Os shenlongs responderam de
imediato com toda força:
“Mayar ti tao!”.
Hei Shie se mantinha impassível. Ruk, por sua vez, parecia confuso.
Num ímpeto, ele avançou sobre Velha Gilga, estocando a lança no peito da
anciã.
“Bruxa maluca!”, gritou.
Velha Gilga foi erguida do chão pela força do golpe. A ponta da
lança atravessou seu corpo pequeno, emergindo escarlate das costas. Ela
segurou o cabo arma.
Ruk estacou.
Naquele momento Velha Gilga se iluminou. Como se algo fora
aceso dentro dela, uma luz surgiu. Ruk largou a lança. Ainda assim, a anciã
permaneceu suspensa no ar. De repente, chamas irromperam de seu corpo.
Chamas que logo assumiram a forma de um carneiro feito da própria luz. O
animal se ergueu ao céu como uma estrela e em seguida caiu diretamente
sobre os soldados.
Pressentindo o perigo, Ruk, Hei Shie e diversos soldados saltaram
para longe, fugindo do clarão. O choque do impacto deslocou uma imensa
massa de ar, derrubando todos ao redor. A torre de vigia tremeu e tivemos
de nos segurar. Os soldados atingidos em cheio simplesmente
desapareceram. Somente manchas escuras, como sombras, restaram no
chão.
No primeiro momento todos tentavam entender o que havia
acontecido. Então, um grupo de shenlongs, liderados por Shizu, atacou.
Era o início da batalha.
O soldado imperial que segurava a flâmula tocou a corneta de
chifre. O som grave rasgou a noite como um rugido. Abade Kame recuou
para dentro do templo. Um grupo de soldados, comandados por Hei Shie,
rapidamente assumiu uma posição de batalha e atacou Shizu e os monges,
enquanto o resto dispersava entrando na mata.
“Covardes assassinos!”, gritou Sarujin.
Na confusão, eu não conseguia mais ver Ruk.
Hei Shie era rápida demais até para Shizu. O monge girava o bastão
em golpes circulares, mas, de alguma forma, ela se desviava de todos. Os
dois eram incríveis. Sabia que Shizu usava o poder da kaishi. Eu via a joia
que brilhava vermelha presa ao bastão. Hei Shie, por sua vez, não tinha
nenhuma pedra de chi , mas sem dúvida utilizava sua energia interna ; era
impossível realizar tudo aquilo sem a manipulação. Ela acompanhava os
movimentos de Shizu sem qualquer dificuldade. Mantinha as adagas
embainhadas, utilizando apenas as mãos livres e a pequena lâmina presa na
ponta da trança, que empregava como um chicote. Seus movimentos eram
imprevisíveis. Shizu tinha dificuldade para se defender. A luta mal
começara e a trança-chicote já havia lhe provocado diversos arranhões. Ao
redor, soldados e monges se enfrentavam. O pátio externo se tornara um
campo de batalha. Pouco a pouco, o número de corpos no chão crescia;
baixas de ambos os lados. Às vezes, as máscaras dos escorpiões derrotados
caíam de seus rostos: havia tanto homens quanto mulheres entre eles.
Todavia, todo o confronto girava em torno de Shizu e Hei Shie.
Um dos soldados arremessou uma faca na direção de Shizu, ao
mesmo tempo em que outro o atacou pelas costas, de surpresa. Com um
giro preciso, o shenlong imobilizou o adversário mais próximo. A faca
perfurou o escorpião detido na altura do estômago, que caiu gorgolejando
sangue pela boca.
Ao meu lado, Sarujin olhava em volta, procurando algo na escuridão
da floresta.
“Isto é muito estranho”, disse ele. “Vamos, Mu. Temos que voltar.
Shizu pode cuidar de Hei Shie”.
Eu o segui. E, no instante em que me preparava para descer as
escadas, ouvi as explosões.
A primeira, do lado sul, veio do portão lateral por onde havíamos
entrado mais cedo. Dali de cima, consegui ver somente os estilhaços em
chama do muro sendo arremessados contra o céu, como fogos de artifício.
“Por Heiwa, mas o que é isso?!”, gritei.
Nesta hora ficou claro: a outra parte dos soldados havia contornado
o templo para um ataque. Eu não exagerara o número, eles haviam se
dividido. Talvez, todo o alarde de Hei Shie e Ruk fora mera distração.
Pensei em Velha Gilga e seu último ato de coragem. Não poderia ter sido
em vão.
Sarujin mandou que me apressasse. Eu já estava na metade da
escada quando a segunda explosão ocorreu. Com a vista encoberta pelo
prédio principal, pude apenas ouvir o estrondo ainda mais alto que o
primeiro. Uma fumaça escura subiu como uma mancha no ar noturno. Mais
tarde soube que uma terceira explosão fora impedida por Aga e outros
monges.
Saltei do meio da escada aterrissando com força no chão. Os
monges no pátio interno pareciam perdidos, sem saber se ficavam para
ajudar Shizu ou se corriam para ver o que havia acontecido. Percebendo a
confusão, Sarujin começou a dar ordens. Designou um grupo para ajudar
Shizu, pois muitos dos que haviam avançado com ele já estavam mortos,
embora o número de soldados caídos fosse maior. Outros dois grupos
deveriam conter os invasores. Um para a explosão sul e outro para a oeste.
O último seguiria conosco para o prédio principal.
Cruzamos o pátio interno, e cada qual seguiu para seu objetivo.
Acompanhei Sarujin através do portal de entrada do prédio principal. Um
soldado imperial surgiu das sombras, estocando com a espada. Sarujin
aparou o ataque com o bastão, acertando em seguida a cabeça do adversário
com um golpe de cima para baixo. Um segundo soldado investiu pelas
costas do monge. Saltei, com a ponta do bastão em busca do pescoço do
inimigo. O escorpião desviou o golpe com a lâmina e em seguida avançou
cortando de baixo para cima. Instintivamente, virei meu corpo de lado e a
espada passou no vazio. Aproveitei o impulso do movimento para girar em
um chute que acertou o rosto do soldado. Por segurança, golpeei com o
bastão a cabeça do adversário caído. Sarujin deu ordens para que parte do
nosso grupo buscasse bastões e lanças para os shenlongs desarmados.
Na verdade, exceto pela brigada de mestre Gao e alguns poucos,
quase todos os monges estavam desarmados. Em nosso grupo, apenas
Sarujin e eu tínhamos bastões. Embora grande parte dos monges fossem
exímios combatentes de mãos livres, uma arma sempre representava uma
vantagem. Ele entregou as espadas dos soldados caídos a dois monges e
disse para seguirem. Na hora, pensei em shenlong Wuky, em como sua
oficina ficava justamente entre os dois pontos das explosões. Os outros
sabiam disso e o perigo que representava. Contudo, sabiam também que não
havia mais lugar seguro em Shanjin. Nenhum deles questionou as ordens.
Seguiram em direção ao Jardim da Montanha pelo portal do lado oposto. De
onde estava, eu podia ver monges por todos os lados enfrentando os
invasores.
O grupo de Shizu havia recuado para o pátio interno. Hei Shie,
agora com duas adagas, atacava impiedosamente. Shizu parecia bem mais
cansado que ela e, por um momento, achei que Sarujin avançaria em
auxílio. Mas ele correu para a escada, dizendo para nos apressarmos. Antes
de ir, ordenou aos três monges restantes em nosso grupo que ficassem ali.
Deveriam impedir qualquer um que tentasse subir. “Você vem comigo,
Mu.”, disse. Chegamos ao terceiro andar, onde, no final do corredor, ficava
a sala de Abade Kame. Nili estava na porta com uma lança em punho. Fora
ele, não havia mais ninguém.
“Abade Kame está lá dentro”, disse Nili.
Sarujin e eu entramos. A sala continuava a mesma de sempre, porém
completamente desorganizada. Os móveis haviam sido empurrados para um
canto e os livros pareciam ainda mais espalhados que antes. No lugar de
costume da estante de boticário, havia uma porta aberta. Abade Kame
estava no centro da sala, ajoelhado. À sua frente, um círculo fora desenhado
no chão com diversos símbolos e padrões. Quatro kaishis estavam
distribuídas simetricamente ao redor, todas brilhando intensas, energizadas
com chi . Bem no meio do círculo estava o Tomo das Formas de Shanjin. O
livro parecia pulsar, emitindo uma força própria que nada tinha a ver com a
das joias. Eu o sentia como se estivesse vivo.
“Quase achei que fossem soldados”, disse Abade Kame, aliviado
quando nos viu. “Nili ainda está lá fora?”
Assenti.
“Certo. Preciso selar o Tomo antes que seja tarde demais”.
O velho shenlong retirou a camisa. Mesmo com a idade seu corpo
era forte. As yantras da tartaruga e da serpente cobriam praticamente toda a
superfície de suas costas, subindo até os ombros. Ele respirou
profundamente. Seus olhos adquiriram um brilho azul que logo tomou conta
das mãos. No momento em que tocou o círculo, chamas azuis se alastraram
preenchendo todas as formas desenhadas. Abade Kame estava totalmente
em transe. Tive a impressão de que as imagens da tartaruga e da serpente se
moviam em harmonia, de tão vivas. Lentamente, as chamas se fecharam em
torno do Tomo das Formas. Sarujin foi até a janela e olhou para o Jardim da
Montanha e os alojamentos. Eu não conseguia desgrudar do abade e do
círculo. Então, ele começou a narrar o que se passava lá fora. A luta se
desenvolvia no jardim. Os monges haviam obtido as armas, mas a oficina
de shenlong Wuky estava em chamas. Eu tinha dificuldade de imaginar o
que descrevia. As cenas pareciam incongruentes com o local que eu tanto
adorava. Sarujin ainda disse que alguns soldados e monges lutavam sobre
os telhados.
Naquele momento, fui até a janela. Shanjin se tornara um campo de
batalha. Era difícil de acreditar.
A copa adornada de branco da paineira em flor se tornara um oásis
em meio ao deserto de destruição instalado. Havia dezenas de corpos
espalhados pelo chão. Eu via companheiros de monastério mortos. Pessoas
que naquela mesma manhã haviam sentado ao meu lado no refeitório,
durante o almoço. Que dormiam na cama ao lado da minha. Amigos.
Irmãos. Mortos.
A fumaça e a terra revirada sepultavam os vestígios do jardim. A
grama saltava do chão em blocos e tufos escuros. Não havia mais flores.
Não havia mais crisântemos. Qualquer resquício de beleza que ainda
resistia era manchado de lama, sangue e cinzas. Os gritos de batalha se
somavam ao barulho do choque das armas.
Senti um desespero tomar conta. Eu via amigos lutando e me
perguntava qual deles seria o próximo a cair. Não podia ficar ali. Não podia
assistir tudo aquilo sem fazer nada. Notei que se saísse pela janela, poderia
chegar ao telhado sem grandes dificuldades. No entanto, antes que eu
tomasse qualquer ação, Sarujin, percebendo minha agonia, pôs a mão em
meu ombro. “Fiquei calmo, Mu”, pediu. Mas como? Monges, irmãos,
morriam bem em frente aos meus olhos. Irmãos também de Sarujin. Ainda
por cima, não havia sinal de Aga. Ou mesmo de Ruk. Será que estariam
bem? A dúvida aumentava a ansiedade.
Provavelmente, todos os monges que tinham condição de ficar de pé
estavam lutando do lado de fora. Um novo incêndio irrompeu na área dos
alojamentos. E eu vi diversos soldados atacarem os shenlongs que
guardavam a entrada. Sarujin também viu.
“Droga! Ainda não evacuaram as crianças”, exclamou. “Droga!”
A constatação me atingiu como um soco: as crianças . Elas ainda
estavam nos alojamentos. Levei as mãos à cabeça no momento em que vi os
soldados passarem pelos monges, invadindo o local. Sarujin olhava lá para
fora andando de uma ponta a outra da janela. “Droga! Droga! Droga!”,
repetia.
Então, com um salto, subiu no parapeito.
“Mu, fique aqui e proteja Abade Kame”.
“Espera!”, ainda gritei.
Eu nem ao menos saberia dizer se ele me escutara, pois, no instante
seguinte, saltou da janela com o bastão nas mãos. Sarujin ainda caiu alguns
metros antes de segurar na ponta de madeira que se projetava da parede do
prédio. Escalou a estrutura com a agilidade de um macaco. Em seguida,
equilibrou-se por toda lateral e logo já estava no telhado bem em frente à
janela, do outro lado do templo. Avançou, acertando com o bastão o
soldado que lutava contra um dos monges; quando o escorpião percebeu sua
presença, fora tarde demais. Ele correu, desviando-se de mais dois que
tentaram atacá-lo, e chegou ao final onde o fogo começava a subir. Todas as
aberturas no segundo andar exalavam uma fumaça densa e negra. Não havia
qualquer sinal das crianças. Sarujin segurou na borda e, arremessando-se no
ar com um impulso, entrou direto por uma das janelas. Olhei por algum
tempo, esperando que saísse, mas ele não apareceu. Aquilo me deixou ainda
mais aflito. Minha vontade era de ir até lá, ter certeza de que todos estavam
bem. Comparado aos monges, o número de soldados parecia cada vez
maior. E isso, obviamente, era um terrível sinal. Ao mesmo tempo, eu não
podia deixar Abade Kame ali sozinho. Ele continuava em seu transe, alheio
a tudo.
Agora, as chamas no círculo haviam assumido uma tonalidade
branca, diferente do azul de antes. Considerei aquilo um sinal de que o
ritual estava próximo do fim; muito mais por esperança que certeza - na
prática, eu não fazia a menor ideia. Abri a porta e Nili não estava mais lá. O
corredor vazio contrastava com a guerra do lado de fora. Tranquei a sala,
bloqueando a entrada com a estante. Aquilo nem de longe seria suficiente
para conter um grupo de soldados, mas pelo menos me daria algum tempo.
Eu olhava pela janela com o bastão em riste, atento a qualquer ameaça que
pudesse surgir.
Não fazia ideia de quanto tempo havia se passado, quando Abade
Kame terminou. As chamas brancas se reuniram sobre o livro que pareceu
absorvê-las, como se as tivesse engolido. As kaishis se apagaram. O brilho
nos olhos do abade também. Ele caiu para o lado, e no momento em que o
amparei ainda estava lúcido, porém muito fraco. Parecia mais velho. O rito
consumira grande parte de sua vitalidade. O corpo, antes firme, agora
pendia frágil em meus braços. Ele moveu os lábios ressecados pedindo pela
bebida sobre a mesa. A voz áspera não era mais que um sussurro. Busquei a
ânfora, despejando o conteúdo na tigela ao lado. O líquido azul tinha
aspecto viscoso e um cheiro que me lembrou o de terra molhada. Apoiei
abade Kame contra a parede, o ajudando a ficar sentado. E ele bebeu, com
dificuldade.
“Preciso de alguns instantes para me recuperar”, murmurou de olhos
fechados. “Proteja o Tomo”.
“Eu?! Proteger o livro sagrado dos shenlongs?”, respondi. “Por
Heiwa, como vou fazer isso, mestre?!”
Não houve resposta e aquilo me perturbou. Na mesma hora
verifiquei seus sinais vitais. Ele ainda respirava e, embora seu pulso
estivesse fraco, era claro que apenas dormia. Todavia, meu alívio foi
imediatamente substituído pela preocupação de proteger o Tomo. Não havia
mais ninguém ali, portanto, eu teria que dar um jeito. Reforcei o bloqueio
da porta com a mesa e mais algumas cadeiras. Minha primeira ideia foi
procurar algum lugar para esconder o livro, porém, logo me dei conta de
que por melhor que o escondesse, mais cedo ou mais tarde os soldados
imperiais o encontrariam. A melhor opção era levá-lo para longe, algum
local seguro. No entanto, eu não podia deixar Abade Kame sozinho
naquelas condições. A fumaça começava a entrar pela janela e em pouco
tempo seria sufocante ficar ali. Espiei lá fora mais uma vez: ainda não havia
qualquer sinal de Sarujin. As chamas, cada vez maiores na oficina de
shenlong Wuky e no alojamento, avançavam uma ao encontro da outra,
como se quisessem se unir. Vasculhei o cômodo, encontrando um pano para
embrulhar o Tomo das Formas. A princípio tive receio de encostar no livro.
Não irradiava mais o calor de antes e a própria pulsação do chi diminuíra,
porém ainda permanecia presente, como se abafada. Eu vira sua energia.
Era bastante óbvio que o ritual de Abade Kame tinha a intenção de protegê-
lo, impedir que fosse violado. Assim, cobri minha mão com o pano antes de
tocá-lo. E fiquei aliviado quando ela não pegou fogo. Em seguida, joguei o
Tomo e as kaishis dentro da bolsa, que também havia encontrado. Pendurei-
a no ombro de forma que tudo ficasse firme, próximo à cintura. Ali parado,
sem saber ao certo o que fazer, considerei carregar o abade para fora. Mas
para onde o levaria?
De repente, a barreira de móveis começou a sacudir. A força das
pancadas vindas do outro lado deixava claro: alguém arremessava o corpo
contra a porta. Procurei no entorno alguma alternativa, mas sem sucesso.
Fui outra vez até a janela. Nenhum sinal de Sarujin. Por um breve instante,
as pancadas cessaram, mas simplesmente para reiniciarem ainda mais
fortes. As dobradiças começavam a se empenar enquanto pregos de ferro se
erguiam de seus furos na madeira: a barreira improvisada não aguentaria
muito tempo. Recoloquei rapidamente as cadeiras que haviam caído,
sentindo minha respiração crescer intensa. Olhei pela última vez para o
alojamento e finalmente vi Sarujin. Com a ajuda de outro shenlong , ele
retirava as crianças do prédio, seguindo para a saída nos fundos do templo.
Ele olhou para mim de longe, notei. Na verdade, eu não sabia o porquê da
minha expectativa, pois ainda que Sarujin tivesse me visto, ele estava
ocupado demais levando as crianças para fora de Shanjin. Não poderia me
ajudar. Ouvi um estalo vindo da porta e sabia que ela começara a rachar. Só
havia uma maneira: levar Abade Kame.
O velho monge continuava sentado junto à parede, cochilando.
Ergui-o com esforço. Ele era muito mais pesado do que aparentava, embora
fosse menor que eu. De algum jeito, consegui segurá-lo em minhas costas,
concluí que essa era a melhor forma de carregá-lo. Atei as mãos do abade
em torno do meu pescoço, de forma que eu tivesse os braços livres e ele não
caísse. Seus braços, às vezes, acabavam sobre meu rosário, forçando as
sementes contra a pele. Doía. Senti-me sufocado, com extremo desconforto,
mas não havia outro jeito. Recolhi o bastão e me arrastei para fora da
janela, segurando firme para não cair lá embaixo. O peso do abade
pressionava minha garganta e eu não conseguia respirar direito. Meus pés
tatearam com cuidado até encontrar a marquise estreita. Soltei do parapeito
me equilibrando o melhor possível com o peso adicional. Dali, eu poderia
subir para o telhado. Rezava para ter o caminho livre até o final do prédio –
já próximo à saída oeste. Eu não aguentaria muito tempo assim. Segurei as
pernas de Abade Kame, aliviando um pouco a força para recuperar o
fôlego. A tábua de madeira rangia sob meus pés. Ouvi as pancadas vindas
da sala soarem cada vez mais fortes. Tenho que sair daqui, pensei. O som
dos móveis caindo me avisou que a barreira havia sido rompida. Tenho que
sair daqui. Tenho que sair daqui. Era só o que se passava na minha cabeça.
Eu usava o bastão como apoio, porém a partir da altura de início das telhas,
tive que engatinhar, escalando a superfície instável. Meus braços
queimaram de dor ante o esforço da subida; mas nem de longe isto era o
pior. O aperto na garganta estava mais forte que nunca. E se antes eu tivera
dificuldade em respirar, naquele momento era impossível. Por vezes, senti
as telhas estalarem e achei que não iria conseguir. Foi um imenso alívio
chegar ao topo do telhado; especialmente quando constatei que não havia
soldados ali.
Ao meu lado esquerdo, o Jardim da Montanha seguia como palco
da batalha. No pequeno lago, as carpas nadavam ao redor dos corpos
flutuantes de monges e soldados. Eu distinguia o vermelho da água, sem
saber se pelo reflexo das chamas ou do sangue dos mortos. Vi o grupo de
Sarujin ser atacado por três soldados. O monge que ia à frente e mais quatro
crianças foram mortos antes que conseguissem escapar. “Não!”, eu gritei,
mas eles não podiam me ouvir. Sarujin ficou para trás, a fim de conter os
soldados. Do telhado, eu acompanhava tudo aflito, enquanto avançava sem
jeito. Um dos escorpiões estocou com a ponta da lança na direção da
garganta de Sarujin. O monge saltou girando sobre a arma num chute de
cima para baixo. O golpe entortou o pescoço do soldado num ângulo
bizarro antes dele cair desacordado. O segundo adversário foi mais
inteligente. Manteve certa distância, enquanto arremessava facas.
Desviando-se dos projéteis, meu mestre avançou de encontro ao inimigo. O
soldado aproveitou o momento para sacar a espada num corte lateral.
Sarujin conseguiu se esquivar, mas vi que fora acertado de raspão. Ainda
assim, ele aplicou uma rasteira derrubando o soldado para, em seguida,
chutar-lhe atrás da cabeça.
Eu ainda olhava apreensivo para o portão oeste quando notei o
soldado que vinha correndo em minha direção.
Mesmo nervoso, desviei da faca arremessada e ergui o bastão,
defendendo, por puro reflexo, o golpe de espada que se seguiu. A força do
ataque me derrubou. Caí para trás sobre o corpo de Abade Kame, mas, de
alguma forma, consegui, meio sem jeito, soltar a corda que o prendia ao
meu pescoço. Levantei-me de um salto. Em guarda, eu apontava o bastão
para o soldado que mantinha a espada em riste. Meus dedos sentiam o sulco
profundo que a lâmina deixara na madeira. Mais um golpe ali e
provavelmente se partiria. Os olhos do adversário à minha frente eram
chamas de um azul gélido. Eu sentia o chi que o escorpião emanava. Uma
energia caótica, agressiva, sem qualquer controle; bem diferente daquela de
Abade Kame. Olhei em volta, mas não havia sinal de mais ninguém.
Aproveitando minha breve distração, o soldado avançou. Contra-
ataquei com um giro rápido do bastão, projetando a ponta recuada de forma
circular. O movimento fez o inimigo saltar para trás. Valendo-me do
impulso, continuei o giro num segundo golpe. O escorpião aparou o ataque
com a espada, mas ainda assim foi derrubado. Porém, com um rolamento
preciso, se recompôs como se nada tivesse acontecido. No lugar dos olhos,
o fogo frio saltava das fendas na máscara. Não parecia uma pessoa, mas sim
um espírito, um demônio da escuridão. Ele era mais rápido que eu. Mais
forte que eu. Avancei gritando com o bastão erguido. Senti o chi envolver
minhas mãos, mas sem uma kaishi eu não poderia transmiti-lo para a
madeira. Saltei num ataque, concentrando toda a força. O soldado levantou
a espada. O impacto do golpe fez meu bastão se partir, restando apenas uma
estaca. Sem pensar em nada, estoquei a ponta estilhaçada na barriga do
inimigo, que ainda tentava assimilar o que acontecera. A máscara caiu de
seu rosto antes mesmo que tivesse tempo de descer a lâmina. Olhei para
cima a tempo de ver a vida se esvair dos olhos da mulher. As chamas
sumiram. Os dedos afrouxaram no cabo da espada. O sangue escurecido
pela noite surgiu golfado na boca. Empurrei, e ela foi ao chão sem qualquer
resistência. Eu arquejava, com o coração disparado.
Havia matado alguém. E quase havia morrido.
Vida e morte são caminhos que andam juntos para um shenlong ,
lembrei-me das palavras de Sarujin. Na época, achei que houvesse
entendido. Durante todos os anos de prática, me deparara com as duas em
diversas ocasiões. Contudo, eu nunca antes estivera prestes a morrer pelas
mãos de alguém. Muito menos havia matado.
A prática nunca é igual à teoria. Estava inteiramente enganado por
me achar preparado para aquilo.
Em meu estado de choque não notei a aproximação dos outros
soldados.
Agora, havia três deles no telhado, e caminhavam em minha
direção. Sacaram as espadas da bainha, e eu tentei me levantar, mas as
pernas não obedeciam. Olhei para trás e vi outros cinco, armados com
lanças, se aproximando. Devem ter vindo pela sala, conclui.
Instintivamente, levei a mão à bolsa: o livro e as kaishis continuavam ali.
Virei-me para Abade Kame e, para minha surpresa, ele estava desperto.
Sentado, o velho monge sorria para mim. Eu não sabia o que pensar além
de que morreríamos e que o abade havia perdido o juízo.
Então, ele se levantou.
“Obrigado, Mu”, disse, tranquilo. “Já me sinto bem melhor. Fez um
bom trabalho. Eu assumo daqui”.
Quis entregar-lhe a bolsa com o Tomo das Formas, mas ele me
impediu.
“Cuide dele. Agora vá. Fuja para a floresta”.
A princípio, não compreendi sua intenção. Abade Kame insistiu
outra vez para que eu fosse embora. Mas eu não podia. Disse para sairmos
dali juntos, enquanto era possível. Mais soldados surgiam vindos da sala.
Todos se aproximavam, fechando o cerco. Um deles se adiantou do grupo e
arremessou a lança. A arma assobiou em sua trajetória, vindo em nossa
direção. Abade Kame ergueu a mão e, antes que pudesse nos atingir, a lança
estacou, suspensa em pleno ar, como se impedida de prosseguir.
“Saia daqui, Mu!”
A ordem me atingiu como uma onda de força, empurrando meu
corpo para trás. Ele nem ao menos havia encostado em mim. Nem ao menos
havia encostado na lança. A gravidade na voz revelava um Abade Kame
bem diferente do homem tranquilo de sempre. Pude ver a força interna se
acender em seus olhos. Logo, as mãos do abade foram envolvidas em
energia. E, mais uma vez, as chamas azuis surgiram. Eu sentia o chi que
irradiava. Uma potência tão intensa que modificava a atmosfera ao seu
redor.
Compreendi, então, que se ficasse seria apenas um fardo. Corri para
a borda do telhado, meus pés vacilando sobre as telhas. Dali, vi Shizu
recuar sozinho para o Jardim da Montanha, perseguido por um grupo de
soldados. A camisa em farrapos deixava a mostra os diversos ferimentos; o
tigre e a serpente das yantras eram como animais feridos, manchados de
sangue. Não havia sinal de Hei Shie. No entanto, naquele mesmo instante, a
janela no segundo andar do prédio principal se abriu. A mulher saltou de lá
com as duas adagas apontadas para baixo, na direção de Shizu. O monge
desviou por pouco do ataque inesperado, em seguida correu para o centro
do jardim.
A leve claridade no céu indicava que o dia não tardaria a nascer. Eu
me preparava para descer do telhado quando a parte sul do muro ruiu
completamente, consumida pelo fogo. A queda da estrutura levou consigo
metade do lado oeste numa nuvem de estilhaços em brasa. Nili apareceu em
meio à fumaça, com um grupo de soldados imperiais logo atrás. Ele recuou
para junto da paineira que ainda resistia firme no centro. Shizu também
estava ali. Pouco depois, Aga surgiu do prédio abaixo de onde eu estava.
Senti um imenso alívio ao ver que ainda estavam vivos.
Logo, os shenlongs restantes faziam o mesmo. Um a um, eles
recuaram formando um círculo em torno da grande árvore branca. A cena
reacendeu em minha mente as palavras de Velha Gilga.
Shanjin será destruído.
O sentimento era desesperador.
Queria me juntar a eles, porém a ordem de Abade Kame me impedia
de avançar. “Fuja para a floresta”.
Os Escorpiões Negros se reuniam junto à Hei Shie, cercando os
shenlongs. Ouvi um estrondo vindo do topo do telhado onde eu estava.
Virei-me a tempo de presenciar a torre de luz azul que subiu aos céus. Por
um momento, senti o chi de abade Kame crescer numa explosão. E depois
sumir.
“Se rendam, vocês não têm saída”, disse Hei Shie. “Entreguem o
Tomo das Formas e curvem-se diante do Imperador”.
Os primeiros raios do dia iluminaram como pérolas as flores do
topo da paineira onde os monges se reuniam. Senti a energia se elevar em
torno da árvore branca, enquanto os soldados se aproximavam. Cercados, os
monges não tentavam fugir.
Não saberia precisar como, ou mesmo quem, começou, no entanto
as vozes dos shenlongs se fizeram ouvir. Os que ainda vestiam as camisas
do hábito as retiraram. As yantras surgiram vivas em feras prontas para o
combate. A canção reverberou por Shanjin como se trouxesse a manhã.
Brancas são as flores .
Onde seu tesouro conduz.
Sou o espírito da montanha.
Guardião do dragão da luz.

Meu caminho de vida


Traz as cores do dia
Sou o espírito da floresta
Cuja alma irradia.

Nas águas do tempo


Serei forte até o fim.
Cantem, shenlongs de Shanjin!

Chorei. Ali estavam meus companheiros. Meus irmãos. Não podia


deixá-los. Naquele instante, os olhos de Aga e Nili encontraram os meus.
Eles sorriam, sem parar a canção. Aga apenas assentiu. Eu sabia o que ele
queria dizer; então ouvi a voz de Nili: “Está tudo bem”.
As lágrimas vertiam sem parar. Eu não conseguia estancar o choro.
Corri pelo resto do telhado, saltando na grama próximo ao portão oeste. Um
dos soldados me avistou e veio no encalço. Fugi através do que restara do
portão. Conforme eu me afastava, a canção diminuía até que só consegui
ouvir meus próprios soluços e passos pelo chão da floresta. Não sabia para
onde estava indo, simplesmente segui em frente, meus pés forçando
caminho pela mata. Ouvi no ar o assobio e, no instante seguinte, a faca
perfurou com um ímpeto o tronco ao meu lado. Olhei para trás, vendo nas
sombras o vulto que se esgueirava por entre as árvores.
De alguma forma aquilo me trouxe para o momento. Eu devia
proteger o Tomo, levá-lo a um local seguro.
Angustiado, olhava em volta em busca de algum lugar para me
esconder. A razão me dizia para enfrentar o soldado, atacá-lo de surpresa
antes que ele tivesse a vantagem. Mas meus pés seguiam em frente. Eu
corria. Tornei a olhar para trás e não consegui mais avistar o escorpião. A
ausência do inimigo trouxe uma apreensão ainda maior.
Sem me dar conta, cheguei à clareira com a pequena lagoa. A
cabana de Velha Gilga conservava a aparência retorcida de sempre: como se
uma árvore muito feia e velha se debruçasse sobre a água. Caminhei com
cautela, contornando a margem. Devagar, as cores retornavam ao redor num
novo dia. Notei a luz acesa dentro do casebre. E, ao me aproximar, a porta
se abriu. A claridade recortada pela entrada borrou a figura que saiu lá de
dentro. Ele avançou correndo em minha direção. Cerrei os punhos me
preparando para o ataque. Porém, ele desviou-se de mim, seguindo em
frente, e quando eu girei nos calcanhares o vi golpear o escorpião bem
embaixo do braço. O soldado estacou, travado. Com um movimento rápido,
Ruk desembainhou a espada, cortando a cabeça do homem.
Ele limpou a espada indiferente ao corpo no chão e a devolveu à
bainha. Então, virou-se para mim.
O mesmo de sempre, ao mesmo tempo, muito diferente.
Era aquele o meu irmão?
A figura ali parada diferia das minhas lembranças . Parecia um
espírito selvagem. Quase não o reconhecera antes. Mentira, eu o
reconhecera de pronto, ainda assim, era como se não visse a mesma pessoa.
Havia algo estranho. Eu me sentia estranho. No entanto, ele trazia no rosto
a mesma expressão que eu vira centenas de vezes.
Ruk sorriu para mim.
“Eu sabia que viria, Mu”.
Ele caminhou de volta para a cabana, passando ao meu lado.
“Lembra de quando erámos crianças e vínhamos aqui? Da vez que
nos escondemos na floresta para ver enquanto Velha fazia uma yantra? ”.
Fiquei calado. Lembrava-me de tudo aquilo, óbvio. Eu vivera tudo
aquilo. Mas aquele não era o mesmo Ruk. Não era meu irmão. Aquele
homem havia matado Velha Gilga. Havia conduzido os Escorpiões Negros
pelo Caminho da Serpente. Convidara-os para o templo de Heiwa, para
atacá-lo. Mais do que nunca, desejava que ele tivesse ido embora, que
jamais mais tivesse voltado. Shanjin será destruído.
“O que está fazendo, Ruk?”, perguntei, finalmente. “Por que os
trouxe aqui?”
Ele apoiou a mão na cabana e por algum tempo apenas fitou a lagoa.
“Os tempos mudaram, Mu. Precisamos agir ou Shanjin irá
desaparecer”.
“Você os trouxe aqui! Por sua culpa Shanjin será destruído”.
Ruk sorriu.
“Você ainda não entende, não é mesmo?”
Ele me encarava como a uma criança com dificuldade em aprender a
lição.
“O templo, Velha Gilga, Abade Kame. Todos eles não representam
nada. Símbolos de uma tradição doente que parou no tempo. Decrépita.
Decadente. A essência de Shanjin é muito maior, muito além deles. E ela
deve evoluir. Do contrário, tudo irá desaparecer. Não podemos deixar que
isso aconteça, Mu. Eu não posso deixar que isso aconteça”.
Havia convicção em suas palavras.
“Você perdeu o juízo, Ruk? Ficou maluco? As mortes... por acaso
não vê o que fez?”
“Todos tiveram o que mereceram. Karma , essa é a lei”.
“E que tipo de karma você acha que está atraindo para si?”
“Estou disposto a me sacrificar por um bem maior”.
Ruk andou em minha direção. De dentro do gibão, ele tirou o
rosário.
“Mu, juntos podemos fazer isso. Reconstruir Shanjin em sua glória.
Cresci contigo, sei que é diferente. Somos verdadeiros irmãos. Você não é
como eles”.
Eu queria fugir dali. Escapar daquele pesadelo. Senti meu próprio
rosário, igual ao de Ruk, pesar em meu pescoço.
“Na noite em que me expulsaram eu vi, Mu. Vi nos seus olhos como
era o único que realmente se importava. Todos os outros me julgando. Até
Nili. Sentindo-se superiores em seus pedestais de justiça ”.
“Então é disso que se trata Ruk, vingança?”
Ele riu.
“É assim tão difícil para você entender?”, debochou. “Não se trata
de vingança. Vingança é algo pequeno. O que busco é muito maior.
Reconheço que a expulsão me afetou. Mas sem ela talvez eu nunca
percebesse a verdade. O isolamento dos shenlongs é nocivo, não nos
permite discernir o que é real, Mu. Por isso você não percebe. Confie em
mim”.
Ruk estendeu a mão à frente; o cordão feito das sementes da
paineira-branca se entrelaçava em seus dedos.
“Entregue-me o Tomo das Formas”.
Eu me mantive na mesma posição. Ruk insistiu, pedindo
novamente. Continuei em silêncio. Sentia o peso do livro na sacola de pano
pendurada no ombro.
“Pois bem”, ele disse e desembainhou a espada. “Pelo bem de
Shanjin, terei de matá-lo, Mu”.
Então, Ruk atacou.
Erguendo a espada, golpeou num movimento vertical tão rápido que
mal tive tempo de reagir. Ainda tentei saltar para trás, mas a lâmina cortou
o fundo da sacola e depois minha perna esquerda. Levei a mão ao ferimento
enquanto recuava alguns passos. Por pura sorte, o corte fora superficial.
Ainda assim, ardia. Logo o sangue umedeceu a calça rasgada, formando um
círculo escuro cada vez maior em torno do ferimento. Duas das kaishis
caíram pelo buraco aberto na bolsa.
“Que patético, Mu”, Ruk ria. “Nunca conseguiu me vencer e acha
que vai ser agora? Se a lâmina estivesse envenenada como a dos escorpiões,
estaria morto. Vamos, entregue-me o Tomo”.
Ignorando a dor na perna, tentei ajeitar a sacola, mas o que consegui
foi rasgá-la ainda mais. O fundo se desfez, e as outras kaishi caíram junto
com o livro.
Ao ver o Tomo, Ruk investiu. Tentei recolher as coisas, mas era
tarde demais. Meu irmão correu com a espada apontada para mim. Pressenti
a estocada na linha do rosto. Porém, antes que desferisse o ataque, uma
figura gritou saltando da mata.
“Eeeeeeeeeeei!”
O homem atingiu Ruk, e os dois rolaram para o lado, quase até a
beira da lagoa. Só então notei que o vulto era Sarujin. Ele se ergueu tirando
o pó da roupa.
“Que droga, estou ficando velho”, disse, cansado, olhando para o
reflexo na água. Depois, veio até mim e rasgou um pedaço de pano da
manga. “Tome, Mu. Amarre isto no corte”.
Ruk também havia se levantado.
“Ainda vivo, Sarujin?”, perguntou. E eu senti o misto de desprezo e
irritação em sua voz.
“Já chega, Ruk! Está na hora de dar fim a esta loucura.”
“Vai me dar sermão, mestre?”
“O que você fez está além de qualquer sermão. Mas talvez eu possa
lhe dar uma boa surra de vareta. Chego à conclusão que as de quando era
garoto não foram suficientes”.
Sarujin buscou um graveto no chão. Como sempre, eu não via ódio
em suas palavras, todavia, sua expressão era severa.
Ruk avançou correndo.
“Afaste-se, Mu”.
Fiz como Sarujin ordenou.
Ele virou levemente o corpo. A mão direita apontava firme o
graveto para Ruk. O chi de Sarujin crescia à medida em que Ruk se
aproximava. Ele fintou o golpe frontal, girando com a espada num ataque
lateral na linha da costela do mestre. Por um momento, achei que Sarujin
estivesse perdido, mas moveu o braço tão rápido que mal pude acompanhar
quando a vareta desviou a lâmina. Ruk recuperou o equilíbrio, erguendo o
corpo numa investida de baixo para cima. Sarujin se esquivou com
facilidade e, em revide, atingiu suas costas com o graveto. Ruk gritou de
dor. A vareta certamente estava reforçada com chi – o que equivalia a ser
atingido por uma barra de ferro. Conseguir isso sem uma kaishi era muito
complexo, uma habilidade que poucos shenlongs possuíam; apesar disso,
Sarujin fazia parecer simples.
Ruk recuou.
“Então será do jeito mais difícil”.
Ele retirou do gibão uma pequena joia. A gema emitiu um brilho
vermelho assim que a encaixou no pomo da espada. Uma kaishi . A energia
de Ruk cresceu, envolvendo a arma que agora pulsava ameaçadora. Ele
parecia satisfeito por enfrentar Sarujin.
Desta vez, meu mestre atacou, tomando a iniciativa. Ruk antecipou
a investida com uma estocada. Embora o golpe tenha sido muito mais forte
e rápido que os anteriores, Sarujin conseguiu desviar. No entanto, Ruk foi
capaz de travar o graveto com a espada e, com um giro do punho, destruiu a
arma improvisada. A vareta envolta em chi se despedaçou em farpas,
deixando Sarujin desarmado. Ruk aproveitou a vantagem para desferir uma
sequência de ataques sobre meu mestre. A carga fez Sarujin recuar. Meu
irmão pressionava. Os dois se afastavam em direção à lagoa. Sarujin,
visivelmente, tinha cada vez mais dificuldade em antecipar os movimentos
de Ruk – que aos poucos encontrava brechas em sua defesa. A luta era
intensa. Eu tentava acompanhar o que acontecia, mas era impossível;
contudo, notava os cortes que surgiam pelo corpo de meu mestre.
Eu precisava fazer alguma coisa. Meu irmão iria matá-lo.
Fiquei de pé tentando desconsiderar a dor na perna. O sangramento
estancara, mas certamente se me mexesse demais, ele voltaria. Ruk deve ter
visto, pois disse:
“Fique aí onde está, Mu. Já vamos retomar de onde paramos”.
Sarujin, percebendo o momento, partiu para cima. Contudo, no
exato instante do avanço seus pés escorregaram na terra molhada. Ruk
aproveitou a brecha para cravar a espada na costela do meu mestre caído. A
ponta da lâmina repleta de chi penetrou com facilidade, sem qualquer
resistência da carne ou dos ossos. Sarujin urrou.
“Era essa surra que ia me dar, mestre?”, debochou Ruk.
Gritei, pedindo que parasse. Corri trôpego, da melhor forma que
podia para chegar até eles. Meu irmão apoiou o pé direito contra o homem
que era o mais próximo que tínhamos de um pai. E, com um pisão,
empurrou Sarujin para o lago. Seu corpo ficou parcialmente submerso na
beira da água.
“Não faça isso, Ruk”, ainda ouvi Sarujin dizer quando meu irmão
veio em minha direção.
“Mandei que esperasse, não foi Mu?”.
Ele me alcançou, atacando com chute em pleno ar. Mal puder ver o
golpe antes de ser arremessado por metros. Caí de lado com um baque seco.
A dor me dizia que algum osso da costela havia quebrado. Tentei me erguer
e, embora ainda atordoado, percebi que voltara para quase o mesmo ponto
de antes: as kaishis e o Tomo das Formas estavam poucos passos ao meu
lado. Ruk se aproximava. Arrastei-me com um esforço para junto do livro,
mas era tarde demais.
Mais uma vez, vi meu irmão erguer a espada para o golpe final. E,
mais uma vez, Sarujin me salvou.
Pela última vez.
Ele se arremessou entre a lâmina e eu no instante em que o fio
descia contundente. Como chegara até ali? Tudo foi tão rápido. O golpe em
diagonal fez um rasgo profundo no peito de Sarujin. Se estivesse mais
próximo, certamente teria sido cortado em dois. Suas pernas ruíram e ele
caiu para trás. Foram necessários alguns instantes até que compreendi o que
havia acontecido.
Sarujin estava morto.
Morto .
O desespero tomou conta de tudo. Sem pensar em nada, avancei
sobre Ruk com uma das kaishis na mão. Ele também atacou. Por uma
fração de momento, vi a espada se aproximar num golpe que deceparia meu
antebraço estendido. Gritei. Não por medo, mas sim para expelir toda a dor
e cólera que sentia na alma.
Então, antes que pudesse me atingir, a lâmina foi refletida. Como se
houvesse encontrado um escudo, Ruk foi arremessado para trás. O rosário
em sua mão se desfez em dezenas de contas que se espalharam enquanto ele
era erguido no ar.
Caiu no chão desnorteado, e eu me voltei para Sarujin. Aflito,
acolhi nos braços meu mestre que ainda agonizava, sem saber o que fazer.
Seu peito arfava com força. Não havia como conter o sangramento. Ainda
assim, sorria, como se quisesse me dizer que estava tudo bem. Mas não,
droga , não estava. Sarujin morria. E não havia nada que eu pudesse fazer.
Minhas lágrimas caíram sobre ele. Sarujin segurou em minha
camisa e, numa voz quase inaudível, disse:
“Mu... Seja Shanjin”.
Seu peito parou.
Fechei os olhos de meu mestre, o acomodando sobre a grama.
Ruk já estava de pé. Olhava para mim, para nós, como se nada
daquilo lhe dissesse respeito.
Aquele não era meu irmão.
A fúria crescia dentro de mim. Meus dedos pressionavam com força
a kaishi na palma da mão. Sentia o chi fluir. Intenso. A joia o atraía
formando uma aura de força que brilhava dourada em torno do meu punho.
Essa era a sensação de usar uma kaishi . Um misto de dois opostos: de um
lado, a gema drenava minha energia; ao mesmo tempo, ela me preenchia
com um influxo de poder, uma potência maior que não era só minha.
Improvisei com os restos da sacola uma amarra em minhas costas
para o Tomo. Em seguida, busquei no chão uma segunda kaishi . Agora, eu
tinha uma em cada mão. Concentrei-me nelas, sentindo o efeito aumentar
exponencialmente. A corrente de energia se concentrava e expandia no
ritmo da minha respiração. O chi das gemas e o meu chi se tornaram um só.
Ruk sorriu. Emanava uma força assassina deixando claro: queria me
matar.
Seja Shanjin. Então, ataquei.
De um salto percorri a distância entre nós. Ainda no ar, ameacei um
chute que fez Ruk erguer a guarda protegendo o rosto. Caí agachado e,
aproveitando a abertura, desferi um soco reto com toda a força na altura do
estômago. O poder do golpe arremessou Ruk contra a cabana do outro lado
da clareira. O impacto destruiu a parede e parte do teto numa nuvem de pó.
Aguardei. Logo em seguida, ouvi o som da madeira sendo removida
antes de vê-lo sair dos escombros. Sua testa sangrava e a camisa havia
rasgado. A espada na mão direita ainda irradiava o mesmo brilho feroz. Ele
deu um passo para fora dos destroços e fincou a lâmina na terra úmida.
“Me dê o Tomo, Mu”, ordenou, numa raiva fria.
Outra vez, não me movi.
“Como pode ficar do lado dessas pessoas?!”, perguntou. Lágrimas
surgiram, mas ele as conteve. “Ainda mais depois do que fizeram comigo!”
Então, virando-se, Ruk tirou a camisa. Imensas estrias vermelhas
cobriam suas costas. Marcas permanentes que formavam sulcos profundos
na carne irregular. A pele repuxada parecia prestes a romper. Estigmas da
remoção de sua yantra.
“Sempre fomos nós dois, Mu. Irmãos!”
Ruk apontava para mim.
“Traidor! Traidor!”, gritou.
Naquele momento, senti pena de Ruk e de seu destino.
Ódio. Karma .
Pressionei as kaishis , sentindo ferir a palma das mãos. Em vão, eu
tentava acalmar a mente cheia de pensamentos confusos. O vigoroso fluxo
de chi estimulava meus sentidos. De certa forma eu vivenciava cada detalhe
à minha volta. O ferimento que latejava na perna. A lâmina cravada na terra
úmida. O cheiro do sangue. O toque gentil da brisa que afagava o lago e as
folhas ao redor. A cólera. Sobretudo a cólera.
Canalizei a força para as gemas.
Ruk recolheu a espada e investiu. Mirava a ponta da arma enquanto
reduzia cada vez mais a distância entre nós. Esperei pela estocada, mas ela
não aconteceu. No último instante, ele girou para o lado, desferindo um
ataque lateral. Ruk era tão rápido que mais uma vez consegui apenas mover
o punho instintivamente em defesa. Desviei o golpe enquanto saltava para
trás. Desta vez, ele não fora repelido pela kaishi. O dorso da mão que
rechaçara a lâmina foi cortado sem que ao menos Ruk tivesse me atingido.
De algum modo, seu ataque rompera minha barreira de energia. Além disso,
a própria kaishi, segura na palma, também havia sido arranhada. Meu
coração acelerou. Como isso era possível? Apenas com o chi ? Eu mal tive
tempo de refletir, pois Ruk desferiu uma sucessão de golpes. Esquivei-me
como pude. A cada nova defesa mais um corte no corpo e mais uma fissura
nas kaishis . Eu não duraria muito assim.
Antecipei o golpe seguinte: no momento em que Ruk estocou,
aparei a lâmina, avançando com um soco circular. Porém, ele foi mais
rápido. Desceu a ponta da espada na vertical e a cravou em minha perna
direita. Meu ataque perdeu a força, atingindo debilmente sua costela. Urrei
de dor. Desesperado, agarrei o cabo da espada com toda a força. Ruk tentou
se desvencilhar. Tentou puxar a arma. As kaishis cortavam minhas mãos,
mesmo assim eu pressionava. Se as deixasse cair, minha perna seria
completamente destruída. A energia das gemas era a única coisa que
impedia Ruk. O aço atravessado em minha coxa direita queimava como se
estivesse em brasa. Eu não conseguia aguentar mais. Ruk me encarava com
as veias saltadas numa expressão de ódio. Concentrei todo meu chi restante
para as mãos. As kaishis se expandiam como se quisessem se libertar. Ruk
chutou minha perna, gritando para que soltasse. Eu reunia cada vez mais
energia. Ele chutou mais forte. Gritava. Mas eu não iria soltar. Quando me
dei conta, estava gritando também.
Então, senti as kaishis racharem em minhas mãos.
A imensa força liberada me arremessou para trás. Planei no ar por
alguns metros até colidir contra o solo. Meu corpo todo doeu antes mesmo
que pudesse entender o que havia acontecido. Semiconsciente, tentei ficar
de pé, mas não consegui. Sentia apenas uma imensa dor no lugar onde
minha perna direita deveria estar. Olhei para baixo, morrendo de medo do
que encontraria: não havia mais espada, o que restara estava agora
atravessado em minha coxa; a extremidade partida da lâmina surgia
irregular do enorme ferimento na região anterior. A pele queimava em
chagas que iam do vermelho vivo ao preto. Na parte de trás, a ponta de aço
irrompia da carne. Apoiei as mãos no chão, sentindo arder as palmas
feridas. Com muita dificuldade, consegui me levantar. Algum alívio me
veio ao perceber o Tomo das Formas ainda preso em minhas costas. O
sangue vertia da coxa num fio grosso e viscoso.
Ajoelhado do outro lado da clareira, Ruk olhava para as mãos. Os
dedos moviam-se débeis, desprendendo vapor. O chi devia tê-los queimado.
Era um milagre que ele ainda conseguisse mexer as mãos; mas também era
um milagre que eu estivesse de pé. De repente, minha vista turvou e achei
que fosse desmaiar. Quando me recuperei da tontura, vi que Ruk se
aproximava, cambaleando.
“Me entregue o livro, Mu”.
Tentei me afastar. Eu mal conseguia me manter de pé. Caminhar se
tornara um suplício. Eu mancava, me arrastando o melhor que podia para
longe, mas ele se aproximava cada vez mais. Parecia um demônio; a
personificação do próprio ódio. Busquei em volta alguma ajuda, mas sabia
que era inútil, ninguém viria. Impeli as pernas o melhor que pude pela trilha
em direção à Shanjin. Estava prestes a desmaiar. A ferida na perna se abria
cada vez mais. Meu pé direito chapinhava dentro da sapatilha cheia de
sangue.
A floresta ao redor sumiu do meu campo de visão. Eu só enxergava
a trilha à minha frente. Sem pensar em nada, segui pelo caminho que viera.
Talvez ainda houvesse alguém. Talvez conseguisse ajuda.
O frio aumentava à medida que eu prosseguia. Tonto, já não olhava
mais para trás. De fato, eu não olhava para lugar algum. Só percebi a
aproximação de Ruk no momento em que ele me atingiu. O pisão me
impulsionou à frente até bater numa árvore. Esforcei-me para fugir, porém
ele havia me alcançado. Acertou meu rosto com uma cotovelada abrindo
um corte na testa. O sangue escorreu por minha face ao mesmo tempo que
tudo girava. Corri a mão pela árvore buscando apoio para não cair. Ali, em
meio à superfície irregular, meus dedos encontram o objeto que aflorava do
tronco. Mesmo confuso, reconheci a adaga do soldado que havia me
perseguido pela floresta. Ruk fulminou minha costela já quebrada com uma
joelhada que me fez curvar, urrando de dor. Ao ver o Tomo das Formas
exposto, ele puxou a amarra para soltá-lo. Eu consegui segurar o livro, mas
ele puxava com força.
“Por que tanto ódio?”, eu me perguntava. Somos irmãos. Éramos
irmãos.
Shanjin. Destruído.
Shenlongs. Mortos.
Nili, Aga, Kame. Sarujin.
Mortos.
As lágrimas surgiam numa torrente.
Ruk está morto.
Ergui a mão, sentindo o toque do aço. Então, eu me arremessei
contra ele. Fomos ao chão. Sentia raiva. Tristeza. Dor. Queria que ele
jamais tivesse voltado. Jamais vê-lo novamente. Nunca mais. Usando a
última força que me restava, finquei a adaga no peito de Ruk. Primeiro, ele
lutou para se desvencilhar. Depois, engasgou com o sangue que lhe subiu
pela garganta. Por último, vi o brilho sumir de seus olhos.
Ruk estava morto. Eu havia matado meu irmão.
Deixe-me cair de lado, gritando. Olhava para cima. As lágrimas
ofuscavam minha visão refratando o verde das folhas. Meu corpo se movia
apenas em soluços, nada mais. A dor da alma suplantava a do corpo num
desespero tão intenso que fez tudo ao redor desaparecer. Não sei dizer por
quanto tempo fiquei deitado, chorando, ao lado do corpo de quem chamara
de irmão.
Também não sei dizer se estava lúcido quando ela chegou.
Sem dizer nada, recolheu o Tomo das Formas caído no chão e se
ajoelhou ao meu lado. Hei Shie afagou meu rosto enquanto erguia a faca. O
aço reunia em si o brilho da manhã. Eu não sentia mais meu corpo. No
entanto, o toque frio de sua mão era reconfortante.
“Está tudo bem”, ela sussurrou. “Está tudo bem”.
Meus olhos pesaram como nunca. E tudo escureceu.
Epílogo

Foram os gritos de comando vindos do andar de cima que me


despertaram, percebi depois.
Em princípio, achei que havia acordado no outro mundo. Abri os
olhos e, por algum tempo, apenas observei o teto: a luz penetrava através
das frestas entre as vigas de madeira escura. Minha cabeça pesava. Sentei-
me, desajeitado, descobrindo a dor e as bandagens pelo corpo. Aquilo me
trazia a certeza de que continuava entre os vivos; era difícil acreditar num
espírito em tal estado.
Todavia, eu não fazia ideia de onde estava. Busquei em volta algo
familiar, algo que de alguma maneira me dissesse que lugar era aquele. Mas
nada. O quarto era pequeno. Não havia outros móveis além da cama, uma
cadeira e a mesinha - onde um bule e uma muda de roupa descansavam.
Ali, sobre o tecido, reconheci meu rosário. Havia também um segundo. O
de Sarujin.
Levantei-me da cama, sentindo os músculos se tencionarem rijos. A
perna direita doía muito; não conseguia apoiar o peso sobre ela. A pele
repuxava sob a faixa do curativo que cobria toda a região da coxa, onde a
lâmina penetrara. Por quanto tempo dormira? Busquei nas mãos as marcas
que as kaishis haviam deixado, no entanto, encontrei apenas as linhas
naturais de sempre, nenhuma outra. Caminhei até a mesinha, tomando o
rosário de Sarujin em minhas mãos. As contas de olho-de-tigre refletiram os
fios de claridade quando as ergui diante dos olhos.
“Achei que ia gostar de uma lembrança dele”, ouvi.
Virei-me em direção a voz para encontrar o espadachim parado, bem
na entrada do quarto.
“Que bom que acordou, Mu”.
Ele ficou em silêncio, talvez esperando que eu dissesse alguma
coisa. Como não respondi, ele continuou:
“Cuidamos para que ele tivesse uma cerimônia. Todos eles, na
verdade. Faz três dias. Você ainda estava desacordado.”
Voltei minha atenção novamente para o cordão.
Um segundo homem surgiu na porta e cochichou algo para o
espadachim que não consegui ouvir. “Está tudo bem”, anuiu. Depois que o
homem se foi, ele se aproximou. Serviu um pouco do chá do bule, e aceitei
de forma automática a xícara que estendeu a mim.
“Onde estão os outros? Onde está o Tomo?”
Ele me olhava, tamborilando os dedos na porcelana. Não tocou no
chá.
“O que aconteceu com os outros?”, insisti.
“Chegamos tarde demais”.
Isso era óbvio, eu quis dizer. Não vamos deixar que Shanjin seja
destruído . Mentira. Todos mentiram. “Todos estavam mortos!”, quis gritar.
No entanto, empurrei as palavras presas na garganta com um gole do
líquido quente e escuro que tinha o gosto amargo das ervas do norte. Eu
odiava o chá do norte. Naquele curto momento, pensei no templo e em
meus companheiros shenlongs. Pensei em abade Kame, Nili e Aga. Em
Sarujin. Em Ruk. Lembranças. Como a sensação ainda presente em meu
rosto do toque onírico de Hei Shie e sua lâmina.
Eu não devia estar ali.
O canto de vozes graves vindo do andar de cima entrava através do
teto.
“Onde estou?”
O espadachim não respondeu. Perguntei de novo e ele disse:
“Venha comigo”.
Mancando, eu o acompanhei para fora do quarto. Atravessamos um
corredor estreito, passando por portas ainda menores e uma cozinha
apertada onde um homem, grande demais para ter qualquer tipo de conforto
ali, suava muito enquanto cortava cenouras com uma machadinha. Ele nos
fitou indiferente. Depois de um lance de escadas, chegamos ao convés.
Uma névoa branca e espessa cobria tudo ao redor deixando à vista apenas
os contornos dos três mastros com suas enormes velas. A pouca visibilidade
transformava os marujos em sombras desbotadas que cantavam, marcando
o ritmo dos trabalhos no cordame. Do tombadilho, o capitão gritava. E as
sombras prontamente atendiam suas ordens. Se os homens nos viram, não
deram qualquer importância. Tudo era muito estranho. A expressão em meu
rosto deve ter denunciado algo ao espadachim, pois no mesmo instante ele
apontou para proa, pedindo que eu fosse até lá. Não sei dizer por que fui.
Não confiava nele. Tudo era muito estranho.
Abri caminho através do ar condensado, sentindo o chão
escorregadio. Cruzei com marujos que continuaram a me ignorar. Olhei
para trás e o espadachim insistia, apontando em frente. Segui. O bico
triangular do navio ganhou forma à medida em que me aproximei. O
gurupés surgiu como uma lança se projetando sobre o mar. Mas eu não
conseguia ver o mar. Debrucei-me sobre a amurada. Ainda não conseguia
ver o mar, a névoa provavelmente o encobria. Foi naquele exato instante
que a ponta da embarcação rompeu o véu de bruma. E pude ver. Azul. Mas
não do mar. Minha mente relutou por alguns minutos até assimilar o que
meus olhos registravam.
Eu estava no céu.

O AUTOR
Diogo Andrade nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Formado em Economia
pela UFRJ, atuou por mais de 10 anos em empresa multinacionais na área
de petróleo e gás.

Porém, a paixão e o fascínio pela literatura, ficção e histórias fantásticas o


fizeram largar tudo e buscar o sonho de se tornar escritor.

Atualmente trabalha em seu próximo romance.

Para mais informações acesse:


https://www.facebook.com/cancaodosshenlongs/

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