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CAPTAÇÃO DE CLIENTELA E LEGALTECHS: O POLEMICO CASO DA

EMPRESA LIBER FLY E EMPRESAS SIMILARES

Everson Pereira Duarte ¹

RESUMO ABSTRACT

As Lawtechs e Legaltechs são novas Lawtechs and Legaltechs are new


tecnologias que buscam modernizar e dar technologies that seek to modernize and
maior eficiências aos profissionais do provide greater efficiency to legal
Direito. Elas são parte das mudanças professionals. They are part of the changes
vividas no mundo atual em todas as áreas experienced in the current world in all areas
e que acabam também apresentando and which also end up presenting
controvérsias e divergências com as controversies and divergences with old and
práticas antigas e consolidadas na área consolidated practices in the legal area and
jurídica e que estão legisladas no Código which are legislated in the OAB Code of
de Ética e Disciplina da OAB, pois não há Ethics and Discipline, as there is no specific
regulamentação específica sobre essas regulation on these platforms and their
plataformas e seus limites no exercício da limits in the practice of law, to avoid
advocacia, para evitar-se a captação e attracting clients and encouraging litigation.
clientela e o estímulo ao litígio.
PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS

Lawtechs – Legaltechs – Captação de Lawtechs – Legaltechs – Customer


clientela acquisition
SUMÁRIO
Introdução 1. Conceitos. 1.1 Lawtechs e Legaltechs no Brasil. 2. Código Ética e Disciplina da
OAB 3. O Caso Liberfly. 3.1 OAB x Legaltechs. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Já é sabido que vivemos no mundo da comunicação rápida e sem fronteiras


quando se fala em tecnologia, onde a informação flui de maneira tão rápida e
dinâmica que os conceitos, os processos e os métodos se moldam e se alteram na
mesma velocidade que as tecnologias se modernizam.

Essas mudanças alteram o cotidiano e a vida das pessoas em vários aspectos:


nos relacionamentos interpessoais, na temporalidade das ações e nas profissões. O
Direito não é diferente, pois a sua operação fundamenta-se nesses aspectos citados,
principalmente no ramo da advocacia.

¹ Graduando em Direito pela Universidade Federal do Ceará

Em 2015, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Carmem Lúcia em


entrevista à revista Valor Econômico afirmou que o número de processos em
tramitação no STF era assustador. Esta conclusão faz referência a uma comparação
à corte superior norte americana, que possuía uma quantidade muito menor, e
justifica que há uma cultura da litigância na sociedade brasileira.
Na mesma entrevista, ela elogia a informatização dos processos judiciários,
com a implementação, em 2009, do Processo Judicial Eletrônico, que deu maior
celeridade e reduziu custos dos processos. Realmente, este foi o marco inicial para a
informatização judicial, e a partir disso, propiciou o desenvolvimento de outros
avanços tecnológicos que hoje permeiam os processos jurídicos e o Direito Brasileiro.

1. CONCEITOS

Com a expansão da inteligência artificial, surgiram novas ferramentas com o


intuito de dar maior eficiência e rapidez no exercício da advocacia, principalmente no
que se refere a gestão de processos, contagem de prazos, buscas por jurisprudências
e doutrinas, facilitando e transformando a rotina jurídica dos escritórios de advocacia.

São as chamadas lawtechs e legaltechs. No Brasil, são conceitos que se


confundem, pois tratam-se de startups voltadas para a transformação das rotinas
jurídicas, à medida que identificam as dificuldades e apresentam soluções
tecnológicas facilitando os procedimentos jurídicos.
O site Fintech, em publicação “Qual a diferença entre lawtech e legaltech?

Descubra o que muda”, confirma:


A diferença entre lawtech e legaltech está nos mínimos detalhes. No Brasil,
não há como diferenciar ambos os termos na prática. Já no exterior, é
possível distinguir as palavras de acordo com o cliente para quem a startup
opera, mas isso ainda pode mudar.
E para justificar a afirmação acima, define:
Basicamente, o significado de lawtech vem da combinação das palavras “law”
e “technology“, que podem ser traduzidas para o português como “lei” e
“tecnologia”, nesta ordem.
Ou seja, as lawtechs são startups que criam soluções disruptivas em forma
de produtos ou serviços que facilitam procedimentos jurídicos.
[...] O termo legaltech, por sua vez, traz a junção das palavras “legal” +
“technology”, que podem ser traduzidas para “tecnologia legal” ou “tecnologia
jurídica”.
De modo simples, as legaltechs buscam encontrar soluções tecnológicas
para advogados e firmas jurídicas automatizarem suas operações e
procedimentos internos. Isto é, são serviços destinados ao próprio mercado.
Automatizando suas operações e procedimentos internos, advogados e
escritórios buscam reduzir custos, dar maior eficiência nas atividades rotineiras e
aumentar a produtividade com a redução no tempo em montagem de processos,
controle de prazos e até mesmo possibilitar a mediação de conflitos na forma online.

1.1 Lawtechs e Legaltechs no Brasil

Tal ramo cresceu de forma muito rápida no Brasil, a ponto de em 2017 ser
criada a AB2L, naquela oportunidade com 20 associadas e atualmente, segundo seu
próprio site com mais de 600 associados, e que de forma organizada propõe
transformar o Direito Brasileiro atuando na educação do mercado, organização e
incentivo à interação entre o ambiente tecnológico e o jurídico, no qual propõe que os
profissionais do direito deixem funções repetitivas que não exigem esforço intelectual
para softwares, proporcionando mais tempo para os profissionais se dedicarem nas
atividades mais complexas e que exigem capacidades da área afetiva.

Mesmo com essas diferenças, existem categorias que estão interligadas ao


modelo de negócio dessas startups e que visam atender à vários tipos de serviços.
Segundo a Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L), existem 13
categorias de startups jurídicas, divididas em: analytics e jurimetria; automação e
gestão de documentos; compliance; conteúdo jurídico, educação e consultoria;
extração e monitoramento de dados públicos; gestão de escritórios e departamentos
jurídicos; Inteligência artificial no setor público; redes de profissionais; regtech;
resolução de conflitos online; taxtech; civictech; e real estate tech.

2. CÓDIGO DE ÉTICA E DISPCIPLINA DA OAB

Até o ponto em que essas startups apresentam soluções tecnológicas para


racionalizar e dar maior eficiência aos trabalhos dos advogados, tudo bem. Porém,
algumas startups oferecem também serviços de uma forma que, no entendimento da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), atentam contra princípios positivados em seu
Código de Ética e Disciplina, mais precisamente no que se refere à proibição à
captação de clientela, a mercantilização e o estímulo ao litígio.

Este é um assunto do qual a OAB tem cada dia mais discutido sobre quais os
limites do marketing jurídico e os impactos nas questões éticas profissionais que as
plataformas digitais podem causar. Diante desse cenário, o Conselho Federal da OAB
publicou o Provimento 205/2021, dispondo sobre a publicidade e a informação da
advocacia, no qual há uma preocupação em regular mais especificamente sobre
como deve ser a publicidade profissional.
Cabe ressaltar o Caput e o § 1º do Art 3º, que ratifica a publicidade sóbria,
informativa e discreta.
Art. 3º A publicidade profissional deve ter caráter meramente informativo e
primar pela discrição e sobriedade, não podendo configurar captação de
clientela ou mercantilização da profissão, sendo vedadas as seguintes
condutas:
§ 1º Entende-se por publicidade profissional sóbria, discreta e informativa a
divulgação que, sem ostentação, torna público o perfil profissional e as
informações atinentes ao exercício profissional, conforme estabelecido pelo §
1º, do art. 44, do Código de Ética e Disciplina, sem incitar diretamente ao
litígio judicial, administrativo ou à contratação de serviços, sendo vedada a
promoção pessoal.
Em 2022, a OAB-SP publicou edital de criação do “Marketplace de Legaltechs
da OAB SP”, a fim de credenciar empresas de tecnologia, consultorias e legaltechs
que quisessem ofertar serviços aos profissionais daquela seccional, numa ação de
estímulo ao empreendedorismo e à inovação, demonstrando que a OAB não é contra
as legaltechs.

3. O CASO LIBERFLY

O caso da empresa Liberfly trata justamente do dilema sobre o que


caracteriza captação de clientela e estímulo ao litígio e o que se trata de mediação e
busca ao direito o cidadão.
Neste caso, a empresa oferece o serviço de mediação com empresas aéreas
que porventura tenham cometido alguma infração ao Código do Consumidor, como
atrasos de vôos, overbooking, extravio de bagagem, desde que o cidadão lesado
transfira à empresa o possível passivo jurídico, que poderá ser uma indenização de
até R$ 10.000,00, em troca do recebimento, em até 48 horas, de um valor de mil
reais.
A empresa começou suas atividades em 2016 por iniciativa de 3 jovens
advogados, inspirados na legislação europeia que previa a indenização de
companhias aéreas em casos de atrasos e cancelamento de voos. Em 2019, a OAB
RJ impetrou ação judicial contra a Liberfly acusando-a de publicidade ilícita e
mercantilização da advocacia, pois entende que, em seu site, há o estímulo ao litígio,
prática vedada em seu Código de Ética.
Em primeira instância, o juiz condenou a empresa a se “abster de praticar
qualquer ato de anúncio, de publicidade ou de divulgação de oferta de serviços
consistentes na angariação ou captação de clientela, por qualquer meio, físico ou
digital”, além do pagamento de R$ 4 mil em honorários. Na decisão, o juiz entendeu
que a atividade da empresa não se caracteriza por mediação, pois não há
imparcialidade e sim, a defesa do direito de uma das partes, portanto o juiz entendeu
que trata-se do exercício da advocacia, em consequência deve atender o que rege o
Código de Ética.
É interessante analisar que a atividade-fim da empresa em procurar a
negociação do seu cliente com a empresa aérea não está sendo questionada e não
foi considerada ilegal, o problema está na forma como oferece seu serviço, ou seja, a
publicidade e o estímulo ao litígio.
A empresa afirma que realiza a mediação porque, em caso de fracasso na
negociação e se o cliente quiser buscar a via judicial, ele poderá escolher outro
advogado ou escritório. Por fim, a empresa recorre da decisão de primeira instância.
É importante também entender que o Provimento 205/2021 da OAB entende
que a captação de clientela trata-se da utilização de estratégias de marketing que
atraem os clientes na promessa de vantagens futuras por meio da contratação de
seus serviços e o litígio judicial, conforme abaixo:
Art. 2º Para fins deste provimento devem ser observados os seguintes
conceitos:
VIII - Captação de clientela: para fins deste provimento, é a utilização de
mecanismos de marketing que, de forma ativa, independentemente do
resultado obtido, se destinam a angariar clientes pela indução à contratação
dos serviços ou estímulo do litígio, sem prejuízo do estabelecido no Código
de Ética e Disciplina e regramentos próprios.

3.1 OAB x Legaltechs

Casos parecidos ocorrem com empresas como a QuickBrasil, que oferece


serviços parecidos com a Liberfly, no qual oferece mil reais ao viajante que renuncia
qualquer valor advindo de negociação ou processo judicial contra a companhia aérea,
mas que pretende expandir seu negócio para as áreas de saúde, financeira e
telecomunicações. Neste caso, a justiça também determinou que a empresa excluísse
do seu site e de redes sociais o anúncio de serviços advocatícios, consultoria jurídica
e publicidade que esteja fora dos padrões exigidos pelo Código de Ética da OAB.
Outro caso também ocorre com a Resolvvi, startup criada em Fortaleza, mas
que teve desfecho diferente pois o juiz entendeu que não há exercício ilegal da
advocacia porque os serviços são realizados por advogados. Nessa plataforma, além
de atuar em casos de serviços prestados por companhias aéreas, atuam também em
casos de negativação de crédito indevida.

CONCLUSÃO

De todo o exposto, percebe-se que os avanços tecnológicos também


permeiam o meio jurídico, trazendo benefícios e controvérsias. É inegável a
contribuição processual e nas atividades rotineiras com a informatização do mundo
jurídico, seja nos tribunais, seja nos escritórios de advocacia, porém a falta de uma
regulamentação mais específica tem gerado discussões e desentendimentos,
principalmente com a OAB e o Poder Judiciário, que também não firmou
jurisprudência sobre qual a forma e quais os limites de atuação dessas plataformas na
atividade advocatícia, tanto que vimos decisões diferentes em casos semelhantes.

Há de se ter uma compreensão sobre o mundo digital que atualmente


vivemos, além do entendimento de que o exercício da advocacia está exigindo
profissionais inovadores, empreendedores e entendedores dos anseios da sociedade
e da Justiça.

As startups vieram para ficar e buscam maior produtividade dos profissionais


do Direito, além do maior acesso à informação e à justiça, elencados na Constituição
Federal de 1988.

Portanto, diante dessa inevitabilidade de expansão dos meios tecnológicos, o


Direito brasileiro deve se adequar, a fim de se organizar, regulamentar e aproveitar
essas novas possibilidades, e se evitar ser mais um obstáculo do cidadão à justiça.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988
______. Lei Federal n° 8.906, de 04 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Brasília, 1994. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm. Acesso em: 02/12/2023.
______. Provimento nº 205/2021, de 21 de julho de 2021. Dispõe sobre a publicidade e a informação
da advocacia. Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Brasília, 2021. Disponível em:
https://deoab.oab.org.br/pages/materia/345668?termo=. Acesso em: 02/12/2023.

PAIVA, Letícia. Startup que compra direitos judiciais de passageiros é condenada em ação da OAB.
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Lawtech & Legaltechs. C2023. Sobre. Disponível em: https://tecnoblog.net/responde/referencia-site-
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Qual a diferença entre lawtech e legaltech? Descubra o que muda. Fintech. 2020. Disponível em:
https://fintech.com.br/blog/startup/diferenca-entre-lawtech-legaltech/. Acesso em: 02/12/2023.

ROLFINI, Fabiana. OAB x legaltechs: afinal, startups podem ameaçar o futuro da advocacia?.
Startups.com.br. São Paulo: 2021. Disponível em: https://startups.com.br/noticias/oab-x-legaltechs-
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JORNAL DA ADVOCACIA. OAB SP. OAB SP divulga edital para Marketplace de Legaltechs. São
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CONSULTOR JURÍDICO. OAB aprova novo provimento sobre publicidade e propaganda da advocacia.
2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-15/oab-aprova-provimento-publicidade-
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SANTANA, D.; CARINA MACEDO JORDAN, D.; LUCAS CRUZ NOGUEIRA, J.; SENA DOS SANTOS
RAMALHO, M. A.; SENA DOS SANTOS RAMALHO, M. C.; TORRES MORAES DIAS LIMA, M. E.
LEGALTECHS E LAWTECHS: CONSIDERAÇÕES NO DIREITO BRASILEIRO. Res Severa Verum
Gaudium, Porto Alegre, v. 7, n. 1, 2022. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/index.php/resseveraverumgaudium/article/view/124640. Acesso em: 3 dez. 2023.

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