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DIOGO ANDRADE
Para Carolina, por acreditar
SUMÁRIO
PARTE I
PARTE II
PARTE III
EPÍLOGO
Parte I
Era a primeira vez que eu assistia à expulsão.
O réu era Ruk. E Ruk era meu irmão.
Como shenlong, acredito que todos somos irmãos em jornada. E
para Ruk e eu, essa era uma forte verdade até então. Eu o conheci ainda
criança, antes mesmo de chegarmos em Shanjin. Eu subira na carroça que
passava pela estrada em direção ao norte, tentando viajar de graça sem ser
notado. Ruk, no entanto, chegara antes e já estava escondido em meio aos
barris de cerveja e lonas de couro. Brigamos pelo espaço e, por fim, o
condutor nos expulsou. Não havia nada por perto. Caminhamos o dia inteiro
sob o sol, sem água ou comida, até chegarmos à cidade mais próxima.
Nunca mais nos separamos.
Os pais dele haviam sido mortos por bandidos da montanha. Eu
nunca conheci os meus. Dormíamos onde permitiam; comíamos o que nos
davam; e pegávamos o que sobrava. Até roubamos quando foi necessário.
Um dia, enquanto tentávamos levar a tigela de moedas de um
shenlong, acabamos no Templo da Montanha, Shanjin. Por muito tempo
não entendi como aconteceu. Em nenhum momento o monge nos obrigou.
Nós simplesmente o seguimos, primeiro pela cidade, depois pela estrada,
depois por outras cidades e outras estradas até aqui, e aqui ficamos, como se
já pertencêssemos ao local. Na época, eu tinha sete anos, Ruk seis, e mais
de quinze anos passaram desde então.
Agora, meu irmão estava ali. Ajoelhado. Seus dedos percorriam as
contas do rosário na mão esquerda. Era difícil ler a expressão em seu rosto,
mas parecia resignado. Os olhos, sempre vivos, refletiam as chamas das
lanternas de pedra do pátio externo. A yantra gravada com a figura do
cavalo em suas costas estava desbotada. Por diversas vezes eu vira Ruk
treinar, executando formas onde aquela imagem esteve prestes a ganhar
vida e saltar da pele. Difícil acreditar que eram a mesma pessoa.
Somente shenlongs graduados podiam participar da expulsão. Os
mais de cinquenta monges presentes formavam um semicírculo em torno de
Ruk, vedando-lhe a entrada do templo. O simbolismo era claro: “Nós agora
impedimos sua passagem”. O silêncio e a luz fraca tornavam a noite mais
intensa.
Ruk sempre fora inquieto. Gostava de sair escondido de madrugada
para jogar e beber em Vila da Mata. Não era o único, claro, muitos monges
faziam isso. Eu mesmo já estivera no vilarejo diversas vezes em
comemorações. Todavia, a frequência começara a incomodar. Na maior
parte do tempo, os superiores faziam vista grossa contanto que
cumpríssemos as obrigações no dia seguinte. E, apesar de tudo, Ruk
cumpria. Não só realizava as tarefas como ainda se destacava nos treinos.
Até mesmo Shizu o elogiara em sua forma das quatro estações; o que, todos
sabíamos, significava muito vindo de Shizu.
Mas desta vez era diferente. Ruk havia matado um homem.
Entrara numa confusão no restaurante do vilarejo, quando Yat
mexeu com a filha do dono. Enfurecido, o homem partiu para cima deles
com um cutelo. Ruk o matou; segundo ele, por acidente, enquanto tentava
se defender. Os aldeões, irritados, perseguiram os dois shenlongs. Yat foi
morto. Ruk conseguiu escapar, retornando a Shanjin. A Barreira na floresta
fez com que os homens de Vila da Mata não conseguissem segui-lo. Todos
os aldeões se perderam na montanha procurando pelo Caminho da Serpente.
Logo que retornou, os outros monges perceberam que havia algo errado.
Então, Abade Kame foi chamado.
Ruk ainda tentou fugir ao perceber o que aconteceria, mas o
impediram. Eu não estava no alojamento nessa hora. Sarujin me obrigara a
ajudá-lo a costurar novas sapatilhas para as crianças. “As velhas estão
muito gastas. Vão acabar se machucando”. Eu o amaldiçoei por aquilo.
Apenas soube do ocorrido no dia seguinte. A notícia me afetou de tal forma
que nos primeiros dois dias mal comi. Eu me cobrava por não estar presente
assim que meu irmão voltou. Mas, depois de muito pensar, entendi que, na
verdade, fora o destino, a vontade de Heiwa. Caso contrário, eu também
estaria ali, de joelhos ao seu lado.
Karma. Aquele era o de Ruk.
Nili e Aga disseram que naquela noite, na hora em que Abade Kame
apareceu, Ruk desatou a chorar se encolhendo como uma criança. Pedia
desculpas, dizendo que não queria que nada daquilo tivesse acontecido. Foi
um acidente, gritava. Depois emudeceu. Não respondia a nenhuma das
perguntas. Abade Kame o questionava sobre o que havia ocorrido, onde
estava Yat, mas ele nada dizia. Após insistir por algum tempo, o abade
pressionou o polegar bem entre os olhos de Ruk e o indicador na lateral da
cabeça. Na ponta dos dois dedos surgiram chamas azuis, foi o que Nili e
Aga disseram. Em seguida, os olhos de Ruk adquiriram um tom leitoso,
fugidio, e ele começou a falar. Contou tudo. A confusão no restaurante. A
morte do dono que os atacara com um cutelo. A perseguição dos moradores
e como haviam matado Yat. A volta para Shanjin.
“Depois”, Aga disse, “Abade Kame retirou a mão e Ruk caiu
desacordado. Daí ele nos mandou colocá-lo num dos quartos privados e
trancar a porta, deixando alguém de vigia”.
“Desceu a montanha sozinho até a vila para conversar com os
moradores”, continuou Nili. “O mais impressionante é que em nenhum
momento ele pareceu irritado com Ruk. Mesmo depois, quando voltou de
Vila da Mata e disse que havia tido trabalho para acalmar os ânimos por lá.
Garantiu aos moradores que os monges nunca mais causariam problemas”.
No dia seguinte, três monges levaram uma oferenda à família do
dono do restaurante. Na volta, trouxeram o corpo de Yat. O funeral
aconteceu naquela tarde.
Alguém disse.
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O AUTOR
Diogo Andrade nasceu em 1985, no Rio de Janeiro. Formado em Economia
pela UFRJ, atuou por mais de 10 anos em empresa multinacionais na área
de petróleo e gás.