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Nascimento e Vida escondida

de Maria e de Jesus.

1. Introdução. Deus quer um seio sem mácula.


“Deus me possuiu no princípio de seus caminhos.”
Salomão, Provérbios cap. 8 v. 22.

22 de agosto de 1944.
1.1
Jesus me ordena: “Pega um caderno todo novo. Copia, na primeira
folha, o ditado do dia 16 de agosto. Neste livro se falará dela”.
Obedeço e copio.

16 de agosto de 1944.
1.2
Jesus diz:
– Hoje escreve apenas isto. A pureza, na sua expressão máxima, tem um
tal valor que torna o seio de uma criatura capaz de conter o que não podia
ser contido.
A Santíssima Trindade desceu com a sua perfeição em um pequeno
espaço, habitando-o com as suas Três Pessoas, encerrando lá o seu Infinito,
sem diminuir-se com isso, pois o amor da Virgem e a vontade de Deus
dilataram este espaço até transformá-lo num Céu. Eis como essas
características se manifestaram:
Assim como no sexto dia[1], o Pai recria a Criatura, tendo uma “filha”
digna e verdadeira, feita à sua perfeita semelhança. A imagem de Deus
estava estampada em Maria de tal modo que só no Primogênito do Pai lhe
era superior. Maria pode ser chamada a “segundogênita” do Pai porque, pela
perfeição que lhe foi dada e sabida conservar, por dignidade de esposa e
mãe de Deus e também de Rainha do Céu, vem depois do Filho do Pai no seu
eterno Pensamento, que “ab aeterno” nela se compraz;
o Filho, sendo também para ela “Filho” ensinando-a, por mistério de
graça, a sua verdade e sabedoria quando ainda não era mais que um embrião
que lhe crescia no ventre;
o Espírito Santo, aparecendo entre os homens por uma antecipada
Pentecostes, por uma prolongada Pentecostes, Amor “naquela que amou”,
consolação dos homens, pelo fruto do seu ventre, santificação, pela
maternidade do Santo.
1.3
Deus, para manifestar-se aos homens, da forma nova e completa que
inicia a era da Redenção, não escolheu para seu trono um astro do céu, nem
o palácio real de um poderoso. Não quis nem mesmo as asas dos anjos como
base para seus pés. Quis um seio sem mácula.
Eva também tinha sido criada sem mancha. Mas espontaneamente quis
corromper-se. Maria, tendo vivido num mundo corrupto (Eva, ao contrário,
vivera num mundo puro) não quis prejudicar a sua inocência nem mesmo
com um pensamento voltado ao pecado. Sabia que o pecado existe. Viu os
vultos diversos e horríveis. Viu todos, até o mais horrendo vício: o deicídio.
Mas os conheceu para expiá-los e ser, eternamente, aquela que tem piedade
dos pecadores e ora por suas redenções.
1.4
Este pensamento será introdução a outras coisas santas que darei para
teu conforto e de muitos outros.
[1] sexto dia da criação, descrito em: Génesis 1,24-31.
2. Joaquim e Ana fazem um voto ao Senhor.
22 de agosto de 1944.
2.1
Vejo o interior de uma casa. Nela está sentada, junto a um tear, uma
mulher de idade. Diria, ao vê-la com os cabelos antes pretos, agora
grisalhos, e no rosto não enrugado mas já cheio daquela seriedade que vem
com os anos, que ela possa ter entre cinqüenta e cinqüenta e cinco anos. Não
mais.
Ao indicar estas idades femininas me baseio no rosto de minha mãe,
cuja imagem tenho mais que nunca presente nestes dias que me lembram os
seus últimos dias junto ao meu leito… Depois de amanhã fará um ano que
não a vejo mais… Minha mãe tinha um rosto jovial, sob os cabelos
precocemente embranquecidos. Aos cinqüenta anos eram brancos e pretos
como no fim de sua vida. Mas, exceto a maturidade do olhar, nada
denunciava os seus anos. Por isso poderia errar também ao dar às mulheres
idosas um certo número de anos.
Esta que vejo tecer, em uma sala toda clara de luz, que penetra da porta
escancarada sobre um grande pomar — diria, um sitiozinho, porque se
estende num sobe e desce, até uma encosta verde — é bonita em seus traços
decididamente hebreus. Olhos negros e profundos que, não sei porquê, me
lembram os de João Batista. Mas este olhar sendo altivo como de uma
rainha, é doce também. Como se sobre o seu coruscar semelhante ao de uma
águia fosse estendido um tênue véu azul. Doce e apenas um pouco triste,
como de quem pensa, e lamenta, as coisas perdidas. A tez é morena, mas não
excessivamente. A boca, levemente grande, é bem desenhada, e está parada
num gesto austero que porém não é duro. O nariz é comprido e delicado,
levemente inclinado para baixo. Um nariz aquilino que fica bem com aqueles
olhos. É robusta, mas não gorda. Bem proporcionada e creio que alta, a
julgar de como aparece sentada.
Parece-me que está tecendo uma cortina ou um tapete. As lançadeiras
multicolores correm rápidas sobre a trama que é marrom escuro, e o que já
está feito mostra um vago entrelaçamento de galões e rosáceas nos quais
verde, amarelo, vermelho e azul profundo se cruzam e se fundem como em
um mosaico. A mulher está vestida com uma roupa muito simples e escura.
Um roxo-avermelhado que parece igual a alguns amores-perfeitos.
2.2
Levanta-se ao ouvir bater à porta. É alta realmente. Abre.
Uma mulher lhe pede:
– Ana, queres dar-me a tua ânfora? Eu a encherei para ti.
A mulher tem consigo um menininho travesso de cinco anos que se
pendura imediatamente nos vestidos da nominada Ana, que o acaricia
enquanto vai em um outro cômodo e retorna com uma bonita ânfora de cobre,
que oferece à mulher dizendo:
– Tu és sempre boa, com a velha Ana. Deus te recompense por isto e
pelos filhos que tens e terás, tu bem-aventurada!
Ana suspira.
A mulher a olha e não sabe o que dizer por aquele suspiro; para desviar
a compaixão, que se compreende existe, diz:
– Eu te deixo Alfeu, se não te aborreces, assim posso andar mais
depressa e te encherei muitas moringas e jarras.
Alfeu está bem alegre de ficar, e explica-se o motivo. Tendo ido embora
a mãe, Ana o pega no colo e o leva ao pomar, o levanta até uma parreira de
uvas loiras como topázio e diz:
– Come, come, que são gostosas.
E o beija no rostinho sujo de suco de uva, que o menino arranca
avidamente do cacho.
Depois ri com gosto, e parece imediatamente mais jovem por causa dos
dentes bonitos que aparecem e pela alegria que lhe cobre o rosto, anulando
os anos, quando o menino diz:
– E agora o que me dás?
Ele a olha com dois olhos grandes arregalados de um cinzento azul
escuro.
Ela ri e brinca inclinando-se sobre os joelhos, dizendo:
– O que me dás se te dou… se te dou… adivinha!
O menino, batendo as mãozinhas, diz todo risonho:
– Beijos, beijos te dou, Ana bonita, Ana boa, Ana mamãe!…
Ana, ouvindo dizer: “Ana mamãe”, dá um verdadeiro grito de afeto
jubiloso e se abraça contra o pequenino, dizendo:
– Oh que alegria! Querido! Querido! Querido!
A cada “querido” um beijo desce sobre a pequena face rósea. E depois
vão a uma estante, e vai tirando de um prato pãezinhos de mel.
– Fiz os pãezinhos para ti, beleza da pobre Ana, para ti que me queres
bem. Mas, diz-me, quanto me queres bem?
E o menino, pensando naquilo que mais o impressionou, diz:
– Tanto quanto amo o Templo do Senhor.
Ana o beija ainda sobre os olhinhos espertos, sobre a boquinha
vermelha, e o menino a toca de leve como um gatinho.
A mãe vai e vem com o cântaro cheio e ri sem dizer nada. Ela os deixa
ao seu entusiasmo.
2.3
Entra do pomar um homem ancião, um pouco mais baixo que Ana, com
uma cabeça de cabelos espessos todos brancos. Um rosto claro, de barba
aparada, com dois olhos azuis como turquezas entre cílios de um castanho
claro quase loiro. Está vestido de marrom escuro.
Ana não o vê porque virou-se de costas à porta, e ele vem atrás dela
dizendo:
– E a mim nada?
Ana vira-se e diz:
– Oh Joaquim! Terminastes o teu trabalho?
Ao mesmo tempo, o pequeno Alfeu lhe abraça os joelhos dizendo:
– A ti também, a ti também!
Quando o ancião se inclina e o beija, o menino cinge-lhe o pescoço
despenteando-lhe a barba com as mãozinhas e com beijos.
Joaquim também tem o seu presente. Tira de trás das costas a mão
esquerda e lhe oferece uma maçã tão bonita que parece de cerâmica. Rindo
diz ao menino, que estende as mãozinhas avidamente:
– Espera que a corto em fatias para ti. Assim não podes. É maior do que
tu!
Com um canivete que carrega à cintura, uma faca de podador, a corta em
fatias, parecendo dar de comer a um passarinho no ninho, tal é o cuidado
com que coloca os bocados na boquinha aberta que mastiga e mastiga.
– Mas olha só que olhos, Joaquim! Não parecem dois pedacinhos do
mar da Galiléia, quando o vento da noite lança um véu de nuvem no céu?
Ana fala apoiando uma mão nas costas do marido e apoiando-se também
levemente a si mesma, num gesto que revela um profundo amor de esposa,
um amor intacto, depois de muitos anos de casamento.
Joaquim a olha com amor e concorda dizendo:
– Maravilhosos! E aqueles caracoizinhos? Não têm a cor da palha que o
sol secou? Olha: entre eles há uma mistura de ouro e cobre.
2.4
– Ah! Se tivéssemos tido um menino, teria querido assim, com estes
olhos e estes cabelos…
Ana está inclinada, aliás, ajoelhada e com um grande suspiro, beija os
dois grandes e belos olhos cinza-azulados.
Joaquim também suspira. Mas quer consolá-la. Coloca-lhe a mão sobre
seus cabelos crespos e embranquecidos e lhe diz:
– Convém ainda esperar. Deus tudo pode. Enquanto se é vivo, o milagre
pode acontecer, especialmente quando se ama e se é amado.
Joaquim frisa muito as últimas palavras.
Mas Ana calada, desalentada, está com a cabeça inclinada para não
mostrar duas lágrimas que descem, e que somente o pequeno Alfeu vê;
admirado e angustiado por ver a sua grande amiga chorar, como faz algumas
vezes, levanta a mãozinha e enxuga aquele pranto.
– Não chores Ana! Somos felizes assim mesmo. Ao menos eu sou,
porque tenho a ti.
– Eu também. Mas não te dei um filho… Penso que desagradei ao
Senhor, já que me secou as entranhas…
– Oh minha mulher! Em que tu, santa, queres ter-lhe desagradado?
Escuta. Vamos ainda uma vez ao Templo. Por este motivo. Não só pelos
Tabernáculos. Façamos uma longa oração… Talvez te aconteça como com
Sara… ou com Ana de Elcana[2]. Muito esperaram, e se acreditavam
reprovadas por serem estéreis. Ao invés disso, nos céus de Deus,
amadurecia um filho santo para elas. Sorri, minha esposa. O teu pranto me
dói mais do que não ter prole… Levaremos Alfeu conosco e o faremos orar,
ele que é inocente… Deus ouvirá a sua e a nossa oração, nos atendendo
então.
– Sim. Façamos um voto ao Senhor. Será seu o recém-nascido. Contanto
que nos conceda… Oh! Ouvi-lo chamar-me “mamãe”!
E Alfeu, espectador admirado e inocente:
– Eu te chamo assim!
– Sim, querida alegria… mas tu tens a tua mamãe e eu… eu não tenho
nenhuma criança…
A visão termina aqui.
2.5
Entendo que iniciou o ciclo do nascimento de Maria. E estou muito
contente, porque o desejava muito. Penso que também o senhor[3] ficará
contente.
Antes que eu começasse a escrever, ouvi a Mãe dizer:
– Filha, escreve então sobre mim. Todo o teu desgosto será consolado.
Enquanto dizia isto, me pousava a mão sobre a cabeça em uma suave
carícia. Depois veio a visão. Mas a princípio, ou seja, enquanto não ouvi
chamar a senhora de cinqüenta anos por nome, não havia compreendido estar
diante da mãe da mãe e por isto da graça do seu nascimento.
[2] como com S ara, em: Génesis 17,15-21; 18,10-15; 21,1-3; com Ana de Elcana, em: 1 Samuel 1; 2,1-10. M encionadas
como as mulheres que tiveram o Dom da maternidade mesmo sendo idosas e estéreis (Sara é mãe de Isaac, Ana de Elcana é mãe
do p rofeta Samuel), serão igualmente recordadas em: 104.4 -138.4 -300.2 -346.4 -473.8 -486.4 -561.15 -569.4.
[3] também o senhor é o director esp iritual da escritora, o p adre Romualdo M . M igliorini, da Congregação “Ordine dei Servi
di M aria”, ao qual M V se dirige com frequência. Por vezes vem favorecido um seu desejo (como em: 44.7 e em 45.10) ou lhe é
dedicado um ep isódio (como em: 58.1) ou lhe é dirigido um ensinamento (como em nota a 180.5 e em 234.10) ou lhe vem feita
uma confidência (como em 185.1 e 212.3). Leva a Comunhão à escritora (108.3).
3. A festa dos Tabernáculos.
Joaquim e Ana possuíam a sabedoria.
23 de agosto de 1944.
3.1
Antes de continuar, faço aqui uma observação.
A casa não me parece aquela já bem conhecida de Nazaré. Ao menos o
ambiente é muito diferente. Também o pomar é mais vasto, e além disso,
pode-se ver os campos. Não muitos, mas enfim, alguns. Depois, quando
Maria casou-se, havia só o horto, vasto mas limitado a horto, e este quarto
que vi, nunca vi em outras visões. Não sei se devo pensar que, por motivos
pecuniários, os pais de Maria se desfizeram de parte de seus pertences ou se
Maria, saindo do Templo, passou para uma outra casa, talvez presenteada
por José. Não me lembro se nas visões e lições passadas tive qualquer
indício seguro de que a casa de Nazaré fosse a casa nativa.
A minha cabeça está muito cansada. E depois, sobretudo por causa dos
ditados, eu me esqueço logo das palavras, mesmo se os comandos me
permanecem gravados na mente e a luz me permanece na alma. Mas os
pormenores se desvanecem imediatamente. Se depois de uma hora tivesse
que repetir aquilo que ouvi, com exceção de uma ou duas frases principais,
não saberia mais nada. Enquanto que as visões ficam vivas na mente, porque
tive de observá-las por mim mesma. Recebo os ditados. As visões, ao invés,
devo perceber. Por isto, elas ficam vivas no pensamento, pelo esforço em
observar as suas fases.
Esperava que houvesse um ditado sobre a visão de ontem. Em vez disso,
nada.
3.2
Começo a ver e escrevo.
Fora dos muros de Jerusalém, sobre as colinas e entre as oliveiras há
uma grande multidão. Parece uma enorme feira. Mas não existem bancas e
barracões. Não há o vozerio de charlatães e vendedores. Nem jogos. Há ali
muitas tendas de lã ásperas, certamente impermeáveis, estendidas sobre
estacas cravadas ao chão. Ligadas às estacas há ramos verdes que ornam e
refrescam. Outras tendas, ao invés, são de ramos fincados ao chão e sendo
ligadas assim: , são como pequenas galerias verdes. De baixo de cada uma,
há pessoas de toda idade e condição, e um falar tranqüilo e concentrado,
interrompido apenas por algum grito de criança.
Desce a noite e as luzes de candeiazinhas a óleo, já brilham
intensamente aqui e ali, pelo acampamento estranho. Ao redor das luzes
algumas famílias consomem a ceia. As mães estão sentadas no chão. com os
menores no colo, onde alguns, cansados, adormecem ainda com o pedaço de
pão nos dedinhos róseos, tombando a cabecinha sobre o seio materno, como
pintinhos sob a galinha; as mães terminam de comer como podem, com uma
das mãos, enquanto a outra segura o filhinho junto ao coração. Outras
famílias, ao contrário, não estão jantando ainda e conversam na semi-
escuridão do crepúsculo, esperando que a refeição fique pronta. Alguns
fogos são acesos aqui e ali, e ao seu redor as mulheres afadigam-se. Alguma
cantiga de ninar muito lenta, diria quase lamentosa, embala uma criança que
custa a adormecer.
No alto, um bonito céu sereno torna-se sempre mais azul profundo até
parecer um enorme velário de veludo macio de um azul escuro; sobre ele
lentamente, invisíveis artífices e decoradores diligentemente fixam jóias e
lamparinas, as quais isoladas, como em bizarras linhas geométricas, deixam
sobressair a Ursa maior e a menor com a sua forma de carro com a estaca
apoiada ao chão, depois que os bois foram destacados do jugo. A estrela
polar ri com todo o seu esplendor.
Percebo que é outubro porque uma voz grave de homem o diz:
– É bonito este outubro[4] como poucos o foram!
3.3
Eis Ana que vem de um fogaréu com algumas coisas entre as mãos,
estendidas sobre um grande pão bem plano que serve também de bandeja.
Preso às suas saias está Alfeu, que tagarela com a sua vozinha. Joaquim está
na soleira da sua pequena cabana de ramos falando com um homem de uns
trinta anos. (Alfeu de longe o saúda com um gritinho agudo dizendo:
“Papai”) Quando Joaquim avista Ana que se aproxima, apressa-se em
acender a candeiazinha.
Ana passa com o seu porte majestoso entre as fileiras de cabanas. Real,
mesmo se humilde, Ana não é soberba com ninguém. Levanta o menino de
uma pobre mulher, que caiu, exatamente a seus pés, ao tropeçar na sua
corrida travessa. Visto que havia sujado o rostinho de terra, ela o limpa,
consolando-o porque chora, e o devolve à mãe, que chega correndo e se
desculpa. Ana respode:
– Oh! Não é nada! Estou contente que não tenha se machucado. É um
bonito menino. Quantos anos tem?
– Três anos. É o penúltimo e logo terei um outro. Tenho seis meninos.
Agora queria uma menina… Para uma mãe é importante uma menina…
– O Altíssimo muito te consolou, ó mulher!
Ana suspira. E a outra:
– Sim. Sou pobre, mas os filhos são a nossa alegria e os maiorzinhos já
ajudam no trabalho. E tu, senhora (tudo indica que Ana seja de condição
mais elevada, pois a outra o notou) quantas crianças tens?
– Nenhuma.
– Nenhuma?! Esta não é tua?
– Não, de uma vizinha muito boa. É o meu conforto…
– Morreram ou…
– Não, nunca as tive.
– Oh!
A pobre mulher a olha com piedade.
Ana se despede com um grande suspiro e vai à sua cabana.
– Eu te fiz esperar, Joaquim! Uma pobre mulher entreteve-me; mãe de
seis filhos, imagine! E terá outro!
Joaquim suspira.
O pai de Alfeu chama o seu filho, mas este lhe responde:
– Eu fico com a Ana. Estou ajudando-a.
Todos riem.
– Deixa-o. Ele não me dá aborrecimento. Ainda não está obrigado a
observar a Lei. Estando aqui ou ali, ele não passa de um passarinho
comilão –diz Ana que senta-se com o menino no colo, ao qual dá pão com
peixe assado.
Vejo que antes de dar o peixe, parece estar lhe tirando os espinhos.
Depois serve o marido. Ela come por último.
3.4
A noite está sempre mais cheia de estrelas e as luzes sempre mais
numerosas no campo. Depois lentamente muitos candeeiros se apagam. São
daqueles que jantaram antes e que agora se põem a dormir. Também o
murmúrio diminui devagar. Vozes de meninos não se ouvem mais. Só alguma
criança de peito faz ouvir a sua vozinha de cordeirinho buscando o leite da
mamãe. A noite sopra o seu hálito sobre as pessoas, apagando desgostos e
lembranças, esperanças e rancores. Aliás, talvez Joaquim e Ana sobrevivam
tranqüilizados, seja no sono, que no sonho.
Ana o diz ao marido, enquanto embala Alfeu que começa a dormir em
seus braços:
– Esta noite sonhei que no próximo ano eu virei à Cidade Santa para
duas festas, ao invés de uma. E uma será a dádiva da minha criança ao
Templo… Oh! Joaquim!…
– Espera, espera Ana. Não ouvistes outra coisa? O Senhor não te
segredou nada em teu coração?
– Nada. Somente um sonho…
– Amanhã é o o último dia de oração. Todas as ofertas já foram feitas.
Mas as renovaremos ainda amanhã, solenemente. Convenceremos Deus com
o nosso amor fiel. Eu penso sempre que te acontecerá o mesmo que com a
Ana de Elcana.
– Queira Deus… e que houvesse logo alguém que me dissesse: “Vá em
paz. O Deus de Israel te concedeu a graça que pedistes!”
– Se a graça vier, o teu menino dir-te-á mexendo-se pela primeira vez no
teu ventre, e será voz de inocente, por isto, voz de Deus.
Agora o campo cala-se no escuro. Ana também devolve Alfeu à cabana
contígua e o põe sozinho sobre a enxerga de feno próximo aos irmãozinhos
que já dormem. E depois deita-se ao lado de Joaquim, e também a sua
lamparina se apaga. Uma das últimas estrelinhas da terra. Ficam mais
bonitas as estrelas do firmamento a velar sobre todos os que dormem.

3.5
Jesus diz:
– Os justos são sempre sábios porque, sendo amigos de Deus, vivem em
sua companhia e são instruídos por Ele, que é Infinita Sabedoria.
Os meus avós eram justos e por isto tinham a sabedoria. Podiam dizer
com verdade quanto diz o Livro[5], cantando os louvores da Sabedoria, no
livro: “Eu a amei e a procurei desde a juventude e procurei torná-la minha
esposa”.
Ana de Arão era a mulher forte de quem fala o nosso Avô[6]. E Joaquim
da estirpe do rei Davi, não tinha procurado tanto a formosura ou riqueza,
quanto a virtude. Ana possuía uma grande virtude. Todas as virtudes
reunidas num maço perfumado de flores, para tornar-se uma única lindíssima
coisa, a Virtude. Uma virtude real, digna de estar perante o trono de Deus.
Joaquim tinha portanto desposado duas vezes a sabedoria “amando-a
mais que qualquer outra mulher”: a sabedoria de Deus encerrada no coração
da mulher justa. Ana de Arão não procurara outra coisa senão unir a sua vida
à de um homem reto, certa de que na retidão está a alegria das famílias.
3.6
Sendo a insígnia da “mulher forte” não lhe faltava nada a não ser a coroa
dos filhos, glória da mulher casada, justificação do casamento, do qual fala
Salomão. À sua felicidade não lhe faltavam senão os filhos, flores da árvore
que se une à árvore vizinha obtendo assim a abundância de novos frutos, na
qual duas bondades se fundem em uma, pois, também do lado do esposo,
nunca lhe viera nenhuma desilusão.
3.7
Ela, agora a caminho da velhice, há decênios mulher de Joaquim, era
sempre para ele “a esposa da sua juventude, a sua alegria, a cerva tão
querida, a graciosa gazela”, cujas carícias tinham sempre o fresco encanto
da primeira noite de núpcias e fascinavam docemente o seu amor, mantendo-
o fresco como uma flor que o orvalho umedece e ardente como fogo
constantemente alimentado. Por isto, em suas aflições por não terem filhos,
um dizia ao outro “palavras de consolo em pensamento e em cuidados”.
3.8
Quando chegou a hora, a Sabedoria eterna, depois de tê-los instruído
na vida, os iluminou com os sonhos da noite, alvorada do poema de glória
que devia provir deles, Maria Santíssima, a minha mãe. Se na sua humildade
não pensaram nisto, seus corações porém, tremeram de esperança, ao
primeiro sinal evidente da promessa de Deus. Nas palavras de Joaquim já
havia certeza: “Espera, espera… convenceremos Deus com nosso amor
fiel”. Sonhavam com um filho: tiveram a mãe de Deus.
3.9
As palavras do livro da Sabedoria parecem escritas para eles: “Por
ela alcançarei glória perante o povo… por ela alcançarei imortalidade e
deixarei memória eterna àqueles que depois de mim virão”. Mas, para
conseguir tudo isto, tiveram de fazer-se discípulos de uma virtude veraz e
duradoura, imune a qualquer acontecimento. Virtude de fé. Virtude de
caridade. Virtude de esperança. Virtude de castidade. A castidade dos
esposos! Eles a possuíram; porque não é preciso ser virgem para ser casto.
E os leitos conjugais castos têm a proteção dos anjos recebendo filhos bons,
que fazem da virtude dos pais a norma de suas vidas.
3.10
Mas agora onde estão estes filhos? Hoje não se quer mais filhos e
não se quer tampouco a castidade. Por isso eu digo que o amor e o leito
conjugal estão profanados.
[4] Outubro: por vezes — assim anota M aria Valtorta na cóp ia dactilografada — os nomes são ditos em italiano, (p or
consenguinte, traduzidos em p ortuguês), para melhor compreensão do leitor. A corresp ondência entre os meses do calendário
hebraico, regulado p elo ano lunar, que iniciava na Primavera (como referido em 68.4), e os meses do nosso calendário, regulado
p elo ano solar, é ap roximativa: 1. nisam, ou abid como em 413.6 (M arço-Abril); 2. ziv ou zio como em vulgata ou em 461.7
(AbrilM aio); 3. sivan (M aio-Junho); 4. tamnuz ou tanuz como em 442.3 ou tamuz como em 461.16 (Junho-Julho); 5. ab
(Julho-Agosto); 6. elul (Agosto-Setembro); 7. tisri ou etanim (Setembro-Outubro); 8. marchesvan ou bul (Outubro-
Novembro); 9. casleu (Novembro-Dezembro); 10. tebet (Dezembro-Janeiro); 11. scebat (Janeiro-Fevereiro); 12. adar
(Fevereiro-M arço). O mês de marchesvan ou bul não é jamais mencionado na obra, que talvez reserva ao oitavo mês o nome de
etanim sep arando-o de tisri. Os meses tinham início com o novilúnio, chamado neoménia. Para recup erar o atraso do ciclo lunar
sobre o ano solar, de vez em quando se dup licava o mês de adar e se obtinha um ano de treze meses (chamado anno
embolismico em 114.8).
[5] o livro, isto é em: Sabedoria 8,2.
[6] o nosso Avô, isto é Salomão, em: Provérbios 31,10-31. Seguem citações de: Provérbios 5,18-19; Sabedoria 8,10.13.
4. Ana, com um cântico anuncia que será mãe.
No seu ventre está a alma imaculada de Maria.
24 de agosto de 1944.
4.1
Revejo a casa de Joaquim e Ana. Nada mudou no seu interior, se se
tirarem os muitos ramos floridos, colocados em ânforas aqui e ali, fruto das
podas feitas nas árvores do pomar em flor: uma nuvem que varia do branco
neve ao vermelho de certos corais.
O trabalho de Ana também é diferente. Sobre um tear menor, ela tece
algumas bonitas telas de linho, e canta, cadenciando o movimento do pé com
o canto. Canta e sorri… A quem? A si mesma, a alguma coisa que ela vê no
seu interior.
Eis o canto, lento mas alegre, que escrevi à parte para segui-lo, porque o
repete muitas vezes deleitando-se nisso, sempre mais forte e segura, como
quem encontrou um ritmo no seu coração; primeiro o murmura em surdina,
depois, segura, canta mais veloz e alto (aqui o transcrevo porque, na sua
simplicidade é muito doce):

“Glória ao Senhor onipotente que dos filhos de Davi teve amor. Glória
ao Senhor!
A sua suprema graça do Céu me visitou.
A velha planta colocou novo ramo e eu sou bem-aventurada.
Pela festa das Luzes a semente lançou a esperança;
ora a fragrância de Nisam o vê brotar.
Como a amendoeira na minha carne floresce a primavera.
O seu fruto, nesta tarde, ela sente transportar.
Naquele ramo há uma rosa, há um pomo dos mais doces.
Há uma estrela reluzente, há uma criança inocente.
Há a alegria da casa, do esposo e da esposa.
Louvor a Deus, ao meu Senhor, que teve piedade de mim.
A sua luz me disse: “Uma estrela virá a ti”.
Glória, glória! Será teu este fruto da planta,
primeiro e derradeiro, santo e puro como dádiva do Senhor.
Teu será e por causa dele venha alegria e paz sobre a terra.
Vôa, oh lançadeira. O fio se aperta sobre o tecido da criança.
Ele nasce! A Deus glorioso vá o canto do meu coração”.

4.2
Joaquim entra quando ela está para repetir pela quarta vez o seu canto.
– Estás feliz, Ana? Pareces-me um pássaro que viu a primavera. Que
canto é este? Nunca ouvi. De onde ele vem?
– Do meu coração, Joaquim.
Ana levanta-se e agora se dirige até o esposo, toda risonha. Parece mais
jovem e mais bonita.
– Não te imaginava poetisa –diz o marido, olhando-a com clara
admiração. Não pareciam dois esposos idosos. Em seus olhares, existia uma
ternura de jovens esposos–. Vim do fundo do pomar ouvindo-te cantar. Eram
anos que não ouvia a tua voz de rolinha enamorada. Queres repetir-me
aquele canto?
– Eu o repetiria mesmo que tu não me pedisses. Os filhos de Israel
sempre confiaram ao canto os clamores mais verdadeiros de suas
esperanças, alegrias e dores. Eu confiei ao canto o cuidado de dizer-me e
dizer-te uma grande alegria. Sim, também dizer a mim mesma, porque é uma
coisa imensa que, por quanto esteja certa, parece-me ainda não ser
verdadeira…
E recomeça o canto, mas chegando ao ponto: “sobre aquele ramo há uma
rosa, há uma maçã das mais doces, há uma estrela…” a sua voz bem entoada
de contralto fez-se primeiro trêmula, depois se rompe e com um soluço de
alegria olha Joaquim e, levantando os braços grita:
– Sou mãe meu deleite –e se refugia no seu coração, entre os braços que
ele estendeu para encerrarem em torno de sua feliz esposa. O mais casto e
feliz abraço que eu jamais vi, desde que estou no mundo. Casto e ardente, na
sua castidade.
E a doce repreensão entre os cabelos grisalhos de Ana:
– E não me disseste antes?
– Porque queria estar certa. Velha como sou… Saber-me mãe… Não
podia acreditar ser verdade… não queria dar-te uma desilusão mais amarga
ainda. Desde fins de dezembro sinto fazerem-se novas as minhas profundas
entranhas e brotar, como posso dizer, um novo ramo. Mas agora sobre aquele
ramo está seguro o fruto. Vês? Aquele tecido já é para aquele que virá.
– Não é o linho que comprastes em outubro em Jerusalém?
– Sim. Eu o teci depois enquanto esperava. 4.3Esperava porque no último
dia, enquanto orava no Templo, o maior tempo que pudesse uma mulher ficar
na Casa de Deus, até a noite… Tu te recordas que eu dizia: “Ainda, ainda um
pouco.” Não podia afastar-me dali sem receber a graça! Pois bem! Na
sombra que já descia do interior do lugar sagrado, que eu olhava com
atração de alma para arrancar uma anuência do Deus presente, vi partir uma
luz, uma centelha de luz maravilhosa. Era alva como a lua, contudo tinha em
si as luzes de todas as pérolas e pedras preciosas que existem sobre a terra.
Parecia que uma das estrelas preciosas do Véu, daquelas estrelas postas sob
os pés dos querubins, se desprendesse uma e se tornasse esplêndida, de uma
luz sobrenatural… Parecia partir um fogo para além do Véu sagrado,
proveniente da própria Glória, vindo a mim veloz, e ao cortar o ar cantasse
com voz celeste dizendo: “O que pedistes venha a ti.” É por isso que eu
canto: “Uma estrela virá a ti.” Que filho será esse nosso, que se manifesta
como luz de estrela no Templo e que diz: “Eu sou” na festa das Luzes? Que
filho fez com que tu tenhas visto em mim uma nova Ana de Elcana? 4.4Como
chamaremos a nossa criança, que doce como um canto de águas ouço falar-
me no ventre com o seu pequeno coração que bate como o de uma rolinha
apanhada na cavidade das mãos?
– Se for menino o chamaremos Samuel. Se for menina Estrela. A palavra
que fortaleceu o teu canto para dar-me a alegria de saber-me pai. A forma
que escolheu para manifestar-se entre a sacra sombra do Templo.
– Estrela. A nossa estrela, porque, não sei, penso que seja mesmo uma
menina. Parece-me que carícias tão doces não possam vir senão de uma
dulcíssima filha. Eu não a carrego, não tenho nenhum sofrimento. É ela que
me carrega sobre uma vereda azul e florida, como se eu estivesse amparada
pelos santos anjos e a terra já estivesse longe… Sempre ouvi as mulheres
dizerem que conceber e gerar é sinônimo de dor. Mas eu não tenho dor.
Sinto-me forte, jovem, fresca, mais do que quando te dei a minha virgindade
na juventude distante. Filha de Deus, visto que é mais de Deus do que nossa
aquela que nasce de um tronco árido, não dá dores à sua mãe. Ela traz
somente paz e bênção: os frutos de Deus, seu verdadeiro Pai.
– Então a chamaremos Maria. Estrela do nosso mar, pérola, felicidade.
O nome[7] da primeira grande mulher de Israel. Mas esta não pecará nunca
contra o Senhor, e só a Ele dará o seu canto porque a Ele é oferecida, como
hóstia, antes de nascer.
– A Ele é oferecida, sim. Homem ou mulher que seja, depois de nos
alegrarmos por três anos com a nossa criança, nós a daremos ao Senhor.
Hóstia também nós com ela, pela glória de Deus.
Não vejo nem ouço mais nada.

4.5
Jesus diz:
– A Sabedoria, depois de tê-los iluminado com os sonhos da noite,
desceu àquela que é “vapor[8] da virtude de Deus, certa emanação da glória
do Onipotente”, e tornou-se Palavra para a estéril. Aquele que agora via
próximo o Seu tempo de redimir, Eu, o Cristo, neto de Ana, quase cinqüenta
anos depois, mediante a Palavra, farei milagres sobre as estéreis e as
doentes, sobre as endemoninhadas, sobre as desoladas, sobre todas as
misérias da terra.
No entanto, pela alegria de ter uma mãe, eis que murmuro
misteriosamente a Palavra na sombra do Templo que continha as esperanças
de Israel. Templo agora no limiar da sua vida, porque o novo e verdadeiro
Templo não contém mais as esperanças de um povo, mas a certeza de um
Paraíso para o povo de toda a terra, por todos os séculos até o fim do
mundo; Paraíso que está para vir sobre a terra. E esta Palavra opera o
milagre de tornar fecundo o que era infecundo. Dar-me uma mãe, que não
teve apenas ótima proveniência, como era seu destino, nascida de dois
santos; não teve somente um aumento contínuo da bondade pelo seu bem
querer, não teve somente um corpo imaculado, teve também o espírito
imaculado, sendo única entre as criaturas.
4.6
Tu vistes[9] a geração contínua das almas de Deus. Agora imagines
qual deva ser a beleza desta alma que o Pai almejou antes que o tempo
existisse, desta alma que constituía as delícias da Trindade, que ardia por
enfeitá-la com as suas dádivas para lhe fazer um dom a Si mesma. Ó toda
santa, que Deus criou para Si e depois para refúgio dos homens! Portadora
do Salvador, tu fostes a primeira salvação. Paraíso Vivente, com teu sorriso,
começastes a santificar a terra.
A alma criada para ser a alma da mãe de Deus! Quando, de uma mais
viva palpitação do Trino Amor, brotou esta centelha vital, jubilaram os
anjos, porque o Paraíso nunca viu luz mais viva. Como pétala de uma
empírea rosa, uma pétala imaterial e preciosa que era jóia e chama, que era
o hálito de Deus que descia para animar uma carne diferentemente das
outras, que descia com fogo tão potente que a Culpa não pode contaminá-la,
atravessando os espaços e encerrando-se num seio santo.
Ainda sem saber, a terra já tinha a sua flor. A verdadeira, única flor que
floresce eternamente: lírio e rosa, violeta e jasmim, girassol e ciclame
fundidos juntos, e com essas todas as flores da terra numa única flor, Maria,
na qual se reúne toda virtude e graça.
Em abril, a terra da Palestina parecia um enorme jardim: as fragrâncias
e as cores davam delícia ao coração dos homens. Mas a rosa mais bonita
ainda era desconhecida. Ela já era florescente a Deus no segredo do ventre
materno, já que minha mãe amou desde que foi concebida, mas só quando a
videira dá o seu sangue para fazer vinho, e o perfume dos mostos, açucarado
e forte, enche as eiras e as narinas, ela iria sorrir primeiro a Deus e depois
ao mundo, dizendo com o seu sorriso super inocente: “Eis que a Videira, que
vos dará o Cacho espremido na prensa, como Remédio eterno contra o vosso
mal, está entre vós.”
Eu disse: “Maria amou desde que foi concebida.” O que dá ao espírito
luz e conhecimento? A Graça. O que leva a Graça? O pecado de origem e o
pecado mortal. Maria, aquela sem mácula, nunca foi despojada da lembrança
de Deus, da sua proximidade, do seu amor, da sua luz, da sua sabedoria. Ela
pôde por isto, compreender e amar até quando era apenas carne em torno de
uma alma imaculada que sempre amou.
4.7
Depois, faço-te contemplar mentalmente a profundidade da virgindade
de Maria. Terás uma vertigem celeste, como quando te fiz entender a nossa
eternidade. Por enquanto, considera apenas como o trazer no ventre uma
criatura isenta da mácula da ausência de Deus, dá à mãe uma inteligência
superior e a transforma em um profeta, mesmo tendo esta mãe concebido
natural e humanamente. O profeta da sua filha, que a chama: “Filha de Deus.”
Imagina o que seria se pais inocentes concebessem filhos inocentes, assim
como Deus gostaria.
Ó homens, que vos dizeis semelhantes ao “super-homem”, mas com os
vossos vícios vos assemelhais unicamente ao “super-demônio”, neste
exemplo teríeis encontrado o meio de chegardes ao “super-homem.” Saber
permanecer sem a contaminação de satanás para deixar a Deus a
administração da vida, do conhecimento, do bem, não desejando mais do que
isto, que é pouco menos que o infinito. Deus vos teria dado poder de gerar
em uma contínua evolução até a perfeição, filhos que fossem homens no
corpo e filhos da Inteligência no espírito, ou seja triunfadores, fortes,
gigantes contra satanás, que seria derrubado muitos milhares de séculos
antes da hora em que o será, junto a todo o seu mal.
[7] nome da irmã de Aarão e de M oisés, dela se fala em: Êxodo 15,20-21; Números 12,1-15; 20,1; 26,59. Outras referências a
Maria de Aarão (ou de Moisés) encontram-se em 131.2, 525.7, 609.3.
[8] vapor..., como dito em: Sabedoria 7,25.
[9] Tu vistes, a 25 de M aio de 1944, em “Os cadernos de 1944”.
5. Nascimento de Maria. A sua virgindade
no eterno pensamento do Pai.
26 de agosto de 1944.
5.1
Vejo Ana sair no pomar. Apóia-se ao braço provavelmente de uma
parente, porque se assemelha a ela. Está muito volumosa e parece afadigada
talvez pelo afã, parecido com o que eu sinto agora.
Embora o pomar esteja na sombra, o ar ali está quente, pesado. Um ar
que se poderia cortar como uma massa mole e quente, de tão denso, sob um
impiedoso céu de um azul embaçado pela poeira suspensa nos espaços. Faz
tempo que deve ter havido estiagem, porque a terra, onde não é irrigada, está
literalmente reduzida a uma poeira finíssima, quase branca. De um branco
levemente tendente a um rosa-escuro, mais para o marrom ao pé das plantas
ou ao longo dos breves canteiros, onde banhadas crescem fileiras de
hortaliças, em torno aos roseirais, aos jasmineiros, outras flores, que estão
ao lado de uma parreira bonita cortando pela metade o jardim, até ao início
dos campos, despojados de gramináceas. Também a relva do prado,
assinalando o fim da propriedade, está chamuscada e rala. Só às margens
dela, onde há uma cerca de espinheiro-alvar selvagem, marcado pelos rubis
dos pequenos frutos, a grama é mais verde e espessa. Alí estão as ovelhinhas
com um pequeno pastor, à procura de pasto e de sombra.
Joaquim está ao redor das fileiras e das oliveiras. Com ele há dois
homens que o ajudam. Mesmo ancião, Joaquim é agil e trabalha com gosto.
Estão abrindo pequenos cercados nos limites de um campo, para dar água às
plantas sequiosas. A água abre um caminho borbulhando entre a relva e a
terra abrasada, e se estende em anéis, que por um momento parecem de um
cristal amarelado e depois são só anéis escuros de terra úmida, em torno aos
sarmentos e as oliveiras sobrecarregadas.
Ana lentamente vai na direção de Joaquim que quando a vê se apressa a
encontrá-la andando pela parreira sombreada, sob a qual abelhas de ouro
zumbem ávidas do açúcar dos grãos de uva branca.
– Chegastes até aqui?
– A casa está quente como um forno.
– E tu sofres.
– O único sofrimento é desta minha última hora de grávida. O sofrimento
de todos, homens e animais. Não te acalores demais, Joaquim.
– A água, que esperamos faz tempo e que de três dias para cá parecia
bem próxima, ainda não veio, e o campo queima. É bom para nós que temos
a nascente próxima e é muito rica de águas. Abri os canais. Um pouco de
refrigério para as plantas, que têm as folhas murchas e cobertas de poeira.
Mas é suficiente só para mantê-las vivas. Se chovesse!…
Joaquim, com a ânsia de todos os agricultores, perscruta o céu, enquanto
Ana, cansada, se abana com um leque que parece feito com uma folha seca
de palma, entrelaçada com fios multicolores que a tornam rígida.
A parente diz:
– Lá, além do grande Hermon, surgem nuvens velozes. Vento do norte.
Refrescará e talvez trará água.
– São três dias que se levanta e depois cai com o surgir da lua. Será
ainda assim.
Joaquim está desanimado.
– Voltemos para casa. Aqui também não se respira, e depois penso que
seja bom voltarmos… –diz Ana, que parece ainda mais olivácea por causa
de uma palidez que lhe veio sobre o rosto.
5.2
– Sofres?
– Não. Mas sinto aquela grande paz que senti no Templo quando me foi
dada a graça e que senti ainda quando soube que seria mãe. É como um
êxtase. Um doce sono do corpo, enquanto o espírito jubila e se aplaca em
uma paz sem comparação humana. Eu te amei, Joaquim, e quando entrei na
tua casa e disse a mim mesma: “Sou esposa de um justo”, tive paz, e assim
todas as vezes que o teu amor providencial cuidou da tua Ana. Mas esta paz
é diferente. Veja, eu creio que é uma paz como aquela que devia invadir,
como óleo que se expande e suaviza o espírito de Jacó, nosso pai, depois do
seu sonho[10] de anjos; e, melhor ainda, semelhante à paz jubilosa dos Tobias
depois que Rafael se manifestou a eles. Se me abandono a apreciá-la, ela
sempre cresce mais. É como se eu subisse pelos espaços azuis do céu… e,
não sei por que, desde que eu tenho em mim esta alegria pacífica, eu tenho
um cântico no coração, aquele do velho Tobias. Parece-me que tenha sido
escrito para esta hora… para esta alegria… para a terra de Israel que a
recebe… para a Jerusalém pecadora e agora perdoada… mas, não rides dos
delírios de uma mãe, quando digo: “Agradece o Senhor pelos teus bens e
glorifica o Deus dos séculos, a fim de que reedifiques em ti o seu
Tabernáculo”, eu penso que aquele que reedificará em Jerusalém o
Tabernáculo do Deus verdadeiro será este que está para nascer; penso ainda
que não mais do que a Cidade santa, mas pela minha criança seja profetizado
o destino quando o cântico diz: “Tu brilharás com uma luz esplêndida, todos
os povos da terra se prostrarão a ti, as nações virão a ti trazendo presentes,
em ti adorarão o Senhor e julgarão santa a tua terra, porque dentro de ti
invocarão o Grande Nome.” “Tu serás feliz nos teus filhos, porque todos
serão abençoados e se reunirão ao lado do Senhor. Bem-aventurados aqueles
que te amam e regozijam tua paz!…”; e a primeira a regozijar sou eu, a sua
mãe bem-aventurada…
Ana empalidece e se inflama como algo trazido pela luz lunar a um
grande fogo e vice-versa, ao dizer estas palavras. Doces lágrimas descem
sobre suas faces e ela nem as percebe, sorrindo de alegria. E assim vai em
direção à casa, entre o esposo e a parente, que a escutam e calam-se
comovidos.
5.3
Apressam-se porque as nuvens, impelidas por um vento forte galopam
e crescem pelo céu, e a planície torna-se escura e estremece por um aviso de
temporal. Quando alcançam à soleira da casa, um primeiro relâmpago lívido
sulca o céu e o barulho do primeiro trovão parece o rufar de um enorme
tambor que se mistura ao harpejo dos primeiros pingos sobre as folhas
secas.
Entram todos e Ana se retira, enquanto Joaquim, alcançado pelos
criados, fala, da porta, desta longa espera pela água, que é uma bênção para
a terra sedenta. Mas a alegria se transforma em temor, porque vem um
temporal violentíssimo com raios e nuvens carregadas de granizo.
– Se a nuvem rompe, a uva e as oliveiras serão esmagadas como pela
moenda. Pobres de nós!
Joaquim tem uma outra ansiedade: pela esposa para a qual chegou a hora
de dar à luz o seu filho. A parente o tranqüiliza que Ana não sofre
absolutamente nada. Mas ele está ansioso; cada vez que a parente ou outras
mulheres, entre as quais a mãe de Alfeu, saem do quarto de Ana para depois
voltarem com água quente e bacias e linhos enxutos junto ao fogo da lareira
central numa cozinha ampla, Joaquim pergunta algo, não se acalmando com
as respostas. Também a ausência de gritos de Ana o preocupa. Diz:
– Eu sou homem e nunca vi um parto. Mas lembro-me de ter ouvido
dizer que a ausência de dores é fatal…
Vem a noite, antecipada pela fúria tempestuosa que é violentíssima.
Agua torrencial, vento, raios, ali tem de tudo, menos o granizo, que foi cair
em outra parte.
Um dos criados percebe a violência e diz:
– Parece que satanás saiu do inferno com seus demônios. Olha que
nuvens negras! Sente que cheiro de enxôfre no ar, assobios, sibilos, vozes de
lamento e maldição. Se é ele, está furioso esta noite!
O outro criado ri e diz:
– Fugiu-lhe uma grande presa, ou Miguel o espancou com uma nova
faísca de Deus, e ele ficou com o chifre e o rabo cortado e queimado.
Passa correndo uma mulher e grita:
– Joaquim! Está para nascer! E foi tudo rápido e feliz!
E desaparece com uma pequena ânfora entre as mãos.
5.4
O temporal pára de improvisio depois de um último raio tão violento
que arremessa contra as paredes os três homens; e na frente da casa, no chão
do horto-jardim, fica como lembrança um buraco preto e fumegante. Ao
mesmo tempo um gemido vem de lá da porta de Ana, gemido que parece o
lamento de uma rolinha que pela primeira vez não pia, mas arrulha. Um
enorme arco-íris estende a sua listra em semicírculo sobre toda a amplidão
do céu. Surge, ou pelo menos parece surgir, do cume do Hermon que beijado
por uma lama de sol, parece de alabastro de um branco-rosado
delicadíssimo. Este arco-íris levanta-se até o mais claro céu de setembro, e,
atravessando por espaços limpos de toda impureza, sobrevoa as colinas da
Galiléia e a planície que aparece, entre duas árvores de figo, ao sul e depois
ainda um outro monte, indo pousar a sua ponta final no extremo horizonte, lá
onde uma áspera cadeia de montanhas fecha qualquer outro panorama.
– Nunca vi isso!
– Olhai, olhai!
– Parece que toda a terra de Israel esteja ligada em um círculo, mas
olhai, ali já há uma estrela, enquanto que o sol ainda não desapareceu. Que
estrela! Brilha como um enorme diamante!…
– A lua é toda plena, enquanto que ainda faltam três dias para a lua
cheia. Mas olhai como resplandece!
5.5
As mulheres chegam repentinamente, alegres com um embrulhozinho
rosado entre tecidos alvos.
É Maria, a mãe! Uma Maria pequenina que poderia dormir entre o
círculo de braços de um menino, uma Maria comprida tanto quanto um braço,
uma cabecinha de marfim tingido de um rosa tênue, com a boquinha de
carmim, que já não chora mais, mas faz o instintivo ato de sugar, tão pequena
que não se sabe como fará para pegar um mamilo, um narizinho diminuto
entre duas pequenas faces arredondadas e ao tocá-lo abrem-se os olhinhos,
dois pedacinhos do céu, dois pontinhos inocentes e azuis que olham, mas não
vêem, entre cílios delicados, de um loiro tão intenso que é quase róseo.
Também os cabelinhos sobre a cabecinha arredondada são a cor loiro-
rosado de algumas qualidades de mel quase branco.
No lugar de orelhas, duas conchinhas rosadas e transparentes, perfeitas.
E por mãozinhas… o que são aquelas duas coisinhas que agitam-se no ar e
depois vão à boca? Fechadas como agora, dois botões de rosa musgo que
separam o verde das sépalas e lhes estende a seda de um tênue rosa; abertas
como agora, duas pequenas jóias de marfim de alabastro ligeiramente
rosado, com cinco romãs pálidas no lugar das unhazinhas. Como farão
aquelas mãozinhas para enxugar tanto choro?
E os pezinhos? Onde estão? Por enquanto são só um espernear
escondido entre os linhos. Mas eis que a parente senta-se e a descobre…
Oh! Os pezinhos! Compridos uns quatro centímetros, têm por planta, uma
concha coralina, como dorso uma concha de um branco neve com veiazinhas
azuis, têm por dedinhos as obras-primas de escultura liliputiana, são também
coroados por pequenos fragmentos de pálida romã. Mas como se
encontrarão sandalinhas tão pequenas para poder estar naqueles pezinhos,
quando tais pezinhos de boneca derem os primeiros passos? E como estes
mesmos pezinhos farão tão áspero caminho e sustentarão tanta dor, debaixo
de uma cruz?
Mas agora isto não se sabe, e se ri e sorri do seu debater-se e espernear,
das perninhas bonitas torneadas, das coxas pequenas que fazem covinhas e
dobrinhas de tanto que são gorduchas, da barriguinha, uma taça emborcada
do pequeno tórax perfeito sob cuja seda cândida se vê o movimento da
respiração que certamente se ouve. O pai feliz escuta seu peitinho agora, e o
beija ao ouvir bater um coraçãozinho… Um coraçãozinho que é o mais
bonito que a terra teve nos séculos dos séculos, o único coração humano
imaculado.
E as costas? Eis que a viram, e se vê a forma dos rins e depois os
ombros gorduchos e a nuca rosada tão forte que a cabecinha se ergue sobre o
arco das pequenas vértebras, parecendo a cabecinha de um pássaro que
perscruta ao redor o mundo novo e tem um gritinho de protesto por ser assim
mostrada, ela, a pura e casta, aos olhos de tantos, ela que homem nenhum a
verá nua, a toda virgem, a santa e imaculada. Cobri, cobri este botão de flor-
de-lis que nunca se abrirá sobre a terra e que dará, ainda mais bonita que
ela, a sua flor, sempre permanecendo botão. Só nos Céus o Lírio do Trino
Senhor abrirá todas as suas pétalas. Porque no céu não há poeira de culpa
que possa involuntariamente profanar aquele candor. Porque lá em cima
deve ser acolhido, à vista de todo o Empíreo, o Deus Trinitário que agora
ocultado em um coração sem mácula, entre poucos anos estará nela: Pai,
Filho, Esposo.
Eis ali de novo entre os linhos e entre os braços do pai terreno, com
quem ela se assemelha. Não agora. Agora é um esboço de homem. Eu digo
que se lhe assemelhará quando mulher. Da mãe não tem nada. Do pai, a cor
da pele, dos olhos e certamente dos cabelos que, se agora são brancos, na
juventude eram certamente loiros como o dizem as sobrancelhas. Do pai, as
feições, feitas mais perfeitas e gentis por ser ela mulher, a mulher. Do pai o
sorriso, o olhar, o modo de mexer-se e a estatura. Pensando em Jesus, como
o vejo, acho que Ana deu a sua estatura ao Neto e a cor marfim mais
carregada da pele. Enquanto que Maria não tem aquela imponência de Ana,
um palmo mais alta e flexível, mas tem a gentileza do pai.
5.6
As mulheres também falam do temporal e do prodígio da lua, da
estrela, do imenso arco-íris, enquanto junto ao Joaquim entram onde está a
mãe feliz e lhe entregam a criancinha.
Ana sorri a um pensamento:
– É a Estrela –diz–. O seu sinal está no céu. Maria, arco de paz! Maria,
minha estrela! Maria, lua pura! Maria, nossa pérola!
– Chama-se Maria?
– Sim. Maria, estrela, pérola, luz e paz…
– Mas também quer dizer amargura… Não temes trazer-lhe desventura?
– Deus está com ela. Já era Dele antes de ser. Ele a conduzirá pelos seus
caminhos e toda amargura se transformará em um paradisíaco mel. Agora
sejas da tua mãe… ainda por um pouco, antes de seres toda de Deus…
E a visão termina sobre o primeiro sono de Ana mãe e de Maria criança.

27 de agosto de 1944.
5.7
Jesus diz:
– Surge e apressa-te pequena amiga. Tenho um desejo ardente de te
levar Comigo para o azul paradisíaco da contemplação da Virgindade de
Maria. Sairás com a alma jovem como se tu também fosses criada há pouco
pelo Pai, uma pequena Eva que ainda não conhece a carne. Sairás com o
espírito repleto de luz, porque tu mergulharás, na contemplação da obra-
prima de Deus. Sairás com todo o teu ser saturado de amor, porque
compreenderás como Deus sabe amar. Falar da concepção de Maria, a sem
mácula, quer dizer mergulhar-se no azul, na luz, no amor.
5.8
Vem e lê[11] as suas glórias no Livro do Avo: “Deus me possuiu no
início de suas obras, desde o princípio, antes da criação. “Ab aeterno” fui
predeterminada no princípio. Antes que fosse feita a terra, ainda não
existiam os abismos e eu já era concebida. Nem as nascentes das águas
transbordavam, nem os montes tinham-se erguido em suas grandes
dimensões, nem as colinas eram cadeias montanhosas ao sol, e eu já tinha
sido gerada. Deus ainda não tinha feito a terra, os rios, e as bases do mundo,
e eu era. Quando preparava os céus eu estava presente, quando com lei
imutável fechou sob a orla celeste o abismo, quando tornou estável no alto a
abóbada celeste e suspendeu as fontes das águas, quando fixava ao mar os
seus confins e dava leis às águas de não passar os seus limites, quando
assentava os fundamentos da terra, eu estava com Ele a dispor todas as
coisas. Sempre na alegria brincava diante Dele continuamente, brincava no
universo…”. Aplicaram estas palavras à Sabedoria, mas na realidade elas
falam dela: a bela mãe, a santa mãe, a virgem mãe da Sabedoria, que sou Eu
que te falo.
5.9
Eu quis que tu escrevesses o primeiro verso deste hino no início do
livro que fala dela, para que fosse confessada e percebida a consolação e a
alegria de Deus; a razão do constante, perfeito, íntimo regozijo deste Deus
uno e trino, que vos guia e ama, que do homem teve tantas razões de tristeza;
a razão pela qual Deus perpetuou a raça, mesmo quando, à primeira
prova[12], merecia ser destruída; a ra zão do perdão que vocês tiveram.
Ter Maria que o amasse. Oh! bem merecia criar o homem, e deixá-lo
viver, e decretar perdoá-lo, para ter a virgem bela, a virgem santa, a virgem
imaculada, a virgem enamorada, a filha dileta, a mãe puríssima, a esposa
amorosa! Muito e mais ainda vos deu e vos daria Deus para poder possuir a
criatura das suas delícias, o sol do seu sol, a flor do seu jardim. E muito
continua a dar-vos por ela, a pedido dela, pela alegria dela, porque a sua
alegria se derrama na alegria de Deus e a aumenta de esplendor que enche de
faíscas a luz, a grande luz do Paraíso; cada centelha é uma graça para o
universo, para a raça do homem, para os próprios bem-aventurados, que
respondem-lhes com um grito radiante de aleluia a cada geração de milagre
divino, criado pelo desejo do Deus Trino de ver o cintilante riso de alegria
da Virgem.
5.10
Deus quer um rei no universo que Ele havia criado do nada. Um rei
que, pela natureza da matéria, fosse o primeiro entre todas as criaturas
criadas e dotadas de matéria. Um rei que, pela natureza do espírito, fosse
quase divino, fundido na Graça como no seu inocente primeiro dia. Mas a
Mente suprema, onde são notórios todos os acontecimentos mais distantes
em séculos, cuja vista vê incessantemente tudo quanto era, é, e será,
enquanto contempla o passado e observa o presente, eis que aprofunda o
olhar no último futuro sem ignorar a morte do último homem, sem confusão
nem descontinuidade, esta Mente nunca ignorou o rei criado por Ele, para
estar ao seu lado, semidivino, no Céu, herdeiro do Pai. Ao entrar adulto no
seu reino, depois de ter vivido na casa da mãe, a terra com a qual foi feito,
durante a sua infância de Eterno, na sua jornada sobre a terra, este rei teria
cometido contra si mesmo o delito de matar-se na Graça e o latrocínio de
furtar-se do Céu.
Por que então o criara? Certamente muitos se perguntam isto. Teríeis
preferido não existir? Este dia não merecia ser vivido, por si mesmo, tão
pobre, nu e amargo pela vossa maldade, mas para conhecer e admirar a
Beleza infinita que a mão de Deus semeou no universo?
Para quem teria feito estes astros e planetas que deslizam como setas e
flechas, riscando o arco do firmamento? Ou os aparentemente lentos,
majestosos na sua corrida como bólidos, presenteando-vos com luzes e
estações como se fossem eternos, imutáveis, ainda que em contínua mudança,
oferecendo-vos uma página nova para ser lida sobre o azul, toda noite, todo
mês, todo ano, quase como dizendo-vos: “Esquecei-vos do cárcere, deixai
as vossas gravuras repletas de coisas obscuras, podres, sujas venenosas,
enganosas, blasfemadoras, corruptoras e elevai, ao menos com o olhar na
ilimitada liberdade dos firmamentos. Tende uma alma azul olhando tão
grande serenidade, criai-vos uma reserva de luz, para levar à vossa prisão
escura. Lede a palavra que nós escrevemos cantando o nosso coro sideral
mais harmonioso do que acompanhado por um órgão de catedral. A palavra
que nós escrevemos brilhando, a palavra que nós escrevemos amando, visto
que sempre temos presente Aquele que nos quis dar a alegria de existir, e o
amamos por nos ter dado este ser, este esplendor, este deslizar, este sermos
livres e belos em meio ao azul suave, além do qual vemos um azul ainda
mais sublime, o Paraíso. E do qual cumprimos a segunda parte do preceito
de amor amando a vós, o nosso próximo universal, amando-vos doando guia,
luz, calor e beleza. Lede a palavra que nós dizemos, e é aquela sobre a qual
regulamos o nosso canto, o nosso resplandecer, o nosso riso: Deus?”
Para quem teria feito aquele líquido azul, que é um espelho para o céu,
um caminho para a terra, sorriso das águas, voz das ondas, palavra também
essa que como os sussurros de seda farfalhando, com risadinhas de crianças
serenas, com suspiros de velhos que lembram e choram, com bofetões
violentos e com chifradas, mugidos e estrondos, sempre fala e diz: “Deus?”
O mar é para vós, como o céu e os astros. E com o mar, os lagos, os rios, os
pântanos, os riachos e as nascentes puras, que servem a todos para vos
transportar, nutrir, dessedentar e purificar, e que vos servem, servindo o
Criador, sem saírem para fora dos seus limites, afogando-vos, como
mereceis.
Para quem teria feito todas as inumeráveis famílias dos animais, como
flores que voam cantando, os servos que correm, que trabalham, nutrem e
são recreação para vós, os reis?
Para quem teria feito todas as inumeráveis famílias das plantas, e das
flores que parecem borboletas, que parecem jóias e passarinhos imóveis,
dos frutos que parecem os cofres de pedras preciosas, como tapetes para
vossos pés, proteção para as vossas cabeças, recreação útil, alegria para a
vossa mente, membros, vista e olfato?
Para quem teria feito os minerais nas entranhas da terra, os sais
dissolvidos nas fontes de águas geladas ou ferventes, as fontes sulfurosas, as
iodadas, as alcalinas? Não teria sido para que alguém gozasse de tudo,
alguém que não era Deus, mas filho de Deus? O homem.
Para a alegria de Deus, para as necessidades de Deus, nada era preciso.
Deus se basta a Si mesmo. Não tem que se contemplar para alegrar-se,
nutrir-se, viver e repousar. Tudo o que foi criado não aumentou um átomo a
sua infinita alegria, sua beleza, seu poder. Mas tudo Ele fez pela sua criatura,
que Ele quis colocar como rei na Sua obra: o homem.
Para ver tão grandes obras de Deus e por reconhecimento para com o
seu poder, vale a pena viver. Como viventes deveis ser gratos. Deveríeis ter
sido gratos, mesmo se não tivésseis sido redimidos, hoje ou no fim dos
séculos, porque não obstante tenhais sido os Primeiros, singularmente, sois
até hoje prevaricadores, soberbos, luxuriosos, homicidas. Mas Deus ainda
vos concede sabor de gozar das belezas do universo e da bondade do
universo, e vos trata como se fosseis bons, filhos bons aos quais tudo é
ensinado e concedido, a fim de tornar-lhes mais doce e sadia a vida. Quanto
sabeis, vós o sabeis pela luz que Deus vos deu. Tudo quanto descobris, vós
o descobris porque Deus vô-lo indica no Bem. Porque os outros
conhecimentos e descobertas, que têm o sinal do mal, vêm do Mal supremo,
satanás.
5.11
A Mente suprema, que nada ignora, antes ainda que o homem existisse,
sabia que o homem, por si mesmo, teria sido um ladrão e um homicida. E, já
que a Bondade eterna não tem limites, antes que acontecesse a Culpa, pensou
no meio para anulá-la. E o meio seria: Eu. E o instrumento para fazer do
meio um instrumento operante seria: Maria. Assim é que a virgem foi criada
no Pensamento sublime de Deus.
5.12
Todas as coisas foram criadas para Mim, Filho dileto do Pai. Eu,
como Rei, deveria ter tido sob os meus pés de Rei divino tapetes e jóias
como nenhum palácio real jamais teve. Cantos, vozes, servos e ministros tão
numerosos ao redor de minha pessoa que nenhum soberano jamais teve.
Flores, pedras preciosas, todo o sublime, o grandioso, o gentil, o minucioso,
tudo o que é possível buscar no Pensamento de um Deus.
Mas Eu devia ser Carne, além de ser Espírito. Carne, para salvar a
carne. Carne para sublimar a carne, levando-a para o Céu, muitos séculos
antes da hora. Porque a carne, habitada pelo espírito, é a obra-prima de
Deus, e por ela, o Céu fora feito. Para ser Carne, eu tinha necessidade de
uma mãe. Para ser Deus, eu tinha necessidade de que meu Pai fosse Deus.
Eis que, então, Deus criou para Si uma esposa, e lhe disse: “Vem
comigo. A meu lado, vê tudo quanto Eu faço pelo nosso Filho. Olha e jubila-
te, virgem eterna, menina eterna, que o teu riso encha todo este empíreo, e dê
aos anjos a nota inicial, e ensina ao Paraíso uma harmonia celeste. Eu olho
para ti. E te vejo como serás, ó mulher imaculada que, por enquanto, és
apenas espírito, o espírito em que me deleito. Olho para ti, e dou o azul do
teu olhar ao mar e ao firmamento, a cor dos teus cabelos ao trigo, a tua
candura ao lírio, o tom róseo à rosa, semelhante à tua pele de seda. Imito nas
pérolas os teus dentes graciosos; olhando tua boca, faço os doces morangos,
ponho na voz rouxinóis às tuas notas, e na das rolinhas o teu pranto. Ainda
lendo os teus futuros pensamentos, ouvindo as palpitações do teu coração, eu
encontrei os modelos de arte para criar. Vem, minha Alegria! Habita os
mundos para divertimento teu, enquanto fores a luz que se move em meu
Pensamento, teus hão de ser os mundos pelo teu sorriso, tuas as belas
formações das estrelas e o colar dos astros todos. Coloca a lua sob os teus
pés gentis, cinge-te com o cinto de estrelas da Via Láctea. As estrelas e os
planetas são para ti. Vem e diverte-te, vendo as flores que serão o
divertimento do teu Menino, servindo de almofada para o Filho do teu
ventre. Vem, e vê como se criam as ovelhas e os cordeiros, as águias e as
pombas. Fica perto de mim, enquanto eu faço como uns vasos, os mares e os
rios, enquanto ergo as montanhas e as enfeito com a neve e as florestas,
enquanto semeio as searas, as árvores, as videiras, enquanto faço para ti a
oliveira, minha rainha de paz, para ti a videira, meu sarmento que levará o
Cacho eucarístico. Corre, voa, jubila-te, ó minha beleza, e que o mundo
todo, que vai sendo criado de hora em hora, aprenda contigo a me amar, ó
amorosa, e se torne mais bonito com o teu sorriso, ó mãe do meu Filho,
rainha do meu Paraíso, amor do teu Deus.” Vendo o Erro, e olhando para a
Sem Erro diz ainda: “Vem a Mim, tu que anulas a amargura da
desobediência, da ingratidão, da fornicação humana com satanás. Eu terei
contigo a desforra sobre satanás”.
5.13
Deus, Pai Criador, criara o homem e a mulher com uma lei de amor
tão perfeita, que não podeis, nem ao menos compreender. E vós vos
enganais ao pensar como teria aparecido a raça humana, se o homem não o
tivesse alcançado pelo ensinamento de satanás.
Olhai as plantas que produzem fruto e semente. Por acaso elas
conseguem ter semente e fruto por meio de uma fornicação ou de uma
fecundação em cada cem encontros conjugais? Não. Da flor masculina sai o
pólen, guiado por um complexo de leis meteóricas e magnéticas, vai ao
ovário da flor feminina. Esta se abre, o recebe e produz. Não se suja e o
rejeita depois, como vós fazeis, para poderdes gozar, no dia seguinte, da
mesma sensação. Depois de produzir não floresce, até a próxima estação e,
quando floresce, é para reproduzir.
Olhai os animais. Todos. Já vistes algum animal, macho ou fêmea, ir um
ao outro para algum abraço estéril, ou só para algum encontro lascivo? Não.
De perto ou de longe, voando, rastejando, pulando ou correndo, eles vão,
quando chega a hora, ao rito fecundativo, e não se subtraem a isso para
ficarem só no prazer, mas vão além, vão até às conseqüências sérias e
santas, que conduzem à geração da prole, o único escopo que, no homem,
semideus pela origem da Graça que Eu restituí inteira, deveria fazê-lo
aceitar a animalidade do ato necessário, uma vez que descestes um grau no
nível do animal.
Vós não fazeis como as plantas e os animais. Vós tivestes por mestre
satanás, pois o escolhestes e o desejais. As obras que praticais são dignas
do mestre que quisestes ter. Mas, se tivésseis sido fiéis a Deus, teríeis tido
santamente, sem dor, a alegria de filhos, sem vos esgotardes em cópulas
obscenas, indignas, que os próprios animais não conhecem, os animais que
não têm alma racional e espiritual.
Ao homem e à mulher, depravados por satanás, Deus quis opor o
Homem nascido de mulher tão purificada por Deus, a ponto de poder gerá-
Lo sem relação com homem. Flor que gera flor, sem necessidade de semente,
mas apenas com o beijo do Sol sobre o cálice inviolado do Lírio que é
Maria.
5.14
A desforra de Deus!
Solta os teus silvos de inveja, ó satanás, enquanto ela está nascendo.
Esta menina te venceu! Antes que tu fosses o Rebelde, o Tortuoso, o
Corruptor, já estavas vencido, e ela é a tua vencedora. Mil exércitos
alinhados nada podem contra o teu poder, e contra as tuas couraças caem as
armas das mãos dos homens, ó perene, e não há vento que possa dispersar o
mau cheiro do teu hálito. No entanto, este calcanharzinho de criança, tão
rosado, que parece o interior de uma camélia também rosada, tão liso e tão
macio que a seda é áspera comparado a ele, tão pequenino, que poderia
caber no cálice de uma tulipa e usá-la como sapatinho, eis que ele te pisa
sem medo, e te confina em teu antro. Eis que só o seu vagido já te põe em
fuga, a ti que não tens medo dos exércitos. O hálito dela purifica o mundo do
teu fedor. Estás derrotado. Só o nome dela, só o seu olhar, só a sua pureza já
são uma lança, um fulgor de raio, uma enorme pedra que te transpassam, que
te abatem, que te aprisionam no teu covil do inferno, ó Maldito, que tiraste a
Deus a alegria de ser Pai de todos os homens criados.
Foi inútil, pois, teres corrompido os que haviam sido criados inocentes,
levando-os a conhecer e a conceber sinuosidades da luxúria, privando Deus,
de ser o doador dos filhos, em suas diletas criaturas, dando-lhes regras que,
se respeitadas, teriam mantido sobre a terra um equilíbrio entre os sexos e as
raças, capaz de evitar guerras entre os povos e desventuras entre famílias.
Obedecendo, teriam conhecido o amor. Só obedecendo, teriam
conhecido e conservado o amor. Uma posse plena e tranqüila desta
emanação de Deus, que do sobrenatural desce ao inferior, para que também a
carne se alegre santamente, esta que está ligada ao espírito, criada por
Aquele que criou o espírito.
Agora, o vosso amor, ó homens, os vossos amores o que são? Ou
libidinagem vestida de amor, ou medo insanável de perder o amor do
cônjuge, seja pela libidinagem própria, ou alheia. Já não estais mais seguros
quanto à posse do coração do esposo ou da esposa, desde quando a
libidinagem entrou neste mundo. Tremeis, chorais e tornais-vos loucos de
ciúmes, até assassinos, às vezes, para vingar alguma traição, desesperados,
ou então abúlicos e até dementes.
Eis o que fizeste, satanás, aos filhos de Deus. Estes, que corrompeste,
teriam conhecido a alegria de ter filhos sem sentirem dor, a alegria de nascer
sem o medo de morrer. Mas agora estás vencido em uma mulher e por uma
mulher. De agora em diante, quem a amar, tornará a ser de Deus, superando
as tuas tentações, para poder imitar a sua pureza imaculada. De agora em
diante, não mais podendo conceber sem dor, as mães a terão para o seu
conforto. De agora em diante, as esposas a terão por guia e os moribundos
por mãe, sendo doce para eles morrer sobre aquele seio, que é um escudo
contra ti, oh Maldito, e proteção, diante do julgamento de Deus.
Maria, minha cara interlocutora, viste o nascimento do Filho da virgem e
o nascimento da virgem no Céu. Viste, pois, que para os sem culpa é
desconhecido o castigo de dar a vida e também o sofrimento de dar-se à
morte. Mas, se à inocentíssima mãe de Deus foi reservada a perfeição dos
dons celestes, a todos, que tivessem permanecido inocentes e filhos de Deus,
teria sido possível gerar sem dor e morrer sem afã, por justiça de terem
sabido unir-se e conceber sem luxúria.
A sublime desforra de Deus sobre a vingança de satanás foi a de elevar
a perfeição da criatura dileta a uma super-perfeição, capaz de anular, ao
menos nela, toda lembrança de humanidade, que fosse suscetível ao veneno
de satanás, e para a qual, não de um casto abraço de homem, mas de um
divino amplexo, que empalidece o espírito num êxtase de Fogo, lhe teria
vindo o Filho.
5.15
A virgindade da Virgem!…
Vem. Medita nesta virgindade profunda, que produz em quem a
contempla vertigens de abismo! O que é a pobre virgindade forçada da
mulher que por nenhum homem foi desposada? É menos do que nada. O que
é a virgindade daquela que quer ser virgem, para ser de Deus, mas sabe sê-
lo só no corpo e não no espírito, no qual deixa entrar muitos pensamentos
estranhos, acaricia e aceita as carícias de pensamentos humanos? Isto já
começa a ser uma máscara de virgindade, mas muito pouco ainda. O que é a
virgindade de uma enclausurada, que vive só para Deus? É muito. Mas,
mesmo assim, ainda não é uma virgindade perfeita, se comparada com a
virgindade da minha mãe.
Sempre existiu um enlace, até mesmo no mais santo. O enlace da origem,
entre o espírito e a Culpa. Só o Batismo o desfaz. Mas, é como uma mulher
separada do marido pela morte, não restitui mais em si a virgindade total,
como a virgindade dos nossos Primeiros, antes do Pecado. Uma cicatriz
permanece, e dói ao ser lembrada, e está sempre pronta para reabrir-se em
ferida, como certas doenças que periodicamente voltam com seus vírus,
ainda mais ativos. Na virgem não fica esse sinal de um enlace dissolvido
com a Culpa. Sua alma apresenta-se bonita e intacta, como quando estava na
mente do Pai, e reúne em Si todas as Graças.
É a virgem, a única, a perfeita, a completa, foi assim pensada, gerada,
querida, coroada. É eternamente a virgem, o abismo da intocabilidade, da
pureza, da graça que se perde no Abismo do qual brotou: em Deus,
intangibilidade, pureza e graça perfeitíssima.
Aí está a desforra do Deus Trino e Uno. Contra suas criaturas
profanadas, Ele ergue esta Estrela de perfeição. Contra a curiosidade
doentia, esta se esquiva, recompensada em poder amar somente a Deus.
Contra a ciência do mal, esta sublime ignorante. Nela não existe somente a
ignorância do que é um amor aviltado; não há também somente a ignorância
do amor que Deus havia dado aos esposos. E ainda mais. Nela há a
ignorância das concupiscências, herança do pecado. Nela há somente a
sabedoria gélida, mas incandescente, do Amor divino. Fogo que protege de
gelo a carne, para que se torne espelho transparente no altar onde um Deus
desposa uma virgem, e não se avilta, porque sua Perfeição abraça aquela
que, como convém a uma esposa, só em um ponto é inferior ao esposo,
sendo-lhe sujeita por ser mulher, mas é sem mancha, como Ele.
[10] sonho, narrado em: Génesis 28,10-16; seguem reenvio a: Tobias 12-13.
[11] lê, em: Provérbios 8,22-31. Assim anota M aria Valtorta numa cop ia dactilografada: Inspiradas ao autor dos Provérbios
para celebrar a Sabedoria, podem aplicar-se também a Maria, Mãe da Sabedoria, porque Maria foi sempre, desde sempre,
pensada e contemplada por Deus. À Sabedoria, da qual era M ãe, M aria foi semp re unida, como realça uma nota de M aria
Valtorta em 196.7.
[12] primeira prova, aquela narrada em: Génesis 6-9.
6. Purificação de Ana e oferecimento de Maria,
a menina perfeita para o reino dos Céus.
28 de agosto de 1944.
6.1
Em Jerusalem, vejo Joaquim e Ana com Zacarias e Isabel saírem
juntos de uma casa, certamente de parentes ou amigos, e dirigirem-se ao
Templo, onde vão para a cerimônia da Purificação.
Ana tem nos braços a menina, toda envolta em cueiros, tendo sido antes
enrolada com um amplo tecido de lã mais leve, que deve ser macio e quente.
Com que cuidado e amor leva a sua filhinha, levantando de vez em quando a
beirada do pano fino e quente, para ver se Maria respira bem, e depois,
cobre-a bem de novo, para protegê-la do ar gelado deste dia sereno, embora
de pleno inverno.
Isabel tem alguns pacotes nas mãos. Joaquim puxa com uma corda dois
cordeiros grandes e muito brancos, que já são mais carneiros que cordeiros.
Zacarias não leva nada. Ele está muito bonito em sua veste de linho, que um
pesado manto de lã também branco, deixa entrever. Um Zacarias muito mais
jovem do que aquele visto no tempo do nascimento do Batista, em plena
virilidade, como também Isabel é agora uma mulher madura, mas ainda de
aparência jovem. Todas as vezes que Ana olha a menina, ela também se
inclina extasiada, sobre o rostinho adormecido. Muito bonita, com um
vestido azul que tende ao violeta escuro, com um véu que lhe cobre a
cabeça, descendo depois sobre os ombros e sobre o manto mais escuro que o
vestido.
Joaquim e Ana, enfim, estão realmente esplêndidos em suas vestes de
festa. Ao contrário do seu costume, ele não está com sua túnica marrom
escuro, mas com uma longa veste de um vermelho bem escuro, diríamos, um
vermelho de fundo, e as franjas colocadas em seu manto são muito novas e
bonitas. Na cabeça, ele tem também uma espécie de véu retangular, cingido
com uma tira de couro. Sua roupa é toda nova e fina.
Ana, oh! ela não se veste de escuro hoje. Está com um vestido amarelo
muito claro, quase da cor do marfim velho, ajustado à cintura, ao pescoço e
aos pulsos por meio de um cinturão que parece ser de prata e ouro. A sua
cabeça está coberta com um véu muito leve, que parece adamascado e está
preso à fronte por uma lâmina delgada e preciosa. Ao pescoço, um colar de
filigrana e nos pulsos, braceletes. Parece uma rainha, também pela dignidade
com que caminha com sua veste, em especial o manto amarelo claro, com
galões formando um bordado muito bonito, tom sobre tom.
– Parece-me estar te vendo no dia em que fostes a noiva. Eu era pouco
mais que uma menina, mas lembro-me ainda como estavas bonita e feliz –diz
Isabel.
– Mas hoje estou ainda mais… Quis pôr a mesma roupa daquele dia
para a cerimônia de hoje. Eu a guardei sempre para este dia… Já não
esperava mais poder usá-la para esta festa.
6.2
– O Senhor te amou muito… – diz Isabel com um suspiro.
– É por isso que eu Lhe dou a coisa que eu mais amo. Esta minha flor.
– Como farás para arrancá-la do seio, quando chegar a hora?
– Recordando-me que eu não a tinha, e a recebi de Deus. Estarei sempre
mais feliz agora, do que antes. Quando pensar que ela estará no Templo,
direi a mim mesma: “Reza junto ao Tabernáculo, ora ao Deus de Israel
também por sua mãe” e ficarei em paz. E ainda maior paz terei, ao dizer:
“Ela é toda Sua. Quando estes dois velhos felizes que a receberam do Céu
não estiverem mais em vida, Ele, o Eterno, lhe será eternamente Pai.” Podes
crer, eu tenho disso a firme convicção, esta pequenina não é nossa. Nada
mais eu podia fazer… Foi Ele que a colocou em meu ventre, este dom divino
para enxugar o meu pranto, confortar as nossas esperanças e atender as
nossas orações. Por isso ela é Sua. Nós somos somente os felizes guardiães
dela… e por isso Deus seja bendito!
6.3
Chegam até os muros do Templo.
– Enquanto vos dirigis para a porta de Nicanor, eu vou avisar o
sacerdote. Depois, eu virei também –diz Zacarias, desaparecendo atrás de
um arco, que dá para um grande pátio rodeado de pórticos.
A comitiva continua a encaminhar-se pelos sucessivos terraços. Porque
(não sei se já o disse) o recinto do Templo não está sobre um terreno plano,
mas vai-se elevando por degraus sucessivos sempre mais altos. A cada lance
pode-se chegar por escadarias, e em cada lance há pátios, pórticos e portais
muitos bem trabalhados, de mármore, bronze e ouro.
Antes de chegarem ao lugar combinado, eles param e vão tirar dos
pacotes as coisas que tinham levado, ou seja, pães cozidos, de formato
achatado e de pouca espessura, feitos com muita gordura, um pouco de
farinha branca, duas pombas em uma pequena gaiola de vime e grandes
moedas de prata, certas patacas tão pesadas, que por sorte não havia bolsos
naquele tempo, pois não resistiriam.
Eis a bonita porta de Nicanor, um trabalho bem acabado de entalhe, feito
de pesado bronze com lâminas de prata. Lá já se encontra Zacarias, ao lado
de um sacerdote esplêndidamente vestido de linho.
Ana recebe a aspersão de uma água, que eu suponho seja a água lustral,
e depois recebe a ordem de aproximar-se do altar do sacrifício. A menina
não está mais em seus braços. Isabel carrega, estando ainda do outro lado da
porta.
Joaquim, por sua vez, entra, atrás de sua mulher, puxando um pobre
cordeiro balindo. Faço como na purificação de Maria: fecho os olhos para
não ver degolações como esta.
Agora Ana está purificada.
6.4
Zacarias diz em voz baixa algumas palavras a um colega, o qual
concorda, sorrindo. Depois aproxima-se do grupo, que já se reuniu de novo,
congratulando-se com a mãe e o pai pela sua alegria e pela fidelidade às
promessas feitas, recebendo o segundo cordeiro, a farinha e os pães cozidos.
– Então, esta filha está sendo consagrada ao Senhor? Que a Sua bênção
esteja com ela e convosco. Eis Ana que chega. Ela será uma de suas mestras.
É Ana de Fanuel, da tribo de Aser. Vem, mulher! Esta pequenina é oferecida
ao Templo em hóstia de louvor. E tu serás sua mestra. Submissa a ti, ela
crescerá na santidade.
Ana de Fanuel, já com os cabelos todos brancos, acaricia a menina, que
acabou de acordar e olha com seus olhos inocentes e espantados toda aquela
brancura e todo aquele ouro, que a luz do sol faz brilhar.
A cerimônia deve ter acabado. Não vi nenhum rito especial para a oferta
de Maria. Talvez fosse suficiente dizê-lo ao sacerdote e sobretudo que o
dissessem a Deus, no lugar sagrado.
6.5
– Eu gostaria de fazer a oferta ao Templo, e ir depois àquele lugar,
onde vi aquela luz no ano passado.
Vão assim para lá, acompanhados por Ana de Fanuel. Mas não entram
no Templo propriamente dito. Compreende-se que, tratando-se de mulheres e
de uma menina, não chegaram até o lugar, ao qual Maria chegou, quando veio
oferecer o seu Filho. Mas, bem perto da porta toda aberta, olham para o
interior meio escuro, de onde estão vindo doces cantos de meninas, e de
onde vem o brilho de lâmpadas preciosas, que espalham uma luz de ouro
sobre dois canteiros de cabecinhas cobertas com véus brancos, dois
verdadeiros canteiros de lírios.
– Daqui a três anos tu também estarás lá, meu Lírio –promete Ana a
Maria, que olha como que fascinada para o interior do Templo, sorrindo ao
lento canto.
– Parece até que ela compreende –diz Ana de Fanuel.– É uma linda
menina! Será querida por mim, como se fizesse parte de minhas entranhas.
Assim eu te prometo ó mãe, se a idade me permitir.
– Sim, que poderás, mulher! –diz Zacarias.– Tu a receberás entre as
meninas consagradas. Eu também estarei lá. Quero estar lá naquele dia para
dizer a ela que reze por nós desde o primeiro momento…
E olha para a sua mulher, que compreende, suspirando.
A cerimônia terminou, e Ana de Fanuel se retira, enquanto os outros
saem do Templo, conversando entre si.
Ouço a voz de Joaquim, que diz:
– Eu teria dado até todos os meus cordeiros, não só os dois melhores,
em troca desta alegria, para dar louvor a Deus!
Nada mais vejo.

6.6
Jesus diz:
– Salomão faz a Sabedoria dizer[13]: “Quem é criança, venha a mim.” Na
verdade, é da fortaleza e dos muros de sua cidade que a eterna Sabedoria
dizia à eterna menina: “Vem a mim.” Ansiava por tê-la.
Mais tarde, o Filho desta puríssima menina dirá: “Deixai vir a Mim os
pequeninos, porque deles é o Reino dos Céus, e quem não se tornar
semelhante a eles, não terá parte no meu Reino.” As vozes se perseguem e,
enquanto a voz do Céu grita à pequena Maria: “Vem a Mim”, a voz do
Homem pensa em sua mãe, ao dizê-lo: “Vinde a Mim, se souberdes ser
pequeninos.”
Dou-vos um modelo em minha mãe.
Eis a perfeita criança, do coração de pomba, simples e puro, eis Aquela
que os anos e os contatos do mundo não conseguem embrutecer pela barbárie
de um espírito corrompido, tortuoso, mentiroso. Porque Ela não quer este
espírito. Vinde a Mim, olhando para Maria.
6.7
Tu, que a estás vendo, diz-me: o seu olhar de criança é muito diferente
do olhar com que a viste aos pés da Cruz, na alegria do Pentecostes, na hora
em que suas pálpebras desceram sobre seus olhos de gazela para o seu
último sono? Não. Aqui está o olhar incerto e espantado da criança; mais
tarde será o olhar espantado e verecundo da Anunciada; mais tarde ainda, o
olhar feliz da mãe de Belém; depois, o olhar de adoradora da minha primeira
e sublime discípula; depois ainda, o olhar dilacerado da atormentada no
Gólgota; depois, o olhar radiante da Ressurreição e Pentecostes; e, por fim,
o olhar velado do sono extático da última visão. Mas, seja que se abra às
primeiras vistas, seja que se feche cansado sobre a última luz, depois de ter
visto tanta alegria e tanto horror, o olho é sereno, puro, plácido, nesga de
céu que brilha sempre de modo igual, sob a fronte de Maria. Ira, mentira,
soberba, luxúria, ódio, curiosidade, nunca o sujam com suas nuvens de
fumaça.
É o olho que olha para Deus com amor, tanto quando chora, como
quando ri. Por amor de Deus acaricia e perdoa, tudo suportando. Por amor
ao seu Deus se torna inatacável aos assaltos do Mal, que muitas vezes se
serve dos olhos para penetrar no coração. O olhar puro, repousante,
benevolente, que têm os puros, os santos, os enamorados de Deus.
Eu disse[14]: “A luz do teu corpo são os teus olhos. Se os olhos são
puros todo o teu corpo estará iluminado. Mas se os olhos são turvos, toda a
tua pessoa estará em trevas.” Os santos tiveram esse olho que é luz para o
espírito e salvação para a carne, porque como Maria, durante toda a sua
vida, não olharam senão para Deus. Ao contrário, eles sempre se lembraram
de Deus.
Explicarei a ti, pequena voz, qual é o sentido desta minha palavra.
[13] faz a S abedoria dizer, em: Provérbios 9,4; dirá, em 378.8.
[14] Eu disse, em: Mateus 6,22-23 (174.9); Lucas 11,34-35 (413.7).
7. A pequena Maria com Ana e Joaquim.
Em seus lábios já está a Sabedoria do Filho.
29 de agosto de 1944.
7.1
Ainda vejo Ana. Desde ontem à tarde, que a estou vendo assim: ela
está sentada no começo da sombra da parreira, atenta a um trabalho de
costura. Está toda vestida de uma cor cinzento-areia, com um vestido muito
simples e solto, talvez por causa do grande calor que deve estar fazendo.
No fim da parreira, podem ver-se os ceifadores, que estão cortando o
feno. Mas ainda não deve ser o feno de maio, porque a uva já está para
colorir-se de ouro e uma macieira grande já vem mostrando os seus frutos,
entre as folhas escuras, que vão se tornando da cor de uma cera lustrosa,
amarela e vermelha. Além disso, o campo de cereais é agora um restolho
sobre o qual, ondulam leves as chamazinhas das papoulas e se levantam,
rígidas e serenas, as flores-de-lis, raiadas como uma estrela, e azuis como o
céu do Oriente.
Da parreira sombria vem vindo, à frente, uma Maria pequenina, mas já
andando ligeira e independente. Seu passo é curto, mas seguro, e suas
sandalinhas já não tropeçam nas pequenas pedras. Tem já um esboço do seu
doce passo, levemente ondulante, de pomba, e ela está parecendo mesmo
uma pombinha em seu vestidinho de linho, que desce até os tornozelos, um
vestidinho bem cômodo, franzido no pescoço por um cordãozinho azul
celeste, e com manguinhas curtas, que deixam ver os antebraços rosados e
gorduchos. Com os seus cabelinhos, que parecem de seda e de um loiro-mel,
não muito encaracolados, mas formando ondas suaves, que terminam em um
gracioso cacho; com seus olhinhos cor do céu, e o doce rostinho levemente
rosado e sorridente, ela parece um pequeno anjo. Até o ventinho leve que lhe
vai entrando pelas mangas largas, e enchendo seu vestido de linho e fazendo-
o ficar mais saliente nas costas, tudo contribui para dar à menina o aspecto
de um pequeno anjo, com as asas já entreabertas, e prontas para voar.
Nas mãozinhas ela leva papoulas, flores-de-lis e outras florzinhas, que
crescem por entre os cereais, mas das quais eu não sei o nome. Ela vai indo
e, ao chegar perto da mãe, dá uma corridinha, solta uma vozinha festiva, e
como uma pequena rolinha, pára o seu vôo contra os joelhos da mãe, que se
abrem um pouco para recebê-la, enquanto que o trabalho, que estava sendo
feito, é posto de lado, para acolhê-la sem que ela se machuque, e os braços
estão estendidos para abraçá-la.

Até aqui ontem à tarde, e hoje de manhã reapresenta-se e continua assim.


– Mamãe! Mamãe!
A pequena rolinha branca está agora no ninho dos joelhos maternos, com
seus pezinhos sobre a erva curta, o rostinho curvado sobre o colo materno, e
não se vê nada mais, além do ouro pálido dos cabelinhos sobre a nuca
delicada, que Ana se curva para beijar com amor.
7.2
Depois a pequena rola levanta a cabeça, e oferece as suas florzinhas.
Todas são entregues à mamãe e, para a oferta de cada flor, ela conta uma
história que ela mesma inventou.
Esta aqui, tão azul e grande, é uma estrela que desceu do céu para trazer
o beijo do Senhor para a mamãe. Aqui está: esta florzinha celeste, beija-a
bem aí no coração, e perceberás que ela tem o sabor de Deus.
Agora, esta outra, que é de um azul mais pálido, como são os olhos do
papai, tem gravado nas folhas que o Senhor quer muito bem ao papai, porque
ele é bom.
E esta aqui, tão pequenina, a única pequena que eu achei (é um
miosótis), é a que o Senhor fez para dizer a Maria que lhe quer bem.
Estas vermelhas, sabe a mamãe o que são? São os pedaços da veste do
rei Davi, molhadas no sangue dos inimigos de Israel, e semeadas nos campos
de luta e de vitória. Nasceram das fímbrias da heróica veste real, rasgada na
luta pelo Senhor.
Mas esta aqui, tão branca e graciosa, que parece formada com sete taças
de seda que olham para o céu, cheias de perfume, nasceu lá perto da fonte
(foi papai que a apanhou entre os espinhos) -Foi feita com a veste de
Salomão, quando, no mês em que sua netinha tinha nascido, há tantos anos
(oh! quantos, quantos anos antes) na pompa da alvura de suas vestes,
Salomão caminhou[15] pelo meio da multidão de Israel, diante da Arca e do
Tabernáculo, alegrando-se pela nuvem que voltou a circundar a glória do
Senhor, cantando o cântico e a oração de sua alegria.
– Eu quero ser sempre como esta flor, e, como o sábio rei, eu quero
cantar, por toda a vida, cânticos e orações diante do Tabernáculo – e aí
cessa de falar a pequena boca de Maria.
– Meu bem, como sabes estas coisas santas? Quem é que as diz a ti? O
teu pai?
– Não. Não sei quem é. Parece que eu as soube desde sempre. Mas
talvez seja alguém que eu não vejo, e que as diz a mim, talvez um dos Anjos
que Deus manda vir falar aos homens que são bons. 7.3Mamãe, me contas
outras coisas?…
– Oh! Minha filha! Sobre que fato queres saber?
Maria fica pensando; séria e recolhida como estava, que bom teria sido
que se tivesse feito o seu retrato naquela posição, para perpetuar aquela sua
expressão. Sobre o rostinho infantil se refletem as sombras de seus
pensamentos. Sorrisos e suspiros, raios de sol e sombras de nuvens,
pensando na história de Israel. Depois ela escolhe:
– Conta-me aquela[16] passagem de Gabriel falando a Daniel, na qual o
Cristo foi prometido.
E ela fica escutando, de olhos fechados, repetindo devagar as palavras
que a mãe vai dizendo, como para se lembrar melhor delas. Quando Ana
termina, Maria lhe pergunta:
– Quanto falta ainda para o Emanuel chegar?
– Cerca de trinta anos, querida.
– Mas, quanto tempo ainda falta! Nesse tempo, eu estarei no Templo…
Diz-me, se eu rezasse muito, muito, muito, dia e noite, noite e dia, e
quisesse ser só de Deus durante toda a vida, só para este fim, o Eterno não
me faria a graça de dar o Messias ao seu povo antes disso?
Ana se apressou em acrescentar estas palavras, ao ver que se marejavam
de lágrimas os cílios de ouro da sua menina:
– Não sei, querida. O Profeta diz “setenta semanas.” Creio que a
profecia não erra. Mas o Senhor é tão bom, que eu creio que, se rezares
muito, muito, muito, Ele te atenderá.
O sorriso volta ao rostinho, que está levemente erguido para a mãe, e um
raiozinho de sol está passando por entre duas folhas da videira, fazendo
brilhar as lágrimas do pranto, que já cessou, como se tivessem sido apenas
gotinhas de orvalho pendentes de finos caules do musgo dos Alpes.
7.4
– Então, eu rezarei e me farei virgem para isso.
– Mas, sabes o que significa o que estás dizendo?
– Quer dizer não conhecer o amor de homem, mas só o de Deus. Quer
dizer não ter outro pensamento, senão no Senhor. Quer dizer permanecer
menina na carne, e anjo no coração. Quer dizer não ter olhos para outra
coisa, mas só para olhar a Deus, ouvidos só para ouvi-lo, boca para louvá-
lo, mãos para oferecer-lhe hóstias, pés velozes para segui-lo, coração e vida
para doar a Ele.
– Bendita és tu! Mas, então, não terás filhos, tu, que gostas tanto das
crianças, dos cordeirinhos e das pombinhas… Sabes de uma coisa? Um filho
para uma mulher é como um cordeirinho branco e todo encaracolado, é como
uma pequena pomba, com penas sedosas, boca cor-de-coral, que pode ser
amado, beijado, e ouvi-lo dizer: “Mamãe!”
– Não importa. Eu serei de Deus. No Templo rezarei. E talvez um dia eu
verei o Emanuel. A virgem, que vai ser a mãe dele, como diz o grande
Profeta, já deve ter nascido, e já deve estar no Templo… Eu vou ser
companheira dela… e sua serva… Oh! Sim! Se, por meio da luz de Deus, eu
a puder conhecer, eu quereria ser serva dela, daquela Virgem bem-
aventurada! E, depois, ela traria o Filho a mim, e me levaria ao seu Filho, e
eu serviria a Ele também. Pensa nisto mamãe!… Eu, servindo ao
Messias!!…
Maria está dominada por este pensamento, que a sublima e a aniquila, ao
mesmo tempo. Com suas mãozinhas cruzadas sobre o pequeno peito, com a
cabecinha um pouco inclinada para a frente, e tomada pela emoção, ela
parece já uma reprodução infantil da “Anunciação”[17] que eu vi. Ela retoma
o assunto:
– Mas será que o Rei de Israel, o Ungido de Deus, me permitirá que eu o
sirva?
– Disso não tenhas dúvidas! Pois, não diz[18] o rei Salomão: “Sessenta
são as rainhas, oitenta as outras mulheres, e as pequeninas serão sem
número”? Vê como no Palácio do Rei serão sem número as meninas virgens
que servirão ao seu Senhor.
– Oh! Estás vendo agora como devo ser virgem? Eu devo. Se Ele por
mãe quer uma virgem, isso é sinal de que ele ama a virgindade, sobre todas
as coisas. Eu quero que me ame, como sua serva, pela minha virgindade, que
me vai tornar um pouco semelhante à sua mãe querida… Isto eu quero…
7.5
Queria também ser pecadora, muito pecadora, se eu não temesse ofender ao
Senhor… Diz-me, mamãe: pode-se ser pecadora por amor de Deus?
– Mas, que é isso que estás dizendo, meu tesouro? Eu não te estou
compreendendo.
– Eu quero dizer: pecar, para poder ser amada por Deus, que se torna
nosso Salvador. Salva-se quem se perdeu. Não é verdade? Eu quereria ser
salva pelo Salvador, para ter o seu olhar de amor. Por isso, queria pecar,
mas não fazer pecado que desgoste a ele. Como é que ele pode salvar-me, se
eu não me perco?
Ana fica atordoada. Não sabe mais o que dizer.
Mas o socorro vem de Joaquim, que acabou de chegar, caminhando
sobre a grama. Por trás da sebe de arbustos baixos, ele tinha se aproximado,
sem fazer barulho.
– Ele te salvou antes, porque sabe que tu o amas, e queres amar somente
a Ele. Por isso tu já estás redimida, e podes ser virgem como quiseres –diz
Joaquim.
– É verdade, meu pai?
Maria se abraça aos joelhos do pai e olha para ele com as claras
estrelas, que são os seus olhos, semelhantes aos do pai, e tão felizes por esta
esperança que ele lhe está dando.
– É verdade, pequeno amor. Olha. Eu vinha te trazendo este passarinho,
que tinha acabado de dar o seu primeiro vôo perto da fonte. Eu teria podido
abandoná-lo, mas suas asas e suas perninhas, ainda fracas, não tinham forças
para levantá-lo e sustentá-lo em um novo vôo, nem para conservá-lo firme
sobre as pedras cobertas de musgo escorregadio. Ele teria caído n’água.
Mas eu não fiquei esperando que isso acontecesse. Peguei-o, e o trouxe para
ti. Com ele farás o que quiseres. O fato é que ele foi salvo, antes de cair no
perigo. Pois foi isso mesmo que Deus fez contigo. Agora, diz-me, Maria:
achas que eu amei mais ao pássaro, salvando-o, antes dele cair no perigo, ou
eu o teria amado mais, se o salvasse depois?
– Assim é que o amaste mais, pois não deixaste que ele se machucasse,
caindo na água gelada.
– Deus te amou mais, porque te salvou, antes que tivesses pecado.
– Então, eu também o amarei inteiramente. De todo o coração.
Passarinho lindo, eu sou como tu. O Senhor nos amou de modo igual, dando-
nos a salvação. Agora eu vou te criar, e depois te deixarei ir embora. E tu
cantarás no bosque, e eu no Templo os louvores de Deus, e nós diremos:
“Envia, envia o teu Prometido aos que o estão esperando.” 7.6Oh! Meu papai!
Quando me levarás ao Templo?
– Dentro em breve, minha pérola. Mas, não ficarás triste por ter que
deixar o teu pai?
– Muito. Mas tu irás lá… e, além disso, se não se ficasse um pouco
triste, que sacrifício haveria?
– E tu te lembrarás de nós?
– Sempre. Depois da oração para que venha o Emanuel, rezarei por vós.
Que Deus vos dê alegria e uma longa vida… até o dia no qual Ele será
Salvador. Depois, eu direi a Ele que vos tome consigo, e vos leve para a
Jerusalém Celeste.
A visão termina para mim com Maria estreitada nos laços do abraço
paterno.

7.7
Jesus diz:
– Já estou ouvindo os comentários dos doutores, em suas ironias
maliciosas, dizendo: “Como é que pode uma menina, que não tem ainda nem
três anos, falar coisas assim? Isso é um exagero.” E não refletem que me
tornam monstruoso, alterando a minha infância, atribuindo-me atos de adulto.
A inteligência não se manifesta em todos do mesmo modo e na mesma
idade. A Igreja marcou a idade de seis anos como a idade em que começa a
responsabilidade das ações, porque essa é a idade na qual até um retardado
é capaz de distinguir o bem do mal, pelo menos de modo rudimentar. Mas há
crianças que muito antes são capazes de discernir, entender e querer,
usando de uma razão já suficientemente desenvolvida. A pequena Imelde
Lambertini, Rosa de Viterbo, Nellie Organ, Nennolina, vos sirvam de base, ó
doutores difíceis, para crerdes que minha mãe podia pensar e falar assim.
Não citei mais do que quatro nomes por acaso, no meio de milhares de
santas crianças que povoam o meu Paraíso, depois de terem raciocinado
como adultos sobre a terra, umas com mais, outras com menos idade.
7.8
Qual é a razão? Um dom de Deus. Portanto, Deus o pode dar na
medida que quiser, a quem quiser e quando quiser. A razão é uma das coisas
que mais vos tornam semelhantes a Deus, Espírito inteligente e raciocinante.
A razão e a inteligência foram graças dadas por Deus ao homem no Paraíso
terrestre. Quanto elas eram vivas, junto com a graça ainda intacta, operando
no espírito de nossos dois Primeiros Pais!
No livro de Jesus Bar Sirac está escrito[19]: “Toda sabedoria vem do
Senhor Deus, e sempre esteve com Ele, mesmo antes dos séculos.” Quanta
sabedoria teriam, então, os homens, se tivessem permanecido filhos de
Deus?
As lacunas em vossas inteligências são o fruto natural do vosso
decaimento da graça e da honestidade. Perdendo a Graça, vós vos afastastes,
por séculos, da Sabedoria. Como os meteoros, que se escondem atrás de uma
nebulosidade de muitos quilômetros, a Sabedoria não chegou mais até vós
com os seus nítidos fulgores, mas somente através de um nevoeiro, que as
vossas prevaricações foram tornando cada vez mais graves.
Depois veio o Cristo, e vos deu a Graça, dom supremo do amor de
Deus. Mas, vós sabeis guardar esta gema tão límpida e pura? Não. Quando
não a destruis com a vossa vontade individual de pecado, a sujais com
contínuas culpas menores, as vossas fraquezas, as vossas simpatias para com
o vício, e também aquelas simpatias que não chegam ainda a ser verdadeiros
casamentos com o vício septiforme, mas, são um enfraquecimento da luz da
Graça e de sua atividade. Depois, tivestes séculos e séculos de corrupções,
para enfraquecer ainda mais a magnífica luz da inteligência que Deus havia
dado aos Primeiros, corrupções que se repercutem como nocivas sobre o
físico e sobre a mente.
7.9
Maria porém era não somente a Pura, a nova Eva, criada de novo para
a alegria de Deus: era a super-Eva, a Obra-Prima do Altíssimo, a cheia de
graça, a mãe do Verbo na mente de Deus.
“O Verbo é a Fonte da Sabedoria”, diz Jesus Bar Sirac. O Filho, então,
não terá posto a sua sabedoria sobre os lábios da própria mãe?
Se a um profeta[20] foi-lhe purificada a boca com carvões ardentes,
porque devia dizer aos homens as palavras que o Verbo, a Sabedoria, lhe
confiava, não terá o Amor à sua esposa ainda menina, mas que um dia iria
trazer em si a Palavra, a linguagem limpa e exaltada, não terá este Amor
feito com que ela não falasse mais como menina, nem mais tarde, como
mulher, mas somente e sempre como uma criatura celeste, unida à grande luz
e sabedoria de Deus?
O milagre não está em uma inteligência superior, demonstrada por Maria
em sua idade infantil, como depois aconteceu Comigo. Mas o milagre está
em poder conter em si a Inteligência infinita, que nela habitava, dentro dos
diques preparados para não assombrar as multidões e não despertar a
atenção satânica.
Ainda voltarei a falar sobre este assunto, que reaparece sempre naquele
“lembrar-se” de Deus, que é próprio dos Santos.
[15] caminhou, como se narra em: 1 Reis 8,1-5.
[16] aquela, da p rofecia que se encontra em: Daniel 9,20-27, e que será interp retada em 10.5 e em 41.3/4.
[17] Anunciação, é a efígie sagrada que se venera na “Basilica della Ss. Anunziata” em Florença, como veremos igualmente em
27.1.
[18] diz, em: Cântico dos Cânticos 6,8.
[19] está escrito, em: Eclesiástico 1,1-8.
[20] um profeta, isto é, Isaías, como se narra em: Isaías 6,6-7. É um facto citado muitas vezes na obra, em modo directo (como
aqui e, p or exemp lo, em 166.8 e em 626.2) ou indirecto (como em 364.8). Contudo, vêm recordadas as p rofecias messiânicas de
Isaías, como indicam as notas em 561.11 e em 577.4.
8. Maria é acolhida no Templo. Ela, em sua
humildade, não sabia que era a cheia de sabedoria.
30 de agosto de 1944.
8.1
Vejo Maria caminhar entre o pai e a mãe, pelas ruas de Jerusalém.
Os passantes detêm-se para olhar a formosa menina, toda vestida de um
branco neve, coberta com um véu muito leve que, por seus desenhos de
ramos e de flores, mais escuros por entre os pontos mais claros do fundo,
parece-me ser o mesmo que Ana usou no dia de sua Purificação. Com esta
diferença: enquanto para Ana ele chegava só até a cintura, para a pequenina
Maria desce quase até o chão, e a envolve em uma nuvem tênue e clara de
uma extraordinária beleza.
O loiro dos cabelos soltos sobre os ombros, ou melhor, sobre a graciosa
nuca, transparece aqui e ali, nos pontos em que o véu não é adamascado,
apresentando à vista apenas o fundo, que é quase diáfano. O véu está preso
sobre a fronte por meio de uma fita de um azul muito claro sobre a qual,
certamente por obra da mamãe, estão bordadas, a fio de prata, pequenos
lírios.
O vestido de Maria, como eu disse, é alvíssimo, desce até o chão, e os
pezinhos mal se mostram, quando ela anda, com suas sandalinhas brancas.
Suas mãozinhas lembram duas pétalas de magnólia, saindo das mangas
largas. Fora o círculo azul formado pela fita, não se vê nenhuma outra cor.
Tudo é branco. Maria parece vestida de neve.
Joaquim e Ana estão vestidos, ele com a mesma roupa da Purificação e
Ana ao invés, com um vestido de cor violeta muito escuro. Até o manto, que
lhe cobre a cabeça, é de um violeta escuro. Ela o traz caído totalmente sobre
os olhos, dois pobres olhos de mãe, vermelhos de tanto chorar, que não
queriam ser vistos assim, por isso choram sob a proteção do manto. Essa
proteção serve por causa dos transeuntes e também por Joaquim que, embora
tenha sempre olhos serenos, hoje eles estão avermelhados e opacos de
lágrimas. Ele caminha, muito encurvado, debaixo do seu véu colocado como
um turbante, com as beiras laterais descendo ao longo do rosto.
Joaquim agora está, realmente, envelhecido. Quem o vê deve pensar que
ele seja o avô, talvez até bisavô daquela pequenina que leva pela mão. O
sofrimento por ter que separar-se dela faz que o pai ande como que
arrastando os pés, desanimado em todos os seus movimentos e modos, o que
o faz ficar vinte anos mais velho. Seu rosto parece o de uma pessoa doente,
além de envelhecida, tão grande é o grau do seu cansaço e de sua tristeza, e
sua boca está com um leve tremor, por entre duas rugas ao lado do nariz,
mais acentuadas hoje.
Os dois estão procurando esconder o pranto. Mas, se o podem esconder
para muitos, não o escondem de Maria que, pelo seu pequeno tamanho, pode
ver, olhando de baixo para cima e, levantando a cabecinha, olha uma vez o
pai, outra vez, a mãe. Eles se esforçam para sorrir a ela, com um tremor na
boca, aumentando o aperto de suas mãos sobre a pequenina mão, cada vez
que sua filhinha olha para eles sorrindo. Eles devem ficar pensando: “Aí
está. É esta uma vez a menos que vemos este sorriso”.
8.2
Vão andando bem devagar. Parecem querer que aquela sua viagem
dure o mais possível. Tudo serve de motivo para mais uma parada… Mas,
afinal, uma estrada uma hora tem que acabar. E esta já está no fim. No alto
deste último trecho da estrada, que vai subindo, estão os muros que rodeiam
o Templo. Ana solta um gemido e aperta com mais força a mãozinha de
Maria.
– Ana querida, eu estou contigo!
Assim diz uma voz, que vem da sombra de um arco baixo, que se projeta
sobre um cruzamento.
Isabel, que, com certeza, a estava esperando, se aproxima dela e a
aperta ao coração. Vendo que Ana está chorando, lhe diz:
– Vem, entra um pouco nesta casa amiga. Depois, iremos juntos.
Zacarias também está aqui.
Entram todos em uma morada baixa e escura, na qual se vê o clarão de
um grande fogo. A dona da casa deve ser amiga de Isabel, mas para Ana é
estranha, e então se retira dali delicadamente, deixando os recém-chegados
mais a vontade.
– Não pense que eu esteja arrependida, ou esteja dando o meu tesouro
de má vontade ao Senhor –explica-lhe Ana, entre lágrimas–, mas o
coração… oh! como o meu coração está doendo, o meu velho coração, que
vai voltar para aquela solidão dos que não têm filhos!… Se pudesses sentir
o que estou sentindo…
– Eu compreendo, minha querida Ana… Mas, tu és boa, Deus te
confortará em tua solidão. Maria rezará pela paz de sua mamãe. Não é
mesmo?
Maria acaricia as mãos maternas e as beija, e as passa em seu rosto para
ser acariciada, enquanto Ana aperta entre as suas aquele rostinho, e o beija,
repetidamente. E não se sacia de beijá-lo.
Entra Zacarias, e saúda:
– Aos justos, a paz do Senhor!
– Sim –diz Joaquim– suplica para nós a paz, pois as nossas entranhas
estão trêmulas, ao fazermos nossa oferta, como deviam estar as entranhas de
nosso Pai Abraão[21], quando subia o monte, só que nós não encontraremos
outra oferta para darmos no lugar desta. Também não quereríamos fazer isso,
pois somos fiéis a Deus. Mas estamos sofrendo, Zacarias. Sacerdote de
Deus, procura compreender-nos e não fiques escandalizado conosco.
– Nunca. Pelo contrário, a vossa dor, que sabe não passar além do
permitido e levar-vos à infidelidade, serve para mim até como um exemplo
de amor ao Altíssimo. Mas, tende coragem! 8.3Ana, a profetisa, tomará muito
cuidado desta flor de Davi e de Arão. Neste momento ela é o único lírio de
sua estirpe santa, que Davi ainda tem no Templo, e cuidaremos dela como de
uma pérola real. Visto que os tempos vão chegando ao fim, as mães da
estirpe deveriam consagrar suas filhas ao Templo, dado que há de ser de
uma virgem, da estirpe de Davi, que nascerá o Messias. No entanto, por um
relaxamento na fé, os lugares das virgens estão vazios. São muito poucas no
Templo, e nenhuma da estirpe real, depois que Sara, a esposa de Eliseu, saiu
para se casar, há três anos. É verdade que ainda faltam seis lustros para o
fim, mas… ainda bem! Esperemos que Maria seja a primeira de muitas
outras virgens da estirpe de Davi diante do Sagrado Véu. E depois… quem
sabe…
Zacarias não diz mais nada, mas, pensativo olha para Maria. Depois,
retoma o assunto:
– Eu mesmo velarei por ela. Sou sacerdote, e lá dentro tenho as minhas
funções. E, no desempenho delas cuidarei deste anjo. Isabel também virá
muitas vezes se encontrar com ela…
– Oh! Decerto! Eu tenho tanta necessidade de Deus, e virei dizer isso a
esta menina, para que ela o transmita ao Eterno.
8.4
Ana se sente reanimada. Isabel, para aliviá-la ainda mais, lhe pergunta:
– Esse não é o teu véu de esposa? Ou será que o fiaste de um novo
linho?
– É aquele mesmo. Eu o consagro com ela ao Senhor. Já não tenho mais
aquela vista boa… Depois, as riquezas estão muito diminuídas pelos
impostos e pelas desventuras… Nem eu podia estar fazendo pesadas
despesas. Tomei as providências necessárias só para um bom enxoval
durante o tempo que vai passar na Casa de Deus, e para depois… pois penso
que não serei eu quem a vai vestir para as núpcias… Mas quero que tenha
sido a mão de sua mamãe, ainda que fria e imóvel, a preparar-lhe para as
núpcias, fiando os linhos e as vestes de esposa.
– Oh! Por que ficar pensando estas coisas?!
– Eu estou velha, prima. Nunca me senti assim, como agora que estou
passando por esta dor. As últimas forças de minha vida foram dadas a esta
flor, quando a trouxe comigo, quando a alimentei, e agora… agora que estou
nas últimas, estou sentindo a dor de perdê-la, o que vai acabar com minhas
forças.
– Não digas uma coisa dessas. Pensa no Joaquim.
– Tens razão. Procurarei viver para o meu homem.
Joaquim fez como se não tivesse ouvido, atento como estava em ouvir
Zacarias; mas bem que ele ouviu, e dá um forte suspiro, com os olhos
marejados de lágrimas.
– Estamos entre a terça e a sexta horas. Acho que seria bom irmos
andando –diz Zacarias.
Levantam-se todos para colocarem-se os mantos e partirem.
8.5
Mas antes de saírem, Maria se ajoelha sobre a soleira, de braços
abertos. É um pequeno querubim, que implora:
– Pai! Mãe! Dai-me a vossa bênção!
A pequenina é forte, não chora. Mas seus labiozinhos tremem, e a voz,
entrecortada por um interno soluço, tem, mais do que nunca, o som do
gemido trêmulo da rolinha. Seu rostinho está mais pálido, e seus olhos têm
aquele olhar cheio de uma resignada angústia que parece sempre mais forte
até provocar-nos um profundo sofrimento. Este olhar só o verei de novo no
Calvário e junto ao Sepulcro.
Seus pais a abençoam e beijam. Uma, duas, dez vezes. Não sabem
saciar-se… Isabel chora silenciosamente, e Zacarias, por mais que não
queira demonstrá-lo está comovido.
Saem. Maria entre o pai e a mãe, como antes. Na frente, vão Zacarias e a
mulher.
Ei-los dentro dos muros do Templo.
– Vou ao Sumo Sacerdote. Vós subi até o grande terraço.
Atravessam três pátios e três átrios sobrepostos. Chegam aos pés do
grande cubo de mármore coroado de ouro. Cada cúpula, convexa como uma
enorme laranja, está brilhando agora ao sol, cujos raios incidem
perpendicularmente sobre o vasto pátio que circunda a majestosa construção,
ocupando toda a ampla esplanada, abrangendo a escadaria que conduz ao
Templo. Só o pórtico, que fica à frente da escadaria, está na sombra,
tornando a alta porta feita de bronze e ouro ainda mais escura e majestosa,
rodeada de muita luz.
Maria parece ainda mais ser feita de neve, quando anda ao sol. Agora
ela está aos pés da escadaria. Entre o pai e a mãe. Como devem estar
batendo os corações dos três! Isabel está ao lado de Ana, mas a um meio
passo atrás.
8.6
Um toque de trombetas de prata, e a porta, girando sobre as
dobradiças, parece produzir um som de cítara, ao correr sobre as esferas de
bronze. Pode-se ver agora o interior, com suas lâmpadas lá no fundo, e um
cortejo que vem saindo do interior. É um cortejo pomposo, com o soar das
trombetas de prata, nuvens de incenso e muitas luzes.
Ei-lo que chega à soleira da porta. O Sumo Sacerdote parece vir à
frente. É um ancião cheio de majestade, vestido de linho finíssimo, tendo
sobre o linho uma túnica mais curta, também de linho, sobre a qual traz uma
espécie de casula, um paramento multicolor, parecido com a planeta e a
veste dos diáconos. Nas suas vestes, as cores púrpura e ouro, roxo e branco
se alternam, e brilham como pedras preciosas ao sol; duas gemas
verdadeiras brilham ainda mais vivamente sobre os ombros. Também
parecem ser duas fivelas em seus engastes preciosos. Sobre o peito uma
larga placa reluzente com pedras preciosas presas por uma corrente de ouro.
Há ainda pingentes e ornamentos vários, que reluzem na barra da túnica
curta, enquanto o ouro lhe resplende sobre a fronte por cima da cobertura da
cabeça, fazendo lembrar os padres ortodoxos, na mitra que eles usam em
forma de cúpula, diferente da católica, que tem uma ponta.
O solene personagem avança sozinho, até o começo da escadaria,
exposto ao brilho do sol, que o torna ainda mais esplêndido. Os outros, numa
fila em semicírculo, o esperam do lado de fora da porta, à sombra do
pórtico. A esquerda, há um grupo de meninas vestidas de branco, em
companhia de Ana, a profetisa, e outras anciãs, que certamente são mestras.
O Sumo Sacerdote olha para a pequena e sorri. Ela deve estar-lhe
parecendo muito pequena, ainda mais, aos pés daquela escadaria que parece
digna de um templo egípcio! Ele eleva os braços em oração. Todos abaixam
a cabeça, como que aniquilados, diante da majestade sacerdotal que está em
comunhão com a Majestade eterna.
Depois, chegou a hora! Ele faz um sinal a Maria. E ela se separa da mãe
e do pai e sobe, vai subindo, como se estivesse fascinada. Ela sorri. Está
sorrindo, agora já à sombra do Templo, onde desce o Véu precioso… Já está
no alto da escadaria, aos pés do Sumo Sacerdote, que lhe impõe as mãos
sobre a cabeça, a vítima é aceita. Que hóstia mais pura terá tido algum dia o
Templo?
Depois o Sumo Sacerdote se volta até a porta do Templo, conservando a
mão sobre o ombro dela, como para conduzir a cordeirinha sem mácula ao
altar. Antes de fazê-la entrar, lhe pergunta:
– Maria de Davi, sabes qual é o teu voto?
Ao “sim” alto e claro, com que ela lhe responde, ele exclama:
– Entra, então. Caminha em minha presença. E sê perfeita.
Maria entra, pois, e a sombra a faz desaparecer, enquanto o grupo das
virgens e das mestras, e depois o dos levitas, a escondem cada vez mais, até
separá-la. Acabou-se…
Agora a porta também gira sobre suas dobradiças harmoniosas… Uma
pequena fresta, permite ainda que se veja o cortejo, que se vai encaminhando
para o Santo. A fresta torna-se apenas um fio. Já não se vê mais nada. A
porta é então fechada.
Ao último acorde das dobradiças sonoras, responde o soluço de dois
velhinhos e um único grito:
– Maria! Minha filha!
Depois, dois gemidos, um que chama o outro:
– Ana!
– Joaquim!
E terminam, dizendo:
– Demos glória ao Senhor, que a recebe em sua Casa, e a conduz pelo
seu caminho.
E tudo termina assim.

Jesus diz:
8.7

– O Sumo Sacerdote havia dito: “Caminha em minha presença, e sê


perfeita.” Ele não sabia que estava falando à mulher que era inferior em
perfeição só a Deus. Mas ele falava em nome de Deus e, por isso, sua ordem
era sagrada. Sempre sagrada, especialmente quando dada àquela que é cheia
de sabedoria.
Maria havia merecido que a “Sabedoria fosse ao seu encontro
mostrando-se primeiro a ela”, porque, “desde o começo de sua vida, tinha
ficado vigiando à sua porta, desejando instruir-se por amor, quis ser pura
para conseguir o perfeito amor e merecer ter a sabedoria por mestra”.
Em sua humildade, não sabia que a possuía desde antes de nascer, e que
sua união com a Sabedoria não era outra coisa, senão a continuação das
divinas palpitações do Paraíso. Ela nem podia imaginar isso. E, quando, no
silêncio do coração, Deus lhe dizia palavras sublimes, Ela humildemente
pensava que fossem pensamentos de orgulho, e, elevando a Deus seu coração
inocente, suplicava: “Tem piedade de tua serva, Senhor!”
Oh! É bem verdade que a verdadeira sábia, a virgem eterna, teve um só
pensamento, desde a aurora do seu dia: “Dirigir a Deus o seu coração, desde
a manhã de sua vida, estando atenta à vontade do Senhor, orando diante do
Altíssimo”, pedindo perdão pela fraqueza do seu coração, como sua
humildade lhe sugeria, sem saber que estava antecipando os apelos de
perdão que haveria de fazer pelos pecadores, aos pés da Cruz, em
companhia de seu Filho, quase morto.
“Quando[22], pois, o Senhor o quiser, ela ficará cheia do Espírito de
inteligência”, compreendendo, então, sua sublime missão. Por enquanto, não
é senão uma pequenina que, na sagrada paz do Templo, abraça, tornando
mais estreitos com Deus, os laços de seus colóquios, de seus afetos e de suas
recordações.
Isto é para todos.
8.8
Mas para ti, pequena Maria, não terá nada em particular para dizer-te o
teu Mestre? “Caminha na minha presença: e portanto sê perfeita.” Modifico
ligeiramente a frase sagrada fazendo dela uma ordem para ti: sê perfeita no
amor, na generosidade, no sofrer.
Olha uma vez mais para minha mãe. E medita sobre aquilo que tantos
ignoram ou querem ignorar, porque a dor é uma matéria por demais dura
para o seu paladar e o seu espírito. A dor. Maria teve-a desde as primeiras
horas da vida. Ser perfeita assim era possuir uma sensibilidade também
perfeita. Portanto mais agudo ainda devia ser o seu sacrifício, sendo, então,
mais meritório também. Quem possui pureza, possui amor, quem possui amor
possui sabedoria, quem possui sabedoria, possui generosidade e heroísmo,
porque sabe o motivo pelo qual se sacrifica.
Eleva para o alto o teu espírito, mesmo quando a cruz te perturba, te
estraçalha, te mata. Deus está contigo.
[21] Pai Abraão no sacrifício do filho Isaac, narrado em: Génesis 22,1-18, inclui também a p romessa de Deus que será
recordada em 24.2.
[22] Quando… é citação de: Eclesiástico 39,6; as que p recedem são ainda citações de: Provérbios 8.
9. A morte de Joaquim e de Ana foi suave
depois de uma vida de sábia fidelidade a Deus nas
provações.
31 de agosto de 1944.
9.1
Jesus diz:
– Como um rápido crepúsculo de inverno, no qual o vento forte com
neve acumula nuvens pelo céu, assim, a vida dos meus avós conheceu
rapidamente o chegar da noite, depois que o sol deles se deteve, brilhando
na sagrada cortina do Templo.
9.2
Mas, foi dito[23]: “A Sabedoria inspira vida aos seus filhos, toma sob a
sua proteção os que a procuram… Quem ama a sabedoria, ama a vida, e
quem fica vigilante para adquiri-la, haverá de gozar de sua paz. Quem a
possui, terá como herança a vida… Quem a serve, obedecerá ao Santo,
sendo muito amado por Deus… Se crer nela, a terá por herança, confirmada
pelos seus descendentes, porque ela o acompanha nas provações. Antes de
tudo, o escolhe, depois enviará sobre ele todos os temores, medos e
provações, atormentando-o com o açoite de sua disciplina, para prová-lo em
seus pensamentos e adquirir confiança nele. Depois lhe dará estabilidade,
voltando a ele por um caminho reto e o fará contente. Ela lhe descobrirá os
seus segredos, porá nele tesouros de ciência e de inteligência, que se
manifestarão em obras de justiça.”
Sim, tudo isso foi dito. Os livros sapienciais são aplicáveis a todos os
homens que neles encontram um espelho para o seu comportamento e sua
guia. Mas felizes aqueles que podem ser identificados entre os amantes
espirituais da Sabedoria.
Eu me fiz rodear de sábios, que foram meus parentes mortais. Ana,
Joaquim, José, Zacarias e ainda mais, Isabel, e depois o Batista. Acaso não
são eles verdadeiros sábios? Não falo de minha mãe, na qual a Sabedoria
fez sua morada.
9.3
Da juventude até o túmulo, a sabedoria tinha inspirado uma vida
agradável a Deus aos meus avós, protegendo-os do perigo de pecar, como
uma tenda que protege da fúria dos elementos. O santo temor de Deus é base
para a planta da sabedoria, a qual lança todos os seus ramos, até atingir, no
seu vértice, o amor tranqüilo, na sua paz, o amor pacífico, na sua segurança,
o amor seguro, na sua fidelidade, o amor fiel, na sua intensidade, enfim, o
amor total, generoso e ativo dos santos.
“Quem ama a sabedoria, ama a vida, e terá a Vida como herança”, diz[24]
o Eclesiástico. Isto está ligado à minha Palavra: “Aquele que perder a vida
por amor de Mim, salvá-la-á.” Porque não se trata da pobre vida desta terra
e, sim, da vida eterna; não se trata das alegrias de um momento, mas das
alegrias imortais.
Foi neste sentido que Joaquim e Ana amaram a sabedoria. E ela esteve
com eles nas provações.
Quantas provações! Vós que, por não serdes completamente maus,
desejaríeis não ter nunca que chorar e sofrer! Imaginem, estes justos quantas
dessas provações tiveram, embora merecessem ter Maria por filha! A
perseguição política que os expulsou da terra de Davi, empobrecendo-os
grandemente. A tristeza de ver reduzir-se a nada os anos que iam passando,
sem que uma flor lhes dissesse: “Eu serei a vossa continuação.” E, depois, o
receio de tê-la conseguido já na idade em que não tinham nenhuma certeza de
chegarem a vê-la mulher. Além disso, o dever que teriam de cumprir, de
afastá-la de seus corações, para a colocarem sobre o altar de Deus. Ainda
mais: tiveram que viver num silêncio bem mais pesado; depois de estarem já
habituados com o arrulhar de sua pombinha, com o rumor de seus passinhos,
os sorrisos e beijos de sua filhinha, ficaram agora esperando apenas, por
entre recordações, a hora de Deus. E muitas outras coisas. Doenças,
calamidades do tempo, prepotência dos poderosos, quantos duros golpes
assestados contra o frágil castelo de sua modesta propriedade. E ainda não
basta. O sofrimento da filha, que está longe deles, que vai ficar sozinha e
pobre, apesar de todos os cuidados e sacrifícios, não tendo mais do que as
sobras dos bens paternos. Como irá esta filha encontrar essas sobras, se
ficarem por muitos anos sem serem cultivadas, imobilizadas, à sua espera?
Temores, medo, provações e tentações. E fidelidade, fidelidade, fidelidade
sempre, a Deus.
9.4
E a tentação mais forte: que não se lhes negasse o conforto de terem
sua filha junto a eles quando já estivessem bem idosos. Mas, os filhos são
de Deus, antes de serem dos pais. E cada filho pode dizer isto que Eu
disse[25] à minha mãe: “Não sabes que Eu devo tratar dos interesses do Pai
do Céu?” E cada mãe, cada pai deve aprender o que fazer, olhando Maria e
José no Templo, ou Ana e Joaquim na sua casa de Nazaré, cada vez mais
despojada e mais triste, embora possua algo que não diminui nunca,
crescendo sempre mais: a santidade de dois corações, a santidade de um
casamento.
O que resta a Joaquim, já enfermo, e o que resta à sua sofredora esposa,
nas longas e silenciosas tardes de velhos a caminho da morte? Os
vestidinhos, as primeiras sandalinhas, os pobres brinquedos de sua
pequenina, que agora está longe deles, e sempre as lembranças. E, com as
lembranças, uma paz que lhes nasce no coração, quando cada um pode dizer:
“Estou sofrendo, mas cumpri o meu dever de amor para com Deus”.
Estamos, pois, diante de uma alegria sobrehumana, que brilha com uma
luz celestial, desconhecida aos filhos do mundo, e que não perde o brilho ao
cair, como pálpebra pesada sobre dois olhos moribundos, mas que, na sua
última hora, resplende ainda mais, evidenciando verdades ocultas durante
toda a vida, fechadas como borboletas em seus casulos, que só davam sinal
de sua presença por movimentos suaves, enquanto que agora podem abrir
suas asas douradas, mostrando as palavras que as adornam. A luz de suas
vidas vai-se apagando no conhecimento de um futuro feliz para eles e para
sua estirpe, com um louvor ao nome do Senhor sobre os lábios.
9.5
Assim foi a morte dos meus avós, justamente pela santa vida que
tiveram. Por sua santidade eles mereceram ser os primeiros guardiães da
amada de Deus, e, somente quando um sol maior se mostrou no ocaso de
suas vidas, eles entenderam claramente a graça que Deus lhes havia
concedido.
Por sua santidade, Ana não passou pelos sofrimentos da mulher[26] que
dá à luz, mas, sim, pelo êxtase de quem trazia consigo aquela que é a sem
culpa. Para os dois não houve aflições de agonia, mas uma languidez que foi-
se desvanecendo, assim como docemente vai-se apagando uma estrela, à
medida que o sol vem surgindo com a aurora. Eles não tiveram o conforto de
ter-me consigo, Sabedoria Encarnada, como pôde José; no entanto, Eu era a
invisível Presença que, inclinada sobre o travesseiro deles, fazendo-os
adormecer em paz, na esperança do triunfo, lhes dizia sublimes palavras.
Há quem diga: “Por que não tiveram que sofrer para gerar, nem para
morrer, sendo eles também filhos de Adão?” Eu respondo: “O Batista foi
pré-santificado só por ter chegado perto de Mim, quando estava no ventre de
sua mãe, tendo sido ele também filho de Adão, concebido com o pecado
original; não teria recebido nenhuma graça a santa mãe daquela que não teve
mancha, preservada por Deus, por trazer o próprio Deus no seu espírito
quase divino e no seu coração embrionário, sem nunca de Deus se separar,
desde que foi pensada pelo Pai, concebida num ventre, tornando a possuir
Deus plenamente no céu por uma eternidade gloriosa?” E ainda respondo:
“A reta consciência dá uma morte serena, e as orações dos santos vos
alcançam tal morte.”
Joaquim e Ana deixaram atrás de si uma vida inteira vivida numa
consciência reta, que surge então como plácido panorama, servindo-lhes de
guia para o Céu. Eles tinham a santa, em oração pelos seus pais que estavam
longe, diante do Tabernáculo de Deus, pais colocados por ela em segundo
lugar depois de Deus, que é o Bem supremo, mas que eram amados, como a
lei e o sentimento o exigiam, com um amor sobrenaturalmente perfeito.
[23] foi dito, em: Eclesiásticos 4,11-18.
[24] diz, em: Eclesiástico 4,12-13; está ligado à minha palavra, em : Mateus 16,25; Marcos 8,35; Lucas 9,24 (346.9).
[25] Eu disse, em: Lucas 2,49 (41.12).
[26] não… sofrimentos da mulher: facto admitido — assim anota M aria Valtorta numa cóp ia dactilografada — também por
parte de alguns teólogos no sentido material da dor do parto; na realidade a alegria estática no dar à luz Maria predominou
sobre o natural sofrimento feminino da grávida, tanto que Ana deu à luz sem ânsias nem crueza próprias desses casos.
10. Cântico de Maria. Ela se lembrava
de tudo o que o seu espírito havia visto em Deus.
2 de setembro de 1944.
10.1
Somente ontem à tarde, sexta-feira, é que a minha mente se iluminou
para ver. Não vi outra coisa senão uma Maria bem jovem, uma Maria de, no
máximo doze anos, cujo rostinho já não tem mais aquelas rotundidades
próprias da meninice, mas vai deixando ver os contornos da mulher, naquela
forma oval que se alonga.
Também os cabelos não estão mais caídos sobre o pescoço, com seus
cachinhos leves, mas estão divididos, formando duas boas tranças de uma
cor de ouro esmaecida — parecem uma liga de prata de tão claros — e
descem passando pelos ombros e chegando até a cintura. Seu rosto agora
está mais pensativo, mais maduro, ainda que continue a ser o rosto de uma
menina, uma menina bela e pura que, toda vestida de branco, está costurando
em um pequeno quarto, também branco, de cuja janela escancarada, pode-se
ver o edifício imponente do Templo, no centro, e depois, toda a descida dos
degraus dos pátios e dos pórticos. Atrás dos muros, que rodeiam o Templo,
vê-se a cidade com suas ruas, casas e jardins e, no fundo, o cume
arredondado e verde do monte das Oliveiras.
Ela está costurando e cantando em voz baixa. Não sei se é um canto
religioso. Diz assim:

“Como uma estrela dentro da água clara


brilha-me uma luz no coração.
Desde minha infância, de mim não se separa
e suavemente ela me guia com amor.
No coração eu tenho um canto.
De onde ele virá?
Homem, tu não sabes isso.
Vem de onde repousa o Santo.
Eu olho para a minha estrela clara
e não quero coisa alguma que não seja,
mesmo a mais doce e querida,
mas que não seja esta doce luz que é toda minha.
Tu me trouxeste desde os altos Céus,
ó minha Estrela, no seio de uma mãe.
Vives agora em mim, mas por fora dos véus
te estou podendo ver, ó rosto glorioso do Pai.
Quando darás à tua serva a honra
de ser do Salvador a humilde serva?
Manda, manda-nos do Céu o Messias.
Aceita, ó Pai santo, a oferta de Maria”.

10.2
Maria se cala, sorri e suspira, e depois se inclina e se ajoelha em
oração. Seu pequeno rosto é todo uma só luz. Erguido depois para o azul
límpido de um belo céu de verão, parece atrair para si toda aquela
luminosidade, e irradiá-la de si. Ou melhor, parece que um sol escondido no
seu interior irradie suas luzes e incendeie a neve levemente rosada da face
de Maria, derramando-se sobre as coisas e o sol que brilha na terra,
abençoando e prometendo toda sorte de bens.
Enquanto Maria está para levantar-se, depois de sua amorosa oração, e
em seu rosto ainda lhe permanece a luminosidade do êxtase, entra a anciã
Ana de Fanuel, e pára, assombrada, ou, pelo menos, admirada pelo ato e
pelo aspecto de Maria.
Depois a chama:
– Maria!
E a menina se volta com um sorriso, diferente, mas sempre muito lindo,
saudando-a:
– Ana, a paz esteja contigo!
10.3
– Estavas rezando? A oração não te basta nunca?
– A oração poderia me bastar. Mas eu falo com Deus! Ana, não fazes
uma idéia como eu O sinta próximo de mim. Mais do que próximo, sinto-O
em meu coração. Deus me perdoe esta soberba. Mas eu não me sinto sozinha.
Estás vendo? Lá, naquela casa de ouro e de neve, atrás da dupla Cortina,
está o Santo dos santos. Nenhum olho, a não ser o do Sumo Sacerdote, pode
fixar-se no Propiciatório sobre o qual repousa a glória do Senhor. Mas eu
não preciso olhar, com toda a alma cheia de veneração, para aquele duplo
Véu bordado, que se move com as ondas dos cantos das virgens e dos
levitas, e guarda o perfume dos preciosos incensos, como para tentar
perfurar sua urdidura, a fim de ver transparecer o Testemunho. Sim, também
eu olho para ele! Não temas que eu não o olhe, cheia de veneração, como
fazem todos os filhos de Israel. Não temas que o orgulho me cegue, a ponto
de fazer-me pensar isto que estou te dizendo. Eu olho para ele. Não há
nenhum servo humilde no povo de Deus que olhe com mais humildade para a
Casa do Senhor, como eu, pensando ser a mais indigna de todos. O que eu
vejo? Vejo um véu. O que deve estar atrás do Véu? Um Tabernáculo. O que
há nele? Se olho em meu coração, eis que vejo Deus, que brilha em sua
glória e amor, dizendo-me: “Eu te amo”, e eu Lhe digo: “Eu te amo” e sinto-
me derreter, me deleito em cada palpitação do coração, neste beijo
recíproco… Eu estou no meio de vós, mestras e companheiras queridas. Mas
um círculo de fogo me separa de vós. Dentro do círculo estamos Deus e eu,
que vos vejo, através do Fogo de Deus, e assim vos amo… Mas não posso
amar-vos segundo a carne. Jamais poderei amar ninguém segundo a carne.
Só posso amar a Este que me ama, segundo o espírito. 10.4Eu conheço a minha
sorte. A Lei secular de Israel quer que cada menina se torne esposa, e cada
esposa mãe. Mas eu, ainda que obedecendo à Lei, obedeço uma Voz que diz:
“Eu te quero”, mas como poderei fazer isso se sou e serei virgem? Esta tão
doce e invisível Presença, que está comigo me ajudará, porque Ela é que
quer assim. Eu não temo. Não tenho mais pai nem mãe… só o Eterno sabe
como nesta dor se purificou tudo o que eu tinha de humano. Foi uma
purificação por meio de uma dor atroz. Agora não tenho ninguém, além de
Deus. A Ele obedeço, portanto, cegamente. Já teria obedecido até contra meu
pai e minha mãe, porque a Voz me instrui que quem quer acompanhá-la deve
ir além dos pais, que são amorosos guardiães, rondam os muros do coração
filial, querendo conduzi-lo à alegria, mas, segundo o modo de ver deles…
Não sabem que há outros modos que conduzem a uma alegria infinita… Eu
lhes teria deixado as vestes e o manto, para acompanhar a Voz, que me diz:
“Vem, ó minha querida, ó minha esposa!” Eu lhes teria deixado tudo. As
pérolas das lágrimas, que choraria por dever desobedecer, e os rubis do meu
sangue, dado que até a morte eu teria desafiado para acompanhar a Voz que
me chama, lhes diriam que há algo maior e mais doce do que o amor paterno
e materno. É a Voz de Deus. A Sua vontade agora me deixou livre até do laço
da piedade filial. Talvez não teria sido propriamente um laço. Eles eram
dois justos, e Deus certamente lhes falava, como faz comigo. Eles seguiriam
a justiça e a verdade. Quando penso neles, os vejo na tranqüila espera dos
Patriarcas. Apresso, com o meu sacrifício, a chegada do Messias para abrir-
lhes as portas do Céu. Sobre a terra, sou eu que me dirijo, ou melhor, é Deus
que dirige a sua pobre serva, dando-lhe as Suas ordens. Eu as cumpro, pois
cumpri-las é a minha alegria. Quando chegar a hora, direi ao esposo o meu
segredo… e ele o aceitará.
– Mas, Maria, que palavras encontrarás para persuadi-lo? Terás contra
ti o amor de um homem, a Lei e a vida.
– Eu terei Deus comigo… Deus abrirá à luz o coração do meu esposo…
A vida perderá os espinhos da sensualidade, tornando-se uma pura flor com
perfume de caridade. 10.5A Lei… Ora, Ana, não me digas que sou uma
blasfemadora. Eu acho que a Lei está para ser mudada. Por quem, dirás tu, se
a Lei é divina? Pelo único que a pode mudar. Por Deus. O tempo está mais
perto do que pensais, eu vos digo. Porque, lendo Daniel, uma grande luz se
fez em mim, partindo do fundo do meu coração, e minha mente compreendeu
o sentido das palavras misteriosas. As setenta semanas serão abreviadas
pelas orações dos justos. Foi mudado o número dos anos? Não. A profecia
não mente. A medida do tempo profético não é o curso do sol e sim o da lua.
Portanto, eu te digo: “A hora está perto, quando se ouvirá o vagido daquele
que nasceu de uma Virgem.” Oh! Se esta Luz que me ama quisesse me dizer,
já que me diz tantas coisas, onde está a feliz donzela[27] que dará à luz o
Filho de Deus, que dará o Messias ao seu povo! Caminhando descalça,
percorreria a terra, e nem o frio, nem o gelo, nem a poeira, nem a canícula,
nem as feras, nem a fome seriam para mim obstáculos para eu chegar perto
dela e dizer-lhe: “Concede à tua serva e à serva dos servos de Cristo de
viver sob o teu teto. Eu trabalharei o moinho e a prensa. Coloca-me como
escrava ao lado do moinho, ou como pastora do teu rebanho, como a que
limpa as fraldas do teu Filho, coloca-me em tuas cozinhas, junto aos teus
fornos… coloca-me onde quiseres, mas me aceita! Que eu o possa ver! Que
eu ouça a sua voz! Que dele eu receba um olhar.” Se ela não me quisesse,
como mendiga à sua porta, eu haveria de viver de esmolas e de zombarias,
ao ar livre, sujeita aos rigores do tempo, contanto que pudesse ouvir a voz
do Messias menino, o eco dos seus risos, depois vê-lo caminhar… Talvez
algum dia eu recebesse Dele a esmola de um pão… Oh! ainda que a fome me
estivesse dilacerando as entranhas, eu estivesse desfalecendo, depois de
tanto tempo sem comer, eu não comeria aquele pão. Eu o conservaria como
um saquinho de pérolas sobre o meu coração, e o beijaria para sentir o
perfume da mão do Cristo. E já não sentiria mais fome nem frio, porque
aquele contato me daria êxtase e calor, êxtase e alimento…
10.6
– Tu deverias ser a mãe do Cristo, tu que o amas tanto assim! Será
para isso que queres permanecer virgem?
– Oh! não. Eu sou apenas miséria e pó. Não ouso levantar o olhar em
direção à Glória. É por isso que eu gosto de olhar para dentro do meu
coração mais do que para o duplo Véu, além do qual está a invisível
Presença de Jeová. Lá está o Deus terrível do Sinai. Mas aqui, em mim, eu
vejo o nosso Pai, uma Face amorosa que me sorri e me abençoa, porque eu
sou pequena como um passarinho, que o vento sustenta sem sentir peso
algum, e frágil como o caule do pequeno lírio selvagem que só sabe
florescer e exalar seu perfume, não opondo outra resistência ao vento, a não
ser a de sua perfumada e pura doçura. Deus, o meu vento de amor! Não é por
isso que permaneço virgem. Mas porque se o Filho de Deus é de uma
virgem, ao Santo do Altíssimo não pode agradar senão aquilo que no Céu
Ele escolheu por mãe e aquilo que na terra lhe fala do Pai Celeste: a Pureza.
Se a Lei meditasse isto, e os rabis que as multiplicaram em todas as
sutilezas, voltassem sua mente para horizontes mais altos, mergulhando-se no
sobrenatural, deixariam de lado o humano e o lucro, que é o que eles
procuram esquecendo-se de seu Fim supremo, orientando os seus
ensinamentos à Pureza, a fim de que o Rei de Israel a encontre ao chegar.
Com a oliveira do Pacífico, com as palmas do Triunfador, espalhai lírios,
mais lírios, muitos lírios… Quanto Sangue o Salvador não deverá derramar
para redimir-nos! Quanto sangue! Das milhares e milhares de feridas que
Isaías viu no corpo do Homem das dores, está caindo uma chuva de Sangue
como o orvalho de um vaso poroso. Que este Sangue divino não caia onde
houver profanação e blasfêmia, mas, sim, em cálices de pureza odorífera,
que o acolhem e recolhem, para depois espargi-lo sobre os doentes do
espírito, sobre os leprosos da alma, que estão mortos para Deus. Dai lírios,
dai lírios para enxugar os suores e as lágrimas do Cristo, com a cândida
veste de pétalas puras! Dai lírios e mais lírios para o ardor de sua febre de
Mártir! Oh! Onde estará aquele Lírio que te carrega? Onde estará quem te
dessedentará, em tua febre ardente? Onde estará aquela que se tornará
vermelha pelo teu Sangue, morrendo pela dor de te ver morrer? Onde estará
quem chorará pelo teu Corpo esvaído em sangue? Oh! Cristo! Cristo! Meu
suspiro!
Maria se cala, lacrimejante e esmagada.
10.7
Ana se cala por algum tempo e depois, com sua branca voz de anciã
comovida, diz:
– Tens mais alguma coisa para ensinar-me, Maria?
Maria leva um susto. Em sua humildade, ela crê que sua mestra a esteja
censurando, e diz:
– Oh! Perdão! Tu és mestra, eu sou um pobre nada. Mas esta Voz me saiu
do coração. Eu bem que a vigio, para não falar. Mas, como um rio, que sob o
impulso da onda, arrebenta os diques, eis que eu fui apanhada
transbordando. Não faças conta de minhas palavras, e castiga a minha
presunção. As palavras misteriosas deveriam ficar na arca secreta do
coração, que Deus, em sua bondade, trata tão bem. Eu sei disso, mas é tão
doce esta invisível Presença, que dela eu estou ébria… Ana, perdoa a tua
pequena serva!
Ana a abraça, e todo o seu velho rosto rugoso treme, brilhando em
prantos. As lágrimas escorrem por entre as rugas, como a água por um
terreno acidentado se transforma em um pântano que treme. Mas a velha
mestra não provoca riso. Pelo contrário, o seu pranto excita a mais alta
veneração.
Maria está entre os seus braços, com o rostinho contra o peito da velha
mestra, e tudo termina assim.

10.8
Jesus diz:
– Maria se recordava de Deus. Sonhava com Deus. Pensava estar
sonhando. Não fazia mais do que rever tudo o que o seu espírito havia visto
no fulgor do Céu de Deus, no momento em que tinha sido criada, para ser
unida à carne concebida na terra. Ela partilhava uma das propriedades de
Deus ainda que de modo bem menor, como exigia a justiça. Assim, ela tinha
a faculdade de recordar, ver e prever por atributo de uma inteligência
poderosa e perfeita, não lesada pela Culpa.
10.9
O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Uma das
semelhanças está na sua possibilidade de recordar, ver e prever, através do
espírito. Isto explica também a faculdade de ver o futuro. Muitas vezes, esta
faculdade aparece, pela vontade de Deus, de modo direto, outras vezes, vem
pela lembrança, que se ergue, como o sol da manhã, iluminando um
determinado ponto do horizonte dos séculos, como é visto no seio de Deus.
Estes são mistérios altos demais, para que os possais compreender
plenamente. Mas, pensai.
Aquela Inteligência suprema, aquele Pensamento que tudo sabe, aquela
Vista que tudo vê, que vos criou por um ato de sua vontade, com um sopro de
Seu infinito amor, fazendo-vos filhos Seus, por origem, filhos Seus também
pela meta a que fostes destinados, poderá Ele, por acaso, dar-vos algo sem
ser Ele mesmo? Ele vo-lo dá em uma medida infinitamente pequena, porque
nunca uma criatura poderia ter a capacidade do seu Criador. Mas a medida
que vos dá, ainda que em sua infinita pequenez, é perfeita e completa.
Que tesouro de inteligência Deus deu ao homem Adão! A culpa,
certamente, diminuiu essa inteligência, mas o Meu sacrifício reintegra o
homem, e abre para vós os fulgores da Inteligência, os seus canais, a sua
ciência. Oh! Que sublimidade tem a mente humana, unida a Deus pela Graça,
participando da Sua capacidade de conhecer!… A mente humana unida a
Deus pela Graça.
Não existe outro modo. Os curiosos de segredos ultra-humanos que
pensem nisso. Todo conhecimento que não proceda de uma alma em estado
de graça — e não está em graça quem está contra a Lei de Deus, tão clara em
suas ordens — só pode provir de Satanás. Dificilmente satanás corresponde
à verdade em tudo o que se refere a assuntos humanos, e nunca corresponde
à verdade no que se refere ao sobrenatural, porque o demônio é pai da
mentira, conduzindo-vos consigo aos caminhos da mentira. Não há nenhum
outro método para conhecer a verdade, senão o método de Deus, o qual fala,
diz ou faz lembrar, assim como um pai que faz um filho recordar-se da casa
paterna, ao dizer: “Estás lembrado de quando Comigo fazias isto, vias
aquilo, ou ouvias aquilo outro? Estás lembrado de quando recebias o meu
beijo de despedida? Lembras-te de quando me viste pela primeira vez, o sol
fulgurante do meu rosto sobre a tua alma virgem, que tinha acabado de ser
criada, e estava ainda limpa do marasmo, que mais tarde te diminuiu e
degradou, quando mal acabavas de sair de Mim? Lembras-te ainda de
quando chegaste a compreender, em um sobressalto de amor, o que é o
Amor? Qual é o mistério do nosso Ser e da nossa Procedência?” Até onde a
capacidade limitada do homem em estado de graça não consegue chegar,
vem o Espírito falar-lhe e ensinar-lhe.
Contudo, para o homem possuir o Espírito, é necessária a Graça. Para
possuir a Verdade e a Ciência, é necessária a Graça. Para o homem ter o Pai,
é necessária a Graça. A Graça é a Tenda em que as Três Pessoas fazem a sua
morada, é o Propiciatório sobre o qual pousa o Eterno, e fala, não mais de
dentro da nuvem, mas revelando sua Face ao filho fiel. Os santos se
recordam de Deus, das palavras ouvidas da Mente criadora e que a Bondade
ressuscita em seus corações, para elevá-los, como águias, à contemplação
do Verdadeiro e ao conhecimento do Tempo.
Maria era a cheia de Graça. Toda a Graça, una e trina estava nela,
10.10

toda a Graça una e trina a preparava como esposa para as núpcias.


Preparava-a como o leito nupcial para a prole, divinizando-a para a sua
maternidade e missão. Ela é a que vem concluir o ciclo das profetisas do
Antigo Testamento, e abre o ciclo dos “porta-vozes de Deus”, no Novo
Testamento.
Arca da verdadeira Palavra de Deus, olhando em seu seio eternamente
inviolado, Maria descobria as palavras da ciência eterna, traçadas pelo
dedo de Deus em seu coração imaculado, e se recordava, como todos os
Santos, tê-las já ouvido, quando gerada com o seu espírito imortal de Deus
Pai, criador de toda vida. E, se não se recordava de tudo, a respeito de sua
futura missão, é porque em toda perfeição humana, Deus deixa algumas
lacunas, por divina prudência, que é bondade e merecimento, em favor da
criatura.
Como uma segunda Eva, Maria precisou conquistar a sua parte de
merecimento, ao ser a mãe de Cristo, com uma fiel boa vontade, que Deus
quis ter até em seu Cristo, para fazê-lo Redentor.
O espírito de Maria estava no Céu. Sua personalidade e sua carne
estavam na terra, devendo pisar terra e carne, para chegar ao espírito e uni-
lo ao Espírito, num abraço fecundo.

Nota minha. Durante todo o dia de ontem, estive imaginando ver o


10.11

anúncio da morte dos pais de Maria, dado por Zacarias, quem saberá
porquê? Assim, também eu pensava como Jesus teria tratado a “lembrança
de Deus, por parte dos santos.” Hoje de manhã, quando começou a visão, eu
disse: “Agora vão dizer que Maria está órfã”, e já ia ficando com o coração
pequenino porque… era a minha tristeza destes dias que eu teria visto e
sentido. Pelo contrário, não há nada de tudo o que eu pensava ver ou ouvir,
nem mesmo uma só palavra. Isto me consola, porque me diz que não há nada
de mim própria, nem mesmo uma honesta sugestão sobre determinado ponto.
Tudo vem mesmo de outra fonte. Meu medo contínuo cessa… até a próxima
vez, porque este medo de ser enganada e de enganar me haverá de
acompanhar sempre.
[27] onde está a feliz donzela… Não deve maravilhar — assim anota M aria Valtorta numa cóp ia dactilografada — esta
ignorância de Maria quanto ao seu futuro como Mãe de Jesus. Deus, que por singular privilégio lhe havia concedido
sabedoria proporcional ao seu estado de Imaculada e de Predestinada Mãe do Verbo Encarnado, por motivos que nos são
imperscrutáveis quis que Maria ignorasse algumas coisas até ao momento oportuno de o saber. Tal conceito vem reforçado no
texto de 10.10, 17.9, 108.2.
11. Maria confidencia o seu voto ao Sumo
Sacerdote.
3 de setembro de 1944.
11.1
Que noite de inferno! Parecia mesmo que os demônios estivessem
soltos sobre a terra. Canhonaços, trovões, relâmpagos, perigo, medo,
sofrimento por estar em uma cama não minha e, em meio a tudo isso, como
uma flor toda branca e suave, colocada entre labaredas e espinheiros, a
presença de Maria, que está um pouco mais adulta do que na visão de ontem,
mas sempre jovem, com as suas tranças loiras sobre os ombros, com o seu
vestido branco, com seu sorriso doce e cheio de recolhimento, um sorriso
interior, voltado para o mistério glorioso, que ela acolheu em seu coração.
Passo a noite comparando o seu suave aspecto com a ferocidade que há no
mundo, e relembrando suas palavras de ontem cedo, um canto de viva
caridade, com o ódio dos que se dilaceram.
Agora de manhã, tendo voltado ao silêncio do meu quarto, assisto a esta
cena.
11.2
Maria está sempre no Templo. Agora, ela está saindo com outras
virgens do Templo verdadeiro e propriamente dito.
Lá dentro deve ter havido alguma cerimônia, pois o cheiro do incenso se
espalha pelo ar, que está todo avermelhado por causa de um belo pôr-do-sol,
que eu diria de um outono adiantado, com um céu docemente cansado, como
um outubro sereno, inclinando-se sobre os jardins de Jerusalém, nos quais o
amarelo-ocre das folhas, estando para cair, vão derramando manchas loiro-
avermelhadas no verde-prateado das oliveiras.
A fileira, ou melhor, o cândido enxame das virgens, atravessa o pátio
dos fundos, sobe por uma escadaria, passa por uma série de pórticos, entra
em um outro pátio mais simples, quadrado, tendo uma única entrada. Deve
ser este o lugar que serve para acomodar os pequenos quartos das virgens
destinadas ao Templo, pois cada menina se dirige para a sua cela, como uma
pombinha para o seu ninho, e até parece um bando de pombas que se
separam, depois de estarem unidas respondendo a um apelo. Muitas, eu diria
todas, falam entre si em voz baixa e alegre, antes de se separarem. Maria
está calada. Somente antes de se separar das outras, ela as saúda
afetuosamente, depois se dirige para o seu pequeno quarto, que fica num
canto à direita.
Lá, ela se encontra com uma mestra também anciã, embora não tanto
11.3

quanto Ana de Fanuel.


– Maria, o Sumo Sacerdote te espera.
Maria olha para ela, ligeiramente surpresa, mas não lhe pergunta nada.
Responde só isto:
– Irei imediatamente.
Não sei se a ampla sala em que ela entra faz parte da casa do Sacerdote,
ou se faz parte dos aposentos das mulheres que trabalham no Templo. Só sei
que é uma sala vasta e muito clara, bem arrumada, onde, além do Sumo
Sacerdote, majestoso em suas vestes, estão também Zacarias e Ana de
Fanuel.
Maria faz uma grande reverência na entrada, não continuando a entrar
até que o Sumo Sacerdote lhe diga:
– Adiante, Maria. Não temas.
Maria ergue, então, de novo o corpo, e vai para a frente devagar, não
porque queira, mas por um movimento involuntário que lhe dá um ar solene,
fazendo-a parecer, de fato, uma mulher.
Ana sorri para ela, para dar-lhe coragem, e Zacarias a saúda, dizendo:
– A paz esteja contigo, prima.
O Pontífice a observa atentamente, e depois diz a Zacarias:
– Nela se vê logo a estirpe de Davi e de Arão.
– Minha filha, eu conheço a tua graça e bondade. Sei que cada dia vieste
crescendo na ciência e na graça, aos olhos de Deus e dos homens. Sei que a
voz de Deus murmura ao teu coração as mais doces palavras. Sei que tu és a
Flor do Templo de Deus e que um terceiro querubim está diante do
Testemunho, desde quando tu lá estás. Eu gostaria que o teu perfume
continuasse a subir com o incenso em cada novo dia. Mas as palavras que a
Lei diz são outras. Tu não és mais uma menina, mas uma mulher. E toda
mulher deve ser esposa em Israel, para levar ao Senhor o seu filho varão. Tu
cumprirás a ordem da Lei. Não tenhas medo, não fiques envergonhada. Estou
bem lembrado da tua realeza. A própria Lei já tutela essa condição, quando
ordena que a cada homem seja dada a mulher da sua estirpe. Ainda que
assim não fosse, assim eu o faria, para não corromper o teu nobilíssimo
sangue. Não conheces, Maria, alguém da tua estirpe, que possa ser o teu
esposo?
Maria ergue o rosto, todo ruborizado de pudor, e sobre o qual, dos cílios
das pálpebras vem brotando um primeiro sinal de pranto, e com voz trêmula,
responde:
– Ninguém.
– Mas ela não pode conhecer alguém, porque entrou aqui em sua
infância, e a estirpe de Davi tem sido perseguida e dispersa de tal modo, que
não foi possível que os diversos ramos se reunissem como em uma fronde,
formando a copa da palmeira real –diz Zacarias.
– Então, vamos deixar para Deus a escolha.
11.4
As lágrimas, até aí contidas jorram agora, e descem até à boca
trêmula, e Maria lança um olhar suplicante à sua mestra.
– Maria fez um voto ao Senhor pela sua glória e pela salvação de Israel.
Naquele tempo ela não passava de uma menina, estava aprendendo a
soletrar, e já se tinha obrigado por um voto… –diz Ana em sua ajuda.
– O teu pranto, então, é por isso? Não é por resistência à Lei?
– É por isso… e não por outra causa. Eu obedeço a ti, Sacerdote de
Deus.
– Isto vem confirmar tudo o que sempre me foi dito de ti. Há quantos
anos que fizeste essa promessa de virgindade?[28]
– Desde sempre, penso. Ainda não estava neste Templo, e já me havia
entregue ao Senhor.
– Não és tu aquela pequenina que, faz agora doze invernos, vieste pedir-
me para entrar?
– Sou eu.
– E como podes dizer que naquele tempo já eras de Deus?
– Se olho para trás, vejo-me consagrada já ao Senhor. Não posso
lembrar-me da hora em que nasci, nem de como foi que comecei a amar a
minha mãe e a dizer a meu pai: “Meu pai, eu sou tua filha”… Mas eu me
lembro, ainda que não saiba quando começou, de ter dado a Deus meu
coração. Talvez tenha sido com o primeiro beijo que eu soube dar, com a
primeira palavra que eu consegui pronunciar, com o primeiro passo que eu
fui capaz de dar… Sim, isso mesmo. Creio que a primeira recordação de
amor, vou encontrá-la no primeiro passo firme que eu consegui dar… Minha
casa… tinha um jardim cheio de flores… tinha um pomar e muitos campos…
e lá havia uma nascente, bem lá no fundo, ao sopé de um monte, e a nascente
jorrava de uma rocha escavada, que formava uma gruta… era cheia de ervas
de talos longos e finos, que ficavam penduradas como pequenas cascatas
verdes, que vinham de diversas direções e parecia que estivesse chovendo,
porque as folhinhas leves das pequenas copas semelhantes a um bordado,
tinham uma gotinha de água em cada uma que, ao pingar, fazia o som de uma
campainha, bem pequenina. E a nascente também cantava. Lá havia
passarinhos nos ramos das oliveiras e das macieiras, que estavam na encosta
acima da nascente, pombas brancas, que vinham lavar-se no espelho límpido
da água da fonte… Eu não me lembrava mais de tudo aquilo, porque eu tinha
colocado todo o meu coração em Deus e, com exceção do pai e da mãe,
amados por mim na vida e na morte, quaisquer outras coisas da terra tinham
desaparecido do meu coração… Mas tu me estás fazendo pensar,
Sacerdote… Devo descobrir quando foi que me dei a Deus… e por isso as
coisas dos primeiros anos estão voltando à minha mente… Eu amava aquela
gruta, porque, mais doce do que o canto da água e dos passarinhos, lá eu
ouvia uma Voz que me dizia: “Vem, minha querida!” Eu amava aquelas ervas
ornadas com gotas sonoras e parecidas com lindos diamantes, porque nelas
eu via o sinal do meu Senhor, e me tornava alheia a tudo mais, ao dizer a
mim mesma: “Vê como é grande o teu Deus, ó minha alma! Aquele que fez os
cedros do Líbano, lá no Norte, fez também aqui estas folhinhas que se
inclinam sob o peso de um mosquitinho, para alegria dos teus olhos e como
anteparo para os teus pequenos pés.” Eu amava aquele silêncio das coisas
puras: o vento leve, a água prateada, o asseio das pombas… eu amava
aquela paz que velava sobre a pequena gruta, descendo das macieiras e das
oliveiras, agora todas em flor, e depois todas carregadas de frutos… E não
sei… parecia que a Voz me dissesse: “Vem, tu, minha oliva linda; vem, tu,
doce maçã; vem, tu, fonte selada; vem, tu, ó minha pomba”… Doce, o amor
do pai e da mãe… doce era a voz deles que me chamava… mas esta voz,
esta voz! Oh! No Paraíso terrestre, penso que foi assim que a ouviu aquela
que foi a culpada, e eu nem sei como foi que ela pôde preferir um sibilo a
esta Voz de amor, como pôde apetecer um outro conhecimento, que não fosse
o de Deus… Com os lábios, que ainda estavam com o cheiro do leite
materno, mas com o coração tornado ébrio pelo mel celeste, eu disse, então:
“Eis-me aqui, eu vou. Sou tua. E nenhum outro senhor terá a minha carne,
senão Tu, Senhor, como outro amor não tem o meu espírito”… Parecia-me
estar repetindo coisas já ditas e estar cumprindo um rito há tempo realizado,
nem era estranho para mim o Esposo escolhido, porque Dele conhecia já o
ardor e minha vista estava já afeita à sua luz, e minha capacidade de amar se
havia completado entre os seus braços. Quando foi? Não sei. Do lado de lá
da vida, eu diria, porque sinto que sempre o tive, e que Ele sempre me teve,
e que eu existo porque Ele me quis para alegria do seu Espírito e do meu…
Agora, eu obedeço, Sacerdote. Mas diz-me tu, como é que deverei agir.
11.5

Não tenho pai nem mãe. Sê tu o meu guia.


– Deus te dará o esposo, e santo ele há de ser, pois te entregas a Deus.
Tu contarás ao teu esposo qual é o teu voto.
– E ele aceitará?
– Assim espero. Reza, ó filha, para que ele possa compreender teu
coração. Vai agora. Deus te acompanhe sempre.
Maria se retira com Ana. Zacarias fica com o Pontífice.
Cessa assim a visão.
[28] és virgem, diz-se no sentido de: consagraste-te virgem, fizeste o voto de virgindade, como em 12.7; assim como a
afirmação me farei virgem (em 7.4) significa permanecerei virgem por minha vontade. A virgindade de M aria Ss. vem
p articularmente reafirmada e celebrada em: 5.7/15 -35.10/11 -100.12 -136.6.
12. José escolhido como esposo da Virgem.
4 de setembro de 1944.
12.1
Vejo um rico salão lindamente pavimentado, com cortinas, tapetes e
móveis entalhados. Deve ainda ser também essa, uma parte do Templo,
porque vejo sacerdotes, entre os quais Zacarias, e muitos homens de várias
idades, ou seja: de vinte a cinqüenta anos, mais ou menos.
Eles estão falando animadamente uns com os outros em voz baixa.
Parecem estar ansiosos por alguma coisa, que eu ainda não sei o que seja.
Todos estão com roupas novas, ou pelo menos lavadas há pouco, como se
estivessem preparados para uma festa. Muitos tiraram o véu que lhes estava
cobrindo a cabeça, mas outros ficaram cobertos, especialmente os anciãos.
Os jovens preferem ficar com as cabeças descobertas, uns ostentando suas
cabeleiras loiro-escuras; outros, as cor de amora; alguns, as bem escuras; e
vejo uma de cor vermelho cobre. A maior parte dos jovens tem os cabelos
cortados curtos; mas há também os de longas cabeleiras que descem até os
ombros. Parece que eles não se conhecem uns aos outros, pois vejo como
estão se observando mútua e curiosamente. Mas devem ser parentes entre si,
porque pode-se notar que há um pensamento que está preocupando a todos.
12.2
A um canto estou vendo José. Ele está falando com um velhinho ainda
robusto. José deve ter seus trinta anos. É um belo homem, de cabelos curtos
e um tanto crespos, de cor castanho escuro, como sua barba e seus bigodes,
que formam um sombreado, pondo em relevo o queixo, subindo pelas faces,
que são moreno-avermelhadas, não oliváceas, como costumam ser os
homens morenos. Ele tem os olhos escuros, bons e profundos, muito sérios e
parecendo até um pouco tristes. Mas, quando ele sorri, como está fazendo
agora, seus olhos se tornam alegres e joviais. José está todo vestido de um
marrom claro, muito simples, mas muito bem arrumado.
12.3
Agora entra um grupo de jovens levitas, colocando-se entre a porta e
uma longa e estreita mesa, que fica perto da parede. A porta, ao meio da
mesa, fica aberta. Somente uma das cortinas desce até vinte centímetros do
solo, cobrindo o vão da porta.
A curiosidade aumenta. E, ainda mais, quando uma mão afasta a cortina
para dar passagem a um levita, que traz nos braços um feixe de ramo secos,
sobre o qual foi colocado um ramo florido, com todo o cuidado. Em uma fina
camada, as pétalas brancas das flores mal se recordam de sua primeira cor
rosada, que ainda se pode ver no centro, tornando-se, porém, mais clara, à
medida que se aproxima das extremidades das delicadas pétalas. O levita
coloca o feixe de ramos sobre a mesa, com muito cuidado, para não estragar
o milagre daquele ramo florido, que está em meio a tantos ramos secos.
Um murmúrio passa pelo salão. Os pescoços se espicham, os olhares se
tornam mais atentos. Até Zacarias, com os sacerdotes que estão perto da
porta, está querendo ver. Mas não consegue.
José, no seu canto, dá apenas uma olhadela no feixe de ramos, e quando
um interlocutor lhe diz algo, faz um gesto de negação, como se estivesse
dizendo: “Impossível!”, e sorri.
12.4
Ouve-se um toque de trombeta, do outro lado da cortina. Todos se
calam, e se colocam em ordem, com o rosto virado para a saída, que agora
está completamente aberta, com a cortina deslizada pelas argolas. Entra o
Sumo Pontífice, rodeado por outros anciãos,. Todos se inclinam
profundamente. O Pontífice vai até à sua mesa, falando assim:
– Homens da estirpe de Davi, que aqui vos reunistes, em obediência a
uma ordem minha, escutai. O Senhor falou, louvores sejam dados a Ele! De
sua Glória desceu um raio e, como um sol de primavera, deu vida a um ramo
seco, que floresceu milagrosamente, enquanto nenhum outro ramo da terra
hoje está florido, no último dia das Encênias, quando ainda não se derreteu a
neve que caiu sobre as montanhas de Judá, sendo a única candura que existe
entre Sião e Betânia. Deus falou, fazendo-se Pai e tutor da virgem de Davi,
que não tem nenhum outro senão Ele para a sua tutela. Santa menina, glória
do Templo e da estirpe, mereceu a palavra de Deus para ficar conhecendo o
nome do esposo que agradou ao Eterno. Ele deve ser muito justo, para ser o
eleito do Senhor como guarda da virgem a Ele tão querida! Por isso, a nossa
dor de perdê-la se atenua, e cessa toda a nossa preocupação quanto ao seu
destino de esposa. E ao que foi indicado por Deus confiamos com toda a
segurança a virgem sobre a qual está a bênção de Deus e nossa. O nome do
esposo é José de Jacó, de Belém, da tribo de Davi, carpinteiro em Nazaré da
Galiléia. José, vem para a frente! O Sumo Pontífice te ordena.
Grande murmúrio. Cabeças que se viram, olhos e mãos que acenam,
explosões de desilusão e expressões de alívio. Alguém, especialmente entre
os velhos, deve ter ficado alegre por não ter tido esta sorte.
José, muito vermelho e embaraçado, vai para a frente. Está agora diante
da mesa, em frente ao Pontífice, que saúda com reverência.
– Vinde todos e olhai o nome escrito sobre o ramo. Apanhe cada um o
seu próprio ramo, para que se prove que não houve fraude.
Os homens obedecem. Olham para o ramo que está delicadamente
seguro pelo Sumo Sacerdote, apanha cada um o seu próprio ramo, e uns o
despedaçam, outros o conservam. Todos observam José, há quem olhe e se
cale e outros que se felicitam. O velhinho, com quem José conversava antes,
diz:
– Eu não te havia dito, José? Quem menos se sente seguro, é o que vence
a partida!
Agora todos já passaram.
12.5
O Sumo Sacerdote entrega a José o ramo florido, e depois põe-lhe a
mão sobre o ombro, dizendo:
– A esposa que Deus te dá não é rica, tu bem o sabes. Mas possue todas
as virtudes. Procura ser sempre mais digno dela. Não há em Israel outra flor
de tão rara beleza e pureza. Agora, saí, todos vós ficando apenas José. Tu,
Zacarias, como seu parente, conduz a esposa até aqui.
Todos saem, menos o Sumo Sacerdote e José. A cortina torna a ser
baixada sobre a saída.
José, todo humilde, está junto ao majestoso Sacerdote. Há um momento
de silêncio, e depois o Sacerdote lhe diz:
– Maria precisa dizer-te um voto seu. Procuras ajudar a timidez dela.
Sejas bom para com ela.
– Porei a minha virilidade a seu serviço e nenhum sacrifício, por ela, me
será pesado. Fica certo disso.
Maria entra com Zacarias e Ana de Fanuel.
– Vem, Maria –diz o Pontífice–. Eis o esposo que Deus te destinou. É
José de Nazaré. Voltarás, pois, para a tua cidade. Agora eu vos deixo. Deus
vos dê a Sua bênção. O Senhor vos guarde e abençoe, mostrando-vos a sua
face e tendo sempre piedade de vós. Que Ele volte para vós o seu rosto e
vos dê a paz.
Zacarias sai, acompanhando o Pontífice. Ana se congratula com o
esposo e depois também sai.
12.6
Os dois noivos ficam um em frente ao outro. Maria, com o rosto
vermelho, está de cabeça inclinada. José também ruborizado, a observa,
procurando as primeiras palavras para dizer.
Finalmente um sorriso ilumina-lhe o rosto. Ele diz:
– Eu te saúdo, Maria. Eu te vi menina de poucos dias… Era amigo de
teu pai, e tenho um sobrinho, filho do meu irmão Alfeu, que era muito amigo
de tua mãe. Seu pequeno amigo, que hoje não tem mais do que dezoito anos,
quando ainda não tinhas ainda nascido era como um homenzinho e alegrava
as horas tristes de tua mãe, que o amava muito. Tu não o conheces, porque
vieste para aqui ainda pequena. Mas em Nazaré todos te querem bem,
pensam na pequena Maria e falam nela, na pequena Maria do Joaquim, cujo
nascimento foi um milagre do Senhor, que fez com que uma estéril
florescesse… Eu me lembro daquela tarde em que nasceste… Todos nos
lembramos dela pelo prodígio acontecido de uma grande chuva que veio
salvar os campos, e de um violento temporal no qual os raios não
destroçaram nem mesmo um caule de érica selvagem, e que terminou com um
arco-íris tão surpreendente, que ninguém jamais viu outro maior, nem mais
bonito. E depois… quem não se lembra da alegria do Joaquim? Ele te levava
por toda parte, mostrando-te aos vizinhos… Como se fosses uma flor vinda
do Céu, ele te admirava, e queria que todos te admirassem. O velho pai era
feliz e morreu falando de sua Maria, tão bela, tão boa, e de suas palavras tão
cheias de graça e sabedoria… Ele tinha razão de te admirar e de dizer que
não existe outra mais bela do que tu! E tua mãe? Ela enchia com o seu canto
o lugar onde era a tua casa, e parecia uma cotovia na primavera, quando te
levava em suas entranhas e, mais tarde, quando te amamentava. Fui eu que fiz
o teu berço. Um bercinho todo entalhado com rosas, porque assim o quis tua
mãe. Talvez ele ainda esteja na casa que está fechada… Eu estou velho,
Maria. Quando nasceste, eu estava fazendo os meus primeiros trabalhos. Já
fazia alguma coisa… Quem me teria dito que eu haveria de ter-te como
esposa? Talvez os teus tivessem morrido mais alegres, pois eles eram meus
amigos. Eu sepultei o teu pai, chorando, com um coração sincero, porque ele
foi para mim um bom mestre na vida.
Maria vai erguendo devagarinho seu rosto, reanimando-se sempre mais,
ouvindo que José lhe fala assim e, quando ele se refere ao berço, ela sorri
levemente, e quando José lhe fala do pai, ela lhe estende uma mão e diz:
– Obrigada, José.
Um agradecimento tímido e suave.
José toma a mãozinha de jasmim, entre as suas mãos curtas e fortes de
carpinteiro e a acaricia com um afeto que quer encorajar sempre mais.
Talvez espere por outras palavras. Mas Maria se cala de novo. Então, é ele
que retoma a palavra:
– A casa, como sabes, está intocada, menos naquela parte que foi
demolida por ordem do Cônsul, transfomando um atalho numa estrada, para
as carruagens de Roma. Mas o campo está um pouco descuidado, aquela
parte que ficou para ti, porque, tu sabes, a doença do pai fez que se gastasse
muito do que era teu. Já são mais de três primaveras que as árvores e as
videiras não vêem a tesoura do hortelão. A terra está inculta e dura. Mas as
árvores, que te viram pequenina, estão lá ainda e, se tu me permites, eu vou
cuidar logo delas.
– Obrigada José. Mas tu já estás trabalhando…
– Trabalharei no teu pomar nas primeiras e nas últimas horas do dia.
Agora os dias estão alongando-se cada vez mais. Na primavera, quero que
tudo esteja em ordem, para tua alegria. Olha, este é um ramo da amendoeira
que está à frente da casa. Eu quis apanhar este… Há entradas por toda parte
na sebe arruinada, mas agora eu a consertarei e a farei ficar mais forte e
sólida. Eu quis apanhar este ramo, pensando que se fosse o escolhido… (não
o esperava, porque sou nazireu[29] e só obedeci por ser ordem do Sacerdote,
não por desejar as núpcias) Como eu ia dizendo, pensei que terias tido
prazer em ter uma flor do teu jardim. Ei-la aqui, Maria. Com ela te dou o
meu coração que, como esta flor, floresceu até agora para o Senhor,
florescendo agora para ti, minha esposa.
12.7
Maria pega o ramo. Está comovida, e olha para José com um rosto
sempre mais tranqüilo e radiante. Sente-se segura com ele. Por isso, quando
ele lhe disse: “Eu sou nazireu”, o rosto de Maria se iluminou, e ela se encheu
de coragem:
– Eu também sou toda de Deus, José. Não sei se o Sumo Sacerdote te
disse isto.
– Ele só me disse que és boa e pura, que me irás falar de um voto, e que
eu seja bom para contigo. Fala, Maria. O teu José quer te fazer feliz em
todos os teus desejos. Eu não te amo com a carne. Eu te amo com o meu
espírito, ó santa menina a mim dada por Deus! Vê em mim, Maria, um pai e
um irmão, mais do que um esposo. Como em um pai, confia, e como a um
irmão, tranqüiliza-te.
– Desde a minha infância, eu me consagrei ao Senhor. Eu sei que em
Israel não se faz isso. Mas eu ouvia uma Voz que me pedia a minha
virgindade como um sacrifício de amor pela vinda do Messias. Faz tanto
tempo que Israel o está esperando!… Por este motivo não é demais renuciar
à alegria de ser mãe!
José olha para ela fixamente, como se quisesse ler em seu coração, e
depois lhe pega as duas mãozinhas, que ainda estão com o ramo florido entre
os dedos, e diz:
– Eu também unirei o meu sacrifício ao teu, e amaremos tanto ao Eterno
com a nossa castidade, que Ele haverá de dar o Salvador mais depressa à
terra, permitindo-nos ver a sua Luz brilhar no mundo. Vem, Maria. Vamos
andar na frente de sua Casa, e juremos que nos haveremos de amar como
anjos se amam uns aos outros. 12.8Depois eu irei a Nazaré preparar tudo para
ti na tua casa, se achares bom ires para lá, ou então um outro lugar, que
preferires.
– Na minha casa havia uma gruta, lá no fundo. Ainda existe?
– Ainda existe, mas não é mais tua. Mas eu farei uma para ti, onde
sentirás um ar fresco, que te porás à vontade, nas horas quentes do dia. Eu a
farei, o mais possível, igual à outra. Diz-me uma coisa: quem gostarias de ter
contigo?
– Ninguém. Eu não tenho medo. A mãe do Alfeu, que sempre costuma vir
estar comigo, me fará um pouco de companhia de dia. De noite prefiro ficar
sozinha. Nada me pode acontecer de mal.
– Além disso, eu agora estarei lá. Quando devo vir te buscar?
– Quando quiseres, José.
– Então virei, logo que a casa esteja em ordem. Não vou tocar em nada.
Quero que encontres tudo como tua mãe a deixou. Mas quero que ela esteja
cheia de sol e bem limpa, para receber-te sem tristeza. Vem, Maria. Vamos
dizer ao Altíssimo que o bendizemos.
Não vejo mais nada. Mas fica em meu coração o sentido da segurança
que Maria está experimentando.
[29] nazireu ou nazarita ou nazir era o consagrado ao Senhor com o voto de nazireado ou nazareato ou nazirato que vem
ilustrado em: Números 6,1-21. O voto de nazireado (de nazir -afastado, diferente dos outros) era um voto temp orário ou
p erp étuo de abstinência em honra de Deus. Exigia três coisas: abstenção de qualquer bebida alcoólica, não cortar o cabelo, evitar
o contacto com os mortos. Além de José, esp oso de M aria Ss., encontraremos outros nazireus, como em 156.4, em 323.7, em
363.3 (referido ao ap óstolo Tomé). Será também recordado em 94.8 e em 467.9, (nazareu) nazireado de Sansão.
13. Casamento da Virgem com José, que é
instruído
pela Sabedoria para tornar-se o guardião do
Mistério.
5 de setembro de 1944.
13.1
Como está bela Maria, entre suas amigas e mestras festivas, com as
suas vestes de esposa! No meio delas, está também Isabel.
Toda vestida com um linho alvíssimo, tão macio e fino, que parece seda
preciosa. Um cinturão, feito de ouro e prata, trabalhado a buril, é formado
por medalhões presos um ao outro por correntinhas — Cada medalhão é um
bordado feito com fios de ouro, entremeados com os de prata, que o tempo já
poliu — O cinturão cinge a fina cintura de Maria e, talvez porque ele fica
muito folgado para ela, pois ela é ainda muito jovem, está pendurado na
frente com os três últimos medalhões da ponta, descendo por entre as pregas
do vestido, que é bastante amplo, e que ela vai arrastando um pouco, por ser
comprido demais. Nos pés tem sandálias feitas de uma pele muito branca,
com fivelas de prata.
Ao pescoço, o vestido está ajustado por meio de uma correntinha com
rosetas de ouro e filigranas de prata, que reproduzem, em ponto pequeno, a
figura do cinturão e passa pelos ilhoses, que estão no amplo decote, reunindo
suas margens em várias dobras, e formando um belo adorno. O pescoço de
Maria sobressai daquela alvura cheia de dobras com a beleza de um caule
envolto em uma gaze preciosa, e parece ficar ainda mais delgado e branco,
um caule de lírio, que termina no rosto lirial, que tornou-se ainda mais
pálido e puro pela emoção. Um rosto de hóstia puríssima.
Seus cabelos já não estão mais caídos sobre os ombros. Estão
graciosamente dispostos em um laço com tranças, que alguns grampos de
prata brunida, todos feitos em bordado de filigrana no ponto mais alto,
conservam os cabelos em seu lugar. O véu materno está pousado sobre estas
tranças e recai em graciosas dobras até abaixo da lâmina preciosa, que está
cingindo a branquíssima fronte. Ele não desce até a cintura, porque Maria
não é alta como era sua mãe, e nela o véu passa abaixo dos quadris,
enquanto que em Ana chegava só até a cintura.
Maria não tem nada nas mãos, tem braceletes nos pulsos. Mas seus
pulsos são tão finos, que os pesados braceletes maternos caem até o dorso
das mãos e, se Maria as sacudisse, eles cairiam no chão.
13.2
As companheiras a estão contemplando de todos os lados, e a
admiram. Fazem um alegre chilrear de passarinhos, com os seus pedidos e
palavras de admiração.
– São de tua mãe?
– Antigos, não é?
– Que bonita, Sara, esta cintura!
– E este véu, Susana? Olha que fino! E olha estes lírios tecidos nele!
– Deixa-me ver as pulseiras, Maria! Eram de tua mãe?
– Ela as usou. Mas eram da mãe de Joaquim, meu pai.
– Oh! Vê só! Trazem o selo de Salomão, entremeado com finos raminhos
de palmeira e de oliveira, e entre eles há lírios e rosas. Oh! Quem terá feito
um trabalho tão minucioso e perfeito?
– São da Casa de Davi –explica Maria–. São usados, há séculos, pelas
mulheres da estirpe, que se tornam esposas, e ficam de herança para a
herdeira.
– Certo. Pois tu és uma filha herdeira…
– Trouxeram-te tudo de Nazaré?
– Não. Quando minha mãe morreu, minha prima levou o enxoval para
sua casa, a fim de conservá-lo melhor. E agora o trouxe para mim.
– Onde está? Onde? Mostra-o às amigas.
Maria não sabe como fazer… Ela gostaria de ser cortês, mas gostaria
também de não ficar tirando do lugar todas as peças do vestuário, colocadas
em três pesados baús.
Em sua ajuda, intervêm as mestras:
– O esposo está para chegar. Não é tempo de fazer confusão. Deixai-a
estar quieta, que a estais cansando, e ide, também vós, preparar-vos.
O enxame de tagarelas se afasta, um pouco amuado. Maria pode, então,
ouvir em paz suas mestras, que lhe dizem palavras de louvor e de bênção.
13.3
Isabel também se aproximou. E, estando Maria comovida e chorando,
porque Ana de Fanuel, beijando-a com um afeto verdadeiramente materno, a
chamou de “Filha”, Isabel lhe diz:
– Maria, tua mãe está e não está aqui. O espírito dela está exultante junto
ao teu. E olha bem, as coisas que tu estás usando te fazem sentir as carícias
dela de novo. Nelas podes sentir ainda o sabor dos beijos dela. Faz muitos
anos, no dia em que vieste ao Templo, ela me disse: “Preparei para ela as
vestes e enxoval de esposa, porque quero ser sempre eu quem há de fiar os
linhos e fazer-lhe as vestes de esposa, para não estar ausente no dia da
alegria dela.” E, sabes de mais uma coisa? Nos últimos tempos, quando eu a
acompanhava, todas as tardes ela queria acariciar as tuas primeiras vestes e
estas que agora estás vestindo, e dizia: “Aqui estou sentindo o cheiro de
jasmim da minha pequenina, e aqui eu quero que ela sinta o beijo da sua
mamãe.” Quantos beijos ela deu neste véu, que te está sombreando a fronte!
Há nele mais beijos do que fios!… E, quando vestires as roupas por ela
tecidas, pensa um pouco que, mais do que os fios, o que as formou foi o
amor de tua mãe. E aqueles colares… mesmo em horas penosas, eles foram
guardados por teu pai para ti, a fim de tornar-te bela como há de ser uma
princesa do sangue de Davi nesta hora. Alegra-te, pois, Maria. Porque não
estás órfã, os teus estão contigo, e tens um esposo que para ti é pai e mãe, de
tão perfeito que é…
– Oh! Sim. É verdade. É certo que dele não posso queixar-me. Em
menos de dois meses veio duas vezes, e hoje vem pela terceira, desafiando
chuvas e ventanias, para vir ouvir as minhas ordens… Pensa só: as minhas
ordens! Eu, que sou uma pobre mulher, e bem mais nova do que ele! Ele
nunca me negou nada. Pelo contrário, nem espera que eu lhe peça. Parece
que um anjo lhe diz o que eu desejo, e ele o diz, antes que eu fale. Na última
vez, ele disse: “Maria, acho que preferes estar na casa de teus pais. Porque,
uma vez que és filha herdeira, tu podes fazer isso, quando o desejares. Eu
irei para a tua casa. Só para guardar a cerimônia, irás ficar uma semana na
casa do Alfeu, meu irmão. Maria já te ama muito. E, na tarde das núpcias,
partirá de lá o cortejo, que te acompanhará até a tua casa.” Não é ser gentil?
Não se importou nem mesmo que ele podia estar fazendo com que o povo
ficasse falando que ele nem tem uma casa que me agrade… Para mim será
sempre bem aceita uma casa, se ele estiver nela, pois ele é tão bom. Mas
com certeza… prefiro, na verdade, a minha casa… por causa das
lembranças… Oh! Como o José é bom!
– Que é que ele falou do teu voto? Ainda não me disseste nada.
– Não fez nenhuma oposição. Pelo contrário, ao saber de minhas razões,
disse: “Eu vou unir o meu sacrifício ao teu.”
– É um jovem santo –diz Ana de Fanuel.
13.4
A essa altura, o “jovem santo” vem entrando, acompanhado por
Zacarias.
Está literalmente esplêndido. Todo em amarelo ouro, e até parece tratar-
se de algum soberano do Oriente. Um esplêndido cinturão segura por baixo a
bolsa e o punhal, a bolsa feita de marroquim bordado em ouro, e o punhal
numa bainha também de marroquim com frisos de ouro. Tem na cabeça um
turbante, que é a cobertura de costume como se vê ainda em certos povos da
África, como os beduínos, preso por um cordão precioso, um tênue fio de
ouro, ao qual estão atados pequenos maços de mirto. Ele está com um manto
novo, cheio de franjas, o que lhe dá um ar majestoso, e está fulgurante de
alegria. Nas mãos traz ainda pequenos maços de mirto florido.
– A paz esteja contigo minha esposa! –ele saúda–. A paz esteja com
todos.
E, depois de ter recebido a saudação de resposta, diz:
– Eu vi a tua alegria no dia em que te dei aquele ramo do teu jardim.
Pensei agora em trazer-te o mirto apanhado perto da gruta de que tanto
gostas. Queria trazer-te as rosas que já estão abrindo as primeiras flores em
frente à tua casa. Mas as rosas duram pouco, e com tantos dias de viagem…
Eu teria chegado aqui só com os espinhos. A ti, querida, só quero oferecer
rosas, atapetando os caminhos de flores delicadas e perfumosas, para que
sobre elas possas pôr o teu pé, para que não encontre nenhuma sujeira ou
aspereza.
– Agradeço a ti, bom homem! Como conseguiste que ele chegasse até
aqui tão viçoso e bonito?
– Eu amarrei um vaso na sela, e dentro dele pus os ramos, com as flores
ainda em botão. E, pelo caminho, as flores foram-se abrindo. E aqui estão
elas, Maria. Que a tua fronte se engrinalde de pureza, que é o símbolo da
esposa, mas que nunca será igual à pureza que tens no coração.
Isabel e as mestras enfeitam Maria com a pequena grinalda de flores que
se formou, ao fixarem no lindo arco os ramalhetes cândidos de mirto, e vão
entremeando pequenas rosas brancas que estão num vaso posto sobre um
baú.
Maria se esforça para apanhar o seu amplo manto branco e colocá-lo
puxado sobre os ombros. Mas o esposo a precede no gesto e a ajuda a fixar,
com duas fivelas de prata, o amplo manto no alto dos ombros. As mestras
arrumam as dobras com arte e amor.
13.5
Está tudo pronto. Enquanto estão esperando por algo que não sei o que
seja, José diz (ele fala aproximando-se um pouco de Maria):
– Eu estava pensando, agora mesmo, no teu voto. Eu já te disse que
quero partilhar dele contigo. Mas quanto mais nisso penso, tanto mais vou
compreendendo que não basta o nazireato temporário, ainda que seja
renovado muitas vezes. Eu te compreendi, Maria. Eu ainda não mereço a
palavra da Luz. Mas dela um murmúrio já está chegando aos meus ouvidos.
É isto que me está levando a entender o teu segredo, pelo menos em suas
linhas mais expressivas. Eu sou um pobre ignorante, Maria. Sou um pobre
operário. Não entendo de letras, nem possuo tesouros. Mas aos teus pés
quero pôr o meu tesouro. Para sempre. A minha castidade absoluta, para
poder ser digno de estar ao teu lado, ó virgem de Deus, “irmã esposa minha,
jardim fechado, fonte selada”, como diz o nosso Avô [30]que talvez tenha até
escrito o Cântico, tendo-te à frente de seus olhos… Eu serei o guardião deste
jardim de aromas no qual se encontram as mais finas frutas e do qual jorra
uma nascente de água viva, com ímpeto suave: a tua doçura, ó minha esposa,
que com sua candura me conquistaste o espírito, ó toda bela. Bela, mais do
que uma aurora, sol que resplandece, porque teu coração resplandece, ó toda
cheia de amor pelo teu Deus, e pelo mundo ao qual queres dar o Salvador
com o teu sacrifício de mulher. Vem, amada minha.
E a toma delicadamente pela mão, levando-a rumo à porta.
Todos os outros os acompanham, e do lado de fora se reúnem todas as
companheiras da festa, todas de branco e com véus.
13.6
Vão pelos pátios e pórticos, por entre a multidão que os observa, até
chegarem a um ponto, que não é ainda o Templo, mas parece quase um salão
usado para o culto, pois aí se vêem lâmpadas e rolos de pergaminho, como
nas sinagogas. Os dois esposos vão até à frente de uma estante, semelhante a
uma cátedra, e lá se detêm. Os outros se colocam em ordem atrás deles. Ao
fundo se aglomeram outros sacerdotes e os curiosos.
O Sumo Sacerdote está entrando solenemente. Há um murmúrio entre os
curiosos.
– É ele que vai celebrar o casamento?
– Sim, porque é de sangue real e sacerdotal. A esposa, Flor de Davi e
de Arão, é virgem do Templo. O esposo é da tribo de Davi.
O Pontífice põe a mão direita da esposa na do esposo, e os abençoa
solenemente:
– Que o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó esteja convosco. Que Ele
vos una e que se realize em vós a sua bênção, dando-vos Ele a sua paz e uma
numerosa descendência, uma vida longa e uma morte feliz no seio de
Abraão.
Depois ele se retira, com a mesma solenidade que entrou.
Fazem-se as promessas mútuas. Maria já é esposa de José.
Todos saem e, sempre em perfeita ordem, vão até a sala, onde é lavrado
o contrato de núpcias, no qual se diz que Maria, filha herdeira de Joaquim de
Davi e de Ana de Arão, entrega como dote ao seu esposo a sua casa com os
seus bens, os enxovais e todos os outros bens que ela herdou de seu pai.
Tudo terminou.
13.7
Os esposos saem para o pátio e o atravessam, indo para a saída, que
fica perto do quarteirão das mulheres que trabalham no Templo. Um carro de
boi bem cômodo e pesado está à espera deles. Sobre o carro está estendido
um toldo de proteção onde se encontram também os pesados baús de Maria.
Despedidas, beijos, lágrimas, bênçãos, conselhos, recomendações e
depois Maria sobe com Isabel colocando-se no centro do carro. Na frente,
estão José e Zacarias. Já tiraram os mantos de festa, e todos se envolveram
num grande manto escuro.
O carro parte, ao trote pesado de um cavalo grande e escuro. Os muros
do Templo vão ficando longe, depois também os da cidade, e vão chegando
os campos novos e verdejantes, cheios das flores dos primeiros dias da
primavera, com as plantações já crescidas a um bom palmo do chão,
mostrando suas folhinhas leves, que à brisa ligeira formam ondas, parecendo
esmeraldas, soltando um cheiro mesclado das flores dos pessegueiros e das
macieiras, junto com cheiro de trevos e do poejo selvagem.
Maria está chorando baixinho, debaixo do seu véu e, de vez em quando,
afasta a cortina do toldo para olhar mais uma vez o Templo, que vai ficando
sempre mais longe, e a cidade, que ela está deixando para trás…
A visão termina assim.

Jesus diz:
13.8

– Que é que diz[31] o livro da Sabedoria, cantando os louvores dela?


“Na sabedoria está, de fato, o espírito da inteligência, santo, único,
multíplice, sutil.” E continua enumerando os dotes dela, para terminar o
período com estas palavras: “… que tudo pode, tudo prevê, que compreende
todos os espíritos, inteligente, puro, sutil. A sabedoria penetra com sua
pureza, é um vapor da virtude de Deus… por isso nada há de impuro…
imagem da bondade de Deus. Mesmo sendo única, tudo pode, imutável,
renova todas as coisas, comunica-se às almas santas e forma os amigos de
Deus e os profetas.”
13.9
Tu viste como José, não por uma cultura humana, mas por uma
instrução sobrenatural, sabe ler no livro selado da virgem imaculada, e como
ele se aproxima das verdades proféticas com a sua “visão” de um mistério
sobre-humano, no qual os outros viam apenas uma virtude. Impregnado dessa
sabedoria, que é vapor da virtude de Deus, e uma certa emanação do
Onipotente, ele se dirige com espírito seguro no mar desse mistério de graça
que é Maria, aprofunda-se com ela em conversações espirituais, nas quais,
mais do que com os lábios, são seus dois espíritos que falam um ao outro, no
sagrado silêncio das almas, onde só Deus ouve as vozes, e só as percebem
aqueles que são agradáveis a Deus, porque são seus servos fiéis, e Dele
estão plenos.
A sabedoria do justo, que aumenta pela união e proximidade daquela
que é a toda graça, prepara-o para penetrar nos segredos mais altos de Deus,
e para poder cuidar e defendê-los das insídias do homem e do demônio. Por
enquanto a sabedoria lhe dá um novo vigor. Do justo faz um santo, do santo
faz um guardião da esposa e do Filho de Deus.
Sem faltar com a reverência para com o selo de Deus, ele, o casto, que
agora leva a sua castidade até um heroísmo angelical, pode ler a palavra de
fogo escrita sobre o diamante virginal, pelo dedo de Deus. Nele lê aquilo
que a sua prudência não diz, mas que é muito maior do que o que Moisés leu
nas tábuas de pedra. E, para que nenhum olho profano, nem de leve, se
atreva a tocar no Mistério, ele se põe como selo sobre o selo, como o
arcanjo de fogo sobre a entrada do Paraíso, dentro do qual o Eterno acha as
suas delícias, “passeando à brisa da tarde”, e falando com aquela que é o
seu amor, bosque de lírios em flor, aura impregnada de aromas, aragem
fresca da manhã, estrela de rara beleza, delícia de Deus. A nova Eva está lá,
diante dele, não osso de seus ossos, nem carne de sua carne, mas
companheira de sua vida, Arca viva de Deus, a qual é recebida por ele de
Deus para que a guarde, e a entregue a Deus, tão pura como quando a
recebeu.
“Esposa de Deus” era o que estava escrito naquele livro místico de
páginas imaculadas… E quando, na hora da prova, a suspeita assobiou para
ele, para atormentá-lo, como homem e como servo de Deus, sofreu como
nenhum outro, pela suspeita de ter havido um sacrilégio. Contudo, essa foi a
prova que estava por vir. Por enquanto, nesse tempo de graça, ele vê e se
coloca ao serviço sincero de Deus. Depois, virá a tempestade da provação,
como para todos os santos, a fim de serem provados e transformados em
cooperadores de Deus.
13.10
O que se lê[32] no Levítico? “Diz a Arão, teu irmão, que ele não en tre,
em momento algum, no santuário, além do Véu, diante do propiciatório, que
está sobre a Arca, porque Eu apareço sobre o propiciatório em uma nuvem,
e ele poderá morrer, se antes não tiver feito estas coisas: oferecer um
novilho pelo pecado e um carneiro em holocausto. Vestir a túnica de linho e
com calças de linho cobrir sua nudez.”
Com efeito, José entra quando Deus quer e quanto Deus quer no
santuário de Deus, além do véu que encobre a Arca, e sobre a qual paira o
Espírito de Deus, e se oferece a si mesmo, oferecendo o Cordeiro,
holocausto pelo pecado do mundo e expiação por esse pecado. E assim faz,
estando vestido de linho, e com os seus membros viris mortificados, para
abolir a sensualidade que, uma vez, no princípio dos tempos, triunfou,
lesando o direito de Deus sobre o homem, mas que agora vai ser calcada no
Filho, na mãe e no pai adotivo, para reconduzir os homens à graça e
reintegrar a Deus o seu direito sobre o homem. E faz isso com a sua perpétua
castidade.
José não estava no Gólgota? Pensais, então que ele não estava entre os
corredentores? Em verdade, vos digo que ele foi o primeiro dos
corredentores e, por isso, ele é grande aos olhos de Deus. Grande pelo
sacrifício, pela paciência, pela constância e pela fé. Qual fé foi maior do que
a de quem acreditou , sem ter visto os milagres do Messias?
13.11
Louvor seja dado ao meu pai adotivo, exemplo para vós naquilo que
mais vos falta: pureza, fidelidade e amor perfeito. Ao magnífico leitor do
Livro selado, instruído pela Sabedoria para saber compreender os mistérios
da graça e eleito para guardar a salvação do mundo contra as insídias de
todos os inimigos.
[30] diz o nosso Avô, isto é, em Salomão, em: Cântico dos Cânticos 4,12.
[31] diz, em: Sabedoria 7,22-27.
[32] se lê, em: Levítico 16,2-4.
14. Os Esposos chegam a Nazaré.
6 de setembro de 1944.
14.1
O céu muito azul, de um fevereiro sereno, se estende por sobre as
colinas da Galiléia. São amenas estas colinas que, nesta fase da virgem
menina, eu ainda não tinha visto, mas que agora já são tão familiares aos
meus olhos, como se eu tivesse nascido entre essas colinas.
Na estrada mestra agora a temperatura está agradável, por causa da
chuva que parece ter caído na noite passada. Na estrada não há poeira, nem
lama; está firme e limpa como uma rua de cidade, e vai-se estendendo por
entre duas sebes de espinheiro-alvar em flor. A neve que caiu veio trazendo
dos bosques um cheiro levemente amargo, mas depois foi desfeita pelas
singulares aglomerações dos cáctus de folhas grossas e em forma de
pequenas pás, todas rígidas e cheias de espinhos, ornadas com as grandes
granadas, que são os seus estranhos frutos, nascidos sem pedúnculos, mas
saindo diretamente das folhas, as quais, pela cor e pela forma, me fazem
lembrar das profundezas do mar, dos bosques de coral e das medusas, ou de
outros bichos dos mares profundos.
As sebes cuja função é separar as várias propriedades, estendidas em
todas as direções, formando um esquisito desenho geométrico cheio de
curvas e de ângulos, de losangos, quadrados, semicírculos e triângulos de
agudezas e obtusidades incríveis, um desenho, todo borrifado de branco,
como uma fita excêntrica estendida ao longo dos campos, como sinal de
alegria, e sobre a qual voam, piam e cantam centenas de passarinhos de toda
espécie, na alegria do amor, ou no trabalho da reconstrução de seus ninhos.
Adiante das sebes, estão os campos, com os trigais já mais crescidos do que
os dos campos da Judéia, prados já cobertos de flores. Como uma resposta
às nuvenzinhas que passam ligeiras pelo céu e que o pôr-do-sol que torna ou
róseas, ou de um lilás delicado, um roxo pervinca, um opalino azulado, um
laranja coral, assim também as centenas de nuvens vegetais, com suas
árvores frutíferas, são brancas, róseas, vermelhas, em todas as nuances das
cores branca, rosa e vermelha.
Ao suave vento da tarde, as primeiras pétalas das árvores floridas
borboleteiam pelo ar e vão caindo, parecendo enxames de pequenas
borboletas, à procura do pólen sobre as flores dos campos. Entre uma árvore
e outra, nos sarmentos das videiras ainda nuas, nas pontas, onde o sol bate,
as primeiras folhinhas vão-se abrindo aos poucos, ingênuas, assombradas e
palpitantes de vida.
Plácido em seu ocaso, o sol está para sumir no horizonte, e o céu já tão
bonito em seu azul, torna-se de um azul mais claro com os raios de luz. Lá
longe está brilhando o branco das neves do monte Hermon e de outros picos
mais afastados.
14.2
Um carro de boi está indo pela estrada. É o carro que leva José e
Maria com seus primos. A viagem está chegando ao fim.
Maria olha, com aqueles olhos cheios de ansiedade de quem quer
conhecer, ou melhor, reconhecer, aquilo que ela já viu, mas de que não se
lembra mais, e sorri, quando alguma sombra de lembrança volta à sua
memória e se detém, como uma luz que mostra esta ou aquela coisa, este ou
aquele ponto. Isabel, Zacarias e José, ajudam Maria a se lembrar, mostrando
uma elevação do terreno, ou uma ou outra casa.
Desta forma, Nazaré começa a despontar, estendida por cima das
ondulações de sua colina. Olhada pelo lado esquerdo do sol poente, Nazaré
nos mostra a cor branca rosada de suas casinhas largas e baixas com seus
terraços sobrepostos. Algumas delas, atingidas em cheio pelo sol, parecem
estar para pegar fogo, pois, a fachada fica tão vermelha com o sol, que
incendeia até a água dos regos e dos poços rasos, quase sem peitoril por
onde os cântaros com água para a casa e os odres para a horta sobem
chiando.
Meninos e mulheres aparecem à beira da estrada para olhar o carro,
saúdam José, que é muito conhecido. Mas depois ficam perplexos e
atemorizados, ao verem os outros três.
Quando chegam a entrar na pequena cidade propriamente dita, não
encontram mais nenhuma perplexidade, nem temor. Muitas pessoas, de todas
as idades, estão na entrada da cidade, sob um arco rústico com flores e
folhagens. Mal o carro de boi aponta atrás do cotovelo formado pela última
casa, construída enviesada, ouve-se um trilar de vozes agudas, acompanhado
pelo rumor de ramos e flores agitados. São as mulheres e as crianças de
Nazaré que saúdam os esposos. Os homens, mais sisudos, estão atrás da
cerca viva dos cantores, saudando-os com moderação.
O carro já foi descoberto, pois tiraram o toldo, antes de chegarem à
cidade, visto que o sol não mais incomoda, e Maria assim tem oportunidade
de ver melhor a sua terra natal. Portanto, agora ela também aparece em sua
beleza, como uma flor. Branca e loira como um anjo, ela sorri com bondade
para as crianças, que lhe jogam flores e beijos, para as jovens de sua idade,
que a chamam pelo nome, para as esposas, para as mães, para as velhas que
a abençoam cantando. Ela faz uma inclinação para os homens, e
especialmente para um que parece ser o rabino, ou a pessoa mais influente
da cidade.
Enquanto isso, o carro continua lentamente pela rua principal,
acompanhado, durante um bom tempo, pela multidão, para a qual aquela
chegada foi um agradável acontecimento.
14.3
– Aqui está a tua casa Maria –diz José, mostrando, com o chicote que
está em sua mão, uma casinha que fica precisamente ao pé de uma das
ondulações da colina, tendo aos fundos um belo e vasto jardim todo florido,
e que termina em um pequenino olival. Do outro lado, está a costumeira sebe
com o espinheiro-alvar e as cactáceas, marcando o limite da propriedade.
Os campos, que antes pertenciam a Joaquim, estão atrás da sebe.
– Como estás vendo, te restou pouca coisa –diz Zacarias–. A doença de
teu pai foi longa e se gastou muito com ela. Também se gastou bastante com
as despesas para reparar os prejuízos dados por Roma. Estás vendo? A
estrada feita pelos romanos levou os três principais cômodos da casa,
deixando-a muito diminuída. Para torná-la mais ampla, sem que fossem
necessárias despesas excessivas, foi aproveitada uma parte do monte onde
há uma gruta. Era lá que Joaquim guardava as suas provisões, e Ana os seus
teares. Tu farás aí o que achares bom.
– Oh! Que seja pouca coisa, não tem importância! Sempre para mim
bastará. Eu vou trabalhar…
– Não, Maria. –É José que está falando–. Eu é que trabalharei. Tu não
farás mais do que tecer e costurar as coisas da casa. Eu estou jovem e forte,
e sou teu esposo. Não me faças ficar envergonhado com o teu trabalho.
– Farei como queres.
– Sim, neste ponto eu quero. Em qualquer outra coisa o teu desejo é lei.
Exceto isto.
14.4
Chegaram. O carro pára.
Duas mulheres e dois homens, respectivamente com os seus quarenta e
cinqüenta anos, estão à porta, rodeados por muitas crianças e adolescentes.
– A paz de Deus esteja contigo, Maria –diz o homem mais velho,
enquanto uma das mulheres se aproxima de Maria, a abraça e beija.
– É o meu irmão Alfeu e Maria, sua mulher, e estes são os filhos dele.
Vieram de propósito para te fazerem festa e para te dizerem que a casa deles
é tua, se quiseres –diz José.
– Sim, vem, Maria, se te for penoso ficar vivendo sozinha. O campo é
belo na primavera, e nossa casa fica no meio dos campos em flor. Entre as
outras flores, tu serás a mais bela –diz Maria de Alfeu.
– Eu te agradeço, Maria. Eu iria de muito boa vontade. Irei em alguma
oportunidade, irei sem falta para as núpcias. Mas estou com tanto desejo de
ver, de reconhecer a minha casa. Eu a deixei, quando ainda era pequena, e
tinha perdido a sua lembrança… Agora eu a reencontro… parece-me
reencontrar a minha mãe, que se foi, e o meu amado pai, com o eco de suas
palavras… e o perfume do seu último suspiro. Parece-me não estar mais
órfã, porque tenho de novo, ao redor de mim, o abraço destas paredes…
Compreende-me, Maria.
Maria está, um pouco, com pranto na voz e nos olhos.
Maria de Alfeu lhe responde:
– Como quiseres, querida. Quero que me consideres irmã e amiga e
também um pouco mãe, porque sou muito mais velha do que tu.
A outra mulher vem para a frente:
– Maria, eu te saúdo. Sou Sara, amiga de tua mãe. Eu te vi nascer. E este
é o Alfeu[33], sobrinho de Alfeu e grande amigo de tua mãe. O que eu fiz por
tua mãe, farei por ti, se quiseres. Estás vendo? A minha casa é a que está
mais perto da tua, e os teus campos agora são nossos. Mas, se quiseres vir,
faze-o a qualquer hora. Nós abriremos uma passagem na sebe, e estaremos
juntas, mesmo se estiver cada uma em sua casa. Este é o meu marido.
– Eu vos agradeço a todos, e por tudo. Por todo o bem que desejastes
aos meus e desejais a mim. Que o Senhor Onipotente vos abençoe por isso.
14.5
As caixas pesadas são descarregadas e levadas para casa. Entram.
Agora eu reconheço a casinha de Nazaré como é vista, mais tarde, na vida de
Jesus Cristo.
Como costume, José toma Maria pela mão para entrar na casa. Na
entrada, ele lhe diz:
– Agora, na soleira desta porta, quero de ti uma promessa. Que qualquer
coisa que te aconteça, ou que te suceda, não tenhas outro amigo, outra ajuda,
para a qual te voltes, a não ser José, e que, por nenhum motivo tenhas que
ficar-te atormentando sozinha. Eu sou tudo para ti, lembra-te disso, e será
minha alegria tornar feliz o teu caminho, pois, se a felicidade nem sempre
depende do nosso poder, pelo menos posso tornar este caminho para ti calmo
e seguro.
– Prometo, José.
Abrem-se as portas e janelas. Os últimos raios de sol, curiosos, entram.
Maria tirou o manto e o véu, porque tendo, por enquanto, tirado só as
flores de mirto, ainda está com as vestes das núpcias. Sai para o jardim
florido. E fica olhando, sorri e, sempre segura pela mão de José, dá uma
volta pelo jardim. Parece estar tomando de novo posse de um lugar perdido.
José fala dos seus trabalhos:
– Estás vendo? Aqui eu fiz esta cava para receber a água da chuva, pois
estas videiras sempre sofrem com o calor. Eu cortei os ramos mais velhos
desta oliveira, para dar-lhe um novo vigor, pus no lugar definitivo estas
macieiras, porque duas delas já estavam mortas. Mais adiante, plantei duas
figueiras. Quando elas crescerem, protegerão a casa do ardor do sol e dos
olhares dos curiosos. A armação da parreira é a antiga. Nada mais fiz do que
mudar os mourões que estavam podres e trabalhar com a tesoura. Espero que
esta parreira dê muita uva. E aqui, olha — enquanto a leva, orgulhoso, para a
encosta que se ergue atrás da casa, cercando o pomar do lado norte — aqui
escavei uma pequena gruta, reforçando-a para que quando estas plantinhas
pegarem, fique quase igual àquela que tinhas. Falta a nascente… mas eu
espero trazer até aqui um fio de água da nascente. Vou trabalhar nas longas
tardes do verão, quando eu vier te ver…
14.6
– Mas como? –diz Alfeu–. Não ireis casar-vos[34] neste verão?
– Não. Maria quer fiar os tecidos de lã, as últimas coisas que estão
faltando para o enxoval. E eu estou contente que seja assim. Maria é tão
jovem, que esperar um ano, ou até mais, não é nada. Enquanto isso, ela se
vai acostumando com a casa…
– Ora, ora! Tu sempre foste um pouco diferente dos outros, e ainda
continuas o mesmo. Não sei se poderia haver alguém que não tivesse pressa
em ter por mulher uma flor, como Maria. E tu ainda queres esperar meses!…
– Alegria longamente esperada, é alegria mais intensamente gozada –
responde José com um amável sorriso.
O irmão encolhe os ombros, e pergunta:
– E então? Quando achas que sairá o casamento?
– Quando Maria fizer dezesseis anos. Depois da Festa dos
Tabernáculos. Assim, serão doces as tardes de inverno para os novos
esposos!…
E sorri outra vez, olhando para Maria. É um sorriso suave, que faz parte
de uma combinação secreta. Faz parte de uma castidade fraterna e
consoladora.
Depois, José retorna ao seu passeio:
– Este é o quarto grande, do lado do monte. Se achas bom, dele farei a
minha oficina, quando vier aqui. Ele está perto da casa sem fazer parte dela.
Assim não perturbarei ninguém, fazendo barulho ou desordem. Mas, se
quiseres de outro modo…
– Não, José. Está muito bem assim. 14.7 Tornam a entrar em casa e
acendem as lâmpadas.
– Maria está cansada –diz José–. Deixemo-la descansar com os primos.
Todos se despedem. José fica ali ainda alguns minutos e fala com
Zacarias em voz baixa.
– Teu primo deixa contigo Isabel, por algum tempo. Estás contente? Eu
sim. Porque ela vai te ajudar… para que te tornes uma perfeita dona de casa.
Com ela poderás pôr em ordem, como gostas, as tuas coisas e tuas alfaias, e
eu virei todas as tardes também para te ajudar. Com ela poderás ir comprar
lã e o mais que for preciso. Eu responderei pela despesa. Lembra-te que
prometeste me procurar para tudo. Adeus, Maria. Dorme o primeiro sono
nesta tua casa, e o anjo de Deus torne o teu sono tranqüilo. O Senhor esteja
sempre contigo.
– Adeus, José. Que tu também estejas sob as asas do anjo de Deus.
Obrigada, José. Por tudo. Na medida que eu puder, vou te dar, com o meu
amor, uma compensação ao teu amor por mim.
José saúda os primos e sai.
E com isto cessa a visão.
[33] Alfeu, ap arece rap azinho em 2.2/3 e em idade de dezoito anos em 12.6, será semp re chamado Alfeu de Sara.
[34] ireis casar-vos, que segundo o costume hebraico seguia-se ao namoro ou ao noivado, o qual consistia num contrato (vimo-
lo em 13.6) vinculativo como um matrimónio, mas a ap erfeiçoar com a coabitação a p artir do dia do casamento (como veremos
em 26.5). De casamento p or realizar se fala também em 300.2; assim como em 374.6 se fala de Anália como esposa de Samuel
ap esar de não se ter realizado o casamento.
15. Como conclusão do Pré-Evangelho.
[6 de setembro de 1944.]
15.1
Jesus diz:
– O ciclo terminou. E, com este ciclo tão doce e suave, o teu Jesus te fez
sair, sem sobressaltos, para fora do tumulto destes dias. Como um menino
enfaixado em lãs macias, colocado sobre fofas almofadas, tu também foste
enfaixada por estas felizes visões, para que não sentisses, com terror, a
ferocidade dos homens, que se odeiam[35], em vez de se amarem. Não
poderias mais suportar certas coisas, eu não quero que morras por causa
delas, mas tomo conta da minha “porta-voz.”
15.2
Está para terminar no mundo a causa pela qual as vítimas foram
torturadas por todo tipo de desespero. Também para ti, Maria, cessa, por
isso, o tempo do tremendo sofrimento causado por razões tão diferentes do
teu modo de entender. Não cessará o teu sofrimento, pois és vítima. Mas,
uma parte dele, sim: essa parte cessa. Depois chegará o dia em que Eu te
direi, como disse a Maria de Magdala, quando estava morrendo[36]:
“Repousa. Agora é teu tempo de repousar. Dá-me teus espinhos. Agora é
tempo de rosas. Repousa e espera. Eu te abençôo, bendita.”
Isto eu te dizia, e era uma promessa, que tu não chegaste a compreender,
quando estava chegando o tempo em que terias ficado mergulhada,
revolvida, acorrentada, repleta até o mais profundo do teu ser, com
espinhos… Eu te repito isto agora, com uma alegria que só o Amor que Eu
sou, é capaz de fazer experimentar, ao cessar uma dor de um seu filho
querido. Isto Eu te digo agora, quando cessa aquele tempo de sacrifício. Eu,
que sei, te digo, para o mundo que não sabe, para a Itália, para Viareggio,
esta pequena aldeia, à qual tu me levaste. Medita no sentido destas palavras,
medita no agradecimento que se deve aos holocaustos, pelo sacrifício deles.
15.3
Quando Eu te mostrei Cecília, a virgem-esposa, te disse que ela se
impregnou dos meus perfumes, arrastando o marido, o cunhado, os escravos,
os parentes e amigos. Tu não o sabes, mas Eu que sei, te digo que fizeste a
parte de Cecília neste mundo enlouquecido. Tu te saciaste de Mim, da minha
palavra. Levaste os meus ideais entre as pessoas, das quais, as que são
melhores compreenderam estes ideais, surgindo muita gente atrás de ti,
oferta como vítima. A partir daí, portanto, não aconteceu uma ruína completa
de tua pátria ou dos lugares que a ti são tão caros, porque tantas hóstias se
consumaram, seguindo o teu exemplo e o teu ministério.
Obrigado, bendita. Mas, continua ainda. Tenho muita necessidade de
salvar a terra. De comprar de novo a terra. E as moedas sois vós, como
vítimas.
15.4
A sabedoria que instruiu os santos, e te instruiu com um magistério
direto, te eleve sempre mais ao compreender a ciência da vida e colocá-la
em prática. Levanta a tua pequena tenda junto à casa do Senhor. Finca as
estacas da tua própria morada, na morada da sabedoria, sem saíres nunca
mais dela. Repousarás debaixo da proteção do Senhor, que te ama, como um
passarinho por entre ramos em flor, e Ele será teu abrigo, contra todas as
intempéries espirituais, e estarás na luz da glória de Deus, do qual descerão
para ti, palavras de paz e de verdade.
Vai em paz. Eu te abençôo, bendita”.

Logo depois, Maria diz:


15.5

– A Maria o presente da mãe, para a sua festa. Uma porção de


presentes. E, se algum espinho estiver entremeado com eles, não te lamentes
ao Senhor, que te amou, como poucos.
Eu te havia dito, desde o princípio: “Escreve sobre mim. Toda pena tua
será consolada.” Estás vendo que era verdade. Este dom estava reservado a
ti neste tempo de agitação, porque não cuidamos apenas do espírito, mas
também da matéria, que não é rainha, mas uma serva útil ao espírito, a fim
de que ele possa cumprir a sua missão.
Sê grata ao Altíssimo, que para ti é verdadeiramente Pai, até mesmo no
sentido afetivo e humano, afagando-te com êxtases suaves, para ocultar o que
poderia assustar-te.
Procura querer-me sempre bem. Eu te mostrei os segredos dos meus
primeiros anos. Agora sabes tudo de mim como mãe. Procura querer-me bem
como filha e como irmã, na qualidade de vítima. Ama a Deus Pai, a Deus
Filho, a Deus Espírito Santo com perfeição de amor.
A bênção do Pai, do Filho e do Espírito Santo que passa pelas minhas
mãos, perfuma-se com o meu amor materno, desça e repouse em ti. Que sejas
sobrenaturalmente feliz.
[35] se odeiam, p orque se desencadeava a segunda guerra mundial (outras referências em 11.1 e em 606.13). A escritora foi
obrigada a evacuar de Viareggio p ara Sant’Andrea di Còmp ito, a pequena aldeia assim chamada algumas linhas abaixo e que será
ainda mencionada em 128.6 (como Còmpito) e em anotação a 361.7.
[36] Maria de Magdala quando estava morrendo, numa visão de 30 de M arço de 1944, referida no volume “I quaderni del
1944” (Os Cadernos de 1944).
16. A Anunciação.
8 de março de 1944.
16.1
Vejo o seguinte: Maria, ainda muito jovem, com a aparência no
máximo de uns quinze anos, está num pequeno quarto retangular. Um quarto
de menina. A frente de uma das duas paredes mais longas, há o catre: uma
cama baixa, sem beiral, coberta com altas esteiras ou tapetes. Dir-se-ia que
eles estão estendidos, ou sobre uma mesa, ou sobre uma esteira de caniços,
pois estão muito rígidos e retos, como acontece com as nossas camas. Em
frente de outra parede, há uma estante com uma lâmpada de azeite, rolos de
pergaminho, um trabalho de costura dobrado com cuidado, parecendo ser um
bordado.
A virgem está sentada num banco, ao lado da estante, perto da porta, que
embora esteja aberta para o jardim, está velada por uma cortina em
movimento pela brisa. Está fiando um linho muito alvo, e macio como uma
seda. Suas pequenas mãos, pouco mais escuras do que o linho, volteiam com
grande agilidade o fuso. Seu rosto juvenil e belo está levemente inclinado,
ligeiramente sorridente, como se estivesse acariciando ou acompanhando um
doce pensamento.
Há muito silêncio na casinha e no jardim. Há muita paz, tanto no
semblante de Maria, como no ambiente que a rodeia. Paz e ordem. Tudo
muito bonito e em ordem, e o ambiente, ainda que humilde no aspecto e nos
móveis, embora parecendo despojado de tudo como uma cela, tem um ar de
austeridade e realeza, pela grande nitidez e cuidado com que a colcha está
colocada sobre a pequena cama, como estão dispostos os rolos de
pergaminho, a lâmpada, a pequena jarra de cobre perto da lâmpada, com um
maço de ramos floridos, de pessegueiro ou pereira, pois, certamente, são
árvores que produzem um fruto branco, levemente rosado.
16.2
Maria se põe a cantar em voz baixa e depois eleva um pouco a voz.
Não chega a cantar alto. Mas sua voz que começa a vibrar o pequeno quarto,
traduz uma vibração de alma. Não compreendo as palavras que ela está
dizendo, certamente em hebraico. Mas, como ela repete saltiadamente
“Jeová”, eu percebo que se trata de um canto sagrado, como um salmo.
Parece que Maria está relembrando os cantos do Templo. Deve estar sendo
uma doce recordação, porque ela pousa as mãos que estão segurando o fio e
o fuso sobre o regaço, levantando a cabeça, apoiando-a para trás na parede,
com um belo enrubescimento no rosto, um olhar perdido, talvez atrás de
algum suave pensamento. Seus olhos se tornam brilhantes por uma onda de
pranto, que não chega a se derramar, mas os deixa maiores. Contudo aqueles
olhos estão sorrindo, com o pensamento da visão, que os abstraem das
coisas sensíveis. Seu rosto sobressai, das suas vestes brancas e tão simples,
pois está tão rosado, que, rodeado pelas tranças, como coroa ao redor da
cabeça, mais parece uma bela flor.
O canto de Maria se transforma em oração:
– Senhor Deus Altíssimo, não tardes a mandar o teu Servo, que venha
trazer a paz sobre a terra. Faz chegar o tempo e a virgem pura e fecunda,
para a vinda do teu Cristo. Pai Santo, concede à tua serva que possa oferecer
a sua vida para que isso aconteça sobre a terra, concede-me morrer, depois
de ter visto a Tua luz e a Tua justiça sobre a terra, sabendo que a Redenção
já se cumpriu. Ó Pai Santo, manda à terra o suspiro dos profetas. Manda a
esta tua serva o Redentor. Que no dia em que cessar a minha vida, se abra
para mim a tua morada, porque, as portas do céu já terão sido abertas pelo
teu Cristo, para todos aqueles que em Ti esperaram. Vem, ó Espírito do
Senhor! Vem aos teus fiéis, que te esperam! Vem, Príncipe da Paz!…
Maria fica assim absorta…
16.3
A cortina tremula mais fortemente, como se alguém estivesse agitando
o ar com alguma coisa por detrás dela, ou a estivesse sacudindo, a fim de
afastá-la para um lado. Uma luz branca, como se fosse de pérola fundida
com prata pura, torna as paredes, que são de um amarelo claro, brancas, as
cores das roupas e tecidos mais vivas e o rosto de Maria, agora soerguido,
mais espiritual. O Arcanjo se prostra diante daquela luz, sem que a cortina
tenha sido afastada, frente ao mistério que está acontecendo, pois a cortina
não está mais tremulando, mas está bem esticada, ao lado dos umbrais, como
uma parede separando o interior da casa, da parte exterior.
Ele assumiu necessariamente o aspecto humano. Mas é um aspecto que
ultrapassa os limites da natureza humana. De que carne estará feita esta
figura tão bela e tão fulgurante? Com que substância Deus a terá
materializado, para que os sentidos da Virgem a percebessem? Só mesmo
Deus pode possuir essas substâncias, e usá-las de uma maneira tão perfeita.
Possui rosto, corpo, olhos, boca, cabelos e mãos, como as nossas. Mas não
são feitos de uma matéria opaca como a do nosso corpo. É uma luz que
assumiu cor de carne, de olhos, de cabelos, de lábios; uma luz que se move,
sorri, enxerga e fala.
– Ave, Maria, cheia de Graça, ave!
16.4

Sua voz é como um doce arpejo, como pérolas jogadas sobre um metal
precioso.
Maria estremece, abaixando o olhar. Estremece mais ainda, quando vê
aquela fulgurante criatura ajoelhada a cerca de um metro de distância dela,
olhando para ela com uma veneração sem limites, com as mãos cruzadas
sobre o peito.
Maria se põe de pé, encostando-se à parede. Ela se torna, ora pálida,
ora vermelha. Seu rosto exprime estupor e susto. Instintivamente une as mãos
sobre o seio, escondendo-as nas longas mangas, e se inclina quase que para
esconder, do melhor modo possível, o seu corpo. É um ato de delicado
pudor.
– Não tenhas medo… O Senhor está contigo. Bendita és tu entre todas as
mulheres.
Maria, porém, continua com medo. De onde terá vindo esse ser
extraordinário? Será ele um enviado de Deus, ou do enganador?
– Não tenhas medo, Maria! –lhe repete o Arcanjo–. Eu sou Gabriel, o
Anjo de Deus. Meu Senhor me mandou a ti. Não tenhas medo, porque achaste
graça junto de Deus. Eis que agora conceberás em teu ventre, e darás à luz
um Filho, e lhe porás o nome de “Jesus.” Ele será grande, será chamado
Filho do Altíssimo (como de fato é). O Senhor Deus lhe dará o trono de
Davi seu pai. Ele reinará para sempre na casa de Jacó e o seu Reino nunca
terá fim. Procura compreender, ó santa virgem amada do Senhor, filha
bendita do Senhor, que foste chamada para ser mãe de seu Filho, o Qual tu
gerarás.
– Como poderá acontecer isso, se eu não conheço varão? Talvez o
Senhor Deus não quer mais receber a oferta de sua serva, de ficar virgem
por amor Dele?
– Não serás mãe por obra de homem, ó Maria. Tu és a virgem eterna, a
santa de Deus. O Espírito Santo descerá sobre ti, e o poder do Altíssimo te
cobrirá com Sua sombra. Por isso, Aquele que nascer de ti, se chamará
Santo, Filho de Deus. Tudo pode o Senhor nosso Deus. Isabel, a estéril,
concebeu em sua velhice aquele que será o profeta do teu Filho, ele
preparará o caminho para teu Filho. O Senhor tirou de Isabel o seu opróbrio,
e os povos lembrarão dela, unida ao teu nome, como também o nome do filho
dela ficará unido ao do teu, até o fim dos séculos. As nações vos chamarão
bem-aventuradas, pela Graça do Senhor que veio a vós, e especialmente a ti,
pois esta Graça chegou a todos os povos por meio de ti. Isabel já está em seu
sexto mês, e o peso que ela carrega, a soergue até à alegria. Nada é
impossível para Deus, Maria, cheia de Graça. O que devo ir dizer ao meu
Senhor? Nenhuma dificuldade deverá perturbar-te. O Senhor defenderá os
teus interesses, se confiares Nele. O mundo, o Céu, o Eterno estão esperando
pela tua palavra!
Maria, por sua vez, cruzando as mãos sobre o peito, e fazendo uma
profunda inclinação, diz:
– Eis aqui a serva de Deus. Faça-se de mim conforme a sua palavra.
O Anjo cintila de alegria. Ele adora, porque certamente está vendo o
Espírito de Deus descer sobre a virgem, que está inclinada ao dar sua
resposta de assentimento, e depois desaparece, sem precisar mover a
cortina, que fica bem estendida sobre o mistério santo.
17. A desobediência de Eva e a obediência de
Maria.
5 de março de 1944.
17.1
Jesus diz:
– […][37].
Não se lê no Gênesis[38] que Deus fez o homem para dominar tudo o que
havia sobre a terra, ou seja, tudo, com exceção de Deus e dos seus ministros
angélicos? Não se lê que fez a mulher para ser companheira do homem na
alegria e na dominação de todos os seres vivos? Não se lê que eles podiam
comer de tudo, menos da árvore da ciência do Bem e do Mal? Por quê? O
que está sub-entendido nas palavras “para que domines”? O que está sub-
entendido na árvore da ciência do Bem e do Mal? Nunca vos fizestes tais
perguntas, vós que viveis perguntando tantas coisas inúteis, mas não indagam
vossa alma a respeito das verdades celestes?
A vossa alma, se estivesse viva, vos responderia. Quando ela está na
graça de Deus, está bem segura, como uma flor entre as mãos do vosso anjo.
Quando está na graça de Deus, é como uma flor beijada pelos raios do sol,
borrifada por um orvalho do Espírito Santo, que a aquece e ilumina, que a
irriga e adorna com suas luzes celestes. Quantas verdades vos diria a vossa
alma, se soubésseis conversar com ela, se a amásseis, como se ama alguém
que voz faz semelhantes a Deus, que também é Espírito. Que grande amiga
teríeis, se amásseis a vossa alma, em vez de odiá-la, ao ponto de matá-la?
Que grande e sublime amiga com a qual poderíeis falar das coisas do céu,
vós que gostais tanto de falar, e vos arruinais reciprocamente, com amizades
que, se não são indignas, pelo menos são quase sempre inúteis,
transformando-se num vazio vão e nocivo de palavras, totalmente terrenas.
Não disse[39] Eu: “Quem me ama guardará a minha palavra e meu Pai o
amará, e viremos a ele e faremos nele morada”? A alma no estado de graça
possui o amor, possuindo então Deus, ou seja, o Pai que mantém esta alma, o
Filho que a ensina, o Espírito que a ilumina. Possui, portanto, o
Conhecimento, a Ciência, a Sabedoria. Possui a Luz. Pensai, então, nas
conversações sublimes que vossa alma poderia entabular convosco. São os
diálogos que encheram os silêncios dos calabouços, das celas, dos ermos,
dos aposentos dos enfermos santos. Souberam confortar os que estavam
encarcerados, à espera do martírio, os enclausurados por amor à busca da
Verdade, os ermitãos ansiosos pelo conhecimento antecipado de Deus, os
enfermos pela suportação. Em suma, souberam ensinar o amor à cruz.
17.2
Se soubésseis fazer perguntas à vossa alma, ela vos diria que o
significado verdadeiro, exato, vasto como a criação, da palavra “domina” é
este: “O homem deve dominar tudo, em todos os estados: o estado inferior,
que é o animal; o estado mediano, que é o moral e o estado superior, que é o
espiritual. O homem usa os três estados[40] para atingir um único fim, que é
possuir a Deus.” Merecer isto através deste férreo domínio, que subjuga as
forças do eu, tornando-as escravas deste único objetivo: merecer a
possessão de Deus. Vossa alma vos diria que Deus proibira o conhecimento
do Bem e do Mal, porque o Bem tinha sido dado por Ele às suas criaturas
gratuitamente, mas Ele desejava que o Mal vós não conhecêsseis, porque é
um fruto doce ao paladar, mas que, descendo para o sangue, desperta uma
febre que mata, produzindo uma tal ardência, que quanto mais se bebe
daquele suco mentiroso, mais se tem sede dele.
17.3
Vós me objetareis: “Então, por que o Mal foi colocado diante de
nós?” Porque é uma força que nasceu por si mesma, como nascem certos
males monstruosos até nos corpos mais sadios.
Lúcifer era um anjo, o mais belo dos anjos. Espírito perfeito, inferior
somente a Deus. No entanto em seu ser luminoso nasceu uma sombra de
soberba, que ele não tratou de dispersar, mas, ao contrário, procurou
condensar, incubando-a. Dessa incubação, nasceu o Mal. Este existia, antes
que o homem fosse criado. Deus havia precipitado o maldito incubador do
Mal para fora do Paraíso, que tinha se maculado com este Mal. Não podendo
mais sujar o Paraíso, o eterno incubador do Mal sujou a Terra.
17.4
A planta metafórica quer demonstrar esta verdade. Deus tinha dito ao
homem e à mulher: “Vós conheceis todas as leis e os mistérios da criação.
Mas não queirais usurpar-me o direito de ser o Criador do homem. Para
propagar a raça humana, bastará o meu amor, que circulará entre vós, sem
libido de sensualidade, mas pelo impulso da caridade, que suscitará novos
Adãos. Tudo eu vos dou. Só me reservo este mistério da formação do
homem.”
17.5
Satanás quis tirar esta virgindade intelectual do homem e, com sua
língua serpentina, aplacou, acariciando membros e olhos da Eva, fazendo
surgir neles reflexos e sagacidades, que antes não tinham, quando a malícia
não os tinha intoxicado ainda.
Ela “viu.” E quis experimentar. A carne foi despertada. Oh! se tivesse
chamado por Deus! Se tivesse corrido para ir dizer-lhe: “Pai, eu estou
doente. A Serpente me acariciou, e estou perturbada.” O Pai a teria
purificado, e curado com o seu hálito, que podia infundir-lhe novamente a
inocência, como lhe havia infundido a vida, fazendo-a esquecer-se do tóxico
da Serpente, colocando nela a repugnância por ela, como acontece com
aqueles que foram assaltados por algum mal, guardando uma instintiva
repugnância dele. Mas Eva não foi ao Pai. Ela voltou à Serpente. Aquela
sensação foi doce para ela: “Vendo que o fruto da árvore era bom para se
comer, bonito de se ver e agradável ao aspecto, foi apanhá-lo, e comeu.”
E “compreendeu.” A malícia já tinha começado a morder-lhe as
entranhas. Ela passou a ver com outros olhos, e a ouvir com outros ouvidos,
os usos e as vozes dos irracionais. Passou a desejá-los com uma louca
cobiça.
17.6
Ela iniciou sozinha o pecado. E o terminou com o seu companheiro.
Por isso é que sobre a mulher pesa uma pena maior. Foi por meio dela que o
homem se tornou rebelde a Deus e que ele conheceu a luxúria e a morte. Foi
por ela que ele não soube mais dominar os três reinos: do espírito, porque
permitiu que o espírito desobedecesse a Deus; da moral, porque permitiu
que as paixões o dominassem; e da carne, porque o aviltou, submetendo-o às
leis instintivas que regem os brutos. “A Serpente me seduziu”, diz Eva. “A
mulher me ofereceu o fruto, e eu o comi”, diz Adão. A tríplice
concupiscência rouba os seus três reinos do homem.
17.7
Somente a Graça pode desacorrentar o homem preso àquele monstro
impiedoso. Mas, se a Graça é viva, mantida sempre assim pela vontade do
filho fiel, ela chega a destroçar o monstro, e não é preciso temer mais nada:
nem os tiranos internos, isto é, a carne e as paixões; nem os tiranos externos,
ou seja, o mundo e os poderosos dele. Nem as perseguições. Nem a morte. É
como diz o Apóstolo Paulo[41]: “Nenhuma destas coisas eu temo, nem amo a
minha vida mais do que a mim mesmo, contanto que eu leve a bom termo a
minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus, que é o de dar
testemunho do Evangelho da Graça de Deus.”
[…].

[8 de março de 1944.]
17.8
Maria diz:
– Estou na alegria, pois, desde que compreendi a missão a que Deus me
destinava, fiquei repleta de alegria. O meu coração se abriu como um lírio
que desabrocha e o sangue derramou dele, como terreno para o Embrião do
Senhor.
17.9
Alegria de ser mãe.
Eu me tinha consagrado a Deus desde a mais tenra idade, porque a luz
do Altíssimo me havia feito conhecer a causa do mal no mundo e eu quis, por
quanto estava em meu poder, anular, por mim mesma, o plano de satanás.
Eu ainda não sabia que não possuía a mancha do pecado. Nem eu podia
pensar nisso,pois, teria sido presunção e soberba, dado que, nascida de pais
humanos, não me era lícito pretender que logo eu é que seria a escolhida
para não ter mácula.
O Espírito de Deus me tinha instruído sobre a dor do Pai, diante da
corrupção de Eva, que tinha querido aviltar-se, pois, sendo criatura por
graça, desceu ao nível de uma criatura inferior. Havia em mim a intenção de
amenizar aquela dor, reconduzindo a minha carne à pureza angélica,
conservando-me inviolada por pensamentos, desejos e contactos humanos.
Só por Ele o meu coração palpitava de amor, só a Ele eu consagrava o meu
ser. Mas, se não havia em mim o ardor da carne, contudo ainda havia o
sacrifício de não ser mãe.
A maternidade, livre de tudo o que agora a avilta, tinha sido concedida
assim pelo Pai Criador também a Eva. Uma doce e pura maternidade, sem o
peso da sensualidade! Eu a experimentei! De quantas vantagens Eva se
despojou, quando renunciou a uma riqueza de tal porte! Essa riqueza era
muito mais do que a imortalidade. E que não vos pareça um exagero dizer
isso. De fato, o meu Jesus, e com Ele eu, sua mãe, tivemos de passar pelos
langores da morte. Eu passei por ela, como alguém que, cansado, adormece
docemente, e Ele, por meio do atroz sofrimento de quem está morrendo,
porque foi condenado a isso. Portanto, também para nós houve morte. Mas a
maternidade sem pesos e sem violações só aconteceu comigo, a nova Eva, a
fim de que ela pudesse dizer ao mundo que doçura teria sido para a mulher
chamada a ser mãe, se não sentisse dor em sua carne. Ora, o desejo dessa
maternidade pura estava também na virgem toda de Deus, pois a maternidade
é a glória da mulher. Se pensardes, então, na honra que era ser mãe para a
mulher israelita, ainda mais podereis compreender o meu sacrifício, ao
consagrar-me a Deus, com a privação da maternidade.
Mas o Eterno Bem quis dar à Sua serva este dom, sem deixá-la perder o
candor que a revestia, tornando-a uma flor no seu trono. Eu me sentia
jubilosa com a dupla alegria de poder ser a mãe de um homem e, ao mesmo
tempo, ser a mãe de Deus.
17.10
AAlegria de ser aquela pela qual a paz se estabelecia entre o Céu e
a Terra.
Oh! Ter tanto desejado essa paz, por amor de Deus e do próximo, e
saber que através de mim, uma pobre serva do Todo-Poderoso, é que tal paz
viria ao mundo! Poder dizer: “Ó homens, não choreis mais, pois eu trago em
mim o segredo que vos fará felizes. Não posso lhes comunicar este segredo,
porque está selado no meu coração, assim como o Filho no meu ventre
inviolado. Mas já O trago em meio a vós, e cada hora que passa, fica mais
perto o momento em que o vereis, e conhecereis seu Nome Santo”.
17.11
A Alegria de ter contentado a Deus: a alegria do fiel que faz feliz o
seu Deus.
Oh! Sim! Ter tirado do coração de Deus a amargura da desobediência de
Eva! Da soberba de Eva! Da sua incredulidade!
17.12
Meu Jesus me explicou a culpa com que o primeiro casal se manchou.
Eu anulei aquela culpa, refazendo de modo retroativo as etapas da descida
deste casal, para depois subir de novo.
O princípio da culpa estava na desobediência: “Não comais daquela
árvore, e não toqueis nela”, Deus havia dito. Mas o homem e a mulher não
levaram em conta aquela proibição. Eles que eram os reis da criação,
podiam tocar em tudo, comer de tudo, menos daquela árvore, pois Deus
queria torná-los inferiores só aos anjos.
A árvore: meio para provar a obediência dos filhos.
O que é a obediência ao mandamento de Deus? É um bem, porque Deus
só exige o bem. O que é a desobediência? É um mal, porque põe a alma na
disposição de rebeldia, oferecendo a satanás um campo propício para as
suas operações.
Eva vai até à árvore, da qual receberia o bem, ao evitá-la, ou o mal,
aproximando-se dela. Ela é arrastada por uma curiosidade infantil que
deseja ver o que a árvore tem de especial. É levada pela imprudência, que
lhe faz conceber o mandamento de Deus como inútil, pois se sente forte e
pura, rainha do Éden, no qual tudo lhe obedece, onde nada lhe fará mal. Esta
presunção causa sua ruína. A presunção é um fermento da soberba.
Junto à árvore, ela encontra o sedutor, que se aproveita da sua
inexperiência, daquela inexperiência virgem e bela, tão mal protegida por
ela mesma, para cantar-lhe a canção da mentira: “Crês tu que isso seja um
mal? Não. Deus te disse isso porque vos quer conservar escravos do seu
poder! Pensais que sois reis? Nem liberdade tendes, como a têm os animais.
Pois aos animais foi concedido que se amem com verdadeiro amor. Mas a
vós, não. Ao animal foi concedido tornar-se criador, como Deus. Ele gerará
filhos e verá crescer sua família, à vontade. A vós, porém, é negada essa
alegria. Porque, então, ser homem ou mulher, se tendes que viver desse
modo? Sede deuses! Não sabeis que alegria é estarem ambos numa só carne,
para que dessa união se crie uma terceira criatura, e depois muitas outras
criaturas? Não acrediteis na promessa de Deus de que tereis alegria em
vossos descendentes, vendo os vossos filhos criarem novas famílias,
deixando pai e mãe, por causa delas. Deus vos deu apenas uma sombra de
vida: a verdadeira vida é conhecer as suas leis. Então, sim, sereis
semelhantes a deuses e podereis dizer a Deus: ‘Somos iguais a ti’.”
E a sedução continuou, porque não houve vontade de acabar com ela,
pelo contrário, houve vontade de continuar conhecendo o que não era lícito
ao homem conhecer. É aí que a árvore proibida se torna realmente mortífera
para a raça humana, pois dos seus ramos está o fruto da amarga sabedoria,
que vem de satanás. A mulher se torna fêmea e, com o fermento do
conhecimento satânico no coração, corrompe o companheiro, Adão.
Aviltada, pois, a carne, corrompida a moral, degradado o espírito, eles
passaram a conhecer a dor e a morte do espírito, sem a graça, e morte da
carne, sem a imortalidade. A ferida de Eva gerou o sofrimento, que não se
aplacará, enquanto não se extinguir a vida do último casal, sobre a terra.
17.13
Eu percorri, de modo regressivo, os caminhos daqueles dois
pecadores. Obedeci. Obedeci de todos os modos. Deus me pediu que eu
permanecesse virgem. Eu obedeci. Tendo amado a virgindade, que me
tornava pura como a primeira das mulheres, antes de conhecer satanás, Deus
me pediu que fosse esposa. Eu obedeci, colocando o matrimônio naquele
primeiro grau de pureza conforme o pensamento de Deus, quando criou o
primeiro homem e mulher. Convicta de que estava destinada à solidão no
matrimônio, a ser desprezada pelos outros, pela minha esterilidade
voluntária, Deus me pedia para me tornar mãe. Eu obedeci. Eu acreditei que
seria possível e que aquela palavra tinha vindo de Deus, pois, ao ouvi-la,
difundiu-se em mim uma grande paz. Não fiquei pensando: “Eu mereci isto.”
Não fiquei dizendo a mim mesma: “Agora, o mundo vai me admirar, pois sou
semelhante a Deus, criando a carne de Deus.” Não. Eu me aniquilei na
humildade.
A alegria brotou-me do coração, como um pedúnculo de roseira florida.
Mas esta viu-se bem depressa ornada com agudos espinhos, apertada no
emaranhado da dor, como aqueles ramos que ficam enrolados por alguma
trepadeira. A dor pela dor do esposo: eis a angústia na minha alegria. A dor
pela dor do meu Filho: eis o espinho na minha alegria.
Eva quis o gozo, o triunfo, a liberdade. Eu aceitei a dor, o
aniquilamento, a escravidão. Renunciei à minha vida tranqüila, ao amor do
meu esposo, à minha própria liberdade. Não conservei nada para mim. Fiz-
me a serva de Deus na carne, na moral, no espírito, confiando-me a Ele, não
só para a concepção virginal, mas para a defesa de minha honra, para a
consolação do esposo, para o meio com o qual ele pudesse entender a
purificação do matrimônio, de tal modo a fazer de nós dois os que haveriam
de restituir a dignidade perdida ao homem e à mulher.
17.14
Abracei a vontade do Senhor, por mim mesma, pelo esposo e por meu
Filho. Eu disse “sim” pelos três, certa de que Deus não teria faltado com sua
palavra, quando prometeu me socorrer na minha dor de esposa, que está
sendo julgada culpada, de mãe que gera um Filho para entregá-Lo à dor.
Eu disse sim, e basta. Aquele “sim” anulou o “não” de Eva ao
mandamento de Deus. “Sim, Senhor, como quiseres. Conhecerei o que Tu
queres. Viverei como Tu queres. Alegrar-me-ei, se Tu quiseres. Sofrerei o
que Tu quiseres. Sim, sempre sim, meu Senhor, desde o momento em que o
Teu raio me fez mãe, até o momento em que me chamaste para Ti. Sempre
sim. Todas as vozes da carne, todas as paixões da moral, sob o peso deste
meu perpétuo sim. Acima, como num pedestal de diamante, o meu espírito,
ao qual faltam asas para voar a Ti, mas que é senhor de todo o eu domado,
servo teu. Serva na alegria, serva na dor. Sorri, ó meu Deus! Sê feliz! A
culpa foi vencida, excluída, destruída. Ela, agora sob o meu calcanhar, está
lavada em meu pranto, destruída pela minha obediência. De meu ventre
nascerá a árvore nova, que há de ter em si o Fruto, que conhecerá todo o
Mal, por tê-lo padecido em Si, e que doará todo o Bem. Os homens poderão
ir a Ele. Eu me darei por feliz, se eles colherem desse fruto, ainda que não se
lembrem que este fruto está nascendo de mim. Contanto que o homem se
salve, e que Deus seja amado, que se faça desta tua serva o que se faz do
solo sobre o qual surge uma árvore: um degrau para subir.”
Maria, é preciso saber sempre ser degrau, para que os outros subam
17.15

para Deus. Se nos pisam, não faz mal. Contanto que consigam chegar à Cruz.
É a nova árvore que tem o fruto do conhecimento do Bem e do Mal, pois diz
ao homem o que é um e outro, a fim de que ele saiba escolher e viver. Esta
árvore também tornar-se-a licor que cura os intoxicados do mal que
quiseram saborear. O nosso coração esteja sob os pés dos homens, contanto
que o número dos redimidos cresça, e que o Sangue do meu Jesus não seja
derramado sem fruto. Eis a sorte das servas do Senhor. Depois mereceremos
receber no ventre a Hóstia santa e, aos pés da Cruz, impregnada pelo Seu
Sangue e pelo nosso pranto, dizer: “Eis aqui, ó Pai, a Hóstia imaculada, que
te oferecemos pela salvação do mundo. Olha para nós, ó Pai, unidas com ela
e pelos seus merecimentos infinitos, dá-nos a tua bênção.”
Eu te dou minhas carícias. Repousa, minha filha. O Senhor está contigo.

17.16
Jesus diz:
– A palavra de minha mãe deveria dissipar toda e qualquer titubeação
de pensamento, até mesmo dos mais bloqueados com relação às fórmulas.
[…].
Eu chamei antes de “árvore metafórica.” Agora vou chamar de “árvore
simbólica.” Talvez compreendais melhor. O símbolo é claro: assim como os
dois filhos de Deus procederam a respeito desta árvore, se entende como
estava neles a tendência para o Bem ou para o Mal. Como a água régia prova
o ouro, a balança do ourives pesa os quilates de ouro, aquela árvore tinha
assumido uma “missão” pela ordem de Deus a seu respeito, dando a medida
de pureza do metal que era Adão e Eva.
17.17
Estou já ouvindo a vossa objeção: “Não foi rigorosa demais a
condenação, e pueril o meio usado para condená-los?”
Não foi. Uma vossa desobediência hoje, que sois os herdeiros de Adão
e Eva, é menos grave do que a deles. Vós fostes redimidos por Mim. Mas o
veneno de satanás continua sempre pronto a se reerguer, como certas
doenças que nunca saem totalmente do sangue. Os dois progenitores eram
possuidores da graça, sem nunca terem sido nem tocados pela desgraça. Por
isso eram mais fortes, mais amparados pela graça, que gerava neles
inocência e amor. O dom que Deus lhes havia dado era infinito. A queda
deles, portanto, foi bem mais grave, não obstante aquele dom.
17.18
O fruto oferecido e comido também é simbólico. Era o fruto de uma
experiência que se quis fazer contra a ordem de Deus, por instigação
satânica. Eu não havia proibido o amor aos homens. Queria unicamente que
se amassem sem malícia; como Eu os amava com a minha santidade. Eles
deviam amar-se na santidade de afetos, sem sujarem-se com a luxúria.
17.19
Não se há de esquecer que a graça é luz e quem a possui conhece o
que é útil e bom. Aquela que é cheia de graça conheceu tudo, porque a
Sabedoria a instruía. A sabedoria é graça, e ela soube guiar-se santamente.
Eva conhecia o que lhe era bom conhecer. Não mais do que isso, porque é
inútil conhecer o que não é bom. Não teve fé nas palavras de Deus e não foi
fiel à sua promessa de obediência. Acreditou em satanás, infringiu a
promessa, quis saber o que não é bom e o amou sem remorso, fazendo com
que o amor, que Eu lhe tinha dado como algo santo, se corrompesse, se
aviltasse. Anjo decaído, rolou na lama e no esterco, enquanto poderia correr
feliz entre as flores do Paraíso terrestre, vendo florescer a prole ao redor de
si, assim como uma árvore que se cobre de flores, sem precisar curvar sua
copa sobre o brejo.
17.20
Não fiqueis como os meninos tolos de que Eu falo[42] no Evangelho os
quais ouviram cantar, e taparam os ouvidos, ouviram tocar e não dançaram,
ouviram chorar, e quiseram rir. Não sejais mesquinhos, não sejais negadores.
Aceitai, aceitai a Luz sem malícia e teimosia, sem ironia e incredulidade. A
respeito deste assunto, basta por enquanto.
17.21
Para fazer-vos compreender o quanto deveis ser gratos Àquele que
morreu para elevar-vos ao céu e vencer a concupiscência de satanás, neste
tempo de preparação para a Páscoa, Eu vos quis falar do primeiro elo da
corrente com que o Verbo do Pai foi arrastado à morte, do Cordeiro Divino
no matadouro. Eu vos quis falar disso, porque agora noventa por cento entre
vós é semelhante à Eva, intoxicada pelo hálito, pela palavra de lúcifer, e não
viveis para amar-vos, mas para saciar-vos de sensualidade, não viveis para
o Céu, mas para a lama, não sois criaturas dotadas de alma e de razão, mas
cães sem alma e sem razão. Vós já matastes a alma; já depravastes a razão.
Em verdade, vos digo que os animais irracionais estão acima de vós, na
honestidade dos seus amores.
[37] [...] Este sinal indicará semp re a omissão de uma p assagem não p ertinente, que se encontrará referido em um dos volumes
intitulados “Os cadernos” ou então num outro p onto da obra.
[38] se lê no Génesis, é uma constante referência à história das origens (criação do universo e do homem, culp a de Adão e Eva
e suas consequências) p ela qual se remete, uma vez p or todas, a: Génesis 1-3. O tema da criação resp landecerá no discurso de
Jesus rep etido p or João em 244. 5/8 e no p roferido p or Jesus em 506.2, e ainda será tratado em 540.8/10 e 651.14/15. O tema
do pecado original é tratado, além do p resente cap ítulo, em 5.14/15 -29.7/12 -45.6 -47.6 (com nota) -122.8 -126.3 -131.2
-140.3 -174.9 (com uma extensa anotação) -188.6 -196.5 (com nota) -207.10 -242.6 (em nota) -265.4 -267.3 -286.7 -307.6/7
-317.4 -365.6 -381.6 -406.10 -412.2 -414.8 -420.10/11 -477.3 (antep enúltima linha) -511.3 -515.3 -527.7 -553.6 -554.10
(exp licado em p arábola) -567.19.23 (em nota) -593.6 -596.29 (com nota) -600.36 -606 (todo o cap ítulo) -620.5 -635.2 -642.8
-643.2 -645.12.
[39] disse, em: João 14,23 (600.27).
[40] três estratos, como os classifica também S. Paulo em: 1 Tessalonicenses 5,23. A obra Valtortiana ap resenta com
frequência a divisão trip artida do homem: corpo (ou carne, matéria, sentido, etc.), alma (ou mente, p ensamento, moral, coração,
etc.), espírito (ou alma esp iritual, essência esp iritual, etc.). Semp re mantendo a substancial gradualidade das três p artes, com
frequência chama “alma” à alma esp iritual ou esp írito, a p onto de dar, em 651.1, a singular definição de “p arte eleita do
esp írito”. A divisão trip artida do homem rep resenta-se neste cap ítulo e em 35.10 -36.9 -37.8 -46.13 -47.4 -69.1.3 -80.9 -122.8
-125.2 -137.5 -174.9 (na nota sobre o p ecado original) -196.4 -204.5/6 -209.6 -212.2 -225.8 -237.2 -243.10 -272.4 -275.13
-286.7 -346.5 -406.10 -465.4 -473.9 -524.7/8 -527.7 -548.18 -555.6 (nota) -567.21 -601.1 -608.13 -610.16 -613.9 -651.4.17.
[41] diz o Apóstolo Paulo, em: Actos 20,24.
[42] Eu falo, em: Mateus, 16-17; Lucas 7,31-32 (266.12). M esma citação em 45.9.
18. Maria anuncia a José a maternidade de Isabel
e confia a Deus a tarefa de justificar a sua.
25 de março de 1944.
18.1
Aparece-me agora a casinha de Nazaré, onde está Maria. Muito
jovem, como quando o Anjo de Deus lhe apareceu, sua imagem faz minha
alma encher-se do perfume virginal daquela morada e do perfume angélico,
que ainda permanece no ambiente ventilado pelas asas douradas do anjo. É o
perfume divino, que se concentrou em Maria, para lhe fazer mãe, e que agora
exala de sua pessoa.
Começa a entardecer, porque as sombras invadem o ambiente de onde
viera tanta luz do Paraíso.
Maria, de joelhos junto de sua pequena cama, está rezando com os
braços cruzados sobre o peito, e com o rosto muito inclinado sobre a terra.
Está ainda vestida, como estava no momento da Anunciação. Tudo está como
naquele dia. O ramo florido ainda está no vaso, e os móveis na mesma
ordem. Somente a roca e o fuso estão encostados em um canto, a roca com
sua estriga de linho, e o fuso com seu alvo fio enrolado.
Maria termina sua oração, e se levanta, com o rosto abrasado, como que
em chamas. Sua boca sorri, mas o pranto deixa os seus olhos molhados. Ela
pega a candeia e a acende, com a pederneira. Olha se tudo está em ordem em
seu pequeno aposento. Acerta a coberta da cama, que tinha saído do lugar.
Põe mais água no vaso do ramo florido, e o leva para fora, a fim de que tome
o frescor da noite. Depois torna a entrar. Toma o bordado que está dobrado
sobre um móvel da prateleira com o candeeiro e sai, fechando a porta.
Dá alguns passos pelo jardim e pelos lados da casa, depois entra no
pequeno aposento, onde vi[43] Jesus se despedindo dela. Reconheço bem o
lugar, ainda que estejam faltando agora alguns móveis que haverá naquele
tempo. Maria desaparece, levando consigo o candeeiro para um outro
pequeno quarto, e eu fico ali com a única companhia do trabalho que ela
deixou sobre um canto da mesa. Ouço os passos ligeiros de Maria, que vai e
vem, ouço o barulho de água, como o de quem está lavando alguma coisa,
depois o barulho de quem está quebrando uns pequenos galhos, e
compreendo que ela está acendendo fogo com uns gravetos.
Depois, volta. Sai de novo para o pequeno jardim. Torna a entrar com
algumas maçãs e verduras. Põe as maçãs sobre a mesa em uma bandeja de
metal que parece ser cobre burilado. Volta para a cozinha (certamente deve
ser a cozinha). Agora a luz da lareira está projetando-se alegre pela porta
aberta, chegando até aqui dentro, e está produzindo uma dança de sombras
nas paredes.
Algum tempo depois, Maria volta, com um pãozinho escuro e uma tigela
de leite quente. Ela se assenta, e vai molhando fatias de pão no leite, e come
devagar. Depois, deixando a metade da tigela com leite, entra de novo na
cozinha, voltando com as verduras sobre as quais derrama azeite, e as come
com pão. Depois bebe o leite. Em seguida, apanha uma maçã e come. É uma
ceia de menina.
Maria vai comendo e pensando, e tem algum pensamento que a está
fazendo sorrir. Levanta-se, corre o olhar pelas paredes, parecendo querer
comunicar a elas um segredo. Mas, de vez em quando, fica séria, quase
triste. Contudo, logo em seguida volta o seu sorriso.
18.2
Ouve-se bater à porta. Maria se levanta e abre. José entra. Saúdam-se.
José se assenta sobre um banco, em frente a Maria, do outro lado da mesa.
José é um belo homem, na plenitude dos seus trinta e cinco anos, quando
muito. Seus cabelos castanho-escuros, e também sua barba da mesma cor,
emolduram o seu rosto bastante regular, com dois doces olhos de um
castanho quase preto. Ele tem a fronte espaçosa e lisa, nariz fino levemente
aquilino, faces um tanto arredondadas, de cor morena não oliváceas, mas um
pouco rosadas no centro. Ele não é muito alto. Mas é robusto e bem feito de
corpo.
Antes de sentar-se, tirou o manto que é uma peça inteira (é o primeiro
que vejo feito assim), presa à altura da garganta por um alfinete, ou coisa
semelhante, e tem um capuz. É de cor marrom clara, e parece ser de tecido
impermeável, lã não trabalhada. Parece um daqueles mantos dos
montanheses, próprio para chuva.
18.3
Mas, antes mesmo de sentar-se, ele oferece a Maria dois ovos e um
cacho de uvas, um pouco murchas, mas ainda bem conservadas. Ele sorri,
dizendo:
– Trouxeram-me estas uvas de Caná. O centurião me deu os ovos, por
um trabalho que eu fiz em seu carro. O carro estava com uma roda quebrada,
e o carpinteiro dele está doente. Os ovos são frescos. Foram apanhados no
ninho. Toma-os. Eles te farão bem.
– Amanhã os tomarei, José. Acabei de comer agora mesmo.
– Mas a uva podes chupar. É boa. Doce como mel. Eu a trouxe com
cuidado para não estragá-la. Chupa-as. Eu ainda tenho mais. Eu as trarei
amanhã em um cestinho. Esta tarde eu não podia, porque estou vindo
diretamente da casa do centurião.
– Então, não ceaste ainda?
– Não, mas não tem importância.
Maria se levanta logo, e vai para a cozinha, e volta com leite, azeitonas
e queijo.
– Não tenho outra coisa –ela diz–. Toma um ovo.
José não quer. Os ovos são para ela. Ele come com gosto o seu pão com
queijo e bebe o leite, que ainda está morno. Depois aceita uma maçã. E
termina a ceia.
Maria pega o seu bordado, depois de ter tirado as louças da mesa, e
José a ajuda na cozinha, mesmo quando ela torna a sair. Estou ouvindo como
ele se move, indo colocar cada coisa em seu lugar. Depois, atiça de novo o
fogo, porque a noite vai ser fria. Quando volta, Maria lhe agradece.
18.4
Conversam um com o outro. José conta como passou aquele dia. Fala
de seus pequenos sobrinhos. Interessa-se pelos trabalhos de Maria e por
suas flores. Promete trazer-lhe umas flores muito bonitas que o centurião lhe
prometeu.
– São flores que nós não temos por aqui. Trouxeram-lhe de Roma. Ele
me prometeu mudas. E, quando a lua for boa, eu as plantarei para ti. Elas têm
belas cores e um cheiro muito agradável. Eu as vi no verão passado, pois
florescem no verão. Vão te perfumar toda a casa. Depois, quando a lua for
boa, podarei as plantas. Logo é tempo para isso.
Maria sorri, e agradece. Ficam os dois em silêncio. José olha para a
cabeça loira de Maria, que está inclinada para o bordado. É um olhar de
amor angelical. Pois, certamente, se um anjo amasse uma mulher com amor
de esposo, seria assim que a olharia.
18.5
Maria, como alguém que toma uma decisão, põe sobre os joelhos o
bordado, e diz:
– José, eu também tenho uma coisa para te dizer: Nunca tenho nada, pois
sabes como vivo retirada. Mas hoje tenho para ti uma notícia. Tive notícia
de que nossa parenta Isabel, mulher de Zacarias, está para ter um filho…
José arregala os olhos, e diz:
– Naquela idade?
– Naquela idade –responde Maria, sorrindo–. O Senhor tudo pode. E
agora quis dar esta alegria à nossa parenta.
– Como ficaste sabendo disso? É notícia certa?
– Veio até aqui um mensageiro. É um que não pode mentir. Eu gostaria
de ir à casa de Isabel para ajudá-la e dizer-lhe que me congratulo com ela.
Se me deres licença…
– Maria, tu és a minha esposa, e eu sou o teu servo. Tudo o que fazes é
bem feito. Quando gostarias de ir?
– Quanto antes. Mas ficarei fora alguns meses.
– E eu ficarei contando os dias, à tua espera. Vai tranqüila. Cuidarei da
casa e do pomar. Encontrarás na volta as tuas flores tão bonitas, como se
tivesses cuidado delas. Só uma coisa… espera. Eu preciso ir, antes da
Páscoa, a Jerusalém, comprar alguns objetos para o meu trabalho. Se
esperares um ou dois dias, te acompanharei na viagem. Não mais, porque eu
preciso voltar logo. Mas, daqui até lá, podemos ir juntos. Eu fico mais
tranqüilo, quando sei que não estás sozinha pelas estradas. Para a tua volta,
me mandarás notícia, e irei te buscar.
– És tão bom, José. O Senhor te recompense com as suas bênçãos, e
mantenha a dor longe de ti. Peço isso sempre a Ele.
18.6
Os dois castos esposos sorriem angelicalmente um para o outro. Faz-
se silêncio por algum tempo.
Depois, José se levanta. Torna a colocar o manto, puxa o capuz sobre a
cabeça. Saúda Maria, que também se levanta, e sai.
Maria o fica olhando, enquanto ele caminha, e dá com um suspiro, como
de pena. Depois, eleva os olhos para o céu. Certamente, está rezando. Fecha
a porta com cuidado. Dobra o bordado. Vai à cozinha. Apaga, ou cobre o
fogo. Olha se tudo está em seu lugar. Toma o candeeiro, e sai, fechando a
porta. Com a mão faz um anteparo de proteção para a chama do candeeiro,
que está tremendo pelo vento frio da noite. Entra no aposento, e vai rezar
ainda.
A visão termina assim.

Maria diz:
18.7

– Querida filha, quando, depois de cessar o êxtase, que me havia


enchido de inexprimível alegria, voltei ao uso dos sentidos nesta terra, o
primeiro pensamento que tive foi José, pensamento pungente como um
espinho de roseira, me feria o coração, enfaixado , há alguns instantes, pelas
rosas do Divino Amor, meu Esposo.
Eu já o amava, este meu santo e previdente guarda. Desde quando a
vontade de Deus, por meio da palavra de seu Sacerdote, me tinha querido
desposada a José, eu já pudera conhecer e apreciar a santidade deste justo.
Unida a ele eu tinha sentido que cessava aquela minha desorientação de órfã,
e já não tinha mais saudade do meu tempo de asilada no Templo. Para mim
ele era tão bom, como meu falecido pai. Junto dele eu me sentia segura,
como junto ao Sacerdote. Toda minha titubeação havia cessado, e não só
cessado, mas ficado esquecida, de tal modo tranquilizava-me o coração de
virgem, ao compreender que já não precisava mais titubear, pois não tinha
que temer nada da parte de José. Mais segura do que um menino nos braços
da mãe, assim estava a minha virgindade confiada a José.
18.8
Mas, e como dizer-lhe que eu era mãe? Eu procurava palavras para
dizer-lhe isso, mas era uma tarefa árdua. Eu não queria louvar-me pelo dom
de Deus, e não podia, de maneira alguma, justificar a minha maternidade,
sem dizer: “O Senhor me amou mais do que todas as mulheres, e de mim, sua
serva, me fez sua esposa.”
Enganá-lo, escondendo-lhe o meu estado, eu não queria também.
Mas, enquanto estava rezando, o Espírito, do qual eu estava plena, me
disse: “Cala-te. Confia a Mim a tarefa de justificar-te perante o esposo.”
Quando? Como? Estas coisas não lhe perguntei. Eu sempre me havia
confiado a Deus, como uma flor na onda que a transporta. Nunca o Eterno me
tinha feito ficar sem sua ajuda. Sua mão sempre me havia sustentado,
protegido e guiado, até aqui. E iria fazer tudo isso também agora.
18.9
Minha filha, como é bela e confortável a fé em nosso eterno e bom
Deus! Ele nos acolhe em seus braços como em um berço, nos leva ao
luminoso porto do Bem, como num barco, nos aquece o coração, nos
consola, nos nutre, nos dá repouso e alegria, nos dá luz e guia. A confiança
em Deus é tudo, pois Deus tudo dá a quem tem confiança Nele. Ele se dá até
a Si mesmo.
Naquela tarde levei a minha confiança de criatura à perfeição. Agora, eu
o podia fazer, porque Deus estava em mim. Antes, tinha tido a confiança de
uma pobre criatura. Sempre um nada, mesmo sendo tão amada, a ponto de
ser sem mácula. Mas agora eu tinha uma confiança divina, porque Deus era
meu: meu Esposo, meu Filho! Oh! Que alegria! Ser uma com Deus! Não para
a minha glória, mas para amá-lo com uma união total e poder dizer-lhe: “Tu,
só Tu, que estás em mim, aperfeiçoa com tua divina perfeição tudo o que eu
faço.”
Se Ele não me tivesse dito: “Cala-te”, talvez eu até tivesse ousado, com
o rosto em terra, dizer a José: “O Espírito penetrou em mim, e em mim está a
Semente de Deus.” Ele teria acreditado em mim, porque me estimava e
porque, como todos aqueles que não mentem nunca, ele acreditava que os
outros também não lhe mentissem. Sim, contanto que eu não lhe causasse
nenhuma dor no futuro, eu teria vencido a recusa de dar-me aquele louvor.
Mas obedeci à ordem divina.
Durante muitos meses, a partir daquele momento, senti a primeira ferida
em meu coração. Foi a primeira dor, na minha condição de co-redentora. Eu
a ofereci e sofri para reparar e para dar-vos uma norma de vida nos
momentos de sofrimento, quando há necessidade de silêncio em relação a
algum acontecimento que vos dê aparência de culpados, aos olhos de quem
vos ama.
18.10
Deixai a Deus a guarda do vosso bom nome e dos vossos interesses
afetivos. Merecei com uma vida santa a tutela de Deus, e depois, caminhai
tranqüilos. Ainda que todo o mundo estiver contra vós, Ele vos defenderá
junto a quem vos ama, e fará com que a verdade apareça.
Repousa agora, minha filha. E sê sempre mais minha filha.
[43] vi, visto que se trata de um ep isódio escrito antes e que virá inserido no seu lugar (cap ítulo 44) na ordem da narração. Isto
vale também p ara exp ressões análogas encontradas desde a p rimeira p ágina da obra, como em 5.14 (viste o nascimento…), em
6.1 (… do que aquele visto no tempo do nascimento do Baptista), em 6.3/4 (menções à purificação de Maria), em 6.7 (várias
referências a ep isódios sucessivos mas já escritos), em 14.5 (agora eu reconheço a casinha de Nazaré…), e p ara casos
semelhantes que encontraremos, p or exemp lo, em: 20.1.4 -21.7 -27.1 -29.2 -31.1 -54.1 (referência ao Cenáculo) -76.8 -84.2
-106.5 -107.1 (referência a Longino) -110.4 -140.1 -155.10 -169.3 -208.10 -232.3 -234.1 -283.1 -373.4 -374.10 -411.2
(referência a Bartolomeu) -473.1 -515.6 -549.6 -604.2 -608.11. Os ep isódios escritos numa ordem diversa da da sucessão dos
factos, dep ois restabelecida, se encontram sobretudo no ciclo inicial da Vida escondida e nos ep isódios finais da Paixão e da
Glorificação (destes últimos existe com frequência uma dup la versão, como exp licaremos em nota a 587.13); se encontram raras
vezes no amp lo ciclo central dos três anos da Vida p ública, onde é o mesmo Jesus quem diz à escritora quando necessário
inserir uma visão já escrita. As exp licações a resp eito estão em: 43.5 -44.7/8 -468.1.
19. Maria e José dirigindo-se a Jerusalém.
27 de março de 1944.
19.1
Estou assistindo à partida deles para irem à casa da Santa Isabel.
José veio com dois burrinhos acinzentados para levar Maria: um para si
próprio e o outro para Maria. Os dois animaizinhos estão selados com selas
costumeiras; mas à sela de um deles foi acrescentado um instrumento muito
especial, que depois descubro ter sido feito para levar carga: é uma espécie
de porta-bagagem sobre o qual José pregou um pequeno cofre de madeira,
digamos, um bauzinho, que ele trouxe a Maria, para que nele pudesse pôr as
suas roupas, e a chuva não as molhasse.
Ouço Maria agradecer muito a José por este presente feito com tanta
previdência, pois neste baú ela colocou tudo o que estava num pacote, que já
havia preparado antes.
19.2
Fecham a porta da casa e põem-se a caminho. O dia já está perto de
raiar, pois estou vendo a aurora cor-de-rosa, mas só do lado do Oriente.
Nazaré ainda está dormindo. Os dois viajantes madrugadores encontram
apenas um pastor, que toca para a frente as suas ovelhinhas; elas vão
trotando e esbarrando umas nas outras, aqui e ali, encaixadas umas entre as
outras, como se fossem cunhas, berrando sem parar. Os cordeirinhos também
berram, e mais do que as ovelhas, com sua voz aguda e débil. Mesmo
precisando ir para a frente, o que eles mais gostariam de fazer seria procurar
as tetas da mãe. Mas as mães se apressam para chegar às pastagens, e os
convidam, com seu balido mais forte, a trotar com elas.
Maria fica olhando, e sorri. Ela parou para deixar passar a manada, e se
inclina sobre sua sela para acariciar os mansos animaizinhos, que vão
passando rentes ao burrinho. Quando o pastor chega perto, levando nos
braços um cordeirinho que acabou de nascer, pára perto de Maria para
saudá-la; ela sorri, acariciando o focinho rosado do cordeirinho, que berra
sem consolo, e lhe diz: “Está procurando a mamãe. Aqui está a mamãe. Ela
não te deixa, não, pequenino”. De fato, a ovelha mãe vai roçar-se no pastor,
e se levanta para lamber o focinho do seu filhote.
A manada vai passando e fazendo barulho como o da chuva sobre as
copas das árvores, deixando atrás de si a poeira levantada pelos casquinhos,
que sobem e descem, deixando as marcas de suas pegadas no chão da
estrada.
José e Maria retomam o caminho. José, com seu manto grande, Maria,
com uma espécie de xale listrado, pois a manhã está muito fria.
Ao chegarem no campo, Maria está perto de José. Pouco falam. José
pensa em seus trabalhos, e Maria continua com seus pensamentos; recolhida
como está, sorri aos pensamentos e às coisas quando, saindo um pouco
daquela sua concentração, gira o olhar sobre tudo o que a rodeia. De vez em
quando, olha para José, e um véu de seriedade e tristeza lhe ensombra o
rosto. Depois, volta-lhe o sorriso, até mesmo ao olhar para este seu esposo,
tão previdente, e de poucas palavras, mas que, quando fala, é para perguntar-
lhe se tudo vai indo bem e se não está precisando de alguma coisa.
19.3
Agora, as estradas já estão cheias de gente, especialmente nas
vizinhanças dos povoados, e dentro deles. Mas os dois não se preocupam
com as pessoas que vão encontrando. Lá se vão eles sobre os seus burrinhos,
que vão trotando com grande barulho dos guizos, e só vão parar uma vez, à
sombra de um pequeno bosque, para comer um pouco de pão e azeitonas,
beber água da fonte que desce de uma pequena gruta e, outra vez, para se
protegerem de um violento aguaceiro, que desaba de repente, de uma nuvem
muito escura.
Colocaram-se, então, ao abrigo do monte, debaixo da saliência de um
penhasco, que os protege pelo menos da chuva mais forte. Mas José faz
questão que Maria ponha o manto grande de lã impermeável sobre o qual a
água desliza sem molhá-la. Maria tem que ceder à desvelada insistência do
seu esposo que, para tranqüilizá-la a respeito de sua própria situação, põe
sobre a cabeça e sobre os ombros uma pequena manta cinzenta, que estava
sobre a sela. Era a manta do burrinho, provavelmente. Agora, Maria vai
indo, parecendo um fradezinho com um capuz, que lhe emoldura o rosto, e
com o manto marrom, que se lhe fecha à altura da garganta, e a cobre de alto
a baixo.
O aguaceiro diminui, mas se transforma numa chuva incômoda e fina. Os
dois começam de novo a andar pela estrada, que agora está toda barrenta.
Mas, como é primavera, depois de alguns minutos, o sol volta, para tornar
mais cômoda a viagem. Também os dois burrinhos estão agora mais
dispostos, batendo as patas sobre a estrada.
Não vejo nada mais, pois aqui cessa a visão.
20. Partida de Jerusalém. O aspecto místico de
Maria.
A importância da oração para Maria e José.
28 de março de 1944.
20.1
Estamos em Jerusalém. Eu a reconheço bem agora, com suas estradas
e suas portas.
Os dois esposos se dirigem ao Templo, em primeiro lugar. Reconheço a
estalagem, onde José deixou o burrinho, no dia da Apresentação no Templo.
Agora também é ali que ele deixa os dois burros, depois de tê-los feito
comer e beber, e vai adorar o Senhor, com Maria.
Depois voltam para fora. Pelo que parece, Maria e José vão para uma
casa de pessoas conhecidas. Lá fazem uma refeição, e Maria descansa até a
volta de José, que chega acompanhado de um velhinho.
– Este homem vai pelo mesmo caminho por onde vais. E é muito pouco
o que terás de andar sozinha, para chegar à casa de tua parenta. Podes
confiar nele, que eu o conheço.
20.2
Montam de novo nos burrinhos, e José sai acompanhando Maria até à
porta da cidade (não aquela pela qual entraram, mas uma outra). Lá, eles se
saúdam e Maria vai sozinha com o velhinho, que fala tanto mais, quanto José
falava menos, interessando-se por mil coisas. Maria vai-lhe respondendo
com muita paciência.
Agora ela tem, na parte dianteira de sua sela, o pequeno baú, que antes
tinha sido sempre levado pelo jumento de José, e não mais com o manto
grande. Nem mesmo o xale, pois ele está dobrado sobre o baú, e Maria está
muito bonita, em sua veste azul escura, com o seu véu branco, que a protege
do sol. Como está bonita!
O velhinho deve ser um pouco surdo porque, para fazer-se ouvir por ele,
Maria precisou falar bem alto, ela que sempre costuma falar em voz baixa.
Mas ele agora ficou cansado. Esgotou todo o seu repertório de perguntas e
de notícias, e está cochilando sobre a sela, deixando-se guiar pelo jumento,
que conhece bem a estrada.
Maria aproveita-se bem dessa trégua para recolher-se em seus
pensamentos, e rezar. Deve ser uma oração, que está cantando em voz baixa,
ao olhar o céu azul, com os braços sobre o peito, um semblante abrasado e
feliz por uma emoção interior.
Não vejo mais nada.

20.3
Também agora, quando a visão me fica suspensa, como aconteceu
ontem, fico com a mãe junto de mim, bem visível para a minha vista interior,
e tão nítida, que posso descrever a cor rosada leve de sua face, não muito
cheia, mas suavemente delicada, o vermelho vivo de sua pequena boca, o
luzir doce de seus olhos azulados, entre o loiro escuro de seus cílios.
Posso dizer como os seus cabelos, repartidos no alto da cabeça, descem
delicadamente com três ondulações de cada lado, até cobrirem a metade das
pequenas orelhas rosadas, desaparecendo, com o seu ouro pálido e brilhante,
atrás do véu que lhe cobre a cabeça. Estou vendo-a com o manto na cabeça,
vestida com a sua veste de seda paradisíaca e com seu manto leve como um
véu, embora opaco, feito do mesmo tecido que a veste.
Esta veste é ajustada ao seu pescoço por uma bainha, da qual sai um
cordão, cujas pontas formam um laço na frente, na base do pescoço, e está
apertada à altura da cintura, por um cordão mais grosso, sempre de seda
branca, que desce ao longo de cada lado com duas borlas nas pontas.
Posso dizer também que, ajustada como está ao pescoço e à cintura, a
veste forma sobre o peito sete pregas redondas e frouxas, o único enfeite de
sua roupa castíssima.
Posso dizer ainda da castidade que emana do aspecto todo de Maria, de
suas formas tão delicadas e harmoniosas, que a tornam tão angelicalmente,
mulher.
20.4
E, quanto mais a olho, tanto mais eu sofro, pensando em quanto a
fizeram sofrer, e fico perguntando, a mim mesma, como puderam deixar de
ter piedade dela, tão mansa e gentil, tão delicada, até em seu próprio aspecto
físico. Eu a fico olhando, e torno a ouvir os gritos do Calvário, também
contra ela, com todas as zombarias e gracejos grosseiros. Todas as
maldições, dirigidas a ela, por ser a mãe do condenado. Vejo-a bela e
tranqüila, agora. Mas o seu aspecto de hoje não me desfaz a lembrança de
suas trágicas feições, naquelas horas de agonia, e o seu semblante desolado
em sua casa em Jerusalém, depois da morte de Jesus. Eu queria poder
acariciá-la e beijá-la em sua face tão rósea e delicada, para tirar com o meu
beijo aquela recordação de pranto que certamente ela, como eu, também tem.
20.5
É inimaginável a paz que sinto ao tê-la perto de mim. Penso que mor‐
rer, vendo-a, seja doce, e até mais do que a mais doce hora desta vida.
Nesse tempo em que eu não a via assim, toda para mim, sofri a sua ausência,
como a ausência de uma mãe. Agora sinto de novo a inefável alegria, que foi
minha companheira em dezembro e nos primeiros dias de janeiro. Estou
feliz, não obstante ter visto os tormentos da Paixão, que lançam sobre toda a
minha felicidade um véu de dor.
É difícil dizer e fazer compreender o que eu experimentei e o que
aconteceu a 11 de fevereiro, desde a tarde em que vi Jesus sofrer em sua
Paixão. Foi uma visão que me mudou radicalmente. Morresse eu agora, ou
daqui a cem anos, aquela visão permaneceria sempre igual na intensidade e
nos efeitos. Antes, eu pensava nas dores de Cristo. Agora, eu as vivo, porque
basta-me uma palavra, uma imagem, para eu sofrer de novo tudo o que sofri
naquela tarde, horrorizando-me com aquele seu desolado padecimento.
Mesmo quando nada me faz recordar aquilo, sinto essa recordação me
atormentar.
Maria começa a falar e eu me calo.

Maria diz:
20.6

– Vou falar pouco, porque estás muito cansada, ó minha pobre filha.
Somente quero chamar a tua atenção, e a de quem estiver lendo, sobre o
hábito constante de José, e meu também, de dar sempre o primeiro lugar à
oração. Cansaço, pressa, desgostos, ocupações eram coisas que não
impediam as orações, pelo contrário, a ajudavam até. Ela era sempre a
rainha das nossas ocupações. O nosso conforto, a nossa luz, a nossa
esperança. Se nas horas tristes, a oração era um conforto, nas horas felizes,
era um canto. Mas era sempre a amiga constante de nossa alma. Era ela que
nos fazia desprender-nos da terra deste exílio, elevando-nos ao Céu, nossa
Pátria.
Não somente eu, que já tinha Deus dentro de mim, não precisava senão
olhar para o meu interior, para adorar o Santo dos santos, mas também José
se sentia unido a Deus quando rezava, porque a nossa oração era adoração
verdadeira, com todo o nosso ser que se fundia em Deus, adorando-O e
sendo por Ele abraçado.
Olhai bem, mesmo assim, eu que tinha em mim o Eterno, não me senti
isenta de prestar um reverente obséquio ao Templo. A santidade mais alta
não exime ninguém de sentir-se nada diante de Deus, e de humilhar esse
nada, pois o Senhor no-lo permite, em um contínuo hino de louvor à Sua
glória.
20.7
Sois pobres, fracos, defeituosos? Invocai a santidade do Senhor:
“Santo, Santo, Santo!” Clamai por Ele, Santo bendito, sobre a vossa miséria.
Ele virá e derramará sobre vós a sua santidade. Sois santos e ricos de
merecimentos aos Seus olhos? Invocai, do mesmo modo, a santidade do
Senhor. Essa santidade é infinita e fará crescer sempre mais a vossa. Os
anjos, seres que estão acima das fraquezas da humanidade, não cessam um
instante de cantar o seu “Sanctus”, e a beleza sobrenatural deles aumenta,
cada vez que invocam a santidade de nosso Deus. Imitai os anjos.
Não vos priveis nunca da proteção da oração, contra a qual ficam
embotadas as armas de satanás, as malícias do mundo, os apetites da carne e
as soberbas da mente. Não deponhais nunca esta arma, pela qual se abrem os
céus, de onde chovem graças e bênçãos.
A terra está precisando de um banho de orações para limpar-se das
culpas que atraem os castigos de Deus. Mas, como são poucos os que rezam,
esses poucos precisam rezar como se fossem muitos, multiplicando as suas
orações vivas, para fazerem delas o total necessário para se obter a graça
pedida. Orações vivas, são as temperadas com verdadeiro amor e com
sacrifício.
20.8
Que tu, minha filha, sofras, principalmente porque o teu sofrimento,
unido ao meu e ao de Jesus, torna-se uma coisa boa, agradável a Deus, com
muitos merecimentos. Gosto muito do teu amor de compaixão. Queres dar-
me um beijo? Beija as chagas de meu Filho. Embalsama-as com o teu amor.
Eu senti espiritualmente as dores, a angústia e a aflição causadas pelos
flagelos, pelos espinhos e pela tortura dos cravos e da cruz. Mas, de modo
igual, eu sinto espiritualmente todas as carícias feitas ao meu Jesus: são
beijos dados a mim. Depois, vem. Eu sou a rainha do céu. Mas sou sempre a
mãe…
Maria termina a fala. E me sinto abençoada!
21. Chegada de Maria a Hebron
e seu encontro com Isabel.
1 de abril de 1944.
21.1
Estou num lugar montanhoso. Não são grandes montes, mas também
não são colinas. Eles também têm suas lombadas e grotões, como as grandes
montanhas, por exemplo, os nossos Apeninos na região da Toscana e da
Umbria. A vegetação é densa e bela, onde há, em abundância, nascentes de
águas frescas, que mantêm sempre verdes as pastagens, com as árvores dos
pomares carregadas de frutos, quase todas macieiras, figueiras e videiras,
sendo estas, ao redor das casas. Devemos estar na primavera, porque os
cachos já estão bem desenvolvidos, e os pequenos bagos da uva já aparecem
como grãos nos ramos, como bolinhas verdes. Sobre os galhos das figueiras
vêm aparecendo os primeiros frutos, por enquanto ainda embrionários, mas
já com o seu formato natural. Os prados se exibem, formando um grande
tapete fofo e bastante colorido. Por cima deles, pastam as ovelhas, puxando
e comendo folhas, ou repousando aqui, ou ali, como se fossem manchas
brancas sobre o mar de esmeralda formado pelas ervas.
21.2
Maria vai subindo, no seu burrinho, por uma estrada em muito bom
estado e que deve ser a estrada mestra. Ela vai subindo, porque o povoado,
que nos oferece uma vista muito agradável, fica no alto. Meu monitor interior
me diz: “Este lugar é o Hebron.” Ela falava-me de “Montana.” Não sei o que
dizer. A mim foi dito este nome. Não sei se “Hebron” é o nome dado a toda
esta região, ou ao povoado. Mas eu digo como ouço.
Maria está entrando no povoado. Há mulheres nas portas — já chegou a
tarde — e observam a chegada da forasteira. Depois começam a falar umas
com as outras sobre o que viram. Vão acompanhando a forasteira com o
olhar, e não ficam sossegadas, enquanto não a vêem parar na frente de uma
das mais belas casas, situadas bem no meio do povoado, tendo à frente um
jardim, e atrás um pomar muito bem tratado, estendendo-se o terreno depois
por um vasto prado, que sobe e desce pelas sinuosidades do monte,
acabando num bosque de árvores altas, além das quais não sei o que há.
Tudo está cercado por uma sebe de amoreiras e roseiras selvagens. Eu não
distingo bem, porque, como se sabe, a flor e a folhagem dessas moitas
espinhosas são muito parecidas e, enquanto não aparecerem os frutos nos ga‐
lhos, é fácil nos enganarmos. No lado da frente da casa, que é o lado onde
termina o povoado, a propriedade está cercada por um pequeno muro
branco, no qual se espraiam os ramos das roseiras verdadeiras, que embora
estejam ainda sem flores, estão cheias de botões. No centro há um portão de
ferro, fechado. Logo se vê que esta deve ser a casa de um dos notáveis do
povoado, ou de pessoas abastadas, porque tudo demostra, se não riqueza e
ostentação, certamente demonstra bem-estar. Tudo está em ordem.
21.3
Maria desce do burrinho e se aproxima do portão. Olha por entre as
barras. Não vê ninguém. Então, procura fazer-se ouvir. Uma pequena
senhora, mais curiosa do que as outras, a tinha acompanhado e mostra-lhe um
utensílio muito especial, que faz as vezes de uma campainha. São dois
pedaços de metal, colocados em equilíbrio sobre uma barra: sacudindo-se
esta barra, ao puxar-se uma corda, as duas peças batem uma na outra,
produzindo o som de um sino, ou de um gongo.
Maria puxa a corda, mas de um modo tão delicado, que o som produzido
é um levíssimo tinido, que ninguém ouve. Então, a mulherzinha, uma velhota
do nariz e queixo grande, com uma língua imensa, agarra a corda e puxa
muitas vezes em seguida. O barulho que ela fez com isso dava para
ressuscitar um morto.
– É assim que se faz, mulher. Pois, de outro modo, como vos poderiam
ouvir? Ficai sabendo que Isabel está velha, e Zacarias também está velho.
Além disso, agora ele, além de mudo, está também surdo. Os dois criados
estão velhos também, sabes? Nunca viestes aqui? Conheceis Zacarias?
Sereis vós talvez…
Para livrar Maria de um dilúvio de notícias e de perguntas, apareceu um
velhinho decidido, que deve ser o jardineiro, ou um agricultor, pois traz na
mão um sacho e, amarrada à cintura, uma podadeira. Ele abre o portão,
Maria entra, agradecendo à mulherzinha, mas… deixando-a sem resposta.
Que desilusão para a curiosa!
Logo que entrou, Maria disse:
– Sou Maria de Joaquim e de Ana, de Nazaré. Prima de teus patrões.
21.4
O velhinho se inclina e a saúda, e depois em voz alta, chama:
– Sara! Sara!
E torna a abrir o portão para fazer entrar o burrinho, que tinha ficado de
fora, porque Maria, para ver-se livre da pegajosa velhinha, tinha escapado
rapidamente para dentro, e o jardineiro, tão rápido como Maria, tinha
fechado o portão no nariz da importuna. Enquanto está fazendo o jumento
passar, ele diz:
– Ah! que grande felicidade e que grande desgraça aconteceram a esta
casa! Pois o céu concedeu um filho à estéril, bendito seja o Altíssimo! Mas
Zacarias, já há sete meses, voltou mudo de Jerusalém! E ele só se faz
entender por acenos, ou escrevendo. Teríeis vós sabido disso? Minha patroa
desejou ter-te aqui, em sua alegria e em sua dor. Ela sempre falava de vós
com Sara, e dizia: “Se eu tivesse a minha pequena Maria aqui comigo! Se
ela tivesse ficado ainda no Templo! Eu teria mandado Zacarias ir buscá-la.
Mas agora o Senhor quis que ela se casasse com José de Nazaré. Só ela é
que poderia me confortar nesta dor e ajudar-me a orar a Deus, pois ela é tão
boa. No Templo todos sentem saudades dela. Na festa passada, quando fui
com Zacarias a Jerusalém, para agradecer a Deus por me ter dado um filho,
ouvi as mestras dela que diziam: ‘O Templo parece estar sem os querubins
da glória, desde que a voz de Maria deixou de ser ouvida por estas
paredes’.” Sara! Sara! Minha mulher é um pouco surda. Mas vem, vem que
eu mesmo te guio.
21.5
Mas, em vez de Sara, quem aponta no alto de uma escada, que está ao
lado da casa, é uma mulher muito velhinha, já toda cheia de rugas, e com os
cabelos bem salpicados de fios brancos, cabelos que um dia devem ter sido
muito pretos, bem como os cílios e as sobrancelhas. Ela deve ter sido
morena, pela cor do seu rosto. Um contraste estranho com a sua evidente
velhice é o seu estado, já muito visível, mesmo estando com vestes amplas e
soltas. Ela olha, fazendo um anteparo com a mão, para amortecer a
claridade. Logo reconhece Maria. Levanta, então os braços para o céu, diz
um “Oh!” cheio de pasmo e de alegria, e se precipita, do melhor modo que
pode, ao encontro de Maria. Também Maria, que é sempre tranqüila em seus
movimentos, corre agora, ágil como um cervo, chega até os pés da escada,
na mesma hora em que Isabel também chega, e recebe a sua prima sobre o
coração, que com viva expansão, chora de alegria ao vê-la.
Ficam abraçadas por um instante, depois Isabel solta um “Ah!”, que é
um misto de dor e de alegria, e leva as mãos sobre o ventre avolumado.
Abaixa o rosto, empalidecendo e ruborizando-se alternadamente. Maria e o
criado estendem as mãos para sustentá-la, porque ela está vacilando, como
quem se sente mal.
Mas Isabel, depois de ter ficado um minuto como que recolhida em si
mesma, levanta um rosto de tal modo radiante, que parece rejuvenescido,
olha para Maria, sorrindo com veneração, como se estivesse vendo um anjo,
e depois se inclina em uma saudação, que vem do fundo do seu ser, dizendo:
– Bendita és tu entre todas as mulheres! Bendito é o Fruto do teu ventre!
(ela fala assim em duas frases bem destacadas). Como foi que eu mereci que
tenha vindo a mim, Sua serva, a mãe do meu Senhor? Pois, ao som da tua voz
o menino saltou em meu ventre, como cheio de alegria, quando eu te abracei,
e o Espírito do Senhor disse ao meu coração verdades altíssimas. Tu és
bem-aventurada, Maria, porque acreditaste que para Deus fosse possível até
o impossível, segundo a nossa mente humana! Tu és bendita porque, por
causa da tua fé, farás cumprir as coisas que foram para ti preditas pelo
Senhor e preditas aos Profetas, para este tempo! Tu és bendita, pela saúde
que geras à estirpe de Jacó! Tu és bendita por teres trazido a santidade ao
meu filho que salta como um cabrito, querendo externar sua alegria. Salta de
puro júbilo em meu ventre, porque está sentindo-se libertado do peso da
culpa, chamado para ser aquele que deve preceder sendo, para isso,
santificado antes da Redenção, pelo Santo que está crescendo em ti!
Maria, com duas lágrimas que descem como pérolas de seus olhos, que
estão rindo com a boca que sorri, com o rosto levantado para o céu e com as
mãos também elevadas, naquela postura que, mais tarde, muitas vezes vai ser
tomada por Jesus, exclama:
– Minha alma canta as grandezas do seu Senhor –e continua o cântico
como nos foi transmitido[44]. No fim, ao versículo: “Veio em socorro de
Israel, seu servo, etc.,” ela junta as mãos sobre o peito, e se ajoelha, muito
inclinada para a terra, adorando a Deus.
21.6
O criado que prudentemente tinha tratado de desaparecer dali, logo
que percebeu que Isabel não estava passando mal, mas que estava
confidenciando o seu pensamento a Maria, volta do pomar com um
imponente ancião vestido de branco, de barba e cabelos completamente
brancos, e que, com grandes gestos, e emitindo sons guturais, saúda de longe
Maria.
– Zacarias vem chegando –diz Isabel, tocando no ombro da virgem, que
está absorta em oração–. O meu Zacarias está mudo. Deus o castigou porque
ele não acreditou. Depois te contarei. Agora eu espero o perdão de Deus,
porque tu vieste a nós. Tu, ó cheia de graça!
Maria se ergue e vai ao encontro de Zacarias, inclinando-se até à terra
diante dele, beijando-lhe a fímbria da veste branca, que o cobre até o chão.
É uma veste muito ampla, presa em seu lugar na cintura por um galão grosso
e bordado.
Zacarias, por meio de gestos, dá as boas vindas a Maria e os dois, em
companhia de Isabel, entram todos em um salão térreo, vasto e bem
arrumado, onde fazem com que Maria se assente, e lhe oferecem uma taça de
leite tirado na hora, ainda espumante, com uns pãezinhos.
Isabel dá ordens à criada, que afinal também apareceu, com as mãos
enfarinhadas e com os cabelos ainda mais brancos, também por causa da
farinha que está por cima deles. Talvez ela estivesse fazendo o pão. Dá
ordens também ao criado, que percebi chamar-se Samuel, para que ele leve
o baú de Maria para um quarto que ela lhe está mostrando. Cumprem-se
todos os deveres de uma dona de casa para com a sua hóspede.
Nesse meio tempo, Maria está respondendo às perguntas que Zacarias
lhe faz, escrevendo sobre uma tabuinha encerada com um estilete. Percebo,
pelas respostas, que ele está perguntando por José, e como vai ela casada
com ele. Nesse ponto eu chego a compreender que a Zacarias foi negada
também toda luz sobrenatural a respeito do estado de Maria e de sua
condição de mãe do Messias. É Isabel que, indo para perto do seu marido, e
pondo-lhe com amor uma mão sobre o ombro, como para uma casta carícia,
lhe diz:
– Maria também é mãe. Alegra-te com a felicidade dela!
Mas não lhe fala nada mais. Olha para Maria. Maria olha para ela, sem
convidá-la a falar nada mais, e ela então se cala.

Doce, dulcíssima visão! Ela desfaz o horror que ficou em mim pela
21.7

visão do suicídio de Judas.


Ontem de noite, antes de dormir, vi o pranto de Maria, inclinada para a
pedra da unção, sobre o corpo morto do Redentor. Ela estava ao lado direito
dele, de costas para a abertura da gruta sepulcral. A luz das tochas batia em
seu rosto, e me fazia ver esse pobre rosto devastado pela dor e lavado pelo
pranto. Ela pegava a mão de Jesus e a acariciava, procurava aquecê-la,
encostando-a em sua face, e a beijava. Estendia os dedos dele… beijava-os
um por um, estes dedos que não se moviam mais. Depois acariciava o rosto,
inclinava-se para beijar-lhe a boca aberta, os olhos semifechados, a fronte
ferida. A luz avermelhada das tochas faz que pareçam ainda mais vivas as
chagas por todo aquele corpo torturado, e mais acentuadas ainda a crueldade
da tortura padecida e a realidade de estar morto.
Eu fiquei contemplando, enquanto se conservou lúcido o meu
entendimento. Depois, tendo despertado da sonolência, rezei e tratei de ficar
quieta, para dormir de verdade. Foi aí que começou a visão que acima está
descrita. Mas a mãe me disse: “Não te movas. Olha somente. Amanhã
escreverás.” No sono foi que eu sonhei tudo de novo. Despertada às 6,30,
tornei a ver tudo o que já tinha visto, acordada e em sonho. E escrevi,
enquanto ia vendo. Depois, ela veio e eu pude perguntar-lhe se devia colocar
o que se segue. São pequenas cenas inspiradas na permanência de Maria em
casa de Zacarias.
[44] transmitido, em: Lucas 1,46-55.
22. Os dias transcorridos em Hebron. Os frutos
da caridade de Maria para com Isabel.
2 de abril de 1944.
22.1
Vejo Maria costurando. Parece ser de manhã e ela está sentada na sala
térrea. Isabel vai e vem, ocupando-se com os trabalhos da casa. E, quando
entra, não deixa nunca de ir fazer uma carícia na cabeça loira de Maria, que
está parecendo ainda mais loira, agora que vejo no fundo as paredes escuras,
ao mesmo tempo em que sua cabeça está sendo iluminada por um belo raio
de sol, que entra pela porta aberta, do lado do jardim.
Isabel se inclina para olhar o trabalho de Maria e se diz encantada com
sua beleza. É o bordado que ela tinha começado em Nazaré.
– Tenho também linho para fiar –diz Maria.
– É para o teu Menino?
– Não. Para Ele eu já tinha, quando nem pensava…
Maria não continuou a falar. Mas eu entendi: “… quando não pensava
que ia ser mãe de Deus.”
– Mas agora terás que usá-lo para Ele. É um linho bonito? É fino? Os
bebês, como sabes, precisam de tecidos muito macios.
– Eu sei.
– Eu tinha começado… Comecei tarde, porque quis ter certeza antes de
tudo que não era mais do que um engano do maligno. Ainda que… sentisse
em mim uma alegria tão grande, que, não podia vir de satanás. Depois…
sofri muito. Estou velha, Maria, para ficar neste estado. 22.2Sofri muito. Tu
não sofres…
– Eu não. Nunca estive tão bem.
– Como não haveria de ser assim?! Tu… em ti não há mancha, se Deus
te escolheu para seres sua mãe. É por isso que não estás sujeita aos
sofrimentos de Eva. Aquele que geras é Santo.
– Parece-me ter no coração uma asa, e não um peso. Parece-me ter
dentro de mim todas as flores e todos os passarinhos que cantam pela
primavera, todo o mel, todo o sol… Oh! Eu estou feliz!
– Bendita és tu! Até eu, depois que te vi, comecei a não sentir mais peso,
nem cansaço, nem dor. Parece-me que fiquei mais nova, jovem, livre das
misérias de minha carne de mulher. O meu bebê, depois de ter saltado feliz
ao som da tua voz, tratou de ficar quietinho, em sua alegria. Parece-me tê-lo
dentro de mim como em um berço vivo, parece-me vê-lo dormir satisfeito e
feliz, respirando como um passarinho, alegre debaixo da asa da mãe…
22.3
Agora, sim, vou começar a trabalhar. Não me será mais pesado. Estou
enxergando pouco, mas…
– Deixa disso, Isabel. Eu me ocuparei em fiar e tecer para ti e para o teu
bebê. Eu posso fazer depressa o trabalho, pois enxergo bem.
– Mas terás também que pensar no teu…
– Oh! Mas ainda tenho bastante tempo!… Primeiro, vou pensar em ti,
que já estás perto de ter o teu pequenino, e depois pensarei no meu Jesus.
Dizer como é doce a expressão e a voz de Maria, como se lhe marejam
os olhos de um suave e feliz pranto, e como sorri, ao dizer este Nome,
olhando para o céu luminoso e azul, é coisa que está acima das
possibilidades humanas. Parece que só ao dizer “Jesus”, o êxtase a arrebata.
Isabel diz:
– Que belo nome! O Nome do Filho de Deus, nosso Salvador!
– Oh! Isabel!
Maria se torna triste, e segura as mãos que sua parenta cruzou sobre o
próprio ventre bem avolumado:
– Diz-me tu, que, quando eu cheguei, foste inspirada pelo Espírito do
Senhor, que profetizaste isto que o mundo não sabe. Diz-me: que deverá
fazer o meu Filho para salvar o mundo? Os Profetas… Oh! Os Profetas que
falam no Salvador! Isaías… estás lembrada de Isaías? “Ele é o Homem das
dores. Por suas chagas é que fomos curados. Foi transpassado e ferido por
causa de nossos crimes. O Senhor quis consumi-lo com padecimentos…
Depois de condenado, foi exaltado…” De que exaltação está falando o
Profeta? Ele é chamado o Cordeiro e eu fico pensando… no cordeiro da
Páscoa, no cordeiro de Moisés, e relaciono tudo isso com a serpente elevada
por Moisés[45] numa cruz. Isabel!… Isabel!… Que irão fazer com o meu
Filho? Que terá Ele que sofrer para salvar o mundo?
Maria chora. Isabel a consola:
– Maria, não chores. Ele é teu Filho, mas é também Filho de Deus. Deus
pensará em Seu Filho e em ti, que és a mãe dele. Se muitos vão ser cruéis
com Ele, também muitos o haverão de amar. E tantos!… Pelos séculos dos
séculos. O mundo olhará para o teu Filho, e te bendirá com Ele. Bendirá a ti,
como à fonte de onde jorra a salvação. A sorte de teu Filho! Exaltado como
Rei de todas as criaturas. Pensa nisso, Maria. Rei, porque terá resgatado
todas as criaturas e, como tal, será delas o Rei universal. Até sobre a terra,
com o tempo, Ele será amado. O meu filho irá à frente do teu, e O amará.
Assim disse o anjo a Zacarias. Zacarias escreveu isso para mim… 22.4Ah!
Que dor que eu sinto por ver assim mudo o meu Zacarias! Mas espero que,
quando o menino nascer, o pai ficará livre do seu castigo. Reza, tu que és a
sede do poder de Deus e a causa da alegria do mundo. Para obter isso,
ofereço, como posso, o meu filho: porque ele é do Senhor, e Ele o emprestou
à sua serva para dar-lhe a alegria de ser chamada “mãe.” Para dar
testemunho de tudo o que Deus me fez. Quero que ele se chame “João.” Pois,
não é uma graça o meu menino? E, não foi Deus que me deu essa graça?
– Deus te fará essa graça, estou certa disso. Eu rezarei… contigo.
– Como eu sinto, por vê-lo mudo!… –Isabel está chorando–. Quando ele
escreve, porque não pode mais falar, parece-me que montes e mares estejam
entre mim e o meu Zacarias. Depois de tantos anos de doces palavras, agora
só há silêncio em sua boca. Agora, de modo especial, quando seria tão belo
falar daquele que está para vir. Eu me abstenho até de falar, para não vê-lo
afadigar-se naquele esforço para fazer gestos, tentando responder-me. Tenho
chorado tanto! Quanto eu tenho desejado a tua presença aqui! O povoado
todo fica olhando, falando e criticando. O mundo é assim. Quando se tem
uma dor ou uma alegria, tem-se necessidade de alguém que compreenda, e
não de alguém que critique. Agora me parece que a vida está bem melhor.
Sinto em mim uma alegria, desde que vieste ficar comigo. Sinto que a minha
provação está para ser superada, e que logo serei totalmente feliz. Assim vai
ser, não é verdade? Eu me conformo com tudo. Mas, se Deus perdoasse o
meu esposo! Se eu pudesse ouvi-lo rezar de novo!
22.5
Maria a acaricia e conforta, e a convida, para distraí-la, a sair um
pouco pelo jardim ensolarado.
Caminham debaixo de uma parreira bem cuidada, e chegam até uma
torrinha de construção rústica, em cujos buracos os pombos fazem ninhos.
Maria joga comida para os pombos, e ri, porque eles se precipitam
sobre ela, com um contínuo arrulhar, em revoadas, formando círculos
iridescentes ao redor dela. Sobre sua cabeça, sobre os ombros, sobre os
braços e as mãos, eles vêm pousar, espichando os pecoços para, com seus
bicos rosados, catar os grãozinhos nas palmas das mãos, bicando de um
modo gracioso os lábios rosados da virgem, e seus dentes que brilham ao
sol. Maria vai tirando de um saquinho alguns dourados grãos de trigo, e os
joga, e fica sorrindo, ao ver aquele torneio, do qual participam os mais
vorazes.
– Como eles gostam de ti –diz Isabel–. Há poucos dias que estás
conosco e eles gostam de ti tanto quanto gostam de mim, que sempre tratei
deles.
O passeio prossegue, até chegarem a um recinto fechado, onde estão
umas cabras com seus cabritinhos.
– Voltaste do pasto? –pergunta Maria a um pequeno pastor que ela
acaricia.
– Sim, porque meu pai me disse: “Vai para casa, porque daqui a pouco
vai chover, e temos umas ovelhas que estão para dar cria. Providencia que
elas tenham erva enxuta e que a cama dos animais esteja preparada.” Ele lá
vem vindo.
E acena, mostrando para o outro lado do bosque, de onde está vindo um
balido continuado e trêmulo.
Maria está acariciando um cabritinho loiro como uma criança, que se
roça contra ela, e, junto com Isabel, bebe leite tirado na hora e que o
pastorzinho lhes oferece.
Chegam as ovelhas, guiadas por um pastor cabeludo como um urso. Mas
deve ser um bom homem, pois vai levando sobre os ombros uma ovelha que
se lamenta. Ele a põe no chão, devagar, e explica:
– Está para ter o cordeirinho. Já não podia mais caminhar, de tão
cansada. Eu a coloquei sobre os ombros. Tive que dar uma boa carreira para
chegar a tempo.
A ovelha, mancando por causa das dores, é conduzida até o redil pelo
menino.
Maria sentou-se sobre uma pedra, e está brincando com os cabritinhos e
os cordeiros, oferecendo-lhes folhas de trevo, que ela coloca diante de seus
focinhos rosados. Um cabritinho branco e preto põe-lhe a patinha sobre os
ombros, e lhe cheira os cabelos.
– Não é pão –diz Maria rindo–. Mas amanhã te trarei uma crosta de pão.
Fica bonzinho, por enquanto.
Também Isabel ri, agora mais tranqüilizada.

Estou vendo Maria fiando, muito ligeira, debaixo da parreira, onde as


22.6

uvas já estão aumentando de tamanho. Deve ter passado um bom tempo,


porque as maçãs já começam a avermelhar-se nos ramos, e as abelhas já
estão zumbindo ao redor dos figos maduros.
Isabel está bem volumosa, e caminha com dificuldade. Maria olha para
ela com atenção e amor. Também Maria, quando se levanta para apanhar o
fuso que caiu, parece mais arredondada nos quadris, e a expressão de seu
rosto está diferente. Está mais madura. Antes, uma menina; agora, uma
mulher.
As mulheres entram para a casa, porque a tarde vem chegando e no
quarto já estão sendo acesas as lâmpadas. Enquanto espera a ceia, Maria
está tecendo.
– Será mesmo que não ficas cansada? –pergunta Isabel, mostrando o
tear.
– Não. Podes crer.
– A mim, este calor me deixa prostrada. Já não tenho sofrido mais, mas
agora o peso é grande para os meus velhos rins.
– Coragem! Daqui a pouco estarás livre. E, então, como ficarás feliz!
22.7
Eu não vejo a hora de ser mãe. De ver o meu Menino! O meu Jesus! Como
será ele?
– Será bonito como tu, Maria.
– Não. Será mais bonito! Ele é Deus, e eu sou a serva dele. Mas eu
queria dizer: será loiro, ou será moreno? Terá uns olhos como o céu sereno,
ou como os dos cervos das montanhas? Eu faço idéia de que Ele será mais
belo que um querubim, com os cabelos encaracolados e cor de ouro, com os
olhos da cor do nosso Mar da Galiléia no momento em que as estrelas
começam a mostrar-se lá nos confins do céu; com uma boca pequenina e
vermelha como pedaço de uma romã, que se abriu, depois de ter
amadurecido ao sol; e nas faces terá um rosado como esta pálida rosa, e
duas mãozinhas, que caberiam na cavidade de um lírio, de tão pequenas e
bonitas. Seus dois pezinhos poderiam caber no côncavo de minha mão,
delicados e lisos como uma pétala de flor. Olha: eu acrescento à idéia que eu
faço Dele todas as belezas que a terra me pode sugerir. Eu já ouço a sua voz.
Será sua voz, quando chora, porque, o meu Menino haverá de chorar um
pouco, por fome ou por sono, isso será sempre uma grande dor para a sua
mãe, que não suportará, oh! não suportará ouvi-lo chorar, sem ficar com o
coração transpassado. Seu choro será como aquele balido do cordeirinho
que agora estamos ouvindo, que nasceu há poucas horas, e que está
procurando a teta e, depois, o calor da lã de sua mãe, para poder dormir. Ele
terá um sorriso que me encherá o coração enamorado pelo meu Filho de céu.
Posso ficar enamorada por Ele, porque Ele é meu Deus, e amá-lo, não vai
contra a minha virgindade consagrada. Ele será, em seu sorriso, como esse
festivo arrulhar do pombinho, feliz por ter-se saciado, e contente, por estar
em seu morno ninho. Fico pensando como serão os seus primeiros passos…
como um passarinho saltitante sobre um prado em flor. O prado vai ser o
coração de sua mamãe, que estará atenta aos seus pezinhos cor-de-rosa, para
que não esbarrem em nada que os machuque. Como haverei de amá-lo, o meu
Menino! Meu Filho! 22.8E José também o amará!
– Tu deverás dizer tudo isso a José!
O rosto de Maria fica anuviado, e ela suspira:
– Deverei dizer-lhe, sem dúvida tudo isso… Eu gostaria que o céu lhe
dissesse tudo por mim, porque é uma coisa difícil de dizer.
– Queres que lhe diga eu? Nós vamos convidá-lo para a circuncisão do
João, e…
– Não. Eu entreguei a Deus o encargo de instruir o José sobre sua sorte
feliz de ter sido escolhido para nutrir o Filho de Deus, e o Senhor fará isso.
O Espírito me disse, naquela tarde: “Cala-te. Deixa a Mim a tarefa de
justificar-te.” E Ele o fará. Deus não mente nunca. Para mim é uma grande
provação. Mas, com a ajuda do Eterno, será superada. De minha boca, com
exceção de ti, a quem o Espírito Santo o revelou ninguém, vai ficar sabendo
a benignidade que o Senhor fez para com sua serva.
– Eu sempre deixei de falar nisso até com Zacarias, que teria ficado
muito alegre, se o soubesse. Ele acha ainda que tu és mãe, mas pelas leis da
natureza.
– Eu sei. E assim quis por prudência. Os segredos de Deus são santos. O
anjo do Senhor não revelou a Zacarias a minha maternidade divina. Ele teria
podido fazê-lo, se Deus o tivesse querido, porque Deus sabia que estava
iminente o tempo da Encarnação do seu Verbo em mim. Mas Deus conservou
escondida a Zacarias esta luz de alegria, que rejeitava como coisa
impossível que em vossas idades pudésseis ter um filho. Eu me conformei
com a vontade de Deus. E tu o estás vendo. Tu ouviste o segredo que está
vivo em mim. Ele não percebeu nada. Enquanto não cair o obstáculo, que é a
sua incredulidade diante do poder de Deus, ele ficará afastado das luzes
sobrenaturais.
Isabel suspira e fica calada.
22.9
Zacarias está entrando. Oferece os rolos a Maria. É hora da oração
antes da ceia. É Maria quem reza, em voz alta, em lugar de Zacarias. Depois,
assentam-se à mesa.
– Quando não estiverdes mais aqui, como iremos sentir a falta de quem
reze por nós –diz Isabel, olhando para o seu marido mudo.
– Tu, então, já estarás rezando, Zacarias –diz Maria.
Ele sacode a cabeça e escreve:
– Não poderei mais rezar pelos outros. Tornei-me indigno disso, desde
o dia em que duvidei de Deus.
– Zacarias, tu rezarás. Deus perdoa.
O velho enxuga uma lágrima, e suspira.
Depois da ceia, Maria volta ao tear.
– Basta –diz Isabel–. Tu estás te cansando demais.
– O tempo está chegando, Isabel. Eu quero fazer para o teu menino um
enxoval digno daquele que precede ao Rei da estirpe de Davi.
Zacarias escreve:
– De quem nascerá Ele? E onde?
Maria responde:
– Onde os Profetas disseram e de quem for escolhida pelo Eterno. Tudo
o que o Senhor Altíssimo faz é bem feito.
Zacarias escreve:
– Então, vai ser em Belém! Na Judéia. Iremos lá venerá-lo, mulher. Irás
tu também a Belém, com o teu José.
E Maria, inclinando a cabeça sobre o tear, diz:
– Irei.
Assim cessa a visão.

22.10
Maria diz:
– A primeira caridade para com o próximo há de ser exercida para com
o próximo. Não penses que isso seja um jogo de palavras. Porque a caridade
se exerce para com Deus e para com o próximo. Na caridade para com o
próximo está compreendida também a que é dirigida a nós mesmos. Mas, se
nos amarmos mais do que aos outros, já não estaremos sendo caridosos, e,
sim egoístas. Mesmo nas coisas lícitas, precisamos ser tão santos, a ponto de
darmos sempre a precedência às necessidades do próximo. Ficai bem
atentos, meus filhos, que Deus compensa os generosos com os meios do seu
poder e da sua bondade.
22.11
Esta certeza me fez ir a Hebron, ajudar minha parenta no estado em
que ela se achava. E, a esta minha intenção de prestar socorro humano, Deus,
acima de toda medida, como Ele costuma fazer, uniu um dom de socorro
sobrenatural, que ninguém esperava. Eu vou para prestar ajuda material, e
Deus santifica a minha reta intenção, fazendo que ela santificasse o fruto do
ventre de Isabel, e, através dessa santificação, com a qual o Batista foi pré-
santificado, Deus suavizou os sofrimentos físicos daquela filha de Eva já
madura, que concebeu em idade não mais apropriada.
Isabel, mulher de fé intrépida e confiante abandono à vontade de Deus,
merece compreender o mistério escondido em mim. O Espírito Santo lhe
fala, através do saltar de seu ventre que ela sente. Assim, o Batista
pronunciou o seu primeiro discurso de anunciador do Verbo, através dos
véus e das paredes formadas pelas veias e pela carne, que o separa de Isabel
e, ao mesmo tempo, o unem à sua santa mãe.
A Isabel eu não nego a minha qualidade de mãe do Senhor, pois ela é
digna de sabê-lo. A Luz se revela a ela. Negar-lhe isso teria sido negar a
Deus um louvor que era justo Lhe dar, o louvor que eu levava em mim e que,
não podendo dizer a ninguém, eu o dizia às ervas, às flores, às estrelas, ao
sol, aos pássaros canoros, às pacientes ovelhas, às águas murmurantes e à
luz de ouro que me vinha beijar, descendo do céu. Mas, rezarmos juntas, é
muito mais doce do que ficarmos dizendo, cada uma sozinha, a sua oração.
Eu teria querido que o mundo todo soubesse da minha sorte, não por mim,
mas para que o mundo se unisse a mim, em dar louvor ao meu Senhor.
Foi a prudência que me impediu de revelar a Zacarias a verdade. Teria
sido isso dar passos além do plano de Deus. Se eu era Sua esposa e mãe,
continuava a ser sempre sua serva, e não devia, porque Ele me tinha amado
sem medida, permitir-me a ousadia de me substituir a Ele, tomando o seu
lugar, por uma decisão minha.
Isabel, em sua santidade, compreende tudo isso, e se cala. Pois quem é
santo é sempre indulgente e humilde.
22.12
É preciso que o dom de Deus nos torne sempre melhores. Quanto mais
recebemos Dele, mais devemos dar. Porque, se recebemos muito, isso é
sinal de que Ele está em nós. Quanto mais Ele estiver em nós, mais devemos
esforçar-nos, para alcançar a perfeição que recebemos Dele.
Este é o motivo porque eu, deixando de lado o meu trabalho, trabalho
para Isabel. Não me deixo tomar pelo medo de não ter tempo. Deus é o
Senhor do tempo. A divina Providência nada deixa faltar a quem espera
Nele, mesmo as coisas mais comuns. O egoísmo não faz nada andar
depressa, mas atrasa. A caridade não atrasa, mas faz andar depressa. Tende
sempre isso presente.
Quanta paz na casa de Isabel! Se eu não tivesse tido sempre o
22.13

pensamento de José e do meu Menino, que era o Redentor do mundo, teria


sido feliz. Mas é que a cruz já vinha projetando sua sombra sobre a minha
vida e eu ouvia as vozes dos Profetas, como um som fúnebre…
Eu me chamava Maria. E a amargura desse nome estava sempre
misturada com as doçuras que Deus derramava em meu coração. Essa
amargura foi aumentando, até à morte de meu Filho. Mas, quando Deus nos
chama, Maria, como as escolhidas vítimas para a sua honra, então, é doce
sermos trituradas, como o grão no moinho, para que da nossa dor seja feito o
pão que fortalece os fracos, e os torna capazes de chegar ao céu!
Agora basta. Estás cansada e feliz. Descansa com a minha bênção.
[45] elevada por Moisés, como se narra em: Números 21,8-9. A citação será recorrente na obra, a p artir p rovavelmente de
116.9. Outros factos referentes a M oisés são anotados, uma vez p or todas, em: 114.6 (p rodígios) -119.4 (os dez mandamentos)
-212.5 (vitelo de ouro, aliança renovada, tábua da lei) -229.3 (nascimento e infância) -295.5 (com Josué) -324.10 (fórmula de
bênção) -340.9 (p assagem do M ar Vermelho) -354.9 (maná no deserto) -354.12 (arca da aliança) -411.6 (morte) -436.2 (p rofeta
do Cristo) -457.2 (águas de M eriba, recusa de Edom, morte de Aarão) -506.3 (manifestação divina) -588.6 (maldição) -625.6
(op ressão dos hebreus no Egip to). Outras citações no ep isódio da Transfiguração (cap itulo 349) e em: 402.6 -483.9 -549.8
-594.6 -630.5 -635.7. As notas sobre as leis de M oisés são chamadas de novo no índice temático, no fim do volume, intituladas
“Festas hebraicas” e “Leis”.
23. Nascimento de João Batista.
Todo sofrimento se acalma no ventre de Maria.
3 de abril de 1944.
23.1
Em meio às coisas repugnantes, que nos oferece o mundo de hoje,
desce do céu (e não sei como posso fazer, visto que sou como uma palhinha,
levada pelo vento, nestes contínuos choques contra a maldade humana, tão
destoante de tudo o que vive em mim) desce do Céu esta visão de paz.
23.2
Continuo vendo sempre a casa de Isabel. Estamos em uma bela tarde
de verão, ainda com a claridade do sol e, no entanto já adornada também
com o arco da lua, semelhante a uma foice no céu, parecendo também com
uma vírgula de prata colocada sobre um grande pano de cor azul intensa.
As roseiras estão exalando uma agradável fragrância e as abelhas dando
os seus últimos vôos do dia, como gotas de ouro, que zumbem, através do ar
quente e parado da tarde. Dos prados vem um forte cheiro do feno que está
secando ao sol, é um cheiro de pão, do pão quente que foi tirado agora do
forno. Talvez esse cheiro venha também dos muitos tecidos que estão
estendidos para secarem, por toda parte, e que Sara está dobrando.
Maria está passeando, de braços dados com a prima. Devagar,
devagarinho, caminham para cima e para baixo, por debaixo de uma parreira
meio escura.
Maria está atenta a tudo e, mesmo quando se ocupa com Isabel, vê que
Sara está muito ocupada em dobrar de novo um longo tecido que ela tirou de
cima de uma sebe.
– Espera-me sentada aqui –diz ela à sua parenta.
E vai ajudar a velha criada, puxando o tecido para esticá-lo, e
dobrando-o depois com cuidado.
– Ainda estão com cheiro de sol, estão quentes –diz com um sorriso.
E, para fazer feliz a mulher, acrescenta:
– Este tecido, depois do branqueamento que fizeste, ficou tão bonito
como nunca. Ninguém como tu pode fazer isso tão bem.
E lá se vai Sara muito alegre com a sua carga dos tecidos fragrantes.
Maria volta a Isabel e lhe diz:
– Ainda uns poucos passos. Eles vão te fazer bem.
E, como Isabel, cansada, não quer mover-se dali, Maria lhe diz:
– Vamos só ver se os teus pombos estão todos em seus ninhos e se a
água de seus bebedouros está limpa. Depois, voltamos para casa.
23.3
Os pombos devem ser os prediletos de Isabel. Quando chegam à frente
da torrinha rústica, onde os pombos já se recolheram, as fêmeas estão nos
buracos, os machos estão diante delas e não se movem, mas, ao verem as
duas mulheres, dão ainda um sinal de saudação. Isabel fica comovida. O seu
estado de fraqueza a vence e lhe traz temores que a fazem chorar. Ela, então
se desabafa com sua prima:
– Se eu tivesse que morrer… pobres dos meus pombinhos! Tu não vais
ficar aqui. Se ficasses em minha casa, eu não me importaria de morrer. Eu já
tive a maior das alegrias que uma mulher possa ter, uma alegria que eu já me
tinha resignado a não ter nunca, e até da morte eu não tenho de que me
queixar com o Senhor, porque Ele — seja por isso bendito — me cumulou
de graças com a sua benignidade. Mas aqui está o Zacarias… e chegará o
menino. Zacarias já velho, e que se encontraria como um perdido no deserto,
sem sua mulher; o menino, tão pequenino, seria como uma flor destinada a
morrer enregelada, sem a sua mãe. Pobre menino, sem as carícias de sua
mãe!…
– Mas, por que essa tristeza? Deus te deu a glória de ser mãe, e não vai
tirá-la, logo agora que ela será plena. O pequeno João terá todos os beijos
da mamãe, e Zacarias, os cuidados de sua fiel esposa, até a mais prolongada
velhice. Vós sois dois ramos de uma mesma planta. Um não morrerá,
deixando o outro sozinho.
– Tu és boa, e me confortas. Mas eu já estou muito velha para ter um
filho. E agora, que estou para tê-lo, estou com medo.
– Oh! não! Jesus está aqui. Não precisa ter medo onde há Jesus. O meu
Menino abrandou o teu sofrimento, tu mesma o disseste, quando Ele era
ainda como uma flor em botão recém-formado. Agora, que cada vez mais vai
crescendo ele afastará de ti todo perigo, pois já vive como filho meu e sinto
bater seu coraçãozinho em minha garganta, como um filhote de passarinho,
pois o pequenino coração pulsa rápido. Deves ter fé.
– Eu tenho. Mas, se eu morrer… não deixes Zacarias logo. Eu sei que
pensas em tua casa. Mas, fica um pouco mais de tempo. Para ajudar meu
esposo nas primeiras dores.
– Eu ficarei para me felicitar pela tua alegria e a alegria dele, e só te
deixarei, quando estiveres forte e bem disposta. Fica tranqüila, Isabel. Tudo
irá bem. Tua casa não sofrerá nada, enquanto estiveres sofrendo. Zacarias,
será servido pela mais amorosa das criadas, tuas flores serão cuidadas, teus
pombos serão tratados, e encontrarás todos alegres e bonitos, para fazerem
festa para a volta da patroa. 23.4Vamos para dentro agora, pois estás ficando
pálida…
– Sim, parece-me que vou começar a sofrer de novo. Talvez tenha
chegado a hora. Maria, reza por mim.
– Eu te darei um apoio com a oração, até que o teu trabalho de parto
chegue ao fim com alegria.
As duas mulheres, a passos lentos, tornam a entrar em casa. Isabel se
retira para os seus aposentos. Maria, muito habilidosa e previdente, dá
ordens e vai preparando tudo quanto pode ser necessário, além de ir
confortar Zacarias, que está preocupado.
Na casa, onde ninguém dorme nesta noite, ouvem-se as vozes estranhas
das mulheres, que foram chamadas para ajudar. Maria também está
acordada, como um farol em noite de tempestade. A casa toda encontra nela
o seu apoio. Ela, doce e sorridente, provê a tudo. Reza. Toda vez que não é
chamada para alguma coisa, se recolhe em oração. Ela está na sala onde se
reuniam sempre para refeições e para o trabalho.
Com ela está Zacarias, que suspira, passeando perturbado. Os dois já
rezaram juntos. Depois, só Maria continua a rezar. O velho agora, cansado,
foi sentar-se em sua cadeira de braços, perto de uma mesa. Está calado e
sonolento. Maria está rezando, mas, quando vê que ele já está completamente
adormecido, com a cabeça sobre os braços cruzados e apoiados sobre a
mesa, Ela tira as sandálias para fazer menos barulho, e caminha descalça,
fazendo menos ruído do que uma borboleta, quando voa num quarto. Pega o
manto de Zacarias e o estende sobre ele, de um modo tão delicado, que ele
nada percebe, continuando a dormir com o calor da lã, que o defende do frio
da noite, que, em pequenas lufadas, vem entrando pela porta que está quase
sempre aberta. Depois, volta à oração. Reza, sempre mais intensamente, de
joelhos, com os braços levantados, quando os gemidos de Isabel se tornam
mais agudos.
23.5
Sara entra, fazendo um sinal a Maria para que saia. Maria sai, de
pés descalços, até o jardim.
– A patroa vos está chamando –diz Sara.
– Estou indo –e Maria caminha ao longo da casa, subindo depois a
escada… Parece um anjo branco, que anda durante a noite sossegada e cheia
de estrelas. Maria entra no quarto de Isabel.
– Oh, Maria! Que dor, Maria! Não aguento mais, Maria! Quanto se tem
que sofrer para ser mãe!
Maria a acaricia com amor e a beija.
– Maria! Maria! Deixa-me pôr as mãos em teu ventre!
Maria pega aquelas mãos rugosas e inchadas e as coloca sobre o
abdômen arredondado, calcando-as com suas mãozinhas lisas e delicadas.
Começa então a falar devagar, agora que as duas estão sozinhas:
– Jesus está aqui, e te está ouvindo e vendo. Tem confiança nele, Isabel,
pois o coração santo dele está batendo mais forte, e agora está agindo para o
teu bem. Eu percebo as palpitações dele, como se ele estivesse em minhas
mãos. Estou compreendendo as palavras que o Menino está dizendo: “Diz à
mulher que não tema. Ainda um pouco de dor. E depois, ao raiar do sol, no
meio de muitas rosas, que estão esperando os primeiros raios matutinos para
se abrirem sobre seus pedúnculos, a casa dela terá a rosa mais bonita, que
será João, o meu Precursor.”
Isabel, então, apoia o rosto sobre o ventre de Maria, e chora baixinho.
Maria, por algum tempo, fica assim, pois parece que a dor está
diminuindo, com uma pausa de alívio, e acena a todos para que fiquem
quietos, enquanto ela continua em pé, branca e bela, à fraca claridade da luz
de um candeeiro, como um anjo ao lado de quem está sofrendo. Ela está
rezando. Estou vendo como move os lábios. Mas, mesmo que não visse seus
lábios, eu saberia que está rezando, pela expressão arrebatada do seu rosto.
23.6
O tempo vai passando. A dor volta outra vez a Isabel. Maria a beija
de novo, e se afasta. Desce, ágil, à luz do luar, e vai correndo ver se o velho
ainda está dormindo. Sim, ele está dormindo, e está gemendo durante o sono.
Maria faz um gesto de compaixão. E torna a pôr-se em oração.
O tempo passa. O velho desperta do seu sono, com o olhar de quem está
querendo indagar porque é mesmo que ele está ali, naquele lugar. Mas
depois se lembra. Faz, então, um gesto e solta uma exclamação gutural.
Depois escreve: “Não nasceu ainda?” Maria faz um sinal de negação.
Zacarias escreve: “Que dor! Coitada de minha mulher! Conseguirá dar à luz,
sem morrer?”
Maria segura a mão do velho, e lhe garante:
– Ao romper da aurora, daqui a pouco, o menino já terá nascido. Tudo
vai correr bem. Isabel é bem forte. E, como vai ser bonito este dia — pois
daqui a pouco já é dia — no qual o teu menino verá a luz! Será o dia mais
bonito da tua vida! o Senhor reserva grandes graças para ti, e o teu menino é
o anunciador delas!
Zacarias sacode tristemente a cabeça, e faz um sinal, mostrando sua
boca muda. Ele bem que gostaria de dizer muitas coisas, mas não pode.
Maria compreende, e responde:
– O Senhor te vai dar uma alegria completa. Crê Nele completamente,
espera Nele infinitamente, ama-O totalmente. O Altíssimo te ouvirá, por
mais que não te atrevas a esperar isso. Ele quer esta tua fé total, como para
purificar-te da tua desconfiança passada. Diz comigo em teu coração: “Eu
creio.” Diz isto a cada batida do teu coração. Os tesouros de Deus se abrem
para quem crê nele e em sua poderosa bondade.
23.7
A luz começa a penetrar pela porta semi-aberta. Maria vai abri-la
toda. A luz da aurora vai fazendo ficar toda branca a terra, coberta de
orvalho. Levanta-se um cheiro de terra úmida e de folhas verdes e, com os
primeiros chilreios, os passarinhos se chamam um ao outro, voando de um
ramo para outro.
O velho e Maria vão até à porta. Estão pálidos por causa da noite sem
dormir, e a luz da aurora os faz ainda mais pálidos. Maria torna a pôr suas
sandálias, vai até os pés da escada e fica escutando. Nesse momento, uma
mulher aparece, faz sinais, depois volta. Por enquanto, nada.
Maria vai a um quarto, e volta com leite quente, que ela dá ao velho‐
para beber, depois vai ver os pombos, e torna a desaparecer naquele
cômodo. Talvez seja a cozinha. Maria anda de um lado para outro e está
atenta a tudo. Parece ter dormido um bom sono, de tão disposta e calma que
está.
Zacarias, passeia nervosamente para baixo e para cima no jardim. Maria
olha para ele com piedade. Depois, ela entra de novo no mesmo cômodo e,
ajoelhada ao lado do tear, reza intensamente, porque o queixume da pobre
sofredora vai-se agravando mais. Maria se inclina até o chão para suplicar
ao Eterno. Zacarias volta a entrar, e, ao vê-la assim prostrada, chora. Maria
se levanta, e o toma pela mão. Ela é muito mais nova do que ele, mas fica
parecendo a mãe daquela pobre velhice desolada, e derrama sobre ele suas
palavras de conforto.
23.8
Estão assim, um junto do outro, ao sol, que vem enchendo de tons
rosados o ar matutino e assim o anúncio jubiloso os alcança:
– Nasceu! Nasceu! É homem! Feliz do pai! É homem: um homem viçoso
como uma rosa, belo como o sol, forte e bom como a mãe. Alegria para ti, ó
pai abençoado pelo Senhor, que te deu um filho, a fim de que o possas
oferecer em seu Templo. Glória a Deus, que concedeu posteridade a esta
casa! Bênção para ti e para o filho que geraste! Possa a sua descendência
perpetuar o teu nome nos séculos dos séculos, por gerações, sempre em
aliança com o Senhor Eterno.
Maria, com lágrimas de alegria, está bendizendo o Senhor. Depois, os
dois recebem o pequeno, levando ao pai para que o abençoe. Zacarias não
vai a Isabel. Recebe o menino, que está gritando desesperadamente, mas não
vai até sua mulher.
Quem vai até lá é Maria, levando com amor o pequenino, o qual de
repente fica calado, logo que ela o toma em seus braços. A parteira, que a
acompanha, observa este fato.
– Mulher –diz ela a Isabel–, teu menino calou-se de repente, quando ela
o pegou. E olha só como ele está dormindo sossegado. E o céu é que sabe
quanto ele é inquieto e forte. Agora, olha! Parece um pombinho!
Maria coloca a criança junto da mãe e a acaricia, alisando-lhe os
cabelos cinzentos.
– A rosa nasceu –diz ela em voz baixa–. E tu estás viva. Zacarias está
feliz.
– Ele já está falando?
– Ainda não. Mas espera no Senhor. Descansa agora. Eu estou ao teu
lado.

Maria diz:
23.9

– Se a minha presença santificou o Batista, não tirou a Isabel a


condenação que deriva de Eva: “Tu darás à luz os filhos com dor”, havia
dito o Eterno.
Somente eu, sem mancha, e que não tinha tido união com homem, é que
fui isenta de dar à luz com dor. A tristeza e a dor são frutos da culpa. Eu, que
era a inculpável, tive que conhecer também a dor e a tristeza, porque eu era a
co-redentora. Mas não conheci a dor, ao dar à luz. Eu não senti essa dor.
Contudo, acredita em mim, minha filha, que nunca houve, nem haverá
dor de parto semelhante à minha dor de mártir, de uma maternidade
espiritual, que se realizou sobre o mais duro leito: o leito da minha cruz, aos
pés do patíbulo de meu Filho, que estava morrendo. Qual a mãe que foi
constrangida a dar à luz desse modo? Qual a mãe que teve de misturar o
tormento sofrido em suas entranhas dilaceradas pelos estertores de seu Filho
moribundo, com o das entranhas que se retorcem, por terem que superar o
horror de ter que dizer: “Eu vos amo. Vinde a mim, que sou vossa mãe”?
Qual a mãe que teve que dizer isso aos assassinos de seu Filho, o Filho
nascido do mais sublime amor que o céu nunca tinha visto antes, do amor de
um Deus por uma virgem, do beijo de Fogo e do abraço de Luz, que se
fizeram carne, tornando o ventre de uma mulher, o Tabernáculo de Deus?
“Quanta dor para ser mãe!” diz Isabel. Uma grande dor, sem dúvida, mas
quase nada, em comparação com a minha dor.
23.10
“Deixa-me pôr as mãos sobre o teu ventre.” Oh! se em vossos
sofrimentos me pedísseis sempre isto!
Eu sou a eterna portadora de Jesus. Ele está no meu ventre, conforme tu
viste[46] no ano passado, que Ele é como uma Hóstia consagrada no
ostensório. Quem vem a mim, O encontra. Quem em mim se apoia, põe-se em
contato com Ele. Quem se dirige a mim, fala com Ele. Eu sou a sua veste.
Ele é a minha alma. Agora Ele está mais unido a mim, do que nos nove
meses em que crescia no meu ventre. O meu Filho está unido à sua mãe.
Acalmam-se todas as dores, florescem todas as esperanças, fluem todas as
graças de quem vem a mim, e pousa sua cabeça sobre o meu ventre.
Eu rezo por vós. Recordai-vos disso. A felicidade de estar no céu, de
viver no raio da luz de Deus, não me deixam esquecer meus filhos
sofredores na terra. Rezo. Todo o céu está rezando. Porque o céu ama. O céu
é caridade viva. A caridade tem piedade de vós. Ainda que fossem só as
minhas orações, já seriam suficientes para as necessidades de quem espera
em Deus. Porque eu não cesso de rezar por todos vós: pelos santos e pelos
maus, para alcançar a alegria para os santos, e o arrependimento que salva
para os malvados.
Vinde, ó filhos de minha dor. Eu vos espero aos pés da cruz para dar-
vos a graça.
[46] tu viste, a 23 de Junho de 1943, em “I quaderni del 1943” (Os cadernos de 1943).
24. Circuncisão de João Batista.
Maria é uma Fonte de Graça para quem acolhe a
Luz.
4 de abril de 1944.
24.1
Vejo a casa em festa. É o dia da circuncisão.
Maria cuida que tudo esteja bonito e em ordem. Os quartos estãos
resplandescentes de luz, e os tecidos mais belos e as decorações mais lindas
esplendem por toda parte. Há muita gente. Maria se move ágil entre os
grupos, toda bela na sua mais bonita veste branca.
Isabel, reverenciada como uma matrona, sente-se feliz em sua festa. O
menino está em seu colo, farto de leite.
24.2
Chega a hora da circuncisão.
– Nós o chamaremos Zacarias. Tu já estás velho. É bom que teu nome
seja dado ao menino –dizem alguns homens.
– Nada disso! –exclama a mãe–. O nome dele é João. Ele vai ter que dar
testemunho, e é isso o que significa o seu nome, dar testemunho do poder de
Deus.
– Mas, quando foi que já houve um João entre os nossos parentes?
– Não importa. Ele deve chamar-se João.
– Que dizes, Zacarias? Queres o teu nome, não é verdade?
Zacarias faz sinal de negação. Depois, pega a tabuinha e escreve: “O
nome dele é João.” E logo que terminou de escrever, acrescenta, mas agora
com a sua língua já solta:
– Visto que Deus me fez tão grande graça, a mim, seu pai, à sua mãe e a
este seu novo servo, que vai consumir toda a sua vida pela glória do Senhor!
Ele vai ser chamado grande através dos séculos e aos olhos de Deus, porque
passará sua vida convertendo corações para o Senhor Altíssimo. O anjo
falou, e eu não acreditei. Mas agora eu creio e em mim se faz a Luz. Ela está
entre nós, e vós não a vedes. A sorte dela será não ser vista, porque os
homens têm um espírito entulhado com outras coisas e pouco interessado
nela. Mas o meu filho a verá, e falará dela, e para ela fará que se voltem os
corações dos justos de Israel. Oh! felizes aqueles que acreditarem nessa Luz,
que acreditarem sempre na Palavra do Senhor. E tu, Bendito e Eterno Senhor,
Deus de Israel, porque visitaste e remiste o teu povo, suscitando-nos um
poderoso Salvador na casa de Davi seu servo. Segundo a promessa feita
pela boca dos santos profetas, desde os tempos antigos, de livrar-nos dos
nossos inimigos e das mãos daqueles que nos odeiam, para pôr em ação a tua
misericórdia para com nossos pais, e lembraste da tua santa aliança. Este é o
juramento que fizeste ao nosso Pai Abraão, de conceder-nos de sermos
livres das mãos dos nossos inimigos, e sem temor Te servirmos com
santidade e justiça em Tua presença, durante toda a vida, e continua até o
fim[47]. (Escrevi só até aqui porque, como se pode ver, Zacarias se dirige
diretamente a Deus).
Os presentes ficam pasmados. Tanto pelo nome, como pelo milagre e
pelas palavras de Zacarias.
Isabel, que, à primeira palavra de Zacarias, deu um grito de alegria,
agora está chorando, abraçada a Maria que, feliz, a acaricia.
24.3
Não vejo a circuncisão. Vejo somente trazerem João de volta, que
grita o mais alto que pode. Nem mesmo o leite da mãe o acalma. Escoiceia
como um potrinho. Mas Maria o pega, o nina, e ele se cala, ficando
bonzinho.
– Olhai! –diz Sara–. Ele não se cala, a não ser quando ela o pega!
As pessoas vão saindo aos poucos. No quarto ficam somente Maria com
o pequenino nos braços e Isabel, toda feliz.
24.4
Zacarias entra, e fecha a porta. Olha para Maria, com lágrimas nos
olhos. Ele quer falar. Mas continua calado. Anda para a frente. Ajoelha-se
diante de Maria.
– Abençoa a este miserável servo do Senhor –diz ele–. Abençoa-o
porque tu o podes fazer, tu que o trazes em teu ventre. A palavra de Deus me
falou, na hora em que eu reconheci o meu erro e acreditei em tudo o que me
havia sido dito. Eu estou vendo a ti e a tua feliz sorte. Em ti eu adoro o Deus
de Jacó. Tu, meu primeiro Templo, onde o sacerdote, que regressa, pode
orar ao Eterno. Bendita és tu, que obtiveste graça para o mundo, doando-lhe
o Salvador. Perdoa o teu servo, se ele não viu a tua majestade. Tu nos
trouxeste todas as graças com a tua vinda, porque por onde passas, ó cheia
de graça, Deus opera os seus prodígios. Santas são as paredes, que te
abrigam, santos se tornam os ouvidos que ouvem a tua voz, e santas as carnes
por ti tocadas. Santos os corações aos quais concedes graças, ó mãe do
Altíssimo, ó virgem profetizada e esperada para dar ao povo de Deus o
Salvador.
24.5
Maria sorri, cheia de humildade. E fala:
– Louvor ao Senhor. Somente a Ele. Dele, e não de mim é que procede
toda graça. E Ele te dá essa graça, porque tu o amas. Continua no caminho da
perfeição, nos anos que ainda te restam, para mereceres o Seu Reino, que o
meu Filho abrirá para os patriarcas, para os profetas e para os justos do
Senhor. E tu, agora que podes orar diante do Santo, reza por esta serva do
Altíssimo. Porque ser mãe do Filho de Deus é uma feliz sorte. Ser mãe do
Redentor deve ser partilhar de uma dor atroz. Reza por mim que, a cada hora
que passa, sinto crescer o peso da minha dor. Durante toda a minha vida,
deverei levar comigo esse peso. Ainda que eu não veja os pormenores deste
peso, sinto que será bem maior, do que se fosse posto o mundo sobre estes
meus pobres ombros de mulher, e eu tivesse que oferecê-lo ao céu. Eu,
sozinha, pobre mulher! O meu Menino! O meu Filho! Ah! Agora o teu não
está chorando, porque o estou ninando. Mas, poderei eu ninar o meu para
acalmar sua dor?… Reza por mim, sacerdote de Deus. O meu coração está
tremendo como uma flor exposta à ventania. Eu olho para os homens, e os
amo. Mas vejo, atrás dos seus rostos aparecer o inimigo, fazendo deles
inimigos de Deus e de Jesus, o meu Filho…
A visão termina com a palidez de Maria e com suas lágrimas, que fazem
ficar brilhante o seu olhar.

24.6
Maria diz:
– Deus perdoa a quem reconhece a sua culpa, se arrependendo e se
acusando dela com humildade e coração sincero. E, não somente perdoa,
mas ainda dá uma compensação. Oh! Como o meu Senhor é bom para com
quem é humilde e sincero, com quem Nele crê e confia.
24.7
Desembaraçai o vosso espírito de tudo quanto o entulha e torna
preguiçoso. Tornai-o bem disposto para acolher a Luz; Ela é como um farol
nas trevas, um guia e conforto santo.
Oh, amizade com Deus, felicidade dos seus fiéis, riqueza que nenhuma
outra coisa iguala, quem te possui, nunca mais estará sozinho, nem sentirá o
amargor do desespero. Não eliminas a dor, ó santa amizade, porque esta foi
a sorte do Deus encarnado, e pode também ser a sorte do homem. Mas fazes
com que esta dor fique doce, apesar de amarga, e misturas a ela uma luz e
uma carícia que aliviam o peso da cruz, com um toque celeste.
Quando a Bondade Divina vos der uma graça, usai desse bem recebido
para dar glória a Deus. Não sejais como loucos que, de um objeto bom
fazem uma arma nociva, ou como pródigos que transformam sua riqueza em
miséria.
24.8
Muita dor me causais, ó filhos, pois atrás de vossos rostos, vejo
aparecer o inimigo, que se lança contra o meu Jesus. Muito sofrimento! Eu
queria ser para todos a nascente da graça. Mas muitos entre vós não querem
a graça. Pedis graças, mas, com o espírito que se privou da graça. Como a
graça pode socorrer-vos, se sois inimigos dela?
24.9
O grande mistério de Sexta-Feira Santa se aproxima[48]. Nos templos
tudo faz lembrar e celebra isto. Mas, é preciso recordá-lo e celebrá-lo nos
vossos corações, e bater no peito, como aqueles que desciam do gólgota,
dizendo: “Este é realmente o Filho de Deus, o Salvador” ou “Jesus, pelo teu
Nome, salva-nos” ou “Ó Pai, perdoa-nos.” E dizer finalmente: “Senhor, eu
não sou digno. Mas, se Tu me perdoas, vens a mim e minha alma ficará
curada.Eu não quero mais pecar, para não ficar doente e com ódio de Ti.”
Rezai, meus filhos, com as palavras do meu Filho. Rezai assim ao Pai
pelos vossos inimigos: “Pai, perdoa-lhes.” Chamai o Pai, que se retirou,
desprezado pelos vossos erros: “Pai, por que me abandonaste? Eu sou
pecador. Mas, se Tu me abandonas, perecerei. Volta, Pai Santo, para que eu
me salve.” Confia no Único que pode conservar o vosso espírito, vosso
eterno bem, ileso do demônio: “Pai, em vossas mãos entrego o meu
espírito.” Oh! Se entregais o vosso espírito a Deus humilde e amorosamente,
Ele vo-lo conduzirá como um pai conduz o seu filho pequenino, e não
permitirá que nada vos faça mal.
Jesus, em suas agonias, rezou para ensinar-vos a rezar. Eu vos faço
lembrar isso nestes dias da Paixão.
24.10
E tu, Maria, tu que estás vendo a minha alegria de mãe, e te extasias
com ela, lembra-te que eu possuí Deus, através de uma dor sempre
crescente. Esta dor desceu sobre mim com o embrião de Deus e, como uma
árvore gigantesca, cresceu até tocar o céu com o vértice, e o inferno com as
raízes, ao receber os despojos exânimes da carne da minha carne em meu
regaço, podendo eu ver nela e contar as feridas, tocando em Seu coração
rasgado, por consumar a dor até a última gota.
[47] até o fim, do cântico, referido em: Lucas 1,67-79.
[48] se aproxima, p ois que, como anota M aria Valtorta numa cóp ia dactilografada, Maria Ss ditava essas palavras na Quarta
Feira Santa.
25. Apresentação de João Batista no Templo
e partida de Maria. O Sofrimento de José.
5-6 de abril de 1944.
25.1
Na noite entre quarta e quinta-feira da Semana Santa, eis o que estou
vendo.
De um carro cômodo ao qual está amarrado também o burrinho de
Maria, vejo descer Zacarias, Isabel e Maria, que tem nos braços o pequeno
João, e Samuel com um cordeiro e uma pomba numa cesta. Eles descem na
frente da estalagem, da qual costumam servir-se, e que deve ser a etapa final
para todos os peregrinos que vão ao Templo, pois é onde deixam os animais.
Maria chama o homenzinho, que é o dono da estalagem, e lhe pergunta se
no dia de ontem, ou nas primeiras horas da manhã de hoje, não terá chegado
nenhum nazareno.
– Nenhum, mulher –respondeu o velhinho.
Maria fica admirada, mas não pergunta mais nada.
Ela manda que Samuel vá cuidar do burrinho, depois vai se encontrar
com os dois pais da criança, e lhes fala do atraso de José:
– Ele terá precisado ocupar-se com alguma coisa. Mas hoje certamente
virá.
Maria retoma o menino, que havia entregue a Isabel, e se dirigem para o
Templo.
25.2
Zacarias é recebido com grandes honras pelos guardas, saudado e
cumprimentado pelos outros sacerdotes. Zacarias está muito bonito hoje, em
suas vestes sacerdotais e em sua alegria de pai feliz. Parece um patriarca.
Penso que Abraão devia estar assim, quando se alegrou, ao oferecer Isaque
ao Senhor.
Vejo a cerimônia da apresentação do novo israelita e a da purificação da
mãe. Esta é ainda mais pomposa do que a de Maria, porque para o filho de
um sacerdote, os sacerdotes fazem festa. Acorrem todos, e se entregam a uma
grande atividade ao redor do grupo das mulheres e do recém-nascido.
Também o povo se aproximou com curiosidade, e estou podendo ouvir
os comentários. Visto que Maria está com o menino nos braços, enquanto
vão-se dirigindo para o lugar estabelecido, o povo está pensando ser ela a
mãe.
Mas uma mulher diz:
– Não pode ser. Não estais vendo que ela está grávida? O menino tem
apenas poucos dias de nascido, e ela já está grávida?!
– Contudo –diz um outro–. Ela não pode deixar de ser a mãe. Pois a
outra já está velha. A outra, pode ser uma parenta. Mas, naquela idade, mãe
é que ela não pode ser.
– Vamos atrás delas, e veremos quem tem razão.
E o espanto se torna geral, quando todos podem ver que quem está
cumprindo o rito da purificação é Isabel, pois ela é que está oferecendo o
cordeirinho berrador para o holocausto, e o pombo pelo pecado.
– A mãe é aquela? Viste?
– Não!
– Sim.
O povo está cochichando, ainda incrédulo. Mas está cochichando tão
alto, que vem um “Psiu” imperioso do grupo sacerdotal, que está presente à
cerimônia. As pessoas se calam por um momento, mas recomeçam a
cochichar mais forte, quando Isabel, radiante de santo orgulho, pega o
menino, e avança pelo Templo a dentro, para fazer a apresentação dele ao
Senhor.
– É ela mesmo.
– É sempre a mãe que oferece.
– Mas, que milagre é este?
– Que menino será esse, concedido por Deus àquela mulher, numa idade
tão tardia?
– Afinal, que sinal será este?
– Não sabeis? –diz alguém que chega todo ofegante–. É o filho do
sacerdote Zacarias, da estirpe de Arão, aquele que ficou mudo, enquanto
estava oferecendo o incenso no Santuário.
– Mistério! Mistério! Pois agora ele está falando de novo. O nascimento
do filho soltou a língua dele!
– Que espírito lhe terá falado, tornado morta a sua língua, para fazê-lo
acostumar-se ao silêncio sobre os segredos de Deus?
– Mistério! Qual verdade conhecerá Zacarias?
– Seria o Messias o filho dele, esperado por Israel?
– Ele nasceu na Judéia. Mas não em Belém, e não de uma virgem. O
Messias ele não pode ser.
– Quem, então?
Mas a resposta a tantas perguntas continua a ficar no silêncio de Deus,
enquanto o povo permanece na sua curiosidade.
O cerimonial terminou. Os sacerdotes festejam então a mãe e o menino.
A única pouco observada, e até evitada com aversão[49], desde quando
perceberam o seu estado, é Maria.
25.3
Acabadas todas as felicitações, quase todos vão voltando ao seu
caminho, ao passo que Maria quer voltar à estalagem, para ver se José
chegou. Ele não chegou ainda. Maria se sente desiludida, e fica pensativa.
Isabel está preocupada por ela:
– Até a hora sexta, poderemos ficar, mas depois precisamos partir, para
chegarmos em casa antes da primeira vigília. O menino está ainda muito
pequeno para estar fora de casa pela noite a dentro.
E Maria, calma e triste:
– Eu vou ficar num dos pátios do Templo. Vou procurar minhas
mestras… Não sei. Mas alguma coisa preciso fazer.
Zacarias intervém com uma idéia, que foi logo aceita:
– Vamos aos parentes de Zebedeu. José certamente vai te procurar lá, e,
ainda que ele não esteja, será fácil para ti encontrar alguém que te
acompanhe a caminho da Galiléia, porque aquela casa é um contínuo entra e
sai dos pescadores de Genezaré.
Pegam, pois o burrinho, e vão à casa dos parentes de Zebedeu, os quais,
são aqueles mesmos com quem José e Maria ficaram, há quatro meses.
As horas passam velozes, e José não aparece. Maria procura dominar
sua aflição ninando o pequeno, mas pode-se ver que continua pensativa.
Como que para esconder o seu estado, ela não tirou o manto, ainda que o
calor esteja intenso e fazendo suar a todos.
25.4
Finalmente, uma grande batida na porta anuncia a chegada de José. O
rosto de Maria se torna sereno de novo.
José a saúda, pois ela é a primeira a apresentar-se e a saudá-lo com
reverência:
– A bênção de Deus sobre ti, Maria!
– E sobre ti, José. Graças a Deus, que vieste! Eis Zacarias e Isabel que
estavam para partir, pois queriam chegar em casa antes da noite.
– O teu mensageiro chegou a Nazaré, enquanto eu estava em Caná,
fazendo uns trabalhos. Anteontem à tarde, é que recebi a notícia. E, então, eu
parti logo. Mas, mesmo caminhando sem parar, cheguei tarde, porque no
caminho o burrinho perdeu uma ferradura. Perdoa-me.
– Perdoa-me, tu, por ter ficado tanto tempo afastada de Nazaré. Mas,
estavam tão felizes de ter-me com eles, que eu quis contentá-los até agora.
– Fizeste bem, mulher. Onde está o menino?
Entram no quarto onde Isabel está dando de mamar a João, antes de
partirem. José cumprimenta os pais pela robustez do menino que, tendo sido
tirado do peito para ser mostrado a José, grita e esperneia, como se lhe
estivessem tirando a pele. Todos riem, diante dos seus protestos. Também os
parentes de Zebedeu, riem e se unem na conversação com os outros,pois eles
tinham chegado trazendo frutas frescas, leite e pão para todos e um grande
tabuleiro com peixes.
25.5
Maria fala muito pouco. Está quieta, silenciosa, sentada em seu
cantinho com as mãos no colo e por debaixo do manto. E, mesmo quando ela
toma uma taça de leite, ou ao comer um cacho de uvas com um pouco de pão,
fala pouco e pouco se move. Olha para José, com um misto de pena e de
curiosidade.
Ele também olha para ela. E, depois de algum tempo, inclinando-se
sobre o ombro dela, lhe pergunta:
– Estás cansada ou sentindo alguma coisa? Estás pálida e triste.
– Estou triste por ter que separar-me do pequeno João. Gosto dele. Eu o
tive sobre o meu coração, poucos momentos depois que nasceu…
José não pergunta mais nada.
Chegou a hora da partida de Zacarias. O carro pára à porta, e todos se
dirigem para ele. As duas primas se abraçam com amor. Maria beija duas
vezes o pequeno, antes de colocá-lo no colo da mãe, que já está sentada no
carro. Depois, saúda Zacarias, e lhe pede a bênção. Ao ajoelhar-se diante do
sacerdote, o manto se lhe desliza pelo ombro, e suas formas se tornam
visíveis, à luz intensa daquela tarde de verão. Não sei se José notou alguma
coisa naquele momento, atento como ele está em saudar Isabel. O carro
parte.
25.6
José torna a entrar em casa com Maria, que vai de novo sentar-se no
canto mais escuro.
– Se não te desagrada viajar de noite, eu proporia que partíssemos ao
pôr-do-sol. De dia o calor está forte. Mas a noite está fresca e sossegada. Eu
digo isto por ti, para não fazer-te tomar muito sol. Para mim estar exposto ao
sol é o mesmo que nada. Mas para ti…
– Como quiseres, José. Eu também acho que é bom irmos de noite.
– A casa está em pefeita ordem. E também o pequeno pomar. Verás que
belas estão as flores. Vais chegar a tempo de vê-las todas se abrindo. A
macieira, a figueira e a videira estão carregadas de frutos como nunca, e a
romãzeira, precisei até escorá-la, de tanto que os ramos estavam carregados
de frutos, já tão maduros, coisa que nunca se viu a esta altura do ano.
Depois, a oliveira… Terás azeite com fartura. Houve uma florada milagrosa,
e não se perdeu uma só flor. Todas já se tornaram pequenas azeitonas.
Quando estiverem maduras, a oliveira vai ficar parecendo cheia de pérolas
escuras. Não há pomar mais bonito do que o teu em toda Nazaré. Até nossos
parentes estão admirados. Alfeu diz que isso é um prodígio.
– Teus cuidados é que fizeram isso.
– Oh! Não. Pobre de mim. Que é que devo ter feito? Um pouco de
cuidado com as plantas, e um pouco de água nas flores… Sabes de uma
coisa? Fiz para ti uma fonte lá no fundo, perto da gruta, e construí um tanque.
Assim, não precisarás sair para ir buscar água. Conduzi a água lá daquela
nascente que está acima do olival do Matias. É uma nascente de água pura e
abundante. Eu trouxe até perto de ti um pequeno rio. Fiz também um reguinho
bem coberto, e agora a água chega no fim dele, cantando como uma harpa. Eu
ficava com dó de ti, ao ver-te ir à fonte da cidade e voltar carregando baldes
cheios d’água.
– Obrigada, José. Tu és bom.
Os dois esposos se calam agora, como se estivessem cansados. José está
cochilando. Maria está rezando.
25.7
Chega a tarde. Os hospedeiros insistem com os dois para que comam,
antes de se porem a caminho. José, então, come pão e peixe. Maria, só frutas
e leite.
Depois, eles partem. Montam em seu burrinhos. José amarrou sobre o
seu, como na vinda, o baú de Maria, e, antes que ela monte no burrinho,
verifica se a sela está bem segura. Vejo que José fica observando Maria,
quando ela monta. Mas ele não diz nada.
E a viagem se inicia, quando as primeiras estrelas começam a tremeluzir
no céu. Eles se apressam para chegarem às portas, antes que sejam fechadas.
Ao saírem de Jerusalém, tomam a estrada mestra, que vai para a Galiléia,
quando as estrelas já enchem todo o céu sereno. Há um grande silêncio pelo
campo. Ouve-se apenas o canto de algum rouxinol e o barulho dos cascos
dos dois burrinhos, que vão batendo no solo duro da estrada, ressecada pelo
calor do verão.
25.8
Maria diz:
– Estamos na vigília de Quinta-Feira Santa. A alguns parecerá fora de
propósito esta visão. Mas a tua dor de amante do meu Jesus Crucificado está
em teu coração, e aí fica, mesmo quando uma doce visão se apresenta. Esta é
como o pequeno calor que nasce de uma chama, que ainda é fogo, mas que já
não é mais fogo. O fogo é a chama. Mas não é o calor dela, pois este não é
mais do que uma derivação. Nenhuma visão beatífica ou pacífica será capaz
de tirar-te aquela dor do coração. E considera-a muito mais querida do que a
tua própria vida. Porque é o maior dos dons que Deus possa conceder a
quem crê em seu Filho. Além disso, a minha visão não é, em sua forma
pacífica, em nada discordante dos acontecimentos desta semana.
25.9
Também o meu José teve a sua Paixão. Ela começou em Jerusalém,
quando ele percebeu o meu estado. Durou muitos dias, como aconteceu com
Jesus e comigo. E não foi espiritualmente pouco dolorosa. Mas unicamente
pela santidade de um justo, como era o meu esposo, é que ela ficou limitada
a uma forma tão cheia de dignidade e de segredo, que ficou pouco
conhecida, através dos séculos.
Oh! a nossa primeira paixão! Quem poderá falar da íntima e silenciosa
intensidade dela? Quem saberá dizer qual a minha dor, ao ver que o céu
ainda não me havia atendido em revelar o mistério a José?
Que ele ainda nada sabia, eu já tinha compreendido, ao vê-lo respeitoso
comigo, como de costume. Se ele tivesse sabido que eu trazia em mim o
Verbo de Deus, ele teria adorado o Verbo encerrado em meu ventre, com os
atos de veneração que são devidos a Deus, e que ele não teria deixado de
praticar, como eu também não me teria recusado a receber, não por causa de
mim, mas por Aquele que estava em mim, que eu em mim trazia, assim como
a Arca da aliança continha o código escrito na pedra e os vasos de maná.
Quem pode dizer qual foi a minha luta contra o desânimo, que queria me
vencer, para me persuadir de que eu havia esperado em vão no Senhor? Oh!
Eu creio, que isso vinha da raiva de satanás! Eu senti a dúvida que crescia
em meus ombros, e que espichava suas garras geladas para aprisionar minha
alma e fazê-la deixar de orar. A dúvida, que é tão perigosa e letal para o
espírito. Letal, porque ela é o primeiro agente da doença mortal chamada
“desespero”, e contra a qual é preciso reagir com toda a força para não
perecer na alma e perder Deus.
Quem pode dizer com toda a verdade qual a dor de José, quais os seus
pensamentos, qual a perturbação que ele sentiu em seus afetos? Como um
pequeno barco apanhado por uma grande tempestade, ele se achava num
encontro entre idéias opostas, como em uma dança ao redor de reflexões,
cada uma mais pungente e mais capaz de fazer sofrer do que a outra. Ele era
um homem que, pelas aparências, só podia ter sido traído por sua mulher.
Por isso, ele via desmoronar, ao mesmo tempo, o seu bom nome e a estima
em que ele era tido naquele lugar. Por causa disso, ele se sentia apontado a
dedo e alvo de compaixão pelos habitantes da cidade, via morrerem o afeto
e a estima de que até então eu vinha gozando, diante da evidência de um fato.
25.10
É aqui que a santidade dele resplende ainda mais brilhante do que a
minha. Eu dou testemunho disso com todo o meu afeto de esposa, porque
quero que ameis o meu José, este homem sábio e prudente, este homem
paciente e bom, que não está separado do mistério da Redenção, mas muito
unido a ele, pois, por essa dor que o consumou, ele salvou para vós o
Salvador, às custas de seu sacrifício e de sua santidade.
Tivesse ele sido menos santo, teria agido como os homens: me teria
denunciado como adúltera, para que eu fosse apedrejada, e o filho do meu
pecado morresse comigo. Tivesse ele sido menos santo, Deus não lhe teria
concedido a sua luz em tão grande provação. Mas José era santo. Seu
espírito puro vivia em Deus. A caridade nele era acesa e forte. Foi pela
caridade que ele salvou para vós o Salvador, tanto quanto ele não quis me
acusar diante dos anciãos, como também quando, deixando tudo, com uma
pronta obediência, salvou Jesus, levando-o consigo para o Egito.
25.11
Breves em número, mas grandes em intensidade, foram aqueles três
dias do sofrimento de José. E deste meu primeiro sofrimento. Porque eu
compreendia o sofrimento dele, mas não podia aliviá-lo de modo algum, por
causa da obediência ao decreto de Deus, que me havia dito: “Cala-te!”
Quando, tendo chegado a Nazaré, eu o vi sair, depois de uma curta
saudação, todo curvo e como se tivesse envelhecido em pouco tempo, e não
voltar mais a mim, como era de costume, vos digo, filhos, que o meu coração
chorou com uma dor grande e aguda. Fechada em minha casa, só, naquela
casa em que tudo me fazia recordar a Anunciação e a Encarnação, e onde
tudo me falava de José, desposado por mim em uma virgindade imaculada,
eu tive que resistir ao desconforto, às insinuações de satanás, e ficar
esperando. Orando, perdoar a suspeita de José, e ao seu gesto de justo
desdém para comigo.
Filhos, é preciso esperar, rezar, perdoar, para se obter que Deus
intervenha em nosso favor. Vivei, vós também, o vosso sofrimento. Ele é
devido às vossas culpas. Eu vos ensino como superá-lo e transformá-lo em
alegria. Esperar, além de toda medida. Rezar sem desconfiança, perdoar,
para serdes perdoados. O perdão de Deus será a paz que desejais, meus
filhos.
25.12
Nada mais, por enquanto, vos direi. Enquanto não chega o triunfo
pascoal, haverá silêncio. São estes os dias da Paixão. Tende compaixão do
vosso Redentor. Ouvi seus lamentos. Contai suas feridas e lágrimas. Cada
uma delas veio por causa de vós, e foi por vós sofrida. Que qualquer outra
visão desapareça, diante desta que vos recorda a Redenção, cumprida por
vós.
[49] com aversão, enquanto a mulher grávida era imunda segundo a lei, que p rescrevia a p urificação p ara a p arturiente e a
circuncisão p ara o filho macho: Génesis 17,9-14; Levítico 12. O p rimogénito macho era consagrado ao Senhor e dep ois
resgatado, como p rescrito em: Êxodo 13,1-2.11/16; 34,19-20; Números 3,13; 18,15-16. Para a mulher são contemp ladas outras
imp urezas em: Levítico 15,18-30, ao qual se referirá, p or exemp lo, em 230.3 e 262.8. Além dos casos esp ecíficos p revistos na
lei (sobretudo em matéria de matrimónio e de divórcio) a mulher geralmente sup ortava certos tratamentos discriminatórios p or
tradição rabínica, como se realça, em nota, em 316.5.
26. José pede perdão a Maria.
Fé, caridade e humildade para receber a Deus.
31 de maio de 1944.
26.1
Depois de cinqüenta e três dias, a mãe vem mostrar-se com esta visão,
e manda que eu faça constar neste livro. A alegria se renova em mim. Porque
ver Maria é possuir a alegria.
26.2
Vejo, então, o pequeno pomar de Nazaré. Maria está fiando à sombra
de uma macieira, toda carregada de frutos, que já começam a avermelhar-se
e se parecem com bochechinhas de menino por seu formato arredondado e
por um belo cor-de-rosa.
Maria, porém, não é sem motivo que não está com seu rosto rosado,
como antes. Aquela bela cor, que lhe avivava as faces lá em Hebron,
desapareceu. Seu rosto está de uma palidez de marfim, e nele somente os
lábios ainda assinalam uma curva com um leve tom de coral. Sob as
pálpebras abaixadas, vejo duas sombras escuras, e os cantos dos olhos estão
inchados, como os de quem acabou de chorar. Não posso ver os olhos,
porque ela está com a cabeça um tanto inclinada, atenta ao trabalho, e mais
ainda, a um pensamento que a deve estar afligindo, pois ouço os seus
suspiros, como os de alguém que sofre no coração.
Está toda vestida de branco, de linho branco, porque está fazendo muito
calor, não obstante o frescor ainda intacto das flores nos estar dizendo que
ainda é de manhã. Maria está com a cabeça descoberta, e o sol, que brinca
com as folhas da macieira movidas por um vento muito suave, se filtra em
agulhas de luz, que vão pousar sobre a terra escura dos canteiros, formando
pequenos círculos de luz sobre sua cabeça loira, fazendo os seus cabelos
ficarem parecendo fios de ouro antigo.
Da casa não vem nenhum barulho, nem dos lugares vizinhos. Ouve-se
apenas o murmúrio de um fio d’água que cai dentro de um tanque, lá no
fundo do pomar.
26.3
Maria leva um susto, ao ouvir uma batida forte na porta de saída da
casa. Ela deixa ali mesmo a roca e o fuso, e se levanta para ir abrir. Ainda
que sua roupa seja solta e ampla, não consegue esconder completamente a
redondez de seu ventre.
Ei-la, agora, diante de José. Maria empalidece, até nos lábios. Agora
seu rosto está parecendo o de uma vítima exangue. Maria olha com uns olhos
como os de quem interroga tristemente. José olha para ela com uns olhos que
parecem suplicantes. Eles se calam, olhando um para o outro. Depois, Maria
abre a boca:
– A esta hora, José? Estás precisando de alguma coisa? Que me queres
dizer? Vem.
José entra, e fecha a porta. Mas não fala nada.
– Fala, José. Que queres de mim?
– Quero o teu perdão.
José se inclina, como se quisesse ajoelhar-se. Mas Maria, sempre tão
reservada em tocar nele, agora o agarra pelos ombros decididamente, e o
impede de ajoelhar-se.
A cor vai e volta ao rosto de Maria, que ora está corada, ora branca
como antes:
– O meu perdão? Não tenho nada que te perdoar, José. Só tenho que te
agradecer, mais uma vez, por tudo o que fizeste aqui dentro na minha
ausência, e pelo amor que me tens.
José olha para ela, e vejo duas grandes gotas que se formam nas
cavidades de seus olhos profundos, e ali estão como sobre a borda de um
vaso prontas para, logo em seguida, rolarem por sobre as faces e a barba de
José.
– Perdão, Maria. Eu desconfiei de ti. Agora eu sei. Sou indigno de
possuir tão grande tesouro. Faltei-te com a caridade, e te acusei em meu
coração. Acusei-te injustamente, porque não te perguntei antes a verdade.
Faltei contra a lei de Deus, não te amando como me amaria…
– Oh! não! Não faltaste!
– Sim, faltei, Maria! Se eu tivesse sido acusado de um tal delito, eu teria
me defendido. Tu… Eu não te estava concedendo o direito de te defenderes,
porque eu já estava até tomando decisões, sem te perguntar nada. Faltei para
contigo, ofendendo-te com minha suspeita. Ora, até mesmo a suspeita já é
uma ofensa, Maria. Porque quem suspeita, não conhece. E eu não te
conhecia, como devia. Mas, pela dor que eu sofri… três dias de suplício,
perdoa-me, Maria!
– Não tenho nada que te perdoar. Pelo contrário, eu é que te peço perdão
pela dor que te causei.
– Oh! Sim. Foi uma grande dor. Que dor! Olha, hoje de manhã me
disseram que sobre as têmporas meus cabelos já estão brancos e que no
rosto já estou com rugas. Estes três dias pareceram-me mais de dez anos!
Mas, por que, Maria, foste tão humilde, a ponto de calares tua glória até
26.4

diante de mim, teu esposo, e deixares assim que eu suspeitasse de ti?


José não está de joelhos, mas está tão inclinado, como se estivesse de
joelhos, e Maria, então lhe pousa a mão sobre a cabeça, e sorri. Parece o
estar absolvendo. Ela diz:
– Se eu não tivesse sido humilde de uma maneira perfeita, não teria
merecido conceber o Esperado, que vem para anular a culpa de soberba, que
arruinou o homem. Além disso, eu obedeci… Deus me pediu essa
obediência. Ela me custou tanto… por causa de ti, pela dor que dela te
adviria. Mas eu só tinha que obedecer. Eu sou a serva de Deus, e os servos
não discutem as ordens que recebem. Eles vão executá-las, José, ainda
quando os fazem chorar sangue.
Maria chora silenciosamente, enquanto vai dizendo estas palavras. E,
tão silenciosamente, que José, inclinado como está, nem percebe isso, até
que uma lágrima sua caiu no chão. Então, ele levanta a cabeça e (é a
primeira vez que o vejo fazer isso) aperta as mãozinhas de Maria com suas
mãos morenas e fortes, beija as pontas daqueles dedos rosados e tão
delicados, que despontam como botões de pessegueiro, do anel formado
pelo aperto das mãos de José.
26.5
– Agora é preciso tomar providências para que…
José não diz mais nada, mas olha para o corpo de Maria, e ela fica
ruborizada, e de repente se assenta, para não ficar assim exposta àquele
olhar que a está observando.
– Será preciso agirmos logo. Eu virei aqui. Realizaremos o casamento…
Na semana que vem. Está bem assim?
– Tudo o que fazes está bem, José. Tu és o chefe da casa, e eu sou tua
serva.
– Não. Eu sou o teu servo. Eu sou o feliz servo do meu Senhor, que está
crescendo em teu ventre. Tu és bendita entre todas as mulheres de Israel.
Esta tarde já avisarei os parentes. E depois… quando eu estiver aqui, iremos
preparando tudo para receber… Oh! como poderei eu receber a Deus em
minha casa? A Deus em meus braços? Isso me fará morrer de alegria. Eu
nunca poderei ousar nem tocar nele!…
– Tu bem que o poderás, José, como eu o poderei pela graça de Deus.
– Mas tu és tu. Eu sou um pobre homem, o mais pobre dos filhos de
Deus!…
– Jesus vem ao mundo por nós, que somos os pobres, para fazer-nos
ricos em Deus, Ele vem a nós dois, porque somos os mais pobres e
reconhecemos que o somos. Alegra-te, José. A estirpe de Davi já tem o Rei
que esperava, e a nossa casa se tornou mais faustosa do que o palácio de
Salomão, porque aqui será o céu e nós dividiremos com Deus o segredo de
paz que mais tarde os homens saberão. Crescerá entre nós, e os nossos
braços serão o berço do Redentor, que irá crescendo, e as nossas fadigas
dar-lhe-ão um pão… Oh! José! Ouviremos a voz de Deus, a chamar-nos de
“pai” e de “mãe”! Oh!…
E Maria chora de alegria. Um choro de felicidade! Enquanto isso, José,
ajoelhado agora aos pés dela, chora, com a cabeça quase escondida na
ampla veste de Maria, que desce, em muitas dobras, por sobre os simples
ladrilhos do pavimento do pequeno quarto.
A visão termina aqui.

26.6
Maria diz:
– Ninguém interprete de modo errado a minha palidez. Ela não era
causada por nenhum medo humano. Conforme o modo de tratar dos homens,
eu deveria ter de esperar o apedrejamento. Mas eu não tinha medo disso. Eu
sofria por causa de José. Também o pensamento de que ele podia me acusar,
não me perturbava por mim mesma. A única coisa que me desagradava era
que ele pudesse, se insistisse na acusação, faltar com a caridade. Quando o
vi, o sangue me foi todo ao coração, por causa disso. Era aquele um
momento em que um justo poderia ter ofendido a justiça, ofendendo a
caridade. E, que um justo cometesse uma falta, logo este que não cometia
faltas, isso me teria causado uma dor muito grande.
26.7
Se eu não tivesse sido humilde até o extremo limite, como eu disse a
José, não teria merecido trazer em mim Aquele que, para cancelar a soberba
da raça, sendo Deus, Se aniquilava até à humilhação de fazer-se homem.
26.8
Eu te mostrei esta cena, que nenhum Evangelho relata, porque eu quero
de novo chamar a atenção tão desviada dos homens sobre as condições
essenciais para agradar a Deus e recebê-lo em sua contínua vinda aos
corações.
Fé. José acreditou cegamente nas palavras do mensageiro celeste[50].
Ele não desejava outra coisa, senão crer, porque tinha a convicção sincera
de que Deus é bom e de que a ele, que havia esperado no Senhor, o Senhor
não lhe teria reservado a dor de ser um traído, um decepcionado, alguém que
fosse feito objeto de zombaria pelo próximo. Com grande dor ele não
perguntava em que devia crer a meu respeito, porque, honesto como era, não
era capaz nem de pensar que outras pessoas não fossem assim. Ele vivia a
Lei, e a Lei diz: “Ama a teu próximo como a ti mesmo.” Nós amamos a nós
mesmos tanto, que nos cremos perfeitos, até quando não o somos. Por que,
então, desamar o próximo, julgando-o imperfeito?
Caridade absoluta. Caridade que sabe perdoar, que quer perdoar.
Perdoar com antecipação, desculpando em nosso coração as fraquezas do
próximo. Perdoar na hora, dando ao culpado todas as atenuantes.
Humildade absoluta como a caridade. Saber reconhecer que se faltou,
até mesmo com um simples pensamento, e não se ter o orgulho, mais nocivo
ainda, de não querer dizer: “Eu errei”, a respeito da culpa precedente. Todos
erram, menos Deus. Quem é que pode dizer: “Eu não erro nunca”? E há
ainda uma humildade mais difícil: é a que sabe se calar a respeito das
maravilhas de Deus em nós, quando não é necessário proclamá-las, para
dar-lhe louvores por elas, a fim de não aviltar o nosso próximo, que não
recebeu tais dons especiais de Deus. Quando Deus quer, então sim. Então
Ele se revela a Si mesmo em seu servo. Isabel me “viu” como eu era e meu
esposo me conheceu pelo que eu era, quando chegou a hora de ele conhecer
isso por si mesmo.
26.9
Deixai ao Senhor o cuidado de proclamar-vos servos Seus. Ele tem
uma amorosa pressa disso, porque toda criatura que é elevada a alguma
missão particular é uma nova glória acrescentada à sua infinita, porque é um
testemunho de quanto o homem é assim como Deus o queria: uma perfeição
menor que espelha o seu Autor. Permanecei na sombra e no silêncio, ó
prediletos da graça, para poderdes ouvir as únicas palavras que são de
“vida”, e para poderdes merecer o Sol que resplende eternamente sobre vós
e em vós.
Oh! Luz felicíssima, que és Deus, que és a alegria dos teus servos, brilha
sobre estes teus servos, e que então eles exultem em sua humildade,
louvando-Te e a Ti somente, que arruínas os soberbos, e elevas os humildes,
que te amam, até os esplendores do teu Reino.
[50] palavras do mensageiro celeste, que se lêm em: Mateus 1,20-21.
27. O edito do censo. Ensinamento
sobre o amor ao esposo e sobre a confiança em
Deus.
4 de junho de 1944.
27.1
Vejo ainda a casa de Nazaré e o pequeno quarto onde habitualmente
Maria toma as suas refeições. Agora ela está trabalhando em uma tela
branca. Pára seu trabalho para acender um candeeiro, porque a tarde vem
chegando, e ela não está mais enxergando bem, com essa luz esverdeada que
está entrando pela porta semi-aberta, do lado do pomar. Maria também fecha
a porta.
Vejo como já está volumosa de corpo. Mas ainda muito bonita. Seu
passo é sempre ligeiro, e gentis são todos os seus gestos. Não há nada
daquele peso próprio da mulher, que está perto de dar à luz. Só no rosto é
que ela está mudada. Agora é “a mulher.” Antes, no tempo da Anunciação,
era uma jovenzinha de rosto sereno e inocente: um rosto inocente de criança.
Depois, na casa de Isabel, no momento do nascimento do Batista, seu rosto
já se apresentava com uma graça mais madura. Agora é um rosto sereno, mas
docemente majestoso, da mulher que atingiu sua plena perfeição na
maternidade.
Não faz lembrar mais a sua querida “Annunziata” de Florença, pai.
Quando eu era pequena, a reconhecia ali.
Agora, o rosto está mais longo e magro, e os olhos mais pensativos e
maiores. Em suma, é como Maria hoje no Céu. Porque ela retomou o aspecto
e a idade do momento em que nasceu o Salvador.
A sua eterna juventude, a qual não só não conheceu a corrupção mortal,
mas nem mesmo murchou com o passar dos anos. O tempo não teve ação
sobre ela, a nossa rainha e mãe do Senhor, que criou o tempo. Nos tormentos
da Paixão (tormentos que começaram para ela muito antes, pois eu diria que
começaram desde o início da evangelização de Jesus) ela apareceu
envelhecida, mas esse envelhecimento era como um véu colocado pela dor
sobre a sua incorruptível pessoa. De fato, desde o momento em que
reencontra Jesus ressuscitado, ela se torna novamente a criatura cheia de
vida e perfeita, que era antes da Paixão, como se tendo beijado as
Santíssimas Chagas, tivesse bebido nelas um elixir de juventude, que anulou
a ação do tempo e, mais ainda do que isto, anulou a ação da dor. Também há
oito dias que eu vi a descida do Espírito Santo, no dia de Pentecostes, vi
Maria “extraordinariamente bela, e de repente rejuvenecida”, como escrevi,
e como tinha escrito antes: “Ela parece um anjo azul.” Os anjos não
conhecem velhice. São eternamente belos com eterna juventude, do eterno
presente que é Deus e que eles refletem em si.
A juventude angélica de Maria, o anjo azul, se completa e atinge a idade
perfeita (idade que ela levou consigo para os céus, e que conservará para
sempre em seu santo corpo glorificado, quando o Espírito adorna a sua
esposa, coroando-a diante dos olhos de todos) Agora ela não está mais no
segredo de um quarto desconhecido pelo mundo, sendo testemunhada apenas
por um arcanjo.
Quis fazer esta digressão, porque me pareceu necessária. Agora volto à
descrição.
Maria, pois, tornou-se verdadeiramente “mulher”, cheia de dignidade e
de graça. Até seu sorriso é diferente, por sua doçura e majestade. Como é
bela!
27.2
José vem entrando. Parece que está vindo da cidade, porque está
entrando pela porta da casa, e não da oficina. Maria levanta a cabeça e sorri
para ele. José retribui ao sorriso dela. Mas parece que ele faz isso como
quem está cansado, preocupado. Maria observa isso. Depois, ela se levanta
para pegar o manto, que José está tirando, o dobra e o coloca sobre um baú.
José se assenta junto à mesa. Apóia um cotovelo sobre a mesa e a
cabeça sobre a palma da mão, enquanto com a outra mão, alisa a barba,
muito pensativo.
– Tens algum pensamento que te atormenta? –pergunta-lhe Maria–.
Posso te consolar?
– Tu me consolas sempre, Maria. Mas desta vez o meu grande
pensamento és… tu.
– Eu, José? O que é?
– Colocaram um edito sobre a porta da sinagoga. Está ordenado o
recenseamento de todos os palestinos. E é preciso que cada um vá
recensear-se em seu lugar de origem. Nós temos que ir a Belém…
27.3
– Oh! –interrompe Maria, pondo uma mão sobre o ventre.
– Isso te assusta, não é?
– Não, José. Não é isso. Penso nas Sagradas Escrituras[51]: Raquel, mãe
de Benjamim e mulher de Jacó, da qual nascerá a Estrela: o Salvador.
Raquel está sepultada em Belém, da qual está escrito: “E tu, Belém Efrata,
és a menor entre as terras de Judá, mas de ti sairá o Dominador.” É o
Dominador que foi prometido, da estirpe de Davi. Ele vai nascer lá…
– Achas… achas que já chegou o tempo? E, então, como faremos?
José está completamente perturbado. Ele olha para Maria com dois
olhos cheios de piedade.
Ela percebe isso, e sorri. Sorri, mais para si mesma, do que para ele. É
um sorriso que parece dizer: “É um homem justo, sim, mas um homem. E vê
as coisas como homem. Pensa como homem. Tem compaixão dele, minha
alma, e guia-o para que possa ver como homem espiritual.” Mas a bondade
de Maria a leva a tranqüilizá-lo. Não mente, porém afasta a sua
preocupação:
– Não sei, José. O tempo está muito perto. Mas não poderia o Senhor
fazê-lo chegar mais devagar, para te livrar dessa preocupação? Ele pode
tudo. Não tenhas medo.
– Mas, e a viagem? Depois, pensa só na multidão que se vai
aglomerar… Encontraremos bom alojamento? E poderemos fazer tudo, a
tempo de voltar? E se… se tivesses de dar à luz por lá, como é que
faríamos? Nós não temos casa em Belém… Não conhecemos ninguém lá…
– Não tenhas medo. Tudo irá sair bem. Deus faz que os animais
encontrem uma toca para darem cria. Queres que Ele não faça que achemos
um lugar para o nascimento do seu Messias? Nós confiamos Nele. Não é
verdade? Sempre confiamos Nele. Quanto mais forte é a provação, mais
confiamos. Como duas crianças, colocamos nossas mãos na Sua de Pai. Ele
nos guia. Estamos completamente entregues a Ele. Olha como nos conduziu
até aqui com amor. Um pai, por melhor que seja, não poderia tê-lo feito com
maior cuidado. Somos seus filhos e seus servos. Façamos a Sua vontade.
Nada de mal nos pode acontecer. Até mesmo esse edito é da vontade Dele.
Pois, afinal, quem é César? Apenas um instrumento de Deus. Desde quando o
Pai decidiu perdoar ao homem, Ele dispôs os fatos com antecedência, para
que o seu Cristo nascesse em Belém. Esta, a menor das cidades de Judá,
ainda não existia, e já a sua glória estava planejada. A fim de que essa glória
se realize, e a palavra de Deus não seja desmentida, com o nascimento do
Messias noutro lugar, bem longe daqui surgiu um poderoso, que nos
dominou, e que agora, que o mundo está em paz, quer saber quantos são os
seus súditos. Oh! O que é toda esta nossa pequena fadiga, se pensarmos na
beleza deste momento de paz? Pensa, José. Um tempo em que não há ódio no
mundo! Mas que pode ser ainda mais feliz, ao surgir a “Estrela”, cuja luz é
divina, e cujo influxo é redenção? Oh! Não tenhas medo, José. Se as estradas
são inseguras e a multidão de gente torna difícil a nossa passagem, os anjos
nos defenderão, e abrirão caminho para nós. Não propriamente para nós,
mas para o Rei deles. Se não encontramos abrigo, eles nos farão uma tenda
com suas asas. Nada nos acontecerá de mal. Não pode acontecer: Deus está
conosco.
27.4
José olha para ela, e a ouve extasiado. As rugas de sua fronte parecem
diminuir, e seu sorriso volta. Ele se levanta, já sem cansaço e sem desânimo.
Sorri.
– Bendita és tu, ó sol do meu espírito! Bendita és tu, que sabes ver tudo
através da graça, da qual estás cheia! Então, não percamos tempo. Pois é
preciso partir quanto antes e… voltar sem demora, porque aqui já está tudo
pronto para o… para o…
– Para o nosso Filho, José. Isso é o que deve ser aos olhos do mundo,
lembra-te bem disso! O Pai encobriu com mistério esta sua vinda, e nós não
devemos levantar o véu do mistério. Jesus fará isso, quando chegar a hora…
A beleza do rosto, do olhar, da expressão e da voz de Maria, quando
pronuncia o nome de “Jesus”, é indescritível. É em êxtase. E, com este
êxtase, cessa a visão.

Maria diz:
27.5

– Não acrescento mais coisas, porque as minhas palavras já são


ensinamento.
Mas quero chamar a atenção das mulheres para um ponto. Muitas uniões
se transformam em desuniões por culpa das mulheres, que não têm aquele
amor que é tudo: gentileza, piedade, atenção para com o marido. Sobre o
homem não pesam os sofrimentos físicos que pesam sobre a mulher. Mas
sobre ele pesam todas as preocupações morais: necessidade de trabalho, as
decisões a serem tomadas, a responsabilidade diante dos poderes
constituídos e da própria família… Oh! quantas coisas pesam sobre o
homem! E quanto precisa também ele de conforto! Pois bem, o egoísmo
chega a tal ponto que ao marido cansado, desanimado, humilhado e
preocupado, a mulher ainda lhe acrescenta o peso de suas lamentações
inúteis e, às vezes, até injustas! Tudo isso, porque ela é egoísta, não ama.
Amar não é satisfazer-nos a nós mesmos, buscando a sensualidade e
outras vantagens. Amar é contentar a quem amamos, acima daquelas coisas
dos sentidos, que gostaríamos de ter e usar, dando ao espírito da pessoa que
amamos aquela ajuda de que ela tem necessidade, a fim de que sempre possa
ter as suas asas abertas, para voar pelos céus da esperança e da paz.
27.6
Outro ponto sobre o qual chamo de novo a atenção. Já falei dele. Mas
eu insisto: é a confiança em Deus.
A confiança resume as virtudes teologais. Quem tem confiança dá sinal
de que tem fé. Quem tem confiança, dá sinal de que espera. Quem tem
confiança, mostra que ama. Quando alguém ama, espera e crê em uma
pessoa, tem confiança. Do contrário, não. Deus merece esta nossa confiança.
Se a damos aos pobres homens capazes de falhar, por que a negamos a Deus
que não falha nunca?
A confiança é também humildade. O soberbo diz: “Eu mesmo faço. Não
confio nele, porque ele é um incapaz, um mentiroso, um violento…” Mas o
humilde diz: “Eu confio. Por que não haveria de confiar? Por que haverei de
pensar que sou melhor do que ele?” E, com maior razão, é assim que ele fala
de Deus: “Por que haverei de não confiar Naquele que é bom? Por que
deverei pensar que sou capaz de fazer tudo, eu mesmo?” Deus ao humilde se
doa. Mas se afasta de quem é soberbo.
A confiança é também obediência. Deus ama o obediente. A obediência
é sinal de que nós nos reconhecemos filhos Dele e que O reconhecemos
como nosso Pai. Ora, um pai não pode deixar de amar, quando é verdadeiro
pai. Deus para nós é Pai verdadeiro e Pai perfeito.
27.7
Sobre um terceiro ponto eu quero que medites. Está também
fundamentado na confiança.
Nenhum acontecimento pode suceder, se Deus não o permitir. És tu
poderoso? Assim és, porque Deus o permitiu. És tu súdito? Assim és porque
Deus o permitiu. Procura, pois, ó poderoso, não fazer deste teu poder o teu
mal. Seria sempre “teu mal” mesmo quando, a princípio, parece ser um mal
para os outros. Porque, se Deus permite, não o permite além de certos
limites, e, se passas desses limites, Deus te fere e te esmaga. Procura, então,
ó súdito, fazer desta tua condição um ímã para atrair sobre ti a proteção
celeste. Não maldigas nunca. Deixa os cuidados a Deus. Ele, que é o Senhor
de todos, pode abençoar e amaldiçoar as suas criaturas.
Vai em paz.
[51] S agradas Escrituras, p or exemp lo: Génesis 35,16-20; 48,7; Números 24,17; Miqueias 5,1. O sep ulcro de Raquel em
73.1.
28. A chegada a Belém.
5 de junho de 1944.
28.1
Vejo uma estrada mestra. Nela há muita gente. Também burrinhos que
vão carregando utensílios domésticos e pessoas. Burrinhos que voltam. As
pessoas esporam suas cavalgaduras, e quem vai a pé anda depressa, porque
está fazendo frio.
O ar está limpo e seco, e o céu sereno, mas no ar há um ventinho
cortante, característico do pleno inverno. O campo, depois das colheitas,
parece mais vasto, os pastos estão com a erva baixa e tostada pelos ventos
do inverno; por eles as ovelhas procuram um pouco de alimento e buscam os
raios do sol surgindo, pouco a pouco. Elas estão muito juntas umas das
outras, porque também estão com frio e balem, levantando o focinho e
olhando para o sol, como se lhe quisessem dizer: “Vem logo, que está
fazendo frio!” O terreno é cheio de ondulações, que vão se tornando cada
vez mais nítidas. Na verdade, este é um lugar de colinas. Aqui há vales
cheios de árvores e de encostas, há pequenos vales e morros. A estrada
passa pelo meio, e se dirige para sudeste.
Maria está sobre um burrinho cinzento. Está toda enrolada no pesado
manto. Na dianteira da sela está aquele instrumento, já visto na viagem para
Hebron, e por cima, está o baú com as coisas mais essenciais.
José vai caminhando, ao lado do burrinho de Maria, segurando a rédea.
– Estás cansada? –pergunta ele de vez em quando.
Maria olha para ele, sorrindo, e diz:
– Não.
Mas, na terceira vez, ela acrescenta:
– Tu, sim, que estás caminhando, é que deves estar cansado.
– Oh! Eu? Para mim isso não é nada. O que penso é que se eu tivesse
achado um outro jumento, podias estar com mais comodidade e andar um
pouco mais. Mas eu não achei. Agora todos estão precisando de
cavalgaduras. Tem coragem! Daqui a pouco, estaremos em Belém. Atrás
daquele monte está Efrata.
Calam-se. A virgem, quando não está falando, parece recolher-se em
uma oração interior. Sorri, com um sorriso manso, por algum pensamento
passageiro e, olhando as pessoas, parece não as estar vendo, isto é, não as
distingue, se trata-se de um homem, uma mulher, um velho, um pastor, um
rico ou um pobre. O que ela vê são só pessoas.
– Estás com frio? –pergunta José, porque o vento começa a soprar.
– Não, obrigada.
Mas José não se fia no que ela diz. Toca com as mãos os pés dela, que
vão pendurados aos lados do burrinho, calçados com sandálias, e que mal se
vêem apontar por debaixo da longa veste. A José eles devem estar
parecendo frios, porque ele sacode a cabeça, pega numa coberta que ia
levando a tiracolo e com ela envolve as pernas de Maria. Ele a estende
também sobre o regaço, de maneira que as mãos dela fiquem bem quentes
por debaixo da coberta e do manto.
28.2
Encontram-se com um pastor, que está atravessando a estrada com o
seu rebanho, passando do pasto da direita para a esquerda. José se inclina
para dizer-lhe alguma coisa. O pastor responde que sim. José pára o
burrinho, e depois o vai puxando pelo pasto, atrás do rebanho. O pastor
apanha uma tosca escudela de um alforje e, depois de tirar o leite de uma
ovelha grande, que está com as tetas cheias, o dá na escudela a José, que o
oferece a Maria.
– Deus vos abençoe aos dois –diz Maria–. A ti pelo teu amor, e a ti pela
tua bondade. Eu rezarei por ti.
– Estais vindo de longe?
– De Nazaré –responde José.
– E para onde ides?
– Para Belém.
– É uma viagem longa para uma mulher nesse estado. É tua esposa?
– É minha esposa.
– Já têm lugar onde ficar em Belém?
– Não.
– A coisa está feia! Belém está cheia de gente vinda de toda parte, para
o recenseamento ou de passagem para outro lugar. Não sei se encontrareis
alojamento. Tens conhecimento do lugar?
– Não muito.
– Pois bem… eu vou te ensinar… por causa dela (e acena para Maria).
Procura o albergue. Ele deve estar cheio. Mas eu falo nele somente para que
vos sirva como ponto de referência. Ele fica numa praça, a maior praça da
cidade. Vai-se até lá por esta estrada mestra. Não há engano. O albergue tem
uma fonte na frente, e é largo e baixo, com um grande portão. Ele estará
cheio. Mas, se não encontrardes lugar no albergue nem nas casas, dai a volta
por detrás do albergue, para o rumo do campo. No monte há estrebarias, que
às vezes servem para os mercadores que vão a Jerusalém e deixam lá seus
animais, quando não acham lugar no albergue. São estrebarias, entendeis?
Estão no monte e são úmidas, frias e sem porta. Mas sempre são um refúgio,
pois a mulher não pode ficar pela estrada. Talvez lá encontreis um lugar… e
feno para se poder dormir e também para o jumento. E que Deus vos
acompanhe.
– E Deus te dê alegria –responde Maria.
José por sua vez responde:
– A paz esteja contigo.
28.3
Retomam a estrada. Um vale bem maior se faz ver do alto do morro
que acabam de galgar. No vale, para cima e para baixo, pelos declives
suaves que o circundam, aparecem casas e mais casas. É Belém.
– Eis-nos, afinal, na terra de Davi, Maria. Agora descansarás, pois me
pareces tão cansada…
– Não. Eu pensava… estou pensando…
Maria agarra a mão de José e lhe diz com um alegre sorriso:
– Acho que o tempo chegou mesmo!
– Deus de misericórdia! Como vamos fazer?
– Não tenhas medo, José. Procura ficar firme. Não vês como eu estou
calma?
– Mas estás sofrendo muito.
– Oh! não. Estou cheia de alegria. Uma alegria tal, e tão forte, tão bela,
tão incontrolável, que o meu coração está batendo forte, e me está dizendo:
“Ele está nascendo! Ele está nascendo!” A cada batida, ele diz isso. É o meu
Menino, que está batendo à porta do meu coração, e está dizendo: “mamãe,
eu estou aqui e vim te dar o beijo de Deus.” Oh! Que alegria meu José!
Mas José não se sente invadido por aquela alegria dela. Ele está
pensando na necessidade urgente de encontrar um abrigo, e aperta o passo.
De porta em porta, vai pedindo um abrigo. Nada. Tudo ocupado. Chegam ao
albergue. Está cheio, até por baixo dos pórticos rústicos, que circundam o
grande pátio interno, com gente que acampou por ali.
José deixa Maria sobre o burrinho, dentro do pátio, e sai procurando
pelas outras casas. Volta desanimado. Não se acha nada. O rápido escurecer
deste tempo de inverno já começa a se estender sobre a terra. José vai
suplicar ao albergador. Suplica aos viajantes, e lhes diz que eles são homens
e estão com saúde, e que aqui há uma mulher que está para dar à luz um
filho, e que eles tenham piedade. Mas nada.
Neste lugar está também um rico fariseu, que olha para José e Maria
com um manifesto desprezo e, quando Maria se aproxima dele, ele se desvia
dela, como se estivesse chegando perto uma leprosa. José olha para ele, e
um rubor de desdém lhe sobe ao rosto. Maria pousa a mão sobre o pulso de
José, para acalmá-lo, e lhe diz:
– Não insistas! Vamos. Deus providenciará.
28.4
Saem e vão acompanhando o muro do albergue. Dobram para uma
estradinha encaixada entre o muro e uns casebres. Andam por detrás do
albergue. Procuram. Acham umas grutas parecidas com umas adegas mais
que uns estábulos de tão baixas e úmidas que são. As mais bonitas já estão
ocupadas. José sente-se prostrado.
– Escuta, ó galileu! –grita-lhe um velho que vem vindo por detrás–. Lá
no fundo, por baixo daquele desmoronamento, existe uma toca. Quem sabe
ninguém a tenha ocupado ainda.
Eles se apressam para chegarem àquela “toca.” É mesmo uma toca. Por
entre os escombros da construção em ruína, há uma abertura depois da qual
aparece uma gruta, que nada mais é do que uma escavação feita no monte.
Parecem ser os fundamentos de antiga construção que ficaram servindo de
teto aos entulhos escorados por troncos de árvores.
Para ver melhor, pois no lugar há muito pouca luz, José pega a isca e o
fuzil e acende uma lampadinha, que ele tira do alforje, trazido por ele a
tiracolo. Entra e é saudado por um mugido.
– Vem, Maria. Está vazia. Aí dentro há somente um boi.
José sorri e diz:
– É melhor do que nada.
28.5
Maria apeia do burrinho e entra.
José pendurou a lampadinha em um prego fincado em um dos troncos
que estão ali como escoras. Por todos os lados a gruta está cheia de teias de
aranha. O solo é de terra batida e todo cheio de buracos, de pedrinhas, de
detritos, excrementos e coberto com fragmentos de palha. Lá no fundo, o boi
se vira e fica olhando com seus olhos mansos, enquanto o feno está pendente
de seus beiços. Dentro da gruta há também um assento rústico e duas pedras
a um canto, perto de uma fresta. A cor enegrecida daquele canto nos diz que
lá dentro se costuma acender fogo.
Maria se aproxima do boi. Ela está com frio. Põe as mãos no pescoço
do boi, para sentir a temperatura. O boi muge, e deixa-se ser tocado. Parece
estar compreendendo. Mesmo quando José o afasta dali para tirar mais feno
da manjedoura e fazer uma cama para Maria. A manjedoura é dupla isto é,
onde o boi come e, mais acima, numa espécie de prateleira está outro feno
de reserva. José apanha um punhado deste feno. O boi o deixa fazer tudo
isso. José arranja um lugar também para o burrinho que, cansado e com
fome, logo se põe a comer.
José descobre por ali também um cântaro emborcado e todo amassado.
Sai com este cântaro porque lá fora já descobriu um riacho. Volta trazendo
água para o burrinho. Depois, apanha um feixe de ramos que está posto num
canto, procura varrer um pouco o chão. Em seguida, estende o feno. Faz com
ele uma enxerga, perto do boi, no canto que está mais enxuto e resguardado.
Mas percebe que o feno está úmido, e dá um suspiro. Passa, então, a
procurar acender o fogo e, com uma paciência de Jó, vai enxugando o feno,
aos punhados, conservando-o perto da fonte de calor.
Maria, sentada no banco, está cansada e olha sorrindo. Está tudo pronto.
Maria se acomoda melhor sobre o feno fofo, com as costas apoiadas em um
tronco, José completa… as alfaias, estendendo o seu manto como uma
cortina sobre a abertura que serve de porta. É um resguardo muito precário.
Depois, oferece pão e queijo à virgem, e lhe dá água de um cantil para
beber.
– Dorme agora –lhe diz ele–. Eu ficarei acordado para não deixar o fogo
apagar. Por sorte, temos ainda lenha; esperemos que ela dure e seja boa para
o fogo. Assim poderemos economizar azeite para a candeia.
Maria se estende, obediente. José a cobre com o manto da própria Maria
e com a coberta que ele havia posto sobre os pés dela.
– Mas tu… ficarás com frio, tu.
– Não, Maria. Eu estou perto do fogo. Procura descansar. Amanhã tudo
será melhor.
Maria fecha os olhos sem insistir. José se acomoda em seu canto, sobre
o banco, com uns gravetos ao lado. São poucos. Não creio que durem para
muito tempo.
Na gruta estão colocados assim: Maria à direita, com as costas para a
porta, meio escondida pelo tronco e pelo corpo do boi, que está deitado
sobre um estrado de palha. José está à esquerda, virado para a porta,
portanto em diagonal, tendo o rosto voltado para o fogo, e as costas para
Maria. Mas ele, de vez em quando, se vira para olhar para ela, e a vê quieta,
como se estivesse dormindo. José vai quebrando devagar os seus gravetos,
jogando, um por um, sobre o pequeno fogo, a fim de que não se apague, para
que produza alguma luz e para que a lenha dure mais. Não se vê mais do que
uma claridade, ora mais viva, ora mais fraca, vinda do fogo, que está se
apagando, e naquela penumbra, só se destaca mesmo a brancura do boi, do
rosto e das mãos de José. Tudo o mais é apenas uma massa confusa dentro da
pesada penumbra.

– Não há ditado –diz Maria–. A visão fala por si mesma. A vós


28.6

compete compreender a lição de caridade, humildade e pureza que emana


dela. Descansa. Descansa velando, como eu velava, esperando Jesus. Ele
virá trazer-te a Sua paz.
29. Nascimento de Jesus. Eficácia salvífica
da divina maternidade de Maria.
6 de junho de 1944.
29.1
Vejo ainda o interior deste pobre refúgio rochoso, onde José e Maria
encontraram o abrigo que compartilham com animais.
Um pequeno fogo está cochilando junto ao seu guardião. Maria levanta
um pouco a cabeça da enxerga, e olha. Vê José com a cabeça inclinada sobre
o peito, como se estivesse pensando, e ela também acha que o cansaço deva
ter vencido a sua boa vontade em ficar acordado todo o tempo. Maria sorri
com um sorriso cheio de bondade e, fazendo menos barulho do que pode
fazer uma borboleta ao pousar sobre uma rosa, se põe sentada e, depois de
sentada, se põe de joelhos. Reza com um sorriso feliz em seu rosto. Reza de
braços abertos, não propriamente cruzados, mas quase, e com as palmas
viradas para o alto e para a frente. Nem parece ficar cansada naquela penosa
posição. Depois, se prostra com o rosto contra o feno, em uma oração ainda
mais intensa. É uma longa oração.
José desperta. Vê que o fogo está quase apagado e a gruta está ficando
escura. Joga um punhado de gravetos bem finos, e a chama se ergue de novo;
procura depois uns galhos mais grossos, porque o frio deve ser de gelar. É o
frio da noite serena de inverno, que entra por todos os lados da gruta. O
pobre José, perto da porta (chamamos assim de porta a abertura sobre a qual
está estendido seu manto) deve estar se enregelando. Ele aproxima as mãos
da chama, desata as sandálias, aproxima também os pés. Procura aquecer-se.
E, quando o fogo já está bem vivo, sua luz firme, vira as costas. Mas agora
não vê nada, nem mesmo a brancura do véu de Maria, que antes formava uma
linha clara sobre o feno escuro. Põe-se de pé e, lentamente, vai-se
aproximando da enxerga.
– Não estás dormindo, Maria? –ele pergunta.
Faz a mesma pergunta três vezes, até que Maria estremece, e lhe
responde:
– Estou rezando.
– Não estás precisando de nada?
– Não, José.
– Procura dormir um pouco. Ou, pelo menos, descansar.
– Vou procurar. Mas rezar não me cansa.
– Até logo, Maria.
– Até logo, José.
Maria volta à sua posição. José, para não cair de novo no sono, põe-se
de joelhos perto do fogo, e reza. Reza apertando as mãos sobre o rosto. Tira-
as, cada vez que precisa alimentar o fogo, voltando à sua fervorosa oração.
Com exceção do barulho da lenha que crepita no fogo e o do burrinho que,
de vez em quando, bate um casco no chão, não se ouve mais nada.
29.2
Um pouco de luar está entrando por uma fenda do teto, e parece a
lâmina de alguma prata imaterial, que vai-se aproximando de Maria. A
lâmina vai-se alongando, à medida que a lua vai ficando mais alta no céu e,
finalmente a alcança. Agora, já está sobre a cabeça da orante, ornando-a com
uma auréola de luz.
Maria levanta a cabeça, como se tivesse sido chamada por uma voz do
céu, e se põe de novo de joelhos. Oh! Como é belo aqui. Maria ergue de
novo a cabeça, que parece estar brilhando, à luz branca da lua, e um sorriso
não humano a transfigura. Que é que ela estará vendo? Que estará ouvindo?
Que estará experimentando? Somente Ela poderia dizer o que está vendo,
ouvindo e o que experimentou na hora esplendorosa de sua maternidade. Eu
vejo apenas a luz crescendo sempre mais, ao redor dela. Parece descer do
Céu, saindo das pobres coisas que estão ao redor, e parece emanar dela
mesma, ainda mais.
Sua veste, de um azul escuro, parece agora de um suave celeste de
miosótis. Suas mãos e seu rosto parecem ficar de um azul muito delicado,
como os de alguém que fosse colocado sob o foco de uma imensa safira
clara. Esta cor, ainda mais tênue, me faz lembrar as cores das minhas visões
do santo Paraíso, e também a cor da chegada dos Magos, uma cor que vai-se
difundindo sobre as coisas e as vestes, purificando tudo, e tornando-as
resplandecentes.
A luz, que se desprende sempre mais do corpo de Maria, absorve a luz
da lua, e parece que ela atraia a si toda a luz do Céu. Agora ela é a
depositária da Luz. É ela que deve dar esta Luz ao mundo. E esta Luz
beatífica, incontrolável, imensurável, eterna e divina, está para ser dada, e
se anuncia como uma luz de aurora crescendo, um coro de átomos
aumentando, a maré subindo, a nuvem do incenso espalhando-se, para descer
depois como uma enchente e estender-se como um véu…
O teto, cheio de fendas, teias de aranha, entulhos que em cima se
estendem para a frente, estão em equilíbrio por um milagre da estática, esse
teto que antes era tão enegrecido, enfumaçado e repelente, está parecendo
agora o teto de uma sala real. Cada uma das grandes pedras é um bloco de
prata, cada fenda é um lampejar de opalas, cada teia de aranha é um
baldaquim precioso, confeccionado com prata e diamantes. Uma lagartixa
grande e verde, que está dormindo em letargia entre duas pedras, parece um
colar de esmeraldas esquecido por alguma rainha. Um cacho de morcegos,
também em letargia, parece um precioso lampadário de ônix. O feno, que
está na manjedoura de cima, já não é mais uma erva: são fios e mais fios de
prata pura, que tremulam no ar com a graça de uma cabeleira solta.
A manjedoura de baixo está com sua madeira de cor escura
transformada em bloco de prata brunida. As paredes estão cobertas de um
brocado no qual a alvura da seda desaparece sob o bordado opalino do
relevo, e o solo… o que é o solo agora? É um cristal que possui luz branca
acesa em si mesmo. As saliências são como rosas de luz projetadas em
homenagem ao solo; e os próprios buracos são vasos preciosos, de onde
devem emanar aromas e perfumes.
29.3
A luz vai-se tornando cada vez mais forte. Ela fica insuportável para a
vista. A virgem desaparece nela, como se estivesse sendo absorvida por um
véu incandescente… e dele surge a mãe.
Sim. Quando a luz volta a ser suportável aos meus olhos, vejo Maria
com o Filho recém-nascido nos braços. Um pequenino, todo róseo e
gorducho, que agita os braços e esperneia. Tem as mãozinhas do tamanho de
botões de rosa e seus pezinhos caberiam na corola de uma rosa. Ele solta
vagidos com sua vozinha trêmula, como a de um cordeirinho que acaba de
nascer, abrindo a boquinha, que mais parece um moranguinho selvagem, e
mostrando a linguinha que bate repetidamente contra o véu palatino. Move a
cabecinha loira, que me parece quase sem cabelos, essa cabecinha redonda
que a mamãe sustenta na palma de sua mão, enquanto olha o Menino e o
adora, chorando e rindo ao mesmo tempo, e se inclina para beijá-lo não em
sua cabecinha, mas em seu peito, onde está batendo seu coraçãozinho,
batendo por nós… é nesse coração em que um dia haverá uma ferida. E
Maria, com antecipação, já medica tal ferida, com seu beijo imaculado de
mãe.
O boi, despertado pela claridade, levanta-se, fazendo um grande barulho
com seus cascos, e muge, enquanto o burrinho vira a cabeça e urra. É a luz
que os desperta, mas eu gosto de pensar que eles quiseram saudar o seu
Criador, por si mesmos, mas também por todos os animais.
Também José que, quase extasiado, estava rezando de um modo tão
29.4

recolhido, que nem notou o que estava acontecendo ao redor, volta a si da


oração, vendo filtrar-se aquela estranha luz entre os dedos das mãos, que
estão unidas sobre o rosto. Tira, então, as mãos do rosto, levanta a cabeça e
se vira para trás. O boi, que agora se pôs de pé, está escondendo Maria. Mas
ela diz:
– José, vem cá.
José se aproxima dela. E, ao ver, pára dominado por um sentimento de
reverência, e está para cair de joelhos lá mesmo no lugar em que está. Mas
Maria insiste, dizendo:
– Vem cá, José –e, firmando a mão esquerda sobre o feno, com a direita
ela segura apertado contra o seu coração o Menino. Levanta-se então, indo
ao encontro de José, que caminha tropegamente, embaraçado pelo contraste
do seu desejo de aproximar-se e o temor de ser irreverente.
Aos pés do catre, os dois esposos se encontram e olham um para o
outro, num só e feliz pranto.
– Vem, vamos oferecer Jesus ao Pai –diz Maria.
Enquanto José se ajoelha, ela se põe de pé entre dois troncos que
sustentam o teto, levanta o Filho em seus braços, e diz:
– Eis-me aqui, Senhor. Por Ele, ó Deus, eu te digo esta palavra. Eis-me
aqui para fazer a tua vontade. Com Ele estamos eu, Maria, e José, meu
esposo. Eis-nos aqui, teus servos, Senhor! A tua vontade seja feita sempre
por nós, em toda hora e em todos os acontecimentos, para a tua glória e pelo
teu amor.
Depois, Maria se inclina e diz:
– Toma-o, José –oferecendo-lhe o Menino.
– Eu? Tu o entregas a mim? Oh! não! Eu não sou digno.
José está completamente apavorado, e se sente aniquilado, só diante da
idéia de ter que tocar em Deus.
Mas Maria insiste com ele, sorrindo:
– Tu és bem digno disso, sim. Ninguém mais do que tu. Por isso é que o
Altíssimo te escolheu. Toma-o, José, e segura-o, enquanto eu vou buscar as
roupinhas.
José, vermelho como escarlate, estende os braços e pega aquele
embrulhinho de carne que está gritando de frio e, quando já está com ele nos
braços, não se deixa mais levar pela vontade de tê-lo afastado do seu corpo
pelo respeito, mas o aperta ao coração, dizendo numa grande explosão de
pranto:
– Ó Senhor! Ó meu Deus!
Ao inclinar-se para beijar-lhe os pezinhos, percebe que eles estão frios
e, então, senta-se no chão e o põe em seu colo procurando cobri-Lo com a
veste marrom e as mãos, aquecendo-O e defendendo-O do vento frio da
noite. Ele bem que gostaria de ir para perto do fogo, mas passa por lá aquela
corrente de ar da entrada. É melhor ficar por aqui mesmo. É melhor, aliás,
ficar entre os animais, que servem de escudo contra o ar, e que produzem
calor. Assim pensando, coloca-se entre o boi e o jumento, com as costas
para a porta, inclinando-se sobre o Recém-Nascido, fazendo do seu peito um
nicho, cujas paredes laterais são: uma cabeça cinzenta com longas orelhas e
um grande focinho branco, com um nariz que solta vapor quente, e olhos
úmidos, cheios de bondade.
29.5
Maria abriu o baú, tirando linhos e cueiros. Depois foi para perto do
fogo, e aqueceu os panos. Vai então a José, envolvendo o Menino naqueles
tecidos mornos e no seu véu para proteger-lhe a cabecinha.
– Onde vamos colocá-lo agora? –ela pergunta.
José está olhando ao redor, pensativo…
– Espera! –diz ele–. Vamos afastar um pouco os animais e o feno deles.
Depois jogamos para baixo aquele feno que está no alto colocando-o aqui
dentro. A madeira da beirada protegerá o Menino do ar frio, o feno lhe
servirá de travesseiro, e o boi com o seu hálito o aquecerá um pouco. Para
isso, é melhor o boi. Ele é mais paciente e sossegado.
José põe mãos à obra, enquanto Maria nina o seu Menino, apertando-o
ao coração, conservando sua face sobre a cabecinha para dar-lhe mais algum
calor.
José atiça o fogo, sem economizar mais a lenha, para conseguir uma boa
chama, esquentar o feno, e à medida que o feno se enxuga ele o coloca no
peito, para que não se esfrie. Depois, quando já apanhou o bastante para
fazer um colchãozinho para o Menino, vai até a manjedoura e o põe, de
modo a tomar a forma de um pequeno berço.
– Está pronto! –diz ele–. Agora precisaríamos de uma coberta, para
cobrir o Menino, pois o frio está forte…
– Toma o meu manto –diz Maria.
– Mas tu ficarás com frio.
– Oh! Não faz mal! O cobertor é áspero demais. O manto é macio e
quente. Eu não tenho frio algum. Mas quero que Ele não sofra mais!
José pega, então o grande manto de lã macia, de cor azul clara, e o
coloca dobrado sobre o feno, com uma beirada que fica pendurada para fora
da manjedoura. Assim, o primeiro leito do Salvador ficou pronto.
E a mãe o leva, com passos cheios de graça e doçura, a fim de colocá-
Lo na manjedoura cobrindo-O com a beirada do manto, que ajeita também ao
redor da cabecinha descoberta, que começou a afundar-se no feno, e estava
protegida apenas pelo leve véu de Maria, contra esta aspereza. Permanece
descoberto somente o rostinho do tamanho do punho, e os dois, inclinados
sobre a manjedoura, o ficam olhando felizes, enquanto ele dorme o seu
primeiro sono, porque o calor bom dos cueiros e do feno lhe acalmou o
choro, e o doce Jesus conciliou o sono.

29.6
Maria diz:
– Eu te havia prometido que Ele te traria a paz. Estás lembrada da paz
que havia em ti nos dias do Natal? De quando me vias com o meu Menino?
Aquele era o teu tempo de paz. Agora é o teu tempo de sofrimento. Mas tu o
sabes. É no sofrimento que se conquista a paz e toda graça para nós e o
próximo. Jesus-Homem revelou-se Jesus-Deus, depois do tremendo
sofrimento da Paixão. Revelou-se como a Paz. Paz no Céu, do qual Ele tinha
vindo, derramada sobre aqueles que no mundo o amam. Mas, nas horas da
paixão, Ele, a Paz do mundo, foi privado dela. Não teria sofrido, se tivesse
tido a paz. Mas devia sofrer. Sofrer de modo completo.
29.7
Eu, Maria, redimi a mulher com a minha maternidade divina. Mas isso
não foi mais que o início da redenção da mulher. Negando-me a quaisquer
esponsais pelo voto de virgindade, eu tinha rejeitado todo prazer de
concupiscência, e merecido a graça de Deus. Isso, porém ainda não bastava.
Porque o pecado de Eva era uma árvore de quatro ramos: soberba, avareza,
gula e luxúria. Todos os quatro deviam ser cortados, a fim de esterilizar a
árvore desde as raízes.
29.8
Humilhando-me profundamente, eu venci a soberba.
Humilhei-me diante de todos. Não estou falando da minha humildade
para com Deus. Esta é devida ao Altíssimo por toda criatura. O Verbo de
Deus a teve. Eu, uma mulher, a devia ter. Mas terás já refletido por quantas
humilhações da parte dos homens eu tive que passar, sem me defender de
modo nenhum? Até José, que era justo, me havia acusado em seu coração. Os
outros, que não eram justos, tinham pecado por murmuração a respeito do
meu estado, e o barulho dessas palavras veio, como uma onda amarga,
quebrar-se contra a minha natureza humana.
Foram estas as primeiras das infinitas humilhações que a minha vida,
como mãe de Jesus e do genero humano, me fizeram sofrer. Humilhações de
pobreza, humilhações de uma fugitiva, humilhações pelas censuras dos
parentes e amigos que, não sabendo a verdade, julgavam fraco o meu modo
de ser mãe para com o meu Jesus, quando Ele se tornou jovem. Humilhações
durante os três anos do seu ministério, humilhações cruéis na hora do
Calvário, humilhações até em ter que reconhecer que eu não tinha com que
comprar o lugar e os aromas, para a sepultura do meu Filho.
29.9
Eu venci a avareza dos Progenitores, renunciando antecipadamente
ao meu Filho.
Uma mãe não renuncia nunca ao seu filho, a não ser que seja forçada. Se
essa renúncia for solicitada ao seu coração pela Pátria, pelo amor de uma
esposa, ou até pelo próprio Deus, ela sente o desejo de insurgir-se contra a
separação. É natural. O filho cresce em nosso ventre, e nunca é
completamente cortada a ligação que sua pessoa tem com a nossa. Mesmo
depois de cortado o canal vital que é o cordão umbilical, sempre fica um elo
espiritual, que nasce no coração da mãe, mais vivo e sensível do que um elo
físico, o qual se introduz no coração do filho, esticando até à dor, se o amor
de Deus, de uma criatura, da Pátria afasta o filho da própria mãe. Este elo se
despedaça, dilacerando o coração, se a morte arrebata o filho de sua mãe.
Eu renunciei ao meu Filho, desde o momento em que O tive. Dei-O a
Deus. Dei-O a vós. Eu me despojei do Fruto do meu ventre, para reparar o
furto cometido por Eva, do fruto de Deus.
29.10
Eu venci a gula, tanto do saber como do gozar, aceitando saber
unicamente o que Deus queria que eu soubesse, sem perguntar a mim
mesma nem a Ele nada mais, além do que foi dito. Acreditei sem investigar.
Venci a gula do gozar, porque neguei a mim mesma todo sabor de
sensualidade. Pus minha carne debaixo dos meus pés. Confinei a carne,
instrumento de satanás, colocando satanás debaixo de meu calcanhar, a fim
de fazer da carne um degrau para aproximar-me do Céu. O Céu! Ele era a
minha meta. Era lá que estava Deus. Deus, a minha única fome. Fome esta
que não é gula, mas sim, necessidade abençoada por Ele, o qual quer que a
tenhamos.
29.11
Eu venci a luxúria, que é a gula, convertida em voracidade, porque
todo vício não contido conduz a um vício maior. A gula de Eva, além de
reprovável em si mesma, a conduziu à luxúria. Não lhe bastou procurar a
satisfação sozinha. Quis levar o seu delito até uma refinada intensidade,
conhecendo e se fazendo mestra de luxúria para o companheiro. Eu inverti os
termos e, em lugar de descer, sempre subi. Em lugar de fazer descer, eu
sempre atraí para o alto, e do meu companheiro, um homem honesto fiz um
anjo.
Agora que eu possuía Deus, e com Ele as Suas riquezas infinitas,
apressei-me a despojar-me delas, dizendo: “Que seja feita a tua vontade
para Ele e por Ele”. Casto é aquele que se auto contém, não só na carne, mas
também nos afetos e nos pensamentos. Eu devia ser a casta, para anular a
impudica da carne, do coração e da mente. Não saí da minha reserva, para
dizer a respeito do meu único Filho na terra e único Filho de Deus no Céu:
“Ele é meu, e eu O quero.”
29.12
Contudo, isso não bastava para obter para a mulher, a paz perdida por
Eva. Aquela paz eu vo-la obtive aos pés da Cruz. Ao ver morrer Aquele que
tu viste nascer. Ao sentir minhas entranhas sendo arrancadas, ao grito do meu
Filho que estava morrendo, fiquei vazia de todo feminismo: não mais carne,
mas anjo. Maria, a virgem desposada com o Espírito, morreu naquele
momento. Ficou a mãe da graça, aquela que do seu tormento gerou e vos deu
a graça a Graça. O gênero da mulher que eu tinha voltado a consagrar na
noite de Natal, aos pés da Cruz conseguiu se tornar criatura dos Céus.
Fiz isso por vós, negando-me qualquer satisfação, ainda que santa. Eu
fiz de vós, se o desejais, santas de Deus, vós que fostes reduzidas por Eva a
fêmeas não superiores às companheiras dos animais. Por vós eu subi. Como
fiz com José, eu vos levei para o alto. A rocha do calvário é o meu Monte
das Oliveiras. Foi dali que eu tomei o impulso para levar a alma da mulher
aos céus, de novo santificada, junto com minha carne glorificada, por ter
trazido o Verbo de Deus, e anulado em mim todo vestígio de Eva. Ela foi a
última raiz daquela árvore dos quatro ramos venenosos, com a raiz fincada
na sensualidade, que arrastou a humanidade à queda e que haverá de morder
as vossas entranhas, até ao fim dos séculos, até à última mulher. De lá, de
onde agora eu brilho no raio do Amor, eu vos chamo, e vos indico o remédio
para vós vencerdes a vós mesmas: a graça do meu Senhor e o sangue do meu
Filho.
29.13
E tu, minha porta-voz, repousa a tua alma na luz desta aurora de
Jesus, a fim de que tenhas força para as futuras crucificações, que não te
serão poupadas, porque te queremos aqui, para onde se vem através da dor;
e para tão mais alto se vem, quanto mais se suporta o sofrimento, a fim de
obter graça para o mundo.
Vai em paz. Eu estou contigo”.
30. O anúncio aos pastores, que se tornam
os primeiros adoradores do Verbo feito homem.
7 de junho de 1944. Vigília de Corpus Christi.
[…].
30.1
Mais tarde, vejo um extenso campo. A lua está no zênite e navega
mansamente por um céu apinhado de estrelas. Parecem broches de diamantes
fincados em um enorme baldaquim de veludo azul escuro; a lua, ali no meio,
sorri com sua cara toda branca, da qual descem rios de uma luz leitosa, que
torna branca também a terra. As árvores, sem folhas, parecem mais altas e
escuras, sobre um solo esbranquiçado, enquanto os pequenos muros, que vão
surgindo aqui e ali, parecem cor de leite, e uma casinha, que se vê ao longe,
parece um bloco de mármore de Carrara.
À minha direita, vejo um lugar cercado por uma sebe de espinheiros e
um muro baixo ao lado de outros dois. Este muro sustenta o teto de uma
espécie de alpendre largo e baixo, que, na parte interna do recinto está
construído: uma parte com paredes, e outra com madeira, de modo que, no
verão, as partes em madeira possam ser removidas, transformando-se o
alpendre em um grande pórtico. Desse pórtico fechado, sai, de vez em
quando um balir intermitente e curto. Devem ser ovelhinhas que estão
sonhando, ou talvez achando que já esteja próximo o dia, pela claridade da
lua. Uma claridade excessiva, tal é a intensidade, está crescendo, como se o
satélite estivesse se aproximando da terra, ou brilhando por algum
misterioso incêndio.
30.2
Um pastor chega até à porta; levando o braço sobre a fronte para
proteger os olhos, olha para cima. Parece impossível que ele tenha de se
proteger da claridade da lua. Mas está mesmo uma claridade tão viva, que
ofusca os olhos, especialmente os olhos de quem acaba de sair de um lugar
fechado e escuro. Tudo está calmo. Mas aquela luz causa espanto.
O pastor chama os companheiros. Todos vão até à porta. É um grupo de
homens cabeludos e de idades diferentes. Alguns ainda são adolescentes, e
outros já estão de cabelos brancos. Estão comentando aquele fato estranho.
Os mais jovens estão com medo, especialmente um menino dos seus doze
anos, que começa a chorar, tornando-se alvo das brincadeiras dos mais
velhos.
– De que estás com medo, seu tolo? –lhe diz o mais velho–. Não estás
vendo o ar assim parado? Nunca viste a claridade do luar? Será que
estiveste sempre debaixo da saia da mamãe, como um pintinho sob as asas
da galinha choca? Mas ainda terás que ver coisas! Uma vez eu tinha
caminhado até as montanhas do Líbano, e continuei até além destas
montanhas. Eu era jovem e andar não era pesado para mim. Naquele tempo
eu também era rico… Uma noite, vi uma luz tão clara, que pensei que Elias
estivesse voltando com seu carro de fogo. O céu parecia um grande incêndio.
Um velho, daquela época, me disse: “Algum grande acontecimento está para
sobrevir ao mundo.” Mas para nós o que de verdade veio foi uma grande
desventura: os soldados de Roma. Oh! Mas tu verás, se sobreviveres!…
30.3
O pastorzinho, porém, não o está escutando mais. Parece que não tem
mais medo, pois deixa a soleira da porta, escapa por detrás das costas do
musculoso pastor, onde se refugiou, e sai na paragem cheia de erva, que está
na frente do alpendre. Olha para o alto, e vai caminhando como sonâmbulo,
ou hipnotizado por algo que o atrai fortemente. Chegando a um certo ponto,
ele grita: “Oh!”, e fica como que petrificado, com os braços um pouco
abertos.
Os outros olham-se assombrados.
– Mas, que é que tem aquele tolo? –diz um deles.
– Amanhã eu o mando embora, de volta para sua mãe. Não quero doidos
para guardar as ovelhas –diz outro.
E o velho, que falou há pouco, diz:
– Vamos ver, antes de julgar. Chamai também os outros que estão
dormindo, e pegai os bastões. Que não seja alguma fera ruim, ou
malandros…
Eles entram, chamando os outros pastores, e saem com tochas e bastões.
Chegam até onde está o menino.
– Lá, lá –ele murmura sorrindo–. Por cima da árvore, olhai aquela luz
que está vindo. Parece que ela vem caminhando sobre o raio da lua. Eis que
se aproxima. Como é bela!
– Eu só estou vendo um grande clarão.
– Eu também.
– Eu também –dizem os outros.
– Não. Eu estou vendo algo como um corpo –diz um dos pastores, no
qual eu reconheço ser aquele que deu a escudela de leite para Maria.
– É um… é um anjo! –grita o menino–. Eis que ele vem descendo e
chegando para perto… Ajoelhemo-nos, diante do anjo de Deus!
Um “Oh!” longo e cheio de respeito se levanta do grupo de pastores,
que, prostrando-se com o rosto por terra, parecem estar tanto mais
esmagados por aquela aparição fulgente, quanto mais velhos são. Os jovens
estão de joelhos, mas estão olhando para o anjo, que se aproxima cada vez
mais e, finalmente, paira suspenso no ar, agitando suas grandes asas, candura
de pérola na alvura do luar que o circunda, acima do muro do recinto.
– Não temais. Não vos trago desventura. Eu vos anuncio uma grande
alegria para o povo de Israel e para todo o povo da terra.
A voz do anjo é como uma harmonia de harpa, que acompanha o canto
dos rouxinóis.
– Hoje, na cidade de Davi, nasceu o Salvador.
Ao dizer isso, o anjo abre ainda mais as suas grandes asas, e as move,
como se tivesse sentido um sobressalto de alegria, e, nesse momento uma
chuva de centelhas de ouro e de pedras preciosas parece sair dele. Um
verdadeiro arco-íris, um arco de triunfo que se forma sobre as pastagens.
– … o Salvador, que é Cristo.
O anjo cintila, com redobrada luz. Suas duas asas, agora paradas e
estendidas, com as pontas viradas para o céu, como duas velas imóveis
sobre a safira do mar, parecem duas chamas, que sobem ardendo.
– … Cristo, o Senhor!
O anjo recolhe as suas duas fúlgidas asas, e se veste com elas, como se
fossem uma sobreveste de diamante sobre uma veste de pérola; inclina-se,
como quem está adorando, com os braços cruzados sobre o coração e o
rosto, que aí desaparece, porque está inclinado sobre o peito e sob a sombra
das pontas das asas que o anjo agora dobrou. Não se vê mais que uma
alongada forma luminosa, imóvel, pelo espaço de tempo de um “Glória.”
Mas ele se move de novo. Reabre as asas, levanta o rosto, no qual a luz
se funde com um sorriso paradisíaco, e diz:
– Vós o reconhecereis por estes sinais: em uma pobre estrebaria, do
outro lado de Belém, encontrareis um menino envolto em faixas, numa
manjedoura de animais, porque, para o Messias, não foi encontrado um teto
na cidade de Davi.
Ao dizer isso, o anjo ficou sério, ou melhor, ficou triste.
30.4
Mas dos Céus vieram muitos, muitíssimos outros anjos, semelhantes
àquele primeiro, como por uma escada de anjos que descem, exultantes, e
superando a luz da lua com o seu esplendor do paraíso. Eles se reúnem ao
redor do anjo anunciador, com um grande agitar de asas e um intenso exalar
de perfumes, com um arpejar de notas, nas quais todas as vozes mais belas
da criação encontram uma recordação, mas levado à perfeição, quanto à
pureza e beleza do som. Se a pintura é o esforço da matéria para se
transformar em luz, aqui a melodia é o esforço da música para fazer brilhar
aos homens a beleza de Deus. Ouvir esta melodia é conhecer o paraíso, onde
tudo é harmonia do amor que se desprende de Deus, alegrando os bem-
aventurados, que, por sua vez, se dirigem a Deus, dizendo: “Nós te
amamos!”
O “Glória” dos anjos se espalha, sempre mais ao longe, pelo campo
silencioso e com ele vai o clarão da luz. Os passarinhos unem seu canto,
como saudação a esta luz que chegou antes da hora, e as ovelhas dão os seus
balidos, por este antecipado sol. Mas eu gosto de pensar que são os animais
que saúdam ao seu Criador, como também o boi e o jumento na gruta.
Saúdam o próprio Criador que veio até eles, para amá-los como Homem,
além de amá-los como Deus.
O canto vai diminuindo, e a luz também, enquanto os anjos vão subindo,
de volta para os céus…
30.5
… Os pastores também voltam a si.
– Ouviste?
– Vamos lá ver?
– E as ovelhas?
– Oh! Não acontecerá nada com elas! Nós vamos para obedecer à
palavra de Deus!…
– Mas, aonde iremos?
– Ele não disse que nasceu hoje? E que não achou alojamento em
Belém?
É o pastor que deu a escudela de leite, o que está falando agora.
– Vinde comigo, eu sei: encontrei a mulher, e ela me causou pena.
Ensinei um lugar para ela, pois imaginava que não iriam encontrar
alojamento. Entreguei ao homem uma escudela de leite para ela. É tão jovem
e bela, deve ser boa como o anjo que nos falou. Vinde. Vinde. Vamos
apanhar leite, queijos, cordeiros e peles curtidas. Eles devem ser muito
pobres e… que frio não estará passando Aquele cujo nome não ouso
pronunciar! E pensar que eu falei à mãe como a uma pobre esposa!…
Vão, então, até o alpendre, saindo de lá pouco depois. Um deles com
pequenas botijas de leite, outro com cestinhas de esparto trançadas, contendo
queijinhos redondos, outros com cestos nos quais se encontram, um cordeiro
balindo e peles de ovelha curtidas.
– Eu levo uma ovelha. Há um mês que ela deu cria. O leite dela está
bom. Ela lhes poderá ser útil, se a mulher não tiver leite. Pois me parecia
uma menina, tão branca!… É um rosto de jasmim, à luz da lua –diz o pastor
da escudela. É ele que vai guiando os outros.
30.6
Saem todos à luz da lua e das tochas, depois de terem fechado o
alpendre e o recinto. Vão pelas trilhas campestres, por entre sebes de
espinheiros, que estão sem folhas, por ser inverno.
Dão a volta por detrás de Belém. Chegam à estrebaria, indo pelo lado
oposto que foi Maria, de modo a não passarem diante das estrebarias mais
bonitas, sendo esta a primeira que encontram. Aproximam-se da abertura.
– Entra!
– Eu não tenho coragem.
– Entra tu.
– Não.
– Olha lá dentro, pelo menos.
– Tu, Levi, que viste o anjo primeiramente, sinal de que és melhor do
que nós, olha!
Na verdade, antes disseram que ele era doido… mas agora convém que
ele tenha a coragem que eles não têm.
O menino vacila, mas depois se decide. Aproxima-se da abertura, afasta
um pouquinho o manto, olha… e fica extasiado.
– Que é que estás vendo? –perguntam-lhe ansiosos, em voz baixa.
– Vejo uma mulher jovem e bela e um homem curvados sobre uma
manjedoura, e ouço… ouço chorar um menino pequeno, e a mulher lhe fala
com uma voz… oh! que voz!
– Que está ela dizendo?
– Ela está dizendo assim: “Jesus pequenino! Jesus, amor da tua mamãe!
Não chores meu filhinho!” Ela diz ainda: “Oh! Se eu pudesse dizer-te: ‘Toma
o leite, meu pequenino!’ Mas ainda não o tenho.” Ela diz: “Tem tanto frio,
meu amor! E o feno te está espinhando. Que dor para tua mamãe ouvir-te
chorando assim, e não poder dar-te conforto!” Ela está dizendo: “Dorme,
minha alma! Parte-me o coração ao ouvir-te chorar, e ao ver-te derramar
lágrimas!”, e o beija e o aquece certamente nos pezinhos com suas mãos,
pois ela está inclinada, com as mãos para dentro da manjedoura.
– Chama! Faça com que te ouçam!
– Eu, não. Chama tu, que até aqui nos conduzistes e que a conheceis.
O pastor abre a boca, e se limita a dar um gemido.
30.7
José se vira, e vai à porta.
– Quem sois vós?
– Somos pastores. Viemos trazer-vos alimento e lã. Viemos adorar o
Salvador.
– Entrai.
Eles entram, e a estrebaria se torna mais clara por causa da luz das
tochas. Os velhos empurram os novos à sua frente.
Maria se vira e sorri.
– Vinde –ela diz–. Vinde!
E os convida com um gesto e um sorriso, segurando aquele que viu o
anjo e puxando-o para perto de si, junto à manjedoura. O menino olha, feliz.
Os outros, convidados também por José, vão à frente com os seus
presentes, e os colocam todos, com breves e comovidas palavras, aos pés de
Maria. Depois se detêm em olhar o Menino Jesus, que está chorando
baixinho, e sorriem, emocionados e felizes.
Um deles, mais corajoso, diz:
– Toma, ó mãe. É macia e limpa. Eu a tinha preparado para o meu filho
que está para nascer. Mas te dou. Envolve o teu Filho com esta lã delicada e
quente.
E lhe oferece a pele de uma ovelha, uma pele muito bonita, com muita
lã, uma lã muito clara e comprida.
Maria soergue Jesus e o enrola nela. E o mostra aos pastores que, de
joelhos sobre o feno do chão, o contemplam enlevados.
Tornam-se agora mais corajosos, e um deles propõe:
– Seria necessário dar-lhe um pouco de leite, ou melhor, água e mel.
Mas nós não temos mel, que é muito bom para os bebês. Tenho sete filhos, e
sei disso…
– Aqui está o leite. Toma-o, ó mulher.
– Mas está frio. Precisa ser quente. Onde está o Elias? Ele tem a ovelha.
Elias deve ser aquele da escudela de leite e não está. Ficou parado lá
fora, olhando por uma fenda e não podendo ser visto, por causa da escuridão
da noite.
– Quem vos guiou até aqui?
– Um anjo, que nos disse para virmos e junto com Elias, nos guiou até
aqui. Mas onde estará ele agora?
A ovelha de Elias é que, com o seu balido, denuncia-o.
– Venha para a frente, que te estamos esperando.
Ele entra com sua ovelha, envergonhado, porque todos estão de olhos
nele.
– Então, és tu? –diz José, ao reconhecê-lo.
E Maria lhe sorri, dizendo:
– És bom.
Tiram o leite da ovelha e, com a ponta de um pano mergulhado no leite
quente e espumoso, Maria molha os lábios do Menino Jesus, que suga aquela
doçura cremosa. Todos sorriem, ainda mais, quando, com a ponta do paninho
ainda entre os lábios, Jesus adormece com o bom calor da lã.
30.8
– Mas aqui não podeis ficar. Aqui faz frio e é muito úmido. E
depois… aqui tem um cheiro forte de animais. Isto não faz bem… e… não
fica bem para o Salvador.
– Eu sei –diz Maria com um grande suspiro–, mas, não há lugar para nós
em Belém.
– Coragem, Mulher! Nós vamos procurar uma casa para ti.
– Vou falar com minha patroa –diz Elias.
– Ela é boa, e vos acolherá, ainda que precisasse ceder-vos o seu
quarto. Logo que raiar o dia, vou falar com ela. Ela está com a casa cheia de
gente. Mas vos arranjará um lugar.
– Pelo menos para o meu Menino. Eu e o José estamos dormindo no
chão. Mas para o Pequenino…
– Não fiques suspirando, mulher. Nisso penso eu. Vamos dizer a muitos
o que nos disseram. Não vos faltará nada. Por enquanto, tomai o que a nossa
pobreza vos pode dar. Nós somos pastores…
– Nós também somos pobres. E não vos podemos pagar –diz José.
– Oh! Nem nós queremos! Ainda que o pudésseis, nós não quereríamos!
O Senhor já nos pagou. Ele prometeu a paz a todos. Os anjos diziam assim:
“Paz aos homens de boa vontade.” Mas a nós, Ele já a deu, porque o anjo
disse que este Menino é o Salvador, que é o Cristo, o Senhor. Nós somos
pobres e ignorantes, mas sabemos que os profetas dizem que o Salvador será
o Príncipe da Paz. E a nós Ele disse que viéssemos adorá-lo. Com isso nos
deu a Sua paz. Glória a Deus nos céus altíssimos e glória ao seu Cristo, e
bendita sejas tu, mulher, que o geraste! És santa, porque mereceu carregá-lo
no seio! Dá-nos tuas ordens, como nossa rainha, que seremos felizes em
podermos servir-te. Que é que podemos fazer por ti?
– Amar o meu Filho, e ter sempre no coração os pensamentos que tendes
agora.
– Mas, e para ti? Não desejas nada? Não tens parentes aos quais desejas
comunicar que Ele nasceu?
– Sim, eu os teria. Mas não moram perto daqui. Moram em Hebron.
– Eu vou até lá –diz Elias–. Quem são eles?
– Zacarias, o sacerdote, e Isabel, minha prima.
– Zacarias?! Oh! Eu o conheço bem. Durante o verão, eu vou por
aqueles montes, pois as pastagens por lá são muito boas e bonitas, e sou
amigo do pastor. Quando eu souber que estás alojada, irei à casa de
Zacarias.
– Obrigada, Elias.
– Não precisas agradecer. Grande honra é para mim, um pobre pastor, ir
falar ao sacerdote, e dizer-lhe: “Nasceu o Salvador.”
– Não. Tu dirás assim: “Maria de Nazaré, tua prima, manda dizer que
nasceu Jesus, e que vades a Belém.”
– Assim eu direi.
– Deus te recompense por isso. 30.9Eu me recordarei de ti, e de todos vós.
– Falarás de nós ao teu Menino?
– Sim, falarei.
– Eu sou Elias.
– Eu sou Levi.
– Eu sou Samuel.
– Eu sou Jonas.
– Eu sou Isaque.
– Eu sou Tobias.
– Eu sou Jônatas.
– Eu sou Daniel.
– Eu sou Simeão.
– Eu me chamo João.
– Eu José, e meu irmão Benjamim, somos gêmeos.
– Eu me lembrarei dos vossos nomes.
– Precisamos ir… Mas voltaremos… E te traremos outros, que virão
para adorar!
– Como voltar ao ovil, deixando este Menino?
– Glória a Deus, que já no-Lo mostrou!
– Deixa-nos beijar a roupinha dele –diz Levi com o sorriso de um anjo.
Maria ergue Jesus devagar e, sentada sobre o feno, oferece os pezinhos
envolvidos no linho, para que os beijem. Os pastores se inclinam até o chão
e beijam aqueles pés minúsculos, cobertos por um tecido. Quem tem barba,
ajeita-a primeiro, quase todos choram e, quando chega o momento de partir,
saem, relutantes, deixando alí o coração.
A visão cessa aqui, com Maria sentada sobre o feno com o Menino no
colo e José que, apoiado com um cotovelo sobre a manjedoura, olha e adora.

Jesus diz:
30.10

– Hoje sou Eu que falo. Estás muito cansada, mas tem ainda um pouco
de paciência.
Estamos na vigília de Corpus Christi. Eu poderia falar-te da Eucaristia e
dos santos que se fizeram apóstolos do seu culto, assim como já te falei[52]
dos santos que foram apóstolos do Sagrado Coração. Mas eu quero falar-te
de uma outra coisa e de uma categoria de adoradores do meu Corpo,
precursores do culto a Ele prestado. Os pastores são os primeiros
adoradores do meu Corpo de Verbo feito Homem.
Uma vez Eu te disse isto, que é dito também pela minha Igreja. Os
Santos Inocentes são os protomártires de Cristo. Agora te digo que os
pastores são os primeiros adoradores do Corpo de Deus. Neles se encontram
todos os requisitos exigidos para vos tornardes adoradores do meu Corpo, ó
almas eucarísticas.
Fé firme: eles crêem pronta e cegamente no anjo.
Generosidade: eles dão toda a sua riqueza ao Senhor.
Humildade: eles se aproximam dos que humanamente são mais pobres
do que eles, com uma modéstia tal em seus atos, que não rebaixam os
pobres, mas se confessam seus servos.
Desejo: tudo o que não podem dar por si mesmos, esforçam-se para
encontrá-lo com apostolado e fadiga.
Prontidão na obediência: Maria deseja que Zacarias seja avisado e
Elias vai sem demora, sem pedir nenhum prazo.
Amor: enfim, eles não sabem como afastar-se, e tu dizes: “deixam alí o
coração.” E dizes bem.
Não seria necessário fazer assim também com o meu Sacramento?
Uma outra coisa, e essa é toda para ti: observa bem, a quem o anjo
30.11

primeiro se revela, e quem merece ouvir as efusões de Maria? O menino


Levi.
A quem tem alma de criança, Deus Se mostra e a Seus mistérios,
permitindo-lhe ouvir as palavras divinas e as palavras de Maria. Quem tem
alma de criança, tem também a santa coragem de Levi, para dizer: “Deixa-
me beijar o vestidinho de Jesus.” Isto ele diz a Maria. Porque é sempre
Maria que vos dá Jesus. Ela é a portadora da Eucaristia. Ela é a píxide viva.
Quem vai a Maria, Me encontra. Quem me pede a ela, recebe. O sorriso
de minha mãe, quando uma criatura lhe diz: “Dá-me o teu Jesus, para que eu
o ame”, faz que os céus mudem de cor, em um mais vivo esplendor de
alegria, pois tal é a altura do grau da sua felicidade.
Diz-lhe, pois: “Deixa-me beijar a veste de Jesus. Deixa-me beijar as
suas chagas.” Procura ter coragem para dizer ainda mais que isso. Diz assim:
“Deixa-me repousar a cabeça sobre o Coração do teu Jesus, para que isso
me faça feliz.”
Vem. E repousa. Como Jesus no berço, entre Jesus e Maria.
[52] já te falei, a 2 de Junho de 1944, em “Os cadernos de 1944”.
31. A Visita de Zacarias. Santidade
de José e obediência aos sacerdotes.
8 de junho de 1944.
31.1
Vejo o longo salão onde vi o encontro dos Magos com Jesus e a
adoração deles ao Menino. Compreendo que estou na casa hospitaleira em
que foi acolhida a sagrada Família. E é aí que assisto à chegada de Zacarias.
Isabel não veio com ele.
A dona da casa vai lá fora correndo, até a varanda, ao encontro do
hóspede que está chegando, e o conduz junto a uma porta, onde bate. Depois,
discretamente, se retira.
José abre a porta, e solta uma exclamação de júbilo, ao ver Zacarias.
Ele o faz entrar em um quarto pequeno como um corredor.
– Maria está dando de mamar ao Menino. Espera um pouco. Assenta-te,
que deves estar cansado.
José arranja lugar para o hóspede sobre sua pobre cama, assentando-se
também ao seu lado.
Ouço que José lhe pergunta sobre o pequeno João. Zacarias, lhe
responde:
– Está crescendo, viçoso como um potrinho. Mas agora sofre um pouco
por causa dos dentes. Por isso não quisemos trazê-lo. Está fazendo muito
frio. Isabel também não veio por este motivo. Ela não podia deixar o menino
sem leite. Ficou muito triste. Mas está tão forte a estação!
– Muito forte, de fato –responde José.
– O homem, que me mandastes disse-me que estáveis sem casa, quando
o Menino nasceu. Sabe-se lá quanto tereis sofrido.
– Sim, é bem verdade. Mas o nosso medo era maior do que o incômodo.
Tínhamos medo que prejudicasse o Menino. Nos primeiros dias tivemos que
ficar sem casa. Mas não faltou nada para nós, porque os pastores levaram a
boa nova aos habitantes de Belém. E foram muitos os seus presentes. Mas
faltava uma casa, faltava um aposento mais resguardado, uma cama. Jesus
chorava tanto, especialmente à noite, por causa do vento que entrava por
toda a parte. Eu fazia um pouco de fogo. Pouco, porque a fumaça fazia o
Menino tossir… e o frio continuava. Dois animais esquentam pouco,
especialmente lá onde o ar frio entra por todos os buracos! Faltava água
quente para lavar o Menino, faltava roupa seca para trocá-lo. Oh! Ele sofreu
muito! E Maria sofria ao vê-lo sofrer. Se eu sofria… podes imaginar Sua
mãe. Ela lhe dava leite e lágrimas, leite e amor. Agora, aqui estamos melhor.
Eu tinha preparado um berço muito cômodo, e Maria o tinha completado com
um colchãozinho bem macio. Mas ficou em Nazaré! Ah! Se Ele tivesse
nascido lá, teria sido diferente!
– Mas o Cristo devia nascer em Belém. Foi profetizado.
31.2
Maria, que ouvira aquelas vozes, entra. Está toda vestida de lã branca.
Tirou o vestido escuro que usara na viagem e na gruta e está toda branca em
suas vestes, como a tenho visto outras vezes. Não tem nada sobre a cabeça e
nos braços tem Jesus, que está dormindo, saciado de leite, envolvido em
suas cândidas faixas.
Zacarias se levanta, reverente, e se inclina com veneração. Depois, se
aproxima, e olha para Jesus, com os sinais do maior respeito. Está
encurvado, não tanto para vê-lo melhor, quanto para render-lhe homenagem.
Maria oferece o Menino e Zacarias o toma, com uma tal adoração, que
parece estar elevando um ostensório. É de fato Hóstia aquela que ele tem em
seus braços, a Hóstia já oferecida, e que será consumida, depois de ter-se
dado aos homens, como alimento de amor e de redenção. Zacarias devolve
Jesus a Maria.
31.3
Todos se assentam, e Zacarias repete a Maria o motivo pelo qual
Isabel não veio, e a pena que ela sentiu por isso.
– Ela tinha preparado nestes meses alguns tecidos para o teu bendito
Filho. Eu os trouxe para ti. Estão no carro, lá embaixo.
Ele se levanta e vai lá fora, voltando com um pacote grande e outro
menor. Tanto do pacote grande, que José apanhou de suas mãos, como do
outro, ele vai tirando logo os seus presentes: uma macia colcha de lã, tecida
a mão, alguns linhos e vestidinhos. Do outro pacote, vai tirando mel, uma
farinha muito branca, manteiga e maçãs para Maria, pães, amassados e
cozidos por Isabel, e muitas outras pequenas coisas, que falam do afeto
materno da prima para com a jovem mãe.
– Dirás a Isabel que lhe sou grata, e a ti também agradeço. Eu teria muita
alegria em vê-la, mas compreendo suas razões. Também gostaria de rever o
pequeno João…
– Mas o vereis na primavera. Viremos encontrar-vos.
– Nazaré é muito longe –diz José.
31.4
– Nazaré? Mas vós deveis permanecer aqui. O Messias deve crescer
em Belém. É a cidade de Davi. O Altíssimo o conduziu, por meio da vontade
de César, para vir nascer na terra de Davi, a terra santa da Judéia. Por que,
então, levá-lo para Nazaré? Vós sabeis, como os nazarenos são mal vistos
pelos judeus. Amanhã este Menino deverá ser o Salvador do seu povo. E não
fica bem que a cidade capital despreze o seu Rei, só porque Ele vem de uma
terra que ela despreza. Vós sabeis, tanto quanto eu, como é caviloso o
Sinédrio, e como são orgulhosas as três castas principais… Além disso,
aqui, perto de mim, poderei ajudar-vos um pouco, e pôr tudo o que possuo,
não só de coisas materiais, mas de dons morais, a serviço deste Recém-
Nascido. E, quando Ele estiver na idade de compreender, serei feliz de ser-
lhe o mestre, como farei ao meu menino, a fim de obter que ele, depois de
grande, me abençoe. Devemos pensar que Ele está destinado a um futuro
brilhante e que por isso, deve poder apresentar-se ao mundo com todas as
cartas, para vencer facilmente a sua partida. Ele certamente possuirá a
Sabedoria. Mas só o fato de que tenha tido por mestre um sacerdote, o
tornará mais aceito aos difíceis fariseus e aos escribas e tornará mais fácil a
sua missão.
31.5
Maria olha para José e José olha para Maria. Sobre a cabeça inocente
do Menino, que está dormindo, todo rosado e despreocupado, cruza-se uma
troca muda de perguntas. E são perguntas veladas de tristeza. Maria está
pensando em sua casinha. José pensa no seu trabalho. Aqui tudo está por
refazer, num lugar onde, até poucos dias atrás, eles eram desconhecidos.
Aqui não há nada daquelas coisas queridas, que foram deixadas lá, e
preparadas com tanto amor para o Menino.
E Maria diz:
– Que vamos fazer? Lá deixamos tudo. José havia trabalhado tanto pelo
meu Jesus, sem poupar fadiga ou dinheiro. Havia trabalhado até de noite,
porque de dia trabalhava para os outros ganhando o necessário para comprar
as madeiras mais belas, a lã mais macia, o linho mais alvo, para Jesus. Ele
tinha construído colméias e trabalhado de pedreiro, para dar à casa uma
disposição melhor, a fim de que o berço pudesse ficar no meu quarto, e aí
permanecesse até que Jesus estivesse mais crescido e o berço daria lugar à
sua cama, pois Jesus ficará comigo até a adolescência.
– José pode ir lá buscar o que deixastes.
– E onde colocá-lo? Tu sabes, Zacarias, que nós somos pobres. Não
temos mais que nosso trabalho e a casa, isto é o que nos dá sustento, sem
passarmos fome. Mas aqui… trabalho poderemos achar, talvez. Mas teremos
sempre que pensar em uma casa. Esta boa mulher não pode nos hospedar
sempre. Eu não posso sacrificar José, mais do que ele já se sacrificou por
mim!
– Oh! Eu! Para mim não é nada! Eu penso na dor de Maria. A dor de não
estar em sua casa.
Maria solta duas grandes lágrimas.
– Eu penso que aquela casa lhe deve ser querida como o Paraíso, pelo
prodígio que nela se realizou. Eu falo pouco, mas entendo muito. Se não
fosse por isso, não me afligiria. Trabalharei dobrado, eis tudo. Sou forte e
jovem para trabalhar o dobro do que costumava, para prover a tudo. Se
Maria não sofrer muito, e se tu me dizes que é bom fazer assim… aqui estou.
Farei aquilo que vos parecer mais justo. Basta que a Jesus seja útil.
– Será útil, com certeza. Pensai nisso e vereis as razões.
– Também se diz que o Messias será chamado Nazareno[53] –objeta
Maria.
– É verdade. Mas, pelo menos enquanto não estiver adulto, fazei que Ele
cresça na Judéia. Diz o Profeta: “E tu, Belém Efrata, serás a maior porque de
ti sairá o Salvador.” Não fala de Nazaré. Pode ser que aquela denominação
lhe será dada por algum motivo a nós desconhecido. Mas a sua terra é esta.
– Tu o dizes, sacerdote, e nós… com dor, te estamos escutando… e te
atendemos. Mas, que dor!… Quando verei aquela casa, onde me tornei mãe?
Maria chora baixinho. E eu compreendo este seu pranto. Oh! se
compreendo!
A visão me cessa com este pranto de Maria.

Depois, Maria diz:


31.6

– Tu o compreendes! Eu sei. Mas me verás chorar mais fortemente


ainda.
Por ora, eu te alivio o espírito, mostrando-te a santidade de José, que
era homem, ou seja, que não tinha outra ajuda para o seu espírito, senão a
sua santidade. Eu tinha todos os dons de Deus, na minha condição de
imaculada. Embora não o soubesse, na minha alma esses dons eram ativos e
me davam forças espirituais. Mas ele não era imaculado. A natureza humana
estava nele com todo o seu peso grave, e ele devia erguer-se para a
perfeição com todo aquele peso, à custa de contínua fadiga de todas as suas
faculdades, para poder alcançar a perfeição e ser agradável a Deus.
Oh! Meu santo esposo! Santo em todas as coisas, até nas mais humildes
coisas da vida. Santo, pela sua castidade de anjo. Santo pela sua honestidade
de homem. Santo pela sua paciência, pela sua operosidade, pela sua
serenidade sempre igual, pela sua modéstia, por tudo.
Sua santidade brilha também neste acontecimento. Um sacerdote lhe diz:
“É bom que tu te estabeleças aqui”, e ele, mesmo sabendo quão maior será a
fadiga que irá encontrar, diz: “Para mim não é nada. Penso na dor de Maria.
Se não fosse por isso, por mim eu não me afligiria. Basta que isso seja útil a
Jesus.” Jesus e Maria são os seus angélicos amores. Não amou nada mais
sobre a terra, este meu santo esposo. E desse amor, ele mesmo se fez servo.
Já o fizeram protetor das famílias cristãs e dos trabalhadores, e de
muitas outras categorias. Mas, não somente dos agonizantes, dos esposos,
dos operários; deveria-se fazê-lo protetor, também dos consagrados. Qual
entre os consagrados da terra, a serviço de Deus, seja ele qual for, se terá
consagrado assim a serviço do seu Deus, aceitando tudo, renunciando a tudo,
suportando tudo, cumprindo tudo prontamente, com espírito alegre, com um
humor constante, como ele fez? Não, não há.
31.7
Eu te faço observar uma outra coisa, ou melhor, duas.
Zacarias é um sacerdote. José não é. Mas observa bem como aquele que
não é sacerdote tem o espírito no Céu, mais que o próprio sacerdote.
Zacarias pensa humanamente, interpretando assim as Escrituras, porque não
é a primeira vez que faz isso, e se faz guiar pelo bom senso humano. Por isso
ele foi castigado. Aqui ele está tendo uma recaída, ainda que menos grave.
Ele havia dito sobre o nascimento de João: “Como vai poder acontecer isso,
se eu já estou velho, e minha mulher é estéril?”. Agora ele está dizendo:
“Para tornar mais fácil a sua missão, o Cristo deve crescer aqui” e, com
aquela pequena raiz de orgulho, que persiste até nos melhores, pensa em
poder ser ele útil a Jesus. Não útil como quer ser José, servindo-o, mas útil,
fazendo-se mestre dele… Deus o perdoou pela boa intenção. Mas tinha, por
acaso, o “Mestre” necessidade de ter mestres?
Eu procurei fazê-lo ver a luz nas profecias, mas ele se julgava mais
douto do que eu, e usava esse seu julgamento a seu modo. Eu teria podido
insistir e vencer. Mas — e aqui está a segunda observação que desejo que
faças — eu respeitei o sacerdote pela sua dignidade, e não pelo seu saber.
31.8
O sacerdote é, geralmente, sempre iluminado por Deus. Disse
“geralmente” porque ele deve ser um verdadeiro sacerdote. Não é a veste
que consagra, é a alma. Para se julgar se alguém é verdadeiro sacerdote, é
necessário julgar o que sai de sua alma. Como disse o meu Jesus, é da alma
que saem as coisas que santificam ou contaminam, aquelas coisas que
informam todo o modo de agir de um indivíduo. Pois bem, quando alguém é
um verdadeiro sacerdote, é geralmente inspirado por Deus. Quanto aos
outros, é preciso que se tenha uma caridade sobrenatural, e que se reze por
eles.
Mas meu Filho te colocou a serviço desta redenção, e não digo mais
nada. Sê alegre, ao sofrer, para que aumentem os verdadeiros sacerdotes. E
tu, repousa na palavra de quem te guia. Crê e obedece ao seu conselho.
31.9
Obedecer salva sempre. Ainda quando não é bem perfeito o conselho que
se recebe.
Tu estás vendo. Nós obedecemos. E tudo correu bem. É verdade que
Herodes se limitou a fazer exterminar os meninos de Belém e dos arredores.
Mas satanás não teria podido impelir e propagar estas ondas de rancor até
bem mais longe, persuadindo todos os poderosos da Palestina a igual delito,
para fazer suprimir o futuro Rei dos judeus? Certamente teria podido. Teria
acontecido nos primeiros tempos de Cristo, quando a repetição dos
prodígios havia despertado a atenção das multidões e os olhos dos
poderosos. Como teríamos podido, então, se isso tivesse acontecido,
atravessar toda a Palestina, para vir da longínqua Nazaré até o Egito, a terra
hospitaleira aos hebreus perseguidos,carregando um bebê recém nascido, e
enquanto a perseguição se enfurecia? Foi muito mais fácil a fuga por Belém,
ainda que sendo uma fuga igualmente dolorosa.
A obediência salva sempre. Lembra-te disso. 31.10O respeito ao sacerdote
é sempre sinal de formação cristã. Ai! — foi Jesus que o disse — ai dos
sacerdotes que perdem sua chama apostólica! Mas ai também de quem acha
que lhe é lícito desprezá-los! Porque são eles que consagram e distribuem o
Pão verdadeiro que desce do Céu. Aquele contato os torna santos como um
cálice consagrado, mesmo se não são santos. Eles terão que responder a
Deus por isso. Vós, considerai-os como tais, e não vos preocupeis com
outras coisas. Não sejais mais intransigentes do que o vosso Senhor Jesus, o
qual, por ordem deles deixa o Céu, e desce para ser elevado por suas mãos.
Aprendei com Ele. Se eles são cegos, se são surdos, se têm a alma paralítica
e o pensamento doente, se são leprosos por muitas culpas em contraste com a
sua missão, se são Lázaros em seu sepulcro, chamai a Jesus para que os cure
e ressuscite.
Chamai-o com a vossa oração e com o vosso sofrimento, ó almas
vítimas. Salvar uma alma é predestinar a própria alma ao Céu. Mas, salvar
uma alma sacerdotal é salvar um grande número de almas, porque todo
sacerdote santo é uma rede que arrasta almas para Deus. Salvar um
sacerdote, ou seja, santificar, santificar de novo, é criar essa mística rede.
Tudo o que cair nessa rede é uma luz que se acrescenta à vossa eterna coroa.
Vai em paz.
[53] será chamado Nazareno, como refere também Mateus 2, 23 embora não se encontre uma verdadeira confrontação nos
Profetas. Por isso p arece significativa a exp ressão Se diz em vez do habitual Foi dito ou Está escrito. Próp rio p orque Nazareno
(assim chamado esp ecialmente em 604.35 e 608.2), isto é, de Nazaré em Galileia, Jesus é chamado também Galileu, como em
404.4 (onde, p ortanto, vem motivada o seu nascimento na Judeia) e em outros p ontos. O mesmo Jesus se define “o Galileu” em
590.21.
32. Apresentação de Jesus ao Templo.
A virtude de Simeão e a profecia de Ana.
1 de fevereiro de 1944.
32.1
Vejo sair de uma casinha muito modesta um casal de pessoas. De uma
pequena escada externa desce uma mãe muito jovem com um menino nos
braços, envolvido em um pano branco.
Reconheço esta nossa mamãe. É sempre ela, pálida e loira, elegante e
tão gentil em tudo o que faz. Está vestida de branco, com um manto azul
claro, no qual se envolve. Na cabeça traz um véu branco. Vai levando com
todo o cuidado o seu Menino.
Aos pés da escadinha, José a espera, ao lado de um burrinho cinzento.
José está todo vestido de cor marrom claro, tanto na túnica, como no manto.
Ele olha para Maria, e lhe sorri. Quando Maria chega perto do burrinho,
José passa a rédea do animal por baixo do braço esquerdo e segura, por um
momento, o Menino, que está dormindo tranqüilo, para que Maria possa
acomodar-se melhor na sela. Depois ele lhe devolve Jesus, e põem-se a
caminho.
José vai ao lado de Maria, segurando sempre o animal pela rédea, e
prestando atenção para que este vá sempre direito, e sem tropeçar. Maria
está com Jesus no colo e, como por temor de que o frio lhe possa fazer mal,
estende sobre ele um dos lados de seu manto. Os dois esposos falam pouco,
mas sorriem um para o outro freqüentemente.
A estrada, que está longe de ser um modelo de estrada, vai-se
estendendo pelo meio de um campo que, nesta estação do ano, está vazio.
Um ou outro viajante passa pelo casal, mas são raros.
32.2
Depois, eis as casas que vão aparecendo e alguns dos muros que
rodeiam as cidades. Os dois esposos entram por uma porta, começando o
percurso sobre o calçamento (muito irregular) da cidade. O caminho se torna
muito mais difícil, seja porque o trânsito os obriga a parar o burrinho com
frequência, seja porque este dá contínuas sacudidelas sobre as pedras e os
buracos, perturbando Maria e o Menino.
A estrada não é plana, é uma ladeira ainda que leve. Está apertada entre
as casas altas, de portinhas estreitas e baixas, com raras janelas, que dão
para a rua. No alto, o céu se mostra, com muitos retalhos do seu azul, entre
uma casa e outra, ou melhor, entre um e outro terraço. Em baixo, na rua, há
gente e vozerio, transeuntes que se encontram com aqueles que estão nos
seus jumentos, ou com os que conduzem jumentos com carga. Outros vão
indo atrás de alguma embaraçante caravana de camelos. Aum certo ponto,
passa uma patrulha de legionários romanos, com grande barulho de cascos e
de armas, desaparecendo atrás de um arco colocado em uma rua muito
estreita e pedregosa.
José vira para a esquerda, e entra por uma rua mais larga e mais bonita.
No fim desta vejo o muro de uma fortaleza, que eu já conheço.
Maria apeia do burrinho, junto à porta, onde há uma espécie de posto
para outros jumentos. Eu digo “posto”, porque é parecido com um barracão,
ou melhor, um telheiro, onde há palha pelo chão e umas estacas com argolas
onde se amarram os animais.
José dá algumas moedas a um homenzinho, que apareceu por ali,
conseguindo deste modo um pouco de feno e um cântaro de água tirada de um
poço velho que fica num canto, para alimentar o burrinho. Em seguida, vai
ao encontro de Maria, entrando com ela no recinto do Templo.
32.3
Dirigem-se primeiro para os pórticos, onde estão aqueles que Jesus
mais tarde fustigaria severamente: os vendedores de pombos e cordeiros e
os cambistas. José compra dois pombinhos brancos. Não troca o dinheiro.
Compreende-se que ele já tem a quantia certa.
José e Maria se dirigem a uma porta lateral, de oito degraus, como, me
parece, tenham todas as portas. É como se o cubo do Templo seja erguido do
solo. Esta porta tem um grande átrio, parecido com os portões de nossas
casas das cidades, mas seu átrio é mais amplo e adornado. Nele se
encontram à direita e à esquerda, duas espécies de altares, ou seja, duas
construções retangulares, cuja finalidade, a princípio, não compreendo bem.
Parecem baixas bacias, porque a parte interna é mais baixa do que a beirada
externa, que fica alguns centímetros mais alta.
Aparece um sacerdote, não sei se chamado por José, ou se tendo vindo
por si mesmo. Maria lhe oferece os dois pobres pombos e eu, que já sei qual
a sorte que eles vão ter, viro o olhar para o outro lado. Observo os ornatos
do pesado portal, do teto e do átrio. Mas parece-me ver, com o rabo do olho,
o sacerdote aspergir Maria com água. Deve ser água, porque não vejo
ficarem manchas em sua veste. Depois, Maria que, junto com os pombinhos
tinha dado uma porção de moedas ao sacerdote (eu me tinha esquecido de
dizer isso), entra com José no Templo verdadeiro e propriamente dito,
acompanhada pelo sacerdote.
Eu olho para todos os lados. É um lugar cheio de adornos. Esculturas de
cabeças de anjos, palmas e outros ornatos estão sobre as colunas, sobre as
paredes e o teto. A luz penetra por curiosas janelas longas e estreitas,
naturalmente sem vidros, abertas em diagonal sobre a parede. Suponho que
seja para impedir a entrada dos aguaceiros.
32.4
Maria segue até um certo ponto, onde pára. A alguns metros há outros
degraus, e acima deles há outra espécie de altar, por trás do qual, há ainda
uma construção.
Percebo agora que eu achava que estivesse no Templo, mas me
encontrava na parte que contorna o Templo verdadeiro e propriamente dito,
isto é, o Santo, dentro do qual ninguém, a não ser os sacerdotes, acho que
podem entrar. Aquilo que eu pensei que fosse o Templo não é mais do que
um vestíbulo fechado, que cerca em três partes o Templo, onde está
encerrado o Tabernáculo. Não sei se me expliquei bem. Mas não sou
arquiteta, nem engenheira.
Maria oferece ao sacerdote o Menino, que acabou de despertar e está
movendo os olhinhos inocentes ao redor de si próprio, com aquele olhar
espantado dos bebês de dias. O sacerdote o toma em seus braços, e o ergue,
virado para o Templo, junto àquela espécie de altar, que está acima dos
degraus. O rito terminou. O Menino é restituído à mamãe, e o sacerdote se
retira.
32.5
Há várias pessoas olhando, curiosas. Um velhinho encurvado abre
caminho entre essas pessoas, mancando, e apoiando-se num bastão. Deve ter
muita idade, eu diria, mais de oitenta anos. Aproxima-se de Maria, pedindo-
lhe que o deixe pegar o Menino por um instante. Maria atende ao seu pedido,
sorrindo.
Simeão pega o Menino e o beija. Eu sempre acreditei que ele
pertencesse à classe sacerdotal, mas ao invés parecer ser apenas um simples
fiel, a julgar pelas suas roupas. Jesus lhe sorri, fazendo aquela caretinha
cheia de dúvidas, característica das crianças de peito. Parece que o observa
com curiosidade, porque o velhinho está chorando e rindo ao mesmo tempo,
e suas lágrimas fazem um verdadeiro bordado de pontinhos de luz,
brilhando, enquanto vão-se insinuando por entre as rugas, enchendo de
pérolas a barba longa e branca, para a qual Jesus estende as mãozinhas. É
Jesus, mas é sempre um bebê, e tudo o que se move à sua frente lhe chama a
atenção, e lhe dá vontade de pegar para conhecer melhor, seja lá o que for.
Maria e José sorriem, e também os presentes, que elogiam a beleza do
Pequenino.
Ouço as palavras[54] do velho santo, e vejo o olhar espantado de José, o
olhar comovido de Maria e também da pequena multidão, em parte admirada
mas também comovida, tomada pela alegria pelas palavras do velho. No
meio da pequena multidão estão alguns barbudos e enfatuados sinedritas, que
balançam a cabeça, olhando para Simeão com uma compaixão zombeteira.
Devem pensar que está fora de seu juízo, pela idade.
32.6
O sorriso de Maria se apaga e se transforma em uma acentuada
palidez, quando Simeão lhe anuncia sua futura dor. Por mais que ela já o
saiba, esta palavra lhe aflige o espírito. Ela se aproxima ainda mais de José,
em busca de conforto, apertando com sentimento o seu Menino ao seio,
bebendo, como alma sequiosa, as palavras de Ana[55] que, sendo mulher, tem
piedade do sofrimento de Maria, e lhe promete que o Eterno amenizará com
uma força sobrenatural, a hora de sua dor:
– Mulher, para aquele que deu o Salvador ao seu povo, não faltará poder
para mandar um anjo confortar-te no teu pranto. Nunca faltou a ajuda do
Senhor às grandes mulheres de Israel, e tu és bem mais do que Judite e Jael.
O nosso Deus te dará um coração de ouro puríssimo, para que possas resistir
ao mar de dor, pelo qual te tornarás a maior mulher da criação, a Mãe. E tu,
Menino, lembra-te de mim, na hora da tua missão.
E aqui cessa minha visão.

2 de fevereiro de 1944.
32.7
Jesus diz:
– Nascem dois ensinamentos para todos, da descrição que fizeste.
O primeiro: Não é a um sacerdote mergulhado nos ritos, mas o espírito
ausente, e, sim, a um simples fiel que a verdade se revela.
O sacerdote, sempre em contato com a Divindade, voltado a tudo que é
relacionado a Deus, dedicado a tudo o que está acima da carne, deveria ter
percebido logo quem era o Menino que estava sendo oferecido ao Templo,
naquela manhã. Mas, para que pudesse pressentir, precisava de um espírito
vivo. Não simplesmente de uma veste para cobrir um espírito, que, se não
estava morto, estava muito adormecido.
O Espírito de Deus pode, se quiser, trovejar e sacudir, como um raio e
um terremoto, até o espírito mais obtuso. Isto Ele pode. Mas geralmente,
visto que Ele é Espírito de ordem, dado que Deus é ordem em cada uma de
Suas Pessoas e em Seu modo de agir, Ele se expande e se comunica, não
digo só onde há merecimento suficiente para receber a sua efusão (e nesse
caso, seriam poucos os casos em que Ele se expandiria, nem mesmo tu
conhecerias as suas luzes) mas, sim, onde Ele vê “boa vontade” em merecer
a sua efusão.
Como se explica essa boa vontade? Tanto quanto possível, com uma
vida inteira em Deus. Na fé, na obediência, na pureza, na caridade, na
generosidade, na oração. Não tanto no ativismo, mas na oração. Há uma
diferença menor entre a noite e o dia, do que entre o ativismo e a oração. A
oração é comunhão de espírito com Deus, da qual, vós saís revigorados e
decididos a serdes sempre mais d’Ele. O ativismo é um hábito qualquer,
feito por diversos fins, mas sempre egoístas, deixando-vos como sois, ou
melhor, vos agrava até de uma culpa de mentira e de acídia.
32.8
Simeão tinha esta boa vontade. A vida não lhe tinha poupado trabalhos
e provações. Mas ele não perdeu a boa vontade. Os anos e as vicissitudes
não tinham enfraquecido nem abalado a sua fé no Senhor, nas Suas
promessas, e não tinham diminuido a sua boa vontade de ser sempre mais
digno de Deus. Antes que os olhos de seu servo fiel se fechassem à luz do
sol, na esperança de se reabrirem ao Sol de Deus rutilando nos Céus (que
seriam abertos, quando Eu lá subisse, após o meu martírio) Deus lhe mandou
um raio do Espírito, que o guiou ao Templo para ver a Luz do mundo.
“Movido pelo Espírito Santo”, diz o Evangelho. Oh! Se os homens
soubessem que Amigo perfeito é o Espírito Santo! Que Guia, que Mestre! Se
amassem e invocassem, este Amor da Santíssima Trindade, esta Luz da Luz,
este Fogo do Fogo, esta Inteligência, esta Sabedoria! Muito além do
necessário, eles haveriam de saber!
Escuta, Maria; escutai, meus filhos: Simeão esperou durante toda uma
longa vida para “ver a Luz”para saber que a promessa de Deus estava
cumprida. Mas ele nunca duvidou. Nunca disse a si mesmo: “É inútil que eu
persevere em esperança e em oração.” Ele perseverou. E alcançou a graça
de “ver” o que nem o sacerdote, nem os sinedritas, cheios de soberba e
opacidade, viram: o Filho de Deus, o Messias, o Salvador naquele corpo
infantil, que lhe dava calor e sorrisos. Ele recebeu portanto o sorriso de
Deus, como primeiro prêmio de sua vida honesta e piedosa, através dos
meus lábios de Menino.
Segunda lição: As palavras de Ana. Também ela, que é profetisa, vê o
32.9

Messias em Mim, recém-nascido. Isto é natural, dada a sua capacidade de


profecia. Mas escuta, escutai o que ela, inspirada pela fé e pela caridade, diz
à minha mãe. Tirai disto luz para o vosso espírito, para que ele rejubile neste
tempo de trevas, nesta festa da Luz. “A Ruem deu um Salvador não faltará o
poder de dar o seu anjo para confortar o teu, o vosso pranto.”
Pensai que Deus deu-se a si mesmo, para anular a obra de satanás nos
espíritos. Agora não poderá Ele vencer os satanases que vos torturam? Não
poderá enxugar o vosso pranto, derrotando esses satanases e enviando-vos
de novo a paz do seu Cristo? Por que não o pedir com fé? Fé verdadeira,
poderosa, uma fé, diante da qual, o rigor de Deus, desprezado por vossas
inúmeras culpas, caia com um sorriso, trazendo o perdão como ajuda,
trazendo a sua bênção, como arco-íris sobre esta terra que está submergindo
em um dilúvio de sangue procurado por vós mesmos?
Pensai: O Pai, depois de ter castigado os homens com o dilúvio,
disse[56] a Si mesmo e ao Seu patriarca: “Não amaldiçoarei mais a terra por
causa dos homens, porque os sentidos e os pensamentos do coração do
homem estão inclinados para o mal, desde a adolescência; portanto, não
ferirei o ser vivo mais uma vez.” Ele foi fiel à Sua palavra. Não mandou
mais o dilúvio. Mas vós, muitas vezes já dissestes a vós mesmos e a Deus:
“Se nos salvarmos desta vez, se nos salvas, não faremos mais guerras, nunca
mais.” E depois sempre continuais fazendo guerras, cada vez mais
tremendas. Quantas vezes, ó homens falsos e sem respeito para com o Senhor
é a vossa palavra? No entanto, Deus vos ajudaria ainda uma vez, se a grande
massa dos fiéis o chamasse com fé e amor poderoso.
Escutai, ó vós todos — que, sendo muito poucos para contrabalançar os
muitos que estão mantendo vivo o rigor de Deus, permanecei devotos a Ele,
não obstante a hora tremenda que ameaça crescer a cada instante — e
colocai as vossas aflições aos pés de Deus. Ele saberá mandar-vos o Seu
anjo, como mandou o Salvador ao mundo. Não temais. Ficai unidos à Cruz.
Ela sempre venceu as insídias do demônio, que, por meio da ferocidade dos
homens e das tristezas da vida, procura o domínio dos homens pelo
desespero, isto é, pela separação de Deus, pois não pode apoderar-se dos
corações de outra maneira.
[54] as palavras, que são referidas em: Lucas 2,27-35.
[55] Ana, é Ana de Fanuel.
[56] disse, como é referido em: Génesis 8,21.
33. A Canção de Ninar da Virgem.
22 de novembro de 1944.
[…].
33.1
Esta manhã tive um despertar suave. Ainda estava entre as névoas do
sono, e ouvia, uma voz muito clara, que cantava docemente uma lenta canção
de ninar. Parecia uma pastoral de Natal, num ritmo vagaroso e antigo. Eu ia
acompanhando aquele motivo e aquela voz, sempre mais me deleitando, e fui
acordando, ao som daquelas ondas suaves. Finalmente, despertei
completamente, e pude compreender. Então disse: “Eu te saúdo, Maria, cheia
de graça!”, pois era a mãe que estava cantando. E ela começou a cantar mais
forte, depois de ter dito: “Eu também te saúdo. Vem, e sê feliz!”
Eu a vi. Estava na casa de Belém, no quarto que ela ocupava, atenta em
embalar Jesus, para fazê-lo dormir. No quarto estava o tear de Maria e uns
trabalhos de costura. Parecia que Maria tivesse parado o trabalho para dar
de mamar ao Menino, trocar-lhe as faixas, ou melhor, as fraldas, pois ele já
era um bebê de meses. Diria seis ou oito meses, no máximo, e ela estava
pensando em voltar ao trabalho, assim que o Menino tivesse adormecido.
Já era fim de tarde. O pôr-do-sol estava quase terminando, espalhando
flocos de ouro pelo céu sereno. Os rebanhos voltavam ao cercado, pastando
aqui e acolá as últimas folhas de um prado florido, e baliam, levantando o
focinho.
O Menino custava a adormecer. Parecia estar um pouco inquieto, como
os bebês costumam ficar por causa do nascer dos dentes, ou por algum outro
desconforto do nascituro.
33.2
Escrevi, como pude, no escuro daquela hora matinal, num pedaço de
papel, e agora o copio aqui:

“As nuvenzinhas douradas – quais rebanhos do Senhor.


Sobre o prado todo em flor – um outro rebanho está a olhar.
Mas se eu tivesse todos os rebanhos – que estão sobre a terra
Meu cordeirinho querido – haverias de ser sempre Tu…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…
Mil estrelas reluzentes – estão no céu a olhar.
Tuas serenas pupilas – não as faças mais chorar.
Os teus olhos de safira – são as estrelas do meu coração.
O teu pranto é a minha dor! – Oh! Não chores mais…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…

Todos os anjos resplandecentes – que no Paraíso estão,


fazem coroa a Ti inocente – para encantar-se com teu rosto.
Mas Tu choras. Queres a mamãe. – Queres a mamãe, mamãe,
aqui pertinho cantando: – nana nenê, nana nenê…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…

Depois o céu se tornará cor-de-rosa – pela aurora que retorna,


e a mamãe ainda não repousa – para não te deixar chorar.
Ao despertar, dirás: “mamãe!” – “Filho!”, eu te direi,
e um beijo de amor e vida – junto ao leite te darei…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…

Sem mamãe não podes estar – nem mesmo no Céu sonhando.


Vem ficar sob o meu véu, que eu te farei dormir.
O meu peito será teu travesseiro – os meus braços o teu berço.
Não tenhas medo algum! – Eu estou aqui Contigo…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…

Eu Contigo estarei sempre. – És a vida do meu coração…


Ele dorme… Parece uma flor – pousado sobre o meu seio…
Ele dorme… Não perturbem! – seu Pai Santo estará vendo?
Esta vista enxuga o pranto – do meu doce Jesus…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…

33.3
Falar da graça desta cena, é impossível. Não é mais que uma mãe que
embala o seu pequenino. Mas é aquela mãe, e Ele é aquele Pequenino!
Poderia pensar que graça, que amor, que pureza, que Céu há nesta pequena,
grande e suave cena, que só com sua lembrança me alegra. Para confirmá-la
fica a melodia, que eu repito para mim. Para fazê-la ouvir também a ela. Mas
eu não tenho aquela voz de Maria, de prata, puríssima, a voz virginal!… E,
ao cantar, ficarei parecendo um realejo sem sonoridade. Mas, não importa.
Farei como puder. Que bela canção não seria, para ser cantada em torno ao
Berço de Natal!
A mãe antes balançava o berço. Mas depois, vendo que Jesus não se
aquietava, tomou-o no colo, sentou-se perto da janela aberta, ao lado do
bercinho e, balançando-o levemente, ao ritmo do canto, repetiu a cantiga
duas vezes, até que o pequeno Jesus fechou os olhinhos, inclinou a cabecinha
sobre o peito materno, e adormeceu assim, com o rostinho comprimido no
calor bom daquele seio, com uma das mãozinhas apoiada sobre o seio da
mãe, perto de seu rostinho rosado, e a outra mão abandonada sobre o colo
materno. O véu de Maria fazia sombra para o santo Filhinho.
Depois Maria se levantou, com o maior dos cuidados, e colocou o seu
Jesus no bercinho, cobrindo-o com os pequenos panos, estendeu por cima um
véu para protegê-lo das moscas e do ar, e ficou parada ali, contemplando o
seu Tesouro adormecido. Maria tinha uma mão sobre o coração, e a outra
ainda apoiada sobre o berço, pronta para balançá-lo, se houvesse algum
sinal de que o menino ia despertar, e sorria, feliz, estando um pouco
inclinada, enquanto as sombras e o silêncio desciam sobre a terra e invadiam
o quartinho da Virgem.
Que paz! Que beleza! Que felicidade!
33.4
Não é uma visão grandiosa, talvez seja julgada inútil no conjunto das
outras porque não revela nada de especial. Eu sei. Mas para mim é uma
verdadeira graça, e assim a reputo, porque torna plácido o meu espírito,
puro e amoroso, como se estivesse sendo recriado pelas mãos da mãe. Penso
que também a ela será agradável por este motivo. Somos todos “crianças.”
Melhor assim! Desta forma agradamos a Jesus. Os outros, doutos e
complicados, pensem o que quiserem, e nos chamem de “pueris.” Nós não
nos preocupamos com isso, não é mesmo?
34. Adoração dos Magos. É “Evangelho da fé”.
28 de fevereiro de 1944.
34.1
Meu monitor interior me diz:
– Dá a estas contemplações[57] que terás, e ao que irei te ditar o nome de
“evangelhos da fé”, porque virão ilustrar o poder da fé e dos seus frutos, a ti
e aos outros, confirmando-vos na fé em Deus.

Vejo Belém pequena e branca, toda recolhida como uma ninhada, sob
34.2

a luz das estrelas. Duas ruas principais a cortam em cruz, uma que vem de
fora da cidade, e é a rua mestra que depois prossegue além da cidade, e a
outra, que vai de uma à outra extremidade da cidade, mas sem ultrapassá-la.
Outras vielas repartem esta pequena cidade, sem a menor norma de um plano
de ruas como nós o concebemos, pelo contrário, adaptam-se a um solo cheio
de desníveis e às casas que surgem aqui e ali, segundo os caprichos do solo
e de seus construtores. De tal modo que possam servir de esquinas para a rua
que passa ao lado, obrigando esta a ficar como uma fita que vai-se
desenrolando sinuosamente, em vez de seguir uma linha reta, que vai daqui
até lá, sem desvios. De vez em quando, aparece uma pracinha: ou é a
pracinha de uma feira, ou por ali há alguma fonte, ou, então, por causa do
costume de construir aqui e ali sem nenhuma regra, sobrou um resto
enviesado de terreno, sobre o qual já não é possível construir mais nada.
No ponto em que tive a idéia de parar um pouco, há um exemplo dessas
pracinhas irregulares. Ela deveria ser quadrada ou, pelo menos, retangular.
Mas, ao contrário, saiu um trapézio tão estranho, que ficou parecendo um
triângulo agudo, cortado perto do vértice. No lado mais longo, o da base do
triângulo, há uma construção ampla e baixa. É a maior construção da cidade.
Por fora passa um paredão liso e nu, no qual se abrem apenas dois portões
que estão bem fechados. Por dentro, ao invés, no seu largo quadrado, abrem-
se muitas janelas no primeiro plano, enquanto embaixo ficam os pórticos,
que cercam os pátios cheios de palha e de detritos espalhados pelo chão,
com tanques, onde os cavalos e outros animais são levados para beber. Nas
rústicas colunas dos pórticos existem argolas às quais ficam amarrados os
animais, e há também um grande telheiro para abrigar os rebanhos e
cavalgaduras. Compreendo que aqui é o albergue de Belém.
Sobre os dois lados iguais há casas e casinhas, tendo algumas hortas à
frente, porque entre elas há uma que está com a fachada para a praça, e outra
com os fundos da casa para a mesma praça. Do lado mais curto, defronte ao
caravançará, há uma casinha isolada com uma pequena escada externa que,
ao meio da fachada, dá entrada para os quartos dos moradores. Os quartos
estão todos fechados, porque agora é noite. E a esta hora, não há ninguém
pelas ruas.
34.3
Vejo que a noite vai-se tornando mais clara pela luz das estrelas que
descem do céu; são tão belas no céu do Oriente, tão vivas e grandes, que até
parecem estar perto de nós, e que nos será fácil alcançá-las e tocar com a
mão essas flores que brilham no veludo do firmamento. Elevando o olhar,
tento compreender qual será a fonte deste aumento de luz. É uma estrela, de
grandeza extraordinária, que a faz parecer uma pequena lua, que vem
avançando pelo céu de Belém. As outras estrelas parecem eclipsar-se,
abrindo caminho para ela, como servas diante de sua rainha que vai
passando, pois a tal ponto ela as supera em brilho, que as faz desaparecer!
Do corpo da estrela, que parece uma grande safira clara e acesa por um sol
que está no seu interior, sai uma esteira de luz, na qual fundem-se o loiro dos
topázios, o verde das esmeraldas, o leitoso das opalas, o sanguíneo fulgor
dos rubis e o suave cintilar das ametistas, com a cor predominante da safira.
Todas as pedras preciosas da terra estão naquela esteira de luz, que vem
varrendo o céu, num movimento veloz e ondulante, como se fosse viva. Mas
a cor que predomina é a que desce do corpo da estrela: uma cor celeste de
safira clara, que tinge de prata azulada as casas, as ruas e o chão de Belém,
berço do Salvador. Já não é mais a pobre cidade, que para nós era menos
importante do que um povoado rural. Agora, é uma fantástica cidade dos
contos de fada, na qual tudo é de prata. Até a água das fontes e dos tanques
parece de diamante líquido.
Emitindo um fluxo de luz mais vivo, a estrela paira sobre a pequena
casa, que está do lado mais curto da pracinha. Nem os moradores da casa,
nem os habitantes de Belém a vêem, porque estão dormindo, e suas casas
estão fechadas; mas a estrela acelera as suas palpitações de luz, faz vibrar
sua cauda, e solta ondulações luminosas mais fortes, traçando pequenos
semicírculos no céu, que se ilumina todo com esta rede de astros que ela
arrasta consigo, numa rede de pedras preciosas, que esplendem, tingindo nas
mais indistintas cores as outras estrelas, como para comunicar-lhes uma
palavra de alegria.
A casinha está toda iluminada por este fogo líquido de gemas. O teto do
pequeno terraço, a escadinha de pedra escura, a pequena porta, tudo virou
um bloco de pura prata, polvilhado com pó de diamantes e pérolas. Nenhum
palácio real da terra jamais teve, ou terá, uma escada como esta, feita para
receber a passagem dos anjos, feita para ser usada pela mãe, que é mãe de
Deus. Seus pequenos pés de virgem imaculada podem pousar sobre aquele
cândido esplendor, os seus pequenos pés destinados a pousar sobre os
degraus do trono de Deus. Mas a virgem ainda não está sabendo de nada. Ela
está velando sobre o berço de seu Filho, rezando. Sua alma tem esplendores
que superam a estrela que está embelezando as coisas.
34.4
Da rua mestra, vem chegando uma cavalgada. Cavalos arreados ou
conduzidos a mão, dromedários e camelos, montados ou carregados com
suas cargas. O barulho dos cascos faz um rumor como o da água, quando cai
sobre as pedras de um riacho. Reunidos na praça, todos param. A cavalgada,
vista sob a luz da estrela, é fantástica em seu esplendor. Os ornamentos de
primeira classe sobre as cavalgaduras, as vestes dos cavaleiros, o seu
aspecto, as bagagens, tudo está brilhando, unindo e reavivando, o esplendor
do metal, do couro, da seda, das pedras preciosas, dos pelos, ao brilho da
estrela. Os olhos também cintilam, as bocas se enchem de riso, porque um
outro esplendor brilhou nos corações: o esplendor de uma alegria
sobrenatural.
Enquanto os servos se põem a caminho do caravançará com os animais,
três da caravana desmontam de suas cavalgaduras, que um servo logo leva
para outro lugar, dirigindo-se a pé para a casa. Prostram-se com a fronte até
o chão, beijando o pó. São três poderosos. Isto é o que nos estão dizendo as
suas vestes, riquíssimas. Um, de pele muito escura, tendo apeado de um
camelo, envolve-se todo num manto de seda brilhante, ajustado à cinta por
um aro precioso do qual pendem um punhal ou uma espada, tendo esta o
punho cravejado de pedras preciosas. Os outros, que apearam de dois
esplêndidos cavalos, estão vestidos, um de um tecido listrado muito bonito,
no qual predomina a cor amarela, com uma veste feita como um longo
dominó, ornado com capuz e cordão, parecendo um só trabalho de filigrana
de ouro, com muitos pespontos de bordados em ouro. O terceiro traz uma
espécie de camisa de seda, calças largas e longas, que se estreitam perto dos
pés e se envolve com um xale muito fino, que mais parece um jardim florido,
de tão vivas que são as flores com que está todo decorado. Na cabeça traz
um turbante preso por uma correntinha feita de engastes, com diamantes.
Depois de terem venerado a casa onde está o Salvador, eles se
levantam, e vão até o caravançará, onde os servos já bateram à porta,
fazendo-a abrir.
Aqui cessa a visão, 34.5que recomeça, três horas depois, com a cena da
adoração de Jesus pelos Magos.
Agora, já é dia. Um belo sol resplende no céu da tarde. Um dos três
servos atravessa a praça e sobe a escadinha da pequena casa. Depois, entra.
Torna a sair. Volta ao albergue.
Saem os três sábios, acompanhados cada um pelo próprio servo.
Atravessam a praça. Os raros transeuntes viram-se para olhar os pomposos
personagens que passam pela praça lentamente e com solenidade. Entre a
entrada do servo e aquela dos três, passou-se um bom quarto de hora, e esse
tempo serviu aos moradores da casinha para se prepararem a receber os
hóspedes.
Eles se mostram agora mais ricamente vestidos do que na tarde anterior.
As sedas resplendem, as gemas brilham, um grande penacho de penas
preciosas entremeadas com fragmentos ainda mais preciosos, tremula e
cintila sobre a cabeça daquele que está com o turbante.
Os servos vão levando, um deles um cofre todo marchetado, cujas partes
mais reforçadas são de ouro burilado; o segundo leva um cálice muito bem
trabalhado, coberto com uma tampa ainda mais artística, toda de ouro; o
terceiro leva uma espécie de ânfora larga e baixa, também de ouro, tampada
com uma peça em forma de pirâmide, com um brilhante no vértice. Devem
ser coisas pesadas, porque os servos que as transportam estão fazendo muita
força, especialmente o que transporta o cofre.
Os três sobem a escada e entram. Entram em um quarto, que se estende
da rua até os fundos da casa. Vê-se a pequena horta na parte posterior da
casa, por uma pequena janela aberta ao sol. Outras portas se abrem nas duas
outras paredes, e olhando de soslaio, lá estão os proprietários: um homem e
uma mulher, três ou quatro adolescentes e crianças.
34.6
Maria está sentada com o Menino no colo, perto dela, em pé, está
José. Mas ela também se levanta e se inclina, quando vê entrar os três
Magos. Maria está toda vestida de branco. Tão bonita na sua simples veste
cândida, que a cobre da base do pescoço até aos pés, dos ombros aos
delicados pulsos, tão bonita em sua cabeça pequena e coroada de tranças
loiras, no rosto que a emoção faz ficar vivamente rosado, nos olhos que
sorriem com doçura, na boca que se abre para a saudação, dizendo: “Deus
esteja convosco”, que, por um instante, os três se detêm, impressionados.
Depois, eles dão mais alguns passos para a frente, indo prostrarem-se aos
seus pés. Pedem a ela que se assente.
Eles, por sua vez, não se sentam, por mais que ela lhes peça. Ficam de
joelhos, apoiados sobre os calcanhares. Atrás deles, também de joelhos,
estão os três servos. Estes estão logo atrás da soleira. Eles puseram diante
de si os três objetos que levaram, e estão esperando.
Os três sábios contemplam o Menino, que me parece ter de nove meses a
um ano, de tão esperto e robusto que está! Ele está sentado no colo da
mamãe, sorri e balbucia com uma vozinha de passarinho. Ele também está
todo vestido de branco, como a mamãe, com sandalinhas nos pés
minúsculos. Sua veste é muito simples: uma pequena túnica, da qual saem os
pezinhos irrequietos, as mãozinhas gorduchas que gostariam de apanhar tudo
o que os olhos vêem, e, sobretudo seu rostinho muito bonito, no qual brilham
os olhos de um azul escuro, enquanto a boca faz umas covinhas aos lados,
quando ele ri, descobrindo os primeiros dentinhos pequenos. Os
caracoizinhos de seus loiros cabelos parecem ouro puro em pó, de tão leves
e brilhantes que são.
34.7
O mais velho dos sábios fala por todos. Explica a Maria que eles
viram, numa noite no mês de dezembro passado, acender-se uma nova estrela
no céu com esplendor fora do comum. Nunca os mapas do céu tinham trazido
aquele astro, nem falado nele. O seu nome não era conhecido, porque não
tinha nome. Tendo, então, nascido do seio de Deus, aquela estrela teria
aparecido para vir dizer aos homens alguma verdade bendita, algum segredo
de Deus. Mas os homens não lhe haviam dado importância, estando eles com
a alma presa na lama. Não eram capazes de levantar o olhar para Deus, não
sabendo ler as palavras escritas por Ele, eterno bendito, com seus astros de
fogo na abóbada dos céus.
Eles a tinham visto, e se esforçaram para escutar sua voz. Deixando,
pois, de lado, mas com alegria, o pouco descanso do sono que concediam
aos seus membros, esquecendo-se até de comer, eles se haviam aprofundado
no estudo do zodíaco. As conjugações dos astros, o tempo, a estação, o
cálculo das horas passadas e das combinações astronômicas lhes haviam
dito o nome e o segredo da estrela. O seu nome: “Messias.” E o seu segredo:
“O Messias veio ao mundo.” Então, partiram para adorá-lo. Cada um deles,
sem os outros dois saberem. Por montes e desertos, vales e rios, viajando de
noite, foram tomando o rumo da Palestina, porque este era o rumo da estrela.
Para cada um deles, vindo de três pontos diferentes da terra, ela ia naquele
rumo. Eles se tinham encontrado depois, além do Mar Morto. A vontade de
Deus os tinha reunido lá, e continuaram a viagem, juntos, se entendiam, ainda
que cada um falasse a sua própria língua, entendendo e podendo falar a
língua de cada região em que se achassem, por um milagre do Eterno.
Juntos tinham ido a Jerusalém, porque o Messias devia ser o Rei de
Jerusalém. O Rei dos judeus. Mas lá a estrela se tinha escondido, sob o céu
daquela cidade, e eles sentiram seus corações partirem-se de dor,
começando então a examinar suas consciências, para descobrirem se não
teriam deixado de merecer a proteção de Deus. Mas, tranqüilizadas suas
consciências, haviam se dirigido ao rei Herodes – perguntando-lhe em que
palácio havia nascido o Rei dos judeus, pois eles o tinham vindo adorar. O
rei, tendo reunido os príncipes dos sacerdotes e os escribas, lhes perguntou
onde se esperava que nascesse o Messias. Eles lhe responderam: “Em
Belém de Judá.”
Tomaram, pois, os Magos o rumo de Belém, e a estrela tornou a
aparecer aos seus olhos. Quando deixaram a Cidade Santa, na tarde anterior,
a estrela tinha aumentado seus esplendores, e o céu parecia um incêndio.
Depois, a estrela parou, reunindo toda a luz das outras estrelas com a sua
luz, sobre esta casa. Então, eles compreenderam que ali estava o Filho de
Deus. E agora o estavam adorando, oferecendo-lhe os seus pobres presentes
e, mais do que tudo, oferecendo-lhe os seus corações, que nunca mais
cessariam de bendizer a Deus pela graça concedida, nem de amar o seu
Filho, cuja Humanidade eles estavam vendo. Depois, iriam, na volta,
informar ao rei Herodes, porque ele também queria adorar o Menino.
34.8
– Aqui tens o ouro, como convém a um rei; aqui tens o incenso, como
convém a Deus; e aqui tens, ó mãe, a mirra, pois o teu Filho é Homem, além
de Deus e da carne e da vida humana conhecerá a amargura e a lei inevitável
da morte. Nosso amor não queria dizer-lhe estas palavras, mas ficar sempre
pensando que Ele é eterno, até em sua carne, como eterno é o seu Espírito.
Mas, ó mulher, se os nossos mapas, e também as nossas almas, não erram,
Ele é o teu Filho, é o Salvador, o Cristo de Deus, e por isso deverá, para
salvar a terra, tomar para Si o seu mal, um dos quais é o castigo da morte.
Esta resina é para aquela hora. Para que os corpos que são santos não
conheçam a putrefação da corrupção, e conservem sua integridade até o dia
da ressurreição. Que por estes nossos presentes Ele se lembre de nós e salve
a estes seus servos, dando-lhes o seu Reino. Por enquanto, para que sejamos
santificados, que a mãe, conceda o seu Pequenino ao nosso amor, para que,
beijando os seus pés, desça sobre nós a bênção celestial.
Maria, passada a angústia em que as palavras do sábio a haviam
mergulhado, esconde, com um sorriso, a tristeza daquelas fúnebres
evocações, e lhes apresenta o Menino. Coloca-o nos braços do mais velho,
que o beija e é por ele acariciado, e depois o passa para os outros dois.
Jesus sorri, e brinca com as correntinhas e as franjas dos três e olha com
curiosidade o cofre aberto, cheio de uma coisa amarela que brilha, e ri, ao
ver que o sol faz uma espécie de arco-íris, ao bater sobre a brilhante tampa
da mirra.
34.9
Depois, os três entregam a Maria o Menino, e se levantam. Maria
também se levanta. Inclinam-se reciprocamente, depois que o mais novo da
ordens ao seu servo, que sai. Os três falam ainda um pouco. Não conseguem
decidir-se a se afastarem daquela casa. Em seus olhos há lágrimas de
emoção. Por fim, eles se dirigem à saída, acompanhados por Maria e José.
O Menino quis descer e dar a mãozinha ao mais velho dos três, e
caminha assim, ajudado pela mão de Maria e do sábio, que se inclinaram
para pegá-lo pela mão. Jesus dá um passinho ainda incerto como fazem os
pequeninos e ri, batendo os pezinhos sobre os riscos que a luz do sol faz
sobre o pavimento.
Chegando à soleira (não se deve esquecer que o salão tinha o mesmo
comprimento da casa) os três se despedem, ajoelhando-se mais uma vez e
beijando os pezinhos de Jesus. Maria, inclinada sobre o Pequenino, toma-lhe
a mãozinha, e a vai guiando, fazendo-o traçar um gesto de bênção sobre a
cabeça de cada um dos Magos. É já um sinal da cruz[58], traçado pelos
dedinhos de Jesus, guiados por Maria.
Depois, os três descem a escada. A caravana já pronta os está
esperando. Os cavalos já estão arreados e seus arreios ornados brilham aos
últimos raios do sol, que está para se pôr. O povo se aglomerou na pracinha
para presenciar aquele espetáculo único.
Jesus ri e bate as mãozinhas. A mamãe o ergueu e colocou sobre o
parapeito, que limita o patamar, segurando-o com um dos braços para que
não caia. José desceu com os três e segura para cada um deles o estribo,
enquanto eles sobem em seus cavalos e no camelo.
Agora os servos e os patrões estão montados. É dada a ordem de partir.
Os três se inclinam até o pescoço da cavalgadura, em uma última saudação.
José também se inclina. Maria também o faz, e torna a guiar a mãozinha de
Jesus, em um gesto de adeus e de bênção.

34.10
Jesus diz:
– E agora? Que vos direi, ó almas, que percebeis que a fé está mor‐
rendo? Aqueles sábios do Oriente nada tinham que lhes desse a certeza da
verdade. Nada tinham de sobrenatural. Tinham apenas os cálculos
astronômicos e as suas reflexões, que a vida íntegra, que eles levaram,
tornava perfeitas. Contudo, tiveram fé. Fé em tudo: fé na ciência, fé na
consciência, fé na bondade divina.
Pela ciência, acreditaram no sinal da nova estrela, que não podia deixar
de ser “aquela”, que era esperada, havia séculos, pela humanidade: o
Messias. Pela consciência, tiveram fé na voz da mesma que, recebendo
“vozes” celestes, lhes dizia: “É aquela estrela que assinala a chegada do
Messias.” Pela bondade, tiveram fé que Deus não os teria enganado e, visto
que a sua intenção era reta, Ele os teria ajudado, de todos os modos, a
chegar até à meta desejada.
E eles tiveram êxito. Só eles, entre tantos estudiosos de sinais,
compreenderam aquele sinal, porque só eles tinham na alma a ânsia de
conhecer as palavras de Deus com um fim reto, que consistia antes de tudo
em dar imediata honra e louvor a Deus.
34.11
Não procuravam sua própria utilidade. Ao contrário, eles vão de
encontro a fadigas e despesas, e não pedem nenhuma compensação humana.
Pedem somente que o seu Deus se lembre deles e os salve para a eternidade.
Assim como não têm nenhum pensamento de futura compensação
humana, não têm, quando decidem a viagem, nenhuma preocupação humana.
Se fôsseis vós, teríeis pensado em mil dificuldades: “Como poderei fazer
uma viagem tão grande, através de países e povos de línguas tão diferentes?
Será que vão acreditar em mim, ou irão prender-me como espião? Que ajuda
me darão, quando tiver que atravessar desertos, rios e montanhas? E o calor?
E os ventos dos planaltos? E as febres dos pantanais? E as cheias das águas
fluviais? E as comidas diferentes? E a linguagem diferente? E… e… e…”.
Assim é que raciocinais. Eles não raciocinam assim. Mas dizem, com uma
sincera e santa ousadia: “Tu, ó Deus, lês os nossos corações, e vês qual o
fim que perseguimos. Em tuas mãos nos entregamos. Concede-nos a alegria
sobre humana de adorar a tua Segunda Pessoa, que se fez Carne para a
salvação do mundo”.
Basta. Eles se põem a caminho, partindo das longínquas Índias[59].
(Jesus me diz depois que por Índias querem dizer Ásia meridional, onde
agora está a Turquia, o Afeganistão e a Pérsia). Das cadeias de montanhas da
Mongólia, sobre as quais voam somente águias e abutres, onde Deus fala
pelo zumbido dos ventos, pelo estrondo das torrentes, escrevendo mistério
sobre as páginas imensas das geleiras. Das terras onde nasce o Nilo, que vai
deslizando como uma veia verde-azul, ao encontro do coração azul do
Mediterrâneo, nem os picos, nem as selvas, nem os desertos, oceanos secos
mais perigosos do que os marinhos, nada disso detêm a marcha deles. A
estrela brilha sobre a noite deles, não lhes permitindo dormir. Quando se
procura a Deus, os hábitos animais devem ceder às impaciências e às
necessidades sobre humanas.
A estrela os chama, ora do Norte, ora do Oriente, ora do Sul, e, por um
milagre de Deus, vai guiando os três para um certo ponto, como por um outro
milagre, os reúne, depois de tantos milhares de quilômetros, naquele ponto,
e, por um outro milagre ainda, lhes dá, antecipando a sabedoria pentecostal,
o dom de se entenderem e de se fazerem entender, assim como é no Paraíso,
onde se fala uma única língua: a de Deus.
34.12
Um único momento de aflição os assalta, e é quando a estrela
desaparece, e eles, humildes, porque são realmente grandes, não pensam
que isto tenha acontecido por causa da maldade de outrem, já que os
corruptos de Jerusalém não mereceram ver a estrela de Deus. Mas, o que
eles pensam é que eles próprios não mereçam a ajuda de Deus, pondo-se a
examinarem suas consciências com tremor e com uma contrição, pronta a
pedir perdão.
Mas a sua consciência os tranqüiliza. Almas acostumadas à meditação,
eles têm uma consciência muito sensível, aperfeiçoada por uma atenção
constante, por uma introspecção aguda, que faz do seu interior um verdadeiro
espelho sobre o qual refletem as menores sombras dos acontecimentos
diários. Eles fizeram da voz que os adverte a própria mestra, voz que grita,
não só ao menor erro, mas até a uma simples possibilidade de erro, o que é
humano, como a complacência com o seu próprio eu. Por isso, quando eles
se põem diante desta mestra, diante deste espelho tão severo e tão nítido,
sabem que ele não lhes mente, mas os encoraja, tomando novo alento.
“Oh! Que doce coisa é sentir que nada há em nós de contrário a Deus!
Sentir que Ele olha com complacência o ânimo do filho fiel e o abençoa.
Deste sentimento provém o aumento de fé e de confiança, de esperança,
fortaleza e paciência. Agora é hora de tempestade. Mas ela passará, porque
Deus me ama e sabe que eu o amo, e não deixará de ajudar-me ainda.”
Assim é que falam os que têm aquela paz, que provém de uma consciência
reta, que é a rainha de todas as suas ações.
34.13
Eu disse que eles eram “humildes, porque verdadeiramente grandes.”
Em vossa vida, ao invés, que é que acontece? Acontece que um, não porque
seja grande, mas porque é mais prepotente, se faz poderoso por sua
prepotência, nunca humilde, pela vossa insensata idolatria,. Há pobres
coitados que, só por serem mordomos de alguém arrogante, ou porteiros de
algum gabinete, funcionários de alguma repartição, servos afinal, de quem
assim os fez, costumam tomar a pose de semideuses. Tem-se pena até de vê-
los!…
Eles, os três sábios, eram realmente grandes. Em primeiro lugar, por
virtude sobrenatural; em segundo lugar, pela ciência; e, por último, pela
riqueza. Mas eles se julgam nada: pó sobre o pó da terra, se comparados
com Deus Altíssimo, que cria os mundos com um sorriso, espalhando-os
pelo espaço, como grãos de trigo, para alegrar os olhos dos anjos com os
colares de estrelas.
Mas eles se consideram nada, diante de Deus Altíssimo, que criou o
planeta, sobre o qual eles vivem, e como Escultor infinito em sua ilimitada
obra fez tudo bem diversificado, colocando, aqui uma série de colinas de
suave declive, com a força do seu polegar, acolá uma ossatura de picos e
escarpas, iguais as vértebras da terra, neste corpo desmesurado, do qual os
rios são as veias, os lagos são as pelves, os oceanos são os corações, tendo
as florestas como vestes, as nuvens como véus, as geleiras de cristal como
decorações, as turquezas e as esmeraldas como gemas, as opalas e os berilos
de todas as águas que descem cantando, com as selvas e os ventos, formando
o grande coro de louvor ao seu Senhor.
Eles se consideram nada em sua sabedoria, diante do Deus Altíssimo,
do qual vem a sua sabedoria, pois foi Ele quem lhes deu olhos, ainda mais
poderosos que suas duas pupilas, pelas quais eles vêem as coisas: os olhos
da alma, que sabem ler a palavra não escrita por mão humana nas coisas,
onde esta palavra foi gravada pelo pensamento de Deus.
Eles se consideram nada em sua riqueza: um átomo, diante da riqueza do
Dono do universo, que espalha metais e pedras preciosas nos astros e
planetas, e abundâncias sobrenaturais, riquezas inesgotáveis, no coração de
quem O ama.
34.14
Tendo eles chegado diante de uma pobre casa, na mais insignificante
das cidades de Judá, não sacodem a cabeça dizendo: “Impossível”, mas
dobram as costas, os joelhos, e especialmente o coração, e adoram. Lá, atrás
daquela pobre parede, está Deus. Aquele Deus que eles sempre invocaram,
não ousando nunca, nem de longe, esperar que o haveriam de ver. Mas que
por eles foi invocado pelo bem de toda a humanidade e pelo bem eterno
“deles” mesmos. Oh! Só isto é o que eles desejavam para si. Poderem vê-lo,
conhecê-lo, possuí-lo naquela vida que não tem nem auroras, nem
crepúsculos!
Ele está lá, atrás daquela pobre parede. Quem sabe se o seu coração de
Menino, que é também o coração de um Deus, não ouça estes três corações
que, inclinados no pó da estrada, bradam: “Santo, Santo, Santo. Bendito o
Senhor nosso Deus. Glória a Ele nos Céus altíssimos, e paz aos seus servos.
Glória, glória, glória e bênção”? Isto eles perguntam, tremendo de amor. Por
toda a noite, e na manhã seguinte preparam com a mais viva oração, o seu
espírito, para entrarem em comunhão com o Deus-Menino.
Eles não vão a este altar, que é um seio virginal, que traz em si a Hóstia
Divina, como vós ides a eles com a alma cheia de solicitudes humanas. Eles
se esquecem do sono e do alimento e se usam suas mais belas vestes, não é
para ostentação humana, mas para prestar honra ao Rei dos reis. Nos
palácios dos soberanos, os dignitários se apresentam com suas mais belas
vestes. Então, não deveriam eles ir apresentar-se a este Rei com suas vestes
de gala? Que festa maior podia haver para eles do que esta?
Oh! Lá em suas terras longínquas, muitas e muitas vezes precisaram se
adornar para prestar honras e oferecer seus préstimos a homens como eles.
Era, pois, justo que se humilhassem aos pés do Rei supremo e lá
depositassem as suas púrpuras e jóias, sedas e plumas preciosas. Pôr-lhe
aos pés, diante daqueles benditos pezinhos, as fibras da terra, as gemas da
terra, as plumas da terra, os metais da terra — que são ainda obras
dele — para que também elas, essas coisas da terra, adorem o seu Criador.
Seriam felizes se a Criancinha lhes ordenasse que se estendessem no chão,
como se fossem um tapete vivo, aos seus passinhos de Menino, e os pisasse,
Ele que deixou as estrelas por amor deles, que nada mais são do que pó.
34.15
Humildes e generosos. Obedientes às “vozes” do Alto. Essas vozes
mandam que eles levem presentes ao Rei recém-nascido. Eles levam
presentes. Não dizem: “Ele é rico, e não precisa disso. Ele é Deus, e não
conhecerá a morte”. Eles obedecem. São os primeiros que acodem à pobreza
do Salvador. Como chegou em boa hora aquele ouro, para quem amanhã
deveria sair de sua terra como fugitivo! Como foi significativa aquela mirra,
para quem, dentro em breve, seria morto. Como foi piedoso aquele incenso,
para quem teria que sentir o mau cheiro da luxúria humana fervendo ao redor
de sua infinita pureza!
Humildes, generosos, obedientes e respeitosos um para com o outro. As
virtudes geram outras virtudes. Das virtudes voltadas para Deus, nascem
virtudes para o próximo. Respeito que, no fim, é caridade. Combinaram com
o mais velho que lhe tocaria falar por todos, recebendo o primeiro beijo do
Salvador, segurando-o pela mãozinha. Os outros ainda poderão vê-lo outras
vezes. Mas ele, não. Ele está velho, e o dia de sua volta para Deus está
perto. Ele verá o Cristo, depois de sua terrível morte, e o acompanhará junto
com os outros que serão salvos, no dia da volta do Cristo para o Céu. Mas
não o verá mais nesta terra. Então, para seu viático, que lhe fique o calor
daquela mãozinha, que se confiou à sua mão enrugada.
Não há nenhuma inveja nos outros. Pelo contrário, há até um aumento de
veneração para com o mais velho dos sábios. Mais do que eles, mereceu na
certa, e por mais tempo. O Deus-Menino sabe disso. Ainda não fala, Ele que
é a Palavra do Pai, mas os Seus atos são palavras. E seja bendita a sua
inocente palavra, que mostra ser o seu predileto este velho.
34.16
Mas, ó filhos, há outros dois ensinamentos nesta visão.
A postura de José, que sabe ficar em “seu” lugar. Ele está presente como
guarda e tutor da Pureza e da Santidade. Mas não é um usurpador dos
direitos delas. É Maria, com o seu Jesus, que está recebendo homenagens e
palavras. José se alegra por ela, não ficando amargurado por ser uma figura
secundária. José é um justo: o Justo. É justo sempre, também nesta hora. As
fumaças da festa não lhe sobem à cabeça. Ele continua humilde e justo.
Ele se sente feliz pelos presentes. Não por si mesmo. Mas porque pensa
que com eles poderá fazer a vida de sua esposa e do doce Menino mais
cômoda. Não existe avidez em José. Ele é um trabalhador, e continuará a
trabalhar. Contanto que “Eles”, os seus dois amores, tenham o necessário, e
algum conforto. Nem ele nem os magos sabem que aqueles presentes vão
servir durante uma fuga e uma vida no exílio, nas quais as substâncias
desaparecem como uma nuvem impelida pelo vento… mas eles vão servir
também para quando voltarem à pátria, depois de terem perdido tudo o que
tinham deixado, os clientes, os móveis, salvando-se somente as paredes da
casa, protegida por Deus, porque nela é que Ele se uniu à virgem e se fez
Carne.
José é humilde, ele, que é guarda de Deus e da mãe de Deus, esposa do
Altíssimo, chega até a segurar o estribo para estes vassalos de Deus. José é
um pobre carpinteiro, porque a prepotência humana despojou os herdeiros
de Davi de suas propriedades reais. Mas ele é sempre da estirpe de Davi e
tem traços de rei. Também em relação a ele vale aquele dito: “Era humilde,
porque era realmente grande.”
34.17
Ainda um último, suave e significativo ensinamento.
É Maria, que segura a mão de Jesus, que ainda não sabe abençoar, e a
guia no gesto santo.
É sempre Maria que segura a mão de Jesus e a guia. Ainda hoje é assim.
Agora, Jesus sabe abençoar. Mas, às vezes, sua mão traspassada cai,
cansada e sem poder mais confiar, pois Ele sabe que é inútil abençoar. Na
verdade, vós destruís a minha bênção. Ela cai também indignada porque vós
me maldizeis. Então, é Maria que tira o desprezo feito a esta mão, ao beijá-
la. Oh! O beijo de minha mãe! Quem pode resistir a esse beijo? Depois, ela
segura o meu pulso, com seus dedos delicados, mas que são amorosamente
tão imperiosos e me força a abençoar.
Eu não posso repelir a minha mãe. Mas é preciso que vós vades à
procura dela, para fazê-la vossa advogada. Ela é minha rainha, antes de ser
vossa, e o seu amor por vós tem indulgências tais, que nem o meu conhece.
Ela, mesmo sem palavras, mas só com as pérolas do seu pranto e com a
lembrança da minha Cruz, cujo sinal ela me faz traçar no ar, defende a vossa
causa, e ainda me admoesta: “Tu és o Salvador. Salva!”
34.18
Eis, meus filhos, o “Evangelho da fé”, na aparição da cena dos
Magos. Meditai e imitai. Para o vosso bem.
[57] estas contemplações, a p rimeira das quais é a única a fazer p arte da obra. As outras, chamadas igualmente “evangelhos da
fé”, não são ep isódios p rop riamente do “Evangelho come me foi revelado” e encontram-se no volume I Quaderni del 1944 (Os
cadernos de 1944).
[58] um sinal da cruz, que é o Tau, como M aria Valtorta anota entre p arêntesis sobre uma cóp ia dactilografada. Letra do
alfabeto grego em forma de cruz, o “tau” é o sinal dos salvados indicado em: Ezequiel 9,4-6. Encontrá-lo-emos ainda, p or
exemp lo, em: 397.3 -413.6 -491.3 -567.15 -635.4.11.
[59] longínquas Índias, Jesus me diz depois -assim anota M aria Valtorta em rodap é na p ágina do caderno autógrafo -que por
Índias quer dizer Ásia meridional, onde agora se encontra o Turkemenistão, o Afganistão e a Pérsia; e acrescenta: exp licações
a incluir em rodap é na folha.
35. A Fuga para o Egito. Ensinamentos
sobre a última visão ligada à vinda de Jesus.
9 de junho de 1944.
35.1
O meu espírito vê a seguinte cena.
É noite. José dorme em sua cama no seu pequeno quarto. Um sono
tranqüilo de quem descansa de muito trabalho, feito com honestidade e
capricho.
Eu o vejo na escuridão do ambiente, rompida apenas por um pouco da
luz do luar, que penetra por uma abertura da janela, encostada, mas não
totalmente fechada, como se José tivesse calor ou quisesse ter aquele pouco
de luz, para saber calcular o despontar da alvorada, levantando-se diligente.
Ele está deitado de lado e, no sono, sorri, quem sabe a qual sonho que esteja
tendo.
Mas, seu sorriso se transforma em preocupação. Ele suspira
profundamente, como se faz quando se tem um pesadelo, e acorda
sobressaltado. José se assenta sobre a cama, esfrega os olhos, e olha ao
redor de si. Olha, depois, para a janela, por onde está entrando a claridade
do luar. É noite alta, mas ele pega a roupa, que está estendida aos pés da
cama e, continuando sentado sobre a mesma, a vai vestindo sobre a túnica
branca de mangas curtas que ele trazia sobre a pele. Afastadas as cobertas,
põe os pés no chão e procura as sandálias. Depois ele as calça e amarra.
Põe-se em pé e vai até a porta, que está em frente de sua cama, não a que
está de lado e que dá para o salão onde foram recebidos os Magos.
Ele bate à porta, de leve, só um toc-toc, com a ponta dos dedos. José
deve ter ouvido que está sendo convidado a entrar, porque abre com cuidado
a porta, e a torna a encostar, sem fazer barulho. Antes de ir até à porta, ele
acendeu uma pequena candeia, de um só bico, e assim tem uma luz para
poder andar. Ele entra. Mas, em um quarto pouco maior do que o seu, e no
qual está uma caminha ao lado de um berço, ele vê uma luzinha já acesa; a
chama vacilante, que está a um canto, parece uma estrelinha de uma luz tênue
e dourada, que permite enxergar, mas sem incomodar quem estiver
dormindo.
35.2
Maria, porém, não está dormindo. Ela está ajoelhada junto ao berço,
vestida com sua veste clara, e está rezando, velando a Jesus que dorme
tranqüilo, Jesus que tem a idade em que o vi na visão dos Magos. É uma
criança de cerca de um ano, bonita, rósea e loira, que está dormindo, com a
cabecinha de cabelos encaracolados afundada no travesseiro, e com uma
mãozinha com o punho fechado, encostada na garganta.
– Não estás dormindo? –pergunta José, em voz baixa, e admirada–. Por
que? Jesus não está bem?
– Oh, não! Ele está bem. Eu estou rezando. Mas certamente depois
dormirei. Por que vieste, José?
Maria fala, permanecendo ajoelhada onde estava.
José fala em voz muito baixa, para não despertar o Menino, mas sua voz
é agitada.
– Precisamos ir embora logo daqui. Mas logo! Prepara o baú e um saco
com tudo o que puder caber nele. Eu vou preparar tudo o mais, e levarei o
mais que puder. Ao romper da aurora, fugiremos. Eu faria isso até antes, mas
preciso falar com a dona da casa…
– Mas, por que esta fuga?
– Depois, eu te falarei melhor. É por causa de Jesus. Um anjo me disse:
“Pega o Menino e a mãe, e foge para o Egito.” Não percas tempo. Eu vou
preparar o que puder.
35.3
Não há necessidade de dizer a Maria que não perca tempo. Assim que
ela ouviu falar de anjo, de Jesus e de fuga, compreendeu que está em perigo
o seu Filho, pôs-se em pé, branca como se tivesse um rosto de cera, com
uma mão posta sobre o coração, angustiada. Logo começou a mover-se,
desembaraçada e ligeira, e a arrumar as roupas no baú e num grande saco,
que ela estendeu sobre o leito, e que ainda não foi usado. Certamente está
aflita, mas não perde a cabeça, e faz tudo apressadamente, mas com ordem.
De vez em quando, ao passar por perto do berço, olha para o Menino, que
está dormindo sem saber de nada.
– Estás precisando de ajuda? –pergunta-lhe José, de vez em quando,
pondo a cabeça para dentro da porta, que está entreaberta.
– Não, obrigada –responde sempre Maria.
Somente quando o saco está cheio, e fica pesado, é que ela chama José
para ajudá-la a fechá-lo e levantá-lo da cama. Mas José não quer ser
ajudado e faz tudo sozinho, pegando o grande volume, e levando-o para o
seu quartinho.
– Pego também as cobertas de lã? –pergunta Maria.
– Pega o mais que puderes. Porque o que ficar estará perdido. Por isso,
o mais que puderes, apanha-o! Para nós vai ser bom, porque… porque
teremos pela frente uma longa viagem, Maria!…
José fica muito sentido, ao ter que dizer isso. Pode-se imaginar como
está Maria. Suspirando, ela vai dobrando suas colchas e as de José e ele as
amarra com uma corda:
– Vamos deixar os acolchoados e as esteiras –diz ele, enquanto amarra
as colchas–. Ainda que eu levasse três burrinhos, não posso sobrecarregá-
los demais. Temos que fazer uma longa e incômoda viagem, uma parte pelas
montanhas, e outra pelo deserto. Cobre bem Jesus. As noites serão frias tanto
nas montanhas, como no deserto. Apanhei os presentes dos Magos, porque
eles nos serão úteis lá embaixo. Tudo o que eu tiver gastarei para comprar
os dois burrinhos. Nós não podemos mandá-los de volta, e por isso eu
preciso adquiri-los. Eu vou, sem ficar esperando o romper da aurora. Sei
onde procurá-los. Tu, acabas de preparar tudo.
E sai. Maria recolhe ainda alguns objetos e, depois de ter ido ver Jesus,
sai e volta com duas pequenas vestes que parecem estar ainda úmidas, talvez
tenham sido lavadas no dia anterior. Ela as dobra e envolve em um pano e as
ajunta com as outras coisas. Já não há mais nada.
Ela olha ao redor e vê um brinquedo de Jesus em um canto: é uma
ovelhinha entalhada em madeira. Ela a pega com um soluço, e a beija. A
madeira está com os sinais dos dentinhos de Jesus, e as orelhas da ovelhinha
estão mordiscadas. Maria acaricia aquele objeto sem valor, feito com uma
madeira clara e comum, mas que para ela é de grande valor, porque lhe fala
do afeto de José por Jesus e lhe fala também do seu Menino. Por isso o põe
também junto com as outras coisas sobre o baú já fechado.
35.4
Agora, já não há mais nada mesmo. Só falta Jesus, que ainda está em
seu bercinho. Maria acha que é bom prepará-Lo também. Vai ao berço e o
sacode um pouco para despertá-Lo. Mas Ele dá apenas um leve sinal, e
virando-se para o outro lado, continua a dormir. Maria o acaricia de leve,
sobre os caracoizinhos. Jesus abre a boquinha para um bocejo. Maria se
inclina e o beija na face. Jesus acaba de despertar. Abre os olhos. Vê a
mamãe, e sorri, e estende as mãozinhas para o seio dela.
– Sim, amor da mamãe. Sim, o leite. Antes da hora habitual… Mas Tu
estás sempre pronto para sugar tua mamãe, meu santo cordeirinho!
Jesus ri e brinca, agitando os pezinhos para fora das cobertas, agitando
os braços com uma daquelas alegrias de criança, tão bela de se ver. Ele
apóia os pezinhos sobre o estômago da mãe, curva-se como um arco e apóia
também a cabecinha loira sobre o seu seio e, depois, se atira para trás,
rindo, com as mãozinhas agarradas aos cordõezinhos que ajustam o vestido
ao pescoço de Maria, procurando abri-lo. Em sua camisinha de linho Ele
está muito bonito, gorducho, rosado como uma flor.
Maria se inclina e, estando assim por cima do berço como uma
proteção, chora e sorri ao mesmo tempo, enquanto o Menino balbucia
aquelas palavras, de todos os bebês, que não são palavras, e entre as quais
ouve-se já clara e repetidamente a palavra “mamãe”. Ele olha para ela,
admirado por vê-la chorar. Estende uma mãozinha para as lágrimas que
caem, e se deixa molhar por aquelas carícias. Gracioso, torna a apoiar-se no
seio materno, e se encolhe todo, acariciando-o com sua mãozinha.
Maria o beija por entre os cabelos, e o pega no colo, senta-se e o veste.
O vestidinho de lã já está posto, e as sandalinhas também. Maria lhe dá de
mamar, Jesus suga contente o bom leite de sua mamãe e, quando percebe que
da direita está vindo menos, procura a esquerda, ri ao fazer isso, olhando de
alto a baixo para sua mamãe. Depois adormece de novo sobre o seio dela.
Sua bochecha rosada e gorducha está ainda contra o seio branco e redondo.
Maria se levanta, lentamente, e o coloca sobre a colcha de seu leito.
Cobre-o com o seu manto. Volta ao berço e dobra as pequenas cobertas. Fica
pensando se não será bom pegar também o pequeno colchão. É tão pequeno!
Pode-se levar. Então, Ela o coloca, junto com o travesseiro, perto das coisas
já postas sobre o baú. Chora sobre o berço vazio a pobre mãe, que está
sendo perseguida com seu Filho.
35.5
José já está de volta.
– Estás pronta? Jesus está pronto? Pegaste as suas cobertas, a sua
caminha? Não podemos levar o berço, mas pelo menos que Ele tenha o seu
pequeno colchão, pobre Pequenino, que procuram a sua morte!
– José!
Maria dá um grito, enquanto se agarra ao braço de José.
– Sim, Maria, a sua morte. Herodes o quer morto… porque tem medo…
por causa do seu reino humano, ele tem medo deste Inocente, aquela fera
imunda. Que irá ele fazer, quando ficar sabendo que o Menino fugiu, eu não
sei. Mas nós já estaremos longe. Não creio que ele queira se vingar,
procurando-o até na Galiléia. Já lhe seria muito difícil descobrir que nós
somos galileus, e mais ainda, que nós somos de Nazaré, e quem é que somos
exatamente. A não ser que Satanás o ajude, para agradecê-lo por ser-lhe um
servo fiel. Mas… se isso acontecesse… Deus nos ajudará do mesmo modo.
Não chores, Maria. Ver-te chorar é para mim uma dor bem mais forte do que
a de ter que ir para o exílio.
– Perdoa-me, José. Não é por mim que eu choro, nem pelas poucas
coisas que vamos deixar. Eu choro por ti… Já tiveste que sacrificar-te tanto!
E agora tornas a ficar de novo sem clientes e sem casa. Quanto eu custo para
ti, ó José!
– Quanto? Não, Maria. Tu não me custas nada. Tu me consolas. Sempre.
Não fiques pensando no dia de amanhã. Nós temos as riquezas dos magos.
Elas nos ajudarão nos primeiros tempos. Depois, eu acharei trabalho. Um
operário honesto e que tenha capacidade, logo abre caminhos. Já viste como
foi aqui. As horas não me bastam para o trabalho que tenho.
– Eu sei. Mas, quem te aliviará da saudade?
– E a ti, quem te aliviará da saudade daquela casa de que tanto gostas?
– Jesus. Tendo-o, tenho o que lá tive.
– E eu, tendo Jesus, tenho a pátria a qual tenho esperado até a poucos
meses. Tenho o meu Deus. Estás vendo como não vou perder nada do que me
é mais querido sobre todas as coisas. Basta que salvemos a Jesus, que tudo
ficará conosco. Mesmo que não tivéssemos mais de ver este céu, estes
campos, nem aqueles ainda mais queridos da Galiléia, teríamos sempre tudo,
porque o temos. 35.6Vem, Maria, que o amanhecer está chegando. É hora de
irmos saudar a nossa hospedeira e pegar as nossas coisas. Tudo irá bem.
Maria se levanta, obediente. Envolve-se no manto, enquanto José está
fazendo um último embrulho, e depois sai, transportando-o.
Maria soergue delicadamente o Menino, e o envolve com um xale,
apertando-o contra o coração. Olha para as paredes que a hospedaram
durante alguns meses, e, com uma mão, toca nelas de leve. Feliz casa, que
mereceu ser amada e abençoada por Maria!
Ela sai. Atravessa o pequeno quarto, que era de José, e entra no salão. A
dona da casa, em lágrimas, a beija e saúda, e, levantando uma das
extremidades do xale, beija na fronte o Menino, que está dormindo tranqüilo.
Descem pela escadinha externa.
Vem chegando uma primeira claridade da aurora, quando se começa a
ver alguma coisa. Naquela pouca luz, pode-se ver três burrinhos. O mais
robusto está carregado com as alfaias. Os outros, estão selados. José faz
força para acomodar bem o baú e os embrulhos sobre a albarda do primeiro.
Vejo as suas ferramentas de carpinteiro, amarradas em pacotes, dentro do
saco.
Ainda há saudações e lágrimas. Depois Maria monta no seu burrinho,
enquanto a dona da casa segura Jesus no colo, e o beija ainda, devolvendo-O
depois a Maria. José monta também, tendo antes amarrado o seu jumento ao
outro jumento, que vai com a bagagem, a fim de ficar com a mão livre para
segurar o burrinho de Maria, pelo cabresto.
A fuga tem início, enquanto Belém, que sonha ainda com a fantástica
cena dos Magos, dorme quieta, sem saber o que a espera.
E a visão cessa assim.

Jesus diz:
35.7

– Também as visões desta série terminam assim. Em boa paz com os


doutores difíceis, viemos te mostrando as cenas que precederam, que
acompanharam e que se seguiram à minha Vinda, não pelas cenas em si
mesmas, pois são muito conhecidas, por mais que tenham sido alteradas, por
elementos sobrepostos através dos séculos, sempre por causa daquele modo
de ver humano que, para dar maior louvor a Deus, e por isso é perdoado,
torna irreal o que é tão belo, se for deixado como é. Porque a minha
Humanidade e a de Maria não ficam por isso diminuídas, assim como não
fica ofendida a minha Divindade e a Majestade do Pai e o Amor da
Santíssima Trindade, por uma visão das coisas em sua realidade, mas, ao
contrário, esplendem os méritos de minha mãe e a minha humildade perfeita.
Assim como daí é que fulgura a bondade onipotente do eterno Senhor.
Mostramos estas cenas para poder aplicar a ti e aos outros o sentido
sobrenatural, que surge daí, dando-vos como norma de vida.
O Decálogo é a Lei. O meu Evangelho é a doutrina que vos torna mais
clara essa Lei e mais desejável para ser seguida. Bastariam esta Lei e esta
Doutrina para fazer os homens santos.
Mas vós estais tão embaraçados com a vossa humanidade, que (na
verdade, em vós ela ultrapassa demais ao espírito) que não podeis seguir
por estas vias, sem cair; ou então, parar, desencorajados. Dizeis a vós e a
quem queria fazer que vos adiantásseis, citando-vos os exemplos do
Evangelho: “Jesus, Maria, José (e assim por diante todos os santos) não
eram como nós. Eles eram fortes, foram logo consolados em suas dores, até
nas pequenas dores que sentiram! Eles não sentiam paixões. Eram já seres
fora da terra.”
Ah! Aquelas pequenas dores! Ah! Não sentiam as paixões!
35.8
A dor foi para nós a amiga fiel, e teve todos os mais variados aspectos
e nomes.
As paixões… Não useis erradamente um vocábulo, chamando de
“paixões” os vícios, que vos desencaminham. Chamai-os sinceramente de
“vícios” e, além disso, capitais. Quanto aos vícios, não é que os
ignorássemos. Nós tínhamos olhos e ouvidos, para ver e ouvir, e Satanás
fazia dançar esses vícios à nossa frente, mostrando-os nas obras, com a sua
imundície, ou tentando-nos com as suas insinuações. Mas a nossa vontade,
inclinada a tornar-nos agradáveis a Deus, fazia com que aquela imundície e
aquelas insinuações, em vez de satisfazerem o objetivo de Satanás,
provocasse o contrário. Quanto mais ele trabalhava, mais nós nos
refugiávamos na luz de Deus, por repugnância das trevas lamacentas,
colocada diante dos nossos olhos carnais ou espirituais.
Nós não ignoramos as paixões, no sentido filosófico. Nós amamos a
pátria, com a nossa pequena Nazaré, cidade que amamos mais do que
qualquer outra da Palestina. Nós sentimos afeto por nossa casa, pelos
parentes e amigos. Por que não haveríamos de sentir? Não nos tornamos
escravos deles, porque nada nos deve possuir, a não ser Deus. Mas fizemos
deles bons companheiros.
Minha mãe exultou de alegria, quando, quatro anos depois, voltou a
Nazaré e pôs o pé em sua casa, podendo beijar aquelas paredes, dentro das
quais o seu “sim” lhe abriu o ventre para receber o Embrião de Deus. José
saudou com alegria parentes e sobrinhos, crescidos em número e idade, e se
alegrou ao ver-se imediatamente lembrado pelos concidadãos, também por
sua capacidade profissional. Eu próprio fui sensível às amizades e sofri,
como uma crucificação moral, pela traição de Judas. Que dizer de tudo isso?
Nem minha mãe, nem José preteriram a casa ou os parentes, à vontade de
Deus.
35.9
E Eu não poupei palavras, quando foi preciso, mesmo quando
elas atraíam o ódio dos hebreus e a antipatia de Judas sobre Mim. Eu
sabia (e teria podido fazê-lo) que teria bastado dinheiro para subjugá-lo a
Mim. Não a Mim como Redentor, mas a Mim riqueza. Eu que multipliquei os
pães, podia multiplicar também o dinheiro, se quisesse. Mas Eu não tinha
vindo procurar satisfações humanas. De ninguém. Muito menos, dos que
foram chamados por Mim. Eu havia pregado a necessidade do sacrifício, do
desapego, de uma vida casta, de posições humildes. Que Mestre e que Justo
teria sido, se tivesse dado dinheiro para alimentar o sensualismo mental e
físico de alguém, como único meio para segurá-lo?
No meu Reino, os grandes se tornam assim, fazendo-se “pequenos.”
Quem quer ser “grande” aos olhos do mundo, não está preparado para reinar
no meu Reino. Esse é palha para a cama dos demônios. Porque a grandeza
do mundo está em contraste com a Lei de Deus.
O mundo chama “grandes” os que, com meios quase sempre ilícitos,
sabem ocupar as melhores posições e, para conseguirem isso, fazem do
próximo um degrau, sobre o qual sobem, pisando nele. Chama “grandes”
aqueles que sabem matar para reinar, matar moral ou materialmente e, pela
extorsão, conseguem posições e lugares, e enriquecem, sugando o sangue dos
outros em suas riquezas particulares ou coletivas. O mundo muitas vezes
chama os delinqüentes de “grandes.” Não. A “grandeza” não está na
delinquência. Está na bondade, na honestidade, no amor, na justiça. Vede os
vossos “grandes”, que frutos envenenados vos oferecem, colhidos no seu
malvado e demoníaco pomar interior!
35.10
A última visão, pois eu quero falar dela e deixar de falar de outros
assuntos que são tão inúteis, e o mundo não quer ouvir a verdade que lhe
interessa, é uma visão que ilumina um ponto particular, citado duas vezes no
Evangelho de Mateus, numa frase repetida duas vezes: “Levanta, pega o
Menino e sua mãe, e foge para o Egito.” “Levanta, pega o Menino e a mãe
Dele, e volta para a terra de Israel.” E, como viste, Maria estava sozinha
com o Menino no quarto.
A virgindade de Maria após o parto e a castidade de José são muito
combatidas, por aqueles que, por serem lama podre, não admitem que
alguém possa ser asa e luz. São infelizes, com coração tão corrompido, com
mente que se prostituiu tanto à carne, que se tornaram incapazes de pensar
que alguém como eles possa respeitar a mulher, ver nela a alma e não a
carne, elevando-se a si mesmos, vivendo em uma atmosfera sobrenatural,
apetecendo-se de Deus, e não da carne.
Pois bem. Aos negadores do belo, a estes vermes, incapazes de se
tornarem borboletas, a estes répteis cobertos pela baba de sua libidinagem,
incapazes de compreender a beleza de um lírio, a estes Eu digo que Maria
foi e permaneceu virgem, e que só sua alma foi casada com José, como o
seu espírito se uniu unicamente ao Espírito de Deus e, por obra Dele, ela
concebeu o seu Único Filho: Eu, Jesus Cristo, Unigênito de Deus e de Maria.
Isto não é uma tradição que floresceu mais tarde, por um amoroso
respeito para com a Bem-Aventurada, que foi minha mãe. Mas é uma
verdade que, desde os primeiros tempos, foi conhecida.
Mateus não nasceu séculos depois. Ele foi contemporâneo de Maria.
Mateus não era um pobre ignorante, que tivesse vivido nas selvas, com
facilidade de acreditar em qualquer história. Era um fiscal da receita, como
diríeis hoje, ou um cobrador de gabelas, como naquele tempo dizíamos. Ele
sabia ver, ouvir, compreender, separar o verdadeiro do falso. Mateus não
ouviu as coisas por meio de terceiros. Mas ele as recolheu dos lábios de
Maria, à qual o seu amor pelo Mestre e pela verdade o havia levado a fazer
perguntas.
Não posso chegar a pensar que esses negadores da inviolabilidade de
Maria pensem que ela tenha podido mentir. Os meus próprios parentes a
teriam podido desmentir, se ela tivesse tido outros filhos, pois Tiago, Judas,
Simão e José eram condiscípulos de Mateus. Por isso seria fácil confrontar
as versões, se outras houvessem. Mateus nunca diz: “Levanta e pega tua
mulher”; ele diz: “Pega a mãe Dele.” Antes diz: “Virgem desposada a José”,
“José, seu esposo”.
35.11
Não me venham dizer que isso era um modo de falar dos hebreus,
como se dizer a palavra “mulher” já fosse uma infâmia. Não, negadores da
Pureza. Desde as primeiras palavras do Livro[60], se lê: “… e se unirá à sua
mulher”. Ela é chamada “companheira”, até o momento da consumação
sexual do casamento; mas depois é chamada “mulher”, em diversas
passagens e em diversos capítulos. E assim acontece com as esposas dos
filhos de Adão. É assim que Sara é chamada “mulher” de Abraão: “Sara, tua
mulher”; e: “Toma tua mulher e as tuas duas filhas” foi dito a Ló. E no livro
de Rute está escrito: “A moabita, mulher de Maalon.” E no primeiro livro
dos Reis está dito: “Elcana teve duas mulheres”; e, ainda mais: “depois,
Elcana conheceu sua mulher Ana”; e ainda: “Eli abençoou Elcana e a
mulher dele.” E sempre no livro dos Reis foi dito: “Bate-Seba, mulher de
Urias, o heteu, tornou-se mulher de Davi, e lhe deu um filho.” O que se lê no
livro azul de Tobias, aquilo que a Igreja canta para vós nas vossas núpcias,
para aconselhar-vos a serem santos no matrimônio? Lê-se: “Ora, quando
Tobias chegou, com a mulher e com o filho…”; e ainda: “Tobias conseguiu
fugir com o filho e com a sua mulher.”
Nos Evangelhos, isto é, nos tempos de Cristo, nos quais se escrevia
relativamente àqueles tempos antigos em linguagem moderna, não havendo,
portanto necessidade de se pensar em erros de transcrições, foi dito pelo
próprio Mateus no cap. 22: “… o primeiro, tendo-a tomado por mulher,
morreu e deixou a mulher ao irmão.” Marcos, no cap. 10: “Quem repudia a
mulher…” Lucas chama Isabel de mulher de Zacarias, quatro vezes em
seguida, e no oitavo capítulo diz: “Joana, mulher de Cusa.”
Como estais vendo, não era este nome um vocábulo proscrito para quem
estava nos caminhos do Senhor, um vocábulo imundo que não era digno de
ser proferido e, muito menos, escrito onde se trata de Deus e das suas
admiráveis obras. O anjo, dizendo: “o Menino e a mãe Dele”, vos demonstra
que Maria foi mãe verdadeira, mas não foi mulher de José. Ela permaneceu
sempre: a virgem desposada a José.
Este é o último ensinamento destas visões. É uma auréola que resplende
sobre a cabeça de Maria e de José. A virgem imaculada. O homem justo e
casto. Os dois lírios entre os quais eu cresci, ouvindo só fragrâncias de
pureza.
35.12
A ti, pequeno João[61], eu poderia falar sobre a dor de Maria por seu
duplo afastamento de sua casa e de sua pátria. Mas não há necessidade de
palavras. Compreendo que seja isso, e disso desfaleces. Dá-me a tua dor. Só
quero isto. É mais do que qualquer outra coisa que me possas dar. Hoje é
sexta-feira, Maria. Pensa na minha dor e na de Maria sobre o Gólgota, para
que possas suportar a tua cruz.
A paz e o nosso amor fiquem contigo.
[60] do Livro, ao qual seguem (em ap oio aos p assos citados p or: Matteo 1,16.19; 2, 13.20) citações de: Génesis 2,24; 3,17;
17,15; 19,15; Rute 4,10; 1 Samuel 1,1-2.19; 2,20; 2 Samuel 11,27; Tobias 1,9.20.
[61] pequeno João, é o mais recorrente entre os nomes dados a M aria Valtorta. A sua exp licação encontra-se em 70.8/9 e em
638.2.
36. A sagrada Família no Egito.
Uma lição para as famílias.
25 de janeiro de 1944 (24:00 horas).
36.1
Uma suave visão da Sagrada Família. O lugar é o Egito. Não tenho‐
dúvidas disso, porque vejo o deserto e uma pirâmide.
Vejo uma casinha de um só andar térreo, toda branca. É uma pobre casa
de gente muito pobre. As paredes são apenas rebocadas e cobertas com uma
mão de cal. A pequena casa tem duas portas, uma perto da outra, e dão para
os dois únicos cômodos da casa, nos quais, por enquanto, eu não entro. A
casinha está no meio de um pequeno terreno arenoso, cercado por bambus
fincados no chão, cerca esta muito fraca contra os ladrões; pode, quando
muito, servir para deter algum cachorro ou gato vadio. Mas, quem é que vai
ter a vontade de ir roubar, onde se vê que nem existe sombra de riqueza?
Este pequeno terreno foi pacientemente cultivado, apesar de a terra ser
árida e pobre, para nela se fazer uma pequena horta e é cercado por uma
sebe de bambus, sobre a qual, para torná-la mais firme e bonita, foram
plantadas trepadeiras, que me parecem modestos convólvulos. De um dos
lados, há uma moita de jasmim em flor e outra de rosas comuns. Vejo ali
algumas verduras muito comuns, nos poucos canteiros do centro, debaixo de
uma árvore alta, que não sei dizer qual é, mas que dá um pouco de sombra
para o terreno ensolarado e para a casinha. Nesta árvore está amarrada uma
cabrita branca e preta, que arranca e come as folhas de alguns ramos que
caíram no chão.
36.2
Ali perto, sobre uma esteira estendida no chão, está o Menino Jesus.
Parece-me ter uns dois anos, ou dois e meio no máximo. Está brincando com
pedacinhos de madeira entalhada, que parecem ovelhinhas ou cavalinhos, e
com algumas maravalhas de madeira clara, menos encaracoladas do que os
caracóis de ouro do seu cabelo. Com suas mãozinhas gorduchas, ele procura
colocar esses colares de madeira no pescoço de seus animaizinhos.
Ele é bom e sorridente. Muito bonito. Uma cabecinha cheia de
caracoizinhos de ouro, pele clara e delicadamente rosada, olhinhos vivos,
brilhantes, muito azuis. Sua expressão natural está diferente, mas eu
reconheço a cor dos olhos do meu Jesus: são duas safiras escuras e muito
belas.
Está vestindo uma espécie de longa camisinha branca, que certamente
deve ser a sua túnica. Suas mangas vão até os cotovelos. Nos pés, por ora,
não tem nada. As minúsculas sandálias estão sobre a esteira, servindo
também de brinquedo para o Menino, que põe sobre a sola os seus bichinhos
e puxa a sandália pela correia, como se fosse um carrinho. São sandálias
muito simples: uma sola e duas correias que partem, uma da ponta, e outra
do calcanhar. A da ponta, depois se abre em duas partes, em um certo ponto,
e passa por dentro de um furo da correia, que vem do calcanhar, para ir
depois atar-se com o outro pedaço e formar uma argola no peito do pé.
36.3
A pouca distância dali, à sombra de uma árvore, também está Maria.
Está tecendo em um tear rústico, vigiando o Menino. Vejo suas mãos
delicadas e brancas, que vão e vêm, atirando a lançadeira sobre a trama, e o
pé, calçado com sandália, movendo o pedal. Está vestida com uma túnica da
cor flor de malva: um roxo meio rosado, como o de certas ametistas. Sua
cabeça está descoberta e assim posso ver que seus cabelos loiros estão
repartidos ao meio e penteados de modo simples, em duas tranças, que lhe
formam uma bela madeixa sobre a nuca. Maria está de mangas compridas, e
um tanto estreitas. Nenhum enfeite, além de sua beleza e da sua doce
expressão. A cor da face, dos cabelos e dos olhos e a forma do rosto é
sempre a mesma quando a vejo. Parece muito jovem. Pelo sim, pelo não,
podem dar-se-lhe uns vinte anos.
A um certo momento, ela se levanta e se inclina sobre o Menino, põe-lhe
de novo as sandalinhas, e as amarra com todo o cuidado. Depois, o acaricia
e o beija sobre a cabecinha e sobre os olhinhos. O Menino balbucia e ela
responde, mas não compreendo as palavras. Depois ela volta ao seu tear,
estende um pano sobre a tela e sobre a trama, pega o banco sobre o qual
estava sentada, e o leva para casa. O Menino a segue com o olhar, sem
importuná-la, quando ela o deixa sozinho.
Vê-se que o trabalho terminou, e que a tarde está chegando. De fato, o
sol desce sobre as areias nuas, e um verdadeiro incêndio invade o céu
inteiro, atrás da longínqua pirâmide.
Maria volta. Pega Jesus pela mão, e o faz levantar-se de sua esteira. O
Menino obedece sem resistência. Enquanto a mamãe recolhe os brinquedos e
a esteira, e os leva para casa, Ele corre aos pulinhos com suas perninhas
torneadas, ao encontro da cabritinha, lançando-lhe os bracinhos ao pescoço.
A cabrita bale, e esfrega o focinho nas costas de Jesus.
Maria volta de novo. Agora está com um longo véu sobre a cabeça, e
com uma ânfora na mão. Pega Jesus pela mãozinha, e põem-se os dois a
caminho, andando ao redor da casa, para chegarem do outro lado.
Eu os acompanho, admirando a graça deste quadro. Maria, que regula o
seu passo pelo do Menino, e o Menino que vai dando pulinhos ao seu lado.
Vejo os calcanhares rosados dele, que se levantam e se põem outra vez no
chão, sobre a areia da vereda, com a graça própria das crianças. Noto que a
pequena túnica não lhe chega até os pés, mas só até a metade da barriga da
perna. A túnica é muito bonita, muito simples, ajustada à cintura por um
cordãozinho também branco.
Vejo que à frente da casa, a sebe é interrompida por uma rústica cancela,
que Maria abre para sair para a estrada. É um pequeno caminho, desses que
há nas periferias de uma cidade, ou lugarejo, no ponto em que este se limita
com os campos, que aqui são formados pela areia e por uma ou outra
casinha, pobre como esta, com algumas pequenas hortas de escassas
verduras.
Não vejo ninguém. Maria não olha para o campo e sim para o centro,
como se estivesse esperando alguém, depois se dirige para um pequeno
tanque ou poço, que está a uns dez metros, mais ou menos, e sobre o qual
algumas palmeiras fazem um círculo de sombra. Vejo que ali também o
terreno tem ervas verdes.
36.4
Agora vejo, vindo pelo caminho um homem, não muito alto, mas
robusto. Reconheço que é José, que vem sorrindo. Está mais jovem do
que quando eu o vi na visão do Paraíso. Parece ter, no máximo, quarenta
anos. Está com os cabelos e a barba crescidos e pretos, a pele bastante
bronzeada, os olhos escuros. Um rosto honesto e agradável, um rosto que
inspira confiança.
Vendo Jesus e Maria, ele apressa o passo. Traz sobre o ombro esquerdo
uma espécie de serra e uma espécie de plaina, e com a mão está segurando
outras ferramentas do seu ofício, não como as de hoje, mas quase iguais.
Parece que está voltando de algum trabalho na casa de alguém. Está com uma
roupa entre a cor avelã e o marrom, não muito comprida, que chega a uma
boa altura acima do tornozelo, e tem as mangas curtas até o cotovelo. À
cintura, tem uma cinta de couro, me parece. Uma verdadeira roupa de traba‐
lho. Nos pés leva sandálias atadas ao tornozelo.
Maria sorri, e o Menino solta gritinhos de alegria e estende o bracinho
que está livre. Quando os três se encontram, José se inclina, oferecendo ao
Menino uma fruta, que me parece ser uma maçã, pela cor e pela forma.
Depois lhe estende os braços, e o Menino deixa a mamãe, e vai-se aninhar
nos braços de José, curvando a cabecinha na cavidade do pescoço de José
que o beija e por ele é beijado. São gestos cheios de graça e de afeto.
Eu ia me esquecendo de dizer que Maria foi solícita em ir apanhar as
ferramentas de trabalho de José, a fim de deixá-lo com os braços livres para
poder abraçar o Menino.
Depois, José, que tinha se abaixado para poder ficar à altura de Jesus,
se levanta, pega novamente com a mão esquerda as suas ferramentas e, com
o braço direito, segura apertado contra o seu peito o pequeno Jesus. E se
dirige para a casa, enquanto Maria vai à fonte encher a sua ânfora.
Tendo entrado no recinto da casa, José põe o Menino no chão, pega o
tear de Maria e o leva para casa, depois vai tirar o leite da cabrita. Jesus
observa atentamente essas operações e a do fechamento da cabrita num
pequeno cubículo, que está ao lado da casa.
A tarde cai. Vejo o vermelho do pôr-do-sol ir-se tornando violáceo
sobre as areias que, por causa do calor, parecem tremular. A pirâmide
parece mais escura.
José entra em casa, em um dos cômodos da casa que deve ser oficina,
cozinha e sala de jantar, ao mesmo tempo. Vê-se que o outro cômodo é o
quarto de dormir. Mas nele eu não entro. Aí há uma lareira baixa, que está
acesa. Há também um banco de carpinteiro, uma pequena mesa, bancos,
prateleiras com umas poucas louças e duas candeias. Em um canto está o tear
de Maria. E muita ordem e limpeza. Morada muito pobre mas muito limpa.
Eis uma observação que pude fazer: em todas as visões referentes à vida
humana de Jesus, notei que, tanto Ele, como Maria, como José, como João,
estão sempre ordenados e limpos em suas roupas e na cabeça. Roupas
modestas e penteados simples, mas de uma limpeza que os faz parecerem
pessoas de grande distinção.
36.5
Maria volta com a ânfora e, em seguida, fecha a porta, pois o
crepúsculo chegou de repente. O quarto é iluminado por uma candeia que
José acendeu e pôs sobre o seu banco, onde ele está trabalhando debruçado
sobre umas pequenas peças de madeira, enquanto Maria prepara o jantar. O
fogo também está clareando o quarto. Jesus, com as mãozinhas apoiadas
sobre o banco, e a cabecinha virada para cima, está observando o que José
faz.
Depois eles se aproximam da mesa, tendo rezado antes. Não fazem, é
natural, o sinal da cruz, mas rezam. É José que reza, e Maria responde. Mas
eu não entendo nada. Deve ser um salmo. Mas foi dito em uma língua que
para mim é totalmente desconhecida.
Aí é que se sentam à mesa. Agora a candeia está sobre a mesa. Maria
está com Jesus em seu colo, e o faz beber do leite da cabrita, no qual ela vai
molhando pequenas fatias de pão, tiradas de um pãozinho redondo, de crosta
escura, e escuro também por dentro. Parece pão feito com centeio ou cevada.
Deve ter muito farelo, porque está cinzento. Enquanto isso, José está
comendo pão e queijo, uma fatiazinha de queijo e muito pão. Depois Maria
coloca Jesus sentado sobre um banquinho perto dela, e põe sobre a mesa
verduras cozidas — parecem cozidas na água e temperadas como
costumamos fazer — e come ela também, depois de José ter-se servido.
Jesus, tranqüilo, está mordiscando sua maçã, e sorri, mostrando os dentinhos
brancos. O jantar termina com umas azeitonas ou com tâmaras. Não entendo
bem, porque para serem azeitonas, estão claras demais; e, para serem
tâmaras estão por demais duras. De vinho, nada. É um jantar de gente pobre.
Mas é tão grande a paz que se respira neste quarto, que nem a visão de
um palácio real, por mais pomposo que fosse, me poderia dar uma paz
semelhante. Quanta harmonia!
36.6
Jesus nesta noite não fala. Não veio me ilustrar a cena. Ele me
ensina com o seu dom da visão, e basta. Por isso seja Ele sempre e
igualmente bendito.

26 de janeiro de 1944.
36.7
Jesus diz:
– A lição para ti e para os outros é dada pelas coisas que estás vendo. É
lição de humildade, de resignação e de boa harmonia. Posta como exemplo a
todas as famílias cristãs, e especialmente às famílias cristãs deste especial e
doloroso momento.
36.8
Tu viste uma casa pobre. O que é mais doloroso, uma casa pobre em
país estrangeiro.
Muitos, só porque são dos fiéis “passáveis”, que rezam e Me recebem
na Eucaristia, rezam e comungam pelas “suas” necessidades, não pelas
necessidades das almas e pela glória de Deus, porque é raro alguém rezar
sem ser egoísta, muitos pretenderiam ter uma vida material fácil, bem
protegida de qualquer menor sofrimento, próspera e feliz.
José e Maria tinham a Mim, Deus verdadeiro, como seu Filho e, no
entanto, não tiveram nem o pobre bem de serem pobres na própria pátria, no
lugar onde eram conhecidos, onde ao menos tinham a “própria” casinha, e
um alojamento não era uma preocupação constante entre tantas outras,
naquele lugar onde, por serem conhecidos, era mais fácil encontrar trabalho
e prover-se do necessário para a vida. Eles são dois fugitivos, e justamente
porque Me têm consigo. O clima é diferente, o lugar é diferente, tão triste em
comparação com os doces campos da Galiléia, língua e costumes diferentes,
em meio a uma população que não os conhece, e que tem a habitual
desconfiança para com desconhecidos.
Privados daqueles móveis cômodos e estimados da “sua” casinha, de
tantas coisas humildes mas necessárias que lá havia, e que não pareciam tão
necessárias, enquanto que aqui, neste nada que os rodeia, parecem tão belas,
como aquelas coisas supérfluas, que tornam as casas dos ricos deliciosas.
Com saudade da cidade e da casa, com o pensamento naquelas pobres coisas
lá deixadas, do pomar, do qual talvez ninguém esteja cuidando, da videira e
da figueira e de outras muitas árvores úteis. Com a necessidade de prover ao
alimento de cada dia, às roupas, ao fogo, dia após dia, às Minhas
necessidades de criança, à qual não se pode dar o alimento dos grandes.
Com tanto desgosto no coração. Pelas saudades, pelo amanhã, que ainda é
desconhecido, pela desconfiança de um povo que se esquiva, principalmente
nos primeiros tempos, a aceitar as ofertas de trabalho de dois
desconhecidos.
Contudo, tu viste a casa. Naquela morada paira a serenidade, o sorriso,
a concórdia, e se procura torná-la mais bela de comum acordo; também a
pobre hortinha, para que fique parecida com a que foi deixada, e mais
confortável. Nesta casa só há um pensamento: que esta terra se torne menos
hostil, menos miserável para Mim, Santo, que venho de Deus. O amor destas
pessoas de fé, que são os meus pais, amor que se manifesta em mil cuidados,
desde a cabrita que compraram a preço de muitas horas extras de trabalho,
até aos brinquedos entalhados em sobras de madeira, às frutas apanhadas só
para Mim, sem que delas eles nem provassem.
Meu querido pai da terra, como foste amado por Deus, por Deus Pai no
alto dos Céus, por Deus Filho, que se fez Salvador sobre a terra!
Naquela casa não houve nervosismos, mau humor, caras fechadas, nem
reprovações recíprocas, nem, muito menos, se falou contra Deus, que não os
cumulou com o bem-estar material. José não censura Maria por ser causa de
suas dificuldades, nem Maria censura José por ele não saber-lhe dar um
maior bem-estar. Eles se amam santamente, eis a explicação. Portanto, a
preocupação não é com o próprio bem-estar, mas cada um se preocupa com
o outro. O verdadeiro amor não conhece egoísmo. O verdadeiro amor é
sempre casto, mesmo sem castidade perfeita dos dois esposos virgens. A
castidade unida à caridade leva consigo todo um acompanhamento de outras
virtudes, fazendo de dois que se amam castamente, duas perfeições de
cônjuges.
O amor de minha mãe e de José era perfeito. Por isso ele era um
incentivo para todas as outras virtudes e especialmente para a da caridade
para com Deus, bendito em todo tempo, não obstante sua santa vontade fosse
penosa para a carne e o coração, bendito porque, acima da carne e do
coração, o espírito estava mais vivo e senhor nos dois santos. Este espírito,
com reconhecimento, exaltava o Senhor, por tê-los escolhido para serem
guardas do seu eterno Filho.
36.9
Naquela casa se rezava. Agora reza-se pouco nas casas. Nasce o dia e
chega a noite, começam-se os trabalhos, e sentai-vos à mesa sem um
pensamento dirigido ao Senhor, que vos permitiu ver um novo dia, podendo
chegar a uma nova noite, que abençoou as vossas fadigas, concedendo que
essa fadigas se tornassem o meio de conquistar aquele alimento que o fogo
cozinhou, as vestes que vestis, aquele teto, todo o necessário à vossa
natureza humana. Sempre é “bom” o que vem do bom Deus. Ainda quando
pobre e escasso, o amor lhes dá sabor e substância, esse amor que vos faz
ver o Pai que vos ama no eterno Criador.
Naquela casa há frugalidade. Haveria, mesmo que o dinheiro não
faltasse. Eles se nutrem para viver, e não para agradar à gula, com a
voracidade dos insaciáveis, com os caprichos dos gulosos, que se vão
enchendo até não poderem mais, e esbanjam seus haveres em alimentos
caros, sem um pensamento aquem tem pouco ou é privado de alimento, sem
refletirem que, se tivessem moderação, muitos poderiam ser aliviados do
tormento da fome.
Naquela casa se ama o trabalho. Ele seria amado, mesmo se o dinheiro
fosse abundante, porque no trabalho o homem obedece ao mandamento de
Deus e se livra do vício que, como hera firme, aperta e sufoca os ociosos,
como blocos imóveis de pedra. Bom é o alimento, sereno é o repouso,
contente está o coração, quando se trabalhou bem e se goza o tempo de pausa
entre um trabalho e outro. Aquele vício que tem múltiplas faces, não se
arraiga na casa e na mente de quem ama o trabalho. Não se arraigando, então
aí prospera o afeto, a estima, o respeito recíproco, e os pequenos pimpolhos
crescem numa atmosfera pura, e dão origem a futuras famílias santas.
Naquela casa reina a humildade. Esta é uma lição de humildade para
vós, soberbos! Maria teria tido, humanamente, mil e uma razões para se
ensoberbecer fazendo-se adorar por seu cônjuge. Tantas mulheres assim
fazem, somente por serem um pouco mais cultas, ou de nascimento mais
nobre, ou mais ricas que o marido. Maria é Esposa e mãe de Deus, e, no
entanto, serve o seu cônjuge, não se fazendo servir por ele, é toda amor para
com ele. José é o chefe de casa, julgado por Deus tão digno de ser um chefe
de família, a ponto de receber de Deus a guarda do Verbo feito carne e da
Esposa do eterno Espírito. Contudo, é sempre solícito em poupar Maria de
fadigas e trabalhos, fazendo até os mais humildes trabalhos de casa, para que
Maria não se canse. Mas não só, pois procura proporcionar a Ela alguma
recreação o quanto pode, esforçando-se para tornar-lhe a casa cômoda, e a
pequena horta com flores viçosas.
Naquela casa a ordem é respeitada. Sobrenatural, moral e material.
Deus é o Chefe supremo e a Ele é prestado culto e amor: ordem
sobrenatural. José é o chefe da família e a ele é dado afeto, respeito e
obediência: ordem moral. A casa é um dom de Deus, como as vestes e os
móveis. Em todas as coisas é a Providência de Deus que se mostra, daquele
Deus que provê a lã às ovelhas, as penas aos pássaros, as ervas aos prados,
o feno aos animais, as sementes e as árvores frondosas às aves, tecendo a
veste para o lírio do vale. A casa, as vestes, os móveis são recebidos com
gratidão, bendizendo a mão divina, tratando-os com respeito como dons do
Senhor, sem olhar com descontentamento porque são pobres, sem estragar os
dons, abusando da Providência: ordem material.
36.10
Não entendeste as palavras trocadas no dialeto de Nazaré, nem as
palavras de oração. Mas as coisas vistas deram uma grande lição. Meditai-
as, ó vós todos, que agora tanto estais sofrendo por terdes falhado para com
Deus, também aquelas coisas em que não falharam nunca os santos Esposos,
que foram mãe e pai para Mim.
E tu, deleita-te com a recordação do pequeno Jesus, sorri, pensando em
seus passinhos de criança. Dentro em pouco, o verás, caminhando debaixo
de uma cruz. E será uma visão de pranto.
37. Primeira lição de trabalho dada a Jesus,
que não saiu da regra da idade.
21 de março de 1944.
37.1
Vejo aparecer, como um doce raio de sol em um dia de chuva, o meu
Jesus, pequeno menino beirando os seus cinco anos, todo loiro e bonito, na
sua simples vestezinha azul-clara que lhe desce até o meio da barriga da
perna.
Ele está brincando com terra na horta. Está fazendo montinhos e, em
cima deles, vai fincando raminhos, como se estivesse formando bosques em
miniatura. Com pedrinhas faz pequenas estradas, e depois queria fazer um
pequeno lago, aos pés de suas minúsculas colinas, e, para isso, pega o fundo
de uma vasilha velha e o enterra até a beira, depois o enche d’água com um
jarro que ele mergulha em um tanque, certamente usado como lavatório ou
para regar a pequena horta. Mas não consegue nada mais do que molhar toda
a roupa, especialmente as mangas. A água escapa da vasilha, que está toda
esburacada… e o lago continua seco.
José aparece à porta e, em silêncio, fica a olhar, por algum tempo, a
trabalheira do Menino, e sorri. De fato, é um espetáculo que faz sorrir de
alegria. Depois, para que Jesus não continue a se molhar, ele o chama. Jesus
se vira sorrindo e, vendo José, corre para ele com os bracinhos estendidos.
José, com a ponta de sua veste de trabalho enxuga as pequenas mãos
molhadas e cheias de terra, e as beija. E um doce diálogo se inicia entre os
dois.
Jesus explica o seu trabalho e o seu brinquedo, e as dificuldades que
encontrou para executá-los. Ele queria fazer um lago, como aquele de
Genezaré (Deste eu suponho que lhe haviam falado, ou que o tinham já
levado até lá). Ele queria fazer aquele lago em miniatura para seu
divertimento. Aqui, neste ponto era Tiberíades, ali Magdala, lá adiante
Cafarnaum. Esta era a estrada que, passando por Caná, ia para Nazaré. Ele
queria lançar pequenos barcos no lago — estas folhas são os barcos — e
passar para a outra margem. Mas a água está escapando…
José observa, e se interessa, como se fosse uma coisa séria. Depois ele
se propõe a fazer, no dia seguinte, um pequeno lago, não com aquela vasilha
furada, mas com um pequeno tanque de madeira, bem calafetado com breu,
sobre o qual Jesus poderia lançar verdadeiros barquinhos de madeira que
José o ensinaria a fazer. 37.2Agora mesmo ele já estava trazendo pequenas
ferramentas de trabalho, apropriadas para Jesus, a fim de que Ele pudesse
aprender a usá-las, sem se cansar muito.
– Assim eu te ajudarei! –diz Jesus, com um sorriso.
– Sim, vais me ajudar, e depois te tornarás um bom carpinteiro. Vem vê-
las!
E entram na oficina. José lhe mostra um pequeno martelo, uma serrinha,
pequenas chaves de fenda, uma plaina de boneca, tudo colocado sobre um
banco de carpinteiro na relva: um banco adaptado à altura do pequeno Jesus.
– Olha: para serrar, coloca-se esta madeira apoiada assim. Pega-se
depois a serra assim, e prestando atenção para não ir com ela sobre os
dedos, se serra. Experimenta…
E a lição começa. Jesus tornando-se vermelho, pelo esforço feito, e
apertando os lábios, vai serrando com atenção e, depois, alisa a pequena
tábua com a plaina e, ainda que tenha ficado um pouco torta, parece-lhe
bonita, e José o elogia, e o ensina a trabalhar com paciência e amor.
37.3
Maria retorna, pois certamente estava fora, e ao chegar à porta
olha. Os dois não a vêem, porque estão de costas. A mamãe sorri, ao ver
o cuidado com que Jesus trabalha com a plaina, e o afeto com que José o
ensina.
Mas Jesus deve estar sentindo aquele sorriso. Ele se vira, vê a mamãe, e
corre para ela com a sua tabuinha semi-aplainada, e lhe mostra. Maria fica
admirada, e se inclina para beijar Jesus. Ela compõe os cachinhos do cabelo
desalinhado, enxuga-lhe o suor do rosto afogueado, escuta com afeto que Ele
lhe promete fazer-lhe um banquinho, para ficar mais cômodo para ela
trabalhar.
José, em pé junto ao pequeno banco, com as mãos nas ilhargas, olha e
sorri.
Eu assisti à primeira lição de trabalho do meu Jesus. E toda a paz desta
Família santa está em mim.

37.4
Jesus diz:
– Eu te consolei, alma querida, com uma visão da minha infância, feliz
em sua pobreza, porque ela estava cercada do afeto dos dois maiores santos
do mundo.
37.5
Dizem que José foi o meu sustento. Oh! Se ele não pôde, por ser
homem, dar-me o leite, que Maria me nutriu, se desdobrou em pedaços no
trabalho, para me dar pão e conforto, tendo para comigo a gentileza de afetos
de uma verdadeira mãe. Eu aprendi dele — e nenhum aluno jamais teve um
mestre melhor — tudo o que faz de um menino, um homem. E um homem que
tem que ganhar o seu pão.
Mesmo se a minha inteligência de Filho de Deus fosse perfeita, é
preciso refletir que eu não quis sair insolitamente dos limites da minha
idade. Por isso, rebaixando a minha perfeição intelectual de Deus ao nível
de uma perfeição intelectual humana, sujeitei-me a ter um homem por mestre,
com a necessidade de alguém para me ensinar. Mesmo se tenha aprendido
com rapidez e boa vontade, isso não me tira o merecimento de ter-me
sujeitado a um homem, ao homem justo, que ensinou à minha pequena mente,
as noções necessárias para a vida.
As horas saudosas, passadas ao lado de José, para o qual foi um
brinquedo ensinar-me a ser capaz de trabalhar, Eu não me esqueço, nem
agora que estou no Céu. E, quando olho para o meu pai putativo, revejo o
pequeno pomar e a oficina fumacenta, e me parece estar vendo a mamãe
chegar com aquele seu sorriso, que transformava em ouro aquele lugar, e nos
tornava felizes.
37.6
Quanto teriam que aprender as famílias com a perfeição destes
esposos que se amaram como nenhum outro casal!
José era o chefe. A sua autoridade familiar era evidente e não discutida,
diante da qual se inclinava respeitosamente a da esposa e mãe de Deus e se
sujeitava o Filho de Deus. Tudo estaria bem, se José resolvia fazê-lo, sem
discussões, sem teimosia, sem resistências. A sua palavra era a nossa
pequena lei. E, não obstante isso, quanta humildade nele! Nunca um abuso de
poder, nunca uma vontade contra a razão, só por ser ele o chefe. A esposa
era a sua suave conselheira. E se, em sua humildade também profunda, ela se
julgava a serva de seu consorte, o consorte ia buscar na sabedoria dela, que
era a cheia de Graça, a luz que o guiava em todos os acontecimentos.
Eu crescia como uma flor protegida por duas árvores vigorosas, entre
estes dois amores, que se entrelaçavam sobre Mim para me proteger e me
amar.
Enquanto a idade me fez ignorar o mundo, Eu não tive saudades do
Paraíso. Deus Pai e o Divino Espírito não estavam ausentes, porque Maria
estava repleta Deles. E os anjos ali moravam, porque nada os afastava
daquela casa. Um deles, pode-se dizer assim, havia assumido a carne. Era
José, alma angélica, libertada do peso da carne, somente ocupada em servir
a Deus e à sua causa, amando-O, como amam os serafins. O olhar de José!
Plácido e puro como uma estrela que não conhece as concupiscências
terrenas. Ele era o nosso repouso e a nossa força.
37.7
Muitos acham que Eu não tenha humanamente sofrido, quando a morte
veio apagar aquele olhar santo, que vigiava a nossa casa. Se Eu era Deus e,
como tal, conhecedor da feliz sorte que esperava José, não entristecido,
portanto, pela sua partida que, depois de uma breve parada no Limbo, lhe
teria aberto o Céu, contudo, como Homem chorei naquela casa, que ficou
para nós vazia da sua amorosa presença. Chorei sobre o amigo falecido. Não
teria devido chorar por este meu santo, sobre cujo peito Eu tinha dormido,
quando era pequenino, e durante tantos anos, tinha recebido amor?
37.8
Enfim, faço observar aos pais como, sem o auxílio de uma erudição
pedagógica, José soube fazer de Mim um hábil operário. Logo que cheguei à
idade em que já podia manejar as ferramentas, sem deixar que Eu me
entregasse à ociosidade, ele me encaminhou para o trabalho, valendo-se do
meu amor por Maria para me estimular a trabalhar. Fazer objetos úteis à
mamãe. Era assim que ele me inculcava o devido respeito para com a
mamãe, que todo filho deveria ter, e sobre esta respeitosa e poderosa
alavanca, ele se apoiava ao ensinar o futuro carpinteiro.
Onde estão hoje as famílias nas quais se ensina os pequenos a amar o
trabalho, como meio de fazer algo agradável aos pais? Os filhos, agora, são
os tiranos da casa. Crescem duros, indiferentes, grosseiros para com os seus
pais. Acham que seus pais são seus servos, seus escravos. Não os amam e
são pouco amados. Porque, ao mesmo tempo que fazeis de vossos filhos uns
prepotentes caprichosos, também ficais longe deles, com um desinteresse
vergonhoso.
Os filhos são de todos, menos de vós, ó pais do século vinte. Eles são
da babá, da governanta, do colégio, se sois ricos. E são dos colegas de rua,
das escolas, se sois pobres. Mas, já não são vossos. Vós, ó mamães, os
gerais, e isso basta. Vós, ó pais, fazeis o mesmo. Mas o filho não é só carne.
Ele é mente, coração, espírito. Crede, pois, que ninguém, mais do que um pai
ou uma mãe, tem o dever e o direito de formar esta mente, este coração, este
espírito.
37.9
A família existe, e deve existir. Não existe nenhuma teoria ou
progresso que seja capaz de destruir esta verdade, sem provocar ruína. De
um instituto familiar desfeito, só podem vir futuros homens e futuras
mulheres cada vez mais depravados, e que serão causa de ruínas cada vez
maiores. Eu vos digo, em verdade, que seria melhor que não houvessem mais
casamentos e mais filhos sobre a terra, do que famílias menos unidas do que
as tribos dos macacos, famílias que não são escolas de virtude, de trabalho,
de amor e de religião, mas são caos, cada um vivendo como engrenagens
desmanteladas, que acabam se despedaçando.
Quebrai. Despedaçai. Os frutos desse vosso ato de despedaçar a forma
mais santa de vida social, vós os estais vendo e suportando. Continuai,
então, se quiserdes. Mas não vos lamenteis, se esta terra vai-se tornando
cada vez mais um inferno, morada de monstros, que devoram famílias e
nações. Vós o estais querendo. Que, então, isto vos aconteça!”
38. Maria, mestra de Jesus, de Judas e de Tiago.
29 de outubro de 1944.
38.1
Jesus diz:
– Vem pequeno João, e vê. Volta atrás, segura pela minha mão que te
conduz, aos anos da minha infância. O que vires deverá ser inserido no
Evangelho da minha infância, onde quero que seja colocada também a visão
da estadia da Família no Egito. Colocarás assim: a Família no Egito, depois
a primeira lição de trabalho do menino Jesus, depois o que agora vais
descrever, a cena da maioridade (prometida hoje 25-11)[62], por último a
visão de Jesus entre os doutores no Templo, na sua 12ª. Páscoa. Não é sem
motivo também o que agora irás ver. Mas, antes, esclarece alguns pontos e
ligações dos meus primeiros anos, e entre os parentes. É um presente para ti,
nesta festa da minha Realeza, para ti que sentes entrar-te a paz da Casa de
Nazaré, quando a vês. Escreve.

38.2
Vejo o quarto onde, habitualmente, se fazem as refeições e onde Maria
trabalha junto ao seu tear, ou com a agulha. O quarto é perto da oficina de
José, do qual se ouve o incansável trabalho. Mas neste quarto há silêncio.
Maria está costurando tiras de lã, certamente tecida por ela, com cerca de
meio metro de largura, por mais do que o dobro de comprimento, e me
parece que desse trabalho vai sair um manto para José.
Da porta aberta, que dá para o pomar-jardim, vêem-se sebes cheias de
folhas de pequenas margaridas de um azul violeta, que comumente são
chamadas “Marias” ou “Céu estrelado”, mas cujo nome científico eu não sei.
Estão floridas, e por isso deve ser outono. Mas o verde ainda está espesso e
bonito nas plantas, e as abelhas de duas colméias, que estão em cima de um
muro bem exposto ao sol, vão zumbindo, dançando e brilhando à luz solar,
indo de uma figueira para uma videira, e desta para uma romãzeira, cheia de
suas frutas redondas, que já estão se arrebentando pelo excesso de vigor, e
mostrando os colares de suculentos rubis, alinhados no interior do escrínio
verde-avermelhado, com compartimentos amarelos.
38.3
Debaixo das árvores, Jesus está brincando com dois meninos, mais ou
menos da sua idade. São de cabelos encaracolados, mas não loiros. Um,
aliás, é até moreno: uma cabecinha de cordeirinho preto, que faz aparecer
ainda mais branca a pele do rostinho redondo, no qual estão abertos dois
grandes olhos, de um azul tendente ao violáceo, muito bonitos. O outro tem
os cabelos menos encaracolados, e de uma cor castanho-escuro, olhos
castanhos e de um colorido mais moreno, mas com uma tonalidade rosada
nas faces. Jesus com a sua cabecinha loira, entre os outros dois, parece estar
nimbado por um fulgor. Eles brincam em boa harmonia com uns carrinhos
sobre os quais estão diversas mercadorias: folhas, pedrinhas, maravalhas,
pauzinhos. Fazem-se de mercadores certamente, e Jesus é que compra para a
mamãe, à qual vai levar, ora um objeto, ora outro. Maria, aceita com um
sorriso, as compras.
Mas depois a brincadeira muda. Um dos dois meninos propõe[63]:
– Vamos representar o Êxodo, atravessando o Egito. Jesus será Moisés,
eu Arão, e tu… Maria.
– Mas eu sou homem!
– Não faz mal. Faz assim mesmo. Tu és Maria, e dançarás diante do
bezerro de ouro, que vai ser aquela colméia lá.
– Eu não danço. Eu sou homem, e não quero ser mulher. Depois, eu sou
um fiel, e não quero dançar diante do ídolo.
Jesus, então, intervém:
– Vamos deixar este ponto. Vamos representar outro: quando Josué foi
escolhido para ser o sucessor de Moisés. Assim não entra aquele feio
pecado de idolatria, e Judas fica contente por ser um homem, e meu sucessor.
Assim ficas contente não é verdade?
– Sim, Jesus. Mas, então, Tu tens que morrer, porque Moisés morre,
depois. E eu não quero que Tu morras, logo Tu que me queres tão bem!
– Todos morrem… Mas Eu, antes de morrer, abençoarei a Israel, e,
como aqui estais somente vós, em vós Eu abençoarei todo Israel.
Foi aceita a proposta. Surge, porém, depois, uma dúvida. Se o povo de
Israel, depois de tanto andar, ainda teria, ou não, os carros que tinha, quando
saiu do Egito. As idéias são contraditórias.
Vão, então, recorrer a Maria.
– Mamãe, Eu digo que os israelitas tinham ainda os carros. Tiago diz
que não. E Judas não sabe a quem dar razão. Tu sabes?
– Sim, meu Filho. O povo nômade tinha ainda os seus carros. Nas
paradas os consertava. Subiam nos carros os mais fracos, onde também eram
transportadas as provisões, e coisas necessárias para o povo. Menos a Arca,
que era levada nas mãos. Tudo o mais ia nos carros.
A dúvida foi desfeita.
38.4
Os meninos vão para o fundo do pomar e, de lá, cantando salmos, vêm
vindo em direção da casa. Jesus vem na frente e, com sua vozinha clara e
afinada, canta alguns salmos. Atrás Dele vêm Judas e Tiago, segurando por
baixo uma carriolinha que está elevada ao grau de Tabernáculo. Mas, como
eles têm que fazer também a parte do povo, além da de Arão e Josué, tiraram
as suas cintas e com elas amarraram a seus pés os outros carros em
miniatura, e assim vão para frente, como se fossem verdadeiros atores.
Percorrem toda a parreira, passam diante da porta do quarto onde está
Maria, e Jesus diz:
– Mamãe, saúda a Arca que está passando.
Maria se levanta com um sorriso, e se inclina diante do Filho, que passa
radiante, em um nimbo de sol.
Depois, Jesus vai subindo pelo lado do monte que cerca a casa, ou
melhor, o jardim. Em cima da pequena gruta, tendo-se posto em pé, Ele fala
a… Israel. Fala das ordens e promessas de Deus, indica Josué como guia e o
chama para perto de Si. Judas, por sua vez, salta sobre a gruta. Jesus o
encoraja e abençoa. Depois, manda que lhe tragam uma tabuleta… (é uma
folha grande de uma figueira), nela escreve o cântico, e o lê. Não o lê todo,
mas uma boa parte, e parece que está lendo mesmo sobre a folha. Depois,
despede-se de Josué, que o abraça chorando, e sobe mais, até chegar à beira
da saliência onde estão. De lá, abençoa todo Israel, isto é, aos dois que estão
prostrados por terra, em seguida se estende sobre a erva curta, fecha os
olhos e… morre.
38.5
Maria, que tinha ficado à porta sorrindo, quando viu que ele ficou
estendido e rígido, gritou:
– Jesus! Jesus! Levanta-te! Não fiques assim! A mamãe não te quer ver
morto!
Jesus se levanta com um sorriso, e corre para ela e a beija. Vêm também
Tiago e Judas. Eles também recebem carícias de Maria.
– Como pode Jesus lembrar-se daquele cântico tão comprido e difícil e
de todas aquelas bênçãos? –pergunta Tiago.
Maria sorri, e responde simplesmente:
– Ele tem uma memória muito boa, e está sempre muito atento quando eu
leio.
– Eu fico atento na escola. Mas, depois, me dá um sono, com toda aquela
lamentação… Será que não vou aprender nunca?
– Aprenderás, sim. Tenha paciência.
Batem à porta. José atravessa rapidamente o pomar e o quarto e abre.
38.6

– A paz esteja convosco, Alfeu e Maria!


– E a vós, paz e bênçãos.
É o irmão de José e sua mulher. Na rua está parado um carro, que veio
puxado por um burrinho forte.
– Fizestes boa viagem?
– Boa. E os meninos?
– Estão lá no pomar, com Maria.
Mas os meninos já saíram correndo para irem saudar à sua mamãe. Vem
chegando também Maria, segurando Jesus pela mão. As cunhadas se beijam.
– Eles têm se comportado bem?
– Muito bem, e são muito queridos. Todos os parentes vão bem?
– Todos. Eles vos saúdam, e vos mandam muitos presentes de Caná.
Uva, maçãs, queijos, ovos, mel. E… José, eu achei justamente o que estavas
querendo para Jesus. Está no carro, naquela cesta redonda.
A mulher de Alfeu sorri. Inclina-se sobre Jesus, que olha para ela com
seus olhos grandes muito abertos, os beija, e diz:
– Sabes o que eu trouxe para ti? Adivinha.
Jesus pensa, e não descobre. Eu desconfio que ele faça assim de
propósito para dar a José a alegria de fazer uma surpresa. De fato, José vem
entrando, e trazendo um grande cesto redondo. Coloca-o no chão, diante de
Jesus, desata a corda que está segurando a tampa no lugar, e a levanta… e
uma ovelhinha toda branca, um verdadeiro floco de espuma, aparece
dormindo, no meio do feno bem limpo.
Jesus solta um “oh!”, admirado e feliz, e quer se precipitar sobre o
animalzinho, mas depois volta atrás, e corre até José, que ainda está
inclinado para o chão, e o abraça e beija, agradecendo-lhe.
Os priminhos olham com admiração a ovelhinha, que despertou, e está
levantando o pequeno focinho rosado e gracioso, procurando a mãe. Puxam-
na para fora do cesto, dão-lhe um punhado de trevo, que ela come, olhando
ao seu redor com seus olhos mansos.
Jesus continua a dizer:
– Para Mim! Para Mim! Obrigado, pai!
– Gostaste dela tanto assim?
– Oh! Se gostei… ela é branca, limpa… uma cordeirinha… oh!
E lança os bracinhos ao pescoço da ovelhinha, põe a cabeça loira sobre
a cabecinha branca, e fica todo feliz.
– Também para vós eu trouxe duas –diz Alfeu aos filhos–. Mas são
escuras. Vós não sois ordenados como Jesus, e teríeis tido ovelhas
desordenadas, se fossem brancas. Serão o vosso rebanho. Vós as criareis
juntas, e assim não ficareis mais batendo pernas pelas estradas, vós dois,
jogando pedras como uns moleques.
Os meninos correm para o carro, e ficam olhando as duas outras
ovelhas, mais pretas do que brancas.
Jesus ficou com a sua. Ele a leva ao pomar, dá-lhe de beber, e o
animalzinho o acompanha, como se sempre o tivesse conhecido. Jesus a
chama. Põe-lhe o nome de “Neve”, ao qual ela responde, balindo de modo
todo festivo.
Os hóspedes sentaram-se à mesa, e Maria lhes serve pão, azeitonas e
queijo. Coloca-se à mesa um jarro com cidra, ou água com mel, não sei, mas
vejo que é de um amarelo muito claro.
Falam entre si, enquanto os meninos estão brincando com os três
animais, que Jesus quis que ficassem juntos, para dar também às outras
ovelhas água e um nome:
– A tua, Judas, se chamará “Estrela”, porque tem esse sinal na testa. E a
tua, “Chama”, porque tem a cor de certas chamas de éricas murchas.
– Está aceito.
Os adultos estão conversando, (e é Alfeu quem diz):
– Espero ter resolvido assim a história das brigas dos rapazinhos. Foi a
tua idéia, José, que veio me iluminar. Eu disse: “Meu irmão quer uma
ovelhinha para Jesus, para que ele brinque um pouco. Eu pegarei mais duas
para aqueles garotos, a fim de fazer com que eles fiquem um pouco mais
quietos, e eu não precisar ter sempre questões com os outros pais, por causa
de cabeças e joelhos quebrados. Um pouco a escola, e um pouco as ovelhas,
e eu conseguirei tê-los mais quietos.” 38.7Mas neste ano tu também deverás
mandar Jesus para a escola. Já é hora.
– Eu nunca mandarei Jesus para a escola –diz Maria, decididamente.
É difícil ouvi-la falar assim, e falar antes de José.
– E por que? o Menino precisa aprender para, a seu tempo, ser capaz de
passar no exame de maioridade…
– O Menino saberá. Mas ele não vai à escola. Está decidido.
– Serias a única em Israel a fazer assim.
– Serei. Mas vou fazer assim. Não é verdade, José?
– É verdade. Para Jesus não há necessidade de ir para nenhuma escola.
Maria foi educada no Templo, e é uma verdadeira doutora no conhecimento
da Lei. Ela será a sua mestra. Eu também quero assim.
– Assim, vós acostumais mal o Rapaz.
– Não podes dizer isso. É o melhor de Nazaré. Já o ouviste chorar, fazer
birra, negar obediência, faltar com o respeito?
– Isto não. Mas assim ele se tornará, se continuar a ser viciado.
– Não é viciar os filhos tê-los perto de si. Mas isso é amá-los com bom
senso e bom coração. Assim amamos o nosso Jesus e, visto que Maria é
mais instruída que o mestre, Ela será a mestra de Jesus.
– Quando ficar homem, o teu Jesus será uma mocinha, que terá medo até
de uma mosca.
– Não será assim. Maria é uma mulher forte, e sabe educá-lo virilmente.
Eu não sou nenhum covarde, e sei dar-lhe exemplos viris. Jesus é uma
criança sem defeitos físicos nem morais. Crescerá, por isto, reto e forte no
corpo e no espírito. Fica certo disso, Alfeu. Ele não fará má figura na
família. Além disso, eu já decidi, e assim se fará.
– Maria é que terá decidido, e tu…
– E se tivesse sido assim? Não é bonito que dois que se amam estejam
prontos a ter o mesmo pensamento e a mesma vontade, porque
reciprocamente um abraça o desejo do outro, e o faz seu? Se Maria quisesse
coisas tolas, eu lhe diria: “não.” Mas ela pede coisas cheias de sabedoria, e
eu as aprovo e as faço minhas. Nós nos amamos, como no primeiro dia… e
assim faremos, enquanto estivermos vivos. Não é verdade, Maria?
– Sim, José. E não aconteça nunca, mas, se um tivesse que morrer sem o
outro, ainda assim nos amaríamos.
José acaricia a cabeça de Maria, como se fosse uma filha ainda menina,
e Ela olha para ele com seu olhar sereno e amoroso.
38.8
A cunhada intervém:
– Vós tendes razão. Se eu fosse boa para ensinar! Na escola os nossos
filhos aprendem o bem e o mal. Em casa aprendem só o bem. Mas eu não
sei… se Maria…
– Que queres dizer, cunhada? Fala com toda a liberdade. Tu sabes que
eu te amo, e fico alegre quando te posso dar um prazer.
– Eu ia dizendo… Tiago e Judas são um pouco mais velhos do que
Jesus. Eles já vão à escola… mas, pelo que eles sabem!… Jesus, ao
contrário, já sabe tão bem a Lei… Eu queria… te dizer que tivesses também
os dois, quando fores ensinar a Jesus? Eu acho que eles se tornariam
melhores e mais instruídos. Afinal, eles são primos, e que se amem como
irmãos, é justo. E eu ficaria tão feliz!
– Se José assim quer, e o teu marido também, eu estou pronta. Falar para
um e falar para três é a mesma coisa. Repassar toda a Escritura é uma
alegria. Que eles venham.
Os três meninos, que haviam entrado em silêncio, se assentam, e estão à
espera do veredicto.
– Eles vão te pôr desesperada, Maria –diz Alfeu.
– Não. Comigo são sempre bons. Não é verdade que sereis bons, se eu
vos ensinar?
Os dois correm para perto dela, um à direita, o outro à esquerda, põem-
lhe os braços ao redor dos ombros, as cabecinhas sobre os ombros, e
prometem fazer tudo para serem bons.
– Deixa-os experimentar, Alfeu, e deixa-me também experimentar. Eu
penso que não ficarás descontente com a experiência. Eles virão todos os
dias, da hora sexta até à tarde. Bastará, podes crer. Eu sei a arte de ensinar
sem cansar. Os meninos ficam quietos e se recreiam, ao mesmo tempo. É
preciso entendê-los, amá-los e ser por eles amados, para conseguir alguma
coisa deles. Vós me amais, não é verdade?
Dois grandes beijos são a resposta.
– Estás vendo?
– Eu estou vendo. Só tenho que te dizer: “Obrigado.” E, Jesus, o que
dirás vendo a mamãe ocupada com os outros? Que dizes, Jesus?
– Eu digo[64]: “Felizes os que a estão escutando e que erguem sua
morada junto da morada dela.” Como da Sabedoria, feliz quem é amigo de
minha mãe, e Eu sou feliz se aqueles que eu amo forem amigos dela.
– Mas quem é que põe estas palavras nos lábios do Menino? –pergunta
Alfeu, admirado.
– Ninguém, meu irmão. Ninguém deste mundo.
A visão cessa aqui.

Jesus diz:
38.9

– E Maria foi Minha mestra, de Tiago e de Judas. Eis porque nos


amamos como irmãos, não só pelo parentesco, mas pela ciência e por termos
crescido juntos, como três sarmentos de videira sustentados na mesma vara.
A minha mamãe! Doutora, como nenhum outro em Israel, esta minha doce
mãe. Sede da Sabedoria, e da verdadeira Sabedoria, nos instruiu para o
mundo e para o Céu. Digo: “nos instruiu”, porque Eu fui seu aluno, não
diversamente dos primos. E o “sigilo” foi mantido sobre o segredo de Deus,
contra a indagação de Satanás, mantido sob a aparência de uma vida comum.
Ficaste alegre com esta cena suave? Agora, fica em paz. Jesus está
contigo.
[62] a cena da maioridade (prometida hoje 25-11), é um acréscimo que M aria Valtorta inseriu entre as linhas escritas a 29 de
Outubro e se refere à promessa da qual fala no início do cap ítulo seguinte.
[63] propõe, uma rep resentação a extrair de: Êxodo 32, à qual vem p referida a de: Números 27,12-23; Deuteronómio 31-34.
[64] Eu digo, como em: Provérbios 8,34.
39. Preparativos para a maioridade
de Jesus e partida de Nazaré.
25 de novembro de 1944.
[…].
39.1
Tive Dele uma promessa. Eu lhe dizia:
– Jesus, como eu eu gostaria de ver a cerimônia da tua maioridade!
Ele me disse:
– Será a primeira coisa que Eu te darei, logo que pudermos estar “nós”,
sem que se perturbe o mistério. Colocarás aquela cena depois da cena de
minha mãe, minha mestra e mestra de Judas e Tiago, que te fiz ver
recentemente (29-10). E a colocarás entre esta e a Disputa no Templo.
[…].

19 de dezembro de 1944.
39.2
Vejo Maria inclinada sobre um alguidar, ou melhor, sobre uma bacia
de cerâmica, misturando alguma coisa que solta fumaça no ar frio e sereno
que enche o pomar de Nazaré.
Deve ser pleno inverno, porque, a não ser as oliveiras, todas as outras
plantas estão nuas, desprovidas de folhas. No alto, um céu muito limpo, e
também um belo sol. Mas não consegue amenizar o vento do Norte, que puxa
e faz bater uns nos outros os ramos despojados de folhas e ondular os
pequenos ramos verde-cinzentos das oliveiras.
Maria está vestida com uma pesada veste de um marrom quase preto e
amarrou na frente uma tela rústica, em lugar de um avental, para proteger sua
veste. Tira da tina o bastão com que estava mexendo um líquido, e vejo
caírem dele gotas de uma bonita cor avermelhada. Maria observa, molha um
dedo nas gotas que caem, experimenta se a cor está boa, passando-a na tela
que está sobre sua veste. Parece satisfeita.
Entra em casa, e sai com muitas meadas de uma lã muito branca.
Mergulha-as uma por uma na tina, com paciência e com habilidade.
39.3
Enquanto ela faz isso, entra, vindo da oficina de José, sua cunhada
Maria, mulher de Alfeu. Elas se saúdam e começam a falar.
– Vai indo bem? –pergunta Maria de Alfeu.
– É o que espero.
– Aquela gentia[65] me garantiu que se trata da tinta e do modo de
prepará-la como fazem em Roma. Deu a mim só porque és tu que fizeste
esses trabalhos. Ela diz que nem em Roma há quem faça bordados como tu.
Deves ter sacrificado a vista, para fazê-los…
Maria sorri, e faz um movimento com a cabeça, como para dizer:
“Coisas sem importância!”
A cunhada olha, antes de entregar a Maria as últimas meadas de lã.
– Como foi que as fiaste? Parecem cabelos, de tão finos e iguais que
são! Fazes tudo tão bem… e, como és esperta! Estas últimas meadas ficarão
mais claras?
– Sim. São para a veste. O manto é mais escuro.
As duas mulheres trabalham juntas, na tina. Depois, tiram as meadas
com uma bela cor de púrpura, e correm rápidas para irem mergulhá-las na
água gelada que enche o tanque sob uma pequena fonte, que cai dando
notinhas de música, que parecem umas risadinhas baixas. Elas enxaguam, e
tornam a enxaguar, depois estendem sobre bambus as meadas e as prendem
de um ramo a outro das árvores.
– Com este vento, logo estarão secas –diz a cunhada.
– Vamos ver o José. Lá temos fogo. Deves estar gelada –diz a mãe de
Jesus–. Foste muito boa em ajudar-me. Acabei depressa e com menos
cansaço. Eu te agradeço.
– Oh! Maria! Que não faria eu por ti? Estar perto de ti, já é uma festa!
Além disso… é para Jesus todo este trabalho. E é tão querido o teu Filho!…
A mim me parece que fico sendo também a mãe dele, se eu te ajudar a
preparar a festa de sua maioridade.
As duas mulheres entram na oficina, cheia daquele cheiro de madeira
aplainada, cheiro próprio das oficinas de carpinteiro.
39.4
Aqui a visão parou um pouco… para continuar no ato da partida de
Jesus para Jerusalém, aos seus doze anos.
Ele, muito bonito e crescido, parece ser um irmão mais novo de sua
jovem mãe. Já alcança os ombros dela, com sua cabeça loira, de cabelos
encaracolados, e cuja cabeleira, já não mais curta como era em seus
primeiros anos de vida, mas longa até abaixo das orelhas parece um pequeno
casquete de ouro todo recoberto de caracóis que brilham.
Está vestido de vermelho. Um belo vermelho de rubi claro. Uma longa
veste lhe desce até os tornozelos, deixando descobertos somente os pés
calçados de sandálias. A veste é solta, com mangas longas e largas. Perto do
pescoço, na base das mangas, na orla, está tecido um galão, cor sobre cor,
muito bonito.
(ao copiar a visão, aguardar o resto, que está no novo caderno).

20 de dezembro de 1944.
Vejo Jesus entrar com sua mamãe, na espécie de sala de jantar de
Nazaré.
Jesus é um belo jovenzinho de doze anos, alto, bem feito de corpo e
robusto, sem ser gordo. Parece mais adulto do que é, pela sua compleição.
Já está alto, tanto que atinge os ombros da mãe. Tem ainda o rosto redondo e
rosado do Jesus menino, rosto que, depois, com a idade juvenil e viril, se
emagrecerá, e se tornará de uma cor indefinida, a cor de certos delicados
alabastros, que lembram, de longe, o amarelo rosado.
Os olhos, também os olhos, são ainda de menino. Grandes, bem abertos
e com uma centelha de alegria, perdida no meio da seriedade com que
olham. Depois, eles não serão mais tão abertos… As pálpebras descerão até
a metade dos olhos, para encobrir o mal demasiado que está no mundo aos
olhos do Santo e Puro. Só nos momentos de milagres é que eles estarão bem
abertos e cintilantes, mais ainda do que agora… para expulsar os demônios e
a morte, para curar as doenças e os pecados. E não estarão mais, nem mesmo
com aquela centelha de alegria misturada com a seriedade… A morte e o
pecado lhe estarão cada vez mais presentes e próximos, e com eles o
conhecimento, também humano, da inutilidade do seu sacrifício, por causa da
má vontade do homem. Só os raríssimos momentos de alegria, por estar com
os remidos, e especialmente com os puros, meninos em sua maior parte,
farão brilhar de alegria estes olhos santos e bons.
Mas agora Ele está com sua mamãe, em sua casa, e diante Dele está
José, que lhe sorri com amor, e estão também os seus priminhos, que o
admiram, e a tia Maria de Alfeu, que o acaricia… Ele está feliz. O meu
Jesus tem necessidade de amor para ser feliz. Neste momento Ele tem amor.
Jesus está vestido com uma veste solta de lã vermelha, de tonalidade
rubi claro. Ela é macia, de textura perfeita, na sua compacta tenuidade. Junto
ao pescoço, na frente, por baixo das mangas longas e largas, e da veste, que
desce até o chão, deixando descobertos apenas os pés, que estão calçados
com sandálias novas e muito bem feitas — não as costumeiras solas, fixadas
ao pé por meio de tiras de couro — está um galão, não bordado, mas tecido
em cor mais escura sobre o vermelho rubi da veste. Deve ser obra da
mamãe, porque a cunhada a admira e elogia.
Os belos cabelos loiros já estão carregados de uma tonalidade bem
diferente de quando Ele era pequenino, agora com cintilações de cobre nas
volutas dos caracóis, que terminam abaixo das orelhas. Não são mais os
caracoizinhos curtos e leves da infância. Não são ainda os cabelos
ondulados e compridos até aos ombros, onde terminam em macias madeixas
aneladas na idade adulta. Mas já tendem mais para esta última na cor e na
forma.
39.5
– Eis aqui o nosso Filho –diz Maria, levantando a sua mão direita, na
qual está a mão esquerda de Jesus.
Parece que o está apresentando a todos e reconfirmando a paternidade
do Justo, que está sorrindo. E ela acrescenta:
– Abençoa-o, José, antes de Ele partir para Jerusalém. Não foi
necessária a bênção ritual, em sua idade de ir para a escola, primeiro passo
na vida. Mas agora que Ele vai ao Templo, para ser declarado maior de
idade, dá-lhe a bênção. E abençoa a mim também, junto com Ele. A tua
bênção… (Maria dá um soluço) O fortificará e me dará força, para me
desapegar um pouco mais Dele…
– Maria, Jesus será sempre teu. A fórmula não incidirá em nossos
mútuos relacionamentos. Nem eu vou disputá-lo contra ti, este Filho que nos
é tão caro. Ninguém como tu merece guiá-lo na vida, ó minha Santa.
Maria se inclina, pega a mão de José, e a beija. Ela é a esposa, oh! e
quão amorosa e respeitosa para com o seu consorte!
José acolhe aquele sinal de respeito e de amor com dignidade, mas
depois levanta aquela mão que foi beijada, e a coloca sobre a cabeça da
esposa, dizendo:
– Sim, eu te abençôo, ó Bendita, e a Jesus junto contigo. Vinde, minhas
únicas alegrias, minha honra e meu ideal.
José está solene. Com os braços estendidos, e as palmas das mãos
voltadas para o chão sobre as duas cabeças inclinadas, igualmente loiras e
santas, ele pronuncia a bênção:
– O Senhor vos guarde e vos abençoe. Tenha misericórdia de vós, e vos
dê a paz. O Senhor vos dê a sua bênção.
E depois diz:
– Agora vamos. A hora é propícia para a viagem.
Maria apanha um manto grande, cor de romã, coloca sobre o corpo do
39.6

Filho, e, ao fazer isso, o acaricia!


Saem e fecham a porta. Põem-se a caminho. Outros peregrinos vão indo
na mesma direção. Ao saírem da cidade, as mulheres se separam dos
homens. Os meninos vão com quem preferirem. Jesus fica com a mãe.
Os peregrinos vão salmodiando pelos belos campos, nestes alegres dias
de primavera. Prados e searas frescas e frescas as ramagens das árvores,
que floriram, há pouco. Ouvem-se os cantos dos homens pelos campos e
pelas ruas e os dos pássaros nas árvores. Córregos límpidos servem de
espelho para as flores que estão às margens e cordeirinhos saltam ao lado de
suas mães. Há paz e alegria, sob o mais belo céu de abril.
A visão cessa assim.
[65] Aquela gentia, é certamente uma mulher romana, p ortanto p agã. O substantivo gentio, que encontraremos com
frequência, se contrap õe a judeu e designa, segundo a terminologia hebraica, a p ertença à “gente” que não é o p ovo eleito de
Israel. À comp reensão dos gentios, enquanto p agãos, Jesus deverá adap tar o ensinamento da verdade, como se diz na nota em
154.7, no texto de 272.5 e na nota em 406.10. E nos os p agãos Ele p ode confiar mais do que nos judeus, como muitas vezes
realça, fornecendo uma base bíblica em 635.17. -M uitos ep isódios na obra de Valtorta mostram (esp ecialmente no cap ítulo 155)
como os judeus se consideravam contaminados p elo contacto com os p agãos. Tal imp ureza legal tinha um fundamento em:
Jeremias 10,25; Izequiel 4,13; Oseia 9,3; e é confirmada em alguns p assos neo-testamentários: João 18,28; Actos 10,28; 11,1-3;
21,27-28. Do p aganismo real fala Jesus em 116.2 e em 121.7.
40. O exame de Jesus maior de idade no Templo.
21 de dezembro de 1944.
40.1
O Templo está como em dias de festa. A multidão, entra e sai,
atravessa os pátios, os átrios, e pórticos, desaparece nesta ou naquela
construção situada nos diversos patamares, sobre os quais está espalhado o
aglomerado do Templo.
As pessoas da comitiva da família de Jesus entram também, cantando
salmos em voz baixa. Primeiro, todos os homens, depois, as mulheres. A
eles se uniram também outros, que talvez sejam de Nazaré, ou amigos que
moram em Jerusalém. Não sei.
José se afasta, depois de ter, junto com os outros, adorado o Altíssimo,
daquele ponto de onde os homens podiam ficar (as mulheres pararam no
patamar logo abaixo) e com o Filho, José atravessa novamente os pátios,
dobra para um lado, entrando numa grande sala, que parece ser uma
sinagoga. Não sei como pode ser isso. Haveria sinagogas também no
Templo? José fala com um levita e este desaparece atrás de uma cortina
listrada, para voltar depois com uns sacerdotes anciãos, penso que são
sacerdotes, certamente mestres no conhecimento da Lei, designados para
examinar os fiéis.
40.2
José apresenta-lhes Jesus. Primeiramente, os dois se inclinaram
profundamente diante dos dez doutores, que estão sentados com toda a
dignidade sobre baixos bancos de madeira.
– Este aqui –diz ele–. É meu filho. Há três luas e doze dias que ele
completou o tempo que a Lei exige para ser maior de idade. Mas eu quero
que Ele o seja segundo os preceitos de Israel. Peço-vos que observeis que,
pela sua compleição, Ele mostra que já saiu da infância e da menoridade. E
peço-vos que o examineis com benevolência e assim possais julgar como é
verdade tudo o que eu, pai dele, afirmo. Eu o preparei para esta hora e para
esta sua dignidade de filho da Lei. Ele sabe os preceitos, as tradições, as
decisões, os costumes das fímbrias e dos filactérios, sabe recitar as orações
e as bênçãos diárias. Pode, pois, conhecendo a Lei, nos seus três ramos[66]
da Halacá, do Midraxe e da Hagadá, conduzir-se como um homem. Por isso,
eu desejo ficar livre da responsabilidade por suas ações e por seus pecados.
De agora em diante, seja Ele sujeito aos preceitos, e pague por suas faltas
contra eles. Examinai-o.
– Nós o faremos. 40.3Vem para frente, menino. Qual o teu nome?
– Jesus de José, de Nazaré.
– É nazareno. Tu sabes ler?
– Sim, rabi. Sei ler as palavras escritas e as que estão encerradas nas
próprias palavras.
– Que estarias querendo dizer?
– Quero dizer que compreendo também o significado da alegoria ou do
símbolo, que se oculta debaixo de uma aparência, como a pérola, que não
aparece, mas está encerrada numa concha feia e fechada.
– Esta resposta não é comum, e é muito sábia. Raramente se ouve uma
coisa destas, saindo dos lábios de pessoas adultas; imaginem saindo da boca
de um menino, e, além disso, nazareno!
A atenção dos dez despertou. Seus olhos não perdem de vista, nem por
um instante, o belo menino loiro que olha para eles com firmeza, sem
arrogância, mas também sem medo.
– Tu estás honrando o teu mestre, que certamente devia ser muito douto.
– A Sabedoria de Deus fez do coração dele sua morada.
– Mas, escutai bem! Feliz de ti, ó pai de um filho como este!
José, que está lá no fundo da sala, sorri, e se inclina.
40.4
Dão a Jesus três rolos diferentes, dizendo:
– Lê aquele que está envolvido com uma fita de ouro.
Jesus abre o rolo e lê. É o Decálogo. Mas, depois das primeiras
palavras, um dos juízes tira o rolo de suas mãos, e lhe diz:
– Continua, agora, de memória.
E Jesus continua, com tal segurança, que parece estar lendo. Cada vez
que fala no Senhor, inclina-se profundamente.
– Quem te ensinou isso? Por que fazes assim?
– Porque santo é esse Nome, e deve ser pronunciado com sinal interno e
externo de respeito. Ao rei, que é rei por breve tempo, seus súditos se
inclinam, mesmo não sendo este mais do que pó. Ao Rei dos reis, ao
Altíssimo Senhor de Israel, presente, ainda que não visível senão ao nosso
espírito, não se deverá inclinar toda criatura, que Dele depende com
sujeição eterna?
– Muito bem! Homem, nós te aconselhamos a fazer que teu filho seja
instruído por Hilel ou Gamaliel. É nazareno… mas as suas respostas nos
fazem esperar que Ele será um novo grande doutor.
– O filho já é maior de idade. Ele fará como quiser. Eu, se ele quiser
uma coisa honesta, não me oporei.
40.5
– Rapaz, escuta. Disseste: “Lembra-te de santificar as festas. Mas não
só por ti, mas pelo teu filho, tua filha, teu servo, tua serva, e até pelo
jumento, pois está dito que ele não fará trabalho no sábado.” Então, diz-me
uma coisa: se uma galinha põe um ovo em dia de sábado, ou se uma ovelha
dá cria, será lícito usar do fruto do ventre delas, ou será isso considerado
uma coisa má?
– Sei que muitos rabinos, o último deles Shamai, que ainda está vivo,
dizem que o ovo posto no sábado está contra o preceito. Mas Eu penso que
uma coisa é o homem, e outra é o animal, e também o que o animal faz, como
parir. Se eu obrigo o jumento a trabalhar, eu é que cometo o pecado pelo que
ele faz, porque eu o chicoteio e obrigo a trabalhar. Mas, se uma galinha põe
um ovo que amadureceu em seu ovário, ou uma ovelha gera um filhote no
sábado, porque ele já está maduro para nascer, isso não é pecado, nem o ovo
é pecado aos olhos de Deus, nem o cordeiro, que vieram à luz no sábado.
– E por que não? Se todo e qualquer trabalho no sábado é pecado?
– Porque o conceber e o gerar correspondem à vontade do Criador, e
estão regulados pelas leis dadas por Ele a toda criatura. Ora, a galinha não
faz mais que obedecer a esta lei que diz que, depois de tantas horas para a
sua formação, o ovo está completo, e é posto. E a ovelha também não faz
mais do que obedecer às leis dadas por Aquele que tudo fez, o qual
estabeleceu que, duas vezes por ano, quando a primavera sorri para os
prados em flor, e quando os bosques estão despojados de suas folhas e o
gelo atormenta o peito do homem, que as ovelhas se acasalem, para dar-nos
depois, no tempo determinado, o leite, a carne e os queijos tão nutritivos,
justamente nos meses, em que os homens se cansam no trabalho da colheita,
ou sofrem mais pelo rigor das geadas. Portanto, se uma ovelha, quando chega
o seu tempo, dá cria, oh! isso bem pode ser uma coisa sagrada, até diante do
altar, pois é fruto da obediência ao Criador.
40.6
– Eu não continuo a examinar mais. A sabedoria dele supera a dos
adultos. E nos assombra.
– Não. Ele diz que é capaz de compreender até os símbolos. Ouçamo-lo.
– Primeiro, diz um salmo, as bênçãos e as orações.
– E também os preceitos.
– Sim. Diz os midrashot.
Jesus diz, então, com segurança, uma ladainha de “Não fazer isso, não
fazer aquilo…” Se nós tivéssemos de ter ainda todas aquelas limitações,
rebeldes como somos, Eu vos garanto que ninguém se salvaria…
– Basta. Abre o rolo da fita verde.
Jesus abre e começa a ler.
– Mais adiante, um pouco mais.
Jesus obedece.
– Basta. Lê agora, e nos explica que é que te parece que é um símbolo.
– Na Palavra santa raramente faltam os símbolos. Nós é que não os
sabemos ver e aplicar. Eu leio[67]: 4° livro dos Reis, cap. 22,vers. 10: “Safã,
escriba, continuando a referir-se ao rei, disse: ‘O sumo sacerdote Helcias
me deu um livro.’ E, tendo Safã lido o mesmo na presença do rei, este,
depois de ouvir as palavras da Lei do Senhor, rasgou as vestes e, em
seguida, deu…”
– Continua depois dos nomes.
– “… esta ordem: ‘Ide consultar o Senhor por mim, pelo povo, por toda
Judá, a respeito das palavras deste livro, que foi achado, porque a grande ira
de Deus se acendeu contra nós, pois os nossos pais não ouviram as palavras
deste livro, para cumprirem as suas prescrições’…”
– Basta. O fato aconteceu muitos séculos antes de nós. E, então, que
símbolo encontras em um fato de uma crônica tão antiga?
– Encontro o fato de que vós não tendes tempo para o que é eterno.
Eterno é Deus, e a nossa alma, e as relações entre Deus e a alma. Por isso, o
que havia provocado o castigo naquele tempo é o mesmo que provoca os
castigos agora, e também os efeitos da culpa são iguais.
– Que queres dizer?
– Israel não sabe mais a Sabedoria, que vem de Deus. É a Ele, e não aos
pobres homens, que precisamos pedir a luz. E não se tem luz, se não se tem a
justiça e a fidelidade a Deus. Por isso é que se peca, e Deus, em sua ira,
pune.
– Então, nós não sabemos mais? Que é que estás dizendo, rapaz? E os
seiscentos e treze preceitos?
– Os preceitos existem, mas são palavras. Nós os sabemos, mas não os
colocamos em prática. Por isso não sabemos. O símbolo é este: todo
homem, em qualquer tempo, tem necessidade de consultar o Senhor para
conhecer a sua vontade e de nela confiar para não atrair sua ira.
– O rapaz é perfeito. Nem mesmo a cilada de uma pergunta insidiosa
40.7

foi capaz de perturbar sua resposta. Que ele seja levado à verdadeira
sinagoga.
Passam para uma sala mais ampla e pomposa. Aqui a primeira coisa que
lhe fazem é encurtar-lhe os cabelos. Os grandes caracóis são recolhidos por
José. Depois, apertam-lhe a veste vermelha com uma cinta comprida,
passada em diversas voltas em torno da cintura, amarram-lhe umas fitazinhas
na fronte, no braço e no manto. Elas ficam seguras por uma espécie de
broche. Depois, cantam salmos, e José, com uma longa oração, louva ao
Senhor e invoca sobre o Filho todos os bens.
A cerimônia chega ao fim. Jesus sai com José. Voltam para o lugar onde
estavam e se reúnem aos seus parentes homens, compram e oferecem um
cordeiro; depois, com a vítima já degolada, vão ao encontro das mulheres.
Maria beija o seu Jesus. Parece que havia muitos anos que ela não o via.
Ela olha para Ele, feito agora mais homem, com aquela veste e aqueles
cabelos, e o acaricia.
Saem e tudo termina.
[66] três ramos, p oderiam ser, resp ectivamente, o conjunto das normas de comp ortamento (Halakah), a série dos comentários
rabínicos da Sagrada Escritura (Midrash), os mesmos comentários exp ostos de forma mais acessível ao p ovo (Haggadah).
Encontrá-los-emos em: 197.3 -225.9 -414.4 -625.4. Da obra dos rabinos se falará em 252.10 e 335.9.
[67] Eu leio, com citação segundo a “Vulgata” (como em 35.11) que se usava no temp o da escritora. Na “neo-Vulgata”,
introduzida ap ós o Concílio Vaticano II, os p rimeiros dois livros dos Reis tomaram o nome de 1 Samuel e 2 Samuel, e os
sucessivos dois livros tomaram o número de ordem de 1 Rei e 2 Reis. Além do mais: Paralipómenos tornou-se Crónicas; o
segundo livro de Esdras (conhecido também p or livro de Neemias) tornou-se Neemias; Eclesiastes manteve-se Eclesiastes ou
tornou-se Qohélet; Eclesiástico tornou-se Sirácide ou Ben Sira. Enfim, semp re na neo-Vulgata, o Salmo 9 foi dividido em dois,
fazendo aumentar de uma unidade a numeração dos Salmos seguintes até 145 (transformado 146), enquanto a antiga numeração
retoma com o Salmo 147, que une os Salmos 146-147 da Vulgata. Outras diferenças entre Vulgata e neo-Vulgata vêm assinaladas
com nota onde e quando necessário: 50.9 -68.6 (sobre o nome Betsaida) -266.1 -272.4 -368.6 (sobre o termo gazofilácio) -413.3
-434.6 -439.2 -457.2 -463.2 -476.9 -487.6 -520.9 -544.8 (duas notas). O texto da p resente edição da obra, que rep roduz
fielmente o manuscrito original de M aria Valtorta, conserva os reenvios bíblicos segundo a “Vulgata”. No lugar das notas, que
devem facilitar a busca p or p arte do leitor, trazem os reenvios bíblicos segundo a “neo-Vulgata”, mesmo quando esses reenvios
forem retomados p or anotações de M aria Valtorta referidas na “Vulgata”. -Na obra de Valtorta o modo de citar a Bíblia (livro,
cap ítulo, versículos) não é do temp o de Jesus mas do da escritora e nosso, assim como Jesus fala não na língua do seu temp o de
vida terrena, mas na do nosso temp o. Também no modo de citar a Bíblia, p or conseguinte, a obra deve ser considerada como
uma “tradução” p ara utilidade dos seus destinatários.
41. A disputa de Jesus com os doutores no Templo.
A angústia da mãe e a resposta do Filho.
28 de janeiro de 1944.
41.1
Vejo Jesus. Já é um adolescente. Está vestido com uma túnica muito
branca, que me parece de linho, comprida até os pés. Sobre ela está posto
um manto retangular vermelho claro. Jesus está com a cabeça descoberta, os
longos cabelos descendo até a metade das orelhas, e mais escuros do que
quando o vi menino. É um rapaz robusto, muito alto para a sua idade e que,
como seu rosto está mostrando, é ainda a de um jovem.
Ele olha para mim, sorri, estendendo-me as mãos. É porém, o seu, um
sorriso parecido com aquele que nele vejo quando já homem feito: doce e
um tanto sério. Ele está sozinho. Por enquanto, não vejo outra pessoa. Está
encostado a um muro que fica acima de uma estradinha cheia de altos e
baixos, pedras e com uma cavidade ao centro, por onde certamente se forma
um córrego, no tempo da chuva. Mas agora ela está seca, porque o dia está
claro.
Tenho a idéia de ir-me encostar também ao muro, e de lá olhar ao redor
e para baixo, como Jesus está fazendo. Estou vendo um aglomerado de casas.
É um aglomerado desordenado. As casas são, umas altas, outras baixas, e
foram construídas sem a preocupação de fazê-las num mesmo alinhamento.
Fazendo uma comparação muito simples, mas com muita semelhança, parece
um punhado de pedras brancas, jogadas sobre um terreno escuro. As ruas e
vielas são como veias, no meio daquela brancura. Aqui e ali algumas
árvores estendem suas copas sobre os muros. Muitas delas estão em flor, e
muitas também já estão cobertas de folhas novas. Deve ser primavera.
À esquerda, para quem olhar de onde estou, há um grande aglomerado
disposto em três ordens de terraços repletos de construções e torres, pátios e
séries de pórticos. No centro se ergue uma construção mais alta, majestosa,
com cúpulas redondas que brilham ao sol, como se estivessem cobertas de
metal: cobre ou ouro. O conjunto é cercado por uma muralha guarnecida de
ameias, na forma de um ,
como uma fortaleza. Uma das torres é mais alta do que as outras, e está
construída no fim de uma rua estreita e em aclive, dominando aquele grande
aglomerado. Parece uma sentinela atenta.
Jesus olha fixamente para aquele lugar. Depois, volta à sua posição
anterior, apóia as costas ao muro, como estava, olhando para um pequeno
monte, na frente do aglomerado. O pequeno monte está tomado pelas casas,
de alto a baixo. Vejo que ali termina uma rua com um arco, além do qual só
há uma rua calçada com pedras quadrangulares, irregulares e desconexas.
Não são muito grandes, não são como as pedras das estradas consulares
romanas. Mais parecem as clássicas pedras das ruas de Viareggio (não sei
se ainda existem aquelas pedras) colocadas sem nenhuma ligação entre si. É
uma estrada ruim. O rosto de Jesus fica tão sério, que eu me ponho a
procurar sobre aquele pequeno monte a causa de sua melancolia. Mas não
encontro nada de especial. Vejo somente um monte despido de tudo. E basta.
Enquanto isto, perco de vista Jesus, pois, quando me viro, Ele não está mais
ali. Com esta visão eu adormeço.
41.2
… Quando acordo, com a lembrança daquela visão no coração, tendo
recobrado um pouco as forças e a paz, porque todos estão dormindo, me
encontro em um lugar que eu nunca tinha visto antes. Nele há pátios e fontes,
séries de pórticos e casas, ou melhor, pavilhões, pois têm mais
características de pavilhões do que de casas. Há uma grande multidão de
gente, vestida à antiga moda hebraica, num forte vozerio. Olhando ao meu
redor, compreendo que estou dentro daquele aglomerado para o qual Jesus
estava olhando, porque vejo a muralha com ameias que o rodeia, a torre que
o vigia e a imponente construção, que se ergue no centro, e contra a qual
vão-se estreitando os pórticos, muito bonitos e espaçosos, sob os quais há
muita gente, tratando de uma coisa ou de outra.
Compreendo que estou no recinto do Templo de Jerusalém. Vejo fariseus
com suas compridas vestes ondulantes, sacerdotes vestidos de linho e com
uma placa preciosa na parte superior do peito e da fronte, e outros pontos
brilhantes espalhados aqui e ali sobre diversas vestes muito amplas e
brancas, ajustadas à cintura por um cinto precioso. Depois, vejo outros que
estão menos ornados, mas que devem certamente pertencer à classe
sacerdotal, e que estão rodeados por discípulos mais jovens. Compreendo
que eles são os doutores da Lei. Entre todos estes personagens, eu me
encontro desorientada, porque não sei ao certo o que estou fazendo aqui.
41.3
Aproximo-me do grupo dos doutores, onde se iniciou uma disputa[68]
teológica. Muita gente faz a mesma coisa.
Entre os “doutores” há um grupo chefiado por um homem chamado
Gamaliel e por um outro, velho e quase cego, que defende Gamaliel na
disputa. Este, que ouço ser chamado de Hilel, (coloco o h porque ouço uma
aspiração ao princípio do nome) parece-me ser mestre ou parente de
Gamaliel, porque este o trata com confiança e respeito, ao mesmo tempo. O
grupo de Gamaliel tem vistas mais largas, enquanto que um outro grupo, mais
numeroso, é dirigido por um homem que chamam de Shamai, dotado daquela
intransigência cheia de ódio retrógrado do qual o Evangelho tão bem nos
mostra.
Gamaliel, rodeado por um grupo numeroso de discípulos, fala da vinda
do Messias e, apoiando-se na profecia de Daniel, sustenta que o Messias já
deve ter nascido, porque já há cerca de dez anos que as setenta semanas
profetizadas se completaram, desde que saiu o decreto da reconstrução do
Templo. Shamai o combate, afirmando que, se é verdade que o Templo foi
reedificado, também é verdade que a escravidão de Israel aumentou, e a paz,
que haveria de trazer consigo Aquele que os Profetas chamavam “Príncipe
da Paz”, está longe de existir no mundo, especialmente em Jerusalém, agora
oprimida por um inimigo, que ousa levar a sua dominação até dentro do
recinto do Templo, que está dominado pela torre Antônia, cheia de
legionários romanos, prontos a reprimir com suas espadas qualquer levante
de independência dos patriotas.
A disputa, cheia de cavilações, dá sinais de que irá prolongar-se. Cada
um dos mestres faz ostentação de erudição, não só para vencer o rival, mas
para impor-se à admiração dos ouvintes. Esta intenção é evidente.
41.4
Do numeroso grupo dos fiéis, ouve-se sair a voz jovem de um
rapazinho:
– Gamaliel está certo!
Então começa um movimento no meio da multidão e do grupo dos
doutores. Estão procurando quem foi que disse aquelas palavras. Mas não é
preciso procurá-lo. Ele não se esconde, e vem abrindo caminho por entre a
multidão, aproximando-se do grupo dos “rabinos.” Reconheço nele o meu
Jesus adolescente. Ele está seguro do que diz, com aqueles seus dois olhos
cintilando e cheios de inteligência.
– Quem és tu? –lhe perguntam.
– Sou um filho de Israel, que vim cumprir o que ordena a Lei.
Esta resposta, audaz e firme, agrada e provoca sorrisos de aprovação e
benevolência. Interessam-se pelo pequeno israelita.
– Como te chamas?
– Jesus de Nazaré.
A benevolência diminui no grupo de Shamai. Mas Gamaliel, mais
benigno, prossegue no diálogo com Hilel. Aliás, é Gamaliel que com
deferência diz ao velho:
– Pergunta ao rapazinho alguma coisa.
– Em que é que se baseia a tua segurança? –pergunta Hilel.
(Vou pôr os nomes antes das respostas, para abreviar e tornar-se mais
claro).
Jesus:
– Na profecia, que não pode errar quanto à época e quanto aos sinais
que a acompanham, quando chega o momento da verificação. É uma verdade
que César nos está dominando. Mas o mundo estava tão em paz, e a Palestina
em tão grande calma, quando se cumpriram as setenta semanas, que foi
possível a César ordenar que se fizesse o recenseamento em seus domínios.
Ele não teria podido fazer, se houvesse guerra no Império ou levantes na
Palestina. Como aquele tempo se cumpriu, assim também está se cumprindo
o outro tempo de sessenta e duas semanas mais uma, desde a realização do
Templo, para que o Messias seja ungido e se confirme a continuação da
profecia, para o povo que não o quis. Podeis ter dúvidas? Não vos lembrais
que a estrela foi vista pelos Sábios do Oriente e que foi parar justamente no
céu de Belém de Judá, e que as profecias e as visões, desde Jacó e após ele,
indicam aquele lugar como o destinado a acolher o nascimento do Messias,
filho do filho do filho de Jacó, através de Davi, que era de Belém? Não vos
lembrais de Balaão? “Uma estrela nascerá de Jacó”. Os Sábios do Oriente,
cuja pureza e fé tornavam abertos os seus olhos e seus ouvidos, viram a
estrela e entenderam o seu nome: “Messias”, e vieram adorar a Luz que
desceu ao mundo.
41.5
Shamai, com um olhar rancoroso:
– Tu dizes que o Messias nasceu no tempo da estrela, em Belém-Efrata?
Jesus:
– Eu o digo.
Shamai:
– Então, ele não existe mais. Não sabes, rapaz, que Herodes fez matar
todos os meninos de um dia até dois anos de idade em Belém e nos
arredores? Tu, que és tão sábio na Escritura, deves saber também isto: “Um
grito se ouviu no alto… É Raquel, que está chorando os seus filhos.” Os
vales e as colinas de Belém, que recolheram o pranto de Raquel, que estava
morrendo, ficaram cheios de pranto, e as mães choravam também sobre seus
filhos que foram mortos. Entre elas estava certamente também a mãe do
Messias.
Jesus:
– Estás enganado, ó velho! O pranto de Raquel se transformou em
hosana, porque lá onde ela deu à luz o “filho da sua dor”, a nova Raquel deu
ao mundo o Benjamim do Pai celeste, o Filho da sua destra, Aquele que está
destinado a reunir o povo de Deus sob o seu cetro, e livrá-lo da mais
tremenda escravidão.
Shamai:
– E como, se Ele foi morto?
Jesus:
– Não leste a respeito de Elias? Ele foi arrebatado no carro de fogo. E
não poderá o Senhor Deus ter salvo o seu Emanuel para que fosse o Messias
do seu povo? Ele, que abriu o mar diante de Moisés, para que Israel
passasse a pé seco para a sua terra, não terá podido mandar os seus anjos
para salvarem o seu Filho, o seu Cristo, da ferocidade do homem? Em
verdade, eu vos digo: o Cristo vive, e está entre vós, e, quando chegar a
sua hora, Ele se manifestará em seu poder.
Jesus, ao dizer estas palavras, que eu sublinho, tem na voz um som que
enche o espaço. Os seus olhos cintilam mais ainda e, com um gesto de
império e de promessa, Ele estende o braço e a mão direita, e os abaixa,
como fazendo um juramento. É um rapazinho, mas está solene como um
homem.
41.6
Hilel:
– Rapazinho, quem te ensinou estas palavras?
Jesus:
– Espírito de Deus. Eu não tenho mestre humano. Esta é a Palavra do
Senhor, que vos está falando, através dos meus lábios.
Hilel:
– Vem cá entre nós, para que eu te possa ver de perto, ó mocinho, e a
minha esperança se reavive ao contato da tua fé, e a minha alma se ilumine
ao sol da tua.
E Jesus vai, de fato, sentar-se em um banco alto entre Gamaliel e Hilel,
e lhe são levados uns rolos para que os leia e explique. É um exame em
plena regra. A multidão se aglomera e escuta.
A voz juvenil de Jesus lê:
– “Consola-te, ó meu povo! Falai ao coração de Jerusalém, consolai-a
porque a sua escravidão se acabou… Voz do que grita no deserto: preparai
os caminhos do Senhor… Então aparecerá a glória do Senhor…”
Shamai:
– Estás vendo, nazareno! Aqui se fala de escravidão que se acaba.
Nunca fomos escravos como o somos agora. Aqui se fala de um precursor.
Onde está ele? Tu estás delirando.
Jesus:
– Eu te digo que a ti, mais do que a outros, está feito o convite do
Precursor. A ti e aos teus semelhantes. De outra maneira, não verás a glória
do Senhor, nem compreenderás a palavra de Deus, porque as baixezas, as
soberbas, as duplicidades serão para ti um obstáculo para veres e ouvires.
Shamai:
– Falas assim a um mestre?
Jesus:
– Assim falo. E assim falarei até à morte. Porque, acima do que me é
útil, está o interesse do Senhor e o amor à Verdade, da qual sou Filho. E te
digo ainda, ó rabi, que a escravidão, de que fala o Profeta, e da qual Eu falo,
não é aquela que pensas, como a realeza não será aquela que pensas. Mas,
sim, é pelo mérito do Messias que o homem se tornará livre da escravidão
do Mal, que o separa de Deus, e o sinal do Cristo estará sobre os espíritos,
livres de todo jugo, e feitos súditos do Reino eterno. Todas as nações
curvarão suas cabeças, ó estirpe de Davi, diante do Rebento nascido de ti, e
que se tornou árvore que cobre toda a terra, e se levanta até o Céu. E no Céu
e na terra, toda boca louvará o seu Nome, e dobrarão o joelho, diante do
Ungido de Deus, do Príncipe da Paz, do Chefe, Daquele que se dará a si
mesmo para delícia das almas cansadas, saciará a alma faminta, do Santo
que fará uma aliança entre a terra e o Céu. Não como aquela aliança feita
com os Pais de Israel, quando Deus os tirou do Egito, tratando-os ainda
como escravos, mas imprimindo a paternidade celeste no espírito dos
homens, por meio da Graça novamente infundida pelos méritos do Redentor,
pelo qual todos os homens bons conhecerão o Senhor, e o Santuário de Deus
não será mais derribado e destruído.
Shamai:
– Não fiques blasfemando, mocinho! Lembra-te de Daniel. Ele diz que,
depois da morte de Cristo, o Templo e a Cidade serão destruídos por um
povo e por um chefe que virá. E Tu estás dizendo que o Santuário de Deus
não será mais derrubado! Respeita os Profetas!
Jesus:
– Em verdade eu te digo que aqui está Alguém que é mais do que os
Profetas, e tu não o conheces, e não o conhecerás, porque te falta a vontade.
E te digo que tudo o que Eu disse é verdade. Não conhecerá mais a morte o
verdadeiro Santuário. Mas como o seu Santificador, ressurgirá para a vida
eterna e, no fim dos dias do mundo viverá no Céu.
41.7
Hilel:
– Escuta, jovenzinho. Ageu diz: “virá o Desejado dos povos. Grande
será, então, a glória desta casa, maior do que a que coube à primeira.”
Estará ele se referindo ao Santuário de que Tu falas?
Jesus:
– Sim, mestre. Quer dizer isso. A tua retidão te leva para a Luz, e Eu te
digo: quando o Sacrifício do Cristo se consumar, terás paz, porque és um
israelita sem malícia.
Gamaliel:
– Diz-me, Jesus. A paz, de que falam os Profetas, como poderá ser
esperada, se a este povo virá a destruição pela guerra? Fala, e dá luz a mim
também.
Jesus:
– Não te lembras, mestre, o que foi que disseram aqueles que estiveram
presentes na noite do nascimento de Cristo? Não te lembras de que os
exércitos celestiais cantavam: “Paz aos homens de boa vontade”? Mas este
povo não tem boa vontade, e não terá paz. Ele desconhecerá o seu Rei, o
Justo, o Salvador, porque espera que Ele seja um rei de poderes humanos,
enquanto que Ele é o Rei do espírito. Este povo não o amará, porque o
Cristo pregará o que a este povo não agrada. O Cristo não debelará os seus
inimigos com seus carros e cavalos, mas, sim, os inimigos da alma, que
dominam, com possessão infernal, o coração do homem criado pelo Senhor.
E esta não é a vitória que Israel está esperando Dele. Ele virá, Jerusalém, o
teu Rei, cavalgando uma “jumenta e um jumentinho”, ou seja, os justos de
Israel e os gentios. Mas o jumentinho, Eu vo-lo digo, será mais fiel a Ele, e o
seguirá precedendo a jumenta, e crescerá no caminho da Verdade e da Vida.
Israel, pela sua má vontade, perderá a paz, e sofrerá em si, através dos
séculos, aquilo que fizer sofrer ao seu Rei, depois de tê-lo reduzido ao Rei
das dores, de que fala Isaías.
41.8
Shamai:
– Tua boca tem, ao mesmo tempo, cheiro de leite e de blasfêmia,
nazareno. Responde-me: E onde está o Precursor? Quando o teremos?
Jesus:
– Ele já está aqui. Não diz Malaquias: “Eis que eu mando o meu anjo a
preparar o caminho diante de Mim; e logo virá ao seu Templo o Dominador,
por vós procurado, e o Anjo do Testamento por vós desejado”? Portanto, o
Precursor virá imediatamente antes de Cristo. Ele já está aqui, como o Cristo
está. Se passassem anos entre aquele que prepara os caminhos do Senhor e o
Cristo, todos os caminhos se tornariam cheios de entulhos e obstáculos. Deus
sabe disso, e predispõe que o Precursor venha uma hora só antes do Mestre.
Quando virdes o Precursor, podereis dizer: “A missão do Cristo começou.”
E a ti Eu te digo: O Cristo abrirá muitos olhos e muitos ouvidos, quando ele
vier por estes caminhos. Mas não os teus, nem os dos iguais a ti, que lhe
dareis a morte, em troca da Vida, que Ele vos oferece. Mas quando, mais
alto do que este Templo, mais alto do que o Tabernáculo, fechado no Santo
dos santos, mais alto do que a Glória sustentada pelos Querubins, o Redentor
estiver sobre o seu trono e sobre o seu altar, fluirão de suas mil e mil feridas
maldições para os deicidas e vida para os gentios, porque Ele, ó mestre, que
disso não sabes, não é, eu repito, Rei de um reino humano, mas de um Reino
espiritual, e os seus súditos serão somente aqueles que por seu amor
souberem regenerar-se no espírito e, como Jonas, depois de terem nascido,
renascerem em outras praias: “as de Deus”, através da geração espiritual
que virá por Cristo, o qual dará à humanidade a verdadeira Vida.
41.9
Shamai e seus acólitos:
– Este nazareno é Satanás!
Hilel e os seus:
– Não. Este jovem é Profeta de Deus. Fica comigo, Menino. A minha
velhice transfundirá tudo o que sabe ao teu saber, e Tu serás Mestre do povo
de Deus.
Jesus:
– Em verdade, te digo que, se muitos fossem como tu és, viria a
salvação para Israel. Mas a minha hora ainda não chegou. A Mim falam as
vozes do Céu, e, na solidão, Eu as devo acolher, enquanto não chegar a
minha hora. Então, com os lábios e com o sangue, falarei a Jerusalém, e
minha sorte será a dos Profetas que foram apedrejados e mortos por esta
cidade. Mas, acima do meu ser, está o Senhor Deus, ao qual Eu submeto a
Mim mesmo, como servo fiel, para que Ele faça de Mim o escabelo à sua
glória, na esperança de que Ele faça do mundo o escabelo aos pés de Cristo.
Esperai-me na minha hora. Estas pedras ouvirão de novo a minha voz, e
tremerão à minha última palavra. Felizes aqueles que naquela voz tiverem
ouvido a Deus, e crerem Nele, através dela. A estes o Cristo dará aquele
Reino que o vosso egoísmo deseja que seja um reino humano, mas que é
celeste e pelo qual Eu digo: “Eis aqui o teu servo, Senhor, que veio para
fazer a tua vontade. Consuma-a, pois Eu anseio para cumpri-la.”
E aqui, com a visão de Jesus com o rosto inflamado pelo ardor
espiritual erguido ao céu, os braços abertos, em pé, no meio dos doutores
atônitos, termina a minha visão.
(Já são 3:30 do dia 29).

29 de janeiro de 1944.
41.10
Aqui eu teria que dizer duas coisas, que lhe interessam com certeza, e
que eu havia decidido escrever, logo que saísse da visão. Mas, como há
outra coisa mais urgente, escreverei aquilo depois.
[…].
O que queria lhe dizer no começo é isto.
Ela hoje me perguntou como foi que eu pude saber os nomes de Hilel, de
Gamaliel e de Shamai.
Foi a voz, que eu chamo de “segunda voz”, que me disse estas coisas.
Uma voz ainda menos audível do que a do meu Jesus e dos outros que ditam
para mim. Estas são vozes, como já lhe disse e repito, que o meu ouvido
espiritual percebe iguais a vozes humanas. Eu as ouço doces ou iradas,
fortes ou suaves, risonhas ou tristes. Como se alguém falasse bem perto de
mim. Esta “segunda voz” é como uma luz, uma intuição que fala no meu
espírito. “No”, e não “ao” meu espírito. É uma indicação.
Assim é que, enquanto eu ia me aproximando do grupo dos disputantes, e
não sabia quem era aquele ilustre personagem que, ao lado de um velho,
disputava com tanto calor, este “alguém” me disse: “Gamaliel – Hilel”. Sim.
Primeiro Gamaliel, depois Hilel. Não tenho dúvidas. Enquanto eu pensava
quem seriam esses homens, o indicador interno me indicou o terceiro
antipático indivíduo, exatamente enquanto Gamaliel o chamava pelo nome. E
assim é que eu pude ficar sabendo quem era este de aspecto farisaico.
[…].
22 de fevereiro de 1944.
[…].
41.11
Jesus diz:
[…].
– Voltemos muito, muito atrás. Voltemos ao Templo, onde Eu, aos doze
anos, estou disputando. Ou melhor, voltemos às ruas que levam a Jerusalém,
e de Jerusalém ao Templo.
Vê a angústia de Maria, quando, tendo-se reunido às filas dos homens e
das mulheres, viu que Eu não estava com José.
Ela não levanta a voz, em ásperas repreensões contra o esposo. Todas as
mulheres o teriam feito. Vós o fazeis por muito menos, esquecendo-vos de
que o homem é sempre o chefe da casa. Mas a dor que transparece no rosto
de Maria, magoa José, mais do que qualquer repreensão. Maria não se
abandona a cenas dramáticas. Vós, por muito menos, o fazeis, pois gostais de
ser notadas, e feitas alvos de compaixão. Mas a dor contida de Maria é tão
evidente, pelo tremor que a toma, pelo rosto que empalidece, pelos olhos
que se dilatam, que comove mais do que qualquer cena de pranto e de
clamor.
Não sente mais cansaço, nem fome. O caminho foi longo e, depois de
tantas horas, não tomou nenhum alimento! Mas ela deixa tudo. Tanto a
enxerga, que está sendo arrumada, como a comida que ia ser distribuída.
Volta atrás. É tarde, a noite desce. Não importa. Cada passo que dá leva-a de
volta a Jerusalém. Faz parar as caravanas e os peregrinos. Pergunta a todos.
José a segue e a ajuda. Um dia de caminho, voltando, e depois uma penosa
busca pela cidade.
Onde, onde poderá estar o seu Jesus? E Deus permite que ela não saiba,
durante tantas horas onde é que devia ir me procurar. Procurar um menino no
Templo, seria uma coisa sem sentido. Que teria um menino ido fazer no
Templo? No máximo, teria se perdido na cidade, e se tivesse voltado para
dentro do Templo, levado pelos seus pequenos passos, sua voz chorosa teria
chamado pela mãe atraindo a atenção dos adultos, dos sacerdotes, os quais
teriam providenciado para que se procurassem os pais dele, por meio de
avisos colocados nas portas. Mas não havia nenhum aviso. Ninguém na
cidade sabia desse Menino. Bonito? Loiro? Robusto? Mas há tantos assim!
Era muito pouco para se poder dizer: “Eu o vi. Estava em tal ou tal lugar!”
Três dias depois, símbolo de outros três dias de futura angústia, eis
41.12

que Maria, exausta, penetra no Templo, percorre os pátios e os vestíbulos.


Nada. Corre, corre a pobre mãe, no rumo de onde lhe pareceu vir uma voz
de menino. E, até os cordeiros, que estão balindo, lhe parecem o pranto do
Filho, que está procurando. Mas Jesus não está chorando. Ele está
ensinando. Neste momento, Maria ouve, do outro lado de uma barreira de
pessoas, a querida voz, que diz: “Estas pedras tremerão…” Ela tenta
atravessar a multidão, e só o consegue, depois de muito esforço. Aqui está o
Filho, de braços abertos, em pé entre os doutores.
Maria é a Virgem prudente. Mas desta vez a angústia venceu a sua
reserva. É como um dique, que enfrenta o que vier. Ela corre até o Filho, e o
abraça levantando-o do banco, pondo-o no chão, e exclama: “Oh! Por que
nos fizeste isto? Há três dias que estamos à tua procura. Tua mãe está para
morrer de dor, Filho. Teu pai está exausto de cansaço. Por que Jesus?”
Não se pergunta os “porquês” a Quem sabe os “porquês” de seu modo
de agir. Aos chamados não se pergunta “porque”, deixam tudo para seguir a
voz de Deus. Eu era a Sabedoria e sabia. Eu fui “chamado” para uma
missão, e a estava cumprindo. Acima do pai e da mãe desta terra, está Deus,
o Pai divino. Os seus interesses superam os nossos, e seus afetos são
superiores a qualquer outro. Eu digo isso a minha mãe.
Termino o ensinamento aos doutores, com o ensinamento a Maria,
Rainha dos doutores. E ela nunca mais esqueceu isso. O sol voltou ao seu
coração, quando me tomou pela mão, humilde e obediente, mas as minhas
palavras também ficaram em seu coração. Muito sol e muitas nuvens
passarão pelo céu, durante aqueles vinte e um anos, em que Eu estarei ainda
sobre a terra. E muita alegria e muito pranto se alternará em seu coração, por
outros vinte e um anos. Mas ela nunca mais me perguntará: “Por que, meu
Filho, nos fizeste isto?”
Aprendei, ó homens insolentes!
41.13
Eu expliquei e esclareci a visão, porque tu não estás em condições de
fazer mais.
[…].
[68] disputa, que incidirá sobre os p assos bíblicos que listamos (como de norma) segundo ordem canónica e não na ordem das
citações: Génesis 35,16-18; Êxodo 14,21-22; 24; Números 24,17; 2 Reis 2,11; Isaías 9,5; 40,1-5; 52,13-15; 53,1-12; Jeremias
31,15; Daniel 9,24-27; Jonas 2; Miqueias 5,1; Ageu 2,7-9; Zacarias 9,9; Malaquias 3,1.
42. A morte de José. Jesus é a paz
de quem sofre e de quem morre.
5 de fevereiro de 1944, 13:30 horas.
42.1
Poderosamente, esta visão penetra em mim, enquanto eu estou
procurando corrigir o fascículo, como também o que me foi ditado sobre as
falsas religiões de agora. Vou descrevê-la, à medida que a vou vendo.
Vejo o interior de uma oficina de carpinteiro. Parece-me que duas das
paredes da oficina são formadas por paredes rochosas, como se tivesse sido
aproveitada uma gruta natural, para com ela formar os cômodos da casa.
Aqui estão justamente os lados norte e oeste, que são de rocha, enquanto que
as duas outras paredes, do sul e do leste, são de reboco, como as nossas.
No lado norte, há uma curva côncava na superfície da rocha, que foi
escavada para servir de lareira rudimentar, sobre a qual está uma panelinha
com verniz ou cola, não sei bem. A lenha, queimada durante anos naquele
lugar, tingiu tanto a parede, que ela parece alcatroada, de tão preta. Um
buraco na parede, transposto por uma espécie de grande telha inclinada,
fazia-se de chaminé aspirando a fumaça da lenha. Mas este buraco deve ter
cumprido mal a sua tarefa, porque as outras paredes também estão muito
enegrecidas, e no momento uma nuvem de fumaça, está sendo espalhada pela
oficina toda.
42.2
Jesus trabalha com umas grandes tábuas. Está aplainando-as e depois
as encosta na parede, atrás de Si. A seguir, pega uma espécie de banco, que
está preso dos dois lados no torno, o solta, olha se o trabalho está certo,
esquadreja-o em todos os sentidos e, em seguida, vai até a chaminé, pega a
panelinha, procurando algo dentro dela, com um pauzinho ou pincel, não sei:
só vejo a parte que ficou fora, parecida com um cabinho.
Jesus está com uma veste cor de avelã escura, e sua túnica é um tanto
curta, com as mangas arregaçadas acima dos cotovelos e com uma espécie
de avental na frente, no qual ele limpa os dedos, depois de ter tocado a
panelinha.
Ele está sozinho. Trabalha continuamente, mas com calma. Nenhum‐
movimento desordenado, impaciente. É exato e incessante em seu trabalho.
Não se aborrece com nada, nem com um nó na madeira que não se deixa
aplainar, nem com uma chave de parafusos (assim me parece), que lhe cai
duas vezes do banco, nem com a fumaça espalhada, que lhe deve incomodar
os olhos.
De vez em quando, Ele levanta a cabeça, e olha para a parede do lado
sul, onde há uma porta fechada, como se estivesse escutando alguma coisa. A
um dado momento, Ele abre uma porta que está na parede do lado leste, e
que dá para a rua. Vejo um pedaço de uma viela poeirenta. Parece que Ele
está esperando alguém. Depois, volta ao trabalho. Não está triste, mas está
sério. Torna a fechar a porta, e retoma o trabalho.
42.3
Enquanto está ocupado em fabricar alguma coisa, que me parece as
partes de uma roda, a mamãe entra. Ela entra por uma porta do lado sul.
Entra apressadamente e corre até Jesus. Está vestida de azul escuro, e sem
nada na cabeça. Uma simples túnica ajustada à cintura por um cordão da
mesma cor. Chama com aflição o Filho, e se apóia com ambas as mãos em
um dos seus braços, com gestos de súplica e de dor. Jesus a acaricia
passando-lhe o braço sobre o ombro, e a conforta. Depois sai com ela,
deixando logo o trabalho e tirando o avental.
Penso que o senhor quer saber também as palavras que foram ditas.
Foram bem poucas, da parte de Maria:
– Oh! Jesus! Vem, vem. Ele está mal!
Estas palavras são ditas com lábios que tremem, e com o brilho do
pranto nos olhos avermelhados e cansados. Jesus só diz: “Mãe!” Mas está
tudo nesta palavra.
Entram no quarto ao lado, todo cheio da luz do sol, que entra por uma
porta escancarada, que dá para um pequeno jardim cheio de luz e de verde,
no qual voam pombos entre a agitação, causada pelo vento, de umas roupas
que estão estendidas para secar. O quarto é pobre, mas arrumado. Há uma
enxerga, coberta com pequenos colchões (eu digo pequenos colchões porque
certamente são coisas altas e macias, mas não se trata de uma cama como a
nossa). Sobre ela, apoiado em muitos travesseiros, está José. Está morrendo.
Di-lo claramente o rosto lívido, o olhar apagado, o peito ofegante e a
imobilidade do corpo todo.
42.4
Maria se coloca à sua esquerda, pega-lhe a mão enrugada e lívida nas
unhas, a fricciona, a acaricia, a beija, enxuga-lhe com um lenço o suor, que
faz riscos que brilham nas têmporas encavadas, a lágrima, que pára no canto
do olho, e lhe banha os lábios com um pano de linho molhado em um líquido
que parece vinho branco.
Jesus se põe à direita. Soergue com agilidade e cuidado o corpo, que se
deixa cair e o endireita sobre os travesseiros, que ajeita com Maria.
Acaricia sobre a fronte o agonizante, e procura reanimá-lo.
Maria chora baixinho, sem fazer barulho, mas chora. Grandes lágrimas
rolam ao longo das faces pálidas, e até sobre a veste azul escuro, e parecem
safiras brilhantes.
José volta a si por algum tempo, olha fixamente Jesus, dá-lhe a mão,
como querendo dizer-lhe alguma coisa, e para ter, ao contato divino, força na
última provação. Jesus se inclina sobre aquela mão, e a beija. José sorri.
Depois, ele se vira, para procurar Maria, sorrindo também para ela. Maria
se ajoelha junto à cama, procurando sorrir. Mas, não se saiu bem, e curva a
cabeça. José lhe coloca a mão sobre a cabeça, com uma casta carícia, que
parece uma bênção.
Não se ouve mais nada, a não ser o esvoaçar e o arrulhar dos pombos, o
roçar das folhas, o barulho da água e, no quarto, a respiração do moribundo.
Jesus anda ao redor do leito, pega um banco e faz Maria sentar-se,
dizendo-lhe somente: “Mamãe.” Depois volta ao seu lugar e pega de novo a
mão de José entre as suas. É uma cena tão real, que eu choro com dó de
Maria.
42.5
Depois Jesus, curvando-se sobre o moribundo, em voz baixa recita um
salmo. Eu sei que é um salmo, mas agora não posso dizer qual[69]. Começa
assim:
– “Protege-me, ó Senhor, porque em Ti pus a minha esperança… Em
favor dos santos, que estão na terra, ele cumpriu admiravelmente todos os
seus desejos… Bendirei ao Senhor que me dá conselhos… Tenho sempre o
Senhor diante de mim. Ele está à minha direita, para que eu não vacile. Por
isso se alegra o meu coração, e exulta a minha língua, e também meu corpo
repousará na esperança. Porque Tu não abandonarás a minha alma na mansão
dos mortos, nem permitirás que o teu santo veja a corrupção. Far-me-ás
conhecer os caminhos da vida, cumular-me-ás de alegria com a tua face.”
José se reanima todo e, com um olhar mais vivo, sorri para Jesus e lhe
aperta os dedos.
Jesus responde com um sorriso ao sorriso e com uma carícia ao aperto
de mão, e continua docemente, curvado sobre o seu pai adotivo:
– “Quão amáveis são os teus Tabernáculos, ó Senhor. Minha alma se
consome de desejo pelos átrios do Senhor. Até o pardal tem uma casa, e a
rolinha um ninho para os seus filhotes. Eu desejo os teus altares, ó Senhor.
Felizes aqueles que habitam a tua casa… Feliz o homem que encontra em Ti
a sua força. Ele tem preparadas em seu coração as ascensões do vale de
lágrimas ao lugar escolhido. Ó Senhor, escuta a minha oração… Ó Deus,
volta o teu olhar para a face do teu Cristo…”
José com um soluço, olha para Jesus, e faz sinal de querer falar, como
para abençoá-lo. Mas não pode. Vê-se que ele está compreendendo, mas já
não pode falar. Contudo, ele se sente feliz, e olha, animado e confiante para
o seu Jesus.
Jesus continua:
– “Oh! Senhor, Tu foste propício à tua terra, livraste Jacó da
escravidão… Mostra-nos, ó Senhor, a tua misericórdia, e dá-nos o teu
Salvador. Quero ouvir o que me diz dentro de mim o Senhor Deus.
Certamente Ele falará de paz ao seu povo pelos seus santos e por quem a Ele
se volta de coração. Sim, a tua salvação está próxima… e a glória habitará
sobre a terra… A bondade e a verdade se encontraram, a justiça e a paz se
beijaram. A verdade surgiu da terra e a justiça a olhou do Céu. Sim, o
Senhor se mostrará benigno, e a nossa terra dará o seu fruto. A justiça
caminhará diante Dele, e deixará no caminho os seus rastros.” Tu viste esta
hora, ó pai, e por ela foi que te cansaste tanto. Tu ajudaste esta hora a se
formar, e o Senhor te dará a recompensa. Eu te digo isto –acrescenta Jesus,
enxugando uma lágrima de alegria, que desce lentamente pela face de José.
Depois continua:
– “Ó Senhor, lembra-te de Davi, e de toda a sua mansidão. Como ele
jurou ao Senhor: não entrarei em minha casa, não me deitarei, não darei sono
aos meus olhos, nem repouso às minhas pálpebras, nem descanso às minhas
têmporas, enquanto eu não encontrar um lugar para o Senhor, uma morada
para o Deus de Jacó… Levanta-te, ó Senhor, e vem ao teu repouso, Tu e a
Arca da tua santidade (Maria compreende, e tem uma explosão de pranto).
Sejam revestidos de justiça os teus sacerdotes, e façam festa os teus santos.
Pelo amor de Davi, teu servo, não nos negue o rosto do teu Cristo. O Senhor
prometeu a Davi com juramento, e cumprirá: ‘Porei sobre o trono o fruto do
teu seio.’ O Senhor escolheu a sua morada… Eu farei florescer o poder de
Davi, preparando uma tocha acesa para o meu Cristo.”
42.6
Obrigado, meu pai, por Mim e por minha mãe. Tu foste para Mim
um pai justo, e o Eterno te colocou como guarda do seu Cristo e da sua
Arca. Tu foste a tocha acesa por Ele e, para com o Fruto do ventre santo,
tiveste entranhas de caridade. Vai em paz, ó pai! A viúva não ficará
desamparada. O Senhor predispôs que ela não fique sozinha. Vai tranqüilo
para o teu repouso. Eu te digo.
Maria chora com o rosto curvado sobre as cobertas (parecem mantos)
estendidas sobre o corpo de José, que vai esfriando. Jesus apressa os seus
confortos, pois a respiração se torna mais difícil, e o olhar se torna
anuviado.
– “Feliz o homem que teme o Senhor, e põe nos seus mandamentos todo
o seu prazer… A justiça dele permanece nos séculos dos séculos. Entre os
homens retos, surge nas trevas como uma luz, o misericordioso, o benigno, o
justo… O justo será lembrado para sempre… A sua justiça é eterna, o seu
poder se elevará até à glória…”
Tu terás esta glória, meu pai. Logo virei buscar-te com os Patriarcas que
te precederam, para ires à glória que te espera. Que o teu espírito exulte com
esta minha palavra.
“Quem repousa no auxílio do Altíssimo, vive sob a proteção do Deus do
Céu.”
Tu já estás nesse lugar, meu pai.
“Ele me livrou do laço dos caçadores e das palavras ásperas. Ele te
cobrirá com as suas asas e debaixo de suas penas encontrarás refúgio. A sua
verdade te defenderá como um escudo, não temerás os espantos noturnos…
Não se aproximará de ti o mal… porque aos seus anjos Ele deu a ordem de
guardar-te em todos os teus caminhos. Eles te levarão em suas mãos, para
que o teu pé não tropece nas pedras. Caminharás sobre a áspide e o
basilisco, e esmagarás o dragão e o leão. Porque esperaste no Senhor, Ele te
diz, ó pai, que te libertará e protegerá. Porque elevaste a Ele a tua voz, Ele
te ouvirá, estará contigo na última tribulação, te glorificará depois desta
vida, fazendo-te ver desde agora a sua Salvação”, e fazendo-te entrar na
outra, pela Salvação que agora te está confortando e que logo, oh!, logo virá,
te repito, cingir-te com um abraço divino e levar-te Consigo, à frente de
todos os Patriarcas, lá para o lugar onde está preparada a morada do Justo
de Deus, que para Mim foi um pai bendito.
Vai, na minha frente, dizer aos Patriarcas que a Salvação já está no
mundo e que o Reino dos Céus logo será aberto para eles. Vai, pai. A minha
bênção te acompanhe.
42.7
A voz de Jesus se faz mais alta, para chegar até à mente de José,
que já se vai mergulhando nas névoas da morte. O fim é iminente. Ele já
respira com dificuldade. Maria o acaricia. Jesus se assenta sobre a beira da
cama, abraça e atrai para Si o agonizante, que exala o último suspiro, sem
fazer nenhum movimento.
É uma cena cheia de uma paz solene. Jesus coloca novamente o
Patriarca na cama e abraça Maria, que, no fim se aproximou de Jesus na
angústia que sentia.

42.8
Jesus diz:
– A todas as mulheres que estão sendo torturadas por alguma dor, Eu
ensino a imitar Maria na sua viuvez: unindo-se a Jesus.
Aqueles que pensam que Maria não sofreu as penas do coração, estão
errados. Minha mãe sofreu. Ficai sabendo disso. Santamente, porque tudo
nela era santo, mas profundamente.
Aqueles que pensam que Maria amava o seu esposo com um amor
tépido, visto que ele era um esposo para as coisas espirituais, e não para as
carnais, estão igualmente errados. Maria amava intensamente o seu José, ao
qual dedicou seis lustros (30 anos) de uma vida de fidelidade. Para Ela José
foi pai, esposo, irmão, amigo e protetor.
Agora, ela se sentia sozinha, como uma vara de videira ao qual foi
cortada a árvore em que se apoiava. Sua casa ficou como que ferida por um
raio. Ficou dividida. Antes era uma unidade na qual os membros se
sustinham um ao outro. Agora, vinha a faltar a parede mestra, sendo este o
primeiro dos golpes desferido naquela Família, sinal de que dentro em breve
o seu amado Jesus também a deixaria.
A vontade do Eterno, que tinha querido que ela fosse esposa e mãe,
agora lhe impunha a viuvez e a entrega de seu Filho. Maria diz entre
lágrimas, um dos seus sublimes “sim.” “Sim, Senhor, faça-se em mim
segundo a tua palavra.” E, para ter força naquela hora, ela Me abraça.
Sempre Maria abraçou Deus nas horas mais graves da sua vida. No
Templo, quando chamada para as núpcias; em Nazaré, quando chamada para
a Maternidade; ainda em Nazaré, derramando as lágrimas da viuvez; em
Nazaré no suplício da separação do Filho; no Calvário, em que sofreu a
tortura de Me ver morrer.
42.9
Aprendei, vós que chorais. Aprendei, vós que morreis. Aprendei, vós
que viveis para morrer. Procurai merecer as palavras que Eu disse a José.
Serão a vossa paz em vossa agonia. Aprendei, vós que morreis, a merecer a
presença de Jesus perto de vós, para vosso conforto. Mesmo se não tiverdes
merecido, ousai chamar-me para perto de vós. Eu virei. Com as mãos cheias
de graça e de conforto, o coração cheio de perdão e amor, com os lábios
cheios de palavras de absolvição e encorajamento.
A morte perde toda a sua aspereza, se ela acontecer nos meus braços.
Crede nisso. Eu não posso abolir a morte, mas posso torná-la suave para
quem morre confiando em Mim.
O Cristo disse[70] para todos vós, em sua Cruz: “Senhor, a Ti entrego o
meu espírito.” Ele o disse, pensando na sua e nas vossas agonias, nos
vossos terrores, nos vossos erros, nos vossos temores, nos vossos desejos
de perdão. Ele o disse com o coração dilacerado, antes mesmo do golpe da
lança, numa dilaceração mais espiritual do que física, para que as agonias
daqueles que morrem pensando Nele, sejam amenizadas pelo Senhor e o
espírito deles passe da morte à Vida, da dor ao júbilo eterno.
42.10
Esta, pequeno João, é a lição de hoje. Sê boa, e não temas. A minha
paz refluirá em ti sempre, através da palavra e através da contemplação.
Vem. Faz de conta que és José, que tem por travesseiro o peito de Jesus, e
Maria como enfermeira. E repousa entre nós, como um menino em seu berço.
[69] não posso dizer qual, mas dep ois M aria Valtorta anota a láp is, nas p róp rias p áginas autografas, os diversos reenvios, que
referidos à neo-Vulgata são: Salmos 16; 84; 85; 91; 112; 132.
[70] disse, em: Lucas 23,46 (609.22).
43. A conclusão da vida escondida.
10 de junho de 1944.
43.1
Maria diz:
– Antes de entregar estes cadernos, Eu quero unir a eles a minha bênção.
Agora, basta que queiras fazer com um pouco de paciência; podereis ter
uma coleção completa da vida íntima do meu Jesus. Desde a Anunciação, até
o momento em que Ele sai de Nazaré para a pregação, tendes, não só os
ditados, mas também a ilustração dos fatos que acompanharam a vida
familiar de Jesus.
A infância, a meninice, a adolescência e a juventude do meu Filho têm
apenas uns breves traços no grande quadro de sua vida descrito pelos
Evangelhos. Neles Ele é o Mestre. Aqui é o Homem. É o Deus que se
humilha por amor do homem. 43.2E que também opera milagres, mesmo em seu
aniquilamento de uma vida comum. Ele opera em mim, que sinto a minha
alma levada à perfeição, em contato com o Filho que me cresce no ventre.
Opera na casa de Zacarias, santificando o Batista, ajudando Isabel em seu
trabalho, dando palavra e fé a Zacarias. Ele opera em José, abrindo-lhe o
espírito à luz de uma verdade, de tal modo excelsa, que por si mesmo não
podia compreender, embora fosse um justo. 43.3E, depois de mim, quem mais
foi beneficiado por esta chuva de divinos benefícios foi José.
Observa o caminho que ele percorre, um caminho espiritual, desde
quando vem para a minha casa, até o momento da fuga para o Egito. No
início, não era mais do que um homem justo do seu tempo. Depois, por fases
sucessivas, tornou-se o homem justo do tempo cristão. Adquire a fé no
Cristo, e se entrega a essa fé firme, que passa à esperança, desde aquela
frase dita no começo da viagem de Nazaré para Belém: “Como faremos?”,
frase em que ali estava todo o homem que se revela com os seus temores
humanos e as suas preocupações humanas. Na gruta, diante do nascimento,
diz: “Amanhã será melhor.” Jesus, que está para chegar, já o fortalece, com
esta esperança que, entre os dons de Deus, é um dos mais belos. E, dessa
esperança, quando o contato com Jesus o santifica, ele passa à ousadia.
Deixou-se sempre dirigir por mim, pelo respeito reverente que nutria por
mim. Agora é ele que dirige tanto as coisas materiais, como as superiores, e
decide como chefe da Família, quando é preciso decidir. Não só isso, mas
na hora penosa da fuga, depois que meses de união com o Filho de Deus o
saturaram de santidade, é ele quem conforta o meu penar, e me diz: “Ainda
que não tivéssemos mais nada, teríamos sempre tudo, porque teremos a Ele.”
43.4
Seus milagres de graça, meu Jesus os opera nos pastores. O Anjo vai
até onde está o pastor, que um fugaz encontro comigo predispõe para a
Graça, e o leva até à Graça para que Esta o salve para sempre.
Ele os opera por onde passa, tanto no exílio, como quando volta à sua
pequena Nazaré. Porque, onde Ele estava, a santidade se expandia como o
óleo sobre um pano, como a fragrância das flores no ar, e quem por ela era
tocado, se não fosse um demônio, sentia grande desejo de santidade. Onde há
esse desejo, há raiz de vida eterna, porque quem quer ser bom, consegue a
bondade, e a bondade leva ao Reino de Deus.
43.5
Vós agora tendes, apresentada em pontos, que refletem momentos
diversos, a santa Humanidade de meu Filho. Desde o seu nascimento, até à
sua morte. E, se o Pe. M. achar bom, pode fazer deles uma ordenada coleção
dos pontos, de modo a poder formar um conjunto sem lacunas. Isso se julgar
útil fazê-lo.
Teríamos podido dar tudo junto. Mas a Providência julgou ser bom fazer
assim para ti, ó minha alma! Em todos os ditados te demos os remédios para
as tuas feridas, que haveriam de ser-te infligidas. Demos com antecedência
para te preparar. Na hora do granizo, parece que nada serve de abrigo. Mas
não é assim. A tempestade faz aflorar a humanidade, que está adormecida e
sepultada debaixo das águas espirituais, mas traz à tona também as gemas de
uma doutrina sobrenatural, que caíram no vosso coração, e que estão
esperando justamente a hora da tempestade, para reaparecerem e dizer-vos:
“Aqui estamos nós também. Lembra-te de nós”.
Há, além disso, minha alma, uma razão de bondade, além de ser de
Providência. Como terias podido, no atual estado de enfraquecimento, ver e
ouvir certas visões e ditados? Estas coisas te teriam prostrado, até te
tornarem incapaz da tua missão de “porta-voz”. Por isso, porque em nós há
bondade nós os demos antes, evitando despedaçar teu coração com visões e
palavras por demais consoantes com o teu sofrimento, e por isso intensas até
ao espasmo. Não somos cruéis, Maria. Agimos sempre de modo que vós de
nós tenhais conforto, não angústia, nem aumento de dor. Basta-nos que vos
confieis a nós. Basta-nos que digas como José: “Se ainda tenho Jesus, tenho
tudo!”, para que venhamos com os dons celestes a consolar o vosso espírito.
43.6
Não te prometo dons, nem consolações humanas. Eu te prometo as
mesmas consolações que teve José, as sobrenaturais. Porque é bom que
todos fiquem sabendo que os presentes dados pelos Magos, na usura que
aperta pela garganta um fugitivo, sumiram rapidamente, como um relâmpago,
com a compra de uma casinha e daquele mínimo de utensílios necessários
para a vida, daqueles alimentos que eram também necessários, que só
podiam vir daquela fonte, enquanto não encontrávamos trabalho.
Na comunidade hebraica sempre todos se ajudaram mutuamente. Mas a
comunidade reunida no Egito era quase toda composta de fugitivos
perseguidos e, por isso, pobres como nós, que tínhamos ido nos juntar a eles.
Um pouco daquela riqueza que queríamos manter para Jesus, para o nosso
Jesus adulto, preservada dos gastos da instalação no Egito, foi providencial
para a nossa volta e apenas suficiente para reorganizar nossa casa e a
oficina em Nazaré, ao nosso retorno. Porque os tempos mudam, mas a cobiça
humana é sempre a mesma, servindo-se da necessidade alheia para sugar a
sua parte de maneira odiosa.
Não. Termos Jesus conosco não serviu para trazer-nos bens materiais.
Muitos de vós pretendem isto, quando apenas se sentem um pouco unidos a
Jesus. Esquecem-se de que Ele disse[71]: “Procurai as coisas do espírito.”
Tudo o mais é supérfluo. Deus provê também o alimento. Tanto aos homens
como os pássaros. Porque sabe que eles têm necessidade do alimento,
enquanto a carne for armadura em torno de vossa alma. Mas, pedi primeiro a
sua Graça. Pedi primeiro pelo vosso espírito. O resto vos será dado como
acréscimo.
Da união com Jesus, José teve, humanamente falando, angústias, fadigas,
perseguições, fome. Outra coisa não teve. Mas, visto que servia a Jesus
somente, tudo isso se transformou em paz espiritual, em sobrenatural alegria.
Eu queria trazer-vos ao ponto em que estava o meu esposo ao dizer: “Ainda
que chegássemos a não ter mais nada, teríamos sempre tudo, porque temos
Jesus.”
43.7
Eu sei. O coração se despedaça. Eu sei, a mente se ofusca. Eu sei, a
vida se consome. Mas Maria!… És de Jesus? Queres ser de Jesus? Onde,
como morreu Jesus? Menina querida, estás chorando, mas persevera na
fortaleza. O martírio não consiste na forma de tormento, mas, sim na
constância com que o mártir o suporta. Por isso, é martírio tanto uma arma,
como um sofrimento moral, quando é suportado por um mesmo objetivo. Tu
estás suportando por amor ao meu Filho. O que fazes pelos irmãos é sempre
por amor de Jesus, que os quer salvos. Por isso, o teu sofrimento é
verdadeiro martírio. Persevera nele. Não queiras fazer isso por ti mesma.
Basta — porque a aflição é forte demais para que tu possas ter ainda tanta
força para guiar-te por ti mesma e dominar também a tua humanidade
impedindo-la de chorar — basta que deixes que a dor te torture, sem
rebelar-te. Basta que digas a Jesus: “Ajuda-me!”. Aquilo que não podes
fazer, Ele o fará por ti. Permanece Nele. Sempre Nele. Não queiras sair
Dele. Se não quiseres, não sais. Se a dor for tão forte, que te impeça de ver
onde estás, tu estarás sempre em Jesus.
Eu te abençôo. Diz comigo: “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.”
Seja este sempre o teu grito. Até que, um dia, o digas no Céu. A graça do
Senhor esteja sempre contigo!
[71] disse, em: Mateus 6,33 (173.7); Lucas 12,31 (276.8).
Primeiro ano
da Vida publica de Jesus.

44. Jesus se despede de sua mãe e deixa Nazaré.


O pranto e a oração da Co-Redentora.
9 de fevereiro de 1944, 9:30 horas.
(iniciada durante a Santa Comunhão)
44.1
Vejo o interior da casa de Nazaré. Nela vejo uma sala, parece uma
sala de família, onde a Família faz suas refeições, ficando também nas horas
de descanso. É uma salinha muito pequena, com uma simples mesa retangular
que está em frente de uma espécie de arquibanco, encostado à parede. Ele
serve de assento para um dos lados da mesa. Junto às outras paredes estão
um tear e um banco, dois outros bancos e uma estante sobre a qual estão
algumas candeias e outros objetos. Uma porta abre-se para a horta-pomar.
Deve estar anoitecendo, porque não tem nada senão uma lembrança de sol
sobre a copa de uma árvore, que começa a verdejar com suas primeiras
folhas.
Jesus está à mesa. Ele está comendo, Maria o serve, indo e vindo, por
uma portinha, a qual suponho que conduz ao lugar onde está a lareira, da
qual se vê o clarão, através da porta entreaberta.
Jesus diz duas ou três vezes a Maria que se assente… e coma também.
Mas ela não quer, sacode a cabeça, sorrindo tristemente, e, depois das
verduras cozidas, que me parece estar em lugar da sopa, leva para a mesa
peixes assados, um queijo fresco, feito de leite de ovelha e em forma de
pequenas bolas parecidas com uma daquelas pedras que se encontram no
fundo dos córregos, e azeitonas pequenas e escuras. O pão, feito em
pequenas formas redondas (da largura de um prato comum) e de pouca
altura, já está sobre a mesa. É um tanto escuro, que não deve ter sido feito
sem o farelo. Jesus tem diante de Si uma ânfora com água e uma taça. Come
em silêncio, olhando para a mãe com um doloroso amor.
É visível o sofrimento de Maria. Ela vai e vem, para mostrar
compostura. Ainda há luz suficiente, mas ela acende uma candeia, e a coloca
perto de Jesus. Ao esticar o braço para isso, acaricia a cabeça de seu Filho
furtivamente, torna a abrir um alforje, que me parece feito com aqueles
tecidos feitos à mão, com lã virgem sendo, por isso, impermeável, da cor de
avelã. Ela procura dentro alguma coisa, sai para o pequeno pomar e vai até
lá no fundo, em uma espécie de esconderijo, saindo com umas maçãs um
pouco murchas, que certamente se conservaram desde o verão, colocando-as
no alforje. Depois pega um pão e um queijo e os põe junto, por mais que
Jesus não queira, dizendo que o que está lá dentro já basta.
Maria se aproxima da mesa novamente, do lado da passagem mais
estreita, à esquerda de Jesus, e fica olhando-O comer. Ela olha para Ele com
angústia, com adoração, com o rosto ainda mais pálido que de costume, que
o sofrimento faz parecer envelhecido, com os olhos maiores, marcados com
uma sombra, indício de lágrimas já derramadas. Parecem também mais
claros que de costume, como se tivessem sido lavados pelo pranto presente
neles, pronto para cair. São dois olhos cheios de dor e de cansaço.
44.2
Jesus, que come devagar e claramente contra a vontade, somente para
contentar a mãe, está mais pensativo do que habitualmente, levanta a cabeça
e a olha. Encontra um olhar cheio de lágrimas, inclinando então a cabeça
para deixá-la mais à vontade, limitando-se a segurá-la pela delicada mão
que ela está apoiando à beira da mesa. Jesus a pega com sua esquerda e a
leva até à sua própria face, e a apóia nela, por um momento, para sentir a
carícia daquela pobre mãozinha que está tremendo, depois a beija no dorso
com muito amor e respeito.
Vejo Maria levar à boca sua mão livre, a esquerda, como para sufocar
um soluço. Em seguida, ela enxuga com os dedos uma grande lágrima que lhe
escapou dos cílios, banhando-lhe a face.
Jesus continua a comer, e Maria sai rapidamente para o pequeno pomar,
onde a luz já é bem pouca, e desaparece. Jesus apóia o cotovelo esquerdo
sobre a mesa, e sobre a mão apóia a fronte mergulhando-se em seus
pensamentos, parando de comer.
Depois parece procurar escutar algo, e se levanta. Sai também Ele para
o pomar, e, ao dar uma olhada ao redor, dirige-se à direita, em relação ao
lado da casa, entrando, pela abertura de uma parede rochosa, em um quarto
que eu reconheço ser a oficina do carpinteiro, que desta vez está toda em
ordem, sem tábuas nem maravalhas, e sem o fogo aceso. Ali estão o banco
grande e os utensílios, tudo em seus lugares, só isso.
Curvada sobre o banco, Maria está chorando. Parece uma menina. Está
com a cabeça sobre o braço esquerdo dobrado, e chora sem fazer barulho,
mas com grande dor. Jesus entra devagar, e se aproxima dela, tão levemente,
que ela só percebe que Ele está ali, quando o Filho lhe pousa a mão sobre a
cabeça inclinada, chamando-a: “Mãe!”, com uma voz de amorosa censura.
Maria levanta a cabeça, olha para Jesus, através de um véu de lágrimas,
e se apóia Nele com as duas mãos unidas, segurando-o pelo braço direito.
Jesus lhe enxuga o rosto com a beira de sua larga manga, e, depois a abraça,
atraindo-a sobre o seu coração e beijando-a na fronte. Jesus está majestoso,
parece mais viril que de costume, e Maria parece mais menina, exceto no
rosto, que está marcado pela dor.
– Vem, mãe –lhe diz Jesus, e, segurando-a apertada contra Si pelo braço
direito, dirige-se para o pomar, onde se assenta em um banco à frente da
parede da casa. O pomar está silencioso, e enfim escuro. Vê-se apenas um
belo luar e a luz que vem da sala de jantar. A noite está serena.
44.3
Jesus fala a Maria. A princípio, não entendo as palavras, apenas
murmuradas, às quais Maria, com a cabeça, assente. Depois, eu ouço:
– Faz que venham os parentes. Não fiques sozinha. Eu ficarei mais
tranqüilo, mãe, e tu sabes que preciso estar tranqüilo para cumprir a minha
missão. O meu amor não te faltará. Eu virei freqüentemente, e mandarei
avisar-te, quando estiver na Galiléia, não podendo vir até em casa. Nesse
caso, tu irás a Mim. Mãe, esta hora tinha que chegar. Ela começou aqui,
quando o Anjo te apareceu; agora ela chegou, nós devemos vivê-la, não é
verdade, mãe? Depois virá a paz, da provação superada, e a alegria.
Primeiro, precisamos atravessar este deserto como os antigos Pais fizeram
para entrarem na Terra Prometida. Mas o Senhor Deus nos ajudará, como
ajudou a eles. E nos dará a sua ajuda como um maná espiritual para nutrir o
nosso espírito no esforço da prova. Vamos dizer juntos o Pai-nosso…
Jesus se levanta, e Maria com Ele, erguendo os rostos ao céu. Duas
hóstias vivas, que brilham na escuridão.
Jesus diz lentamente, mas com voz clara, e destacando as palavras, a
oração dominical[72]. Destaca de modo especial as palavras destas frases:
“Venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade”, separando bem
estas duas frases das outras. Ele reza com os braços abertos, não
propriamente em cruz, mas como fazem os sacerdotes, quando se dirigem ao
povo, dizendo: “O Senhor esteja convosco!” Maria conserva suas mão
unidas.
44.4
Depois, voltam para a casa, e Jesus, que eu nunca vi beber vinho,
despeja em uma taça, de uma ânfora apanhada na estante, um pouco de vinho
branco e o leva para a mesa, pega Maria pela mão, e faz que ela se assente
perto Dele e beba daquele vinho, no qual molha uma pequena fatia de pão,
fazendo, depois, que ela o coma. A insistência dele é tanta, que Maria cede.
Jesus bebe o que resta do vinho. Depois disso, aperta a mãe ao seu lado, e a
segura assim junto ao seu corpo, pela parte do coração. Nem Jesus, nem
Maria estão deitados, mas sentados, como nós nos sentamos. Não estão
falando mais. Estão esperando. Maria acaricia a mão direita de Jesus e seus
joelhos. Jesus faz uma carícia ao braço e à cabeça de Maria.
44.5
Em seguida, Jesus se levanta, e Maria também, e se abraçam e se
beijam amorosamente muitas vezes. Parece que querem se deixar, mas Maria
torna a apertar contra si o seu Filho. É a Virgem Santa, mas é uma mãe enfim,
uma mãe que precisa separar-se do seu filho, sabendo qual vai ser o fim
daquela separação. Ninguém me venha mais dizer que Maria não sofreu.
Antes, acreditava pouco nisso, mas agora estou convencida.
Jesus pega o manto (azul escuro) e joga-o sobre as costas e a cabeça,
como um capuz. Depois pendura à tiracolo o alforje, de modo que não lhe
dificulte o andar. Maria o ajuda, parece que não vai terminar nunca de
ajustar-lhe a roupa, o manto e o capuz. E, enquanto assim faz, ela ainda o
acaricia.
Jesus vai até à saída, depois de ter traçado um gesto de bênção sobre a
sala. Maria o acompanha e, à porta, que já está aberta, eles se beijam de
novo.
44.6
A rua está silenciosa e solitária, toda branca ao luar. Jesus vai
caminhando. Vira-se ainda duas vezes para olhar a mãe, que ficou apoiada
ao umbral da porta, mais branca do que a lua, e soltando lágrimas que
brilham em um pranto silencioso. Jesus vai ficando cada vez mais longe,
indo pela ruazinha branca. Maria continua chorando junto à porta. Depois,
Jesus desaparece numa das curvas do caminho.
Começou o seu caminho de Evangelizador, que terminará no Gólgota.
Maria entra chorando, e fecha a porta. Também para ela começou o caminho
que a levará ao Gólgota. Tudo por nós…

Jesus diz:
44.7

– Esta é a quarta dor de Maria mãe de Deus. A primeira foi a


apresentação ao Templo; a segunda, a fuga para o Egito; a terceira, a morte
de José; a quarta, a minha separação dela.
Conhecendo o desejo do Pai, Eu te disse ontem à tarde que apressarei a
descrição das “nossas” dores para que elas se tornem conhecidas. Mas,
como estás vendo, já algumas, de minha mãe, tinham sido relatadas. Eu
expliquei a fuga[73] antes da apresentação, porque havia necessidade de fazê-
lo naquele dia. Eu sei. Tu compreendes e dirás o porquê ao Pai, de viva voz.
44.8
É meu desejo alternar as tuas contemplações, e as minhas
conseqüentes explicações, com os ditados propriamente ditos, para aliviar o
teu espírito, dando-te a bem-aventurança de ver, e também porque assim fica
clara a diferença estilística entre o teu modo de compor e o meu.
Além disso, diante de tantos livros que falam de Mim, com tanto toca e
retoca, muda e embeleza, estes livros se tornaram irreais, agora Eu desejo
dar a quem crê em Mim, uma visão que leve à verdade do tempo da minha
vida mortal. Com isso, Eu não fico diminuído, mas ao contrário, me torno
maior na minha humildade, que se faz pão por vós, a fim de ensinar-vos a ser
humildes e semelhantes a Mim, que fui homem como vós, trazendo Comigo,
na minha veste de homem, a perfeição de um Deus. Eu devia ser vosso
Modelo, e os modelos devem ser sempre perfeitos.
Não terei nas contemplações uma linha cronológica correspondente à
dos Evangelhos. Tomarei os pontos que Eu achar mais úteis naquele dia para
ti ou para os outros, seguindo uma linha minha de ensinamento e de bondade.
44.9
O ensinamento que vem da contemplação da minha separação é
dirigido especialmente aos pais e aos filhos que a vontade de Deus chama
para uma vida de renúncia recíproca por um amor mais alto. Em segundo
lugar, é dirigido a todos aqueles que se encontram diante de uma renúncia
difícil.
Quantas dessas não encontrais em vossas vidas! Elas são como espinhos
sobre a terra, e penetrantes ao coração. Eu sei. Mas a quem as acolhe com
resignação — prestai atenção, eu não digo: “a quem as deseja e as acolhe
com alegria” (pois isto já é perfeição); mas eu digo: “com
resignação” — elas se transformam em rosas eternas. Mas poucos são os que
as acolhem com resignação. Como uns burrinhos rebeldes, vós vos levantais
contra a vontade do Pai e teimais, se é que não procurais até ferir com
coices espirituais e mordidas, ou seja, com rebelião e blasfêmias contra o
bom Deus.
44.10
Não digais assim: “Mas eu não tinha outro bem senão este, e Deus o
tirou de mim. Eu não tinha outro amor senão este, e Deus arrebatou-o de
mim.” Também Maria, mulher gentil e amorosa até à perfeição, porque em
sua Graça Total até as formas afetivas e sensitivas eram perfeitas, não tinha
senão um bem e um amor sobre a terra: o seu Filho. Nada lhe restava, senão
Ele. Seus pais estavam mortos fazia tempo, José estava morto, havia alguns
anos. Não havia senão Eu para amá-la e fazê-la sentir que não estava
sozinha. Os parentes, por causa de Mim, de quem eles não conheciam a
origem divina, lhe eram um pouco hostis, como se fosse uma mãe que não
sabe se impor ao filho, que sai do bom-senso, que recusa os casamentos que
lhe são propostos os quais poderiam trazer prestígio para a família, e até
ajuda.
Os parentes, voz do bom senso, do senso humano ainda, que vós chamais
de bom-senso, não passam de um senso humano, isto é, egoísmo, teriam
querido estas práticas desenvolvidas na minha vida. No fundo, havia sempre
o medo de, um dia, passarem aborrecimentos por minha causa, pois Eu já
ousava exteriorizar minhas idéias, por demais sonhadoras, no pensar deles,
as quais podiam até irritar a Sinagoga. A história hebraica estava cheia de
ensinamentos sobre a sorte que tiveram os profetas. Não era fácil a missão
do profeta, pois muitas vezes acarretava a morte dele e aborrecimentos para
a sua parentela. No fundo, estavam sempre com o pensamento de que teriam
um dia de cuidar de minha mãe.
Por isso é que, ao verem que Ela não se opunha a Mim em nada, e até
parecia viver numa contínua adoração perante o Filho, isso os irritava. Esta
antipatia haveria de ir crescendo, ao longo dos três anos do ministério, até
culminar em censuras abertas, quando me encontravam no meio das
multidões, e se envergonhavam, como diziam, da minha mania de ficar
provocando as castas poderosas. Censuras a Mim e a Ela, a minha pobre
mãe!
44.11
Contudo, Maria não opôs resistência, como vós fazeis, ela que sabia
as disposições dos parentes (nem todos foram como Tiago, Judas e Simão,
nem como a mãe deles, Maria de Cléofas), prevendo as disposições futuras,
e sabendo a sua sorte durante aqueles três anos e o que a aguardava no final
deles, assim como o que Me aconteceria. Ela chorou. Quem não teria
chorado, diante da separação do filho que a amava, como Eu a amava, diante
da perspectiva dos longos dias vazios, sem a minha presença, naquela casa
solitária, diante do futuro do Filho, destinado a se bater contra a má vontade
de quem era culpado, procurando vingar-se da culpa, ofendendo o Inocente,
até matá-lo?
Chorou porque era a Co-Redentora e a mãe do gênero humano renascido
para Deus, e devia chorar por todas as mães que não sabem fazer de suas
dores de mães uma coroa de glória eterna.
Quantas mães neste mundo vêem a morte arrancar um filho dos seus
braços! Quantas mães vêem a vontade sobrenatural arrebatar-lhes um filho
de perto delas! Maria chorou por todas as suas filhas, como mãe dos
cristãos, por todas as suas irmãs, em sua dor de mãe despojada. Chorou
também por todos os filhos que, nascidos de mulher, estão destinados a
tornarem-se apóstolos de Deus, ou mártires por amor de Deus, por
fidelidade a Ele ou pela ferocidade humana.
44.12
O meu Sangue e o pranto de minha mãe são a mistura que fortalece os
marcados da sorte heróica, anulando-lhes as imperfeições, ou as faltas
cometidas por fraqueza, dando depois do martírio sofrido, a paz de Deus e,
se sofrido por Deus, a glória do Céu.
Os missionários experimentam as lágrimas como uma chama que os
aquece nas regiões onde a neve impera, como um orvalho lá onde o sol arde.
São brotadas da caridade de Maria e jorram dum coração de lírio. Suas
lágrimas têm o fogo da caridade virginal unida ao Amor e o perfumado
frescor da virginal pureza, semelhante ao da água que se recolhe no cálice de
um lírio, depois de uma noite orvalhosa.
Os consagrados as encontram[74] naquele deserto que é a vida monástica
bem entendida. É deserto porque não vive senão da união com Deus, e
qualquer outro afeto desaparece tornando-se unicamente caridade
sobrenatural, para com os parentes, os amigos, os superiores e os inferiores.
São encontradas pelos consagrados a Deus no mundo, no mundo que não
os entende e não os ama. É deserto também para eles, pois vivem como se
estivessem sozinhos, por serem tão incompreendidos e escarnecidos, por
amor de Mim.
As minhas queridas “vítimas” experimentam as lágrimas, porque Maria
é a primeira das vítimas que por amor de Jesus dá as suas lágrimas que
restauram e inebriam um maior sacrifício, às suas imitadoras, com a mão de
mãe e de Médica.
Santo pranto o de minha mãe!
44.13
Maria reza. Não se recusa a rezar, só porque Deus lhe manda uma dor.
Lembrai-vos disso. Ela reza junto com Jesus. Reza o Pai-nosso. Nosso e
vosso.
O primeiro “Pai-nosso” foi pronunciado no pomar de Nazaré para
consolar o sofrimento de Maria, para oferecer as “nossas” vontades ao
Eterno, no momento em que se estava iniciando para essas vontades o
período de uma renúncia sempre crescente, que iria culminar por Mim, na
renúncia da vida e por Maria, na morte do Filho.
Ainda que não tivéssemos nada de que pedir perdão ao Pai, contudo,
por humildade, nós, os Sem Culpa, pedimos perdão ao Pai, para sermos
perdoados e absolvidos até de algum suspiro, para podermos ir dignamente
ao encontro da nossa missão. Para ensinar-vos que quanto mais estiverdes na
graça de Deus, mais a missão é abençoada, e mais frutos ela produz. Para
ensinar-vos o respeito a Deus e a humildade. Diante de Deus Pai, até as
nossas duas perfeições de Homem e de Mulher sentiram-se um nada,
pedindo perdão. Como também pediram o “pão de cada dia”.
Qual era o nosso pão? Oh! não aquele amassado pelas mãos puras de
Maria e assado no pequeno forno, para o qual tantas vezes Eu tinha ajeitado
feixes e braçadas de lenha. Também aquele é necessário, enquanto
estivermos sobre a terra. Mas o “nosso” pão de cada dia era aquele de fazer,
dia após dia, a nossa parte da missão. Que Deus no-la desse cada dia,
porque cumprir a missão que Deus dá é a alegria do “nosso” dia, não é
verdade, pequeno João? Não dizes, tu também, que o dia te parece vazio,
parecendo não existir, se a bondade do Senhor te deixa um dia sem a tua
missão de dor?
44.14
Maria reza junto a Jesus. É Jesus quem vos justifica, meus filhos! Sou
Eu que torno aceitáveis e frutuosas as vossas orações junto ao Pai. Eu já vos
disse[75]: “Tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vos concederá”, e
a Igreja valoriza as suas orações, dizendo: “Por Jesus Cristo nosso Senhor.”
Quando rezardes, uni-vos sempre, sempre, sempre a Mim. Eu rezarei em
alta voz por vós, cobrindo a vossa voz de homens com a minha de Homem-
Deus. Eu colocarei sobre as minhas mãos traspassadas a vossa oração, e a
elevarei até o Pai. Ela se tornará uma hóstia de preço infinito. A minha voz,
misturada com a vossa, subirá como um beijo filial ao Pai, e a púrpura das
minhas feridas tornará precioso o vosso rezar. Permanecei em Mim, se
quereis que o Pai permaneça em vós, convosco, por vós.
44.15
Terminaste a narração dizendo: “por nós…”, e querias dizer: “Por
nós que somos tão ingratos para com estes Dois que subiram ao Calvário por
nós.” Fizeste bem em colocar estas palavras. Coloca-as cada vez que Eu te
fizer ver uma das nossas dores. Sejam como um sino que toca e que chama,
convidando a meditar e a arrepender-se.
Agora basta. Repousa. A paz esteja contigo.
[72] a oração dominical, é a oração do “Pai Nosso”, que Jesus ensinará aos Ap óstolos no segundo ano da sua vida p ública
(em 203.5). Por isso M aria Valtorta faz a seguinte anotação na sua cóp ia dactilografada: Se Jesus ensinou o “Pater” aos seus
discípulos, não deveria antes ensiná-lo à Mãe? Àquela Mãe que, ao receber no seio a semente de Deus, logo disse: “Se faça
segundo a sua palavra” e que tal “fiat” havia sempre repetido, mesmo para o Filho apenas nascido? O “Pater” não foi uma
improvisação de Jesus para os Apóstolos. Era a “sua” oração habitual, tanto que os Apóstolos lhe dizem: “Ensina-nos a
rezar como Tu rezas”. E era a oração comum de Jesus e de Maria. Que fosse a oração habitual de Jesus resulta também do
texto de 69.5; e p orque Ele a dizia com a M ãe antes de a ensinar aos discíp ulos (com os quais dirá e comentará p ela última vez,
como Ressuscitado, em 630.21/26) é exp licado também numa nota ao texto de 62.2. -ao temp o da escritora era normal recitar
em latim as orações, sendo o latim a língua da liturgia católica. As exp ressões latinas na obra Valtortiana não são senão fórmulas
de oração e, enquanto tal, p ertencem à língua do temp o em que a obra se manifesta. Notemos como exemp lo: Sanctus em 20.7,
Gloria Patri... no fim de 43.7, adveniat... e Dominus vobiscum (o Senhor esteja convosco) abaixo e em 547.4, Agnus Dei... em
46.11, Ecce Agnus Dei em 108.3, benedicite em 176.3, Fiat em 342.9, Offerimus... em 610.14. Em p articular, a oração do “Pai
Nosso” era usualmente citada como Pater ou Pater Nostro, e assim vem chamado mais abaixo (44.13) e em: 240.4 -307.8 -357.2
-405.11 -423.9 -437.5 -458.3 -477.10 -497.5 -602.12 -616.9 -636.11 -649.18 (onde é igualmente citado o Magnificat, como
acontece em 649.14).
[73] fuga, p oderia ser um lap so de M aria Valtorta em vez de paragem, p osto que desde as datas da escrita resulta que a
apresentação foi exp licada ap ós a p aragem (no Egip to) e antes da fuga (no Egip to).
[74] as encontram, rep etido muitas vezes, deve entender-se encontram as lágrimas, como se deduz do que vem a seguir.
[75] Eu já vos disse, em: João 16,23 (600.26.35).
45. Pregação de João Batista e Batismo de Jesus.
A divina manifestação.
[…].
O mesmo 3 de fevereiro de 1944, à tarde.
45.1
Vejo uma planície despovoada, sem cidades e sem vegetação. Não há
campos cultivados, e bem poucos e raros são os arbustos reunidos aqui e ali
em moitas, como uma das famílias vegetais, nos lugares em que o solo, nas
camadas mais profundas está menos árido do que nos outros pontos em geral.
Faça de conta que este terreno chamuscado e inculto esteja à minha direita,
tendo eu o norte às minhas costas, e que ele se prolongue para o lado sul,
em relação a mim.
À esquerda, ao contrário, vejo um rio de margens muito baixas, que
corre lentamente, também ele de norte a sul. Pelo movimento vagaroso da
água, compreendo que não devem existir desníveis em seu leito e que este
rio corre por uma planície de tal maneira plana, que forma uma depressão.
Ali há um movimento apenas suficiente para que a água não fique estagnada
em um pântano. (A água é pouco profunda, tanto que se pode ver o fundo.
Acho que não tem mais do que um metro, no máximo, um metro e meio. Tem
uma largura como a do rio Arno, à altura de S. Miniato-Empoli, eu diria,
de uns vinte metros. Mas eu não tenho olho bom para calcular distâncias).
Também é um rio de águas azuis levemente esverdeadas nas margens, onde
pela umidade do solo há uma vegetação densa e agradável à vista, que já
ficou cansada de olhar a esqualidez das pedras e da areia que se estende
diante dela.
Aquela voz interior[76], que eu lhe expliquei que ouço, e que me indica o
que é que devo anotar e saber, me avisa que o que estou vendo é o vale do
Jordão. Eu o chamo de vale, porque é costume falar assim, quando queremos
indicar o lugar por onde corre um rio, mas no caso do Jordão, é impróprio
chamá-lo assim, porque um vale pressupõe montes, e eu aqui não vejo
montes próximos. Mas, em suma, estou junto ao Jordão, e o espaço desolado,
que observo à minha direita é o deserto de Judá. Se falamos em deserto para
querermos dizer um lugar onde não há casas nem trabalhos feitos pelo
homem, está certo, mas não o é segundo o conceito que nós temos do deserto.
Aqui não há areias onduladas do deserto como nós o concebemos, mas
somente terra nua, com pedras e detritos espalhados, como são os terrenos
aluviais depois de uma cheia. Lá, ao longe, vêem-se algumas colinas.
Também, junto ao Jordão, reina uma grande paz, alguma coisa de
especial e de superior ao comum, igual ao que se sente nas margens do lago
Trasimeno. É um lugar que parece querer fazer-nos pensar em vôos de anjos
e em vozes celestes. Não sei dizer bem o que estou sentindo. Mas me sinto
num lugar que nos fala ao espírito.
45.2
Enquanto observo estas coisas, vejo que o cenário vai-se enchendo de
gente, ao longo da margem direita (em relação a mim) do Jordão. Há muitos
homens, vestidos de maneiras diversas. Alguns parecem homens do povo,
outros são ricos e não faltam alguns que parecem ser fariseus, pelas vestes
adornadas com franjas e galões.
No meio deles, em pé sobre um penhasco, está um homem que, ainda que
seja esta primeira vez que o vejo, reconheço logo que é o Batista. Ele fala à
multidão, e eu lhe asseguro que não é uma pregação doce. Jesus chamou[77]
Tiago e João de “os filhos do trovão”. Como chamar, então, este veemente
orador? João Batista merece o nome de raio, avalanche, terremoto, pois o
seu modo de falar e gesticular é muito impetuoso e severo.
Ele fala, anunciando o Messias e exortando o povo a preparar os
corações para a sua vinda, arrancando-lhes os embaraços, endireitando-lhes
os pensamentos. Mas é um falar vorticoso e rude. O Precursor não tem a mão
leve de Jesus, sobre as chagas dos corações. É um médico que tudo
descobre, examina, e corta, sem piedade.
45.3
Enquanto o escuto — e não repito as palavras porque são aquelas
referidas[78] pelos evangelistas, mas amplificadas em sua
impetuosidade — vejo que, ao longo de uma estradinha, pela beira da faixa
verde que acompanha o Jordão, vem se aproximando o meu Jesus. Este
caminho rústico, que é mais um atalho do que um caminho, parece ter-se
formado com a passagem das caravanas e das pessoas que, durante anos e
séculos, o têm percorrido para alcançar um ponto mais raso do rio e fácil
de ser atravessado a vau. O atalho continua do outro lado do rio, e se
perde entre o verde dos ribeirinhos.
Jesus está sozinho. Caminha lentamente, avançando em direção às costas
de João. Aproxima-se sem fazer barulho e escuta, entretanto, a voz trovejante
do Penitente do deserto, como se Jesus fosse um dos muitos que iam a João
para serem batizados, a fim de se prepararem para estarem limpos, na
chegada do Messias. Nada distingue Jesus dos outros. Nas vestes, Ele
parece um dos homens do povo, um senhor no trato e na beleza, mas nenhum
sinal divino o diferencia da multidão.
Dir-se-ia, porém, que João está sentindo a emanação de uma
espiritualidade especial. Ele se vira e, de imediato, reconhece qual é a fonte
daquela emanação. Ele desce impetuosamente do penhasco, que lhe servia
de púlpito, e, rapidamente, vai até Jesus, que estava parado a alguns metros
do grupo, apoiando-se ao tronco de uma árvore.
45.4
Jesus e João se olham por um momento. Jesus com aquele seu olhar‐
azul tão doce. João com seus olhos severos, pretos, cheios de uma luz
intensa. Vistos de perto, eles são a antítese um do outro. Os dois são altos (é
a única semelhança, em tudo o mais são diferentes). Jesus é loiro, de cabelos
compridos e penteados, com um rosto de um branco marfim, de olhos azuis,
de roupa simples, mas majestosa. João tem cabelos pretos, que caem lisos
sobre as costas, desiguais em comprimento, com uma barba preta e rala, que
lhe cobre quase todo o rosto, sem impedir que se possam notar suas faces
escavadas pelo jejum, seus olhos pretos e febris, sua pele escura, bronzeada
pelo sol e pelas intempéries, A pelugem farta que lhe cobre o corpo seminu,
com sua veste de pêlo de camelo, presa à cintura por uma correia de pele,
cobrindo o torso, descendo um pouco abaixo dos flancos magros, deixando
descobertas as costelas à direita, por onde se vê a pele curtida pelo ar. Os
dois, vistos juntos, parecem um anjo e um selvagem.
João, depois de tê-lo perscrutado com seus olhos penetrantes, exclama:
– Eis o Cordeiro de Deus! Como é que o meu Senhor vem a mim?
Jesus lhe responde tranqüilamente:
– É para cumprir o rito da penitência.
– Nunca, meu Senhor. Eu é que devo ir a Ti para ser santificado, e Tu
vens a mim?
Jesus, pondo-lhe a mão sobre a cabeça, pois João estava curvado à sua
frente, lhe responde:
– Deixa que se faça como Eu quero, para que se cumpra toda a justiça,
para que o teu rito se torne o início de um mais alto mistério, e para que seja
anunciado aos homens que a Vítima já está no mundo.
45.5
João olha para Ele com uns olhos, que uma lágrima enternece, e o
precede em direção à beira do rio, onde Jesus tira o manto e a túnica,
ficando com uma espécie de calções curtos, para, depois, descer na água,
onde já está João, que o batiza, vertendo-lhe sobre a cabeça a água do rio,
apanhada com uma espécie de taça que o Batista traz pendurada na
cintura, e que me parece uma concha, ou a metade de uma cabaça seca, da
qual foi tirado o miolo.
Jesus é realmente o Cordeiro. Cordeiro na candura da carne, na
modéstia do trato, na mansidão do olhar.
Enquanto Jesus torna a subir à beira do rio, depois de se vestir, se
recolhe em oração, João o aponta à multidão, dando o testemunho de tê-lo
conhecido pelo sinal que o Espírito de Deus lhe tinha dado, sinal infalível
do Redentor.
Mas eu me sinto tão atraída por Jesus, ao vê-lo rezando, que não vejo
nada, a não ser esta figura de luz, contra o verde da margem.

4 de fevereiro de 1944.
45.6
Jesus diz:
– João para si mesmo não tinha necessidade do sinal. O seu espírito,
pré-santificado desde o ventre de sua mãe, possuía aquela vista da
inteligência sobrenatural, que teria sido a de todos os homens sem a culpa de
Adão.
Se o homem tivesse permanecido na graça, na inocência, na fidelidade
ao seu Criador, teria visto Deus, através das aparências externas. No
Gênesis está dito que o Senhor Deus falava familiarmente com o homem
inocente e que, diante daquela voz o homem não desfalecia, nem se
enganava, ao discerni-la. Tal era a sorte do homem: ver e compreender a
Deus, exatamente como um filho faz com o seu pai. Depois veio a culpa, e o
homem não mais ousou olhar a Deus, não mais soube ver e compreender
Deus. E o compreende cada vez menos.
Mas João, o meu primo João, tinha sido purificado da culpa, quando a
cheia de graça se curvou amorosamente para abraçar a que tinha sido estéril,
sendo agora, a fecunda Isabel. O pequenino, no seu ventre, tinha saltado de
alegria, sentindo sair de sua alma o vestígio da culpa, assim como uma
crosta cai da ferida que ficou curada. O Espírito Santo, que fez de Maria a
mãe do Salvador, Ele iniciou a Sua obra de salvação, através de Maria,
cibório vivo da salvação encarnada, por meio deste nascituro, que estava
destinado a estar unido a Mim, não tanto pelo sangue, mas também pela
missão que fez de ambos, lábios que formam a palavra. João era os lábios,
Eu era a Palavra. Ele, o Precursor no Evangelho e em seu destino de mártir.
Eu, Aquele que aperfeiçoa, com a minha divina perfeição, o Evangelho
iniciado por João, e o seu martírio, pela defesa da Lei de Deus.
João não precisava de nenhum sinal. Mas o sinal era necessário para a
obtusidade dos outros. Sobre o que teria João baseado a sua afirmação senão
sobre uma prova inegável que até os olhos dos lentos e os ouvidos dos
aborrecidos tivessem podido perceber?
45.7
Eu também não precisava de batismo. Mas a sabedoria do Senhor
tinha julgado ser aquele o momento e o modo de nos encontrarmos. Tirando
João da sua caverna, e a Mim da minha casa, Ele nos uniu naquela hora para
abrir sobre Mim os Céus, descendo a Pomba divina sobre Aquele que teria
de batizar os homens com esta Pomba, e descendo também o anúncio, ainda
mais poderoso do que o do anjo, porque era de meu Pai: “Eis o meu Filho
dileto, com o qual Eu me comprazo.” Para que os homens não tivessem
desculpas ou dúvidas se deveriam seguir-me ou em não.
45.8
As manifestações do Cristo foram muitas. A primeira depois do
nascimento foi aquela dos Magos, a segunda, no Templo, e a terceira às
margens do Jordão. Depois vieram infinitas outras, que eu te farei conhecer,
pois os meus milagres são manifestações da minha natureza divina, até a
Ressurreição e a Ascensão ao Céu.
A minha pátria encheu-se das minhas manifestações. Como semente
lançada aos quatro pontos cardeais, essas manifestações aconteceram em
todas as camadas da sociedade e em todos os lugares da vida: dos pastores,
aos poderosos, aos doutos, aos incrédulos, aos pecadores, aos sacerdotes,
aos dominadores, às crianças, aos soldados, aos hebreus, aos gentios. Ainda
agora elas se repetem. Mas, como naquele tempo, o mundo não as recebe
bem. Não recebe bem as atuais, esquecendo-se também das passadas. Pois
bem, Eu não desisto. Eu me repito para salvar-vos, para levar-vos a ter fé
em Mim.
45.9
Sabes, Maria, o que estás fazendo? Sabes o que Eu estou fazendo, ao
mostrar-te o Evangelho? Uma tentativa mais forte de trazer os homens a
Mim. Tu tens desejado isto com ardentes orações. Eu não me limito mais à
palavra. Ela os cansa e os afasta. É uma culpa, mas é assim. Recorro à
visão, a visão do meu Evangelho, e a explico para torná-la mais clara e
atraente.
A ti Eu te dou o conforto da visão. A todos Eu dou o modo de desejar
me conhecer. Se ainda não servir, e como crianças caprichosas, jogarem fora
o presente sem compreenderem o seu valor, contigo ficará o meu presente, e
a eles, a minha indignação. Poderei, mais uma vez, dar-lhes[79] aquela antiga
repreensão: “Tocamos, e não dançastes; entoamos lamentações, e não
chorastes.”
Mas, não importa. Deixemos que eles, esses inconvertíveis, acumulem
sobre suas cabeças os carvões ardentes, e voltemos às ovelhinhas, que
procuram conhecer o Pastor. Eu sou o Pastor, e tu és a vara que as conduz a
Mim.

Como vê, eu me apressei a colocar aqueles particulares[80] que, pela


45.10

sua pequenez, me haviam escapado, e que o Senhor desejou ter.


[…].
[76] Aquela voz interior, é o monitor interior (assim chamado em: 21.2 -34.1 -46.2 -55.6 -106.1 -361.1 -605.2 -607.1) ou a
segunda voz (como em 41.10) ou a voz interior (como em 47.9 e 101.1) ou a intuição interior (como na nota em 396.8) ou luz
interior (como em 608.1).
[77] chamou, em: Marco 3,17 (330.3 e 575.8).
[78] referidas, em: Mateus 3,1-12; Marcos 1,1-8; Lucas 3,3-18; João 1,19-34.
[79] dar-lhes, como em 266.12.
[80] particulares, que M aria Valtorta acrescentou inserindo-os entre as linhas autografas ou em roda p é na p ágina autografa do
caderno e, que p usemos em itálico no texto de 45.1/5.
46. Jesus tentado por Satanás no deserto.
Como se vencem as tentações.
24 de fevereiro de 1944. Quinta-Feira depois das Cinzas.
46.1
Vejo à minha esquerda, a solidão rochosa, que eu já vi, na visão do
batismo de Jesus no Jordão. Mas devo ter penetrado bastante nela, porque
não vejo inteiramente o belo rio, vagaroso e azul, nem a veia verde que o
acompanha em suas duas margens, como que alimentada por aquela artéria
de água. Aqui só se vê solidão, grandes pedras, uma terra de tal maneira
árida, que está reduzida a um pó amarelado que, de vez em quando o vento
levanta em pequenos redemoinhos, parecidos com o sopro de alguma boca
febril, de tão quente e seco. Eles incomodam, porque a sua poeira nos
penetra as narinas e a garganta. Há algumas pequenas moitas de espinheiros,
muito raras, que não se sabe como é que podem resistir, nessa desolação.
Parecem os últimos fios de cabelo numa cabeça calva. Acima, um céu,
impiedosamente azul; em baixo, o solo árido; ao redor, penhascos e silêncio.
Eis o que vejo como natureza.
46.2
Encostado à uma grande pedra, que pela sua forma, feita para
cima e para baixo assim como tento desenhá-la, parece um princípio de
caverna, está Jesus, sentado sobre numa outra pedra, que foi arrastada para
dentro da caverna +. Protege-se assim do sol ardente.

Meu monitor interior me avisa que aquela pedra, sobre a qual o Senhor
está sentado, é também o seu genuflexório e o seu travesseiro, quando Ele
tira suas breves horas de repouso, envolto em seu manto, à luz das estrelas e
exposto ao ar frio da noite. De fato, a sacola está perto dele, a mesma que eu
o vi pegar, antes de partir de Nazaré. É tudo o que Ele tem. E, como está
dobrada e frouxa, compreendo que está vazia, sem aquele pouco alimento
que Maria havia posto nela.
Jesus está muito magro e pálido. Está sentado com os cotovelos
apoiados nos joelhos e os antebraços estendidos para a frente, com as mãos
unidas e os dedos entrelaçados. Ele está meditando. De vez em quando,
ergue o olhar, e o gira ao seu redor, olha para o sol alto, quase à pino, no céu
azul. De vez em quando, e especialmente depois de ter girado o olhar ao
redor e de tê-lo erguido em direção à luz solar, Ele fecha os olhos e se apóia
ao penhasco, que lhe serve de abrigo, como se estivesse sendo tomado por
uma vertigem.
46.3
Vejo, então, aparecer a cara feia de Satanás. Não que ele se apresente
na forma com que nós costumamos figurá-lo com chifres, rabo, etc. Parece
um beduíno, envolto em sua veste e em seu grande manto, como um dominó
mascarado. Na cabeça tem um turbante, cujas extremidades brancas descem
como uma proteção sobre os ombros e ao longo dos lados do rosto. De modo
que deste aparece um pequeno triângulo muito moreno, de lábios finos e
sinuosos, de olhos muito pretos e encavados, cheios de brilhos magnéticos.
São duas pupilas que te perscrutam até o fundo do coração, mas nas quais
não lês nada, somente esta palavra: mistério. O oposto dos olhos de Jesus,
também estes magnéticos e fascinantes e que perscrutam os corações, mas
nos quais tu também podes ler que no seu coração há amor e bondade para
contigo. O olhar de Jesus é uma carícia para a alma. Enquanto que o olhar de
Satanás é como um duplo punhal que te perfura e te queima.
46.4
Ele se aproxima de Jesus:
– Estás sozinho?
Jesus olha para ele, e não responde.
– Como vieste parar aqui? Estás perdido?
Jesus o olha novamente, e continua calado.
– Se eu tivesse água no odre, eu te daria. Mas eu também estou sem.
Meu cavalo morreu, e eu vou indo a pé até o vau do Jordão. Lá eu beberei, e
hei de encontrar alguém que me dê um pão. Eu sei o caminho. Vem comigo.
Eu te guiarei.
Jesus não levanta nem mesmo o olhar.
– Não respondes? Sabes que, se ficares aqui, morrerás? O vento está
começando a soprar. Vai vir uma tempestade. Vem comigo.
Jesus une as mãos em muda oração.
– Ah! Então, és Tu mesmo? Há tanto tempo que te procuro! Agora faz
tempo que te venho observando. Desde o momento em que foste batizado.
Estás chamando o Eterno? Ele está longe. Agora estás sobre a terra e em
meio aos homens. No meio dos homens, quem reina sou eu. Eu também tenho
dó de ti e te quero socorrer, porque és bom, e vieste sacrificar-te à toa. Os
homens te odiarão pela tua bondade. Eles só entendem, se lhes falares de
ouro, comida e sentidos. Sacrifício, dor, obediência, são para eles palavras
mortas mais do que esta terra, que está ao redor de nós. Eles são ainda mais
áridos do que esta poeira. Só a serpente pode esconder-se aqui, esperando a
hora de dar o bote; e o chacal, a hora de despedaçar sua vítima. Vem, vamos
embora. Não mereces sofrer por eles. Eu os conheço melhor do que Tu.
Satanás sentou-se de frente a Jesus e o examina com esse seu olhar‐
horrível, sorrindo com a sua boca de serpente. Jesus continua calado,
rezando mentalmente.
46.5
– Tu estás desconfiando de mim. Fazes mal. Eu sou a sabedoria da
terra. Posso ser teu mestre, para te ensinar a triunfar. Vê: o importante é
triunfar. Depois, quando nos impusermos e o mundo ficar fascinado, então o
levaremos para onde quisermos. Mas antes, é necessário fazer o que agrada
a eles. Ser como eles. Seduzi-los, fazendo-os crer que nós os admiramos e
os acompanhamos em seus pensamentos.
Tu és jovem e belo. Começa pela mulher. É sempre por ela que se deve
começar. Eu errei, induzindo a mulher à desobediência. Eu devia tê-la
aconselhado de outro modo. Eu teria feito dela um instrumento melhor, e
teria vencido a Deus. Eu fui apressado. Mas Tu! Vou te ensinar, porque
houve um dia em que eu olhei para Ti com um júbilo angelical, e um resto
daquele amor [81]ainda ficou, mas Tu, escuta-me, aproveita-te da minha
experiência! Arruma uma companheira. Porque o que não conseguires, ela
conseguirá. Tu és o novo Adão: deves ter a tua Eva.
Além disso, como podes compreender e curar as doenças da
sensualidade, se não sabes o que elas são? Não sabes que aí é que está o
ponto central do qual nasce a planta da cobiça e da prepotência? Para que é
que o homem quer reinar? Para que é que quer ser rico e poderoso? Para
possuir a mulher. Ela é como a cotovia. Ela precisa do brilho para ser
atraída. O ouro e o poder, são as duas faces do espelho que atraem as
mulheres e são as causas do mal no mundo. Olha bem: atrás de mil delitos de
diversas faces, há, pelo menos novecentos que têm suas raízes na fome da
posse da mulher, ou na vontade de uma mulher, que arde num desejo que o
homem ainda não conseguiu satisfazer ou não mais satisfaz. Se quiserdes
saber o que é a vida procura a mulher. Só depois, saberás cuidar e curar as
doenças da humanidade.
A mulher é bonita, como sabes! Não há nada de mais belo no mundo. O
homem tem o pensamento e a força. Mas, a mulher! O seu pensamento é um
perfume, seu contato é carícia de flores, sua graça é como um vinho que
desce, sua fraqueza é como uma meada de seda ou anel de cabelo de bebê
nas mãos do homem, sua carícia é uma força que se derrama sobre a nossa
inflamando-a. Acaba-se a dor, o cansaço, a aflição, quando nos colocamos
perto de uma mulher, pois ela, nos nossos braços, é como um feixe de flores.
46.6
Mas, que tolo que eu sou! Tu estás com fome, e eu te falando da
mulher. O teu vigor está esgotado. É por isso que essa fragrância da terra,
essa flor da criação, esse fruto que dá e suscita o amor, te parece uma coisa
sem valor. Mas olha estas pedras, como são redondas e lisas, como são
douradas sob à luz do sol que desce. Não parecem pães? Tu, Filho de Deus,
só precisas dizer: “Eu quero”, para que elas se transformem em pães
cheirosos, como aqueles que as donas de casa tiram do forno para o jantar
de seus familiares. E estas acácias, tão secas, se Tu queres, não podem
encher-se de maçãs doces e de tâmaras com gosto de mel? Sacia-te, ó Filho
de Deus! Tu és o Senhor da terra. Ela se inclina para pôr-se aos teus pés,
matando a tua fome.
Não vês que empalideces e vacilas, só de ouvires falar em pão? Pobre
Jesus! Estás tão fraco, a ponto de não poderes mais tampouco fazer um
milagre? Queres que eu o faça por Ti? Não sou igual a ti. Mas alguma coisa
eu posso fazer. Ainda que por um ano eu fique privado das minhas forças, eu
as juntarei todas, pois eu te quero servir, porque Tu és bom e eu sempre me
lembro de que és o meu Deus, mesmo tendo eu desmerecido agora de poder
chamar-te assim. Ajuda-me com a tua oração para que eu possa….
– Cala-te! “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que vem
da boca de Deus.”
O demônio estremece de raiva. Range os dentes e fecha os punhos. Mas
ele se contém, e muda o ranger de dentes em um sorriso.
– Compreendo. Tu estás acima das necessidades da terra e tens aversão
a servir-te de mim. Bem que eu mereci isto. 46.7Mas, vem, então, e vê o que
está acontecendo na Casa de Deus. Vê como até os sacerdotes não se
recusam a fazer transações entre o espírito e a carne. Porque, afinal, eles são
homens, não são anjos. Faz um milagre espiritual. Eu te levo até o pináculo
do Templo, e Tu, transfigura-te em beleza lá em cima, depois, chama a
multidão de anjos, e diz a eles que façam de suas asas entrelaçadas, uma
esteira para os teus pés, e que Te levem para desceres no pátio principal.
Que todos Te vejam e se lembrem de que Deus existe. De vez em quando é
necessária uma manifestação, porque o homem tem uma memória muito
fraca, especialmente nas coisas espirituais. Bem sabes como os anjos se
sentirão felizes por poderem oferecer um apoio aos teus pés e uma escada
para desceres!
– Está escrito: “Não tentes ao Senhor teu Deus.”
– Compreendes que, mesmo com a tua aparição, não se mudariam as
coisas, e o Templo continuaria a ser um lugar de mercado e corrupção. A tua
divina sabedoria bem o sabe, como os corações dos ministros do Templo
são um ninho de víboras, que se dilaceram, contanto que consigam
prevalecer. Só podem ser dominados com força humana.
46.8
Então, vem. Adora-me. Eu te darei a terra. Alexandre, Ciro, César,
todos os maiores dominadores do passado ou do presente serão semelhantes
a chefes de umas mesquinhas caravanas, se comparados a Ti, que terás sob o
teu cetro todos os reinos da terra. Com os reinos, terás todas as riquezas,
todas as belezas da terra, mulheres, cavalos, forças armadas e templos.
Poderás erguer em qualquer lugar o teu Sinal, quando serás o Rei dos reis e
Senhor do mundo. Então, serás obedecido e venerado pelo povo e pelo
sacerdócio. Todas as castas te honrarão e te servirão, porque serás o
Poderoso, o Único, o Senhor.
Adora-me, ainda que por um só momento! Tira-me esta sede que eu
tenho de ser adorado! Foi ela que me perdeu. Mas ela ficou em mim,
queimando-me. As chamas do inferno são como o ar fresco da manhã,
comparado a este ardor que me queima interiormente. Esta sede é o meu
inferno. Um momento, um momento só, ó Cristo, Tu que és bom! Um
momento de alegria para o eterno Atormentado! Deixa-me sentir o que quer
dizer ser deus, e eu serei teu devoto e servo obediente por toda a vida, para
todas as tuas obras. Um momento! Um só momento, e não te atormentarei
mais!
Satanás se põe de joelhos, suplicando.
46.9
Jesus, ao contrário, se levantou. Tendo-se tornado mais magro nestes
dias de jejum, parece ainda mais alto. Seu rosto está cheio de severidade e
poder. Seus olhos são duas safiras ardentes. Sua voz é como um trovão, que
se repercute na cavidade do penhasco, espanlhando-se sobre o pedregal e a
planície desolada, ao dizer:
– Vai-te, Satanás. Está escrito: “Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele
servirás!”
Satanás, com um urro de condenado e com um ódio indescritível,
levanta-se com ímpeto, tremendo, ao ver-se na sua furiosa e fumante figura.
Depois, desaparece, com um novo urro de maldição.
46.10
Jesus se assenta, cansado, apoiando atrás a cabeça no penhasco.
Parece estar exausto. Está suando. Mas os seres angélicos vêm soprar
levemente, com suas asas no mormaço da caverna, purificando-o e
refrescando-o. Jesus abre os olhos, e sorri. Eu não o vejo comer. Eu diria
que Ele se nutre do aroma do Paraíso, saindo revigorado.
O sol desaparece no poente. Jesus pega o alforje vazio e, acompanhado
pelos anjos que, suspensos acima de sua cabeça, produzem uma luz suave,
enquanto a noite cai rapidamente, se encaminha para o leste, ou melhor, para
o nordeste. Já retomou sua expressão habitual, o passo firme. Só resta, como
lembrança do seu longo jejum, um aspecto mais ascético no rosto magro e
pálido e nos olhos, arrebatados, numa alegria que não é desta terra.

46.11
Jesus diz:
– Ontem estavas sem a tua força, que é a minha vontade, e eras por isso
um ser semivivo. Eu fiz que teus membros repousassem e te fiz jejuar no
único jejum que é pesado para ti: aquele da minha palavra. Pobre Maria!
Tiveste uma Quarta-Feira de Cinzas. Em tudo sentiste o sabor da cinza, visto
que estavas sem o teu Mestre. Eu não me fazia ouvir. Mas Eu estava
presente.
Nesta manhã, já que a aflição é recíproca, Eu te murmurei em teu
cochilo: “Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, dá-nos a paz”, e
te fiz repetir isso muitas vezes, e outras tantas repeti para ti. Pensaste que Eu
ia falar sobre isto. Mas, primeiro foi o ponto que Eu já te mostrei, e que vou
comentar. Depois, hoje à tarde, te ensinarei sobre aquele outro assunto.
46.12
Satanás, como viste, se apresenta sempre com uma aparência
benévola. Com um aspecto comum. Se as almas estiverem atentas, e
sobretudo em contatos espirituais com Deus, perceberão aquele aviso, que
as tornará cautelosas e prontas para combater as insídias do diabo. Mas, se
as almas estiverem desatentas ao divino, separadas por uma carnalidade que
as domina e ensurdece, não ajudadas pela oração que as une a Deus e
derrama sua força como por um canal no coração do homem, então
dificilmente elas notam a cilada escondida sob uma aparência inócua, caindo
nela. Livrar-se, depois, é muito difícil.
46.13
Os dois caminhos mais comuns, tomados por Satanás para chegar às
almas, são a sensualidade e a gula. Ele começa sempre pela matéria.
Desmantelada e dominada esta, aí ele ataca a parte superior. Primeiro, o
moral: o pensamento com suas soberbas e cobiças; depois, o espírito,
tirando dele não só o amor — este já nem existe mais, quando o homem
substituiu o amor divino por outros amores humanos — mas também o temor
de Deus. É então que o homem se abandona de corpo e alma a Satanás,
contanto que chegue a gozar do que quer, e a gozar sempre mais.
46.14
Como Eu me comportei, tu o viste. Silêncio e oração. Silêncio.
Porque, se Satanás faz seu trabalho de sedutor e vem ao redor de nós, é
preciso suportá-lo sem tolas impaciências e temores inúteis. Mas reagir com
altivez à sua presença e com oração à sua sedução.
É inútil discutir com satanás. Ele venceria, porque é forte em sua
dialética. Só Deus o vence. Por isso é preciso recorrer a Deus, que fale por
nós, através de nós. Mostrar a satanás aquele nome e aquele sinal, não tanto
escritos em papel ou gravados em madeira, quanto escritos e gravados no
coração. O meu Nome, o meu Sinal. Rebater a satanás, somente quando
insinua que ele é como Deus, usando a palavra de Deus[82]. Ele não suporta
esta palavra.
46.15
Depois, passada a luta, vem a vitória, e os anjos servem e defendem
o vencedor do ódio de satanás. Eles o restauram com o orvalho celeste, com
a graça que tornam a derramar às mãos cheias no coração do filho fiel, com
a bênção que acaricia o espírito.
É preciso ter a vontade de vencer a satanás e fé em Deus e em sua ajuda.
Fé no poder da oração e na bondade do Senhor. Então, satanás não pode
fazer nenhum mal.
Vai em paz. Nesta tarde te alegrarei com o que ainda virá.
[81] júbilo e amor, referem-se aos anjos, esp íritos p uros, cuja criação e função (que exclui o p rivilégio, reservado ao homem, de
p oder coop erar p ara a redenção, como se diz em 96.5) serão ilustrados em 266.11 e em nota a 428.4. Lúcifer, enquanto anjo
rebelde, teve na origem as p rerrogativas angélicas. Da sua queda ou exp ulsão do Céu, que se entrevê em Isaías 14,12, a obra
Valtortiana trata p elo menos em: 17.3 -69.4 -96.2 -131.2 -244.6 -265.4 -317.4 -414.8 -448.2 -483.3 -486.4/5 -487.6/7 (culp a
dos anjos rebeldes sem esp erança de redenção) -507.9 -515.3 -537.7. Em mérito do p resente p asso das tentações de Jesus,
assim anota M aria Valtorta sobre uma cóp ia dactilografada: O carácter serpentino de Lúcifer revela-se aqui em pleno. Cada
palavra é mentira e desejaria ser sedução. Apenas o dizer que nele há ainda um resto de amor, enquanto o ódio e apenas ódio,
para Deus e o homem, o impele para esta tentativa de arruinar e destruir o fruto da Incarnação. Tanto ódio que a sua malícia
se torna estupidez: a estupidez de pensar que se pode induzir a pecado Cristo. -Como Miguel é o nome do p ríncip e dos anjos
(nota em 376.10), assim Lucífer tornou-se, junto com Satanás e Belzebú (e semelhantes), um dos nomes dos p ríncip es dos
demónios; e em 243.9 vem identificado com a Serp ente tentadora). Outros nomes demoníacos são “Mammona” (p ersonificação
da riqueza material) e Leviatão (nota em 254.1).
[82] a palavra de Deus, que Jesus rebatendo Satanás, retirou de Deuteronómio 6,13.16; 8,3.
47. O encontro com João e Tiago.
João de Zebedeu é o puro entre os discípulos.
25 de fevereiro de 1944.
47.1
Vejo Jesus que caminha ao longo da faixa verde que costeia o Jordão.
Ele voltou mais ou menos ao mesmo lugar que viu o seu batismo. É perto do
vau do Jordão, que parece ser muito conhecido e freqüentado como meio de
passar-se à outra margem, na direção de Peréia. Mas o lugar, antes tão
povoado, agora parece quase deserto. Só algum viajante, a pé ou montado
em jumentos ou cavalos, é que o percorre. Jesus parece nem perceber isso.
Ele prossegue por sua estrada, subindo novamente para o norte, como que
absorto em seus pensamentos.
Ao chegar à altura do vau, encontra-se com um grupo de homens de
diversas idades, que discutem animadamente entre si, separando-se depois,
uma parte para o sul e a outra para o norte. Entre aqueles que se dirigem ao
norte, vejo João e Tiago.
47.2
João é o primeiro a avistar Jesus, monstrando-o ao irmão, e aos
companheiros. Falam eles ainda um pouco entre si e, depois, João se põe a
caminhar rapidamente para alcançar Jesus. Tiago o segue mais devagar. Os
outros não se interessam, continuando a caminhar lentamente e discutindo.
Quando João chega perto de Jesus, às suas costas, à distância de uns
dois ou três metros, grita:
– Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo!
Jesus se vira, e olha para ele. Os dois estão a poucos passos um do
outro. Eles se observam. Jesus, com seu aspecto sério e indagador. João,
com seus olhos puros e risonhos, no belo rosto tão juvenil, que parece
feminino. Podem-se lhe dar uns vinte anos e, sobre a face rosada, não tem
ainda mais do que alguns poucos pelos loiros, como uma veladura dourada.
– A quem estás procurando? –pergunta Jesus.
– A Ti, Mestre.
– Como sabes que eu sou mestre?
– Foi o Batista que me disse.
– E, por que me chamas Cordeiro?
– Porque o ouvi chamar-te assim, um dia em que ias passando, há pouco
mais de um mês.
– Que queres de Mim?
– Que nos digas palavras de vida eterna, e nos consoles.
– Quem és tu?
– João de Zebedeu, sou eu, e este é Tiago, meu irmão. Somos da
Galiléia. Somos pescadores. Mas somos também discípulos de João. Ele nos
dizia palavras de vida, nós o escutávamos, porque queríamos seguir a Deus
e, com a penitência, merecer o seu perdão, preparando os caminhos do
coração para a vinda do Messias. Tu és o Messias. João o disse, porque viu
o sinal da Pomba pousar sobre Ti. Disse –nos também: “Eis o Cordeiro de
Deus.” Eu, então, digo a Ti: Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do
mundo, dá-nos a paz, porque não temos mais quem nos guie, e nossa alma
está turbada.
– Onde está João?
– Herodes o pôs na prisão, em Maqueronte. Os mais fiéis entre os seus
discípulos tentaram libertá-lo. Mas não é possível. Nós estamos voltando de
lá. 47.3Deixa-nos ir Contigo, Mestre. Mostra-nos onde é que moras.
– Vinde. Mas sabeis o que estais pedindo? Quem me segue deverá
deixar tudo: sua casa, seus parentes, seu modo de pensar, e até a vida. Eu
vos farei meus discípulos e meus amigos, se quiserdes. Mas Eu não tenho
riquezas, nem privilégios. Sou pobre, e o serei ainda mais, até o ponto de
não ter nem onde encostar a cabeça, serei perseguido pelos lobos mais do
que uma ovelha perdida. Minha doutrina é ainda mais severa do que a de
João, porque proíbe também o ressentimento. Ela dirige-se não tanto ao
exterior, quanto ao espírito. Tereis que renascer, se quereis ser meus.
Quereis fazer assim?
– Sim, Mestre, só Tu tens palavras que nos dão luz. Elas descem e, onde
havia trevas e desolação, pois estávamos sem guia, derramam a claridade do
sol.
– Vinde, então, e vamos. Eu vos irei ensinando pelo caminho.

Jesus diz:
47.4

– O grupo dos que me haviam encontrado era numeroso. Mas só um me


reconheceu. Aquele que tinha a alma, o pensamento e a carne limpos de toda
luxúria.
Insisto no valor da pureza. A castidade é sempre fonte de lucidez de
pensamento. A virgindade também purifica, conservando a sensibilidade
intelectiva e afetiva, aperfeiçoando-a, o que só pode ser experimentado, por
quem é virgem.
47.5
Pode-se ser virgem, de muitos modos. De modo forçado,
especialmente as mulheres, quando não foram escolhidas para o casamento.
Assim devia ser também com os homens. Mas não é assim, e isso é mal,
porque de uma juventude precocemente conspurcada pela libidinagem não
poderá sair nada mais do que um chefe de família doente em seus
sentimentos e, muitas vezes, também em seu corpo.
Há uma virgindade desejada, ou seja, aquela dos que se consagram ao
Senhor, num impulso de vontade. Bela virgindade! Sacrifício agradável a
Deus! Mas nem todos sabem permanecer naquele candor do lírio que está
firme em seu pedúnculo, estendido ao céu, sem conhecer a lama do chão,
aberto somente ao beijo do sol de Deus e de seus orvalhos.
Muitos permanecem fiéis, materialmente, ao voto feito. Mas infiéis em
seu pensamento, que lamenta e deseja aquilo que eles sacrificaram. Estes são
virgens só pela metade. Se a carne está intacta, o coração não está. Seu
coração fermenta, ferve, exala fumaças de uma sensualidade, tanto mais
refinada e reprovada, quanto mais ela foi sendo criada por um pensamento
que acaricia, alimenta e aumenta continuamente imagens de satisfações
ilícitas, até para quem está livre, e quanto mais para quem está consagrado
por votos a Deus.
Aparece então, a hipocrisia do voto. Em aparência, ele existe, mas de
fato, em substância, não. E, em verdade, eu vos digo que, entre quem vem a
Mim com o seu lírio despedaçado pela imposição de um tirano e quem vem
com o seu lírio não materialmente despedaçado, mas coberto pela baba, pelo
transbordamento de uma sensualidade acariciada e cultivada, para poder
encher com ela as horas de solidão, Eu chamo de “virgem” ao primeiro, e de
“não virgem” ao segundo. Ao primeiro, dou coroa de virgem e uma dupla
coroa de martírio: uma, pela carne ferida; e outra, pelo coração ferido por
uma mutilação não desejada.
47.6
O valor da pureza é tal, que, como viste, satanás se preocupa, em
primeiro lugar, em convencer-me a que me entregue à impureza. Ele sabe
bem que a culpa da sensualidade desmantela a alma e a torna presa fácil das
outras culpas. Todo o trabalho de satanás se concentrou neste ponto capital,
para me vencer.
O pão, a fome, são as formas materiais que simbolizam o apetite, os
apetites de que satanás procura tirar proveito para os seus fins. Bem outro
era o alimento que ele me oferecia, para fazer-me cair como um bêbado aos
seus pés! Depois, teria vindo a gula, o dinheiro, o poder, a idolatria, a
blasfêmia, a abjuração de Lei divina. Mas o primeiro passo para conquistar-
me era esse. O mesmo que usou para ferir Adão[83].
47.7
O mundo escarnece dos puros. Os culpados de lascívia os golpeiam.
João Batista é uma vítima da luxúria de dois obscenos. Mas, se o mundo tem
ainda um pouco de luz, isto se deve aos puros que ainda há no mundo. São
esses os servos de Deus, que sabem compreender a Deus e repetir as
palavras Dele. Eu disse[84]: “Felizes os puros de coração, porque verão a
Deus.” Mesmo desde esta terra. Eles, cujo pensamento não é perturbado pela
fumaça da sensualidade, é que “vêem” a Deus e O ouvem, O seguem, e O
indicam aos outros.
47.8
João, filho de Zebedeu, é um puro. É o mais Puro dos meus discípulos.
Que alma de flor, em um corpo de anjo! Ele me chama com as palavras do
seu primeiro mestre, e me pede que lhe dê paz. Mas a paz, ele a tem em si
mesmo, pela sua vida pura. Eu o amei por essa sua pureza, à qual eu confiei
os ensinamentos, os segredos e a Criatura mais querida que Eu tinha.
Ele foi o meu primeiro discípulo, que me teve amor desde o primeiro
instante em que me viu. Sua alma estava intimamente unida com a minha,
desde o dia em que ele me tinha visto passar ao longo do Jordão e me tinha
visto apontado pelo Batista. Mesmo que ele não me tivesse encontrado
depois, na minha volta do deserto, me teria procurado tanto, até conseguir
encontrar-me, porque quem é puro, é humilde e desejoso de instruir-se na
ciência de Deus, e vai, como a água que vai ao mar, àqueles que ele
reconhece serem mestres na doutrina celeste”.

47.9
Jesus ainda diz:
– Eu não quis que tu falasses sobre a tentação de sensualidade do teu
Jesus. Mesmo que a tua voz interior te fez entender o motivo de satanás para
atrair-me à sensualidade, Eu preferi falar disso. E não pensais além. Era
necessário falar. Agora vai avante. Deixa a flor de satanás sobre suas areias.
Vem atrás de Jesus, como João. Caminharás entre os espinhos, mas
encontrarás, como rosas, as gotas de sangue de Quem as derramou por ti,
para vencer a carne, também em ti.
47.10
Antecipo uma observação. Diz[85] João em seu Evangelho, falando do
encontro Comigo: “E, no dia seguinte”. Parece com isso que o Batista me
tivesse mostrado no dia seguinte ao batismo, e que, logo, João e Tiago me
seguiram, mas isso contrasta tudo o que disseram os outros evangelistas a
respeito dos quarenta dias passados no deserto. Mas deveis ler assim:
“(Tendo já acontecido a prisão de João), um dia depois os dois discípulos
de João Batista aos quais ele me havia mostrado, dizendo: ‘Eis o Cordeiro
de Deus’, ao me verem de novo, chamaram e me seguiram.” Depois da minha
volta do deserto.
Juntos voltamos às margens do lago da Galiléia, onde Eu tinha ido
refugiar-me, para, de lá, iniciar a minha evangelização. Os dois falaram de
Mim aos outros pescadores, depois de terem estado Comigo por todo o
caminho, e por um dia inteiro na casa hospitaleira de um amigo da parentela
de minha casa. Mas a iniciativa foi de João, cuja alma a vontade de
penitência e a sua pureza tinha tornado tão limpa, que era uma verdadeira
obra-prima de limpidez, sobre a qual a Verdade se refletia nitidamente,
dando-lhe também a santa audácia dos puros e dos generosos, que não temem
andarem avante, onde está Deus, onde está a verdade, a doutrina, o caminho
de Deus.
Quanto Eu o amei por essa sua simples e heróica característica!”.
[83] para ferir Adão. O homem-filho de Deus — assim anota M aria Valtorta numa cóp ia dactilografada — tinha já sido ferido
pela soberba da desobediência. Sobrava o homem animal, e foi ferido pela luxúria porque, perdida a Graça, pecou como
homem natural. Jesus era Deus e Homem. Intocável como Deus. Por isso, apenas como “Homem” podia ser tentado por
Satanás.
[84] Eu disse, em: Mateus 5,8 (170.5.11).
[85] Diz, em: João 1,35.
48. João e Tiago falam a Pedro
sobre o encontro com o Messias.
12 de outubro de 1944.
48.1
Sobre o Mar da Galiléia vem raiando uma belíssima aurora. O céu e a
água têm brilhos rosados, pouco diferentes daqueles que esplendem
suavemente por entre os muros dos pequenos jardins do povoado lacustre,
jardins dos quais se elevam e se deixam ver, quase lançando-se sobre as
vielas as frondes despenteadas e vaporosas das árvores frutíferas.
O povoado começa a despertar, com uma ou outra mulher que vai à fonte
buscar água, ou a algum tanque lavar roupa e com os pescadores que
descarregam as cestas de peixe, fazendo negócio com os mercadores em alta
voz, que vieram de outros lugares, ou levam peixes para casa. Eu disse um
povoado, mas não é tão pequeno. É um tanto humilde, ao menos do lado que
o vejo, embora vasto e extenso na parte mais longa do lago.
48.2
João aparece no fim de uma pequena estrada, indo apressado em
direção ao lago. Tiago o segue, mas muito mais calmo. João olha os barcos
que já chegaram à margem, mas não vê aquele que está procurando. Agora
ele acaba de enxergá-lo, mas está a algumas centenas de metros da beira,
atento às manobras para atracar, e grita bem alto, levando as mãos à boca
com um longo: “Oh-é!”, que deve ser um sinal combinado entre eles. E
depois, quando percebe que o ouviram, agita os braços em gestos largos, que
indicam: “Vinde, vinde!”
Os homens do barco, pensando quem sabe o que, agarram os remos, e o
barco vai mais veloz do que só com a vela, que eles amainaram, talvez para
conseguirem ir mais depressa. Quando estão a uns dez metros da margem,
João não espera mais. Tira o manto e a veste longa, e os lança sobre a praia,
tira as sandálias, levanta a túnica, tendo-a segura com uma mão quase à
virilha, e entrando na água, vai ao encontro dos que estão chegando.
– Por que vós dois não viestes? –pergunta André. Pedro, amuado, não
diz nada.
– E tu, por que não vieste comigo e o Tiago? –responde João a André.
– Eu fui pescar. Não tenho tempo para perder. Tu desapareceste com
aquele homem…
– Eu te havia feito sinal para que fosses. 48.3É Ele mesmo. Se ouvisses
que palavras!… Ficamos com Ele o dia todo e até tarde da noite. E agora,
viemos dizer-vos: “Vinde.”
– É Ele mesmo? Estais certos disso? Nós só o vimos naquele dia em
que o Batista no-lo mostrou.
– É Ele, pois, não o negou.
– Qualquer um pode dizer o que lhe interessa para impor-se aos
crédulos. Já não é a primeira vez… –resmunga Pedro, descontente.
– Oh! Simão. Não digas assim. Ele é o Messias! Ele sabe tudo! Ele te
está ouvindo!
João ficou magoado e consternado com as palavras de Simão Pedro.
– Ora essa! O Messias! E se mostra justamente a ti, a Tiago e André!
Três pobres ignorantes! Vai querer coisas bem diferentes o Messias! Ele me
está ouvindo! Mas, meu pobre rapaz, os primeiros dias do sol da primavera
te fizeram mal. Vamos, vem trabalhar. Será melhor. Deixa de histórias.
– Ele é o Messias, eu te asseguro. João Batista dizia coisas santas, mas
este fala como Deus. Quem não for o Cristo, não pode dizer semelhantes
palavras.
48.4
– Simão, eu não sou um jovenzinho. Eu já tenho muitos anos, sou
calmo e sensato. Tu sabes disso. Eu falei pouco, mas ouvi muito nestas horas
em que estivemos com o Cordeiro de Deus, e eu te digo que verdadeiramente
ele não pode ser senão o Messias. Por que não acreditar? Por que não querer
crer? Tu o podes fazer, porque não o ouviste. Mas eu creio. Somos pobres e
ignorantes? Ele bem disse que veio para anunciar a Boa Nova do Reino de
Deus, do Reino de Paz, aos pobres, aos humildes, aos pequenos, mais do que
aos grandes. Ele disse: “Os grandes já têm as suas delícias. Não são delícias
invejáveis, se comparadas àquelas que Eu venho trazer. Os grandes já têm
seu modo de chegar a compreender, somente pela força do estudo. Mas Eu
venho aos ‘pequenos’ de Israel e do mundo, àqueles que choram e esperam,
àqueles que procuram a Luz e têm fome do verdadeiro Maná; não é pelos
doutos que a luz e os alimentos são doados, pois o que eles dão é somente
opressão, escuridão, prisão e desprezo. Eu chamo os ‘pequenos.’ Eu vim
para virar o mundo de cabeça para baixo. Porque Eu abaixarei o que agora
está no alto, e elevarei o que agora está sendo desprezado. Quem quer
verdade e paz, quem quer vida eterna, venha a Mim. Quem ama a Luz, venha.
Eu sou a Luz do mundo.” Não foi assim que Ele disse, João?
Tiago falou de modo calmo, mas comovido.
– Sim. E Ele disse ainda: “O mundo não me amará. O grande mundo,
porque se corrompeu com vícios e comércios idolátricos. O mundo aliás,
não me quererá. Porque, como filho das Trevas, não ama a Luz. Mas a terra
não é feita só do grande mundo. Nela existem aqueles que, mesmo estando
misturados com todos, do mundo não são. Há alguns que são do mundo,
porque nele foram aprisionados como os peixes pela rede”: ele falou
justamente assim, porque nós estávamos conversando à margem do lago e
Ele apontava as redes que vinham arrastadas com os peixes para a praia.
Disse mais: “Vede. Nenhum daqueles peixes queria cair na rede. Também os
homens, intencionalmente, não iriam querer cair como presas de Mamon.
Nem mesmo os mais malvados porque estes, pela soberba que os cega, não
crêem que não tenham o direito de fazer o que fazem. O verdadeiro pecado
deles é a soberba. Deste pecado nascem todos os outros. Mas aqueles que
não são completamente maus, ainda mais não iriam querer ser de Mamon.
Eles caem por leviandade, por um peso que os arrasta para o fundo, que é a
culpa de Adão. Eu vim para tirar aquela culpa e para dar, na esperança da
hora da Redenção, uma tal força aos que em Mim crerem, que será capaz de
livrá-los do laço que os prende, tornando-os livres para Me seguirem: a Luz
do mundo!”
48.5
– Mas, então, se Ele falou mesmo assim, é preciso irmos para Ele, e
logo.
Pedro, com os seus impulsos tão sinceros, que me agradam tanto, de
repente decidiu, e já vai começando a fazer o que decidiu, apressando-se
para acabar os trabalhos da descarga, pois o barco já chegou à margem, e os
empregados já o puxaram para fora d’água, descarregando também as redes,
as cordas e o velame.
– E tu, André, por que foste tão tolo, para não teres ido com eles?
– Mas, Simão! Tu me censuraste, porque eu não consegui fazer que eles
viessem comigo. A noite inteira ficaste resmungando isso, e agora me
censuras porque eu não fui com eles?!…
– Tens razão… Mas eu não o tinha visto… E tu, sim… Deves ter visto
que Ele não é como nós… Ele deve ter alguma coisa de mais belo do que os
outros!…
– Oh! Sim –diz João–. Ele tem um rosto! Uns olhos! Não é verdade,
Tiago? Uns olhos! E uma voz!… Oh! Que voz! Quando Ele fala, dá a
impressão de que estás no Paraíso.
– Depressa, depressa! Vamos procurá-lo. Vós (fala aos empregados),
levai tudo para Zebedeu, e dizei-lhe que faça o que for preciso. Nós
voltaremos esta noite para a pesca.
Vestem-se todos de novo, e põem-se a caminho. 48.6Mas Pedro, depois de
andar uns metros pára, agarra João por um braço, e lhe pergunta:
– Disseste que Ele sabe tudo e que ouve tudo…
– Sim. Imagina que quando nós, vendo a lua alta, dissemos: “Que é que
estará fazendo o Simão?”, Ele disse: “Ele está lançando a rede e não se
conforma em ter que fazer isso sozinho, porque vós não saístes com o barco
gêmeo, justamente numa noite de tão boa pesca… Ele não sabe que, daqui a
pouco, não pescará senão com outras redes e que os peixes que apanhará
serão outros.”
– Misericórdia divina! É verdade! Então, Ele ouviu também… também o
que eu disse, julgando-O menos do que um mentiroso… Eu já não posso ir
até Ele.
– Oh! Ele é muito bom. Certamente sabe que tu pensaste assim. Ele já o
sabia. Porque, quando nós O deixamos, dizendo que viríamos a ti, Ele disse:
“Ide. Mas não vos deixeis vencer pelas primeiras palavras de escárnio.
Quem quer vir Comigo, deve saber ter a cabeça erguida, diante das
zombarias do mundo e das proibições dos parentes. Porque Eu estou acima
do sangue e da sociedade, e triunfo sobre eles. E quem está Comigo, também
triunfará eternamente.” E disse também: “Sabeis falar sem medo. Quem vos
ouvir, virá, porque é homem de boa vontade.”
– Ele falou assim? Então, eu vou. 48.7Fala, vai falando Dele, enquanto
vamos indo. Onde Ele está?
– Em uma pobre casa. Deve ser de pessoas amigas.
– Mas, Ele é pobre?
– É um operário de Nazaré. Assim Ele disse.
– E de que vive agora, se não está mais trabalhando?
– Não lhe perguntamos. Talvez os parentes O estejam ajudando.
– Melhor seria levarmos peixes, pão, frutas… alguma coisa. Vamos
perguntar a algum rabi, pois Ele é mais do que um rabi, mas de mãos
vazias!… Os nossos rabinos não querem ser assim…
– Mas Ele quer. Não tínhamos mais do que vinte moedas, eu e o Tiago
juntos, e oferecemos a Ele, como é costume fazer com os rabinos. Mas Ele
não as queria. Nós, então, insistimos e Ele disse: “Deus vo-los restitua, nas
bênçãos dos pobres. Vinde Comigo”, e prontamente as distribuiu aos
pobrezinhos, que Ele sabia onde moravam, e a nós, que estávamos
perguntando: “E para Ti, Mestre, não guardas nada?”, Ele respondeu: “A
alegria de fazer a vontade de Deus e de servir à sua glória.” Nós lhe
dissemos também: “Tu nos estás chamando, Mestre. Mas nós somos todos
pobres. Que é que te devemos trazer?” Ele nos respondeu com um sorriso,
que nos fez sentir o gosto do Paraíso: “Um grande tesouro quero de vós.”
Nós Lhe dissemos: “Mas … nada temos?” E Ele respondeu: “É um tesouro
de sete nomes, que até o mais pobre pode ter, mas o rei mais rico não pode
possuir; vós o tendes, e Eu o quero. Ouvi os nomes deste tesouro: caridade,
fé, boa vontade, reta intenção, continência, sinceridade e espírito de
sacrifício. Isto Eu quero de quem me segue, só isto, e vós o tendes. Está
dormindo como uma semente, sob um solo invernal, mas o sol da minha
primavera o fará nascer em setêmplice espiga.” Assim Ele falou.
– Ah! Isto me assegura que é o verdadeiro Rabi, o Messias prometido.
Não é duro com os pobres, não pede dinheiro… Basta isto para chamá-lo o
Santo de Deus. Vamos tranqüilos.
E tudo termina.
49. O encontro com Pedro e André
depois de um discurso na sinagoga.
João de Zebedeu, grande também na humildade.
13 de outubro de 1944.
[…].
49.1
As 14:00 horas vejo isto:
Jesus vem avante por uma estradinha, uma vereda entre dois campos.
Ele está sozinho. João, prossegue em sua direção, por um outro caminho, por
entre os campos, e enfim o alcança, passando por uma abertura entre as
sebes.
João, tanto na visão de ontem, como de hoje, é simplesmente um
jovenzinho. Um rosto rosado e imberbe de quem acaba de chegar à idade
viril e, além disso, é loiro. Por isso não tem sinal nem de bigode, nem de
barba, mas apenas o rosado das faces lisas, os lábios vermelhos com a luz
risonha do seu belo sorriso e do olhar puro, não tanto pela sua cor de
turqueza escura, quanto pela limpidez da alma virgem que transparece neles.
Os cabelos loiro-castanhos, compridos e macios, ondulam, a cada passo
veloz, quase como uma corrida.
Quando está para atravessar a sebe, ele chama:
– Mestre!
Jesus se detém, e se volta com um sorriso.
– Mestre, eu queria muito te ver! Na casa onde estás, me disseram que
tinhas vindo em direção aos campos… mas não sabia onde. Temia não te
ver.
João fala levemente inclinado, em sinal de respeito. Contudo está cheio
de um afeto confiante, em sua atitude e em seu olhar, que, estando com a
cabeça ligeiramente curvada no ombro, eleva Jesus.
– Eu vi que me estavas procurando, e vim ao teu encontro.
– Tu me viste? Onde estavas, Mestre?
– Eu estava lá.
E Jesus aponta as copas de umas árvores afastadas, que, pela cor, diria
que são oliveiras:
– Eu estava lá rezando e pensando no que Eu vou dizer esta tarde na
sinagoga. Mas Eu saí de lá, logo que te vi.
– Mas, como fizeste para me ver, se eu mal posso ver aquele lugar,
escondido como está, atrás daquela curva?
– Ainda assim o estás vendo! Eu vim ao teu encontro, porque te vi. O
que o olho não pode ver, pode o amor.
– Sim, o amor pode. 49.2Então, tu me amas, Mestre?
– E tu me amas, João, filho de Zebedeu?
– Muito, Mestre. Parece-me que sempre te amei. Antes de ter-te
conhecido, antes ainda, a minha alma te procurava, e quando eu te vi, ela me
disse: “Eis Aquele que procuras.” Eu creio que te encontrei, porque a minha
alma te sentiu.
– Tu o dizes, João, e o dizes certo. Eu também vim ao teu encontro,
porque minha alma te sentiu. Por quanto tempo me amarás?
– Para sempre, Mestre. Não quero mais amar a outros, a não ser a Ti.
– Tens pai e mãe, irmãos, irmãs, tens tua vida, e, com a vida, a mulher e
o amor. Como farás para deixar tudo isso por Mim?
– Mestre… não sei… mas me parece, se não for soberba dizer isso, que
a tua predileção tomará para mim o lugar de pai, mãe, irmãos, irmãs, e
também da mulher. De tudo, sim, de tudo estarei saciado, se me amares.
– E se o meu amor te trouxer dores e perseguições?
– Não haverá de ser nada, Mestre, se Tu me amares.
– E no dia em que Eu tivesse que morrer…?
– Não. És ainda jovem, Mestre… Por que morrer?
– Porque o Messias veio para pregar a Lei em sua verdade e para
cumprir a Redenção. A Lei aborrece o mundo, que também não quer
redenção. Por isso persegue os enviados de Deus.
– Oh! Que isto não aconteça! Não digas a quem te ama, este prognóstico
de morte!… Mas, se Tu tiveres que morrer, eu Te amarei ainda. Deixa que eu
te ame.
João tem o olhar suplicante. Mais inclinado que nunca, ele vai
caminhando ao lado de Jesus, parecendo estar mendigando amor.
Jesus pára. Olha para ele, traspassa-o com o olhar de seus olhos
profundos, e depois lhe põe a mão sobre a cabeça inclinada.
– Quero que tu me ames.
– Oh! Mestre!
João está feliz. Ainda que seus olhos estejam brilhando pelas lágrimas,
ele está sorrindo; com sua boca jovem e bem desenhada, pegando a mão
divina, beija-a nas costas e a aperta junto ao coração.
49.3
Depois eles retomam o caminho.
– Disseste que me estavas procurando…
– Sim. Para dizer-te que os meus amigos querem te conhecer… e
também porque… oh! porque eu sentia vontade de estar Contigo de novo!
Fazia poucas horas que eu te havia deixado… mas já não podia mais estar
sem Ti.
– Então, terás sido um bom anunciador do Verbo?
– Tiago também, Mestre, falou de Ti, de maneira… convincente.
– De maneira que até aquele que desconfiava — nem é culpado porque a
prudência era a causa de sua reserva — também se persuadiu. Vamos agora
fazê-lo ficar completamente convicto.
– Ele estava com um pouco de medo…
– Não! Medo de Mim, não! Eu vim para os bons e mais ainda para quem
está no erro. Eu quero salvar. Não condenar. Com os honestos serei todo
misericórdia.
– E com os pecadores?
– Também. Por desonestos Eu entendo aqueles que têm a desonestidade
espiritual e, hipocritamente, se fingem bons, enquanto fazem obras más.
Fazem tais coisas, de tal modo, para o seu próprio proveito e para se
aproveitarem do próximo. Com esses Eu serei severo.
– Oh! Então Simão pode estar seguro. É sincero como nenhum outro.
– Assim me agrada, e quero que sejais todos.
– Simão quer dizer-te muitas coisas.
– Eu o ouvirei, depois que tiver falado na sinagoga. Mandei avisar os
pobres e os doentes, além dos ricos e os sadios. Todos precisam da Boa
Nova.
49.4
O povoado está próximo. Alguns meninos brincam na estrada e um
deles, correndo, vem chocar-se contra as pernas de Jesus e teria caído, se
Ele não o segurasse com presteza. O menino chora mesmo assim, como se se
tivesse se machucado, mas Jesus, tomando-o nos braços, diz:
– Um israelita que chora? Que deveriam fazer os milhares e milhares de
crianças, que se tornaram homens, atravessando o deserto, atrás de Moisés?
Contudo foi mais para eles do que para os outros justamente para estes é que
fez descer o maná tão doce, porque o Altíssimo ama os inocentes e provê o
necessário a estes anjinhos da terra, a estes passarinhos sem asas, como faz
com os pássaros da mata e dos telhados. Gostas de mel? Sim? Pois bem, se
fores bom, comerás de um mel mais doce do que aquele das tuas abelhas.
– Onde? Quando?
– Quando, depois de uma vida de fidelidade a Deus, fores para Ele.
– Eu sei que não irei para lá, enquanto não vier o Messias. Minha mãe
me diz que, por ora, nós de Israel somos todos como Moisés, e morremos,
vendo de longe a Terra Prometida. Ela diz que estamos ali, à espera de
podermos entrar, e que só o Messias nos fará entrar.
– Mas que pequeno israelita esperto! Pois bem, Eu te digo que, quando
morreres, entrarás logo no Paraíso, porque o Messias já terá aberto as portas
do Céu. Mas precisas ser bom.
– Mamãe! Mamãe!
O menino escorrega dos braços de Jesus e corre ao encontro de uma
jovem esposa, que regressa com uma ânfora de cobre.
– Mamãe! O novo Rabi me disse que eu irei logo para o Paraíso, quando
eu morrer, e que vou comer muito mel… mas se eu for bom. Eu vou ser bom!
– Queira Deus! Desculpa, Mestre, se ele te aborreceu. É muito levado.
– A inocência não causa aborrecimento, mulher. Deus te abençoe,
porque és uma mãe que educa os filhos no conhecimento da Lei.
A mulher fica toda vermelha, diante do elogio, e responde:
– A bênção de Deus também para Ti.
E desaparece com o seu pequeno.
49.5
– As crianças Te agradam, Mestre?
– Sim, porque são puras… sinceras… e amorosas.
– Tens sobrinhos, Mestre?
– Eu só tenho minha mãe… Mas nela está a pureza, a sinceridade, o
amor dos pequeninos mais santos, junto à sabedoria, justiça e fortaleza dos
adultos. Eu tenho tudo em minha mãe, João.
– E Tu a deixaste?
– Deus está acima até da mais santa das mães.
– Eu irei conhecê-la?
– Sim. Tu a conhecerás.
– E ela me amará?
– Sim, te amará, porque ela ama a quem ama o seu Jesus.
– Então, não tens irmãos?
– Eu tenho primos, por parte do marido de minha mãe. Mas cada homem
para mim é irmão, e Eu vim para todos. 49.6Eis-nos diante da sinagoga. Eu
entro, e tu virás a Mim depois com os teus amigos.
João sai dali, e Jesus entra em uma sala quadrada, onde há velas em um
triângulo, como de costume, e estantes com rolos de pergaminho. A multidão
já está ali, em expectativa e em oração. Também Jesus está rezando. O povo
está cochichando e comentando atrás Dele, que se curva para saudar o chefe
da sinagoga, pedindo depois que lhe dêem um rolo.
Jesus começa a leitura. Diz:
– Estas coisas o Espírito Santo me faz ler para vós. No capítulo sétimo
do livro de Jeremias se lê[86]: “Assim diz o Senhor dos exércitos, o Deus de
Israel: ‘Corrigi os vossos costumes e os vossos afetos e, então, habitarei
convosco neste lugar. Não vos fiqueis iludindo com as palavras vãs por vós
repetidas: aqui está o Templo do Senhor, o Templo do Senhor, o Templo do
Senhor. Porque, se melhorardes os vossos costumes e os vossos afetos, se
fizerdes justiça entre o homem e o seu próximo, se não oprimirdes o
estrangeiro, o órfão e a viúva, se não derramardes neste lugar sangue
inocente, se não fordes atrás dos estrangeiros, para a vossa desventura, então
Eu habitarei convosco neste lugar, na terra que Eu dei a vossos pais, por
séculos e séculos’.”
Ouvi, ó vós de Israel. Eis que Eu venho esclarecer-vos sobre as
palavras de luz que a vossa alma ofuscada não sabe mais ver e compreender.
Ouvi. Muito pranto desce sobre a terra do povo de Deus, e choram os velhos
que se lembram das glórias antigas, choram os adultos curvados pelo jugo,
choram os jovens, que não têm um futuro de glória. Mas a glória da terra
nada é, se comparada a uma glória, que nenhum opressor, que não seja
Mamon ou a má vontade, vos podem arrebatar.
Por que chorais? Como é que o Altíssimo, que sempre foi bom para com
o seu povo, agora virou o olhar para o outro lado, negando aos seus filhos de
verem o seu Rosto? Não será Ele mais o Deus que abriu o mar e por ele fez
passar Israel, conduzindo-o e nutrindo-o pelas areias, defendendo-o contra
os inimigos, para desviar-se do caminho do Céu, assim como Ele deu a
nuvem aos corpos, deu a Lei para as almas? Não será mais Ele o Deus que
adoçou as águas e fez cair o maná para os que estavam extenuados? Não é
Ele o Deus que vos quis estabelecer nesta terra, firmando convosco uma
aliança de Pai para filhos? Então, por que é que agora o estrangeiro vos
feriu?
Muitos de vós murmuram: “Aqui está o Templo!” Não basta termos o
Templo, indo rezar a Deus nele. O primeiro templo, está no coração de cada
homem, onde a oração santa deve ser feita. Mas, ela não pode ser santa, se
antes o coração não se emenda, como também os costumes, os afetos, as
normas de justiça para com os pobres, para com os servos, para com os
parentes, para com Deus.
Agora, olhai. Eu vejo ricos, de coração duro, que fazem ricas ofertas no
Templo, mas que não sabem dizer ao pobre: “Irmão, eis aqui um pão e um
dinheiro. Aceita-o. De coração para coração, e que a minha ajuda não te
humilhe, como também para mim não cause soberba.” Eis, Eu estou vendo
pessoas rezando, lamentando-se com Deus, porque não as ouve prontamente,
mas que depois, com um coração de pedra, respondem “Não!” ao
necessitado, que às vezes com seu sangue lhes pede: “Escutai-me.” Aí está,
Eu vejo que vós chorais, porque a vossa bolsa foi espremida pelo
dominador. Mas depois vós espremeis o sangue daquele que odiais, e ao
esvaziar um corpo do seu sangue e de sua vida, vós não tendes horror.
Ó, vós de Israel! O tempo da Redenção chegou. Mas preparai seus
caminhos em vós com a boa vontade. Sede honestos, bons, amai-vos uns aos
outros. Ricos, não desprezeis; mercadores, não defraudeis; pobres, não
invejeis. Sois todos de um sangue e de um Deus. Sois todos chamados a um
mesmo destino. Não fecheis para vós, com os vossos pecados, o Céu que o
Messias vos abrir. Tereis errado até aqui? Agora, não erreis mais. Que cesse
todo erro.
A Lei que volta aos dez mandamentos iniciais é simples, boa, fácil, mas
devem estar mergulhados na luz do amor. Vinde. Eu vos mostrarei quais são
os amores: amor, amor, amor. Amor de Deus por vós e de vós por Deus.
Amor para com o próximo. Sempre amor, porque Deus é Amor e aqueles que
sabem viver o amor são filhos do Pai. Eu estou aqui para todos e para dar a
luz de Deus a todos. Eis aqui a Palavra do Pai, que se faz alimento em vós.
Vinde, provai, mudai o sangue do espírito com este alimento. Que todo
veneno caia. Que toda concupiscência morra. Uma glória nova vos é
oferecida, aquela eterna, e a ela virão os que fizerem da Lei de Deus assunto
de um verdadeiro estudo para os seus corações. Começai pelo amor. Não
existe coisa maior. Mas, quando souberdes amar, já sabereis tudo, e Deus
vos amará, e o amor de Deus significa ajuda contra toda tentação.
A bênção de Deus esteja sobre aquele que volta para Ele um coração
cheio de boa vontade.
Jesus se cala. O povo cochicha. A reunião se dissolve depois dos hinos
cantados, muitos salmodiando-os.
49.7
Jesus sai para a pequena praça. João, Tiago, Pedro e André estão à
porta.
– A paz esteja convosco –diz Jesus, acrescentando–: O homem, para ser
justo, precisa não julgar sem antes conhecer. Mas é também honesto em
reconhecer a sua culpa. Simão, quiseste me ver? Eis-me aqui. E tu, André,
por que não vieste antes?
Os dois irmãos se olham, embaraçados. André murmura:
– Eu não ousava…
Pedro, vermelho, não diz nada. Mas, quando ouve Jesus dizer ao irmão:
“Faríeis mal em vir? Só o mal não se deve ousar fazer” ele intervém sincero:
– Fui eu. Ele queria trazer-me logo a Ti. Mas eu… disse… sim. Eu
disse: “Não creio” e não quis vir. Oh! Agora estou melhor!…
Jesus sorri. Depois diz:
– E, pela tua sinceridade, Eu te digo que te amo.
– Mas eu… eu não sou bom… não sou capaz de fazer aquilo que
disseste na sinagoga. Eu sou iracundo, e, se alguém me ofende… Eu sou
cobiçoso e gosto de ter dinheiro… No meu mercado de peixe… não é
sempre… nem sempre eu tenho ficado sem cometer alguma fraude. Sou
ignorante. Tenho pouco tempo para seguir-te, para ter a luz. Como farei? Eu
gostaria de me tornar como Tu dizes… mas…
– Não é difícil, Simão. Sabes um pouco a Escritura? Sim? Pois bem,
pensa no profeta Miquéias. Deus quer de ti aquilo que diz[87] Miquéias. Não
te pede que arranques o coração, nem que sacrifiques os afetos mais santos.
Por enquanto, não te pede isto. Um dia, sem que Deus te peça, darás até a ti
mesmo a Deus. Mas Ele espera que o sol e o orvalho façam de ti, que és
ainda um fio de erva, uma palmeira forte e gloriosa. Por enquanto, Ele te
pede isto: praticar a justiça, amar a misericórdia, e tomar todo o cuidado em
seguir o teu Deus. Esforça-te para fazer isso, o passado de Simão será
cancelado e tu te tornarás um homem novo, o amigo de Deus e do seu Cristo.
Não serás mais Simão. Serás Cefas. Pedra firme sobre a qual me apóio.
– Isto me agrada. Isto eu entendo. A Lei é assim… é assim… eu não sei
mais cumpri-la como fazem os rabinos!… Mas, isto que Tu dizes, sim.
Parece-me que vou conseguir. E Tu me ajudarás. Moras aqui? Eu conheço o
dono da casa.
– Eu estou aqui. Mas agora irei para Jerusalém, e depois pregarei pela
Palestina. Vim para isso. Mas virei aqui freqüentemente.
– Eu virei ouvir-te ainda. Quero ser teu discípulo. Um pouco de luz
entrará na minha cabeça.
– Sobretudo no coração, Simão. No coração. E tu, André, não dizes
nada?
– Eu ouço, Mestre.
– Meu irmão é tímido.
– Mas se tornará um leão. A noite está chegando. Deus vos abençoe e
vos dê uma boa pesca. Ide.
– Paz a Ti.
E vão embora.
49.8
Mal saíram, Pedro diz:
– O que terá Ele querido dizer antes, quando falou[88] que eu hei de
pescar com outras redes e que farei outras pescas?
– Por que não lhe perguntaste? Querias dizer tantas coisas e, afinal,
quase não falaste.
– Eu… estava com vergonha. Ele é tão diferente de todos os outros
rabinos!
– Agora vai para Jerusalém… –João diz isso com muita saudade e
desejo–. Eu queria perguntar-lhe se me deixava ir com Ele, mas… não tive
coragem…
– Vai dizer-lhe isso, rapaz –diz Pedro–. Nós o deixamos assim… sem
uma palavra de amor… Que pelo menos Ele saiba que nós o admiramos. Vai,
vai, que eu falo com teu pai.
– Posso ir, Tiago?
– Vai.
João vai e volta correndo… e jubiloso.
– Eu disse a Ele: “Queres-me Contigo em Jerusalém?” Ele me
respondeu: “Vem, amigo!” Amigo, Ele me disse! Amanhã a esta hora virei
para cá. Ah! Em Jerusalém com Ele!…
… A visão termina.

Como motivo para esta visão, disse-me Jesus esta manhã (14 de
49.9

outubro):
– Quero que tu e todos observeis o comportamento de João. É um lado
seu que sempre passa desapercebido. Vós o admirais porque ele é puro,
amoroso, fiel. Mas não notais que foi grande também sua humildade. Ele,
artífice da vinda de Pedro a Mim, modestamente se cala neste particular.
O apóstolo de Pedro e, por isto, o primeiro dos meus apóstolos, foi
João. O primeiro a reconhecer-me, o primeiro a dirigir-me a palavra, o
primeiro a seguir-me, o primeiro a pregar sobre Mim. No entanto, estais
vendo o que ele diz? Diz[89] assim: “André, irmão de Simão Pedro, era um
dos dois, que tinham ouvido as palavras de João, e tinham seguido a Jesus. O
primeiro, com quem se encontrou foi com o seu irmão, Simão, ao qual disse:
‘Encontramos o Messias’, e o levou a Jesus.”
Justo, além de bom, ele sabe que André se angustia por ter um caráter
fechado e tímido, que gostaria de fazer muitas coisas mas não consegue, e
João quer que o reconhecimento da sua boa vontade chegue a ele, na
memória dos pósteros. João quer que André apareça como o primeiro
apóstolo de Cristo junto a Simão, perto do irmão, não obstante a sua timidez
e acanhamento lhe terem dado alguma derrota em seu apostolado.
49.10
Quem, entre aqueles que fazem alguma coisa por Mim, sabem imitar
João, sem se autoproclamarem apóstolos insuperáveis, sem pensar que o seu
êxito provém de um complexo de coisas, não somente santidade, mas
também audácia humana, sorte e, ocasionalmente, encontram-se com outros
menos audazes e felizardos, embora talvez mais santos?
Quando vós vos saís bem no que fazeis de bom, não vos glorieis, como
se o mérito fosse todo vosso. Dai louvor a Deus, Senhor dos operários
apostólicos, tende os olhos limpos e o coração sincero para ver e para dar a
cada um o aplauso que lhe cabe. Olhos limpos para discernir os apóstolos
que cumprem o holocausto, e que são as primeiras e verdadeiras alavancas
no trabalho dos outros. Só Deus vê estes que, tímidos, parecem nada fazer,
mas, ao contrário, são os raptores do fogo do céu, que ataca os audazes. Um
coração sincero para saber dizer: “Eu trabalho. Mas este ama mais do que
eu, prega melhor do que eu, se imola, como eu não sei fazer, e como Jesus
disse[90]: ‘… dentro do próprio quarto, com a porta fechada para rezar em
segredo’. Eu, que vejo a sua humilde e santa virtude, quero torná-la
conhecida, e dizer: ‘Eu sou instrumento ativo; este é força que me põe em
movimento, porque, ligado a Deus como ele, que é para mim canal de força
celeste’.”
A bênção do Pai, que desce para recompensar o humilde, que em
silêncio se imola para dar força aos apóstolos, descerá também sobre o
apóstolo que sinceramente reconhece a sobrenatural e silenciosa ajuda que
lhe vem do humilde, e o seu mérito, que a superficialidade dos homens não
nota.
Aprendei todos.
49.11
É o meu predileto? Sim. Mas não tem também esta semelhança
Comigo? Puro, amoroso, obediente, mas também humilde. Eu me espelhava
nele, via nele as minhas virtudes. Eu o amava por isso, como um segundo Eu.
Via sobre ele o olhar do Pai que o reconhecia como um pequeno Cristo. E
minha mãe me dizia: “Nele sinto ter um segundo filho. Parece-me estar
vendo a Ti, reproduzido em um homem.”
Oh! a cheia de sabedoria como te conheceu, ó meu dileto! Os céus azuis
de vossos corações de pureza se fundiram em um único velário para me dar
proteção de amor, e tornarem-se assim um só amor, antes ainda que Eu desse
minha mãe a João, e João à minha mãe. Eles se amaram, porque se
reconheceram semelhantes: filhos e irmãos do Pai e do Filho.
[86] se lê, em: Jeremias 7,3-7.
[87] quer de ti aquilo que diz, em: Miqueias 6,8.
[88] quando falou, o que João lhe referiu em 48.6.
[89] Diz, em: João 1,40-42.
[90] disse, em: Mateus 6,6 (172.5/6).
50. Em Betsaida na casa de Pedro.
O encontro com Filipe e Natanael.
15 de outubro de 1944.
[…].
50.1
Mais tarde (às 9:30 horas) preciso descrever isto.
João bate à porta da casa onde Jesus está hospedado. Aparece uma
mulher, que ao vê-lo, vai chamar Jesus.
Saúdam-se com a saudação da paz. E depois:
– Vieste sem demora, João –diz Jesus.
– Eu vim para dizer-te que Simão Pedro te pede que passes por
Betsaida. Ele falou de Ti a muitos. Esta noite não fomos pescar. Ficamos
rezando, como sabemos, e renunciamos ao lucro porque… o sábado ainda
não havia terminado. Esta manhã estivemos andando pelas ruas, falando de
Ti. Há pessoas que gostariam de te ouvir. Irás então, Mestre?
– Vou. Mesmo se Eu deva ir a Nazaré, antes de Jerusalém.
– Pedro te levará de Betsaida a Tiberíades, com seu barco. Assim irás
mais depressa.
–Então, vamos.
Jesus pega o manto e o alforje. Mas João lhe toma este último. Lá se vão
os dois, depois de terem saudado a dona da casa.
50.2
A visão me mostra a saída do povoado e o começo da viagem para
Betsaida. Mas não ouço discursos, ao contrário, a visão tem uma
interrupção, mas continua, na entrada de Betsaida. Compreendo que é essa a
cidade, porque vejo Pedro, André e Tiago, junto com algumas mulheres que
estão esperando Jesus na entrada do povoado.
– A paz esteja convosco. Eis-me aqui.
– Obrigado, Mestre, por nós e pelos que Te estão esperando. Hoje não é
sábado, mas, dirás tuas palavras aos que estão esperando para Te ouvir?
– Sim, Pedro. Eu o farei. Na tua casa.
Pedro está exultante:
– Então, vem. Esta é minha mulher, esta é a mãe do João, e estas são as
amigas delas. Mas há outros também à tua espera: são parentes e amigos
nossos.
– Avisa-os que partirei de tarde, mas que antes falarei a eles.
Deixei de dizer que, tendo eles partido de Cafarnaum ao pôr-do-sol, os
vi chegar a Betsaida pela manhã.
– Mestre, eu Te peço. Fica uma noite em minha casa. O caminho para
Jerusalém é longo, mesmo que eu o encurte para Ti, com o barco até
Tiberíades. Minha casa é pobre, mas honesta e amiga. Fica conosco esta
noite.
Jesus olha para Pedro e para os outros, que estão todos esperando a
resposta. Jesus os olha perscrutador. Depois, sorri e diz:
– Sim.
Nova alegria para Pedro.
Muitas pessoas estão olhando das portas, fazendo sinais com os olhos.
Um homem chama Tiago pelo nome, fala-lhe baixo, indicando Jesus. Tiago
anui, e o homem vai conversar com outros, que ficaram esperando numa
encruzilhada.
Entram na casa de Pedro. Uma cozinha grande e enfumaçada. Em um
canto há redes, cordas e cestas para a pesca. No meio, a lareira larga e baixa
que, por enquanto, está apagada. Das duas portas opostas se vê a rua e o
pequeno pomar com uma figueira e uma videira. Do outro lado da rua, vê-se
o cérulo das ondas do lago. Além do pomar, está a parede escura de outra
casa.
– Ofereço a Ti o que tenho, Mestre, e como sei…
– Melhor e mais não poderias, porque me ofereces com amor.
Dão a Jesus água para se refrescar e depois, pão e azeitonas. Jesus
prova uns poucos bocados, mais para mostrar que aceita, depois recusa,
agradecendo.
Do outro lado do pomar e da rua alguns meninos estão observando com
curiosidade. Mas não sei se são filhos de Pedro. Só sei que, de vez em
quando, ele lhes dá uns olhares ameaçadores, para barrar os pequenos
invasores. Jesus sorri, e diz:
– Deixa-os à vontade.
– Mestre, queres descansar? Ali é o meu quarto, aquele é o de André.
Escolhe. Não faremos barulho, enquanto descansas.
– Por acaso, não tens um terraço?
– Sim. A videira faz um pouco de sombra, mesmo que esteja ainda quase
sem folhas.
– Leva-me, então, ao terraço. Prefiro descansar lá em cima. Lá, pensarei
e rezarei.
– Como quiseres. Vem.
Do pequeno pomar, uma escadinha sobe para o teto, que é um terraço
limitado por um baixo muro. Aqui também há redes e cordas. Mas quanta luz
do céu e quanto azul do lago!
Jesus se assenta em um banco, com as costas apoiadas ao muro. Pedro
lida com uma vela, que estende perto da videira para fazer uma proteção
contra o sol. Há brisa e silêncio. Jesus está visivelmente gostando.
– Eu já me vou, Mestre.
– Vai. Tu e João, ide dizer que, ao pôr-do-sol, falarei aqui.
Jesus fica só e faz uma longa oração. Exceto dois casais de pombos, que
vão e vêm dos ninhos, e um gorjeio de pássaros, não há barulho nem pessoas
em torno de Jesus que reza. As horas passam calmas e serenas.
50.3
Depois, Jesus se levanta, dá uns passos pelo terraço, olha o lago, sorri
para uns meninos que estão brincando na rua e que lhe sorriem, olha a rua, na
direção da pracinha, que fica a uns cem metros da casa. Depois desce. Vai
até a cozinha:
– Mulher, vou passear à beira do lago.
Sai, e de fato vai para a beira do lago, junto dos meninos. E lhes
pergunta:
– O que estais fazendo?
– Nós queríamos brincar de guerra. Mas ele não quer e, então, vamos
brincar de pesca.
O “ele” que não quer é um homenzinho de corpo delgado, mas com um
rosto que revela grande perspicácia. Talvez ele perceba que, delgado como
é, ao fazer “a guerra”, poderia sair perdendo, e por isso, defende a paz.
Jesus aproveita o assunto para falar aos meninos:
– Ele tem razão. A guerra é um castigo de Deus para a punição dos
homens, e sinal de que o homem não é mais verdadeiro filho de Deus.
Quando o Altíssimo criou o mundo, fez todas as coisas: o sol, o mar, as
estrelas, os rios, as plantas, os animais, mas não fez as armas. Criou o
homem, e lhe deu olhos para que tivesse olhares de amor, boca para dizer
palavras de amor, ouvido para ouvi-las, mãos para dar socorro e carícias,
pés para correrem velozes até o irmão necessitado, e coração capaz de amar.
Deu ao homem a inteligência, a palavra, os afetos, os gostos. Mas não deu o
ódio. Por que? Porque o homem, criatura de Deus, devia ser amor, como
Deus é Amor. Se o homem tivesse continuado a ser criatura de Deus, teria
permanecido no amor, e a família humana não teria conhecido nem guerra
nem morte.
– Mas ele não quer brincar de guerra, porque perde sempre (eu já tinha
adivinhado isso).
Jesus sorri, e diz:
– Não é preciso não querer aquilo que nos prejudica, só porque nos
prejudica. Mas é preciso não querer uma coisa, quando ela prejudica a
todos. Se um, diz: “Eu não quero isto, porque vou perder”, ele é egoísta. Ao
contrário, o bom filho de Deus diz: “Irmãos, eu sei que vou ganhar, mas eu
vos digo: não vamos fazer isso, porque vós teríeis prejuízo.” Oh! Como esse
compreendeu bem o mandamento principal! Quem sabe me dizer qual é?
Em coro, as onze bocas dizem:
– “Amarás o teu Deus com todo o teu ser e ao teu próximo como a ti
mesmo.”
– Oh! Sois uns meninos muito inteligentes! 50.4Ides todos à escola?
– Sim.
– Quem é o mais inteligente?
– Ele.
É o magrinho, que não quer brincar de guerra.
– Como te chamas?
– Joel.
– É um grande nome! Ele diz[91]: “… o fraco diga: ‘sou forte’.” Mas
forte no quê? Na lei do verdadeiro Deus, para estar entre aqueles que Ele
vai julgar como santos seus, no vale da decisão final. Mas esse juízo já está
perto. Não no vale da decisão, mas no monte da Redenção. Lá, entre o sol e
a lua, escurecidos de horror, e as estrelas tremendo num pranto de piedade,
serão julgados e separados os filhos da Luz, dos filhos das Trevas. Toda
Israel saberá que o seu Deus veio. Felizes aqueles que o tiverem
reconhecido. A eles mel, leite e águas claras lhes descerão aos corações, e
os espinhos se tornarão rosas eternas. Quem de vós quer estar entre aqueles
que vão ser julgados santos de Deus?
– Eu! Eu! Eu!
– Amareis, então, o Messias?
– Sim! Sim! A Ti! A Ti! Nós Te amamos! Nós sabemos quem és! Simão
e Tiago nos disseram, e nossas mães também. Leva-nos Contigo!
– Na verdade, Eu vos levarei, se fordes bons. Nada mais de palavras
feias, nem atitudes prepotentes, nem brigas, ou respostas más aos pais.
Oração, estudo, trabalho, obediência. Eu vos amarei e virei estar convosco.
Os meninos estão todos em círculo em volta de Jesus. Parece uma corola
de cores matizadas, apertada ao redor de um longo pistilo azul escuro.
50.5
Um homem já maduro aproximou-se curioso. Jesus se vira para
acariciar um menino, que lhe está puxando a veste, e o vê. Fita-o
intensamente. O homem o saúda, enrubescendo, mas não diz nada.
– Vem, segue-me!
– Sim, Mestre.
Jesus abençoa os meninos e, ao lado de Filipe (chama-o pelo nome),
volta para casa. Sentam-se no pequeno pomar.
– Queres ser meu discípulo?
– Quero… mas não ouso ter esperança de o ser.
– Eu te chamei.
– Então, eu sou. Eis-me aqui.
– Sabias de Mim?
– André me falou de Ti. Ele me disse: “Aquele por quem tu suspiravas,
chegou.” Porque André sabia que eu vivia suspirando pelo Messias.
– A tua espera não foi decepcionada. Ele está diante de ti.
– Meu Mestre e meu Deus!
– És um israelita de reta intenção. Por isso Eu me manifesto a ti.
50.6
Um outro teu amigo está esperando, também ele um sincero israelita.
Vai dizer-lhe: “Encontramos Jesus de Nazaré, filho de José, da estirpe de
Davi, Aquele de quem falaram Moisés e os Profetas.” Vai!
Jesus ficou sozinho, até que Filipe volta com Natanael-Bartolomeu.
– Eis um verdadeiro israelita, no qual não há fraude. A paz esteja
contigo, Natanael!
– Como me conheces?
– Antes que Filipe fosse chamar-te, Eu te vi debaixo da figueira.
– Mestre, Tu és o Filho de Deus, Tu és o Rei de Israel!
– Porque Eu disse ter-te visto, enquanto pensavas debaixo da figueira, tu
crês? Verás coisas bem maiores do que esta. Em verdade Eu vos digo que os
céus estão abertos, e pela fé, vereis os anjos descerem e subirem sobre o
Filho do homem: Eu que te falo.
– Mestre! Eu não sou digno de tão grande favor!
– Crê em Mim, e serás digno do Céu. Queres crêr?
– Quero, Mestre.
A visão tem aqui uma interrupção e continua sobre o terraço cheio de
50.7

gente; outras pessoas estão no pequeno pomar de Pedro. Jesus está falando.
– Paz aos homens de boa vontade. Paz e bênção às suas casas, às suas
mulheres, aos seus filhos. A graça e a luz de Deus reine nelas e nos corações
que nelas habitam.
Vós desejastes ouvir-me. A Palavra está falando. Fala aos honestos com
alegria, fala aos desonestos com dor, fala aos santos e aos puros com deleite,
fala aos pecadores com piedade. Ela não se nega. Veio para derramar-se
como um rio, que irriga as terras necessitadas de água, às quais leva
refrigério com suas ondas, e alimento com o seu limo.
Vós desejais saber o que se requer para ser discípulos da Palavra de
Deus, do Messias que é o Verbo do Pai, que vem reunir Israel, para ouvir
novamente as palavras do imutável e santo Decálogo, e se santifique com
elas, purificando o homem quanto ele puder por si mesmo, para a hora da
Redenção e do Reino.
Aí está. Falo aos surdos, aos cegos, aos mudos, aos leprosos, aos
paralíticos, aos mortos: “Levantai-vos, ficai curados, ressurgi, caminhai,
abram-se em vós os rios da luz, da palavra, do som, para que possais ver,
ouvir e falar de Mim.” Mais do que aos corpos, Eu falo aos vossos espíritos.
Homens de boa vontade, vinde a Mim sem temor. Se o espírito está ferido,
Eu o curo. Se está doente, Eu o torno são. Se está morto, Eu o ressuscito. Eu
quero só a vossa boa vontade.
Será difícil o que Eu vos estou pedindo? Não. Eu não vos imponho as
centenas e centenas de preceitos dos rabinos. Eu vos digo: Guardai o
Decálogo. A Lei é una e imutável. Muitos séculos se passaram desde a hora
na qual essa lei foi dada bela, pura, fresca como um filho recém-nascido,
como uma rosa que acaba de se abrir sobre a haste. Simples, limpa, suave
para se seguir. No correr dos séculos, as culpas e as tendências a
complicaram com outras leis menores, com pesos e restrições, com
excessivas e penosas cláusulas. Eu vos reporto à Lei, assim como o
Altíssimo a deu. Mas Eu vos peço para o vosso bem, recebei-a com o
coração sincero dos verdadeiros israelitas daquele tempo.
Vós, os humildes, murmurais, mais com os corações do que com os
lábios, que a maior culpa está nos homens importantes. Eu sei. No
Deuteronômio se diz tudo o que deve ser feito: não era necessário nada mais.
Mas não julgueis quem pede aos outros, e não a si. Vós façais tudo o que
Deus diz. E sobretudo, esforçai-vos para serdes perfeitos nos dois
mandamentos principais. Se amardes a Deus com todo o vosso ser, não ireis
cometer pecado, que é uma dor causada a Deus. Quem ama não quer causar
dor. Se amardes o próximo como a vós mesmos, não sereis mais que filhos
respeitosos para com os vossos pais, esposos fiéis aos consortes, homens
honestos nos negócios, sem violências com os inimigos, sem mentira nos
vossos depoimentos, sem inveja de quem possui, sem concupiscência, sem
luxúria para com a mulher do próximo. Não querendo fazer aos outros o que
não quereríeis que fosse feito a vós, não roubaríeis, não mataríeis, não
caluniaríeis, não entraríeis, como os cucos, nos ninhos dos outros.
Mas, ao contrário, Eu vos digo: “Levai à perfeição a obediência aos
dois preceitos de amor: amai também os vossos inimigos.”
Oh! Como vos amará o Altíssimo, que tanto ama o homem, que se tornou
inimigo Dele pela culpa de origem e por seus pecados individuais, a ponto
de enviar-lhe o Redentor, o Cordeiro, que é o seu Filho, Eu que vos falo, Eu,
o Messias prometido, para remir-vos de toda culpa, se souberdes amar como
Ele.
Amai. Que o amor seja para vós escada por onde, tendo-vos tornado
anjos, subireis, como viu Jacó, até o Céu, ouvindo o Pai dizer a todos e a
cada um: “Eu serei o teu protetor por onde andares, e te reconduzirei a esta
cidade: ao Céu, ao Reino Eterno.”
A paz esteja convosco.
50.8
O povo diz palavras de uma aprovação comovida, e se afasta
lentamente. Ficam Pedro, André, Tiago, João, Filipe e Bartolomeu.
– Partes amanhã, Mestre?
– Amanhã, ao alvorecer, se não te desagrada.
– Desagradar-me que Tu vás, sim. Mas por causa da hora, não. É, aliás,
propícia.
– Irás pescar?
– Esta noite, quando sair a lua.
– Fizeste bem, Simão Pedro, por não teres ido pescar na noite passada.
O sábado ainda não havia terminado. Neemias, em suas reformas, quis
que[92] em Judá fosse respeitado o sábado. Ainda agora muita gente aos
sábados põe em movimento as prensas, carrega fardos, transporta vinho e
frutas, vende e compra peixes e cordeiros. Vós já tendes seis dias para isso.
O sábado é do Senhor. Só uma coisa podeis fazer aos sábados: praticar a
bondade para com o próximo. Mas o lucro deve ser absolutamente excluído
dessa ajuda. Quem por causa do lucro viola o sábado, não pode ter senão o
castigo de Deus. Faz uma coisa de utilidade? Vai ter que descontá-la com as
perdas nos outros seis dias. Faz uma coisa sem utilidade? Então, em vão
cansou o seu corpo, não lhe concedendo o descanso que a Inteligência
estabeleceu para ele, deixando alterar-se pela ira o seu espírito por ter-se
afadigado inutilmente, chegando até a praguejar. Enquanto que o dia de Deus
há de ser passado com o coração unido a Deus, em doce oração de amor. É
preciso ser fiel em tudo.
– Mas… os escribas e os doutores, que são tão severos conosco… não
trabalham aos sábados, nem mesmo dão um pão ao próximo, para não ter o
trabalho de estender o braço para dá-lo… mas a usura, eles praticam
também nos sábados. Será por não ser um trabalho material, que a usura se
pode praticar aos sábados?
– Não. Nunca. Nem no sábado, nem em nenhum outro dia. Quem pratica
a usura, é desonesto e cruel.
– Então, os escribas e os fariseus…
– Simão, não julgues. Tu não faças assim.
– Mas eu tenho olhos para ver…
– Existirá só mal para se ver, Simão?
– Não, Mestre.
– Assim sendo, por que olhar só o mal?
– Tens razão, Mestre.
50.9
– Então, amanhã, na alvorada, partirei com João.
– Mestre…
– Que tens a dizer, Simão?
– Mestre… vais a Jerusalém?
– Tu já estavas sabendo disso.
– Eu também vou lá pela Páscoa… e também André e Tiago…
– Então? Queres dizer que gostarias de ir Comigo. Mas, e a pesca? E o
teu ganha-pão? Me disseste que gostas de ter dinheiro, e Eu vou ficar por lá
muitos dias. Primeiro, vou ver minha mãe. Para lá irei na volta, onde me
deterei a pregar. Como farás, então?
Pedro fica perplexo, combalido… mas depois se decide:
– Por mim… eu vou também. Prefiro a Ti, que ao dinheiro!
– Eu também vou.
– Eu também.
– E nós também, não é Filipe?
– Então, vinde. Vós me ajudareis.
– Oh! –Pedro fica excitado só com a idéia de ajudar a Jesus–. Como
faremos?
– Depois Eu vos direi. Não tereis que fazer mais do que Eu vos disser,
para fazer bem. O obediente sempre faz bem. Agora, vamos rezar, e depois
cada um irá para a sua casa.
– E Tu, Mestre, que irás fazer?
– Eu vou rezar ainda. Eu sou a Luz do mundo, mas sou também o Filho
do homem. Devo por isso sempre alcançar a Luz, para ser o Homem que
redime o homem. Rezemos.
Jesus diz um salmo. É aquele que começa assim:
– “Quem repousa na ajuda do Altíssimo, viverá sob a proteção do Deus
do Céu. Dirá ao Senhor: ‘Tu és o meu protetor, o meu refúgio. És o meu
Deus, Nele a minha esperança. Ele me livrou do laço dos caçadores e das
palavras ásperas’ etc…”. Eu o encontro no livro 4°[93]. É o segundo do livro
4°, parece-me ser o de n° 90 (se é que leio bem os números romanos).
A visão termina assim.
[91] diz, em: Joel 4,10; e dos versículos sucessivos são retiradas as imagens do juízo.
[92] quis que, em: Neemias 13,15-22.
[93] livro 4°, p orque a Bíblia usada p or M aria Valtorta traz a antiga sub-divisão em 5 livros da colectânea dos Salmos. O
segundo salmo do quarto livro é o Salmo 90, tornado Salmo 91 na numeração das versões modernas.
51. Maria manda Judas Tadeu
convidar Jesus para as bodas de Caná.
17 de outubro de 1944.
51.1
Vejo a cozinha de Pedro. Nela, além de Jesus, estão Pedro e sua
mulher, Tiago e João. Parece que eles acabaram de jantar, faz pouco tempo e
estão conversando. Jesus se interessa pelos assuntos da pesca.
André entra, e diz:
– Mestre, está aí fora o homem, que mora com alguém que se diz teu
primo.
Jesus se levanta, vai até à porta e diz:
– Entrem!
E, quando, à luz da candeia e das chamas da lareira, vê entrar Judas
Tadeu, exclama:
– Tu, Judas?!
– Eu mesmo, Jesus.
Beijam-se. Judas Tadeu é um belo homem, na plenitude de sua beleza
viril. Alto, se bem que não como Jesus, bem proporcionado em sua robustez,
moreno, como era José, quando jovem, de um oliváceo, não térreo, com
olhos que têm alguma coisa em comum com os de Jesus, porque são de uma
cor azul, mas tendente à pervinca. Tem uma barba quadrada e escura,
cabelos em desalinho, menos encaracolados que os de Jesus, escuros como a
barba.
– Eu venho de Cafarnaum. Fui até lá com um barco, depois também vim
até aqui desta forma, para chegar mais depressa. É tua mãe que me manda a
Ti. Ela manda dizer: “Susana se casa amanhã. Eu te peço, Filho, que vás ao
casamento.” Maria vai tomar parte na festa e com ela minha mãe e meus
irmãos. Todos os parentes estão convidados. Só Tu estarias ausente, e os
parentes te pedem que vás para fazer contentes os noivos.
51.2
Jesus se inclina levemente, abrindo um pouco os braços, e diz:
– O desejo de minha mãe para Mim é lei. Mas também Susana e os
parentes. Eu irei. Só… me desagrada por causa de vós… –e olha para Pedro
e os outros–. São os meus amigos –explica ao primo. E vai dizendo os
nomes, começando por Pedro.
Por último diz:
– E este é o João.
O diz de um modo todo especial, que atrai o olhar mais atento de Judas
Tadeu, e faz enrubescer o seu predileto. Termina a apresentação, dizendo:
– Amigos, este é Judas, filho de Alfeu, meu primo-irmão, segundo o
modo de falar do mundo, porque é filho do irmão do esposo de minha mãe. É
um bom amigo meu no trabalho e na vida.
– Minha casa está aberta para ti, como para o Mestre. Assenta-te! –e,
depois, voltando-se para Jesus, Pedro diz:
– E então? Não iremos mais Contigo para Jerusalém?
– Certamente que ireis. Depois da festa das núpcias, Eu irei para lá.
Somente que não me deterei mais em Nazaré.
– Fazes bem, Jesus. Porque tua mãe é minha hóspede por alguns dias.
Foi combinado assim, e para lá ela irá depois das núpcias.
Assim falou o homem de Cafarnaum.
– Assim faremos, então. Agora, com o barco de Judas, Eu irei a
Tiberíades, e de lá a Caná, e com o mesmo voltarei a Cafarnaum com minha
mãe e contigo. No dia seguinte ao próximo sábado, tu irás, Simão, se ainda
quiseres ir, e iremos a Jerusalém pela Páscoa.
– Claro que irei! Aliás, irei no sábado, para Te ouvir na sinagoga.
51.3
– Já estás ensinando, Jesus? –pergunta Judas Tadeu.
– Sim, primo.
– E que palavras! Ah! Não se ouvem sair dos lábios de outros!
Judas suspira. Com a cabeça apoiada na mão e com o cotovelo firmado
sobre o joelho, ele olha para Jesus e suspira. Parece querer falar, mas não
tem coragem.
Jesus o estimula:
– Que tens, Judas? Por que me olhas e suspiras?
– Não é nada.
– Não. Nada não pode ser. Não sou mais o Jesus que tu amavas? Aquele
para quem não tinhas segredos?
– Sim, que o és! Que falta me fazes, Tu, Mestre do teu primo mais
velho!…
– E, então? Fala.
– Eu queria dizer-te… Jesus… sê prudente… tens uma mãe… que só
tem a Ti… Tu queres ser um “rabi” diferente dos outros, e Tu sabes, melhor
do que eu, que… que as castas poderosas não permitem que as coisas sejam
diferentes daquelas de costume, por eles estabelecidas. Conheço o teu modo
de pensar… é santo… mas o mundo não é santo… e persegue os santos…
Jesus… Tu sabes qual a sorte do teu primo, o Batista… Está na prisão, e, se
ainda não morreu, é porque aquele sórdido Tetrarca tem medo da multidão e
do raio de Deus. Tão sórdido e supersticioso, como cruel e libidinoso. Tu…
que farás? A que sorte queres ir de encontro?
– Judas, isto me estás perguntando, tu que conheces tão bem o meu
pensamento? Estás falando por ti mesmo? Não. Não mintas. Alguém te
mandou, e, certamente, minha mãe não foi, para vires me dizer estas
coisas…
Judas abaixa a cabeça, e se cala.
– Fala, primo.
– Meu pai… e com ele José e Simão… sabes… para o teu bem… pelo
afeto por Ti e por Maria… não vêem com bons olhos aquilo que estás
querendo fazer… e… e gostariam que Tu pensasses em tua mãe…
51.4
– E tu, que pensas disso?
– Eu… Eu…
– Tu estás sendo combatido pelas vozes do alto e da terra. Não digo
pelas vozes daqui de baixo. Digo vozes da terra. Também Tiago está assim
ainda mais do que tu. Mas Eu vos digo que acima da terra está o céu, acima
dos interesses do mundo está a causa de Deus. Precisais mudar vosso modo
de pensar. Quando souberdes fazer isso, sereis perfeitos.
– Mas… e tua mãe?
– Judas, ninguém melhor do que ela teria o direito de me chamar de
volta aos meus deveres de Filho, segundo a luz da terra, ou seja, ao meu
dever de trabalhar para ela, a fim de atender às suas necessidades materiais,
ao meu dever de assistência e conforto, ficando sempre perto da mãe. Mas
ela não me pede nada disso. Desde que me teve, ela sabia que teria que me
perder, para depois encontrar-me de novo, e de um modo muito mais amplo
do que o do pequeno círculo da família. Desde então, ela vem-se preparando
para isso. Esta vontade absoluta de se doar a Deus não é novidade no seu
sangue. Sua mãe a ofereceu ao Templo, antes que ela sorrisse à luz. Ela se
doou a Deus, e me contou isso inúmeras vezes quando, tinha-me junto ao seu
coração, nas longas tardes de inverno, ou nas claras noites de verão cheias
de estrelas, falando-me da sua infância santa, desde as primeiras luzes da
sua aurora no mundo. Doou-se a Deus ainda mais, quando me teve, para que
eu estivesse aqui a caminho da missão que me vem de Deus. Em uma certa
hora, todos me deixarão; talvez por poucos minutos, mas a covardia se
apoderará de todos, e pensareis que teria sido melhor para vossa segurança,
se nunca me tivésseis conhecido. Mas ela, que compreendeu e que sabe, Ela
estará sempre comigo. Vós tornareis a ser meus por meio dela. Com a força
de sua segura e amorosa fé, ela vos atrairá a si, e depois vos tornará a atrair
para Mim, porque Eu estou na mãe, e ela está em Mim, e Nós em Deus. Isto
Eu queria que compreendêsseis, todos vós, parentes segundo o mundo,
amigos e filhos segundo o sobrenatural. Tu e os outros, não sabeis quem é
minha mãe. Mas, se o soubésseis, não a criticaríeis em vosso coração por
não saber ter-me subjugado a ela, mas a veneraríeis como a amiga mais
íntima de Deus, a poderosa que tudo pode no coração do Eterno Pai, e sobre
o Filho do seu coração. Certamente Eu irei a Caná. Quero fazê-la feliz.
Compreendereis melhor depois desta hora.
Jesus está imponente e persuasivo.
Judas o olha atentamente. Fica pensando. E diz:
– Eu também certamente irei Contigo, junto com estes, se me quiseres…
porque sinto que Tu dizes coisas justas. Perdoa a minha cegueira e a dos
meus irmãos. És muito mais santo do que nós!…
– Não tenho rancor de quem não me conhece. Não tenho rancor nem de
quem me odeia. Mas sinto dor pelo mal que alguém se faz a si mesmo. 51.5O
que tem naquela sacola?
– A veste que a mãe te manda. Amanhã há uma grande festa. Ela pensa
que o seu Jesus precise da veste para não fazer má figura entre os
convidados. Ela fiou, incansavelmente, das primeiras horas do dia até às
últimas, cada dia, para te preparar esta veste. Mas não terminou o manto.
Ficaram faltando as franjas. Ela ficou desolada por isso.
– Não é preciso. Eu vou com esta, e aquela guardarei para Jerusalém. O
Templo é ainda mais do que uma festa de casamento.
– Ela ficará feliz.
– E vós, se quereis estar ao amanhecer no caminho de Caná, precisais
partir logo. A lua surge, e será boa a travessia –diz Pedro.
– Então, vamos. Vem, João. Eu te levo Comigo. Simão Pedro, Tiago e
André, até logo. Eu vos espero na tarde de sábado em Cafarnaum. Adeus,
mulher. Paz a ti e à tua casa.
Jesus sai com Judas e João. Pedro os acompanha até à beira do lago, e
ajuda na manobra de partida do barco.
Termina a visão.

51.6
Jesus diz:
– Quando for a hora de fazer um trabalho em ordem, será inserido aqui a
visão das bodas de Caná. Põe a data (16.1.44).
52. As bodas de Caná. O Filho, não mais sujeito
à mãe, realiza, a pedido dela, o primeiro milagre.
Tarde de 16 de janeiro de 1944. As bodas de Caná.
52.1
Vejo uma casa. Uma característica casa oriental — um cubo branco,
mais largo do que alto, com raras aberturas — transposta por um terraço,
que serve de telhado, cercada por um pequeno muro de mais ou menos um
metro de altura e sombreada pela parreira de uma videira, que sobe até o
alto e estende os seus ramos além da metade deste ensolarado terraço. Uma
escada externa, ao longo da fachada, vai até uma porta que se abre a meia
altura da fachada. Em baixo, no térreo, há portas baixas e poucas, não mais
do que duas de cada lado, que dão para quartos baixos e escuros. A casa
surge em meio a uma espécie de eira, mais um espaço gramado do que uma
eira, tendo ao centro um poço. Ali há figueiras e macieiras. A casa tem a sua
frente que dá para a rua, mas não está junto à rua. Fica um pouco para dentro
do terreno e um atalho, pelo meio da grama, faz a ligação com a rua, que
parece uma rua mestra.
Dir-se-ia que a casa está na periferia de Caná: casa cujos donos são
camponeses que vivem no meio do seu sitiozinho. O campo se estende além
da casa, com as suas distâncias verdejantes e plácidas. Faz um belo sol e o
céu está de um azul muito claro. Em princípio, não vejo outra coisa. É uma
casa solitária.
52.2
Depois, vejo duas mulheres com longas vestes e um manto, que serve
também de véu, irem pela rua e em seguida pelo atalho. Uma delas é mais
velha, terá seus cinqüenta anos, veste-se de escuro, uma cor pardo-marrom,
como o da lã natural. A outra está com uma veste mais clara, de um amarelo
claro com um manto azul; parece ter uns trinta e cinco anos. É muito bonita,
esbelta, e tem um porte cheio de dignidade, mesmo sendo muito gentil e
humilde. Quando ela está mais perto, posso notar a cor pálida do seu rosto,
os olhos azuis e os cabelos loiros, que aparecem sob o véu que lhe cobre a
fronte. Reconheço nela Maria, mãe de Jesus. Quem é a outra, que é morena e
mais velha, eu não sei. Falam entre si, e ela sorri. Quando estão próximas da
casa, alguém, certamente encarregado de receber os que vão chegando, dá o
aviso e vêm homens e mulheres ao encontro das duas, todos com roupas de
festa e fazendo grandes demonstrações de alegria pela vinda delas,
especialmente por Maria, mãe de Jesus.
A hora parece ser matutina, eu diria lá pelas nove, talvez antes, porque o
campo tem ainda aquele aspecto fresco das primeiras horas do dia, por
causa do orvalho que faz mais verde a relva e pelo ar, não ainda embaçado
pela poeira. A estação parece-me primaveril, porque os prados não estão
com a relva abrasada do verão, e os campos têm os trigos ainda novos e sem
espigas, tudo verde. As folhas da figueira e da macieira estão verdes e até
tenras ainda, assim como as da videira. Mas, não vejo flores na macieira e
não vejo frutos nem na macieira, nem na figueira, nem na videira. Sinal de
que a macieira já floriu, mas há pouco tempo e os seus frutos ainda não se
vêem.
52.3
Maria, muito festejada, ladeada por um idoso que parece ser o
dono da casa, sobe pela escada externa e entra em uma ampla sala, que
parece ocupar todo ou boa parte do andar de cima.
Parece-me compreender que os cômodos do térreo são os verdadeiros
dormitórios, as despensas, os depósitos, as adegas, e que este seja o
ambiente reservado para ocasiões especiais, como festas excepcionais, ou
trabalhos que exijam muito espaço; ou também para depósito de produtos
agrícolas. Nas festas, retiram tudo o que ocupa o espaço e enfeitam, como
fizeram hoje, com ramos verdes, esteiras e mesas preparadas. No centro está
uma mesa suntuosa, sobre a qual há ânforas e pratos cheios de frutas. Ao
longo da parede da direita, em relação a mim que estou olhando, está uma
outra mesa preparada, mas de modo mais simples. Ao longo da parede da
esquerda, está uma espécie de longo aparador, sobre o qual há pratos com
queijos e outros alimentos que me parecem pães cozidos cobertos com mel e
doces. No chão, sempre junto a esta parede, há outras ânforas e três[94]
grandes vasos em forma de bilha de cobre (mais ou menos). Eu os chamaria
de jarras.
Maria escuta com benevolência tudo o que lhe dizem. Depois, bem
disposta, tira o manto e vai ajudar a terminar os preparativos da mesa. Eu a
vejo ir e vir, arrumando as cadeiras-leitos, endireitando as grinaldas de
flores, dando melhor aspecto às fruteiras, examinando se nas candeias não
está faltando óleo. Ela sorri e fala muito pouco e em voz baixa. Mas escuta
muito e com muita paciência.
Um grande barulho de instrumentos musicais (na verdade pouco
harmônicos) ouve-se na rua. Todos, menos Maria, correm lá fora. Vejo entrar
a noiva, toda ataviada e feliz, rodeada pelos parentes e amigos, ao lado do
noivo, que foi o primeiro a correr ao seu encontro.
52.4
Neste ponto a visão tem uma mudança. Vejo, ao invés da casa, uma
aldeia. Não sei se é Caná ou outra aldeia vizinha. E vejo Jesus com João e
um outro, que me parece Judas Tadeu, mas sobre este segundo eu poderia
estar me enganando. Quanto a João, não há engano. Jesus está vestido de
branco e com um manto azul escuro. Ouvindo o barulho dos instrumentos, o
companheiro de Jesus pergunta qualquer coisa a um homem do povo e leva a
informação a Jesus.
– Vamos fazer feliz minha mãe –diz então, Jesus, sorrindo.
E se encaminha através dos campos, com os dois companheiros, em
direção da casa. Esqueci de dizer que tenho a impressão de que Maria seja
parente ou muito amiga dos parentes do noivo, pois pode-se ver que está em
confidência com eles.
Quando Jesus chega, conforme o costume, o que está de sentinela avisa
aos outros. O dono da casa, acompanhado por seu filho, que é o noivo, e por
Maria, desce ao encontro de Jesus e o saúda respeitosamente. Saúda também
os outros dois; o noivo faz o mesmo.
Mas o que me agrada é a saudação cheia de amor e de respeito de Maria
ao seu Filho, e vice-versa. Não são grandes expansões, mas é um olhar
especial que acompanha as palavras de saudação: “A paz esteja contigo”, e
um sorriso tal, que vale por cem abraços e cem beijos. O beijo treme nos
lábios de Maria, mas não chega a ser dado. Ela somente põe a sua mão
branca e pequena sobre o ombro de Jesus e toca de leve num caracol de sua
longa cabeleira. É uma carícia de namorada cheia de pudor.
52.5
Jesus sobe ao lado da mãe, seguido pelos discípulos e pelos donos da
casa, e entra na sala do banquete onde as mulheres estão atarefadas em
colocar os assentos e os pratos para os três hóspedes, inesperados, ao que
me parece. Eu diria que a vinda de Jesus era incerta e que a de seus
companheiros era absolutamente imprevista.
Ouço distintamente a voz cheia, viril e dulcíssima do Mestre, dizer, ao
entrar na sala:
– A paz esteja nesta casa, e a bênção de Deus sobre todos vós.
É uma saudação coletiva a todos os presentes e cheia de majestade.
Jesus, com seu aspecto e sua estatura, domina todos os outros. É um
hóspede, fortuito, mas parece o rei do banquete, mais do que o esposo, mais
do que o dono da casa. Ainda que humilde e condescendente, é aquele que se
impõe.
Jesus toma um lugar à mesa do centro, com o noivo, a noiva, os parentes
dos noivos e os amigos mais influentes. Os dois discípulos, por respeito ao
Mestre, são convidados a sentar-se à mesma mesa.
Jesus está com as costas viradas para a parede, onde estão as grandes
jarras e os aparadores.
Observo uma coisa. Exceto as respectivas mães dos esposos, e também
Maria, nenhuma outra mulher está sentada àquela mesa. Todas as mulheres
estão na outra mesa, viradas para a parede, fazendo um barulho como se
fossem cem, e são servidas depois de terem sido servidos os esposos e os
hóspedes importantes. Jesus está perto do dono da casa e tem à sua frente
Maria, a qual está sentada ao lado da noiva.
O banquete começa. Eu vos asseguro que apetite não falta, nem sede.
Aqueles que pouco se sobressaem são Jesus e sua mãe, a qual, além disso,
fala muito pouco. Jesus fala um pouco mais. Mas, ainda que seja comedido
em suas palavras, não é, no seu escasso falar, nem carrancudo nem
desdenhoso. É um homem cortês, mas não um conversador. Quando é
interrogado, responde; se alguém fala com Ele, Ele se interessa, dá o seu
parecer, mas depois se recolhe, como alguém habituado a meditar. Sorri, não
ri nunca. E, se ouve alguma brincadeira muito leviana, faz como se não a
tivesse ouvido. Maria se alimenta na contemplação do seu Jesus, e assim
também João, que está na ponta da mesa, atento aos lábios do seu Mestre.
52.6
Maria nota que os serventes cochicham com o mordomo e que este
está embaraçado; então, ela percebe o que é que está acontecendo de
desagradável.
– Filho –ela fala baixinho, chamando a atenção de Jesus com aquela
palavra–. Filho, eles não têm mais vinho.
– Mulher, o que ainda há entre Mim e ti?
Jesus, ao dizer esta frase, sorri ainda mais docemente e Maria também
sorri; fazem como duas pessoas que sabem uma verdade que é para elas um
alegre segredo ignorado por todos os outros.

Jesus me explica o significado da frase.


52.7

– Aquele “ainda”, que muitos tradutores omitem[95], é a chave da frase e


a explica em seu verdadeiro significado.
Eu era o Filho sujeito à mãe até o momento em que a vontade do meu Pai
me mostrou que havia chegado a hora de ser o Mestre. Desde o momento em
que teve início a minha missão eu não era mais o Filho sujeito à mãe, mas o
Servo de Deus. Estavam rompidos os laços morais para com a minha
genitora. Estes tinham sido mudados em outros mais altos e todos se haviam
refugiado no espírito. Aquele chamava sempre o nome de “mamãe” Maria, a
minha santa. O amor não teve parada, nem esfriamento; ao contrário, nunca
ele foi tão perfeito como quando, separado dela como por uma segunda
filiação, ela me deu ao mundo para o mundo, como Messias, como
Evangelizador. Essa sua terceira, sublime e mística maternidade se deu
quando, na angústia do Gólgota, ela gerou-Me à Cruz fazendo de Mim o
Redentor do mundo.
“Que é que ainda há entre Mim e ti?” Antes, Eu era teu, unicamente teu.
Tu me davas ordens, Eu obedecia. Eu te estava “sujeito”. Agora Eu sou da
minha missão.
Será que Eu não disse[96] isto? “Quem, tendo posto a mão no arado,
vira-se para trás para saudar a quem fica, não é apto para o Reino de Deus.”
Eu tinha posto a mão no arado para abrir com a relha não as glebas, mas os
corações para semear neles a Palavra de Deus. Eu teria levantado aquela
mão, somente quando me tivessem arrancado de lá para pregá-la na cruz e
abrir com o meu torturante prego, o coração do meu Pai, fazendo sair o
perdão para a humanidade.
Aquele “ainda”, geralmente esquecido, queria dizer o seguinte: “Tudo
tens sido para Mim, ó mãe, enquanto Eu fui unicamente o Jesus de Maria de
Nazaré, e tudo és em meu espírito; mas, desde que Eu sou o Messias
esperado, sou de meu Pai. Espera um pouco ainda que, terminada a missão,
serei de novo todo teu; ter-me-ás de novo nos braços, como quando Eu era
menino e ninguém te disputará mais este teu Filho, considerado um opróbrio
da humanidade, a qual te jogará os despojos dele, para cobrir-te a ti também
do opróbrio de ser a mãe de um condenado à morte. E depois, Me terás de
novo, triunfante, depois me terás para sempre, triunfante Tu também, no Céu.
Mas agora Eu sou de todos os homens. E sou do Pai que a eles me enviou.”
Eis o que quer dizer aquele “ainda”, pequeno e tão denso de
significado.

Maria pede aos serventes:


52.8

– Fazei aquilo que Ele vos disser.


Maria já tinha lido nos olhos sorridentes de seu Filho o assentimento
velado pelo grande ensinamento a todos os “vocacionados.”
E Jesus ordena aos serventes:
– Enchei as bilhas de água.
Vejo os serventes enchê-las com a água trazida do poço (ouço o ranger
do sarilho, que leva para baixo e para cima o balde gotejante). Vejo o
mordomo, com olhos de grande espanto, servir-se daquele líquido, prová-lo
com atos de ainda maior espanto, saboreá-lo e falar ao dono da casa e ao
noivo (eles estavam perto).
Maria está ainda olhando para o Filho e sorrindo; depois, ao receber um
sorriso Dele, inclina a cabeça, enrubescendo levemente. Ela está feliz.
Pela sala passa um murmúrio, as cabeças se voltam todas para Jesus e
Maria, alguns se levantam para vê-los melhor, outros vão ver as bilhas. Faz-
se um grande silêncio. Depois se ergue um coro de louvores a Jesus.
Mas Jesus se levanta e diz uma palavra:
– Agradecei a Maria.
E, em seguida, sai do banquete. Os discípulos o seguem. Já na porta, Ele
repete:
– A paz esteja nesta casa e a bênção de Deus sobre vós, –e
acrescenta–: Mãe, Eu te saúdo.
Cessa a visão.

Jesus me instrui assim:


52.9

– Quando Eu disse aos discípulos: “Vamos fazer feliz minha mãe”, Eu


tinha dado àquela frase um sentido mais alto do que o que parecia. Não a
felicidade de me ver, mas de ser ela a iniciadora de minha atividade de fazer
milagres e a primeira benfeitora da humanidade. Lembrai-vos disso sempre.
O meu primeiro milagre aconteceu por causa de Maria. O primeiro. Sinal de
que Maria é a chave dos milagres. Eu não recuso nada à minha mãe, e pela
sua oração antecipo também o tempo da graça. Eu conheço minha mãe, a
segunda em bondade depois de Deus. Eu sei que conceder-vos uma graça é
fazê-la feliz, porque ela é a Toda Amor. Eis porque Eu disse, Eu que tudo
sabia: “Vamos fazê-la feliz.”
Além disso, Eu quis manifestar o seu poder ao mundo, junto com o meu.
Destinada a ser unida a Mim na carne — pois nós fomos uma só carne: Eu
nela, e ela ao redor de Mim, como as pétalas de um lírio ao redor do pistilo
perfumado e cheio de vida —; unida a Mim na dor, porque estivemos sobre a
cruz: Eu com a carne e ela com seu espírito, assim como o lírio exala
perfume com sua corola e com a essência extraída dela, era justo que
estivesse unida a Mim no poder que se mostra ao mundo.
Digo a vós o que Eu disse àqueles convidados: “Agradecei a Maria. Foi
por ela que tivestes o dom dos milagres e as minhas graças, e especialmente
as do perdão.”
Repousa em paz. Nós estamos contigo.
[94] três, é corrigido em seis numa cóp ia dactilografada, com escritura que não se p ode dizer de M aria Valtorta, com certeza.
[95] omitem, ao traduzir as p alavras que estão em: João 2,4.
[96] disse, em: Lucas 9,62 (178.4 e 276.6).
53. A expulsão dos vendedores do Templo.
24 de outubro de 1944.
[…].
53.1
Vejo Jesus que vai entrando no recinto do Templo, com Pedro, André,
João, Tiago, Filipe e Bartolomeu.
Há uma grande multidão, tanto dentro, como fora do Templo. Grupos de
peregrinos chegam de todos os pontos da cidade. Do alto da colina, sobre a
qual está construído o Templo, vêem-se as ruas da cidade, estreitas e tortas,
a fervilhar de gente. Parece que por entre o branco monótono das casas tenha
sido estendida uma fita movediça de mil cores. Sim. A cidade tem o aspecto
de um bizarro brinquedo, feito de fitas matizadas, entre dois fios brancos, e
todas convergentes até o ponto onde brilham as cúpulas da Casa do Senhor.
Mas no interior há… uma verdadeira feira. Todo recolhimento que havia
no lugar santo se acabou. Uns correm, outros chamam, outros fazem negócios
com seus cordeiros, gritam e imprecam por causa do preço exorbitante,
enquanto outros empurram os pobres animais, que balem, para dentro dos
recintos (são divisões rudimentares, feitas com cordas ou com estacas, em
cuja entrada está o vendedor, ou o dono que seja, à espera dos
compradores). Pauladas, balidos, blasfêmias, reclamações, insultos aos
empregados não solícitos nas operações de ajuntamento e escolha dos
animais e aos compradores que regateiam os preços, ou que vão-se embora.
E maiores insultos àqueles que, previdentes, levaram o seu cordeiro.
Ao redor das bancas dos cambistas, outro vozerio. Compreende-se que
o Templo funcionava como… Bolsa e Bolsa negra; não sei se é sempre ou só
neste tempo da Páscoa. O valor das moedas não era fixo. Havia um valor
legal, certamente terá havido, mas os cambistas impunham um outro,
apropriando-se de um tanto, marcado arbitrariamente pelo câmbio das
moedas. E eu vos asseguro que eles não brincavam nessas operações de
usura! Quanto mais alguém era pobre e vinha de longe, mais era depenado.
Os velhos, mais que os jovens e os provenientes de fora da Palestina, mais
que os velhos.
Os pobres velhinhos olhavam e tornavam a olhar para o seu pecúlio
ajuntado, Deus sabe com quanto trabalho, durante um ano inteiro; agora eles
o tiravam e o recolocavam junto ao peito cem vezes, indo de um cambista a
outro, e acabavam voltando ao primeiro que então se vingava da inicial
desistência deles aumentando o ágio do câmbio… e então, por entre
suspiros, as grandes moedas caíam das mãos de seus donos e passavam para
as garras do usurário sendo trocadas por moedas menores. Depois era outra
tragédia nas escolhas, nos cálculos e suspiros diante dos vendedores de
cordeiros, os quais, aos velhinhos já meio cegos, impingiam os cordeiros
mais míseros.
53.2
Vejo voltar dois velhinhos, ele e ela empurrando um pobre cordeirinho
que deve ter sido achado defeituoso pelos sacrificadores. Pranto, súplicas,
maus tratos e palavrões se cruzam, sem que o vendedor se comova.
– Pelo que estais dispostos a gastar, ó galileus, é até muito bonito o que
eu vos dei. Ide embora! Ou dai-me mais cinco moedas para receberdes um
mais bonito.
– Em nome de Deus! Somos pobres e velhos! Queres impedir-nos de
fazer a Páscoa, que talvez seja a última para nós? Não te basta o que
quiseste cobrar por um pequeno animal?
– Saí do caminho, ó sujos! Está se aproximando de mim o velho José.
Ele me honra com a sua preferência. Deus esteja contigo! Vem, escolhe!
Entra no recinto aquele que é chamado o velho José, o de Arimatéia, e
pega um magnífico cordeiro. Ele passa, soberbo e pomposo em suas vestes,
sem olhar para os pobres que gemem à porta, aliás, na entrada do recinto.
Quase choca-se com eles, especialmente quando sai com o cordeiro gordo
que vai balindo.
53.3
Mas Jesus também já está perto. Também Ele já fez a sua compra;
Pedro, que provavelmente foi quem fez o negócio por Ele, vem puxando um
cordeiro pequeno.
Pedro queria ir logo ao lugar onde se faz o sacrifício. Mas Jesus se
afasta dali indo para o seu lado direito, em direção aos dois velhinhos‐
assustados que estão chorando, hesitantes, nos quais a multidão esbarra, e
aos quais o vendedor insulta.
Jesus, que é tão alto que as cabeças dos dois velhinhos ficam à altura do
seu coração, põe uma mão sobre o ombro da mulher e pergunta:
– Por que choras, mulher?
A velhinha se vira e vê este jovem alto, solene em sua bela veste branca,
com um manto também branco, tudo novo e limpo. Ela deve tomá-lo por um
doutor, tanto pelas vestes, como pelo aspecto; admirada, porque os doutores
e sacerdotes não fazem caso do povo nem protegem o povo contra a avidez
dos vendedores, ela diz a razão por que estão chorando.
Jesus se volta ao homem dos cordeiros:
– Troca este cordeiro para estes fiéis. Ele não é digno do altar, como
também não é digno que tu te aproveites de dois velhinhos porque são fracos
e indefesos.
– E Tu, quem és?
– Um justo.
– A tua fala e a dos teus companheiros mostram que és um galileu. Pode
haver algum justo na Galiléia?
– Faz o que estou te dizendo, e sejas justo.
– Ouvi! Ouvi o galileu defensor dos seus semelhantes! Ele quer ensinar
a nós no Templo!
O homem ri e zomba imitando o sotaque dos galileus, que é o sotaque
judaico mais cantado e o mais rico de doçura, ao menos assim me parece.
Pessoas os rodeiam e outros vendedores e cambistas tomam a defesa de seu
companheiro contra Jesus.
Entre os presentes há dois ou três rabinos irônicos. Um deles pergunta:
– Tu és doutor? (de modo, capaz de fazer até Jó perder a paciência).
– Tu o disseste.
– O que é que ensinas?
– Ensino o seguinte: a fazer da Casa de Deus casa de oração e não um
lugar de usura e de comércio. Isto é o que Eu ensino.
53.4
Jesus está terrível. Parece o arcanjo posto à porta do Paraíso perdido.
Não tem espada flamejante na mão, mas tem raios em seus olhos e com eles
fulmina os escarnecedores e os sacrílegos. Na mão não tem nada. Só a sua
santa ira. E com esta, caminhando rápido e com imponência por entre as
bancas, esparrama as moedas que estavam cuidadosamente empilhadas
conforme os seus valores; vira mesas e mesinhas; tudo vai caindo, com
estrondo, ao chão, entre um grande barulho de metais ricocheteando, de
madeiras que se batem percutindo e gritos de ira, de susto e de aprovação.
Depois, arrancando das mãos dos que cuidam dos animais, as cordas com
que eles prendiam os bois, as ovelhas e cordeiros em seus lugares, faz com
elas um açoite bem duro, cujos nós, que formam os laços corrediços, se
transformam em flagelos. Levanta-o, gira e abaixa, sem piedade. Sim, vos
asseguro: sem piedade.
Aquela saraivada imprevista golpeia cabeças e costas. Os fiéis se
afastam, admirados da cena; os culpados são perseguidos até o muro externo
e põem-se a correr, deixando no chão o dinheiro e atrás de si os animais
grandes e pequenos, numa grande confusão de pernas, de chifres e de asas;
uns correm, outros voam indo embora; mugidos, balidos, arrulhos de pombos
e rolas, junto a risadas e gritos dos fiéis, que vão atrás dos usurários em
fuga, superam até o lamentoso coro dos cordeiros que certamente estão
sendo degolados em algum outro pátio.
53.5
Chegam correndo os sacerdotes, com os rabinos e os fariseus. Jesus
está ainda no meio do pátio, de volta da sua perseguição. O açoite está ainda
em sua mão.
– Quem és tu? Como tomas a liberdade de fazer isso, perturbando as
cerimônias prescritas? De qual escola provéns? Nós não te conhecemos nem
sabemos quem és.
– Eu sou Aquele que posso. Tudo Eu posso. Desmanchai este Templo
que Eu o erguerei de novo para dar louvores a Deus. Eu não perturbo a
santidade da Casa de Deus e das cerimônias, mas vós a perturbais,
permitindo que sua morada se torne sede de usurários e vendedores. Minha
escola é a escola de Deus. A mesma que teve todo Israel pela boca do
Eterno que falava a Moisés. Vós não me conheceis? Me conhecereis. Não
sabeis de onde Eu venho? Vós o sabereis.
53.6
E, voltando-se para o povo, sem dar mais atenção aos sacerdotes, alto
na veste branca, com o manto aberto e flutuante nas costas, com os braços
abertos como um orador no ponto mais alto do seu discurso, ele diz:
– Ouvi, ó vós de Israel! No Deuteronômio, está dito[97]: “Tu constituirás
juízes e magistrados em todas as portas… e eles julgarão o povo com justiça
sem penderem para nenhum lado. Tu não terás acepção de pessoas nem
aceitarás presentes, porque os presentes cegam os olhos dos sábios e alteram
as palavras dos justos. Com justiça seguirás o que for justo, a fim de que
vivas e possuas a terra que o Senhor teu Deus te tiver dado.”
Ouvi, ó vós de Israel! No Deuteronômio está dito: “Os sacerdotes e os
levitas e todos aqueles da tribo de Levi não terão parte na herança com o
resto de Israel, porque devem viver dos sacrifícios ao Senhor e das ofertas
que a Ele são feitas; nada terão das posses dos seus irmãos, porque o Senhor
é a herança deles.
Ouvi, ó vós de Israel! No Deuteronômio está dito: “Não emprestarás
com juros a teu irmão, nem dinheiro nem grãos, nem qualquer outra coisa.
Poderás emprestar com juros ao estrangeiro; ao teu irmão, ao invés,
emprestarás sem juros aquilo de que ele precisar.”
Isto disse o Senhor.
Agora estais vendo que sem justiça para com o pobre é como se julga
em Israel. Não é para aquele que é justo, mas é para o forte que se inclinam;
e ser pobre, ser povo, quer dizer ser oprimido. Como pode o povo dizer:
“Quem nos julga é justo”, se ele vê que só os poderosos são respeitados e
ouvidos, enquanto que o pobre não tem quem o ouça? Como pode o povo
respeitar o Senhor, se vê que não o respeitam aqueles que mais deviam fazê-
lo? É respeito ao Senhor a violação dos seus mandamentos? Por que, então,
os sacerdotes em Israel têm posses e aceitam presentes dos publicanos e dos
pecadores, os quais assim fazem para terem benévolos os sacerdotes, assim
como estes fazem para terem um abastado cofre?
Deus é a herança dos seus sacerdotes. Para esses Ele, o Pai de Israel é o
Pai que, mais do que nunca, provê o alimento, como é justo. Mas não mais
do que o justo. Ele não prometeu aos seus servos do Santuário nem bolsas
nem posses. Na eternidade terão o Céu pela sua justiça, como o terão
Moisés, Elias, Jacó e Abraão. Mas nesta terra não devem ter senão a veste
de linho e o diadema de ouro incorruptível: pureza e caridade; e que o
corpo seja servo do espírito, que é servo do verdadeiro Deus, e não seja o
corpo senhor do espírito e contra Deus.
Foi-me perguntado com que autoridade Eu faço isto. E eles, com que
autoridade profanam o mandamento de Deus e permitem, à sombra dos
muros sagrados, a usura contra os irmãos de Israel que aqui vêm para
obedecer à ordem divina? Foi-me perguntado de que escola é que Eu venho
e respondi: “Da escola de Deus.” Sim, Israel, Eu venho a ti, e te reporto a
esta escola santa e imutável.
53.7
Quem quer conhecer a Luz, a Verdade, a Vida, quem quer ouvir de
novo a Voz de Deus falando ao seu povo, venha a Mim. Vós seguistes
Moisés, através dos desertos, ó vós de Israel. Segui-me, que Eu vos levo,
através de um deserto bem mais tristonho, ao encontro da verdadeira Terra
feliz. Por um mar aberto, ao comando de Deus, a essa vos levo. Levantando
o meu Sinal, de todo mal Eu vos curo.
A hora da Graça chegou. Os Patriarcas a esperaram e morreram
esperando-a. Predisseram-na os Profetas e morreram nesta esperança.
Sonharam com ela os justos e morreram confortados por este sonho. Agora,
ela surgiu.
Vinde. “O Senhor vai julgar o seu povo e fazer misericórdia aos seus
servos”, como prometeu pela boca de Moisés.
O povo, apinhado ao redor de Jesus, ficou de boca aberta, escutando-o.
Depois, todos comentam as palavras do novo Rabi e fazem perguntas aos
seus companheiros.
Jesus se encaminha para um outro pátio separado deste por uma série de
pórticos. Os amigos o seguem e a visão termina.
[97] está dito, em: Deuteronómio 16,18-20; 18,1-2; 23,20-21.
54. O encontro com Judas de Keriot e com Tomé.
Simão Zelote curado da lepra.
26 de outubro de 1944.
54.1
Jesus está junto aos seus seus discípulos. Tanto no outro dia, como
hoje, não vejo Judas Tadeu que também havia dito querer ir a Jerusalém com
Jesus.
Devem ainda estar sendo celebradas as festas pascais, pois vê-se muita
gente pela cidade. Está anoitecendo e muitos se apressam em ir para as suas
casas.
Jesus também está indo para a casa onde está hospedado. Não é a casa
do Cenáculo, que fica mais na cidade, ainda que nas imediações desta. A
casa onde está Jesus hospedado é uma verdadeira casa de campo entre
bastas oliveiras. Da rústica pracinha, que está à sua frente, vêem-se as
árvores que descem pelos declives ao longo da colina, detendo-se num lugar
onde há um pequeno córrego de poucas águas, que se vai por entre uma
enseada que está entre duas colinas pouco altas. Sobre uma das colinas está
o Templo, sobre a outra só oliveiras e mais oliveiras. Jesus está no começo
do declive desta branda colina, que sobe suavemente, na mansidão de suas
árvores pacíficas.
– João, aí fora estão dois homens esperando o teu amigo –diz um homem
já de idade que deve ser o camponês ou o dono do olival. Diria que João o
conhece.
– Onde estão? Quem são?
– Não sei. Um deles certamente é judeu. O outro… eu não saberia dizer.
Não perguntei a ele.
– Onde estão?
– Na cozinha, esperando e… e… sim… há também um outro que está
todo cheio de feridas… Eu o mandei esperar lá porque… não queria que ele
fosse um leproso… Diz ele que quer ver o Profeta que falou no Templo.
Jesus, que até aquele momento havia permanecido calado, diz:
– Vamos primeiro a esse. Diz aos outros que venham, se quiserem.
Falarei aqui no olival com eles.
E se dirige para o ponto indicado pelo homem.
– E nós? Que fazemos? –pergunta Pedro.
– Vinde, se quiserdes.
Um homem todo coberto está encostado ao pequeno muro rústico que
54.2

sustenta um outeiro, bem perto do limite do sítio. Deve ter subido ali por um
pequeno atalho que lá conduz costeando o córrego.
Quando vê Jesus vir em sua direção, grita:
– Para trás, para trás! Mas também piedade!
E descobre o seu tronco, deixando cair a veste. Se o rosto já está
coberto de crostas, o tronco é um bordado de chagas. Algumas já reduzidas a
buracos fundos, outras simplesmente como queimaduras vermelhas, outras
esbranquiçadas e lúcidas como se sobre elas tivesse um vidro branco.
– És leproso! Que queres de Mim?
– Não me amaldiçoes! Não me apedrejes! Disseram-me que na outra
tarde Te manifestaste como Voz de Deus e Portador da Graça. Disseram-me
que Tu asseguraste que, erguendo o teu sinal, curas com ele todos os males.
Ergue-o sobre mim. Eu venho dos sepulcros… lá… Eu rastejei como uma
serpente por entre as sarças da beira do córrego para chegar até aqui sem ser
visto. Esperei que a tarde chegasse para poder vir, porque na penumbra vê-
se menos quem eu sou. Eu ousei… encontrei este, que é da casa e que é
muito bom. Ele não me matou. Somente me disse: “Espera junto ao muro.”
Tem piedade, Tu também!
Visto que Jesus se aproxima (sozinho, porque os seis discípulos e o
dono do lugar, com os dois desconhecidos, estão longe e mostram claramente
aversão) diz ainda:
– Não te adiantes mais! Não mais! Eu estou infeccionado!
Mas Jesus prossegue. Olha para ele com tanta piedade, que o homem se
põe a chorar, ajoelha-se com o rosto quase ao chão e geme, dizendo:
– O teu sinal! O teu sinal!
– Ele será elevado, quando chegar a sua hora. Mas, a ti Eu digo:
levanta-te! Sê curado. Eu quero. E sê tu o meu sinal nesta cidade que precisa
conhecer-me. Levanta-te. Eu te digo! E não peques mais, em reconhecimento
a Deus!
O homem se levanta devagar. Parece que ele emerge por entre as ervas
altas e floridas como de um lençol do túmulo… e está curado. Ele se olha,
aos últimos raios da luz do dia. Está mesmo curado. E grita:
– Eu estou limpo! Oh! Que é que devo fazer agora por Ti?
– Obedecer a Lei. Vai ao sacerdote. Sê bom daqui em diante. Vai.
O homem faz um movimento para se jogar aos pés de Jesus, mas ele se
lembra de que ainda está impuro, segundo a Lei, e se detém. Mas ele beija
suas próprias mãos e manda o beijo a Jesus e chora. De alegria.
54.3
Os outros estão imobilizados, como que petrificados. Jesus volta as
costas ao curado e, sorrindo, os faz voltarem a si.
– Amigos, não era mais que uma lepra da carne. Mas vós vereis cair a
lepra dos corações. Sois vós que me procurais? –diz aos dois
desconhecidos–: Eis-me aqui. Quem sois?
– Nós Te ouvimos na outra tarde… no Templo. E Te procuramos pela
cidade. Um que se diz teu parente, nos disse que estavas aqui.
– Por que me estais procurando?
– Para seguir-te, se nos quiseres, porque Tu tens palavras de verdade.
– Para seguir-me? Mas sabeis para onde me dirijo?
– Não Mestre. Mas com certeza para a glória.
– Sim. Mas para uma glória que não é da terra. Para uma glória que tem
sua sede no Céu e que se conquista com a virtude e o sacrifício. Por que
quereis me seguir? –torna a perguntar.
– Para termos parte na tua glória.
– Segundo o Céu?
– Sim, segundo o Céu.
– Nem todos podem chegar ali. Porque Mamon arma ciladas aos
desejosos do Céu, mais do que aos outros. E só quem sabe querer fortemente
é quem resiste. Por que seguir-me se o seguir-me quer dizer uma luta
contínua com o inimigo que está em nós, com o mundo inimigo e com o
Inimigo, que é Satanás?
– Porque assim quer o nosso espírito, que ficou conquistado por Ti. Tu
és santo e poderoso. Nós queremos ser teus amigos.
– Amigos!!!
Jesus se cala e suspira. Depois, olha fixo àquele que sempre vinha
falando e que agora deixou cair o manto da cabeça apresentando-a toda
descoberta. É Judas de Keriot.
– Quem és tu, que falas melhor do que um homem do povo?
– Sou Judas, de Simão. Sou natural de Keriot. Mas sou do Templo (ou
estou no Templo). Espero o Rei dos judeus; vivo sonhando com ele. Rei te
reconheci na palavra e Rei te vi no gesto. Toma-me Contigo.
– Tomar-te? Agora? Tão depressa? Não.
– Por que, Mestre?
– Porque é melhor pesar-nos a nós mesmos, antes de pegarmos caminhos
muito íngremes.
– Não crês em minha sinceridade?
– Tu o disseste. Eu creio no teu impulso. Não creio na tua constância.
Pensa nisso, Judas. Agora Eu vou-me embora, e voltarei para a festa de
Pentecostes. Se estiveres no Templo, me verás. Pesa-te a ti mesmo. 54.4E tu,
quem és?
– Um outro que te viu. Queria estar contigo. Mas agora sinto temor.
– Não. A presunção é uma ruína. O temor pode ser um obstáculo, mas,
se ele vem da humildade, pode até ajudar. Não temas. Pensa, tu também, e,
quando Eu vier…
– Mestre, tu és muito santo. Tenho medo de não ser digno. Não de outra
coisa. Porque sobre o meu amor eu não temo.
– Como te chamas?
– Tomé, chamado o Dídimo.
– Eu me lembrarei do teu nome. Vai em paz.
Jesus se despede deles e se retira para a casa onde está hospedado, para
o jantar.
54.5
Os seis, que já estão com Ele, querem saber de muitas coisas.
– Por que, Mestre, fizeste diferença entre os dois?… Porque uma
diferença houve! Os dois tinham o mesmo impulso… –pergunta João.
– Amigo, também o mesmo impulso pode ter diversa substância e
produzir efeito diferente. É verdade que os dois têm o mesmo impulso. Mas
um não é igual ao outro, quanto ao fim a que visam. E aquele que parece o
menos perfeito é o mais perfeito, porque não está seduzido pela glória
humana. Ele me ama, porque me ama.
– Eu também.
– E eu também.
– E eu.
– E eu.
– E eu.
– E eu.
– Eu sei. Eu conheço quem sois.
– Então, somos perfeitos?
– Oh! Não! Mas, assim como Tomé, vós também o sereis, se
permanecerdes em vossa vontade de amor. Perfeitos?! Oh! Meus amigos! E
quem é perfeito, a não ser Deus?
– Tu o és.
– Em verdade vos digo que não sou perfeito por Mim, se pensais que Eu
sou um profeta. Nenhum homem é perfeito. Mas perfeito Eu sou, porque Este
que vos está falando é o Verbo do Pai. Ele é parte[98] de Deus, é o seu
Pensamento, que se faz Palavra. Eu tenho a Perfeição em Mim. E deveis crer
que Eu sou assim, se credes ser Eu o Verbo do Pai. Contudo vós estais
vendo, amigos. Eu quero ser chamado o Filho do homem[99] porque aniquilo
a Mim mesmo, pondo em minhas costas todas as misérias do homem para
levá-las comigo, primeiro ao meu patíbulo e depois de tê-las levado, anulá-
las, mas não por as ter tido como minhas. Que peso, amigos! Mas, Eu o
levo com alegria. Levá-lo é a minha alegria porque sendo o Filho da
humanidade, tornarei a humanidade filha de Deus, como foi no primeiro dia.
Jesus fala docemente, sentado à pobre mesa, com as mãos que
gesticulam calmamente sobre a mesma, o rosto um pouco inclinado,
iluminado de alto a baixo pela luz de uma pequena candeia colocada sobre a
mesa. Ele sorri levemente, já Mestre na imponência e tão amigo no trato. Os
discípulos o escutam atentos.
54.6
– Mestre, por que é que o teu primo, mesmo sabendo onde moras, não
veio?
– Ah! Meu Pedro!… Tu serás uma das minhas pedras, a primeira. Mas
nem todas as pedras são fáceis de se usar. Já viste os mármores do palácio
pretório? Arrancados, com muito trabalho, do seio das montanhas, agora
fazem parte do Pretório. Por outro lado, olha aquelas pedras, que estão
brilhando lá longe à luz do luar, por entre as águas do Cedron. Elas vieram
por si mesmas para o leito do rio e se alguém as quiser, elas logo se deixam
levar. O meu primo é como as primeiras pedras da qual falo… O seio do
monte, a família, o disputa Comigo.
– Mas eu quero ser em tudo como as pedras do Cedron. Por Ti, estou
pronto a deixar tudo: casa, esposa, pesca, irmãos. Tudo, Rabi, por Ti.
– Eu sei, Pedro. Por isto Eu te amo. Mas Judas também virá.
– Quem? Judas de Keriot? Não o levo muito em conta. É um belo moço,
mas… eu prefiro… prefiro a mim mesmo…
Riem-se todos da piada de Pedro.
– Não há nada para rir. Quero dizer que prefiro um galileu franco, rude,
um pescador, mas sem fraude, a… homens da cidade que… não sei… Mas o
Mestre entende o que eu quero dizer.
– Sim, entendo. Mas não julgues. Temos necessidade uns dos outros
nesta terra e os bons estão misturados com os maus, como as flores em um
campo. A cicuta está ao lado da saudável malva.
54.7
– Eu queria perguntar uma coisa….
– Qual, André?
– João me contou o milagre feito em Caná… Nós tínhamos muita
esperança de que Tu fizesses um deles em Cafarnaum… e Tu disseste que
não farias milagre, se antes não tivesses cumprido a Lei. Por que então o
fizeste em Caná? E por que não em tua pátria?
– Toda obediência à Lei é união com Deus e, por isso, um aumento de
nossa capacidade. O milagre é a prova da união com Deus, da presença
benévola e consciente de Deus. Por isso Eu quis cumprir o meu dever de
israelita antes de iniciar a série de prodígios.
– Mas Tu não estavas obrigado pela Lei.
– Por que? Como Filho de Deus, não. Mas, como filho da Lei,
sim. Israel, por enquanto, só me conhece como tal… E, mesmo depois, quase
todo Israel me conhecerá como tal, aliás, como menos ainda. Mas Eu não
quero dar escândalo a Israel e por isso obedeço a Lei.
– Tu és santo.
– A santidade não exclui a obediência. Ao contrário, a aperfeiçoa. Além
de tudo mais, é preciso dar o exemplo. Que diríeis de um pai, de um irmão
mais velho, de um mestre, de um sacerdote, que não desse bom exemplo?
– E então, o caso de Caná?
– Em Caná, era a alegria que à minha mãe devia ser dada. Caná é a
antecipação que se deve à minha mãe. Ela é a antecipadora da Graça. Aqui
Eu presto honra à Cidade santa, fazendo dela publicamente o lugar do início
do meu poder de Messias. Mas lá, em Caná, Eu prestava honra à santa de
Deus, à toda santa. O mundo me tem por meio dela. É justo que para ela seja
feito o meu primeiro prodígio no mundo.
54.8
Batem à porta. É Tomé de novo. Ele entra e se lança aos pés de Jesus.
– Mestre… eu não posso ficar esperando a tua volta. Deixa-me ficar
Contigo. Eu sou cheio de defeitos, mas tenho este amor, único, grande,
verdadeiro, o meu tesouro. Ele é teu, é para Ti. Deixa-me Mestre…
Jesus põe-lhe a mão sobre a cabeça.
– Fica, Dídimo. Segue-me. Felizes aqueles que são sinceros e de
vontade firme. Benditos sois vós. Para Mim sois mais do que parentes,
porque me sois filhos e irmãos, não segundo o sangue, que morre, mas
segundo a vontade de Deus e a vossa vontade espiritual. Agora Eu digo que
não tenho parente mais chegado do que aquele que faz a vontade de meu Pai;
e vós a fazeis, porque quereis o bem.
Assim termina a visão. 54.9São 16:00 horas, e já caem sobre mim as
sombras do malestar que sinto que será violento, lógica conseqüencia da
penosa hora de ontem…
Mas também em 24 de Outubro estava muito mal. Tanto que, terminada a
visão, escrita com uma dor de cabeça própria de meningite, não tive
coragem de acrescentar que vi finalmente Jesus vestido como me aparece
quando é todo para mim: de uma suave veste de lã branca quase da cor
marfim e com o manto igual. A veste que trazia[100] na sua primeira
manifestação em Jerusalém como Messias.
[98] Ele é Parte, a entender-se não como “p orção”, mas como “p ertença”. Diferente do homem, que p ertence a Deus não p or
natureza mas p or semelhança (nota em 167.9), Jesus p ertence a Deus p or natureza, ou seja, é Deus como o Pai (Ele dirá em
487.4: “Eu sou dele, sou sua p arte e um Todo com Ele”) . Ainda p or natureza Jesus é também Homem, sendo Ele a Palavra
encarnada do Pai. Por isso, não no ser um profeta (como disse acima) está a sua p erfeição, mas em ser o Homem-Deus, o qual
p ela p arte humana foi comp letado com o sup erar das tentações (como dirá em 80.10 e como resulta no fim da nota em 174.9).
Sobre as duas naturezas, divina e humana, de Jesus, são fundamentais os discursos dos cap ítulos 487 e 506.
[99] Filho do homem, é p rovavelmente o mais recorrente dos títulos atribuídos a Jesus e que Jesus atribui a Si p róp rio. O seu
significado genérico é ilustrado em 343.4; mas o seu significado messiânico encontra-se aqui e, p or exemp lo, em 126.3 e em
603.1.
[100] veste que trazia, em 53.3.
55. Um encargo confiado a Tomé.
27 de outubro de 1944.
55.1
Esta manhã, voltando de um pesadíssimo sofrimento de muitas horas,
enquanto rezo esperando que chegue o dia, retomo a visão.
Digo retomo, porque estamos ainda no mesmo ambiente: a cozinha larga
e baixa, escura em suas paredes enfumaçadas, mal iluminada pela chama de
uma candeia colocada sobre uma mesa rústica, longa e estreita, à qual estão
sentadas oito pessoas — Jesus, os seis discípulos, mais o dono da
casa — quatro de cada lado.
Jesus ainda virado sobre o seu banco — por aqui não há outros assentos,
senão bancos sem espaldar com três pés, como é costume nas casas de
campo — está falando ainda com Tomé. A mão de Jesus desceu da cabeça
de Tomé para o ombro. Jesus diz:
– Levanta-te, amigo. Já jantaste?
– Não, Mestre. Andei poucos minutos com o outro que estava comigo e
depois o deixei e voltei atrás dizendo-lhe que eu queria falar com o leproso
curado…Mas eu falei assim porque pensava que ele certamente teria
recebido com desdém a idéia de aproximar-se de um impuro. E adivinhei.
Mas eu estava procurando era a Ti, não o leproso… Eu queria dizer-Te:
“Toma-me contigo!”… Andei vagueando para baixo e para cima, pelo
olival, até que um jovem me perguntou o que é que eu estava fazendo. Ele
deve ter pensado que eu era alguém mal intencionado… Ele estava junto a
uma pilastra, no lugar em que começa o sítio.
O dono da casa sorri.
– É o meu filho –explica ele, e depois acrescenta–: Ele fica de guarda
no lagar. Temos nas cavernas, sob o lagar, ainda quase toda a colheita deste
ano. Foi uma colheita muito boa. Deu-nos muito óleo. Nas épocas em que se
reúnem grandes multidões, sempre aparecem alguns malandros que saqueiam
os lugares sem guarda. Há oito anos, pela Parasceve, roubaram-nos tudo.
Desde então, nos revezamos cada noite, para fazermos uma boa guarda. A
mãe dele foi levar-lhe a janta.
– Pois bem, disse-me ele: “Que queres?”, e o disse em um tom que, para
salvar minhas costas das pauladas, expliquei rápido: “Estou procurando o
meu Mestre, que mora aqui.” E ele então me respondeu: “Se é verdade o que
estás dizendo, vai até à minha casa.” E me acompanhou até aqui. Foi ele que
bateu à porta, e só foi embora depois de ter ouvido as minhas primeiras
palavras.
– Moras longe daqui?
– Estou em um alojamento do outro lado da cidade, perto da porta
Oriental.
– Estás sozinho?
– Eu estava com os parentes. Mas eles foram à casa de outros parentes,
no caminho de Belém. Eu fiquei para Te procurar, noite e dia, até Te
encontrar.
Jesus sorri, e diz:
– Então, ninguém te espera?
– Não, Mestre.
– A estrada é longa, a noite é escura, as patrulhas romanas estão
rondando pela cidade. Eu te digo: se queres, fica conosco.
– Oh! Mestre!
Tomé está feliz.
– Arranjai-lhe, vós, um lugar. E dai alguma coisa ao irmão.
Do seu, Jesus dá o pedaço de queijo que estava à sua frente. E explica a
Tomé:
– Nós somos pobres, e a janta já está quase no fim. Mas quem dá, tem
bom coração.
E a João, sentado ao seu lado, ele diz:
– Dá o lugar ao amigo.
João se levanta logo e vai sentar-se junto ao canto da mesa, perto do
dono da casa.
– Assenta-te, Tomé. Come.
55.2
E depois diz a todos:
– Assim fareis sempre, amigos, pela lei da caridade. O peregrino já está
protegido pela Lei de Deus. Mas agora, em meu nome, mais ainda o devereis
amar. Quando alguém vos pedir um pão, um gole de água, um abrigo em
nome de Deus, deveis dá-lo neste mesmo nome. E tereis de Deus a
recompensa. Isto deveis fazer com todos. Também com os inimigos. E esta é
a Lei nova. Até agora vos tinha sido dito: “Amai aqueles que vos amam, e
odiai aos inimigos.” Eu vos digo: “Amai também aqueles que vos odeiam.”
Oh! Se soubésseis como sereis amados por Deus, se amardes como Eu vos
digo! Portanto, quando alguém diz: “Eu quero ser vosso companheiro a
serviço do Senhor Deus verdadeiro, e seguir o seu Cordeiro”, então ele deve
ser para vós mais querido do que um irmão de sangue, porque estareis
unidos por um vínculo eterno: o vínculo do Cristo.
– Mas, e se depois chega um que não é sincero? E disser: “Eu quero
fazer isto ou aquilo”, é fácil. Mas nem sempre a palavra corresponde à
verdade –diz Pedro, um tanto irritado.
Não sei o que há, mas ele não está com o seu costumeiro humor jovial.
– Pedro, escuta. Tu falas com bom senso e com justiça. Mas, vê bem: é
melhor pecar pela bondade e pela confiança do que pela desconfiança e pelo
rigor. Se fizeres um benefício a um indigno, que mal te acontecerá? Nenhum.
Mas, ao contrário, o prêmio de Deus estará sempre preparado para ti,
enquanto que para ele haverá um desmerecimento, por ter traído a tua
confiança.
– Não acontece nenhum mal? As vezes quem é indigno não se contenta
só com a ingratidão, mas vai além, e chega também a prejudicar na estima,
nos bens e na própria vida.
– É verdade. Mas isso diminuiria o teu merecimento? Não. Ainda que
todos acreditassem nas calúnias, ainda que ficasses mais pobre do que Jó,
ainda que um homem cruel te tirasse a vida, que é que seria mudado aos
olhos de Deus? Nada. Aliás, haveria sim uma mudança. Mas para o teu bem.
Deus uniria aos méritos de tua bondade os méritos do teu martírio
intelectual, financeiro ou físico.
– Bem. Está bem! Então, será assim.
Pedro não fala mais. Ele está amuado e com a cabeça apoiada na mão.
55.3
Jesus se volta para Tomé:
– Amigo, Eu te falei antes, lá no olival: “Quando Eu voltar por aqui, se
ainda quiseres, serás meu.” Agora Eu te digo: “Estás disposto a fazer um
favor a Jesus?”
– Sem dúvida.
– Mas, e se esse favor exigir de ti um sacrifício?
– Servir a Ti não é nenhum sacrifício. Que queres?
– Eu queria te dizer… mas poderias ter teus negócios, teus afetos…
– Nada, nada. Eu tenho a Ti! Fala.
– Escuta. Amanhã, com as primeiras horas do dia, o leproso sairá dos
sepulcros para encontrar quem vai avisar ao sacerdote. Mas, antes disso, tu
irás aos sepulcros. É uma caridade. E dirás em alta voz: “Ó tu, que ontem
foste limpo, vem para fora! Fui mandado a ti por Jesus de Nazaré, o Messias
de Israel, Aquele que te curou.” Faz que o mundo dos “mortos e vivos”
conheça o meu Nome e vibre de esperança, e quem à esperança unir a fé,
venha a Mim, para que Eu o cure. É a primeira forma da limpeza que Eu
trago, da ressurreição, da qual Eu sou dono. Um dia Eu darei uma limpeza
bem mais profunda… Um dia os sepulcros selados deixarão escapar os
mortos verdadeiros, que aparecerão para se rirem com as órbitas de seus
olhos vazios, com as mandíbulas descobertas pelo júbilo longínquo, e
entretanto sentido pelos esqueletos, dos espíritos liberados do Limbo de
espera. Eles aparecerão para se rirem diante dessa sua libertação, e para
vibrarem, sabendo a quem é que a devem… Vai tu! Ele virá ao teu encontro.
Tu farás o que vai te pedir que faças. O ajudarás em tudo, como se fosse teu
irmão. E lhe dirás também: “Quando estiveres completamente purificado,
iremos juntos pela estrada do rio, além de Doco e de Efraim. Lá o Mestre
Jesus te espera e me espera, para dizer-nos em que é que o devemos servir.”
– Assim farei. E o outro?
– Quem? O Iscariotes?
– Sim, Mestre.
– Para ele persiste o meu conselho. Deixa-o decidir por si e por longo
tempo. Evita até de encontrá-lo.
– Estarei junto ao leproso. No vale dos sepulcros só os imundos é que
vagueiam ou os que têm contatos de piedade para com eles.
55.4
Pedro resmunga alguma coisa. Jesus ouve.
– Pedro, que tens? Ou estás calado, ou resmungas. Pareces descontente.
Por que?
– Eu estou descontente. Nós somos os primeiros, e Tu não fazes um
milagre para nós. Nós somos os primeiros, e Tu te sentas ao lado de um
estrangeiro. Nós somos os primeiros e Tu dás encargos a ele, e não a nós.
Nós somos os primeiros e… sim, é isso mesmo, e parece que somos os
últimos. Por que vais esperá-los no caminho do rio? Certamente para dar a
eles alguma missão. Por que a eles e não a nós?
Jesus olha para ele. Não está irado. Ao contrário, sorri, como se sorri a
um rapazinho. Levanta-se, vai lentamente até Pedro, põe-lhe a mão sobre o
ombro, e diz, sorrindo:
– Pedro! Pedro! És um grande velho menino!
E a André, sentado perto do irmão, diz:
– Vai para o meu lugar –assenta-se ao lado de Pedro, cingindo-o com o
braço pelas costas e lhe fala, segurando-o assim contra o seu ombro:
– Pedro, está te parecendo que Eu cometo injustiça, mas não é injustiça
o que faço. É, ao contrário, uma prova de que sei o que valeis. Olha bem.
Quem é que precisa de provas? Aquele que ainda não está firme. Pois bem,
Eu sabia que vós estáveis tão firmes Comigo, que não senti necessidade de
dar-vos provas do meu poder. Aqui em Jerusalém são necessárias as provas,
aqui onde o vício, a irreligião, as políticas e muitas coisas do mundo
ofuscam os espíritos a ponto de eles não poderem ver a Luz que passa. Mas
lá, sobre o nosso belo lago, tão puro sob um límpido céu, lá, entre pessoas
honestas e desejosas do bem, não são necessárias as provas. Ali tereis os
milagres. Derramarei sobre vós chuvas de graças. Mas, olha como vos tenho
estimado: Eu vos tomei Comigo sem exigir provas e sem achar necessidade
de vo-las dar, porque Eu sei quem sois. Queridos, tão queridos e tão fiéis a
Mim.
Pedro se acalma:
– Perdoa-me, Jesus.
– Sim, Eu te perdôo, porque o teu amuo é amor. Mas, não tenhas mais
inveja, Simão de Jonas. Sabes o que é o coração do teu Jesus? Já viste o
mar, o verdadeiro mar? Sim? Pois bem, o meu coração é bem mais vasto do
que o grande mar. Nele há lugar para todos. Para toda a humanidade. E o
pequenino encontra lugar, como o maior dos grandes. O pecador encontra
amor, como o inocente. A eles Eu dou uma missão. Com toda a certeza.
Queres probir-me de dá-la? Eu é que vos escolhi. Não fostes vós. Portanto,
Eu sou livre para julgar como empregar-vos. E, se a estes Eu os deixo aqui
com uma missão — que pode também ser uma prova, como pode ser uma
misericórdia o lapso de tempo concedido ao Iscariotes — podes tu
reprovar-me? Sabes se para ti não estarei reservando uma maior? E não é a
mais bela aquela de ouvires Eu te dizer: “Tu virás Comigo”?
– É verdade, é verdade! Eu sou um animal! Perdão…
– Sim. Tens todo o perdão. Oh! Pedro!… Mas Eu vos peço a todos: não
fiqueis mais discutindo sobre merecimentos e postos. Eu teria podido nascer
rei. Nasci pobre, em uma estrebaria. Teria podido ser rico. Vivi do trabalho
e agora da caridade. Contudo, crede-o, amigos, não há ninguém maior aos
olhos de Deus do que Eu. Do que Eu, que estou aqui como servo do homem.
– Servo Tu? Nunca.
– Por que, Pedro?
– Porque eu é que serei o teu servo.
– Ainda que tu me servisses, como uma mãe serve ao seu filhinho, Eu
vim para servir ao homem. Para ele Eu serei o Salvador. Que serviço existe
igual a este?
– Oh! Mestre! Tu nos explicas tudo. E o que nos parecia escuro, logo se
torna claro.
– Estás contente agora, Pedro? 55.5Então, deixa-me acabar de falar com
Tomé. Estás certo de que reconhecerás o leproso? Lá só ele é que está
curado; mas poderia ele já ter partido com a luz das estrelas, para encontrar
algum viajante solícito. E pode ser que algum outro, ansioso para entrar na
cidade e ver seus parentes, se apresente no lugar dele. Escuta bem como ele
é. Eu estava perto dele e, no crepúsculo, ainda pude vê-lo bem. Ele é alto e
magro. É de cor escura, como um mestiço, tem os olhos profundos e muito
pretos, sob sobrancelhas brancas, cabelos brancos como o linho e bastante
encaracolados, nariz longo, achatado na ponta como o dos líbios, lábios
grossos, especialmente o inferior, e salientes. É tão oliváceo que os lábios
são um pouco tendentes ao violáceo. Na fronte traz uma cicatriz antiga que
lhe ficou e será a única mancha, agora que ficará limpo das crostas e
imundície.
– Então é um velho, se já está com a cabeça toda branca.
– Não Filipe. Parece, mas não é. Foi a lepra que o fez ficar encanecido.
– Que há com ele? Terá um sangue mestiço?
– Talvez, Pedro. Tem uma semelhança com os povos da África.
– Então será ele israelita?
– Disso saberemos depois. E se ele não for?
– Ora, se não fosse, já teria ido embora. Já é muito ter merecido ser
curado.
– Não, Pedro. Ainda que seja idólatra, Eu não o rejeitarei. Jesus veio
para todos. E, na verdade, te digo que os povos das trevas ultrapassarão os
filhos do povo da Luz…
Jesus suspira. Depois se levanta. Dá graças ao Pai com um hino e
abençoa.
A visão cessa assim.
55.6
Incidentalmente faço notar que o meu monitor interior me disse, desde
ontem à tarde, quando eu estava vendo o leproso: “É Simão, o apóstolo.
Verás a vinda dele e a de Tadeu ao Mestre.” Esta manhã, depois da
Comunhão (é sexta-feira), eu abro o missal e vejo que justamente hoje é a
vigília da festa dos Santos Simão e Judas, e o Evangelho de amanhã fala
sobre a caridade quase repetindo as palavras ouvidas por mim, antes, na
visão. Mas Judas Tadeu, por enquanto, não o vi.
56. Simão Zelote e Judas Tadeu unidos na sorte.
28 de outubro de 1944.
56.1
Sois mesmo belas, ó margens do Jordão, assim como éreis no tempo
de Jesus! Eu vos vejo e me deleito na vossa majestosa paz verde-azulada,
soante de águas e frondes com um tom doce como melodia.
Estou andando por uma estrada muito longa e também muito bem
conservada. Deve ser uma estrada mestra, ou melhor, militar, traçada pelos
romanos para convergir as diversas regiões com a capital. Perto dela desliza
o Jordão, mas ela não passa exatamente ao longo dele. Está separada do rio
por uma zona silvestre, que parece cumprir a finalidade de reforçar as beiras
oferecendo alguma resistência às águas nos tempos de cheia. Do outro lado
da estrada os bosques continuam, de modo que a rua parece um túnel natural,
sobre o qual se entrelaçam os ramos frondosos. É um bom lugar de descanso
para os viajantes nestas regiões de sol ardente.
O rio, e naturalmente também a rua, têm, no ponto em que me encontro,
uma curva lenta, de modo que eu vejo a continuação da margem frondosa,
como se fosse uma muralha verde destinada a represar um açude de águas
tranqüilas. Parece quase um lago de um parque senhoril. Mas a água não é a
água parada de um lago. Ela desliza, se bem que lentamente. E a prova disso
é o sussurro que ela faz contra os primeiros caniços, os mais audazes que
nasceram justamente ali em baixo no leito do rio, e a ondulação que têm as
longas fitas formadas por suas folhas, suspensas sobre a superfície da água e
movidas por ela. Há também um grupo de salgueiros com flexíveis ramos
pendentes, que confiaram as pontas de suas cabeleiras verdes ao rio que
parece penteá-las com a graça de uma carícia, estendendo-as suavemente ao
fio da água corrente.
Há silêncio e paz na hora matutina. Só os cantos, os chamados dos
pássaros, o sussurro das águas e frondes e um grande brilho do orvalho
sobre a erva verde, alta, que está entre as árvores; elas ainda não estão
endurecidas e amareladas pelo sol do verão, mas tenras e novas para
nascerem, depois da primaveril efusão de águas que vêm nutrir a terra, até à
profundidade, de umidade e de sucos vitais.
56.2
Três viajantes estão parados nesta volta da estrada bem no meio da
curva. Estão olhando para baixo e para cima, para o sul, onde está Jerusalém
e para o norte, onde fica a Samaria. Perscrutam entre a colunata das árvores,
para ver se chega alguém que estão esperando. São eles Tomé, Judas Tadeu
e o leproso curado. Estão conversando.
– Não estás vendo nada?
– Eu não.
– Nem eu.
– No entanto este aqui é o lugar.
– Tens certeza disso?
– Toda certeza, Simão. Um dos seis me disse enquanto o Mestre se
afastava entre as aclamações da multidão, depois do milagre de um aleijado
que pedia esmola, que foi curado junto à porta dos Peixes: “Nós agora
vamos para fora de Jerusalém. Espera-nos a cinco milhas entre Jericó e
Doco, na curva do rio, ao longo da rua arborizada.” É esta. Disse também:
“Lá nós estaremos dentro de três dias, ao romper do dia.” Já é o terceiro dia,
e a quarta vigília nos apanhou aqui.
– Ele virá? Talvez teria sido melhor segui-lo, a partir de Jerusalém.
– Não podias ainda andar por entre a multidão, Simão.
– Se meu primo disse que vem até aqui, até aqui virá. Ele cumpre
sempre o que promete. É só esperar.
56.3
– Tu sempre estiveste com Ele?
– Sempre. Desde quando Ele voltou a Nazaré foi para mim um bom
companheiro. Sempre estivemos juntos. Somos da mesma idade, sendo eu um
pouco mais velho. Além disso, dos meus irmãos eu era o preferido do pai
Dele, irmão de meu pai. Também a mãe me queria muito bem. Eu cresci mais
com ela do que com minha mãe.
– Ela te queria… Então agora não te quer mais o mesmo bem?
– Oh! Sim. Mas nós temos estado um pouco divididos desde que Ele se
fez profeta. Meus parentes não gostam disso.
– Quais parentes?
– Meu pai e os dois filhos mais velhos. O outro está titubeante… Meu
pai está muito velho e não tive coragem de irritá-lo. Mas agora… agora, não
mais. Agora eu vou onde o coração e a mente me levam. Vou a Jesus. Creio
que não ofendo a Lei fazendo assim. Mas já… se não fosse justo o que eu
quero fazer Jesus me diria. Eu farei o que Ele disser. É lícito a um pai criar
obstáculos a um filho no caminho do bem? Se eu sinto que ali está a
salvação, por que impedir-me de tê-la? Por que os pais, às vezes, são nossos
inimigos?
Simão suspira, como quem se lembra de coisas tristes e inclina a
cabeça, mas não fala.
É Tomé quem responde:
– Eu já superei esse obstáculo. Meu pai me ouviu e me compreendeu.
Ele me abençoou dizendo: “Vai. Que esta Páscoa seja para ti a libertação da
escravidão de uma expectativa. Feliz de ti que podes crer. Eu espero. Mas,
se for Ele mesmo, e ao segui-lo perceberes que é, vem dizer ao teu velho
pai: ‘Vem. Israel já tem o Esperado’.”
– És mais feliz do que eu. E dizer que nós temos vivido ao seu lado!… E
não cremos, logo nós da família!… E dizemos, ou melhor, eles dizem: “Ele
perdeu o juízo!”
56.4
– Olhai, lá vem um grupo de pessoas –grita Simão–. É Ele, é Ele!
Reconheço a sua cabeça loira! Oh! Vinde. Vamos correr!
E põem-se a caminhar em passos rápidos para o sul. Agora que o alto do
arco foi alcançado, as árvores escondem o resto da rua, de modo que os dois
grupos se encontram quase de frente quando menos esperam. Jesus parece
estar subindo do rio, porque está entre as árvores da margem.
– Mestre!
– Jesus!
– Senhor!
Os três gritos do discípulo, do primo e do curado ressoam cheios de
adoração e de festiva acolhida.
– Paz a vós!
Eis a bonita, inconfundível voz, cheia, sonora, tranqüila, expressiva,
clara, viril, doce e incisiva:
56.5
– Tu também estás aqui, meu primo Judas?
Eles se abraçam. Judas chora.
– Por que este pranto?
– Oh! Jesus! Eu quero estar Contigo!
– Eu te esperei sempre. Por que não vieste?
Judas inclina a cabeça e fica calado.
– Eles não quiseram! E agora?
– Jesus, eu… eu não posso obedecer a eles. Eu quero obedecer somente
a Ti.
– Mas Eu não te dei uma ordem.
– Não. Tu, não. Mas é a tua missão que nos dá ordem! É Aquele que Te
mandou que fala aqui, no meio do meu coração, e me diz: “Vai a Ele!” É
aquela que te gerou e que para mim tem sido uma mestra suave que, com seu
olhar de pomba, me diz, sem fazer uso de palavras: “Sê de Jesus!” Poderei
eu não fazer conta daquela voz excelsa que me perfura o coração? Desta
oração de santa que certamente me suplica para o meu bem? Só porque eu
sou teu primo por parte de José, não deverei Te conhecer por aquilo que és,
enquanto o Batista Te conheceu, aqui, nas margens deste rio, ele que nunca
Te havia visto, e Te saudou como o “Cordeiro de Deus”? E eu, eu que cresci
junto Contigo, eu que procurei tornar-me bom Te imitando, eu que me tornei
filho da Lei pelo merecimento de tua mãe, e que dela aprendi, não os
seiscentos e treze preceitos dos rabinos, além da Escritura e das orações,
porém a alma disso tudo, eu não deveria ser capaz de nada?
– E o teu pai?
– Meu pai? Não lhe falta pão nem assistência, e depois… Tu me dás o
exemplo. Tu tiveste o pensamento no bem do povo, mais do que no pequeno
bem de Maria. E ela está sozinha. Diz-me, Tu, meu Mestre, não é lícito
talvez, sem faltar com o respeito, dizer a um pai: “Pai, eu te amo. Mas acima
de ti está Deus, e a Ele eu sigo”?
– Judas, meu parente e amigo, Eu te digo: tu estás bem adiantado no
caminho da Luz. Vem. É lícito falar ao pai assim quando é Deus que chama.
Não há nada acima de Deus. Até as leis do sangue cessam, ou seja,
sublimam-se, porque com as nossas lágrimas damos aos pais, às mães, uma
ajuda muito maior e por coisas mais eternas do que a jornada do mundo.
Conosco os conduzimos para o Céu e pelo mesmo caminho do sacrifício dos
afetos, os levamos para Deus. Portanto, fica, Judas. Eu te esperei e estou
feliz por reaver-te, amigo da minha vida nazarena.
Judas está comovido.
56.6
Jesus se volta para Tomé:
– Obedeceste fielmente. É a primeira virtude do discípulo.
– Eu vim para ser-te fiel.
– E o serás. Eu te digo. Vem, tu que estás envergonhado na sombra. Não
temas.
– Meu Senhor!
O ex-leproso está aos pés de Jesus.
– Levanta-te. Qual o teu nome?
– Simão.
– Qual a tua família?
– Senhor… era poderosa… eu também era poderoso… mas o ódio de
seitas e… erros da juventude estragaram o seu poder. Meu pai… Oh! Devo
falar contra ele que me custou lágrimas, e não para o céu. Tu o vês, já viste
que presente ele me deu!
– Ele era leproso?
– Não. Não era leproso, como eu também não. Mas era doente de uma
enfermidade de outro nome, que nós de Israel costumamos pôr junto com
outros diversos tipos de lepra. Ele… — naquele tempo a sua casta ainda
triunfava — e ele viveu e morreu prestigiado em sua casa. Eu… se Tu não
me tivesses salvado, iria morrer nos sepulcros.
– Tu és sozinho?
– Sozinho. Eu tenho um servo fiel que cuida de tudo o que me resta.
Mandei já um aviso a ele.
– E tua mãe?
– Ela… morreu.
O homem parece embaraçado. Jesus o observa atentamente:
– Simão, tu me disseste: “Que devo fazer por Ti?” E agora Eu te
respondo: “Segue-me”.
– Imediatamente, Senhor!… Mas… mas eu… deixa que eu Te diga uma
coisa. Eu sou, eu era chamado “Zelote”[101] pela casta, e “cananeu” por
minha mãe. Tu vês. Eu sou escuro. Em mim eu tenho sangue de escrava. Meu
pai não tinha filhos de sua mulher e me teve de uma escrava. A mulher dele,
boa mulher, me criou como filho e cuidou de mim em minhas muitas doenças
até morrer…
– Aos olhos de Deus, não há escravos ou libertos. Aos seus olhos só há
uma escravidão: a do pecado. E Eu vim para removê-la. Eu vos chamo a
todos porque o Reino é de todos. Tens cultura?
– Tenho. Eu tinha também o meu lugar entre os grandes. Isso, enquanto o
meu mal ficou escondido sob as roupas. Mas, quando subiu ao rosto… meus
inimigos aproveitaram-se de meu mal para me confinarem entre os “mortos.”
No entanto, como disse um médico de Cesaréia, romano, a quem eu fui
consultar, a minha não era verdadeira lepra, mas uma impigem hereditária,
pelo que bastava que eu não procriasse para não propagá-la. Posso eu não
maldizer meu pai?
– Deves não maldizê-lo. Ele te fez todos os males…
– Oh, sim. Dilapidador dos bens, vicioso, cruel, sem coração nem afeto.
Ele me negou a saúde, as carícias, a paz, me carimbou com um nome de
desprezo e com uma doença que é uma marca de opróbrio… De tudo ele se
fez dono. Também do futuro de seu filho. Tudo ele me tirou: até a alegria de
ser pai.
– Por isso é que Eu te digo: “Segue-me.” Ao meu lado, e seguindo-me,
encontrarás Pai e filhos. Levanta o olhar, Simão. Lá o verdadeiro Pai te está
sorrindo. Olha pelos espaços da terra, pelos continentes, pelas regiões. Há
neles filhos e filhos, filhos de alma para os sem filhos. Estão à tua espera e a
espera de muitos outros como tu. Sob o meu sinal não há mais abandonos.
No meu sinal não há mais solidões nem diferenças. É um sinal de amor. E
amor dá. 56.7Vem, Simão, que não tiveste filhos. Vem, Judas, que deixas teu pai
por amor de Mim. Eu vos uno na sorte.
Ele está com os dois junto a si. Tem as mãos sobre os seus ombros,
como quem toma posse, como para impor um jugo comum. Depois, diz:
– Eu vos uno. Mas agora vos separo. Tu, Simão, ficarás aqui, com Tomé.
E prepararás com ele os caminhos da minha volta. Daqui a não muito tempo
Eu voltarei e quero que povos e povos me esperem. Dizei aos doentes, e tu o
podes dizer, que vai chegar Aquele que cura. Dizei aos povos que esperam,
que o Messias está entre o seu povo. Dizei aos pecadores que já há quem
perdoa a fim de dar a força para subir…
– Mas, seremos capazes disso?
– Sim. Basta que faleis assim: “Ele já chegou. Ele vos está chamando.
Ele vos espera. Ele vem trazer-vos a graça. Ficai aqui prontos para vê-lo”; e
às palavras, acrescentai a narração do que já sabeis. E tu, Judas, meu primo,
vem Comigo e com estes. Mas tu ficarás em Nazaré.
– Por que, Jesus?
– Porque deves preparar-me o caminho em minha pátria. Achas que é
uma missão pequena? Na verdade, não há nenhuma outra mais grave…
Jesus suspira.
– E eu conseguirei?
– Sim e não. Mas isso será suficiente para justificar-nos.
– Justificar-nos de quê? E junto à quem?
– Junto a Deus. Junto à pátria. Junto à família. Não poderão censurar-
nos, porque temos oferecido o bem. E se a pátria e a família desprezarem o
que fazemos, não teremos culpa de sua perdição.
– E nós?
– Vós, Pedro? Vós voltareis às redes.
– Por que?
– Porque Eu vos instruirei lentamente e virei buscar-vos quando vos
achar preparados.
– Mas Te veremos, então?
– Com certeza. Eu virei a vós freqüentemente, ou vos farei chamar,
quando Eu estiver em Cafarnaum. Agora, saudai-vos, amigos, e vamos. Eu
vos abençôo, a vós que ficais. Minha paz esteja convosco.
E termina a visão.
[101] “Zelote” pela casta, a dos zelotes, assim chamados p elo seu zelo em observar a lei e em op or-se a toda a dominação
estrangeira sobre o p ovo eleito. M as o significado da exp ressão escap a a M aria Valtorta, que em rodap é à p ágina autografa
anota: quem são os zelotes? Igualmente ignoradas p ela escritora as p alavras “sciemanflorasc” (em 503.9/10) e “gulal” (em
542.7).
57. Em Nazaré com Judas Tadeu
e com outros seis discípulos.
31 de outubro de 1944.
57.1
Jesus chega com o primo e os seis discípulos nas proximidades de
Nazaré. Do alto do outeiro onde se encontram vê-se a pequena cidade,
branca entre o verde, subindo e descendo pelas encostas sobre as quais ela
está construída, um doce ondular de encostas, num ponto apenas percebido e
noutro, mais acentuado.
– Já chegamos, amigos. Eis ali a minha casa. Minha mãe lá está, porque
a fumaça se está levantando da casa. Talvez ela esteja fazendo o pão. Eu não
vos digo: “Ficai”, porque penso que deveis estar ansiosos para chegar em
vossas casas. Mas, se quiserdes partir o pão Comigo e conhecer aquela que
João já conhece, então, Eu vos digo: “Vinde.”
Os seis, que já estavam tristes pela iminente separação, voltam a ficar
alegres, e aceitam de coração.
– Então vamos.
Descem rapidamente a pequena colina e pegam a rua mestra. A tarde
vem chegando. Ainda faz calor, mas as sombras já descem sobre o campo,
onde os cereais já estão amadurecendo.
Entram na cidade. Mulheres que vão e vêm da fonte, homens às soleiras
das pequenas oficinas, ou nas hortas, saúdam a Jesus e a Judas.
Os meninos se aglomeram ao redor de Jesus.
– Já voltaste?
– Agora vais ficar aqui?
– Quebrou-se de novo a roda do meu carrinho.
– Sabes, Jesus? Nasceu minha irmã e deram a ela o nome de Maria.
– O mestre me disse que eu sei tudo e que sou um verdadeiro filho da
Lei.
– Sara não está porque está com a mãe muito doente. Chora porque tem
medo.
– Meu irmão Isaque se casou. Houve uma grande festa.
Jesus escuta, acaricia, elogia, promete ajudar.
57.2
E assim chegaram à casa. E sobre a soleira já está Maria, que foi
avisada por um rapazinho atencioso.
– Meu Filho!
– Mãe!
Os dois se abraçam. Maria, muito mais baixa que Jesus, está com a
cabeça apoiada no alto do peito do Filho, fechada entre o círculo dos seus
braços. Ele a beija sobre os cabelos loiros. Entram em casa.
Os discípulos, incluindo Judas, ficam lá fora, para deixarem livres os
dois em suas primeiras expansões.
– Jesus, meu Filho!
A voz de Maria está trêmula, como a de quem está com as lágrimas na
garganta.
– Por que estás assim, mãe?
– Ó Filho! Disseram-me… No Templo estavam os galileus, os
nazarenos, naquele dia… Eles voltaram… E contaram… Ó Filho!…
– Mas tu o estás vendo, mãe! Eu estou bem. Nenhum mal veio sobre
Mim. Só veio a glória a Deus em sua Casa.
– Sim. Eu sei, Filho do meu coração. Sei que foi como o toque da
trombeta, despertando os que dormem. E, pela glória de Deus, eu me sinto
feliz… feliz que este meu povo desperta para Deus. Eu não te censuro… eu
não te ponho obstáculo… eu te compreendo… e… e fico feliz… mas eu te
gerei, eu, meu Filho!…
Maria está ainda envolvida pelo abraço de Jesus e falou, com as
mãozinhas abertas e apoiadas sobre o peito do Filho, a cabeça levantada
para Ele, os olhos mais brilhantes pelo pranto que está prestes a descer;
agora se cala, apoiando novamente a cabeça sobre o peito Dele. Parece uma
rolinha cinzenta, vestida como está com uma veste acinzentada, sob a
proteção de duas fortes asas de candor, pois Jesus ainda está com sua veste e
o manto branco.
– Mãe! Pobre mãe! Querida mãe!…
Jesus a beija outra vez. 57.3Depois, diz:
– E então, não estás vendo? Eu estou aqui e não estou sozinho. Tenho
Comigo os meus primeiros discípulos, e ainda outros que ficaram na Judéia.
Também o primo Judas está Comigo e agora me segue…
– Judas?
– Sim, Judas. Eu sei porque é que estás admirada. Certamente, entre os
que falaram do que aconteceu, estavam Alfeu com seus filhos… e não erro
se disser que eles me criticaram. Mas, não tenhas medo. Hoje é assim,
amanhã não será mais assim. O homem tem que ser cultivado como a terra e
onde hoje há espinhos, amanhã haverá rosas. Judas, que tu amas, já está
Comigo.
– Onde ele está agora?
– Ali fora, com os outros. Tens pão para todos?
– Sim, Filho. Maria de Alfeu está junto ao forno desenfornando os pães.
Muito boa é Maria para comigo; especialmente numa hora destas.
– Deus lhe dará glória!
Vai até à porta e chama:
– Judas! Tua mãe está aqui! Amigos, vinde!
Eles entram e saúdam. Judas beija Maria. Só depois corre em direção à
sua mãe.
Jesus diz os nomes dos outros cinco: Pedro, André, Tiago, Natanael e
Filipe; porque João, já conhecido de Maria, saudou-a logo depois de Judas,
inclinando-se e recebendo dela a bênção.
57.4
Maria os saúda e os convida a se sentarem. Ela é a dona da casa e,
mesmo adorando com o olhar o seu Jesus, ocupa-se com os hóspedes; parece
que sua alma continua a falar, com os olhos, ao seu Filho. Ela queria ir
buscar água para matarem a sede. Mas Pedro dispara:
– Não, mulher. Não posso permitir isso. Assenta-te perto do teu Filho, ó
mãe santa. Eu irei; nós iremos refrescar-nos lá na horta.
Chega Maria de Alfeu toda corada e enfarinhada e saúda Jesus, que a
abençoa; depois leva os seis até à horta, ao tanque, e volta feliz.
– Oh! Maria! –diz à Virgem–. Judas me falou. Como estou contente! Por
Judas e por ti, minha cunhada. Eu sei que os outros vão ralhar comigo. Mas
não me importa. Serei feliz no dia em que souber que todos eles são de
Jesus. Nós, mães, sabemos… percebemos o que é bom para os filhos. E eu
percebo que o bem de meus filhos és Tu, Jesus.
Jesus lhe faz uma carícia sobre a cabeça, sorrindo.
Voltam os discípulos. Maria de Alfeu lhes serve um pão cheiroso,
azeitonas e queijo. Leva também uma pequena ânfora de vinho tinto que
Jesus serve aos seus amigos. É sempre Jesus quem oferece e depois
distribui.
57.5
Um pouco embaraçados, a princípio, os discípulos depois se tornam
mais corajosos e falam de suas casas, da viagem a Jerusalém e dos milagres
acontecidos. Agora eles estão cheios de zelo, de afeto. Pedro procura fazer
de Maria uma sua aliada, para conseguir que sejam logo tomados por Jesus
sem ter que esperar até que chequem em Betsaida.
– Fazei tudo que Ele diz –exorta ela, com um suave sorriso–. Esta
espera vos será mais útil do que uma aliança imediata. O meu Jesus faz bem
tudo que faz.
A esperança de Pedro morre. Mas ele se resigna e se sai bem. Só faz
esta pergunta:
– Essa espera durará muito?
Jesus olha para ele com um sorriso, mas não diz nada.
Maria interpreta aquele sorriso como um bom sinal, e diz:
– Simão de Jonas, Ele está sorrindo… e por isso, eu te digo: rápido,
como o vôo de uma andorinha sobre o lago será o tempo da tua obediente
espera.
– Obrigado, mulher.
57.6
– Não falas nada, Judas? E tu, João?
– Estou olhando para ti, Maria.
– E eu também.
– Eu também olho para vós e… sabeis de uma coisa? Está vindo à minha
lembrança uma hora que já vai longe. Também eu, naquele tempo, tinha
sempre três pares de olhos fixados em meu rosto com amor. Lembras-te
Maria, dos meus três discípulos?
– Oh! Se me lembro! É verdade! Também agora, há três quase da mesma
idade que olham para ti com todo amor que podem ter. E este aqui, o João,
eu penso, me parece o Jesus daquele tempo: tão loiro e rosado, o mais novo
de todos.
Os outros querem saber, e as recordações e anedotas fluem em meio à
conversação, enquanto o tempo passa. Chega a tarde.
– Meus amigos, Eu não tenho cômodos. Mas ali é a oficina onde eu
trabalhava. Se quiserdes abrigar-vos nela… Mas lá só há os bancos do
ofício.
– Leito confortável é este para pescadores acostumados a dormir sobre
estreitas tábuas. Obrigado, Mestre. Dormir debaixo do teu teto é honra e
santificação.
Retiram-se com muitas saudações. Judas também se retira com sua mãe
e vão para sua casa.
Neste quarto ficam Jesus e Maria, sentados sobre o arquibanco, à luz de
uma pequena candeia, um braço ao redor das costas do outro. Jesus narra e
Maria escuta contente, trêmula e feliz…
Assim cessa a visão.
58. Cura de um cego em Cafarnaum
após uma lição de pesca aplicada às almas.
7 de outubro de 1944.
58.1
Jesus diz, e logo a tranqüilidade penetra em mim; e a alegria dessa
tranqüilidade luminosa torna-me risonho o coração:
– Vê como lhe agradam os episódios dos cegos. Demos-lhe um outro
deles.
E eu vejo.
58.2
Vejo um belíssimo pôr-do-sol de verão. O sol encheu de fogo todo o
poente e o lago de Genezaré tornou-se uma imensa laje incandescente sob um
céu aceso.
As ruas de Cafarnaum mal começam a se encher de gente: mulheres que
vão à fonte, homens, pescadores que preparam as redes e os barcos para a
pesca noturna, meninos que correm brincando, pequenos jumentos que vão
indo para o campo com seus cabazes, talvez para trazerem verduras.
Jesus aparece em uma porta que dá para um pequeno pátio sombreado
por uma videira e uma figueira, além do qual há uma viela pedregosa que
margeia o lago. Deve ser a casa de Pedro (ao invés, é a casa da sogra de
Pedro)[102], porque ele está com André à margem; estão no barco preparando
as cestas e as redes para os peixes, pondo em ordem os bancos e os rolos de
cordas. Tudo, em suma, o que é necessário para a pesca. André o está
ajudando, indo e vindo da casa ao barco.
58.3
Jesus interpela o seu apóstolo:
– Vai ser boa a pesca?
– O tempo está favorável. A água está calma, e a lua vai ser clara. Os
peixes emergirão das profundezas e a minha rede os arrastará consigo.
– Iremos sozinhos?
– Oh! Mestre! Como queres que façamos, com este sistema de redes, se
ficarmos sozinhos?
– Eu nunca pesquei e espero que tu me ensines.
Jesus vai descendo muito devagar em direção ao lago e pára à margem
da areia grossa e pedregosa, junto ao barco.
– Vê, Mestre: é assim que se faz. Eu saio ao lado do barco de Tiago,
filho de Zebedeu e vamos assim, um ao lado do outro até o ponto bom para a
pesca. Depois se desce a rede. Nós costumamos segurar uma ponta. Tu a
queres segurar, me disseste isto.
– Sim, se me disseres o que devo fazer.
– Oh! Basta tomar cuidado com a descida. Que a rede vá descendo
devagar e sem fazer nós. Devagar, porque estaremos em áreas de pesca e
qualquer movimento muito brusco pode espantar os peixes. E sem nós, para
que a rede não fique fechada, pois ela deve ir sendo aberta como uma bolsa,
ou como um véu, se te agrada assim, que vai sendo enchida pelo vento.
Depois, quando a rede já foi toda descida, iremos remando devagar, ou
iremos com a vela, conforme for necessário, fazendo um semicírculo sobre o
lago; quando o vibrar da estaca de segurança nos disser que a pesca foi boa,
dirigiremos o barco para a terra e lá perto da beira içaremos a rede; não
antes, para não nos arriscarmos a ver escapar a presa, nem depois para não
estragar os peixes nem as redes sobre as pedras. Neste ponto é preciso ter
olhos atentos porque os barcos devem estar muito próximos para que de um
se possa recolher a ponta da rede dada pelo outro, mas sem se bater para não
esmagar o saco cheio de peixes. 58.4Eu confio em Ti, Mestre, pois este é o
nosso pão. Olhos na rede, para que não se arrebente com as sacudidas. Os
peixes defendem a sua liberdade com fortes golpes de cauda e se forem
muitos… Tu entendes… São pequenos animais, mas reunidos em dez, em
cem, em mil, tornam-se fortes como o Leviatã.
– É como acontece com as culpas, Pedro. Sendo a primeira, aindanão é
irreparável. Mas, se alguém não toma cuidado, não limitando-se àquela, vai
acumulando, acumulando… acabará acontecendo que aquela pequena culpa,
talvez uma simples omissão, uma simples fraqueza, vai se tornando sempre
maior, passe a ser um hábito, e se transforme em um vício capital. Às vezes,
começa-se por um olhar concupiscente e se termina por um adultério
consumado. Às vezes, por uma falta de caridade de palavras contra um
parente, acaba-se por uma violência contra o próximo. Ai de quem começa e
deixa que as culpas aumentem de peso, por seu número! Tornam-se
perigosas e prepotentes como a própria Serpente infernal e arrastam para o
abismo da Geena.
– Falas bem, Mestre… Mas, somos tão fracos!
– Advertência e oração para ser fortes e obter ajuda e uma firme vontade
de não pecar. Depois, uma grande confiança na amorosa justiça do Pai.
– Tu dizes que Ele não será muito severo com o pobre Simão?
– Com o velho Simão, Ele até que podia ser severo. Mas com o meu
Pedro, o homem novo, o homem do seu Cristo… não, Pedro. Ele te ama e te
amará.
– E eu?
– Também tu, André; e contigo, João e Tiago, Filipe e Natanael. Vós
sois os meus primeiros eleitos.
58.5
– Virão outros? Tem o teu primo, e na Judéia…
– Oh! Muitos. O meu Reino está aberto a todo o gênero humano e em
verdade Eu te digo que mais abundante do que a mais abundante de tuas
pescas será a minha nas noites dos séculos… Porque cada século é uma
noite, na qual é guia e luz, não a pura luz do Orion ou aquela da navegante
lua, mas, a palavra de Cristo e a Graça que Dele virá; noite que conhecerá a
aurora de um dia sem fim, de uma luz na qual todos os fiéis irão viver, de um
sol que revestirá os eleitos e os fará belos, eternos, felizes como uns deuses.
Deuses menores, filhos de Deus Pai e semelhantes a Mim… Por enquanto,
não podeis compreender. Mas em verdade Eu vos digo que a vossa vida
cristã vos concederá semelhança com o vosso Mestre, e resplandecereis no
Céu pelos próprios sinais dele. Pois bem, Eu terei, não obstante a inveja de
Satanás e a vontade fraca do homem, uma pesca mais abundante do que a tua.
– Mas, só nós é que seremos teus apóstolos?
– Ciumento, Pedro? Não. Não o sejas. Outros virão, e no meu coração
haverá amor para todos. Não sejas avarento, Pedro. Tu ainda não sabes
Quem te ama. Já contaste alguma vez as estrelas? E as pedras do fundo deste
lago? Não. Não poderias. Mas, menos ainda, irias poder contar as
palpitações de amor de que é capaz o meu coração. Pudeste alguma vez
contar quantas vezes este mar beija a margem com o seu beijo de ondas no
curso de doze luas? Não. Não poderias. Mas, menos ainda poderias contar
as ondas de amor que deste coração se derramam para beijar os homens.
Esteja certo, Pedro, do meu amor.
Pedro pega a mão de Jesus e a beija. Está comovido.
André olha e não ousa fazer o mesmo. Mas Jesus lhe põe a mão por
entre os cabelos e lhe diz:
– Também te amo muito. Na hora da tua aurora, verás, refletido na
abóbada do céu, sem que precises levantar teus olhos, o teu Jesus sorridente,
que te dirá: “Eu te amo. Vem”; e a tua passagem por essa aurora te será mais
doce do que a entrada numa câmara nupcial…
58.6
– Simão! Simão! André! Estou chegando…
João chega apressado:
– Oh! Mestre! Eu te fiz esperar?
João olha para Jesus com seu olhar amoroso.
Responde Pedro:
– Verdadeiramente, eu já estava começando a pensar que não viesses
mais. Prepara logo o teu barco. E Tiago?…
– Aí está… nós ficamos atrasados por causa de um cego. Ele estava
pensando que Jesus estivesse em nossa casa e foi para lá. Então, nós lhe
dissemos: “Ele está em algum outro lugar. Talvez amanhã Ele te cure.
Espera.” Mas ele não queria esperar. Tiago lhe dizia: “Tens esperado tanto a
luz, que te custa esperar mais uma noite?” Mas ele não quer saber de
razões…
– João, se tu fosses cego, não terias pressa de rever a tua mãe?
– Ah! Sem dúvida!
– E então? Onde está o cego?
– Ele vem vindo com o Tiago. Está agarrado ao manto de Tiago e não o
solta. Mas vem vindo devagar, porque a margem é pedregosa, ele tropeça…
Mestre, me perdoas, por ter sido duro?
– Sim. Mas para compensar, vai ajudar o cego e o traz a Mim.
João vai correndo.
Pedro sacode um pouco a cabeça, mas se cala. Olha para o céu que
começa a ficar azul depois de ter estado tanto tempo cor de cobre; olha para
o lago, olha para os outros barcos que já saíram para a pesca e suspira.
– Simão?
– Mestre?
– Não tenhas medo. Terás uma pesca abundante, ainda que saias por
último.
– Desta vez também?
– Todas as vezes que tiveres caridade Deus usará para contigo da graça
de abundância.
58.7
– Eis o cego.
O pobre homem avança entre Tiago e João. Ele tem nas mãos um bastão,
mas não está servindo-se dele agora, pois acha mais seguro confiar nos
dois.
– Pronto, homem! O Mestre está na tua frente.
O cego se ajoelha:
– Meu Senhor, piedade!
– Queres ver? Levanta-te. Desde quando és cego?
Os quatro apóstolos se agrupam ao redor dos dois.
– Faz sete anos, Senhor. Antes, eu via bem e trabalhava. Eu era ferreiro
em Cesaréia Marítima e ganhava bem. O porto, os muitos negócios, sempre
precisavam de mim para trabalhos. Mas, ao bater um ferro de âncora, e
podes fazer idéia de como devia estar vermelho para se tornar macio ao
golpe, soltou-se um estilhaço incandescente e me queimou um olho. Eu já
estava com os dois doentes por causa do calor da forja. Perdi o olho que foi
atingido e o outro também se foi, três meses depois. Acabei com minhas
economias e agora vivo de caridade…
– És sozinho?
– Tenho esposa e três filhos pequenos… de um deles eu nem sei como é
o rosto… e tenho minha mãe, já idosa. Contudo, agora é ela e minha mulher
que ganham para um pouco de pão; com isto e com a esmola que eu ajunto,
não se morre de fome. Se me curasses!… Eu voltaria ao trabalho. Não
desejo senão trabalhar, como um bom israelita e dar um pão àqueles que eu
amo.
– E vieste a Mim? Quem foi que te contou?
– Um leproso que Tu curaste aos pés do monte Tabor, quando ias de
volta para o lago, depois daquele tão belo discurso.
– Que foi que ele te disse?
– Que Tu podes tudo. Que és a saúde dos corpos e das almas. Que és luz
para as almas e para os corpos porque és a Luz de Deus. Ele, o leproso,
havia ousado misturar-se com a multidão, correndo o risco de ser
apedrejado, todo envolvido num manto, porque ele te havia visto passar
dirigindo-se para o monte; o teu rosto tinha colocado em seu coração uma
esperança. Ele me disse: “Eu vi naquele rosto qualquer coisa que me disse:
‘Ali está a saúde. Vai!’ E eu fui.” E assim me repetiu o teu discurso,
dizendo-me que Tu o curaste, tocando-o com a tua mão sem repugnância. Ele
estava voltando dos sacerdotes depois da purificação. Eu o conhecia, porque
eu já tinha trabalhado para ele, quando ele tinha uma loja em Cesaréia. Eu
vim perguntando por Ti pelas cidades e povoados. Agora Te achei… Tem
piedade de mim!
58.8
– Vem. É bem viva ainda a luz para alguém que vem da escuridão.
– Vais curar-me, então?
Jesus o guia em direção à casa da sogra de Pedro, à pouca luz que ainda
há no pequeno pomar e o põe à sua frente, mas de tal modo que os olhos, ao
ficarem curados, não fossem ter como primeira visão, o lago, ainda todo
cheio de reflexos de luz. O homem parece um menino muito dócil, deixa
Jesus fazer como quer, sem lhe perguntar o porquê.
– Pai! A tua luz a este filho!
Jesus estendeu as mãos sobre a cabeça do homem que está de joelhos.
Ele fica assim por um instante. Depois Jesus molha as pontas dos dedos na
saliva e, com a direita, toca-as de leve sobre os olhos abertos, mas sem
vida.
Um instante. Em seguida, o homem move as pálpebras e as esfrega como
quem sai do sono, mas está ainda com uma névoa nos olhos.
– Que estás vendo?
– Oh! Oh!… oh, Deus eterno! Parece-me… parece-me… oh! que eu
estou vendo… estou vendo a tua veste… é vermelha, não é? E uma mão
branca… e uma cinta de lã… oh! bom Jesus… estou vendo cada vez melhor,
vou-me acostumando a ver… Ali está a erva do chão… aquilo certamente é
um poço, e ali está uma videira…
– Levanta-te, amigo.
O homem, que chora e ri ao mesmo tempo, se levanta e, depois de um
instante de luta entre o respeito e o desejo, ergue o rosto e encontra o olhar
de Jesus. Um Jesus sorridente, cheio de piedade e de amor. Deve ser muito
belo recuperar a vista e ver, como primeiro sol, aquele rosto! O homem dá
um grito e estende os braços. É um ato instintivo. Mas ele se refreia.
Mas é Jesus quem lhe abre os braços e atrai para Si o homem, que é
muito mais baixo do que Ele.
– Vai agora para tua casa, sê feliz e justo. Vai com a minha paz.
– Mestre, Mestre! Senhor! Jesus! Santo! Bendito! A luz… Eu vejo…
vejo tudo… Ali está o lago azul e o céu sereno, e os últimos raios de sol, e
lá a primeira sombra da lua… Mas o azul mais belo e sereno eu o vejo nos
teus olhos e em Ti vejo a beleza do sol mais verdadeiro, e resplandecer a
pureza da mais santa lua. Astro dos doentes, Luz dos cegos, Piedade viva e
operante!
– Luz dos espíritos, Eu sou. Sê tu um filho da Luz.
– Sempre, Jesus. A cada batida da minha pálpebra sobre a pupila
renascida, eu renovarei este juramento. Sê bendito Tu e o Altíssimo!
– Bendito seja o Altíssimo Pai! Vai!
E o homem vai feliz, andando com passos firmes, enquanto Jesus e os
pasmados apóstolos, descem em dois barcos e começam a manobra da
navegação.
E a visão termina.
[102] (ao invés, é a casa da sogra de Pedro), é a rectificação de M aria Valtorta sobre uma cóp ia dactilografada; da sogra, nas
p rimeiras linhas de 58.8, é um acréscimo de M aria Valtorta sobra a mesma cóp ia dactilografada. Das duas casas de Pedro (a
p róp ria em Betsaida e a da sogra em Cafarnaum) se falará em vários p ontos do cap ítulo 60.
59. O endemoninhado curado
na sinagoga de Cafarnaum.
2 de novembro de 1944.
59.1
Vejo a sinagoga de Cafarnaum. Ela já está cheia pela multidão que
encontra-se em expectativa. Pessoas que estão à porta olham com freqüência
para a praça ainda ensolarada, se bem que a tarde já vem chegando.
Finalmente, ouve-se um grito:
– Eis o Rabi.
As pessoas viram-se todas para a porta, os mais baixos se levantam nas
pontas dos pés, ou procuram lançar-se para a frente. Algumas discussões,
alguns empurrões, não obstante as repreensões partidas dos encarregados da
sinagoga e dos maiorais da cidade.
– A paz esteja sobre todos os que procuram a Verdade!
Jesus está na entrada e saúda abençoando, com os braços estendidos
para a frente. A luz bem forte que há na praça cheia de sol faz com que sua
figura alta se destaque, aureolando-a de luz. Jesus tirou sua veste branca
ficando, como é o costume, com outra azul escura. Ele avança entre a
multidão, que se abre e se fecha ao redor Dele, como a onda ao redor de um
navio.
59.2
– Eu estou doente, cura-me! –geme um jovem, que pelo aspecto, me
parece estar tuberculoso e que segura Jesus pela veste.
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça e diz:
– Confia. Deus te ouvirá. Deixa agora que Eu fale ao povo, depois virei
a ti.
O jovem o deixa ir e fica quieto.
– Que foi que Ele te disse? –pergunta-lhe uma mulher que está com um
menino nos braços.
– Disse-me que depois de ter falado ao povo virá a mim.
– Então, vai te curar?
– Não sei. Ele me disse: “Confia.” Eu espero.
– Que foi que Ele disse? Que foi que Ele disse?
A multidão quer saber. E a resposta de Jesus vai sendo comentada entre
o povo.
– Então, eu vou buscar o meu menino.
– E eu vou trazer aqui o meu velho pai.
– Oh! Se o Ageu quisesse vir! Eu vou tentar… mas ele não virá.
59.3
Jesus chegou ao seu lugar. Saúda o chefe da sinagoga e é saudado por
ele. É um homenzinho baixo, gordo e de idade. Para falar a ele, Jesus precisa
inclinar-se. Parece uma palmeira que se curva sobre um arbusto mais largo
do que alto.
– Que queres que eu te dê? –pergunta o arqui-sinagogo.
– O que quiseres, ou melhor, o que apanhares. O Espírito te guiará.
– Mas… estás preparado?
– Estou. Dá-me um qualquer. Repito: O Espírito do Senhor guiará a
escolha para o bem deste povo.
O arqui-sinagogo estende a mão sobre a pilha dos rolos, tira um, abre-o,
e pára num certo ponto.
– Este –diz ele.
Jesus pega o rolo e lê o ponto indicado[103]:
– Josué: “Levanta-te e santifica o povo, e diz a eles: ‘Santificai-vos para
amanhã, porque diz o Senhor Deus de Israel, o anátema está no meio de vós,
ó Israel; tu não poderás estar à frente dos teus inimigos, enquanto não for
tirado do meio de ti quem se tiver contaminado com tal delito’.”
Ele pára, enrola o volume, e o entrega de volta.
A multidão está muito atenta. Somente se ouve a voz de alguém que
murmura:
– Vamos ouvir hoje das boas contra os inimigos!
– É o Rei de Israel, o Prometido, que reúne o seu povo!
59.4
Jesus estende os braços em seu costumeiro gesto oratório. O silêncio
se torna completo.
– Quem veio para santificar-vos se levantou. Ele saiu do segredo da
casa onde se preparou para esta missão. Ele se purificou para dar-vos
exemplo de purificação. Tomou sua posição frente aos poderosos do Templo
e ao povo de Deus e agora está entre vós. Sou Eu. Não como alguns entre
vós pensam e esperam, com uma mente enevoada e com um fermento no
coração. Mais alto e maior é o Reino do qual Eu sou o futuro Rei e ao qual
Eu vos chamo.
Eu vos chamo, ó vós de Israel, antes de qualquer outro povo, porque vós
sois os que, nos pais dos pais, tiveram a promessa desta hora e aliança com
o Senhor Altíssimo. Mas não será com multidões armadas nem com
ferocidades sangrentas que este Reino vai ser formado; e nele não entrarão
os violentos, nem os prepotentes, nem os soberbos, os iracundos, os
invejosos, os luxuriosos, os avarentos, mas os bons, os mansos, os
continentes, os misericordiosos, os humildes, os que têm amor ao próximo e
a Deus, os pacientes.
Israel! Não é contra os inimigos de fora que és chamado a combater.
Mas contra os inimigos de dentro. Contra aqueles que estão no coração de
cada um de vós. No coração de dezenas e dezenas de milhares de filhos teus.
Tirai o anátema do pecado de todos os vossos corações um por um, se
quereis que amanhã Deus vos reúna e vos diga: “Povo meu, para ti o Reino
que não será mais derrotado, nem invadido, nem emboscado pelos
inimigos.”
Amanhã. Que amanhã é este? Dentro de um ano ou de um mês? Oh! Não
procureis. Não procureis, com uma sede doentia, saber o que está para
acontecer, usando para isso de meios que têm o sabor de uma culpável
feitiçaria. Deixai aos gentios o espírito pitônico. Deixai ao Deus eterno o
segredo do seu tempo. Vós de amanhã, o amanhã que surgirá depois desta
hora da tarde, e a que virá à noite, que surgirá com o canto do galo, vinde
purificar-vos na verdadeira penitência.
Arrependei-vos dos vossos pecados para serdes perdoados e
preparados para o Reino. Tirai de vós o anátema do pecado. Cada um tem o
seu. Cada um tem aquele que é contrário aos dez mandamentos de salvação
eterna. Examinai-vos cada um com sinceridade e encontrareis o ponto em
que errastes. Humildemente tende dele um arrependimento sincero. Tende a
vontade de arrepender-vos. Não só com palavras. De Deus não se zomba e a
Deus não se engana. Mas arrependei-vos com vontade firme, que vos leve a
mudar de vida, a entrar de novo na Lei do Senhor. O Reino dos Céus vos
espera. Amanhã.
Amanhã? Estais perguntando. Oh! É sempre um amanhã solícito a hora
de Deus, ainda que ela chegue ao fim de uma vida longa como a dos
Patriarcas. A eternidade não tem por medida de tempo o correr lento da
clepsidra. E aquelas medidas de tempo que vós chamais dias, meses, anos,
séculos, são palpitações do Espírito eterno, que vos mantêm vivos. Mas, vós
sois eternos em vosso espírito e deveis, para o vosso espírito, ter o mesmo
método de medição do tempo que o vosso Criador tem. Então, dizeis:
“Amanhã será o dia da minha morte.” Aliás, não morte para os fiéis. Mas
repouso de espera, à espera do Messias, que abrirá as portas do Céu.
E, em verdade, vos digo que, entre os aqui presentes, só vinte e sete é
que morrerão e deverão esperar. Os outros estarão já julgados, antes da
morte, e a morte será sua passagem para Deus ou para Mamon, sem demora,
porque o Messias já veio, está entre vós e vos chama para dar-vos a Boa
Nova, para instruir-vos na Verdade e para salvar-vos no Céu.
Fazei penitência! O “amanhã” do Reino dos Céus é iminente. Que ele
vos encontre limpos, a fim de vos tornardes possuidores do dia eterno.
A paz esteja convosco.
59.5
Para contradizê-lo, levanta-se um empertigado e barbudo israelita. Ele
diz:
– Mestre, tudo o que dizes me parece em contraste com tudo o que está
dito[104] no segundo livro dos Macabeus, glória de Israel. Lá está dito: “É de
fato sinal de grande benevolência não permitir aos pecadores que fiquem
andando por muito tempo atrás de seus caprichos, mas dar-lhes logo o
castigo. O Senhor não faz como as outras nações, que as espera com
paciência, para puni-las quando chegar o dia do Juízo, quando estiver cheia
a medida dos pecados.” Tu ao invés, falas como se o Altíssimo pudesse ser
muito lento em punir-nos, esperando-nos como os outros povos, no tempo do
Juízo, quando estiver cheia a medida dos pecados. Verdadeiramente os fatos
te desmentem. Israel está punido, como diz o histórico dos Macabeus. Mas,
se fosse como dizes, não há uma divergência entre a tua doutrina e a que está
encerrada na frase que eu te disse?
– Quem és, Eu não sei[105]. Mas, seja quem fores, Eu te respondo. Não
há divergência na doutrina, mas no modo de interpretar as palavras. Tu as
interpretas segundo o modo humano. Eu, segundo aquele do espírito. Tu,
representante da maioria, vês tudo com referências ao presente e ao
transitório. Eu, representante de Deus, tudo explico, e aplico ao que é eterno
e sobrenatural. Javé vos feriu sim, no presente, na soberba e na injustiça de
ser um “povo”, segundo a terra. Mas, como vos tem amado e usado de
paciência para convosco, mais do que com todos os outros, concedendo-vos
o Salvador, o seu Messias, para que o escuteis, e vos salveis, antes da hora
da ira divina! Não quer mais que sejais pecadores. Mas, se no transitório
Ele vos feriu, vendo que a ferida não sara, mas ao contrário, torna sempre
mais obtuso o vosso espírito, eis que Ele vos manda, não punição, mas
salvação. Vos manda Aquele que vos cura e vos salva. Eu, que vos falo.
59.6
– Não achas que estás sendo ousado ao professar-te representante de
Deus? Nenhum dos Profetas ousou tanto. E Tu… Quem és, Tu que estás
falando? E com ordem de quem falas?
– Os Profetas não podiam falar deles mesmos o que Eu de Mim mesmo
falo. Quem sou Eu? Sou o Esperado, o Prometido, o Redentor. Já ouviste
aquele que o precede dizer: “Preparai o caminho do Senhor… Eis que o
Senhor Deus vem… Como um pastor apascentará o seu rebanho, sendo
também o Cordeiro da verdadeira Páscoa.” Entre vós estão aqueles que
ouviram do Precursor estas palavras, e viram o céu relampejar com uma luz
que descia em forma de pomba, e ouviram uma voz que falava, dizendo quem
Eu era. Por ordem de quem Eu falo? Daquele que é, e que me envia.
– Tu podes estar dizendo isto, mas podes também ser um mentiroso, ou
um iludido. As tuas palavras são santas, mas às vezes, Satanás tem palavras
enganosas, tingidas de santidade, para induzir em erro. Nós não te
conhecemos.
– Eu sou Jesus de José, da estirpe de Davi, nascido em Belém Efrata,
segundo as promessas, chamado nazareno, porque minha casa é em Nazaré.
Isto segundo o mundo. Segundo Deus, sou o seu Enviado. Os meus discípulos
sabem disso.
– Oh! Os teus discípulos! Eles podem falar o que quiserem e o que Tu os
mandas dizer.
– Um outro falará, um que não me ama, e dirá quem Eu sou. Espera aí,
que Eu vou chamar um dos que estão aqui presentes.
59.7
Jesus olha para a multidão, que está espantada com esta discussão,
irritada e dividida entre correntes opostas. Jesus olha para ela, procurando
alguém com seus olhos de safira, e depois chama com voz forte:
– Ageu, vem para a frente. Eu te ordeno.
Há um grande murmúrio entre a multidão, que se abre, para deixar
passar um homem, todo sacudido pelo tremor e sustentado por uma mulher.
– Conheces este homem?
– Sim. É o Ageu de Malaquias, aqui de Cafarnaum. É possuído por um
espírito mau, que o desatina em fúrias repentinas.
– Todos vós o conheceis?
A multidão grita:
– Sim, sim.
– Poderá alguém aí dizer que ele já esteve conversando Comigo, ainda
que por poucos minutos?
A multidão grita:
– Não, não, ele é quase um idiota, e não sai nunca de casa, e nunca
ninguém te viu lá.
– Mulher, traze-o aqui diante de Mim.
A mulher o empurra e o arrasta, enquanto o pobre homem treme
fortemente.
O arqui-sinagogo adverte a Jesus:
– Estai atento! O demônio vai atormentá-lo… e então se arroja, arranha
e morde.
A multidão abre caminho, comprimindo-se contra as paredes.
Agora os dois estão frente a frente. É um momento de luta. Parece que o
homem, acostumado a ficar mudo, sente dificuldade para falar, e gane, mas
depois sua voz toma a forma de palavras:
– Que há entre nós e Ti, Jesus de Nazaré? Por que vieste atormentar-
nos? Por que vieste exterminar-nos, Tu, Senhor do Céu e da terra? Eu sei
quem és: o Santo de Deus. Ninguém, na carne, foi maior do que Tu, porque
em tua carne de homem está encerrado o Espírito do eterno Vencedor. Já me
venceste em…
– Cala-te! Sai deste homem. Eu te ordeno!
O homem é tomado como que de um estranho paroxismo. Ele se agita
aos arrancos, como se alguém o estivesse maltratando com empurrões e
safanões, grita com uma voz desumana, espuma, em seguida é jogado ao
chão, do qual depois se levanta assombrado e curado.
59.8
– Ouviste? Que respondes agora? –pergunta Jesus ao seu opositor.
O homem barbudo e empertigado encolhe os ombros e, vencido, vai-se
embora sem responder. O povo zomba dele e aplaude a Jesus.
– Silêncio. O lugar é sagrado! –diz Jesus, e depois ordena–: Venha a
Mim o jovem a quem prometi a ajuda de Deus.
Aproxima-se o doente. Jesus o acaricia:
– Tiveste fé! Sê curado. Vai em paz e sê justo.
O jovem dá um grito. Quem sabe o que estará sentindo? Ele se prostra
aos pés de Jesus e os beija, agradecendo:
– Obrigado por mim e por minha mãe!
Vêm outros doentes: um menino com as perninhas paralisadas. Jesus o
toma nos braços, o acaricia e o põe no chão… e o solta. E o menino não cai,
mas sai correndo ao encontro da mãe que, chorando, o recebe sobre o seu
coração e o bendiz com grande voz “o Santo de Israel.” Vem depois um
velhinho cego guiado pela filha. Também ele é curado com uma carícia feita
sobre as órbitas doentes.
A multidão se transforma num tumulto de bênçãos.
Jesus se afasta sorrindo e ainda que Ele seja alto, não conseguiria abrir
caminho entre a multidão se Pedro, Tiago, André e João não trabalhassem
generosamente com os seus cotovelos abrindo uma passagem do canto onde
estão até Jesus e depois o protegessem até à saída para a praça onde já não
há mais sol.
Assim termina a visão.
[103] o ponto indicado, o de: Josué 7,13.
[104] está dito, em: 2 Macabeus 6,13-14.
[105] Quem és, Eu não sei, Esta afirmação de Jesus vem exp licada com a seguinte nota de M aria Valtorta sobre uma cóp ia
dactilografada: o Cristo, como Deus e como Santo dos santos, penetrava nas consciências e via e conhecia os seus segredos
mais escondidos (introspecção perfeita); como Homem conhecia apenas segundo o modo humano as pessoas e os locais,
quando seu Pai e sua própria natureza divina não consideravam útil conhecer locais e pessoas sem perguntar. Sobre a mesma
cóp ia dactilografada M aria Valtorta p õe a seguinte nota às p alavras Ageu! Vem para a frente ..., que estou ao início de 59.7:
Aqui, devendo dar prova ao fariseu da sua omnisciência divina, chama por nome o desconhecido Ageu, que está
endemoninhado, enquanto na página precedente, como Homem, tinha dito ao fariseu: “Eu não sei quem sejas”. As duas notas
de M aria Valtorta terão confirmação no texto de 224.2, 357.3, 527.4/6, 554.7 e justificam as declarações de “ignorância” p or
p arte de Jesus que encontraremos, p or exemp lo, em: 73.7 – 75.3 – 362.2 – 365.10 – 376.9 – 377.2 – 382.5 – 395.2 – 406.9 –
413.8 – 433.5 – 472.4 – 488.5 – 583.23 – 584.6. – Uma segunda exp licação sobre as “ignorâncias” de Jesus é dada a p rop ósito
de uma série de p erguntas que Ele dirige a Annalia em 156.3. A relativa nota de M aria Valtorta, colocada sobre uma cóp ia
dactilografada, diz: “Jesus sabia e recordava, mas queria que as almas se abrissem com a máxima liberdade e confiança.”
Esta exp licação encontra confirmação no texto de 128.1 e de 153.1, p ara além de uma singular exp ressão do Iscariota em 468.4:
“Sei que Tu sabes mas esp eras que eu diga”. – Uma terceira exp licação encontra-se numa longa nota de M aria Valtorta a
p rop ósito da afirmação de Jesus: “Quem seja não sei”, que se encontra em 175.5. Trazemos de novo a p arte essencial da nota
autografa, que ocup a quatro p áginas de uma folha inserida numa cóp ia dactilografada: “E o Pai eterno, para provar os corações
e separar os filhos de Deus, da Luz, dos filhos da carne e das trevas, permitia, na presença dos apóstolos, dos discípulos e das
multidões, lacunas na omnividência do Filho, iguais a estas perguntas e respostas: ‘Quem é esse? Eu não o conheço…’ E isto
para os homens. Mas também para o seu Filho bem-amado, e prepará-lo para a grande obscuridade da hora das trevas, ao
abandono do Pai, horas terríveis nas quais Jesus foi o Homem, e o Homem rejeitado do Pai, tornou-se ‘Anátema para nós’.”
A exp licação dada p or M aria Valtorta é confirmada p elas p alavras do Ap óstolo João no contexto de 334.2/3 enquanto se refere
aos corações a serem p rovados. No que diz resp eito à p rep aração do Filho amado na hora das trevas, é confirmada e
ap rofundada em 582.14, 598.4, 602.5, 603.4, e é uma exp licação que confere um significado p rofundo a alguma indecisão de
Jesus (como em 302.4.7) e sobretudo às suas desconcertantes incertezas encontradas em 339.4 e em 464.14. – Feitas as acima
mencionadas e motivadas excep ções, a obra valtortiana ap resenta Jesus omnisciente e omnividente, ou p resciente e p revidente,
como vem exp licitamente declarado em: 48.6 – 60.7 – 78.3 – 80.9.10 – 89.2 – 117.5 – 133.2 – 149.1/2 – 160.6 – 174.7 – 203.1
– 204.4 – 218.1 – 220.4 – 224.2 – 236.5 – 317.3/5 – 329.14 – 335.13 – 340.5 – 351.4 – 357.3 – 371.9 – 387.3 – 391.8 – 406.11
– 409.3 – 411.8 – 471.3 – 473.5 – 503.2 – 522.5 – 524.8 – 525.2 – 531.10 últimas linhas – 531.20 últimas linhas – 532.4.6 –
534.9 – 540.7 – 548.27 – 555.4 – 561.14 – 563.5 – 565.3/4 – 566.18 – 567.18.21 – 580.2 – 587.5..8 – 595.6 – 602.4/5.
60. Cura da sogra de Simão Pedro.
3 de novembro de 1944.
60.1
Pedro fala a Jesus:
– Mestre, eu queria pedir-te que vás à minha casa. Não tive coragem de
dizer isso no sábado passado. Mas… queria que fosses.
– Em Betsaida?
– Não, aqui… na casa de minha mulher, quero dizer, a casa nativa.
– Por que tens esse desejo, Pedro?
– Ah!… por muitas razões… e, além disso, hoje me disseram que minha
sogra está doente. Se quisesses curá-la, talvez te…
– Acaba de falar, Simão.
– Eu queria dizer… se Tu te aproximasses, ela acabaria… sim, em
suma, Tu sabes, uma coisa é ouvir falar de alguém e outra é vê-lo e ouvi-lo
e, se essa pessoa depois fica sã, então…
– Então, também o ódio se acaba, queres dizer.
– Não, ódio não. Mas Tu sabes… o povoado está dividido em muitos
pareceres e ela… não sabe a quem dar razão. Vai, Jesus.
– Eu vou. Vamos. Avisarás aos que estão esperando que da tua casa
falarei a eles.
60.2
Vão até uma casa baixa, mais baixa ainda do que a de Pedro em
Betsaida e ainda mais próxima ao lago. Está separada deste por uma
pequena faixa da margem e creio que nas borrascas as ondas venham a
morrer contra as paredes da casa que, se é baixa, é em compensação bem
espaçosa, como se fosse habitada por mais pessoas.
Na horta-pomar, que está à frente da casa, perto do lago, nada mais há
do que uma videira já velha e nodosa que se estende em uma rústica parreira
e uma velha figueira que os ventos do lago curvaram em direção à casa. A
fronde despenteada da árvore roça as paredes e bate contra as venejiadas
das janelinhas que estão fechadas para servirem de proteção contra o sol
forte que bate sobre a baixa casa. Nada mais há além desta figueira e desta
videira e de um poço raso com um muro esverdeado.
– Entra, Mestre.
Algumas mulheres estão na cozinha, umas ocupadas em consertar as
redes, outras em preparar a comida. Elas saúdam a Pedro e depois se
inclinam confusas diante de Jesus; entretanto, olham-no de soslaio, com
curiosidade.
– A paz esteja nesta casa. Como vai a doente?
– Fala, tu que és a nora mais velha –dizem três mulheres a uma que está
enxugando as mãos na barra da veste.
– A febre está forte, muito forte. Nós fizemos com que o médico a visse,
mas ele disse que ela está velha para sarar e que quando aquele mal dos
ossos chega ao coração e dá febre, especialmente naquela idade, o doente
morre. Ela não está comendo mais… Eu procuro fazer-lhe comidas boas,
mesmo agora, vê Simão? Eu lhe estava preparando aquela sopa de que ela
gostava tanto. Escolhi o peixe melhor que peguei com os cunhados. Mas
acho que ela não vai poder comer. E depois… está tão inquieta! E se
lamenta, grita, chora, pragueja…
– Tende paciência, como se fosse vossa mãe e tereis merecimento diante
de Deus. 60.3Levai-me a ela.
– Rabi… Rabi… não sei se ela irá querer te ver. Não quer ver a
ninguém. Eu nem tenho coragem de dizer-lhe: “Agora vou te trazer o Rabi.”
Jesus sorri sem perder a calma. Depois se vira para Pedro:
– Cabe a ti, Simão. Tu és homem, e o mais velho dos genros, como me
disseste. Vai.
Pedro faz uma careta muito significativa mas obedece. Ele atravessa a
cozinha, entra em um quarto; através da porta fechada atrás dele, eu o ouço
conversar com uma mulher. Depois, põe a cabeça e uma mão fora da porta e
diz:
– Vem, Mestre. Anda depressa!
E acrescenta, em voz mais baixa, só o tanto necessário para ser
entendido:
– Antes que ela mude de idéia.
Jesus atravessa rápido a cozinha e abre a porta toda. De pé, à porta, Ele
diz a sua doce e solene saudação:
– A paz esteja contigo.
Em seguida, entra, não obstante não tenha recebido resposta. Vai para
perto da enxerga sobre a qual está estendida uma pequena mulher toda
grisalha, descarnada e ofegante pela forte febre que lhe torna corado o rosto
abatido.
Jesus se inclina para o pequeno leito e sorrindo para a velhinha, diz:
– Que estás sentindo?
– Eu estou morrendo!
– Não. Não estás morrendo. Podes crer que Eu te posso curar?
– E por que irias fazer isso? Não me conheces.
– Por causa de Simão, que pediu a mim… e também por causa de ti,
para dar tempo à tua alma de ver e amar a Luz.
– Simão? Ele faria melhor em… Como Simão foi capaz de pensar em
mim?
– Porque ele é melhor do que pensas. Eu o conheço e sei. Eu o conheço
e estou contente por vir atendê-lo.
– E, então, tu me curarias? Não vou mais morrer?
– Não, mulher. Por enquanto não morrerás. Podes crer em Mim?
– Creio, creio. Basta-me não morrer!
60.4
Jesus sorri ainda. E a pega pela mão. A mão enrugada e de veias
inchadas desaparece na mão juvenil de Jesus que se endireita e toma aquele
aspecto de quando faz um milagre; exclama:
– Sê curada! Eu quero! Levanta-te!
Solta-lhe a mão que recai sem que a velha se lamente, enquanto que
antes, mesmo tendo-a Jesus pegado com muita delicadeza, só de tê-la
movido já tinha sido causa de um lamento por parte da enferma.
Houve um breve tempo de silêncio. Depois a velha exclama com voz
forte:
– Oh! Deus de nossos pais! Mas eu não tenho mais nada! Estou curada!
Vinde! Vinde!
Acorrem as noras.
– Mas olhai! –dizia a velha–. Eu me movo, e não sinto mais dor! E não
tenho mais febre! Vede como estou com saúde. E o coração não se parece
mais com o martelo do ferreiro. Ah! Não vou mais morrer!
E não tem nenhuma palavra para o Senhor!
Mas Jesus não leva isso em consideração. Ele diz à mais velha das
noras:
– Vesti-a para que se levante. Ela já pode levantar-se.
E vai-se encaminhando para sair.
Simão, mortificado, se vira para a sogra:
– O Mestre te curou. E não lhe dizes nada?
– Está certo! Não pensei nisso. Obrigada. Que posso fazer para mostrar-
te o meu agradecimento?
– Ser boa, muito boa. Porque o Eterno foi bom para contigo. E, se não te
for muito incômodo, deixa-me repousar hoje em tua casa. Percorri nesta
semana todos os povoados vizinhos e cheguei ao despertar desta manhã.
Estou cansado.
– Certo! Certo! Fica, sim, se assim te agrada.
Mas não existe muito entusiasmo em suas palavras.
60.5
Jesus, com Pedro, André, Tiago e João vai sentar-se no pomar.
– Mestre!…
– Que há, meu Pedro?
– Eu estou mortificado.
Jesus faz um gesto, como se dissesse: “Deixa para lá.” Depois, diz:
– Não é esta a primeira nem será a última que não sinto um
reconhecimento imediato. Mas Eu não peço reconhecimento. Basta-me dar às
almas o modo de se salvarem. Faço o meu dever. A elas cabe fazer o delas.
– Ah! Então já houve outros assim? Onde?
– Simão curioso! Mas Eu quero te contentar, embora não goste de
curiosidades inúteis. Foi em Nazaré. Lembras-te da mãe de Sara? Estava
muito doente quando chegamos a Nazaré e nos disseram que a menina estava
chorando. Para não fazer dela, que é boa e dócil, uma órfã e amanhã uma
enteada, fui procurar a mulher… Eu queria curá-la. Mas, ainda não tinha
posto os pés na casa dela, quando o seu marido e um irmão me expulsaram,
dizendo: “Vai embora, vai embora! Não queremos aborrecimentos com a
sinagoga.” Para eles, para muitos, Eu já sou um rebelde… mas Eu a curei do
mesmo jeito… por causa de seus filhos. E à Sara, que estava na horta, Eu
disse, acariciando-a: “Eu curo tua mãe. Vai para casa. Não chores mais.” E a
mulher ficou curada no mesmo instante; a menina foi dizer isso a ela, e
também ao pai e ao tio… E foi castigada por ter falado Comigo. Eu sei,
porque a menina veio correndo atrás de Mim, quando Eu já ia deixando o
povoado… Mas não importa.
– Eu faria com que ela ficasse doente de novo!
– Pedro!
Jesus está severo:
– É isso que Eu ensino a ti e aos outros? Que foi que ouviste dos meus
lábios desde a primeira vez que me ouviste? De que é que Eu tenho sempre
falado como primeira condição para serdes meus verdadeiros discípulos?
– É verdade, Mestre. Eu sou um verdadeiro animal. Perdoa-me. Mas…
não posso suportar que não te amem!
– Ó Pedro, verás um desamor bem maior! Quantas surpresas terás,
Pedro! Há pessoas que o mundo chamado “santo” despreza como
publicanos, e que, ao invés, serão exemplos para o mundo, e um exemplo
não seguido por aqueles que as desprezam. Há gentios que estarão entre os
meus maiores fiéis. Há meretrizes que se tornam puras, por vontade e por
penitência. Pecadores que se emendam…
– Escuta, que se emende um pecador… ainda pode ser. Mas uma
meretriz e um publicano!…
– Tu não acreditas?
– Eu não.
– Estás errado, Simão. 60.6Mas, eis tua sogra que está vindo a nós.
– Mestre… eu te peço que te assentes à minha mesa.
– Obrigado, mulher. Deus te recompense por isto.
Entram na cozinha e se assentam à mesa e a velha serve aos homens com
grande distribuição de peixe ensopado e assado.
– Não há mais do que isso –ela se desculpa.
E, para não perder o costume, diz a Pedro:
– Os teus cunhados fazem até demais, sozinhos como ficaram, desde
quando foste para Betsaida! E ao menos se prestasses a fazer mais rica a
minha filha… Mas ouço dizer que freqüentemente estás ausente e que não
vais pescar.
– Eu sigo o Mestre. Estive com Ele em Jerusalém e aos sábados estou
com Ele. Não perco o tempo em farras.
– Mas não ganhas nada com isso. Farias melhor, já que queres ser o
servo do Profeta, que venhas para cá de novo. Pelo menos aquela pobre
criatura, que é a minha filha, enquanto tu ficas aí te fazendo de santo, terá os
parentes que lhe matem a fome.
– Mas, não te envergonhas de falar assim diante Dele que te curou?
– Eu não o critico. Ele faz o seu trabalho. Eu critico é a ti, que vives
como um mandrião. Afinal, tu não serás nunca um profeta, nem um sacerdote.
És um ignorante e um pecador, és um bom para nada.
– Tens razão, porque Ele está aqui, senão…
– Simão, tua sogra te deu um ótimo conselho. Podes pescar também aqui.
Pescavas também antes em Cafarnaum, pelo que ouço. Podes voltar até
agora.
– E morar aqui de novo? Mas Mestre, Tu não…
– Bom, meu Pedro, se ficares aqui estarás no barco sobre o lago, ou
Comigo. Por isso, para ti que diferença há entre estar ou não estar nesta
casa?
Jesus pôs a mão sobre o ombro de Pedro e parece que a calma de Jesus
passa para Pedro que já estava fervendo.
– Tens razão. Sempre tens razão. É assim que eu vou fazer. Mas… e
estes? –e mostra João e Tiago, seus sócios.
– Não poderão vir eles também?
– Oh! O nosso pai, e principalmente a nossa mãe, estarão sempre mais
felizes, se souberem que estamos Contigo, do que com eles. Eles não criarão
obstáculos.
– Talvez também Zebedeu virá –diz Pedro.
– É mais que provável. E com eles outros. Viremos, Mestre. Viremos
sem falta.
60.7
– Está aqui Jesus de Nazaré? –pergunta um menininho que aparece à
porta.
– Está sim. Entra.
Vem à frente um menino, que eu reconheço como um daqueles das
primeiras visões em Cafarnaum; justamente como aquele que, brincando por
entre os pés de Jesus, prometeu que seria bom… para comer o mel do
Paraíso.
– Pequeno amigo, vem cá –lhe diz Jesus.
O menino, um pouco amedrontado no meio de tanta gente que está
olhando para ele, se encoraja e corre para Jesus que o abraça, o põe sobre
os joelhos e lhe dá um pedacinho do seu peixe sobre uma fatiazinha de pão.
– Aqui está, Jesus. Isto é para Ti. Ainda hoje aquela pessoa me disse:
“Hoje é sábado. Vai levar isto para o Rabi de Nazaré e diz ao teu amigo que
reze por mim.” Ela sabe que és o meu amigo!…
O menino ri feliz, e come o seu pão com peixe.
– Muito bem, pequeno Tiago! Dirás àquela pessoa que as minhas
orações sobem ao Pai por ela.
– É para os pobres? –pergunta Pedro.
– Sim.
– Será o presente de costume? Vamos ver.
Jesus lhes entrega a bolsa. Pedro despeja as moedas e as conta:
– Sempre a mesma grande importância! Mas, quem é essa pessoa? Diz-
me, menino! Quem é?
– Eu não o devo dizer, e não o direi.
– Que malcriado! Vamos, sê bom que eu te darei umas frutas.
– Eu não o direi nem se me insultares nem se me acariciares.
– Mas ouvi só que língua!
– O Tiago tem razão, Pedro. Ele mantém a palavra dada. Deixa-o em
paz.
– Tu, Mestre, sabes quem é essa pessoa?
Jesus não responde. Ele se entretém com o menino, a quem dá outro
pedacinho de peixe assado, já bem limpo das espinhas. Mas Pedro insiste e
Jesus precisa responder:
– Eu sei tudo, Simão.
– E nós, não o podemos saber?
– E tu, nunca vais ficar curado deste teu defeito?
Jesus censura, mas sorri. E acrescenta:
– Logo o saberás. Porque como o mal gosta de ficar oculto e nem
sempre pode permanecer assim, o bem, ainda que queira ficar oculto, para
ter seu merecimento, um dia será descoberto para a glória de Deus, cuja
natureza brilha em um filho seu. A natureza de Deus é o amor. E essa pessoa
o compreendeu, porque ama o seu próximo. Vai, Tiago. Vai levar àquela
pessoa a minha bênção.
Assim termina a visão.
61. Jesus faz o bem aos pobres depois de ter
contado
a parábola do cavalo amado pelo rei.
4 de novembro de 1944.
61.1
Jesus subiu a um monte de cestas e cordas que está à entrada do pomar
da casa da sogra de Pedro. O pomar está apinhado de gente. Também há
gente junto à margem do lago, uns sentados, outros sobre os barcos que
foram puxados para a terra. Parece que Ele já vinha falando por algum
tempo, porque seu discurso já vai bem adiantado. Eu o ouço:
– … Certamente vós muitas vezes, em vosso coração, já tereis pensado
assim. Mas não é bem assim. O Senhor não faltou à benignidade para com o
seu povo, ainda que este tenha faltado à fidelidade para com Ele mil e dez
mil vezes.
Ouvi esta parábola. Ela vos ajudará a entender.
Um rei tinha muitos e esplêndidos cavalos em suas estrebarias. Mas ele
gostava de um deles com uma estima toda especial. Antes de possuí-lo, o rei
o tinha almejado muito; depois, tendo-o adquirido, colocou-o num lugar
delicioso, para onde ele se dirigia, com os olhos e o coração, só para tornar
a ver aquele seu predileto, sonhando fazer dele um dia a maravilha do seu
reino. E, quando o cavalo, rebelando-se contra todos os comandos, havia
desobedecido e fugido para outro patrão, o rei, ainda que com dor, em seu
rigor, tinha prometido ao rebelde o perdão, depois de tê-lo castigado. E, fiel
a isso, mesmo de longe, velava sobre o seu predileto, mandando-lhe
presentes e guardas que o conservassem com a lembrança do dono em seu
coração.
Mas o cavalo, ainda que sofrendo por estar exilado do reino, não era
constante, como o rei o era, em amar e desejar o perdão completo. E, se em
certos tempos era bom, em outros tempos era mau; nem o bom era maior do
que o mau. Pelo contrário. Contudo, o rei tinha paciência; com censuras e
carícias procurava fazer do seu cavalo mais querido um dócil amigo. Quanto
mais o tempo passava, mais o animal se mostrava rebelde. Invocava o seu
rei, chorava sob o chicote dos outros patrões, mas não queria ser
verdadeiramente do rei. Não tinha vontade de o ser. Esgotado, oprimido e
gemente, não era capaz de dizer: “Por culpa minha é que estou assim”, mas
acusava ao seu rei.
Este, depois de ter tentado de tudo, recorreu a uma última prova. “Até
agora, disse, eu mandei mensageiros e amigos. Agora vou mandar o meu
próprio filho. Ele tem o mesmo coração meu e falará com o mesmo amor que
eu, terá carícias e presentes semelhantes aos que eu tinha; aliás, ainda mais
doces, porque meu filho sou eu mesmo, mas sublimado no amor.” E mandou
o seu filho.
Esta é a parábola. 61.2Agora dizei-me vós: Achais que o rei amava o seu
animal preferido?
O povo responde a uma só voz:
– Infinitamente o amava.
– Podia o animal lamentar-se do seu rei, por todo o mal que sofreu, por
tê-lo abandonado?
– Não, não podia –responde a multidão.
– Respondei-me ainda ao seguinte: aquele cavalo, segundo o vosso
parecer, como terá recebido o filho do rei, que ia para resgatá-lo, curá-lo e
levá-lo novamente para o lugar de delícias?
– Com alegria, naturalmente, com reconhecimento e afeto.
– Mas, se o filho do rei tiver dito ao cavalo: “Eu vim para isto e para
fazer-te isto, mas tu precisas ser bom, obediente, cheio de boa vontade e fiel
a mim”, que achais que o cavalo terá respondido?
– Oh! Não é preciso perguntar! Ele terá respondido que sabia bem o que
lhe custava ser expulso do reino e que queria ser como o filho do rei dizia.
– Então, segundo vós, qual era o dever daquele cavalo?
– Ser ainda melhor do que lhe estava sendo pedido, mais afetuoso, mais
dócil, para ser perdoado do mal passado, em reconhecimento pelos bens
obtidos.
– E se ele não tivesse feito assim?
– Seria digno de uma morte, porque seria pior do que uma fera
selvagem.
– Amigos, vós julgastes bem. Mas fazei também vós como quereríeis
que o cavalo fizesse. Vós, homens, criaturas prediletas do Rei dos Céus,
Deus, meu Pai e vosso; vós a quem, depois dos Profetas, foi mandado por
Deus o seu próprio Filho, sede, oh! sede — eu vos conjuro pelo vosso bem e
porque vos amo como só um Deus pode amar, aquele Deus que está em Mim
para operar o milagre da Redenção — sede, ao menos, como vós julgais que
deve ser aquele animal. Ai daquele que rebaixa a si próprio, homem, a um
grau inferior ao do animal! Mas, se ainda podia haver desculpa para aqueles
que até o momento presente estavam pecando — porque muito tempo e muita
poeira do mundo já passaram, desde quando foi dada a Lei, e sobre esta se
pousou — agora já não podeis mais. Eu vim para trazer-vos de novo a
palavra de Deus. O Filho do homem está entre os homens para levá-los
novamente a Deus. Segui-me. Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.
61.3
Ouve-se o murmúrio de costume por entre a multidão.
Jesus, então, ordena aos discípulos:
– Fazei que os pobres venham para a frente. Para eles Eu tenho a rica
oferta de alguém que a eles se recomenda para obter o perdão de Deus.
Vêm avante três velhinhos esfarrapados, dois cegos e um encolhido;
depois uma viúva com sete meninos macilentos.
Jesus os olha fixamente um por um, sorri para a viúva e especialmente
para os orfãozinhos. Antes diz a João:
– Que essas pessoas sejam colocadas lá no pomar. Quero falar com elas.
Mas Ele se torna severo, com os olhos flamejantes, quando a Ele se
apresenta um dos velhinhos. Porém, não diz nada no momento.
Jesus chama Pedro e faz com que ele lhe dê a bolsa recebida pouco
antes e uma outra cheia de moedas menores, esmolas diversas recolhidas
entre os bons. Despeja tudo sobre o banco que está junto ao poço, conta e
divide. Faz seis partes: uma delas bem grande, toda com moedas de prata;
cinco menores em dimensão, com muito bronze e só uma ou outra moeda
grande. Chama os pobrezinhos doentes e lhes pergunta:
– Não tendes nada a dizer-me?
Os cegos se calam. Mas o encolhido diz:
– Que Aquele de quem vens te proteja.
E nada mais.
Jesus lhe põe a esmola na mão sã. O homem lhe diz:
– Que Deus te recompense. Mas, mais do que isto, eu de Ti queria a
cura.
– Tu não a pediste.
– Sou pobre, um verme que os grandes pisam, não ousava esperar que
Tu tivesses piedade de um mendigo.
– Eu sou a Piedade que se inclina sobre toda miséria que clama por
Mim. Não rejeito ninguém. Não peço mais do que amor e fé, para dizer: “Eu
vou te atender.”
– Oh! Meu Senhor! Eu creio! Eu te amo! Salva-me, então! Cura o teu
servo!
Jesus põe a mão sobre aquele dorso curvado e a faz deslizar como que
acariciando-o; diz então:
– Quero que sejas curado.
O homem se endireita, ágil e íntegro, com palavras de bênçãos infinitas.
61.4
Jesus dá a esmola aos cegos, e espera um momento para despedi-
los…depois os deixa ir.
Chama os velhos. Dá ao primeiro uma esmola e o conforta ajudando-o a
pôr na cinta as moedas.
Jesus se interessa piedoso pelas desventuras do segundo, que lhe conta a
doença de uma filha:
– Só tenho essa! E agora ela está morrendo. Que será de mim? Oh! Se Tu
pudesses ir lá! Ela não pode vir, não se mantém em pé. Queria… Mas não
pode. Mestre, Senhor, Jesus, tem piedade de nós!
– Onde moras, pai?
– Em Corozaim. Pergunta por Isaque de Jonas, chamado o Adulto. Irás
mesmo? Não te vais esquecer da minha desventura? E curarás a minha filha?
– Podes crer que Eu a possa curar?
– Oh! Se eu creio! Por isso é que Te estou falando dela.
– Vai para casa, pai. Tua filha estará à porta para te saudar.
– Mas ela está de cama e não pode levantar-se há três… Ah!
Compreendi! Oh! Obrigado, Rabi! Bendito és Tu e Aquele que Te enviou!
Louvor a Deus e ao seu Messias!
O velho vai chorando, coxeando, o mais rápido que pode. Mas quando
já está quase saindo do pomar, ele diz:
– Mestre, mas irás assim mesmo à minha pobre casa? Isaque Te espera
para beijar-te os pés, lavá-los com suas lágrimas e oferecer-te o pão do
amor. Vai Jesus, eu falarei de Ti aos da cidade.
– Irei. Vai em paz e sê feliz.
61.5
Vem para a frente o terceiro velhinho, que parece o mais esfarrapado.
Mas Jesus só tem agora o monte maior de moedas. E Ele chama em voz alta:
– Mulher, vem com os teus pequeninos.
A mulher, jovem e macilenta, vem para a frente, de cabeça inclinada.
Parece uma galinha choca, entre a sua triste ninhada.
– Desde quando és viúva, mulher?
– Faz três anos, na lua de Tisri.
– Quantos anos tens?
– Vinte e sete.
– São todos filhos teus?
– Sim, Mestre, e… e não tenho mais nada. Tudo se acabou… como
posso trabalhar, se ninguém me quer com todos estes pequeninos?
– Deus não abandona nem o verme que Ele criou. Ele não te abandonará,
mulher. Onde moras?
– Perto do lago, a três estádios fora de Betsaida. Ele me disse que
viesse… Meu marido morreu no lago, era pescador.
“Ele” é André, que ficou corado, e querendo desaparecer.
– Fizeste bem, André, em dizer à mulher que viesse a Mim.
André se anima e murmura:
– O homem era meu amigo, era bom, e morreu durante uma tempestade,
perdendo também seu barco.
– Toma mulher. Isto te ajudará por muito tempo; depois virá outro sol no
teu dia. Sê boa, educa na Lei os teus filhos e não te faltará a ajuda de Deus.
Eu te abençôo, a ti e aos teus pequenos.
E os acaricia um por um com grande piedade.
A mulher vai-se com o seu tesouro apertado sobre o coração.
61.6
– E a mim? –pergunta o velhinho que ficou por último.
Jesus olha para ele, e se cala.
– Nada para mim? Não és justo! A ela deu seis vezes mais do que aos
outros e a mim nada. Mas… e era mulher!
Jesus olha para ele e se cala.
– Olhai todos se está havendo justiça! Eu venho de longe, porque me
disseram que aqui se dava dinheiro; depois, estou vendo aqui quem ganha
demais e a mim não se dá nada. Um pobre velho que é doente! E quer que se
creia Nele!…
– Velho, não te envergonhas de mentir assim? Estás com a morte atrás de
ti, e mentes; procuras roubar de quem está com fome. Por que queres roubar
dos irmãos a esmola que Eu recebi para distribuir com justiça?
– Mas eu…
– Cala-te! Deverias já ter compreendido pelo meu silêncio e pelo meu
ato que Eu havia te conhecido; e,então, seguir o meu exemplo de silêncio.
Por que queres que Eu te envergonhe?
– Eu sou pobre.
– Não. Tu és um avarento e um ladrão. Vives para o dinheiro e para a
usura.
– Eu nunca emprestei com usura. Deus é minha testemunha.
– E isto não é usura, e da mais feroz, roubar de quem tem
verdadeiramente necessidade? Vai. Arrepende-te. Para que Deus te perdoe.
– Eu te juro…
– Cala-te! Eu te ordeno. Foi dito: “Não jurarás em falso.” Se Eu não
tivesse respeito pelos teus cabelos brancos, Eu daria uma busca em ti e em
teu peito acharia uma bolsa cheia de ouro, que é o teu coração. Vai-te
embora.
Mas agora o velhinho, envergonhado, vendo-se descoberto em seu
segredo, vai-se embora sem que seja necessário o som de trovão que há na
voz de Jesus.
A multidão o ameaça, o escarnece e o insulta como a um ladrão.
– Calai-vos! Se ele errou não queirais vós também errar. Ele falta com a
sinceridade, é um desonesto. Vós, se o insultardes, faltais com a caridade.
Ao irmão, que comete uma falta, não se insulta. Cada um tem o seu pecado.
Ninguém é perfeito, a não ser Deus. Eu precisei envergonhá-lo, porque não é
lícito ser ladrão e, menos ainda, ladrão que rouba dos pobres. Mas só o Pai
é que sabe quanto sofri por dever fazer isso. Vós também sofrei com isso, ao
verdes que um de Israel falta contra a Lei procurando defraudar o pobre e a
viúva. Não sejais cobiçosos. Que o vosso tesouro seja a vossa alma, não o
dinheiro. Não sejais perjuros. Que a vossa linguagem seja sincera e honesta
como as vossas ações. A vida não é eterna e a hora da morte chega. Vivei de
modo que na hora da morte a paz possa estar em vosso espírito. A paz de
quem viveu como um justo. Ide para as vossas casas…
61.7
– Piedade, Senhor! Este meu filho é mudo, por causa de um demônio
que o maltrata.
– E este meu irmão é semelhante a um animal imundo: ele se revolve na
lama e come excrementos. E um espírito maligno o arrasta; ele, mesmo sem
querer, faz coisas imundas.
Jesus se dirige para o grupo que o está implorando. Ele ergue os braços
e ordena:
– Sai deles. Deixai a Deus as suas criaturas.
Entre gritos e barulho, os dois infelizes ficam curados. As mulheres que
os conduziam prostram-se dando louvores a Deus.
– Ide para as vossas casas e sede reconhecidos a Deus. A paz esteja
com todos. Ide.
A multidão vai-se, comentando os fatos. Os quatro discípulos colocam-
se ao redor do Mestre.
– Amigos, em verdade Eu vos digo que em Israel estão todos os
pecados, e os demônios aí fizeram sua morada. E não são possessões só
aquelas que tornam mudos os lábios e levam os homens a viver como
animais comendo sujeiras. Mas as mais verdadeiras e numerosas são aquelas
que tornam os corações mudos para a honestidade e para o amor, fazendo
deles um antro de vícios imundos. Oh! Meu Pai!
Jesus, abatido, se assenta.
– Estás cansado, Mestre?
– Cansado não, meu João. Mas desolado pelo estado dos corações e
pela pouca vontade de se emendarem. Eu vim… mas o homem… o homem…
oh! Meu Pai!…
– Mestre, eu Te amo, nós todos Te amamos.
– Eu sei disso. Mas sois tão poucos… e meu desejo de salvar é tão
grande!
Jesus abraça João e mantém a cabeça dele sobre a sua. Está triste.
Pedro, André, Tiago, ao redor Dele, olham-no com amor e tristeza.
E a visão cessa assim.
62. Jesus procurado pelos discípulos
enquanto reza na noite.
5 de novembro de 1944.
62.1
Vejo Jesus sair, fazendo o menor barulho possível da casa de Pedro
em Cafarnaum. Compreende-se que Ele pernoitou lá para contentar o seu
Pedro.
É ainda noite alta. O céu parece um bordado de estrelas. O lago reflete
apenas este brilho; mais que vê-lo, se adivinha este lago tranqüilo que dorme
sob as estrelas, pelo suave sussurro das águas sobre o seu leito.
Jesus encosta novamente a porta, olha o céu, o lago, o caminho. Pensa
um pouco, e depois se encaminha, não ao longo do lago, mas em direção ao
povoado, percorrendo-o em parte, indo depois para o campo. Entra nele,
caminha, aprofundando-se ali; pega uma vereda que leva às primeiras
ondulações de um terreno plantado com oliveiras, se introduz nesta paz
verde e silenciosa e lá vai prostrar-se em oração.
É uma oração ardente! Ele reza de joelhos e, em seguida, como que
fortalecido, põe-se de pé e reza ainda, com o rosto erguido para o alto, um
rosto ainda mais espiritualizado pela nascente luz que vem de uma serena
aurora de verão. Reza agora sorrindo, enquanto que antes suspirava forte
como se estivesse sob o peso de algum grande sofrimento moral. Reza com
os braços abertos. Parece uma cruz viva, alta, angélica, de tão suave que é.
Parece abençoar todo o campo, o dia que nasce, as estrelas que
desaparecem, o lago que se revela.
62.2
– Mestre! Procuramos tanto a Ti! Vimos a porta encostada pelo lado
de fora, quando voltamos da pesca e pensamos que tivesses saído. Mas não
te encontrávamos. Enfim, um camponês que estava enchendo suas cestas para
levá-las para a cidade foi quem nos informou. Nós estávamos te chamando:
“Jesus! Jesus!”, e ele nos disse: “Estais procurando o Rabi que fala às
multidões? Ele se foi por aquele caminho acima em direção ao monte. Ele
deve estar no olival do Miquéias, porque vai lá freqüentemente. Eu já o vi
outras vezes.” Ele tinha razão. Por que saíste assim tão cedo, Mestre? Por
que não descansaste? Talvez a cama não estava cômoda…
– Não, Pedro. A cama estava cômoda e o quarto muito bom. Mas Eu
costumo fazer assim freqüentemente para soerguer o meu espírito e para
unir-me ao Pai. A oração é uma força para si e para os outros. Tudo se
consegue com a oração. Se não a graça, que nem sempre o Pai concede — e
não se deve pensar que isto seja desamor, mas sempre crer que isso é uma
coisa querida por uma Ordem que rege as sortes de cada homem, cujo
escopo é o bem — certamente a oração dá paz e equilíbrio, para poder
resistir a tantas coisas que incomodam sem sair do caminho santo. É fácil,
sabes, Pedro, ter a mente ofuscada e o coração agitado pelas coisas que nos
circundam! E com uma mente ofuscada e um coração agitado, como pode-se
ouvir a Deus?
– É verdade. Mas nós não sabemos rezar! Não sabemos dizer as bonitas
palavras que Tu dizes.
– Dizei aquelas que sabeis, como as sabeis. Não são as palavras, mas os
movimentos que as acompanham, que tornam as orações agradáveis ao Pai.
– Nós gostaríamos de rezar como Tu rezas.
– Eu vos ensinarei a rezar também. Eu vos ensinarei[106] a mais santa das
orações. Mas, para que ela não seja uma fórmula vazia sobre os vossos
lábios, Eu quero que o vosso coração tenha já em si pelo menos um mínimo
de santidade, de luz, de sabedoria… Por isso é que Eu vos instruo. Depois
Eu vos ensinarei a santa oração. 62.3Queríeis alguma coisa de Mim, vós que
Me andastes procurando?
– Não, Mestre. Mas há muitos que estão querendo muito de Ti. Já chegou
gente que veio de perto de Cafarnaum; eram pessoas pobres, doentes,
pessoas angustiadas, homens de boa vontade, com o desejo de se instruirem.
Nós lhes dissemos, visto que nos perguntavam de Ti: “O Mestre está
cansado e dormindo. Ide-vos embora. Voltai no próximo sábado.”
– Não, Simão. Isto não se diz. Não existe só um dia para a piedade. Eu
sou o Amor, a Luz, a Salvação todos os dias da semana.
– Mas… até agora, falaste só aos sábados.
– Porque Eu era ainda desconhecido. Mas, à medida que Eu for ficando
conhecido, todos os dias serão de efusão de Graça e de graças. Em verdade,
Eu te digo que virá um tempo em que nem o espaço de tempo, que é
concedido a um pássaro para repousar sobre um ramo e saciar-se de
grãozinhos, será dado ao Filho do homem para o seu repouso e sua
alimentação.
– Mas assim ficarás doente! Nós não permitiremos isso. Tua bondade
não deve fazer-te infeliz.
– E tu achas que Eu possa me tornar infeliz por isso? Oh! Mas se o
mundo todo viesse a Mim para me ouvir, para chorar os seus pecados e as
suas dores sobre o meu coração, para ser curado na alma e no corpo, e Eu
me consumisse em falar-lhe, em perdoá-lo, em derramar sobre ele o meu
poder, aí sim, então Eu seria muito feliz, Pedro, a ponto de nem mais
recordar com saudade do Céu, no qual Eu estava no Pai!… 62.4De onde eram
esses que vieram a Mim?
– De Corozaim, de Betsaida, de Cafarnaum; até de Tiberíades e de
Gergesa tinham vindo; e das centenas e centenas de pequenas cidades
espalhadas entre uma e outra.
– Ide a eles e dizei-lhes que estarei em Corozaim, em Betsaida e nas
cidades entre esta e aquela.
– Por que não em Cafarnaum?
– Porque Eu sou para todos e todos me devem ter; e depois… lá está o
velho Isaque que me espera… Não fique ele desiludido em sua esperança.
– Tu nos esperas aqui, então?
– Não. Eu vou e vós ficais em Cafarnaum para encaminhar as multidões
para Mim; depois Eu virei.
– Nós vamos ficar sozinhos…
Pedro está preocupado.
– Não fiques preocupado. Que a obediência te faça alegre e com ela
tenhas a persuasão de seres a Mim um discípulo útil. E contigo e, como tu,
estes outros.
Pedro e André, com Tiago e João, se tranqüilizam. Jesus os abençoa, e
se separam.
Assim termina a visão.
[106] Eu vos ensinarei... Se alguém — assim anota M aria Valtorta numa cóp ia dactilografada — possa ter feito ou faça
excepção [= objecção] ao “Pai” dito por Jesus e Maria na noite do adeus [em 44.3], considere esta resposta. Maria não tinha
necessidade de ser preparada para rezar com a oração de Cristo. Os apóstolos sim. Por isso Jesus disse o “Pai” com Maria
antes de com os discípulos porque Ela era cheia de Graça, de Luz e Sabedoria, e os discípulos não.
63. O leproso curado perto de Corozaim.
6[107] de novembro de 1944.
63.1
Com a precisão de uma fotografia perfeita, tenho diante de minha vista
espiritual, desde esta manhã, antes até da aurora, um pobre leproso.
Este é verdadeiramente um farrapo humano. Eu não saberia dizer que
idade ele pode ter, de tão devastado está pelo mal. Definhado, seminu,
mostra o seu corpo reduzido ao estado de uma múmia corroída, com as mãos
e os pés retorcidos, e já lhe faltando algumas partes, de tal modo que aquelas
pobres extremidades nem parecem mais ser de um corpo humano. As mãos,
como garras e retorcidas, mais parecem patas de algum monstro alado; os
pés parecem quase cascos de boi, de tão decepados e desfigurados.
E a cabeça, então!… Eu creio que só alguém que tivesse ficado
insepulto e mumificado pelo sol e pelo vento é que poderia ter ficado com
uma cabeça semelhante a esta. Poucos fios de cabelo ainda lhe restam,
espalhados aqui e ali, agarrados a uma pele amarelenta e cheia de crostas,
parecendo poeira seca sobre uma caveira. Olhos apenas entreabertos e muito
encovados, lábios e nariz roídos pelo mal, mostrando já as cartilagens e as
gengivas; as orelhas são dois embrionários pavilhões em ruínas e sobre tudo
isto, está uma pele ressequida, amarela como certos caulins, sob a qual os
ossos penetram. Parece que recebeu a incumbência de reunir esses pobres
ossos dentro do seu saco sujo, todo cheio de remendos de cicatrizes ou
dilacerações de feridas já apodrecidas. Uma ruína!
Penso até em uma Morte que esteja vagante pela terra e recoberta por
uma pele mirrada sobre o esqueleto, envolvida em um manto sujo todo em
tiras e tendo na mão, não a foice, mas um bastão cheio de nós, certamente
arrancado de alguma árvore.
Ele está à porta de uma caverna afastada da estrada, uma verdadeira
espelunca, tão desmoronada que nem sei dizer se no princípio foi um
sepulcro, ou uma cabana de lenhadores, ou os restos de alguma casa
demolida. Ele olha para a estrada, que está a uns cento e poucos metros do
seu antro, uma estrada mestra poeirenta e ainda cheia de sol. A perder de
vista, sol, poeira e solidão reinam sobre a estrada. Muito mais acima, a
noroeste, deve haver um povoado, ou cidade. Vejo as primeiras casas. Estará
à distância de pelo menos um quilômetro.
O leproso olha e suspira. Depois, pega uma tigela quebrada, enche-a
com água de um córrego e bebe. Entra em um emaranhado de sarças, atrás do
antro, inclina-se, arranca do chão umas raízes selvagens. Volta ao córrego,
limpa-as da poeira mais grossa com a sua água escassa, e as come devagar,
levando-as até à boca com dificuldade por causa de suas mãos arruinadas.
As raízes devem estar duras como uns gravetos. Custa a mastigá-las e muitas
ele até cospe, sem as poder engolir embora procure ajudar-se bebendo uns
goles de água.
63.2
– Onde estás, Abel? –grita uma voz.
O leproso estremece e tem algo sobre os lábios parecido com um
sorriso. Mas estão de tal modo reduzidos aqueles lábios, que é também
informe esta sombra de sorriso. Responde com uma voz estranha, estridente
(me faz pensar no grito de certos pássaros dos quais ignoro o nome exato):
– Estou aqui! Eu pensei que tu não viesses mais! Pensei que tivesse te
acontecido algum mal; fiquei triste… Se tu também me faltares, que restará
ao pobre Abel?
Ao dizer isso, ele caminha em direção à estrada até o ponto em que,
segundo a Lei, ele podia chegar e, por isso, a uma certa distância, ele se
detém.
Pela estrada vem vindo um homem, quase correndo, de tão rápido que
vem.
– Mas és tu mesmo, Samuel? Oh! Se não és tu, a quem eu espero, sejas
lá quem fores, não me faças mal!
– Sou eu, Abel, sou eu mesmo. E são. Olha como eu corro. Estou
atrasado, eu sei. E já estava com pena de ti. Mas, quando souberes… Oh! Tu
ficarás feliz! E aqui te trago, não só os costumeiros pedaços de pão, mas um
pão inteiro, fresco e bom, todo para ti; trago também um bom peixe e um
queijo. Tudo para ti. Quero que faças festa, meu pobre amigo, para preparar-
te para uma festa maior.
– Mas, como é que estás assim tão rico? Eu não entendo…
– Agora vou te contar.
– E estás são. Nem pareces mais Tu!
63.3
– Então escuta. Eu soube que em Cafarnaum estava aquele Rabi que é
santo, e para lá fui…
– Pára, pára, eu estou infeccionado.
– Oh! Não tem importância! Não tenho mais medo de nada.
O homem, que outro não é senão aquele pobre encolhido curado e
ajudado por Jesus no pomar da sogra de Pedro, chegou de fato com o seu
passo rápido a poucos passos do leproso; falou, caminhando e rindo feliz.
Mas o leproso lhe diz ainda:
– Pára, em nome de Deus. Se alguém te vê…
– Eu vou parar. Olha, vou colocar aqui as provisões. Come, enquanto eu
falo.
Ele põe sobre uma pedra grande um pequeno embrulho e o abre. Depois,
dá um passo atrás, enquanto o leproso avança e se atira sobre o alimento
inusitado.
– Oh! Quanto tempo faz que eu não comia assim! Como é bom! E eu
pensando que iria dormir com o estômago vazio. Não veio hoje um
piedoso… nem mesmo tu… Eu mastiguei algumas raízes…
– Pobre Abel! Eu estava pensando. Mas dizia: “Bom. Agora, ele deve
estar triste, mas depois ficará feliz!”
– Feliz, sim, por esta comida tão boa. Mas depois…
– Não! Serás feliz para sempre.
O leproso sacode a cabeça.
– Escuta, Abel. Se puderes ter fé, serás feliz.
– Mas fé em quem?
– No Rabi. No Rabi que me curou.
– Mas eu sou leproso e estou no fim! Como poderá me curar?
– Oh! Ele pode. É santo.
– Sim. Também Eliseu curou Naamã, o leproso[108]… eu sei… Mas eu…
Eu não posso ir ao Jordão.
– Tu serás curado, sem precisar de água. Escuta: este Rabi é o Messias,
entendes? O Messias! É o Filho de Deus. E cura todos aqueles que têm fé.
Ele diz: “Eu quero”, e os demônios fogem, e os membros se endireitam, e os
olhos cegos vêem.
– Oh! Se eu tivesse fé! Mas como posso ver o Messias?
– Eis-me aqui… eu vim para isso. Ele está lá, naquele povoado. Sei
onde estará nesta tarde. Se quiseres… Eu disse: “Eu falo a Abel, e se Abel
sente que tem fé o conduzo ao Mestre.”
– Estás louco, Samuel? Se eu me aproximar das casas, serei apedrejado.
– Não nas casas. A tarde está para cair. Eu te levarei até aquele pequeno
bosque e depois irei chamar o Mestre. Eu te levarei…
– Vai, vai logo! Eu vou por mim mesmo até aquele ponto. Caminharei no
fosso, entre a sebe, mas tu vai, vai… Oh! vai, meu bom amigo! Se soubesses
o que é ter este mal e o que é esperar sarar!… O leproso não pensa em mais
nada, nem em comer. Ele chora e gesticula, implorando ao amigo.
– Eu vou, e tu vais.
O ex-encolhido vai embora correndo.
63.4
Abel desce com dificuldade no fosso que costeia a estrada, todo cheio
de sarças que cresceram no fundo seco. Ali há apenas um fio de água ao
centro. A tarde desce enquanto o infeliz escorrega por entre as sarças,
sempre alerta se ouve qualquer passo. Duas vezes agacha-se no fundo: a
primeira, por causa de um cavaleiro que percorre a trote a estrada; a
segunda, por causa de três homens que vão levando cargas de feno para o
povoado. Depois ele prossegue.
Mas Jesus e Samuel chegam antes dele ao pequeno bosque.
– Daqui a pouco ele estará aqui. Ele anda devagar por causa das feridas.
Tem paciência!
– Não tenho pressa.
– Tu o curarás?
– Ele tem fé?
– Oh!… Ele estava morrendo de fome e estava vendo aquele alimento
depois de anos de abstinência; no entanto, depois de ter comido poucos
bocados, deixou tudo para correr aqui.
– Como tu o conheceste?
– Sabes… eu vivia de esmolas, depois da minha desventura,
percorrendo os caminhos, indo de um lugar para outro. Por aqui eu passava
cada sete dias quando conheci aquele pobrezinho… num dia em que,
constrangido pela fome, ele impeliu-se, sob um temporal, que teria posto em
fuga até os lobos, indo até o caminho que leva ao povoado, a procura de
alguma coisa. Buscava entre as imundícies, como um cão. Eu tinha pão seco
no alforje, donativo de pessoas boas; dividi ao meio com ele. Desde então,
somos amigos e cada semana eu o reabasteço. Com aquilo que tenho… se
tenho muito, dou muito; se pouco, pouco. Faço o que posso, como se fosse
meu irmão. E é desde aquela tarde em que me curaste, bendito sejas Tu, que
eu venho pensando nele… e em Ti.
– Tu és bom, Samuel; por isso a graça te visitou. Quem ama merece tudo
de Deus. 63.5Mas eis ali qualquer coisa entre as ramagens…
– És tu, Abel?
– Sou eu.
– Vem. O Mestre está te esperando aqui, debaixo da nogueira.
O leproso emerge do fosso, sobe para a borda, atravessa-a e entra pelo
prado. Jesus, com as costas apoiadas em uma nogueira muito alta, o espera.
– Mestre, Messias, Santo, tem piedade de mim!
E se lança todo entre a relva, aos pés de Jesus. Com o rosto no chão, diz
ainda:
– Ó meu Senhor! Se queres, podes limpar-me!
Depois, toma coragem para pôr-se de joelhos, estende os braços
esqueléticos, com aquelas mãos retorcidas e ergue o rosto ossudo e
devastado… As lágrimas descem das órbitas doentes para os lábios
corroídos.
Jesus o olha com muita piedade. Olha para aquela sombra de homem que
o mal horrendo devora, que só uma verdadeira caridade pode suportar perto
de si de tão repugnante e mal cheiroso que ele está. Contudo, eis que Jesus
lhe estende uma mão, a sua sã e bonita mão direita, como que para acariciar
o pobrezinho.
Este, sem se levantar, afasta-se sobre seus calcanhares, e grita:
– Não me toques! Tem piedade de Ti!
Mas Jesus dá um passo à frente. Solene, bom, suave, Ele pousa os seus
dedos sobre aquela cabeça carcomida pela lepra e diz, com voz baixa e
cheia de amor, mas imperiosa:
– Eu quero! Fica limpo!
A mão ainda permanece, por alguns minutos, sobre a pobre cabeça.
– Levanta-te. Vai ao sacerdote. Cumpre tudo o que a Lei prescreve. E
não fales do que Eu te fiz: somente sê bom. Não peques mais. Eu te abençôo.
– Oh! Senhor! Abel! Mas tu estás curado!
Samuel, que vê a metamorfose do amigo, grita de alegria.
– Sim. Está são. Ele o mereceu por sua fé. Adeus. A paz esteja contigo.
– Mestre! Mestre! Mestre! Eu não te deixo! Não posso te deixar.
– Faze tudo o que a Lei quer. Depois nos veremos ainda. Pela segunda
vez esteja sobre ti a minha bênção.
Jesus se põe a caminho, fazendo sinal a Samuel para que fique. E os dois
amigos choram de alegria, enquanto, à luz de um quarto de lua, voltam à
caverna para uma última parada naquele antro de desventura.
Assim cessa a visão.
[107] 6 é de incerta leitura do manuscrito original, onde p areceria corrigido em 8. Precisamos que as datas, colocadas p or M aria
Valtorta no início de cada cap ítulo, vêm mencionadas de modo uniforme, isto é, mantendo o nome do mês mesmo quando M aria
Valtorta indica o mês com o número de ordem, e acrescentando o ano se M aria Valtorta o omite.
[108] Eliseu curou Naamã, o leproso, como se narra em: 2 Reis 5,1-14.
64. O paralítico curado em Cafarnaum.
9 de novembro de 1944.
[…].
No mesmo dia 9 de novembro, logo depois.
64.1
Vejo as margens do lago de Genezaré. E vejo os barcos dos
pescadores, arrastados para a margem. Junto a eles estão Pedro e André,
ocupados em consertar as redes, que os empregados levam, gotejantes,
depois de as terem enxaguado no lago, para limpá-las dos detritos que nelas
ficaram presos. À distância de uns dez metros, João e Tiago, encurvados
sobre seu barco, estão ocupados a pô-lo em ordem, ajudados por um
empregado e por um homem de seus cinqüenta a ciqüenta e cinco anos, que
eu penso ser Zebedeu, porque o empregado o chama de “patrão”, e porque
ele é muito parecido com Tiago.
Pedro e André, de costas para o barco, trabalham em silêncio para
reatar os fios e as bóias de sinal. De vez em quando, trocam algumas
palavras, a respeito do trabalho deles que, pelo que eu pude entender, foi
infrutífero.
Pedro se queixa, não pela bolsa vazia, nem pelo trabalho inútil, mas diz:
– Isso me aborrece porque… como faremos para alimentar aqueles
pobrezinhos? A nós só são feitas raras ofertas, e aquelas dez moedas e sete
dracmas que recolhemos nestes quatro dias, nelas eu não toco. Só o Mestre
me deve indicar a quem e como vão ser dadas aquelas moedas. E até o
sábado Ele não volta! Se eu tivesse feito uma boa pesca!… O peixe mais
miúdo, eu o cozinharia, e o daria àqueles pobres… e, se alguém em casa
resmungasse, eu não daria importância a isso. Os sãos podem ir procurá-lo.
Mas os doentes!…
– Aquele paralítico, por exemplo!… Andaram tanto para trazê-lo aqui…
–diz André.
– Escuta, meu irmão. Eu penso… que não se pode estar divididos, e não
sei porque o Mestre não nos quer sempre com Ele. Ao menos… eu não veria
mais estes pobrezinhos que não posso socorrer, e quando eu os visse poderia
lhes dizer: “Ele está aqui.”
64.2
– Estou aqui!
Jesus se aproximou deles devagar caminhando sobre a areia molhada.
Pedro e André dão um pulo. Gritam:
– Oh! Mestre!
Chamam os outros:
– Tiago! João! O Mestre! Vinde!
Os dois chegam correndo. E todos abraçam Jesus. Um lhe beija a veste,
outro as mãos; João ousa passar-lhe um braço ao redor da cintura e pousar a
cabeça sobre o seu peito. Jesus o beija sobre os cabelos.
– De que estáveis falando?
– Mestre… dizíamos que Te desejaríamos aqui.
– Para que, amigos?
– Para ver-te e vendo-te, te amar e, depois, por causa dos pobres e
doentes. Estão à tua espera há dois ou mais dias… Eu fiz o que podia.
Coloquei-os lá, estás vendo aquela cabana naquele campo inculto? Lá os
operários do barco trabalham fazendo reparos. Lá coloquei abrigado um
paralítico, um que tem febre alta, e um menino que está morrendo sobre o
seio de sua mãe. Eu não podia mandá-los à tua procura.
– Fizeste bem. Mas, como pudeste socorrê-los e quem foi que os trouxe?
Me disseste que são pobres.
– É verdade, Mestre. Os ricos têm carros e cavalos. Os pobres, só as
pernas. Não podem ir atrás de Ti diligentes. Eu fiz o que pude. Olha: este é o
donativo que eu recebi. Mas não toquei em nenhuma moeda. Tu é que farás
isso.
– Pedro, tu podias tê-lo feito. Certo… Meu Pedro, me desagrada saber
que por causa de Mim tu tenhas que sofrer censuras e passar canseiras.
– Não, Senhor. Não deve desagradar-te isso. Eu não tenho dor. Somente
o que me desagrada é não ter podido fazer maior caridade. Mas, podes crer,
eu fiz, todos nós fizemos tudo o que pudemos.
– Eu sei. Sei que trabalhaste e sem resultado. Mas, se não há comida, a
tua caridade permanece viva, ativa e santa aos olhos de Deus.
64.3
Uns meninos chegaram gritando:
– O Mestre está aqui! O Mestre está aqui! Eis aqui Jesus! Eis aqui Jesus!
Abraçam-se a Ele, que os acaricia, mesmo falando com os discípulos.
– Simão, Eu vou entrar em tua casa. Tu e vós ide dizer que Eu vim;
depois, trazei-me os doentes.
Os discípulos saem rapidamente em diferentes direções. Mas, que Jesus
já tenha chegado, toda Cafarnaum o sabe, graças aos pequeninos que
parecem umas abelhas ao formarem enxame e que, depois, partem da
colméia para as mais diversas flores: as casas, neste caso, as ruas, as
praças. Eles vão e vêm festivos, levando a notícia às mamães, aos
transeuntes, aos velhos sentados ao sol; depois voltam para serem
acariciados por Aquele que os ama. Um deles, audaz, diz:
– Fala a nós, para nós hoje, Jesus! Nós te queremos bem, Tu sabes, e
somos melhores que os homens.
Jesus sorri para o pequeno psicólogo e promete:
– Falarei especialmente para vós.
E, seguido pelos pequenos, vai até à casa, entra, saudando com a sua
saudação de paz:
– A paz esteja nesta casa.
O povo se aglomera na grande sala posterior, destinada às redes, cabos,
cestas, remos, velas e provisões. Vê-se que Pedro a colocou à disposição de
Jesus, amontoando tudo em um canto, para dar mais espaço. O lago não se vê
daqui. Ouve-se dele apenas o marulho lento. O que se vê é só o muro
esverdeado do pomar, onde está a velha videira e a figueira frondosa. As
pessoas estão até na estrada, transbordando da sala para o pomar, e deste
para a estrada.
64.4
Jesus começa a falar. Na primeira fila — tendo aberto caminho com
gestos prepotentes e graças ao temor que deles tem o povo — estão cinco
pessoas… influentes. Paludamentos, vestes ricas e soberba, os denunciam
como fariseus e doutores. Mas Jesus quer ter ao seu redor os seus pequenos.
Uma coroa de rostinhos inocentes, de olhos luminosos, de sorrisos
angelicais, levantados para Ele. Jesus fala, e ao falar, acaricia de vez em
quando a cabecinha encaracolada de um menininho que está sentado aos seus
pés, com a cabeça encostada aos seus joelhos sobre o bracinho dobrado.
Jesus fala sentado sobre um grande monte de cestas e redes.
– “O meu dileto desceu ao seu jardim, ao canteiro dos aromas, a
apascentar por entre os jardins e a colher lírios… ele que se deleita entre os
lírios”, diz Salomão[109] de Davi, do qual Eu venho, Eu, o Messias de Israel.
O meu jardim! Qual jardim mais bonito e mais digno de Deus e do Céu,
onde as flores são os anjos criados pelo Pai? Contudo, não. Um outro jardim
quis o Filho unigênito do Pai, o Filho do homem, porque pelo homem Eu
tenho a carne, sem a qual Eu não poderia redimir[110] as culpas da carne do
homem. Um jardim que poderia ser pouca coisa inferior ao celeste, se do
Paraíso terrestre se tivessem espalhados, como mansas abelhas de uma
colméia, os filhos de Adão, os filhos de Deus, para povoar a terra com uma
santidade toda destinada ao Céu. Mas o Inimigo semeou abrolhos e espinhos
no coração de Adão e os abrolhos e os espinhos desse coração extravasaram
sobre a terra. Agora, já não há jardim, mas um mato áspero e cruel, no qual
mora a febre e se aninha a serpente.
Mas o Dileto do Pai também tem ainda um jardim nesta terra, sobre a
qual impera Mamon. O jardim no qual Ele vai nutrir-se do seu celeste
alimento: amor e pureza; o canteiro do qual Ele colhe as flores que lhe são
caras, no qual não há mancha de sensualidade, de cobiça, de soberba. Estes.
(Jesus acaricia o maior número de crianças que pode, passando sua mão
sobre aquela coroa de cabecinhas atentas, uma única carícia que os toca de
leve e os faz sorrir de alegria). Eis os meus lírios.
Não teve Salomão, em sua riqueza, veste mais bonita do que o lírio que
perfuma o vale, nem diadema de graça mais delicado e esplêndido do que
aquele que tem o lírio em seu cálice de pérola. No entanto, para o meu
coração, não há lírio que valha o que vale um destes. Não há canteiro, não há
jardim de ricos, todo cultivado com lírios, que Me valha o que vale um só
destes puros, inocentes, sinceros, simples pequeninos.
Ó homens, ó mulheres de Israel! Ó vós, grandes e humildes, pelo censo
ou por vosso cargo, ouvi! Vós estais aqui porque quereis conhecer-me e
amar-me. Então ficai sabendo qual é a primeira condição para serdes meus.
Eu não vos digo palavras difíceis. Não vos dou exemplos mais difíceis
ainda. Eu só vos digo: “Tomai a estes como exemplo.”
Quem entre vós não tem em casa um filho, um sobrinho, um pequeno
irmão ainda na infância, na meninice? Não é um descanso, um conforto, um
vínculo entre os esposos, entre os parentes, entre os amigos, um destes
inocentes, cuja alma é pura como uma aurora serena, cujo rosto afugenta as
nuvens e incute esperanças e cujas carícias enxugam lágrimas e infundem
força de vida? Por que é que existe neles tanto poder? Neles, ainda fracos,
indefesos e ignorantes? Porque têm Deus em si, têm a força e a sabedoria de
Deus. A verdadeira sabedoria: sabem amar e crer. Sabem crer e querer.
Sabem viver nesse amor e nessa fé. Sede como eles: simples, puros,
amorosos, sinceros, crentes.
Não há sábio em Israel que seja maior do que o menor destes, cuja alma
é de Deus e dela é o seu Reino. Benditos pelo Pai, amados pelo Filho do
Pai, flores do meu jardim, a minha paz esteja convosco e com aqueles que
vos imitarem por meu amor.
Jesus terminou.
– Mestre! – grita Pedro do meio da multidão–, aqui estão os doentes.
64.5

Dois podem esperar que Tu saias, mas este está comprimido por esta
multidão e, além disso, não se aguenta mais… E nós não podemos passar.
Devo mandá-lo de volta?
– Não. Descei-o pelo telhado.
– Está bem. Vamos fazer isso já.
Ouve-se o barulho dos pés sobre o telhado baixo da sala que não sendo
propriamente uma parte da casa não tem por cima nenhum assentamento com
argamassa, mas somente um telhadinho de madeira coberto de cascalhos
semelhantes a ardósia. Mas não sei que pedra era. Eles fazem uma abertura
e, por meio de cordas, fazem descer a pequena padiola sobre a qual está o
doente. Desce exatamente diante de Jesus. O povo se aglomera mais ainda
para ver.
– Tiveste grande fé, e contigo também quem te trouxe.
– Oh! Senhor! Como não ter fé em Ti?
– Portanto, Eu te digo: filho (o homem é muito jovem) são-te perdoados
todos os teus pecados.
O homem o olha chorando… talvez se sinta um pouco decepcionado,
porque esperava a cura do corpo.
Os fariseus e os doutores cochicham entre si, torcendo o nariz, a fronte e
a boca, com desdém.
– Por que estais murmurando, e mais ainda com o coração do que com
os lábios? Segundo vós é mais fácil dizer ao paralítico: “Estão perdoados os
teus pecados”, ou dizer-lhe: “Levanta-te, pega a tua cama e anda”? Vós
pensais que só Deus pode perdoar os pecados. Mas não sabeis responder o
que é mais importante, porque este, tendo perdido a tal ponto a saúde do
corpo, gastou seus haveres para recuperá-la, sem nada conseguir. Não o
pode, a não ser por Deus. Ora, para que saibais que tudo Eu posso, para que
saibais que o Filho do homem tem poder sobre a carne e sobre a alma, na
terra e no Céu, Eu digo a este: “Levanta-te, toma a tua cama e anda. Vai para
a tua casa e sê santo.”
O homem sente um choque, dá um grito, põe-se de pé, lança-se aos pés
de Jesus, beija-os e os acaricia, chora e ri; com ele os parentes e a multidão
que, depois, se abre para deixá-lo passar, como se fosse em triunfo, e o
segue toda festiva. A multidão, não os cinco invejosos, que vão-se embora,
altivos e duros como estacas.
64.6
Assim pôde entrar a mãe com seu pequenino: uma criança ainda de
peito, esquelética. Ela o estende, e diz só isto:
– Jesus, Tu amas a estes. Tu o disseste. Por este amor e por Tua mãe!…
–e chora.
Jesus pega o bebê que está mesmo à morte, coloca-o sobre o seu
coração, mantém-no assim por um momento, com aquele rostinho céreo, os
lábios arroxeados e as pálpebras já fechadas, leva-o de encontro à sua boca.
Mantém-no assim por um momento…, e quando o afasta de sua barba loira, o
rostinho já está rosado, a boquinha já faz um daqueles sorrisos incertos,
como as crianças fazem, os olhinhos olham ao redor, vivos e curiosos, as
mãozinhas, antes fechadas e abandonadas, apalpam entre os cabelos e a
barba de Jesus que ri.
– Oh! Meu filho! –grita a mãe feliz.
– Pega-o, mulher. Sê feliz e boa.
E a mulher pega o filho renascido e o aperta ao seio. O pequenino
reclama logo os seus direitos ao alimento e procura, abre, encontra e mama,
mama, ávido e contente.
Jesus abençoa e dá uns passos até à porta onde está o doente de febre
alta.
– Mestre! Sê bom!
– E tu também. Usa a saúde na justiça.
Jesus o acaricia e sai.
64.7
Volta à margem, seguido, precedido, louvado por muitos que suplicam:
– Nós não te ouvimos falar. Não pudemos entrar. Fala a nós também.
Jesus faz sinal que sim e como a multidão o aperta, a ponto de quase
sufocá-lo, ele entra no barco de Pedro. Não basta. O assédio é premente.
– Leva o barco para o mar e afasta-te um pouco da margem.
A visão termina aqui.
[109] diz S alomão, em: Cântico dos cânticos 6,2-3.
[110] sem a qual Eu não poderia redimir, não p orque fosse indisp ensável a encarnação p ara redimir, mas p orque essa
corresp onde à vontade do Pai à qual adere a obediência do Filho: isto deduz-se de todo o contexto da obra valtortiana. A
realidade da encarnação do Verbo é afirmada, p or exemp lo, em 207.11 e em 587.3; e a sua razão de ser é exp licada em: 69.5 –
96.5 (o redentor não p odia ser um anjo) – 126.3 – 167.13 – 281.16 – 444.7 – 487.6 – 498.5 –567.23. (Significado bem diferente
tem a encarnação da qual trataremos em nota a 587.3).
65. A pesca milagrosa
e a eleição dos quatro primeiros apóstolos.
10 de novembro de 1944.
65.1
E recomeça com as palavras de Jesus:
– Quando chega a primavera e tudo floresce, o homem do campo diz,
contente: “Terei muito fruto.” E jubila em seu coração por esta esperança.
Mas, da primavera até o outono, do mês das flores ao das frutas, quantos
dias, quantos ventos e chuvas, sol e borrascas haverão de passar e, às vezes,
guerra ou crueldade da parte dos poderosos, as doenças das plantas e
doenças do homem do campo, pelo que as plantas — não mais cavadas e
reforçadas, regadas, podadas, sustentadas, limpas — que prometiam muito
fruto, entristecem e morrem ou totalmente ou na sua colheita!
Vós me estais seguindo. Vós me amais. Vós, como as plantas na
primavera, vos ornais com bons propósitos e com amor. Na verdade, Israel,
esta aurora do meu apostolado está como os nossos doces campos no
luminoso mês de Nisam. Mas, ouvi. Como um ardor de estiagem, virá
Satanás a queimar-vos com o seu hálito, pois tem inveja de Mim. Virá o
mundo com o seu vento gelado para gelar o vosso florescer. Virão as
paixões, como tempestades. Virá o tédio, como uma chuva obstinada. Todos
os inimigos meus e vossos virão para esterilizar tudo o que deveria vir desta
vossa santa inclinação de florescer em Deus. Eu vos aviso porque sei.
Mas, será que tudo, então, estará perdido quando Eu, como agricultor
doente — mais do que doente, morto — não mais poderei dar a vós palavras
e milagres? Não. Eu semeio e cultivo, enquanto for o meu tempo. Depois,
sobre vós crescerá e amadurecerá, se tomardes os necessários cuidados.
Olhai para aquela figueira da casa de Simão, filho de Jonas. Quem a
plantou, não encontrou o ponto certo e propício. Plantada junto ao úmido
muro do norte, já teria morrido se não tivesse, por si mesma, tratado de se
defender para viver. E procurou sol e luz. Lá está ela, toda dobrada, mas
forte e orgulhosa, que bebe desde a aurora o sol, e dele extrai suco para as
suas centenas e centenas de doces frutos. Defendeu-se sozinha. Disse: “O
Criador me quis para dar alegria e alimento ao homem. Eu quero que a sua
vontade tenha a minha por companheira!” Uma figueira! Uma planta que não
fala! Uma planta sem alma! E vós, filhos de Deus, filhos do homem, seríeis
menos do que uma planta?
Tomai bom cuidado para dar frutos de vida eterna. Eu vos cultivo e por
fim vos darei um suco, o mais poderoso que existe. Não deixeis, não deixeis
que Satanás ria sobre as ruínas do meu trabalho, do meu sacrifício e da
vossa alma. Procurai a luz. Procurai o sol. Procurai a força. Procurai a vida.
Eu sou a Vida, Força, Sol, Luz de quem me ama. Aqui estou para levar-vos
para o lugar de onde vim. Aqui falo para chamar-vos todos e mostrar-vos a
Lei dos dez mandamentos que dão a vida eterna. Com conselho de amor, Eu
vos digo: “Amai a Deus e ao próximo.” É a primeira condição para se
realizar todos os outros bens. O mais santo dos dez mandamentos: Amai.
Aqueles que amarem em Deus, a Deus e o próximo, pelo Senhor Deus terão
na terra e no Céu a paz como sua morada e sua coroa.
O povo com custo afasta-se, depois da bênção de Jesus. Não há doentes
nem pobres.
65.2
Jesus diz a Simão:
– Chama também os outros dois. Vamos para o lago, lançar a rede.
– Mestre, eu estou com os braços cansados por ter lançado e levantado a
rede a noite inteira e por nada. O peixe está nas profundezas e quem sabe
onde.
– Faz o que te digo, Pedro, e escuta sempre a quem te ama.
– Farei o que me estás dizendo, em respeito à tua palavra –e chama em
voz alta os empregados e também Tiago e João–: Vamos sair para a pesca. O
Mestre assim quer.
E enquanto eles vão se afastando, diz a Jesus:
– Porém, Mestre, Te asseguro de que esta hora não é propícia. A esta
hora, quem sabe onde é que os peixes estão descansando!…
Jesus, sentado à proa, sorri e cala-se.
Fazem um arco de círculo sobre o lago e depois lançam a rede. Poucos
minutos de espera; depois o barco começa a receber uns solavancos
estranhos, dado que o lago está liso como se fosse de vidro fundido sob um
sol já alto.
– Mas isto é peixe, Mestre! –diz Pedro com os olhos arregalados.
Jesus sorri, e cala-se.
– Iça, iça a rede! –ordena Pedro aos empregados. Mas o barco inclina-
se para o lado da rede:
– Ohé! Tiago! João! Depressa! Vinde! Com os remos! Depressa!
Eles correm, e os esforços dos dois grupos conseguem içar a rede sem
estragar os peixes.
Os barcos se aproximam. Estão até juntos. Um cesto, dois, cinco, dez.
Estão todos cheios e ainda há muitos peixes saltitantes na rede: prata e
bronze vivos que se movem para fugir da morte. Então, não há senão um
remédio: despejar o resto no fundo dos barcos. Eles o fazem e o fundo é toda
uma agitação de vidas em agonia. Os pescadores estão no meio desta
abundância que lhes ultrapassa os tornozelos e os barcos afundam além da
linha de imersão por causa do peso excessivo.
– Para a terra! Vira! Força! Põe a vela! Cuidado com o fundo! Varas
prontas para amortecer o choque! O peso é demais!
65.3
Enquanto dura a manobra Pedro não reflete. Mas, quando chegam à
terra, ele o faz. E compreende. Por isso fica perturbado:
– Mestre! Senhor! Afasta-te de mim! Eu sou um homem pecador. Não
sou digno de estar perto de Ti!
Ele está de joelhos sobre o úmido leito do rio. Jesus olha para ele e
sorri.
– Levanta-te! Segue-me! Eu não te deixo mais! De agora em diante serás
pescador de homens e contigo estes teus companheiros. Não temais nada
mais. Eu vos chamo. Vinde!
– Já, Senhor. Vós ocupai-vos dos barcos. Levai tudo para Zebedeu e
para o meu cunhado. Vamos. Todos por Ti, Jesus! Bendito seja o Eterno por
esta escolha.
E a visão termina.
66. Judas de Keriot no Getsêmani torna-se
discípulo.
28 de dezembro de 1944, 12:00 horas.
[…].
66.1
Pela tarde, vejo Jesus… debaixo das oliveiras… Ele está sentado
sobre uma saliência do terreno em sua posição habitual, com os cotovelos
apoiados nos joelhos, os antebraços para a frente e as mãos juntas. Cai a
tarde, a luz diminui sempre mais no basto olival. Jesus está sozinho. Ele
tirou o manto como se sentisse calor e sua veste branca põe uma nota clara
no verde do lugar que o crepúsculo já vai tornando muito escuro.
Um homem desce por entre as oliveiras. Parece estar procurando alguma
coisa ou alguém. É alto, vestido com uma roupa de cor alegre, um amarelo
rosado, que torna mais vistoso o grande manto, todo de franjas ondulantes.
Não o vejo bem no rosto, porque a pouca luz e a distância não me permitem
e também porque ele tem uma ponta do manto caído sobre o rosto. Quando
vê Jesus, faz um gesto, como para dizer: “Lá está Ele!” e apressa o passo. A
poucos metros de distância, saúda-o:
– Salve, Mestre!
Jesus se vira de repente e levanta o rosto, porque o recém-chegado está
na saliência superior. Jesus o olha sério e eu diria triste.
O outro repete:
– Eu te saúdo, Mestre. Sou Judas de Keriot. Não me reconheces? Não te
lembras de mim?
– Eu me lembro e reconheço. És aquele que me falaste, junto com Tomé,
na Páscoa passada.
– E ao qual Tu disseste: “Pensa e saiba decidir antes da minha volta.”
Eu me decidi. Eu venho.
– Por que vens, Judas?
Jesus está mesmo triste.
– Porque… eu já te disse na outra vez o porquê. Porque eu sonho com o
reino de Israel e em ti eu vi o rei.
– Para isso vens?
– Para isso. Coloco-me a mim mesmo e tudo o que possuo: capacidade,
conhecimento, amizades, trabalho, ao teu serviço e a serviço da tua missão
para reconstituir Israel.
Os dois agora estão de frente, próximos, de pé, e se olham fixamente.
Jesus com uma seriedade que chega a ser tristeza, o outro, exaltado pelo seu
sonho, sorridente, belo e jovem, leviano e ambicioso.
– Eu não te procurei, Judas.
– Eu vi. Mas eu Te estava procurando. São dias e dias que eu venho‐
colocando pessoas às portas, para me anunciarem a tua chegada. Eu pensava
que virias com os teus seguidores e que, por isso, teria sido fácil notar-te.
Ao invés… Compreendi que já havias chegado porque um grupo de
peregrinos te estava bendizendo por teres curado um doente. Mas ninguém
sabia me dizer onde estavas. Então, eu me lembrei deste lugar. E vim. Se eu
não tivesse Te encontrado aqui, eu teria me resignado a não Te encontrar
mais…
– Achas que tenha sido um bem para ti o teres-me encontrado?
– Sim, visto que te procurava, te desejava, te quero.
– Por que? Por que Me procuraste?
– Mas eu já disse a Ti, Mestre! 66.2Não me compreendeste?
– Eu te compreendi sim. Mas quero que tu também me compreendas,
antes de Me seguires. Vem. Falaremos enquanto caminhamos.
E se põem a caminhar, um ao lado do outro, para cima e para baixo,
pelas estradinhas que entrecortam o olival.
– Tu Me segues por uma idéia que é humana, Judas. Eu te devo dissuadir
disto. Eu não vim para isto.
– Mas, não és Tu o que foi designado para ser o Rei dos judeus? Aquele
de quem falaram os Profetas? Surgiram já outros. Mas a eles faltavam muitas
coisas e caíram como folhas que o vento não levanta mais. Tu tens a Deus
Contigo, tanto que operas milagres. Onde está Deus, o bom êxito da missão
está garantido.
– Falaste bem. Eu tenho Deus Comigo. Eu sou o seu Verbo. Sou aquele
que foi profetizado pelos Profetas, prometido aos Patriarcas, esperado pelas
multidões. Mas, por que, ó Israel, te tornaste tão cego e surdo, a ponto de
não saberes mais ler nem ver, ouvir e compreender a verdade dos fatos? O
meu Reino não é deste mundo, Judas. Dissuade-te disso. À Israel Eu venho
trazer a Luz e a Glória. Mas não a luz e a glória da terra. Eu venho para
chamar os justos de Israel ao Reino. Porque é de Israel e com Israel que há
de se formar e vir a planta da vida eterna, cuja linfa será o Sangue do
Senhor, a planta que se estenderá por toda a terra, até o fim dos séculos. Os
meus primeiros seguidores são de Israel. Os meus primeiros confessores, de
Israel. Mas também os meus perseguidores são de Israel. Também os meus
carrascos, de Israel. E também o meu traidor, de Israel…
– Não, Mestre. Isto não acontecerá nunca. Se todos te traírem, eu ficarei
Contigo, e te defenderei.
– Tu, Judas? E sobre o que se funda esta tua segurança?
– Sobre a minha honra de homem.
– Isso é uma coisa mais frágil do que uma teia de aranha, Judas. É a
Deus que devemos pedir a força para sermos honestos e fiéis. O homem!…
O homem faz obras de homem. Para fazer obras do espírito — e seguir o
Messias em verdade e justiça significa fazer obra de espírito — é preciso
matar o homem e fazê-lo renascer. És tu capaz disso?
– Sim, Mestre. Além disso… Nem todo Israel te amará. Mas carrascos e
traidores ao seu Messias não sairão de Israel. Israel te espera, há séculos!
– Mas dele sairão. Lembra-te dos Profetas. As palavras deles… e o seu
fim. Eu estou destinado a decepcionar a muitos. E tu és um deles. Judas, tu
tens à tua frente, um manso, um pacífico, um pobre, que pobre quer
permanecer. Eu não vim para impor-me e para fazer guerra. Eu não disputo
aos fortes e poderosos nenhum reino, nenhum poder. Eu só disputo a Satanás
as almas e venho para quebrar as correntes de Satanás com o fogo do meu
amor. Eu venho para ensinar misericórdia, sacrifício, humildade,
continência. Eu te digo, e a todos digo: “Não tenhais sede de riquezas
humanas, mas trabalhai pelas moedas eternas.” Desilude-te Judas, se pensas
que sou um triunfador sobre Roma e sobre as castas que imperam. Os
Herodes, como os Césares podem dormir tranqüilos enquanto Eu falo às
multidões. Eu não vim para arrancar cetros de ninguém… e o meu cetro,
eterno, já está pronto. Mas ninguém, que não fosse amor, como Eu sou, iria
querer empunhá-lo. 66.3Vai Judas, e medita.
– Estarás me rejeitando, Mestre?
– Eu não rejeito ninguém, pois quem rejeita não ama. Mas, diz-me,
Judas: que nome darias ao ato de alguém que, sabendo-se doente de um mal
contagioso, dissesse a um inocente que se aproxima para beber do seu
cálice: “Pensa no que estás fazendo”? O nome seria ódio, ou amor?
– Eu diria que é amor porque não quer que o inocente arruíne sua saúde.
– Então dá este nome também ao meu ato.
– Posso arruinar minha saúde indo Contigo? Nunca!
– Podes arruinar mais do que a saúde porque pensa bem isso, Judas,
pouco será imputado a quem se tornar assassino, pensando que está fazendo
justiça, e assim pensando, porque não conhece a Verdade; mas muito será
imputado a quem, tendo-a conhecido, não só não a segue, mas se faz até
inimigo dela.
– Eu não serei esse tal. Toma-me Contigo, Mestre. Não me podes
recusar. Se és o Salvador e vês que eu sou um pecador, uma ovelha
desviada, um cego fora do caminho certo, por que é que recusas salvar-me?
Toma-me Contigo. Eu te seguirei até à morte…
– Até à morte! É verdade. Isto é verdade. Depois…
– Depois, o quê, Mestre?
– O futuro está no seio de Deus. Vai. Amanhã nos tornaremos a ver, junto
à porta dos Peixes.
– Obrigado, Mestre. O Senhor esteja Contigo.
– E que a sua misericórdia te salve.
E tudo termina.
67. O milagre das lâminas quebradas à porta dos
Peixes.
31 de dezembro de 1944.
67.1
Vejo Jesus que vai andando sozinho por uma estrada sombreada.
Parece um fresco e pequeno vale, rico de águas. Digo um pequeno vale,
porque está levemente encaixado entre pequenas elevações do solo e no
centro corre um riacho.
O lugar está deserto na hora matutina. Deve ter acabado de surgir o dia,
um belo dia sereno de início de verão e não se ouve mais nada exceto o
canto dos pássaros entre as árvores e o arrulhar lamentoso das rolas
selvagens, que fazem seus ninhos nas fendas do monte sem vegetação.
Especialmente entre as oliveiras da colina da esquerda, enquanto que a
outra, mais despojada, tem arbustos baixos de lentisco, acácias espinhosas,
agaves, etc.. Também o pequeno rio de águas escassas e limitadas ao centro
do álveo, parece não fazer rumor algum e se vai, refletindo em suas águas o
verde circunstante, pelo qual parece de esmeralda escura.
Jesus atravessa o rio por uma pinguela — é um tronco semi-aplainado,
jogado sobre o rio, sem apoio, sem segurança — e prossegue na outra
margem.
Agora já se vêem os muros e as portas; também vendedores de
hortaliças e mantimentos, que vão se aglomerando às portas, ainda fechadas,
para entrar na cidade. Ouve-se um grande zurrar de burros e brigas entre
eles; também os seus donos não estão para brincadeiras. Insultos e até
algumas pancadas voam, não só sobre os lombos dos burros, mas também
sobre cabeças humanas.
67.2
Dois homens estão numa briga séria, porque o burro de um deles
resolveu passar bem, comendo toda uma bonita cesta de alface do burro do
outro. Talvez não seja mais do que um pretexto para algum antigo rancor. O
fato é que de sob as vestes curtas até às barrigas das pernas, eles já tiraram
dois cutelos pequenos e da largura de um palmo: parecem umas adagas
quebradas, mas bem pontiagudas, e que brilham ao sol. Gritos de mulheres e
vozerio de homens. Mas ninguém intervém para apartar os dois, que estão
prontos para o rústico duelo.
Jesus, que procedia pensativo, levanta a cabeça, vê o que está
acontecendo e, a passos rápidos, se põe entre os dois.
– Parem, em nome de Deus! –ordena.
– Não! Eu quero acabar com este maldito cão!
– Eu também! Gostas de franjas? Farei para ti uma franja com as tuas
tripas.
Os dois rodeiam Jesus, esbarrando nele, insultando-o para que saia do
meio, procurando golpearem-se, sem o conseguirem, porque Jesus, com
sábios movimentos do seu manto, desvia os golpes e impede que acertem o
alvo. O manto de Jesus já está rasgado.
O povo grita:
– Vem para cá, nazareno, antes que te tirem do meio.
Mas Ele não se move de lá e procura induzir os dois à calma, evocando-
os a Deus. Inútil! A ira enlouquece os dois contendedores.
Jesus emite um milagre. Ordena-lhes pela última vez:
– Eu vos mando que deixeis disso!
– Não! Retira-te daqui! Pega o teu caminho, nazareno!
Jesus então estende as mãos, com o seu aspecto de potência fulgurante.
Não diz uma palavra. Mas as lâminas caem esmigalhadas no chão, como se
fossem de vidro e se tivessem chocado contra uma rocha.
Os dois homens olham para os cabos curtos e inúteis que ficaram entre
os dedos. O espanto embota a ira. A multidão também grita de espanto.
67.3
– E agora? –pergunta Jesus, severo–. Onde está a vossa força?
Até os soldados que estavam de guarda à porta, tendo chegado quando
ouviram os últimos gritos, olham assombrados; um deles se inclina para
apanhar os fragmentos das lâminas e os experimenta sobre a unha, incrédulo
que fossem de aço.
– E agora? –repete Jesus–. Onde está a vossa força? Sobre o que é que
baseáveis o vosso direito? Sobre estes pedaços de metal que agora estão
quebrados no meio da poeira? Sobre estes pedaços de metal que não tinham
outra força, senão a do pecado da ira contra um irmão, tirando de vós, por
aquele pecado, toda a bênção de Deus e, portanto, toda força? Oh! Infelizes
daqueles que se baseiam em meios humanos para vencer e não sabem que
não é a violência, mas a santidade que nos faz vitoriosos sobre a terra, e
mais além dela! Porque Deus está com os justos.
Ouvi, ó vós todos de Israel, e vós também, soldados de Roma. A
Palavra de Deus fala a todos os filhos do homem, e não será o Filho do
homem que irá recusá-la aos gentios.
O segundo dos preceitos do Senhor é o preceito do amor para com o
próximo. Deus é bom e nos seus filhos quer benevolência. Quem não é
benevolente com o seu próximo, não pode dizer-se filho de Deus e não pode
ter Deus consigo. O homem não é um animal irracional, que se arroja e
morde pelo direito de fazer uma presa. O homem tem uma razão, e uma alma.
Pela razão deve saber conduzir-se como homem. Pela alma deve saber
conduzir-se como santo. Quem assim não faz, coloca-se abaixo dos animais,
desce ao abraço com os demônios, porque ele endemoninha sua alma com o
pecado da ira.
Amai. Eu não vos digo outra coisa. Amai ao vosso próximo, como o
Senhor Deus de Israel o quer. Não sejais sempre do sangue de Caim. E por
que é que o sois? Por poucas moedas, vós podíeis agora ser uns homicidas.
Outros, por uns poucos palmos de terra. Por uma posição melhor. Por uma
mulher. Que são estas coisas? Eternas? Não. Duram muito menos do que a
vida, a qual dura um instante da eternidade. E que é que perdeis, seguindo
essas coisas? A paz eterna, que está prometida aos justos e que o Messias
vos trará, junto com o seu Reino. Vinde para o caminho da Verdade. Segui a
Voz de Deus. Amai-vos. Sede honestos. Sede continentes. Sede humildes e
justos. Ide e meditai.
67.4
– Quem és Tu, que falas semelhantes palavras e quebras as espadas só
com a tua vontade? Só há um que pode fazer estas coisas: o Messias. Nem
mesmo João Batista é mais do que Ele. Por acaso, és Tu o Messias? –
perguntam-lhe uns três ou quatro.
– Eu sou.
– Tu? Tu és aquele que cura os doentes e pregas a Deus pela Galiléia?
– Sou Eu.
– Eu tenho minha velha mãe que está morrendo. Salva-a!
– E eu, estás vendo? Estou perdendo as forças pelas dores que sinto.
Tenho filhos ainda pequenos. Cura-me!
– Vai para a tua casa. Tua mãe, esta tarde, te preparará a tua janta; E tu,
sê curado. Eu quero!
A multidão dá um grito. E depois lhe perguntam:
– O teu Nome? Qual o teu Nome?
– Jesus de Nazaré!
– Jesus! Jesus! Hosana! Hosana!
A multidão está exultante. Os burros podem fazer aquilo que quiserem
que ninguém se preocupa mais. As mães chegam lá do meio da cidade,
compreende-se que a notícia já correu e erguem seus pequeninos. Jesus
abençoa e sorri. E procura romper o círculo que o aclama, para entrar na
cidade, e ir aonde quer. Mas a multidão não quer saber disso.
– Fica conosco! Na Judéia! Na Judéia! Nós também somos filhos de
Abraão! –grita.
67.5
– Mestre!
Judas corre para Jesus.
– Mestre, me precedestes. Mas, que é que está acontecendo?
– O Rabi fez um milagre! Na Galiléia não; aqui, aqui o queremos
conosco.
– Estás vendo, Mestre? Todo Israel Te ama. É justo que Tu fiques
também aqui. Por que Te esquivas?
– Eu não me esquivo, Judas. Eu vim justamente só para que a rudeza dos
discípulos galileus não aborreça a sutileza judéia. Eu quero reunir todas as
ovelhas de Israel sob o cetro de Deus.
– Por isso é que eu Te disse: “Toma-me Contigo.” Eu sou judeu, e sei
como tratar os meus iguais. Ficarás, então, em Jerusalém?
– Por poucos dias. Para esperar um discípulo que também é judeu.
Depois, Eu irei pela Judéia…
– Oh! Eu irei Contigo. Eu Te acompanharei. Irás ao meu povoado. Eu Te
levarei à minha casa. Irás, Mestre?
– Irei… 67.6Do Batista, tu que és judeu, e vives perto dos poderosos, não
sabes nada?
– Sei que ele está ainda na prisão, mas que o querem soltar, porque a
multidão está ameaçando fazer um motim se não lhe for restituído o seu
profeta. Tu o conheces?
– Eu o conheço.
– Tu o amas? Que pensas dele?
– Penso que não houve ninguém mais do que é igual a Elias.
– Achas que ele é verdadeiramente o Precursor?
– Ele o é. É a estrela da manhã que anuncia o sol. Felizes daqueles que
são preparados para o Sol, através da sua pregação.
– João é muito severo.
– Não é mais para com os outros do que para consigo mesmo.
– Isto é verdade. Mas é difícil segui-lo em sua penitência. Tu és melhor
e é fácil amar-te.
– No entanto…
– No entanto, Mestre?
– No entanto, como ele é odiado por sua austeridade, Eu o serei pela
minha bondade, porque tanto uma como a outra anunciam a Deus e Deus é
mal visto pelos maus. Mas está escrito que assim seja. Como ele Me precede
na pregação, assim me precederá na morte. Ai, porém, daqueles assassinos
da Penitência e da Bondade.
– Por que Mestre, sempre esta tristeza de previsões? A multidão te ama,
como estás vendo…
– Porque é uma coisa certa. A multidão humilde sim, me ama. Mas a
multidão não é toda humilde, feita só de humildes. Mas a minha não é
tristeza. É a tranqüila visão do futuro e a adesão à vontade do Pai que me
mandou para isto. E para isto Eu vim. Eis-nos diante do Templo. Eu vou ao
Bel Nidrash, para ensinar as multidões. Se queres, fica.
– Eu ficarei ao teu lado. Não tenho senão esta meta: Servir-te e fazer-te
triunfar.
Entram no Templo, e tudo termina.
68. Jesus, no Templo com o Iscariotes, ensina.
1 de janeiro de 1945.
68.1
Vejo Jesus que, tendo Judas a seu lado, entra no recinto do Templo, e,
depois de terem superado o primeiro terraço, ou escalão, se preferis chamá-
lo assim, detém-se num ponto onde há uma série de pórticos, que rodeiam um
amplo pátio, pavimentado com mármore de diversas cores. O lugar é muito
bonito e cheio de gente.
Jesus olha ao redor de si e vê um lugar que lhe agrada. Mas, antes de
dirigir-se para lá, diz a Judas:
– Chama-me o magistrado do lugar. Devo fazer-me reconhecer, para que
não se diga que Eu falto com os costumes e o respeito.
– Mestre, Tu estás acima dos costumes e ninguém mais do que Tu tem o
direito de falar na Casa de Deus. Tu, o seu Messias.
– Eu sei disso, tu o sabes, mas eles não sabem. Eu vim, não para
escandalizar, nem para ensinar a violar não só a Lei, mas também os
costumes. Pelo contrário, Eu vim justamente para ensinar o respeito, a
humildade, a obediência e para acabar com os escândalos. Por isso Eu quero
pedir para poder falar em nome de Deus, fazendo-me reconhecer pelo
magistrado do lugar como digno de fazer isso.
– Mas na outra vez não fizeste assim.
– Na outra vez ardeu em Mim o zelo pela Casa de Deus, profanada por
muitas coisas. Na outra vez era o Filho do Pai[111], o Herdeiro que, em nome
do Pai e por amor à minha Casa, agia em sua majestade, à qual os
magistrados e sacerdotes são inferiores. Agora Eu sou o Mestre de Israel e
ensino a Israel também isso. Além disso, Judas, crês tu que o discípulo seja
maior do que o Mestre?
– Não, Jesus.
– E tu, quem és? E quem sou Eu?
– Tu, o Mestre, eu, o discípulo.
– E então, se reconheces que assim são as coisas, porque queres ensinar
o Mestre? Vai e obedece. Eu obedeço a meu Pai. Tu obedeces ao teu Mestre.
Primeira condição do Filho de Deus: obedecer sem discutir, pensando que o
Pai não pode dar senão ordens santas. Primeira condição do discípulo:
obedecer ao Mestre, pensando que O Mestre sabe e não pode dar senão
ordens justas.
– É verdade. Perdoa. Eu obedeço.
– Eu perdôo. Vai. E Judas, escuta ainda uma coisa: recorda-te disto.
Recorda-te disto sempre, no futuro.
– De obedecer? Sim.
– Não. Lembra-te de que Eu fui respeitoso e humilde para com o
Templo, ou seja, com as castas poderosas. Vai.
Judas olha para Jesus pensativamente, interrogativamente… mas não
ousa perguntar mais nada. E vai-se pensativo.
68.2
… Ele volta com um personagem muito bem trajado.
– Eis, Mestre, o magistrado.
– A paz esteja contigo. Eu peço para poder ensinar, entre os rabinos de
Israel, a Israel.
– És Tu rabi?
– Eu sou.
– Quem foi o teu mestre?
– O Espírito de Deus, que me fala com a sua sabedoria e me ilumina
com sua luz sobre todas as palavras dos textos sagrados.
– És então, maior do que Hilel, Tu que, sem mestre, dizes saber toda a
doutrina? Como pode alguém se formar, se não tem quem o forme?
– Como se formou Davi, o pastorzinho desconhecido, e que se tornou o
rei poderoso e sábio pela vontade do Senhor.
– Qual o teu Nome?
– Jesus de José de Jacó, da estirpe de Davi, e de Maria de Joaquim, da
estirpe de Davi, e de Ana de Arão, Maria, a Virgem desposada no Templo,
porque era órfã, pelo Sumo Sacerdote, segundo a lei de Israel.
– Quem prova isso?
– Ainda devem estar aqui os levitas, que se recordam do fato e que
foram contemporâneos de Zacarias, da classe de Abias, o meu parente.
Interroga-os, se duvidas da minha sinceridade.
– Eu creio em Ti. Mas, quem me prova que sejas capaz de ensinar?
– Escuta-me e tu mesmo julgarás.
– Estás livre para fazeres isso… Mas… não és nazareno?
– Eu nasci em Belém de Judá, no tempo do recenseamento ordenado por
César. Proscritos por ordens injustas, os filhos de Davi estão em toda a
parte. Mas a estirpe é de Judá.
– Sabes… os fariseus… toda a Judéia… pela Galiléia…
– Eu sei. Mas podes ficar tranqüilo. Em Belém Eu vi a luz, em Belém
Efrata, de onde vem a minha estirpe e se agora vivo na Galiléia, não é senão
para que se cumpra o que foi determinado…
O magistrado se afasta alguns metros, indo atender a alguém que o
chamou.
68.3
Judas pergunta:
– Por que não disseste que és o Messias?
– As minhas palavras o dirão.
– Qual era a profecia que se devia cumprir?
– A reunião de todo Israel sob o ensinamento da palavra de Cristo. Eu
sou o Pastor de que falam os Profetas, e venho para reunir as ovelhas de
todas as regiões, venho para curar as doentes e levar para uma pastagem boa
as errantes. Para Mim não há Judéia ou Galiléia, Decápolis ou Iduméia. Só
há uma coisa: o Amor, que olha com um só olhar e une em um único abraço
para salvar…
Jesus está inspirado. Parece emitir raios de tão sorridente que está em
seu sonho. Judas o olha admirado.
As pessoas, curiosas, se aproximam dos dois, cuja imponência diferente
atrai e impressiona.
Jesus abaixa o olhar, sorri para esta pequena mulidão com aquele seu
sorriso, cuja doçura nenhum pintor jamais conseguirá reproduzir, e nenhum
crente, que não o tenha visto, poderá imaginar como é. Ele diz:
– Vinde, se sentis o desejo de palavra eterna.
68.4
Ele se dirige sob um arco do pórtico e, encostado a uma coluna,
começa a falar. Toma como tema o fato daquela manhã.
– Esta manhã, ao entrar em Sião, vi que por umas poucas moedas dois
filhos de Abraão estavam prontos para se matarem. Em nome de Deus, Eu
teria podido amaldiçoá-los, porque Deus diz: “Não matarás”, e diz também
que quem não lhe obedece em sua Lei, será maldito. Mas Eu tive piedade da
ignorância deles a respeito do espírito da Lei, e somente impedi o
homicídio, para dar-lhes oportunidade de se arrependerem, conhecerem a
Deus, o servirem em obediência, amando, não somente a quem os ama, mas
também aos seus inimigos.
Sim, Israel. Um dia novo surge para ti e também se torna mais luminoso
o preceito do amor. Porventura começa o ano com o nebuloso Etanim, ou
com o triste Casleu de dias curtos como um sonho e de noites longas como
numa doença? Não, ele começa com o florido, ensolarado e alegre Nisam,
no qual tudo ri e o coração do homem, ainda que fosse o mais pobre e triste,
se abre à esperança porque vem o verão, os cereais, o sol, as frutas; doce é
dormir também sobre um prado em flor tendo as estrelas por candeias e fácil
o nutrir-se, porque cada gleba produz erva ou fruto para matar a fome do
homem.
Eis aqui, ó Israel. Terminou o inverno, o tempo da espera. Agora é a
alegria da promessa que se cumpre. O Pão e o Vinho em breve estarão
prontos para matar a tua fome. O Sol está no meio de ti. A este Sol, tudo
toma um fôlego mais amplo e mais doce, até o preceito da nossa Lei, o
primeiro e mais santo dos preceitos: “Ama a teu Deus e ama ao teu
próximo.”
Na relativa luz que até aqui te foi concedida, te foi dito — não terias
podido fazer mais, porque sobre ti ainda pesava a irritação de Deus, pela
culpa do desamor de Adão — te foi dito: “Ama aqueles que te amam e odeia
ao teu inimigo.” E inimigo para ti era não somente quem ultrapassava as
fronteiras de tua pátria, mas também quem havia faltado para contigo em
particular, ou que te parecia ter faltado. Onde o ódio aninhava-se em todos
os corações visto que, qual é o homem que, querendo ou não, não ofende ao
seu irmão? E qual o que alcança a velhice, sem ser ofendido?
Eu vos digo: amai também aos que vos ofendem. Fazei isto pensando
que Adão, e por meio dele todos os homens, são prevaricadores perante
Deus, e não há ninguém que possa dizer: “Eu não ofendi a Deus.” Contudo,
Deus perdoa, não uma mas dez e dez vezes perdoa, mas mil e dez mil vezes
perdoa; e disso é prova o fato de o homem ainda estar existindo sobre a
terra. Perdoai, pois, como Deus perdoa. E, se não o podeis fazer por amor
para com o irmão que vos prejudicou, fazei-o pelo amor de Deus, que vos dá
pão e vida, que vos ampara nas necessidades da terra, e predispôs cada
acontecimento para proporcionar-vos a paz eterna em seu seio. Esta é a Lei
nova, a Lei da primavera de Deus, do tempo florido da Graça vinda entre os
homens, do tempo que vos dará o Fruto sem par, que vos abrirá as portas do
Céu.
68.5
A voz que falava no deserto já não se ouve. Mas muda não está.
Ela fala ainda a Deus por Israel e fala ainda a todo israelita reto de
coração. Diz — diz depois de os haver ensinado a fazer penitência para
preparar os caminhos ao Senhor que vem, a ter caridade, dando o supérfluo a
quem não tem nem o necessário, a ter honestidade, não extorquindo ou
vexando — ela vos diz: “Está entre vós o Cordeiro de Deus, Aquele que tira
os pecados do mundo, Aquele que batizará com o fogo do Espírito Santo.
Ele limpará a sua eira, e recolherá o seu trigo.”
Sabei conhecer Aquele que o Precursor vos indica. Seus sofrimentos
operam diante de Deus para dar-vos luz. Vede. Abram-se os vossos olhos
espirituais. Conhecei a Luz que vem. Eu recebo a voz do Profeta que anuncia
o Messias e, com o poder que me vem do Pai, Eu a amplifico e vos uno ao
meu poder, vos chamo para a verdade da Lei. Preparai os vossos corações à
graça da Redenção que está próxima. O Redentor está entre vós. Felizes
aqueles que forem dignos de ser redimidos, porque terão tido boa vontade.
A paz esteja convosco.
Alguém pergunta:
– És Tu discípulo do Batista, para falares dele com tanta veneração?
– Fui batizado por ele nas águas do Jordão, antes que ele fosse preso. Eu
o venero, porque ele é santo aos olhos de Deus. Em verdade Eu vos digo que
entre os filhos de Abraão não há outro maior em graça do que ele. Desde a
sua vinda, até à sua morte, os olhos de Deus estarão pousados sem nenhum
desdém, sobre este bendito.
– Ele te deu a certeza sobre o Messias?
– Sua palavra, que não mente, mostrou aos presentes o Messias, que já
vivia entre os homens.
– Onde? Quando?
– Quando foi a hora de mostrá-lo.
68.6
Mas Judas se sente no dever de dizer à direita e à esquerda:
– O Messias é Ele, que vos fala. Eu vo-lo testifico, eu que o conheço e
sou o seu primeiro discípulo.
– É Ele?! Oh!…
O povo se afasta amedrontado. Mas Jesus é tão afável que voltam a se
aproximar.
– Pedi a Ele algum milagre. Ele é poderoso. Ele cura. Ele lê nos
corações. Responde a todas as perguntas.
– Fala a Ele por mim, que eu estou doente. Meu olho direito está morto e
o esquerdo está secando.
– Mestre.
– Judas.
Jesus que estava acariciando uma menininha, se volta.
– Mestre, este homem está quase cego e quer ver. Eu disse a ele que Tu
podes curá-lo.
– Eu posso, para quem tem fé. Tu tens fé, homem?
– Eu creio no Deus de Israel. Venho aqui para jogar-me na piscina de
Betsaida[112]. Mas sempre tem alguém que me precede.
– Podes crer em Mim?
– Se creio no anjo da piscina, não deverei crer em Ti, que o teu
discípulo diz que és o Messias?
Jesus sorri. Molha o dedo com a saliva e o roça no olho doente.
– Que estás vendo?
– Estou vendo as coisas sem aquela névoa de antes. E o outro, não o
curas?
Jesus sorri de novo. Repete o ato sobre o olho cego.
– Que estás vendo? –pergunta Ele, tirando a ponta do dedo da pálpebra
caída.
– Ah! Senhor de Israel! Estou vendo, como quando eu, ainda menino,
corria pelos prados! Sê Tu eternamente bendito!
O homem chora, prostrado aos pés de Jesus.
– Vai. Sê bom, agora, em reconhecimento a Deus.
68.7
Um levita, que chegou quase ao fim do milagre, pergunta:
– Com que poder fazes estas coisas?
– Tu me perguntas? Mas Eu te digo, se responderes à minha pergunta.
Segundo a tua opinião: é maior um profeta que anuncia o Messias, ou o
próprio Messias?
– Que pergunta! O Messias é maior: é o Redentor prometido pelo
Altíssimo!
– Então, por que os Profetas fizeram milagres? Com que poder?
– Com o poder que Deus dava a eles para provarem às multidões que
Deus estava com eles.
– Pois bem, com o mesmo poder, Eu faço milagres. Deus está Comigo,
Eu estou com Ele. Eu provo às multidões que assim é e que o Messias bem
pode, com maior razão e medida, o que podiam os Profetas.
O levita vai-se embora pensativo, e tudo termina.
[111] Na outra vez era o Filho do Pai… Agora Eu sou o Mestre… Também aqui — assim anota M aria Valtorta numa cóp ia
dactilografada — resultam as duas Naturezas unidas numa única Pessoa, mas bem distintas: Deus e Homem.
[112] Betsaida (e p or vezes Betseida), é dita na obra Valtortiana, assim como nas versões da “vulgata”, seja a p iscina de
Jerusalém (João 5,2) como a cidade sobre o lago de Genezaré (João 1, 44). Nas modernas versões da Bíblia, a p iscina é dita
Bethesda ou Betzaetà.
69. Jesus instrui Judas Iscariotes.
3 de janeiro de 1945.
69.1
Ainda Jesus e Judas que, depois de terem rezado no lugar mais
próximo do Santo, concedidos aos israelitas varões, saem do Templo.
Judas queria ficar com Jesus. Mas esse desejo encontra oposição da
parte do Mestre.
– Judas, Eu desejo estar sozinho nas horas noturnas. Na noite o meu
espírito obtém do Pai o seu alimento. Oração, meditação e solidão são para
mim mais necessárias do que alimento material. Aquele que quiser viver
pelo espírito, e levar outros a viver essa mesma vida, deve preterir a carne,
Eu diria quase matá-la nas suas prepotências, para dar todos os seus
cuidados ao espírito. Todos devem fazer assim, Judas. Também tu, se queres
verdadeiramente ser de Deus, ou seja, do sobrenatural.
– Mas nós somos ainda desta terra, Mestre. Como podemos descuidar-
nos da carne, dando todos os cuidados ao espírito? Isto que estás dizendo
não é uma antítese ao mandamento de Deus: “Não matarás”? Neste não está
compreendido também o não matar-se? Se a vida é um dom de Deus,
devemos amá-la, ou não?
– Responderei a ti como não responderia a uma pessoa simples, para a
qual basta fazer levantar o olhar da alma, ou da mente, a esferas
sobrenaturais, para levá-lo conosco, como num vôo, até os reinos do
espírito. Mas tu não és uma pessoa simples. Tu te formaste em ambientes que
te refinaram… mas que também te corromperam com suas sutilezas e com
suas doutrinas. Lembras-te de Salomão, Judas? Ele era um sábio, o mais
sábio daqueles tempos. Lembras-te do que ele disse[113], depois de ter
conhecido todo o saber? “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Temer a
Deus e observar os seus mandamentos, para o homem isso é tudo.” Agora Eu
te digo que é preciso saber tirar dos alimentos a nutrição, mas não veneno.
E, se compreendemos que um alimento nos está sendo prejudicial, porque há
em nós reações pelas quais aquele alimento é nefasto, sendo ele mais forte
do que os nossos bons humores que o poderiam neutralizar, é preciso não
fazer mais uso desse alimento, mesmo sendo gostoso ao paladar. É melhor
um simples pão e água de fonte do que os pratos complicados da mesa do
rei, nos quais há drogas que perturbam nosso organismo e envenenam.
– Que é que eu devo deixar, Mestre?
– Tudo aquilo que sabes que te faz mal. Porque Deus é Paz e se quiseres
andar no caminho de Deus deves desembaraçar a tua mente, o teu coração e
a tua carne de tudo o que não é paz e que traz consigo perturbação. Eu sei
que é difícil reformar-se a si mesmo. Mas Eu estou aqui para ajudar-te a
fazê-lo. Estou aqui para ajudar o homem a se tornar filho de Deus, a recriar-
se, como em uma segunda criação, uma autogênese desejada por ele mesmo.
69.2
Mas deixa que Eu te responda o que perguntaste para que não digas que
ficaste no erro por minha culpa. É verdade que o suicidar é o mesmo que
matar. A vida, tanto a própria, como a dos outros, é um dom de Deus, e só a
Deus, que no-la deu, está reservado o direito de tirá-la. Quem se mata,
confessa sua soberba e a soberba é abominada por Deus.
– Confessa sua soberba? Eu diria que o seu desespero.
– E que é desespero, senão soberba? Pensa bem, Judas. Por que é que
uma pessoa se desespera? É, ou porque as desventuras recrudescem sobre
ela e essa pessoa quer vencê-las sozinha e não consegue, ou então porque ela
é culpada e julga que Deus não pode perdoá-la. No primeiro e no segundo
caso, não é talvez a soberba que está prevalecendo? A pessoa, que quer agir
sozinha, não tem a humildade de estender a mão ao Pai e dizer-lhe: “Eu não
posso, mas Tu podes. Ajuda-me, que de Ti eu tudo espero.” Aquela outra
pessoa que diz: “Deus não pode me perdoar”, fala assim porque quer medir
a Deus por si mesma e sabe que alguém, ofendido como aquele a quem ela
ofendeu, não poderia perdoá-la. Ou seja, é soberba também aqui. O humilde
se compadece e perdoa, mesmo se sofre pela ofensa recebida. O soberbo
não perdoa. É soberbo porque não sabe inclinar a cabeça e dizer: “Pai, eu
pequei, perdoa ao teu pobre filho culpado.” Mas não sabes, Judas, que tudo
será perdoado pelo Pai se for pedido o perdão com um coração sincero e
contrito, humilde e cheio de boa vontade de renovação no bem?
– Mas certos delitos não são perdoados. Não podem ser perdoados.
– És tu quem diz isso. E assim será, se o homem assim quiser. Mas em
verdade, oh!, em verdade Eu te digo que, mesmo depois do delito dos
delitos, se o culpado corresse aos pés do Pai — Ele se chama Pai para isso,
Judas, e é um Pai de perfeição infinita — e chorando lhe suplicasse o
perdão, oferecendo-se à expiação, mas sem desespero, o Pai lhe daria o
modo de expiar para poder merecer o perdão e salvar sua alma.
69.3
– Então, Tu dizes que os homens que a Escritura cita[114], e que
suicidaram, fizeram mal.
– Não é lícito fazer violência contra ninguém, nem contra si mesmo.
Fizeram mal. Em seu relativo conhecimento do bem, em certos casos eles
terão tido ainda a misericóridia de Deus. Mas, desde quando o Verbo tiver
esclarecido toda a verdade e dado força aos espíritos com o seu Espírito,
desde então, não haverá mais perdão para quem morre em desespero. Nem
no momento do juízo particular, nem depois de muitos séculos na Geena, no
dia do Juízo final, nem nunca. Será isso uma dureza de Deus? Não: é justiça.
Deus dirá: “Tu julgaste, tu, criatura dotada de razão e de ciência
sobrenatural, criada livre por Mim, tu julgaste seguir o caminho que
escolheste, e disseste: ‘Deus não me perdoa. Estou separado Dele para
sempre. Julgo que devo por mim mesmo aplicar-me justiça pelo meu delito.
Saio da vida para fugir dos remorsos’, sem pensar que os remorsos não te
teriam mais atingido, se tu tivesses vindo ao meu seio paterno. E, como tu
mesmo te julgaste, que te advenha; Eu não violento a liberdade que te dei.”
Isto dirá o Eterno ao suicida. Pensa nisso, Judas. A vida é um dom e
deve ser amada. Mas que dom é? Um dom santo. E, então, que ela seja
amada santamente. A vida dura, enquanto a carne aguenta. Depois começa a
grande Vida, a Vida eterna. De bem-aventurança para os justos e de
maldição para os não-justos. A vida é uma meta ou um meio? É um meio.
Serve para chegar ao fim, que é a eternidade. E, então, damos à vida o tanto
que lhe sirva para durar e para servir o espírito em sua conquista.
Continência da carne em todos os seus apetites, em todos. Continência da
mente em todos os seus desejos, em todos. Continência do coração em todas
as paixões do que é humano. Ilimitado, ao invés, há de ser o ímpeto pelas
paixões que são do Céu: o amor a Deus e ao próximo, a vontade de servir a
Deus e ao próximo, a obediência à Palavra divina, o heroísmo no bem e na
virtude.
69.4
Eu te respondi, Judas. Ficaste persuadido? Basta-te esta explicação?
Sê sempre sincero e se não souberes ainda bastante – pergunta: Eu estou aqui
para ser Mestre.
– Eu compreendi, e para mim basta. Mas… é muito difícil fazer o que
compreendi. Tu o podes, porque és santo. Mas eu… Sou um homem, jovem,
cheio de vitalidade…
– Eu vim para os homens, Judas. Não para os anjos. Os anjos não
precisam de mestre. Eles vêem a Deus. Vivem no seu Paraíso. Não ignoram
as paixões dos homens porque a Inteligência, que é a Vida deles, os faz
conhecedores de tudo, mesmo aqueles que não são anjos da guarda de um
homem. Mas, espirituais como são, não podem ter senão um pecado, como
um deles teve, e arrastou consigo os menos fortes na caridade: a soberba,
flecha que desfigurou Lúcifer, o mais bonito dos arcanjos, e fez dele o
monstro horripilante do Abismo. Eu não vim para os anjos, os quais, depois
da queda de Lúcifer, se horrorizam só diante da sombra de um pensamento
de orgulho. Mas Eu vim para os homens. Para fazer dos homens, anjos.
O homem era a perfeição de tudo o que foi criado. Ele tinha do anjo o
espírito e do animal a completa beleza em todas as suas partes animais e
morais. Não havia criatura que o igualasse. Era o rei da terra, como Deus é o
Rei do Céu; um dia, aquele dia em que ele teria adormecido pela última vez
sobre a terra, ele se tornaria rei com o Pai no Céu. Satanás arrancou as asas
do anjo-homem e colocou nele garras de fera e veementes desejos de
imundícies; fez dele alguém que mais tem o nome de homem-demônio, do
que o de homem somente. Eu quero cancelar a deturpação feita por Satanás,
anular a fome corrompida da carne infectada, restituir as asas ao homem,
levá-lo a tornar a ser rei, co-herdeiro do Pai e do celeste Reino. Eu sei que o
homem, se quiser, pode fazer tudo o que digo, para voltar a ser rei e anjo. Eu
não vos mandaria fazer coisas que não pudésseis fazer. Eu não sou um desses
retóricos que pregam doutrinas impossíveis. 69.5Eu assumi uma verdadeira
carne para poder saber, sentindo-as na carne, quais são as tentações do
homem.
– E os pecados?
– Tentados, todos podem ser. Pecadores, só os que o querem ser.
– Nunca pecaste, Jesus?
– Eu nunca quis pecar. E isto, não só porque Eu sou o Filho do Pai. Mas
assim Eu quis e vou querer, para mostrar ao homem que o Filho do homem
não pecou porque não quis pecar e que o homem, se não quiser, pode não
pecar.
– Nunca foste tentado?
– Tenho trinta anos, Judas. E não vivi em um caverna sobre um monte.
Mas entre os homens. E, ainda que tivesse estado no lugar mais solitário da
terra, pensas que as tentações não teriam vindo? Tudo temos em nós: o bem e
o mal. Tudo levamos em nós[115]. Sobre o bem, passa o sopro de Deus, que o
acende como um turíbulo que leva agradáveis e sacros incensos. E sobre o
mal, Satanás sopra e o acende com uma fogueira de um ardor feroz. Mas a
vontade atenta e a oração constante são como a areia úmida sobre o ardor do
inferno: ela o sufoca e domina.
– Mas, se nunca pecaste, como podes julgar os pecadores?
– Eu sou homem, e sou o Filho de Deus. Tudo o que Eu poderia ignorar
como homem, e julgar mal, Eu o conheço e julgo como Filho de Deus. E
afinal!… Judas, responde a esta minha pergunta: alguém que está com fome,
sofre mais ao dizer: “Agora vou sentar-me à mesa”, ou quando diz: “Não há
comida para mim”?
– Sofre mais no segundo caso, porque só o saber que está privado dela,
já o faz sentir o cheiro da comida e suas entranhas se torcem de desejo.
– Aí está. A tentação é mordente como esse desejo, Judas. Satanás o
torna ainda mais agudo, perfeito e sedutor, do que qualquer ato já praticado.
Além disso, o ato dá satisfação mas, às vezes, também causa náuseas;
enquanto que a tentação não cai, mas, como uma árvore podada, lança uma
fronde mais robusta.
– E nunca cedeste?
– Nunca cedi.
– Como te foi possível isso?
– Eu disse: “Pai, não me exponhas à tentação.”
– Como? Tu, o Messias, Tu que operas milagres, pediste a ajuda do Pai?
– E não só a ajuda, Eu lhe pedi que não me exponha à tentação. Pensas tu
que porque Eu sou Eu, já posso deixar de contar com o Pai? Oh! Não! Em
verdade Eu te digo que o Pai concede tudo ao Filho, mas também que o Filho
recebe tudo do Pai. E te digo que tudo o que for pedido em meu nome ao Pai,
será concedido. 69.6Mas, eis-nos ao Get-Sammi, onde moro. Já são visíveis as
primeiras oliveiras além dos muros. Tu moras para lá de Tofet. A noite já
vem chegando. Não te convém subir até lá. Nós nos veremos novamente
amanhã no mesmo lugar. Adeus. A paz esteja contigo.
– A paz esteja Contigo também, Mestre… Mas eu queria dizer-te ainda
uma coisa. Eu te acompanharei até o Cedron, depois voltarei para trás. Por
que moras num lugar tão humilde como aquele? Sabes, o povo olha tantas
coisas. Não conheces ninguém na cidade, que tenha uma bela casa? Eu, se
quiseres, poderei levar-te à casa de amigos. Eles te hospedarão, porque são
meus amigos; e seriam moradas mais dignas de Ti.
– Achas isso? Eu não acho. O digno e o indigno existem em todas as
castas. E, sem faltar com a caridade, mas para não ofender a justiça, Eu digo
que o indigno, e maliciosamente indigno, está muitas vezes no meio dos
grandes. Não é preciso, nem útil serem poderosos para serem bons, ou para
esconder o pecado aos olhos de Deus. Tudo deverá mudar sob o meu sinal. E
será grande, não quem é poderoso, mas quem é humilde e santo.
– Mas, para ser respeitado, para se impor…
– Herodes é respeitado? E César, é respeitado? Não. Eles são tolerados
e amaldiçoados pelos lábios e pelos corações. Sobre os bons, ou também
sobre os que somente têm desejo de bondade, podes crer, Judas, que Eu
saberei me impor, mais com a modéstia, do que com a imponência.
– Mas, então… desprezarás sempre os poderosos? Assim, farás deles
teus inimigos! E eu estava pensando em falar de Ti a muitos que eu conheço
e que têm um nome…
– Eu não desprezarei a ninguém. Irei aos pobres como aos ricos, aos
escravos como aos reis, aos puros como aos pecadores. Mas, se é verdade
que ficarei grato a quem me der pão e abrigo em minhas fadigas, seja qual
for o abrigo e o alimento, Eu darei sempre preferência ao que é humilde. Os
grandes já têm muitas alegrias. Os pobres não têm mais que uma reta
consciência, um amor fiel, os filhos, e verem-se ouvidos pelos que são mais
do que eles. Eu serei sempre inclinado para os pobres, os aflitos e os
pecadores. Eu te agradeço pela tua boa vontade. Mas deixa-me neste lugar
de paz e oração. Vai. E Deus te inspire o que é bom.
Jesus deixa o discípulo e se introduz entre as oliveiras, e tudo termina.
[113] disse, em: Qohélet 1,1-2; 12,8.13.
[114] cita, p or exemp lo em: Juizes 9,54; 1 Samuel 31,4-5; 2 Samuel 17,23; 1 Rei 16,18; 2 Macabeus 14,41-46.
[115] Tudo temos em nós: o bem e o mal. Tudo levamos em nós. Estas afirmações são correctas enquanto referidas à
condição humana no geral. Todavia, M aria Valtorta corrigiu-as, numa cóp ia dactilografada, da seguinte forma, que p arece mais
conforme à natureza humano-divina d’Aquele que fala: Tudo temos em torno a nós: o bem e o mal. Tudo podemos acolher em
nós.
70. No Getsêmani com João de Zebedeu.
Uma comparação entre o Predileto e Judas de
Keriot.
4 de janeiro de 1945.
70.1
Vejo Jesus que se dirige à baixa casinha branca, que fica no meio do
olival. Um jovenzinho o saúda. Parece ser ele do lugar porque tem nas mãos
as ferramentas de podar e de sachar.
– Deus esteja Contigo, Rabi. O teu discípulo João veio e agora partiu
novamente para ir ao teu encontro.
– Faz muito tempo?
– Não. Ele apenas passou aquele caminho. Nós pensávamos que Tu
virias do lado de Betânia…
Jesus, rápido, toma o caminho, contorna o outeiro, vê João que desce
quase correndo em direção à cidade e o chama.
O discípulo se vira e, com o rosto iluminado pela alegria, grita:
– Oh! Meu Mestre! –e volta correndo.
Jesus lhe abre os braços e os dois se abraçam afetuosamente.
– Eu ia procurar-te… Pensávamos que tinhas estado em Betânia, como
havias dito.
– Sim. Eu queria fazer assim. Devo começar a evangelizar também os
arredores de Jerusalém. Mas depois me entretive na cidade… para instruir
um novo discípulo.
– Tudo o que fazes é bem feito, Mestre. E é bem sucedido. Estás vendo?
Agora mesmo, de repente nos encontramos.
Os dois caminham, tendo Jesus um braço sobre as costas de João que,
sendo mais baixo do que Ele, o olha de baixo para cima, contente com
aquela intimidade. E assim eles voltam para a casinha.
– Há muito tempo que vieste?
– Não, Mestre. Eu parti de Doco, ao amanhecer, junto com Simão, ao
qual eu disse aquilo que Tu desejavas. Depois, paramos juntos nos campos
de Betânia, repartimos o alimento, e falamos de Ti aos camponeses que lá
encontramos. Quando o sol já estava menos quente nos separamos. Simão foi
à casa de um amigo, o qual quer falar de Ti. É o dono de quase toda a
Betânia. Simão o conhece de antes, desde quando eram vivos os pais de um
e do outro. Mas amanhã Simão virá para cá. Disse-me para falar-te que é
feliz em servir-te. Simão é muito capaz. Eu gostaria de ser como ele. Mas
sou um moço ignorante.
– Não, João. Tu também fazes muito bem.
– Estás mesmo contente com o teu pobre João?
– Muito contente, meu João. Muito.
– Oh! Meu Mestre!
João se inclina, num impulso, para pegar a mão de Jesus e a beija e a
passa pelo rosto como uma carícia.
70.2
Chegaram à casinha. Entram na cozinha baixa e fumacenta. O dono o
saúda:
– A paz esteja Contigo.
Jesus responde:
– Paz a esta casa, a ti e a quem vive contigo. Tenho Comigo um
discípulo.
– Teremos pão e óleo para ele também.
– Eu trouxe peixe seco que Tiago e Pedro me deram. E, passando por
Nazaré, tua mãe me deu pão e mel para Ti. Caminhei sem parar, mas agora o
pão já deve estar duro.
– Não tem importância, João. Ele terá sempre o sabor das mãos da
minha mãe.
João vai tirando os seus tesouros do alforje que ele tinha posto em um
canto. E vejo preparar o peixe seco de uma maneira estranha. Eles o molham
por poucos instantes, em água quente, depois o untam e assam sobre as
chamas.
Jesus abençoa a comida e, com o discípulo, assenta-se à mesa. Estão ali
também o dono da casa, que ouço ser chamado Jonas, e seu filho. A mãe vai
e vem, levando o peixe, azeitonas pretas, verduras cozidas e temperadas com
óleo. Jesus também põe na mesa o mel. E o oferece à mãe, estendendo-o com
o pão.
– É da minha colméia –diz–. Minha mãe é quem cuida das abelhas.
Come dele. É bom. És tão boa para Comigo, Maria, que mereces este e mais
outro–, diz Ele depois, ao ver que a mulher não queria privá-lo do doce mel.
O jantar chega logo ao fim entre breves conversações em que todos
participam. Assim que termina, depois de ter agradecido pelo alimento,
Jesus diz a João:
– Vem. Vamos sair um pouco até o olival. A noite está morna e clara.
Será agradável estar um pouco lá fora.
O dono da casa diz:
– Mestre, eu te saúdo. Estou cansado e meu filho também está cansado.
Nós vamos dormir. Eu deixo a porta encostada e a candeia sobre a mesa. Já
sabes como fazer.
– Vai então, Jonas, e apaga a candeia. Há um luar tão claro, que nós
enxergaremos até sem levar luz.
– Mas o teu discípulo, onde é que vai dormir?
– Comigo. Em minha esteira há lugar também para ele. Não é verdade,
João?
João, à idéia de dormir ao lado de Jesus, fica extasiado.
70.3
Saem para o olival. Mas antes, João pegou qualquer coisa no saco que
está no canto. Caminham um pouco e chegam a um ponto de onde se vê toda
Jerusalém.
– Sentemo-nos aqui, e vamos conversar –diz Jesus.
Mas João prefere ir sentar-se aos pés de Jesus, sobre a erva cortada;
está com o braço pousado sobre os joelhos do Mestre, com a cabeça apoiada
sobre o braço, olhando de vez em quando para o seu Jesus. Parece um
menino perto da pessoa para ele mais querida.
– É bonito também aqui, Mestre. Olha como a cidade parece grande de
noite. Maior do que de dia.
– É porque a luz da lua fez desaparecer os contornos. Vê, parece que os
limites se alargam nesta luminosidade prateada. Olha a cúpula do Templo lá
em cima. Não parece estar suspensa no ar?
– Parece que os anjos a estão transportando sobre suas asas de prata.
Jesus suspira.
– Por que suspiras, Mestre?
– Porque os anjos abandonaram o Templo. Seu aspecto de pureza e
santidade está limitado às paredes. Aqueles que deviam dar-lhe a
alma — porque cada lugar tem sua alma, ou seja, o espírito para o qual ele
foi erguido, e o Templo tem, deveria ter, alma de oração e santidade — são
os primeiros a tirar-lhe. Não se pode dar o que não se tem, João. E, se
muitos são os sacerdotes e os levitas que lá vivem, deles não há nem um
décimo que seja apto para dar vida ao Lugar Santo. Morte é o que dão.
Comunicam a ele a morte que está no seu espírito, morto ao que é santo. Eles
têm as fórmulas. Mas não têm a vida delas. São cadáveres que estão quentes
só pela putrefação que os está inchando.
– Eles te fizeram mal, Mestre?
João está com muita pena.
– Não. Ao contrário, me deixaram falar, quando pedi para fazê-lo.
– Tu o pediste? Por que?
– Porque não quero ser Eu aquele que inicia a guerra. A guerra virá
assim mesmo. Porque a alguns Eu farei um tolo medo humano, e para outros,
eu serei uma censura. Mas isto deve estar no livro deles. Não no meu.
70.4
Fazem um pouco de silêncio e depois João volta a falar:
– Mestre, eu conheço Ana e Caifás. Por necessidades de negócios,
minha família manteve um relacionamento com eles e quando estive na
Judéia por causa de João, eu ia também ao Templo, e eles eram bons aos
filhos de Zebedeu. Meu pai sempre se lembra deles com o melhor peixe.
Virou até um costume, sabes? Quando se quer tê-los como amigos, continuar
a tê-los, é preciso fazer assim…
– Eu sei.
Jesus está sério.
– Pois bem. Se achas bom, eu falarei de Ti ao Sumo Sacerdote. E
depois… se quiseres, eu conheço um que está tratando de negócios com meu
pai. É um rico comerciante de peixe. Ele tem uma casa bonita e grande, perto
do Hípico, porque são pessoas ricas, mas são também muito boas. Para Ti
ficaria mais cômodo e Te cansarias menos. Para se vir aqui deve-se passar
também por aquele subúrbio de Ofel tão mal cuidado e sempre cheio de
burros e de rapazes briguentos.
– Não, João. Eu te agradeço. Mas estou bem aqui. Estás vendo quanta
paz? Eu disse isto também ao outro discípulo que me fazia a mesma
proposta. Ele dizia: “Para seres melhor considerado.”
– Eu o dizia para que Tu não te cansasses muito.
– Eu não me canso. Caminharei muito e não me cansarei nunca. Sabes o
que é que me cansa? O desamor. Oh! aquele, que peso! É como se Eu tivesse
um peso no coração.
– Eu te amo, Jesus.
– Sim. E tu me alivias. Eu te quero muito bem, João, e te quererei
sempre, porque tu não me trairás nunca.
– Trair-te? Oh!
– Contudo, haverá muitos que me trairão… 70.5João, escuta. Eu te disse
que parei aqui para instruir um novo discípulo. É um jovem judeu instruído e
conhecido.
– Então, terás com ele muito menos trabalho do que conosco, Mestre.
Estou contente por teres alguém mais capaz do que nós.
– Pensas tu que me dará menos trabalho?
– Ora, se é menos ignorante do que nós, Te compreenderá melhor e Te
servirá melhor, especialmente se Te amar melhor.
– Aí está. Disseste bem. Mas o amor não depende da instrução e nem da
formação. Um virgem ama com toda a força do seu primeiro amor. Isso
também se dá com a virgindade do pensamento. E o amado penetra e se
imprime mais em um coração e em um pensamento virgem do que em um no
qual já estiveram outros amores. Mas, se Deus quiser… Escuta, João. Eu te
peço que sejas amigo dele. O meu coração treme, ao colocar-te, cordeiro
insonso, junto a alguém já experimentado na vida. Mas também se acalma,
porque sabe que tu serás cordeiro, mas também águia e se o experimentado
quiser fazer-te tocar o chão, sempre lamacento, o chão do bom sentido
humano, tu, com um bater de asas, saberás livrar-te e querer só o azul e o
sol. Por isto te peço que… — conservando-te como és — sejas amigo do
novo discípulo, que não vai ser muito amado por Simão Pedro e também
pelos outros, para lhe transfundires o teu coração…
– Oh! Mestre! Mas já não bastas Tu?
– Eu sou o Mestre ao qual não se dirá tudo. Tu és o condiscípulo, um
pouco mais jovem, com o qual é mais fácil abrir-se. Eu não estou dizendo
que me venhas repetir tudo o que ele te disser. Abomino os espias e os
traidores. Mas o que te peço é que o evangelizes com a tua fé e tua caridade,
com a tua pureza, João. É uma terra corrompida por águas mortas. Há de ser
seca com o sol do amor, purificada com a honestidade de pensamentos,
desejos e obras e cultivada com a fé. E tu podes fazer isso.
– Se achas que eu posso… oh! sim. Se Tu dizes que eu posso fazer isso,
isso farei. Por amor a Ti…
– Obrigado, João.
70.6
– Mestre, falaste de Simão Pedro. E voltou-me à lembrança o que eu
devia dizer-te primeiro, mas que a alegria de ouvir-te tinha afastado do meu
pensamento. Quando voltamos a Cafarnaum, depois do Pentecostes,
encontramos logo a importância de costume daquele desconhecido. O
menino a tinha entregue à minha mãe. Eu a dei a Pedro e ele me devolveu
dizendo que a usasse um pouco para a volta e a parada em Doco e que o
restante o levasse a Ti, pois podias estar precisando… porque Pedro
também pensava que aqui não tens comodidade… mas Tu dizes que tens…
Eu não tirei senão duas moedas para dois pobrezinhos que encontrei perto de
Efraim. Quanto ao mais, vim passando com o que minha mãe me havia dado
e com o que me deram algumas pessoas boas, às quais eu preguei o teu
Nome. Aqui está a bolsa.
– Amanhã a distribuiremos aos pobres. Assim, também Judas irá
aprendendo os nossos costumes.
– O teu primo veio? Como fez para chegar aqui tão rápido? Ele estava
em Nazaré e não me disse que partiria…
– Não. Judas é o novo discípulo. Ele é de Keriot. Mas tu o viste pela
Páscoa, aqui, naquela tarde da cura de Simão. Ele estava com Tomé.
– Ah! É aquele?
João fica um pouco admirado…
– É ele. E Tomé, que está fazendo?
– Ele obedeceu as tuas ordens deixando Simão Cananeu e, indo pela
estrada do mar, foi ao encontro de Filipe e Bartolomeu.
– Sim, Eu quero que vos ameis sem preferências, ajudando-vos
reciprocamente, suportando-vos um ao outro. Ninguém é perfeito, João. Nem
os jovens, nem os velhos. Mas, se tiverdes boa vontade, chegareis à
perfeição, e o que faltar, Eu colocarei em vós. Vós sois como os filhos de
uma santa família. Dentro dela há muitos caráteres diferentes. Um é forte,
outro é calmo, outro é corajoso, outro é tímido, um é impulsivo, outro é
muito cauteloso. Se todos fossem iguais, seríeis uma força em um caráter e
deficiências em todos os outros. Enquanto que, como estais, formais uma
união perfeita, porque vos completais mutuamente. O amor vos une, vos deve
unir, o amor por causa de Deus.
– E por Ti, Jesus.
– Primeiro por causa de Deus, e depois por amor ao seu Cristo.
– Eu… que é que eu sou na nossa família?
– És a paz amorosa do Cristo de Deus. 70.7Estás cansado, João? Queres
voltar? Eu fico aqui para rezar.
– Eu também fico para rezar Contigo. Deixa-me ficar para rezar Contigo.
– Então fica.
Jesus diz os salmos e João o acompanha. Mas a voz dele vai sumindo, e
o apóstolo acaba adormecendo com a cabeça sobre o colo de Jesus, que
sorri e estende o seu manto sobre as costas do adormecido e depois continua
a rezar, mentalmente.
A visão termina assim.

70.8
Depois Jesus diz:
– Ainda um paralelo entre o meu João e um outro discípulo. Paralelo no
qual sai sempre mais nítida a figura do meu predileto.
Ele é aquele que se despoja do seu modo de pensar e de julgar, para ser
“o discípulo.” É aquele que se doa, sem querer de si nem mesmo uma
molécula — do si mesmo antecedente à eleição. Judas é aquele que não quer
se despojar de si mesmo. A sua doação é, por isso, uma doação irreal. Ele
traz consigo o seu eu doente de soberba, de sensualidade, de cobiça.
Conserva o seu modo de pensar. Com isso ele neutraliza os efeitos da
doação e da Graça.
Judas é o chefe da família de todos os apóstolos fracassados. E são
tantos! João é o chefe da família dos que se fazem hóstias por meu amor. Ele
é o teu modelo.
Eu e minha mãe somos as Hóstias excelsas. Alcançar-nos é difícil, aliás,
impossível, porque o nosso sacrifício foi de uma aspereza total. Mas o meu
João! É a hóstia imitável por todas as classes dos meus amadores: virgem,
mártir, confessor, evangelizador, servo de Deus e da mãe de Deus, ativo e
contemplativo, é um exemplo para todos. É aquele que ama.
Observa os diferentes modos de raciocinar. Judas investiga, argumenta,
teima, e, mesmo quando parece estar cedendo, na realidade está conservando
ainda o seu modo de pensar. João se julga um nada, aceita tudo, não pergunta
as razões, e se sente bem pago se puder me fazer feliz. Eis o exemplo.
70.9
Não é verdade que te sentiste toda cheia de paz, diante daquela sua
simples e querida amorosidade? Oh! O meu João! E o meu pequeno João que
Eu quero seja sempre mais parecido com o meu dileto. Aceita tudo, dizendo
sempre como o Apóstolo: “Tudo aquilo que fazes é bem feito, Mestre”, para
merecer ouvir sempre que se lhe diga: “És a minha amorosa paz.” Preciso de
consolo Eu também, Maria. Dá-me. O meu Coração seja o teu repouso.
71. Judas Iscariotes apresentado a João e a Simão
Zelote.
6 de janeiro de 1945.
71.1
Vejo Jesus com Judas Iscariotes, dando uns passos, para cima e para
baixo, junto a uma das portas do recinto do Templo.
– Estás certo de que ele virá? –pergunta Judas.
– Estou certo. Ele ia partir ao amanhecer de Betânia e no Get-Sammi ia
encontrar-se com o meu primeiro discípulo…
Uma pausa, depois Jesus se detém e olha fixamente para Judas. Coloca-
se em sua frente. Perscruta-o. Em seguida põe-lhe uma mão sobre o ombro e
lhe pergunta:
– Por que é Judas, que não me dizes o teu pensamento?
– Que pensamento? Não tenho um pensamento especial neste momento,
Mestre. Perguntas eu te faço até demais. E certamente não te podes queixar
do meu mutismo.
– Faz-me muitas perguntas e me dás muitas informações sobre a cidade e
seus habitantes. Mas não me abres a tua alma. Que importância queres que
tenham para Mim informações sobre o seu patrimônio e a estrutura desta ou
daquela família? Eu não sou um mandrião que tenha vindo aqui por
passatempo. Tu sabes porque é que Eu vim. E bem podes compreender que
me importa antes de tudo, ser o Mestre dos meus discípulos. Por isso quero
da parte deles sinceridade e confiança. 71.2Teu pai te amava, Judas?
– Sim, me amava muito. Eu era o seu orgulho. Quando eu voltava da
escola, e também mais tarde, quando eu voltava de Jerusalém para Keriot,
ele queria que eu lhe contasse tudo. Interessava-se por tudo o que eu fazia e
se eram coisas boas, se alegrava, se eram coisas menos boas, me animava.
Se — alguma vez, como sabes, todos erram — eu tinha cometido algum erro
e recebido alguma repreensão, ele me fazia ver toda a justiça da repreensão
recebida e quanto eu havia errado. Mas o fazia tão docemente… parecia um
irmão maior. E terminava sempre assim: “Isto eu te digo, porque quero que o
meu Judas seja um justo. Quero ser abençoado através do meu filho…” Meu
pai…
Jesus que ficou o tempo todo fitando atentamente o discípulo,
sinceramente emocionado com a evocação da memória de seu pai, lhe diz:
– Aí está, Judas, fica certo de tudo o que te digo. Nenhuma obra fará
mais feliz o teu pai do que a de seres meu fiel discípulo. O espírito de teu
pai exultará, lá onde está esperando a Luz — porque, se assim ele te educou,
justo deve ter sido — vendo-te meu discípulo. Mas, para o seres, deves
dizer-te a ti mesmo: “Reencontrei o meu pai que eu tinha perdido, um pai que
parecia um irmão mais velho, eu o encontrei no meu Jesus e a Ele, como ao
meu pai amado que eu ainda choro, direi tudo, para ter dele guia, bênção ou
mansa repreensão.” Queira o Eterno e tu, sobretudo tu, queiras agir de tal
modo, que Jesus só possa te dizer: “És bom, Eu te abençôo.”
– Oh! Sim Jesus, sim. Se Tu me amares muito, eu saberei tornar-me bom,
como Tu queres, e como meu pai queria. E minha mãe não terá mais aquele
espinho no coração. Ela dizia sempre: “Estás agora sem guia, meu filho, e
ainda tens tanta necessidade!” Quando ela souber que tenho a Ti!
– Eu te amarei, como nenhum outro homem poderia, Eu te amarei muito,
te amo muito. Não me decepciones.
– Não, Mestre, não. Eu era cheio de contrastes: invejas, ciúmes, manias
de querer ser o primeiro, a sensualidade, tudo se chocava em mim contra os
sentimentos bons. Queres ver? Agora há pouco, Tu me causaste uma dor. Ou
seja, Tu, não. O que a causou foi a minha natureza má… Eu pensava que era
o teu primeiro discípulo… e Tu me disseste que já tens um outro.
– Tu mesmo o viste. Não te lembras de que no Templo, pela Páscoa, Eu
estava com muitos galileus?
– Pensava que fossem amigos… Eu pensava que eu fosse o primeiro
escolhido para tal condição e por isso, o predileto.
– Não há distinções em meu coração entre os últimos e os primeiros. Se
o primeiro cometesse falta, e o último fosse um santo, aí então, aos olhos de
Deus é que se faria uma distinção. Mas Eu, Eu amarei da mesma forma, com
um amor feliz ao santo e com um amor sofredor ao pecador. 71.3Mas eis João
que chega com Simão. João, o meu primeiro. Simão, aquele do qual te falei
dois dias atrás. Simão e João, tu já os viste. Um era doente…
– Ah! O leproso! Eu me lembro. Já é o teu discípulo?
– Desde o dia seguinte.
– E comigo, por que tanta espera?
– Judas?!
– É verdade. Perdão.
João viu o Mestre e o mostra a Simão. Apressam o passo. A saudação
de João é um beijo trocado com o Mestre. Simão, ao invés, prostra-se ao pés
de Jesus e os beija, exclamando:
– Glória ao meu Salvador! Abençoa o teu servo para que as suas ações
sejam santas aos olhos de Deus, e eu lhe possa dar glória para bendizê-lo
por ter-me dado a Ti!
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça:
– Claro que Eu te abençôo para agradecer-te por teu trabalho. Levanta-
te, Simão. Eis, João; eis, Simão: este é o último discípulo. Ele também quer
seguir a Verdade. Por isso, é irmão de todos vós.
Saúdam-se, os dois judeus com uma indagação recíproca e João com sua
expansão.
– Estás cansado, Simão? –pergunta Jesus.
– Não, Mestre. Junto com a saúde, veio-me um vigor que eu ainda não
conhecia.
– E sei que o estás empregando bem. Tenho falado com muitos e todos
me falaram de ti como daquele que já os instruiu sobre o Messias.
Simão sorri contente:
– Ontem mesmo, à tarde, falei de Ti com uma pessoa que é um israelita
honesto. Espero que um dia o conheças. Gostaria que fosse eu quem Te
conduzisse a ele.
– Isto não é impossível.
Judas intervém:
– Mestre, Tu me prometeste ir comigo à Judéia.
– E irei. Simão continuará a instruir as pessoas sobre a minha vinda. O
tempo é breve, amigos, e o povo é numeroso. 71.4Agora Eu vou com Simão. A
tarde, vós dois ireis ao meu encontro pela estrada do Monte das Oliveiras e
distribuiremos dinheiro aos pobres. Ide.
Jesus, sozinho com Simão, lhe pergunta:
– Aquela pessoa de Betânia é um verdadeiro israelita?
– Um verdadeiro israelita. Há nele todas as idéias predominantes, mas
ele tem também uma verdadeira ânsia pelo Messias. E quando eu lhe disse:
“Ele já está entre nós”, ele respondeu imediatamente: “Feliz de mim, que
vivo nesta hora!”
– Iremos a ele um dia para levar a bênção à sua casa. Viste o novo
discípulo?
– Eu vi. É jovem e parece inteligente.
– Sim. Ele é. Tu, que és judeu, mais do que os outros será compatível de
suas idéias.
– É um desejo, ou uma ordem?
– É uma ordem serena. Tu, que sofreste, és capaz de ter mais
indulgência. A dor ensina tantas coisas!
– Se me mandas, eu serei todo indulgência para com ele.
– Sim, isto mesmo. Talvez o meu Pedro, e não só ele, fique um pouco
escandalizado, ao ver como trato e me preocupo com este discípulo. Mas um
dia eles entenderão… quanto mais alguém é mal formado, mais precisa de
cuidados. Os outros… oh! os outros vão-se formando também por si,
somente por contato. Eu não quero fazer tudo por Mim. Peço a vontade do
homem e a ajuda dos outros para formar um homem. Eu vos chamo para que
me ajudeis… e vos fico agradecido pela ajuda.
– Mestre, estás supondo que dele te venham decepções?
– Não. Mas ele é jovem e cresceu em Jerusalém…
– Oh! Perto de Ti ele se corrigirá de todos os vícios desta cidade…
Estou certo disso. Eu, já velho e tornado insensível pelo fastio da vida,
tornei-me completamente novo, desde o dia em que Te vi…
Jesus murmura:
– E assim seja.
E depois, em voz alta:
– Vem Comigo ao Templo. Vou evangelizar o povo.
E a visão termina.
72. Em direção a Belém com João,
Simão Zelote e Judas Iscariotes.
7 de janeiro de 1945.
72.1
Vejo Jesus que, desde o amanhecer, sempre junto à mesma porta, se
une aos discípulos Simão e Judas. Jesus já estava com João. Eu o ouço
dizer:
– Meus amigos, Eu vos peço que venhais Comigo pela Judéia. Se não
vos custar demais, especialmente para ti, Simão.
– Por que, Mestre?
– Porque é áspero o caminho pelos montes judaicos… e talvez ainda
mais áspero será para ti, o encontrar com alguns dos que te tenham feito mal.
– Quanto ao caminho, eu Te garanto uma vez mais que depois que me
curaste fiquei mais forte do que um jovem e nenhum trabalho me cansa, ainda
mais quando ele é feito por Ti; agora, melhor ainda, Contigo. Quanto ao
encontro com quem me tiver prejudicado, não existe mais aspereza de
ressentimentos e nem de sentimentos no coração de Simão, desde quando ele
se tornou teu. O ódio caiu junto com as escamas do meu mal. E não sei,
podes crê-lo, se devo dizer-te que fizeste um milagre maior ao curar-me a
carne corroída, ou a alma queimada pelo rancor. Penso que não estou errado
ao dizer que o milagre maior foi este último. É sempre menos fácil que fique
curada uma chaga do espírito… e Tu curaste a minha num instante. Isto é
milagre. Porque, num instante não fica curado, por mais que o queira com
todas as suas forças, o homem que está doente de um hábito moral, se Tu não
anulares aquele hábito com a tua vontade santificante.
– Não estás errado em teu julgamento.
72.2
– Por que não o fazes assim com todos? –pergunta Judas, um pouco
ressentido.
– Mas Ele o faz, Judas. Por que falas assim ao Mestre? Não percebes
que estás diferente, desde que te aproximaste Dele? Eu era discípulo de
João, o Batista. Mas me achei todo mudado, desde quando Ele me disse:
“Vem!”
João, que geralmente não intervém, e especialmente se tem que fazer
diante do Mestre não o faz nunca, desta vez não é capaz de ficar calado.
Doce e afetuoso, ele pousou uma mão sobre o braço de Judas, como para
acalmá-lo, e lhe fala muito preocupado e persuasivo. Depois, se dá conta de
que falou antes de Jesus, se enrubesce e diz:
– Perdão, Mestre. Falei no teu lugar… mas queria… queria que Judas
não Te desse um desgosto.
– Sim, João. Mas ele não me deu desgosto como discípulo. Quando o
for, então, se ele persistir em seu modo de pensar, me dará um desgosto. 72.3O
que me entristece é constatar quanto o homem está corrompido por Satanás,
que lhe desvia o pensamento. Todos, sabeis? Todos tendes o pensamento
perturbado por ele! Mas virá, oh! virá o dia em que tereis em vós a Força de
Deus, a Graça, tereis a Sabedoria, com o seu Espírito… Então, tereis tudo
para julgar com justiça.
– E todos nós julgaremos com justiça?
– Não, Judas.
– Mas, estás falando para nós, discípulos, ou para todos os homens?
– Falo referindo primeiro a vós, depois a todos os outros. Quando for a
hora, o Mestre elegerá seus operários e os enviará pelo mundo…
– Já não estás fazendo isso?
– Por enquanto, o que Eu quero é que digais: “O Messias já está entre
nós. Vinde a Ele.” Então, Eu vos farei capazes de pregar em meu nome, de
realizar milagres em meu nome…
– Oh! Também milagres?
– Sim, sobre os corpos e sobre as almas.
– Oh! Como seremos então admirados!
Judas fica exultante, com esta idéia.
72.4
– Não estaremos mais com o Mestre então, mas… eu terei sempre
medo de fazer aquilo que é de Deus, com capacidade de homem –diz
João, e olha para Jesus pensativamente e também um pouco triste.
– João, se o Mestre der licença, eu queria te dizer o que penso –diz
Simão.
– Dize-o ao João. Eu desejo que vos aconselheis mutuamente.
– Como é que sabes que é um conselho?
Jesus sorri e fica calado.
– Pois bem. Então eu te digo, João, que não deves, não devemos temer.
Apoiamo-nos em sua sabedoria de Mestre santo, e em sua promessa. Se Ele
diz: “Eu vos enviarei”, é sinal de que Ele sabe que pode enviar-nos, sem que
isso prejudique a Ele e a nós, ou seja, à causa de Deus, que todos nós
consideramos querida, como uma esposa recém-casada. Se Ele nos promete
que vestirá a nossa miséria intelectual e espiritual com os fulgores do poder
que o Pai lhe dá em favor de nós, devemos estar certos de que Ele o fará e
de que nós o poderemos, não por nós mesmos, mas pela sua misericórdia.
No entanto, certamente tudo isso acontecerá, se nós não formos orgulhosos,
nem colocarmos desejo humano em nosso trabalho. Eu penso que, se
corrompermos a nossa missão, que é toda espiritual, com elementos que são
terrestres, então não se cumprirá também a palavra de Cristo. Não por sua
incapacidade, mas porque nós estrangularemos essa capacidade com o laço
da soberba. 72.5Não sei se me explico bem.
– Tu te explicas muito bem. Eu é que estava errado. Mas, sabes… eu
penso que, no fundo, o fato de desejarmos ser admirados como discípulos do
Messias, e tão dele, a ponto de termos merecido fazer o que Ele faz, seja
mais um desejo de realçar a poderosa figura do Cristo, junto aos povos.
Louvor ao Mestre, que tem tais discípulos, isto é o que quero dizer –
responde-lhe Judas.
– Nem tudo está errado no que dizes. Mas… olha, Judas. Venho de uma
casta que é perseguida por… por ter compreendido mal o que é, e como
deve ser o Messias. Sim. Se nós o tivéssemos esperado, com uma justa visão
do seu ser, não teríamos caído em erros, que são blasfêmias à Verdade e
rebelião à lei de Roma; por isso, por Deus e por Roma fomos punidos. Nós
quisemos ver no Cristo um conquistador e um libertador de Israel, um novo
Macabeu[116], e maior do que Judas… Só isto. E, por que? Porque mais do
que dos interesses de Deus, nós temos cuidado dos nossos interesses: da
pátria e dos cidadãos. Oh! santo também é o interesse da pátria. Mas, que é
ela, diante do Céu eterno? Quanto pensei e vi: vi a verdadeira figura do
Messias… a tua, Mestre humilde e bom, a tua, Mestre e Rei do espírito, a
tua, o Cristo, Filho do Pai e que ao Pai conduzes e não aos palácios feitos de
pó, não às deidades de barro. Primeiro nas longas horas de perseguição e
depois nas de segregação quando, fugitivo, me escondia nas tocas dos
animais selvagens partilhando com eles cama e comida para escapar das
forças romanas e sobretudo da delação dos falsos amigos; ou quando,
esperando a morte, já sentia o cheiro do sepulcro na minha caverna de
leproso. Tu… oh! Como me é fácil seguir-te… Porque, perdoa a minha
ousadia que se proclama justa, porque te vejo como antes pensei que eras, eu
te reconheço, eu logo Te reconheci. Sim, não foi um conhecimento de Ti, mas
um reconhecer Alguém que minha alma já havia conhecido…
– Por isto é que te chamei… e por isto te levo Comigo, agora, nesta
minha primeira viagem pela Judéia. 72.6Quero que tu completes o
reconhecimento… e quero que também estes, que a idade torna menos
capazes de chegar à verdade, por meio de uma meditação severa, saibam
como foi que o Mestre deles chegou até esta hora… Depois entendereis. Eis-
nos à vista da torre de Davi. A porta Oriental fica lá perto.
– Sairemos por ela?
– Sim, Judas. Em primeiro lugar, vamos a Belém. Ao lugar onde Eu
nasci… É bom que o saibais… para dizê-lo aos outros. Isto também faz
parte do conhecimento do Messias e da Escritura. Encontrareis as profecias
escritas nas coisas, com voz não mais de profecia mas de história. Vamos
dar uma volta ao longo das casas de Herodes…
– A velha raposa malvada e luxuriosa.
– Não julgues. Deus é quem julga. Vamos por aquele caminho, por entre
estas hortaliças. Pararemos à sombra de uma árvore, perto de alguma casa
hospitaleira enquanto o sol estiver quente. Depois, prosseguiremos o nosso
caminho.
A visão termina.
[116] um novo Macabeu, isto é, um novo Judas M acabeu, o chefe dos judeus das quais gestas se fala esp ecialmente em: 1
Macabeus 3,1-26.
73. Em Belém, na casa de um camponês
e na gruta do Nascimento.
8 de janeiro de 1945.
73.1
Uma estrada na planície pedregosa, poeirenta, seca pelo sol do verão.
Ela se estende entre possantes oliveiras, todas carregadas de pequenas
azeitonas, que mal acabaram de formar-se. O chão, nos lugares não pisados,
tem ainda um tapete de miúdas florzinhas das oliveiras, que caíram depois
da fecundação.
Jesus, com os três, anda em fila indiana, ao longo da beira da estrada,
onde a sombra das oliveiras conservou a erva ainda verde e, por isso, ali há
menos pó.
A estrada tem uma dobra em ângulo reto, além da qual sobe levemente
em direção a um vale em forma de grande ferradura, sobre a qual estão
espalhadas numerosas casas e casinhas, de modo a formar uma pequena
cidade. Justamente no ponto em que a estrada faz esta curva, há uma
construção em forma de cubo, por onde se entra através de uma cúpula
baixa. Ela está toda fechada, e parece abandonada.
– Lá está o sepulcro de Raquel –diz Simão.
– Então, já estamos quase chegando. Vamos entrar logo na cidade?
– Não, Judas. Antes vos mostrarei um lugar… Depois, entraremos na
cidade e, visto que ainda é dia claro e a noite vai ser de luar, poderemos
falar à população. Se ela quiser escutar.
– E ela não vai querer te escutar?
73.2
Chegaram ao sepulcro, antigo, mas bem conservado, bem caiado.
Jesus se detém para beber em um poço rústico ali perto.
Oferece-lhe água uma mulher que veio apanhá-la. Jesus lhe pergunta:
– És de Belém?
– Eu sou. Mas agora em tempo de colheita estou com o meu marido neste
campo, cuidando das hortas e dos pomares. E Tu, és galileu?
– Nasci em Belém, mas moro em Nazaré da Galiléia.
– Perseguido, também Tu?
– Minha família. Mas, por que dizes “também Tu”? Entre os belemitas,
há muitos perseguidos?
– E não sabes disso? Quantos anos tens?
– Trinta.
– Então nasceste justamente quando… oh! que desventura! Mas, por que
foi nascer aqui, Aquele?
– Quem?
– Ora, aquele que se dizia o Salvador. Maldição aos tolos que,
embriagados com cerveja, viram anjos nas nuvens, ouviram nos balidos das
ovelhas e nos zurros dos burros vozes do Céu e, nas névoas da embriaguez,
confundiram três miseráveis como sendo os mais santos da terra. Maldição
para eles! E para os que creram neles.
– Mas, com todas as tuas maldições, não me explicaste ainda o que foi
que aconteceu. Por que amaldiçoas?
– Porque… Mas escuta, para onde queres ir?
– Para Belém com os meus amigos. Tenho umas coisas a fazer lá.
Preciso saudar velhos amigos e levar-lhes a saudação de minha mãe. Mas
antes, Eu queria saber muitas coisas, porque estivemos fora, nós da família,
por muitos anos. Nós deixamos a cidade, quando Eu ainda estava com
poucos meses.
– Então, foi antes da nossa desventura. 73.3Escuta, se não ficas aborrecido
com a casa de um camponês, vem dividir conosco o pão e o sal. Tu e os teus
companheiros. Falaremos durante o jantar e eu vos darei alojamento até
amanhã de manhã. Minha casa é pequena. Mas, sobre a estrebaria há muito
feno amontoado. A noite é quente e serena. Se quiseres, podes dormir.
– O Senhor de Israel recompense a tua hospitalidade. Eu irei com
alegria à tua casa.
– O peregrino traz consigo a bênção. Vamos. Mas eu preciso ainda ir
despejar seis ânforas de água sobre as verduras, que nasceram há pouco.
– Eu te ajudarei.
– Não. Tu és um senhor. Teus modos o dizem.
– Eu sou um operário, mulher. Este aqui é um pescador. Estes, judeus,
gente de posses e bem colocados. Eu, não.
E pega uma ânfora bojuda pousada perto do baixíssimo murinho do
poço, a amarra e desce-a.
João o ajuda. Os outros também não querem ficar atrás e dizem à
mulher:
– Onde estão tuas hortaliças? Mostra-nos que para lá levaremos as
ânforas.
– Deus vos abençoe! Estou com os rins machucados pelo cansaço.
Vinde.
E enquanto Jesus está tirando do poço a sua ânfora, os três desaparecem
por uma vereda abaixo… Depois voltam com as suas ânforas vazias,
enchem-nas, e vão novamente. E assim fazem, não três, mas bem umas dez
vezes. E Judas ri, dizendo:
– Ela deve estar cansada de abençoar-nos. Nós levamos tanta água para
as suas verduras que, pelo menos por dois dias, a terra estará úmida e a
mulher não precisará machucar os seus rins.
Quando ele volta pela útima vez, diz:
– Mestre, creio porém, que vamos nos dar mal.
– Por que, Judas?
– Porque a briga dela é com o Messias. Eu lhe disse: “Não blasfemes.
Não sabes que a maior graça para o povo de Deus é o Messias? Jeová o
prometeu a Jacó e a todos os profetas e justos de Israel. E tu o odeias?” E
ela me respondeu: “Não a Ele. Mas aquele que foi chamado ‘Messias’ por
uns pastores bêbados e por uns malditos adivinhos do Oriente.” E já que o
Messias és Tu…
– Não importa. Eu sei que estou colocado à prova e contradição de
muitos. E tu lhe disseste que sou Eu?
– Não. Eu não sou tolo. Eu quis salvar as tuas e as nossas costas.
– Fizeste bem. Não por causa das costas. Mas porque desejo manifestar-
me quando julgar que seja o momento justo. Vamos.
Judas o guia até às hortaliças.
73.4
A mulher despeja as últimas três ânforas e depois os conduz a uma
rústica construção que está no meio do pomar.
– Entrai –diz ela–. Meu marido já está em casa.
Eles entram em uma cozinha baixa e enfumaçada.
– A paz esteja nesta casa –saúda Jesus.
– Quem quer que sejas, a bênção para Ti e para os teus. Entra –responde
o homem.
E antes vai buscar uma bacia com água, para que os quatro se
refresquem e se lavem. Em seguida, todos entram e se assentam junto a uma
mesa tosca.
– Eu vos agradeço por minha mulher. Ela me falou. Eu nunca tinha me
aproximado de galileus; me diziam que eles eram rudes e briguentos. Mas
vós fostes gentis e bons. Vós já estáveis cansados… e ter ainda que trabalhar
daquele modo. Estais vindo de longe?
– De Jerusalém. Estes são judeus. Eu e este outro somos da Galiléia.
Mas, podes crer, homem, o bom e o mau estão em toda parte.
– É verdade. Eu, no meu primeiro encontro com os galileus, encontro o
bom. Mulher, traz a comida. Não tenho outra coisa a não ser pão, verdura,
azeitonas e queijo. Eu sou camponês.
– Eu também não sou um senhor. Eu sou carpinteiro.
– Tu? Com estes modos?
A mulher intervém:
– O hóspede é de Belém, como eu te disse, e são perseguidos ele e os
seus; talvez tenham sido ricos e instruídos, como o eram Josué de Ur, Matias
de Isaque, Levi de Abraão… pobres infelizes!
– Ninguém te perguntou nada. Perdoa-a. As mulheres são mais faladeiras
do que os pássaros à tarde.
– Eram famílias belemitas?
– Como? Não sabes quem eram, tu que és de Belém?
– Nós fugimos, quando Eu tinha poucos meses…
A mulher, que deve ser mesmo faladeira, torna a falar:
– Ele foi-se embora, antes do massacre.
– É. Estou vendo. De outro modo, não estaria mais no mundo. Não
voltaste mais por aqui?
– Não.
73.5
– Que infelicidade! Poucos encontrarás daqueles que, como me disse
Sara, Tu queres conhecer e saudar. Muitos foram mortos, muitos fugiram,
muitos… ah! estão dispersos, e nunca se soube se foram mortos no deserto,
ou se faleceram no cárcere, em punição por sua rebelião. Mas foi rebelião?
E quem ficaria passivo deixando que degolassem tantos inocentes? Não, não
é justo que ainda estejam vivos o Levi e o Elias, enquanto tantos inocentes
morreram!
– Quem são esses dois, e que foi que fizeram?
– Mas… ao menos da matança ficaste sabendo. A matança feita por
Herodes… Mais de mil crianças[117] na cidade, um outro milhar nos campos.
E todos, aliás, quase todos varões, porque naquela fúria, no escuro, no
conflito que se armou, os ferozes pegaram, arrancaram dos berços, dos leitos
maternos, das casas assaltadas, até as menininhas, e as transpassaram como
filhotinhos de gazela, transformados em alvos por um arqueiro. Pois bem, e
tudo isso por que? Porque um grupo de pastores que, para vencerem o frio
da noite, por certo beberam bastante cerveja, foram tomados pelo delírio, e
disseram ter visto anjos, ouvido canções, recebido indicações… e disseram
a nós de Belém: “Vinde. Adorai. O Messias nasceu.” Pensa: o Messias em
uma caverna! Em verdade, devo dizer que embriagados fomos todos, eu
também, então adolescente e minha mulher, que naquele tempo tinha poucos
anos… porque todos nós acreditamos, e em uma pobre mulher galiléia
quisemos ver a Virgem parturiente da qual falaram os Profetas. Mas, se ela
estava na companhia de um rude galileu! O marido certamente. Se ela era sua
mulher, como podia ser a “Virgem”? Em suma, acreditamos. Presentes,
adorações… casas abertas para hospedá-los… Oh! Como souberam
representar bem a parte deles! Pobre Ana! Perdeu os bens e a vida, e
também os filhos de sua filha, a primeira, a única que se salvou, porque
casada com um comerciante de Jerusalém, mas perderam os bens, sua casa
foi queimada, e todo o seu sítio foi arrasado por ordem de Herodes. Agora, é
um campo inculto, sobre o qual pastam os rebanhos.
– Tudo culpa dos pastores?
– Não, também dos três bruxos, que vieram dos reinos de Satanás.
Talvez fossem compadres dos três… E nós, tontos, considerávamos aquilo
tudo como uma honra para nós! E aquele pobre arqui-sinagogo! Nós o
matamos porque ele jurou que as profecias punham o selo da verdade nas
palavras dos pastores e dos magos…
– Tudo culpa, então, dos pastores e dos magos?
– Não, galileu. Nossa também. Da nossa credulidade. Havia tanto tempo
que se esperava o Messias! Séculos de espera. Muitas desilusões nos
últimos tempos, por causa dos falsos Messias. Um deles era galileu, como
Tu, um outro se chamava Teúdas. Mentirosos! Messias eles! Não eram mais
do que ávidos aventureiros, à caça de fortuna! A lição devia ter-nos feito
mais espertos. Ao invés…
73.6
– E então, por que maldizer todos, os pastores e os magos? Se vos
julgais tolos vós também, então deveríeis maldizer-vos também. Mas a
maldição não é permitida pelo preceito do amor. Maldição atrai maldição.
Tendes certeza de que estais com a verdade? Não poderia ser que os
pastores e os magos tivessem dito a verdade, a eles revelada por Deus? Por
que querer crer que eles eram mentirosos?
– Porque os anos da profecia não se tinham completado. Depois
percebemos… depois que o sangue, que avermelhou a água de nossos
tanques e rios, nos abriu os olhos do pensamento.
– E não poderia o Altíssimo, por um excesso de amor para com o seu
povo, antecipar a vinda do Salvador? Sobre o que foi que os magos
basearam suas afirmações? Disseram-me que eles vinham do Oriente…
– Nos cálculos que fizeram sobre uma nova estrela.
– E não está escrito[118]: “Uma estrela nascerá de Jacó, e uma vara se
levantará de Israel”? E Jacó não é o grande patriarca, e não fez ele uma
parada nesta terra de Belém, que para ele era tão querida como a pupila de
seus olhos, por ter aí morrido a sua querida Raquel? Além disso, não foi dito
pela boca do profeta: “Um broto despontará da raiz de Jessé, e uma flor
nascerá dessa raiz”? Isai, o pai de Davi nasceu aqui. O broto da estirpe,
cortada perto da raiz pela usurpação dos tiranos, não é a “Virgem”, que dará
à luz o Filho, não tido de homem, porque então não seria mais virgem, mas
da vontade divina, onde Ele será “o Emanuel”, porque, como Filho de Deus,
será Deus e levará por isso Deus entre o seu povo, como diz o seu nome? E
não será anunciado, como diz a profecia, aos povos das trevas, ou seja, aos
pagãos “por uma grande luz”? E a estrela vista pelos magos não poderia ser
a estrela de Jacó, a grande luz das duas profecias, a de Balaão e a de Isaías?
E a própria matança realizada por Herodes não faz parte das profecias? “Um
grito foi ouvido no alto… É Raquel que chora os seus filhos.” Estava
marcado que as lágrimas fizessem gemer os ossos de Raquel em seu
sepulcro em Efrata, quando, por meio do Salvador, tivesse chegado a
recompensa ao povo santo. Lágrimas que depois se transformariam em um
riso celeste, como o arco-íris, que é formado pelas últimas gotas do
temporal, mas diz: “Eis um tempo sereno que vos é concedido.”
– Tu és muito douto. És rabi?
– Eu sou.
– Eu estou percebendo. Há luz e verdade nas tuas palavras. Mas… oh!
muitas feridas ainda sangram nesta terra de Belém por causa do verdadeiro
ou do falso Messias… Eu não o aconselharia a vir mais aqui. A terra o
rejeitaria, como se rejeita um enteado por causa do qual morreram os filhos
verdadeiros. Mas agora… se era Ele… já está morto como os outros que
foram degolados.
73.7
– Onde estão morando agora Levi e Elias?
– Tu os conheces?
O homem suspeita de alguma coisa.
– Eu não os conheço. O rosto deles para Mim é desconhecido. Mas são
infelizes e Eu sempre tive dó dos infelizes. Quero ir procurá-los.
– Pois, sim. Serás o primeiro, depois de quase seis lustros. Eles ainda
são pastores e trabalham para um rico herodiano de Jerusalém que se
apropriou de muitos bens dos mortos… Há sempre quem ganha! Tu os
encontrarás com os rebanhos nos altos que ficam perto de Hebron. Mas, dou-
te um conselho: não te deixes ver pelos belemitas falando com eles. Ficarias
prejudicado. Nós os suportamos porque aí está o herodiano. Senão…
– Oh! Que ódio! Por que odiar?
– Porque é justo. Eles nos fizeram mal.
– Acreditavam estarem fazendo o bem.
– Mas fizeram mal. E mal a eles advenha. Devíamos matá-los, como
eles fizeram; matar por sua estultícia. Mas nós estávamos apatetados, e
depois… lá estava o herodiano.
– Se ele não estivessse lá, então, depois do primeiro, ainda compatível
impulso de vingança, vós os teríeis matado?
– Mesmo agora, nós os mataríamos, se não tivéssemos medo do patrão
deles.
– Homem, Eu te digo: não odeies. Não desejes o mal. Não desejes fazer
o mal. Aqui não há culpa. Mas ainda que houvesse, perdoa. Em nome de
Deus, perdoa. Vai dizer isto aos outros belemitas. Quando cair o ódio de
vossos corações, virá o Messias; o conhecereis, então, porque Ele está vivo,
Ele já existia, quando se deu a matança. Eu vo-lo digo. Não por culpa dos
pastores e dos magos, mas por culpa de Satanás é que aconteceu a matança.
O Messias nasceu aqui e veio trazer a Luz à terra de seus pais. Filho de mãe
virgem, da estirpe de Davi, nas ruínas da casa de Davi abriu para o mundo o
rio das graças eternas, abriu a Vida ao homem…
– Fora, fora! Sai daqui! Tu, seguidor desse falso Messias, que só podia
ser falso, porque trouxe a desventura a nós de Belém. Tu o defendes,
portanto…
– Silêncio, homem. Eu sou judeu, e tenho amigos altamente colocados.
Poderia fazer-te arrepender do insulto, dispara Judas, segurando o camponês
pela veste e sacudindo-o, com violência e ira.
– Não, não, fora daqui! Não quero aborrecimentos nem com belemitas,
nem com Roma, nem com Herodes. Ide embora, malditos, se não quereis que
vos deixe com uma marca. Fora!…
– Vamos, Judas. Não reajas! Deixemo-lo no seu ódio. Deus não penetra
onde há rancor. Vamos.
– Sim. Vamos. Mas vós me pagareis.
– Não, Judas. Não fales assim. Eles são cegos… Haverão tantos no meu
percurso…
73.8
Saem, seguindo Simão e João, que já estão fora conversando com a
mulher, atrás do canto da estrebaria.
– Perdoa ao meu marido, Senhor. Eu não esperava causar este
transtorno… Eis aqui, pega. Tu os tomarás amanhã cedo. São frescos, foram
postos hoje. Não tenho outra coisa… Perdão. Onde irás dormir? (E dá-lhe
uns ovos).
– Não penses nisso. Eu sei para onde ir. Vai em paz pela tua bondade.
Adeus.
Caminham alguns metros em silêncio. Depois, Judas explode:
– Mas Tu não te fizeste adorar! Por que não fizeste que se curvasse até à
lama, aquele sujo blasfemador? Até o chão! Abatido por ter faltado contra
Ti, que és o Messias… Oh! Eu o teria feito! Os samaritanos têm que ser
incinerados com o milagre. Só isso os convence.
– Oh! Quantas vezes terei que ouvir falar isso! Se Eu devesse incinerar a
todos os que pecam contra Mim!… Não, Judas. Eu vim para criar. Não para
destruir.
– É. Mas, enquanto isso, os outros Te destroem.
Jesus não rebate.
Simão pergunta:
– Para onde vamos agora, Mestre?
– Vinde Comigo. Eu conheço um lugar.
– Mas, se nunca estiveste aqui, desde o tempo em que fugiste, como o
conheces? –pergunta Judas, ainda irritado.
– Eu conheço. Não é bonito. Mas nele Eu já estive uma vez. Não é em
Belém… mas um pouco afastado… Vamos virar para aquele lado.
Jesus vai na frente, depois Simão, depois Judas, por último João…
73.9
Em silêncio, interrompido apenas pelo barulho das sandálias sobre as
pedrinhas do caminho, quando se ouve um soluço.
– Quem está chorando? –pergunta Jesus, virando-se.
E Judas:
– É o João. Ele ficou com medo.
– Não. Não fiquei com medo. Eu já estava com a mão na faca que trago
na cintura… Mas eu me lembrei de tua palavra: “Não mates, perdoa.”
Sempre falas assim…
– E então por que choras? –pergunta Judas.
– Porque sofro, ao ver que o mundo não quer Jesus. Não o reconhece, e
não o quer conhecer. Oh! É uma grande dor! É como se me enfiassem no
coração uns espinhos de fogo. É como se eu tivesse visto alguém pisar em
minha mãe ou cuspir no rosto de meu pai… É mais ainda do que isso… É
como se tivesse visto os cavalos romanos comendo na Arca Santa, e irem
repousar no Santo dos Santos.
– Não chores, meu João. Tu o dirás por esta e por infinitas outras vezes:
“Ele era a Luz, que veio para brilhar entre as trevas, mas as trevas não o
compreenderam. Veio ao mundo, que por Ele tinha sido feito, mas o mundo
não o conheceu. Veio à sua cidade, à sua casa, e os seus não o receberam.”
Oh! Não chores assim!
– Isto não sucede na Galiléia! –suspira João.
– E muito menos na Judéia –rebate Judas–. Jerusalém, que é a capital, há
três dias, estava dando hosanas a Ti, Messias. Aqui… lugar de rudes
pastores, camponeses e hortelãos… não pode ser tomado por base. Afinal,
os galileus também não serão todos bons. De resto, Judas o falso Messias,
de onde era? Dizia-se…
– Basta, Judas. Não convém inquietar-se. Eu estou calmo. Que vós
também assim estejais. Judas, vem cá. Eu preciso falar contigo.
Judas se aproxima dele.
– Pega a bolsa. Tu farás as despesas de amanhã.
– E agora, onde iremos hospedar-nos?
Jesus sorri, e se cala.
73.10
A noite já desceu. A lua cobre tudo de candura. Os rouxinóis cantam
entre as oliveiras. Um rio passa como uma fita de prata sonante. Dos prados,
que foram roçados, vem o cheiro do feno: quente, eu diria um cheiro sensual.
Ouve-se um ou outro mugido. Um ou outro balido. E estrelas e mais estrelas
sem conta, uma sementeira de estrelas sobre o velário do céu, um dossel de
gemas vivas, estendido sobre as colinas de Belém.
– Mas, por aqui… só há ruínas. Para onde nos estás levando? A cidade
fica daquele lado.
– Eu sei. Vem. Segue o rio, atrás de Mim. Ainda uns poucos passos, e
depois… depois vou te oferecer a hospedagem do Rei de Israel.
Judas encolhe os ombros, e se cala.
Mais uns poucos passos. Em seguida, aparece um amontoado de casas
desmoronadas. Restos de moradia… Um antro entre duas fendas do paredão.
Jesus diz:
– Trouxestes o acendedor? Acendei.
Simão acende um pequeno candeeiro que tirou do seu alforje, e o
entrega a Jesus.
– Entrai –diz o Mestre levantando a pequena luz–. Entrai. Este é o quarto
onde nasceu o Rei de Israel.
– Estás brincando, Mestre! Isto aqui é uma fétida caverna. Ah! Eu aqui
não fico mesmo! Tenho nojo de tudo isso. Este lugar é úmido, frio, fétido,
cheio de escorpiões, e talvez até de serpentes…
– Contudo… Amigos, aqui, na noite do dia 25, das Encênias, da Virgem
nasceu Jesus Cristo, o Emanuel, o Verbo de Deus feito Carne por amor do
homem: Eu, que vos falo. Também naquele tempo, como hoje, o mundo se fez
surdo às vozes do Céu, que falavam aos corações… e rejeitou a mãe… e
aqui… Não, Judas, não desvies com desgosto o teu olhar daquelas corujas
esvoaçantes, daquelas lagartixas, daquelas teias de aranha, e não soergas
com repugnância a tua bonita veste bordada para que não se arraste no chão,
que está coberto de excrementos dos animais. Aquelas corujas são as filhas
das filhas daquelas que foram os primeiros brinquedos sacudidos diante dos
olhos do Menino, para o qual os anjos cantavam o “Glória” ouvido pelos
pastores, não embriagados, senão por uma alegria extática, uma verdadeira
alegria. Aquelas lagartixas, com sua cor de esmeralda, foram as primeiras
cores que passaram pelas pupilas de meus olhos, as primeiras, depois do
candor do rosto e das vestes de minha mãe. Aquelas teias de aranha foram
dossel de meu berço real. Este chão… oh! tu o podes pisar sem desprezo…
Ele está coberto de excrementos, mas está santificado pelos pés dela, a
santa, a grande santa, a pura, a inviolada, a puérpera deípara, aquela que deu
à luz porque devia dar à luz, deu à luz, porque Deus, não o homem, lhe
mandou, e a fez ficar grávida de si. Ela, a sem mácula, pisou neste chão. Tu o
podes pisar. E, pela planta dos teus pés, queira Deus que te suba ao coração
a pureza por ela aqui derramada….
73.11
Simão está ajoelhado. João vai diretamente à manjedoura, e chora
com a cabeça nela apoiada. Judas está estarrecido… Depois é vencido pela
emoção e, sem mais pensar em sua bonita veste, prostra-se no chão, segura a
ponta da veste de Jesus, a beija e bate no peito, dizendo:
– Oh! Misericórdia, bom Mestre, da cegueira do teu servo! Minha
soberba cai por terra… eu Te vejo como és. Não o rei que eu pensava. Mas
o Príncipe eterno, o Pai do século futuro, o Rei da paz. Piedade, meu Senhor
e meu Deus! Piedade!
– Sim. Toda a minha piedade! Agora vamos dormir onde dormiu o
Infante e a virgem, onde João tomou agora o lugar da mãe em adoração, onde
Simão está parecendo o meu pai adotivo. Ou, se assim preferis, Eu vos
falarei daquela noite….
– Oh! Sim, Mestre. Faze-nos conhecer o teu florescer!
– Para que seja uma pérola de luz em nossos corações. E para que o
possamos narrar ao mundo.
– E venerar tua mãe, não somente por ser mãe, mas por ser… oh! por ser
a virgem!
Primeiro falou Judas, depois Simão e, por fim João, com um rosto que
está chorando e rindo, lá junto à manjedoura!…
– Vinde sobre o feno. Ouvi…
E Jesus narra como foi a noite do seu nascimento:
– … estando a mãe já perto do tempo de dar à luz, foi, por ordem de
César Augusto, feito um edito pelo delegado imperial Públio Sulpício
Quirino, quando era governador da Palestina Sêncio Saturnino. O edito era:
que se fizesse o recenseamento de todos os habitantes do Império. Aqueles
que não fossem escravos deviam ir para os seus lugares de origem, para se
inscreverem nos registros do Império. José, esposo da mãe, era da estirpe de
Davi, e de Davi era a mãe. Obedecendo, por isso, ao edito, deixaram Nazaré
para virem até Belém, berço da estirpe real. O tempo estava frio…
Jesus continua a narração e tudo cessa neste ponto.
[117] mil crianças…, Assim escreve M aria Valtorta num folheto que inseriu no fascículo da cóp ia dactilografada: Em mérito
aos Inocentes mortos no massacre de Erodes: Número exacto é 32. Desses, 18 foram mortos na cidade de Belém e 14 nos
campos próximos de Belém. Entre os mortos figuram também 6 crianças do sexo feminino, não identificadas como fêmeas
pelos sicários, dado que estavam, machos e fêmeas, vestidos todos de igual modo, e também pela pressa de matar e pela
escuridão da noite. Como sempre acontece, o camponês exagera e desvirtua a verdade das coisas. E assim, muitas legendas
falsas se criaram substituindo-se à verdade. Exclusa a consideração sobre o exagero do camp onês, a nota de M aria Valtorta é a
transcrição, não de todo textual e p rovavelmente feita de mente, de uma nota de 28 de Fevereiro de 1947 (mencionada no
volume “Os Cadernos de 1945 a 1950”), da qual discorda nos números: 320 em vez de 32, 188 em vez de 18, 132 em vez de
14, 64 em vez de 6.
[118] está escrito, em: Génesis 35,15-20; Números 24,15-17; 1 Samuel 17,12; Isaías 7,14; 9,1; 11,1; Jeremias 31,15. Os
reenvios bíblicos, de que fizemos o elenco p or ordem canónica dos livros, comp reendem seja as exp ressões citadas que os
eventos ap resentados.
74. No albergue de Belém e nos escombros da casa
de Ana.
9 de janeiro de 1945.
74.1
As primeiras horas de uma luminosa manhã de verão. O céu tinge-se
de cor-de-rosa em algumas tênues nuvenzinhas, que parecem feitas de gaze
desfiada sobre um tapete de cetim azul. Por toda parte ouve-se o canto dos
pássaros, já embriagados pela luz… pardais, melros, pintarroxos cantam,
chilreiam, brigam por um pedacinho de erva seca, por uma lagarta, por um
raminho a ser levado ao ninho, a ser enfiado no papinho, a servir de poleiro.
As andorinhas se arrojam do céu ao pequeno rio, para lavar seus alvos
peitos, tingidos, em cima, de ferrugem, e, alegres pelo frescor da água,
apanham algum mosquito ainda dormente sobre o talo da erva, e fendem o ar
como uma lâmina brunida, chilreando alegres.
Duas lavandiscas, vestidas de uma seda cinzenta, passeiam graciosas
como duas senhoritas, ao longo da beira do riacho, conservando erguida a
cauda, ornada com veludinhos negros; vão espelhar-se na água, acham-se
bonitas, retomam o passeio, escarnecidas por um melro, verdadeiro gaiato
do bosque, que assobia atrás delas, com o seu comprido bico amarelo. Em
uma ramosa macieira silvestre, que se ergue solitária junto às ruínas, um
rouxinol chama insistentemente sua companheira, e somente se cala quando a
vê chegar com uma comprida lagarta, que se torce, no aperto do bico fino.
Dois pombos de torre, provavelmente evadidos de algum pombal da cidade,
e que escolheram uma morada livre nas fendas de um torreão em ruínas,
abandonam-se às suas expansões, ele, sedutor, garganteando, e ela
arrulhando pudica.
Jesus, com os braços cruzados sobre o peito, olha para todos estes
alegres animaizinhos e sorri.
– Já estás pronto, Mestre? –pergunta Simão às suas costas.
– Já estou pronto. Os outros ainda estão dormindo?
– Ainda estão.
– São jovens… Fui tomar um banho no rio… Uma água fresca que
desanuvia a mente…
– Agora eu vou.
Enquanto Simão, vestido apenas com uma curta túnica, toma seu banho e
depois põe a roupa, aparecem Judas e João.
– Deus te salve, Mestre. Estamos atrasados?
– Não. A manhã ainda está começando. Mas agora preparai-vos logo e
vamos.
Os dois tomam banho, e se vestem com a túnica e o manto.
Jesus, antes de pôr-se a caminho, arranca umas florzinhas nascidas entre
as fendas de duas pedras e as coloca em uma caixinha de madeira, na qual já
estão outras coisas, que eu não distingo bem. Ele explica:
– Vou levá-las para a mãe. Ela gostará muito… 74.2Vamos.
– Aonde vamos, Mestre?
– A Belém.
– Ainda? Parece-me que por lá não encontraremos bons ares…
– Não importa. Vamos. Quero mostrar-vos o lugar onde os Magos
apearam e onde Eu estava.
– Então escuta. Perdoa, sim, Mestre? Mas deixa-me falar. Vamos fazer
uma coisa. Em Belém, e no albergue, deixa que eu faça o discurso e as
perguntas. Para vós, galileus, não há muito amor na Judéia, e aqui ainda
menos do que em outros lugares. Então, vamos fazer assim: Tu e João
pareceis galileus até na veste. Tendes uma veste muito simples. E depois…
esses cabelos! Por que teimais em conservá-los tão compridos? Eu e Simão
daremos a vós os nossos mantos, e usaremos os vossos. Tu, Simão, darás o
teu a João. E eu ao Mestre. Eis… assim. Estás vendo? Num momento
ficareis parecendo um pouco mais judeus. Agora, isto.
Judas tira o seu capuz — é um pedaço de tela com listras amarelas,
marrons, vermelhas, verdes, como o manto, todas alternadas, estando preso
em seu lugar por um cordão amarelo — e o coloca na cabeça de Jesus,
ajeitando-o ao longo das faces, para esconder os longos cabelos loiros. João
fica com o verde bem escuro de Simão:
– Oh! Agora está melhor! Eu tenho um senso prático.
– Sim, Judas. Tu tens o senso prático. É verdade. Toma cuidado, porém,
para que ele não supere o outro senso.
– Qual, Mestre?
– O senso espiritual.
– Não! Mas em certos casos é bom sabermos ser mais políticos do que
embaixadores. E escuta… Sê bom ainda… é para o teu bem… Não me
desmintas se eu disser algumas coisas… algumas coisas… que não são
verdade, é isso.
– Que é que estás querendo dizer? Por que mentir? Eu sou a Verdade, e
não quero mentira, nem em Mim, nem em torno a Mim.
– Oh! Eu não direi senão meias mentiras. Direi que estamos todos
voltando de lugares distantes, do Egito talvez, e que desejamos ter notícias
de amigos queridos. Direi que somos judeus que estamos de volta de um
exílio… No fundo, em tudo há um pouco de verdade… e depois, quem está
falando sou eu… mentira mais, mentira menos…
– Mas, Judas! Para que enganar?
– Deixa para lá, Mestre! O mundo se rege sobre mentiras. E algumas
vezes elas são necessárias. Bem, para fazer-te contente, eu direi só que
viemos de longe e que somos judeus. Isto é verdade, são três quartos da
verdade. E tu, João, não fales nunca, porque te trairias.
– Eu ficarei calado.
– Depois… se as coisas forem andando bem… então diremos o resto.
Mas não tenho muitas esperanças. Eu sou astuto, e pego as coisas no ar.
– Eu estou vendo, Judas. Mas, Eu preferiria que fosses simples.
– Pouco adianta. No teu grupo eu serei aquele das missões difíceis.
Deixa-me agir.
Jesus está pouco propenso, mas cede.
74.3
Eles vão. Passam ao longo das ruínas, depois vão beirando um
paredão sem aberturas, além do qual se ouve o zurrar, o mugir, o relinchar, o
balir e aquele rinchar escangalhado dos camelos ou dromedários. O paredão
tem um canto. Eles o contornam. Ei-los na praça de Belém. O tanque da fonte
está no centro da praça, que tem a forma enviesada de sempre; contudo, é
diferente no lado oposto ao albergue. Lá, onde estava a casinha, na qual,
quando penso, vejo-a ainda toda de prata pura, sob os raios da Estrela, é um
campo aberto, cheio de escombros. Somente a pequena escada está ainda, de
pé, com o seu pequeno terraço. Jesus olha e suspira.
A praça está cheia de pessoas em volta dos vendedores de mantimentos,
utensílios, tecidos, etc., que estenderam sobre esteiras, ou colocaram em
cestas suas mercadorias, todas postas no chão, e estão eles também
acocorados no centro de seu… negócio, quando não estão gritando e
gesticulando em pé, em altercação com algum comprador seguro.
– É dia de feira –diz Simão.
A porta, ou melhor, o portão do albergue está aberto de par em par, e
por ele sai uma fila de burros carregados de mercadorias.
Judas entra primeiro. Olha ao seu redor. Arrogante, ele agarra um
pequeno moço de estrebaria, sujo e sem camisa, ou seja, vestido apenas com
uma veste de baixo, sem mangas e que chega até os joelhos:
– Rapaz! –grita–. O patrão! Já! Vai rápido, que eu não estou acostumado
a esperar.
O rapaz vai correndo, arrastando atrás de si uma vassoura de limpeza.
– Mas Judas! Que modos!
– Silêncio, Mestre. Deixa-me agir. É preciso que acreditem que somos
uns ricaços da cidade.
Chega correndo o patrão, que quase quebra as costas, em mesuras diante
de Judas, que está todo imponente, no manto vermelho escuro de Jesus, sobre
sua rica veste amarelo-ouro, toda cheia de cintas e franjas.
– Homem, nós viemos de longe. Somos judeus das comunidades
asiáticas. Este aqui, nascido em Belém, está sendo perseguido e procura os
seus amigos daqui. E nós viemos com Ele. Estamos chegando de Jerusalém,
onde adoramos o Altíssimo na sua Casa. Pode dar-nos algumas informações?
– Senhor… o teu servo… Tudo por ti. Manda.
– Queremos saber de muitos… e especialmente de Ana, que tinha casa
defronte do teu albergue.
– Oh! Coitada! Ana não será mais por vós encontrada, a não ser no seio
de Abraão. E, com ela, os seus filhos.
– Foi morta? Por que?
– Não sabeis da matança de Herodes? O mundo todo falou dela, e até
César o definiu como “um porco que se nutre de sangue.” Ai! Que foi que eu
disse! Não me denuncieis! És mesmo judeu?
– Eis o sinal da minha tribo. E então? Fala.
– Ana foi morta pelos soldados de Herodes, com todos os seus filhos,‐
menos uma.
– Mas, por que? Era tão boa!
– Tu a conheceste?
– Muito.
Judas mente descaradamente.
– Ela foi morta, por ter hospedado aqueles que se diziam pai e mãe do
Messias… 74.4Vem cá, neste quarto… As paredes têm ouvidos, e falar de
certas coisas… é perigoso.
Entram em um pequeno quarto escuro e baixo. Assentam-se num baixo
sofá.
– Pois é… eu tive um bom faro. Não é sem motivo que eu sou
albergueiro. Eu nasci aqui, sou filho de filhos de albergueiros. Tenho a
malícia no sangue. Por isso, eu não quis recebê-los. Talvez um buraco para
eles eu teria encontrado. Mas… galileus, pobres, desconhecidos… ah! não!
O Ezequias não cai nessa! E depois… eu sentia… sentia que eram
diferentes… aquela mulher… com uns olhos… não, não, ela devia ter o
demônio dentro de si, e que lhe falava. E ela o trouxe aqui… a mim não, mas
na cidade. Ana era mais inocente do que uma ovelhinha, e os hospedeu
poucos dias depois, já com o Menino. Diziam que ele era o Messias… Oh!
Quanto dinheiro eu ganhei naqueles dias! Mais do que durante o
recenseamento! Vinham também aqueles que não estavam obrigados a vir
para o recenseamento. Vinham do mar, e até do Egito, para ver… e isso
durante meses! Quanto eu ganhei!… Por último, vieram três reis, três
poderosos, três magos… sei lá! Foi um verdadeiro cortejo! Não acabava
mais! Ocuparam-se todas as estrebarias, e pagaram em ouro, o feno que dava
para um mês, e foram embora no dia seguinte, deixando tudo aí. E, quantos
presentes deram aos empregados nas estrebarias, às mulheres, e a mim!
Oh!… Eu, do Messias, verdadeiro ou falso, só posso falar bem. Ele me fez
ganhar moedas aos montes. Prejuízos eu não tive. Mortos tampouco, porque
eu tinha acabado de me casar. Portanto… Mas os outros!
74.5
– Queremos ver os lugares da matança.
– Os lugares? Mas todas as casas foram lugar de matança. Até várias
milhas ao redor de Belém, houve mortos. Vinde comigo.
Sobem uma escada até um grande terraço sobre o teto. Do alto se vê um
grande campo e toda Belém[119] estendida como um leque aberto sobre suas
colinas.
– Estais vendo os pontos destruídos? Ali foram queimadas também as
casas, porque os pais defenderam os seus filhos, com armas. Estais vendo lá
aquela espécie de poço coberto de hera? Aquilo é o que restou da sinagoga.
Queimada com o arqui-sinagogo, que havia afirmado ser aquele o Messias.
Queimada pelos sobreviventes, enlouquecidos por causa da morte de seus
filhos. Quantos aborrecimentos tivemos depois… E lá, e lá, e lá… estais
vendo aqueles sepulcros? São das vítimas… Parecem ovelhinhas espalhadas
entre o verde, a perder de vista… Todos os inocentes e os pais e as mães
dos mesmos… Estais vendo aquele tanque? Era vermelha a sua água depois
que nele os sicários limparam suas armas e suas mãos. E aquele rio, lá atrás,
vós o vistes? Chegou a ficar cor-de-rosa, por causa da grande quantidade de
sangue que ele recebeu das cloacas… E ali, eis, ali… na frente. Aquilo é o
que resta de Ana.

Jesus chora.
– Tu a conhecias bem?
Responde Judas:
– Ela era como uma irmã para a sua mãe. Não é verdade, amigo?
Jesus responde somente:
– Sim.
– Compreendo –diz o albergueiro, e fica pensativo.
74.6
Jesus se inclina para falar mais baixo com Judas.
– O meu amigo queria andar sobre aquelas ruínas –diz Judas.
– Pois vá. Elas são de todos!
Eles descem. Saúdam, e vão. O hospedeiro fica decepcionado. Talvez
esperasse ganhar alguma coisa.
Atravessam a praça. Sobem pela escadinha que sobrou.
– Daqui –diz Jesus– minha mãe me fez saudar os Magos, e daqui
descemos, para irmos ao Egito.
Algumas pessoas estão olhando os quatro sobre as ruínas. Uma delas
pergunta:
– Serão parentes da morta?
– Amigos.
Uma mulher grita:
– Não façais mal à morta, ao menos vós, como os outros seus amigos
fizeram mal a ela enquanto viva, e depois escaparam salvos.
Jesus está ereto no corredor, junto à parede que o limita, e por isso a
uma boa altura, cerca de dois metros, acima da praça, com o vazio atrás de
si. Um vazio cheio de sol, que o nimba todo e faz ainda mais cândida a veste
de linho alvíssimo, que o cobre sozinho, agora que o manto escorregou-lhe
das costas e está aos pés Dele como uma base multicor. Atrás ainda, o fundo
verde e desordenado daquilo que foi a horta e o campo de Ana, agora
transformado em um matagal coberto de escombros espalhados.
74.7
Jesus estende os braços. Judas, que vê o gesto, diz:
– Não fales! Não é prudente!
Mas Jesus enche a praça com sua voz potente:
– Homens de Judá! Homens de Belém, ouvi! Ouvi, ó vós, mulheres da
terra consagrada a Raquel! Ouvi a alguém que vem de Davi que, perseguido,
sofreu, e que tornado digno de falar, fala, para dar-vos luz e conforto. Ouvi.
As pessoas param de gritar, discutir, comprar, e se ajuntam.
– É um rabi!
– Certamente vem de Jerusalém.
– Quem é?
– Que belo homem!
– Que voz!
– Que modos!
– E, além disso, se é da descendência de Davi!
– Então é nosso.
– Ouçamos, ouçamos!
Toda a praça está agora perto da escadinha, que parece um púlpito.
– No Gênesis está escrito[120]: “Eu porei inimizade entre ti e a mulher…
esta te esmagará a cabeça, e tu armarás ciladas ao seu calcanhar.” E está
escrito ainda: “Eu multiplicarei os teus sofrimentos e as tuas gestações… e a
terra produzirá abrolhos e espinhos.” Esta foi a condenação do homem, da
mulher e da serpente.
Tendo vindo de longe para venerar o túmulo de Raquel, ouvi no vento da
tarde, no orvalho da noite, no lamento do rouxinol pela manhã, repetir-se os
soluços da antiga Raquel[121], pelas tantas bocas das mães de Belém
encerradas nos sepulcros, ou nos corações. E ouvi o rugir da dor de Jacó, na
dor dos viúvos, que ficaram sem suas esposas, porque a dor as matou… Eu
choro convosco. Mas ouvi, ó irmãos da minha terra. Belém, terra bendita, a
menor das cidades de Judá, mas a maior aos olhos de Deus e da humanidade
porque berço do Salvador, como diz Miquéias[122], exatamente por ser
assim, por ser destinada a ser o tabernáculo sobre o qual pousaria a Glória
de Deus, o Fogo de Deus, o seu Amor encarnado, desencadeou o ódio de
Satanás.
“Porei inimizade entre ti e a mulher. Ela te manterá sob o seu pé, e tu
armarás ciladas ao seu calcanhar.” Que inimizade há maior do que aquela,
que tem em mira os filhos, que são o coração do coração da mulher? E qual
é o mais forte pé do que aquele da mãe do Salvador? Eis porque foi natural a
vingança de Satanás vencido, o qual, não ao calcanhar, mas ao coração das
mães, pela Mãe, ocorreu a sua insídia.
Oh! Multiplicados sofrimentos, ao perderem os filhos, depois de tê-los
dado à luz! Oh! Terríveis espinhos de ter semeado e suado pela prole e
serem pais sem terem mais a sua prole! Mas jubila, Belém! O teu sangue
mais puro, o sangue dos inocentes, fez um caminho de fogo e de púrpura para
o Messias…
74.8
A multidão, que vinha sempre mais rumorejando, desde quando Jesus
falou no Salvador, e depois na mãe Dele, agora mostra um sinal mais claro
de agitação.
– Cala-te, Mestre –diz Judas–. E vamos embora.
Mas Jesus não lhe dá ouvidos, e continua:
– … para o Messias, que a Graça de Deus Pai salvou dos tiranos, a fim
de conservá-lo para a salvação do povo e…
Uma voz estridente de mulher grita:
– Cinco, cinco deles eu tinha dado à luz, e mais nenhum está em minha
casa! Pobre de mim!
E grita histericamente. É o começo da algazarra.
Uma outra se revolve na poeira, rasga as vestes, mostra uma de suas
mamas mutilada no bico, e grita:
– Aqui, aqui sobre esta mama é que degolaram o meu primogênito! A
espada cortou-lhe o rosto, juntamente com o bico do meu seio. Oh! O meu
Eliseu!
– E eu? E eu? Eis ali o meu palácio! Três túmulos em um, velados pelo
pai. Marido e filhos juntos. Eis, eis!… Se aqui está o Salvador, que ele me
devolva os filhos, me devolva o esposo, me salve do desespero e de
Belzebu, me salve!
Todos gritam.
– Os nossos filhos, os maridos, os pais! Devolva-os, se é que está aqui!
Jesus move os braços, impondo silêncio.
– Irmãos da minha terra, Eu gostaria de devolver-vos vossos filhos em
sua própria carne. Mas Eu vos digo: Sede bons, resignados, perdoai,
esperai, alegrai-vos em uma esperança, jubilai em uma certeza. Logo
reavereis os vossos filhos, anjos no Céu, porque o Messias está para abrir as
portas dos Céus e, se fordes justos, a morte será Vida que vem e Amor que
volta…
– Ah! És Tu o Messias? Dize-o em nome de Deus!
Jesus abaixa os braços, com aquele seu gesto suave, manso, que parece
um abraço, e diz:
– Eu o sou!
– Fora! Fora! Então é por tua culpa!
Passa voando uma pedra, por entre assobios e escárnios.
74.9
Judas dá um belo salto… oh! se ele tivesse sido sempre assim!
Coloca-se na frente do Mestre, de pé sobre o muro do terraço, o manto
desdobrado, e recebe, destemido, as pedradas, e até uma que lhe sangra, e
grita para o João e o Simão:
– Levai Jesus embora. Levai-o para atrás daquelas árvores. Depois eu
irei. Ide, em nome do Céu!
E para a multidão:
– Cães hidrófobos! Eu sou do Templo, e ao Templo e a Roma vos
denunciarei.
A multidão, por um momento, sente medo. Mas depois recomeça o
apedrejamento, por sorte, inábil. E Judas, impassível o recebe, respondendo
com afrontas às maldições do povo. Aliás, agarra no ar uma das pedras e a
remete sobre a cabeça de um velhote, que grita, como uma pega que está
sendo depenada viva. E, como estão tentando subir até o seu pedestal, ele,
rápido, pega um galho seco, que está no chão (agora ele desceu do muro), e
desce o galho sobre costas, cabeças, mãos, sem piedade.
Chegam as milícias e, com suas lanças, vão abrindo caminho:
– Quem és? Por que essa briga?
– Um judeu está sendo agredido por estes plebeus. Estava comigo um
rabino conhecido dos sacerdotes. Ele estava falando a estes cães. E eles
escaparam das correntes, e nos atacaram.
– Quem és tu?
– Judas de Keriot, que já fui do Templo, e agora sou discípulo do Rabi
Jesus da Galiléia. Sou amigo do fariseu Simão, do saduceu Jocanã, do
conselheiro do Sinédrio José de Arimatéia, e, enfim, isto podes conferir, de
Eleazar ben Ana, o grande amigo do Procônsul.
– Irei verificar. Para onde vais?
– Vou com meu amigo para Keriot, e depois para Jerusalém.
– Vai. Nós defenderemos tuas costas.
Judas estende a mão com umas moedas para o soldado. Deve ser uma
coisa ilícita… mas usual, porque o soldado as pega, rápido e cauteloso, o
saúda e sorri. Judas desce do seu pódio e vai aos saltos pelo campo inculto,
e alcança os companheiros.
– Estás muito ferido?
– Coisa de nada, Mestre. Depois, foi por Ti… Mas eu também bati.
Devo estar todo sujo de sangue…
– Sim, na face. Aqui há um fio de água.
João molha um paninho e lava a face de Judas.
– Lamento Judas… Mas vê… também dizer a eles que éramos judeus,
segundo o teu senso prático…
– São uns animais. Creio que terás ficado persuadido disso, Mestre. E
que não insistirás.
– Oh! Não. Não por medo. Mas porque é inútil, por enquanto. Quando
não nos querem, não os maldizemos, mas nos retiramos, rezando pelos
pobres loucos, que estão morrendo de fome, e não enxergam o Pão. Vamos
por este caminho remoto. Creio que podemos tomar o caminho para Hebron.
Para os pastores, se os encontrarmos.
– Para levarmos mais pedradas?
– Não. Para dizer a eles: “Sou Eu”.
– Ah! Então é certo que vão bater em nós. Há trinta anos que estão
sofrendo por tua causa!….
– Veremos.
E lá se vão por um pequeno bosque compacto, sombreado, fresco, e eu
os perco de vista.
[119] Belém, da qual M aria Valtorta esboçou uma p equena carta num p edaço de p ap el de linhas, no verso do qual escreveu as
duas linhas que p usemos no alto do desenho: Se não me engano na primeira parte (porque não o vi nas visões) vejo Belém
assim. As p alavras no desenho são, além das dos quatro p ontos cardeais: Jerusalém – estrada principal (duas vezes) – estrada
secundária percorrida por Jesus – primeira leve ondulação do solo – IIº arco de colinas – perímetro de Belém – fonte –
pousada – gruta – sepulcro de Raquel – casa de camponês.
[120] está escrito, em: Génesis 3,14-19.
[121] soluços da antiga Raquel, como em: Jeremias 31,15.
[122] diz Miqueias, em : Miqueias 5,1.
75. Jesus reencontra os pastores Elias e Levi.
11 de janeiro de 1945.
75.1
As montanhas vão ficando muito mais altas e selvosas do que aquelas
de Belém, e elevam-se cada vez mais, em uma verdadeira cadeia de
montanhas.
Jesus sobe na frente de todos, lançando o olhar à frente, em torno, como
se procurasse alguma coisa. Ele não fala. Escuta mais as vozes da mata do
que a dos discípulos, que vão alguns metros atrás Dele, conversando entre
si.
Ouve-se ao longe um cincerro, mas o vento traz o seu som até Jesus. Ele
sorri, e se volta para os outros:
– Estou ouvindo as ovelhas –diz Ele.
– Onde, Mestre?
– Parece-me que na direção daquela colina. Mas o bosque não me deixa
ver.
João não diz nada. Tira o seu hábito — os mantos, todos os estão
levando a tiracolo, enrolados, porque estão acalorados — e, só com a túnica
curta, se abraça a um tronco alto e liso, que eu diria de um freixo, e sobe, vai
subindo… até que vê:
– Sim, Mestre. Há muitos rebanhos e três pastores lá atrás daquele
bosque.
Depois, ele desce, e vão tranqüilos.
– Serão eles?
– Nós perguntaremos, Simão, e se não são eles, nos dirão alguma coisa.
Eles se conhecem entre si.
Depois de andarem cerca de uns cem metros, aparece um grande pasto
verde, todo cercado por grossas e velhas árvores. 75.2Muitas ovelhas estão
sobre o prado ondulado, pastando a basta erva. Três homens as estão
olhando. Um deles é velho, já todo encanecido, os outros têm, um os seus
trinta, e o companheiro seus quarenta anos, mais ou menos.
– Cuidado, Mestre. São mandriões… –aconselha Judas, ao ver que Jesus
apressou o passo.
Mas Jesus nem lhe responde. E vai alto, bonito, com o sol poente lhe
batendo no rosto, e com sua veste branca. Parece um anjo, de tão luminoso
que está…
– A paz esteja convosco, amigos, Ele saúda, quando chega na entrada do
prado.
Os três se viram, espantados. Há um silêncio. Depois, o mais velho
pergunta:
– Quem és?
– Alguém que te ama.
– Serias o primeiro, depois de tantos anos. De onde vens?
– Da Galiléia.
– Da Galiléia? Oh!
O homem o olha atentamente. Os outros também já se aproximam.
– Da Galiléia –repete o pastor, e acrescenta em voz baixa, falando para
si mesmo–: Ele também tinha vindo da Galiléia… De que lugar, Senhor?”
– De Nazaré.
– Oh! Diz-me, então. Terá voltado para lá um menino, com uma mulher
chamada Maria e um homem chamado José, um menino ainda mais bonito do
que a sua mãe, que flor mais bonita nunca se viu nas encostas de Judá? Um
menino nascido em Belém de Judá, no tempo do edito? Um menino que fugiu
depois, para a grande sorte do mundo. Um menino, que eu daria a vida para
saber se ainda está vivo, se já é um homem feito!
– Por que dizes que foi a grande sorte do mundo o ter Ele fugido?
– Porque Ele era o Salvador, o Messias, e Herodes queria matá-lo. Eu
não estava aqui, quando Ele fugiu com o pai e a mãe… Quando fiquei
sabendo da matança, e voltei… — porque eu também tinha filhos (um
soluço), Senhor, e uma mulher… (soluço) e ouvi dizer que estavam mortos
(outro soluço), mas eu te juro pelo Deus de Abraão, por causa Dele eu
tremia mais do que pela minha própria carne — fiquei sabendo que Ele tinha
fugido, e nem pude fazer perguntas; nem pude ir recolher os corpos dos meus
filhos degolados… Perseguido a pedradas, como se fosse um leproso, um
imundo, um assassino… e precisei fugir para os bosques, levar uma vida de
lobo… até que encontrei um patrão. Oh! Ana não existe mais… É duro e
cruel… Se uma ovelha se aleija, se o lobo me pega um cordeiro, ou eu vou
ser espancado até o sangue, ou vão tirar-me o meu pouco ganho, ou vou
trabalhar nos bosques para os outros, fazer qualquer coisa, mas pagando
sempre três vezes mais do que o justo valor. Mas não importa. Eu sempre
tenho dito ao Altíssimo: “Deixa-me ver o teu Messias, deixa-me pelo menos
saber que Ele está vivo, e tudo o que tenho sofrido é nada.” Senhor, eu te
disse como fui tratado pelos belemitas e como estou sendo tratado pelo
patrão. Eu podia ter retribuído ao mal com mal, ou praticar o mal, roubando,
para não ter que sofrer com o patrão. Mas, eu só quis perdoar, sofrer, ser
honesto, porque os anjos haviam dito: “Glória a Deus nos Céus altíssimos, e
paz na terra aos homens de boa vontade.”
– Foi assim mesmo que os anjos disseram?
– Sim, Senhor, podes crê-lo Tu, ao menos Tu, que és tão bom. Fica
sabendo Tu, pelo menos, e crede que o Messias já nasceu. Ninguém quer
mais crer nisso. Mas os anjos não mentem… e nós não estávamos bêbados,
como disseram. Este, que estás vendo, naquele tempo era um menino, e foi o
primeiro a ver o anjo. Ele só bebia leite. Será que o leite pode embriagar?
Os anjos disseram: “Hoje na cidade de Davi nasceu o Salvador, que é
Cristo, o Senhor. E vós o reconhecereis pelo seguinte: Encontrareis um
Menino deitado em uma manjedoura, envolvido em faixas.”
– Foi assim mesmo que falaram? Não tereis entendido mal? Não estareis
enganados, depois de tanto tempo?
– Oh! Não! Não é verdade, Levi? Para não nos esquecermos daquelas
palavras — e nem o poderíamos, porque eram palavras do Céu, e foram
escritas com o fogo do Céu em nossos corações — todas as manhãs, todas as
tardes, quando o sol surge, quando brilha a primeira estrela, nós as dizemos
como oração, como pedido de bênção, para termos força e conforto, em
nome Dele e da mãe.
– Ah! Vós dizíeis: “O Cristo”?
– Não, Senhor. Nós dizemos: “Glória a Deus nos Céus altíssimos e paz
na terra aos homens de boa vontade, por Jesus Cristo que nasceu de Maria
em uma estrebaria em Belém e que, envolvido em faixas, estava em uma
manjedoura, Ele que é o Salvador do mundo.”
75.3
– Mas em suma, a quem vós procurais?
– A Jesus Cristo, Filho de Maria, o Nazareno, o Salvador.
– Sou Eu.
Jesus resplandece ao dizer isso, manifestando-se a esses seus firmes
amadores. Firmes, fiéis, pacientes.
– Tu! Oh! Senhor, Salvador, Nosso Jesus!
Os três se prostram por terra e beijam os pés de Jesus chorando de
alegria.
– Levantai-vos. Levanta-te Elias, e tu, Levi, e tu que não sei quem és.
– José, filho de José.
– Estes são os meus discípulos: João, galileu, Simão e Judas, judeus.
Os pastores não estão mais com o rosto por terra, mas estão ainda de
joelhos, largados para trás sobre os calcanhares, e adoram o Salvador com
olhos de amor, com lábios que tremem de emoção, com rostos
embranquecidos ou avermelhados pela alegria.
Jesus se assenta sobre a relva.
– Não, Senhor. Sobre a relva, Tu não, ó Rei de Israel!
– Deixai, amigos. Eu sou pobre. Para o mundo, Eu sou carpinteiro. Só
sou rico de amor que tenho para com o mundo, e do amor que os bons me
dão. Eu vim para estar convosco, para partir convosco o pão da tarde, para
dormir ao vosso lado sobre o feno, e receber de vós um conforto…
– Oh! Conforto! Nós somos rudes e perseguidos.
– Eu também sou perseguido. Mas vós me dais o que Eu procuro: amor,
fé e esperança que resiste através dos anos, e ainda dá flor. Estais vendo?
Vós soubestes esperar, crendo sem dúvidas que era Eu. E Eu vim.
– Oh! Sim! Vieste. Agora, mesmo que eu morra, não tenho nada mais que
me dê aquela pena por uma coisa que foi esperada, e não tida.
– Não, Elias. Tu viverás, até depois do triunfo de Cristo. Tu, que viste a
minha aurora, deves ver também o meu fulgor. 75.4E os outros? Vós éreis doze:
Elias, Levi, Samuel, Jonas, Isaque, Tobias, Jônatas, Daniel, Simeão, João,
José e Benjamim. Minha mãe me dizia sempre os vossos nomes. Como sendo
dos meus primeiros amigos.
– Oh!
Os pastores estão cada vez mais comovidos.
– Onde estão os outros?
– O velho Samuel morreu de idade, há vinte anos. José foi morto por ter
combatido à porta do recinto, para dar tempo à esposa, que havia dado à luz
poucas horas antes, para fugir com este aqui, que eu recolhi por amor ao
amigo, e para… para ter ainda meninos ao meu redor. Também a Levi eu
tomei comigo… Ele era um dos perseguidos. Benjamim é hoje pastor nas
terras do Líbano, junto com Daniel. Simeão, João e Tobias, que agora tomou
o nome de Matias em memória de seu pai, também ele assassinado, são
discípulos de João. Jonas está na planície de Esdrelon, a serviço de um
fariseu. Isaque está com os rins quebrantados, vive em uma miséria absoluta,
e mora sozinho em Juta. Nós o ajudamos, como podemos… mas vivemos
perseguidos, e o que lhe podemos dar é como gotas de orvalho em um
incêndio. Jônatas agora é servo de um dos grandes de Herodes.
– Como pudestes, especialmente Jônatas, Jonas, Daniel e Benjamim ir
trabalhar nesses serviços?
– Eu me lembrei de Zacarias, teu parente… Tua mãe me tinha mandado a
ele. E, quando nos encontramos nos desfiladeiros da Judéia, fugitivos e
malditos, eu os levei a ele. Ele foi bom. Protegeu-nos, matou-nos a fome.
Procurou um patrão para nós. Fez o que pôde. Eu já havia pego todo o
rebanho de Ana, encampado pelo herodiano… e fiquei com ele[123]…
Tendo-se feito homem, o Batista, e começado a pregar, Simeão, João e
Tobias o acompanharam.
– Mas agora o Batista está preso.
– Sim. Mas eles estão de ronda perto de Maqueronte, com um punhado
de ovelhas, para não levantar suspeitas, dadas por um homem rico, discípulo
de João, teu parente.
– Eu gostaria de vê-los todos.
– Sim, Senhor. Nós iremos dizer a eles: “Vinde. Ele está vivo. Ele se
lembra de nós e nos ama.”
– E vos quer entre os seus amigos.
– Sim, Senhor.
– Mas, antes, nós iremos a Isaque. E Samuel e José, onde estão
sepultados?
– Samuel está em Hebron. Ficou a serviço de Zacarias. José… não tem
sepultura, Senhor. Ele foi queimado com a casa.
– Não entre as chamas dos cruéis, mas entre as chamas do Senhor, e na
glória, logo ele haverá de estar. Eu vo-lo digo. A ti, José, filho de José, Eu te
digo. Vem cá, para que Eu te beije e para dizer um obrigado ao teu pai.
– E os meus meninos?
– São anjos, Elias. Anjos que repetirão o “Glória”, quando o Salvador
for coroado.
– Coroado Rei?
– Não. Coroado Redentor. Oh! Cortejo dos justos e santos! E, na frente,
as falanges, brancas e purpurinas dos pequenos mártires! E, abertas as portas
do Limbo, eis que subiremos juntos ao Reino, onde não há morte. E depois,
vós ireis e reencontrareis vossos pais, mães e filhos no Senhor! Crede.
– Sim, Senhor.
– Chamai-me Mestre. 75.5A tarde cai, a primeira estrela já está nascendo.
Diz a tua oração antes da janta.
– Eu não. Diz tu.
– Glória a Deus nos Céus altíssimos, e paz na terra aos homens de boa
vontade, que mereceram ver a Luz e servi-la. O Salvador está entre eles. O
Pastor da estirpe real está no meio do seu rebanho. A Estrela da manhã já
surgiu. Jubilai-vos, ó justos! Jubilai no Senhor. Ele, que fez a abóbada dos
céus, e os semeou de estrelas, Ele que pôs, como limite para as terras, os
mares, Ele que criou os ventos e o orvalho e regulou o curso das estações
para dar pão e vinho aos seus filhos, eis que vos manda agora um Alimento
mais alto: o Pão vivo que desce dos Céus, o Vinho da Videira eterna. Vinde,
vós, primícias dos meus adoradores. Vinde conhecer o Pai em verdade, para
o seguirdes na santidade e terdes Dele o prêmio eterno.
Jesus rezou de pé, com os braços estendidos, enquanto os discípulos e
os pastores ficaram de joelhos.
Depois é servido o pão e uma escudela de leite tirado na hora, e como
são três as escudelas, ou cabaças, não sei, primeiro comem Jesus, Simão e
Judas. Depois João, ao qual Jesus passa a sua escudela, com Levi e José.
Por último come Elias.
As ovelhas já não estão mais pastando, elas se reúnem em um grande
grupo cerrado à espera de serem levadas ao seu cercado. Mas, ao contrário,
vejo que os pastores as levam para o bosque, debaixo de um rústico galpão,
feito de ramos tapados com cordas. E cuidam solícitos de preparar o feno
que vai servir de cama para Jesus e os discípulos. Acendem-se as fogueiras,
talvez por causa dos animais selvagens.
Judas e João, cansados, se deitam, e pouco depois estão dormindo.
Simão queria fazer companhia a Jesus. Mas, pouco depois, também ele está
dormindo, sentado sobre o feno e com as costas apoiadas a uma estaca.
75.6
Ficam acordados Jesus e os pastores. E falam: de José, de Maria, da fuga
para o Egito, da volta… E depois destas perguntas de amor, as perguntas
mais altas: que fazer para servir a Jesus? Como poderão fazer isso, eles,
rudes pastores?
E Jesus os instrui e explica:
– Agora Eu irei pela Judéia. Vós sereis sempre informados pelos
discípulos. Depois Eu vos farei vir. No entanto, reuni-vos. Fazei que um
saiba notícias do outro e da minha presença no mundo, como Mestre e
Salvador. Como puderdes, fazei que todos saibam disso. Não vos prometo
que acreditarão em vós. Eu sofri escárnio e maus tratos. Vós também os
sofrereis. Mas, assim como soubestes ser fortes e justos nesta espera, sede-o
mais ainda, agora que sois meus. Amanhã iremos para Juta, depois para
Hebron. Podeis ir?
– Oh! Sim. As estradas são de todos e os pastos são de Deus. Só Belém
está interditada pelo ódio injusto. Os outros lugares sabem… mas só
zombam de nós, chamando-nos “beberrões.” Por isso pouco poderemos fazer
aqui.
– Eu vos chamarei a um outro lugar. Não vos abandonarei.
– Por toda a vida?
– Por toda a minha vida.
– Não. Eu morrerei antes, Mestre. Sou velho.
– Pensas tu assim? Eu não. Um dos primeiros rostos que Eu vi foi o teu,
Elias. E será um dos últimos. Levarei Comigo na pupila o teu rosto
transtornado de dor pela minha morte. Mas depois será o teu a levar no
coração o raiar de uma manhã triunfal, e com ele esperarás a morte… A
morte: o encontro eterno com Jesus que tu adoraste pequenino. Também
então os anjos cantarão o Glória: “pelo homem de boa vontade.”
Não ouço mais nada, a doce visão se ofusca. Termina.
[123] Eu já havia pego todo o rebanho de Ana , encampado pelo herodiano... e fiquei com ele..., significa: O rebanho que
pastava por conta de Ana foi tomado por erodiano e, por conseguinte, passei ao serviço dele.
76. Em Juta na casa do pastor Isaque.
Sara e os seus meninos.
12 de janeiro de 1945.
76.1
Um fresco vale sonante de águas que vão em direção ao sul, entre
saltos e espumas de um pequeno córrego de prata, que borrifa o seu risonho
frescor sobre os pequenos pastos das margens, mas parece até que sua linfa
suba pelas encostas, de tanto que estão verdes: um esmeralda matizado no
seu verde, que do solo sobe, através das moitas e arbustos do cerrado até às
copas das árvores altas, entre as quais estão muitas nogueiras, que formam o
bosque propriamente dito, todo ele entrecortado por zonas abertas de
terreno, que são planaltos verdes de erva densa, pasto sadio e forte para os
rebanhos.
Jesus desce com os seus discípulos e com os três pastores, a caminho do
córrego. Pacientemente Ele pára, quando tem que esperar uma ovelha que se
atrasa, ou um dos pastores que deve correr atrás de alguma que se desvia. É
realmente o Bom Pastor agora. Ele também se muniu de uma vara comprida,
para afastar as ramagens das amoreiras, do espinheiro-alvar e das plantas
trepadeiras, que se estendem por todas as partes e procuram se agarrar às
vestes dos passantes. E isso completa a sua figura pastoral.
– Estás vendo? Juta é lá em cima. Agora atravessaremos o córrego; há
um vau que no verão serve, sem recorrer à ponte. Teria sido mais rápido vir
por Hebron. Mas Tu não quiseste.
– Não. Hebron fica para depois. Primeiro se vai sempre a quem está
sofrendo. 76.2Os mortos não sofrem mais, quando foram justos. E Samuel era
um justo. Portanto, para os mortos, que precisam de orações, não é
necessário estar perto dos seus ossos para dar-lhes (orações). Que são os
ossos? São uma prova do poder de Deus, que com o pó criou o homem. Mas
nada além disso. O animal também tem ossos. O esqueleto de todos os
animais é menos perfeito que o do homem. Somente o homem, o rei da
criação, tem uma posição ereta, de um rei sobre os seus súditos, com um
rosto que olha para a frente e para o alto, sem precisar torcer o pecoço; para
o alto, onde está a morada do Pai. Mas são sempre ossos. Pó que ao pó
retorna. A Bondade eterna decidiu reconstituí-lo, no Dia eterno, para dar
uma alegria ainda mais viva aos bem-aventurados. Pensai, não só os
espíritos serão reunidos e se amarão como e muito mais do que sobre a
terra, mas também se alegrarão por poderem ver-se de novo com aqueles
aspectos que tiveram na terra: os meninos de cabelos encaracolados, e
queridos como os teus, Elias, os pais e as mães com um coração e com um
rosto que era todo amor, como os vossos, Levi e José. Aliás, para ti, José,
será um conhecer finalmente, aqueles rostos dos quais sentias falta. Já não
haverá mais órfãos, não mais viúvos entre os justos, lá em cima… O
sufrágio aos mortos, se pode prestar em qualquer lugar. É a oração de um
espírito pelo espírito de alguém que nos era próximo, ao Espírito perfeito
que é Deus, e que está em toda parte. Oh! Santa liberdade de tudo isso que é
espiritual! Não há distâncias, nem exílios, nem prisões, nem sepulcros…
Nada que divida ou que acorrente, em uma impotência penosa, aquilo que
está fora e acima das correntes da carne. Vós ides, aos vossos diletos, com a
melhor parte de vós mesmos. E eles, com sua melhor parte, vêm a vós. E
tudo — dessa efusão de espíritos que se amam — gira ao redor do Fulcro
eterno, Deus: Espírito perfeitíssimo, Criador de tudo quanto foi, é e será,
amor que vos ama e vos ensina a amar… 76.3Mas eis-nos ao vau, Eu creio.
Vejo uma fileira de pedras emergir da pouca água.
– Sim, é aquele, Mestre. Em tempo de cheia, é uma sonante cascata.
Agora, não há mais do que sete pequenos córregos que passam, rindo, entre
as seis grandes pedras do vau.
De fato, seis grandes pedras, bastante esquadrejadas, estão estendidas à
distância de um bom palmo entre elas, no fundo do córrego, e a água, antes
unida em um única fita brilhante, se divide em sete fitas menores,
apressando-se, risonhas, a reunirem-se além do vau, em um único frescor
que escorre murmurando por entre os cascalhos do fundo.
Os pastores vigiam a passagem das ovelhas, que parte delas atravessa
sobre as pedras, e parte prefere entrar na água, à altura de não mais do que
um palmo, e beber desta diamantina onda que espuma e ri.
Jesus passa sobre as pedras, e atrás Dele os discípulos. Retomam o
caminho na outra margem.
76.4
– Tu me disseste que queres que Isaque fique sabendo que estás aqui,
mas isso sem precisares entrar no povoado?
– Sim, assim quero.
– Então, é bom que nos separemos. Eu irei até ele. Levi e José ficarão
com o rebanho e convosco. Eu vou subir por aqui. Irei mais depressa.
E Elias começa a subir pela encosta, em direção a um branquear de
casas que brilham ao sol, lá no alto. Parece-me que estou seguindo-o. Ei-lo
às primeiras casas. Pega uma viela entre as casas e as hortas. Anda uma
dezena de metros. Depois, vira para uma rua mais larga, e desta entra em
uma praça.
Eu não disse que tudo isso aconteceu nas primeiras horas da manhã.
Digo agora, para explicar que na praça ainda há a feira, e as donas de casa e
vendedores gritam ao redor das árvores que fazem sombra à praça.
Elias vai firme, até ao ponto onde a praça volta a ser rua, uma rua muito
bonita. Talvez a mais bonita do povoado. Num canto há um casebre, ou
melhor, um quarto com a porta aberta. Quase à porta, está uma pobre cama, e
em cima dela um doente muito magro que, lamentosamente pede uma esmola
a cada passante.
Elias entra como um foguete:
– Isaque… sou eu.
– Tu? Eu não estava te esperando. Vieste aqui na lua passada.
– Isaque… Isaque… Sabes por que eu vim?
– Não sei… Estás comovido… Que aconteceu?
– Eu vi Jesus de Nazaré, homem, já rabi. Ele veio procurar-me… e nos
quer ver. Oh! Isaque! Estás mal?
De fato, Isaque deixou-se cair como se morresse. Mas depois se
recobra:
– Não. Esta notícia… Onde está Ele? Como está? Oh! Se eu pudesse vê-
lo!
– Ele está lá em baixo, no vale. E me manda dizer-te assim, exatamente
assim: “Vem, Isaque, que Eu te quero ver e abençoar.” Agora, eu vou chamar
alguém que me ajude a levar-te lá em baixo.
– Assim Ele disse?
– Assim. Mas, que é que estás fazendo?
– Eu vou.
Isaque afasta as cobertas, move as pernas inertes, lança-as fora da
enxerga, e as apóia no chão, levanta-se, ainda incerto, cambaleante. Tudo em
um instante, sob os olhos arregalados de Elias… que finalmente compreende
e grita…
Aí aparece uma mulherzinha curiosa. Vê o enfermo de pé, que se cobre
com um cobertor, não encontrando outra coisa, e sai correndo, gritando como
uma galinha.
– Vamos. Saiamos daqui, para fazermos mais depressa, antes que a
multidão comece a se ajuntar… Depressa, Elias.
E saem correndo pelo portãozinho de uma pequena horta, situada atrás,
empurram o fecho de ramos secos, e estão fora; seguem por uma viela
miserável, descem depois por uma estradinha entre as hortas, e desta passam
para os prados e pequenos bosques até o córrego.
76.5
– Eis ali Jesus –diz Elias, indicando-o–. É aquele alto, bonito, loiro,
vestido de branco, com o manto vermelho….
Isaque corre, abre caminho por entre o rebanho que está pastando, e com
um grito de triunfo, de alegria, de adoração, prostra-se aos pés de Jesus.
– Levanta-te, Isaque. Eu vim. Para trazer-te paz e bênção. Levanta-te
para Eu conhecer o teu rosto.
Mas Isaque não pode levantar-se. Emoções demais ao mesmo tempo, e
está, em seu choro feliz, com o rosto no chão.
– Vieste depressa. Nem perguntaste a ti mesmo se podias…
– Tu me disseste para vir… e eu vim.
– Tampouco fechou a porta, nem recolheu as esmolas, Mestre.
– Não importa. Os anjos velarão a casa dele. Estás contente, Isaque?
– Oh! Senhor!
– Chama-me Mestre.
– Sim, Senhor, meu Mestre. Ainda que não tivesse ficado curado, teria já
ficado feliz, só por Te ver. Como pude encontrar tanta graça junto a Ti?
– Pela tua fé e paciência, Isaque. Eu sei quanto sofreste…
– Nada, nada! Mais nada! Eu Te encontrei! Estás vivo! Estás aqui! Estás
mesmo aqui… O resto, todo o resto é passado. Mas, Senhor e Mestre, agora
não vais mais embora, não é?
– Isaque, tenho que evangelizar todo Israel. Eu vou… Mas, se Eu não
posso ficar, tu sempre podes servir e seguir-me. 76.6Queres ser meu discípulo,
Isaque?
– Oh! Mas eu não serei um bom discípulo!
– Saberás tu declarar quem Eu sou? E confessá-lo, apesar dos escárnios
e ameaças? E dizer que Eu te chamei, e tu vieste?
– Mesmo que Tu não o quisesses, eu diria tudo isso. Nisto eu Te
desobedeceria, Mestre. Perdoa-me, se eu digo isto.
Jesus sorri.
– E então, estás vendo que estás bom para seres meu discípulo?
– Oh! Se for só para fazer isso! Eu pensava que fosse mais difícil. Que
precisava ir para a escola dos rabinos, para servir a Ti, o Rabi dos rabis… e
ir para a escola depois de velho…
De fato, o homem tem pelo menos, cinqüenta anos.
– A escola tu já fizeste, Isaque.
– Eu? Não.
– Tu, sim. Não tens continuado a crer e a amar, a respeitar e bendizer a
Deus e ao próximo, a não ter invejas, a não desejar o que é dos outros, e
também o que era teu e não o tinhas mais, a não falar senão a verdade, ainda
que isso te prejudicasse, a não fornicar com Satanás, fazendo pecados? Não
tens feito tudo isso, nestes trinta anos de desventura?
– Sim, Mestre.
– Então estás vendo. A escola tu já fizeste. Continua assim, e acrescenta
a isso a revelação de minha presença no mundo. Não há outra coisa a fazer.
– Eu já tenho falado de Ti, Senhor Jesus. Aos meninos que vinham a
mim, quando eu, quase inválido, cheguei a este povoado, pedindo um pão e
fazendo ainda algum trabalho de tosquia ou preparação de laticínios, e
depois, quando vinham ao redor de minha cama, quando a doença se agravou
e fez que ficasse paralítico da cintura para baixo. Eu falava de Ti aos
meninos de então, e aos meninos de agora, filhos daqueles… Os meninos são
bons, e crêem sempre.. Eu lhes falava de quando tinhas nascido… dos
anjos… da Estrela e dos Magos… e de tua mãe… Oh! Diz-me: Ela ainda
está viva?
– Está viva, e te saúda. Ela sempre me falava de vós.
– Oh! Se eu pudesse vê-la!
– Tu a verás. Um dia irás à minha casa. Maria te saudará: amigo.
– Maria… sim. Dizer esse nome é como ter mel na boca. 76.7Há uma
mulher em Juta, agora ela é mulher, e se tornou mãe do seu quarto filho, mas
tempos atrás era uma menina, uma das minhas pequenas amigas… e aos seus
filhos ela deu os nomes de Maria e José aos dois primeiros e, não ousando
chamar o terceiro de Jesus, deu-lhe o nome de Emanuel, como um bom
augúrio para si mesma, para sua casa e para Israel. E está pensando no nome
que haverá de dar ao quarto, que nasceu há seis dias. Oh! Quando ela souber
que eu estou curado! E que Tu estás aqui! Sara é boa como o pão da mamãe,
e bom é também o seu esposo, Joaquim. E os seus parentes? Por causa deles
é que eu estou ainda vivo. Eles sempre me deram abrigo e ajuda.
– Vamos a eles pedir-lhes um abrigo para as horas de sol, e levar-lhes a
bênção por sua caridade.
– Por aqui, Mestre. É mais cômodo para o rebanho e para esquivar-nos
das pessoas, certamente excitadas. A velha que viu quando eu me pus de pé,
com certeza, já falou.
76.8
Seguem o córrego, o deixam mais ao sul, para pegarem um caminho
que sobe bastante íngreme, contornando um esporão da montanha, semelhante
a um quebra-mar de navio. Agora o córrego vai em direção contrária para
quem sobe, e desliza no fundo entre duas ordens de montanhas, que se
entrecortam, formando um vale acidentado e bonito.
Reconheço o lugar. Ele é inconfundível. É aquele da visão que eu tive de
Jesus e os meninos[124], na primavera passada. O pequeno muro, de pedras
soltas, delimita a propriedade que pende para o vale. Eis os prados com as
macieiras, as figueiras, as nogueiras, eis a casa, branca sobre o verde, com
sua ala saliente que protege a escada, formando um pórtico e um alpendre,
eis a pequena cúpula sobre a parte mais alta, eis a horta-jardim com o poço,
a parreira e os canteiros…
Um grande vozerio sai da casa. Isaque vai à frente. Entra. Chama em voz
alta:
– Maria, José, Emanuel! Onde estais? Vinde a Jesus.
Correm três pequeninos: uma menina de quase cinco anos e dois
meninos dos quatro aos dois, o último com um passo ainda um pouco incerto.
Ficam de boca aberta diante do… renascido. Depois, a menina grita:
– Isaque! Mamãe! Isaque está aqui! A Judite viu bem!
De um quarto onde há o grande vozerio, sai uma mulher; é a mãe em flor,
morena, alta, formosa, de uma visão longínqua, muito bonita em suas vestes
de festa: uma veste de linho muito alvo, como uma rica camisa, que desce em
dobras até os tornozelos, apertada aos flancos opulentos por um xale com
listras matizadas, que lhe modela os quadris estupendos, recaindo em franjas
até a parte posterior dos joelhos, e ficando entreaberto na frente, depois de
ter-se cruzado, à altura da cintura, sob uma fivela de filigrana. Um véu leve,
com ramos de roseira, colorido, sobre um fundo de marfim está fixado, sobre
as tranças pretas, como um pequeno turbante, e depois desce da nuca, com
ondas e dobras, pelas costas e o peito. Conservam-no firme na cabeça uma
pequena coroa de medalhinhas unidas por uma pequena corrente entre elas.
Brincos pesados, em forma de anéis, descem das orelhas, e um colar de
prata, que passa entre os ilhoses da veste, ajusta a túnica ao pescoço. Nos
braços, pesados braceletes de prata.
– Isaque! Mas como? Judite… estava já pensando que o sol a tivesse
feito endoidecer… Tu estás caminhando! Mas que foi que aconteceu?
– O Salvador! Oh! Sara! Ele está aqui! Ele já veio!
– Quem? Jesus de Nazaré? E onde está Ele?
– Ali! Atrás da nogueira. E Ele manda perguntar se tu o recebes!
– Joaquim! Mãe! Vinde todos! O Messias está aqui!
Mulheres, homens, rapazes, meninos, todos vão correndo, gritando…
mas, quando vêem Jesus, alto e majestoso, perdem toda aquela coragem, e
ficam como que petrificados.
– A paz a esta casa e a todos vós. A paz e a bênção de Deus.
Jesus caminha devagar, sorridente, em direção ao grupo:
– Amigos, quereis hospedar o Viajante?
E sorri ainda mais.
O seu sorriso vence os receios. O esposo cria coragem para falar:
– Entra, Messias. Nós já Te amávamos, sem Te conhecer. Mais ainda Te
amaremos conhecendo-Te. Nossa casa está em festa por três motivos hoje:
por Ti, por Isaque e pela circuncisão do meu terceiro filho homem. Abençoa-
o, Mestre. Mulher, traze aqui o menino! Entra, Senhor.
76.9
Entram numa sala preparada para a festa. Mesas e iguarias, tapetes e
ramagens por todos os lados.
Sara volta com um belo recém-nascido nos braços. E o apresenta a
Jesus.
– Deus esteja sempre com ele. Que nome tem?
– Nenhum. Esta é Maria, este é José, este é Emanuel, e este… ainda não
tem nome…
Jesus fita os dois esposos próximos, e sorri:
– Procurai um nome. Se hoje vai ser circuncidado…
Os dois se olham, olham para Ele, abrem a boca, a fecham, sem dizer
nada. Todos estão atentos.
Jesus insiste:
– Há tantos nomes grandes, doces, benditos, tem a história de Israel. Os
mais doces e benditos já foram dados. Mas talvez ainda haja algum.
Juntos, os dois esposos irrompem:
– O teu, Senhor!
E a esposa termina, dizendo:
– Mas é santo demais…
Jesus sorri e pergunta:
– Quando será circuncidado?
– Estamos esperando o homem que fará a circuncisão.
– Eu estarei presente à cerimônia. Entrementes, vos agradeço pelo meu
Isaque. Agora ele não tem mais necessidade dos bons. Mas os bons ainda
têm necessidade de Deus. Destes ao terceiro filho o nome de “Deus
conosco.” Mas vós já tínheis a Deus, quando tivestes caridade para com o
meu servo. Sede benditos. Na terra e no Céu vosso ato será lembrado.
– Isaque parte, agora? Ele vai nos deixar?
– Ficais tristes por isso? Mas ele deve servir a seu Mestre. Contudo, ele
voltará, e Eu também virei. Enquanto isso, vós falareis do Messias… Há
tantas coisas a dizer para convencer o mundo! 76.10Mas eis o esperado.
Entra um pomposo personagem, com um ajudante. Saudações e
inclinações.
– Onde está o menino? –pergunta ele com altivez.
– Está aqui. Mas saúda o Messias. Ele está aqui.
– O Messias?… Aquele que curou o Isaque? Eu sei. Mas… Falaremos
dele depois. Estou com muita pressa. Vejamos o menino e o seu nome.
Os presentes estão mortificados pelos modos do homem. Mas Jesus
sorri, como se aquelas grosserias não fossem para Ele. Pega o menino, toca
em sua pequena fronte com seus dedos bonitos, como que para consagrá-lo, e
diz: “O seu nome é Jesai”, e o devolve ao pai que, com o homem soberbo e
outros, vai a um quarto próximo. Jesus fica onde está, até que eles voltam
com o menino, que grita desesperadamente.
– Dá-me o pequenino, mulher. Ele não chorará mais –diz Jesus para
consolar a mãe angustiada. O menino, colocado sobre os joelhos de Jesus,
de fato se cala.
Jesus forma um grupo com os pequeninos todos ao seu redor, e depois
com os pastores e os discípulos. Fora há um balir de ovelhas que Elias
colocou em um cercado. Na casa há um barulho de festa. Levam a Jesus e
aos seus, doces e bebidas. Mas Jesus os distribui aos pequeninos.
– Não bebes, Mestre? Não aceitas? É dado de coração.
– Eu sei Joaquim, e de coração o aceito. Mas deixa que primeiro Eu
faça contentes os pequeninos. Eles são a minha alegria…
– Não repares naquele homem, Mestre.
– Não, Isaque. Eu rezo para que ele veja a Luz. João, leva os dois
meninos para que vejam as ovelhinhas. 76.11E tu, Maria, vem mais perto, e diz-
me: Quem sou Eu?
– Tu és Jesus, Filho de Maria de Nazaré, nascido em Belém. Isaque te
viu e me pôs o nome de tua mamãe, para que eu seja boa.
– Boa como o anjo de Deus, pura mais do que um lírio desabrochado no
cume da montanha, piedosa como o levita mais santo deve ser, para imitá-la.
Serás assim?
– Sim, Jesus.
– Fala “Mestre” ou “Senhor”, menina.
– Deixa que me chame com o meu Nome, Judas. Só passando por lábios
inocentes é que não perde o som que tem sobre os lábios de minha mãe.
Todos, nos séculos, dirão esse nome, mas uns por um interesse, outros por
outro, e muitos para blasfemá-lo. Só os inocentes, sem malícia e sem ódio, o
dirão com um amor igual ao desta menina e ao de minha mãe. Os pecadores
também me chamarão, quando pedirem misericórdia. Mas minha mãe e os
pequeninos! Por que me chamas Jesus? –pergunta, acariciando a pequenina.
– Porque eu te quero bem… como ao papai, à mamãe e aos meus
irmãozinhos –diz ela, abraçando os joelhos de Jesus, e rindo com o rostinho
erguido.
Jesus se inclina e a beija… e assim tudo termina.
[124] visão .... de Jesus e os meninos, escrita a 7 de Fevereiro de 1944 e que será introduzida no cap ítulo 396. Tinha sido
excluída das duas p rimeiras edições da obra.
77. Em Hebron na casa de Zacarias.
O encontro com Aglae.
13 de janeiro de 1945.
77.1
– A que hora chegaremos? –pergunta Jesus, que caminha no centro do
grupo, precedido pelas ovelhas que vão pastando a erva da beira do
caminho.
– Por volta da hora terceira. São cerca de dez milhas –responde Elias.
– E depois iremos a Keriot? –pergunta Judas.
– Sim. Iremos lá.
– E não era mais rápido, se tivéssemos ido de Juta a Keriot? Não deve
estar muito longe. Não é verdade, pastor?
– Duas milhas a mais, pouco mais, ou pouco menos.
– Assim vamos fazer mais de vinte milhas à toa.
– Judas, por que estás assim inquieto? –diz Jesus.
– Inquieto não, Mestre. Mas me tinhas prometido que irias à minha
casa…
– E lá irei. Mantenho sempre as minhas promessas.
– Mandei avisar a minha mãe… e além disso, Tu o disseste: com nosso
espírito podemos estar unidos aos mortos.
– Eu o disse. Mas Judas, reflete: tu, por Mim, ainda não sofreste. Estes
são trinta anos que sofrem, e nunca traíram nem mesmo a lembrança de Mim.
Nem mesmo a lembrança. Não sabiam se Eu estava vivo ou morto…
contudo, permaneceram fiéis. Lembravam-se de Mim quando recém-nascido,
quando menino que só sabia chorar e querer leite… no entanto, sempre me
veneraram como Deus. Por minha causa, eles foram ofendidos,
amaldiçoados, perseguidos como um opróbrio da Judéia, contudo a cada
ofensa recebida, a sua fé não vacilava, não se extinguia, mas lançava raízes
ainda mais profundas, tornando-se cada vez mais vigorosa.
77.2
– A propósito. Há alguns dias que eu estou com uma pergunta me
queimando os lábios. Esses são amigos teus e de Deus, não é verdade? Os
anjos os abençoaram com a paz do Céu, não foi? Eles permaneceram justos,
contra todas as tentações, não é mesmo? Explica-me então, por que é que
foram infelizes? E Ana? Foi morta por ter querido bem a Ti….
– Tu deduzes, por isso, que o meu amor e que amar a Mim traz
infortúnio.
– Não… mas….
– Mas é assim. Lamento ver-te tão fechado para a Luz e tão preocupado
com o que é humano. Não, deixa estar, João, e também tu, Simão. Prefiro que
ele fale. Eu não censuro nunca. Só quero abertura de almas, para poder
introduzir nelas a luz. Vem cá, Judas. Escuta. Tu partes de um juízo comum a
muitos viventes e a muitos que viverão. Eu disse: juízo. Deveria dizer: erro.
Mas, posto que o fazes sem malícia, por ignorância do que é a verdade, não
é um erro, mas somente um juízo imperfeito, como o pode ser, aquele de um
menino. E vós sois meninos, pobres homens! E Eu estou aqui, Mestre, para
fazer de vós adultos, capazes de discernir o verdadeiro do falso, o bom do
mau, o melhor do que é bom. Portanto, escutai. O que é a vida? É um tempo
de espera, Eu diria é o limbo do Limbo, que Deus Pai vos dá para provar se
vossa natureza é de filhos bons ou de bastardos, e para destinar-vos,
conforme as vossas obras, a um futuro que não terá mais esperas nem provas.
Agora, dizei-me, vós: Seria justo que alguém que teve o bem extraordinário
de poder servir a Deus de uma maneira especial, possua também por toda
esta vida um bem contínuo? Não vos parece que já recebeu muito, e que por
isso pode dizer-se feliz, mesmo se nas coisas humanas não é feliz? Não seria
injusto que aquele que já tem a luz da divina manifestação no coração e o
sorriso da consciência que o aprova, tenha também honras e bens terrenos? E
não seria até imprudente?
77.3
– Mestre, eu digo que seria até profanador. Por que colocar alegrias
humanas onde Tu estás? Quando alguém tem a Ti — e estes te têm tido, eles,
os únicos ricos em Israel, por terem tido a Ti há trinta anos — não deve ter
nenhuma outra coisa. Não se coloca coisas humanas no Propiciatório… e o
vaso consagrado só serve para os usos sagrados. Estes são consagrados,
desde o dia em que viram o teu sorriso… e nada, não, nada que não sejas Tu,
deve entrar nos corações que têm a Ti. Fosse eu como eles! –diz Simão.
– Porém tu, bem que te apressaste em tomar posse dos teus bens, depois
de teres visto o Mestre e teres sido curado –responde ironicamente Judas.
– É verdade. Eu disse e fiz isso. Mas sabes por que? Como é que podes
julgar, se não sabes tudo? O meu agente recebeu ordens claras. Agora que
Simão, o Zelote, está curado — e os seus inimigos não podem mais
prejudicá-lo segregando-o, nem persegui-lo, porque ele agora é somente de
Cristo, e não de nenhuma seita: ele tem Jesus, e basta — pode dispor de seus
haveres, que um homem fiel e honesto lhe conservou. E eu, dono deles ainda
por uma hora, dei ordens que fossem reformados para receber mais dinheiro
na venda, e poder dizer… não, isto eu não digo.
– Os anjos o dizem por ti, Simão, e o escrevem no livro eterno –diz
Jesus.
Simão olha para Jesus. E os dois olhares se encontram, um admirado, o
outro abençoante.
– Como sempre, eu não tenho razão.
– Não, Judas. Tu tens o senso prático. Tu mesmo o dizes.
– Oh! Mas com Jesus!… Também Simão Pedro estava apegado ao senso
prático, e agora ao invés!… Tu também, Judas, te tornarás como ele. Faz
pouco tempo que estás com o Mestre, nós há mais tempo, e já melhoramos –
diz João, sempre afável e conciliador.
– Ele não me quis. De outra forma, eu já estaria sendo seu desde a
Páscoa.
Judas está mesmo nervoso hoje. Jesus corta o assunto, dizendo a Levi:
– Tu já estiveste na Galiléia?
– Sim Senhor.
– Tu irás Comigo para conduzir-me à Jonas. Tu o conheces?
– Sim. Na Páscoa sempre nos víamos. Eu ia à casa dele.
José inclina a cabeça, mortificado. Jesus vê:
– Juntos não podeis ir. O Elias ficaria sozinho com as ovelhas. Mas tu
irás Comigo até o passo de Jericó, onde nos separaremos por algum tempo.
Depois te direi o que terás que fazer.
– E para nós, nada mais?
– Vós também, Judas, vós também.
77.4
– Já se vêem as casas –diz João, que vai alguns passos na frente dos
outros.
– É Hebron. Abrange dois rios com seu dorso. Estás vendo, Mestre?
Aquele casarão, lá ao longe, entre todo aquele verde, um pouco mais alto
que os outros? É a casa de Zacarias.
– Vamos apressar o passo.
Percorrem rapidamente os últimos metros da estrada, entram na cidade.
Os pequenos cascos das ovelhas parecem castanholas sobre as pedras
irregulares da rua, neste ponto calçada de maneira bem rudimentar. Chegam
à casa. As pessoas olham aquele grupo de homens de diferentes aspectos, na
idade e na veste, entre o branco das ovelhas.
– Oh! Como está mudada! Aqui era a cancela –diz Elias.
Agora, ao invés da cancela, há um portão de ferro, que impede a vista, e
como o muro é mais alto do que um homem, nada se vê.
– Talvez seja aberto na parte de trás. Vamos.
Dão a volta em um grande quadrilátero, ou melhor, um grande retângulo,
mas o muro é igual em todos os lados.
– Este muro foi feito, há pouco tempo –diz João, observando-o–. Ele
está sem avarias, e no chão ainda há pedras calcárias.
– Não vejo nem mesmo o sepulcro… Ele era perto do bosque. Agora o
bosque ficou do lado de fora do muro e… e parece que é de todos. Aqui
todos vêm tirar a lenha.
Elias está perplexo.
77.5
Um homem, um lenhador, já velhinho, de baixa estatura, mas robusto,
que observa o grupo, pára de serrar um tronco abatido, e se aproxima do
grupo:
– A quem procurais?
– Queríamos entrar na casa, para rezarmos no sepulcro de Zacarias.
– Não há mais sepulcro. Não estais sabendo disso? Quem sois?
– Eu sou amigo do pastor Samuel. Ele…
– Não é preciso, Elias –diz Jesus.
Elias se cala.
– Ah! O Samuel!… Sim! Mas, desde que João, filho de Zacarias, foi
levado para a prisão, a casa não é mais sua. E é uma pena, porque ele fazia
com que todo o ganho dos seus haveres fosse dado aos pobres de Hebron.
Certa manhã, veio um homem da corte de Herodes, expulsou Joel, lacrou as
entradas, depois voltou com uns operários e começou a levantar o muro…
Naquele canto lá é que estava o sepulcro. Ele não o quis… e uma manhã o
encontramos todo destruído, e meio espalhado pelo chão… os pobres ossos
misturados… Nós os recolhemos como foi possível… Agora estão numa
única arca… E na casa do sacerdote Zacarias, aquele sujo tem as suas
amantes. Agora, ele está com uma atriz de Roma. Por isso levantou o muro.
Não quer que se veja… A casa do sacerdote, um lupanar! A casa do milagre
e do Precursor! Porque certamente ele o é… mesmo não sendo ele o
Messias. E quantos aborrecimentos tivemos por causa do Batista! Mas ele é
o nosso grande! Verdadeiramente grande! Desde o seu nascimento houve
milagre. Isabel, velha como um cardo seco, tornou-se fértil como as
macieiras no mês de Adar, primeiro milagre. Depois, veio uma prima dela,
que era uma santa, para servi-la e para soltar a língua do sacerdote. Ela se
chamava Maria. Lembro-me dela. Ainda que não a visse, a não ser
raramente. Como foi, eu não sei. Conta-se que, para fazer Isabel feliz, ela
teria deixado Zacarias pousar a boca muda sobre o seu ventre cheio, ou que
ela teria introduzido os seus dedos na boca dele. Não sei bem. O certo é que,
depois de nove meses de silêncio, Zacarias falou, louvando o Senhor e
dizendo que o Messias já estava na terra. Não deu mais explicações. Mas
minha mulher garante — ela estava presente naquele dia — que Zacarias
disse, louvando ao Senhor, que o seu filho iria à sua frente. Agora eu digo:
não é como as pessoas crêem. João é o Messias, que vai diante do Senhor,
como Abraão, de Deus. Eis. Não tenho razão?
– Tens razão, quanto ao que diz respeito ao espírito do Batista, que
sempre procede adiante de Deus. Mas não tens razão quanto ao que diz
respeito ao Messias.
– Então aquela, que se dizia mãe do Filho de Deus — e quem disse isto
foi Samuel — não é verdade que o era? Não nasceu ainda?
– Sim, ela o era. O Messias nasceu, precedido por aquele que, no
deserto, levantou sua voz, como disse o Profeta[125].
– És tu o primeiro que afirma isso. João, na última vez que Joel lhe
levou uma pele de ovelha, como fazia cada ano ao chegar o inverno, ao ser
interrogado a respeito do Messias, não disse: “Ele já está aí.” Quando o
disser…
– Homem, eu fui discípulo de João, e o ouvi dizer: “Eis o Cordeiro de
Deus” indicando… –diz João.
– Não, não. O Cordeiro é ele. Verdadeiro Cordeiro, que cresceu por si
mesmo, quase sem necessidade de pai e mãe. Assim que se tornou filho da
Lei, isolou-se nas cavernas dos montes que olham para o deserto e ali
cresceu, falando com Deus. Isabel e Zacarias morreram e ele não veio. Para
ele, pai e mãe era Deus. Não há santo maior do que ele. Perguntai a toda a
cidade de Hebron. Samuel o dizia, mas os belemitas devem ter tido razão. O
santo de Deus é João.
– Se alguém te dissesse: “O Messias sou Eu”, que dirias tu? –pergunta
Jesus.
– Eu o chamaria de “blasfemador”, e o afugentaria a pedradas.
– E se ele fizesse um milagre para provar que o era?
– Eu diria que ele era um “endemoninhado.” O Messias virá quando
João se revelar na sua verdadeira identidade. O próprio ódio de Herodes é a
prova. Ele, o astuto, sabe que João é o Messias.
– Mas João não nasceu em Belém.
– Quando ele for solto, depois de ter anunciado por si mesmo o seu
próximo advento, manifestar-se-á em Belém. Também Belém o espera.
Enquanto… oh! vai falar aos belemitas de algum outro Messias, se tens
coragem… e verás.
– Tendes uma sinagoga?
– Sim. Basta ir direto daqui a duzentos passos por esta rua. Não há erro.
Fica perto da arca dos despojos violados.
– Adeus. E que o Senhor te ilumine.
Eles se vão. Voltam à parte da frente.
77.6
No portão está uma mulher jovem e descaradamente vestida. É muito
bonita:
– Senhor, queres entrar na casa? Entra!
Jesus a fita, severo como um juiz, e não fala nada.
Quem fala é Judas, neste ponto apoiado por todos:
– Volta para dentro, despudorada! Não nos profanes com o teu hálito,
cadela faminta!
A mulher enrubesce vivamente e inclina a cabeça. Confusa, procura
desaparecer dali, escarnecida pelos moleques e pelos passantes.
– Quem será tão puro, para dizer: “Eu nunca desejei a maçã oferecida
por Eva”? –diz Jesus severo.
E acrescenta:
– Indicai-me um e sauda-lo-ei “santo”. Nenhum? E então, se não por
aversão, mas por fraqueza, vos sentis incapazes de aproximar-vos dela,
retirai-vos. Eu não obrigo os fracos a entrarem em luta desigual. Mulher, eu
queria entrar. Esta casa foi de um parente meu. Para Mim, ela é querida.
– Entra, Senhor, se não tens nojo de mim.
– Deixa a porta aberta. Para que o mundo possa ver, e não fique
murmurando…
Jesus passa sério, solene. A mulher se inclina, subjugada, e não ousa
mover-se. Mas as chalaças da multidão a ferem fundo. Ela foge correndo até
o fundo do jardim, enquanto Jesus vai até ao pé da escada, olha de soslaio as
portas entreabertas, mas não entra. Depois vai ao lugar onde era o sepulcro e
onde agora é uma espécie de pequeno templo pagão.
– Os ossos dos justos, ainda que estejam secos e dispersos, destilam um
bálsamo purificador, e espalham sementes de vida eterna. Paz aos mortos
que viveram no bem! Paz aos puros que dormem no Senhor! Paz aos que
sofreram, mas não quiseram conhecer os vícios! Paz aos verdadeiros
grandes do mundo e do Céu! Paz!
77.7
A mulher, costeando uma sebe que a protege dos olhares, alcança
Jesus:
– Senhor!
– Mulher!
– Qual o teu nome, Senhor?
– Jesus.
– Nunca ouvi este nome. Eu sou romana, atriz e bailarina. Em nada mais
eu sou perita, a não ser em lascívias. Que quer dizer o teu Nome? O meu é
Aglae e… e quer dizer: vício.
– O meu quer dizer: Salvador.
– Como é que salvas? E a quem?
– A quem tem vontade de salvação. Eu salvo ensinando os homens a ser
puros, a querer a dor, mas com honra, e o bem a todo custo.
Jesus lhe fala sem aspereza, mas tampouco sem virar-se para a mulher.
– Eu estou perdida.
– Eu sou Aquele que procura os perdidos.
– Eu estou morta.
– Eu sou Aquele que dá vida.
– Eu sou sujeira e mentira.
– Eu sou a Pureza e a Verdade.
– Tu és também a Bondade, Tu, que não me olhas, não me tocas e não me
pisas. Tens piedade de mim…
– Tem, tu, primeiro, piedade de ti. Da tua alma.
– O que é a alma?
– É o que do homem o faz um deus e não um animal. O vício, o pecado a
mata e, com a alma morta, o homem vira um animal repelente.
– Poderei ver-te ainda?
– Quem me procura, me encontra.
– Onde moras?
– Onde os corações precisam de médico e de remédio para se tornarem
honestos.
– Então… eu não te verei mais… Eu vivo num meio onde não se quer
saber de médico, nem de remédio, nem de honestidade.
– Nada impede que vás ao lugar em que Eu estiver. O meu Nome será
gritado pelas ruas, e chegará a ti. Adeus.
– Adeus, Senhor. Deixa que eu te chame “Jesus”. Oh! Não por
familiaridade!… Mas para que entre em mim um pouco de salvação. Eu sou
Aglae, lembra-te de mim.
– Sim. Adeus.
A mulher fica lá no fundo do jardim. Jesus sai muito sério. Olha para
todos. Vê perplexidade nos discípulos e zombaria nas pessoas de Hebron.
Um criado fecha o portão.
77.8
Jesus vai reto pela rua. Bate à porta da Sinagoga.
Aparece um velhinho hostil. Não dá a Jesus nem tempo para falar:
– A sinagoga está interditada, neste lugar santo, para aqueles que
negociam com as meretrizes. Fora!
Jesus se volta sem falar, e continua a caminhar pela rua. Seus discípulos
vão atrás. Até sairem de Hebron. Então começam a falar.
– Mas foste Tu que o quiseste, Mestre! –diz Judas–. Uma meretriz!
– Judas, na verdade te digo que ela vai te superar. E agora, tu, que me
queres censurar, que é que me dizes a respeito dos judeus? Nos lugares mais
santos da Judéia, fomos escarnecidos e expulsos… Mas é assim mesmo. Virá
o tempo em que Samaria e os Gentios adorarão o verdadeiro Deus, e o povo
do Senhor estará sujo de sangue e de um delito… de um delito em
comparação do qual aquele das meretrizes, que vendem sua carne e sua
alma, será pouca coisa. Não pude rezar sobre os ossos de meus primos e do
justo Samuel. Mas não importa. Repousai, ossos santos, jubilai, ó espíritos
que neles habitáveis. A primeira ressurreição está próxima. Depois virá o
dia em que sereis mostrados aos anjos, como sendo os dos servos do Senhor.
Jesus se cala e tudo termina.
[125] como disse o Profeta, isto é: Isaías 40,3.
78. Em Keriot. Morte do velho Saul.
14 de janeiro de 1945.
78.1
Tenho a impressão de que a parte mais íngreme, ou seja, o nó mais
apertado das montanhas da Judéia, fica entre Hebron e Juta. Mas eu poderia
também estar enganada e ser este um vale mais amplo e aberto que se abra
sobre largos horizontes, do qual sobressaem montanhas isoladas, e não mais
a cadeia. Talvez seja uma depressão entre duas cadeias, não sei. É a
primeira vez que a vejo, e disto pouco entendo. Culturas diversas em campos
não vastos, mas bem cultivados com cereais: cevada, centeio em quase todos
eles, e também belos vinhedos nas partes mais ensolaradas. Além disso,
mais ao alto há bonitos bosques de pinheiros, abetos e outras árvores das
selvas. Uma estrada… razoável, conduz a uma pequena vila.
– Este é um subúrbio de Keriot. Peço-te que venhas até a minha casa de
campo. Minha mãe te espera lá. Depois iremos para Keriot –diz Judas, que
nem sabe mais o que está dizendo, de tão agitado que está.
Não disse que agora estão juntos só Jesus com Judas, Simão e João. Os
pastores não estão. Talvez tenham ficado nos pastos de Hebron, ou tenham
voltado para Belém.
– Como quiseres, Judas. Mas podíamos parar também aqui para
conhecermos tua mãe.
– Oh! Não! É um casebre. Minha mãe só vem aqui no tempo da colheita.
Fora desse tempo, está em Keriot. Por acaso, não queres que a minha cidade
te veja? Não queres trazer a ela a tua luz?
– Claro que Eu quero, Judas. Mas tu já sabes que Eu não reparo na
humildade do lugar que me hospeda.
– Mas hoje és meu hóspede… e Judas sabe ser hospitaleiro.
Caminham ainda alguns metros entre casinhas esparsas pelo campo, e
mulheres e homens aparecem, chamados pelos meninos. É evidente que uma
certa curiosidade foi despertada. Judas deve ter feito algum anúncio de
propaganda.
– Eis a minha pobre casa. Perdoa a sua pobreza.
Mas a casa não é nenhum casebre: é um cubo com um só andar, mas
grande e bem cuidado, no meio de um pomar basto e viçoso. Uma estradinha
particular, toda muito limpa, vai da estrada até à casa.
– Permites de eu vá na frente, Mestre?
– Vai.
Judas parte.
– Mestre, Judas fez as coisas em grandes proporções –diz Simão–. Eu já
suspeitava disso. Mas agora tenho certeza. Tu dizes, Mestre, e dizes bem:
espírito, espírito… Mas ele… ele não quer saber disso. Não Te entenderá
nunca… ou então, muito tarde –corrige-se, para não causar dor a Jesus.
Jesus suspira e se cala.
78.2
Judas sai com uma mulher que tem cerca de cinqüenta anos. Ela é bem
alta, não como o filho, ao qual deu os seus olhos pretos e os cabelos
encaracolados. Mas os olhos dela são mansos, um tanto tristes, enquanto que
os de Judas são imperiosos e astutos.
– Eu te saúdo, ó Rei de Israel –diz ela, prostrando-se em uma
verdadeira saudação de súdita–. Concede à tua serva de hospedar-te.
– Paz a ti, mulher. E Deus esteja contigo e com o teu filho.
– Oh! Sim! Com o meu filho!
É mais um suspiro do que uma resposta.
– Levanta-te, mãe. Eu também tenho uma mãe, e não posso permitir que
tu me beijes os pés. Em nome de minha mãe, Eu te beijo, mulher. Ela é tua
irmã… no amor e no destino doloroso de mães de marcados.
– Que queres dizer, Messias? –pergunta Judas, meio inquieto.
Mas Jesus não responde. Está abraçando a mulher, a qual ele levantou
do chão benignamente, e a está beijando na face. Depois, segurando-a pela
mão, vai em direção à casa.
Entram em uma sala fresca, à qual fazem sombra umas leves cortinas
listradas. Ali estão preparadas bebidas e frutas frescas. Antes porém, a mãe
de Judas chama uma serva, e esta traz água e toalha. A patroa queria
descalçar Jesus e lavar-lhe os pés empoeirados. Mas Jesus se opõe:
– Não, mãe. A mãe é uma criatura muito santa, especialmente quando é
honesta e boa como tu és, para permitir que tome a atitude de uma escrava.
A mãe olha para Judas… um olhar estranho. Depois, sai dali.
Jesus refrescou-se. Quando está para pôr de novo as sandálias, a mulher
volta com um par de sandálias novas:
– Eis, nosso Messias. Creio tê-las feito bem… como Judas queria… Ele
me disse: “Um pouco mais compridas do que as minhas, e da mesma
largura.”
– Mas por que, Judas?
– Não me queres permitir que Te ofereça um presente? Não és o meu
Rei e meu Deus?
– Sim, Judas. Mas não devias dar tanto incômodo à tua mãe. Tu sabes
como Eu sou…
– Eu sei. És santo. Mas deves aparecer como Rei santo. Assim é que nos
devemos impor. No mundo, que em dez partes tem nove de tolos, é preciso
impor-se com a presença. Eu sei.
Jesus amarrou as sandálias novas, feitas de pele vermelha nas correias
perfuradas e na parte superior que sobe até o tornozelo. Muito mais bonitas
do que as suas sandálias simples de operário, e semelhantes às sandálias de
Judas, que são como uns sapatinhos, nos quais aparecem somente pedaços
dos pés.
– Também a veste, meu Rei. Eu a tinha preparado para o meu Judas…
Mas ele te doa. É de linho, fresco e novo. Permite a uma mãe te vestir…
como se fosse o seu filho.
Jesus torna a olhar para Judas… mas não rebate. Ele solta a bainha da
veste no pescoço, fazendo recair das costas a ampla túnica, permanecendo
com a tunicela de baixo. A mulher lhe coloca a bela veste nova. Oferece-lhe
um cinto, que é um galão muito bordado, do qual parte um cordão, que
termina em abundantes franjas. Jesus certamente se sentirá bem nas vestes
frescas e sem poeira. Mas não parece muito feliz. Enquanto isso, os outros,
por sua vez, se lavaram.
– Vem, Mestre. São do meu pobre pomar. Este é o hidromel que minha
mãe prepara. Tu, Simão, talvez prefiras este vinho branco. Toma. É da minha
vinha. E tu, João? O mesmo que o Mestre?
Judas exulta em poder servir nos belos cálices de prata, em mostrar que
é alguém que pode.
A mãe pouco fala. Olha… olha… olha para o seu Judas… e mais ainda
olha para Jesus… e quando Jesus, antes de comer, lhe oferece a mais bela
das frutas (parecem-me grandes damascos, são frutos amarelo-avermelhados
e não são maçãs) e lhe diz: “Primeiro, sempre a mãe”, seus olhos se enchem
de lágrimas.
– Mamãe, tudo mais já foi feito? –pergunta Judas.
– Sim, meu filho. Acho que fiz tudo bem. Mas eu cresci sempre aqui e
não sei… não sei quais os usos dos reis.
– Que usos, mulher? Que reis? Mas que fizeste, Judas?
– Mas não és Tu o prometido Rei de Israel? É hora de o mundo Te
saudar como tal, e isto deve acontecer pela primeira vez aqui, na minha
cidade, na minha casa. Eu Te venero como tal. Por amor a mim e por
respeito ao teu nome de Messias, de Cristo, de Rei, que os Profetas, por
ordem de Javé Te deram, não me desmintas.
78.3
– Mulher, amigos. Eu vos peço. Preciso falar com Judas. Devo dar-lhe
ordens precisas.
A mãe e os discípulos se retiram.
– Judas, que fizeste? Tão pouco me entendestes até aqui? Por que
rebaixar-me a ponto de fazer de Mim apenas um poderoso da terra, aliás, um
que luta para ser poderoso? E não compreendes que isso é uma ofensa à
minha missão, ou melhor, um obstáculo? Sim. Não o negues. Obstáculo.
Israel está sujeito a Roma. Tu sabes o que acontece quando quer levantar-se
contra Roma alguém que parecia chefiar o povo e que se tornou suspeito de
criar uma guerra de libertação. Tu ouviste, e ouviste nestes dias mesmo,
como se usou de crueldade para com um Pequenino, só por se supor que ele
seria o futuro rei, segundo o mundo. E tu! E tu! Oh! Judas! Mas que esperas
de alguma minha soberania carnal? Que esperas? Eu te dei tempo para
pensares e decidires. Eu te falei bem claro, desde a primeira vez. Também te
rejeitei, porque Eu sabia… porque Eu sei, sim, porque Eu sei, Eu leio, Eu
vejo o que há em ti. Por que me queres seguir, se não queres ser como Eu
quero? Vai-te embora, Judas. Não faças mal a ti mesmo, nem a Mim… Vai. É
melhor para ti. Não és um operário apto para esta obra… Ela é muito alta
para ti. Em ti há soberba, há cobiça em todos os três ramos; há
prepotência… até tua mãe precisa te temer…; há tendência para a mentira…
Não. Não é assim que deve ser o meu seguidor. Judas, Eu não te odeio. Eu
não te amaldiçôo. Somente te digo, e com dor de quem vê que não pode
mudar alguém que ama, somente te digo: vai pela tua estrada, abre caminho
no mundo, posto que é o que tu queres, mas não fiques Comigo. O meu
caminho!… O meu palácio real! Oh! Que angústia há neles! Sabes onde é
que serei Rei? Quando serei proclamado Rei? Quando Eu for levantado no
madeiro infame, e por púrpura terei o meu Sangue, por coroa uma grinalda
de espinhos, por insígnia um cartaz de escárnio, por trombetas, címbalos,
órgãos e cítaras, para saudar o Rei proclamado, Eu ouvirei as blasfêmias de
um povo inteiro: do meu povo. E sabes por obra de quem, tudo isso? De um
que não me terá entendido. Que nada terá entendido. Coração de bronze
vazio, cuja soberba, sensualidade, e avareza terão destilado os seus
humores, e estes terão gerado um nó de serpentes que servirão como
correntes para Mim e… como maldição para ele. Os outros não sabem tão
claramente a minha sorte. E, te peço, não digas qual é. Que isto fique entre
Mim e ti. Afinal… é uma censura… e tu te calarás, para não teres que dizer:
“Eu fui censurado…” Entendeste, Judas?
78.4
Judas está roxo, de tão vermelho. Está em pé, diante de Jesus. Está
confuso, de cabeça baixa… Depois, se lança de joelhos, e chora, com a
cabeça sobre os joelhos de Jesus:
– Eu te amo, Mestre. Não me rejeites. Sim. Eu sou soberbo. Sou um tolo.
Mas, não me mandes embora. Não, Mestre. Será esta a última vez que eu
falho. Tu tens razão. Eu não refleti. Mas também neste erro, há amor. Eu
queria prestar-te tanta honra… e que os outros também te prestassem…
porque eu te amo. Há três dias que Tu disseste: “Quando errais sem malícia,
por ignorância, não é erro, mas um julgamento imperfeito, como o dos
meninos, e Eu estou aqui para fazer de vós adultos.” Eis, Mestre, eu estou
aqui sobre os teus joelhos… me disseste que serias um pai para mim…
sobre os teus joelhos como aqueles de meu pai, e te peço perdão, e te peço
que faças de mim um “adulto” e um adulto santo… Não me mandes embora,
Jesus, Jesus, Jesus… Nem tudo em mim é maldade. Tu estás vendo, por Ti,
eu deixei tudo e vim. Tu és mais do que as honras e as vitórias que eu
obtinha, quando a serviço de outros. Tu, sim, Tu és o amor do pobre, infeliz
Judas, que queria dar-te somente alegria e que, ao contrário, Te está dando
dor…
– Basta, Judas. Mais uma vez, Eu te perdôo…
Jesus parece estar fadigado…
– Eu te perdôo, esperando… esperando que, daqui para diante, me
compreendas.
– Sim, Mestre. Sim. Mas agora… agora… não me humilhes sob o peso
de um desmentido, que faria de mim um alvo de zombaria. Toda Keriot sabe
que eu viria com o Descendente de Davi, o Rei de Israel… e esta minha
cidade se preparou para receber-te… Eu pensei que estivesse agindo bem…
para mostrar-te e como fazer para sermos temidos e obedecidos… e fazer
que vejam isto também o João, o Simão e, através deles, os outros que Te
amam, mas Te tratam como um seu igual… Minha mãe também seria
escarnecida como mãe de um filho mentiroso e louco. Por ela, meu Senhor…
e Te juro que eu…
– Não jures a Mim. Jura a ti mesmo, se podes, que não pecarás mais
neste ponto. Por tua mãe e pelos teus concidadãos, não lhes farei a desfeita
de ir-me embora sem parar por aqui. Levanta-te.
– E que é que vais dizer aos outros?
– A verdade…
– Não!
– A verdade: que te dei ordens para hoje. Há sempre um modo de se
dizer a verdade, com caridade. Vamos. Chama tua mãe e os outros.
Jesus está um tanto severo. Nem volta a sorrir, senão quando Judas volta
com a mãe e os discípulos. A mulher perscruta a Jesus. Mas o vê benigno. Se
tranqüiliza. Tenho a impressão de ser ela uma alma que sofre.
– Vamos a Keriot? Eu já descansei e te agradeço, ó mãe, por toda a tua
bondade. O Céu te recompense e te dê, pela caridade que tiveste para
Comigo, descanso e alegria ao esposo que ainda choras.
A mulher procura beijar-lhe a mão, mas Jesus, põe-lhe a mão sobre a
cabeça com uma carícia, e não permite.
– O carro está pronto, Mestre. Vem.
Lá fora, de fato, está chegando um carro puxado por bois, um carro
bonito e cômodo, sobre o qual foram colocados alguns travesseiros para
servirem de assento, e, no alto, está armado um toldo de estofo vermelho.
– Sobe, Mestre.
– Primeiro a mãe.
A mulher sobe e depois Jesus e os outros.
– Aqui, Mestre. (Judas não o chama mais rei).
Jesus se assenta na frente, e ao seu lado Judas. Atrás, a mulher e os
discípulos. O condutor aguilhoa os bois, e os incita, caminhando ao lado
deles.
78.5
O trajeto é curto. Uns quatrocentos metros, ou pouco mais, e em
seguida eis que se vêem as primeiras casas de Keriot, que me parece uma
discreta cidadezinha. Um menininho olha, na rua cheia de sol, e depois parte
como um foguete. Quando o carro alcança as primeiras casas, os notáveis do
lugar e o povo lá estão para recebê-lo com bandeiras e ramos, ramos e
bandeiras pelas ruas, de casa em casa. Gritos de júbilo, e reverências até o
chão. Jesus, sentado no alto do seu oscilante trono, não pode deixar por
menos: saúda e abençoa a todos.
O carro prossegue e depois vira, além de um praça, em uma rua, pára
diante de uma casa, cujo portão já está escancarado, e nele estão duas ou três
mulheres. Param. Descem.
– A minha casa é tua, Mestre.
– Paz a ela, Judas. Paz e santidade.
Entram. Depois do vestíbulo, há uma grande sala com sofás baixos e
móveis entalhados. Com Jesus e os outros, entram os notáveis do lugar.
Reverências, curiosidade, uma recepção pomposa.
Um velho imponente pronuncia um discurso:
– Grande é a ventura da terra de Keriot por ter-te em seu seio, ó Senhor.
Grande ventura! Dia feliz! Ventura por ter-te, e ventura por ver que um filho
seu é teu amigo e ajudante. Bendito seja ele, que te conheceu antes de
qualquer outro! E Tu, sê cem vezes bendito, por te teres manifestado, Tu, o
Esperado por gerações e gerações. Fala, Senhor e Rei. Os nossos corações
esperam a tua palavra, como a terra sedenta do ardente verão espera a
primeira chuva mansa de setembro.
– Obrigado, seja quem fores. Obrigado. E obrigado a estes cidadãos que
ao Verbo do Pai, ao Pai do qual Eu sou o Verbo, abriram os seus corações.
Para que saibais que não é ao Filho do homem, que vos fala, mas ao Senhor
Altíssimo é que vão rendidas graças e honra por este tempo de paz com que
Ele reata sua quebrantada paternidade com os filhos do homem. Louvemos o
Senhor verdadeiro, o Deus de Abraão, que teve piedade e amor para com o
seu povo, e lhe concede o Redentor prometido. Não a Jesus, servo da eterna
Vontade, mas glória e louvor a esta Vontade de amor.
– Tu falas como um santo… Eu sou o sinagogo. Hoje não é sábado. Mas
vem até a minha casa para nos explicar a Lei, Tu, sobre o qual, mais do que
o óleo da consagração dos reis, foi derramada a unção da Sabedoria.
– Eu irei.
– O meu Senhor talvez esteja cansado.
– Não, Judas. Nunca me canso de falar de Deus e nunca desejoso de
decepcionar os corações.
– Então, vem –insiste o sinagogo–. Toda Keriot lá fora, está Te
esperando.
– Vamos.
Saem. Jesus está entre Judas e o arqui-sinagogo. Ao seu redor vão os
notáveis e uma grande multidão. Jesus vai passando e abençoando.
78.6
A sinagoga fica na praça. Entram. Jesus vai ao lugar de quem ensina.
Começa a falar, todo cândido na esplêndida veste, o rosto inspirado e os
braços estendidos, no seu gesto habitual.
– Povo de Keriot, o Verbo de Deus fala. Ouvi. Este que vos fala não é
outro, senão a Palavra de Deus. A sua soberania vem do Pai, e ao Pai
voltará, após ter evangelizado Israel. Abram-se os corações e as mentes à
Verdade, a fim de que o erro não se aninhe e não nasça confusão.
Isaías disse[126]: “Toda rapina feita com tumulto e as vestes encharcadas
de sangue serão queimadas pelo fogo. Eis que nasceu-nos um pequenino, foi-
nos dado um Filho. Em seus ombros Ele tem o principado. Eis o seu nome:
Admirável, Conselheiro, Deus Forte, Pai do século futuro, Príncipe da Paz.”
Este é o meu Nome. Deixemos aos Césares e aos Tetrarcas as suas presas.
Eu farei rapina. Mas não rapina que mereça a punição do fogo. Pelo
contrário, Eu arrancarei do fogo de Satanás presas e mais presas, para levá-
las ao Reino da paz, do qual Eu sou Príncipe, e ao século futuro: o tempo
eterno, do qual sou Pai.
– Deus, diz ainda Davi[127], de cuja estirpe Eu provenho, como estava
predito por aqueles que viram, por sua santidade agradável a Deus e
escolhida para falar de Deus, “escolheu somente um… meu filho… mas a
obra é grandiosa, por que se trata, não de preparar a casa para um homem,
mas para Deus.” Assim é. Deus, o Rei dos reis, escolheu somente um: o seu
Filho, para construir, nos corações, a sua casa. E já preparou o material. Oh!
Quanto ouro de caridade! E cobre, e prata, e ferro, e madeiras raras, e
pedras preciosas! Todos estão acumulados em seu Verbo, e Ele os usa para
construir em vós a morada de Deus. Mas se o homem não ajuda ao Senhor,
inutilmente o Senhor quererá construir a sua casa. Ao ouro se responde com
o ouro. À prata com a prata, ao cobre com o cobre, ao ferro com o ferro. Ou
seja, dá-se amor por amor, continência para servir a Pureza, constância para
ser fiéis, força para não se dobrar. Em seguida levar hoje a pedra, amanhã a
madeira: hoje o sacrifício, amanhã a obra, e construir. Sempre construir o
templo de Deus em vós.
O Mestre, o Messias, o Rei do eterno Israel, do eterno povo de Deus,
vos chama. Mas quer que estejais limpos para a obra. Abaixo as soberbas: a
Deus o louvor. Abaixo os pensamentos humanos: de Deus é o Reino.
Humildes, dizei Comigo: “Todas as coisas são tuas, ó Pai. Teu é tudo o que é
bom. Ensina-nos a conhecer-Te e a servir-Te em verdade.” Dizei: “Quem
sou eu?” E reconhecei que sereis alguma coisa, somente quando fordes
moradas purificadas, às quais Deus pode descer e nelas descansar.
Sendo todos peregrinos e estrangeiros nesta terra, sabei reunir-vos e ir
rumo ao Reino prometido. O caminho são os mandamentos, cumpridos não
por temor do castigo, mas por amor a Ti, ó Pai Santo. Arca, um coração
perfeito, no qual há o nutritivo maná da sabedoria e onde floresce a vara da
vontade pura. E, para que a casa seja luminosa, vinde à Luz do mundo. Eu
vo-la trago. Trago-vos a Luz. Nada mais do que isto. Não possuo riquezas e
não prometo honras que são da terra. Mas possuo todas as riquezas
sobrenaturais do meu Pai, e aos que seguiram a Deus em amor e caridade, Eu
prometo a honra eterna do Céu.
A paz esteja convosco.
78.7
As pessoas, que escutaram atentas, cochicham um pouco inquietas.
Jesus fala com o sinagogo. Unem-se ao grupo também outras pessoas, talvez
os notáveis.
– Mestre… mas não és Tu o Rei de Israel? Haviam-nos dito…
– Eu o sou.
– Mas Tu disseste…
– Que não possuo nem prometo as riquezas do mundo. Não posso dizer
senão a verdade. Assim é. Eu sei o vosso pensamento. Mas o erro vem de
um erro de interpretação e de um grande respeito vosso para com o
Altíssimo. Foi-vos dito: “Vem o Messias”, e vós pensastes, como muitos em
Israel, que Messias e rei fossem a mesma coisa. Levantai mais alto o
espírito. Observai este belo céu de verão. Parece-vos que termina ali, o seu
limite, ali onde o ar parece uma abóbada de safira? Não. Além estão os
estratos mais puros, os azuis mais límpidos até àquele inimaginável do
Paraíso, onde o Messias conduzirá os justos que morreram no Senhor. A
mesma diferença existe entre a realeza messiânica, em que acreditam os
homens, e aquela que é real: toda divina.
– Mas, poderemos nós, pobres homens, levantar o espírito até onde Tu
dizes?
– Basta que o queirais. E, se o quiserdes, eis que Eu vos ajudarei.
– Como Te devemos chamar, se não és rei?
– Mestre, Jesus, como quiserdes. Mestre Eu sou, e sou Jesus, o
Salvador.
78.8
Um velho diz:
– Ouve, Senhor. Há tempo, há muito tempo, quando saiu o edito, chegou
até aqui a notícia de que o Salvador havia nascido em Belém… e eu fui até
lá em companhia de outros… Vi um pequeno Menino, em tudo igual aos
outros… Mas eu o adorei, por fé. Depois soube que havia um homem santo,
que se chamava João. Qual é o Messias verdadeiro?
– Aquele que tu adoraste. O outro é o seu Precursor. Grande santo aos
olhos do Altíssimo, mas não é o Messias.
– Eras Tu?
– Era Eu. E que foi que viste em torno à minha pessoa recém-nascida?
– Pobreza e limpeza, honestidade e pureza. Um operário gentil e sério
chamado José, operário, mas da estirpe de Davi. Uma jovem mãe, loira e
gentil, chamada Maria, diante de cuja graça empalidecem as rosas mais
belas de Engadi e parecem disformes os lírios dos canteiros reais. E um
Menino de grandes olhos da cor do céu, cujos cabelos pareciam fios de ouro
pálido… E não vi mais nada… E ouço ainda a voz da mãe me dizer: “Pelo
meu Filho eu te digo: seja o Senhor contigo até o encontro eterno, e a sua
Graça venha ao teu encontro em tua estrada.” Estou com oitenta e quatro
anos… a estrada está chegando ao fim… Não esperava mais encontrar a
Graça de Deus. Mas, ao invés, Te encontrei… e agora não desejo mais ver
outra luz que não seja a tua. Sim. Eu Te vejo como és, sob esta veste de
piedade que é a carne que assumiste. Eu Te vejo! Ouvi a voz deste que ao
morrer vê a Luz de Deus!
As pessoas se aglomeram ao redor do idoso inspirado, que está no
grupo de Jesus e que, não mais sustentando-se em sua bengala, levanta os
braços trêmulos, a cabeça toda encanecida, com uma barba comprida e
repartida, uma verdadeira cabeça de patriarca ou profeta.
– Eu vejo Este: O Eleito, o Supremo, o Perfeito, descido aqui por força
do Amor, subir de volta à destra do Pai, e tornar-se Um com Ele. Mas eis!
Não Voz e Essência incorpórea, como Moisés viu o Altíssimo, e como o
Gênesis diz que os nossos Primeiros o conhecessem e com Ele falassem, no
vento da tarde. Como verdadeira Carne o vejo subir ao Eterno. Carne
fulgurante! Carne gloriosa! Oh! pompa de Carne divina! Oh! Beleza do
Homem-Deus! É o Rei! Sim. É o Rei. Não de Israel: do mundo. A Ele se
inclinam todas as realezas da terra e todos os cetros e coroas se anulam no
fulgor do seu cetro e de suas jóias. Uma coroa, uma coroa Ele tem em sua
fronte. Um cetro, um cetro Ele tem em sua mão. Sobre o peito tem um
racional: pérolas e rubis de um esplendor nunca visto estão nele. Chamas
dele saem como de uma fornalha sublime. Em seus pulsos há dois rubis, e
uma fivela de rubis está sobre os seus santos pés. Luz, luz dos rubis! Olhai, ó
povos, o Rei eterno! Eu Te vejo! Eu Te vejo! Eu subo Contigo… Ah! Senhor!
Nosso Redentor! A luz cresce no meu olho da alma… O Rei está adornado
com o seu próprio Sangue! A coroa é uma coroa de sangrentos espinhos, o
cetro é uma cruz… Eis o homem! Ei-lo! És Tu!… Senhor, pela tua imolação,
tem piedade do teu servo. Jesus, à tua piedade, entrego o meu espírito.
O velho, até então em pé, tornado jovem no fogo do profetizar, prostra-
se de repente, e cairia, se Jesus prontamente não o amparasse contra o seu
peito.
– Saul!
– Saul está morrendo!
– Socorro!
– Correi.
– Paz ao justo que morre –diz Jesus, que lentamente se ajoelhou para
poder sustentar melhor o velho cada vez mais pesado.
Faz-se silêncio. Depois, Jesus o deposita completamente no chão. E se
endireita.
– Paz ao seu espírito. Morreu vendo a Luz. Na expectativa, que será
breve, ele já verá a face de Deus, e será feliz. Não há morte, ou seja,
separação da vida, para aqueles que morrem no Senhor.
78.9
As pessoas, depois de algum tempo, afastam-se comentando. Ficam os
maiorais, Jesus, os seus discípulos e o sinagogo.
– Ele profetizou, Senhor?
– Os seus olhos viram a Verdade. Vamos.
Saem.
– Mestre, Saul morreu investido pelo Espírito de Deus. Nós, que o
tocamos, estamos puros, ou impuros?
– Impuros.
– E Tu?
– Eu, como os outros. Eu não mudo a Lei. A Lei é lei, e o israelita a
observa. Nós ficamos impuros[128]. Entre o terceiro dia, e o sétimo nos
purificaremos. Alé lá, estamos impuros. Judas, Eu não volto passando por
tua mãe. Não levo impureza na sua casa. Faz que ela seja avisada por alguém
que o possa fazer. Paz a esta cidade. Vamos.
Nada mais vejo.
[126] Isaías disse, em: Isaías 9,4-5.
[127] diz ainda David, em: 1 Crónicas 29,1.
[128] Nós ficamos impuros, p or ter tocado um morto, como vem estabelecido em: Números 19,11-22, que comp reende as
regras p ara p urificar-se. Ainda a p rop ósito dos contactos com um morto, são contemp lados casos esp ecíficos em: Levítico
21,1-4; 22,4-7; Números 6,6-12; 9,6-12; 31,19-20; Ezequiel 44,25-27; Ageu 2,13. A p resente nota deve valer p or todas as
vezes que se ap resenta um caso similar de “imp ureza legal”. – No fim de cada volume o leitor encontrará o índice temático p ara
consultar as notas p rincip ais e de ligação, que são distribuídas nos dez volumes da obra.
Primeriro ano
da Vida pública de Jesus.
(continuação e fim)
79. Indo ao encontro dos pastores. As joias de
Aglaé
e uma parábola sobre a sua conversão.
15 de janeiro de 1945.
79.1 Jesus caminha com os discípulos por uma estrada ao longo da
torrente. Ao longo, é um modo de dizer. A torrente fica lá em baixo; no alto,
ao longo da costa, é que fica a estrada cheia de curvas, como costuma ser
em lugares montanhosos.
João está vermelho como um tomate, pois está carregando, como um
estivador, um grande saco bem cheio de viagem. Judas leva o de Jesus, e o
seu. Simão leva apenas a própria bagagem e os mantos. Jesus recebeu de
volta a veste e as sandálias. A mãe de Judas deve tê-la mandado lavar,
porque não está mais amarrotada.
– Quantas frutas! Que belos vinhedos sobre aquelas colinas! –diz João,
que não perde o bom humor apesar do calor e do cansaço–. Mestre este é o
rio em cujas margens nossos antepassados colheram[1] os cachos
milagrosos?
– Não. É outro, mais ao sul. Mas toda a região era um lugar abençoado
por frutos em abundância.
– Agora não é mais, embora continue bonita.
– Muitas guerras devastaram este chão. Aqui se formou Israel… Este
chão para formar-se teve que ser fecundado com o sangue seu e dos
inimigos.
– Onde iremos encontrar os pastores?
– A cinco milhas do Monte Hebron, às margens daquele rio sobre o
qual vós indagastes.
– Atrás daquela colina, então?
– Atrás da colina.
– Está muito quente. O verão… Aonde iremos depois, Mestre?
– A um lugar mais quente ainda. Mas Eu vos peço que venhais.
Viajaremos de noite. As estrelas são tão claras que não há escuridão. Eu
quero mostrar-vos um lugar…
– Uma cidade?
– Não… Um lugar… que vos fará entender o Mestre… talvez melhor
do que suas palavras.
79.2 – Nós perdemos muitos dias com aquele estúpido acidente. Estragou
tudo…e minha mãe, que tanto havia trabalhado, ficou desiludida. Além
disso, não sei por que Tu quiseste segregar-te até à purificação.
– Judas, por que chamas estúpido um fato que foi uma graça para um
verdadeiro fiel? Não quererias tu, para ti, tal morte? Ele esperou o Messias
a vida toda; já velho, foi levado, por caminhos difíceis, até adorá-Lo, ao
ouvir: “Ei-Lo.” Conservou no coração, por trinta anos, a palavra de minha
Mãe. O amor e a fé o investiram com seus ardores, naquela última hora,
reservada por Deus. O seu coração rompeu-se de alegria, incinerado pelo
fogo de Deus, como um holocausto agradável. Qual sorte melhor do que
esta? Ele estragou a festa que tu tinhas preparado? Vê nisto uma resposta de
Deus. Que não se misture o que é do homem com o que é de Deus… Tua
mãe ainda me terá. Aquele velho nunca mais me teria tido. Toda Keriot
pode vir ao Cristo, o velho não tinha mais forças para fazê-lo. Eu fiquei
feliz por ter acolhido sobre meu coração o velho pai moribundo, e ter
recomendado o seu espírito. Além do mais… Por que dar escândalo,
mostrando desprezo pela Lei? Para dizer: “Segui-me”, precisa caminhar.
Para levar ao caminho santo, precisa fazer o mesmo caminho. Como Eu
poderia dizer: “Sede fiéis”, sendo Eu infiel?
– Creio ser este erro a causa da nossa decadência. Os rabis e os fariseus
abatem o povo sob os preceitos, e depois… depois fazem como aquele que
profanou a casa de João Batista, fazendo dela um lugar de vício –observa
Simão.
– É um dos de Herodes… –rebate Iscariotes.
– Sim, Judas. Mas as mesmas culpas estão também nas castas que se
dizem santas. Que dizes disto, Mestre? –diz Simão.
– Digo que, só se houver um punhado de verdadeiro fermento, e de
verdadeiro incenso em Israel, é que se formará o pão, e se perfumará o altar.
– Que queres dizer?
– Quero dizer que, se houver quem venha à Verdade com um coração
reto, a Verdade se espalhará, como fermento, na massa da farinha e como
incenso por todo Israel.
– Que foi que te disse aquela mulher? –pergunta Judas.
Jesus não responde. Vira-se para João:
– Está muito pesado, e estás cansado. Dá-me a tua carga.
– Não, Jesus. Estou acostumado com os pesos e, além disso… torna-me
leve o pensamento da alegria de Isaque.
79.3 Contornaram a colina. À sombra do bosque, na outra vertente, estão
as ovelhas de Elias. Os pastores, sentados à sombra, estão vigiando-as. Ao
verem Jesus correm.
– A paz esteja convosco. Chegaste?
– Nós estávamos preocupados por pelo Teu atraso… na dúvida se era
melhor virmos ao Teu encontro, ou obedecer a um outro, decidimos vir até
aqui… obedecendo assim a Ti e ao nosso amor, ao mesmo tempo. Devias
estar aqui há muitos dias.
– Tivemos que parar….
– Aconteceu alguma coisa?
– Não, amigo. Foi a morte de um fiel sobre o meu peito. Nada mais.
– Que querias que acontecesse, pastor? Quando as coisas estão bem
preparadas… Certamente é necessário saber prepará-las, e preparar os
corações para recebê-las. A minha cidade deu ao Cristo toda honra. Não é
verdade, Mestre?
– É verdade. Isaque, passamos, na volta, por Sara. Também a cidade de
Juta, soube compreender a essência da minha doutrina, e amar, com um
amor prático, desinteressado e santo, sem outra preparação exceto sua
simples bondade e a verdade das palavras de Isaque. Mandou-te roupas e
alimento, Isaque, e, aos óbolos que ficaram sobre tua enxerga, todos
quiseram acrescentar alguma coisa para ti, que voltas ao mundo, privado de
tudo. Toma. Eu nunca carrego dinheiro. Mas este Eu peguei, porque está
purificado pela caridade.
– Não, Mestre, guarda-o Tu. Eu… estou acostumado a viver sem ele.
– Agora deverás ir aos lugares aos quais te mandarei. Tu precisarás
dele. O operário tem direito ao salário… mesmo se operário das almas…
porque ainda temos um corpo para alimentar, como um burrinho que ajuda
o seu dono. Não é muito. Mas tu saberás fazer uso dele… João, naquele
saco há roupas e sandálias. Joaquim as obteve com os seus familiares.
Talvez sejam grandes… mas é um presente dado com tanto amor!
Isaque pega o saco, e se afasta dali, indo vestir-se atrás de uma moita.
Ele ainda estava descalço e vestido com sua extravagante toga, feita de uma
coberta.
79.4 – Mestre –diz Elias–. Aquela mulher… que está na casa de João…
Após três dias que Tu tinhas ido embora, e nós estávamos apascentando as
ovelhas nos prados do monte Hebron (porque os prados são de todos, e de
lá não nos podem expulsar) ela nos mandou uma serva com esta bolsa e
dizendo que queria falar conosco… Não sei se fiz bem… mas desta
primeira vez, eu devolvi a bolsa, e lhe disse: “Não tenho nada para ouvir…”
Depois, ela tornou a dizer: “Vem, em nome de Jesus”, e eu fui… Ela
esperava que não estivesse lá o seu marido, enfim, o homem que a tem!
Muitas coisas ela queria saber! Mas eu… falei pouco. Por prudência. Ela é
uma meretriz. Eu temia que fôsse uma cilada para Ti. Perguntou-me quem
és, onde estás, que é que fazes, se és um senhor… E eu disse: “É Jesus de
Nazaré, está em toda parte, porque é um mestre, e vai ensinando por toda a
Palestina”; eu disse que és um homem pobre, simples, um operário que a
Sabedoria tornou sábio… E nada mais.
– Fizeste bem –diz Jesus.
E, ao mesmo tempo, Judas exclama:
– Fizeste mal! Por que não disseste que Ele é o Messias, que é o Rei do
mundo? Esmagar a soberba romana sob o fulgor de Deus!
– Ela não me teria entendido… Além disso, podia eu estar certo de que
ela estava sendo sincera? Tu mesmo o disseste, quando a viste, o que ela é.
Podia eu jogar as coisas santas (tudo o que é de Jesus é santo) em sua boca?
Podia eu pôr Jesus em perigo, dando tantas notícias? Se muitos Lhe fazem
mal, não será nunca por meu intermédio.
– Vamos nós, João, dizer a ela quem é o Mestre, e explicar-lhe a
verdade santa.
– Eu não. A não ser que Jesus me ordene.
– Estás com medo? Que queres que te faça? Tens nojo? O Mestre não
teve!
– Nem medo e nem nojo. Tenho pena. Mas acho que, se Jesus quisesse,
teria parado para instruí-la. Se não o fez… não é necessário que nós o
façamos.
– Não havia nela então sinais de conversão… Agora… 79.5Elias, deixa-
me ver a bolsa. E Judas, que está sentado na grama, vira sobre a ponta de
seu manto o conteúdo da bolsa. Anéis, pulseiras, braceletes, um colar
rolam: amarelo ouro sobre o amarelo pálido da veste de Judas.
– Tudo são joias!… Que faremos com elas?
– Podem ser vendidas –diz Simão.
– São coisas que trazem aborrecimentos –diz Judas, embora admirando-
as.
– Eu também lhe disse isso, ao pegá-las; disse ainda: “O teu patrão vai
te bater.” Ela me respondeu: “Não são dele. São minhas, e delas faço o que
eu quero delas. Eu sei que é ouro do pecado… mas se tornará bom, se for
usado por quem é pobre e santo. Para que se lembre de mim”, e pôs-se a
chorar.
– Vai Tu, Mestre.
– Não.
– Manda o Simão.
– Não.
– Então vou eu.
– Não.
Os “não” de Jesus são secos e imperativos.
– Fiz mal, Mestre, em falar com ela e em pegar aquele ouro? –pergunta
Elias, vendo que Jesus está sério.
– Não fizeste mal. Mas nada mais há a fazer.
79.6 – Mas talvez aquela mulher queira redimir-se, e tenha necessidade
de ser instruída… –objeta ainda Judas.
– Nela já existem faíscas suficientes, aptas a levantar um incêndio que
pode queimar este vício, tornando-se uma alma novamente virgem, pelo
arrependimento. Há pouco, Eu vos falei do fermento, que se espalha pela
farinha, e a transforma em um santo pão. Ouvi uma breve parábola: Aquela
mulher é a farinha. Uma farinha na qual o maligno misturou os seus pós
infernais. Eu sou o fermento, ou seja, a minha Palavra é o fermento. Mas, se
houver folhelho demais na farinha, ou se houver pedras e areia, ou até cinza
na farinha, pode-se fazer o pão, mesmo com o fermento bom? Não se pode.
É preciso que, pacientemente, se tire da farinha o folhelho, as cinzas, as
pedras e a areia. A Misericórdia passa e oferece o crivo… O primeiro:
aquele feito de breves verdades fundamentais, necessárias para alguém que
está na rede da completa ignorância, do vício, do paganismo. Se a alma o
acolhe, começa a primeira purificação. A segunda acontece com o crivo da
própria alma, que compara o seu ser com o Ser que se lhe revelou. Fica
horrorizada. E inicia a sua obra. Por uma operação cada vez mais
minuciosa, depois das pedras, depois da areia, depois da cinza, chega a tirar
até aquilo que já é farinha, mas com grãozinhos ainda pesados demais, para
darem um ótimo pão. Agora ei-la toda pronta. Volta, então a Misericórdia, e
se introduz naquela farinha preparada — esta também é preparação,
Judas — transformando-a em pão. Mas é uma operação longa e de
“vontade” da alma. Aquela mulher… aquela mulher já tem em si o mínimo
que era justo dar-lhe e que lhe pode servir para terminar o seu trabalho.
Deixemos que o termine, se o quiser fazer, sem perturbá-la. Tudo serve para
perturbar uma alma que se trabalha: a curiosidade, os zelos imprudentes, as
intransigências como a excessiva piedade.
79.7 – Então não vamos?
– Não. E, para que nenhum entre vós tenha a tentação de fazê-lo,
partamos daqui já. No bosque há sombra. Pararemos nas faldas do vale do
Terebinto. E lá nos separaremos. Elias voltará para suas pastagens com
Levi. José virá Comigo até o vau de Jericó. Depois… nos reuniremos de
novo. Tu, Isaque, continua o que estavas fazendo em Juta, indo daqui,
passando por Arimateia e Lida, até chegar em Doco. Lá nos encontraremos
novamente. É preciso preparar a Judeia. E tu sabes como fazê-lo. É como
fizeste em Juta.
– E nós?
– Vós? Vireis, Eu disse, para verdes a minha preparação. Eu também
me preparei para a missão.
– Terás ido procurar algum rabi?
– Não.
– Foste a João?
– Dele Eu só recebi o batismo.
– E então?
– Belém falou com as pedras e os corações. Também ali aonde Eu te
levo, Judas, as pedras e um coração, o meu, falarão e te darão resposta.
79.8 Elias, que levou leite e pão preto, diz:
– Eu os procurei enquanto esperava, e Isaque me ajudou a procurá-los e
persuadir aquelas pessoas de Hebron… Mas elas não creem, não juram, não
querem senão João. É o “santo” deles, e não querem ninguém mais senão
ele.
– É um pecado comum a muitos lugares e a muitos crentes, presentes e
futuros. Olham o operário, e não o patrão que o enviou. Fazem perguntas ao
operário, sem nem mesmo dizer-lhe: “Diz isto ao teu patrão.” Eles se
esquecem de que o operário existe porque o patrão existe, e que é o patrão
que instrui o operário e o torna apto ao trabalho. Esquecem-se de que o
operário pode interceder, mas só um pode conceder: o patrão. Isto é, Deus e
o seu Verbo com Ele. Não importa. O Verbo tem dor, mas não rancor.
Vamos.
A visão termina.
[1] colheram, como se narra em: Números 13, 23-24.
80. Sobre o monte do jejum
e no penedo da tentação.
17 de janeiro de 1945.
80.1 Uma aurora maravilhosa, em um lugar selvagem. Uma aurora, vista
do alto da encosta de um monte. O dia está começando. No céu ainda
brilham as últimas estrelas e o arco fino da lua minguante, que persiste,
como uma vírgula de prata, sobre o veludo ainda azul escuro do céu.
O monte parece que é sozinho, não ligado a nenhuma cordilheira. Mas
é um verdadeiro monte, não uma colina. O cume fica bem mais acima, e, no
entanto, do meio da encosta já se abrange um horizonte bem largo, sinal de
que aqui já se está muito acima do nível do solo. No ar fresco da manhã,
através do qual abre seu caminho a luz incerta e branco-esverdeada da
aurora, que pouco a pouco se torna mais clara, revelam-se os contornos e os
pormenores, que antes estavam escondidos por aquela névoa que precede o
dia, e que se torna mais escura do que uma noite, porque parece que, na
passagem da noite para o dia, a luz dos astros diminui, e diria, se anula.
Vejo assim que o monte é rochoso e pelado, fendido em saliências que
formam grutas e cavernas. Um lugar realmente selvagem onde — e só nos
pontos em que restou um pouco de terra, que pode recolher a água do céu e
conservá-la — há pequenos tufos verdes; mas a vegetação em geral é de
árvores rígidas, espinhosas, com poucas folhas, e de muitas ervas rasteiras e
duras, que parecem uns pauzinhos verdes, e que eu não sei o nome.
Abaixo, há uma extensão ainda mais árida, plana, pedregosa, cuja
aridez vai se acentuando, à medida que se aproxima um ponto escuro, bem
mais comprido do que largo, ao menos cinco vezes maior do que a largura,
que acho que se trata de um oásis espesso, nascido no meio daquela
desolação, devido à existência de águas subterrâneas. Mas, quando a luz se
torna mais clara, vejo que não é nada mais do que água. Uma água parada,
escura, morta. Um lago de uma tristeza infinita. À esta luz ainda incerta, ele
me faz lembrar a visão[2] de um mundo morto. Parece-me que absorve toda
a escuridão do céu, toda a tristeza do solo circunstante, diluindo em suas
águas paradas o verde escuro das árvores espinhosas e das ervas duras que,
por quilômetros e quilômetros, na parte plana como nas mais altas, são a
única decoração do solo, e que, tendo feito disso um filtro de escuridão, a
emana e espalha por todos os arredores. Como é diferente do ensolarado e
risonho lago de Genezaré! No alto, olhando o céu completamente sereno,
que vai-se tornando cada vez mais claro, olhando para a luz que avança do
oriente em ondas sempre mais amplas, o espírito volta a alegrar-se. Mas,
olhando para aquele enorme lago morto, aperta-se o coração. Nenhum
pássaro sobrevoa suas águas. Nenhum animal está em suas margens. Nada.
80.2 Enquanto olho esta desolação, desperta-me a atenção a voz do meu
Jesus:
– Eis-nos aqui juntos, onde Eu queria.
Eu me viro. Vejo-O às minhas costas, entre João, Simão e Judas, junto à
encosta rochosa do monte, lá onde chega uma vereda… seria melhor dizer:
lá onde um longo trabalho das águas, nos meses de chuva, arranhou o
calcário escavando, através dos séculos, um canal mal desenhado, que irá
servir para o escoamento das águas do cume, e que agora é mais um
caminho para as cabras selvagens, do que para gente.
Jesus olha ao seu redor, e repete:
– Sim, era aqui que Eu vos queria trazer. Aqui o Cristo se preparou para
a sua missão.
– Mas aqui não há nada!
– Não há nada, como disseste.
– Com quem estiveste aqui?
– Com o meu Espírito e com o Pai.
– Ah! A tua parada aqui foi só de poucas horas!
– Não, Judas. Não de poucas horas. De muitos dias….
– E quem é que te servia? Onde dormias?
– Eu tinha como servos os onagros que, à noite, vinham dormir em sua
toca… nesta, onde Eu também me havia entocado… Eu tinha como servas
as águias que, com seu grito agudo, me diziam: “É dia”, e partiam depois
para a sua caça. Eu tinha como amigas as pequenas lebres, que vinham roer
as ervas selvagens, quase aos meus pés… para Mim, alimento e bebida era
aquilo que é alimento e bebida da flor silvestre: o orvalho da noite, a luz do
sol. Nada mais.
– Mas, Por quê?
– Para preparar-me bem, como tu dizes, para a minha missão. As coisas
bem preparadas produzem bons resultados. Tu também o disseste. E esta
não era a pequena, inútil coisa de mostrar a Mim mesmo, Servo do Senhor,
mas de fazer compreender aos homens o que é o Senhor e, através dessa
compreensão, fazê-lo ser amado em espírito de verdade. Infeliz do servo do
Senhor, que pensa em seu triunfo, e não no de Deus! Que procura as suas
próprias vantagens, que sonha colocar-se no alto de um trono feito…oh!
Feito pelos interesses de Deus, mas aviltados até tocarem o chão, eles que
são interesses celestiais. Este não é mais servo, ainda que exteriormente
pareça sê-lo. Ele é um mercador, um traficante, um falso que se engana a si
mesmo, aos outros, e quer enganar até Deus… É um infeliz que pensa ser
um príncipe, e é um escravo… É do demônio, o seu rei de mentira. Aqui
nesta toca, o Cristo, por muitos dias, viveu de macerações e orações, a fim
de preparar-se para a sua missão. 80.3E, onde querias que Eu tivesse ido
preparar-me, Judas?
Judas está perplexo, desorientado. Enfim, responde:
– Eu não saberia… Eu pensava… que em companhia de algum rabi…
junto aos essênios… não sei.
– Podia Eu encontrar um rabi que me dissesse mais do que me dizia o
Poder e a Sabedoria de Deus? Podia Eu ir em busca da ciência e da
capacidade daqueles que negam a imortalidade da alma, negando a
ressurreição no último dia, e negam a liberdade de ação do homem,
atribuindo as virtudes e os vícios, ações santas e perversas, a um destino,
que dizem ser fatal e inevitável? Eu, Verbo eterno do Pai, presente quando o
Pai criou o homem, e sei de que espírito imortal e animado, de que poder de
julgamento livre e capaz, o Criador dotou o homem? Ah! Não. Vós tendes
um destino. Sim. Vós o tendes. Na mente de Deus que vos cria, há um
destino para vós. O Pai vo-lo deseja. E é destino de amor, de paz, de glória:
“a santidade de serdes seus filhos.”
Este é o destino que, estando presente na mente divina, desde o
momento em que do barro foi feito Adão, estará presente até a criação da
alma do último homem. Mas o Pai não usa de violência para convosco em
vossa condição de rei. O rei, se está na prisão, não é mais rei, é um
rejeitado. Vós sois reis, porque sois livres em vosso pequeno reino
individual. Em vosso eu. Nele podeis fazer o que quiserdes, como
quiserdes.
80.4À frente e nos confins do vosso pequeno reino, tendes um Rei amigo,
e duas potências inimigas. O Amigo vos mostra as regras por Ele dadas
para fazer felizes os que são seus. Ele vo-las mostra. E vos diz: “Ei-las.
Com estas é certa a eterna vitória.” Ele, o Sábio e Santo, vo-las mostra, para
que possais, se o quiserdes, praticá-las e, ter a glória eterna. As duas
potências inimigas são satanás e a carne. Por carne, entendo a vossa e a do
mundo, ou seja, as pompas e seduções do mundo, isto é, a riqueza, as festas,
as honras, os poderes que do mundo e no mundo se tem, e que nem sempre
são obtidos honestamente, e menos ainda sabe usar honestamente, se, por
um complexo de causas, o homem chega a possuí-los.
Satanás, mestre da carne e do mundo, fala também pelo mundo e pela
carne. Ele também tem as suas regras… Oh! Se as tem! E, como o eu está
enfaixado pela carne, e a carne se inclina para a carne, como os fragmentos
de ferro se inclinam para o ímã, e, visto que o canto do Sedutor é mais doce
do que o gorjeio do rouxinol enamorado, sob os raios da lua e o perfume
dos roseirais, é mais fácil andar em direção à estas regras, inclinar-se para
estas potências, dizer-lhes: “Considero-vos amigas. Entrai.” Entrai… Já
vistes um aliado que se conserve sempre honesto, sem pedir cem por um
pela ajuda dada?
Assim fazem essas potências. Entram… E tornam-se donas. Donas?
Não, tiranas. Elas vos amarram, ó homens, ao banco de sua galera, lá vos
acorrentam, não vos deixam mais erguer o pescoço sob o seu jugo, e o
chicote delas vos fere até o sangue, se delas procurardes fugir. Ou deixar-se
ferir, até virar um amontoado de carne despedaçada, tão inútil, como carne,
a ponto de ser repelida por seus pés cruéis, ou morrer debaixo deles.
Se sabeis entregar-vos a um tal martírio, eis então que passa a
Misericórdia, a Única que pode ainda ter piedade daquela repugnante
miséria, da qual o mundo, um dos seus donos, agora tem nojo, e sobre a
qual o outro dono, satanás, dirige suas flechas de vingança. E a
Misericórdia, a Única que passa, se inclina, a recolhe, a medica, a cura e lhe
diz: “Vem. Não temas. Não olhes para ti mesmo. As tuas feridas não são
mais do que cicatrizes, mas são tantas, que te causariam horror, a ponto de
te desfigurarem. Mas Eu não olho para elas, olho para a tua vontade. Por
essa boa vontade é que estás assim marcada. Por isso, Eu te digo: te amo.
Vem Comigo”, e a leva para o seu Reino. Agora podeis compreender que a
Misericórdia e o Rei amigo são uma mesma pessoa. Encontrais de novo as
regras que Ele vos tinha mostrado e que vós não quisestes seguir. Agora o
quereis… e alcançais a paz da consciência primeiro, e a paz com Deus
depois.
Dizei-me, agora. Este destino foi imposto por Um só a todos, ou foi
escolhido, cada um por si?
– Foi escolhido por cada um.
– Estás julgando bem, Simão. Podia Eu dirigir-me aos negadores da
bem-aventurada ressurreição e do dom de Deus para que fossem meus
formadores? 80.5Eu vim aqui. Trabalhei minha alma de Filho do homem até
os últimos retoques, terminando um trabalho de trinta anos de
aniquilamento e de preparação a fim de, com perfeição, começar o meu
ministério. Agora Eu vos peço que fiqueis Comigo por alguns dias nesta
toca. Será sempre menos desolada esta nossa parada, porque seremos quatro
amigos lutando contra as tristezas, os medos, as tentações, as necessidades
da carne. Eu estive aqui sozinho. Será sempre menos penosa, porque agora
é verão, e aqui no alto, passa o vento das cumeadas, que abranda o calor. Eu
vim aqui no fim da lua de Tebet, e rígido era o vento que descia das neves
dos cumes. Será sempre menos tormentosa, porque será mais breve, e
porque agora nós temos um mínimo de alimentos que pode matar a nossa
fome, e nos pequenos odres de pele que Eu pedi aos pastores que nos
dessem, há tanta água que bastará para os dias desta parada. Eu… Eu
preciso arrancar duas almas das garras de satanás. Nada mais o pode fazer, a
não ser a penitência. Eu vos peço ajuda. Será também para a vossa
formação. Aprendereis como se arrancam as presas das garras de mamona.
Não tanto com as palavras, quanto com sacrifício… As palavras!… O
barulho satânico impede que sejam ouvidas… Toda alma que é presa do
Inimigo fica envolvida em turbilhões de vozes infernais… Quereis ficar
Comigo? Mas, se não quiserem, podem ir embora. Eu fico. Encontrar-nos-
emos de novo em Técua, junto ao mercado.
– Não, Mestre, eu não te deixo –diz João, enquanto Simão, ao mesmo
tempo, exclama:
– Tu nos elevas, querendo-nos Contigo nesta redenção.
Judas… não me parece muito entusiasmado. Mas faz cara boa ao…
destino, e diz:
– Eu fico.
– Então peguem os odres e os sacos, e tragam para dentro e, antes que o
sol esquente, partam a lenha e a amontoem junto à fenda da rocha. Aqui a
noite é muito fria, mesmo no verão, e nem todos os animais são bons.
Acendam um ramo agora mesmo, lá daquela acácia viscosa. Queima bem.
Olhemos por entre as fendas, para expulsar com o fogo as cobras venenosas
e os escorpiões. Vamos…
80.6 …No mesmo lugar do monte. Só que agora é noite. Uma noite toda
estrelada. Uma beleza de céu noturno como creio que só se pode
contemplar nos países subtropicais. Estrelas de grandeza e brilho
admiráveis. As constelações maiores parecem cachos de brilhantes, de
claros topázios, de pálidas safiras, de plácidas opalas, de desbotados rubis.
Piscam, se acendem, apagam-se como um olhar que a pálpebra esconde por
um instante, e tornam a acender-se, ainda mais belas. De vez em quando,
uma estrela risca o céu, e some em direção a quem sabe quais horizontes. É
um risco de luz que parece um grito de júbilo estrelar, ao poder voar assim,
por aqueles prados intermináveis.
Jesus está sentado junto à abertura da caverna e fala aos três que o
cercam. O fogo deve ter ficado aceso, porque, no meio do círculo formado
pelos quatro, um montinho de tições mostra ainda o clarão de algumas
brasas e lança seus reflexos vermelhos sobre os rostos dos quatro.
– Sim. Nossa parada terminou. Esta parada. Na outra vez, durou
quarenta dias… E vos digo ainda: nestas encostas era ainda inverno… e Eu
não tinha alimento. Um pouco mais difícil do que desta vez, não é verdade?
Eu sei que sofrestes agora também. O pouco que tínhamos, e que Eu vos
dava, não era nada, especialmente para a fome dos jovens. Era apenas
suficiente para que não desfalecêsseis de fraqueza. Água, menos ainda. O
calor é tórrido durante o dia. E vós me direis que isso não havia naquele
tempo de inverno. Mas havia então, um vento seco, que descia lá do cume,
queimando os pulmões, e subia daquela baixada carregado de poeira do
deserto e enxugava mais ainda do que este calor de verão, no qual se pode
buscar alívio em sugar estes acídulos frutos, que estão quase maduros.
Naquele tempo, o monte não tinha mais do que vento e ervas queimadas
pelo gelo, em torno das acácias mirradas. Eu não vos dei tudo, porque
reservei os últimos pães e o último queijo, com o último odre, para a
volta… Eu sei o que foi a minha volta, exausto como estava, na solidão do
deserto… Recolhamos nossas coisas e vamos embora. A noite está ainda
mais clara do que aquela que nos conduziu até aqui. Não há luar. Mas o céu
derrama luz. Vamos. Lembrai-vos deste lugar. Sabei lembrar-vos de como o
Cristo se preparou e de como se preparam os apóstolos. Preparem-se os
apóstolos como Eu vos ensino.
80.7 Levantam-se. Simão, com um galho, revira as brasas, as reaviva,
antes de espalhá-las com o pé, jogando sobre elas ervas secas. Na chama,
ele acende um ramo de acácia e o conserva no alto, à entrada da caverna,
enquanto Judas e João recolhem os mantos, os sacos e os pequenos odres de
pele, dos quais só um ainda está cheio. Depois, apaga o ramo, contra a
rocha, pega seu saco e põe o manto, como os outros, amarrando-o à cintura,
para que não estorve o caminhar.
Descem sem falar mais nada, um atrás do outro, por uma vereda
bastante íngreme, pondo em fuga os pequenos animais que estão roendo as
poucas ervas que ainda resistem ao sol. O caminho é longo e difícil.
Finalmente chegam à planície. O caminho não é muito cômodo nem aqui,
onde pedras e lascas de pedras movem-se, traiçoeiras, sob os pés, chegando
até a feri-los, pois a terra, reduzida a pó, as esconde e não podem ser
evitadas, enquanto moitas de espinheiros tostadas arranham e dificultam
grudando na parte inferior das vestes. Mas é caminho mais rápido.
No alto as estrelas estão cada vez mais bonitas.
Vão, vão indo por horas. A planície é sempre mais estéril e triste.
Pontos brilhantes cintilam nas pequenas dobras do terreno, entre a aspereza
do solo. Parecem fragmentos de brilhantes sujos. João se inclina para olhá-
los.
– É o sal do subsolo, que dele está saturado. Aflora com as chuvas da
primavera, depois seca. Por isso é que a vida aqui não se mantém. O mar
Oriental, por profundos canais, espalha a morte até muitos estádios ao seu
redor. Somente onde as nascentes de água doce o combatem é que é
possível encontrar árvores e algum conforto –explica Jesus.
80.8 Continuam a andar. Depois Jesus para junto a uma rocha escavada
na qual eu O vi ser tentado por satanás.
– Paremos aqui. Sentai-vos. Daqui a pouco o galo vai cantar. Faz seis
horas que estamos caminhando, e deveis estar com fome, sede e cansados.
Tomai. Comei e bebei, sentados aqui, ao meu redor, enquanto Eu vou dizer-
vos uma coisa, que vós contareis aos amigos e ao mundo.
Jesus abriu o seu saco de viagem e dele tira pão e queijo, que parte e
distribui, e de uma cabacinha vai pondo água em uma tigela e a distribui
também.
– Tu não comes, Mestre?
– Não. Eu vos falo. Ouvi. Uma vez houve alguém, um homem, que me
perguntou[3] se Eu nunca tinha sido tentado. Perguntou-me se nunca tinha
pecado. Perguntou-me se nunca tinha caído em tentação. E ele se admirou
de que Eu, o Messias, pedisse a ajuda do Pai para resistir, quando dizia:
“Pai, não me deixes cair em tentação.”
Jesus fala baixo e calmo, como se narrasse um fato que todos
ignoravam… Judas abaixa a cabeça como quem está embaraçado. Mas os
outros estão tão atentos, olhando para Jesus, que nem veem Judas.
Jesus continua:
– Agora vós, meus amigos, podereis saber o que só levemente aquele
homem ficou sabendo. Depois do batismo — Eu estava limpo, mas nunca
se é limpo bastante diante do Altíssimo, e a humildade de dizer: “Sou
homem e pecador” já é um batismo que purifica o coração — Eu vim até
aqui. Fui chamado “o Cordeiro de Deus”, por aquele que, santo e profeta,
via a Verdade e via descer o Espírito sobre o Verbo e torná-lo Ungido pelo
seu carisma de amor, enquanto a voz do Pai enchia os céus com o seu som,
dizendo: “Eis o meu Filho dileto no qual Eu me comprazo.” Tu, João,
estavas presente, quando o Batista repetiu as palavras… Depois do batismo,
se bem que limpo por natureza e limpo pelo aspecto, Eu quis “preparar-
me.” Sim, Judas. Olha para Mim. Que meus olhos te digam o que a boca
ainda se cala. Olha para Mim, Judas. Olha para o teu Mestre que não se
sentiu superior ao homem por ser o Messias, e que, ao contrário, sabendo-se
o Homem, quis sê-lo em tudo, exceto em condescender com o mal. Isso
mesmo.
Agora Judas levantou o rosto e olha Jesus que está à sua frente. A luz
das estrelas faz brilhar os olhos de Jesus, como se fossem duas estrelas fixas
em um rosto pálido.
80.9 – A fim de se prepararem para serem mestres é preciso que tenham
sido alunos. Como Deus, Eu sabia tudo. A minha inteligência me podia
também fazer entender as lutas do homem, por um poder intelectivo e de
modo intelectual. Mas um dia algum pobre amigo meu, algum pobre filho
meu poderia dizer-me e o diria: “Tu não sabes o que é ser homem e ter
sensualidade e paixões.” E seria uma censura justa. Eu vim até aqui, ou
melhor, lá, sobre aquele monte, para me preparar… não somente para a
missão… mas para a tentação. Estais vendo? Aqui, onde vós estais, Eu fui
tentado. Por quem? Por um mortal? Não. Muito fraco teria sido o seu poder.
Eu fui tentado por satanás diretamente.
Estava esgotado. Havia quarenta dias que não comia… Mas, enquanto
estava imerso na oração, tudo se tinha anulado na alegria de falar com
Deus, mais que anulado: tornado suportável. Eu o sentia como um
incômodo da matéria, circunscrito apenas na matéria… Depois, Eu voltei ao
mundo… pelos caminhos do mundo… e senti as necessidades de quem está
no mundo. Tive fome. Tive sede. Senti o frio cortante das noites no deserto.
Senti o corpo abatido pela falta de descanso, de cama, e pelo longo caminho
feito em condições de exaustão tal, que me impediam de continuar…
Porque Eu também tenho uma carne, meus amigos. Uma verdadeira
carne. E ela está sujeita às mesmas fraquezas que todas as carnes têm. E,
com a carne, Eu tenho um coração. Sim. Do homem Eu peguei a primeira e
a segunda das três partes que fazem o homem. Eu assumi a matéria com as
suas exigências e o moral com as suas paixões. E, se, por minha vontade,
dominei em seu nascimento todas as paixões não boas, deixei que
crescessem, poderosas como os cedros seculares, as santas paixões do amor
filial, do amor pátrio, das amizades, do trabalho, de tudo o que é ótimo e
santo. Aqui senti saudade de minha mãe, que estava longe, aqui senti
necessidade dos seus cuidados em minha fragilidade humana. Aqui senti
renovar-se a dor de haver-me apartado da única que me amava
perfeitamente, aqui pressenti a dor que me estava reservada e a dor pela sua
dor, pobre mãe, que não terá mais lágrimas, de tantas que terá que derramar
pelo seu Filho e por obra dos homens. E aqui senti o cansaço do herói e do
asceta que, em uma hora de premonição, se apercebe da inutilidade do seu
esforço… Chorei… A tristeza… chamariz mágico usado por satanás. Não é
pecado estar triste, se a hora é penosa. É pecado ceder demais à tristeza, e
cair na inércia ou no desespero. satanás vem sem demora, quando vê que
alguém cai na fraqueza de espírito.
Veio. Vestido como um bondoso viajante. Toma sempre ares de
bondade… Eu tinha fome… e tinha os trinta anos no sangue. Ofereceu-me
ajuda. E, antes, me disse: “Diz a estas pedras que se transformem em pão.”
Mas, antes ainda… sim… antes ainda me tinha falado da mulher… Oh! Ele
sabe falar. Conhece-a a fundo. Foi o primeiro a corrompê-la, para fazer dela
sua aliada na corrupção. Não sou somente o Filho de Deus. Sou Jesus, o
operário de Nazaré. Disse àquele homem, que falara então Comigo,
perguntando se Eu conhecia a tentação, e quase me acusava de ser
injustamente feliz, por não haver pecado: “O ato aplaca com a satisfação. A
tentação rejeitada não cai, mas se torna mais forte, mesmo porque satanás a
estimula.” Repeli a tentação, tanto da fome de mulher, como da fome de
pão. E ficai sabendo que satanás me apresentava a primeira, e humanamente
falando, não estava enganado, como a melhor aliada para quem quer vencer
no mundo.
A tentação, não vencida por aquelas minhas palavras: “Não só dos
sentidos vive o homem”, falou-me, então, da minha missão. Ele queria
seduzir o Messias, depois de ter tentado o Jovem. E passou a incitar-me a
que, com um milagre, aniquilasse os indignos ministros do Templo… Não
se pode dobrar o milagre, chama do céu, e fazer dele um arco de vime para
coroar-se com ele… E não se tenta a Deus pedindo-lhe milagres para fins
humanos. Isto queria satanás. O motivo apresentado era apenas um
pretexto; a verdade era: “Gloria-te de seres o Messias”, para levar-me a
outra concupiscência: a do orgulho.
Não vencido por aquelas minhas palavras: “Não tentarás o Senhor teu
Deus”, circundou-me com a terceira força de sua natureza: o ouro. Oh! O
ouro! Grande coisa é o pão, e maior é a mulher para quem tem o desejo de
alimento ou de prazer. Coisa muito maior é a aclamação das multidões ao
homem… por estas três coisas, quantos delitos se cometem! Mas o ouro…
o ouro… é uma chave que abre, círculo que fecha, é o alfa e o ômega de
noventa e nove por cento das ações humanas. Por causa do pão e da mulher
o homem torna-se ladrão. Por causa do poder torna-se também homicida.
Mas pelo ouro ele torna-se um idólatra. satanás, o rei do ouro, me ofereceu
seu ouro, com a condição de que Eu o adorasse… Eu o traspassei com as
palavras eternas: “Só ao Senhor teu Deus adorarás.”
Aqui. Foi aqui que aconteceu isso.
80.10 Jesus se levantou. Parece mais alto do que antes naquela terra plana
que o circunda e sob aquela luz levemente fosforescente que desce das
estrelas. Os discípulos também se levantam. Jesus continua a falar, fitando
intensamente Judas.
– Então, vieram os anjos do Senhor… O Homem tinha vencido a
tríplice batalha. O Homem sabia o que queria dizer ser homem, e tinha
vencido. Estava exausto. A luta tinha sido mais desgastante do que o longo
jejum… Mas o espírito se agigantava… Creio que com isto os céus se
regozijaram, diante deste meu aperfeiçoamento de criatura dotada de
conhecimento. Eu creio que, a partir daquele momento, veio a Mim o poder
do milagre. Tinha sido Deus. Tornara-me o Homem. Agora, vencendo o
animal, que estava ligado à natureza do homem, eis que Eu era o Homem-
Deus. Eu sou. E, como Deus, tudo posso. E como Homem, tudo conheço.
Fazei vós também como Eu, se quiserdes fazer o que Eu faço. E fazei-o em
memória de Mim.
Aquele homem se admirava de que Eu tivesse pedido a ajuda do Pai. E
que Eu lhe tivesse pedido que não me deixasse cair em tentação. Isto é, que
não me deixasse entregue ao poder da tentação, além das minhas forças.
Creio que aquele homem, agora que sabe, não se admirará mais. Fazei vós
assim também, em memória de Mim, e para vencer como Eu, e não
duvideis nunca, vendo-me forte em todas as tentações da vida, vitorioso na
batalha dos cinco sentidos, do sentido e do sentimento, sobre a minha
natureza de verdadeiro Homem, além do verdadeiro Deus. Lembrai-vos de
tudo isso.
80.11 Tinha prometido levar-vos ao lugar em que teríeis podido conhecer
o Mestre… desde a aurora do seu dia, uma aurora pura como esta que surge
no meio dia da sua vida. O lugar de onde Eu parti, ao encontro da minha
tarde humana… Eu disse a um de vós: “Eu também me preparei.” Vós
estais vendo que era verdade. Agradeço-vos por me terdes feito companhia
nesta volta ao meu lugar natal e penitencial. Os primeiros contatos com o
mundo já me tinham causado náuseas e desconforto. É feio demais. Agora a
minha alma nutriu-se com o tutano do leão: da união com o Pai, na oração e
na solidão. E posso voltar ao mundo para tomar de novo a minha cruz, a
minha primeira cruz de Redentor: aquela do contato com o mundo. Com o
mundo no qual bem poucas são as almas que têm o nome de Maria e de
João…
Agora ouvi, especialmente tu, João. Voltemos para a Mãe e para os
amigos. Eu vos peço isto: não conteis à Mãe, a dureza que o amor de seu
Filho encontrou. Ela sofreria muito. Por essa crueldade do homem Ela
sofrerá tanto… mas não lhe apresentemos o cálice desde já. Quando ele lhe
for dado, será tão amargo! Tão amargo que, como um tóxico, lhe descerá,
serpenteando, pelas suas entranhas santas e por suas veias, mordendo-as e
gelando-lhe o coração. Oh! Não conteis à minha Mãe que Belém e Hebron
me repeliram como a um cão! Tende pena Dela! Tu, Simão, és velho e bom,
és um espírito de reflexão, e não falarás, Eu sei. Tu, Judas, és judeu, e não
falarás por um orgulho regional. Mas tu, João, tu, Galileu e jovem, não
caias em pecado de orgulho, de crítica, de crueldade. Cala-te. Mais tarde…
mais tarde dirás aos outros o que agora te peço que te cales. Também os
outros. Já há tanta coisa para se dizer sobre tudo o que é de Cristo. Por que
unir o que é de satanás contra o Cristo? Meus amigos, vós me prometeis
tudo isso?
– Oh! Mestre! Prometemos sim! Estejas certo!
– Obrigado. Vamos até aquele pequeno oásis. Lá existe uma nascente,
uma cisterna cheia de águas frescas, sombra e verdura. A estrada para o rio
passa perto. Poderemos encontrar alimento e repouso até a tarde. À luz das
estrelas, alcançaremos o rio e o vau. E esperaremos José, ou nos uniremos a
ele, se já tiver voltado. Vamos.
E se encaminham, enquanto os primeiros tons cor-de-rosa no céu, no
limite do oriente, estão dizendo que um novo dia surge.
[2] visão de 29 de Janeiro 1944, em “I quaderni del 1944” (Os cadernos de 1944).
[3] me pergunto, em 69.5.
81. No vau do Jordão com os pastores Simeão,
João e Matias. Um plano para libertar o Batista.
18 de janeiro de 1945.
81.1 Revejo o vau do Jordão: a estrada verde que margeia o rio, tanto de
um lado, como do outro, muito percorrido por viajantes, por causa da sua
sombra. Filas de burrinhos que vão e que vêm, e homens com eles. À
margem do rio, três homens apascentam algumas ovelhas. Na estrada José,
à espera, olha para cima e para baixo.
Lá longe, no ponto onde uma estrada se liga à beira do rio, aponta
Jesus, com os três discípulos. José chama os pastores, e estes levam as
ovelhas para a estrada, fazendo-as caminhar pela beira relvosa. Vão
depressa ao encontro de Jesus.
– Eu estou quase sem coragem… Que direi a Ele como saudação?
– Oh! Ele é tão bom! Tu lhe dirás: “A paz esteja Contigo.” Ele também
saúda sempre assim.
– Ele, sim… mas nós….
– E eu, quem sou? Não sou nem mesmo um dos seus primeiros
adoradores, e Ele me quer tão bem… muito bem!
– Quem é Ele?
– Aquele mais alto e loiro.
– E nós lhe falaremos do Batista, Matias?
– Oh! Sim!
– Não achará que nós preferimos o Batista a Ele?
– De modo nenhum, Simeão. Se Ele é o Messias, vê os corações, e verá
no nosso que, procurando o Batista, era a Ele que queríamos procurar.
– Tens razão.
Os dois grupos já estão a poucos metros um do outro. Jesus já sorri,
com aquele seu sorriso que não se pode descrever. José apressa o passo. As
ovelhas também se põem a trotar, impelidas pelos pastores.
– A paz esteja convosco –diz Jesus, levantando os braços, como para
dar um abraço. Depois se dirige a cada um:
– A Paz a ti, Simeão, João e Matias, meus fiéis, e fiéis de João, o
Profeta! Paz a ti, José –e o beija na face.
Os outros três estão agora de joelhos.
– Vinde, amigos. Vinde debaixo destas árvores, à margem do rio, e
vamos conversar.
Eles descem, e Jesus assenta-se sobre uma grande raiz saliente, os
outros se assentam no chão. Jesus sorri, e os olha fixamente um a um:
– Deixai que Eu conheça os vossos rostos. Vossas almas, Eu já
conheço, como justos que procuram o Bem, que é por eles amado, contra
todas as vantagens do mundo. Eu vos trago a saudação de Isaque, de Elias e
de Levi. E uma outra saudação: a de minha Mãe. 812 Tendes notícia do
Batista?
Os homens, que até então estavam amordaçados pelo acanhamento,
reanimam-se e encontram as palavras:
– Ele ainda está preso. E o nosso coração teme por ele, porque está nas
mãos de um homem cruel, dominado por uma criatura infernal e cercado
por uma corte corrupta. Nós o amamos… Tu sabes que o amamos e que ele
merece o nosso amor. Depois que Tu deixaste Belém, nós fomos
perseguidos pelos homens… Mas nós ficamos desolados e abatidos como
árvores quebradas pelo vento, mais do que pelo ódio deles, por termos
perdido a Ti. E, então, depois de anos de sofrimento, se tivéssemos as
pálpebras costuradas, procurando o sol sem podermos ver, por estarmos
fechados numa cadeia impedidos de enxergar na tepidez de nossas carnes,
eis que ouvimos dizer ser o Batista o homem de Deus, predito[4] pelos
Profetas para preparar os caminhos do seu Cristo. Fomos até ele então.
Dissemos a nós mesmos: “Se o Batista O precede, O encontraremos no
Batista.” Porque eras Tu, Senhor, aquele que nós procurávamos.
– Eu sei. E me encontrastes. Eu estou convosco.
– José nos disse que Tu vieste até o Batista. Nós não estávamos lá
naquele dia. Talvez tivéssemos ido, a mando dele, a algum outro lugar.
Servíamos a ele, nos serviços da alma, que ele nos pedia com tanto amor e
também o escutávamos com amor, embora fôsse tão severo, por não ser Tu,
o Verbo, mas nos dizia sempre palavras de Deus.
– Eu sei. 80.3E a este, não conheceis? –indicando João.
– Nós o vimos com outros galileus, no meio das multidões mais fiéis ao
Batista. E, se não estamos enganados, tu és aquele João, do qual ele
revelava aos seus íntimos: “Eu sou o primeiro, ele será o último. Mas
depois será: ele o primeiro e eu, o último.” Nunca pudemos entender o que
é que ele queria dizer.
Jesus volta-se para a sua esquerda, onde está João, e o atrai contra o seu
coração, com um sorriso ainda mais luminoso, e explica:
– Ele queria dizer ser o primeiro a revelar: “Eis o Cordeiro”, e que este
será o último dos amigos do Filho do homem que falará do Cordeiro às
multidões. Mas, no coração do Cordeiro, este é o primeiro, porque lhe é
mais caro do que qualquer outro homem. Isto é o que ele queria dizer. Mas,
quando virdes o Batista e o vereis ainda, e ainda o servireis até a hora
marcada, dizei-lhe que ele não é o último no coração do Cristo. Ele é tão
amado quanto este outro João, não tanto pelo sangue, mas pela santidade.
Recordai-vos disto. Se por humildade o santo se proclama “último”, a
Palavra de Deus o proclama companheiro do discípulo que me é querido.
Dizei-lhe que amo a este, porque tem o seu mesmo nome, e porque
encontro nele os sinais do Batista, o preparador de almas para o Cristo.
– Nós lhe diremos… Mas nós o veremos ainda?
– Vós o vereis.
81.4 – Sim. Herodes não ousa matá-lo, por medo do povo e, naquela corte
de avidez e corrupção, seria fácil livrá-lo, se tivéssemos muito dinheiro.
Mas…ainda que seja muito o que temos — os amigos nos deram — ainda
falta muito. E nós temos muito medo de não chegarmos a tempo… e que ele
seja morto.
– Quanto acha que vos falta para o resgate?
– Não é para um resgate, Senhor. Ele é muito mal visto por Herodíades,
que domina tanto Herodes, que é difícil em conseguirmos um resgate.
Mas… em Maqueronte estão reunidos, penso eu, todos os ávidos do reino.
Todos buscam o prazer, todos querem sobressair, desde os ministros até os
servos. E, para se viver assim, é preciso ter dinheiro… Nós encontraríamos
alguém que por uma grande importância de dinheiro deixaria o Batista sair.
Até Herodes talvez deseje isto… porque tem medo. Medo do povo e medo
de sua mulher, não de outras coisas. Assim, ele faria o povo contente, e não
seria acusado pela mulher de tê-la descontentado.
– E essa pessoa, quanto pede?
– Vinte talentos de prata. Nós só temos doze e meio.
81.5 – Judas, tu disseste que aquelas joias são muito bonitas.
– Bonitas e preciosas.
– Quanto poderão valer? Parece-me que entendes disso.
– Sim, eu entendo. Por que queres saber o valor delas, Mestre? Queres
vendê-las? Por quê?
– Talvez… Diz: quanto poderão valer?
– Se forem bem vendidas, pelo menos seis talentos.
– Tens certeza disso?
– Sim, Mestre. Só o colar, grosso e pesado, feito de ouro maciço, vale
pelo menos três talentos. Eu o examinei bem. E também os braceletes…
Não sei nem como os pulsos delicados de Aglaé podiam sustentá-los.
– Eles eram as suas algemas, Judas.
– É verdade, Mestre… Mas muitos queriam ter umas algemas destas!
– Pensas assim? Quem?
– Ora… muitos!
– Sim. Muitos que, de homem, só têm o nome… E tu conhecerias um
possível comprador?
– Em suma, Tu queres vendê-las? Por causa do Batista? Mas, olha, é
ouro amaldiçoado!
– Oh! Incoerência humana! Acabaste de dizer, com evidente desejo,
que muitos gostariam de possuir aquele ouro, e depois o chamas de
amaldiçoado?! Judas, Judas!… É amaldiçoado, sim. É amaldiçoado! Mas
ela lhe disse: “Este ouro santificar-se-á se for posto a serviço do pobre e do
santo.” Ela o deu para isso, a fim de que o beneficiado reze por sua pobre
alma que, como o embrião de uma futura borboleta intumesce na semente
do coração. Quem mais santo e pobre do que o Batista? Por sua missão, ele
é igual a Elias, mas na santidade é ainda maior do que ele. O Batista é mais
pobre do que Eu. Eu tenho uma Mãe e uma casa… Quando se tem uma
Mãe, tão pura e santa como Eu tenho, nunca estamos abandonados. Ele não
tem mais casa, e de sua mãe não tem mais nem o sepulcro. Apoderaram-se
de tudo, tudo foi profanado pela maldade humana. 81.6 Portanto, quem é o
comprador?
– Existe um em Jericó, e muitos outros em Jerusalém. Mas aquele de
Jericó!! Ah! É um oriental astuto, um ourives usurário, trapaceiro, mercador
de amor, certamente um ladrão, talvez homicida… com certeza perseguido
por Roma. Ele quer ser chamado de Isaque, a fim de parecer hebreu. Mas
seu verdadeiro nome é Diomedes. Eu o conheço bem…
– Estamos vendo! –interrompe Simão Zelote, que fala pouco, mas
observa tudo. E pergunta:
– Como foi que chegaste a conhecê-lo tão bem?
– Bom… Tu sabes… Para agradar a amigos poderosos… Eu fui até
ele… e fiz negócios… Nós, lá do Templo… Tu sabes…
– Sim!… Vós fazeis quaisquer negócios –termina Simão, com fria
ironia.
Judas fica com raiva, mas se cala.
– Ele pode comprá-las? –pergunta Jesus.
– Acho que sim. Dinheiro nunca lhe falta. Certamente precisa saber
vender, porque o grego é astuto, e, se perceber que está tratando com um
homem honesto, um… filhote de pomba, ele o depena em regra. Mas,
quando tem que lidar com um abutre de sua igualha…
– Vai tu, Judas. És o tipo adequado. Tens a astúcia da raposa e a
rapacidade do abutre. Oh! Perdoa-me, Mestre. Eu falei antes de Ti –diz
ainda Simão Zelote.
– Eu penso como tu, e por isso digo a Judas para ir. João, vai com ele.
Nós nos encontraremos ao cair do sol. O lugar do reencontro será junto à
praça do mercado. Vai. E faze tudo do melhor modo possível.
Judas se levanta prontamente. João tem os olhos implorantes como os
de um cachorro enxotado. Mas Jesus fala de novo com os pastores, e não vê
este olhar implorante. João põe-se a caminho atrás de Judas.
81.7 – Eu gostaria de contentar-vos –diz Jesus.
– Tu o farás sempre, Mestre. O Altíssimo te bendiga por nós. Aquele
homem é teu amigo?
– Sim, é. Não te parece que ele o possa ser?
O pastor João inclina a cabeça, e se cala. O discípulo Simão fala:
– Só quem é bom, sabe enxergar. Eu não sou bom e não enxergo aquilo
que a Bondade enxerga. Vejo o exterior. O bom desce também ao interior.
Tu também, João, enxergas como eu. Mas o Mestre é bom… e enxerga…
– Que enxergas em Judas, Simão? Eu te ordeno que fales!
– É isto: ao vê-lo, eu penso, em certos lugares misteriosos, que parecem
antros de feras e águas estagnadas pela febre, nos quais, o que se vê é
somente um grande emaranhado, e a gente logo se afasta com temor. Mas,
ao contrário… ao contrário, dentro, há também rolas e rouxinóis, e o solo é
rico em águas potáveis e ervas medicinais. Eu quero crer que Judas seja
assim. Talvez porque Tu o tens Contigo. E Tu sabes…
– Sim. Eu sei… Há muitas dobras no coração daquele homem… Mas
não falta seu lado bom. Tu o viste em Belém e também em Keriot. Este lado
bom, que é de uma bondade humana, há de ser elevado até à altura de uma
bondade que seja espiritual… Então, Judas será como gostaríeis que fosse.
É jovem…
– João também é jovem…
– E tu conclues em teu coração que ele seja melhor! Mas João é João!
Ama a este pobre Judas, Simão… Eu te peço. Se o amares… ele te parecerá
melhor.
– Eu me esforço por fazer isso… por Ti. Mas ele é que destrói os meus
esforços, tal como caniços de beira-rio… Contudo, Mestre, para mim só há
uma lei: fazer o que Tu queres. Por isso, amo Judas, apesar de alguma coisa
dentro de mim gritar contra ele.
– O que é esta coisa, Simão?
– Não sei dizer precisamente… É uma coisa assim como o grito do
guarda na noite… e que me diz: “Não durmas! Fica atento!” Não sei… Esta
coisa não tem nome. Mas existe… existe dentro de mim contra ele.
– Não penses mais nisso, Simão. Não te esforces para explicá-la. Faz
mal conhecer certas verdades… e o conhecimento poderia enganar-te.
Deixa isto para o teu Mestre. Tu, dá-me o teu amor, e pensa que isso me
deixa feliz…
E tudo termina.
[4] predito, em: Isaías 40,3-5.
82. Em Jericó. Iscariotes conta
como vendeu as joias de Aglaé.
19 de janeiro de 1945.
82.1 Estamos na praça da feira, em Jericó. A manhã já passou, é tarde, de
um longo pôr-do-sol, com um forte calor de pleno verão. Da feira da manhã
só restam os sinais, ou seja, os detritos das verduras, os montículos de
excrementos, a palha caída dos cestos ou dos cabazes dos burros e os
pedaços de trapos… Acima de tudo, as moscas triunfam, e o sol fermenta
tudo isso fazendo evaporar fedores e cheiros de coisas pouco agradáveis.
A grande praça está vazia. Algum raro passante, algum moleque brigão,
que derruba a pedradas os pássaros que estão nas árvores da praça. Uma ou
outra mulher que vai à fonte. E é só.
Jesus chega por uma estrada, e olha ao seu redor. Ainda não vê
ninguém. Pacientemente, Ele se encosta a um tronco, e espera, encontrando
modo de falar aos moleques sobre a caridade, que começa para com Deus, e
desce do Criador a todas as criaturas.
– Não sejais cruéis. Por que quereis perturbar os pássaros dos ares?
Eles têm seus ninhos no alto das árvores. Têm os seus filhotes. Não fazem
mal a ninguém. Dão a nós os seus cantos e limpeza, comendo os restos
deixados pelo homem e os insetos que danificam os cereais e as frutas. Por
que feri-los e matá-los, privando os filhotes dos pais e das mães, ou
privando-os de seus filhotes? Gostaríeis, que um malvado entrasse em vossa
casa, e a destruísse, ou que matasse vossos pais, ou vos levasse para longe
deles? Não, vós não gostaríeis. E, então, por que fazer a estes inocentes o
que não quereríeis que vos fôsse feito? Como podereis um dia não fazer mal
ao homem, se desde pequenos endureceis o vosso coração contra pequenas
criaturas inermes e tão graciosas, como são os passarinhos? Não sabeis que
a Lei diz: “Ama a teu próximo como a ti mesmo”? Quem não ama ao
próximo, não pode tampouco amar a Deus. E, quem não ama a Deus, como
pode ir à sua Casa para rezar? Deus poderia dizer-lhe, e o diz no Céu: “Vai-
te embora. Eu não te conheço. Tu és meu filho? Não. Não amas os irmãos,
não respeitas o Pai, que os fez, por isso, não és irmão, nem filho, mas um
bastardo: enteado de Deus, meio-irmão para os irmãos.” Vedes como o
Senhor eterno ama? Nos meses mais frios faz que os seus passarinhos
encontrem os depósitos cheios de feno para neles se aninharem. Nos meses
quentes, dá a sombra das folhas para protegê-los do sol. No inverno, nos
campos, os grãos estão mal cobertos de terra, e é fácil encontrar a semente
com que se nutrem. No verão, alivia-se a sede com as frutas suculentas, e os
ninhos podem ser feitos bem firmes e quentes com os fios do feno e a lã que
as ovelhas deixam presas nos espinheiros. Assim é o Senhor. Vós, pequenos
homens, criados por Ele como os pássaros, e por isso, irmãos deles, por que
quereis ser diferentes, achando que podeis tratar mal a estes pequenos
animais? Sede misericordiosos para com todos, não privando ninguém do
que seria justiça de Deus, seja para os vossos irmãos homens, seja para os
animais, vossos servos e amigos…
– Mestre –chama Simão–. Judas está chegando!
– … e Deus será misericordioso para convosco, dando-vos tudo o de
que precisais, como dá a estes inocentes. Ide, e levai convosco a paz de
Deus.
82.2 Jesus abre o círculo dos meninos, ao qual se haviam unido alguns
adultos, e vai em direção de Judas e João, que chegam apressados, por um
outro caminho. Judas está exultante. João sorri para Jesus… mas não parece
exatamente feliz.
– Vem, vem, Mestre. Creio que fiz um bom negócio. Mas, vem comigo.
Na estrada não se pode ficar conversando.
– Ir aonde, Judas?
– À estalagem. Já reservei quatro quartos… oh! é coisa modesta, não
temas. É só para podermos repousar em uma cama, depois de tantos
incômodos com este calor, e comer como homens, e não como pássaros
sobre algum ramo, e também para podermos falar em paz. Fiz uma venda
muito boa. Não é verdade, João?
João anui sem muito entusiasmo. Mas Judas está de tal modo contente
com o seu trabalho, que não nota nem o descontentamento de Jesus com
aquela preocupação por um alojamento cômodo, nem a ainda menos
entusiasmada atitude de João. E prossegue:
– Tendo eu vendido por mais do que havia avaliado, disse: “É justo que
eu fique com uma pequena soma (cem denários) para pagar os nossos
quartos e as nossas refeições. Se nós, que temos comido sempre estamos
exaustos, imagino Jesus.” E tenho o dever de ficar atento, a fim de que o
meu Mestre não fique doente! É um dever de amor, porque Tu me amas, eu
te amo… Tem lugar também para vós e para as ovelhas, diz ele aos
pastores. Eu pensei em tudo.
Jesus não diz uma palavra. Vai com ele e com os outros…
Chegam a uma pequena praça secundária. Judas diz:
– Estás vendo aquela casa sem janelas, com aquela portinha tão estreita,
que mais parece uma fenda? É a casa do ourives Diomedes. Parece uma
casa pobre, não é? Mas lá dentro há tanto ouro, que dá para comprar toda
Jericó e… ah! ah!… (Judas ri maldosamente…) No meio daquele ouro
podem encontrar-se também muitas joias e louças e… também outras coisas
usadas pelas pessoas mais influentes de Israel. Diomedes… oh! todos
fingem não conhecê-lo, mas todos o conhecem: desde os herodianos, até…
afinal, todos. Sobre aquela parede lisa e pobre, poder-se-ia escrever:
“Mistério e Segredo.” Se aquelas paredes falassem! Em vez de
escandalizar-te do modo como eu fiz o negócio, João, tu morrerias sufocado
pelo assombro e pelo escrúpulo. A propósito, escuta, Mestre! Não me
mandes mais com João a certos negócios. Por pouco, ele quase faz malograr
tudo. Não sabe pegar as coisas no ar, não sabe dizer não, e, com um astuto
como o Diomedes, precisamos ser ágeis e corajosos.
João murmura:
– Tu dizias cada coisa! Tão inesperada, e então… Oh, sim, Mestre não
me mandes mais. Eu sou só capaz de amar….
– Dificilmente teremos mais necessidade desse tipo de vendas –
responde Jesus, que está sério.
– Lá está a estalagem. Vem, Mestre. Falo eu Por que… fui eu que fiz
tudo.
82.3 Após entrarem, Judas fala com o dono, que está mandando levarem
as ovelhas para o curral e, em seguida, conduz pessoalmente os hóspedes
para um pequeno quarto, onde há duas esteiras para servir de cama,
algumas cadeiras e uma mesa pronta. Depois, se retira.
– Vamos conversar agora, Mestre, enquanto os pastores estão ocupados
em acomodar suas ovelhas.
– Eu te estou ouvindo.
– João pode dizer se estou sendo sincero.
– Não duvido disso. Entre homens honestos não deve ser necessário
jurar, nem apresentar testemunhas. Fala.
– Chegamos a Jericó, ao meio-dia. Estávamos suados como animais de
carga. Não quis dar ao Diomedes a impressão de que tivesse necessidade
urgente. E antes eu vim aqui, refresquei-me bem, pus uma veste limpa, e
quis que ele fizesse o mesmo. Oh! Ele não queria nem pôr óleo nos cabelos,
ou pentear-se… Mas eu havia feito o meu plano, enquanto vinha pelo
caminho!… Quando a tarde estava próxima, eu disse: “Vamos.” Já
estávamos repousados e refrescados, como dois ricaços em viagem de
veraneio. Quando estávamos para chegar à casa do Diomedes, eu disse a
João: “Tu me ajudarás. Não me contradigas, e sê pronto para entender.”
Mas teria sido melhor, se eu o tivesse deixado fora! Em nada ele me ajudou.
Ao contrário… Eu, por sorte, sou esperto por dois, e consertei o que ele
atrapalhou.
Da casa saía o cobrador ide impostos. “Bem”, disse eu, “se aquela
pessoa está saindo, encontraremos na casa dinheiro e tudo o que quero para
fazer uma comparação.” Porque o cobrador, usurário e ladrão, como todos
os de sua laia, a fim de gozar com crápulas e mulheres, tem sempre muitas
joias arrancadas, com ameaças e usura daqueles infelizes que são taxados,
acima do permitido. Ele é muito amigo do Diomedes, que compra e vende
ouro e carne… Entramos, depois de eu ter me apresentado. Eu disse:
entramos, porque, uma coisa é ir ao corredor onde ele finge trabalhar
honestamente com o ouro, e outra, é descer no subterrâneo, onde ele realiza
seus verdadeiros negócios. Para ter acesso a este lugar, a gente precisa ser
muito conhecida dele. Quando ele me viu, perguntou: “Ainda queres vender
ouro? Os tempos estão feios, tenho pouco dinheiro.” É a sua canção de
sempre. Eu lhe respondi: “Não venho para vender, mas para comprar. Tens
joias para mulheres? Mas bonitas, ricas, preciosas e pesadas, de ouro puro?”
Diomedes ficou espantado. E me perguntou: “Queres comprar uma
mulher?” “Não se preocupe com isto”, respondi-lhe. “Não é para mim. É
para este meu amigo, que é noivo, e quer comprar ouro para a sua amada.”
Neste ponto João começou a bancar a criança. Diomedes, que o olhava,
viu-o fortemente ruborizado, dizendo, como velho sujo que é: “Olha! O
rapaz, só de ouvir falar da noiva, já está com febre de amor. É muito bonita
a tua mulher?”, perguntou ele. Eu dei uma cutucada em João para despertá-
lo e fazê-lo entender que não ficasse ali como um bobo. Mas João
respondeu um “sim” tão forçado, que Diomedes ficou desconfiado. Então
falei: “Se é bonita, ou não, meu velho, não é da tua conta. Não será nunca
do tipo daquelas mulheres, pelas quais irás para o inferno. Ela é virgem e
honesta, e será uma esposa honesta. Mostra o teu ouro. Eu sou o paraninfo,
e estou encarregado de ajudar o jovem… eu, um judeu, e cidadão”. “Ele é
Galileu, não é mesmo?” Pelos vossos cabelos, sempre vos traís. “Ele é
rico?” “Muito”.
Então fomos lá para baixo, e o Diomedes abriu os cofres. Mas, diz a
verdade, João! Não parecia estar no céu, diante de todas aquelas gemas e
ouro? Colares, grinaldas, braceletes, brincos, redinhas de ouro e pedras
preciosas para os cabelos, grampos, fivelas, anéis… ah! que esplendores!
Com muita calma, escolhi um colar, mais ou menos como o de Aglaé, e
anéis, fivelas, braceletes… tudo como aqueles que eu tinha na bolsa, e em
número igual. Diomedes se espantou, e perguntava: “Mais ainda? Mas,
quem é este? E a noiva quem é? Uma princesa?” Quando tive tudo o que eu
queria, perguntei: “Qual o preço?”
Oh! Que ladainha, então, se ouviu de lamentações preparatórias, tanto a
respeito dos tempos, como das taxas, dos riscos e dos ladrões! Oh! E que
outra ladainha de garantias de honestidade. Só depois é que veio a resposta:
“Como se trata de ti, vou dizer-te a verdade. Sem nenhum exagero. E,
menos disso, nem uma dracma. Peço doze talentos de prata.” “Ladrão!”, eu
disse. Depois falei: “Vamos embora, João. Em Jerusalém encontraremos
alguém menos ladrão do que este.” E simulei uma saída. Ele correu atrás de
mim. “Meu grande amigo, meu caro amigo, vem aqui, escuta o teu pobre
servo. Por menos eu não posso. Não posso mesmo. Olha. Vou fazer um
esforço e vou arruinar-me. Faço, porque sempre me deste a tua amizade, e
contigo sempre fiz bons negócios. Onze talentos, então. É o que eu daria, se
tivesse que comprar este ouro de alguém que estivesse com fome. Nem um
centésimo a menos. Seria como tirar o sangue de minhas velhas veias.” Não
é verdade que ele falava assim? Fazia rir, e causava náuseas.
Quando vi que ele estava bem firme no preço, dei o golpe. “Velho sujo,
fica sabendo que eu quero é vender, e não comprar. Quero vender isto.
Olha: É bonito como o que tu tens. É ouro de Roma e de feitio novo.
Muitos irão querer comprá-lo de ti. É teu por onze talentos. É o que pediste
pelo teu. Tu mesmo o avaliaste e, por isso, paga-o”. Ui! Então… “É uma
traição. Traíste a minha estima por ti! Tu és a minha ruína! Não posso dar
tanto!” “Tu mesmo deste o preço. Paga!” “Não posso.” “Olha que eu vou
vender a outro.” “Não, amigo”, e esticava as mãos aduncas para o pequeno
monte de Aglaé. “Então, paga: eu devia exigir doze talentos. Mas contento-
me com o teu último pedido.” “Não posso.” “Usurário! Olha que eu tenho
uma testemunha, e posso denunciar-te como ladrão…” e lhe disse ainda
outras virtudes, que não vou repetir por causa deste rapaz…
Enfim, visto que precisava vender e vender logo, eu lhe disse uma
coisinha, entre eu e ele, e que não vou cumprir… Mas, que valor tem uma
promessa feita a um ladrão? E fechei o negócio por dez talentos e meio.
Saímos de lá entre prantos e ofertas de amizade e… de mulheres. E João
por pouco não chora… Mas, que importância tem se te acharem viciado?
Basta que tu não o sejas. Não sabes que o mundo é assim, e que tu és um
aborto do mundo? Um jovem que ignora o sabor de uma mulher? Quem
queres que creia nisso? Ou se te acreditam… oh! Eu não queria que
pensassem de mim o que podem pensar de ti ao considerar-te não desejoso
de mulher.
É isto, Mestre. Conta o dinheiro Tu mesmo. Tinha um montão de
dinheiro. Mas passei pelo cobrador de impostos, e lhe disse: “Toma de novo
para ti este estorvo, e entrega-me os talentos que o Isaque te deu.” Pois,
pelas últimas notícias, fiquei sabendo também disso, depois de feito o
negócio. 82.4 E finalmente, eu disse ao Isaque-Diomedes: “Lembra-te de que
Judas do Templo não existe mais. Agora sou discípulo de um Santo. Por
isso, finjas que nunca me conheceste, se tens amor ao teu pescoço.” E por
pouco não o torci naquela mesma hora, porque ele me respondeu mal.
– Que foi que ele te disse? –pergunta Simão, com indiferença.
– Ele me disse: “Tu, discípulo de um Santo? Nunca acreditarei nisso,
ou logo verei também aqui o santo, pedindo-me uma mulher.” Ele me disse:
“Diomedes é uma velha calamidade do mundo, mas tu és a nova. Eu
poderia mudar, porque tornei-me aquilo que sou depois de velho. Mas tu
não mudarás. Tu já nascestes assim.” Velho imundo! Ele nega o teu poder,
entendes?
– E, como bom grego que é, diz muitas verdades.
– Que estás querendo dizer, Simão? Estás referindo-te a mim?
– Não. Eu me refiro a todos. Ele é alguém que conhece o ouro e os
corações, da mesma forma. É um ladrão, um sujo que lida com os negócios
mais sujos. Mas percebe-se nele a filosofia dos grandes gregos. Conhece o
homem, animal que tem os sete ramos do pecado, polvo que esgana o bem,
a honestidade, o amor e muitas outras coisas, tanto em si mesmo, como nos
outros.
– Mas não conhece a Deus.
– E tu quererias lhe ensinar?
– Eu? Sim. Por quê? São os pecadores que têm necessidade de
conhecer a Deus.
– É verdade. Mas… um mestre deve conhecer para ensinar.
– E eu não conheço?
– Paz, amigos. Estão chegando os pastores. Não perturbemos o espírito
deles com discussões entre nós. Tu contaste o dinheiro? Basta. Leva a bom
termo cada ação tua como levaste esta, e te repito, se puderes, no futuro,
não mentir, nem mesmo para praticar uma boa ação….
82.5 Entram os pastores.
– Amigos. Aqui estão dez talentos e meio. Faltam somente cem
denários que Judas tirou para as despesas de alojamento. Tomai.
– Tu dás tudo? –pergunta Judas.
– Tudo. Não quero nem um centésimo daquele dinheiro. Nós temos o
óbolo de Deus e daqueles que honestamente O procuram … e não nos
faltará nunca o indispensável. Crê nisto. Tomai, e sede felizes, como Eu
sou, por causa do Batista. Amanhã ireis dirigir-vos à sua prisão. Irão dois:
João e Matias. Simeão com José irá a Elias contar o acontecido e dar-lhe
instruções para o futuro. Elias sabe. Depois José voltará com Levi. O lugar
do nosso reencontro será daqui a dez dias, junto à porta dos Peixes, em
Jerusalém, à hora primeira. Agora vamos comer e descansar. Amanhã, pela
manhã, Eu partirei com os meus. Não tenho, por enquanto, mais nada a
dizer-vos. Mais tarde, tereis notícia de Mim.
E tudo mais desaparece, quando Jesus corta o pão.
83. Jesus sofre por causa de Judas, o qual é
uma lição vivente para os apóstolos de todos os
tempos.
20 de janeiro de 1945.
83.1 O campo onde Jesus se encontra é muito fértil. Magníficos pomares,
esplêndidos vinhedos com os cachos já formados e prontos para tomarem as
cores do ouro e do rubi. Jesus está sentado em um pomar e come as frutas
oferecidas a Ele por um camponês.
Talvez Jesus tenha falado antes, porque o homem diz:
– Matar a tua sede é para mim uma alegria, Mestre. O teu discípulo nos
havia falado da tua sabedoria, mas nós ficamos admirados ao ouvir-te.
Estando tão perto da Cidade Santa, costumamos ir frequentemente lá vender
frutas e verduras. Depois, subimos até o Templo, para ouvirmos os rabis.
Mas eles não falam como Tu, não. Voltamos de lá dizendo: “Se é assim
como dizem, quem poderá salvar-se?” Tu, ao invés! Oh! Parece que
ficamos com o coração aliviado! Um coração que se torna criança, mesmo
permanecendo homem. Eu sou rústico… não sei explicar-me. Mas
certamente Tu me entendes.
– Sim. Eu te entendo. Tu queres dizer que, com a seriedade e o
conhecimento das coisas, próprios de quem é adulto, depois de teres ouvido
a Palavra de Deus, sentes renascer em teu coração a simplicidade, a fé e a
pureza. Parece que te tornaste uma criança sem culpa e malícia, com uma fé
tão grande, como quando, guiado pela mão da tua mãe, subiste pela
primeira vez ao Templo, ou como quando rezavas sobre os seus joelhos.
Isto é o que queres dizer.
– Certo, sim, é isto mesmo. Felizes sois vós, que estais sempre com
Ele! –diz depois a João, Simão e Judas, que, sentados sobre um muro baixo,
comem figos suculentos. E termina:
– E feliz de mim, por ter-te como hóspede por uma noite. 83.2 Não temo
mais desventura nesta minha casa, porque nela entrou a tua bênção.
Jesus responde:
– A bênção produz efeito, se as almas permanecerem fiéis à Lei de
Deus e à minha doutrina. Caso contrário, a graça cessa. E é justo. Porque, se
é verdade que Deus dá sol e ar tanto aos bons como aos maus, para que
vivam, e se há bons se tornam melhores, e maus que se convertem, também
é justo a proteção do Pai se volte para determinados lugares, como castigo
do mau, a fim que o sofrimento o chame de volta à lembrança de Deus.
– Mas a dor não é sempre um mal?
– Não, amigo. É um mal do ponto de vista humano; mas do ponto de
vista sobrenatural a dor é um bem. Aumenta os merecimentos dos justos,
que a suportam sem desespero ou revolta, e a oferecem, com sua
resignação, como um sacrifício de expiação pelas próprias faltas e as culpas
do mundo, sendo redenção para aqueles que não são justos.
– É tão difícil sofrer! –diz o camponês, ao qual se uniram os seus
familiares: dez pessoas, entre adultos e crianças.
– Eu sei que o homem acha isso difícil. E, sabendo disso, o Pai não
haveria dado dor aos seus filhos. A dor veio pela culpa. Mas, quanto dura a
dor sobre a terra? Ou na vida de um homem? Pouco tempo. Sempre pouco,
mesmo que dure toda a vida. Agora Eu vos digo: não é melhor sofrer por
pouco tempo, do que para sempre? Não é melhor sofrer aqui, do que no
Purgatório? Pensai que lá o tempo é multiplicado de um para mil. Oh! Em
verdade Eu vos digo que se deveria não maldizer, mas bendizer o
sofrimento e chamá-lo de “graça”, chamá-lo de “piedade.”
– Oh! As tuas palavras, Mestre! Nós as bebemos, como sedentos no
verão bebem água e mel numa fresca ânfora. Vais mesmo embora amanhã,
Mestre?
– Sim, amanhã. Mas ainda voltarei. Para agradecer-te tudo o que fizeste
por Mim e pelos meus, e para pedir-te, outra vez, pão e descanso.
– Sempre, Mestre, aqui os encontrarás.
83.3 Aproxima-se deles um homem com um burrinho carregado de
verduras.
– Olá! Se o teu amigo quiser ir… O meu filho vai a Jerusalém, para a
grande feira de Parasceve.
– Vai, João. Tu sabes o que tens a fazer. Dentro de quatro dias nos
tornaremos a ver. A minha paz esteja contigo.
Jesus abraça João e o beija. Simão também faz o mesmo.
– Mestre –diz Judas–, se me permites, eu vou com João. Preciso ver um
amigo. Todos os sábados ele está em Jerusalém. Eu iria com João até
Betfagé, e, a partir de lá, iria por minha conta… É um amigo da família…
sabes… minha mãe me disse…
– Eu não te perguntei nada, amigo.
– Dói-me o coração por deixar-te. Mas, dentro de quatro dias estarei de
novo Contigo. E serei tão fiel em acompanhar-te, que te cansarás de mim.
– Então, vai. Na aurora que virá daqui a quatro dias, estejas junto à
porta dos Peixes. Adeus, e Deus te guarde.
Judas beija o Mestre e vai para perto do burrinho, que segue troteando
pela estrada poeirenta.
A tarde cai sobre o campo, que se torna silencioso. Simão observa o
trabalho dos hortelãos, que estão irrigando seus sulcos.
83.4 Jesus permanece em seu lugar por algum tempo. Depois se levanta,
contorna a casa, e afasta-se em direção ao pomar. Isola-se. Vai até um ponto
mais fechado, onde grandes romãzeiras estão separadas umas das outras por
moitas baixas, que eu diria serem de groselheiras. Mas não sei exatamente.
Porque estão despojadas de frutos, e eu não conheço bem a folha dessa
planta. Jesus se esconde atrás destas plantas. Ajoelha-se. Reza… e depois se
inclina com o rosto contra o chão, sobre a erva, e chora. Noto isso pelos
seus suspiros profundos e entrecortados. Um choro desconsolado, sem
soluços, mas muito triste.
Passa algum tempo assim. A luz já é crepuscular. Mas ainda não está
tão escuro, que não se possa enxergar nada. E na pouca luz, eis que
desponta de cima de uma moita o rosto feio e honesto de Simão. Ele olha,
procura e distingue a forma agachada do Mestre, todo coberto com o manto
azul escuro que quase o faz desaparecer nas sombras do chão. Somente a
cabeça loira e as mãos unidas em oração, para a qual seus pulsos estão
servindo de apoio, é que se sobressaem. Simão olha com aqueles seus olhos
meio bovinos. Compreende que Jesus está triste, por causa dos Seus
suspiros. A sua boca, de lábios inchados e até arroxeados se abre:
– Mestre! –chama.
Jesus levanta o rosto.
– Estás chorando, Mestre? Por quê? Permites-me que eu vá até aí?
O rosto de Simão está espantado e aflito. Decididamente, é um homem
feio. Às suas feições não bonitas, ao colorido oliváceo escuro, se une um
bordado azulado e cheio de buracos, pelas cicatrizes que a doença lhe
deixou. Mas, tem um olhar tão bondoso que a feiura desaparece.
– Vem cá, Simão, meu amigo.
Jesus sentou-se sobre a relva. Simão senta-se perto dele.
– Por que estás tão triste, meu Mestre? Eu não sou João, e não saberia
dar-te tudo o que ele te dá. Mas em mim há o desejo de dar-te todo o
conforto. E só tenho uma dor, a de ser incapaz de fazê-lo. Diz-me: será que
eu te desagradei nestes últimos dias, a ponto de abater-te só por teres que
ficar comigo?
– Não, bom amigo. Nunca me desagradaste, desde o momento em que
te vi. E creio que para mim nunca serás motivo de choro.
– E, então, Mestre? Eu não sou digno das tuas confidências. Mas, pela
idade, eu quase poderia ser teu pai, e Tu sabes que sede de filhos eu sempre
tive… Deixa que eu te acaricie, como se fosses um filho e que te faça, nesta
hora de sofrimento, o papel de pai e de mãe. É de tua Mãe que estás
precisando, para te esqueceres de tantas coisas…
– Oh! Sim. É de minha Mãe!
– Pois bem. Enquanto esperas poder consolar-te com Ela, dá ao teu
servo a alegria de poder consolar-te. 83.5 Tu choras, Mestre, porque houve
alguém que te desagradou. Há muitos dias que o teu rosto está como o sol
coberto pelas nuvens. Eu te venho observando. A tua bondade encobre a tua
ferida, para que nós não fiquemos com ódio de quem te está ferindo. Mas
esta ferida dói, e te causa náusea. Então, diz-me, meu Senhor, por que não
afastas a causa do sofrimento?
– Porque humanamente é inútil, e seria uma falta de caridade.
– Ah! Tu entendeste que eu estou falando de Judas! É por ele que estás
sofrendo. Como podes Tu, a Verdade, suportar aquele mentiroso? Ele mente
sem mudar de cor. É mais falso do que uma raposa. Mais fechado do que
uma rocha. Agora mesmo, ele se foi. Que terá ido fazer? Quantos amigos
terá por aí? Sofro em deixar-te. Mas eu gostaria de segui-lo e ver… Oh!
Meu Jesus!… Aquele homem… afasta-o, meu Senhor.
– É inútil. Aquilo que deve ser, será.
– Que queres dizer?
– Nada de especial.
– Tu de boa vontade o deixaste ir, Por que… porque te repugnou aquele
seu modo em Jericó.
– É verdade, Simão, Eu te digo ainda: aquilo que deve ser, será. E Judas
é parte desse futuro. Ali também ele deve estar.
– Mas João me disse que Simão Pedro é todo sinceridade e fogo… Ele
suportará esse homem?
– Deve suportá-lo. Pedro também está destinado a uma parte, e Judas é
o estame no qual ele vai tecer a sua parte, ou, se te agrada mais, é a escola
na qual Pedro se exercitará mais do que em qualquer outra. Ser bons em
companhia de João, compreender espíritos como o de João, é uma virtude
até de imbecis. Mas ser bons com quem é um Judas, saber entender
espíritos como os de Judas, ser médico e sacerdote para pessoas assim, é
difícil. Judas é para vós um ensinamento vivo.
– Para nós?
– Sim, para vós. O Mestre não estará para sempre nesta terra. Daqui Ele
partirá, depois de ter comido do mais duro pão e bebido do mais amargo
vinho. Mas vós ficareis como meus continuadores… e precisais saber.
Porque o mundo não termina com o Mestre, mas continua, até à Sua volta e
o juízo final do homem. Em verdade te digo que por um João, um Pedro,
um Simão, um Tiago, um André, um Filipe, um Bartolomeu, um Tomé, há
pelo menos outras tantas vezes sete Judas. E mais, mais ainda!…
Simão reflete e se cala. Depois diz:
– Os pastores são bons. Judas os despreza. Mas eu os amo.
– Eu os amo e elogio.
– São almas simples, das que agradam a Ti.
– Judas viveu na cidade.
– Sua única desculpa. Mas tantos viveram na cidade e, no entanto…
83.6Quando irás ao meu amigo?
– Amanhã, Simão. Com prazer, porque Eu e tu estaremos sós. Acho que
ele é um homem culto e experiente como tu.
– Um grande sofredor… no corpo, e ainda mais no coração. Mestre…
queria pedir-te uma coisa: se ele não te falar de suas tristezas, não lhe faças
perguntas sobre sua casa.
– Não as farei. Eu procuro quem está sofrendo, mas não forço as
confidências. O choro tem o seu pudor….
– Eu não Te respeitei… Fiquei com tanta pena de Ti…
– Tu és meu amigo, e já tinhas dado um nome à minha dor. Para o teu
amigo Eu sou o Rabi desconhecido. Quando ele me conhecer… aí então…
Agora vamos! A noite já chegou. Não façamos que os hóspedes fiquem
esperando, pois estão cansados. Amanhã, ao romper do dia, iremos para
Betânia.

Jesus diz, depois:


83.7
– Pequeno João, quantas vezes chorei com o rosto no chão, por causa
dos homens! Vós quereríeis ser menos do que Eu?
Também para vós, os bons estão na proporção dos bons e Judas. Quanto
mais alguém é bom, mais sofre. Também vós, digo isto especialmente para
aqueles chamados a cuidar dos corações, é necessário aprender, estudando
Judas. Todos vós sois “Pedro”, vós, sacerdotes. Deveis ligar e desligar. Mas,
quanto espírito de observação, quanta união com Deus, quanto estudo vivo,
quantas comparações, segundo o método do vosso Mestre, havereis de
fazer, para serdes como deveis ser!
A alguém parecerá inútil, humano, impossível tudo o que Eu estou
explicando. São os costumeiros negadores das fases humanas da minha
vida, e querem fazer de Mim algo tão fora da vida humana, que se torne
algo somente divino. Onde fica, então, a Santíssima Humanidade, onde fica
o sacrifício da Segunda Pessoa, que se revestiu de uma carne? Oh! Como
verdadeiramente Eu sou Homem entre os homens. Sou o Homem. Por isso,
sofro, ao ver o traidor e os ingratos. Por isso Eu me alegrava com quem me
amava, ou a Mim se convertia. Por isso Eu fremo e choro, diante do cadáver
espiritual que é Judas. Fremo e choro como diante de um amigo falecido[5].
Mas sabia que o teria chamado à vida, e alegrava-me, ao vê-lo já com o seu
espírito no Limbo. Aqui… tenho pela frente o demônio. Não digo mais
nada.
Tu segue-me, João. Demos aos homens também este dom. E depois…
Bem-aventurados aqueles que escutam a Palavra de Deus e se esforçam
para fazer o que ela diz. Bem-aventurados aqueles que querem me conhecer
para me amar. Neles e para eles Eu serei uma bênção.
[5] Fremo e choro como diante de um amigo falecido, como se narra em: João 11,33-38 (548.7).
84. O encontro com Lázaro de Betânia.
21 de janeiro de 1945.
84.1 Uma aurora muito clara de verão. Mais que aurora, já é a infância do
dia, porque o sol já passou a linha do horizonte, e sobe cada vez mais
risonho para a terra sorridente. Não há caule que não sorria, com o brilho do
orvalho. Parece que os astros noturnos tenham-se pulverizado, tornando-se
ouro e gema por todos os caules, todas as folhas, e até pelas pedras
espalhadas no chão, cujas lasquinhas de silício, molhadas pelo orvalho,
parecem pó de diamante ou de ouro. Jesus e Simão caminham, ao longo de
uma estradinha, que se afasta da estrada principal, fazendo um V. Estão
dirigindo-se a magníficos pomares e campos de linho da altura de um
homem, já quase no ponto da ceifa. Outros campos, mais distantes,
mostram somente a vermelho das papoulas, entre o amarelo dos restolhos.
– Já estamos nas propriedades do meu amigo. Vê, Mestre, que a
distância estava dentro da prescrição da Lei. Nunca me permitiria enganar-
te. Atrás daquele pomar está a cerca do jardim, e dentro dela está a casa. Eu
te fiz vir por este atalho, justamente para não sair da distância permitida.
– O teu amigo é muito rico!
– Muito. Mas não é feliz. A sua casa tem propriedades também em
outros lugares.
– Ele é fariseu?
– O pai dele não o era[6]. Ele… é muito observador. Como eu te disse:
um verdadeiro israelita.
Caminham ainda um pouco. Eis um muro alto; depois, plantas e mais
plantas, no meio das quais mal aparece a casa. O terreno tem aqui uma
pequena elevação, que não impedem, porém aos olhos penetrarem no
jardim, tão vasto, que nós o chamaremos de parque.
Contornam o canto. O muro continua na mesma altura, deixando cair lá
de cima uns ramos emaranhados de roseiras e jasmineiros perfumados,
lindos em suas corolas orvalhadas.
84.2 Eis a cancela pesada de ferro trabalhado. Simão bate com a pesada
aldrava de bronze.
– A hora é muito matutina para entrar, Simão –diz Jesus.
– Oh! O meu amigo se levanta ao nascer do sol, não encontrando
conforto senão em seu jardim e em seus livros. Para ele a noite é um
tormento. Não tardes, Mestre, em comunicar-lhe tua alegria.
Um servo abre a cancela.
– Aseu, eu te saúdo. Diz ao teu patrão que Simão, o Zelote, veio com o
Amigo dele.
O servo parte correndo, depois de tê-los feito entrar, dizendo:
– O vosso servo vos saúda. Entrai, a casa de Lázaro está aberta para os
amigos.
Simão, conhecedor do lugar, não se dirige à alameda central, mas a uma
vereda que, entre sebes de roseiras, vai até uma pérgula de jasmineiros.
De fato, é dali que pouco depois aproxima-se Lázaro. Magro e pálido,
como sempre o tenho visto, alto, com os cabelos curtos, não bastos nem
cacheados, com uma barba rala e somente sobre a parte inferior do queixo.
Está vestido com um linho muito alvo e caminha com dificuldade, como
quem tem problema nas pernas.
Quando vê Simão, faz um gesto de afetuosa saudação e depois, como
pode, corre até Jesus, cai de joelhos, curvando-se até o solo para beijar a
orla da Sua veste, dizendo:
– Eu não sou digno de tanta honra. Mas, visto que a tua santidade se
humilha em aproximar-se da minha miséria, vem, meu Senhor, entra, e sê
dono da minha pobre casa.
– Levanta-te, amigo. E recebe a minha paz.
Lázaro se levanta e beija as mãos de Jesus, olhando para Ele com uma
veneração não destituída de curiosidade. Caminham rumo a casa.
– Quanto te esperei, Mestre! Cada madrugada, eu dizia: “Hoje Ele
virá”, e cada tarde eu dizia: “Hoje também não o vi!”
– Por que é que me esperavas com tanta ânsia?
– Porque… 84.3que nós de Israel esperamos senão a Ti?
– E tu crês que Eu seja o Esperado?
– Simão nunca mentiu, nem é um rapazinho que se exalte por nuvens
de mentiras. A idade e a dor o tornaram maduro como um sábio. Além
disso… ainda que ele não te houvesse conhecido pela verdade do teu Ser, as
tuas obras falariam, e te teriam proclamado “Santo”. Quem faz as obras de
Deus, deve ser homem de Deus. E Tu as fazes. E as fazes de um modo que
nos diz quanto Tu és o Homem de Deus. Ele, o meu amigo, foi a Ti por
teres a fama de operar milagres, e recebeu de Ti o milagre. E estou sabendo
que o teu caminho está marcado por outros milagres. Por que, então, não
crer que Tu és o Esperado? Oh! É tão doce crer o que é bom! Em tantas
coisas não boas nós devemos fingir que cremos serem boas, por amor à paz,
pela impossibilidade de poder mudá-las; há tantas palavras dissimuladas,
que parecem adulações, elogios, benignidade, e ao invés, são sarcasmo,
censura, veneno coberto de mel, e devemos mostrar que cremos nelas,
mesmo sabendo que são veneno, censura e sarcasmo… Devemos fazê-lo
porque… Não se pode fazer de outro modo. Somos fracos diante de todo
um mundo que é forte, e estamos sozinhos diante de todo um mundo que
nos é inimigo… Por que, então termos dificuldade em crer no que é bom?
Afinal, os tempos estão maduros, e os sinais dos tempos aí estão. Quanto
ainda poderá faltar para tornar grande o nosso crer, e livre de toda dúvida,
supre-o a nossa vontade de crer e de aplacar o coração na certeza de que a
espera terminou e que o Redentor já está aqui, e que aqui está o Messias…
Aquele que dará a paz a Israel e aos filhos de Israel, Aquele que… nos
permitirá morrer sem ânsias, pois saberemos que já estamos remidos, e
viver sem aquele aguilhão de saudade de nossos mortos… Oh! Os mortos!
Por que haveremos de continuar chorando-os, senão porque, não tendo mais
os filhos, não têm ainda o Pai, que é Deus?
– Há muito tempo que morreu teu pai?
– Há três anos, e há sete que morreu minha mãe… Mas já faz algum
tempo que não os choro mais… Eu também queria estar onde espero que
eles estejam, esperando o céu.
– Não terias então o Messias como teu hóspede.
– É verdade. Agora eu sou mais do que eles, porque te tenho comigo…
e meu coração se acalma com esta alegria. 84.4 Entra, Mestre! Dá-me a honra
de fazer da minha casa a tua. Hoje é sábado, e não posso prestar-te as
devidas honras, convidando os amigos…
– Eu não o desejo. Hoje Eu sou todo para o amigo de Simão e meu.
Entram em uma bela sala, onde os servos estão prontos para recebê-los.
– Peço-vos que os acompanheis –diz Lázaro–. Podereis refrescar-vos,
antes da refeição da manhã.
E, enquanto Jesus e Simão vão a um outro lugar, Lázaro dá ordens aos
servos. Compreendo que a casa é rica, e além de rica, senhoril…
… Jesus bebe leite que Lázaro faz questão de servir-lhe pessoalmente,
antes de sentar-se para a refeição da manhã.
Vejo Lázaro virar-se para Simão e o ouço dizer-lhe:
– Encontrei o homem que está disposto a comprar os teus bens e pelo
preço que o teu intendente deu como justo. Não tira nem uma dracma.
– Ele está disposto a observar as minhas cláusulas?
– Está disposto. Aceita tudo para poder ficar naquelas terras. E eu estou
contente com isso, porque ao menos fico sabendo que vizinho é que eu vou
ter. Porém, como tu não queres estar presente à venda, assim também ele
quer continuar sendo um desconhecido para ti. Eu te peço que cedas a este
seu desejo.
– Não vejo motivo para não fazê-lo. Tu, meu amigo, farás as minhas
vezes. Tudo o que fizeres, estará bem feito. Para mim basta que o meu
servo fiel não seja posto na rua… Mestre, eu vendo, e me julgo feliz por
não ter mais nada que me ligue a qualquer coisa que não seja a de estar a
teu serviço. Mas eu tenho um velho servo fiel, o único que ficou comigo,
depois da minha desventura, e que, como eu já te disse, sempre me ajudou,
quando eu vivia segregado, cuidando dos meus bens como se fossem dele,
fazendo-os até passar, com a ajuda de Lázaro, como se fossem seus
próprios, a fim de preservá-los para mim, para que eu pudesse me manter
com eles. Não seria justo que eu o deixasse sem casa, agora que ele está
velho. Determinei que uma pequena casa, na margem dos terrenos, fique de
sua propriedade e que parte do total da venda seja-lhe entregue para o seu
sustento no futuro. Os velhos, sabes, são como a hera. Tendo vivido sempre
em um lugar, sofrem muito ao serem arrancados de lá. Lázaro o queria com
ele, porque Lázaro é bom. Mas preferi fazer assim. O velho sofrerá
menos…
– Tu também és bom, Simão. 84.5Se todos fossem justos como tu, minha
missão seria mais fácil –diz Jesus.
– Achas o mundo rebelde, Mestre? –pergunta Lázaro.
– O mundo?… Não. A força do mundo: satanás. Se ele não fôsse o
dono dos corações, e não se conservasse de posse deles, Eu não encontraria
resistência. Mas o Mal está contra o Bem, e Eu devo vencer o mal em cada
um, para colocar no lugar dele o bem… mas nem todos querem…
– É verdade! Nem todos querem! Mestre, de que palavras usas com
quem é culpado, para convertê-lo, persuadi-lo? Palavras de repreensão
severa, como aquelas que enchem a história de Israel contra os
culpados — e o último a usá-las é o precursor — ou palavras de piedade?
– Eu uso de amor e Misericórdia. Acredita, Lázaro, sobre quem caiu,
tem mais poder um olhar de amor do que uma maldição.
– E se o amor for escarnecido?
– Assim mesmo, insistir. Insistir até o fim. Lázaro, conheces aquelas
terras onde o chão traiçoeiro engole os incautos?
– Sim. Eu li, pois no meu estado leio muito, tanto por gosto, como para
passar as longas horas de insônia já li sobre elas. Sei que há dessas terras na
Síria e no Egito, e outras junto aos Caldeus. E sei que são como ventosas.
Quando pegam alguém, o arrastam para si. Um romano diz que elas são
bocas do inferno, habitadas por monstros pagãos. É verdade?
– Não é verdade. Elas não passam de formações especiais do solo
terrestre. O Olimpo nada tem a ver com elas. Deixarão de crer no Olimpo, e
elas continuarão a existir, o progresso do homem poderá apenas dar
explicação mais verdadeira ao fato, mas não poderá eliminá-lo. Agora Eu te
digo: como leste a respeito disso, terás também lido como é que se pode
salvar a quem tiver caído nessas terras.
– Sim. Com uma corda lançada, amarrada num pau ou num ramo. Às
vezes pouca coisa basta para dar ao que está afundando, aquele mínimo
necessário para segurar-se, para ficar calmo, sem debater-se, à espera de
maiores socorros.
– Pois bem. O culpado, o que está dominado, é como alguém arrastado
pelo solo enganador, coberto de flores à superfície, mas por baixo é uma
lama movediça. Acreditas tu que, se alguém soubesse o que significa ser
minimamente possuído por satanás, ele consentiria? Mas não sabe… e
depois… ou fica paralisado pelo espanto e pelo veneno do Mal, ou fica
enlouquecido, e, para escapar do remorso de sua perdição, se debate,
agarrando-se a uma outra lama, levantando pesadas ondas com seus
movimentos imprudentes, o que sempre mais apressa o seu perecer. O amor
é a corda, o fio, o ramo de que tu falas. É preciso insistir… insistir… até
que o tenha agarrado… uma palavra… um perdão… um perdão maior do
que a culpa, que sirva para impedir a descida e esperar o auxílio de Deus…
Lázaro, tu conheces o poder do perdão? O perdão faz com que Deus ajude a
quem socorre… 84.6 Tu lês muito?
– Muito. Não sei se faço bem. Mas a minha doença e… outras coisas
me privaram de muitos prazeres do homem… Agora não tenho senão a
paixão pelas flores e pelos livros… pelas árvores e também pelos cavalos…
Sei que me criticam. Mas, posso eu andar a pé pelas minhas propriedades,
neste estado (e descobre suas pernas grossas e enfaixadas), ou mesmo
montado em uma mula? Eu preciso usar um carro veloz. Por isso passei a
fazer uso de cavalos, e comecei a gostar deles. Mas, se Tu me dizes que isso
é mal… vou tratar de vendê-los.
– Não, Lázaro. Não são estas coisas que corrompem e sim aquilo que
perturba o espírito afastando-o de Deus.
– Aí está, Mestre. Isto é o que eu queria saber. Eu leio muito. Só tenho
este conforto. Gosto de saber… no fundo, acho que é melhor saber do que
fazer o mal… e que é melhor ler do que… fazer outras coisas. Mas eu não
leio só os nossos livros. Gosto de conhecer também o mundo dos outros,
Roma e Atenas me atraem. Agora eu sei quão grande é o mal que vem a
Israel, ao se corromper com os Assírios e o Egito, e quanto mal nos fizeram
os governos helenizantes. Não sei se um indivíduo poderia fazer o mal que
Judá[7] fez a si e a nós seus filhos. Mas Tu, que pensas? Quero que me
ensines, Tu que não és um rabi, mas o Verbo sábio e divino.
Jesus o olha fixamente por alguns minutos, um olhar penetrante e, ao
mesmo tempo, distante. Parece que Ele, transpassando o corpo opaco de
Lázaro, esteja perscrutando o coração dele e, passando ainda além, veja
quem sabe o que… Finalmente fala:
– As coisas que lês não te perturbam? Não te afastam de Deus e de sua
Lei?
– Não, Mestre. Ao contrário, levam-me a fazer confrontos entre a nossa
verdade e a falsidade pagã. Eu comparo e medito as glórias de Israel, os
seus justos, os patriarcas, os profetas, com as indecorosas figuras das
histórias de outros povos. Comparo a nossa filosofia, se é que assim se pode
chamar a sabedoria dos textos sagrados, com a pobre filosofia grega e
romana, nas quais há centelhas de fogo, mas não a chama viva e firme, que
arde e brilha nos livros dos nossos sábios. E depois, ainda com maior
veneração, eu me inclino com o espírito para adorar o nosso Deus que fala
em Israel, através de atos, pessoas e escritos nossos.
– Então, continua a ler… Isto te servirá para conheceres o mundo
pagão. Continua. Podes continuar. Em ti não há o fermento do mal e da
gangrena espiritual. Por isso, podes ler, sem medo. O amor verdadeiro que
tens ao teu Deus esteriliza os germes profanos que a leitura poderia
disseminar em ti. Em todas as ações do homem há possibilidade de bem ou
de mal, durante seu decorrer. Amar não é pecado, se se ama santamente.
Trabalhar não é pecado, se se trabalha com justiça. Ganhar não é pecado,
para quem se contenta com o que é honesto. Instruir-se não é pecado se,
pela instrução, não se mata em nós a ideia de Deus. Enquanto que pode ser
pecado até servir o altar, se alguém o faz, buscando suas próprias vantagens.
Estás persuadido disto, Lázaro?
– Sim, Mestre. Eu já havia dito isso a outros que acabaram me
desprezando… Mas Tu me dás luz e paz. Oh! Se todos te ouvissem!…
Vem, Mestre. Entre os jasmineiros há brisa e silêncio. Doce é repousar,
esperando a tarde por debaixo de suas frescas sombras.
Saem, e tudo tem fim.
[6] não o era. O não foi acrescentado ao texto manuscrito com escritura que não parece de MV, e encontra-se na cópia
datilografada que MV relia.
[7] Judá é o nome do reino que depois foi chamado Judeia. O mal, a que Lázaro se refere, foi obra dos seus dois ímpios, como se
narra em: 2 Reis 21; 2 Crônicas 33.
85. Antes de ir para o Getsêmani Jesus e o Zelote
sobem ao Templo, onde Iscariotes está falando.
22 de janeiro de 1945.
85.1 Jesus está com Simão em Jerusalém. Passam pelo meio da multidão
dos vendedores e dos burrinhos, que parece uma procissão pela rua, e Jesus
diz:
– Subamos ao Templo, antes de irmos ao Getsêmani. Rezaremos ao Pai
em sua Casa.
– Só isto, Mestre?
– Só isto. Não posso me deter. Amanhã bem cedo haverá o encontro à
porta dos Peixes e, se a multidão insistir, como poderei Eu deixar de ir até
lá? Quero ver os outros pastores. Eu os espalho, como verdadeiros pastores,
pela Palestina, para que reúnam as ovelhas e façam o Dono do rebanho ficar
conhecido, ao menos de nome. Assim, quando Eu disser esse nome, elas
reconheçam que sou Eu o Dono do rebanho, vindo a Mim para receber
carícias.
– É doce ter um Dono como Tu! As ovelhas haverão de te amar.
– As ovelhas… mas não os bodes… Depois de termos visto Jonas,
iremos a Nazaré e a Cafarnaum. Simão Pedro e os outros estão sofrendo
muito nossa ausência… Iremos torná-los felizes e seremos felizes. Até o
verão nos indica isto. A noite foi feita para o repouso, e são muito poucos
os que adiam o repouso pelo conhecimento da Verdade. O homem… oh! o
homem! Ele se esquece demais de que tem uma alma, preocupa-se somente
com a carne. O sol é inclemente, não nos deixa caminhar, impedindo
ensinar nas praças e nas ruas. O que torna os espíritos sonolentos como os
corpos, pelo cansaço. Assim então… vamos ensinar os meus discípulos lá
na doce Galileia, de colinas verdes e de águas frescas. 85.2Já estiveste lá?
– Estive uma vez de passagem, em tempo de inverno, em uma das
minhas peregrinações penosas de um médico a outro. Gostei de lá.
– Oh! É sempre bonita! No inverno, e mais ainda nas outras estações.
Agora, que é verão, tem noites tão angelicais… Sim, parece mesmo que
essas tenham sido feitas para o voo dos anjos, de tão puras que são… O
lago… O lago, dentro do seu círculo de montes mais ou menos próximos,
parece mesmo ter sido feito para falar de Deus às almas que O procuram. É
um pedaço do céu caído entre o verde. O firmamento não o abandona, mas
nele vem espelhar-se com os seus astros, multiplicando-os assim … como
que para apresentá-los ao Criador, astros espalhados sobre uma placa de
safira. As oliveiras abaixam os seus ramos quase até às ondas, cheias de
rouxinóis. Eles também cantam o seu louvor ao Criador, que lhes dá de
viver num lugar tão doce e plácido.
E a minha Nazaré! Toda estendida ao beijo do sol, toda branca e verde,
sorridente entre os dois gigantes, que são o grande e o pequeno Monte
Hermon, pedestal dos montes que sustentam o Tabor, pedestal de doces
declives, todos verdes, que erguem para o sol,seu senhor. Muitas vezes está
coberto de neve, mas tão belo quando o sol ilumina o seu cume, que se
torna, então, de um alabastro rosado, enquanto, do lado oposto, o Carmelo
se torna lápis-lazuli, quando o sol brilha muito e os veios dos mármores e
das águas, dos bosques e dos prados, se mostram em suas diversas cores. É
uma delicada ametista, ao raiar do sol, ou um berilo azul celeste pela tarde,
tornando-se um bloco monolítico de sardônica, quando a lua o mostra todo
escuro, por sobre o lácteo-prateado de sua luz. Depois, lá em baixo, ao sul,
o tapete fértil e florido da planície de Esdrelon.
E depois… oh! Simão! Lá está uma flor! Uma flor que vive solitária,
recendendo pureza e amor pelo seu Deus e pelo seu Filho! Lá está minha
Mãe. Tu a conhecerás, Simão, e me dirás se sobre esta terra há alguma outra
criatura semelhante, mesmo em toda graça humana. Ela é bonita, mas toda
essa beleza é superada por aquilo que emana do seu interior. Se um bruto a
despojasse de todas as suas vestes, a desfigurasse e a fizesse sair errante
pelo mundo, ainda Ela apareceria uma rainha, e em vestes reais, porque sua
santidade lhe serviria de manto e esplendor. O mundo pode fazer-me todo o
mal, mas tudo Eu perdoarei, porque, para poder vir ao mundo e remi-lo, Eu
tive, a humilde e grande Rainha do mundo, que o mesmo ignora, mas foi
por seu intermédio que ele recebeu o Bem, e o receberá, através dos
séculos.
Eis-nos no Templo. Vamos observar a forma judaica do culto. Mas, em
verdade, Eu te digo que a verdadeira Casa de Deus, a Arca Santa é o
coração dela, que tem como véu a carne puríssima, sobre a qual, como um
bordado, estão as suas virtudes.
85.3 Entraram, e vão caminhando para o primeiro patamar. Passam por
um pórtico e se dirigem para um segundo patamar.
– Mestre, olha lá Judas, no meio daquele aglomerado de gente. Lá estão
também os fariseus e os sinedritas. Eu vou escutar o que ele está dizendo.
Tu me deixas?
– Vai. Eu te esperarei junto ao Grande Pórtico.
Simão vai depressa, e coloca-se de modo a poder ouvir, mas sem ser
visto.
Judas fala com grande convicção:
– … aqui há pessoas que todos vós conheceis e respeitais, que podem
dizer quem eu era. Pois bem, eu vos digo que Ele me mudou. O primeiro
redimido sou eu. Muitos entre nós veneram o Batista. Ele também o venera,
chamando-o de “o santo igual a Elias pela missão, mas ainda maior do que
Elias.” Ora, se o Batista é assim, Este que o Batista chama “o Cordeiro de
Deus”, de cuja santidade jura ter visto cingir a coroa de Fogo do Espírito de
Deus, enquanto uma voz dos céus o proclamava “Filho dileto de Deus, que
deve ser ouvido”, Esse não pode ser senão o Messias. E Ele o é o Messias.
Eu vos juro. Não sou um rústico, nem um tolo. Eu pude ver isso em suas
obras e pude ouvi-lo em suas palavras. E vos digo: é Ele o Messias. O
milagre está à sua disposição como um servo à disposição do seu patrão.
Doenças e desventuras, caem como coisas mortas e, surge a alegria e a
saúde. E os corações mudam, ainda mais do que os corpos. Vós podeis ver
isto por mim. Não tendes doentes, nem sofrimentos que pedem alívio? Se
os tendes, vinde amanhã cedo até à porta dos Peixes. Ele lá estará para
fazer-vos felizes. No entanto, eis, em seu nome, vou dar esta ajuda aos
pobres.
E Judas distribui moedas a dois aleijados e a três cegos e, por último,
obriga uma velhinha a aceitar as últimas moedas.
85.4 Depois, despede a multidão, e fica com José de Arimateia,
Nicodemos e outros três que eu não conheço.
– Ah! Agora me sinto bem –exclama Judas–. Não tenho mais nada. E
estou como Ele quer.
– Na verdade, não te reconheço mais. Pensava que fôsse uma
brincadeira. Mas vejo que estás tomando as coisas a sério –exclama José.
– A sério, sim. Oh! Eu sou o primeiro a não me reconhecer. Sou ainda
um animal selvagem e imundo em relação a Ele. Mas já estou muito
mudado.
– E não pertencerás mais ao Templo? –pergunta um dos que
desconheço.
– Oh! Não. Eu sou do Cristo. Quem Dele se aproxima, a menos que
seja uma víbora, não pode não amá-lo. E nada mais deseja, senão a Ele.
– Ele não virá mais aqui? –pergunta Nicodemos.
– Certamente virá. Mas não agora.
– Eu gostaria de ouvi-lo.
– Ele já falou neste lugar, Nicodemos.
– Eu sei. Mas eu estava com Gamaliel… O vi… mas não me detive a
escutá-lo.
– Que disse Gamaliel, Nicodemos?
– Disse: “É algum novo profeta.” Não disse nada mais.
– E tu não lhe disseste aquilo que eu te disse, José? Tu és amigo dele…
– Eu disse. Mas ele me respondeu: “Nós já temos o Batista e, segundo
as doutrinas dos escribas, devem-se passar pelo menos cem anos entre um e
outro, a fim de se fazer a preparação do povo para a vinda do Rei. Eu acho
que é necessário menos tempo.” Ele acrescentou: “porque o tempo já se
completou.” E terminou dizendo: “Eu, porém, não posso admitir que o
Messias se manifeste assim… Um dia pensei que começasse a manifestação
messiânica, porque o seu primeiro esplendor era verdadeiramente um
relâmpago no céu, mas depois… fez-se um grande silêncio, e eu acho que
me enganei.”
– Experimenta falar disso outra vez. Se Gamaliel estivesse conosco e
vós com ele…
– Eu não vo-lo aconselho –objeta um dos três desconhecidos–. “O
Sinédrio é poderoso, e Anás o dirige com astúcia e avidez. Se o teu Messias
tiver amor à vida, eu o aconselho a permanecer obscuro. A não ser que ele
se imponha pela força. Mas aí, nesse caso, aí estará Roma…”
– Se o Sinédrio o ouvisse, se converteria ao Cristo.
– Ah! Ah! Ah! –riem os três desconhecidos dizendo–: Judas,
pensávamos que estivesses mudado, mas que ainda fosses inteligente. Se
for verdade o que dizes Dele, como podes pensar que o Sinédrio o siga?
Vem, vem José. É melhor para todos. Deus te proteja, Judas. Estás
precisando disso.
E lá se vão. Judas fica sozinho com Nicodemos.
85.5Simão se afasta dali sem fazer barulho, e vai ao encontro de Jesus.
– Mestre, eu me acuso por haver cometido o pecado de calúnia com a
palavra e com o coração. Aquele homem me desorienta. Eu pensava que ele
fôsse quase um inimigo teu, mas eu o ouvi falar de Ti de tal modo, que
poucos dentre nós o fazem, especialmente neste lugar, onde o ódio poderia
suprimir primeiro o discípulo, e depois o Mestre. E o vi dar dinheiro aos
pobres, e tentar convencer os sinedritas…
– Estás vendo, Simão? Eu estou contente que tu o tenhas visto num
momento assim. Dirás isto também aos outros, quando o acusarem.
Bendigamos ao Senhor por esta alegria que me estás dando, pela tua
honestidade em dizeres que pecaste, e pelo trabalho do discípulo, que
pensavas ser mau, e não é.
Rezam por muito tempo, e depois saem.
– Ele não te viu?
– Não. Tenho certeza disso.
– Não lhe digas nada. É uma alma muito doente. Um elogio seria como
um alimento dado a alguém que está convalescendo de uma febre alta e
com o estômago ainda enfraquecido. Faria com que ele piorasse, porque se
enalteceria ao ver-se notado. E onde entra o orgulho…
– Eu ficarei calado. 85.6Para onde vamos?
– Vamos procurar João. Numa hora de calor como esta, ele deve estar
na casa do Olival.
Vão apressados, procurando alguma sombra, pelas estradas que
parecem incendiadas pelo calor do sol. Passam pelo subúrbio poeirento,
pela porta do grande muro, saem no campo cheio de luz ofuscante, chegam
das oliveiras, chegam à casa.
Na cozinha, fresca e escura pela cortina colocada à porta, está João, que
cochila. Jesus o chama:
– João!
– És Tu, Mestre? Eu estava te esperando hoje à tarde…
– Eu vim antes. Como tens passado, João?
– Como uma ovelha que perdeu seu pastor. Estive falando a todos de
Ti, porque falar de Ti era para mim, de certo modo, ter-te comigo. Falei a
alguns parentes, a conhecidos e a estranhos. Também a Anás… E a um
aleijado do qual, me tornei amigo, com três denários, que eu havia ganho, e
doei a ele. Também falei de Ti a uma pobre mulher, da idade de minha mãe,
que chorava numa roda de mulheres, à frente de uma porta. Eu lhe
perguntei: “Por que choras?” E ela falou: “O médico disse: ‘Tua filha está
tuberculosa. Conforma-te. Nas primeiras chuvas de outubro, ela morrerá’.
Ela é a única que tenho: bonita, boa tem quinze anos. Devia ficar noiva na
primavera, mas, ao invés do baú para o enxoval, vou ter que lhe preparar
um sepulcro.” Eu disse a ela: “Eu conheço um Médico que a pode curar, se
tiveres fé.” “Ninguém mais a pode curar. Três médicos a examinaram.
Cospe já sangue.” “Mas o meu”, disse, “não é um médico como os teus. Ele
não cura com remédios, mas com o seu poder. É o Messias…” Então, uma
velhinha disse: “Oh! Acredita Elisa! Eu conheço um cego que recebeu a
vista, por meio Dele!” E a mãe então passou da desconfiança à esperança, e
te está esperando… Fiz bem? Não fiz mais do que isto.
– Fizeste bem. À tarde iremos às casas dos teus amigos. Não viste mais
Judas?
– Não vi, Mestre. Mas ele me manda alimentos e denários que dei aos
pobres. Ele me mandou dizer que fizesse uso deles, porque eram seus.
– É verdade. João, amanhã vamos para a Galileia…
– Fico alegre com isto, Mestre. Penso em Simão Pedro. Quem sabe
como ele te espera! Iremos passar também por Nazaré?
– Iremos. Lá faremos uma parada à espera de Pedro, André e de teu
irmão Tiago.
– Oh! Ficaremos na Galileia?
– Ficaremos lá por algum tempo.
João se sente feliz. E com essa sua felicidade, tudo termina.
86. O encontro com o soldado Alexandre
na porta dos Peixes.
24 de janeiro de 1945.
86.1 Mais uma aurora. Novamente as filas de burrinhos que se
aglomeram junto à porta ainda fechada. Jesus continua com Simão e João.
Alguns vendedores o reconhecem e se ajuntam ao seu redor.
Também um soldado da guarda corre até Ele, logo que a porta foi
aberta e o vê. Saúda-o:
– Salve, ó Galileu! Diz à estes irrequietos que sejam menos rebeldes.
Eles se queixam de nós. Mas não fazem senão maldizer-nos e desobedecer.
E dizem que isto é culto para eles. Que religião é esta se é fundada na
desobediência?
– Compadece-te deles, soldado. São como aqueles que têm em sua casa
um hóspede não desejado e mais forte do que eles. E não podem vingar-se,
a não ser com a língua e com a birra.
– Sim. Mas nós temos que cumprir nosso dever. Então temos que puni-
los. Tornando-nos cada vez mais hóspedes indesejados.
– Tens razão. Tu deves cumprir o teu dever. Mas faz isto sempre com
humanidade. Pensa sempre: “Se eu estivesse no lugar deles, que faria?”
Verás então, como sentirás piedade dos indivíduos.
– Agrada-me ouvir-te falar. Tu falas sem desprezo e sem arrogância. Os
outros palestinos nos cospem por trás, nos insultam, mostram nojo por
nós… a não ser quando tem que esfolar-nos em regra, pelo favor de alguma
mulher, ou alguma compra. Então o ouro de Roma não lhes causa mais
nojo.
– O homem é o homem, soldado.
– Sim. E é mais mentiroso do que o macaco. Não é agradável, porém,
estar entre pessoas que são como uma serpente na emboscada… Nós
também temos casas e mães e esposas e filhos, e a vida nos é preciosa.
– Se cada um se lembrasse disto, não haveria mais ódio. Tu disseste:
“Que religião eles tem?” Eu te respondo: uma religião santa, cujo primeiro
mandamento é o amor para com Deus e para com o próximo. Uma religião
que ensina a obediência às leis. Mesmo às leis de Estados inimigos.
86.2 Porque, ouvi, ó meus irmãos de Israel, nada acontece sem que Deus
o permita. Até as dominações: desventuras incomparáveis, para um povo.
Mas quase sempre, se este povo se examinar bem, poderá dizer que tais
desventuras foram procuradas por ele mesmo, pelos seus modos de viver,
contrários a Deus. Lembrai-vos dos Profetas. Quantas vezes eles falaram
sobre isto! Quantas vezes mostraram com os fatos passados, presentes e
futuros que o dominador é o castigo, a vara do castigo nas costas do filho
ingrato. E quantas vezes os fatos ensinaram o modo de não ser corrigidos
mais: voltar ao Senhor. Não é a rebelião nem a guerra que cura feridas e
lágrimas, soltando correntes. Mas, sim, o viver como justos. Então, Deus
intervém. O que podem armas e tropas de soldados contra os fulgores das
cortes angélicas, que lutam em favor dos bons? Estamos sendo golpeados?
Procuremos merecer não sê-lo mais, vivendo como filhos de Deus. Não
reforceis as vossas correntes com pecados sempre novos. Não permitais que
os pagãos creiam que sois sem religião, ou mais pagãos do que eles, por
causa do vosso modo de viver. Sois o povo que recebeu a Lei do próprio
Deus. Observai-a. Fazei que os dominadores também se inclinem diante de
vossas correntes, dizendo: “São subjugados, mas são maiores do que nós,
de uma grandeza que não está no número, nem no dinheiro, nem nas armas,
nem no poder, mas vem de Deus. Aqui brilha a divina paternidade de um
Deus perfeito, santo, poderoso. Aqui está o sinal de uma verdadeira
Divindade. Transparece em seus filhos”. Meditem sobre isto, e venham para
a verdade do verdadeiro Deus, deixando o erro. Cada um, até o mais pobre,
até o mais ignorante do povo de Deus, pode ser mestre para um pagão,
mestre com a sua maneira de viver e de falar sobre Deus com uma vida
santa.
Ide. A paz esteja convosco.
86.3 – Judas está atrasado, e os pastores também –observa Simão.
– Esperas alguém, Galileu? –pergunta o soldado, que ficou escutando
tudo atentamente.
– Sim. Uns amigos.
– Entra no corredor que está fresco. O sol está muito quente, desde as
primeiras horas da manhã. Vais para a cidade?
– Não. Volto para a Galileia.
– Vais a pé?
– Sou pobre: a pé.
– Tens mulher?
– Tenho Mãe.
– Eu também. Vem… se não tens nojo de nós, como os outros.
– Só a culpa é que me causa aversão.
O soldado o olha, admirado e pensativo:
– Contigo, não precisaríamos intervir nunca. A espada nunca se
levantará contra Ti. És bom. Mas os outros!…
Jesus está na penumbra do corredor. João está do lado que dá para a
cidade. Simão sentou-se sobre uma pedra que serve de banco.
– Como te chamas?
– Jesus.
– Ah! És aquele que faz milagres até sobre os doentes? Eu pensava que
fosses apenas um mago… Desses nós também temos. Um mago bom,
porém. Porque há alguns… Mas os nossos não sabem curar os doentes.
Como é que Tu fazes?
Jesus sorri e fica calado.
– Usas fórmulas mágicas? Tens também unguentos de miolos de
mortos, cobras secas e reduzidas a pó, pedras mágicas apanhadas nas
cavernas dos pitões?
– Nada disso. Tenho só o meu poder.
– Então és mesmo santo. Nós temos os arúspices e as vestais… alguns
deles fazem prodígios… dizem que são os mais santos. Mas, crês Tu neles?
São piores que os outros.
– E, então, por que o venerais?
– Por que… é a religião de Roma! E, se um súdito não respeita a
religião do seu Estado, como poderá respeitar César, a pátria, e assim por
diante, tantas outras coisas?
Jesus olha fixamente para o soldado:
– Em verdade, tu já estás adiantado no caminho da justiça. Prossegue,
soldado, e chegarás a conhecer o que a tua alma percebe ter em si, sem
saber dar um nome a essa coisa que sente.
– A alma? O que é a alma?
– Quando morreres, para onde irás?
– Ora… eu não sei! Se eu morrer como herói, irei ficar sobre a pira dos
heróis… se eu me tornar um pobre velho, um nada, talvez vá apodrecer em
minha choça, ou à beira de alguma estrada.
– Isto é quanto ao teu corpo. Mas, tua alma, aonde irá?
– Não sei se todos os homens têm alma, ou se a têm somente aqueles
que Júpiter destina aos Campos Elíseos, depois de uma vida prodigiosa,
ainda que não os leve para o Olimpo, como aconteceu com Rômulo.
– Todos os homens têm uma alma. E a alma é o que distingue o homem
do animal. Gostarias de ser semelhante a um cavalo? A um pássaro? A um
peixe? Carne que, morrendo, é apenas podridão?
– Oh! Não. Eu sou homem, e gosto de ser o que sou.
– Pois bem, o que faz de ti um homem é a tua alma. Sem ela não serias
nada mais do que um animal falante.
– E onde ela está? Como ela é?
– Ela não tem corpo, mas existe. Está em ti. Provém Daquele que criou
o mundo, e a Ele retorna, depois da morte do corpo.
– Ela vem do Deus de Israel, segundo vós.
– Do Deus único, uno, eterno, supremo Senhor e Criador do universo.
– Também um pobre soldado como eu, tem uma alma, ela volta para
Deus?
– Sim. Também um pobre soldado. E a sua alma terá Deus como
Amigo, se ela tiver sido sempre boa, ou terá a Deus como Juiz, se tiver sido
má.
86.4 – Mestre, eis Judas com os pastores e algumas mulheres. Se vejo
bem, aquela é a menina de ontem –diz João.
– Eu vou indo, soldado. Procura ser bom.
– Eu não te verei mais? Queria saber ainda….
– Eu fico na Galileia até setembro. Se puderes, vai até lá. Em
Cafarnaum ou em Nazaré, te darão notícias de Mim. Em Cafarnaum,
pergunta pelo Simão Pedro. Em Nazaré, pela Maria do José. É minha Mãe.
Vai lá. Eu te falarei do Deus verdadeiro.
– Simão Pedro… Maria do José. Eu irei, logo que puder. E, se voltares,
lembra-te do Alexandre. Eu faço parte da centúria de Jerusalém.
Judas e os pastores já estão no corredor.
– Paz a todos vós –diz Jesus.
E quereria falar outras palavras, porém uma mocinha franzina, mas
sorridente, passa pelo meio do grupo e vai lançar-se aos seus pés:
– A tua bênção de novo sobre mim, Mestre e Salvador, e o meu beijo de
novo para Ti.
E lhe beija as mãos.
– Vai. Sê alegre, boa. Boa filha, depois boa esposa, e depois, boa mãe.
Ensina aos teus pequenos, que de ti irão nascer, o meu Nome e a minha
doutrina. Paz a ti e à tua mãe. Paz e bênção a todos os que são amigos de
Deus. Paz a ti também, Alexandre.
E Jesus se afasta dali.
86.5 – Nós nos atrasamos. Mas aquelas mulheres nos assediaram, explica
Judas. Elas estavam no Getsêmani, e queriam ver-te. Nós tínhamos ido lá,
sem saber um do outro, para viajarmos junto Contigo. Mas Tu já tinhas ido
embora, e ao invés disso, elas estavam lá. Nós queríamos deixá-las… Mas
eram mais insistentes do que moscas. Queriam saber tantas coisas…
Curaste a menina?
– Sim.
– Falaste ao romano?
– Sim. É um coração honesto. E procura a Verdade.
Judas suspira.
– Por que suspiras, Judas? –pergunta Jesus.
– Suspiro porque… eu gostaria que tivessem sido os nossos que
procurassem a Verdade. Mas, ao contrário, eles a evitam, a escarnecem, ou
ficam indiferentes. Estou desanimado. Tenho vontade de não voltar a pôr os
pés aqui e de não fazer outra coisa, a não ser escutar-te. Tanto mais que,
como discípulo, não consigo fazer nada.
– E tu achas que Eu consiga muito? Não desanimes, Judas. São as lutas
do apostolado. Mais derrotas que vitórias. Derrotas aqui. Lá em cima são
sempre vitórias. O Pai vê a tua boa vontade e, mesmo que não consigas, te
abençoa do mesmo modo.
– Oh! Tu és bom!
Judas beija-lhe a mão.
– Será que me tornarei bom algum dia?
– Sim, se o quiseres.
– Penso ter sido nestes dias… sofri para procurar sê-lo… porque eu
tenho muitos desejos… mas tenho ficado sempre pensando em Ti.
– Persevera, então. Tu me estás dando muita alegria. E vós, que notícias
me dais? –pergunta aos pastores.
– Elias te manda saudações e um pouco de alimento. E manda dizer-te
para não esquecê-lo.
– Oh! Eu tenho no coração os meus amigos! Vamos até aquela pequena
vila cercada de verde. Depois à tarde continuaremos a viagem. Sinto-me
feliz por estar convosco, por estar indo ver minha Mãe e por ter transmitido
a Verdade a um honesto. Sim, Eu me sinto feliz. Se soubésseis o que é para
Mim realizar a missão, e ver que os corações acorrem a ela (ou seja, ao Pai)
como haveríeis de seguir-me sempre mais com o espírito!…
Não vi mais nada.
87. Com pastores e discípulos perto de Doco.
Isaque fica na Judeia.
25 de janeiro de 1945.
87.1 – Eu te digo, Mestre, que os humildes são os melhores. Esses, a
quem eu me dirigi, receberam-me com escárnio e menosprezo. Oh! Os
pequenos de Juta!
Isaque fala a Jesus. Todos estão em roda, sobre a erva da beira do rio.
Isaque parece estar prestando conta dos seus trabalhos.
Judas intervém e, caso raro, chama o pastor pelo nome:
– Isaque, eu penso como tu. Nós perdemos tempo e fé, lidando com
esta gente. Eu desisto.
– Eu não. Mas sofro com isso. Renunciarei só se o Mestre assim
mandar. Estou acostumado, há anos, a sofrer por fidelidade à verdade. Não
poderia mentir só para cair nas graças dos poderosos. Sabes quantas vezes
vieram, para zombarem de mim, em meu quarto de doente, prometendo-me
(oh! certamente falsas promessas) ajudar-me, se eu dissesse que tinha
mentido, e que Tu, Jesus, não eras Tu, o Salvador recém-nascido? Mas eu
não podia mentir. Mentir teria sido renegar a minha alegria, teria sido matar
minha única esperança, teria sido rejeitar-te, ó meu Senhor! Rejeitar-te! Na
escuridão da minha miséria, na esqualidez de minha doença, eu tinha
sempre um céu cheio de estrelas: o rosto de minha mãe, única alegria da
minha vida de órfão, o rosto de uma esposa que nunca foi minha, e à qual
eu devotei amor, até além da morte. Estas são as duas estrelas menores.
Depois, duas estrelas maiores, iguais a puríssimas luas: José e Maria, que
sorriam para o Recém-Nascido e para nós, pobres pastores, e fulgente, no
centro do céu, que era o meu coração, o teu rosto inocente, suave, santo,
santo, santo. Não podia rejeitar este meu céu! Não queria privar-me de sua
luz, que outra mais pura não há. Eu teria rejeitado a vida, mesmo que fôsse
entre tormentos, rejeitando-Te, minha bendita lembrança, meu Jesus
Recém-Nascido!
Jesus pousa sua mão sobre o ombro de Isaque, e sorri.
Judas fala ainda:
– E, então, tu insistes?
– Eu insisto. Hoje, amanhã e depois de amanhã. Alguém virá.
– Quanto tempo durará este trabalho?
– Não sei. Mas podes crer. Basta não olhar para a frente, nem para trás.
Construir dia após dia. Se, ao chegar a tarde, tivermos conseguido algum
resultado, dizer: “Obrigado, meu Deus”; e se não tivermos conseguido
resultado, dizer: “Espero na tua ajuda para amanhã.”
– És sábio.
– Nem sei o que quer dizer isso. Mas em minha missão faço o que fiz
em minha doença. Quase trinta anos de enfermidade não são um dia!
– É. Acredito! Eu não tinha ainda nascido, e tu já estavas enfermo.
– Estava enfermo. Mas nunca contei aqueles anos. Nunca disse: “Eis
que volta Nisam, e eu não refloresço com as roseiras. Eis que volta Tisri, e
eu ainda aqui nesta languidez.” Prosseguia só falando Dele à mim mesmo e
às pessoas boas. Percebia que os anos iam passando, porque os que eram
antes pequeninos vinham trazer-me os seus doces de casamento ou do
nascimento de seus filhos. Agora, se olho para trás, agora que me tornei
jovem de novo, o que vejo do passado? Nada.Tudo passou.
– Nada vês aqui. Mas no céu tudo permanece para ti, Isaque, e aquele
tudo te espera –diz Jesus.
87.2 Depois, falando a todos:
– É preciso fazer assim. Eu também faço assim. Ir avante. Sem
canseiras. A canseira é ainda uma raiz da soberba humana. Assim também é
a pressa. Por que é que nos aborrecem as derrotas, por que nos inquietam,
quando as coisas vão devagar? Porque o orgulho diz: “Dizer ‘não’ a mim?
Fazer-me esperar tanto? Isto é uma falta de respeito para com o apóstolo de
Deus.” Não, meus amigos. Olhai para todas as criaturas e pensai em Quem
as fez. Meditai nos progressos do homem, e pensai em sua origem. Pensai
na chegada desta hora, e calculai quantos séculos a precederam. A criatura é
obra de uma serena criação. O Pai não fez nada desordenadamente, mas
criou sucessivamente as criaturas. O homem (o atual) é obra de um paciente
progredir e sempre mais progredirá no saber e no poder. O homem será
santo ou não, segundo o seu querer. Ele não se tornou sábio de repente. Os
primeiros homens, tendo sido expulsos do Jardim, tiveram que aprender
tudo, lentamente, continuamente. Aprender até as coisas mais simples: o
grão de trigo é melhor se esfarinhado, depois amassado e, por fim, assado.
Aprender como esfarinhá-lo e como assá-lo. Aprender como acender o
fogo. Aprender como se faz uma veste, olhando a pelagem dos animais.
Como se vive em uma caverna, observando as feras. Como se faz uma
enxerga, observando os ninhos. Aprender a curar-se com as ervas e as
águas, observando os animais que com elas se curam por instinto. Aprender
a viajar pelos desertos e pelos mares, estudando as estrelas, domando os
cavalos, aprendendo o equilíbrio nas águas, o que lhe foi ensinado por uma
casca de noz, flutuante sobre as águas de um rio. Quantas derrotas, antes de
conseguir! Mas conseguiu. E irá além, embora não será mais feliz por isso,
pois se tornará mais conhecedor do mal que do bem. Contudo, progredirá.
A Redenção, não é uma obra de paciência? Ela foi decidida há séculos e
séculos, e, mais do que decidida, eis chegou a hora que os séculos
prepararam. Tudo é paciência. Para que então, ser impacientes? Não podia
Deus fazer tudo num instante? Não podia o homem, dotado de razão, saído
das mãos de Deus, saber tudo num instante? Não podia Eu ter vindo no
começo dos séculos? Tudo isso podia ser. Mas nada há de ser feito com
violência. Nada. A violência é sempre contrária à ordem; e Deus, e o que
vem de Deus, é ordem. Não queirais ser mais do que Deus.
87.3 – Mas, então, quando é que serás conhecido?
– Por quem, Judas?
– Ora, pelo mundo.
– Nunca.
– Nunca? Tu não és o Salvador?
– Sou eu. Mas o mundo não quer ser salvo. Somente na proporção de
um em mil há os que querem me conhecer; e de um em dez mil os que me
seguirão realmente. Isto, considerando uma proporção ainda muito alta.
Não serei conhecido nem mesmo pelos meus mais íntimos.
– Mas, se eles são teus íntimos, te conhecerão!
– Sim, Judas. Eles me conhecerão como Jesus, o israelita Jesus, mas
não me conhecerão como Aquele que sou. Em verdade, vos digo que não
serei conhecido por todos os meus íntimos. Conhecer quer dizer amar com
fidelidade e virtude… e haverá quem não me conhecerá.
Jesus está fazendo aquele seu gesto de um resignado desânimo, que
sempre faz, quando anuncia a futura traição: abre as mãos e as conserva
assim viradas para fora, com o rosto amargurado, que não olha nem os
homens, nem o céu, mas somente o seu futuro destino de Traído.
– Não digas isto, Mestre –suplica-lhe João.
– Nós te seguiremos para conhecer-te sempre mais –diz Simão, e com
ele fazem coro os pastores.
– Seguimos a ti. como uma esposa, e és mais caro para nós do que ela:
temos mais ciúmes de Ti do que da nossa mulher. Oh! Não. Nós já te
conhecemos tanto, que não podemos mais deixar de continuar a conhecer-
te. Ele (Judas indica Isaque) diz que renegar a tua lembrança de Recém-
Nascido teria sido uma dor mais atroz do que de perder a vida. E não
passavas de um recém-nascido. Nós temos a Ti, Homem e Mestre. Nós te
ouvimos e vemos as tuas obras. O teu contato, o teu hálito, o teu beijo são a
nossa contínua consagração e a nossa contínua purificação. Só um satanás
poderia renegar-te, depois de ter sido um dos teus íntimos!
– É verdade, Judas. Mas haverá alguém assim.
– Ai dele! Eu serei o seu carrasco –exclama João de Zebedeu.
– Não. Deixa a justiça para o Pai. Torna-te o seu redentor. O redentor
desta alma que tende para satanás. 87. 4 Saudemos Isaque agora. A tarde
chegou. Eu te abençoo, servo fiel. Sabes agora que Lázaro de Betânia é
nosso amigo, e quer ajudar os meus amigos. Eu me vou. Tu ficas. Ara o
terreno árido de Judá para Mim. Depois Eu virei. Tu sabes, em caso de
necessidade, onde poderás encontrar-me. A minha paz esteja contigo.
E Jesus abençoa, beijando o seu discípulo.
88. Na planície de Esdrelon. O amor de João
e os poucos como ele. Visita ao pastor Jonas.
26 de janeiro de 1945.
88.1 Por uma pequena vereda entre campos abrasados, cheios de
restolhos e grilos, Jesus caminha, tendo ao lado, Levi e João. Atrás, em
grupo, estão: José, Judas e Simão.
É noite. Mas não há refrigério. A terra é um fogo que continua a
queimar, mesmo depois do incêndio do dia. O orvalho nada pode contra
este abrasamento. Acho que tudo seca, antes mesmo de tocar o chão, tão
grande é o ardor que sai dos sulcos e das fendas do solo.
Todos se calam, cansados e acalorados. Mas vejo Jesus sorrir. A noite é
clara, ainda que a lua minguante esteja apenas começando a aparecer lá no
extremo oriente.
– Achas que ele estará aqui? –pergunta Jesus a Levi.
– Estará com certeza. A este ponto, já está feita a colheita dos cereais,
embora nem se começou ainda a colheita das frutas. Por isso, os
camponeses estão ocupados em vigiar os vinhedos e pomares, evitando
predadores, e não se afastam, especialmente quando os patrões são
exigentes, como é o de Jonas. Samaria fica perto daqui e, quando aqueles
renegados podem, nos prejudicam com gosto, a nós de Israel. Não sabem
que os servos depois vão ser espancados? Sim, que o sabem. Mas nos
odeiam, esta é a verdade.
– Não tenhas ódio, Levi –diz Jesus.
– Não tenho. Mas verás como, por culpa deles, Jonas foi ferido, há
cinco anos. Desde então, ele passa as noites de guarda. Porque o flagelo é
um suplício cruel…
– Falta ainda muito para chegarmos?
– Não, Mestre. Estás vendo lá onde termina esta pobre terra, naquele
montão escuro? Lá estão os pomares de Doras, o duro fariseu. Se me
deixas, vou na frente para fazer que Jonas me ouça.
– Vai.
88.2 – Mas, os fariseus são todos assim, meu Senhor? –pergunta João–.
Oh! Eu não queria estar a serviço deles! Prefiro o meu barco.
– O barco, é o teu tudo? –pergunta Jesus, semi-sério.
– Não, és Tu! O barco era meu tudo, quando eu não sabia que existia o
Amor sobre a terra –responde prontamente João.
Jesus ri da sua veemência.
– Não sabias que sobre a terra existia o amor? E, então, como nasceste,
se teu pai não amou a tua mãe? –pergunta Jesus, como por brincadeira.
– Aquele amor é bonito, mas não me seduz. Tu és o meu amor. Tu és o
Amor na terra para o pobre João.
Jesus o aperta contra si, e diz:
– Eu queria ouvir-te dizer isso. O Amor é ávido de amor, e o homem à
sua avidez dá e dará sempre gotas imperceptíveis como aquelas que caem
do céu. São tão fracas, que se consomem no ar, nas chamas do verão.
Também as gotas de amor dos homens se consumirão no ar, mortas pelas
chamas de muitas coisas. O coração as espremerá ainda, mas os interesses,
os amores, os negócios, a avidez, tantas coisas humanas, as queimarão. E o
que então subirá a Jesus? Oh! Muito pouca coisa! Os restos, os
sobreviventes as palpitações humanas, as interesseiras palpitações somente
para pedir, quando urge a necessidade. Amar-me mesmo, só por amor, será
coisa de poucos: dos Joãos… Olha uma espiga que tornou a nascer. Talvez
tenha sido uma semente que caiu na hora da ceifa. Soube nascer, resistir ao
sol, à seca, levantar-se, crescer, produzir espiga… Olha, já está formada.
Nestes campos despojados somente ela está viva. Daqui a pouco, os grãos
maduros cairão no chão, rompendo a casca lisa que os conserva presos ao
caule, e serão caridade para os passarinhos, ou então, produzindo cem por
um, renascerão ainda e, antes que o inverno traga de volta o arado à
lavoura, estarão de novo maduros e matarão a fome de muitos pássaros, que
já estarão sofrendo a fome das mais tristes estações… Vê, meu João, quanto
pode fazer uma semente corajosa! Assim serão os poucos que me amarão
por amor. Um só matará a fome de muitos. Um só tornará bonito o lugar
onde está, onde antes reinava a feiura do nada. Um só dará vida ao lugar
onde antes havia morte, atraindo os famintos. Comerão do grão produzido
pelo trabalho do seu amor, e depois, egoístas e distraídos, voarão para
longe. Mas, ainda que eles não o saibam, aquele grão vai criar germes vitais
no sangue deles e em seu espírito… e voltarão… Hoje, amanhã e depois
também, como dizia Isaque, aumentar-se-á nos corações o conhecimento do
Amor. O caule, despojado, não será mais nada. Um fio de palha queimada.
Mas, quanto bem advirá do seu sacrifício! E, pelo seu sacrifício, quanta
recompensa!
Jesus havia parado um instante, diante de uma fina espiga nascida à
beira do caminho, num pequeno rego que, em tempos de chuva, talvez fôsse
um riacho. Depois prosseguiu, sendo sempre ouvido por João em sua
costumeira pose de namorado, que bebe não só as palavras, mas os gestos
do amado.
Os outros, que falam entre si, nem percebem aquele doce colóquio.
Acabam de chegar ao pomar, e param, reunindo-se todos. O calor é tal, que
eles suam, não obstante estejam sem os mantos. Calam-se e ficam
esperando.
88.3 Da densa escuridão, que a lua agora começa a iluminar, surge o vulto
claro de Levi e, atrás, um outro mais escuro:
– Mestre, aqui está Jonas.
– A minha paz esteja contigo! –saúda Jesus, antes mesmo que Jonas o
alcance.
Mas Jonas não responde. Corre e se lança chorando aos seus pés e os
beija. Quando pode falar, diz:
– Quanta espera por Ti! Quanta! Quanto desgosto sentir a vida passar, a
morte chegar, e ter que dizer: “Eu não o vi!” Contudo, nem toda a esperança
estava morrendo. Nem mesmo quando estive para morrer. “Ela tinha dito:
‘Vós ainda o servireis’, e Ela não pode ter dito uma coisa que não seja
verdade. É a Mãe do Emanuel. Por isso ninguém mais do que Ela tem Deus
consigo, sabe o que é de Deus.”
– Levanta-te. Ela te manda saudações. Moraste perto dela e agora estás
também morando perto. Nazaré a hospeda.
– Tu! Ela! Em Nazaré? Oh! Se eu o tivesse sabido! De noite, nos frios
meses gelados, quando dorme o campo e os malvados não podem
prejudicar os cultivadores, eu teria ido, correndo, beijar vossos pés, e teria
voltado de lá com o tesouro de uma certeza. Por que não te manifestaste,
Senhor?
– Porque não era hora ainda. Agora, a hora chegou. É preciso saber
esperar. Tu disseste: “Nos meses gelados, quando o campo dorme.” No
entanto já está semeado, não é verdade? Pois bem, Eu também era como o
grão já semeado. E tu me havias visto no ato da semeadura. Depois, Eu
desapareci. Sepultado debaixo de um necessário silêncio. Para crescer e
chegar ao tempo da seara, brilhando aos olhos de quem me tinha visto
Recém-Nascido, e aos olhos do mundo. Este tempo chegou. Agora o
Recém-Nascido está pronto para ser o Pão do mundo. E, em primeiro lugar,
procuro os meus fiéis, dizendo-lhes: “Vinde. Alimentai-vos de Mim.”
O homem o escuta, sorrindo feliz, e continua a dizer, como se estivesse
falando consigo mesmo:
– Oh! Estás mesmo aí! Estás mesmo aí!
– Estivestes para morrer? Quando?
– Quando eu fui fustigado até quase morrer, porque me tinham
saqueado duas vinhas. Olha quantas feridas! Abaixa a veste e mostra as
costas marcadas por cicatrizes irregulares. Ele me bateu com um açoite de
ferro. Contou os cachos apanhados — via-se onde o pedúnculo tinha sido
arrancado — e me deu uma vergastada por cada cacho. E depois, deixou-me
lá, semimorto. Maria me socorreu, a jovem esposa de um meu
companheiro, que sempre me quis bem. Seu pai era o feitor antes de mim, e
eu, quando vim para aqui, me afeiçoei à menina, porque se chamava Maria.
Cuidou de mim, e me curei, depois de dois meses, pois, com o calor, as
feridas haviam se agravado, e me causavam febre alta. Eu disse ao Deus de
Israel: “Não importa. Faz que eu reveja o teu Messias. Não me importa este
mal. Aceita-o como um sacrifício. Não posso mais oferecer-te outros
sacrifícios. Sou servo de um homem cruel e Tu o sabes. Nem mesmo na
Páscoa ele me permite ir ao teu altar. Toma-me como hóstia, mas em troca
dá-me Ele!”
– E o Altíssimo te fez contente. 88.4Jonas, queres servir-me, como os
teus companheiros já fazem?
– Oh! Como farei?
– Como eles fazem. Levi sabe, e te dirá quanto é simples servir-Me.
Quero só a tua boa vontade.
– A boa vontade te dei, desde os teus primeiros balbucios. Por ela, tudo
superei, tanto os desânimos, como os ódios. Aqui não se pode falar muito…
O patrão uma vez me chutou, porque eu insistia que Tu já estavas aqui.
Mas, quando ele estava longe, eu contava o prodígio daquela noite às
pessoas que podia confiar.
Agora contarás então o prodígio deste meu encontro. Encontrei-vos
quase todos, e todos fiéis. Não é isto um prodígio? Só por me terdes
contemplado com fé e amor, vos tornastes justos aos olhos de Deus e dos
homens.
– Oh! Agora terei coragem! Muita coragem! Agora eu sei que estás
aqui e posso dizer: “Ele está lá. Ide a Ele!…” Mas onde, meu Senhor?
– Por todo Israel. Até setembro, estarei na Galileia. Nazaré e
Cafarnaum me terão frequentemente e lá poderás encontrar-me. Depois…
estarei por toda parte. Eu vim para reunir as ovelhas de Israel.
– Oh! Meu Senhor! Encontrarás muitos bodes. Desconfia dos grandes
de Israel!
– Não me farão nada de mal, enquanto não chegar a hora. E tu, aos
mortos, aos que estão dormindo, e aos vivos, irás dizer: “O Messias está
entre nós.”
– Aos mortos, Senhor?
– Aos mortos da alma. Os outros, os justos mortos no Senhor já vibram
de alegria por causa de sua próxima libertação do limbo. Diz aos mortos:
“Eu sou a Vida.” Diz aos que estão dormindo: “Eu sou o Sol que surge, para
fazê-los despertar do sono.” Diz aos vivos: “Eu sou a Verdade que eles
procuram.”
– E curas também os doentes? Levi falou-me de Isaque. Foi só para ele
que fizeste um milagre, por ser um dos teus pastores, ou fazes para todos?
– Para os bons, o milagre é como um justo prêmio. Para os menos bons,
é para impeli-los à verdadeira bondade. Para os maus também, às vezes
para sacudi-los e persuadi-los de que Eu sou, e que Deus está Comigo. O
milagre é um dom. E o dom é para os bons. Mas Aquele que é Misericórdia,
e vê como a natureza humana arca sob uma pesada carga, sem poder ser
removida, a não ser por algum acontecimento poderoso, recorre também a
isso, para dizer: “Tudo eu fiz convosco, e nada valeu. Dizei portanto, vós
mesmos, que Eu vos devo fazer ainda.”
88.5 – Senhor, não te aborrece entrar em minha casa? Se me garantes que
nenhum ladrão entrará nas propriedades, eu queria hospedar-te, e chamar os
poucos que te conhecem pela minha palavra para encontrar-Te. O patrão
nos tem torcido e moído, como caules desprezíveis. Nós temos somente a
esperança de um prêmio eterno. Mas, se Tu te manifestas aos corações
humilhados, eles terão em si uma outra força.
– Eu vou. Não te preocupes com as plantas e os vinhedos. Serás capaz
de crer que os anjos farão uma guarda fiel?
– Oh! Senhor! Já pude ver os teus servos celestes. Creio. E vou Contigo
cheio de segurança. Benditas estas plantas e estas vinhas que sentirem o
vento e a canção de asas e vozes angélicas! Bendito este chão que santificas
com o teu pé! Vem, Senhor Jesus! Ouvi, ó plantas e videiras! Ouvi, ó
glebas! Aquele Nome que a vós confiei para a minha paz, eu o digo a Ele.
Jesus está aqui. Ouvi, e pelos ramos e sarmentos suba exultante a seiva. O
Messias está conosco.
Tudo termina com estas alegres palavras.
89. Despedida de Jonas que Simão Zelota pensa
resgatar e chegada de Jesus em Nazaré.
27 de janeiro de 1945.
89.1 Apenas um vislumbre de luz. À porta de uma pobre cabana (digo
assim, porque chamá-la de casa seria honra demais) está Jesus com os seus,
Jonas e outros pobres camponeses. É hora da despedida.
– Não te verei mais, meu Senhor? –pergunta Jonas–. Tu nos trouxeste a
luz no coração. A tua bondade fez destas jornadas uma festa, que durará por
toda a vida. Mas Tu viste como somos tratados. O jumento é tratado com
mais cuidados do que nós. A planta é mais humanamente tratada. Essas
coisas valem dinheiro. Nós somos apenas moendas que produzimos
dinheiro. Somos usados, até morrermos, por excesso de uso. Mas as tuas
palavras têm sido como muitas carícias aladas. O pão nos tem parecido
mais abundante e bom, visto que Tu o saboreavas conosco, este pão que
Jonas não dá nem aos cães. Torna a parti-lo conosco, Senhor. Somente a Ti
ouso dizer isso. Para qualquer outro seria uma ofensa oferecer-te um abrigo
e um alimento que os mendigos desdenham. Mas Tu…
– Mas Eu encontro neles um perfume e um sabor celeste, por causa da
fé e do amor. Eu virei, Jonas. Virei. Fica no teu lugar, ligado como um
animal às estacas. Que o teu lugar seja a escada de Jacó. Na verdade, os
anjos vêm e vão do Céu até ti, atentos em recolher todos os teus méritos
para levá-los a Deus. Eu virei a ti, para aliviar o teu espírito. Permanecei
todos fiéis a Mim. Oh! Eu queria dar-vos também uma paz humana. Mas
não posso. Eu vos devo dizer: sofrei, ainda um pouco mais. Isto é triste para
Alguém que ama…
– Senhor, se Tu nos amas, já não é sofrer. Antes não tínhamos ninguém
que nos amasse… Oh! Se pudesse, eu pelo menos, ver tua Mãe!
– Não te angusties. Eu a trarei a ti. Quando a estação estiver mais
amena, virei com Ela. Não te exponhas a castigos desumanos, pela pressa
de querer vê-la. Saiba esperá-la, como se espera o nascimento de uma
estrela, da primeira estrela. Ela te aparecerá de repente, exatamente como
faz a estrela vespertina, que antes não se via, e logo depois, palpita no céu.
Pensa também que, desde agora, e Ela derrama sobre ti os seus dons de
amor. Adeus, a todos vós. Que a minha paz vos proteja contra as durezas
dos que vos afligem. Adeus, Jonas. Não chores. Esperaste tantos anos, com
fé paciente. Eu te prometo agora uma espera bem breve. Não chores. Eu
não te deixarei sozinho. A tua bondade enxugou as lágrimas da minha
infância. Não basta a minha para enxugar as tuas?
– Sim… Mas Tu vais… e eu fico…
– Jonas, meu amigo, não me faças partir acabrunhado pelo desgosto de
não poder consolar-te…
– Não choro, Senhor… Mas, como farei para viver sem te ver mais,
agora que sei que estás vivo?
Jesus acaricia ainda o velho entristecido e, depois, se separa dele. Mas
de pé, no limite da pobre eira, abre os braços, abençoando o campo. Em
seguida, põe-se a caminho.
– Que foi que fizeste, Mestre? –pergunta Simão, que notou o estranho
gesto.
– Eu pus um selo sobre todas as coisas. Para que os satanases não
possam prejudicar aqueles infelizes, arruinando essas terras. Nada mais
podia fazer… – Mestre… vamos na frente mais rápido… Queria dizer-te
uma 89.2coisa que não fôsse ouvida pelos outros.
Afastam-se mais ainda do grupo, e Simão fala:
– Queria dizer-te que Lázaro tem ordem de usar o suficiente para
socorrer a todos aqueles que, em nome de Jesus, a ele recorressem. Não
poderíamos libertar Jonas? Aquele homem está acabado, e não tem nada
mais, senão a alegria de haver-te. Demos-lhe essa alegria. Que queres que
seja o trabalho dele ali? Livre, ele seria o teu discípulo nesta planície tão
bonita e desolada. Aqui, os mais ricos de Israel têm terras férteis e as
espremem com usura cruel, exigindo dos trabalhadores cem por um. Há
anos que eu sei disso. Pouco poderás ficar aqui, onde impera a seita
farisaica, e creio que ela nunca será tua amiga. Os mais infelizes em Israel
são esses trabalhadores oprimidos e sem luz. Tu o ouviste, nem mesmo pela
Páscoa eles têm paz, nem tempo para a oração, enquanto que os seus duros
patrões, com grandes gestos e manifestações estudadas, colocam-se na
primeira fila entre os fiéis. Terão ao menos a alegria de saber que Tu estás
aqui e poderão ouvir as tuas palavras, repetidas por alguém que não alterará
nelas nem uma vírgula. Se concordas, Mestre, dá tuas ordens, e Lázaro as
cumprirá.
– Simão, Eu havia compreendido porque tu te despojavas de tudo. Não
me é desconhecido o pensamento do homem. E te amei também por isso.
Tornando Jonas feliz, fazes Jesus feliz. 89.3Oh! Como me angustia ver sofrer
quem é bom! A minha condição de pobre e desprezado pelo mundo só me
angustia por isso. Judas, se me ouvisse, diria: “Mas, não és Tu o Verbo de
Deus? Ordena, e as pedras se transformarão em ouro e pão para os
miseráveis.” Repetiria a insídia de satanás. Bem que Eu quero matar a
fome. Mas não como Judas gostaria. Ainda sois por demais ignorantes para
compreender a profundidade do que estou dizendo. Mas a ti o digo: Se
Deus fôsse prover a tudo, cometeria um furto contra os seus amigos. Ele os
privaria da faculdade de serem misericordiosos e de obedecerem ao
mandamento do amor. Os meus amigos devem ter este sinal de Deus, em
comum com Ele: a santa Misericórdia pelas obras e pelas palavras. As
infelicidades alheias dão aos meus amigos a ocasião de praticá-la.
Compreendeste o pensamento?
– É profundo. Estou meditando nele. E me humilho, compreendendo
quanto eu sou obtuso e quão grande é Deus, que nos quer com todos os seus
mais doces atributos, chamar-nos seus filhos. Deus se revela a mim em sua
múltipla perfeição, por cada luz que Tu lanças em meu coração. Dia a dia,
como alguém que vai andando por um lugar desconhecido, sinto aumentar
em mim o conhecimento desse algo imenso, que é a perfeição, que nos quer
chamar seus “filhos”. Parece-me que estou subindo como uma águia, ou
imergindo como um peixe em duas profundidades sem limites, que são o
céu e o mar, e sempre mais subo e me emerjo, sem jamais tocar o fim. Mas,
afinal, que é Deus?
– Deus é a inatingível Perfeição, Deus é a Beleza plena, Deus é o Poder
infinito, Deus é a Essência incompreensível, Deus é a Bondade insuperável,
Deus é a Compaixão indestrutível, Deus é a imensurável Sabedoria, Deus é
o Amor que se tornou Deus. É o Amor! É o Amor! Tu dizes que, quanto
mais conheces a Deus em sua perfeição, mais te parece estar subindo ou
emergindo em duas profundidades sem limites e de um azul sem sombras…
Mas, quando compreenderes o que é o Amor que se tornou Deus, não
subirás, não te emergirás mais no azul, mas em um sorvedouro
incandescente e em chamas, e serás aspirado, rumo a uma felicidade, que
será para ti morte e vida. Terás a Deus, em uma posse completa, quando,
por tua vontade, conseguires compreendê-lo e merecê-lo. Então te fixarás
na sua perfeição.
– Ó Senhor!…
Simão sente-se esmagado.
89.4 Faz-se o silêncio. Alcançaram a estrada. Jesus para, à espera dos
outros.
Quando o grupo se reúne, Levi se ajoelha:
– Eu deveria deixar-te, Mestre. Mas o teu servo te faz um pedido. Leva-
me à tua Mãe. Este é órfão como eu. Não negues a mim o que dás a ele,
para que possa ver um rosto de mãe…
– Vem. Tudo o que em nome de minha Mãe se pede, em nome de
minha Mãe Eu dou…
89.5 … Jesus está sozinho. Caminha rapidamente entre os bosques de
oliveiras carregadas de azeitonas já bem formadas. O sol, lá para o lado do
ocaso, lança seus raios além das cúpulas cinzento-esverdeadas daquelas
árvores preciosas e pacíficas, mas não penetra o entrelaçamento dos ramos,
senão com pequeninos olhos de luz. A estrada mestra, ao invés, encaixada
entre duas margens, é como uma fita de poeirenta incandescência ofuscante.
Jesus avança e sorri. Chega a um outeiro… e sorri ainda mais
vivamente. Eis ali Nazaré… parecer tremular ao sol, tal é a incandescência
do sol que a circunda. Jesus desce ainda mais rápido. Alcança a estrada,
agora, sem preocupar-se com o sol. Parece que voa, de tão rápido que vai,
com o manto, que pôs na cabeça como proteção, que se incha e agita ao seu
lado e atrás. A estrada está deserta e silenciosa, até às primeiras casas. Ali já
se ouve alguma voz de criança ou de mulher, vindo das casas ou das hortas,
as folhas de suas árvores que pendem sobre a estrada. Jesus aproveita dos
espaços sombreados, para fugir do sol implacável. Ele entra por uma
estradinha, cuja metade está na sombra. Lá estão algumas mulheres que se
aglomeram ao redor de um poço de água fresca. Quase todas o saúdam e
suas vozes agudas dão-lhe as boas-vindas.
– Paz a todas vós… Mas guardai silêncio. Quero fazer uma surpresa a
minha Mãe.
– A cunhada dela foi embora agora com uma ânfora de água fresca.
Mas vai voltar. Ficaram sem água. A nascente deve ter secado, ou então, a
água se perde no chão ardente, antes de chegar à tua horta. Não sabemos.
Maria do Alfeu nos contava agora. Ei-la que está vindo.
A mãe de Judas e Tiago vem com uma ânfora na cabeça, e outras duas
em cada uma das mãos. Não vê Jesus, e grita:
– Assim faço mais depressa. Maria está muito triste, porque as suas
flores estão morrendo de sede. São ainda aquelas de José e de Jesus e vê-las
morrer lhe arranca o coração.
– Mas agora que vai me ver… –diz Jesus, aparecendo por detrás do
grupo.
– Oh! O meu Jesus! Bendito sejas! Vou dizer…
– Não. Eu é que vou. Dá-me as ânforas.
– A porta está só encostada. Maria está na horta. Oh! Como vai ficar
feliz! Hoje de manhã estava ainda falando de Ti. Mas, com este sol! Vires
até aqui! Estás todo suado! Estás sozinho?
– Não. Com os amigos. Mas Eu vim na frente. Para ver primeiro minha
Mãe. E Judas?
– Está em Cafarnaum. Ele vai lá frequentemente…
Maria não diz mais nada. Mas sorri, enquanto enxuga com seu véu o
rosto molhado de Jesus.
89.6 As ânforas já estão prontas. Jesus coloca duas delas em equilíbrio,
usando sua cinta, e a outra leva na mão.
Ele dobra a esquina, chega à casa, empurra a porta, entra no pequeno
quarto, que parece escuro por causa do sol que está forte do lado de fora,
levanta devagar a cortina que está sobre a entrada da horta, e fica
observando.
Maria está de pé junto a um roseiral, de costas para a casa e se
compadece das plantas sedentas. Jesus põe a ânfora no chão, e o cobre tine,
ao bater numa pedra.
– Já estás aí, Maria? –diz a Mãe, sem virar-se–. Vem ver este roseiral! E
estes pobres lírios. Todos vão morrer, se não os socorrermos. Traz também
umas varinhas para sustentar este caule que está caindo.
– Vou trazer-te tudo, Mãe.
Maria se vira com ímpeto. Fica por um momento de olhos arregalados,
depois, com um grito, corre, com os braços estendidos para o Filho, que já
abriu os seus, e a espera com um sorriso cheio de amor.
– Oh! Meu Filho!
– Mãe! Querida!
A expansão é longa, suave, e Maria está tão feliz, que não vê, nem
sente como Jesus está acalorado. Mas em logo em seguida o ocorre:
– Por que meu Filho, a tal hora? Estás como púrpura, e estás suando
como uma esponja. Vem para dentro. Para que a Mãe possa enxugar-te e
refrescar-te. Agora vou trazer para Ti uma veste nova e sandálias limpas.
Mas Filho! Filho! Por que viajar com este sol? As plantas estão morrendo
por causa do calor, e Tu, minha Flor, estás viajando!
– Para vir antes a ti, minha Mãe!
– Oh! Querido! Estás com sede? Certamente que sim. Agora vou te
preparar…
– Sede do teu beijo, Mãe. Das tuas carícias. Deixa-me ficar assim, com
a cabeça sobre o teu ombro, como quando Eu era pequeno… Oh! Mãe! Que
falta me fazes!
– Mas, manda que eu vá, Filho, e eu irei. Que foi que te faltou na minha
ausência? A comida de que gostas? Vestes frescas? Uma cama bem feita?
Oh! Diz para mim, minha Alegria, o que foi que te faltou. A tua serva, ó
meu Senhor, procurará prover a tudo.
– Não faltou nada, a não ser tu mesma…
Jesus, que reentrara em casa seguro pela mão de sua Mãe e sentara-se
sobre o banco, junto à parede, tinha à sua frente Maria, que cinge com seus
braços, estando com a cabeça sobre o seu coração e beija-a de vez em
quando, e a olha fixamente:
– Deixa que Eu te olhe. Que se encha minha vista de ti, minha Mãe
santa!
– Primeiro, a veste. Faz mal ficar assim molhado. Vem.
Jesus obedece. 89.7Quando volta com uma veste fresca, o colóquio
continua, suave.
– Vim com discípulos e amigos. Mas os deixei no bosque de Melca.
Eles virão amanhã, ao romper do dia. Eu… não podia mais esperar. A
minha Mãe!… –e lhe beija as mãos–. Maria de Alfeu se retirou para deixar-
nos a sós. Ela também compreendeu a minha sede de ti. Amanhã… amanhã
tu estarás com os meus amigos e Eu com os nazarenos. Mas nesta tarde tu
és a minha Amiga e Eu o teu. Eu te trouxe… Oh! Mãe, Eu encontrei os
pastores de Belém. E te trouxe dois deles: são órfãos, e tu és a Mãe. De
todos. E mais ainda dos órfãos. E te trouxe também um que tem
necessidade de ti, para vencer a si mesmo. E um outro que é um justo e que
chorou. E depois, João… E te trouxe lembranças de Elias, de Isaque, de
Tobias, que agora é Matias, de João e Simeão. Jonas é o mais infeliz. Eu te
levarei a ele. Eu lhe prometi. Outros, Eu ainda irei procurar. Samuel e José
já estão na paz de Deus.
– Foste a Belém?
– Sim, Mãe. Levei lá os discípulos que estavam Comigo. E para ti Eu
trouxe estas florzinhas, nascidas entre as pedras da entrada.
– Oh! –Maria pega os caules ressecados, e os beija–. E Ana?
– Morreu na carnificina de Herodes.
– Oh! Coitada! Ela te amava tanto!
– Os belemitas sofreram muito. Não foram justos com os pastores. Mas
sofreram muito…
– Mas Contigo, então, foram bons!
– Sim. Devemos ter pena deles. satanás está invejoso da bondade deles,
e os incita ao mal. Eu estive também em Hebron. Os pastores de lá foram
perseguidos…
– Oh! Chegaram até esse ponto?!
– Sim. Eles foram ajudados por Zacarias e, por meio dele, puderam ter
patrões e pão, ainda que duros patrões. Mas são almas de justos, e das
perseguições e das feridas fizeram para si pedras de santidade. Reuni-os de
novo. Curei Isaque e… dei o meu Nome a um pequenino… Em Juta, onde
Isaque estava de cama, e da qual ele tornou a levantar-se, existe agora um
grupo inocente, que se chama Maria, José e Jesai…
– Oh! O teu Nome!
– E o teu, e daquele do Justo. E em Keriot, pátria de um dos discípulos,
um fiel israelita veio morrer sobre o meu coração. Pela alegria de ter-me
encontrado… 89.8E depois… oh! quantas coisas tenho para dizer-te, minha
perfeita Amiga, Mãe suave! Mas, em primeiro lugar, Eu te peço, tem
piedade dos que virão amanhã. Escuta: eles me amam… mas não são
perfeitos; Tu, Mestra de virtude… oh! Mãe, ajuda-me a torná-los bons… Eu
queria salvá-los todos…
Jesus deixou-se cair aos pés de Maria. Agora Ela aparece em sua
majestade de Mãe.
– Meu Filho! Que queres que tua pobre Mãe possa fazer mais do que
Tu??
– Santificá-los… tua virtude santifica. Eu os trouxe a ti de propósito.
Mãe… um dia Eu te direi: “Vem”, porque então será urgente santificar os
espíritos, a fim de que Eu encontre neles a vontade de redenção. Eu sozinho
não poderei… O teu silêncio será tão ativo, como a minha Palavra. A tua
pureza ajudará o meu poder. A tua presença obrigará satanás a ficar para
trás… e o teu Filho, Mãe, encontrará força, ao saber que estás perto. Virás,
não é verdade, minha doce Mãe?
– Jesus! Querido! Filho! Não te sinto feliz… Que é que tens, ó Filho do
meu coração? O mundo foi duro Contigo? Não? É para mim um alívio crer
que não… mas… Oh! sim. Irei. Aonde Tu quiseres. Como Tu quiseres.
Quando Tu quiseres. Mesmo agora, debaixo de sol, ou debaixo das estrelas,
como no gelo, ou entre os aguaceiros. Queres a mim? Eis-me aqui.
– Não. Agora não. Mas um dia… Como é doce a casa! E a tua carícia!
Deixa-me dormir assim, com a cabeça sobre os teus joelhos. Estou tão
cansado! Sou sempre o teu Filhinho…
E Jesus realmente adormece, cansado e extenuado, sentado na esteira,
com a cabeça no colo da Mãe que, feliz, lhe acaricia os cabelos.
90. A chegada dos discípulos e dos pastores a
Nazaré
28 de janeiro de 1945.
90.1 Vejo Maria que, descalça e diligente, vai e vem pela sua pequena
casa, às primeiras luzes do dia. Em sua veste de um azul claro parece uma
graciosa borboleta que, roça, sem ruídos, paredes e objetos. Aproxima-se da
porta que dá para a estrada, e a abre com cuidado, para não fazer barulho,
deixando-a entreaberta, depois de ter dado uma olhada sobre a estrada ainda
deserta. Recoloca em seus lugares as coisas, abre portas e janelas, entra na
oficina, onde, agora que foi abandonada pelo Carpinteiro, estão os teares de
Maria, e também ali trabalha com afinco. Cobre com cuidado um dos
teares, no qual um tecido está começado, e sorri a um pensamento que lhe
ocorre, ao olhá-la.
Sai para a horta. Os pombos vão pousar sobre seus ombros e, com voos
curtos, de um ombro à outro, para ter o lugar melhor, briguentos e
ciumentos pelo amor Dela, a acompanham até um depósito onde estão as
provisões de mantimentos. De lá, Ela tira grãos para eles, e diz:
– Aqui, hoje é aqui. Não façais barulho. Ele está muito cansado!
Depois pega farinha e vai a um quartinho perto do forno, e começa a
fazer o pão. Prepara a massa e sorri. Oh! Como sorri hoje a Mãe. Parece a
jovenzinha Mãe da Natividade, de tanto que está rejuvenescida hoje pela
alegria. Da massa do pão tira uma boa porção, a põe à parte, cobrindo-a, e
depois retoma o trabalho, acalorando-se, enquanto seus cabelos vão se
tornando mais claros, por terem ficado empoados com farinha.
90.2 Em silêncio, entra Maria de Alfeu.
– Já estás trabalhando?
– Sim. Estou fazendo pão, e olha, os pães de mel de que Ele tanto
gosta.
– Vai fazê-los, então. A massa de pão é muita. Eu vou aprontá-la para
ti.
Maria de Alfeu, robusta e mais afeita ao trabalho braçal, trabalha com
vigor na preparação do seu pão, enquanto Maria vai empapando com mel e
manteiga os seus doces e os faz ficar bem redondos, colocando-os em
seguida sobre uma chapa.
– Não sei como fazer para avisar Judas… Tiago não tem coragem… e
os outros…
Maria de Alfeu suspira.
– Hoje virá Simão Pedro. Ele vem sempre no segundo dia depois do
sábado, com o peixe. Nós o mandaremos procurar Judas.
– Se ele quiser ir…
– Oh! Simão nunca me diz não.
90.3 – A paz esteja sobre este vosso dia –diz Jesus, aparecendo.
As duas mulheres sobressaltam-se, ao ouvirem a voz Dele.
– Já te levantaste? Por quê? Eu queria que dormisses…
– Dormi um sono, como quando estava no berço, Mãe. Tu é que
pareces não ter dormido…
– Fiquei te olhando dormir… Eu fazia sempre assim, quando eras
pequenino. No sono, sorrias sempre… e aquele teu sorriso me ficava o dia
inteiro no coração, como uma pérola… Mas esta noite não estavas sorrindo,
meu Filho. Suspiravas como quem está aflito…
Maria o olha com ansiedade.
– Estava cansado, Mãe. E o mundo não é como esta casa, onde tudo é
honestidade e amor. Tu… tu sabes Quem Eu sou, e podes entender o que é
para Mim o contato com o mundo. É como caminhar sobre uma estrada
fétida e lamacenta. Mesmo estando-se atento, um pouco de lama o salpica, e
o fedor penetra, ainda que faças força para não respirar… e, se este é
homem que ama o asseio e o ar puro bem podes pensar como isso te causa
aborrecimento…
– Sim, Filho. Eu entendo. Mas tenho pena de que estejas sofrendo…
– Agora estou contigo e não sofro. Existe a lembrança… Mas serve
para tornar mais bela a alegria de estar contigo.
Jesus se inclina para beijar sua Mãe.
Ele acaricia também a outra Maria, que acabou de entrar, toda
vermelha, porque estava acendendo o forno.
– Vai ser preciso avisar Judas –é a preocupação de Maria de Alfeu.
– Não é preciso. Judas estará aqui hoje.
– Como é que sabes disso?
Jesus sorri e se cala.
– Filho, todas as semanas, neste dia, Simão Pedro vem aqui. Ele me
quer trazer o peixe pescado nas primeiras vigílias. E chega lá pelo fim da
primeira hora. Ele vai ficar feliz hoje. Simão é bom. Nas horas que fica
aqui, ele nos ajuda. Não é verdade, Maria?
– Simão Pedro é um homem honesto e bom –diz Jesus–. Mas também o
outro Simão, que daqui a pouco irás ver, é um grande coração. Eu vou ao
encontro deles. Estão para chegar.
E Jesus sai, enquanto as mulheres, tendo posto o pão no forno, voltam
para a casa, onde Maria calça de novo as sandálias, e retorna, com o seu
vestido de linho branco.
Passa algum tempo, e, enquanto esperam, Maria de Alfeu diz:
– Não tiveste tempo para acabar aquele trabalho.
– Eu o acabarei logo. E o meu Jesus terá, com a sombra dele, um
refrigério, sem precisar ter um peso na cabeça.
90.4 A porta é aberta por fora.
– Mãe, eis os meus amigos. Entrai.
Entram em um grupo os discípulos e os pastores. Jesus segura pelos
ombros os dois pastores, e os leva até sua Mãe:
– Aqui estão dois filhos, que procuram uma mãe. Sê tu a alegria deles,
Mulher.
– Eu vos saúdo… Tu… o Levi?… E tu? Não sei, mas pela idade, que
Ele me disse, deves ser o José. Este nome é doce e sagrado aqui dentro.
Vem, vinde. Com alegria, eu vos digo: a minha casa vos acolhe, e uma Mãe
vos abraça, lembrando o quanto vós, tu na pessoa de teu pai, tivestes de
amor para com o meu Menino.
Os pastores parecem encantados, de tão extáticos que estão.
– Eu sou Maria, sim. Tu viste a Mãe feliz. Sou sempre aquela. Agora
também feliz por ver o meu Filho entre corações fiéis.
– E este é o Simão, Mãe.
– Tu mereceste a graça, porque és bom. Eu sei. E a Graça de Deus
esteja sempre contigo.
Simão, mais experiente quanto aos modos do mundo, se inclina até o
chão, tendo os braços cruzados sobre o peito, e saúda:
– Eu te saúdo, ó Mãe verdadeira da Graça, e nada mais peço ao Eterno,
agora que conheço a Luz e a ti, que és mais suave que a lua.
– E este é Judas de Keriot.
– Tenho uma mãe, mas o meu amor por ela desaparece, em relação à
veneração que sinto por ti.
– Não. Por mim, não. Por Ele. Eu sou, porque Ele é. E nada quero para
mim. Mas só por Ele peço. Sei quanto honraste meu Filho em tua pátria.
Mas eu ainda te digo: seja o teu coração o lugar em que Ele receba de ti a
mais alta honra. Então eu te abençoarei com coração de Mãe.
– O meu coração está sob o calcanhar do teu Filho. Feliz opressão.
Somente a morte desfará a minha fidelidade!!
– E este é o nosso João, Mãe.
– Estava tranquila, desde que soube que estavas perto de Jesus. Eu te
conheço, e descanso no espírito, quando sei que estás com meu Filho. Sê
bendito, minha tranquilidade!!
E o beija.
90.5 A voz áspera de Pedro se faz ouvir lá do lado de fora:
– Eis o pobre Simão, que traz a sua saudação e….
E, tendo entrado, ficou pasmado. Mas depois joga no chão o cesto
redondo que trazia pendurado nas costas, e se lança por terra, também ele,
dizendo:
– Ah! Senhor eterno! Mas… não, isto não devias ter feito comigo,
Mestre! Estar aqui… e não fazer saber nada ao pobre Simão! Deus te
abençoe, Mestre! Ah! Como me sinto feliz! Não podia mais estar sem Ti.
E lhe acaricia a mão, sem prestar atenção no que Jesus lhe diz:
– Levanta-te, Simão. Mas levanta-te logo.
– Eu me levanto, sim. Mas… Ei, tu, rapaz (o rapaz é João)! Tu, pelo
menos, podias ter ido correndo, para dizê-lo a mim. Agora, vai depressa!
Vai a Cafarnaum dizê-lo aos outros… e primeiro, vai à casa de Judas. Teu
filho está para chegar, mulher. Rápido! Faz de conta que és uma lebre, que
tem atrás os cães.
João parte rindo.
Pedro, enfim se levantou. Continua a ter, entre as suas mãos curtas e
gordas, de veias salientes, a longa mão de Jesus, e o beija sem soltá-lo, não
obstante queira dar o seu peixe, que está no chão, dentro do cesto.
– Ah! Não. Não quero que Tu vás embora uma outra vez sem mim.
Nunca mais, nunca mais ficarei tanto tempo assim sem te ver! Te seguirei
como a sombra segue o corpo e a corda a âncora. Onde estiveste, Mestre?
Eu dizia a mim mesmo: “Oh! Onde estará? Que estará fazendo? E aquele
menino que é João, saberá cuidar Dele? Estará atento para que não se canse
demais? Que Ele não fique sem comida?” Ah! Eu te conheço!… Estás mais
magro! Sim. Mais magro. Não tratou bem de Ti! Vou dizer-lhe que… Mas,
onde estiveste, Mestre? Não me dizes nada!
– Estou esperando que me deixes falar!
– É verdade. Mas… ah! Ver-te é como um vinho novo. Sobe à cabeça
só com o cheiro. Oh! O meu Jesus!
Pedro quase chora, em sua reação de alegria.
– Eu também senti saudade de ti, de todos vós, mesmo quando Eu
estava com queridos amigos. 90.6 Eis, Pedro. Estes são dois que me amaram,
desde quando Eu tinha poucas horas de nascido. Mais ainda: eles já
sofreram por causa de Mim. Aqui há um filho sem pai e sem mãe, por
minha causa. Mas ele tem tantos irmãos em todos vós, não é verdade?
– Estás pedindo isso, Mestre? Mas se, por acaso o demônio te amasse,
eu o amaria. Vós também sois pobres, pelo que vejo. E, então, somos
iguais. Vinde, para que eu vos beije. Sou pescador, mas tenho um coração
mais terno que o de um pombinho. E sincero. Não olheis se sou rude. A
dureza é por fora. Dentro, eu sou todo mel e manteiga. Mas sou assim com
os bons… porque com os maus…
– E este é o novo discípulo.
– Parece-me já tê-lo visto.
– Sim. É Judas de Keriot, e o teu Jesus, por meio dele, teve boa
acolhida naquela cidade. Eu vos peço que vos ameis, ainda que sejais de
regiões diferentes. Sois todos irmãos no Senhor.
– E como tal o tratarei, se ele for mesmo assim. E… sim… (Pedro olha
fixamente para Judas, um olhar aberto e admoestador) e… sim… é melhor
que o diga, assim me conheces logo, e bem. E o digo: não tenho muita
estima pelos judeus em geral, e pelos cidadãos de Jerusalém, em particular.
Mas sou honesto. E sobre minha honestidade, eu te garanto que deixo de
lado todas as ideias que tenho sobre vós, e que quero ver em ti, somente o
irmão discípulo. Agora, toca a ti não me fazer mudar de pensamento e
decisão.
– Também comigo, Simão, tens esses preconceitos? –pergunta o Zelote,
sorrindo.
– Oh! Eu não te tinha visto! Contigo? Oh! Contigo, não. Tens a
honestidade estampada em teu rosto. A bondade do teu coração transpira
como um óleo aromático transpira de um vaso poroso. E és um ancião. Isto
nem sempre é um mérito. Às vezes, quanto mais se envelhece, mais se torna
falso e mau. Mas tu és daqueles que fazem como os vinhos muito
apreciados. Quanto mais velhos ficam, mais se tornam genuínos e bons.
– Julgaste bem, Pedro, diz Jesus. 90.7Agora vinde. Enquanto as mulheres
trabalham para nós, paremos sob a pérgula fresca. Como é belo estar com
os amigos! Iremos depois todos juntos pela Galileia, e além dela. Isto é,
todos não. Levi, agora que ficou contente, voltará a Elias para dizer-lhe que
Maria o saúda. Não é mesmo, Mãe?
– E que eu o abençoo, assim como a Isaque e aos outros. Meu Filho me
prometeu levar-me Consigo… e eu irei a vós, os primeiros amigos do meu
Menino.
– Mestre, gostaria que Levi levasse a Lázaro o escrito de que já tens
conhecimento.
– Prepara-o, Simão. Hoje é grande festa. Amanhã à tarde, Levi partirá.
A tempo de chegar antes do sábado. Vinde, amigos…
Saem no meio dos canteiros verdes das hortaliças e tudo termina.
91. Lição aos discípulos no olival perto de Nazaré.
29 de janeiro de 1945.
91.1 Vejo Jesus com Pedro, André, João, Tiago, Filipe, Tomé,
Bartolomeu, Judas Tadeu, Simão e Judas Iscariotes, e o pastor José sair de
casa e ir para fora de Nazaré. Mas nas imediações, sob umas bastas
oliveiras. Diz:
– Vinde ao meu redor. Nesses meses de presenças e ausências, Eu vos
avaliei e vos pesei. Pude conhecer-vos e também conhecer o mundo com a
experiência de um homem. Agora Eu decidi mandar-vos pelo mundo. Mas
antes quero ensinar-vos, para tornar-vos capazes de enfrentar o mundo com
a doçura e a perspicácia, a calma e a constância, a consciência e o
conhecimento da vossa missão. Este tempo de um calor canicular, que
impede qualquer longa peregrinação pela Palestina, será usado por Mim
para a vossa instrução e formação como discípulos. Como um músico, Eu
percebi o que em vós existe de dissonante, e venho pôr-vos em
consonância, para conseguirmos aquela harmonia celeste, que havereis de
transmitir ao mundo, em meu nome. Detenho este filho (e mostra José),
porque delego à ele o encargo de levar as minhas palavras aos seus
companheiros, a fim de que também ali se forme um núcleo eficiente para ir
anunciando-me, não só com o anúncio da minha existência, mas com os
pontos mais essenciais da minha doutrina.
91.2 Em primeiro lugar, Eu vos digo que é absolutamente necessário que
haja entre vós amor e união. Que é que vós sois? Homens de todas as
classes sociais, de todas as idades, e de todos os lugares. Preferi escolher
aqueles que estão virgens de doutrinas e conhecimentos para que mais
facilmente possa chegar até o íntimo deles com a minha doutrina, e também
por que — sendo vós destinados a evangelizar os que estiverem na absoluta
ignorância do verdadeiro Deus — quero que, lembrando da primitiva
ignorância de Deus por parte deles, não os trateis com desprezo, mas com
piedade os ensineis, lembrando da piedade com que Eu vos ensinei.
Eu ouço em vós uma objeção: “Nós não somos pagãos, ainda que não
tenhamos uma cultura intelectual.” Não. Vós não sois. Mas, não somente
vós, e, sim, também aqueles que entre vós representam os doutos e os ricos,
estais envolvidos em uma religião que, desnaturada por inúmeras razões, de
religião só tem o nome. Em verdade Eu vos digo que muitos são os que se
gloriam serem filhos da Lei. Mas oitenta por cento deles não são mais do
que idólatras, que fizeram uma confusão da verdadeira, santa: eterna Lei do
Deus de Abraão, Isaque e Jacó, com os nevoeiros de mil pequenas religiões
humanas. Por isso, cuidando um do outro, tanto vós, pescadores humildes e
sem cultura, como vós que sois mercadores ou filhos de mercadores,
oficiais ou filhos de oficiais, ricos ou filhos de ricos, dizei: “Somos todos
iguais. Todos temos as mesmas fraquezas e todos precisamos dos mesmos
ensinamentos. Irmãos nos defeitos pessoais ou nacionais, devemos, de
agora em diante, tornar-nos irmãos no conhecimento da Verdade e no
esforço para praticá-la.”
Eis: irmãos. Quero que assim vos chameis e que assim vos considereis.
Vós sois como uma só família. Quando é que uma família prospera e o
mundo a admira? Quando é unida e concorde. Se um filho se torna inimigo
do outro, se um irmão prejudica ao outro, poderá durar a prosperidade
daquela família? Não. Em vão o pai de família se esforça para trabalhar,
para remover as dificuldades, para impor-se ao mundo. Os seus esforços
não terão êxito, porque os bens se desfazem, as dificuldades aumentam, o
mundo escarnece desse estado de briga sem fim que despedaça corações e
seres, que unidos eram uma potência contra o mundo, reduzindo-os a um
montinho de pequenos, suscetíveis interesses contrários, dos quais os
inimigos da família se aproveitam para acelerar sua ruína. Que assim não
aconteça entre vós. Sede unidos. Amai-vos. Amai-vos para ajudar-vos.
Amai-vos para ensinar a amar.
91.3 Observai. Também o que nos rodeia nos ensina esta grande força.
Olhai esta tribo de formigas, que vão correndo todas para um mesmo lugar.
Seguimo-la. E descobriremos a razão pela qual não é inútil esta sua corrida
para um determinado ponto… Ei-la aqui. Esta pequena irmã delas,
descobriu, com seus minúsculos órgãos, que para nós são invisíveis, um
grande tesouro debaixo desta folha grande de agrião selvagem. É um
pedaço de miolo de pão, que talvez tenha caído de algum camponês, que
aqui veio cuidar de suas oliveiras, ou de algum viajante, que nesta sombra
se pôs a comer o seu alimento, ou de algum menino brincando sobre a relva
florida. Mas, como poderia sozinha arrastar para o buraco este tesouro mil
vezes maior do que ela? E eis que chamou uma de suas irmãs, e lhe disse:
“Presta atenção. Vai correndo dizer às nossas irmãs que aqui há alimento
para a tribo toda, e por muitos dias. Corre, antes que algum pássaro
descubra este tesouro, e chame os seus companheiros e o devorem.” E a
formiguinha saiu correndo, ofegante por causa da aspereza do terreno, indo
para cima e para baixo, por cascalhos e gravetos, até chegar ao formigueiro,
para dizer: “Vinde. Uma de nós vos está chamando. Ela encontrou comida
para todas. Mas sozinha, não a pode trazer até aqui. Vinde.” E, então, todas,
mesmo aquelas que, já cansadas pelo trabalho do dia inteiro, descansavam
pelas galerias do buraco, todas saíram correndo, até as que estavam
amontoando as provisões nas celas de armazenagem. Uma, dez, cem, mil…
Olhai… Pegam com suas garras, levantam, usando de seus corpos como de
umas carretas, arrastam, firmando suas patinhas no chão. Esta cai… A
outra, ali, quase se machuca, porque a ponta do pão a espreme, batendo
repetidamente, entre a sua extremidade e uma pedra; Esta também, tão
pequenina, uma jovenzinha da tribo, para extenuada… mas, assim mesmo,
olha, retomando o fôlego, recomeça. Oh! Como são unidas! Olhai: agora o
pedaço de pão está todo cingido por elas, e vai, vai sendo levado,
lentamente, mas vai. Seguimo-lo… Mais um pouco, pequenas irmãs, mais
um pouco e depois a vossa fadiga será recompensada. Elas não aguentam
mais. Mas não desistem. Descansam, e depois retomam… Eis que
chegaram ao formigueiro. E agora? Agora ao trabalho para cortar em
migalhas o grande miolo. Olhai que trabalho! Umas cortam, outras
transportam… E chegaram ao fim. Agora tudo está a salvo, e elas, felizes,
desaparecem dentro daquela fenda, pelas galerias abaixo. São formigas.
Nada mais do que formigas. Contudo, são fortes, porque são unidas.
Meditai sobre isto.
91.4 Tendes alguma pergunta a fazer-me?
– Eu queria perguntar-te: Mas, à Judeia não voltaremos mais? –
pergunta Judas Iscariotes.
– Quem disse isto?
– Tu, Mestre. Disseste que ias preparar o José, para que fôsse instruir os
outros na Judeia! Desgostaste tanto dela, que nem queiras mais lá voltar?
– Que foi que te fizeram na Judeia? –pergunta Tomé curioso.
E Pedro, veemente, diz ao mesmo tempo:
– Ah! Então, eu tinha razão, quando dizia que tinhas voltado esgotado.
Que foi que te fizeram os “perfeitos” em Israel?
– Nada, amigos. Nada mais que tudo o que irei encontrar também aqui.
Se Eu andar por toda a terra, terei por toda parte amigos misturados com
inimigos. Mas, Judas, Eu te havia pedido que ficasses calado…
– É verdade, mas… Não, eu não posso calar-me, quando vejo que Tu
preferes a Galileia à minha pátria. Tu és injusto, aí está. Lá tivestes honras
também…
– Judas! Judas… oh! Judas. Tu és injusto nesta censura. E por ti mesmo
te acusas, deixando-te levar pela ira e pela inveja. Eu me tinha esforçado
para tornar conhecido apenas o bem que recebi na tua Judeia e, sem mentir,
pude falar com alegria desse bem, para apresentar-vos como pessoas
amáveis, a vós que sois da Judeia. Com alegria. Porque para o Verbo de
Deus não existem separação de regiões, antagonismos, inimizades,
diferenças. Eu vos amo a todos, ó homens. A todos… Como é que podes
dizer que prefiro a Galileia, quando quis realizar os primeiros milagres[8] e
as primeiras manifestações sobre o solo sagrado do Templo e da Cidade
Santa, e querida por todos os israelitas? Como podes dizer que Eu seja
parcial, se de vós onze discípulos — ou seja, dez, porque o meu primo é
família, não é amizade — quatro são judeus? E, se acrescento os pastores,
todos judeus, vês quantos amigos tenho na Judeia. Como podes dizer que
não vos amo se, Eu sei, programei as andanças de modo a dar o meu Nome
a um pequeno de Israel e de recolher o espírito de um justo de Israel? Como
podes dizer que não vos amo, a vós, judeus, se, quando foi revelado o meu
Nascimento e a minha preparação para a missão, quis dois judeus contra um
só da Galileia? Acusas-me de injustiça. Mas, examina-te, Judas, e verás se
não és tu o injusto.
Jesus falou com majestade e doçura. Mas, ainda que não tivesse falado
mais nada, teriam bastado os três modos como Ele disse: “Judas”, no início
do discurso, para dar uma grande lição. O primeiro “Judas” foi dito pelo
Deus majestoso, que exige respeito, o segundo pelo Mestre que ensina com
doutrina paternal, o terceiro era um pedido de amigo, magoado pelos modos
do seu amigo.
Judas inclinou a cabeça mortificado, ainda irado, e feio, ao deixar
aflorar seus baixos sentimentos.
91.5 Pedro não sabe calar-se:
– Pelo menos, pede perdão, rapaz. Se eu estivesse no lugar de Jesus,
não ficarias somente com umas palavras! Mais do que injusto! És um sem
respeito, belo senhor! É assim que vos educam aqueles do Templo? Ou não
é possível educar-te? Porque, se forem eles…
– Basta, Pedro. Eu já disse o que era preciso. Também sobre isso Eu
vos darei amanhã um ensinamento. E agora repito a todos o que Eu tinha
dito a estes na Judeia: não digais à minha Mãe que o seu Filho foi
maltratado pelos judeus. Ela já está muito aflita por haver percebido que Eu
tenho sofrido. Respeitai minha Mãe. Ela vive na sombra e no silêncio. Sua
atividade é a prática da virtude e da oração por Mim, por vós, por todos.
Deixai que as luzes foscas do mundo e as ásperas contendas fiquem longe
do seu asilo de retraimento e de pureza. Não ponhais nem mesmo o eco do
ódio, onde tudo é amor. Respeitai-a. Ela é mais corajosa do que Judite, e o
vereis. Mas não a obrigueis, antes da hora, a provar a angústia, que é o
sentimento dos desgraçados do mundo. Daqueles que não sabem, nem de
modo rudimentar, o que é Deus e a Sua Lei. São aqueles de quem Eu vos
falava no princípio: os idólatras que se julgam os sábios de Deus e que por
isso unem idolatria à soberba. Vamos.
E Jesus põe-se de novo a caminho para Nazaré.
[8] os primeiros milagres deve aqui entender-se os das primeiras manifestações públicas de Jesus, que excluem o milagre,
primeiro em absoluto, feito nas bodas de Caná na Galileia para manifestar o poder da Mãe (como se diz em 52.9).
92. Lição aos discípulos junto à casa de Nazaré.
30 de janeiro de 1945.
92.1 Jesus instrui ainda os seus discípulos, que levou para a sombra de
uma enorme nogueira que do seu lugar se inclina, sobranceira à horta de
Maria, estendendo seus ramos sobre a própria horta. O dia está ameaçando
tempestade, e vem vindo um temporal. Talvez por isso Jesus não se afastou
muito da casa. Maria vai e vem, entre a casa e a horta, e, a cada vez que o
faz, levanta a cabeça e sorri para o seu Jesus, que está sentado sobre a relva,
junto ao tronco, e circundado pelos seus discípulos.
Jesus diz:
– Ontem Eu vos disse que tudo o que uma palavra imprudente havia
provocado iria servir como lição hoje. Eis a lição.
Pensai bem, e que isto vos sirva de regra para agir, pois nada do que
está escondido ficará sempre assim. Ou será Deus que tomará o cuidado de
tornar conhecidas as obras de um filho seu através de seus sinais
milagrosos, ou através das palavras dos justos, que reconhecem os méritos
de um irmão. Ou, então, será satanás que, pela boca de algum
imprudente — para não dizer mais nada — faz revelações sobre assuntos
que os bons preferiram silenciar, a fim de não incitar a falta de caridade, ou
alterar a verdade de modo a criar confusão nos pensamentos. Por isso,
chega sempre um momento em que o que está oculto se torna conhecido.
Agora, tende isto sempre presente em vosso pensamento. Para que vos
sirva de freio contra o mal, sem, aliás, a tentação de divulgar qual é o bem
que estais fazendo. Quantas vezes alguém age por bondade, verdadeira
bondade, mas bondade humana! E, sendo humana, isto é, não sendo de
perfeita intenção, deseja que seja conhecida pelos homens e espuma e se
encoleriza ao ver que continua ignorado, estudando um meio de fazê-lo
conhecido. Não, amigos. Não é assim. Fazei o bem, e entregai-o ao Senhor
eterno. Oh! Ele saberá, se for para o vosso bem que assim seja, tornar o que
fizestes conhecido também pelos homens. Se ao invés, isso pudesse anular
o vosso agir de justos, sob um transbordamento de orgulhosa complacência,
aí, então, o Pai o conserva secreto, reservando a si render (o dia) a glória no
Céu, à vista de toda a Corte celeste.
92.2 E quem vê um ato ser praticado, nunca o julgue pelas aparências.
Não acuseis nunca, porque as ações dos homens podem ter aspectos feios
ocultando outros motivos. Um pai, por exemplo, pode dizer a um filho
preguiçoso e beberrão: “Vai-te embora”, e isso poderá parecer uma dureza e
uma negação dos deveres paternos. Mas nem sempre é. Aquela sua palavra
“Vai-te embora” pode estar temperada com um pranto bem amargo, mais do
pai do que do filho, e é acompanhado pelas palavras e pelo desejo de que se
verifiquem: “Poderás voltar, quando te arrependeres de tua preguiça.” É
também justiça para com os outros filhos, porque impede que um beberrão
gaste nos vícios o que é dos outros, além do que é dele. Ao invés, será má,
se aquela palavra for dita por um pai que está em culpa diante de Deus e de
seus filhos, porque no seu egoísmo, ele se julga mais do que Deus e acha
que tem direito até sobre o espírito do filho. Não. O espírito é de Deus, e
nem Deus violenta a liberdade que o espírito tem de doar-se, ou não. Para o
mundo, os atos parecem iguais. Mas, como é diferente um do outro! O
primeiro é justiça, o segundo é arbitrário e culpável. Por isso, não julgues
nunca ninguém.
92.3 Ontem Pedro disse a Judas: “Quem é que foi teu mestre?” Não o
diga mais. Ninguém acuse os outros do que vê em alguém ou em si. Os
mestres têm uma mesma palavra para todos os alunos. Como é, pois, que
dez alunos se tornam justos, e dez se tornam maus? É porque cada um
conserva, de sua parte, aquilo que tem no coração, e isso pesa para o lado
do bem, ou para o lado do mal. Como pode, então, o mestre ser acusado de
ter ensinado mal, se o bem que ele ensina fica anulado pelo demasiado mal
que reina num coração? O primeiro fator de êxito está em vós. O mestre
trabalha o vosso eu. Mas, se vós não sois suscetíveis ao desejo de melhorar,
que é que o mestre pode fazer? Que sou Eu? Em verdade vos digo que
nunca haverá um mestre mais sábio, paciente e perfeito do que Eu. No
entanto, eis que, também a algum dos meus não faltará quem diga: “Mas,
que mestre tiveste?”
92.4 Não vos excedais nunca, ao julgar, por motivos pessoais. Ontem
Judas, por amor excessivo à sua região, julgou ver em Mim injustiça para
com ela. Frequentemente o homem se submete a esses elementos
imponderáveis, que são o amor à pátria, ou o amor a uma ideia, e se desvia
como um alce desorientado de sua meta. A meta é Deus. É preciso ver tudo
em Deus, para ver bem. Não colocar a si mesmo ou outra coisa acima de
Deus. E, se de fato alguém erra — ó Pedro! Ó todos vós! — não sejais
intransigentes. O erro que tanto vos irrita, quando cometido por um de vós,
não o tereis cometido vós mesmos também? Estais seguros de que não? E,
suposto que não o tenhais nunca cometido, que é que vos resta fazer?
Agradecer a Deus, e basta. E vigiar. Vigiar muito. Continuamente. Para não
cairdes amanhã naquilo que até hoje conseguistes evitar. Estais vendo? Hoje
o céu está escuro, por causa da chuva de pedras que está para cair. E nós,
perscrutando o céu, dissemos: “Não nos afastemos de casa.” Pois bem, se
assim sabemos julgar as coisas que, por mais perigosas que sejam, são
como um nada em comparação aos perigos de perder a amizade de Deus
pelo pecado, por que não sabemos julgar onde pode estar o perigo para a
alma?
92.5 Olhai, eis ali a minha Mãe. Podeis pensar que haja Nela alguma
tendência para o mal? Pois bem, posto que o amor a impele a seguir-me, Ela
deixará sua casa, quando o meu amor o quiser. Mas esta manhã, depois de
me pedir outra vez — sendo Ela, a minha Mestra, me dizia: “Entre os teus
discípulos esteja também tua Mãe, Filho. Eu quero aprender a tua doutrina”,
Ela que possuiu esta doutrina em seu seio e, antes ainda, em seu espírito,
por um dom dado por Deus à futura Mãe do seu Verbo encarnado — disse:
“Contudo… Julga Tu se eu posso vir sem perder minha união com Deus,
sem que o que é do mundo, e que Tu dizes ter fedores penetrantes, possa vir
corromper este meu coração, que foi, e é, e quer ser só de Deus. Eu me
examino, e, tanto quando sei, parece-me que o possa fazer, Por que… (e
aqui, sem saber, deu-se o mais alto louvor) porque não vejo diferença entre
aquela minha cândida paz, de quando eu era uma flor do Templo, e esta que
tenho em mim agora, que já faz mais de seis lustros que sou dona de casa.
Mas eu sou uma serva indigna, que mal conhece, e pior ainda julga, as
coisas do espírito. Tu és o Verbo, a Sabedoria, a Luz. E podes ser luz para a
tua pobre Mãe, que aceita não te ver mais, sem deixar de ser grata ao
Senhor.” E Eu tive que dizer-lhe, com um coração que tremia de admiração:
“Mãe, Eu te digo: Tu não serás corrompida pelo mundo. Mas o mundo será
perfumado por ti.”
Minha Mãe, vós o estais ouvindo, soube ver os perigos de viver no
meio do mundo, pois havia perigos até para Ela. E vós, homens, não
os veríeis? 92.6Oh! verdadeiramente satanás está de atalaia. E somente os
que vigiam haverão de vencer. Os outros? Perguntais pelos outros? Aos
outros será aquilo que está escrito.
– Que é que está escrito, Mestre?
– “Caim saltou sobre Abel e o matou. E o Senhor disse a Caim: ‘Onde
está o teu irmão? Que fizeste dele? A voz do seu sangue está gritando a
Mim. Por isso, serás maldito sobre a terra, que conheceu o sabor do sangue
humano pela mão de um irmão que abriu as veias de seu irmão, e não
cessará mais esta horrível fome da terra pelo sangue humano. E a terra,
envenenada por esse sangue, será para ti mais estéril do que uma mulher
que a idade dessecou. E tu terás que fugir, procurando paz e pão. E não os
encontrarás. O teu remorso te fará ver sangue em cada flor e erva, nas águas
e nos alimentos. O céu te parecerá de sangue; assim como o mar, e virão a ti
três vozes do céu, da terra e do mar: a de Deus, a do Inocente e a do
Demônio. E, para não ouvi-las, darás morte a ti mesmo’.”
– O Gênesis não diz assim[9] –observa Pedro.
– Não. Não o Gênesis. Eu o digo. E não erro. Eu o digo aos novos
Cains dos novos Abeis. Àqueles que, por não vigiarem sobre si mesmos e
sobre o Inimigo, se tornarão uma só coisa com ele!
– Mas entre nós não haverá desses, não é verdade, Mestre?
– João, quando o Véu do Templo for rasgado, uma grande verdade
brilhará, escrita sobre toda Sião.
– Qual, meu Senhor?
– Que os filhos das trevas em vão estiveram em contato com a Luz.
Lembra-te disto, João.
– Serei eu, Mestre, um filho das trevas?
– Não. Tu não. Mas lembra-te disto, para explicar o delito ao mundo.
– Que delito, Senhor? O de Caim?
– Não. Aquele foi o primeiro acorde do hino de satanás. Eu falo do
delito perfeito. Do inconcebível delito. Aquele que, para se compreender,
precisa ser olhado através do sol do divino Amor, e através da mente de
satanás. Porque só o Amor perfeito e o perfeito ódio, só o infinito Bem e o
infinito Mal é que podem explicar tal oferta e tal pecado. Ouvistes? Parece
que satanás o está ouvindo, e urrando com o desejo de levar isso logo à
execução. Vamos, antes que a nuvem se rompa em raios e chuva de pedras.
E descem correndo colina abaixo, pulando dentro da horta de Maria,
enquanto a tempestade arrebenta veemente.
[9] O Gênesis não diz assim, referindo-se a Gênesis 4,8-16.
93. Lição aos discípulos com Maria SS. na horta
da casa de Nazaré. Um conforto a Judas de Alfeu.
31 de janeiro de 1945.
93.1 Jesus sai para a horta, que aparece toda lavada pelo temporal da
tarde anterior. E vê sua Mãe inclinada sobre as plantinhas, e a saúda,
alcançando-a. Como é doce o beijo deles! Jesus a abraça pelos ombros com
seu braço esquerdo, e a atrai para si, beijando-lhe a fronte, no limite dos
cabelos, depois se inclina para ser beijado na face por sua Mãe. Mas o que
completa a suavidade do ato é o olhar que acompanha o beijo. O de Jesus é
todo amor, mesmo com o seu ar majestoso e protetor; o de Maria é todo
veneração, mas também é todo amor. Quando assim se beijam, parece que o
mais adulto seja Jesus e Ela uma filha jovenzinha, que recebe do pai, ou do
irmão bem mais velho, o beijo da manhã.
93.2 – O granizo da tarde de ontem e o vento da noite estragaram as tuas
flores? –pergunta Jesus.
– Não estragaram nada, Mestre. Só fizeram uma grande desordem nas
frondes –responde, antes de Maria, a voz um pouco rouca de Pedro.
Jesus levanta a cabeça e vê Simão Pedro que, vestido só com a túnica
mais curta, trabalha para endireitar uns ramos curvados no alto da figueira:
– Já estás trabalhando?
– Ah! Nós pescadores dormimos como os peixes: a qualquer hora, em
qualquer lugar, mas só aquele tanto que nos deixam ficar descansando. E
para nós isso se torna um costume. Esta manhã eu ouvi ranger a porta ainda
cedo, e disse a mim mesmo: “Simão, Ela já se levantou. Levanta-te
depressa! Vai com tuas grossas mãos ajudá-la.” Eu achava que Ela estivesse
pensando em suas flores, nesta noite cheia de vento. E não me enganei. Ah!
Eu conheço as mulheres!… Minha mulher também fica virando-se na cama,
como um peixe na rede quando há tempestade, e pensa em suas plantas…
Coitada! Algumas vezes lhe digo: “Aposto que tu te fiques virando menos,
quando o teu Simão está sendo sacudido como uma palhinha sobre as águas
do lago.” Mas sou injusto, porque ela é uma boa mulher. Nem parece
verdade que ela tenha por mãe… Bem: cala-te, Pedro. Este assunto está fora
de propósito. Não fica bem murmurar e imprudentemente fazer saber o que
é bondade silenciar. Estás vendo, Mestre, como até em minha cabeça de
burro entrou a tua palavra?
Jesus responde sorrindo:
– Tu mesmo é que o estás dizendo. A Mim não resta senão aprovar e
admirar a tua sabedoria de agricultor.
– Ele já amarrou todos os sarmentos que tinham se desprendido,
escorou aquela pereira que está muito carregada, e passou aquelas cordas
sob aquela romãzeira, que cresceu só para um lado –observa Maria.
– Olha só! Parece um velho fariseu. Ela pende para o lado que lhe for
mais cômodo. E eu trabalhei-a como uma vela e lhe disse: “Não sabes que o
certo está no meio? Vem cá, teimosa, senão te arrebentas, levando peso
demais.” Agora estou cuidando desta figueira. Mas por egoísmo. Penso na
fome de todos: figos frescos e pão quente! Ah! Nem o Antipas tem uma
refeição tão boa! Mas é preciso ir devagar, porque a figueira tem uns ramos
novinhos como o coração de uma mocinha, quando diz a sua primeira
palavra de amor, e eu sou pesado, e os figos melhores estão lá no alto. Já
estão secos com este primeiro sol. Devem estar uma delícia. 93.3 Ei! Tu,
rapaz! Não fiques só me olhando. Acorda! Dá-me este cesto.
João, que aparece vindo da oficina, obedece, subindo ele também pela
grossa figueira. Quando os dois pescadores descem, saíram da oficina
também Simão Zelote, José e Judas Iscariotes. Não vejo os outros.
Maria traz pão fresco, pequenos pães escuros e redondos, e Pedro, com
seu canivete, os parte e sobre eles parte os figos, e oferece primeiro a Jesus,
e depois a Maria e aos outros. Comem com gosto, ao ar fresco da horta,
toda bonita, ao sol de uma manhã serena, também pela recente chuva, que
limpou o ar.
Pedro diz:
– É sexta-feira… Mestre, amanhã é sábado…
– Não fizeste nenhuma descoberta –observa Iscariotes.
– Não. Mas o Mestre sabe o que eu quero dizer….
– Eu sei. Esta tarde iremos ao lago, onde deixaste o barco, e
velejaremos para Cafarnaum. Amanhã falarei lá.
Pedro exulta.
Entram em grupo Tomé, André, Tiago, Filipe, Bartolomeu e Judas
Tadeu, que certamente dormem em outro lugar. Saúdam-se.

Jesus diz:– Vamos permanecer aqui unidos. Assim estará aqui


93.4
também um novo discípulo. Vem, Mãe.
Assentam-se, uns sobre umas pedras, outros sobre cadeiras, fazendo um
círculo ao redor de Jesus, que está sentado sobre um banco de pedra junto à
casa, tendo a seu lado sua Mãe e aos pés João, que escolheu ficar no chão,
contanto que possa estar perto.
Jesus fala devagar e com majestade como sempre:
– A que compararei a formação apostólica? À natureza que nos
circunda. Vós a estais vendo. No inverno, a terra parece morta. Mas dentro
dela as sementes trabalham e as linfas se nutrem de umidade, depositando-a
nas frondes subterrâneas — assim poderia chamar as raízes — para depois
receber delas grande abundância para as frondes superiores, quando chegar
o tempo de florir. Vós também sois comparáveis a esta terra invernal: nua,
despojada, feia. Mas sobre vós passou o Semeador, e jogou uma semente.
Junto à vós passou o Cultivador, e fez o serviço de colocar fertilizante no
solo ao redor de vosso tronco plantado na terra dura, e duro e áspero como
ela, a fim de que pudessem chegar às raízes os nutrimentos da umidade das
nuvens e do ar, e o fortificasse para produzir o futuro fruto. E vós acolhestes
tanto a semente, como a escavação, porque em vós há boa vontade de
frutificar no serviço de Deus.
Compararei ainda a formação apostólica àquele temporal que golpeou e
envergou as árvores, e que parecia uma violência inútil. Mas olhai quanto
bem ele fez. Hoje o ar está mais puro, novo, sem poeira e sem mormaço. O
sol é o mesmo sol de ontem. Mas não tem mais aquele ardor que parecia
febre, porque chega à nós através de camadas purificadas e frescas. As
ervas e as plantas se sentem aliviadas como os homens, porque a limpeza e
a serenidade são coisas que alegram. Até os contrastes servem-nos para
chegarmos a um mais exato conhecimento e a um esclarecimento. De outro
modo, seriam somente ruindade. E que são os contrastes, senão os
temporais que provocam as nuvens de diferentes espécies? E essas nuvens
não se acumulam pouco a pouco nos corações, com os seus maus humores
inúteis, com os pequenos ciúmes, com as vaidosas soberbas? Depois vem o
vento da graça e as une, para que descarreguem todos os seus maus
humores, e volte a serenidade.
A formação apostólica é ainda semelhante ao trabalho que Pedro fazia
esta manhã para dar alegria à minha Mãe: endireitar, amarrar, sustentar ou
desatar, conforme as tendências e as necessidades, para fazer de vós uns
“fortes” a serviço de Deus. Endireitar as ideias erradas, amarrar as
prepotências carnais, sustentar as fraquezas, cortar, se for necessário, as
tendências, desatar as escravidões e a timidez. Vós havereis de ser livres e
fortes, como águias que, deixando o pico onde nasceram, vão elevando cada
vez mais o seu voo. O serviço de Deus é o voo. O pico são as afeições.
93.5 Um de vós hoje está triste, porque seu pai está à morte. E está à
morte com o coração fechado à Verdade e ao filho que a segue. Mais que
fechado, hostil. Ainda não lhe disse a palavra injusta: “Vai-te embora”, da
qual vos falava ontem, se auto-proclamando mais do que Deus. Mas o seu
coração fechado e os lábios selados não são ainda capazes de dizer
tampouco: “Segue a voz que te chama.” Não pretenderiam, nem o filho,
nem Eu que vos falo, ouvir dizer daqueles lábios: “Vem, e contigo venha o
Mestre. E bendito seja Deus por ter escolhido um dos seus servos em minha
casa, criando assim um parentesco, mais excelso do que o do sangue com o
Verbo do Senhor.” Mas ao menos Eu, para o seu bem, e o filho, por motivos
ainda mais complexos, queríamos ouvir de sua boca palavras amistosas.
Mas, que não chore este filho. Saiba que em Mim não há rancor nem
desdém para com o seu pai. Mas somente compaixão. Eu vim e parei,
mesmo sabendo da inutilidade da parada, para que um dia este filho não me
dissesse: “Oh! Por que não vieste?!” Vim para dar-lhe a persuasão de que
tudo é inútil, quando o coração se fecha no ódio. Vim também para
confortar uma boa mulher que, por causa desta desavença na família, sofre
como se uma faca lhe estivesse cortando feixes de fibras. Mas, tanto este
filho, como esta boa mulher, estejam cientes de que Eu não respondo a ódio
com ódio.
93.6 Eu respeito a honestidade do velho que crê e é fiel, ainda que tenha
uma fé desviada para aquilo que tem sido a sua religião até agora.
Há tantos desses em Israel… Por isso vos digo: Eu serei mais aceito
pelos pagãos do que pelos filhos de Abraão. A humanidade corrompeu a
ideia do Salvador e rebaixou sua realeza sobrenatural a uma pobre ideia de
soberania humana. Eu devo quebrar a dura casca do hebraísmo, penetrar,
ferir para chegar ao fundo, e levar até o ponto onde está a alma desse
hebraísmo, a fecundação da nova Lei. Oh! Como é verdade que Israel,
tendo crescido ao redor do núcleo vital da Lei do Sinai, tornou-se
semelhante a um fruto monstruoso, com uma polpa formada por camadas
cada vez mais fibrosas e duras, protegidas em seu exterior por uma casca
resistente a qualquer penetração, até à expulsão do germe, quando o Eterno
julgar ter chegado o momento para criar a nova árvore da fé no Deus uno e
trino. Eu, a fim de permitir que a vontade de Deus se cumpra, e o hebraísmo
se transforme em cristianismo, preciso cortar, perfurar, penetrar, abrir
caminho até o núcleo e aquecê-lo com o meu amor para que desperte, se
inche, germine, cresça, torne-se a árvore poderosa do cristianismo, a
religião perfeita, eterna, divina. E em verdade vos digo que o hebraísmo
somente será perfurável por uma em cem partes.
Por isso não julgo condenado este israelita que não me quer e que não
gostaria de dar-me o seu filho. Por isso Eu digo ao filho: não chores pela
carne e o sangue que sofrem por se sentirem rejeitados pela carne e pelo
sangue que os geraram. Por isso digo: não chores nem mesmo pelo espírito.
O teu sofrimento trabalha, mais do que outra coisa, a favor do teu e do seu
espírito, deste teu pai que não compreende e não vê.
93.7 E digo também: não fiques inventando remorsos por seres mais de
Deus que do pai.
A todos vós Eu digo: mais que o pai, que a mãe, que os irmãos, é Deus.
Eu vim para unir, não segundo a terra, a carne e o sangue, mas segundo o
espírito e o Céu. Por isso devo desunir as carnes e os sangues, para tomar
Comigo os espíritos aptos para o Céu desde esta terra e torná-los servos do
Céu. Por isso vim para chamar os “fortes”, para fazê-los ainda mais fortes,
porque de “fortes” é feito o meu exército de mansos. Mansos para com os
irmãos, fortes contra o próprio eu e o eu do sangue familiar.
Não chores, primo. A tua dor, Eu te garanto, opera junto a Deus a favor
do teu pai e dos teus irmãos mais do que toda a palavra, não só tua, mas
também minha. A palavra não entra onde o preconceito lhe opõe barreira,
acredita nisso. Mas a Graça entra. E o sacrifício é um ímã que atrai a graça.
Em verdade vos digo que, quando Eu chamo para Deus, não existe
outra obediência mais alta do que esta. E é preciso pô-la em prática, sem
nada de ficar parado, fazendo cálculos de quanto e como irão reagir os
outros ao vosso andar em direção a Deus. Tampouco deve parar para
sepultar o pai. E tereis um prêmio por esse ato de heroísmo, um prêmio não
somente para vós, mas também para aqueles dos quais vos arranquei com
um bramido do vosso coração, e cuja palavra muitas vezes vos fere mais do
que uma bofetada, porque vos acusa de serem filhos ingratos e vos
amaldiçoa, em seu egoísmo, como se fôsseis rebeldes. Não. Não rebeldes.
Santos. Os primeiros inimigos dos que foram chamados são os familiares.
Mas, entre um e outro amor, é preciso saber distinguir e amar
sobrenaturalmente. Ou seja, amar mais o Senhor do sobrenatural do que os
servos desse Senhor. Amar os parentes em Deus. E não mais do que Deus.
93.8Jesus se cala e se levanta, indo para perto do seu primo que, de
cabeça baixa, a muito custo está contendo o pranto. Jesus o acaricia.
– Judas… Eu deixei a minha Mãe para seguir a minha missão. Que isto
tire de ti toda dúvida sobre a honestidade do teu modo de agir. Se não
tivesse sido um ato bom, Eu o teria feito para com minha Mãe, que não tem,
ninguém além de Mim?
Judas passa a mão de Jesus sobre o seu próprio rosto, e anui com a
cabeça. Mas não pode dizer mais nada.
– Vamos nós dois sozinhos, como quando éramos meninos, e Alfeu
achava que Eu era o mais ajuizado dos meninos de Nazaré. Vamos levar ao
velho estes belos cachos de uva dourada. Que não fique pensando que me
esqueci dele e que sou seu inimigo. Também tua mãe e Tiago se alegrarão
com isto. Eu lhes direi que amanhã estarei em Cafarnaum e que seu filho é
todo para ele. Sabes, os velhos são como os meninos: ciumentos. E sempre
desconfiados de estarem sendo esquecidos. É preciso compadecer-nos
deles….
Jesus desapareceu, deixando na horta os discípulos emudecidos diante
da revelação de uma dor e de uma incompatibilidade entre um pai e um
filho por causa de Jesus. Maria acompanhou Jesus até à porta, e agora torna
a entrar, suspirando.
E tudo termina.
94. Cura da Beldade de Corozaim.
Jesus fala na sinagoga de Cafarnaum.
1 de fevereiro de 1945.
94.1 Jesus sai da casa da sogra de Pedro junto aos seus discípulos, menos
Judas Tadeu. Quem o vê primeiro é um rapaz, que vai dar a notícia até a
quem não o quer saber.
Jesus, que está à beira do lago, sentou-se à bordo do barco de Pedro e
imediatamente se vê rodeado pelos moradores da cidade, que festejam a sua
volta, e lhe fazem mil perguntas, às quais Jesus responde com aquela sua
paciência insuperável, sorridente e plácido, como se todo aquele falatório
fôsse uma harmonia celeste.
Também chega o arqui-sinagogo. Jesus se levanta para saudá-lo. A
recíproca saudação é cheia de um respeito oriental.
– Mestre, posso esperar-te para a instrução ao povo?
– Sem dúvida, se tu e o povo o desejais.
– Nós o temos desejado todo este tempo. Eles o podem dizer.
O povo de fato o diz com uma nova gritaria.
– Então, lá pelo meio da tarde, estarei em tua casa. Agora ide todos.
Preciso ir encontrar alguém que me quer.
O povo se afasta a contragosto, enquanto Jesus com Pedro e André vão
com o barco no lago. Os outros discípulos ficam em terra.
94.2 O barco veleja por algum tempo e depois os dois pescadores o
empurram por uma pequena enseada entre duas colinas baixas, que parecem
ter sido, em origem, uma só, desmoronada ao centro pela erosão das águas
ou por algum movimento telúrico, formando um minúsculo fiorde que, por
não ser norueguês, não tem abetos, mas somente oliveiras descabeladas,
nascidas não se sabe como sobre aquelas paredes íngremes, entre grandes
pedras desmoronadas e enormes lascas emergentes, e entrelaçando suas
frondes, contorcidas pelos ventos do lago, que aqui devem soprar
constantemente até formar um teto, abaixo do qual espuma uma pequena
torrente teimosa, cheia de barulho por causa das muitas cascatas, e de
espuma, porque há uma queda de metro em metro, mas na realidade é um
verdadeiro riozinho, entre os cursos d’água.
André pula na água para puxar o barco o mais possível para a margem e
amarrá-lo a um tronco, enquanto Pedro amarra a vela e firma bem uma
tábua para servir de ponte a Jesus.
– Mas –diz ele–, eu te aconselharia a tirar as sandálias, a tirar a veste e
a fazer como nós. Aquele doido ali (e mostra a pequena torrente) faz ferver
a água do lago, e não fica firme a ponte com este balanceamento.
Jesus obedece sem discutir. E, uma vez em terra, põem de novo as
sandálias, e Jesus põe também a sua longa veste. Os outros ficam com suas
curtas e escuras vestes de baixo.
94.3 – Onde estará? –pergunta Jesus.
– Certamente entranhou-se no mato, ao ouvir nossas vozes. Sabes…
com o que ela tem sobre o corpo….
– Chama-a.
Pedro grita bem alto:
– Eu sou o discípulo do Rabi de Cafarnaum. E o Rabi está aqui. Vem
para fora!
Ninguém dá sinal de vida.
– Ela não confia –explica André–. Um dia esteve alguém aqui que a
chamou dizendo: “Vem, que aqui tem alimento”, e depois a recebeu a
pedradas. Nós a vimos, então, pela primeira vez, porque eu, pelo menos,
não me lembrava dela, quando era a Beldade de Corozaim.
– E que foi que fizestes naquela vez?
– Nós lhe jogamos um pão, peixe e um trapo, um pedaço de vela
rasgada, que nós tínhamos para enxugar-nos, porque estava nua. Depois
fugimos de lá para não nos contaminarmos.
– Como foi que voltastes então?
– Mestre… Tu estavas fora, e nós estávamos pensando no que
poderíamos fazer para tornar-te cada vez mais conhecido. Pensamos em
todos os doentes, em todos os cegos, aleijados, mudos… e também nela.
Nós dissemos: “Vamos tentar”. Sabes… muitos… oh! Certamente por nossa
culpa, nos chamaram de doidos e não quiseram escutar-nos. Outros, ao
invés, acreditaram em nós. Com ela fui eu mesmo que falei. Eu vim sozinho
com o barco, em várias noites de luar. Eu a chamava, e dizia: “Sobre a
pedra, aos pés da oliveira há pão e peixe. Vem, sem medo”, e ia-me embora.
Ela devia ficar esperando que eu desaparecesse para vir, porque eu não a via
nunca. Na sexta vez, eu a vi de pé sobre a margem, exatamente aí onde
estás. Ela estava me esperando… Que horror! Eu não saí correndo,
pensando em Ti… Ela me disse: “Quem és? Por que tens piedade?” Eu
disse: “Porque sou discípulo da Piedade.” “Quem é?” “É Jesus da Galileia.”
“E Ele vos ensina a ter piedade de nós?” “De todos.” “Mas sabes quem eu
sou?” “És a Beldade de Corozaim, agora a leprosa.” “E também de mim
tendes piedade?” “Ele diz que sua piedade é para com todos, e nós, para
sermos como Ele, devemos tê-la com todos.” Nesse ponto, Mestre, a
leprosa blasfemou sem querer. Ela disse: “Então Ele também deve ter sido
um grande pecador.” Eu lhe disse: “Não. É o Messias, o Santo de Deus.”
Queria dizer-lhe: “Maldita sejas pela tua língua”, mas não disse mais do que
isso, porque pensei: “Em seu triste estado, ela não pode pensar na
Misericórdia divina.” Então ela começou a chorar, e disse: “Oh! Se é o
Santo, não pode, não, não pode ter piedade da Beldade. Da leprosa
poderia… mas da Beldade não. E eu que esperava…” Perguntei: “Que
esperavas, mulher?” “A cura… voltar ao mundo… entre os homens…
morrer mendiga, mas entre os homens… não como uma fera em um covil
de feras, às quais causo horror.” Eu lhe disse: “Tu me juras que, se voltares
ao mundo, serás honesta?” E ela: “Sim. Deus me feriu justamente por meus
pecados. O arrependimento está em mim. Minha alma leva a sua expiação,
mas detesta o pecado para sempre.” Pareceu-me, então, que podia prometer-
lhe a salvação em teu nome. E ela me disse: “Volta… volta outra vez. Fala-
me Dele. Que minha alma o conheça antes dos meus olhos…” E ia falar de
Ti como eu sei…
– E Eu venho a dar a salvação à primeira convertida do meu André –
(porque foi André que sempre falou, enquanto Pedro foi pela torrente
acima, pulando de uma pedra a outra, e chamando a leprosa).
94.4 Por fim, ela mostra o seu rosto horrível, entre as folhas de uma
oliveira. Vê e dá um grito.
– Mas, desce daí, afinal –exclama Pedro–. Não quero te apedrejar! Não
o estás vendo? Aqui está o Rabi Jesus.
A mulher se deixa resvalar pelo declive, digo assim pela rapidez com
que ela desce, e chega aos pés de Jesus, antes que Pedro volte para perto do
Mestre.
– Piedade, Senhor!
– És capaz de crer que Eu possa dar-te?
– Sim, porque és santo, e porque eu estou arrependida. Eu sou o
pecado, mas Tu és a misericórdia. O teu discípulo foi o primeiro a ter
Misericórdia de mim, e veio dar-me pão e fé. Limpa-me, Senhor, a alma,
antes da carne. Porque eu sou três vezes impura, e se tens que me dar uma
limpeza, uma só, eis, te peço a da minha alma pecadora. Antes de ter
ouvido as tuas palavras, que ele me repetia, eu dizia: “Sarar para voltar
entre os homens.” Agora que sei, digo: “Ser perdoada para ter a vida
eterna.”
– E perdão Eu te dou. Nada mais do que isto, porém…
– Que sejas Tu bendito. Viverei na paz de Deus em minha caverna…
livre… oh! Livre dos remorsos e dos temores. Não tenho mais medo da
morte, agora que estou perdoada! Não tenho mais medo de Deus, agora que
Tu me absolveste!
94.5 – Vai lavar-te no lago. E fica dentro d’água, até Eu te chamar.
A mulher, uma triste sombra de mulher esquelética, corroída, com os
cabelos despenteados, duros, embranquecidos, levanta-se do chão, desce até
a água do lago, e imerge, junto ao seu farrapo de veste que bem pouco a
cobre.
– Por que mandaste que ela fôsse lavar-se? É verdade que o seu mau
cheiro até nos faz adoecer, mas… eu não entendo –diz Pedro.
– Mulher, sai e vem aqui. Pega aquele pano que está sobre aquele ramo
–(é o pano usado por Jesus para enxugar-se, depois de ter atravessado o
pequeno vau do barco até a terra).
A mulher emerge obediente, completamente nua, tendo deixado o seu
farrapo na água, para ir pegar o pano seco. O primeiro a gritar é Pedro, que
a está olhando, enquanto André, mais esquivo, volta-lhe as costas. Mas, ao
ouvir o grito de seu irmão, vira-se, e grita por sua vez. A mulher, que estava
com os olhos de tal modo fixos em Jesus, que nem se preocupava com nada
mais, ao ouvir aqueles gritos e ao ver aquelas mãos que lhe acenam, olha
para si mesma… E vê que, com a veste rasgada, ficou no lago também a sua
lepra. Ela não corre, como seria de se pensar. Prostra-se, encolhendo-se à
beira d’água, vergonhosa de sua nudez, e tão emocionada, que fica incapaz
de qualquer outra coisa, a não ser de chorar com um lamento longo e
interminável, que é mais lancinante do que qualquer grito.
Jesus encaminha-se… a alcança… põe-lhe o pano nas costas, a acaricia
apenas na cabeça, e lhe diz:
– Adeus. Sê boa. Mereceste a graça pela sinceridade do teu
arrependimento. Cresce na fé do Cristo. E obedece à lei da purificação.
A mulher chora, chora sem parar… Somente quando ouve a batida da
tábua, que Pedro joga de novo sobre o barco é que levanta a cabeça, estende
os braços e grita:
– Obrigada, Senhor. Obrigada, bendito. Oh! bendito, bendito!…
Jesus lhe faz um gesto de despedida, antes que o barco faça a última
curva do pequeno fiorde, e desapareça…
94.6 … Jesus, agora com todos os discípulos, entra na sinagoga de
Cafarnaum, depois de ter atravessado a praça e a estrada que vão para lá. A
notícia do novo milagre já deve ter corrido, porque ali há muito sussurro e
muitos comentários.
Exatamente sobre o limiar da porta da sinagoga, vejo o futuro apóstolo
Mateus. Fica ali, meio dentro e meio fora, não sei se vergonhoso ou se
importunado por todas as piscadelas, das quais está sendo feito alvo e
também por algum apelido pouco agradável que lhe é endereçado. Dois
empertigados fariseus recolhem estudadamente os seus amplos mantos,
como se estivessem com medo de apanhar a peste, roçando com eles na
veste de Mateus.
Jesus, entrando, o fixa por um instante e, por um instante para. Mas
Mateus inclina a cabeça.
Pedro, logo que se afastaram dali, diz em voz baixa a Jesus:
– Sabes quem é aquele homem de cabelos encaracolados, mais
perfumado do que uma mulher? É Mateus, o nosso fiscal… Que será que
ele veio fazer aqui? É a primeira vez que vem. Talvez não encontrou os
companheiros, e sobretudo as companheiras, com os quais passa o sábado,
gastando em orgias o que suga em taxas de impostos duplicadas e
triplicadas para sustentar o vício.
Jesus olha para Pedro tão severamente, que Pedro fica vermelho como
uma papoula, e inclina a cabeça, parando, de modo que do primeiro torna-se
o último no grupo apostólico.
94.7 Jesus está em seu lugar. Depois dos cantos e das orações feitas com
o povo, vira-se para falar. O arqui-sinagogo lhe pergunta se quer algum
rolo, mas Jesus responde:
– Não é preciso. Eu já tenho o assunto.
E inicia[10]:
– O grande rei de Israel, Davi de Belém, depois de ter pecado, chorou
na contrição do seu coração, gritando a Deus o seu arrependimento, e
pedindo a Deus perdão. Davi tinha ficado com seu espírito obcecado pela
sensualidade, e isto não lhe permitia mais ver o rosto de Deus, nem
compreender sua palavra.
O rosto, Eu disse. No coração do homem há um ponto que se recorda
do rosto de Deus, é o ponto mais eleito, aquele que é o nosso Sancta
Sanctorum, aquele do qual nascem as santas inspirações e as santas
decisões, aquele que perfuma como um altar, brilha como uma fogueira,
canta como um coro de serafins. Mas, quando em nós o pecado fumega, eis
que aquele ponto se ofusca tanto que cessa a luz, o perfume, o canto, e fica
somente o mau cheiro de uma fumaça pesada e um gosto de cinza. Quando
porém, a luz volta, porque um servo de Deus a traz consigo ao que está no
escuro, eis que então o homem vê a sua fealdade, a sua condição inferior e,
horrorizado de si mesmo, exclama como o rei Davi: “Tem piedade de mim,
ó Senhor, segundo a tua grande Misericórdia, e, pela tua infinita bondade,
lava-me do meu pecado”, e não diz: “Não posso ser perdoado, por isso
continuo a pecar.” Mas diz: “Eu estou humilhado, estou contrito, mas te
peço, Tu que sabes como na culpa eu nasci, asperge-me e limpa-me para
que eu volte a parecer como a neve dos cumes das montanhas.” Diz ainda:
“Não de carneiros e bois será o meu holocausto, mas a verdadeira contrição
do coração. Porque eu sei que Tu queres esta de nós, e não desprezas a
contrição.”
Isto é o que dizia Davi, depois do pecado, e depois que Natan, o servo
do Senhor, fez que ele se arrependesse. Isto, com maior razão, é o que
devem dizer os pecadores, agora que o Senhor não lhe manda um dos seus
servos, mas o próprio Redentor, o seu Verbo, o qual, justo e dominador, não
só dos homens, mas também dos súperos, e dos ínferos, surgiu entre o seu
povo, como a luz da aurora que, ao surgir o sol da manhã, brilha sem
nuvens.
94.8 Já lestes como o homem, feito presa de Mamon, ficou mais fraco
que um tuberculoso, que está morrendo, mesmo se antes era o “forte”.
Sabeis como Sansão se tornou um nada, depois de ter-se entregado à
sensualidade. Eu quero que conheçais a lição de Sansão, filho de Manué,
destinado a vencer os filisteus, opressores de Israel. A primeira condição
para que fôsse o vencedor era que, desde sua concepção se conservasse
virgem de tudo o que excita o baixo sentido e estabelece uma união das
entranhas do homem com carnes imundas: ou seja, vinho e cerveja e carnes
gordas, que acendem os lombos com um fogo impuro. A segunda condição
era que, para ser o libertador, fôsse consagrado ao Senhor desde a infância,
e assim se conservasse para sempre como nazareno. Consagrado é aquele
que, não só exteriormente, mas interiormente se conserva santo. Então Deus
está com ele.
Mas a carne é carne, e satanás é tentação. E a tentação toma como
instrumento a carne, para combater Deus em um coração e em seus santos
decretos, e assim a mulher excita o homem. Eis então que a força do “forte”
treme, e ele se torna um fraco, desperdiçando o dom que Deus lhe deu.
Agora, escutai: Sansão foi amarrado com sete cordas, feitas com nervos
frescos, com sete cordas novas, fixado ao chão pelas sete tranças dos seus
cabelos. E ele sempre tinha vencido. Mas não se tenta o Senhor em vão,
nem mesmo em sua bondade. Não é lícito. Ele perdoa, perdoa, perdoa. Mas
exige que se tenha vontade de sair do pecado, para que continue a perdoar.
É um tolo quem diz: “Perdão, Senhor”, e depois não foge do que o induz ao
contínuo pecado! Sansão, três vezes vitorioso, não fugiu de Dalila, da
sensualidade, do pecado e, enfadado até à morte, diz o Livro, caindo em
desânimo, revelou o segredo: “A minha força está nas sete tranças.”
Não haverá ninguém entre vós que, cansado pela grande canseira do
pecado, sinta faltar-lhe o ânimo, pois nada abate tanto quanto a má
consciência, e esteja para se entregar vencido ao inimigo? Não, sejas tu
quem fores, não, não faças isso. Sansão entregou à tentação o segredo de
vencer as suas sete virtudes: as sete simbólicas tranças, as suas virtudes, ou
seja, a sua fidelidade de nazareno; adormeceu cansado sobre o seio da
mulher, e foi vencido. Cego, escravo, impotente, por haver recusado
fidelidade ao seu voto. Nem voltou o “forte”, o “libertador”, senão quando,
na dor de um verdadeiro arrependimento reencontrou a sua força…
Arrependimento, paciência, constância, heroísmo, e depois, ó
pecadores, Eu vos prometo que sereis os libertadores de vós mesmos. Em
verdade vos digo que não há batismo que valha, nem rito que tenha valor, se
não houver arrependimento e vontade de renunciar ao pecado. Em verdade
vos digo que não há pecador tão pecador, que não seja capaz de fazer
renascer, com o seu pranto, as virtudes que o pecado arrancou do seu
coração.
94.9 Hoje uma mulher, uma culpada de Israel, punida por Deus pelo seu
pecado, obteve Misericórdia por seu arrependimento. Eu disse Misericórdia.
Menos Misericórdia alcançarão aqueles que dela não tiveram Misericórdia e
sobre a já punida, foram cruéis sem piedade. Aqueles não tinham em si
mesmos a lepra da culpa? Cada um se examine… e tenha piedade para ter
quem se apiede dele. Eu vos estendo a mão em favor desta arrependida, que
volta entre os vivos, depois de uma segregação de morte. Simão de Jonas,
não Eu, arrecadará o óbolo pela arrependida, que dos limiares da vida, volta
à verdadeira Vida! E vós, grandes, não murmureis. Não murmureis. Eu
ainda não era vivo, quando ela já era a Beldade. Mas vós o éreis. E Eu não
digo mais nada.
– Estarás nos acusando de termos sido seus amantes? –pergunta
rancoroso um dos dois velhos.
– Cada um tenha em sua frente o seu coração e as suas ações. Eu não
acuso. Falo em nome da Justiça. Vamos.
E Jesus sai com os seus.
Mas Judas Iscariotes está sendo detido pelos dois que parecem já
conhecê-lo. Eu ouço o que estão dizendo:
– Tu também estás com Ele? É santo realmente?
Iscariotes lança mão de um daqueles seus disparos sem direção:
– Eu faço votos que chegueis ao menos a compreender a sua santidade!
– Mas, no entanto, Ele curou em dia de sábado.
– Não. Ele perdoou em dia de sábado. E qual dia mais apto ao perdão
do que o sábado? E não me dais nada pela remida?
– Não damos nosso dinheiro às meretrizes. Ele é oferecido ao Templo
santo.
Judas dá uma risada irreverente, e os deixa sós, alcançando o Mestre,
que está entrando de novo na casa de Pedro, o qual lhe está dizendo:
– Aí está! O pequeno Tiago, logo que saiu da sinagoga, me deu hoje
duas bolsas, em vez de uma, e sempre por ordem daquele desconhecido.
Mas, quem é ele, Mestre? Tu o sabes… Diz a mim.
Jesus sorri:
– Eu direi a ti, quando aprenderes a não murmurar contra ninguém.
E tudo tem fim.
[10] E inicia, comentando o pecado e o arrependimento de David (narrados em 2 Samuel 11-12; Salmo 51) e prossegue
comentando a história de Sansão (referida em: Juízes 13-16). De David, a parte as simples citações do seu nome, se fala ainda em:
215.2 – 217.3 – 263.2 – 337.2 – 389.2 – 394.2 – 447.2 – 558.1 – 580.3 – 588.6 – 632.33. Sansão vem ainda mencionado em: 104.4
– 215.2 – 218.3 – 376.9/10 – 467.9 – 625.1.
95. Tiago de Alfeu acolhido entre os discípulos.
Jesus fala junto à banca de Mateus.
2 de fevereiro de 1945.
95.1 É uma manhã de feira em Cafarnaum. A praça está cheia de
vendedores das mais diversas mercadorias.
Jesus, que chega à praça, vindo do lago, vê que estão vindo ao seu
encontro os seus primos Judas e Tiago. Apressa-se em ir também ao
encontro deles e, depois de tê-los abraçado com afeto, pergunta-lhes
atenciosamente:
– E vosso pai? Que foi que aconteceu?
– Nada de novo, quanto à vida dele, responde Judas.
– E então, por que vieste? Eu te havia dito: “fica aí”.
Judas abaixa a cabeça e fica calado. Mas quem explode agora é Tiago:
– É por minha culpa que ele não te obedeceu. Sim. Por culpa minha.
Mas eu não pude suportar mais. Todos contra. E por quê? Por acaso, faço
mal em amar-te? Fazemos mal, por acaso? Até aqui, eu me tinha detido,
com o escrúpulo de agir mal. Mas agora que sei, agora que Tu disseste que
acima de Deus nem mesmo o pai está, então eu não suportei mais. Oh!
Procurei ser respeitoso, fazer entender as razões, endireitar as ideias. Eu
disse: “Por que me combateis? Se é o Profeta, se é o Messias, por que
quereis que o mundo diga: ‘A sua família lhe foi inimiga. Em um mundo
que o seguia, essa faltou’? Por que, se Ele é o infeliz que vós dizeis, não
devemos estar nós da família junto à sua demência, para impedir que ela lhe
seja nociva, e que seja nociva a nós?” Ó Jesus, assim eu dizia, para
raciocinar humanamente, como eles raciocinavam. Mas Tu sabes que eu e
Judas não te julgamos doido. Tu sabes que vemos em Ti o Santo de Deus.
Tu sabes que sempre te olhamos como a nossa Estrela maior. Mas não
quiseram entender-nos. Nem escutar-nos quiseram mais. E eu vim embora.
Na escolha, ou Jesus ou a família, escolhi a Ti. Eis-me, se é que Tu me
queres. Se não me quiseres, eu serei, então, o mais infeliz dos homens,
porque não terei mais nada. Nem a tua amizade, nem o amor da família.
– Assim é que estão as coisas? Ó meu Tiago, meu pobre Tiago! Não
queria ver-te sofrer assim, porque Eu te amo. Mas, se o Jesus-Homem
contigo chora, o Jesus-Verbo por ti jubila. Vem. Estou certo de que a alegria
de seres o portador de Deus entre os homens aumentará cada vez mais o teu
júbilo, até alcançar o pleno êxtase, na hora extrema desta vida e na vida
eterna do Céu.
95.2 Jesus se vira e chama os seus discípulos, que haviam parado
prudentemente a alguns metros de distância.
– Vinde, amigos. O meu primo Tiago agora é um dos meus amigos e
por isto, vosso amigo. Quanto Eu desejei esta hora, este dia, para ele, o meu
perfeito amigo de infância, o meu bom irmão na juventude!
Os discípulos fazem festa ao novo que chegou e a Judas que fazia dias
que não viam.
– Nós te havíamos procurado em tua casa… mas estavas no lago.
– Sim, estive dois dias no lago com Pedro e os outros. Pedro teve uma
boa pesca. Não é verdade?
– Sim, e agora, o que me desagrada, é que terei que dar muitas
didracmas àquele ladrão ali–, e aponta o cobrador de iimpostos, Mateus,
que tem sua banca cheia de gente que vem pagar por suas terras, eu creio,
ou por mercadorias.
– Tudo será proporcional, Eu te digo. Mais pescas, mais pagas, mas
também mais ganhas.
– Não, Mestre. Mais pesco, mais ganho. Mas, se dobro o peso da pesca,
aquele ali não me faz pagar o dobro. Faz-me dar quatro vezes mais… É um
chacal!
– Pedro! Pois bem, vamos exatamente lá perto. Quero falar. Sempre há
gente perto daquela banca de impostos.
– Sem dúvida alguma! –resmungou Pedro–. Gente e maldições.
– Pois bem. Eu irei até lá levar bênçãos. Quem sabe se um pouco de
honestidade não entre no cobrador da impostos.
– Podes ficar tranquilo, pois a tua palavra não passará pela sua pele de
crocodilo.
– Veremos.
– Que lhe dirás?
– Diretamente, nada. Mas falarei de modo que chegue também a ele.
– Dirás que é ladrão tanto quem assalta nas estradas, como quem esfola
os pobres que trabalham para terem o pão, e não para ir atrás de mulheres e
bebedeiras?
– Pedro, não queres tu ir falar no meu lugar?
– Não, Mestre. Eu não saberia falar bem.
– E, com o azedume que trazes dentro de ti, farias mal a ti e a ele.
95.3 Chegaram junto à banca do imposto.
Pedro faz menção de pagar. Jesus segura-o e diz:
– Dá-me as moedas. Hoje, pago Eu.
Pedro o olha espantado, e depois lhe dá uma bolsa de pele com algumas
moedas dentro.
Jesus espera a sua vez e, quando está à frente do cobrador, diz:
– Pago por oito cestas de peixe, de Simão de Jonas. Os cabazes estão
ali, aos pés dos aprendizes. Podes verificar, se julgares necessário. Mas
entre pessoas honestas deveria bastar a palavra. E creio que tu me julgues
tal. Quanto é a taxa?
Mateus, que estava sentado à sua banca, na hora em que Jesus diz:
“Creio que tu me julgues tal”, pôs-se de pé. Baixo e já velhote, mais ou
menos da idade de Pedro, mostra porém um rosto cansado de gozador, e
uma visível confusão. No início ele fica com a cabeça inclinada, depois a
levanta e olha para Jesus. E Jesus o olha fixo, sério, dominando-o com a sua
imponente estatura.
– Quanto? –repete Jesus, pouco depois.
– Não há taxa para o discípulo do Mestre –responde Mateus. E em voz
mais baixa, acrescenta:– Reza pela minha alma.
– Eu a trago em Mim, porque recolho os pecadores. Mas tu… por que
não cuidas dela?
E Jesus, logo em seguida, lhe vira as costas, voltando para Pedro, que
está admirado. Também os outros estão espantados. Cochicham, piscam….
95.4 Jesus vai-se encostar a uma árvore, que está a uns dez metros de
Mateus, e começa a falar.
– O mundo é comparável a uma grande família, cujos componentes têm
ofícios diferentes e todos necessários. Há agricultores, pastores, vinhateiros,
carpinteiros, pescadores, pedreiros, os operários da madeira e do ferro,
depois os escrivães, os soldados, os oficiais destinados a missões especiais,
os médicos, os sacerdotes. Há de tudo. O mundo não poderia ser feito de
uma só classe. Todas são necessárias, todas santas, se todas fazem o que
devem, com honestidade e justiça. Como se pode chegar a isso, se satanás
tenta de todos os lados? Pensando em Deus, que tudo vê, até as obras mais
escondidas, e na sua Lei, que diz: “Ama ao teu próximo como a ti mesmo,
não lhe faças o que não gostarias que te fôsse feito, não roubes de modo
nenhum.”
Dizei, ó vós, que me estais ouvindo: porventura, quando alguém morre,
leva consigo suas bolsas de dinheiro? E, ainda que fôsse tão tolo, de querê-
las consigo no sepulcro, pode, por acaso, usá-las na outra vida? Não. As
moedas tornam-se metais corroídos sobre a podridão de um corpo desfeito.
Mas a sua alma, nessa outra vida, estaria nua, mais pobre que o bem-
aventurado Jó, privada até da menor das moedas, ainda que aqui e no
sepulcro tivesse deixado talentos e talentos. Aliás, ouvi, ouvi! Aliás, em
verdade Eu vos digo, que com as riquezas dificilmente se conquista o Céu,
mas, ao contrário, geralmente com elas se perde o Céu, mesmo com as
riquezas honestamente adquiridas, ou por herança, ou por ganho, porque
poucos são os ricos que sabem usar com justiça as suas riquezas.
Que é preciso então, para se ter esse Céu bendito, este repouso no seio
do Pai? É preciso que não sejais ávidos de riquezas. Ávidos no sentido de
querê-las a todo custo, mesmo faltando com a honestidade e o amor; ávidos
no sentido que, possuindo-as, sejam amadas mais do que o Céu e o
próximo, negando caridade ao próximo necessitado; ávidos pelas coisas que
as riquezas podem dar, ou seja, mulheres, prazeres, mesa lauta, vestes de
luxo, que são ofensa para quem tem frio e fome. Há, sim, há uma moeda
pela qual podem trocar-se as moedas injustas do mundo em dinheiro que
vale no Reino dos Céus. E é a santa esperteza de fazer que as riquezas
humanas, muitas vezes injustas ou causas de injustiça, se transformem em
riquezas eternas. Ou seja, ganhar com honestidade, devolver aquilo que
injustamente se deteve, usar dos bens com parcimônia e desapego, sabendo
separar-se deles, porque, antes ou depois, eles nos deixam — oh! pensai
nisto! — enquanto que o bem praticado não nos deixa nunca.
Todos gostaríamos de ser chamados “justos” e ser julgados como tais e,
como tais, premiados por Deus. Mas como é que Deus pode premiar a quem
de justo só tem o nome, mas não as obras? Como pode dizer: “Eu te
perdoo”, se vê que o arrependimento é só verbal, mas não acompanhado por
uma verdadeira mudança de espírito? Não existe arrependimento, enquanto
continua o desejo do objeto pelo qual pecamos. Mas quando uma pessoa se
humilha, quando ela corta o membro moral de uma paixão má, que pode
chamar-se mulher ou ouro, e diz: “Por Ti, Senhor, não quero saber mais
disto”, eis então que ela está verdadeiramente arrependida. E Deus a acolhe,
dizendo: “Vem, tu me és querido como um inocente e um herói.”
Jesus terminou. E vai saindo, sem sequer virar-se para Mateus, que
tinha ido para o círculo dos ouvintes, desde as primeiras palavras.
95.5Quando estão perto da casa de Pedro, a mulher dele corre ao seu
encontro para dizer-lhe qualquer coisa. Pedro faz sinal a Jesus para que
venha perto dele.
– Aí está a mãe de Judas e de Tiago. Ela quer falar Contigo, mas não
quer ser vista. Como iremos fazer?
– Assim. Eu entro em casa como para descansar, e vós todos ireis
distribuir o óbolo aos pobres. Toma também as moedas da taxa que foi
devolvida. Vai.
Jesus faz um aceno de despedida para todos, enquanto Pedro distrai,
tentando persuadi-los a ir com ele.
– Onde está a mãe, mulher? –pergunta Jesus à mulher de Pedro.
– Está no terraço, Mestre. Lá ainda está fazendo sombra, e está fresco.
Podes subir. Lá estarás mais à vontade do que em casa.
Jesus sobe pela escadinha. Em um canto, sob a cerrada parreira de uva,
sentada em um banquinho colocado junto ao parapeito, toda vestida de
escuro, com o véu muito caído sobre o rosto, está Maria de Alfeu. Está
chorando, sem fazer barulho.
Jesus a chama:
– Maria! Tia querida!
Ela levanta um pobre rosto angustiado e estende as mãos:
– Oh Jesus! Quanta dor sinto em meu coração!
Jesus vai para junto dela. Obriga-a a ficar sentada. Mas Ele fica em pé,
com seu manto ainda pendente das costas, e tendo uma mão sobre o ombro
da tia e a outra entre as mãos dela:
– Que tens? Por que tanto pranto?
– Oh! Jesus! Eu escapei de casa, dizendo: “Vou a Caná procurar ovos e
vinho para o doente.” Junto ao Alfeu está tua Mãe, que cuida dele como Ela
sabe fazer, e eu fico tranquila. Mas na realidade vim até aqui. Corri noites
inteiras[11], para chegar aqui mais depressa. E já não aguento mais… Mas o
cansaço não é nada. O que me faz mal é a dor do coração!… O meu
Alfeu… o meu Alfeu… os meus filhos… oh! por que tanta diferença entre
os que são do mesmo sangue? E por que essa diferença há de ser como as
duas pedras de um moinho para triturar o coração de uma mãe? Estão
Contigo Judas e Tiago? Sim? Então já sabes… Oh! Jesus! Por que o meu
Alfeu não compreende? Por que está morrendo? Por que quer morrer
assim? E Simão e José? Por que, por que não estão Contigo, mas contra Ti?
– Não chores, Maria. Eu não tenho rancor deles. Disse isso também a
Judas. Compreendo e sinto compaixão. Se é por isso que estás chorando,
não chores mais.
– É por isso sim, porque te ofendem. Por isso, e depois, e depois…
porque eu não quero que o meu esposo morra na inimizade Contigo. Deus
não o perdoará… e eu… oh! eu não o terei mais nem mesmo na outra
vida…
Maria está realmente angustiada. Chora com grandes lágrimas sobre a
mão esquerda, de Jesus, e frequentemente a beija, erguendo o seu pobre
rosto, atormentado.
– Não –diz Jesus–. Não. Não digas assim. Eu perdoo. E se Eu perdoo…
95.6 – Oh! Vem, Jesus. Vem para salvar a alma e o corpo dele. Vem…
Estão dizendo também, para acusar-te, já estão dizendo que tiraste dois
filhos de um pai que está morrendo, e dizem isto por toda a cidade de
Nazaré, entendes? E dizem ainda: “Ele fez milagres por toda parte, mas na
sua casa não os sabe fazer.” E porque te defendo, dizendo: “Que é que Ele
pode fazer, se de certo modo o expulsastes com as vossas repreensões, se
não credes Nele?”
– Disseste bem: se não credes. Como posso fazer onde não se tem fé?
– Oh! Tu podes tudo! Eu creio por todos! Vem. Faz um milagre… pela
tua pobre tia….
– Não posso.
Jesus está muito triste ao dizer isto. Posto de pé, apertando contra o seu
peito a cabeça da chorosa, parece confessar sua impotência à natureza
serena, parece chamá-la como testemunha da sua pena de não poder, por
decreto eterno.
A mulher chora mais forte.
– Escuta, Maria. Sê boa. Eu te asseguro que, se pudesse, se fôsse bom
fazer isso, Eu o faria. Oh! Arrancaria do Pai esta graça para ti, para minha
Mãe, para Judas e Tiago, e também, sim, também para Alfeu, José e Simão.
Mas não posso. Tu agora sentes tanta dor no coração, que não podes
entender a justiça no fato. Eu direi a ti, mas mesmo assim, não a entenderás.
Quando chegou a hora da passagem de meu pai, e tu sabes como ele era
justo, e como minha Mãe o amava, Eu não o trouxe de volta à vida. Não é
justo que a família, na qual vive um Santo, esteja isenta das inevitáveis
desventuras da vida. Se assim fosse, Eu deveria ser eterno nesta terra, e, no
entanto, brevemente morrerei, e, nem Maria, a minha santa Mãe, poderá
arrancar-me da morte. Não posso. O que Eu posso é isto, e o farei.
Jesus sentou-se e segurou a cabeça de sua parente sobre o ombro:
– Isto Eu farei. Prometer-te, por causa desta dor, a paz para o teu Alfeu,
garantir-te que não estarás separada dele na outra vida, dar-te a minha
palavra que a nossa família estará reunida no Céu, recomposta eternamente,
e que, enquanto Eu viver e depois, infundirei sempre em minha querida
parente tanta paz, tanta força, até fazer dela uma apóstola junto à tantas
pobres mulheres, das quais a ti, como mulher, será mais fácil aproximar-te.
Serás a minha dileta amiga neste tempo de evangelização. Não chores! a
morte de Alfeu te livra dos deveres conjugais e te eleva àqueles mais
sublimes de um sacerdócio feminino místico, tão necessário junto ao altar
da grande Vítima, e junto a muitos pagãos, que inclinarão mais os seus
corações diante do heroísmo santo das mulheres discípulas, do que diante
dos discípulos. Oh! o teu nome, querida tia, será como uma chama no céu
cristão… Não chores mais. Vai em paz. Forte, resignada, santa. Minha
Mãe… ficou viúva antes de ti… e te confortará como Ela sabe. Vem. Não
quero que partas sozinha, debaixo deste sol. Pedro te acompanhará com o
barco até o Jordão, e de lá até Nazaré, com um burrinho. Sê boa.
– Abençoa-me, Jesus. Dá-me força, Tu.
– Sim, Eu te abençoo e te beijo, minha boa tia.
E a beija ternamente, segurando-a por muito tempo contra o seu
coração, até poder vê-la acalmada.
[11] noites inteiras é leitura incerta no texto manuscrito, do qual resulta clara a forma plural. Contudo parece arbitrário, mesmo
que mais realístico, a transcrição datilografada: por toda a noite.
96. Jesus responde à acusação de ter curado
a Beldade de Corozaim em dia de sábado.
3 de fevereiro de 1945.
96.1 Jesus está em Betsaida. Ele fala estando em pé no barco, que o levou
ali, e que está quase encalhado na areia da margem, amarrado a uma estaca
de um pequeno cais rudimentar. Muita gente, sentada em semicírculo sobre
a areia, o escuta. Jesus começou, há pouco, o seu discurso.
– … e aqui vejo que vós de Cafarnaum também me amais, pois que me
seguistes, deixando de lado os vossos negócios e comodidades, contanto
que pudésseis ouvir a palavra que vos ensina. Sei também que, mais que
deixar de lado os vossos negócios, tendo por esta razão um prejuízo aos
vossos bolsos, isso vos torna também objeto de zombarias, podendo até vos
acarretar prejuízos sociais. Sei que Simão, Eli, Urias e Joaquim estão contra
Mim. Hoje estão contra, amanhã serão inimigos. E vos digo — porque não
engano a ninguém, nem quero enganar a vós, meus amigos fiéis — que,
para prejudicar-me, para fazer-me sofrer, para tentarem vencer-me isolando-
me, eles, os poderosos de Cafarnaum, usarão de todos os meios… tanto de
insinuações como de ameaças, de zombarias como de calúnias. O Inimigo
comum usará de tudo para arrancar ao Cristo as almas, e fazê-las presas
suas. Eu vos digo: quem perseverar será salvo; mas também vos digo: quem
tiver mais amor à vida e ao bem-estar do que à salvação eterna, estará livre
para ir-se embora e deixar-me, para ir ocupar-se desta pequena vida e de um
bem-estar transitório. Eu não seguro ninguém.
96.2 O homem é um ser livre. Eu vim para livrar cada vez mais o homem.
Para livrá-lo do pecado, e isso pelo espírito. E das cadeias de uma religião
deturpada, opressiva, que sufoca debaixo de rios de cláusulas, de palavras e
de preceitos, a verdadeira palavra de Deus, que é pura, breve, luminosa,
fácil, santa, perfeita. A minha vinda é um crivo das consciências. Eu
recolho o meu grão na eira, e o bato com a doutrina do sacrifício, e o crivo
com a peneira da sua mesma vontade. O folhelho, a forragem, a ervilhaca, o
joio, voarão para fora leves e inúteis, cairão pesados e nocivos e vão servir
de alimento para os voláteis, pois no meu celeiro só entrará o trigo
escolhido, puro, sólido e bom. O trigo: os santos.
Um desafio existe, há séculos, entre o Eterno e satanás. satanás,
envaidecido pela primeira vitória sobre o homem, disse a Deus: “As tuas
criaturas serão minhas para sempre. Nada, nem mesmo o castigo, nem a Lei
que lhes queres dar, os fará capazes de ganhar o Céu. E esta tua Morada, da
qual me expulsaste, expulsaste a mim, o único inteligente entre as tuas
criaturas, ficará vazia, inútil, triste como todas as coisas inúteis.” E o Eterno
respondeu ao Maldito: “Isso ainda poderás fazer, enquanto o teu veneno for
só para dominar o homem. Mas Eu mandarei o meu Verbo, e a sua palavra
neutralizará o teu veneno, sarando os corações, e os curará da demência
com que os manchaste ou endemoninhaste, e eles voltarão a Mim. Como
ovelhas que, desviadas, reencontram o pastor, eles voltarão ao meu Aprisco,
e o Céu se povoará. Para eles criei o céu e tu rangerás teus horrorosos
dentes, em tua raiva impotente, lá em teu horroroso reino, em tua prisão e
maldição, e sobre ti será tombada pelos anjos a pedra de Deus e selada, e as
trevas e o ódio ficarão contigo e com os teus, enquanto que a luz e o amor, o
canto e a bem-aventurança, a liberdade infinita, eterna e sublime serão para
os meus.” E Mamon, com uma risada de escárnio, assim jurou: “E sobre a
minha Geena juro que eu virei quando for a hora. Serei onipresente junto
aos evangelizados, e veremos se o vencedor serei eu, ou se serás Tu.”
Sim, é certo que satanás vos está armando ciladas, para peneirar-vos. E
Eu também vos estou rodeando para peneirar-vos. Os contendedores são
dois: Eu e ele. Vós estais no meio. O duelo do Amor com o ódio, da
Sabedoria com a Ignorância, da Bondade com o Mal, está acima de vós e ao
vosso redor. Para desviar os golpes malvados sobre vós, Eu basto. Eu me
ponho entre a arma satânica e o vosso ser, e aceito ser ferido em vosso
lugar, porque vos amo. Mas os golpes que são dados em vosso interior, vós
deveis afastá-los com a vossa vontade, correndo para Mim, pondo-vos no
meu Caminho, que é Verdade e Vida. Quem não estiver desejoso do Céu,
não terá o Céu. Quem não estiver apto para ser discípulo do Cristo, será
como um folhelho leve que o vento do mundo transporta consigo. Quem é
inimigo do Cristo é uma semente nociva que renascerá no reino satânico.
96.3 Eu sei por que vós de Cafarnaum viestes. E, tanto tenho a
consciência pura do pecado de que estou sendo acusado, e em nome de qual
inexistente pecado vindes murmurando atrás de Mim, insinuando-vos que
ouvir-me e seguir-me é cumplicidade com o pecador, que Eu não tenho
medo de tornar conhecida por estes de Betsaida a causa de tudo isso.
Entre vós, cidadãos de Betsaida, há alguns anciãos que, por diversas
razões, não se esqueceram da Beldade de Corozaim. Há homens que
pecaram com ela, há mulheres que por causa dela choraram. Choraram
e — oh! Eu ainda não tinha chegado a dizer: “Amai a quem vos
prejudica!” — choraram, mas depois se alegraram, quando souberam que
ela havia sido mordida pela podridão, transpirada de suas entranhas impuras
para o exterior de seu corpo esplêndido, figura daquela lepra mais grave que
lhe havia corroído a alma de adúltera, homicida e meretriz. Adúltera setenta
vezes sete, e com qualquer um que tivesse nome de “homem”, e tivesse
dinheiro. Homicida sete vezes sete pelas suas concepções bastardas.
Meretriz por vício, e não por necessidade.
Oh! Eu vos compreendo, mulheres traídas! Compreendo a vossa
alegria, quando vos disseram: “As carnes da Beldade estão mais fétidas e
desfeitas do que as de uma carniça que está num buraco à beira de uma
movimentada estrada e está sendo devorada pelos urubus e pelos vermes.”
Mas Eu vos digo: sabei perdoar. Deus executou as vossas vinganças, mas
depois Deus perdoou. Perdoai vós também. Eu a perdoei também em vosso
nome, porque sei que sois bondosas, ó mulheres de Betsaida que me estais
saudando com esta vossa aclamação: “Bendito o Cordeiro de Deus! Bendito
Aquele que vem em nome do Senhor!” Se Eu sou Cordeiro, e como tal me
conheceis, se venho entre vós, Eu Cordeiro, vós deveis tornar-vos todas
umas ovelhas mansas, até mesmo aquelas que por causa de uma antiga, já
bem antiga dor de esposa traída, está ainda com aqueles instintos de uma
fera que defende o seu ninho. Eu não poderia permanecer entre vós, se
fôsseis umas hienas ou tigres, Eu que sou o Cordeiro.
Aquele que vem no Nome santíssimo de Deus, para recolher justos e
pecadores, e levá-los ao Céu, foi também à arrependida, e lhe disse: “Sê
limpa, vai e faz expiação.” Fiz isso em dia de sábado. E é disto que me
estão acusando. Acusação oficial. A segunda é de haver-me aproximado de
uma meretriz. Uma que foi meretriz. Agora não era senão uma alma
chorando por seu pecado.
Pois bem, Eu vos digo: Eu o fiz e farei. Trazei-me o Livro, escrutai-o,
estudai-o, aprofundai-o. Encontrai, se fordes capazes, um ponto que proíba
ao médico de tratar um doente, de um levita de ocupar-se do altar, a um
sacerdote de ouvir um fiel, só porque é sábado. Se encontrardes esse ponto
e me mostrardes, direi, batendo no peito: “Senhor, Eu pequei na tua
presença e na dos homens. Não sou digno do perdão. Mas, se Tu quiseres
ser piedoso com o teu servo, Eu te bendirei, enquanto tiver em Mim um
sopro de vida.” Porque aquela alma estava doente. E os que precisam dos
médicos são os doentes. Era um altar profanado e tinha necessidade de que
um levita o purificasse. Era um fiel que ia chorar no Templo verdadeiro do
Deus verdadeiro, e tinha necessidade do sacerdote que lá o introduzisse. Em
verdade Eu vos digo que Eu sou o Médico, o Levita, o Sacerdote. Em
verdade vos digo que, se Eu não cumprir o meu dever, perdendo uma só das
almas, que sentem um veemente desejo de salvação, e não salvá-la, Deus
Pai me pedirá conta, e me punirá por essa alma perdida.
Eis o meu pecado, segundo os poderosos de Cafarnaum. Eu poderia ter
esperado o dia depois do sábado para fazer o que Eu fiz. Sim. Mas, por que
tardar outras vinte e quatro horas para readmitir na paz de Deus um coração
contrito? Naquele coração havia a humildade verdadeira, a sinceridade crua,
a dor perfeita. Eu li naquele coração. A lepra ainda estava em seu corpo.
Mas seu coração já estava curado, pelo bálsamo dos anos de
arrependimento, de lágrimas, de expiação. Aquele coração não tinha
necessidade, para aproximar-se de Deus, de outra coisa, além da minha
reconsagração, sem que aquela aproximação tornasse impura a aura santa
que circunda Deus. Eu fiz. Ela saiu do lago limpa também em suas carnes.
Mas ainda mais limpa no coração.
96.4 Quantos, oh! quantos daqueles que entraram nas águas do Jordão,
para obedecerem às ordens do precursor, não saíram de lá limpos como ela!
Porque o batismo deles não era um ato voluntário, desejado, sincero, de um
espírito que queria preparar-se para a minha vinda. Mas só uma forma para
aparecerem perfeitos em santidade aos olhos do mundo. Por isso, era
hipocrisia e soberba. Duas culpas que aumentavam o cúmulo de culpas pré-
existentes em seus corações. O batismo de João é apenas um símbolo. Quer
dizer: “Limpai-vos da soberba humilhando-vos dizendo-vos pecadores; das
luxúrias, lavando-vos das escórias delas.” Mas é a alma que vai ser batizada
com a vossa vontade, a fim de ficar limpa para o banquete de Deus. Não
existe culpa tão grande que não possa ser lavada, primeiro pelo
arrependimento, depois pela graça, e finalmente pelo Salvador. Não há
pecador tão grande, que não possa levantar o rosto abatido e sorrir, diante
de uma esperança de redenção. Basta que ele renuncie completamente a
culpa, seja heroico em resistir à tentação, e sincero na vontade de renascer.
96.5 Eu agora vos digo uma verdade que pareceria uma blasfêmia aos
meus inimigos. Mas vós sois os meus amigos. Falo especialmente a vós,
meus discípulos já escolhidos, e depois a todos vós que me estais
escutando. Digo-vos: os anjos, espíritos puros e perfeitos, viventes na luz da
Santíssima Trindade e nela jubilantes, em sua perfeição têm, e reconhecem
tê-la, uma inferioridade em relação a vós, homens distantes do Céu. Eles
têm a inferioridade de não poderem sacrificar-se, de não poderem sofrer
para cooperar na redenção do homem. E que vos parece? Deus não escolhe
um dos seus anjos para dizer-lhe: “Sê o redentor da Humanidade.” Mas
escolhe o seu Filho. E sabendo que, por incalculável que seja o sacrifício e
infinito o seu poder, ainda falta — e é uma bondade paterna que não queira
fazer diferença entre o Filho do seu amor e os filhos do seu poder — para
aquela soma de merecimentos que deve contrapor-se à soma dos pecados,
que de hora em hora a Humanidade acumula, eis que não toma outros anjos
para completar a medida e não lhes diz: “Sofrei para imitar o Cristo”, mas o
diz a vós, a vós homens. Diz-vos: “Sofrei, sacrificai-vos, sede semelhantes
ao meu Cordeiro. Sede co-redentores…” Oh! Eis: Eu vejo cortes de anjos
que, deixando por um instante, em seu êxtase de adoração, de rodear em
torno ao Fulcro Trino, ajoelham-se, virados para a terra, e dizendo:
“Benditos sois vós, que podeis sofrer com o Cristo e pelo Deus eterno,
nosso e vosso!”
Muitos não compreenderão ainda esta grandeza. É superior demais ao
homem. Mas quando a Hóstia for imolada, quando o Grão eterno ressurgir,
para nunca mais morrer, depois de ter sido colhido, batido, despojado e
sepultado nas entranhas do solo, então virá o Iluminador superespiritual e
iluminará os espíritos, até os mais tardos, que permanecem fiéis ao Cristo
Redentor, e então compreendereis que não blasfemei, mas vos anunciei a
mais alta dignidade do homem, aquela de ser co-redentor, mesmo se antes
não éreis mais que um pecador.
96.6 Por enquanto, preparai-vos para essa dignidade com pureza de
coração e de intenções. Quanto mais puros fordes, mais compreendereis.
Porque a impureza, seja qual for, é sempre uma fumaça, que turva a vista e
entorpece o entendimento.
Sede puros. Começai a sê-lo pelo corpo, para passardes ao espírito.
Começai pelos cinco sentidos para passardes às sete paixões. Começai pelos
olhos, sentido este que é rei, e que abre o caminho à mais mordente e
complexa das fomes. Os olhos veem a carne da mulher e cobiçam a carne.
Os olhos veem a riqueza dos ricos e cobiçam o ouro. Os olhos veem a
potência dos governantes e cobiçam o poder. Conservai os olhos calmos,
honestos, comedidos, puros, e tereis desejos calmos, honestos, comedidos e
puros. Quanto mais puros forem os vossos olhos, mais puro será o vosso
coração. Sede vigilantes sobre os vossos olhos, ávido descobridor dos
pomos tentadores. Sede castos nos olhares se quereis ser castos no corpo.
Se tiverdes castidade na carne, tereis castidade na riqueza e no poder. Tereis
todas as castidades, e sereis amigos de Deus. Não tenhais medo de ser
escarnecidos por serdes castos. Tende medo somente de serem inimigos de
Deus.
Um dia ouvi dizer: “Serás escarnecido pelo mundo como mentiroso ou
como eunuco, se deres sinal de não desejar mulher.” Em verdade vos digo
que Deus estabeleceu o casamento para elevar-vos a seus imitadores na
procriação e a seus ajudantes na obra de povoar os Céus. Mas existe um
estado mais alto, diante do qual se inclinam os anjos, ao verem sua
sublimidade, mas sem poderem imitá-la. Um estado que, perfeito quando
durou do nascimento até a morte, não está porém fechado para aqueles que
não são mais virgens, mas extinguem sua fecundidade, seja masculina ou
feminina, anulam sua virilidade animal, para tornarem-se fecundos e viris
só no espírito. É um estado de eunuco sem imperfeição natural nem
mutilação violenta ou voluntária. É um estado que não os proíbe[12] de se
aproximarem do altar, mas ao contrário, nos séculos futuros, por esses é que
será rodeado e servido o altar. É um estado de eunuco mais alto, aquele o
qual faz de instrumento amputador a vontade de pertencer somente a Deus e
de conservar para Ele um corpo e um coração castos, a fim de que possam
ter eternamente o fulgor daquela candidez cara ao Cordeiro.
96.7 Falei para o povo, e para os eleitos entre o povo. Agora, antes de
começar a partir o pão e dividir o sal na casa de Filipe, eis que Eu vos
abençoo a todos: aos bons, como que dando-lhes um prêmio; aos pecadores,
para infundir-lhes a coragem de vir Àquele que veio para perdoar. A paz
esteja com todos vós.
Jesus desce do barco e passa entre a multidão que se aglomera ao seu
redor. No canto de uma casa está ainda Mateus, que dali escutou o Mestre,
não ousando mais nada. Tendo chegado àquela altura, Jesus para e, como se
abençoasse a todos, abençoa mais uma vez, olha para Mateus, e depois vai-
se novamente entre o grupo dos seus, seguido pelo povo, e desaparece em
uma casa.
Tudo tem fim.
[12] não os proíbe, como por outro é referido em Levítico 21,16-24 para quem é eunuco no físico.
97. O chamado de Mateus.
4 de fevereiro de 1945.
[…].
97.1 Quase logo depois, vejo isto.
Ainda a praça da feira de Cafarnaum. Mas em uma hora mais quente,
na qual a feira já acabou, e na praça estão apenas uns desocupados que
conversam e alguns meninos que brincam.
Jesus, no meio do seu grupo, vem do lago em direção à praça,
acariciando as crianças que correm ao seu encontro, e interessando-se por
suas confidências.
Uma menina mostra um grande arranhão sangrando na fronte e acusa o
irmãozinho de ter-lhe feito aquilo.
– Por que machucaste a tua irmã? Não está certo.
– Não fiz isso de propósito. Eu queria apanhar uns figos e peguei um
pau. Mas ele era muito pesado e tombou em cima dela… Eu estava
apanhando para ela também.
– É verdade, Joana?
– É verdade.
– Então, como estás vendo, teu irmão não quis te machucar. Ao
contrário, queria dar-te uma alegria. Por isso, fazei logo as pazes, e beijai-
vos um ao outro. Os bons irmãozinhos, e também as boas crianças, não
devem conhecer nunca o rancor. Vamos….
As duas crianças chorosas se beijam. Choram as duas: ela, por causa da
dor do arranhão, ele por lhe ter causado aquela dor.
Jesus sorri diante daquele beijo temperado com grandes lágrimas.
– Oh! Eis. Agora, vendo que sois bons, vou apanhar os figos para vós.
E sem pau.
Claro! Alto como Ele é, e com o braço tão comprido, consegue fazer
sem esforço. Colhe e os distribui.
Aproxima-se Dele uma mulher:
– Toma, Mestre. Estou te trazendo pão.
– Não. Não é para Mim. É para a Joana e o pequeno Tobias. Eles
tinham vontade.
– E vós, incomodastes o Mestre por isso? Oh! Que indiscretos! Perdoa,
Senhor.
– Mulher, era preciso fazer as pazes… e Eu as fiz com o próprio objeto
da guerra: os figos. Mas os meninos não são nunca indiscretos. Os figos
doces agradam a eles, e a Mim… agradam as suas doces almas inocentes.
Elas me tiram tanta amargura…
– Mestre… são os senhores aqueles que não te amam. Mas nós, povo,
te queremos bem. E eles são poucos, enquanto que nós somos muitos…
– Eu sei, mulher. Obrigado pelo teu conforto. A paz esteja contigo.
Adeus, Joana! Adeus, pequeno Tobias! Sede bons. Sem vos machucardes e
sem vos quererdes mal. Não é verdade?
– Sim, sim, Jesus! –respondem os dois pequeninos.
97.2 Jesus põe-se a caminho, e diz sorrindo:
– Oh! Agora que com a ajuda dos figos, tornou-se sereno onde havia
nuvens, vamos para… Aonde achais que vamos?
Os apóstolos não sabem. Uns dizem um lugar, outros, outro. Mas Jesus
sacode sempre a cabeça, e ri.
Pedro diz:
– Eu desisto. A não ser que Tu o digas… Hoje estou com umas ideias
funestas. Tu não o viste. Mas, quando desembarcávamos, estava lá Eli, o
fariseu. Mais esverdeado que de costume. E olhava para nós de um jeito!
– Deixa-o olhar!
– É. Forçosamente! Mas te asseguro Mestre, que para fazer as pazes
com aquele ali, não bastam dois figos!
– Que foi que Eu disse à mãe do pequeno Tobias? “Fiz as pazes com o
próprio objeto da guerra.” E assim procurarei fazer as pazes, reverenciando
os notáveis de Cafarnaum, posto que, no entender deles, os ofendi. Assim
também mais alguém vai ficar contente.
– Quem?
Jesus não responde à pergunta, e continua:
– Não conseguirei, provavelmente, porque falta neles a vontade de
fazer as pazes. Mas escutai: se, em todas as contendas o mais prudente
soubesse ceder e, em lugar de obstinar-se em ter razão, se conciliasse,
talvez partindo pela metade aquilo que, também quero admitir, fôsse seu por
direito, seria sempre melhor e mais santo. Nem sempre um prejudica o
outro, por ter tomado a resolução de prejudicar. Às vezes faz mal sem
querer. Pensai sempre nisso e perdoai. Eli e os outros acham que estão
servindo a Deus com justiça, agindo como fazem. Com paciência e
constância e tanta humildade e amabilidade, Eu procurarei persuadi-los que
chegou um novo tempo, e que Deus, agora, quer ser servido, segundo o que
Eu ensino. A esperteza do apóstolo é a amabilidade, a arma a constância, o
êxito do seu trabalho depende do bom exemplo e da oração por aqueles que
haverão de converter-se.
97.3 Chegaram à praça. Jesus vai direto para a banca dos impostos, onde
Mateus está fazendo as suas contas e verificando as moedas, que ele separa
conforme os valores, colocando-as em saquinhos de cores diferentes e
pondo-as num cofre de ferro, que dois servos estão esperando para o
levarem a outro lugar.
Mal a sombra lançada pelo corpo alto de Jesus se projeta sobre a banca,
Mateus levanta a cabeça para ver quem é o pagador retardatário. Pedro,
entretanto, puxando Jesus por uma manga, lhe diz:
– Não temos nada que pagar Mestre. Que fazes aqui?
Mas Jesus não lhe dá atenção. Olha fixo para Mateus, que de repente se
pôs de pé, em ato reverente. Um outro olhar penetrante. Mas este não é o
olhar do juiz severo da outra vez. É um olhar de chamado e de amor. É um
olhar que o envolve, o satura de amor. Mateus fica vermelho. Não sabe o
que fazer, o que dizer…
– Mateus, filho de Alfeu, chegou a hora. Vem. Segue-me! –impõe Jesus
majestosamente.
– Eu? Mestre, Senhor! Mas, sabes quem eu sou? Eu digo isto por Ti, e
não por mim….
– Vem. Segue-me, Mateus, filho de Alfeu –repete com mais doçura.
– Oh! Como posso eu ter achado graça junto a Deus? Eu… Eu….
– Mateus, filho de Alfeu, Eu li o teu coração. Vem, segue-me.
O terceiro convite é uma carícia.
– Oh! Imediatamente meu Senhor! –e Mateus, chorando, sai detrás da
banca, sem nem mesmo ocupar-se em recolher as moedas espalhadas sobre
a banca, em fechar o cofre. Nada.
– Onde vamos, Senhor? –pergunta ele ao chegar perto de Jesus–. Onde
me levas?
– À tua casa. Queres hospedar o Filho do homem?
– Oh! Mas… mas… que irão dizer aqueles que te odeiam?
– Eu ouço o que se diz no Céu, e lá se diz: “Glória a Deus por um
pecador que se salva!”, e o Pai diz: “Em eterno a Misericórdia se levantará
nos Céus, e pairará sobre a terra, e, visto que Eu te amo com um eterno e
perfeito amor, também para contigo uso de Misericórdia.” Vem, e com a
minha chegada, além do teu coração, fique santificada também a tua casa.
– Já a purifiquei, por uma esperança que eu tinha em minha alma…
mas que minha razão não podia crer que fôsse verdade… Oh! Eu com os
teus santos! –e olha os discípulos.
– Sim. Com meus amigos. Vinde. Eu vos uno. E sede irmãos.
Os discípulos estão de tal modo estupefatos, que ainda não encontraram
um jeito de dizer uma palavra. Caminharam em grupo atrás de Jesus e de
Mateus pela praça cheia de sol, e já absolutamente vazia, por um curto
trecho de estrada, debaixo de um sol ofuscante. Pelas estradas não há viva
alma. Só o sol e a poeira.
97.4 Entram em casa. Uma bonita casa com um portão largo que se abre
para a estrada. Um belo átrio, sombreado e fresco, além do qual se vê um
amplo pátio ajardinado.
– Entra, meu Mestre! Trazei água e bebidas.
Os servos acorrem com o que foi pedido. Mateus sai para dar ordens,
enquanto Jesus e os seus se refrescam. Depois volta.
– Vem agora, Mestre. A sala é mais fresca… Os amigos já vão
chegar… Oh! Quero que se faça uma grande festa! É a minha
regeneração… É a minha… esta é a minha verdadeira circuncisão… Tu me
circundaste o coração com o teu amor… Mestre, será a última festa…
Daqui em diante não haverá mais festas para o publicano Mateus. Não
haverá mais festas deste mundo… Somente a festa interior por ter sido
redimido e poder servir-te… por ser amado por Ti… Quanto eu chorei…
Quanto, nestes meses… São quase três meses que choro… Eu não sabia
como fazer… eu queria ir… Mas como ir a Ti, Santo, com a minha alma
suja?…
– Tu a estavas lavando com o arrependimento e a caridade. Caridade
para Comigo e para com o próximo. Pedro, vem aqui.
Pedro, que ainda não falou de tanto que está assombrado, vem para a
frente. Os dois homens igualmente idosos, de baixa estatura, robustos, estão
um à frente do outro, e entre eles, Jesus, sorridente, bonito.
– Pedro, tu me tens perguntado tantas vezes quem era o desconhecido
daquela bolsa levada por Tiago. Ei-lo, ei-lo à tua de frente!
– Quem? Este ladr… Oh! Perdoa-me, Mateus! Mas, quem poderia
pensar que eras tu? E justamente tu, o nosso desespero por causa da tua
usura, fosses capaz de arrancar todas as semanas um pedaço do teu coração,
dando aquele rico óbolo?
– Eu sei. Eu cobrei de vós taxas injustas. Mas eis, eu me ajoelho diante
de todos vós, e vos digo: Não me rejeiteis! Ele me acolheu. Não sejais mais
severos do que Ele.
Pedro, a cujos pés se encontra Mateus, o levanta de repente, com o seu
peso todo, de um modo rude mas afetuoso:
– Vamos, vamos! Não a mim, nem aos outros. A Ele pede perdão.
Nós… olha lá… somos, uns mais outros menos, todos ladrões, como tu…
Oh! Que foi que eu disse! Maldita língua! Mas eu sou assim: aquilo que
penso eu digo, aquilo que tenho no coração tenho sobre os lábios. Vem,
vamos fazer um pacto de paz e de amor –e beija Mateus nas faces.
Os outros também fazem o mesmo, mais ou menos afetuosamente.
Digo assim, porque André é reservado por causa da sua timidez, e Judas
Iscariotes é frio. Parece que está abraçando um feixe de répteis, pelo modo
como o seu abraço é afastado e rápido.
97.5 Mateus ouve um barulho e sai.
– Mas, Mestre –diz Judas Iscariotes–, parece-me que isso não é
prudente. Já te acusam os fariseus daqui, e Tu… Um publicano entre os
teus! Um publicano depois de uma meretriz!! Decidiste arruinar-te? Se é
assim, diz que…
– Que nós vamos embora, não é mesmo? –termina Pedro, irônico.
– E quem é que está falando contigo?
– Eu sei que tu não estás falando comigo, mas eu, ao invés, estou
falando com a senhora tua alma, com a tua puríssima alma, com a tua sábia
alma. Sei que tu, membro do Templo, sentes o fedor do pecado em nós,
pobres, que não somos do Templo. Eu sei que tu, completo judeu,
amálgama de fariseu, saduceu e herodiano, meio escriba e uma migalha de
essênio — queres outras dessas nobres palavras? — te sentes mal entre nós,
como um esplêndido sável, caído em uma rede cheia de lambaris. Mas, que
é que queres fazer? Ele nos pegou, e nós… aqui ficamos. Se te sentes mal…
vai embora tu. Todos nós respiraremos melhor. Também Ele que, não o
estás vendo? Foi desdenhado por mim e por ti. Por mim, por minha falta de
paciência e também… sim, também de caridade, mas mais por ti, que não
entendes nada, com todo este teu cartaz de nobres atributos, e que não tens
caridade, nem humildade, nem respeito. Não tens nada, rapaz. Mas só uma
grande fumaça… e queira Deus que seja fumaça inócua.
Jesus deixou que Pedro falasse, permanecendo em pé, severo, com os
braços cruzados, a boca bem fechada e os olhos… pouco convidativos.
Finalmente diz:
– Disse tudo, Pedro? Também tu limpaste o teu coração do fermento
que estava dentro? Fizeste bem. Hoje é a Páscoa dos Ázimos para um filho
de Abraão. O chamado de Cristo é como o sangue do cordeiro sobre as
vossas almas, e onde esse está não descerá mais a culpa. Não descerá se
aquele que o recebe, a ele for fiel. Libertador é o meu chamado e é festejado
sem fermentos de espécie alguma.
A Judas não diz uma palavra. Pedro cala-se, mortificado.
– Nosso hospedeiro está de volta –diz Jesus–. E com os seus amigos.
Não mostremos a eles outra coisa senão virtudes. Quem não conseguir fazer
assim, que saia. Não sejais como os fariseus, que oprimem com ordens que
eles são os primeiros a não observar.
97.6 Mateus reentra com outros homens, e o banquete começa. Jesus está
no centro, entre Pedro e Mateus. Falam de muitas coisas, e Jesus explica,
com paciência, a este e àquele o que eles querem saber. Há também queixas
contra os fariseus, que os desprezam.
– Pois bem, vinde a quem não vos despreza. Depois, agi de modo que,
ao menos, os bons não vos possam desprezar –responde Jesus.
– Tu és bom. Mas estás sozinho!
– Não. Estes são como Eu e, além disso… está Deus Pai, que ama a
quem se arrepende e quer tornar-se seu amigo. E, se faltasse ao homem
tudo, mas ficasse o Pai, não seria já plena a alegria do homem?
O banquete está na sobremesa, quando um servo faz um sinal ao dono
da casa e lhe diz qualquer coisa.
– Mestre, Eli, Simão e Joaquim estão pedindo para entrar e falar a Ti.
Queres vê-los?
– Certamente.
– Mas… os meus amigos são publicanos.
– E eles vieram justamente para verem isto. Deixemos que vejam. Não
seria proveitoso escondê-lo. Não seria proveitoso para o bem, porque o mal
aumentaria o episódio até dizer que aqui também estavam meretrizes. Que
eles entrem.
97.7 Os três fariseus entram, olham em torno com um sorriso maldoso,
prontos para falar.
Mas Jesus, que se levantou e foi ao encontro deles junto com Mateus,
os precede. Coloca uma mão sobre o ombro de Mateus e diz:
– Ó verdadeiros filhos de Israel, Eu vos saúdo, e vos dou uma grande
notícia, que certamente fará jubilar o vosso coração de perfeitos israelitas,
que suspiram pela observância da Lei por parte de todos os corações para
dar glória a Deus. Eis: Mateus, filho de Alfeu, a partir de hoje não é mais o
pecador, o escândalo de Cafarnaum. Uma ovelha sarnenta de Israel ficou
curada. Jubilai! Atrás dele, outras ovelhas pecadoras serão curadas e a vossa
cidade, por cuja santidade tanto vos interessais, tornar-se-á agradável ao
Senhor, como santa. Ele deixa tudo para servir a Deus. Dai o beijo de paz
no israelita desviado, que volta ao seio de Abraão.
– E volta com os publicanos? Em alegre banquete? Oh! É verdade que
é uma conversão propícia! Olha lá, Eli, aquele é o Josias, o procurador de
mulheres.
– E aquele é o Simão de Isaque, o adúltero.
– E aquele? É o Azarias, o dono da casa de jogo, na qual romanos e
judeus jogam, brigam, se embriagam e vão às mulheres.
– Mas, Mestre, sabes, ao menos, quem são estes? Já o sabias?
– Eu sabia.
– E vós, então, vós de Cafarnaum, vós discípulos, por que o
permitistes? Fico pasmado, Simão de Jonas!
– E tu, Filipe, também conhecido aqui, e tu, Natanael! Mas eu me
admiro! Tu, um verdadeiro israelita! Como podias ter permitido que o teu
Mestre comesse com os publicanos e os pecadores?
– Mas então não há mais freio em Israel.
Os três estão completamente escandalizados.
Jesus diz:
– Deixai em paz os meus discípulos. Fui Eu quem quis. Somente Eu.
– É! Certo! Compreende-se. Quando se quer parecer santos sem o ser,
logo se cai em erros imperdoáveis!
– E quando os discípulos são educados na falta de respeito — e ainda
me queima a risada irreverente daquele judeu do Templo, a mim Eli, o
fariseu — não se pode esperar senão falta de respeito à Lei. Ensina-se o que
se sabe.
– Estás enganado, Eli. Estais todos enganados. Ensina-se aquilo que se
sabe. É verdade. E Eu, que sei a Lei, a ensino a quem não a sabe: aos
pecadores, portanto. Vós… Eu sei que sois donos de vossa alma. Os
pecadores não o são. Eu vou em busca da alma deles, restituo-a a eles, para
que eles tornem a trazê-la a Mim, assim como está: doente, ferida, suja, e
Eu a cure e limpe. Eu vim para isso. São os pecadores que precisam do
Salvador. E Eu venho para salvá-los. Compreendei-me… e não me odieis
sem razão.
Jesus é doce, persuasivo, humilde… Mas os três são três cardos
eriçados e cheios de espinhos… e saem com sinais de desgosto.
– Foram embora… Agora vão criticar-nos por toda parte, murmura
Judas Iscariotes.
– Deixa que o façam! Age apenas de maneira que o Pai não tenha o que
criticar em ti. Não fiques mortificado, Mateus, nem vós seus amigos. A
consciência nos diz: “Não façais o mal.” E isto basta.
Jesus torna a sentar-se em seu lugar e tudo termina.
98. Encontro com Madalena no lago
e lição aos discípulos perto de Tiberíades.
5 de fevereiro de 1945.
98.1 Jesus com todos os seus — já são em treze, e mais Ele — estão, sete
em cada barco sobre o lago da Galileia. Jesus está no barco de Pedro, e é o
primeiro, junto a Pedro, André, Simão, José e os dois primos. No outro
estão os dois filhos de Zebedeu com os restantes, ou seja, Iscariotes, Filipe,
Tomé, Natanael e Mateus.
Os barcos velejam ligeiros, impelidos por um vento norte fresco, que
mal encrespa a água com tantas pequeninas rugas, sublinhadas por um fio
de espuma, que forma um tule sobre o azul turquesa do belo lago sereno.
Vão, deixando atrás de si dois sulcos, que nas bases se beijam, confundindo
suas alegres espumas em um único riso de águas, porque vão quase juntos,
o de Pedro está somente a uns dois metros na frente.
De um barco ao outro, distantes poucos metros entre si, trocam-se
palavras e comentários. Por estes eu deduzo que os galileus ilustram e
explicam aos judeus os pontos do lago, o comércio que aí fazem, as
personalidades que ali habitam, as distâncias do lugar de partida e de
chegada, ou seja, Cafarnaum e Tiberíades. Os barcos não estão indo para a
pesca, mas estão sendo usados agora somente para o transporte das pessoas.
Jesus está sentado à proa e goza visivelmente da beleza que o circunda,
do silêncio, de todo aquele azul puro do céu e das águas as quais formam
uma espiral às margens verdes, pontilhadas de povoados inteiramente
brancos entre o verde. Ele se aparta das conversações dos discípulos, pois
está muito à frente, na proa, quase deitado sobre uma pilha de velas, com a
cabeça frequentemente inclinada sobre aquele espelho de safira, que é o
lago, como se estudasse o fundo e se interessasse por tudo o que vive
naquelas águas tão límpidas. Mas quem sabe o que estará pensando…
Pedro o interroga por duas vezes para saber se o sol — que já se
levantou do oriente e atinge em cheio o barco com seus raios, não ainda
ardentes mas já quentes — o incomoda; uma outra vez lhe pergunta se não
quer pão e queijo como os outros. Mas Jesus não quer nada, nem toldo, nem
pão. E Pedro o deixa em paz.
98.2 Um grupinho de pequenos barcos de passeio, parecidos com umas
chalupas, mas todos cheios de baldaquinos cor de púrpura e de macias
almofadas, atravessa o caminho por onde vão indo os barcos dos
pescadores. Com eles passam sons, risadas e perfumes.
Estão cheios de belas mulheres e de alegres romanos e palestinos, mas
mais de romanos, ou pelo menos não palestinos, porque alguns deles devem
ser gregos; isso é o que deduzo pelas palavras de um jovem magro,
elegante, moreno como uma azeitona quase madura, todo enfeitado em uma
curta veste vermelha, limitada em baixo por um pesado galão, e presa à
cintura por uma cinta que é uma obra-prima do ourives. Ele está dizendo:
– A Grécia é bela! Mas nem mesmo a minha olímpica pátria tem este
azul e estas flores. E, na verdade, não é de admirar-se que as deusas a
tenham abandonado, para virem aqui. Desfolhemos sobre as deusas, não
mais gregas mas judias, as flores, as rosas e as homenagens…
E joga sobre as mulheres de seu barco as pétalas de esplêndidas rosas, e
joga outras no barco vizinho.
Um romano responde:
– Desfolha, desfolha, grego! Mas Vênus está comigo. Eu não desfolho,
eu colho as rosas nesta bela boca. É mais doce!
E se inclina para beijar Maria de Magdala, sobre a boca aberta pelo
riso, que está meio deitada sobre almofadas e com a cabeça loira no colo do
romano.
Já os barquinhos estão bem na frente dos barcos pesados, e, ou por
imperícia dos remadores, ou por alguma lufada de vento, por pouco não se
chocam.
– Fiquem atentos, se dão valor à vida –grita Pedro enfurecido, enquanto
vira, dando um tranco com a barra, para evitar o choque. Insultos de
homens e gritos de susto das mulheres vão de um barco ao outro.
Os romanos insultam os galileus, dizendo:
– Afastai-vos, cães de hebreus que sois!
Pedro e os outros galileus não deixam passar o insulto e Pedro
especialmente, vermelho como um frango, em pé justamente sobre a beira
do barco, que balança fortemente, com as mãos nas ilhargas, responde no
mesmo tom, não poupando nem romanos nem gregos, nem hebreus, nem
hebreias. Ao contrário, a estas dedica um colar de títulos tão honrosos, que
minha caneta se recusa a escrever.
O bate-boca durou enquanto o emaranhado das quilhas e dos remos não
se desembaraçou e cada um pôde continuar o seu caminho.
98.3 Jesus não mudou de posição. Permaneceu sentado, ausente, sem
olhares nem palavras a respeito dos barcos e dos seus ocupantes. Apoiado
sobre um cotovelo, continuou a olhar para a praia longínqua, como se nada
acontecesse. Também Nele foi jogada uma flor. Não sei por quem,
certamente por uma mulher, porque ouvi uma risadinha feminina
acompanhar o ato. Mas Ele… nada. A flor quase que lhe atinge no rosto, e
cai sobre as tábuas, terminando aos pés do impetuoso Pedro.
Quando os barquinhos estão para se afastarem, vejo Madalena ficar em
pé, e, seguindo o rumo indicado por uma companheira de vício, dirige seus
olhos brilhantes para o rosto sereno e distante de Jesus. Como está distante
do mundo aquele rosto!!
98.4 – Diz, Simão! –interpela Iscariotes–. Tu, que és judeu como eu,
responde-me: Aquela belíssima loira que estava no colo do romano, aquela
que agora mesmo se tinha posto em pé, não é a irmã de Lázaro de Betânia?
– Eu não sei de nada –responde seco Simão, o cananeu–. Eu voltei para
o meio dos vivos faz pouco tempo e aquela mulher é jovem…
– Espero que não me vás dizer que não conheces a Lázaro de Betânia!
Sei bem que és amigo dele e que estiveste em sua casa com o Mestre.
– E se assim fosse?
– E posto que assim é, tu deves conhecer também a pecadora, que é
irmã de Lázaro. Até os sepulcros a conhecem! Há dez anos que ela dá de
falar de si. Desde a puberdade começou a ser leviana. Mas, de quatro anos
para cá! Não podes ignorar o escândalo, mesmo que estavas no “vale dos
mortos.” Toda Jerusalém falou dele. E então Lázaro se encerrou em
Betânia… Afinal, ele faz bem. Ninguém mais teria posto o pé em seu
magnífico palácio de Sião, onde ela também ia e vinha. Eu quero dizer:
ninguém que fôsse santo. No campo… já se sabe!! E além disso, ela está
por toda parte, exceto em sua casa… Agora certamente está em Magdala…
estará com qualquer novo amor… Não respondes? Podes desmentir-me?
– Não desminto. Eu me calo.
– Então é ela? Então, tu também a reconheceste!
– Eu a vi, quando era menina e pura. Revejo-a agora… Mas a
reconheço. Impudicamente ela reproduz a figura de sua mãe, que era uma
santa.
– E então por que estavas quase negando que o teu amigo a tivesse por
irmã?
– As nossas chagas e as daqueles que amamos, nós procuramos
conservá-las cobertas. Especialmente se formos honestos.
Judas dá um sorriso amarelo.
98.5 – Dizes bem, Simão. E tu és um honesto –observa Pedro.
– E tu a tinhas reconhecido? Certamente vais a Magdala vender o teu
peixe, e quem sabe quantas vezes a tens visto!!
– Rapaz, saibas que quando se tem os rins cansados por um trabalho
honesto, as mulheres não nos causam mais desejos. Ama-se somente o leito
honesto da nossa esposa.
– É. Mas uma mercadoria bonita agrada a todos! Ao menos, se não
fôsse para outra coisa, se olha.
– Para que? Para dizer: “Não é alimento para a tua mesa?” Não, de
certo. Do lago e do ofício eu aprendi muitas coisas, e uma é esta: que os
peixes da água doce e das águas profundas não foram feitos para a água
salgada nem para rio turbilhonante.
– Que queres dizer?
– Quero dizer que cada um deve ficar no seu lugar, para não morrer de
maneira má.
– A Madalena estava te fazendo morrer?
– Não. Eu tenho o couro duro. Mas… diz-me uma coisa: tu te sentes
mal, talvez?
– Eu? Oh! Nem mesmo a olhei!!
– Mentiroso! Aposto que estavas consumido por não estar neste
primeiro barco e tê-la mais perto… Terias suportado até a mim para estares
mais próximo… Tanto é verdade aquilo que digo, que me estás honrando
com a tua palavra, por causa dela, depois de tantos dias de silêncio.
– Eu? Mas não teria nem sido visto! Ela olhava continuamente para o
Mestre!
– Ah! Ah! Ah! e diz que não a olhava! Como fizeste para ver onde ela
estava olhando, se não a olhavas?
Todos riem, menos Judas, Jesus e o Zelote, diante da observação de
Pedro.
98.6 Jesus põe um fim à discussão, que demonstrou não ter ouvido,
perguntando a Pedro:
– Aquela é Tiberíades?
– Sim, Mestre. Agora vou fazer a acostagem.
– Espera. Podes levar o barco para aquela enseada tranquila? Eu
gostaria de falar a vós somente.
– Eu vou medir a profundidade e saberei dizer a Ti.
E Pedro baixa na água uma vara comprida, e vai devagar em direção à
margem:
– Pode-se, Mestre. Devo ir ainda mais para a margem?
– O mais que puderes. Lá há sombra e solidão. Isto me agrada.
Pedro vai até perto do pé do barranco. A terra fica à distância de uns
quinze metros, no máximo.
– Agora, eu ancoraria.
– Para. E vós, vinde o mais perto que puderdes, e ouvi.
Jesus deixa o seu lugar e vai sentar-se no centro do barco, sobre um
pequeno banco, que vai de uma extremidade a outra. Em sua frente está o
outro barco, com os seus ao redor Dele.
– Ouvi. Parecer-vos-á que Eu me abstraía às vezes das vossas
conversações, e seja por isso um mestre negligente, que não vigia os seus
próprios alunos. Ficai sabendo que a minha alma não vos deixa um só
momento. Tereis já visto um médico que estuda um que adoeceu de um mal
ainda desconhecido e de sintomas contraditórios? Ele traz o doente sob sua
constante observação, depois de cada vez que o visita, e o observa, tanto
quando está dormindo, como quando está acordado, de manhã e à noite,
quando está calado e quando está falando, porque tudo pode ser sintoma e
guia para decifrar qual é a doença escondida, e para indicar o caminho da
cura. A mesma coisa faço Eu convosco. Eu vos seguro com fios invisíveis,
mas muito sensíveis, que estão enxertados em Mim, e que me transmitem
até as mais leves vibrações do vosso eu. Deixo-vos crer que sois livres, para
que vos manifesteis sempre mais naquilo que sois, coisa esta que acontece
quando um aluno ou um maníaco pensa que o vigilante o perdeu de vista.
98.7 Vós sois um grupo de pessoas, mas formais um núcleo, ou seja, uma
só coisa. Por isso, sois um complexo, que toma a forma de um ente, e que é
estudado em cada uma das suas características, melhores ou piores, para
formá-lo, amalgamá-lo, quebrar-lhe as arestas, aumentá-lo em seus lados
poliédricos e fazer dele uma só coisa perfeita. Por isso, Eu vos estudo. E
vos estudo até enquanto estais dormindo.
Que é que vós sois? Que é que deveis tornar-vos? Vós sois sal da terra.
Isto é o que deveis tornar-vos: sal da terra. Com o sal se preservam as
carnes da corrupção e, com a carne, muitas outras mercadorias. Mas poderia
o sal salgar, se não fôsse salgado? Convosco Eu quero salgar o mundo, para
torná-lo cheio de um sabor celeste. Mas, como podereis salgar, se perderdes
vosso sabor?
Que é que vos faz perder o sabor celeste? O que é humano. A água do
mar, do verdadeiro mar, não é boa para se beber, de tão salgada que é, não é
verdade? No entanto, se alguém pega um copo de água do mar e o despeja
em uma bilha de água doce, eis que pode-se bebê-la, porque a água do mar
ficou tão diluída, que perdeu a sua acridez. A humanidade é como a água
doce, que se mistura com o vosso sal celeste. Ainda que, por uma
suposição, se pudesse derivar um rio do mar, e introduzi-lo na água deste
lago, poderíeis vós depois reencontrar aquele fio de água salgada? Não. Ele
se teria perdido no meio de tanta água doce. Assim acontece convosco,
quando imergis a vossa missão, ou melhor, quando a submergis em tanta
humanidade.
Vós sois homens. Sim. Eu sei disso. Mas, e Eu quem sou? Sou Aquele
que tem consigo toda força. E, que é que Eu faço? Comunico essa força,
depois de vos ter chamado. Mas, que adianta Eu comunicá-la, se vós a
dispersais sob uma avalancha de sensualidade e de sentimentos humanos?
Vós sois, deveis ser, a luz do mundo. Eu vos escolhi, Eu, a Luz de
Deus, dentre os homens, para continuardes a iluminar o mundo depois que
Eu tiver voltado para o Pai. Mas podeis vós dar luz, se sois umas lanternas
apagadas ou fumacentas? Não, ao contrário, com a vossa fumaça — pior é a
fumaça ambígua do que um pavio já completamente apagado — vós
obscureceríeis aquele vislumbre de luz, que os corações ainda possam ter.
Oh! Infelizes daqueles que, procurando a Deus, dirigir-se-ão aos apóstolos
e, em lugar de luz, terão fumaça! Terão deles escândalo e morte. Mas
maldição e castigo terão esses apóstolos indignos.
98.8 Grande sorte a vossa! Mas também grande, tremenda
responsabilidade! Recordai-vos de que aquele, a quem mais é dado, mais
está obrigado a dar. E a vós é dado o máximo, tanto a instrução, como os
dons. Sois instruídos por Mim, Verbo de Deus, e recebeis de Deus o dom de
ser “os discípulos”, ou seja, os continuadores do Filho de Deus. Eu queria
que meditásseis sempre sobre essa vossa eleição e também que vos
examinásseis, e ainda vos pesásseis… e se alguém se sente que está apto
para ser fiel — não quero nem dizer: se alguém não se sente pecador e
impenitente; Eu só digo: se alguém se sente apto para ser somente um
fiel — mas não sente em si o nervo de apóstolo, que se retire.
O mundo, para quem é seu amante, é tão vasto, bonito, suficiente e
variegado! Oferece todas as flores e todos os frutos adequados para o ventre
e para a sensualidade. Eu não ofereço outra coisa, senão a santidade. Esta,
na terra, é o que há de mais estreito, pobre, íngreme, espinhoso e
perseguido. No Céu sua estreiteza se muda em imensidão, sua pobreza em
riqueza, sua espinhosidade em tapete florido, o seu ser íngreme em caminho
liso e suave, sua perseguição em paz e felicidade. Mas aqui exige-se a
fadiga de um herói para ser santos. E Eu vos ofereço só isto.
Quereis permanecer Comigo? Não vos sentis de fazê-lo? Oh! Não vos
olheis admirados e angustiados! Vós me ouvireis fazer ainda muitas vezes
esta pergunta. E, quando a ouvirdes, pensai que o meu coração chora ao
fazê-la, porque ele fica ferido pela vossa surdez, diante da vocação.
Examinai-vos, então, e depois, julgai com honestidade e sinceridade, e
decidi-vos. Para não serdes réprobos, decidí. Dizei: “Mestre, amigos, eu
reconheço que não fui feito para seguir este caminho. Dou-vos um beijo de
despedida e vos digo: rezai por mim.” Melhor assim do que trair. Melhor
assim…
Que dizeis? Trair a quem? A quem? A Mim. A minha causa, ou seja, a
causa de Deus — porque Eu sou um com o Pai — e vós. Sim. Vós trairíeis.
Trairíeis a vossa alma, dando-a a satanás. Quereis permanecer hebreus? Eu
não vos obrigo a mudar. Mas não traiais. Não traiais à vossa alma, ao Cristo
e a Deus. Eu vos asseguro que nem Eu, nem os que me são fiéis, vos
criticarão nem vos exporão ao desprezo das multidões dos fiéis. Há pouco
um dos vossos irmãos disse uma grande palavra: “As nossas chagas e as
daqueles que nós amamos, procuramos conservá-las escondidas.” E aquele
que se separasse seria uma chaga, uma gangrena que, tendo nascido em
nosso organismo apostólico, separar-se-ia por gangrena completa, deixando
um sinal doloroso que nós, com todo o cuidado, teríamos escondido.
98.9 Não. Não choreis, ó vós, que sois melhores. Não choreis. Eu não
guardo rancor de vós, nem sou intransigente por ver que sois tão vagarosos.
Faz pouco tempo que fostes escolhidos e não posso pretender que sejais
perfeitos. Mas não o pretenderei nem mesmo daqui a alguns anos, depois de
haver dito cem e duzentas vezes as mesmas coisas inutilmente. Ao
contrário, ouvi: daqui a alguns anos sereis, ao menos alguns, menos
ardentes, do que agora que sois neófitos. A vida é assim… A humanidade é
assim… Ela perde o impulso, depois do primeiro salto. Mas (Jesus se ergue
de repente), mas Eu vos asseguro que vencerei. Purificados por uma seleção
natural, fortificados por uma mistura sobrenatural, vós, os melhores, tornar-
vos-eis os meus heróis. Os heróis de Cristo. Os heróis do Céu. A potência
dos Césares será um pó, diante da realeza do vosso sacerdócio. Vós, pobres
pescadores da Galileia, vós, judeus desconhecidos, vós, números entre a
massa dos homens presentes, sereis mais conhecidos, aclamados, venerados
do que César e do que todos os Césares que teve e terá a terra. Vós
conhecidos, vós benditos, em um futuro próximo e no mais remoto dos
séculos, até o fim do mundo.
98.10 A esta sublime sorte Eu vos escolho. Vós, que sois honestos na
vontade. E para que dessa sorte sejais capazes, vos dou as linhas essenciais
do vosso caráter de apóstolos.
Ser sempre vigilantes e prontos. Que os vossos lombos sejam cingidos,
sempre cingidos, e as vossas lâmpadas acesas, como estão as daqueles que,
de um momento para outro, devem partir ou correr ao encontro de alguém
que chega. E, de fato, vós sois, vós sereis, até que a morte vos pare, os
incansáveis peregrinos, em busca de quem está errante; e até que a morte
apague a vossa lâmpada, ela deve ser mantida alta e acesa, para indicar o
caminho aos desviados que vêm em direção ao aprisco de Cristo.
Fiéis deveis ser ao Patrão, que vos pôs à frente deste serviço. Será
premiado aquele servo que o Patrão encontrar sempre vigilante, e que for
surpreendido pela morte em estado de graça. Não podeis, não deveis dizer:
“Eu sou jovem. Tenho tempo de fazer isto e aquilo, e depois pensar no
Patrão, na morte e na minha alma.” Morrem os novos como os velhos, os
fortes como os fracos. E aos assaltos da tentação estão igualmente sujeitos
velhos e jovens, fortes e fracos. Olhai que a alma pode morrer antes do
corpo, e vós podeis levar, sem saber, andando por aí, uma alma pútrida. Tão
insensível é a morte de uma alma! É como a morte de uma flor. Não há
grito, não há convulsões… inclina apenas a sua chama, como uma corola
cansada, e se apaga. Depois, às vezes muito depois, imediatamente depois
outras vezes, o corpo percebe que está levando dentro de si um cadáver
cheio de vermes, e torna-se louco de espanto, e se mata para fugir àquele
conúbio… Oh! não foge! Cai exatamente com a sua alma cheio de vermes
sobre um fervilhamento de serpentes na Geena.
Não sejais desonestos como corretores ou causídicos, que tomam
partido por dois clientes opostos. Não sejais falsos como os politiqueiros,
que chamam de “amigo” a este e àquele, e depois são inimigos deste e
daquele. Não penseis em agir de dois modos. Com Deus não se brinca e
nem a Ele se engana. Fazei com os homens como fazeis com Deus, porque
uma ofensa feita aos homens é como feita a Deus. Procurai querer que Deus
vos veja tais como quereis ser vistos pelos homens.
98.11 Sede humildes. Não podeis censurar o vosso Mestre de não sê-lo.
Eu vos dou o exemplo. Fazei como Eu faço. Humildes, doces, pacientes. O
mundo se conquista com isto. Não com violência e força. Fortes e violentos
sede contra os vossos vícios. Erradicai-os, mesmo à custa de rasgar pedaços
do coração. Eu vos disse, há dias, de vigiar os olhares. Mas vós não sabeis
fazer isso. Eu vos digo: seria melhor que tornásseis cegos, arrancando-vos
os olhos cobiçosos, do que tornar-vos luxuriosos.
Sede sinceros. Eu sou Verdade. Tanto nas coisas excelsas, como nas
humanas. Quero que vós sejais também sinceros. Por que andar com
enganos Comigo, ou com os irmãos, ou com o próximo? Por que brincar de
enganar? Como? Tão orgulhosos como sois, e não tendes o orgulho de
dizer: “Quero não ser apanhado em mentira?” E sede sinceros com Deus.
Credes enganá-lo com formas de orações longas e públicas. Oh! Pobres
filhos! Deus vê o coração!
Sede castos em fazer o bem. E também em dar esmola. Um publicano
soube sê-lo, antes de sua conversão. E vós não o saberíeis? Sim, Eu te
louvo, Mateus, pela casta oferta semanal, que só Eu e o Pai sabíamos que
era tua, e te estou citando como um exemplo. Esta também é uma castidade,
amigos. Não descubrais a vossa bondade, como não descobriríeis uma filha
mocinha, aos olhos de uma multidão. Sede virgens em fazer o bem. É
virgem o ato bom, quando ele está isento da união de um pensamento de
louvor e de estima ou do estímulo da soberba.
Sede esposos fiéis à vossa vocação a Deus. Não podeis servir a dois
patrões. O leito conjugal não pode acolher duas esposas,
contemporaneamente. Deus e satanás não podem compartilhar de vossos
amplexos. O homem não pode, e não o podem nem Deus nem satanás,
partilhar de um tríplice abraço, sendo os três contrários um ao outro.
Sede alheios, tanto da fome de ouro como da fome de carne, da fome da
carne como da fome do poder. E isso é o que satanás vos oferece. Oh! As
suas mentirosas riquezas! Honras, êxito, poder, riquezas: negócios
obscenos, que tem como moeda a vossa alma.
Contentai-vos com pouco. Deus vos dá o necessário. Basta. Isto Ele vos
garante, como o garante ao pássaro do céu, e vós sois bem mais do que os
pássaros. Mas Ele quer de vós confiança e moderação. Se tiverdes
confiança, Ele não vos decepcionará. Se tiverdes moderação, o dom que vos
dá cada dia será suficiente.
98.12 Não sejais pagãos, mesmo sendo de Deus só de nome. Pagãos são
aqueles que amam o poder e o ouro mais que a Deus, a fim de parecer uns
semideuses. Sede santos, e sereis semelhantes a Deus na eternidade.
Não sejais intransigentes. Sendo todos pecadores, sejais para com os
outros como gostaríeis que os outros fossem convosco, ou seja, cheios de
compaixão e perdão.
Não julgueis. Oh! Não julgueis! Faz pouco tempo que estais Comigo e,
no entanto, vede quantas vezes, Eu, inocente, já fui sem razão mal julgado e
acusado de pecados inexistentes. O mau juízo é ofensa. E só quem é um
verdadeiro santo é que não responde a uma ofensa com outra. Por isso,
abstende-vos de ofender, para não serdes ofendidos. Não faltareis assim
nem com a caridade, nem com a santa, querida e suave humildade, a
inimiga de satanás, junto à castidade.
Perdoai, perdoai sempre. Dizei: “Perdoai-me, ó Pai, para que eu seja
por Ti perdoado dos meus infinitos pecados.”
Melhorai-vos de hora em hora, com paciência, com firmeza, com
heroicidade. E quem é que vos diz que tornar-vos bons não seja penoso? Ao
contrário, Eu vos digo: é a maior de todas as fadigas. Mas o prêmio é o Céu,
e merecendo por isso consumar-vos em tal fadiga.
98.13 E amai. Oh! Qual, qual palavra devo dizer para persuadir-vos ao
amor? Nenhuma é apta para converter-vos a ele, ó pobres homens, que
satanás incita! E, então, eis que Eu vos digo: “Pai, apressa a hora da
purificação. Esta terra e este teu rebanho estão áridos e doentes. Mas existe
um orvalho que os pode abrandar e purificar. Abre a fonte desse orvalho!
Abri a Mim. Eis, Pai. Eu ardo por fazer o teu desejo que é o meu e do Amor
eterno. Pai, Pai, Pai! Olha o teu Cordeiro, e sê o seu Sacrificador.”
Jesus está realmente inspirado. Posto de pé, com os braços abertos em
cruz, o rosto voltado para o céu, tendo atrás de si o azul do lago e vestido
com sua veste de linho, parece um arcanjo em oração.
Anula-se a minha visão neste seu ato.
99. Em Tiberíades na casa de Cusa.
6 de fevereiro de 1945.
99.1 Vejo a bela e nova cidade de Tiberíades. Que ela seja nova e rica é o
que me diz todo o seu conjunto, que tem um plano regulador mais ordenado
do que o das outras cidades palestinas, e apresenta um conjunto harmonioso
e urbano, como nem mesmo Jerusalém possui.
Belas alamedas e ruas retas, dotadas já de um sistema de escoamento,
pelo qual não estagnam águas e imundícies pelas estradas, vastas praças
com fontes, as mais belas, feitas com largas bacias de mármore. Palácios
com ares ao estilo de Roma, com pórticos bem arejados. De alguns portões,
abertos a esta hora matutina, nossos olhos podem ver amplos vestíbulos,
peristilos de mármores decorados com magníficas cortinas, com cadeiras e
mesas. Quase todos têm ao centro, um pátio lajeado com mármore, com
uma fonte de repuxo, e tanques de mármore, cheios de plantas em flor. Em
suma, é uma imitação da arquitetura de Roma, muito bem copiada e
ricamente arremedada. As casas mais bonitas estão nas ruas mais próximas
ao lago. As três primeiras, paralelas ao mesmo, são verdadeiramente
senhoris. A primeira, ao longo da alameda, que segue a suave curva do
lago, é absolutamente esplêndida.
A última parte da cidade é uma série de vilas, que têm a fachada
principal para a rua posterior, e na direção do lago com opulentos jardins,
que descem, até serem lambidos pelas ondas. Quase todas as casas têm um
pequeno porto, no qual se vêm barcos de passeio com baldaquinos
preciosos e cadeiras purpúreas.
Jesus parece ter descido do barco de Pedro, não no porto de Tiberíades,
mas em algum outro lugar, talvez nos subúrbios, e caminha pela alameda ao
longo do lago.
– Nunca estiveste em Tiberíades, Mestre? –pergunta Pedro.
– Nunca.
– Ah! Antipas fez bem as suas coisas, e em grande estilo, para adular a
Tibério! É um belo vendido, aquele ali!…
– Parece-me esta mais uma cidade de repouso, que de comércio.
– O comércio fica do outro lado. Mas ela tem também muito comércio.
É uma cidade rica.
– Estas casas são de palestinos?
– Sim e não. Muitas são de romanos, mas muitas… Oh! Sim! Por mais
que estejam cheias de estátuas e semelhantes fábulas, são de hebreus.
Pedro suspira e murmura:
– … se nos tivessem tirado apenas a independência… mas nos levaram
a fé… Estamos tornando-nos mais pagãos do que eles!…
– Não por culpa deles, Pedro. Eles têm os seus costumes e não nos
forçam a adotá-los. Mas somos nós que queremos corromper-nos. Por
alguma vantagem, por ser moda, por servilismo…
– Dizes bem. Mas o primeiro é o Tetrarca…
99.2– Mestre, estamos chegando –diz o pastor José–. Esta é a casa do
intendente de Herodes.
Estão parados no fim da alameda, onde esta apresenta uma bifurcação,
pela qual torna-se a segunda das ruas, enquanto as casas ficam entre ela e o
lago. A casa indicada é a primeira, belíssima, toda rodeada por um jardim
florido. Fragrâncias e ramos dos jasmineiros e das roseiras se espalham até
o lago.
– É aqui que está Jônatas?
– Aqui, me disseram. É o intendente do intendente. Ele se deu bem
aqui. Cusa não é mau, e é justo ao reconhecer os méritos do seu intendente.
É um dos poucos da corte que é um homem honesto. Queres que eu vá
chamá-lo?
– Vai.
José vai até o alto portão e bate. Acorre o porteiro. Conversam entre
eles. Vejo que José faz um gesto de desapontamento e que o porteiro põe
para fora sua cabeça cinzenta, e olha para Jesus, e depois pergunta alguma
coisa, a qual José anui. Eles continuam a falar.
Depois, José vem em direção a Jesus, que esperou pacientemente à
sombra de uma árvore.
– Jônatas não está aqui. Ele está no Alto Líbano. Foi levar Joana de
Cusa para tomar aquele ar fresco e puro, pois ela está muito doente. Diz o
servo que ele foi, porque Cusa está na corte, e não pode voltar, depois do
escândalo da fuga de João, o Batista. A doente piorava e o médico dizia que
aqui ela morreria. 99.3 Mas o servo diz para entrar e descansar. Jônatas falou
do Messias menino. Também aqui és conhecido de nome, e esperado.
– Vamos.
O grupo se põe em movimento.
O porteiro, que olhou de relance, vê, e chama outros servos, abre
completamente o portão, até agora entreaberto, e corre ao encontro de
Jesus, com verdadeiro respeito.
– Derrama, Senhor, a tua bênção sobre nós e sobre esta triste casa.
Entra. Oh! Como o Jônatas vai ficar triste, por não ter estado aqui! Era a sua
esperança: ver-te. Entra, entra, e Contigo os teus amigos.
No átrio estão servos e servas de todas as idades. Todos
respeitosamente se inclinam na saudação, também com curiosidade. Uma
velhinha chora em um canto.
Jesus entra e abençoa com o seu gesto e a sua saudação de paz.
Oferecem-lhe alguma coisa para comer. Jesus assenta-se em uma cadeira, e
todos vão colocar-se ao seu redor.
– Vejo que não sou um desconhecido para vós –observa Jesus.
– Oh! Jônatas nos nutriu falando-nos de Ti. O Jônatas é bom. Ele diz
que é assim, somente porque o beijo que te deu o tornou bom. Mas também
é porque ele o é.
– Eu dei e recebi beijos… mas, como tu dizes, só nos bons é que eles
aumentaram a bondade. Agora está ausente? Eu vim por causa dele.
– Eu disse: está no Líbano. Lá tem amigos… É a última esperança para
a jovem patroa; se esta não ajudar…
99.4 A velhinha, em seu canto, chora mais forte. Jesus a olha
interrogativamente.
– É Ester, a ama de leite da patroa. Está chorando porque não é capaz
de resignar-se com a ideia de perdê-la.
– Vem, mãe. Não chores assim –convida Jesus–. Vem aqui junto a Mim.
Não está dito que doença quer dizer morte!
– Oh! É morte! É morte! Desde quando teve aquele único e infeliz
parto, ela está morrendo! As adúlteras têm partos secretos, e aí estão vivas,
e ela, ela que é boa, honesta, querida, tão querida, vai morrer!
– Mas, que é que ela tem agora?
– Uma febre que a consome… É como uma lâmpada acesa, na
ventania… cada dia mais forte, e ela mais fraca. Oh! Eu queria ir com ela.
Mas Jônatas quis servas novas, porque ela está sem forças e deve ser
levantada nos braços, e eu não estou mais boa… Boa para isso, não… mas
para amá-la, sim… Eu a recolhi do seio de sua mãe… eu também era uma
serva casada, e fazia um mês que tinha tido um filho, e eu lhe dei de mamar,
porque a mãe dela, fraca, não podia… eu lhe servi de mãe, quando ela ficou
órfã e só sabia dizer “mamãe”. Enchi-me de cabelos brancos e de rugas,
velando-a em suas doenças… eu a vesti de noiva, a conduzi ao tálamo…
sorri às suas esperanças de mãe… chorei com ela pelo filho nascido
morto… Todos os sorrisos e lágrimas de sua vida recolhi… Todos os
sorrisos e confortos do meu amor lhe dei… e agora ela está morrendo, e eu
não estou perto dela…
A velha causa pena. Jesus a acaricia, mas não adianta.
– Escuta, mãe. Tens fé?
– Em Ti? Sim.
– Em Deus, mulher. Podes crer que Deus tudo pode?
– Eu creio, e creio que Tu, seu Messias, o podes. Oh! Já se fala na
cidade do teu poder! Aquele homem ali (e mostra Filipe), há tempos, falava
dos teus milagres perto da sinagoga. E Jônatas lhe perguntou: “Onde está o
Messias?”, e ele disse: “Não sei.” Jônatas me disse, então: “Se Ele estivesse
aqui, eu te juro que ela sararia.” Mas Tu não estavas aqui… e ele foi-se
embora com ela… e agora ela morrerá…
– Não. Tem fé. Diz-me exatamente o que tens no coração: podes crer
que ela não morrerá, por causa da tua fé?
– Por causa da minha fé? Oh! Se a queres, ei-la aqui. Até minha vida,
toma-a, a minha velha vida… Somente faz que eu a veja curada.
– Eu sou a Vida. Dou vida e não morte. Tu lhe deste a vida um dia, com
o leite do teu seio, e era uma pobre vida, que podia acabar. Agora, com a
tua fé, lhe dás uma vida sem fim. Sorri, mãe.
– Mas ela não está aqui…
A velha está entre a esperança e o temor:
– Ela não está aqui, e Tu estás aqui…
– Tem fé. Escuta. Eu agora vou a Nazaré por alguns dias. Lá também
tenho amigos doentes… Depois irei ao Líbano. Se Jônatas voltar dentro de
seis dias, manda-o a Nazaré, procurar Jesus de José. Se ele não for, eu virei.
– Como o encontrarás?
– O arcanjo de Tobias me guiará. Tu fortalece-te na fé. Só isto te peço.
Não chores mais, mãe.
A velha, ao invés, chora mais forte. Ela está aos pés de Jesus, com a
cabeça sobre os divinos joelhos, beijando a mão bendita, e sobre ela
derramando lágrimas.
Jesus, com a outra mão, a acaricia e, visto que outros servos docemente
a repreendem porque está se acabando com aquele choro, Ele diz:
– Deixa-a chorar. Agora é um choro de alívio. Faz bem a ela. Ficais
todos contentes, se a patroa recupera a saúde?
– Oh! Ela é tão boa! Quando alguém é assim, não é patrão, é um amigo,
e há de ser amado. Nós a amamos. Podes crer.
– Eu leio em vossos corações. Sede vós também sempre melhores. Eu
me vou. Não posso esperar. Tenho que pegar o barco. Eu vos abençoo.
– Volta, Mestre, volta outra vez!
– Eu voltarei. Mais e mais vezes. Adeus. A paz a esta casa e a todos
vós.
Jesus sai com os seus, acompanhado pelos servos que o aclamam.
99.5 – És mais conhecido aqui do que em Nazaré –observa tristemente o
primo Tiago.
– Esta casa foi preparada por alguém que teve verdadeira fé no
Messias. Para Nazaré, Eu sou o carpinteiro… Nada mais.
– E… e nós não temos a força para anunciar-te, por aquilo que és…
– Não a tendes?
– Não, primo. Não somos heroicos como os teus pastores…
– Achas assim, Tiago?
Jesus sorri, olhando para o seu primo, que tanto se parece com seu pai
adotivo, naquela cor castanha escura nos olhos e nos cabelos, e um ligeiro
amorenado no rosto, enquanto que Judas é mais pálido na moldura de uma
barba muito escura, e dos cabelos ondulados e tem seus olhos de um azul
quase violeta, que vagamente lembram os de Jesus:
– Pois bem, Eu te digo que não te conheces. Tu e Judas sois dois fortes.
Os primos sacodem a cabeça.
– Vós ficareis persuadidos de que não estou errado.
– Vamos mesmo para Nazaré?
– Sim. Quero falar com minha Mãe e… fazer mais outra coisa. Quem
quiser ir, vai.
Todos querem ir. Os mais contentes são os primos.
– É por causa do pai e da mãe, entendes?
– Entendo. Passaremos por Caná e depois iremos para lá.
– Por Caná? Oh! Então iremos à casa de Susana. Ela nos dará ovos e
frutas para o pai, Tiago.
– E, certamente também do seu bom mel de que ele tanto gosta!
– E o nutre.
– Pobre pai! Sofre tanto! Como uma planta que foi desarraigada, sente
faltar-lhe a vida… e não quereria morrer…
Tiago olha para Jesus. Com um mudo pedido… Mas Jesus não
demonstra vê-lo:
– José também morreu assim de dores, não é verdade?
– Sim –responde Jesus–. Mas ele sofria menos porque estava resignado.
– E, além disso, ele te possuía.
– Alfeu também poderia possuir-me…
Os primos suspiram tristes, e tudo termina.
100. Em Nazaré na casa do velho e doente Alfeu.
Não é fácil a vida de apóstolo.
7 de fevereiro de 1945. São Romualdo[13].
100.1 Jesus está com os seus pelas belas colinas da Galileia. Para fugir do
sol, ainda alto, prestes a pôr-se, eles caminham sob as árvores que, em sua
maioria, oliveiras.
– Além daquela margem está Nazaré –diz Jesus–. Daqui a pouco
estaremos lá. Agora Eu vos digo, que ao limite da cidade nos separaremos.
Judas e Tiago irão logo à casa do pai deles, como os seus corações desejam.
Pedro e João irão distribuir o óbolo aos pobres, que certamente estarão
junto à fonte. Eu e os outros iremos para casa cear, e depois pensaremos em
descanso.
– Nós voltaremos ao bom Alfeu. Da outra vez prometemos isso a ele.
Mas eu irei só para saudá-lo. Cedo minha cama ao Mateus, que ainda não
está acostumado a incômodos –diz Filipe.
– Não. Tu não, que és idoso. Não o permito. Eu tive cama cômoda até
agora, mas, que sonos infernais eu dormia! Podes crer, agora estou tão em
paz, que me parece estar dormindo entre as plumas mesmo se me deito
sobre pedras. Oh! é a consciência o que faz dormir ou não –responde
Mateus.
Suscita-se uma disputa de caridade para com Mateus entre os discípulos
Tomé, Filipe e Bartolomeu, que, pode-se compreender, são os que da outra
vez estavam na casa deste Alfeu (que certamente não é o pai de Tiago,
porque este fala com André e diz: “Um lugar para ti haverá sempre, como
da outra vez, mesmo se o pai tiver piorado”).
Vence Tomé:
– Eu sou o mais novo do grupo. Eu é que vou ceder a cama. Mateus,
deixa-me fazer. Um pouco por vez te acostumarás. Pensas que é pesado
para mim? Não. Eu sou como um enamorado que pensa: “… estarei numa
cama dura, mas estou perto do meu amor.”
Tomé, homem dos seus trinta e oito anos, ri jovial, e Mateus cede.
Nazaré já está a poucos metros, com as suas primeiras casas.
– Jesus… nós vamos –diz Judas.
– Ide, ide.
Os dois irmãos vão quase correndo.
– É, pai é pai –murmura Pedro–. Mesmo quando ele nos trata com mau
humor é sempre nosso sangue, e o sangue puxa mais do que uma corda.
Além disso… Agradam-me os teus primos. Eles são muito bons.
– São muito bons, sim. E são humildes, a ponto de não se examinarem,
tampouco para medirem quanto o são. Pensam sempre que são faltosos,
porque o espírito deles vê o bem em todos, menos neles. Eles irão longe….
100.2 Já estão em Nazaré. Algumas mulheres veem Jesus e o saúdam,
também homens e crianças o fazem. Mas aqui não há as aclamações dos
outros lugares ao Messias: aqui são amigos que saúdam o Amigo que está
de volta. Uns mais, outros menos expansivos. Em muitos vejo também uma
irônica curiosidade, ao observarem o grupo heterogêneo que está com
Jesus, e que certamente não é um grupo de dignitários reais, nem de
pomposos sacerdotes. Acalorados, empoeirados, vestidos muito
modestamente, exceto Judas Iscariotes, Mateus, Simão e Bartolomeu — e
os coloquei em ordem decrescente de elegância — parecem mais uma
turma de homens do povo, que vão indo para uma feira, e não o cortejo de
um rei que de si, não tem senão a imponência da estatura e sobretudo a
imponência do aspecto.
Andam alguns metros, e depois Pedro e João se apartam indo para a
direita, enquanto Jesus com os outros prossegue, até chegarem a uma
pequena praça repleta de meninos gritadores, que estão ao redor de um
tanque cheio de água recolhida pelas mães.
100.3 Um homem vê Jesus e faz um gesto de espanto e de alegria.
Apressa-se em direção a Ele e o saúda:
– Bem-vindo! Eu não te esperava tão cedo! Segura: beija o meu último
neto. É o pequeno José. Nasceu nesta tua ausência –e lhe estende um
pequenino que tem nos braços.
– José foi como o chamaste?
– Sim. Não me esqueço do meu quase parente, e ainda mais que
parente, o meu grande amigo. Agora tenho todos os nomes mais queridos
postos em meus netos: Ana, a minha amiga do tempo em que eu era
pequeno, e Joaquim. Depois, Maria… Oh! que festa quando ela nasceu!
Lembro-me de quando foi-me dada para beijar e me disseram: “Estás
vendo? Aquele belo arco-íris foi a ponte pela qual Ela desceu do Céu. Os
anjos usam aquele caminho ali”, e realmente parecia um anjinho, de tão
bela que era… Agora, eis o José. Se tivesse sabido que voltarias tão cedo,
teria esperado a Ti para a circuncisão.
– Agradeço-te por teu amor aos meus avós, ao meu pai e à minha Mãe.
É um belo menino. Que ele seja sempre justo como o justo José.
Jesus balança o pequenino, que esboça umas risadinhas cheias de leite.
– Se me esperares, eu irei Contigo. Espero que as ânforas estejam
cheias. Não quero que Maria, minha filha, se canse. Aliás, faço assim. Dou
as ânforas aos teus companheiros, se quiserem pegá-las, e falo um pouco
Contigo sozinho.
– Mas certamente que as pegamos! Nós não somos reis dos assírios –
exclama Tomé, e ele é o primeiro a apanhar uma ânfora.
– Então, olha, Maria de José não está em casa. Ela foi à casa do
cunhado, sabes? Mas a chave está em minha casa. Fazei que vo-la
entreguem para que possais entrar em casa, quero dizer, na oficina.
– Sim, sim, ide. À casa também. Depois Eu vou.
Os apóstolos vão e Jesus fica com Alfeu.
– Eu queria te dizer… Sou teu verdadeiro amigo… E, quando alguém é
verdadeiro amigo, e é mais velho, e é do lugar, pode falar. Eu acho que
tenho o dever de falar… Eu… não quero te dar conselhos. Tu sabes melhor
do que eu. Só quero advertir-te que… Oh! não quero estar fazendo de
espião, nem falar mal dos teus parentes. Mas eu creio em Ti, Messias, e…
me sinto mal, é isso, em ver que eles dizem que Tu não és Tu, ou seja, o
Messias, que Tu és um doente, que Tu arruínas a família e os parentes. A
cidade… Sabes, Alfeu é muito estimado e por isso a cidade dá também
ouvidos a eles, e agora está doente que dá pena… Mas a pena às vezes
serve também para fazer coisas injustas. Vê, eu estava lá naquela tarde,
quando Judas e Tiago defenderam a Ti e à sua liberdade em te seguir… Oh!
Que cena! Eu não sei como tua Mãe pode resistir! E a pobre Maria do
Alfeu? As mulheres são sempre vítimas em certas situações da família.
– Agora os primos estão na casa do pai….
– Na casa do pai? Oh! Eu me compadeço deles! O velho está
completamente fora de si e, talvez por causa da idade e certamente por
causa da doença, mas faz coisas de louco. Se não fôsse louco, me causaria
ainda mais pena, Por que… estaria arruinando sua alma.
– Achas que maltratará os seus filhos?
– Disso estou certo. Desagrada-me por eles e pelas mulheres… Aonde
vais?
– À casa de Alfeu.
– Não, Jesus! Não faças que te faltem com o respeito!
– Os primos me amam mais do que a si mesmos, e é justo que Eu lhes
pague com igual amor… Lá estão duas mulheres que me são caras… Eu
vou. Não me detenhas.
E Jesus se apressa, rumo à casa de Alfeu, enquanto o outro fica
pensativo no meio da rua.
100.4 Jesus vai depressa. Ei-lo ao limite da horta de Alfeu. Um choro de
mulher o alcança e os gritos descompostos de um homem. Jesus vai ainda
mais depressa por aqueles poucos metros que separam a rua da casa, através
da horta, que está toda verde.
Ele está quase na soleira da casa, quando à porta aparece a Mãe e vê o
Filho.
– Mãe!
– Jesus!
Dois gritos de amor.
Jesus procura entrar, mas Maria lhe diz:
– Não, Filho! –E se coloca sobre a soleira, com os braços abertos e as
mãos agarradas no umbral, uma barreira de carne e de amor, e repete:– Não,
Filho. Não faças isto.
– Deixa, Mãe. Não acontecerá nada.
Jesus está muito calmo, não obstante a acentuada palidez de Maria
certamente o perturbe. Ele pega o pulso delicado Dela, afasta a mão do
umbral e passa.
Na cozinha estão espalhados pelo chão, e reduzidos a uma lama
viscosa, os ovos, os cachos de uva e o vaso com mel trazidos de Caná.
De um quarto vem uma voz queixosa de um velho que impreca, que
acusa, que se lamenta, numa daquelas cóleras senis tão injustas, impotentes,
penosas de se ver e dolorosas de suportar:
– … eis a minha casa destruída, tornada o objeto de escárnio de toda
Nazaré, e eu, aqui sozinho, sem ajuda, ferido em meu coração, no meu
respeito e em minhas necessidades!! Eis o que te resta, Alfeu, por teres
agido como um verdadeiro fiel! E por que? Por que? Por causa de um
doido. Um doido que fez endoidecer os meus tolos filhos. Ai! Ai! Que
dores!
E a voz de Maria de Alfeu, chorosa, que suplica:
– Meu bom Alfeu! Não estás vendo que fazes mal a ti mesmo? Vem,
que te ajudo a deitar-te… Sempre foste bom, sempre justo… Por que agora
está acontecendo isto contigo? E comigo? E com aqueles teus pobres
filhos?
– Nada! Nada! Não me toques! Não quero! Meus filhos são bons? Ah!
Sim! Realmente! Dois ingratos! Trazem-me o mel, depois de ter-me
enchido de absinto. Trazem-me ovos e frutas, depois de se terem
alimentado do meu coração! Vai embora, eu te digo. Vai! Eu não te quero.
Eu quero Maria. Ela sabe fazer as coisas. Onde está agora aquela mulher
fraca, que não sabe fazer-se obedecer por seu Filho?
Maria de Alfeu, enxotada, entra na cozinha, enquanto Jesus está para
entrar no quarto de Alfeu. Ela o vê, e cai sobre Ele soluçando
desesperadamente, enquanto Maria, a Virgem, vai, humilde e paciente, para
perto do velho irado.
– Não chores, tia. Agora vou Eu.
– Não! Não procures ser insultado! Ele parece louco. Tem uma bengala.
Não, Jesus, não. Golpeou até os filhos!
– Ele não me fará nada –e Jesus, com firmeza, se bem que docemente,
coloca a tia de lado, e entra.
100.5 – Paz a ti, Alfeu.
O velho, que está para deitar-se, entre mil queixas e censuras a Maria,
porque não sabe fazer as coisas (antes dizia que só Ela é que as sabia fazer)
vira-se bruscamente.
– Aqui? Aqui para zombares de mim? Também isto?
– Não. Para trazer-te paz. Por que estás tão inquieto? Tu pioras. Mãe,
deixa. Eu cuidarei dele. Não te farei mal e tu não ficarás cansado. Mãe, tira
as cobertas.
E Jesus pega com cuidado aquele pequeno monte de ossos agonizante,
arquejante, mau, choroso, infeliz, e o apoia na cama com cuidado, como se
fôsse um recém-nascido:
– Eis, assim. É como Eu fazia com meu pai. Vamos levantar este
travesseiro, ficarás mais alto, e respirarás melhor. Mãe, coloca aqui, debaixo
dos rins, aquele ali, pequenino. Ficará mais macio. Agora, vamos pôr a luz
assim, de modo que não lhe bata nos olhos, e deixando passar um ar puro.
Está feito. Agora… eu vi uma infusão sobre o fogo. Traze-a aqui, Mãe. É
bem doce. Estás muito suado e te estás resfriando. Isto vai fazer-te bem.
Maria sai, obediente.
– Mas eu… eu… Por que estás sendo bom comigo?
– Porque Eu te quero bem, tu o sabes.
– Eu também te queria… mas agora…
– Agora não me queres mais. Eu sei. Mas Eu te quero, e isto me basta.
Depois me amarás…
– E então… ai, ai… que dores! E então, se é verdade que me queres
bem, por que ofendes os meus cabelos brancos?
– Eu não te ofendo, Alfeu, de modo nenhum. Eu te honro.
– Honras? Eu sou o objeto de escárnio de Nazaré.
– Por que, Alfeu, dizes assim? Em que te faço objeto de escárnio?
– Em meus filhos. Por que eles estão rebeldes? Por causa de Ti. Por que
sou escarnecido? Por causa de Ti.
– Diz-me uma coisa: Se Nazaré te louvasse pela sorte dos teus filhos,
sentirias a mesma dor?
– Então não! Mas Nazaré não me louva. Ela me louvaria, se realmente
Tu fosses um conquistador. Mas deixar-me por alguém que é pouco menos
que um demente, que vai pelo mundo atraindo ódios e zombarias, pobre, no
meio de pobres! Ah! quem não haveria de rir! Pobre casa minha! Pobre casa
de Davi, como estás terminando! E eu haveria de viver tanto, para ver esta
desventura? Para ver a Ti, o último ramo da gloriosa estirpe, corrompendo-
te na demência, por um excesso de servilismo! Ah! Que desventura para
nós, desde o dia em que aquele meu tímido irmão deixou-se unir àquela
insípida e prepotente mulher, que sobre ele exerceu total predominância. Eu
lhe disse, então: “José, o casamento não é para ti. Serás infeliz!” E foi. Ele
sabia como estava sendo, ele que nunca tinha querido saber de casamento.
Maldição à lei das órfãs herdeiras![14] Maldição ao destino. Maldição
àqueles esponsais.
A “Virgem herdeira” voltou com a infusão, a tempo de ouvir as
jeremíadas do cunhado. Está ainda mais pálida. Mas a sua graça paciente
não se turbou. Ela vai até Alfeu e com um doce sorriso, o ajuda a beber.
– És injusto, Alfeu. Mas estás tão mal, que tudo te é perdoado –diz
Jesus, que lhe sustém a cabeça.
– Oh! Sim! Muito mal! Dizes que és o Messias! Que fazes prodígios.
Assim dizem. Ao menos para pagar-me os filhos que me tomaste, cura-me!
Cura-me… e te perdoarei.
– Perdoa tu aos teus filhos. Compreende a alma deles, e Eu te darei
alívio. Se tens rancor, não posso fazer nada.
– Perdoar?
O velho faz um movimento brusco, que naturalmente aguça todos os
espasmos, e isso o enfurece de novo:
– Perdoar? Nunca! Vai embora! Vai, se é para dizer-me isto! Vai! Quero
morrer sem ser mais perturbado.
Jesus faz um gesto de resignação.
– Adeus, Alfeu. Vou-me embora… Tio… devo mesmo ir?
– Se não queres contentar-me, sim, vai-te. E diz àquelas duas serpentes
que seu velho pai morre com raiva deles.
– Não. Isto não. Não percas a tua alma. Não me ames, se assim o
queres. Não creias que Eu sou o Messias. Mas não odeies. Não odeies,
Alfeu. Zomba de Mim. Diz que Eu estou louco. Mas não odeies.
– Mas, por que me queres bem, se eu te insulto?
– Porque Eu sou Aquele que tu não queres reconhecer. Sou o Amor.
Mãe, Eu vou para casa.
– Sim, meu Filho. Daqui a pouco eu irei.
– Deixo-te a minha paz, Alfeu. Se me quiseres, manda-me chamar, a
qualquer hora, e Eu virei.
Jesus sai, calmo como se nada houvesse acontecido. Apenas está mais
pálido.
– Oh! Jesus, Jesus, perdoa-o –geme Maria de Alfeu.
– Certo que sim, Maria. Não há nem necessidade de fazer isso. A quem
está sofrendo, tudo se perdoa. Agora, já está mais calmo. A graça trabalha
também ocultamente nos corações. Além disso, há o teu pranto e
certamente, a dor de Judas e de Tiago, e a fidelidade deles à vocação. Que a
paz esteja em teu angustiado coração, tia.
Ele a beija, e sai pela horta, indo para casa.
100.6 Quando Ele está para pôr o pé na rua, eis que entram Pedro, e atrás
dele, João, ofegantes como quem veio correndo:
– Oh! Mestre. Que foi que aconteceu? Tiago me disse: “Vem correndo à
minha casa. Quem sabe como Jesus está sendo tratado.” Mas não, eu estou
enganado. Entrou Alfeu, aquele da fonte, e disse a Judas: “Jesus está em tua
casa”, e, então Tiago disse assim… Os teus primos estão abatidos. Eu não
estou entendendo nada. Mas estou vendo a Ti… e me tranquilizo.
– Não é nada, Pedro. Um pobre doente, que as dores tornam
impaciente. Agora tudo acabou.
– Oh! Fico feliz com isto! E tu, por que estás aqui?
Pedro interpela Iscariotes, que acorre também ele, e o tom de Pedro não
é muito suave.
– Parece-me que tu também estás aqui.
– Pediram-me que viesse aqui, e eu vim.
– Eu também vim aqui. Se o Mestre estivesse em perigo, e em sua
terra, eu, que já o defendi na Judeia, posso defendê-lo também na Galileia.
– Para isso, bastamos nós. Mas na Galileia não é preciso.
– Ah! Ah! Ah! De fato! A terra dele o expele como um alimento
indigesto. Bem. Fico contente com isto por causa de ti, que te
escandalizaste por um pequeno incidente acontecido na Judeia, onde Ele é
desconhecido. Aqui, ao invés!!! –e Judas termina com um pequeno assobio,
que é um poema de sátira.
– Escuta, rapaz. Eu estou pouco disposto a suportar-te. Portanto, acaba
com isso, se não queres… alguma coisa. Mestre, eles te fizeram algum mal?
– Não, meu Pedro. Asseguro-te que não. 100.7Vamos mais depressa para
consolar os primos.
Vão, e entram na grande oficina. Judas e Tiago estão perto do grande
balcão de carpinteiro, Tiago em pé, Judas sentado em um banco, com o
cotovelo sobre o banco, e a cabeça apoiada na mão.
Jesus vai a eles, sorridente, para tranquilizá-los logo que o seu coração
os ama:
– Alfeu está mais quieto agora. As dores se acalmaram, e tudo volta a
ficar em paz. Ficai tranquilos, vós também.
– Então o viste? E nossa mãe?
– Vi a todos.
Judas pergunta:
– Nossos irmãos também?
– Não. Eles não estavam.
– Estavam. É que não quiseram aparecer para Ti. Mas, para nós! Oh! Se
tivéssemos cometido um delito, não teríamos sido tratados assim. E nós,
que tínhamos ido de Caná quase voando, pela alegria de poder revê-lo e de
levar-lhe aquilo que lhe agrada! Nós o amamos e… e ele não nos entende
mais… Não acredita mais em nós.
Judas baixa o braço, e chora, com a cabeça sobre o banco. Tiago é mais
forte. Mas o seu rosto exprime um martírio interior.
– Não chores, Judas. E tu, não fiques sofrendo.
– Oh! Jesus! Somos filhos… e ele nos amaldiçoou. Mas, ainda que isso
nos magoe, não, não voltamos atrás! Somos teus, e teus seremos, mesmo
que, para separar-nos de Ti, nos ameacem de morte! –exclama Tiago.
– E tu dizias que não eras capaz de heroísmo? Eu o sabia. Mas tu, por ti
mesmo o estás dizendo. Na verdade, tu serás fiel até à morte. E tu também.
Jesus os acaricia. Mas eles sofrem. O pranto de Judas enche a abóbada
de pedra.
100.8 E neste ponto tenho a oportunidade de ver melhor a alma dos
discípulos.
Pedro, que tem o seu honesto rosto desolado, exclama:
– É! Sim! É uma dor… São coisas tristes. Mas, meus rapazes (e os
sacode afetuosamente), nem todos podem merecer aquelas palavras… Eu…
eu percebo que fui um felizardo, por ter sido chamado. Aquela bondosa
mulher que é a minha esposa, me diz sempre: “É como se eu tivesse sido
repudiada, porque tu não és mais meu’. Mas eu digo: ‘Oh! Feliz repúdio’!”
Dizei vós também. Perdeis um pai, mas ganhais a Deus!
O pastor José está admirado, em sua condição de órfão, de que um pai
possa ser razão de choro, e diz:
– Eu pensava que era o mais infeliz, porque não tinha pai. Percebo que
é melhor pranteá-lo porque ele morreu, do que por ser nosso inimigo.
João se limita a beijar e acariciar seus companheiros.
André suspira, e fica calado. Ele se aflige pelo desejo de falar, mas a
sua timidez lhe tapa a boca.
Tomé, Filipe, Mateus e Natanael falam baixo em um canto, com o
respeito de quem está junto a uma dor verdadeira.
Tiago de Zebedeu reza, de maneira apenas inteligível, para que Deus
lhes dê a paz.
Simão Zelote, oh! como me agrada o seu ato! Ele deixa o seu canto e
vai para perto dos dois aflitos, põe uma mão sobre a cabeça de Judas, o
outro braço ao redor da cintura de Tiago, e diz:
– Não chores, filho. Ele nos havia dito, a mim e a ti: “Eu vos uno: a ti
que, por causa de Mim, perdes um pai, e a ti que tens um coração de pai,
sem ter filhos.” E nós não chegamos a compreender quanto havia de
profecia naquelas palavras. Mas Ele sabia. Eis o que eu vos peço. Sou
velho, e sempre sonhei em ser chamado de “pai.” Aceitai-me, como tal, e
eu, como pai, vos abençoarei pela manhã e pela tarde. Eu vos peço, aceitai-
me como tal.
Os dois, entre soluços mais fortes, anuem.
100.9 Entra Maria, e corre para junto dos dois aflitos. Acaricia a cabeça
morena de Judas e as faces de Tiago. Ela está pálida como um lírio.
Judas pega a sua mão e a beija, e pergunta:
– Que é que ele está fazendo?
– Está dormindo, filho. A mãe vos manda o seu beijo –e beija os dois.
A voz áspera de Pedro explode:
– Escuta, vem aqui um momento, que te quero dizer uma coisa –e vejo
Pedro agarrar, com sua mão robusta, um braço de Iscariotes e levá-lo fora,
para a rua. Depois volta sozinho.
– Para onde o mandaste? –pergunta Jesus.
– Para onde? A ir tomar ar, senão eu tinha que acabar dando-lhe um ar
de outro modo… e só não o fiz, por causa de Ti. Oh! Agora estamos
melhor. Quem ri diante de uma dor é uma víbora, e as serpentes eu
esmago… Tu estás aqui … e eu apenas o mandei ir ver o luar. Pode ser…
que também eu me torne um escriba, coisa que só Deus pode fazer em mim,
que mal sei que estou no mundo, mas ele, nem com a ajuda de Deus, se
torna bom. Assegura-te isto Simão de Jonas, e eu não me engano. Não! Não
fiques preocupado com isto. Nem lhe pareceu verdade que acabou de sair
de uma tristeza. É mais seco do que um seixo ao sol de agosto. Vamos,
rapazes! Aqui está uma Mãe, que mais doce não há nem no Céu. Aqui está
um Mestre, que é melhor do que o Paraíso todo; aqui estão muitos corações
honestos que vos amam sinceramente. As borrascas fazem bem: fazem
abaixar a poeira. Amanhã estareis mais frescos que as flores, mais ligeiros
que os pássaros, para seguir o nosso Jesus.
E, com estas simples e boas palavras de Pedro, tudo termina.

Depois, Jesus diz:


100.10– Em seguida a esta visão, porás aquela que Eu te dei na primavera
de 1944, aquela em que Eu perguntava à minha Mãe quais eram as suas
impressões sobre os apóstolos. As figuras morais deles já deram os
suficientes esplendores, para que possa ser colocada aqui aquela visão, sem
criar escândalo a ninguém. Eu não precisava de nenhum conselho. Mas,
quando estávamos sozinhos, enquanto os discípulos estavam espalhados por
entre famílias amigas ou pelas aldeias vizinhas, durante as minhas paradas
em Nazaré, como me era doce falar e pedir conselho à minha doce Amiga, à
minha Mãe, e ouvir a confirmação de sua boca cheia de graça e sabedoria,
sobre tudo o que Eu já havia visto. Nunca fui outra coisa com Ela, senão “O
Filho.” E, entre os nascidos de mulher, não houve uma mãe mais “mãe” do
que Ela, em todas as perfeições das virtudes maternas, tanto humanas, como
morais, nem houve filho mais “filho” do que Eu, no respeito, na
confidência, no amor.
100.11 E agora que também vós obtivestes um mínimo de conhecimento
dos doze, das virtudes deles, dos seus defeitos, do seu caráter, de suas lutas,
há ainda alguém que diz ter me sido fácil uni-los, elevá-los, formá-los? E há
ainda alguém que julga ser fácil a vida do apóstolo, e para ser um apóstolo,
ou seja, muitas vezes por considerar-se tal, julga ter direito a uma vida
fácil, sem dores, contrastes nem derrotas? Há ainda alguém que por me
servir, pretende que Eu seja o seu servo e faça milagres de forma contínua
em seu favor, fazendo da sua vida um tapete florido, fácil, e humanamente
glorioso? O meu caminho, o meu trabalho, o meu serviço é a cruz, a dor, as
renúncias, o sacrifício. Eu fiz assim. Que o façam aqueles que querem
dizer-se “meus.” Isto não é para os “Joãos”, mas para os doutores
descontentes e difíceis.
100.12 E também para os doutores das cavilações digo que usei o termo
“tio” e “tia”, inusitado nas línguas palestinas, para esclarecer e definir uma
desrespeitosa questão sobre a minha condição de Unigênito de Maria e
sobre a Virgindade pré e pós-parto de minha Mãe, a qual me teve por um
espiritual e divino conúbio e, que se repita uma vez mais, não conheceu
outras uniões, nem teve outros partos. Carne inviolada, que nem Eu lacerei,
fechada sobre o mistério de um seio-tabernáculo, trono da Trindade e do
Verbo encarnado”.
[13] São Romualdo é um acréscimo a lápis de MV na página manuscrita para recordar, evidentemente, o onomástico do Padre
Migliorini.
[14] lei das órfãs herdeiras (ou da filha herdeira, como é referido 13.2) que é sancionada em Números 27,8 e que comporta
(vimo-lo em 11.3) a obrigatoriedade para a moça herdeira de se casar com um da mesma estirpe, como é estabelecido em:
Números 36,8-9.
101. Jesus interroga a Mãe sobre os discípulos.
Tarde de 13 de fevereiro de 1944.
[…].
101.1 Agora, cerca de duas horas depois da visão acima descrita, vejo a
casa de Nazaré. Reconheço o pequeno quarto da despedida[15], que se abre
para uma pequena horta, onde agora as plantas estão todas cobertas de
folhas.
Jesus está com Maria. Estão sentados, um perto do outro, no banco de
pedra, que está contra a casa. Parece que a ceia já tenha terminado, e
enquanto os outros, se é que havia outros — eu não vejo ninguém — já
tenham-se retirado, Mãe e Filho se entreteem em uma doce conversação.
A voz interior me diz que aquela é uma das primeiras vezes que Jesus
volta a Nazaré depois do batismo, do jejum no deserto e sobretudo da
constituição do colégio apostólico.
Ele narra à sua Mãe os seus primeiros dias de evangelização, suas
primeiras conquistas de corações.
Maria está atenta às palavras de seu Jesus. Está mais magra, Maria,
mais pálida, como se tivesse sofrido nesse tempo. Sob seus olhos
formaram-se duas sombras, como aquelas de quem muito chora e pensa.
Mas agora está feliz e sorri. Sorri, acariciando a mão do seu Jesus. Está feliz
por tê-lo ali, por estar com o coração junto ao Seu, no silêncio da tarde que
desce.
Deve ser verão, pois as figueiras já estão com seus primeiros frutos
maduros, que se estendem até perto da casa, e Jesus, pondo-se de pé, está
colhendo alguns deles e dando os mais bonitos à sua Mãe, descascando-os
com cuidado e oferecendo-os em uma coroa de cascas viradas para baixo,
como se fossem botões de flores brancas, listrados de vermelho, por entre
uma corola de pétalas alvas por dentro, e violáceas por fora. Oferece a ela
na palma de sua mão e sorri, vendo que a Mãe os está saboreando.
101.2 Depois, à queima-roupa, lhe pergunta:
– Mãe, viste os discípulos? Que achas deles?
Maria, que está para levar à boca o terceiro figo, levanta a cabeça,
interrompe o gesto, sobressaltada, e olha para Jesus.
– Que pensas deles, agora que mostrei todos a ti? –insiste Jesus.
– Creio que eles te amam e que poderás obter muito com eles. João…
Ama a João como Tu sabes amar. É um anjo. Eu fico em paz, quando penso
que ele está Contigo. Pedro também… é bom. É mais duro, porque é mais
velho, mas é sincero e convicto. E seu irmão também. Esses, por enquanto,
te amam, como são capazes. Depois, te amarão mais. Também os nossos
primos, agora que se tornaram convictos, ser-te-ão fiéis. Mas o homem de
Keriot… aquele não me agrada, Filho. O olhar dele não é puro, e o seu
coração menos ainda. Ele me dá medo.
– Contigo, ele é muito respeitoso.
– Respeitoso demais. Contigo também ele é muito respeitoso. Mas não
é por causa de Ti, Mestre; é por causa de Ti, futuro Rei, de quem ele espera
vantagens e prestígio. Ele era um nada, apenas pouco mais do que os
outros, em Keriot. Ao teu lado, ele espera ter algum cargo importante e…
Oh! Jesus! Não quero faltar com a caridade, mas penso, ainda que não
queira pensar, que, no caso em que se sinta decepcionado Contigo, ele não
hesitará em querer substituir a Ti, ou em procurar fazer isso. É ambicioso,
ávido e vicioso. Ele está mais apto para ser cortesão de um rei terreno, do
que um apóstolo teu, meu Filho. Ele me dá medo!
E a Mãe olha para o seu Jesus, com dois olhos assustados no rosto
pálido.
101.3 Jesus suspira. Pensa. Olha para sua Mãe. Sorri para Ela, querendo
encorajá-la:
– Também isto é preciso, Mãe. Se não fôsse ele, seria um outro. O meu
Colégio deve representar o mundo, e no mundo nem todos são anjos e nem
todos são da têmpera de Pedro e André. Se Eu escolhesse todas as
perfeições, como poderiam as pobres almas doentes ousar esperar de
tornarem-se minhas discípulas? Eu vim para salvar o que se perdeu, Mãe.
João, por si mesmo, está salvo. Mas, quantos não estão!
– Não temo por Levi. Ele se redimiu porque quis redimir-se. Deixou o
seu pecado junto à sua banca de cobrador de impostos e tornou-se uma alma
nova, para ir ficar Contigo. Mas Judas de Keriot, não. Ao contrário, o
orgulho faz sempre mais sua, a sua velha e feia alma. Mas, Tu sabes estas
coisas, Filho. Por que me fazes perguntas sobre elas? Eu não posso mais do
que rezar e chorar por Ti. Tu és o Mestre. Também da tua pobre Mãe.
A visão cessa aqui.
[15] o pequeno quarto da despedida, que é descrito em 44.1.
102. Encontro com o ex-pastor Jônatas
e cura de Joana de Cusa.
8 de fevereiro de 1945.
102.1 Os discípulos estão ceando na ampla oficina de José.
O balcão serve de mesa, sobre a qual está tudo o que vai ser servido.
Mas vejo que a oficina se usa também como dormitório. Sobre outras duas
mesinhas de carpinteiro há esteiras que as transformam em enxergas, e
pequenas camas baixas (esteiras sobre grades) que foram colocadas ao
longo das paredes. Os apóstolos falam entre si e com o Mestre.
– Então, vais mesmo ao Líbano? –pergunta Iscariotes.
– Nunca prometo para não cumprir. E isso prometi duas vezes: aos
pastores e à nutriz de Joana de Cusa. Esperei os cinco dias de que lhe havia
dito, e, por prudência, esperei ainda o dia de hoje. Mas agora vou. Logo que
a lua surgir, partiremos. Será longo o caminho, mesmo se usarmos o barco
até Betsaida. Mas quero dar alegria ao meu coração, saudando também a
Benjamim e a Daniel. Tu estás vendo que almas têm os pastores. Oh!
Merece que Eu vá honrá-los, porque nem Deus se diminui honrando um
servo seu, mas, ao contrário, aumenta a sua justiça.
– Com este calor! Olha bem o que estás fazendo. Eu digo por Ti.
– As noites já estão menos sufocantes. O sol, por pouco tempo ainda
estará em Leão, e os temporais tornam menos ardente o calor. Além disso,
Eu vo-lo repito: Não obrigo ninguém a ir. Tudo é espontâneo em Mim e ao
meu redor. Se tendes negócios a fazer, ou se estais cansados, ficai. Nós nos
reencontraremos depois.
– Isto mesmo. É como dizes. Eu teria que pensar nos negócios lá de
casa. Está chegando o tempo da vindima, e minha mãe me tinha pedido que
eu fôsse ver uns amigos… Sabes, no fundo, eu sou o chefe da família.
Quero dizer: sou o homem da minha família.
Pedro resmunga:
– Ainda bem que ele se lembra de que a mãe é sempre a primeira
depois do pai.
Judas, ou porque não esteja ouvindo, ou porque não quer ouvir, não
demonstra ter entendido o resmungo, que Jesus freou com um olhar,
enquanto Tiago de Zebedeu, sentado perto de Pedro, lhe deu um puxão na
veste para fazê-lo calar-se.
– Então, vai, Judas. Aliás, deves ir. Não se deve faltar com a obediência
à mãe.
– Então eu vou logo, se me permites. Chegarei a Naim ainda em tempo
de encontrar hospedagem. Adeus Mestre, adeus amigos.
– Sê amigo da paz, e procura merecer ter sempre Deus contigo.
Adeus –diz Jesus, enquanto os outros o saúdam com uma saudação coletiva.
Não há muita pena em vê-lo partir, ao contrário… Pedro, talvez por
medo de que Judas se arrependa, o ajuda a apertar as correias do saco e a
pô-lo à tiracolo, acompanha-o até à porta da oficina, já aberta, como está
também a outra que dá para a horta, certamente para ventilar o cômodo,
sufocante após um dia tórrido. Ele está junto à porta, olhando-o ir e, quando
o vê afastar-se, faz um gesto de alegria e de um adeus irônico, e volta
esfregando as mãos. Não diz nada… mas já disse tudo. Alguém, que viu, ri
disfarçadamente.
102.2 Mas Jesus não nota isso, porque perscruta seu primo Tiago, que
ficou corado e entristecido, parando de comer suas azeitonas. E lhe
pergunta:
– Que é que tens?
– Disseste: “Não se deve faltar com a obediência à mãe…” E nós,
então?
– Não tenhas escrúpulo. Em princípio, assim se deve, quando somos
apenas homens e filhos de uma carne. Mas, quando assumimos uma outra
natureza e uma outra paternidade, não. Esta, mais alta, segue-se em suas
ordens e desejos. Judas chegou antes de ti e de Mateus… Mas está tão atrás
ainda. É preciso que se forme, e o fará muito lentamente. Tende caridade
para com ele. Tem caridade, Pedro! Eu compreendo… mas te digo: tem
caridade. Suportar as pessoas importunas não é uma virtude qualquer. Usa-
a.
– Sim, Mestre… Mas, quando o vejo assim… assim… Bem, cala-te,
Pedro, que Ele compreende… parece-me que sou uma vela esticada demais
pelo vento… Fico rangendo, rangendo pelo esforço, e sempre alguma coisa
se rompe em mim… Mas Tu sabes, isto é, não sabes porque como barqueiro
não vales nada, e por isso te digo que, se rompe os ligames todos de uma
vela por excesso de tensão, te juro que ela dará uma tal bofetada no tolo
barqueiro, que o deixará atordoado… Eis, eu sinto que… me arrisco a ter os
laços todos rompidos… e então… É melhor, sim, que, de vez em quando
ele se vá. Assim a vela se acalma por falta de vento, e eu tenho tempo para
reforçar os ligames.
Jesus sorri, e sacode a cabeça, suportando seu justo e impetuoso Pedro.
102.3 Um grande barulho de cascos ferrados e um vozerio de moleques se
ouvem ao longo da estrada.
– É aqui! É aqui! Para, homem.
E, antes que Jesus e os discípulos se deem conta, diante do vão da porta
se apresenta o corpo escuro de um cavalo transpirando suor, e dele desce
um cavaleiro que se precipita dentro da casa, como um bólide, e se prostra
aos pés de Jesus, beijando-os com veneração.
Todos olham admirados.
– Quem és tu? Que queres?
– Eu sou Jônatas.
A resposta é um grito de José, que, por estar sentado atrás do alto
balcão e por causa da rapidez da chegada, não tinha podido reconhecer o
amigo. O pastor corre para perto do que está prostrado:
– Tu, és tu mesmo!…
– Sim. Estou adorando ao meu adorado Senhor! Trinta anos de
esperança, oh! que longa espera! Mas, ei-los aí, agora floridos, como uma
agave solitária, e floridos de repente, em um êxtase feliz, mais feliz ainda
do que aquele de outrora! Oh! O meu Salvador!
Mulheres, meninos e alguns homens, entre os quais o bom Alfeu de
Sara, que está ainda com um pedaço de pão e queijo na mão, aglomeram-se
na porta, e até dentro do quarto grande.
– Levanta-te, Jônatas. Eu estava para ir à tua procura, e contigo ir achar
o Benjamim e o Daniel….
– Eu sei….
– Levanta-te, para que Eu te dê o beijo que dei aos teus companheiros.
Jesus o força a levantar-se e o beija.
– Eu sei –repete o robusto velho, de bom porte e bem vestido–. Eu sei.
102.4Ela tinha razão. Não era um delírio de moribundo! Oh! Senhor Deus!
Como a alma te vê e como te ouve, quando Tu a chamas!
Jônatas está comovido.
Mas se recobra. Não perde o seu tempo. Como adorador ativo, vai
direto ao seu assunto:
– Jesus, nosso Salvador e Messias, eu vim pedir-te que vás comigo.
Falei com a Ester, e ela me disse… Mas antes, antes Joana havia falado de
Ti e me disse… oh! não vos fiqueis rindo de um homem feliz, vós que
estais ouvindo, feliz e angustiado, enquanto não tiver o teu “Vou.” Sabes
que eu estava em viagem com a patroa moribunda. Que viagem! De
Tiberíades até Betsaida, foi boa. Mas depois, tendo deixado o barco e pego
um carro, por mais que o tivesse aparelhado o melhor que pude, foi uma
tortura. Ia-se devagar, de noite, mas ela sofria. Em Cesareia de Filipe, ela
esteve para morrer, vomitando sangue. Paramos… Na terceira manhã, há
sete dias, ela mandou me chamar. Parecia já morta, de tão branca e
extenuada que estava. Mas, quando eu a chamei, ela abriu seus doces olhos
de gazela moribunda, e sorriu para mim. Com sua mãozinha gelada fez-me
sinal para que eu me inclinasse para ela, pois só tinha um fio de voz, e me
disse: “Jônatas, leva-me de novo para casa. Mas depressa.” Era tão grande a
força da sua ordem — ela que sempre foi mais doce do que uma criança
boa — que as cores lhe voltaram às faces e seus olhos, por um momento, se
tornaram brilhantes. E continuou: “Eu sonhei com a minha casa de
Tiberíades. Dentro dela havia Alguém com o rosto de estrela, alto, loiro,
com olhos celestes e uma voz mais doce do que o som da harpa. Dizia-me:
‘Eu sou a Vida. Vem. Volta. Eu te espero, para dá-la a ti’. Eu quero ir.” E eu
dizia: “Mas, patroa! Não podes! Estás mal! Quando estiveres melhor,
veremos.” Eu pensava que era um daqueles delírios dos moribundos. Mas
ela chorou e depois… — oh! é a primeira vez que ela me disse nestes seis
anos que é minha patroa, e até sentou-se, ela que nada pode, pela ira — e
depois me disse: “Servo, eu quero. Eu sou a tua patroa. Obedece.” Em
seguida deixou-se cair em cima do seu sangue. Achei que ia morrer… e
disse: “Vamos fazê-la contente. Morrer por morrer!! Não ficarei com
remorso por tê-la contrariado em seu fim, depois de sempre ter procurado
contentá-la.” Que viagem! Não queria repousar, exceto entre as horas terça
e sexta. Esgotados ficaram os cavalos para irmos mais depressa. Chegamos
a Tiberíades na hora nona, esta manhã… E Ester me disse… Então eu
entendi que eras Tu que a tinhas chamado. Porque a hora era aquela e o dia
aquele no qual Tu prometias o milagre a Ester e aparecias ao espírito de
minha patroa. Ela quis partir de novo, mal chegou a hora nona, e me
mandou ir na frente… Oh! Vem, meu Salvador!
– Eu vou logo. A fé merece um prêmio. Quem me quer, me tem.
Vamos.
– Espera. Joguei uma bolsa a um rapaz, dizendo: “Três, cinco, quantos
jumentos quiseres, se não tendes cavalos, e ide depressa à casa de Jesus.”
Devem estar para chegar. Iremos mais depressa. Espero encontrá-la perto de
Caná. Se ao menos…
– O que, Jônatas?
– Se ao menos estiver viva….
– Ela está viva. Mas, mesmo que estivesse morta, Eu sou a Vida. 102.5Eis
a minha Mãe.
A Virgem, certamente avisada por alguém, de fato está chegando
depressa, seguida por Maria de Alfeu:
– Filho, Tu partes?
– Sim, Mãe. Vou com o Jônatas. Ele veio. Eu sabia que ia poder
mostrá-lo a ti. Por isso, esperei um dia a mais.
Jônatas primeiro saudou profundamente com os braços cruzados sobre
o peito, agora se ajoelha e ergue de leve a veste de Maria, e beija-a na orla,
dizendo:
– Eu saúdo a Mãe do meu Senhor!
Alfeu de Sara diz aos curiosos:
– Oh! Que dizeis a isso? Não é de se envergonhar por sermos só nós
sem fé?
Um barulho de muitos cascos se ouve na estrada. São os burrinhos.
Creio que são todos os burrinhos de Nazaré, e são tantos, que dariam para
formar um esquadrão. Enquanto Jônatas escolhe os melhores, e os contrata,
pagando sem regatear, e toma dois nazarenos com outros burrinhos, por
temor de que algum animal perca as ferraduras pelo caminho, e a fim de
que possam trazer de volta toda esta zurrante cavalaria asinina, Maria e a
outra Maria estão ajudando a fechar sacos e alforjes.
Maria de Alfeu diz a seus filhos:
– Deixarei aqui os vossos leitos. E os acariciarei… Parecer-me-á estar
acariciando-vos. Sede bons, dignos de Jesus, filhos… e eu… eu estarei
feliz… –e entrementes chora com grandes lágrimas.
Maria, ao invés, ajuda ao seu Jesus, e o acaricia com amor, fazendo-lhe
mil recomendações e incumbências para os outros dois pastores libaneses,
porque Jesus declara que não voltará antes de tê-los encontrado.
102.6 Partem. A tarde desceu, e o primeiro quarto da lua levanta agora. À
frente vão Jesus e Jônatas, atrás todos os outros. Enquanto estão na cidade,
vão passo a passo, porque as pessoas se aglomeram. Mas, logo que saem
fora, vão a trote em uma caravana sonante de cascos e guizos.
– Está no carro com Ester –explica Jônatas–. Oh! A minha patroa! Que
alegria fazer-te feliz! Trazer-te Jesus! Oh! Meu Senhor! Ter-te aqui, ao meu
lado! Ter-te! Tens mesmo o rosto de uma estrela que ela viu, és loiro e de
olhos do azul do céu e a tua voz é exatamente como um som de harpa… oh!
Mas tua Mãe! Levá-la-ás à minha patroa um dia?
– Tua patroa irá a Ela. Serão amigas.
– Sim? Oh!! Sim, ela o pode ser. É esposa e foi mãe, a Joana. Mas tem
uma alma pura como uma virgem. Ela pode estar perto de Maria, a bendita.
Jesus se vira, por causa de uma boa risada de João, que foi imitada por
todos os outros.
– Sou eu, Mestre, que faço rir. No barco, eu estou mais firme do que
um gato… mas aqui em cima! Pareço uma pipa deixada solta na ponte de
um navio apanhado pelo vento do sudoeste! –diz Pedro.
Jesus sorri, e o encoraja, prometendo acabar logo com aquele trotear.
– Oh! Não é nada. Se os rapazes riem, não faz mal. Vamos, vamos fazer
feliz essa boa mulher.
Jesus se vira de novo, por causa de outra explosão de riso.
Pedro exclama:
– Não. Isto eu não te digo, Mestre. Mas, por que não? Sim, que eu digo.
Eu dizia: “O nosso supremo ministro roerá as unhas, quando souber que
faltou justamente quando chegou a hora de bancar o pavão, junto à uma
dama.” E eles riem. Mas é assim. Tenho a certeza de que, se ele tivesse
pensado nisto, não teria mais que tutelar as vinhas paternas.
Jesus não rebate.
102.7A viagem se faz depressa, com estes burrinhos bem alimentados.
No clarão da lua Caná é superada.
– Se me permites, eu te precedo. Vou parar o carro. As sacudidelas a
fazem sofrer muito.
– Então, vai.
Jônatas põe seu cavalo a galope.
Ainda viajam no clarão da lua. Depois aparece a forma escura de um
carro grande e coberto, parado à beira da estrada. Jesus incita seu burrinho,
que começa um pequeno galope, meio enviesado. Ei-lo junto ao carro.
Desmonta.
– O Messias! –anuncia Jônatas.
A velha nutriz se joga do carro na estrada, e da estrada na poeira!
– Oh! Salva-a! Está morrendo.
– Eis-me aqui.
E Jesus sobe ao carro, onde está um monte de almofadas, e sobre elas
um débil corpo. Em um canto há uma lamparina e copos e ânforas. Há
também ali uma jovem serva, que está chorando e enxugando o suor gelado
da moribunda. Jônatas acorre com uma das lanternas do carro.
Jesus se inclina sobre a mulher abandonada, verdadeiramente
moribunda. Não há diferença entre o candor da veste de linho e a palidez
levemente azulada das mãos e do rosto emaciados. Só as cerradas
sobrancelhas e os longos cílios muito escuros é que dão uma cor naquele
rosto de neve. Não há nem mesmo aquele vermelho infausto dos tísicos nas
maçãs do rosto definhadas. Os lábios são apenas uma sombra de um cor-de-
rosa violáceo, semi-abertos na respiração difícil.
Jesus se ajoelha ao lado dela, e a observa. A nutriz a toma pela mão, e a
chama. Mas a alma, já no limite da vida, não ouve mais nada.
Chegaram os discípulos e os dois jovens de Nazaré, e se ajuntam perto
do carro.
Jesus põe uma mão sobre a fronte da moribunda, que abre por um
momento os olhos enevoados e vagos, e depois os torna a fechar.
– Ela não ouve mais –geme a nutriz. E chora mais forte.
Jesus faz um gesto:
– Mãe, ela ouvirá. Tem fé.
E depois chama:
– Joana! Joana! Sou Eu! Sou Eu que te chamo. Eu sou a Vida. Olha
para Mim, Joana.
A moribunda, com um olhar mais vivo, abre os seus grandes olhos
negros, e olha para o rosto que está inclinado sobre ela. Tem um movimento
de alegria e um sorriso. Move devagar os lábios em uma palavra que porém
não tem som.
– Sim. Sou Eu. Tu vieste e eu vim. Para salvar-te. Podes crer em Mim?
A moribunda anui com a cabeça. Toda a vitalidade está reunida no
olhar e toda a palavra, que não pode exprimir de outra maneira.
– Pois bem (Jesus permanecendo de joelhos e com a mão esquerda
sobre a fronte dela, se endireita e toma o aspecto de milagre), pois bem, Eu
assim quero. Sê curada. Levanta-te.
Tira a mão e fica em pé.
Uma fração de minuto e depois, Joana de Cusa, sem nenhuma outra
ajuda, se assenta, dá um grito e se lança aos pés de Jesus, gritando com voz
forte e feliz:
– Oh! Amar-te, ó minha Vida! Para sempre! Tua! Para sempre tua!
Nutriz! Jônatas! Eu estou curada! Oh! Depressa! Correi, e ide dizer ao
Cusa. Que ele venha adorar o Senhor! Oh! Abençoa-me ainda, ainda, ainda!
Oh! Meu Salvador.
Ela chora e ri, beijando as vestes e as mãos de Jesus.
– Eu te abençoo, sim. Que mais queres que te faça?
– Nada, Senhor. Exceto que Tu me ames e deixes que eu te ame.
– E um menino, não o quererias?
– Oh! Um menino!! Mas faze Tu, Senhor. Eu te entrego tudo: o meu
passado, o meu presente e o meu futuro. Tudo te devo e tudo te dou. Dá Tu,
à tua serva, o que sabes que é melhor.
– A vida eterna, então. Sê feliz. Deus te ama. 102.8Eu vou. Eu te abençoo
e vos abençoo.
– Não, Senhor. Para na minha casa, que agora, oh! agora é realmente
um roseiral florido. Permite-me reentrar nela, Contigo… Oh! como sou
feliz!
– Eu vou. Mas tenho os meus discípulos.
– Os meus irmãos, Senhor. Joana terá para eles, como para Ti, alimento,
bebida e o com que restaurar as forças. Faz-me feliz!
– Vamos. Mandai de volta os burrinhos, e acompanhai-nos a pé. A
distância agora é pouca. Iremos devagar, para que nos possais seguir.
Adeus, Ismael e Aser. Saudai ainda à minha Mãe por Mim e aos meus
amigos.
Os dois nazarenos, atordoados, vão com os seus burrinhos zurrantes,
enquanto o carro empreende a viagem de volta, agora com a sua carga de
alegria. Atrás, em grupo, vêm os discípulos comentando o fato. E tudo
termina.
103. No Líbano em casa dos pastores Benjamim e
Daniel.
10 de fevereiro de 1945.
103.1 Jesus caminha ao lado de Jônatas, ao longo de uma margem verde e
sombreada. Atrás vão os apóstolos, falando entre si.
Mas Pedro se afasta dos outros, vai lá na frente e, franco como sempre,
pergunta a Jônatas:
– Mas, não era mais rápida a estrada que passa por Cesareia de Filipe?
Nós pegamos esta e… quando chegaremos? Tu, com a patroa, viajaste
também por aquela!
– Com uma doente, eu ousei tudo. Mas pensa bem que eu pertenço a
um cortesão de Antipas, e Filipe, depois daquele sórdido incesto, não vê
muito bem os cortesãos de Herodes… Não é por mim, sabes, que eu temo.
Mas não quero dar aborrecimentos a vós, e particularmente ao Mestre, nem
arranjar-vos inimigos. Na Tetrarquia de Filipe é necessária a Palavra, como
na de Antipas… e se vos odiarem, como podereis fazer? Na volta, vireis por
aquela estrada, se achardes melhor.
– Louvo a tua prudência, Jônatas. Mas na volta pretendo passar pelas
terras fenícias –diz Jesus.
– Estão envoltas nas trevas do erro.
– Eu vou manifestar-me nos confins, para lembrá-los de que ali existe
uma Luz.
– Crês que Filipe se vingaria em um servo da injustiça que seu irmão
lhe fez? –pergunta Pedro a Jónatas.
– Sim, Pedro. Um equivale ao outro. Estão ambos dominados pelos
mais baixos instintos, e não fazem distinção. Parecem animais e não
homens, podes crer.
– Contudo, nós, ou seja, Ele, que é parente de João, o deveria ter em
consideração. João, no fundo, falou também em seu nome e favor, quando
falou em nome de Deus.
– Ele não vos perguntaria nem mesmo de onde estais vindo, nem quem
sois. Vistos comigo, se ele me reconhecesse ou se eu lhe fôsse indicado por
algum inimigo da casa de Antipas como servo do seu Procurador, vós
seríeis imediatamente encarcerados. Se soubésseis que barro existe atrás das
vestes de púrpura! Vinganças, abusos, delações, luxúrias e furtos formam a
mistura da alma deles. Almas?? Ah! Digamos assim. Eu acredito que não
tenham mais alma. Vós o estais vendo. Para um bom fim. Mas porque foi
libertado João? Por causa de uma vingança entre dois oficiais da corte. Um,
para afastar o outro, que era favorito de Antipas, para ser o carcereiro de
João, por dinheiro, de noite abriu o cárcere… eu acho que ele tenha
atordoado o rival com um vinho drogado e, na manhã seguinte… o infeliz
perdeu a própria cabeça, em lugar do Batista, que escapou. É um nojo, eu te
digo.
– E o teu patrão, concorda? Parece-me bom.
– E o é. Mas não pode agir diversamente. Seu pai, e o pai do seu pai,
pertenceram à corte do Grande Herodes, e o filho, por força, teve que
pertencer. Ele não aprova. Mas não pode senão limitar-se a ter sua mulher
longe daquela corte de vício.
– E ele não poderia dizer: “Causas-me aversão”, e ir embora?
– Poderia. Mas, mesmo sendo tão bom, ainda não é capaz de tanto.
Porque isso, quereria dizer quase certamente: morte. E quem quer morrer
por honestidade de espírito, praticada até o mais alto grau? Um santo como
o Batista. Mas nós, pobres de nós!
103.2 Jesus, que os deixou falar entre eles, intervém:
– Dentro de não muito tempo, em todos os lugares da terra conhecida
estarão plantados, como flores sobre um prado em abril, os santos que
ficaram contentes ao morrerem por esta honestidade à Graça e por amor a
Deus!
– Deveras? Oh! Eu gostaria de saudar esses santos e dizer-lhes: “Rezai
pelo pobre Simão de Jonas!” –diz Pedro.
Jesus o olha fixamente, e sorri.
– Por que me olhas assim?
– Porque tu os verás, como assistente deles, e os verás, quando te
assistirem.
– Assistirem em que, Senhor?
– Te tornar a Pedra consagrada pelo Sacrifício, sobre a qual se celebrará
e edificará o meu Testemunho.
– Eu não te entendo.
– Entenderás.
Os outros discípulos, que se haviam aproximado, e ouviram, cochicham
entre eles.
Jesus volta-se:
– Em verdade vos digo que com um suplício ou outro, todos vós sereis
provados. Por enquanto é o suplício da renúncia às comodidades, aos
afetos, às vantagens. Depois será uma coisa cada vez maior, até chegardes
àquela excelsa que vos cingirá com um diadema imortal. Sede fiéis. Mas
vós todos os sereis. E isto tereis.
– Os judeus e o Sinédrio talvez irão matar-nos por nosso amor a Ti?
– Jerusalém lava as soleiras do seu Templo com o sangue de seus
Profetas e de seus Santos. Mas o mundo também espera ser lavado… Nele
há templos e templos de deuses horrendos. Mas serão no futuro templos do
Deus verdadeiro, e a lepra do paganismo será limpa com a água lustral, feita
com o sangue dos mártires.
– Oh! Deus Altíssimo! Senhor! Mestre! Eu não sou digno de tanto! Sou
fraco! Medroso do mal! Oh! Senhor!! Ou manda embora teu inútil servo, ou
dá-me, Tu, a força. Eu não queria que fizesses má figura, Mestre, por causa
da minha covardia.
Pedro se jogou aos pés do Mestre, e lhe suplica com o coração na voz.
– Levanta-te, meu Pedro. Não tenhas medo. Ainda tens muito que
caminhar… e virá a hora em que não quererás nada mais do que passar pelo
último sofrimento. E então terás tudo, do Céu e de ti mesmo. E Eu estarei te
olhando admirado.
– Tu o estás dizendo… e eu o creio. Mas sou um tão pobre homem!
103.3 Recomeçam a caminhar…
… e, depois de uma boa interrupção, torno a ver quando já deixaram a
planície para trás para subirem em um monte em uma floresta e sempre
mais alto. Não deve tampouco ser o mesmo dia, porque enquanto naquele a
manhã já era muito quente, aqui é apenas uma bonita aurora que acende
diamantinos líquidos sobre todos os caules. Bosques e bosques de coníferas
foram superados e dominam lá do alto a paisagem e, como verdes catedrais,
acolhem por entre suas colunas os peregrinos incansáveis.
Verdadeiramente, este Líbano é uma estupenda cadeia de montanhas.
Não sei se o Líbano é todo o complexo, ou se é este monte só. Sei que vejo
cordilheiras com florestas, que se erguem num ponto alto emaranhado de
cristas e outeiros, de vales e planaltos, ao longo dos quais correm, para
depois despencar vale abaixo, umas torrentes que parecem fitas de prata, de
um verde levemente azulado. Pássaros de toda espécie enchem de cantos e
de voos, os bosques de coníferas, todos com um perfume de resina nesta
hora matutina. Virando-se para o vale, ou melhor, para o ocidente, vê-se ao
longe, o mar, amplo, quieto, solene, e a costa toda, que se prolonga para o
norte e para o sul, com suas cidades, seus portos e os raros cursos de água,
que desembocam no mar, fazendo apenas uma vírgula luzente sobre a terra
árida, com a sua pouca água, que o sol do verão seca, e uma dedada
amarelada no azul marinho.
– São bonitos estes lugares –observa Pedro.
– Não faz nem tanto calor –diz Simão.
– Com estas árvores, o sol nos incomoda pouco… –acrescenta Mateus.
103.4 – Terão sido levados daqui os cedros do Templo? –pergunta João.
– Sim, são estes bosques que produzem as madeiras mais belas. O
patrão do Daniel e do Benjamim possui muitos destes, além de grandes
rebanhos. As madeiras são serradas no lugar, e depois são levadas para o
vale, através daquelas canelaturas, ou nos braços. É um trabalho difícil,
quando os troncos devem ser usados inteiros, como fizeram para o Templo.
Mas ele paga bem e muitos o servem. Além disso, ele é muito bom. Não é
como aquele Doras feroz. Pobre Jonas! –responde Jônatas.
– Mas, como é que seus servos são quase escravos? Disse-me Jonas,
que lhe dizia: “Mas deixa-o aí plantado, e vem conosco. Um pão para ti,
Simão de Jonas terá sempre”; ele me disse: “Não posso, enquanto não me
resgata.” Que história é esta? –pergunta Pedro.
– Doras, e não só ele em Israel, costuma fazer assim: quando vê um
servo bom, leva-o com sutil astúcia a ser escravo. Vai-lhe debitando somas
não verdadeiras, que o coitado não pode pagar, e quando o total já é
suficiente, ele diz: “Tu és meu escravo por causa da tua dívida.”
– Oh! Que vergonha! E é fariseu!
– Sim. Jonas, enquanto teve economias, pôde pagar… depois… Um
ano foi o granizo, no outro foi a seca. O trigo e as videiras produziram
pouco. E Doras multiplicou o prejuízo por dez, e mais dez… Depois Jonas
ficou doente por trabalhar demais. E Doras lhe emprestou dinheiro para
tratar-se, mas quis doze por um, e, visto que Jonas não possuía isso,
acrescentou-o ao saldo devedor. Em poucas palavras: ao fim de poucos
anos, havia uma dívida que o tornou escravo. E não o deixará ir nunca…
Sempre encontrará outros pretextos e outras dívidas…
Jônatas fica triste, pensando no amigo.
– E o teu patrão não podia….
– O que? Fazê-lo tratar como homem? E quem é que se atreve a ir
contra os fariseus? Doras é um dos mais poderosos; creio também que ele
seja parente do Sumo Sacerdote… Ao menos, é o que se diz. Uma vez,
quando Jonas foi espancado quase até à morte e eu fiquei sabendo, chorei
tanto, que Cusa me disse: “Vou resgatá-lo, para fazer-te contente.” Mas
Doras riu na cara dele, e não aceitou nada. Ah! Aquele ali… tem os campos
mais ricos de Israel… mas te juro, são campos adubados com o sangue e
com as lágrimas de seus servos.
Jesus olha para o Zelote, e o Zelote olha para Ele. Ambos estão
compadecidos.
– E o patrão do Daniel, é bom?
– Pelo menos é humano. Exige, mas não oprime. E, como os pastores
são honestos, os trata com amor. São os chefes da pastagem. A mim ele
conhece e respeita, porque sou servo de Cusa e… isso poderia ser-lhe
vantajoso… Mas por que, Senhor, o homem é tão egoísta?
– Porque o amor foi estrangulado no Paraíso terrestre. Mas Eu vou
afrouxar o laço, e dar vida de novo ao amor.
103.5 – Eis-nos nas possessões de Eliseu. Os pastos ainda estão longe.
Mas, a esta hora, as ovelhas estão quase sempre nos ovis, por causa do sol.
Vou ver se elas estão lá.
E Jônatas parte quase correndo.
Volta, depois de algum tempo, com dois grisalhos e robustos pastores,
que verdadeiramente se precipitam pela encosta abaixo, para irem até Jesus.
– A paz a vós.
– Oh! Oh! O nosso Menino de Belém! –diz um deles.
E o outro diz:
– Paz de Deus, que vens a nós, que Tu sejas bendito!
Os homens estão prostrados na erva. Não é tão profunda a saudação
que se faz a um altar, quanto esta que foi feita ao Mestre.
– Levantai-vos. Eu vos dou a bênção, e sou feliz em fazê-lo, porque ela
vem com alegria sobre quem é digno dela.
– Oh! Dignos nós!
– Sim, vós que fostes sempre fiéis.
– E quem não o teria sido? Quem pode apagar aquela hora? Quem pode
dizer: “Não é verdade aquilo que nós vimos”? Quem pode esquecer-se de
que Tu sorriste para nós, durante vários meses, quando, voltando para o
meio das ovelhas, à tarde, nós te chamávamos e Tu batias as mãozinhas ao
som dos nossos pífaros?… Lembras-te disso, Daniel? Quase sempre vestido
de branco, nos braços da Mãe, Tu nos aparecias entre raios de sol sobre o
prado de Ana, ou pela janela e parecias uma flor pousada sobre a neve da
veste materna.
– E aquela vez que vieste, dando os primeiros passos, para acariciar um
cordeirinho menos encaracolado do que Tu? Como eras feliz! E nós não
sabíamos o que fazer de nossas rústicas pessoas. Teríamos querido ser anjos
para te parecermos menos rudes…
– Oh! Meus amigos! Eu via o vosso coração, e o vejo também agora.
– E nos sorris como naquele tempo!
– E vieste até aqui, às casas de pobres pastores!
– Às casas dos meus amigos. Agora estou contente. Eu vos reencontrei
a todos e não vos perderei. Podeis hospedar o Filho do homem e os seus
amigos?
– Oh! Senhor! Mas ainda perguntas? Não nos faltam pão e leite. Mas se
tivéssemos só um pedaço, nós daríamos a Ti, contanto que ficasses conosco.
Não é verdade, Benjamim?
– Nós te daríamos o coração como alimento, ó nosso desejado Senhor!
– Então vamos. Falaremos de Deus…
– E dos teus pais, Senhor. José, tão bom! Maria… Oh! a Mãe! Eis, olhai
este narciso orvalhado. É belo e puro em sua cabeça que parece uma estrela
adamantina. Mas Ela… Oh! isto é sujeira, se comparado à Mãe! Um sorriso
dela era purificação, o encontrá-la era uma festa, o ouvi-la, era santificar-se.
Tu te lembras também daquelas palavras, Benjamim.
– Sim. Posso repeti-las a Ti, Senhor. Porque tudo o que Ela nos disse,
nos meses em que a pudemos ouvir, está escrito aqui (e bate no peito). É a
página da nossa sabedoria. E esta também nós a compreendemos, porque é
palavra de amor. E o amor… oh! o amor é entendido por todos! Vem,
Senhor, entra e abençoa esta morada feliz.
Entram em uma estância, perto do vasto ovil, e tudo termina[16].
[16] e tudo termina. Segue no caderno manuscrito o desenho de MV que, por exigência de paginação, se reproduz na página
sucessiva. Ajudamos a decifrar as palavras: Mediterraneo (Mediterrâneo) no alto à esquerda, seguindo-se, de alto a baixo, porto
(porto), molhes (cais), porto (porto), Golfo belíssimo (Golfo muito lindo), filme (rio) (palavra repetida outras quatro vezes ao
centro); Livano (Líbano) ao alto à direita, seguindo-se, para baixo, filme (rio) e lago (lago).
104. Ava reconciliada com o marido. Notícias
sobre a morte de Alfeu e sobre o resgate de Jonas.
11 de fevereiro de 1945.
104.1 Jesus está na belíssima cidade marítima que no pequeno mapa tem
aquele golfo natural, amplo e bem protegido, capaz de receber muitos navios,
tornado ainda mais seguro por um forte dique portuário. Deve ser muito usado,
até para operações militares, porque vejo trirremes romanas, com soldados a
bordo. Estão desembarcando, não sei se para revezamento de tropas ou se para
fortalecimento do presídio. O porto, ou seja, a cidade portuária, lembra-me
vagamente Nápoles, dominada pelos montes vesuvianos.
Jesus está sentado dentro de uma pobre casa, perto do porto. Casa de
pescadores certamente, talvez amigos de Pedro ou de João, porque vejo que estes
estão muito à vontade na casa e com os seus moradores. Não vejo o pastor José.
E, naturalmente, não vejo nem Iscariotes, ainda ausente. Jesus fala cordialmente
com os membros da família e com outras pessoas que vieram para ouvi-lo. Mas
não é uma verdadeira pregação. São simples palavras de conselho e de conforto,
como só Ele pode dar.
Torna a entrar André, que parece ter saído para alguma incumbência, porque
ele vem trazendo nas mãos alguns pães. Aproxima-se muito corado, pois atrair a
atenção sobre si deve ser um verdadeiro suplício, e, mais que dizer, murmura:
– Mestre, poderias vir comigo? Há… Há um pouco de bem a fazer. Só Tu
podes fazê-lo.
Jesus se levanta, sem nem mesmo perguntar de que bem é que se trata.
104.2 Mas Pedro pergunta:
– Aonde o levas? Ele está muito cansado. Eagora é hora da ceia. Também o
podem esperar amanhã.
– Não… é para se fazer logo.
– Mas fala, gazela assustada! Olhai se um homem grande e corpulento deve
ficar assim!! Parece-me um peixinho emaranhado na rede!
André torna-se ainda mais corado. Jesus, atraindo-o para si, o defende:
– A Mim, agrada assim. Deixa-o fazer. Teu irmão é como uma água salutar:
trabalha nas profundezas e sem barulho, sai como um fio da terra, mas quem se
aproxima dela fica curado. Vamos, André.
– Eu também vou! Quero ver aonde ele te leva! –insiste Pedro.
André suplica:
– Não, Mestre. Eu e Tu sozinhos. Se houver mais pessoas, não se pode… É
coisa de corações…
– Que será? Agora fazes o paraninfo?
André não responde ao irmão. Diz a Jesus:
– Um homem quer repudiar sua esposa e… e eu falei com ele. Mas não
tenho jeito. Se Tu falares… oh! conseguirás, porque o homem não é mau. É…
é… ele te irá dizer.
Jesus sai com André, sem dizer mais nada.
Pedro fica um pouco duvidoso e depois diz:
– Mas eu vou. Quero ao menos ver aonde vão.
E sai, não obstante os outros estarem lhe dizendo para não ir.
André está para virar em uma viela popular. E Pedro vai atrás. Contorna uma
pracinha cheia de comadres. E Pedro atrás. Entra por um portão, que vai dar num
amplo pátio rodeado de casinhas baixas e pobres. Digo portão, porque tem um
arco. Mas porta, não tem. E Pedro atrás. Jesus entra em uma destas casinhas com
André. Pedro põe-se à espreita do lado de fora.
Uma mulher o vê, e lhe pergunta:
– És parente da Ava? E aqueles dois também? Viestes levá-la de volta?
– Cala-te, galinha! Eu não devo ser visto.
Fazer uma mulher calar-se! É coisa difícil. E, posto que Pedro a fulmina com
olhos ameaçadores, ela vai falar com outras comadres. O pobre Pedro, de
repente, se vê rodeado por um círculo de mulheres, rapazes e também de homens
que, só para imporem silêncio ao acontecimento, fazem um barulho que
denuncia a presença deles. Pedro se rói de raiva… mas não adianta.
104.3Do interior da casa vem a voz cheia, bonita e calma de Jesus, junto
àquela partida de uma mulher e a uma fechada e rouca de homem.
– Se sempre foi boa esposa, por que repudiá-la? Ela faltou para contigo?
– Não, Mestre, juro-te que não! Eu o amei como a pupila dos meus olhos –
geme a mulher.
E o homem, breve e duro:
– Não. Não me faltou, a não ser por ser estéril. E eu quero filhos. Não quero
a maldição de Deus sobre o meu nome.
– Tua mulher não tem culpa por ser assim.
– Ela diz que a culpa é minha. Culpa a mim e aos meus como de uma
traição…
– Mulher, sê sincera. Sabias que eras assim?
– Não. Eu era e sou em tudo como as outras. O médico também disse isto.
Mas eu não consigo ter filhos.
– Estás vendo que ela não te traiu. Ela também sofre por isso. Responde tu
também, sinceramente: se ela se tornasse mãe, tu a repudiarias?
– Não. Juro que não. Não tenho motivo para isso. Mas o rabino o disse, e o
disse o escriba: “A estéril é a maldição de Deus na casa, e tu tens o direito e o
dever de dar-lhe o libelo do divórcio[17] e não afligir a tua virilidade, privando-a
de filhos.” 104.4Eu faço o que a Lei diz.
– Não. Escuta. A Lei diz: “Não cometer adultério”, e tu estás para cometê-lo.
O mandamento inicial é este e não outro. E se, por causa da dureza dos vossos
corações, Moisés concedeu o divórcio, isso foi para impedir mancebias e
concubinatos, abomináveis a Deus. Depois, sempre mais o vosso vício trabalhou
sob o pretexto daquela cláusula de Moisés, obtendo aquelas malvadas correntes e
as homicidas pedras, que são as condições atuais da mulher, vítima sempre do
vosso abuso de poder, do vosso capricho, da vossa surdez e cegueira de afetos.
Eu te digo: não te é lícito fazer o que queres fazer. Teu ato é uma ofensa a Deus.
Abraão porventura repudiou Sara? E Jacó a Raquel? E Elcana a Ana? E Manué à
sua esposa? Conheces o Batista? Sim? Pois bem, sua mãe não foi estéril até à
velhice e depois não deu à luz o santo de Deus, assim como a esposa de Manué
deu à luz Sansão, e Ana de Elcana a Samuel, e Raquel a José, e Sara a Isaque? A
continência do esposo, à sua piedade para com a estéril, à sua fidelidade às
núpcias, Deus concede um prêmio, e prêmio celebrado nos séculos, assim como
dá sorriso ao pranto das estéreis, não mais estéreis, nem aviltadas, mas gloriosas,
na alegria de ser mães. Não te é lícito ofender o amor desta mulher. Sê justo e
honesto. Deus te premiará além do teu mérito.
– Mestre. Somente Tu falas assim… Eu não sabia. Tinha perguntado aos
doutores, e eles me haviam dito: “Faz”. Mas nem uma palavra para dizer-me que
Deus premia com seus dons um ato bom. Estamos nas mãos deles… e eles nos
fecham os olhos e os corações com uma mão de ferro. Eu não sou mau, Mestre.
Não te indignes comigo.
– Eu não te desdenho. Dás-me mais pena do que esta mulher chorosa.
Porque a dor dela terminará com a vida. A tua começará então, e pela eternidade.
Pensa nisso.
– Não. Não começará. Eu não quero. Tu me juras pelo Deus de Abraão, que
é verdade tudo o que me dizes?
– Eu sou Verdade e Ciência. Quem crê em Mim, terá Nele justiça, sabedoria,
amor e paz.
– Eu quero crer em Ti. Sim, quero crer em Ti. Sinto em Ti alguma coisa que
não há nos outros. Eis. Agora vou ao sacerdote, para dizer-lhe: “Eu não a repudio
mais. Conservo-a e somente peço a Deus que me ajude a sentir menos a dor de
não ter filhos.” Ava, não chores. Diremos ao Mestre que venha outras vezes para
conservar-me bom, e tu… continua a querer-me bem.
A mulher chora mais forte, por causa do contraste entre a dor de antes e a
alegria de agora.
Jesus, ao invés, sorri.
– Não chores. Olha para Mim. Olha para Mim, mulher.
Ela levanta a cabeça. Olha para o rosto luminoso Dele com o seu rosto
lacrimoso.
– Vem aqui, homem. Põe-te de joelhos junto à tua esposa. Agora Eu vos
abençoo e santifico a vossa união. Ouvi: “Senhor Deus de nossos pais, Tu que do
barro fizeste Adão e lhe deste Eva por companheira, para que povoassem de
homens a terra educando-os no teu santo temor, desce com a tua bênção e a tua
Misericórdia, abre e fecunda as entranhas que o Inimigo conservou fechadas,
para conduzir a um duplo pecado de adultério e de desespero. Tem piedade
destes dois filhos, Pai santo, Criador supremo. Torna-os felizes e santos. Torna-a
fecunda como uma vinha, e a ele protetor como o olmo que a sustenta. Desce, ó
Vida, para dar vida. Desce, ó Fogo, para aquecer. Desce, ó Poderoso, para operar.
Desce! Faz que, pela festa de louvor pelas fecundas colheitas do ano vindouro,
estes te ofereçam o seu manípulo vivo, o seu primogênito, o seu filho consagrado
a Ti, ó Eterno, que abençoas aqueles que em Ti esperam.”
Jesus rezou com uma voz de trovão, as mãos estendidas sobre as duas
cabeças inclinadas.
104.5 O povo não se contém mais, e se aglomera, Pedro em primeira linha.
– Levantai-vos, tende fé e sede santos.
– Oh! Fica Mestre! –pedem os dois reconciliados.
– Não posso. Voltarei. Mais e mais vezes.
– Fica, fica. Fala a nós também! –grita a multidão.
Mas Jesus abençoa, e não para. Promete somente voltar logo. E, seguido por
uma pequena multidão, vai até a casa onde está hospedado.
– Homem curioso, que é que Eu devia fazer-te? –pergunta a Pedro pelo
caminho.
– O que quiseres… Entretanto eu estava lá…
Entram em casa, despedem-se do povo, que fica comentando as palavras
ouvidas, e põem-se à mesa para a ceia.
Pedro está ainda curioso.
– Mestre, mas o filho virá mesmo?
– Já me viste prometer coisas que não aconteçam? Parece-te que Eu me
permita usar a confiança no Pai para mentir e enganar?
– Não… mas… Poderias fazer assim a todos os esposos?
– Poderia. Mas só o faço onde vejo que um filho pode ser um impulso à
santificação. Onde ele seria um obstáculo, não o faço.
Pedro despenteia os cabelos grisalhos, e se cala.
104.6 Entra o pastor José. Está todo empoeirado, como quem caminhou muito.
– Tu? Como é que estás aqui? –pergunta Jesus, depois do beijo de saudação.
– Tenho cartas para Ti. Tua Mãe as deu para mim, e uma é dela. Aqui estão.
E José estende-lhe três pequenos rolos de uma espécie de pergaminho sutil,
amarrados com uma fitinha. A mais volumosa tem também um selo que a fecha.
Uma outra tem só o laço, e a terceira mostra um selo roto.
– Esta é de tua Mãe –diz José indicando aquela com o laço.
Jesus a desenrola e lê. Primeiro lê baixo, e depois alto.
– “Ao meu amado Filho, paz e bênção. Chegou-me à hora primeira das
calendas da lua de elul um mensageiro de Betânia. Ele era Isaque, o pastor, ao
qual dei o beijo da paz e a refeição, em teu nome e em reconhecimento de minha
parte. Trouxe-me estas duas cartas, que te estou enviando, dizendo-me, de viva
voz, que o amigo Lázaro de Betânia te solicita que consintas no que ele pede.
Amado Jesus, meu bendito Filho e Senhor, eu também teria duas coisas a pedir-
te. Uma é que te lembres que me prometeste chamar à tua pobre Mãe para
instruí-la na Palavra. E a segunda é que não venhas a Nazaré, sem me avisares
antes.”
Jesus faz uma parada brusca, e se levanta, indo ficar entre Tiago e Judas.
Estreita-os entre os seus braços e termina repetindo de cor as palavras:
– Alfeu voltou para o seio de Abraão na lua cheia passada, e grande foi a
manifestação de pêsames na cidade…
Os dois filhos choram sobre o peito de Jesus, que termina:
– “… A última hora, ele te teria desejado. Mas Tu estavas longe. Isso porém
foi um conforto para Maria, pois vê nisto o perdão de Deus, e deve dar paz
também aos sobrinhos.” Estais ouvindo? Ela o diz. E Ela sabe o que diz.
– Dá-me a carta –suplica Tiago.
– Não. Ela te faria mal.
– Por Por quê? Que pode dizer de mais penoso do que a morte de um pai??
– De um pai que nos amaldiçoou –suspira Judas.
– Não. Não é isso –diz Jesus.
– Tu o estás dizendo… para não nos magoar. Mas é assim.
– Então lê.
E Judas lê:
– Jesus, eu te peço, e Maria também te pede: não venhas a Nazaré, enquanto
não terminarem os pêsames. O amor por Alfeu torna os nazarenos injustos para
Contigo, e tua Mãe chora por isso. O bom amigo Alfeu me consola, e acalma a
cidade. Produziu muitos comentários o que Aser e Ismael contaram a respeito da
mulher de Cusa. Mas Nazaré é agora um mar agitado por ventos diversos. Eu te
abençoo, meu Filho, e te peço paz e bênção para a minha alma. Paz aos
sobrinhos. A Mãe.
Os apóstolos comentam e consolam os irmãos chorosos.
104.7 Mas Pedro diz:
– Não vais ler aquelas?
Jesus faz um sinal de assentimento e abre a carta de Lázaro. Chama Simão
Zelote. Leem juntos, a um canto. Depois abrem o outro rolo e leem também
aquele, discutem entre eles; e vejo que o Zelote procura persuadir Jesus sobre
alguma coisa, mas não o convence.
Jesus, com os rolos na mão, vai para o meio do quarto e diz:
– Ouvi, amigos. Somos todos uma família, e não há segredos entre nós. E, se
é piedade conservar oculto o mal, é justiça tornar conhecido o bem. Ouvi o que
escreve Lázaro de Betânia:
“Ao Senhor Jesus paz e bênção, e paz e saúde ao meu amigo Simão. Recebi
a tua carta, e de mim, como servo que sou, coloquei o meu coração, a minha fala
e todos os meus recursos a teu serviço para fazer-te contente e ter a honra de ser-
te um não inútil servo. Fui à casa de Doras, em seu castelo da Judeia, para pedir-
lhe que me vendesse o servo Jonas, como Tu desejas. Confesso que, se não fôsse
um pedido de Simão, amigo fiel, para Ti, eu não teria encarado aquele chacal
escarnecedor, cruel e nefasto. Mas por Ti, meu Mestre e Amigo, sinto-me capaz
de encarar até a Mamon. Isto, porque penso que quem trabalha para Ti, está perto
de Ti e, portanto, está defendido. E ajudado, certamente eu tenho sido, porque,
contra todas as previsões, eu venci. Dura foi a discussão e aviltantes foram as
primeiras rejeições. Três vezes tive que inclinar-me a este tirano prepotente.
Depois, ele me impôs uma espera de dias. Em fim, aqui está a carta. É digna de
uma víbora. E eu quase nem ouso dizer-te: ‘Cede, para chegares ao que queres’,
porque ele não é digno de te ter. Mas não há outro modo. Eu aceitei em teu
nome, e assinei. Se eu fiz mal, dá-me uma repreensão. Mas podes crer, eu
procurei servir-te do melhor modo que pude. Ontem veio um teu discípulo judeu,
dizendo que vinha em teu nome, para saber se havia alguma notícia para levar-te.
Ele disse que seu nome era Judas de Keriot. Mas preferi esperar o Isaque, para
dar-lhe a carta. E causou-me estranheza que Tu tivesses mandado outros,
sabendo que cada sábado vem à minha casa Isaque para o seu descanso. Não
tenho outra coisa a dizer. Somente, beijando-te os santos pés, peço-te de conduzi-
los à casa do teu servo e amigo Lázaro, como prometeste. Saudações ao Simão.
A Ti, Mestre e Amigo, um beijo de paz e oração de bênção. Lázaro.”
E agora a outra: “A Lázaro, saudações. Eu decidi. Pelo dobro da soma, terás
Jonas. Porém, ponho estas cláusulas e não mudarei por razão alguma. Quero que
antes Jonas termine as colheitas do ano, ou seja, ele será entregue na lua de Tisri,
no fim da lua. Quero que venha pessoalmente a pegá-lo Jesus de Nazaré, ao qual
peço para entrar sob o meu teto, para conhecê-lo. Quero pagamento imediato, em
seguida a um contrato regular. Adeus. Doras.”
104.8 – Que peste! –grita Pedro–. Mas, quem irá pagar? Quem sabe quanto ele
pede, e nós… estamos sempre sem dinheiro nenhum!
– O Simão vai pagar. Para contentar a Mim e ao pobre Jonas. Não adquire
mais do que as ruínas de um homem, que não servirá para nada. Mas adquire um
grande merecimento no Céu.
– Tu? Oh!
Todos estão admirados. Até os filhos do Alfeu saem de sua dor por causa da
admiração.
– É ele. É justo que isto seja conhecido.
– Também seria justo que fôsse conhecido porque Judas de Keriot foi à casa
de Lázaro. Quem foi que o mandou lá? Tu?
Mas Jesus não responde a Pedro. Ele está muito sério e pensativo. Sai de sua
meditação, só para dizer:
– Dai comida ao José, e depois vamos descansar. Eu prepararei a resposta a
Lázaro… Isaque ainda está em Nazaré?
– Ele está me esperando.
– Iremos todos.
– Não! Tua Mãe diz…
Todos estão alvoroçados.
– Calai-vos. Eu assim quero. A Mãe fala com seu amoroso coração. Eu julgo
com a minha razão. Prefiro fazer isso, enquanto Judas não está aqui. E quero
estender minha mão amiga aos primos Simão e José, e chorar com eles, antes
que os pêsames terminem. Depois voltaremos a Cafarnaum, a Genezaré, em
suma, ao lago, esperando o fim da lua de Tisri. E levaremos conosco as Marias.
Vossa mãe precisa de amor. Nós daremos a ela. E a minha precisa de paz. Eu sou
a sua paz.
– Achas que em Nazaré?…, pergunta Pedro.
– Eu não acho nada.
– Ah! Bem! Porque, se lhe quisessem fazer mal ou causar-lhe dor!! Teriam
que haver-se comigo! –diz Pedro, todo arrufado.
Jesus o acaricia, mas está distraído. Diria que está triste. Depois. coloca-se
entre Judas e Tiago, e se assenta, abraçando-os para consolá-los.
Os outros falam em voz baixa, para não perturbar a dor deles.
[17] divórcio, que o marido podia impor à mulher se encontrasse nela algo de vergonhoso ou de desagradável, como referido em:
Deuteronômio 24,1-4; mas Jesus condena a lei do divórcio em: 140.4 – 174.19 – 357.10/11 – 531.13/14 – 635.9. Além do mais, a
obrigatoriedade para a mulher hebraica de se casar e ter filhos (recorda o sumo sacerdote à Virgem em 11.3) e a desonra da sua esterilidade
(considerada como um castigo por Ana em 2.4) podem ser deduzidos de: Gênesis 1,27-28; 2,22-24; 9,1; 17,15-21; 21,1-7; 30,2.22-24;
Juízes 13,2-7.24; 1 Samuel 1,1-20; Oseias 9,11-14. Jesus trata o argumento dos casamentos mistos em 327.4 e em 635.9; e ilustra
magistralmente a origem do matrimônio em 470.4.
105. Em Nazaré, durante a morte de Alfeu.
Lenta conversão do primo Simão.
12 de fevereiro de 1945.
105.1 A tarde desce em um grande vermelho do por-do-sol, que, como um
fogo que se apaga, torna-se cada vez mais escuro, até assumir uma cor
mesclada de rubi e violeta. Uma cor esplêndida e rara, que pincela,
sombreando-se lentamente, o ocidente, até desaparecer no cobalto escuro do
céu, lá onde o oriente avança sempre mais com as suas estrelas e o seu arco
de lua crescente, já voltado à segunda fase. Os agricultores apressam o
passo para chegarem às suas casas, que já mostram os fogos acesos, pelas
espirais de fumaça que saem das baixas casinhas de Nazaré.
Jesus está para voltar à cidade e, ao contrário do que os outros desejam,
não quer que ninguém vá avisar a sua Mãe.
– Não acontecerá nada. Para que inquietá-la antes? –diz.
Ei-lo já entre as casas. Alguma saudação, algum cochicho por detrás
Dele, alguma pessoa grosseira que lhe vira as costas, e batidas de portas,
quando passa o grupo dos apóstolos.
A gesticulação de Pedro é um verdadeiro poema. Mas também os
outros estão um pouco inquietos. Os filhos de Alfeu parecem dois
condenados. Prosseguem de cabeça baixa, ao lado de Jesus, mas assim
mesmo, observam tudo e, de vez em quando, olham assustados entre si e
com apreensão para Jesus. Mas Ele, como se não fôsse nada, responde às
saudações com sua costumeira afabilidade e se curva para acariciar as
crianças que, em sua simplicidade, não tomam partido deste ou daquele, e
são sempre amigas do seu Jesus, que é sempre tão afetuoso com elas.
Uma das crianças — um gorducho que tem no máximo, quatro
anos — desprendendo-se da veste da mãe, corre ao encontro de Jesus e
estende-lhe os bracinhos, dizendo: “Pega-me!”, e depois que Jesus o
contenta e o pega, ele o beija com sua boquinha toda lambuzada pelo figo
que ele estava chupando, e leva o seu amor até a… oferecer um pedacinho
do figo a Jesus, dizendo:
– Pega! É gostoso!
Jesus aceita a oferta e ri por ver aquele homenzinho dando-lhe de
comer.
105.2 Isaque, carregado de ânforas, está voltando da fonte. Ele vê Jesus,
pousa as ânforas no chão, e grita:
– Oh! O meu Senhor! –e corre ao encontro Dele–. Tua Mãe voltou
agora para casa. Ela estava na casa da cunhada. Mas… recebeste a carta? –
pergunta.
– Eu estou aqui por causa disso. Não digas nada à minha Mãe, por
enquanto. Antes, Eu vou à casa de Alfeu.
Isaque, prudente, não diz outra coisa senão: “Eu te obedecerei”, e pega
as suas ânforas, indo diretamente para a casa.
– Agora iremos nós. Vós, amigos, nos esperarão aqui. Eu ficarei pouco.
– Não realmente! Não entraremos na casa do luto, mas estaremos ali
fora. Não é verdade? –diz Pedro.
– Pedro tem razão. Ficaremos na rua. Mas perto de Ti.
Jesus cede à vontade de todos. Mas sorri e diz:
– Não me farão nada. Podeis crer. Eles não são maus. Estão apenas
humanamente apaixonados. Vamos.
Ei-los na rua da casa, ei-los à entrada da horta. Jesus vai à frente. Atrás,
Judas e Tiago.
105.3 Eis Jesus na soleira da cozinha. Nesta, junto ao fogão, está Maria de
Alfeu, cozinhando e chorando. Em um canto Simão e José, com outros
homens, estão sentados em círculo. Entre os homens está o Alfeu de Sara.
Estão ali, silenciosos como umas estátuas. Será este o costume? Não sei.
– Paz a esta casa, e paz ao espírito que a deixou.
A viúva dá um grito, e faz um movimento instintivo para afastar Jesus,
procurando colocar-se entre Ele e os outros. Simão e José se levantam,
sombrios e atônitos. Mas Jesus não demonstra ter percebido a atitude hostil
deles. Dirige-se aos dois homens — Simão já tem os seus cinquenta anos,
ou talvez mais, a julgar pelo aspecto — e lhes estende as mãos em um ato
de amoroso convite. Os dois estão mais atônitos do que nunca. Mas não
ousam agir com grosseria. Alfeu de Sara treme e sofre visivelmente. Os
outros homens estão taciturnos, à espera de algum sinal.
– Simão, tu que és agora o chefe da família, por que não me recebes?
Eu venho para chorar contigo. Quanto queria ter estado convosco, na hora
da dor! Mas, não por minha culpa, tive que estar longe. És justo, Simão. Tu
o deves reconhecer.
O homem continua sério.
– E tu, José, que tens um nome que para Mim é querido, por que não
recebes o meu beijo? Não quereis me permitir que chore convosco? A
morte é um laço para os verdadeiros afetos. E nós nos amamos. Por que
agora deve haver desunião?
– Por causa de Ti é que nosso pai morreu desgostoso –diz José com
dureza.
E Simão:
– Devias ter ficado. Sabias que ele estava morrendo. Por que não
ficaste? Ele te queria…
– Não teria podido fazer por ele mais do que havia feito. E vós o
sabeis…
Simão, mais justo, diz:
– É verdade. Eu sei que Tu vieste, e ele te expulsou. Mas era um doente
e um atormentado.
– Eu sei, e disse à tua mãe e aos teus irmãos: “Eu não guardo rancor,
porque compreendo o coração dele.” Mas acima de todos está Deus. E Deus
queria esta dor para todos. Para Mim que, podeis crer, sofri com ela como
um rasgão na carne viva; para o vosso pai que, naquele sofrimento,
compreendeu uma grande verdade, que durante toda a vida lhe tinha ficado
desconhecida; para vós que, por esta dor, tendes o modo de fazer um
sacrifício mais salutar do que o de um novilho imolado; e para Tiago e
Judas, que agora não estão menos formados do que tu, ó meu Simão,
porque tanta dor (para eles é a carga maior e os oprime como uma pedra de
moinho) os tornou adultos e de uma idade perfeita aos olhos de Deus.
– Que verdade nosso pai viu? Somente uma: que o seu sangue, na
última hora, lhe foi inimigo –rebate duramente José.
– Não. Pois mais que o sangue é o espírito. Ele compreendeu a dor de
Abraão e por isso teve Abraão como sua ajuda –responde Jesus.
– Se fôsse verdade! Mas quem garante isso?
– Eu, Simão. E, mais do que Eu, a morte do teu pai. Ele não me
procurou? Tu o disseste.
– Eu o disse. É verdade. Ele queria Jesus. E dizia: “Pelo menos que o
espírito não fique morto! Ele pode fazer isso. Eu o rejeitei, e Ele não virá
mais. Oh! A morte sem Jesus! Que horror que é! Por que eu o expulsei?”
Sim, ele dizia isto. E dizia ainda: “Ele me perguntou tantas vezes: ‘Devo ir
embora?’ e eu o mandei ir… Agora Ele não vem mais.” Ele te queria. Ele te
queria. Tua Mãe mandou que te procurassem, mas não te encontraram em
Cafarnaum, e ele chorou tanto e, com suas últimas forças, pegou a mão de
tua Mãe, e a quis perto dele. Já estava falando com dificuldade. Mas dizia:
“A Mãe é um pouco o Filho. Eu tenho a Mãe para ter alguma coisa Dele,
porque tenho medo da morte.” Pobre de meu pai!
105.4 Acontece aí, então, uma cena oriental de gritos e gestos de dor, na
qual todos tomam parte. Até Tiago e Judas, que ousaram entrar. O mais
calmo é Jesus, que somente chora.
– Tu estás chorando? Então o amavas? –pergunta Simão.
– Oh! Simão. Ainda o perguntas? Mas, se Eu tivesse podido, achas que
Eu teria permitido aquela dor dele? Eu estou com o Pai[18], mas não sou
mais que o Pai.
– Tu curas aos que estão morrendo, mas a ele não o curaste –diz José
com aspereza.
– Ele não acreditava em Mim.
– Isto é verdade, José –observa o irmão Simão.
– Não acreditava e não abandonava o rancor. Eu não posso fazer nada,
onde houver incredulidade e ódio. Por isso, Eu vos digo: Não odieis mais os
vossos irmãos. Ei-los. Que o tormento deles não tenha gravame pelo vosso
rancor. Vossa mãe está mais aflita por causa deste ódio, que ainda está vivo,
do que pela morte que, por si mesma, acaba, e, em vosso pai terminou na
paz, porque o desejo que ele teve de Mim trouxe-lhe o perdão de Deus. De
Mim e por Mim, Eu não vos falo, nem peço. Eu estou no mundo, mas não
sou do mundo. Aquele que vive dentro de Mim me compensa por aquilo
que o mundo me nega. Sofro em minha humanidade, mas elevo o meu
espírito além da terra e jubilo com as coisas celestes. Mas eles!! Não falteis
para com a lei do amor e do sangue. Amai-vos. Em Tiago e Judas não há
ofensa para com o vosso sangue. Mas se também houvesse, perdoai. Olhai
com olhos justos as coisas e vereis que os mais ofendidos foram eles, que
não foram compreendidos nas necessidades de suas almas arrebatadas por
Deus. Contudo neles não há rancor. Mas só desejo de amor. Não é verdade,
primos?
Judas e Tiago, que a mãe os estreita contra si, anuem em meio ao choro.
– Simão, és o maior. Dá o exemplo…
– Eu… por mim… Mas o mundo… mas Tu…
– Oh! O mundo! Ele se esquece e muda a cada aurora que surge… E
Eu! Vem, dá-me o teu beijo de irmão. Eu te amo. Tu sabes disso. Despoja-te
destas escamas, que te fazem duro, e que não são tuas, mas que são
impostas por alguém que te é estranho e menos justo do que tu. Julga tu
sempre com o coração reto.
Simão, ainda um pouco esquivo, abre os braços. Jesus o beija, e depois
o leva aos irmãos. Beijam-se entre choros e lamentos.
– Agora tu, José.
– Não. Não insistas. Eu lembro a dor do pai.
– Em verdade, tu a perpetuas com este teu rancor.
– Não importa. Eu sou fiel.
Jesus não insiste. 105.5Vira-se para Simão:
– Já está ficando tarde. Mas se tu quiseres… O nosso coração arde de
desejo de ir venerar os seus restos mortais. Onde está o Alfeu? Onde o
pusestes?
– Atrás da casa. Onde o olival termina, perto do barranco. É um
sepulcro digno.
– Eu te peço. Leva-me a ele. Maria, coragem! O esposo jubila porque
está vendo os filhos em teu seio. Ficai. Eu vou com o Simão. Ficai em paz!
Ficai em paz! José, a ti digo tudo o que Eu disse ao teu pai: “Não guardo
rancor. Eu te amo. Quando me quiseres, chama-me. Virei chorar contigo.”
Adeus.
E Jesus sai com o Simão…
Os apóstolos, curiosos, olham de soslaio, mas veem que os dois estão
de bom acordo e ficam contentes.
– Vinde, vós também –diz Jesus–. São os meus discípulos, Simão. Eles
também desejam honrar a teu pai. Vamos.
Vão pelo olival e tudo termina.

Jesus diz:
105.6
– Aqui colocareis a terceira visão e a quarta, tidas no dia 13 de
fevereiro de 1944.
Como estás vendo, o Simão, menos obstinado, deixou-se persuadir,
senão completamente, ao menos em parte, à justiça com santa prontidão. E
não foi logo meu discípulo, e muito menos meu apóstolo, como tu, há um
ano o chamaste em tua ignorância, mas pelo menos tornou-se um
expectador não inimigo, depois deste encontro pela morte de Alfeu. Fez-se
também o defensor de sua mãe e da minha, quando foi preciso que um
homem as acompanhasse e defendesse das sátiras do povo. Não foi forte a
ponto de impor-se contra quem me chamava de “doido”; era ainda bastante
humano para envergonhar-se um pouco de Mim, e para ter suas
preocupações com os perigos da família toda, por causa do meu apostolado
contrário às seitas. Mas ele já está no caminho do Bem. Sobre o qual, mais
tarde, depois do Sacrifício, ele soube proceder sempre mais firme, até
confessar-me com o sangue. A Graça, às vezes opera de modo fulminante,
e, outras vezes, lentamente. Mas sempre opera onde há a vontade de ser
justos.
Vai em paz. Fica em paz no meio das tuas dores. O tempo preparatório
para a Páscoa está começando, e tu leva a cruz por Mim. Eu te abençoo,
Maria da Cruz de Jesus.
[18] Eu estou com o Pai, mas não sou mais o Pai, o qual criou o homem livre de querer o próprio bem; e Jesus, que não é mais
do que o Pai, respeitou o a livre vontade de Alfeu.
106. Expulsão de Nazaré e conforto à Mãe.
Reflexões sobre quatro contemplações.
Tarde de 13 de fevereiro de 1944.
106.1 Vejo um sala grande e quadrada. Digo sala grande, ainda que eu
saiba que é a sinagoga de Nazaré (como me diz o monitor interior), porque
nada mais há do que as paredes nuas, pintadas de uma cor amarelada, e uma
espécie de cátedra num dos lados. Há também uma estante alta, com uns
rolos. Estante, ou atril, diga como quiser. É, em suma, uma espécie de mesa
inclinada, sustentada por um pé, e sobre a qual estão alinhados os rolos.
Há pessoas que rezam, não como nós rezamos, mas voltadas todas para
um lado, não com as mãos juntas, mas, mais ou menos como fica um
sacerdote no altar..
Há lâmpadas colocadas assim: sobre a cátedra e a estante.

Não vejo o fim desta visão, que não muda, e que se fixa em mim assim
por algum tempo. Mas Jesus me manda escrevê-la, e eu a faço[19].
[…].
106.2 Encontro-me novamente na sinagoga de Nazaré. Agora o rabino
está lendo. Ouço o canto, em uma voz nasalada, mas não entendo as
palavras, ditas em uma língua que me é desconhecida.
Entre o povo está também Jesus, com os seus primos apóstolos e com
outros que certamente são seus parentes também, mas que não conheço.
Depois da leitura o rabino corre o olhar sobre a multidão, em uma
pergunta muda.
Jesus vai à frente e pede para fazer hoje a reunião.
Ouço sua bela voz ler a passagem[20] de Isaías, citada no Evangelho: “O
espírito do Senhor está sobre Mim…” E ouço o comentário que Ele faz
sobre essa passagem, dizendo-se “o portador da Boa Nova, da lei de amor
que substitui o rigor de antes pela Misericórdia, e pela qual todos aqueles
que a culpa de Adão torna doentes no espírito e, por reflexo, na carne,
porque o pecado sempre suscita vício, e o vício a doença, também física,
obterão a salvação. Por ela, todos os que estão prisioneiros do Espírito do
mal terão libertação. Eu vim quebrar essas correntes, reabrir o caminho dos
Céus, dar luz às almas cegas e ouvido às surdas. Chegou o tempo da Graça
do Senhor. Ela está entre vós. É esta que vos fala. Os Patriarcas desejaram
ver este dia, cuja existência a voz do Altíssimo proclamou, e cujo tempo os
Profetas predisseram. Pelo ministério sobrenatural, conhecem que a aurora
deste dia já raiou e que a entrada deles no Paraíso já está próxima. E, por
isso, exultam em seus espíritos, esses santos aos quais só falta a minha
bênção para serem cidadãos dos Céus. Vós o estais vendo. Vinde à Luz que
surgiu. Despojai-vos das vossas paixões, para serdes ágeis em seguir o
Cristo. Tende a boa vontade de crer, de melhorar, de querer a salvação, e a
salvação vos será dada. Ela está em minha mão. Mas só a dou a quem tem a
boa vontade de possuí-la. Porque seria uma ofensa à Graça, dá-la a quem
quer continuar a servir a Mamon.”
106.3 Um murmúrio se levanta pela sinagoga.
Jesus corre o seu olhar. Lê nos rostos e corações, e continua:
– Compreendo o vosso pensamento. Vós, visto que Eu sou de Nazaré,
quereríeis de Mim um favor, um privilégio. Mas isso é por causa do vosso
egoísmo, não pelo poder da fé. Pelo que, Eu vos digo que, em verdade,
nenhum profeta é bem aceito em sua terra. Outras cidades me acolheram e
me acolherão com maior fé, até mesmo aqueles, cujos nomes para vós são
um escândalo. Lá Eu vou escolher os meus seguidores, enquanto que nesta
terra nada poderei fazer, porque ela me é fechada e hostil. Mas Eu vos
lembro[21] Elias e Eliseu. O primeiro, encontrou fé em uma mulher fenícia e
o segundo, em um sírio. E àquela e à este, puderam operar o milagre. Os
que estavam morrendo de fome em Israel e os leprosos de Israel não
tiveram pão nem limpeza, porque os corações deles não tinham a boa
vontade, aquela pérola fina, que o Profeta via. Isto sucederá a vós também,
que sois hostis e incrédulos à Palavra de Deus.
106.4 A multidão tumultua e impreca e tenta agarrar Jesus. Mas os
apóstolos-primos[22] — Judas, Tiago e Simão — o defendem e então, os
enfurecidos nazarenos expulsam a Jesus para fora da cidade. Seguem-no
com ameaças, não somente verbais, até chegarem na beira do monte. Mas
Jesus se volta e os imobiliza com o seu olhar magnético, e passa incólume
no meio deles, desaparecendo lá em cima, por uma vereda do monte.
106.5 Vejo uma aldeia muito pequena. Um punhado de casas. Agora
diríamos que é uma fração. Ela está mais ao alto do que Nazaré, que se vê
mais em baixo, e dista da mesma uns poucos quilômetros. É uma aldeia
muito pobre.
Jesus fala com Maria, sentado num murinho, junto a um casebre.
Talvez é uma casa amiga, ou pelo menos hospitaleira, segundo as leis da
hospitalidade oriental. Jesus nela se refugiou, depois de ter sido expulso de
Nazaré, para esperar os apóstolos que, certamente, se tinham espalhado
pelas redondezas, enquanto Ele estava ao lado da Mãe.
Com Ele estão somente os três apóstolos primos, os quais, nesse
momento, estão reunidos no interior da cozinha e falam com uma mulher
idosa à qual Tadeu chama de “mãe”. Por isso, compreendo que ela é Maria
de Cléofas. É uma mulher já de bastante idade, e eu reconheço nela aquela
que estava com Maria Santíssima nas bodas de Caná. Certamente Maria de
Cléofas e os filhos se retiraram para lá, a fim de deixarem a Jesus e Maria
mais à vontade, que estão conversando.
106.6 Maria está aflita. Soube do que aconteceu na sinagoga, e ficou
angustiada. Jesus a consola. Maria suplica ao Filho que fique longe de
Nazaré, onde todos estão indispostos contra Ele, até os outros parentes, que
o julgam um louco desejoso de suscitar rancores e disputas. Mas Jesus faz
um gesto sorrindo. Parece estar dizendo: “Isso não é nada. Deixa para lá!”
Mas Maria insiste.
Então Ele responde:
– Mãe, se o Filho do homem tivesse que ir só por onde é amado,
deveria mudar de rumo os seus passos, e voltar para o Céu. Por toda parte,
Eu tenho inimigos. Porque a Verdade é odiada, e Eu sou a Verdade. Mas Eu
não vim para encontrar um amor fácil. Eu vim para fazer a vontade do Pai e
redimir o homem. O amor és tu, Mãe, o meu amor, aquele que me
compensa de tudo. Tu, e este pequeno rebanho que todos os dias vai
crescendo com mais uma ou outra ovelhinha, que Eu arranco das garras dos
lobos, que são as paixões, e levo ao ovil de Deus. O resto é o dever. Vim
para cumprir esse dever, e devo cumpri-lo, até mesmo esfacelando-me,
contra as pedras dos corações que se opõem ao bem. Antes, só quando tiver
caído, banhando de sangue aqueles corações, Eu os abrandarei, gravando
neles o meu sinal, que anula o do Inimigo. Mãe, desci do Céu para isso.
Não posso desejar senão a realização disso.
– Oh! Filho! Meu Filho!
Maria está com uma voz dilacerada. Jesus a acaricia. Noto que Maria
tem na cabeça, além do véu, também o manto. E mais que nunca, velada
como uma sacerdotisa.
106.7 – Ficarei ausente, por algum tempo, para contentar-te. Quando Eu
estiver por perto, mandarei avisar-te.
– Manda João. Parece-me estar te vendo um pouco, quando vejo João.
Também a sua mãe é cheia de cuidados para comigo e para Contigo. Ela
espera, é verdade, um posto privilegiado para os seus filhos. É mulher e é
mãe, Jesus. É preciso compadecer-nos dela. Também Contigo vai falar
sobre isto. Mas é devota sinceramente de Ti. E quando ela ficar livre dessa
fraqueza humana, que fermenta tanto nela, como nos seus filhos, nos outros,
como em todos, então, meu Filho, ela será grande na fé. É doloroso que
todos esperam de Ti um bem humano, um bem que, mesmo Não sendo
humano, é egoísta. Mas o pecado está neles com a sua concupiscência.
Ainda não chegou a hora bendita, e tão, temida, mesmo se o amor a Deus e
ao homem faça que eu a deseje, pois nela é que Tu anularás o pecado. Oh!
Aquela hora! Como treme o coração de tua Mãe, pela chegada daquela
hora! Que é que te farão, Filho? Filho Redentor, do qual os Profetas
predizem um tão grande martírio?
– Não fiques pensando nisso, minha Mãe. Naquela hora, Deus te
ajudará. Deus ajudará a Mim e a ti. Depois, virá a paz. Eu digo a ti mais
uma vez. Agora vai, porque a tarde cai, e o caminho é longo. Eu te abençoo.

106.8 Jesus diz:


– Pequeno João, muito trabalho hoje. Mas estamos com atraso de um
dia, e não se pode ir devagar. Eu te dei força para isso, hoje.
As quatro contemplações[23] as concedi a ti para poder falar-te sobre as
dores de Maria e minhas, preparatórias à Paixão. Teria devido falar delas
ontem, sábado, dia dedicado à minha Mãe. Mas tive pena. Hoje vamos
recuperar o tempo perdido. Depois as dores que te fiz conhecer, Maria
também as teve. E Eu como Ela.
106.9 O meu olhar tinha lido no coração de Judas Iscariotes.
Ninguém deve pensar que a Sabedoria de Deus não tenha sido capaz de
compreender aquele coração. Mas, como disse à minha Mãe, ele não podia
faltar. Ai dele por ter sido o traidor! Mas um traidor não podia faltar.
Fingido, astuto, ávido, luxurioso, ladrão, inteligente e culto acima do
comum, ele tinha sabido impor-se a todos. Audaz, ele me aplainava o
caminho, até quando era um caminho difícil. Agradava-lhe, mais que tudo,
aparecer e sobressair o seu lugar de confiança junto a Mim. Não era serviçal
por instinto de caridade, mas unicamente porque era um daqueles que vós
chamais “intrigante.” Isto permitia-lhe também tomar conta da bolsa e
aproximar-se da mulher. Duas coisas que, unidas à terceira — as dignidades
humanas — amava desenfreadamente.
A Pura, a Humilde, a Desapegada das riquezas terrenas não podia
deixar de sentir aversão por aquela serpente. Eu também sentia aversão por
ele. E só Eu e o Pai e o Espírito é que sabemos que lutas precisei sustentar
para poder suportá-lo perto de Mim. Mas as explicarei uma outra vez.
106.10 Igualmente não ignorava a hostilidade dos sacerdotes, fariseus,
escribas e saduceus. Eram raposas astutas, que procuravam empurrar-me
para a sua toca, a fim de me despedaçarem. Tinham fome do meu sangue. E
procuravam colocar armadilhas por toda parte para me apanharem, para
terem alguma arma de acusação e tirar-me do meio. Durante três anos,
longas foram as insídias, que não se aplacaram, senão quando ficaram
sabendo que Eu estava morto. Aquela noite dormiram felizes. A voz do seu
acusador se havia calado para sempre. Assim pensavam. Não. Ela ainda não
se havia apagado. Nem o será nunca, e troveja, amaldiçoando os seus
semelhantes de agora. Quanta dor teve minha Mãe por culpa deles! E
daquela dor Eu não me esqueço.
106.11 Que a multidão fôsse volúvel, não era novidade. Ela é a fera, que
lambe a mão do domador, enquanto essa mão está armada com um chicote,
ou oferece um pedaço de carne à sua fome. Mas, basta que o domador caia,
e não possa mais usar o chicote, ou não tenha mais com que matar a sua
fome, e esta se lançará sobre ele, e o despedaçará. Basta dizer a verdade e
sermos bons, para sermos odiados pela multidão, depois do primeiro
momento de entusiasmo. A verdade é uma censura e uma advertência. A
bondade se despoja do chicote e faz que os maus não tenham mais medo.
Pelo que, dizem agora “crucifica” depois de terem dito “hosana”. A minha
vida de Mestre está cheia destas duas palavras. E a última foi “crucifica”. O
hosana é como aquele fôlego que o cantor toma para ter forças, antes de dar
o agudo. Maria, na tarde da Sexta-Feira Santa, voltou a ouvir em si mesma
todos os hosanas mentirosos, transformados em gritos de morte contra o seu
Filho, e por eles Ela ficou ferida. Também isso Eu não me esqueço.
106.12 A humanidade dos apóstolos! Quanta! Eu a levava nos braços, para
levantá-los até o Céu, eram uns blocos de pedra, cujos pesos os arrastavam
para a terra. Até aqueles que não se julgavam ministros de um rei terreno,
como Judas Iscariotes, aqueles que não pensavam como ele em subir,
apresentando-se a ocasião, estavam, sempre ansiosos pela glória. Chegou o
dia em que até o meu João e seu irmão desejaram essa glória, que vos
deslumbra como uma miragem, também nas coisas celestes. Não é a santa
ânsia pelo Paraíso, que Eu quero que vós tenhais. Isto é um desejo humano
de que a vossa santidade se torne conhecida. E não é somente isso, mas uma
certa avidez de cambista, de usurário, para o qual, por um pouco de amor
dado Àquele ao qual Eu disse que deveis dar-vos inteiramente, pretendeis
um lugar à sua direita no Céu.
Não, filhos. Não. Primeiro é preciso saber beber todo o cálice que Eu
bebi. Todo: com a sua caridade, dada em compensação pelo ódio, com a sua
castidade, contra as vozes da sensualidade, com a sua heroicidade nas
provas, com o seu holocausto por amor de Deus e dos irmãos. Depois,
quando tiverdes cumprido tudo o que era de vosso dever, deveis dizer ainda:
“Somos servos inúteis”, e esperai que o meu e vosso Pai vos conceda, por
sua bondade, um lugar no seu Reino. É preciso despojar-se, como me viste
despojado no Pretório, de tudo o que é humano, tendo somente o que é
indispensável e que se relaciona com o dom de Deus que é a vida e com os
irmãos, aos quais podemos ser mais úteis no Céu, do que na terra, e deixar
que Deus vos revista com a estola imortal, tornada cândida no sangue do
Cordeiro.
106.13 Eu te mostrei as dores preparatórias para a Paixão. E te mostrarei
outras. Conquanto sejam sempre dores, contemplá-las foi um repouso para
a tua alma. Agora basta. Fica em paz.
[19] e eu a faço. Segue imediatamente, no caderno manuscrito, a visão que formou o capítulo 101.
[20] a passagem, a de Isaías 61,1-2; citado por Lucas 4,18-19.
[21] vos lembro o que se narra em: 1 Reis 17; 2 Reis 5.
[22] os apóstolos-primos são Judas e Tiago. O primo Simão, também ele presente, é chamado erroneamente apóstolo pela
escritora, corrigido por Jesus em 105.6. O erro se repete mais abaixo: os três apóstolos-primos.
[23] As quatro contemplações, das quais inicia aqui o comentário, foram escritas na mesma data uma a seguir à outra: tarde de
13 de Fevereiro de 1944; mas foram colocadas de forma diversa. A primeira corresponde a 106.1; a segunda corresponde a todo o
capítulo 101; a terceira corresponde a 106.2/4; a quarta corresponde a 106.5/7 e é seguida do comentário (106.8/13).
107. Jesus e a Mãe na casa de Joana de Cusa.
13 de fevereiro de 1945.
107.1 Vejo Jesus ir para a casa de Joana de Cusa. Quando o servo porteiro
vê quem é que está chegando, dá um grito tão alto de alegria, que ecoa pela
casa toda. Jesus entra sorridente, abençoando.
Joana acorre do jardim, todo florido, e se precipita aos pés do Mestre
para beijá-los. Também vem Cusa que primeiro se inclina profundamente, e
depois beija a orla da veste de Jesus.
Cusa é um bonito homem dos seus quarenta anos. Não é muito alto,
mas de compleição robusta, de cabelos negros, que somente nas têmporas
têm algum fio prateado. Tem olhos vivos e escuros, o rosto de um colorido
pálido e uma barba quadrada, negra, bem tratada.
Joana é mais alta do que o marido. De sua enfermidade passada não
conserva senão uma acentuada esbelteza que, no entanto, já é menos
esquelética do que naquele tempo. Parece-se com uma palmeira leve e
flexível que termina em uma cabeça pequena e formosa, com profundos
olhos negros e muito doces. Tem uma massa de cabelos muito escuros e
graciosamente penteados. A fronte, lisa e alta, parece ainda mais branca,
sob aquele negro genuíno, e a pequena boca, bem desenhada, sobressai,
com o seu vermelho sadio, entre as faces, levemente pálidas, semelhantes às
pétalas de certas camélias. É uma mulher muito bonita… e é aquela que dá
a bolsa a Longino no Calvário. Lá está chorosa, transtornada e coberta com
um véu. Aqui sorri e está com a cabeça descoberta. Mas é ela.
– A que devo a alegria de ter-te como meu hóspede? –pergunta Cusa.
– À minha necessidade de uma parada à espera de minha Mãe. Venho
de Nazaré… e preciso que minha Mãe venha Comigo por algum tempo.
Iremos para Cafarnaum.
– Por que não em minha casa? Eu não sou digna, mas… –diz Joana.
– Tu és bem digna disso. Mas minha Mãe tem consigo a cunhada, que
enviuvou, há poucos dias.
– A casa é grande para hospedar mais de um. E Tu me deste tanta
alegria, que para Ti estão livres todos os espaços dela. Ordena, Senhor, Tu
que afastaste a morte desta morada, e lhe restituíste a minha rosa florida e
florescente –diz Cusa, apoiando a mulher, a quem deve amar muito.
Compreendo isso pelo modo com que ele a olha.
– Não ordeno. Mas aceito. Minha Mãe está cansada e tem sofrido muito
nestes últimos tempos. Ela teme por Mim, e Eu lhe quero mostrar que ainda
há quem me ama.
– Oh! Então traze-a aqui! Eu a amarei como filha e serei sua serva –
exclama Joana.
Jesus consente.
Cusa sai para, imediatamente, dar ordens sobre o assunto, e, enquanto a
visão vai-se desdobrando, deixando Jesus no esplêndido jardim, ocupado
em conversar com Cusa e a mulher, 107.2 eu acompanho e vejo a chegada do
carro cômodo e veloz, com o qual Jônatas foi buscar Maria em Nazaré.
Naturalmente, a cidade de Nazaré está em alvoroço pelo fato. E quando
Maria e a cunhada, tratadas por Jônatas como duas rainhas, sobem ao carro,
depois de terem entregado a Alfeu de Sara as chaves da casa, o alvoroço
cresce. O carro parte, enquanto Alfeu se vinga das grosserias feitas a Jesus
na sinagoga, dizendo:
– Os samaritanos são melhores do que nós! Estais vendo como um
funcionário de Herodes venera a Mãe do Senhor? E nós! Eu me envergonho
de ser nazareno.
Há então um verdadeiro tumulto entre os dois partidos. Há quem
deserta o partido adverso, vindo para o lado de Alfeu, perguntando mil
coisas.
– Mas certamente! –responde Alfeu–. Vão ser hóspedes da casa do
Procurador. Vós ouvistes o que disse o seu intendente: “O meu patrão te
suplica que vás honrar a sua casa.” Honrar, entendestes? E é o rico e
poderoso Cusa, a mulher dele é uma princesa real. Honrar! E nós, ou seja,
vós, o expulsaste a pedradas. Que vergonha!
Os nazarenos não rebatem e Alfeu toma mais vigor:
– Sim, tendo-se Ele, tem-se tudo! E para nada serve o prestígio
humano. Mas parece-vos inútil ter Cusa como amigo? Parece-vos propício
que ele nos despreze? Sabeis que ele é o Procurador do Tetrarca? Não dizeis
nada?! Imitai os samaritanos com o Cristo! Atraireis sobre vós o ódio dos
grandes. E então… oh! então é que eu vos quero ver! Sem ajuda do Céu, e
sem ajuda da terra! Tolos! Malvados! Descrentes!
A saraivada de impropérios e repreensões continua, enquanto os
nazarenos vão-se, acabrunhados como uns cães fustigados. Alfeu fica
sozinho, como um arcanjo vingador, na porta da casa de Maria.
… Já era noite, quando, pela esplêndida estrada ao longo do lago,
107.3
chega, ao trote de robustos cavalos, o carro de Jônatas. Os servos de Cusa,
já de sentinela à porta, dão o sinal, e acorrem com lâmpadas, aumentando o
clarão do luar.
Joana e Cusa se aproximam. Também Jesus aparece sorridente, e atrás
Dele, o grupo apostólico. Quando Maria desce, Joana se prostra até ao chão
e a saúda:
– Louvor à Flor da estirpe real. Louvor e bênção à Mãe do Verbo
Salvador!
E Cusa faz uma inclinação que mais profunda não podia ser, nem
mesmo diante de Herodes, e diz:
– Seja bendita esta hora que a mim te conduz. Bendita sejas tu, Mãe de
Jesus.
Maria responde suave e humilde:
– Bendito seja o nosso Salvador e benditos sejam os bons que amam o
meu Filho.
Entram todos em casa, acolhidos com os mais vivos sinais de
deferência.
Joana segura Maria pela mão e lhe sorri, dizendo:
– Permites-me que eu te sirva, não é verdade?
– Não a mim. A Ele. Ama e serve sempre a Ele. E já me terás dado
tudo. O mundo não o ama… E isso é a minha dor.
– Eu sei. Por que esse desamor de uma parte do mundo, enquanto
outros por Ele dariam até a própria vida?
– Porque Ele é o sinal de contradição para muitos. Porque Ele é o fogo
que purifica o metal. O ouro fica limpo. As escórias caem no fundo e são
jogadas fora. Isto me foi dito, desde quando Ele era pequeno… E dia a dia a
profecia vai-se cumprindo…
– Não chores, Maria. Nós o amaremos e o defenderemos! –diz Joana
para confortá-la.
Mas Maria continua o seu choro silencioso, que só Joana vê, em um
canto semi-escuro, onde estão sentadas.
Tudo termina.
108. Discurso aos vindimadores e cura de um
menino
paralítico pela intercessão da mãe de Jesus.
14 de fevereiro de 1945.
108.1 Todas os campos da Galileia estão no alegre trabalho da vindima.
Os homens, trepados em altas escadas, colhem uvas nas parreiras e nas
videiras. As mulheres, com cestos na cabeça, levam cachos cor de ouro e de
rubi, até o lugar onde os pisadores os esperam. Cantos, risadas, brincadeiras
se ouvem de uma colina a outra, de uma horta a outra, junto com o cheiro
do mosto e um forte zumbido de abelhas, que parecem ébrias, de tão
velozes que vão, dançantes, dos sarmentos que sobraram ainda cheios de
cachos, aos cestos e às tinas, onde caiu algum bago que elas gostam de
procurar, na caldaça turva dos mostos. Os meninos, tingidos pelo suco da
uva, uns faunos, fazem uma gritaria tal como andorinhas correndo sobre a
erva, pátios e estradas.
Jesus dirigiu-se para uma cidade a pouca distância do lago. É uma
cidade de planície; parece um plano amplo, entre duas distantes cadeias de
montanhas, que vão em direção do norte. A planície é bem irrigada, porque
um rio (acho que é o Jordão) a atravessa. Jesus passa pela estrada mestra e é
saudado por muitos com o grito: “Rabi! Rabi!” Ele passa e abençoa.
Antes da cidade há uma rica propriedade, e no começo dela, está um
casal de idosos à espera do Mestre.
– Entra. Quando acabar o trabalho, todos virão aqui para te ouvir.
Quanta alegria Tu nos trazes! Ela jorra de Ti como a linfa nos sarmentos e
torna-se um vinho de alegria para os corações. 108.2Aquela é a tua Mãe? –
pergunta o dono da casa.
– É Ela. Eu a trouxe até vós, porque agora Ela está na fileira dos meus
discípulos. O último na ordem de acolhida, o primeiro na ordem de
fidelidade. É o Apóstolo. Ela me anunciou, ainda antes que Eu tivesse
nascido… Mãe, vem. Um dia em que Eu estava evangelizando — eram
ainda os primeiros tempos — esta mãe não me deixou ficar com saudade de
ti, pelo modo tão carinhoso com que tratou o teu Filho cansado.
– O Senhor te dê sua graça, ó mulher piedosa.
– Tenho graça, porque tenho o Messias e a ti. Vem. A casa está fresca, e
nela há uma mansa claridade. Poderás repousar. Deves estar cansada.
– O que me causa canseira, outra coisa não é, senão o ódio do mundo.
Mas segui-lo e ouvi-lo, tem sido o meu desejo, desde a minha mais
longínqua infância.
– Sabias tu que eras a futura Mãe do Messias?
– Oh! Não. Mas eu esperava viver tanto até poder ouvi-lo e servi-lo,
última entre os seus evangelizados, mas fiel! Oh! Fiel!
– Tu o ouves e o serves. E és a primeira. Eu também sou mãe, e tenho
filhos sábios. Quando os ouço falar, meu coração pula de orgulho. E tu, que
sentes, ao ouvires o teu Filho?
– Um êxtase suave. Precipito-me no meu nada, e a Bondade, que é Ele
mesmo, igualmente me eleva Consigo. Vejo então, com um simples olhar, a
Verdade eterna, que se faz carne e sangue do meu espírito.
– Bendito seja o teu coração! É puro e por isso, assim compreende o
Verbo. Nós somos mais duros, porque cheios de culpas…
– Queria dar a todos o meu coração para isso, para que o amor fôsse
para vós uma luz, que vos ajudasse a compreender. Porque, podes crer, é o
amor — e eu sou a Mãe e por isso em mim o amor é natural — aquele que
torna fácil qualquer empreendimento.
As duas falam ainda entre si. A velha junto a jovem sempre tão jovem,
Mãe do meu Senhor, enquanto Jesus fala com o dono da casa perto das
tinas, nas quais fileiras e fileiras de vindimadores despejam cachos e mais
cachos. Os apóstolos, sentados à sombra de uma pérgula de jasmineiros,
com bom apetite, comem uva e pão.
108.3 O dia já vai caminhando para o fim, e o trabalho cessa lentamente.
Os colonos já estão todos no amplo pátio rústico, onde há um forte cheiro
de uvas pisadas. Também outros colonos vêm das casas vizinhas.
Jesus sobe por uma pequena escada, que leva à ala de um pórtico
extenso sob o qual estão armazenados sacos de provisão e ferramentas
agrícolas. Como sorri Jesus, ao subir aqueles poucos degraus! Vejo-o sorrir,
entre o ondular de seus cabelos macios, movidos pela brisa noturna. E
queria saber por que sorri tão luminosamente. A alegria desse sorriso entra,
como aquele vinho de que falava o dono da casa, em meu coração, que hoje
está muito triste, e o consola.
(Não é a primeira coisa que me consola hoje. Já desde esta manhã — e
o senhor me tinha visto chorar com uma dor espiritual sempre viva — Ele,
na comunhão me apareceu como sempre, quando o senhor diz: “Eis o
Cordeiro de Deus.” Mas não se limitou a olhá-lo com amor de Pai, e a sorrir
para mim. Ele tinha deixado o seu lado, à esquerda da cama, e tinha passado
para a direita com aquele seu passo longo e levemente ondulado, para a
frente, e tinha vindo para a direita, acariciando-me sensivelmente, com suas
longas mãos e dizendo-me: “Não chores!”… Mas agora o seu sorriso me
inunda de paz).
Ele se vira. Senta-se no último degrau, no topo da escada, que se
transforma num púlpito para os mais felizes ouvintes, ou seja, para os donos
da casa, para os apóstolos e para Maria, a qual, humilde como sempre, não
tinha nem procurado subir para aquele lugar de honra, mas para lá foi
conduzida pela dona da casa. Está exatamente sentada um degrau abaixo de
Jesus, de modo que a sua cabeça loira está à altura dos joelhos do Filho e,
estando sentada de lado, Ela pode olhá-lo no rosto, com aquele seu olhar de
pomba enamorada. O perfil suave de Maria se destaca com nitidez, como se
fôsse em mármore, projetando-se contra a parede escura do rústico pórtico.
Mais abaixo estão os apóstolos e os donos da casa. No pátio estão todos
os camponeses, uns de pé, outros sentados no chão, outros que subiram nas
tinas ou nos pés de figueira, que estão nos quatro cantos do pátio.
108.4 Jesus fala lentamente, afundando a mão em um grande saco de
trigo, que foi posto atrás das costas de Maria; parece brincar com aqueles
grãos, ou acariciá-los com prazer, enquanto com a direita, gesticula
calmamente.
– Disseram-me: “Vem, ó Jesus, abençoar o trabalho do homem.” E Eu
vim. Em nome de Deus o abençoo. Porque todo trabalho, se honesto,
merece a bênção do Senhor eterno. Mas o disse: A primeira força para obter
a bênção de Deus é ser honestos em todas as ações.
Agora vamos olhar juntos como e quando é que as ações são honestas.
Assim são quando são realizadas tendo presente no espírito o eterno Deus.
Poderá alguém pecar, se ele disser: “Deus me vê. Deus tem os seus olhos
sobre mim, e não perde nem um particular das minhas ações”? Não. Não
pode. Porque o pensamento de Deus é um pensamento salutar, e afasta o
homem do pecado, mais do que qualquer outra ameaça humana.
Mas só se deve temer o eterno Deus? Não. Escutai. Foi-vos dito[24]:
“Teme o Senhor teu Deus.” E os Patriarcas tremiam e os Profetas tremiam,
quando a face de Deus ou um anjo do Senhor aparecia para seus justos
espíritos. E, na verdade, no tempo da ira divina, a aparição do sobrenatural
deve fazer tremer o coração. Quem, ainda que seja puro como uma criança,
não tremerá diante do Poderoso, diante de cujo fulgor estão os anjos em
adoração, prostrados no aleluia paradisíaco? O insustentável fulgor de um
anjo, Deus o tempera com o véu piedoso, para conceder ao olho humano
olhá-lo, sem ficar com a pupila e a mente queimadas. Que será então ter a
visão de Deus?
Mas isto é enquanto dura a ira. Quando tudo isso dá lugar à paz, e o
Deus de Israel diz: “Eu prometi. E mantenho o meu pacto. Eis Aquele que
mando, e sou Eu, ainda não sendo Eu, mas a minha Palavra, que se faz
Carne para ser Redenção”, então ao temor deve suceder o amor, e só amor
ao eterno Deus há de ser dado, em alegria, visto que o tempo da paz entre
Deus e o homem chegou para a terra. Quando os primeiros ventos da
primavera espalham o pólen da flor da vinha, o agricultor ainda deve temer
que muitas insídias possam ser armadas contra os frutos, pelas intempéries
e pelos insetos. Mas quando chega a hora alegre do vindimar, eis que então
cessam todos os temores e o coração jubila na certeza da colheita.
Prenunciado[25] pelas palavras dos profetas, o Rebento da estirpe de
Jessé chegou. Agora Ele está entre vós. Cacho abundante, que vos traz o
suco da Sabedoria eterna e não pede senão que seja cultivado e espremido,
para se tornar Vinho aos homens. Vinho de alegria sem fim para aqueles
que Dele se nutrirem. Mas, ai daqueles que, tendo tido este Vinho ao seu
alcance, o tiverem rejeitado, e três vezes ai àqueles que depois de se terem
alimentado com ele, o tiverem rejeitado ou misturado, em suas entranhas,
com os alimentos de Mamon.
108.5 E eis que agora Eu volto ao primeiro conceito. A primeira força
para voltar a bênção de Deus, seja nas obras do espírito, como nas obras do
homem, é a honestidade das intenções.
É honesto aquele que diz: “Eu sigo a Lei, não para ter por isso o elogio
dos homens, mas por fidelidade a Deus.” É honesto aquele que diz: “Eu
sigo a Cristo não pelos milagres que Ele faz, mas pelos conselhos de vida
eterna que me dá.” É honesto aquele que diz: “Eu trabalho, não pela avidez
de lucro, mas porque o trabalho também foi colocado por Deus como um
meio de santificação, por seu valor formativo, mortificativo, preservativo e
elevatório. Eu trabalho para poder ajudar o meu próximo. Eu trabalho para
poder fazer resplandecer os prodígios de Deus que, de um grãozinho
minúsculo, faz um feixe de espigas, de uma semente de uva faz uma grande
vinha, de um caroço faz uma planta, e de mim, homem, um pobre nada que
fui tirado do nada por sua vontade, faz um seu ajudante, na obra contínua de
perpetuar as searas, videiras e pomares, bem como de povoar a terra de
homens.”
Há pessoas que trabalham como animais de carga. Mas que não têm
outra religião, senão esta: aumentar as suas riquezas. Morre ao lado delas,
de trabalho e de cansaço, o mais infeliz dos seus companheiros? Os filhos
desse coitado estão morrendo de fome? E que importa para o ávido
acumulador de riquezas? Há outros ainda mais duros, que não trabalham
mas fazem que outros trabalhem, e acumulam riquezas com o suor alheio.
Outros ainda que esbanjam aquilo que com avareza extorquiram da canseira
alheia. Em verdade, o trabalho desses não é honesto. E não digais: “Ainda
assim Deus os protege.” Não. Não os protege. Hoje terão uma hora de
triunfo. Mas logo serão golpeados por um rigor divino, que no tempo e na
eternidade, fará que eles se lembrem do preceito: “Eu sou o Senhor teu
Deus. Ama-me acima de todas as coisas e ama ao teu próximo como a ti
mesmo.” Oh! se aquelas palavras ressoarem em eterno, serão mais
tremendas do que os raios do Sinai!
108.6 Muitas, demasiadas são as palavras que vos são ditas. Eu vos digo
só estas: “Amai a Deus. Amai ao próximo.” Elas são como o trabalho que
torna fecundo o sarmento, feito ao redor da videira, na primavera. O amor a
Deus e ao próximo é como um arado[26], que limpa o solo das ervas nocivas
do egoísmo e das más paixões; é como uma enxada que escava um anel ao
redor da cepa, para que ela fique isolada do contágio das ervas parasitas e
nutridas pelas frescas águas da irrigação; é como a podadeira, que tira o que
é supérfluo para aumentar o vigor e dirigi-lo aos pontos em que dará fruto;
é como o laço que aperta o sarmento, e o segura unido à forte estaca, é
enfim o sol que amadurece os frutos da boa vontade e os transforma em
frutos de vida eterna.
Agora vós jubilais, porque o ano foi bom, ricas foram as colheitas e
excelente a vindima. Mas em verdade vos digo que este vosso júbilo é
menor que um minúsculo grão de areia, em relação ao júbilo sem medida
que será o vosso, quando o Pai eterno vos disser: “Vinde, meus fecundos
sarmentos, enxertados na verdadeira Videira. Vós vos prestastes a todas as
operações, até às penosas, para darem muito fruto, e agora estais vindo a
Mim carregados com os sucos doces do amor para Comigo e para com o
próximo. Florescei nos meus jardins por toda a eternidade.”
Aspirai a essa eterna alegria. Com fidelidade persegui esse bem, com
reconhecimento bendizei ao Eterno que vos ajuda a alcançá-lo. Bendizei-o
pela graça da sua Palavra, bendizei-o pela graça da boa colheita. Amai com
reconhecimento o Senhor e não temais. Deus dá cem por um a quem o ama.
Jesus teria acabado. Mas todos gritam:
– Abençoa, abençoa! A tua bênção sobre nós!
Jesus então põe-se de pé, abre os braços e brada:
– O Senhor vos abençoe e vos guarde, mostre-vos a sua face e tenha
piedade de vós. O Senhor volte para vós o seu rosto e vos dê a sua paz. O
nome do Senhor esteja em vossos corações, sobre as vossas casas e sobre os
vossos campos.
108.7 A multidão, a pequena multidão reunida, dá um grito de alegria e de
aclamações ao Messias. Mas depois se cala e se abre para deixar passar uma
mãe, que vem trazendo nos braços um menino de cerca de dez anos,
paralítico. Ela o estende aos pés da escada, como se o oferecesse a Jesus.
– É uma serva minha. O menino dela caiu, no ano passado, do alto do
terraço, e teve os rins esmagados. Por toda a vida terá que ficar deitado
sobre as costas –explica o patrão.
– Esperou em Ti esses meses todos… –acrescenta a patroa.
– Diz-lhe que venha a Mim.
Mas a pobre mãe está tão emocionada, que parece estar ela com
paralisia. Treme inteira e tropeça em sua longa veste, ao subir os altos
degraus, com o filho nos braços.
Maria se põe de pé, piedosa, e desce ao seu encontro:
– Vem. Não tenhas medo. Meu Filho te ama. Dá-me o teu filho. Subirás
melhor. Vem, filha. Eu também sou mãe –e lhe pega o menino, ao qual sorri
docemente, subindo em seguida com a sua piedosa carga, que lhe pesa nos
braços.
A mãe do menino vai atrás dela chorando.
Maria está agora diante de Jesus. Ajoelha-se e diz:
– Filho, atenda a esta mãe!
Nada mais.
Jesus nem pergunta, como de costume: “Que queres que Eu te faça?
Crês que Eu o possa fazer?” Não. Hoje Ele sorri e diz:
– Mulher, vem aqui.
A mulher vai ficar justamente ao lado de Maria. Jesus lhe põe a mão
sobre a cabeça e diz somente: “Sê alegre!” e ainda nem acabou de proferir
estas palavras, que o menino, até então estendido pesadamente nos braços
de Maria e com as pernas cambaleantes assenta-se num instante e, com um
grito de alegria, diz: “Mamãe!”, e corre, indo a refugiar-se no seio materno.
Os gritos de hosana parecem querer penetrar o céu, avermelhado com o
pôr-do-sol.
A mulher com o filho apertado contra o coração, não sabe o que dizer, e
pergunta:
– Que devo fazer, para dizer-te que estou feliz?
E Jesus, ainda acariciando-a:
– Ser boa, amar a Deus e ao teu próximo, e nesse amor criar o teu filho.
Mas a mulher ainda não está contente. Gostaria… gostaria… e enfim
pede:
– Um beijo teu e de tua Mãe para o meu menino.
Jesus se inclina e o beija, e Maria também. E enquanto a mulher vai
embora feliz, em meio a um acompanhamento de amigos aclamantes, Jesus
explica à patroa:
– Não foi preciso nada mais. Ele estava nos braços de minha Mãe.
Mesmo sem dizer nada o teria curado, porque Ela se sente feliz quando
pode consolar uma aflição e Eu a quero fazer feliz.
E entre Jesus e Maria, perpassa um daqueles olhares, que só quem os
viu os pode compreender, de tão profundos que são de significado.
[24] Foi-vos dito, por exemplo em: Levítico 19,14.32; 25,17.36; Deuteronômio 6,13; 10,12.20.
[25] Prenunciado, por exemplo em: Isaías 11,1-12.
[26] arado: amassador de torrões de terra - N.T.
109. Nos campos de Joacã e de Doras.
Morte de Jonas na casa de Nazaré.
15 de fevereiro de 1945.
109.1 Revejo a planície de Esdrelon, de dia, um dia seminublado, de fim
de outono. Aqui deve ter chovido esta noite, uma das primeiras chuvas dos
tristes meses do inverno, porque a terra está úmida, ainda que não
lamacenta. E ainda há vento. É um vento úmido, que arranca as folhas já
amareladas, e penetra nos ossos, com seu hálito cheio de umidade.
Nos campos são raras as juntas de bois atrelados ao arado. Revolvem
com dificuldade a terra boa e pesada desta fértil planície, preparando-a para
a semeadura. E o que me causa pena é ver que em certos lugares são os
homens mesmo que fazem o trabalho dos bois, empurrando a relha com
toda a força de seus braços e até do peito, firmando os pés no solo já
revolvido, sofrendo como escravos neste trabalho em que até os vigorosos
novilhos sofrem.
Jesus também olha e vê. E o seu rosto se torna triste, chegando ao ponto
de chorar.
Os discípulos — onze, porque Judas continua ausente e os pastores não
estão mais — falam entre si, e Pedro diz:
– É pequeno, pobre e cansativo também o barco… Mas cem vezes
melhor do que este serviço de animais de carga!
Depois ele pergunta:
– Mestre, já serão esses aí os servos de Doras?
Simão Zelote responde:
– Não acho. Os seus campos estão além daquele pomar, parece-me. E
nós ainda não os estamos vendo.
109.2 Mas Pedro, sempre curioso, deixa a estrada e vai ao longo de uma
trilha, entre dois campos. Às margens da trilha, sentaram-se por um
momento quatro agricultores magros e suados. Estão ofegantes por causa do
cansaço. Pedro lhes pergunta:
– Sois de Doras?
– Não. Somos de um parente dele chamado Joacã. E tu, quem és?
– Eu sou Simão de Jonas, pescador da Galileia até a lua de Ziv. Agora
sou Pedro de Jesus de Nazaré, o Messias da Boa Nova.
Pedro diz isto com o respeito e a glória com o qual alguém poderia
dizer: “Pertenço ao augusto e divino César de Roma”, e muito mais ainda.
Seu rosto honesto brilha realmente na alegria de professar-se de Jesus.
– Oh! O Messias! Onde, onde está Ele? –dizem os quatro infelizes.
– É aquele. Aquele alto e loiro, vestido de vermelho escuro. Aquele que
está olhando agora aqui, e sorrindo me espera.
– Oh!! Se nós fôssemos até Ele… nos enxotaria?
– Enxotar-vos? Por quê? Ele é amigo dos infelizes, dos pobres, dos
oprimidos, e parece-me que vós… sim, sois exatamente desses…
– Oh! Se o somos! Não como aqueles de Doras. Ao menos, temos pão à
vontade, e não somos espancados, a não ser que paremos o trabalho, mas…
– De modo que, se agora o belo senhor Joacã vos encontrasse aqui
conversando, vos…
– Ele nos espancaria, como não espanca os seus cães…
Pedro dá um assobio significativo. Depois, diz:
– Então é melhor fazer assim…
E, tendo posto as mãos como um funil à boca, ele grita:
– Mestre, vem aqui. Aqui há corações que sofrem e te desejam.
– Mas, que é que estás dizendo?! Ele?! Vir até nós?! Mas nós somos
servos desprezíveis!
Os quatro estão apavorados ante tão grande ousadia.
– Mas as bordoadas não são agradáveis. E se, de repente, chega aquele
belo fariseu, eu não queria receber dele também uma parte… –diz Pedro
rindo, e sacudindo com sua mão grande o mais assustado dos quatro.
109.3 Jesus, com seu passo longo, está já chegando até eles. Os quatro não
sabem o que fazer. Desejariam ir ao encontro Dele, mas o respeito os
paralisa. Pobres seres que a maldade humana tornou completamente
amedrontados. Caem de bruços no chão, adorando assim ao Messias, que
vai a eles.
– A paz a todos aqueles que me desejam. Quem me deseja, deseja o
bem, e Eu o amo como a um amigo. Levantai-vos. Quem sois?
Mas os quatro levantam apenas o rosto do chão, continuando de joelhos
e mudos.
Fala Pedro:
– São quatro servos do fariseu Joacã, parente de Doras. Desejavam
falar-te, mas… se Joacã chega aqui, são espancados, e por isso é que eu te
disse: “Vem aqui.” Vamos, rapazes! Ele não vai devorar-vos! Tenham
confiança! Pensai, Ele é vosso amigo.
– Nós… nós sabemos de Ti… Jonas dizia…
– Estou vindo por causa dele. Já soube que ele me anunciou. Que é que
sabeis de Mim?
– Que Tu és o Messias. Que te viu pequenino, que os anjos cantaram a
paz aos bons com a tua vinda, que foste perseguido… mas que escapaste, e
agora vieste procurar os teus pastores e… que os amas. Isto, estas últimas
coisas as dizia agora. E nós ficávamos pensando: se é tão bom, que ama e
procura pastores, certamente quereria bem um pouco também a nós…
Precisamos tanto de quem nos ame…
– Eu vos amo. 109.4Estais sofrendo muito?
– Oh!! Mas os de Doras mais ainda. Se Joacã nos encontrasse aqui
conversando!! Mas hoje está em Gergesa. Ainda não voltou da Festa dos
Tabernáculos. Porém, hoje à tarde, o seu intendente nos dará alimento,
depois de ter medido o nosso trabalho. Mas não importa. Recuperaremos o
tempo, não descansando, após a refeição da hora sexta.
– Diz-me uma coisa, rapaz. Eu seria capaz de mover aquele
instrumento ali? É um trabalho difícil? –pergunta Pedro.
– Difícil não é. Mas é cansativo. Requer força.
– Isso eu tenho. Deixa-me ver. Se eu conseguir, tu mandas, e eu vou
fazer de boi. Tu, João, e André e Tiago, vamos aprender a lição. Vamos
passar dos peixes às minhocas do solo. Vamos!
Pedro põe a mão no eixo transversal do timão. Em cada arado estão
dois homens, um de um lado e o segundo do outro da longa barra do timão.
Ele olha e repete todos os movimentos do camponês. Forte como é, e
descansado como está, Pedro vai trabalhando bem e o camponês o elogia.
– Eu já sou mestre em arar –exclama contente o bom Pedro–. Vamos,
João! Vem aqui. Um touro e um novilho por arado. No outro, Tiago e
aquele bezerro mudo, que é o meu irmão. Força! Ah!! Já! –e as duas juntas
de arados vão, lado a lado, revolvendo a terra e rasgando sulcos, através do
longo campo, e, no fim deste, viram o arado, e fazem novo sulco. Parece
que sempre trabalharam como camponeses.
109.5 – Como são bons os teus amigos –diz o mais audaz dos servos de
Joacã–. Tu os ensinaste a serem assim?
– Eu dei uma forma à bondade deles. Como tu fazes com a tesoura de
podador. Mas a bondade estava neles. Agora ela floresce bem, porque há
quem cuide dela.
– São humildes também. Amigos teus a nos servir, pobres servos!
– Comigo estão só aqueles que amam a humildade, a mansidão, a
continência, a honestidade e o amor, sobretudo o amor. Porque quem ama a
Deus e ao próximo, tem, por consequência, todas as virtudes e conquista o
Céu.
– Nós também poderemos conquistá-lo? Nós, que não temos tempo
para rezar, para ir ao Templo, nem mesmo para levantar a cabeça do sulco?
– Respondei-me: há em vós algum ódio para com quem vos trata tão
duramente? Há em vós alguma revolta ou censura contra Deus, por vos
haver colocado entre os ínfimos da terra?
– Oh! Não, Mestre! Esta é a nossa sorte. Mas quando, cansados, nos
jogamos na enxerga, dizemos: “Pois bem, o Deus de Abraão sabe que
estamos tão exauridos que não podemos dizer-lhe mais do que isto:
‘Bendito seja o Senhor!’”, e também dizemos: “Também hoje passamos o
dia sem pecar”… Sabes… Podemos até ter fraudado um pouquinho e com o
pão comido alguma fruta, ou derramando óleo nas ervas cozidas. Mas o
patrão disse: “Para os servos basta o pão e as ervas cozidas e, no tempo da
colheita, um pouco de vinagre na água para mitigar a sede e dar o vigor.” E
assim nós fizemos. Enfim… poderíamos estar pior.
– Eu vos digo que em verdade, o Deus de Abraão sorri aos vossos
corações, enquanto vira seu rosto severo àqueles que o insultam no Templo
com orações mentirosas, quando não amam aos seus semelhantes.
– Oh! Mas os semelhantes se amam entre si! Ao menos… assim parece,
porque se veneram reciprocamente com presentes e mesuras. É a nós que
eles não têm amor. Mas nós somos diferentes deles, e é justo.
– Não. No Reino do meu Pai não é justo. E o modo de julgar será
diferente. Não serão os ricos e os poderosos, por serem tais, que vão ser
honrados. Mas só aqueles que tiverem sempre amado a Deus, amando-o
mais que a si mesmos e acima de qualquer outra coisa, como o dinheiro, o
poder, a mulher, a mesa; e amando os próprios semelhantes, que são todos
os homens, sejam ricos ou pobres, conhecidos ou desconhecidos, instruídos
ou analfabetos, bons ou maus. Sim, até aos maus é preciso amar. Não pela
sua maldade, mas por piedade para com as suas almas, por eles feridas de
morte. É preciso amá-los com um amor que suplica ao Pai celeste que os
cure e os redima. No Reino dos Céus serão felizes aqueles que tiverem
honrado o Senhor em verdade e justiça, e amado os pais e parentes com
respeito; aqueles que não tiverem roubado de nenhum modo e nenhuma
coisa, ou seja, tiverem dado e pretendido o justo, também pelos trabalhos
dos servos; aqueles que não tiverem matado nem reputações nem criaturas e
não tiverem tido o desejo de matar, mesmo quando os modos dos outros
forem tão cruéis, que sublevem o coração até à indignação e à revolta;
aqueles que não tiverem jurado falso prejudicando ao próximo e à verdade;
aqueles que não tiverem cometido adultério ou vício carnal, qualquer que
seja; aqueles que, mansos e resignados, tiverem sempre aceitado a sua sorte,
sem inveja dos outros. Desses é o Reino dos Céus, e até o mendigo pode ser
lá em cima um rei feliz, enquanto que o Tetrarca, em seu poder, será menos
do que nada, e até mais do que nada: será alimento de Mamon, se tiver
agido contra a lei eterna do Decálogo.
109.6Os homens estão de boca aberta, a ouvi-lo.
Junto a Jesus estão Bartolomeu, Mateus, Simão, Filipe, Tomé, Tiago e
Judas de Alfeu. Os outros quatro continuam o seu trabalho, vermelhos,
acalorados, mas alegres. Basta Pedro para tê-los todos alegres.
– Oh! Como tinha razão Jonas ao dizer-te: “Santo!” Tudo em Ti é
santo. As palavras, o olhar, o sorriso. Nós nunca sentimos a alma assim!…
– Há muito tempo que não vedes Jonas?
– Desde que ele ficou doente.
– Ficou doente?
– Sim, Mestre. Não pode fazer mais nada. Já antes se arrastava. Mas,
depois dos trabalhos do verão e da vindima, ele não consegue mais ficar em
pé. Contudo… ainda o faz trabalhar aquele… Oh! Tu nos dizes que é
preciso amar a todos. Mas é muito difícil amar as hienas! E Doras é pior do
que uma hiena.
– Jonas o ama…
– Sim, Mestre. E eu digo que ele é santo como aqueles que, por
fidelidade ao Senhor nosso Deus, foram mortos com o martírio.
– Disseste bem. Como te chamas?
– Miqueias, e este Saulo, e este Joel, e este Isaías.
– Lembrarei os vossos nomes ao Pai. Dizeis que Jonas está muito
doente?
– Sim. Assim que termina o trabalho, se joga sobre o leito de palha, e
nós não o vemos. É o que dizem os outros servos de Doras.
– Estará no trabalho a esta hora?
– Se estiver em pé, sim. Deveria estar além daquele pomar.
– A colheita do Doras foi boa?
– Oh! Ficou famosa em toda a região. As árvores tiveram que ser
escoradas, por causa das frutas de um tamanho miraculoso, e Doras teve
que mandar fabricar novas tinas, pois a uva não teria podido ser posta nas
que havia, de tanta que era.
– Então, o Doras deve ter recompensado o seu servo!
– Recompensado! Oh! Senhor, como o conheces mal!
– Mas Jonas me disse que, há anos, o Doras o feriu de morte, por causa
da perda de alguns cachos, e que ele se tornou escravo, por causa de
dívidas, tendo-lhe o patrão acusado pelo prejuízo que lhe deu a pequena
colheita. Este ano em que houve essa milagrosa abundância, ele deveria
portanto dar-lhe uma recompensa.
– Não. Ele o espancou ferozmente, acusando-o de não ter, nos anos
passados, obtido a mesma abundância, por não ter cuidado da terra como
devia.
– Mas esse homem é uma fera! –exclama Mateus.
– Não. É um homem sem alma –diz Jesus–. 109.7Eu vos deixo, filhos,
com uma bênção. Tendes pão e alimento para hoje?
– Temos este pão –e mostram um pão escuro, tirado de um pequeno
saco jogado no chão.
– Pegai o meu alimento. Só tenho este. Mas hoje estou na casa de Doras
e…
– Tu vais à casa de Doras?
– Sim. Para resgatar Jonas. Não o sabíeis?
– Ninguém sabe nada aqui. Mas… desconfia, Mestre. Estás como uma
ovelha na cova do lobo.
– Não poderá fazer-me nada. Tomai o meu alimento. Tiago, dá o que
temos. O nosso vinho também. Jubilai um pouco, vós também, pobres
amigos. Com a alma e com o corpo. Pedro! Vamos.
– Já vou, Mestre. Só falta este sulco para acabar.
E corre a Jesus, ofegante pela canseira. Enxuga-se com o manto, que
ele havia tirado, veste-o de novo, e ri feliz.
Os quatro não param de agradecer.
– Passarás por aqui, Mestre?
– Sim, esperai-me. Saudareis a Jonas. Podeis fazer isso?
– Oh! Sim. À tarde o campo devia estar arado. Mais de dois terços já
foram feitos. E como araram bem e depressa! Os teus amigos são fortes!
Deus vos abençoe. Hoje para nós está sendo mais do que a festa dos
Ázimos. Oh! Que Deus vos abençoe a todos! Todos! Todos!
109.8 Jesus se dirige para o pomar. Eles o atravessam e chegam aos
campos de Doras. Outros camponeses estão ao arado, ou encurvados, a
limpar os sulcos das ervas arrancadas. Mas Jonas não está. Jesus é
reconhecido e, sem deixarem o trabalho, os homens o saúdam.
– Onde está Jonas?
– Faz duas horas que caiu sobre o sulco e foi levado para casa. Pobre
Jonas. Por pouco tempo terá que sofrer ainda. Está mesmo no fim. Nunca
mais teremos um amigo melhor do que ele.
– Vós me tendes nesta terra, e ele no seio de Abraão. Os mortos amam
os vivos com um amor dobrado: o deles e o que eles assumem por estarem
com Deus, e que por isso é um amor perfeito.
– Oh! Vai logo a ele. Que em seu sofrimento ele te veja!
Jesus abençoa e vai.
– E agora, que vais fazer? Que dirás ao Doras? –perguntam os
discípulos.
– Eu irei, como se nada soubesse. Se ele se vê apanhado de frente, é
capaz de se enfurecer contra Jonas e seus servos.
– Tem razão o teu amigo: ele é um chacal –diz Pedro a Simão.
– Lázaro nunca diz, senão a verdade, e não é maledicente. Tu vais
conhecê-lo e ficarás gostando dele –responde Simão.
109.9 Já se vê a casa do fariseu. Larga, baixa, mas bem construída no
meio de um pomar já despido. Casa de campo, mas rica e cômoda. Pedro e
Simão vão na frente para anunciar.
Doras sai. É um velho, com o perfil duro de velho explorador. Olhos
irônicos, boca de serpente que se mexe num sorriso falso, entre a barba
mais branca do que preta.
– Saúde, Jesus –saúda ele de modo familiar e com visível
condescendência.
Jesus não diz: “Paz”, mas responde:
– Que ela volte a ti.
– Entra. A casa te acolhe. Foste pontual como um rei.
– Como um homem honesto –responde Jesus.
Doras ri, como se tivesse ouvido um gracejo.
Jesus se vira, e diz aos discípulos, que não foram convidados:
– Entrai. São os meus amigos.
– Venham… mas… aquele não é o cobrador de impostos, o filho de
Alfeu?
– Este é Mateus, o discípulo do Cristo –diz Jesus com um tom que… o
outro compreende e torna a rir, num riso mais amarelo que o de antes.
Doras gostaria de esmagar o “pobre” mestre galileu sob a opulência de
sua casa que, por dentro, é faustosa. Faustosa e gélida. Os servos parecem
escravos. Andam encurvados, sumindo rapidamente, sempre temerosos de
castigos. Sente-se que esta é uma casa em que reina a frieza e o ódio.
Mas Jesus não se sente esmagado com a ostentação das riquezas, nem
com a menção que se lhe faz dos dados do censo e de parentela… e Doras,
que compreende a indiferença do Mestre, leva-o consigo, para o pomar,
mostrando-lhe plantas raras e oferecendo-lhe frutas das mesmas, que os
servos transportam em bandejas e em taças de ouro. Jesus experimenta e
elogia a excelência das frutas, uma parte conservada em calda, e são
pêssegos muito bonitos, parte em estado natural, e são pêras de um tamanho
fora do comum.
– Em toda a Palestina, só eu as tenho, e acho que nem na península
inteira haja delas. Mandei buscá-las na Pérsia e até mais longe. A caravana
me custou o valor de um talento. Mas nem os Tetrarcas têm estas frutas.
Talvez nem mesmo César as tenha. Eu conto as frutas e quero todos os
caroços. E as peras só são comidas à minha mesa, porque não quero que
delas seja surrupiada nenhuma semente. A Anás lhe mando algumas, mas
somente quando já cozidas, para que sejam estéreis.
– Mas são plantas de Deus. E os homens são todos iguais.
– Iguais? Não! Eu, igual a… aos teus galileus?
– A alma vem de Deus, e Ele as cria iguais.
– Mas eu sou Doras, o fiel fariseu!!
Mais parece um peru, que faz a roda, ao dizer isso.
Jesus o dardeja com seus olhos de safira, que vão-se tornando cada vez
mais acesos, sinal que denuncia Nele o transbordar de piedade ou de
severidade. Jesus é bem mais alto do que Doras e o domina, imponente na
sua veste purpúrea, perto do pequeno e encurvado fariseu, mirrado em sua
veste de ampla e com uma abundância impressionante de franjas.
Doras, depois de algum tempo de autoadmiração, exclama:
– Mas Jesus, por que mandar à casa de Doras, o puro fariseu, Lázaro,
que é irmão de uma meretriz? Tens a Lázaro como teu amigo? Mas não
deves! Não sabes que ele está sob o anátema, porque sua irmã Maria é
meretriz?
– Eu só conheço a Lázaro e as suas ações, que são honestas.
– Mas o mundo se lembra do pecado daquela casa, e vê que a mancha
dele se estende sobre seus amigos… Não vás até lá… Por que não és um
fariseu? Se quiseres… eu sou poderoso… posso fazer que te acolham como
tal, não obstante Tu sejas Galileu. Tudo eu posso no Sinédrio. Anás está em
minha mão como esta orla do meu manto. Tu serias mais temido.
– Eu só quero ser amado.
– Eu te amarei. 109:10Vê que eu já te amo, cedendo ao teu desejo, e
dando-te Jonas.
– Eu o paguei.
– É verdade, e eu me admirei que Tu tivesses podido pagar tal soma.
– Não fui Eu. Um amigo pagou para Mim.
– Bem, bem. Não vamos entrar neste assunto. Só digo isto: vê que eu te
amo e quero fazer-te contente. Depois da refeição, terás Jonas. Somente por
Ti faço este sacrifício… –e ri com seu riso cruel.
Jesus o dardeja, cada vez com mais severidade, com os braços cruzados
sobre o peito. Eles estão ainda no pomar, à espera da refeição.
– Porém, Tu tens que fazer-me contente. Alegria por alegria. Eu te dou
o melhor dos meus servos, e me privo com isso de uma vantagem futura.
Este ano, a tua bênção — sei que vieste no começo do grande calor — deu-
me colheitas que tornaram as minhas propriedades célebres. Agora abençoa
os meus rebanhos e os meus campos. Para o próximo ano não ficarei com
saudades de Jonas… e, nesse meio tempo, hei de encontrar alguém igual a
ele. Vem, abençoa. Dá-me a alegria de ficar famoso em toda a Palestina, e
ter ovis e celeiros trasbordantes de todos os bens. Vem –e o agarra,
procurando arrastá-lo, dominado pela febre do ouro.
Mas Jesus lhe resiste:
– Onde está Jonas? –pergunta severo.
– Está na aradura. Ele quis fazer ainda isto para o seu bom patrão. Mas,
antes que acabemos a refeição, ele virá. E, enquanto isso, vem abençoar os
rebanhos, os campos, os pomares, as vinhas, os lagares. Tudo, tudo… Oh!
Como serão férteis no ano que vem! Vem, então.
– Onde está Jonas? –troveja Jesus mais forte.
– Mas eu já disse a Ti. Está à frente da aradura. É o primeiro servo e
não trabalha: dirige.
– Mentiroso!
– Eu? Juro por Javé!
– Perjuro!
– Eu? Eu, perjuro? Eu, que sou o mais fiel dos fiéis? Olha como falas!
– Assassino!
Jesus vai sempre elevando a voz, e sua última palavra já como um
trovão.
Os discípulos se reúnem ao seu redor. Os servos, temerosos, aparecem
nas portas. O rosto de Jesus está insustentável, em sua severidade. Seus
olhos parecem emitir raios fosforescentes.
Doras fica um momento com medo. Torna-se menor, como uma meada
de tecido muito fino, junto à alta estatura de Jesus, que está vestido com
uma pesada lã vermelho escuro. Mas depois a soberba se apodera dele e
grita com sua voz, que mais parece um ganido, exatamente como aquele das
raposas:
– Na minha casa, quem manda sou eu. Fora, Galileu ordinário.
– Sairei depois de ter amaldiçoado a ti, aos teus campos, aos teus
rebanhos e vinhas para este ano e para os anos vindouros.
– Não. Isto, não. Sim. É verdade. Jonas está doente. Mas já ficou bom.
Está curado. Retira a tua maldição.
109.11 – Onde está Jonas? Que um servo me leve a ele, já! Eu já paguei e,
como ele é para ti uma mercadoria, uma máquina, tal o considero, e, como
já o adquiri, Eu o quero.
Doras tira um pequeno apito de ouro do peito e apita três vezes. Um
bando de servos da casa e do campo aparece de todos os lados, correm, de
tal modo encurvados, que quase vão se arrastando, até chegarem perto do
seu temido patrão.
– Trazei Jonas para Este, e entregai-o. Aonde vais?
Jesus nem responde. Caminha atrás dos servos, que se precipitaram
além do jardim, rumo às casas dos camponeses, às sujas tocas dos míseros
camponeses.
Entram no miserável quarto de Jonas. Este acabou de definhar-se e está
ofegante, seminu, por causa da febre, sobre uma esteira de caniços, em cima
da qual, servindo de colchão, está uma veste remendada e, como coberta,
um manto ainda mais rasgado. A jovem da outra vez cuida dele como pode.
– Jonas! Meu amigo! Eu vim te buscar!
– Tu! Meu Senhor! Estou morrendo… mas me sinto feliz por ter te
aqui!
– Meu amigo fiel, agora estás livre, e não morrerás aqui. Eu vou te
levar para a minha casa.
– Livre? Por quê? Para a tua casa? Ah! Sim. Tinhas-me prometido que
haveria de ver tua Mãe.
Jesus é todo amor, inclinado sobre a cama miserável do infeliz. E Jonas
parece reanimar-se pela alegria.
– Pedro, tu és forte. Levanta a Jonas, e vós, dai-lhe o manto. É muito
dura esta cama para alguém no seu estado.
Os discípulos tiram prontamente os seus mantos, os dobram diversas
vezes e os estendem, fazendo com alguns deles um travesseiro. Pedro depõe
a sua carga de ossos e Jesus a cobre com o seu próprio manto.
– Pedro, tens dinheiro?
– Sim, Mestre, tenho quarenta denários.
– Está bem. Vamos. Coragem, Jonas. Um pouco de sofrimento ainda, e
depois muita paz na minha casa, junto à Maria…
– Maria… sim… oh! a tua casa!
Em sua grande fraqueza, o pobre Jonas chora. Só sabe chorar.
– Adeus, mulher. O Senhor te abençoará por tua Misericórdia.
– Adeus, Senhor, adeus, Jonas. Reze, rezai por mim.
A jovem chora…
109.12 Quando chegam na soleira, eis Doras. Jonas faz um gesto de medo,
e protege o rosto. Mas Jesus lhe põe a mão na cabeça, e sai a seu lado, mais
severo do que um juiz. O triste cortejo sai pelo pátio rústico e toma o
caminho do jardim.
– Aquela cama é minha! Eu te vendi o servo. Não a cama.
Jesus lhe joga aos pés a bolsa, sem falar nada.
Doras a pega e esvazia.
– Quarenta denários e cinco didracmas. É pouco!
Jesus esquadrinha o ávido e repugnante tirano — e é impossível dizer o
que é esse olhar — e nada responde.
– Ao menos, diz-me que retiras o anátema!
Jesus o fulmina com um novo olhar e uma breve frase:
– Eu te entrego ao Deus do Sinai –e passa ereto, ao lado da rústica
liteira, que vai sendo levada com precaução por Pedro e André.
Doras, vendo que tudo é inútil, e que sua condenação é certa, grita:
– Nós nos veremos de novo, Jesus! Oh! Ainda te terei em minhas
unhas! Eu te farei uma guerra mortal. Podes levar Contigo este farrapo de
homem. Não me serve mais. Economizarei com o sepultamento. Vai, vai,
maldito satanás! Mas colocarei todo o Sinédrio contra Ti. satanás! satanás!
Jesus não demonstra ouvi-lo. Os discípulos estão consternados.
109.13 Jesus só pensa em Jonas. Procura os caminhos mais planos e
melhores, até chegar a uma encruzilhada, perto dos campos de Joacã. Os
quatro camponeses correm para saudar o amigo que parte e ao Salvador que
abençoa.
Mas longa é a estrada de Esdrelon até Nazaré, e não se pode andar
rápido com aquela piedosa carga. Ao longo da estrada mestra não há
nenhum carro ou carreta. Nada. Prosseguem em silêncio. Jonas parece que
está dormindo. Mas não solta a mão de Jesus.
Próximo da tarde, eis um carro militar romano que os alcança.
– Em nome de Deus, parai! –diz Jesus, levantando o braço.
Os dois soldados param. Do toldo estendido sobre o carro, visto que
começa a chover, assoma um militar graduado, todo pomposo.
– Que queres? –pergunta a Jesus.
– Tenho um amigo moribundo. Peço-vos para ele um lugar no carro.
– Não seria permitido… mas… sobe. Nós também não somos cães.
Içam a liteira.
– É teu amigo? Quem és Tu?
– O Rabi Jesus de Nazaré.
– Tu? Oh!!!
O graduado o olha curioso.
– Se és Tu, então… Subi, todos os que puderdes. Basta que não vos
vejam… Esta é a ordem… mas, acima da ordem, está o dever de
humanidade, não? E Tu és bom. Eu sei. Ah! Nós, soldados, sabemos tudo…
Como é que eu sei? Até as pedras falam o bem e o mal, e nós temos
ouvidos para ouvi-las, a serviço de César. Tu não és um falso Cristo, como
os outros de antes, sediciosos e rebeldes. Tu és bom. Roma já o sabe. Este
homem… está muito doente.
– Por isto é que Eu o estou levando para a casa de minha Mãe.
– Hum! Ela o curará por pouco tempo! Dá-lhe um pouco de vinho. O
vinho está naquele odre. Tu, Aquila, chicoteia os cavalos, e tu, Quinto, dá-
me a porção de mel e manteiga. É minha, mas lhe fará bem. Ele está com
muita tosse e o mel cura.
– Tu és bom.
– Não. Sou menos mau do que muitos. E estou contente em ter-
tecomigo. 109.14Recorda-te de Públio Quintiliano da Itálica. Estou destacado
em Cesareia. Mas agora vou para Ptolemaida. É inspeção de ordem.
– Para Mim tu não és um inimigo.
– Eu? Sou inimigo dos maus. Nunca dos bons. E queria ser bom, eu
também. Diz-me: para nós, homens de armas, qual a doutrina que Tu
pregas?
– A doutrina é uma para todos. Justiça, honestidade, continência,
piedade. Exercer o próprio ofício sem abusos. Também na dura necessidade
das armas, seguir a humanidade. E procurar conhecer a Verdade, ou seja,
Deus uno e eterno, sem a qual o conhecimento de cada ação permanece
privado da graça e, por isso, do prêmio eterno.
– Mas, quando eu morrer, de que me vai servir o bem que eu fiz?
– Quem vai ao verdadeiro Deus, encontrará aquele bem na outra vida.
– Vou nascer outra vez? Vou me tornar um tribuno, ou até um
imperador?
– Não. Tu te tornarás semelhante a Deus, unindo-te à sua eterna bem-
aventurança no Céu.
– Como? No Olimpo, eu? Entre os deuses?
– Não existem deuses. Existe o verdadeiro Deus. Aquele que Eu prego.
Aquele que te ouve e anota a tua bondade e o teu desejo de conhecer o
Bem.
– Isto me agrada! Não sabia que Deus pudesse preocupar-se com um
pobre soldado pagão.
– Ele te criou, Públio. Por isso te ama, e te quer com Ele.
– Ora, por que não? Mas… ninguém nos fala de Deus… nunca…
– Eu irei a Cesareia, e me ouvirás.
– Oh! Sim. Eu irei ouvir-te. Lá está Nazaré. Eu queria servir-te ainda.
Mas, se eu for visto…
– Eu vou descer, e te abençoo pela tua bondade.
– Salve, Mestre.
– O Senhor se manifeste a vós, ó soldados. Adeus.
109.15 Descem. Recomeçam a marcha.
– Daqui a pouco, descansarás, Jonas –encoraja-o Jesus.
Jonas sorri. Está cada vez mais calmo, à medida que cai a tarde e que se
sente seguro por estar longe de Doras.
João com seu irmão corre na frente, para avisar Maria. E quando o
pequeno cortejo chega a Nazaré, que está quase deserta ao anoitecer, Maria
já está na soleira, à espera do Filho.
– Mãe, eis Jonas. Sob a tua doçura ele vem se abrigar, para começar a
gozar do seu Paraíso. Estás feliz, Jonas?
– Feliz! Feliz –murmura o pobre extenuado, como em um êxtase.
Ele é transportado para o pequeno quarto onde morreu José.
– Estás na cama de meu pai. Aqui está a Mãe, e aqui estou Eu. Estás
vendo? Nazaré torna-se Belém, e tu agora és o pequeno Jesus entre duas
pessoas que te amam, e estes são os que te veneram como a um servo fiel.
Os anjos, tu não os estás vendo, mas eles pairam sobre ti, com suas asas de
luz, e cantam as palavras do salmo natalício…
Jesus derrama a sua doçura sobre o pobre Jonas, que vai-se
enfraquecendo a cada instante. Até parece que ele resistiu até agora, para
morrer aqui… mas está feliz. Sorri, procura beijar a mão de Jesus, a de
Maria, e falar, falar… mas o entusiasmo quebra as palavras. Maria o
conforta, como uma mãe. E ele repete: “Sim, sim”, com seu sorriso feliz,
num rosto esquelético.
Os discípulos, junto à porta da horta, estão calados e observando
comovidos.
– Deus atendeu ao teu longo desejo. A Estrela da tua longa noite agora
torna-se a Estrela da tua eterna manhã. Tu sabes o Nome dela –diz Jesus.
– Jesus, o teu! Oh! Jesus! Os anjos… Quem é que me está cantando o
hino dos anjos? A alma o está ouvindo… mas o ouvido também o quer
ouvir… Quem é que está cantando, para fazer-me dormir feliz… Estou com
tanto sono! Eu me cansei tanto!! Tantas lágrimas… Tantos insultos…
Doras… eu o perdoo… mas não quero ouvir a sua voz e a estou ouvindo…
É como a voz de satanás, junto ao meu perecer. Quem está abafando para
mim esta voz com palavras vindas do Paraíso?
É Maria que, na mesma melodia do seu canto de ninar, canta devagar:
– Glória a Deus nos altos Céus, e paz aos homens aqui em baixo.
E o repete duas ou três vezes, pois vê que Jonas fica calmo ao ouvi-la.
– Doras não está mais falando –diz, depois de algum tempo–. Só os
anjos… Era um Menino… em uma manjedoura… entre um boi e um
burro… e era o Messias… E eu o adorei… e com Ele estavam José e
Maria…
A voz desaparece, em um breve gorgolejo, e o silêncio a substitui.
– Paz no Céu ao homem de boa vontade! Morreu. Nós o colocaremos
em nosso pobre sepulcro. Ele merece esperar a ressurreição dos mortos,
junto ao justo, meu pai –diz Jesus.
E, enquanto, avisada por alguém, entra Maria de Alfeu e tudo termina.
110. Na casa de Jacó junto ao lago Meron.
17 de fevereiro de 1945.
110.1 Eu diria que, além do lago da Galileia e do Mar Morto, a Palestina
tem um outro lago pequeno, ou lagoa, um espelho d’água em suma, cujo
nome eu ignoro. Nesse assunto de medidas, eu não valho nada, mas, assim a
olho, eu diria que esta pequena bacia pode ter uns três quilômetros, por
dois, mais ou menos. Pouca, bem pouca coisa, como se vê. Mas é gracioso
no seu contorno verde e no seu espelho tão azul e plácido, a ponto de
parecer uma grande escama de esmalte da cor do céu, tendo ao centro listras
mais claras e ligeiramente mais agitadas, talvez por causa da corrente do rio
que nele penetra no lado norte, para sair no lado sul, e que, apesar da leveza
desse espelho d’água, pois creio que a lagoa tem pouca profundidade, não
perde a sua correnteza, mas, como uma veia viva no meio de uma água
parada, mostra essa sua vitalidade e presença com uma cor diferente e um
leve enrugamento das águas.
Não há barcos a vela no pequeno lago, somente pequenos barcos a
remo, dos quais algum pescador solitário lança e puxa suas cestas de pesca,
ou com eles transporta algum viajante que quer encurtar seu caminho. E
rebanhos e mais rebanhos, que certamente estão descendo das pastagens das
montanhas, por causa do outono que já vem chegando, e vêm pastar nestas
margens de prados verdes e viçosos.
110.2 Na extremidade sul do lago, visto que é de forma oval, passa uma
estrada mestra, que se estende de leste para oeste, ou melhor, de nordeste
para sudoeste. É uma estrada bem conservada e muito batida pelos
passantes, que se dirigem aos povoados esparsos pela região. Por essa
estrada prossegue Jesus com os seus.
O dia está um pouco escuro e Pedro observa:
– Era melhor não ter ido à casa daquela mulher. Os dias vão ficando
cada vez mais curtos e feios… e Jerusalém ainda está muito longe.
– Chegaremos a tempo. E, acredita-me, Pedro, vale mais obedecer a
Deus para fazer o bem, do que ir fazer uma cerimônia externa. Aquela
mulher agora bendiz a Deus com todos os seus filhos, ao redor do dono da
casa, que já está tão curado, que vai até poder estar em Jerusalém para a
Festa dos Tabernáculos, enquanto teria devido, por aquele tempo, já estar
dormindo sob as faixas e os aromas de um sepulcro. Não deteriores nunca a
fé com a exterioridade dos atos. Não se deve criticar nunca. Mas como
podes estranhar os fariseus, se tu também cais assim num erro de piedade e
fechas teu coração ao próximo, dizendo: “Eu sirvo a Deus e basta”?
– Tens razão, Mestre. Eu sou mais ignorante do que um burrinho.
– E Eu te tenho Comigo para fazer de ti um sábio. Não tenhas medo.
Cusa me ofereceu o carro, quase até o Jaboque. Dali até o vale, o caminho é
pouco. Ele insistiu tanto, e com razões tão justas, que Eu cedi, por mais que
Eu creia que o Rei dos pobres deve servir-se dos meios que os pobres usam.
Mas a morte de Jonas nos atrasou, e Eu preciso adaptar os meus propósitos
a este imprevisto.
110.3 Os discípulos falam de Jonas, compadecendo-se de sua mísera vida
e invejando a sua feliz morte.
Simão Zelote murmura:
– Não pude fazê-lo feliz, e dar ao Mestre um verdadeiro discípulo,
amadurecido em um longo martírio, e numa fé inabalável… e sinto pesar
por isso. O mundo tem tanta necessidade de almas fiéis, que adoram
firmemente a Jesus, para equilibrar os tantos que se recusam ou se
recusarão a fazê-lo!
– Não importa, Simão! –responde Jesus–. Ele está mais feliz agora. E
mais ativo. Tu fizeste mais do que teria feito qualquer outro por ele e por
Mim. Também em nome dele Eu te agradeço. Agora ele sabe quem foi o
seu libertador. E te bendiz.
– Então, ele amaldiçoa a Doras também –exclama Pedro.
Jesus o olha e lhe pergunta:
– Assim achas? Estás errado. Jonas era um justo. Agora é um santo. Em
vida não odiou, nem amaldiçoou. Não será agora que irá odiar e amaldiçoar.
Ele, lá do seu lugar de repouso, está olhando para o Paraíso, e, como ele já
sabe que logo, o Limbo deixará sair os que lá estão esperando, ele está
jubilante. E não faz nada mais.
– E tua maldição, não cairá sobre o Doras?
– Em que sentido, Pedro?
– Ora… fazendo-o meditar e mudar… ou… ferindo-o com um castigo.
– Eu o entreguei à Justiça de Deus[27]. Eu, o Amor, o abandonei.
– Misericórdia! Eu não queria estar no lugar dele!
– Nem eu!
– Tampouco eu!
– Ninguém quereria, porque como será a Justiça do Perfeito? –dizem os
discípulos.
– Para os bons será um êxtase, para os satanases será um raio, amigos.
Em verdade, Eu vos digo: ser escravo a vida inteira, ou leproso, ou
mendigo, é uma felicidade de rei, em comparação a uma, uma hora só, de
castigo divino.
110.4 – Mestre, está chovendo. Que vamos fazer? Para onde iremos?
De fato, sobre o lago, que se escureceu, refletindo o céu, agora todo
coberto de nuvens plúmbeas, começam a cair e a ricochetear as primeiras
grandes gotas de uma chuva que promete intensificar-se.
– Para alguma casa. Pediremos abrigo em nome de Deus.
– E vamos esperar que encontremos alguém que seja bom, como aquele
romano. Não imaginava que fossem assim… Sempre os tinha evitado,
como a uns imundos e vejo que… sim, se fizer bem as contas, são melhores
do que muitos de nós –diz Pedro.
– Gostas dos romanos? –pergunta Jesus.
– Ah!! Acho que eles não são piores do que nós. Só que são uns
samaritanos…
Jesus sorri e não diz nada.
São alcançados por uma mulherzinha que impele oito ovelhas para a
frente.
– Mulher, sabes dizer-nos onde poderemos encontrar um abrigo?… –
pergunta Pedro.
– Eu sou serva de um homem pobre e sozinho. Mas, se quiserdes ir…
penso que meu patrão vos acolherá com bondade.
– Vamos.
Vão sob o aguaceiro, rápidos em meio às ovelhas que trotam com seus
corpos pesados, para fugirem do pé d’água. Deixam a estrada mestra, para
pegarem uma estradinha, que conduz a uma casinha baixa. Reconheço a
casa do camponês Jacó, aquele do Matias e da Maria, os dois órfãos da
visão[28] de agosto, me parece.
– Eis, é lá! Correi na frente, enquanto eu levo as ovelhas para o ovil.
Além do murinho, há um pátio, e dele se vai para a casa. O patrão deve
estar na cozinha. Não repareis se é de poucas palavras… Tem muitas
preocupações.
A mulher se dirige a um pequeno quarto escuro à direita. 110.5Jesus com
os seus viram à esquerda.
Eis a eira com o poço e o forno ao fundo, e uma macieira ao lado e eis a
porta escancarada da cozinha na qual vê-se aceso um fogo de gravetos e um
homem consertando um utensílio agrícola quebrado.
– Paz a esta casa. Venho te pedir abrigo, por esta noite, para Mim e para
os meus companheiros –diz Jesus sobre a soleira da porta.
O homem levanta a cabeça.
– Entra –diz ele–, e que Deus te dê a paz que me ofereces. Mas… paz
aqui! A paz é inimiga de Jacó, já de algum tempo. Entra, entra!! Entrai
todos. O fogo é a única coisa que posso dar-vos com abundância…
porque… Oh! mas… mas Tu, agora que tiraste o capuz (Jesus tinha coberto
a cabeça com a orla do manto, conservando-o seguro com a mão sob o
pescoço) e te vejo bem… Tu és, sim, és o Rabi Galileu, o que dizem que é o
Messias e que faz milagres… És Tu? Diz em nome de Deus.
– Sou Jesus de Nazaré, o Messias. Tu me conheces?
– Eu te ouvi falar na casa de Judas e Ana, na lua passada… eu estava
entre os vindimadores porque… eu sou pobre… Uma série de infortúnios:
granizo, as lagartas, doenças nas plantas e nas ovelhas… Para mim, só com
uma serva, bastava o que eu tinha. Mas agora eu contraí dívidas, porque
estou sendo perseguido pela má sorte… Para não ter que vender todas as
ovelhas, trabalhei nas propriedades dos outros… Os meus campos!! Parecia
até que a guerra houvesse passado por eles, de tão queimados que estavam,
com suas videiras e oliveiras improdutivas. Desde que minha mulher
morreu, e já são seis anos, parece que Mamon está divertindo-se comigo.
Estás vendo? Eu estou trabalhando com este arado. Mas a madeira está toda
quebrada. Como é que eu faço? Não sou carpinteiro, e amarro, amarro. Mas
não adianta. E preciso também poupar o dinheiro, agora… Venderei mais
uma ovelha para poder consertar os utensílios. O telhado tem goteiras…
mas estou mais preocupado com o campo do que com a casa. É uma pena!
As ovelhas estão todas prenhes… eu esperava refazer o rebanho… mas…
– Vejo que vim dar incômodo, onde já há tanto incômodo.
– Incômodo, Tu? Não. Eu te ouvi falar e… em meu coração ficou
aquilo que disseste. É verdade que tenho trabalhado honestamente,
contudo… Mas acho que não era ainda bom o bastante. Acho que talvez
boa era a mulher, que tinha pena de todos, pobre Lia, morta tão cedo, muito
cedo para o seu marido… Acho que o bem-estar daqueles tempos vinha do
Céu por meio dela. E quero tornar-me melhor por causa daquilo que Tu
dizes, e para imitar a minha esposa. E não peço muito… só de permanecer
nesta casa, onde ela morreu, onde eu nasci… e ter um pão para mim e para
a serva, que para mim é mulher e pastora, e me ajuda como pode. Não
tenho mais servos. Tinha dois, e me bastavam, trabalhando eu também, nos
campos e no olival… Mas tenho pão só para mim, e ainda é escasso…
– Não te prives dele por causa de nós…
– Não, Mestre. Ainda que tivesse só um pedaço, eu o daria a Ti. Para
mim é uma honra ter-te em minha casa… Nunca o teria esperado. Mas, se te
conto as minhas misérias, é porque Tu és bom e compreendes.
– Sim, Eu compreendo. 110.6Dá-me aquele martelo. Não é assim que se
faz. Desse jeito despedaças a madeira. Dá-me também aquele punção, mas
depois de tê-lo abrasado. Furar-se-á a madeira melhor e passaremos com
mais facilidade a cunha de ferro. Deixa-me fazer. Eu era carpinteiro…
– Tu trabalhar para mim? Não!
– Deixa-me fazer. Tu me estás hospedando. Eu te ajudo. É preciso que
os homens se amem, dando cada um o que pode.
– Tu dás a paz, dás a sabedoria, e dás o milagre. Já dás muito, muito!
– Dou também o trabalho. Vamos, obedece…
E Jesus, que está vestido apenas com a túnica, trabalha rápido e com
experiência sobre o timão quebrado, fura, amarra, encavilha, experimenta
até ver que está firme.
– Poderás trabalhar com ele por muito tempo ainda. Até o ano que vem.
E então poderás fazer um novo.
– Eu também acho. Aquela relha esteve em tuas mãos e me abençoará a
terra.
– Não é por isso, Jacó, que ela te abençoará.
– Por que então, meu Senhor?
– Porque tu usas de Misericórdia. Não te fechas no rancor do egoísmo e
da inveja, mas aceitas a minha doutrina, e a pões em prática. Bem-
aventurados os misericordiosos. Eles alcançarão Misericórdia.
– Em que eu a estou usando para Contigo, meu Senhor? Quase não
tenho lugar nem alimento para a tua necessidade. Não tenho mais que boa
vontade, e nunca como agora me pesou a indigência, por não ter com que
prestar minhas honras a Ti e aos teus amigos.
– Basta-me o teu desejo. Em verdade, Eu te digo que ainda que seja um
só copo d’água dado em meu nome já é uma grande coisa, aos olhos de
Deus. Eu era um viajante cansado, debaixo da tempestade, tu me
hospedaste. Chegou a hora da refeição e tu me dizes: “Ofereço-te tudo o
que tenho.” A noite desce, e tu me ofereces um teto amigo. E que mais
queres fazer? Confia, Jacó. O Filho do homem não olha para a pompa da
recepção e do alimento, olha para o sentimento do coração. O Filho de Deus
diz ao Pai: “Pai, abençoa os meus benfeitores e todos aqueles que em meu
nome são misericordiosos com os irmãos.” Isto Eu digo para ti.
110.7 A serva que, enquanto Jesus estava trabalhando no arado, tinha
falado com o patrão, vem voltando com pão, leite tirado na hora, algumas
maçãs murchas e uma bandeja com azeitonas.
– Não tenho outras coisas –desculpa-se o homem.
– Oh! Que Eu vejo entre o teu alimento, um alimento que tu não estás
vendo! E daquele é que me alimento, porque tem um sabor celeste.
– Talvez Tu te nutres, Tu, Filho de Deus, de algum alimento que te é
trazido pelos anjos? Talvez vivas do pão do espírito.
– Sim. Mais que o corpo, o que tem valor é o espírito, e não em Mim
somente. Mas não me alimento de pão dos anjos, e, sim, do amor do Pai e
dos homens. Este, Eu o encontro também em tua mesa, e por ele bendigo ao
Pai, que me conduziu com amor até ti, e abençoo a ti que com amor me
acolhes, e amor me dás. Eis o meu alimento unido ao do fazer a vontade de
meu Pai.
– Abençoa então, e oferece Tu por mim o alimento a Deus. Hoje Tu és
o Chefe da minha família, e sempre serás o meu Mestre e Amigo.
Jesus pega e oferece o pão, tendo-o nas palmas das mãos, levantadas, e
reza com um salmo, ao que me parece. Depois Ele se assenta, parte e
distribui…
Assim tudo chega ao fim.
[27] Eu o entreguei à Justiça de Deus: o sentido desta afirmação, que é análoga à de 109.12 (“Eu te entrego ao Deus do Sinai”) e
a uma outra que encontraremos em 476.6 (“Eu sou o Amor. É verdade. Mas sobre Mim está o Pai. E Ele é a Justiça”), será
esclarecido no texto 191.8 e de 216.2.
[28] visão de 20 de Agosto de 1944, que será inserida no capítulo 298.
111. Encontro com Salomão no vale do Jordão.
Parábola sobre a conversão dos corações.
18 de fevereiro de 1945.
111.1 – Admiro-me de que o Batista não esteja aqui –diz João ao Mestre.
Estão todos à margem oriental do Jordão, junto ao famoso vale, onde,
algum tempo atrás, o Batista batizava.
– E nem do outro lado ele está –observa Tiago.
– Tê-lo-ão agarrado outra vez, esperando outra bolsa –comenta Pedro–.
Os funcionários de Herodes são sujeitos dignos da cruz!
– Nós passaremos por lá e perguntaremos –diz Jesus.
De fato, eles passam, e perguntam a um barqueiro, que está na outra
margem:
– O Batista não batiza mais aqui?
– Não. Ele está nos confins da Samaria. A que ponto chegamos! Um
santo precisa ir abrigar-se junto aos samaritanos, para salvar-se dos
cidadãos de Israel. 111.2E, por que vos admirais, se Deus nos abandona? Eu
só me admiro de uma coisa: que não faça da Palestina toda uma Sodoma e
Gomorra.
– Não o faz, por causa dos justos que estão nela, por aqueles que, ainda
não sendo completamente justos, sentem a sede da justiça, e seguem a
doutrina dos que pregam a santidade –responde Jesus.
– De dois, então: Do Batista e do Messias. O primeiro eu conheço,
porque eu até o servi aqui no Jordão, ao levar-lhe na travessia alguns de
seus fiéis, e não cobrando nada, porque ele diz que devemos contentar-nos
com o justo. Parecia-me justo contentar-me com o que ganhava com outros
serviços, mas que seria injusto pedir um pagamento para transportar uma
alma que procura a purificação. Recebi dos amigos o nome de doido. Mas
enfim… Contente eu com o meu pouco, quem pode lamentar-se? Além
disso, vejo que de fome não morri ainda, e espero que, na minha morte,
Abraão me sorria.
– Homem, tu estás certo. Quem és? –pergunta Jesus.
– Oh! Eu tenho um nome bem célebre, e rio disso, porque não tenho
sabedoria senão no remo. Eu me chamo Salomão.
– Tens a sabedoria de julgar que quem coopera para uma purificação
não deve corrompê-la com o dinheiro. Eu te digo: não é Abraão somente,
mas o Deus de Abraão que sorrirá a ti em tua morte, como a um filho fiel.
– Oh! Deus! Dizes isto de verdade? 111.3Quem és Tu?
– Eu sou um justo.
– Escuta, eu te disse que há dois justos em Israel: um é o Batista, o
outro é o Messias. És Tu o Messias?
– Eu sou.
– Oh! Eterna Misericórdia! Mas… um dia eu ouvi os fariseus
dizerem… Deixemos para lá… Não quero sujar minha boca. Tu não és
como eles diziam. Línguas bífidas, mais do que as das víboras!!
– Sou Eu e te digo: tu não estás muito longe da Luz. Adeus, Salomão.
A paz esteja contigo.
– Aonde vais, Senhor?
O homem está atordoado por aquela revelação e tomou um tom
completamente diferente. Antes, era um bonachão que falava. Agora é um
fiel que adora.
– Vou para Jerusalém, por Jericó. Vou à Festa dos Tabernáculos.
– A Jerusalém? Mas… Tu também?
– Eu também sou filho da Lei. Não anulo a Lei. Dou-vos luz e força
para segui-la com perfeição.
– Mas Jerusalém já te odeia. Quero dizer: os grandes, os fariseus de
Jerusalém. Eu te disse que ouvi…
– Deixa que façam. Eles fazem seu dever, o que acham que é seu dever.
Eu faço o meu. Em verdade, te digo que, enquanto não chegar a hora, nada
poderão fazer.
– Que hora, Senhor? –perguntam os discípulos e o barqueiro.
– A hora do triunfo das Trevas.
– Viverás até o fim do mundo?
– Não. Haverá uma treva mais atroz do que a dos astros apagados e do
nosso planeta, morto com todos os seus homens. E será, quando os homens
sufocarão a Luz que Eu sou. Em muitos o delito já aconteceu. Adeus,
Salomão.
– Eu vou te seguir, Mestre.
– Não. Vem, dentro de três dias, ao Bel Nidraxe. A paz esteja contigo.
111.4 Jesus se põe a caminho, entre os discípulos pensativos.
– Em que é que estais pensando? Não tenhais medo por Mim, nem por
vós. Nós passamos pela Decápole e pela Pereia, e por toda parte vimos
agricultores trabalhando nos campos. Onde a terra estava ainda sob os
restolhos e a grama, árida, dura, entulhada de plantas parasitas, cujas
sementes os ventos do verão tinham arrastado e transportado da desolação
desértica. Eram aqueles os campos dos preguiçosos e dos gozadores. Em
outros lugares a terra já estava aberta pela relha e o fogo e as mãos do
homem a havia limpado das pedras, das sarsas e ervas. E, o que antes era
um mal, ou seja, vegetações inúteis, eis que com a purificação do fogo e do
corte, transformou-se em um bem: em adubo e em sais úteis para a
fecundação. A terra terá chorado com a dor que lhe foi causada pela lâmina,
que a ia abrindo e remexendo, e sob a mordida do fogo, que se deslizava
sobre suas feridas. Mas ela vai-se rir, mais bonita, na primavera, dizendo:
“O homem me torturou, para dar-me esta abundante colheita, que me faz
bela.” E estes eram os campos dos dedicados. Em outros lugares ainda, a
terra já estava fofa, limpa até das cinzas, um verdadeiro leito nupcial, para
os esponsais da gleba com a semente e para o fecundo conúbio, que produz
esplêndidas espigas. Estes eram os campos dos generosos, até chegarem à
perfeição da operosidade.
Pois bem. Com os corações sucede o mesmo. Eu sou a Relha[29] e a
minha palavra é o Fogo. Para preparar para o triunfo eterno.
Existem os que, preguiçosos ou gozadores, ainda não me pedem, não
me querem, satisfazem-se com os seus vícios, com suas paixões malvadas,
que parecem uma veste cheia de verdor e de flores, quando são apenas
abrolhos e espinhos, que ferem mortalmente o espírito, o amarram, e dele
fazem um feixe para a fornalha da Geena. Por enquanto, a Decápole e a
Pereia estão assim… e não somente elas. Não me pedem milagres, porque
não querem o talho da palavra e o ardor do fogo. Mas a hora delas chegará.
Noutros lugares há os que aceitam esse talho e esse ardor, e pensam: “É
penoso. Mas me purifica e me fará fértil para o Bem.” São aqueles que,
ainda que não tenham o heroísmo de fazer, deixam que Eu faça. É esse o
primeiro passo no meu caminho. Há, enfim, aqueles que ajudam, com seu
trabalho contínuo e cuidadoso, o meu trabalho, e não caminham, mas voam
pela estrada de Deus. Estes são os discípulos fiéis: vós, e os outros que
estão espalhados por Israel.
111.5 – Mas nós somos poucos… contra tantos. Somos gente humilde…
contra os poderosos. Como poderíamos defender-nos, se eles quiserem
atacar-nos?
– Amigos. Lembrai-vos do sonho de Jacó. Ele viu uma multidão
incalculável de anjos que subiam e desciam pela escada, que vinha do Céu
até o patriarca. Era uma multidão, e, no entanto, não era mais do que uma
parte das formações angélicas… Pois bem. Ainda que todas as formações,
que cantam glória a Deus no Céu, descessem ao meu redor para defender-
me, quando chegar a hora, nada poderão fazer. A justiça vai ter que se
cumprir….
– A injustiça, queres dizer! Porque Tu és santo e, se te atacam, se te
odeiam, são injustos.
– Por isso é que Eu digo que em alguns o delito já se consumou. Quem
incuba um pensamento de homicídio, já é homicida; o de furto, já é ladrão;
o de adultério, já é adúltero; o de traição, já é traidor. O Pai sabe e Eu sei.
Mas Ele me permite que Eu vá. E Eu vou. Porque para isso é que Eu vim.
Mas ainda as colheitas haverão de amadurecer e serão semeadas mais de
uma vez, antes que o Pão e o Vinho sejam dados em alimento aos homens.
– Far-se-á, então, um banquete de júbilo e de paz!
– De paz? Sim. De júbilo? Também. Mas… Oh, Pedro, oh, amigos!
Quantas lágrimas haverá entre o primeiro e o segundo cálice! E somente
depois de ter bebido a última gota do terceiro cálice, é que o júbilo será
grande entre os justos, e a paz firme entre os homens de vontade reta.
– E Tu estarás aqui, não é verdade?
– Eu?? Quando é que se viu faltar o chefe da família ao rito? E não sou
Eu o Chefe da grande família de Cristo?
[30], como se estivesse
111.6Simão Zelote, que até agora não falou, diz
falando a si mesmo:
– “Quem é Este que vem com as vestes tingidas de vermelho? Ele é
belo em sua veste e caminha na grandeza de sua força.” “Sou Eu que falo
com justiça e proteção para que todos se salvem.” “Por que então, tuas
vestes estão tingidas de vermelho, e estão como as de quem pisa no lagar?”
“Somente Eu pisei no lagar. E chegou o ano da minha redenção.”
– Tu compreendeste, Simão –observa Jesus.
– Eu compreendi, meu Senhor.
Os dois se olham; os outros olham para eles assombrados, e entre si
perguntam:
– Mas ele fala das vestes vermelhas vestidas por Jesus agora, ou da
púrpura de rei, da qual Ele se cingirá quando chegar a hora?
Jesus se abstrai, e parece não estar ouvindo mais nada.
Pedro puxa à parte a Simão e lhe pergunta:
– Tu que és sábio e humilde, explica à minha ignorância as tuas
palavras.
– Sim, irmão. O nome dele é Redentor. Os cálices que são do banquete
de paz e de júbilo entre o homem e Deus, entre a terra e o Céu, Ele por si
mesmo os encherá com o seu Vinho, pisando a si mesmo no sofrimento por
amor de todos nós. Por isso, estará presente, não obstante os poderes das
Trevas tenham aparentemente sufocado a Luz que Ele é. 111.7Oh! É preciso
amar muito a este nosso Cristo, porque muito Ele vai ser desamado.
Procuremos, que, na hora do abandono, não nos apanhe e censure aquele
lamento de Davi[31]: “Um bando de cães (e entre eles, nós também)
colocou-se ao meu redor”.
– Tu dizes isto?? Mas nós o defenderemos, à custa de morrer com Ele.
– Nós o defenderemos… Mas nós somos homens, Pedro. E a nossa
coragem desaparecerá, antes ainda que a Ele lhe sejam desconjuntados os
ossos… Sim. Nós faremos como a água gelada do céu que um raio derrete e
transforma em chuva, e que depois o vento congela de novo no chão.
Seremos assim! Seremos assim! A nossa presente coragem de
discípulos — porque o seu amor e a sua proximidade nos tornam resistentes
e cheios de uma ousadia viril — sob o golpe fulminante de satanás e dos
satanases, se derreterá… E, de nós, que sobrará? Após a aviltante e
necessária prova, eis que a fé e o amor nos tornarão de novo firmes e
consistentes seremos então como cristal que não tem medo de ser riscado.
Mas isto será possível, se o amarmos muito, enquanto o tivermos conosco.
Então… sim, penso que não seremos, segundo as Suas palavras, nem
inimigos, nem traidores.
– Tu és sábio, Simão. Eu… sou iletrado. E me envergonho de ter que
perguntar a Ele tantas coisas… E me sinto mal, quando percebo que são
coisas que terminam em lágrimas… Olha o seu rosto: parece que está sendo
lavado por um pranto secreto. Olha os seus olhos. Não estão olhando nem
para o céu, nem para o chão. Estão abertos para um mundo que nós não
conhecemos. O seu modo de andar é todo encurvado e cansado! Parece ter
envelhecido no seu pensar. Oh! Eu não posso vê-lo assim! Mestre! Mestre!
Sorri. Não posso ver-te assim triste. Para mim és querido como um filho, e
eu te daria o meu peito como travesseiro, para fazer-te dormir e sonhar com
outros mundos… Oh! Perdoa, se eu te chamei de “filho”! É que eu te amo,
Jesus.
– Eu sou o Filho… Este é o meu Nome. Mas não estou mais triste.
Estás vendo? Eu sorrio, porque vós sois amigos. 111.8 Eis lá ao longe Jericó,
toda vermelha no pôr-do-sol. Dois de vós vão procurar alojamento. Eu e os
outros iremos esperar-vos ao lado da sinagoga. Ide.
E tudo termina, enquanto João e Judas Tadeu partem à procura de uma
casa que os hospede.
[29] Relha: peça do arado que abre o sulco na terra [N.T.].
[30] diz o que se lê em: Isaías 63,1-4.
[31] lamento de Davi em: Salmos 22,17.
112. Judas Iscariotes surpreendido em Jericó.
Em Betania com Lázaro, que apresenta Maria.
19 de fevereiro de 1945.
112.1 A praça da feira de Jericó, com suas árvores e o vozerio dos
vendedores. A um canto está Zaqueu, o cobrador de impostos, atento às
suas… extorsões legais e ilegais. Deve fazer também um pouco de compra
e venda de coisas preciosas, porque vejo que pesa e avalia joias e objetos de
metais nobres, não sei se dados em lugar de moedas, por não poderem pagar
as impostos de outro modo, ou se são vendidos por outras necessidades.
Agora é a vez de uma delgada mulher, toda coberta com um grande
manto, de uma cor entre a ferrugem e o cinzento. Ela está com o rosto
também coberto por um véu de linho muito espesso e amarelado, que não
permite que se lhe vejam as feições. Não se nota mais do que a esbelteza do
corpo, que assim se mostra também, não obstante aquele manto acinzentado
que a envolve. Deve ser jovem, pelo menos a julgar do mínimo que se vê,
ou seja, uma mão que, por um momento, sai de sob o manto, e deixa ver um
bracelete de ouro, e pelos pés calçados de sandálias, não muito simples, mas
guarnecidas com couro e com um trançado de correias, através do qual só
se veem os dedos, lisos e juvenis, e um pouco dos tornozelos finos e muito
brancos. Ela estende seu bracelete sem dizer nada, recebe o dinheiro sem
fazer objeções, e se vira para ir embora.
Nesse momento, eu percebo que, às suas costas está Iscariotes, que a
observa atentamente, e, quando ela está para ir, lhe diz uma palavra que eu
não consigo entender bem. Mas ela, como se fôsse muda, não responde, e
vai-se, apressada, com seu fardo de panos.
Judas pergunta a Zaqueu:
– Quem é ela?
– Eu não pergunto o nome dos meus clientes, especialmente quando são
como esta mulher.
– É jovem, não é?
– Parece.
– Mas é judia?
– Quem sabe?! O ouro é amarelo em toda parte.
– Deixa-me ver aquele bracelete.
– Tu o queres comprar?
– Não.
– Então, nada feito. Que é que estás pensando? Achas que seja capaz de
falar por ela?
– Queria ver se chegava a entender quem era…
– Isto te interessa tanto? Serás um necromante para adivinhar, ou um
cão sabujo para farejar? Deixa disso, e sossega! Se é assim, ou ela é honesta
e infeliz ou é uma leprosa. Portanto… nada há que fazer.
– Não tenho fome de mulher –responde desdenhoso Judas.
– Pode ser… Mas, com essa sua cara, não creio muito. Bem, se não
queres mais nada, afaste-se, que eu tenho que atender a outros.
Judas sai irritado, e vai perguntar a um vendedor de pão e a outro de
frutas se eles conhecem a mulher, que antes havia comprado deles pão e
maçãs, e se eles sabem onde ela mora.
Não o sabem. E respondem:
– Faz algum tempo que ela vem aqui, cada dois ou três dias. Mas onde
mora, não sabemos.
– Mas, como é que ela fala? –insiste Judas.
Os dois riem, e um deles responde:
– Com a língua.
Judas os insulta, e se vai… 112.2para ir cair justamente no meio do grupo
de Jesus e os seus, que vieram comprar pão e outras coisas para a refeição
diária. A surpresa é recíproca e… não muito entusiástica.
Jesus diz somente: “Estás aqui?”, e enquanto Judas balbucia qualquer
coisa, Pedro dá uma estrepitosa risada e diz:
– Eis, eu sou cego e descrente. Não vejo as vinhas. E não creio no
milagre.
– Mas, que é que estás dizendo? –perguntam dois ou três discípulos.
– Estou dizendo a verdade. Aqui não há vinhas. E não posso acreditar
que Judas, nesta poeira, esteja vindimando, só porque é discípulo do Rabi.
– A vindima acabou faz tempo –responde secamente Judas.
– E Keriot fica daqui a muitas milhas –termina Pedro.
– Tu me atacas inesperadamente. És meu inimigo.
– Não. Sou menos bobo, do que gostarias que eu fosse.
– Basta –impõe Jesus.
Mas fala com severidade. Vira-se para Judas:
– Não pensava ver-te aqui. O que Eu pensava é que, pelo menos, devias
estar em Jerusalém para a Festa dos Tabernáculos.
– Eu vou amanhã. Estava aqui à espera de um amigo da família que…
– Eu te peço: basta.
– Não acreditas em mim, Mestre? Eu te juro que…
– Não te perguntei nada, e te peço que não digas nada… Estás aqui. Isto
basta. Pensas em vir conosco, ou tens ainda outros negócios a fazer?
Responde-me sem rodeios.
– Não… já terminei. Mesmo porque aquele amigo não vem, e eu vou
para a festa em Jerusalém. E Tu, aonde vais?
– À Jerusalém.
– Hoje mesmo?
– Esta tarde estarei em Betânia.
– Na casa de Lázaro?
– Na casa de Lázaro.
– Então, eu também vou.
– Vem, pois, até Betânia. Depois André com Tiago de Zebedeu e Tomé
irão ao Getsêmani para preparar a nossa chegada, e tu irás com eles.
Jesus marca de tal modo as palavras, que ele não reage.
– E nós? –pergunta Pedro.
– Tu, com os meus primos e com Mateus, ireis aonde Eu vos mandar,
para voltardes à tarde. João, Bartolomeu, Simão e Filipe ficarão Comigo, ou
seja, irão para Betânia, para anunciar que o Rabi chegou, e vai falar a eles à
hora nona.
112.3 Vão solícitos, pelos campos despojados. Há um ar de borrasca, não
no céu sereno, mas nos corações, e todos o sentem e prosseguem em
silêncio.
Quando chegam a Betânia — e indo-se de Jericó por aquela estrada, a
casa de Lázaro é uma das primeiras que se encontra — Jesus despede o
grupo que deve ir para Jerusalém, depois o outro que manda a Belém,
dizendo:
– Ide seguros. No meio do caminho encontrareis Isaque, Elias e os
outros. Dizei que estarei em Jerusalém por muitos dias, os espero para
abençoá-los.
Enquanto isso, Simão já bateu na cancela e fez que abrissem. Os servos
dão o aviso, aparecendo então Lázaro.
Judas Iscariotes, que já se havia afastado alguns metros, volta atrás,
com a desculpa de ir dizer a Jesus:
– Eu te desagradei, Mestre. E o compreendi. Perdoa-me –e entrementes
olha de soslaio, da cancela aberta no jardim até o rumo da casa.
– Sim. Está bem. Vai. Vai. Não faças que teus companheiros te fiquem
esperando.
Judas deve então ir. Pedro murmura:
– Ele esperava que houvesse uma contra-ordem.
– Isto nunca, Pedro. Eu sei o que faço. Mas tu, tem compaixão daquele
homem…
– Vou procurar. Mas não prometo… Adeus, Mestre. Vem, Mateus, e
vós dois. Vamos logo.
– A minha paz esteja convosco, sempre.
112.4Jesus entra com os quatro que ficaram e, depois de dar o beijo a
Lázaro apresenta João, Filipe e Bartolomeu, e em seguida os despede,
ficando sozinho com Lázaro.
Vão em direção à casa. Desta vez, sob o bonito pórtico está uma
mulher. É Marta. Não é alta como a irmã, mas tem boa altura, é morena,
enquanto a outra é loira e rosada. Contudo é uma bela jovem, com um
corpo gorducho, e bem modelado, tem a cabeça pequena morena, uma
fronte também morena e lisa,com dois doces olhos negros mansos e
aveludados, por entre cílios escuros. Tem o nariz levemente encurvado para
baixo, e uma boca pequena muito vermelha, entre a cor levemente morena
das faces. Ela está sorrindo, e mostra uns dentes fortes e muito brancos.
Está vestida com uma lã azul escuro, com galões vermelhos e verde-
escuros no pescoço e no fim das amplas mangas, curtas até o cotovelo, das
quais saem outras mangas de um linho muito fino e branco, apertadas nos
punhos por um cordãozinho, que as frisa. Também no alto do peito, na raiz
do pescoço, aparece esta camiseta muito leve e branca, ajustada por um
cordão. Como cinta, usa um lenço azul, vermelho e verde, de tecido muito
fino, que lhe fecha o alto dos quadris e cai, como um laço de franjas, para o
lado esquerdo. É uma veste rica e casta.
– Eu tenho uma irmã, Mestre. Ei-la. É Marta. É boa e piedosa. O
conforto e a honra da família a alegria do pobre Lázaro. Antes era a
primeira e a minha única alegria. Agora é a segunda, porque a primeira és
Tu.
Marta se prostra até o chão e beija a orla da veste de Jesus.
– Paz à boa irmã e à mulher casta. Levanta-te.
Marta se levanta e entra na casa com Jesus e Lázaro. Depois pede
licença para afastar-se dali para os trabalhos da casa.
– É a minha paz… –murmura Lázaro, e olha para Jesus. Um olhar
perscrutador. Mas Jesus demonstra não vê-lo.
112.5 Lázaro pergunta:
– E Jonas?
– Morreu.
– Morreu? Então…
– Eu o tive Comigo no fim da vida. Mas morreu livre e feliz na minha
casa em Nazaré, entre Mim e minha Mãe.
– Doras já havia acabado com ele, antes de entregá-lo a Ti!
– Com canseiras, sim, e também com espancamentos…
– Ele é um demônio, e te odeia. Odeia a todos aquela hiena… Ele não
te disse que te odeia??
– Ele o disse.
– Desconfia dele, Jesus. Ele é capaz de tudo, Senhor… que foi que o
Doras te disse? Ele não te disse que me evitasses? Não te colocou em luz
vergonhosa o pobre Lázaro?
– Creio que tu me conheces o suficiente para compreender que Eu julgo
por Mim mesmo e com justiça e que, quando amo, amo sem pesar se esse
amor me pode fazer bem ou mal, segundo os pontos de vista do mundo.
– Mas aquele homem é feroz, é atroz no ferir e no prejudicar…
Atormentou-me até há poucos dias… Ele veio aqui e me disse… Oh! Eu
que já vivo tão atormentado! Por que querer arrancar-me também a Ti?
– Eu sou o conforto dos atormentados e o companheiro dos
abandonados. Vim a ti também por isto.
– Ah! Então, Tu estás sabendo?? Oh! Que vergonha a minha!
– Não. Por que tua? Eu sei. E daí? Irei amaldiçoar a ti que estás
sofrendo? Eu sou Misericórdia, Paz, Perdão, Amor para todos; e que serei
para os inocentes? Tu não tens o pecado pelo qual sofres. Deveria Eu
enfurecer-me contra ti, se até dela tenho piedade?…
– Tu a viste?
– Eu a vi. Não chores.
Mas Lázaro, com a cabeça apoiada nos braços cruzados sobre uma
mesa, chora e soluça dolorosamente.
Marta aparece e olha. Jesus lhe faz sinal para que se mantenha calada.
E Marta se afasta, com grandes lágrimas que descem silenciosas.
Lázaro se acalma pouco a pouco, e se sente humilhado por sua
fraqueza. Jesus o conforta e, visto que o amigo deseja retirar-se por um
momento, sai para o jardim, e vai passear entre os canteiros, nos quais ainda
resiste uma ou outra rosa purpúrea.
112.6 Pouco depois, Marta o alcança:
– Mestre… Lázaro falou?
– Sim, Marta.
– Lázaro não consegue ter paz, desde que ficou sabendo que Tu sabes e
que a viste….
– Como ficou sabendo?
– Primeiro, foi por aquele homem que estava Contigo, e que se diz teu
discípulo, aquele jovem alto, moreno e sem barba… depois, pelo Doras.
Este último nos chicoteou com o seu desprezo. O outro, somente disse que a
vistes no lago… com os seus amantes…
– Mas, não fiques chorando por isto! Pensavas que Eu ignorasse a
vossa ferida? Eu sabia dela, desde quando estava no Pai… Não te deixes
abater, Marta. Eleva teu coração e tua cabeça.
– Reza por ela, Mestre. Eu rezo… mas não sei perdoar completamente,
e talvez o Eterno rejeite a minha oração.
– Bem disseste: é preciso perdoar, para sermos perdoados e ouvidos. Eu
já rezo por ela. Mas dá-me o teu perdão e o de Lázaro. Tu, boa irmã, podes
falar e obter ainda mais do que Eu. A ferida dele está muito aberta e
ardente, para que mesmo a minha mão possa tocar nela, ainda que de leve.
Tu podes fazê-lo. Dai-me o vosso perdão completo e santo, e Eu farei…
– Perdoar… Não poderemos. Nossa mãe morreu de dor por causa de
suas más ações e… ainda eram coisas leves, em comparação com as de
agora. Eu vejo os sofrimentos de minha mãe… os tenho sempre presentes.
E vejo quanto Lázaro está sofrendo.
– É uma doente, Marta, uma louca. Perdoai.
– É uma endemoninhada, Mestre.
– E, que é a possessão diabólica senão uma doença do espírito, que foi
contagiado por satanás, a ponto de desnaturar-se, transformando-se em um
ser espiritual diabólico? Como explicar de outro modo certas perversões
nos homens? Perversões que tornam o homem muito pior que as feras em
ferocidade, mais libidinosos que os macacos em sua luxúria, e assim por
diante, e fazem dele um híbrido, no qual estão fundidos o homem, o animal
e o demônio? Esta é a explicação daquilo que nos espanta como uma
monstruosidade inexplicável em tantas criaturas. Não chores. Perdoa. Eu
vejo. Porque Eu tenho uma vista, que vê mais longe do que o olho e o
coração. Eu tenho a vista de Deus. Vejo. E te digo: perdoa, porque ela está
doente.
– Cura-a, então!
– Eu a curarei. Tem fé. Eu te farei feliz. Mas tu perdoa e diz ao Lázaro
que faça o mesmo. Perdoa. Ama-a ainda. Aproxima-te dela. Fala-lhe, como
se ela fôsse como tu. Fala-lhe de Mim…
– Como queres que entenda a Ti, Santo?
– Parecerá não compreender. Mas, só o meu Nome é salvação. Faz que
ela pense em Mim, e me nomine. Oh! satanás foge, quando um coração
pensa em meu Nome. Sorri, Marta, diante desta esperança. Olha para esta
rosa. A chuva dos dias passados a havia maltratado, mas o sol de hoje, olha,
a fez desabrochar, e ela está ainda mais bonita, porque a chuva que ficou
entre uma pétala e outra a enfeita com diamantes. Assim será a vossa
casa… Pranto e dor agora, e depois… alegria e glória. Vai. Diz isto a
Lázaro, enquanto Eu, na paz do teu jardim, rezo ao Pai por Maria e por
vós…
Tudo termina assim.
113. Volta a Betânia depois da Festa dos
Tabernáculos.
20 de fevereiro de 1945.
113.1 Não sei como farei para escrever tanto, porque sinto que Jesus quer
apresentar-se com seu Evangelho vivido, e sofri a noite inteira para recordar
a visão seguinte, da qual rabisquei as palavras ouvidas como pude, para não
me esquecer delas.
[…].
113.2 Agora pois, e são 11 horas, vejo o seguinte:
Jesus está de novo na casa de Lázaro. Pelo que ouço, compreendo que a
Festa dos Tabernáculos já aconteceu, e que Jesus voltou a Betânia, por
insistência do seu amigo, que nunca quereria ficar separado de Jesus.
Compreendo também que Jesus está na casa de Lázaro somente com Simão
e João, enquanto que os outros estão espalhados pela região. E compreendo
enfim, que houve um reencontro de amigos, ainda fiéis a Lázaro, e por ele
convidados para fazê-los conhecer Jesus.
Tudo isso compreendo, porque Lázaro ilustra ainda melhor as
características morais de cada um.
113.3 Assim fala de José de Arimateia, definindo-o “homem justo e
verdadeiro israelita.” Ele diz:
– Não ousa dizer, porque teme o Sinédrio, do qual faz parte, e que já te
odeia, que espera em Ti, o Predito pelos Profetas. Por sua própria iniciativa,
pediu-me para vir aqui conhecer-te e ver o que por si mesmo pode pensar de
Ti, pois não lhe parece justo o que os teus inimigos diziam de Ti… Até da
Galileia vieram alguns fariseus para te acusarem de pecado. Mas José se
pronunciou assim: “Quem faz milagres, tem Deus consigo. Quem tem
Deus, não pode estar em pecado. Ao contrário, não pode ser outro, senão
alguém a quem Deus ama.” E gostaria de ver-Te em Arimateia em sua casa.
Mandou que Te dissesse isto. E eu te peço, escuta o pedido meu e dele.
– Vim para os pobres e os sofredores da alma e do corpo, mais do que
para os poderosos, que veem em Mim somente um objeto de interesse. Mas
irei à casa do José. Não tomei partido contra os poderosos. Um dos meus
discípulos — aquele que por curiosidade e pela importância que arroga a si
mesmo, foi até à tua casa sem ordem minha… mas é jovem, e por isso é
desculpado — pode testemunhar o meu respeito pelas classes poderosas,
que se autoproclamam “as tutoras da Lei” dando a entender que são
sustentadoras do Altíssimo. Oh! O Eterno por si próprio se sustém.
Nenhum dos doutores jamais teve o respeito que Eu tive para com os
oficiais do Templo.
– Eu sei disso como sabem muitos outros… Mas somente os melhores
dão a este ato o nome certo. Os outros… o chamam de “hipocrisia.”
– Cada um dá o que tem em si, Lázaro.
– É verdade. Mas, vai à casa de José. Ele te quereria lá no próximo
sábado.
– E Eu irei. Podes mandar dizer-lhe isto.
113.4 – O Nicodemos também é bom. Aliás… me disse… Posso contar-te
uma crítica sobre um dos teus discípulos?
– Fala. Se é justo, dirá justiça; se for injusto, estará criticando uma
conversão, porque o Espírito dá luz ao espírito do homem, quando o
homem é reto; e o espírito do homem, guiado pelo Espírito de Deus, tem
uma sabedoria sobre-humana, e lê a verdade dos corações.
– Disse-me: “Não critico a presença dos ignorantes, nem dos
publicanos entre os discípulos do Cristo. Mas não julgo digno de estar entre
os seus, aquele que não sei se está com Ele ou contra Ele, como um
camaleão, que toma a cor e o aspecto do que está perto dele.”
– Este é Iscariotes. Eu sei. Mas, acreditai todos: a juventude é um vinho
que fermenta, e depois se depura. Ao fermentar, cresce e espuma, e
transborda por todos os lados pela exuberância do vigor. Vento de
primavera, vira para todos os lados, e parece um louco, descabelando as
árvores. Mas é a ele que precisamos agradecer por fecundar as flores. Judas
é vinho e vento. Mas não é mau. O seu modo confunde e perturba, até
choca e faz sofrer. Mas não é completamente mau… é um potro de sangue
quente.
– Tu o dizes… Eu não sou competente para julgá-lo. 113.5Dele ficou-me
a amargura de ter-me dito que Tu a tinhas visto…
– Mas aquela amargura se mitiga agora com mel, diante da minha
promessa…
– Sim. Mas eu me lembro daquele momento… O sofrimento não se
esquece, mesmo após o seu término.
– Lázaro, Lázaro! Estás te perturbando demais… e por coisas
mesquinhas! Deixa que passem os dias: são bolhas de ar que desaparecem,
e não voltam, com suas cores alegres ou tristes. E olha para o Céu. Ele não
se desvanece: é para os justos.
– Sim, Mestre e Amigo. Não quero julgar a permanência de Judas
Contigo, nem o teu querer tê-lo Contigo. Vou rezar para que ele não te
prejudique.
Jesus sorri e tudo termina.
114. No banquete de José de Arimateia,
Presentes também Gamaliel e Nicodemos.
21 de fevereiro de 1945.
114.1 Arimateia ainda é montanhosa. Não sei por que, eu imaginava que
fôsse plana. Ao invés, ela está sobre os montes, ainda que eles vão
declinando para a planície que, em certas curvas da estrada aparece, fértil,
do lado do ocidente, e desaparece no horizonte, nesta manhã de novembro,
em uma cerração baixa, semelhante a uma extensão de águas sem limites.
Jesus está com Simão e Tomé. Não tem Consigo outros apóstolos.
Tenho a impressão de que Ele sabiamente soubesse as reações dos que irá
se aproximar e, conforme os ambientes, leve Consigo aqueles que possam
ser aceitos, sem provocar a antipatia dos seus hospedeiros. Estes judeus
devem ser mais suscetíveis do que donzelas românticas…
Ouço falar de José de Arimateia, e Tomé, que talvez o conheça muito
bem, vai mostrando as amplas e belas propriedades dele, que se estendem
pela montanha, especialmente do lado de Jerusalém, pelo caminho que da
capital vem para Arimateia e liga depois este lugar a Jope. Ouço isso, e
Tomé também falando muito bem dos campos que José possui ao longo das
estradas da planície.
– Mas, pelo menos aqui, os homens não são tratados como animais!
Oh! Aquele Doras! –diz Simão.
De fato, aqui os trabalhadores são bem alimentados e bem vestidos, e
têm aquele ar de satisfação por estarem bem. Saúdam-no respeitosamente,
porque certamente já estão sabendo quem é aquele Homem alto e bonito
que anda pelos campos de Arimateia em direção à casa do seu patrão, e o
observam, falando entre si em voz baixa.
114.2 Quando aparece a casa de José, um dos servos, depois de uma
profunda inclinação, pergunta:
– És Tu o Rabi esperado?
– Sou Eu –responde Jesus.
O homem o saúda profundamente e vai correndo avisar ao seu patrão.
Com efeito, antes mesmo que Jesus chegue à área em que está a
casa — toda cercada por uma alta sebe de sempre-verdes, no lugar do alto
muro que há junto à casa de Lázaro, separando-a da estrada, mas sem deixar
de ser uma continuação do jardim, muito arborizado, mas agora bastante
despojado de folhas, cercando a casa — José de Arimateia, em suas amplas
vestes com franjas, vai ao encontro de Jesus. Inclina-se profundamente,
com os braços cruzados sobre o peito. Não é a saudação humilde de quem
reconhece em Jesus o Deus feito Carne, e que se humilha em uma
genuflexão até o chão e no beijo aos pés ou na orla da veste, mas não deixa
de ser uma grande saudação de respeito. Jesus também se inclina
igualmente, e depois dá a sua saudação de paz.
– Entra, Mestre. Fizeste-me feliz, aceitando meu convite. Eu não
esperava de Ti tanta condescendência.
– Por quê? Eu vou também à casa de Lázaro e…
– Lázaro é teu amigo… eu sou um desconhecido.
– Tu és uma alma que procura a Verdade. Por isso, a Verdade não te
rejeita.
– Tu és a Verdade?
– Eu sou o Caminho a Verdade e a Vida, quem me ama e me segue, terá
em si o Caminho certo, a Vida feliz e conhecerá a Deus; porque Deus, além
de ser Amor e Justiça, é Verdade.
– És um grande Doutor. Cada palavra tua exala sabedoria.
Depois, se vira para Simão:
– Estou contente por teres, depois de uma ausência tão longa, voltado à
minha casa…
– Não estive ausente por minha vontade. Tu sabes que sorte eu tive, e
quanto pranto houve na vida do pequeno Simão que teu pai amava.
– Eu sei. E creio que tu saibas que de mim nunca saiu uma palavra
contra ti.
– Sei tudo. O meu servo fiel me disse que também a ti sou devedor por
terem respeitado os meus haveres. Deus te pague por isso.
– Tinha algum prestígio no Sinédrio, e o usei para ajudar, com justiça, a
um amigo de minha casa.
– Muitos eram amigos de minha casa, e muitos tinham algum prestígio
no Sinédrio. Mas não eram justos como tu…
– E este, quem é? Para mim, não é novo… mas não me lembro de onde
o conheço…
– Eu sou Tomé, chamado o Gêmeo…
– Ah! Sim! Vive ainda o velho pai?
– Está vivo. Vive em seus negócios, com os irmãos. Eu o deixei para
acompanhar o Mestre. Mas ele está contente com o que eu fiz.
– É um verdadeiro israelita, e, desde que chegou a crer que Jesus de
Nazaré é o Messias, não pode deixar de ser feliz, por estar seu filho entre os
prediletos Dele.
114.3 Estão já no jardim, junto à casa.
– Eu entretive o Lázaro. Ele está na biblioteca, lendo um resumo das
últimas sessões do Sinédrio. Não queria parar aqui, porque… Eu sei que Tu
já estás sabendo… Por isso é que ele não queria parar aqui. Mas eu lhe
disse: “Não. Não é justo que tu te envergonhes assim. Em minha casa
ninguém te ofenderá. Fica. Quem se isola fica sozinho contra todos os
outros. E visto que o mundo é mais mau do que bom, o solitário fica
abatido e pisado.” Terei falado bem?
– Falaste bem, e fizeste bem –responde Jesus.
– Mestre… hoje estará aqui Nicodemos e… Gamaliel. Isto te aborrece?
– Por que haveria de me aborrecer? Reconheço a sabedoria dele.
– Sim. Ele tinha vontade de ver-te e… queria ficar intransigente no que
diz. Sabes… são ideias. Diz ele que o Messias já o viu, e que está esperando
o sinal que Ele lhe prometeu, quando se lhe manifestou. Mas diz também
que Tu és “um homem de Deus.” Não diz “o Homem.” Diz “um homem de
Deus.” São sutilezas rabínicas, não é mesmo? Não ficas ofendido com elas,
não é?
Jesus responde:
– Sutilezas. Falastes bem. É preciso deixar que assim façam. Os
melhores se podarão por si mesmos de todas as ramagens inúteis, que
produzem tantas folhas e nenhum fruto, e virão a Mim.
– Eu te quis dizer as palavras dele, porque certamente ele também irá
dizê-las a Ti. Ele é muito franco –observa José.
– É uma virtude rara, e que Eu aprecio muito –responde Jesus.
– Sim. Disse-lhe também: “Mas com o Mestre está Lázaro de Betânia.”
Disse assim porque… sim, em suma, por causa da irmã dele. Mas Gamaliel
me respondeu: “Ela estará presente? Não? E então? O barro cai da veste que
não está mais no barro. Lázaro o sacudiu de si. E não contamina a minha
veste. Além disso, penso que, se na sua casa vai um homem de Deus, eu
também, que sou doutor da Lei, posso aproximar-me dele.”
– Gamaliel julga bem. É fariseu e doutor até a medula, mas ainda é
honesto e justo.
– Estou contente por ouvir-te dizer isto. 114.4Mestre, eis Lázaro.
Lázaro se inclina para beijar a veste de Jesus. Sente-se feliz por estar
com Ele, mas claramente se vê a sua ansiedade enquanto espera os
convidados. Tenho a certeza de que o pobre Lázaro, além de seus tormentos
já conhecidos pelos homens, porque transmitidos pela história, tem que
passar por mais esse sofrimento, ainda não conhecido, nem considerado
pela maior parte, e que é o sofrimento moral do tremendo tormento seguinte
pensamento: “Que dirão de mim? O que pensam de mim? Como me
consideram? Vão ferir-me com palavras ou olhares de desprezo?” Aguilhão
que atormenta todos aqueles que têm alguma mancha em sua família.
Enfim, tendo entrado na faustosa sala, onde as mesas estão preparadas,
só estão esperando Gamaliel e Nicodemos, visto que outros quatro
convidados já chegaram. Ouço-os sendo apresentados com seus respectivos
nomes: Félix, João, Simão e Cornélio.
Há um grande barulho de servos que acorrem à chegada de Nicodemos
e Gamaliel, o sempre imponente Gamaliel, do esplêndido hábito branco
fiado, que ele porta com a majestade de um rei. José precipita-se ao seu
encontro, e a saudação entre os dois é de um obséquio pomposo. Jesus
também se inclinou e se inclina diante do grande rabino, que o saúda com
estas palavras: “O Senhor esteja Contigo”, à qual Jesus responde:
– E a sua paz seja sempre tua companheira.
Lázaro também se inclina, e assim fazem os outros.
114.5 Gamaliel toma lugar no centro da mesa, entre Jesus e José. Depois
de Jesus, está Lázaro e, depois de José, Nicodemos. Após as preces rituais,
que Gamaliel pronuncia, em seguida a uma troca oriental de cortesias entre
as três principais personagens, isto é, Jesus, Gamaliel e José, inicia-se a
refeição.
Gamaliel está cheio de dignidade, mas não é soberbo. Escuta mais do
que fala. Mas pode-se ver que ele medita sobre cada palavra de Jesus, e
frequentemente o olha com seus olhos fundos, escuros e severos. Quando
Jesus se cala, por ter esgotado um assunto, é Gamaliel que, com uma
pergunta oportuna, reacende a conversação.
Lázaro, a princípio, está um pouco confuso. Mas depois cria coragem, e
também começa a falar.
Não se fazem alusões diretas à personalidade de Jesus, até quase o fim
da refeição. Então se levanta uma discussão entre o chamado Félix e
Lázaro, ao qual depois se une Nicodemos, apoiando-o, e, finalmente, o
chamado João, discutem a respeito da prova, a favor ou contra alguém, e
que são os milagres.
Jesus fica calado. De vez em quando sorri, com um sorriso misterioso,
mas fica calado. Gamaliel também está calado, com um cotovelo apoiado
na cama e fita intensamente Jesus. Parece querer decifrar alguma palavra
sobrenatural, incisa na pele pálida e lisa do rosto magro de Jesus. Parece
que analisa cada fibra desse rosto.
114.6 Félix sustenta que é incontestável a santidade de João, e, dessa
indiscutida e indiscutível santidade, tira uma conclusão não favorável a
Jesus Nazareno, autor de muitos e conhecidos milagres. Ele diz:
– O milagre não é prova de santidade, porque a vida do profeta João
não tem milagres. Contudo, ninguém em Israel leva uma vida igual a sua.
Ele não tem banquetes, nem amizades, nem comodidades. O que ele tem
são sofrimentos e detenções, pela honra da Lei. Ele tem a solidão, porque, é
verdade que tem discípulos, mas não convive com eles, e encontra culpas
até nos mais honestos, e sobre todos troveja. Enquanto… ah! enquanto o
Mestre de Nazaré, aqui presente, tem, é verdade, feito milagres, mas vejo
que também Ele ama o que a vida oferece, e não despreza amizades, e
perdoa Jesus se um dos Anciãos do Sinédrio te diz, que é fácil demais em
dar, em nome de Deus, perdão e amor até a conhecidos pecadores e a
marcados com a maldição. Não deverias fazer isso.
Jesus sorri e nada fala. Lázaro responde por Ele:
– O nosso poderoso Senhor pode dirigir seus servos como dono, como
e onde quer. A Moisés concedeu o milagre. A Aarão, seu primeiro
pontífice, não o concedeu[32]. E então? Que é que concluis disto?
Um é mais santo do que o outro?
– Certamente –responde Félix.
– Então, o mais santo é Jesus, que faz milagres.
Félix se sente desorientado. Mas se agarra a uma desculpa:
– À Arão já tinha sido dado o pontificado. Bastava.
– Não, amigo –responde Nicodemos–. O pontificado era uma missão.
Santa, mas não mais que uma missão. Nem sempre e nem todos os
pontífices de Israel foram santos. Contudo, foram pontífices, mesmo
quando não foram santos.
– Não quererás dizer que o Sumo Sacerdote seja um homem privado da
graça!!! –exclama Félix.
– Félix… não vamos entrar no fogo que queima. Eu, tu, Gamaliel, José,
Nicodemos, todos nós sabemos muitas coisas… –diz o que é chamado João.
– Mas como? Mas como? Gamaliel, toma a palavra!!!
Félix está escandalizado.
– Se ele é justo, dirá a verdade, que tu não queres ouvir –dizem os três
que estão inflamados contra Félix.
José procura apaziguar. Jesus está calado e também Tomé, o Zelote e o
outro Simão, amigo de José. Gamaliel parece estar brincando com as franjas
de seu hábito, mas está olhando para Jesus de alto a baixo.
– Fala então, Gamaliel –grita Félix.
– Sim. Fala! Fala! –dizem os três.
– Eu digo: as fraquezas da família devem ficar escondidas –diz
Gamaliel.
– Isso não é resposta! –grita Félix–. Parece que tu confessas que há
culpas na casa do Pontífice!
– É boca da qual sai a verdade! –dizem os três.
114.7 Gamaliel se endireita, e se volta para Jesus:
– Aqui está o Mestre, que eclipsa até os mais doutos. Que fale Ele sobre
o assunto.
– Tu o queres. Eu obedeço. Eu digo: O homem é homem. A missão está
além do homem. Mas o homem investido de uma missão torna-se capaz de
cumpri-la, como um super-homem, quando, por uma vida santa, tiver Deus
como amigo. É Ele quem disse: “Tu és sacerdote, segundo a ordem por
Mim dada.” Que é que está escrito no racional? “Doutrina e Verdade.” Isto
é o que deveriam ter os que são pontífices. À Doutrina chega-se com uma
constante meditação dirigida ao conhecimento do Sapientíssimo. À Verdade
com uma fidelidade absoluta ao Bem. Quem trava amizade com o Mal,
entra na Mentira e perde a Verdade.
– Muito bem. Respondeste como um grande rabino. Eu, Gamaliel, digo
a Ti. Estás acima de mim.
– Explique então Esse aí, por que é que Arão não fez milagres, e
Moisés, sim –fala, aos gritos, Félix.
Jesus responde prontamente:
– Porque Moisés devia impor-se sobre a massa escura e pesada, e até
contrária dos israelitas, e conseguir ter um ascendente sobre eles, de tal
modo que pudesse dobrá-los à vontade de Deus. O homem é o eterno
selvagem e a eterna criança. Fica admirado de tudo o que sai da regra. O
milagre é isso. É uma luz agitada diante das pupilas escurecidas, é um som
que soa perto dos ouvidos tapados. Ele desperta. Atrai. Faz dizer: “Aqui
está Deus.”
– Estás dizendo isto a teu próprio favor –rebate Félix.
– A meu favor? E que é que Eu acrescento a Mim mesmo, fazendo
milagre? Poderei parecer mais alto, se puser um fio de erva sob o meu pé?
Isto é que é o milagre, em relação à santidade. Há santos que nunca fizeram
milagres. Há magos e necromantes que, por meio de forças obscuras, os
fazem, ou seja, fazem coisas sobre-humanas, mas que santas não são, pois
eles são demônios. Eu serei Eu, mesmo se não fizer mais milagres.
– Muito bem! És grande, Jesus! –aprova Gamaliel.
– E quem é, em tua opinião, este “grande”? –insiste Félix, virando-se
para Gamaliel.
– O maior profeta que eu conheço, tanto em suas obras, como em suas
palavras –responde ele.
– É o Messias, eu te digo, Gamaliel. Acredita, tu que és sábio e justo –
diz José.
– Como? Tu também, reitor dos judeus, tu, o Ancião, nossa glória, cais
nesta idolatria de um homem? Mas quem te prova que Ele é o Cristo? Eu
não acreditarei, nem se o vir fazer milagres. E por que diante de nós não faz
um? Responde, tu que o louvas, e tu, que o defendes –diz Félix a Gamaliel
e a José.
– Não o convidei para passatempo de amigos, e peço que te lembres de
que Ele é meu hóspede –responde sério José.
Félix se levanta, e vai embora, irritado e de um modo grosseiro.
114.8 Fazem silêncio. Jesus se volta para Gamaliel:
– E tu, não pedes milagres para creres?
– Não serão os milagres de um homem de Deus que haverão de tirar-me
o espinho que trago no coração, e que são as três perguntas que sempre
permanecem sem resposta.
– Quais são as perguntas?
– Está vivo o Messias? Era aquele? É este?
– É Ele, eu te digo, Gamaliel –exclama José–. Não sentes que Ele é
santo? Diferente? Poderoso? Sim? E então? Que esperas para crer?
Gamaliel não responde a José. Dirige-se a Jesus:
– Uma vez… (que isto não te desagrade Jesus, se sou persistente em
minhas ideias…). Uma vez quando ainda era vivo o grande e sábio Hilel, eu
acreditei, junto com ele, que o Messias estivesse em Israel. Grande cintilar
de um sol divino naquele dia frio de um rigoroso inverno! Era Páscoa… O
homem tremia pelas searas enregeladas… Eu disse, depois de ter ouvido
aquelas palavras: “Israel está salvo! Desde agora, riquezas nos campos e
bênçãos nos corações! O Esperado se manifestou com o seu primeiro
fulgor.” E não errei. Todos podeis lembrar-vos que colheita houve naquele
ano embolísmico, de treze meses, que neste ano se repete…
– Que palavras ouviste? Ditas por quem?
– Por alguém… pouco mais que um menino… mas Deus brilhava em
seu rosto inocente e suave… São dezenove anos que penso, lembrando-
me… e procuro ouvir de novo aquela voz… que falava palavras de
sabedoria… Que parte da terra a estará acolhendo agora? Eu penso: … “Era
Deus. Em forma de um menino, para não aterrorizar o homem. E como um
relâmpago que, percorrendo o firmamento, rápido aparece do oriente ao
ocidente, de norte a sul, Ele, o Divino, percorre a terra, em sua veste de
misericordiosa beleza, com voz e rosto de menino para dizer aos homens:
‘Eu sou’.” Assim, penso… “Quando Ele voltará a Israel?? Quando?”
“Quando Israel for um altar para o seu pé divino”; e o coração geme, vendo
a abjeção de Israel: “Nunca”. Oh! Que dura resposta! E verdadeira! Pode a
Santidade descer em seu Messias, enquanto a abominação estiver entre nós?
– Ela pode, e faz, porque é Misericórdia –responde Jesus.
114.9 Gamaliel o olha pensativo, perguntando depois:
– Qual é o teu verdadeiro Nome?
E Jesus, levantando-se, imponente, diz:
– Eu sou quem sou. O Pensamento e a Palavra do Pai. Sou o Messias
do Senhor.
– Tu? Não o posso crer. Grande é a tua santidade. Mas aquele Menino,
no qual eu creio, disse assim naquele tempo: “Eu darei um sinal… Estas
pedras tremerão, quando chegar a minha hora.” Eu estou esperando aquele
sinal, para crer. Podes dar-me esse sinal, para persuadir-me de que és Tu o
Esperado?
Os dois, agora ambos em pé, altos, solenes, um com um hábito amplo
de linho cândido, e o outro com um hábito simples de lã vermelho-escuro;
um idoso, o outro jovem; ambos com olhos dominadores e profundos,
olham-se fixamente.
Depois Jesus abaixa o braço direito, que Ele mantinha dobrado sobre o
peito, e como se estivesse jurando, exclama:
– Tu queres esse sinal? Pois o terás! Repito aquelas antigas palavras:
“As pedras do Templo do Senhor tremerão às minhas últimas palavras.”
Espera esse sinal, ó doutor de Israel, homem justo, e depois crê, se queres
ter perdão e salvação. Serias feliz por antecipação, se pudesses crer antes do
sinal! Mas não podes. Séculos de crenças erradas a respeito de uma
promessa justa, e montões de orgulho, fazem a ti um baluarte diante da
Verdade e da Fé.
– Dizes bem. Eu vou esperar aquele sinal. Adeus. O Senhor esteja
Contigo.
– Adeus, Gamaliel. O Espírito eterno te ilumine e conduza.
Todos saúdam Gamaliel, que vai embora com Nicodemos, com João e
Simão (sinedrita). Ficam Jesus, José, Lázaro, Tomé, Simão Zelote e
Cornélio.
– Não se dobra!! Gostaria de tê-lo entre os teus discípulos. Seria um
peso decisivo a teu favor… mas não consigo –diz José.
– Não te aborreças por isso. Nenhum peso será capaz de salvar-me da
tempestade que já se aproxima. Mas Gamaliel, se não se dobrar a favor,
tampouco se dobrará contra o Cristo. É um que espera…
Tudo termina.
[32] não o concedeu. De fato os prodígios operados por Aarão foram concedidos pelo Senhor não a ele, mas a Moisés com a
ordem de operar-lhes através da ação de Aarão (Êxodo 7-8). Mesmo se assim não fosse, o Senhor favoreceu a Aarão não enquanto
“seu primeiro pontífice”, mas porque lhe fez cumprir prodígios antes da sua consagração a sumo sacerdote (Êxodo 28-29; Levítico
8-9). Ainda de Aarão se fala, para além de alguns passos referentes a Moisés, em 342.6 e 642.9.
115. Cura do menino atingido pelo cavalo
de Alexandre. Jesus expulso do Templo.
22 de fevereiro de 1945.
115.1 Vejo o interior do Templo. Jesus está, com os seus, perto do Templo
verdadeiro e propriamente dito, ou seja, do Lugar Santo onde só entravam
os sacerdotes. É um bonito e grande pátio, ao qual se chega por um átrio, e
do qual, passando-se por um outro ainda mais opulento, vai-se para o alto
terraço no qual está o lugar do Santo.
É inútil! Se eu visse mil vezes o Templo, e o descrevesse duas mil, seja
pela complexidade do lugar, seja por minha ignorância dos nomes e pela
incapacidade de fazer um gráfico, seria sempre incompleta, ao descrever
este pomposo e labiríntico lugar…
Parece que estão rezando. Muitos outros israelitas também, todos
homens, ali estão, rezando cada um em particular. Desce a tarde antecipada
por uma plúmbea jornada de novembro.
Há um vozerio, no meio do qual sobressai a voz estentórea e irritada de
um homem, que está blasfemando até em latim, misturando-a com
estridentes e agudas palavras hebraicas. Há uma confusão que parece uma
luta, e uma voz feminina aguda, que grita:
– Oh! Deixai-o passar, pois diz que Ele o salvará.
O recolhimento do suntuoso pátio é rompido. Muitas cabeças se viram
em direção ao ponto de onde estão vindo as vozes. Vira-se também Judas
Iscariotes, que também se encontra com os discípulos. Alto como ele é, vê o
que está acontecendo e diz:
– Um soldado romano está lutando para entrar! Está violando, já violou
o lugar sagrado! Que horror!
Muitos fazem eco às suas palavras.
– Deixa-me passar, cães judeus! Aqui está Jesus. Eu sei! Eu o quero!
De vossas pedras obtusas, nem sei o que fazer. O menino está morrendo, e
Ele o salva. Fora! Hienas hipócritas…
Jesus, que ao compreender que estava sendo desejado, logo se dirigiu
para o átrio, sob o qual se agitava a briga, aproxima-se e diz:
– Paz e respeito ao lugar e à hora da oferta!
– Oh! Jesus! Salve! Eu sou o Alexandre. Abri caminho, ó cães!
E Jesus sereno:
– Sim, abri caminho. Eu levarei para outro lugar o pagão que não sabe
o que é para nós este lugar.
O círculo se abre e Jesus alcança o soldado, que está com a couraça
ensanguentada:
– Estás ferido? Vem. Aqui não se pode ficar, e o conduz para um outro
pátio.
– Não sou eu que estou ferido. É um menino… O meu cavalo, perto da
Fortaleza Antônia, me tomou as rédeas da mão, e o atropelou. Os cascos lhe
abriram a cabeça. Próculo disse: “Não há nada a fazer!” Eu… não tenho
culpa… mas foi por causa de mim que aconteceu, e a mãe está aí
desesperada. Eu te tinha visto passar… e vi que vinhas aqui… Eu disse:
“Próculo não, mas Ele sim.” “Mulher, vem. Jesus o curará.” Aqueles
dementes me detiveram… e talvez o menino já esteja morto.
– Onde está ele? –pergunta Jesus.
– Debaixo daquele pórtico, no colo da mãe –responde o soldado, que já
foi visto na porta dos Peixes.
– Vamos.
E Jesus vai mais rápido ainda, seguido pelos seus e por um
acompanhamento de muitas pessoas.
115.2 Sobre os degraus que limitam o pórtico, encostada a uma coluna,
está uma mulher angustiada, que chora sobre seu filhinho moribundo. O
menino está lívido, com os lábios roxos entreabertos, no estertor
característico dos que foram lesados no cérebro. Uma faixa, tingida de
vermelho na nuca e na fronte, lhe envolve a cabeça.
– A cabeça está aberta na frente e atrás. O cérebro está à vista. Naquela
idade o cérebro é tenro e o cavalo era grande e estava com ferradura nova –
explica Alexandre.
Jesus está junto à mulher, que nem falando está mais, agonizante sobre
o filho moribundo. Jesus põe a mão sobre a cabeça dela.
– Não chores, mulher –diz com toda a suavidade de que é capaz, ou
seja, infinita–. Tem fé. Dá-me o teu menino.
A mulher o olha apatetada. A multidão impreca contra os romanos e se
compadece do moribundo e da mãe. Alexandre fica entre o contraste da ira
pelas acusações injustas, a piedade e a esperança.
Jesus se assenta perto da mulher, pois vê que ela não sabe mais fazer
gesto algum. Inclina-se. Pega entre as suas longas mãos a pequena cabeça
ferida, inclina-se mais ainda, dobra-se sobre aquela pequena face cor de
cera, sopra sobre a boquinha agonizante… Alguns instantes. Depois, há um
sorriso, que mal se vê entre os cachos de cabelo caídos para a frente.
Endireita-se. O menino abre os olhinhos e faz um gesto para sentar-se. A
mãe teme que seja a última tentativa dele e grita segurando-o sobre o seu
coração.
– Deixa-o andar, mulher. Menino, vem a Mim –diz Jesus, ainda sentado
ao lado da mulher, e estendendo-lhe os braços com um sorriso. E o menino
se joga seguro naqueles braços, e chora com um pranto não de dor, mas do
medo que volta, à medida que recomeça a pensar.
– O cavalo não está aqui, não –tranquiliza-o Jesus–. Tudo já passou.
Está te fazendo mal aqui?
– Não. Mas estou com medo, estou com medo!
– Estás vendo, mulher. O que ele tem é só medo. Já vai passar. Trazei-
me água. O sangue e a faixa o estão impressionando. Dá-me uma das maçãs
que tens, João… Pega, pequenino. Come. É gostosa…
Levam-lhe água, aliás é o soldado Alexandre que a leva em seu elmo.
Jesus começa a soltar a faixa.
Alexandre e a mãe dizem:
– Não! Ressurge… Mas a cabeça está aberta!
Jesus sorri e solta a faixa. Uma, duas, três, oito voltas. Põe de lado as
tiras ensanguentadas. Da metade da fronte até a nuca, ao lado direito, há
somente um grumo de sangue ainda fresco entre os cabelinhos do menino.
Jesus molha uma faixa e lava.
– Mas debaixo está a ferida… se tiras o grumo voltará a sangrar –
insiste Alexandre.
A mãe tapa os olhos para não ver.
Jesus lava, lava, lava. O grumo solta-se… eis os cabelinhos limpos.
Estão úmidos, mas debaixo não há ferida. Também a fronte está sã. Só há
um pequeno sinal vermelho onde originou-se a cicatriz.
O povo grita maravilhado. A mulher ousa olhar e quando vê, não se
contém mais. Desaba inteira sobre Jesus e o abraça junto ao menino e
chora. Jesus suporta aquela expansão e aquela chuva de lágrimas.
– Eu te agradeço Jesus –diz Alexandre–. Eu estava entristecido por ter
matado este inocente.
– Tiveste bondade e confiança. Adeus, Alexandre. Vai para o teu
serviço.
115.3 Alexandre está para ir embora, quando chegam, como uns furacões,
alguns oficiais do Templo e sacerdotes.
– O Sumo Sacerdote, por meio de nós, te intima a saíres do Templo, Tu
e o pagão profanador. Já! Perturbastes a oferta do incenso. Este entrou onde
é lugar de Israel. Não é a primeira vez que, por tua causa, se forma esse
barulho no Templo. O Sumo Sacerdote e com ele os Anciãos de turno, te
ordenam que não ponhas mais os pés aqui dentro. Vai, e fica com os teus
pagãos.
– Nós não somos cães. Ele diz: “Há um só Deus, Criador dos judeus e
dos romanos.” Se esta é a sua Casa, e se eu fui criado por Ele, poderei
entrar aqui eu também –responde Alexandre, magoado pelo desprezo com
que os sacerdotes dizem “pagãos.”
– Fica calado, Alexandre. Eu falo –intervém Jesus que, depois de ter
beijado o pequeno o devolveu à sua mãe e se pôs de pé.
Ele diz ao grupo que o quer expulsar:
– Ninguém pode proibir a um fiel, a um verdadeiro israelita, que
ninguém pode provar que é réu de pecado, que venha rezar junto ao Santo.
– Mas de vir explicar a Lei no Templo, sim. Tu te apoderaste deste
direito sem o teres, e sem pedi-lo. Quem és? Quem te conhece? Como
podes usurpar um nome e um lugar que não é teu?
115.4 Jesus olha para eles … depois diz:
– Judas de Keriot, vem para a frente.
Judas não parece entusiasta do convite. Procurara eclipsar-se, mal
chegaram os sacerdotes e os oficiais do Templo (os quais, porém, não
trajam uniforme militar: deve ser um cargo civil). Mas deve obedecer
porque Pedro e Judas de Alfeu empurram-no para frente.
– Judas, responde-me. E vós, olhai para ele. Vós o conheceis. Ele é do
Templo. Não o conheceis?
Eles devem responder: “Sim”.
– Judas, que foi que Eu te mandei fazer[33] quando falei aqui pela
primeira vez? E tu, de que foi que ficaste admirado? E que foi que Eu te
disse em resposta? Fala, e sê sincero.
– Ele me disse: “Chama o oficial de turno, para que Eu lhe possa pedir
licença para instruir.” E Ele deu o seu nome e a prova de ser quem era, e de
qual era a sua tribo… e eu me admirei, por julgar ser inútil aquela
formalidade, visto que Ele se diz o Messias. E Ele me disse: “É necessário,
e quando chegar a hora, lembra-te de que Eu não faltei com o respeito para
com o Templo e para com os seus oficiais.” Sim. Disse assim. E em
testemunho da verdade, eu o devo dizer.
Judas no início falava um pouco incerto, meio aborrecido. Mas depois,
com um daqueles seus impulsos bruscos, próprios dele, tornou-se convicto,
e quase arrogante.
– Admiro-me muito de que tu o defendas. Traíste a nossa confiança em
ti –censura-o um dos sacerdotes.
– Eu não traí a ninguém. Quantos entre vós são do Batista! E são
traidores por isso? Eu sou de Cristo. Aí está.
– Pois bem. Esse não deve falar aqui. Que Ele venha como um fiel. É
até demais para um amigo de pagãos, meretrizes e publicanos…
– Respondei-me agora –diz Jesus, severo mas calmo–. Quem são os
Anciãos de turno?
– Doras e Félix, judeus, Joaquim de Cafarnaum e José da Itureia.
– Entendi. Vamos. Ide dizer aos três acusadores, visto que o itureu não
pôde acusar, que o Templo não é Israel inteiro, e Israel não é o mundo todo,
e que a baba dos répteis, ainda que seja muita e bastante venenosa, não
submergirá a Voz de Deus, nem o seu veneno paralisará o meu andar entre
os homens, enquanto não chegar a hora. Além disso… oh! ide dizer-lhes
que depois os homens farão justiça com os carrascos e lhes tomarão a
Vítima, fazendo Dela o seu único amor. Ide. E nós nos vamos.
E Jesus se cobre com seu grande manto escuro e sai em meio aos seus.
115.5 No fim do grupo está Alexandre, que permaneceu na discussão.
Fora do recinto, junto à Torre Antônia, ele diz:
– Eu te saúdo, Mestre. E te peço perdão, por ter sido causa da censura
feita a Ti.
– Oh! Não te incomodes. Eles estavam procurando um pretexto. E o
encontraram. Se não tivesses sido tu, seria outro… Vós, em Roma, fazeis os
jogos no Circo com feras e serpentes, não é verdade? Pois bem, Eu te digo
que nenhuma fera é mais feroz e traiçoeira do que o homem que quer matar
outro homem.
– E eu te digo que, a serviço de César, percorri todas as regiões de
Roma. Mas nunca, em meio a tantos indivíduos que encontrei, um mais
divino do que Tu. Não, pois os nossos deuses também não são divinos
como Tu! Eles são vingativos, cruéis, rixentos, mentirosos. Tu és bom. Tu
és verdadeiramente Homem, não um homem. Saúde, Mestre.
– Adeus Alexandre. Prossiga na Luz.
Tudo termina.
[33] Eu te mandei fazer, em 68.1/2.
116. No Getsêmani, os discípulos
falam com Jesus dos pagãos e da “velada”.
O colóquio com Nicodemos.
24 de fevereiro de 1945.
116.1 Jesus está na cozinha da pequena casa do Olival, ceando com os
seus discípulos. Estão conversando sobre os fatos do dia que, no entanto,
não é aquele anteriormente descrito, porque ouço falar de outros
acontecimentos, entre os quais a cura de um leproso, feita perto dos
sepulcros, ao longo do caminho para Betfagé.
– Também lá havia um centurião romano a observar –diz Bartolomeu.
E acrescenta:
– Ele me perguntou, de cima de seu cavalo: “O homem que tu segues,
faz sempre essas coisas?” e diante de minha resposta afirmativa, ele
exclamou: “Então ele é maior do que Esculápio e se tornará mais rico do
que Creso.” Eu respondi: “Ele será sempre pobre, segundo o mundo, porque
não recebe, mas dá, e nada mais quer do que almas para levar ao Deus
verdadeiro.” O centurião olhou para mim espantado, depois esporeou o
cavalo, indo embora a galope.
– Havia também uma dama romana em sua liteira. Só podia ser uma
mulher. Estava com as cortinas descidas, mas olhava com frequência
através delas. Eu vi –diz Tomé.
– Sim. Ela estava perto da curva alta da estrada, e tinha dado ordem de
parada, quando o leproso gritou: “Filho de Davi, tem piedade de mim!”
Então ela afastou uma das cortinas e eu vi como te olhou com uma lente
preciosa, rindo-se depois, ironicamente. Mas quando viu que Tu, só com a
tua ordem o curaste, então ela me chamou e me perguntou: “Mas é aquele
que dizem ser o verdadeiro Messias?” Respondi que sim e ela me disse: “E
tu estás com Ele?” e me perguntou ainda: “Ele é bom mesmo?” –diz João.
– Então tu a viste! Como era? –perguntam Pedro e Judas.
– Ora, uma mulher…
– Que descoberta! –ri Pedro.
E Iscariotes insiste:
– Mas era bonita, jovem, rica?
– Sim. Parece-me que era jovem e também bonita. Mas eu olhava mais
para Jesus, do que para ela. Eu queria ver se o Mestre se punha de novo a
caminho…
– Tolo! –murmura entre dentes Iscariotes.
– Por quê? –defende-o Tiago de Zebedeu–. Meu irmão não era um
janota à procura de aventuras. Ele respondeu por educação. Mas não faltou
contra a sua primeira qualidade.
– Qual? –pergunta Iscariotes.
– A do discípulo, que tem o Mestre como seu único amor.
Judas, irritado, inclina a cabeça.
116.2 – E além disso… não é muito bom deixar-se ver falando com os
romanos –diz Filipe–. Já nos acusam de sermos galileus e por isso, menos
“puros” que os judeus. E isto por nascimento. Depois, nos acusam de
estarmos frequentemente em Tiberíades, lugar de encontro dos gentios,
romanos, fenícios, sírios… E ainda… oh! de quantas coisas nos acusam!
– Tu és bom, Filipe, e pões um véu sobre a dureza da verdade que
dizes. Mas a verdade, sem o véu, é esta: de quantas coisas me acusam –diz
Jesus que até então esteve calado.
– No fundo, não deixam de ter alguma razão. Houve contatos demais
com os pagãos –diz Iscariotes.
– Crês tu que os pagãos sejam somente aqueles que não têm a lei
mosaica? –pergunta Jesus.
– E quais outros haveria, então?
– Judas!! Podes jurar por nosso Deus que não existe paganismo no
coração? E podes jurar que não o tenham os israelitas, que estão mais em
evidência?
– Mas, Mestre… dos outros eu não sei… mas eu… quanto a mim,
posso jurar.
– Que é o paganismo, segundo o teu modo de pensar? –pergunta Jesus
ainda.
– Ora, é seguir uma religião não verdadeira, adorar os deuses –rebate
Judas com veemência.
– E quais são esses deuses?
– São os deuses da Grécia e de Roma, os do Egito… em suma, os
deuses de mil nomes, mas que são inexistentes e que, segundo os pagãos,
enchem os seus Olimpos.
– Nenhum outro deus existe? Só estes olímpicos?
– E qual outro? Já não são demais?
– Sim, são demais. Mas ainda há outros sobre cujos altares é queimado
incenso por todos os homens, até pelos sacerdotes, escribas, rabinos,
fariseus, saduceus, herodianos, todos eles pessoas de Israel. E não só, mas
esse incenso é queimado até por discípulos meus.
– Ah! Agora, isto não! –dizem todos.
– Não? Amigos… Quem entre vós não tem um ou mais cultos secretos?
Um tem a beleza e a elegância. Outro o orgulho pelo seu saber. Um outro
queima incenso à esperança de se tornar grande, humanamente. Um outro
ainda adora a mulher. Outro, o dinheiro. Um outro se prostra diante do seu
saber… e assim por diante. Em verdade, vos digo que não há homem que
não esteja manchado pela idolatria. Como então iremos desprezar os pagãos
por desventura, quando, mesmo estando com o Deus verdadeiro,
continuamos pagãos pela vontade?
– Mas nós somos homens, Mestre –exclamam muitos.
– É verdade. Mas então… tende caridade para com todos, porque Eu
vim para todos, e vós não sois mais do que Eu.
– Mas, enquanto isso, somos acusados, e a tua missão fica entravada.
– Ela irá avante do mesmo jeito.
116.3 – Por falar em mulheres –diz Pedro que, talvez por estar sentado
perto de Jesus, está de tal modo enternecido, que transpira bondade–. Faz
alguns dias, desde quando falaste em Betânia pela primeira vez, depois de
tua volta à Judeia, que uma mulher, toda coberta de véu, vem sempre nos
seguindo. Não sei como ela faz para saber as nossas intenções. Sei que, ou
no fim das últimas filas do povo que te escuta, quando falas, ou atrás do
povo que te segue, quando caminhas, ou até atrás de nós, quando vamos
anunciar-te pelos campos, ela está quase sempre lá. Em Betânia, na primeira
vez, ela me sussurrou, atrás do véu: “Aquele homem que dizes que vai falar,
é mesmo Jesus de Nazaré?” Eu lhe respondi que sim, e à tarde lá estava ela
atrás do tronco de uma árvore a ouvir-te. Depois eu a tinha perdido de vista.
Mas agora, aqui em Jerusalém, já a vi duas ou três vezes. Hoje lhe
perguntei: “Tens necessidade Dele? Estás doente? Queres o óbolo?” Ela
respondeu que não com a cabeça, porque nunca fala com ninguém.
– À mim ela disse um dia: “Onde Jesus mora?”, e eu lhe disse: “No
Getsêmani” –diz João.
– Grande tolo! Não devias. Devias dizer-lhe: “Descobre-te. Faze-te
conhecer, e eu te direi” –diz irado, Iscariotes.
– Mas quando é que nós pediremos estas coisas?! –exclama João com
simplicidade e inocência.
– As outras pessoas se deixam ver. Esta anda toda velada. Ou é uma
espiã, ou é uma leprosa. Ela não deve seguir-nos para saber. Se é espiã, quer
fazer-nos mal. Talvez tenha sido paga pelo Sinédrio para isso…
– Ah! O Sinédrio usa esses sistemas? –pergunta Pedro–. Tens certeza
disso?
– Certeza absoluta. Eu estive no Templo e sei.
– Grande coisa! Ajusta-se como uma carapuça àquela razão dada pelo
Mestre, há pouco… –comenta Pedro.
– Qual razão?
Judas já está vermelho de raiva.
– Aquela de haver pagãos até entre os sacerdotes.
– E que tem a ver isso com o de pagar uma espiã?
– Tem a ver sim. Por que pagam? Para abater o Messias e eles
triunfarem. Portanto se colocam sobre o altar, com suas almas sujas sob as
vestes limpas –responde Pedro, com o seu bom senso popular.
– Bem, em suma –abrevia Judas–, aquela mulher é um perigo para nós
ou para a multidão. Para a multidão, se for leprosa, e para nós, se for uma
espiã.
– Isto é: para Ele, quando muito –rebate Pedro.
– Mas caindo Ele, caímos nós também…
– Ah! Ah! –Pedro ri e termina:– E se cai, o ídolo se quebra em pedaços,
e se perde o tempo, a estima e talvez até a pele, e então, ah! ah! e então é
melhor procurar fazer que não caia ou… afastar-se a tempo, não é mesmo?
Eu, ao invés, olha: eu o abraço mais apertado. Se cair, abatido pelos
traidores de Deus, quero cair com Ele.
E Pedro, com seus braços curtos, abraça apertado Jesus.
– Eu não pensava em ter feito tanto mal, Mestre –diz, muito triste João,
que está diante de Jesus–. Podes bater em mim, maltrata-me, mas salva-te.
Ai de mim, se fôsse eu a causa da tua morte!! Oh! Eu não teria paz. Sinto
que minha face ficaria sulcada pelo pranto contínuo e a vista se me
queimaria. Que é que eu fui fazer! Tens razão Judas: sou um tolo!
– Não, João. Não o és e fizeste bem. Deixai que ela venha. Sempre. E
respeitai o seu véu. Pode tê-lo colocado como defesa em uma luta entre o
pecado e a sede de redimir-se. Sabeis vós quais as feridas que incidem em
um ser, quando acontece uma luta dessas? Sabeis que pranto e que
vergonha? Tu disseste, João, querido filho do coração de menino bom, que
tua face ficaria sulcada por causa do pranto contínuo, se tivesses sido causa
de sofrimento para Mim. Mas fica sabendo que, quando uma consciência
torna a despertar e começa a roer uma carne que já foi pecado, destruindo-a
e reconstruindo-a pelo espírito, ela deve forçosamente acabar com tudo o
que foi atração da carne e a criatura envelhece, murchando sob a chama
deste fogo perfurador. Só depois, com a redenção completa, é que se
recompõe uma segunda, santa e mais perfeita beleza, porque é a beleza da
alma que aflora no olhar, no sorriso, na voz, na honesta altivez da fronte,
sobre a qual desceu e brilha como diadema o perdão de Deus.
– Então eu não fiz mal?
– Não. E Pedro também não fez mal. Deixai-a agir. 116.4E agora cada um
vai descansar. Eu fico com João e Simão, aos quais preciso falar. Ide.
Os discípulos se retiram. Talvez eles estejam dormindo no lagar. Não
sei. Vão embora e certamente não tornam a entrar em Jerusalém, porque as
portas estão fechadas há horas.
– Tu disseste, Simão, que Lázaro te mandou Isaque em companhia de
Maximino hoje, enquanto Eu estava junto à Torre de Davi. Que é que ele
queria?
– Queria dizer-te que Nicodemos está na casa dele e que desejava falar-
te em segredo. Eu tomei a liberdade de dizer: “Que venha. O Mestre o
atenderá de noite.” Só tens a noite para estar só. Por isso é que eu disse:
“Despede a todos, menos a João e a mim.” João pode ir até a ponte do
Cedron para esperar Nicodemos, que está em uma das casas de Lázaro, fora
dos muros da cidade. E eu serviria para explicar-te. Fiz mal?
– Fizeste bem. Vai, João, para o teu posto.
Ficam sozinhos Simão e Jesus. Jesus está pensativo. Simão respeita o
seu silêncio. Mas Jesus o rompe de repente e, como se estivesse terminando
em alta voz um discurso interior, diz:
– Sim. Está bem fazer assim. Isaque, Elias e os outros bastam para
conservar viva a ideia que já se afirma entre os bons e os humildes. Para os
poderosos… há outras alavancas. Há Lázaro, Cusa, José e outros ainda…
Mas os poderosos… não me querem. Temem e tremem pelo seu poder. Eu
irei para longe desse coração judeu, que é sempre mais hostil ao Cristo.
– Vamos voltar para a Galileia?
– Não. Mas para longe de Jerusalém. A Judeia há de ser evangelizada.
Ela também é Israel. Mas aqui, como estás vendo… Tudo serve para
acusar-me. Vou retirar-me. Pela segunda vez…
116.5– Mestre, eis Nicodemos, diz João, entrando primeiro.
Saúdam-se e depois Simão com João saem da cozinha, deixando os
dois sozinhos.
– Mestre, perdoa-me, se eu quis falar-te em segredo. Desconfio de
muitos, por causa de Ti, e de mim. Este meu modo de agir não é pura
covardia. Mas também prudência e desejo de ajudar-te mais do que se eu
pertencesse a Ti abertamente. Tu tens muitos inimigos. Eu sou um dos
poucos que aqui te admiram. Aconselhei-me com Lázaro. Lázaro é
poderoso por seu nascimento, e temido por estar nas boas graças de Roma,
justo aos olhos de Deus, sábio pelo amadurecimento de sua capacidade e
cultura, teu verdadeiro amigo, e meu verdadeiro amigo. Por tudo isso, eu
quis falar com ele. E fiquei feliz por ter ele julgado do mesmo modo que eu
contei-lhe as últimas… discussões do Sinédrio a teu respeito.
– As últimas acusações. Diz então as verdades nuas como são.
– As últimas acusações. Sim, Mestre. Eu estava prestes a dizer: “Pois
bem, eu também sou um dos seus.” Até para que naquela assembleia
houvesse ao menos um, que estivesse a teu favor. Mas José, que tinha se
aproximado de mim, me sussurrou: “Cala-te. Vamos conservar oculto o
nosso pensamento. Depois eu te falarei.” E, tendo saído de lá, disse: “É
melhor assim. Se ficam sabendo que somos discípulos, vão manter-nos no
escuro do que estão pensando e decidindo, e podem prejudicá-los e a
também a nós. Como a quem simplesmente o está estudando, eles não nos
darão subterfúgios.” Eu achei que ele tinha razão. Eles são… tão maus! Eu
também tenho os meus negócios e os meus deveres como também… e
assim o José… Compreendes, Mestre.
– Eu não vos faço nenhuma censura. Antes que tu viesses, Eu dizia isto
ao Simão. 116.6Eu também decidi afastar-me de Jerusalém.
– Tu nos odeias porque não te amamos!
– Não. Não odeio nem aos meus inimigos.
– Tu o dizes. Mas assim é. Tens razão. Mas que dor para mim e José! E
Lázaro? Que dirá Lázaro, que hoje mesmo decidiu mandar dizer-te que
deixasses este lugar, e fosses para uma de suas propriedades em Sião? Tu
sabes? Lázaro é poderoso em riqueza. Boa parte da cidade é sua assim
como muitas terras da Palestina. O pai unira ao seu patrimônio e ao de
Euquéria, da tua tribo e família, tudo que era recompensa dos romanos ao
servo fiel, deixando aos filhos uma herança muito grande. E, o que é mais
importante, uma velada, mas forte amizade com Roma. Sem ela, quem
poderia se salvar da injúria a família, depois da desonrosa conduta de
Maria, do seu divórcio, que só se conseguiu por ser “ela”, da sua vida de
desregramento naquela cidade que é o seu feudo, e em Tiberíades, que é o
elegante lupanar, onde Roma e Atenas transformaram em leito de
prostituição para tantos que pertenciam ao povo eleito? Verdadeiramente, se
o sírio Teófilo tivesse sido um prosélito mais convicto, não teria dado aos
filhos aquela educação helenizante, que mata tantas virtudes e semeia tantas
volúpias, e que, tendo sido bebida e vomitada sem consequências por
Lázaro, e especialmente por Marta, contagiou e proliferou na desenfreada
Maria e fez dela a lama da família e da Palestina. Não, sem a poderosa
sombra da proteção de Roma, eles teriam sido mais amaldiçoados do que os
leprosos. Mas, visto que assim estão as coisas, aproveita disso.
– Não. Eu me retiro. Quem me quiser, virá a Mim.
– Eu fiz mal em falar!
Nicodemos está abatido.
– Não. Espera e persuade-te.
E Jesus abre uma porta e chama:
– Simão, João, vinde a Mim!
Acorrem os dois.
– Simão, diz ao Nicodemos tudo o que Eu te estava dizendo, quando
ele entrou.
– Que para os humildes bastam os pastores; para os poderosos, Lázaro,
Nicodemos, José e Cusa, é que Tu te retiras para longe de Jerusalém, mas
sem deixar a Judeia. Isto é o que estavas dizendo. Por que fazes que eu o
repita? Que é que aconteceu?
– Nada. Nicodemos temia que Eu fôsse embora por causa das suas
palavras.
– Eu disse ao Mestre que o Sinédrio está cada vez mais contra Ele e que
seria bom se Ele se colocasse sob a proteção de Lázaro. Ele protegeu os
teus bens, porque conta com a proteção de Roma. Protegeria a Jesus
também.
– É verdade. É um bom conselho. Por mais que minha casta seja mal
vista até por Roma, contudo, uma palavra de Teófilo conservou minha
propriedade no tempo de minha proscrição e de lepra. Além disso, Lázaro é
muito teu amigo, Mestre.
– Sei disso. Mas tenho dito. E aquilo que disse, vou fazer.
– Então nós te perderemos!
– Não, Nicodemos. Ao Batista se dirigem homens de todas as seitas. A
Mim poderiam vir homens de todas as seitas e de todos os cargos.
– Nós vínhamos a Ti, sabendo que eras mais do que João.
– E podereis vir ainda. Serei um rabi solitário, Eu como João, e falarei
às turbas desejosas de ouvir a voz de Deus e capazes de crer que Eu sou
aquela Voz. E os outros se esquecerão de Mim. Se ao menos forem capazes
disso.
116.7 – Mestre, Tu estás triste e desiludido. Tens razão para isso. Todos te
escutam. E creem em Ti tanto, que chegam a conseguir milagres. Até um
dos de Herodes, um que forçosamente deve ter corrompido sua bondade
natural naquela corte incestuosa. Até soldados romanos. Somente nós de
Sião, é que somos duros assim… Mas não todos. Tu o estás vendo…
Mestre, nós sabemos que vieste da parte de Deus, doutor por Ele enviado, e
que mais alto não há. Também Gamaliel diz isto. Ninguém pode fazer os
milagres que Tu fazes, se não tiver Deus Consigo. Isto é o que creem
também os doutos, como Gamaliel. Como então acontece que não
possamos ter a fé, que têm os pequenos de Israel? Oh! Diz-me isto
exatamente. Eu não te trairei, nem se me dissesses: “Menti, para valorizar
as minhas sábias palavras sob um sigilo que ninguém pode escarnecer.” És
Tu o Messias do Senhor? O Esperado? A Palavra do Pai encarnada para
instruir e redimir Israel, segundo o Pacto?
– É por ti mesmo que perguntas, ou outros te mandam perguntar?
– Por mim, por mim, Senhor! Estou num tormento aqui. Estou numa
tempestade. Ventos contrários e contrárias vozes. Por que será que em mim,
um homem maduro, não existe aquela pacífica certeza que existe neste
rapazinho quase analfabeto, e que lhe coloca no rosto esse sorriso feliz, essa
luz nos olhos e esse sol no coração? Como é que crês tu, João, para estares
tão firme? Ensina-me, filho, o teu segredo, pelo qual soubeste ver e
compreender o Messias em Jesus Nazareno!
João fica corado como um morango, depois inclina a cabeça, como se
pedisse desculpas por dizer uma coisa tão grande, e responde simplesmente:
– Amando.
– Amando! E tu, Simão, homem probo e já na soleira da velhice, tu,
douto e tão provado, para seres induzido a temer enganos de todos os lados?
– Meditando.
– Amando! Meditando! Eu também amo e medito, e ainda não tenho
certeza!
116.8 Intervém Jesus, dizendo:
– Eu vou dizer-te o verdadeiro segredo. Estes souberam nascer
novamente, com um espírito novo, livre de todas as cadeias, virgem de toda
ideia. E por isso compreenderam a Deus. Se alguém não nascer de novo,
não poderá ver o Reino de Deus, nem crer no seu Rei.
– Como pode um homem renascer, sendo já adulto? Uma vez posto
para fora do ventre materno, o homem jamais pode reentrar nele. Estarás
talvez te referindo a reencarnação[34], na qual creem tantos pagãos? Mas
não, não é possível que penses nisso. Além disso, não seria um reentrar no
ventre, mas um reencarnar-se depois deste tempo. Portanto, não agora.
Como? Como?
– Não há mais do que uma existência da carne sobre a terra e uma vida
eterna do espírito depois da terra. Eu não estou falando da carne nem do
sangue. Mas do espírito imortal, o qual, por duas coisas renasce para a
verdadeira vida. Pela água e pelo Espírito. Mas o maior é o Espírito, sem o
qual a água não é senão um símbolo. Quem se limpou com a água deve
purificar-se depois com o Espírito, e com Ele acender-se e brilhar, se quiser
viver no seio de Deus aqui e no Reino eterno. Porque o que é gerado da
carne continua sendo carne, e com ela morre depois de tê-la servido em
seus apetites e pecados. Mas o que é gerado pelo Espírito é espírito, e vive
voltando ao Espírito Gerador, depois de haver educado até à idade perfeita o
próprio espírito. O Reino dos Céus não será habitado senão por seres que
chegaram à idade espiritual perfeita. Não fiques, portanto, maravilhado, se
digo: “É preciso que nasças de novo.” Estes é que souberam renascer. O
jovem matou a carne, e fez renascer o espírito, pondo o seu eu sobre a
fogueira do amor. Tudo o que era matéria se queimou. Das cinzas, eis que
surge sua nova flor espiritual, maravilhoso helianto, que sabe voltar-se para
o Sol eterno. O velho pôs o machado da meditação honesta aos pés de seu
velho pensamento, e desarraigou a velha planta, deixando só a renovação da
boa vontade, do qual fez nascer o seu novo pensamento. Agora ele ama a
Deus, com um espírito novo, e o vê. 116.9Cada um tem o seu método para
chegar ao porto. Cada vento é bom, contanto que se saiba usar a vela. Vós
sentis soprar o vento, e pela sua corrente, podeis regular-vos para dirigir a
manobra. Mas não podeis dizer de onde é que ele vem, nem chamar aquele
de que estais precisando. Também o Espírito chama, e passa. Mas somente
quem estiver atento pode segui-lo. O filho conhece a voz do Pai, e conhece
a voz do Espírito por Ele gerado.
– Como pode acontecer isso?
– Tu, mestre em Israel, me fazes esta pergunta? Tu ignoras estas coisas?
Falamos e damos testemunho do que sabemos e vemos. Agora, portanto, Eu
falo e testifico o que sei. Como poderás aceitar as coisas que não vês, se não
aceitas o testemunho que Eu te trago? Como poderás crer no Espírito, se
não crês na Palavra encarnada? Eu desci para subir de novo e levar Comigo
aqueles que estão na terra. Somente um desceu do Céu: o Filho do homem.
E somente um é que subirá ao Céu com poder de abrir o Céu: Eu, o Filho
do homem. Recorda-te de Moisés. Ele levantou uma serpente no deserto
para curar as doenças de Israel. Quando Eu for levantado, aqueles que agora
estão cegos, surdos, mudos, loucos, leprosos, doentes por causa da febre da
culpa, serão curados, e todo aquele que crer em Mim terá a vida eterna.
Também aqueles que em Mim tiverem crido terão esta vida feliz. Não
inclines a fronte, Nicodemos. Eu vim para salvar, não para perder. Deus não
mandou o seu Filho unigênito ao mundo para condenar o mundo, mas para
que o mundo seja salvo por meio Dele. No mundo Eu encontrei todas as
culpas, todas as heresias, todas as idolatrias. Mas, pode a andorinha, que
voa rápida sobre a poeira, sujar com ela suas penas? Não. Leva somente
pelos tristes caminhos da terra uma vírgula de azul, um odor de céu, lança
um chamado para sacudir os homens e fazê-los levantar os olhos da lama e
seguir o seu voo que ao céu retorna. Assim sou Eu. Venho para levar-vos
Comigo. Vinde!! Quem crê no Filho unigênito não será julgado. Já está
salvo, porque este Filho roga ao Pai, por dizer: “Este me amou.” Mas quem
não crê, é inútil que faça obras santas. Já está julgado, porque não creu no
nome do Filho único de Deus. 116.10Qual é o meu Nome, Nicodemos?
– Jesus.
– Não. Salvador. Eu sou Salvação. Quem não crê em Mim, recusa sua
salvação e é julgado pela Justiça eterna. E o juízo é este: “A Luz te havia
sido enviada, a ti e ao mundo, para ser vossa salvação, e tu e os homens
preferistes as trevas à Luz, porque preferíeis as obras más, que eram já os
vossos costumes, e não as obras boas que Ele vos indicou para que as
seguísseis e vos tornásseis santos.” Vós odiastes a Luz porque os
malfeitores amam as trevas pelos seus delitos e fugistes da Luz, para que
ela não vos iluminasse em vossas chagas ocultas. Não para ti, Nicodemos.
Mas a verdade é esta. E a punição será em relação à condenação, tanto para
o indivíduo, como para a coletividade. Quanto aos que me amam e põem
em prática as verdades que Eu ensino, nascendo por isso no espírito uma
segunda vez, que é a mais verdadeira, eis que Eu digo que estes não têm
medo da Luz, mas, ao contrário, dela se aproximam, porque a luz deles
aumenta aquela pela qual foram iluminados, uma glória recíproca, que torna
Deus feliz em seus filhos e os filhos no Pai. Os filhos da Luz não temem ser
iluminados. Ao contrário, com o coração e com as obras, dizem: “Não eu;
Ele, o Pai, Ele, o Filho, Ele, o Espírito Santo realizaram em mim o Bem. A
eles glória em eterno.” E do Céu responde o eterno canto dos Três que se
amam em sua perfeita Unidade: “A ti a bênção para sempre, verdadeiro
filho da nossa vontade.” João, lembra-te destas palavras, para quando
chegar a hora de escrevê-las. Nicodemos, estás persuadido?
– Mestre… sim. 116.11Quando poderei falar-te ainda?
– Lázaro saberá aonde levar-te. Eu irei a ele, antes de afastar-me daqui.
– Eu me vou, Mestre. Abençoa o teu servo.
– A minha paz esteja contigo.
Nicodemos sai com João.
Jesus se volta para Simão:
– Estás vendo a obra do poder das Trevas? Como uma aranha, estende a
sua insídia, atrai e aprisiona a quem não sabe morrer para renascer como
uma borboleta, tão forte que seja capaz de arrebentar a teia tenebrosa e
passar além, levando, como lembrança de sua vitória, tiras de rede luzente
em suas asas de ouro, como auriflamas e lábaros tomados do inimigo.
Morrer para viver. Morrer para dar-vos a força de morrer. Vem, Simão, vem
descansar. E Deus esteja contigo.
Tudo termina.
[34] reencarnação, que Jesus negará ainda em: 243.7 – 272.3/4 – 290.9 – 406.10 – 524.9/10.
117. Lázaro põe à disposição de Jesus
uma casinha na planície de Águas Belas.
25 de fevereiro de 1945.
117.1 Jesus sobe pelo íngreme caminho, que leva ao planalto onde está
Betânia[35]. Desta vez Ele não segue pela estrada mestra.

Pegou esta mais escarpada e mais curta, que vai em direção do noroeste
para o leste, muito menos batida, talvez por ser tão íngreme. Só os viajantes
apressados se servem dela, aqueles que têm rebanhos, e que preferem não
levá-los pelo meio do vaivém da estrada mestra, aqueles que, como Jesus,
no momento, não querem fazer-se notar. Ele sobe na frente, falando
ininterruptamente com o Zelote. Atrás, estão os primos em grupo, com João
e André, depois um outro grupo com Tiago de Zebedeu, Mateus, Tomé e
Filipe e, por fim, Bartolomeu com Pedro e Iscariotes.
Mas, quando alcançaram o altiplano, sobre o qual Betânia está sorrindo
ao sol de um sereno dia de novembro, e do qual, olhando para o lado do
oriente, vê-se o vale do Jordão e a estrada que vem de Jericó, Jesus manda
que João vá na frente, para avisar Lázaro da sua chegada. Enquanto João
vai a passos rápidos, Jesus com os seus prossegue lentamente, sendo
saudado, em toda parte, pelas pessoas do lugar.
A primeira a vir da casa de Lázaro é uma mulher que se prostra até
117.2
o chão, dizendo:
– Feliz este dia para a casa de minha senhora. Vem, Mestre. Eis
Maximino.
Também Maximino acorre. Não sei exatamente quem é este. Tenho a
impressão de que seja um parente menos rico e que esteja hospedado com
os filhos de Teófilo, ou então, um intendente de suas grandes propriedades,
tratado como amigo por seus merecimentos e pelo tempo de serviços
prestados à casa. Talvez seja filho de algum dos intendentes do pai, que
tenha ficado depois no seu lugar, junto com os filhos de Teófilo. É pouca
coisa mais velho do que Lázaro, e terá seus trinta e cinco anos, ou pouco
mais.
– Não esperávamos ter-te aqui tão cedo –diz ele.
– Eu peço abrigo por uma noite.
– Se fôsse para sempre, nos farias felizes.
Estão na soleira e Lázaro beija e abraça a Jesus, e saúda os discípulos.
Depois, com um braço ao redor da cintura de Jesus, entra com Ele no
jardim e se isola dos outros, perguntando logo:
– A que é que eu devo a alegria de ter-te aqui?
– Ao ódio dos sinedritas.
– Fizeram-te algum mal? Ainda?
– Não. Querem fazer. Mas não é hora. Enquanto Eu não tiver arado
toda a Palestina e espalhado a semente, não devo ser abatido.
– Deves também fazer a tua colheita, bom Mestre. É justo que assim
seja.
– A minha colheita será feita pelos meus amigos. Eles colocarão a foice
onde Eu semeei. 117.3Lázaro, Eu decidi afastar-me de Jerusalém. Sei que de
nada serve, já o sei antecipadamente. Mas me servirá para poder
evangelizar, se não para outra coisa. Em Sião até isso me foi negado.
– Eu te havia mandado dizer por Nicodemos que fosses para uma das
minhas propriedades. Ninguém ousa violá-las. Lá poderias exercer o teu
ministério, sem seres molestado. E, oh! Em minha casa! A mais feliz de
todas as minhas casas, por ser santificada pelos teus ensinamentos, por tua
respiração dentro dela! Dá-me a alegria de ser-te útil, meu Mestre.
– Estás vendo que te dou esta alegria. Mas em Jerusalém não posso
ficar. Eu não seria molestado, mas muito molestados seriam os que fossem
a Mim. Vou para o rumo de Efraim, entre este lugar e o Jordão. Lá
evangelizarei e batizarei como o Batista.
– Nos campos dessa região eu tenho uma casinha. Mas é um abrigo
para guardar os utensílios dos trabalhadores. Às vezes eles dormem nela,
quando vão cortar o feno ou podar as videiras. É pobre. Um simples teto
sobre quatro paredes. Contudo, sempre está em minhas terras. E é sabido…
Saber isso já é um bom espantalho para os chacais. Aceita, Senhor.
Mandarei os servos prepará-la…”.
– Não precisa. Se nela dormem os teus camponeses, bastará também
para nós.
– Não levarei riquezas, mas completarei o número de camas, oh! pobres
como Tu queres, e farei que levem cobertas, cadeiras, ânforas e copos.
Precisareis também de comer e de cobrir-vos, especialmente nestes meses
de inverno. Deixai que eu o faça. E nem serei eu quem o vai fazer. 117.4Eis
Marta que vem até nós. Ela tem o gênio prático e cuidadoso de todos os
afazeres domésticos. Foi feita para a casa e para ser o conforto dos corpos e
dos espíritos dos que estão na casa. Vem, minha doce e pura hospedeira!
Estás vendo? Eu também me refugiei sob os seus maternos cuidados, na
parte da herança que coube à ela. Desse modo, não sinto tão duramente
saudades de minha mãe. Marta, Jesus vai abrigar-se na planície de Águas
Belas. De belo nada há, a não ser a fertilidade do solo. A casa é um ovil.
Mas Ele quer uma casa de pobres. É necessário abastecê-la com um mínimo
de coisas. “Dá as tuas ordens, minha brava irmã!” e Lázaro beija a formosa
mão da irmã, que se levanta logo, para acariciá-lo com um verdadeiro amor
de mãe.
Depois Marta diz:
– Eu já vou. Levo comigo Maximino e Marcela. Os homens do carro
ajudarão a arrumar as coisas. Abençoa-me, Mestre, assim levarei comigo
alguma coisa de Ti.
– Sim, minha doce hospedeira. Eu te chamarei como Lázaro. Dou-te o
meu coração para que o leves contigo no teu.
117.5 – Estás sabendo, Mestre, que hoje estará por estes campos, Isaque
com Elias e os outros? Eles me pediram pasto lá em baixo na planície, para
estarem um pouco juntos, e eu consenti. Hoje eles transmigram. Eu os
espero para a refeição.
– Fico alegre com isto. Eu lhes darei instruções…
– Sim. Para podermos ficar em contato. Porém, alguma vez Tu virás…
– Eu virei. Já falei disso com Simão. E, como não é justo que Eu invada
a tua casa com os discípulos, irei para a casa de Simão…
– Não, Mestre. Por que essa dor?
– Não perguntes, Lázaro. Eu sei que assim está bem.
– Mas então…
– Mas então estarei sempre em tuas propriedades. Aquilo que também
Simão ignora Eu sei. Aquele que quis adquirir sem se fazer ver e sem
discutir, contanto que pudesse ficar perto de Lázaro da Betânia, era o filho
de Teófilo, o fiel amigo de Simão, o Zelote, e o grande amigo de Jesus de
Nazaré. Aquele que dobrou a soma em favor de Jonas, e não cortou nada
dos bens de Simão, para dar a ele a alegria de poder fazer muito pelo
Mestre pobre e pelos pobres do Mestre, é alguém chamado Lázaro. Aquele
que, discreto e atento, move, dirige, ajuda todas as forças boas para me
darem ajuda, conforto e proteção, é Lázaro de Betânia. Eu sei.
– Oh! Não digas isto! Eu pensava em fazer bem assim e em segredo!
– Para os homens há segredo. Mas para Mim, não. Eu leio os corações.
117.6 Queres que Eu te diga por que a tua já natural bondade fica impregnada
de perfeição sobrenatural? É porque pedes dom sobrenatural, pedes a
salvação de uma alma, a santidade tua e a de Marta. E sentes que não basta
ser bons segundo o mundo, mas que é preciso ser bons segundo as leis do
espírito, para ter a graça de Deus. Tu não ouviste as minhas palavras. Mas
Eu disse[36]: “Quando fizerdes o bem, fazei-o em segredo, e por ele o Pai
vos dará grande recompensa.” Tu o fizeste por um natural impulso de
humildade. E em verdade te digo que o Pai prepara para ti uma recompensa
que tu nem podes imaginar.
– A redenção de Maria?!!
– Esta, e mais, mais ainda.
– O que é Mestre, mais impossível do que isso?
Jesus o olha e sorri. Depois diz com o tom de um salmo:
– O Senhor reina e com Ele os seus santos.
Com os seus raios tece uma coroa, e sobre a cabeça dos santos a pousa.
Onde para sempre ela brilhe aos olhos de Deus e do universo.
De que metal ela é feita? Com que pedras é ornada? Ouro, ouro
puríssimo é o círculo obtido com o duplo fogo do amor divino e do amor do
homem, trabalhada a cinzel pela vontade que martela, lima, corta e
adelgaça.
Pérolas em grande abundância e esmeraldas mais verdes do que a erva
nascida em abril, turquesas da cor do céu, opalas da cor da lua, ametistas
como pudicas violetas, e jaspes e safiras e jacintos e topázios. Estes
engastados para toda a vida. E além disso, um círculo de rubis colocados
como arremate do trabalho, um grande círculo sobre a fronte gloriosa.
Pois que o bendito terá tido fé e esperança, terá tido mansidão e
castidade, temperança e fortaleza, justiça e prudência, Misericórdia sem
medida, e no fundo terá escrito com sangue o meu Nome e com sua fé em
Mim, o seu amor por Mim, terá o seu nome no Céu.
Exultai, ó justos do Senhor. O homem ignora e Deus vê.
Ele escreve nos livros eternos as minhas promessas e as vossas obras, e
com essas os vossos nomes, príncipes do futuro século, triunfadores eternos
com o Cristo do Senhor.
Lázaro o olha assombrado. Depois murmura:
– Oh! eu… não serei capaz…
– Pensas assim?
E Jesus apanha um ramo flexível de um salgueiro pendente sobre o
caminho, e diz:
– Olha: assim como minha mão dobra facilmente este ramo, o amor
dobrará a tua alma, e dela fará uma coroa eterna. É o amor que redime cada
um. Quem ama, inicia a sua redenção. O completamento desta será feito
pelo Filho do homem.
Tudo termina.
[35] Betânia, cuja posição é ilustrada com o desenho que MV fez num folheto que encontramos colado na abertura do caderno
autógrafo. Atrás do folheto, MV escreveu a seguinte nota, na qual inserimos, entre parêntesis reto, algumas precisões nossas:
Betânia e o que vejo a partir dela. Atrás, a cadeia montanhosa central na qual se insere Jerusalém (círculo vermelho com a cruz
vermelha [no alto à esquerda]. O tracejado duplo, o caminho íngreme que vai de Jerusalém a Betânia, que é o pequeno círculo
vermelho no planalto [mais baixo]. O traço duplo unido, a via principal para Jericó (círculo vermelho com cruz preta [no alto à
direita], que desce pelas colinas cada vez mais baixas
[36] Eu disse, como se citasse o Evangelho (Mt 6,3-4) num eterno presente, porque no tempo o dirá em 173.4.
118. Início da vida em comum
nas Águas Belas e discurso de abertura.
26 de fevereiro de 1945.
118.1 Se se compara esta casinha baixa e rústica com a casa de Betânia,
certamente ela é um ovil, como diz Lázaro. Mas, se ela for comparada com
as dos camponeses de Doras[37], é uma habitação até bonita.
É muito baixa e muito larga, de construção sólida, tem uma cozinha, ou
seja, um grande fogão em um quarto todo enfumaçado no qual há uma
mesa, algumas cadeiras, ânforas e uma rústica prateleira, onde estão alguns
pratos e copos. Uma larga porta de madeira tosca, lhe dá luz além de
acesso. Depois, na mesma parede onde se abre esta, há três outras portas,
que dão acesso a três quartos longos e estreitos, de paredes caiadas e chão
de terra batida como o da cozinha. Em dois deles estão agora algumas
caminhas. Parecem pequenos dormitórios. Os muitos ganchos fincados nas
paredes testemunham que ali ficavam penduradas as ferramentas e talvez
também produtos agrícolas. Agora eles servem de cabides, segurando
mantos e alforjes. O terceiro quarto (que é mais um corredor largo, do que
um quarto, porque é desproporcionado o comprimento para a largura) está
vazio. Ele devia servir também para o abrigo de animais, porque tem uma
manjedoura e argolas presas nas paredes, e apresenta no piso buracos
próprios de terrenos pisados por cascos ferrados. Agora não há mais nada.
Fora, junto a este último quarto, há um pórtico largo e rústico, feito
com um teto coberto de varas e placas de ardósia, apoiadas sobre troncos de
árvores ligeiramente arranhados. Nem mesmo chega a ser um pórtico, é
mais um telheiro, pois é aberto de três lados, dois deles com um
comprimento de pelo menos dez metros, e o outro mais curto, com uns
cinco metros, não mais. No verão, uma videira deve estender os seus ramos,
de um tronco ao outro, do lado sul. Agora está nua, e mostra os seus ramos
despidos, como nua está uma figueira gigantesca, que no verão sombreia o
tanque, que está no centro da eira, certamente para dar de beber aos
animais. Fica ao lado de um poço rudimentar, ou seja, de um buraco ao
nível do solo; apenas algumas pedras chatas e brancas ao redor o assinalam.
Esta é a casa que hospeda Jesus e os seus, no lugar chamado “Águas
Belas.” Campos, ou melhor, prados e vinhas a circundam, e à distância de
uns trezentos metros (não se deve tomar como artigo de fé as minhas
medições), vê-se uma outra casa, no meio dos campos, mais bonita porque
tem um terraço em sua parte superior, o que esta ao invés não tem. Além
dessa outra casa, bosques de oliveiras e de outras plantas, parte despidas,
parte frondosas, encobrem a vista.
118.2 Pedro, com seu irmão e com João, trabalham com gosto varrendo a
eira e os quartos, arrumando as camas e buscando água. Aliás, Pedro faz
uma armação ao redor do poço, para ajustar e reforçar as cordas, tornando-o
mais prático e cômodo para tirar a água. Enquanto isso, os dois primos de
Jesus trabalham com martelo e lima, nas fechaduras e nos batentes, e Tiago
do Zebedeu os ajuda, serrando e trabalhando com o machado, como um
operário de arsenal.
Na cozinha ocupa-se Tomé, e parece um cozinheiro muito experiente,
que sabe regular a altura do fogo e da chama e lavar agilmente as verduras
que o belo Judas se dignou trazer do povoado vizinho. Entendo que deve
ser um povoado mais ou menos grande, porque Judas explica que lá fazem
pão só duas vezes por semana e que por isso, para aquele dia não havia pão.
Pedro escuta e diz:
– Faremos pães sobre as chamas. Lá está a farinha. Rápido, tira a tua
veste e vai fazer a massa, que em assar penso eu. Eu sei fazer isso.
E eu não posso deixar de rir, ao ver que Iscariotes se humilha,
apresentando-se com as vestes de baixo, para ir amassar a farinha,
enfarinhando-se todo.
Jesus não está, e com Ele faltam Simão, Bartolomeu, Mateus e Filipe.
– O dia mais feio é hoje –responde Pedro a um resmungo de Judas de
Keriot–. Mas amanhã já estará melhor. E na primavera estará tudo bem…
– Na primavera? –diz assustado Judas–. Mas ficaremos sempre aqui?
– Por que? Aqui não é uma casa? Chover, aqui não chove. Água para
beber tem. O fogão não falta. E que queres mais? Eu aqui, estou muito bem.
Ainda mais porque não estou sentindo o mau cheiro dos fariseus e de seus
companheiros…
– Pedro, vamos retirar as redes –diz André, e puxa o irmão, antes que
comece algum bate-boca entre ele e Iscariotes.
– Aquele homem não pode me ver –exclama Judas.
– Não. Não podes dizer isto. Ele é assim franco com todos. Mas é bom.
Tu é que estás sempre descontente –responde Tomé que, ao contrário, está
sempre de muito bom humor.
– É que eu pensava que era outra coisa… –diz Judas.
– Meu primo não te proíbe de ir atrás de outras coisas –diz tranquilo
Tiago do Alfeu–. Creio que todos, porque somos tolos, achávamos que era
outra coisa segui-lo. Mas é porque somos de cabeça dura, e de grande
soberba. Ele nunca nos escondeu o perigo e os incômodos de segui-lo.
Judas resmunga entre dentes.
Quem lhe responde é o outro Judas, o Tadeu, que trabalha ao redor de
uma prateleira da cozinha, para transformá-la num pequeno armário.
– Tu não tens razão. Mesmo segundo os nossos costumes, não tens
razão. Todo israelita deve trabalhar. E nós trabalhamos. O trabalho te pesa
tanto? Eu não o sinto, porque desde quando estou com Ele, todo cansaço
perdeu o seu peso…
– Eu também não lamento nada. E estou contente por estar agora em
família –diz Tiago de Zebedeu.
– Faremos grandes coisas, aqui!!! –observa irônico Judas de Keriot.
– Mas afinal, que queres tu? Que é que pretendes? A corte de um
sátrapa? Não permito que fiques criticando o que meu primo faz.
Entendeste? –explode o Tadeu.
– Cala-te, meu irmão. Jesus não quer estas discussões. Vamos falar o
menos possível e fazer o mais que pudermos. Será melhor para todos.
Aliás… se Ele não consegue mudar os corações… poderás tu querer fazer
isso com tuas palavras? –diz Tiago de Alfeu.
– O coração que não muda é o meu, não é? –pergunta agressivo
Iscariotes.
Mas Tiago não lhe responde. Antes, coloca um prego entre os lábios e
entrementes prega vigorosamente algumas tábuas, fazendo um tal barulho,
que os resmungos de Judas se perdem no ar.
118.3 Passa algum tempo, depois entram juntos Isaque com uns ovos e um
cesto de pães cheirosos, e André com alguns peixes em uma cesta[38].
– Aqui estão –diz Isaque–. É o feitor que os manda e pergunta se não
precisamos de nada. A ordem que ele tem é esta.
– Estás vendo que de fome não se morre? –diz Tomé a Iscariotes.
Depois acrescenta:
– Dá-me os peixes, André. Que bonitos! Mas como se faz para prepará-
los? Isto eu não sei fazer.
– Disso trato eu –diz André–. Eu sou pescador –e vai para um canto
destripar os peixes, ainda vivos.
– Está vindo o Mestre. Deu uma volta pelo povoado e pelos campos.
Vereis que logo haverá quem virá. Ele já curou um que estava doente da
vista. Além disso eu já havia percorrido estes campos e eles sabiam…
– Ah! Sim! Eu, eu!! Somos os pastores… Nós deixamos, eu pelo
menos, uma vida segura e temos feito isto e aquilo, mas acabamos não
fazendo nada…
Isaque olha espantado para Iscariotes… mas filosoficamente não
rebate. Os outros o imitam… mas por dentro estão fervendo.
118.4 – Paz a todos vós.
É Jesus que está na soleira, sorridente e bom. Parece que, com sua
chegada, o sol aumenta o esplendor.
– Que pessoal disposto! Todos trabalhando! Posso ajudar-te, primo?
– Não. Vai descansar. Já acabei.
– Estamos bem providos de mantimentos. Todos quiseram dar. Se todos
tivessem os corações dos humildes! –diz Jesus um pouco triste.
– Oh! O meu Mestre! Que Deus te abençoe!
É Pedro que entra com um feixe de lenha nos ombros e que saúda
assim, debaixo daquele peso, ao seu Jesus.
– A ti também, Pedro, que o Senhor te abençoe. Vós trabalhastes muito!
– E mais trabalharemos nas horas livres. Nós temos uma casa de
campo!! E dela vamos fazer um Éden. Até agora, ajustei o poço, tanto para
se poder enxergar melhor, de noite, onde é que ele está, como também para
estarmos certos de que não iremos perder nossas ânforas, ao descê-las.
Depois, estás vendo que disposição têm os teus primos? Tratam de tudo o
que é necessário a quem vai passar muito tempo em um lugar coisa que eu
como pescador, nem haveria pensado. São dispostos de verdade! Também
Tomé. Ele poderia ir trabalhar na cozinha do Herodes. Até Judas está
disposto. Ele fez uns pães maravilhosos…
– E inúteis. Já temos pão –responde Judas com mau humor.
Pedro o olha, e eu fico esperando alguma resposta apimentada, mas
Pedro sacode a cabeça, ajunta a cinza, e estende sobre ela os seus pães.
– Daqui a pouco estará tudo pronto –diz Tomé. E ri.
118.5 – Vais falar hoje? –pergunta Tiago de Zebedeu.
– Sim. Entre a sexta e a nona horas. Os vossos companheiros já o
disseram. Por isso, vamos comer logo.
Passa ainda algum tempo e depois João põe o pão sobre a mesa, põe
nos lugares as cadeiras, leva os copos e as ânforas, e Tomé traz as verduras
cozidas e o peixe assado.
Jesus está no centro, oferece e abençoa, distribui, e todos comem com
gosto.
Estão ainda comendo quando, na eira, aparecem algumas pessoas.
Pedro se levanta, e vai até à porta.
– Que desejais?
– O Rabi. Ele não vai falar aqui?
– Vai. Mas agora está comendo, porque Ele também é homem. Sentai-
vos lá embaixo, e esperai.
O pequeno grupo vai sob o rústico telheiro.
– Mas vai fazer frio e chover a qualquer hora. Acho que seria melhor
usar aquela estrebaria vazia. Eu já a limpei, como é preciso. E a manjedoura
servirá de banco…
– Deixa de brincadeiras bobas. O Rabi é um rabi –diz Judas.
– Mas que brincadeiras! Se Ele nasceu numa estrebaria, poderá falar de
cima de uma manjedoura!
– Pedro tem razão. Mas Eu vos peço, amai-vos uns aos outros!
Jesus parece até cansado ao dizer estas palavras.
Acabam de comer e Jesus sai logo para ir junto à pequena multidão.
– Espera, Mestre –grita-lhe Pedro–. O teu primo fez para Ti uma
cadeira, porque lá embaixo o chão está úmido.
– Não é preciso. Tu o sabes. Eu falo em pé. O povo quer me ver, e Eu
quero vê-lo. Antes… fazei cadeiras e pequenas camas. Talvez venham
pessoas doentes… e servirão.
– Sempre estás pensando nos outros, bom Mestre! –diz João, beijando-
lhe a mão.
Jesus vai, com um sorriso levemente triste, em direção à pequena
multidão. Com Ele vão todos os discípulos.
Pedro, que está justamente ao lado de Jesus, faz que Ele se incline, e
lhe murmura ao ouvido:
– Do outro lado da parede, está aquela mulher do véu. Eu a vi. Está lá
desde esta manhã. Ela veio atrás de nós, desde Betânia. Mando-a embora,
ou a deixo lá?
– Deixe-a. Eu já disse.
– Mas, e se ela for uma espiã, como diz Iscariotes?
– Não o é. Confia no que te estou dizendo. Deixe-a e não digas nada
aos outros. E respeita o seu segredo.
– Eu me calei, porque pensei que assim estava bem…
118.6 – Paz a vós, que estais procurando a Palavra –começa Jesus.
E vai até o fundo do galpão, ficando de costas para a parede da casa.
Fala devagar a uma vintena de pessoas que estão sentadas no chão ou
encostadas nas colunas, na tepidez de um solzinho de novembro.
– O homem cai em erro, quando considera a vida e a morte, e ao usar
estes dois nomes. Chama de “vida” o tempo em que ele, tendo sido dado à
luz por sua mãe, começa a respirar, a comer, a andar, a pensar, a agir; e
chama de “morte” o momento em que ele cessa de respirar, de comer, de se
mover, de pensar, de trabalhar, e se torna um cadáver, frio e insensível,
pronto para reentrar em um seio, que é o sepulcro. Mas não é assim. Eu
quero fazer-vos compreender o que é a “vida”, e indicar-vos as obras aptas
à vida.
Vida não é existência. Existência não é vida. Existe também esta vinha
que está encostada nestas colunas. Mas não tem a videira de que Eu estou
falando. Existe também aquela ovelha que bale, amarrada àquela árvore, lá
longe. Mas não tem a vida de que Eu estou falando. A vida, de que Eu falo
não começa com a existência, e não acaba com o findar da carne. A vida de
que Eu falo, não começa em um ventre materno. Começa, quando do
pensamento de Deus, uma alma nasce, criada por Ele, para ir habitar numa
carne, e termina, quando o Pecado a mata!
Primeiramente, o homem não é mais do que uma semente[39] que
cresce, semente de carne, e não glúten ou medula como dos cereais e das
frutas. Primeiramente, não é mais do que um animal que vai tomando
forma, um embrião de animal, não diferente do que está ganhando volume
nas entranhas daquela ovelha. Mas, desde o momento em que, na
concepção do homem é infundida esta parte incorpórea, e que também é a
mais poderosa, eis que, então, o embrião animal não somente existe, como
um coração pulsante, mas “vive”, segundo o pensamento criador, e se torna
homem, criado à imagem e semelhança de Deus, o filho de Deus, futuro
cidadão dos Céus.
Mas isto acontece, se a vida continuar. O homem pode existir, tendo a
imagem de homem, já não sendo mais homem, quando ele passa a ser um
sepulcro no qual a vida está apodrecendo. Por isso, eis o que Eu digo: A
vida não começa com a existência e não termina quando a carne morre. A
vida começa antes do nascimento. A vida, pois, não tem fim, porque a alma
não morre, ou seja, não se reduz a nada. Morre o seu destino, que se ela é
celeste, sobrevive no seu castigo, se assim mereceu. A esse destino feliz ela
morre, quando morre pela Graça. Esta vida, tendo sido ferida por uma
gangrena, que é a morte para o seu destino, permanecerá através dos
séculos, na condenação e no tormento. Esta vida se, ao invés, for
conservada tal, alcança a perfeição do viver, tornando-se eterna, perfeita,
feliz como o seu Criador.
118.7 Temos deveres para com a vida? Sim. Ela é um dom de Deus. Todo
dom de Deus tem de ser usado e conservado com cuidado, porque é uma
coisa santa como o Doador. Estragaríeis vós um presente dado por um rei?
Não. Passa aos herdeiros e aos herdeiros dos herdeiros, como glória da
família. E então por que estragar o dom de Deus? Mas como está sendo
usado e conservado esse dom divino? De que modo manter viva a
paradisíaca flor da alma e conservá-la para os Céus? Como conseguir
“viver” acima e além da existência?
Israel tem leis claras sobre isso, e a nós basta observá-las. Israel tem
profetas e justos que dão exemplo e palavra para a prática das leis. Israel
tem também agora os seus santos. Portanto, Israel não pode, não deveria
errar. Ao invés, Eu vejo manchas nos corações e espíritos mortos que
pululam por toda parte. Pelo que, Eu vos digo: fazei penitência; abri vossa
alma à Palavra; colocai em prática a Lei imutável; dai um sangue novo à
“vida”, que está perdendo o vigor; se em vós ela já está morta, vinde à
verdadeira Vida: Deus. Chorai sobre as vossas culpas. Gritai: “Piedade!”
Mas levantai-vos. Não sejais agora uns mortos-vivos, para não serdes
amanhã uns eternos penados. Eu não vos falarei de outra coisa, senão do
modo de alcançar e conservar a vida. Um outro vos disse: “Fazei
penitência. Limpai-vos do fogo impuro da luxúria, da lama de vossas
culpas.” Eu vos digo: pobres amigos, vamos estudar juntos a Lei. Ouçamos
de novo a voz paterna do Deus verdadeiro. E depois, rezemos ao Eterno,
dizendo: “A tua Misericórdia desça sobre os nossos corações.”
Agora estamos no escuro inverno. Daqui a pouco, virá a primavera. Um
espírito morto é mais triste do que um bosque despojado pela geada. Mas,
se em vós penetrarem a humildade, a vontade, a penitência e a fé, como no
bosque durante a primavera, a vida voltará a vós, e vós florescereis para
Deus, para levardes, no amanhã dos séculos, um fruto perene de verdadeira
vida.
Vinde à Vida! Cessai de somente existir, e começai a “viver”. A morte
então não será um “fim”, mas um princípio. O princípio de um dia sem
ocaso; de uma alegria sem cansaço e sem medida. A morte será o triunfo
daquilo que viveu antes. Triunfo da carne, que vai ser chamada para a
eterna ressurreição, para compartilhar desta Vida, que Eu prometo, em
nome do verdadeiro Deus, a todos aqueles que tiverem “querido” a “vida”
para suas almas, esmagando a sensualidade e as paixões, gozando da
liberdade dos filhos de Deus.
Ide. Cada dia, a esta hora, Eu vos falarei da eterna Verdade. O Senhor
esteja convosco.
As pessoas vão-se afastando devagar, com muitos comentários. Jesus
volta à casinha solitária, e tudo termina.
[37] com as dos camponeses de Doras vistas em 89.1 e em 109.11.
[38] cesta: cesto de vime, de forma afunilada, para pegar peixe [N.T.]
[39] Primeiramente, o homem não é mais do que uma semente… deveria entender-se não em sentido temporal, mas em sentido
hipotético e modal, como para significar: Se fôsse sem alma, o homem concebido não seria senão uma semente de carne. O
discurso, de fato, não se propõe estabelecer o momento de infusão da alma, mas fazer compreender em termos simples que a vida
verdadeira é a espiritual.
119. Os discursos de Águas Belas: Eu sou
o Senhor teu Deus. Jesus batiza como João.
27 de fevereiro de 1945.
119.1 O número de pessoas é, pelo menos, o dobro de ontem. Há também
as que pertenciam a classes menos populares. Alguns vieram montados em
burrinhos, e estão agora tomando sua refeição debaixo do telheiro, depois
de terem amarrado seus animais nas estacas, à espera do Mestre.
O dia está frio, mas sereno. As pessoas conversam entre si e os mais
instruídos explicam quem e o Mestre porque fala naquele lugar.
Alguém pergunta:
– Mas Ele é maior do que João?
– Não. Ele é diferente. Eu era de João, que é o Precursor, e é a voz da
justiça. Este é o Messias, e é a voz da sabedoria e da Misericórdia.
– Como é que sabes disto? –perguntam-lhe muitos.
– Assim me disseram três dos discípulos, que sempre estiveram com o
Batista. Se soubésseis ! Eles o viram nascer. Pensem, que Ele nasceu da luz.
Era uma luz tão forte, que eles, que eram pastores, tiveram que sair do ovil,
entre os animais aterrorizados, e viram que Belém inteira estava em fogo e
depois, do céu vieram uns anjos que, com suas asas, apagaram o fogo, e na
terra estava Ele, o Menino nascido da luz. E aquele fogo todo transformou-
se em uma estrela…
– Não diga, não acredito!
– Sim, foi assim. Foi o que me disse alguém que trabalhava na
estrebaria em Belém, quando eu era menino. Ele se gaba de poder contar
isso, agora, que o Messias é homem.
– Não é assim. A estrela veio depois, veio com aqueles magos do
oriente, dos quais um era parente de Salomão e, portanto, do Messias,
porque o Messias é descendente de Davi. E Davi é o pai de Salomão, e
Salomão amou a rainha de Sabá, porque era bonita e pelos presentes que lhe
levou, e dela teve um filho, que é de Judá, apesar de ser de além Nilo.
– Mas, que é que estás dizendo? Estás doido?
– Não. Queres dizer que não é verdade que o parente lhe trouxe os
aromas, como é o costume entre os reis daquela linhagem?
– Eu sei que é verdade –diz um outro–. Foi assim, porque Isaque é um
dos pastores e é meu amigo. Pois bem, o Menino nasceu em uma estrebaria
da casa de Davi. Era a profecia…
– Mas Ele não é de Nazaré?
– Deixai-me falar. Nasceu em Belém, porque era descendente de Davi,
e foi no tempo do edito. Os pastores viram uma luz, que mais bela não há, e
o menor deles, porque era um inocente, foi o primeiro a ver o anjo do
Senhor que falou com uma música de harpa, dizendo: “Nasceu o Salvador.
Ide e adorai”, e depois anjos e anjos cantaram: “Glória a Deus e paz aos
homens bons.” E os pastores foram e viram o pequenino, em uma
manjedoura, entre um boi e um asno, e a Mãe e o pai. E o adoraram, e
depois o levaram para a casa de uma boa mulher. O Menino crescia como
todos, bonito, bom, um amor de menino. Depois, os magos vieram de além
do Eufrates e de além do Nilo, porque tinham visto uma estrela e
reconhecido nela a estrela de Balaão. Mas o Menino já era capaz de
caminhar. E o rei Herodes ordenou o extermínio, por ciúme do reino. Mas o
anjo do Senhor os tinha advertido do perigo, e os pequeninos de Belém
morreram, mas não Ele, que havia fugido para Matarea. Depois, voltou a
Nazaré para trabalhar como carpinteiro e, quando chegou o seu tempo,
depois que o Batista, seu primo, o havia anunciado, iniciou sua missão,
indo, antes, procurar os seus pastores. A Isaque Ele livrou da paralisia,
depois de trinta anos de enfermidade. E Isaque não se cansa de apregoá-lo.
Esta é a verdade.
– Mas os três discípulos do Batista disseram mesmo essas palavras! –
disse o primeiro, mortificado.
– E elas são verdadeiras. O que não é verdade é a descrição feita pelo
moço da estrebaria. Ainda se gaba disso? Faria bem em ir dizer aos
belemitas que sejam bons. Nem em Belém nem em Jerusalém pode fazer
pregação.
– Sim! Imagina se os escribas e fariseus vão querer ouvir as palavras
dele! Eles são víboras e hienas, como lhes chama o Batista.
119.2 – Eu gostaria de ficar curado. Estás vendo? Estou com uma perna
gangrenada. Quase morri para chegar até aqui no lombo de um burro. Mas o
tinha procurado em Sião, e não estava mais lá… –diz um.
– É que o ameaçaram de morte… –responde outro.
– Cães!
– Sim. De onde é que estás vindo?
– De Lida.
– Fica longe!
– Eu… eu queria falar-lhe de um erro meu… Eu o disse ao Batista…
mas tive que sair de lá, de tanto que me censurou. Acho que não posso mais
ser perdoado… –diz ainda um outro.
– Que foi que fizeste de mal?
– Fiz muito mal. A Ele vou dizer. Que achais? Será que vai me
amaldiçoar?
– Não. Eu o ouvi falar em Betsaida. Estava lá por acaso. Que palavras!!
Estava falando de uma pecadora. Ah! Quase gostaria de ser ela, para
merecê-las!!! –diz um velho imponente.
119.3 – Eis que vem vindo –gritam vária vozes.
– Misericórdia! Estou envergonhado! –diz o culpado, e faz como quem
quer fugir.
– Para onde queres fugir, meu filho? Estarás com o coração tão escuro,
para teres ódio da Luz, a ponto de quereres fugir dela? Terás pecado tanto,
para ter medo de Mim: o Perdão? Mas que pecado terás cometido? Nem
mesmo se tivesses matado a Deus, precisarias temer, desde que tivesses em
ti um verdadeiro arrependimento. Não chores! Ou melhor, vem aqui, vamos
chorar juntos.
Jesus que, tendo levantado uma mão, impôs ao fugitivo uma parada,
agora o conserva abraçado a si, e depois se vira para quem o está esperando,
e diz:
– Só um momento, para reerguer este coração. E depois irei a vós.
Ele se afasta para além da casa, esbarrando, ao dobrar o canto, contra a
mulher velada, que lá estava em seu lugar de escuta. Jesus a olha fixamente,
por um momento, depois dá ainda uns dez passos e para:
– Que foi que fizeste filho?
O homem cai de joelhos. É um homem dos seus cinquenta anos. Um
rosto queimado por muitas paixões, e devastado por um tormento secreto.
Ele estende os braços e grita:
– Para gozar com as mulheres toda a herança paterna, matei minha mãe
e meu irmão… Não tive mais paz… A minha comida… sangue! O meu
sono… pesadelos! O meu prazer… Ah! no seio das mulheres, no grito de
luxúria delas, eu sentia o gelo de minha mãe morta e os estertores de meu
irmão envenenado. Malditas as mulheres dos prazeres, áspides, medusas,
moreias insaciáveis, ruína, ruína, minha ruína!
– Não amaldiçoes. Eu não te amaldiçoo…
– Não me amaldiçoas?
– Não. Eu choro e tomo sobre Mim o teu pecado!! Como ele é pesado!
Seu peso me quebra os membros. Mas Eu o abraço apertado para destruí-lo
para ti… e a ti dou o perdão. Sim. Eu perdoo o teu grande pecado.
Jesus estende as mãos sobre a cabeça do homem, soluçante e reza:
– Pai, também para ele o meu Sangue será derramado. Por ora, eis o
pranto e a oração. Pai, perdoa, pois ele está arrependido. O teu Filho, a cujo
julgamento cada coisa foi entregue, assim o quer!!!
Fica assim por alguns minutos ainda, depois se inclina, levanta o
homem e lhe diz:
– Tua culpa está perdoada. A ti agora cabe expiar, com uma vida de
penitência, tudo o que resta do teu delito.
– Deus me perdoou? E a mãe? E o irmão?
– O que Deus perdoa, por todos é perdoado. Vai e não peques mais.
O homem chora mais forte e lhe beija a mão. Jesus o deixa entregue ao
seu pranto. Volta em direção à casa. A mulher do véu faz um movimento,
como querendo ir-lhe ao encontro, mas depois inclina a cabeça e não se
move. Jesus passa diante dela, sem olhá-la.
119.4 Chega ao seu lugar. Fala:
– Uma alma voltou ao Senhor. Seja bendita a sua onipotência, que
arranca das espirais demoníacas as almas que Ele criou, e as leva para o
caminho dos Céus. Por que aquela alma se perdera? Porque tinha perdido a
Lei de vista.
Está dito[40] no Livro que o Senhor se manifestou no Sinai em todo o
seu terrível poder, para dizer: “Eu sou Deus. Esta é a minha vontade. E estes
são os raios que Eu preparei para aqueles que forem rebeldes à vontade de
Deus.” E, antes de falar, ordenou que ninguém do povo subisse para
contemplar Aquele que é, e que também os sacerdotes se purificassem,
antes de se aproximarem do limite marcado por Deus, para que não fossem
fulminados. Isto porque era tempo de justiça e de prova. Os Céus estavam
fechados, como por uma pedra, sobre o mistério do Céu e sobre a ira de
Deus, e somente as lâminas da Justiça dardejavam do Céu, sobre os filhos
culpados. Mas agora não. Agora o Justo chegou para consumar toda a
justiça, e chegou o tempo, no qual, sem raios e sem limites, a Palavra divina
fala ao homem, para dar-lhe Graça e Vida.
119.5 A primeira palavra do Pai e Senhor é esta: “Eu sou o Senhor teu
Deus.”
Não existe um instante do dia em que esta palavra não soe, e não seja
escrita pela voz e pelo dedo de Deus. Onde? Por toda parte. Tudo o
proclama continuamente. Da erva à estrela, da água ao fogo, da lã ao
alimento, da luz às trevas, da saúde à doença, da riqueza à pobreza. Tudo
diz: “Eu sou o Senhor. Por Mim é que tens isto. Um pensamento meu é que
te dá isto, um outro o tira de ti, e não há força de exércitos, nem de defesas
que te possa preservar da minha vontade”. Grita na voz do vento, canta no
riso das águas, perfuma na fragrância da flor, incide-se no dorso das
montanhas e sussurra, fala, chama, grita nas consciências: “Eu sou o Senhor
teu Deus.”
Não vos esqueçais disto nunca! Não fecheis os olhos, os ouvidos, não
estranguleis a consciência, para não ouvirdes esta palavra. De tal modo ela
é, que chega o momento em que ela é escrita pelo dedo de fogo de Deus
sobre a parede da sala do banquete, ou sobre a onda agitada do mar, sobre
os lábios sorridentes da criança ou sobre a lividez do velho que está
morrendo, sobre a rosa fragrante ou sobre o fétido sepulcro. E assim chega
o momento em que, entre a embriaguez do vinho e do prazer, entre o
turbilhão dos negócios, ou no repouso da noite, ou em um passeio solitário,
ela levanta a sua voz e diz: “Eu sou o Senhor teu Deus”, e não esta carne
que estás beijando ávido, e não este alimento que com voracidade devoras,
e não este ouro que avaramente acumulas, nem este leito sobre o qual ficas
preguiçoso. E não adianta o silêncio, nem o estar sós, nem o estar
dormindo, para fazê-la calar-se.
“Eu sou o Senhor teu Deus”, o Companheiro que não te abandona, o
Hóspede que não podes expulsar. És bom? Eis que o Hóspede e
Companheiro é um bom Amigo. És mau e culpado? Eis que o Hóspede e
Companheiro se torna o Rei irado, e não te deixa em paz. Mas não te deixa,
não deixa, não deixa. Só aos condenados é concedido que se separem de
Deus. Mas a separação é um tormento insaciável e eterno.
119.6 “Eu sou o Senhor teu Deus”, e acrescenta: “que te tirei da terra do
Egito, da casa da escravidão.” Oh! Que em verdade agora o diz com
propriedade! De qual Egito, de que Egito Ela te tira, para levar-te para a
Terra Prometida, que não é aqui neste lugar, mas no Céu! O Reino eterno do
Senhor, no qual não haverá mais fome nem sede, nem frio nem morte, mas
tudo destilará alegria e paz, e de paz e alegria ficarão saciados todos os
espíritos.
Agora Ele vos tira da verdadeira escravidão. Eis o Libertador. Sou Eu.
Venho para quebrar vossas correntes. Todo dominador humano um dia pode
morrer deixando livres os povos escravizados. Mas satanás não morre. É
eterno. E é o dominador, que vos colocou em grilhões, para arrastar-vos
para onde ele quer. O Pecado está em vós. E o Pecado são as correntes com
que satanás vos prende. Eu venho quebrar essas correntes. Em nome do Pai,
Eu venho. E por desejo meu. Por isso, eis que se cumpre a incompreendida
promessa: “Eu te tirei do Egito e da escravidão.”
Agora, isto está cumprindo espiritualmente. O Senhor vosso Deus vos
tira da terra do ídolo, que seduziu os progenitores, arranca-vos da
escravidão da culpa, reveste-vos de graça, admite-vos em seu Reino. Em
verdade vos digo que aqueles que vierem a Mim, poderão, com a doçura da
voz paterna, ouvir o Altíssimo dizer em seus felizes corações: “Eu sou o
Senhor teu Deus, que te atraio a Mim, livre e feliz.”
Vinde. Voltai o vosso coração e rosto, vossa oração e vontade para o
Senhor. A hora da graça chegou.
119.7 Jesus terminou. Passa abençoando e acariciando uma velhinha e
uma menina pequena, moreninha, toda sorridente.
– Cura-me, Mestre. Estou muito mal! –diz o doente da gangrena.
– Antes a alma, antes a alma. Faz penitência…
– Dá-me o batismo, como João. Não posso ir até ele. Estou doente.
– Vem.
Jesus desce em direção ao rio, que está dos prados e do bosque. Tira as
sandálias, e o mesmo faz o homem que até lá tinha ido, arrastando-se com
suas muletas. Descem à beira do rio e Jesus, fazendo concha com as duas
mãos juntas, derrama a água sobre a cabeça do homem, que está dentro do
rio, com a água batendo-lhe pelo meio das canelas.
– Agora, tira fora as faixas –manda Jesus, enquanto sobe de volta para o
caminho.
O homem obedece. A perna está curada. A multidão grita de
admiração.
– Eu também!
– Eu também!
– Também eu quero receber de Ti o batismo –gritam muitos.
Jesus, que já vai indo a meio caminho, se vira:
– Amanhã. Agora ide e sede bons. A paz esteja convosco.
Tudo termina e Jesus volta para casa, entra na cozinha que está escura,
não obstante sejam ainda as primeiras horas da tarde.
119.8 Os discípulos se reúnem ao seu redor. E Pedro pergunta:
– Aquele homem que levaste para trás da casa, que é que tinha?
– Necessidade de purificação.
– Mas ele não voltou, nem estava aqui para pedir batismo.
– Ele foi onde Eu o mandei.
– Onde?
– À expiação, Pedro.
– Ao cárcere?
– Não. À penitência para o resto de sua vida.
– Então, ele não se purifica com a água?
– O pranto também é água.
– Isto é verdade. 119.9Agora que fizeste o milagre, quem sabe quantos
virão!! Hoje já eram o dobro….
– Sim. Se Eu tivesse que fazer tudo, não poderia. Vós tereis que batizar.
Primeiramente um de cada vez. Depois, sereis em dois, três, muitos. E Eu
pregarei e curarei os doentes e os culpados.
– Nós iremos batizar? Oh! Eu não sou digno disso! Livra-me Senhor,
dessa missão! Eu é que preciso ser batizado!
Pedro está de joelhos, suplicando.
Mas Jesus se inclina e diz:
– Exatamente tu é que vais batizar primeiro. A partir de amanhã.
– Não, Senhor! Como vou fazer, se estou mais preto do que aquela
chaminé?
Jesus sorri da humilde sinceridade do apóstolo, que está de joelhos
apoiando no Seu colo as suas grossas mãos de pescador. E depois o beija na
fronte, no limite dos cabelos grisalhos e ásperos, que se encaracolam:
– Eis. Eu te batizo com um beijo. Estás contente?
– Iria fazer logo outro pecado para ganhar mais um!
– Isto não. Não se zomba de Deus, abusando dos seus dons!
– E a mim, não dás um beijo? Algum pecado eu também tenho –diz
Iscariotes.
Jesus o olha fixamente. Seu olhar, tão mutável, passa da luz da alegria,
que o tornava claro enquanto falava com Pedro, a uma profundidade severa,
e diria, cansada, e diz:
– Sim… também a ti. Vem. Eu não faço injustiça com ninguém. Sê
bom, Judas. Se tu quisesses!! És jovem. Tens uma vida inteira para subir
sempre, até à perfeição da santidade…
E o beija.
– Agora tu, Simão, meu amigo. E tu, Mateus, minha vitória. E tu, sábio
Bartolomeu. E tu, Filipe fiel. E tu, Tomé, de risonha vontade. Vem, André,
que trabalhas em silêncio. E tu, Tiago, do primeiro encontro. E agora tu, a
alegria do teu Mestre. E tu, Judas, meu companheiro de infância e de
juventude. E tu, Tiago, que me fazes lembrar do Justo, no aspecto e no
coração. Eis, todos, todos… Mas lembrai-vos de que o meu amor é muito,
mas que é necessária também a vossa boa vontade. Amanhã dareis um
passo avante em vossa vida de discípulos. Mas pensai que cada passo à
frente é uma honra e um compromisso.
[41] a mim, a João, a Tiago e ao André
119.10 – Mestre… Um dia disseste
que nos irias ensinar a rezar… Eu acho que, se nós rezássemos como Tu
rezas, seríamos capazes de ser dignos do trabalho que estás querendo de
nós –diz Pedro.
– E Eu também te respondi então: “Quando estiverdes bem formados,
Eu vos ensinarei a oração sublime. Para deixar-vos a minha oração. Mas,
mesmo essa será nada, se for dita só com a boca. Por enquanto, elevai-vos
para Deus com a alma e a vontade.” A oração é um dom que Deus concede
ao homem, e que o homem doa a Deus.
– Mas como? Não somos ainda dignos de rezar? Israel inteiro reza… –
diz Iscariotes.
– Sim, Judas. Mas pelas obras de Israel, podes ver como ele reza. Eu
não quero fazer de vós uns traidores. Quem reza com o exterior, mas em seu
interior está contra o bem, é um traidor.
119.11 – E os milagres, quando é que no-los vais mandar fazer? –continua
Judas a perguntar.
– Nós, nós fazermos milagres? Misericórdia eterna! Já é bom beber a
água pura! Mas fazer milagres? Rapaz, estás delirando?
Pedro está escandalizado, espantado, fora de si.
– Foi Ele que disse[42] a nós na Judeia. Por acaso, não é verdade?
– Sim. É verdade. Eu o disse. E vós o fareis. Mas, enquanto em vós
houver carne demais, não tereis milagres.
– Nós jejuaremos –diz Iscariotes.
– Não adianta. Por carne Eu quero dizer as paixões corrompidas, a
tríplice fome, e, atrás dessa pérfida trindade, o acompanhamento dos seus
vícios… Semelhantes a filhos de uma união bígama e suja, a soberba da
mente gera, com a avidez da carne e do poder, todo o mal que há no homem
e no mundo.
– Por Ti, nós tudo deixamos –insiste Judas.
– Mas não deixastes a vós mesmos.
– Então, precisamos morrer? Contanto que estejamos Contigo, nós o
faríamos. Eu, pelo menos…
– Não. Não peço a vossa morte material. Peço que morra em vós a
animalidade e a satanicidade, e esta não morre, enquanto a carne for
saciada, com a mentira, o orgulho, a ira, a soberba, a gula, a avareza e a
preguiça estiverem em vós.
– Somos tão homens, perto de Ti, tão santo! –murmura Bartolomeu.
– E foi sempre santo assim. Nós o podemos dizer –afirma o primo
Tiago.
– Ele sabe como somos… Nós não devemos nos sentir abatidos por
isso. Somente dizer-lhe: Dá-nos cada dia a força de servir-te. Se nós
disséssemos: “Somos sem pecado”, estaríamos enganados e enganando.
Enganando a quem? A nós mesmos, que sabemos o que somos, ainda que
não o queiramos dizer? A Deus, a quem não se engana? Mas, se dissermos:
“Somos fracos e pecadores. Ajuda-nos com a tua força e o teu perdão”,
Deus então não nos desiludirá, e em sua bondade e justiça, nos perdoará e
purificará as iniquidades de nossos pobres corações.
– Feliz de ti, João. Pois a Verdade fala em teus lábios, que têm o
perfume da inocência, e só beijam o adorável Amor –diz Jesus, levantando-
se e atraindo sobre o seu coração o predileto, que falou lá do seu canto
escuro.
[40] Está dito, em Êxodo 19,10-25. Inicia aqui um série de discursos que ilustram o Decálogo, transmitido em: Êxodo 20,1-17;
Deuteronômio 5,1-22. A leio dos 10 mandamentos é tratada ou citada outras vezes na obra, por exemplo em: 288.4 (como lei
natural) – 293.5 – 329.10 – 335.9 – 397.1 – 414.9 – 452.7/11 – 453.6 – 455.15 – 471.7 – 472.6/7 – 476.8 – 486.8 – 493.4/5 –
534.7 – 565.4 – 576.6 – 592.12.18 – 600.26 – 604.7 – 632.38 – 635.17. No espírito do Decálogo estão o mandamento de amar a
Deus (Deuteronômio 6,5) e o de amar o próximo (Levitíco 19,18), como em: 122.10 – 196.5 – 277.3 – 279.2 – 281.10 – 295.4 –
444.3 – 596.2.10.
[41] um dia disseste... em 62.2; e repetirá a promessa em 149.3.
[42] Foi Ele que disse, em 72.3.
120. Os discursos de Águas Belas:
Não farás deuses para ti em minha presença.
28 de fevereiro de 1945.
120.1 – Foi dito: “Não farás para ti deuses em minha presença. Não farás
para ti nenhuma escultura ou representação daquilo que está no céu, na
terra, ou nas águas. Não adorarás tais coisas, nem lhes prestarás culto. Eu
sou o Senhor teu Deus, forte e ciumento, que visito a iniquidade dos pais
nos filhos[43], até a terceira e quarta gerações daqueles que me odeiam, e
faço Misericórdia até à milésima geração daqueles que me amam e
observam os meus mandamentos.”
A voz de Jesus ribomba no quarto grande cheio de gente, porque está
chovendo, e todos foram abrigar-se nele. Na primeira fila estão quatro
doentes, ou seja, um cego conduzido por uma mulher, um menino cheio de
crostas, uma mulher amarelenta por causa de icterícia ou malária, e um
outro que foi trazido numa pequena padiola.
Jesus fala, apoiado na manjedoura vazia. João e os dois primos, em
companhia de Mateus e Filipe, estão perto Dele, enquanto Judas com Pedro,
Bartolomeu, Tiago e André estão na porta e controlam a entrada daqueles
que ainda chegam, Tomé e Simão circulam entre o povo, fazendo que as
crianças se calem, recolhendo os óbolos, ouvindo os pedidos.
120.2 – “Não farás para ti deuses em minha presença.”
Vós já ouvistes como Deus é onipresente, com o seu olhar e a sua voz.
Na verdade, estamos sempre na Sua presença. Fechados dentro de um
quarto, ou entre o público do Templo, estamos igualmente na sua presença.
Benfeitores escondidos, que até aos beneficiados ocultam o rosto, ou
assassinos, quando assaltam o viajante em algum desfiladeiro solitário e o
trucidamos, igualmente estão na Sua presença. Em sua presença está o rei
no meio de sua corte, o soldado no campo de batalha, o levita no interior do
Templo, o sábio debruçado sobre os livros, o camponês sobre o sulco, o
mercador em seu balcão, a mãe inclinada sobre o berço, a esposa no quarto
nupcial, a virgem no segredo da morada paterna, o menino que estuda na
escola, o velho que se deita para morrer. Todos estão em Sua presença, e
todas as ações do homem igualmente estão em Sua presença.
Todas as ações do homem! Tremenda palavra! E consoladora palavra!
Tremenda, se as ações são de pecado; consoladora, se são ações de
santidade. Saber que Deus vê é um freio para quem quer fazer o mal e um
conforto para quem quer fazer o bem. Deus vê que estou fazendo o bem. Eu
sei que Ele não se esquece do que vê. Eu creio que Ele premia as boas
ações. Por isso estou certo de que irei receber um prêmio e com esta
certeza, descanso. Ela me dará uma vida serena e uma morte plácida,
porque na vida e na morte minha alma será consolada pelo raio da estrela da
amizade de Deus. Assim é que raciocina aquele que faz o bem.
120.3 Mas aquele que faz o mal, por que não pensa que, entre as ações
proibidas estão os cultos idolátricos? Por que não diz: “Deus está vendo
que, enquanto finjo estar prestando um culto santo, estou adorando um deus
ou deuses mentirosos, aos quais levanto um altar secreto aos homens, mas
conhecido a Deus”? Que deuses são esses, poderíeis dizer, se nem no
Templo existe figura de Deus? Que rosto têm esses deuses, se ao verdadeiro
Deus foi impossível dar um rosto?
Sim. Impossível dar-lhe um rosto, porque o Perfeito e o Puríssimo não
pode ser dignamente representado pelo homem. Só o espírito pode entrever
a sua incorpórea e sublime beleza, e ouvir a sua voz, sentir a sua carícia,
quando Ele se efunde a um dos seus santos, merecedor desses contatos
divinos. Mas o olho, o ouvido, a mão do homem não podem ver nem ouvir
e nem, repetir com o som sobre a cítara, com o macete e o cinzel no
mármore, aquilo que é o Senhor. Oh! Felicidade sem fim, quando, ó
espíritos dos justos, chegardes a ver a Deus! O primeiro olhar será a aurora
da felicidade que, pelos séculos dos séculos será vossa companheira.
Contudo, o que não nos foi possível fazer pelo verdadeiro Deus, eis que
o homem o faz pelos deuses mentirosos. Cada um ergue um altar à mulher;
ou ao ouro; ou ao poder; ou à ciência; ou aos triunfos militares; um adora o
homem poderoso, seu semelhante por natureza e superior apenas em
prepotência ou fortuna; ou adora a si mesmo, e diz: “Não há outros iguais a
mim.” Aí estão os deuses daqueles que são do povo de Deus.
Não vos admireis de que os pagãos adorem animais, répteis e astros.
Quantos répteis! Quantos animais! Quantos astros apagados adorais em
vossos corações! Os lábios pronunciam palavras de mentira para adular,
possuir, corromper. E não são estas as orações dos idólatras secretos? Os
corações planejam pensamentos de vingança, de comércio ilícito, de
prostituição. E não são estes os cultos aos deuses imundos do prazer, da
avidez, do mal?
120.4 Foi dito: “Não adorarás nada daquilo que não é o teu Deus
verdadeiro, único, eterno.” Foi dito: “Eu sou o Deus forte e ciumento.”
Deus Forte: nenhuma outra força é maior do que a Dele. O homem é
livre para agir, satanás é livre para tentar. Mas quando Deus diz: “Basta”, o
homem não pode mais agir mal e satanás não pode mais tentar. Rechaçado
fica este em seu inferno e derrubado fica aquele em seu abuso de fazer o
mal, porque há um limite para isso, além do qual Deus não permite que se
vá.
Deus Ciumento: de que? De qual ciúme? Será o mesquinho ciúme dos
homens pequenos? Não. O santo ciúme de Deus por seus filhos. O justo
ciúme. O amoroso ciúme. Ele vos criou. Ele vos ama. Ele vos quer. Ele sabe
o que vos prejudica. Conhece o que é que pode separar-vos Dele. E é
ciumento daquilo que se intromete entre o Pai e os filhos, desviando-os do
único amor que é salvação e paz: Deus. Compreendei esse sublime ciúme,
que não é mesquinho, que não é cruel, nem carcerário. Mas que é um amor
infinito, que é uma infinita bondade, que é uma liberdade sem limites, que
se dá a uma criatura finita, por desejá-la na eternidade para si e, e fazê-la
partícipe de sua infinidade. Um pai bom não quer gozar sozinho de suas
riquezas. Mas quer que os filhos as gozem com ele. No fundo, foi mais para
os filhos do que para si que ele as acumulou. Assim é com Deus colocando
a perfeição neste amor que há em todas as suas ações.
120.5 Não decepcioneis o Senhor. Ele promete castigo aos culpados e aos
filhos dos culpados. E Deus nunca mente em suas promessas. Mas não
fiqueis abatidos, em vosso ânimo, ó filhos do homem e de Deus. Ouvi, e
exultai com esta outra promessa: “Eu uso de Misericórdia até à milésima
geração daqueles que me amam e observam os meus mandamentos.” Até à
milésima geração dos bons. E até à milésima fraqueza dos pobres filhos do
homem, os quais caem, não por malícia, mas por irreflexão e por ciladas de
satanás. Mais ainda. Eu vos digo que Ele vos abre os braços se, com o
coração contrito e o rosto lavado pelo pranto, vós disserdes: “Pai, eu pequei.
Eu sei. Mas eu me humilho por isso e a Ti me confesso. Perdoa-me. O teu
perdão será a minha força para voltar a ‘viver’ a verdadeira vida.”
Não temais. Antes que vós pecastes por fraqueza, Ele sabia que iríeis
pecar. Mas seu Coração só se fecha, quando persistis no pecado, querendo
pecar, fazendo de um certo pecado, ou de muitos pecados, os vossos deuses
horrorosos. Abatei todos os ídolos, e dai lugar ao Deus verdadeiro. Ele
descerá com a sua glória para consagrar o vosso coração, quando se vir
sozinho em vós.
Dai a Deus a sua morada. Não em templos de pedra, mas no coração
dos homens. Lavai a soleira dela, livrai o seu interior de todo aparato inútil
ou culposo. Somente Deus. Só Ele. Ele é tudo! E em nada é inferior ao
Paraíso o coração de um homem com Deus, o coração de um homem que
cante o amor ao Hóspede divino.
Fazei de cada coração um Céu. Iniciai a coabitação com o Excelso. Ela
se aperfeiçoará em vosso eterno amanhã, em poder e alegria. Mas aqui será
tal, que superará o tremente espanto de Abraão, Jacó e Moisés. Porque não
será mais o encontro fulgurante e assustador com o Poderoso, mas a
permanência com o Pai e o Amigo que desce para dizer-vos: “A minha
alegria é estar entre os homens. Tu me fazes feliz. Obrigado, filho.”
120.6 A multidão que supera uma centena, sai, depois de algum tempo, do
encantamento. Há quem se aperceba chorando ou sorrindo pela mesma
esperança de alegria. Enfim a multidão parece despertar, tem como que um
sussurro, um suspiro forte, e finalmente um grito como de libertação:
– Bendito sejas Tu! Tu nos abres o caminho da paz!
Jesus sorri e responde:
– A paz está em vós, desde que sigais o Bem, a partir de hoje!
Depois Ele se dirige aos doentes, passa a mão sobre o menino doente,
sobre o cego, sobre a mulher com icterícia, inclina-se sobre o paralítico e
diz:
– Eu quero.
O homem o olha e depois grita:
– Há calor no corpo que estava morto!
E se põe em pé, assim como estava, até que lhe ponham nas costas a
coberta da sua pequena cama, enquanto a mãe levanta o menino já sem
crostas, o cego agita os olhos por causa do primeiro contato com a luz, e
algumas mulheres gritam:
– A Dina já não está mais amarela como os ranúnculos selvagens.
O alvoroço alcança o auge. Alguns gritam, outros abençoam, outros
empurram para ver, outros procuram sair para ir informar a cidade. Jesus é
investido por todos os lados.
Pedro vê que o estão quase comprimindo e grita:
– Rapazes! Estão sufocando o Mestre! Vamos abrir caminho!
E com uma verdadeira ginástica de cotovelos e até algum pontapé nas
canelas, os doze conseguem abrir caminho e libertar Jesus, levando-o para
fora dali.
– Amanhã cuidarei disso –diz–. Tu ficarás na porta e os outros no
fundo. Eles te machucaram?
– Não.
– Pareciam doidos! Que modos!
– Deixa que o façam. Estavam felizes… E Eu com eles. Ide para
aqueles que pedem o batismo. Eu entro em casa. Tu, Judas, com Simão, dai
o óbolo aos pobres. Tudo. Nós temos muito mais do que é justo para uns
apóstolos do Senhor. Vai, Pedro, vai. Não tenhas medo de trabalhar demais.
Eu te justifico ao Pai, porque Eu é que te mando. Adeus amigos.
E Jesus, cansado e suado, se fecha na casa, enquanto os discípulos
executam cada um sua tarefa junto aos peregrinos.
[43] a iniquidade dos pais nos filhos, em vez de iniquidade dos filhos, é correção de MV numa cópia datilografada, em
conformidade como texto de Êxodo 20,5.
121. Os discursos de Águas Belas: Não proferirás
em vão o meu Nome. A visita de Manaém.
1 de março de 1945.
[…].
121.1 Os discípulos estão todos alvoroçados. Parecem uma colmeia
atiçada, de tão agitados que estão. Falam, olham de soslaio para fora, para
todos os lados… Jesus não está. Enfim, tomam uma decisão sobre os
motivos de sua agitação e Pedro ordena a João:
– Vai procurar o Mestre. Ele está no bosque acima do rio. Diz-lhe que
venha logo, ou que diga o que é que temos que fazer.
João vai correndo.
Iscariotes diz:
– Eu não entendo porque tanta agitação e tanta descortesia. Eu teria ido
e o teria recebido com todas as honras… O que ele está fazendo é uma
honra para nós. Portanto…
– Eu não sei de nada. Ele poderá ser diferente do seu parente colaço…
Mas… quem vive com as hienas pega delas o cheiro e o instinto. Além
disso, tu quererías que se fôsse embora aquela mulher… Porém toma
cuidado! O Mestre não quer, e eu a tenho sob minha proteção. Se tocares
nela… eu não sou o Mestre… E o estou dizendo para o teu governo.
– Ih! Quem será ela? Talvez a bela Herodíades?
– Não fiques bancando o engraçado!
– És tu mesmo que me fazes agir assim. Tens feito guarda ao redor dela
como a uma rainha…
– O Mestre me disse: “Toma cuidado para que ela não seja perturbada e
respeite-a.” E eu o estou fazendo.
– Mas quem é ela? Tu o sabes? –pergunta Tomé.
– Eu não.
– Vamos, diz… Tu o sabes –insistem muitos.
– Eu vos juro que não sei de nada. O Mestre certamente o sabe. Mas eu
não.
– É preciso fazer que João pergunte a Ele. A ele o Mestre diz tudo.
– Por que? Que é que João tem de especial? Será um deus o teu irmão?
– Não, Judas. É o melhor de nós.
– Podeis poupar-vos o cansaço, diz Tiago do Alfeu. “Ontem meu irmão
a viu, enquanto ele voltava do rio com o peixe que André lhe havia dado, e
perguntou a Jesus. Ele respondeu: “Ela não tem rosto. É um espírito que
procura Deus. Para Mim não é outra coisa, e assim quero que seja para
todos.” E disse aquele “quero” de tal maneira… que eu vos aconselho a não
insistir.
– Eu irei a ela –diz Judas de Keriot.
– Experimenta, se és capaz –diz Pedro, vermelho como um galinho.
– Estás me espionando para Jesus?
– Eu deixo este ofício para aqueles do Templo. Nós, os do lago,
ganhamos o pão com o trabalho, e não com a delação. Não tenhas nunca
medo de nenhuma espionagem feita por Simão de Jonas. Mas não me fiques
provocando e não tomes a liberdade de desobedecer ao Mestre, porque aqui
estou eu…
– E quem és tu? Um pobre homem como eu.
– Sim, senhor. Aliás, mais pobre, mais ignorante, mais grosseiro do que
tu. Eu sei e por isso não fico triste. Eu ficaria triste se fôsse igual a ti no
coração. Mas o Mestre me deu este encargo e eu o cumprirei.
– Igual a mim no coração? E que é que há em meu coração que te cause
repugnância? Fala, acusa, ofende…
– Ora, chega! –disparam o Zelote e o Bartolomeu–. Afinal, para com
isso, Judas. Respeita os cabelos brancos do Pedro.
– Respeito a todos, mas quero saber o que é que há em mim…
– Logo serás atendido… Deixai-me falar… há uma soberba tão grande
que dá para encher esta cozinha; há falsidade e há luxúria.
– Falsidade em mim?
Todos intervêm, e Judas deve calar-se.
121.2 Simão, pacato, diz a Pedro:
– Desculpa-me, amigo, se eu vou te dizer uma coisa. Ele tem seus
defeitos. Mas tu também tens alguns. Um deles é não seres indulgente com
os jovens. Por que é que não levas em conta a idade deles, o nascimento… e
tantas outras coisas? Vê, tu ages por amor a Jesus. Mas não percebes que
estas discussões cansam? A Ele eu não digo (e aponta Judas), mas a ti, que
és maduro e tão honesto, eu faço este pedido. Ele tem tanto desgosto por
causa dos inimigos. Mas nós também lhe damos desgosto!! Há tanta guerra
ao nosso redor. Mas, por que também criar guerras no seu ninho?
– É verdade. Jesus está muito triste, e até emagreceu –diz Judas
Tadeu–. De noite, percebo que Ele fica se virando em sua caminha e
suspirando. Há algumas noites tenho me levantado e vi que estava chorando
e rezando. Eu lhe disse: “Que tens?” E Ele me abraçou e me disse:
“Queiram-me bem. Como é duro ser o ‘Redentor’!”
– Eu também o vi com sinal de pranto, lá no bosque do rio –diz Filipe–.
E ao meu olhar interrogativo, Ele me respondeu: “Sabes o que faz diferente
o Céu da terra, além da diferença da presença não visível de Deus? É a falta
de amor entre os homens. Isso me estrangula como um cabresto. Eu vim
aqui para espalhar grãos aos passarinhos, para ser amado por seres que se
amam.”
Judas Iscariotes (deve estar um pouco desequilibrado) se joga no chão e
chora como um rapazinho.
121.3 Justamente naquele momento, Jesus entra com João:
– Que é que está acontecendo? Por que este choro?
– Foi por culpa minha, Mestre. Errei. Censurei a Judas de um modo
duro demais –diz com franqueza Pedro.
– Não… eu… eu… o culpado sou eu. Eu te causo dor… eu não sou
bom… eu perturbo, causo o mau humor, desobedeço, sou…Pedro tem
razão. Mas ajudai-me, então a ser bom! Porque eu tenho uma coisa, aqui no
coração, que me leva a fazer coisas que eu não queria fazer. É mais forte do
que eu… e causo dor a Ti, a Ti, Mestre, a quem gostaria de dar somente
alegria… Acredita-me! Não é falsidade…
– Está bem, Judas. Não duvido disso. Tu vieste a Mim com toda a
sinceridade de coração, com grande disposição. Mas és jovem… Ninguém,
nem tu mesmo, te conheces como Eu te conheço. Vamos, levanta-te e vem
aqui. Depois falaremos nós dois sozinhos. Por enquanto vamos falar
daquilo para o que me havíeis mandado chamar. Que mal existe em ter
vindo também Mananen? Será que um parente de Herodes não pode ter
sede do Deus verdadeiro? Vós temeis por Mim? Oh, não. Tende fé em
minha palavra. Aquele homem só veio para um fim honesto.
– Por que então, ele não veio apresentar-se? –perguntam os discípulos.
– Precisamente porque ele veio como “alma”, não como irmão colaço
de Herodes. Ele se envolveu no silêncio, porque acha que, diante da palavra
de Deus, o parentesco com um rei não é nada… Nós respeitaremos o seu
silêncio.
– Mas, se ao invés, ele o tivesse mandado?
– Quem? Herodes? Não. Não tenhais medo.
– Quem é então que o manda? Como é que ele te conhece?
– Ora, pelo próprio João, meu primo. Achais que ele, no cárcere, não
falou sobre Mim? Ou então, por meio de Cusa… Ou pela voz da
multidão… Ou pelo mesmo ódio dos fariseus… Até as frondes das árvores
e o ar já falam de Mim. A pedra foi lançada na água imóvel e o bastão bateu
no bronze. As ondas vão-se ampliando cada vez mais, levando às águas
longínquas a revelação, confiando-a aos espaços… A terra aprendeu a dizer
“Jesus” e nunca mais se calará. Ide, e sede corteses para com ele, como com
qualquer outro. Ide. Eu fico com Judas.
Os discípulos vão.
121.4 Jesus olha para Judas, que ainda está lacrimoso e lhe pergunta:
– E então? Não tens nada a dizer-me? Eu sei tudo sobre ti. Mas quero
sabê-lo por ti. Por que este pranto? E sobretudo, por que este desequilíbrio
que te torna sempre tão descontente?
– Oh! Sim, Mestre. É como disseste. Eu, por natureza, sou ciumento.
Certamente Tu o sabes. E sofro por ver que… por ver tantas coisas. Isto me
torna inquieto e… injusto. E me torno mau, quando não queria isso não…
– Não chores de novo! De que é que tens ciúmes? Habitua-te a falar
com a tua verdadeira alma. Tu falas muito, até demais. Mas, com que falas?
Com o instinto e com a mente. Segues um cansativo e contínuo trabalho
para dizer aquilo que queres dizer: falo de ti, do teu eu, porque quanto
àquilo que deves dizer dos outros e aos outros não impões a ti mesmo nem
rédea nem limite. Igualmente não impões rédea nem limite à tua carne. Essa
é o teu cavalo louco. Pareces um cocheiro, ao qual o intendente das corridas
deu dois cavalos loucos. Um é a sensualidade, o outro… queres ouvir qual é
o outro? Sim? É o erro que não queres domar. Tu, um cocheiro capaz, mas
imprudente, confias em tua capacidade e achas que é suficiente. Queres
chegar em primeiro lugar… não perdes tempo em mudar nem ao menos um
dos cavalos. Ao contrário, tu os incitas e os chicoteias. Queres ser “o
vencedor.” Queres o aplauso… Não sabes que toda vitória é certa, quando
conquistada com um trabalho constante, paciente e prudente? Fala com a
tua alma. É dela que Eu quero que venha a tua confissão. Ou devo Eu dizer-
te o que é que tens dentro de ti?
– Eu acho que Tu também não és justo e não és constante, e sofro com
isso.
– Por que me acusas? Em que foi que faltei, aos teus olhos?
– Quando eu queria levar-te aos meus amigos. Tu não quiseste,
dizendo: “Prefiro estar entre os humildes.” Depois, Simão e Lázaro te
disseram que seria bom que te colocasses sob a proteção de um poderoso e
Tu aceitaste. Tu dás preferência a Pedro, a Simão, a João… Tu…
– Que mais?
– Nada mais, Jesus.
– Nuvens!! bolhas na espuma da onda. Tenho pena de ti, porque és um
miserável que te torturas, quando podias alegrar-te. Podes dizer que este
lugar é luxuoso? Podes dizer que não houve uma grande razão que me fez
aceitá-lo? Se Sião tivesse sido menos madrasta com os seus profetas, estaria
Eu aqui, escondido como um que teme a justiça humana, e que se abriga em
um lugar assim?
– Não.
– E então? Podes dizer que não te dei missões como dei aos outros?
Podes dizer que Eu fui áspero para contigo, mesmo quando tu estavas em
falta? Tu não foste sincero… As vinhas!! Oh! As vinhas! Que nome tinham
aquelas vinhas? Tu não foste complacente com quem estava sofrendo e se
redimia. Tu não foste nem respeitoso para Comigo. E os outros viram…
Contudo, uma só voz se levantou em tua defesa e sempre. A minha. Os
outros teriam tido o direito de ficar com ciúmes, porque se havia alguém
sendo protegido, eras tu.
Judas chora, humilhado e comovido.
121.5– Eu vou. É esta a hora em que sou de todos. Tu fica. E medita.
– Perdoa-me, Mestre. Não poderei ter paz, se não tiver o teu perdão.
Não fiques triste por causa de mim. Sou um rapaz mau… Amo e atormento.
Assim sou com minha mãe… Assim Contigo… Assim seria com a esposa,
se amanhã tivesse uma… Melhor seria que eu morresse!!
– Melhor seria que te corrigisses. Mas estás perdoado. Adeus.
Jesus vai saindo e se aproxima da porta.
Do lado de fora está Pedro:
– Vem, Mestre. Já é tarde. E há muita gente. Daqui a pouco, cai a tarde.
E Tu nem comeste ainda… Aquele rapaz é a causa de tudo.
– Aquele “rapaz” precisa de vós todos para não ser mais causa destas
coisas. Vê se te lembras disso, Pedro. Se ele fôsse teu filho, terias
compaixão dele?
– Hum! Sim e não. Eu me compadeceria… mas… também lhe
ensinaria alguma coisa, ainda que ele já fôsse homem, como se faz com um
garoto mau. E, se fôsse meu filho, não seria assim…
– Basta.
– Sim, basta, meu Senhor. Eis lá Mananen. É aquele com o manto
quase preto, de tão vermelho escuro que é. Ele me deu isto para os pobres, e
me perguntou se podia ficar para dormir.
– E o que lhe respondeste?
– A verdade: “Temos camas só para nós. Vai ao povoado.”
Jesus não diz nada. Mas deixa Pedro só, e vai a João, ao qual lhe diz
qualquer coisa.
121.6 Depois volta ao seu lugar e começa a falar.
– A paz esteja com todos vós, e, com a paz, vos venha luz e santidade.
Foi dito: “Não proferir em vão o meu Nome.”
Quando é que se profere em vão esse Nome? Só quando se blasfema?
Não. Também quando o proferimos, sem nos tornarmos dignos de Deus.
Poderá um filho dizer: “Eu amo a meu pai e o honro”, se depois, em tudo
aquilo que o pai deseja dele, ele faz sempre o contrário? Não é dizendo
“pai, pai”, que se ama ao progenitor. Não é dizendo: “Deus, Deus”, que se
ama o Senhor.
121.7 Em Israel onde, como anteontem Eu expliquei, há tantos ídolos no
segredo dos corações, existe também um louvor hipócrita a Deus, louvor ao
qual não correspondem as obras dos louvadores. Em Israel há também uma
tendência: que é a de achar tantos pecados nas coisas exteriores, e não
querer encontrá-los no lugar em que realmente estão, que é nas coisas
interiores. Em Israel há ainda uma estulta soberba, um costume anti-
humano e antiespiritual: o de julgar que seja uma blasfêmia o Nome de
nosso Deus em lábios pagãos, e se chega até a proibir os gentios de se
aproximarem do Deus verdadeiro, julgando que isso seja um sacrilégio.
Isto até agora. A partir de agora, não será mais assim.
O Deus de Israel é o mesmo Deus que criou todos os homens. Por que
impedir que as criaturas sintam atração pelo seu Criador? Pensais vós que
os pagãos não sintam alguma coisa no fundo de seus corações, qualquer
coisa de insatisfação, que grita neles, e os agita, que os leva a procurar?
Procurar a quem? É o Deus desconhecido. E pensais vós que, se um pagão
sente propensão pelo altar do Deus desconhecido, por aquele altar
incorpóreo que é a alma, na qual existe sempre uma lembrança do seu
Criador, pois é a alma que espera ser possuída pela glória de Deus, como o
foi o Tabernáculo erguido por Moisés, segundo a ordem recebida e que
chora, enquanto essa posse não se realiza, pensais que Deus rejeite esse seu
oferecimento, como se rejeita uma profanação? Pensais que seja pecado o
ato suscitado por um honesto desejo da alma que, despertada por apelos
celestes, diz: “Eu vou” ao Deus que diz: “Vem”, e que seja santidade o
corrompido culto de um de Israel, que oferece ao Templo aquilo que sobra
de seus prazeres, e vai à presença de Deus e profere seu Nome, Puríssimo,
com uma alma e um corpo, onde pululam as culpas como uma grande
quantidade de vermes?
Não. Em verdade Eu vos digo que sacrilégio máximo está naquele
israelita que, com a alma impura, pronuncia em vão o Nome de Deus. Esse
Nome é pronunciado em vão, quando (e vós não sois tolos), pelo estado de
vossa alma, sabeis que o estais pronunciando inutilmente. Oh! Eu estou
vendo o rosto indignado de Deus, que se vira, desgostoso, para o outro lado,
quando um hipócrita o chama, quando um impenitente o nomina! E fico
horrorizado, até Eu que não mereço aquela ira divina.
121.8 Leio em mais de um coração este pensamento: “Mas então, com
exceção dos pequeninos, ninguém poderá chamar Deus? Porque tudo no
homem é impureza e pecado.” Não. Não digais assim. É pelos pecadores
que aquele Nome há de ser invocado. É por aqueles que se sentem
estrangulados por satanás e que querem livrar-se do pecado e do Sedutor.
Eles querem. Eis o que transforma o sacrilégio em um rito. Querer ficar
curado. Chamar o Poderoso para ser perdoado e para ser curado. Invocá-lo,
para pôr o Sedutor em fuga.
Foi dito no Gênesis que a Serpente tentou Eva na hora em que o Senhor
não estava passeando no Éden. Se Deus tivesse estado no Éden, satanás não
teria podido estar lá. Se Eva tivesse invocado Deus, satanás teria fugido.
Tende sempre no coração este pensamento. E, com sinceridade, invocai o
Senhor. Aquele Nome é salvação.
Muitos de vós querem descer para se purificarem. Mas purificai o vosso
coração, incessantemente, escrevendo sobre ele com amor a palavra: Deus.
Nada de orações mentirosas. Nada de práticas habituais. Mas com o
coração, com o pensamento, com os atos, com todo o vosso próprio ser,
dizei aquele Nome: Deus. Dizei-o para não ficardes sozinhos. Dizei-o para
serdes sustentados. Dizei-o para serdes perdoados.
Compreendei o significado da palavra do Deus do Sinai. “Em vão” quer
dizer a pronúncia da palavra “Deus”, sem mudança para o bem. E, nesse
caso, é pecado. Mas ela não é “em vão”, quando como a pulsação do sangue
no coração, cada minuto do vosso dia, cada vossa ação honesta, cada
necessidade, tentação, dor, trazer de novo aos vossos lábios a filial palavra
de amor: “Vem, meu Deus!” Então, em verdade não cometeis pecado, ao
proferirdes o Nome santo de Deus.
Ide. A paz esteja convosco.
121.9 Não há nenhum doente. Jesus fica com os braços cruzados,
encostado à parede, debaixo do telheiro, no qual já caem as sombras. Jesus
olha os que partem montados em seus burrinhos, os que vão depressa para o
rio, por um impulso de purificação, e os que, através dos campos, se
dirigem ao povoado.
O homem vestido de vermelho muito escuro parece incerto sobre o que
há de fazer. Jesus está de olho nele. Finalmente, ele se move e vai para o
seu cavalo, pois ele tem um cavalo branco muito bonito, ornado com um
xaile vermelho, que pende por sob a sela, cheia de brochas.
– Homem, espera-me –diz Jesus e o alcança–. A tarde cai. Tens onde
dormir? Estás vindo de longe? Estás sozinho?
O homem responde:
– Venho de muito longe… e irei… não sei… A algum povoado, se
encontrar… se não… a Jericó… Lá deixei a escolta, porque não confiava
nela.
– Não. Eu te ofereço a minha cama. Já está pronta. Tens alimento?
– Não tenho nada. Pensava encontrar um lugar mais hospitaleiro…
– Aqui nada falta.
– Nada. Nem mesmo o ódio contra Herodes. Sabes quem sou eu?
– O nome daqueles que me procuram é um só: irmãos em nome de
Deus. Vem. Vamos repartir o pão juntos. Podes abrigar o cavalo naquele
quarto grande. Eu vou dormir ali e tomarei conta dele para ti…
– Não, isto nunca. Eu dormirei ali. Aceito o pão e nada mais. Não irei
pôr o meu corpo sujo onde deitas o teu corpo santo.
– Achas que Eu sou santo?
– Sei que tu és santo. João, Cusa… as tuas obras… as tuas palavras…
O palácio real as ressoa como concha que conserva o rumor dos vagalhões.
Eu costumava ir a João… depois o perdi. Mas ele me havia dito: “Um que é
mais do que eu te recolherá e te elevará.” Não podia ser outro senão Tu. E
vim quando fiquei sabendo onde estavas.
Ficaram sozinhos sob o telheiro. Os discípulos estão cochichando perto
da cozinha e olhando de soslaio.
Zelote está voltando do rio, pois era quem estava batizando hoje,
121.10
acompanhado pelos últimos que foram batizados. Jesus abençoa e depois
diz a Simão:
– O homem é o peregrino que procura abrigo em nome de Deus. E em
nome de Deus o saudamos como amigo.
Simão se inclina, e o homem também. Entram no quarto grande e
Manaém amarra o cavalo na manjedoura. Acorre João, advertido por um
sinal de Jesus, e traz erva e uma ânfora com água. Acorre também Pedro,
com uma pequena candeia de azeite, pois já está escuro.
– Aqui estarei muito bem. Deus vos pague, diz o cavaleiro, e depois
entra, entre Jesus e Simão, na cozinha, que está iluminada por um feixe de
acendalhas[44] que acabaram de pôr no fogo.
Tudo termina.
[44] acendalhas: produtos destinados a facilitar a combustão [N.T.]
122. Os discursos de Águas Belas: Honra
o pai e a mãe. Cura de um hebetado[45].
3 de março de 1945.
122.1 Jesus caminha lentamente para cima e para baixo, ao longo da beira
do rio. O dia deve ter começado a pouco, porque a neblina de uma triste
jornada invernal ainda está estagnada sobre os caniços das margens. Não se
vê ninguém, a perder de vista, em nenhuma das margens do Jordão.
Somente uma névoa baixa, um sussurro da água contra os caniços, um
murmúrio das águas que, com as chuvas caídas nos dias anteriores, estão
um pouco lamacentas, um ou outro pio de pássaros, curto e triste, como
acontece quando já passou a estação dos amores e os penudos estão aflitos,
por causa da estação e do pouco alimento.
Jesus os escuta e parece interessar-se muito pelo pio de um passarinho
que, com a regularidade de um relógio, inclina a cabecinha para o norte e
diz um “chiruit?” lamentoso, depois inclina-a para o sul e repete o seu
interrogativo “chiruit?” sem obter resposta. Finalmente, o passarinho parece
ter tido uma resposta no “chip” que vem da outra beira, e bate as asas,
atravessando o rio, com um pequeno grito de alegria. Jesus faz um gesto,
como para dizer: “Ainda bem!”, depois retoma a sua caminhada.
122.2 – Estou te incomodando, Mestre? –pergunta João, que vem dos
prados.
– Não. Que queres?
– Queria dizer-te… acho que é uma notícia que poderá dar-te um
consolo, e vim logo, também para pedir-te um conselho. Estava varrendo os
nossos quartos, quando chegou Judas de Keriot. Disse-me: “Vou te ajudar.”
Fiquei admirado, porque sempre faz de má vontade até o que lhe é
mandado, quando se trata destes trabalhos humildes… mas não lhe disse
nada mais do que isto: “Oh! Obrigado! Assim acabarei logo e melhor.” Ele
se pôs a varrer e acabamos logo. Então disse: “Vamos ao bosque. Sempre
são os velhos que transportam a lenha. Não está bem. Vamos nós fazer isso.
Eu não sei muito bem como fazê-lo. Mas se me ensinares…” E fomos. E
enquanto eu estava lá amarrando os feixes com ele, me disse: “João, eu
quero te dizer uma coisa.” “Fala”, eu disse. E pensava que ia fazer alguma
crítica. Ao invés, ele me disse: “Eu e tu somos os mais jovens.
Precisaríamos estar mais unidos. Tu tens um pouco de medo de mim, e tens
razão, porque eu não sou bom. Mas, podes crer… eu não faço assim de
propósito. Algumas vezes tenho necessidade de ser mau. Talvez porque,
como sou filho único, me tenham acostumado mal. E eu gostaria de tornar-
me bom. Os velhos, eu sei, não me olham muito bem. Os primos de Jesus
estão irritados porque… sim, eu tenho faltado muito com eles, e também
para com o primo deles. Mas tu és bom e paciente. Queira-me bem. Faz de
conta que eu seja um teu irmão, mau sim, mas que é preciso amar, ainda
que seja mau. Até o Mestre diz que é preciso fazer assim. Quando vires que
estou fazendo não muito bem as coisas, dize-me. E depois, não me deixes
sempre só. Quando eu vou aos povoados, vem tu também. Ajudar-me-ás a
não fazer o mal. Ontem eu sofri muito. Jesus me falou e eu olhei para Ele.
No meu insípido rancor, eu não olhava nem a mim mesmo, nem aos outros.
Ontem eu olhei e vi… Têm razão aqueles que dizem que Jesus está
sofrendo… e eu sinto que eu também tenho culpa. Não quero mais tê-la.
Vem comigo. Virás? Ajudar-me-ás a ser menos mau?” Assim ele disse, e
eu, confesso, estava com o coração batendo, como aquele de um pardal
seguro por um menino. Batia de alegria, porque tenho prazer que ele se
torne bom, por causa de Ti tenho prazer, e batia também por medo
porque… não queria ficar como é Judas. Mas depois veio em minha mente
tudo que me disseste no dia em que tomaste Judas, e respondi: “Sim, te
ajudarei. Mas devo obedecer e, se as ordens que receber forem outras…”
Pensava: agora vou dizer ao Mestre e se Ele quiser eu o faço, se não quiser,
pedir-lhe-ei que me dê ordem de não ir para longe da casa.
– Escuta, João. Eu te deixo ir. Mas me deves prometer que, se ouvires
alguma coisa que te perturbe, tu venhas dizer a Mim. Tens-me dado tanta
alegria, João. 122.3Eis aqui Pedro com o seu peixe. Vai, João.
Jesus se volta para Pedro:
– Foi boa a pesca?
– Hum! Não muito. Uns peixinhos… Mas tudo bem. Aí está Tiago
resmungando, porque algum animal roeu a corda, e se perdeu uma rede. Eu
disse: “Ele não precisava comer? Tem compaixão pelo pobre animal.” Mas
Tiago não entende assim… –Pedro ri.
– É o que estou falando de um que é irmão. E vós não sabeis fazê-lo.
– Estás falando de Judas?
– Estou falando de Judas. Ele sofre com isso. Tem desejos bons e
tendências perversas. Mas diz-me uma coisa, tu, pescador experiente. Se Eu
quisesse ir de barco pelo Jordão e alcançar o lago de Genezaré, como teria
que fazer? Será que Eu o conseguiria?
– Ah! Seria um trabalhão! Mas o conseguirias, com pequenos barcos de
fundo chato… É cansativo, sabes? E leva tempo! Precisaria estar sempre
medindo a profundidade, estar de olho nas beiras, nos bancos de areia, nas
vegetações flutuantes e na correnteza. A vela, num caso destes, não serve,
ao contrário… Mas queres ir para o lago, seguindo as águas do rio? Olha
que navegar contra a corrente é difícil. É preciso que sejam muitos, se
não…
– Tu o disseste. Quando alguém está viciado, para caminhar rumo ao
Bem precisa ir contra a corrente, e não pode, sozinho, conseguir. Judas é
justamente um destes. E vós não o ajudais. O coitado vai indo rio acima, só,
e bate no fundo, roça os bancos de areia, enreda-se nas vegetações
flutuantes e é arrastado pelos redemoinhos. Por outro lado, se precisar
medir a profundidade, não pode, ao mesmo tempo, segurar a barra do leme
e o remo. Por que, então, censurá-lo, se ele não é capaz de prosseguir?
Tendes piedade dos estranhos, mas dele, vosso companheiro não? Não é
justo. 122.4Estás vendo lá João e ele, que vão ao povoado buscar pão e
verduras? Ele pediu por favor que não o deixe sozinho. E pediu isso a João,
porque não é tolo, e sabe o que vós, mais velhos, pensais a respeito dele.
– E Tu o mandaste? E se João também se estragar?
– Quem? Meu irmão? Por que haverá ele de se estragar? –pergunta
Tiago, que chega, trazendo a rede, que conseguiu apanhar entre os caniços.
– Porque Judas vai com ele.
– Desde quando?
– Desde hoje, e Eu o permiti.
– Então, se Tu o permites…
– Sim, e Eu aconselho, aliás, a todos. Vós o deixais muito só. Não
sejais juízes dele somente. Ele não é pior do que muitos outros. Mas é
viciado desde a infância.
– Sim, deve ser assim. Se tivesse tido por pai e mãe Zebedeu e Salomé,
não seria assim. Meus pais são bons. Mas eles se lembram de que têm um
direito e um dever para com os filhos.
– Falaste bem. Hoje falarei justamente sobre isso. 122.5Agora vamos. Já
vejo pessoas que estão se movimentando pelos prados.
– Eu não sei como haveremos de fazer para viver. Não temos mais hora
de comer, de rezar, de descansar… e o povo sempre aumentando –diz
Pedro, entre admirado e aborrecido.
– E tu ficas aborrecido com isso? Isso é sinal de que ainda existe uma
procura de Deus.
– Sim, Mestre. Mas com isso Tu sofres. Ficaste até sem comer ontem, e
esta noite não terias outra coberta, se não tivesses o teu manto. Se tua Mãe
ficasse sabendo disso!
– Ela bendiria a Deus que me traz tantos fiéis.
– E censuraria a mim, a quem Ela te recomendou –termina Pedro.
Vêm descendo em direção à eles, e gesticulando, Filipe e Bartolomeu.
Veem a Jesus, e apressam o passo, dizendo:
– Oh! Mestre! Como iremos fazer? Vem aí uma verdadeira
peregrinação; doentes, pessoas que choram, pobres sem recursos, e vêm de
longe.
– Compraremos pão. Os ricos nos dão óbolos. É só fazer uso deles.
– Os dias são curtos. O telheiro já está lotado de gente, em bivaques. As
noites são úmidas e frias.
– Tens razão, Filipe. Nós nos apertaremos todos em um quarto grande.
Podemos fazer isso, e prepararemos os outros dois para aqueles que não
podem alcançar as suas casas antes do anoitecer.
– Entendi! Daqui a pouco teremos que pedir aos hóspedes licença para
mudar a veste! Serão tão invasores que nos farão fugir –resmunga Pedro.
– Verás outras fugas, meu Pedro! 122.6Que tem aquela mulher?
Eles já estão na eira e Jesus nota uma mulher chorando.
– Ora! Ela estava aqui ontem também, também chorando. Quando Tu
falavas com Mananen, ela movimentou-se para ir ao teu encontro, mas
depois foi-se embora. Deve morar no povoado, ou perto daqui, porque
voltou. Doente ela não parece estar…
– A paz esteja contigo, mulher –diz Jesus, passando ao lado dela.
E ela responde baixo:
– E Contigo.
Nada mais.
Haverá aí pelo menos trezentas pessoas. Debaixo do telheiro, há coxos,
cegos, mudos; um, muito agitado por um tremor; um jovenzinho,
visivelmente hidrocéfalo, seguro pela mão de um homem, não faz mais do
que ganir, babar-se, sacudir sua cabeçorra, com uma expressão de
hebetismo.
– Será ele filho daquela mulher? –pergunta Jesus.
– Não sei. Simão que cuida dos peregrinos, deve saber.
Chamam o Zelote e lhe interrogam. Mas o homem não está com a
mulher. Ela está sozinha.
– Ela não faz outra coisa, senão chorar e rezar. E, há pouco, ela me
perguntou: “O Mestre cura também os corações?” –explica o Zelote.
– Será alguma mulher traída –comenta Pedro.
Enquanto Jesus vai em direção aos doentes, Bartolomeu com Mateus
vão à purificação com muitos peregrinos.
Em seu canto a mulher chora e não se move.
122.7 Jesus não nega a ninguém o milagre. Belo milagre foi o do
hebetado, no qual Ele infundiu a inteligência, com seu hálito, segurando
depois a cabeçorra entre suas longas mãos. Todos se aglomeram. Também a
mulher velada, talvez porque há muita gente, ousa aproximar-se um pouco,
e se põe perto da mulher chorosa.
Jesus diz ao doente:
– Eu quero em ti a luz da inteligência, para abrir caminho à luz de
Deus. Escuta, diz Comigo: “Jesus.” Diz. Eu quero.
O hebetado, que antes gania como um animal, e não dava mais do que
um ganido, balbucia com dificuldade: “Jesus”, ou melhor, “Jejú.”
– Outra vez –ordena Jesus, continuando a segurar entre as suas mãos
aquela cabeça disforme e dominando-o com o seu olhar.
– Jes-su.
– Outra vez.
– Jesus! –diz finalmente o doente.
E seu olhar já não é mais vazio de expressão, a boca tem um sorriso
diferente.
– Homem –diz Jesus ao pai–. Tu tiveste fé! Teu filho está curado.
Interroga-o. O nome de Jesus é milagre contra as doenças e as paixões.
O homem diz ao filho:
– Quem sou eu?
E o menino:
– O meu pai.
O homem aperta o filho contra o seu coração e explica:
– Ele nasceu assim. Minha esposa morreu no parto e ele era retardado
na mente e na fala. Agora, vê. Eu tive fé, sim. Eu estou vindo de Jope. Que
devo fazer por Ti, Mestre?
– Ser bom. E o teu filho contigo. Nada mais.
– E amar-te. Oh! Vamos logo contá-lo à mãe de tua mãe. Foi ela que me
persuadiu a fazer isto. Bendita seja ela!
Os dois vão felizes. Da passada desventura só ficou a cabeça grande do
menino. A expressão e a palavra são normais.
122.8 – Mas ele foi curado por tua vontade, ou pelo poder do teu Nome? –
perguntam-lhe muitos.
– Pela vontade do Pai, sempre benigno para com o Filho. Mas também
o meu Nome é salvação. Vós o sabeis: Jesus quer dizer Salvador. A
salvação é da alma e do corpo. Quem diz o Nome de Jesus com verdadeira
fé, ressuscita das doenças e do pecado, porque em toda doença espiritual ou
física estão as garras de satanás, o qual cria as doenças físicas para levar as
pessoas à revolta e ao desespero através do sofrimento da carne, e cria as
doenças morais ou espirituais para levar à condenação.
– Então, segundo o teu parecer, em todas as aflições do gênero humano
não deixa de estar atuando Belzebu.
– Não deixa de estar atuando. Por ele é que a doença e a morte entraram
no mundo. Também o delito e a corrupção entraram no mundo por ele.
Quando virdes alguém atormentado por qualquer desventura, pensai
também que ele está sofrendo pela atuação de satanás. Quando virdes que
alguém está sendo causa de desventura, pensai que ele também está sendo
usado como um instrumento de satanás.
– Mas as doenças vêm de Deus.
– As doenças são uma desordem na ordem. Porque Deus criou o
homem são e perfeito. A desordem foi posta por satanás dentro da ordem
dada por Deus, e trouxe consigo as enfermidades da carne e as
consequências das mesmas, ou seja, a morte, ou então as hereditariedades
funestas. O homem herdou de Adão e Eva a mancha de origem. Mas não é
somente ela. E a mancha vai-se alastrando, e tomando conta das três partes
do homem: a carne, sempre mais viciada e por isso, fraca e doente; a moral,
cada vez mais soberba e por isso, corrompida, o espírito, cada vez mais
incrédulo, ou seja, sempre mais idólatra. Por isso, como Eu fiz com aquele
deficiente; é preciso ensinar o Nome que afugenta satanás, esculpi-lo na
mente e no coração, colocá-lo sobre o eu como um selo de propriedade.
– Mas Tu nos possuis? Quem és Tu para te creres tão grande?
– Antes fôsse assim! Mas não é. Se Eu vos possuísse, já estaríeis salvos.
E isto seria o meu direito. Porque Eu sou o Salvador. Mas aqueles que
tiverem fé em Mim, Eu os salvarei.
122.9 – João… (eu estou vindo de parte de João) me disse: “Vai Àquele
que está falando e batizando perto de Efraim e Jericó. Ele tem poder de
ligar e desligar, enquanto que eu só posso dizer-te: faz penitência, para
tornares tua alma ágil a seguir o caminho da salvação”, assim diz um dos
miraculados, que antes se servia de suas muletas, e agora se move expedito.
– E o Batista não sofre, pelo fato de perder a multidão? –pergunta
alguém.
Aquele que tinha falado primeiro, responde:
– Sofrer? Ele diz a todos: “Ide! Ide! Eu sou o astro que desce. Ele é o
astro que sobe e se fixa eterno em seu esplendor. Para não ficardes nas
trevas, ide a Ele, antes que o meu pavio se apague.”
– Os fariseus não falam assim! Eles estão cheios de rancor, porque Tu
atrais as multidões. Estás sabendo disso?
– Eu estou sabendo –responde Jesus em poucas palavras.
Trava-se, então, uma discussão sobre a razão ou semi-razão do modo de
agir dos fariseus. Mas Jesus a interrompe, com um: “Não critiqueis”, que
não admite réplica.
122.10 Voltam Bartolomeu e Mateus com os que foram batizados.
Jesus começa a falar.
– A paz esteja com todos vós.
Estive pensando — posto que agora estais vindo aqui, desde a manhã, e
mais cômodo vos seja partirdes ao meio dia —, em falar-vos de Deus pela
manhã. Pensei também em alojar os peregrinos que não podem voltar para
suas casas no meio da tarde. Eu, por minha vez, sou peregrino e não possuo
senão o mínimo indispensável que me foi dado pela piedade de um amigo.
João tem ainda menos do que Eu. Mas a João se dirigem pessoas sãs ou
simplesmente pouco doentes, encolhidos, cegos, mudos. Mas não os que
estão à morte ou febris, como os que vêm a Mim. Vão a ele pelo batismo da
penitência. A Mim vêm também para a cura de seus corpos. A Lei diz[46]:
“Ama ao teu próximo como a ti mesmo.” Eu penso: como Eu poderia
mostrar que amo os irmãos, se Eu fechasse o meu coração às suas
necessidades, mesmo físicas? E concluo: darei a eles o que me foi dado.
Estendendo a mão aos ricos, pedirei o pão para os pobres, levantando-me da
cama, acolherei nela o cansado e o que sofre.
Somos todos irmãos. E o amor não se prova com palavras, mas com
fatos. Aquele que fecha o coração ao seu semelhante, tem um coração de
Caim. Aquele que não tem amor é um rebelde ao mandamento de Deus.
Somos todos irmãos. Contudo, Eu vejo, e vós vedes, que também no
interior das famílias — lá onde o sangue igual reforça, também com o
sangue e a carne, a irmandade que nos vem de Adão — há ódios e atritos.
Os irmãos estão contra os irmãos, os filhos contra os pais, os esposos,
inimigos um do outro.
Mas, para não serem sempre maus irmãos e esposos adúlteros um dia, é
preciso aprender, desde a primeira idade, o respeito para com a família,
organismo que é o menor e o maior do mundo. O menor, em relação ao
organismo de uma cidade, de uma região, de uma nação, de um continente.
Mas o maior, porque é o mais antigo; porque foi colocado por Deus, quando
ainda o conceito de pátria e de cidade não existia, mas já era vivo e
operante o núcleo familiar, fonte da raça e das raças, pequeno reino no qual
o homem é rei, a mulher a rainha, e súditos os filhos. Poderá um reino ter
duração, se ele tiver divisões e inimigo em cada um dos seus habitantes?
Não pode durar. E, na verdade, uma família não dura, se nela não houver
obediência, respeito, economia, boa vontade, operosidade, amor.
122.11 “Honra o pai e a mãe” –diz o decálogo. Como é que se honra? Por
que devem ser honrados?
Honram-se com uma verdadeira obediência, com um amor justo, com
um respeito confiante, com um temor reverencial, que não impede a
confiança, mas, ao mesmo tempo, não nos faz tratar os maiores, como se
fôssemos servos e inferiores. Devem ser honrados, porque depois de Deus,
os doadores da vida, e de todas as necessidades materiais da vida, os
primeiros mestres, os primeiros amigos do jovem ser, que nasceu sobre a
terra, são o pai e a mãe.
Diz-se: “Deus te abençoe” ou “obrigado” àquele que recolhe um objeto
caído ou nos dá um pedaço de pão. E a estes, que se cansam no trabalho
para nos sustentar, para nos dar nossas vestes e conservá-las limpas, a estes
que se levantam para escrutarem o nosso sono, que sacrificam seu repouso
para cuidar de nossa saúde, que fazem de seus colos um leito para as nossas
mais dolorosas canseiras, não lhes haveremos de dizer, com amor: “Deus te
abençoe”, “obrigado”?
São os nossos mestres. O mestre é temido e respeitado. Mas ele toma
conta de nós, quando já sabemos o indispensável sobre o modo de
comportar-nos, de alimentar-nos e de dizer as coisas essenciais, e ele nos
deixa, quando o mais árduo ensinamento da vida, ou seja, “o viver” nos
deve ainda ser ensinado. E são o pai e a mãe que nos preparam à escola
primeiro e à vida depois.
São os nossos amigos. Mas que amigo pode ser mais amigo do que um
pai? E quem mais amiga do que uma mãe? Podeis tremer, diante deles?
Podeis dizer: “Serei traído por ele, por ela”? Contudo, eis o jovem tolo, e a
moça, mais tola ainda, que se fazem amigos de estranhos, e fecham seus
corações ao pai e à mãe, estragando suas mentes e corações com
relacionamentos que são imprudentes, quando não chegam a ser até
culpáveis, causando lágrimas paternas e maternas, que sulcam como se
fossem gotas de chumbo fundido seus corações paternos. Aquelas lágrimas,
porém, Eu vo-lo digo, não caem no chão nem no esquecimento. Deus as
recolhe e as conta. O martírio de um pai espezinhado receberá um prêmio
do Senhor. Mas o ato do filho, que é o suplício de um pai, tampouco será
esquecido, mesmo quando o pai e a mãe, em seu doloroso amor, suplicam a
piedade de Deus para o filho culpado.
“Honra o pai e a mãe”, se queres viver longos dias sobre a terra, foi
dito. “E eternamente no Céu”, Eu acrescento. Pequeno demais seria o
castigo de viver pouco aqui por ter faltado com os pais! O além não é uma
fábula, e do lado de lá haverá prêmio ou castigo, conforme o modo como
tivermos vivido. Quem falta com seus pais, falta para com Deus, porque
Deus deu para os pais um mandamento de amor, e quem não ama, peca. Por
isso, ele perde mais do que a vida material, perde a verdadeira vida de que
Eu vos falei, e vai ao encontro da morte, pois sua alma está fora da graça do
Senhor, está culpada pelo delito, visto que fere o amor mais santo que há
depois do de Deus, e já traz em si os germes dos futuros adultérios, porque
o filho mau se torna um pérfido esposo, já tem em si os estímulos da
perversão social, porque um filho mau já é o desabrochar de um futuro
ladrão, do truculento e violento assassino, do frio usurário, do libertino
sedutor, do gozador cínico, do repugnante traidor da pátria, dos amigos, dos
filhos, da esposa, de todos. E podereis ter estima e confiança em quem foi
capaz de trair o amor de uma mãe e de zombar dos cabelos brancos de um
pai?
122.12 Porém, ouvi ainda: Aos deveres dos filhos corresponde um dever
igual dos pais. Maldição ao filho culpado! Mas maldição também ao
culpado pai. Fazei que os vossos filhos não vos possam criticar, nem imitar
no mal. Fazei-vos amar por um amor dado com justiça e Misericórdia. Deus
é Misericórdia. Os pais, que acima de si só têm a Deus, sejam
misericordiosos. Sede exemplo e conforto para os filhos. Sede paz e guia.
Sede o primeiro amor de vossos filhos. Uma mãe é sempre a primeira
imagem da esposa que nós quereríamos. Um pai, para suas filhas
jovenzinhas, tem o rosto que elas sonham que seu esposo vai ter. Fazei que,
sobretudo, os filhos e as filhas escolham com sabedoria os consortes
recíprocos, pensando na mãe, no pai, e desejando que o seu consorte tenha
o que o pai ou a mãe tem: uma virtude veraz.
Se Eu tivesse que falar até esgotar o argumento, o dia e a noite não
seriam suficientes. Vou abreviá-lo por amor de vós. O resto, que vo-lo diga
o Espírito eterno. Eu jogo a semente, e passo adiante. Mas a semente nos
bons lançará raízes e produzirá espigas. Ide. A paz esteja convosco.
122.13 Os que partem, vão embora rápido. Os que ficam, entram no
terceiro quarto grande e comem pão, ou o que os discípulos lhes oferecem
em nome de Deus. Sobre os rústicos cavaletes foram colocadas tábuas e
palhas e lá podem dormir os peregrinos.
A mulher velada vai embora, com passo rápido, a outra que antes já
chorava, e que continuou chorando enquanto Jesus estava falando,
perambula incerta, mas depois resolve ir embora.
Jesus entra na cozinha para alimentar-se. Mas, mal começa a comer,
batem à porta.
André se levanta, pois está mais perto da porta, e sai para a eira. Fala, e
depois torna a entrar:
– Mestre, uma mulher, aquela que estava chorando, quer falar Contigo.
Ela diz que precisa ir embora, e que deve falar-te.
– Mas, desse modo, quando e como é que o Mestre vai poder comer? –
exclama Pedro.
– Devias ter-lhe dito que viesse mais tarde –diz Filipe.
– Silêncio. Eu comerei depois. Continuai, vós.
Jesus sai. A mulher está lá fora.
– Mestre… uma palavra… Tu disseste… Oh! Vem atrás da casa! É
penoso dizer a minha dor!
Jesus faz-lhe a vontade, sem dizer nada. Só quando estão atrás da casa,
Ele pergunta:
– Que queres de Mim?
– Mestre… eu te ouvi antes, quando estavas falando no meio de nós…
e depois eu te ouvi, quando estavas pregando. Parecia que estavas falando
para mim. Tu disseste que em toda doença física ou moral está satanás… Eu
tenho um filho que está doente no coração. Se ele te tivesse ouvido, quando
falaste dos pais! É o meu tormento! Ele se desviou com maus companheiros
e é… é justamente como Tu dizes… ladrão… em casa, por enquanto,
mas… É rixento… prepotente… Jovem como é, se arruína com luxúrias e
crápulas. Meu marido quer expulsá-lo. Eu… eu sou a mãe… e sofro
mortalmente. Estás vendo como o meu peito está arquejando? É o meu
coração que se despedaça de tanta dor. Desde ontem estou querendo falar-te
porque… espero em Ti, meu Deus. Mas não ousava dizer nada. É tão
doloroso para uma mãe ter que dizer: “Eu tenho um filho cruel!”
A mulher chora, encurvada e angustiada, diante de Jesus.
– Não chores mais. Ele vai ficar curado do seu mal.
– Se ele pudesse ouvir-te, sim. Mas ele não quer ouvir-te. Oh! Ele
nunca ficará são!
– Mas tu não tens fé por ele? Não queres tu por ele?
– E o perguntas a mim? Venho lá da Alta Pereia para pedir-te por ele…
– Então vai. Quando chegares em casa, teu filho virá ao teu encontro,
arrependido.
– Mas, como?
– Como? Pensas que Deus não pode fazer o que Eu peço? Teu filho está
lá. Eu estou aqui. Mas Deus está em toda parte. Eu digo a Deus: “Pai,
piedade por esta mãe.” E Deus trovejará o seu chamado no coração do teu
filho. Vai, mulher. Um dia passarei pelas regiões da tua cidade e tu,
orgulhosa do teu filho homem, virás ao meu encontro junto a ele. E quando
ele estiver chorando sobre os teus joelhos, pedindo-te perdão e contando-te
sua misteriosa luta, da qual saiu com uma alma nova, e te perguntar como
foi que aconteceu aquilo, tu lhe dirás: “É por Jesus que renasceste para o
Bem.” Fala a ele de Mim. Se tu vieste a Mim, é sinal que sabes. Faz que ele
saiba e pense em Mim, para que tenha consigo a força que salva. Adeus.
Paz à mãe que teve fé, ao filho que volta, ao pai contente, à família
recomposta. Vai.
A mulher vai-se em direção ao povoado e tudo termina.
[45] hebetado: Aparvalhado [N.T.]
[46] diz, em: Levítico 19,18.
123. Os discursos de Águas Belas: Não
fornicar. A afronta dos cinco notáveis.
4 de março de 1945.
123.1 Jesus me diz:
– Tem paciência, minha alma, pelo duplo cansaço. É tempo de
sofrimento. Sabes como Eu estava cansado nos últimos dias? Tu o estás
vendo. No andar me apoio em João, a Pedro, em Simão, também em
Judas… Sim. E Eu, que emanava milagre, só roçando com as minhas
vestes, não pude mudar aquele coração! Deixa que Eu me apoie em ti,
pequeno João, para repetir as palavras já ditas nos últimos dias, àqueles
persistentes obtusos, sobre os quais o anúncio do meu tormento escorria,
sem penetrar. E deixa também que o Mestre preencha as suas horas de
pregação na triste planície das Águas Belas. E Eu te abençoarei duas vezes.
Pelo teu cansaço e pela tua piedade. Enumero os teus esforços, recolho as
tuas lágrimas. Aos esforços por amor dos irmãos será dada a recompensa
daqueles que se consomem para tornar Deus conhecido aos homens. Às
tuas lágrimas pelo meu sofrimento da última semana será dado como
prêmio o beijo de Jesus. Escreve e sê abençoada.

123.2Jesus está em pé sobre um monte de tábuas, levantadas como uma


tribuna em um dos quartos grandes, o último, e está falando com voz
trovejante, junto à porta, para ser ouvido tanto pelos que estão no quarto
como por aqueles que estão sob o telheiro, e até na eira, alagada pela chuva.
Vestidos com seus mantos escuros de lã não curtida, nas quais a água não se
infiltra, eles parecem uns frades. No quarto estão os mais fracos, sob o
telheiro estão as mulheres, na eira, pisando na terra alagada, estão os mais
fortes, homens em sua maioria.
Pedro vai e vem, descalço e somente com a veste curta, debaixo de um
pano que ele pôs na cabeça. Não perde o bom humor, mesmo quando
chapinha na água e recebe um banho não pedido. Com ele estão João,
André e Tiago. Estão transportando, do outro quarto, com cuidado, alguns
doentes, guiando os cegos, ou amparando os aleijados.
Jesus espera com paciência que todos estejam em seus lugares. Só está
compadecido dos quatro discípulos, que estão molhados como umas
esponjas enfiadas numa ânfora com água.
– Nada! Não é nada! Somos madeira curada com piche. Não te
preocupes. Estamos fazendo um outro batismo, e o batizador é o próprio
Deus –responde Pedro às preocupações de Jesus.
Finalmente, todos estão em seus lugares e Pedro acha que já pode ir pôr
uma veste seca. E o vai fazer, com os outros três. Mas, quando alcançou
novamente o Mestre, vê emergir do canto do telheiro, o manto cinzento da
velada e, sem pensar que para ir até ela, precisa atravessar de novo a eira,
em diagonal, sob o barulho da chuva, que está engrossando e passar pelas
poças d’água, que espirram até a altura dos joelhos, atingidas pelas grandes
gotas, dirige-se à mulher. Ele a pega por um cotovelo, sem remover o manto
dela, e a puxa bem para cima, junto à parede do quarto grande, abrigando-a
da água. Depois, coloca-se perto dela, rijo e imóvel como uma sentinela.
Jesus viu. Sorriu e inclinou a cabeça para ocultar a luminosidade do seu
sorriso. 123.3Agora está falando.
– Não digais, vós que sempre tendes vindo a Mim, que Eu não falo de
modo ordenado e que passo por cima de algum dos dez mandamentos. Vós
me estais ouvindo. Eu vos estou vendo. Vós estais escutando. Eu vou
adaptando minhas palavras às dores e às chagas que vejo em vós. Eu sou o
Médico. Um médico se dirige primeiro aos mais doentes, àqueles que estão
mais próximos da morte. Depois se volta para os menos graves. Eu também.
Hoje digo: “Não forniqueis.”
Não olheis ao vosso redor, procurando ler no rosto de alguém a palavra
“luxurioso.” Tende caridade recíproca. Gostaríeis que alguém fizesse isso
convosco? Não. Então, não fiqueis procurando ler luxúria no olhar turbado
do vizinho, na fronte que cora e se inclina para o chão. E depois… Oh!
dizei-o, especialmente vós, homens. Quem de vós nunca pôs os dentes neste
pão de cinza e esterco, que é a satisfação sexual? E será luxúria somente
aquela que vos impele, por uma hora, aos braços de uma meretriz? Não é
luxúria também a união profanada com a esposa, profanada porque se
tornou um vício legalizado, sendo recíproca satisfação da sensualidade,
evadindo às consequências da união?
Matrimônio quer dizer procriação, que quer dizer e deve ser
fecundação. Sem isto, é imoralidade. Não se deve fazer do tálamo um
lupanar. E é isto que ele se torna, se se suja com a libidinagem, e não se
consagra pela maternidade. A terra não rejeita a semente. Acolhe-a e dela
faz uma planta. A semente não foge da gleba, depois de ter sido posta nela.
Mas logo cria raiz e se agarra na gleba, para crescer, produzindo espigas, ou
seja, a criatura vegetal, nascida da união entre a gleba e a semente. O
homem é a semente, a mulher é a terra e a espiga é o filho. Recusar-se a
produzir a espiga e dispersar a força no vício é um pecado. É o meretrício
cometido no leito conjugal, mas em nada diferente do outro, antes,
agravado pela desobediência ao mandamento que diz[47]: “Sede uma só
carne, e multiplicai-vos nos filhos.”
Por isso, estais vendo, ó mulheres intencionalmente estéreis, mulheres
legais e honestas, não aos olhos de Deus, mas do mundo, que, não obstante
isso, podeis ser como umas fêmeas assalariadas podeis fornicar igualmente,
mesmo sendo só com o marido, porque ides demais, e com frequência, não
à procura da maternidade, mas do prazer. E não pensais que o prazer é um
tóxico que, aspirado por qualquer boca, contamina e queima como um fogo
que, achando estar se satisfazendo, extravasa fora da lareira e devora, cada
vez mais insaciável, deixando-lhes um sabor acre de cinza debaixo da
língua, e desgosto e náusea e desprezo por si e pelo companheiro de prazer,
porque, quando a consciência ressurge — e entre uma febre e outra, ela
ressurge — não pode deixar de nascer esse desprezo por si, aviltados até
abaixo do nível dos animais?
123.4 “Não forniqueis”, foi dito.
É fornicação uma grande parte das ações carnais do homem. E não me
estou referindo nem mesmo àquelas inconcebíveis uniões de incubo, que o
Levítico condena[48] com estas palavras: “Homem, não te aproximarás do
homem, como se ele fôsse uma mulher”, “Não te aproximarás de nenhum
animal, para não te contaminar com ele. E assim fará a mulher não se
unindo a animal, porque é perversidade”. Mas depois de ter acenado aos
deveres dos esposos para com o casamento, que cessa de ser santo quando,
por malícia, se torna infecundo, venho falar da verdadeira e própria
fornicação entre o homem e a mulher, por vício recíproco e por
compensação em dinheiro ou presentes.
O corpo humano é um magnífico templo, que encerra um altar. Sobre
esse altar deveria estar Deus. Mas Deus não está onde há corrupção. Por
isso, o corpo do impuro tem o altar dessacralizado e sem Deus. Assim como
o que se revolve, embriagado, na lama e nos vômitos da própria
embriaguez, o homem avilta a si mesmo na bestialidade da fornicação e se
torna pior do que um verme e do que o animal mais imundo.
E dizei-me, se entre vós há alguém que se depravou até o ponto de
comerciar o seu corpo, como se faz na feira com os cereais e os animais,
que bem daí lhe resultou? Tomai de fato o vosso coração nas mãos,
observai-o, interrogai-o, ouvi o que ele vos diz, olhai as suas feridas, os
seus arrepios de dor, e depois respondei-me: era tão doce aquele fruto, para
merecer esta dor de um coração, que tinha nascido puro e que vós
obrigastes a viver em um corpo impuro, a bater para dar vida e calor à
luxúria, a se esbanjar no vício?
Dizei-me: mas sereis tão depravadas, para não soluçardes em segredo,
ouvindo uma voz de menino que chama “mamãe” e pensando em vossa
mãe, ó mulheres do prazer, que fugistes de casa, ou fostes expulsas, para
que o fruto podre não viesse contaminar, com sua transudante podridão, os
outros irmãos? Pensando em vossa mãe, que talvez tenha morrido com a
dor de ter que dizer: “Eu dei à luz um opróbrio”?
Não sentis cair por terra o vosso coração, ao encontrardes um velho
solene em sua canície, e pensando que sobre aquela de vosso pai jogastes a
desonra, como uma lama apanhada com as mãos, e o escárnio da terra
natal?
Mas não sentis que vossas entranhas se comovem de saudade, quando
vedes a felicidade de uma esposa ou a inocência de uma virgem, e precisais
dizer: “Eu renunciei a tudo isto e não o terei nunca mais!”?
Mas não sentis como se vos esfolassem o rosto de vergonha, ao verdes
o olhar desejoso, ou cheio de desprezo, dos homens?
Não sentis a vossa miséria, quando tendes sede de um beijo de criança,
e não tendes mais coragem de dizer: “Dá-me um beijo”, por causa das vidas
que matastes no começo, repelidas por vós como um peso aborrecido e
como um estorvo inútil, vidas arrancadas da árvore que, as havia concebido,
e jogadas no lixo. Agora aquelas pequenas vidas vos estão gritando
“assassinas!”?
Mas não tremeis, sobretudo diante daquele Juíz, que vos criou e vos
está esperando, para perguntar-vos: “Que é que fizeste de ti mesma?
Porventura, para isto é que te dei a vida? Pululante ninho de vermes e
putrefação, como ousas estar na minha frente? Tudo tiveste daquilo que
para ti era o teu deus: o prazer. Vai para a maldição sem fim”?
123.5Quem é que está chorando? Ninguém? Vós dizeis: Ninguém?
Contudo a minha alma está indo ao encontro de uma outra alma que está
chorando. Por que é que vai de encontro dela? Para amaldiçoá-la por ser
uma meretriz? Não. Porque a sua alma me dá pena. Tudo em Mim repele o
seu corpo sujo e suado no exercício de sua luxúria. Mas, a sua alma!
Oh! Pai! Pai! Também por esta alma Eu assumi uma carne e deixei o
Céu para ser o seu Redentor e de muitas outras almas irmãs! Por que não
devo acolher esta ovelha errante e levá-la para o ovil, limpá-la, uni-la ao
rebanho, dar-lhe pastagens e um amor que seja perfeito, como só o meu
pode ser, tão diferente daqueles que tiveram para ela até hoje o nome de
amor e que não eram mais do que ódio. Amor tão piedoso, completo, suave,
que ela não sinta mais saudade do tempo passado, ou se tiver saudade é só
para dizer: “Foram muitos os dias que perdi longe de Ti, ó eterna Beleza.
Quem me devolve o tempo perdido? Como poderei saborear, no pouco
tempo que me resta, tudo o que eu teria podido saborear, se tivesse sido
sempre pura?”
Contudo, não chores, ó alma espezinhada por toda a libidinagem do
mundo. Escuta: és um trapo sujo. Mas podes transformar-te em uma flor. És
um esterqueiro. Mas podes tornar-te um canteiro. És um animal imundo.
Mas podes transformar-te em um anjo. Um dia tu foste assim. Dançavas
sobre prados floridos, rosa entre as rosas, fresca como elas, perfumada de
virgindade. Cantavas serena as tuas canções de menina, depois corrias até
tua mãe, até o teu pai, e lhes dizias: “Vós sois os meus amores.” E o
invisível anjo da guarda, que cada criatura tem a seu lado, sorria da tua
alma branca-azul… E depois? Por quê? Por que arrancaste as tuas asas de
pequena inocente? Por que espezinhaste o coração de teu pai e de tua mãe,
para saíres correndo atrás de outros corações, que não te garantiam
segurança? Por que cedeste a voz pura, para dizer frases mentirosas de
paixão? Por que quebraste o caule da rosa e violaste a ti mesma?
Arrepende-te, filha de Deus. O arrependimento renova. O
arrependimento purifica. O arrependimento exalta. O homem não te pode
perdoar? Nem teu pai o poderia? Mas Deus pode. Porque a bondade de
Deus não tem comparação com a bondade humana e a sua Misericórdia é
infinitamente maior do que a miséria humana. Honra a ti mesma, tornando a
tua alma digna, com uma vida honesta. Justifica-te junto a Deus, não
pecando mais contra a tua alma. Procura ter um nome novo junto a Deus.
Isto é o que vale. Tu és o vício. Transforma-te na honestidade. Torna-te um
sacrifício. Transforma-te na mártir do teu arrependimento. Tu soubeste
martirizar bem o teu coração para fazer gozar a carne. Agora saibas
martirizar a carne para dares uma eterna paz ao teu coração.
Vai. Ide todos. Cada um com o seu peso e com o seu pensamento, e
meditai. Deus espera a todos e não rejeita nenhum daqueles que se
arrependem. O Senhor vos dê a sua luz para conhecerdes a vossa alma. Ide.
Muitos vão em direção ao povoado. Outros entram no quarto grande.
Jesus dirige-se aos doentes e os cura.
123.6 Um grupo de homens estão conversando a um canto. Eles estão
divididos em diversas tendências, estão gesticulando e vão-se excitando.
Alguns estão acusando Jesus, outros o defendem, outros ainda estão
exortando a estes e àqueles, a fazerem um julgamento mais criterioso.
Enfim, os mais obstinados, talvez por serem em número menor do que
os dois outros grupos, tomam uma atitude mediana. Vão a Pedro e Simão,
que estão transportando as padiolas, agora inúteis, de três miraculados, e
enfrentam os prepotentes dentro do quarto, transformado em estalagem dos
peregrinos. Eles lhe dizem:
– Homem da Galileia, escuta.
Pedro se vira, e os olha como a uns animais raros. Não fala, mas o seu
rosto é um poema! Simão lança apenas um olhar aos cinco energúmenos e
depois sai, deixando a todos no ar.
Um dos cinco retoma o assunto:
– Eu sou Samuel, o escriba; esse é o Sadoque, o outro escriba; este é o
judeu Eleazar, muito conhecido e poderoso; este é o ilustre ancião
Calachebonas; e este, finalmente, é o Naum. Entendeste? Naum! –e o tom
da voz é absolutamente enfático.
Pedro faz uma leve inclinação a cada nome, mas, ao ser pronunciado o
último nome, a inclinação parou a meio caminho e diz com a maior
indiferença:
– Não conheço. Nunca ouvi falar dele. E… não estou entendendo nada.
– Pescador grosseiro! Fica sabendo que é o homem de confiança de
Ana!
– Não conheço Ana, ou seja, conheço muitas mulheres chamadas Ana.
Em Cafarnaum há um montão delas. Mas não sei de qual Ana esse aí é o
homem de confiança.
– Esse aí? A mim dizes “esse aí”?
– Mas que queres que eu te diga? Burro ou pássaro? Quando ia à
escola, o mestre me ensinou a dizer “esse”, falando de um homem, e, se eu
não estou enganado, tu és um homem.
O homem agita-se, como se estivesse sendo torturado por aquelas
palavras. O outro, o primeiro que falou, explica:
– Mas Anás é o sogro de Caifás…
– Aaaah!! Compreendo!! E então?
– Então, saibas que nós estamos indignados!
– Do que? Do tempo? Eu também. É a terceira vez que mudei a veste e
agora não tenho mais nada seco.
– Não te faças de tolo!
– Tolo? É verdade. Se não sois indignados contra o tempo, por causa de
que então? Pelos romanos?
– Pelo teu Mestre! Pelo falso profeta.
– Ei! Caro Samuel! Cuidado que posso acordar, e sou como o lago. Da
bonança à tempestade, não levo mais que um instante. Olha como falas…
Entraram também os filhos de Zebedeu e de Alfeu e, com eles,
Iscariotes e Simão, e se unem a Pedro, que vai levantando a voz cada vez
mais.
– Tu não tocarás com tuas mãos plebeias os grandes de Sião!
– Oh! Que belos senhores! E vós não toqueis o Mestre, porque, do
contrário, voareis para dentro do poço, já, para purificar-vos deveras, por
dentro e por fora.
– Eu quero chamar a atenção dos doutos do Templo para o fato de ser
esta casa um domínio privado –diz calmamente Simão.
E Iscariotes aumenta a dose:
– E o Mestre — eu sou testemunha disso — sempre teve o máximo
respeito pela casa alheia, primeiramente entre todas, a casa do Senhor. Que
se use de respeito igual para com a sua.
– Tu, cala-te, verme traiçoeiro.
– Traiçoeiro em parte! Vós me causastes nojo, e eu vim para onde não
há nojo. E queira Deus que o ter estado convosco não me tenha corrompido
até o fundo!
123.7 – Afinal, que desejais? –pergunta, curto, Tiago de Alfeu.
– E tu, quem és?
– Sou Tiago de Alfeu, Alfeu de Jacó, Jacó de Matã, Matã de Eleazar, e,
se quiseres, te direi todos os meus ascendentes até o rei Davi, do qual eu
venho. Sou primo do Messias, pelo que te peço que fales comigo, de estirpe
real e de raça judia, se para teu orgulho for repugnante falar com um
israelita honesto, que conhece a Deus melhor do que Gamaliel e Caifás.
Vamos. Fala.
– O teu Mestre e parente se faz acompanhar por prostitutas. Aquela
velada é uma delas. Eu a vi, enquanto ela estava vendendo ouro. E a
reconheci. É a amante que fugiu de Shamai. Isto o desonra.
– Quem? A Shamai, o rabino? Então deve ser uma carcaça velha.
Portanto, não há perigo… –escarnece Iscariotes.
– Cala-te, maluco! A Shamai de Elqui, o predileto de Herodes.
– Olha, olha só! Sinal de que ela não tem mais predileção por ele, o
predileto. É ela que deve ir para a cama com ele. Não tu. Então, por que te
importas tanto?
Judas Iscariotes é irônico ao extremo.
– Homem, não achas que te estás desonrando, ao te fazeres de espião? –
pergunta Judas de Alfeu–. E não pensas que quem desonra é o que se abaixa
para pecar, não o que procura elevar o pecador? Que desonra vem daí para o
meu Mestre e irmão, se Ele, leva sua voz até os ouvidos profanados pela
baba dos luxuriosos de Sião?
– A voz? Ah! Ah! Tem trinta anos o teu Mestre e primo, e não é senão
mais hipócrita do que os outros! E tu, e vós todos, dormis profundamente a
noite…
– Réptil sem vergonha! Fora daqui, ou te estrangulo –grita Pedro, e a
ele fazem eco Tiago e João, enquanto Simão se limita a dizer:– Que
vergonha! A tua hipocrisia é tão grande, que a vomitas, e ela extravasa, e
babas como uma lesma sobre a flor pura. Sai, e torna-te homem, porque,
por enquanto, não és mais do que uma baba. Eu te reconheço, Samuel. És
sempre o mesmo coração. Deus te perdoe. Mas sai da minha presença.
Mas enquanto Iscariotes, com Tiago do Alfeu seguram o impetuoso
Pedro, Judas Tadeu, que neste ato se parece mais que nunca ao Primo, do
qual neste momento tem o mesmo cintilar azul no olhar e a imponência na
expressão, trovejando:
– Desonra a si mesmo aquele que desonra o inocente. Os olhos e a
língua Deus os fez para realizar obras santas. O difamador os profana e
avilta, fazendo que realizem obras más. Eu não sujarei a mim mesmo com
um ato vil contra os teus cabelos brancos. Mas te faço lembrar que os
malvados odeiam o homem íntegro e que o tolo desafoga a sua
malevolência, sem nem mesmo refletir que se está traindo. Quem vive nas
trevas, troca por um réptil um ramo florido. Mas quem vive na luz vê as
coisas como elas são e as defende, se denegridas, por amor à justiça. Nós
vivemos na luz. Somos a geração casta e bela dos filhos da luz, e o nosso
Chefe é o Santo, que não conhece mulher nem pecado. Nós o seguimos e o
defendemos de seus inimigos, pelos quais, como Ele nos tem ensinado,
oferecerem não o ódio, mas orações. Aprende, ó velho, de um jovem que se
tornou maduro, porque a Sabedoria é sua mestra, a não seres precipitado no
falar e bom na prática do bem. Vai. E vai dizer a quem te mandou que não é
na casa profanada, que está sobre o Monte Mória, mas sim, nesta pobre
morada que Deus repousa em sua glória. Adeus.
Os cinco não ousam rebater e se vão.
123.8 Os discípulos trocam ideias. Dizer ou não dizer a Jesus, que ainda
está com os enfermos curados? Dizer. É melhor assim. Alcançam-no, o
chamam e contam a Ele.
Jesus sorri calmo e responde:
– Eu vos agradeço pela defesa… mas que quereis? Cada um dá o que
tem.
– Porém, um pouco de razão eles têm. Os olhos estão na cabeça para
ver e muitos veem. Aquela mulher está sempre ali fora, como um cão. Isso
te prejudica –dizem muitos.
– Deixai-a lá. Não será ela a pedra que me vai acertar na cabeça. E se
ela se salvar… oh! Vale bem a pena de uma crítica, por esta alegria!
Tudo termina com essa doce resposta.
[47] diz, em: Gênesis, 1,28; 2,24; 9,1.
[48] condena, em: Levítico 18,22-23.
124. A “velada” se hospeda
na casinha de Águas Belas.
5 de março de 1945.
124.1O dia está tão feio, que não há nenhum peregrino. Chove a cântaros,
e a eira se transformou em um pequeno charco, no qual estão boiando umas
folhas secas, vindas quem sabe de onde, trazidas pelo vento que assobia e
bate portas e janelas. A cozinha, mais escura que nunca, porque, para se
impedir que a chuva entre, é preciso conservar a porta apenas entreaberta,
se enche de fumaça e os que estão lá dentro ficam com os olhos
lacrimejantes, e tossem, porque o vento está soprando a fumaça para baixo.
– Salomão[49] tinha razão –sentencia Pedro–. Três coisas expulsam o
homem: a mulher briguenta… e essa eu deixei brigando em Cafarnaum com
os outros genros, a chaminé que solta fumaça e um telhado que tem
goteiras. Estas duas últimas coisas nós as temos aqui… Mas amanhã eu vou
dar um jeito nesta chaminé. Vou subir no telhado, e tu e tu e tu (Tiago, João
e André) vireis comigo. E com umas placas de ardósia, faremos uma
saliência e uma coberta lá na cumeeira.
– E onde é que vais achar as placas de ardósia? –pergunta Tomé.
– Em cima do telheiro. Se chove por lá não é o fim do mundo. Mas
aqui… para que as tuas iguarias não sejam mais enfeitadas com lágrimas
fuliginosas?
– Imagina! Tomara que o consigas! Olha como eu estou preto. Quando
estou perto do fogo, me chove na cabeça!
– Pareces um monstro egípcio –diz, rindo, João.
E de fato, Tomé está com umas bizarras vírgulas pretas em seu rosto
gorducho e bonachão. O primeiro a rir disso é ele mesmo, sempre alegre, e
Jesus também ri porque, justamente quando estava falando, uma nova gota
cheia de fuligem lhe cai sobre o nariz, fazendo que fique com a ponta preta.
124.2 – Tu, que entendes de tempo, que é que achas? Ficará muito ainda
assim? –pergunta Iscariotes a Pedro ele que, há alguns dias, está muito
mudado.
– Agora mesmo vou saber te responder. Vou fazer-me de astrólogo –diz
Pedro, que vai até a porta, e abre-a um pouco mais, colocando a cabeça e a
mão fora.
Depois, emite seu parecer:
– Vento baixo, vindo do sul. Calor e caligem… Hum! É ainda pouco
para…
Pedro se cala, depois torna a entrar devagar, deixa a porta só um
pouquinho aberta, e fica olhando.
– Que é? –perguntam uns três ou quatro.
Mas Pedro faz sinal com a mão para que se calem. Depois olha. E, em
seguida, diz, sussurrando:
– Está aí aquela mulher. Ela foi beber da água do poço e apanhou um
feixe de lenha que tinha ficado na eira. A lenha está toda molhada.
Certamente não pega fogo… A mulher já se vai… Eu vou atrás. Quero
ver…
E saiu com cuidado.
– Mas onde será que ela há de morar, para estar sempre perto daqui? –
pergunta Tomé.
– E para estar aqui com esse tempo! –diz Mateus.
– Certamente vai ao povoado, porque anteontem também tinha ido
comprar pão –diz Bartolomeu.
– Tem uma bela constância para estar assim velada! –observa Tiago do
Alfeu.
– Ou um grande motivo –termina Tomé.
– Mas será mesmo a pessoa a qual se referia ontem aquele judeu? –
pergunta João–. Eles são sempre tão mentirosos!
E Jesus está, em todo esse tempo, calado, como se fôsse surdo. Todos o
olham, certos de que Ele sabe. Mas Ele está trabalhando com uma faca
afiada, sobre um pedaço de madeira macia, que lentamente vai-se
transformando em um conveniente garfo grande para tirar verduras da água
fervente. E, quando termina, oferece o seu trabalho a Tomé, que está
totalmente dedicado aos trabalhos da cozinha.
– És muito habilidoso, Mestre. Mas… 124.3não nos dizes quem ela é?
– Uma alma. Para Mim, todos vós sois “almas”. Nada mais. Homens,
mulheres, velhos, meninos: almas, almas, almas. Almas cândidas, os
pequeninos. Almas azuis, os jovenzinhos. Almas róseas, os jovens. Almas
de ouro, os justos. Almas de piche, os pecadores. Mas somente almas; só
almas. Eu sorrio às almas cândidas, porque me parece estar sorrindo aos
anjos; repouso entre as flores róseas e azuis dos adolescentes bons; alegro-
me com as almas preciosas dos justos; canso-me e sofro para tornar
preciosas e esplêndidas as almas dos pecadores. Os rostos?? Os corpos??
Nada. Eu vos conheço pelas vossas almas.
– E ela, que alma é? –pergunta Tomé.
– Uma alma menos curiosa do que a dos meus amigos, porque não
indaga, não pergunta, vai e vem sem dizer nada e sem ficar olhando.
– Eu pensava que ela fôsse uma mulher de má vida ou uma leprosa.
Mas mudei de opinião, porque… Mestre, se eu te disser uma coisa, não me
censurarás? –pergunta Iscariotes, indo pôr-se sentado no chão junto aos
joelhos de Jesus, muito diferente, humilde, bom, até mais bonito neste seu
ar modesto, do que tudo o que ele pode ser, quando se mostra como o
pomposo e vaidoso Judas.
– Não te censurarei. Fala.
– Eu sei onde ela mora. Eu a segui uma tarde… fingindo ter saído para
ir buscar água, porque percebi que, ao escurecer, sempre vem ao poço…
Uma manhã encontrei no chão um grampo de prata… exatamente na beira
do poço… e compreendi que ela o tinha perdido. Pois bem, ela mora numa
pequena cabana de madeira que está lá no bosque. Talvez sirva para os
camponeses. Porém está meio apodrecida, e a mulher lhe pôs por cima uns
ramos para servirem de cobertura. Possivelmente ela esteja levando aquele
feixe para isso. A cabana é uma toca. Não sei como lá se pode ficar. Daria
apenas para um cão grande, ou para um burrinho pequeno. Era uma noite de
lua e vi bem. Está meio sepultada entre as sarças, mas dentro… está vazia, e
não tem porta. É por isso que mudei de opinião e compreendi que não é
uma de má vida.
– Não devias ter feito isso. Mas, sê sincero, não fizeste nada mais?
– Não, Mestre. Eu teria gostado de vê-la, porque desde Jericó que a
venho observando e me parece conhecer o seu passo tão leve, e rápido com
que se locomove. Também a sua pessoa deve ser ágil… e bela. Sim. Isto se
entende, não obstante todas aquelas vestes… Mas não ousei espiá-la
enquanto ia deitar-se no chão. Talvez ela tenha tirado o véu. Mas eu a
respeitei…
Jesus o olha fixamente e depois diz:
– Sofreste com isso. Mas disseste a verdade. E Eu te digo que estou
contente contigo. Uma outra vez te custará menos ainda ser bom. Tudo
depende de dar o primeiro passo. Muito bem, Judas! –e o acaricia.
124.4 Pedro torna a entrar:
– Mestre, aquela mulher é doida! Sabes onde ela mora? Quase na beira
do rio, em um casebre de madeira, debaixo de um matagal. Talvez ele tenha
servido, há tempo, para algum pescador ou lenhador… Quem sabe! Nunca
teria pensado que num lugar úmido como aquele, afundado numa toca, sob
um emaranhado de sarças, estivesse uma pobre mulher. E eu lhe disse:
“Fala e sê sincera. És leprosa?” Ela me respondeu com um fio de voz:
“Não.” “Jura”, eu disse. E ela: “Eu juro.” “Olha que, se és e não o dizes e
vais para perto da casa e eu venho a saber que és imunda, farei que te
apedrejem. Mas se tu és uma perseguida, se és ladra ou assassina e moras
aqui por medo de nós, não temas nenhum mal. Mas agora sai daí. Não estás
vendo que estás na água? Estás com fome? Estás com frio? Estás tremendo.
Eu sou velho, estás vendo? Não te estou cortejando. Velho e honesto. Por
isso, escuta-me.” Eu disse assim. Mas ela não quis vir. Um dia vamos
encontrá-la morta, porque está exatamente na água.
Jesus está pensativo. Olha para os doze rostos que estão virados para
Ele. Depois diz:
– Que achais que se deva fazer?
– Mas, Mestre, Tu é que tens que decidir!
– Não. Eu quero que vós julgueis. É um assunto em que está em causa
também o vosso apreço. E Eu não devo fazer violência sobre o vosso direito
de protegê-lo.
– Em nome da Misericórdia, acho que não se pode deixá-la ali –diz
Simão.
E Bartolomeu:
– Eu diria que hoje ela fôsse colocada no quarto grande. Para lá não vão
os peregrinos? Também ela pode ir para lá.
– Afinal, é uma criatura como todas as outras –comenta André.
– Além disso, hoje não vem ninguém, e por isso… –observa Mateus.
– Eu proporia que a hospedássemos por hoje, e amanhã o diríamos ao
feitor. Ele é um bom homem –diz Judas Tadeu.
– Tens razão! Muito bem! E há tantas estrebarias também vazias. Uma
estrebaria é sempre um palácio em relação àquele barquinho afundado! –
exclama Pedro.
– Vai dizer então a ela –incita Tomé.
– Os jovens ainda não falaram –observa Jesus.
– Para mim está bem o que Tu fazes –diz o primo Tiago.
E o outro Tiago, com o seu irmão, a uma voz:
– Para nós também.
– Eu penso apenas no mal-aventurado caso de que chegue algum
fariseu –diz Filipe.
– Oh! Mesmo que fôssemos para as nuvens, achas que ficaríamos sem
acusações? Não acusam a Deus, porque está longe. Mas, se pudessem tê-lo
perto de si, como o tiveram Abraão, Jacó e Moisés, iriam fazer-lhe
censuras… Quem é sem culpas para eles? –diz Judas de Keriot.
– Então, ide dizer-lhe que se abrigue no quarto. Vai tu, Pedro, com o
Simão e o Bartolomeu. Sois anciãos e causareis menos acanhamento à
mulher. E dizei a ela que lhe daremos alimento quente e uma veste seca. É
aquela que Isaque deixou. Estais vendo como tudo serve? Até uma veste de
mulher dada a um homem…
Os jovens riem porque a veste em questão deve ter tido alguma história
engraçada.
Os três anciãos vão… e voltam pouco depois.
– Custou… mas acabou vindo. Nós lhe juramos que não a
perturbaremos nunca. Agora vou levar-lhe a palha e a veste. Dá-me as
verduras e um pão. Ela não tem nem o que comer hoje. De fato… quem é
que vai andar por aí, com um dilúvio destes?
O bom Pedro sai com os seus tesouros.
124.5 – E agora uma ordem para todos: por motivo nenhum se vá ao
quarto. Amanhã proveremos. Habituai-vos a fazer o bem pelo bem, sem
curiosidade e desejos de ter em troca uma distração ou coisa parecida.
Estais vendo? Vós estáveis tristes, porque hoje não se teria feito nada de
útil. Amamos o próximo. O que podíamos fazer de maior? Se ela é, uma
infeliz, o que certamente é, não pode a nossa ajuda dar-lhe um conforto, um
calor, uma proteção bem mais profunda do que um pouco de alimento, uma
pobre veste e um teto sólido? Se ela for uma culpada, uma pecadora, uma
criatura que procura Deus, o nosso amor não será a mais bela lição, a mais
poderosa palavra, a mais nítida indicação para colocá-la no caminho de
Deus?
Pedro entra lentamente e escuta o seu Mestre.
– Vede, amigos. Muitos mestres tem Israel que falam, falam… Mas as
almas continuam sendo o que são. Por quê? Porque as almas ouvem as
palavras dos mestres, mas veem também as suas ações. E umas destroem as
outras. E as almas ficam onde estavam, se é que não retrocedem. Mas
quando um mestre faz o que diz e age como santo em todas as suas ações,
ainda que faça somente ações materiais, como a de dar um pão, uma veste,
um abrigo à carne sofredora do próximo, consegue que as almas prossigam
e cheguem a Deus, porque são as suas próprias ações que dizem aos irmãos:
“Deus existe; e aqui está Deus.” Oh! O amor! Em verdade Eu vos digo que
quem ama salva-se a si mesmo e aos outros.
– Falas bem, Mestre. Aquela mulher me disse: “Seja bendito o Salvador
e Aquele que o enviou, e todos vós com Ele”, e a mim, um pobre homem,
quis beijar-me os pés, chorando, atrás do seu espesso véu… Bem!! Agora
esperemos que não chegue algum daqueles noitibós de Jerusalém… Se não!
Quem nos salva?
– A nossa consciência nos salva do julgamento do nosso Pai. E basta
isso –diz Jesus.
E se assenta à mesa, depois de abençoar e oferecer o alimento.
Tudo termina.
[49] Salomão, mais ou menos em: Provérbios 19,13; 21,9.19; 25,24; 27,15.
125. Os discursos de Águas Belas: Santifica a festa.
Cura de um menino com as pernas fraturadas.
6 de março de 1945.
125.1O dia hoje está mais ameno, por mais que ainda esteja chuvoso e
permita que o povo vá ao Mestre.
Jesus ouve, à parte, duas ou três pessoas que têm coisas importantes a
dizer-lhe e que depois, vão mais tranquilas para seus lugares.
Abençoa também um pequenino que tem as perninhas quebradas de tal
modo, que nenhum médico quis tratar delas, dizendo ser inútil porque estão
quebradas no alto, junto à espinha. A mãe diz isso entre lágrimas, e explica:
– Ia correndo com a irmãzinha pela rua do povoado. Surgiu-lhe à
frente, de galope, com seu carro, um herodiano e o arrastou sob o carro.
Pensei que tivesse morrido. Mas é pior. Tu o estás vendo. Eu o trago sobre
esta tábua, porque… não há outro jeito. Ele está sofrendo e sofre porque o
osso está exposto. Depois, quando o osso não estiver mais exposto, então
sofrerá, porque não poderá senão ficar deitado de costas.
– Estás muito mal? –pergunta, piedoso, Jesus ao pequenino que está
chorando.
– Sim.
– Onde?
– Aqui… e aqui –e se toca com a mãozinha incerta, nos dois ossos
ilíacos–. E também aqui e aqui –e toca nos rins e nos ombros–. A tábua é
dura e eu quero mover-me, eu… –e chora desesperado.
– Queres vir para os meus braços? Vens? Eu te levo lá no alto e tu
ficarás vendo a todos, enquanto Eu falo.
– Sim –(o sim é cheio de desejo). O pobrezinho estende os bracinhos
suplicante.
– Então vem.
– Mas ele não pode, Mestre, é impossível! Tem muita dor… Nem eu
posso movê-lo para lavá-lo.
– Eu não lhe farei mal.
– O médico…
– O médico é o médico, Eu sou Eu. Por que é que vieste?
– Porque Tu és o Messias –responde a mulher, cujo rosto passa do
branco ao vermelho, entre a esperança e o desespero.
– E então? Vem, pequenino.
E Jesus, passando um braço sob as perninhas inertes e o outro sob os
pequenos ombros, pega o menino e lhe pergunta:
– Estou te machucando? Não? Então, dize adeus à mamãe e vamos.
E Jesus vai, entre a multidão que se abre, com a sua carga. Vai até o
fundo, sobe sobre uma espécie de estrado que lhe armaram, para que seja
visto por todos, até pelos que estão na eira. Pede que lhe deem um
banquinho e se assenta, acomoda sobre os joelhos o menino e lhe pergunta:
– Estás gostando? Agora, fica bonzinho e escuta tu também –e começa
a falar, gesticulando com uma só mão, a direita, porque com a esquerda
segura o menino, que olha para as pessoas, feliz por poder ver alguma coisa
e sorri para sua mãe, que está lá no fundo, cheia de esperança. O pequenino
brinca com o cordão da veste de Jesus, com a barba loira e macia do Mestre
e com um cacho dos seus longos cabelos.
125.2 – Foi dito: “Trabalha em um trabalho honesto e o sétimo dia tu
dedicarás ao Senhor e ao teu espírito.” Isto está dito no mandamento sobre
o repouso sabático.
O homem não é mais do que Deus. No entanto, Deus fez em seis dias a
sua criação e no sétimo descansou. Como é, então, que o homem se permite
não imitar o Pai e não obedece à sua ordem? É um mandamento tolo? Não.
Em verdade, é uma ordem salutar, seja para a carne, para a moral, como
para o espírito.
O corpo cansado tem necessidade do repouso, assim como todos os
seres criados. Repousa também o boi que é usado no campo, e nós o
deixamos repousar para não perdê-lo; repousa o burro que nos transporta, a
ovelha que nos dá o cordeirinho e o leite. Repousa também, a terra do
campo, para que, nos meses em que ela fica sem a semente, se nutra e se
sature dos sais que sobre ela caem do céu ou que afloram do solo.
Repousam ainda, se bem que não peçam para isso o nosso beneplácito, os
animais e as plantas, que obedecem a leis eternas sobre uma reprodução
sábia. Por que, então, o homem não quer imitar nem o Criador, que no
sétimo dia descansou e nem os seres inferiores que, vegetais ou animais
sem terem recebido outro mandamento, a não ser o instinto, sabem regular-
se e obedecer a este?
É uma ordem moral, além de física. Por seis dias o homem lidou com
todos e com tudo. Preso como um fio do mecanismo do tear, andou para
cima e para baixo, sem nunca poder dizer: “Agora vou ocupar-me de mim
mesmo e dos meus entes queridos. Sou o pai e hoje sou de meus filhos, sou
o esposo e hoje me dedico à minha esposa, sou o irmão e me alegro com os
irmãos, sou o filho e cuido da velhice de meus pais.”
É uma ordem espiritual. Santo é o trabalho. Mais santo o amor.
Santíssimo Deus. É preciso, então, recordarmo-nos de dar ao menos um dos
sete dias ao nosso bom e santo Pai, que nos deu e nos conserva a vida. Por
que haveremos de dar-lhe um tratamento menor do que o que se dá a um
pai, aos filhos, aos irmãos, à esposa, e até ao nosso próprio corpo? Que o
dia do Senhor seja Dele! Oh! Como é doce estar abrigado a tarde, depois do
trabalho do dia, numa casa cheia de afeto! Como é doce reencontrá-la,
depois de uma longa viagem! E por que não ir abrigar-se, depois de seis
dias de trabalho, na casa do Pai? Por que não ser como o filho, que volta de
uma viagem que durou seis dias e diz: “Eis-me aqui para passar o meu dia
de descanso contigo”?
125.3 Mas agora escutai, Eu disse: “Trabalha em um trabalho honesto.”
Vós sabeis que a nossa Lei ordena o amor ao próximo. A honestidade
do trabalho faz parte do amor ao próximo. Quem é honesto em seu trabalho
não rouba nos negócios, não defrauda o pagamento do operário, não se
aproveita dele de maneira culpável, lembra-se de que o servo e o operário
são como ele carne e alma e não os trata como pedaços de pedra sem vida,
que é lícito despedaçar e chutar com o pé e com o ferro. Quem não faz
assim, não ama o próximo e peca aos olhos de Deus. Maldito é o seu ganho,
mesmo quando tira dele uma oferta para o Templo.
Oh! Que oferta mentirosa! E como pode ter a coragem de ir colocá-la
aos pés do altar, quando as lágrimas e o sangue do inferior que foi
explorado escorrem delas, ou tem nome de “furto”, ou seja, traição ao
próximo, já que o ladrão é um traidor do seu próximo? Acreditai fica,
santificada a festa, se não for usada para beneficiar a si mesmo melhorar-me
e reparar os pecados cometidos em seis dias. Eis a santificação da festa!
Não é a festa exterior, que não muda nem uma vírgula do vosso modo de
pensar.
Deus quer obras vivas, não simulacros de obras. É simulacro o falso
obséquio à sua Lei. É simulacro a santificação mentirosa do sábado, ou seja,
o repouso para mostrar aos homens, obediência ao mandamento, depois se
usa aquelas horas de ócio no vício, na luxúria, na crápula, na cogitação
sobre como explorar e prejudicar o próximo na semana que vem. É
simulacro a santificação do sábado, ou seja, o repouso material que não se
une ao trabalho íntimo, espiritual, santificante por um reto exame de si, um
humilde reconhecimento da própria miséria, um sério propósito de melhorar
na próxima semana.
125.4 Vós direis: “E se depois, se torna a cair em pecado?” Que diríeis
vós de um menino que, por ter caído, não quisesse mais dar nem um passo,
para não voltar a cair? Diríeis que é um tolo. Que não se deve envergonhar
por estar sem firmeza no passo, porque todos nós fomos assim, quando
pequenos e não foi por isso que nosso pai deixou de nos amar. Quem é que
não se lembra de como as nossas quedas fizeram cair sobre nós uma chuva
de beijos maternos e de carícias paternas? A mesma coisa faz o Pai
dulcíssimo, que está nos Céus. Ele se inclina sobre o seu pequenino que
chora no chão e lhe diz: “Não chores. Eu te levanto. Toma cuidado da outra
vez. Agora vem para os meus braços. Neles todo o teu mal passará e depois
irás embora mais forte, curado e feliz”. Isto é o que diz o nosso Pai que está
nos Céus. Isto é o que Eu vos digo.
Se conseguísseis ter fé no Pai, tudo vos correria bem. Prestai atenção
uma fé infantil. A criança acha que tudo é possível. Não pergunta a si
mesmo como é que algo possa acontecer. Não mede a profundidade da
coisa. A criança crê em quem lhe inspira confiança e faz o que esta pessoa
lhe diz. Sede como crianças junto ao Altíssimo. Como Ele ama estes anjos,
que são a beleza da terra! Igualmente ama as almas que se fazem simples,
boas, puras como é a criança.
Queres ver a fé que tem uma criança, para aprenderdes a ter fé?
Observai. Todos vós vos compadecestes do pequenino que Eu estou
segurando sobre o peito e que, contrariamente ao que os médicos e a mãe
diziam, não chorou por estar sentado no meu colo. Estais vendo? Ele que,
há muito tempo, nada mais fazia do que chorar noite e dia, sem encontrar
descanso, aqui não chorou, mas adormeceu tranquilamente sobre o meu
coração. Eu lhe perguntei: “Queres vir para os meus braços?” e ele
respondeu: “sim”, sem pensar em seu mísero estado, nem na eventual dor
que lhe causaria, como consequência desta locomoção. Ele viu no meu
rosto o amor e disse: “sim” e veio. E não sentiu dor. Gostou de ficar no alto
e não pregado sobre aquela tábua dura. Gostou de ser colocado sobre a
maciez de uma carne e não sobre a dureza de uma madeira, sorriu, brincou
e adormeceu ainda com um cacho dos meus cabelos nas pequenas mãos.
125.5Agora vou despertá-lo com um beijo… –e Jesus beija os cabelinhos
castanhos do menino, até que ele desperte com um sorriso.
– Como te chamas?
– João.
– Escuta, João. Queres caminhar? Queres ir à tua mamãe e dizer-lhe:
“O Messias te abençoa pela tua fé?”
– Sim! Sim! –e o pequeno bate as mãozinhas e depois pergunta:– Tu
me fazes andar? Sobre os prados? Não vou mais usar aquela tábua dura e
feia? Nem irei mais aos médicos, que me causam dor?
– Sim, nunca mais.
– Ah! Como eu gosto de Ti –e joga os bracinhos ao redor do pescoço de
Jesus e o beija, e para beijá-lo melhor, pula de joelhos sobre o colo de Jesus
e uma saraivada de beijos inocentes cai sobre a fronte, sobre os olhos, sobre
as faces de Jesus.
O menino, em sua alegria, nem se apercebe de já estar podendo mover-
se, ele que até então estava todo quebrado. Mas o grito da mãe e da
multidão o desperta e o faz virar-se espantado. Seus olhos grandes e
inocentes, no rosto emagrecido, estão interrogativos. Ainda de joelhos, com
o bracinho direito ao redor do pescoço de Jesus, lhe pergunta
confidencialmente — mostrando o povo em tumulto e a mãe que lá no
fundo o chama unindo o seu nome ao de Jesus: “João! Jesus! João! Jesus!”
—:
– Por que é que o povo e a mamãe estão gritando? Que é que eles têm?
Tu és Jesus?
– Eu sou. O povo grita porque está contente que tu possas caminhar.
Adeus, pequeno João (Jesus o beija e abençoa). Vai para a mamãe e sejas
bom.
O menino desce com firmeza dos joelhos de Jesus correndo para sua
mãe, e saltando ao seu pescoço diz:
– Jesus te abençoa. Por que choras, então?
Quando o povo faz um pouco mais de silêncio, Jesus troveja:
– Fazei como o pequeno João, ó vós, que caís no pecado e vos feris.
Tende fé no amor de Deus. A paz esteja convosco.
E enquanto o grito de hosana da multidão se mistura com o feliz pranto
da mãe, Jesus, protegido pelos seus, sai do quarto grande e tudo termina.
[…].
126. Os discursos de Águas Belas:
Não matar. Morte de Doras.
10 de março de 1945.
126.1 – “Não matar”, foi dito. Este mandamento pertence a qual dos 2
grupos? “Ao segundo”, direis vós, estais certos disso? Eu vos pergunto
ainda: É um pecado que ofende a Deus ou à vítima? Vós dizeis: “À vítima”.
Também disto tendes certeza? E vos pergunto ainda: Será somente um
pecado de homicídio? Matando, cometeis somente este único pecado? “Este
só”, dizeis vós. Ninguém tem dúvidas sobre isso? Dizei em voz alta vossa
resposta. Que um de vós fale por todos. Eu espero.
E Jesus se inclina para acariciar uma menininha, que se aproximou
Dele e que o olha extasiada, esquecendo-se até de morder a maçã que a mãe
lhe deu para que ficasse quieta.
Levanta-se um velho imponente e diz:
– Escuta, Mestre. Eu sou um velho sinagogo e me pediram para falar
por todos. E vou falar. Parece-nos, que já respondemos segundo a justiça a
tudo o que nos foi ensinado. Apoio a minha segurança no capítulo da Lei[50]
sobre o homicídio e sobre os ferimentos. Mas Tu sabes por que viemos:
para sermos ensinados, reconhecendo em Ti a sabedoria e a verdade.
Portanto, se eu estiver errado, ilumina as minhas trevas, a fim de que o
velho servo vá ao seu Rei vestido de luz. E, como fizeres comigo, faze-o
com estes, que são do meu rebanho e que vieram com o seu pastor para
beberem das fontes da Vida –e se inclina, antes de assentar-se, com o
máximo respeito.
– Quem és tu, pai?
– Cléofas de Emaús, teu servo.
– Não meu, mas Daquele que me mandou. Porque é dada ao Pai toda
precedência e todo amor no Céu, na terra e nos corações. E o primeiro a
dar-lhe esta honra é o seu Verbo, que oferece, sobre a mesa sem defeito, os
corações dos bons, como faz o sacerdote com os pães da proposição. Mas
escuta, Cléofas, para que tu possas ir a Deus bem iluminado, como é o teu
santo desejo.
126.2 Ao medir uma culpa, é preciso pensar nas circunstâncias que a
precedem e as justificam. “Quem? O que? Onde e com que meios por que?
quando eu feri?”: isto deve-se perguntar aquele que matou, antes de se
apresentar a Deus para pedir-lhe perdão.
Quem eu feri? Um homem.
Eu digo: um homem. Não estou pensando nem considerando se ele é
rico ou pobre, se é livre ou escravo. Para Mim não existem escravos ou
poderosos. Existem somente homens criados por um único Criador. Por isso
todos são iguais. De fato, diante da majestade de Deus, é pó até o mais
poderoso monarca da terra. Aos nossos olhos, só existe uma escravidão: a
do pecado e, portanto, de satanás. A Lei antiga distingue os livres dos
escravos e tem a sutileza de distinguir entre o matar com um golpe e o
matar deixando a vítima sobreviver um dia ou dois Por exemplo quando a
mulher grávida é levada à morte por pancadas, ou quando matava somente
o seu fruto. Mas isto foi dito, quando a luz da perfeição ainda estava longe.
Agora a perfeição está entre vós e diz: “Qualquer um que ferir de morte um
seu semelhante, peca.” E não peca somente contra o homem, mas também
contra Deus.
Que é o homem? O homem é a criatura soberana, que Deus criou para
ser o rei da criação, criado à sua imagem e semelhança, tirando esta imagem
do seu pensamento perfeito. Olhai para o ar, para a terra e para as águas.
Porventura vedes algum animal, ou alguma planta, que, por mais belos que
sejam, cheguem a se igualar ao homem? O animal corre, come, bebe,
dorme, gera, trabalha, canta, voa, rasteja, sobe. Mas não tem fala. O homem
também sabe correr e saltar, e no salto é tão ágil, que emula o pássaro; sabe
nadar, e no nado é tão veloz que parece um peixe; sabe rastejar e parece um
réptil; sabe subir e parece um macaco; sabe cantar e parece um pássaro.
Sabe gerar e reproduzir-se. Mas, além disso, sabe falar.
E não digais: “Cada animal tem a sua linguagem.” Sim. Um muge,
outro bale, outro zurra, outro chilreia, outro gorjeia, mas do primeiro até o
último bovino, todos terão sempre o mesmo mugido, e assim também o
ovino balirá até o fim do mundo, e o burro zurrará como zurrou o primeiro,
e o pássaro sempre soltará o seu curto chilreio enquanto a cotovia e o
rouxinol farão ouvir o mesmo hino, ao sol a primeira, e à noite estrelada o
segundo, mesmo se for o último dia da terra, do mesmo modo como
saudaram ao primeiro sol e à primeira noite. O homem, ao contrário, porque
não tem apenas uma garganta e uma língua, mas um complexo de nervos,
que se concentram no cérebro, sede da inteligência, sabe captar novas
sensações, e pensar a respeito delas, e dar-lhes um nome.
Adão deu nome de cão ao animal seu amigo e o de leão ao que lhe
pareceu mais semelhante, na juba basta, encimando uma cara de pouca
barba. Chamou de ovelha ao animal que o saudava manso, e chamou
pássaro aquela flor de penas, que voava como a borboleta, mas cantava
docemente um canto que a mesma não tem. E depois, com o passar dos
séculos, os filhos de Adão foram criando sempre novos nomes, à medida
que foram “conhecendo” as obras de Deus nas criaturas ou que, pela
centelha divina que há no homem, não somente geraram filhos, mas criaram
também coisas úteis ou nocivas aos próprios filhos, conforme estavam com
Deus ou contra Deus. Estão com Deus os que criam ou produzem coisas
boas. Estão contra Deus os que criam coisas más, que prejudicam o
próximo. Deus se vinga por seus filhos que foram torturados pelo mau
gênio humano.
126.3 O homem é, portanto, a criatura predileta de Deus. Ainda que agora
seja culpado o homem, é sempre o que Lhe é mais caro. E o que testemunha
isso é ter-lhe mandado o seu próprio Verbo, não um anjo, nem um arcanjo,
ou querubim, ou Serafim, mas o seu Verbo, revestindo-o da carne humana,
para salvar o homem. Não achou indigna Dele essa veste, que tornava
passível de sofrer e expiar Aquele que, como puríssimo Espírito, não teria
conseguido sofrer e expiar a culpa do homem.
O Pai me disse: “Serás homem: o Homem. Eu havia feito um homem
perfeito, como tudo o que Eu faço. Para ele estava destinada uma vida doce,
um dulcíssimo adormecer, um feliz despertar, uma felicíssima permanência
eterna no meu Paraíso celeste. Mas, Tu o sabes, nesse Paraíso não pode
entrar o que está contaminado, porque nele Eu-Nós, uno e trino Deus,
reinamos. E diante deste trono, não pode haver senão santidade. Eu sou
Aquele que sou. A minha Natureza divina, a nossa misteriosa Essência, não
pode ser conhecida senão por aqueles que são sem mancha. Agora o
homem, por causa de Adão, está sujo. Vai, limpa-o. Eu quero. Tu serás, de
agora em diante, o Homem. O Primogênito. Porque serás o primeiro a
entrar aqui com carne mortal, livre do pecado, com alma livre da culpa de
origem. Aqueles que te precederam na terra e aqueles que virão depois de
Ti terão vida pela tua morte de Redentor.” Não poderia morrer, senão
alguém que nasceu. Eu nasci e Eu morrerei.
O homem é a criatura predileta de Deus. Agora, dizei-me: Se um pai
tem muitos filhos, mas um deles é o seu predileto, a pupila de seus olhos, e
este vem a ser morto, aquele pai não sofre mais do que se tivesse sido morto
um outro filho? Isto não deveria acontecer, porque o pai deveria ser justo
com todos os seus filhos. Mas acontece porque o homem é imperfeito. Deus
o pode fazer com justiça porque o homem é a única criatura, que tem a alma
espiritual em comum com o Pai Criador, sinal inegável da paternidade
divina.
Se a um pai se lhe mata o filho, ofende-se somente ao filho? Não.
Também ofende-se ao pai. Na carne se ofende o filho, no coração o pai. Em
ambos se produz a ferida. Matando um homem, ofende-se somente o
homem? Não. Também a Deus. Na carne se ofende o homem, no seu direito
se ofende a Deus. Porque a vida e a morte só por Ele podem ser dadas ou
tiradas. Matar é fazer violência a Deus e ao homem. Matar é penetrar no
domínio de Deus. Matar é faltar ao preceito de amor. Quem mata não ama a
Deus, porque destrói uma de suas obras: um homem. Quem mata não ama o
próximo, porque tira do próximo aquilo que o assassino quer para si: a vida.
E eis que respondo às duas primeiras perguntas.
126.4 Onde eu feri?
Pode-se ferir pelo caminho, na casa do agredido ou atraindo a vítima
para a própria casa. Pode-se ferir um ou outro órgão, causando sofrimento
mais grave, e fazendo-se também dois homicídios em um, ao ferir-se uma
mulher que tem o ventre grávido.
Pode-se ferir pelo caminho, sem ter intenção de fazê-lo. Um animal,
que nos toma a rédea da mão, pode matar quem passa. Mas então não há em
nós premeditação, enquanto que se alguém, armado com um punhal, sob as
hipócritas vestes de linho, vai à casa do inimigo — e, muitas vezes, o
inimigo é o que tem a culpa de ser melhor — ou então o convida a ir à sua
casa, com sinais de honra e depois o estrangula e joga num poço, havendo
nesse caso premeditação e malícia completa, ferocidade e violência.
Se eu mato o fruto junto com a mãe, eis que Deus me pedirá conta dos
dois. Porque o ventre, que gera um novo homem, segundo o mandamento
de Deus, é sagrado, e sagrada é a pequena vida, que nele está
amadurecendo, à qual Deus deu uma alma.
126.5 Com que meios feri?
Em vão diz alguém “Eu não queria ferir”, andando armado com uma
arma de qualidade. Na hora da ira, até as mãos se tornam armas, sendo arma
a pedra apanhada do chão, ou o galho arrancado de uma árvore. Mas quem
observa friamente o punhal ou o machado, e, quando acha que eles estão
cegos, os afia, e depois os segura junto ao corpo, de modo que não sejam
vistos, mas possam ser brandidos com facilidade e vai até o rival assim
preparado, certamente não poderá dizer “Eu não tinha vontade de ferir.”
Quem prepara um veneno, colhendo ervas e frutos tóxicos, e faz deles um
pó ou uma infusão e depois os oferece à vítima, como um tempero ou uma
bebida, certamente não pode dizer “Eu não queria matar.”
E agora, escutai vós, ó mulheres, caladas e impunes assassinas de tantas
vidas. Também é matar, arrancar um fruto que está crescendo no ventre,
porque ele vem de uma semente culposa ou porque é um embrião não
desejado, um peso inútil para os vossos flancos e para a vossa riqueza. Só
tendes um modo de não sentir aquele peso: permanecendo castas. Não unais
o homicídio à luxúria, a violência à desobediência e não penseis que Deus
não vê, porque o homem não vê. Deus tudo vê e de tudo se lembra.
Lembrai-vos disso, vós também.
126.6 Por que eu feri?
Oh! Quantos porques! Pelo repentino desequilíbrio que cria em vós
uma emoção violenta, como é aquela de encontrar o tálamo profanado, ou o
ladrão em casa, ou o sórdido intento de violentar a própria filha mocinha,
ou o frio e meditado cálculo de livrar-se de uma testemunha perigosa,
alguém que possa colocar embaraços na carreira, alguém, cujo posto ou
cuja bolsa se deseja: estes são alguns e muitos outros porques. E se ainda
Deus pode perdoar a quem, na febre da dor se torna um assassino, não
perdoa a quem se torna assassino pela avidez do poder ou estima entre os
homens.
Agi sempre bem e não temereis o olhar de ninguém, nem a palavra de
ninguém. Contentai-vos com o que é vosso e não desejareis o que é dos
outros, a ponto de tornar-vos assassinos para terdes o que é do próximo.
126.7 Como eu feri?
Desfechando outros golpes, além do primeiro golpe, irrefletido? Às
vezes o homem não pode refrear-se. Porque satanás o atira ao mal, como o
fundibulário atira a pedra. Mas, que diríeis de uma pedra que, depois de ter
acertado no alvo, voltasse por si mesma atrás, para ser lançada de novo e
tornar a golpear? Vós diríeis: “Ela está possuída por uma força mágica e
infernal.” Assim é o homem que, depois do primeiro golpe, desse um
segundo, um terceiro, um décimo, sem que a sua ferocidade se amansasse.
Porque a ira se apaga e cai em si, logo depois do primeiro ímpeto, se esse
ímpeto tem origem em algum motivo ainda justificável. Enquanto que a
ferocidade aumenta, quanto mais a vítima vai sendo ferida, no verdadeiro
assassino, ou seja, em satanás, que não tem, não pode ter piedade do irmão,
porque sendo satanás, é ódio.
126.8 Quando eu feri?
No primeiro impulso? Depois deste? Fingindo perdão, enquanto o
rancor ia fermentando sempre mais? Terei esperado talvez muitos anos para
ferir, para dar uma dupla dor, matando o pai através dos filhos?
Vós estais vendo que, matando, se peca contra o primeiro e o segundo
grupo dos mandamentos. Porque vos arrogais o direito de Deus e porque
conculcais o próximo. Portanto é pecado contra Deus e contra o próximo. E
fazeis, não apenas um pecado de homicídio. Fazeis também um pecado de
ira, de violência, de soberba, de desobediência, de sacrilégio e, às vezes, se
matais para roubar um posto ou uma bolsa, de cobiça. Explicarei melhor em
outro dia, mas nem se peca por homicídio somente com a arma e o veneno.
Mas também com a calúnia. Meditai.
126.9 E vos digo ainda: o patrão que, batendo num escravo, o faz com
astúcia, para que ele não morra em suas mãos, é duplamente culpado. O
homem escravo não é dinheiro do patrão: é alma do seu Deus. E maldito
seja para sempre quem o trata pior do que a um boi.
Jesus parece estar soltando faísca e troveja. Todos o olham espantados,
porque antes Ele falava calmo.
– Maldito seja. A Lei nova abole esta dureza, que ainda era justiça,
quando no povo de Israel não havia hipócritas, que se fingem de santos e
aguçam as suas inteligências somente para explorar frustrando a Lei de
Deus. Mas agora, que em Israel estão transbordando esses seres viperinos,
que o líbito os fazem lícito, só porque eles são miseráveis poderosos, que
Deus olha com abominação e repugnância, Eu digo: isto não existe mais.
Caem os escravos sobre os sulcos ou nas moendas. Caem com os ossos
moídos e os nervos expostos pelos flagelos. Os patrões os acusam, para
poderem bater neles, de delitos que não existem, para justificarem seu
sadismo satânico. Até o milagre de Deus é usado como acusação, para ter
direito de bater Nem o poder de Deus, nem a santidade do escravo converte
a alma sua perversa. Não pode ser convertida. O bem não entra onde existe
saturação do mal. Mas Deus vê e diz “Basta!”
Muitos são os Cains que matam os Abéis. E que achais, ó sepulcros
imundos — por fora caiados e cobertos com as palavras da Lei, e com um
interior onde passeia satanás, como um rei e onde brota o satanismo mais
astuto —, que achais vós? Que Abel tenha sido somente filho de Adão e
que o Senhor olhe benignamente só aqueles que não são escravos de um
homem, enquanto repele a única oferta que o escravo pode fazer: a sua
honestidade, temperada com pranto? Não. Pois em verdade vos digo que
todo justo é um Abel, mesmo se estiver submetido a grilhões, mesmo se
estiver morrendo sobre a gleba ou sangrando, por causa de vossas
flagelações. E são Cains todos os injustos, que fazem ofertas a Deus por
orgulho, não por um ato de verdadeiro culto, mas oferecem o que está
poluído pelos seus pecados e manchados de sangue.
Profanadores do milagre. Profanadores do homem, assassinos,
sacrílegos! Fora! Longe da minha presença! Basta! Eu digo: Basta. E Eu
posso dizer isso porque sou a divina Palavra que traduz o Pensamento
divino. Fora!
Jesus, em pé sobre o rústico estrado, está espantoso em sua imponência.
Com o braço direito estendido, para mostrar a porta de saída, os olhos como
duas fogueiras azuis parece fulminar os pecadores presentes. A pequenina,
que está a seus pés, começou a chorar e corre para sua mãe. Os discípulos,
assombrados, se olham e olham para quem seria aquela investida. O povo
também se vira, com olhares interrogativos.
126.10 Finalmente o mistério se desfaz. Lá no fundo, perto da porta, meio
escondido atrás de um grupo de pessoas altas do povo, pode-se ver o Doras.
Ainda mais descarnado, amarelo, todo encarquilhado, com seu longo nariz,
o queixo prognata. Tem consigo um servo que o ajuda a mover-se, porque
ele parece ter sofrido algum acidente. E quem o tinha visto lá no meio da
eira? Ele ainda ousa falar com voz rouca:
– É a mim que estás falando? É para mim?
– É para ti, sim. Sai da minha casa.
– Eu vou sair. Mas logo faremos as contas, não tenhas dúvidas.
– Logo? Já. O Deus do Sinai, como Eu te disse[51], está à tua espera.
– Também Tu, maléfico, que fizeste que viessem sobre mim as
desgraças e os animais nocivos nas terras. Nós nos tornaremos a ver. E vai
ser a minha alegria.
– Sim. Mas não quererás rever-me. Porque Eu te julgarei.
– Ah! Ah! Mald…
Debate-se, gorgoleja e cai.
– Morreu! –grita o servo–. Meu patrão morreu! Que Tu sejas bendito, ó
Messias, nosso vingador!
– Não Eu. Deus, o Senhor eterno. Ninguém se contamine. Que apenas o
servo cuide de seu patrão. E que sejas bom para com o seu corpo. Sejais
bons, vós todos, servos dele. Não tripudieis, com ódio pelo que morreu,
para que não mereçais condenação. Deus e o justo Jonas vos sejam sempre
amigos, e Eu com eles. Adeus.
– Mas ele morreu por tua vontade? –pergunta Pedro.
– Não. Mas o Pai entrou em Mim… É um mistério que não podes
entender. Fica sabendo apenas que não é lícito ferir a Deus. Ele por si
mesmo faz as vinganças.
– Mas não poderias, então, dizer ao teu Pai que faça morrer todos os
que te odeiam?
– Cala-te! Tu não sabes de que espírito és. Eu sou Misericórdia e não
Vingança.
Aproxima-se Dele o velho sinagogo:
– Mestre, Tu deste respostas a todas as minhas perguntas, e a luz está
em mim. Que sejas bendito. Vem à minha sinagoga. Não recuses a um
pobre velho a tua palavra.
– Eu irei. Vai em paz. O Senhor é contigo.
Enquanto a multidão vai-se afastando lentamente, tudo termina.
[50] Lei, que está em: Êxodo 21,12-26; Levítico 24,17-22; Números 35,9-34; Deuteronômio 19,1-13.
[51] Eu te disse, em: 109.12.
127. Os discursos de Águas Belas. Não tentarás
ao Senhor teu Deus. Testemunho do Batista.
11 de março de 1945.
127.1 É um dia muito claro de inverno. Sol e vento e um céu sereno,
uniforme, sem a menor sombra de nuvem. São as primeiras horas do dia.
Ainda uma pequena camada de geada, ou melhor, de orvalho quase gelado,
parece ter feito cair um pó de diamantes no chão e sobre o gramado.
Três homens vêm em direção à casa, caminhando firmes, como quem
sabe para onde vão indo. Finalmente avistam João, que está atravessando a
eira, levando ânforas de água tirada do poço. E o chamam.
João se vira, põe no chão as ânforas e diz:
– Vós aqui? Bem-vindos! O Mestre vos verá com alegria. Vinde, vinde,
antes que o povo comece a chegar. Agora está vindo tanta gente!
São os três pastores, discípulos de João Batista. Simeão, João e Matias
seguem contentes o apóstolo.
– Mestre, aqui estão três amigos. Olha –diz João, entrando na cozinha,
onde está aceso um grande fogo de gravetos, espalhando um agradável odor
de bosque e de louro queimado.
– Oh! A paz esteja convosco, meus amigos. Que aconteceu para virdes
até Mim? Terá sucedido alguma desventura ao Batista?
– Não, Mestre. Foi com licença dele que viemos. Ele te saúda e te pede
que recomendes a Deus o leão que está perseguido pelos arqueiros. Não se
ilude quanto à sorte que o espera. Mas por ora está livre. E está feliz porque
sabe que Tu tens muitos fiéis. Até aqueles que antes eram dele. Mestre…
nós também desejávamos ardentemente sê-lo, mas… não queremos
abandonar João agora que ele está sendo perseguido. Tu nos
compreendes… –diz Simeão.
– Aliás, Eu vos abençoo pelo que estais fazendo. O Batista merece todo
respeito e amor.
– Sim. Dizes bem. É grande o Batista e sempre mais se agiganta. Parece
uma agave que, quando está perto de morrer se transforma no grande
candelabro da flor de sete formas e flameja e perfuma. Assim é ele. E
sempre diz: “Só queria vê-lo mais uma vez…” Ver a Ti. Nós recolhemos
esse grito de sua alma e, sem dizermos a ele, o trouxemos a Ti. Ele é o
“Penitente”, o “Abstinente.” E se mortifica também no desejo santo de te
ver e te ouvir. Eu sou Tobias, agora Matias. Mas acho que o arcanjo não
deveria ser dado ao pequeno Tobias. Tudo nele é sabedoria.
– Não quer dizer que Eu não o verei… 127.2Mas foi só para isto que vós
viestes? É penoso viajar com um tempo assim. Hoje está sereno. Mas, há já
três dias, choveu muito sobre as estradas!
– Não foi só para isso. Há alguns dias, Doras, o fariseu, foi purificar-se.
Mas o Batista lhe negou o rito, dizendo-lhe: “A água não chega onde há
uma grande crosta de pecado. Só há um que te pode perdoar. O Messias.”
Então ele disse: “Eu irei a Ele. Quero sarar e acho que o mal que eu tenho é
um malefício causado por Ele.” Aí o Batista o expulsou, como teria
expulsado satanás. E, enquanto ele ia indo embora, encontrou-se com João,
que ele conhecia desde o tempo em que ia ter com Jonas, do qual era meio
parente, e lhe disse: “Eu vou. Todos estão indo. Esteve lá até o Manaém e
até as… (eu digo meretrizes, mas ele disse um nome mais sujo) vão lá.
Águas Belas está cheia de iludidos. Mas se Ele me curar e retirar a maldição
de minhas terras, que estão escavadas, como por máquinas de guerra, por
exércitos de toupeiras, vermes, gafanhotos e outros animais, que
desenterram as sementes, roem as raízes das árvores, das frutíferas e das
vinhas, sem que haja nada que os vença, eu me tornarei amigo Dele. Mas se
não for assim… ai Dele!” Nós lhe respondemos: “É com este coração que
vais até lá?” E ele respondeu: “E quem acredita no satanás? Afinal, como
Ele convive com as meretrizes, pode fazer aliança também comigo.” Nós
quisemos vir dizer-te isto, para que possas ver o que fazer com Doras.
– Já está tudo feito.
– Tudo feito? Ah! É verdade. Ele tem carros e cavalos, nós, somente as
pernas. Quando foi que ele veio?
– Ontem.
– E que foi que aconteceu?
– Aconteceu o seguinte: que, se vos agrada ocupar-vos com o Doras,
podeis ir à sua casa em Jerusalém para o seu velório. Estão preparando-o
para ser sepultado.
– Morreu?
– Morreu. Aqui. Mas não falemos mais nele.
– Sim, Mestre… 127.3Somente… dize-nos uma coisa. É verdade tudo o
que ele disse de Mananen?
– Sim. Isso vos desagrada?
– Oh! Isso é a nossa alegria! Tanto que nós lhe falamos sobre Ti, lá no
Maqueronte! E que quer o apóstolo, senão que o Mestre seja amado? Isto é
o que João quer, e nós com ele.
– Falas bem, Matias. A sabedoria está contigo.
– Eu não o creio. Mas agora a encontramos… Antes da Festa dos
Tabernáculos, ele foi te procurar onde nós estávamos. E nós lhe dissemos:
“O que procuras não está aqui. Mas logo estará em Jerusalém para a Festa
dos Tabernáculos.” Assim dissemos, porque o Batista nos disse: “Vede
aquela pecadora: é uma crosta de sujeira, mas dentro tem uma chama que
deve ser alimentada E que vai tornar-se tão forte, que irromperá da crosta e
tudo queimará. Cairá a sujeira e ficará somente a chama.” Assim disse ele.
Mas… é verdade que dorme aqui, como foram dizer-nos dois poderosos
escribas?
– Não. Está em uma das estrebarias do feitor, a mais de um estádio
daqui.
– Línguas de inferno! Ouviste? E eles!!
– Deixai que falem. Os bons não creem nas palavras deles, mas em
minhas obras.
– João também diz isso. 127.4Há dias, alguns discípulos dele lhe
disseram, na nossa presença: “Rabi, Aquele que estava contigo, do lado de
lá do Jordão e do qual deste testemunho, agora está batizando. E todos vão
para Ele. Tu ficarás sem fiéis.” E João respondeu: “Feliz o meu ouvido, que
ouve este anúncio! Vós não sabeis que alegria me estais dando. Sabei que o
homem não pode tomar nada, se não lhe for dado pelo Céu. Vós bem podeis
dar testemunho de que eu disse: ‘Eu não sou o Cristo, mas aquele diante de
quem eu fui mandado para preparar-lhe o caminho’. O homem justo não se
apropria de um nome que não é seu e, mesmo que alguém quisesse elogiá-
lo, dizendo-lhe: ‘Tu és Aquele’, ou seja, o santo, ele diz: ‘Não. Na verdade,
não. Eu sou servo dele’. E igualmente tem grande alegria, porque diz: ‘Eu
pareço um pouco com Ele, se está me tomando por Ele’. E o que deseja
aquele que ama, senão parecer-se com o seu amado? Somente a esposa tem
prazer com o esposo. O paraninfo não poderia ter prazer com ela, porque
seria imoralidade e furto. Mas o amigo do esposo, que está perto dele e
ouve suas palavras cheias de alegria nupcial, sente uma alegria tão viva, que
é quase semelhante àquela que torna feliz a virgem que ele desposou,
antegozando o mel das palavras nupciais. Esta é a minha alegria, e é
completa. Que é que faz ainda o amigo do esposo, depois de ter durante
meses servido ao amigo e ter acompanhado a esposa até a casa? Retira-se e
desaparece. Assim eu! Um só fica, o esposo com a esposa: o Homem com a
Humanidade. Oh! Que palavra profunda! É necessário que Ele cresça e que
eu diminua. Quem vem do Céu está acima de todos. Patriarcas e Profetas
desaparecem à sua vinda, porque Ele é como o sol, que tudo ilumina de
uma luz tão viva, que os astros e os planetas que não têm luz própria, se
vestem com ela, e aqueles que têm luz própria se anulam, diante do seu
supremo esplendor. Assim acontece porque Ele vem do Céu, enquanto que
os Patriarcas e os Profetas irão para o Céu, mas não vieram do Céu. Quem
vem do Céu é superior a todos. E anuncia o que viu e ouviu. Mas ninguém
pode aceitar o seu testemunho entre aqueles que não aspiram pelo Céu e,
por isso, renegam a Deus. Quem aceita o testemunho Daquele que desceu
do Céu, confirma pela sua crença, que Deus é verdadeiro, e não uma fábula
sem verdade alguma, e sente a Verdade porque tem a alma cheia do seu
desejo. Porque Aquele que Deus enviou pronuncia palavras de Deus,
porque Deus lhe dá o Espírito com plenitude, e o Espírito diz: ‘Eis-me aqui.
Toma-me, pois Eu quero estar Contigo, Tu, delícia do nosso amor’. O Pai
ama o Filho sem medida e pôs todas as coisas em sua mão. Por isso, quem
crê no Filho tem a vida eterna. Mas quem se recusa a crer no Filho, não
verá a Vida. E a cólera de Deus cairá sobre ele.”
Assim ele disse. Estas palavras ficaram gravadas em minha mente para
eu dizê-las a Ti –diz Matias.
– E Eu te agradeço e louvo por isso. 127.5O último Profeta de Israel não é
Aquele que desce do Céu, mas, agraciado com os dons divinos desde o
ventre de sua mãe — vós não o sabeis, mas Eu vo-lo digo — é aquele que
mais se aproxima do Céu.
– Qual é? Qual é? Conta para nós! Ele diz de si mesmo: “Eu sou o
pecador.”
Os três pastores estão ansiosos para saber e os discípulos estão
igualmente desejosos de saber.
– Quando minha Mãe me trazia consigo, estando grávida de Mim-Deus,
como Ela é Humilde e Amorosa, foi ajudar a mãe de João, prima Dela por
parte de mãe e também grávida, em sua velhice. O Batista já tinha a sua
alma[52], porque já estava no sétimo mês de sua formação. E o embrião do
homem, fechado no ventre materno, saltou de alegria, ao ouvir a voz da
Esposa de Deus. Precursor até nisto, ele precedeu aos redimidos, porque de
um ventre ao outro difundiu-se a Graça, que penetrou nele, saindo a culpa
original da alma do menino. Onde Eu digo que na terra são três os
possuidores da Sabedoria, assim como no Céu três são os que são
Sabedoria: o Verbo, a Mãe e o Precursor, na terra. O Pai, o Filho e o
Espírito Santo, no Céu.
– Nossa alma está cheia de espanto… Quase como quando nos foi dito:
“Nasceu o Messias…” Porque Tu eras a imensidão da Misericórdia e este
nosso João é a imensidão da humildade.
– E minha Mãe é a imensidão da pureza, da graça, da caridade, da
obediência, da humildade, de todas as outras virtudes que são de Deus e que
Deus infunde em seus santos.
127.6 – Mestre –diz Tiago de Zebedeu–. Já veio muita gente.
– Vamos. Vinde vós também.
A multidão é bem grande.
– A paz esteja convosco –diz Jesus.
Ele está sorridente como poucas vezes. O povo está cochichando e
apontando-o. Há muita curiosidade.
– “Não tentarás ao Senhor teu Deus”, foi dito[53].
Muitas vezes se esquece este mandamento. Tenta-se a Deus, quando se
quer impor a Ele a nossa vontade. Tenta-se a Deus, quando,
imprudentemente, se age contra as regras da Lei, que é santa e perfeita e no
seu lado espiritual, o principal, se ocupa e se preocupa também com a carne
que Deus criou. Tenta-se a Deus, quando, perdoados por Ele, torna-se a
pecar. Tenta-se a Deus quando, beneficiados por Ele, transforma-se em
prejuízo os benefícios que deveriam ser um bem para nós e nos fazerem
lembrar de Deus.
Com Deus não se brinca e de Deus não se zomba. E isto acontece
muitas vezes. Ontem pudestes ver qual o castigo que espera aos que
zombam de Deus. O Deus eterno, todo piedoso para quem se arrepende, é,
ao contrário, cheio de severidade para com o impenitente, que por nada
muda o seu procedimento.
Vós viestes a Mim, para ouvirdes a palavra de Deus. Aqui viestes para
receberdes milagre. Viestes para receberdes o perdão. E o Pai vos dá
palavra, milagre e perdão. Eu não fico com saudade do Céu, porque vos
posso dar o milagre e o perdão fazendo-os conhecer a Deus.
[54], pelo
127.7 O homem caiu ontem fulminado, como Nadab e Abiud
fogo da ira divina. Mas vós, abstende-vos de julgá-lo. Só o que aconteceu,
um novo milagre, vos faça meditar sobre como agir para ter Deus como
amigo. Ele queria a água da penitência, mas sem o espírito sobrenatural. Ele
a queria por espírito humano. Como uma prática mágica que o curasse da
doença e o livrasse da ruína. Queria o corpo e a colheita. Eis os seus fins.
Não a sua pobre alma. Para ele, a alma não tinha valor. O que tinha valor
era a vida e o dinheiro.
Eu digo: “o coração está onde estiver o tesouro, e o tesouro está onde
estiver o coração. Por isso o tesouro está no coração.”
Ele no coração tinha a sede de viver e de possuir muito dinheiro. Como
possuí-lo? De qualquer modo. Até por meio do delito. E, nesse caso, pedir o
batismo não era tentar a Deus, zombar de Deus? Teria bastado o
arrependimento sincero pela sua longa vida de pecado, para dar-lhe uma
santa morte e também tudo o que era justo que ele tivesse sobre a terra. Mas
ele era o impenitente. Não tendo nunca amado ninguém, exceto a si mesmo,
chegou a não mais amar nem a si mesmo. Porque o ódio mata também o
amor egoísta e animal do homem a si mesmo. O pranto do arrependimento
sincero devia ter sido a sua água lustral. E assim seja para todos vós, que
me estais ouvindo. Porque sem pecado não existe ninguém, por isso, tendes
necessidade dessa água. Ela desce, espremida pelo coração, lavando,
santificando a quem está profanado, levantando quem está prostrado,
revigorando quem tem culpa.
Aquele homem se preocupava só com a miséria da terra. Mas há uma
única miséria que deve tornar o homem pensativo. É a miséria eterna, que é
perder a Deus. Aquele homem não deixava de fazer as ofertas rituais. Mas
não sabia oferecer a Deus sacrifícios espirituais, ou seja, afastar-se do
pecado, fazer penitência, pedir o perdão com atos. As ofertas hipócritas
feitas com riquezas mal adquiridas são semelhantes a convites feitos a Deus
para que se torne cúmplice das más obras do homem. Pode isso acontecer?
Ousar isso, não é zombar de Deus? Deus repele aquele que diz: “Eis que
ofereço um sacrifício”, mas almeja continuar em seu pecado. Terá valor o
jejum corporal, quando a alma não jejua do pecado?
A morte do homem aqui ocorrida, vos faça meditar sobre as condições
necessárias para ser amados por Deus. Agora, em seu rico palácio, os
parentes e as pranteadeiras estão fazendo velório ao redor do cadáver que,
dentro de pouco tempo será levado para o sepulcro. Oh! Verdadeiro pesar e
verdadeiro cadáver! Nada mais do que um desolado pesar! Porque a alma já
morta será para sempre separada daqueles que amou, por parentesco, ou por
afinidade de ideias. E, ainda que uma mesma morada os una para sempre, o
ódio que lá reina, os manterá divididos. E então, a morte é uma
“verdadeira” separação. Melhor seria que, em lugar dos outros, o próprio
homem chorasse sobre si mesmo, quando está com a alma morta. E, por
aquele choro de um coração contrito e humilde, devolvesse à alma a vida,
com o perdão de Deus.
Ide. Sem ódio ou comentários. Nada mais do que humildade. Como Eu
que, sem ódio, mas por justiça falei dele. A vida e a morte são mestras para
viver e morrer bem,conquistando a Vida sem a morte. A paz esteja
convosco.
127.8 Não há doentes nem milagres, Pedro diz aos três discípulos do
Batista:
– Lamento por vós.
– Oh! Não precisa. Nós cremos sem ver. Já vimos o milagre do seu
natal para fazer-nos crentes. E agora temos a sua palavra para confirmar a
nossa fé. Não pedimos senão que possamos trabalhar por esta palavra até o
Céu, como Jonas, nosso irmão.
Tudo termina.
[52] já tinha a sua alma, porque já estava no sétimo mês… Estas palavras, dirigidas a pessoas simples, não obrigam a excluir que
a alma venha infusa no mesmo instante da concepção do corpo, até porque a sacralidade da vida humana desde o seu início foi
afirmada já antes, em 126.4/6
[53] foi dito, em: Deuteronômio 6,16
[54] Nadab e Abiú, cuja morte se fala em: Levítico 10,1-2; Números 3,4; 26,61; 1 Crônicas 24,2.
128. Os discursos de Águas Belas: Não desejar
a mulher do próximo. Cura de um jovem
luxurioso.
12 de março de 1945.
128.1 Jesus passa no meio de uma pequena multidão que o chama de
todos os lados. Alguém lhe mostra as feridas, outro enumera suas
desventuras, outro se limita a dizer: “Tem piedade de mim”, enquanto outro
lhe apresenta o filhinho para que seja abençoado. O dia claro e sem vento
trouxe muita gente.
Quando Jesus já está quase chegando ao seu lugar, vem da estradinha,
que conduz ao rio, o lamento de alguém que implora:
– Filho de Davi, tem piedade deste teu infeliz!
Se viram naquela direção, Jesus o povo e os discípulos. Mas uma moita
cerrada de buxos esconde quem fez a súplica.
– Quem és? Vem para a frente.
– Não posso. Estou infeccionado. Devo apresentar-me ao sacerdote
para ser eliminado do mundo. Eu pequei e a lepra se espalhou pelo meu
corpo. Eu espero em Ti!
– Um leproso! Um leproso! Maldição! Vamos apedrejá-lo!
A multidão tumultua.
Jesus faz um gesto, que impõe silêncio e imobilidade:
– Ele é alguém não mais infeccionado do que os que estão em pecado.
Aos olhos de Deus está ainda mais imundo o pecador impenitente, do que o
leproso arrependido. Quem é capaz de crer, venha Comigo.
Alguns curiosos, além dos discípulos, vão atrás de Jesus. Os outros
esticam o pescoço, mas ficam onde estão.
Jesus se encaminha para além da casa e da estradinha, em direção à
moita de buxos. Depois para e ordena:
– Mostra-te!
Deixa-se ver, então, alguém que é pouco mais do que um jovenzinho,
de rosto ainda bonito, apenas coberto pelo bigode e uma barba rala, um
rosto ainda novo e cheio, olhos avermelhados de choro.
Um grande grito o saúda, partindo de um grupo de mulheres, todas
cobertas, que estavam chorando na eira da casa, quando Jesus passou e
começaram a chorar mais forte, por causa das ameaças da multidão: “Meu
filho!”, e a mulher se deixa cair nos braços de uma outra, não sei se parente
ou amiga.
Jesus se adianta sozinho, dirigindo-se ainda para o infeliz:
– És muito jovem. Como é que estás leproso?
O jovem abaixa o olhar, fica muito corado, gagueja, mas não tem
coragem para mais nada. Jesus repete a pergunta. Ele, então, diz alguma
coisa mais claramente. Mas não se compreende senão as palavras:
– … o pai… eu fui… e pecamos… não eu só…
– Lá está a tua mãe, que espera e chora. No Céu está Deus, que sabe.
Aqui estou Eu que sei. Mas, para ter piedade, preciso da tua humilhação.
Fala.
– Fala, meu filho. Tem piedade das entranhas que te trouxeram –geme a
mãe, que veio se arrastando até junto de Jesus, e agora, de joelhos,
segurando inconscientemente uma orla da veste de Jesus com uma mão,
estende a outra em direção ao filho e mostra um pobre rosto queimado pelas
lágrimas.
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça.
– Fala –torna a dizer.
– Eu sou o primogênito e ajudo meu pai nos negócios. Ele me mandou
a Jericó muitas vezes para ir falar com os seus clientes e… e um… um deles
tinha uma bela e jovem mulher… e… ela me agradou… Eu fui até ela mais
vezes do que era preciso… E agradei a ela… Nós nos desejamos e…
pecamos nas ausências do marido… Não sei como foi, porque ela estava sã.
Sim. Não somente eu estava são e a quis. Mas ela estava sã e me quis. Não
sei se… depois de mim ela esteve com outros e se contagiou… Sei que ela
murchou depressa, e agora está junto aos sepulcros, como uma morta e
viva… E eu… e eu… Mãe! Tu o viste. É pouca coisa, mas dizem que é
lepra… e vou morrer disso. Quando?? Não mais vida… não mais casa…
não mais mãe!! Oh! Mãe! Eu te vejo e não posso te beijar! Hoje virão
descoser as minhas vestes e expulsar-me de casa… do povoado… Eu sou
pior do que um morto. E não terei nem mesmo o pranto da mãe sobre o meu
cadáver…
O jovem chora. A mãe parece uma árvore agitada pelo vento, de tanto
que os soluços a sacodem. O povo comenta o caso, mas com modos de
pensar opostos.
128.2 Jesus está triste. E fala:
– E quando pecavas não pensavas em tua mãe? Tão louco estavas, que
não te lembravas mais de que tinhas uma mãe na terra e um Deus no Céu?
E se a lepra não tivesse aparecido, terias te lembrado de que tinhas ofendido
a Deus e ao próximo? Que é que fizeste de tua alma? Que fizeste de tua
juventude?
– Fui tentado…
– És ainda tão criança, para não saberes que aquele fruto era maldito?
Merecerias morrer sem piedade.
– Oh! Piedade! Só Tu podes…
– Não Eu. Deus. Se prometes que não pecarás mais.
– Prometo. Eu prometo. Salva-me, Senhor. Só tenho poucas horas antes
da condenação. Mãe!! Mãe!! Ajuda-me com o teu pranto!! Oh! Minha mãe!
A mulher já não tem mais voz. Somente abraça-se às pernas de Jesus e
levanta o rosto, com os olhos dilatados pela dor, um trágico rosto de alguém
que está se afogando e sabe que aquele é o último apoio que o mantém e
que o pode salvar.
Jesus olha para ela. Sorri-lhe piedoso:
– Levanta-te, mãe. Teu filho está curado. Mas, por causa de ti. Não por
causa dele.
A mulher ainda não acredita. Parece-lhe que, assim à distância, ele não
possa ter sido curado, e entre soluços contínuos, faz sinais de que não
concorda com o que Jesus está dizendo.
– Homem, tira a túnica do peito. Era aí que tinhas a mancha. Que tua
mãe seja consolada.
O jovem retira a veste aparecendo meio desnudo aos olhos de todos.
Nada há senão uma pele unida e lisa, de um jovem bem robusto.
– Olha mãe –diz Jesus, e se inclina para erguer a mulher. Gesto que
serve também para detê-la, quando o seu amor de mãe e a vista do milagre a
atirariam contra o filho, sem esperar que ele fôsse purificado. Sentindo-se
impossibilitada de ir para onde a impelia o seu amor materno, ela se
abandona sobre o peito de Jesus e o beija, em um verdadeiro delírio de
alegria. Chora, ri, beija, abençoa… e Jesus a acaricia com piedade.
Depois diz ao jovem:
– Vai ao sacerdote. E lembra-te de que Deus te curou por causa de tua
mãe e para que sejas justo no futuro. Vai.
O jovem vai-se embora, depois de ter bendito o Salvador e, à distância,
o seguem sua mãe e as outras mulheres que estavam com ela. A multidão dá
gritos de hosana.
128.3 Jesus volta ao seu lugar.
– Também este tinha-se esquecido de que há um Deus que ordena a
honestidade nos costumes. Havia-se esquecido de que é proibido fazer-se
deuses e que não é Deus. Tinha esquecido de santificar o seu sábado, como
tenho ensinado. Tinha esquecido o respeito amoroso para com sua mãe.
Tinha esquecido de que não se deve fornicar, nem roubar, nem ser falsos,
nem desejar a mulher do próximo, nem matar a si nem à própria alma, nem
cometer adultério. De tudo se esquecera. E vede como foi castigado.
“Não desejar a mulher do próximo” está unido à “não cometer
adultério.” Porque o desejo precede sempre a ação. O homem é fraco
demais para poder desejar, sem que depois chegue a consumar o seu desejo.
E, o que é sumamente triste, é que o homem não sabe fazer a mesma coisa
com os desejos justos. Nas coisas más, ele deseja e depois se realiza. Nas
coisas boas, ele deseja e depois se detém, se é que não retrocede.
Como disse a ele, digo a todos vós, porque o pecado de desejo está tão
espalhado, como a grama, que por si mesma se propaga: sois vós umas
crianças, para não saberdes que aquela tentação é venenosa e deve ser
evitada? “Fui tentado”. Aí está uma antiga palavra! Mas, assim como é
também um antigo exemplo, deveria o homem lembrar-se das
consequências disso e saber dizer Não. Em nossa história não faltam
exemplos de castos que assim se conservaram, não obstante todas as
seduções do sexo e as ameaças dos violentos.
É a tentação um mal? Não o é. É obra do Maligno. Mas se transforma
em glória para aquele que a vence.
O marido que vai para outros amores é um assassino da esposa, dos
filhos e de si mesmo. Aquele que entra na morada alheia para cometer
adultério, é um ladrão, dos mais vis. É semelhante ao chupim que, sem
despesa, goza do ninho alheio. Aquele que solapa a boa fé do amigo é um
falsário, porque testemunha uma amizade que na realidade não tem. Aquele
que age assim, desonra a si mesmo e o seus pais. Pode então ter Deus
consigo?
128.4 Fiz o milagre para aquela pobre mãe. Mas a luxúria me dá tanta
repugnância, que contra ela fico revoltado. Vós gritastes por medo e por
horror da lepra. Eu, com minha alma, gritei por horror da luxúria[55]. Todas
as misérias estão ao meu redor e para todas Eu sou o Salvador. Mas prefiro
tocar num morto, um justo já em decomposição em sua carne, que foi
honesta e já está em paz com o seu espírito, do que aproximar-se daquele
que tem cheiro de luxúria. Sou o Salvador, mas também sou o Inocente.
Lembrem-se disso todos aqueles que vêm, ou que falam de Mim,
imputando à minha personalidade os fermentos da personalidade deles.
Compreendo que vós queríeis outra coisa de Mim. Mas Eu não posso.
A ruína de uma juventude, que mal se formou e já está destruída pela
libidinagem, turbou-me mais do que se tivesse tocado na Morte. Vamos aos
doentes. Não podendo, por causa do nojo que me está sufocando, ser a
Palavra, serei a Saúde dos que esperam em Mim.
A paz esteja convosco.
Jesus, de fato, está muito pálido, como quem está sofrendo. Não retoma
o seu sorriso, a não ser quando se inclina para as crianças doentes e para os
enfermos em suas pequenas padiolas. Então volta a parecer como é.
Especialmente quando, pondo o seu dedo na boca de um mudinho de uns
dez anos, o manda dizer “Jesus” e depois “Mamãe.”
O povo vai saindo lentamente.
128.5 Jesus fica dando uns passos ao sol, que inunda de luz a eira, até que
o alcança Iscariotes:
– Mestre, eu não estou tranquilo…
– Por que, Judas?
– Por causa dos de Jerusalém… Eu os conheço. Deixa-me ir até lá por
alguns dias. Não te peço nem para mandar-me sozinho. Ao contrário, peço
que não seja assim. Manda-me junto com o Simão e João. Eles foram tão
bons para comigo na primeira viagem pela Judeia. Um deles me freia e o
outro me purifica até no pensamento. Nem podes crer o que João é para
mim! É um orvalho que acalma os meus ardores e um óleo sobre as minhas
águas agitadas… Podes crê-lo.
– Eu sei. Não te deves admirar, por isso, se Eu o amo tanto. Ele é a
minha paz. Mas tu também, se fores sempre bom, serás o meu conforto. Se
usares os dons de Deus, que tu tens muitos, no bem, como vens fazendo há
alguns dias, tornar-te-ás um verdadeiro apóstolo.
– E Tu me amarás como João?
– Eu te amo tanto quanto, Judas. Somente que te amarei então sem
preocupação ou dor.
– Oh! Meu Mestre, como és bom!
– Vai, então, a Jerusalém. Não vai adiantar nada. Mas não quero
decepcionar o teu desejo de ajudar-me. Agora, vou dizê-lo logo a Simão e a
João. Vamos. Estás vendo como teu Jesus sofre por certas culpas? Sou
como alguém que levantou um peso muito grande. Não me causes mais esta
dor. Nunca mais…
– Não, Mestre. Não. Eu te quero bem. Tu o sabes… Mas eu sou fraco…
– O amor fortalece.
Entram em casa e tudo termina.
128.6 E é bom, porque eu estou muito mal: de moral. O Senhor sabe a
causa. Também de físico porque — ou porque é tempo de Paixão, ou
porque escrevi muito, não sei precisamente por que — estou num período
tremendo de febres e de dores nos pulmões, na espinha dorsal e no
abdômen. Creio que a doença continue a se desenvolver em mim. Estou
sofrendo por causa de toda a umidade e falta de sol daquele querido lugar.
[55] gritei por horror da luxúria: De onde resulta – assim anota MV numa cópia datilografada – que a infinita Pureza do Verbo
apenas por misericórdia e para redenção aproximava os pecadores na luxúria.
129. A cura, em Águas Belas,
de um romano endemoninhado.
13 de março de 1945.
129.1 Jesus está com os nove que ficaram, porque os outros três partiram
para Jerusalém. Tomé, sempre alegre, se divide entre as suas verduras e as
outras incumbências mais espirituais, enquanto Pedro com Filipe,
Bartolomeu e Mateus se ocupam com os peregrinos, e os outros vão para o
rio, para batizar. É verdadeiramente um batismo de penitência, por causa
deste vento norte que sopra!
Jesus ainda está no canto da cozinha, enquanto Tomé trabalha calado,
para deixar em paz o Mestre, quando entra o André e diz:
– Mestre, está aí um doente, que eu acho bom curá-lo logo, porque…
dizem que é doido, porque não são israelitas. Mas nós diríamos que ele está
possesso. Grita, berra, estrebucha. Vem vê-lo, Tu.
– Já vou. Onde está?
– Ainda está no campo. Estás ouvindo estes uivos? É ele. Parece um
animal, mas é ele. Deve ser rico, porque quem o acompanha é bem vestido,
e o doente foi descido de um carro de grande luxo por muitos servos. Deve
ser pagão, porque blasfema contra os deuses do Olimpo.
– Vamos.
– Eu também vou para ver –diz Tomé, mais curioso em ver, do que
preocupado com as suas verduras.
Saem, e, em vez de virarem em direção ao rio, tomam o sentido dos
campos, que separam esta casa de colonos (nós diremos assim), da casa do
feitor.
No meio de um prado, onde antes pastavam ovelhas, que agora,
espantadas, se dispersaram para todos os lados, reunidas em vão por
pastores e um cão — é o segundo cão que eu vejo, desde que comecei a ter
estas visões — está um homem fortemente amarrado e que, não obstante
isso, dá saltos como um louco, com gritos horríveis, que aumentam cada
vez mais, à medida que Jesus se aproxima.
Pedro, Filipe, Mateus e Natanael estão ali perto, perplexos. Há ali
também pessoas do povo: só os homens, porque as mulheres têm medo.
– Já vieste, Mestre? Estás vendo que fúria? –diz Pedro.
– Agora passará.
– Mas… é um pagão, sabes?
– E que importância tem isto?
– Ora, por causa da alma!!
Jesus tem um breve sorriso e procede. Alcança o grupo do louco, que se
agita sempre mais.
129.2 Afasta-se do grupo alguém que, a veste e o rosto raspado,
denunciam como um romano, e saúda:
– Salve, Mestre. A tua fama chegou até mim. És maior do que o
Hipócrates para curar, e do que o simulacro de Esculápio para operar
milagres sobre as doenças. Eu sei. Por causa disso é que eu vim. Estás
vendo o meu irmão? Ficou louco por um mal misterioso. Nenhum médico
entende. Eu fui com ele ao templo de Esculápio. Mas ele saiu de lá ainda
mais louco. Em Ptolemaida eu tenho um parente. Ele mandou uma
mensagem da multidão. Dizia que aqui há Um que tudo cura. E eu vim. É
uma viagem horrível!
– Merece um prêmio.
– Mas espera. Nem prosélitos somos. Somos romanos, fiéis aos deuses.
Vós dizeis que somos pagãos. Somos de Síbari e agora de Chipre.
– É verdade. Vós sois pagãos.
– Então… nada para nós? O teu Olimpo expulsa o nosso ou é expulso?
– O meu Deus, Uno e Trino, reina, único e sozinho.
– Eu vim em vão, diz o romano decepcionado.
– Por quê?
– Porque eu sou de um outro deus.
– A alma é criada por Um só.
– A alma…?
– A alma. Aquela coisa divina, que vem de Deus, criada para cada
homem. Companheira na existência, sobrevive além da existência.
– E onde está?
– Nas profundezas do eu. Mas mesmo estando, como coisa divina, no
interior do delubro[56] mais sagrado, porque não é uma coisa, mas um
verdadeiro ser, digno de todo o respeito.
– Por Júpiter! És um filósofo?
– Sou a Razão unida a Deus.
– Estava pensando que Tu o fosses, pelo que dizias…
– E que é a filosofia, quando é verdadeira e honesta, senão a elevação
da razão humana para a Sabedoria e o Poder infinitos, ou seja, para Deus?
– Deus! Deus!! Tenho aquele infeliz que me incomoda. Mas estou
quase me esquecendo do estado dele, para escutar a Ti, que és divino.
– Eu o sou, mas não como tu dizes. Tu chamas divino ao que é superior
ao humano. Eu digo que tal nome há de ser dado somente a quem é de
Deus.
– Que é Deus? Quem já o viu?
– Foi escrito: “Tu, que nos formaste, salve! Quando eu descrevo a
perfeição humana, as harmonias de nosso corpo, eu celebro a tua glória.”
Foi dito: “A tua bondade refulge em teres distribuído os teus dons a todos
os que vivem, para que cada homem tivesse o que lhe é necessário. E a tua
sabedoria se testemunha pelos teus dons, como o teu poder, na realização de
tuas vontades.” Reconheces estas palavras?
– Se Minerva me ajuda… são palavras de Galeno[57]. Mas como é que
as conheces? Eu estou assombrado!!
Jesus sorri e responde:
– Vem ao Deus verdadeiro e o seu divino espírito te fará douto da
“verdadeira sabedoria e piedade que é conhecer a ti mesmo e adorar a
Verdade.”
– Mas isso também é de Galeno! Agora tenho certeza. Além de médico
e mago, és também filósofo. Por que não vais para Roma?
– Não sou médico, nem mago, nem filósofo, como tu dizes. Mas sou
testemunho de Deus sobre a terra. 129.3Trazei-me aqui perto o doente.
Entre gritos e convulsões, arrastam-no até ali.
– Estás vendo? Tu dizes que ele está louco. Dizes que nenhum médico
pôde curá-lo. É verdade. Nenhum médico, porque ele não é louco. Mas, eu
falo a ti assim, porque és pagão, um dos ínferos entrou nele.
– Mas ele não tem o espírito de píton. Pelo contrário, só diz coisas
erradas.
– Nós o chamamos “demônio”, não píton. Há o que fala e há o mudo.
Aquele que engana com razões tingidas de verdade e o que é apenas
desordem mental. O primeiro destes dois é o mais completo e perigoso. Teu
irmão tem o segundo. Mas agora sairá dele.
– Como?
– Ele mesmo dirá a ti.
Jesus ordena:
– Deixa o homem! Volta ao teu abismo.
– Eu vou. Contra Ti fraco demais é o meu poder. Tu me expulsas e me
amordaças. Por que é que sempre nos vences…?
O espírito falou pela boca do homem, que depois abate-se como
extenuado.
– Está curado. Desata-o sem medo.
– Curado? Tens certeza disso? Eu te adoro!
O romano está para prostrar-se.
Mas Jesus não quer:
– Levanta o teu espírito. Deus está no Céu. Adora-o, e vai para Ele.
Adeus.
– Não. Assim não. Pelo menos toma. Permite que eu te trate como os
sacerdotes de Esculápio. Concede-me te ouvir falar… Permite que fale de
Ti na minha pátria…
– Podes fazê-lo. E vem com o teu irmão.
O irmão está olhando ao redor espantado e perguntando:
– Mas onde eu estou? Aqui não é Cintium! Onde está o mar?
– Estavas…
Jesus faz um sinal para impor silêncio e diz:
– Estavas sofrendo uma grande febre e te conduziram para um outro
clima. Agora estás melhor. Vem.
Vão todos ao quarto grande, mas nem todos igualmente comovidos,
porque há quem admira e quem critica a cura do pagão. 129.4E Jesus vai para
o seu lugar, tendo justamente os romanos à frente da assembleia.
– Não vos desagrade se Eu vou citar um passo[58] dos Reis. Está dito
nessa passagem que o rei da Síria, estando para entrar em guerra contra
Israel, tinha em sua corte um homem ilustre e honrado chamado Naamã,
que era leproso. E que uma menina de Israel, aprisionada pelos sírios e
tornada sua escrava, lhe disse: “Se o meu Senhor tivesse ido ao profeta que
está na Samaria, certamente ele o teria curado da lepra.” Ao que, Naamã,
pedindo licença ao rei, seguiu o conselho da menina. Mas o rei de Israel
ficou muito perturbado e disse: “Por acaso serei eu Deus, para que o rei da
Síria me mande os doentes? Isto é uma cilada para irmos à guerra.” Aí o
profeta Eliseu, tendo sabido do fato, disse: “Venha a mim o leproso e eu o
curarei e ele saberá que existe um profeta em Israel.” Naamã foi, então, até
Eliseu. Mas Eliseu não o recebeu. Só mandou dizer-lhe: “Vai lavar-te sete
vezes no Jordão e ficarás limpo.” Naamã se indignou com isso, parecendo-
lhe ter viajado tanto por nada e, irritado, estava para voltar para a sua terra.
Mas os seus servos lhe disseram: “Ele não te pediu nada mais do que te
fosses lavar sete vezes, e, se ele te tivesse mandado muito mais do que isso,
terias devido ir fazê-lo, porque ele é o profeta.” Então Naamã se rendeu.
Foi, lavou-se e ficou são. Jubiloso ele voltou ao servo de Deus e lhe disse:
“Agora eu sei a verdade: não há outro Deus em toda a terra. Só existe o
Deus de Israel.” E como Eliseu não queria presentes, pediu-lhe para pegar
pelo menos o tanto necessário de terra, para que pudesse oferecer sacrifício
sobre a terra de Israel, ao Deus verdadeiro.
Sei que nem todos vós aprovais o que Eu fiz. Sei também que não
tenho obrigação de justificar-me para vós. Mas, posto que vos amo com
verdadeiro amor, quero que compreendais o meu gesto e dele aprendais,
saindo de vossa alma todo sentido de crítica e de escândalo.
Aqui temos dois súditos de um estado pagão. Um estava doente, e
disseram-lhe por boca de algum parente, mas certamente por alguém de
Israel: “Se fôsseis ao Messias de Israel, Ele curaria o doente.” E eles, de
muito longe, vieram a Mim. Maior ainda foi a fé deles do que aquela de
Naamã, porque nada sabiam de Israel, nem do Messias, enquanto que o
sírio, pela vizinhança de sua nação e pelo contínuo contato com escravos de
Israel, já sabia que em Israel está Deus. O Deus verdadeiro. Não fica bem
que agora um homem pagão possa voltar para a sua terra, dizendo:
“Realmente em Israel há um homem de Deus e em Israel adoram ao
verdadeiro Deus”?
Eu não disse: “Vai lavar-te sete vezes.” Mas falei de Deus e da alma,
duas coisas por eles ignoradas e que, como as bocas de uma nascente
inesgotável, trazem em si os sete dons. Porque, onde existe conceito de
Deus e de espírito, e desejo de chegar até eles, nascem as plantas da fé,
esperança, caridade, justiça, temperança, fortaleza, prudência. Virtudes
desconhecidas por aqueles que dos seus deuses não podem senão imitar as
comuns paixões humanas, aumentadas em seu desregramento, pois são
praticadas por supostos excelsos. Agora eles vão voltar para sua terra. Mas,
maior do que a alegria de terem sido atendidos, vai ser a de poderem dizer:
“Sabemos que não somos brutos, que além da vida, há ainda um futuro.
Sabemos que o verdadeiro Deus é Bondade e, por isso, ama a nós também e
nos beneficia para persuadir-nos a irmos a Ele.”
129.5E que achais? Que só eles é que ignoram a verdade? Há pouco um
dos meus discípulos pensava que Eu não pudesse curar o doente, porque ele
tinha uma alma pagã. Mas, que é a alma? E de quem vem? A alma é a
essência espiritual do homem. É ela que, tendo sido criada em idade
perfeita, reveste, acompanha, aviva toda a vida da carne e continua a viver,
depois que a carne já não existe mais, sendo ela imortal, como Aquele que a
criou: Deus. Havendo um só Deus, não existem almas de pagãos e almas de
não pagãos, criadas por deuses diferentes. Existe uma Força única, que cria
as almas: é a do Criador, do nosso Deus, único, poderoso, santo, bom, sem
outra paixão que não seja o amor, a caridade perfeita, absolutamente
espiritual, e, para ser entendido por estes romanos, da mesma maneira como
disse: caridade, digo também: caridade absolutamente moral. Porque o
conceito de espírito não é compreendido por estes pequenos, que ainda não
sabem nada das palavras santas.
E que achais? Que Eu tenha vindo somente para Israel? Sou Aquele que
reunirá as raças sob um só pastor: o do Céu. E em verdade vos digo que
logo virá o tempo em que muitos pagãos dirão: “Deixa-nos tomar parte para
podermos, em nosso solo pagão, consumar sacrifícios ao Deus verdadeiro,
ao Deus uno e trino”, do qual Eu sou a Palavra.
Agora estes se vão. Convencidos mais do que se Eu os houvesse
rejeitado com o desprezo. Estes, no meu milagre, e nas minhas palavras,
sentem Deus, e isto irão dizer nos lugares para onde voltam.
Além disso, vos digo: não era justo premiar tão grande fé?
Desorientados pelas respostas dos médicos, decepcionados pelas inúteis
viagens aos templos, eles souberam ainda ter fé para virem ao
desconhecido, ao grande Desconhecido do mundo, ao escarnecido, ao
Grande Escarnecido e Caluniado de Israel, e lhe disseram: “Eu creio que Tu
podes.” O primeiro crisma (a primeira mudança) para essa sua nova
mentalidade lhes vem disto: de terem sabido crer. Não tanto pela doença,
quanto pela fé errada Eu os curei, porque pus os lábios deles em um cálice,
cuja sede cresce quanto mais dele beberem: a sede de conhecer ao Deus
verdadeiro.
Terminei. Digo a vós de Israel: Procurai saber ter fé, como estes
souberam.
129.6 O romano se aproxima com o curado:
– Mas… Não ouso mais dizer: “por Júpiter!” Digo, sobre a minha
honra de cidadão romano: eu te juro que terei essa sede! Agora eu preciso
ir-me embora. Quem me vai dar de beber?
– O teu espírito, a alma que agora sabes que tens, até o dia em que
alguém enviado por Mim irá a ti.
– E Tu, não?
– Eu… Eu não. Mas, mesmo não estando presente, não estarei ausente.
E não passarão senão pouco mais de dois anos, que Eu te darei um presente
maior do que o da cura deste que te era caro. Adeus aos dois. Procurai
perseverar neste sentimento de fé.
– Salve, Mestre. Que o Deus verdadeiro te salve.
Os dois romanos vão-se e ouve-se que estão chamando os servos com o
carro.
– E nem mesmo sabiam que tinham uma alma! –murmura um velho.
– Sim, pai. E souberam aceitar minha palavra melhor do que muitos em
Israel. Agora, como eles nos deram tanto óbolo, vamos ajudar os pobres de
Deus, duas ou três vezes mais. E que os pobres rezem por estes benfeitores,
que são mais pobres do que eles mesmos, para que cheguem à verdadeira e
única riqueza, que é conhecer a Deus.
129.7 A mulher velada está chorando sob o seu véu, que impede de ver
suas lágrimas, mas não de ouvir os seus soluços.
– Aquela mulher está chorando –diz Pedro–. Talvez ela não tenha
dinheiro. Vamos dar a ela?
– Ela não está chorando por isso. Mas vai dizer-lhe assim: “As pátrias
passam. Mas o Céu fica. Ele pertence a quem sabe ter fé. Deus é Bondade e
por isso ama também os pecadores. E te ajuda para que te persuadas a ir a
Ele.” Vai. Diz a ela assim e depois deixa-a chorar. É veneno que está
saindo.
Pedro vai até a mulher, que já se vai caminhando em direção aos
campos. Fala e volta.
– Pôs-se a chorar mais forte –diz–. Pensava que a estava
consolando… –e olha para Jesus.
– De fato, ficou consolada. A alegria também faz chorar.
– Hum!! Mas… Eis, eu ficarei contente, quando vir o rosto dela. Eu o
verei?
– No dia do Juízo.
– Divina Misericórdia! Mas então estarei morto! E que me adiantará
ficar sabendo disso? Terei então que olhar o Eterno!
– Faz isto, desde este momento. É a única coisa útil.
– Sim… mas… Mestre, quem é ela?
Todos riem.
– Se me perguntares outra vez, vamos logo embora: assim te esquecerás
dela.
– Não, Mestre. Mas… basta que fiques Tu…
Jesus sorri.
– Aquela mulher –diz Ele–, é um resto e uma primícia.
– Que queres dizer? Eu não entendo.
Mas Jesus o deixa e põe-se a caminho do povoado.
– Vai à casa de Zacarias. Ele está com a mulher à morte –explica
André–. Ele me mandou vir dizer isto ao Mestre.
– Tu me causas raiva! Sabes tudo, fazes tudo e não me contas nada. És
pior do que um peixe –Pedro desabafa em seu irmão sua decepção.
– Irmão, não te preocupes. Fala tu por mim também. Vamos recuperar
nossas redes. Vem.
Um vai à direita e o outro à esquerda e tudo termina.
[56] delubro: santuário pagão [N.T.]
[57] Galeno, aqui e algumas linhas mais abaixo, se não é um nome escrito de forma inexata, é todavia o nome de um personagem
diverso do conhecido médico e filósofo vivido no segundo século depois de Cristo. Nomes de pessoas escritas erroneamente pela
escritora são assinaladas em: 14.4 – 78.1 – 134.1 – 234.1 – 331.5 – 342.1 – 417.1 – 443.1 – 532.1 – 538.8 – 552.2 – 554.6 – 576.4
(e em 236.12 um nome de cidade).
[58] passo que está em: 2 Reis 5,1-19.
130. Os discursos de Águas Belas: Não dirás
falso testemunho. O pequeno Asrael.
14 de março de 1945.
130.1 – Quanta gente! –exclama Mateus.
E Pedro responde:
– Não é possível! Também há galileus… Ai! Ai! Vamos dizê-lo ao
Mestre. São três honrados salteadores!
– Talvez tenham vindo por causa de mim. Até aqui me perseguem…
– Não, Mateus. Tubarão não devora peixinhos. Ele quer pegar o
homem. Presa nobre. E só mesmo quando não o encontra é que come algum
peixe grande. Mas eu, tu e os outros somos peixinhos… coisa pequena.
– Dizes que vieram por causa do Mestre? –pergunta Mateus.
– E por quem então? Não estás vendo como estão olhando para todos
os lados? Parecem feras que estão farejando os rastos da gazela.
– Eu vou dizer a Ele…
– Espera! Vamos dizê-lo aos filhos do Alfeu. Ele é bom demais.
Bondade desperdiçada, quando cair naquelas bocas.
– Tens razão.
Os dois vão até o rio e chamam Tiago e Judas:
– Vinde. Há por lá uns tipos… Bons para o suplício. Certamente vieram
para importunar o Mestre.
– Vamos. Ele onde está?
– Ainda na cozinha. Vamos depressa porque, se Ele perceber, não vai
querer.
– Sim. E isso fica mal.
– Eu também acho.
Voltam para a eira. O grupo, designado “Galileu”, está falando com
calma a outras pessoas. Judas de Alfeu se aproxima, como por acaso. E
ouve: “… palavras devem ser apoiadas pelos fatos.”
– E Ele os faz! Ainda ontem, curou um romano endemoninhado! –
rebate um robusto homem do povo.
– Que horror! Curar um pagão! Que escândalo! Estás ouvindo, Eli?
– Ele tem todas as culpas: amizades com publicanos e meretrizes,
negócios com pagãos e…
– E a tolerância com os maledicentes. Isto também é uma culpa. A meu
ver, a mais grave. Mas, visto que Ele não sabe e não quer defender-se, falai
comigo. Eu sou seu irmão e mais velho do que Ele, e este é outro irmão,
ainda mais velho. Falai.
– Mas, por quem nos estás tomando? Pensas que entre nós se fala mal
do Messias? Nunca! Nós viemos de muito longe, por causa da fama Dele.
Era o que estávamos dizendo a estes…
– Mentiroso! Dás–me tanto nojo que te viro as costas.
E Judas de Alfeu, sentindo que talvez estivesse em perigo a caridade
para com os inimigos, vai-se embora dali.
– Porventura não é verdade? Dizei-o, vós todos…
Mas os “todos”, ou seja, os outros com os quais estes galileus falavam,
calam-se. Não querem mentir e não ousam desmentir. Por isso, estão
calados.
– Nós não sabemos nem como Ele é… –diz o Galileu Eli.
– Não o insultaste em minha casa, não é verdade? –pergunta Mateus,
irônico–. Ou será que perdeste a memória por doença?
O “Galileu” se encapota e vai-se embora com os outros, sem responder.
– Covarde! –grita Pedro atrás dele.
130.2 – Estavam querendo contar-nos coisas horrorosas sobre Ele…,
explica um homem. “Mas nós vimos os fatos. E sabemos, ao contrário,
como são eles, os fariseus. Em quem acreditar, então? No Bom, que é bom
mesmo, ou nos maus, que se dizem bons, mas que depois são uma praga?
Eu sei que, desde que vim aqui, não me conheço mais, de tão mudado que
estou. Eu era um homem violento, duro para com a mulher e os filhos, não
tinha respeito para com os vizinhos e agora… Todos no povoado estão
dizendo: “Azarias não é mais aquele!” E então? Já se ouviu dizer que o
demônio faça alguém ficar bom? Para quem trabalha então? Para a nossa
santidade? Oh! Deveras é um bizarro satanás, se trabalha para o Senhor!
– Falaste bem, homem. E Deus te proteja, porque sabes bem
compreender, ver bem e agir bem. Continua assim e serás um verdadeiro
discípulo do bendito Messias. Uma alegria para Ele, que quer o vosso bem,
e que tudo suporta, contanto que vos faça chegar a Ele. Não vos
escandalizeis, a não ser com o verdadeiro mal. E quando vedes que é em
nome de Deus que Ele age, não vos escandalizeis, nem acrediteis naqueles
que vos quereriam persuadir de escândalo, ainda que o estejais vendo fazer
coisas novas. Este é o tempo novo. Ele veio como uma flor, nascida depois
de séculos em que a raiz trabalhou. Se não tivesse sido precedido por
aquela, não teríamos podido compreender a sua Palavra! Mas os séculos de
obediência à Lei do Sinai nos deram aquele mínimo de preparação para
podermos aspirar, do novo tempo — flor divina que a Bondade concedeu-
nos contemplar — todos os incensos e todos os sucos para purificar-nos,
fortalecer-nos, tornar-nos perfumados de santidade, como um altar. Sendo o
tempo novo, ele tem novos sistemas, não contrários à Lei, mas todos cheios
de Misericórdia e caridade, porque Ele é a Misericórdia e o Amor descido
do Céu.
Tiago de Alfeu faz um gesto de saudação e vai para casa.
130.3– Como tu falas bem! –diz Pedro admirado–. Eu nunca sei o que
dizer. Só digo: “Sede bons. Amai-o, escutai-o, crede nele.” Na verdade, não
sei como pode estar contente comigo!
– Contudo, o é tanto –responde Tiago de Alfeu.
– Estás falando sério ou o fazes por tua bondade?
– Realmente é assim. Ontem mesmo ele o disse a mim.
– Sim?! Então hoje fico mais contente do que no dia em que me foi
trazida a esposa. Mas tu… Onde aprendeste a falar tão bem?
– Sobre os joelhos da mãe dele e ao lado dela. Que lições! Que
palavras! Só Ele pode falar ainda melhor do que Ela. Mas o que falta a Ela
em poder, o tem em doçura… E as suas lições, como entram!! Já viste um
pano tocando com uma de suas pontinhas em um óleo perfumado?
Lentamente o pano absorve, não o óleo, mas o perfume e mesmo que o óleo
seja removido, o perfume fica sempre para dizer: “Eu estive nele.” Assim se
pode dizer Dela. Também em nós, panos grosseiros e lavados pela vida, Ela
penetrou com sua sabedoria e graça, e o seu perfume está em nós.
– Por que não a faz vir? Dizia que o iria fazer! Nós nos tornaríamos
melhores, menos teimosos… pelo menos eu. E essa gente também… Diante
Dela seriam melhores, até aquelas víboras que de vez em quando vêm…
– Tu achas? Eu não. Nós nos tornaríamos melhores e também os
humildes se tornariam. Mas os poderosos e os maus!! Oh! Simão de Jonas!
Não atribuas nunca aos outros os teus sentimentos honestos! Ficarias
decepcionado com isto… 130.4Eis Ele. Não lhe digamos nada…
Jesus sai da cozinha segurando pela mão um menininho, que vem, aos
pulinhos, ao lado Dele, mordendo uma casca de pão untada com azeite.
Jesus regula o seu longo passo, de acordo com as perninhas do seu amigo.
– Uma conquista! –diz alegre–. Disse-me este homem de quatro anos,
que se chama Asrael, que quer ser um discípulo e aprender tudo: a pregar, a
curar os meninos doentes, a fazer que a uva apareça nos sarmentos até no
mês de dezembro, e depois, quer subir sobre um monte e gritar para o
mundo todo: “Vinde, aqui está o Messias!” Não é assim, Asrael?
E o menino risonho diz que sim, que sim, e entrementes come.
– Tu só sabes comer –espicaça-o Tomé–. Não sabes nem dizer quem é o
Messias.
– É Jesus de Nazaré.
– E que quer dizer “Messias”?
– Quer dizer… quer dizer: o Homem que foi mandado para ser bom e
tornar-nos todos bons.
– E como faz para tornar-nos bons? Tu, que és um menino travesso,
como farás?
– Eu quererei bem a Ele. E farei tudo. E Ele fará tudo, porque eu lhe
quererei bem. Faz tu também assim e tornar-te-ás bom.
– E a lição foi dada, Tomé. Aí tens o preceito: “Procura querer-me bem
e farás tudo, porque Eu te amarei, se me quiseres bem, e o amor fará tudo
em ti.” O Espírito Santo falou. Vem, Asrael. Vamos pregar.
Fica tão alegre Jesus, quando tem consigo uma criança, que eu queria
levar-lhe todas as crianças e fazê-lo conhecer a todas as crianças. Há tantas
que ainda não o conhecem, nem de nome!
Passa diante da mulher velada e antes de alcançá-la, diz ao menino:
– Diz àquela mulher: “A paz esteja contigo.”
– Por quê?
– Porque tem dodói, como tu quando cais. E chora. Mas se tu lhe
falares assim, o choro dela vai passar.
– A paz esteja contigo, mulher. Não chores. Foi o Messias quem disse a
mim. Se lhe queres bem, Ele te quer bem e te cura –grita o menino,
enquanto Jesus o vai puxando consigo, sem deter-se. Existe mesmo em
Asrael a a estofa de missionário. Ainda que seja, por enquanto, um pouco…
intempestivo em suas pregações, dizendo mais do que lhe foi mandado
dizer.
130.5 – A paz esteja com todos vós.
“Não dirás falso testemunho”, foi dito.
Que existe de mais nauseante do que um mentiroso? Não se pode dizer
que ele concentra crueldade com impureza? Sim, pode. O mentiroso — falo
do mentiroso em coisas graves —, é cruel. Ele mata uma estima com sua
língua. Portanto, não é diferente do assassino. Aliás, digo: é mais do que um
assassino. Este mata somente um corpo. O mentiroso mata também o bom
nome, a lembrança de um homem. Por isso, é duas vezes assassino. É o
assassino impune, porque não derrama sangue, mas fere a honra, tanto do
caluniado, como de toda a sua família. E não me estou referindo nem ao
caso de alguém que, jurando falso, mande outro à morte. Sobre este já estão
acumulados os carvões da Geena. Mas estou falando só de alguém que, com
palavras mentirosas, insinua e persuade a outros em desfavor de um
inocente. Por que faz isso? Ou por um ódio sem razão, ou pela avidez de ter
o que o outro possui. Ou então, por medo.
Ódio. Tem ódio só quem é amigo de satanás. O bom não odeia. Nunca.
Por nenhuma razão. Mesmo desprezado, mesmo prejudicado, ele perdoa.
Não odeia nunca. O ódio é o testemunho que uma alma perdida dá de si
mesma, e o testemunho mais belo que é dado ao inocente. Porque o ódio é a
revolta do mal contra o bem. Não se perdoa a quem é bom.
Avidez. “Ele tem o que eu não tenho. Eu quero o que ele tem. Mas
somente com espalhar uma desestima contra ele, eu posso chegar ao lugar
dele. E eu vou fazer isso. Minto? Que importa? Roubo? Que importa?
Posso chegar a arruinar uma família inteira? Que importa?” Entre tantas
perguntas que o astuto mentiroso faz a si mesmo, ele se esquece, quer
esquecer-se, de uma pergunta. É esta: “E se eu fôsse desmascarado?” Esta
ele não faz a si mesmo, porque, dominado pelo orgulho e pela avidez, está
como se tivesse os olhos vendados. Não vê o perigo. É ainda como um
ébrio. Está embriagado pelo vinho satânico e não pensa que Deus é mais
forte do que satanás e se encarrega de fazer a vingança pelo caluniado. O
mentiroso entregou-se à Mentira e, estultamente, confia na sua proteção.
Medo. Muitas vezes alguém calunia para tirar a culpa de si mesmo. É a
forma mais comum de mentira. O mal já foi feito. Teme-se que ele seja
descoberto e reconhecido como obra nossa. Então, usando e abusando da
estima que ainda se tem junto aos outros, eis que se inverte o fato, e daquilo
que nós fizemos, atribuímos a culpa a um outro, do qual teme-se só a
honestidade. Também se faz isso, porque o outro, às vezes, pode ter sido,
sem querer, testemunha de alguma má ação nossa, e, então, queremos
colocar-nos a seguro contra algum testemunho dele. Acusam-no, para que
se torne malvisto onde, se ele falar, ninguém creia nele.
130.6Mas, procedei bem! Procedei bem! E desta mentira nunca tereis
necessidade. Não pensais, quando estais mentindo, que vos estais impondo
a vós mesmos um pesado jugo? Ele consiste em vossa sujeição ao demônio,
no medo contínuo de um desmentido e na necessidade de ficar sempre se
lembrando da mentira dita, com os fatos e os particulares com que foi dita,
mesmo depois de anos, sem cair em contradição. É um trabalho de galeote.
E se isso ainda servisse para o Céu! Mas só serve para preparar-vos um
lugar no inferno!
Sede sinceros. É tão bela a boca do homem que não conhece mentira! É
pobre, ou rústico, ou desconhecido? Ou melhor, ele é tudo isso? Sim. Mas
sempre é um rei. Porque é um sincero. E a sinceridade é dos reis, mais do
que o ouro e do que um diadema; e eleva o homem acima das multidões,
mais do que um trono o eleva; e forma uma corte de bons, mais do que tudo
o que pode ter um monarca. Segurança e tranquilidade é o que dá a
vizinhança com um homem sincero. Ao passo que é um incômodo a
amizade com um homem não sincero. Só a vizinhança dele já é um
incômodo. Será que aquele que mente não pensa que depois ele é sempre
considerado suspeito?– porque bem depressa a mentira se descobre de mil
modos. Como se poderá mais aceitar o que ele diz? Mesmo quando diz a
verdade, os que ouvem querem crer, mas, no fundo ficam sempre com uma
dúvida: “Não estará mentindo agora também?”
Vós direis: “Mas onde está o testemunho falso?” Toda mentira é um
falso testemunho. Não somente a mentira diante da lei.
Sede simples como simples é Deus e o menino. Sede verídicos em
todos os momentos de vossa vida. Quereis ter boa reputação? Sede bons de
verdade. Ainda que um maledicente quisesse falar mal de vós, cem bons
diriam: “Não. Não é verdade. Ele é bom. Suas obras falam por ele.”
Em um livro sapiencial está escrito[59]: “O homem apóstata procede
com perversidade em seus lábios… em seu coração perverso prepara o mal
e em todo tempo vive semeando discórdias… Seis coisas o Senhor abomina
e a sétima é por Ele execrada: os olhos soberbos, a língua mentirosa, as
mãos que derramam sangue inocente, o coração que medita desígnios
iníquos, os pés que correm apressados para o mal, a falsa testemunha que
profere mentiras, e aquele que semeia discórdias entre os irmãos… Pelos
pecados da língua, a ruína se aproxima do homem mau… Quem mente é
uma testemunha fraudulenta. Os lábios verídicos não mudam nunca, mas é
testemunho de um momento quem trama linguagem de fraude. As palavras
do murmurador parecem simples, mas elas penetram até às entranhas. O
inimigo é reconhecido por sua fala, quando prepara a traição. Quando fala
com voz baixa, não confies nele, porque no coração ele traz sete malícias.
Com dissimulação ele esconde o seu ódio, mas a sua malícia será
revelada… Quem cava um buraco, cairá nele e a pedra cairá em cima de
quem a vai rolando.”
Velho como o mundo é o pecado da mentira e sem mudança é o
pensamento do sábio a seu respeito, como sem mudança é o juízo de Deus
sobre quem é mentiroso.
Eu digo: “Tende sempre a mesma linguagem. O sim seja sempre sim, e
o não seja sempre não, mesmo diante dos poderosos e dos tiranos. E grande
mérito tereis por isso no Céu.”
Eu vos digo: “Tende a espontaneidade da criança que, por instinto, vai
atrás de quem é bom, sem procurar outra coisa, que não seja a bondade. Ela
diz o que a sua própria bondade a faz pensar, sem calcular se está falando
demais, podendo ser por isso repreendida.”
Ide em paz. Que a Verdade se torne vossa amiga.
130.7 O pequeno Asrael, que esteve o tempo todo sentado aos pés de
Jesus, com a cabecinha levantada, como um passarinho que escuta o canto
de seu pai, tem um movimento cheio de doçura: esfrega o rostinho contra os
joelhos de Jesus e diz:
– Eu e Tu somos amigos, porque Tu és bom e eu te quero bem. Agora,
eu também vou dizê-lo.
E fazendo força com sua vozinha, para fazer-se ouvir por todo o vasto
quarto, ele diz, gesticulando como viu Jesus fazer:
– Todos vós, escutai. Eu sei para onde vão as pessoas que não dizem
mentiras e querem bem a Jesus de Nazaré. Vão subindo pela escada de
Jacó. Acima, acima, acima… junto com os anjos e vão parar quando
encontram o Senhor –e ri feliz, mostrando todos os dentinhos.
Jesus o acaricia e desce para o meio do povo. Leva de novo o
pequenino para a mãe:
– Obrigado mulher, por me teres dado o teu menino.
– Ele ficou te aborrecendo….
– Não. Deu-me amor. É um pequeno do Senhor, e o Senhor esteja
sempre com ele e contigo. Adeus.
Tudo termina.
[59] está escrito, por exemplo em: Provérbios 6,12-19; 12,13-28.
131. Os discursos de Águas Belas:
Não roubar e não desejar as coisas alheias.
O pecado de Herodes.
15 de março de 1945.
131.1 – Deus dá a cada um o necessário. Isto é a verdade. Que é
necessário ao homem? O luxo? Um grande número de servos? As terras
cujos campos não se podem contar? Os banquetes, que começam com o
pôr-do-sol e terminam com o romper da aurora? Não. Necessário para um
homem é um teto, um pão, uma veste. O indispensável para viver.
Olhai ao redor de vós. Quem são os mais alegres e os mais sãos? Quem
é que goza de uma velhice sadia e serena? Os gozadores? Não. Aqueles que
honestamente vivem, trabalham e desejam. Esses não têm o veneno da
luxúria e permanecem fortes. Não têm o veneno das crápulas e permanecem
ágeis. Não têm o veneno das invejas e permanecem alegres. Enquanto que
aquele que deseja ter sempre mais, mata sua paz e não goza, mas envelhece
precocemente, queimado pela inveja ou pelo abuso.
Poderia unir o mandamento do “não roubar” àquele do “não desejar o
que é dos outros.” Porque, de fato, o desejo excessivo impele ao furto. Não
há mais do que um rápido passo deste para aquele. É ilícito todo desejo?
Não digo isto. O pai de família que, trabalhando no campo ou na oficina,
deseja tirar daí o pão para os seus filhos, na verdade não peca. Ao contrário,
está cumprindo o seu dever de pai. Mas aquele que, em vez disso, não
deseja outra coisa senão gozar mais, e se apropria do que é dos outros, para
conseguir gozar mais, esse peca.
131.2A inveja! Porque, o que é o desejo das coisas alheias, senão avareza
e inveja? A inveja separa de Deus, meus filhos, e une a satanás.
Não pensais que o primeiro que desejou o que era dos outros foi
Lúcifer? Era o mais belo dos arcanjos e gozava de Deus. Deveria ter ficado
contente com isso. Invejou a Deus, quis ser Deus e tornou-se o demônio. O
primeiro demônio.
Segundo exemplo: Adão e Eva tudo tiveram, gozavam do paraíso
terrestre, gozavam da amizade de Deus, felizes com os dons da graça, que
Deus lhes havia dado. Deveriam se contentar com isso. Invejaram a Deus
em seu conhecimento do bem e do mal e foram expulsos do Éden,
tornando-se os proscritos malvistos a Deus. Foram os primeiros pecadores.
Terceiro exemplo: Caim invejou Abel[60] por sua amizade com o
Senhor. E tornou-se o primeiro assassino.
Maria, irmã de Arão e Moisés, invejou o irmão e tornou-se a primeira
leprosa da história de Israel.
Poderia, passo a passo, conduzir-vos, por toda a vida do povo de Deus,
e veríeis que o desejo imoderado fez, de quem o teve, um pecador, e da
nação um castigo. Porque os pecados dos particulares se acumulam e
provocam os castigos das nações, assim como grãozinhos e mais grãozinhos
de areia, acumulados em séculos e séculos, provocam um desmoronamento,
que submerge as cidades com os seus moradores.
131.3 Muitas vezes vos tenho citado como exemplo os pequenos, porque
são simples e confiantes. Hoje Eu vos digo: imitai os pássaros, em sua
liberdade, quanto aos desejos.
Olhai. Agora é inverno. Há pouco alimento nos pomares. Mas eles se
preocupam em acumulá-lo no verão? Não. Eles confiam no Senhor. Sabem
que um vermezinho, um pequeno grão, uma migalha, uma aranhazinha,
uma pequena mosca em cima d’água, sempre conseguirão pegar para o seu
papinho. Sabem que uma chaminé quente, ou um floco de lã sempre haverá
para se refugiarem ali no inverno, como sabem que, quando chegar o tempo
que vão precisar de feno para os seus ninhos, e mais alimento por causa dos
filhotes, haverá feno bastante nos prados e suculento alimento nos pomares
e nos sulcos, e de muitos insetos estarão cheios o ar e a terra. E cantam
baixinho: “Obrigado, ó Criador, por tudo o que nos dais e nos darás”,
prontos a louvar a Deus com suas gargantas, quando, na época dos amores,
desfrutarão da esposa e se verão multiplicados na prole.
Haverá criatura mais alegre que o pássaro? Contudo, o que é a sua
inteligência, comparada à inteligência humana? Uma lasquinha de sílex em
relação a uma montanha. Mas vos ensina. Em verdade Eu vos digo que
possui a alegria do pássaro aquele que vive sem desejos impuros. Ele confia
em Deus e sente que Deus é Pai. Ele sorri ao dia que surge e à noite que
desce, porque sabe que o sol é seu amigo e que a noite é sua nutriz. Ele olha
sem rancor para os homens e não teme as suas vinganças, porque não os
prejudica de nenhum modo. Ele não receia pela sua saúde, nem pelo seu
sono, porque sabe que uma vida honesta mantém longe as doenças e dá um
doce descanso. Finalmente, ele não teme a morte, porque sabe que, tendo
agido bem, só pode receber o sorriso de Deus.
O rei também morre. O rico também morre. Não é o cetro que afasta a
morte, nem o dinheiro do rico que compra a imortalidade. Como diante do
Rei dos reis e do Senhor dos senhores, são uma coisa risível as coroas e as
moedas, mas só tem valor uma vida vivida na Lei!
131.4 Que é que estão dizendo aqueles homens, lá no fundo? Não tenhais
medo de falar.
– Estávamos dizendo: o Antipas de que pecado é culpado? De furto ou
de adultério?
– Não gostaria que ficásseis olhando para os outros, mas para os vossos
corações. Mas Eu vos respondo que ele é culpado de idolatria, adorando
mais a carne do que a Deus; de adultério, de furto, de desejo ilícito e, dentro
em breve, de homicídio.
– Será salvo por Ti, que és o Salvador?
– Eu salvarei aqueles que se arrependem e voltam para Deus. Os
impenitentes não terão redenção.
– Disseste que é ladrão. Mas o que ele roubou?
– A mulher do irmão. O furto não é só de dinheiro. É furto também tirar
a honra a um homem, tirar a virgindade a uma moça, tirar a um marido a
sua mulher, como também é levar um boi do vizinho, ou apanhar frutos de
suas plantas. O furto, pois, agravado pela libidinagem ou pelo falso
testemunho torna-se mais grave pelo adultério ou pela fornicação e pela
mentira.
131.5 – E uma mulher que se prostitui, que pecado faz?
– Se é casada, é de adultério e furto contra o seu marido. Se é solteira, é
de impureza e furto contra si mesma.
– Contra si mesma? Mas ela dá o que é dela!
– Não. O nosso corpo é criado por Deus para ser templo da alma, que é
o templo de Deus. Por isso, deve ser conservado honesto, porque senão, a
alma fica despojada da amizade de Deus e da vida eterna.
– Então uma meretriz só pode ser de satanás?
– Todo pecado é um meretrício com satanás. O pecador, assim como
uma fêmea que é paga, se dá a satanás para os amores ilícitos, esperando
receber dele lucros sujos. Grande, bem grande é o pecado de prostituição,
que torna os que o cometem semelhantes aos animais imundos. Mas ficai
sabendo que qualquer outro pecado capital não é menos do que isso. Que
direi da idolatria? Que direi do homicídio? Contudo, Deus perdoou aos
israelitas[61] depois do bezerro de ouro. Perdoou a Davi, depois do seu
pecado, e que era duplo. Deus perdoa a quem se arrepende. Seja o
arrependimento na proporção do número e da gravidade das culpas, e Eu
vos digo que a quem mais se arrepende, mais será perdoado. Porque o
arrependimento é uma forma de amor. De um amor operante. Quem se
arrepende, diz a Deus com o seu arrependimento: “Não posso viver com a
tua ira, porque eu te amo e quero ser amado.” E Deus ama a quem o ama.
Por isso digo: quanto mais alguém ama, mais é amado. Quem ama
totalmente, tem tudo perdoado. E esta é a verdade.
131.6 Ide. Mas antes ficai sabendo que está às portas da cidade uma
viúva, carregada de filhos e passando uma grande fome. Ela foi despejada
da casa, por causa de dívidas. E ainda pode dizer: “obrigada” ao patrão, por
tê-la apenas despejado. Eu usei o vosso óbolo para comprar pão para eles.
Mas precisam de um abrigo. A Misericórdia é o sacrifício mais agradável
ao Senhor. Sede bons e em seu nome, vos garanto a recompensa.
O povo cochicha, se aconselha, discute entre si.
Enquanto isso, Jesus está curando um quase cego e ouvindo uma
velhinha, que veio de Doco para pedir-lhe que vá à casa de sua nora, que
está doente. É uma longa história de lágrimas que eu, meio morta como
estou hoje, não posso transcrever.
E por sorte tudo termina porque eu não estou mais em condições,
mesmo, com esta crise cardíaca, que dura já três horas e que me perturba
até a vista.
[60] Caim... Abel são mencionados frequentemente com referência a: Gênesis 4. A história deles é tratada particularmente no
capítulo 606 da presente obra. Para os outros exemplos (Lúcifer, Adão e Eva, Maria de Aarão) há anotações assinaladas no índice
temático no fim do volume
[61] perdoou aos israelitas, como se diz em: Êxodo 32,14; a Davi, como se diz em: 2 Samuel 12,13.
132. Discurso conclusivo em Águas Belas,
antes da festa da Purificação.
17 de março de 1945.
132.1 – Meus filhos no Senhor, a festa da Purificação é iminente e a ela
Eu, Luz do mundo, vos mando preparados com o mínimo necessário para
bem realizá-la. A primeira lâmpada da festa, da qual emitireis a chama a
todas as outras. Porque bem tolo seria aquele que pretendesse acender
muitas luzes, não tendo como acender nem a primeira. E ainda mais tolo
seria aquele que pretendesse começar a sua santificação pelas coisas mais
difíceis, descuidando-se daquilo que é base do edifício imutável da
perfeição: o Decálogo.
[62] nos Macabeus que Judas e os seus, tendo retomado o
132.2 Lê-se
Templo e a Cidade, com a proteção de Deus, destruíram os altares erguidos
aos deuses estrangeiros — e também os pequenos templos — e purificaram
o Templo. Depois ergueram um outro altar e com pederneiras acenderam o
fogo, ofereceram os sacrifícios, queimaram incenso, colocaram as lâmpadas
e os pães da proposição e depois, prostrados todos por terra, suplicaram ao
Senhor que não permitisse mais que eles pecassem, ou que, se por fraqueza,
voltassem a pecar de novo, que os tratasse com divina Misericórdia. Isto
aconteceu no dia vinte e cinco do mês de Casleu.
Consideremos e apliquemos a história a nós mesmos, porque cada
palavra da história de Israel, sendo do povo eleito, tem um significado
espiritual. A vida é sempre um ensinamento. A vida de Israel é ensinamento
não só para os dias terrenos, mas para a conquista dos dias eternos.
“Destruíram os altares e os pequenos templos pagãos.”
Eis a primeira operação. Aquela que Eu vos mandei fazer, ao dar-vos os
nomes dos deuses individuais, que substituem ao Deus verdadeiro: as
idolatrias da sensualidade, do ouro, do orgulho, os vícios capitais que levam
à profanação e morte da alma e do corpo e ao castigo de Deus.
Eu não vos esmaguei sob as inumeráveis fórmulas que agora oprimem
os fiéis, e servem de baluarte à verdadeira Lei, oprimida, escondida por
cúmulo de proibições, todas exteriores, que com sua opressão, conduzem os
fiéis a perder de vista a voz reta, clara e santa do Senhor, que diz: “Não
blasfemar. Não idolatrar. Não profanar as festas. Não desonrar os pais. Não
matar. Não fornicar. Não roubar. Não mentir. Não invejar as coisas dos
outros. Não desejar a mulher do próximo.” São dez “não.” E nem um a
mais. São as dez colunas do templo da alma. Por cima brilha o ouro do
preceito mais santo de todos: “Ama a teu Deus. Ama o teu próximo.” É o
coroamento do templo. É a proteção dos fundamentos. É a glória do
construtor. Sem amor ninguém poderia obedecer às dez regras e cairiam as
colunas, todas ou alguma, e o templo se arruinaria, total ou parcialmente.
Mas, de qualquer modo, ficaria arruinado e não mais apto para acolher o
Santíssimo.
Fazei o que Eu vos disse, abatendo as três concupiscências. Dai um
nome claro ao vosso vício, assim como claro é Deus ao dizer-vos: “Não
façais isto nem aquilo.” É inútil buscar sutilezas nas formas. Quem nutrir
algum amor mais forte do que o amor que dá a Deus, seja qual for esse
amor, é um idólatra. Quem fala o nome de Deus, professando-se servo Dele
e depois lhe desobedece, é um rebelde. Quem por avidez trabalha aos
sábados é um profanador, um desconfiado, um presunçoso. Quem nega um
socorro aos pais, aduzindo pretextos, ainda que diga que são serviços
prestados a Deus, é alguém que está sendo abominado por Deus, pois Este
colocou os pais e as mães como seus representantes nesta terra. Quem mata,
sempre é assassino. Quem comete fornicação é sempre um luxurioso. Quem
rouba é sempre ladrão. Quem mente é sempre abjeto. Quem quer o que não
é seu, é sempre um guloso, com a mais execrável das fomes. Quem profana
um tálamo é sempre um imundo.
Assim é. E Eu vos lembro[63] que, depois que ergueram o bezerro de
ouro, veio a ira do Senhor; depois a idolatria de Salomão, o cisma que
dividiu e enfraqueceu Israel; depois que o helenismo foi aceito, e aliás bem
acolhido e introduzido pelos judeus indignos, no tempo de Antíoco
Epifânio, vieram as nossas atuais desventuras espirituais, econômicas e de
nacionalidade. Eu vos lembro Nadab e Abiud, falsos servos de Deus, que
foram feridos por Javé. Eu vos lembro que não era santo o maná colhido ao
sábado. Eu vos lembro Cam e Absalão. Eu vos lembro o pecado de Davi
contra Urias e o de Absalão contra Amnon. Eu vos lembro o fim de Absalão
e o de Amnon. Eu vos lembro a sorte do ladrão Heliodoro e Simão e
Menelau. Eu vos lembro o fim ignóbil dos dois falsos reitores que deram
testemunho mentiroso contra Susana. E Eu poderia continuar sem encontrar
fim aos exemplos. 132.3Mas voltemos aos Macabeus.
“E purificaram o Templo.”
Não basta dizer: “Destruo.” É preciso dizer: “Purifico.” Eu vos disse
como se purifica o homem: com um arrependimento humilde e sincero. Não
há pecado que Deus não perdoe, se o pecador estiver realmente
arrependido. Tende fé na Bondade divina. Se vós pudésseis chegar a
compreender o que é esta Bondade, ainda que estivessem sobre vós todos os
pecados do mundo, não fugiríeis de Deus, ao contrário, iríeis prostrar-vos a
seus pés, porque só o que é sumamente Bom pode perdoar o que o homem
não perdoa.
“E ergueram um outro altar.”
Oh! Não tenteis enganar o Senhor. Não sejais falsos em vosso modo de
agir. Não mistureis Deus e Mamon. Teríeis um altar vazio: o de Deus.
Porque é inútil erguer um altar novo, se ainda permanecem os restos do
outro: Ou Deus, ou o ídolo. Escolhei.
“E acenderam o fogo com a pedra e a isca.”
Pedra é a vontade firme de ser de Deus. Isca é o desejo de anular do
coração de Deus, com todo o resto da vida, até a lembrança do vosso
pecado. Eis então que se suscita o fogo: o amor. Porque o filho que procura
reconfortar o pai ofendido, com uma vida toda honrada, o que é que tem de
fazer, a não ser amar ao pai, querendo vê-lo alegre com seu filho, que
causou suas lágrimas, e que agora lhe causa alegrias?
Agora, chegados a este ponto, podeis oferecer sacrifícios, queimar os
incensos, colocar as lâmpadas e os pães. Não serão malvistos por Deus os
vossos sacrifícios, e agradáveis lhe serão vossas orações, verdadeiramente
iluminado estará o altar, rico do alimento da vossa oferta diária. Podereis
rezar, dizendo: “Sê para nós protetor”, porque Ele será vosso amigo.
Mas a sua Misericórdia não ficou esperando que vós pedísseis piedade.
Ela antecipou-se ao vosso desejo. E vos mandou a Misericórdia para dizer-
vos: “Esperai. Eu vo-lo digo: Deus vos perdoa. Vinde ao Senhor.” Um altar
já está entre vós: o novo altar. Dele brotam rios de luz e de perdão. Como
um óleo eles se espalham, medicam, fortalecem. Crede na Palavra que dele
vem. Chorai Comigo sobre os vossos pecados. Como o levita que dirige o
coro, Eu dirijo as vossas vozes a Deus, e não será repelido o vosso gemido,
se estiver unido à minha voz. Convosco me aniquilo, Irmão dos homens
pela carne, Filho do Pai pelo espírito, e digo[64] por vós e convosco: “Deste
profundo abismo onde Eu-Humanidade caí, grito a Ti, Senhor. Escuta a voz
de quem olha para si e suspira, e não feches os teus ouvidos às minhas
palavras. Ver-me é um horror, ó Deus. Eu sou um horror também aos meus
olhos! E que é que serei aos teus olhos? Não olhes para as minhas culpas, ó
Senhor, porque senão eu não poderei resistir diante de Ti, mas usa para
comigo de tua Misericórdia. Tu o disseste: ‘Eu sou Misericórdia’. E eu
creio em tua palavra. Minha alma, ferida e abatida, confia em Ti e em tua
promessa, e da aurora à noite, da juventude à velhice eu esperarei em Ti.”
132.4 Culpado de homicídio e de adultério, reprovado por Deus, Davi
obtém perdão, depois de ter gritado ao Senhor: “Tem piedade, não por
consideração a mim, mas para honra de tua Misericórdia, que é infinita. E
por ela cancela o meu pecado. Não existe água que possa lavar o meu
coração, se não for apanhada nas águas profundas da tua santa bondade.
Lava-me com ela da minha iniquidade e purifica-me da minha sujeira. Não
nego que pequei. Ao contrário, eu confesso o meu delito e, como um
testemunho de acusação, minha culpa está sempre diante de mim. Ofendi o
homem no próximo e em mim mesmo, mas eu me arrependo,
particularmente, por haver pecado contra Ti. E que isto te diga que
reconheço que Tu és justo em tuas palavras e temo o teu juízo, que triunfa
sobre todos os poderes humanos. Mas considera, ó Eterno, que na culpa eu
nasci, e que era uma pecadora a que me concebeu e que, no entanto, Tu
tanto me amaste, que chegaste a revelar-me a tua sabedoria e a dá-la a mim,
por mestra para compreender os mistérios das tuas sublimes verdades. E se
tanto fizeste, deverei temer a Ti? Não. Não temo. Asperge-me com o
amargor da dor e ficarei purificado. Lava-me com o pranto e tornar-me-ei
como a neve dos Alpes. Faz- me ouvir a tua voz e o teu servo humilhado
exultará, porque a tua voz é alegria e regozijo, mesmo quando censura.
Volta o teu rosto para os meus pecados. Teu olhar cancelará as minhas
iniquidades. O coração que me deste foi-me profanado por satanás e pela
minha fraca humanidade. Cria-me um coração novo, que seja puro, destrói
o que é corrupção nas entranhas do teu servo, para que reine nele só um
espírito reto. Mas não me expulses da tua presença e não me negues a tua
amizade, porque só a salvação que de Ti vem, é que é alegria para a minha
alma, e o teu espírito soberano é um conforto para o humilhado. Faz que eu
me transforme naquele que vá entre os homens, dizendo: ‘Vede quanto é
bom o Senhor. Andai pelos seus caminhos e sereis abençoados como eu
sou, eu, um aborto de homem e que agora me torno filho de Deus, pela
graça que renasce em mim’. E a Ti se converterão os ímpios. O sangue e a
carne fervem e gritam em mim. Livra-me deles, ó Senhor, salvação da
minha alma, e eu cantarei os teus louvores. Eu não sabia. Mas agora
compreendo. Não é um sacrifício de carneiros o que Tu queres, mas o
holocausto de um coração contrito. Um coração contrito e humilhado te é
mais agradável do que carneiros, porque Tu para Ti nos criaste, e queres
que disto nos lembremos e demos a Ti o que é teu. Sê benigno para comigo,
pela tua grande bondade e reedifica a minha e tua Jerusalém: aquela de um
espírito purificado e perdoado, sobre o qual possa ser oferecido o sacrifício,
a oblação e o holocausto pelo pecado, para ação de graças e para o louvor. E
que cada meu novo dia seja uma hóstia de santidade consumada sobre o teu
altar, para subir com o odor do meu amor até Ti.”
132.5 Vinde! Vamos ao Senhor. Eu adiante, vós atrás. Vamos às águas da
salvação, vamos às santas pastagens, vamos às terras de Deus. Esquecei-vos
do passado. Sorride para o futuro. Não penseis na lama, mas olhai para as
estrelas. Não digais: “Eu sou escuridão”; dizei: “Deus é Luz.” Eu vim para
anunciar-vos a paz, para dizer aos mansos a Boa Nova, para curar os que
têm o coração quebrantado por tantas coisas, para pregar a liberdade a
todos os escravos, primeiros entre todos, os de Mamon, para libertar os
prisioneiros de suas concupiscências.
Eu vos digo: o ano da graça chegou. Não choreis, vós tristes, com a
tristeza de quem se sente pecador, não derrameis lágrimas, como exilados
do Reino de Deus. Eu substituo as cinzas pelo ouro, as lágrimas pelo óleo.
Eu vos visto para a festa, a fim de apresentar-vos ao Senhor e dizer: “Eis as
ovelhazinhas que Tu me mandaste procurar. Eu as visitei e reuni, as contei,
procurei as dispersas, e trouxe-as a Ti, afastando-as das nuvens e da
escuridão. Eu as apanhei por entre todos os povos e as reuni de todas as
regiões, para conduzi-las à Terra, não mais a terra que para elas Tu
preparaste, ó Pai santo, para levá-las aos cumes paradisíacos dos teus
montes férteis, onde tudo é luz e beleza, ao longo dos rios das beatitudes
celestes, onde se saciam de Ti os espíritos por Ti amados. Fui à procura
também das feridas, curei as machucadas, restaurei as fracas, não me
descuidei de uma só delas. E a mais dilacerada pelos ávidos lobos da
sensualidade, Eu a coloquei sobre os meus ombros, como um jugo de amor,
e a pouso aos teus pés, Pai benigno e santo, porque ela não pode mais
caminhar, não sabe as tuas palavras, é uma pobre alma perseguida pelos
remorsos e pelos homens, é um espírito que lamenta e treme, é como uma
onda empurrada e rechaçada pelo vagalhão da praia. Vem com o desejo,
mas sente-se repelida pelo conhecimento de si… Abre-lhe o teu seio, ó Pai,
que és todo amor, para que nele encontre paz esta criatura extraviada. Diz-
lhe: ‘Vem’. Diz-lhe: ‘És minha’. Ela foi de todo mundo, mas agora tem
náusea e medo. Ela diz: ‘Cada patrão é um valentão sujo’. Faz que ela possa
dizer: ‘Este meu Rei deu-me a alegria de ser conquistada!’ Não sabe o que
é o amor. Mas se Tu a acolhes, saberá o que é este amor celeste, que é o
amor nupcial entre Deus e o espírito humano e, como um pássaro livre da
gaiola dos malvados, subirá, subirá sempre mais para o alto, até chegar a Ti,
ao Céu, à alegria, à glória, cantando: ‘Encontrei Aquele que procurava. Não
tem outro desejo o meu coração. Em Ti me pouso e jubilo, Senhor eterno,
pelos séculos dos séculos, feliz!’”
Ide. Com um espírito novo, celebrai a festa da Purificação. E que a luz
de Deus se acenda em vós.
Jesus tornou-se arrebatador no encerramento do seu discurso. Um rosto
luminoso com olhos resplandecentes, um sorriso e uns tons de uma doçura
ainda não conhecida.
O povo parece estar fascinado e não se move dali, enquanto Ele não
repete:
– Ide. A paz esteja convosco.
Então começa a partida dos peregrinos, que vão conversando baixo
entre si.
132.6 A mulher velada se vai, rápida como sempre, com seus passos ágeis
e levemente ondulantes. Ela parece ter asas, por causa do vento que lhe
estufa o manto nas costas.
– Agora vou ficar sabendo se ela é de Israel –diz Pedro.
– Por quê?
– Porque, se está aqui, é sinal de que…
– … é uma pobre mulher sem casa própria. Nada mais, lembra-te disso,
Pedro.
Jesus toma o caminho que vai para a cidade.
– Sim, Mestre. Eu me lembrarei… E nós, que faremos, agora que todos
estarão em suas casas para a festa?
– Nossas mulheres acenderão as lâmpadas para nós.
– Isto me desagrada… É o primeiro ano que não as vejo acender em
minha casa, ou que eu não as acendo…
– Tu és um velho menino! Nós também acenderemos as lâmpadas.
Assim não farás mais essa cara amuada. E tu mesmo é quem as acenderá.
– Eu? Eu não, Senhor. Tu és o Chefe da nossa família. Compete a Ti.
– Eu sou sempre uma lâmpada acesa… e gostaria que vós também o
fôsseis. Eu sou a Encênia sempiterna, Pedro. 132.7Sabes tu que Eu nasci
exatamente a vinte e cinco de Casleu?
– Quem sabe quantas lâmpadas, heim? –pergunta Pedro, admirado.
– Nem se podiam contar… Eram todas as estrelas do céu…
– Não! Não te fizeram festa em Nazaré?
– Eu não nasci em Nazaré. Mas no meio de uns escombros em Belém.
Vejo que João soube ficar calado. É muito obediente João.
– E não é curioso. Mas eu… eu sou tanto! Queres contar-me? Conta ao
teu pobre Simão. Senão, como faço para falar de Ti? Algumas vezes o povo
pergunta e eu nunca sei o que dizer… Os outros sabem se sair, quero dizer,
os teus irmãos e Simão, Bartolomeu e Judas de Simão. E… sim, até Tomé
sabe falar… parece um leiloeiro da feira… e que está vendendo uma
mercadoria. Mas consegue falar… Mateus… ah! ele vai bem! Usa a antiga
sabedoria, com que depenava os fregueses em sua banca de impostos, para
forçar os outros a dizerem: “Tens razão.” Mas eu!! Pobre Simão de Jonas!
Que é que os peixes te ensinaram? Que é que o lago te ensinou? Duas
coisas… Mas para nada servem: os peixes a te calares e a seres constante.
Eles, constantes em escapar da rede, eu constante em colocá-los nela. E o
lago a teres coragem e olhos atentos a tudo. E o barco? A esfalfar-me, sem
poupar nenhum músculo, e a ficar em pé, mesmo quando as ondas estão
agitadas e se corre o risco de cair. Olhos na estrela polar, mão firme no
leme, força, coragem, constância, atenção, eis o que me ensinou a minha
pobre vida…
Jesus lhe pousa a mão sobre o ombro e o sacode, olhando-o com afeto e
admiração, verdadeira admiração, por tanta simplicidade, e diz:
– E parece-te pouco, Simão Pedro? Tens tudo o que é preciso, para
seres a minha “pedra.” Nada há a pôr, nada a tirar. Serás o eterno
marinheiro, Simão. E a quem vier depois de ti, tu dirás: “Olhos na estrela
polar: Jesus. Mão firme no leme, força, coragem, constância, atenção,
afadigar-se sem poupar-se, ter os olhos atentos a tudo, e saber estar em pé,
mesmo sobre ondas agitadas…” E, quanto ao silêncio… nada disso… os
peixes não te ensinaram nada!
– Mas para aquilo que deveria saber dizer, sou mais mudo do que um
peixe. As outras palavras?? Até as galinhas sabem tagarelar, como eu
faço… 132.8Mas, diz a mim, meu Mestre. Vais dar um filho também a mim?
Nós estamos velhos… Mas Tu disseste que o Batista nasceu de uma
velha… Agora Tu disseste: “E a quem vier depois de ti, tu dirás…” Quem é
que vem depois de um homem, senão quem foi gerado por ele?
Pedro está com um semblante de quem pede e tem esperança.
– Não, Pedro. E não fiques sentido por isso. Estás mesmo te parecendo
com o teu lago, quando o sol está escondido por uma nuvem. De sorridente,
tornou-se escuro. Não, meu Pedro. Mas não um e sim, mil, dez mil filhos
terás, e em todas as nações… Não te lembras de que Eu te disse: “Serás
pescador de homens”?
– Oh! Sim… mas… Teria sido tão doce ouvir um menino que me
chamasse de “pai”!
– Terás tantos que nem os poderás contar. E a eles darás a vida eterna. E
os reencontrarás no Céu, e os levarás a Mim, dizendo: “São os filhos do teu
Pedro, e quero que estejam onde eu estou”, e Eu te direi: “Sim, Pedro, seja
como tu queres. Porque tudo fizeste por Mim e Eu tudo faço por ti.”
Jesus é muito doce ao dizer estas promessas.
Pedro engole a saliva entre o pranto, por causa de sua esperança que
morreu de ter uma paternidade terrena e o outro pranto de um êxtase que se
anuncia:
– Oh! Senhor! –diz–. Mas para dar a vida eterna é necessário persuadir
as almas para o bem. E… voltamos sempre ao mesmo ponto: eu não sei
falar.
– Saberás falar, quando chegar a hora, melhor do que Gamaliel.
– Quero crer… Mas, faz Tu este milagre, porque, se eu tiver que chegar
a isso por mim…
Jesus ri, com o seu riso tranquilo e diz:
– Hoje sou todo teu. Vamos para o povoado. Vamos à casa daquela
viúva. Tenho um óbolo secreto. É um anel para vender. Sabes como o
consegui? Uma pedra veio bater em meus pés, enquanto estava rezando
debaixo deste salgueiro. Na pedra estava amarrado um embrulhinho com
uma pequena tira de pergaminho. Dentro do pacotinho estava o anel. E no
papel estava escrita a palavra ‘caridade’.
– Deixas-me ver? Oh! Que bonito! É de mulher. E que dedo pequeno!
Mas quanto metal!!
– Agora tu o venderás. Eu não sei fazer isso. O hospedeiro compra
ouro. Estou sabendo. Eu te espero junto ao forno. Vai, Pedro.
– Mas… e se não souber fazer? Eu, lidar com ouro… De ouro eu não
entendo!
– Faz de conta que é pão para quem está com fome. E faz o negócio do
melhor modo que puderes. Adeus.
E Pedro vai para a direita, enquanto Jesus, mais lentamente, vai para a
esquerda, em direção ao povoado, que já está aparecendo a uma certa
distância, por detrás de um pequeno bosque, que está além da casa do feitor.
[62] Lê-se, em: 1 Macabeus 4,36-61.
[63] Eu vos lembro ... de: Êxodo 32,10 (ira); 1 Reis 12,19-20.28-33 (cisma); 1 Macabeus 1; 2 Macabeus 4-7 (helenismo e
desventura); Levítico 10,1-2; Números 3,4; 26,61; 1 Samuel 25,3.38 (falsos servos açoitados); Êxodos 16,27-30 (maná); 2 Samuel
11; 13 (pecado); 2 Samuel 18,9-18; 2 Macabeus 3,24-34; 4,1-6; 13,7-8; Daniel 13,61-62 (sorte e ignóbil fim).
[64] digo, parafraseando o Salmo 51 de David, como MV anota numa cópia datilografada onde escreve também, mais abaixo, o
reenvio a: Isaías 61,1-3; Ezequiel 34,11-16.
133. André o modelo ideal de sacerdote. Uma
carta
da mãe de Jesus que é obrigado a deixar Águas
Belas.
18 de março de 1945.
133.1Em Águas Belas não há mais peregrinos. E parece estranho vê-la
assim, sem os estacionamentos provisórios dos que aí paravam por uma
noite, ou pelo menos para comerem a sua refeição na eira ou sob o telheiro.
Hoje não há senão uma limpeza e ordem, sem nenhum daqueles sinais que
uma grande aglomeração de gente costuma deixar atrás de si.
Os discípulos ocupam o seu tempo em trabalhos manuais, uns
trançando vime para fazerem novas armadilhas para os peixes, outros
trabalhando ao redor de pequenos trabalhos de desaterros e de canalização
das águas dos telhados, para que não empocem na eira. Jesus está em pé no
meio de um prado, esmigalhando pão para os passarinhos. À perder de
vista, não há alma viva, não obstante o dia esteja sereno.
André vai em direção a Jesus, de volta de alguma incumbência:
– A paz esteja Contigo, Mestre.
– E contigo, André. Vem aqui um pouco Comigo. Tu podes ficar perto
dos passarinhos. És como eles. Mas estás vendo? Quando eles sabem que
quem se aproxima deles os ama, não temem mais. Olha como estão
confiantes, seguros, alegres. Antes eles estavam quase aos meus pés. Agora
tu estás aqui e eles estão alerta… Mas olha, olha… Eis aquele pássaro mais
corajoso que vem à frente. Compreendeu que não há nenhum perigo. E
atrás dele vêm os outros. Vê como eles se saciam? Não é assim conosco,
filhos do Pai? Ele nos sacia com seu amor. E, quando estamos certos de que
somos amados e convidados a ser seus amigos, por que temer a Ele e a nós?
Sua amizade deve dar-nos coragem até junto aos homens. Acredita: só
quem leva uma vida má é que deve ter medo do seu semelhante. Não um
justo, como és tu.
André está corado e não fala.
Jesus o atrai para si e diz sorrindo:
– Seria preciso unir a ti e Simão, em um mesmo filtro, dissolver-vos e
depois reformar-vos. Seríeis perfeitos. Contudo… Se te dissesse que, tão
diferente no princípio, serás perfeitamente igual a Pedro ao fim da tua
missão, acreditarias?
– Se Tu o dizes, é certo. Nem me pergunto como é que isso possa ser.
Porque tudo o que Tu dizes é verdade. E ficarei contente por ser como o
Simão, meu irmão, porque ele é um justo e te faz feliz. Como é disposto o
Simão! Eu fico contente por ele ser assim, disposto, corajoso e forte. Mas
os outros também!!
– E tu, não?
– Oh! Eu!! Só Tu podes estar contente comigo…
– E perceber que tu trabalhas sem barulho e mais profundamente que os
outros. 133.2Porque entre os doze há quem faz tanto barulho quanto o
trabalho que faz. Há quem faz muito mais barulho do que o trabalho que
faz, e há quem não faz outra coisa a não ser o trabalho. Um trabalho
humilde, ativo, ignorado… Os outros podem pensar que esse não faz nada.
Mas Aquele que vê, sabe. Estas diferenças existem porque ainda não sois
perfeitos. E elas existirão sempre entre os futuros discípulos, entre aqueles
que virão depois de vós, até o momento em que o anjo dirá, com voz de
trovão: “Não há mais tempo.” Sempre haverá ministros de Cristo que serão
iguais no trabalho e no atrair sobre si os olhares do mundo: os mestres. E
haverá, infelizmente, os que farão só barulho e gestos exteriores, somente
exteriores, os falsos pastores com poses histriônicas… Sacerdotes? Não:
mimos. Nada mais do que isso. Não é o gesto que faz o sacerdote, nem é a
sua veste. Não é a sua cultura mundana, nem as relações mundanas com os
poderosos, que o fazem sacerdote. É a sua alma. Uma alma tão grande, que
faça anular a carne. Há de ser todo espiritual o meu sacerdote… Assim Eu o
sonho. Assim serão os meus santos sacerdotes. O espírito não tem voz nem
pose de tragicomediante. Ele é inconsistente, porque é espiritual, e, por isso,
não pode usar túnicas nem máscaras. Ele é o que é: espírito, chama, luz,
amor. Fala aos espíritos. Fala com a castidade em seus olhares, em seus
atos, em suas palavras e em suas obras. O homem olha. E vê um seu
semelhante. Mas além da carne, e acima dela, que é que ele vê? Alguma
coisa que o faz deter o seu andar apressado, meditar e concluir: “Este
homem, semelhante a mim, de homem só tem a aparência. Sua alma é de
um anjo.” E se é um descrente, conclui ainda: “Por ele eu creio que existe
um Deus e um Céu.” E se for um luxurioso, dirá: “Este meu semelhante tem
seus olhos no Céu. Freio minha sensualidade, para não profaná-los.” E se
for um avarento, ele decide: “Pelo exemplo deste, que não é apegado às
riquezas, eu vou deixar de ser um avarento.” E se for um iracundo, um
feroz, diante do manso, ele se transformará em um ser mais pacato. Tudo
isso pode fazer um sacerdote santo. E, podes crer, sempre haverá, entre os
sacerdotes santos, aqueles que saberão até morrer por amor de Deus e do
próximo, e saberão fazer isso com simplicidade, depois de se terem
exercitado na perfeição a vida inteira, e com a mesma modéstia, de tal
modo que o mundo nem se aperceberá deles. Mas se o mundo todo não se
vai transformar em um lupanar e numa idolatria, será por estes: os heróis do
silêncio e da atividade fiel. E terão o teu sorriso: puro e tímido. Porque
sempre haverá Andrés. Por graça de Deus e para felicidade do mundo
haverá!
– Eu não pensava em merecer estas palavras… Nem havia feito nada
para suscitá-las…
– Tu me ajudaste a atrair para Deus um coração. E é o segundo que tu
conduzes para a Luz.
– Oh! Por que falou? Ele me havia prometido…
– Ninguém falou. Mas Eu sei. Quando os companheiros, cansados,
descansam, há três que não dormem em Águas Belas. O apóstolo do amor
silencioso e ativo para com os irmãos pecadores. A criatura cuja alma a
estimula para a salvação. E o Salvador, que reza e vigia, e espera… A
minha esperança: que uma alma encontre a sua salvação… Obrigado,
André. Continua e sê bendito por isso.
– Oh! Mestre!! Mas não digas nada aos outros… Falando a uma
leprosa, em uma praia deserta, e falando aqui a alguém cujo rosto não vejo,
eu ainda sei fazer um pouquinho. Mas se os outros souberem disso, Simão
principalmente, e quiser ir… eu não sei fazer mais nada… Não vás nem
Tu… Porque de falar na tua frente eu me envergonho.
– Eu não irei. Jesus não irá. Mas o Espírito de Deus sempre esteve
contigo. Vamos para casa. Estão nos chamando para a refeição.
E tudo termina entre Jesus e o manso discípulo.
133.3 Ainda estão comendo e já acenderam as lâmpadas, porque a tarde
desce rapidamente e também o vento norte aconselha a conservar fechada a
porta, quando alguém bate à porta e a voz alegre de João se faz ouvir.
– Bem-vindos!
– Fizestes logo o negócio!!
– Então, como foi?
– Quantas coisas trouxestes!!
Todos falam ao mesmo tempo, à medida que vão ajudando aos três a se
livrarem dos pesados sacos que têm nos ombros.
– Devagar!
– Deixai-nos saudar o Mestre!!
– Mas um momento!
Há um tumulto alegre, familiar, pela alegria de estarem juntos.
– Eu vos saúdo, amigos. Deus vos deu dias serenos.
– Sim, Mestre. Mas as notícias não são serenas. Eu o previa –diz
Iscariotes.
– Que está havendo? Que é?
Despertou-me a curiosidade.
– Fazei que primeiro comam alguma coisa –diz Jesus.
– Não, Mestre. Antes te entregamos o que temos para Ti e para os
outros. E primeiro… João, entrega a carta!
– Ela está com Simão. Eu tive medo de amassá-la no transporte.
Zelote, que esteve até agora discutindo com Tomé, que lhe queria
despejar água sobre os pés cansados, acorre dizendo:
– Ela está aqui comigo na bolsa da cinta –e abre o lado interno da sua
alta cinta de couro vermelho, tirando dela um rolo, já tornado achatado.
– É de tua Mãe. Quando estávamos perto de Betânia, encontramos
Jônatas que ia ter com Lázaro com a carta e muitas outras coisas. Jônatas
vai a Jerusalém, porque Cusa está pondo em ordem o seu palácio… Talvez
Herodes vá a Tiberíades… e Cusa não quer que sua mulher fique perto de
Herodíades –explica Iscariotes, enquanto Jesus desata os nós do rolo e o
desenrola.
Os apóstolos cochicham, enquanto Jesus, com um sorriso feliz, lê as
palavras da Mãe.
133.4 – Ouvi –diz Ele depois–. Há também alguma coisa para os galileus.
Minha Mãe escreve:
“A Jesus, meu doce Filho e Senhor, paz e bênção.
Jônatas, servo de seu Senhor, trouxe-me uns presentes gentis da parte
de Joana, que pede bênçãos ao seu Salvador sobre ela, o esposo e toda a sua
casa. Jônatas me diz que ele, por ordem de Cusa, vai a Jerusalém para
reabrir o palácio de Sião. Eu bendigo a Deus por isso, porque posso assim
fazer que tenhas minhas palavras e minhas bênçãos. Também a Maria de
Alfeu e Salomé mandam aos filhos beijos e bênçãos. E, visto que Jônatas
foi bom além da medida, vão também saudações da mulher de Pedro ao
marido distante, e também os familiares de Filipe e Natanael mandam as
suas. Todas as vossas mulheres, ó queridos homens distantes, com a agulha
e com o tear, com o trabalho da horta, vos mandam vestes para estes meses
de inverno e doce mel, recomendando-vos que o tomeis com água bem
quente, nas tardes úmidas. Tomai cuidado. Isto é o que as mães e esposas
mandam que eu vos diga e eu o digo. E também ao meu Filho. Não nos
sacrificamos por nada, crede-o. Alegrai-vos com os humildes presentes que
nós, discípulas dos discípulos de Cristo, damos aos servos do Senhor, e
somente dai-nos a alegria de sabermos que estais com saúde.
Agora, meu amado Filho, eu penso que há quase um ano que Tu não és
mais todo meu. E parece-me ter voltado ao tempo no qual sabia que Tu já
estavas aqui, porque sentia o teu pequeno coração bater no meu ventre, mas
podia também dizer que ainda não estavas aqui, porque estavas separado de
mim por uma barreira que me impedia de acariciar o teu querido corpo e eu
só podia adorar o teu espírito, o meu caro Filho e adorável Deus. Agora
também sei que Tu estás aqui e que o teu coração bate com o meu, nunca
separado de mim ainda que separado, mas não te posso acariciar, ouvir,
servir, venerar, ó Messias do Senhor e da sua pobre serva.
Joana queria que eu fôsse até ela, para não ficar sozinha na festa das
Luzes. Mas eu preferi permanecer aqui, com Maria, para acender as
lâmpadas. Por mim e por Ti. Mas se fôsse até a maior rainha da terra e
pudesse acender mil ou dez mil lâmpadas, estaria no escuro, porque Tu não
estás aqui. Enquanto que estava na perfeita luz naquela escura gruta,
quando eu te tinha sobre o coração, minha Luz e Luz do mundo. Será a
primeira vez que eu digo a mim mesma: ‘O meu Menino hoje tem um ano a
mais’ e não tenho o meu Menino. E será este mais triste do que o teu
primeiro aniversário em Matarea. Mas Tu cumpres a tua missão e eu a
minha. E nós dois fazemos a vontade do Pai e trabalhamos para a glória de
Deus. Isto enxuga todas as lágrimas.
Querido Filho, compreendo tudo o que fazes, por tudo o que me foi
dito. Como as ondas de um mar aberto levam a voz do alto mar até dentro
de um golfo solitário e fechado, assim o eco do teu santo trabalho pela
glória do Senhor, chega até a nossa sossegada casinha, à tua Mãe, que com
isso, jubila e treme, porque se todos falam de Ti, nem todos falam com o
mesmo coração. Amigos e beneficiados vêm dizer-me: ‘Bendito seja o
Filho do teu ventre’, e vêm inimigos teus ferir o meu coração, dizendo:
‘Maldito seja Ele!’. Mas por estes eu rezo porque são uns infelizes, mais
ainda do que os pagãos, que vêm perguntar-me: ‘Onde está o mago, o
divino?’ e não sabem que estão dizendo uma grande verdade em seu erro,
porque verdadeiramente Tu és sacerdote e grande, como na língua antiga
aquela palavra queria dizer, e divino Tu és, ó meu Jesus. E eu os envio a Ti,
dizendo: ‘Ele está em Betânia’. Porque assim eu sei que devo dizer,
enquanto não ordenares de outro modo. E rezo por estes que vêm procurar
saúde para o que morre, a fim de que encontrem saúde para o espírito
eterno. E por isso eu te peço. Não fiques aflito com a minha dor. Ela é
compensada pela grande alegria, pelas palavras dos que ficaram curados de
alma e corpo.
Mas Maria teve com isso, e ainda tem, uma dor mais forte que a minha.
E não é somente a mim que falam. O José do Alfeu quer que saibas que ele,
em uma recente viagem de negócios a Jerusalém, foi detido e ameaçado por
causa de Ti. Eram homens do Grande conselho. Penso que ele lhes foi
indicado por algum dos grandes daqui. Porque, senão, quem poderia
conhecer o José como chefe[65] de família e teu irmão? Eu te digo isto por
obediência de mulher. Mas eu queria dizer-te isto: queria estar perto de Ti.
Para dar-te conforto. Mas depois, age Tu, ó Sabedoria do Pai, sem levar em
conta o meu pranto. Simão, teu irmão, estava quase para ir, depois desse
fato. E comigo. Mas a estação do ano o deteve e também o receio de não te
encontrar, porque nos disseram, e como uma ameaça, que Tu, onde estás,
não podes ficar.
Filho! Meu Filho! Adorado e santo Filho meu! Eu estou com os braços
levantados, como Moisés sobre o monte, para rezar por Ti, que estás em
batalha contra os inimigos de Deus e inimigos teus, meu Jesus, a quem o
mundo não ama.
Aqui morreu a Lia do Isaque. Eu senti com isso, porque ela sempre foi
para mim uma boa amiga. Mas minha pena maior és Tu, que estás longe e
não és amado.
Eu te abençoo, meu Filho, e como eu te desejo paz e bênção, peço-te
que as desejes para a tua Mãe.”
133.5– Foram até àquela casa esses sem-vergonhas! –grita Pedro.
E Judas Tadeu exclama:
– O José… ele bem podia ter guardado para si aquela notícia. Mas…
não via a hora de podê-la dar!
– Voz de hiena não espanta os vivos –sentencia Filipe.
– O mal é que não são hienas, são tigres. Eles procuram presas vivas –
diz Iscariotes.
E virando-se para o Zelote:
– Diz tu tudo o que ficamos sabendo.
– Sim, Mestre. Judas tinha razão de temer. Nós fomos ter com José de
Arimateia e com Lázaro. E ali estivemos como sinceros amigos teus.
Depois, eu e Judas, como se eu fôsse amigo dele de infância, fomos a
alguns amigos dele de Sião… E… José e Lázaro te dizem que venhas
embora logo, durante estas festas. Não insistas, Mestre. É para o teu bem.
Os amigos de Judas depois disseram: “Olha que já está decidido que vão
surpreendê-lo para o acusarem. Justamente nesses dias de festa, porque o
povo está ausente. Que Ele se retire por algum tempo. Para despistar estas
víboras. A morte de Doras atiçou o veneno deles e também o seu medo.
Porque eles têm medo além de ódio. E o medo os faz ver o que não existe,
enquanto que o ódio os faz dizer até mentiras.”
– Tudo, mas tudo mesmo, sabem sobre nós! É uma coisa odiosa! E tudo
eles alteram. Tudo exageram. E quando lhes parece que não há ainda
bastante para maldizer, inventam. Eu estou enojado e cansado. Dá-me
vontade de ir-me embora… não sei… para longe. Para fora deste Israel, que
é todo um pecado… Iscariotes está abatido.
– Judas, Judas! Uma mulher, para dar ao mundo um homem, trabalha
nove luas. E tu, para dar ao mundo o conhecimento de Deus, quererias ir
mais depressa? Não nove luas. Mas milênios de luas serão necessários. E
como a lua nasce e morre em cada lunação, aparecendo para nós recém-
nascida, depois cheia e depois minguante, assim será sempre no mundo,
enquanto ela existir, haverá fases crescentes, cheias e minguantes de
religião. Mas, mesmo quando parecer estar morta, ela estará viva, assim
como a lua, que continua a existir, mesmo quando parecia que se tinha
acabado. E quem tiver trabalhado para esta religião, terá por isso um mérito
total, ainda que fique só uma pequena minoria de almas fiéis sobre a terra.
Vamos, Vamos! Nada de entusiasmos fáceis nos triunfos, nem depressões
fáceis nas derrotas.
– Contudo… sai daqui. Nós não estamos fortes ainda. E sentimos que,
diante do Sinédrio teríamos medo. Eu pelo menos… Os outros não sei…
Mas creio que é imprudência qualquer tentativa. Não temos o coração dos
três jovens[66] da corte de Nabucodonosor.
– Sim, Mestre. É melhor.
– É prudente.
– Judas tem razão.
– Vê que até tua Mãe e teus parentes…
– E Lázaro e José.
– Vamos fazê-los vir por nada.
Jesus abre os braços e diz:
– Faça-se como desejais. Mas depois voltaremos aqui. Vós estais vendo
quantos vêm. Eu não forço, nem tento vossa alma. De fato, não a sinto
pronta… 133.6Mas vamos ver os trabalhos das mulheres.
Porém, enquanto todos, com olhos risonhos e vozes de alegria, vão
tirando dos alforjes os pacotes com as vestes, as sandálias e os mantimentos
mandados pelas mães e pelas esposas, e procuram que Jesus se interesse em
admirar tanta graça de Deus, Ele se mostra triste e distraído. Lê e relê a
carta materna. Encantoando-se, com uma pequena candeia na parte mais
distante da mesa, sobre a qual estão as vestes, maçãs, pequenos vasos de
metal e queijos, e fazendo com a mão um anteparo para os olhos, parece
meditar. Mas está sofrendo.
– Olha aqui, Mestre, a minha esposa, pobrezinha, que veste bonita e
que manto com capuz fez para mim. Quem sabe quanto ela teve que
trabalhar, porque não é perita como a tua Mãe –diz Pedro, que exulta, com
os braços carregados de seus tesouros.
– Bonitos, sim, bonitos. É uma mulher muito habilidosa –diz
cortesmente Jesus. Mas com os olhos longe das coisas mostradas.
– Para nós a mãe fez duas vestes de tecido duplo. Pobre mãe! Parecem
bonitas a Ti, Jesus? São de uma bela cor, não é verdade? –diz Tiago do
Zebedeu.
– Muito bonitas, Tiago. Vão lhes ficar muito bem.
– Olha, aposto que estas cintas foram feitas por tua Mãe. É Ela que
borda assim. E também este véu duplo para servir de anteparo contra o sol,
eu digo que foi feito por Maria. É igual ao teu. A veste não. É certo que foi
nossa mãe que a teceu. Pobre mãe! Depois de tanto chorar, durante o verão,
está enxergando pouco, e, muitas vezes, se lhe arrebenta o fio. Coitada!
E Judas de Alfeu beija a pesada veste, de um vermelho marrom.
133.7– Não estás alegre, Mestre –observa finalmente Bartolomeu–. Não
olhas nem para as coisas que te foram mandadas.
– Não pode estar –rebate Simão Zelote.
– Estou pensando… Mas… Refazei os pacotes. Colocai tudo em seus
lugares. Não é hora de sermos apanhados e não o seremos. Hoje, em alta
noite, ao luar, iremos para Doco. Depois para Betânia.
– Por que para Doco?
– Porque lá há uma mulher que está à morte e esperando de Mim a
cura.
– Não vamos passar pelo feitor?
– Não, André. Por ninguém. Assim ninguém precisa mentir, dizendo
que não sabe onde estamos. Se a vós o que importa é não serdes
perseguidos, a Mim o que importa é não causar aborrecimentos a Lázaro.
– Mas Lázaro te está esperando.
– E nós estamos indo para a casa dele. Ou melhor… Simão, tu me
hospedas na casa do teu antigo servo?
– Com alegria, Mestre. Tu já sabes tudo. Por isso posso te dizer por
Lázaro, por mim, e por quem estiver nessa casa: essa casa é tua.
– Vamos. Andai depressa. Para estar em Betânia, antes do sábado.
E enquanto todos se espalham com candeias para fazerem tudo o que é
necessário para a repentina partida, Jesus fica sozinho.
Reentra André, vai até perto de Jesus e diz:
– E aquela mulher? Tenho pena de deixá-la, logo agora que parecia
próxima a vir… É prudente… Tu a viste…
– Vai dizer-lhe que voltaremos depois de algum tempo e que durante
esse tempo ela se lembre das tuas palavras…
– Das tuas palavras, Senhor. Eu disse somente as tuas.
– Vai. Vai logo. E toma cuidado para que ninguém te veja.
Verdadeiramente, neste mundo de maus, devem tomar aparência de
perversos aqueles que são inocentes…
Para mim, tudo cessa aqui, com esta grande verdade.
[65] chefe é corrigido em um dos chefes por MV numa cópia datilografada. Dos quatro filhos de Alfeu, Simão torna-se chefe de
família à morte do pai (105.3) sendo o maior (105.4 e 246.11). Todavia ele aparecerá sempre submisso ao irmão José, mais forte
de caráter e chamado chefe, primeiro, ancião, o maior (como aqui e, por exemplo, em: 437.1 – 440.7.8 – 441.5 – 460.7 – 477.5 –
478.11 – 491.9 – 562.4 – 614.11). José e Simão são chamados os dois mais velhos pelo irmão Judas em 56.3.: Tiago e Judas por
sua vez, são considerados um pouco mais velhos do que Jesus em 38.8 em 130.1.
[66] três jovens, dos quais se narra em: Daniel 3,13-97, que inclui o cântico de Azarias, mencionado no capítulo seguinte (em
134.4) e outras vezes na obra (como em 176.3).
134. A cura de Jerusa em Doco.
19 de março de 1945.
[…].
134.1 Vejo: Jesus, na primeira luz de uma sombria manhã de inverno,
entra na pequena cidade de Doco e a um madrugador que vai passando,
pergunta:
– Onde é que mora a Mariana, a velha mãe da nora que está à morte?
– Mariana? A viúva de Levi? A sogra da Jerusa, mulher do Josias?
– Ela mesma.
– Olha, homem. No fim desta rua há uma praça, e no canto há uma
fonte. Dali saem três estradas. Pega a que tem no centro uma palmeira e
caminha ainda cem passos. Encontrarás um rego. Segue-o até à ponte de
madeira. Atravessa-a e verás uma ruazinha coberta. Vai por ela. Quando
acabar a rua e a coberta, porque desemboca em uma praça, terás chegado. A
casa de Mariana tem uma cor de ouro, porque é velha. E com as despesas
que eles têm, não a podem limpar. Não vás errar. Adeus. Estás vindo de
longe?
– Não muito.
– Mas és Galileu?
– Sim.
– E estes? Estão vindo para a festa?
– São meus amigos. Adeus, homem. A paz esteja contigo.
Jesus deixa só o falador, que não tem mais pressa, e vai pelo seu
caminho. E os apóstolos atrás.
Chegam à… pracinha: uma área de terra muito barrenta, tendo no
centro um alto carvalho, que aí cresceu como se fôsse o dono e que, talvez
no verão, oferece um bom abrigo. Por enquanto, ele só oferece melancolia,
tão cerrado e escuro, mais alto que as pobres casas, não deixa que tomem
luz e sol.
A casa da Mariana é a mais pobrezinha. Larga e baixa, mas tão
necessitada de cuidados! O portão está cheio de remendos colocados sobre
as rachaduras de uma madeira já muito velha. Uma janelinha, que já nem
tem mais batentes, mais parece um buraco preto, como se fôsse a cavidade
onde antes já existiu um olho.
134.2 Jesus bate palmas junto ao portão. Vem uma menininha dos seus
dez anos, pálida, despenteada, com os olhos vermelhos.
– És tu a netinha da Mariana? Vai dizer à vovó que Jesus está aqui.
A menina dá um grito e sai correndo, chamando em alta voz. A velha
vem correndo, seguida por seis crianças, além da mocinha de antes. A
maior parece ser um menino gêmeo dela. Os últimos são dois pequerruchos
que estão agarrados à saia da velha, descalços e magros e mal sabem
caminhar suficientemente bem.
– Oh! Tu vieste! Filhos, venerai o Messias! Bem-vindos à minha pobre
casa. Minha filha está à morte… Não choreis, crianças, para que ela não
ouça! Pobres criaturas! As meninas estão acabadas pelas vigílias, porque eu
faço tudo, mas fazer vigília não posso mais, pois caio no chão de tanto
sono. São meses que não vejo cama. Agora durmo sentada numa cadeira,
para estar perto dela e das meninas. Mas elas são pequenas e sofrem com
isso. Os meninos vão buscar lenha para conservarmos o fogo aceso e
vendem parte da lenha para comprarmos pão. Também eles vão definhando,
os coitados dos meus netos! Mas o que nos está matando não é a canseira,
mas, ver que ela está morrendo… Não fiqueis chorando. Temos Jesus.
– Sim, não choreis. A mamãe vai sarar, o papai vai voltar, não tereis
mais tantas despesas, nem tanta fome. Estes são os dois últimos?
– Sim, Senhor. Esta pobre criatura deu à luz gêmeos três vezes… e
ficou mal do peito.
– A uns demais e a outros nada –resmunga Pedro, por entre a barba.
Depois, pega um pequenino e lhe dá uma maçã, para fazê-lo calar-se.
E enquanto o outro menino também lhe pede uma e Pedro o contenta,
134.3Jesus vai com a velha além do átrio e sobe uma escada para entrar num
quarto, onde está gemendo uma mulher jovem, mas esquelética.
– É o Messias, Jerusa. Agora não sofrerás mais. Estás vendo como Ele
veio mesmo? Isaque nunca mente. Ele o disse. Crê, portanto, que assim
como veio, te pode curar.
– Sim, boa mãe. Sim, meu Senhor. Mas se não me podes curar, faz pelo
menos que eu morra. Tenho os cães em meu peito. As bocas dos meus
filhos às quais dei leite doce, me pagaram com fogo e amargor. Estou
sofrendo tanto, Senhor! Estou dando tantas despesas! Meu marido está
longe, por causa do nosso sustento. A velha mãe está se acabando. Eu estou
morrendo… Com quem vão ficar os filhos, quando eu morrer, deste mal, e
ela, de cansaço e privações?
– Dos pássaros Deus toma conta e também dos filhinhos do homem.
Mas tu não morrerás. Sentes muita dor aqui?
Jesus faz um gesto como quem vai pousar a mão sobre o seio envolto
em faixas.
– Não me toques! Não me aumentes a dor! –grita a doente.
Mas Jesus pousa delicadamente sua longa mão sobre a mama doente.
– Realmente tem fogo por dentro, pobre Jerusa. O amor materno virou
fogo em teu seio. Mas tu não tens ódio ao esposo e aos meninos, não é
verdade?
– Oh! Por que deveria? Ele é bom e sempre me amou. Com sábio amor
nos amamos e esse amor floresceu em filhos… E eles!! Angustio-me por ter
que deixá-los, mas… Senhor! Mas o fogo está cessando! Mãe! Mãe! É
como se um anjo estivesse soprando o ar do Céu sobre o meu tormento!
Oh! que paz! Não tires, não tires a tua mão, meu Senhor. Ao contrário,
aperta-a. Oh! que força, que alegria! Os meus filhos! Aqui os meus filhos!
Eu os quero! Dina! Osias! Ana! Seba! Melqui! Davi! Judas! Aqui! Aqui! A
mãe não vai mais morrer! Oh!!
A jovem se vira sobre as almofadas, chorando de alegria, enquanto
acorrem os filhos 134.4e a velha, de joelhos, que não sabendo em sua alegria,
fazer outra coisa, entoa o canto de Azarias na fornalha ardente e o diz todo
com sua voz trêmula por causa da velhice e da comoção.
– Oh! Senhor! Que é que te posso fazer? Não tenho nada com que dar-
te honra! –diz por fim.
Jesus a faz levantar-se e diz:
– Deixa-me somente descansar do meu cansaço. E fica calada. O
mundo não me ama. Eu devo ir-me embora por algum tempo. Eu te peço
fidelidade a Deus e silêncio. Peço-o a ti, à esposa e aos pequenos.
– Oh! Não tenhas medo! Ninguém vem à casa de quem é pobre! Podes
ficar aqui sem medo de seres visto. Os fariseus, não? Mas… e para
comermos? Eu só tenho um pouco de pão…
Jesus chama Iscariotes:
– Pega o dinheiro e vai comprar tudo o que é preciso. Comeremos e
descansaremos juntos com estas boas pessoas. Ficaremos aqui até a tarde.
Vai e cala-te.
Depois Jesus se vira para a curada:
– Tira as faixas, levanta-te, ajuda a tua mãe e jubila-te. Deus te
concedeu graça, por ter piedade de tuas virtudes de esposa. Iremos partir o
pão juntos, porque hoje o Senhor Altíssimo está em tua casa e é preciso
celebrar este acontecimento com uma festa completa.
E Jesus sai, alcançando Judas, que está para sair:
– Comprarás com abundância. Que eles tenham também para os dias
futuros. A nós não faltará nada em casa de Lázaro.
– Sim, Mestre. E, se me permites… Tenho algum dinheiro meu. Fiz
voto de oferecê-lo pela tua salvação das mãos dos teus inimigos. Eu o
transformo em pães. É melhor dá-lo a estes irmãos em Deus, do que pô-lo
nas goelas do Templo. Permites? O ouro para mim foi sempre uma serpente.
Não quero mais o seu fascínio. Porque me sinto tão bem, agora que sou
bom. Sinto-me livre. E sou feliz.
– Faz como quiseres, Judas. O Senhor te dê paz.
Jesus vai ao encontro dos discípulos, enquanto Judas sai e tudo termina.
[…].
135. Chegada a Betânia e o discurso
de Jesus ouvido por Madalena.
21 de março de 1945.
135.1 Quando Jesus, tendo transposto a última subida, chega ao planalto,
vê Betânia, toda risonha, sob os raios de um sol de dezembro, que torna
menos triste o campo, agora sem plantações e menos escuro o verde dos
ciprestes e dos carvalhos e das alfarrobas que surgem aqui e ali, e parecem
cortesãos, prontos a se inclinarem diante de alguma palmeira de grande
altura, verdadeiramente real e que se ergue solitária nos mais belos jardins.
Porque Betânia não tem somente a bela casa de Lázaro. Tem também
outras moradas de ricos, talvez cidadãos de Jerusalém, que preferem morar
aqui, perto de suas propriedades e que, acima das casinhas dos camponeses,
fazem ressaltar as suas casas de campo, de amplas e belas construções, com
jardins bem cuidados. Causa estranheza ver, num lugar cheio de colinas,
ainda alguma palmeira, para fazer-nos lembrar do Oriente, com o seu tronco
delgado e o seu topete duro e sussurrante das folhas, atrás de cujo verde
jade, procura-se instintivamente o amarelo sem fim do deserto. Aqui, ao
invés, veem-se oliveiras verde-prateadas e campos arados, por ora
desprovidos até do menor sinal de trigo, e esqueléticos pomares com os
troncos escuros e as ramagens emaranhadas, como se fossem almas que se
contorcem em uma tortura infernal.
Ele vê logo também um servo de Lázaro colocado de sentinela. O servo
o saúda profundamente e pede licença para ir levar a notícia de sua chegada
ao patrão, e, tendo recebido a licença, vai sem demora.
Entrementes, camponeses e cidadãos acorrem para saudar o Rabi, e, de
uma sebe de loureiros, que circunda com seu verde perfumado uma bela
casa, aparece uma jovem mulher, que certamente não é israelita. O seu
peplo ou, se é que estou bem lembrada dos nomes, a sua estola (longa até
chegar a fazer uma pequena cauda, ampla, de uma lã macia e muito branca,
reavivada por uma orla bordada com galões de cores vivas, nas quais
brilham fios de ouro, apertada na cintura por um cinto igual a orla) e
também os arranjos de sua cabeça (uma pequena rede de ouro, que conserva
em seu lugar um complicado penteado, todo com cachinhos na frente e atrás
liso, terminando em uma grande madeixa acima da nuca) me faz pensar que
ela seja grega ou romana. Olha curiosamente, porque levam-na a olhar os
gritos estridentes das mulheres e os hosanas dos homens. Depois, dá um
sorriso desdenhoso, vendo que vão diretamente a um pobre homem, que
não tem nem um burrinho para andar e que caminha no meio de um grupo
de homens semelhantes a ele, todos ainda menos atraentes do que ele.
Encolheu os ombros e, com um gesto de aborrecimento, afasta-se dali,
seguida, como por uns cães, por um grupo de pernaltas multicores, entre as
quais há umas íbis muito alvas e flamingos multicores, sem faltarem duas
pernaltas, cor de fogo, com uma coroazinha tremulante sobre a cabeça que
parece de prata, único ponto branco de sua esplêndida plumagem, que é
toda como uma chama dourada.
Jesus a olha por um momento, depois volta a escutar a um pobre velho
que… gostaria de não ter aquela fraqueza que tem nas pernas. Jesus o
acaricia e o exorta a… ter paciência, pois daqui a pouco, vem a primavera e
com o belo sol de abril, ele se sentirá mais forte.
135.2 Chega inesperadamente Maximino, que vem alguns metros à frente
de Lázaro.
– Mestre… Simão me disse que… que Tu vais à casa dele… é um
desgosto para Lázaro… mas se compreende…
– Falaremos nisso depois. Oh! Meu amigo!
Jesus se apressa, em direção a Lázaro, que parece estar meio acanhado
e o beija na face. Chegaram a uma vereda, que conduz a uma casinha,
situada entre outros pomares e o de Lázaro.
– Então, queres mesmo ir para a casa de Simão?
– Sim, meu amigo. Tenho Comigo todos os meus discípulos e prefiro
assim…
Lázaro não gosta daquela decisão, mas não rebate. Somente se vira para
a pequena multidão, que o segue e diz:
– Ide. O Mestre precisa descansar.
Aqui eu vejo quanto Lázaro é poderoso. Todos se inclinam às suas
palavras e se retiram, enquanto Jesus os saúda com seu doce:
– Paz a vós. Eu vos mandarei avisar quando pregarei.
– Mestre –diz Lázaro agora que estão sozinhos, na frente dos discípulos
que falam com Maximino alguns metros atrás–. Mestre… Marta está
desmanchando-se em lágrimas. Por isso é que ela não veio. Mas virá
depois. Eu choro só no coração. Mas vamos dizer: é justo. Se tivéssemos
pensado que ela vinha… Mas ela não vem nunca para as festas… Sim… e
quando ela vem?? Eu digo: logo hoje é que o demônio a foi trazer aqui.
– O demônio? E por que não o seu anjo, por ordem de Deus? Mas
deves crer-me, mesmo que ela aqui não tivesse estado, Eu teria ido para a
casa de Simão.
– Por que, meu Senhor? Minha casa não te ofereceu paz?
– Tanta paz que, depois de Nazaré, é o lugar de que Eu mais gosto.
Mas, responde-me, por que é que me disseste: “Vai-te embora de Águas
Belas”? Por causa das ciladas que se aproximam, não é verdade? E, por
isso, Eu vou entrar nas terras de Lázaro, mas não coloco Lázaro na
condição de receber insultos em sua casa. Achas que te respeitariam? Para
pisar-me passariam até sobre a Arca santa… Deixa-me agir. Pelo menos,
por enquanto. Depois virei. Afinal, ninguém me proíbe de ir fazer refeições
em tua casa, nem que tu venhas à minha. Mas faz por onde possam dizer:
“Ele está na casa de um dos seus discípulos.”
– E eu não sou um deles?
– Tu és o amigo. Para o coração, isto é mais do que discípulo. Para a
malícia é coisa diferente. Deixa-me agir. Lázaro, esta casa é tua… mas não
é a tua casa. A bela e rica casa do filho de Teófilo. E, para os pedantes, isso
tem muito valor.
– Tu dizes assim… mas é por que… é por causa dela, é isso. Eu estava
querendo persuadir-me a perdoar… mas, se ela te afasta daqui, por Deus, eu
a odiarei…
– E me perderás totalmente. Deixa de lado este pensamento, já, ou já
ficarás sem Mim… 135.3Eis Marta. Paz a ti, minha doce hospedeira.
– Oh! Senhor!
Marta, de joelhos, chora. Abaixou o véu que está pousado sobre o
arranjo da cabeça, feito em forma de diadema, a fim de não deixar que os
estranhos vejam o seu pranto. Mas a Jesus não pensa em escondê-lo.
– Por que este choro? Em verdade, estás desperdiçando estas lágrimas!
Há muitos motivos para se chorar e para se fazer das lágrimas um objeto
precioso. Mas chorar por este motivo! Oh! Marta! Parece que tu não sabes
mais quem Eu sou! Do homem, tu o sabes. Eu não tenho mais que a veste.
O coração é divino e como divino palpita. Vamos! Levanta-te e vem para
casa… e ela… deixai-a em paz. Ainda que ela chegasse a zombar de Mim,
deixai-a em paz, Eu vos digo. Não é ela. É aquele que a possui que a faz
instrumento de perturbação. Mas aqui há Um que é mais forte que o patrão
dela. Agora a luta vai ser entre Eu e ele diretamente. Vós, rezai, perdoai,
tende paciência e fé. E nada mais.
Entram na casinha, que é quadrada e rodeada por um pórtico, que a
alarga. Dentro, há quatro quartos, separados por um corredor em forma de
cruz. Uma escada, externa como sempre, conduz ao alto do pequeno
pórtico, que se transforma em um terraço e dá acesso a um grande quarto,
da largura da casa, que, em certas épocas é usado para guardar as provisões,
mas agora está todo desocupado e limpo, completamente vazio.
Simão, que está ao lado do velho servo, que eu ouço ser chamado pelo
nome de José, está fazendo as honras da casa e diz:
– Aqui se poderia falar ao povo, ou fazer as refeições… como Tu
quiseres.
– Agora vamos pensar nisso. Por enquanto, vai dizer aos outros que,
depois da refeição o povo pode vir. Não decepcionarei a gente boa daqui.
– Onde eu digo que eles devem ir?
– Aqui. O dia está agradável. O lugar está protegido contra os ventos. O
pomar, que agora está sem frutas, não ficará prejudicado, pelo povo que
vier. Daqui do terraço, Eu falarei. Então, vai.
Ficam sozinhos Lázaro com Jesus. Marta, na necessidade de prover o
que é preciso para tantas pessoas, voltou a ser a “boa hospedeira” e, com os
servos e os próprios apóstolos, trabalha lá embaixo, preparando as mesas e
o necessário para o descanso.
135.4 Jesus passa um braço em torno aos ombros de Lázaro e o conduz
para fora do quarto grande, indo dar uns passos com ele no terraço, que fica
ao redor da casa, ao belo sol, que torna morno este dia, e, lá do alto, observa
o trabalho dos servos e dos discípulos, e sorri para Marta, que vai e vem e
levanta o rosto sério, mas já mais sereno. Olha também para o belo
panorama que circunda o lugar e vai repetindo com Lázaro os nomes das
diversas localidades e pessoas, e, por fim, pergunta à queima-roupa:
– Então a morte de Doras foi um bastão agitado no ninho das
serpentes?
– Oh! Mestre! Disse-me o Nicodemos que a reunião do Sinédrio foi de
uma violência nunca vista!
– O que Eu fiz ao Sinédrio, para ele se inquietar? Doras morreu por si
mesmo, à vista de todo o povo, morreu pela ira. Não permiti que se faltasse
com o respeito para com o morto. Portanto…
– Tens razão. Mas eles… Estão loucos de medo. E… estás sabendo que
eles disseram ser preciso apanhar-te em pecado, para poderem matar-te?
– Oh! Então, fica tranquilo! Terão que esperar até a hora de Deus!
– Mas, Jesus! Sabes de quem estamos falando? Sabes de que são
capazes os fariseus e os escribas? Sabes que alma tem o Anás? Sabes quem
é que o manda, depois dele? Sabes… mas, que é que estou dizendo? Tu
sabes! E, por isso, é inútil que eu te diga que pecado eles inventarão, para
poderem acusar-te.
– Eles já o encontraram. Fiz mais do que é preciso. Eu falei aos
romanos, falei a pecadoras… Sim, a pecadoras, Lázaro. Uma delas, e não
me fiques olhando assim espantado, uma delas vem sempre ouvir-me e está
hospedada em uma estrebaria do teu feitor, a pedido meu, porque, para ficar
perto de Mim, ela tinha ido ficar num chiqueiro de porcos…
Lázaro está como uma estátua, pasmado. Nem se move mais. Olha para
Jesus, como se estivesse vendo alguém que, por sua estranheza, causa
espanto.
Jesus o sacode sorrindo.
– Terás visto o Mamon? –lhe pergunta.
– Não. Eu vi a Misericórdia. Mas… mas eu o entendo. Eles, os do
Conselho, não. Eles dizem que é pecado. Então é verdade! Eu pensava…
Oh! que fizeste?
– O meu dever, o meu direito e o meu desejo: procurar redimir um
espírito caído. Estás vendo, portanto, que tua irmã não será a primeira lama
de que Eu me aproximo e sobre a qual me inclino. E não será a última.
Sobre a lama, quero semear flores e fazer que nasçam as flores do bem.
– Oh! Deus! Meu Deus!! Mas… Oh! Meu Mestre, Tu tens razão. É o
teu direito e o teu dever e é o teu desejo. Mas as hienas não compreendem
isso. Elas são umas carniças tão fétidas, que não sentem, não podem sentir o
odor dos lírios. E mesmo onde eles florescem, esses poderosos covardes
sentem cheiro de pecado; não compreendem que do fedor deles é que ele
sai… 135.5Eu te peço. Não pares por muito tempo em um lugar. Vai, gira,
sem dar-lhes o modo de alcançar-te. Sê como um fogo-fátuo, dançante
sobre os caules das flores, rápido, que não se pode pegar, desconcertante no
seu andar. Faz assim. Não por covardia, mas por amor do mundo, que
precisa que Tu vivas, para ser santificado. A corrupção aumenta. É preciso
que lhe contraponhas a santificação… A corrupção!! Viste a nova cidadã de
Betânia? É uma romana casada com um judeu. Ele até que é observante.
Mas ela é idólatra e, não podendo viver bem em Jerusalém, porque surgiram
discussões com os vizinhos, por causa dos animais dela, veio aqui. A casa
dela está cheia de animais, que para nós são imundos e… a mais imunda é
ela, porque vive zombando de nós e com certas liberdades que… Eu não
posso criticar porque… Mas eu digo que, enquanto não se põe o pé em
minha casa por estar nela Maria que, com o seu pecado pesa sobre a família
toda, à casa daquela mulher, eles vão. Ela caiu nas graças de Pôncio Pilatos
e vive sem o marido. Ele está em Jerusalém. Ela aqui. E assim fingem ele e
eles, não profanar-se quando vêm e não constatar que se estão profanando.
Hipocrisia! Atolados na hipocrisia até o pescoço! Dentro em pouco, nos
afogaremos. Sábado é o dia do banquete… E eles até fazem parte do
Conselho! O mais assíduo é um filho de Anás.
– Eu a vi. Sim. E deixa fazer. E deixa que façam. Quando um médico
prepara um remédio, mistura as substâncias e a água parece ficar suja,
porque ele os agita e a água fica turva. Mas depois, as partes mortas se
depositam no fundo e a água se torna límpida, ainda que esteja saturada dos
sucos daquelas substâncias salutares. Assim é agora. Tudo se mistura e Eu
trabalho com todos. Depois, as partes mortas se depositarão e serão jogadas
fora, mas as outras vivas permanecerão ativas no grande mar do povo de
Jesus Cristo. Vamos descer. Estão nos chamando…
135.6 … E a visão recomeça, enquanto Jesus torna a subir no terraço para
falar às pessoas de Betânia e dos lugares vizinhos, que chegaram para ouvir.
– A paz esteja convosco.
Ainda que Eu me calasse, os ventos de Deus levariam a vós as palavras
do meu amor e do ódio de outros. Sei que estais agitados, porque não
ignorais o porquê Eu estou entre vós. Mas vós não façais disso mais que
uma agitação de alegria e Comigo bendizei o Senhor, que usa do mal para
dar uma alegria aos seus filhos, reconduzindo sob o aguilhão do mal o seu
Cordeiro, por entre os cordeiros, a fim de colocá-lo a salvo dos lobos.
Vede como é bom o Senhor. Ao lugar onde Eu estava chegaram, como
águas a um mar, um rio e um regato. Um rio de amorosa doçura, um regato
de ardente amargor. O primeiro era o amor de vós, de Lázaro e Marta ao
último da cidade; o regato era a injusta raiva de quem, não podendo ir para
o Bem, que o convida, acusa o Bem de ser um Delito. E o rio dizia: “Volta,
volta entre nós. Que as nossas ondas te rodeiem, te isolem, te defendam. E
te deem tudo aquilo que o mundo te nega”. O regato malvado assobiava
ameaças e queria matar com o seu tóxico. Mas, que é um regato, em
comparação a um rio, e ainda mais, em comparação a um mar? Nada. E em
nada se transformou o tóxico do regato, porque o rio do vosso amor o
superou, e no mar do meu amor não entrou senão a doçura do vosso amor.
Aliás, fez bem. Trouxe-me de volta a vós. Bendigamos por isso ao Senhor
Altíssimo.
A voz de Jesus se expande poderosa pelo ar calmo e silencioso. Jesus,
tão belo ao sol, gesticula e sorri serenamente do alto do terraço. Embaixo, o
povo o escuta feliz: uma florada de rostos levantados, que sorriem com a
harmonia de sua voz. Lázaro está perto de Jesus, como também Simão e
João. Os outros estão espalhados pelo meio do povo. Sobe também Marta e
vai sentar-se no chão, aos pés de Jesus, virada para o lado de sua casa, que
aparece para lá do pomar.
– O mundo é dos maus. O Paraíso é dos bons. Esta é a verdade e a
promessa. E sobre essa se apoie a vossa força com firmeza. O mundo passa.
O Paraíso não passa. Se, sendo bom, alguém o conquista, gozará dele para
sempre. E então? Por que turbar-se pelo que fazem os maus? Lembrai-vos
dos lamentos de Jó? São os eternos lamentos de quem é bom e oprimido;
porque a carne geme, mas não deveria gemer, e, quanto mais espezinhada,
mais deveria alçar as asas da alma, no júbilo do Senhor.
Credes vós que sejam felizes aqueles que parecem felizes porque, de
modo lícito e, ainda mais, de modo ilícito, estão com seus celeiros repletos,
cheias as suas dornas e com seus odres transbordantes de óleo? Não. Eles
sentem o sabor do sangue e das lágrimas alheias em todos os seus
alimentos, e sua cama lhes parece cheia de espinhos, tanto sentem nela os
remorsos gritantes. Depredam os pobres, despojam os órfãos, roubam o
próximo para amontoarem, oprimem os que são menores do que eles em
poder e perversidade. Não importa. Deixai-os. O reino deles é deste mundo.
E, quando eles morrerem, que sobrará? Nada, se não se quer chamar de
tesouro ao monte de culpas que eles levarão consigo e com o qual se
apresentarão a Deus. Deixai-os. São os filhos das trevas, os rebeldes à Luz,
e não podem seguir os luminosos caminhos desta. Quando Deus faz brilhar
a estrela da manhã, eles a chamam de sombra da morte, e, como tal, julgam-
na contaminada, e preferem caminhar ao brilho sujo do ouro e de seu ódio,
que reluz, somente porque as coisas de inferno brilham, com o fósforo dos
lagos eternos da perdição….
135.7 – Minha irmã, Jesus… oh!
Lázaro avista ao longe Maria, que vai deslizando por trás de uma sebe
do pomar de Lázaro, para chegar o mais perto possível. Vai encurvada. Mas
sua cabeça loira brilha como ouro, contra o buxo escuro.
Marta procura levantar-se. Mas Jesus preme-lhe a mão sobre a cabeça e
ela tem que ficar onde está. Jesus eleva ainda mais o tom de sua voz.
– Que diremos desses infelizes? Deus lhes deu tempo de fazer
penitência e eles abusam dele para pecar. Mas Deus não os perde de vista,
ainda que pareça que sim. Chegará o momento no qual, ou porque, como
um raio que penetra até no rochedo, o amor de Deus rasga o duro coração
deles, ou porque a soma dos delitos leva a onda de lama até às suas faces e
a seus narizes — e eles sentem, oh! finalmente eles sentem! o nojo daquele
sabor e daquele fedor, que para os outros é repugnante e que enche o
coração deles — e chega um momento em que ficam com nojo daquilo e
surge neles um movimento de desejo do bem.
A alma então grita[67]: “E quem me dera poder voltar aos tempos de
antes, quando eu estava na amizade com Deus! Quando a sua luz brilhava
em meu coração e, ao brilho dela, eu caminhava! Quando, diante da minha
justiça, o mundo calava admirado, e quem me via me dizia feliz! O mundo
bebia o meu sorriso e minhas palavras eram acolhidas como palavras de um
anjo e pulava de orgulho o coração no peito dos meus familiares. E agora,
que sou eu? Zombaria para os jovens, horror para os anciãos, sou o sujeito
de suas canções e o cuspe do desprezo deles atinge o meu rosto.” Sim,
assim fala em certas horas a alma dos pecadores, dos verdadeiros Jós,
porque não há miséria maior do que esta, de alguém que perdeu para
sempre a amizade de Deus e o seu Reino. E devem causar pena. Somente
pena.
São pobres almas que, por ociosidade ou leviandade, perderam o
Esposo eterno. “De noite, em meu leito procurei o amor de minha alma e
não o encontrei.” De fato, nas trevas não se pode distinguir o esposo, e a
alma, estimulada pelo amor, sem pensar, porque cercada pela noite
espiritual, procura e quer encontrar um refrigério para o seu tormento.
Pensa encontrá-lo em um amor qualquer. Não. Só um é o amor da alma:
Deus. Vão buscando o amor, estas almas, que o amor de Deus aguilhoa.
Bastaria que quisessem em si a luz, e teriam amor ao seu consorte. Vão
como doentes, procurando, às cegas, o amor, e encontram todos os amores,
todas as coisas sujas às quais o homem deu esse nome, mas não encontram
o amor; porque o amor é Deus e não o ouro, a sensualidade, o poder.
Pobres, pobres almas! Se elas, menos ociosas, se tivessem levantado, ao
primeiro convite do Esposo eterno, para Deus que diz “Segue-me”, para
Deus que diz “Abre-me”, não teriam chegado a abrir a porta, com o ímpeto
do amor nelas despertado, quando o Esposo decepcionado já ia longe.
Desaparecido… E não teriam profanado aquele ímpeto santo, de uma
necessidade de amor, em algum lamaçal, que causa nojo até ao animal
imundo, de tão inútil que é, e espalhado de abrolhos triturados, que não
eram flores, mas somente acúleos, que rasgam, mas não servem para
coroas. E não teriam conhecido as zombarias dos guardas da ronda, de todo
o mundo que, como Deus, mas por motivos opostos, não perdem de vista o
pecador e o espreitam, para zombarem dele e criticá-lo. Pobres almas,
surradas, despojadas, feridas por todo mundo! Só Deus é que não se une a
este apedrejamento feito por um escárnio impiedoso. Mas faz que caiam
suas lágrimas, para curar as feridas e revestir com uma veste diamantina a
sua criatura. Sempre sua criatura… Só Deus… e os filhos de Deus com o
Pai.
Bendigamos ao Senhor. Ele quis que pelos pecadores Eu aqui tivesse
que voltar, para dizer-vos “Perdoai. Perdoai sempre. Fazei de todo mal um
bem. Fazei de toda ofensa uma graça.” Não vos digo “Fazei” somente. Eu
vos digo: Repeti o meu gesto. Eu amo e bendigo os inimigos porque, por
causa deles, Eu pude voltar a vós, meus amigos.
A paz esteja com todos vós.
O povo agita véus e ramos para Jesus e depois se afasta lentamente.
135.8 – Terão visto aquela impudente?
– Não, Lázaro. Ela estava atrás da sebe e bem escondida. Nós podíamos
vê-la, porque estamos aqui no alto. Os outros não.
– Ela nos tinha prometido que…
– Por que não haveria de vir? Não é ela também uma filha de Abraão?
Quero de vós, irmãos, e de vós, discípulos, a promessa solene de não levar
nada ao conhecimento dela. Deixai-a agir. Zombará de Mim? Deixai que
zombe. Chorará? Deixai que chore. Quererá ficar? Deixai-a ficar. Quererá
fugir? Deixai que fuja. É o segredo do Redentor e dos redentores: ter
paciência, bondade, constância e oração. Nada mais. Qualquer movimento é
demais junto a certas doenças… Adeus, meus amigos. Eu vou ficar aqui e
rezar. Vós, ide cada um para a sua tarefa. E que Deus vos acompanhe.
E tudo termina.
[67] grita, como em: Job 29; 30,1-10. A citação sucessiva é de: Cântico dos cânticos 3,1.
136. Na festa das Encênias, em casa de Lázaro,
é recordado o nascimento de Jesus.
22 de março de 1945.
136.1 A já esplêndida casa de Lázaro, nesta tarde, está muito mais
esplêndida. Parece estar pegando fogo, pelo número de luzes que nela estão
acesas, e a claridade se espalha para fora da casa, neste princípio de noite,
extravasando das salas para o átrio e deste para o pórtico, estendendo-se,
para ir vestir de ouro os cascalhos dos caminhos, as ervas e as touceiras dos
canteiros, entrando em luta com a luz do luar, e vencendo-a nos primeiros
metros, com seu brilho amarelado e profano, enquanto, mais além, tudo se
torna angelical, com a veste de pura prata que o luar lança sobre todas as
coisas.
Até o silêncio, que circunda o magnífico jardim, no qual só se ouve o
arpejo produzido pelas gotas que caem do repuxo no aquário, parece
aumentar a celestial e paradisíaca paz desta noite de luar, enquanto, junto à
casa, alegres e numerosas vozes, unidas ao alegre rumor dos móveis
arrastados e das louças que estão sendo colocadas sobre as mesas, lembram
que o homem é homem e não ainda um espírito.
Marta anda depressa, com sua ampla veste muito bonita e pudica, de
cor violeta avermelhada, e parece uma flor, uma bela campânula, ou uma
borboleta, que se agita contra as paredes purpúreas do átrio, ou contra as da
sala do banquete, que tem uns pequenos desenhos que parecem um tapete.
Jesus, ao invés, passeia sozinho e absorto, ao lado do aquário, e parece
estar sendo absorvido, alternadamente, ou pela sombra densa, que projeta
um alto loureiro, uma verdadeira árvore gigante, ou pela luz fosforescente
da lua, que vai se tornando cada vez mais clara. Tão viva que a água do
repuxo está parecendo ser um punhado de penas de prata, que se reparte em
fragmentos de brilhantes, e que tornam a cair, para desaparecerem sobre a
superfície plácida e toda prateada da água do tanque. Jesus olha e escuta as
palavras da água na noite. Elas adquirem um som tão musical, que faz
despertar um rouxinol, no loureiro basto, que responde ao arpejo lento das
gotas com uma nota aguda de flauta, e depois faz uma pausa, como se
quisesse acertar bem a nota, para tomar parte em um acorde com a água.
Finalmente, ele entra, como o rei do canto, com o seu perfeito, variado e
delicado hino de alegria.
Jesus nem caminha mais, para não perturbar, com o barulho de seus
passos, a doce alegria do rouxinol, e acho que também Dele, porque, de
cabeça inclinada, sorri com o sorriso de uma verdadeiramente serena
alegria. Quando o rouxinol cessa de cantar, depois de uma nota muito
afinada e prolongada, e modulada em um tom ascendente, que não sei como
pode uma garganta tão pequena sustentá-la Jesus exclama:
– Bendito sejas, ó Pai, por esta perfeição e pela alegria que me deste!
E retoma o seu lento passeio, cheio, quem sabe de que profundas
meditações.
136.2 Simão o alcança:
– Mestre, Lázaro te pede que vás. Tudo está pronto.
– Vamos. E que assim caia a última dúvida que Eu estou gostando
menos deles por causa da Maria.
– Quanto choro, Mestre! Somente um teu milagre secreto é que podia
curar aquela dor. Mas não sabes que Lázaro estava para fugir, depois que
ela, quando voltaram, saiu de casa, dizendo que ia deixar os sepulcros pelos
prazeres e… outras insolências? Eu e Marta lhe pedimos que não fizesse
aquilo, também porque… nunca se sabe qual a reação de um coração. Se a
tivesse encontrado, creio que a teria castigado uma vez por todas. Teriam
querido, ao menos, o silêncio, dela sobre Ti…
– E o milagre imediato de Mim sobre ela. E Eu o teria podido fazer.
Mas não quero nenhuma ressurreição forçada dos corações. Forçarei a
morte e ela me entregará suas presas. Porque Eu sou o Senhor da morte e da
vida. Mas, sobre os espíritos, que não são matéria que, sem sopro, é privada
de vida, e sim seres imortais, capazes de ressurgir por vontade própria, Eu
não forço a ressurreição. Faço o primeiro apelo, dou a primeira ajuda, como
um que abrisse um sepulcro, onde alguém foi fechado meio vivo e onde
morreria, se por muito tempo permanecesse naquelas trevas asfixiantes, e
deixo entrar ar e luz… depois fico esperando. Se o espírito é desejoso de
sair, sai. Se não quer assim, enfusca-se mais ainda e se precipita no abismo.
Mas, se ele sai!! Oh! Se ele sai, em verdade te digo que ninguém será maior
do que o ressuscitado de espírito. Só a Inocência absoluta é maior do que
este morto que volta à vida por força do seu próprio amor e para alegria de
Deus… São esses os meus maiores triunfos!
Olha o céu, Simão. Nele podes ver estrelas, estrelinhas e planetas de
diversas grandezas. Todos têm vida e esplendor por Deus que os fez e pelo
sol que os ilumina, mas não são todos igualmente esplêndidos e grandes.
No meu céu também será assim. Todos os redimidos terão vida por Mim e
esplendor pela minha luz. Mas não serão todos igualmente esplêndidos e
grandes. Uns serão um simples pó de astros, como o que torna “láctea” a
Via Láctea, e serão aqueles inumeráveis, que de Cristo tiverem recebido, ou
melhor, tiverem aspirado somente aquele mínimo indispensável para não
serem uns condenados, e somente pela infinita Misericórdia de Deus,
depois de longo purgatório, irão para o Céu. Outros serão mais fúlgidos e
formados: os justos que tiverem unido a sua vontade — nota bem: vontade,
não digo boa vontade — à vontade de Cristo e tiverem obedecido às minhas
palavras para não se condenarem. Depois virão os planetas, as boas
vontades, oh! esplendidíssimos! Com luz de puro diamante ou com o
esplendor de gemas preciosas das mais diversas cores — vermelhos como
os rubis, violetas, como as ametistas, loiros como os topázios, cândidos
como as pérolas — são os que se enamoram até à morte pelo amor, os
penitentes por amor, os operantes por amor, os imaculados por amor.
E haverá alguns, do meio desses planetas, que serão a minha glória de
Redentor, que terão em si os brilhos do rubi, da ametista, do topázio e da
pérola, porque tudo eles serão por amor. Heroicos, por conseguirem
perdoar-se, por não terem sabido amar antes; penitentes por se saturarem de
expiação, como Ester[68] que, antes de ir apresentar-se a Assuero, se saturou
de aromas; incansáveis, para fazerem em pouco tempo, no pouco que lhes
sobra, tudo aquilo que não fizeram nos anos que perderam no pecado; puros
até o heroísmo, para se esquecerem até em suas entranhas, além de na alma
e no pensamento, de que existe uma sensualidade. Serão eles que hão de
atrair, por seu multiforme esplendor, os olhares dos crentes, dos puros, dos
penitentes, dos mártires, dos heróis, dos ascetas, dos pecadores. E, para
cada uma destas categorias, o esplendor deles será palavra, resposta, convite
e garantia…
136.3 Mas, vamos. Nós estamos falando e eles estão lá nos esperando.
– É que, quando Tu falas, esquecemo-nos de estar vivos. Posso dizer
tudo isso ao Lázaro? Parece-me que nisso há uma promessa…
– Deves dizê-lo. A palavra do amigo pode ir pousar sobre a ferida deles
e não se enrubescerão de se terem enrubescido diante de Mim… Nós te
fizemos ficar esperando, Marta. Mas Eu estava falando ao Simão sobre as
estrelas e nos esquecemos destas luzes. Verdadeiramente, a tua casa, nesta
tarde, é um firmamento…
– Não foi só para nós e para os servos, mas também para Ti e para os
hóspedes, teus amigos, que as acendemos. Obrigada, por teres vindo na
última tarde. Agora é a festa da Purificação mesmo…
Marta gostaria de falar mais, mas sente que o choro lhe vai chegar e se
cala.
– Paz a todos vós –diz Jesus, entrando no átrio iluminado por dezenas
de lâmpadas de prata, todas acesas e colocadas por toda parte.
Lázaro vai para a frente, sorridente:
– Paz e bênção a Ti, Mestre, e muitos anos de santa felicidade.
Eles se beijam.
– Disseram-me certos amigos nossos que Tu nasceste enquanto Belém
estava iluminada por uma longínqua Encênia. Por ter-te entre nós nesta
tarde, nós e eles jubilamos. Não perguntas quem são?
– Outros amigos não tenho, que não sejam os discípulos e os queridos
de Betânia, além dos pastores. Portanto, são estes. E vieram? Para que?
– Para adorar-te, nosso Messias. Ficamos sabendo, por meio de Jônatas
e aqui estamos. Com os nossos rebanhos, que agora estão nos currais de
Lázaro, e com os nossos corações, agora e sempre, sob os teus santos pés.
Isaque falou por Elias, Levi, José e Jônatas, que estão todos prostrados
aos pés de Jesus. Jônatas está com sua veste macia, como intendente
predileto do patrão; Isaque com a sua de incansável peregrino, de grossa lã
marrom escuro, impermeável; Levi, José e Elias, com vestes dadas pelo
Lázaro, frescas e limpas para poderem sentar-se às mesas, sem precisarem
usar suas pobres vestes rasgadas e com o mau cheiro do curral.
– Por isso é que me mandastes para o jardim? Deus vos abençoe a
todos! Só falta minha Mãe, para minha felicidade. Levantai-vos, levantai-
vos. É o meu primeiro Natal, que passo sem minha Mãe. Mas a vossa
presença me consola da tristeza, da saudade do seu beijo.
136.4 Entram todos na sala das mesas. Aqui as lâmpadas são, na maior
parte, de ouro e o metal se enche de vida com a luz das chamas, e as chamas
parecem mais reluzentes pelo reflexo que lhes dá todo aquele ouro. A mesa
está montada em forma de U, para poder dar lugar a tanta gente e poderem
servir à mesa, sem estorvar o trabalho dos trinchadores e dos servos. Além
de Lázaro, aí estão os apóstolos, os pastores e Maximino, o velho servo de
Simão.
Marta acompanha com o olhar a disposição dos lugares e queria estar
em pé. Mas Jesus se impõe:
– Hoje não és a hospedeira, és a irmã e aí estás sentada, como se fosses
do meu sangue. Somos uma família. Caiam as regras e cedam o lugar ao
amor. Aqui, ao meu lado e perto de ti, João. Eu com Lázaro. Mas, dai-me
uma lâmpada. Entre Mim e Marta, esteja acesa uma luz… uma chama,
pelas ausentes, embora presentes; pelas amadas, as esperadas, pelas
mulheres queridas e distantes. Todas. A chama tem palavras de luz. O amor
tem palavras de chama, e vão longe essas palavras, sobre a onda incorpórea
dos espíritos, que se encontram sempre, além dos montes e dos mares,
levando beijos e bênçãos… Tudo levam. Ou não é verdade?
Marta coloca a lâmpada onde Jesus quer, em um lugar que fica vazio…
e, visto que Marta está compreendendo, ela se curva para beijar a mão de
Jesus, que depois a pousa sobre a cabeça morena, abençoante e
consoladora.
136.5 Começa a refeição. A princípio, os três pastores estão um pouco
acanhados, ao passo que Isaque já está mais seguro, e Jônatas não mostra
embaraço, mas vão-se animando cada vez mais, à medida que a refeição
continua, e depois de terem ficado calados, começam a falar. E sobre que
assunto haverão de falar, senão das suas recordações?
– Acabávamos de nos recolher –diz Levi–. E eu estava com tanto frio,
que fui refugiar-me entre as ovelhas, chorando com saudades da mãe…
– Eu, ao invés, pensava na jovem mãe, que antes tinha encontrado e
dizia a mim mesmo: Terá achado lugar? Se soubesse que estava numa
estrebaria, eu a teria conduzido para o redil!! Mas era tão gentil — um lírio
dos nossos vales — que me pareceu ser uma ofensa, dizer-lhe: “Vem entre
nós.” Mas pensava Nela… e sentia ainda mais o frio, pensando o quanto ele
a devia fazer sofrer. Lembras-te que luz houve naquela tarde? E o teu
medo?
– Sim… mas depois… veio o anjo… oh!!
Levi, como se estivesse delirando, sorri àquela lembrança.
– Oh! Escutai uma coisa, meus amigos. Nós não sabemos, senão pouca
coisa e mal. Temos ouvido falar de anjos, de manjedouras, de rebanhos, de
Belém… E nós sabemos que Ele é Galileu e carpinteiro… Não é justo que
nós não saibamos! Ao Mestre perguntei isto em Águas Belas… mas depois
se mudou de assunto. Este aqui, que sabe, não me disse nada… Sim, estou
falando de ti, João de Zebedeu. Este é o respeito que tens com o ancião!
Teres tudo para ti e me deixares crescer como um discípulo ignorante. Já
não o estarei eu sendo bastante?
Todos riem da boa reclamação de Pedro. Mas ele se dirige ao seu
Mestre:
– Eles estão rindo. Mas eu tenho razão.
E depois, dirigindo-se a Bartolomeu, Filipe, Mateus, Tomé, Tiago e
André:
– Vinde para a frente! Dizei-o, vós também, protestai junto comigo. Por
que é que nós não sabemos de nada?
– É verdade… Onde é que estáveis, quando Jonas estava morrendo? E
onde, no Líbano?
– Tens razão. Mas quanto a Jonas, eu, pelo menos, pensei que aquilo
fôsse um delírio de moribundo. E, quanto ao Líbano… lá eu estava cansado
e sonolento. Perdoe-me, Mestre, mas é a verdade.
– E será a verdade de muitos! O mundo dos evangelizados responderá
frequentemente ao Juiz eterno, para desculpar sua ignorância, não obstante
os ensinamentos dos meus apóstolos, responderá como estás dizendo:
“Pensei que fôsse um delírio… Estava cansado e sonolento.” E muitas
vezes não admitirá a verdade porque a tomará por delírio, e não lembrará a
verdade porque estará cansado e sonolento, por causa de coisas demais,
inúteis, caducas e até pecaminosas. Uma só coisa é necessária: conhecer a
Deus.
– Pois bem. Agora que nos dissestes o que é bom para nós, conta-nos
como foi que as coisas aconteceram… Conta ao teu Pedro. Depois eu conto
ao povo. Senão… eu te disse: Que posso dizer? O passado eu não sei; as
profecias e o Livro, não sei explicar; o futuro… oh! pobre de mim! E que
evangelizo então?
– Sim, Mestre. Que o saibamos nós também… Sabemos que és o
Messias e assim cremos. Mas, pelo menos de minha parte, tive dificuldades
em admitir que de Nazaré pudesse sair alguma coisa boa… Por que não me
fizeste conhecer logo o teu passado? diz Bartolomeu.
– Para provar a tua fé e a luminosidade do teu espírito. 136.6Mas agora
irei falar-vos, ou melhor, iremos falar do meu passado. Eu direi aquilo que
nem os pastores sabem e eles dirão o que viram. E ficareis conhecendo a
aurora de Cristo Escutai.
Tendo chegado o tempo da Graça, Deus preparou para si a sua Virgem.
Vós bem podeis compreender como Deus não podia morar onde satanás
tinha deixado impresso um sinal indelével. Por isso, o Poder operou para
fazer o seu futuro Tabernáculo sem mácula. E de dois justos, já em sua
velhice e contra as regras comuns[69] da procriação foi concebida Aquela na
qual não há mácula nenhuma.
Quem colocou alma numa carne embrionária, que fazia reverdecer o
velho ventre da Ana de Arão, a minha avó? Tu, Levi, viste o arcanjo que fez
todos os anúncios. Podes dizer quem é ele. Porque a “Força de Deus”[70] foi
sempre o vitorioso, que levou o canto de alegria aos santos e aos Profetas, o
indomável, no qual a força, ainda que grande de satanás, partiu-se como um
pedúnculo de musgo ressequido, o inteligente que, com presteza, realizou a
obra de Deus, e, com sua boa e lúcida inteligência, afastou as ciladas do
outro, que era inteligente, mas era mau.
Com um grito de júbilo, ele, o Anunciador, que já conhecia os
caminhos da terra, pois já havia descido para falar aos Profetas, recolheu do
Fogo divino a imaculada centelha, que era a alma da eterna Menina e,
encerrando-a dentro de um halo de chamas angélicas, que eram as do seu
espiritual amor, levou-a até a terra, até uma casa, até um ventre. E o mundo,
desde aquele momento teve a Adoradora; e Deus, desde aquele momento,
pôde olhar para um ponto da terra, sem sentir desgosto ao fazê-lo. E nasceu
uma pequena criatura: a Amada de Deus e dos anjos, a Consagrada a Deus,
a santamente Amada pelos parentes.
“E Abel deu a Deus as primícias do seu rebanho”. Oh! Em verdade os
avós do eterno Abel souberam dar a Deus a primícia do seu bem, todo o seu
bem, morrendo por haverem dado este bem a quem lhes havia dado.
Minha Mãe foi a Menina do Templo, dos três aos quinze anos e
apressou a vinda do Cristo com a força do seu amor. Virgem, antes de sua
concepção, virgem na escuridão de um ventre, virgem em seus vagidos,
virgem em seus primeiros passos, a Virgem foi de Deus, só de Deus, e
proclamou o seu direito, superior ao decreto da Lei de Israel, obtendo do
esposo, que lhe foi dado por Deus, poder permanecer inviolada, depois das
núpcias.
José de Nazaré era um justo. Só a ele podia ser dado o Lírio de Deus e
só ele o teve. E, sendo anjo na alma e na carne, amou, como amam os anjos
de Deus. O abismo desse forte amor, que teve todas as ternuras conjugais,
sem ultrapassar a barreira do fogo celeste, além do qual estava a Arca do
Senhor, só será compreendido por poucos nesta terra. É o testemunho do
que pode um justo, contanto que queira. O que pode, porque até a alma,
ainda lesada pela mancha de origem, tem poderosas forças de elevação,
recordações e retornos à sua dignidade de filha de Deus, e opera
divinamente por amor do Pai.
Maria ainda estava em sua casa, esperando sua união com o esposo,
quando Gabriel, o anjo dos divinos anúncios, voltou à terra e pediu à
Virgem que se tornasse Mãe. Ele já havia prometido o Precursor ao
sacerdote Zacarias, que não creu nele. Mas a Virgem creu que isso pudesse
ser, por vontade de Deus e, sublime em sua ignorância, somente perguntou:
“Como poderá acontecer isso?”
E o anjo lhe respondeu: “Tu és a Cheia de Graça, ó Maria. Portanto,
não temas, porque achaste graça junto ao Senhor, também quanto ao que se
refere à tua virgindade. Conceberás e darás à luz um Filho, ao qual darás o
nome de Jesus, porque Ele é o Salvador prometido a Jacó e a todos os
Patriarcas e Profetas de Israel. Ele será grande e Filho verdadeiro do
Altíssimo, porque, por obra do Espírito Santo, será concebido. A Ele o Pai
dará o trono de Davi, como foi predito, e reinará na casa de Jacó, até o fim
dos séculos, mas o seu verdadeiro Reino nunca terá fim. Agora, o Pai, o
Filho e o Espírito Santo esperam a tua obediência, para que se cumpra a
promessa. O Precursor do Cristo já está no ventre de Isabel, tua prima e, se
tu consentes, o Espírito Santo descerá sobre ti, e santo será Aquele que de ti
nascer e levará o seu verdadeiro nome de Filho de Deus.”
Então Maria respondeu: “Eis a Serva do Senhor. Faça-se em mim
segundo a sua palavra.” E o Espírito de Deus desceu sobre sua Esposa e, no
primeiro abraço, deu-lhe suas luzes, que aperfeiçoaram em sumo grau as
virtudes do silêncio, da humildade, da prudência e da caridade, de que Ela
estava cheia, e Ela tornou-se uma só coisa com a Sabedoria, e não mais
pôde separar-se da Caridade, e a Obediente e Casta perdeu-se no oceano da
Obediência, que sou Eu, e conheceu a alegria de ser Mãe, sem conhecer a
perturbação de ser deflorada. Foi a neve que se concentra em flor e se
oferece a Deus assim…
136.7 – Mas e o marido? –pergunta, atordoado, Pedro.
– O selo de Deus fechou os lábios de Maria. E José não soube do
prodígio, senão quando, ao voltar da casa de Zacarias, parente dela, Maria
apareceu com os sinais de mãe aos olhos do esposo.
– E que fez ele?
– Sofreu… e Maria também sofreu…
– Se fôsse eu…
– José era um santo, Simão de Jonas. Deus sabe onde coloca os seus
dons… Amargamente sofreu e decidiu abandoná-la, tomando sobre si a
pecha de injusto. Mas o anjo desceu até ele, para dizer-lhe: “Não tenhas
medo de tomar Maria por tua esposa. Porque o que Nela se está formando é
o Filho de Deus e por obra de Deus é que Ela é Mãe. E, quando o Filho
nascer, tu porás Nele o nome de Jesus, porque Ele é o Salvador.”
– José era instruído? –pergunta Bartolomeu.
– Como um descendente de Davi.
– Então terá recebido repentina luz, ao recordar-se daquilo do Profeta:
“Eis que uma virgem conceberá…”
– Sim. Ele recebeu. À prova, seguiu-se a alegria…
– Se fôsse eu… –torna a dizer Simão Pedro–, a mim não sucederia,
porque antes eu teria… Oh! Senhor, como foi bom que não tenha sido eu!
Eu a teria despedaçado como a uma haste, sem dar-lhe tempo de falar. E
depois, se não tivesse cometido assassínio, teria ficado com medo Dela… O
medo de Israel inteiro, desde séculos, pelo Tabernáculo…
– Também Moisés teve medo de Deus e, no entanto, foi socorrido e
esteve com Ele no monte… José foi, portanto, para a casa santa da Esposa e
proveu as necessidades da Virgem e do Nascituro. E quando chegou para
todos o tempo do edito, com Maria foi para a terra dos seus pais, e Belém
os repeliu, porque o coração dos homens estava fechado à caridade.
136.8Agora, falai vós.
– Eu, quando já vinha chegando a tarde, encontrei uma mulher jovem e
sorridente, sentada sobre um burrinho. Um homem ia com ela. Ele pediu-
me leite e informações. E eu disse o que sabia. Depois veio a noite… e uma
grande luz… e nós saímos… e o Levi viu um anjo perto da estrebaria. E o
anjo disse: “Nasceu o Salvador.” Era noite cheia. E o céu estava pleno de
estrelas. Mas a luz sumia diante da do anjo e de milhares e milhares de
anjos… (Elias ainda chora, ao lembrar-se). E disse-nos o anjo: “Ide adorá-
lo. Está em uma estrebaria, em uma manjedoura, entre dois animais…
Encontrareis um Menino pequeno, envolvido em pobres panos…” Oh!
Como cintilava o anjo, ao dizer estas palavras!! Mas, lembras-te, Levi, de
como das asas dele se desprendiam chamas, quando, depois de ter-se
inclinado para dizer o nome do Salvador, disse: “… que é o Cristo Senhor”?
– Oh! Se me lembro! E as vozes daqueles milhares? Oh!! “Glória a
Deus nos Céus altíssimos e paz na terra aos homens de boa vontade!”
Aquela música está aqui, está aqui, e me transporta ao Céu, cada vez que a
ouço –e Levi ergue um rosto extático, sobre o qual já está brilhando o
pranto.
– Então nós fomos –diz Isaque–. Carregados como uns animais de
carga, alegres como quem vai para núpcias, e depois… não soubemos mais
fazer nada, quando ouvimos a tua vozinha e a de tua Mãe, e mandamos o
Levi, que ainda era menino, fôsse olhar. Nós nos sentíamos como uns
leprosos, junto a tanto candor… E o Levi estava escutando, e ria chorando,
e ia repetindo, assim com voz de cordeiro, até que a ovelha de Elias soltou
um balido. E José se aproximou da abertura e nos fez entrar… Oh! Como
eras pequenino e bonito! Um botão de rosa, uma carne delicada, sobre um
feno áspero… e choravas… Depois, sorriste, ao sentir o calor da pele de
ovelha que te oferecemos e com o leite que ordenhamos para Ti… Foi a tua
primeira refeição… Oh!! e depois… e depois te beijamos… Tinhas um
cheiro de amêndoa e jasmim… e nós não podíamos mais deixar-te…
– De fato, não me deixastes mais.
– É verdade –diz Jônatas–. O teu rosto ficou em nós, a tua voz, o teu
sorriso… Ias crescendo… eras cada vez mais belo… O mundo dos bons
vinha deliciar-se de Ti… e o dos maus não te via… Ana… os teus primeiros
passos… os três Sábios… a estrela…
– Oh! Aquela noite, que luz! O mundo parecia arder com mil luzes. Ao
invés, na tarde do dia da tua vinda, a luz era fixa, cor de pérola… Agora,
era a dança dos astros, antes fora a adoração dos astros. E nós, de um lugar
alto, vimos passar a caravana e a fomos acompanhando para ver se
parava… E, no dia seguinte, toda Belém pôde ver a adoração dos Sábios.
136.9Depois… Oh! Não vamos falar do horror!! Não vamos dizer nada!
E Elias empalidece, só de recordar.
– Sim, não o digas. Silêncio quanto ao ódio…
– A maior dor era não te ter mais e não ter notícias de Ti. Nem Zacarias
sabia nada. Ele era a nossa última esperança… Depois, nada mais.
– Por que, Senhor, não confortaste os teus servos?
– Perguntas o porquê, Filipe? Porque era prudente fazer assim. Vê que
nem Zacarias, cuja formação espiritual se completou depois daquela hora,
quis levantar o véu. Zacarias…
– Mas nos disseste que foi ele que se ocupou dos pastores. E, então, por
que ele não disse, primeiro a eles, e depois a Ti, que uns estavam
procurando o Outro?
– Zacarias era um justo todo homem. Tornou-se menos homem e mais
justo nos nove meses de mutismo, se aperfeiçoou nos meses sucessivos ao
nascimento de João, mas tornou-se um espírito justo, quando sobre sua
soberba de homem caiu o desmentido de Deus. Ele tinha dito: “Eu,
sacerdote de Deus, digo que é em Belém que deve viver o Salvador” e Deus
lhe tinha mostrado como o juízo, mesmo sacerdotal, se não for iluminado
por Deus, é um pobre juízo. Sob o horror do pensamento: “Podia ter feito
matar a Jesus pela minha palavra”, Zacarias se tornou o justo, que agora
repousa, esperando o Paraíso. A justiça lhe ensinou prudência e caridade.
Caridade para com os pastores, prudência para com o mundo, ao qual o
Cristo devia ser desconhecido. Quando, de volta para a pátria, nos dirigimos
para Nazaré, pela mesma prudência que agora guiava Zacarias, evitamos
Hebron e Belém, e costeando o mar, voltamos para a Galileia. Nem mesmo
o dia de minha maioridade foi possível Zacarias ver, que partira um dia
antes, com o seu menino, para a mesma cerimônia.
Deus velava, Deus provava, Deus provia, Deus aperfeiçoava. Ter a
Deus é também ter esforço, não só ter alegria. E esforços não pouparam o
meu pai de amor e a minha Mãe de alma e de carne. Até o que era lícito foi
proibido, para que o mistério circundasse com sombras o Messias Menino.
136.10 E isto explique a muitos que não compreendem, a dupla razão da
aflição, quando fiquei perdido por três dias. Amor de mãe, amor de pai pelo
menino perdido, tremor dos guardas do Messias, pois ele podia ter-se
revelado antes do tempo, terror de ter guardado mal a Salvação do mundo e
o grande dom de Deus. Este o motivo do insólito grito: “Filho, por que nos
fizeste isso? Teu pai e eu, angustiados, te estávamos procurando!” Teu pai,
tua mãe… Era um véu lançado sobre o fulgor do divino Encarnado. E a
resposta tranquilizadora: “Por que me estáveis procurando? Não sabíeis que
Eu devo estar ativo nas coisas do meu Pai?” Resposta recebida e
compreendida pela Cheia de Graça, o tanto quanto ela significa, ou seja:
“Não tenhais medo. Pequeno sou, um menino. Mas, se cresci em minha
humanidade, em estatura, sabedoria e graça, aos olhos dos homens, Eu sou
o Perfeito, como Filho do Pai e, portanto, sei regular-me com perfeição,
servindo ao Pai, ao fazer que resplandeça sua luz, servindo a Deus, ao
procurar conservar o seu Salvador.” E assim vim fazendo até o ano passado.
Agora chegou o tempo. Levantam-se os véus. E o Filho de José se
mostra em sua natureza: o Messias da Boa Nova, o Salvador, o Redentor e o
Rei do século futuro.
– E não viste nunca mais João?
– Só à beira do Jordão, meu João, quando quis o Batismo.
– De modo que, Tu não sabias que Zacarias tinha feito um bem a estes?
– Eu já te disse: depois do banho do sangue inocente, os justos se
tornaram santos e os homens se tornaram justos. Somente os demônios
permaneceram como eram. Zacarias aprendeu a santificar-se com a
humildade, a caridade, a prudência, o silêncio.
136.11 – Eu quero lembrar-me de tudo isso. Será que vou poder? –diz
Pedro.
– Fica bonzinho, Simão. Amanhã peço aos pastores que repitam tudo.
Com paz. No pomar. Uma, duas, três vezes, se for preciso. Eu tenho boa
memória, exercitada em meu banco, e me lembrarei por todos. Quando
quiseres, eu te poderei repetir tudo. Nem apontamentos eu tinha em
Cafarnaum, contudo… –diz Mateus.
– Oh! Não te enganavas nem um didracma!! Eu me lembro… Bem! Eu
te perdoo o passado, mas de coração mesmo, se te lembrares desta
história… e contares a mim muitas vezes. Quero que ela fique em minha
memória, como ficou na destes… como Jonas que a reteve… Oh! Morrer
dizendo o seu Nome!!!
Jesus olha para Pedro e sorri. Depois se levanta e o beija sobre os
cabelos grisalhos.
– Por que Mestre, este teu beijo?
– Porque foste profeta. Tu morrerás dizendo o meu Nome. Eu beijei o
Espírito que falava em ti.
Depois, Jesus entoa forte um salmo e todos, de pé, fazem-lhe eco:
– “Levantai-vos e bendizei o Senhor vosso Deus, de eternidade em
eternidade. Seja bendito o seu Nome sublime e glorioso, com todo o louvor
e bênção. Tu só és o Senhor. Tu fizeste o céu e o céu dos céus e todo o seu
exército, a terra e tudo o que ela contém”, etc. (é o hino cantado pelos
levitas na festa da consagração do povo, cap IX do 2°. livro de Esdras) e
tudo termina com este longo canto[71], que não sei se é o do rito antigo ou
se Jesus o diz por si mesmo.
[68] como Ester, na narração de: Ester 2,1-18
[69] contra as regras comuns, expressão que vem explicada por MV com a seguinte nota numa cópia datilografada: Maria
nasceu de união carnal. Mas “contra as regras comuns” porque por defeito orgânico e por idade Ana, sem um milagre querido
por Deus, não mais teria podido fazê-lo.
[70] Força de Deus é o significado etimológico de Gabriel, o nome do arcanjo de todos os anúncios, que desceu a falar aos
profetas, como em: Daniel 8,15-27; 9,20-27.
[71] longo canto, que na neo-vulgata está em: Neemias 9,5-36.
137. Jesus volta a Águas Belas e encontro com
os fariseus que agrediram e expulsaram a
“velada”
15 de abril de 1945.
137.1Jesus, junto aos seus apóstolos, atravessa os campos planos de
Águas Belas. O dia é chuvoso e o lugar deserto. Deve ser por volta do
meio-dia, pois o sol, que de vez em quando sai como um fantasma por
detrás da cortina cinzenta das nuvens, está mandando perpendicularmente
os seus raios.
Jesus fala com Iscariotes e o encarrega de ir ao povoado fazer as
compras mais urgentes.
Quando Jesus fica sozinho, o alcança André e, sempre tímido, lhe diz
em voz baixa:
– Podes ouvir-me, Mestre?
– Sim. Vem Comigo, vamos para a frente –e alonga o passo, seguido
pelo apóstolo, afastando-se alguns metros dos outros.
– A mulher não está mais aí, Mestre! –diz aflito o André.
E explica:
– Bateram nela e ela fugiu. Estava ferida e sangrando. O feitor a viu.
Fui na frente, dizendo que ia ver se não havia alguma emboscada, mas era
porque eu queria ir logo até ela. Esperava tanto levá-la à Luz! Rezei tanto
neste dias para isso! Agora ela fugiu! Vai extraviar-se. Soubesse onde ela
está, iria ao encontro dela… Não diria isto aos outros, mas a Ti, sim, porque
me compreendes. Sabes que não há sensualidade nesta procura, mas só
desejo — oh! tão grande, que se torna um tormento — de pôr a salvo uma
minha irmã…
– Eu sei, André, e te digo que, mesmo assim como aconteceram as
coisas, o teu desejo se cumprirá. Nunca fica perdida uma oração feita neste
sentido. Deus quer servir-se dela e ela se salvará.
– Tu dizes isso? Oh! A minha dor se torna mais tolerável!
137.2 – Não gostarias de saber o que está havendo com ela? Não te
importa nem mesmo saber se serás tu, ou não, quem a conduzirá a Mim?
Não perguntas como fará?
Jesus sorri docemente, com um brilho de luz em suas pupilas azuis
voltadas para o apóstolo, que vai caminhando a seu lado. É um daqueles
sorrisos e daqueles olhares que constituem alguns dos segredos de Jesus
para conquistar os corações.
André, com seus doces olhos castanhos, olha para Ele e diz:
– Basta-me saber que ela virá a Ti. Eu ou outro não faz diferença.
Como fará? Isto Tu o sabes e eu não tenho necessidade de sabê-lo. Tenho a
tua garantia e sou feliz.
Jesus lhe passa o braço por detrás dos ombros e o atrai para si, com um
abraço afetuoso, que leva ao êxtase o bom André. E Jesus, segurando-o
assim:
– Este é o dom do verdadeiro apóstolo. Vê, meu amigo, a tua vida e a
dos futuros apóstolos será sempre assim. Algumas vezes ficareis sabendo
que sois os “salvadores.” Mas, na maior parte das vezes, salvareis sem
ficardes sabendo que salvastes as pessoas que mais quereríeis salvar. Só no
Céu vereis virem ao vosso encontro, ou subirem para o Reino eterno, os
vossos salvados. E o vosso júbilo de bem-aventurados aumentará, a cada
um que for sendo salvo. Algumas vezes o sabereis, desde esta vida. São as
alegrias que Eu vos dou, para infundir um vigor ainda maior para novas
conquistas. Mas, feliz do sacerdote que não sente falta desses estímulos
para cumprir o seu dever! Feliz daquele que não se abate, por não ver
triunfos e diz: “Não vou fazer mais nada, porque não tenho satisfação.” A
satisfação apostólica, tida como único incentivo para o trabalho, mostra
não-formação apostólica, rebaixa o apostolado, coisa espiritual, ao nível de
um trabalho humano comum. É necessário nunca cair na idolatria do
ministério. Não sois vós os que devem ser adorados. Mas o Senhor vosso
Deus. Só a Ele a glória pelos que se salvam. A vós competem os trabalhos
para a salvação, deixando para o tempo do Céu a glória de terdes sido uns
“salvadores.” 137.3Mas tu me disseste que o feitor a viu. Conta-me como
foi”.
– Três dias depois de termos partido, chegaram uns fariseus para
procurar-te. E é natural que não nos encontraram. Saíram pelos povoados e
pelas casas do campo, mostrando-se ansiosos por te encontrar. Mas
ninguém acreditava neles. Então eles foram colocar-se na estalagem,
expulsando, com prepotência, todos aqueles que lá estavam, porque,
diziam, não queriam contatos com estranhos desconhecidos, que podiam até
profaná-los. E todos os dias iam à casa. Depois de alguns dias, encontraram
a pobrezinha, que sempre ia lá, porque talvez esperava encontrar-te e ter a
sua paz. Mas eles a fizeram fugir, perseguindo-a até o seu abrigo, na
estrebaria do feitor. Não a agrediram logo, porque ele tinha chegado com os
seus filhos e armados de paus. Mas, depois, ao anoitecer, quando ela saiu,
eles voltaram e se ajuntaram a uns outros e, quando ela foi à fonte,
surpreenderam-na com pedradas, chamando-a de “meretriz” e apontando-a
como o opróbrio do povoado. E, como ela queria fugir, eles a alcançaram, e
a maltrataram, arrancaram-lhe o véu e o manto, para que todos pudessem
vê-la e ainda bateram nela, impondo-se com sua autoridade ao sinagogo
para que a amaldiçoasse, a fim de poder ser apedrejada e amaldiçoasse a Ti,
que a tinhas trazido para o povoado. Mas ele não quis fazer nada e agora
espera a maldição do Sinédrio. O feitor a arrancou das mãos daqueles
carrascos e a socorreu. Mas, durante a noite, ela foi-se embora, deixando
uma pulseira com algumas palavras escritas num pedaço de pergaminho.
Ela escreveu: “Obrigada. Reza por mim.” O feitor diz que ela é jovem e
muito bonita, embora muito pálida e magra. Saiu procurando-a pelo campo,
porque estava muito ferida. Mas não a encontrou. E não sabe como possa
ter ido longe. Talvez tenha morrido, assim, em algum lugar… e não se tenha
salvado…
– Não.
– Não? Não morreu? Ou não se perdeu?
– O desejo da redenção já é uma absolvição. Ainda que ela tivesse
morrido, teria sido perdoada, porque procurou a Verdade, pondo o Erro sob
seus pés. Mas não morreu. Está subindo as primeiras ladeiras do monte da
redenção. Eu a estou vendo… Curvada sob seu pranto de arrependimento;
mas o pranto a torna sempre mais forte, enquanto que o peso diminui. Eu a
estou vendo. Procede rumo ao sol. Quando tiver subido toda a encosta,
estará na glória do Sol-Deus. Vai subindo… Ajuda-a com a tua oração.
– Oh! Meu Senhor!
André fica quase aterrorizado por poder ajudar uma alma em sua
santificação.
Jesus sorri mais docemente ainda. E diz:
– Vai ser preciso abrir os braços e o coração para o sinagogo, que está
sendo perseguido e ir abençoar o bom feitor. Vamos aos nossos
companheiros para dizer-lhes isto.
137.4 Mas enquanto, refazendo o caminho já feito, alcançam os dez, que
tinham parado à distância compreendendo que André está em uma conversa
secreta com o Mestre, chega correndo Iscariotes. Parece uma grande
borboleta volitando sobre os prados, de tão velozmente que corre, com o
manto esvoaçando atrás e fazendo com os braços os mais incríveis sinais.
– Mas, que é que ele tem? –pergunta Pedro–. Terá ficado louco?
Antes que alguém possa responder-lhe, Iscariotes, tendo chegado mais
perto, pode gritar com a respiração entrecortada:
– Para, Mestre. Escuta-me, antes de ires à casa… Há uma emboscada.
Oh! Que covardes!! –e corre.
Ei-lo junto a Jesus:
– Ó Mestre! Não se pode mais ir para lá! Os fariseus estão no povoado,
e todos os dias vão à casa. Eles estão te esperando para te prejudicarem.
Estão mandando embora os que vêm procurar-te. Com maldições horrendas
os amedrontam. Que queres fazer? Aqui serias perseguido e a tua obra
reduzida a nada… Um deles me viu e me agrediu. É um velho feio e
narigudo, que me conhece, porque é um dos escribas do Templo. Porque há
também uns escribas. Ele me agrediu, agarrando-me com suas mãos e unhas
e insultando-me com sua voz de falcão. Enquanto insultou a mim e me
arranhou, olha… (e mostra um pulso e uma das faces marcados com claros
sinais de unhadas) eu o deixei fazer. Mas quando ele quis babar sobre Ti, eu
o peguei pelo pescoço…
– Mas Judas! –grita Jesus.
– Não, Mestre. Eu não o estrangulei. Somente o impedi de blasfemar
contra Ti e depois o deixei ir-se embora. Agora, ele está lá morrendo de
medo pelo perigo por que passou… Mas nós vamos embora, é o que te
peço. Mesmo porque ninguém mais poderia vir a Ti…
– Mestre!
– Mas é um horror!
– Judas tem razão.
– Eles estão de emboscada, como hienas!
– Fogo do céu que desceste sobre Sodoma, por que não voltas?
– Mas sabes que foste um bravo, rapaz? É pena que eu também não
estava lá; eu te teria ajudado.
– Oh! Pedro! Se estivesses lá, tu também, aquele falcãozinho teria
perdido as penas e a voz para sempre.
– Mas como fizeste para… para não chegar até o fim?
– Ah!! Foi uma luz que brilhou em minha mente, o pensamento que me
veio, talvez do fundo do coração: “O Mestre condena a violência”, e então
eu parei, sentindo com isso um choque ainda mais profundo do que aquele
que tinha recebido da parede contra a qual me havia jogado o escriba,
quando me agrediu. Fiquei com os nervos moídos… tanto que depois não
mais teria tido força para enfurecer. Como cansa vencer a si mesmo!!
– És mesmo um bravo! Não é verdade, Mestre? Não dizes o que achas?
Pedro está tão feliz com o ato de Judas, que nem vê como Jesus mudou
daquele rosto iluminado de antes, para um rosto severo, que lhe escurece o
olhar e fecha-lhe a boca, que parece se torne mais fina.
Ele a abre para dizer:
– Eu digo que estou mais desgostoso com o vosso modo de pensar, do
que com a conduta dos judeus. Eles são uns infelizes, no escuro. Vós, que
estais com a Luz, sois duros, vingativos, murmuradores, violentos,
aprovadores do ato brutal, como eles. Digo-vos que me estais dando a prova
de serdes sempre aqueles que éreis, quando me vistes pela primeira vez. E
fico sentido com isso. Quanto aos fariseus, ficai sabendo que Jesus Cristo
não foge. Vós, retirai-vos. Eu os enfrento. Não sou um covarde. Quando
tiver falado com eles e não os tiver convencido, me retirarei. Não se há de
dizer que Eu não procurei, por todos os meios, atraí-los a Mim. Eles
também são filhos de Abraão. Eu faço o meu dever até o fim. A condenação
deles há de ser causada unicamente por sua má vontade e não por algum
descuido de minha parte para com eles.
E Jesus vai em direção à casa, que mostra o seu telhado baixo, para lá
de uma fileira de árvores despidas. Os apóstolos o seguem de cabeça baixa,
falando baixo entre si.
137.5 Ei-los na casa. Em silêncio entram na cozinha. E põem-se a
trabalhar ao redor do fogão. Jesus está absorto em seu pensamento.
Estão para começar a comer, quando um grupo de pessoas aparece à
porta.
– Aí estão eles –cochicha Iscariotes.
Jesus se levanta logo e vai ao encontro deles. É tão majestoso, que o
pequeno grupo recua um passo, por um instante. Mas a saudação de Jesus
os tranquiliza:
– A paz esteja convosco. Que desejais?
Então os infames acham que podem atrever-se a tudo e arrogantemente
o intimam:
– Em nome da Lei santa, te ordenamos que deixes este lugar. Tu,
perturbador das consciências, violador da Lei, corruptor das tranquilas
cidades de Judá. Não tens medo do castigo do Céu, Tu, arremedador do
Justo que está batizando no Jordão, Tu, que proteges as meretrizes? Fora da
terra santa de Judá! Que o teu hálito não passe para dentro dos muros da
cidade santa.
– Eu não faço nada de mal. Ensino como rabi, curo como taumaturgo,
expulso os demônios como exorcista. Estas categorias existem também em
Judá. E Deus, que as quer, as faz respeitar e venerar por vós. Eu não peço
veneração. Só peço que me deixem fazer o bem aos que estão enfermos na
carne, na mente ou no espírito. Por que é que me proibis?
– Tu és um possesso. Sai daí.
– O insulto não é uma resposta. Eu vos perguntei por que me proibis,
enquanto que a outros o permitis.
– Porque és um possuído, e expulsas os demônios e fazes milagres com
a ajuda dos demônios.
– E os vossos exorcistas então? Com ajuda de quem o fazem?
– Com a sua vida santa. Tu és um pecador. E para aumentar o teu poder,
ainda te serves das pecadoras porque, no conúbio se aumenta a posse da
força diabólica. A nossa santidade purificou a zona da tua cúmplice. Mas
não permitimos que Tu fiques aqui, para não ficares atraindo outras fêmeas.
– Mas esta casa é vossa? –pergunta Pedro, que se aproximou do Mestre,
com um aspecto pouco recomendável.
– A casa não é nossa. Mas todo Judá e todo Israel está nas mãos santas
dos puros de Israel.
– Que seríeis vós! –termina Iscariotes, que foi também para a saída e
que termina com uma risada zombeteira.
Depois, pergunta:
– E o outro amigo vosso, onde está? Ainda está tremendo? Ó
desavergonhados, ide-vos embora! E já. Senão eu vos farei arrepender de…
– Silêncio, Judas. E tu, Pedro, volta ao teu lugar. 137.6Ouvi, vós, ó
fariseus e escribas. Para o vosso bem, por piedade da vossa alma. Eu vos
peço que não combatais contra o Verbo de Deus. Vinde a Mim. Eu não vos
odeio. Conheço a vossa mentalidade e me compadeço dela. Mas quero
levar-vos a uma mentalidade nova, santa, capaz de santificar-vos e de dar-
vos o Céu. Mas credes vós que Eu tenha vindo para combater-vos? Oh!
Não! Eu vim para salvar-vos. Eu vim para isto. Eu vos tomo sobre o
coração. Eu vos peço amor e entendimento. Justamente porque sois os mais
sábios de Israel, deveis compreender, mais do que todos, a verdade. Sede
alma e não corpo. Quereis que Eu vos suplique de joelhos? A aposta é tão
grande — a vossa alma — que sob os pés colocar-me-ia, para conquistá-la
para o Céu, certo que o Pai não julgaria um erro essa minha humilhação.
Dizei! Dizei uma palavra, que estou esperando!
– Maldição é o que dizemos.
– Está bem. Está dito. Então, ide. Eu também me vou.
E Jesus vira-lhes as costas, voltando ao seu lugar. Inclina a cabeça
sobre a mesa e chora.
Bartolomeu fecha a porta, para que nenhum dos cruéis, que o
insultaram, e que se vão com ameaças e blasfêmias contra o Cristo, veja
este pranto.
Um longo silêncio, e depois Tiago do Alfeu acaricia sobre a cabeça o
seu Jesus e diz:
– Não chores. Nós te amamos. Também por eles.
Jesus ergue o rosto e diz:
– Não choro por Mim. Choro por eles, que se matam, surdos a todos os
convites.
– Que faremos agora, Senhor? –pergunta o outro Tiago.
– Iremos para a Galileia. Amanhã de manhã partiremos.
– Por que não hoje, Senhor?
– Não. Eu preciso saudar os bons deste lugar. E vós ireis Comigo.
138. Despedida do feitor de Águas Belas
e do sinagogo Timoneo, que se torna discípulo.
16 de abril de 1945.
138.1 – Senhor, eu não fiz mais do que o meu dever para com Deus, para
com o meu patrão e para com a honestidade da consciência. Aquela mulher
foi por mim vigiada em todo o tempo em que era minha hóspede e a vi
sempre como mulher honesta. Pode ter sido até uma pecadora. Mas agora
não é. Por que eu hei de ficar indagando a respeito de um passado, sobre o
qual ela pôs um cancelamento, para anulá-lo? Eu tenho filhos moços e que
não são feios. E ela nunca mostrou o seu rosto, que na verdade é bonito,
nem fez ouvir sua palavra. Posso dizer que ouvi o tom de sua voz de prata,
só quando gritou, por ter sido ferida. Fora disso, o pouco que ela pedia e
sempre a mim ou à minha mulher, o sussurrava atrás do véu, e tão baixo,
que quase não se entendia. Vê também como foi prudente. Quando teve
medo de que a sua presença pudesse causar prejuízos, foi-se embora… Eu
lhe havia prometido defesa e ajuda. Mas ela não se valeu disso. Não. Não é
assim que fazem as mulheres perdidas! Eu rezarei por ela, como ela pediu, e
mesmo sem esta lembrança. Toma isto aqui, Senhor. Faz esmola com isto,
para o bem dela. Feita por Ti, com certeza lhe trará paz.
O feitor fala respeitosamente a Jesus. Ele é um belo homem, de rosto
honesto e corpo robusto. Atrás dele estão seis filhos jovens parecidos com o
pai, seis rostos sinceros e inteligentes, e está também a esposa, uma
mulherzinha delicada e amável, que escuta o seu marido, como se estivesse
escutando um deus, anuindo, de contínuo, com a cabeça.
Jesus pega a pulseira de ouro e a entrega a Pedro, dizendo:
– Para os pobres.
Depois, vira-se para o feitor:
– Nem todos têm a tua retidão em Israel. Tu és sábio, porque distingues
o bem do mal e segues o bem, sem calcular que vantagem humana há em
fazê-lo. Em nome do eterno Pai, Eu abençoo a ti, aos teus filhos, a tua
esposa, a tua casa. Conservai-vos sempre nestas disposições de espírito e o
Senhor estará sempre convosco, e tereis a vida eterna. Eu agora me vou.
Mas não está dito que nunca mais nos vejamos de novo. Eu voltarei e vós
podereis sempre vir a Mim. Por tudo o que fizestes por Mim e por aquela
pobre criatura, Deus vos dê a sua paz.
O feitor, os filhos, e, por fim, a mulher, ajoelham-se e beijam os pés de
Jesus que, depois de um gesto de bênção, afasta-se junto com os seus
discípulos, dirigindo-se para o povoado.
138.2 – E se ainda estiverem por aí aqueles homens maus? –pergunta
Filipe.
– Não se pode impedir a ninguém que ande pelos caminhos da terra –
responde Judas de Alfeu.
– Não. Mas para eles nós somos uns “malditos.”
– Oh! Deixa-os! Estás preocupado com eles?
– Eu só me preocupo, porque o Mestre não quer violências. E eles,
sabendo disso, disso tiram vantagens –resmunga Pedro, por entre a barba. E
certamente pensa que Jesus, que está falando com o Simão e Iscariotes, não
o esteja ouvindo.
Mas Jesus o está ouvindo e, com um rosto meio severo, meio
sorridente, se vira e diz:
– Pensas tu que Eu venceria, fazendo violência? Ora, este é um pobre
sistema humano e que serve temporariamente, para obter vitórias humanas.
Quanto tempo dura a violência? Dura até que ela, por si mesma, gere
reações nos oprimidos e eles, reunindo-se, formem uma violência maior que
abate a primeira. Eu não quero um reino temporário. Eu quero um reino
eterno: o Reino dos Céus. Quantas vezes vo-los disse? Quantas vezes
deverei dizê-lo? Compreendê-lo-eis algum dia? Sim, chegará o momento
em que o compreendereis.
– Quando, meu Senhor? Eu tenho pressa de compreender, para ser
menos ignorante –diz Pedro.
– Quando? Quando fordes moídos como o grão, entre as pedras da dor
e do arrependimento. Poderíeis, ou melhor, deveríeis compreender antes.
Mas, para fazer isto, deveríeis destruir a vossa humanidade e deixar livre o
espírito. E esta força sobre vós mesmos, vós não a sabeis fazer. Mas
compreendereis… compreendereis. E então compreendereis também que
Eu não podia usar de violência, meio humano, para estabelecer o Reino dos
Céus: o Reino do espírito. Mas, por enquanto, não tenhais medo. Aqueles
homens, de que vos preocupais não nos farão nada. Para eles basta que me
tenham expulsado.
– Mas não era mais fácil mandar avisar ao sinagogo para que ele fôsse
ao feitor, ou que nos ficasse esperando na estrada mestra?
– Oh! Que homem prudente está hoje o meu Tomé! Não era fácil não.
Ou melhor, era mais fácil, mas não era justo. Ele mostrou heroísmo por
Mim e, em sua casa, foi insultado por minha causa. É justo que Eu, na sua
casa, o vá consolar.
Tomé encolhe os ombros e não fala mais.
138.3 Eis o povoado, vasto, mas muito rural, com casas por entre os
pomares, agora despojados de folhas, e com muitos rebanhos. Deve ser um
lugar adequado para o pastoreio, porque, por todos os lados se ouve um
grande balir por rebanhos, que vão e vêm pelos pastos da planície. A
costumeira encruzilhada de caminhos e, no lugar do cruzamento, está a
praça, com a fonte ao centro. E ali está a casa do sinagogo.
Quem abre a porta é uma mulher idosa, que tem claros sinais de pranto
em seu rosto. No entanto, ao ver o Senhor, faz um gesto de alegria e se
prostra no chão, com palavras de bênção.
– Levanta-te, mãe. Eu vim para me despedir de vós. Onde está o teu
filho?
– Está ali… –e acena para um quarto no fundo da casa–. Vieste para
consolá-lo? Eu não sou capaz…
– Ele, então, está desconsolado? Lamenta-se por me ter defendido?
– Não, Senhor. Mas está com um escrúpulo. Tu o ouvirás. Eu vou
chamá-lo
– Não. Vou Eu. Vós, esperai aqui. Vamos, mulher.
Jesus atravessa os poucos metros do vestíbulo, empurra a porta, entra
no quarto, aproxima-se devagar de um homem sentado, inclinado para o
chão, absorto em dolorosas meditações.
– A paz esteja contigo, Timoneo.
– Senhor! Tu!
– Eu. Por que estás tão triste?
– Senhor… Eu… Disseram-me que pequei. Disseram-me que sou
anátema. Eu me estou examinando. E não me parece que seja. Mas eles são
os santos de Israel, e eu o pobre sinagogo. Certamente eles têm razão.
Agora eu não ouso mais levantar o olhar para o rosto irado de Deus. E
precisaria tanto disso, nesta hora! Eu o servia com verdadeiro amor e
procurava torná-lo conhecido. Agora vou ficar privado deste bem, porque o
Sinédrio, com certeza, me amaldiçoa.
– Mas, qual é a tua dor? É por deixares de ser o sinagogo ou de ficar
impossibilitado de falar em Deus?
– Mas é isto, Mestre, que me causa dor! Penso que Tu me queres dizer
se não fico triste de não ser mais o sinagogo por causa das vantagens e da
honra que o cargo me traz. Não penso nisso. Só tenho minha mãe, que
nasceu em Aera, onde tem uma casinha. O teto e com que viver ela tem.
Quanto a mim… eu sou jovem. Trabalharei. Mas nunca mais terei coragem
de falar de Deus, porque eu pequei.
– Por que pecaste?
– Dizem que sou cúmplice do… Oh Senhor! Não me faças dizer!!
– Não. Eu o digo. Não, nem o digo. Eu e tu conhecemos as acusações
deles e Eu e tu sabemos que elas não são verdadeiras. Portanto, tu não
pecaste. É o que te digo.
– Então eu posso ainda levantar o meu olhar para o Onipotente? E te
posso…
– O que, filho?
Jesus está cheio de doçura, enquanto se curva para aquele homem, que
bruscamente se deteve, como atemorizado.
– Deixa disso! Meu pai está procurando o teu olhar, e o quer. E Eu
quero o teu coração e o teu pensamento. Sim, o Sinédrio te punirá. Eu te
abro os braços e digo: “Vem.” Queres ser meu discípulo? Eu vejo em ti tudo
o que é necessário para seres um operário do Patrão eterno. Vem à minha
vinha…
138.4 – Estás falando de verdade, Mestre? Mãe… estás ouvindo? Eu estou
feliz, minha mãe! Eu… bendigo esta dor, porque me deu esta alegria. Oh!
Vamos fazer uma grande festa, mãe! Depois, eu irei com o Mestre e tu
voltarás para a tua casa. Eu vou logo, meu Senhor, pois acabaste com todo o
meu temor, com minha dor e meu medo de Deus.
– Não. Tu esperarás a palavra do Sinédrio. Com coração sereno e sem
ódio. Fica em teu lugar, enquanto nele fores deixado. Depois, me alcançarás
em Nazaré ou em Cafarnaum. Adeus. A paz esteja contigo e com tua mãe.
– Não te deténs em minha casa?
– Não. Eu irei à casa de tua mãe.
– É um povoado pouco fiel.
– Eu lhe ensinarei a fidelidade. Adeus, mãe. Estás feliz agora?
Jesus a acaricia, como sempre faz com as mulheres idosas, às quais,
percebo, quase sempre dá o nome de “mãe.”
– Estou feliz, Senhor. Eu havia criado um varão para o Senhor. E o
Senhor o toma como servo do seu Messias. Seja bendito por isto o Senhor.
Bendito sejas Tu, que és o Messias. Bendita seja a hora em que vieste.
Bendito seja o meu filho, chamado para o teu serviço.
– Bendita seja a mãe santa, como a Ana de Elcana. A paz esteja
convosco.
Jesus sai, seguido pelos dois. Chega até os discípulos, saúda de novo e
começa a sua volta para a Galileia.
139. Nos montes perto de Emaús. O caráter
de Judas Iscariotes e as qualidades dos bons.
17 de abril de 1945.
139.1 Jesus está com os seus em um lugar muito montanhoso. O caminho
é desconfortável e áspero, e os mais velhos vão-se cansando muito. Os
jovens, ao invés, estão alegres perto de Jesus, e vão subindo com agilidade,
conversando entre si.
Os dois primos, os dois filhos de Zebedeu e André estão contentes,
pensando que estão voltando para a Galileia, e a alegria deles é tal, que
contagia até Iscariotes que de algum tempo para cá, tem estado com as
melhores disposições de espírito. Ele se limita a dizer:
– Mas Mestre, pela Páscoa, quando viermos ao Templo… voltaremos a
Keriot? Minha mãe sempre espera ver-te lá em casa. Mandou-me dizer. E o
mesmo se diga dos meus conterrâneos…
– Certamente. Mas agora, ainda que o quiséssemos, esta é uma estação
muito rigorosa para viajar por aqueles caminhos intransitáveis. Vede como
por aqui já é cansativo. E, se não fôsse aquela imposição, não teria
empreendido agora este caminho… Mas não se podia mais ficar…
Jesus se cala, pensativo.
– E depois, quero dizer, pela Páscoa, poderíamos ir? Eu queria mostrar
a tua gruta a Tiago e a André –diz João.
– Estás esquecido do amor de Belém por nós? –pergunta Iscariotes–.
Ou melhor, pelo Mestre.
– Não. Mas eu iria com Tiago e André. Jesus poderia ficar em Juta ou
em tua casa…
– Oh! Isto me agrada. Farás assim, Mestre? Eles vão a Belém e Tu ficas
comigo em Keriot. Só comigo, nunca estiveste… e tenho tanto desejo de
ter-te todo para mim…
– És ciumento? Não sabes que Eu vos amo a todos do mesmo modo?
Não crês que Eu estou com todos vós, mesmo quando pareço estar longe?
– Eu sei que nos amas. Se não nos amasses, deverias ser bem mais
severo, pelo menos comigo. Creio que o teu espírito vela sempre sobre nós.
Mas nós não somos só espírito. Somos também homens, com os amores de
homens, os seus desejos, as suas saudades. Meu Jesus, eu sei que não sou
eu aquele que te faz mais feliz. Mas creio que Tu sabes como é vivo em
mim o desejo de agradar-te e a dor por todas as horas que te perco, por
causa de minha miséria…
– Não, Judas. Eu não te perco. Estou mais perto de ti do que dos outros,
justamente porque conheço quem és tu.
139.2 – O que sou, meu Senhor? Diz. Ajuda-me a compreender o que eu
sou. Eu não me entendo. Parece-me que sou como uma mulher perturbada
por desejos de concepção. Tenho apetites santos e apetites depravados. Por
quê? O que eu sou?
Jesus olha para ele com um olhar indefinível. Está triste, mas com uma
tristeza cheia de piedade. Muita piedade. Parece um médico que constata o
estado de um doente e sabe que é um doente incurável… Mas não diz nada.
– Diz, meu Mestre. O teu julgamento será sempre o menos severo de
todos sobre o pobre Judas. E, além disso, estamos entre irmãos. Não me
importa que saibam de que é que sou feito. Pelo contrário, sabendo por
meio de Ti, corrigirão os seus julgamentos e me ajudarão, não é verdade?
Os outros estão embaraçados e não sabem o que dizer. Olham para o
companheiro e olham para Jesus.
Jesus puxa para perto de si Iscariotes, colocando-o no lugar em que
antes estava o seu primo Tiago, e lhe diz:
– Tu és simplesmente um desordenado. Tens em ti todos os melhores
elementos. Mas não os tens bem firmes. Por isso, o menor sopro de vento
faz desmoronar tudo. Pouco tempo atrás, passamos por aquele desfiladeiro
e lá nos mostraram o dano que sofreram as pobres casas daquele povoado,
por causa da água, da terra e das árvores. Ora, a água, a terra e as árvores
são coisas úteis e abençoadas, não é mesmo? Contudo, naquele lugar se
tornaram malditas. Por quê? Porque a água da torrente não tinha um curso
bem regulado, mas também pela inércia do homem, foi cavando mais leitos,
segundo os seus caprichos. Tudo estava bonito, enquanto não chegava
alguma tempestade. Então era como um trabalho de ourives: aquela água
clara, que banhava o monte em pequenos regatos, era como adereços de
diamantes ou colares de esmeraldas, conforme estivesse refletindo a luz ou
a sombra dos bosques. E o homem se alegrava, porque para os seus
pequenos campos aquelas águas, que então desciam tagarelando, eram
muito úteis. Assim como eram belas as árvores nascidas, por causa de uma
brincadeira dos ventos, em graciosas moitas aqui e ali, deixando clareiras
cheias de sol. E bela era a terra fofa, ali depositada por quem sabe quantos
aluviões, entre ondulações do monte, tão fértil para as culturas. Mas bastou
que chegassem as tempestades de um mês atrás, para que os caprichosos
regatos da torrente se unissem e, desordenadamente, extravasassem para um
outro caminho, levando de roldão as plantas que não estavam em ordem e
arrastando para o vale as terras desbarrancadas. Se as águas tivessem sido
distribuídas com ordem e as plantas tivessem sido plantadas em ordenados
bosques, se àquela terra, em tempo, tivessem sido dados uns arrimos, então
os três bons elementos, que são a madeira, a água e o solo não se teriam
transformado em causa de ruína e morte para aquele pequeno povoado. Tu
tens inteligência, coragem, instrução, prontidão, constância. Tens tantas e
tantas coisas. Mas em ti elas estão selvagemmente dispostas e tu as deixas
assim. Vê: tu tens necessidade de um trabalho paciente e constante sobre ti
mesmo, para pôr ordem, que também é vigor, em tuas qualidades, de modo
que, quando vier a tempestade da tentação, o bem, que em ti existe, não se
transforme num mal para ti e para os outros.
– Tens razão, Mestre. De vez em quando, sinto-me transtornado por um
vento e tudo se complica. E tu dizes que eu poderia…
– A vontade é tudo, Judas.
139.3 – Mas há tentações tão mordentes… que se esconde por medo de
que o mundo as leia no rosto.
– Eis o erro! Seria justamente aquele o momento para não esconder-se.
Mas de procurar o mundo, aquele dos bons, para ter deles uma ajuda.
Também o contato com a paz dos bons, acalma a febre. E procurar também
o mundo dos críticos porque, para aquele orgulho que leva-nos a nos
esconder-nos para não sermos “lidos” em nossos espíritos tentados, a
presença deles serviria como uma reação contra a fraqueza moral. E não se
cairia.
– Tu te foste colocar no deserto…
– Porque podia fazê-lo. Mas ai dos sozinhos, se não forem, em sua
solidão, multidão contra multidão.
– Como? Não entendo.
– Multidão de virtudes contra multidão de tentações. Quando a virtude
é pouca, é preciso fazer como esta hera indolente: agarrar-se aos ramos das
árvores robustas, para poder subir.
– Obrigado, Mestre. Eu me agarro a Ti e aos companheiros. Mas,
ajudai-me, vós todos. Todos vós sois melhores do que eu.
– Foi melhor o ambiente parco e honesto no qual nós crescemos,
amigo. Mas agora tu estás conosco, e nós te queremos bem. Verás… Não é
para criticar a Judeia, mas podes crer que na Galileia há, ao menos nos
nossos povoados, menos riqueza e menos corrupção. Tiberíades, Magdala e
outros lugares de tripúdio, estão perto de nós. Mas nós vivemos com a
“nossa” alma simples, rústica, se quiseres, mas operosa, santamente
contentes com o que por Deus nos foi concedido –diz Tiago do Alfeu.
– Mas a mãe de Judas é uma santa mulher, sabes, Tiago? Nela se vê
escrita a bondade no rosto –objeta João.
Judas de Keriot lhe sorri feliz pelo elogio, e o seu sorriso aumenta,
quando Jesus confirma:
– Disseste bem, João. É uma santa criatura.
– É sim. Mas o sonho de meu pai era fazer de mim um grande do
mundo, e me separou, muito cedo, e por demais profundamente, da minha
mãe…
139.4 – Mas, que tendes a dizer, que estais sempre falando? –pergunta, de
longe, Pedro–. Parai! Esperai-nos. Não é bonito irdes andando assim, sem
pensar que eu sou de pernas curtas.
Param, então, até que o outro grupo se aproxime deles.
– Puxa! Como eu gosto de ti, meu barquinho! Aqui se cansa como
escravos… Que é que estáveis dizendo?
– Falávamos das qualidades necessárias para ser bons –responde Jesus.
– E não as dizes a mim, Mestre?
– Certamente que sim: ordem, paciência, constância, humildade,
caridade… Já falei nelas muitas vezes!
– Mas, da ordem, não. A que vem ela?
– A desordem nunca foi boa qualidade. Eu expliquei isto a estes teus
companheiros. Eles te falarão. E a pus em primeiro lugar, enquanto que pus
no último a caridade, porque são as duas pontas da reta da perfeição. Agora
tu sabes que uma reta, colocada no plano, não tem princípio nem fim.
Ambas as extremidades podem ser o princípio e podem ser o fim, enquanto
que, em uma espiral, ou em qualquer outro desenho, que não seja fechado
sobre si mesmo, há sempre um princípio e há um fim. A santidade é linear,
simples, perfeita, e não tem mais do que duas extremidades, como uma reta.
– É fácil fazer uma reta…
– Achas? Estás enganado. Em um desenho, mesmo que ele seja
complicado, pode passar despercebido qualquer defeito. Mas na linha reta,
logo se vê qualquer erro, ou de inclinação, ou de hesitação. José, quando me
ensinava o ofício, insistia muito na direitura das tábuas e justamente, me
dizia: “Estás vendo, meu filho? Uma leve imperfeição, num ornato ou em
um trabalho de torno, pode ainda passar, porque os olhos, se não forem
muito espertos, quando olham para um ponto, não estão vendo o outro. Mas
se uma tábua não estiver reta como deve, nem o trabalho mais simples,
como é uma pobre mesa de camponeses, ficará bem. Ou encurva, ou
enverga. Só serve para o fogo.” Podemos dizer isto também a respeito das
almas. Para não ficar servindo só para o fogo do inferno, ou seja, para
conquistar o Céu, é preciso que sejam perfeitas, como uma tábua aplainada
e esquadrejada como deve ser. Quem começa o seu trabalho espiritual com
desordem, começando pelas coisas inúteis, saltando, como um pássaro
irrequieto, daqui para ali, acaba não conseguindo mais, quando quiser reunir
as partes do trabalho. Elas não combinam. Por isso, ordem. Por isso,
caridade. Depois, mantendo fixas em dois torninhos estas extremidades, de
modo que elas nunca escapem, trabalhar em todo o resto, sejam ornatos ou
entalhes. Entendeste?
139.5 – Entendi.
Pedro mastiga em silêncio a sua lição e conclui, de repente:
– Então meu irmão está mais adiantado do que eu. Ele é ordenado
mesmo. Um passo depois do outro, calado, calmo. Parece que não se move
e ao invés… Eu queria fazer logo e muito. E não faço nada. Quem me
ajuda?
– O teu bom desejo. Não temas, Pedro. Tu também fazes. Tu te vais
fazendo.
– E eu?
– Tu também, Filipe.
– E eu? Parece-me que não sou mesmo bom para nada.
– Não, Tomé. Tu também trabalhas. Todos, todos vós trabalhais. Sois
umas árvores selvagens, mas os enxertos vos fazem mudar, lentamente e
com segurança, e Eu tenho em vós a minha alegria.
– Aí está. Estamos tristes e Tu nos consolas. Fracos, e nos fortaleces.
Medrosos, e nos dás coragem. Para todos, e para todos os casos, tens
sempre um conselho e um conforto. Como é que fazes, Mestre, para estares
sempre pronto e bom assim?
– Meus amigos, Eu vim para isto, sabendo já o que teria que encontrar e
o que devia fazer. Sem ilusões, não se tem desilusões, nem se perde o
fôlego. Vai-se adiante. Recordai-vos disso, para quando tiverdes que
trabalhar com o homem animal para fazerdes dele o homem espiritual.
140. Em Emaús, na casa do sinagogo Cléofas.
Um caso de incesto. Fim do primeiro ano.
18 de abril de 1945.
140.1 João com o seu irmão, batem à porta de uma casa do povoado.
Reconheço a casa onde entraram os dois discípulos de Emaús, em
companhia de Jesus ressuscitado. Quando lhes foi aberta a porta, entram e
com certeza conversam com alguém que não estou vendo. Depois saem e
vão por um caminho, alcançando Jesus, que está com os outros, parado em
um lugar afastado.
– Ele está, Mestre. E está todo feliz, por teres vindo mesmo. Ele nos
disse: “Ide dizer-lhe que a minha casa é sua. Agora, eu também vou.”
– Então vamos.
Caminham por algum tempo e depois encontram o velho sinagogo
Cléofas, visto em Águas Belas. Inclinam-se reciprocamente, mas depois o
ancião, que parece um patriarca, ajoelha-se, com uma reverente saudação.
Alguns cidadãos, ao verem isto, aproximam-se, curiosos.
O velho se levanta e diz:
– Eis o Messias prometido. Lembrai-vos deste dia, ó cidadãos de
Emaús.
Uns observam com uma curiosidade toda humana, enquanto outros têm
olhares de um religioso respeito. Dois abrem caminho e dizem:
– A paz esteja Contigo, Rabi. Nós também estávamos lá, naquele dia.
– A paz esteja convosco e com todos. Vim, como me havia pedido o
vosso sinagogo.
– Farás milagres aqui também?
– Se houver aqui filhos de Deus, que creem e têm necessidade do
milagre, certamente Eu o farei.
O sinagogo diz:
– Aqueles que querem ouvir o Mestre, vão à sinagoga. E também quem
tiver doentes. Posso dizer isso, Mestre?
– Podes. Depois da hora sexta, Eu serei todo para vós. Agora Eu sou do
bom Cléofas.
E seguido por um grupo de pessoas, prossegue ao lado do velho, até à
sua casa.
– Eis o meu filho, Mestre. E a minha mulher. E esta é a mulher do meu
filho, com seus meninos pequenos. Muito me desagrada que o outro filho
esteja, junto com o sogro do meu filho Cléofas, em Jerusalém, em
companhia de um infeliz daqui… Depois te direi. Entra, Senhor, com os
teus discípulos.
Eles entram e comem alguma coisa, conforme os costumes dos hebreus.
Depois aproximam-se do fogo, que está aceso em um grande fogão, pois o
dia está úmido e frio.
– Daqui a pouco vamos sentar-nos à mesa. Convidei os notáveis do
lugar. É uma grande festa hoje. Nem todos estão crendo em Ti. Mas
tampouco são teus inimigos. São somente uns indagadores… Quereriam
crer. Mas temos ficado decepcionados muitas vezes, nestes últimos tempos,
a respeito do Messias. Há muita desconfiança. Bastaria uma palavra do
Templo para acabar com toda dúvida. Mas o Templo… Eu tenho pensado
que, vendo-te e ouvindo-te, assim, simplesmente, muita coisa se possa fazer
neste sentido. Eu gostaria de dar-te verdadeiros amigos.
– Tu és um deles.
– Eu sou um pobre velho. Se eu fôsse mais jovem, te seguiria. Mas os
anos pesam.
– Já me serves com o teu crer. Falas de Mim com a tua fé. Fica
tranquilo, Cléofas. Eu não te esquecerei na hora da Redenção.
140.2 – Eis Simão com Hermes. Estão chegando –avisa o filho do
sinagogo.
Levantam-se todos, enquanto entram dois de meia idade e de aspecto
senhoril.
– Este é o Simão e este é o Hermes, Mestre. São verdadeiros israelitas.
Mas são sinceros em seus espíritos.
– Deus se revelará aos seus espíritos. Por enquanto, que a paz desça
sobre eles. Sem paz, não se ouve a Deus.
– Está dito também no livro dos Reis, falando de Elias.
– Estes são os teus discípulos? –pergunta o que tem o nome de Simão.
– Sim.
– São de todas as idades e lugares. E Tu, és Galileu?
– De Nazaré. Mas nascido em Belém, no tempo do censo.
– Então és belemita. Isto está confirmado por tua figura.
– É uma confirmação bondosa, para a fraqueza humana. Mas a
confirmação mesmo está no sobre-humano.
– Em tuas obras, queres dizer –diz Hermes.
– Nelas e nas palavras, que o Espírito acende sobre os meus lábios.
– Já me foram repetidas por pessoas que te ouviram. Verdadeiramente
grande é a tua sabedoria. E com ela pretendes fundar o teu Reino?
– Um rei deve ter súditos, que conheçam as leis do seu reino.
– Mas as tuas leis são todas espirituais!
– Tu o disseste, Hermes. Todas espirituais. Eu terei um reino espiritual.
Para isso, tenho o código espiritual
– Mas, e a reconstrução de Israel, então?
– Não caiais no erro comum de tomar o nome Israel no sentido que ele
tem no significado humano. Israel quer dizer “Povo de Deus.” Eu
reconstituirei a liberdade e o poder verdadeiro deste povo de Deus e o
reconstituirei, ao entregar ao Céu as almas, redimidas e tornadas
conhecedoras das eternas verdades.
140.3 – Vamos sentar-nos à mesa. Eu vo-lo peço –diz Cléofas, que toma
lugar com Jesus, ao centro.
À direita de Jesus está Hermes e ao lado de Cléofas está Simão, depois
o filho do sinagogo e, nos outros lugares, os discípulos.
Jesus, a pedido do anfitrião, oferece e abençoa, e tem início a refeição.
– Estás vindo para estes lados, Mestre? –pergunta Hermes.
– Não. Estou indo para a Galileia. Aqui Eu virei de passagem.
– Como? Estás deixando Águas Belas?
– Sim, Cléofas.
– Aí vinham as turbas, não obstante fôsse inverno. Por que as
decepcionas?
– Não Eu. Assim querem os puros de Israel.
– Que é isso? Por que? Que mal estavas fazendo? A Palestina tem
muitos rabis, que falam onde querem. Por que isso não te é concedido?
– Não faças indagações, Cléofas. És velho e sábio. Não ponhas em teu
coração um tóxico de amargo conhecimento.
– Mas talvez Tu estivesses ensinando doutrinas novas, julgadas
perigosas, oh! certamente por erro de avaliação, por parte dos escribas e
fariseus? Tudo o que de Ti sabemos não nos parece… não é verdade,
Simão? Mas talvez nós não estejamos sabendo de tudo. Para ti, em que é
que consiste a Doutrina? –pergunta Hermes.
– No conhecimento exato do Decálogo. No amor e na Misericórdia. O
amor e a Misericórdia, esta respiração e este sangue de Deus, são a norma
de minha conduta e da minha doutrina. E dela Eu faço a aplicação em todos
os difíceis momentos de minha jornada.
– Mas isto não é uma culpa! É uma bondade.
– Foi julgado como culpa pelos escribas e fariseus. Mas Eu não posso
mentir, quanto à minha missão, nem desobedecer a Deus, que me mandou
como “Misericórdia sobre a terra.” Chegou o tempo da Misericórdia plena,
depois dos séculos da Justiça. Esta é irmã da primeira. Como duas nascidas
do mesmo ventre; mas, enquanto antes era mais forte a Justiça, e a outra
somente temperava o seu rigor — porque Deus não pode proibir-se de
amar — agora a rainha é a Misericórdia, e, como se alegra com isso a
Justiça, que tanto sofria por ter que punir! Se olhardes bem, vereis
facilmente que sempre existiram, desde que o Homem obrigou a Deus de
usar de severidade. O subsistir da Humanidade, não é mais que a prova do
que Eu digo. Na mesma punição de Adão está presente a Misericórdia.
Deus podia reduzi-los a cinzas no seu pecado. Deu-lhes a possibilidade de
fazer expiação, e na mulher, causadora de todo o mal, aviltada por isso, por
ser causa do mal, fez brilhar uma figura de Mulher, causa do bem. Aos dois
concedeu os filhos e os conhecimentos da existência. Ao assassino Caim,
junto com a justiça, concedeu o sinal, e que era de Misericórdia, para que
não fôsse morto. E à Humanidade corrompida concedeu Noé, para que a
conservasse na arca e, em seguida, prometeu um pacto sempiterno de paz.
Não mais o feroz dilúvio. Não mais. A Justiça cedeu, diante da
Misericórdia. Quereis remontar Comigo a História Sagrada, até chegarmos
a este meu momento? Vereis sempre, e cada vez mais vastas, repetir-se as
ondas do Amor. Agora está cheio o mar de Deus, e ele te levanta, ó
Humanidade, sobre as suas águas doces e serenas, te eleva para o Céu,
limpa, bela, e te diz: “Eu te entrego ao meu Pai.”
Os três estão absortos e estupefatos, diante de tanta luz de amor. Depois
Cléofas suspira:
– Assim é. Mas tal és só Tu! 140.4Que terá acontecido a José? Já deveria
ter sido ouvido! Terá sido?
Ninguém responde.
Cléofas vira-se para Jesus:
– Mestre, uma pessoa de Emaús, cujo pai, há tempo, repudiou a mulher,
a qual foi morar em Antioquia com um irmão, o qual era dono de um
empório, incorreu em falta grave. Ele nunca tinha conhecido aquela mulher
expulsa, e eu não indago as causas, depois de poucos meses de casamento.
Nada ficou sabendo dela porque, naturalmente, o seu nome não se
pronunciava mais naquela casa. Uma vez feito homem e tendo herdado do
pai negócios e bens, pensou em casar-se e, tendo conhecido em Jope uma
mulher, dona de um rico empório, a desposou. Agora, eu não sei como
soube, tornou-se conhecido o fato de que aquela mulher era filha da mulher
do pai dele. Por isso, pecado grave, embora, a meu ver, seja muito incerta a
paternidade da mulher. José, atingido pela condenação, teve destruída, com
um só golpe, a sua paz de fiel e a de marido. E ele não está sendo perdoado,
não obstante, com grande dor, tenha repudiado a mulher, que talvez fôsse
sua irmã, a qual, pela dor, foi atacada pela febre e morreu. Em consciência
eu digo que, se não houvesse inimigos rondando os seus bens, ele não teria
sido condenado. E Tu, que farias?
– O caso é muito grave, Cléofas. Quando vieste a Mim, por que não me
falastes nele?
– Eu não queria afastar-te daqui…
– Oh! Mas não é por estas coisas que Eu sou expulso! Agora escuta.
Materialmente há incesto. E por isso há punição[72]. Mas a culpa, para que
seja moralmente culpa, deve ter como base a vontade de pecar. Esse homem
terá conscientemente cometido incesto? Tu dizes que não. Então, onde está
a culpa? Quero dizer: a culpa de ter querido pecar? Resta aquela da
convivência com a filha do próprio pai. Mas tu dizes que é incesto se
realmente ela fôsse filha. E mesmo que tal fosse, a culpa cessa ao cessar a
convivência. Neste caso, houve esta cessação com certeza, não só pelo
repúdio, mas pela morte que sobreveio. Onde Eu digo que o homem deveria
ser perdoado, mesmo do aparente pecado. E digo que, uma vez que não
existe condenação para o incesto dos reis, que permanece visível à luz do
mundo, assim se deveria ter piedade desse doloroso caso, cuja origem
remonta aquela licença de repúdio concedida por Moisés, para evitar males,
se não mais graves, mais numerosos. Aquela licença que Eu condeno,
porque a pessoa que tiver contraído núpcias, bem ou mal, deve viver com
seu cônjuge e não repudiá-lo, favorecendo adultérios e situações
semelhantes a esta. Além disso, Eu repito, para ser severo, é necessário que
o seja na mesma medida para com todos. Primeiramente para consigo
mesmo e com os grandes. Agora, que Eu saiba, ninguém, exceto o Batista,
levantou a voz contra o pecado régio. Os que condenam, são imunes de
culpas semelhantes ou piores ou então a elas tira a visão o nome e o poder,
assim como o pomposo manto protege seus corpos, muitas vezes doentes
por causa dos seus vícios?
– Bem dissestes, Mestre. Assim é. Mas em suma, Tu, quem és? –
perguntam, ao mesmo tempo, os dois amigos do sinagogo.
140.5 Jesus não chega a responder, porque se abre a porta e entra Simão, o
sogro do Cléofas filho.
– Bem-vindo! E então?
A curiosidade é tão viva, que ninguém pensa mais no Mestre.
– Então… condenação absoluta. Não aceitaram nem a oferta do
sacrifício. José está cortado de Israel.
– Onde ele está?
– Aí fora. E está chorando. Procurei falar com os mais poderosos.
Expulsaram-me como a um leproso. Agora… Mas… Aquele homem está
arruinado. Em seus bens e em sua alma. Que quereis que faça?
Jesus se levanta e se encaminha para a porta, sem dizer uma palavra.
O velho Cléofas acha que Ele tenha ficado ofendido pelo descaso e diz:
– Oh! Mestre, perdoa! Mas é a dor por este fato que perturba minha
mente. Fica, eu te peço!
– Eu fico, Cléofas. Só estou indo ao infeliz. Vinde Comigo, se
quiserdes.
Jesus sai até o vestíbulo. A casa tem uma nesga de terreno na frente e
uns pequenos canteiros, além dos quais passa o caminho. Jogado ao chão,
sobre a soleira, está um homem. Jesus vai até perto dele, com as mãos
estendidas. Atrás estão todos os outros, procurando ver.
– José, ninguém te perdoou? –diz Jesus com toda doçura.
O homem estremece, ao ouvir aquela voz nova e tão boa, depois de
tantas vozes de condenação. Levanta o rosto e o olha espantado.
– José, ninguém te perdoou? –torna a dizer Jesus e se inclina para
segurar as mãos do homem, procurando levantá-lo.
– Quem és? –pergunta o infeliz.
– Sou a Misericórdia e a Paz.
– Para mim não há mais Misericórdia nem paz.
– No seio de Deus isso sempre se encontra. Aquele seio está repleto
dessas coisas, especialmente para os filhos infelizes.
– Mas minha culpa é tal que sou um cortado de Deus. Deixa-me, Tu,
que com certeza és bom, para que não te contamines.
– Eu não te deixo. Quero trazer-te a paz.
– Mas eu estou… Tu quem és?
– Eu já te disse: a Misericórdia e a Paz. Sou o Salvador. Sou Jesus.
Levanta-te. Eu posso o que quero. Em nome de Deus, te absolvo da tua
involuntária contaminação. O outro mal não existe. 140.6Eu sou o Cordeiro
de Deus que tira os pecados do mundo. A Mim foi deferido pelo Eterno
todo julgamento. Quem crê em minha palavra terá a vida eterna. Vem,
pobre filho de Israel. Restaura o teu corpo cansado e fortifica o teu espírito
abatido. Bem outras culpas Eu perdoarei. Não. Não virá de Mim o
desespero dos corações! Eu sou o Cordeiro sem mancha, mas não fujo das
ovelhas feridas por medo de me contaminar. Pelo contrário, as procuro e as
levo Comigo. Muitos, muitos são os que vão indo para completa ruína, por
causa de uma severidade exagerada, até injusta, nos julgamentos. Ai
daqueles que, por um rigor intransigente, levam um espírito a desesperar!
Eles trabalham, não pelos interesses de Deus, mas pelos de satanás. Agora,
estou vendo uma pecadora, ansiosa por sua redenção, sendo afastada do
Redentor, vejo perseguido um sinagogo porque justo, vejo ser condenado
alguém que, inadvertidamente, caiu em culpa. Muitas coisas estou vendo
serem feitas, lá onde estão vivos o vício e a mentira. E assim como um
muro, que tijolo a tijolo, vai-se erguendo e virando uma parede, assim as
coisas que Eu já vi, e, no período de um ano já vi demais, estão levantando
entre Mim e eles um muro de dureza. Ai deles quando tudo estiver
levantado com os materiais dados por eles mesmos! Toma: bebe e come.
Estás exausto. Depois, amanhã, virás Comigo. Não temas. Quando tiveres
voltado a ter paz de espírito, estarás livre para pensar sobre o teu futuro.
Agora não poderias fazê-lo, e seria perigoso deixar que o fizesses.
Jesus que levou o homem para a sala, e o forçou a sentar-se em seu
lugar, também o serve e depois se dirige a Hermes e a Simão e diz:
– Esta é a minha Doutrina. Esta, e não outra. E não me limito a pregá-
la. Mas a torno uma realidade. Quem tem sede de Verdade e Amor venha a
Mim.

Jesus diz:
140.7
– E com isto termina o primeiro ano de evangelização. Tomai nota
disto. Que vos direi? Eu o dei porque era meu desejo que fôsse conhecido.
Mas assim como com os fariseus, acontece o mesmo com este trabalho. O
meu desejo de ser amado — conhecer é amar — é rejeitado por demasiadas
coisas. E isto é para Mim, uma grande dor, o Mestre eterno ser aprisionado
por vós…
[72] há punição, estando às prescrições de: Levítico 18,6-18.29; 20,17.
Segundo ano
da Vida pública de Jesus.
141. Indo para Arimateia
com os discípulos e com José de Emaús.
19 de abril de 1945.
141.1 – Senhor, que faremos com este? –pergunta Pedro a Jesus,
indicando o homem chamado José, que os segue, desde que deixaram
Emaús e que agora está ouvindo os dois filhos de Alfeu, que se ocupam
particularmente dele.
– Eu já disse. Ele vai conosco até a Galileia.
– E depois??
– Depois… ele fica conosco. Verás que assim vai acontecer.
– Vai ser discípulo, ele também? Depois daquele fato que sucedeu com
ele?
– És fariseu, tu também?
– Eu não! Mas… parece-me que os fariseus estão de olhos em nós até
demais…
– E se eles o veem conosco, vão dar-nos aborrecimentos. Tu queres
dizer isto. E então, pelo medo de sermos perturbados, deveríamos deixar
um filho de Abraão entregue à desolação? Não, Simão Pedro. Ele é uma
alma que se pode perder ou se pode salvar, conforme o modo como for
tratada a sua grande ferida.
– Mas os teus discípulos já não somos nós??
Jesus olha para Pedro e sorri amavelmente. Depois diz:
– Um dia, há muitos meses, Eu te disse: “Muitos outros ainda virão…”
O campo é vasto, muito vasto. Os trabalhadores serão sempre insuficientes,
por causa da vastidão do campo… e também porque muitos farão como
Jonas: morrerão na aspereza do trabalho. Mas vós sereis sempre os meus
prediletos –termina Jesus, puxando para perto de si o perturbado Pedro que,
com esta promessa, se tranquiliza.
– Então ele vai conosco?
– Sim. Até que se fortaleça o seu coração, que está envenenado por
tanto ódio que teve que suportar. Está intoxicado.
Tiago e João, junto com André, alcançam também o Mestre e escutam.
141.2– Vós não podeis avaliar o mal imenso que um homem pode fazer a
outro com a sua intransigência hostil. Eu vos peço que vos recordeis de que
o vosso Mestre sempre foi muito benigno para com os enfermos espirituais.
Vós pensais que os meus maiores milagres e minha principal virtude sejam
manifestados nas curas dos corpos. Não, amigos… Sim, vinde aqui também
vós, que estais na frente e vós que estais atrás de Mim. O caminho é largo e
podemos andar por ele em grupo.
Todos se apertam junto a Jesus, que prossegue:
– As minhas principais obras, as que mais testemunham a minha
natureza e a minha missão, que são olhadas com alegria pelo meu Pai, são
as curas dos corações, sejam elas curas de um ou mais vícios capitais, sejam
desolações que abalam aqueles que se persuadiram de que estão sendo
punidos por Deus, abandonados por Deus.
Uma alma que perdeu esta certeza da ajuda de Deus, que é ela ainda? É
como uma trepadeira mirrada, que se arrasta no pó, não podendo mais
agarrar-se à ideia que era a sua força e a sua alegria. Viver sem esperança é
um horror. A vida, em suas asperezas, é bela, somente porque recebe estes
raios de Sol divino. Esta vida tem como meta aquele Sol. É tétrico o dia
humano, molhado pelo pranto, marcado pelo sangue? Sim. Mas depois
teremos o Sol. Não haverá mais dor, não mais separações, não mais
asperezas, não mais ódios, não mais misérias e solidões nem névoas
opressoras. Mas luminosidade e canto, serenidade e paz, mas Deus. Deus: o
Sol eterno! Olhai como fica triste a terra, quando há um eclipse. Se o
homem tivesse que dizer: “O sol morreu”, não lhe pareceria estar sempre
vivendo em um escuro hipogeu murado, sepultado, morto, antes de morrer?
Mas o homem sabe que, além daquele astro, que esconde o sol e lança um
ar fúnebre sobre o mundo, existe sempre o alegre sol de Deus. Assim é o
pensamento da união com Deus, durante toda a vida. Os homens ferem,
roubam, caluniam? Mas Deus cura, restitui, justifica. E com uma medida
bem cheia. Os homens dizem: “Deus te rejeitou”? Mas a alma tranquila
pensa, deve pensar: “Deus é justo e é bom. Ele vê as causas e é benigno. E
o é ainda mais do que o pode ser o mais benigno dos homens. Ele o é em
grau infinito. Por isso, não, Ele não me rejeitará, se, inclinando o rosto
choroso sobre o seu seio, eu lhe disser: ‘Pai, só tenho a Ti. Teu filho está
aflito e abatido. Dá-me a tua paz…’.”
141.3 Agora Eu, o Enviado por Deus, recolho aqueles que o homem
perturbou, ou que satanás arrastou e os salvo. Eis a minha obra. Esta é
verdadeiramente minha. O milagre sobre o corpo é o poder divino. A
redenção dos espíritos é obra de Jesus Cristo, o Salvador e Redentor. Eu
penso, e não erro, que os que acharam em Mim a sua reabilitação aos olhos
de Deus e aos olhos deles, serão os meus discípulos fiéis, aqueles que com
maior força poderão levar as turbas para Deus, dizendo: “Vós sois
pecadores? Eu também. Estais aviltados? Eu também. Estais desesperados?
Eu também. Contudo, estais vendo? Da minha miséria espiritual o Messias
teve piedade e quis que eu fôsse seu sacerdote, porque Ele é a Misericórdia
e quer que disso o mundo se persuada. E ninguém está mais apto para
persuadir do que aquele que a experimentou em si mesmo.”
Agora, Eu uno estes aos meus amigos e aos meus adoradores desde que
nasci, portanto, a vós e aos pastores. Antes, os uno aos pastores, aos
curados, àqueles que, sem especial escolha, como foi a vossa, dos doze,
colocaram-se no meu caminho e seguiram por ele até à morte. Perto de
Arimateia está Isaque, quem me pediu isso foi o nosso amigo José. Eu
tomarei Comigo o Isaque para que se una ao Timoneo, quando ele chegar.
Se creres que em Mim há paz e meta para toda uma vida, poderás unir-te a
eles. Eles serão para ti bons irmãos.
141.4 – Ó meu Conforto! É mesmo como Tu dizes. As minhas grandes
feridas, tanto de homem, como de homem de crença, estão sendo curadas de
hora em hora. Há três dias que estou Contigo. E parece-me que aquilo que,
há apenas três dias, era o meu tormento, já é um sonho. Eu tive esse sonho.
Mas, quanto mais o tempo passa, mais o sonho se desvanece, diante da
realidade, daqueles contornos que me feriam. Nestas noites tenho pensado
muito. Em Jope tenho um bom parente. Ele foi… a causa involuntária do
meu sofrimento, porque, por meio dele, é que fiquei conhecendo aquela
mulher. E isto já te pode dar uma ideia de se podíamos ou não saber de
quem era filha… Dela, da primeira mulher de meu pai, sim, pode ter sido.
Mas não de meu pai. Tinha outro nome, e tinha vindo de longe. Conheceu o
parente numa troca de mercadorias. E eu a fiquei conhecendo assim. O
parente se interessa muito pelos meus negócios. Eu os oferecerei a ele.
Perder-se-iam, ficando sem dono. Ele os vai adquirir, sem dúvida, também
para não sentir o remorso de ter causado o meu sofrimento. E eu poderei ter
o suficiente e seguir-te tranquilo. Só te peço que me concedas esse Isaque
de que falas. Tenho medo de ficar sozinho com os meus pensamentos. Eles
são ainda muito tristes…
– Eu te darei Isaque. É uma alma boa. A dor o aperfeiçoou. Durante
trinta anos levou a sua cruz. Ele sabe o que é sofrer… Enquanto isso, nós
iremos avante. E nos encontraremos em Nazaré.
– Não pararemos com José, na casa dele?
– José, provavelmente, está em Jerusalém… O Sinédrio tem muito que
fazer. Mas ficaremos sabendo por Isaque. Se ele estiver lá, levar-lhe-emos a
nossa paz. Se não estiver, pararemos uma noite, só para descansar. Tenho
pressa de chegar à Galileia. Lá há uma Mãe que está sofrendo. Porque,
lembrai-vos disso, lá há quem só cuida de afligi-la. E Eu a quero
tranquilizar.
142. Com os doze indo para Samaria.
21 de abril de 1945.
142.1 Jesus está com os seus doze. O lugar continua montanhoso, mas
sendo a estrada suficientemente cômoda, todos estão em grupo e falando
entre eles.
– Porém, agora que estamos sós, podemos dizê-lo: por que tanto ciúme
entre dois grupos? –diz Filipe.
– Ciúme? Não é nada mais do que soberba –rebate Judas de Alfeu.
– Não. Eu digo que é só um pretexto para justificar, de qualquer modo,
a injusta conduta deles para com o Mestre. Sob o véu de um zelo para com
o Batista, consegue-se afastá-lo sem desagradar demais a multidão –diz
Simão.
– Eu os desmascararia.
– Nós, Pedro, faríamos tantas coisas que Ele não faz.
– Por que não as faz?
– Porque sabe que é bom não fazê-las. Nós não temos mais do que
procurar segui-lo. Não nos cabe guiá-lo. E é necessário dar-nos por felizes
com isso. É um grande alívio ter só que obedecer…
– Disseste bem, Simão, diz Jesus que, na frente, parecia ir pensativo.
Disseste bem. Obedecer é mais fácil do que dar ordens. Não parece. Mas é
assim. Certamente isto é fácil quando o espírito é bom. Como é difícil
mandar quando o espírito é reto. Porque se um espírito não é reto, dá ordens
insensatas e mais do que insensatas. Então é fácil dar ordens. Mas… quanto
se torna mais difícil obedecer! Quando alguém tem a responsabilidade de
ser o primeiro de um lugar ou de uma reunião de pessoas, deve ter sempre
presente a caridade e a justiça, a prudência e a humildade, a temperança e a
paciência, a firmeza, mas sem teimosia. Oh! É difícil!! Vós, por enquanto,
não tendes senão que obedecer. A Deus e ao vosso Mestre.
142.2Tu, e não somente tu, perguntas a ti mesmo por que é que Eu faço
ou não faço algumas coisas; perguntas por que Deus permite ou não permite
tais coisas. Vê, Pedro, e vós todos, meus amigos. Um dos segredos do
perfeito fiel está em não arvorar-se nunca em inquiridor de Deus. “Por que
fazes isto?”, pergunta alguém mal formado, ao seu Deus. E parece ter ele
posto as vestes de um adulto sábio diante de um menininho da escola, para
dizer-lhe: “Isto não se faz. É uma tolice. É um erro·” Quem mais do que
Deus?
Agora vós estais vendo como, sob o pretexto de um zelo por João, Eu
fui expulso. E estais escandalizados com isso. E quereríeis que Eu
retificasse o erro, tomando uma atitude polêmica com os defensores desta
causa. Não. Isto não se dará nunca. Ouvistes o que diz o Batista pela boca
dos seus discípulos: “É preciso que Ele cresça e que eu diminua.” Nada de
lamentações nem de apegos à própria posição. O santo não se apega a essas
coisas. Ele trabalha, não pelo número dos “próprios” fiéis. Ele não tem fiéis
próprios. Mas trabalha para aumentar os fiéis a Deus. Somente Deus tem o
direito de ter fiéis. Por isso, assim como Eu não fico amargurado porque,
por boa ou por má fé, alguns continuem como discípulos do Batista,
também ele não se aflige, pois o ouvistes, que alguns discípulos seus
venham a Mim. Ele nem dá importância a estas pequenezas numéricas. Ele
olha para o Céu. E Eu olho para o Céu. Não estejais, portanto, a discutir
entre vós se é justo ou injusto que os judeus me acusem de tomar discípulos
ao Batista, se é justo ou injusto que se deixe que continuem a dizer isso.
Essas são brigas de mulheres faladeiras, ao redor de uma fonte. Os santos se
ajudam, se dão e permutam entre si os espíritos com alegre facilidade,
sorrindo à ideia de trabalhar para o Senhor.
142.3 Eu batizei, ou melhor, vos mandei batizar, porque, tão pesado está o
espírito agora, que é preciso apresentar-lhe formas materiais de piedade,
formas materiais de milagre, formas materiais de escolas. Por causa desse
peso espiritual, deverei recorrer ao auxílio de substâncias materiais, quando
quiser fazer de vós operadores de milagres. Mas, crede que não estará no
óleo, como não na água, como não em outras cerimônias, a prova da
santidade. Está para chegar o tempo no qual uma coisa impalpável,
invisível, inconcebível para os materialistas, será rainha, a rainha ‘que
voltou’, poderosa e santa, de todas as coisas santas e em todas as coisas
santas. Por ela o homem se tornará o ‘filho de Deus’ e operará o que Deus
opera, porque terá Deus consigo.
A Graça. Eis a rainha que volta. Então o batismo será sacramento.
Então o homem falará e compreenderá a linguagem de Deus e dará vida; e
Vida, dará poder de ciência e de poder; então… oh! então! Mas ainda estais
imaturos para saberdes o que a Graça vos concederá. Eu vos peço, ajudai a
sua vinda com a vossa contínua obra de formação de vós mesmos e deixai
as coisas inúteis dos mesquinhos…
142.4 Eis ali os confins da Samaria. Achais vós que faria bem em ir falar
por lá?
– Oh!
Estão todos mais ou menos escandalizados.
– Em verdade, vos digo que os samaritanos[73] estão em toda parte, e se
Eu não devesse falar onde há um samaritano, não deveria mais falar em
lugar nenhum. Portanto, vinde. Não procurarei falar, mas não desprezarei a
ocasião de falar de Deus, se isso me for pedido. Um ano terminou. Começa
o segundo. Ele está a cavaleiro entre o princípio e o fim. No princípio ainda
predominava o Mestre. Agora, eis que se revela o Salvador. O fim terá o
rosto do Redentor. Vamos. O rio vai crescendo, quanto mais se aproxima da
foz. Eu também aumento as obras de Misericórdia, porque a foz já está
perto.
– Vamos para algum grande rio, para lá da Galileia? Talvez para o
Nilo? Ou para o Eufrates? –cochicham alguns.
– Talvez vamos para o meio dos gentios… –respondem outros.
– Não fiqueis falando entre vós. Vamos para a “minha” foz. Ou seja,
para o cumprimento de minha missão. Estai bem atentos, porque depois Eu
vos deixarei e vós devereis continuar em meu nome.
[73] os samaritanos, habitantes da Samaria, eram considerados bastardos e pagãos pelos judeus pela sua descendência impura e
pelo seu cisma, como aparece com frequência na obra mas sobretudo nos cinco capítulos seguintes. O título de samaritanos vinha
por vezes estendido aos romanos enquanto pagãos, como em 110.4, e por desprezo era chamado “samaritano” o próprio Jesus
(como em: 501.4 – 507.10 – 540.7 – 560.6 -645.2). A história do cisma está em: 1 Reis 12-13; 2 Reis 17,24-41; 2 Crônicas 10; e a
raiz do cisma podia considerar-se, como dito em 245.3, o pecado de idolatria de Salomão. A situação nos tempos de Jesus nas
impressões da escritora em 483.1 e nas palavras de um notável samaritano em 484.2. A consideração que Jesus tinha pelos
samaritanos vem expressa na parábola de 281.10, no mandato aos apóstolos em 552.2 e no colóquio com notáveis judeus em
560.4/5.
143. A samaritana Fotinai.
22 de abril de 1945.
143.1 – Eu vou parar aqui. Vós, ide à cidade e comprai o que é preciso
para a refeição. Aqui comeremos.
– Vamos todos?
– Sim, João. É bom que andeis em grupo.
– E Tu? Ficas sozinho… Eles são samaritanos…
– Não serão os piores entre os inimigos do Cristo. Ide, ide. Eu fico
rezando, enquanto vos espero. Rezando por vós e por eles.
Os discípulos lá se vão, a contragosto e por três ou quatro vezes se
viram para olhar Jesus, que sentou-se em um murinho baixo, exposto ao sol
e que está perto da beira baixa e larga de um poço. Um poço grande, quase
uma cisterna, de tão largo. No verão, deve ser sombreado por grandes
árvores, que agora estão despidas. A água não se vê, mas o terreno, perto do
poço, mostra claros sinais das águas que foram tiradas, pelas pequenas
poças e círculos deixados pelas bilhas molhadas.
Jesus assentou-se e está meditando, em sua posição de costume, com os
cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos juntas à frente, o corpo levemente
dobrado e a cabeça curvada para o chão. Depois sente o belo solzinho
aquecê-lo e deixa cair o manto da cabeça e dos ombros, segurando-o,
porém, no regaço.
Levanta a cabeça para sorrir diante de um bando de pardais briguentos,
que estão disputando um grande miolo de pão, perdido por alguém junto ao
poço. Mas os pardais fogem com a chegada inesperada de uma mulher que
vem ao poço com uma ânfora vazia com uma asa segura pela mão esquerda,
enquanto com a direita afasta, num gesto de surpresa, o véu, para ver quem
é o homem que ali está sentado.
Jesus sorri para essa mulher de seus trinta e cinco a quarenta anos, alta,
de traços fortemente marcados, mas belos. Um tipo que diríamos ser quase
espanhol, por causa de sua cor de um pálido oliváceo, de lábios muito
vermelhos e bastante túmidos, os olhos desmesuradamente grandes e pretos
sob sobrancelhas cerradas, e as tranças escuras, que transparecem por baixo
do véu fino. Também as formas, tendentes ao formoso, tem um acentuado
tipo oriental, de uma leve moleza, como a das mulheres árabes. Está vestida
com um vestido de listras multicores, bem justo na cintura, esticado nos
flancos e no peito gorducho, caindo depois em uma espécie de orla
ondulante, até o chão. Tem muitos anéis e pulseiras nas mãos gorduchas e
morenas e nos pulsos que aparecem na parte inferior das mangas de linho.
No pescoço um pesado colar, do qual pendem umas medalhas, eu diria uns
amuletos, porque são de todas as formas. Pesados brincos descem-lhe até o
pescoço e brilham sob o véu.
143.2 – A paz esteja contigo, mulher. Podes dar-me de beber? Caminhei
muito e tenho sede.
– Mas não és Tu judeu? E pedes de beber a mim, samaritana? Então,
que foi que aconteceu? Teremos nós sido reabilitados, ou vós vos dais por
vencidos? Certamente algum grande acontecimento sucedeu, se um judeu
está falando educadamente com uma samaritana. Porém eu deveria dizer-te:
“Não te dou nada, para punir em Ti todas as afrontas que, através dos
séculos, os judeus nos têm feito.”
– Disseste bem. E por ele muitas coisas mudaram e mais serão
mudadas. Deus deu um grande dom ao mundo e por ele muitas coisas se
mudaram. Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é Aquele que te está
dizendo “Dá-me de beber”, talvez tu mesma lhe terias pedido de beber, e
Ele te teria dado água viva.
– A água viva está nos lençóis subterrâneos. Este poço a tem, mas é
nosso.
A mulher é zombeteira e prepotente.
– A água é de Deus. Como a bondade é de Deus. Como a vida é de
Deus. Tudo é de um único Deus, mulher. E todos os homens vêm de Deus,
tanto os samaritanos, como os judeus. Este poço não é o do Jacó[74]? E Jacó
não é a cabeça de nossa estirpe? Portanto, se um erro nos separou, isso não
muda a nossa origem.
– Erro nosso, não é? –pergunta agressiva a mulher.
– Nem nosso, nem vosso. Erro de alguém que havia perdido de vista a
caridade e a justiça. Eu não te ofendo, nem ofendo a tua raça. Por que
queres ser ofensiva?
– És o primeiro judeu que ouço falar assim. Os outros… Mas, quanto
ao poço, sim, é o poço de Jacó e tem uma água tão abundante e clara, que
nós de Sicar o preferimos às outras fontes. Mas ele é muito fundo. Tu não
tens ânfora nem odre. Como, pois, poderias tirar para mim água viva? Serás
mais do que Jacó, o nosso santo patriarca, que achou este abundante lençol
de água para ele, para os seus filhos e seus rebanhos e no-lo deixou como
lembrança e presente dele?
– Tu o disseste. Mas quem bebe desta água, ainda terá sede. Eu, ao
invés, tenho uma água que, quem a beber, não sentirá mais sede. Mas é só
minha. E Eu a darei a quem me pedir. E, em verdade, te digo que quem
tiver a água que Eu lhe der, ficará para sempre coberto de orvalho e não terá
mais sede, porque a minha água se tornará nele nascente certa e eterna.
– Como? Eu não entendo. És um mago? Como pode um homem se
transformar num poço? O camelo bebe e faz sua reserva de água no amplo
ventre. Mas depois a consome e não lhe dura a vida inteira. E Tu dizes que
a tua água dura para a vida toda?
– E mais ainda: ela jorrará até a vida eterna. Estará em quem a bebe,
jorrando até a vida eterna e dará frutos de vida eterna. Porque é uma fonte
de salvação.
– Dá-me dessa água, se é verdade que a possuis. Eu me canso por ter
que vir até aqui. Eu a terei e não terei mais sede, e não ficarei nunca doente,
nem velha.
143.3 – Só disto é que te cansas? Não será de outra coisa? Só sentes
necessidade de apanhar água para beber e para o teu pobre corpo? Pensa
nisso. Existe alguma coisa que é mais do que o corpo. E é a alma. Jacó não
deu a si mesmo e aos seus somente a água do poço. Mas se preocupou em
dar a si mesmo e aos outros a santidade, que é a água de Deus.
– Vós nos chamais de pagãos… Se for verdade isso que dizeis, nós não
podemos ser santos…
A mulher perdeu o tom petulante e irônico e está submissa e levemente
confusa.
– Um pagão também pode ser virtuoso. E Deus, que é justo, o premiará
pelo bem feito. Não será um prêmio completo, mas Eu te digo, entre um fiel
com culpa grave e um pagão sem culpa, Deus olha com menos rigor o
pagão. E, por que vós, sabendo que sois assim, não vindes ao verdadeiro
Deus? Como te chamas?
– Fotinai.
– Pois bem. Responde-me, Fotinai. Tu sentes por não poderes aspirar à
santidade, porque és pagã, como tu dizes, porque estás nas névoas de um
antigo erro, como Eu digo?
– Sim. Eu o sinto.
– E por que então, não vives pelo menos como uma pagã virtuosa?
– Senhor!!
– Sim. Podes negá-lo? Vai chamar o teu marido… e volta aqui com ele.
– Eu não tenho marido…
A confusão da mulher aumenta.
– Disseste bem. Não tens marido. Tiveste cinco homens e agora tens
um contigo, que não é teu marido. Era necessário isto? Tua religião também
não aconselha a impudicícia. Vós também tendes o Decálogo. Por que
então, Fotinai, tu vives assim? Não te sentes cansada dessa fadiga de seres a
carne para tantos e não a mulher honesta de um só? Não ficas com medo da
tua velhice quando te encontrarás sozinha com as tuas lembranças? Com as
saudades? Com os medos? Sim, com estes também. Medo de Deus e dos
fantasmas. Onde estão os teus filhos?
A mulher abaixa totalmente a cabeça e não fala.
– Não os tens nesta terra. Mas as suas pequenas almas, às quais tu
impediste de conhecer a luz do dia, te censuram. Sempre. Joias… belos
vestidos… casa rica… mesa farta… Sim. Mas um vazio e lágrimas, e
miséria interior. És uma desamparada, Fotinai. E somente com um
arrependimento sincero, através do perdão de Deus e, por consequência, do
perdão de teus filhos, podes tornar-te rica.
143.4 – Senhor, eu vejo que és um profeta. E tenho vergonha…
– E do Pai, que está no Céus, tu não tinhas vergonha, quando praticavas
o mal? Não chores por estares aviltada diante do Homem… Vem aqui,
Fotinai. Perto de Mim. Eu te falarei de Deus. Talvez não o conhecias bem.
E por isso, certamente por isso, tu errastes tanto. Se tivesses conhecido bem
o verdadeiro Deus, não estarias aviltada assim. Ele te teria falado e
amparado…
– Senhor, os nossos pais adoravam neste monte. Vós dizeis que só em
Jerusalém é que se deve adorar. Mas Tu o dizes: Deus é um só. Ajuda-me a
ver onde e como devo fazer…
– Mulher, crê em Mim. Dentro em pouco chegará a hora na qual nem
no monte de Samaria, nem em Jerusalém será adorado o Pai. Vós adorais
Aquele a quem não conheceis. Nós adoramos Aquele a quem conhecemos,
porque a salvação vem dos judeus. Eu te lembro os Profetas. Mas vem a
hora, aliás, já começou, na qual os verdadeiros adoradores adorarão o Pai
em espírito e em verdade, não mais com o rito antigo, mas com o novo rito,
no qual não haverá sacrifícios e hóstias de animais consumidos pelo fogo.
Mas o sacrifício eterno da Hóstia imaculada, queimada pelo Fogo da
Caridade. Culto espiritual do Reino espiritual. E será compreendido por
aqueles que saberão adorar em espírito e em verdade. Deus é Espírito.
Aqueles que o adoram devem adorá-lo espiritualmente.
– Tu tens santas palavras. Eu sei, porque alguma coisa nós também
sabemos, que o Messias está para chegar, Aquele que é também chamado
“o Cristo.” Quando Ele vier, nos ensinará todas as coisas. Aqui perto está
também aquele que dizem ser o seu Precursor. Muitos vão ouvi-lo. Mas ele
é tão severo!! Tu és bom… e as pobres almas não têm medo de Ti. Penso
que o Cristo será bom. Dão-lhe o nome de Rei da paz. Tardará muito para
vir?
– Eu te disse que o tempo Dele já chegou.
– Como o sabes? És porventura seu discípulo? O Precursor tem muitos
discípulos. O Cristo também os terá.
– Eu, que te estou falando, sou o Cristo Jesus.
– Tu!! Oh!!
A mulher, que se havia assentado perto de Jesus, levantou-se e quer
fugir.
– Por que queres fugir, mulher?
– Porque tenho horror de ficar perto de Ti. Tu és santo…
– Sou o Salvador. Cheguei até aqui — não era necessário — porque
sabia que a tua alma estava cansada de andar errante. Tu te enjoaste do teu
alimento… Vim para dar-te um alimento novo e que te tirará as náuseas e o
cansaço… 143.5Eis os meus discípulos que já estão voltando com o meu pão.
Mas Eu já estou nutrido, por te ter dado as migalhas iniciais para a tua
redenção.
Os discípulos olham de soslaio, meio dissimuladamente, para a mulher,
mas nenhum fala nada. A mulher se afasta dali, sem mais pensar na água
nem na ânfora.
– Eis, Mestre –diz Pedro–. Eles nos trataram bem. Aqui estão o queijo,
o pão fresco, as azeitonas e as maçãs. Pega o que quiseres. Aquela mulher
fez bem em deixar a ânfora. Faremos mais depressa do que com as nossas
pequenas bolsas. Beberemos e as encheremos. Sem ter que pedir mais nada
aos samaritanos. Nem de irmos às fontes deles. Não comes? Eu quis trazer
peixe para Ti, mas não achei. Talvez gostasses mais. Estás cansado e pálido.
– Eu tenho um alimento que vós não conheceis. Comerei dele. Com ele
me restaurarei bem.
Os discípulos se olham interrogativamente.
Jesus responde a essas perguntas mudas:
– Meu alimento é fazer a vontade Daquele que me enviou e levar a bom
termo a obra que Ele deseja que Eu realize. Quando um semeador lança a
semente, pode, por acaso, dizer que já fez tudo, que já está garantida a
colheita? Realmente, não. Quanto tem ainda que fazer para poder dizer “Eis
o meu trabalho terminado!” E, enquanto não chega aquela hora, não pode
descansar. Olhai para estes pequenos campos, sob o alegre sol da hora
sexta. Faz apenas um mês, até menos de um mês, a terra estava nua e
escura, por ser molhada pelas chuvas. Agora, olhai. Hastes e hastes de trigo,
que mal acabam de aparecer, de um verde muito tênue, exposto à plena luz,
ainda parece mais claro, fazendo que a terra fique como coberta de um fino
véu branquejante. Esta é a futura colheita e vós, vendo-a, dizeis: “Daqui a
quatro meses, vai ser a colheita. Os semeadores irão contratar os ceifeiros,
porque, se um só é suficiente para semear o seu campo, muitos são
necessários para ceifá-lo. E ambos estão contentes. Tanto o que semeou um
saquinho de trigo, e agora precisa preparar os celeiros para recebê-lo, como
aquele que, em poucos dias, ganha com que viver por algum mês.” Também
no campo espiritual, aqueles que vão ceifar o que Eu semeei se alegrarão
Comigo e como Eu, porque Eu lhes darei o meu salário e o fruto devido.
Dar-lhes-ei com que viver no meu Reino eterno. Vós não tereis que fazer
outra coisa, senão ceifar. O trabalho mais duro, Eu já fiz. Contudo vos digo:
“Vinde, ceifai no meu campo. Eu fico contente, se vos carregardes com os
manípulos do meu trigo. Quando todo o meu trigo, que Eu houver semeado
incansavelmente por toda parte, for por vós colhido, então se terá cumprido
a vontade de Deus e Eu me sentarei para o banquete da Jerusalém celeste.”
Eis que chegam os samaritanos com Fotinai. Usai de caridade para com
eles. São almas que vêm a Deus.
[74] Jacó, filho de Isaac e irmão de Esaú. A sua história está em: Gênesis 25,19-34; 26-36; 37,1; 46,1-7; 47,27-31; 48-49; 50,1-
14. Não vem mencionado o seu poço em Samaria cuja existência remonta ao passo de: Gênesis 33, 18-19; Josué 24, 32. Uma vez
por todas reenviamos a Gênesis 28,10-15 pelo sonho ou a escada de Jacó (citados ao menos em: 5.2 – 50.7 – 89.1 – 111.5 – 130.7
– 194.2); a Gênesis 25, 29-34 pela primogenitura vendida por Esaú e Jacó por uma sopa de lentilhas (episódio chamado em: 239.8
– 402.2 – 503.8 – 604.39). Outros reenvios, como o de 364.9, vêm anotados de cada vez. Sobrenominado “Israel” (Gênesis 32,29),
Jacó teve 12 filhos, dos quais descendem as 12 tribos (muitas vezes citadas na obra valtortiana, especialmente em 600.8.24) que
formaram o povo hebraico: os “israelitas”. Não pertence ao livro de Gênesis a profecia da “Estrela de Jacó”, do qual tratamos em
nota a 436.2. – Os reenvios bíblicos sobre Jacó incluem a história de Raquel, mulher recordada muitas vezes (a partir de 27.3)
sobretudo pelo seu sepulcro em Belém. Foi a segunda esposa (depois de Lia, sua irmã mais velha) de Jacó. Uma referência à sua
maternidade em 104.4, às suas virtudes em 300.2, à sua beleza em 525.5.
144. Os samaritanos convidam Jesus em Sicar.
23 de abril de 1945.
144.1 Vêm ao redor de Jesus um grupo de notáveis samaritanos, guiados
por Fotinai.
– Deus esteja Contigo, Rabi. Esta mulher nos disse que és um profeta e
que não te indignas por falar conosco. Nós te pedimos que fiques conosco e
que não nos negues a tua palavra, porque, se é verdade que estamos
separados de Judá, também não está dito que todo Judá seja santo e que o
pecado todo esteja em Samaria. Também entre nós há quem é justo.
– Eu também disse a esta mulher este conceito. Eu não me imponho,
mas também não rejeito a quem me procura.
– Tu és justo. 144.2A mulher nos disse que Tu és o Cristo. É verdade?
Responde-nos em nome de Deus.
– Eu o sou. Os tempos messiânicos chegaram. Israel está sendo reunido
por seu Rei. E não somente Israel.
– Mas Tu serás para aqueles que… que não estão em erro, como nós
estamos, observa um imponente ancião.
– Homem, Eu vejo em ti o chefe de todos estes e também em ti vejo
uma honesta busca da Verdade. Agora escuta, tu que és instruído nas
leituras sagradas. A Mim foi dito aquilo que o Espírito disse[75] a Ezequiel,
quando lhe deu a missão profética: “Filho do homem, Eu te envio aos filhos
de Israel, aos povos rebeldes que se afastaram de Mim… São filhos que têm
uma face dura e um coração indomável… Pode ser que eles se ponham a
ouvir-te e depois não façam conta das tuas palavras, que são minhas, porque
é uma casa rebelde, mas ao menos saberão que no meio deles há um
profeta. Tu, portanto, não tenhas medo deles, que não te espantem os seus
discursos, porque eles são incrédulos e subversivos… Conta a eles as
minhas palavras, seja que eles te derem ouvidos ou não. Tu, faz o que Eu te
digo, escuta o que Eu te digo, para que não sejas rebelde como eles. Por
isso, coma qualquer que seja o alimento que Eu te oferecer.” E Eu vim. Não
me iludo, nem tenho a pretensão de ser acolhido como um triunfador. Mas,
visto que a vontade de Deus é o meu mel, eis que Eu a cumpro e, se
quiserdes, vos direi as palavras que o Espírito colocou em Mim.
– Como pode ter o Eterno pensado em nós?
– Porque Ele é Amor, filhos.
– Os rabis de Judá não dizem assim.
– Mas é assim que vos diz o Messias do Senhor.
[76] que o Messias nasceria de uma virgem de Judá. Tu,
144.3 – Está dito
dequem e como nasceste?
– Nasci em Belém Efrata, de Maria da estirpe de Davi, por obra de uma
concepção espiritual. Crede.
A bela voz de Jesus ressoa com um som claro de alegre triunfo, ao
proclamar a virgindade da Mãe.
– O teu rosto brilha com uma grande luz. Não. Tu não podes estar
mentindo. Os filhos das trevas têm um rosto tenebroso e olhos turbados. Tu
és luminoso; límpidos como uma manhã de abril são os teus olhos, e a tua
palavra é boa. Entra em Sicar, eu te peço, e ensina aos filhos deste povo.
Depois poderás ir… e nós nos lembraremos da Estrela que riscou o nosso
céu…
– E por que não a seguiríeis?
– Como queres que o possamos?
Vão conversando, enquanto se dirigem para a cidade.
– Nós somos os separados. Ao menos assim se diz. Mas já nascemos
nesta fé e não sabemos se é justo deixá-la. Além disso… Sim, Contigo
podemos falar, eu sinto. Além disso, também nós temos olhos para ver e
cérebro para pensar. Quando em viagens ou negócios passamos pelas vossas
terras, nem tudo o que nós vemos é santo, a ponto de persuadir-nos de que
Deus está convosco de Judá, nem convosco da Galileia.
– Em verdade te digo que do fato de não vos ter persuadido nem
reconduzido a Deus, será feita imputação ao resto de Israel, não com as
ofensas e as maldições, mas com o exemplo e a caridade, será feita
imputação ao resto de Israel.
– Quanta sabedoria há em Ti! Estais ouvindo!?
Todos concordam com um murmúrio de admiração.
144.4 Enquanto isso, alcançaram a cidade e muitas outras pessoas se
achegam, enquanto vão-se dirigindo para uma casa.
– Escuta, Rabi. Tu, que és sábio e bom, resolve uma dúvida nossa.
Muito do nosso futuro pode depender disso. Tu, que és o Messias,
restaurador, portanto, do reino de Davi, deves ter alegria em unir de novo
este membro disperso ao corpo do Estado. Não é verdade?
– Não tanto de reunir as partes separadas do que é caduco, quanto de
reconduzir a Deus todos os espíritos, Eu cuido e sinto alegria, quando
restauro a Verdade em um coração. Mas, diz-me qual é a tua dúvida?
– Os nossos pais pecaram. Desde então, as almas de Samaria são
malvistas por Deus. Por isso, que vantagem teremos, se seguirmos o Bem?
Para sempre seremos uns leprosos aos olhos de Deus.
– A vossa é a eterna saudade, o perene descontentamento de todos os
cismáticos. Mas te respondo[77] ainda com Ezequiel: “Todas as almas são
minhas”, diz o Senhor. Tanto a do pai, como a do filho. Mas só morrerá a
alma que tem pecado. Se um homem for justo, se não for idólatra, se não
fornicar, se não roubar nem praticar a usura, se tiver Misericórdia para com
a carne e o espírito dos outros, esse será justo aos meus olhos e viverá a
verdadeira vida. E ainda. Se um justo tiver um filho rebelde, por acaso esse
filho terá a vida, porque o pai era justo? Não terá. E ainda. Se o filho de um
pecador for um justo, morrerá como o pai, por ser filho dele? Não. Vivo
estará com a vida eterna, porque foi justo. Não seria justiça, se um levasse o
pecado do outro. A alma que pecou, morrerá. A que não pecou, não
morrerá. E, se quem pecou se arrepende e vem para a Justiça, eis que ele
também terá verdadeira vida. O Senhor Deus, único e só Senhor, diz: “Eu
não quero a morte do pecador, mas que ele se converta e tenha a Vida.” Para
isso Ele me enviou, ó filhos errantes! Para que tenhais a verdadeira vida. Eu
sou a Vida. Quem crê em Mim e Naquele que me enviou, terá a vida eterna,
ainda que até agora tenha sido pecador.
– Eis-nos à minha casa, Mestre. Não sentes horror de entrar nela?
– Só tenho horror do pecado.
– Então vem, e para um pouco. Partiremos juntos o pão e depois, se não
te for incômodo, Tu partirás para nós a palavra de Deus. Tem um outro
sabor essa palavra, dita por Ti… e nós temos aqui um tormento: o de não
nos sentirmos seguros de estarmos no certo…
– Tudo se acalmaria se tivésseis coragem de ir abertamente à Verdade.
Deus fale em vós, ó cidadãos. Logo desce a tarde. Mas amanhã, à hora
terceira, Eu vos falarei longamente, se o quiserdes. Ide com a Misericórdia
perto de vós.
[75] disse, em: Ezequiel 2,2-8.
[76] Está dito, em: Isaías 7,14; Miqueias 5,1-2.
[77] respondo, como em: Ezequiel 18.
145. O primeiro dia em Sicar.
24 de abril de 1945.
[…].
145.1 Jesus fala a muita gente, do centro de uma praça. Ele subiu sobre o
pequeno banco de pedra, que está perto da fonte. As pessoas estão todas ao
redor Dele. Também ao redor Dele estão os doze, com uns rostos…
consternados ou aborrecidos, ou até mostrando aversão por certos contatos.
Especialmente Bartolomeu e Iscariotes estão mostrando abertamente o seu
incômodo e, para evitar o mais possível a proximidade dos samaritanos,
Iscariotes foi pôr-se a cavalo sobre um galho de árvore, como se quisesse
dominar a cena, enquanto que o Bartolomeu foi encostar-se a um portão, no
canto da praça. O preconceito está vivo e ativo em todos.
Jesus, ao invés, não tem nada de diferente do costume. Aliás, diria que
procura não assustar com a sua majestade, e ao mesmo tempo, procura fazê-
la brilhar, para tirar qualquer dúvida. Acaricia dois ou três pequeninos aos
quais pergunta os seus nomes, se interessa por um velho cego, ao qual dá
pessoalmente o óbolo, responde a duas ou três perguntas que lhe foram
feitas, não sobre coisas de interesse geral, mas particulares.
145.2Uma é a pergunta de um pai a respeito da filha que fugiu por amor e
que agora lhe pede perdão.
– Dá-lhe logo o teu perdão.
– Mas eu sofri com isto, Mestre! E ainda sofro. Em menos de um ano,
envelheci dez anos.
– O perdão te dará alívio.
– Não pode ser. A ferida está aberta.
– É verdade. Mas na ferida há duas pontas que fazem sofrer. Uma é a
inegável afronta que te fez tua filha. A outra é o esforço que fazes para
deixar de amá-la. Tira ao menos esta. O perdão, que é a forma mais alta do
amor, a tirará. Pensa, pobre pai, que aquela criatura nasceu de ti e que tem
sempre o direito ao teu amor. Se tu a visses doente com uma doença da
carne, e soubesse que, se não cuidas dela tu mesmo, morre, a deixarias
morrer? Certamente não. E então, pensa que tu, tu mesmo, com o teu
perdão, podes fazer parar o seu mal e até levá-la a ficar sã em seu instinto.
Porque, vê, nela predominou o lado mais vil da matéria.
– Então dirias que eu devo perdoar?
– Tu o deves.
– Mas como farei para ficar a vê-la em casa, depois do que ela fez, e
não amaldiçoá-la?
– Mas então não a terias perdoado. O perdão não consiste em reabrir-
lhe a porta de tua casa, mas em reabrir-lhe o coração. Sê bom, homem. Por
que não? A paciência que temos com o novilho teimoso, não a teríamos
para com a nossa filha?
145.3 Uma mulher pergunta se está certo que ela se case com o cunhado
para dar um pai aos seus orfãozinhos.
– Achas que ele seria um verdadeiro pai?
– Sim, Mestre. São três filhos homens. É preciso que um homem os
guie.
– Então faz e sê uma mulher fiel, como o foste ao primeiro.
145.4 Um terceiro lhe pergunta se, aceitando o convite que lhe fizeram de
ir para Antioquia, ele fará bem ou mal.
– Homem, por que queres ir para lá?
– Porque aqui não tenho meios para sustentar a mim e aos meus muitos
filhos. Conheci um gentio que me tomaria a seu serviço, porque viu que sou
bom no trabalho e daria trabalho também para os meus filhos. Mas eu não
queria… parecer-lhe-á estranho o escrúpulo de um samaritano, mas eu o
tenho. Eu não queria que perdêssemos a fé. É um pagão aquele homem,
sabes?
– E então? Nada contamina se não se quer ser contaminado. Vai, pois,
para Antioquia e sê do Deus verdadeiro. Ele te guiará e tu serás até o
benfeitor do teu patrão, que conhecerá a Deus, através da tua honestidade.
145.5 Depois, começa a falar a todos.
– Eu ouvi a muitos de vós, e em todos senti que há uma dor secreta,
uma pena, da qual talvez nem vos deis conta, e que vos faz chorar em
vossos corações. Há séculos que ela vem se acumulando e nem as razões
que vós dizeis, nem as injúrias, que se vos fazem, conseguem desfazê-la.
Ao contrário, sempre mais endurece e pesa como a neve que se transforma
em gelo.
Eu não sou um de vós e não sou tampouco um dos que vos acusam. Eu
sou Justiça e Sabedoria. E, para a solução do vosso caso, vos cito ainda
Ezequiel. Ele, profeticamente, fala[78] de Samaria e de Jerusalém,
chamando-as de filhas de um seio e dando-lhes os nomes de Oolá e Oolibá.
A primeira a cair em idolatria foi a primeira, chamada Oolá, porque já
privava da ajuda espiritual, que lhe provinha de sua união com o Pai dos
Céus. A união com Deus sempre é salvação. Trocou a verdadeira riqueza, o
verdadeiro poder, a verdadeira sabedoria pela pobre riqueza, poder e
sabedoria de alguém que era inferior a Deus, ainda mais do que ela, e foi
seduzida a tal ponto, que se tornou escrava do modo de viver desse alguém
que a havia seduzido. Para ser forte, tornou-se fraca. Para ser maior, tornou-
se menor. Por ser imprudente, enlouqueceu. Quando alguém
imprudentemente se contamina com alguma infecção, só pode livrar-se dela
com muito trabalho. Vós direis: “Tornou-se menor? Não. Nós fomos
grandes.” Grandes, sim, mas como? A que preço? Vós o sabeis. Quantas,
mesmo entre as mulheres, conquistam a riqueza pelo preço tremendo de sua
honra! Conquistam uma coisa que pode acabar. E perdem uma coisa que
nunca tem fim: o bom nome.
Oolibá, vendo que a loucura de Oolá lhe tinha trazido riqueza, quis
imitá-la e enlouqueceu mais do que Oolá, e com culpa dobrada, porque ela
tinha consigo o verdadeiro Deus e não deveria nunca ter desprezado a força,
que de tal união lhe provinha. Por isso lhe veio uma dura e tremenda
punição, e maior virá à duplamente louca e fornicadora Oolibá. Deus lhe
virará as costas. Já o está fazendo, para ir àqueles que não são de Judá. E
não se poderá acusar a Deus de ser injusto, porque Ele não se impõe. Abre a
todos os seus braços, a todos convida, mas, se alguém lhe diz: “Vai-te
embora”, Ele se vai. Vai em busca de amor, vai levar seus convites a outros,
até encontrar quem lhe diga: “Eu vou.” Por isso, Eu vos digo que podeis ter
alívio em vosso tormento, e deveis tê-lo, se pensardes nisto.
Oolá, cai em ti mesma! Deus está te chamando. A sabedoria do homem
está em saber reconhecer as próprias faltas, a sabedoria do espírito está em
amar ao Deus verdadeiro e à sua Verdade. Não fiqueis olhando nem para
Oolibá, nem para a Fenícia, nem para o Egito, nem para a Grécia. Olhai
para Deus. Aquela é a Pátria de todos os espíritos retos: o Céu. Não existem
muitas leis. Mas uma só: a de Deus. Por esse código, tem-se a Vida. Não
digais: “Pecamos”, mas dizei: “Não queremos pecar mais.” Que Deus ainda
vos ame, tendes a prova, nisto de ter-vos mandado o seu Verbo para dizer-
vos “Vinde”, tendes a prova. Vinde, vos digo. Sois injuriados e proscritos?
E por quem? Por pessoas semelhantes a vós. Mas Deus é mais do que eles,
e Ele vos diz “Vinde.” Um dia chegará em que vos jubilareis por não terdes
estado no Templo… Com a mente vos jubilareis por isso. Mas ainda mais
se jubilarão os espíritos, porque sobre os retos de coração, espalhados pela
Samaria, já terá descido o perdão de Deus. Preparai a chegada dele. Vinde
ao Salvador universal, ó filhos de Deus que perdestes o Caminho.
145.6 – Mas, pelo menos alguns, nós iremos. São os do outro lado que
não nos querem.
– E ainda com o sacerdote e profeta Eu vos digo[79]: “Eu pegarei a
madeira de José, que está na mão de Efraim, com as tribos de Israel a ele
unidas e a ajuntarei com a madeira de Judá, fazendo de tudo uma só
madeira…” Sim. Não ao Templo. A Mim, vinde. Eu não rejeito. Eu sou
aquele que é chamado o Rei que domina sobre todos. O Rei dos reis sou Eu.
Eu vos purificarei a todos, ó povos que quereis ser purificados. Eu vos
reunirei, ó rebanhos sem pastor, ou com pastores que se fazem ídolos,
porque Eu sou o bom Pastor. Eu vos darei um tabernáculo único e o
colocarei no meio dos meus fiéis. Esse tabernáculo será fonte de vida, pão
de vida, será luz, será salvação, proteção, sabedoria. Tudo será, porque será
o Vivente dado em alimento aos mortos para torná-los vivos, será o Deus
que se derrama com a sua santidade para santificar. Isto Eu sou e serei. O
tempo do ódio, da incompreensão, do temor, está superado. Vinde! Povo de
Israel! Povo separado! Povo aflito! Povo distante! Povo querido, tão
infinitamente querido porque doente, porque enfraquecido, porque esvaído
em sangue por uma flecha que te abriu as veias da alma e dela fez fugir a
união vital com o teu Deus, vem! Vem ao seio do qual nasceste, vem ao
peito do qual te veio a vida. Doçura e calor ainda há aqui para ti. Sempre.
Vem! Vem à Vida e à Salvação.
[78] fala, em: Ezequiel 23.
[79] digo, em: Ezequiel 37,19.
146. O segundo dia em Sicar
e despedida dos samaritanos.
25 de abril de 1945.
146.1 Jesus diz aos samaritanos de Sicar:
– Antes de deixar-vos, porque tenho outros filhos para evangelizar,
quero abrir-vos os caminhos luminosos da esperança e neles colocar-vos,
dizendo: Ide seguros pois a meta é certa. E hoje não vou lançar mão do
grande Ezequiel, mas sim, do discípulo predileto de Jeremias, o grande
profeta.
Baruque fala para vós[80]. Oh! Como realmente ele representa as vossas
almas e fala por todas elas ao Deus sublime que está nos Céus. Às vossas
almas. Não digo somente às dos samaritanos, mas todas as vossas almas, ó
estirpes do povo eleito, que caístes em múltiplos pecados, e representa
também as vossas, ó povos gentios, que percebeis haver um Deus
desconhecido, entre os muitos deuses que adorais, um Deus que a vossa
alma sente que é o Único e Verdadeiro e que o vosso peso vos impede de
procurar, para o conhecerdes, como vossa alma desejaria. Pelo menos uma
lei moral vos havia sido dada, ó gentios, ó idólatras, porque sois homens, e
o homem tem em si uma essência que vem de Deus e que se chama espírito,
a qual tem uma voz e sempre um conselho de elevação, que a impele para
uma vida santa. E vós a obrigastes a tornar-se escrava de uma carne viciosa,
espezinhastes a lei moral humana, que tínheis, e vos tornastes, também
humanamente, pecadores, rebaixando o conceito das vossas crenças e a vós
mesmos, até ao nível da bestialidade, que vos torna inferiores aos brutos.
Contudo, escutai. Ouvi todos. Quanto mais conheceis a Lei de uma
moral sobrenatural que vos foi dada pelo verdadeiro Deus, tanto mais
compreendereis e, por consequência, tanto melhor ireis agir.
146.2 Reza — e esta é a oração que deve estar em vossos corações
humilhados em uma humildade nobre, que não é uma degradação e
indolência, mas sim, o conhecimento exato das próprias miseráveis
condições e o desejo santo de encontrar o meio para melhorá-las
espiritualmente — Baruque reza assim: “Olha para nós, ó Senhor, lá de tua
santa morada, inclina para nós os teus ouvidos e escuta-nos. Abre os olhos e
reflete que não serão os mortos, que estão no inferno, cujos espíritos estão
separados de suas entranhas, os que prestarão honra e justiça ao Senhor,
mas a alma aflita pela grandeza de suas desventuras, que vai andando
encurvada e enfraquecida, com os olhos abatidos. É a alma que tem fome de
Ti, ó Deus, a que te rende glória e justiça.”
E Baruque chora humildemente, e todo justo deve chorar com ele
vendo e chamando com seus verdadeiros nomes as desventuras que têm, de
um povo forte que se tornou um povo triste, dividido e subjugado: “Não
demos ouvido à tua voz e Tu cumpriste as tuas palavras, ditas por meio dos
teus servos, os Profetas… E eis que os ossos dos nossos reis e dos nossos
pais foram tirados dos seus sepulcros e jogados ao calor do sol, ao gelo da
noite, e os cidadãos morreram, entre dores atrozes, ou pela fome, ou pela
espada, ou pela peste. E o Templo, no qual era invocado o teu Nome, Tu o
reduziste ao estado em que hoje se encontra por causa da iniquidade de
Israel e de Judá.”
Oh! filhos do pai, não digais: “Tanto o nosso, como o vosso Templo,
surgiram e ressurgiram, e são belos.” Não. Uma árvore rachada pelo raio,
desde a copa até as raízes, não sobrevive. Poderá vegetar miseravelmente,
com um esforço de vida, dado pelos rebentos nascidos daquelas raízes que
não querem morrer, mas será um espinheiro infrutífero, nunca mais aquela
opulenta árvore, rica de frutos agradáveis e suaves. O desmoronamento,
iniciado com a separação, sempre mais se acentua, não obstante a
construção material não pareça ter sido danificada; antes, pode parecer bela
e nova. Ele destrói aos poucos as consciências que nela moram. Depois
chegará a hora que, apagadas todas as chamas sobrenaturais, faltará ao
Templo altar de metal precioso que, para subsistir, deve ser conservado em
contínua fusão, pelo calor da fé e da caridade de seus ministros — pois isto
é a sua vida — e ele, gelado, apagado, emporcalhado, cheio de mortos,
virará uma podridão, sobre a qual os urubus estrangeiros e a avalanche da
punição divina se arremessarão para fazer dessa construção uma ruína.
Filhos de Israel, rezai, chorando Comigo, vosso Salvador. Que minha
voz sustente as vossas e penetre, pois ela o pode, até o trono de Deus. Quem
reza com o Cristo, Filho do Pai, é ouvido por Deus, Pai do Filho.
Rezemos a antiga e justa oração de Baruque: “E agora, Senhor
Onipotente, ó Deus de Israel, todas as almas angustiadas, todos os espíritos
cheios de ansiedade clamam por Ti. Escuta-os, Senhor, e tem piedade. Tu és
um Deus misericordioso, tem piedade de nós, porque pecamos diante de Ti.
Tu, desde a eternidade, estás sentado e nós deveremos perecer para sempre?
Senhor Onipotente, Deus de Israel, escuta a oração dos mortos de Israel e
dos seus filhos, os quais pecaram diante de Ti. Eles não deram ouvidos à
voz do Senhor seu Deus e em nós pagaram os seus males. Não te lembres
da iniquidade de nossos pais, mas recorda-te do teu poder e do teu Nome…
Para que nós invoquemos esse Nome e nos convertamos da iniquidade de
nossos pais, tem piedade.”
Rezai assim e convertei-vos verdadeiramente, voltando-vos à
verdadeira sabedoria, que é a de Deus e que se encontra no Livro dos
mandamentos de Deus e na Lei que dura para sempre e que agora Eu,
Messias de Deus, vim trazer de novo, em sua forma simples e inalterável,
para os pobres do mundo, anunciando-lhes a boa nova da era da Redenção,
do Perdão, do Amor, da Paz. Quem crer nesta Palavra, alcançará a vida
eterna.
146.3 Eu vos deixo, ó cidadãos de Sicar, que fostes bons para com o
Messias de Deus. Eu vos deixo com a minha paz.
– Fica ainda conosco!
– Volta outra vez!
– Nunca mais ninguém nos falará como nos falaste!
– Sê bendito, bom Mestre!
– Abençoa o meu pequenino.
– Reza por mim, Tu que és santo.
– Deixa que eu conserve uma das tuas franjas como uma bênção.
– Lembra-te do Abel.
– E de mim, Timóteo.
– E de mim, Jorai.
– De todos. De todos. A paz venha sobre vós.
Eles o acompanham até fora da cidade, por algumas centenas de
metros, depois, lentamente voltam para trás…
[80] fala para vós, em Baruc 2,18-18.24-26; 3,1-7.
147. Cura de uma mulher
de Sicar e conversão de Fotinai.
26 de abril de 1945.
147.1 Jesus caminha sozinho, passando rente a uma sebe de cactáceas que,
zombando de todas as outras árvores despidas, brilham ao sol com suas
pazinhas gordas e espinhosas, sobre as quais ficou ainda um ou outro fruto
ao qual o tempo deu uma cor vermelho tijolo e sobre as quais já vêm
sorrindo alguma precoce flor, com seu amarelo pincelado de cinabre.
Atrás, os apóstolos cochicham entre eles, e não me parece que estejam
fazendo propriamente elogios ao Mestre.
O qual, em certo momento, vira-se de repente e diz:
– “Quem olha para os ventos, não semeia e quem fica olhando para as
nuvens, nunca irá fazer a colheita.” É um provérbio[81] antigo. Mas Eu o
sigo. E vós estais vendo que, onde tínheis medo de encontrar ventos
contrários e nem queríeis parar, Eu encontrei terreno e modo de semear. E
não obstante as “vossas” nuvens que, seja-vos dito, não é bom que as
fiqueis mostrando onde a Misericórdia quer mostrar o seu sol, estou certo
de já ter feito uma colheita.
– No entanto, ninguém te pediu um milagre. É uma fé muito estranha a
que eles têm em Ti!
– E crês tu, Tomé, que só o pedido de um milagre já prove que há fé?
Estás enganado. É tudo ao contrário. Quem quer um milagre para poder
crer, é sinal de que, sem o milagre, que é uma prova palpável, ele não
acreditaria. Ao invés, aquele que diz: “Eu creio”, só pela palavra de outrem,
mostra a máxima fé.
– De modo, então, que os samaritanos são melhores do que nós!
– Não digo isto. Mas na condição em que estão de rebaixamento
espiritual, mostraram uma capacidade de entender a Deus muito superior à
dos fiéis da Palestina. Encontrareis isso muitas vezes em vossa vida, e Eu
vos peço, recordai-vos também deste episódio para saberdes controlar-vos,
sem preconceitos para com as almas que virão à fé no Cristo.
– Porém, perdoa Jesus, se eu te digo, parece-me que, com todo o ódio
que já tens atrás de Ti, seja ruim para Ti dar pretextos a novas acusações. Se
os sinedritas soubessem que Tu tiveste…
– Mas diz logo: “amor”, porque isto é o que Eu tive e tenho, Tiago. E
tu, que és meu primo, podes compreender que Eu não posso ter outra coisa,
senão amor. Eu te mostrei que não tenho senão amor, até para com quem
era meu inimigo, entre os do meu sangue e da minha terra. E, deveria Eu,
para com estes que me respeitaram, ainda que não me conhecessem, não ter
amor? Os sinedritas podem fazer todo o mal que quiserem. Mas não há de
ser a consideração desse mal futuro que me fechará as comportas do meu
amor onipresente e onioperante. Além do mais… mesmo que Eu o
fizesse… não impediria ao Sinédrio de, em seu ódio, achar as acusações.
– Mas Tu, Mestre, estás perdendo o teu tempo em uma cidade idólatra,
enquanto tantos lugares em Israel te estão esperando. Tu dizes que todas as
horas devem ser consagradas ao Senhor. E estas horas aqui não estão
perdidas?
– Não é perdida uma jornada, que foi usada para recolher as ovelhas
dispersas. Não é perdida, Filipe. Está dito: “Faz muitas oblações aquele que
respeita a Lei… mas aquele que usa de Misericórdia, oferece um
sacrifício.” Está dito: “Dá ao Altíssimo, na proporção em que Ele te deu e
oferece com olhos alegres, os teus bens.” Assim Eu faço, amigo. E não é
tempo perdido aquele do sacrifício. Eu faço Misericórdia e uso dos bens
que tenho tido, oferecendo o meu trabalho a Deus. Portanto, ficai
tranquilos. 147.2E afinal… Aquele de vós que queria um pedido de milagre,
para persuadir-se de que os habitantes de Sicar creem em Mim, agora vai
ser contentado. Aquele homem certamente nos segue por algum motivo.
Paremos aqui.
De fato, um homem vem avante. Parece estar encurvado sob o peso de
um grande fardo, que ele traz equilibrado nas costas. Vê que o grupo para e
ele para também.
– Ele quer nos atacar. Parou porque viu que nós percebemos a presença
dele. Ah! São samaritanos!
– Tens certeza disso, Pedro?
– Oh! Toda certeza!
– Então parai aqui. Eu vou ao encontro dele.
– Não faças isso, Senhor! Se vais, eu vou também.
– Então vem.
Jesus se dirige para o homem. Pedro vai caminhando aos pulos ao lado
de Jesus, curioso e ao mesmo tempo hostil. Quando estão a poucos metros
do homem, Jesus lhe diz:
– Que queres, homem? Quem procuras?
– A Ti.
– E por que não me procuraste na cidade?
– Não ousava… Se me tivesses rejeitado na presença de todos, eu teria
ficado muito magoado e envergonhado.
– Podias ter-me chamado logo que Eu estivesse sozinho com os meus.
– Eu esperava alcançar-te, quando estivesse sozinho, como aconteceu
com Fotinai. Eu também tenho um grande motivo para ficar sozinho
Contigo…
– Que queres? Que é que estás trazendo nas costas com tanta
dificuldade?
– É a minha mulher. Um espírito tomou posse dela e fez dela um corpo
morto e uma inteligência que se apagou. Tenho que dar-lhe comida na boca,
vesti-la e transportá-la, como se faz com uma criança. Ela ficou assim de
repente, sem ficar doente…Chamam-lhe “a endemoninhada.” Sofro tanto
com ela, me dá trabalho. E despesas. Olha.
O homem põe no chão o seu fardo de carnes inertes, envolvidas em um
manto, como se fôsse um saco, e descobre um rosto de mulher ainda nova,
mas que, se não estivesse respirando, poder-se-ia dizer que estava morta.
Olhos fechados, boca entreaberta… o rosto de alguém que expirou.
Jesus se inclina sobre a infeliz, que está deitada no chão, olha para ela,
olha para o homem:
– Crês tu que Eu o possa? Por que é que crês?
– Porque Tu és o Cristo.
– Mas tu não viste nada que o prove.
– Eu ouvi a tua palavra. Ela basta.
147.3 – Pedro, estás ouvindo? Que dizes que Eu tenha que fazer agora,
diante de uma fé tão boa?
– Mas… Mestre… Tu… Eu… Mas, faz Tu, em suma.
Pedro ficou muito embaraçado.
– Sim. Eu faço. Homem, olha.
Jesus pega pela mão a mulher e ordena:
– Sai dela. Eu quero.
A mulher, até então inerte, tem uma horrível convulsão, primeiro muda
e depois com gritos e lamentos, que terminam com um grande grito, durante
o qual ela abre os olhos, que até aquele momento tinham estado fechados,
arregalando-os, como alguém que desperta de um sono de pesadelo. Depois
se acalma e um pouco atordoada olha ao redor de si, fixando os olhos,
primeiro em Jesus, o Desconhecido que lhe sorri… olha a poeira do
caminho em que está deitada, uma moita de erva que nasceu na beira do
caminho e sobre a qual estão as cabecinhas brancas e vermelhas dos botões
das margaridinhas, ali colocadas como pérolas, que estão para abrir-se
numa auréola… Olha para a sebe de cactáceas, para o céu tão azul, e depois
vira os olhos e vê o seu homem… o seu homem, que a olha ansioso e a
escruta em todos os seus movimentos. Ela sorri, e depois, na completa
liberdade que volta, em um pulo põe-se de pé e vai refugiar-se sobre o peito
do marido que a acaricia e abraça chorando.
– Como? Como é que eu estou aqui? Por quê? Quem é aquele homem?
– É Jesus, o Messias. Tu estavas doente. Ele te curou. Diz a Ele que tu
lhe queres bem.
– Oh! Sim! Obrigada… Mas que é que eu tinha? Os meus meninos…
Simão… eu não me lembro do dia de ontem, mas me lembro que tenho uns
meninos…
Jesus fala:
– Não é preciso que te lembres do dia de ontem. Lembra-te sempre do
dia de hoje. E sê boa. Adeus. Sede bons e Deus estará convosco.
E Jesus, seguido pelas bênçãos dos dois, retira-se rapidamente.
Quando alcança os outros, que ficaram encostados na sebe, não lhes
fala nada. Mas diz a Pedro:
– E agora? Tu que tinhas certeza de que aquele homem queria me
atacar, que dizes? Simão, Simão! Quanto ainda te falta para seres perfeito!
Quanto vos falta! Vós tendes, menos a evidente idolatria, todos os pecados
que estes têm, além da soberba de juízo. Agora vamos tomar a nossa
refeição. Não vamos poder chegar até onde Eu queria, antes que a noite
venha. Dormiremos em algum palheiro, se não acharmos coisa melhor.
Os doze, com o sabor da repreensão no coração, assentam-se em
silêncio e comem seus alimentos.
O sol de um plácido dia ilumina o campo, que desce em suaves
ondulações, em direção à planície.
147.4 Terminada a refeição, ficam parados ainda por algum tempo, até
que Jesus se levanta e diz:
– Vinde tu, André e tu, Simão. Vou ver se aquela casa é amiga ou
inimiga.
E lá se vai, enquanto os outros ficam e permanecem calados, até que
Tiago do Alfeu diz a Judas Iscariotes:
– Mas esta, que vem vindo, não é a mulher de Sicar?
– Sim. É ela. Reconheço-a pela veste. Que quererá ela?
– Ir pelo seu caminho –responde Pedro, amuado.
– Não. Está olhando muito para nós, enquanto protege os olhos com a
mão.
Ficam observando-a, até que ela chega perto e diz, toda submissa:
– O vosso Mestre, onde está?
– Está fora. Por que perguntas por Ele?
– Eu tinha necessidade Dele…
– Ele não se perde com as mulheres –responde secamente Pedro.
– Sei disso. Com as mulheres não. Mas eu sou uma alma de mulher,
que preciso Dele.
– Deixa-a –aconselha Judas do Alfeu.
E responde à Fotinai:
– Espera. Daqui a pouco Ele volta.
A mulher se coloca em um cantinho da estrada, onde há uma curva e
fica lá quieta e em silêncio, enquanto todos deixam de preocupar-se com
ela. Mas Jesus logo volta e Pedro diz:
– Eis o Mestre. Diz-lhe o que queres e sem demora.
A mulher nem lhe responde, mas vai aos pés de Jesus e, calada, se
curva até o chão.
– Fotinai, que queres de Mim?
– A tua ajuda, Senhor. Sou muito fraca. E não quero mais pecar. Eu já
disse isto ao homem. Mas agora, que não sou mais pecadora, não sei mais
nada. O bem eu o ignoro. Que devo fazer? Diz a mim. Eu sou uma lama.
Mas o teu pé pisa nos caminhos para ir atrás das almas. Pisa na minha lama,
mas vem à minha alma com o teu conselho.
E chora.
– Atrás de Mim, mulher sozinha não poderá vir. Mas, se não queres
mesmo pecar mais e conhecer a ciência de não pecar, volta para a tua casa
com espírito de penitência e espera. Virá o dia no qual, mulher entre muitas
outras igualmente redimidas, poderás estar perto do teu Redentor e aprender
a ciência do Bem. Vai. Não tenhas medo. Sê fiel à presente vontade de não
pecar. Adeus.
A mulher beija a poeira, levanta-se e se retira retrocedendo alguns
metros, depois vai-se embora, dirigindo-se para Sicar…
[81] provérbio, que está em: Eclesiastes 11,4; seguem citações de: Ben Sira 35,1-2.9.
148. Jesus visita o Batista perto de Hinon.
27 de abril de 1945.
148.1 Uma clara noite de luar, tão clara, que o terreno se revela em todos
os seus particulares e os campos com o trigo nascido há poucos dias,
parecem tapetes de uma felpa verde prateada, listrados pelas fitas escuras
dos caminhos e vigiados pelos troncos das árvores todos brancos do lado da
lua e todos pretos do lado do poente.
Jesus caminha tranquilo e sozinho. Vai muito rápido, até encontrar um
curso d’água, que desce borbulhante em direção à planície, no sentido
noroeste. Sobe por ele até um lugar solitário, perto de uma encosta cheia de
árvores. Faz uma volta ainda, subindo por um atalho, e chega a um abrigo
natural, num dos lados da colina.
Entra e se inclina sobre alguém que está deitado, e que mal pode ser
visto ao clarão do luar que ilumina o caminho, mas não penetra na caverna.
Jesus o chama:
– João.
O homem desperta e se assenta, ainda ofuscado pelo sono. Mas logo
dá-se conta de Quem é que o está chamando e num pulo põe-se de pé, para
depois prostrar-se por terra, dizendo:
– Como é que veio a mim o meu Senhor?
– Para contentar o teu coração e o meu. Tu me querias ver João. Eis-
me. Levanta-te. Vamos sair para a luz do luar e sentar-nos na pedra que está
junto à caverna para conversarmos.
João obedece, levanta-se e sai. Mas quando Jesus sentou-se, ele, em sua
pele de ovelha, que mal lhe cobre o corpo magríssimo, põe-se de joelhos
diante do Cristo, joga para trás seus cabelos longos e descompostos, que lhe
estavam caindo sobre os olhos, para ver melhor o Filho de Deus.
O contraste é muito forte. Jesus é pálido e loiro, de cabelos macios e
penteados, com uma barba curta por baixo do rosto, e o outro é uma
verdadeira touceira de pelos muito pretos dos quais apenas aparecem dois
olhos encovados, eu diria febris, de tanto que brilham em sua cor negra de
azeviche.
148.2 – Vim para dizer-te “obrigado.” Tu tens cumprido e estás
cumprindo, com a perfeição da Graça que há em ti, a tua missão de meu
Precursor. Quando chegar a hora, entrarás a meu lado no Céu, porque tudo
terás merecido de Deus. Mas, naquela espera, já estarás na paz do Senhor,
meu amigo dileto.
– Bem depressa entrarei na paz. Meu Mestre e Deus, abençoa o teu
servo para fortalecê-lo na última prova. Eu não ignoro que ela já está
próxima e que ainda tenho que dar um testemunho: o sangue. E Tu, mais
ainda do que eu, não ignoras que está para chegar a minha hora. A tua vinda
foi a misericordiosa bondade do teu coração de Deus que a quis, para
fortalecer o último mártir de Israel e o primeiro mártir dos tempos novos.
Mas diz-me uma coisa: terei que esperar muito a tua vinda?
– Não, João. Não muito mais do que o tempo que decorreu do teu ao
meu nascimento.
– Seja bendito o Altíssimo por isso. Jesus… posso dizer-te assim?
– Tu o podes, tanto pelo sangue, como pela santidade. Aquele Nome,
que os pecadores também dizem, pode ser dito pelo santo de Israel. Para
eles é salvação, para ti seja doçura. Que queres de Jesus, teu Mestre e
primo?
– Eu vou morrer. Mas como um pai se preocupa com seus filhos, eu me
preocupo com os meus discípulos. Os meus discípulos… Tu és Mestre e
sabes como para com eles é vivo em nós o amor. A única pena que eu tenho
ao morrer é o temor de que eles se percam, como ovelhas sem pastor.
Recolhe-os, Tu. Eu te entrego os três que já são teus e que me foram
perfeitos discípulos, à espera de Ti. Neles, e especialmente em Matias, está
realmente presente a Sabedoria. Outros tenho. E a Ti virão. Mas a estes,
deixa que eu os confie a Ti pessoalmente. São os três mais queridos.
– E Eu também os considero queridos. Vai tranquilo, João. Eles não se
perderão. Nem estes nem os outros que tens, verdadeiros discípulos. Eu
recolho a tua herança e a velarei como o tesouro mais caro, vindo de
perfeito amigo meu e servo do Senhor.
148.3 João se prostra por terra e, o que parece impossível em tão austero
personagem, chora com fortes soluços de alegria espiritual.
Jesus pousa a mão sobre a cabeça dele.
– O teu pranto, que é de alegria e humildade é o eco de um canto
longínquo, ao som do qual o teu pequeno coração pulou de júbilo. São,
aquele canto e este pranto, o mesmo hino de louvor ao Eterno que “fez
grandes coisas, Ele que é poderoso, nos espíritos humildes.” Também
minha Mãe está para entoar de novo o seu canto, já cantado então. Mas
depois, também para Ela virá a maior glória, como para ti, depois do
martírio. Eu te trago também as saudações Dela. Todas as despedidas e
todos os confortos. Tu o mereces. Aqui não há mais do que a mão do Filho
do homem, que está sobre a tua cabeça, mas, do Céu aberto, desce a Luz e o
Amor a abençoar-te, João.
– Eu não mereço tanto. Eu sou o teu servo.
– Tu és o meu João. Naquele dia, junto ao Jordão, Eu era o Messias que
se manifestava; aqui agora é o primo e o Deus, que te quer dar o viático do
seu amor de Deus e de parente. Levanta-te, João. Demos um ao outro o
beijo de adeus.
– Não mereço tanto… Eu sempre o desejei durante toda a vida. Mas
não ouso fazer este ato sobre Ti. Tu és o meu Deus.
– Sou o teu Jesus. Adeus. A minha alma estará perto da tua até à paz. E
vive e morre em paz quanto aos teus discípulos. Não posso dar-te senão isto
agora. Mas no Céu te darei o cêntuplo, porque achaste graça aos olhos de
Deus.
Jesus o levantou e o abraçou, beijando-o nas faces e sendo por ele
beijado. Depois João se ajoelha ainda e Jesus lhe impõe as mãos sobre a
cabeça e reza com os olhos voltados para o céu. Parece que o está
consagrando. É majestoso.
O silêncio se prolonga assim por algum tempo. Depois Jesus se
despede, com sua doce saudação:
– A minha paz esteja sempre contigo, e retoma o caminho por onde
veio.
149. A herança do Batista. A hora da
morte para os apóstolos. O amor de Deus em
João.
28 de abril de 1945.
149.1 – Senhor, por que não tomas um descanso, de noite? Esta noite, eu
me levantei e não te vi. O teu lugar estava vazio –diz Simão Zelote.
– Por que estavas me procurando, Simão?
– Para ceder-te o meu manto. Temia que Tu estivesses com frio na
noite, que estava serena, mas muito fresca.
– E tu, não estavas com frio?
– Eu me habituei, em muitos anos de miséria, a ficar mal coberto, mal
nutrido e mal alojado… Aquele vale dos mortos!! Que horror! Neste
momento não seria oportuno. Mas numa outra vez que tivermos que ir para
Jerusalém, pois certamente teremos que ir, vai, meu Senhor, para os lados
daqueles lugares de morte. Lá há tantos infelizes… e a miséria corporal não
é a mais grave… O que mais rói lá e consome é o desespero… Não achas,
meu Senhor, que existe dureza demais para com os leprosos?
É Iscariotes quem responde, antes até de Jesus, ao Zelote, que perora
em favor dos seus antigos companheiros. Iscariotes diz:
– E quereria, então, deixá-los no meio do povo? Pior para eles, se são
leprosos!
– Não nos faltaria nada mais do que isto, para fazer dos hebreus uns
mártires. Até a lepra, tendo o seu espaço nas ruas, junto com as milícias e
outras coisas! –exclama Pedro.
– Parece-me que seja uma medida de justa prudência conservá-los
separados –observa Tiago do Alfeu.
– Sim. Mas haveria de ser praticada com piedade. Tu não sabes o que é
ser leproso. Não podes falar. Se é justo ter cuidado com os nossos corpos,
por que não temos a mesma justiça para com as almas dos leprosos? Quem
fala a eles de Deus? E só Deus sabe quanto eles têm necessidade de pensar
em Deus e em uma paz, naquela sua atroz desolação!
– Simão, tens razão. Eu irei a eles. Porque é justo e para ensinar-vos
esta Misericórdia. Até agora, tenho curado os leprosos encontrados por
acaso. Até este momento, ou seja, até o dia em que fui expulso de Judá, Eu
me dirigi aos grandes de Judá, como aos mais afastados e necessitados de
serem redimidos para serem auxiliares do Redentor. Mas agora, convicto da
inutilidade dessa minha tentativa, Eu os abandono. Não aos grandes, mas
aos mínimos, às misérias de Israel é que Eu vou. E entre elas estarão os
leprosos do vale dos mortos. Não decepcionarei a fé que têm em Mim estes
evangelizados pelo leproso reconhecido.
– Como sabes, Senhor, que eu fiz isso?
– Como sei o que pensam de Mim amigos ou inimigos, cujos corações
perscruto.
149.2 – Misericórdia! Mas Tu sabes mesmo tudo de nós, Mestre? –grita
Pedro.
– Sim. Também sei que tu, e não tu somente, querias afastar a Fotinai.
Mas não sabes que não te é lícito afastar uma alma do bem? Não sabes que
para penetrar numa cidade é preciso ser de uma piedade toda doce, até para
com aqueles que a sociedade, que não é santa, porque não está identificada
com Deus, chama e julga indignos de piedade? Mas não te perturbes por Eu
saber estas coisas. Tem, sim, pena de que o teu coração tenha movimentos,
que Deus não aprova e esforça-te para não tê-los mais. Eu vo-lo disse. O
primeiro ano terminou. No ano novo, Eu progredirei, e com novas formas,
pelo meu caminho. Vós deveis no segundo ano também progredir. Se assim
não fosse, seria inútil que Eu me cansasse a evangelizar e a vos
superevangelizar, meus futuros sacerdotes.
149.3 – Tinhas ido rezar, Mestre? Tu nos havias prometido ensinar-nos as
tuas orações. Irás fazê-lo neste ano?
– Eu o farei. Mas quero ensinar-vos a serdes bons. A bondade já é
oração. Mas Eu o farei, João.
– E também a fazer milagres, nos ensinarás neste ano? –pergunta
Iscariotes.
– O milagre não se ensina. Não é um jogo de prestidigitador. O milagre
vem de Deus. Consegue-o quem tem graça junto a Deus. Se aprenderdes a
ser bons, tereis graça e conseguireis milagres.
149.4 – Mas Tu nunca respondes a nossa pergunta. Perguntou Simão,
perguntou João, e nunca nos dizes aonde foste esta noite. Sair assim
sozinho, numa terra pagã, pode ser perigoso.
– Fui fazer feliz uma alma reta e, como era um moribundo, fui receber a
sua herança.
– Sim? Era muita?
– Muita, Pedro, e de muito valor. Era o fruto do trabalho de um
verdadeiro justo.
– Mas… eu não vi nada mais na tua sacola. Serão talvez joias que
trazes no peito?
– Sim. São joias muito queridas ao meu coração.
– Mostra-nos, Senhor!
– Eu as receberei, quando aquele moribundo morrer. Por ora, servem a
ele, e a Mim, deixando-as onde estão.
– Ele as pôs a juros?
– Mas, pensas tu que o que tem valor é só o dinheiro? Este é a coisa
mais inútil e suja que há sobre a terra. E só serve para a matéria, para os
delitos e o inferno. Raramente o homem o usa para o bem.
– Então… se não é dinheiro, o que é?
– Três discípulos formados por um santo.
– Estiveste com o Batista? Oh! Mas por que?
– Por que!! Vós me tendes sempre; e todos vós valeis menos do que
uma só unha do Profeta. Não era justo que Eu fôsse levar ao santo de Israel
a bênção de Deus para fortalecê-lo para o martírio?
– Mas se é santo… não precisa de fortificação. Age por si mesmo!!
– Um dia chegará em que os “meus” santos serão levados aos juízes e à
morte. Serão santos, estarão na graça de Deus, serão confortados pela fé,
pela esperança e pela caridade. Contudo, Eu já estou ouvindo o grito deles,
o grito de seus espíritos: “Senhor, ajuda-nos nesta hora!” Só com a minha
ajuda é que os meus santos serão fortes nas perseguições.
149.5 – Mas… estes não seremos nós, não é? Porque eu não tenho mesmo
a capacidade de sofrer.
– É verdade. Tu não tens a capacidade de sofrer. Mas tu, Bartolomeu,
ainda não foste batizado.
– Eu o fui sim.
– Com a água. Mas falta-te ainda um outro batismo. Só depois é que
saberás sofrer.
– Eu já estou velho.
– E quando muito mais velho, serás mais forte do que um jovem.
– Mas Tu nos ajudarás do mesmo modo, não é verdade?
– Eu estarei sempre convosco.
– Procurarei habituar-me a sofrer –diz Bartolomeu.
– Eu rezarei sempre, desde agora, para receber esta graça de Ti –diz
Tiago do Alfeu.
– Eu estou velho e não peço senão poder ir à tua frente e entrar Contigo
na paz –diz Simão Zelote.
– Eu… nem sei o que quereria: Se ir à tua frente ou estar perto de Ti
para morrer Contigo –diz Judas do Alfeu.
– Eu ficarei pesaroso, se sobreviver a Ti. Mas me consolarei pregando o
teu nome aos povos –professa Iscariotes.
– Eu penso como o teu primo –diz Tomé.
– Eu, ao invés, como Simão, o Zelote –diz Tiago do Zebedeu.
– E tu, Filipe?
– Mas… eu digo que não quero nem pensar nisso. O Eterno me dará o
que for melhor.
– Oh! Calai-vos! Parece que o Mestre vai morrer logo! Não me façais
pensar em sua morte! –exclama André.
– Disseste bem, meu irmão. Estás jovem e são, Jesus. Terás que
sepultar-nos todos, pois somos mais velhos do que Tu.
– E se me matassem?
– Que isso não te aconteça nunca. Mas eu te vingarei.
– Como? Com vinganças de sangue?
– Eh!! Até com elas, se me dás licença. Mas, se não a deres, irei
destruir, com a minha profissão de fé entre os povos as acusações lançadas
contra Ti. O mundo te amará, porque serei incansável em pregar o teu
Nome –termina Pedro.
– É verdade. Assim será. E tu, João? E tu, Mateus?
– Eu devo sofrer e esperar ter, com muito sofrimento, lavado o meu
espírito –diz Mateus.
– E eu… eu não sei. Gostaria de morrer logo, para não te ver sofrer.
Gostaria de estar ao teu lado, para consolar-te na agonia. Gostaria de viver
por longo tempo para servir-te por longo tempo. Gostaria de morrer Contigo
para entrar Contigo no Céu. De tudo isso eu gostaria, porque te amo. E
penso que eu, o menor de meus irmãos, poderei tudo isso, se eu souber
amar-te com perfeição. 149.6Jesus, aumenta em mim o teu amor! –diz João.
– Quererás dizer: “Aumenta o meu amor” –comenta Iscariotes–. Porque
somos nós que devemos amar sempre mais…
– Não. Eu digo: “Aumenta o teu amor.” Porque nós mais amaremos
quanto mais Ele nos queimar com seu amor.
Jesus atrai para perto de si o puro e apaixonado João e o beija na fronte,
dizendo depois:
– Revelaste um mistério de Deus sobre a santificação dos corações.
Deus se derrama sobre os justos e, quanto mais eles se entregam ao seu
amor, mais Ele o aumenta e cresce a santidade. É este o misterioso e
inefável modo de operar de Deus e dos espíritos. Cumpre-se nos silêncios
místicos, e a sua potência, indescritível com palavras humanas, cria
indescritíveis obras-primas de santidade. Não é um erro, mas é uma palavra
sábia esta de pedir que Deus aumente o seu amor em um coração.
150. Em Nazaré na casa da Mãe,
a qual deverá seguir o Filho.
30 de abril de 1945.
150.1 Jesus está sozinho. Caminha ligeiro pela estrada mestra, que passa
perto de Nazaré e entra na cidade, dirigindo-se para a sua casa. Quando está
próximo dela, vê sua Mãe, que por sua vez, também está indo para casa,
tendo a seu lado o sobrinho Simão, que está carregado de feixes de
gravetos. Jesus a chama:
– Mãe!
Maria se vira, exclamando:
– Oh! Meu bendito Filho!
E ambos correm um para o outro, enquanto Simão, tendo colocado no
chão os seus feixes, imita Maria, dirigindo-se para o primo, a quem saúda
cordialmente.
– Minha Mãe, Eu vim. Estás contente agora?
– Muito, meu Filho. Mas… se for só porque eu te pedi é que, eu te digo
que não te é permitido seguir a voz do sangue, mais do que a de tua missão.
– Não, Mãe. Eu vim também para outras coisas.
– Então é verdade mesmo, meu Filho? Eu achava, eu queria achar que
fossem palavras mentirosas e que Tu não fosses odiado tanto…
As lágrimas estão nas palavras e nos olhos de Maria.
– Não chores, Mãe. Não me dês este sofrimento. Eu preciso do teu
sorriso.
– Sim, Filho, sim. É verdade. Tu vês tantos rostos duros de inimigos,
que tens necessidade de muito amor e sorriso. Mas aqui, estás vendo? Aqui
há quem te ama por todos…
Maria, que se apoia levemente no Filho, que a segura abraçada pelas
costas, vai caminhando lentamente para casa, e procura sorrir, para tirar
todo o sofrimento do coração de Jesus.
Simão tornou a apanhar os seus feixes e caminha ao lado de Jesus.
– Estás pálida, Mãe. Fizeram-te sofrer muito? Estiveste doente? Tens-te
cansado muito?
– Não, Filho. Não. Não tive nenhum sofrimento. A única pena foi a de
estares longe e não seres amado. Mas aqui, comigo, todos são muito bons.
Não falo da Maria e do Alfeu; esses Tu sabes que são. Mas até Simão, estás
vendo como ele é bom? É sempre assim. Tem sido a minha ajuda nestes
meses. Agora me abastece de lenha. É muito bom. E José também, sabes?
Tantos pensamentos bondosos para com a sua Maria.
– Deus te abençoe, Simão e também abençoe ao José. E, que ainda não
me ameis como ao Messias, Eu vo-lo perdoo. Oh! Mas vireis ao amor de
Mim, o Cristo! Mas, como poderia Eu perdoar-vos, se não a amásseis?
– Amar Maria é uma justiça e uma paz, Jesus. Mas Tu também és
amado… só que nós tememos muito por Ti.
– Sim. Vós me amais humanamente. Ireis ter o outro amor.
– Mas Tu também, meu Filho, estás pálido e emagrecido.
– Sim. Pareces mais velho. Eu também o estou vendo –observa Simão.
150.2 Entram em casa e Simão, tendo posto os feixes em seu lugar, retira-
se discretamente.
– Filho, agora que estamos sós, diz-me a verdade. Toda a verdade. Por
que foi que te expulsaram?
Maria fala, conservando as mãos sobre os ombros do seu Jesus e olha
fixamente para o seu rosto emagrecido.
Jesus tem um sorriso doce e cansado:
– Porque procurava levar o homem à honestidade, à justiça, à
verdadeira religião.
– Mas quem te acusa? O povo?
– Não, Mãe. Os fariseus e os escribas, com exceção de alguns justos
entre eles.
– Mas que fizeste para atrair as acusações deles?
– Disse a verdade. Não sabes que é o maior erro, junto aos homens?
– E que terão podido dizer para justificar suas acusações?
– Mentiras. As que sabes e outras mais.
– Dize-as à tua Mãe. E põe toda a tua dor no meu seio. Um seio de mãe
está acostumado com a dor, e fica feliz em passar por ela, contanto que
possa tirá-la do coração do filho. Dá-me a tua dor, Jesus. Põe-te aqui, como
quando eras pequenino, e deixa aqui toda a tua amargura.
Jesus se assenta em um banquinho aos pés de sua Mãe e conta tudo o
que aconteceu naqueles meses na Judeia. Sem rancor, mas sem encobrir
nada.
Maria o acaricia nos cabelos, com um heroico sorriso nos lábios que
luta contra o brilho das lágrimas, que estão em seus olhos azuis.
Jesus fala também da necessidade de aproximar-se das mulheres para
redimi-las e o pesar que sente por não poder fazê-lo, devido à maldade
humana.
Maria concorda e depois decide:
– Filho, não me deves negar o que eu quero. De agora em diante, eu irei
Contigo, quando fores para longe. Em qualquer tempo e estação. E em
qualquer lugar. Eu te defenderei da calúnia. Só a minha presença fará cair a
lama. E Maria virá comigo. Ela o deseja muito. Isto se torna necessário
junto do Santo e contra o demônio e o mundo: o coração das mães.
151. Em Caná na casa de Susana, que
se tornará discípula. O oficial do rei.
1 de maio de 1945.
151.1 Talvez Jesus se tenha dirigido para o lago. O certo é que chega a
Caná, e vai até a casa de Susana. Com Ele vão os seus primos.
Enquanto estão naquela casa, onde tomam descanso e refeição, e
enquanto, ouvido como sempre deveria sê-lo, por seus parentes ou amigos
de Caná, Jesus ensina com simplicidade àquelas boas pessoas e consola os
sofrimentos do esposo de Susana — que parece enferma, porque não está
presente e ouço falar insistentemente do seu sofrimento — entra um homem
bem vestido e se prostra aos pés de Jesus.
– Quem és? Que queres?
Enquanto o homem ainda suspira e chora, o dono da casa puxa Jesus
pela orla da veste e lhe sussurra:
– É um oficial do Tetrarca. Não confies muito nele.
– Fala, pois. Que queres de Mim?
– Mestre, eu soube que tinhas voltado. Eu te esperava, como se espera a
Deus. Vai depressa a Cafarnaum. O meu filho está de cama, tão doente, que
as suas horas estão contadas. Eu vi o teu discípulo João. Por ele eu soube
que tinhas vindo aqui. Vai, vai logo, antes que seja tarde demais.
– Como? Tu que és servo do perseguidor do santo de Israel, podes crer
em Mim? Vós não credes no Precursor do Messias. Como, então, podeis
crer no Messias?
– É verdade. Estamos no pecado de incredulidade e de crueldade. Mas
tem piedade de um pai! Eu conheço Cusa. E vi Joana. Antes e depois do
milagre. E acreditei em Ti.
– Sim! Sois uma geração tão incrédula e perversa, que, sem sinais e
prodígios, não acreditais. Falta-vos a primeira qualidade necessária para
obter o milagre.
– É verdade. Tudo isso é verdade! Mas Tu estás vendo… Eu creio em
Ti agora e te peço: vai, vai logo a Cafarnaum. Eu providenciarei para Ti um
barco em Tiberíades, a fim de que possas ir mais rápido. Mas vai, antes que
meu menino morra! –e chora desoladamente.
– Eu não vou, por enquanto. Mas tu, vai para Cafarnaum. A partir deste
momento, o teu filho está curado e vivo.
– Deus te abençoe, meu Senhor. Eu creio. Mas, como quero que toda a
minha família te preste uma homenagem, vai depois à minha casa em
Cafarnaum.
– Irei. Adeus. A paz esteja contigo.
O homem sai com pressa e ouve-se, pouco depois, o trotar de um
cavalo.
151.2 – Mas aquele menino ficou mesmo bom? –pergunta o esposo de
Susana.
– E tu és capaz de crer que Eu esteja mentindo?
– Não, Senhor. Mas Tu estás aqui e o menino está lá.
– Para o meu espírito não há barreiras, nem distâncias.
– Oh! Meu Senhor, que transformaste a água em vinho no meu
casamento, transforma então o meu pranto em sorriso. Cura a minha
Susana.
– Que me darás em troca disso?
– A soma que quiseres.
– Eu não sujo o que é santo com o sangue de Mamon. Pergunto ao teu
espírito o que ele me dará.
– Até a mim mesmo, se quiseres.
– E se Eu te pedisse, sem palavras, um grande sacrifício?
– Meu Senhor, eu te peço a saúde corporal de minha esposa e a
santificação de todos nós. Creio que para obter isso, não posso achar nada
grande demais…
– Tu estás angustiado por causa de tua mulher. Mas, se Eu a fizesse
voltar à vida, conquistando-a para sempre como discípula, que dirias tu?
– Eu diria… que Tu tens o direito de fazer isso… e que… eu imitarei a
Abraão na prontidão ao sacrifício.
– Disseste bem. 151.3Ouvi todos: aproxima-se o tempo do meu sacrifício.
Como uma água ele corre veloz, sem parar, até à foz. Eu preciso cumprir
tudo o que devo cumprir. A dureza humana me vem fechando muitos
campos de missão. Minha Mãe e Maria de Alfeu irão Comigo, quando Eu
for para longe, por entre as populações que não me amam ainda, ou que não
me amarão nunca. Minha sabedoria sabe que as mulheres poderão ajudar o
Mestre nesse campo fechado. Eu vim para redimir a mulher também e, no
século futuro, em meu tempo, ver-se-ão mulheres, semelhantes a
sacerdotisas, servindo ao Senhor e aos servos de Deus. Eu escolhi os meus
discípulos. Mas, para escolher as mulheres, que não estão livres, Eu devo
pedir isso aos pais e aos maridos. Queres tu fazer isso?
– Senhor… eu amo a Susana. E até agora, a tenho amado mais como
carne do que como espírito. Mas com os teus ensinamentos, já alguma coisa
se mudou em mim, e olho para minha mulher como alma, além de que
como corpo. A alma é de Deus e Tu és o Messias, Filho de Deus. Não te
posso contestar o teu direito sobre o que é de Deus. Se Susana quiser
seguir-te, eu não lhe criarei dificuldades. Somente te peço, opera o milagre
de curá-la em sua carne e a mim nos meus sentidos…
– Susana está curada. Dentro de poucas horas, ela virá dizer-te a sua
alegria. Deixa que a alma dela siga o seu impulso, sem falar nada do que Eu
disse agora. Verás como a alma dela virá espontaneamente a Mim, assim
como a chama tem a tendência de subir. Nem por isso morrerá o seu amor
de esposa. Mas se elevará ao mais alto grau, que é aquele de amar-se com a
melhor parte: com o espírito.
– Susana te pertence, Senhor. Ela ia morrer, e lentamente, com fortes
dores. E, uma vez que estivesse morta de fato, a teria perdido nesta terra.
Sendo como Tu dizes, eu a terei ainda ao meu lado para conduzir-me
consigo pelos teus caminhos. Deus deu-a para mim e Deus a tira de mim.
Que o Altíssimo seja bendito, quando dá e quando retém.
152. Maria Salomé é acolhida como discípula.
2 de maio de 1945.
152.1 Jesus está em uma casa que compreendo ser a de Tiago e João, pelo
que estão dizendo os que nela se encontram. Com Jesus, além dos dois
apóstolos, estão Pedro e André, Simão Zelote, Iscariotes e Mateus. Os
outros não os vejo.
Tiago e João estão felizes. Vão e vêm entre a mãe deles e Jesus, como
umas borboletas que não sabem qual a flor que hão de preferir, entre duas
igualmente amadas, e Maria Salomé acaricia os seus dois rapagões, a cada
vez que dela se aproximam, toda contente, enquanto Jesus sorri.
Devem ter acabado de tomar a refeição, porque a mesa ainda está posta.
Mas os dois querem que Jesus coma uns cachos de uva branca, tida em
conserva pela mãe e que deve ser doce como o mel. Que é que eles não
dariam a Jesus!
152.2 Mas Salomé quer dar e receber alguma coisa que seja mais do que
uvas e carícias. E depois de ter parado um pouco, pensativa, olhando para
Jesus e olhando para Zebedeu, decide. Vai ao Mestre, que está sentado com
as costas apoiadas na mesa e ajoelha-se diante Dele.
– Que queres, mulher?
– Mestre, Tu decidiste que tua Mãe e a mãe de Tiago e Judas vão
Contigo e também Susana vai, e certamente também a grande Joana de
Cusa irá. Todas as mulheres que te veneram irão, se qualquer uma pode ir
Eu quereria ir também. Leva-me, Jesus. Eu te servirei com amor.
– Tu tens que cuidar do Zebedeu. Não o amas mais?
– Oh! Se o amo! Mas eu amo mais a Ti. Oh! Não quero dizer que te
amo como homem. Tenho sessenta anos e há quase quarenta que estou
casada, e nunca vi outro homem, que não fôsse o meu. Louca, agora que
sou uma velha, não vou ficar. Nem, porém, pela velhice, morre o meu amor
pelo meu Zebedeu. Mas Tu… Eu não sei falar. Sou uma pobre mulher. Falo
como sei. E é isto, ao Zebedeu eu amo com tudo o que era antes. Mas a Ti
eu amo com tudo aquilo que soubeste fazer vir em mim com as tuas
palavras e com as que me foram ditas por Tiago e por João. E é uma coisa
bem diferente… mas tão bela.
– Não será tão bela como o amor de um ótimo esposo.
– Oh! Não. É o muito mais!! Oh! Não leves a mal, Zebedeu !Eu te amo
ainda com toda mim mesma. Mas a Ele eu amo com alguma coisa que é
ainda Maria, mas que não é mais Maria, a pobre Maria tua esposa, mas é
mais do que isto… Oh! eu nem sei explicar!
Jesus sorri para a mulher, que não quer ofender ao marido, mas não
pode calar-se, diante do seu grande e novo amor. Também o Zebedeu sorri
gravemente, aproximando-se da mulher que, continuando de joelhos, vira-
se sobre si mesma para olhar, ao esposo e a Jesus, alternadamente.
– Mas sabes, Maria, que terás que deixar a tua casa? Tu, que aqui
cuidas de tantas coisas! Os teus pombos… as tuas flores… e esta videira
que produz aquela uva doce de que tanto te orgulhas… e as tuas colmeias,
as mais famosas do povoado… e não mais aquele tear, no qual fizeste tantos
tecidos e tanta lã para os teus queridos… E os netinhos? Como farás, sem
os teus pequenos netos?
– Oh! Mas meu Senhor! Que queres que sejam as paredes, os pombos,
as flores, a videira, as colmeias, o tear? Tudo isso são coisas boas, queridas,
mas tão pequenas, comparadas a Ti e ao amor a Ti?! Os netinhos… é, sim.
Será uma pena não poder fazê-los dormir no colo e ouvir que me estão
chamando… mas Tu és mais! Oh! se és mais do que todas as coisas de que
falaste! E, se elas, mesmo tomadas todas juntas, e por minha fraqueza,
fossem tão queridas como Tu, ou mais do que seguir-te e servir-te, eu,
chorando, as lançaria de lado com lágrimas de mulher, para seguir-te com o
sorriso da minha alma. 152.3Leva-me, Mestre. Dizei isto a Ele, vós, João e
Tiago… e tu, meu esposo. Sede bons. Ajudai-me, vós todos!
– Tudo bem. Irás tu também com as outras. Eu quis fazer-te meditar
bem sobre o passado e o presente, sobre o que vais deixar e sobre o que vais
assumir. Mas vem, Salomé. Já estás madura para entrar na minha família.
– Oh! Madura! Eu sou menos que uma criança! Mas Tu me perdoarás
os erros e me segurarás pela mão. Tu… Porque, grosseira como eu sou, de
tua Mãe e da Joana eu terei muita vergonha. De todos eu terei vergonha.
Menos de Ti. Porque Tu és o Bom e tudo compreendes, de tudo tens pena,
tudo perdoas.
153. As mulheres dos discípulos a serviço de Jesus.
3 de maio de 1945.
153.1 – Que é que tens, Pedro? Pareces estar descontente –pergunta Jesus,
enquanto vai caminhando por uma estradinha do campo, sob ramos floridos
das amendoeiras, que anunciam ao homem que o tempo mais feio terminou.
– Estou pensando, Mestre.
– Estás pensando. Eu vejo. Mas o teu semblante diz que não estás
pensando em coisas alegres.
– Mas Tu, que sabes tudo de nós, já estás sabendo que coisas são.
– Sim. Já sei. Também Deus Pai sabe as necessidades do homem, mas
quer da parte do homem a confiança dele em expor as próprias necessidades
e em pedir ajuda. Eu posso dizer-te que não tens razões para ficares assim
inquieto.
– Então, a minha mulher não é por Ti menos estimada?
– De modo algum, Pedro. E por que haveria de ser? São tantas no Céu
as moradas de meu Pai. São tantas na terra as mansões do homem. E, desde
que sejam santamente feitas, todas são abençoadas. Poderia Eu dizer que
serão malvistas por Deus todas as mulheres que não seguem as Marias e
Susana?
– Não. Pois também minha mulher crê no Mestre, mas não segue o
exemplo das outras –diz Bartolomeu.
– Tampouco a minha com as filhas. Ficam em casa, mas sempre prontas
a dar hospedagem, como fizeram ontem –diz Filipe.
– Creio que minha mãe fará igualmente. Não pode deixar tudo… ela é
sozinha –diz Iscariotes.
– É verdade. É verdade. Eu estava assim triste porque me parecia que a
minha fôsse assim… assim pouco… oh! não sei dizer!
– Não a critiques, Pedro. É uma mulher honesta –diz Jesus.
153.2 – Ela é muito tímida. A mãe dela dominou todas as filhas e noras,
como quem dobra umas palhas –diz André.
– Mas, depois de tantos anos comigo, devia mudar!
– Oh! Irmão! Tu também não és muito doce, sabes? Sobre um tímido,
tu produzes o efeito de uma grossa trave entre as pernas. A minha cunhada
é muito boa e, só já ter suportado com paciência a mãe com a sua ruindade,
e a ti com a tua prepotência, prova o que eu digo.
Riem todos da conclusão tão sem rodeios de André e do rosto admirado
de Pedro, ao ouvir que o chamam de prepotente.
153.3 Jesus também ri, com gosto. Depois diz:
– As mulheres fiéis, que não podem deixar a casa para seguir-me,
servem-me do mesmo modo, ficando em suas casas. Se todas tivessem
querido vir Comigo, Eu teria precisado mandar a algumas que ficassem
onde estavam. Agora que as mulheres vão unir-se a nós, Eu devo pensar
também nelas. Não seria decente, nem prudente que as mulheres ficassem
sem uma morada, andando para cá e para lá. Nós, em qualquer lugar
podemos ficar. A mulher tem outras necessidades e precisa de um abrigo.
Nós podemos ficar numa só enxerga. Elas não poderiam ficar no meio de
nós. Tanto pelo respeito, como pela prudência, por causa da compleição
mais delicada delas. Não se deve nunca tentar a Providência e a natureza,
além dos limites. Agora, Eu farei de todas as casas amigas, onde estiver
uma de vossas mulheres, um abrigo para as suas irmãs. Da tua, Pedro; da
tua, Filipe; da tua, Bartolomeu; e da tua, Judas. Não podemos impor às
mulheres o incessante andar, que nós faremos. Mas as colocaremos à espera
no lugar do reencontro, do qual partiremos todas as manhãs, para voltarmos
todas as tardes. A elas daremos instrução nas horas de descanso, e o mundo
não poderá mais murmurar, se outras infelizes criaturas vierem a Mim, nem
me será impedido poder ouvi-las. As mães e as esposas, que nos seguirem,
serão colocadas como defesa de suas irmãs e de Mim contra a maledicência
do mundo. Vós estais vendo que Eu estou fazendo uma rápida viagem de
saudação por onde tenho amigos ou por onde sei que terei amigos. Isso não
é por Mim. Mas pelas mais fracas entre os discípulos que, com a sua
fraqueza, ampararão a nossa força e a tornarão útil junto a tantas e tantas
criaturas.
– Mas agora vamos para Cesareia, como disseste. E lá quem mora?
– As criaturas que tendem para o verdadeiro Deus estão em todos os
lugares. A primavera já se anuncia neste candor rosado das amendoeiras em
flor. Os dias gelados terminaram. Dentro de poucos dias Eu terei
estabelecido os pontos de etapa e de abrigo para as discípulas e
recomeçaremos, então, nossas viagens, espalhando a palavra de Deus sem
preocupação para com as irmãs, sem medo da calúnia, e a paciência delas
será para vós uma lição e a doçura delas também. Para a mulher também
está chegando a hora de sua reabilitação. De virgens, de esposas e de mães
santas haverá uma grande florada na minha Igreja.
154. Jesus em Cesareia Marítima fala aos galeotes.
O encontro com Claudia Prócula.
Aliviado o cansaço da “porta voz”.
4 de maio de 1945.
154.1 Jesus está no centro de uma praça ampla e muito bonita, que
continua em uma estrada bem larga, quase um prolongamento da praça, até
à beira do mar. Uma galera deve ter deixado, há pouco, o porto e se dirige
para o alto mar, sob o impulso do vento e dos remos. Uma outra está
precisando fazer as manobras para entrar no porto, pois as velas são arriadas
e os remos são usados só de um lado, para que o barco possa ir tomando a
posição mais conveniente. Da praça não se vê o porto. Mas deve estar perto.
Aos lados da praça estão alinhadas grandes casas com seus muros
característicos e que quase não têm aberturas. Não há lojas.
– Aonde vamos agora? Tu quiseste vir aqui, em vez de ir para o lado
oriental e aqui é lugar de pagãos. Quem queres que te fique ouvindo? –
censura Pedro.
– Vamos lá, naquele canto virado para o mar. Lá Eu falarei.
– Às ondas.
– As ondas também foram criadas por Deus.
Eles vão. Agora estão justamente no canto e veem o porto, no qual
entra lentamente a galera vista antes e que está atracando em seu lugar.
Alguns marinheiros estão descansando ao longo do cais. Um ou outro
vendedor de frutas se arrisca a ir até o navio romano para vender suas
mercadorias. E nada mais.
154.2 Jesus com as costas apoiadas num muro, parece estar mesmo
falando às ondas. Os apóstolos, pouco satisfeitos com aquela situação, estão
ao redor Dele, uns de pé, outros sentados, aqui e ali, em umas pedras,
esperando que elas lhes sirvam de bancos.
– Tolo é o homem que vendo-se poderoso, sadio, feliz, diz: “De que
mais eu preciso? E de quem? De ninguém. Nada me falta, eu me basto; por
isso, as leis ou decretos de Deus, ou de moral, para mim não existem. A
minha lei é a de fazer o que eu posso, sem pensar se isso é bem ou mal para
os outros.”
Um vendedor, ouvindo aquela voz sonora, vira-se e vai em direção de
Jesus, que continua:
– Assim fala o homem e assim fala a mulher sem sabedoria e sem fé.
Mas, se com isto mostra que tem alguma força, mais ou menos poderosa,
igualmente denuncia ter um parentesco com o Mal.
Alguns homens descem da galera e de outros barcos e se dirigem para
Jesus.
– O homem mostra, não com palavras, mas com fatos, que tem um
parentesco com Deus e com a virtude, quando reflete que a vida é mais
mutável do que a onda do mar, que agora está plácida e amanhã está
furiosa. Igualmente o bem-estar e o poder de hoje pode amanhã ser miséria
e impotência. E que fará então, o homem privado da união com Deus?
Quantos naquela galera foram um dia alegres e poderosos, e agora são
escravos e considerados réus! Réus, por isso duas vezes escravos: da lei
humana, que inutilmente é escarnecida, porque ela existe e pune os seus
transgressores, e de satanás, que para sempre se apodera do culpado que
não consegue odiar a sua culpa.
154.3 – Salve, Mestre! Como é que estás aqui? Não me conheces?
– Deus venha a ti, Públio Quintiliano. Estás vendo? Eu vim.
– E justamente aqui no bairro romano. Eu não esperava mais ver-te.
Mas tenho prazer em ouvir-te.
– Eu também. Naquela galera há muitos que trabalham com os remos?
– Há muitos. A maior parte são prisioneiros de guerra. Eles te
interessam?
– Eu gostaria de ir para perto daquele navio.
– Vem. Saí daí, vós –ordena aos poucos que se aproximaram e que se
afastam logo, resmungando impropérios.
– Podes deixá-los. Estou acostumado a ser apertado entre o povo.
– Até aqui, eu posso. Não além. A galera é militar.
– Para Mim, basta. Deus te recompense.
Jesus recomeça a falar, enquanto o romano parece estar montando
guarda a seu lado, todo esplêndido em sua veste.
– Fostes feitos escravos por um doloroso acontecimento, ou seja,
escravos uma só vez. Escravos enquanto dura a vida. Mas cada lágrima que
cai nas correntes que vos prendem, cada golpe que desce, escrevendo uma
nova dor em vossas carnes, suaviza o peso das algemas, embeleza o que não
morre, abre, enfim, a porta da paz de Deus, que é amigo dos seus pobres
filhos infelizes e que lhes dará tanta alegria, quanto receberem aqui de dor.
Das amuradas da galera aparecem alguns homens da tripulação, que
estão escutando. Os galeotes, naturalmente, não aparecem. Mas com certeza
estão ouvindo chegar até eles, por todos os buracos das cavilhas, a voz
potente de Jesus, que se espalha pelo ar tranquilo desta hora de maré baixa.
Públio Quintiliano, tendo sido chamado por um soldado, foi embora.
– Eu quero dizer a estes infelizes que Deus ama, que sejam resignados
em sua dor, e que não a considerem mais do que uma chama que bem
depressa vai derreter as correntes da galera e da vida, consumando em um
desejo de Deus este pobre dia que é a vida, dia escuro, borrascoso, cheio de
medos e de privações, para entrar no dia de Deus, luminoso, sereno, sem
medos nem langores. Na grande paz, na infinita liberdade do Paraíso, vós
entrareis, ó mártires de uma penosa sorte, contanto que saibais ser bons em
vosso sofrimento e aspireis por Deus.
154.4 Públio Quintiliano volta com outros soldados, e atrás dele vem uma
liteira transportada por escravos e para a qual os soldados procuram achar
um lugar.
– Quem é Deus? Eu falo a gentios que não sabem quem é Deus. Falo a
filhos de povos subjugados que não sabem quem é Deus. Em vossas
florestas, ó gauleses, ó íberos, ó trácios, ó germanos, ó celtas, tendes uma
aparência de Deus. A alma, espontaneamente, se inclina para a adoração,
porque se lembra do Céu. Mas não sabeis encontrar o verdadeiro Deus, que
colocou uma alma em vossos corpos, uma alma igual a que temos nós de
Israel, igual a dos romanos poderosos que vos subjugaram, uma alma que
tem os mesmos deveres e os mesmos direitos para o Bem e à qual o Bem,
ou seja, o verdadeiro Deus, será fiel. Sede também vós fiéis ao Bem. O deus
ou os deuses que até aqui adorastes, aprendendo o nome dele ou deles nos
joelhos maternos; o deus que agora talvez nem penseis mais, porque dele
não vos veio nenhum conforto em vossos sofrimentos, e que talvez
chegueis a odiar e maldizer no desespero de vossa jornada, não é o Deus
verdadeiro. O Deus verdadeiro é Amor e Piedade. Eram assim, por acaso,
os vossos deuses? Não. Eles também eram dureza, crueldade, mentira,
hipocrisia, vício, ladroagem. E agora eles vos deixaram sem aquele mínimo
de conforto, que é esperança de serem amados e a certeza de um descanso,
depois de tanto sofrer. Assim é, porque os vossos deuses não existem. Mas
Deus, o Deus verdadeiro, que é Amor e Piedade, e o qual Eu vos afirmo que
existe com certeza, é Aquele que fez os céus, os mares, os montes, as
florestas, as plantas, as flores, os animais, o homem. É Aquele que ao
homem vitorioso inculca a piedade e o amor, como Ele é, para com os
pobres da terra.
154.5 Ó poderosos, ó patrões, pensai que viestes todos de uma única
árvore. Não vos enfureçais contra aqueles que, por uma desventura, foram
parar em vossas mãos, e sede humanos até para com aqueles que, por algum
delito, tiveram que ir para o banco da galera. Muitas vezes o homem peca.
Ninguém deixa de ter culpas, mais ou menos secretas. Se pensásseis nisto,
seríeis muito bons para com os irmãos que, menos afortunados do que vós,
foram punidos por culpas, que vós também tendes cometido, ficando
impunes.
A justiça humana é uma coisa tão incerta no julgar, que ai de nós se a
divina fôsse assim. Há réus que não parecem sê-lo e há inocentes que são
julgados como réus. Não vamos perguntar o por que. Isto seria acusação
muito forte contra o homem injusto e cheio de ódio para com o seu
semelhante! Há réus que o são de verdade, mas que foram levados ao delito
por forças poderosas que, em parte, os livram da culpa. Por isso, vós, que
estais colocados na direção das galeras, sede humanos. Acima da justiça
humana, há uma Justiça divina, bem mais alta. É a Justiça do Deus
verdadeiro, do Criador tanto do rei, como do escravo, da rocha, como do
grão de areia. Ele olha para vós, tanto para vós do remo, como para vós,
prepostos à tripulação, e ai de vós se fordes cruéis sem razão. Eu, Jesus
Cristo, o Messias do Deus verdadeiro, vo-lo asseguro: Ele, à vossa morte,
vos amarrará a uma galera eterna, entregando o açoite manchado de sangue
aos demônios, e sereis torturados e golpeados, como vós torturastes.
Porque, se é lei humana que o réu seja punido, é preciso que na punição não
se passe da medida. Sabei recordar-vos disso. O poderoso de hoje pode ser
o miserável de amanhã. Só Deus é eterno.
Eu queria mudar vosso coração e queria, sobretudo, destruir as
correntes, entregar-vos à liberdade e à pátria que perdestes. Mas, irmãos
galeotes, que não estais vendo o meu rosto, e dos quais Eu não ignoro o
coração com todas as suas feridas, pela liberdade e a pátria deste mundo
que Eu não vos posso dar, ó pobres homens escravos dos poderosos, Eu vos
darei uma liberdade mais alta e uma Pátria. Por vós Eu me tornei
prisioneiro e sem pátria, por vós darei a Mim mesmo em resgate, por vós,
também por vós, que não sois o opróbrio da terra, como sois chamados, mas
sim, a vergonha do homem que esquece a medida, no rigor da guerra e da
justiça, Eu farei uma nova lei sobre a terra e uma doce morada no Céu.
Lembrai-vos do meu Nome, ó filhos de Deus, que estais chorando. É o
nome do Amigo. Dizei esse nome em vossos sofrimentos. Ficai seguros de
que, se me amardes, me tereis, mesmo se nesta terra não nos virmos mais.
Eu sou Jesus Cristo, o Salvador, o vosso Amigo. Em nome do verdadeiro
Deus Eu vos conforto. Que venha logo a paz sobre vós.
154.6 A multidão, a maior parte romana, aglomerou-se ao redor de Jesus,
cujos conceitos novos deixaram a todos atordoados.
– Por Júpiter! Tu me fizeste pensar em coisas novas, nas quais eu nunca
havia pensado. Mas que acho certas…
Públio Quintiliano olha para Jesus, pensativo e, ao mesmo tempo,
enlevado.
– Assim é, amigo. Se o homem fizesse uso do pensamento, nunca
chegaria a cometer delito.
– Por Júpiter! Por Júpiter! Que palavras! Quero lembrar-me delas! Tu
disseste: “Se o homem fizesse uso do pensamento…”
– … nunca chegaria a cometer delito.
– Mas é verdade! Por Júpiter! Mas, sabes que és um grande?!
– Todos os homens, se o quisessem, poderiam ser como Eu, se
estivessem todos unidos a Deus.
O romano continua a repetir: “Por Júpiter”, cada vez com maior
admiração.
Mas Jesus lhe diz:
– Poderia Eu dar um conforto àqueles galeotes? Eu tenho dinheiro…
uma fruta, um consolo, para que saibam que Eu os amo.
– Dá-me aqui. Eu o posso fazer. Além disso, há lá uma dama que tem
muito poder. Vou perguntar a ela.
Públio vai até à liteira e fala junto às cortinas entreabertas, por uma
fresta. Depois volta:
– Estou com plenos poderes. Eu providencio à distribuição, de modo
que os encarregados não se aproveitem para abusar. E será a única vez que
um soldado imperial terá usado de piedade para com os escravos de guerra.
– A primeira. Não a única. Um dia virá, no qual não haverá mais
escravos; e, antes ainda, os meus discípulos descerão para o meio dos
galeotes e os escravos, chamando-lhes de irmãos.
Uma outra série de “Por Júpiter” vão pelos ares calmos, enquanto
Públio espera ter fruta e vinho suficiente para os galeotes.
154.7Em seguida, antes de subir para a galera, aproxima-se do ouvido de
Jesus e lhe diz:
– Lá dentro está Cláudia Prócula. Ela gostaria de ouvir-te ainda.
Entretanto, ela quer perguntar-te uma coisa. Vai lá”.
Jesus vai em direção da liteira.
– Salve, Mestre.
A cortina é afastada um pouco, mostrando uma bela mulher dos seus
trinta anos.
– Que venha a ti o desejo de sabedoria.
– Tu disseste que a alma se recorda dos Céus. Então, é eterna essa coisa
que vós dizeis que há em nós?
– É eterna. Por isso ela se lembra de Deus[82]. De Deus que a criou.
– Que é a alma?
– A alma é a verdadeira nobreza do homem. Tu és gloriosa, porque és
dos Cláudios. O homem o é mais, porque é de Deus. Em ti corre o sangue
dos Cláudios, a família poderosa, mas que teve uma origem e terá um fim.
No homem, pela alma, está o sangue de Deus. Porque a alma é o sangue
espiritual — sendo Deus um puríssimo Espírito — do Criador do homem:
de Deus eterno, poderoso, santo. O homem é, pois, eterno, poderoso, santo,
pela alma que há nele e que está viva, enquanto estiver unida a Deus.
– Eu sou pagã. Portanto, não tenho alma…
– Tu a tens. Mas está envolvida em um letargo. Desperta-a para a
Verdade e para a Vida…
– Adeus, Mestre.
– Que a Justiça te conquiste. Adeus.
154.8 – Como estais vendo, até aqui Eu tive ouvintes –diz Jesus aos
discípulos.
– Sim. Mas, a não ser os romanos, quem mais te terá entendido? São
uns bárbaros!
– Quem? Todos. A paz está neles e lembrar-se-ão de Mim muito mais
do que muitos outros em Israel. Vamos à casa que nos hospeda para
tomarmos a refeição.
– Mestre, aquela mulher é a mesma que me falou naquele dia[83] em
que curaste aquele doente. Eu a vi e a reconheci –diz João.
– Vede, pois, que também aqui havia quem nos estava esperando. Mas
não me pareceis estar muito satisfeitos. Muito Eu terei feito, no dia em que
vos tiver persuadido que não foi só para os hebreus, mas para todos os
povos, que Eu vim, e que para todos vos preparei. Mas Eu vos digo:
Recordai-vos de tudo do vosso Mestre. Nenhum fato existe, por mais
insignificante que pareça, que não tenha que tornar-se um dia uma regra no
apostolado.
Ninguém responde e Jesus tem um sorriso triste de compaixão.

Esta manhã Jesus sorriu triste também para mim… Tinha-me vindo
154.9
um desconforto tão grande, que eu me pus a chorar por muitas coisas, não
sendo a última entre elas o cansaço de escrever e escrever com a convicção
de que tanta bondade de Deus e tanto trabalho do pequeno João sejam
mesmo inúteis. E eu, chorando, invoquei a meu Mestre e, visto que por sua
bondade veio exclusivamente para mim, disse-lhe o meu pensamento.
Ele fez um movimento de ombros, como de quem diz: “Deixa que se
perca o mundo com suas histórias”, e depois me acariciou, dizendo:
– E então? Não quererias continuar a ajudar-me? O mundo não quer
conhecer as minhas palavras? Pois bem, contemo-las entre nós, para minha
alegria em repeti-las a um coração fiel e para a tua alegria em ouvi-las. Os
cansaços do apostolado!! Mais cansativos do que os de qualquer outro
trabalho! Tiram a luz ao dia mais sereno e a doçura ao mais doce alimento.
Tudo se torna cinza e lama, náusea e fel. Mas, ó minha alma, são estas as
horas em que nos sobrecarregamos com o cansaço, com as dúvidas, com
esta miséria dos mundanos que morrem por não terem o que nós temos. E
são as horas em que mais atuamos. Eu disse a ti também no ano passado.
“Mas para que?”, pergunta a si mesma a alma submersa com as coisas que
submergem o mundo, ou seja, as ondas levantadas por satanás. E o mundo
se afoga. Mas a alma pregada com o seu Deus na cruz não afoga. Pode
perder por um instante a luz e afunda na onda enjoativa do cansaço
espiritual, mas depois emerge mais viçosa e mais bela. As tuas palavras “Eu
não presto mais para nada” são consequência desse cansaço. Tu não
prestarias mais para nada. Mas Eu sou sempre Eu e por isto tu prestarás
sempre para cumprir tua tarefa de porta-voz. É certo que se Eu visse como o
meu dom, em vez de ser usado como uma gema de grande peso e valor,
fôsse escondido com avareza, ou usado com imprudência ou, por indolência
não tratado com cuidado para protegê-lo com aquelas garantias que a
maldade humana, nestes casos, impõe para tutelar o dom e a criatura,
através da qual o dom é dado, Eu diria o meu “Basta”. E, dessa vez, sem
voltar atrás. Basta para todos, mas não para a minha pequena alma, que hoje
parece mesmo uma florzinha debaixo de um aguaceiro. E podes, com estas
carícias, duvidar que Eu te ame? Vamos! Tu me ajudaste no tempo da
guerra. Ajuda-me agora também… Há tanta coisa para se fazer.
E eu me acalmei, sob a carícia da longa mão e do sorriso tão doce do
meu Jesus, cândido como sempre, quando é todo para mim.
[82] e lembra de Deus… sangue de Deus. Deus, por bondade infinita e paterna – assim anota MV numa cópia datilografada –
faz que em cada alma de homem haja um estímulo verso a Fonte de onde provém; o que dá origem à lei natural mesmo no
selvagem. Falando a pagãos ou ignorantes, Jesus usa termos materiais, como “sangue”, para melhor entendimento. Quanto à lei
natural, em 288.4 se demonstrará que essa vem refletida nos dez mandamentos.
[83] me falou naquele dia, como se referiu já em 116.1.
155. Cura da pequena romana em Cesaréia e
desacordo sobre os contatos com os pagãos.
5 de maio de 1945.
155.1 Jesus diz:
– Pequeno João, vem Comigo, pois quero que escrevas uma lição para
os consagrados de hoje. Vê e escreve. Jesus está ainda em Cesareia
Marítima.

Não está mais naquela praça de ontem, mas num lugar mais central,
155.2
do qual, porém, ainda se vê o porto e os navios. Aqui há muitas lojas e
outras casas comerciais e, como até no chão, neste espaço sem calçamento,
estão esteiras com várias mercadorias, concluo estar nos arredores do
mercado, que talvez localizava-se perto do porto e dos armazéns, para
comodidade dos que chegam por mar e dos compradores de mercadorias
trazidas por mar. Há um grande barulho e o vaivém da multidão.
Jesus espera com Simão e os primos, que os outros tenham comprado
os alimentos de que necessitam. Alguns meninos olham curiosamente para
Jesus, que os acaricia docemente, enquanto fala com os seus apóstolos.
Jesus diz:
– Não me agrada ver o descontentamento porque Eu me estou
aproximando dos gentios. Mas Eu não posso senão fazer o que devo e ser
bom com todos. Esforçai-vos por serdes bons, pelo menos vós três e João;
os outros irão atrás de vós por imitação.
– Mas como se faz para ser bons com todos? Afinal, eles nos
desprezam e oprimem, não nos entendem, são cheios de vícios… –escusa-
se Tiago do Alfeu.
– Como se faz? Tu estás contente por teres nascido do Alfeu e da
Maria?
– Sim. Com certeza. Por que me perguntas isso?
– E se tivesses sido interrogado por Deus, antes de seres concebido,
terias querido nascer deles?
– Mas, sim. Eu não entendo…
– E se, ao invés, tivesses nascido de um pagão, e ouvisses que te
acusavam por teres querido nascer de um pagão, que é que terias
respondido?
– Eu teria dito… teria dito: “Eu não tenho culpa de uma coisa destas.
Eu nasci dele, mas podia ter nascido de um outro.” Eu teria dito: “Vós sois
injustos em vossa acusação. Se não faço o mal, por que é que me odiais?”
– Tu o disseste. Também estes, que vós desprezais porque são pagãos,
podem dizer a mesma coisa. Tu não tens merecimento por teres nascido do
Alfeu, um verdadeiro israelita. Deves agradecer por isso somente ao Eterno,
porque te fez um grande presente e, por reconhecimento e humildade,
procurar levar ao verdadeiro Deus outros que não receberam este presente.
155.3É preciso ser bom.
– É difícil amar a quem não se conhece!
– Não. Presta atenção. Tu, ó pequenino, vem aqui.
Aproxima-se um pequenino de uns oito anos, que estava brincando em
um canto com outros dois meninos. É um menino robusto, de cabelos muito
escuros, mas de uma pele muito alva.
– Quem és?
– Eu sou Lúcio, Caio Lúcio de Caio Mário, sou romano, filho do
decurião da guarda, que ficou aqui, depois que foi ferido.
– E aqueles, quem são?
– São Isaque e Tobias. Mas não se deve dizer isto, porque não se pode.
Eles apanhariam.
– Por que?
– Porque eles são hebreus e eu sou romano. Não podemos estar juntos.
– Mas tu estás com eles. Por que?
– Porque nos queremos bem. Brincamos sempre juntos, com os dados e
com o saltarelo. Mas nós estamos escondidos.
– E a Mim, quererias bem? Eu também sou hebreu, e não sou um
menino. Pensa: Eu sou um Mestre, isto é, um Sacerdote.
– E a mim que importa? Se me queres bem, eu te quero bem. E bem eu
te quero porque Tu me queres bem.
– Como é que o sabes?
– Porque és bom. Quem é bom quer bem.
– Eis, amigos. O segredo para amar. Ser bons. Então se ama, sem
pensar se isso faz parte, ou não, de uma religião.
E Jesus, segurando pela mão o pequeno Caio Lúcio, vai acariciar os
pequenos hebreus, que ficaram assustados e foram esconder-se atrás de um
corredor, e lhes diz:
– Os meninos bons são anjos. Os anjos têm uma só Pátria: o Paraíso.
Têm uma só religião: a do único Deus. Têm um só Templo: o Coração de
Deus. Sede amigos sempre, como os anjos.
– Mas se eles nos veem, nos batem…
Jesus sacode tristemente a cabeça e não rebate…
155.4Uma mulher alta e formosa chama Lúcio e ele deixa Jesus, gritando:
“É a mamãe!”, e à mulher ele grita:
– Tenho um amigo grande, sabes? É um Mestre!!!
A mulher não se afasta com o filho, ao contrário, vai até Jesus e lhe
pergunta:
– Salve! Não és Tu o homem da Galileia, que ontem falou no porto?
– Sou Eu.
– Espera-me aqui, então. Eu volto logo, e se vai com o seu pequeno.
Entrementes, os outros apóstolos também chegaram, todos, com
exceção de Mateus e de João, e perguntam:
– Quem é ela?
– É uma romana, penso eu –responde Simão e os outros.
– Que é que ela queria?
– Ela disse que a esperasse aqui. Logo saberemos.
Algumas pessoas, neste meio tempo, foram chegando perto e curiosas
esperam.
A mulher volta com outros romanos.
– Então, Tu és o Mestre? –pergunta um, que parece ser servo de alguma
casa senhoril.
E, tendo obtido a confirmação, pergunta:
– Sentirias repugnância em curar uma filha pequena de uma amiga de
Cláudia? A menina está à morte, porque se sente sufocada e nem o médico
sabe de que é que ela está morrendo. Ontem à tarde estava boa. Esta manhã
em agonia.
– Vamos.
Dão uns poucos passos por um caminho que vai em direção ao lugar
em que estiveram ontem e chegam ao portão, todo aberto, de uma casa que
parece habitada por romanos.
– Espera um momento.
O homem entra depressa e logo depois torna a aparecer, dizendo:
– Vem.
155.5 Mas antes ainda que Jesus pudesse entrar, sai de lá uma jovem de
aspecto senhoril, mas em condições mais que visíveis de uma grande
aflição. Tem nos braços uma pequenina criatura de poucos meses, quase
inerte, lívida como alguém que se está sufocando. Eu diria que estava com
uma difteria mortal e já em seus últimos momentos de vida. A mulher se
refugia no peito de Jesus, como um náufrago que se apega a um rochedo. O
seu pranto é tal, que não a deixa falar.
Jesus pega a criaturinha, que está com pequenos movimentos
convulsivos, com as mãozinhas cor de cera e as unhas já roxas e a levanta.
A cabecinha dela cai para trás, sem força. A mãe, sem soberba de romana
diante do hebreu, deixou-se cair na poeira aos pés de Jesus e soluça, com o
rosto erguido, os cabelos meio soltos, os braços estendidos tocando na veste
e no manto de Jesus. Atrás dela e ao redor, os romanos da casa e as hebreias
da cidade estão olhando.
Jesus molha o seu dedo indicador direito em sua saliva e o põe na
boquinha anelante, introduzindo-o para baixo. A menina se debate e torna-
se mais escura ainda. A mãe grita: “Não! Não!” e parece alguém que se
contorce sob uma lâmina que a traspassa. As pessoas suspendem a
respiração.
Mas o dedo de Jesus sai de lá envolvido por uma pelota de membranas
purulentas e a menina não mais se debate e, depois de uma pequena ameaça
de choro, se acalma, com um sorriso inocente, agitando as mãozinhas e
movendo os lábios como um passarinho que pipila, batendo as pequenas
asas, à espera de que se lhe dê comida.
– Toma, mulher. Dá-lhe o leite. Ela está curada.
A mãe está de tal modo atordoada, que pega a pequenina e estando
como está, na poeira, beija-a e a acaricia, dá-lhe o peito e, como uma louca,
se esquece de tudo que não seja a sua pequenina.
Um romano pergunta a Jesus:
– Mas como foi que pudeste? Eu sou o médico do Procônsul e sou
douto. Procurei remover o obstáculo. Mas ele estava em baixo, muito em
baixo!! E Tu… assim…
– Tu és douto. Mas contigo não está o Deus verdadeiro. Que Ele seja
bendito por isso! Adeus.
E Jesus põe-se em movimento, como querendo sair dali.
155.6Mas eis que um pequeno grupo de israelitas se sente na necessidade
de intervir:
– Como foi que te permitiste aproximar-te dos estrangeiros? Eles são
corruptos, são impuros, e todos os que se aproximam deles ficam como
eles.
Jesus os olha — são três — fixo, severo e depois fala:
– Não és tu o Ageu? O homem de Azoto, que veio aqui no mês de Tisri
passado procurar fazer negócios com o mercador, que tem seu posto nos
alicerces da fonte velha? E tu, não és o José de Ramá, que vieste até aqui
para consultar o médico romano, e tu bem sabes, como Eu sei, o por quê? E
então? Não vos sentis impuros?
– Um médico nunca é estrangeiro. Ele cura o corpo, e o corpo é igual
para todos.
– A alma o é, com maior razão do que o corpo. Afinal, que foi que Eu
curei? O corpo inocente de um pequenino e, por este meio, espero curar as
almas não inocentes dos estrangeiros. Como médico e como Messias,
posso, portanto, aproximar-me seja lá de quem for.
– Não o podes.
– Não, Ageu? E tu, por que tratas com o mercador romano?
– Não me aproximo dele, senão com a mercadoria e o dinheiro.
– E, uma vez que não tocas na sua carne, mas somente aquilo que foi
tocado pela sua mão, achas que não te contaminas. Oh! Como sois cegos e
cruéis!
155.7 Ouvi, todos. Justamente no livro do Profeta do qual esse traz o
nome, está escrito[84]: “Apresenta aos sacerdotes esta questão sobre a Lei:
‘Se um homem leva uma carne santificada na dobra de sua veste e com ela
toca depois no vinho ou nas comidas, no pão, ou no óleo ou outros
alimentos, ficarão eles santificados?’ E os sacerdotes responderam: ‘Não’.
Então Ageu disse: ‘Se alguém, que ficou imundo por ter tocado em um
morto, tocar em uma destas coisas, ficará ela contaminada?’ E os sacerdotes
responderam: ‘Sim’.
Por esta astuciosa, mentirosa e incoerente maneira de agir, vós impedis
e condenais o Bem e só aceitais o que vos traz vantagens. Então cessa o
desprezo, a repugnância, a náusea. Vós discernis, desde que não vos traga
prejuízo pessoal, se uma coisa é imunda ou torna impuro, e se aquela outra
não o é. E como podeis, bocas mentirosas, professar que, se aquilo que é
santificado por ter tocado numa carne ou coisa santa, não santifica aquilo
que toca, aquilo que tocou coisa imunda possa tornar imundo aquilo que
toca?
Não compreendeis que vos estais desmentindo a vós mesmos, ó
mentirosos ministros de uma Lei de Verdade, ó aproveitadores da mesma,
que a torceis como uma corda, conforme achais que podeis tirar dela
alguma vantagem, ó fariseus hipócritas que, sob um pretexto religioso,
quereis desafogar o vosso rancor humano, completamente humano, ó
profanadores do que é de Deus, ó insultadores e inimigos do Mensageiro de
Deus? Em verdade, em verdade Eu vos digo que todos os vossos atos, todas
as vossas conclusões, todos os vossos movimentos, têm como motivo um
completo mecanismo de astúcia, ao qual servem de rodas e de molas, de
pesos e tirantes, os vossos egoísmos, as vossas paixões, as vossas
insinceridades, os vossos ódios, as vossas sedes de dominar, as vossas
invejas.
Que vergonha! Avarentos, tremebundos, rancorosos, vós viveis com o
medo orgulhoso de que alguém vos supere, mesmo quando não são da
vossa casta. E mereceis, então, ser como aquele do qual tendes medo e
raiva! Vós, como diz Ageu, que, de um montão de vinte alqueires fazeis um
de dez, e de cinquenta barris fazeis vinte, embolsando a vantagem da
diferença, enquanto, e pelo exemplo a ser dado ao homem, e pelo amor a
ser prestado a Deus, deveríeis ao monte dos alqueires e ao monte dos barris,
não tirar, mas acrescentar, do vosso bolso, em favor de quem tem fome, e
mereceis ser esterilizados pelo vento abrasador, pela ferrugem e pelo
granizo em todas as obras de vossas mãos.
Quem são entre vós os que vêm a Mim? Estes, estes que para vós são
esterco e imundície, estas supremas ignorâncias, que nem sabem que há um
verdadeiro Deus, eles vêm a Quem traz presente este Deus, nas palavras e
nas obras. Mas vós, mas vós! Vós vos fizestes um nicho, e aí estais. Áridos,
frios como ídolos à espera dos incensos e adorações. E, visto que vos credes
uns deuses, parece-vos inútil pensar no verdadeiro Deus, assim como deve
ser pensado, e vos parece perigoso que outros, que não sois vós, ousem
fazer o que vós não ousais. Vós não podeis, na verdade, ousá-lo, porque
sois uns ídolos. E porque sois servos do ídolo. Mas, quem ousa, pode,
porque não ele, mas Deus opera nele.
155.8 Ide! Ide dizer a quem vos enviou atrás de meus calcanhares, que Eu
desprezo os mercadores, que acham não ser contaminação vender as
mercadorias, ou a pátria, ou o Templo àqueles de quem recebem dinheiro.
Dizei a esses que Eu sinto repugnância dos brutos, que só têm o culto da
própria carne e do próprio sangue e pela cura destes não acham ser
contaminação aproximarem-se de um médico estrangeiro. Ide dizer que a
medida é igual e que não há duas medidas. Ide dizer que Eu, o Messias, o
Justo, o Conselheiro, o Admirável, Aquele que terá sobre si o Espírito do
Senhor com seus sete dons, Aquele que não julgará pelo que aos olhos
parece ser, mas pelo que é segredo de corações, Aquele que não condenará
pelo que ouve com os ouvidos, mas pelas vozes espirituais que ouvirá no
interior de cada homem, Aquele que tomará a defesa dos humildes e julgará
os pobres com justiça, Aquele que Eu sou, porque isto Eu sou, já estou
julgando e punindo os que sobre a terra são somente terra, e o sopro da
minha respiração, fará morrer o ímpio e exterminará o seu covil, enquanto
que haverá Vida e Luz, Liberdade e Paz para aqueles que, desejosos de
justiça e de fé, virão ao meu monte santo, para se saciarem da Ciência do
Senhor. Isto é Isaías[85], não é verdade?
O meu povo! Todo ele vem de Adão, e Adão vem de meu Pai. Todo ele,
pois, é obra do Pai e a todos tenho o dever de reunir ao Pai. E Eu os
conduzo a Ti, ó Pai santo, eterno, poderoso. Eu os conduzo a Ti estes filhos
errantes, depois de havê-los reunido, chamando-os com palavras de amor,
reunindo-os sob a minha vara de pastor, parecida com a que Moisés
levantou contra as serpentes mortíferas, para que Tu tenhas o teu Reino e o
teu povo. Nem faço distinções, porque no fundo de cada vivente Eu vejo
um ponto que brilha mais do que o fogo: a alma, uma centelha de Ti, ó
eterno Esplendor. Ó meu eterno desejo! Ó minha incansável vontade!
Isto Eu quero. Com isto Eu me queimo. Uma terra que cante, toda, o
teu Nome. Uma humanidade que te chame Pai. Uma redenção que salve a
todos. Uma vontade fortificada que faça todos obedientes à tua vontade.
Um triunfo eterno, que encha o Paraíso com um hosana sem fim… Oh!
Multidão dos Céus!! Aí está. Eu vejo o sorriso de Deus… e este é o prêmio
contra todas as durezas humanas.
155.9 Os três fugiram, sob a saraivada de reprovações. Os outros todos,
romanos ou hebreus, ficaram de boca aberta. A mulher romana, com a
pequenina, saciada de leite que dorme tranquila no colo materno, ficou lá
onde estava, quase aos pés de Jesus, e chora de alegria materna e de
comoção espiritual. Muitos estão chorando, por causa da arrasadora
conclusão de Jesus que, em seu êxtase, parece flamejar.
E Jesus, abaixando o olhar e o espírito do Céu para a terra, vê a
multidão, vê a mãe… e, ao passar, depois de um gesto de adeus a todos,
toca de leve com a mão a jovem romana, como que a abençoá-la por sua fé.
E vai-se embora com os seus, enquanto o povo, ainda assombrado, fica
onde está…
155.10 (A jovem romana, se não for alguém muito parecida, é uma das
romanas que estavam com Joana do Cusa no caminho do Calvário[86].
Mas, como ninguém aqui a chamou pelo nome, fico na incerteza.)
[84] está escrito, em: Ageu 2,11-13; segue outra citação de: Ageu 2,16.
[85] é Isaías, isto é: Isaías 11,1-5.
[86] no caminho do Calvário, em 608.9 (visão escrita dois meses antes e que está no décimo volume). Trata-se, como veremos
em 167.3, da romana Valeria como a filhinha Faustina.
156. Anália, a primeira das virgens consagradas.
6 de maio de 1945.
156.1 Jesus, junto a Pedro, André e João, bate à porta de sua casa em
Nazaré. A Mãe abre logo, e seu rosto se ilumina com um fúlgido sorriso, ao
ver o seu Jesus.
– Em boas horas voltas, meu Filho! Desde ontem tenho comigo uma
pomba pura que te está esperando. Ela veio de longe. E quem a acompanha
não podia ficar por mais tempo. Eu, já que ela pedia um conselho, disse-lhe
o que podia. Mas só Tu, meu Filho, és a Sabedoria. Bem-vindos vós
também. Vinde logo tomar alguma coisa.
– Sim. Ficai aqui. Eu vou logo a esta criatura que me está esperando.
A curiosidade está viva nos três, mas de modo diferente. Pedro está
olhando de soslaio para todas as direções, como se estivesse querendo
enxergar além das paredes. João parece querer ler, no sorridente rosto de
Maria, o nome da desconhecida. André, que está muito corado, ao invés,
olha para Jesus com toda a firmeza de suas pupilas, e uma súplica muda
treme em seu olhar e em seus lábios.
Mas Jesus não se incomoda com nenhum deles. Enquanto os três se
decidem a entrar na cozinha, onde Maria lhes oferece alimentos e o calor do
fogo, Jesus levanta a cortina que fecha a abertura que conduz para o jardim
e vai até lá.
Doces raios de sol tornam ainda mais aéreos e irreais os ramos da alta
amendoeira do jardim, que estão todos floridos. Ela é a única que está
florida e, sendo a mais alta das plantas do jardim, rica em sua veste de seda
branco-rosada e em contraste com a pobreza nua das outras — a pereira, a
macieira, a figueira, a videira, a romãzeira, todas ainda sem viço e sem
folhas — pomposa em seu véu espumoso e vivo, contra a humildade
cinzenta e monótona das oliveiras, parece, com seus longos ramos, ter
capturado uma pequena e levíssima nuvem, que se perdeu pelo campo azul
do céu, e que com ela se tenha enfeitado, para dizer a todos:
– As núpcias da primavera estão aí! Exultai, vós plantas, vós animais. É
a hora dos beijos com os ventos, com as abelhas, ó flores. É hora dos beijos
sob os telhados, ou nos pequenos bosques cerrados, ó passarinhos de Deus,
ó cândidas ovelhas. Hoje beijos, amanhã a prole, para perpetuar a obra do
Criador, nosso Deus.
Jesus, com os braços cruzados sobre o peito, de pé e ao sol, sorri àquela
graça pura e plácida, que é o jardim materno com seus canteiros de lírios,
que se mostram como os primeiros em suas touceiras de folhas, com suas
roseiras ainda despidas, com a oliveira prateada, com outras famílias de
flores espalhadas por entre os humildes canteiros de legumes e verduras,
que mal começam a verdejar. Puro, bem arrumado, delicado, parece ele
também, exalar o candor da virgindade perfeita!
156.2 – Filho, vem no meu quarto. Eu a trarei para Ti, pois ela fugiu lá
para o fundo, ao ouvir tantas vozes.
Jesus entra no pequeno quarto da Mãe, sempre o casto, castíssimo
quartinho, que ouviu as palavras do diálogo com o anjo, e de onde emana,
mais ainda do que do jardim, o aroma virginal, angelical, santo, Daquela
que ali mora há anos e do Arcanjo que nele venerou a sua Rainha. Já se
passaram mais de trinta anos, ou só ontem é que se deu o encontro? Ainda
hoje uma roca segura o seu macio e meio prateado novelo de fios e, no fuso,
ainda está o fio. Um bordado está dobrado sobre a mesa, ao lado da porta,
entre um rolo de pergaminho e uma ânfora de cobre, que conserva dentro
um espesso ramo de amendoeira florido. Agora também a cortina listrada,
que tremula ao vento, está descida sobre o mistério da virginal morada, e a
cama, arrumada num canto, tem sempre o aspecto da cama de uma menina
que mal acabou de chegar aos limiares da juventude. Que sonhos irão haver
e já terão havido sobre aquele baixo travesseiro??
A cortina é levantada lentamente pela mão de Maria. Jesus que, com as
costas voltadas para a porta, de pé, contemplava aquele ninho de pureza,
vira-se.
– Eis, meu Filho. Eu a conduzo a Ti. É uma cordeira. E Tu és o seu
Pastor.
E Maria, que entrou segurando pela mão uma jovenzinha morena e
delgada, que fica muito corada, ao aparecer na presença de Jesus, retira-se
docemente, deixando cair de novo a cortina.
156.3 – A paz esteja contigo, menina.
– A paz… Senhor…
A menina, muito emocionada, fica sem palavras, mas se ajoelha com a
cabeça inclinada para o chão.
– Levanta-te. Que queres de Mim? Não tenhas medo…
– Não é medo… mas… agora que estou diante de Ti… depois de o ter
querido tanto… tudo o que me parecia fácil e necessário dizer-te… eu não
sei mais… não me parece mais o que era… Eu sou uma tola… perdoa-me,
meu Senhor…
– Pedes graça para a terra? Precisas de milagre? Tens almas para
converter? Não? E então? Vamos, fala! Tiveste tanta coragem, e agora ela te
falta? Não sabes que Eu sou Aquele que aumenta a fortaleza? Sim? Tu o
sabes? E então, vamos, fala, como se Eu fôsse teu pai. És jovem. Quantos
anos tens?
– Dezesseis, meu Senhor!
– De onde vens?
– De Jerusalém.
– Como te chamas?
– Anália.
– É o nome querido de minha avó e de tantas outras santas mulheres de
Israel, e com ele, formando um só[87], é o da boa, fiel, amorosa e mansa
mulher de Jacó. Ele será de bons augúrios para ti. Serás uma esposa e mãe
exemplar. Não? Estás sacudindo a cabeça? Estás chorando? Terás sido
rejeitada? Não é isso? Terá morrido o teu prometido? Ainda não foste
escolhida?
A jovenzinha sacode sempre a cabeça. Jesus dá um passo, a acaricia e a
faz levantar a cabeça e olhar para Ele… O sorriso de Jesus vence a
ansiedade da jovenzinha.
Ela se encoraja.
– Meu Senhor, eu seria esposa e feliz, e por mérito teu. Não me
conheces, meu Senhor? Eu sou aquela doente[88] de tuberculose, aquela
noiva que estava à morte, e que Tu curaste, a pedido do teu João… Depois
da tua graça, eu… eu passei a ter um outro corpo: um corpo são, em lugar
daquele que antes tinha, moribundo, e passei a ter outra alma… Não sei.
Não me sentia mais ser eu mesma… A alegria de estar curada e, com isso, a
certeza de poder casar-me — pois era o meu sentimento o de, naquele
sofrimento mortal, não poder chegar a ser esposa — não duraram mais do
que as primeiras horas. E depois…
A jovenzinha vai-se tornando cada vez mais desembaraçada, encontra
de novo as palavras e as ideias, perdidas na perturbação de estar sozinha
com o Mestre…
– … E depois senti que não devia ser só egoísta, e só pensar: “Agora
serei feliz”, mas que devia pensar em alguma coisa melhor, e que viesse a
Ti e a Deus, teu e meu Pai. Qualquer pequena coisa, mas que quisesse dizer
que eu estava agradecida. Pensei muito, e quando no sábado seguinte vi o
noivo, disse-lhe: “Escuta, Samuel. Sem o milagre eu estaria morta dentro de
alguns meses e tu me terias perdido para sempre. Agora, eu queria oferecer
a Deus um sacrifício, eu junto contigo, para dizer a Deus que o louvo e lhe
agradeço.” E Samuel disse logo, pois ele me ama: “Vamos juntos ao
Templo, para imolar a vítima.” Mas não era isto o que eu queria. Sou pobre,
uma pobre pessoa do povo, meu Senhor. Pouca coisa sei, e menos ainda
posso. Mas através de tua mão, pousada sobre o meu peito doente, alguma
coisa veio, não só nos pulmões corroídos, mas dentro do coração. Nos
pulmões chegou a saúde e no coração, a sabedoria. Compreendi, então, que
o sacrifício de um cordeiro não era o sacrifício desejado pelo meu espírito,
que te… que te amava.
A mocinha se cala, e fica corada, depois dessa sua declaração de amor.
156.4 – Continua sem temor. Que é que queria o teu espírito?
– Queria oferecer um sacrifício digno de Ti, Filho de Deus! E então… e
então eu pensava que haveria de ser uma coisa espiritual, como são as
coisas de Deus, ou seja, um sacrifício de ficar esperando as núpcias por
amor de Ti, meu Salvador. Grande alegria são as núpcias, sabes? É uma
grande coisa, quando as pessoas se amam! É um desejo e uma ânsia de
realizá-las!! Mas eu não era mais aquela de poucos dias antes. Não queria
mais isto como a coisa mais bela… E eu disse isto a Samuel… e ele me
compreendeu. Ele também quis fazer-se nazareno por um ano, começando
do dia que teria sido aquele das núpcias, ou seja, um dia depois das
calendas de Adar. Nesse meio tempo, ele veio à tua procura para amar
Quem lhe havia dado a noiva, para amá-lo e conhecê-lo: a Ti. E te
encontrou, depois de muitos meses, em Águas Belas. Eu também estava
lá… e a tua palavra acabou de mudar-me o coração. Agora não me basta
mais o voto de antes… Como aquela amendoeira ali fora que, que debaixo
de um sol sempre mais quente, renasceu depois de ter estado morta durante
meses, e soltou flores, depois soltará folhas, e depois frutos, assim eu
sempre fui progredindo na sabedoria do que é melhor. Na última vez, já
decidida e certa do que eu queria — durante todos aqueles meses pensei
nisso — na última vez que eu fui às Águas Belas, Tu não estavas mais lá…
Haviam-te expulsado. Chorei tanto e tanto rezei, que o Altíssimo me
atendeu, persuadindo minha mãe a mandar-me aqui, com um parente, que
estava indo para Tiberíades a fim de conversar com os cortesãos do
Tetrarca. O feitor dissera-me que havia te encontrado. Encontrei tua Mãe…
e as palavras dela, só de ouvi-las e ficar ao seu lado nestes dois dias,
acabaram de amadurecer o fruto da tua graça.
A mocinha está ajoelhada… como diante de um altar, com os braços
cruzados sobre o peito.
– Está bem. 156.5Mas, que é que queres exatamente? Que te posso Eu
fazer?
– Senhor, eu queria… queria uma grande coisa. E só Tu, Doador da
vida e da saúde, podes dá-la a mim, porque eu penso que isto que me podes
dar, Tu também o podes tirar… Eu queria que a vida que me deste, Tu a
tirasses de mim durante o ano do meu voto, antes que ele termine…
– Mas por quê? Não agradeces a Deus pela saúde recebida?
– Muito! E sem medida! Mas só por um motivo: porque, vivendo por
sua graça e por teu milagre, compreendi o que é melhor.
– E que é?
– Que o melhor é viver como os anjos. Como a tua Mãe, meu Senhor…
como Tu vives… Como vive o teu João… os três lírios, as três chamas
brancas, as três bem-aventuranças da terra, Senhor. Sim. Porque penso que
é bem-aventurança possuir a Deus e que Deus seja possuído pelos puros. O
puro, eu creio que é um céu, com o seu Deus no centro e os anjos ao
redor… Oh! Meu Senhor! Isto eu queria!! Pouco eu te ouvi, e pouco à tua
Mãe, ao discípulo e ao Isaque. De outros não me aproximei, que me
dissessem as tuas palavras.. Mas me parece que meu espírito está sempre te
ouvindo, e que Tu és o seu Mestre… tenho dito, meu Senhor…
– Anália, muito é o que pedes e muito é o que dás… Filha,
compreendeste a Deus e a perfeição à qual pode chegar a criatura, para
tornar-se semelhante ao Puríssimo e para agradá-lo.
Jesus toma entre as suas mãos o rosto moreno da moça, ajoelhada e lhe
fala, estando inclinado sobre ela:
– Aquele que nasceu de uma Virgem — porque não podia fazer seu
ninho, a não ser sobre um manípulo de lírios — fica enojado, filha, da
tríplice libidinagem do mundo, e ficaria arrasado de tanto nojo, se o Pai,
que sabe de que é que vive o seu Filho, não interviesse, com amorosos
auxílios, para sustentar minha alma angustiada. Os puros são a minha
alegria. Tu me dás aquilo que o mundo me tira com a sua insaciável
baixeza. Por isso, bendito seja o Pai e tu, menina. Vai tranquila. Alguma
coisa virá acontecer e a tornar eterno o teu voto. Sejas tu um dos lírios
espalhados pelos caminhos ensanguentados do Cristo.
156.6 – Oh! Meu Senhor… eu queria ainda uma coisa…
– Qual?
– Não estar aqui presente à tua morte… Eu não poderia ver morrer
Aquele que é a minha Vida.
Jesus sorri docemente e com a mão enxuga duas fileiras de lágrimas
que descem sobre o rostinho moreno.
– Não chores. Os lírios não são nunca usados no luto. Tu estarás rindo,
com todas as pérolas de tua coroa angélica, quando vires o Rei coroado,
entrando em seu Reino. Vai. O Espírito do Senhor te ensine entre uma e
outra das minhas vindas. Eu te abençoo com as chamas do eterno Amor.
Jesus vai até o jardim e chama:
– Mãe! Eis uma pequena filha, toda para ti. Agora está feliz. Mas tu,
mergulha-a nos teus candores, agora e todas as vezes que formos à Cidade
Santa, para que seja uma neve de pétalas celestes, espalhada sobre o trono
do Cordeiro.
E Jesus volta para os seus, enquanto Maria acaricia a mocinha,
permanecendo com ela.
156.7 Pedro, André e João o olham interrogativamente. E o rosto
resplendente de Jesus lhes diz que Ele está feliz.
Pedro não se contém e pergunta:
– Com quem estiveste falando tanto, meu Mestre? E que foi que ouviste
para estares tão luminoso de alegria?
– Com uma mulher na aurora de sua vida; com aquela que será a aurora
para muitas outras que virão.
– Quem?
– As virgens.
André murmura a si mesmo:
– Não é ela…
– Não. Não é ela. Mas não te canses de rezar, com paciência e bondade.
Cada palavra de tua oração é como um chamamento, uma luz na noite, e a
ajuda e guia.
– Mas a quem é que meu irmão está esperando?
– Está esperando uma alma, Pedro. É uma grande miséria, que ele quer
transformar em uma grande riqueza.
– E onde a foi encontrar o André, que nunca se move, nunca fala, nunca
tem iniciativas?
– Em meu caminho. Vem Comigo, André. Vamos à casa do Alfeu,
bendizê-lo entre os seus muitos netos. Vós, esperai-me na casa de Tiago e
de Judas. Minha Mãe precisa ficar sozinha durante o dia todo.
E, andando assim, uns por aqui, outros por ali, o segredo envolve a
alegria da primeira consagrada à virgindade por amor de Cristo.
[87] formando um só, porque nele estão unidos o nome de Ana e o nome de Lia.
[88] aquela doente encontrada em 85.6 e 86.4/5.
157. A nova missão da mulher
No discurso às discípulas em Nazaré
7 de maio de 1945.
157.1 Jesus ainda está em Nazaré, na sua casa. Ou melhor, está onde foi a
oficina do carpinteiro.
Com Ele estão os doze apóstolos e, além deles, aí estão Maria, Maria
mãe de Tiago e de Judas, Salomé, Susana e, uma novidade, Marta. Uma
Marta muito aflita, com claros sinais de choro em seus olhos. Uma Marta
desambientada, atemorizada por estar assim sozinha junto de outras
pessoas, e sobretudo da Mãe do Senhor. Maria procura familiarizá-la com
as outras e tirar dela aquela sensação de mal-estar, que percebe estar
sofrendo. Mas as suas carícias parecem estar sempre mais a angustiar o
coração da pobre Marta. Rubor e grandes lágrimas se alternam sob o véu,
descido sobre a sua dor e seu mal-estar.
Entra João com Tiago de Alfeu.
– Não está, Senhor. Ela foi com seu marido, hospedar-se na casa de
uma amiga. Isto é o que nos disseram os servos –diz João.
– Certamente, ela sentirá muito. Mas sempre poderá ver-te e receber as
tuas instruções, termina Tiago de Alfeu.
– Está bem. O grupo das discípulas não está como Eu desejava. Mas
vós estais vendo: no lugar de Joana, que está ausente, acha-se aqui Marta,
filha de Teófilo, irmã de Lázaro.
Os discípulos sabem quem é Marta. Minha Mãe também. Tu também,
Maria, e talvez até tu, Salomé, já saibais pelos vossos filhos quem é Marta,
não tanto como mulher, segundo o mundo, mas como criatura aos olhos de
Deus. Tu, Marta, por tua vez, sabes quem são estas, que te consideram irmã
e que te amarão muito. Irmã e filha. Disto tens muita necessidade, ó boa
Marta, para teres também aquele conforto humano de afetos bons, que Deus
não condena, mas que deu ao homem para aliviá-lo nas canseiras da vida. E
Deus te trouxe para aqui justamente na hora por Mim escolhida para
estabelecer a base, Eu poderia dizer o tecido, na qual bordareis a vossa
perfeição de discípulas.
157.2 Discípulo quer dizer aquele que segue a disciplina do Mestre, da
sua doutrina. Por isso, em sentido amplo, serão chamados discípulos todos
aqueles que agora, e nos séculos futuros, seguirão a minha doutrina. E para
não inventar muitos nomes, como: “Discípulos de Jesus segundo os
ensinamentos de Pedro ou de André, de Tiago ou de João, de Simão ou de
Filipe, de Judas ou de Bartolomeu, ou de Tomé e Mateus”, dir-se-á um só
nome que os unirá com um único sinal: “cristãos”[89]. Mas, por entre a
grande massa dos que obedecem a minha disciplina, Eu já escolhi os
primeiros, e depois os segundos, e assim se fará através dos séculos, em
memória de Mim. Como no Templo, e até antes, desde Moisés, houve um
Pontífice, os sacerdotes, os levitas, os prepostos aos diversos serviços, os
ofícios e encargos, os cantores e assim por diante, o mesmo haverá no meu
Templo novo, tão grande como a terra inteira, duradouro como ela, haverá
os maiores e os menores, todos úteis, todos a Mim diletos e, além disso,
haverá mulheres, uma categoria nova, que Israel sempre desprezou,
confinando-as aos cantos das virgens no Templo ou às instruções das
mesmas virgens no Templo. E nada mais do que isso.
Não fiqueis discutindo se isso era justo. Na religião fechada de Israel e
naquele tempo de ira, aquilo era justo. Toda desonra caía sobre a mulher,
origem do pecado. Na religião universal de Cristo e no tempo do perdão,
tudo isso muda. Toda a Graça se reuniu numa Mulher e Ela a deu à luz ao
mundo, a fim de que ele fôsse redimido. A mulher, portanto, não é mais
objeto de desprezo para Deus, mas a ajuda de Deus. E, por meio da Mulher
dileta do Senhor, todas as mulheres podem tornar-se discípulas do Senhor,
não somente como a massa, mas como sacerdotisas menores, coadjutoras
dos sacerdotes, aos quais podem dar muita ajuda, junto aos mesmos e aos
fiéis e aos infiéis e junto àqueles que não se deixam levar a Deus pelo
ressoar da palavra santa e sim, pelo sorriso santo de uma discípula minha.
157.3 Vós me pedistes para vir, como vêm os homens, atrás de Mim. Mas
vir somente, escutar somente, pôr em prática somente, é pouco demais para
Mim, em comparação com o que Eu espero e quero de vós. Fazer aquelas
coisas seria procurar a vossa santificação. Uma grande coisa. Mas ainda não
me basta. Eu sou Filho do Absoluto e dos meus prediletos quero o absoluto.
Quero tudo, porque Eu dei tudo.
Além disso, não somente Eu, mas também assim está o mundo. Esta
coisa tremenda, que é o mundo. Deveria ser tremendo na santidade. Uma
santidade ilimitada, em número e poder. Santidade da multidão dos filhos
de Deus. Ao invés, é terrível por sua maldade. Sua complexa maldade é
realmente sem limites, pelo número de suas manifestações e por seu poder
de praticar o vício. Todos os pecados existem no mundo, que não é mais a
multidão dos filhos de Deus, mas é a multidão dos filhos de satanás e
sobretudo vivo está o pecado que traz em si o mais claro sinal de sua
paternidade: o ódio. O mundo odeia. Quem odeia vê o mal até nas coisas
mais santas e quer fazer ver, também, a quem não vê. Se perguntásseis ao
mundo para que é que Eu vim, ele não vos diria: “Para fazer o bem e
remir.” Mas vos diria: “Para corromper e usurpar.” Se perguntásseis ao
mundo que é que ele pensa de vós que me seguis, ele não diria: “Vós o
seguis para santificar-vos e para dar um conforto ao Mestre com santidade e
pureza.” Mas diria: “Vós o seguis porque estais seduzidas pelo homem.”
Assim é o mundo. E Eu vos digo também isto, para medirdes tudo,
antes de mostrar-vos ao mundo como discípulas eleitas, como os troncos
das gerações das futuras discípulas, cooperadoras dos servos do Senhor.
Tomai bem o vosso coração nas mãos e dizei-lhes, a este vosso coração
sensível de mulheres, que vós, e ele convosco, sereis feitos objetos de
zombarias, sereis caluniadas, cuspidas, espezinhadas pelo mundo, pelo
desprezo, pela mentira, pela crueldade do mundo. Perguntai-lhe se ele se
sente capaz de receber todas aquelas feridas sem gritar de indignação,
maldizendo aqueles que o ferem. Perguntai-lhe se ele se sente capaz de
arrostar o martírio moral da calúnia, sem chegar a odiar os caluniadores e a
Causa pela qual será caluniado. Perguntai-lhe se, abeberado e recoberto
pelo ódio do mundo, saberá sempre emanar amor e se, envenenado pelo
absinto, saberá espremer mel se, sofrendo toda espécie de torturas pelas
incompreensões, pelo escárnio, pela maledicência, saberá ainda continuar a
sorrir, mostrando com a mão o Céu, sua meta, para a qual — por uma
caridade feminina, materna até nas mocinhas, materna também mesmo
quando foi prestada a pessoas de idade muito avançada, que poderiam ser
vossos avós, mas que são espiritualmente uns meninos, que mal acabam de
nascer, e incapazes de compreender e de se orientarem no caminho, na vida,
na verdade e na sabedoria, que Eu vim dar, dando a Mim mesmo: Caminho,
Vida, Verdade, Sabedoria divina — perguntai-lhe se, mesmo assim, haverá
de querer levar os outros. Eu vos amarei do mesmo modo, ainda que me
digais “Não tenho força para isso, Senhor, para desafiar o mundo inteiro por
amor a Ti.”
157.4 Ontem uma menina me pediu que Eu a imolasse, antes que chegue
para ela a hora das núpcias — porque ela acha que me ama como Deus há
de ser amado, ou seja, com toda ela mesma — na perfeição de uma doação
absoluta. E Eu farei o que ela quer. Ocultei-lhe a hora, para que a alma não
trema de medo, e a carne ainda mais que a alma. A sua morte será
semelhante à da flor, que fecha sua corola em uma tarde, achando que vai
abri-la de novo no dia seguinte, mas não a abre mais, porque o beijo da
noite aspirou a sua vida. E Eu o farei, conforme o seu desejo, antecipando
de poucos dias, antes do meu, o seu sono da morte. Para não fazê-la esperar
no Limbo, esta minha primeira virgem, e encontrá-la logo que Eu morrer…
Não choreis! Sou o Redentor… Mas esta mocinha santa, não me pediu
para seguir-me; não se limitou ao hosana depois do milagre, mas soube
aproveitar-se do milagre como de uma moeda posta a juros, passando da
gratidão humana a uma gratidão sobrenatural, de um desejo terreno a um
ultraterreno, mostrando um amadurecimento de espírito superior à de quase
todos. Digo “quase”, porque entre vós, que me estais ouvindo, há perfeições
iguais e até superiores. Ao contrário, mostrou o desejo de completar sua
transformação de jovenzinha em anjo, no segredo de sua casa. E Eu
também a amo tanto, que, nas horas de desgosto pelo que o mundo me faz,
lembrar-me-ei desta doce criatura, bendizendo ao Pai por estas flores de
amor e de pureza com que o Pai me enxuga as lágrimas e os suores de
Mestre de um mundo que não me quer.
157.5Mas, se quiserdes, se tiverdes a coragem de permanecerdes
discípulas eleitas, eis que Eu vos mostro o trabalho que havereis de fazer
para justificar a vossa presença e eleição junto a Mim e junto aos santos do
Senhor.
Vós podeis fazer tanto junto aos vossos semelhantes e para com os
ministros do Senhor. Fiz menção disso[90] à Maria do Alfeu, há muitos
meses. Grande é a falta que faz a mulher junto ao altar de Cristo! As
infinitas misérias do mundo podem ser curadas por uma mulher, muito mais
e melhor do que por um homem, sendo depois levadas ao homem, para que
sejam completamente sanadas. Para vós abrir-se-ão muitos corações,
especialmente os femininos, a vós, ó mulheres discípulas. Deveis acolhê-
los, como se fossem filhos queridos e desencaminhados, que voltam à casa
paterna e que não ousam encarar o pai. Sereis vós que reconfortareis o
culpado e aplacareis o juiz. Muitos virão a vós, à procura de Deus. Vós os
acolhereis, como peregrinos cansados, dizendo-lhes: “Aqui é a casa do
Senhor. Ele virá logo”, e ao mesmo tempo, os circundareis com o vosso
amor. Se não Eu, um meu sacerdote virá.
A mulher sabe amar. Ela foi feita para o amor. Ela rebaixou o amor,
fazendo dele uma fome de sensualidade, mas no fundo de sua carne está
sempre prisioneiro o verdadeiro amor, a joia da alma dela: o amor libertado
da lama acre da sensualidade e dotado de asas e de perfumes angélicos,
dotado de uma chama pura e da lembrança de Deus, da sua origem, que
vem Dele, e de Sua criação. A mulher — a obra-prima da bondade, ao lado
da obra-prima da criação, que é o homem: “E agora seja dada a Adão uma
companheira para que ele não se sinta sozinho” — não deve abandonar os
Adãos. Tomai, portanto, esta faculdade de amar e usai-a no amor do Cristo
e pelo Cristo junto ao próximo.
Sede toda caridade junto aos culpados arrependidos. Dizei-lhes que não
tenham medo de Deus. Como não saberíeis fazer isso, vós que sois mães e
irmãs? Quantas vezes os vossos pequeninos, os vossos irmãozinhos não
estiveram doentes e precisando do médico! E tinham medo. Mas vós, com
carícias e com palavras de amor, tirastes aquele medo e eles, com as
mãozinhas na vossa, mas deixaram-se tratar, sem terem mais o medo de
antes. Os culpados são os vossos irmãos e filhos doentes e temem a mão do
médico e o que ele vai dizer… Não. Não é assim. Dizei-lhe, vós que sabeis
quanto Deus é bom, que Deus é bom e não é preciso temê-lo. Ainda que Ele
seja firme e decidido, ao dizer: “Não deves nunca mais fazer isto”, não
expulsará a quem já fez o mal e ficou doente. Mas tratará dele para que
fique são.
Sede mães e irmãs ao lado dos santos. Eles também têm necessidade de
amor. Cansar-se-ão e se consumirão na evangelização. Não poderão
conseguir tudo o que é preciso fazer. Ajudai-os, vós, discretas e cuidadosas.
A mulher sabe trabalhar. Em casa, por entre as mesas e as camas, junto aos
teares e tudo mais que é necessário para a vida diária. O futuro da Igreja
será uma contínua ida dos peregrinos aos lugares de Deus. Sede vós as
caridosas hospedeiras, que tomais para vós as coisas mais humildes, a fim
de deixardes livres os ministros de Deus para continuarem a obra do
Mestre.
Depois virão os tempos difíceis, sangrentos, ferozes. Os cristãos, até os
santos, passarão horas de terror e de fraqueza. O homem nunca é muito
forte para sofrer. A mulher, ao invés, tem sobre o homem esta verdadeira
realeza do saber sofrer. Ensinai isso ao homem, sustentando-o nessas horas
de medo, de desconforto, de lágrimas, de canseiras e sangue. Em nossa
história temos exemplos de magníficas mulheres que souberam fazer atos
de uma audácia libertadora. Temos Judite, Jael. Mas acreditai que nenhuma
delas é maior, até agora, do que a mãe que foi mártir oito vezes[91], sete em
seus filhos e uma em si mesma, no tempo dos Macabeus. Mais tarde haverá
uma outra… Mas depois que essa tiver vindo, tornar-se-ão frequentes as
mulheres heroínas da dor e na dor, as mulheres conforto dos mártires e
mártires elas próprias, as mulheres anjos dos perseguidos, as mulheres,
sacerdotisas mudas, que pregarão a Deus com seu modo de viver e que, sem
outra consagração a não ser a que elas receberam do Deus-Amor, serão, oh!
serão consagradas e dignas de o serem.
157.6 Estes são em linhas muito esquemáticas, os vossos principais
deveres. Eu não terei muito tempo para dedicar a vós em particular. Mas
vós vos formareis, ouvindo-me. E mais vos formareis sob a guia perfeita da
minha mãe.
Ontem esta mão materna (e Jesus pega na sua a mão de Maria)
conduziu até Mim a jovem de que Eu vos falei e ela me disse que somente
por tê-la ouvido e ficado ao seu lado durante poucas horas, já tinha
amadurecido o fruto da graça recebida, levando-o à perfeição. Não é a
primeira vez que minha mãe trabalha pelo Cristo seu Filho. Tu e tu, meus
discípulos, e também meus primos, sabeis quem é Maria na formação das
almas a Deus e o podeis dizer àqueles ou àquelas que tiverem o temor de
não terem sido preparados por Mim para a missão ou de não o serem ainda
suficientemente, quando Eu não estiver mais entre vós.
Ela, a minha mãe, estará convosco agora, nas horas da minha ausência,
e depois, quando Eu não estiver mais entre vós. Ela fica convosco, e com
ela, a Sabedoria em todas as suas virtudes. Segui, de agora em diante, todos
os seus conselhos.
157.7 Ontem à tarde, quando ficamos sozinhos, Eu, sentado perto dela,
como quando era criança, com a cabeça sobre seu ombro tão doce e tão
forte, minha mãe me disse: “Como é doce ser a Mãe do Redentor!”
Tínhamos falado da jovem que partiu nas primeiras horas da tarde, com um
sol, mais radioso do que aquele do firmamento, encerrado em seu coração
virginal: o seu segredo santo.
Sim, como é doce, quando a criatura que vai ao Redentor é já uma
criatura de Deus, na qual só existe a mancha original, que só pode ser
lavada por Mim. O amor lavou todas as outras pequenas manchas de
imperfeição humana. Mas, minha doce mãe, puríssima guia das almas para
o teu Filho, Estrela santa de orientação, Mestra suave dos santos, piedosa
Nutriz de pequeninos, Cura salutar dos enfermos, nem sempre irão a ti estas
criaturas que não repugnam à santidade… Mas as lepras, mas os horrores,
mas o mau cheiro, os emaranhamentos de serpentes ao redor de coisas
imundas rastejarão até aos teus pés, ó Rainha do gênero humano, para te
gritarem: “Piedade! Socorre-nos! Leva-nos ao teu Filho!”, e terás que
colocar esta tua cândida mão sobre as chagas, inclinar-te com os teus
olhares de pomba paradisíaca sobre as deformidades infernais, aspirar o
fedor do pecado, e não fugir. Ao contrário dizes, acolher sobre o coração
esses mutilados por satanás, esses abortos, estas podridões, e lavá-los com o
teu pranto, e trazê-los a Mim… E então, dirás: “Como é difícil ser a mãe do
Redentor!” Mas tu o farás, porque és a mãe… Eu beijo e abençoo estas tuas
mãos, das quais virão a Mim tantas criaturas, e cada uma será uma glória
para Mim. Mas, antes de ser minha, ela será uma glória tua, ó mãe Santa.
157.8 Vós, queridas discípulas, segui o exemplo da minha mestra e
também de Tiago e de Judas e de todos aqueles que querem formar-se na
graça e na sabedoria. Segui a sua palavra. É a minha palavra, tornada mais
doce. Nada é preciso acrescentar a ela porque é a palavra da mãe da
Sabedoria.
E vós, meus amigos, aprendei das mulheres a humildade e a constância,
e humilhando a soberba do homem, não desprezando as mulheres
discípulas, mas temperai a vossa força, e poderia dizer também, a vossa
dureza e intransigência, ao contato da doçura das mulheres. E, sobretudo,
aprendei delas a amar, a crer e a sofrer pelo Senhor, porque em verdade vos
digo que elas, as fracas, se tornarão as mais fortes na fé, no amor, na
coragem, no sacrificarem-se pelo seu Mestre, que elas amam com todo o
próprio ser, sem nada pedirem, sem nada pretenderem, dando-se por bem
pagas, ao me amarem para poder dar-me conforto e alegria.
Ide agora para as vossas casas ou para as casas em que estais
hospedadas. Eu fico com minha mãe. Deus esteja convosco.
157.9 Todos vão-se embora, menos Marta.
– Tu fica, Marta. Eu já falei com o teu servo. Hoje não é Betânia que
hospeda. Mas a pequena casa de Jesus. Vem. Comerás ao lado de Maria e
dormirás no quartinho junto ao seu. Comerás ao lado de Maria e dormirás
no quartinho junto ao dela. O espírito de José, que foi o nosso conforto, te
confortará, enquanto descansas, e amanhã voltarás para Betânia, mais forte
e firme, para preparar também lá mulheres discípulas, à espera daquela mais
querida a Mim e a ti. Não tenhas dúvida, Marta. Eu nunca faço promessas
em vão. Mas para se fazer de um deserto cheio de víboras um bosque do
paraíso, precisa-se de tempo… O primeiro trabalho não se vê. Parece até
que nada aconteceu. Mas a semente já foi lançada. As sementes. Todas.
Depois virá o pranto, para fazer o que faz a chuva, que abre as sementes…
E as árvores boas virão… Vem!! Não chores mais!
[89] cristãos é o nome que aos discípulos será dado pela primeira vez em Antióquia, como se lê em: Atos 11,26. Jesus, o Cristo, o
prediz aqui (se dirá…) assim como em 280.5 (os crentes virão chamados “cristãos”), em 362.3 (todos aqueles que terão nome de
cristãos), em 596.17 (tal será o nome dos meus súditos). Como profecia pode ser considerado mesmo quando Ele chama Maria
Santíssima “Mãe dos Cristãos” (em 44.11, mas especialmente em 618.5) e qualquer outra ocasião em que o nome de cristãos (ou
mesmo o de católicos, como em 444.5) aparece na obra.
[90] Fiz menção disso a Maria de Alfeu, em 95.6.
[91] mãe que foi mártir oito vezes, segundo a citação de: 2 Macabeus 7. Por outro, a figura de Judite é apresentada em: Judite 8-
16; a de Jael em: Juízes 4,17-22; 5,24-27. A esta última liga-se a figura da profetiza Débora, mencionada em 525.7 em relação ao
relato de: Juízes 4, ì4-16; 5. São mulheres de Israel que a obra recorda ainda em: 32.6 – 91.5 – 176.3 – 373.4 – 414.1 – 420.11 –
439.2 – 470.5 – 472.10 – 525.5.7 – 544.8 – 559.6 – 561.9.12 – 588.6 – 600.21.25 – 613.10 – 638.19.
158. No lago de Genezaré com Joana de Cusa.
8 de maio de 1945.
158.1 Jesus está no lago sobre o barco de Pedro, atrás de dois outros
barcos. Um deles é um comum barco de pesca, gêmeo ao de Pedro; e o
outro é um barco ligeiro, rico, para esporte. É o barco de Joana de Cusa.
Mas a dona dele não está em seu barco. Ela está aos pés de Jesus, no
rústico barco de Pedro. Diria que o acaso os reuniu em algum ponto da
praia florida de Genezaré, que é muito bonita nesta aparição da primavera
palestina, que espalha as suas nuvens de amendoeiras em flor e põe pérolas
de futuras flores sobre as pereiras e macieiras, romãzeiras e marmeleiros,
todas, todas as árvores mais ricas e graciosas na flor e no fruto. Quando o
barco passa rente a uma orla ensolarada, já se mostram os milhões de
botões, que vêm irrompendo sobre os ramos, esperando florescer, enquanto
as pétalas precoces das amendoeiras, borboleteiam pelo ar quieto, até
pousarem sobre as águas claras.
As margens, entre a erva nova que parece uma seda de um verde alegre,
estão pontilhadas pelos olhos de ouro dos ranúnculos, pelas estrelas raiadas,
rígidos sobre seus caules. Ao lado das margaridinhas, como pequenas
rainhas coroadas, sorriem leves, plácidos como as íris das crianças, os
miúdos miosótis, azuizinhos, tão graciosos, e parecem estar dizendo “sim,
sim” ao sol, ao lago, às ervas irmãs, que estão felizes em florescer e em
florescer sob os olhos cerúleos do seu Senhor.
Neste começo de primavera, o lago ainda não tem aquela opulência que
o tornará triunfante nos meses sucessivos; ainda não tem aquela pompa
suntuosa, eu diria sensual, das milhares e milhares de roseiras, rígidas ou
flexíveis, que formam moitas nos jardins ou cobertura nos muros; dos mil e
mil corimbos; dos citisos e das acácias, das milhares e milhares de fileiras
das plantas tuberosas em flor, das milhares e milhares de estrelas
amareladas nos citrinos; de todo este fundir-se de cores e perfumes,
agressivos, suaves, inebriantes, que fazem um cenário e um estímulo ao
anseio humano de gozar, que profana, profana demais este canto da terra tão
puro, que é o lago de Tiberíades, o lugar escolhido há séculos para ser o
teatro do maior número dos prodígios de nosso Senhor Jesus.
158.2 Joana olha para Jesus que está absorto na beleza do seu lago galileu
e o rosto dela sorri, repetindo como espelho fiel o sorriso Dele.
Nos outros barcos estão conversando. Neste há silêncio. O único rumor
é o surdo, dos pés descalços de Pedro e de André, que controlam as
manobras do barco, e o suspiro da água, que vai sendo fendida pela proa, e
que sussurra suas dores ao costado da embarcação, para depois transformar-
se em riso, ao chegar à popa, à medida que a ferida vai-se tornando a fechar
em uma esteira de prata, que o sol faz brilhar, como se tivesse sido feita
com pó diamantino.
Finalmente, Jesus deixa a sua contemplação e volta o olhar para a sua
discípula. Ele lhe sorri e lhe pergunta:
– Estamos quase chegando, não é verdade? E tu dirás que o teu Mestre
é um companheiro muito pouco amável. Eu não te disse uma palavra.
– Mas eu as li em teu rosto, Mestre, e percebi tudo que ias dizendo a
estas coisas que estão ao nosso redor.
– E que é que Eu ia dizendo?
– Amai, sede puros, sede bons. Porque de Deus viestes, e da mão Dele
nada saiu de mau e de impuro.
– Leste bem.
– Mas, meu Senhor, as ervas farão assim. Os animais também. O
homem… Por que é que ele não o faz, ele que é o mais perfeito?
– Porque o dente de satanás só penetrou no homem. Ele pretendeu
destruir o Criador, no seu prodígio maior, mais semelhante a Ele.
158.3 Joana inclina a cabeça e pensa. Parece alguém que está na dúvida e
fica avaliando duas vontades opostas. Jesus a observa. Enfim, ela levanta a
cabeça e diz:
– Senhor, indignar-te-ias em aproximar-te de minhas amigas pagãs? Tu
sabes… O Cusa é da Corte. E o Tetrarca — e mais ainda, a verdadeira
dominadora da Corte: Herodíades, a cuja vontade se dobram todas as
disposições de Herodes, para… acompanhar a moda, para se mostrarem
mais finos do que os outros palestinos, para serem protegidas por Roma,
adorando Roma e tudo mais que é romano — vivem namorando com os
romanos da casa proconsular… e quase no-los impõe. Na verdade, preciso
dizer que elas não são mulheres piores do que nós. Também entre nós, e
nestas mesmas margens, há algumas delas que desceram bem em baixo. E
que é que poderemos falar, se não falarmos a respeito de Herodíades??
Quando eu perdi o meu filho e fiquei doente, elas foram muito boas para
comigo, que não as havia procurado. E depois permaneceu a amizade. Mas
se Tu me dizes que é um mal, eu a desfaço. Não? Obrigada, Senhor.
Anteontem eu estava em casa de uma dessas amigas. Era a minha uma
visita de amizade e de um dever por parte do Cusa. Havia uma ordem do
Tetrarca que… quereria voltar aqui, mas que não se sente muito seguro e
então… trava mais relações interesseiras com Roma, para ter suas costas
protegidas. Aliás… eu te peço… Tu és parente do Batista, não é verdade?
Diz então a ele, para não confiar demais e que não saia nunca dos confins
da Samaria. Antes, se não lhe causar desdém, por lá se esconda por algum
tempo. A serpente se aproxima do cordeiro e o cordeiro tem muito o que
temer. De tudo. Que ele esteja alerta, Mestre. E que não se saiba que eu
disse isto. Seria a ruína do Cusa.
– Fica tranquila, Joana. Eu avisarei ao Batista por um meio bom, sem
prejudicar a ninguém.
– Obrigada, Senhor. Eu quero te servir… mas com isto não queria
prejudicar o meu esposo. Antes… eu… não poderei estar sempre Contigo.
Algumas vezes eu deverei ficar, porque ele assim quer, e é justo…
– Poderás ficar, Joana. Entendo tudo. Não digas mais nada, pois não é
preciso.
– Porém, nas horas de maior perigo para Ti, quererás que eu esteja por
perto?
– Sim, Joana. Certamente.
– Oh! Como me pesava uma coisa destas, ter que dizê-la e a estar
dizendo! Mas agora estou aliviada…
– Se tiveres fé em Mim, estarás sempre confortada. 158.4Mas tu falavas
de uma tua amiga romana…
– Sim. Ela é muito íntima de Cláudia e creio que deva ser sua parente.
Ela gostaria de falar Contigo, pelo menos ouvir-te falar. E não só ela. E
agora, que Tu curaste a menina de Valéria, e a notícia veio rápido como o
relâmpago, o desejo nelas está ainda mais vivo. No banquete da outra tarde
havia muitas vozes a teu favor e contra Ti. Porque estavam presentes
também alguns herodianos e saduceus… ainda que, se lhes fôsse feita a
pergunta, eles o negariam… e havia lá também algumas mulheres… ricas
e… não honestas. Estava lá… eu sinto muito dizê-lo, porque sei que Tu és
amigo do irmão… mas estava lá Maria Madalena com o seu novo amigo e
uma outra mulher, grega, eu creio, e licenciosa como ela. Sabes… é
costume entre os pagãos que as mulheres estejam à mesa com os homens e
isso é muito… muito… Que coisa mais embaraçosa! A gentileza de minha
amiga escolheu para mim como companheiro o meu próprio esposo e isso
me deixou muito aliviada. Mas as outras… Oh!! Pois bem. Falava-se de Ti,
porque o milagre em favor da Faustina deu bastante o que falar e, enquanto
os romanos admiram em Ti o grande médico ou mago — perdoa, Senhor
—, os herodianos e os saduceus jogavam veneno sobre o teu Nome; e
Maria, oh! Maria! Que horror!! Começou com o escárnio e depois… Não,
isto não te quero dizer. Por isso, chorei a noite inteira…
– Deixa-a. Ela ficará sã.
– Mas ela está boa, sabes?
– Na carne. O resto está todo intoxicado. Ficará sã.
– Tu o estás dizendo… As romanas, sabes como são… disseram: “Nós
não tememos feitiços, nem acreditamos em fábulas. Queremos julgar por
nós mesmas”; e depois me disseram: “Não poderíamos ouvi-lo?”
– Diz a elas que no fim da lua de Shebat Eu estarei em tua casa.
– Eu o direi, Senhor. Crês que virão a Ti?
– Há todo um mundo a ser refeito nelas. Primeiro, é preciso destruir e
depois edificar. Mas não é uma coisa impossível. 158.5Joana, eis a tua casa
com o seu jardim. Trabalha nela pelo teu Mestre, como Eu te disse. Adeus,
Joana. O Senhor esteja contigo. Eu te abençoo em seu nome.
O barco chega à terra. Joana implora:
– Não vens mesmo?
– Agora não. Preciso reavivar as chamas. Com poucos meses de
ausência, elas quase se apagaram. E o tempo voa.
O barco para no pequeno golfo, que penetra no jardim de Cusa. Servos
acorrem para ajudar a patroa a descer. O barco patronal vem atrás do de
Pedro até à prancha, depois que João, Mateus, Iscariotes e Filipe saíram
dele e subiram para o de Pedro, o qual, em seguida, lentamente se afasta,
retomando o seu navegar em direção à margem oposta.
159. Discurso em Gergesa sobre a sinceridade na
fé.
A resposta sobre o jejum aos discípulos do Batista.
9 de maio de 1945.
159.1 Jesus fala em uma cidade que eu nunca vi. Assim ao menos me
parece, porque são todas elas mais ou menos iguais no estilo e é difícil
diferenciá-las à primeira vista. Também aqui uma estrada margeia o lago e
os barcos estão aí arrastados para a margem. Casas e casinhas estão
alinhadas para lá da estrada, mas aqui as colinas estão muito mais afastadas
e, por isso, a pequena cidade está em uma sorridente planície, que se
prolonga pelas margens orientais do lago, ficando protegida contra os
ventos pelo baluarte dos outeiros, e por isso é toda tépida pelo sol que aqui,
mais ainda do que em outros campos, aumenta a florescência das árvores.
Parece que o discurso já tenha começado, porque Jesus diz:
– … É verdade. Vós dizeis: “Não te abandonaremos nunca, porque
abandonar-te seria abandonar a Deus.” Mas, ó povo de Gergesa, lembra-te
de que nada é mais mutável do que o pensamento humano. Eu estou
convicto que neste momento realmente vós estais tendo este pensamento. A
minha palavra e o milagre que aconteceu vos entusiasmaram neste sentido
e, neste momento, estais sendo sinceros em tudo o que estais dizendo.
[92].
159.2Mas Eu vos recordo um episódio
Poderia citar mil deles antigos e novos. Vou citar-vos somente este.
Josué, servo do Senhor, antes de morrer, reuniu ao seu redor todas as
tribos com os seus chefes, príncipes, juízes e magistrados e lhes falou, na
presença do Senhor, lembrando-lhes todos os benefícios e prodígios feitos
pelo Senhor, através do seu servo. E depois de ter enumerado todas essas
coisas, convidou-os a repudiarem todo deus que não fôsse o Senhor, ou pelo
menos a serem sinceros em sua fé, escolhendo com sinceridade, ou o
verdadeiro Deus, ou os deuses da Mesopotâmia e dos Amorreus, de modo
que houvesse uma nítida separação entre os filhos de Abraão e os
paganizantes.
Sempre é melhor um erro com convicção do que uma hipócrita
profissão e misturas de fé, o que é uma afronta a Deus e uma morte aos
espíritos. E nada é mais fácil e comum do que essa mistura. A aparência é
boa; debaixo dela está a substância não boa. Ainda agora, filhos, ainda
agora, aqueles fiéis que misturam a observância da Lei com o que a Lei
proíbe, aqueles infelizes, que vacilam como bêbados entre a fidelidade à Lei
e o interesse de negócios e compromissos com os que estão fora da Lei e
dos quais esperam alguma vantagem, aqueles sacerdotes, ou escribas, ou
fariseus. Eles não fazem mais do serviço de Deus a meta de suas vidas, mas
sim, uma astuta política para triunfar sobre os outros e ter todo o poder,
sobre os outros mais honestos; e isto, porque são servos não de Deus, mas
de um poder que eles sabem que é forte e precioso aos seus propósitos, não
são senão hipócritas, que misturam o nosso Deus com os deuses
estrangeiros.
O povo respondeu a Josué: “Nunca aconteça que nós abandonemos o
verdadeiro Deus para servir a deuses estrangeiros.” Josué disse a eles o que
Eu acabei de vos dizer sobre o santo ciúme do Pai, em sua vontade de ser
amado com exclusividade por nós com todo o nosso ser, e de sua justiça em
punir os que são mentirosos.
Punir! Deus pode punir, como pode premiar. Não é preciso que se tenha
morrido para se receber um prêmio ou um castigo. Olha, povo hebreu, se
Deus, depois de haver-te dado tanto, livrando-te dos Faraós, levando-te a
salvo através do deserto e das ciladas dos inimigos, permitindo que te
tornasses uma grande e temida nação, rica de glórias não te puniu depois
nem uma, nem duas, nem dez vezes pelas tuas culpas! E olha o que te
tornaste agora! E Eu, que te vejo precipitar na mais sacrílega das idolatrias,
vejo também em que abismo estás para precipitar-te, por este teu perseverar
sempre nas mesmas culpas. E Eu te chamo a atenção por isso, ó povo, que
és duas vezes meu, por ser Eu o Redentor e por ter nascido de ti. Não é
ódio, não é rancor, não é intransigência. É de amor este meu chamado,
ainda que seja severo.
159.3 Josué então disse: “Vós sois testemunhas disto: vós escolhestes o
Senhor”, e todos responderam: “Sim”. E Josué, sábio, além de destemido,
sabendo quanto é fraca a vontade do homem, escreveu no Livro todas as
palavras da Lei e da aliança e as colocou no Templo e também neste
santuário do Senhor, que está em Siquém, em que naquela ocasião se
guardava o Tabernáculo, colocou uma grande pedra como testemunha,
dizendo: “Esta pedra, que ouviu as vossas palavras ao Senhor, ficará aqui
como testemunha, para que não possais negar e mentir ao Senhor vosso
Deus.”
Uma pedra, por maior e mais dura que seja, sempre pode ser
pulverizada pelo homem, por um raio ou pela erosão das águas e do tempo.
Mas Eu sou a Pedra angular e eterna. E não posso sofrer destruição. Não
mintais a esta Pedra viva. Não a ameis só porque faz prodígios. Amai-a
porque por Ela chegareis ao Céu. Eu gostaria que fôsseis mais espirituais,
mais fiéis ao Senhor. Não digo por Mim. Eu não sou outra coisa, senão a
Voz do Pai. Se me espezinhardes, ferireis Aquele que me enviou. Eu sou o
Meio. Ele é Tudo. Recolhei de Mim e conservai em vós tudo o que é santo,
para que possais ir a este Deus. Não ameis o Homem, amai o Messias do
Senhor, não pelos milagres que faz, mas porque quer fazer em vós o milagre
íntimo e sublime da vossa santificação”.
159.4 Jesus abençoa e se encaminha em direção a uma casa.
Está quase na soleira quando é barrado por um grupo de homens
anciãos, que o saúdam com respeito, dizendo:
– Podemos fazer-te uma pergunta, Senhor? Somos discípulos de João.
Como ele sempre fala de Ti, e também chegou até nós a fama dos teus
prodígios, tivemos vontade de conhecer-te Agora, depois de termos te
ouvido, surgiu diante de nós uma pergunta que te queremos fazer.
– Dizei qual é. Se sois discípulos de João, já deveis estar no caminho da
santidade.
– Tu disseste, quando estavas falando das idolatrias comuns entre os
fiéis, que há pessoas entre nós que fazem comércio entre a Lei e os que
estão fora da Lei. Porém, Tu também és amigo deles. Sabemos que não
desprezas os romanos. E então?
– Não o nego. Mas podeis vós dizer que o faço para obter alguma
vantagem? Podeis dizer que os acaricio, para conseguir deles, ainda que
seja só uma proteção?
– Não, Mestre. E disso estamos mais do que certos. Mas o mundo não é
composto só por nós, que só queremos crer no mal que vemos e não naquilo
que nos é apontado como mal. Agora, diz-nos quais as razões que tornam
plausível o aproximar-se aos gentios. Diz-nos, como norma para nós e para
tua defesa, se alguém te caluniar em nossa presença.
– É um mal, que se façam contatos, com intenções humanas. Não é
mal, quando nos aproximamos deles para levá-los ao Senhor nosso Deus.
Eu faço assim. Se vós fôsseis pagãos, poderia demorar-me para explicar
como todos os homens vêm de um único Deus. Mas vós sois hebreus e
discípulos de João. Por isso, sois a flor dos hebreus, e não precisais de que
Eu vos explique isso. Podeis, portanto, compreender e crer que é meu dever,
sendo Eu o Verbo de Deus, levar a sua palavra a todos os homens, filhos do
Pai universal.
– Mas eles não são filhos, porque são pagãos…
– Pela graça, eles não são. Pela fé errada, eles não o são. É verdade.
Mas, enquanto Eu não vos tiver redimido, o homem, ainda que seja hebreu,
terá perdido a graça, estará privado dela, porque a mancha de origem será
um impedimento para que os raios inefáveis da graça desçam até os
corações. Contudo, pela criação, o homem é sempre filho. De Adão,
primeiro antepassado de toda a humanidade, vêm tanto os hebreus como os
romanos, e Adão é filho do Pai que lhe deu sua semelhança espiritual.
– É verdade. 159.5Uma outra pergunta, Mestre. Por que os discípulos de
João fazem grandes jejuns e os teus não? Não queremos dizer que Tu não
devas comer. Também o profeta Daniel foi santo aos olhos de Deus, ainda
que tenha sido um dos grandes na corte da Babilônia, e Tu és mais do ele.
Mas eles…
– Muitas vezes uma coisa, que não se consegue com rigorismo,
consegue-se com alguma cordialidade. Há pessoas que nunca viriam ao
Mestre, e o Mestre deve ir a elas. Outros há, que viriam ao Mestre, mas se
envergonham de ir no meio da multidão. Também a esses o Mestre deve ir.
E, desde que eles me digam: “Vem ser meu hóspede, para que eu possa
conhecer-te”, Eu vou, tendo em mente não o gozo da mesa opulenta e das
conversas às vezes tão penosas para Mim, mas ainda e sempre, o interesse
de Deus. Isto quanto a Mim. E, visto que frequentemente ao menos uma das
almas, de que Eu me aproximo se converte, e cada conversão é como uma
festa de núpcias para a minha alma, assim os meus discípulos, os amigos do
Esposo — que sou Eu — jubilam-se com o Esposo e Amigo. É uma grande
festa da qual tomam parte todos os anjos do Céu e que é abençoada pelo
eterno Deus. Quereríeis ver os amigos de luto, enquanto Eu jubilo?
Enquanto Eu estou com eles? Mas tempo virá em que não me terão mais. E
então, farão um grande jejum. 159.6Para tempos novos, métodos novos. Até
ontem, com o Batista eram as cinzas da Penitência. Hoje, é o doce maná da
Redenção, da Misericórdia, do Amor. Não poderiam aqueles métodos estar
enxertados no meu, como também o meu não poderia ter sido usado então;
apenas ontem. Porque ainda a Misericórdia não existia na terra. Agora
existe. Não mais o Profeta, mas o Messias está na terra, ao qual tudo foi
deferido por Deus. A cada tempo as coisas que lhe sejam úteis. Ninguém
cose um pedaço de pano novo em uma veste velha, porque de outro modo,
especialmente ao lavá-la, o pano novo encolhe e arrebenta a veste velha e o
rasgão se torna ainda maior. Igualmente ninguém põe vinho novo em odres
velhos, porque, se assim fizer, o vinho arrebenta os odres, incapazes de
suportar a efervescência do vinho novo, o qual se derrama fora dos odres
que arrebentaram. Mas o vinho velho, que já passou por todas as suas
mudanças, é colocado em odres velhos, e o novo em novos. Porque uma
força há de ser enfrentada por outra igual. Assim é agora. A força da nova
doutrina aconselha métodos novos para difundi-la. E Eu, que sei disso, faço
uso deles.
159.7 – Obrigado, Senhor. Agora estamos contentes. Reza por nós. Nós
somos uns odres velhos. Poderíamos resistir à tua força?
– Sim. Porque o Batista vos preparou e porque as orações dele, com as
minhas, vos tornarão capazes de tudo. Ide com a minha paz, e dizei a João
que Eu o abençoo.
– Mas… no teu parecer, é melhor para nós estarmos com o Batista ou
Contigo?
– Enquanto ainda há vinho velho, bebam dele se agrada ao paladar
acostumado ao seu sabor. Depois… como a água podre, que está por toda
parte, vos dará nojo, então passareis a gostar do vinho novo.
– Achas que o Batista vai ser preso de novo?
– Com certeza. Eu já mandei a ele um aviso. Ide, ide. Alegrai-vos com
o vosso João, enquanto podeis e fazei-o feliz. Depois, amareis a Mim. E
isso também vos será penoso… porque ninguém, depois de acostumado
com o vinho velho, vai querer logo o vinho novo. Ele diz: “O velho era
melhor”. E, de fato, Eu terei sabores especiais, que vos parecerão ásperos.
Mas apreciareis, dia por dia, o sabor vital. Adeus, amigos. Deus esteja
convosco.
[92] um episódio, o referido em: Josué 24,1-28.
Segundo ano
da Vida pública de Jesus.
(continuação)

160. Encontro com Gamaliel


na estrada de Neftali a Gíscala.
10 de maio de 1945.
160.1 – Mestre! Mestre! Sabes quem é que está aí à nossa frente? O rabi Gamaliel! Ele está sentado com
muitos dos seus criados, à sombra do bosque e ao abrigo do vento. Estão preparando um cordeiro para ser
assado. E agora? Que vamos fazer?
– Vamos fazer o que queríamos fazer, meus amigos. Iremos adiante pelo nosso caminho…
– Mas Gamaliel é do Templo.
– Gamaliel não é um traiçoeiro. Não tenhais medo. Eu vou à frente.
– Oh! Eu também vou –dizem juntos os primos, todos os outros galileus e Simão. Só Iscariotes e, um
pouco menos, Tomé mostram pouca vontade de ir para frente. Mas vão acompanhar os outros.
Andam alguns metros ainda por uma estrada escarpada beirada pelo mato da montanha. Depois a
estrada faz uma volta, desemboca numa espécie de patamar e o atravessa, tornando-se então mais larga
para, em seguida, ficar de novo estreita e sinuosa, indo por baixo de um emaranhado de ramos. Numa
clareira do bosque exposta ao sol e, ao mesmo tempo sombreada pelas primeiras folhas das árvores, estão
muitas pessoas debaixo de uma bela tenda, enquanto outras estão a um canto, virando o cordeiro sobre o
fogo.
Não há o que dizer! Gamaliel sabia tratar-se bem. Como um homem que se põe em viagem, ele pôs em
movimento todo um regimento de criados e arrumou não sei quantos equipamentos. Agora está lá sentado
no meio de sua tenda: é uma tela estendida, pendente de quatro bastões dourados, formando uma espécie
de baldaquim, sob o qual estão umas cadeiras baixas, recobertas com almofadas, e uma mesa montada
sobre uns cavaletes embutidos e coberta com uma finíssima toalha, sobre a qual os servos colocam louça de
grande beleza. Gamaliel parece um ídolo. Com as mãos abertas sobre os joelhos, rígido, hierático, mais
parece uma estátua. Ao redor dele os criados circulam como umas grandes borboletas. Mas ele não lhes dá
atenção. Fica pensando, com as pálpebras um pouco abaixadas sobre os olhos sisudos e, quando as levanta,
seus olhos, muito escuros, profundos e cheios de pensamentos, se mostram em toda a sua sisuda beleza,
aos lados de um nariz longo e afilado e, sob a fronte já um pouco calva de velho, alta e marcada por três
rugas paralelas e sobre a qual uma veia grossa, azulada, faz aparecer o sinal de um V, no meio da têmpora
direita.
160.2 O barulho dos que vêm chegando faz com que os criados se virem. Também Gamaliel se vira. Vê
Jesus que vem à frente dos outros e faz um gesto de surpresa. Põe-se de pé e vai até o limiar da tenda. Não
passa dali. E dali mesmo faz uma profunda inclinação, conservando os braços cruzados sobre o peito. Jesus
responde do mesmo modo.
– Estás aqui, Rabi? –pergunta Gamaliel.
– Aqui estou, rabi –responde Jesus.
– Posso saber aonde vais?
– Tenho prazer em responder-te. Estou vindo de Neftali, e vou indo para Gíscala.
– Mas, vais a pé? A viagem por estas montanhas é longa e penosa. Tu te cansas demais.
– Acredita-me. Se Eu sou bem aceito e ouvido, o meu cansaço desaparece.
– Então… permite-me, pelo menos uma vez, ser quem vai fazer com que o teu cansaço desapareça. O
cordeiro já está assado. Nós teríamos que deixar os restos para os passarinhos porque não costumo levar
comigo o que sobra. Vê que não me prejudica nada oferecê-lo a Ti e aos teus acompanhantes. Eu sou teu
amigo, Jesus. Não te acho inferior a mim, mas superior.
– Eu acredito. E aceito.
Gamaliel fala com um dos criados, que parece ser o que manda nos outros, e este passa adiante a ordem
recebida. A tenda passa, então, a ser alargada, dos burros são descarregadas muitas cadeiras para os
discípulos de Jesus e mais louças.
Trazem as jarras de água para purificarem os dedos. Jesus, com a maior dignidade dá começo ao rito,
enquanto os apóstolos, observados atentamente por Gamaliel, fazem-no de qualquer jeito, com exceção de
Simão, de Judas de Keriot, de Bartolomeu e de Mateus acostumados aos refinamentos judaicos.
Jesus está ao lado de Gamaliel, que se acha sozinho num dos lados da mesa. À frente de Jesus está o
Zelotes. Depois da oração de oferecimento, que Gamaliel diz com uma lentidão solene, os servos trincham o
cordeiro e o distribuem entre os hóspedes, enchem as taças de vinho, ou de água com mel, para quem
assim prefere.
160.3 – O acaso nos reuniu, Rabi. Não esperava encontrar-te, e ainda mais indo para Gíscala.
– Eu vou indo ao mundo todo.
– Sim. És o Profeta incansável. João é o estável. Tu és o peregrinante.
– Assim, para as almas é mais fácil encontrar-me.
– Não o diria. Ao deslocar-te, Tu as desorientas.
– Desoriento os inimigos. Mas os que me querem, porque amam a Palavra de Deus, esses me encontram.
Nem todos podem ir ao Mestre. Mas o Mestre, que quer a todos, vai a eles, fazendo assim o bem aos bons e
desviando as tramas de quem me odeia.
– É a respeito de mim que dizes isso? Eu não te odeio.
– Não é a respeito de ti. Mas, como és justo e sincero, podes dizer se o que Eu digo é verdade.
– Sim. Assim é. Mas… vê… É que nós, velhos, te entendemos mal.
– Sim. O velho Israel me compreende mal. Para sua desventura… e porque assim quer.
– Naaão!
– Sim, rabi. Ele não aplica sua vontade em procurar entender o Mestre. E quem se limita a fazer isso, já
faz um mal, ainda que seja um mal relativo. Muitos, ao invés disso, aplicam sua vontade em entender mal e
em alterar as minhas palavras, para prejudicarem a Deus.
– A Deus? Mas Ele está acima das insídias humanas.
– Sim. Mas cada alma que se desvia, ou é desviada, — e já é um desvio o desfigurar diante de si mesmos
ou dos outros a minha palavra ou as minhas obras — prejudica a Deus naquela alma que se perde. Cada
alma que se perde é uma ferida feita a Deus.
Gamaliel inclina a cabeça, e fica pensando de olhos fechados. Depois, aperta a fronte com os seus longos
e magros dedos fazendo um movimento involuntário de desgosto. Jesus o observa. Gamaliel levanta a
cabeça, abre os olhos, olha para Jesus, e diz:
– Mas Tu sabes que eu não sou destes.
– Eu sei. Mas tu pertences aos primeiros.
– Oh! É verdade. Mas não é que eu não faça esforços para compreender-te. É que a tua palavra para na
minha mente, e não passa daí. Minha mente a admira como palavra de um douto, mas o espírito….
– E o espírito não pode recebê-la, Gamaliel, porque está entulhado demais com muitas coisas. E de
coisas que já perderam o valor. 160. 4Há pouco tempo, vindo de Neftali, passei por um monte que se destaca
da cordilheira. Tive prazer de passar por lá para ver a beleza dos dois lagos de Genezaré e de Meron, vistos
lá do alto, como são vistos pelas águias e pelos Anjos do Senhor, para dizer uma vez mais: “Obrigado,
Senhor, pelas belezas que nos concedes ver.” Pois bem. Enquanto toda a montanha está coberta de flores e
de árvores, que de tantas que são, estão como que esbarrando umas nas outras, enquanto as pradarias, os
pomares e os bosques se cobrem de folhas e frutos, os loureiros exalando seu odor junto às oliveiras,
preparando assim a neve das mil flores, quando o robusto carvalho parece tornar-se mais condescendente,
ao deixar-se cobrir com as coroas das clematites e madressilvas, enquanto isso, eis que naquele monte não
há floradas, não há fertilidade, nem do homem nem da natureza. Todo o trabalho dos ventos, todas as
canseiras dos homens, naquele lugar abortam, porque as ruínas ciclópicas da antiga Hatzor entopem tudo
e, entre um bloco de pedra e outro, só pode crescer a urtiga e a sarça, e servir de ninho para serpentes,
Gamaliel…
– Eu te compreendo. Nós também somos uns escombros… Entendi a parábola, Jesus. Mas… não posso…
Não posso agir de outro modo. As pedras estão profundamente enterradas.
– Alguém, em quem tu crês, te disse: “As pedras tremerão, às minhas últimas palavras.” Mas, por que
ficar esperando as últimas palavras do Messias? Não ficarás com remorso por não teres querido
acompanhar-me antes? As últimas!… Tristes palavras estas, também por serem as de um amigo que está
morrendo, e que fomos ouvir tarde demais. Mas as minhas são muito mais do que palavras de um amigo.
– Tens razão… Mas eu não posso. Fico esperando aquele sinal para crer.
– Quando um terreno está desolado, não basta um raio para desbravá-lo. Pois o terreno não o recebe
bem, e sim, com as pedras que o cobrem. Trabalha, pelo menos para removê-las, Gamaliel. Senão, se elas
ficarem assim, nas profundezas do teu ser, o próprio sinal ainda não te levará a crer.
Gamaliel, absorto, se cala. 160.5A refeição chega ao fim.
Jesus se levanta e diz:
– Eu te dou graças, meu Deus, pela refeição e por ter podido falar ao sábio. E agradeço a ti, Gamaliel.
– Mestre, não te vás assim. Tenho medo de que tenhas ficado com raiva de mim.
– Oh! Não! Podes crer em Mim.
– Então, não te vás. Eu vou ao túmulo de Hilel. Não gostarias de ir comigo? Chegaremos lá em pouco
tempo, porque tenho mulas e asnos para todos. Basta que tiremos deles as albardas, que os criados levarão.
Além disso, se abreviará o teu caminho no trecho mais difícil.
– De ir contigo até o túmulo de Hilel, não sinto desgosto, mas me sinto até honrado. Então, vamos.
Gamaliel dá as suas ordens e, enquanto todos trabalham para desmontar aquele refeitório improvisado,
Jesus e o rabino montam a cavalo, um ao lado do outro, vão indo pela estrada íngreme e silenciosa, sobre a
qual fazem grande barulho os cascos ferrados.
Gamaliel está calado. Só duas vezes pergunta a Jesus se a sela está cômoda. Jesus responde, depois se
cala, absorto em seus pensamentos, a tal ponto, que nem vê quando Gamaliel, retendo um pouco a sua
mula, deixa que ele passe para a frente, o tanto necessário para que ele possa estudar todos os seus
movimentos. Os olhos do velho rabino parecem os olhos de um falcão, que fixa a vista numa presa, de tão
atentos que estão. Mas Jesus não percebe, e vai calmamente, deixando-se levar pelo passo ondulante da
cavalgadura, pensa e no entanto aprecia os aspectos de todas as coisas que vão aparecendo ao seu lado.
Estende a mão para apanhar um cacho pendente de citiso dourado, sorri para dois passarinhos que estão
fazendo seu ninho em um copado junípero, para a mula a fim de ouvir uma toutinegra, e aprova, como que
abençoando, o grito aflito com que uma rola selvagem estimula ao trabalho o seu companheiro.
– Tu gostas muito das ervas e dos animais, não é?
– Muito. São o meu livro vivo. O homem tem sempre diante dos olhos os fundamentos da fé. O Gênesis
vive na natureza. Agora, se alguém souber ver, saberá também crer. Estas flores, de tão suave perfume, e a
matéria com que foram feitas estas suas corolas pendentes, contrastando tanto com este junípero espinhoso
e com aquela giesta agressiva, pode tudo isso ter-se feito por si mesmo? E olha lá, aquele pintarroxo pode
ter-se feito assim sozinho, com aquela dedada de sangue dessecado sobre o seu pescoço flexível? E aquelas
duas rolas, onde e como conseguiram pintar-se com aquele colar de ônix posto sobre o véu de suas penas
cinzentas? E lá, aquelas duas borboletas: uma preta, com grandes círculos de ouro e rubi, e a outra branca,
com listras azuis, onde terão elas encontrado aquelas jóias e fitas para as suas asas? E este rio? É água.
Tudo bem. Mas, de onde veio? Qual é a primeira fonte da água como elemento? Olhar já quer dizer crer, se
soubermos ver.
– Olhar quer dizer crer. Mas nós olhamos pouco demais o Gênesis vivo, que está à nossa frente.
– Ciência demais, Gamaliel. E muito pouco amor, e muito pouca humildade.
Gamaliel suspira e sacode a cabeça.
160.6 – Aí está. Eu já cheguei, Jesus. Ali está sepultado Hilel. Vamos descer, deixando aqui nossas
cavalgaduras. Um dos criados cuidará delas.
Apeiam, amarrando num tronco as duas mulas, e se dirigem para um sepulcro que se destaca no monte,
junto a uma grande casa completamente fechada.
– Eu costumo vir até aqui para meditar, em preparação para as festas de Israel –diz Gamaliel, mostrando
a casa.
– Que a Sabedoria te dê todas as suas luzes.
– E aqui –(Gamaliel mostra o sepulcro)–, para fazer minha preparação para a morte. Ele era um justo.
– Era um justo. De boa vontade Eu rezo junto às suas cinzas. Mas, Gamaliel, Hilel não deve ensinar-te
somente a morrer. Deve ensinar-te a viver.
– Como, Mestre?
– “O homem é grande quando se humilha” foi a divisa preferida dele…
– Como sabes disso, se não o conheceste?
– Eu o conheci… e afinal, mesmo que não tivesse conhecido Hilel pessoalmente como rabi, mas o
pensamento dele Eu conheci, porque não deixo de conhecer nada do pensamento humano.
Gamaliel inclina a cabeça, e murmura:
– Só Deus pode dizer isto.
– Deus e o seu Verbo. Porque o Verbo conhece o Pensamento, e o Pensamento conhece o Verbo, e o ama,
comunicando-se a Ele com os seus tesouros, para fazê-lo participante deles. O Amor aperta os laços,
fazendo uma só Perfeição. É a Trindade que se ama e que divinamente se forma, gera a si mesma, procede,
e se completa. Todo pensamento santo nasce na Mente Perfeita, e se reflete na mente do justo. Pode, então,
o Verbo deixar de conhecer os pensamentos dos justos, que são os pensamentos do Pensamento?
Rezam ao lado do sepulcro fechado. Rezam longamente. Os discípulos se unem a eles, e depois os
criados. Os primeiros chegam a cavalo, e os outros debaixo do peso das bagagens. Eles param ao lado do
campo, depois do qual está o sepulcro. A oração termina.
– Adeus, Gamaliel, sobe como Hilel.
– Que queres dizer?
– Sobe. Ele está na tua frente, porque soube crer mais humildemente do que tu. A paz esteja contigo.
161. Cura do neto do fariseu Eli de Cafarnaum.
11 de maio de 1945.
161.1 De barco, Jesus vai-se aproximando da cidade de Cafarnaum. O dia já vai chegando ao fim, e o lago
tem um grande reflexo de luz amarelo-avermelhada.
Enquanto as duas barcas fazem as manobras para atracar, João diz:
– Agora eu vou até à fonte, buscar água pura para a tua sede.
– A água aqui é boa –diz André.
– Sim, é boa. Mas para Mim é o vosso amor que a faz melhor ainda.
– Eu vou levar o peixe para casa. As mulheres o prepararão para a ceia. E depois, Tu falarás a nós e a
elas?
– Sim, Pedro.
– Como é bom voltar para casa! Antes, parecíamos estar vivendo como uns nômades. Mas, lá em casa,
com as mulheres, há mais ordem, mais amor. E, além disso, iremos ver tua mãe, e só isso já faz passar todo
o nosso cansaço. Não sei…
Jesus sorri e fica calado.
A barca se arrasta sobre a areia. João e André, que estão de túnicas curtas, pulam na água e, com a
ajuda dos empregados, puxam a barca para a beira colocando a tábua para servir de prancha. Jesus desce,
em primeiro lugar, e fica esperando que a segunda barca também encoste à beira, a fim de unir-se a todos
os seus. Depois, a passos lentos, vão para a fonte. É uma fonte natural, uma nascente que ali brota perto da
cidade, onde a água cai numa bacia de pedra, muito fresca, abundante e muito clara. Ela mesma se convida
a beber, de tão límpida que é. João, que tinha corrido na frente com um jarro, está de volta, e apresenta a
vasilha a Jesus, que bebe em longos sorvos.
– Com que sede estavas, meu Mestre! E eu, tão tolo fui, que não cuidei de levar água comigo.
– Não faz mal, João. Agora tudo já passou –e o acaricia.
161.2 Estão para voltar da fonte, quando vêem que vem chegando, com toda a velocidade de que é capaz,
Simão Pedro, pois tinha ido até a casa levar o seu peixe.
– Mestre! Mestre! –grita ele com o fôlego meio entrecortado–. A cidade inteira está em rebuliço, porque
o único neto do fariseu Eli está à morte, mordido por uma serpente. Ele tinha ido juntamente com o velho, e
contra a vontade da mãe, ao olival deles. Eli estava acompanhando os trabalhos, enquanto o menino ficou
brincando nas raízes de uma velha oliveira. Ele enfiou a mão em um buraco, esperando achar alguma
lagartixa, e o que achou foi a serpente. O velho parece ter ficado doido. A mãe do menino que, por sinal,
odeia, com razão, o sogro, acusa-o de ser um assassino. O menino vai ficando mais frio, a cada momento
que passa. Dentro da família, eles nunca se amaram. E que parentes podem ser assim!
– Uma coisa feia são os ódios em família!
– Mas, Mestre, eu digo que as serpentes não tiveram amor à serpente que é Eli. E lhe mataram oo
filhote. Desagrada-me que ele me tenha visto e gritado: “O Mestre está aí?” Desagrada-me por causa do
pequeno. Era um belo menino, e não tem culpa de ser neto de um fariseu.
– Sim. Ele não tem culpa disso…
161.3 Vão caminhando para a cidade, e vem vindo ao seu encontro um grande grupo de pessoas que gritam
e choram. À frente do grupo, está o velho Eli.
– Ele nos encontrou. Vamos voltar!
– Mas, por quê? Aquele velho está sofrendo!
– Aquele velho te odeia, lembra-te disso. Um dos mais encarniçados e primeiros acusadores de Ti no
Templo.
– Eu me lembro que sou a Misericórdia.
O velho Eli, despenteado, muito agitado, com as vestes em desordem, corre para Jesus, com os braços
estendidos, e cai aos pés dele, gritando:
– Piedade! Piedade! Perdão! Não te vingues sobre o inocente, por causa da minha dureza. Só Tu podes
salvá-lo. Deus, teu Pai, foi quem te trouxe aqui. Eu creio em Ti. Eu te venero! Eu te amo! Perdão! Eu tenho
sido injusto! Mentiroso! Mas estou sendo castigado. Só estas horas já são um castigo. Ajuda-me. Ele é o
filho homem. O filho do meu filho que morreu. E ela me acusa de havê-lo matado –e chora batendo,
ritmadamente, com a cabeça no chão.
– Levanta-te! Não chores assim. Queres morrer sem veres crescer o teu neto?
– Ele está morrendo! Está morrendo! Talvez já esteja morto. Faze que eu também morra. Não quero
viver naquela casa vazia! Que tristes estes meus últimos dias!
– Eli, levanta-te, e vamos…
– Tu… vais mesmo? Mas, sabes quem eu sou?
– Um infeliz. Vamos…
O velho se levanta, e diz:
– Eu vou na frente, mas Tu corre, corre, anda depressa!
E lá se vai ele com a velocidade que lhe dá aquele desespero, que fere seu coração.
– Mas, Senhor, achas que o mudarás com isto? Vai ser um milagre desperdiçado! Deixa morrer aquela
pequena serpente! O velho também morrerá do coração… e terás um a menos em teu caminho. Deus
pensou em…
– Simão! Em verdade, a serpente agora és tu.
Jesus rechaça severamente a Pedro, que fica depois de cabeça inclinada, e vai andando para a frente.
161.4 Perto da praça maior de Cafarnaum há uma bela casa, diante da qual a multidão está fazendo um
grande barulho… Jesus se dirige para lá, e quando da porta escancarada o velho vem saindo, acompanhado
por uma mulher de cabelos desgrenhados, e que vem apertando com seus braços um pequeno ser
agonizante. O veneno já lhe paralisou os órgãos, e a morte está próxima. A mãozinha está pendurada e
pode-se ver nela o sinal da mordida, na raiz do dedo polegar. Eli não cessa de gritar:
– Jesus! Jesus!
E Jesus, comprimido pelo aperto da multidão, que quase torna impossível fazer seja o que for, pega a
mãozinha e a leva à boca, suga a ferida, depois sopra levemente sobre o rostinho já cor de cera, com os
olhos semifechados e já vidrados. Depois se ergue.
– Eis aí –diz Ele–, agora o menino está acordando. Não o fiqueis espantando com todos esses vossos
rostos transtornados. Só a lembrança da serpente já lhe fará medo.
De fato, o pequeno, cujo rosto começa a ficar cor-de-rosa, abre a boca para um longo bocejo, esfrega os
olhinhos, depois os abre, e fica espantado por se ver no meio de tantas pessoas. Em seguida vai-se
lembrando, e faz como se quisesse fugir dali, e dá um salto tão de repente, que cairia, se Jesus não
estivesse pronto para recebê-lo entre seus braços.
– Bom, bom! De que é que estás com medo? Olha, que sol bonito! Lá está o lago, lá está tua casa, aqui
está a mamãe, aqui o vovô.
– E a serpente?
– Não está mais aqui. Aqui estou Eu.
– Tu. Sim…
O menino ficou pensando… depois, com a voz da verdade inocente, ele diz:
– O vovô me dizia que eu te chamasse de ‘maldito’. Mas eu não te chamo assim. Eu te quero bem.
– Eu? Eu te disse isto? O pequeno está delirando. Não creias nele, Mestre. Eu sempre te respeitei.
O medo que está lhe desaparecendo, faz reaparecer a sua antiga natureza.
– As palavras têm e não têm valor. Eu as aprecio por aquilo que valem. Adeus, pequenino. Adeus,
mulher. Adeus, Eli. Procurai querer-vos bem, e querei bem a Mim, se o puderdes.
Jesus vira as costas e vai para a casa em que está hospedado.
161.5 – Por que, Mestre, não quiseste fazer um milagre espetacular? Devias ordenar ao veneno que saísse
do pequeno. Devias mostrar que eras Deus. Mas Tu apenas sugaste o veneno, coisa que qualquer pobre
homem pode fazer.
Judas Isacariotes não está contente. Queria algo de espetacular. Os outros também são do mesmo
parecer:
– Devias tê-lo esmagado, como a um inimigo, com o teu poder. Não percebeste? Logo voltou a soltar
veneno…
– Isso do veneno não tem importância. Mas pensai bem que, se Eu tivesse feito como vós quereis, ele
teria dito que Eu estava sendo ajudado por Belzebu. Em sua alma arruinada ainda pode admitir o meu
poder como médico. Não mais do que isso. O milagre só leva à fé àqueles que já estão a caminho dela. Mas
naqueles que não têm humildade — a fé prova sempre que existe humildade numa alma — leva à blasfêmia.
Por isso, é melhor evitar este perigo, e usar de recursos que tenham aparência humana. A miséria dos
incrédulos é uma miséria incurável. Nenhum dinheiro pode acabar com ela, por que nenhum milagre os
leva a crer, nem a serem bons. Mas isso para Mim não tem importância. Eu faço a minha tarefa. E eles
seguem a sua má sorte.
– Mas, por que o fizeste, então?
– Porque Eu sou a Bondade e para que não se possa dizer que Eu tenho sido vingativo com os inimigos e
provocador com os provocadores. Eu amontôo carvões sobre a cabeça deles. E eles mesmos mos oferecem
para que Eu lá os amontoe. Seja bom, Judas de Simão. Tu, procura não fazer como eles. E basta. Vamos
agora para a minha mãe. Ela ficará contente, ao saber que Eu curei um pequenino.
162. As conversões humanas
do fariseu Eli e de Simão de Alfeu.
13 de maio de 1945.
162.1 Do meio das hortaliças, que já estão começando a ficar muito viçosas por todos os lados, Jesus passa
para uma cozinha muito espaçosa, onde as duas Marias, já anciãs, (Maria de Cléofas e Maria Salomé) estão
cozinhando e preparando a ceia.
– A paz esteja convosco!
– Oh! Jesus! Mestre!
As duas mulheres se viraram para saudá-lo, tendo uma nas mãos um belo peixe, que ela estava
destripando, e a outra segurando ainda o caldeirão cheio de verduras, que estão sendo cozidas, e que ela
tinha acabado de tirar do gancho para ver em que ponto estava o cozimento. Os rostos delas, tranquilos e
cheios de rugas, aquecidos pelas chamas do fogo e pelo esforço no trabalho, estão sorridentes e alegres,
parecendo terem-se tornado mais jovens e belos, pela felicidade que sentem.
– Daqui a pouco estará pronto, Jesus. Estás cansado? Deves estar com fome –diz a tia Maria com uma
confiança de parenta, de quem ama Jesus, mais até do que aos seus próprios filhos.
– Não estou mais do que de costume. Mas certamente irei comer com prazer a boa comida que tu e
Maria me preparastes. Creio que os outros farão a mesma coisa. Ei-los que já vêm chegando.
– A mamãe está no quarto de cima. Sabes!… Simão chegou… Oh! Eu estou completamente contente
nesta tarde! Não. Completamente, não, porque… Tu sabes quando é que eu estaria completamente
contente.
– Sim, Eu sei.
Jesus puxa para perto de Si a tia, e a beija na fronte. E depois diz:
– Eu sei qual é o teu desejo e qual a tua inveja que, sem pecado, tens de Salomé. Mas chegará o dia em
que, como ela, poderás dizer: “Todos os meus filhos estão com Jesus.” 162.2Agora Eu vou à Mamãe.
Jesus sai, e sobe pela escadinha externa, chegando ao terraço, que está sobre a casa, cobrindo talvez a
metade dela, enquanto a outra metade está ocupada por um vasto salão, do qual estão vindo as vozes
grossas dos homens e, nos intervalos, a voz doce de Maria, a límpida voz virginal de menina, que os anos
não conseguiram fazer desafinar, aquela mesma voz que pronunciou as palavras: “Eis aqui a escrava do
Senhor”, e que depois cantou o canto de ninar para o seu Menino.
Jesus se aproxima, sem fazer barulho, sorrindo porque está ouvindo sua mãe dizer:
– A minha morada é o meu Filho. E não sinto pena por estar fora de Nazaré, a não ser quando Ele está
longe. Mas, se estiver perto de mim… oh! nada mais me falta. E também não me preocupo pela minha casa.
Porque aqui estais vós…
– Oh! Olha lá Jesus –grita Alfeu de Sara que, estando virado para a porta, é o primeiro a ver Jesus.
– Estou aqui, sim. A paz esteja com todos vós. Minha mãe!
Beija sua mãe na fronte, e por ela é beijado. Depois, vira-se para os hóspedes inesperados, que são o seu
primo Simão, Alfeu de Sara, o pastor Isaque e aquele José, que tinha sido acolhido por Jesus em Emaús[1],
depois do veredito do Sinédrio.
– Nós tínhamos ido para Nazaré, mas Alfeu nos disse que precisava vir aqui. Então, viemos. E Alfeu quis
acompanhar-nos, e Simão também –explica Isaque.
– Pareceu-me um sonho poder vir –diz Alfeu.
– E eu também queria te cumprimentar, estar um pouco contigo e com Maria –termina Simão.
– Eu estou muito contente por estar convosco. Fiz bem em não ficar mais tempo, como queriam os
habitantes de Kedeque, onde Eu tinha chegado, quando fui de Guerguesa até o Meron, passando pelo outro
lado.
– É de lá que estás vindo?
– Sim. Eu Me fiz ver nos lugares onde já tinha estado, e também em outros. Fui até Gíscala.
– Que caminhada!
– Mas também, que colheita! Sabes, Isaque? Fomos hóspedes do rabi Gamaliel. Ele foi muito bom.
Depois, encontrei-me com o sinagogo de Águas Belas. Ele também vem. Entrego-o aos teus cuidados. E
depois… adquiri três discípulos…
Jesus sorri abertamente, todo feliz.
– Quem são eles?
– Um velhinho, em Corozaim. Eu o ajudei por algum tempo, o pobrezinho, que é um verdadeiro israelita
sem prevenções, para mostrar-me o seu amor, preparou para Mim toda a região, como um perfeito arador
prepara o solo. O outro é um menino: tem cinco anos, ou pouco mais. É inteligente, corajoso. Também a ele
Eu tinha falado, desde a primeira vez que fui a Betsaida, e ele se recordou disso melhor do que os grandes.
O terceiro é um antigo leproso. Eu o curei perto de Corozaim, numa tarde, há já bastante tempo, e depois o
deixei. Agora o reencontrei como meu anunciador nos montes de Neftali. E, para confirmar as suas
palavras, ele costuma levantar os restos de suas mãos, curadas, mas parcialmente mutiladas, e mostra
também os seus pés curados, ainda que deformados, com os quais ele anda por tantas estradas. O povo
pode fazer uma ideia de quanto ele estava doente, ao vê-lo, e crê nas palavras dele, temperadas com suas
lágrimas de reconhecimento. Para Mim foi fácil falar por lá, porque havia alguém que já me havia tornado
conhecido, e persuadido os outros a crerem em Mim. Pude fazer muitos milagres. Tudo isso pode alcançar
quem crê de verdade…
Alfeu concorda sem falar, concorda continuamente movendo a cabeça, enquanto Simão inclina a fronte,
sob a repreensão que se subentende, e Isaque se alegra abertamente com a alegria do Mestre, que está
para contar o milagre operado, pouco, antes sobre o neto de Eli.
162.3 A ceia já está pronta, e as mulheres, com Maria, preparam a mesa no grande salão, levando os
pratos, e retirando-se depois para baixo. Ficam somente os homens, e Jesus faz o oferecimento, abençoa e
distribui as partes.
Poucos bocados haviam sido consumidos, quando Susana sobe para dizer:
– Chegou Eli com seus servos e muitos presentes. Mas ele gostaria de falar contigo.
– Vou imediatamente. Ou melhor, faze-o subir.
Susana vai, e volta pouco depois com o velho Eli, acompanhado de dois servos que vêm trazendo um
grande cesto. Atrás, as mulheres, menos a Virgem Maria, olham com curiosidade.
– Deus esteja contigo, meu Benfeitor –saúda o fariseu.
– E contigo também, Eli. Entra. Que queres? Ainda não está bem o netinho?
– Oh! Ele está muito bem. Pula no jardim como um cabrito. Mas eu estava tão atordoado, tão confuso,
que acabei faltando com o meu dever. Quero mostrar-te a minha gratidão e peço-te que não recuses a
ninharia que te ofereço. É um pouco de alimento para Ti e para os teus. São produtos dos meus campos. E
depois… eu gostaria… eu gostaria de convidar-te amanhã à minha mesa. Para dizer-te de novo os meus
agradecimentos e prestar-te uma honra, em meio aos meus amigos. Não recuses, Mestre. Senão, eu ficaria
pensando que não me amas e que, se curaste Eliseu, foi só por amor a ele, não a mim.
– Eu te agradeço. Mas não eram necessários os presentes.
– Todos os grandes e doutos aceitam. É o costume.
– Eu também. 162.4Só que há um presente que Eu aceito de muito boa vontade e até procuro.
– Qual é? Dize-o. Se eu puder, te darei.
– O vosso coração. O vosso pensamento. Dai-me. Para o vosso bem.
– Mas eu tos consagro, Jesus bendito. Será que poderás duvidar disto? Eu tenho cometido… sim… tenho
cometido injustiças para contigo. Mas agora compreendi. Fiquei sabendo também da morte de Doras, que
te ofendeu… Por que é que estás sorrindo, Mestre?
– Porque eu estava me lembrando de uma coisa.
– Pensei que não estivesses acreditando no que estou dizendo.
– Oh! Não. Eu sei que ficaste comovido com a morte de Doras. Mais ainda do que com o milagre desta
tarde. Mas, não tenhas medo de Deus, se realmente chegaste a compreender, e se realmente queres, de
agora em diante, ser meu amigo.
– Vejo que és realmente um profeta. Eu, realmente, estava mais é com medo… e vinha a Ti mais por
medo de um castigo igual ao de Doras do que pela desventura. Nesta tarde eu disse: “Aí está. O castigo
chegou. E ainda mais atroz, porque veio ferir, não o velho carvalho em sua própria vida, mas em seu afeto,
em sua alegria de viver, fulminando o meu carvalhinho, que me fazia feliz.” Cheguei a compreender que
teria sido justo, como foi para Doras…” Chegaste a compreender que teria sido justo. Mas ainda não
acreditavas em quem é bom.
– Tens razão. Mas agora não sou mais assim. Eu compreendi.
162.5 Irás, então, à minha casa amanhã?
– Eli, Eu havia resolvido partir amanhã, ao romper da aurora. Mas, para que não fiques pensando que Eu
te desprezo, vou adiar um dia. Amanhã estarei em tua casa.
– Oh! És bom de verdade. Eu me lembrarei sempre disso.
– Adeus, Eli. Obrigado por tudo. Tuas frutas são muito bonitas, e estes pequenos queijos devem estar
amanteigados, e o vinho deve ser ótimo. Mas tu podias dar tudo aos pobres em meu nome.
– Aí dentro, há também para eles, se assim queres. Está no fundo, por debaixo de tudo. A oferta era para
Ti.
– Isto, então, vamos distribui-lo amanhã juntos, antes ou depois da refeição. Que a noite te seja
agradável, Eli.
– E a Ti também. Adeus –e ele vai-se embora com os seus servos.
Pedro, que tirou tudo o que estava na cesta para poder entregá-la aos servos, revelando em seu rosto
toda espécie de impressões, pega a bolsa e a põe sobre a mesa, diante de Jesus, e diz, como para terminar o
seu discurso interior:
– Será esta a primeira vez que aquela velha coruja faz uma esmola.
– É verdade –confirma Mateus–. Eu era avarento, mas ele era mais do que eu. Dobrou as suas posses
com a usura.
– Mas,… Se ele se corrige… É uma bela coisa, não e mesmo? –diz Isaque.
– É uma bela coisa, certamente. Parece que é mesmo –concordam Filipe e Bartolomeu.
– O velho Eli convertido! Ah! Ah!
Pedro ri com prazer.
162.6 O primo Simão, que ficou o tempo todo pensativo, diz:
– Jesus, eu gostaria… de acompanhar-te. Não como estes. Mas, pelo menos como as mulheres. Deixa que
eu me una à minha mãe e à tua. Todos vão a Ti… e eu, eu que sou um parente… Não pretendo ter um lugar
entre estes. Mas, pelo menos, como um bom amigo…
– Deus te abençoe, meu filho! Há quanto tempo eu esperava esta palavra de ti –grita Maria de Alfeu.
– Vem. Eu não rejeito a ninguém, nem forço ninguém. Também não exijo tudo de todos. Tomo o que me
podeis dar. É bom que as mulheres não estejam sempre sozinhas, quando sairmos por regiões que, para
elas, são desconhecidas. Obrigado, meu irmão.
– Eu vou contá-lo a Maria –diz a mãe de Simão.
E termina dizendo:
– Ela está lá em baixo, no seu quartinho, rezando. Ficará bem alegre com esta notícia.
162.7 … A tarde vem chegando rápida. Acende-se uma luz para se poder descer pela escada, que já está
ficando escura com o crepúsculo, e uns vão para a direita, outros para a esquerda, descansar.
Jesus também sai, e vai para a beira do lago. A cidade está toda parada, as ruas desertas, como também
a beira do lago, e o próprio lago está “despovoado”, nesta tarde sem luar. Só se vêem as estrelas no céu e
só se ouve o barulho da ressaca espraiando-se na areia. Jesus entra na barca, que foi puxada para a beira,
assenta-se, põe um braço sobre a borda, sobre ele inclina a cabeça, ficando assim. Não sei se Ele está
pensando ou rezando.
Com muito cuidado, aproxima-se dele Mateus:
– Mestre, estás dormindo? –pergunta-lhe em voz baixa.
– Não. Estou pensando. Fica comigo, já que não estás dormindo.
– Parecias-me perturbado, e vim te acompanhando. Não estás contente com o trabalho de hoje? Tocaste
o coração de Eli, adquiriste como discípulo Simão de Alfeu…
– Mateus, tu não és simples como Pedro e João. Tu és astuto, és instruído. Sejas também sincero. Sentir-
te-ias feliz com estas conquistas?
– Mas…Mestre… Eles são sempre melhores do que eu, e Tu me disseste naquele dia, que estavas muito
feliz por eu ter me convertido…
– Sim. Mas tu estavas realmente convertido. E eras sincero em tua evolução para o Bem. Vinhas a Mim
sem todo aquele trabalho de pensamento, vinhas por vontade do teu espírito. Com Eli não é assim… nem
com Simão. O primeiro foi tocado apenas na superfície: é o homem-Eli, que foi abalado. Não é o espírito-Eli.
Aquele é sempre igual. Quando cair a efervescência que o milagre de Doras e do netinho produziu nele,
será de novo o Eli de antes e de sempre. Simão!… Simão, ele também não é outra coisa senão um homem.
Se me tivesse visto sendo insultado, em vez de exaltado, teria tido dó de Mim, mas teria me abandonado,
como sempre. Nesta tarde, ele percebeu que um velhinho, um menino e um leproso sabem fazer o que ele,
que é meu parente, não sabe; ele viu que o orgulho de um fariseu curvou-se diante de Mim, e decidiu: “Eu
também.” Mas não são essas conversões, acontecidas sob o estímulo de considerações humanas, que me
fazem feliz. Pelo contrário, elas até me aviltam. 162.8 Fica comigo, Mateus. No céu não há luar, mas pelo
menos as estrelas estão brilhando. Em meu coração, nesta tarde, não há mais do que lágrimas. Que a tua
companhia seja a estrela do teu aflito Mestre…
– Mas, Mestre, imagina só… se eu posso! É que eu sou um grande infeliz, sempre, um pobre inepto.
Pequei demais, para que possa agradar-te. Não sei falar. Não sei ainda falar as palavras novas, puras,
santas, agora que eu deixei a minha antiga linguagem de fraude e de luxúria. E tenho medo de que nunca
seja capaz de falar contigo e sobre Ti.
– Não, Mateus. Tu és o homem com toda a tua penosa experiência de homem. És, pois, como alguém
que, por ter comido lama, e comendo agora o mel celeste, podes dizer quais são os dois sabores e dar deles
a verdadeira análise e compreender, compreender e fazer compreender aos teus semelhantes de agora e do
futuro. Acreditarão em ti, porque de fato és o homem, o pobre homem que, por sua vontade, torna-se o
homem, o homem justo sonhado por Deus. Deixa que Eu, o Homem-Deus, me apoie em ti, humanidade que
Eu amo, a ponto de deixar o Céu por ti e morrer por ti.
– Não. Morrer, não. Não digas que morres por mim!
– Não por ti, Mateus, mas por todos os Mateus da terra e dos séculos. Abraça-me, Mateus, beija o teu
Cristo, por ti e por todos. Alivia a meu cansaço de Redentor incompreendido. Eu te aliviei do teu cansaço de
pecador. Enxuga o meu pranto… por ser assim tão pouco compreendido, Mateus, esta é que é a minha
amargura.
– Oh! Senhor! Sim! Sim!…
E Mateus, sentado ao lado do Mestre, que ele cinge com um braço, consola-o com o seu amor…
[1] em Emaús, no episódio de 140.4/6
163. À mesa na casa do fariseu
Eli de Cafarnaum falam sobre impostos.
14 de maio de 1945.
163.1 Há muito que fazer hoje na casa de Eli. Os servos e as servas vão e vêm, e, entre eles, como um
menino buliçoso, está o pequeno Eliseu. Depois aparecem duas, e a seguir mais duas personagens
pomposas, das quais as duas primeiras reconheço serem aquelas que foram com Eli à casa de Mateus, e as
outras duas, não conheço. Mas estou ouvindo que são chamadas de Samuel e Joaquim. Por último, vem
Jesus, e Iscariotes.
Há grandes saudações recíprocas e depois é feita esta pergunta:
– Só este? E os outros?
– Os outros estão pelas campinas. Voltarão à tarde.
– Oh! Isto me desagrada. Eu pensava que seria… Olha, ontem à tarde, só convidei a Ti, mas pensava a
todos os teus. Agora estou com medo de que eles possam sentir-se ofendidos ou que sintam desinteresse de
virem à minha casa, por causa de aborrecimentos passados… ah! ah!
E o velho dá uma risada…
– Oh! não! Os meus discípulos não tem susceptibilidades orgulhosas, nem rancores incuráveis.
– Bom. Está bem. Muito bem. 163.2Então, vamos entrar.
O cerimonial é o de costume, com as purificações, e depois se dirigem para a sala do banquete, aberta
para um grande pátio, onde as primeiras rosas já estão dando uma nota de alegria.
Jesus acaricia o pequeno Eliseu, que está brincando no pátio e que do perigo que passou não guarda
nada mais do que os quatro sinaizinhos vermelhos na pequena mão. Ele já não se lembra mais do antigo
medo, mas se lembra de Jesus, e quer beijá-lo e ser beijado, com aquela espontaneidade própria das
crianças. Com os braços estendidos para o pescoço de Jesus, fala-lhe em segredo, através dos cabelos, e lhe
diz que, quando ficar grande, irá com Ele, perguntando-lhe:
– Tu me queres?
– Eu quero todos. Sê bom, e virás comigo.
O menino sai dali dando seus pulinhos.
Assentam-se à mesa, e Eli quer fazer tudo tão bem feito, que põe Jesus ao seu lado, e do outro lado
Judas, ficando este, então, entre Eli e Simão, enquanto Jesus fica entre Eli e Urias.
163.3 A refeição começa. No princípio a conversação ainda não tem um rumo determinado. Mas depois vai-
se tornando mais interessante. E, como as feridas doem e as correntes pesam, logo se apresenta o antigo
assunto da escravidão imposta por Roma à Palestina. Tudo isso, não sei se foi feito de propósito, ou se com
má intenção. Só sei que os cinco fariseus estão a lamentar-se das novas opressões romanas, como se elas
fossem um sacrilégio, e querem que Jesus participe da discussão.
– Compreendes! Eles querem perscrutar até o fim a nossa receita! E, visto que já compreenderam que
nós nos reunimos nas sinagogas para tratar disso e falar deles, eles nos estão ameaçando, dizendo que vão
entrar nelas, sem respeito algum. Eu temo que um dia destes, ainda vão entrar nas casas dos sacerdotes! –
grita Joaquim.
– E Tu, que dizes? Não ficas aborrecido com isto? –pergunta Eli.
Jesus, assim diretamente interpelado, responde:
– Como israelita, sim; como homem, não.
– Por que esta distinção? Eu não entendo. És tu dois em um?
– Não. Mas em Mim há a carne e há o sangue; que é o animal. Mas há também o espírito. O espírito de
israelita que obedece à Lei, sofre com essas profanações. Mas a carne e o sangue não, porque a Mim falta o
ferrão, que a vós vos fere.
– Qual é?
– O interesse. Vós dizeis que nas sinagogas vos reunis para tratar também de negócios, sem o temor de
ouvidos indiscretos. E estais com medo de não poderdes fazer mais assim, e por isso tendes medo de não
poderdes esconder nem mesmo um centavo do fisco e de receberdes dele uma taxação na proporção exata
do que possuis. Eu não tenho nada. Vivo da bondade do próximo, e amando o próximo. Não tenho ouro, nem
campos, não tenho vinhedos nem casas, a não ser a pequena casa materna de Nazaré, tão pequena e pobre,
que dela o fisco nem toma conhecimento. Por isso é que não me preocupa o medo de ser apanhado em
mentira de denúncia, nem taxado, nem punido. Tudo o que Eu tenho é a Palavra de Deus, que a Mim foi
dada, e que Eu dou. Mas ela é uma coisa tão alta, que o homem não pode atacar de modo algum.
163.4 – Mas, se estivesses em nosso lugar, como agirias?
– Aí está: não me leveis a mal por isso, se Eu vos disser meu pensamento, que está tão em contraste com
o vosso. Em verdade, Eu vos digo que agiria de modo diferente.
– E como agirias?
– Não ofendendo a santa verdade. Ela é sempre uma virtude sublime, mesmo quando aplicada às coisas
humanas, como são os impostos.
– Ora! Mas, ora então! Como iríamos ser depenados! Mas Tu não refletes que temos muito, e deveríamos
pagar muito!
– Vós o dissestes: Deus vos deu muito. E, em proporção, deveis pagar muito Por que agir tão mal, como
infelizmente acontece, que o pobre tenha que ser cobrado desproporcionalmente? Entre nós isso é
praticado. Quantos impostos há em Israel, impostos nossos, e injustos! Eles são bons para os grandes, que
já possuem muito. Mas eles são o desespero dos pobrezinhos, que devem pagá-los, apertando seus cintos
até à fome. A caridade para com o próximo não aconselha isto. O nosso cuidado de israelitas deveria ser o
de pôr os nossos ombros debaixo do peso que oprime o pobre!
– Falas assim, porque Tu também és pobre!
– Não, Urias. Falo assim, porque essa é a justiça. Por que é que até Roma pôde, e continua ainda oprimir
assim? Porque pecamos, e estamos separados por ódio uns dos outros. O rico odeia ao pobre, o pobre odeia
o rico. Porque não há justiça, é que o inimigo se aproveita, fazendo de nós seus escravos.
– Tu te referiste a outros motivos… Quais outros?
– Eu não faltaria à verdade, desfigurando o caráter sagrado do lugar destinado ao culto, para fazer dele
um refúgio seguro, onde tratar de coisas humanas.
– Estarás fazendo uma censura a nós?
– Não. Estou dando uma resposta. E vós, escutai a vossa consciência. Sois Mestres? Então…
163.5 – Eu diria que está na hora de nos sublevarmos, de punirmos o invasor e restabelecer o nosso reino.
– Bravo! É verdade. Tens razão, Simão. Mas aqui está o Messias. Ele é que deve fazer isso –responde Eli.
– Mas o Messias até agora — perdoa, Jesus — tem sido só Bondade. Ele aconselha tudo, menos uma
revolta. Nós a faremos, e…
– Simão, escuta. Lembra-te do livro dos Reis?[2] Saul estava em Gálgala, e os filisteus em Macmas. O
povo estava com medo, e já ia debandando, e o profeta Samuel não chegava. Saul quis, então, tomar o lugar
do Servo de Deus, e fazer por si mesmo o sacrifício. Lembra-te da resposta dada por Samuel, que estava
acabando de chegar, ao imprudente rei Saul: “Agiste como um estulto, e não observaste as ordens que o
Senhor te havia dado. Se não tivesses feito isso, a esta hora o Senhor já teria estabelecido para sempre o
teu reino sobre Israel. Mas agora não subsistirá nunca mais o teu reino.” Uma ação intempestiva e
orgulhosa não ajudou nem ao rei nem ao povo. Deus sabe a hora. Não o homem. Deus sabe os meios, não o
homem. Deixai que Deus aja, procurai merecer a sua ajuda com um procedimento santo. O meu Reino não é
de rebelião e ferocidade. Mas ele se estabelecerá. Não será reservado a uns poucos. Mas será universal.
Felizes os que vierem para ele, não induzidos ao erro por minha aparência de fraqueza, conforme o modo
de ver da terra, e reconhecerem em Mim o Salvador. Não tenhais medo. Eu serei Rei. O Rei que veio de
Israel, o rei que estenderá o seu Reino sobre a humanidade toda. Mas vós, Mestres de Israel, não
interpreteis mal as minhas palavras nem a dos profetas que anunciavam a minha vinda. Nenhum reino
humano, por poderoso que seja, é universal e eterno. Os profetas no entanto dizem que o meu reino será
assim. Que isto vos ilumine quanto à verdade e espiritualidade do meu reino. 163.6Eu vou deixar-vos. Mas
tenho um pedido a fazer a Eli. Aqui está a tua bolsa. Em um abrigo de Simão de Jonas estão alguns pobres
vindos de toda parte. Vem comigo dar-lhes o óbulo do amor. A paz esteja com todos vós.
– Por favor fique mais! –pedem-lhe os fariseus.
– Não posso. Há doentes da carne e do coração que me esperam para serem consolados. Amanhã irei
para longe. Quero que todos me vejam partir, sem ficarem decepcionados.
– Mestre,… estou velho e cansado. Vai Tu em meu nome. Tens contigo Judas de Simão, que nós
conhecemos bem… Faze-o por Ti mesmo. Deus esteja contigo.
Jesus sai com Judas que, ao chegar à praça, disse:
– Velha víbora! Que terá ele querido dizer?
– Não penses assim. Ou melhor, pensa que ele tenha querido elogiar-te.
– E impossível, Mestre! Bocas como aquela não louvam nunca a quem faz o bem. Quero dizer,não louvam
nunca com sinceridade. Quanto ao ir!…É porque ele tem nojo dos pobres e medo da maldição deles. Ele
torturou tantas vezes os pobres daqui. Isto eu posso jurar sem medo. Portanto…
– Bom, Judas. Bom. Deixa o julgamento para Deus.
[2] do livro dos Reis, a citação é tirada de: 1 Samuel 13,1-14.
164. O retiro sobre o monte para a eleição apostólica.
15 de maio de 1945.
[…]
164.1 Parecem que as barcas de Pedro e de João estão velejando sobre o lago tranquilo, acompanhadas por
todas as embarcações que estavam à margem em Tiberiades. As barcas e barquinhas são em grande
número, que vão e vêm, procurando alcançar, ou até ultrapassar a barca de Jesus, para depois, colocarem-
se atrás dela. Sobre as ondas azuis cruzam-se orações, súplicas, clamores e pedidos.
Jesus, em sua barca, leva também Maria e a mãe de Tiago e Judas, enquanto na outra barca, com o filho
João, estão também Maria Salomé e Susana. Jesus está prometendo, respondendo e abençoando
incansavelmente:
– Eu voltarei. Sim. Eu vo-lo prometo. Sede bons. Lembrai as minhas palavras, para uni-las às que vos
direi depois. Será uma breve separação. Não sejam egoístas. Eu vim para os outros também. Bons! Sede
bons. Senão faríeis mal a vós mesmos. Sim. Rezarei por vós. O Senhor esteja convosco. Certamente, Eu vou
me lembrar do teu pranto, serás consolado. Espera, tem fé!
E assim, seguindo para a frente, com Ele abençoando e prometendo, a barca já vai se aproximando da
beira. Aqui não é Tiberíades, mas um lugarejo bem pequeno, um punhado de casas pobres e quase
abandonadas. Jesus e os seus descem as barcas que voltam por onde vieram, levadas pelos empregados de
Zebedeu. As outras barcas também as imitam, e muitos resolvem descer aqui e, a todo custo, querem
acompanhar Jesus. Entre eles estou vendo Isaque com seus dois protegidos, José e Timoneu. Não reconheço
outros entre os muitos de todas as idades, desde adolescentes, até velhos.
164.2Jesus se retira do lugarejo, o qual fica indiferente a tudo, pois seus habitantes, além de serem
poucos, são também muito maltrapilhos. Jesus manda que lhes sejam dadas algumas esmolas, e depois se
dirige para a estrada mestra. Ele para e diz:
– Agora separemo-nos. Mãe, tu com Maria e Salomé, vão para Nazaré. Susana pode voltar para Caná. Eu
estarei de volta logo. Sabeis o que tendes a fazer. Deus esteja convosco!
Mas para sua mãe, Jesus tem uma saudação especial, com um grande sorriso, também, quando Maria se
ajoelha, dando o exemplo às outras, para ser abençoada, Jesus sorri com grande doçura. As mulheres, com
as quais estão Alfeu de Sara e Simão, vão indo para a sua cidade.
Jesus se vira para os que ficaram:
– Eu vos deixarei. Mas, não vos mando embora. Deixo-vos por algum tempo., Vou me afastar com estes
para aqueles desfiladeiros, que estais vendo adiante. Quem quiser me esperar, me espere nesta planície.
Quem não quiser, volte para casa. Eu vou afastar-me para orar, porque estamos em vésperas de grandes
coisas. Quem ama a causa do Pai, ore, unindo-se a Mim em espírito. A paz esteja convosco, meus filhos.
Isaque, tu sabes o que deves fazer. Eu te abençôo, ó pequeno pastor.
Jesus sorri para o descarnado Isaque, agora pastor de homens que se reúnem ao redor dele.
164.3Jesus caminha agora de costas para o lago, e se dirige firmemente para uma garganta, entre as
colinas que vão do lago para o oeste, em linhas quase paralelas. Entre uma e outra daquelas colinas
rochosas e escabrosas, que se abrem verticalmente como um fiorde, desce um pequeno riacho de águas
espumosas que vai fazendo um grande barulho. Acima aparece a montanha agreste, com árvores que
cresceram por todos os lados, como puderam, entre uma pedra e outra. Uma trilha de cabras é o que se vê
na mais escabrosa das colinas. E é por esta que Jesus vai-se enveredar.
Os discípulos o acompanham com dificuldade, em fila indiana e no mais absoluto silêncio. Só quando
Jesus para, a fim de que possam tomar fôlego em algum lugar um pouco mais cômodo do que a trilha, que
mais parece um arranhão naquela encosta intransitável, só então é que eles olham um para o outro, sem
nada dizerem. Mas os seus olhares parecem estar dizendo: “Para onde será que Ele nos vai levar?” Mas não
falam nada. Só se olham uns para os outros, e cada vez mais desconsoladamente, quanto mais veem que
Jesus recomeça sempre a andar por aquela garganta selvagem, cheia de cavernas, de fendas, cheia de
grandes pedras soltas sobre as quais é difícil andar, tanto por conta das pedras, como também por conta
dos espinheiros e de muitas outras árvores, que agarram-lhes as roupas de todos os lados, e os arranham,
fazendo que levem topadas, quando os ramos batem em seus rostos. Até os mais jovens, que estão levando
pesadas bolsas, já perderam o bom humor.
164.4 Enfim, Jesus para, e diz:
– Aqui vamos ficar durante uma semana em oração, a fim de preparar-vos para uma grande coisa. Por
isso quis isolar-me assim em um lugar deserto, longe das rotas dos caravaneiros e das cidades. Por aqui há
cavernas que noutros tempos serviram aos homens. Vão servir agora também para nós. Por aqui há águas
frescas e abundantes e o terreno é enxuto. Temos pão e comida suficientes para o tempo em que aqui
ficarmos. Aqueles que no ano passado estiveram comigo no deserto sabem o que passei. Aqui é um palácio
real, em comparação àquele lugar. E a estação, que agora já é boa, livra a estadia da aspereza da geada e
do sol. Procurai, pois, permanecer aqui de boa vontade. Talvez nunca mais ficaremos assim juntos e
sozinhos. Esta parada aqui deve servir para vos unir, fazendo de vós, não mais doze homens, mas uma só
instituição.
Não dizeis nada? Não me perguntais nada? Colocai sobre aquela pedra os pesos que viestes carregando,
e jogai pelo vale abaixo aquele outro peso que estais sentindo no coração: o da vossa humanidade. Eu vos
trouxe até aqui para falar ao vosso espírito, para alimentar o vosso espírito e tornar-vos espirituais. Não vou
falar muitas palavras: já vos falei muito, no correr desse ano, que passei convosco! Agora basta. Se tivesse
que transformar-vos com a palavra, precisaria deter-vos dez ou cem anos, e continuaríeis a ser sempre
imperfeitos. Agora é tempo de Eu me servir de vós. Para servir-me de vós, Eu preciso formar-vos. Então,
vou recorrer ao grande remédio, à grande arma, que é a oração. Eu sempre rezei por vós. Mas agora quero
que rezeis por vós mesmos. Por enquanto não vos vou ensinar a minha oração. Mas vos faço conhecer o
modo como se há de rezar, e o que é a oração. Ela é uma conversação dos filhos com o Pai, de espíritos com
o Espírito: é uma conversação aberta, fervorosa, confiante, recolhida e sincera. A oração é tudo: é
confissão, é conhecimento de nós mesmos, é chorar sobre nós mesmos, é uma promessa feita a nós mesmos
e a Deus, é um pedido a Deus, tudo isso feito aos pés do Pai. Não se pode fazer isso no meio de grande
barulho, nem no meio das distrações, a não ser que já sejais uns gigantes na oração. Mesmo os gigantes
sofrem o impacto do barulho do mundo nas suas horas de oração. Vós não sois gigantes, sois pigmeus. Sois
crianças no espírito, deficientes do espírito. Aqui chegareis à idade da razão espiritual. O resto virá depois.
De manhã, ao meio-dia e à tarde nos reuniremos para rezar juntos, dizendo as antigas palavras de
Israel, e para partirmos o pão, depois do que cada um voltará para a sua gruta, ficando diante de Deus e de
sua alma, diante de tudo o que Eu disse sobre a vossa missão e vossa capacidade.
Avaliai-vos, auscultai-vos e decidi. É a última vez que vo-lo digo. Depois, devereis ser perfeitos, o quanto
puderdes, sem cansaços nem fraquezas humanas. Depois disso, já não sereis mais Simão de Jonas e Judas
de Simão. Não sereis mais André ou João, Mateus ou Tomé. Mas sereis os meus ministros. Ide. Cada um por
si. Eu vou ficar naquela gruta. Estarei sempre lá. Mas, não vades a ela, sem uma razão séria. Deveis
aprender a agir por vós mesmos e a ficar sozinhos. Porque, em verdade Eu vos digo, há um ano estávamos
ainda para nos conhecermos, e dentro de dois estaremos para nos separarmos. Ai de vós e ai de Mim, se
não tiverdes aprendido a agir por vós mesmos. Deus esteja convosco. Judas e João, levai para dentro da
minha gruta, aquela ali, os mantimentos. Eles devem durar até o fim do tempo, e Eu é que os distribuirei.
– Eles não vão bastar!… –objeta alguém.
– Eles são suficientes para não morrermos. O ventre cheio demais torna o espírito pesado. Eu quero vos
elevar, e não fazer de vós lastro de navio.
165. A eleição dos doze apóstolos.
16 de maio de 1945.
165.1 Há uma aurora embranquecendo os montes que parece suavizar esta encosta selvagem,, na qual a
única voz é apenas o pequeno rio, que espuma lá no fundo do vale, e sua voz, repercutindo por aqueles
montes cheios de cavernas, produz um ruído muito singular. Ali, no lugar em que os discípulos fizeram sua
parada, não há mais do que um ou outro sussurro cauteloso pelo meio da folhagem e do mato: são os
primeiros passarinhos, que despertam e os últimos animais noturnos, que estão voltando para suas tocas.
Um grupo de lebres ou coelhos selvagens, que estavam roendo uma touceira baixa de amoreira, fogem
amedrontados pela queda de uma pedra. Depois, voltam com cuidado, movendo suas orelhas para poderem
captar todos os sons e, uma vez que tudo já está em paz, voltam para a sua touceira. O orvalho deu um
banho em todas as copas das árvores, em todas as pedras, e agora o bosque recende com o cheiro do
musgo, do poejo e da manjerona.
Um pintarroxo desce até a borda de uma caverna, para a qual serve de coberta uma saliência da pedra
que se projeta no ar. Movendo sua cabecinha, bem aprumado sobre duas patinhas de seda, está prestes a
fugir: olha para dentro da caverna, olha para o chão, dá um dos seus chip-chips, como se estivesse fazendo
uma pergunta, como quem está com vontade de ir apanhar algumas migalhas de pão, que vê lá em baixo.
Mas não se sente com coragem de descer, enquanto não vê chegar e descer um grande melro que desce à
sua frente, pulando meio enviesado, ridículo no seu jeito de menino travesso e no seu perfil de velho
tabelião ao qual, para ficar mais parecido, só faltam os óculos. Só então, desce também o pintarroxo,
colocando-se atrás do corajoso senhor melro que, com seu bico amarelo, dá bicadas na terra úmida, numa
pesquisa… arqueológica de algo que se possa comer. Depois continua, tendo antes dado um tchop, ou um
breve assobio, como fazem os moleques. O pintarroxo está se empanturrando com migalhas de pão e fica
assombrado, ao ver que o melro, tendo entrado sem perigo na caverna silenciosa, sai de lá com um pedaço
de casca de queijo, que ele bate e rebate sobre uma pedra para esmigalhá-la, fazendo um verdadeiro
banquete. Em seguida, volta para dentro, olha por toda parte, e não encontrando nada mais, dá um assobio
zombeteiro,indo embora, voando, para ir terminar o seu canto no alto de um carvalho, que mergulha sua
copa no azul da manhã. Então, o pintarroxo também voa, por causa de um barulho ouvido no fundo da
caverna, indo pousar num ramo fino, isolado no ar.
165.2 Jesus vai até a entrada da caverna e fica esmigalhando pão, chamando baixinho os passarinhos, com
um assobio modulado, que imita muito bem o pipilar deles. Depois, Ele se afasta dali, subindo um pouco,
para ficar encostado numa parede rochosa, para não espantar os seus amigos, que logo começam a descer:
primeiro, o pintarroxo, e depois muitos outros, de várias espécies. A imobilidade em que ficou Jesus, e
também o seu olhar (eu gosto de pensar assim, porque sei por experiência que os animais, até os mais
desconfiados, aproximam-se das pessoas que eles, por instinto, percebem que não são suas inimigas, mas
protetoras) e fazem com que pouco a pouco, fiquem perto de Jesus, a poucos centímetros. Os passarinhos
mais novos já estão dando pulinhos, e o pintarroxo, já saciado, voa para cima da pedra, à qual Jesus está
apoiado e se agarra a um ramo muito fino de clematite, para se balançar sobre a cabeça de Jesus, com
muita vontade de descer sobre aquela cabeça loura, ou sobre os ombros dele.
O banquete terminou. O sol doura o pico do monte e depois também os ramos mais altos da mata,
enquanto, embaixo, no vale, tudo está ainda na luz pálida da aurora. Os passarinhos estão voando, alegres e
satisfeitos, ao sol, e cantando com todas as suas pequenas gargantas.
165.3 – E agora vamos despertar estes outros meus filhos –diz Jesus, desce, da sua caverna que está mais
no alto, e entra em uma a uma das grutas, chamando por nome, os doze adormecidos.
Simão, Bartolomeu, Filipe, Tiago e André respondem, imediatamente. Mateus, Pedro e Tomé tardam um
pouco a responder, enquanto que Judas Tadeu já vai ao encontro de Jesus, já bem desperto e pronto, logo
que O vê chegar à sua soleira. O outro primo, Iscariotes e João, estão ainda dormindo pesadamente, a ponto
de Jesus precisar sacudi-los em suas camas de folhas, para acordarem.
João, o último que foi chamado, está dormindo tão profundamente, que nem reconhece quem é que o
está chamando, e por entre as névoas do sono, já meio interrompido, diz em voz baixa: “Sim, mamãe. Eu já
vou…” Mas depois vira-se para o outro lado.
Jesus sorri, assenta-se sobre o tosco enxergão, feito com folhas apanhadas pelo bosque, inclina-se e
beija na face seu João, que só então abre os olhos, e fica pasmado ao ver Jesus ali. Num instante, ele se
assenta, e diz:
– Estás precisando de mim? Aqui estou.
– Não. Eu te despertei, como a todos os outros. Mas tu pensaste que Eu era a tua mãe. Então, Eu te
beijei, para fazer como fazem as mães.
João, seminu, com sua túnica curta, pois usou a túnica longa e a capa para servirem de coberta, agarra-
se ao pescoço de Jesus, e esconde sua cabeça entre o ombro e a face dele, dizendo:
– Oh! Bem que Tu és mais do que mãe! Deixei-a por causa de Ti. Mas a Ti eu não deixaria por ela. Ela
me deu à luz para este mundo. Mas Tu me dás à luz para o Céu. Eu sei!
165.4 – Que é que sabes mais do que os outros?
– Aquilo que o Senhor me disse nesta caverna. Vê, eu nunca fui a Ti, e acho que os companheiros devem
ter dito que isso era indiferença e soberba. Mas o que pensam eles, não me importa. Sei que Tu sabes a
Verdade. Eu não vinha a Jesus Cristo, o Filho de Deus Encarnado, mas, sim, ao que Tu és no seio do Fogo, o
Amor Eterno da Trindade Santíssima, a sua Natureza, a sua Essência, a sua Verdadeira Essência — oh! eu
nem sei dizer tudo o que pude compreender nesta sombria e escura gruta, que para mim se tornou tão
cheia de luz, nesta fria caverna na qual fui queimado por um fogo que não se vê, que desceu até às
profundezas do meu ser, e as incendiou, como em um doce martírio, aqui neste antro silencioso, que cantou
para mim as verdades celestes[3] —. Tu és a segunda Pessoa do inefável mistério, que é Deus, no qual eu
penetro, porque o próprio Deus aspirou-me e eu o tive sempre comigo. Todos os meus desejos, todos os
meus prantos, todos os meus pedidos, derramei-os sobre o teu seio divino, ó Verbo de Deus! E nunca houve
palavra, entre as muitas que de Ti ouvi, vasta, como aquela que me disseste aqui, Tu, Deus Filho; Tu, Deus
como o Pai; Tu, Deus como o Espírito Santo; Tu, que és o centro da Trindade… oh! talvez eu esteja
blasfemando! mas, assim me parece, porque, se não fosses o Amor do Pai e o Amor ao Pai, então ficaria
faltando o Amor, o Divino Amor, e a Divindade já não seria trina, pois lhe faltaria o mais conveniente dos
atributos de Deus: o seu amor! Oh! Tenho tantas coisas aqui, mas que são como a água que borbulha contra
uma barragem, e não pode sair… parece-me quase morrer tão violento e sublime é o tumulto, que me
desceu ao coração desde que Te compreendi… mas por nada do mundo quereria perdê-lo… Faz-me morrer
deste amor, meu doce Jesus.
João sorri e chora, todo ofegante, inflamado do seu amor, abandonado sobre o peito de Jesus, como se
aquela chama o tivesse fatigado. E Jesus o acaricia, ardendo de amor, por sua vez.
João volta a si, debaixo de uma onda de humildade, que o faz suplicar:
– Não digas aos outros o que eu Te disse. Certamente eles também terão sabido viver de Deus, como eu
vivi nestes dias. Mas, põe sobre o meu segredo a pedra do silêncio.
– Fica tranquilo, João. Ninguém ficará sabendo de tuas núpcias com o Amor. Vai vestir-te, e vem cá.
Devemos partir.
165.5 Jesus vai saindo pela trilha na qual já estão os outros. Os rostos deles já estão com um aspecto mais
venerável, mais recolhido. Os mais velhos parecem uns patriarcas, os jovens tem um ar de maturidade, de
jovens dignos de respeito, que a juventude antes escondia. Iscariotes olha para Jesus com um tímido
sorriso, com um rosto marcado pelo choro. Jesus, ao passar, o acaricia. Pedro… nada fala. Está tão estranho
em sua pessoa, que só isso causa mais admiração do que qualquer outra mudança. Ele olha atentamente
para Jesus, mas com uma dignidade nova, que parece tornar mais ampla a sua fronte já um pouco calva, e
seus olhos estão mais severos, quando até então haviam sido um continuo lampejar de chistes. Jesus o
chama para perto de Si, enquanto espera João que, finalmente, vem vindo com um rosto, que eu não sei
dizer se está mais pálido ou mais corado, mas certamente aceso por um fogo que não chega a mudar a cor,
mesmo se presente. Todos olham para ele.
– Vem cá, João, perto aqui de Mim. E tu também, André, e tu, Tiago de Zebedeu. Depois tu, Simão, e tu,
Bartolomeu, Filipe, vós, meus irmãos, e Mateus. Judas de Simão, aqui na minha frente. Tomé, vem cá.
Sentai-vos. Eu preciso falar-vos.
Eles se assentam, tranquilos como crianças, todos um pouco absortos em seu mundo interior, e também
atentos a Jesus, como nunca antes.
165.6 – Sabeis o que Eu vos fiz? Todos vós o sabeis. Vossa alma já falou à vossa razão. Mas a alma, que
nestes dias foi rainha, ensinou à nossa razão duas grandes virtudes: a humildade e o silêncio, que é filho da
humildade e da prudência, que são as filhas da caridade.
Há apenas oito dias, que teríeis vindo proclamar as vossas bravuras e vossos conhecimentos, como
crianças espertas, que querem assustar e superar os demais. Agora estais calados. Transformados de
crianças em adolescentes, sabeis que esta proclamação poderia mortificar o companheiro, que talvez
tivesse sido menos beneficiado por Deus, e não dizeis nada. Além disso, sois ainda como meninas, que já
não são impúberes. Nasceu em vós o santo pudor pela metamorfose, que vos revelou o mistério nupcial das
almas com Deus. Estas cavernas, no primeiro dia vos pareciam frias, hostis, repelentes… agora, vós as
olhais como perfumadas e luminosas câmaras nupciais. Nelas conhecestes a Deus. Antes, ouvistes falar
dele. Mas não O conhecíeis na intimidade, que faz de dois um só. Entre vós há homens que há muitos anos
estão casados, outros que não tiveram mais que ilusórias relações com mulheres, e alguns, por causas
diferentes, se conservam castos. Mas os castos sabem agora o que é o amor perfeito, assim como os
casados. Posso até dizer que ninguém sabe o que é o amor perfeito, a não ser aquele que não conhece
nenhum apetite carnal. Porque Deus se revela aos virgens em toda a sua plenitude, pelo prazer de entregar-
se a quem é puro, pois reencontrando parte de Si, Puríssimo, na criatura limpa de toda luxúria, para
compensá-la de tudo o que ela nega a si mesma, por seu amor.
165.7 Em verdade Eu vos digo que, pelo amor que Eu vos tenho e pela Sabedoria que possuo, se não
tivesse o dever de realizar a obra do Pai, gostaria de reter-vos aqui, e ficar convosco, isolados, tendo a
certeza de que assim Eu faria de vós, e com todo o cuidado, grandes santos, sem mais nenhum extravio,
sem defecções, sem quedas, frouxidões e regressos. Mas Eu não posso. Eu devo prosseguir. E vós deveis
andar. O mundo nos espera. O mundo profanado e profanador, que tem necessidade de mestres e de
redentores. Eu vos quis fazer conhecer a Deus, para que o amásseis bem mais do que o mundo que, com
todos os seus afetos, não vale um só sorriso de Deus. Eu quis que pudésseis meditar sobre o que é o mundo
e sobre o que é Deus, para fazer-vos desejar o melhor. Neste momento vós não estais desejando outra coisa
senão Deus. Oh! Se Eu pudesse fixar-vos nesta hora, neste desejo! Mas o mundo nos está esperando. E nós
iremos ao mundo que espera. Pela santa Caridade que, como enviou-Me ao mundo, assim também vos
envia, por ordem minha, ao mundo. Mas Eu vos suplico! Como pérola no escrínio, guardai fechado o tesouro
destes dias em que vos conservastes, vos cuidastes, vos erguestes, vos revestistes, vos desposastes com
Deus no vosso coração. Como as pedras do testemunho, erguidas pelos Patriarcas para lembrança das
alianças com Deus, conservai e guardai estas preciosas lembranças em vossos corações.
165.8 A partir de hoje, já não sois mais discípulos prediletos, mas apóstolos, chefes da minha Igreja. De vós
há de vir nos séculos dos séculos toda a hierarquia dela., Vós sereis chamados mestres, tendo como vosso
Mestre, Deus em seu tríplice poder, sabedoria e caridade. Eu não vos escolhi por serdes os mais
merecedores. Mas por um complexo de causas que não é necessário que conheçais agora. Eu vos escolhi
para ocupardes o lugar dos pastores, que foram os meus discípulos, desde quando eu dava os meus
primeiros vagidos. Por que foi que Eu fiz assim? Porque era bom que assim se fizesse. Entre vós há galileus
e judeus, doutos e indoutos, ricos e pobres. Isto para o mundo: para que não se diga que Eu preferi uma
categoria só. Vós não bastareis para tudo o que é preciso fazer. Nem agora, nem depois.
Nem todos vós lembrais de um ponto do Livro. Eu vos farei lembrar deles. No segundo livro dos
Paralipômenos, no capitulo 29, está narrado[4] que Ezequias, rei de Judá, fez purificar o Templo e, depois
que ficou purificado, fez que se oferecesse um sacrifício pelo pecado, pelo reino, pelo Santuário e por Judá,
depois do que tiveram início as ofertas de cada um. Mas, como os Sacerdotes não eram suficientes para as
imolações, foram chamados, para ajudar, os levitas, que eram consagrados com um rito mais breve que os
sacerdotes.
Isto é o que Eu farei. Vós sois sacerdotes, preparados com muito cuidado por Mim, Pontífice Eterno. Mas
não sois suficientes para o trabalho, que sempre irá sendo mais vasto, da imolação de cada um ao Senhor
seu Deus. Por isso, Eu associo a vós os discípulos, que permanecerão como tais, os que nos ficam esperando
ao pé do monte, os que estão mais acima, os que estão espalhados pela terra de Israel e os que estarão
espalhados por todas as partes do mundo. A eles serão dadas tarefas iguais, porque a missão é uma só, mas
a classificação deles aos olhos do mundo será diferente. Não será assim aos olhos de Deus, junto ao qual
está a justiça, de tal modo que um discípulo desconhecido, que os apóstolos e coirmãos nem sabem que
existe, mas que vive santamente levando Deus às almas, será maior do que um grande apóstolo muito
conhecido, mas que de apóstolo só tem o nome, pois ele desce de sua dignidade de apóstolo para se
entregar a objetivos humanos.
A tarefa de apóstolos e de discípulos há de ser sempre dos sacerdotes e levitas de Ezequias: promover o
culto, derrubar as idolatrias, purificar os corações e os lugares, pregar o Senhor e sua palavra. Tarefa mais
santa não há sobre a Terra. Nem haverá dignidade mais alta do que a vossa. Mas por isso é que Eu vos
disse: “Ouvi-vos, exami nai-vos.”
165.9 Ai do apóstolo que cai! Consigo ele arrasta muitos discípulos, e eles arrastam um número ainda
maior de fiéis, e a ruína irá sempre crescendo, como uma avalancha que despenca, ou como um círculo que
vai-se estendendo pela superfície do lago, por um continuado atirar de pedras num mesmo ponto.
Sereis todos perfeitos? Não. O espírito de hoje continuará? Não. O mundo jogará os seus tentáculos para
destroçar as vossas almas. Vitória do mundo por cinco partes, filho de satanás por outras três, servo
indiferente para com Deus nas outras duas., Apaga a luz nos corações dos santos. Defendei-vos de vós
mesmos do mundo, da carne e do demônio. Mas sobretudo defendei-vos de vós mesmos. Ide à defesa, ó
filhos, contra a soberba, a sensualidade, o fingimento, a tibieza, a modorra espiritual e a avareza! Quando o
eu inferior fala, e começa a choramingar, falando de pretensas crueldades de que esteja sendo vítima, fazei-
o calar, dizendo: “Por um momento de provação que eu te dou, estou preparando para ti, e para sempre, um
banquete com aquele êxtase que tivemos na caverna do monte, no fim da Lua de Shebat.”
165.10Vamos. Vamos ao encontro dos outros que, em grande número, estão me esperando. Depois eu irei,
por algumas poucas horas, a Tiberíades.,Vós, pregando a a Meu respeito, me esperareis ao pé do monte que
fica na estrada que vai de Tiberíades para o mar. Eu estarei lá e subirei para pregar. Tomai bolsas e capas.
A parada terminou, e a eleição está feita.

17 de maio de 1945.
165.11 Diz Jesus:
– Estás mal, e Eu te deixo quieta. Somente te faço observar como uma só frase que se omite ou uma
palavra mal transcrita pode mudar tudo. E tu, escrevente, estás atenta e podes consertar logo. Pensa, pois,
e compreende como vinte séculos puderam privar de partes, não prejudiciais à doutrina, mas, sim, à
facilidade para se entender o Evangelho, o Evangelho apostólico. Isto — uma obra que, se remontarmos às
origens, descobrimos estar ainda a serviço da Desordem — explica muitas coisas e serve aos filhos da
Desordem para muitas outras coisas. E tu estás vendo como é fácil cair em erro de transcrição… Pequeno
João, fica quieto, hoje. Tu és uma flor quebrada. Passarei depois Eu para restaurar a tua haste. Deus está
contigo.
[3] cantou para mim as verdades celestes: Estas palavras do Apóstolo do amor – assim escreve MV em uma cópia datilografada – ilustrando muito bem o
mistério da casa de Deus em nós. No santuário da alma, o Espírito Divino se encontra com o nosso espírito e Deus fala e se revela na alma, instruindo-a ao
amor d’Ele e assim comunicando a Sua semelhança mais viva, transformando-a n’Ele, não substancialmente, porque só Deus é Deus, mas por participação.
Nessa cópia datilografada, o trecho 170.1, MV insere a seguinte nota: o Espírito de Deus tanto mais ilumina e revela quanto mais pode fazer morada em um
espírito puro, vazio de “nada” que preenche o homem não espiritual. Quando o homem libera o seu “eu” das coisas terrenas e passageiras, então Deus
preenche de Si aquele vazio e o homem, tornando-se puro – melhor seria se se conservasse assim –, vê e compreende Deus intelectualmente;
misteriosamente o possui como é possuído e como pode ser enquanto o homem está ainda em seu exílio, o possui pelo ardente desejo ao qual responde o
desejo de Deus de possuir os seus filhos, isto é, constitui o pequeno paraíso da Terra, arauto da bem-aventurança eterna e completa do Céu. O tema dessa
posse divina, contrária aquela diabólica, será tratado em 88.2 - 149.6 - 166.9/11 - 224.3/4 - 356.6 - 597.3 - 602.8 - 649.6 - 650.10.
[4] está narrado em: 2 Crônicas 29.
166. Os milagres após a eleição apostólica.
Primeira pregação de Simão, o Zelote, e de João.
18 de maio de 1945.
166.1 Jesus, ao descer até o meio da encosta, vai-se encontrando com muitos dos seus discípulos, e
também com muitos outros que, pouco a pouco foram se unindo aos discípulos e que vieram até este lugar
longe das estradas, pela necessidade de algum milagre e pelo desejo de ouvir a palavra de Deus. Eles
vieram, confiando nas informações que lhes deram outras pessoas, ou por algum piedoso instinto de suas
almas. Eu acho que os anjos da guarda é que guiavam estes homens desejosos de Deus, a chegarem até o
Filho de Deus. E acho também que, dizendo isso, não estou criando nenhuma lenda. Pois, se pensarmos com
que pronta e astuta constância satanás levava os inimigos a Deus e ao seu Verbo, naqueles momentos em
que o espírito demoníaco podia mostrar aos homens alguma aparência de culpa no Cristo, que nos seja
lícito poder pensar — é mais que lícito, é justo — que os anjos não sejam inferiores aos demônios, e possam
levar a Cristo os espíritos não demoníacos.
A todos esses que O esperam, sem sentirem canseiras nem temores Ele distribui a todos prodigamente o
socorro dos milagres e o socorro da palavra. Quantos milagres! Uma florada igual à que embeleza as
saliências do monte: milagres grandes, como aquele de um menino, tirado gravemente queimado de um
palheiro em chamas, e trazido até aqui numa padiola. Era um monte de carne queimada, que gemia com
dificuldade, debaixo do pano com que o cobriram, pois tão repulsivo era o seu aspecto, de tão queimado que
estava, já quase morrendo. Jesus o curou, bafejando-o por cima com o seu hálito e refazendo os lugares das
queimaduras, que foram se reconstituindo completamente, a ponto de o menino levantar-se, nu como
estava, e sair correndo para sua mamãe, que, chorando de alegria, acariciou suas carnes totalmente
curadas, sem nem sinal do fogo, beijando-lhe os olhos, que todos pensavam estivessem queimados, mas
que, pelo contrário, estavam vivos e cintilantes de alegria. Seus cabelos ficaram somente mais curtos, mas
não destruídos, como se a labareda tivesse feito neles um trabalho de navalha, e não de destruição.
Também houve o pequeno milagre de um velhinho tossidor, que dizia:
– Não por mim, mas porque devo servir de pai para os meus netinhos órfãos, não podendo trabalhar a
terra com algo parado aqui na garganta, que me sufoca…
Depois, o milagre não visível, mas que certamente aconteceu, pois é lembrado pelas palavras de Jesus:
– Entre vós, há alguém que está chorando com a alma, e não tem coragem de Me dizer com a palavra
“Tem compaixão!” Mas Eu lhe respondo: “Seja como pedes. Toda a compaixão. Para que saibas que Eu sou
a Misericórdia.” De minha parte só te digo “Tem generosidade.” Sê generoso para com Deus. Arranca toda
ligação com o passado. Deus está te ouvindo; vai, então, a Ele com um coração livre, com um amor total.
Quem quer que seja, por entre o povo, ele ou ela ao qual foram dirigidas estas palavras, eu não sei.
166.2 Jesus diz ainda:
– Estes são os meus apóstolos. São outros tantos Cristos, porque para isto os escolhi. Dirigi-vos a eles
com confiança. Eles sabem, por Mim, tudo o que é necessário para as vossas almas…
Os apóstolos olham para Jesus completamente assombrados. Mas Ele sorri, e continua:
– … darão às vossas almas uma luz de estrela e o conforto do orvalho, a fim de impedir-vos de ficar
enlanguescendo nas trevas. Depois, Eu virei, e vos darei plenitude de sol e de ondas, toda a sabedoria para
tornar-vos fortes e felizes, com uma fortaleza e alegria sobrenaturais. A paz esteja convosco, meus filhos.
Eu estou sendo esperado por outros, mais infelizes e mais pobres do que vós. Mas não vos deixo sozinhos.
Deixo convosco os meus apóstolos, e é como se deixasse os filhos do meu amor confiados aos cuidados das
mais amorosas e confiáveis nutrizes.
Jesus faz um gesto de despedida e de bênção, e se põe a caminho, abrindo passagem por entre a
multidão, que não quer deixá-lo partir, e é então que se dá o último milagre. Uma velhinha semi-paralitica,
que vem sendo conduzida por seu neto, e agita festivamente o braço direito, antes inerte, gritando:
– Ele apenas passou roçando em mim com o seu manto, e eu estou curada! Eu nem lhe havia pedindo,
porque já estou velha… Mas Ele teve dó do meu desejo secreto. Com o manto, com uma fímbria dele, que
me roçou pelo braço perdido, me curou! Oh! Que grande Filho teve o nosso Santo Davi! Glória ao seu
Messias. Mas, olhai! Olhai! Minha perna também ficou boa, como o braço… Oh! Parece-me que estou com
vinte anos!
Tendo todos corrido ao redor da velhinha, que está proclamando com todo o seu fôlego a sua felicidade,
Jesus pode se afastar, sem ser impedido. Os apóstolos vão atrás dele.
166.3 Quando chegam a um lugar deserto, quase na planície, pelo meio de uma quiçaça fechada, ao redor
do lago, param por um momento. Jesus também parapara e diz:
– Eu vos abençôo! Voltai para o vosso trabalho, até que Eu venha, como vos disse.
Pedro, até agora sempre calado, não aguenta mais:
– Mas, Senhor meu, que foi que fizeste? Por que dizer que nós temos tudo o necessário para as almas? É
verdade. Tu nos disseste muitas coisas. Mas nós somos uns cabeçudos; eu, pelo menos… de tudo o que me
deste ficou pouco, ficou muito pouco. É como alguém que, de uma refeição só tem no estômago, o mais
pesado. O resto não existe mais.
Jesus sorri abertamente:
– E, onde foi o resto da comida?
– Eu não sei. Só sei que, se eu como uns pratinhos delicados, depois de uma hora parece-me não ter
mais nada no estômago. Ao passo que, se comer umas raízes pesadas ou umas lentilhas com óleo, oh! que
trabalhão para mandá-las para baixo!
– Certo! Mas, podes crer que as raízes e as lentilhas, que parecem satisfazer-te mais, são as que menos
substância têm: é tudo uma escória que passa, mas com pouca vantagem. Agora, os pratinhos, que depois
de uma hora nem os percebes mais, estão, não no teu estômago, mas já estão no teu próprio sangue.
Quando um alimento foi digerido, não fica mais no estômago, mas seu suco está no sangue, sendo mais útil.
Agora, a ti e aos teus companheiros vos parece que de tudo o que Eu vos disse nada mais haja em vós?
Talvez vos estejais lembrando dos assuntos que fazem vibrar a vossa natureza particular: os violentos se
lembram dos assuntos de violência; os meditativos, dos assuntos de meditação; os amorosos, dos assuntos
cheios de amor. Sem dúvida, é assim mesmo. Mas, crede-me: tudo está em vós. Mesmo, se pensais que
tenha desaparecido. Vós o absorvestes. Vosso pensamento se desenrolará, como um fio multicor,
fornecendo-vos as tintas suaves ou severas, conforme fordes precisando. Não tenhais medo. Pensai também
que Eu sei o que faço e que nunca vos mandaria, se os considerasse incapazes. Adeus. Pedro. Eia! Sorri!
Tem fé! Um belo ato de fé na Sabedoria Onipresente. Adeus a todos. O Senhor fica convosco.
E rapidamente Jesus os deixa espantados e inquietos.
166.4 – Pois é. É preciso obedecer –diz Tomé.
– Ah! Sim! Oh! Pobre de mim! Quase que saio correndo atrás dele… –murmura Pedro.
– Não. Não faças isso. A obediência é amor a Ele –diz Tiago de Alfeu.
– E vamos começar, enquanto Ele está aí por perto, e pode aconselhar-nos, se errarmos. Isso é
elementar, e também é uma santa prudência. Nós temos que ajudá-lo –aconselha Zelotes.
– É verdade. Jesus está um tanto cansado. É preciso ajudá-lo um pouco, como pudermos. Não basta
andar carregando sacos, preparando camas e comida. Isto qualquer um pode fazer. Mas ajudá-lo, como Ele
quer, na sua missão –confirma Bartolomeu.
– Tu falas bem, porque és instruído. Mas eu… Sou quase um ignorante… –geme Tiago de Zebedeu.
- Ó Deus! Aí estão chegando os que estavam lá em cima! Como é que vamos fazer? –exclama André.
E Mateus diz:
– Perdoai-me, se eu, o mais miserável de todos, vos dou um conselho. Não seria melhor orar ao Senhor,
em vez de ficarmos assim a lamentar-nos de certas coisas que com lamentos não se consertam? Vamos,
Judas, tu que conheces tão bem a Escritura, dize aí para todos nós a oração[5] de Salomão para alcançar a
Sabedoria. Logo! Antes que eles cheguem.
E Tadeu, com sua bela voz de barítono, começa:
– “Deus dos meus pais, Senhor de misericórdia, que tudo criaste…” –etc. etc…, e chega até o ponto em
que se lê: “pela sabedoria foram salvos todos aqueles que a Ti, Senhor, agradaram, desde o princípio.”
Mal tendo tempo, antes que o povo chegue, e os envolva e os assalte com mil perguntas como: “Aonde é
que foi o Mestre? Quando Ele voltará?” E a mais difícil de ser respondida: “Como faremos para acompanhar
o Mestre, não com as pernas, mas com as almas pelas trilhas que levam ao Caminho de que Ele fala?”
Com esta pergunta, os apóstolos ficam embaraçados. Olham-se uns aos outros, e Iscariotes responde:
– Seguindo a perfeição –como se esta fosse uma resposta capaz de explicar tudo!…
Tiago de Alfeu, mais humilde e mais moderado, fica pensando e depois diz:
– A perfeição de que fala o meu companheiro consegue-se obedecendo à Lei. Porque a Lei é justiça e a
justiça é perfeição.
166.5 O pessoal ainda não está contente, e um chefe pergunta:
– Mas nós somos pequenos no bem, como crianças. As crianças não sabem ainda o significado do Bem e
do Mal, não distinguem um do outro. Nós, neste caminho que Ele nos indica, estamos ainda tão rudes, que
somos incapazes de distinguir. Nós tínhamos um caminho conhecido. O caminho antigo que nos haviam sido
ensinado nas escolas. Era difícil, longo, medonho! Agora, pelas palavras dele, percebemos que é como
aquele aqueduto, que estamos vendo daqui. Por baixo dele passa o caminho dos animais e do homem, e por
cima, por sobre os arcos leves, exposto ao Sol e ao azulperto dos ramos mais altos, que fazem ruído e
cantam com o vento e com os passarinhos, há um outro caminho liso, tão limpo e tão luminoso, quanto
escabroso, sujo e escuro é o debaixo. Ele é um caminho para a água límpida e cantante, que é uma bênção.
Esta água que vem de Deus, acariciada por tudo o que é de Deus: raios de Sol e de estrelas, copas novas de
árvores, flores, asas de andorinhas. Nós gostaríamos de subir para aquele caminho mais alto, e que é o
dele, mas não sabemos, porque estamos fincados embaixo, sob o peso de toda a construção antiga. Como
faremos?
É um jovem dee vinte e cinco anos, moreno, robusto, olhar inteligente, com o aspecto menos popular em
meio à maioria dos presentes. Ele tem o apoio de um outro já mais maduro.
Iscariotes, alto como é, o vê, e sussurra:
– Vamos logo. Falai bem. Aí estão Hermes com Estêvão, o predileto do Gamaliel.
Estas palavras vêm perturbar completamente os apóstolos.
166.6 Enfim, Zelotes responde:
– O arco da construção não existiria, se não houvesse uma base no caminho escuro. Esta é a fonte de
onde nasce o arco que leva ao azul, do qual estás desejoso. As pedras fincadas no chão, que suportam o
peso, e não desfrutam da visão dos raios e dos vôos, elas não deixam de saber que estas duas coisas
existem, porque, de vez em quando, uma andorinha desce com um grito até à lama, e vem acariciar a base
do arco, e desce também um raio do sol ou de estrela, para dizer quanto é belo o firmamento. Foi assim que
nos séculos passados desceu, de tempos em tempos, uma palavra do céu como promessa, um raio celeste
de sabedoria, para acariciar as pedras oprimidas pela ira divina. Pois as pedras eram necessárias. Não são,
nunca foram, nem serão inúteis nunca. Sobre elas elevou-se lentamente o tempo e a perfeição do
conhecimento humano, até chegar à liberdade do tempo presente e à sabedoria do conhecimento sobre-
humano.
Já estou lendo a objeção, que está escrita em teu rosto. É a mesma que todos nós tivemos, antes que
soubéssemos compreender que esta é a nova Doutrina, a Boa Nova pregada àqueles que, por um processo
retrógrado, não conseguiram tornar-se adultos. Não acompanharam o elevar-se das pedras do saber, mas
ficaram cada vez mais obscurecidos, como um muro que se mergulha num abismo sem luz.
Nós, para sairmos desta doença de obscurecimento sobrenatural, devemos libertar corajosamente a
pedra fundamental de todas as outras pedras, sobrepostas a ela. Não tenhais medo de demolir o que é um
muro alto, mas que não tem a linfa pura da nascente eterna. Voltai para a base. Ela não deve ser mudada.
Vem de Deus. É imóvel. Antes de tirar as pedras, porque nem todas são más e inúteis, tirai a prova de cada
uma, ao som da palavra de Deus. Se o som delas não discorda da palavra, conservai-as, e usai-as de novo na
construção. Mas, se nelas perceberdes o som desafinado da voz humana, ou o som dilacerante da voz de
satanás despedaçai as pedras más. Não há perigo de enganar-vos porque, se a voz é de Deus, seu som é de
amor, e, se a voz é humana, seu som é de sensualidade, e, se a voz é de satanás, é uma voz de ódio. Eu digo
despedaçai, porque é caridade não deixar atrás os germes e outros objetos maus, que possam seduzir o
viandante, induzi-lo a fazer uso deles, ficando prejudicado. Quebrai literalmente cada coisa que foi vossa
tanto em obras, como em escritos, ensinamentos ou atos, se ela não for boa. É melhor ficar com pouco,
ganhando altura de apenas um côvado, com pedras boas, do que chegar a alguns metros, mas com pedras
más. Os raios do Sol e as andorinhas descem até sobre os muros de pedras soltas, que pouco se elevam do
chão, e as flores humildes da beira do caminho com facilidade conseguem acariciar as pedras baixas.
Enquanto as pedras soberbas, que querem elevar-se, inúteis e escabrosas, não recebem mais do que os
arranhões, das sarças, e o abraço das ervas venenosas. Demoli para reconstruir e subir, avaliando a
bondade de vossas antigas pedras, ao som da voz de Deus.
166.7 – Falas bem, meu homem. Mas, como subir? Nós te dissemos que somos menos que umas crianças.
Quem nos fará subir por uma coluna tão a pino? Nós vamos avaliar as pedras, ao som da palavra de Deus,
despedaçando as menos boas. Mas, como subir? Só pensar nisso nos dá vertigem! –diz Estevão.
166.8 João, que ficou o tempo todo escutando, de cabeça inclinada e sorrindo para si mesmo, levanta um
rosto iluminado, tomando a palavra.
– Meus irmãos! Só pensar em subir me dá vertigem. É verdade. Quem está dizendo que é preciso
procurar atingir as alturas diretamente? Não são só os pequenos, mas nem os adultos, podem fazer isso.
Somente os anjos podem projetar-se no azul, porque eles estão livres de todo peso da matéria. Só os heróis
da santidade podem fazer isso.
Nós temos alguém, que ainda está vivo neste mundo tão envilecido, que sabe ser herói de santidade
como os antigos de que Israel se gloria, quando os Patriarcas eram amigos de Deus, e a palavra do Código
eterno era a única obedecida por toda criatura integra. João, o Precursor, ensina como é que se atinge as
alturas diretamente. E João é um homem. Mas a Graça que o fogo de Deus lhe comunicou, purificando-o
desde o ventre de sua mãe, do mesmo modo que foi purificado pelo Serafim o lábio do Profeta a fim de que
ele pudesse preceder ao Messias, sem deixar o fedor da culpa original sobre o caminho real do Cristo, deu a
João asas de anjo que a penitência fez crescer, abolindo, o peso de humanidade que a natureza de nascido
de mulher lhe havia conservado. É daí que João, de sua caverna onde prega a penitência, e do seu corpo no
qual arde o espírito desposado com a Graça, se projeta, ao ápice do arco, além do qual está Deus, o
Altíssimo Senhor nosso Deus. Dominando os séculos passados, o presente e o futuro, pode anunciar, com
voz de profeta e com olhos de águia, capazes de fixar o Sol eterno: “Eis o Cordeiro de Deus, O que tira os
pecados do mundo”, morrendo depois desse seu canto sublime, que será usado, não só no tempo limitado,
mas no tempo sem fim na Jerusalém eterna e feliz, para aclamar a Segunda Pessoa, invocá-la nas misérias
humanas, e cantar-lhe hosanas nos fulgores eternos.
166.9 O Dulcíssimo Cordeiro deixou a sua luminosa morada dos Céus, nos quais Ele é Fogo de Deus em
abraço de fogo. Oh! eterna geração, do Pai que concebe com Pensamento ilimitado e santíssimo o seu
Verbo, absorvendo-o, produz uma fusão de amor que cria o Espírito de Amor, no qual se concentra o Poder e
a Sabedoria! Mas o Cordeiro de Deus, que deixou a sua puríssima e incorpórea forma, para encerrar sua
pureza infinita, sua santidade, sua natureza divina em carne mortal, sabe que nós não somos os purificados
pela Graça. Sabe que não poderíamos, como a águia que é João, projetar-nos às alturas, ao cume onde está
Deus Uno e Trino. Nós somos pequenos pássaros dos telhados e da rua, somos andorinhas que tocam o
azul, e vivem comendo insetos; somos cotovias, que querem cantar para imitar os anjos, mas diante deste
canto, o nosso se torna um frêmito desafinado de cigarra de verão. O Doce Cordeiro de Deus, que veio para
tirar os pecados do mundo, sabe muito bem tudo isso. Porque, não sendo mais o Espírito Infinito dos Céus,
porque limitado na carne mortal, a sua infinidade não fica diminuída, e tudo conhece, sendo a sua sabedoria
sempre infinita.
E eis que agora Ele nos está ensinando o seu caminho. O caminho do amor. Ele é o Amor que, por
misericórdia se faz carne. Eis que agora este Amor Misericordioso cria para nós um caminho por onde até
os pequeninos podem subir. Ele, não por necessidade, mas para nos ensinar, o percorre por primeiro a
nossa frente. Ele nem teria necessidade de abrir as asas para voar, pois estaria intimamente unido ao Pai. O
seu espírito, eu vo-lo garanto, está encerrado aqui, nesta pobre terra, embora sempre com o Pai, porque
Deus tudo pode, e Ele é Deus. Mas Ele está à frente, deixando atrás de Si os aromas da santidade, o ouro e
o fogo do amor. Observai o seu caminho. Oh! Como chega até ao ápice do arco! Como é tranquilo e seguro!
Não segue em linha reta, mas numa espiral. É mais longo o caminho, e o seu sacrifício de amor
misericordioso, se revela assim, quando Ele se detém por amor dos fracos. Sendo mais longe é mais
apropriado à nossa miséria. A subida para o Amor, para Deus, é simples, como simples é o Amor. Mas é
profunda, porque Deus é um abismo inatingível, se Ele não se abaixasse para fazer-se atingível, para sentir-
se beijar pelas almas enamoradas dele. –(João fala e chora, sorrindo com a boca, no êxtase da revelação que
faz de Deus)–. É longo o caminho simples do Amor, porque o Abismo, que é Deus, não tem fim. Pode-se
subir, até quanto quiser. O Abismo Admirável chama o nosso abismo miserável. Chama com as suas luzes,
dizendo: “Vinde a Mim!” Oh! O convite de Deus! Convite de Pai!
166.10 Ouvi! Ouvi! Dos Céus abertos, porque Cristo escancarou as suas portas, com os anjos da
Misericórdia e do Perdão na expectativa da Graça, enviando luzes, perfumes, cantos e orvalhos, a fim de
seduzir santamente os corações dos homens, com palavras suavíssimas. É a voz de Deus que fala: “A vossa
inocência? É a vossa melhor moeda! Eu gostaria que todos vós vos tornásseis pequenos, para possuirdes a
humildade, a sinceridade e o amor das crianças, o confiante amor infantil para com o pai. Sereis incapazes?
Esta é a minha glória! Oh! Vinde. Eu nem vos peço para, avaliar o som das pedras boas ou más. Dai-as a
Mim! Eu as escolherei, e vós vos reconstruireis. Será uma subida para a perfeição? Oh! não, meus
pequenos filhos. Aqui com a mão na mão do meu Filho, vosso Irmão, ao lado dele, subi…” Subir! Ir a Ti,
Eterno Amor! Tomar a tua semelhança, isto é o Amor!
Amar! Aí está o segredo!… Amar! Dar-se. Amar! Aniquilar-se, Fundir-se. A Carne? A dor? Não é nada. E
o tempo? Não é nada. Até o pecado se torna um nada, se eu o dissolvo no teu fogo, ó Deus! Só o Amor é
tudo. O Amor. O Amor que nos deu o Verbo Encarnado nos dará todo o perdão. Amar é uma coisa que
ninguém sabe melhor do que as crianças. E ninguém é mais amado do que uma criança.
166.11 Ó tu, que eu não conheço, mas que queres conhecer o Bem para distingui-lo do Mal, para teres o
azul, o Sol celeste, tudo o que é alegria sobrenatural, ama, e o terás. Ama a Cristo. Morrerás na vida, mas
ressuscitarás no espírito. Com um espírito novo, sem teres mais necessidade de fazer uso de pedras, serás
por toda a eternidade um fogo que não morre. Sua chama sobe. Ela não precisa de degraus nem de asas
para subir. Livra o teu eu de toda construção, coloca em ti Amor. Inflamar-te-ás. Deixa que isso aconteça
sem restrições. Excita, pelo contrário, aumenta a chama, com todo o teu passado de paixões, de saber. Na
chama se destruirá o que for menos bom, e o que é metal nobre, se tornará puro. Joga-te, ó irmão, no amor
ativo e jubiloso da Trindade. Compreenderás isto que agora te parece incompreensível, porque
compreenderás a Deus, que é compreensível somente por aqueles que se entregam, sem medida, ao seu
fogo sacrificador. Fixar-te-às finalmente em Deus, num abraço de chama, rezando por mim, a criança de
Cristo, que ousou falar-te do Amor.
166.12 Estão todo estupefatos: os apóstolos, os discípulos e os fiéis… O interpelado está pálido, enquanto
que João está cor de purpura, não tanto pelo cansaço, como pelo amor.
Enfim, Estêvão dá um grito:
– Bendito sejas tu! Mas, diz-me quem és?
João faz um gesto que me faz lembrar muito a Virgem no Ato da Anunciação, diz em voz baixa, curvando-
se em adoração dAquele de quem fala:
– Eu sou João. Em mim estás vendo o menor de todos, entre os servos do Senhor!
– Mas, quem foi o teu mestre, antes desta hora?
– Alguém, que é Deus, pois eu recebi o leite espiritual de João, pressantificado de Deus, nutro-me do pão
de Cristo, do Verbo de Deus, e bebo do fogo de Deus, que me vem dos Céus. Glória seja ao Senhor!
– Ah! mas eu não vos deixo mais. Nem a ti, nem a este não deixo a ninguém. Tomai-me convosco!
– Quando… Oh! Aqui está Pedro, que é o nosso chefe –e João segura o atordoado Pedro, e o proclama
assim “o primeiro.”
Pedro reencontra a si mesmo:
– Filho, para uma grande missão, é necessária uma severa reflexão. Este é o nosso anjo e acende, a
chama. Mas é preciso saber se a chama em nós será duradoura. Mede-te a ti mesmo. Depois vem ao Senhor.
Nós te abriremos o coração como a um irmão caríssimo. Por enquanto, se quiseres conhecer melhor a nossa
vida, fica. Os rebanhos de Cristo podem crescer sempre para serem escolhidos os verdadeiros cordeiros
entre falsos carneiros.
Com isto, chega ao fim a primeira manifestação apostólica.
[5] oração que está em Sabedoria 9.
167. O encontro com as romanas
no jardim de Joana de Cusa.
19 de maio de 1945.
167.1 Jesus, com a ajuda de um barqueiro, que o acolheu em seu barco, desembarca pela prancha do
jardim de Cusa. Um jardineiro já O viu e vai ao seu encontro para abrir a cancela, que barra aos estranhos
o ingresso na propriedade ao lado do lago, - uma cancela alta e forte escondida por uma sebe, muito viçosa
e alta, com loureiros e buxos, do lado externo, o do lago, e de rosas de todas as cores do lado interno da
casa. As esplêndidas roseiras ornam com flores as copas bronzeadas dos loureiros e dos buxos, insinuam-se
pelo meio das ramagens, atravessam aparecendo do outro lado, ou ultrapassam completamente a barreira
verde, fazendo cair seus ramos floridos para além da sebe. Só num ponto, na altura duma alameda, a barra
se apresenta nua, abrindo-se para dar passagem.
– A paz a esta casa e a ti Joana. Onde está a tua patroa?
– Está com as amigas. Vou já chamá-la. Há três dias que estão Te esperando pelo receio de chegarem
atrasadas.
Jesus sorri. O criado vai correndo chamar Joana. Enquanto isso, Jesus caminha lentamente para o lugar
que lhe foi mostrado pelo criado, admirando o belíssimo jardim, o belíssimo roseiral, que Cusa mandou
formar para sua mulher. São rosas de todas as cores, tamanhos e formas, plantadas nesta enseada bem
resguardada do lago, sorrindo, precoces e esplêndidas. Há também pés de outras flores. Mas elas ainda não
floriram, e sua presença é pouco notada, diante da quantidade das roseiras.
167.2 Joana vem chegando. Ela nem pôs no chão um pequeno cesto com rosas até a metade, ou deixou a
tesoura, e assim vai correndo, com os braços estendidos, ágil e gentil em sua rica veste de lã leve de um
cor-de-rosa muito claro, cujos frisos estão presos por um arranjo de broches e fivelas em filigrana de prata,
sobre os quais brilham algumas pálidas granadas.

Por cima de seus cabelos negros e ondulados, um diadema em forma de mitra, também de prata e com
granadas, está segurando um véu de linho muito ligeiro, também cor-de-rosa, que recai para trás, deixando
descobertas as pequenas orelhas, das quais pendem pesados brincos parecidos com o diadema. O rosto é
risonho, o pescoço é delicado, onde brilha um colar trabalhado com a mesma arte de todos os outros
adornos preciosos.
Ela deixa cair o seu cesto aos pés de Jesus, e se ajoelha, entre as rosas espalhadas, para beijar-lhe a
veste.
– A paz esteja contigo, Joana. Eu vim.
– Eu estou feliz. Elas também vieram. Oh! Agora me parece ter feito mal. Como fareis para entender-
vos? Elas são pagãs mesmo!
Joana está um pouco agitada.
Jesus sorri, e põe-lhe a mão sobre a cabeça:
– Não tenhas medo. Nós nos entenderemos muito bem. E tu agiste muito bem. O encontro produzirá
muitas flores de bem, como o teu jardim produz rosas. Apanha agora estas pobres rosas, que deixaste cair,
e vamos ao encontro das tuas amigas.
– Oh! Rosas, nós temos bastantes! Eu tratava delas para passar o tempo e, além disso, porque as minhas
amigas são assim… assim… tão voluptuosas. Gostam das flores, como se fossem… não sei…
– Mas Eu também gosto de flores! Estás vendo como já encontramos um assunto para nos entendermos
Eu e elas? Vamos! Vamos apanhar estas esplêndidas rosas…
E Jesus se inclina, para dar o exemplo.
– Tu, não. Tu não, Senhor! Mas, se queres mesmo… está feito.
167.3 Caminham até um quiosque, que é formado por um entrelaçamento multicor de roseiras. Da soleira,
três romanas estão espreitando: Plautina, Valéria e Lídia. A primeira e a última estão perplexas, enquanto
Valéria sai correndo para fora, e se inclina, dizendo:
– Salve, ó Salvador da minha pequena Fausta!
– Paz e luz a ti e as tuas amigas.
As amigas se inclinam sem dizerem nada.
Já conhecemos Plautina, alta, imponente, com belos olhos negros, um pouco dominadores, por baixo de
uma fronte lisa e muito alva, um nariz reto, perfeito, a boca um pouco saliente, mas bem feita, queixo
arredondado e distinto, que me faz lembrar certas estátuas, muito belas, de imperatrizes romanas. Pesados
anéis reluzem em suas belas mãos e grandes braceletes de ouro circundam seus braços, torneados como
das estátuas nos pulsos e nos cotovelos, que expõem à luz um branco rosado, liso e perfeito, fora das
mangas curtas e drapejadas.
Lídia, por sua vez, é loura, mais delicada e mais nova. Sua beleza não é imponente como a de Plautina,
mas tem toda a graça de uma juventude feminina ainda um pouco agreste. Uma vez que estamos diante de
um tema pagão, eu poderia dizer que, se Plautina parece a estátua de uma imperatriz, Lídia poderia ser
uma Diana, ou uma ninfa de aspecto pudico e gentil.
Valéria, agora que não está naquele desespero em que a vimos em Cesareia, aparece na sua beleza de
jovem mãe, com suas formas um pouco avolumadas, mas ainda bastante juvenis, com aqueles olhos
tranquilos da mãe feliz por poder nutrir e ver crescer, o seu filhinho. De cor róseo-acastanhada, ela tem um
sorriso comedido, mas muito agradável.
Tenho a impressão de que sejam damas de grau inferior ao de Plautina, pois até no seu modo de olhá-la,
denotam veneração de rainha.
167.4 – Estáveis cuidando das flores? Continuai, continuai. Poderemos falar, mesmo enquanto colheis estas
esplêndidas obras do Criador, que são as flores, e enquanto as dispondes com a habilidade em que Roma é
mestra, ao preparar vasos tão belos em que lhes prolonga a breve vida… Se ficamos admirados, ao
olharmos para este botão, que mal começa a abrir o sorriso de suas pétalas de um amarelo rosado, como
poderíamos deixar de ficar tristes, ao vê-lo morrer? Mas, oh! como ficariam pasmados os judeus, se me
ouvissem dizer isso! Contudo, é porque, até na natureza das flores, sentimos alguma coisa de vida. Ver o
fim delas nos causa dó. Entretanto, a planta é mais sábia do que nós. Ela sabe que, de cada ferida de um
dos seus talos cortados, nasce um novo broto, que produzirá uma nova rosa. Eis por que nossa mente deve
recolher este ensinamento, e fazer, do amor um pouco sensual pela flor, um estímulo para pensar em coisas
mais altas.
– Que coisas, Mestre? –pergunta Plautina, que o escuta atentamente, seduzida pelo pensamento
elegante do Mestre hebreu.
– Assim como a planta não morre, enquanto a sua raiz estava nutrida pelo solo, assim a humanidade não
morre, quando termina a vida terrena de um ser ela sempre ela solta novas flores. Um pensamento ainda
mais alto para bendizermos o Criador: enquanto uma flor, desde que tenha morrido, não mais revive, o que
é triste, o homem, por mais adormecido que esteja em seu último sono, não está morto, mas vivo, com uma
vida ainda mais brilhante, recebendo a vida eterna e o esplendor do Criador que o formou. 167.5 Por isso,
Valéria, se a tua menina tivesse morrido, não terias perdido as carícias dela. Sobre a tua alma teria sempre
descido o beijo da tua filha, separada de ti, mas não esquecida do teu amor. Estás vendo como é doce ter
uma fé na vida eterna? Onde está agora a tua pequenina?
– Naquele berço coberto. Eu nunca me separei, porque o amor para com o marido e pela filha eram as
duas metas de minha vida. Agora que sei o que é vê-la morrer, não a deixo nem por um instante.
Jesus se dirige para a cadeira sobre a qual está colocado algo como um bercinho de madeira, coberto
por uma rica colcha. Ele a descobre, e olha a pequenina adormecida, que o ar, que está soprando sobre ela
um pouco mais vivo, acaba por despertar. Seus olhinhos se abrem espantados, e um sorriso de anjo faz
abrir a boquinha, enquanto as mãozinhas se abrem, desejosas de agarrar os cabelos ondulados de Jesus, e
um chilrar de passarinho assinala a formação de um discurso no pensamento dela. Enfim, solta a grande e
universal palavra:
– Mamãe!
– Pegue-a, pegue-a –diz Jesus, que se afasta para deixar que Valéria possa inclinar-se sobre o berço.
– Mas ela vai te aborrecer!… Eu vou chamar uma escrava e mandar que a leve pelo jardim.
– Aborrecer? Oh! Não. As crianças nunca aborrecem. São sempre minhas amigas.
– Tens filhos ou sobrinhos, Mestre? –pergunta Plautina, que está observando o sorriso com que Jesus
está provocando a pequenina para fazê-la sorrir.
– Não tenho filhos nem sobrinhos. Mas amo as crianças, como amo as flores. Porque elas são puras e
sem malícia. Eu até te peço, dá-me, ó mulher, a tua pequenina. Apertar contra o coração um pequeno anjo é
tão doce para Mim.
E Jesus se assenta com a pequenina, que olha para Ele, e despenteia a sua barba. Depois ela acha
melhor brincar com as franjas do seu manto e com o cordão da sua túnica, aos quais ela dedica um longo e
misterioso discurso.
167.6 Plautina diz:
– A nossa boa e sábia amiga, uma das poucas que não nos despreza, nem sente corromper-se em nossa
companhia, ela deve ter-te dito que tínhamos o desejo de ver-te e ouvir-te para termos uma ideia do que
realmente és. Porque Roma não crê em fábulas… Por que estás sorrindo, Mestre?
– Depois Eu te direi. Continua.
– Porque Roma não crê em fábulas, e quer julgar com ciência e consciência, antes de condenar ou
exaltar. O teu povo tanto te exalta, como te calunia, na mesma medida. As tuas obras levariam a exaltar-te.
As palavras de muitos hebreus levariam a tomar-te por um delinquente. As tuas palavras são solenes e
sábias, como as de um filósofo. Roma tem muito amor às doutrinas filosóficas e… devo dize-lo, os nossos
filósofos atuais não tem uma doutrina que satisfaça, mesmo porque o modo de vida deles não corresponde
ao que eles ensinam.
– Eles não podem ter um modo de vida que corresponda à sua doutrina.
– Porque eles são pagãos, não é?
– Não. Porque são ateus.
– Ateus? Eles tem os seus deuses.
– Nem deuses têm mais, mulher. Eu te faço lembrar dos antigos filósofos, os maiores. Eram pagãos, eles
também, mas, não obstante isso, que elevação de vida houve entre eles! Estava misturada com o erro,
porque o homem é levado a errar. Mas, quando eles se viram diante dos maiores mistérios: a vida e a morte,
quando estiveram colocados diante do dilema da Honestidade ou da Desonestidade, da Virtude ou do Vício,
do Heroísmo ou da Covardia, e pensaram que, se se inclinassem para o mal, isso seria um mal para a pátria
e para os cidadãos, com uma vontade de gigantes, jogaram para longe de si as garras dos maus pólipos e,
livres e santos, souberam querer o Bem, a qualquer custo. Este Bem não é outra coisa senão Deus.
167.7– Dizem que Tu és Deus. É verdade?
– Eu sou o Filho do Deus Verdadeiro, feito carne, sem deixar de ser Deus.
– Mas, o que é Deus? Deve ser o maior dos mestres, se for como Tu.
– Deus é muito mais do que um mestre. Não limiteis a ideia sublime da Divindade, limitando-a à de
sabedoria.
– A sabedoria é uma divindade. Nós temos Minerva. É a deusa do saber.
– Vós tendes também Vênus, deusa do prazer. Podereis admitir que um deus, isto é, um ser superior aos
mortais, tenha elevado até à perfeição tudo o que há de mais feio nos mortais? Podereis pensar que alguém,
que é eterno, tenha para sempre as pequenas, mesquinhas e vis delicias dos que só têm uma hora de
tempo? Fazendo delas a meta de sua vida? Não pensais que esse céu, que vós chamais de Olimpo, e onde
estão fermentando os sucos mais azedos da humanidade, possa ser sujo? Se olhais para o vosso céu, que é
que vedes? Luxurias, delitos, ódios, guerras, furtos, bebedeiras, trapaças, vinganças. Quando quereis
celebrar as festas de vossos deuses, o que fazeis? Orgias. Qual o culto que prestais a eles? Onde está a
verdadeira castidade das consagradas a Vesta? Sobre que código divino os vossos pontífices se apoiam,
para julgar? Que palavras os vossos áugures podem ler no vôo dos pássaros ou no estrondo do trovão? E as
sangrentas vísceras dos animais sacrificados, que resposta podem dar aos vossos arúspices? Tu disseste:
“Roma não crê em fábulas.” Então, por que Roma crê que doze pobres homens, levando um porco ao redor
dos campos, com uma ovelha e um touro imolados, possam o tornar oferta propícia a Ceres, se vós tendes
inúmeras divindades, uma odiando a outra, acreditando nas vinganças delas? Não. Deus é uma coisa bem
diferente. Ele é Eterno, é Único e Espiritual.
– Mas Tu dizes que és Deus, e és carne.
– Há ainda um altar sem deus, na pátria dos deuses. A sabedoria humana o dedicou ao Deus
desconhecido. Porque os sábios, os verdadeiros filósofos, entreviram que havia alguma coisa, além do
cenário histórico, criado pelas eternas crianças que são os homens com espíritos enfaixados por vendas de
erro. Se estes sábios intuíram haver algo além do cenário mentiroso, alguma coisa de verdadeiramente
sublime e divino, que fez tudo o que existe, e do qual vem tudo que há de bom no mundo, agora eles
quiseram um altar para o Deus desconhecido, que pressentiam ser o Verdadeiro Deus. Como podeis dar o
nome de deuses aos que deuses não são, e dizer que sabeis o que na realidade não sabeis? Procurai, pois,
saber o que é Deus, para poderdes conhecê-Lo e honrá-Lo. 167.8 Deus é Aquele que do seu pensamento fez
tudo do nada. Será que vos deixais persuadir e satisfazer só com a fábula das pedras que se transformaram
em homens? Em verdade há homens mais duros e malvados do que a pedra, e há pedras mais úteis do que o
homem. Mas, para ti, Valéria, não é mais doce, ao olhares para esta tua pequenina e pensar assim: “É uma
vontade viva de Deus, por Ele criada e formada, por Ele dotada de uma segunda vida que não morre, de
modo que eu a terei ainda, a minha pequena Fausta, por toda a eternidade, se eu crer no Deus Verdadeiro”,
em vez de dizer: “Estas carnes rosadas, estes cabelos mais finos do que fios de uma teia aranha, será que
tudo isso vem de uma pedra?” Ou haverá de dizer: “Eu sou em tudo semelhante à loba, à fêmea do cavalo,
brutalmente me acasalo, brutalmente gero, brutalmente crio, e esta filha é fruto do meu instinto bruto, é
bruto como eu. Amanhã, quando ela morrer, quando eu também morrer, seremos duas carniças, que se
desfazem com fedor, e que nunca mais se verão?” Dize-me! O teu coração de mãe que é que acharia destas
duas razões?
– Certamente a segunda, não, Senhor! Se eu tivesse sabido que Fausta não era uma coisa que pudesse
ser desfeita para sempre, a minha dor teria sido menos impiedosa. Porque eu teria dito: “Eu perdi uma
pérola. Mas ela ainda existe. E eu a encontrarei de novo.”
– Tu disseste tudo. 167.9Quando eu vim ao vosso encontro, a vossa amiga me disse que se admirava da
vossa paixão pelas flores. E tinha medo que isso pudesse Me desagradar. Mas Eu lhe garanti que não: “Eu
também gosto de flores e, por causa disso, vamos entender-nos muito bem.” Mas quero levar-vos a amar as
flores, como levo Valéria a amar a sua filha, da qual, estou certo de que ela vai cuidar com muito mais
cuidado, agora que ela sabe que a filha tem uma alma, que éuma pequena parte de Deus[6], encerrada na
carne que a sua mãe lhe deu, uma pequena parte que não morre e que a mãe encontrará no céu, se crer no
Verdadeiro Deus. Assim, também vós. Olhai esta rosa tão linda. A púrpura, que embeleza a veste do
imperador é menos esplêndida do que uma destas pétalas, que não só é alegria para os olhos, por sua cor,
mas tambémpelo tatopelo olfato.e perfume. Olhai esta também, e esta outra, e mais esta. A primeira parece
sangue que jorrou de um coração, a segunda, é neve que acabou de cair, a terceira é ouro pálido, a última
perece ter sido feita com esta doce face infantil, que aí está sorrindo para Mim. A primeira está rígida sobre
o seu grosso pedúnculo quase sem espinhos, fortemente vermelha no meio da folhagem, como se tivesse
sido borrifada de sangue; a segunda tem poucos ramos com espinhos e umas folhas opacas e pálidas ao
longo do pedúnculo; a terceira é flexível como um junco e tem umas folhas pequenas e brilhantes, como se
fossem cera verde; a última parece cercar o caminho contra qualquer assalto à sua corola rosada, tão
coberta está de espinhos. Parece uma lima com arestas pontiagudas. Pensai agora. Quem fez isto? Como?
Quando? Onde? E este lugar como era na noite dos tempos?
Não era nada. Era uma agitação informe de vários elementos. Alguém (Deus) disse: “Eu quero”, e os
elementos se separaram um do outro, unindo-se por famílias. Outra vez soaram as palavras “Eu quero”, e os
elementos se coordenaram um com o outro, como a água por entre terras; ou um sobre o outro, como o ar e
a luz sobre o planeta que estava criado. Ainda um “Eu quero”, e apareceram as plantas. Depois vieram as
estrelas, depois os animais e, finalmente o homem. Para que o homem sentisse prazer, com encantadores
brinquedos do filho predileto, Deus deu as flores, os astros, e, finalmente deu a alegria de procriar não
aquilo que morre, mas aquilo que sobrevive à morte, pelo dom de Deus, que é a alma. Estas rosas são
outras muitasvontades do Pai. Seu infinito poder se manifesta numa infinidade de belezas.
167.10 Não é fácil dizê-lo, porque o assunto vai chocar-se contra o bronze maciço das vossas crenças. Mas
Eu espero que, como este é o nosso primeiro encontro, já nos tenhamos entendido um pouco. Que a vossa
alma se debruce sobre o que Eu vos disse. Tereis perguntas a fazer? Fazei-as. Estou aqui para esclarecê-las.
A ignorância não é uma vergonha. Vergonha é persistir na ignorância, quando há alguém que possa
esclarecer as dúvidas.
E Jesus, como se fosse o mais experiente dos pais, sai do quiosque, segurando pela mão a pequenina,
que já está dando seus primeiros passos, em direção a um repuxo de água esguichando ao sol.
167.11 As mulheres ficam onde estão, conversando entre si. Joana, indecisa entre dois desejos, fica na
porta do quiosque…
Finalmente, Lídia se decide, e atrás dela, vão as outras, até Jesus, que está rindo, porque a menina quer
pegar o pequeno arco-íris que o sol forma com a água, e não consegue pegar nada mais do que a luz. Mas
ela insiste, com todo o seu pipilar de um pintinho, saindo dos seus pequenos lábioscor-de-rosa.
– Mestre… eu não compreendi porque é que disseste que os nossos mestres não podem ter formas de
vida boas, visto que são ateus. Eles crêem no Olimpo, mas crêem…
– Eles não têm nada mais de que uma exterioridade em sua crença. Só quando eles verdadeiramente
creram. ter um pouco o reflexo de Deus. Como os verdadeiros sábios creram naquele Desconhecido de que
Eu falei, naquele Deus que satisfazia as suas almas, mesmo sem ter nome, e mesmo sem perceberem o que
estavam querendo, enquanto tiveram voltado o seu pensamento para este Ser, muito superior, muito
superior aos pobres deuses cheios de humanidade da baixa humanidade , que o paganismo criou, eles,
tiveram, um pouco, o reflexo de Deus. A alma é um espelho que reflete, um eco que responde.
– Reflete o quê, Mestre?
– Deus.
– Eis uma grande palavra!
– É uma grande verdade.
167.12 Valéria, que está seduzida pelo pensamento da imortalidade, pergunta:
– Mestre, explica-me onde está a alma de minha menina. Eu beijarei o lugar como um sacrário e o
adorarei, porque é um lugar de Deus.
– A alma! É como esta luz que a tua Faustina está querendo segurar, mas não pode, porque ela é
incorpórea. Ela existe. Eu, tu e tuas amigas a vemos. A alma é visível em tudo aquilo que diferencia o
homem do bruto. Quando a tua pequena te disser os seus primeiros pensamentos, aquela inteligência é a
sua alma dela que se revela. Quando ela te amar, não com o instinto, mas com a razão, aquele amor é a sua
alma. Quando ela crescer, bela ao teu lado, não somente no corpo, mas na virtude, que aquela beleza é a
sua alma. Não adores a alma, mas a Deus que a criou, a Deus que de toda alma boa quer fazer um trono
para Si.
– Mas, onde fica essa coisa incorpórea e sublime no coração? no cérebro?
– Fica no todo do homem. Ela contém o homem, e é contida nele. Quando ela vos deixa, sois cadáveres
Quando ela é morta, pelo delito do homem contra si mesmo, estais condenados, separados de Deus para
sempre.
– Portanto, Tu admites que o filósofo que disse que somos “imortais” tinha razão, ainda que ele fosse
pagão? –pergunta Plautina.
– Eu não o admito. Mais do que isso, digo que é um artigo de fé. A imortalidade da alma, isto é, a
imortalidade da parte superior do homem é o mistério mais certo e mais consolador para quem crê. É ele
que nos dá a certeza de onde viemos, para onde vamos, de quem somos , e nos tira o amargor das
separações.
167.13 Plautina fica pensando profundamente. Jesus a observa, calando-se. Depois, ela pergunta:
– E Tu, tens uma alma assim?
Jesus responde:
– Com toda a certeza.
– Mas, Tu és, ou não és, Deus?
– Sou Deus. Já disse. Agora assumi natureza de homem. Sabes por quê? Porque só com este sacrifício os
problemas, que para a vossa razão são insuperáveis seriam solucionados.Depois de ter derrubado o erro,
livrando o pensamento, podia livrar também a alma de uma escravidão que, por enquanto, não te posso
explicar. Para isso encerrei a Sabedoria e, a Santidade em um corpo. Espalho a Sabedoria, como uma
semente como o pólen aos ventos, e a Santidade que sai de uma preciosa ânfora quebrada, escorrerá sobre
o mundo, na hora da Graça, santificando os homens. Então o Deus Desconhecido ficará conhecido.
– Mas Tu já és conhecido. Quem puser em dúvida o teu poder e a tua sabedoria, é mau ou mentiroso.
– Conhecido, Eu sou. Mas estamos apenas na aurora. O meio-dia é que vai ser cheio do conhecimento de
Mim.
– Qual será o teu meio-dia? Um triunfo? Eu o verei?
– Na verdade, será um triunfo. Tu estarás lá. Porque em ti há náusea daquilo que sabes, e apetite do que
não sabes. Tua alma tem fome.
– É verdade. Tenho fome da verdade.
– Eu sou a Verdade.
– Entrega-te, então a esta esfaimada.
– Basta que venhas à minha mesa. A minha palavra é pão de verdade.
167.14 – Mas, que dirão os nossos deuses, se os abandonamos? Não se vingarão de nós? –pergunta Lídia
aterrorizada.
– Mulher: já viste uma manhã nevoada? Os prados desaparecem, debaixo de um vapor que os esconde.
Depois vem o sol, o vapor se dissolve, e os prados aparecem mais belos. Assim são os vossos deuses, uma
névoa do pobre pensamento humano que, não conhecendo Deus e tendo necessidade de crer, porque a fé é
o estado permanente e necessário do homem, criou para si esse Olimpo, uma verdadeira fábula sem
fundamento. Assim os vossos deuses, ao nascer do sol, à chegada do Deus Verdadeiro, se dissolverão em
vossos corações, sem fazer mal a ninguém. Porque eles não existem.
– Vai ser preciso ouvir-te ainda… muito… Estamos completamente diante do desconhecido. O que Tu
dizes é novo.
– Mas te repugna? Não podes aceitá-lo?
Plautina responde com firmeza:
– Não. Agora me sinto mais orgulhosa do pouquinho que sei, e que César não sabe, do que do meu
nome.
– Então, persevera. 167.15Eu vos deixo com a minha paz.
– O quê? Não ficas aqui, meu Senhor?
Joana está desolada.
– Não. Tenho muito que fazer…
– Oh! Eu te queria falar do meu sofrimento!
Jesus se põe a caminho, depois das saudações das romanas, vira-se e diz:
– Vem até a barca, para me dizeres os teus problemas.
Joana vai com Ele. E diz:
– Cusa está querendo mandar-me por algum tempo a Jerusalém, e eu estou sofrendo por isso. Ele quer
assim, porque não quer que eu fique mais longe, já que agora estou sã…
– Tu também estás criando em ti névoas inúteis! –Jesus já está com o pé sobre a barca–. Se pensasses
que dessa forma poderás hospedar-me e acompanhar-me com mais facilidade, irias ficar contente, dizendo:
“Foi a Bondade que pensou nisso.”
– Oh! é verdade, meu Senhor. Eu nem tinha pensado nisso.
– Pensa, então! Obedece, como uma mulher de valor. A obediência te dará o prêmio de ter-me contigo na
próxima Páscoa, e a honra de ajudar-me a evangelizar as tuas amigas. A paz esteja sempre contigo!
A barca se afasta, e tudo termina.
[6] pequena parte de Deus mostra-se diferente em partícula nascida de Deus em correção pouco clara de MV em uma cópia datilografada na qual MV
inseriu ainda a seguinte nota: Partícula não compreendida como “fragmento de Deus” penetra em nós, mas “lugar-trono”, “sede”inserida ou “aliada”(do
“sopro da vida” do qual fala o v. 7 do II cap. do Gênesis) de Deus, portanto coisa de Deus, vinda de Deus ao homem. São Tomás de Aquino a chama de “uma
capacidade” de Deus que Deus preenche de Si, porque nós participamos da sua vida divina. A explicação de MV deve-se ter presente – junto com o texto de
10.9 – cada vez que na obra se fala da alma como “parte” ou “partícula” de Deus. Esta se liga com as notas que se encontram em: 4.6 - 54.5 - 165.4 - 170.4 -
365.16 - 444.4 - 463.4 - 524.7 - 537.11
168. Aglaé na casa de Maria em Nazaré.
20 de maio de 1945 Pentecostes.
168.1 Maria está trabalhando tranquilamente na confecção de um tecido. A tarde já chegou, todas as
portas já estão fechadas, e uma candeia de três bicos está iluminando o pequeno quarto de Nazaré,
especialmente a mesa, junto à qual a Virgem está sentada. O tecido parece que vai ser um lençol, e cai para
os lados do banco e dos joelhos de Maria até o chão, e ela, vestida de um azul escuro, ela parece estar
saindo de um montão de neve. Está sozinha, tecendo com rapidez, com a cabeça inclinada ao seu trabalho,
e a luz faz brilhar o alto de sua cabeça com reflexos de um ouro pálido. Assim, o lado do seu rosto fica na
penumbra. No quarto bem arrumado reina o maior silêncio.
Na rua deserta não há barulho algum. Nem tampouco da horta nesta noite. A porta pesada do quarto,
onde Maria trabalha, e onde costuma tomar suas refeições, receber os amigos, dando passagem à horta,
está fechada, impedindo que se ouça o rumor da pequena fonte, cuja água se apressa em entrar no tanque.
Reina o mais profundo silêncio. Eu gostaria de saber por onde anda o pensamento da Virgem, enquanto
suas mãos trabalham com tal rapidez.
Ouve-se uma batida leve na porta que dá para a rua. Maria levanta a cabeça, e escuta… A batida foi tão
de leve, que Maria deve ter pensado ser algum animal noturno, ou o vento. Volta a inclinar a cabeça sobre o
seu trabalho. Mas a batida se repete, mais clara. Maria, então, se levanta, e vai até à porta. Antes, porém,
de abrir, ela pergunta:
– Quem está batendo?
Responde uma voz meio sumida:
– Uma mulher. Em nome de Jesus, tem dó de mim.
Maria abre logo a porta, levantando a luz, para reconhecer a peregrina. Mas ela vê um montão de
panosem nenhuma feição. É um pobre embrulho, que está profundamente inclinado. dizendo:
– Ave, Senhora!
E torna a repetir:
– Em nome de Jesus, tem piedade de mim.
– Entra, e dize-me o que queres. Eu não te conheço.
– Ninguém e muitos me conhecem, ó Senhora. O vício me conhece. A Santidade me conhece. Eu estou
precisando agora que a Piedade me abra os braços. A Piedade és tu… –e chora.
– Mas, então, entra… E dize-me… Já falaste bastante para que eu compreenda que és uma infeliz… Mas
quem és, eu ainda não sei. Qual o teu nome, irmã.
– Oh! Não. Irmã, não. Eu não posso ser tua irmã. Tu és a mãe do Bem… eu… eu sou o Mal… –e chora
cada vez mais forte, sob o seu manto caído escondendo-secompletamente.
Maria põe a candeia sobre uma cadeira, pega a mão da desconhecida, que está ainda ajoelhada na
soleira da porta, e a obriga a levantar-se.
168.2 Maria não a conhece… Eu, sim. É a Mulher Velada das águas Belas. Ela se levanta, humilhada,
tremendo agitada pelo pranto, e ainda se recusa a entrar, dizendo:
– Eu sou uma pagã, Senhora. Para vós hebreus, sou sujeira, mesmo se fosse santa. Dupla sujeira, porque
eu sou uma meretriz.
– Se tu vens a mim, se estás procurando meu Filho por meio de mim, então já não és mais do que um
coração que se arrepende. Esta casa acolhe a quem tem nome de Dor –e a puxa para dentro, fecha a porta,
põe de novo a candeia sobre a mesa, oferece-lhe uma cadeira, e lhe diz:
– Fala.
Mas a Velada não quer sentar-se; um pouco inclinada, ela continua a chorar. Maria, doce e majestosa,
está diante dela. Rezando, ela espera que o choro se acalme. Eu a vejo rezar com todo o seu ser, ainda que
nela não se note nenhum sinal de oração. Nem em suas mãos, que estão segurando entre si as mãos da
Velada, nem nos lábios, que permanecem fechados.
Finalmente o choro se acalma. A Velada enxuga o rosto com seu véu, diz:
– Contudo, eu não vim de tão longe para ficar desconhecida. Está na hora da minha redenção., Eu devo
despir-me, para mostrar-te de quantas chagas meu coração está coberto. E… tu és mãe… e a mãe dele…
Por isso, terás dó de mim.
– Sim, minha filha.
– Oh, sim. Chama-me de filha!… Eu tinha uma mãe… e a abandonei… Depois me disseram que ela
morreu de dor por isso. Eu tinha um pai… ele me amaldiçoou… Ainda diz a todos da cidade: “Eu não tenho
mais filha”… –(O choro volta com violência. Maria empalidece de dó. Mas põe-lhe a mão sobre a cabeça
para confortá-la). A velada continua:– Não terei mais ninguém que me chame de filha!… Sim, acaricia-me
assim, como me fazia a minha mãe… quando eu era pura e boa… Deixa que eu beije esta tua mão, e
enxugue com ela o meu pranto. Porque meu choro sozinho não me lava. Quanto eu chorei, desde que
compreendi!… Antes também eu havia chorado, porque é um horror ser somente carne desfrutada e
insultada pelo homem. Mas aqueles eram choros de animal espancado, que odeia a quem o tortura, e se
revolta contra ele, e eu me emporcalhava sempre mais, porque mudava de dono, mas não mudava os meus
hábitos bestiais. Faz oito meses que eu venho chorando… porque eu compreendi… a minha miséria, a
minha devassidão. Eu estou coberta, saturada dela e tenho nojo… Mas o meu pranto, sempre mais
consciente, não me lava. Ele se mistura com a minha devassidão, e não a lava. Oh! Mãe! Enxuga-me tu
deste pranto, e eu ficarei limpa, a ponto de poder aproximar-me do meu Salvador!
– Sim, minha filha, sim. Senta-te. Aqui, comigo. Fala tranquilamente. Deixa todo o teu peso aqui sobre
estes meus joelhos de mãe.
E Maria se assenta.
168.3Mas a mulher velada deixa-se cair a seus pés,querendo falar-lhe assim. Começa em voz baixa:
– Eu sou de Siracusa… Estou com vinte e seis anos… Era filha de um intendente, como diríeis vós. Nós
dizemos procurador de um grande senhor romano. Eu era filha única. Vivia feliz. Morávamos perto da beira-
mar, numa casa de campo muito bonita, da qual meu pai era o intendente. De vez em quando vinha o dono
da casa de campo, ou sua mulher, e os filhos… Eles nos tratavam bem e eram bons para comigo. As moças
brincavam comigo… Minha mãe se sentia feliz… e estava orgulhosa de mim. Eu era bonita… inteligente…
tudo me saia bem. Mas eu gostava mais das coisas frívolas, do que das coisas boas. Em Siracusa há um
grande teatro… Bonito… amplo. Serve para passatempos e para comédias… Nas comédias e tragédias são
muito usadas as dançarinas. Elas dão, com suas danças mudas, o significado do que o coro executa. Tu não
sabes… mas também com as mãos, com os movimentos do corpo, podemos exprimir os sentimentos de um
homem agitado por qualquer paixão… Jovenzinhos e mocinhas são instruídos para serem comediantes em
determinadas representações. Eles devem ser bonitos, como deuses e ágeis como borboletas… Eu gostava
muito de subir para um ponto um pouco mais alto, de onde se podia ver com facilidade as danças das
dançarinas. Depois, eu ia repetir nos prados floridos, sobre as areias louras de minha terra e no jardim da
casa de campo, aquilo que eu havia visto. Ora eu parecia uma estátua feita com arte, ora um vento que
passa voando, pois eu aprendia a ficar parada como estátua, ou correr voando, quase sem tocar no chão.
Minhas amigas ricas me admiravam… e minha mãe se sentia orgulhosa…
A Mulher Velada fala, recorda, revê, sonha com o passado, e chora. Seus soluços são como vírgulas
entre suas palavras.
– Um dia… era o mês de maio… toda Siracusa estava em flor. Pouco antes haviam terminado as festas, e
eu tinha ficado entusiasmada com uma das danças executadas no teatro. Os patrões me haviam levado para
lá com as suas filhas. Eu tinha catorze anos… Naquela dança as dançarinas deviam representar as ninfas da
primavera correndo para adorarem a Ceres, dançavando coroadas com rosas… A veste era um véu muito
transparente, uma rede de fios como os da teia de aranha, sobre a qual as rosas estavam espalhadas… Na
dança elas pareciam Hebes aladas de tão rápidas que passavam com seus corpos maravilhosos que podiam
ser vistos por entre as charpas do véu florido que se abriam, e formavam asas atrás delas… Eu estudei
aquela dança… e um dia…
168.4 A Mulher Velada chora ainda mais forte… Depois continua.
– Eu era bonita. Ainda sou. Olha.
E ela se põe de pé, joga rapidamente o véu para trás, deixando cair o manto. Quem fica assombrada sou
eu, porque vejo aparecer, de debaixo daquelas vestes, Aglaé, belíssima, mesmo com uma veste simples, e
arranjo de suas tranças muito simples, mesmo sem suas jóias, sem peças pomposas, uma verdadeira flor de
carne, delgada mas perfeita, dona de um rosto deslumbrante, de uma cor moreno pálida, com olhos de
veludo, cheios de fogo.
Ela torna a ajoelhar-se diante de Maria:
– Eu era bonita, para minha desventura. Estava louca. Naquele dia eu me vesti com véus, e as moças,
minhas senhoras, me ajudaram, pois elas gostavam de me ver dançar… Fui vestir-me em um trecho de
praia, onde as areias eram fulvas, bem diante do mar azul. Sobre a praia, que naquele trecho estava
deserta, havia flores nativas brancas e amarelas, com o perfume forte das amendoeiras, da baunilha, de
carne que acabou de ser lavada. Também dos quintais vinham ondas de um perfume penetrante, que enchia
os roseirais de Siracusa, até o mar e a areia. O sol fazia sair cheiro de todas as coisas… uma espécie de
pânico me subiu à cabeça. Eu me considerava também uma ninfa, e adorava… a quem? A terra fecunda? O
sol fecundador? Não sei. Pagã, no meio de pagãos, acho que eu adorava a sensualidade, o meu despótico
rei, que eu não sabia que tinha, e era mais poderoso do que um deus… Coroei-me com rosas apanhadas no
jardim… e dancei… Estava ébria de luz, de perfumes, do prazer de ser jovem, ágil e bonita. Dancei… e fui
vista. Vi que estava sendo olhada. Mas não me envergonhei de aparecer nua diante dos dois olhos cobiçosos
de um homem. Pelo contrário, eu me comprazia em levantar ainda mais os meus voos… Aquele prazer por
ser admirada, dava-me asas… Isso foi a minha ruína. Três dias depois, eu fiquei sozinha, porque os patrões
haviam partido, voltando para a sua morada em Roma. Mas eu não fiquei em casa… Aqueles olhos
admiradores me haviam feito conhecer uma outra coisa, além da dança…Haviam-me revelado a
sensualidade e o sexo.
Maria faz um gesto involuntário de desagrado, e Aglaé o percebe.
– Oh! Mas tu és pura! E talvez eu te esteja causando repugnância…
– Fala, fala, minha filha. É melhor a Maria do que a Ele. Maria é um mar que lava…
– Sim. É melhori. Quem me disse isso fui eu mesma, quando fiquei sabendo que Ele tinha uma mãe…
Porque, primeiro, vendo-o tão diferente dos outros homens, o único que é todo espiritual — agora sei que o
espírito existe — antes eu não teria podido dizer de que era feito o teu Filho, sendo assim sem sensualidade,
ainda mesmo sendo homem. Dentro de mim, pensei que Ele não tinha mãe, mas que tivesse descido sobre a
terra, para salvar as misérias, das quais eu sou a maior…
168.5 Todos os dias eu passei a voltar àquele lugar, esperando ver de novo aquele homem jovem, moreno,
bonito… E algum tempo depois eu o tornei a ver… Ele me falou. E me disse: “Vem comigo para Roma. Eu te
levarei à corte imperial, e tu serás a pérola de Roma.” Eu respondi; “Sim, eu serei a tua mulher fiel. Vem a
casa de meu pai.” Ele riu, zombeteiro, e me beijou. Depois disse: “Minha mulher, não. Tu serás uma deusa,
e eu teu sacerdote, e te revelarei os segredos da vida e do prazer.” Eu estava louca, era uma menina. Mas,
ainda que fosse uma menina, já conhecia o que é a vida… eu era ladina. Estava louca, mas ainda não
depravada… e senti repulsa pela proposta dele. Escapei dos braços dele, fugindo para casa… Mas não falei
à minha mãe… não fui capaz de resistir ao desejo de revê-lo. Os beijos dele me tinham feito ficar mais
louca… E eu voltei. Mal eu tinha chegado àquela praia solitária, quando ele me abraçou, beijando-me com
frenesi, dando-me uma chuva de beijos, de palavras de amor e de perguntas: “Neste amor não está tudo?
Não é ele mais doce do que um enlace? Que outra coisa queres tu? Podes viver sem isto?”
Oh! Mãe!… Eu fugi, naquela mesma tarde, com aquele sórdido patrício… e passei a ser como um trapo,
que alguém calca sob o peso de sua animalidade… Não passei a ser uma deusa, mas uma lama. Não uma
pérola, mas um estrume. Não foi a vida a me revelar, mas a sujeira da vida, a infâmia, a repugnância, a dor,
a vergonha, e a infinita miséria de não ser mais minha… E depois… veio a queda total. Depois de seis meses
de orgia, cansado de mim, ele passou a novos amores, e eu me vi na rua. Desfrutei da minha capacidade de
dançarina…Já sabia que minha mãe havia morrido de dor e que eu não tinha mais casa, nem tinha mais pai.
Um mestre de dança me acolheu em seu ginásio. Ele me aperfeiçoou… aproveitou-se de mim… lançando-
me, como flor experiente em toda sorte de artes da sensualidade, no meio do corrompido patriciado de
Roma. A flor, já suja, caiu em uma cloaca. Foram dez anos de descida para o abismo. Sempre mais para
baixo. Depois fui trazida para cá para alegrar os ócios de Herodes, e fui aprisionada pelo novo patrão. Oh!
Não existe cão seguro por uma corrente, que esteja mais acorrentado do que uma de nós! Não existe patrão
de latido mais brutal, do que o homem que possui uma mulher! Mãe… tu estás tremendo. Eu te estou
causando horror!
Maria leva sua mão ao coração, como se ele estivesse ferido. Mas ainda responde:
– Não. Tu, não. Mas o que causa horror é o Mal que domina tanto a terra. Continua, minha pobre filha.
– Ele me levou a Hebron… Era eu livre? Era eu rica? Sim, porque não estava no cárcere, e vivia afogada
no meio das jóias. Eu não podia ver senão quem ele queria, já não tinha mais direito sobre mim mesma.
168.6 Um dia chegou um homem a Hebron: era o Homem, o teu Filho. Aquela casa era amada por Ele. Eu
fiquei sabendo disso, e o convidei a entrar. Shamai não estava lá… Da janela, eu tinha já ouvido palavras de
alguém que me haviam perturbado o coração. Mas, eu te juro, ó mãe, que não foi a carne que me impeliu a
ir ao teu Jesus. Foi o que Ele me revelou, que me impeliu, lá da soleira da casa, desafiando as chalaças do
vulgo, a dizer-lhe: “Entra”. Foi a alma, que descobri ter. Ele me disse: “O meu nome quer dizer Salvador. Eu
salvo quem tem a boa vontade de ser salvo. Eu salvo as pessoas, ensinando-as a serem puras, a querer essa
dor, mas com honra, e o Bem a todo custo. Eu sou o que procura os perdidos, o que dá a vida. Eu sou
Pureza e Verdade.” Ele me disse que eu também tinha uma alma e que a havia matado com o meu modo de
viver. Mas Ele não me amaldiçoou, nem zombou de mim! Nunca olhou para mim! Foi o primeiro homem que
não me sugou com um olhar ávido, pois eu tenho comigo a tremenda maldição de atrair os homens. Disse-
me que quem O procura O encontra porque Ele está onde há necessidade de Médico e de remédio. Depois
Ele foi-se embora. Mas as suas palavras ficaram para sempre. Eu dizia a mim mesma: “O seu nome quer
dizer Salvador”, como para curar-me. As suas palavras e os seus amigos, os pastores, ficaram comigo . Eu
dei o primeiro passo, dando-lhes esmola e pedindo orações… Depois…fugi…
Que santa fuga foi aquela! Fugi do pecado, em busca do Salvador. Estava certa de encontrá-lo, pois Ele
me havia prometido. Mandaram-me a um homem chamado João, como se fosse Ele. Mas não era. Um
hebreu me falou que eu fosse às Águas Belas. Eu vivia da venda do ouro que possuía. Nos meses em que
estive vagando, tive que conservar coberto o meu rosto, para não ser apanhada de novo, porque, na
verdade, a Aglaé estava sepultada debaixo daquele véu. A antiga Aglaé estava morta. O que estava por
baixo daquele véu era a alma dela, ferida e esgotada, à procura do seu médico. Muitas vezes eu tive que
escapar da sensualidade do macho, mesmo estando quase anulada, naquela veste. Até um dos amigos do
teu Filho foi um deles…
168.7 Em Águas Belas, eu vivia como um animal: pobre, mas feliz. O orvalho e o rio me limparam menos do
que as suas palavras.. Oh! Não perdi nenhuma delas! Certa vez Ele perdoou um homem assassino. Eu
ouvi… e fui até Ele para gritar-lhe: “Perdoa a mim também…” Uma outra vez, Ele falou da inocência
perdida… Oh! Como chorei de saudade! Outra vez Ele curou um leproso…e eu estava para gritar: “Limpa-
me do meu pecado…” Outra vez, Ele curou um louco, que era romano… e eu chorei… Aquilo me fez dizer
que as pátrias passam, mas o Céu fica. Em certa tarde tempestuosa, ele me acolheu em sua casa… depois
fez que o feitor me hospedasse… e, por um menino, mandou-me dizer: “Não chores…” Oh! Que bondade a
dele! Oh! Que miséria a minha! Tão grandes as duas, que eu nem ousava levar minhas misérias, para pô-las
aos pés dele… não obstante um dos seus companheiros me instruísse, numa certa noite, sobre a infinita
misericórdia do teu Filho. Depois, apanhado em uma emboscada por alguém que via pecado no desejo duma
alma renascida, o Salvador partiu… Eu fiquei esperando por ele… Mas também ficou a vingança esperando-
o alguémmais indigno do que eu de olhar para Ele. Pois eu pequei como pagã contra mim mesma, ao passo
que eles pecam já conhecendo Deus contra o Filho de Deus… Bateram em mim, mais do que com pedradas,
feriram-me com acusação, mais do que na carne, me feriram na minha pobre alma, levando-a ao desespero.
Oh! Que luta terrível tive eu que sustentar contra mim mesma! Contundida, sangrando, ferida, com
febre, sem ter mais o meu Médico, sem casa nem pão, olhei para trás e para diante… O passado me dizia:
“Volta!” O presente me dizia: “Mata-te!” O futuro, porém, me dizia: “Espera!” E eu esperei… Não me matei.
Se Ele me expulsasse, eu o faria, porque não quero mais ser o que eu era!… Eu me arrastei até um
povoado, pedindo abrigo…Mas lá me reconheceram. Como um animal, eu tive que fugir para um lado e
para outro, sempre perseguida, escarnecida, sempre amaldiçoada, porque queria ser honesta, e porque
tinha decepcionado àqueles que, usando-me, queriam ferir o teu Filho. Acompanhando o rio, fui subindo até
a Galileia, e cheguei até aqui… Tu não estavas aqui… Então, fui até Cafarnaum. Mal tinha acabado de sair
de lá, um velho me viu. Era um dos inimigos dele, e me quis tomar como prova de acusação contra o teu
Filho, mas, como eu me pus a chorar, sem reagir, me disse: “Tudo poderia mudar para ti, se quisesses ser
minha amante e minha cúmplice na acusação do Rabi de Nazaré. Bastaria que tu dissesses, diante dos
meus amigos, que Ele era teu amante…” Eu fugi dali, como alguém que vê abrir-se uma moita de flores sob
o desenroscar-se da serpente.
168.8 Cheguei então a compreender que não posso ir aos pés dele… e vim lançar-me aos teus. Aqui estou:
calca-me com os pés, eu sou lama. Aqui estou: expulsa-me, eu sou pecadora. Eis-me aqui: dize o meu nome:
meretriz. Tudo eu aceitarei de ti. Mas, tem dó de mim, tu, ó Mãe. Pega a minha pobre alma suja, e leva-a a
Ele. Em tuas mãos seria um delito colocar a minha luxúria. Mas só nelas ela ficará protegida do mundo, que
a deseja, e se transformará em penitência. Dize-me o que fazer. Dize-me como devo fazer para não ser mais
Aglaé. O que eu devo mutilar em mim? O que eu devo arrancar de mim, para não ser mais pecado, não mais
sedução, a fim de não ter mais o que temer de mim mesma e dos homens? Deverei arrancar os olhos?
Deverei queimar os lábios? Devo cortar a língua? Os olhos, os lábios, a língua me têm servido para fazer o
mal. Eu não quero mais o mal e estou disposta a punir, aos olhos, lábios e língua, sacrificando-me. Ou
queres que eu arranque os quadris, que me impeliram aos amores perversos? Ou as vísceras insaciáveis,
cujo despertar eu temo sempre? Dize-me, dize-me o que é que se faz para nos esquecermos de que somos
mulheres, e como é que se faz para fazer que eles se esqueçam que somos mulheres?
Maria está perturbada. Elachora, sofre, mas o único sinal de sua dor são as lágrimas que caem sobre a
arrependida.
– Eu quero morrer perdoada. Eu quero morrer, não pensando em nada mais, a não ser no Salvador.
Quero morrer com a sua Sabedoria como amiga e já não posso ficar perto dela, porque o mundo está de
olhos para acusar-nos, a mim e a Ele…
Aglaé chora, caída completamente por terra, como um trapo.
168.9 Maria põe-se de pé, murmurando:
– Como é difícil ser redentores! –e está quase sem fôlego.
Aglaé, que ouve aquele murmúrio, e compreende o que está acontecendo, geme, dizendo:
– Estás vendo? Estás vendo que tu também sentes asco? Agora, vou-me embora. Tudo se acabou para
mim!
– Não, minha filha. Tudo não acabou. Para ti, agora é que começa. Escuta, ó pobre alma. Não estou
gemendo por ti. Mas pelo mundo cruel. Eu não te deixo ir embora, mas te recolho, pobre andorinha que a
tempestade fez vir bater contra as minhas paredes. Eu te levarei a Jesus, e Ele te dará o caminho da tua
redenção…
– Eu não espero mais… O mundo tem razão. Eu não posso ser perdoada.
– Pelo mundo, não. Mas por Deus, sim. Deixa que eu te fale em nome do Supremo Amor, que me deu um
Filho, para eu dar ao mundo. Ele me tirou da feliz ignorância da virgindade consagrada, para que o mundo
tivesse o Perdão. Ele me tirou sangue, não do parto, mas do coração, ao revelar-me que o meu Filho é a
Grande Vitima. Olha para mim, minha filha. Neste coração há uma grande ferida. Há mais de trinta anos ele
vem gemendo, e a ferida se dilata sempre mais, e o consome. Sabes como ela se chama?
– Dor.
– Não. Amor. E o amor é o que me faz sangrar para que o meu Filho não fique sozinho na obra da
salvação. É o amor que põe em mim fogo, a fim de que eu possa purificar aqueles que não têm coragem de
ir até o meu Filho. É o amor que me dá pranto, para que eu lave os pecadores. Tu querias as minhas
carícias. Eu te dou as minhas lágrimas, que te tornam branca, para poderes olhar o meu Senhor. Não
choresassim! Não és a única pecadora que vem ao Senhor, sendoredimida. Já houve outras e haverá outras.
Tens dúvidas de que Ele possa te perdoar? Não ves em todas essas coisas que te aconteceram uma
misteriosa disposição da Bondade Divina? Quem foi que te conduziu para a Judeiaeia? Quem te levou a
João? Quem te colocouà janela naquela manhã? Quem acendeu uma luz fazendo-te conhecer as suas
palavras? Quem te deu a capacidade de compreender que a caridade, unida à oração de quem recebeu um
beneficio, obtém o auxíliodivino? Quem foi que te deu força para fugires da casa de Shamai? Quem te deu
forças para perseverares nos primeiros dias, até a chegada dele? Quem te levou pelo seu caminho? Quem te
tornou capaz de viver como penitente, para limpares a tua alma? Quem te deu uma alma de mártir ,uma
alma cheia de fé, de perseverança e do desejo da pureza?…
Sim, não fiques sacudindo a cabeça. Pensas que só é puro quem não conheceu a sensualidade? Pensas
que a tua alma não pode tornar-se de novo virgem e bela? Oh! Minha filha! Mas, entre a minha pureza, que
já é toda uma graça do Senhor, e a tua heróica subida refluente para atingir outra vez o alto da pureza
perdida, podes acreditar que a tua é maior. Tu a estás construindo: lutando contra a sensualidade, a
necessidade e o hábito. Em mim ela é um dote tão natural, como a respiração. Tu tens que cortar as asas
dos pensamentos, dos afetos e da carne, para não lembrares, nem desejares, e para não consentir. Eu… oh!
por acaso pode uma criaturinha de poucas horas ter desejos carnais? Terá ela algum merecimento por isso?
Assim sou eu. Eu não sei o que seja esta trágica fome que fez da humanidade, vítima. Eu não conheço outra
coisa, senão a fome santíssima de Deus. Enquanto que tu não conhecias esta fome e tiveste que aprender
por ti mesma. Mas tu dominaste a outra, por amor a Deus, que é o teu único amor agora. Sorri, ó filha da
divina misericórdia! Meu Filho está fazendo em ti o que Ele te disse em Hebron. E já o fez. Tu já estás
salva, porque tiveste boa vontade de salvar-te, porque aprendeste o que é a pureza, a dor e o Bem. Tua
alma renasceu. Sim. Só precisas da palavra dele, que te diga em nome de Deus: “Estás perdoada.” Isto eu
não posso dizer. Mas te dou o meu beijo, como promessa e princípio do perdão…
Ó Espírito Eterno, um pouco de Ti há sempre em tua Maria! Deixa que Ele te derrame, ó Espírito
Santificador, sobre a criatura que chora e que espera. Pelo nosso Filho, ó Deus de Amor, salva esta que de
Deus espera a salvação. A Graça, da qual disse o Anjo que Deus me cumulou, desça, por um milagre, sobre
esta, e a conforte, até que Jesus, o Salvador Bendito, o Supremo Sacerdote, a absolva em nome do Pai, do
Filho e do Espírito…
168.10 Já é noite, minha filha. Estás cansada e ferida. Vem. Descansa. Amanhã partirás. Eu te encaminharei
para uma família de gente honesta. Porque muitos estão vindo agora para cá. Eu te darei uma veste muito
semelhante à minha. Ficarás parecendo uma hebreia. E, como eu só tornarei a ver o meu Filho na Judeia, já
que a Páscoa se aproxima e na Lua Nova de abril estaremos em Betânia, nessa ocasião eu falarei de ti. Vai
para a casa de Simão, o Zelotes. Lá me encontrarás, e eu te levarei a Ele.
Aglaé ainda está chorando. Mas agora já está mais tranquila. Ela sentou-se no chão. Também Maria
voltou a sentar-se. Aglaé pousa a cabeça sobre os joelhos dela e beija-lhe as mãos… Depois, ainda geme:
– Eles irão me reconhecer…
– Oh! Não. Não tenhas medo. As tuas vestes já estavam muito conhecidas. Mas eu vou te arrumar para
esta tua viagem em busca de Perdão, e ficarás como a virgem que vai para as núpcias: diferente, e
desconhecida da multidão, que nem suspeita do rito. Vem. Eu tenho um pequeno quarto, ao lado do meu.
Nele já se alojaram santos e peregrinos, desejosos de ir para Deus. Ele hospedará a ti também.
Aglaé procura apanhar sua capa e seu véu.
– Deixa isso aí. São as vestes da pobre Aglaé, quando perdida. Mas agora não está mais… e dela nem
mesmo as vestes devem existir mais. Estas vestes ouviram tantas palavras de ódio… e o ódio faz tão mal
quanto o pecado.
Saem as duas para a horta, que está no escuro, entram depois no quartinho de José. Maria acende a
pequena candeia, que está sobre uma mesinha, acaricia mais uma vez a arrependida, fecha a porta, e, com
as três chamas de sua candeia, alumia para ver onde vai pôr a capa toda rasgada de Aglaé, de tal modo que
nenhum visitante amanhã possa ver.
169. Primeiro Discurso da Montanha:
a missão dos apóstolos e dos discípulos.
22 de maio de 1945.
169.1 Jesus está andando sozinho ligeiro, por uma estrada principal. Vai na direção de um monte, que é

bom descrever, porque somente com um gráfico, creio que não conseguirei. O gráfico[7] é assim:

Portanto, este monte, que se ergue perto da estrada principal, que sai do lago para o oeste, depois de
um certo trecho, tem o seu começo propriamente dito com uma elevação pequena e suave, que se prolonga
a uma grande distância. Ela está num planalto, do qual se pode ver o lago e a cidade de Tiberíades ao sul, e
outras, elevadas, menos belas, ao norte. Depois, o monte começa a erguer-se de modo bem acentuado, até
terminar num pico, para depois abaixar-se de novo formando um outro pico semelhante, tomando a forma
curiosa de uma sela.
Jesus começa a subida para o planalto por uma vereda ainda bastante aprazível, chegando a um
pequeno lugarejo, cujos habitantes com certeza cultivam esse pequeno altiplano onde o trigo está
começando a soltar espigas. Jesus atravessa o povoado, depois continua a andar entre os campos e os
prados, todos cobertos de flores e de frutos, carregados para a futura colheita.
O dia está sereno e mostra as belezas na natureza circunvizinha. Além da montanha solitária, para a
qual Jesus se dirige, vê-se, ao norte, o cume imponente do Hermon, cujo pico parece uma enorme pérola,
posta sobre uma base de esmeraldas, de tão alvo que é aquele pico, encapuzado de neve, enquanto a
encosta se mostra verde, por causa dos bosques que a cobrem. Depois do lago, até o Hermon, está a
planície verde do lago Meron, que daqui não se pode ver, há outros montes na direção de Tiberíades, no
lado ocidental. Mais montes que se esboçam ao longe e outras planícies suaves. Ao sul, além da estrada
principal, estou vendo colinas, que talvez escondam Nazaré. Quanto mais se sobe, mais a vista se espraia.
Daqui não vejo o que há ao ocidente, porque o monte à frente é como uma parede.
169.2 O primeiro que Jesus encontra é o Apóstolo Filipe, que parece estar de sentinela.
– Mestre? Tu estás aqui? Nós te esperávamos na estrada. Eu estou aqui esperando os companheiros, que
foram procurar leite com os pastores do lugar. Lá em baixo, na estrada, está Simão com Judas de Simão, e
também Isaque e… oh! Aí vêm eles. Vinde! Vinde! O Mestre está aqui!
Os Apóstolos, que descem com frascos e odres, põem-se a correr. Os mais jovens, naturalmente, chegam
primeiro. A festa que fazem ao Mestre é comovente. Finalmente, estão todos reunidos e, enquanto Jesus
sorri, todos querem falar para contar…
– Nós te esperávamos na estrada!
– Tínhamos pensado que nem virias hoje.
– Há muita gente, sabes?
– Oh! Nós estávamos muito receosos, porque aí estão escribas e alguns discípulos de Gamaliel…
– Senhor! Tu nos deixaste justamente no exato momento! Eu nunca tive tanto medo como naquela hora.
Não me faças mais uma brincadeira dessas!
Pedro se lamenta, e Jesus sorri, e pergunta:
– Aconteceu-vos alguma coisa de mal?
– Oh! Não! Pelo contrário…Oh! Meu Mestre! Mas, sabes que João tomou a palavra?… Parecia até que
eras Tu que falavas nele. Eu… nós estávamos estupefatos… Este rapaz que, há um ano, só era capaz de
jogar a rede… oh!
Pedro ainda está admirado, e sacode o sorridente João, que fica calado:
– Vede bem se é possível que este rapazinho tenha, com esta boca sorridente, dito aquelas palavras!
Parecia Salomão.
– Também Simão falou bem, meu Senhor! Ele portou-se mesmo como o “chefe” –diz João.
– Claro! Ele me pegou, e me pôs lá… Dizem que eu falei bem. Que seja. Eu não sei… porque, entre o
espanto pelas palavras de João e o medo de falar no meio de tanta gente, e obrigar-Te a fazer uma triste
figura, eu estava desorientado…
– De obrigar-me a fazer feio? A Mim? Mas, se eras tu que estavas falando, a triste figura tu é que a
terias feito, Simão –provoca-o Jesus.
– Oh! Por mim… Não me importava comigo mesmo. Eu não queria é que escarnecessem de Ti, como de
um tolo, por haveres tomado um idiota para ser teu apóstolo.
Jesus está radiante de alegria por causa da humildade e do amor de Pedro. Mas pergunta somente isto:
– E os outros?
– O Zelota também falou bem. Mas ele… já se sabe. Este aqui é que foi a surpresa! Pois agora, desde que
estivemos naquela oração, o rapaz parece estar sempre com a alma no Céu.
– É verdade. É verdade.
Todos confirmam as palavras de Pedro. Depois continuam a contar.
– Sabes de uma coisa? Agora há dois discípulos que, segundo o parecer de Judas de Simão, são muito
importantes. Judas está sempre muito ocupado. É natural. Ele conhece muitos daqueles que estão no alto e
sabe lidar com eles. Gosta de falar… E fala bem. Mas o povo prefere ouvir Simão, e aos teus irmãos e,
sobretudo, este rapaz. Ontem ainda, um homem me disse: “Como fala bem este jovem — era de judas que
estava falando —, mas eu prefiro a ti.” Oh! Coitado! Preferir logo a mim, que só sei dizer quatro palavras!…
Por que é que vieste por aqui? O lugar combinado para o nosso encontro era lá na estrada onde ficamos.
– Porque eu sabia que vos teria encontrado aqui. 169.3Agora escutai. Descei e ide dizer aos outros que
venham. Também aos discípulos conhecidos. Que o povo não venha hoje. Quero falar somente a vós.
– Então, é melhor deixar tudo para a tarde. Quando o sol já está se pondo, o povo costuma espalhar-se
pelas aldeias vizinhas, e volta na manhã seguinte, para ficar te esperando. Se não… quem vai poder deter
esse povo?
– Está bem. Façam assim, então. Eu vos fico esperando lá no cume. As noites já não estão frias.
Poderemos dormir até ao ar livre.
– Onde quiseres, Mestre. Basta que estejas conosco.
Os discípulos se afastam, e Jesus começa de novo a subir até o cume, que é aquele já visto na visão do
ano passado[8], no fim do Sermão da Montanha, no primeiro encontro com a Madalena. O panorama vai-se
tornando ainda mais amplo, à medida que vai ficando mais iluminado pelo pôr-do-sol que está começando.
Jesus se assenta sobre uma pedra e se recolhe em meditação. E fica assim, até que o barulho dos passos na
vereda começam a fazê-lo perceber que os apóstolos já estão de volta. A tarde já chegou. Mas, naquela
altitude, o sol ainda continua a extrair odores de todas as ervas e pequenas flores. Os lírios selvagens têm
um cheiro forte, e os altos pedúnculos dos narcisos estão projetando para fora as suas estrelas e seus
botões, como se quisessem atrair as orvalhadas.
Jesus se põe de pé, e saúda com a sua saudação de costume:
– A paz esteja convosco.
Muitos são os discípulos que vão subindo com os apóstolos. Isaque vai à frente deles, com o seu sorriso
de asceta brilhando em seu rosto delgado. Todos se ajuntam ao redor de Jesus, que agora está saudando, de
um modo particular, Judas Iscariotes e Simão, o Zelota.
– Quis que viésseis todos comigo, para estar algumas horas convosco e para falar a vós somente. Tenho
algumas coisas para dizer-vos, a fim de preparar-vos, sempre melhor, para a missão. Vamos tomar a
refeição, e depois falaremos. Assim, durante o nosso sono, nossas almas continuarão a saborear a doutrina.
Terminam a ceia frugal e depois se ajuntam em círculo ao redor de Jesus, que se assentou em uma
grande pedra. São eles mais ou menos uma centena, talvez até mais, somando os discípulos e os apóstolos.
Uma coroa de rostos atentos, que as chamas de dois fogos iluminam, dando-lhes um ar misterioso.
169.4 Jesus fala baixo, fazendo gestos calmos, com um rosto que está parecendo mais branco, porque está
em realce pelo azul escuro de sua veste, exposta ao fraco luar da lua nova, que vem subindo justamente ao
lado do Senhor, uma lua ainda parecendo uma pequena vírgula no céu, ou uma pequena lâmina de luz
acariciando o Senhor do Céu e da terra.
– Eu vos quis aqui, assim em particular, porque vós sois os meus amigos. Eu vos chamei, depois da
primeira prova feita pelos doze, tanto para ampliar o círculo dos meus discípulos ativos, como também para
ouvir de vós as primeiras reações do serdes dirigidos por quem Eu vos dou como meus continuadores. Sei
que tudo correu bem. Eu apoiava as almas dos apóstolos com minha oração, que tinham uma nova força na
mente e no coração. Uma força que não procede de estudo humano, mas do abandono completo em Deus.
169.5 Os que mais deram são os que mais se esqueceram de si mesmos. E esquecerem-se de si mesmos é
uma coisa difícil. O homem é feito de recordações. As que falam mais alto são as recordações do próprio eu.
É preciso fazer uma distinção. Há o eu espiritual, dado pela alma que se recorda de Deus e de sua origem
em Deus, e há o eu inferior, da carne, que se recorda de mil exigências, ou de si mesma, ou das paixões.
Visto serem tantas as vozes que formam um coro, que vence a voz solitária do espírito, que recorda sua
nobreza de filho de Deus, se o espírito não for bem robusto. Por essa recordação santa, que é necessário
estimular sempre mais, conservando-a viva e forte, como perfeitos discípulos, é preciso esquecer-se de si
mesmos, de todas as suas recordações, exigências e medrosas reflexões do eu humano.
Nesta primeira prova, com os meus doze, aqueles que mais se doaram foram os que mais se esqueceram
de si mesmos. Esquecidos, não só do seu passado, mas também de sua limitada personalidade.Os que não
se recordaram mais do que eram, ao ponto de se unirem a Deus, e não terem medo. Medo de nada. Por que
a severidade de alguns? Porque se recordaram dos seus escrúpulos habituais, de suas considerações
habituais, de suas habituais prevenções. Por que o laconismo de outros? Porque eles se lembraram de suas
incapacidades doutrinárias, e recearam pela sua imagem ou pela minha. Por que ainda as vistosas exibições
de outros? Porque eles se lembraram de sua habitual soberba, de seu desejo de se mostrarem, de serem
aplaudidos, de sobressaírem, de serem “alguma coisa.” Enfim, porque o repentino desejo de revelar-se de
outros, com uma oratória rabínica, firme, persuasiva, triunfal? Porque eles, e só eles, souberam lembrar-se
de Deus assim como os que até agora foram humildes e procuravam não serem observados, enfim, no
momento certo, souberam assumir a dignidade do primado que lhes fora conferida, e que eles não quiseram
exercer, por temor de estarem presumindo demais. As primeiras três categorias lembraram-se do eu
inferior. A outra, a quarta, do eu superior, e não tiveram medo. Sentiam que Deus estava com eles, que
Deus estava neles, e não temeram. Oh! Santa audácia de quem está com Deus!
169.6 Agora, pois, escutai, apóstolos e discípulos. Os apóstolos, já ouviram estes conceitos. Mas agora os
entendereis, mais em profundidade. Os discípulos, não ouviram ainda, ou só ouviram fragmentos. Esculpi-os
no vosso coração. Porque Eu sempre precisarei de vós, uma vez que, o rebanho de Cristo, cada vez mais,
está aumentando. O mundo sempre vos atacará, crescendo nele os lobos contra Mim, e contra o meu
rebanho. Eu quero pôr em vossas mãos as armas para a defesa da Doutrina e do meu rebanho. O que basta
para o rebanho não é suficiente para vós, pequenos pastores. Se é compreensível que as ovelhas cometam
erros, ao comerem ervas que fazem o sangue ficar amargo, ou os seus desejos tornarem-se loucos, não se
pode compreender que vós cometais os mesmos erros, levando muitos rebanhos para a sua perdição. Pensai
bem, onde houver um pastor ídolo que só cuida de si mesmo, as ovelhas morrem envenenadas ou assaltadas
pelos lobos.
169.7 Vós sois o sal da terra e a luz do mundo. Mas, se deixásseis de cumprir vossa missão, tornar-vos-íeis
um sal insípido e inútil. Nada poderia restituir-vos sabor, uma vez que Deus não vos pode dar, visto que,
tendo-o recebido como dom de Deus, vós lhe tirastes o gosto, lavando-o com as águas insípidas e sujas da
humanidade, adoçando-o com a corrompida doçura da sensualidade, misturando ao puro sal de Deus os
detritos da soberba, da avareza, da gula, da luxúria, da ira, da preguiça, de modo que apenas um grãozinho
de sal resista para cada sete grãozinhos de seus vícios. O vosso sal já não é mais do que uma mistura de
pedras, onde desaparece o pobre grãozinho perdido; de pedras que gritam embaixo do dente, que deixam
na boca um gosto de terra, e fazem repugnante e desagradável a comida. Nem mesmo para outros usos
inferiores serve, pois seria nocivo até para qualquer outro uso humano, uma sabedoria mergulhada nos sete
vícios. O sal, então, já não serve mais, senão para ser jogado fora, e pisado pelos pés descuidados do povo.
Quantas, quantas pessoas vão poder pisar assim nos homens de Deus! Porque estes, que foram chamados,
terão permitido que o povo descuidado pisasse neles, porque não têm mais a substância à qual se pede
socorro com um sabor escolhido, de coisas do céu, mas serão apenas detritos.
Vós sois a luz do mundo. Vós sois como este cume, que foi o último a receber o sol, e é o primeiro a
pratear-se com a lua. Quem está colocado no alto, brilha, e é visto, porque até o olho mais desatento para,
de vez em quando, para nas alturas. O olho material, que se costuma dizer ser espelho da alma, reflete a
aspiração da alma, uma aspiração muitas vezes inadvertida, mas sempre viva, enquanto o homem não for
um demônio, aspiração do alto, onde a razão instintiva coloca o Altíssimo. E buscando o Céu, pelo menos
alguma vez na vida, ergue os olhos para as alturas.
Eu vos peço que vos recordeis do que todos nós fazemos, desde a nossa infância, quando entramos em
Jerusalém. Onde colocamos os nossos olhares? No monte Mória, coroado pelo triunfo do mármore e pelo
ouro do Templo. E quando estamos dentro do recinto? Nas cúpulas preciosas que resplandecem ao sol.
Tudo o que é belo no sagrado recinto, tudo o que há nos seus átrios, nos seus pórticos e pátios! Mas os
olhares correm depois para cima. Ainda vos peço que vos recordeis quando se está a caminho. Para onde se
dirige o nosso olho, como que para nos esquecermos das grandes distâncias do caminho, da monotonia, do
cansaço, do calor ou da lama? Para os picos, mesmo se pequenos, mesmo se distantes. Com que alívio os
vemos aparecer, quando estamos em uma planície plana e uniforme! Aqui há lama? Lá há esplendor. Aqui
há mormaço? Lá existe frescor. Aqui há limitação para o olho. Lá há a amplidão. Basta olhar para eles, e o
dia já nos parece menos quente, a lama menos pegajosa, menos triste o caminhar. Por isso, se uma cidade
brilha no alto de um monte, não há olho que não a admire. Dir-se-ia que até um lugarejo fica embelezado, se
se coloca, quase aéreo, no cume de uma montanha. É por isso que na verdadeira e nas falsas religiões,
sempre que tenha sido possível, os templos eram postos em lugares altos e, se não havia um monte ou
colina, fazia-se para eles um pedestal de pedra, construindo, às custas de braços, a elevação sobre a qual
colocar o templo. Por que se faz isso? Porque se quer que o templo seja visto, para elevar, com a sua visão,
o pensamento para Deus.
Igualmente, Eu disse que vós sois uma luz. Quem acende uma luz à noite em sua casa, onde a coloca?
No buraco debaixo do forno? Na gruta que serve de adega? Ou fechada dentro de um cofre? Ou,
simplesmente e somente, a abafamos sob o alqueire? Não. Porque, então, seria inútil acendê-la. Mas coloca-
se a luz no alto de uma viga, ou pendurada em um gancho, para que estando alto, ilumine toda a sala e a
todos os habitantes nela. Mas, justamente porque o que está sendo posto no alto tem a incumbência de
fazer-nos lembrar de Deus, e de produzir luz, é que deve estar à altura da tarefa a ser cumprida.
169.8 Vós deveis lembrar-vos do Verdadeiro Deus. Tomai, pois, cuidado com o paganismo septiforme. Do
contrário, vos tornareis lugares altos profanos, com pequenos bosques consagrados a este ou aquele deus,
e arrastareis para o vosso paganismo, aqueles que vos consideram templos de Deus. Vós deveis portar a luz
de Deus. Um pavio sujo, sem azeite, produz fumaça, e não luz, solta mau cheiro, não claridade. Uma luz
escondida atrás de um quartzo sujo não cria a beleza esplendida, não cria o fúlgido jogo de luz sobre o
lúcido mineral. Mas definha atrás do véu da fumaça escura que torna o diamantífero anteparo opaco.
A luz de Deus brilha onde há vontade de polir diariamente as escórias que o próprio trabalho, com seus
contatos, e reações, e desilusões, produz. A luz de Deus brilha, onde o pavio está imerso em abundante
líquido de oração e de caridade. A luz de Deus, se multiplica em infinitos esplendores, conforme são as
perfeições de Deus, das quais, cada uma suscita no santo, uma virtude praticada heroicamente, se o servo
de Deus conserva limpo o cristal inatacável de sua alma, longe da fumaça escura de toda fumacenta má
paixão. Cristal inatacável! Inatacável! (Jesus troveja neste fechamento, e a voz ribomba no anfiteatro
natural). Somente Deus tem o direito e o poder de riscar este cristal, e de escrever nele com o diamante de
sua vontade, o seu Santíssimo Nome. Então, esse Nome se torna um ornamento, que provoca viva cintilação
de sobrenaturais belezas, sobre o cristal puríssimo.
Mas, se o estulto servo do Senhor perdendo o controle de si, e a visão de sua missão, toda e unicamente
sobrenatural, se deixa imprimir falsos ornamentos, arranhões e não incisões — misteriosas e satânicas
figuras, feitas pela garra de fogo de satanás — então não, a lâmpada admirável já não resplende mais bela e
sempre integra, mas se quebra e se arruína, sufocando a chama, sob os detritos do cristal quebrado, ou, se
não se quebra, faz um emaranhado de sinais, de inequívoca natureza, nos quais a fuligem se deposita, e
neles penetra, estragando-os.
169.9 Ai, três vezes ai dos pastores que perdem a caridade, que se recusam a subir cada dia para elevar o
rebanho, que o está esperando para subir. Eu os golpearei, derrubando-os do seu lugar, apagando até o fim
a sua fumaça.
Ai, três vezes ai dos mestres que rejeitam a Sabedoria, para se saturarem de uma ciência
frequentemente contrária, sempre soberba, às vezes satânica, porque os faz homens, enquanto — ouví bem
e acreditai —, enquanto o destino de todo homem é tornar-se semelhante a Deus, com a santificação que faz
do homem um filho de Deus, o mestre, o sacerdote deveria ter, nesta terra, o aspecto de filho de Deus. De
criatura, toda alma e perfeição, deveria ter o aspecto. Deveria ter, para aspirar a Deus, os seus discípulos.
Maldição aos mestres de doutrina sobrenatural que se tornam ídolos de saber humano.
Ai, sete vezes ai aos mortos de espírito entre os meus sacerdotes, aos que com a insipidez, com o torpor
de uma carne meio viva, com os que são cheios de alucinadas aparições de tudo o que existe, exceto do
Deus Uno e Trino, cheios de cálculos de tudo, exceto do sobre-humano desejo de aumentar as riquezas dos
corações, e de Deus, vivem nas coisas humanas, mesquinhas, torpes, arrastando através de suas águas
mortas os que os seguem, acreditando serem “vida”. Maldição de Deus para os corruptores do meu
pequeno e amado rebanho. Não àqueles que perecem por vossa negligência, ó inadimplentes servos do
Senhor, mas a vós, de todas as horas e de todos os tempos, e por todas as contingências, e por todas as
consequências, Eu pedirei contas e exigirei punição.
Recordai-vos destas palavras. E agora ide. Eu vou para cima. Vós ide dormir. Amanhã, para o rebanho, o
Pastor abrirá as pastagens da Verdade.
[7] gráfico, no qual são legíveis, além dos quatro pontos cardeais, o vilarejo da primeira elevação do monte e da passagem principal aos pés do monte. A
leste, pouco legível, o início da passagem principal à margem do lago de Genezaré e Tiberíades. A nordeste, o sinal em forma de cone poderia indicar a
posição do monte Hermon.
[8] visão do ano passado que estará em 174.11/14.
170. Segundo discurso da Montanha:
o dom da Graça e as bem-aventuranças.
24 de maio de 1945.
170.1 Jesus está falando aos apóstolos, colocando cada um deles no seu lugar, para dirigirem a multidão e
cuidar dela, pois o povo está subindo desde as primeiras horas da manhã, com seus doentes trazidos nos
braços ou em padiolas, enquanto outros vêm arrastando-se em suas muletas. No meio do povo estão
Estêvão e Herma.
O ar está limpo e um pouquinho frio, mas o sol vai temperando logo essa pequena aspereza do ar da
montanha que, por um lado, torna o sol mais suave, e, por outro, tira vantagem sobre ele, soprando com o
frescor de sua pureza, sem, porém, incomodar. Algumas pessoas se assentam sobre pequenas e grandes
pedras, espalhadas pelo pequeno vale, que fica entre os dois cumes, enquanto outras continuam esperando
que o Sol enxugue a erva coberta de orvalho, para se assentarem no chão. É muita gente, vindo de todas as
regiões da Palestina, de todas as condições. Os apóstolos somem no meio da multidão, mas, como abelhas
que vão e vem dos prados para a colmeia, de vez em quando voltam até o Mestre, para darem notícias, para
fazerem perguntas, ou pelo prazer de serem olhados de perto pelo Mestre
Jesus sobe um pouco mais acima do prado, que está no fundo do pequeno vale, e, encostando-se a um
paredão da montanha, começa a falar.
170.2 – Muitos me tem perguntado, durante todos estes anos de pregação: “Mas, tu, que dizes ser o Filho
de Deus, dize-nos o que é o Céu, o que é o Reino, e o que é Deus. Nós temos ideias confusas sobre isto. Nós
sabemos que existe o Céu, com Deus e com os Anjos. Mas nunca veio ninguém de lá para nos dizer como é,
e assim ele fica fechado aos justos.” Perguntaram-me também o que é o Reino e o que é Deus. Eu tenho me
esforçado para explicar-vos o que é o Reino e o que é Deus. Digo que tenho me esforçado, não porque seja
difícil explicá-lo, mas porque é difícil fazer-vos aceitar a verdade que se choca contra um edifício de ideias
acumuladas no correr dos séculos, no que diz respeito a Deus, pela sublimidade de sua Natureza.
Outros ainda, me perguntaram: “Se isto é o Reino, e isto é Deus, como conquistá-los?” Também isso Eu
procurei explicar-vos, incansavelmente, o verdadeiro espírito da Lei do Sinai. Quem consegue possuir esse
espírito, consegue possuir o Céu. Mas, para explicar-vos a Lei do Sinai, é preciso fazer ouvir o tom forte do
Legislador e do seu Profeta, os quais, prometem bênçãos aos observantes da Lei e ameaçam os
desobedientes com tremendas penas e maldições. A Epifania do Sinai foi terrível, e isso se reflete em toda a
Lei, refletindo-se em todos os séculos, e em todos os espíritos.
Mas Deus não é apenas Legislador. Deus é Pai. Um Pai de imensa bondade.
Os vossos espíritos, enfraquecidos pelo pecado original, pelas paixões, pelo vosso egoísmo e dos outros,
fazendo com que estes vos tornem espíritos irritados, e os vossos vos tornem espíritos fechados, não podem
elevar-se à contemplação das infinitas perfeições de Deus e, principalmente, de sua bondade, porque esta é
a virtude que, junto ao amor, menos aparece nos mortais. A bondade! Oh! É doce ser bons, sem ódio, sem
invejas, sem soberbas! Ter olhos que só olham para amar, e mãos que se estendem em gesto de amor, e
lábios que não proferem senão palavras de amor, coração, principalmente, cheio somente de amor, levando
olhos, mãos e lábios a fazerem atos de amor!
170.3 Os mais doutos sabem de que dons Deus tinha enriquecido Adão, não só para ele mesmo, como para
os seus descendentes. Até os mais ignorantes dos filhos de Israel sabem que temos o espírito. Só os pobres
pagãos não sabem que nós temos esse hóspede real, este sopro vital, esta luz celeste, que santifica e
vivifica o nosso corpo. Mas os mais doutos conhecem os dons dados ao homem; ao espírito do homem! Deus
não fez enriquecer menos o espírito do que a carne, o sangue da criatura, feita com um pouco de lama e
com o seu hálito. Como deu dons naturais de beleza e integridade, de inteligência e de vontade, de
capacidade de amor recíproco, assim deu também dons morais, com a sujeição dos sentidos à razão, de
modo que, na liberdade e no domínio de si mesmo e da própria vontade, que Deus havia dado aAdão, não se
insinuava o malvado cativeiro dos sentidos e das paixões. Amar-se, o querer, o prazer na justiça era livre
sem o que vos torna escravos, fazendo-vos sentir o mordente do veneno que satanás espalhou e vomita,
levando-vos para fora do álveo límpido para os campos lamacentos, para os brejos podres, onde fermentam
a febre da sensualidade carnal e moral. Porque, ficai sabendo que é sensualidade até a concupiscência por
pensamento. Eles tiveram dons sobrenaturais, isto é, a Graça santificante, o destino superior, a visão de
Deus.
170.4 A Graça santificante: é a vida da alma. É o que há de mais espiritual em nossa alma. A Graça nos faz
filhos de Deus, nos preserva da morte do pecado, e, quem não está morto, “vive” na casa do Pai: no Paraíso;
no meu Reino, o Céu. O que é essa Graça que santifica, que dá Vida e o Paraíso? Oh! Não useis de muitas
palavras! A Graça é o Amor. Portanto a Graça é Deus. É Deus, que admirando-se a Si mesmo na criatura
criada perfeita, se ama, se contempla, se deseja, dá a Si mesmo, para multiplicar o que tem, e tornando-se
feliz assim, e amando-se naqueles que são outros Ele mesmo.
Oh! Filhos! Não priveis a Deus desse seu direito. Não roubeis de Deus essa sua posse! Não decepcioneis
a Deus nesse seu desejo! Pensai que Ele age por amor. Ainda que vós não o fôsseis, Ele seria sempre
Infinito, o seu poder não ficaria diminuído. Mas Ele, ainda que completo em sua medida infinita,
incomensurável, não quer para Si (não o poderia porque é já o Infinito) mas pela Criação, sua criatura, Ele
quer aumentar o amor por tudo que essa Criação contém, por isso vos dá a Graça: o Amor, para que vós, em
vós, o leveis à perfeição dos santos, e derrameis este tesouro, tirado do tesouro que Deus vos deu com a sua
Graça e acrescido de todas as vossas obras santas, com toda a vossa vida heróica de santos, no oceano
infinito onde Deus está, isto é, no Céu.
Ó divinos, divinos, divinos mananciais do Amor! Vós existis, e ao vosso ser não é dada a morte, porque
sois eternos como Deus, sendo deuses[9].
Vós existireis, e ao vosso ser não se dará fim, porque, imortais como os santos espíritos, que vos
nutriram abundantemente, voltando para vós enriquecidos, com seus próprios méritos. Vós viveis e nutris,
vós viveis e enriqueceis, vós viveis e formais a santíssima Comunhão dos espíritos, de Deus, Espírito
Perfeitíssimo, e de todos, desde o pequenino que acaba, de nascer, sugando pela primeira vez o leite
materno.
Não me critiqueis em vossos corações, ó homens doutos! Não digais: “Ele é louco, e é mentiroso! Porque
como um louco ele fala da Graça em nós, privados dela pela culpa. Ele mente, dizendo que já somos uma só
coisa com Deus.” Sim, a culpa existe; a separação também existe. Mas, diante do poder do Redentor, a
Culpa, separação cruel que se fez entre o Pai e seus filhos, cairá por terra, como muralha, sacudida pelo
novo Sansão. Eu já a agarrei e a estou sacudindo, e ela já está aluindo, e satanás está tremendo de raiva, de
impotência, não podendo fazer nada contra o meu poder, sentindo que lhe são arrebatadas tantas presas,
tornando mais difícil arrastar o homem para o pecado. Porque, quando Eu vos tiver levado ao meu Pai,
quando, ao filtrar-se o meu Sangue, e pela minha dor, fordes limpos e fortificados, tornar-se-á em vós viva,
ativa e poderosa a Graça e vós sereis triunfadores, se o quiserdes. Deus não vos força, nem quanto ao
pensamento, nem quanto à vossa santificação. Vós sois livres. Mas Deus vos dá forças. Ele vos dá a
liberdade, mesmo no império de satanás. Deveis escolher: submeter-vos ao jugo infernal, ou pôr asas de
anjos em vossas almas. Tudo depende de vós, na minha companhia como vosso irmão, para guiar-vos e
alimentar-vos com a comida imortal.
170.5 “Como se pode conquistar a Deus e o seu Reino por um caminho mais suave do que o do Sinai?”,
assim vós dizeis. Não há outro caminho. O caminho é aquele. Contudo, devemos olhar para ele, não através
da cor da ameaça, mas sim, através da cor do amor. Nós dizemos: “Ai de mim, se eu não fizer isto!”,
continuamos tremendo, esperando o pecado, pensando que somos incapazes de deixar de pecar. Digamos:
“Feliz de mim, se eu fizer isto!”, e, com um impulso de sobrenatural alegria, jubilosos lancemo-nos nos
braços desta felicidade, que nasce da observância da Lei, como corola de rosa nascida duma moita de
espinhos.
“Feliz de mim, se eu for pobre de espírito, porque, então, o Reino dos Céus é meu!
Feliz de mim, se eu for manso, porque herdarei a Terra!
Feliz de mim, se eu for capaz de chorar sem revolta, porque serei consolado!
Feliz de mim, se mais do que do pão e do vinho para saciar a fome, eu tiver fome e sede de justiça. A
Justiça me saciará!
Feliz de mim, se eu for misericordioso, porque a divina misericórdia será usada para comigo!
Feliz de mim, se eu for puro de coração, porque Deus se inclinará para o meu coração puro, e eu O
verei!
Feliz de mim, se eu tiver um espírito de paz, porqueserei chamado, por Deus, de seu filho. Na paz está o
amor, e Deus é Amor que ama a quem é semelhante a Ele!
Feliz de mim se, por fidelidade à justiça, eu for perseguido, porque, para compensar-me das
perseguições terrenas, Deus, meu Pai, me dará o Reino dos Céus.
Feliz de mim, se eu for ultrajado, e for acusado mentirosamente, por reconhecer-me teu filho, ó Deus!
Disso me deve provir alegria, não desolação, porque isso me iguala aos teus melhores servos, os Profetas,
perseguidos por essa mesma razão; e com os quais eu creio firmemente que hei de compartilhar a mesma
grande recompensa, eterna, no Céu, que é meu.”
Olhemos assim para o caminho da salvação. Através da alegria dos santos.
170.6 “Feliz de mim, se eu for pobre de espírito”:
Oh! riquezas, brasas de Satanás, a quantos delírios levais! Nos ricos e nos pobres. O rico que vive para o
seu ouro: o ídolo infame do seu espírito arruinado. O pobre que vive do ódio ao rico! Porque o rico tem o
ouro e, ainda que o pobre não cometa materialmente nenhum homicídio, lança suas maldições sobre os
ricos, desejando-lhes toda espécie de mal. Não basta deixar de fazer o mal, é necessário também não
desejar fazê-lo. Quem diz maldições rogando pragas e desejando a morte, não é muito diferente de quem
mata materialmente, porque nele existe o desejo de ver morrer aquele a quem ele odeia. Em verdade, Eu
vos digo que o desejo não é senão um ato retido, como alguém que já foi concebido no ventre, mas ainda
não foi expelido para fora. O desejo mau envenena e corrompe, porque dura mais tempo do que o ato
violento e vai mais ao fundo do que o próprio ato.
O pobre de espírito, se for rico, não peca por causa do ouro, mas, com o seu ouro, faz a sua santificação,
pois o transforma em amor. Amado e bendito, ele é semelhante às fontes, que dão vida nos desertos,
doando-se com generosidade, alegres por doarem-se, acalmando os desesperos. Se é pobre, está contente
com a sua pobreza, e come o seu pão adoçado pela alegria de saber-se livre dos ardores do ouro, e dorme o
seu sono, livre de pesadelos, levantando-se descansado, para o seu tranquuilo trabalho, que lhe parece
sempre leve, quando é feito sem avidez e sem inveja.
As coisas que tornam um homem rico são o ouro para as coisas materiais, e os afetos, para as coisas
morais. Pelo ouro entende-se não só as moedas, mas também as casas, os campos, as jóias, os móveis, os
rebanhos, tudo, afinal, que faz a vida materialmente rica. Pelas afeições, entende-se os laços do sangue e do
casamento, as amizades, as riquezas intelectuais, os cargos públicos. Como estais vendo, se para aquela
primeira categoria o pobre pode dizer: “Oh! Quanto a mim, basta que eu não tenha inveja de quem tem
posses já estando no meu lugar, pois sou pobre, sendo necessariamente colocado aqui”, o pobre, a segunda
categoria também o pobre tem que tomar cuidado, porque , até o mais miserável dos homens, pode tornar-
se pecaminosamente rico em espírito. Todo aquele que se afeiçoa demais a alguma coisa, peca.
Vós direis: “Mas, então, devemos odiar o bem que Deus nos deu? Se assim for, por que é que Ele manda
amar o pai, a mãe, a esposa, os filhos, dizendo: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’?”
Fazei aqui uma distinção. Devemos amar o pai, a mãe, a esposa, e o próximo, na medida dada por Deus:
“como a nós mesmos.”
Enquanto que Deus deve ser amado sobre todas as coisas, com todo o nosso ser. Não temos que amar a
Deus como amamos os mais queridos dos nossos próximos, a mãe, porque nos amamentou, a esposa,
porque dorme sobre o nosso peito e cria-nos os filhos: mas, sim, amar a Deus com todo o nosso ser: isto é,
com toda a capacidade de amar que existe no homem: amor de filho, amor de esposo, amor de amigo. Oh!
não vos escandalizeis Com o amor de pai! Sim, porque pelas coisas de Deus devemos ter os mesmos
cuidados que um pai tem para com os seus filhos, para os quais guarda com amor os bens, fazendo-os
aumentar, e se ocupa e se preocupa com o seu crescimento físico e cultural, e com o seu bom êxito nos
negócios do mundo.
O amor não é um mal, nem deve tornar-se um mal. As graças que Deus nos concede não são um mal,
nem devem tornar-se um mal. Elas são amor. Por amor nos foram dadas. É preciso usar com amor estas
riquezas que Deus nos concede, tanto em afetos, como em bens. Somente quem não faz delas os seus
ídolos, mas meio para servir Deus em santidade, mostrando não ter um apego pecaminoso a elas. Procura,
pois, a Santa pobreza do espírito, que se despoja de tudo, para ficar mais livre, a fim de conquistar a Deus
Santo, que é a Suprema Riqueza: conquistar a Deus quer dizer ter o Reino dos Céus.
170.7 “Feliz serei eu se for manso”.
Isto pode parecer estar em contraste com os exemplos que vemos na vida de cada dia. Os que não são
mansos é que parecem triunfar nas famílias, nas cidades, nas nações. Mas, será mesmo um verdadeiro
triunfo o deles? Não. É o medo que aparentemente inclina os subjugados diante do déspota, mas isso não é
mais do que um véu colocado sobre a efervescência da revolta contra o tirano. Os iracundos e prepotentes
não possuem os corações de seus familiares, ou dos concidadãos, ou de seus súditos. Os mestres do: “Eu
disse, e está dito!” Não conquistam inteligências e espíritos para as suas doutrinas. Eles criam apenas
autodidatas, que vivem buscando e rebuscando uma chave capaz de abrir as portas fechadas de uma
sabedoria e de uma ciência, justamente oposta à que lhes está sendo imposta.
Os sacerdotes que não se entregam à conquista dos espíritos, com doçura, paciência, humildade, amor.
Não estão levando almas para Deus. Mais parecem uns guerreiros armados, que se lançam a um assalto
feroz, avançando impetuosamente e com intransigência contra as almas… Oh! pobres almas! Se elas fossem
santas, não teriam necessidade de vós, sacerdotes, para chegarem à luz. Pois já a teriam consigo. Se fossem
justos, não teriam necessidade de vós, juízes para serem contidos pelo freio da justiça, pois já a teriam em
si. Se fossem sãos, não precisariam de quem os curasse. Por isso sede mansos. Não façais que as almas
fujam, espavoridas. Mas, atraí-as com amor. Porque a mansidão é amor, assim como o é a pobreza de
espírito.
Se assim fordes, conquistareis a Terra, levando para Deus o lugar, que era de satanás, porque a vossa
mansidão, que, além de ser amor, é também humildade, vence o ódio e a soberba, matando nos ânimos o rei
abjeto da soberba e do ódio.E então, o mundo será vosso, isto é, de Deus, pois sereis justos, ao
reconhecerdes Deus como Senhor Absoluto da criação, ao Qual há de ser dado todo louvor, e entregue tudo
o que é seu.
170.8“Feliz serei eu, se souber chorar sem revoltar-me.”
A dor está sobre a terra. A dor arranca lágrimas ao homem. Antes não existia a dor. Mas o homem a
colocou sobre a terra e, por uma depravação de sua inteligência, esforça-se por descobrir o modo de
aumentá-la sempre, de todos os modos. Além das doenças e das desventuras provindas de raios, de
tempestades, de avalanchas, de terremotos, eis que o homem, para sofrer, mas principalmente para fazer
sofrer — pois gostaríamos somente que os outros sofressem por meios estudados por nós para fazer
sofrer — eis, então, que o homem inventa armas mortíferas sempre mais tremendas e danos morais cada
vez mais astuciosos. Quantas lágrimas o homem faz o outro derramar, por instigação do seu rei oculto, que
é satanás! Pois bem. Em verdade, Eu vos digo que essas lágrimas não o diminuem, mas levam o homem à
perfeição.
O homem é um menino descuidado, despreocupado superficial, alguém nascido com inteligência tardia,
enquanto o pranto não o tornar adulto, reflexivo e inteligente. Somente os que choram, ou que já choraram,
sabem amar e compreender. Amar os irmãos que choram, compreendê-los em suas dores, ajudá-los com
bondade, sabendo por experiência quanto se sofre, estando sozinho no pranto. E sabe amar a Deus porque
se compreende que fora de Deus tudo é dor, porque compreende que a dor se mitiga, se for chorada sobre o
coração de Deus, compreendendo que o choro resignado, não quebranta a fé, não torna árida a oração, que
não conhece o que é revolta, mas muda de natureza, transformando-se a dor em consolação.
Sim. Os que choram amando o Senhor, serão consolados.
170.9 “Feliz serei eu, se tiver fome e sede de justiça.”
Desde o momento em que nasce, até o momento em que morre, o homem se inclina avidamente para o
alimento. Ele abre a boca, quando nasce, para agarrar o bico do seio, abre os lábios para engolir algum
sustento, numa aflição de agonia. Trabalha para se alimentar. Ele faz da terra um enorme mamilo, do qual
suga insaciável aquilo que morre. Mas, que é o homem? Um animal? Não. É um filho de Deus. Ele está aqui
no exílio por poucos ou muitos anos. Mas sua vida não termina com a mudança da sua morada.
Existe uma vida na vida, assim como em uma noz existe o miolo. A noz é o miolo, e não a casca. Se
semeardes uma casca de noz, nada nasce. Mas, se semeardes a casca com sua polpa, nascerá uma grande
árvore. Assim é o homem. Não é a carne que se torna imortal, é a alma. Ela é nutrida para alcançar a
imortalidade, onde, por amor, elalevará também a carne, na feliz ressurreição. O alimento da alma é a
sabedoria, e a justiça. Como uum alimento líquido, elas são absorvidas, fortalecendo a alma, e quanto mais
se prova delas, mais cresce a santa avidez de possuir a sabedoria e de conhecer a justiça. Contudo, há de
chegar um dia no qual a alma, insaciável nesta santa fome, ficará saciada. Chegará esse dia. Deus se dará
ao seu filho e o apertará diretamente ao seu seio, e o filho, nascido para o Paraíso se saciará da mãe
admirável, que é o próprio Deus, não sabendo mais o que é fome, mas repousando feliz sobre o seio divino.
Nenhuma ciência humana iguala esta ciência divina. A curiosidade da mente pode ser satisfeita, mas não a
necessidade do espírito. Pelo contrário, na diversidade dos sabores, o espírito sente desgosto, vira a boca
para longe do amargo mamilo, preferindo passar fome a encher-se com um alimento, que não tenha vindo
de Deus.
Não tenhais medo, ó sedentos e famintos de Deus! Sejais fiéis e sereis saciados por Aquele que vos ama.
170.10 “Feliz serei eu, se for misericordioso.”
Quem é entre os homens o que pode dizer: “Eu não preciso de misericórdia?” Ninguém. Pois bem, se até
na antiga Lei está dito[10]: “Olho por olho e dente por dente” por que não se pode dizer na Nova Lei: “Quem
for misericordioso, encontrará misericórdia?” Todos precisam de perdão.
Pois bem! não é a fórmula e a forma de um rito, figuras externas concedidas por causa da opaca
mentalidade humana. Ela não obtêm o perdão. É o rito interno do Amor, isto é, o rito da misericórdia:
Porque, se foi imposto o sacrifício de um bode ou de um cordeiro e a oferta de algumas moedas, isto foi
feito porque na base de todo mal se encontram duas raízes: a avidez e a soberba. A avidez é punida com a
despesa para a aquisição da oferta; e a soberba com a evidente confissão do rito: “Eu celebro este
sacrifício, porque pequei.” Também se fez isso para percorrer os tempos e os sinais dos tempos. No sangue
que se espalha está a figura do Sangue que vai ser derramado, para cancelar os pecados dos homens.
Feliz, pois, daquele que sabe ser misericordioso com os famintos, com os nus, com os que não têm casa,
com os maiores miseráveis, que possuem mau caráter, fazendo-os sofrer e também os que com ele
convivem. Tende misericórdia. Perdoai, compadecei-vos, socorrei, instruí, amparai. Não vos fecheis em uma
torre de cristal, dizendo: “Eu sou puro, e não desço no meio dos pecadores.” Não digais: “Eu sou rico e feliz
e não quero ouvir falar das misérias dos outros.” Tomai cuidado, porque, mais depressa do que a fumaça,
que se dissipa no ar por algum forte vento, pode desvanecer-se também a vossa riqueza, a vossa saúde, o
vosso bem-estar familiar. E lembrai-vos de que o cristal serve de lente, e aquilo que, ao misturar com a
multidão, poderia passar inobservado, se vos colocardes numa torre de cristal, sozinhos, separados,
recebendo luz de todos os lados, não podeis mais conservar escondido.
Misericórdia também para levar a termo um sacrifício de expiação secreto e continuo, para com ele
obter misericórdia.
170.11 “Feliz de mim, se eu for puro de coração.”
Deus é pureza. O Paraíso é um reino de pureza. Nada de impuro pode entrar no céu, onde está Deus.
Por isso, se fordes impuros, não podereis entrar no Reino de Deus. Mas,que alegria! Uma alegria
antecipada, concedida pelo Pai aos filhos! Quem é puro já tem, nesta terra, um começo do céu, porque Deus
se inclina para o puro, e o homem vê o seu Deus nesta terra. Ele não conhece o sabor dos amores humanos,
mas experimenta, até ao êxtase, o sabor do amor divino, podendo dizer: “Eu estou contigo, e Tu estás em
Mim, por isso eu te possuo e conheço como esposo amabilíssimo de minha alma.” Crede-me, quem possui a
Deus, realiza também em si mudanças substanciais inexplicáveis, fazendo-o santo, sábio, forte. Sobre seus
lábios florescem palavras, e seus atos assumem poderes, que não são da criatura, mas de Deus que vive
nela.
O que é a vida daquele que vê a Deus? É felicidade. E quereríeis privar-vos de tão grande dom, por
causa de fétidas impurezas?
170.12 “Feliz serei eu, se tiver um espírito de paz.”
A paz é uma das características de Deus. Deus está na paz. Porque a paz é amor, enquanto que a guerra
é ódio. Satanás é ódio. Deus é paz. Ninguém pode se dizer filho de Deus, e nem pode Deus dizer que um
homem será seu filho, se este tiver um espírito irascível, sempre pronto a desencadear tempestades. E
mais: não pode dizer-se filho de Deus quem, ainda não sendo um desencadeador de tempestades, contudo,
não contribuindo em nada, com a grande paz, que acalma as tempestades levantadas por outros. Quem é
pacífico, difunde a paz, mesmo sem falar nada. Senhor de si, ouso dizer até senhor de Deus[11], ele O leva
como uma lâmpada leva a sua luz, como um turíbulo que vai soltando os seus perfumes, como um odre que
transporta o seu líquido, e brilha a luz nas névoas fumegantes dos rancores, purifica o ar das invejas, se
acalmam as ondas enfurecidas das contendas, por meio deste óleo suave, que é o espírito de paz, que
emana dos filhos de Deus.
Fazei com que os homens venham a chamar-vos com este nome.
170.13 “Feliz de mim, se eu for perseguido por amor da Justiça.”
O homem é tão endemoninhado que odeia o bem onde quer que se encontre, que odeia quem é bom,
como se, sendo bom, mesmo calado, o acuse e censure. De fato a bondade de alguém evidencia ainda mais
a maldade do malvado. De fato, a fé de quem verdadeiramente crê, faz que apareça mais viva a hipocrisia
do que só finge crer. Na verdade, não pode deixar de ser odiado pelos injustos quem, com seu modo de
viver, é uma testemunha constante da justiça. Então, acontece que o mau se enfurece contra os amigos da
justiça. Também aqui acontece como nas guerras. O homem progride na arte satânica de perseguir, muito
mais do que na arte santa de amar. Mas, só pode perseguir quem tem vida curta. Pois o eterno, que existe
no homem, escapa da armadilha, adquirindo pela perseguição uma vitalidade ainda mais vigorosa. A vida
foge das feridas que abrem as veias ou dos sofrimentos que consomem o perseguido. Mas o sangue faz a
púrpura do futuro rei e os sofrimentos são como outros tantos degraus para subir ao trono que o Pai
preparou para os seus mártires, o trono régio do Reino dos Céus.
“Feliz serei eu, se for ultrajado e caluniado.”
170.14
Fazei com que vosso nome possa ser escrito só nos livros do Céu, nos quais não há nomes, feitos das
mentiras humanas, que louvam os que não merecem louvor. Mas, com justiça e amor, estão escritas as
obras dos bons, para dar-lhes o prêmio prometido por Deus.
Antes de nosso tempo, os profetas foram caluniados e ultrajados. Mas, quando forem abertas as portas
dos céus, eles entrarão na Cidade de Deus, com a imponência de reis, e, diante deles, os anjos se inclinarão,
cantando cheios de alegria. Vós também, os ultrajados e caluniados por terdes sido de Deus, tereis o triunfo
no céu. Quando o tempo terminar e o Paraíso estiver completo, todas as lágrimas serão estimadas, porque
por elas tereis conquistado a glória eterna, que Eu, em nome do Pai, vos prometo.
Ide. Amanhã eu vos falarei ainda. Fiquem aqui agora somente os doentes para que Eu os socorra em
seus sofrimentos. A paz esteja convosco, e a meditação sobre a salvação, através do amor, vos encaminhe
pela estrada, cujo fim é o céu.
[9] sendo deuses. Em uma cópia datilografada MV direciona a Salmo 82,6; Romanos 8,16; 2 Pedro 1,4; e explica com a seguinte nota a expressão “Portanto
são outros Si mesmos” de dezesseis linhas mais a cima: Justamente São Tomás de Aquino diz que Deus não pode fazer maiores obras dividas das três
realizadas: a Encarnação do Filho, a Maternidade da Santa Virgem e a divinização da alma humana. E Santo Agostinho: “As almas são divinamente
associadas, por meio do Pai, ao mistério da geração eterna e, por meio do Pai e do Filho, a manifestação do Espírito Santo.” Assim a alma divinizada pela
Graça é divinizada pela participação com as Três Pessoas, e este é a obra-prima do Amor Infinito que nos eleva de criatura a criatura divinizada.
[10] está dito em Exodo 21,24-25; Levítico 24,19-20; Deuteronômio 19,21. É a conhecida “lei de talião” que será citada outras vezes de 171.4 a 566.9.
[11] senhor de Deus, porque, como explica MV em uma nota em uma cópia datilografada, Deus ama de tal forma os pacíficos – que são totalmente
caridade, porque caridade inspira sentimento de paz, e a paz restabelece o amor entre os irmãos os quais o egoísmo pertubou – que parece realmente
colocar-se ao serviços deles, para ajudá-los neste mistério de paz que difunde um dos seus atribuos mais doces entre os homens.
171. Terceiro sermão da montanha:
os conselhos evangélicos que aperfeiçoam a Lei.
25 de maio de 1945
171.1 Continua o Sermão da Montanha.
O lugar e a hora são sempre os mesmos. O povo aumentou ainda mais. A um canto, está um romano, ao
lado de uma trilha, como se estivesse querendo ouvir, mas sem excitar repulsa na multidão. Eu o distingo
pela veste curta e a capa. Lá estão ainda Estêvão e Herma.
Jesus vai vagarosamente para o seu lugar, a fim de começar a falar.
– Por tudo o que Eu vos disse ontem, não deveis ficar pensando que Eu tenha vindo abolir a Lei. Não.
Visto que Eu sou Homem, e compreendo as fraquezas do homem, o que Eu quis foi encorajar-vos a segui-la,
dirigindo os vossos olhares espirituais para o Abismo luminoso não para o abismo escuro. Porque, se o
medo do castigo pode fazer alguém deter-se, três em dez vezes, a certeza do um prêmio o arremessa para
frente sete em dez vezes. Daí se vê que a confiança faz mais do que o medo. Eu quero que tenhais uma
confiança plena, firme, para que possais fazer não sete em dez partes de bem, mas dez em dez, para
conquistardes este prêmio santíssimo que é o Céu.
Eu não mudo nem uma letra da Lei. Quem foi que a deu, entre raios, no Sinai? O Altíssimo.
Quem é o Altíssimo? O Deus Uno e Trino.
De onde foi que Ele a tirou? Do Seu pensamento. Como foi que a deu? Com a sua Palavra.
Por que foi que a deu? Pelo seu Amor.
Vede, pois que a Trindade estava presente. O Verbo, obediente como sempre ao Pensamento e ao Amor,
falou pelo Pensamento e pelo Amor.
Poderia Eu desmentir-me a Mim mesmo? Não poderia. Mas Eu posso, já que tudo posso, completar a
Lei, torná-la divinamente completa. Não como fizeram os homens que, durante séculos ao invés de
tornarem completa, a fizeram indecifrável, impossível de ser cumprida, sobrepondo leis e preceitos,
procedentes do seu pensamento, conforme suas vantagens, jogando todo esse entulho para apedrejar e
sufocar, para soterrar e esterilizar a Lei Santíssima, dada por Deus. Poderá uma planta sobreviver, se
estiver sempre mergulhada em avalanchas, em escombros e inundações? Não. A planta morre. A lei está
morta em muitos corações, sufocada debaixo das avalanchas de exageradas superestruturas. Eu vim para
resgatá-la e ao desenterrará-la, ressuscitando-a , eis que Eu faço dela não mais uma lei, mas uma Rainha.
171.2 As rainhas promulgam as leis. As leis são obras das rainhas, mas não são mais do que as rainhas. Eu,
pelo contrário, faço da Lei rainha: Eu a completo, coroando-a, colocando no seu ápice a grinalda dos
conselhos evangélicos. Primeiro era a ordem. Agora é mais que a ordem. Antes era o necessário. Agora é
mais do que o necessário;. ela é a perfeição. Quem a desposa, assim como Eu vo-la dou, no mesmo instante
se torna rei, porque alcançou o que há de “perfeito”, porque não só se tornou obediente, mas heróico isto é,
santo, sendo a santidade a soma das virtudes levadas ao ápice, o ponto mais alto que possa ser atingido por
uma criatura. São virtudes heroicamente amadas e servidas, com um completo desapego de tudo o que é
apetite ou reflexão humana. Eu poderia dizer que o santo é aquele para o qual o amor e a vontade servem
de obstáculo para qualquer outra, que não seja Deus. Não distraído por outra visão inferior, ele tem as
pupilas do coração firmes no Esplendor Santíssimo que é Deus, no qual ele vê, a agitação dos irmãos que,
suplicantes, lhe estendendo as mãos, pois tudo é em Deus. E, sem afastar o olhar de Deus, o santo se inclina
para atender aos irmãos que lhe suplicam. Contra a carne, contra as riquezas, contra as comodidades, ele
ergue o seu ideal: servir. O santo fica pobre? Fica diminuído? Não. Ele chegou a possuir a sabedoria e a
riqueza verdadeiras. Por isso, possui tudo. Não sente cansaço, porque, se é verdade que produza
continuamente, também é verdade que ele é nutrido continuamente. Porque, se é verdade que compreenda
a dor do mundo, também é verdade que se alimenta com a alegria do Céu. Ele se nutre de Deus, se alegra
em Deus. Ele é a criatura que compreendeu o sentido da vida.
Como estais vendo, Eu não mudo, nem mutilo a Lei, como também não a corrompo com superposições
de fermentantes teorias humanas. Mas a completo. Ela é o que é, e assim será até o último dia, sem que
dela se mude uma só palavra, ou se tire um só preceito. Ela está coroada pela perfeição. Para ter-se a
salvação, basta aceitá-la como foi dada. Para ter uma imediata união com Deus, é preciso vivê-la, como Eu
aconselho. Mas, visto que os heróis são uma exceção, Eu falarei para as almas comuns, para a massa das
almas, para que não se diga que, buscando a perfeição, eu desconheça o necessário. De tudo o que Eu digo,
guardai bem isto: quem se permite violar um só entre os menores destes mandamentos será considerado o
menor no Reino dos Céus. Aquele que levar outros a violar será considerado o menor pelo que fez e por
aqueles que tiver levado à violação. Ao passo que aquele que, com sua vida e suas obras, ainda mais do que
com as palavras, tiver persuadido outros a obedecerem, este será grande no Reino dos Céus. Sua grandeza
aumenta a cada um daqueles que ele leve a obedecer e assim a santificar-se.
171.3 Eu sei que isto será desagradável para muitos. Mas Eu não posso mentir, ainda que a verdade que Eu
vou dizer crie inimigos.
Em verdade, Eu vos digo que, se a vossa justiça não for criada de novo, separarando-se completamente
da pobre e erroneamente chamada justiça, ensinada pelos escribas e fariseus; se não fordes de verdade
mais justos que os fariseus e escribas, que pensam que são justos quando aumentam as fórmulas, mas sem
procurar uma mudança substancial em seus espírito, não entrareis no Reino.
Guardai-vos dos falsos profetas e dos que ensinam o erro. Eles vêm a vós com veste de cordeiro, mas são
lobos ferozes. Vêm vestidos de santidade, mas são zombadores de Deus, pois dizem que amam a verdade,
mas se nutrem com a mentira. Observai-os bem, antes de acompanhá-los.
O homem tem uma língua, com que pode falar, tem olhos, com que vê, tem mãos, com que faz sinais.
Mas ele tem uma outra coisa, que dá testemunho mais verdadeiro do quem ele é: são os seus atos. O que é
um par de mãos juntas em oração, se com elas depois o homem se entrega ao roubo e à fornicação? De que
valem dois olhos que, querendo passar por inspirados, viram-se para todos os lados, se, depois dessa
comédia, fixam-se, cobiçosos, numa mulher, ou num inimigo, seja para a luxúria, ou para o homicídio? O
que é a língua, que conta uma mentirosa canção de louvor, e seduz com suas palavrinhas melosas, enquanto
nas vossas costasela vos calunia, sendo capaz de jurar falso, só para vos fazer passar por alguém
desprezível? Que é a língua, que faz longas orações hipócritas, e depois , rapidamente, arrasa a boa fama
do próximo, ou seduz a sua boa fé? Dá náusea. Dão náusea estes olhos e estas mãos mentirosas. Mas os
atos do homem, seus verdadeiros atos , isto é, o seu modo de comportar-se em família, no comércio, no
trato com o próximo e com os seus criados, podem dar o testemunho: “Este é um servo de Deus.” Porque as
ações santas são o fruto de uma verdadeira religião.
Uma árvore boa não dá frutos maus, e uma árvore má não dá frutos bons. Estas moitas de espinho, por
acaso poderão dar-vos uvas saborosas? E aqueles cardos, ainda mais espinhosos, poderão dar-vos um dia,
figos maduros e tenros? Não, porque, em verdade, colhereis das primeiras poucas e ásperas frutinhas, e um
fruto que não se pode comer é o que virá daquelas flores, pois mesmo estando em flor, já estão cercadas de
espinhos. O homem que não é justo, poderá talvez incutir respeito com sua aparência, mas só com ela.
Também aquele pé de cardo que parece de penas, como um floco de finos fios de prata, que o orvalho
recobriu, de tais diamantes. Mas, se, distraidamente, tocardes nele, vereis que não se trata de nenhum
floco, mas de um monte de espinhos, que ferem o homem, fazem mal às ovelhas e, por isso, os pastores os
arrancam de seus pastos, e os jogam no fogo aceso a noite, para queimar até as sementes. É uma medida
justa e previdente. Eu não vos digo: “Matai os falsos profetas e os fiéis hipócritas.” Antes, vos digo: “Deixai
isso para Deus.” Eu vos digo: “Estai atentos, afastai-vos deles para não vos envenenardes com os seus
sucos.”
171.4 Como Deus há de ser amado, Eu vos disse ontem. Insisto em dizer como o próximo há de ser amado.

Noutros tempos se dizia[12]: “Amarás o teu amigo e odiarás o teu inimigo.” Não. Não é assim. Isto era
bom nos tempos em que o homem não tinha o conforto do sorriso de Deus. Agora chegaram tempos novos,
nos quais Deus ama tanto o homem, que lhe manda o seu Verbo para redimi-lo. Agora o Verbo está falando.
É a graça que já está se difundindo. Depois, o Verbo consumará o sacrifício de paz e de redenção, e a graça
não só se difundirá, mas será dada a todos os espíritos que crêem no Cristo. Por isso é preciso elevar à
perfeição o amor ao próximo, a tal ponto que já não se faça diferença entre o amigo e o inimigo.
Estais sendo caluniados? Amai e perdoai. Recebestes agressões ou pancadas? Amai e oferecei a outra
face a quem vos esbofeteia, e pensai que é melhor que a ira se desafogue em vós, que a sabeis suportar, do
que em algum outro, que iria vingar-se. Fostes roubados? Não fiqueis pensando: “Este meu próximo é um
cobiçoso”, mas pensai com caridade: “Este meu pobre irmão é um necessitado”, e dai-lhe até a túnica, se já
vos tirou a capa. Assim fareis que fique impossível para ele cometer um duplo furto, pois não terá mais
necessidade de tirar a túnica de outro. Vós dizeis: “Mas poderia ser um vício, e não uma necessidade.” Está
bem; mas dai assim mesmo. Deus vos recompensará por isso, e o que for injusto será castigado. Mas muitas
vezes — e isso relembra tudo o que Eu disse ontem sobre a mansidão — vendo-se tratado assim, o vício sai
do coração do pecador, e ele se redime, chegando até a reparar o seu furto com a entrega do que roubou.
Sede generosos com aqueles que, mais honestos, em vez de roubar-vos, vos pedem o que precisam. Se
os ricos fossem realmente pobres de espírito, como vos ensinei ontem, não haveria essas lamentáveis
desigualdades sociais, causas de tantas desventuras humanas. Pensai sempre: “Mas se eu estivesse em
necessidade, como é que eu receberia a recusa de uma ajuda?” Agi de acordo com a resposta do vosso eu.
Fazei aos outros o que gostaríeis que vos fosse feito, e não façais aos outros o que não gostaríeis que vos
fosse feito.
Antiga é aquela palavra: “Olho por olho, dente por dente”, palavra que não está nos dez mandamentos,
mas que foi colocada depois, porque o homem privado da graça é uma fera tal, que só pode compreender a
vingança. Mas aquela palavra antiga está anulada por esta nova: “Ama quem te odeia, reza por quem te
persegue, perdoa a quem te calunia, fala bem de quem fala mal de ti, faze o bem a quem te prejudica, sê
paciente com o briguento, condescendente com quem te aborrece, ajuda de boa vontade a quem recorre a
ti, e não uses de usura com ele, não vivas criticando nem julgando os outros.” Vós não sabeis em que
condições são praticadas suas ações pelos homens. Em toda espécie de socorro, sede generosos, sede
misericordiosos. Quanto mais dardes mais vos será dado, e uma medida bem cheia e calcada será despejada
por Deus no seio de quem for generoso. Deus, não só vos dará conforme tiverdes dado, mas muito mais.
Procurai amar e fazer-vos amar. As brigas acabam custando muito mais do que entrar num entendimento
amigável. Viver em amizade é como um mel, que deixa por muito tempo o seu gosto na língua.
171.5 Amai, amai! Amai amigos e inimigos, para serdes semelhantes ao vosso Pai, que faz chover sobre os
bons e sobre os maus, fazendo descer a luz do sol sobre justos e injustos, reservando-se o direito de dar sol
e orvalhadas eternas, ou fogo e saraivadas infernais, no dia em que os bons vão ser separados como espigas
escolhidas, entre os feixes da colheita. Não basta amar aos que vos amam, dos quais esperais retribuição.
Isso não tem merecimento: é uma alegria, até os homens honestos por natureza sabem fazer. Os próprios
publicanos e pagãos fazem assim. Mas vós, amai como Deus ama, amai por respeito a Deus, que é o Criador
também dos que são vossos inimigos ou pouco amáveis para vós. Eu quero em vós a perfeição do amor, e
por isso Eu vos digo: “Sede perfeitos, como perfeito é vosso Pai, que está nos Céus.”
Tão grande é o preceito do amor para com o próximo e do aperfeiçoamento do amor para com o
próximo, que Eu não vos digo mais como se dizia: “Não matar,” porque aquele que mata será condenado
pelos homens. Mas Eu vos digo: “Não vos ireis”, porque um juízo mais alto que o dos homens, está acima de
vós, e leva em conta também as ações imateriais. Quem tiver insultado o irmão, será condenado pelo
Sinédrio. Quem o tiver tratado como louco, e portanto o tiver prejudicado, será condenado por Deus. É
inútil fazer oferta ao altar, se antes por Deus não se fez sacrifício dos próprios rancores no interior do
coração, e não se cumpriu o rito santíssimo de saber perdoar. Por isso, quando estiveres para fazer uma
oferta a Deus, se tu te lembrares de que tens uma falta contra teu irmão, ou de que ainda estás guardando
rancor pela falta dele, deixa a tua oferta aí, diante do altar, faze primeiro a imolação do teu amor próprio,
reconcilia-te com o teu irmão, e depois vem para diante do altar, então só agora é que o teu sacrifício será
santo. Um bom acordo é sempre o melhor que se pode fazer. O juízo dos homens é sempre incerto. Quem,
teimosamente, se aventura a crer nele, poderia perder a causa, devendo pagar ao adversário até a última
moeda, ou apodrecer na cadeia.
Em tudo levantai o olhar para Deus. Perguntai a vós mesmos: “Terei eu o direito de fazer o que Deus não
faz comigo?” Porque Deus não é tão inexorável e obstinado como vós. Ai de vós, se Ele o fosse! Ninguém se
salvaria. Que esta reflexão vos leve a ter sentimentos de mansidão, de humildade, de piedade. Não vos
faltará a recompensa da parte de Deus, nesta vida e na outra..
171.6 Aqui, diante de Mim, há também uma alma que me odeia, e que não tem coragem de dizer-me:
“Cura-me!”, porque ele sabe que eu conheço os seus pensamentos. Mas Eu digo: “Que se faça o que estás
querendo. Assim como te estão caindo as escamas dos olhos, que caiam também do teu coração o rancor e
as trevas.” Ide todos com a minha paz. Amanhã vos falarei de novo.
A multidão vai-se dispersando aos poucos, talvez esperando ouvir algum grito pelo milagre feito. Mas
não há nenhum grito.
Até os apóstolos e os discípulos mais antigos, que ainda estão na montanha, perguntam:
– Mas, quem era? Não terá sido curado? –e insistem com o Mestre, que ficou de pé com os braços
cruzados, vendo a multidão se afastando.
Mas Jesus, a princípio, não responde. Depois diz:
– Os olhos ficaram curados. Mas a alma, não. Ela não pode, porque está cheia de ódio.
– Mas, quem será? Será talvez aquele romano?
– Não. É um infeliz.
– Mas, por que, então, o curaste? –pergunta Pedro.
– Deveria Eu fulminar a todos os outros como ele?
– Senhor… eu sei que Tu não queres que eu diga: “sim”, e por isso eu não o digo… mas eu estou
pensando assim… e é o mesmo…
– É a mesma coisa, Simão de Jonas. Mas fica sabendo que então… Oh! quantos corações cheios de
escamas de ódio Eu tenho ao redor de Mim! Vem Vamos para o alto, olharmos o nosso belo mar da Galileia.
Eu e tu sozinhos.
[12] se dizia em: Levítico 19,18 na primeira parte; na segunda parte tem-se em: Siraque 12,1-7. Todavia, a afirmação de Jesus é referida textualmente em
Mateus 5,43.
172. Quarto sermão da Montanha:
o juramento, a oração, o jejum.O velho Ismael e Sara.
26 de maio de 1945.
172.1 Continua o Sermão da Montanha.
No mesmo lugar e na mesma hora. A multidão, menos o romano, é a mesma, talvez até com mais gente,
porque muitos se colocaram até no começo das trilhas, do pequeno vale.
Jesus fala:
– Um dos erros mais encontrados no homem é a falta de honestidade para consigo mesmo. Sendo o
homem dificilmente sincero e honesto, criou para si um freio, obrigando-o a usar o caminho escolhido. É um
freio que o acaba deixando como um cavalo indomável para mudar o caminho conforme o seu gosto, ou
deixa-se levar completamente, fazendo com que sinta-se mais cômodo, sem pensar que pode receber a
desaprovação de Deus, dos homens e de sua própria consciência.
Esse freio se chama juramento. Mas entre pessoas honestas não é necessário o juramento, por isso não
foi Deus quem vo-lo ensinou. Ao contrário, Ele até vos disse: “Não levantar falso testemunho”, sem
acrescentar mais nada. Porque o homem deveria ser sincero, sem necessidade de mais nada, além da
fidelidade à sua palavra. Quando, no Deuteronômio, se fala dos votos, mesmo quanto partem de um coração
que se julga unido a Deus, sendo os votos necessidade ou reconhecimento, ainda assim, está escrito[13]:
“Uma vez que uma palavra saiu dos teus lábios, tu a deves sustentar, fazendo tudo o que prometeste ao
Senhor teu Deus, tudo o que por tua vontade, e por tua boca disseste” Sempre se fala de palavra dada,
bastando tal palavra. Aquele que sente a necessidade de jurar, é porque não confia em si mesmo e no que
os outros pensam a seu respeito. Quem pede um juramento mostra, desconfiança da sinceridade e
honestidade do outro.
Como estais vendo, o hábito de jurar é consequência da desonestidade moral do homem. É uma
vergonha para o homem. É uma dupla vergonha, porque o homem não seria nem mesmo a essa coisa
vergonhosa, que é ter que jurar, zombando de Deus com a mesma facilidade com que zomba do próximo,
chega até a jurar falso, com toda facilidade e tranquilidade.
172.2 Poderá haver coisa mais abjeta do que um perjuro? Usando, por vezes, uma fórmula sagrada,
chamando Deus como cúmplice e fiador, ou usando os nomes dos seus entes mais queridos: do pai, da mãe,
da mulher, dos filhos, dos seus mortos, da sua própria vida e de seus órgãos mais preciosos, em apoio de
sua palavra mentirosa, induz o próximo a prestar-lhe fé. E assim o consegue enganar. Ele é um sacrílego,
um ladrão, um traidor, um homicida. De quem? De Deus, porque ele mistura a Verdade com a infâmia de
sua mentira, zombando, diz: “Fere-me, desmente-me, se puderes. Tu estás aí, enquanto eu estou aqui,
rindo.” Oh! Se estais rindo, continuai a rir, mentirosos e zombadores! Haverá um momento em que não
rireis mais, será quando Aquele, a quem todo poder foi dado, vos aparecerá, terrível em sua majestade.
Somente com o seu aparecimento aterrorizar-vos-á, só com seu olhar vos fulminará, antes, antes mesmo
que sua voz vos precipite em vosso destino eterno, marcando-vos com a sua maldição.
É um ladrão, porque se apropria da estima que não merece. O próximo, impressionado pelo juramento,
se entrega a ele, e a serpente se adorna com isso, fingindo ser o que não é. Ele é um traidor, porque com
juramento promete uma coisa que pretende não cumprir. É um homicida, porque ou mata a honra do seu
semelhante, tirando-lhe a estima, ou mata a sua alma, porque o perjuro é um pecador abjeto aos olhos de
Deus, que, mesmo quando não vemos a verdade, ele vê. Deus não pode ser enganado, nem com palavras
falsas, nem com ações hipócritas. Ele vê. Nem por um instante perde de vista nenhum dos homens. Não
existe fortaleza tão bem munida, nem porão que seja tão profundo, que o olhar de Deus não consiga
penetrar. Até no vosso interior, na fortaleza que o homem traz ao redor do seu coração, Deus penetra. Ele
vos julga, não pelo que jurais, mas pelo que fazeis.
172.3 Por isso, depois que o juramento foi colocado em evidência, como freio à mentira e à facilidade de

faltar com a palavra dada, substituo aquela ordem[14] por outra: Já não digo, como os antigos: “Não jures
falso, mas guarda os teus juramentos”, mas Eu vos digo: “Não jureis nunca nem pelo Céu, que é o trono de
Deus, nem pela terra, que é o escabelo de seus pés, nem por Jerusalém e o seu Templo, que são a cidade do
grande rei e a Casa do Senhor, nosso Deus.”
Não jureis nem pelos túmulos dos antepassados, nem por suas almas. Os túmulos estão cheios das
partes inferiores do homem, partes que os animais também têm, e as almas, deixai-as em suas moradas.
Fazei que não sofram, nem se horrorizem, se são almas de justos que já estão no conhecimento antecipado
de Deus. Ainda que seja um conhecimento antecipado, um conhecimento parcial, pois que, até o momento
da Redenção, não possuirão ainda Deus na plenitude de seus esplendores, não podem deixar de sofrer, ao
verem que sois pecadores, Se eles não são justos, não aumenteis o seu tormento,lembrando-o, com o vosso
pecado, do pecado deles. Deixai os santos mortos em paz; deixai os mortos não santos, em suas penas. Não
tireis nada de uns, nem acrescenteis nada aos outros. Por que apelar aos mortos? Eles não podem falar. O
mortos santos não podem, porque a caridade os proíbe; deveriam vos desmentir infinitas vezes. Os
condenados também não, porque o Inferno não abre as suas portas, e os condenados não abrem as bocas, a
não ser para maldizer. A voz de todos fica sufocada pelo ódio de Satanás e dos satanases, pois os
condenados são satanases.
Não jureis nem pela cabeça do pai, nem pela mãe, nem pela esposa e filhos inocentes. Não tendes
direito de fazer isso. Serão eles, por acaso, uma moeda ou uma mercadoria? Serão eles como uma
assinatura de um documento? Eles são mais e são menos do que estas coisas. São sangue e carne do teu
sangue, ó homem, mas são também criaturas livres, e tu não podes usar delas como de um aval para o teu
juramento falso. Serão eles menos do que uma assinatura tua, porque tu és inteligente, livre e adulto, tu
não és um incapaz ou uma criança, que não sabe o que faz, precisando ser representada pelos pais. Tu és
tu: um homem dotado de razão e, por isso, és responsável por tuas ações, e deves agir por ti mesmo, dando
como aval para tuas ações e para tuas palavras, a tua honestidade e a tua sinceridade, a estima que
soubeste fazer nascer no teu próximo, e não a sinceridade dos parentes e a estima que eles tem dos outros.
Os pais são responsáveis os pais pelos filhos? Sim, mas somente enquanto eles são menores. Depois, cada
um é responsável por si mesmo. Nem sempre nascem justos de justos, e nem sempre uma mulher santa é
casada com um homem santo. Por que, então, usar como base de garantia, a justiça de quem está ao vosso
lado? De um pecador também podem nascer filhos santos e, enquanto inocentes, todos são santos. Por que,
então, buscar a ajuda de quem que é puro para aprovar um ato impuro, que é o vosso juramento, que
pretendeis violar?
Não jureis, nem mesmo pela vossa cabeça, pelos vossos olhos, vossa língua e vossas mãos. Não tendes
esse direito. Tudo quanto tendes é de Deus. Vós sois guardiães provisórios, banqueiros dos tesouros morais
ou materiais que Deus vos concedeu. Por que, então, usar o que não é vosso? Podeis pôr mais um fio de
cabelo em vossa cabeça, ou mudar a cor de vossos cabelos? Se não podeis fazer isso, por que é que usais,
então, a vossa vista, a palavra, a liberdade de vossos membros para dar força a um vosso juramento? Não
desafieis a Deus. Ele poderia pegar-vos em vossa palavra, e fazer ficarem secos os vossos olhos, assim como
pode secar as vossas árvores frutíferas, ou arrebatar-vos os filhos, arrancar as vossas casas, a fim de que
vos lembreis de que Ele é o Senhor e de que vós sois um súditos, sendo um maldito o que se faz de si
mesmo um ídolo, a ponto de julgar-se mais do que Deus, desafiando-o com suas mentiras.
172.4 O vosso falar seja sim, sim; e não, não. Nada além disso. O que se diz além disso é sugerido pelo
Maligno, para rir-se de vós, que, não podendo lembrar de tudo o que dissestes, caís em mentiras, tornando-
se objeto de zombaria, sendo conhecidos como mentirosos. Sinceridade, meus filhos. Tanto nas palavras,
como na oração.
Não façais como os hipócritas que, quando oram, gostam de ficar nas sinagogas, ou nos cantos das
praças, para serem vistos pelos homens, elogiados como homens piedosos e justos, enquanto depois, no
interior das famílias, são culpados diante de Deus e diante do próximo. Não refletis que isso é um
juramento falso? Porque quereis vos afirmar o que não é verdade, com a intenção de conquistar uma
estima, que não mereceis? A oração hipócrita tem a intenção de dizer: “Em verdade, eu sou santo. Juro
diante dos olhos dos que me veem, e que não podem mentir, dizendo que não me viram orando.” Como um
véu estendido sobre a maldade latente, a oração feita com tais intenções se torna uma verdadeira
blasfêmia.
Deixai que Deus vos proclame santos, e fazei que toda a vossa vida proclame, em lugar de vós “Este é
um servo de Deus.” Mas vós por amor a vós mesmos, calai-vos. Não façais de vossa língua, movida pela
soberba, objeto de escândalo para os olhos dos anjos. Melhor seria que vos tornásseis mudos, naquele
mesmo instante, se é que não tendes força para dominar o orgulho e a língua, vos auto-proclamando justos
e agradáveis a Deus. Deixai para os soberbos e os falsos esta pobre glória. Deixai para os soberbos e os
falsos essa efêmera recompensa. Pobre recompensa! Ela será como eles desejam não terão outra, porque
não se pode ter. A verdadeira glória, a do Céu, é eterna e justa, ou é a glória não verdadeira, a da terra, que
dura durante a vida de um homem, ou até menos, e , sendo injusta, é será cobrada, depois desta vida, sendo
paga com uma punição humilhante.
172.5 Ouvi como deveis orar, com os lábios e com o trabalho, com todo o vosso ser, pelo impulso do
coração que ama, a Deus, e o sente como pai, lembrando quem seja o Criador e quem é a criatura,
colocando-se na presença de Deus com um amor reverencial, tanto quando ora, como quando fazem
negócios, tanto quando anda, como quando descansa, tanto quando ganha, como quando distribui os seus
bens. Eu disse por impulso do coração. É esta a qualidade primeira e essencial. Porque tudo vem do
coração, como o coração assim será a mente, assim será a palavra, o olhar e a ação.
O homem justo tira o bem do seu coração de justo e, quanto mais dá, mais acha para dar, porque sem
doar o bem feito cria um novo bem, assim como o sangue que se renova na circulação das veias, voltando
ao coração enriquecido com novos elementos apanhados com o oxigênio que absorveu e com o suco dos
alimentos que assimilou. Enquanto isso, o homem perverso, do seu coração tenebroso, cheio de fraudes e
venenos, não pode tirar senão fraudes e venenos, que sempre mais vão aumentando, fortalecidos pelas
culpas que vão se acumulando, assim como no homem bom vão-se acumulando as bênçãos de Deus. Podeis,
pois, acreditar que a exuberância do coração é que transborda dos lábios e se manifesta nas ações.
Fazei que vosso coração seja humilde, puro, amoroso, confiante, sincero. Amai a Deus com o amor
pudico que uma virgem tem para com o seu esposo. Em verdade, eu vos digo que todas as almas são como
virgens desposadas pelo Eterno Amor, pelo Deus nosso Senhor. Esta terra é o tempo do noivado, tempo no
qual o anjo, que guarda todo homem, é o paraninfo espiritual e todas as horas e as contingências da vida
são servas, que preparam o enxoval das núpcias. A hora da morte é a hora em que se completam as
núpcias, quando vem o conhecimento, o abraço, a fusão e, com a veste de verdadeira esposa, a alma pode
levantar o seu véu e lançar-se nos braços do seu Deus, sem que, por amar assim ao seu esposo, induza
outros a escândalo.
Mas, por enquanto, ó almas sacrificadas no laço do noivado com Deus, quando quiserdes falar com o
esposo, ponde-vos na paz da vossa morada, na paz da vossa morada interior, e falai, como anjos de carne
ladeados pelo Anjo da Guarda, falai ao Rei dos Anjos.
Falai ao vosso Pai no segredo do vosso coração, do vosso quarto interior. Deixai fora tudo o que é do
mundo: o desejo de quererdes ser vistos e de edificar, os escrúpulos das longas orações cheias de palavras,
palavras monótonas, cheias de tibieza e pálidas em amor.
172.6 Por caridade! Livrai-vos das medidas no orar. Na verdade, há alguns que perdem horas em um
monólogo, que repetem, apenas com os lábios, não passando de solilóquio, pois nem o Anjo da Guarda ouve,
de tão grande é o rumor vazio para o qual se procura achar remédio, aprofundando-se em uma ardente
oração em favor de um ignorante protegido. Em verdade, há alguns que não fariam uso diferente daquelas
horas, mesmo se Deus lhes aparecesse, dizendo: “A salvação do mundo depende de que tu abandones esta
linguagem sem vida, buscando, simplesmente, água num poço para derramá-la no solo, por Meu amor e dos
teus semelhantes.” Em verdade, há alguns que acham que é mais importante o seu monólogo do que o ato
delicado de quem acolhe um visitante ou socorre um necessitado. São almas que caíram na idolatria da
oração.
A oração é um ato de amor. Amar é coisa que se pratica, tanto quando se ora, como quando se faz o pão;
tanto meditando, como prestando assistência a um enfermo; tanto fazendo uma peregrinação ao Templo,
como cuidando das necessidades da família; tanto sacrificando um cordeiro, como sacrificando até os
nossos justos desejos de recolhimento junto ao Senhor. Basta que nos impregnemos completamente de
amor e as nossas ações com o amor. Não tenhais medo! O pai está vendo. O Pai compreende. Ele está
ouvindo. Ele concede. Quantas graças são concedidas por apenas um só e perfeito suspiro de amor! Quanta
abundância por um sacrifício íntimo, feito com amor. Não sejais como os pagãos. Deus não precisa que lhe
digais o que Ele deve fazer, porque vós estais necessitando daquilo. Isto os pagãos podem dizer aos seus
ídolos, que não os podem entender. Não vós a Deus, ao Deus, o verdadeiro Deus espiritual, que não é
somente Deus e Rei, mas é vosso Pai, e sabe, o que precisais antes mesmo que lho peçais.
172.7Pedi, e vos será dado, procurai e achareis, batei, e vos será aberto. Porque quem pede, recebe; quem
procura, acha e será aberta a porta a quem nela toca. Quando um vosso filho vos estende a mão, e diz “Meu
pai, estou com fome”, será que lhe dareis uma pedra? Será que lhe dareis uma cobra, quando ele vos pede
um peixe? Não, mas vós lhes dais pão e peixe, e além disso, o acariciais e abençoais, porque para o pai é
um prazer alimentar o filho, vê-lo feliz sorrindo. Se, pois, vós, que tendes o coração imperfeito, sabeis dar
presentes bons aos vossos filhos, por um amor natural, que até os animais têm para com as suas crias,
quanto mais o vosso Pai que está nos Céus concederá àqueles que lhas pedirem as coisas boas e
necessárias para a sua vida. Não tenhais medo de pedir, e não tenhais medo de ficar sem receber!
Mas, Eu quero vos alertar para um erro muito comum, não façais como os fracos na fé e no amor, os
pagãos da verdadeira religião, porque mesmo entre os que têm fé há pagãos, cuja pobre religião é um
emaranhado de superstições e de fé, um edifício arruinado pela metade, no qual se infiltraram as ervas
parasitas de toda espécie, a ponto de encher-se de gretas, destruindo-se. Enfraquecidos e pagãos,
percebem que sua fé está morrendo, se não forem atendidos.
Vós pedis. Achais que é justo pedir. De fato, para aquele momento não deixaria de ser justa aquela
graça. Mas a vida não termina naquele momento. O que é bom hoje pode não ser amanhã. Disso vós não
sabeis, porque vós só conheceis o presente. Isso é também uma graça de Deus. Mas Deus, conhece também
o futuro. Muitas vezes, para poupar-vos um sofrimento maior, deixa de atender uma oração. No meu ano de
vida pública, mais de uma vez ouvi os corações gemerem: “Quanto eu sofri, quando Deus não me ouviu.
Mas agora eu digo: ‘Foi bom assim, porque aquela graça me teria impedido de chegar a esta hora de Deus.”
Eu ouvi outros dizer, ou mesmo reclamarem para Mim: “Por que, Senhor, não me ouves? A todos ouves, e a
mim, não?” Mesmo sentindo a dor de ver que sofriam, precisei dizer: “Eu não posso” pois se os atendesse,
seria obstacularo vôo deles para a vida perfeita.
Também o Pai, às vezes, diz “Não posso.” Não porque não possa fazê-lo imediatamente. Mas porque não
o quer fazer, em vista das consequências futuras. Ouvi: Um menino está doente das vísceras. A mãe chama
o médico, e o médico lhe diz: “Para que ele fique bom, é preciso que faça um jejum absoluto.” O menino
chora, grita, suplica, parece extremamente debilitado. A mãe, sempre compadecida, une os seus lamentos
ao do filho. Acha que o médico é muito rigoroso, com aquela proibição total de alimento: Mas o médico
continua intransigente. Afinal, ele diz: “Mulher, eu sei o porquê e tu não sabes. Queres que o teu filho
morra, ou que eu o salve?” A mãe diz em alta voz: “Eu quero que ele viva!” Então, diz-lhe o médico: “Eu não
posso permitir que ele se alimente. Pois ele morreria.” Também o Pai, às vezes, diz assim. Vós, ó mães
compadecidas do vosso eu, não quereis vê-lo sofrer por lhe ter sido negada uma graça. Mas Deus diz: “Eu
não posso. Seria isso o teu mal.” Mas chegará o dia ou virá a eternidade, na qual se dirá: “Obrigado, meu
Deus, por não terdes dado ouvidos à minha tolice.”
172.8 Tudo o que Eu disse sobre a oração, digo-o também sobre o jejum. Quando jejuardes, não fiqueis com
aquele ar triste, como costumam fazer os hipócritas, que sabem desfigurar o próprio rosto, a fim de que o
mundo fique sabendo que eles estão jejuando, ainda que não seja verdade. Também esses já receberam a
sua recompensa, com o louvor do mundo, e não terão outra. Mas vós, quando jejuardes, tomai um ar alegre,
lavai bem o vosso rosto, para que ele apareça vistoso e liso, ungi vossa barba e perfumai vossos cabelos,
conservando nos lábios o sorriso dos bem nutridos. Oh! Pois na verdade, não há alimento que nutra tanto
quanto o amor! Quem jejua com espírito de amor, se nutre de amor! Em verdade vos digo que, ainda que o
mundo vos chame de “vaidosos” ou “publicanos”, o vosso Pai está vendo o vosso heróico segredo, e vos dará
uma dupla recompensa: uma, pelo jejum, e a outra, pelo sacrifício de não procurar ser louvados por causa
dele.
172.9 Agora, ide dar comida ao vosso corpo, depois de terdes nutrido a vossa alma. Aqueles dois
pobrezinhos fiquem conosco. Eles serão os hóspedes benditos, que darão sabor ao nosso pão. A paz esteja
convosco.
Os dois pobrezinhos ficam. São uma mulher muito magra e um velho já bem velho. Mas eles não estão
juntos. Estavam ali por acaso, reunidos com os outros, e tinham ficado em um canto, deprimidos,
estendendo inutilmente suas mãos aos que passavam diante deles. Jesus vai diretamente a eles, que não
têm coragem de aproximarem-se, e os toma pelas mãos, levando-os para o centro do grupo dos discípulos,
Estão debaixo de uma tenda que Pedro ergueu num canto, e sob a qual eles talvez poderão abrigar-se de
noite e fazer suas reuniões nas horas mais quentes do dia. É um galpão coberto de folhagem e de… capas.
Mas está servindo para o que queriam, mesmo sendo tão baixo que Jesus e Iscariotes, os dois mais altos,
têm que encurvarem-se para entrarem nele.
– Aqui está o pai, e aqui está uma irmã. Trazei tudo o que temos. Enquanto vamos tomar a nossa
refeição, ouviremos a história deles.
Pessoalmente, Jesus vai servindo os dois, que envergonhados, discorrem as lamentações de suas
narrações. O velho tinha ficado sozinho, depois que a filha foi-se embora para longe com seu marido,
esquecendo-se do pai. A velha também ficou sozinha, depois que a febre matou seu marido, deixando-a
doente.
– O mundo nos despreza, porque somos pobres –diz o velho–. Eu vivo pedindo esmolas para ajuntar
dinheiro para a Páscoa. Estou com oitenta anos. Sempre eu fiz a Páscoa, e esta pode ser a última vez. Mas
não quero ir para o seio de Abraão com nenhum remorso. Eu perdôo à minha filha, assim como espero ser
perdoado. Quero fazer a minha Páscoa.
– Longo é o caminho, pai.
– Mais longo é o do Céu, se se faltar ao rito.
– Andas sozinho? E se te sentires mal pelo caminho?
– O Anjo de Deus me fechará os olhos.
Jesus o acaricia na cabeça trêmula e branca, e pergunta à mulher:
– E tu?
– Eu procuro trabalho. Se eu fosse bem alimentada, ficaria curada dessas febres. Curada, poderia
trabalhar até nos trigais.
– Crês que só o alimento te curaria?
– Não. Temos também a Ti… Mas eu sou uma pobre coisa, uma coisa pobre demais para poder pedir
piedade.
– Se Eu te curasse, que quererias depois?
– Nada mais. Já teria tido muito mais do que eu possa esperar.
Jesus sorri, e lhe dá um pedaço de pão molhado em um pouco de água e vinagre, que serve de bebida. A
mulher o come sem falar, e Jesus continua a sorrir.
172.10 A refeição termina logo. Era tão frugal! Apóstolos e discípulos estão à procura de sombra nas
encostas, nas moitas. Jesus fica no galpão O velho encostou na parede forrada de erva e, cansado, pega no
sono.
Pouco depois, a mulher, que também se havia afastado para procurar uma sombra e descansar, vem para
Jesus, que lhe sorri, encorajando-a. Ela se aproxima com timidez embora alegre, até chegar perto da tenda.
Depois sente-se vencida pela alegria e dá os últimos passos com rapidez, deixando-se cair de bruços, com
um grito meio sufocado:
– Tu me curaste! Bendito! É a hora do grande calafrio e eu não o tenho mais. Oh! –e beija os pés de
Jesus.
– Tens certeza de que estás curada? Eu não te falei isto. Pode ter sido um acaso…
– Oh! Não! Agora compreendo o teu sorriso, quando me deste aquele pão. O teu poder penetrou em mim
com ele. Eu nada tenho para dar-te em troca, a não ser o meu coração. Manda à tua serva, Senhor, e ela te
obedecerá até à morte.
– Sim. Estás vendo aquele velho? Está sozinho e é um justo. Tu tinhas um marido, e a morte o levou. Ele
tinha uma filha, e o egoísmo a tirou dele. Ele está pior do que tu. Mas não diz imprecações. Não é justo que
fique vivendo sozinho em suas últimas horas. Sê tu para ele uma filha.
– Sim, meu Senhor.
– Mas, olha bem, que isto significa trabalhar por dois.
– Agora eu estou forte, e o farei.
172.11 – Vai, então, até lá, à beira daquele barranco, e dize ao homem, que está descansando, aquele que
está vestido de cinzento, que venha até Mim.
A mulher vai sem demora, e volta com Simão, o Zelotes.
– Vem cá, Simão. Preciso falar-te. Tu, fica esperando aí, mulher.
Jesus se afasta a alguns metros dali.
– Achas que Lázaro teria dificuldades em receber mais uma empregada?
– Lázaro? Mas eu acho que ele nem sabe quantos são os seus empregados! Um a mais, um a menos!…
Quem é?
– Aquela mulher. Eu a curei e…
– Basta, Mestre. Se Tu a curaste, é sinal de que a amas. E o que amas para ele é sagrado. Podes deixar
comigo, que eu respondo em lugar dele.
– É verdade. O que Eu amo é sagrado para Lázaro. Tu disseste bem. Por isso Lázaro se tornará santo,
porque, amando o que Eu amo, amará a perfeição. Eu quero pôr aquele velho na companhia daquela
mulher, e fazer que aquele patriarca faça com alegria a sua última Páscoa. Eu quero muito bem aos velhos
santos e, se lhes posso dar um passamento sereno, fico feliz.
– Tu queres bem também as crianças…
– Sim, e os doentes…
– E os que estão chorando…
– E os que estão sozinhos…
– Oh! Mestre meu! Mas, não percebes que queres bem a todos? Até os teus inimigos?
– Eu não percebo isso, Simão. Amar é a minha natureza. Olha, o Patriarca está acordando. Vamos dizer-
lhe que ele fará a sua Páscoa com uma filha perto dele, sem sentir mais falta de pão.
Eles voltam à tenda, onde a mulher os espera, e vão juntos os três até o velho, que está sentado,
amarrando as sandálias.
– Que estás fazendo, pai?
– Vou descer para o vale. Espero encontrar abrigo para a noite. Amanhã vou pedir esmola pela estrada, e
depois sempre descendo, dentro de um mês, se eu não morrer, estarei no Templo.
– Não.
– Não devo ir? Por quê?
– Porque o bom Deus não quer. Não irás sozinho. Esta mulher irá contigo. Ela te levará para onde Eu
disser, e sereis acolhidos, por amor de Mim. Farás a tua Páscoa, sem te cansares. A tua cruz, já a levaste,
pai. Deixa-a agora. Recolhe-te em ação de graças ao bom Deus.
– Mas, por quê?…por quê?… eu… eu não mereço tudo isso… Tu… uma filha… É mais do que se me
desses vinte anos… Para onde é que me envias?…
O velho está chorando por detrás da moita de sua grande barba.
– Irás para a casa de Lázaro de Teófilo. Não sei se o conheces.
– Oh! Eu sou dos confins da Síria, e me lembro de Teófilo. Mas… Oh! Filho bendito de Deus, deixa que
eu te abençoe!
Jesus, sentado como está na relva, bem na frente do velho, de fato se curva para deixar que o velho, todo
solene, lhe imponha as mãos sobre a cabeça, trovejando, com sua voz cavernosa de ancião, as palavras da
antiga bênção[15]:
– O Senhor te abençoe e te guarde. O Senhor te mostre a sua face e tenha misericórdia de ti. O Senhor
volte o seu rosto para ti e te dê a sua paz.
Jesus, Simão e a mulher respondem juntos:
– Assim seja.
[13] está escrito em Deuteronômio 23,24.
[14] ordem que está em Levítico 19,12.
[15] benção que está em Números 6,24-26.
173. Quinto sermão da Montanha:
o usodas riquezas, a esmola, a confiança em Deus.
27 de maio de 1945.
173.1 O mesmo Sermão da Montanha.
A multidão vai aumentando sempre, à medida que vão passando os dias. Há homens, mulheres, velhos,
crianças, ricos e pobres. Está sempre presente o casal Estêvão e Herma, não ainda unido, por enquanto, e
misturado com os velhos discípulos capitaneados por Isaque. Está também presente o novo casal, que se
formou ontem: o velhinho e a mulher. Eles estão bem na frente, perto do seu Consolador, e os seus rostos
estão muito mais aliviados do que ontem. O velho, como que para compensar-se dos muitos meses ou anos
em que ficou abandonado pela filha, já pôs sua mão rugosa sobre os joelhos da mulher, e esta lho acaricia,
por aquela necessidade inata da mulher moralmente sadia de tomar atitudes maternais.
Jesus passa por perto deles, para subir ao seu rústico púlpito e, ao passar, acaricia a cabeça do velhinho,
que olha para ele como se já o visse vestido como Deus. Pedro diz alguma coisa a Jesus, que lhe faz um
sinal, como se estivesse dizendo: “Não tem importância.” Mas eu não compreendo o que é que o apóstolo
está dizendo. Ele está perto de Jesus, ao qual vêm unir-se depois também Judas Tadeu e Mateus. Os outros
estão espalhados pelo meio da multidão.
173.2 – A paz esteja com todos vós!
Ontem Eu falei da oração, do juramento, do jejum. Hoje quero instruir-vos sobre outras perfeições, que
também são oração, confiança, sinceridade, amor, religião.
A primeira, de que hoje falo é sobre o justo uso das riquezas, a serem transformadas, pela boa vontade
do servo fiel, em muitos outros tesouros no Céu. Os tesouros da terra não duram. Mas os tesouros do Céu
são eternos. Vós amastes o que é vosso? Ficais tristes por terdes que morrer, e não poderdes mais cuidar de
vossos bens, tendo que deixá-los? Então, transportai-os para o Céu! Vós dizeis: “No Céu não entra o que é
da terra, e Tu nos ensinas que o dinheiro é a coisa mais suja da terra. Como, então poderemos transportá-lo
para o Céu?” Não. Não podeis transportar as moedas, que são coisas materiais, para o Reino, onde tudo é
espiritual. Mas podeis levar convosco o fruto das moedas. Quando dais a um banqueiro o vosso ouro, por
que o fazes? Para que possa produzir frutos. Certamente não quereis privar-vos dele, nem mesmo
momentaneamente, nem quereis que o banqueiro vo-lo entregue tal qual o recebeu. Mas vós quereis que
sobre dez talentos ele vos entregue dez mais um, ou até mais. Se for assim, ficais felizes, e falais bem do
banqueiro. Se não for assim, vós dizeis: “Ele é um homem honesto, mas é um tolo.” E, se acontecer que, em
vez de dez mais um, ele vos entregue nove, dizendo “Eu perdi o resto”, vós o denunciais, e o colocais na
cadeia.
Donde provém o fruto do dinheiro? Por acaso o banqueiro semeia o vosso dinheiro para fazê-lo crescer?
Não. O fruto provém de um acertado manejo dos negócios, de tal modo que, por meio de hipotecas ou
empréstimos a juros, o dinheiro aumente no ágio justo pedido em favor do ouro emprestado. Não é assim?
Pois bem. Então ouvi: Deus vos dá riquezas terrenas. A alguns dá muitas, a outros dá somente aquelas de
que precisam para viver, e vos diz: Agora é contigo. Eu as dei. Usa delas como meio para chegares a um
fim, como o meu amor o deseja, para o teu bem. Eu as confio a ti. Não para que delas faças um mal. Pela
estima que tenho por ti, por reconheceres os meus dons, faze que os teus bens frutifiquem para a
verdadeira Pátria.
173.3 E está aí o método para se chegar a esse fim.
Não queirais acumular os vossos tesouros na terra, vivendo por eles, sendo cruéis, malditos pelo
próximo e por Deus por causa deles. Não vale a pena. Eles estão sempre sem segurança na terra. Os
ladrões sempre podem roubar-vos. O fogo pode destruir vossas casas. As doenças nas plantas e nos
rebanhos podem acabar com o vosso gado e os vossos pomares. Quantas coisas perseguem os vossos bens.
Ainda que eles sejam imóveis e inatacáveis, como as casas e ouro, podem estar sujeitos a se deteriorarem,
como todos os seres vivos, os vegetais e os animais. Por mais que sejam estofos preciosos, estão sujeitos à
desvalorização. Um raio que cai nas casas, o fogo e a água. Os ladrões, a ferrugem, a seca, os roedores, os
insetos nas lavouras; a vertigem dos cavalos, as febres, os desconjuntamentos das pernas e a peste dos
animais, traças e camundongos nos tecidos preciosos e nos móveis de estimação; a erosão produzida pela
oxidação das vasilhas, dos lustres e grades artísticas; tudo, tudo está sujeito a deteriorização.
Mas, se vós fazeis um bem sobrenatural, de todos estes bens terrenos, logo ele fica a salvo de toda a
deteriorização do tempo, dos homens e das intempéries. Fazei para vós tesouros no Céu, lá onde não
entram ladrões, e onde não acontecem desventuras. Trabalhai com amor misericordioso com todas as
misérias da terra. Acariciai as vossas moedas, e até beijai-as, se quiserdes, alegrando-vos com as colheitas
que melhoram, com os vinhedos carregados de cachos, com as oliveiras que se inclinam sob o peso de
numerosíssimas azeitonas, com as ovelhas de seios fecundos e mamas cheias. Fazei tudo isso. Mas, não de
modo estéril, não de modo humano. Fazei-o com amor e admiração, com gozo e com a mentalidade
sobrenatural.
“Obrigado, meu Deus pelas moedas, colheitas, plantas, pelas ovelhas, pelos negócios. Obrigado, ovelhas,
plantas, prados, negócios, que me servis tão bem. Sede benditos todos, porque por tua bondade, ó Eterno, e
por vossa bondade, ó coisas, é que eu posso fazer tanto bem a quem tem fome, a quem está nu, a quem não
tem casa, a quem está doente, sozinho…. No ano passado eu fiz o bem por dez. Neste ano — mesmo que eu
tenha dado muito em esmolas, tenho ainda mais dinheiro e minhas colheitas foram mais gordas e os meus
rebanhos, mais numerosos — eu, então, darei duas, três vezes o que eu dei no ano passado. Do mesmo
modo que todos, até os privados de seus próprios bens, participem da minha alegria, e gozem e bendigam
comigo a Ti, Senhor Eterno.” Esta é a oração do justo. A oração unida à ação, que transporta os vossos bens
para o Céu. Não só vo-los conserva para sempre, mas vos faz encontrá-los, aumentados pelos frutos santos
do amor.
Tende o vosso tesouro no Céu, para que tenhais o vosso coração além do perigo, pois não somente o
ouro, as casas os campos e os rebanhos podem passar por desventuras, mas o vosso coração pode ser
insidiado, despojado, queimado e morto pelo espírito do mundo. Se assim fizerdes, tereis vosso tesouro em
vosso coração, porque tereis Deus em vós, até o feliz dia no qual estareis n’Ele.
173.4 Mas, para não diminuir o fruto da caridade, tomai cuidado em serdes caridosos, com espírito
sobrenatural. Como Eu disse da oração e do jejum, assim digo da beneficência e de todas as outras boas
obras que possais fazer.
Conservai o bem que fazeis longe da violação pela sensualidade do mundo, conservai-o virgem dos
louvores humanos. Não profaneis a rosa perfumada pela vossa caridade e boas obras, verdadeiro turíbulo
de perfumes agradáveis ao Senhor. O que profana o bem é o espírito de soberba, o desejo de serdes vistos
fazendo o bem e a procura de elogios. A rosa da caridade fica contaminada e corroída pelas grandes lesmas
viscosas do orgulho satisfeito, e no turíbulo caem palhas fedorentas da liteira na qual o soberbo se
pavoneia, como um animal bem alimentado.
Oh! Aquelas beneficiências feitas só para dar o que falar! Pois, melhor mesmo, teria sido não fazê-las!
Quem não as faz, peca por dureza de coração. E quem as faz, querendo que seja conhecida a importância
que deu e o nome de quem a recebeu, está pedindo a esmola de um louvor, e peca por soberba, tornando
conhecida a sua oferta, como se dissesse: “Estais vendo quanto eu posso?”; peca por falta de caridade,
porque humilha o beneficiado, tornando o seu nome conhecido; e peca por avareza espiritual, querendo
acumular elogios humanos… que são palhas, palhas, nada mais do que palhas Fazei que Deus e os seus
anjos vos louvem.
Vós, quando derdes esmola, não fiqueis tocando a trombeta em vossa frente, para chamar a atenção dos
que estão passando e para serdes elogiados, como os hipócritas que querem ser aplaudidos pelos homens e
por isso só dão esmolas onde possam ser vistos por muitos. Estes já receberam a sua recompensa, e não
receberão a de Deus. Não incorrais na mesma culpa e na mesma presunção. Mas, quando derdes esmola,
que não saiba a vossa mão esquerda o que a direita está fazendo, porque a vossa esmola escondida e
discreta há de ser. e, depois esquecei-vos dela. Não fiqueis olhando continuamente para vós mesmos, depois
de terdes feito aquele ato, inchando-vos com ele, como faz o sapo, que se olha nas águas do brejo, com
olhos anuviados, e vendo refletidos na água parada as nuvens, as árvores e o carro parado perto da
margem, vendo-se tão pequeno, diante de todas aquelas coisas, começa a encher-se de ar, até estourar.
Também a caridade que fizestes não é nada, em comparação com a infinita Caridade de Deus. E, se
quisésseis tornar-vos semelhante a Ele e tornar grande a vossa pequena caridade, para igualar-se à dele,
vos encheríeis do vento do orgulho, e acabaríeis perecendo.
Esquecei-vos disso. Até do ato em si mesmo, esquecei-vos. Estará sempre presente uma luz, uma voz,
um mel, e vos tornará o dia luminoso, doce e feliz. Porque aquela luz será o sorriso de Deus, aquele mel
será paz espiritual, que também é Deus, e aquela voz é a voz de Deus-Pai que vos dirá “Obrigado.” Ele vê o
mal oculto e vê o bem escondido, e vos dará a recompensa, Eu vo-lo…
173.5 – Mestre, Tu estás mentindo, com estas palavras!
O insulto, odiento e repentino, vem lá do centro da multidão. Todos se viram para o lado de onde veio
aquela voz. Cria-se uma grande confusão.
Pedro diz:
– Bem que eu te havia dito! Quando há um deles no meio… nada mais corre bem!
Do meio da multidão saem assobios e murmúrios contra o insultador. Jesus é o único que está calmo. Ele
cruzou os braços sobre o peito e está de pé sobre sua pedra, vestido com sua veste azul escura e com o sol
batendo-lhe no rosto.
O insultador continua, sem se preocupar com a reação da multidão:
– És um mau mestre, porque ensinas o que não praticas e…
– Cala a boca! Vai-te embora! Cria vergonha! –grita a multidão.
E diz ainda:
– Vai para os teus escribas. Para nós, o Mestre basta. Que os hipócritas fiquem com os hipócritas!
Mestres falsos! Agiotas!
E continuariam, mas Jesus diz, com sua voz de trovão:
– Silêncio. Deixai que ele fale –e o povo para de gritar, mas fica cochichando suas ameaças,
acompanhadas de olhares ferozes.
– Sim. Tu ensinas o que não fazes. Dizes que se deve dar esmolas sem ser vistos, e ontem, na presença
do povo todo, disseste a dois pobres: “Ficai aqui, que matarei vossa fome.”
– Eu disse: “Que fiquem os dois pobrezinhos. Eles serão os hóspedes bem-vindos, e darão sabor ao nosso
pão.” Nada mais. Eu não quis dizer que ia matar-lhes a fome. Quem é tão pobre, que não tenha pelo menos
um pão? A alegria era oferecer-lhes uma boa amizade.
– Ora! Mais esta. És astuto, e sabes fazer-te um cordeiro!…
O velhinho se ergue, vira-se, e levantando o seu bastão, grita:
– Língua infernal, que acusas o Santo, achas talvez que sabes tudo, e que podes acusar só pelo que
sabes. Como não sabes quem é Deus, e quem é este que estás insultando, assim também não sabes o que
Ele faz. Somente os Anjos e o meu coração cheio de júbilo o sabem. Ouvi, ó homens, ouvi todos, e ficai
sabendo se Jesus é o mentiroso e o soberbo que este lixo do Templo está querendo dizer. Ele…
– Cala a boca, Ismael! Cala-te por amor de Mim. Se Eu te fiz feliz, faze-me feliz, calando-te –pede-lhe
Jesus.
– Eu te obedeço, Filho Santo. Mas deixa-me dizer ainda só isto: A benção do velho israelita fiel está
sobre Aquele que, da parte de Deus, me beneficiou, e Deus a colocou sobre os meus lábios, por mim e por
Sara, minha nova filha. Mas sobre tua cabeça não haverá benção. Eu não te amaldiçoo. Não quero com uma
maldição sujar minha boca, que deve dizer a Deus “Acolhe-me.” Eu não fiz uso dela nem mesmo para quem
me renegou, e por isso eu já recebi a recompensa divina. Mas teremos quem faça as vezes do Inocente
acusado e de Ismael, amigo de Deus que o beneficia.
Um coro de gritos encerra o discurso do velho, que torna a sentar-se. E o homem sai dali, afastando-se
rapidamente, indo embora, perseguido pelas ameaças.
Depois a multidão grita para Jesus:
– Continua, continua, Mestre Santo! Nós escutamos somente a Ti, e Tu nos escutas. Não àqueles
malditos corvos!! Eles estão com ciúmes. Porque nós te amamos mais que eles! Mas em Ti há Santidade.
Neles há maldade. Fala, fala! Estás vendo: não desejamos mais que a tua palavra. Casas, negócios? Nada
disso, para que possamos ouvir-te!
Está bem. Eu vou falar. Mas não ligueis para isso. Rezai por aqueles infelizes. Perdoai, como Eu perdôo.
Porque, se perdoardes as faltas dos homens, também o vosso Pai do Céu vos perdoará dos vossos pecados.
Mas, se guardardes rancor e não perdoardes os homens, também o vosso Pai não vos perdoará. E todos
precisam do perdão.
173.6 Eu vos estava dizendo que Deus vos dará recompensa, mesmo se vós não lhe pedirdes um prêmio
pelo bem que fizestes. Mas vós não façais o bem para terdes recompensa, para terdes uma fiança no dia de
amanhã. Vós não façais o bem medindo, nem retidos pelo medo, dizendo: “Depois, ainda sobrará para mim?
Se não sobrar, quem é que me ajudará? Será que encontrarei quem faça por mim o que estou fazendo pelo
outro? E, quando eu não tiver mais nada para dar, serei ainda amado?”
Olhai bem: Eu tenho amigos poderosos entre os ricos, e amigos entre os miseráveis da terra. Em
verdade, Eu vos digo que não são os amigos poderosos os mais amados. Eu vou a eles, não por amor a Mim,
ou por ser uma vantagem para Mim. Mas, sim, porque deles eu posso receber muito para quem não tem
nada. Eu sou pobre. Não possuo nada. Gostaria de ter todos os tesouros do mundo e transformá-los em pães
para quem está com fome, em casas para quem está sem casa, em roupas para quem está nu, em remédios
para quem está doente. Vós me direis: “Mas Tu podes curar.” Sim. Isto e outras coisas Eu posso. Mas nem
sempre há fé, e Eu não posso fazer o que faria e poderia fazer, se encontrasse nos corações alguma fé em
Mim. Eu quereria fazer o bem também a esses que não têm fé. E, visto que eles não pedem milagre ao Filho
do homem, eu quereria, de homem para homem, prestar-lhes socorro. Mas Eu não tenho nada. Por isso,
estendo a mão a quem tem e peço: “Fazei-me uma caridade, em nome de Deus” Aí está porque é que tenho
muitos amigos da alta sociedade. Amanhã, quando Eu não estiver mais na terra, ainda existirão os pobres, e
Eu não estarei para realizar milagres aos que tem fé, nem dar esmolas e levá-los à fé. Mas, então, os meus
amigos ricos terão aprendido, pois estiveram em contato comigo, como é que se faz beneficência, e os meus
apóstolos terão aprendido a pedir esmolas por amor dos irmãos também pelo contato que tiveram comigo..
Assim os pobres serão sempre socorridos.
Pois bem. Ontem recebi mais do que tudo que me foi dado por todos aqueles que têm, de alguém que
não tem nada.. É um amigo tão pobre como Eu. Ele me deu uma coisa que não se compra com nenhuma
moeda, e me fez feliz, fazendo-me lembrar das horas serenas de minha infância e juventude, quando, cada
tarde, sobre minha cabeça se impunham as mãos do Justo, e Eu ia descansar com sua bênção, que ficava
guardando o meu sono. Ontem este meu amigo pobre me fez rei, com a sua bênção. Vede que o que ele me
deu nenhum dos meus amigos ricos nunca me deu. Por isso, não tenhais medo. Mesmo se não tiverdes o
poder do dinheiro, contanto que tenhais amor e santidade, podereis fazer o bem a quem é pobre e está
cansado ou aflito.
173.7 E por isso vos digo: não vos preocupeis por receio de terdes pouco. Vós tereis sempre o necessário.
Não fiquem preocupados, pensando no futuro. Ninguém sabe quanto de futuro tem ainda à sua frente. Não
fiqueis pensando no que havereis de comer para sustentar-vos na vida, nem com que vos vestireis para
esquentar o vosso corpo. A vida do vosso espírito é bem mais preciosa do que o ventre e os membros e vale
muito mais do que o alimento e as vestes. E o vosso Pai sabe disso. Que vós também o saibais. Olhai as aves
do céu: não semeiam, nem colhem, nem acumulam nos celeiros e, no entanto, não morrem de fome, porque
o Pai do Céu as nutre. Vós, homens, criaturas prediletas do Pai, valeis muito mais do que elas.
Quem de vós, com toda a vossa inteligência, seria capaz de aumentar um côvado em vossa altura? Se
não conseguis aumentar a vossa altura nem um palmo, como podeis pensar em mudar as vossas condições
futuras, aumentando as vossas riquezas, para garantir uma longa e próspera velhice? Podeis dizer à morte
“Tu só me virás buscar quando eu quiser?” Não o podeis. Para que então, viver preocupados com o
amanhã? Por que ficar tristes por medo de não ter o que vestir? Olhai como crescem os lírios do campo:
eles não se cansam, não fiam, nem tecem, não visitam os vendedores de tecidos para suas compras, no
entanto, Eu vos asseguro que nem mesmo Salomão, com toda a sua glória, nunca se vestiu como um deles.
Ora, se Deus veste assim a erva, que hoje existe e amanhã irá servir para aquecer o forno, ou para a
pastagem do rebanho, terminando sempre em cinza, ou esterco, quanto mais não proverá para vós, que sois
seus filhos?
Não sejais pessoas de pouca fé. Não vos angustieis, porque o futuro é incerto, nem dizei: “Quando eu
ficar velho, que é que vou comer? Que é que vou beber? Com que vou me vestir?” Deixai essas
preocupações para os pagãos, que não têm a sublime certeza da paternidade divina. Vós a tendes e sabeis
que o Pai conhece as vossas necessidades, e vos ama. Confiai, pois, nele. Procurai primeiro as coisas
verdadeiramente necessárias: a fé, a bondade, a caridade, a humildade, a misericórdia, a pureza, a justiça,
a mansidão, as três e as quatro virtudes principais, e todas as outras também, de modo que possais ser
amigos de Deus com direito ao seu Reino: Eu vos asseguro que tudo o mais vos será dado em acréscimo,
sem que vós o peçais. Não há rico mais rico nem seguro mais seguro do que o santo. Deus está com ele. E o
santo está com Deus. Para o seu corpo não pede nada e Deus o provê do necessário. Mas ele trabalha para
o seu espírito, e Deus se dá a Si Mesmo a ele aqui neste mundo, e lhe dá o Paraíso, depois desta vida.
Não fiqueis sofrendo por algo que não merece o vosso sofrimento. Afligi-vos, sim, por serdes imperfeitos,
mas não por terdes poucos bens terrenos. Não vos preocupeis com o dia de amanhã. O dia de amanhã
pensará a por si mesmo, e vós pensareis nele quando o estiverdes vivendo. Por que pensar nele desde hoje?
A vida já não está bem cheia das lembranças tristes de ontem e dos pensamentos desagradáveis de hoje,
para sentirdes ainda necessidade de viver com o pesadelo do dia de amanhã? Deixai para cada dia os seus
problemas! Existirão sempre mais sofrimentos, do que nós quereríamos nesta vida, sem que precisemos
aumentar os sofrimentos presentes com o pensamento do futuro! Dizei sempre a grande palavra de Deus:
“Hoje.” Sede seus filhos à sua semelhança. Dizei, pois com Ele: “Hoje.”
E hoje Eu vos dou a minha benção. Que ela vos acompanhe até o começo do novo hoje, isto é, amanhã, e
então Eu vos darei de novo a paz em nome de Deus.
174. Sexto sermão da Montanha:
a escolha entre o bem e o mal, o adultério, o divórcio.
Chegada inoportuna de Maria de Magdala.
25 de maio de 1943.
174.1 Em uma radiosa alvorada, com um ar mais límpido que de costume, através do qual parece que as
distâncias se aproximam, ou que as coisas estejam sendo vistas através de uma lente, que torna nítidos os
menores detalhes, o povo se prepara para ouvir o Mestre.
Dia a dia a natureza vai-se mostrando mais bela e se reveste da rica veste da primavera, que na
Palestina me parece ser entre março e abril, porque, depois desse tempo, a natureza começa ter o aspecto
do verão, com os grãos já maduros e as folhas já crescidas e formadas. Agora há flores por toda parte. Do
alto do monte, que por sua vez, já se revestiu de flores, até nos pontos menos aptos para florescer, vê-se a
planície, onde as ondas dos trigais ainda se dobram ao soprar do vento, o qual lhes dá o movimento de um
vagalhão verde, tingido superficialmente por um ouro pálido nas pontas das espigas, produzindo seus grãos
entre as arestas espinhosas. Acima deste ondular de messes ao vento suave as árvores frutíferas estão de
pé, em sua veste de pétalas (mais se parecem com enormes pincéis de pó de arroz, ou então com bolinhas
de gaze branca, de um róseo muito tênue, e um róseo mais carregado, vermelho vivo). Recolhidas em suas
vestes de penitentes ascéticas, as oliveiras rezam, e sua oração vai transformando em um cair de neve, por
enquanto ainda incerto, de umas florzinhas brancas.
O Hermon é um alabastro róseo em seu cume, que o Sol beija, e do alabastro descem dois fios de
diamantes (daqui parecem fios) dos quais o Sol tira um cintilar quase irreal, indo depois enfurnar-se por
baixo das galerias verdes dos bosques, não se vendo mais nada além dovale, onde formam cursos d’água
que, certamente, irão ao lago Meron, daqui invisível, saindo dele com as belas águas do Jordão, para depois
lançarem-se novamente no safira claro do Mar da Galileia, que é um contínuo tremular de escamas
preciosas para as quais o Sol serve de engaste e de chama. Parece que os veleiros, que deslizam por este
espelho tranquilo e magnífico, com sua moldura de jardins e campinas maravilhosas, estejam sendo guiados
pelas nuvenzinhas leves, que navegam no outro mar do céu.
Verdadeiramente todo ser criado ri neste dia de primavera e a esta hora da manhã.
174.2O povo aflui sem parar. Sobem de todos os lados: velhos, sadios, doentes, crianças, esposos, que
pensam em iniciar as suas vidas com as bênçãos da Palavra de Deus, mendigos, pessoas de bem, que
chamam os apóstolos para dar-lhes suas ofertas para aqueles que nada têm e parece que se confessam, pois
procuram um lugar escondido para isto. Tomé apanhou um dos sacos de viagem, despejando nele
tranquilamente todo esse tesouro de moedas, como se fosse comida para os frangos e vai levar tudo para
perto da pedra na qual Jesus está falando. Dá uma de suas alegres risadas, dizendo:
– Alegra-te, Mestre! Hoje há para todos!
Jesus sorri, e diz:
– Vamos começar logo, a fim de que os que estão tristes fiquem logo felizes. Tu e teus companheiros
separai os doentes e os pobres e trazei-os aqui para a frente.
Isto acontece em um tempo relativamente curto, pois é preciso verificar os diversos casos, e duraria
muito tempo, sem a ajuda de Tomé que, com a sua voz potente, de pé, de cima de uma pedra para poder ser
visto, grita:
– Todos aqueles que têm sofrimento no corpo fiquem à minha direita, lá onde há sombra.
O Iscariotes o imita, também ele dotado de uma voz não comum em potência e beleza que, por sua vez,
grita:
– E todos os que acham que têm direito à esmola, venham aqui, a minha volta. E cuidai bem de não
mentir, porque os olhos do Mestre lêem nos corações.
A multidão põe-se em movimento, para dividir-se assim em três partes: os que estão doentes, os que são
pobres e os que somente desejam a doutrina.
174.3 Mas, entre estes últimos, primeiro dois e depois três, parecem ter necessidade de alguma coisa, que
não é a saúde nem o dinheiro, mas, é mais necessária do que estas coisas. Uma mulher e dois homens.
Olham, olham para os apóstolos e não ousam falar. Passa Simão, o Zelotes, com seu aspecto severo; passa
Pedro, muito atarefado e vai conversando com uns dez moleques, aos quais promete dar azeitonas, se eles
se comportarem bem até o fim, ou então uma surra se ficarem fazendo barulho enquanto o Mestre estiver
falando; passa Bartolomeu, já ancião e muito sério; passa Mateus e Filipe, que levam nos braços um
aleijado que teria tido muito trabalho para atravessar a multidão compacta; passam os primos do Senhor
amparando um mendigo quase cego e uma velha pobrezinha, que chora enquanto conta a Tiago os seus
males; passa Tiago de Zebedeu com uma pobre menina nos braços, certamente doente que ele tomou da
mãe, que o segue aflita, para impedir que a multidão faça algum mal a ela. Os últimos a passar são os que
eu poderia chamar de “indivisíveis”, André e João, porque se João, em sua serena natureza de menino
santo, estaria junto com os companheiros, André, pelo seu grande acanhamento, prefere estarr com seu
antigo companheiro de pesca e de fé em João Batista. Estes dois ficam perto do começo das duas filas
principais, para encaminharem a multidão a os seus lugares. Mas agora, no monte, não se veem mais
peregrinos pelos caminhos cheios de pedras, e os dois se reúnem junto ao Mestre com as últimas ofertas
recebidas.
Jesus está inclinado sobre os doentes, e os hosanas da multidão festejam cada milagre. Uma mulher, que
parece estar sofrendo muito, ousa puxar João pela veste, enquanto ele está conversando alegremente com
André. Ele se inclina e pergunta:
– Que queres, mulher?
– Desejaria falar com o Mestre…
– Tens alguma doença? Pobre não és…
– Não tenho doença e não sou pobre. Mas estou precisando dele… porque existem doenças sem febre e
misérias sem pobreza. E a minha… a minha… –e chora.
– Escuta, André. Esta mulher tem um sofrimento em seu coração e desejaria ir dizê-lo ao Mestre. Como
faremos?
André olha para a mulher, e diz:
– Certamente é alguma coisa que faz sofrer ao revelar-se…
A mulher faz com a cabeça o sinal que sim. Então, André continua:
– Não chores… João, procura levá-la atrás da nossa tenda. Eu levarei o Mestre até lá.
João, com seu sorriso, pede que abram caminho para ele poder passar, enquanto André vai na direção
oposta, para Jesus. Aqueles movimentos deles são observados por dois homens aflitos, e um deles parou
João e o outro André e, pouco depois, tanto um como o outro estão juntos com João e com a mulher detrás
do tapume de ramos que serve de parede para a tenda.
174.4 André alcança Jesus, no momento em que este está curando um aleijado, que levanta as muletas
como dois troféus, ágil como um bailarino, apregoando a sua bênção. André sussurra:
– Mestre, lá atrás do nossa tenda, há três que estão chorando. Mas o mal deles é do coração, e não pode
ser conhecido por outros…
– Está bem. Tenho ainda esta menina e esta mulher. Depois irei. Vai dizer-lhes que tenham fé.
André vai, enquanto Jesus se inclina sobre a menina, que a mãe tomou de novo no colo.
– Como te chamas? –pergunta-lhe Jesus.
– Maria.
– E Eu, como me chamo?
– Jesus –responde a menina.
– Quem sou Eu?
– O Messias do Senhor, que veio para fazer o bem aos corpos e às almas.
– Quem te disse isto?
– A mamãe e o papai, que esperam em Ti pela minha vida.
– Vive e sê boa.
A menina, que acho ter sido doente da espinha, pois mesmo com sete anos ou mais, não se movia senão
com as mãos, e toda apertada em grossas e duras faixas, das axilas até os quadris (podem-se ver as faixas,
porque a mãe abriu o vestidinho da menina para mostrá-las), fica ainda assim como estava há alguns
minutos. Depois tem um sobressalto, desliza do colo materno para o chão, e corre até Jesus, que está
curando a mulher, cujo caso não compreendo.
Os doentes já foram todos atendidos, e são eles que gritam com mais força no meio daquela multidão
que aplaude ao “Filho de Davi, glória de Deus e nossa.”
174.5 Jesus vai agora para a tenda.
Judas de Keriot grita:
– Mestre, e estes?
Jesus se vira, e diz:
– Esperem onde estão. Eles também serão consolados.
Com passos rápidos, se dirige para trás do tapume, ao lugar onde estão, André e João e os sofredores.
– Primeiro, a mulher. Vem comigo entre estas sebes. Fala sem medo.
– Senhor, meu marido me abandonou por uma prostituta. Eu tenho cinco filhos, e o último está com dois
anos… Minha dor é grande… penso nos filhos… Não sei se ele os quererá, ou se os deixará comigo. Os
filhos homens, pelo menos o primeiro, quererá que fique com ele… e eu, que o dei a luz, não poderei mais
ter a alegria de vê-lo? E, que ficarão eles pensando do pai e de mim? De um dos dois eles hão de pensar
mal. E eu não gostaria que eles ficassem julgando o seu pai…
– Não chores. Eu sou o Senhor da Vida e da Morte. Teu marido não se casará com aquela mulher. Vai em
paz, e continua a ser boa.
– Mas… não o vais matar? Oh! Senhor, eu o amo!
Jesus sorri:
– Eu não matarei ninguém. Mas haverá quem faça o seu trabalho. Fica sabendo que o demônio não é
mais que Deus. Retornando à tua cidade, saberás que alguém matou a criatura maldosa, de tal modo, que o
teu marido compreenderá o que estava fazendo e te amará com um renovado amor.
A mulher beija-lhe a mão, que Jesus pôs sobre sua cabeça, e vai embora.
174.6 Vem um dos dois homens.
– Eu tenho uma filha, Senhor. Infelizmete, ela foi a Tiberíades com algumas amigas e foi como se ela
houvesse aspirado um veneno. Voltou para casa como ébria. Agora quer ir embora com um grego… e
depois… Mas, por que me nasceu esta filha? Sua mãe está com tamanha dor que talvez morrerá… Eu…
somente as tuas palavras, que eu ouvi no inverno passado é que ainda me impedem de matá-la. Mas, eu te
confesso, o meu coração já a amaldiçoou.
– Não. Deus, que é Pai, não amaldiçoa senão um pecado completo e obstinado. Que queres de Mim?
– Que tu a faças cair em si.
– Eu não a conheço, e ela certamente não vem até Mim.
– Mas Tu podes mudar o coração dela também de longe! Sabes quem me manda a Ti? Joana de Cusa.
Estava partindo para Jerusalém, quando eu fui ao seu palácio para perguntar se conhecia esse grego
infame. Eu pensava que ela não o conhecesse, porque é boa, ainda que more em Tiberiades, mas, como
Cusa lida com os pagãos… Não o conhece. Mas me disse: “Vai até Jesus. Ele, estando bem longe de mim,
fez voltar o meu espírito e me curou da minha tuberculose com aquele gesto. Ele curará também o coração
da tua filha. Eu rezarei e tu, tem fé. Eu tenho fé.” Tu estás vendo. Tem piedade, Mestre.
– Tua filha, nesta tarde, irá chorar sobre os joelhos de sua mãe, pedindo perdão. E tu também, sê bom,
como a mãe: perdoa. O passado morreu.
– Sim, Mestre. Seja como Tu queres, e que sejas bendito.
Ele se vira para ir embora… mas depois volta a trás:
– Perdoa, Mestre, mas estou com muito medo… A luxúria é um verdadeiro demônio! Dá-me um fio da tua
veste. Eu o colocarei no travesseiro de minha filha. Enquanto ela estiver dormindo, o demônio não a
tentará.
Jesus sorri, e sacode a cabeça… mas atende ao homem, dizendo-lhe:
– É para que fiques tranquilo. Mas podes crer que, quando Deus diz “Eu quero”, o diabo vai-se embora,
sem que seja preciso mais nada. Quer dizer que terás isto como uma lembrança de Mim –e lhe dá um
pequeno floco de suas franjas.
174.7 Vem o terceiro homem:
– Mestre, meu pai morreu. Mas nós pensávamos que ele possuísse riqueza em dinheiro. Mas nada disso
encontramos. Isso ainda seria um mal menor, porque entre nós irmãos não nos falta o pão. Mas eu, sendo o
primogênito, morava com meu pai. Agora os outros dois irmãos estão me acusando de ter feito desaparecer
as moedas e querem mover uma ação contra mim, como se eu fosse ladrão. Tu estás vendo o meu coração.
Eu não roubei nem um vintém. Meu pai guardava seu dinheiro em um cofre, dentro de uma caixinha de
ferro. Quando ele morreu, abrimos a caixinha e nela nada havia. Então eles disseram: “Esta noite, enquanto
estávamos dormindo, tu a apanhaste.” Não é verdade. Ajuda-me a manter a paz e a estima entre nós.
Jesus olha para ele, fitando-o bem, e sorri.
– Por que estás sorrindo, Mestre?
– Porque o culpado foi o teu pai, uma culpa de criança quando esconde o seu brinquedo, por medo de
que o apanhem.
– Mas ele não era avarento. Podes crer. Ele fazia o bem.
– Eu sei… Mas já estava muito velho… São doenças de velhos. Ele queria conservar o dinheiro para vós e
vos pôs em choque, por causa de um amor exagerado. Mas a caixinha está enterrada aos pés da escada da
adega. Eu te digo isto, para que fiques sabendo que Eu sei. Enquanto Eu estou te falando, por um mero
acaso, o teu irmão menor estava batendo no chão, com raiva, e fez que a caixa vibrasse e a descobriram,
ficando eles confusos e arrependidos por te terem acusado. Volta para casa tranquilo e sê bom para com
eles. Não lhes digas nada pela falta de estima deles para contigo.
– Não, Senhor. Eu nem irei agora. Eu ficarei aqui para te ouvir. Irei amanhã.
– E se ficarem com o teu dinheiro?
– Tu dizes que não devemos ser avarentos. Eu não quero ser. Basta-me que haja paz entre nós. Afinal, eu
nem sabia quanto dinheiro havia na caixinha e não ficarei aflito com nenhuma notícia que me derem,
mesmo que seja diferente da verdade. Penso até que aquele dinheiro podia estar perdido… Como eu teria
vivido antes, viverei agora, se eles me negarem o que é meu. Basta que não me chamem de ladrão.
– Estás já bem adiantado no caminho de Deus. Segue assim, e a paz esteja contigo.
Ele também parte contente.
174.8 Jesus se volta para a multidão, para os pobrezinhos, e distribui as esmolas segundo as suas próprias
medidas. Agora todos estão contentes, e Jesus pode falar.
– A paz esteja convosco.
Quando Eu vos explico os caminhos do Senhor é para que os sigais. Poderíeis vós, ao mesmo tempo, ir à
direita e à esquerda? Não poderíeis. Porque, se tomais um, deveis abandonar o outro. Mesmo que se
tratasse de dois caminhos próximos um do outro, poderíeis insistir em caminhar com um pé em um e o
outro pé no outro, mas acabaríeis cansando-vos ou errando, ainda que se tratasse de uma aposta. Contudo,
entre o caminho de Deus e o de satanás existe uma grande distância, que torna sempre maior, justamente
como aqueles dois caminhos que desembocam aqui, mas que, a cada passo, ao descer para o vale, ficam
sempre mais longe um do outro, porque um vai para Cafarnaum e o outro para Ptolomaida.
A vida é assim, desliza lá do alto, entre o passado e o futuro, entre o mal e o bem. No centro está o
homem, com a sua vontade e o seu livre arbítrio. Nas extremidades, de um lado está Deus e o Céu; do
outro, está satanás e o Inferno. O homem pode escolher. Ninguém o obriga. Não se diga “satanás tenta”,
como desculpa para as descidas pelo caminho de baixo. Também Deus tenta, com o seu amor que é bem
forte; com as suas palavras, que são bem santas; com as suas promessas, que são bem sedutoras! Por que,
então, deixar-se tentar só por um dos dois e logo por aquele que nenhum merecimento tem para ser
escutado? As palavras, as promessas, o amor de Deus não serão suficientes para neutralizar o veneno de
satanás?
Olhai bem como isto depõe contra vós. Quando alguém é física e fortemente são, não é imune aos
contágios, mas os supera com facilidade. Contudo, se alguém está doente e, portanto, enfraquecido,
perecerá quase com certeza, se alguma nova infecção lhe sobrevier e, ainda que ele sobreviva a ela, estará
mais doente do que antes, porque não tem, em seu sangue, a força para destruir os germes infecciosos,
completamente. O mesmo se diga para a parte superior. Se alguém é moral e espiritualmente são e forte,
sabe que não está isento da tentação, mas o mal não criará raízes nele. Quando ouço alguém dizer: “Eu me
aproximei disto e daquilo, lendo algo ou procurando convencer alguém do bem que tinha o mal na mente e
no coração, ou no livro lido, isso penetrou em mim.” Concluo: “Demonstra assim que já tinhas preparado o
terreno favorável para aquela penetração. Isso demonstra que és um fraco, sem energia moral e espiritual.
Porque até de nossos inimigos devemos tirar algum bem. Observando os erros deles, devemos aprender a
não cair nos mesmos. O homem inteligente não se torna joguete da primeira doutrina que ouve. O homem
saturado de uma doutrina encontrar em si mesmo lugar para outras. Isto explica a dificuldade para
persuadir pessoas que estão convictas de outras doutrinas a seguirem a verdadeira Doutrina. Mas se tu me
dizes que mudas de pensamento, ao menor sopro de vento, Eu vejo que estás cheio do vazio, tens a tua
fortaleza espiritual cheia de fendas, os diques do teu pensamento estão furados em mil pontos e por eles
estão saindo as águas boas e entrando as contaminadas, e tu ficas tão pasmado e apático, que nem te dás
conta do que está acontecendo, nem tomas providências. És um infeliz.”
Por isso, sabei escolher o bom entre os dois caminhos e prosseguir, resistindo, resistindo, resistindo aos
aliciamentos da sensualidade, do mundo, da ciência e do demônio. A meia fé, os comprometimentos, os
pactos entre os opostos, deixai-os para os homens do mundo. Não deviam existir nem mesmo entre os
homens honestos. Mas vós, pelo menos vós, ó homens de Deus, não os tenhais. Nem com Deus, nem com
Mamon podeis fazer esses pecar, porém façam nem convosco mesmos, porque não teriam valor. As vossas
ações mescladas do que é bom com o que não é bom, não teriam nenhum valor. As ações completamente
boas viriam a ser depois anuladas pelas não boas. As más vos levariam diretamente aos braços do inimigo.
Não as façais, pois. Mas, sede leais no vosso serviço.
Ninguém pode servir a dois senhores que pensem diferentemente. Ou amará a um para odiar o outro, ou
vice-versa. Não podeis ser igualmente de Deus e de Mamon. O espírito de Deus não pode conciliar com o
espírito do mundo. Um sobe, o outro desce. Um santifica, o outro corrompe. Se estais corrompidos, como
podereis agir com pureza? A sensualidade se acende nos corrompidos e, atrás da sensualidade, as outras
fomes.
[16] os olhos da
174.9 Vós já sabeis como Eva se corrompeu, depois Adão, por meio dela. Satanás beijou
mulher e os seduziu assim, de modo que toda a aparência, até então pura, tornou-a impura, passando a
despertar estranhas curiosidades. Em seguida, satanás beijou-lhe os ouvidos e os fez ficar abertos a
palavras de uma ciência até então desconhecida: a dele. Também a mente de Eva quis conhecer o que não
era necessário. Depois, satanás, aos olhos e à mente despertados para o Mal, mostrou o que antes não
tinham visto nem compreendido, e tudo em Eva foi despertado e corrompido e a Mulher, indo ao Homem,
revelou-lhe o seu segredo e persuadiu Adão a que provasse do novo belo fruto e que até agora era proibido.
Beijou-o com a boca e as pupilas as quais havia então a desordem de satanás. A corrupção penetrou em
Adão que viu, através dos olhos, desejando o que era proibido e o mordeu, com a companheira, caindo da
grande altura em que estava, na lama.
Quando alguém está corrompido, arrasta o outro para a corrupção, a não ser que o outro seja um santo,
no verdadeiro sentido da palavra.
Atentos com os vossos olhares, homens. Tanto com os olhares dos olhos como os da mente. Os olhos,
uma vez corrompidos, não podem deixar de corromper o resto. Os olhos são a luz do corpo. Luz do coração
é o teu pensamento. Mas, se os teus olhos não forem puros (pela sujeição dos órgãos ao pensamento, os
sentidos se corrompem por um pensamento corrompido), tudo em ti ficará ofuscado, e névoas sedutoras
criarão em ti fantasmas impuros. Tudo é puro naqueleque tem pensamentos e olhares puros. A luz de Deus
desce como senhora onde não há obstáculos postos pelos sentidos. Mas se, por uma decisão, tu educaste os
teus olhos a uma visão desordenada, tudo em ti se tornará trevas. Inutilmente olharás até para as coisas
mais santas. No escuro, elas não serão mais do que trevas, e tu farás obras das trevas.
174.10 Por isso, filhos de Deus, guardai-vos contra vós mesmos. Vigiai-vos atentamente contra todas as
tentações. Que sejamos tentados não é mal. O atleta se prepara para a vitória pela luta. Mal é ser vencidos
por sermos despreparados e desatentos. Eu sei que tudo serve para tentar. Eu sei que a defesa enerva. Eu
sei que a luta cansa. Mas coragem! Pensai no que podeis adquirir com estas coisas! Por uma hora de prazer,
seja lá de que qualidade for, quereis perder uma eternidade de paz? Que é que vos deixa o prazer da carne,
do ouro e do pensamento? Nada. Que é que adquiris, repudiando-os? Tudo. Eu falo a pecadores, porque o
homem é pecador. Pois bem, dizei-me a verdade: depois de terdes satisfeito a sensualidade ou o orgulho, ou
a avareza, vos sentistes mais viçosos, mais contentes, mais seguros? Na hora que vem depois daquela
satisfação — e que é sempre uma hora de reflexão —, sereis mesmo, sinceramente, felizes? Eu não provei
esse pão da sensualidade. Mas Eu respondo por vós: “Não! Paixão, descontentamento, incerteza, náusea,
medo, inquietação. Eis o suco espremido da hora passada.” Mas Eu vos peço. Mesmo se digo “Nunca façais
isto”, também vos digo: “Não sejais inexoráveis com os que erram.” Recordai-vos que sois todos irmãos,
feitos de carne e de alma. Pensai que muitas são as causas pelas quais alguém é induzido a pecar. Sede
misericordiosos para com os pecadores e com bondade levantai-os e conduzi-os a Deus, mostrando que o
caminho por eles percorrido é cheio de perigos da carne, da mente e do espírito. Fazei isto, e recebereis um
grande prêmio. Porque o Pai que está nos Céus é misericordioso com os bons, sabendo dar o cêntuplo por
um. Por isso Eu vos digo…

(E aqui Jesus me diz que devo copiar a visão ditado, de 12 de agosto de 1944, B 961, da 35ª linha até o
fim , isto é, até a partida de Madalena: “e ri de raiva e de escárnio.” Depois continuará o que vem em
seguida, naturalmente omitindo[17] este parêntesis).

(12 de agosto do 1944).


Diz Jesus:
174.11

– Olha e escreve. É o Evangelho da Misericórdia[18] o que Eu dou a todos, especialmente àquelas que se
reconhecerem na pecadora e que convido a segui-la, na redenção.

Jesus, de pé sobre uma pedra, fala a uma grande multidão. É um lugar alpestre: uma colina solitária,
entre dois vales. A colina tem o cume em forma de jugo, ou melhor, para que fique mais claro: tem forma de
uma corcova de camelo, de modo que, a poucos metros do cume, há um anfiteatro natural, no qual a voz
ressoa clara como numa sala de concertos bem construída. A colina está toda coberta de flores. Deve ser
agora uma estação boa. As plantações nas planícies começam a ficar louras e a chegar ao ponto da foice. Ao
norte, um monte alto brilha, com a sua geleira exposta ao sol. Logo abaixo, a leste, está o Mar da Galileia,
que daqui parece um espelho despedaçado em numerosas escamas, das quais cada uma é uma safira acesa
pelo sol. Ofusca, com o seu tremular azul e ouro, sobre o qual não se reflete senão alguma nuvem cheia de
flocos, velejando por um céu muito limpo e a sombra fugidia de algum barco a vela. Atrás do lago de
Genezaré, uma série de planícies, a perder de vista que, por uma leve névoa baixa (talvez a evaporação do
orvalho pois ainda deve ser manhã em suas primeiras horas), pois as ervas da montanha têm ainda um ou
outro diamante de orvalho aqui e ali, nos seus caules. Parece uma continuação do lago, mas com tintas
semelhantes a uma opala com veios verdes e, mais, mais atrás há uma cadeia de montanhas, com uma costa
caprichosa, que lembra um desenho de nuvens no céu sereno.
A multidão está sentada, uns na relva, outros sobre grandes pedras ou estão em pé. O colégio Apostólico
não está completo. Vejo Pedro e André, João e Tiago e escuto chamar os outros dois, Natanael e Filipe. Há
também um outro, que não é do grupo. Talvez tenha chegado por último. Chamam-no Simão. os outros não
estão aqui. A não ser que eu não os esteja enxergando por causa da grande multidão.
Faz pouco tempo que o Sermão começou. Compreendo que é o Sermão da Montanha. Mas as bem-
aventuranças já foram enunciadas. Eu até diria que o sermão já está chegando ao fim, porque Jesus diz:
– Fazei isto e tereis um grande prêmio. Porque o Pai que está nos Céus é misericordioso para com os
bons e sabe dar o cêntuplo por um. Por isso, Eu vos digo…
174.12 Acontece, então, um grande movimento no meio da multidão, que está apinhada no caminho para o
planalto. As cabeças dos que estão mais perto de Jesus se viram, e a atenção se desvia dele. Jesus para de
falar e dirige seu olhar ao mesmo lugar que os outros. Ele está belo e sério em sua veste de azul escuro,
com os braços cruzados sobre o peito, e o Sol está roçando por sua cabeça, com o primeiro raio que
ultrapassa o pico oriental da colina.
– Abri caminho, ó plebeus, grita uma voz irada de homem. Abri caminho para a beleza que vai passar… e
então, vêm para a frente quatro janotas muito embelezados, dos quais um é certamente romano, porque
está com uma toga romana, e trazem, como em triunfo, nas mãos cruzadas para formar um assento, Maria
de Mágdala, que é ainda a grande pecadora.
Ela ri, com sua belíssima boca, jogando para trás a cabeça com uma cabeleira que parece de ouro, cheia
de tranças e caracóis, seguros por grampos de alto preço e por uma lâmina de ouro coberta de pérolas, que
lhe rodeia o alto da fronte como diadema, do qual descem cachinhos leves, para sombrear os olhos,
esplendidos que se tornam ainda maiores e mais sedutores pelo engenhoso arranjo. O diadema desaparece
atrás das orelhas, embaixo das tranças que descansam seu peso sobre um pescoço muito alvo e
completamente descoberto. Aliás… o descoberto vai muito além do pescoço. Os ombros estão descobertos
até as espáduas e o peito ainda muito mais. A veste está suspensa nos ombros por duas correntinhas de
ouro. Não há mangas O conjunto está coberto, por assim dizer, por um véu cuja única função é proteger a
pele do bronzeado do sol. A veste é muito leve e a mulher, atirando-se contra um ou outro dos seus
adoradores, é como se se atirasse nua sobre eles. Tenho a impressão de que o romano seja o preferido,
porque a ele, de preferência, é que se dirigem as risadinhas e os seus olhares, sendo quem recebe a cabeça
dela no ombro.
– Já contentamos a deusa –diz o romano–. Roma serviu de cavalgadura para a nova Vênus. Lá está o
Apolo que querias ver. Seduze-o, então… Mas deixa para nós também umas migalhas das tuas carícias.
Maria ri e, com um movimento rápido e provocador, pula no chão, descobrindo os pezinhos calçados de
sandálias brancas com fivelas de ouro e um belo pedaço de perna. Sua veste é muito larga, feita de lã, mas
leve como um véu, muito alva, presa a cintura mas muito embaixo, à altura dos quadris, com um cinturão
todo feito com broches de ouro articulados. A veste cobre tudo. A mulher fica como se fosse uma flor de
carne, uma flor impura que brotou, por uma obra de magia, no verde planalto, no qual há lírios e narcisos
selvagens em grande quantidade.
Ela está mais bonita do que nunca. Sua boca, pequena e purpurina, parece um cravo brotando na
brancura de dentes perfeitos. Seu rosto e seu corpo poderiam agradar ao mais incontentável pintor ou
escultor, tanto por suas cores, como em suas formas. De peito amplo e de flancos na medida justa, com uma
cintura flexível e equilibrada em relação aos flancos e ao peito, parece uma deusa, como disse o romano,
uma deusa esculpida em um mármore levemente rosado, sobre o qual se estende o tecido leve sobre os
flancos, para dali cair para frente em numerosas dobras. Tudo nela é estudado para agradar.
Jesus a olha elafixamente. Ela sustenta com arrogância aquele olhar enquanto ri e se contorce
levemente pelas cócegas que lhe está fazendo o romano sobre os ombros e o seio, que estão descobertos,
com um lírio apanhado entre as ervas. Maria, com uma irritação estudada, não verdadeira, torna a levantar
o véu, dizendo: “Respeito ao meu candor”, o que faz que os quatro disparem em uma fragorosa risada.
Jesus continua a fixá-la. Mal o barulho das risadas termina, Jesus, como se a aparição daquela mulher
tivesse reacendido as chamas do sermão, que antes já se ia acalmando para terminar, começa de novo, e
não olha mais para ela. Ele olha agora para os seus ouvintes, que parecem embasbacados e escandalizados
com o que aconteceu.
174.13 Jesus retoma:
– Eu disse que deveis ser fiéis à Lei, humildes, misericordiosos, que deveis amar não só os irmãos de
sangue, mas também o irmão nascido do homem como vós. Eu vos disse que o perdão é mais útil do que o
rancor, que a compaixão é melhor do que a inexorabilidade. Mas agora Eu vos digo que não se deve
condenar se não somos isentos daquele pecado que estamos sendo levados a condenar. Não façais como os
escribas e os fariseus, que são severos para com todos, mas não consigo mesmos, quando chamam de
impuro o que é externo e só pode contaminar exteriormente, mas depois acolhem a impureza no mais
profundo do coração.
Deus não está com os impuros. Porque a impureza corrompe o que é propriedade de Deus: a alma, e
especialmente a alma dos pequenos, que são os anjos espalhados na terra. Ai daqueles que arrancam suas
asas com a crueldade de feras demoníacas e derrubam estas flores do Céu na lama, fazendo-as conhecer o
sabor da matéria! Ai deles!… Melhor seria que morressem queimados por um raio, do que cometerem um
pecado destes!
Ai de vós, ricos e gozadores! Porque é justamente em vós que fermenta a maior impureza, para a qual o
ócio e o dinheiro servem de cama e travesseiro! Agora vós estais fartos. O alimento das concupiscências vos
chega até a garganta e vos sufoca. Mas havereis de ter fome. Uma fome tremenda, insaciável, sem
atenuação e para sempre. Agora estais ricos. Quanto bem poderieis fazer com vossa riqueza! Mas, com ela,
fazeis grande mal a vós mesmos e aos outros. Havereis de conhecer uma pobreza atroz, durante um dia que
não terá fim. Agora estais rindo. Pensais que sois triunfadores. Mas as vossas lágrimas encherão os tanques
da Geena para sempre.
Onde se aninha o adultério? Onde está a corrupção das jovens? Há quem tenha até duas ou três camas
para o desregramento, além da sua própria de esposo. Sobre essas camas ele derrama o seu dinheiro e o
vigor de um corpo dado por Deus, cheio de saúde, para trabalhar pela família e não se esgotar em sujas
uniões, que o colocam abaixo de um animal imundo?
Já ouvistes o que foi dito: “Não cometas adultério.” Mas Eu vos digo que quem tiver olhado para uma
mulher desejando-a, ou olhar para um homem desejando-o, ainda que fique só no desejo, já cometeu
adultério em seu coração. Nenhuma razão justifica a fornicação. Nenhuma. Nem o abandono e o repúdio
por parte do marido. Nem a compaixão para com a repudiada. Vós tendes uma só alma. Quando ela estava
unida a uma outra por um pacto de fidelidade, seja-lhe fiel. Porque senão, o belo corpo pelo qual pecais irá
convosco para as chamas intermináveis, ó almas impuras. Antes mutilar o corpo do que matá-lo para
sempre, condenando-o. Voltai atrás, ó homens, ó ricos, ó latrinas dos vermes do vício! Voltai, homens, para
que não causeis repugnância ao Céu…
174.14 Maria, que a princípio escutava, mostrando um rosto cheio de sedução e de ironia, de vez em
quando até dando umas risadinhas de zombaria, ao fim do discurso, está com o rosto sombrio, de tanta
raiva. Compreende que, sem olhar para ela, é a ela que Ele está falando. Sua ira se torna cada vez mais
torva e rebelde e, por fim, ela não resiste. Envolve-se, despeitada, no seu véu e, acompanhada pelos olhares
da multidão que zomba dela e pela voz de Jesus que a persegue, põe-se a correr pela encosta abaixo,
deixando pedaços de suas vestes por entre os cardos e as moitas de roseiras caninas que estão à beira do
caminho, e ri agora de raiva e de escárnio.
Não vejo nada mais. Mas Jesus diz:
Verás ainda.

[29 de maio de 1945]


174.15 Jesus recomeça:
– Vós estais irritados com o que aconteceu. Já há dois dias que o nosso refúgio, que está bem alto e
acima da lama, está sendo perturbado pelo silvo de satanás. Aqui não é mais um refúgio e nós o vamos
deixar. Mas Eu quero terminar este código do que é “mais perfeito”, aqui nesta amplidão cheia de luzes e
horizontes. Aqui realmente Deus aparece em sua majestade de Criador e, vendo as suas maravilhas,
podemos crer firmemente que Ele é o Senhor e não satanás. O Maligno não poderia criar nem mesmo um
caule de erva. Mas Deus tudo pode. Que isso seja conforto para vós. Agora estais todos ao Sol. Isso vos faz
mal. Espalhai-vos pelas encostas, onde há sombra e frescor. Tomai a vossa refeição, se o quiserdes. Eu vou
falar-vos sobre o mesmo assunto. Muitos motivos fizeram que o tempo se prolongasse. Mas não vos
aborreçais. Aqui estais com Deus.
A multidão grita: “Sim, sim. Contigo”, indo na direção da sombra das moitas espalhadas por todo o lado
oriental, de tal modo que a parede e as ramagens formam também um abrigo contra o Sol, que já está
muito quente.
Enquanto isso, Jesus fala a Pedro para desmontar sua tenda.
– Vamos embora mesmo?
– Sim.
– Vamos por que ela veio?
– Sim. Mas não o digas a ninguém, especialmente ao Zelote. Ele ficaria aflito por causa de Lázaro. Eu
não posso permitir que a palavra de Deus seja feita objeto de escárnio dos pagãos…
– Entendo, entendo…
– Então entenderás também uma outra coisa.
– Qual é, Mestre?
– A necessidade de calar em certos casos. Eu confio em ti. Tu me és tão querido, mas és também tão
impulsivo, que costumas sair com umas observações irritantes.
– Compreendo… Não queres isso por causa do Lázaro e de Simão.
– E por outros também.
– Pensas que estarão aqui hoje?
– Hoje, amanhã, depois de amanhã e sempre. Sempre será necessário vigiar a impulsividade do meu
Simão de Jonas. Vai, vai fazer o que te mandei.
Pedro vai, chamando os companheiros para ajudá-lo.
174.16 Iscariotes ficou num canto pensativo. Jesus o chama. Chama três vezes, porque ele não ouvia.
Finalmente, se vira:
– Precisas de mim, Mestre? –pergunta.
– Sim. Vai tu também tomar a tua refeição e ajudar os companheiros.
– Eu não estou com fome. Nem Tu estás.
– Nem Eu. Mas por motivos opostos. Estás perturbado, Judas?
– Não, Mestre. Estou cansado…
– Agora vamos para o lago e depois para a Judeia, Judas. E também à casa de tua mãe. Eu te prometi…
Judas se reanima.
– Irás mesmo comigo sozinho?
– É lógico. Procura querer-me bem, Judas. Eu desejaria que o meu amor estivesse em ti, a ponto de te
preservar de todo mal.
– Mestre… eu sou um homem. Não sou um anjo. Tenho momentos de cansaço. Será pecado ter
necessidade de dormir?
– Não, contanto que durmas sobre o meu peito. Olha o povo como está feliz, e como a paisagem aqui é
alegre. A Judeia deve estar muito bonita tambémeia agora na primavera.
– Belíssima, Mestre, somente que lá, nas montanhas, que são mais altas que aqui, a primavera chega
mais tarde. Há flores belíssimas. Os pomares são um esplendor. O meu, que é o cuidado especial da minha
mãe, é um dos mais belos. Quando ela caminha nele, com os pombos correndo atrás para ganharem grãos,
podes crer que, só o ver isto já nos faz ficar com o coração sereno.
– Eu creio. Se minha mãe não estiver cansada demais, Eu gostaria de levá-la à casa da tua. Elas iriam
gostar uma da outra, porque as duas são boas.
Judas, seduzido por esta ideia , fica sereno e, esquecendo-se de “não estar com fome e de estar
cansado”, corre até os companheiros, rindo de alegria e, como é alto, desata os nós mais altos sem se
cansar, e comendo o seu pão com azeitonas, alegre como uma criança. Jesus o olha com compaixão e depois
se encaminha onde estão os apóstolos.
174.17 – Aqui está o pão, Mestre. E um ovo. Eu o pedi àquele rico, vestido de vermelho. Eu lhe disse: “Tu
estás ouvindo, e estás feliz. Ele está falando e está esgotado. Dá-me um dos teus ovinhos. Ele fará mais bem
a Ele do que a ti.”
– Mas, Pedro!
– Não, Senhor! Estás pálido como um menino agarrado a um peito vazio e estás ficando magro como um
peixe depois de seus amores. Deixa que eu o faça. Não quero me arrepender depois. Agora, eu coloco-o
nesta cinza quente, feita com os gravetos que eu queimei e Tu, bebe-o. Sabes que são… quantos dias são?
certamente são semanas que não se come senão pão e azeitonas e um pouco de leite de figo! Que regime
alimentar é esse? E Tu comes menos que os outros e falas mais que todos. Aqui está o ovo. Bebe-o morno,
que faz bem.
Jesus obedece, e vendo que Pedro está comendo só pão, pergunta-lhe:
– E tu? As azeitonas?
– Sss! Elas me vão servir depois. Eu as prometi.
– A quem?
– A uns meninos. Mas, se eles não ficarem em silêncio até o fim, eu como as azeitonas, e dou a eles os
caroços, isto é, uns tapas.
– Mas, muito bonito!
– Eh! Eu não os daria nunca. Mas, se não fizer assim! Eu mesmo levei tantos deles, que, se tivessem que
dar-me tantos, quantos eu merecia pelas minhas molecagens, eu mereceria dez vezes mais. Mas fazem bem.
Eu sou assim, porque os levei.
Riem todos da sinceridade do apóstolo.
– Mestre, eu quero dizer-te que hoje é sexta-feira, e que esse povo… não sei se vai poder achar comida
em tempo para amanhã, ou chegar em suas casas –diz Bartolomeu.
– É verdade. É sexta-feira –dizem muitos deles.
– Não importa. Deus proverá. Mas nós o diremos a eles.
Jesus se levanta, vai para o seu novo lugar, no meio da multidão espalhada entre as moitas.
– A primeira coisa que Eu vos lembro é que hoje é sexta-feira. Agora Eu vos digo que quem achar que
não vai poder chegar a tempo em suas casas, e não for capaz de crer que Deus dará amanhã alimento aos
seus filhos, esse poderá retirar-se já, de modo que o pôr do Sol não o apanhe no caminho.
Do meio da multidão levantam-se umas cinquenta pessoas. Todos os demais permanecem onde estão.
174.18 Jesus sorri, e começa a falar.
– Vós ouvistes que foi dito antigamente: “Não cometas adultério.” Quem já me ouviu em outros lugares,
sabe que muitas vezes Eu tenho falado sobre este pecado. Porque, vejam bem, para Mim é um pecado feito
não por um, mas por duas ou três pessoas. Eu me explico. O adúltero peca por si, peca pela cúmplice, peca
levando a mulher a pecar ou o marido ser traído, o qual pode chegar ao desespero ou ao delito. Diga-se isso
para o pecado consumado. Mas Eu digo mais: “Não só o pecado consumado, mas o desejo de consumá-lo, já
é pecado.” Que é o adultério? Ele consiste em desejar febrilmente aquele ou aquela que não é nosso ou
nossaa. Começa-se a pecar pelo desejo, continua-se pela sedução, completa-se pela persuasão, e coroa-se
com o ato.
Como se começa? Geralmente por um olhar impuro. E isto se une a tudo o que Eu disse antes. Os olhos
impuros veem o que está escondido aos puros. É pelos olhos que a sede entra nas gargantas, a fome no
corpo e a febre no sangue. Sede, fome e febre carnais. Tem início o delírio. Se o outro, o que está sendo
olhado é honesto, eis que o delirante fica sozinho, revolvendo-se nos seus carvões ardentes, ou então chega
a denegrir por vingança. Se o olhado também é desonesto, então ele corresponde aos olhares e aí começa a
descida para o pecado. Por isso, Eu vos digo: “Quem olhou para uma mulher com desejo, já cometeu o
adultério com ela, porque em seu pensamento já cometeu o ato do seu desejo.” Em vez de fazer isso, se o
teu olho direito for para ti ocasião de escândalo, arranca-o, e joga-o para longe de ti. É melhor para ti que
fiques sem um olho, do que te precipitares nas trevas infernais para sempre. Se a tua mão direita pecou,
corta-a e joga-a fora. Melhor para ti e estares sem um membro do que estar com todos os membros no
inferno. É verdade que está dito[19] que os aleijados não podem servir a Deus no Templo. Mas, na outra
vida, os aleijados de nascença santos, ou os aleijados por virtude, se tornarão mais belos do que os anjos, e
servirão a Deus, amando-O na alegria do Céu.
174.19 Também foi dito: “Quem mandou embora sua mulher dê-lhe o libelo do divórcio.” Mas isto está
reprovado. Isto não vem de Deus. Deus disse a Adão: “Esta é a companheira que fiz para ti. Crescei e
multiplicai-vos sobre a terra, enchei-a e tornai-a sujeita a vós.” Adão, cheio de uma inteligência superior,
porque o pecado ainda não tinha ofuscado a sua razão, pois esta havia sido criada perfeita por Deus,
exclamou: “Eis que finalmente aqui está o osso dos meus ossos e a carne de minha carne. Esta vai chamar-
se Virago, isto é, outro eu, porque foi tirada do homem. Por isso o homem deixará pai e mãe, e os dois se
tornarão uma só carne.” E, em um grande esplendor de luzes, a Eterna Luz aprovou com um sorriso a
palavra de Adão, que se tornou a primeira e irrevogável lei. Agora, se pela dureza sempre crescente do
homem, o homem legislador teve que estabelecer um novo código; se, pela volubilidade sempre crescente
do homem, ele teve que pôr-lhe um freio, dizendo: “Se a repudiaste, não a podes mais tomar contigo”, isto
não revoga a primeira e genuína lei, que nasceu no Paraíso Terrestre, e foi aprovada por Deus.
Eu vos digo: “Quem mandou embora a própria mulher, a não ser em caso de provada fornicação, a expõe
ao adultério.” Porque, de fato, o que vai fazer, em noventa por cento dos casos, a mulher repudiada? Ela irá
casar-se de novo. E quais as consequências disso? Oh! Sobre isso, quanto haveria para se dizer! Não sabeis
que podeis provocar até incestos involuntários com este modo de proceder? Quantas lágrimas já se
derramaram por causa de luxúria! Sim. Luxúria. Não tem outro nome. Sede sinceros. Tudo se pode superar,
quando o espírito é reto. Tudo, porém serve de motivo para satisfazer-se a sensualidade, quando o espírito é
luxurioso: a frigidez feminina, a lentidão dela, a incapacidade no que se refere aos serviços da casa, a
língua desenfreada, o amor ao luxo, tudo isso se suporta, até as doenças, até a irascibilidade, quando os
dois se amam santamente. Mas, visto que, depois de algum tempo já não se amam mais como no primeiro
dia, então, começa-se a achar impossível o que é mais que possível, e se joga uma pobre mulher na rua, a
caminho da perdição.
Comete adultério quem a rejeita. Comete adultério quem se casa com ela, depois do repúdio. Somente a
morte pode dissolver o matrimônio. Recordai-vos disso. Se fizestes uma escolha infeliz, arcai com as
consequências, como quem tem que levar uma cruz, sendo dois infelizes, mas santos, sem criar mais
infelicidade nos filhos, pois eles, inocentes, são os que mais sofrem nessas tristes situações. O amor aos
filhos deveria fazer-vos meditar cem vezes e até mais, mesmo no caso da morte de um dos cônjuges. Oh! Se
soubésseis contentar-vos com tudo o que tendes tido, quando Deus vos disse: “Basta isto!” Se soubésseis
vós, viúvos, e vós, viúvas, ver na morte não uma diminuição, mas uma elevação à perfeição de procriadores!
Ser mãe até para a mãe falecida! Ser pai até para o pai falecido! Ser duas almas em uma só, recolher o
amor pelos filhos sobre os lábios gelados de um moribundo, e dizer: “Vai em paz, sem preocupação por
aqueles que de ti vieram. Eu continuarei a amá-los, por ti e por mim, a amá-los duas vezes, serei para eles
pai e mãe.” E a infelicidade dos órfãos não pesará sobre eles. Nem mesmo sentirão o inato ciúme do filho
do cônjuge que se casou de novo, por aquele ou por aquela que toma o lugar sagrado da mãe ou do pai, que
por Deus foram chamados para outra morada.
174.20 Filhos, minhas palavras estão chegando ao fim, como está chegando ao fim este dia que já declina
com Sol para o lado do ocidente. Desta reunião no monte quero que vos lembreis das palavras que aqui vos
foram ditas. Esculpi-as em vossos corações. Tornai a lê-las seguidamente. Que elas vos sirvam sempre de
guia. Sobretudo sede bons com quem é fraco. Não julgueis para não serdes julgados. Recordai-vos de que
poderia chegar o momento no qual Deus vos lembrará: “Assim tu julgaste. Por isso sabias que era mal.Com
conhecimento do que fazias, cometeste o pecado. Cumpre agora a tua pena.”
A caridade é uma absolvição. Tende a caridade em vós para com todos e com tudo. Se Deus vos dá
tantos auxílios para que vos conserveis retos, não vos enchais de orgulho por isso. Procurai subir, porque
longa é a escada da perfeição e estendei a mão aos cansados, aos ignorantes, aos que são presas de súbitas
desilusões. Por que ficar observando com tanta atenção o cisco no olho do teu irmão, e não procuras antes
tirar a trave que está no teu? Como podes dizer ao teu próximo: “Deixa que eu tire do teu olho esse cisco,
enquanto a trave que está no teu te faz cego? Não sejas hipócrita, filho: tira primeiro a trave que está no
teu olho e, depois, poderás tirar o cisco do olho do teu irmão, sem que o leses gravemente.
Assim como não deveis cometer faltas de caridade, não sejais também imprudentes. Eu vos disse:
“Estendei vossas mãos aos cansados, aos ignorantes, àqueles que são presas de imprevistas desilusões.”
Mas, se é caridade instruir os ignorantes, animar os cansados, dar novas asas àqueles que, por vários
motivos, as quebraram, é imprudência revelar as verdades eternas aos que estão infeccionados pelo
satanismo, os quais se apropriam das verdades para se fingirem de profetas, para se insinuarem entre os
símples, e corromperem, falsificarem, sujando sacrilegamente as coisas de Deus. Respeito absoluto, saber
falar e saber calar-se, saber refletir e saber agir, aí estão as virtudes do verdadeiro discípulo para fazer
prosélitos e servir a Deus. Vós tendes uma razão e, se usais dela com justiça, Deus vos dará todas as luzes,
para guiar ainda melhor a vossa razão. Pensai que as verdades eternas são semelhantes a pérolas e nunca
se viu jogar pérolas aos porcos, que preferem as bolotas e a lavagem mal cheirosa às pérolas preciosas, e
até as esmagariam sem dó com os seus pés, para depois, com a fúria de quem foi ludibriado, virarem-se
contra vós para despedaçar-vos. Não deis coisas santas aos cães. Isto serve para agora e para depois.
174.21 Muitas coisas Eu vos disse, meus filhos. Escutai as minhas palavras; quem as escuta e as põe em
prática é comparável a um homem que refletiu, quando queria construir uma casa e escolheu um lugar
rochoso. Certamente ele se cansou para construir as bases. Teve que trabalhar com picareta e buril, teve
que calejar as mãos e cansar os rins. Mas depois ele pôde passar argamassa de cal nas fendas da rocha e
colocar os tijolos e fechar as paredes, formando uma fortaleza. A casa foi crescendo muito sólida como um
monte. Vieram as intempéries, os aguaceiros. As chuvas fizeram transbordar os rios, assobiaram os ventos,
as ondas bateram na casa, mas ela resistiu a tudo. Assim é aquele que tem uma fé bem fundada. Ao
contrário, quem ouve com superficialidade e não se esforça para gravar em seu coração as minhas palavras,
porque sabe que isso exige trabalho, que é preciso passar pela dor, extirpar muitas coisas, esse é
semelhante a quem por preguiça e estultícia constrói sua casa sobre a areia. Nem bem chega a tempestade
e a casa, rapidamente construída, rapidamente cai. O estulto fica olhando desolado para os escombros e
para a ruína do seu capital. Mas aqui há mais do que uma ruína, porque esta ainda pode ser reparada com
despesas e trabalho. Aqui, tendo vindo abaixo o edifício mal construído de um espírito, não se tem mais
nada para reconstruí-lo. Na outra vida não se edifica. Ai de quem se apresentar lá com escombros!
174.22 Terminei. Agora, vou descer para o lago e vos abençôo em nome de Deus Uno e Trino. A minha paz
esteja convosco.
Mas a multidão grita:
– Nós vamos contigo. Deixa-nos ir! Ninguém fala como Tu!
Põem-se a seguir a Jesus, que desce, não pelo lado por onde subiu, mas pelo lado oposto, que vai em
direção de Cafarnaum. A descida é íngreme, mas feita com muito mais rapidez e logo chegam aos pés do
monte, colocado acima de uma planície verde e florida.
(Jesus diz: “Por hoje basta[20]. Amanhã…”)
[16] Santanás beijou… Em um longa nota que ocupa as quatro faces de um folheto dobrado e inserido em uma cópia datilografada, MV explica em que
consiste a corrupção do olho e do ouvido de Eva. Se tratou de um beijo imaterial, ou seja, de uma lição de malícia intelectual para despertar uma curiosidade
inicialmente espiritual, como espiritual era a prova de Deus para confirmar a graça em Adão e Eva: a obediência de uma única ordem de Deus. A curiosidade
inicialmente espiritual degenerou em curiosidade substancial sempre mais pesada e animal.
Depois de ter ilustrado a condição originária de Eva que via e conhecia com justiça a Deus e a si mesma que se conhecia na parte superior como filha de
Deus e se ignorava na parte inferior de criatura animal, a nota prossegue: Santanás, vestido de serpente, imprudente a atraiu a si, a fascinou como faz a
serpente; fez veneno mortal de sua astuta imprudência que ofuscou a visão e inteligência espiritual da mulher e, lasciva e insinuante, a serpente se revelou à
mulher. E Eva que já havia usado mal a visão e a audição, quis usar mal o tato, tomando consciência do misterioso fruto; o olfato, cheirando a essência
inebriante; o gosto, consumindo com entusiamo de uma consciência nova para degustar o sabor desconhecido. E surgiu nela o apetite concuspicível de
consumir completamente o que tinha acabado de provar, porque, de agora em diante, revestida de Graça, inocência e integridade, a aparência boa que não
era, nem tinha mais a ponderação sujeita a razão. Se conheceu e conheceu e queria que o companheiro conhecesse e, foi até ele com malícia, levou-o a
desobedecer a ordem de Deus, tentou-o a morder o que já havia mordido e, fazendo igual a si em luxúria e malícia, persuade-o a consumir o proibido, porque
dava novo e imediato prazer e futuro poder de ser parecidos com Deus, criando sozinhos, novos homens para a Terra.
A nota conclui: Os dois degraus de Satanás para fazer do homem, filho de Deus, um animal; e por tentar fazer o Unigênito divino, fazendo-se Homem, um
pecador. A primeira descendente do espírito da carne e “acontecida” com a queda fatal. A segunda ascendente da carne ao espírito e “falida”, porque quanto
era desígnio satânico de induzir em pecado o Messias, de destruir para sempre cada possibilidade de regeneração do homem como filho de Deus, serviu para
a perfeição do Homem-Deus, a confirmar o Cristo na sua graça de homem e, assim, na sua potência de Messias, causa de eterna saúde para a filiação
redimida de Adão.
[17] omitindo... Ao invés, pelo critério de retomar integralmente e fielmente o manuscrito original, não omitindo nenhuma instrução entre parêntesis nem a
primeira linha da visão a inserir (casos similares, por exemplo, em 349.14 - 352.4 - 586.17 - 590.3 - 596.5). A sigla B 961 (assim como o fascículo em 42.1, B
964 em 182.6, fascículo r pag. 20 em 548.21) reenvia ao produzido datilografado pelo Pe. Migliorini o qual escreve a máquina duas vezes o manuscrito
valtortiano, fazendo mais cópias com papel carbono: a primeira vez diretamente dos cadernos manuscritos de MV e na ordem da elaboração; a segunda vez,
do anterior datilografado e na ordem cronológica dos fatos, excluindo os textos não pertinentes a narração evangélica. Do segundo escrito datilografado,
uma cópia serviu a MV para as intervenções manuscritas que ilustraremos em uma nota em 335.7 e uma outra cópia serviu ao editor Pisani para imprir a
primeira edição da obra em 4 volumes. A segunda edição, em 10 volumes, reimpressa por cerca de trinta anos, e a terceira edição, revista para a presente
quarta edição, foram compostas com adições do manuscrito original, respectivamente, da primeira e segunda edição.
[18] Evangelho da Misericórdia traz um série de episódios e ensinamentos sobre a conversa de Maria de Magdala, escritos consecutivamente de 12 a 14
de agosto de 1944, mas colocados em várias partes da obra segundo as instruções escritas por MV. O primeiro episódio, que se inicia aqui, é inserido no
presente capítulo 174. Outros dois episódios formarão os capítulos 183 e 233. Sobre os três episódios segue um “ditado” que formará o capítulo 234. O
último episódio, com um breve comentário final, formará o capítulo 377.
[19] está dito em Levítico 21,16-23.
[20] basta, pois MV tinha começado a escrever aqui as primeiras palavras, depois não utilizadas da visão do dia seguinte.
175. O leproso curado aos pés do Monte.
Generosidade do escriba João.
30 de maio de 1945
[…]
175.1 No meio das numerosas flores que perfumam os campos e alegram a nossa vista, ergue-se o espectro
horrível de um leproso, todo cheio de feridas, exalando um forte mau cheiro, todo corroído pela doença.
As pessoas gritam de espanto e voltam para trás, indo morro acima, subindo pelas encostas. Alguns
apanham pedras para atirarem no pobre homem incauto.
Mas Jesus se vira, com os braços abertos, e grita:
– Paz! Ficai onde estais e não tenhais medo. Joguem as pedras no chão. Tende piedade do nosso pobre
irmão. Ele também é filho de Deus.
Então, todos obedecem, dominados pelo poder do Mestre. Ele se adianta, pelo meio dos prados floridos,
até a poucos passos do leproso que, por sua vez, tendo compreendido que Jesus o protegia, aproxima-se
dele. Depois de ter chegado perto de Jesus, prostra-se por terra e as plantas, todas em flor, parecem acolhê-
lo e fazer que ele mergulhe nelas como em uma água fresca e perfumada. As flores, ao soprar do vento,
fazem ondas, e parecem querer reunir-se para formar um véu que cobrre aquela miséria, que veio
esconder-se nelas. Somente a voz dele, lamuriante ecoa lá de dentro, fazendo que as pessoas se lembrem de
que há um ser pobre e infeliz ali. Sua voz diz:
– Senhor, se queres, podes purificar-me. Tem piedade de mim também!
Jesus responde:
– Levanta o teu rosto e olha para Mim. O homem deve olhar para o Céu, se acredita nele. E tu acreditas,
porque estás pedindo.
As ervas se movem e se abrem de novo. Aparece, então, uma coisa como a cabeça de um náufrago, que
está acabando de sair do mar, a cabeça do leproso, já sem cabelos e sem barba. É uma caveira, não ainda
completamente despojada de alguns restos de carne. Contudo, Jesus não se esquiva de pôr as pontas dos
dedos naquela fronte, nos pontos em que elaestá limpa, isto é, sem feridas, onde se vê ainda uma pele
cinza, enrugada entre duas erosões purulentas, uma das quais já destruiu todo o couro cabeludo, enquanto
que a outra abriu um buraco onde era o olho direito, de modo que eu nem saberia dizer se, entre aquele
enorme buraco, que vai das têmporas até o nariz, deixando a descoberto o zigoma e a cartilagem nasal,
cheio de sujeira, não saberia se ainda existe o globo ocular ou não.
Jesus diz, conservando sua bela mão apoiada pelas pontas dos dedos sobre a fronte dele:
– Eu quero. Fica limpo.
É como se o homem não estivesse todo corroído e cheio de feridas, mas somente recoberto de sujeiras,
como se sobre elas tivesse sido derramada água com detergente, a lepra desapareceu. Primeiro, as feridas
se fecharam, depois a pele ficou clara, o olho direito tornou a aparecer por debaixo da pálpebra, que nasceu
de novo. E os lábios voltaram a fechar-se sobre os dentes amarelecidos. Só os cabelos e a barba não
apareceram, mas apenas umas moitinhas de pelos, nos lugares em que antes havia ainda pequenas áreas de
epiderme sadia.
As pessoas do povo gritam de assombro. E o homem percebe que está curado, ao ouvir aqueles gritos de
alegria. Ele levanta as mãos, até então escondidas pelas ervas e toca com a mão em seu próprio olho, em
cujo lugar estava antes o grande buraco; ele toca também na cabeça, onde antes estava a grande ferida,
que punha a descoberto o osso do crânio e sente-se agora com uma nova pele. Depois se levanta e olha para
o próprio peito, para os quadris… Tudo está são e limpo. O homem torna a agachar-se no prado florido,
chorando de alegria.
– Não chores. Levanta-te e escuta-me. Volta para a vida, depois que tiveres cumprido o rito, e não fales a
ninguém, enquanto não o tiveres cumprido. Vai mostrar-te, quanto antes, ao sacerdote, faze a oferta
prescrita por Moisés, para que sirva de testemunho do milagre que aconteceu em tua cura.
– É a Ti que eu deveria dar esse testemunho, Senhor!
– Tu me darás, amando a minha doutrina. Vai.
175.2 A multidão se aproxima de novo e, guardando ainda a devida distância, felicita o curado pelo
milagre. Não falta quem sinta necessidade de dar-lhe uma ajuda para a viagem, jogando-lhe algumas
moedas. Outros lhe jogam pães e alimentos, e um deles, vendo que a veste do leproso não é mais do que um
trapo que se desfia, deixando-lhe o corpo todo visível, tira a própria capa, faz com ela uma trouxa, como se
faz com um lenço grande, e a joga para o leproso, que com ela pode cobrir-se de maneira decente. Um
outro ainda, visto que a caridade é contagiosa quando é feita em comum, não resiste ao desejo de oferecer-
lhe suas sandálias, tira-as dos pés e lhas joga.
– Mas, e tu? –pergunta-lhe Jesus, que viu tudo.
– Oh! Eu moro aqui perto. Posso caminhar descalço. Mas ele tem um grande caminho a percorrer!
– Deus te abençoe a ti e a todos os que ajudaram o irmão. Homem, tu rezarás por eles.
– Sim, sim, por eles e por Ti, para que o mundo tenha fé em Ti.
– Adeus, Vai em paz.
O homem vai-se afastando dali, mas depois se vira, e grita:
– Mas, ao sacerdote eu posso dizer que Tu me curaste?
– Não é preciso. Dize só isto: “O Senhor teve misericórdia de mim”, pois tudo isso é verdade e nada mais
é preciso dizer.
175.3 O povo se aproxima do Mestre, apertando-o em um círculo que não se quer abrir de modo nenhum.
Nesse ínterim, o sol já se pôs e começa o repouso sabático. Os povoados estão longe. Mas as pessoas não
estão sentindo falta dos povoados, nem dos alimentos, de nada. Quem se preocupa com tudo são os
apóstolos e vão dizê-lo a Jesus. Até os discípulos mais velhos estão pensativos. Há mulheres, há crianças, e
mesmo se a noite não estiver fria e a erva dos prados estiver macia, ainda assim as estrelas não são pães,
nem as pedras dos córregos servem de alimento.
Jesus é o único que não se preocupa. Enquanto isso, o povo está comendo o que tinha, como se nada de
anormal estivesse acontecendo. Jesus chama a atenção dos seus sobre isso:
– Em verdade, Eu vos digo que esta gente é mais do que vós! Vede com que despreocupação acabam
com tudo. Pois Eu disse a eles: “Quem não for capaz de acreditar que amanhã Deus dará alimento aos seus
filhos, que se retire”, mas estes permaneceram aqui. E Deus não irá desmentir o seu Messias, nem
decepcionará a quem espera n’Ele.
Os apóstolos encolhem os ombros e não cuidam de mais nada.
A tarde chega, depois de um céu com pôr-de-sol muito vermelho, serena e bonita, e o silêncio das
campinas desce sobre todas as coisas, logo que termina o último canto dos passarinhos. Ouve-se um
pequeno barulho do vento e, em seguida, vê-se o primeiro vôo de uma ave noturna, ao mesmo tempo em
que aparece a primeira estrela e se ouve o coaxar de uma rã.
As crianças já estão dormindo. Os adultos estão conversando uns com os outros e, de vez em quando,
um deles vai até o Mestre para pedir-lhe algum esclarecimento.
175.4 Assim sendo, não é de causar espanto o fato de vir por um caminho entre dois trigais, um
personagem, de aspecto imponente, tanto por suas vestes, como pela idade. Atrás dele, alguns homens.
Todos se viram para olhá-lo, apontando-o com o dedo e cochichando. Aquele cochicho passa de um grupo
para outro, cresce e depois termina. Os grupos que estavam mais longe aproximaram-se, movidos pela
curiosidade.
O homem de nobre aspecto aproxima-se de Jesus que, sentado ao pé de uma árvore, está escutando
alguns homens, e o saúda com uma profunda inclinação. Jesus levanta-se logo e, com igual respeito,
responde a saudação. os presentes estão bem atentos.
– Eu estava lá no monte e Tu talvez tenhas pensado que eu não tivesse fé, porque eu fui embora
temendo algum jejum. Mas eu fui embora por outro motivo. Queria ser um irmão entre os outros irmãos, o
irmão mais velho. Desejaria dizer-te o meu pensamento em particular. Podes ouvir-me? Não sou teu inimigo,
ainda que eu seja um escriba.
– Vamos um pouco adiante –e entram pelo meio dos trigais.
– Eu queria prover alimentação aos peregrinos, e desci para mandar fazer pães para a multidão. Como
estás vendo, estou dentro do espaço legal, porque estes campos me pertencem e porque daqui até o cume
pode-se ir em dia de sábado. Eu deveria vir amanhã com os meus empregados. Mas fiquei sabendo que Tu
estavas aqui com a multidão. Eu te peço que me permitas prover alimento no sábado. Porque senão, eu
ficaria muito aborrecido, por ter deixado de ouvir as tuas palavras por nada.
– Por nada, não, porque o Pai teria te recompensado com as suas luzes. Mas Eu te agradeço e não vou te
decepcionar. Só te faço observar que a multidão é muito grande.
– Eu mandei acender todos os fornos, até os que são usados para secar os cereais, e vou conseguir pão
para todos.
– Não é por isso. Eu me refiro à quantidade de pão…
– Oh! Isso não me preocupa. No ano passado colhi muito trigo. Neste ano estás vendo como estão as
espigas. Deixa-me agir. Será a maior garantia para os meus campos. Além disso, Mestre… Tu me deste hoje
um pão, que eu nunca esperei ver… Tu és o Pão do espírito!…
– Seja, então, como queres. Vem comigo, vamos dizê-lo aos peregrinos.
– Não. Tu já o disseste.
– E tu, és um escriba?
– Sim. Eu sou.
– Que o Senhor te leve para onde o teu coração merece ir.
– Compreendo também o que não estás dizendo. Queres dizer: Para a Verdade. Porque entre nós há
muitos erros… e muita má vontade.
– Quem és?
– Um filho de Deus. Reza ao Pai por mim. Adeus.
– A paz esteja contigo.
175.5 Jesus retorna lentamente para o meio dos seus, enquanto o homem se afasta dali com os seus
empregados.
– Quem era? Que queria? Ele te disse alguma coisa desagradável? Ele tem doentes?
As perguntas chovem sobre Jesus.
– Quem ele é, Eu não sei. Só sei que se trata de um homem bom e isso me…
– É João, o escriba –diz alguém da multidão.
– Então, agora sei porque tu o disseste. Ele queria simplesmente ser o servo de Deus junto aos seus
filhos. Rezai por ele, porque amanhã todos nós comeremos por bondade dele.
– Ele é verdadeiramente um justo –diz alguém.
– Sim. Eu nem sei como é que ele pode ser amigo de outros –comenta um outro.
– Enrolado em escrúpulos e regras como um recém-nascido, mas não é mau –termina um terceiro.
– Estes campos são dele? –perguntam muitos que não são da região.
– Sim. Creio que o leproso era um dos seus empregados ou camponeses. Mas ele o suportava nas
vizinhanças e creio que até lhe matasse a fome.
A crônica continua, e Jesus não toma parte nela, mas chama para perto de Si os doze, aos quais
pergunta:
– E agora, que é que Eu vos devo dizer pela vossa incredulidade? Não é verdade que o Pai colocou para
nós todos um pão nas mãos de alguém que, pela casta a que pertence, vem a ser meu inimigo? Oh! homens
de pouca fé!… Ide agora para o meio dos fenos macios, ide dormir. Eu vou rezar ao Pai para que vos abra os
corações, e agradecer-lhe por sua bondade. A paz esteja convosco.
Jesus se retira até as encostas do monte. Senta-se e se recolhe em oração. Levantando os olhos vê o
rebanho das estrelas que se apinham no céu, abaixando-os vê o rebanho dos adormecidos estendidos sobre
o prado. Nada mais. Mas é tal a alegria que tem em seu coração que parece transfigurar-se em luz….
176. No descanso do sábado o último sermãoda
Montanha: amar a vontade de Deus.
1º de junho de 1945
176.1 Jesus naquela noite tornou a subir para a montanha e afastou-se um pouco, de sorte que, ao romper
da aurora, já podia ser visto de pé no alto de um barranco. Pedro, ao vê-lo, aponta aos seus companheiros
que então sobem ao seu encontro.
– Mestre, por que não vieste conosco? –perguntam alguns.
– Eu tinha necessidade de rezar.
– Mas tens também muita necessidade de repousar.
– Meus amigos, de noite uma voz veio do céu pedindo oração pelos bons, pelos maus e também por Mim
mesmo.
– Por quê? Tens necessidade disso?
– Como os outros. A minha força se nutre de oração e a minha alegria de fazer o que o meu Pai quer. O
pai me falou de dois nomes de pessoas e de uma dor para Mim. Estas três coisas têm muita necessidade de
oração.
Jesus está muito triste e olha para os seus com olhos que parecem pedir ou perguntar. Seus olhos
pousam sobre várias coisas, mas, enfim, pousam sobre Judas Iscariotes, em quem param.
O apóstolo nota isso, e pergunta:
– Por que olhas assim para mim?
– Eu não te via. Meus olhos estavam vendo outra coisa…
– O que é?
– A natureza do discípulo. Todo o bem e todo o mal que um discípulo pode fazer a seu Mestre. Eu estava
pensando nos discípulos dos Profetas e de João. Pensava também nos meus próprios. E rezava por João,
pelos discípulos e por Mim…
– Estás triste e cansado esta manhã, Mestre. Conta as tuas aflições a quem Te ama –lhe diz Tiago de
Zebedeu.
– Sim, conta-o, se houver alguma coisa que possamos fazer para aliviar-te, nós o faremos –diz-lhe Judas,
seu primo.
Pedro está falando com Bartolomeu e Filipe, mas eu não entendo o que eles estão dizendo.
Jesus responde:
– Que sejais bons. Esforçai-vos para serdes bons e fiéis. Este é o meu consolo. Não há nenhum outro,
Pedro. Entendeste? Deixa de lado as suspeitas. Procurai querer-me bem e querer-vos bem, não vos deixeis
seduzir pelos que me odeiam, procurai principalmente querer bem à vontade de Deus.
– Eh! Mas, se tudo vem dela, também os nossos erros dela virão
–exclama Tomé com ar de filósofo.
– Achas que é assim? Mas não é. 176.2 Muita gente já se levantou, e está olhando para cá. Vamos descer. E
vamos santificar o dia santo com a palavra de Deus.
Descem, enquanto os adormecidos vão acordando em número cada vez maior. As crianças, alegres como
passarinhos, já estão tagarelando, correndo e saltando entre os campos, tomando um bom banho de
orvalho, o que provoca repreensões, acompanhadas de consequente choro. Depois, as crianças correm até
Jesus, que as acaricia, reencontrando com isso o seu sorriso, como se reproduzisse em si aquelas alegrias
inocentes.
Uma menina quer colocar na sua cintura um ramalhete de flores, elaapanhadas nos prados, “porque tua
veste fica mais bonita assim”, diz ela, e Jesus a deixa fazer, apesar dos apóstolos resmungarem e Jesus diz:
– Ficai contentes porque elas me amam! E o amor das crianças tira as tristezas do meu coração.
Ao mesmo tempo, Jesus se aproxima ao meio dos peregrinos, descendo da montanha e o escriba João
vindo de sua casa com muitos empregados que trazem cestas de pão, outros trazendo azeitonas, pequenos
queijos e um cordeirinho, ou cabritinho, assado especialmente para o Mestre. Tudo é colocado aos pés dele,
que cuida de distribuir, dando a cada um pão, um pedaço de queijo e um punhado de azeitonas. A uma mãe,
que traz ainda ao peito um menino gorducho, que está rindo com os seus dentinhos novos, Ele dá com o pão
um pedaço do cordeiro assado, e o mesmo faz com outros dois ou três, que parecem estar necessitados de
alimento especial.
– Mas isso é para Ti –diz o escriba.
– Eu irei saboreá-lo, não te preocupes. Mas vê… se eu sei que a tua bondade é para muitos, em Mim
aumenta o sabor.
A distribuição termina, o povo já está partindo o seu pão e reservando uma parte dele para as outras
horas. Também Jesus bebe um pouco do leite que o escriba colocapara Ele numa taça preciosa, tirando o
leite de um frasquinho trazido por um dos servos (parece uma bilha).
– Mas, Tu deves me contentar, dando-me a alegria de ouvir-te –diz João, o escriba, que foi saudado por
Hermas com grande respeito, e com respeito ainda maior por Estêvão.
– Não irei negar-te isso. Vem cá para a frente –e Jesus, tendo-se encostado no monte, começa a falar.
176.3 – A vontade de Deus nos deteve neste lugar, porque ir para adiante, depois da caminhada que já
fizemos, teria sido uma violação dos preceitos e motivo de escândalo. Que isto não aconteça nunca,
enquanto a Nova Aliança não for escrita. É justo santificar as festas e louvar o Senhor nos lugares de
oração. Mas toda a criação pode ser lugar de oração, desde que as criaturas saibam fazê-lo elevando-se ao
Pai. A Arca de Noé, à deriva sobre as águas, foi lugar de oração; e lugar de oração para Jonas foi o ventre
da baleia. Foi lugar de oração a casa do Faraó, enquanto José nela morou[21], e a tenda de Holofernes para
a casta Judite. E era tão consagrado ao Senhor o lugar corrompido onde vivia como escravo o profeta
Daniel, consagrado por causa da santidade do servo que santificava aquele lugar, a ponto de merecer as
altas profecias[22] sobre o Cristo e o Anticristo, chaves dos tempos de agora e dos últimos tempos. Com
maior razão, santo é este lugar que, por suas cores, pelos seus perfumes, pela pureza do ar, pela riqueza
dos trigais e pelas pérolas das orvalhadas, fala de Deus Pai e Criador, dizendo: “Eu creio. Vós também
credes, porque nós damos testemunho de Deus.” Seja ele para nós a sinagoga, neste sábado e nele leiamos
as páginas eternas sobre as corolas e as espigas, tendo o sol como lâmpada sagrada.
Eu vos falei de Daniel. Disse-vos: “Seja este lugar a nossa sinagoga”. Isto nos faz lembrar o jubiloso
“bendizei” dos três santos jovens entre as chamas da fornalha: “Céus e águas, orvalhos e geadas, gelos e
neves, fogos e cores, luzes e trevas, relâmpagos e nuvens, montes e colinas, todas as coisas germinadas,
passarinhos, peixes e feras, louvai e bendizei o Senhor, juntos com os homens de coração humilde e santo.”
Este é um resumo do cântico santo, que ensina tanto os humildes e santos. Podemos rezar e podemos
merecer o Céu em qualquer lugar. Nós o merecemos, quando fazemos a vontade do Pai.
176.4 Quando este dia começou, fizeram-me observar que, se tudo vem da vontade de Deus, também os
erros dos homens são queridos por ela. Isto é um erro e um erro muito difundido. Haverá um pai que possa
querer que seu filho se torne condenável? Não. O que vemos, até nas famílias, são alguns filhos que se
tornam condenáveis, mesmo tendo um pai justo, que lhes mostra o bem que se deve fazer e o mal do qual se
deve fugir. Ninguém que seja reto, acusa aquele pai de ter incitado o filho para o mal.
Deus é o Pai, os homens são os filhos. Deus mostra o bem, e diz: “Eis que eu te ponho nesta contingência
para o teu bem.” Também quando o Maligno e os homens seus servos procuram infelicidade para os
homens, Deus diz: “Eis que nesta hora penosa tu ages assim, e, assim fazendo, este mal vai servir para um
eterno bem.” Ele vos aconselha. Mas não vos força. Então se alguém, mesmo sabendo qual é a vontade de
Deus, prefere fazer o contrário, pode-se dizer que esse oposto seja a vontade de Deus? Não.
Amai a vontade de Deus. Amai-a mais do que a vossa e segui-a contra as seduções e potências das forças
do mundo, da carne e do demônio. Também essas coisas têm as suas vontades. Mas em verdade Eu vos digo
que é bem infeliz quem se apega a elas. vós me chamais Messias e Senhor. Vós dizeis que me amais e me
cantais hosanas. Vós me seguis, e isso parece amor. Mas, em verdade, Eu vos digo que nem todos entrarão
comigo no Reino dos Céus. Mesmo entre os mais antigos e próximos discípulos meus, haverá aqueles que
não entrarão, porque muitos farão a sua vontade e a vontade da carne, do mundo e do demônio, mas não a
do meu Pai. Não quem me diz: “Senhor! Senhor!” entrará no Reino dos céus, mas os que fazem a vontade
de meu Pai. Somente esses entrarão no Reino de Deus.
176.5 Dia virá no qual Eu, que vos estou falando, depois de ter sido Pastor, serei Juiz. Que não vos iluda o
aspecto atual. Agora, meu cajado reúne todas as almas dispersas e é doce para vos convidar a vir às
pastagens da Verdade. Mas o cajado será substituído pelo cetro do Juiz Rei, o meu poder vai ser bem outro.
Não com doçura, mas com uma justiça inexorável, é que Eu irei separar as ovelhas apascentadas pela
Verdade das que misturaram a Verdade com o Erro ou nutriram-se somente do Erro. Eu farei isso, uma
primeira vez, e depois ainda uma outra. Ai daqueles que, entre a primeira e a segunda aparição diante do
Juiz, não tiverem se purificado, pois não poderão mais purificar-se dos seus venenos. A terceira categoria
não se purificará. Pena alguma conseguiria purificá-la. Ela quis somente o erro, e que no erro fique.
E mesmo entre estes, ainda haverá quem gema, dizendo: “Mas como, Senhor? Nós não profetizamos em
teu nome, em teu nome expulsamos os demônios, em teu nome fizemos muitos prodígios?” E Eu, naquele
momento, com toda a clareza, lhes direi: “Sim. Vós ousastes revestir-vos com o meu Nome a fim de
parecerdes ser quem não éreis. Quisestes fazer passar o vosso satanismo[23], como se estivésseis vivendo
vossa vida em Jesus. Mas o fruto de vossas obras vos acusa. Onde estão os que vós salvastes? As vossas
profecias, onde foi que se cumpriram? Os vossos exorcismos, a que conclusão chegaram? Os vossos
prodígios, que cúmplice tiveram? oh! bem que tem poder o meu inimigo! Mas não é maior do que o meu.
Ele vos ajudou, mas foi para fazerdes maior presa e, por vosso trabalho, o círculo dos pervertidos crescer
muito. Sim, pela heresia vós fizestes prodígios. E até, aparentemente, maiores do que os dos verdadeiros
servos de Deus, os quais não são histriões para fazerem as multidões ficarem maravilhadas, mas têm uma
humildade e uma obediência que maravilharam os anjos. Os meus verdadeiros servos, com suas imolações,
não criam fantasmas, mas os destroem nos corações; os meus verdadeiros servos, não se impõem aos
homens, mas mostram Deus às almas dos homens. Eles não fazem mais que a vontade do Pai, e levam
outros a cumpri-la, assim como a onda impele e atrai a onda que a precede e a que a segue, sem precisar
colocar-se em um trono, para dizer: ‘Prestai atenção!’ Os meus verdadeiros servos, fazem o que Eu digo,
sem pensar senão em fazê-lo e as suas obras têm um sinal meu, uma paz inconfundível, de humildade e de
ordem. Por isso, Eu posso dizer-vos: estes são os meus servos; a vós, Eu não vos conheço. Ide embora, para
longe Mim, vós todos, praticantes de iniquidades.”
Isso será o que direi, então. E esta será uma palavra terrível. Tomai cuidado para que não a mereçais, e
vinde pelo caminho seguro, ainda que difícil, da obediência, para alcançardes a glória do Reino dos céus.
176.6 Agora, gozai do vosso repouso do sábado, louvando a Deus com todo o vosso ser. A paz esteja com
todos vós.
Jesus abençoa a multidão, antes que ela se disperse, à procura de sombra, um grupo falando com o
outro, e comentando as palavras que ouviram. Ao lado de Jesus ficam os apóstolos e o escriba João, que não
fala, mas está meditando profundamente e estudando Jesus em todos os seus atos.
E o ciclo da montanha termina aqui.
[21] José nela morou, no contexto do conto de Gênesis 41. Referindo-se aos outros persongens citados (inclusive Azarias pelo cântico na fornalha) valem as
notas que referem ao índice temático ao final do volume.
[22] profecias que estão em Daniel 7-17.
[23] vosso satanismo: se dirige – assim anota MV em uma cópia datilografada - especialmente àqueles que cultivam ciências ocultas e aos que pertencem a
seitas anticristãs etc. Etc., ou seja, aos pecadores do primeiro mandamento.
177. Cura do servo do centurião.
2 de Junho de l945.
177.1 Vindo das campinas, Jesus entra em Cafarnaum. Estão com Ele somente os doze, ou melhor, os onze
apóstolos, porque João não está. As saudações costumeiras do povo são de uma gama muito variada em
suas expressões, desde aquelas que guardam toda a simplicidade das crianças, àquelas um pouco tímidas
das mulheres, aquela extasiada dos miraculados até aquelas dos curiosos ou irônicos. Há delas para todos
os gostos. Jesus responde a todos, conforme é saudado: com carícias às crianças; bênçãos às mulheres;
sorrisos aos miraculados e com respeito profundo pelos outros.
Mas desta vez àquela série une-se a saudação do centurião do lugar, creio. Ele o saúda com o seu
“Salve, Mestre”, ao qual Jesus responde com o seu “Que Deus venha a ti.”
O romano prossegue, enquanto a multidão se aproxima curiosa de ver como vai ser aquele encontro:
– Fazem muitos dias que Te espero. Tu não me reconheces entre os ouvintes do monte. Eu estava vestido
como civil. Não me perguntas porque vim?
– Não te pergunto isto. Que queres de Mim?
– A ordem é seguir aqueles que promovem ajuntamentos de pessoas, porque muitas vezes Roma teve
que arrepender-se por ter dado licença para reuniões, que eram só de aparência honesta. Mas, depois de
ver e ouvir, fiquei pensando em Ti como alguém… como alguém. 177.2 Tenho um servo doente, Senhor. Ele jaz
em minha casa, no seu leito, paralisado por uma doença nos ossos e sofre terrivelmente. Os nossos médicos
não o curam. Os vossos, que convidei a vir porque são males que vem dos ares corrompidos destas regiões,
e vós as sabeis curar com as ervas do solo pantonoso da praia onde estagnam as águas antes de serem
bebidas pelas areias do mar, se recusaram a vir. E sofro por ele, porque se trata de um servo fiel.
– Eu irei e o curarei.
– Não, Senhor. Não peço que faças tanto. Eu sou um pagão, sujeira para vós. Se os médicos hebreus
temem contaminar-se ao pôr os pés em minha casa, com mais razão seria contaminação para Ti, que és
divino. Eu não sou digno de que Tu entres sob o meu teto. Mas se Tu dizes daqui mesmo uma só palavra, o
meu servo ficará são, porque Tu comandas a tudo o que existe. Ora se eu, que sou um homem colocado sob
tantas autoridades, das quais a primeira é Cesar, pelo qual devo fazer, pensar e agir como me é mandado,
por minha vez posso mandar sobre os soldados que estão sob as minhas ordens e se digo a um “Vai” e a
outro “Vem”, e ao meu servo “Faze isto”, um vai onde mandei, o outro vem porque chamo e o terceiro faz
aquilo que digo, Tu que és quem és, serás logo obedecido pela doença, e ela irá embora.
– A doença não é um homem… –objeta-lhe Jesus.
– Tu também não és um homem, mas és o Homem. Podes, portanto, dar ordens até aos elementos e às
febres, pois tudo está sujeito ao teu poder.
177.3Alguns dos maiorais de Cafarnaum levam Jesus para um lado, e lhe dizem:
– Ele é um romano, mas Tu, ajuda-o, pois é um homem de bem, e ele nos respeita e ajuda. Basta dizer
que ele próprio construiu a nossa sinagoga e manda que seus soldados não fiquem zombando de nós aos
sábados. Faze, pois, este favor a ele, por amor à tua cidade, para que ele não fique decepcionado e irritado,
e o seu amor não se transforme em ódio contra nós.
Jesus, tendo ouvido tudo, vira-se, sorrindo, para o centurião, e diz:
– Vai indo à frente, que Eu vou depois.
Mas o centurião torna a dizer:
– Não, Senhor, eu já disse: Grande honra para mim seria que Tu entrasses sob o meu teto, mas eu não
mereço tudo isso. Dize somente uma palavra, e o meu servo ficará curado.
– Assim seja. Vai com fé. Neste mesmo instante a febre o está deixando e a vida está voltando aos seus
membros. Faze que também à tua alma venha a vida. Vai.
O centurião faz a saudação militar, depois se inclina, e vai.
177.4 Jesus o vê partir e depois dirige-se aos presentes e diz:

– Em verdade, Eu vos digo que jamais encontrei uma fé tão grande em Israel! Oh! É mesmo verdade![24]
“O povo, que ia caminhando nas trevas, viu uma grande luz. Sobre os que moravam na escura região da
morte, a luz resplandeceu”, e ainda: “O Messias, tendo erguido sua bandeira sobre as nações, as irá
reunir!” Oh! Meu Reino! Verdadeiramente, elas afluirão para ti em um número incalculável! Muito mais que
todos os camelos de Madiã e de Efa e os transportadores do ouro e incenso de Sabá, mais numerosos do
que todos os rebanhos de Cedar, e os carneiros de Nabaiot, numerosos serão aqueles que hão de vir a ti, e o
meu coração se dilatará de alegria, quando Eu vir que estão vindo a Mim os povos do mar e as potências
das nações. As ilhas me estão esperando para Me adorar e os filhos dos estrangeiros é que construirão as
paredes de minha Igreja, cujas portas estarão sempre abertas para acolher os reis e a força das nações e
para santificá-las em Mim. Isto, que Isaías viu, certamente vai-se cumprir[25]. Eu vos digo que muitos virão
do Oriente e do Ocidente para sentarem-se com Abraão, Isaac e Jacó no Reino dos Céus, enquanto que os
filhos do Reino serão lançados nas trevas lá fora, onde haverá choro e ranger de dentes.
– Então, será que estás profetizando que os pagãos serão iguais aos filhos de Abraão?
– Iguais, não. Superiores. Não vos desgosteis com isso, isso vai ser por culpa vossa. Não Eu, mas os
Profetas o dizem, e os sinais já o confirmam. 177.5Agora, alguém de vós vá até a casa do centurião, para
verificar como de fato o servo dele está curado, pois a fé do romano o merecia. Vamos. Talvez em casa haja
doentes esperando a minha ida.
Jesus com os apóstolos e mais um ou outro vão à casa em que Ele tem ficado nos dias em que está em
Cafarnaum, pois a maior parte do povo, com um grande vozerio, se dirige precipitadamente para a casa do
centurião.
[24] É mesmo verdade o que se lê em Isaías 9,1; 11,12.
[25] vai-se cumprir o que é profetizado em Isaías 60,6-11.
178. Três homens que querem seguir Jesus.
3 de junho de l945.
[…]
178.1 Estou vendo Jesus, que se dirige para a beira do lago com seus onze, porque falta sempre João.
Muitas pessoas o rodeiam: entre elas se encontram muitas que estavam na montanha, principalmente
homens, que foram procurá-lo em Cafarnaum, para ouvirem ainda a sua palavra. Bem que gostariam de
detê-lo ali. Mas Ele diz:
– Eu sou de todos. Há muitos que precisam ter-Me consigo. Voltarei. Vós Me encontrareis. Mas agora
deixai-me partir.
Ele sente muita dificuldade para caminhar entre a multidão, que se apinha em um caminho estreito. Os
apóstolos se esforçam, fazendo jogo de ombros para ver se conseguem abrir caminho. Mas é como que um
chocar-se de alguém contra uma substância mole que, logo em seguida, toma a forma que tinha antes.
Alguns ali se inquietam, mas não adianta nada.
178.2 A margem já está à vista, quando, depois de muito trabalho, um homem de meia idade e de condição
civil consegue aproximar-se do Mestre e, para lhe chamar a atenção, toca em seu ombro.
Jesus se vira e para, dizendo:
– Que queres?
– Eu sou escriba. Mas o que há nas tuas palavras não pode ser comparado a nada de tudo o que há em
nossos preceitos. Eu me senti conquistado por elas. Mestre, eu não Te deixo mais. Seguirte-ei para onde
fores. Qual é o teu caminho?
– O caminho do Céu.
– Não é desse caminho que eu estou falando. O que estou perguntando é: Para onde vais? Depois destas,
quais são as tuas casas, para que eupossa encontrar-Te sempre?
– As raposas têm suas tocas e os pássaros do ar os seus ninhos. Mas o Filho do Homem não tem onde
possa pousar a cabeça. A minha casa é o mundo, por toda parte onde houver espíritos necessitados de
instrução, ou misérias para aliviar, ou pecadores para redimir.
– Por toda parte, então?
– É como disseste. Poderias tu, doutor de Israel, fazer o que por amor de Mim estão fazendo estes
pequeninos? Aqui o que se exige é sacrifício e obediência, caridade para com todos, espírito de adaptação
em tudo e com todos. Porque a condescendência atrai. Porque, quem deseja curar, precisa inclinar-se sobre
cada ferida. Depois teremos a pureza do Céu. Mas aqui ainda estamos na lama, e é preciso tirar da lama, na
qual estamos pisando, as vítimas que estão submersas. Não cinjas as vestes, nem encurte-as porque em
algum lugar a lama está mais funda. A pureza deve estar em nós. Estejamos saturados dela, de tal modo
que em nós nada mais possa entrar. Podes fazer tudo isso?
– Pelo menos, deixa-me experimentar.
– Experimenta. Eu rezarei para que sejas capaz.
178.3 Jesus põe-se de novo em movimento e, atraído por dois olhos estãovoltados para Ele, diz a um jovem
alto e robusto, que tinha parado para deixar passar o cortejo, mas parece estar se dirigindo para outra
parte:
– Segue-me.
O jovem leva um susto, muda de cor, pisca os olhos como ofuscado por uma luz e depois abre a boca
para falar, não encontrando-o logo resposta para dar. Enfim diz:
– Eu Te seguirei. Mas meu pai morreu em Corozaim, e preciso ir sepultá-lo. Deixa que eu vá fazer isso e
depois virei.
– Segue-me. Deixa que os mortos sepultem os seus mortos. Tu já sentes um forte desejo da Vida. Há
tempo que tens esse desejo. Não fiques chorando, por ter a Vida criado um vácuo ao redor de ti, a fim de
ter-te como seu discípulo. As mutilações do afeto são raízes das asas que nascem no homem, que se
transformou em servo da Verdade. Deixa que a corrupção siga os seus rumos. Levanta-te para o Reino do
que é incorrupto. Nele encontrarás também a pérola incorruptível do teu pai. Deus chama e passa. Amanhã
não encontrarás mais o coração que tens hoje e o convite de Deus. Vem. Vai anunciar o Reino de Deus.
O homem, encostado a um pequeno muro, está com os braços caídos, e neles estão penduradas algumas
bolsas, cheias de unguentos e de tiras; sua cabeça está inclinada, mergulhada na dúvida entre dois amores:
o devido a Deus e o devido a seu pai.
Jesus fica esperando e olhando para ele, depois segura uma criança e a aperta ao coração, dizendo:
– Fala comigo: “Eu Te bendigo, ó Pai, e invoco a tua luz para aqueles que choram nas névoas da vida. Eu
Te bendigo, ó Pai, e invoco a tua força para quem é como uma criança, necessitada de ser carregada. Eu Te
bendigo, ó Pai, e invoco o teu amor para que se esqueçam de tudo que não sejas Tu, todos aqueles que em
Ti encontrariam, todo o seu bem aqui e no Céu, mas não sabem crer.”
E o menino, um inocente de quatro anos, repete com sua vozinha, as palavras santas, com suas
mãozinhas juntas e postas em posição de oração pela mão direita de Jesus, que as segura pelo pulso
gorducho como talos de flores.
O homem, então se decide. Dá a um companheiro os seus embrulhos e vai até Jesus, que põe no chão o
menino, abraça depois o jovem, fazendo isso para animá-lo e ajudá-lo no esforço que está fazendo.
178.4 Um outro homem lhe pergunta:
– Eu também gostaria de ir contigo como ele. Mas, antes de ir, quereria ir despedir-me dos meus
parentes. Tu me permites?
Jesus olha fixamente para ele, e responde:
– Muitas raízes estão fincadas no ser humano. Arranca-as e, se não o consegues, corta-as. Para o serviço
de Deus deve-se ir com liberdade espiritual. Nada há de servir de armadilha para quem se doa.
– Mas, Senhor, a carne e o sangue são sempre carne e sangue! Pouco a pouco eu chegarei à liberdade de
que estás falando…
– Não. Não o farias nunca. Deus é tão exigente, quanto é infinitamente generoso em recompensa. Se
queres ser discípulo, precisas abraçar a cruz e vir. Se não for assim, fica-se no número dos simples fiéis.
Não é um caminho cheio de pétalas de rosas o caminho do servo de Deus. Mas é um caminho intransigente
em suas exigências. Ninguém, que tiver posto as mãos ao arado para arar os campos dos corações e semear
a semente da doutrina de Deus, pode mais voltar atrás, para ir olhar o que deixou e o que perdeu, ou
aquelas coisas que podia possuir, seguindo um caminho comum. Trabalha em ti mesmo. Torna-te mais viril
contigo mesmo, e depois vem. Por enquanto, não.
Chegaram à beira do lago. Jesus sobe para a barca de Pedro, ao qual, em voz baixa, diz algumas
palavras. Vejo que Jesus está sorrindo e Pedro fica muito admirado. Mas não diz nada. Sobe também para a
barca o homem que deixou de ir sepultar o seu pai para acompanhar a Jesus.
179. A parábola do semeador.
Em Corozaim com o novo discípulo Elias.
4 de junho de 1945.
179.1 Diz-me Jesus, mostrando-me a correnteza do Jordão, ou melhor, a entrada do Jordão no lago de
Tiberíades, no ponto em que se estende a cidade de Betsaida sobre à beira direita do rio para quem olha
para o norte:
– Agora a cidade não parece mais estar a beira do lago, mas um pouco adentro, no interior. Isso
desorienta os estudiosos. A explicação deve procurar-se no assoreamento do lago por este lado, devido ao
humus e aos desmoronamentos depositados pelo rio durante vinte séculos e os aluviões que desceram das
colinas de Betsaida. Antes, a cidade era justamente na desembocadura do rio no lago, e até as barcas mais
pequenas, nas estações das águas abundantes, iam rio acima por um bom trecho, quase até a altura de
Corozaim, e o rio propriamente dito servia de porto e de abrigo em ambas as margens para as barcas de
Betsaida, nos dias em que havia alguma tempestade no lago. Isto não é para ti, a quem pouco importa, mas
para os doutores difíceis. Agora, adiante!

179.2 As barcas dos Apóstolos, tendo transposto o breve trajeto do lago, que separa Cafarnaum de
Betsaida, atracaram na cidade. Mas outras barcas as acompanharam e muitas pessoas desembarcam para
se reunirem àqueles de Betsaida, que vieram saudar o Mestre, que está agora entrando na casa de Pedro,
onde está de novo a mulher, que eu suponho que tenha preferido a solidão a ficar ouvindo as continuas
queixas da mãe contra seu marido.
O povo, do lado de fora, reclama em altas vozes a presença do Mestre e isto faz que Pedro fique
bastante inquieto, subindo ao terraço para acalmar os cidadãos, dizendo-lhes também que é preciso ter
respeito e educação. Pois ele, gostaria de estar como o seu Mestre com alegria e paz agora que está na sua
casa e pelo contrário, não acha tempo nem para oferecer-lhe um copo d’água com mel e as muitas outras
coisas que Pedro mandou a mulher trazer… e fica resmungando.
Jesus, sorrindo, olha para ele, sacode a cabeça, dizendo:
– Parece que tu não me vês nunca, e que é uma coisa extraordinária estarmos juntos!
– Mas, é isso mesmo! Quando nós vamos por esse mundo afora, acaso estamos a sós? Nem por sonho!
Entre mim e Ti há todo um mundo com os teus doentes, com os teus aflitos, os teus ouvintes, os teus
curiosos, os teus caluniadores, teus inimigos, e nós dois estamos sós. Mas aqui Tu estás comigo, na minha
casa e eles deveriam compreender isso.
Está realmente inquieto.
– Mas Eu não vejo diferença, Simão. O meu amor é o mesmo, a minha palavra é a mesma. Que Eu a diga
em particular ou que a diga para todos, não é a mesma coisa?
179.3 Pedro confessa, então, o seu grande desgosto:
– É que eu sou um grande ignorante, um grande distraído. Quando Tu falas em uma praça, em uma
montanha, no meio daquele povão todo, eu não sei por que, entendo tudo, mas depois não me lembro de
mais nada. Eu disse isso também aos meus companheiros e eles me deram razão. Os outros, quero dizer, as
pessoas do povo que Te ouvem, Te entendem e se recordam do que disseste. Quantas vezes temos ouvido
alguém dizer: “Eu não fiz mais isto, porque Tu disseste que não era para fazer” ou então: “Eu vim, porque
uma vez Te ouvi dizer tal coisa, e aquilo me despertou a consciência.” Mas nós… Não sei não! É como a
água corrente, que passa, e não para. As margens não a detêm mais, porque a água passou. Vem outra
água, sim, sempre outra, e sempre tanta. Mas passa, passa, passa… E eu fico pensando, com terror, que, se
for como Tu dizes, isto é, chegará o momento em que Tu não estarás mais aqui para fazeres como o rio e…
e eu… Que poderei dar eu a quem tiver sede, se não guardo nem uma gota do muito que me dás?
Os outros também apoiam as lamentações de Pedro, queixando-se de que não retêm mais nada de tudo o
que ouviram, quando eles gostariam tanto de lembraremse de tudo, para poderem responder as muitas
perguntas que lhes são feitas.
Jesus apenas sorri e responde:
– Mas não é assim que Me parece. Pois o povo está muito contente também com vocês…
– Oh! Sim! Pelo que nós fazemos! Abrir-te caminho, dar cotoveladas para isso, transportar os doentes,
recolher as esmolas, e dizer: “Sim, o Mestre é aquele!” Grande coisa, na verdade!
– Não te faças mais feio do que és, Simão.
– Eu não me faço mais feio. Eu me conheço.
– É esta a mais difícil das sabedorias. Mas Eu quero tirar de ti esse grande medo. Quando Eu tiver
falado, e vós não tiverdes podido compreender tudo, e reter tudo, perguntai, sem medo de me aborrecerdes
ou importunardes. Temos sempre nossas horas a sós. Nessas horas, abri-me os vossos corações. Eu dou
tantas coisas a tanta gente. O que Eu não haveria de dar a vós, que Eu amo de tal modo, que nem Deus
poderia amar mais? Tu falaste das ondas que vão e das quais nada mais fica na praia. Chegará o dia no qual
perceberás que cada uma daquelas ondas deixou na beira da praia uma semente e que cada semente se
tornou uma árvore. Tu terás diante de ti flores e plantas para todos os casos, e ficarás espantado contigo
mesmo, e dirás: “Mas, que foi que o Senhor me fez?”, porque, quando chegar esse tempo, já estarás livre da
escravidão do pecado, e as tuas virtudes atuais terão se aperfeiçoado até atingirem uma grande altura.
– Tu o estás dizendo, Senhor, e eu fico tranquilo com estas tuas palavras.
179.4 – Agora, vamos a quem nos está esperando. Vinde. A paz esteja contigo, mulher. Vou ser teu hóspede
esta tarde.
Saem todos, e Jesus dirigi-se para o lago, a fim de não ser esmagado pela multidão. Pedro está
manobrando com cuidado, para afastar a barca até alguns metros da beira, de modo que a voz de Jesus
possa ser ouvida por todos e haver um espaço entre Ele e os ouvintes.
– De Cafarnaum até aqui, Eu vim pensando no que vos iria dizer. Encontrei quais eram as palavras
adequadas, ao relembrar os fatos desta manhã.
Vós vistes os três homens que vieram a Mim. Um veio espontaneamente, outro, porque foi convidado por
Mim, e o terceiro, porque entusiasmou-se de repente. Vistes também que daqueles três Eu fiquei só com
dois. Por que será? Teria Eu visto um traidor no terceiro? Em verdade, não. Vi nele alguém ainda
despreparado. Pelas aparências, o que parecia mais despreparado era o que agora está aqui ao meu lado,
pois tinham a intenção de sepultar o seu pai. Mas o mais despreparado era o terceiro.
Este estava tão preparado que mesmo sem saber, fez um sacrifício bem heróico. O heroísmo em seguir a
Deus é sempre uma prova de forte preparação espiritual. Isto é o que explica alguns fatos surpreendentes,
que acontecem ao redor de Mim. Os mais preparados para receber Cristo, seja qual for a sua casta ou
cultura, costumam vir a Mim com uma prontidão e uma fé absoluta. Os menos preparados ficam
observando-me, como se Eu fosse um homem que foge do comum ou então me estudam com desconfiança e
curiosidade, ou ainda, me atacam e me denigrem, acusando-me de várias coisas. As diversas atitudes estão
na proporção da falta de preparação dos espíritos.
No povo eleito se deveria encontrar, por toda parte, espíritos prontos para receber o Messias, em cuja
espera ansiaram em desejos os Patriarcas e os Profetas, o Messias, que finalmente veio, precedido e
acompanhado por todos os sinais profetizados, o Messias, cuja figura espiritual se delineia sempre mais
clara, por meio de milagres visíveis nos membros e nos elementos e milagres invisíveis, realizados nas
consciências dos que se convertem e nos pagãos que se voltam para o Verdadeiro Deus. Mas não é assim.
Pois a prontidão em seguir o Messias é fortemente obstaculada, justamente pelos filhos deste povo, e é
doloroso dizer-se, que é tanto mais, assim quanto mais se sobe às classes mais altas deste mesmo povo. Eu
não digo isto para vos escandalizar. Mas sim, para induzir-vos a rezar e a refletir. Por que acontece isso?
Por que os pagãos e os pecadores procuram mais o meu caminho? Por que eles acolhem mais o que Eu digo,
e os outros não? É porque os filhos de Israel ficam ancorados, como ostras que produzem pérolas, no lugar
em que nasceram. Porque estão saturados, empanturrados, obesos com af sabedoria deles, e não sabem
abrir caminho para a minha, jogando fora o supérfluo, para dar lugar ao necessário. Os outros não têm esta
escravidão. São pobres pagãos, ou pobres pecadores, ainda soltos como barcos à deriva, são pobres que
não possuem tesouros próprios, mas somente fardos de êrros ou pecados, dos quais se despojam com
alegria, logo que conseguem compreender o que é a Boa Nova, e sentem nela um mel fortificante muito
diferente da insípida mixórdia dos seus pecados.
179.5 Ouvi, e talvez podereis compreender melhor como obter frutos diferentes de uma mesma obra.
Um semeador saiu para semear. Eram muitos campos e de diferentes qualidades. Ele tinha herdado de
seu pai alguns onde havia deixado proliferar plantas espinhosas. Outros haviam sido adquiridos por ele, que
os comprara do jeito em que estavam, de um dono negligente, deixando tais como eram. Outros ainda,
haviam sido entrecortados por estradas, pois o homem era comodista e não queria andar muito para ir de
um lugar para outro. Enfim, havia alguns, os mais próximos da casa, dos quais ele tomava cuidado, só para
que dessem um aspecto agradável à frente da casa. Estes estavam limpos de pedregulhos, de espinhos, de
grama e assim por diante.
O homem, pois, tomou o seu saco de grãos para ir semear grãos da melhor qualidade, e começou a
semeadura. A semente caiu no terreno bom, fofo, arado, limpo e adubado, próximo à casa. Caiu também nos
campos entrecortados por caminhos e trilhas, além de cortá-los, levava a sujeira da poeira árida na terra
fértil. Outras sementes caíram sobre os campos, onde a inépcia do homem tinha deixado que crescessem
plantas espinhosas. Agora o arado as havia revirado, e nem parecia que elas estivessem mais ali, mas
estavam, porque somente o fogo é que é a radical destruição das ervas más, impedindo-as de nascer. As
últimas sementes caíram nos campos comprados recentemente, e que ele tinha deixado como estavam, sem
ará-los em profundidade, sem limpá-los de todas as pedras afundadas na terra, fazendo com ela um
pavimento duro no qual não conseguiam agarrar-se as tenras raízes.
Depois, tendo semeado todas as sementes, voltou para casa, e disse: “Agora está tudo bem. É só esperar
a colheita.”
179.6 E assim se alegrava quando, com o correr dos meses, podia ver, à frente de sua casa, o trigo que ia
germinando e crescendo… oh! crescia como um tapete macio e já ia soltando espigas… Parecia um mar,
amarelando e batendo espigas contra espigas, cantando hosanas ao sol. O homem dizia: “Como este campo,
devem estar todos os outros. Preparemos as foices e os celeiros. Quanto pão! Quanto ouro!”
Estava feliz.
Cortou o trigo dos campos mais próximos, depois passou aos que herdou do pai, mas ele os tinha
deixado virar mato. O homem ficou muito aborrecido. todos os grãos haviam nascido, porque os campos
eram bons e a terra adubada pelo pai estava gorda e fértil. Mas sua fertilidade tinha sido boa também para
as plantas espinhosas, que ficaram cobertas pela terra, reviradas com ela, mas não esterilizadas. Elas
tinham renascido e formado um verdadeiro forro de ramagens cheias de espinhos, através das quais o trigo
não tinha podido passar para cima, a não ser uma espiga aqui, outra acolá, e morreu quase todo sufocado.
O homem disse: “Eu fui negligente com este campo. Mas nos outros não havia espinheiros, e deverão
estar melhores.” Passou então aos campos recentemente adquiridos. Lá seu espanto cresceu, até
transformar-se em tristeza. Finas e já ressecadas, as folhas do trigo estavam espalhadas por toda parte,
como feno seco. Feno seco! “Mas, como? Como foi isso?” Gemia o homem. “No entanto, aqui não há
espinhos! Além disso, a semente do trigo era a mesma. Aqui também ela tinha nascido, e o trigal estava tão
viçoso, que dava alegria ver! Pode-se ver ainda como suas folhas estavam bem formadas e em grande
número. Por que será que aqui o trigo todo morreu sem produzir espigas?” E, com grande tristeza, pôs-se a
cavar o solo, para ver se encontrava ninhos de toupeiras, ou outras pragas. Insetos e roedores, não havia
nada. Mas, que quantidade de pedras! Um verdadeiro pedregal! Os campos estavam literalmente
calcetados com escamas de pedras, e a pouca terra que as cobria era um engano. Oh! Se tivesse afundado
mais o arado, enquanto era tempo! Oh! Se ele tivesse feito escavações, antes de aceitar aqueles campos e
de comprá-los como se fossem bons! Oh! Pelo menos, depois daquele erro de adquirir o que era oferecido,
sem ter-se informado da boa qualidade deles, se ele os tivesse melhorado, à custa do cansaço de seus rins!
Mas agora já era tarde quaisquer queixumes eram inúteis.
O homem pôs-se de pé, arrasado, e dali foi para os campos entrecortados por pequenos caminhos, feitos
para sua comodidade… E rasgou suas vestes de tristeza. Aqui não havia nada. Absolutamente nada… A
terra escura do campo estava coberta por uma ligeira camada de pó branco… O homem se agachou no
chão, e gemia dizendo: “Mas, por quê? Aqui não há espinhos, nem pedras, pois estes campos, antes já eram
nossos. Meu avô, meu pai, eu, sempre os possuímos e, por anos e anos, os fertilizamos. Neles eu abri
estradas, terei tirado alguma terra do campo, mas isso não é o que o terá feito ficar estéril assim…” Ainda
estava ele chorando, quando recebeu, para sua tristeza, a resposta, dada por um cerrado bando de
passarinhos esfomeados, vindos dos campospara os caminhos a procura de sementes de trigo, e outras… O
campo havia-se transformado numa rede de pequenos caminhos, em cujas beiras o trigo semeado tinha
caído, atraindo muitos passarinhos, que, primeiro comeram os grãos na estrada e depois os plantados no
campo, até o ultimo grão.
Desse modo, a semente, igual para todos os campos, havia produzido cem por um, em outro sessenta,
em outro trinta e em outro nada. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
A semente é a Palavra: é igual para todos. O lugar onde cai a semente são os vossos corações. Cada um
aplique a si a parábola e compreenda. A paz esteja convosco.
179.7 Depois, virando-se para Pedro, diz:
– Vamos subir o rio até onde puderes, e depois atraca do outro lado.
E, depois que as duas barcas navegam por um pequeno trecho do rio, param junto à margem. Jesus se
senta, perguntando ao novo discípulo:
– Quem ainda ficou em tua casa?
– Minha mãe com meu irmão mais velho, que se casou há cinco anos. Minhas irmãs estão espalhadas
pela região. Meu pai era muito bom. Minha mãe lamenta desoladamente.
O jovem para bruscamente, porque sente que um soluço lhe está vindo do coração.
Jesus o segura pela mão e lhe diz:
– Eu sei o que é esta dor, eu vi também minha mãe chorar. Por isso, Eu te compreendo…
O arrastar-se da barca sobre a areia faz que aquele discurso seja interrompido, possibilitando a descida
a terra. Aqui não se vêem mais as colinas baixas de Betsaida, que quase mergulham o focinho no lago, mas
vê-se uma planície cheia de messes que se estende desta margem oposta à Betsaida, para a direção norte.
– Estamos indo a Meron? –pergunta Pedro.
– Não. Vamos tomar o caminho dos campos.
Os campos, muito bonitos e bem conservados, mostram espigas ainda verdes, mas já bem formadas.
Todas estão à mesma altura e com o leve ondular que lhes imprime o vento fresco, que vem do norte,
parecem formar um outro pequeno lago, ao qual servem de velas as árvores, que se erguem aqui e ali,
cheias de passarinhos que chilreiam.
– Estes campos não são como os da parábola –observa o primo Tiago.
– É verdade. Não são. Os passarinhos não os devastaram, neles não há espinheiros nem pedras. Que
belo trigal! Dentro de um mês estará maduro… e dentro de dois, estará pronto para a foice e o celeiro –diz
Judas Iscariotes.
– Mestre, eu quero que Te lembres do que disseste em minha casa. Tu falaste tão bem! Mas eu estou
começando a ter em minha cabeça umas nuvens confusas como as lá de cima… –diz Pedro.
– Esta tarde te explicarei. 179.8Agora, já estamos vendo Corozaim.
Jesus olha fixamente para o novo discípulo, dizendo:
– A quem dá será dado. O fato de receber não tira o mérito do doador. Leva-me ao vosso sepulcro e à
casa de tua mãe.
O jovem se ajoelha, beijando, entre lágrimas, as mãos de Jesus.
– Levanta-te. Vamos. O meu espírito ouviu o teu pranto. Quero fortificar-te no heroísmo com o meu amor.
– Isaac, o Adulto, me havia falado quanto Tu eras bom. Isaac, sabes? Aquele cuja filha Tu curaste. Ele foi
o meu apóstolo. Mas estou vendo que a tua bondade é ainda maior do que tudo o que me disseram.
– Nós vamos também saudar o Adulto para agradecer-lhe por me haver dado um discípulo.
Chegaram a Corozaim, e é justamente a casa de Isaac a primeira que se encontra. O velho, que está
voltando para casa, ao ver o grupo de Jesus com os seus, e entre eles o jovem de Corozaim, levanta os
braços, com seu bastãozinho na mão, ficando de boca aberta, como se tivesse perdido o fôlego. Jesus sorri,
e o seu sorriso faz voltar a voz ao velho.
– Deus Te bendiga, Mestre! Como é que fui ter esta honra?
– Para te dizer “obrigado.”
– Mas, obrigado por quê, meu Deus? Eu é que devo dizer-te esta palavra. Entra, entra. Oh! Que pena
que minha filha esteja longe, ajudando a sogra. Ela se casou, sabes? Eu recebi todas as bênçãos depois de
ter-te encontrado! Uma vez que ela ficou curada, logo depois voltou de longe aquele rico parente, viúvo,
com a criança que precisavam de uma mãe… Oh! mas eu já te contei estas coisas! Minha cabeça está
ficando velha. Perdoa-me.
– Tua cabeça é sábia, e se esquece até de gloriar-se pelo bem que faz ao Mestre. Esquecer-se do bem
feito é sabedoria. Mostra humildade e confiança em Deus.
– Mas eu… não saberia…
– Este discípulo, não é por ti que eu o tenho?
– Oh!… Mas eu não fiz nada, sabe? Só disse a verdade… e estou contente que Elias esteja contigo.
Depois ele se vira para Elias, e diz:
– Tua mãe, depois de um primeiro momento de assombro, teve o seu pranto enxugado, ao saber que eras
do Mestre. Mas teu pai não deixou de ter dignas condolências. Faz pouco tempo que foi enterrado.
– E o meu irmão?
– Ele cala-se… Tu sabes… para ele foi duro ver que estavas ausente… pelo povoado… Ele ainda pensa
assim.
O jovem se volta para Jesus:
– Tu o disseste. Mas eu não queria que ele estivesse morto… Faze que ele se torne vivo como eu e a teu
serviço.
Os outros não compreendem, e olham como querendo fazer uma pergunta, mas Jesus responde:
– Não percas a esperança, e persevera.
Depois, abençoa Isaac, indo embora, apesar das pressões para não fazê-lo.
179.9 Param primeiro junto ao sepulcro fechado, e rezam. Depois, através de um vinhedo ainda com a
metade para ser vindimada, vão até a casa de Elias.
O encontro entre os irmãos é um tanto cheio de reservas. O mais velho se sente ofendido, e quer fazer
que se saiba isso. O menor se sente humanamente culpado, e não reage. Mas a chegada da mãe que, sem
dizer uma palavra, se prostra e beija a orla da veste de Jesus, serena de novo o ambiente e os ânimos. A
ponto de quererem prestar uma homenagem ao Mestre. Mas Ele não aceita nada, e diz somente:
– Que vossos corações sejam justos, um para com o outro, como justo é aquele pelo qual chorais. Não
ponhais uma marca humana no que é sobre-humano: a morte e a escolha para uma missão. A alma do justo
não se agitou, ao ver que o filho não estava presente à sepultura do seu cadáver. Mas ela até ficou tranquila
por causa da segurança do futuro de seu Elias. O pensamento do mundo não venha perturbar a graça da
escolha. Se o mundo pôde ficar admirado, por não vê-lo junto ao funeral do pai, os anjos exultaram por vê-lo
ao lado do Messias. Sede justos. E tu, mãe, que sejas consolada com isso. Educaste com sabedoria, e teu
filho foi chamado pela Sabedoria. Eu vos abençôo a todos. A paz esteja convosco agora e sempre.
Voltam ao caminho, e o retornam atéao rio, e daí até Betsaida. O homem, Elias, não se demorou nem um
instante na soleira da casa paterna. Depois do beijo de adeus dado à mãe, acompanhou o Mestre com a
simplicidade com que um menino acompanha o seu verdadeiro pai.
180. Debate na cozinha de Pedro em Betsaida.
Explicação da parábola do semeador.
Notícia da segunda prisão do Batista.
7 de junho de 1945.
180.1 Eis-nos de novo na cozinha de Pedro. A ceia deve ter sido abundante, porque os pratos com os restos
de peixe, de carne, de queijos, de frutas secas ou murchas, e de fogaças de mel, estão amontoados sobre
uma espécie de aparador, que nos lembra um pouco as nossas masseiras toscanas, e as ânforas com os
cálices estão ainda espalhados na mesa.
A mulher de Pedro deve ter feito milagres, para fazer ficar contente o marido, e deve ter trabalhado o
dia inteiro. Agora, cansada mas alegre, elaestá em seu cantinho, ouvindo o que dizo homem e os outros. Ela
está olhando para o seu Simão, que para ela deve ser um grande homem, ainda que um pouco exigente, e,
quando agora o ouve falar com palavras novas naquela boca que antes só falava de barcas, de redes, de
peixes e de dinheiro, ela chega até a pestanejar, como se estivesse deslumbrada por um excesso de luz.
Pedro, seja pela alegria de ter Jesus à sua mesa, ou por causa da abundante ceia que foi servida, está
mesmo bem disposto esta tarde, e até já revela o futuro Pedro pregando às multidões.
Não sei qual foi a observação que foi feita por um companheiro que deu origem àquela resposta
escultural de Pedro, quando disse:
– Acontecerá com eles como com os construtores da torre de Babel[26]. A soberba deles provocará o
desabamento de suas teorias, e ficarão esmagados.
André objeta ao irmão:
– Mas Deus é misericórdia. Impedirá o desabamento para dar tempo ao arrependimento.
– Nem penses nisso. Como coroamento da soberba deles, porão em prática calúnia e perseguição. Oh!
Eu já estou vendo perseguição sobre nós para dispersar-nos como testemunhas detestáveis. E, visto que
estarão atacando, com insídias, a Verdade, Deus tomará a Si fazer a vingança e eles perecerão.
– E nós teremos forças para resistir? –pergunta Tomé.
– Aí está… por mim mesmo, eu não teria. Mas confio nele –e mostra Jesus, que está escutando calado,
com a cabeça um pouco inclinada, como para conservar escondidas as expressões do seu rosto.
– Eu penso que Deus não nos dará provas superiores às nossas forças –diz Mateus.
– Ou, pelo menos, aumentará as nossas forças, em proporção às provas –termina Tiago de Alfeu.
– Ele já está fazendo isso. 180.2Eu era rico e poderoso. Se Deus não tivesse querido me conservar para
algum fim seu, eu teria perecido no desespero, ao ser perseguido e leproso. Eu teria me enfurecido contra
mim próprio… Mas, ao contrário, sobre o meu desabamento completo desceu uma riqueza nova, que eu
nunca antes tinha possuído: a riqueza de uma persuasão: “Deus existe!” Primeiro, Deus… Sim, eu tinha fé,
eu era um fiel israelita. Mas era uma fé formal. Parecia que o prêmio da fé fosse sempre inferior às minhas
virtudes. Eu me permiti até discutir com Deus, porque me julgava ainda alguma coisa sobre a terra. Simão
Pedro tem razão. Eu também estava construindo uma torre de Babel com louvores a mim mesmo e com as
satisfações do meu eu. Quando tudo desabou em cima de mim, e me tornei um verme esmagado pelo peso
de toda esta inutilidade humana, aí eu não discuti mais com Deus, mas comigo mesmo, com este louco eu, e
acabei por demolí-lo. E, quanto mais eu fazia isso, abrindo a estrada para o que eu penso ser Deus imanente
em nosso ser de criaturas terrestres, aí eu adquiria uma força, uma riqueza nova. A certeza de que eu não
estava só e de que Deus velava pelo homem vencido pelo homem e pelo mal.
– Segundo o teu modo de ver, que é que pensas que é Deus, quando dizes: “o Deus imanente em nosso
ser de criaturas terrestres”? Que queres dizer? Eu não te compreendo, dizer isso me parece uma heresia.
Deus é aquele que nós conhecemos através da Lei e dos Profetas. Não existe outro –diz, um tanto severo,
Judas Iscariotes.
– Se João estivesse aqui, ele te explicaria melhor do que eu. Mas eu vou falar-te como sei. Deus é aquele
que conhecemos através da Lei e dos Profetas. É verdade. Mas, em que o conhecemos? Como?
Judas de Alfeu dispara:
– Pouco e mal. Ainda que o conhecessem os Profetas, que sobre ele escreveram para nós. Nós temos de
Deus uma ideia confusa que transpira dos escombros do que foi acumulado pelas seitas…
– Seitas? Mas de que estás falando? Nós não temos seitas. Nós somos filhos da Lei. Todos –diz Iscariotes,
indignado e agressivo.
– Os filhos das leis. Não da Lei. Há uma pequena diferença. Do singular para o plural. Mas na realidade:
nós somos filhos daquilo que criamos, e não daquilo que Deus nos deu –rebate Tadeu.
– As leis nasceram da Lei –diz Iscariotes.
– Também as doenças nascem de nosso corpo, e não me quererás dizer que elas sejam coisas boas –
replica Tadeu.
– Mas, deixai-me saber que é que é o Deus imanente do Simão Zelotes.
O Iscariotes, não tendo podido rebater à observação de Judas de Alfeu, procura levar a questão para o
ponto de partida.
180.3 Simão Zelotes diz:
– Os nossos sentidos sempre precisam de um termo para compreenderem uma ideia. Cada um de nós,
falo de nós que cremos, crê por força de fé no Altíssimo, Senhor e Criador, Deus Eterno que está no Céu.
Mas todos os seres também precisam desta fé nua, virgem, incorpórea, que é suficiente para os anjos, que
vêem e amam a Deus espiritualmente, compartilhando com Ele a natureza espiritual, tendo a capacidade de
ver a Deus. Mas nós precisamos criar para nós uma figura de Deus, figura essa que é feita das qualidades
essenciais que damos a Deus, para podermos dar, então, um nome à sua perfeição absoluta, infinita. Quanto
mais a alma se concentra, mais consegue chegar à exatidão no conhecimento de Deus. Eis aqui o que eu
digo: o Deus imanente. Eu não sou um filósofo. Talvez tenha usado mal a palavra. Mas, em resumo, para
mim o Deus imanente é o sentir, perceber Deus em nosso espírito, sentí-lo e percebê-lo, já não mais como
uma ideia abstrata, mas como uma real presença, doadora de uma fortaleza e de uma paz nova.
– Está bem. Mas como é que o sentias? Que diferença há entre sentir pela fé e sentir pela imanência? –
pergunta, um pouco irônico, Iscariotes.
– Deus é segurança, rapaz. Quando tu o sentes, como diz Simão com aquela palavra que eu não entendo
literalmente, mas cujo sentido eu entendo — e podes crer que o nosso mal é entender somente a letra, e
não o espírito das palavras de Deus — quer dizer que consegues captar, não só o conceito da majestade
terrível, mas da paternidade dulcíssima de Deus. Quer dizer que percebes o seguinte: quando todo o mundo
te julgar e condenar com injustiça, Um só, Ele, o Eterno que é Pai, não te julgará, mas te absolverá e
consolará. Quer dizer que sentes que, quando o mundo todo te odeiar, tu sentirás em ti um amor maior do
que o mundo todo. Quer dizer que, mesmo estando segregado em um cárcere, ou em um deserto, sentirás
sempre que Um te fala, e te diz: ‘Sejas santo, para que sejas como o teu Pai.’ Quer dizer que pelo amor para
com este Deus Pai, que finalmente se chega a sentir tal, se aceita, se trabalha, se toma ou se deixa, sem
medidas humanas, pensando somente em pagar amor com amor, em copiar ao mais próximoDeus com suas
próprias ações –diz Pedro.
– Tu és um soberbo! Copiar Deus! Isso não te é permitido –sentencia Iscariotes.
– Não é soberba. O amor leva à obediência. Copiar Deus me parece um modo de obedece-lhe, pois Deus
diz que nos fez à sua imagem e semelhança –replica Pedro.
– Ele nos fez. Nós não devemos ir acima disso.
– És um infeliz se pensas assim, caro rapaz. Tu te esqueces de que nós somos decaídos e que Deus quer
recolocar-nos no ponto em que estávamos.
180.4 Jesus toma a palavra:
– Ainda mais do que isso, Pedro, Judas e vós todos. Ainda mais. A perfeição de Adão era ainda suscetível
de crescimentopelo amor que o teria levado à imagem sempre mais exata do seu Criador. Adão, sem a
mancha do pecado, teria sido como um limpidíssimo espelho de Deus. Por isso, Eu digo: “Sede perfeitos,
como perfeito é o Pai que está nos Céus.” Como o Pai. Portanto, como Deus. Pedro falou muito bem. Simão
falou muito bem também. Eu vos peço que vos recordeis das palavras deles e as apliqueis às vossas almas.
A mulher de Pedro quase que desmaia pela alegria de ouvir que seu marido é elogiado. Ela chora, atrás
do seu véu, tranquila e feliz. Pedro parece que está para ter um ataque de apoplexia, de tão vermelho que
ficou. Ele fica calado por uns momentos, e depois diz:
– Está bem. Então, dá-me o prêmio. A parábola de hoje cedo…
Os outros também se unem a Pedro, dizendo:
– É verdade. Tu nos prometeste. As parábolas servem bem para fazer-nos compreender as comparações.
Mas nós achamos que elas têm um sentido superior às comparações. 180.5Por que falas a eles em parábolas?
– Porque não lhes foi concedido entender mais do que o que eu explico. A vós foi concedido muito mais,
porque vós, meus apóstolos, deveis conhecer o mistério; e por isso vos é concedido entender os mistérios do
Reino dos Céus. Por isso, Eu vos digo: “Perguntai, quando não entenderdes o sentido de uma parábola.” Vós
dais tudo, e tudo vos é dado, para que, por vossa vez, possais dar tudo. Vós dais tudo a Deus: afetos, tempo,
interesse, liberdade, vida. Deus tudo vos dá para compensar-vos e tornar-vos capazes de dar tudo, em nome
de Deus, a quem vos seque. Assim, a quem deu, será dado com abundância. Mas a quem não deu, ou só deu
parcialmente, ou não deu nada, até o que ele tem lhe será tirado.
Eu lhes falo em parábolas para que vendo, vejam apenas o que a sua vontade de aderir a Deus os faz
ver. É ouvindo, sempre, por aquela mesma vontade de adesão, ouçam e compreendam. Vós estais vendo!
Muitos ouvem a minha palavra, mas poucos aderem a Deus. Seus espíritos estão carentes de boa vontade.
Neles se cumpre a profecia[27] de Isaias: “Ouvireis com os ouvidos, e não entendereis; olhareis com os
olhos, e não vereis.” Porque este povo tem um coração insensível, duro de ouvido, e tem os olhos fechados
para não verem e não ouvirem, para não entenderem com o coração e não se converterem, para que Eu os
cure. Mas vós sois felizes por vossos olhos que vêem e pelos vossos ouvidos que ouvem e pela vossa boa
vontade! Em verdade Eu vos digo, que muitos Profetas e muitos justos desejaram ver o que estais vendo, e
não viram, ouvir o que estais ouvindo, e não ouviram. Eles se consumiram no desejo de compreender o
mistério das palavras, mas, ao apagar-se a luz das profecias, eis que as palavras ficaram como carvões
apagados até para o santo que as tinha recebido.
Somente Deus revela-se a Si mesmo. Quando a sua luz se retrai, tendo atingido a sua meta, que era a de
fazer brilhar a luz do mistério, a incapacidade de entender cobre a real verdade da palavra recebida, como
as faixas de uma múmia. Por isso é que Eu te disse hoje cedo: “Um dia virá em que encontrarás tudo o que
Eu te dei.” Agora, não podes reter tudo na memória. Mas depois a luz virá sobre ti, e não só por um
instante, mas por um inseparável conúbio do Espírito Eterno com o teu, pelo qual se tornará infalível o teu
ensinamento no que se refere ao Reino de Deus. Assim como em ti, também nos teus sucessores, se viverem
de Deus como de um único pão[28].
180.6Agora, ouvi o sentido da parábola.
Temos quatro espécies de campos: os férteis, os espinhosos, os pedregosos e os cheios de trilhas. Temos
também quatro espécies de espíritos.
Temos os espíritos honestos, os espíritos de boa vontade, preparados por ela e pelos bons trabalhos de
um apóstolo, de um “verdadeiro” apóstolo; porque há apóstolos que têm o nome, mas não o espírito de
apóstolos, e são mais mortíferos para as vontades em formação, do que os passarinhos, os espinhos e as
pedras. Eles fazem uma tal desordem com as suas intransigências, com as suas pressas, com as suas
censuras, com suas ameaças, que afastam os outros para sempre de Deus. Outros espíritos são o oposto
com uma rega contínua de benignidades intempestivas, fazem murchar as sementes em um terreno frouxo
demais. Com sua desvirilização, desvirilizam as almas de que cuidam. Mas fiquemos com os verdadeiros
apóstolos, isto é, com os de Deus. Esses são paternais, misericordiosos, e, ao mesmo tempo, fortes como é o
seu Senhor. Pois bem. Os espíritos preparados por eles e pela sua própria boa vontade, são comparáveis aos
campos férteis, limpos de pedras e espinhos, sem grama e joio, e neles prospera a palavra de Deus, e toda
palavra — a semente — cria haste e espiga, dando cem, ou sessenta e além ou ainda trinta por cento. Entre
os que Me seguem, haverão esses? Certamente. E serão santos. Entre eles haverá pessoas de todas as
castas e de todos os lugares, e até pagãos, que darão cem por cento pela sua boa vontade, unicamente por
ela, pela boa vontade de um apóstolo ou discípulo que os prepara.
Os campos espinhosos são aqueles nos quais o descuido deixou penetrar os espinhosos enredos dos
interesses pessoais, que sufocam a boa semente. É preciso que se vigie sempre, sempre, sempre. Não digas
nunca: “Oh! Eu já estou formado, semeado, e por isso, posso ficar tranquilo, que hei de dar semente de vida
eterna.” É preciso que se vigie: a luta entre o Bem e o Mal é continua. Já tereis observado uma tribo de
formigas que quer fazer seu ninho em uma casa? Ora, elas estão em cima do fogão. A mulher não deixa
mais as comidas lá, mas as coloca na mesa; e elas, então, farejam o ar, e vão dar um assalto à mesa. A
mulher põe as comidas no guarda-comida, e elas, pelo buraco da fechadura, passam para dentro do guarda-
comida. A mulher pendura no forro as suas provisões. e elas fazem um comprido trilho ao longo das
paredes e dos sarrafos, descem pela corda e comem. A mulher as queima, escalda, envenena. Depois disso
fica sossegada, pensando ter acabado com elas. Oh! Se não vigiar, que surpresa! Aí vêm vindo as últimas
que nasceram, e vamos começar tudo de novo. Assim é, enquanto se vive. É preciso que se vigie para
extirpar as plantas daninhas, logo que germinam. Caso contrário, elas formam uma coberta de espinheiros
e sufocam o trigo. Os cuidados com as coisas do mundo e o engano das riquezas criam o enredo, sufocam a
planta da semente de Deus, e não deixam que ela produza espiga.
Eis agora os campos cheios de pedras. Quantos haverá em Israel! São aqueles que pertencem aos “filhos
das leis”, como disse o meu irmão Judas com muita exatidão. Não está neles a pedra única do Testemunho,
não está a Pedra da Lei. Está o pedregal das pequenas, pobres e humanas leis criadas pelos homens. São
tantas, que o seu peso transforma a Pedra da Lei em cacos. É uma ruína que impede qualquer enraizamento
de semente. A raiz não é mais nutrida. Não há terra. Não há seiva. A água a faz murchar, porque está sobre
um pavimento de seixos, o Sol enche de forte calor aqueles seixos, queimando as plantinhas. São os
espíritos dos substituidores da simples doutrina de Deus por suas complicadas doutrinas humanas. Eles até
que recebem com alegria a minha palavra. No momento ficam emocionados e seduzidos por ela. Mas
depois… Precisa um esforço heróico para aplainar e limpar o campo, a alma e a mente de todo aquele
pedregal de retóricos. Só assim a semente criaria raiz e se tornaria uma planta vigorosa. Mas assim como
está… não produz nada. Basta um simples medo de represália humana. Basta a reflexão: “E depois? Que
farão de mim os homens poderosos?” E a pobre semente, não nutrida, fica agonizante. Basta que todo
aquele pedregal comece a agitar-se com seu som vazio de centenas e centenas de preceitos, que tomam o
lugar do Preceito, para que o homem pereça logo junto com a semente recebida… Israel está cheio destes.
Isto vem explicar-nos que ir para Deus é uma coisa que está na razão inversa da potência humana.
Finalmente, há os campos cheios de trilhas, de poeira e desnudos. São os campos dos mundanos, dos
egoístas. A comodidade é a sua lei, e o prazer é o seu fim. Nada de fadiga, mas dormir, rir, comer… O
espírito do mundo reina sobre estes. A poeira do mundanismo cobre o terreno deles, que se torna baldio. Os
passarinhos, ou seja, as dissipações, precipitam-se sobre os mil caminhos abertos para lhes tornar mais
fácil a vida. O espírito do mundo, isto é, o Maligno, bica e destrói todas as sementes que caem neste
terreno, aberto a todas as sensualidades e leviandades.
180.7 Entendestes? Tendes alguma outra coisa a perguntar? Não? Então podemos descansar para
partirmos amanhã, rumo a Cafarnaum. Eu devo ir ainda a um lugar, antes de começar a viagem para
Jerusalém, pela Páscoa.
– Passaremos ainda por Arimateia? –pergunta Iscariotes.
– Não é certo. Depende dos…
Bateram na porta com violência.
– Quem é que pode ser a uma hora destas? –diz Pedro, levantando-se para abrir.
Apresenta-se João. Agitado, empoeirado, com claros sinais de pranto no rosto.
– Tu aqui? –gritam todos–. Mas, que foi que aconteceu?
Jesus, que se levantou, diz somente:
– Onde está a mãe?
João, indo para a frente, para ajoelhar-se aos pés do seu Mestre, estendendo os braços como para pedir
socorro, diz:
– A mãe está bem, mas está em pranto como eu e como muitos outros, e Te pede que não andes
acompanhando o Jordão pelo nosso lado. Ela me mandou voltar por isso, porque… porque João, o teu primo,
está preso…
E João chora, enquanto um grande alvoroço se forma entre os presentes.
Jesus empalidece profundamente, mas não fica agitado. Ele diz somente:
– Levanta-te, e conta.
– Eu ia descendo com a mãe e as mulheres. Também Isaac e Timoneu estavam conosco. Três mulheres e
três homens. Eu obedeci à tua ordem de levar Maria a João… ah! Tu bem sabias que era o último adeus!…
Que devia ser o último adeus… O temporal de alguns dias atrás nos fez parar por umas poucas horas. Mas
foi o suficiente para que João não pudesse mais ver Maria… Chegamos à hora sexta e ele já havia sido
preso, ao cantar do galo…
– Onde? Como? Por quem? Na sua caverna? –todos perguntam, todos querem saber.
– Ele foi traído!… Usaram do teu Nome para traí-lo!
– Que horror! Mas, quem terá sido? –gritam todos.
João estremece, ao falar em voz baixa este horror, que nem o ar devia ouvir, e confessa:
– Por um dos discípulos dele…
O alvoroço chega ao auge. Uns maldizem, outros choram, outros, apavorados, ficam como estátuas.
180.8 João se agarra ao pescoço de Jesus, e grita:
– Eu temo por Ti! Por Ti! por Ti! Os santos têm os seus traidores, que pelo ouro se vendem, pelo ouro e
por medo dos grandes, por sede de um prêmio, por… por obediência a satanás. Por mil, mil coisas. Oh!
Jesus, Jesus, Jesus! Que dor! Ele foi o meu primeiro mestre! Foi o meu João que me levou a Ti!
– Está bem! Está bem! Nada Me acontecerá, por enquanto.
– E depois? E depois? Eu olho para mim… olho para vocês… fico com medo de todos, e até de mim.
Deverá estar entre nós o teu traidor…
– Estás doido? Achas que não o reduziríamos a pedaços? –grita Pedro.
Iscariotes:
– Oh! Doido, de verdade! Eu é que não o serei, nunca. Mas, se eu me sentisse tão fraco, a ponto de
chegar a sê-lo, eu me mataria. Melhor é fazer isso, do que ser homicida de Deus.
Jesus se livra do abraço apertado de João e sacode rudemente Iscariotes, dizendo:
– Não fiques aí blasfemando! Nada te poderá enfraquecer, se tu não o quiseres. Se isso acontecesse,
trata de chorar, e não cometas um delito, além do deicídio. Quem por si mesmo se exaure de Deus, torna-se
fraco.
180.9 Depois, volta para João, que está chorando com a cabeça sobre a mesa, e diz:
– Fala com ordem. Eu também estou sofrendo. Ele era o meu sangue e o meu Precursor.
– Eu só pude ver os discípulos, uma parte deles, consternados e furiosos contra o traidor. Os outros
foram acompanhar João até à cadeia, para estarem perto dele na hora da morte.
– Mas, ele ainda não morreu… na outra vez, ele pôde fugir –assim procura confortá-lo Zelotes, que quer
muito bem a João.
– Não morreu ainda. Mas vai morrer –responde o João.
– Sim. Morrerá. Ele o sabe, como Eu sei. Desta vez nada e ninguém o salvará. Quando será, Eu não sei.
Só sei que não sairá vivo das mãos de Herodes.
– Sim, de Herodes. Ele tinha ido por aquela garganta, pela qual nós passamos, quando estávamos
voltando para a Galileia, que fica entre os montes Hebal e Garizim, porque assim é que lhe falou o traidor:
“O Messias está à morte, tendo sido assaltado por inimigos. E Ele está querendo ver-te para te confiar um
segredo.” Ele foi com o traidor e mais alguns outros. Na sombra do vale estavam os homens armados de
Herodes que o prenderam. Os outros fugiram, levando a notícia aos discípulos, que ficaram perto de Enon.
Eles mal tinham acabado de chegar, quando cheguei eu com a mãe. O mais horrível é que se tratava de
alguém das nossas cidades, e que os fariseus de Cafarnaum foram à frente do conluio para prendê-lo. Eles
tinham estado com ele, dizendo que Tu tinhas sido seu hóspede, e que Tu estavas de partida para a Judeia…
Ele não teria saído do seu refúgio, a não ser por causa de Ti…
180.10 Um silêncio sepulcral cai sobre a narração de João. Jesus parece estar esgotado, com os olhos de um
azul bem escuro quase embaçados. Ele está de cabeça inclinada, com a mão ainda sobre o ombro de João, e
sua mão está sendo sacudida por um leve tremor. Ninguém ousa falar.
Jesus rompe o silêncio:
– Vamos para a Judeia, por um outro caminho. Amanhã preciso ir a Cafarnaum. O quanto antes.
Descansai. Eu vou subir entre as oliveiras. Preciso estar só.
Sai sem dizer nada.
– Certamente Ele vai chorar –murmura Tiago de Alfeu.
– Vamos acompanhá-lo, irmão –diz Judas Tadeu.
– Não. Deixai-o chorar. Nós somente, sairemos devagar, à escuta. Temo insídias em toda parte –responde
Zelotes.
– Sim. Vamos. Nós pescadores iremos pela margem. Se alguém vier do lago, nós o veremos. Vós ide
pelas oliveiras. Certamente Ele está em seu lugar de costume, perto da nogueira. Quando chegar a aurora,
prepararemos as barcas para partirmos rapidamente. Que raça de serpentes! Eh! Eu disse! Fala, tu, agora
rapaz! A Mãe está em lugar seguro?
– Oh! Sim! Também os pastores, discípulos de João, foram com ela… não veremos mais o nosso João!
– Cala-te! Cala-te! Parece-me o canto do cuco… Um precede o outro e… e…
– Pela Arca Santa! Calai-vos! Se falais ainda de desventuras para o Mestre, eu começo por vós, fazendo-
vos sentir o sabor do meu remo nos rins! –grita Pedro, enfurecido–. Vós –diz ele depois aos que vão pelas
oliveiras–, apanhai bastões, galhos grossos, pois lá no lenheiro há bastante, e espalhai-vos, armados com
eles. O primeiro que se aproximar de Jesus para fazer mal a Ele, seja morto.
– Discípulos! Discípulos! É preciso tomar cuidado com os novos!
–exclama Filipe.
O novo discípulo se sente ferido, e pergunta:
– Estais dúvidando de mim? Ele me escolheu e me quis.
– De ti, não. Mas daqueles que são escribas e fariseus, e dos seus adoradores. De lá virá a ruína. Podeis
crer.
Saem e se espalham, uns para o lado das barcas, outros por entre as oliveiras das colinas, e tudo
termina.
[26] torre de Babel a qual estória está em Gênesis 11,1-9.
[27] profecia que está em Isaías 6,9-10.
[28] se viverem de Deus como único pão: esta condição colocada a infalibilidade pontifícia deve ter provocado uma objeção da parte do Padre Migliorini,
ao qual MV transmite a resposta dada por Jesus escrevendo-a, com a data de 30 de junho de 1945, em duas faces de um folheto que encontramos inserido
entre as páginas manuscritas do caderno.
181. A parábola do joio e do trigo.
8 de junho de 1945.
181.1 Uma alvorada clara transforma o lago em uma grande pérola e recobre as colinas com uma névoa
branca e leve como um véu de musselina, através do qual podem se ver, revestidas de um certo ar de
nobreza, as oliveiras, as nogueiras, as casas e o cimo dos lugarejos, que ficam à beira do lago. As barcas
deslizam serenas e silenciosas para Cafarnaum. Mas, num certo momento, Pedro vira a barra do timão de
um modo tão rude, que a barca se inclina para um lado.
– Que é que estás fazendo? –pergunta-lhe André.
– Estou vendo a barca de um solitário. Está saindo agora de Cafarnaum. Eu tenho bons olhos e, desde
ontem à tarde, estou farejando como um sabujo. Não quero que nos vejam. Vou voltar para o rio. Vamos a
pé.
A outra barca também acompanhou a manobra, mas Tiago, que está ao timão, pergunta a Pedro:
– Por que estás fazendo isso?
– Eu te direi. Vem comigo.
Jesus, que está sentado na popa, só percebe a mudança, quando já estão perto do Jordão.
– Mas, que é que estás fazendo, Simão? –pergunta Ele.
– Vamos descer aqui. Há um chacal rondando por aí. Hoje não se pode ir a Cafarnaum. Primeiro, vou eu,
para escutar um pouco. Eu com Simão e Natanael. Três pessoas dignas contra três pessoas indignas… a
não ser que as haja mais indignas.
– Não fiques vendo emboscadas por toda parte, agora. Aquela não é a barca do Simão, o fariseu?
– É ela mesmo.
– Ela não foi usada na captura de João!
– Eu não estou sabendo de nada.
– Ele é sempre respeitoso para comigo.
– Eu não estou sabendo de nada.
– Tu me fazes ficar parecendo um covarde.
– Eu não estou sabendo de nada.
Ainda que Jesus não esteja com vontade de rir, acaba sorrindo pela santa teimosia de Pedro.
– Mas a Cafarnaum temos que ir. Se não hoje, mais tarde…
– Eu te disse que primeiro, vou eu e escuto e… conforme o que acontecer… farei ainda… será um
espinho grosso demais para se engolir… mas eu o farei por amor de Ti… Eu irei… irei ao centurião pedir
proteção…
– Não. Não é preciso isso!
A barca para sobre a prainha deserta, que fica na frente de Betsaida. Todos descem.
– Vinde, vós dois. Vem, tu também, Filipe. Vós, mais moços, ficai aqui. Vamos estar logo de volta.
O novo discípulo Elias suplica:
– Vem à minha casa, Mestre. Ficarei feliz em hospedar-Te…
– Vou, sim. Simão, tu me alcançarás na casa de Elias. Adeus, Simão. Vai, mas sejas bom, prudente e
misericordioso. Vem cá para que Eu te beije e abençoe.
Pedro não garante que vá ser bom, paciente nem misericordioso. Ele se cala e troca um beijo com o
Mestre.
Zelotes, também Bartolomeu e Filipe trocam o beijo de despedida, e as duas comitivas se separam, indo
em direções opostas.
181.2 Entram em Corozaim, quando a aurora já se transformou em pleno dia. Não há nenhum ramo de erva
que não esteja brilhando, salpicado pelas gemas do orvalho. Os passarinhos cantam por toda parte. O ar é
puro e fresco, e parece ter um cheiro de leite, de um leite mais vegetal do que animal. É o cheiro dos grãos,
que se formam nas espigas e nas amendoeiras carregadas de frutas… é um cheiro que eu já senti nas
frescas manhãs dos campos férteis da planície de Pádua.
Logo chegam à casa de Elias. Mas em Corozaim muitos estão sabendo que o Mestre chegou e, quando
Jesus põe o pé na soleira de uma casa, uma mulher corre para Ele, gritando:
– Jesus, Filho de Davi, tem dó de minha filha!
Ela vem trazendo nos braços uma menina com cerca de dez anos, já cor de cera e magríssima. Mais do
que cor de cera, ela está toda amarelada.
– Que é que tem tua filha?
– É a febre. Ela pegou a febre nas pastagens ao longo do Jordão. Porque nós somos pastores de um
homem rico. Eu fui chamada pelo pai para ficar perto da doente. Ele voltou para os montes. Mas Tu sabes
que com esta doença não se pode ficar em lugares altos. Como, então, vou poder ficar aqui? Até agora o
patrão me deixou neste lugar. Mas eu cuido da lã e dos partos. Está chegando o tempo de trabalho para os
pastores. Seremos mandados embora, ou separados, se eu tiver que ficar. E verei morrer minha filha, se eu
tiver que ir para o Hermon.
– Tens fé no meu poder?
– Eu falei com Daniel, pastor de Eliseu. Ele me disse: “O nosso Menino cura todos os males. Vai ao
Messias.” Eu vim do lado de lá do Meron, com esta menina nos braços, à tua procura. Eu não teria parado
de caminhar, enquanto não te encontrasse…
– Pois agora não caminhes mais, a não ser para voltares para a tua casa, para o trabalho tranquilo. A tua
filha está curada, porque Eu assim quero. Vai em paz.
A mulher olha para a filha, e olha para Jesus. Talvez ela esteja esperando ver a filha, gorda e corada no
mesmo instante. Também a menina arregala diante de Jesus seus olhos cansados, que antes ela conservava
fechados, e sorri.
– Não tenhas medo, mulher. Eu não te engano. A febre desapareceu para sempre. De dia para dia ela se
irá tornando mais viçosa. Deixa que ela ande. Ela não cambaleará mais, nem sentirá canseira.
A mãe põe no chão a menina, que já fica de pé, bem firme e cada vez mais alegre. Por fim, ela gorjeia
com sua voz de prata:
– Bendize o Senhor, minha mãe! Eu estou bem sã. Eu o sinto –e, em sua simplicidade de pastorinha e de
menina, ela se lança ao pescoço de Jesus e o beija. A mãe, reservada, como o exige a idade, prostra-se, e
beija a veste do Senhor, bendizendo-o.
– Ide. Lembrai-vos do benefício recebido de Deus, e sede boas. A paz esteja convosco.
181.3 Mas as pessoas já estão se reunindo no pequeno jardim da casa do Elias, e estão pedindo a palavra
do Mestre. Ainda que Jesus não esteja muito disposto a fazê-lo, entristecido por causa da prisão do Batista e
pelo modo como elefoi presoa, contudo Ele se dá por vencido e, à sombra das árvores, começa a falar.
– Ainda neste belo tempo dos trigais que estão soltando espigas, Eu vos quero propor uma parábola,
tomada dos grãos. Ouvi-a.
O Reino dos Céus é semelhante a um homem que semeou boa semente em seu campo. Mas, enquanto o
homem e seus empregados dormiam, veio um inimigo dele, espalhou sementes de joio nos sulcos e foi-se
embora. A princípio, ninguém percebeu nada. Veio o inverno com as chuvas e as geadas, veio o fim do mês
de Tebet, e as sementes germinaram. Era um verdor de grandes folhas tenras, que mal tinham despertado.
Em sua infância inocente, pareciam todas iguais. Veio o mês de Shebat, depois o de Adar, e as plantas se
formaram, e começaram a mostrar suas espigas. Aí é que se viu que aquele verdor não era só do trigo, mas
também do joio, que estava bem enroscado, com seus tentáculos, fininhos e pegajosos, nas hastes do trigo.
Ao verem isso, os empregados foram, à casa do patrão e lhe disseram: “Senhor, que semente foi que
semeaste? Não foi uma semente escolhida, separada de quaisquer outras sementes?”
“Certamente. Eu escolhi os grãos todos iguais em suas formas. E, se houvesse outras sementes, eu as
teria visto.”
“Como é, então, que nasceu tanto joio no meio do trigo?”
O patrão pensou, depois disse: “Algum inimigo meu fez isso para prejudicar-me.”
Os empregados ainda lhe perguntaram: “Não queres que nós vamos por entre os sulcos e, com
paciência, apanhemos as espigas do joio e arranquemos? Manda, que iremos.”
Mas o patrão lhes respondeu: “Não. Vós poderíeis, ao fazer o que dizeis, arrancar junto o trigo e,
certamente, ofenderíeis as espigas ainda tenras. Deixai, pois que um e outro fiquem juntos até o fim da
colheita. Naquela ocasião, eu direi aos ceifadores: ‘Passai a foice em tudo junto; depois, antes de amarrar
os feixes, agora que a secura do tempo tornou quebradiças as hastes do joio e que, ao mesmo tempo já
estão bem formadas e duras as espigas, agora, sim, separai o joio do trigo, e fazei com ele uns feixes à
parte. Vós os queimareis depois, e eles vão servir de adubo para o solo. Ao mesmo tempo, vós levareis o
trigo puro para os celeiros, e ele vai servir para se fazer um pão muito bom, e para humilhar o inimigo, que
só terá ganhado isto: ficar abjeto aos olhos de Deus pelo seu ódio’.”
Agora, refleti entre vós como frequentemente acontece, e como é grande a semeadura do Inimigo em
vossos corações. Compreendei como é preciso vigiar, com paciência e constância, para fazer que seja pouco
o joio que se misture ao trigo escolhido. O destino do joio é ser queimado. Quereis vós ser queimados, ou
tornar-vos cidadãos do Reino? Pois bem. Que saibais sê-lo. O bom Deus vos dá a Palavra. O Inimigo está
vigiando para torná-la nociva, porque a farinha de trigo misturada com a farinha de joio dá um pão amargo
que faz mal ao estômago. Saibais, com boa vontade, se houver joio em vossa alma, separá-lo para jogá-lo
fora, a fim de que não sejais indignos de Deus.
Ide, meus filhos. A paz esteja convosco.
181.4 As pessoas se afastam lentamente. No pequeno jardim ficaram os oito apóstolos com Elias, seu
irmão, a mãe e o velho Isaac, que sente a alma alimentar-se, quando olha para o seu Salvador.
– Vinde ao Meu redor, e ouvi. Eu vos explico o sentido completo da parábola, que tem ainda dois
aspectos, além daquele de que Eu falei à multidão.
Num sentido universal, a parábola tem esta aplicação: o campo e o mundo. A semente boa são os filhos
do Reino de Deus, semeados por Deus sobre o mundo, à espera de chegarem ao seu limite, quando serão
cortados pela Falcífera, e levados ao Dono do mundo, para que entrem novamente em seus celeiros. O joio
são os filhos do Maligno, espalhados, por sua vez, pelo campo de Deus, com a intenção de causar tristeza ao
Dono do mundo e de estragar as espigas de Deus. O Inimigo de Deus o semeou de propósito, através de um
sortilégio, porque o diabo verdadeiramente desnatura o homem, até fazer dele uma criatura sua, que
semeia, para tirar do caminho a outros, que ele ainda não foi capaz de tornar seus escravos. A colheita, ou
melhor, a formação dos feixes e o transporte dos mesmos até os celeiros é o fim do mundo. Os que fazem
essa tarefa são os anjos. Foi mandado a eles que reúnam as criaturas cortadas, e separem o trigo do joio e,
como na parábola ele é queimado. Assim serão queimados no fogo eterno no Juízo Final os condenados.
O Filho do homem mandará que sejam tirados do seu Reino todos os causadores de escândalos e de
iniquidades. Porque então o Reino será no Céu e na terra, e entre os cidadãos do Reino na terra estarão
misturados muitos filhos do Inimigo. Estes atingirão, como foi dito[29] também pelos Profetas, a perfeição
do escândalo e da abominação em todos os ministérios da terra, e darão grandes aborrecimentos aos filhos
do espírito. No Reino de Deus, nos Céus, já terão sido expulsos os corruptos, porque a corrupção não entra
no Céu. Agora, pois, os Anjos do Senhor e, impunhando a foice por entre as fileiras da última colheita,
cortarão e separarão o trigo do joio, e jogarão este na fornalha ardente, onde há choro e ranger de dentes,
mas levando consigo os justos, o trigo escolhido, para a Jerusalém Eterna, onde eles brilharão como sóis no
Reino de meu e vosso Pai.
181.5Isto, no sentido universal. Mas para vós há um outro ainda, e vem responder às perguntas que,
especialmente como ontem à tarde, costumais fazer. Vós estáveis perguntando a vós mesmos: “Mas, então,
no meio do grupo dos discípulos pode existir traidores?”, e tremeis de horror e de medo em vossos
corações. Eles podem existir. Disso Eu estou certo.
O Semeador espalha a boa semente. Neste caso, mais do que espalhar, poder-se-ia dizer que ele “colhe.”
Porque o Mestre, que seja Eu ou que tenha sido o Batista, havia escolhido os seus discípulos. Como foi que
houve extraviados? Não, mas pelo contrário, eu falei mal quando chamei os discípulos de sementes. Vós
poderíeis entender-me mal. Eu vou chamá-los, então de “campo.” Tantos discípulos, tantos campos
escolhidos pelo Mestre para formarem a área do Reino de Deus, os bens de Deus. Com esses o mestre se
afadiga, para cultivá-los, a fim de que produzam cem por cento. Ele toma todos os cuidados. Todos. Com
paciência. Com amor.Com sabedoria. Com canseiras. Com constância. Ele olha também as tendências más
deles. A aridez e cobiça deles. Vê as teimosias e as fraquezas deles. Mas, fica esperando, espera sempre, e
fortalece a sua esperança com a oração e a penitência porque os quer levar à perfeição.
Mas os campos estão abertos. Não são um jardim fechado, cercado por muros como uma fortaleza, do
qual só o mestre é o dono, e no qual só ele pode penetrar. Estão abertos. Colocados no centro do mundo, no
meio do mundo e todos podem aproximar-se deles, todos podem entrar neles. Todos e tudo. Oh! Oh! Mas
não é só o joio que é a semente má semeada. O joio: este poderia ser o símbolo da leviandade amarga do
espírito do mundo. Mas aí nascem, lançados pelo Inimigo, todas as outras sementes. Aí estão as urtigas. Aí
as tiriricas. Aí as cuscutas. Aí os cipós-chumbo. Aí, enfim as cicutas e os tóxicos. Por quê? Por quê? Que são
eles?
As urtigas: são os espíritos irritantes, indomáveis, que ferem, por uma superabundância de venenos, e
causam tanto mal-estar. As tiriricas significam os parasitas que esgotam o mestre, pois só sabem rastejar e
sugar, aproveitando-se do trabalho dele e prejudicando aos cheios de vontade, que certamente colheriam
maiores frutos, se seu mestre não fosse perturbado e distraído pelos cuidados que dele exigem as tiriricas.
Os cipós-chumbo, inertes, que só se levantam do chão, aproveitando-se do trabalho dos outros. As cuscutas
são um tormento no caminho, já difícil, do mestre, e um tormento para os discípulos fiéis que o
acompanham. Elas se agarram a nós, espetam, ferem, arranham, só causam desconfiança e sofrimento. Os
tóxicos: são os delinquentes que estão entre os discípulos, aqueles que chegam a trair e a apagar a vida,
como a cicuta e outras ervas venenosas. Por acaso, já tereis visto como elas são bonitas com as suas
florzinhas, que depois se transformam em bolinhas brancas, vermelhas ou roxo azuladas? Quem diria que
aquela corola estrelada, cândida ou levemente rosada, com seu coraçãozinho de ouro, quem haveria de
dizer que aqueles corais de todas as formas, tão parecidos com aquelas frutinhas que são a delícia dos
passarinhos e das crianças, sejam capazes de, quando maduras, dar a morte? Ninguém. Mas os inocentes aí
caem. Crêem que todos são bons como eles… colhem os frutos, comem e morrem.
Acham que todos são bons como eles! Oh! que verdade que sublima o mestre e condena o seu traidor!
Como? A bondade não desarma? Não torna inofensivo o querer-mal? Não. Não o torna mais assim, porque o
homem, que tombou como presa do Inimigo, tornou-se insensível a tudo o que é superior. E tudo o que é
superior muda de aspecto para ele. A bondade é vista como uma fraqueza, em que é permitido pisar, e
refina sua má vontade, refina o desejo de degolar, como, em uma fera, só o sentir cheiro do sangue.
Também o mestre é sempre um inocente, e deixa que seu traidor o envenene, porque não quer e não deixa
os outros pensar que um homem seja capaz de dar a morte a quem é inocente.
181.6 Dos discípulos, que são os campos do mestre, é que vêm os inimigos. E são muitos. O primeiro é
satanás. Os outros são os servos dele, isto é, os homens, as paixões, o mundo e a carne. Aí está o discípulo
mais fácil de ser atingido por eles, porque ele não está completamente ao lado do Mestre, mas está em cima
do muro, entre o Mestre e o mundo. Ele não sabe, não quer separar-se completamente das coisas do
mundo, da carne, das paixões e do demônio, para estar completamente com quem o leva para Deus. Sobre
ele o mundo e a carne, as paixões e o demônio espalham suas sementes. O ouro, o poder, a mulher, o
orgulho, um medo de ser mal julgado pelo mundo e um espírito de utilitarismo. “Os grandes é que são os
mais fortes. E por isso eu os sirvo, para tê-los como amigos.” E se tornam delinquentes e condenados por
causa de coisas tão mesquinhas!…
Por que o Mestre, que está vendo a imperfeição do discípulo, ainda que não queira render-se a este
pensamento: “Este vai ser o meu matador”, não o elimina imediatamente do meio dos discípulos? Isto vós
perguntais:
Porque é inútil fazer isso.. Se o fizesse não impediria que ele continuasse seu inimigo e agora dupla e
prontamente seu inimigo, pela raiva ou pela dor de ter sido descoberto, ou por ser expulso. Dor. Sim.
Porque às vezes o mau discípulo não percebe que o é. É tão sutil a obra do demônio, que ele nem a percebe.
Ele fica endemoninhado, sem nem suspeitar de que está sendo submetido a essa operação. Raiva. Sim.
Raiva por estar sendo conhecido pelo que realmente é, quando ele não está inconsciente do trabalho de
satanás, e de seus adeptos: são os homens que tentam o fraco em suas fraquezas, para tirar do mundo o
santo, que, só por sua santidade, comparada às maldades deles, já os ofende. E, então, o santo ora e se
abandona a Deus. “O que Tu permites se faça, seja feito”, diz ele. Somente acrescenta esta cláusula:
“Contanto que sirva para o teu fim.” O santo sabe que virá a hora em que serão expulsos de suas colheitas
os joios daninhos. Por quem? Pelo mesmo Deus, que não permite nada além do que é útil para o triunfo de
sua vontade de amor.
181.7 – Mas, se Tu admites que sempre é satanás e os adeptos dele… parece que a responsabilidade do
discípulo diminua –diz Mateus.
– Nem penses nisso. Se o Mal existe, existe também o Bem. E existe no homem o discernimento e, com
ele, a liberdade.
– Tu dizes que Deus não permite nada além de tudo o que é útil para o triunfo de sua vontade de
amor[30]. Portanto, também esse erro é útil, se Ele o permite, e serve para um triunfo da vontade divina
–diz Iscariotes.
– E tu argumentas, como Mateus, que isto justifica o delito do discípulo. Deus havia criado o leão sem
ferocidade e a serpente sem veneno. Agora, um é feroz e a outra venenosa. Mas Deus os separou do homem
por isso. Medita sobre isso e tira as conclusões. Vamos para casa. O Sol já está forte demais. Parece que
vem aí o começo de um temporal. E vós estais cansados por causa de uma noite sem dormir.
– A casa tem uma sala alta, bem ampla e fresca. Nela podereis repousar, diz Elias.
Todos sobem pela escada externa. Mas só os apóstolos se estendem sobre as esteiras para repousar.
Jesus sai no terraço, sombreado num canto por um carvalho muito alto, e fica absorto em seus
pensamentos.
[29] foi dito, por exemplo em Daniel 9,27; 11,31.36; 12,11.
[30] Deus não permite nada além de tudo o que é útil para o triunfo da sua vontade de amor. A este propósito, MV escreveu um folheto (depois
inseriu na cópia datilografada) uma nota que termina assim: também se Deus permite que o homem cumpra o que voluntariamente escolhe, e o que
seleciona e confirma-o em graça, ou
julga-o merecedor de castigo, a sua [do homem] culpa não vem diminuída por nenhum motivo. Porque, se é verdade que o homem, sob o impulso de Deus ou
do estímulo de Satanás, pode fazer o bem e o mal, não é menos verdade que apenas Deus seria seguido em seus convites de amor ao homem que d’Ele
recebeu todos os dons naturais, morais e sobrenaturais, atos a fazer dele um filho de Deus erguido ao Céu. Ainda sobre este argumento, os discursos de
Jesus em 174.8 e 176.4 e a disputa entre os apóstolos em 243.9.
182. Sermão para alguns pastores
com o pequeno órfão Zacarias.
9 de junho de 1945.
182.1 A volta de Pedro só se deu na manhã seguinte. Ele está mais calmo, desde a partida, porque só achou
boa acolhida em Cafarnaum, e a cidade limpa e livre da presença de Eli e Joaquim.
– Devem ser eles que promoveram aquele conluio. Porque eu perguntei a alguns amigos, quando eles
saíram de lá e fiquei sabendo que eles não tinham voltado, depois de terem estado com o Batista, fingindo-
se penitentes. E eu creio que nem voltarão logo, agora que eu disse que eles estiveram presentes à prisão…
Há um grande alvoroço por causa desta prisão do Batista. E eu cuidarei de fazer que isso fique sabido até
pelos mosquitos… É esta para nós a melhor arma. Encontrei também o fariseu Simão e… Mas, se ele é
como me pareceu ser, parece-me bem disposto. Ele me disse: “Aconselha o Mestre a não ir acompanhando o
Jordão pelo vale ocidental. O outro lado é mais seguro”, disse ele , destacando bem as palavras. E terminou
dizendo: “Eu não te vi. Nem te falei nada. Lembra-te disso. E toma cuidado para o meu bem, para o teu e o
de todos. Dize ao Mestre que eu sou amigo dele”, e olhava para o alto, como se estivesse falando ao vento.
Sempre, mesmo quando fazem coisas boas, eles são falsos… e até direi que são estranhos, para não ter a
tua desaprovação. Mas… eu também fui fazer uma sondagenzinha no centurião. Eu lhe disse assim: “Vai
bem o teu criado?” e tendo recebido resposta afirmativa, eu lhe disse também: “Ainda bem! Trata de
conservá-lo são, porque já estão armando emboscadas ao Mestre. O Batista já foi preso…” e o romano
pegou o assunto no vôo. Homem esperto que ele é, assim respondeu “Onde houver uma insígnia, haverá um
guarda para protegê-lo e haverá alguém que lembre aos israelitas que, sob o domínio de Roma, não são
permitidos os conluios, sob pena de morte ou das galés.” Eles são pagãos. Mas eu quase o beijei. Eu gosto
das pessoas que compreendem e agem. Podemos ir andando, então.
– Então vamos. Mas não era preciso nada disso –diz Jesus.
– Era preciso. Era preciso!
Jesus se despede da família hospitaleira e também do novo discípulo, ao qual Ele deve ter dado suas
instruções.
182.2 Agora estão de novo sozinhos, o Mestre com os apóstolos, e vão indo pelas campinas frescas, por um
caminho que Jesus tomou, para grande surpresa de Pedro, que queria tomar um outro.
– Por aqui vamos ficar mais longe do lago…
– Mas chegaremos sempre em tempo para fazer o que devo fazer.
Os apóstolos não falam mais e estão indo para uma vila pequenina, um punhado de casas espalhadas
pela campina. Ouve-se um grande barulho dos sininhos dos rebanhos, que vão indo para as pastagens das
montanhas. Quando Jesus para, a fim de deixar passar um rebanho mais numeroso, os pastores acenam
para Ele e se reúnem em grupo. Fazem perguntas uns aos outros, mas ficam só nisso.
Então Jesus é que quebra o silêncio e as incertezas, atravessando o rebanho que parou para comer a
erva que por ali está bem viçosa. Ele vai diretamente acariciar um pastorzinho, que está no centro de um
grande grupo de ovelhas lanudas e berrantes. Ele lhe pergunta:
– Elas são tuas?
Jesus sabe muito bem que elas não são do rapazinho, mas quer fazê-lo falar.
– Não, Senhor. Eu trabalho com aqueles lá. E estes rebanhos são de muitos donos. Nós estamos todos
reunidos por causa dos bandidos.
– Como te chamas?
– Zacarias, filho de Isaac. Mas meu pai morreu, e eu estou trabalhando, porque minha mãe tem outros
três mais novos do que eu.
– Faz muito tempo que ele morreu?
– Há três anos, Senhor… e eu não sei mais rir, porque a mamãe está sempre chorando, e eu não tenho
mais quem me acaricie… Eu sou o primeiro filho, e a morte de meu pai fez que eu me tornasse homem,
quando eu era ainda menino… Eu não tenho que chorar, mas ganhar… Mas é difícil!
De fato, até agora mesmo as lágrimas estão descendo sobre aquele rostinho sério demais para a idade
que tem.
Os pastores se aproximam e os apóstolos também. Agora é um grupo de homens, no meio de um mover-
se de ovelhas.
– Não estás sem pai, Zacarias. Tu tens um Pai Santo, que está no Céu, e que te ama sempre, se fores
bom, e o teu pai não cessou de te amar, pois ele está no seio de Abraão. Precisas crer nisto. E, por causa
dessa fé, precisas ser sempre melhor.
Jesus fala com doçura e acaricia o menino.
182.3 Um pastor cria coragem, e pergunta:
– Tu és o Messias, não é mesmo?
– Sim. Eu sou. Como é que me conheces?
– Fiquei sabendo que estás andando pela Palestina, e que dizes palavras santas. É por isso que Te
reconheço.
– Vós ides para longe?
– Vamos para os montes altos. O calor está chegando… Não irás dizer algumas palavras para nós? Lá em
cima, onde nós estamos, quem fala para nós são somente os ventos e, às vezes também o lobo, que faz
carnificinas, como fez com o pai de Zacarias. Nós temos desejado ver-te, durante o inverno todo, mas nunca
pudemos encontrar-te.
– Vamos, então, para a sombra daquele pequeno bosque. Lá Eu vos falarei.
E Jesus vai à frente, segurando o pastorzinho pela mão e acariciando com a outra as cordeirinhas, que
estão levantando o focinho e soltando balidos. Os pastores reúnem o rebanho debaixo de um bosque de
árvores para o corte e, enquanto as ovelhas se deitam para ruminar ou então ficam apanhando folhas ou se
esfregando nos troncos, Jesus começa a falar.
182.4 – Vós me dissestes: “Lá em cima, onde estamos, só nos falam os ventos e, às vezes, o lobo que faz
carnificinas.” O que acontece lá em cima, acontece também nos corações por obra de Deus, ou do homem,
ou de satanás. Por isso, vós podeis ter lá em cima o que poderíeis ter em qualquer outro lugar.
Conheceis bem a Lei, para saber os dez mandamentos? E tu também, menino? Então já sabeis o que é
suficiente. Se vós praticardes com fidelidade todas as ordens que Deus vos deu, sereis santos. Não vos
queixeis por estar longe do mundo. É por isso que estais preservados de muitas corrupções. E Deus não
está longe de vós, mas até mais perto naquela solidão, onde Ele vos faz ouvir sua voz na voz dos ventos que
Ele criou, nas ervas e nas águas, do que entre os homens. Este rebanho vos ensina uma grande, ou até
muitas grandes virtudes. Ele é manso e obediente. Ele se contenta com pouco e agradece pelo que recebe.
Ele sabe amar e ser reconhecido para com quem cuida dele e o ama. Fazei vós também a mesma coisa,
dizendo: “Deus é o nosso Pastor, e nós somos as ovelhas do seu rebanho. Os olhos dele estão sobre nós. Ele
nos guarda e nos concede, não o que é uma fonte de vícios, mas o que é necessário para a vida.” Conservai
o lobo longe do coração. Esse lobo são os homens maus, que talvez vos incitem e seduzam para más ações,
por ordem de satanás. É o próprio satanás, que vos tenta para o pecado, a fim de rasgar-vos em pedaços.
Vigiai. Vós, pastores, sabeis quais os costumes do lobo. Ele é tão astuto, quanto simples e inocentes são
as ovelhas. Ele se aproxima devagar, depois de ter observado, lá do alto, os costumes do rebanho, vem
deslizando por entre as moitas, vem-se avizinhando e, para não chamar a atenção, ele até se imobiliza
depois, como se fosse uma pedra. Não fica ele parecendo mesmo uma grande pedra que tivesse vindo
rolando por cima das ervas? Mas depois, quando tem certeza de que ninguém está vigiando, ele salta e dá
suas dentadas. O mesmo faz satanás. Ele vos vigia, para ficar sabendo quais são os vossos pontos fracos;
depois, anda ao redor de vós, fica parecendo inofensivo e até como se não estivesse por ali, olhando para
outras coisas, enquanto, na verdade, está de olhos sobre vós e, de repente, salta para arrastar-vos ao
pecado e, algumas vezes, consegue. Mas junto a vós está um médico e um piedoso: Deus e o vosso anjo. Se
vos feristes, se caístes doentes, não vos afasteis deles, como faz o cão que ficou doente de raiva. Mas, ao
contrário, chorando, gritai-lhes: “Ajudai-me.” Deus perdoa a quem se arrepende, e vosso anjo está pronto a
suplicar a Deus por vós, e convosco.
182.5 Amai-vos uns aos outros, e amai este menino. Cada um de vós deve sentir-se um pouco como pai
deste órfão. A presença de um menino entre vós sirva para moderar todos os vossos atos com o freio santo
do respeito para com a criança. E a vossa presença junto a ele sirva para substituir o pai que a morte lhe
tirou. É preciso amar ao próximo. Este pequeno é para vós o próximo que Deus vos confia de um modo
especial. Educai-o para que seja bom e cheio de fé, para que seja honesto e sem vícios. Ele é muito mais do
que uma destas ovelhas. Pois bem. Se vós tomais cuidado delas, porque são do patrão, que vos castigaria se
deixásseis que elas se perdessem, quanto mais deveis tomar cuidado desta alma que Deus vos confia, em
nome dele e do pai morto. A condição de órfão em que ele está é bem triste. Não a torneis ainda mais
pesada, querendo aproveitar-vos de sua condição de pequenino só para fazê-lo trabalhar. Pensai que Deus
está vendo os atos e as lágrimas de cada homem, e toma nota de tudo para premiar e para punir.
E tu, menino, lembra-te de que não estás nunca sozinho. Deus te vê e a alma do teu pai também. Quando
alguma coisa te perturbar, ou te aconselhar a fazer o mal, dize assim: “Não. Não quero ser órfão para
sempre.” E tu o serias, se condenasses o teu coração, pecando.
Sede bons. Eu vos abençôo para que todo bem esteja convosco. Se tivéssemos que ir pelo mesmo
caminho, eu vos teria falado mais longamente. Mas o Sol já se levanta, e vós tendes que ir e Eu também.
Vós ides pôr as ovelhas ao abrigo do calor e Eu livrar os corações de um outro ardor ainda mais terrível.
Rezai para que eles reconheçam em Mim o seu Pastor. Adeus, Zacarias. Sê bom. A paz esteja convosco.
Jesus beija o pastorzinho e o abençoa e, enquanto o rebanho lentamente vai tomando o caminho, Ele o
acompanha com o olhar, depois retoma o seu caminho.
182.6 – Disseste que vamos tirar os corações de um outro ardor… Aonde é que vamos? –pergunta
Iscariotes.
– Por enquanto, vamos até aquele ponto sombreado, por onde passa aquele rio. Aí tomaremos a refeição.
E depois ficareis sabendo aonde vamos.

Jesus diz:
– Inserireis aqui o segundo momento da conversão de Maria Madalena, que aconteceu no ano passado,
aos 12 de agosto de 1944 (B964) (título: Pedro, não a insultes. Reza pelos pecadores).
183. Cura de um homem ferido
na casa de Maria de Magdala.
[12 de agosto 1944.]
183.1 O Colégio Apostólico completo está ao redor de Jesus. Sentados sobre a relva, em meio ao frescor de
um pequeno capão de mata e à beira de um rio, todos estão comendo pão e queijo e bebendo da água do
rio, que é fresca e limpa. Suas sandálias, cheias de poeira, bem que estão dizendo que muito caminho já foi
feito por eles e que os discípulos não pediriam coisa melhor do que repousar deitados na relva alta e fresca.
Mas o incansável Caminhante não pensa como eles. Pois, mal acha que já passou a hora do maior calor,
Ele logo se levanta, desce sobre a estrada e olha… Depois vira-se e diz simplesmente:
– Vamos.
Chegados a uma encruzilhada, ou melhor, a uma encruzilhada dupla, onde quatro estradas poeirentas se
unem, Jesus toma decididamente a que vai para a direção nordeste.
– Vamos voltar para Cafarnaum? –pergunta Pedro.
Jesus responde unicamente:
– Não.
– Então, vamos indo para Tiberíades? –insiste Pedro que quer saber.
– Também não.
– Mas esta estrada vai para o Mar da Galileia… e lá estão Tiberíades e Cafarnaum…
– E lá está também Magdala –diz Jesus com um rosto meio sério, para tentar acalmar a curiosidade de
Pedro.
– Magdala? Oh!…
Pedro fica um pouco escandalizado, o que me faz pensar que aquela cidade tinha uma má fama.
– Vamos a Magdala. Sim. A Magdala. Julgas-te honesto demais para entrar lá? Pedro, Pedro! Por meu
amor terás que entrar não somente em cidades de prazeres, mas em verdadeiros lupanares… O Cristo não
veio para salvar os que estão salvos, mas para salvar os perdidos… e tu serás “Pedra” ou Céfas e não Simão
para isso. Tens medo de contaminar-te? Não. Nem mesmo este, estás vendo? (e mostra João na flor da
juventude), nem mesmo este vai ficar prejudicado. Ele não, porque não quer. Como também tu não queres,
nem teu irmão, nem o irmão de João… como nenhum de vós, por enquanto, quer. Enquanto não se quer, não
acontece nada de mal. Mas é preciso não querer forte e constantemente. Força e constância se adquirem do
Pai orando com sinceridade de intenções. Nem todos vós sabereis, no futuro, orar sempre assim… Que
dizes, Judas? Não confies demais em ti mesmo. Eu, que sou o Cristo, oro constantemente para ter força
contra satanás. Serás tu mais do que Eu? O orgulho é uma fenda pela qual satanás penetra. Sê vigilante e
humilde, Judas. Mateus, tu conheces bem o lugar, dize-me: será melhor entrar por este caminho, ou há
outro?
– Depende, Mestre. Se queres ir para a Magdala dos pescadores e dos pobres, o caminho é este. Pois
aqui já entraremos nos bairros populares. Mas, — eu não acho, é apenas para Te dar uma resposta
ampla — mas, se queres dirigir-te aos bairros onde estão os ricos, então é preciso deixar a estrada, daqui a
uns cem metros e tomar uma outra, porque as casas dos ricos já estão, mais ou menos a esta altura, e
teríamos que voltar atrás…
– Então, voltaremos para trás, porque é à Magdala dos ricos que Eu quero ir. Que foi que disseste,
Judas?
– Nada, Mestre. Esta é a segunda vez que me fazes esta pergunta, em pouco tempo. Mas eu nada falei,
em nenhuma das duas vezes.
– Com os lábios, não. Mas falaste, murmurando, com o teu coração. Tu murmuraste com o teu hóspede:
o coração. Não é necessário ter uma outra pessoa com quem falar, para falar. Muitas palavras nós as
dizemos a nós mesmos… Mas é preciso não cometer murmuração ou calúnia nem mesmo com o nosso
próprio eu.
183.2 O grupo caminha, agora em silêncio. A estrada, de estrada mestra se transforma em avenida, com
uma pavimentação de pedras, que têm um palmo quadrado de tamanho. Vão aparecendo as casas cada vez
mais ricas e bonitas, por entre hortas e jardins viçosos e floridos. Tenho a impressão de que a Magdala
elegante fosse para os palestinenses uma espécie de lugar de lazer, como certas pequenas cidades dos
nossos lagos lombardos: Streza, Gardone, Pallanza, Bellagio etc. etc. Aos ricos palestinenses estão
misturados os romanos, que certamente vieram de outros lugares, como Tiberíades ou Cesareia, onde, ao
redor do governador, terão estado certamente os funcionários e negociantes, a fim de exportarem para
Roma as coisas mais belas produzidas pela Colônia da Palestina.
Jesus vai indo sempre adiante, com a segurança de quem já sabe por onde deve ir. Ele vai margeando o
lago, para cujas praias estão viradas as casas com os seus jardins. Um triste coro de prantos sai de uma rica
morada. São vozes de mulheres e de crianças, e, muito aguda, uma voz feminina está gritando:
– Filho! Filho!
Jesus se volta, e olha para os seus apóstolos. Judas vai para a frente.
– Tu, não, lhe diz Jesus. Tu, Mateus. Vai e pergunta.
Mateus vai e volta:
– Uma briga, Mestre. Um homem está morrendo. É um judeu. Quem o feriu, escapou. Era um romano.
Correram para lá a mulher do ferido, a mãe dele e as crianças pequenas… Mas ele está morrendo.
– Vamos.
– Mestre… Mestre… o fato aconteceu na casa de uma mulher… que não é a mulher dele.
– Vamos!
183.3 Pela porta aberta, eles entram em um vestíbulo largo e comprido, que dá para um bonito jardim.
Parece que as divisões da casa são feitas por aquela espécie de peristilo coberto e muito rico, com plantas
verdes em vasos, com estátuas e objetos entalhados. É um conjunto de sala e jardim de inverno. Em um
quarto, cuja porta está escancarada para o lado do vestíbulo, estão mulheres chorando. Jesus entra seguro.
Não dá, porém, a sua saudação de costume.
Entre os homens que estão presentes, há um mercador que deve conhecer Jesus, porque, logo que o vê,
diz:
– É o Rabi de Nazaré –e o saúda com respeito.
– José, que aconteceu?
– Mestre, um golpe de punhal no coração… Ele está morrendo.
– Por que foi?
Uma mulher parda e despenteada se levanta — ela estava de joelhos ao lado do moribundo, cuja mão, já
inerte, ela estava segurando — e, com olhos de uma louca, ela diz com voz estridente:
– Por causa dela, por causa dela… Ela o endemoninhou… Não tinha mais mãe, nem esposa nem filhos! O
inferno te tenha, satanás!
Jesus levanta os olhos, acompanhando aquela mão, que está tremendo e acusando, e vê, num canto,
perto da parede vermelho-escura, Maria de Magdala , mais impudente do que nunca, eu diria vestida… com
nada na metade do corpo, pois está semi-nua, da cintura para cima, com uma espécie de redinha de malhas
hexagonais, com coisinhas redondas, que parecem pequenas pérolas. Mas ela está num lugar meio escuro,
e eu não a vejo bem.
Jesus torna a baixar os olhos. Maria, sentindo-se açoitada pela indiferença, levanta-se, pois estava quase
agachada, e procura tomar algum modo.
– Mulher –diz Jesus à mãe–. Não fiques praguejando. Responde-me. Para que é que o teu filho estava
nesta casa?
– Eu já o disse: Porque ela o fez ficar doido. Ela.
– Silêncio. Portanto, ele também estava em pecado, porque estava cometendo adultério, e era um pai
indigno destes inocentes. Logo, merece seu castigo. Nesta e na outra vida não há misericórdia para quem
não se arrepende. Mas Eu tenho dó da tua dor, mulher, e destes inocentes. 183.4Tua casa fica longe?
– A uns cem metros.
– Levantai o homem daí, e levai-o para lá.
– Não é possível, Mestre –diz o mercador José–. Ele está para morrer.
– Faze o que Eu mandei.
Passam uma mesa por baixo do corpo do moribundo, e o cortejo sai lentamente, atravessa a rua e entra
num jardim sombreado. As mulheres continuam a chorar rumorosamente. Logo que entram no jardim, Jesus
se vira para a mãe.
– Podes perdoar? Se tu perdoares, Deus perdoa. É preciso ficar com o coração bom, para conseguir a
graça. Este pecou e pecará ainda. Melhor para ele seria morrer, porque, se viver, tornará a cair no pecado e
deverá responder também pela falta de reconhecimento para com Deus que o salva. Mas tu e estes
inocentes (e mostra a mulher e as crianças) cairíeis no desespero. Eu vim para salvar, e não para deixar que
se percam. Homem, Eu te digo: Levanta-te e fica são.
O homem recupera a vida e abre os olhos, vê a mãe, os filhos, a mulher e, envergonhado, inclina a
cabeça.
– Meu filho, meu filho –diz a mãe–. Estavas morto, se Ele não te salvasse. Volta a ti mesmo. Não fiques
delirando por causa de uma…
Jesus interrompe as palavras da velha:
– Mulher, cala-te. Usa da misericórdia que para contigo foi usada. Tua casa está santificada pelo
milagre, que é sempre uma prova da presença de Deus. Por isso é que Eu não o pude fazer onde havia o
pecado. Procura saber, pelo menos tu, conservá-la assim, mesmo que este não o saiba fazer. Toma cuidado
dele agora. É justo que ele sofra um pouquinho. Se boa, mulher. É vós pequenos. Adeus.
Jesus pousou a mão sobre a cabeça das duas mulheres e dos pequeninos.
183.5 Depois Ele sai, passando por diante de Madalena, que acompanhou o cortejo até o limite da rua, e
ficou encostada a uma árvore. Jesus dá passos mais vagarosos como para esperar que os discípulos
cheguem, mas eu acho que Ele esteja fazendo assim para dar à Maria a oportunidade de fazer algum gesto.
Mas ela não o faz.
Os discípulos alcançam Jesus, e Pedro não pôde conter-se, sem dizer, por entre os dentes, um apelido
apropriado a Maria. Esta, querendo mostrar altivez, explode numa risada como sinal de seu muito pobre
triunfo.
Mas Jesus, tendo ouvido a palavra de Pedro, se volta, severo para ele:
– Pedro. Eu não insulto. Tu também não insultes. Reza pelos pecadores. Nada mais.
Maria interrompe o estridor de sua risada, inclina a cabeça e foge, como uma gazela, em direção de sua
casa.
184. O pequeno Benjamim de Magdala
e duas parábolas sobre o Reino dos Céus.
10 de junho de 1945.
184.1 O milagre deve ter acontecido há pouco, pois dele os apóstolos estão falando, e também os
moradores da cidade o estão comentando e mostrando uns aos outros o Mestre que vai saindo, bem
aprumado e severo, para a periferia da cidade, a parte dos pobres.
Ele para junto a uma casinha, da qual sai pulando um menino, seguido por sua mãe.
– Mulher, deixas-me entrar no teu jardim e parar um pouco nele, até que o sol perca um pouco a força
do seu calor?
– Entra, Senhor. Até para a cozinha, se quiseres. Eu Te trarei água e alguma coisa para comer.
– Não te incomodes. Basta-me ficar neste jardim sossegado.
Mas a mulher quer oferecer água misturada com não sei o quê, e depois fica dando uns giros pelo
jardim, como se estivesse desejosa de falar, mas sem coragem. Ela está olhando suas verduras, mas é uma
simulação. Na realidade, ela está olhando é para o Mestre, e fica aborrecida com o menino que, com os
seus gritos, quando consegue apanhar uma borboleta ou outro inseto, não lhe permite ouvir o que Jesus
está dizendo. Ela fica inquieta com isso e chega a dar um tapa no menino que, então, grita ainda mais forte.
Jesus, que estava respondendo ao Zelotes — (que lhe fizera a pergunta: “Achas que Maria tenha ficado
abalada com isso?”) — com estas palavras: “Bem mais do que pode vos parecer…”, vira-se e chama para
perto de si o menino, que vem correndo para chorar sobre os joelhos de Jesus.
A mãe o chama:
– Benjamim, vem cá. Não fiques incomodando os outros!
Mas Jesus diz:
– Deixa-o, deixa-o. Ele se comportará bem e te deixará sossegada.
Depois, diz ao menino:
– Não chores. A mamãe não te fez mal. Somente te fez obedecer, ou melhor, queria te fazer obedecer.
Por que é que ficavas gritando, quando ela queria silêncio? Talvez ela se sinta mal, pois os teus gritos a
incomodam.
O menino, muito esperto, e com aquela insuperável sinceridade dos meninos, que é o desespero dos
grandes, diz:
– Não. Não se sente mal. Mas queria ouvir o que estavas dizendo… Ela o disse a mim. Mas eu, que
queria vir até perto de Ti, fazia aquele barulho de propósito, para que Tu olhasses para mim.
Todos se riem, e a mulher fica muito corada.
– Não te enrubesças, mulher. 184.2Vem cá. Tu querias me ouvir falar. Por quê?
– Porque és o Messias. Não podes ser senão o Messias, com o milagre que fizeste… E eu tinha um
grande desejo de ouvir-te. Eu nunca posso ir para fora de Magdala, porque eu… tenho um marido difícil, e
cinco crianças. O mais novo está com quatro meses… e Tu nunca vens aqui.
– Eu vim, e justamente à tua casa. Como estás vendo.
– Por isso é que eu queria ouvir-te.
– Onde está o teu marido?
– No mar, Senhor. Se não se pesca, não se tem o que comer. Eu tenho apenas esta pequena horta: ela dá
para sete pessoas? Mas, assim mesmo, Zaqueu ainda quereria dizer que desse…
– Tem paciência, mulher. Todos têm a sua cruz.
– Ah! Não! As que são sem vergonha só têm o prazer. Já viste o que fazem as sem-vergonhas? Elas
gozam, e fazem sofrer. Elas não despedaçam os seus rins com o trabalho e gerar filhos, não criam bolhas
manuseando a enxada, nem esfolam suas mãos com a potassa da lixívia. Elas são bonitas, viçosas. E não são
atingidas pela condenação que Eva recebeu. Antes, são a nossa condenação, porque os homens… Tu
compreendes…
– Sim, Eu te compreendo. Mas, fica sabendo que elas também têm uma cruz pesada. E é a mais pesada.
Pois é uma cruz que não se vê. É a cruz da consciência que as reprova, do mundo, que escarnece delas, dos
que são do seu sangue, pois eles as repudiam, e de Deus que as amaldiçoa. Elas não são felizes, podes crer.
Não despedaçam seus rins na procriação, nem no trabalho, nem ficam com feridas nas mãos por trabalhar.
Mas sentem-se despedaçadas da mesma forma, e com vergonha. O coração delas é uma chaga viva. Não
tenhas inveja da aparência delas, do seu frescor, da sua aparente serenidade. Tudo isso é um véu cobrindo
uma ruína, que remorde e não dá paz. Não tenhas inveja do sono delas, tu, ó mãe honesta, que sonhas com
os teus inocentes… Elas têm o pesadelo em seus travesseiros. E amanhã, quando estiverem na agonia ou na
velhice, terão o remorso e o terror.
– É verdade. Perdoa-me… 184.3Deixas-me ficar aqui?
– Fica. Vamos contar uma bela parábola ao Benjamim, e aqueles que já não são crianças a aplicarão a si
mesmos e à Maria de Magdala. Escutai.
Em vós há uma dúvida sobre a conversão de Maria para o Bem. Nenhum sinal nela dá a entender que
ela queira dar passos nesse sentido. Descarada e desavergonhada, ela, consciente de sua posição e de seu
poder, já ousou até desafiar as pessoas, como quando foi até à soleira de uma porta, onde se estava
chorando por causa dela. A uma censura de Pedro, ela respondeu ainda com uma risada. Ao meu olhar, que
a convida, respondeu com uma atitude de soberba. Vós talvez teríeis querido, uns por amor para com
Lázaro, outros por amor para comigo, que Eu falasse a ela diretamente, numa conversa demorada com ela,
para dominá-la com o meu poder e mostrando assim a minha força de Messias Salvador. Não. Não é preciso
tudo isso. Eu o disse[31] a uma pecadora, há muitos meses. As almas devem agir por si mesmas. Eu passo,
jogando a semente. Em segredo, a semente trabalha. E a alma fica respeitada nesse trabalho. Se a primeira
semente não vingar, semeia-se uma segunda, depois outra… e só nos retiramos dali, quando tivermos
provas suficientes de que o semear ali é inútil. E se reza. A oração é como um orvalho sobre as glebas: ela
as conserva fofas e nutridas, a fim de que a semente possa germinar. Não fazes assim, mulher, com as tuas
verduras?
184.4 Agora escutai a parábola do trabalho de Deus nos corações, para fundar neles o seu Reino. Porque
cada coração é um pequeno Reino de Deus na terra. Mais tarde, depois da morte, todos esses pequenos
reinos se aglutinarão em um só, no incomensurável, santo e eterno Reino dos Céus.
O Reino de Deus nos corações é criado pelo Divino Semeador. Ele vai aos seus terrenos, — pois o
homem é de Deus e, por isso, cada homem inicialmente, é dele — e ali espalha a sua semente. Depois vai
para outros terrenos, para outros corações. Os dias vêm depois das noites, e as noites depois dos dias. Os
dias trazem sol ou chuvas e, neste caso, raios do amor divino e a efusão da Divina Sabedoria, que fala ao
espírito. As noites trazem estrelas e silêncio repousantes: em nosso caso são os chamados luminosos de
Deus e o silêncio para o nosso espírito, a fim de que a alma possa entrar em recolhimento e medite.
A semente, nessa sucessão de atos providenciais, imperceptíveis e poderosos, se incha, se fende, lança
raízes, firma-se no terreno, solta as primeiras folhinhas, e cresce. Tudo isso ela faz sem ajuda do homem. A
terra, espontaneamente, faz nascer da semente a erva, depois a erva se torna forte e capaz de sustentar a
espiga que já vem saindo; depois essa espiga se ergue, se entumece, endurece, torna-se loira, perfeita e
bem granada. Quando fica de todo madura, o semeador volta para passar-lhe a foice, porque para aquela
semente chegou o tempo da perfeição. Não poderia ela evoluir mais, e por isso é colhida.
Nos corações minha palavra faz esse mesmo trabalho. Eu falo dos corações que dão acolhida à semente.
Mas o trabalho neles é lento. É preciso não estragar tudo pelo atabalhoamento. Que esforço faz a pequena
semente para fender-se e para fincar suas raízes na terra! Até para um coração duro e selvagem, é penoso
um trabalho destes. Ela precisa abrir-se, deixa-se revirar, acolher coisas novas, cansar-se em alimentá-las,
ter aparências diferentes, porque está coberta só com coisas humildes, mas úteis, e não com as mais
atraentes, pomposas e exuberantes, que a cobriam antes. Deve contentar-se em trabalhar com humildade,
sem atrair a admiração, mas sim para o que for útil dentro do Plano divino. Deve fazer uso de todas as suas
capacidades, para crescer e formar a espiga. Deve abrasar-se de amor, para tornar-se grão. E quando,
depois de ter superado os respeitos humanos, que são tão molestos, depois de ter-se cansado e sofrido,
depois de ter-se acostumado à sua nova veste, ei-la precisando despojar-se dela, por meio de um corte sem
piedade. É dar tudo para ter tudo. Ficar despojada para ser revestida no Céu com a estola dos Santos. A
vida do pecador, que se torna santo, é o mais longo, o mais heróico e glorioso dos combates. Eu vo-lo digo.
184.5 Por tudo o que Eu vos disse, compreendei que Eu tinha que agir para com Maria, como faço. Por
ventura, foi de modo diferente que Eu agi contigo, Mateus?
– Não, meu Senhor.
– E, dize-me a verdade: o que te persuadiu foi a minha paciência, ou os ralhos severos dos fariseus?
– Foi a tua paciência, tanto que eu aqui estou. Os fariseus, com seus desprezos e seus anátemas, me
tornavam desdenhoso e, por desdém, eu fazia ainda mais mal, do que tudo o que eu havia feito até então.
Isto é o que acontece. Ficamos mais enrijecidos quando, estando em pecado, ouvimos que nos chamam de
pecadores. Mas quando, em vez de um insulto, recebemos uma carícia, ficamos atordoados e depois
choramos… e, quando se chora, a couraça do pecado cede e se desfaz. Ficamos, então, nus diante da
Bondade, e suplicamos, com todo o coração, que nos cubra com Sua veste.
– Disseste bem. 184.6Benjamim, gostaste da história? Sim? Muito bem. E a mamãe onde está?
Quem responde é Tiago de Alfeu:
– Ela saiu, no fim da parábola, e foi correndo por aquela estrada.
– Terá ido ao mar, para ver se vem vindo o seu esposo –diz Tomé.
– Não. Ela foi à casa da vovó buscar meus irmãozinhos. Mamãe os leva para lá, a fim de poder
trabalhar –diz o menino, que está apoiado, muito confiadamente, nos joelhos de Jesus.
– E tu estás aqui, homem? Deves ser uma bela víbora, para estares aqui sozinho –observa Bartolomeu.
– Eu sou o mais velho, e já a ajudo…
– Tu a ajudas a ganhar o Paraíso, coitada dela! Quantos anos tens? –pergunta Pedro.
– Dentro de três anos, serei filho da Lei –diz, todo ufano, o menino.
– Sabes ler? –pergunta Tadeu.
– Sim… mas leio devagar, porque… porque o mestre me põe para fora todos os dias…
– Bem que eu dizia –diz Bartolomeu.
– Mas eu faço assim, porque o mestre é velho e feio, e diz sempre as mesmas coisas, e faz a gente
dormir! Se fosse como Ele (e mostra Jesus), eu prestaria atenção. Tu também bates em quem está dormindo
ou brincando?
– Eu não bato em ninguém. Mas digo aos meus alunos: “Ficai bem atentos, para o vosso bem e por amor
de Mim” –responde Jesus.
– Aí. Assim, sim. Por amor, sim. Mas não por medo.
– Mas, se tu te tornares bom, o mestre te quererá bem.
– Tu só queres bem a quem é bom? Há pouco disseste que tiveste paciência com este aqui, que não era
bom…
A lógica do menino é muito exigente.
– Eu sou bom para com todos. Mas, quem procura tornar-se bom é muito, muito amado por Mim e com
ele Eu sou bom, muito bom.
O menino fica pensando… depois levanta a cabeça e pergunta a Mateus:
– Como foi que fizeste para te tornares bom?
– Eu quis bem a ele.
184.7 O menino pensa ainda, depois olha os doze, e diz a Jesus:
– Todos estes são bons?
– Certamente que o são.
– Tens certeza disso? Algumas vezes eu quero passar por bom, mas é quando quero “aprontar” alguma
arte bem grande.
Todos soltam uma fragorosa risada. Ri-se também o homenzinho, que está quase se confessando. Ri-se
também Jesus, que o aperta contra o coração e o beija.
O menino, já muito amigo de todos, quer brincar, e diz:
– Agora eu vou dizer-te quem aqui é bom –e começa a sua escolha.
Olha para todos, e vai direto a João e André, que estão mais perto dele, e diz:
– Tu e tu. Vinde cá.
Depois, separa os dois Tiagos e os ajunta aos dois já separados. Em seguida separa Tadeu. Fica muito
tempo pensativo, diante de Zelotes e de Bartolomeu, e diz:
– Sois velhos, mas sois bons –e os ajunta aos outros.
Olha para Pedro, que está passando por aquele exame e está fazendo uns esgares com os olhos, e o acha
bom. Também Mateus passa pelo exame, e assim Filipe. A Tomé ele diz:
– Você ri muito. Eu estou falando sério. Não sabes que meu mestre diz que quem fica sempre rindo, erra
na hora da prova?
Mas, afinal, Tomé também passa, com nota baixa, mas passa no exame. Depois o menino volta para
Jesus.
– Ei, moleque. Aqui estou eu. Eu não sou uma árvore. Sou jovem e belo. Por que não me examinas? –diz
Iscariotes.
– Porque não me agradas. Mamãe diz que, quando uma coisa não nos agrada, não devemos tocar nela.
Deixamo-la sobre a mesa, e que a apanhem outros, que talvez gostem dela. E ela diz também que, se
alguém nos oferece uma coisa de que não gostamos, não se deve dizer: “Não me agrada”, mas se diz:
“Obrigado, não estou com fome.” Eu não tenho fome de ti.
– Mas, como? Olha, se disseres que eu sou bom, eu te darei esta moeda.
– Que é que eu vou fazer com ela? Que é que eu vou comprar com uma mentira? Mamãe diz que o
dinheiro, conseguido com enganos, vira palha. Uma vez eu consegui, com uma mentira, que minha avó me
desse uma didracma para eu comprar umas fogaças com mel, e de noite a moeda virou palha. Eu a tinha
colocado ali naquele buraco, por baixo da porta, para apanhá-la no outro dia, pela manhã, mas lá só
encontrei um punhado de palha.
– Mas, porque é que não sou bom? Que é que eu tenho? O pé rachado? Serei tão feio assim?
– Não. Tu me causas medo.
– Mas, por quê? –pergunta Iscariotes, aproximando-se dele.
– Eu não sei. Deixa-me. Não me toques ou eu vou te arranhar.
– Que porco espinho! Está louco.
Judas ri mal.
– Não louco. Tu és mau –e o menino vai refugiar-se no colo de Jesus, que o acaricia sem dizer nada.
Os apóstolos conversam sobre o acontecido, que não é de bom augúrio para Iscariotes.
184.8 Nesse ínterim, vem vindo uma mulher com uma dúzia de pessoas, e depois vêm chegando outras, e
mais outras.
Já serão umas cinquenta. Todas pobres.
– Falarias a estas pessoas? Pelo menos um pouquinho. Esta é a mãe do meu marido, e estes são os meus
filhos. Aquele homem ali é o meu marido. Fala uma palavra, Senhor –suplica-lhe a mulher.
– Sim. Para agradecer-te a hospitalidade, Eu a direi.
A mulher entra em casa, onde seu filhinho de peito está reclamando dela o que precisa, e ela se assenta
sobre a soleira da casa para dar-lhe de mamar.
– Ouvi. Aqui sobre os meus joelhos, estou com um menino, que falou, há pouco, com muita sabedoria.
Ele disse: “Todas as coisas obtidas por meio de enganos se tornam palha.” Foi sua mamãe que lhe ensinou
esta verdade.
Não é fábula. É verdade eterna. Nunca se sai bem quem age sem honestidade. Porque a mentira nas
palavras, nos atos, na religião, é sempre sinal de aliança com satanás, mestre da mentira. Não acrediteis
que as obras feitas para conseguir o Reino dos Céus sejam obras espetacularmente vistosas. Mas são atos
contínuos e comuns, feitos com um fim sobrenatural de amor. O amor é a semente da planta que, nascendo
em vós, cresce até o Céu, e na sombra dela nascem todas as outras virtudes. Eu a compararei a um
pequenino grão de mostarda. Como é pequenino! É uma das menores sementes que o homem semeia. E, no
entanto, olhai como, depois que a planta cresceu, se torna forte e viçosa, e quantos frutos produz. Não cem
por cento, mas cem por um. É a menor. Mas é a mais diligente para trabalhar. Quantas vantagens ela vos
traz.
Assim é o amor. Se vós encerrásseis em vosso seio uma semente de amor para com o vosso Santíssimo
Deus e para com o vosso próximo e, sob a guia do amor, fizesseis as vossas orações, nunca ficaríeis contra
nenhum preceito do Decálogo. Não mentiríeis a Deus com uma falsa religião de práticas e não de espírito.
Não mentiríeis ao próximo com uma conduta de filhos ingratos, de esposos adúlteros, ou também exigentes
demais, de ladrões nos negócios, de mentirosos na vida, de violentos para com quem é vosso inimigo. Olhai,
nesta hora de calor, quantos passarinhos vieram refugiar-se por entre os ramos deste jardim. Daqui a
pouco, aquele sulco de mostardas, que por enquanto estão pequenas, será um chilreio só. Todos os
passarinhos virão para a proteção e a sombra daquelas plantas tão viçosas e agasalhadoras, e os filhotes
dos passarinhos aprenderão a treinar suas asas, justamente no meio daquela ramalhada, que lhes serve de
escada e de rede, para subirem e para não caírem. Assim é o amor, a base do Reino de Deus.
Amai e sereis amados. Amai e tereis compaixão. Amai e não sereis cruéis, querendo mais do que é lícito
de quem depende de vós. Amor e sinceridade para obter a paz e a glória dos Céus. Do contrário, como disse
Benjamim, toda a vossa ação praticada, enquanto estais mentindo ao amor e à verdade, mudar-se-à para
vós em palha para ser a vossa cama no Inferno. Não vos digo outras coisas. Só vos digo isto: tende sempre
presente o grande preceito do amor e sede fiéis a Deus Verdade e à verdade em todas as vossas palavras,
atos e sentimentos, porque a verdade é filha de Deus. Um contínuo trabalho em vosso aperfeiçoamento,
assim como a semente continuamente cresce, até chegar à sua perfeição. É um trabalho feito no silêncio, na
humildade, com paciência. Ficai certos de que Deus vê as vossas lutas e vos premia mais por um egoísmo
vencido, por uma palavra profana retida, por uma exigência não imposta, do que se estivésseis numa
batalha, matando o inimigo. O Reino dos Céus, do qual sereis possuidores, se viverdes como justos, é
construído com as pequenas coisas de cada dia. Com a bondade, com a moderação, com a paciência, com o
contentar-vos com o que tendes, com a tolerância recíproca, com o amor, o amor, o amor.
Sede bons. Vivei em paz uns com os outros. Não murmureis. Não julgueis. Deus, então estará convosco.
Eu vos dou a minha paz, como bênção e como agradecimento pela fé que tendes em Mim.
184.9 Depois, Jesus se vira para a mulher, e diz:
– Deus abençoe particularmente a ti, porque és uma santa mulher e uma santa mãe. Persevera na
virtude. Adeus, Benjamim. Sê sempre amante da verdade, e obedece à tua mãe. Abençôo a ti e aos teus
irmãozinhos, e a ti, mãe.
Um homem vem para a frente. Ele está confuso, e gagueja.
– Mas, mas… estou comovido por tudo o que disseste de minha mulher… Eu não sabia.
– Não tens olhos e intelecto, talvez?
– Tenho.
– Por que não fazes uso deles? Queres que Eu os desanuvie?
– Já fizeste isso, Senhor. Mas eu quero bem a ela, sabes? É que a gente se habitua… e… e…
– E pensa que seja permitido pretender demais, porque o outro é melhor do que nós. Não faças mais
isso. Estás sempre em perigo com o teu ofício. Não tenhas medo de tempestades, se Deus estiver contigo.
Mas, se for a injustiça que está contigo teme fortemente. Compreendeste?
– Mais do que disseste. Eu vou procurar obedecer-te… Eu não sabia… –e olha para a sua mulher, como
se a estivesse vendo pela primeira vez.
Jesus abençoa e sai pela pequena estrada. E toma o caminho que vai para a campina.
[31] Eu o disse, em 79.6.
185. A tempestade acalmada
Um ensinamento no fato antecedente.
30 de janeiro de 1944.
[…].
185.1 Agora que todos estão dormindo, eu vou lhe contar a minha alegria.
Eu “vi” o Evangelho de hoje. Imagine que esta manhã, ao lê-lo, eu disse a mim mesma: “Eis um episódio
evangélico que eu nunca chegarei a ver, porque ele pouco se presta para ser objeto de uma visão.” Ao
contrário, quando menos eu estava pensando nele, justamente ele é que veio encher-me de alegria.
185.2 Eis aqui o que vi.
Um barco à vela, não grande demais, mas também não pequeno, um barco de pesca, dentro do qual
poderiam comodamente mover-se cinco ou seis pessoas, vai sulcando as águas de um belo lago de uma cor
azul intensa.
Jesus está dormindo na popa. Está vestido de branco, como de costume. Está com a cabeça encostada no
braço esquerdo e, por baixo do braço e da cabeça, colocou o seu manto azul-escuro, dobrado em muitas
dobras. Está sentado (não deitado) no fundo do barco, apoiando a cabeça naquela parte do tablado, que fica
na extremidade da popa. Não sei que nome lhe dão os marinheiros. Dorme tranquilamente. Está muito
cansado. Está tranquilo.
Pedro está no timão, André se encarregou das velas, João e mais dois outros, que eu não sei quem são,
estão pondo em ordem as amarras e as redes no fundo do barco, como se tivessem a intenção de preparar-
se para uma pesca, talvez à noite. Eu diria que já está chegando a tarde, pois o sol já vai descendo no
ocidente. Os discípulos todos estão com as suas túnicas sungadas, fazendo que elas fiquem parecendo
bolsas ao redor da cintura, presas por meio de um cinto, a fim de que eles possam ficar mais livres em seus
movimentos,e para poderem passar para cá e para lá pelo barco, por cima dos remos e dos bancos, dos
cestos e das redes, sem que as vestes os estorvem. Todos tiraram os seus mantos.
185.3 Vejo que o céu está escurecendo e que o sol vai-se escondendo atrás de nuvens negras de temporal,
que apareceram de repente, surgindo por detrás da extremidade de uma colina. O vento as impele
velozmente para o lago. Por enquanto, o vento está alto e o lago ainda se conserva tranquilo, só que vai
ficando mais escuro e sua superfície começa a enrugar-se. Ainda não se formaram ondas, mas as águas já
começam a encrespar-se.
Pedro e André observam o céu e o lago e predispõem as manobras para o acostamento à margem.
Mas o vento irrompe sobre o lago e, em poucos minutos, tudo ferve e espuma. São ondas, que se chocam
umas contra as outras, que batem contra o barco, levam-no até o alto e o tornam a baixar, torcem-no para
todos os lados, impedem as manobras com o timão, ao mesmo tempo que o vento não deixa que se possa
fazer uso da vela, que é arriada.
Jesus dorme. Nem os passos dos apóstolos, nem suas vozes excitadas, e nem mesmo o chocar-se das
ondas contra os lados e a proa, conseguem despertá-lo. Seus cabelos esvoaçam ao vento e alguns borrifos
de água o atingem. Mas Ele dorme. João, da proa, vai correndo até a popa e o cobre com seu manto, que ele
tirou de debaixo do tablado. E o cobre com um delicado amor.
A tempestade se torna cada vez mais perigosa. O lago está escuro, como se nele se tivesse derramado
tinta, estriado pela espuma das ondas. O barco começa a encher-se de água e cada vez mais e é empurrado
pelo vento para o mar alto. Os discípulos suam nas manobras e no jogar fora do barco a água que as ondas
nele despejam. Mas nada adianta. Chapinham com suas pernas até a metade dentro d’água e a barca vai
ficando cada vez mais pesada.
185.4 Aí Pedro perde a calma e a paciência. Entrega a seu irmão o timão e, cambaleando, vai até Jesus, e o
sacode vigorosamente.
Jesus acorda e levanta cabeça.
– Salva-nos, Mestre, estamos para perecer! –lhe grita Pedro (é preciso gritar para se fazer ouvir).
Jesus olha fixamente para o seu discípulo, olha para os outros, e depois olha para o lago.
– Crês que Eu vos possa salvar?
– Vamos logo, Mestre –grita Pedro, enquanto uma verdadeira montanha de água, que veio lá do centro
do lago, se dirige velozmente para o pobre barco. Parece mais uma tromba d’água, de tão alta e espantosa
que é.
Os discípulos, que a estão vendo chegar, se ajoelham e se agarram onde e como podem, certos de que já
chegou o seu fim.
Jesus se levanta. Fica de pé sobre o tablado da proa. É uma figura toda de branco sobre a cor de
chumbo da tempestade. Ele estende os braços para o vagalhão, e diz ao vento:
– Firma-te e cala-te
E à água:
– Aquieta-te. Eu o quero.
E o vagalhão se desfaz em espuma, que cai sem fazer nenhum mal, dando um último rugido, que vai se
atenuando até tornar-se um leve murmúrio, enquanto que o vento se transformava em um assobio e, depois,
num último suspiro. E, sobre o lago, agora em paz, volta a serenidade do céu, a esperança e a fé nos
corações dos discípulos.
Não posso descrever a majestade de Jesus. É necessário vê-la para a compreender. Com alegria a
contemplo em meu interior, porque me está presente neste momento e fico pensando como era tranquilo
aquele sono de Jesus e quão poderoso o seu império sobre os ventos e as ondas!
185.5 Jesus diz depois:
– Eu não comento para ti o Evangelho, no sentido em que todos o comentam. Eu te esclareço sobre o
que vem antes da passagem evangélica. Por que é que Eu estava dormindo? Será que Eu não sabia que a
borrasca estava para desabar? Sim, Eu o sabia. Só Eu o sabia. E, então por que dormia?
Os apóstolos eram homens, Maria. Animados de boa vontade, mas ainda tão “homens.” O homem se crê
sempre capaz de tudo. E, quando ele é realmente capaz de uma coisa, age com uma conduta muito briosa e
arrogante, confiando em sua “capacidade.” Pedro, André, Tiago e João eram bons pescadores e, por isso, se
julgavam insuperáveis nas manobras como marinheiros. Eu para eles era um grande Rabi; mas, como
marinheiro, era um nada.
Por isso Me julgavam incapaz de ajudá-los e, quando subiam ao barco, para atravessar o Mar da Galileia,
me pediam sempre que ficasse sentado, pois Eu não era capaz de fazer nenhuma outra coisa. É verdade que
também o afeto deles era causa disso, porque não queriam que Eu me cansasse em trabalhos braçais. Mas
a arrogância deles por sua capacidade superava até o seu afeto. Eu não me imponho, Maria, a não ser em
casos excepcionais. Geralmente, Eu vos deixo livres, e espero. Naquele dia, cansado e tendo-me eles
sugerido que descansasse, isto é,que deixasse que eles fizessem as manobras, pois eles tinham tanta
prática, então Eu me pus a dormir. Ao meu sono estava misturada também a constatação de como o homem
é “homem” e quer fazer tudo por si mesmo, sem perceber que Deus nada pede, a não ser ajudá-lo. Eu via
naqueles “surdos espirituais”, naqueles “cegos espirituais” todos os surdos e cegos do espíritos, que,
através de séculos e mais séculos, se arruinariam “por quererem fazer tudo por si mesmos”, quando eles
tinham a Mim, inclinado sobre as necessidades deles, à espera de ser chamado por eles, para ajudá-los.
Quando Pedro gritou: “Salva-nos!”, minha angústia cessou, como cai uma pedra que se solta no ar. Eu
não sou “homem”, sou o Deus-Homem. Não atuo como vós atuais. Vós, quando alguém rejeitou vosso
conselho ou vossa ajuda, e o vedes depois em dificuldades, ainda que não sejais tão maus para vos
alegrardes com aquilo, sempre o sois para ficardes desdenhosamente indiferentes olhando para ele, sem
vos comoverdes com o seu grito de ajuda
E, com este modo de proceder, vós lhe estais querendo dizer: “Quando eu queria te ajudar, tu não o
quiseste? Pois agora, vira-te!” Mas Eu sou Jesus. Sou o Salvador. E, de fato, Eu salvo, Maria. Salvo sempre,
mal Me invocam.
185.6 Os pobres homens poderiam objetar: “E então, por que permites que se formem tempestades
isoladas ou generalizadas?”
Se Eu, com o meu poder destruísse o Mal, qualquer que ele fosse, vós chegaríeis a acreditar que sois
autores do Bem, o que na realidade seria um dom meu, e nunca mais vos lembraríeis de Mim. Nunca mais.
Tendes necessidade da dor, ó meus pobres filhos, para fazer-vos lembrar de que tendes um Pai. Foi assim
que aconteceu com o filho pródigo, que só se lembrou de que tinha um pai, quando a fome o afligiu.
As desventuras servem para que persuadidos do vosso nada: da vossa insensatez, que é a causa de
tantos erros, da vossa maldade, que é causa de tantos lutos e dores; das vossas culpas, causa de punição,
que dais a vós mesmos; e da Minha existência, do meu poder e da Minha bondade. Isto é o que vos diz o
Evangelho de hoje. É o “vosso” Evangelho da presente hora, meus pobres filhos.
Chamai-Me. Jesus só dorme quando está angustiado, ao ver-se não amado por vós. Chamai-Me e virei.
[…].
186. Os dois endemoninhados da região dos Gerasenos.
11 de junho de 1945.
186.1 Aqui vai colocada a visão da tempestade acalmada, tida a 30 de janeiro de 1944. Depois a seguinte
visão.

186.2 Jesus, tendo atravessado o lago de noroeste para sudeste, recomenda a Pedro que faça o
desembarque perto de Hipos. Pedro obedece sem discutir, descendo com a barca até a foz de um riozinho,
que a primavera e o último temporal fizeram que ficasse cheio e barulhento, e que desemboca no lago,
passando por uma garganta áspera e rochosa, como é a costa toda nesta região. Os empregados cuidam da
segurança das barcas — há um deles em cada barca — e recebem a ordem de ficarem esperando até a
tarde, para voltarem a Cafarnaum.
– E ficai como peixes com quem vos interroga –aconselha Pedro–. A quem vos perguntar onde está o
Mestre, respondei firmes: “Eu não sei.” E a quem quiser saber para onde Ele foi, dizei o mesmo. Tudo é
verdade. Vós não sabeis.
Separam-se, e Jesus começa a subida por um íngreme caminho, que cada vez mais se eleva, por entre os
rochedos, até ficar quase a pino. Os apóstolos o acompanham por aquele caminho difícil, até chegarem ao
alto da escarpa, que se estende por um planalto coberto de carvalhos, debaixo dos quais muitos porcos
estão pastando.
– Que animais fedorentos! –exclama Bartolomeu–. Eles nos impedem a passagem…
– Não. Não nos impedem. Há lugar para todos –responde calmamente Jesus.
Afinal, os guardas dos porcos, vendo os israelitas, procuram juntar os animais debaixo dos carvalhos,
deixando livre o caminho. E os apóstolos passam, fazendo mil caretas, por entre as sujeiras deixadas pelos
porcos, que estão continuamente fuçando, já bem gordos e procurando engordar ainda mais.
Jesus passou, sem conversar com ninguém, mas apenas dizendo aos pastores da manada:
– Deus vos pague por vossa gentileza.
Os guardas, pobre gente pouco menos suja do que os seus porcos, mas, em compensação, muito mais
magra do que eles, estão olhando, espantados, o que está acontecendo e depois cochicham entre eles. Um
deles diz:
– Não é israelita?
E a isto os outros respondem:
– Não estás vendo as vestes com franjas?
O grupo dos apóstolos se reúne, agora que todos já podem andar em grupo, indo por uma vereda bem
mais larga.
186.3 O panorama é muito bonito. Elevado umas poucas dezenas de metros acima do lago, permite que se
veja todo o espelho d’água, com as cidades espalhadas pelas margens. Tiberíades se distingue por suas
belas construções, bem em frente do lugar em que se acham os apóstolos. Abaixo daqui, aos pés da escarpa
basáltica, a pequenina praia mais parece uma pequena almofada de verdura, enquanto que, na margem
oposta, de Tiberíades até a desembocadura do Jordão, há uma planície bastante ampla e pantanosa, por
causa das águas do rio, — que parece a custo retomar a correnteza, depois de ter parado no lago, — mas,
de tal modo cheia de todas as ervas e moitas nos lugares mais pantanosos, e de tal modo povoada por
pássaros aquáticos das mais variadas cores, como se estivessem recobertos de jóias, que, ao olhar para
aquele lugar, mais parece um jardim. Os pássaros levantam vôo do meio das ervas e dos caniços, e vão por
sobre o lago, mergulham aqui e ali para arrancarem das águas algum peixe, levantam-se em seguida mais
brilhantes, porque a água limpou e reavivou as cores de suas penas, e voltam para a planície florida, sobre
a qual o vento está brincando de fazer aparecer as cores dela. Por aqui já há bosques de carvalhos muito
altos, debaixo dos quais a erva é macia e cor de esmeralda e, para lá desta faixa de bosques, o monte torna
a subir do outro lado de um grande vale, fazendo um íngreme cocuruto rochoso, sobre o qual estão
incrustadas as casas, construídas sobre os degraus de pedra. Creio que o monte forme um todo com seus
muros, servindo suas cavernas como moradias, uma mistura de cidade de trogloditas e de cidade comum.
É característica, com esta subida para os patamares, para os quais o telhado das casas do patamar
inferior fica à altura da entrada térrea das casas do patamar superior. Dos lados, por onde o monte é mais
íngreme, tão íngreme que nele nenhuma construção pode ser feita, há cavernas, fendas profundas e
descidas que se inclinam para o vale. Em tempos de aguaceiros, aquelas descidas devem tornar-se outras
tantas pequenas e lindas torrentes. Pedras de todos os tamanhos, roladas para o vale pelos aluviões,
formam um caótico pedestal para o pequeno monte, tão áspero e selvagem, corcovado e petulante, como
um senhor que quer ser respeitado a todo custo.
– Aquela não será Gamala? –pergunta Zelotes.
– Sim, é Gamala. Tu a conheces? –diz Jesus.
– Eu estive lá, quando eu estava fugitivo em certa noite, já faz muito tempo. Depois veio a lepra, e eu
não saí mais dos sepulcros.
– Até aqui foste perseguido? –pergunta Pedro.
– Eu estava vindo da Síria, para onde tinha ido em busca de proteção. Mas me descobriram e somente a
fuga para estas terras me podia livrar de ser capturado. Depois, fui descendo devagar, mas sempre
ameaçado, cheguei ao deserto de Tecué, e de lá — já leproso — fui para o vale dos mortos. Assim a lepra me
livrou dos inimigos…
– Eles eram pagãos, não é? –pergunta Iscariotes.
– Quase todos. Poucos hebreus para os negócios, e depois uma mistura de crenças, ou de
incredulidades, para dizer tudo. Mas eles não foram maus para com o fugitivo.
– Lugares de bandidos! Que gargantas! –exclamam muitos.
– Sim. Mas, podeis acreditar que mais bandidos há do outro lado
–diz João, ainda impressionado com a prisão do Batista.
– Do outro lado há bandidos, mesmo entre aqueles que querem levar nome de justos –termina o seu
irmão.
186.4 Jesus toma a palavra:
– No entanto, vamos nos aproximando deles, sem sentirmos arrepios. Ao passo que vós virastes para o
outro lado os vossos rostos, porque tínheis que passar pelo meio daqueles animais.
– Mas eles são imundos…
– O pecador o é muito mais. Os animais são feitos assim e não são culpados de o serem. Mas o homem
sim é responsável por tornar-se imundo com o pecado.
– Mas, então, por que é que por nós foram classificados como animais imundos[32]? –pergunta Filipe.
– Já uma vez fiz menção disso. Nessa ordem há uma razão sobrenatural, e outra natural. A primeira é
para ensinar ao povo eleito a saber viver, tendo sempre presente a lembrança de sua eleição e a dignidade
do homem, até mesmo em uma ação comum, como o comer. O homem selvagem come de tudo. Basta
encher a barriga. O homem pagão, mesmo que não seja um selvagem, também come de tudo, sem pensar
que a alimentação exagerada e refinada fomenta vícios e tendências que aviltam o homem. Os pagãos
chegam até a se deixarem levar a este frenesi de prazer que, para eles, é quase uma religião.
Os mais cultos entre vós sabem das festas obscenas em honra dos deuses deles e que degeneram em
uma orgia de libidinagem. O filho do povo de Deus deve saber conter-se e, na obediência e na prudência,
aperfeiçoar-se a si mesmo, tendo sempre presente a sua origem e o seu fim: Deus e o Céu.
A razão natural nos diz que não devemos excitar o sangue com alimentos que conduzem a calores
indignos do homem, ao qual não se nega que possa ter um amor, até carnal, mas ele deve temperá-lo
sempre com o frescor da alma, que tende para o Céu, e fazer, por isso, um amor, e não uma sensualidade,
daquele sentimento que une o homem à companheira, na qual ele deve ver a sua semelhante, e não uma
fêmea. Mas os pobres animais não são culpados de serem porcos, nem dos efeitos que a carne dos porcos
pode, a longo prazo, produzir no sangue. Menos culpados ainda, são os homens que tomam conta dos
porcos. Se forem honestos, que diferença haverá, na outra vida, entre estes e o escriba que vive inclinado
sobre os livros, mas que, infelizmente, não aprende, por meio deles, a ser bom? Em verdade, Eu vos digo,
que veremos guardadores de por cos entre os justos, e escribas entre os injustos. 186.5Mas que
desmoronamento é este?
Todos se afastam daquele lado do monte, porque pedras e terriço vêm rolando ou dando saltos pelo
declive e, assombrados, olham em torno de si.
– Eis, Eis! Eis lá! Dois… completamente nus… eles vêm vindo para nós, e gesticulam. São doidos…
– Ou endemoninhados –responde Jesus a Iscariotes, que viu primeiro os dois possessos que vinham vindo
para Jesus.
Eles devem ter saído de alguma das cavernas do monte. Estão urrando. Um deles, mais rápido na
corrida, se precipita sobre Jesus. Parece um passarão estranho, despojado de penas, de tão ágil que é, e faz
com os braços movimentos de vôo, como se seus braços fossem asas. E vem cair aos pés de Jesus, gritando:
– Quem és Tu, ó Dono do Mundo? Que tenho que fazer contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Terá já
chegado a hora do nosso castigo? Por que vieste atormentar-nos antes do tempo?
O outro endemoninhado, ou porque estivesse privado da fala, ou porque possuído por um demônio que o
faz ficar lerdo, não faz nada mais do que jogar-se de bruços e ficar chorando baixinho e depois, tendo ido
sentar-se, fica como se fosse inerte, entretendo-se com as pedras e com seus pés desnudos. O demônio
continua a falar pela boca do primeiro, que se contorce no chão, em um paroxismo de terror. Dir-se-ia que
ele quer reagir, mas não pode fazer outra coisa senão adorar, atraído e, em seguida, repelido pelo poder de
Jesus. Ele urra:
– Eu Te conjuro em nome de Deus, para de me atormentar. Deixa-me ir embora!
– Sim. Mas para fora deste homem. Espírito imundo, sai deles, e dize-me o teu nome.
– Legião é o meu nome, porque somos muitos. Dominamos estes, há muitos anos e, por meio deles,
arrebentamos laços e correntes, e não há força humana que possa com os dois. Eles são um terror por
causa de nós, que deles nos servimos para blasfemar contra Ti. Neles nós nos vingamos do teu anátema.
Rebaixamos o homem abaixo das feras, para zombarmos de Ti, e não existe lobo, nem chacal ou hiena, nem
abutre ou vampiro semelhante a estes, que são dominados por nós. Mas, não nos expulses. O inferno é
horrível demais!…
– Saí! Em nome de Jesus, saí!
Jesus tem uma voz de trovão e seus olhos dardejam esplendores.
– Deixa-nos pelo menos entrar[33] naquela manada de porcos, que encontraste lá atrás.
– Ide.
Com um urro infernal os demônios se separam dos dois infelizes e, por entre um repentino turbilhão de
vento, que faz os carvalhos balançarem como se fossem frágeis hastes, caem sobre aquele grande número
de porcos que, com estridores verdadeiramente demoníacos, põem-se a correr, endemoninhados que estão,
chocando-se uns com os outros, ferindo-se, mordendo-se e, enfim, precipitando-se no lago quando, tendo
chegado ao cume do alto rochedo, não encontram mais nenhum outro lugar para nele se refugiarem, a não
ser na água, que está lá em baixo. Enquanto isso, os guardas dos porcos, profundamente perturbados e
desolados urram de espanto, e os animais, em número de várias centenas vão, em precipitações sucessivas,
caindo nas águas tranquilas, agitando-as e transformando-as em uma fervura de espumas, e vão-se
submergindo aqui e flutuando, pondo à mostra suas barrigas redondas e seus focinhos pontudos, com uns
olhos cheios de terror e, por fim, se afogam.
Os pastores, urrando ainda, correm para a cidade.
186.6 Os apóstolos, depois de terem ido ao lugar da calamidade, voltam dizendo:
– Não se salvou nenhum. Prestaste a eles um feio serviço!
Jesus, com calma, responde:
– É melhor que morram dois mil porcos do que um só homem. Arranjai umas vestes a estes. Não podem
ficar assim.
O Zelotes abre um saco e dá uma de suas vestes. Tomé dá a outra. Os dois estão ainda um pouco
aturdidos, como se tivessem acabado de sair de um sono pesado, cheio de pesadelos.
– Dai-lhes alimento. Que voltem a viver como homens.
E, enquanto os dois comem pão com azeitonas que lhes é dado e bebem do frasco de Pedro, Jesus os
observa.
Finalmente, falam:
– Quem és Tu? –diz um deles.
– Jesus de Nazaré.
– Não te conhecemos, diz o outro.
– Mas a vossa alma me conheceu. Levantai-vos agora e ide para as vossas casas.
– Temos sofrido muito, penso eu, mas não me lembro bem. Quem é este? –diz o que falava por meio do
demônio, e mostra seu companheiro.
– Eu não sei. Ele estava contigo
– Quem és? E por que estás aqui –pergunta ao companheiro.
O que tinha estado como mudo e que ainda é o mais lerdo, diz:
– Eu sou Demétrio. Aqui é Sidon?
– Sidon está à beira do mar, homem. Aqui estás do outro lado do lago da Galileia.
– E por que estou aqui?
Ninguém pode dar uma resposta.
186.7 Vêm chegando umas pessoas, acompanhadas pelos pastores. Parecem cheias de medo e curiosas.
Mas, ao verem os dois já vestidos e bem dispostos, seu assombro aumenta.
– Aquele é Marcos de Josias. E aquele é filho do mercador pagão!…
– E aquele é o que os curou e fez perecer os nossos porcos porque os demônios entraram neles –dizem
os guardas dos animais.
– Senhor, Tu és poderoso, nós o reconhecemos. Mas já nos fizeste mal demais. Foi um prejuízo de muitos
talentos. Vai-te embora, nós te pedimos, e que o teu poder não vá fazer que se rache o monte, e que ele se
afunde no lago. Vai-te embora…
– Eu vou. Eu não me imponho a ninguém –e Jesus volta pelo caminho já feito, sem discutir.
Acompanham-no, indo atrás dos apóstolos, o endemoninhado que falava. Atrás, a certa distância, muitos
cidadãos, para verem se parte realmente.
186.8 Vão andando de novo pelo caminho íngreme e voltam à foz do riozinho, perto das barcas. Os
habitantes da cidade ficam na beira, olhando. O que ficou livre vai descendo, atrás de Jesus.
Nas barcas os empregados estão aterrorizados. Eles viram a chuva dos porcos caindo no lago, e ainda
estão vendo os corpos que vão boiando, sempre em maior número, cada vez mais inchados, com suas
barrigas redondas viradas para cima e suas patas curtas, ressecadas como quatro estacas fincadas em uma
grande bexiga cheia de gordura.
– Mas, que foi que aconteceu? –perguntam eles.
– Depois, vo-lo diremos. Agora, soltai as barcas, e vamos… Para onde, Senhor? –pergunta Pedro.
– Para o golfo de Tariqueia.
O homem, que os acompanhou, agora que os está vendo subir para as barcas, suplica:
– Leva-me contigo, Senhor.
– Não. Vai para tua casa; os teus têm o direito de te verem. E conta a eles as grandes coisa que te fez o
Senhor e como Ele teve dó de ti. Essa gente do território precisa ter fé. Acende as chamas da fé, em
reconhecimento para com o Senhor. Vai. Adeus.
– Conforta-me pelo menos com a tua bênção, e que o demônio não se apodere de mim outra vez.
– Não tenhas medo. Se não queres, ele não virá. Mas Eu te abençôo. Vai em paz.
As barcas se afastam da beira, indo em direção do leste para oeste. Somente agora, enquanto vão
fendendo as ondas cobertas pelas vítimas suínas, é que os habitantes da cidade que não quiseram o Senhor
se retiram da beira, e vão-se embora.
Aqui no verso está a figura do lugar[34].
[32] imundos são ditos dos porcos em: Levítico 11,7; Deuteronômio 14,8. (É de observar o propósito, o batibecco em 292.1). A classificação dos animais
puros e daqueles impuros, com as relativas prescrições, está em: Gênesis 7,2-3; Levítico 11; Deuteronômio 14,3-21.
[33] Deixa-nos pelo menos entrar… O pedido interessante será interpretado com ingenuidade por Pedro em 203.3.
[34] figura do lugar, que MV desenhou na página seguinte, última do caderno manuscrito, e que reproduzimos na página a seguir. Os nomes das cidades
em torno do lago, circulando da esquerda para a direita, são Tariquea, Tiberíades, Mágdala, Carfanaum, Betsaida, Gerguesa, Ippo. Ao sul de Ippo, depois do
pequeno rio, estão assinalados o Lugar de desembarque no lago e Gamala, no interior. Entre aquele e esta estão os pontinhos, assim justificados em ca: O
lugar pontilhado são os bosques de carvalhos. Ao norte, é Corozaim.
187. Indo a Jerusalém pela Páscoa.
De Tariqueia até o monte Tabor.
12 de junho de 1945.
187.1 Jesus se despede das barcas, dizendo: “Não voltarei atrás” e, acompanhado pelos seus, através da
região que parecia muito fértil, vista da margem oposta, dirige-se para um monte, que aparece na direção
sudoeste.
Os apóstolos vão indo em silêncio, falando um com o outro, somente com os olhos, pouco entusiasmados
com o caminho pelo meio dessa região bonita, mas selvagem, cheia de carriços que se agarram aos pés, de
caniços que fazem chover sobre as cabeças uma chuvinha do orvalho que ficou retido pelas fendas por
entre suas folhas; de caroços de frutas secas, que lhes batem no rosto; de salgueiros frágeis que batem por
toda parte nos corpos dos viandantes, fazendo-lhescócegas; de traidoras passagens no terreno, onde há
ervas que parecem ter nascido em um solo sólido, mas, ao invés disso, escondem poças d’água nas quais os
pés afundam, pois elas não são mais que uns aglomerados de rabos-de-raposa e de outras amarantáceas,
nascidas em pequenos charcos e tão cerradas, que escondem o elemento em que nasceram.
Jesus, do lugar em que está, parece alegrar-se com todo aquele verde de mil tons, com todas aquelas
flores, pelas quais eles passam roçando, ou que estão erguidas e se agarram às outras para subir, que
soltam delicados festões cobertos de graciosos convólvulos de uma cor rosa-malva tênue ou formam um
tapete azul muito bonito para as milhares de corolas de miosótis palustres, que abrem seus cálices perfeitos
em corolas brancas, róseas ou azuis, por entre as largas folhas chatas dos nenúfares. Jesus admira os
penachos dos caniços do brejo, sedosos e cor de pérola e se inclina alegre para observar a delicadeza dos
rabos-de-raposa, que formam um véu de esmeralda sobre as águas. Jesus para, extasiado, diante dos ninhos
que os pequenos pássaros constróem, com um ir e vir feliz, acompanhado de trilos, de pulos, de um cansaço
contente, dos flocos de lã arrancada às sebes que, por sua vez, as tinham arrancado dos rebanhos, que por
ali passaram… Ele parece a pessoa mais feliz que possa haver. Onde está o mundo com as suas maldades,
falsidades, dores e insídias? O mundo está do lado de lá deste oásis verde e florido, onde tudo é perfumado,
tudo brilha, tudo ri e canta. Aqui está a terra criada pelo Pai e não profanada pelo homem, e aqui pode-se
até esquecer o homem.
187.2 Ele quer repartir sua felicidade com os outros. Mas não encontra um terreno propício. Os corações
estão cansados e exacerbados, cheios de tanta má vontade que a querem revirar sobre as coisas e até sobre
o Mestre, com um mutismo fechado, semelhante àquele ar parado, que precede um temporal. Somente o
primo Tiago, o Zelote e João se interessam pelo que interessa a Jesus. Pois os outros não são mais do que…
uns ausentes, para não dizer hostis. Talvez, para não murmurar, fazem silêncio entre si. Mas, por dentro,
cada um deve estar falando, até demais.
Uma mais viva exclamação de admiração, diante da jóia viva que é um pequeno pombo do mato, que
vem voando e trazendo para a companheira um peixinho cor de prata, é justo aquilo que os faz abrir as
bocas.
Jesus diz:
– Mas, poderá haver coisa mais gentil?
Pedro responde:
– Talvez mais gentil não… mas eu Te garanto que mais cômoda é a barca. Aqui estamos também na
umidade e, em compensação, não temos comodidade…
– Eu preferiria ir pela estrada caravaneira, a ir… por este jardim, se é que Te agrada chamá-lo assim, e
estou completamente de acordo com Simão –diz Iscariotes.
– A estrada caravaneira, vós não a quisestes –responde Jesus.
– É certo. Mas eu não teria entregado os pontos aos gerasenos. Eu teria ido embora de lá, mas teria
continuado do outro lado do rio, indo por Gadara, por Pela, e por ali abaixo, sempre para baixo –resmunga
Bartolomeu.
E o seu grande amigo Filipe termina:
– As estradas, afinal, são de todos, e por elas poderíamos caminhar nós também.
– Amigos, amigos! Eu estou tão aflito, estou tão enojado… Não aumenteis meus sofrimentos com as
vossas mesquinharias! Deixai-me procurar um pouco de consolo nas coisas que não sabem odiar…
A censura, doce em sua tristeza, toca os apóstolos.
– Tens razão, Mestre. Nós somos indignos de Ti. Perdoa a nossa estultice. Tu és capaz de ver a beleza,
porque és santo e olhas com os olhos do coração. Nós, carniça, sentimos somente esta carniça… Mas, não
repares. Podes crer que, ainda que estivéssemos em um paraíso, sem Ti estaríamos tristes. Mas, contigo…
oh, é sempre mais belo para o coração. Somente os nossos membros é que se recusam
–murmuram muitos.
187.3 – Daqui a pouco, sairemos daqui e encontraremos um chão mais cômodo, ainda que menos fresco –
promete Jesus.
– Aonde iremos, precisamente? –pergunta Pedro.
– Levar a Páscoa aos que sofrem. Há tempo que o queria fazer. Mas não pude. Eu o teria feito, ao voltar
da Galileia. Agora, que me obrigam a andar por caminhos não escolhidos por nós, Eu vou abençoar os
pobres amigos de Jonas.
– Mas assim vamos perder tempo! A Páscoa já está perto! Sempre nos atrasamos por diversas causas.
E um outro coro de lamentações se levanta até o céu. Não sei como Jesus pode ter tanta paciência… E,
sem censurar a ninguém, Ele diz:
– Eu vos peço. Não me crieis obstáculos! Compreendei minha necessidade de amar e de ser amado. Só
tenho este conforto na terra: o amor e fazer a vontade de Deus.
– E vamos por aqui? Não seria melhor irmos para Nazaré?
– Se Eu vos tivesse proposto isso, vós vos teríeis revoltado. Ninguém pensará que estou por estes
lugares, e faço-o por vós que… tendes medo.
– Medo? Ah! Isso, não. Estamos prontos até a combater por Ti.
– Pedi ao Senhor que não vos faça passar por uma prova. Eu sei que sois rixentos, invejosos, tendes o
desejo de ofender a quem Me ofende, de mortificar o próximo. Tudo isso Eu sei. Mas que sejais corajosos,
isso não sei. Por Mim, Eu teria caminhado até sozinho e pelos caminhos comuns, e nada me teria
acontecido, porque ainda não é a hora. Mas tenho piedade de vós. E tenho obediência para com minha mãe
e também isto: não quero causar desgosto ao fariseu Simão. E não lho causarei. Mas eles causarão desgosto
a Mim.
– E daqui para onde iremos? Eu não tenho prática nestes lugares
–diz Tomé.
– Chegaremos ao Tabor, iremos ao lado dele por um trecho e, passando perto de Endor, iremos a Naim, e
de lá iremos pela planície de Esdrelon. Não tenhais medo!… Doras, o filho de Doras e Jocanã já estão em
Jerusalém.
187.4 – Oh! Como deve ser bonito! Dizem que do cume, do ponto mais alto, se pode avistar o Grande Mar, o
de Roma. Isso me agrada muito! Vais levar-nos a vê-lo?
João faz a pergunta, com o seu rosto de menino bom levantado para Jesus.
– Por que é que te agrada tanto vê-lo? –pergunta Jesus, acariciando-o.
– Não sei. Porque é grande, e não se vê o seu fim… Ele me faz pensar em Deus… Quando estivemos no
Líbano, eu vi o mar pela primeira vez, porque nunca tinha estado a não ser ao longo do Jordão ou então em
nosso pequeno mar… e chorei de emoção. Que azul! Quanta água! E sua água não extravasa nunca!… Que
coisa maravilhosa! E os astros, que fazem caminhos de luz sobre o mar… Oh! Não riais de mim! Fiquei
olhando o caminho de ouro do Sol até ficar ofuscado, o caminho de prata da Lua até não ter mais nos olhos
senão aquele candor fixo, e via como eles se iam dissipando e sumindo ao longe, muito longe. E aqueles
dois caminhos falavam comigo. Eles me diziam: “É Deus que está naquelas lonjuras sem fim, e estes são os
caminhos de fogo e de pureza que uma alma deve seguir, a fim de ir para Deus. Vem. Mergulha no infinito,
remando por estes dois caminhos e encontrarás o Infinito.”
– És um poeta, João –diz admirado Tadeu.
– Não sei se isto é poesia. Só sei que acende o coração.
– Mas tu já viste o mar também em Cesareia e Ptolomaida, e bem de perto. Nós estávamos à beira dele.
Não vejo necessidade de fazer uma viagem tão grande para ir ver outra água do mar. Afinal, nós nascemos
na água… –observa Tiago de Zebedeu.
– E nela estamos ainda agora, infelizmente! –exclama Pedro que, tendo-se distraído por uns instantes,
para ficar ouvindo João, não viu uma poça traiçoeira, e nela tomou um verdadeiro banho…
Todos se riem, a começar pelo próprio Pedro.
Mas João responde:
– É verdade. Mas, visto lá de cima, ele é mais belo. Podemos ver mais e mais longe. Ficamos pensando
com mais profundidade e amplitude… Ficamos desejando, sonhando…
E, em verdade, João já está sonhando… Olha para a frente e sorri ao seu sonho. Parece uma rosa cor de
carne, coberta por um orvalho miudinho, a tal ponto sua pele lisa e clara de jovem louro se torna da cor de
um veludo purpurino e se cobre de um leve suor, que a torna ainda mais parecida com uma pétala de rosa.
– Que queres? Com que estás sonhando? –pergunta Jesus, em voz baixa, ao seu predileto, e parece um
pai que interroga docemente um querido filhinho, que lhe está contando um doce sonho seu. Fala
exatamente à alma de João, Jesus, tão doce no interrogar, para não estragar o sonho do seu amoroso
discípulo.
– Eu quero andar por aquele mar infinito… ir a outras terras que estão para lá dele… Eu quero ir para
falar de Ti… Estou sonhando… sonhando em ir até Roma, até a Grécia, até os lugares escuros, para levar-
lhes a luz… de modo que os que vivem nas trevas, venham a ter contato contigo e vivam em comunhão
contigo, ó Luz do mundo… Sonho um mundo melhor… para fazê-lo melhor por meio do conhecimento de Ti,
isto é, por meio do conhecimento do Amor, que torne bons, puros, que torne heróico um mundo que se
possa amar em teu Nome e — acima do pecado, da carne, do vício da mente, acima do ouro, acima de todas
as coisas, — exalte o teu Nome, a tua Fé, a tua Doutrina… sonho de estar eu com estes meus irmãos, indo
pelo mar de Deus, Te levando por estradas de luz… como, há tempo, Tua mãe te trouxe dos Céus para nós…
Sonho… sonho que sou um menino que, não conhecendo nada mais que o amor, permanece sereno, até
quando vai de encontro aos tormentos… e canta para dar coragem aos adultos, que ficam pensando demais,
e vai adiante… ao encontro da morte, com um sorriso… ao encontro da glória, com a humildade de quem
não sabe bem o que está fazendo e que só sabe ir até Ti, Amor.
Os apóstolos ficaram com a respiração parada, durante a extática confissão de João… Firmes no lugar
em que estavam, olham para o mais jovem, que está falando com os olhos velados pelas pálpebras, como
por um véu lançado sobre o ardor que sobe do coração e olham para Jesus, que se transfigura na alegria de
reencontrar-se tão completo no seu discípulo…
Quando João se cala, ficando um pouco inclinado, — e faz-nos lembrar a graça da Anunciação da
Humilde Virgem em Nazaré — Jesus o beija na fronte, dizendo:
– Iremos ver o mar, para fazer-te sonhar ainda com a vinda do meu Reino ao mundo.
187.5 – Senhor… depois disseste que vamos para Endor. Contenta, então, também a mim… para que passe
a minha amargura pelo julgamento daquele menino… –diz Iscariotes.
– Oh! Ainda pensas naquilo? –pergunta Jesus.
– Sempre. Eu me senti diminuído aos teus olhos e aos dos companheiros. Fico pensando em que estareis
pensando…
– Como esquentas a cabeça por nada! Eu nem me lembrava mais daquela inépcia, e certamente os
outros também não. E tu no-lo vens recordar. És um menino acostumado às caricias e a palavra duma
criança pareceu a teus olhos a condenação dum juiz. Mas não é esta a palavra que deves temer, e sim as
tuas ações e o juízo de Deus. Mas, a fim de persuadir-te que continuas a ser-me caro como antes e como
sempre, Eu te digo que te irei contentar. Que queres ir ver em Endor? É um pobre lugar colocado entre
penhascos…
– Leva-me até lá, e eu te direi.
– Está bem. Mas toma cuidado, para não sofreres depois por isso…
– Se para este não pode ser um sofrimento ir ver o mar, a mim não pode fazer mal ir ver Endor.
– Ver?… Não. Mas é o desejo daquilo que se procura ver, ao ver, é que pode fazer mal. Mas iremos lá…
E retomam a estrada, dirigindo-se para o Tabor, cujo vulto já vai aparecendo cada vez mais perto,
enquanto o seu solo se vai despojando daquela sua aparência palustre e se tornando sólido e de vegetação
mais rara, deixando lugar para outras árvores mais altas, ou moitas de clematites e de cardos, que estão
rindo com suas folhas novas e suas flores precoces.
188. Em Endor. A espelunca da maga o
encontro com Félix, depois chamado João.
13 de junho de 1945.
188.1 O Tabor agora já ficou para trás dos caminhantes. Já passou. Por uma planície fechada entre este
monte e um outro que está defronte dele, o grupo vai caminhando, falando da subida que todos fizeram,
ainda que, a princípio, os mais velhos quisessem esquivar-se dela. Mas agora todos estão contentes por
terem estado lá em cima. O caminho agora é fácil, pois é uma estrada mestra bem cômoda. O tempo está
fresco e acho que eles passaram a noite nas encostas do Tabor.
– Ali é Endor –diz Jesus, mostrando um pobre povoado agarrado às primeiras elevações deste outro
grupo de montanhas–. Quereis mesmo ir até lá?
– Se quiserdes me fazer ficar contente… –responde Iscariotes.
– Então, vamos.
– Mas, teremos que caminhar muito? –pergunta Bartolomeu que, pela idade, não deve estar com muita
vontade de fazer excursões panorâmicas.
– Oh! não! Mas, se queres ficar… –diz Jesus.
– Sim, sim. Ficai aqui. Basta que eu vá com o Mestre –apressa-se a dizer Judas Iscariotes.
– Agora, eu quereria saber que belezas vamos ver antes de decidir. Do alto do Tabor vimos o mar e,
depois do discurso do rapaz, devo confessar que passei a vê-lo com bons olhos pela primeira vez, e passei a
vê-lo como Tu o vês: com o coração. E agora eu gostaria de saber se vou aprender alguma coisa. E, então,
eu vou, ainda que tenha de cansar-me –diz Pedro
– Estás ouvindo, Judas? Tu não dissestes ainda as tuas intenções. Mas, por gentileza para com os
companheiros, dizei-as agora –sugere Jesus.
– Mas não foi a Endor que Saul quis ir[35], para consultar a pitonisa?
– Sim. E então?
– Sim, Mestre, eu gostaria de ir àquele lugar e ouvir-te falar sobre Saul.
– Oh! Nesse caso, eu também vou –diz Pedro entusiasmado.
– Então, vamos.
Terminam com passos rápidos o último trecho da estrada mestra, depois a abandonam, para tomarem
uma estrada secundária, que vai diretamente até Endor.
188.2 É um pobre lugar, como disse Jesus. As casas estão como que enraizadas nas encostas que, depois,
para lá do povoado, se tornam mais ásperas. Os moradores são pobres. Em sua maior parte, eles cuidam do
pastoreio, pelas pastagens do monte e por entre os bosques dos carvalhos seculares. Há uns poucos campos
de aveia, ou de cereais semelhantes, e nas faixas de terra que podem ser aproveitadas, há alguns pés de
macieiras e de figueiras. Poucas são as videiras ao redor das casas e que enfeitam um pouco os muros com
sua cor escura, dando a entender que aqui é um pouco úmido.
– Agora, vamos perguntar onde era o lugar da pitonisa –diz Jesus.
E faz parar uma mulher, que está voltando da fonte com suas ânforas.
A mulher olha para Ele com curiosidade, depois responde com grosseria:
– Não sei. Tenho outras coisas bem mais importantes do que essas histórias –e o deixa no ar.
Jesus se dirige a um velhinho, que está entalhando um pedaço de madeira.
– A pitonisa?… Saul?… Quem é que pensa mais nisso? Mas, espera… Aqui há um que estudou, e talvez
saiba… Vem.
E o velhinho sai manquejando, por um caminho estreito e cheio de pedras, até chegar a uma casa muito
pobre e baixa.
– Ele está aqui. Eu vou entrar e chamá-lo.
Pedro, mostrando as galinhas, que estão ciscando em um quintal muito sujo, diz:
– Este homem não é israelita.
Mas, não diz mais nada, porque o velhinho já está de volta, acompanhado por um homem caolho, sujo e
desalinhado, como tudo o que há em sua casa. O velhinho diz:
– Estais vendo? Este homem diz que é para lá daquela casa desmoronada. Há uma trilha, depois um
pequeno regato, depois um bosque e umas cavernas, e a mais alta delas, a que tem ainda uns muros
desmoronados em um dos lados, é a que estais procurando. Não foi assim que disseste?
– Não. Fizeste uma grande confusão. Deixa, que eu irei com estes forasteiros.
O homem tem uma voz áspera e gutural, que aumenta a má impressão que ele já causa.
188.3 Ele se envereda pela trilha. Pedro, Filipe e Tomé fazem repetidos sinais a Jesus, para que não vá.
Mas Jesus não lhes dá atenção. E vai adiante com Judas, atrás do homem, enquanto os outros o
acompanham… de má vontade.
– És israelita? –pergunta o homem.
– Sim.
– Eu também, ou quase, ainda que não pareça. Mas estive muito tempo em outras cidades e apanhei os
costumes! Que estes tolos por aí condenam. Sou melhor que os outros. Mas eles me chamam de demônio,
porque eu leio muito, crio galinhas, que vendo aos romanos e sei curar por meio de ervas. Quando jovem,
por causa de uma mulher, me agarrei com um romano, — naquele tempo eu estava em Cíntio — e o
apunhalei. Ele morreu, eu lá perdi um olho e o que eu possuía e fui condenado ao cárcere por muitos anos…
para sempre. Mas eu sabia curar, e curei a filha do guarda. Isto valeu-me a amizade dele e um pouco de
liberdade. Eu usei dela para fugir. Eu fiz mal, porque o homem certamente teve que perder a vida por causa
da minha fuga. Mas a liberdade parece mais bela enquanto somos prisioneiros…
– Então, não é bela depois?
– Não. É melhor o cárcere, onde estamos sós, do que o contato com homens que não nos concedem estar
sós, e que estão ao redor de nós para odiar-nos…
– Tu estudaste os filósofos?
– Eu era mestre em Cíntio… Eu era prosélito…
– E agora?
– Agora sou nada. Vivo na realidade. E odeio, como fui e estou sendo odiado.
– Quem é que te odeia?
– Todos e Deus em primeiro lugar. Ela era minha mulher… e Deus permitiu que ela me traísse e
arruinasse. Eu era livre e respeitado e Deus permitiu que eu me tornasse um presidiário. O abandono de
Deus e a injustiça dos homens fez desaparecer Aquele e estes. Aqui não há mais nada… –E bate na cabeça e
no peito–. Isto é, aqui na cabeça está o pensamento, o saber. É aqui que não há mais nada –e cospe com
desprezo.
– Estás enganado. Aí tens ainda duas coisas.
– Quais?
– A lembrança e o ódio. Tira-os. 188.4Sejas verdadeiramente vazio… e Eu te darei uma coisa nova para pôr
aí.
– Que é?
– O amor.
– Ah! Ah! Ah! Tu me fazes rir. Há trinta e cinco anos que eu não ria mais, meu homem. Desde que eu tive
a prova de que a mulher estava me traindo com o romano mercador de vinhos. O amor! O amor a mim! É
como se eu jogasse jóias aos meus frangos! Eles morreriam de indigestão, se não conseguissem passá-las
adiante junto com as fezes. Comigo é a mesma coisa. O teu amor seria para mim um peso, se eu não
pudesse digeri-lo…
– Não, homem! Não digas isso!
Jesus lhe põe a mão sobre o ombro, verdadeira e manifestamente aflito.
O homem olha para Ele, com o seu único olho, e o que ele vê naquele rosto, de tão grande doçura e
beleza, o faz emudecer e mudar de expressão. Do sarcasmo ele passa para uma seriedade profunda, e desta
para uma verdadeira tristeza. Ele inclina a cabeça, e depois, pergunta com uma voz diferente:
– Quem és?
– Jesus de Nazaré, o Messias.
– Tu?!
– Eu. Não sabias nada sobre Mim, tu que lês tanto?
– Eu sabia… Mas não que estavas vivo, e não… oh! sobretudo eu não sabia disto! Não sabia que eras
bom para com todos… assim… até com os assassinos… Perdoa tudo o que eu te disse… a respeito de Deus e
do amor… Agora compreendo porque é que me queres dar o amor… Porque sem o amor o mundo é um
inferno, e Tu, o Messias, queres fazer dele um paraíso.
– Um paraíso em todos os corações. Dá-me a lembrança e o ódio, que te tornam doente, e deixa que Eu
ponha em teu coração o amor.
– Oh! Se eu te houvesse conhecido antes. Mas, quando eu matava, certamente não tinhas nascido… Mas
depois… depois, quando fiquei livre, como livre é a serpente da floresta, eu vivi para envenenar com o meu
ódio.
– Mas fizeste também coisas boas. Não disseste que curavas por meio de ervas?
– Sim. Para que me tolerassem. Mas, quantas vezes lutei com a vontade de envenenar por meio de
filtros!… Estás vendo? Eu vim me refugiar aqui porque… aqui é um lugar onde nada se sabe do mundo, e
que o mundo também não conhece. É um lugar maldito. Noutros lugares eu era odiado e odiava, e tinha
medo de ser reconhecido… Mas eu sou mau.
– Tens ainda uma mágoa por teres feito mal ao guarda da prisão. Não vês que tens ainda alguma
bondade? Não és mau… Estás somente com uma grande ferida aberta, e ninguém a cura… A tua bondade
foge dela, como o sangue das feridas. Mas, se houver quem cuide de ti e cure a tua ferida, meu pobre
irmão, a tua bondade — não mais eliminada à medida que se forma — cresceria em ti…
O homem chora de cabeça inclinada, mas sem o mínimo sinal de que está chorando. Só Jesus, que vai
caminhando ao lado dele, é que o vê. Mas não lhe diz mais nada.
188.5 Chegam a uma espelunca, que é formada por escombros de desmoronamentos e cavernas naturais
no monte. O homem procura tornar firme sua voz e diz:
– Pronto, é aqui. Podes entrar.
– Obrigado, amigo. Sê bom.
O homem não diz mais nada e fica onde está, enquanto Jesus com os seus, tendo conseguido passar por
umas grandes pedras, que certamente eram pedaços de muros bem fortes, espantando os lagartos e outros
animais feios, entram em uma grande gruta de paredes enfumaçadas, com grafitos nas pedras,
representando ainda os signos do zodíaco e histórias semelhantes. Em um canto enfumaçado há uma
cavidade, e em baixo um buraco, como se fosse um esgoto para escoamento de líquidos. Os morcegos
decoram o forro com seus grandes cachos, que causam arrepios, e um mocho, espantado pela luz do facho
que Tiago acendeu, para ver se está pisando sobre escorpiões e víboras, — se sente incomodado e agita
suas asas acolchoadas, fechando bem seus olhos atingidos por aquela luz. Ele está empoleirado dentro da
cavidade e um fedor de ratos mortos, de doninhas, de passarinhos em putrefação a seus pés mistura-se com
o mau cheiro do estrume e do solo úmido.
– Um belo lugar, na verdade! –diz Pedro–. Era melhor o teu Tabor e o teu mar, rapaz!
E depois, virando-se para Jesus:
– Procura contentar logo Judas, porque aqui… não é bem a sala real de Antipas!
– Vamos logo. Que é mesmo que queres saber? –pergunta a Judas de Keriot.
– Está bem… Eu quereria saber se, e porque Saul pecou, por vir até aqui. Quereria saber se é possível
que uma mulher seja capaz de evocar os mortos. Quereria saber se… Oh! Fala Tu, afinal. E eu te farei
perguntas!
– Isso vai longe. Vamos, pelo menos, lá para fora, ao Sol, por cima das pedras… Assim ficaremos livres
desta umidade e deste fedor
–pede Pedro.
E Jesus consente. Assentam-se como podem por sobre os muros desmoronados.
– O pecado de Saul não foi o único pecado dele. Mas foi precedido e acompanhado por muitos outros.
Todos graves. Sua dupla ingratidão para com Samuel, que o ungiu rei, e que depois se eclipsa, para não
dividir com o Rei a admiração do povo. Ele foi ingrato mais vezes ainda para com Davi, que o livrou de
Golias, que poupou sua vida na caverna de Engadi e em Áquila. Foi culpado por muitas desobediências e
por escândalos dados ao povo. Foi culpado por ter causado dor a Samuel, seu benfeitor, faltando à caridade.
Culpado por ciúme e atentado contra Davi, outro benfeitor seu e, enfim, pelo delito que neste lugar ele
cometeu.
– Contra quem? Aqui ele não matou ninguém.
– Matou sua própria alma, acabou de matá-la aqui dentro. 188.6Por que estás abaixando a cabeça?
– Porque estou pensando, Mestre.
– Estás pensando. Eu estou vendo. Em que estás pensando? Por que querias vir? Não foi por pura
curiosidade de estudioso, confessa-o.
– Sempre se ouve falar de magos, de necromancias, de espíritos evocados… Eu queria ver se descobria
alguma coisa… Eu gostaria de saber como acontece… Eu penso que nós, destinados a impressionar para
atrair, deveríamos ser um pouco necromantes. Tu és Tu, e o fazes com o teu poder. Mas nós temos que
pedir tal poder e uma ajuda, para fazer coisas estranhas, que se imponham…
– Oh! Não estás doido? Que é que estás dizendo? –gritam muitos.
– Calai-vos. Deixai-o falar. Não é doideira o que ele tem.
– Sim. Enfim me parecia que aqui chegando, um pouco de magia daquele tempo, pudesse penetrar em
mim, e tornar-me um dos grandes. Isso interessaria a Ti, podes crer.
– Sei que és sincero neste teu desejo atual. Mas te respondo com palavras eternas, porque são do Livro,
e o Livro existirá enquanto existir o homem. Acreditado ou escarnecido, impugnado em nome da verdade ou
da derrisão, existirá, existirá sempre.
Foi dito: “E Eva, pois que o fruto da árvore era bom de se comer e belo de se ver, o colheu e comeu dele,
e deu dele ao marido. E, então, os olhos deles se abriram e, percebendo que estavam nus, fizeram para si
cintos… E Deus disse: ‘Como foi que percebestes que estáveis nus? Somente por terdes comido do fruto
proibido.’ E os expulsou do Paraíso de delícias.” E no livro de Saul está escrito: “Samuel, aparecendo, disse-
lhe: ‘Por que me perturbaste me fazendo evocar? Por que me fazer perguntas, uma vez que o Senhor se
afastou de ti? O Senhor te tratará como eu te disse… porque tu não obedeceste à voz do Senhor’.”
Meu filho, não estendas a mão para o fruto proibido. Pois somente aproximar-se dele já é uma
imprudência. Não tenhas a curiosidade de conhecer as coisas ultra-terrenas, por temor de que não se
apegue a ti o satânico veneno. Foge das coisas ocultas e das coisas que não se explicam. Só uma coisa há de
ser acolhida com santa fé: Deus. Mas o que não é de Deus, e não é explicável com as forças da razão, ou
não pode ser feito com as forças do homem, foge daquilo, foge, para que não se abram para ti as fontes da
malícia, e tu não consigas compreender que estás “nu”. Nu: repelente na humanidade misturada com
satanismo. Por que queres pasmar-te com prodígios obscuros? Pasma com a tua santidade, e que ela seja
luminosa, como as coisas que vêm de Deus. Não tenhas desejo de rasgar os véus, que separam os vivos dos
mortos. Não inquietes os defuntos. Escuta-os, se são sábios, enquanto estiverem sobre a terra, e venera-os
com a tua obediência, até depois de sua morte. Mas não perturbes sua segunda vida. Quem não obedece à
voz do Senhor, perde o Senhor. E o Senhor proibiu o ocultismo, a necromancia, o satanismo em todas as
suas formas. Que queres saber a mais de quanto a Palavra já te disse? Que queres fazer a mais do que tudo
o que a tua bondade e o meu poder já te concedem operar? Não desejes o pecado, mas sim a santidade,
filho. Não te sintas humilhado. Agrada-me que tu te reveles em tua humanidade. O que agrada a ti, agrada
também a muitos, a muitos demais. Somente uma coisa: o motivo que apresentas para este teu desejo “ser
poderoso a fim de atrair para Mim”, tira muito peso dessa humanidade, e faz que ela crie asas. Mas são as
asas de pássaro da noite. Não, meu Judas. Põe asas solares, põe asas de anjo em teu espírito. Só com o
vento delas, atrairás os corações, e os transportarás, com o teu exemplo, para Deus. Podemos continuar a
andar?
– Sim, Mestre. Eu errei.
– Não. Tu foste um indagador… Destes o mundo estará sempre cheio. Vem, vem. Vamos sair deste lugar
de mau cheiro. Vamos ao encontro do Sol! Dentro de poucos dias é Páscoa, e depois iremos à casa de tua
mãe, à tua casa honesta, à tua santa mãe. Oh! Quanta paz!
Como sempre, a lembrança da mãe, o elogio do Mestre à mãe, fazem que Judas fique calmo.
188.7 Saem das ruínas e começam a descer pelo caminho por onde vieram. O homem caolho ainda está ali.
– Ainda estás aqui? –pergunta Jesus, como se não estivesse vendo o rosto vermelho pelas muitas
lágrimas derramadas.
– Eu estou aqui. Se me permites, eu Te acompanho. Preciso dizer-te uma coisa…
– Vem, então, comigo. Que queres dizer-me?
– Jesus… Eu acho que para ter força de falar e de fazer a magia santa de mudar a mim mesmo, de
chamar à vida a minha alma morta, como a pitonisa evocou Samuel para Saul, eu devo dizer o teu Nome,
tão doce como o teu olhar, santo como a tua voz. Tu me deste uma vida nova, e ela está ainda informe,
ainda incapaz de nada, como a de um recém-nascido, que acaba de ser gerado. Agita-se ainda entre os
apertos duma casca malvada. Ajuda-me a sair da minha morte.
– Sim, amigo.
– Eu… eu reconheci que tenho ainda um pouco de humanidade em meu coração. Não sou totalmente
uma fera, e ainda posso amar e ser amado, perdoar e ser perdoado. O teu amor, o teu amor que é perdão,
me ensina isso. Não é verdade que é assim?
– Sim, amigo.
– Então… leva-me contigo. Eu era Félix! Que ironia! Mas Tu me darás um novo nome. Para que o
passado fique realmente morto. Eu Te acompanharei como um cão vagabundo, que finalmente achou um
dono. Serei o teu escravo, se quiseres. Mas, não me deixes sozinho…
– Sim, amigo.
– Que nome pões em mim?
– Um nome de que Eu gosto muito: João. Porque tu és a graça que o Senhor faz.
– Me tomas contigo?
– Por enquanto, sim. Depois me acompanharás com os discípulos. Mas, e a tua casa?
– Eu não tenho mais casa. Deixarei para os pobres tudo o que tenho. Dá-me somente amor e pão.
– Vem.
E Jesus se vira, chamando os apóstolos:
– Meus amigos, e especialmente tu, Judas, recebei o meu “obrigado.” Por meio de ti, por meio de vós,
uma alma vem para Deus. Aqui está o novo discípulo. Vem conosco até que possamos confiá-lo aos irmãos
discípulos. Ficai felizes por terdes encontrado um coração, e bendizei a Deus comigo.
Muito felizes, na verdade, não parecem ter ficado os doze. Mas fazem cara boa, por obediência e
cortesia.
– Se me permites, eu vou na frente. Encontrar-me-às na soleira da casa.
– Então, vai.
O homem parte, correndo. Parece ser outro.
– E agora, que estamos sós, Eu vos ordeno, isto Eu vos ordeno, que sejais bons para com ele, e não faleis
do seu passado, seja lá a quem for. Quem falasse, ou quem faltasse à caridade para com o irmão redimido,
seria, no mesmo instante, rejeitado por Mim. Entendestes bem? E, vede como o Senhor é bom! Tendo vindo
até aqui por um fim humano, Ele ainda nos concede que voltemos daqui tendo obtido um fato sobrenatural.
Oh! Eu me alegro pela alegria que há agora lá no Céu por causa do novo convertido.
188.8 Chegam diante da casa. Na soleira, com uma veste escura e limpa e uma capa nas mesmas
condições, com um par de sandálias novas e um saco de bom tamanho nas costas, lá está o homem. Ele
fecha a porta e depois — coisa estranha em um homem que se poderia julgar de todo insensível — ele pega
uma pequena galinha branca, talvez a predileta, que se agacha mansinha nas mãos dele e a beija, chora, e
depois a põe no chão.
– Vamos… e perdoa-me. Mas estes meus frangos me amaram. Eu falava com eles… e eles me
entendiam…
– Eu também te entendo… e te amo. Muito. Eu te darei todo o amor que, durante trinta e cinco anos, o
mundo te negou…
– Oh! Eu sei. Eu o estou sentindo! Por isso, eu vou. Mas tem compaixão do homem que… que ama um
animal… que lhe foi mais fiel do que o homem…
– Sim… sim. Não penses mais no passado. Terás muito o que fazer! E, com a tua experiência, farás muito
bem. Simão, vem cá, e tu, Mateus. Estás vendo? Este foi mais do que um prisioneiro, foi um leproso. Este
foi um pecador. A estes Eu amo, porque sabem compreender os pobres corações… Não é verdade?
– Pela tua bondade, Senhor. Mas, podes crer, amigo, que tudo se anula no servi-lo. Só a paz permanece –
diz Zelotes.
– Sim. A paz e uma nova juventude ocupam o lugar onde estava uma velhice de vício e de ódio. Eu era
publicano. Mas agora sou apóstolo. Temos diante de nós o mundo. E estamos instruídos sobre ele. Não
somos mais os rapazes levianos, que passam perto do fruto danoso e da planta que se inclina, e não vemos a
realidade. Nós sabemos. Podemos evitar o mal, e ensinar os outros a evitá-lo. E sabemos endireitar o que
está inclinado. Porque sabemos que alívio foi termos sido socorridos. E sabemos quem socorre: É Ele, diz
Mateus.
– É verdade! É verdade! Vós Me ajudareis. Obrigado. É como se eu passasse de um lugar escuro e fétido
para o ar livre, de um prado todo florido… Eu experimentei uma alegria semelhante, quando saí, já livre,
finalmente livre, depois de vinte anos de cárcere e de um trabalho brutal nas minas de Anatólia, e me
encontrei, — eu havia fugido numa tarde tempestuosa — encontrei-me no alto de um monte áspero, mas
aberto, cheio de sol, ao alvorecer, e coberto de bosques odoríferos… A liberdade! Mas agora é mais ainda.
Tudo em mim se dilata! Fazia quinze anos que eu já estava sem os grilhões… E agora eles caíram!… 188.9
Aqui é a casa do velho que vos levou a mim. Homem! Ó homem!
O velhinho se aproxima e fica maravilhado, ao ver que o caolho está limpo, em roupa de viagem e com
um rosto sorridente.
– Toma. Esta é a chave da minha casa. Eu vou-me embora para sempre. Eu te agradeço, porque tu és
meu benfeitor. Tu me deste de novo a família. Faze do que é meu tudo que quiseres… e cuida dos meus
frangos. Não os maltrates. Todos os sábados, vem um romano comprar os ovos… Eles te darão alguma
vantagem… Trata bem das minhas galinhazinhas… e Deus te pague por isso.
O velhinho está assombrado. Ele pega a chave e fica de boca aberta.
Jesus diz:
– Sim, faze como ele diz e Eu também te ficarei agradecido. Em nome de Jesus, Eu te abençôo.
– O Nazareno! Então, és Tu! Misericórdia! Eu falei com o Senhor! Mulheres, mulheres! Homens! O
Messias está entre nós!
Ele grita como uma águia e as pessoas vem correndo, de todos os lados.
– Abençoa! Abençoa! –gritam todos.
E outros dizem:
– Fica conosco!
E outros ainda:
– Aonde vais? Pelo menos, dize-nos aonde vais.
– Vou a Naim. Ficar aqui Eu não posso.
– Nós vamos Te acompanhar. Estás de acordo?
– Vinde. E a quem fica, paz e bênção.
Encaminham-se para a estrada mestra. E vão por ela.
188.10 O homem, que caminha próximo a Jesus, e que se sente cansado sob o seu saco, atrai a curiosidade
de Pedro.
– Mas, que há de tão pesado aí dentro? –ele pergunta.
– Minhas roupas… e alguns livros… Os meus amigos, depois dos frangos. Não pude separar-me. E
pesam.
– É, a ciência pesa! E se pesa! E a quem ela agrada, então!
– Foram os livros que não deixaram que eu ficasse doido.
– É! Deves mesmo querer-lhes bem. Mas, que livros são?
– Filosofia, história, poesia grega e romana…
– Bonitos, bonitos. Devem ser bonitos. Mas achas que vais poder andar com eles nas costas?
– Talvez eu consiga até separar-me deles. Mas, tudo de uma vez, não se pode fazer, não é mesmo,
Messias?
– Chama-me Mestre. Sim. Não se pode. Mas Eu vou arrumar um lugar onde poderás dar abrigo aos teus
amigos, os livros. Eles te poderão servir para discutires com os pagãos sobre Deus.
– Oh! Como tens o pensamento livre de toda restrição!
Jesus sorri, e Pedro exclama:
– Mas, sem dúvida alguma. Ele é a própria Sabedoria!
– E a Bondade, podes crer. E tu és culto?
– Eu? Oh! Sou muito culto. Eu já distingo uma carpa de uma sardinha e a minha cultura para ai. Eu sou
pescador, meu amigo!
E Pedro se ri, humilde e sincero.
– Sê um homem honesto. Esta é uma ciência que cada um por si aprende. Mas é muito difícil de se
conseguir. Tu me agradas.
– Tu também me agradas. Porque és sincero. Até em te acusares. Eu perdôo tudo, ajudo a todos. Mas
sou um inimigo desapiedado dos falsos. Eles me dão arrepios.
– Tens razão. O falso é um delinquente.
– Um delinquente. Assim disseste. Dize-me, não terás confiança em mim, para me entregares um pouco
esse saco? E, fica certo de que eu não vou fugir com os livros… Tu me pareces estar muito cansado.
– Vinte anos de trabalho na mina acabam com a gente. Mas, por que queres cansar-te tu?
– Porque o Mestre nos ensinou a amar-nos como irmãos. Dá aqui. E segura estes meus trapos. O meu é
leve. Nele não há história, nem poesia. A minha história, a minha poesia é diferente do que falaste: é Ele, o
meu Jesus, o nosso Jesus.
[35] quis ir, como se narra em 1 Samuel 28,3-25; 1 Crônicas 10,13-14; Siraque 46,20; com analogia em Reis 21,6; Isaías 8,19-20. A história de Saul e dos
seus “muitos outros” pecados, como se diria em 188.5 (e ainda em outros passos, como em 263.2), é sobretudo em 1 Samuel 9-31. – A prática da divinização,
ou magia, ou magia negra, é proibida em Levítico 19,26-31; 20,6.27; Deuteronômio 18,9-14. O epíteto da feiticeira, resurge o nome de um deus pagão (Apolo
Pizio). O “espírito píton” (o “pitônico” como em 352.11) é próprio dos pagãos (como se vê em 59.4 e 129.3). Satanás “fala sobre as lavras dos pítons” (como
se dirá em 420.10). Resulta da obra que a seita dos saduceus, fortemente hostil a Jesus e contrária a sua doutrina (como se pode notar em 356.5, 406.9 e
594.6/7), era dedicada a práticas similares às quais também se sentia atraído Judas Iscariotes. Uma repreensão aos necromantes em 503.7.
189. Em Naim. Ressurreição do filho da viúva.
14 de junho de 1945.
189.1 Naim devia ter uma certa importância nos tempos de Jesus. Não é uma cidade muito grande, mas
bem construída, fechada dentro do seu cinturão de muros. Ela se estende por uma colina risonha, de pouca
altitude, e é uma ramificação do pequeno Hermon que, do alto, domina uma planície muito fértil, que se vai
alargando para a direção do noroeste[36].

Para quem vem de Endor, chega-se até aqui, depois de ter passado a vau um pequeno rio, que deve ser
um afluente do Jordão. Mas daqui não se vê mais o Jordão, e nem mesmo o seu vale, porque algumas
colinas o escondem, fazendo um arco, que parece um ponto de interrogação virado para leste.
Jesus para lá se dirige, por uma estrada mestra, que liga as regiões do lago ao Hermon e aos seus
povoados. Atrás de Jesus vão caminhando muitos dos habitantes de Endor, conversando animadamente uns
com os outros.
A distância que separa o grupo dos apóstolos dos muros já é bem reduzida: no máximo uns duzentos
metros. E, já que a estrada mestra vai em linha reta, rumo a uma das portas da cidade, e como essa porta
está escancarada, pois já é pleno dia, pode-se ver logo o que está acontecendo do outro lado dos muros. E é
assim que Jesus, que estava conversando com os apóstolos e com o novo convertido, vê que, por entre um
grande barulho de carpideiras e de semelhantes conjuntos orientais, vem chegando um cortejo fúnebre.
– Vamos lá ver, Mestre? –dizem muitos. E, do meio dos habitantes de Endor, muitos já se precipitaram
para ir ver.
– Vamos nós também –diz Jesus, condescendendo.
– Oh! deve ser um rapaz, porque, olha só quantas flores e fitas estão sobre o caixão –diz Judas de Keriot
a João.
– Ou então será uma virgem –responde João.
– Não. É certo que se trata de um jovenzinho, por causa das cores que eles colocaram no caixão. Além
disso, faltam os mirtos… –diz Bartolomeu.
O funeral vai saindo para fora dos muros. Seja o que for que estiver no caixão, que vai sustentado no
alto sobre os ombros dos portadores, é o que não se pode ver. Presume-se que lá esteja um corpo estendido,
com suas faixas, e coberto com um lençol, pois pelo que as saliências revelam pode-se compreender que é o
corpo de alguém que já tinha chegado ao ponto mais alto de seu crescimento, porque é um corpo do
comprimento do caixão.
Ao lado do caixão, uma mulher de véu, amparada por parentas ou amigas, vai caminhando e chorando. É
o único choro verdadeiro, no meio dessa comédia de choronas. E, quando uma pedra faz que um dos
portadores tropece, ou um ressalto do solo faz que se sacuda o caixão, a mãe geme: “Oh! Não! Ide devagar!
Sofreu tanto este meu menino!”, e levanta sua mão trêmula para acariciar a beira do caixão, — fazer mais
que isso ela não pode — e, não podendo fazer nada mais, ela beija os véus ondulantes e as fitas, que o vento
de vez em quando agita, e que passam rolando por aquele vulto imóvel.
– Aquela é a mãe –diz Pedro, todo compungido e já com o brilho de uma lágrima em seus olhos atentos e
bons.
Mas ele não é o único que está com lágrimas nos olhos por causa daquela tristeza. Também Zelotes,
André e João, e até o sempre alegre Tomé, estão com os olhos brilhando. Todos, todos mesmo, estão
comovidos. Judas Iscariotes murmura:
– Se fosse eu! Oh! Pobre de minha mãe…
189.2 Jesus, cujos olhos são de uma doçura perturbadora, de tão profundos que são, vai indo para perto do
caixão.
A mãe, que já está soluçando mais forte, porque o cortejo já está quase chegando junto ao sepulcro
aberto, O afasta com violência, ao ver que Jesus procura tocar no caixão. No seu delírio, quem saberia de
que ela está com medo? Ela grita:
– É meu! –e, com uns olhos de louca, olha para Jesus.
– Eu sei, mãe. É teu.
– É o meu filho único. Por que logo ele é que foi morrer, ele que era bom e querido e a minha alegria de
viúva? Por quê?
Aí a multidão das carpideiras aumenta o seu choro pago, para fazerem coro com a mãe, que continua a
dizer:
– Por que ele, e não eu? Não é justo que quem gerou veja perecer a sua semente. A semente precisa
viver, porque senão, para que terá servido que estas vísceras se tenham rasgado para darem à luz um
homem? –e bate em seu próprio ventre, feroz e desatinada.
– Não faças assim! Não chores, mãe.
Jesus a segura pelas mãos, com um forte aperto, e as prende com sua esquerda, enquanto, com a
direita, toca no caixão, dizendo aos portadores:
– Parai e ponde o caixão no chão.
Os portadores obedecem, abaixando a caminha, que fica apoiada no chão por seus quatro pés.
Jesus agarra o lençol, que está cobrindo o morto e o joga para trás, deixando descoberto o cadáver. A
mãe externa sua dor, gritando o nome de seu filho e parece-me que ela está dizendo:
– Daniel!
Jesus, sempre conservando as mãos maternas na sua, se endireita, mostra-se imponente, no fulgor de
seus olhares como quando Ele opera seus maiores milagres, e, abaixando a mão direita, ordena, com toda a
força de sua voz:
– Jovenzinho, Eu te digo: Levanta-te!
189.3 O morto, do jeito que estava enfaixado, levanta-se e se assenta sobre a caminha e chama:
– Mamãe!
Ele a chama com a voz gaguejante e assustada de uma criança espavorida.
– Ele é teu, mulher. Eu o entrego em nome de Deus. Ajuda-o a livrar-se da mortalha. E sede felizes.
E Jesus dá sinais de que vai retirar-se dali. Mas, como? A multidão o detém junto ao catre, sobre o qual
está inclinada a mãe, que está enfiando os dedos por entre as faixas, para ir mais depressa, porque o
lamento de seu menino continua a implorar-lhe:
– Mamãe! Mamãe!
Por fim, a mortalha foi desfeita, desfeitas foram as faixas, já a mãe e o filho podem abraçar-se, e o fazem
sem dar atenção aos bálsamos que se vão colando neles, e que a mãe vai tendo que tirar do querido rosto,
das queridas mãos, usando as faixas, e depois, não tendo com que revesti-lo, a mãe tira o seu próprio manto
e o envolve nele, e tudo o que ela faz vai servindo ao mesmo tempo para acariciá-lo…
189.4 Jesus olha para ela… olha para este quadro de amor que se formou ao lado da caminha, que agora já
não é mais fúnebre, e chora.
Judas Iscariotes vê esse pranto e pergunta:
– Por que estás chorando, Senhor?
Jesus vira o rosto para ele, e diz:
– Estou pensando em minha mãe…
O breve colóquio faz que a mulher volte ao seu Benfeitor. Ela pega pela mão o filho e o segura, porque
ele está como alguém que ainda não acabou de sair de um torpor, continuando este em seus membros, e ela
se ajoelha, dizendo:
– Tu também, meu filho. Vamos bendizer a este Santo, que te restituiu à vida e à tua mãe –e se inclina
para beijar a veste de Jesus, enquanto a multidão dá hosanas a Deus e ao seu Messias, já conhecido como
quem ele é, porque os apóstolos e os habitantes de Endor tomaram eles próprios a incumbência de dizer
quem é aquele que operou o milagre.
E a multidão toda, então, exclama:
– Bendito seja o Deus de Israel. Bendito seja o Messias, que é o seu Enviado. Bendito seja Jesus, Filho de
Davi. Um grande Profeta surgiu entre nós! Deus verdadeiramente veio visitar o seu povo! Aleluia! Aleluia!
189.5 Finalmente, Jesus consegue escapar daquele aperto, e entrar na cidade. A multidão o acompanha, e
o persegue, exigente em seu amor.
Chega correndo um homem, e saúda a Jesus com uma profunda inclinação:
– Eu te peço que pares em minha casa.
– Não posso. A Páscoa me proíbe qualquer parada, além daquelas que estão marcadas.
– Daqui a pouco é o pôr-do-sol, e hoje e sexta-feira…
– É exatamente ao pôr-do-sol que Eu preciso chegar à minha etapa. Mas Eu te agradeço da mesma
forma. E não me detenhas…
– Mas eu sou o sinagogo.
– E com isto queres dizer que tens este direito. Homem: bastava que Eu me atrasasse uma hora e aquela
mãe não teria reavido o filho. Eu vou aonde outros infelizes me estão esperando. Não atrases com egoísmo
a alegria deles. Eu virei, com certeza, outra vez e ficarei contigo em Naim mais dias. Agora, deixa-me ir.
O homem não insiste mais. E somente diz:
– Está dito. Eu fico Te esperando.
– Sim. A paz esteja contigo e com os moradores de Naim. E também à vós de Endor paz e bênção. Voltai
para vossas casas. Deus vos falou por meio do milagre. Fazei que entre vós aconteçam, por força do amor,
muitas ressurreições para o bem em todos os corações.
Houve um último coro de hosanas. Depois a multidão deixa Jesus ir, e Ele atravessa diagonalmente a
cidade, indo sair na campina, tomando caminho para Esdrelon.
[36] direção do noroeste. Segue o desenho no qual MV escreveu Planície Esdrelon a oeste, Tabor a norte, abaixo Naim e Endor e mais abaixo Pequeno
Ermon.
190. Chegada a planície de Esdrelon
ao pôr-de-sol de sexta-feira.
15 de junho de 1945.
190.1 Começou o pôr do Sol com um céu avermelhado, na hora em que Jesus já ia também começando a
ver os campos de Jocanã.
– Apressemos o passo, meus amigos, antes que o sol desapareça. E tu, Pedro, vai, com o teu irmão,
avisar aos nossos amigos, os de Doras.
– Eu vou lá, sim, também para poder ver se o filho está mesmo fora.
Pedro diz a palavra “filho” de tal modo, que só ela vale por um longo discurso. E lá se vai.
Enquanto isso, Jesus vai andando mais devagar, olhando ao seu redor, para ver se enxerga algum dos
camponeses de Jocanã. Mas só se vêem os campos férteis, com as espigas já bem formadas.
Finalmente, lá do lugar do trabalho, onde estão limpando o vinhedo, levanta-se um rosto suado, e de lá
vem um grito:
– Oh! Senhor bendito! –e o camponês sai correndo para fora do vinhedo e vai prostrar-se diante de
Jesus.
– A paz esteja contigo, Isaías!
– Oh! Até de meu nome te recordas?
– Eu o tenho escrito no coração. Levanta-te. Onde estão os teus companheiros?
– Estão lá pelos pomares. Mas vou avisá-los agora mesmo. Vais ser nosso hóspede, não é? O patrão não
está e poderemos fazer-te uma festa. E, depois, um pouco pelo medo, um pouco pela alegria se tornou
melhor. Imagina! Ele até nos deu o cordeiro este ano e nos permitiu ir ao Templo! Ele nos deu apenas seis
dias… mas nós correremos pela estrada… Nós também em Jerusalém… Imagina só!…. E devemos isso a Ti.
O homem subiu até o sétimo céu, pela alegria de ter sido tratado como homem e como israelita.
– Eu nada fiz, que eu saiba… –diz Jesus sorrindo.
– Como, não? Pois fizeste. Doras, e depois os campos de Doras e estes, ao contrário, tão bonitos este
ano! Jocanã soube da tua vinda, e ele não é bobo. Ele tem medo e… e tem medo.
– De quê?
– Medo de que lhe aconteça o que aconteceu a Doras, tanto em sua vida como em seus bens. Já viste os
campos de Doras?
– Estou vindo de Naim…
– Então, não viste. Estão todos arruinados (O homem diz isso em voz baixa, mas destacando bem as
palavras, como quem quer confidenciar uma coisa horrível em segredo). Todos arruinados. Não há feno,
nem cereais, nem frutas. As videiras secaram, os pomares secaram… Morto… Tudo está morto… como em
Sodoma e Gomorra… Vem, vem, que te mostro tudo.
– Não é preciso. Eu vou até aqueles camponeses…
– Mas não estão mais lá. Então, não ficaste sabendo? Ele os espalhou, ou mandou embora a todos,
Doras, filho de Doras, e os que ele espalhou pelos outros lugares das campinas deles têm a obrigação de
não falar de Ti, sob pena de açoites… Ora, que não falem de Ti! Vai ser difícil! Até Jocanã nos disse isso.
– Que foi que ele disse?
– Ele disse assim: “Eu não quero ser tão estulto como Doras, e não vos digo: ‘Não quero que faleis do
Nazareno’. Seria inútil, porque vós o faríeis do mesmo modo, e eu não vos quero perder, matando-vos como
uns animais debaixo dos açoites. Mas eu vos digo: ‘Sede bons, como certamente o Nazareno vos ensina, e
dizei-lhe que eu vos trato bem’. Pois eu não quero ser também um amaldiçoado.” Ele está vendo bem o que
está acontecendo com estes campos, depois que Tu os abençoaste, e o que são aqueles outros campos,
depois que Tu os amaldiçoaste. 190.2Oh! Ali estão aqueles que me araram o campo[37]… –e o homem vai
correndo ao encontro de Pedro e André.
Mas Pedro o saúda brevemente, e continua o seu caminho, depois grita:
– Oh! Mestre! Não há mais nenhum. São todos rostos novos. Tudo está devastado. Em verdade, ele
poderia até deixar de ter camponeses por aqui. Aqui é pior do que no Mar Salgado!…
– Eu sei. Isaías me disse.
– Mas, vem ver! Que vista!…
Jesus o contenta, dizendo primeiro a Isaías:
– Agora estarei convosco. Avisa aos companheiros. E não vos incomodeis. Comida, Eu tenho. Basta-nos
um feneiro para dormirmos e o vosso amor. Eu irei logo.
A vista dos campos de Doras é realmente desoladora. Campos e prados áridos e nus, secos os vinhedos,
destruídas as folhagens e os frutos nas árvores por milhões de insetos de toda espécie. Também perto da
casa o jardim-pomar mostra o aspecto desolado de um bosque que está morrendo. Os camponeses andam
para cá e para lá, arrancando ervas más, esmagando lagartas, lesmas e semelhantes, sacudindo os ramos e
segurando por debaixo deles bacias cheias de água, para afogar as pequenas borboletas, os pulgões e
outros parasitas, que estão por cima das folhas que sobraram, e que chupam a planta até fazê-la morrer.
Procuram um sinal de vida nos sarmentos dos vinhedos. Mas estes se despedaçam de secos, mal são
tocados e, às vezes, se quebram na base, como se uma serra lhes tivesse cortado as raízes. O contraste com
os campos de Jocanã, com os vinhedos e pomares dele, é muito forte; a desolação dos campos malditos
sempre se torna mais violenta, se for comparada com a fertilidade dos outros.
– Quão pesada é a mão do Deus do Sinai –murmura Simão Zelotes.
Jesus faz um sinal como para dizer: “Oh, se é!” Mas não diz nada. Somente faz esta pergunta:
– Como é que aconteceu isto?
Um dos camponeses responde por entre dentes:
– Toupeiras, gafanhotos, vermes… Mas, vai-te! O vigia é fiel a Doras… Não queiras nos prejudicar…
Jesus dá um suspiro, e vai-se embora.
Outro camponês diz, ficando inclinado para escorar uma macieira, na esperança de salvá-la:
– Nós iremos a Ti amanhã… quando o vigia for para Jezrael fazer a oração… iremos à casa de Miqueias…
Jesus faz um gesto de benção, e se vai.
190.3 Quando ele chega de volta à encruzilhada, lá estão todos os camponeses de Jocanã, festivos, felizes,
e rodeiam o seu Mestre, levando-o às suas pobres casas.
– Viste o que há por lá?
– Eu vi. Amanhã virão os camponeses de Doras.
– Está bom, enquanto as hienas vão rezar… Fazemos assim todos os sábados… e falamos sobre Ti, pelo
que ficamos sabendo por Jonas, por Isaac, que frequentemente vem nos ver, e pelo discurso de Tirsi. O que
sabemos, falamos. Porque não se pode deixar de falar de Ti. E, quanto mais falamos, tanto mais se sofre e é
proibido fazer isso. Aqueles pobres… cada sábado bebem a vida. Mas nesta planície, quantos há que tem
necessidade de saber, pelo menos saber de Ti, e que não podem vir até aqui…
– Eu pensarei também neles. E vós, sede benditos, pelo que estais fazendo.
O Sol vai entrando, enquanto Jesus também entra numa cozinha esfumaçada. Começa o repouso do
sábado.
[37] aqueles que me araram o campo em 109.4.
191. O dia de sábado em Esdrelon. O pequeno
Jabé a parábola do rico Epulão.
16 de junho de 1945.
191.1 – Entrega a Miqueias o tanto de dinheiro com que amanhã ele possa reembolsar tudo o que hoje ele
tomou emprestado dos camponeses desta zona –diz Jesus a Judas Iscariotes, que vem administrando os…
bens comuns.
Depois, Jesus chama André e João, e os manda a dois pontos, dos quais se pode ver a estrada, ou as
estradas que vêm de Jezrael. Chama em seguida a Pedro e Simão, e os manda ir ao encontro dos
camponeses de Doras, com a ordem de detê-los perto do limite das duas propriedades. Por fim, Ele diz a
Tiago e Judas:
– Apanhai os alimentos e vinde.
Os camponeses de Jocanã os acompanham: mulheres, homens e crianças, levando os homens duas
pequenas ânforas. Pequenas é um modo de dizer, e devem estar cheias de vinho. Elas são mais do que
ânforas, são, antes, grandes jarras, contendo mais ou menos uns dez litros cada uma. (Peço sempre que não
tomem as minhas medidas como artigos de fé). Vão até o lugar onde um viçoso vinhedo, que já está coberto
de folhas novas, marca o fim das propriedades de Jocanã. Para lá há um largo fosso conservado cheio
d’água, sabe Deus com que trabalho.
– Estás vendo? Jocanã entrou em litígio com Doras por causa disto. Jocanã dizia: “A culpa é do teu pai,
de estar tudo arruinado. Se não queria adorá-lo, pelo menos o devia temer, e não ficar provocando-o.” E
Doras urrava e parecia um demônio, e dizia: “Tu ainda salvaste tuas terras por causa deste fosso. Os bichos
não puderam atravessá-lo…” E Jocanã dizia: “E, então, como é que tens agora tantas ruínas, quando antes
os teus campos eram os mais belos de Esdrelon? Isso é o castigo de Deus, podes crer. Vós passastes da
medida. Esta água? Sempre aí esteve. Mas não foi ela que me salvou.” E Doras urrava: “Isto prova que
Jesus é um demônio.” “É um justo”, urrava Jocanã. E foram andando para a frente mais um pouco, enquanto
tiveram fôlego, e depois Jocanã fez, com grandes despesas, uma derivação de águas da torrente e uma
escavação para procurar outras águas no solo, e fazer toda uma série de fossos no limite entre ele e o
parente, e mandou fazê-los mais fundos, e a nós disse o que te dissemos ontem… Afinal, ele está feliz com
tudo o que aconteceu. Ele tinha muita inveja de Doras… Agora, ele espera poder comprar tudo, porque
Doras acabará vendendo tudo por dois vinténs.
191.2 Jesus ouve com benignidade todas essas confidências e, ao mesmo tempo, vai atendendo aos pobres
camponeses de Doras, que não tardam a chegar e a se prostrarem no chão, logo que vêem Jesus, que está
abrigado à sombra de uma árvore.
– A paz a vós, amigos. Vinde. Hoje a sinagoga é aqui e Eu sou o sinagogo. Mas antes quero ser o vosso
pai de família. Sentai-vos ao redor de Mim, para que Eu vos dê algum alimento. Hoje tendes convosco o
esposo, e façamos um banquete de núpcias.
Jesus, então, descobre uma cesta, e dela vai tirando pães, que Ele vai distribuindo aos espantados
camponeses de Doras e, de uma outra cesta, vai tirando os alimentos que pôde encontrar: queijos,
verduras, que Ele mandou cozinhar e um pequeno cabrito ou cordeirinho, cozido inteiro, e que Ele vai
repartindo com os pobres infelizes. Depois, despeja o vinho no cálice rústico, e o faz circular para que todos
bebam.
– Mas por quê? Mas por quê? E eles? –dizem os de Doras, mostrando os de Jocanã.
– Eles já receberam.
– Mas, que despesa! Como pudeste?
– Ainda há gente boa em Israel –diz Jesus sorrindo.
– Mas hoje é sábado…
– Agradecei a este homem –diz Jesus, mostrando o homem de Endor–. Foi ele quem procurou o cordeiro.
Tudo o mais foi fácil conseguir.
Os pobrezinhos estavam devorando — esta é a palavra — um alimento que fazia tempo que não viam.
191.3 Mas um deles, já um tanto idoso, que segura a seu lado um menino de uns dez anos, está comendo e
chorando.
– Por que, pai, estás fazendo assim? –pergunta Jesus.
– Porque a tua bondade é demais…
O homem de Endor diz, então, com aquela sua voz gutural:
– É verdade… e faz chorar. Mas é um choro sem amargura…
– É sem amargura. É verdade. E depois… eu quereria uma coisa. Este meu choro é também um desejo.
– Que queres, pai?
– Estás vendo este menino? É meu neto. Veio ficar comigo depois da avalanche deste inverno. Doras nem
ficou sabendo que ele veio ficar comigo, porque eu o faço viver como se fosse um animal, no mato, e só aos
sábados é que o vejo. Se Doras o descobrir, ou o expulsará, ou o porá a trabalhar… e, então, ele vai ser
tratado pior do que um animal de carga, este pobre herdeiro do meu sangue… Pela Páscoa o mandarei com
Miqueias a Jerusalém, para se tornar filho da Lei… e depois?… É o filho da minha filha…
– Mas, em vez disso, não o darias a Mim? Não chores. Eu tenho muitos amigos, homens honestos, santos
e sem filhos. Eles o educarão santamente, no meu Caminho…
– Oh! Senhor! Desde que ouvi falar de Ti, eu desejei isso. E eu pedia ao santo Jonas, ele que sabe o que
quer dizer pertencer a este patrão, que salvasse o meu neto desta morte…
– Menino, tu irias comigo?
– Sim, meu Senhor. E não te darei aborrecimentos.
– Então está bem.
191.4 – Mas… a quem é que o vais dar? –pergunta Pedro, puxando Jesus pela manga–. A Lázaro mais este?
– Não, Simão. Mas, há tantos sem filhos…
– Entre eles, também eu…
O rosto de Pedro parece até ficar mais afilado, pelo desejo.
– Simão, Eu já te disse[38]. Tu deves ser o “pai” de todos os filhos que Eu vou te deixar como herança.
Contudo, não deves estar preso a nenhum filho teu próprio. Mas, não fiques contrariado com isso. Tu és
muito necessário ao Mestre, para que o Mestre possa afastar-te de Si, por causa de algum afeto. Eu sou
exigente, Simão. Sou exigente, mais do que um esposo muito ciumento. Eu te amo com toda a predileção e
te quero ter todo para Mim e de Mim.
– Está bem, Senhor… Está bem… Seja feito como Tu queres.
O pobre Pedro é heróico em sua adesão a esta vontade de Jesus.
– Será o filho da minha nascente Igreja. Não está bem? De todos e de ninguém. Será o “nosso” menino.
Ele nos acompanhará, quando as distâncias o permitirem, ou virá a nós, e os tutores dele serão os pastores,
eles que em todos os meninos amam ao “seu” menino Jesus. Vem cá, menino. Como te chamas?
– Jabé de João, e sou de Judá –diz com segurança o menino.
– Sim, nós somos judeus –confirma o velho–. Eu trabalhava nas terras de Doras, na Judeia, e minha filha
se casou com um homem daqueles lados. Ele estava trabalhando nos bosques, perto de Arimateia, e, neste
inverno…
– Eu vi o triste acontecimento[39].
– O menino salvou-se, porque naquela noite ele estava na casa de um parente distante…
verdadeiramente ele tem esse nome, Senhor. Eu disse isso logo à minha filha: “Por que há de ser este? Não
te lembras mais do antigo[40]?” Mas o marido quis chamá-lo assim, e ficou sabendo Jabé.
– “O menino invocará o Senhor, e o Senhor o abençoará, e dilatará os seus confins e a mão do Senhor
está sobre a mão dele, e ele não será oprimido pelo mal.” Isto lhe concederá o senhor, para te consolar a ti,
pai, aos espíritos dos mortos, e confortar o órfão.
191.5 E agora, que já separamos as necessidades do corpo das necessidades da alma, com um ato de amor
ao menino, escutai a parábola, que eu criei para vós.
Há tempo, havia um homem muito rico. As roupas mais bonitas eram as dele e, em seus hábitos de
púrpura e de bisso, ele se pavoneava pelas praças e em sua casa, respeitado pelos cidadãos como o homem
mais poderoso da cidade, e pelos amigos que o estimulavam em sua soberba, para disso tirarem alguma
vantagem. Suas salas estavam abertas todo dia para esplêndidos banquetes nos quais a multidão dos
convidados, todos eles ricos e, portanto não necessitados, se inclinavam, em adoração diante do rico
Epulão. Seus banquetes eram célebres pela abundância de alimentos e de vinhos excelentes.
Mas naquela mesma cidade havia um mendigo, um grande mendigo. Grande em sua miséria, como o
outro era grande em sua riqueza. Mas, por debaixo da crosta da miséria humana do mendigo Lázaro, estava
escondido um tesouro ainda maior do que a miséria dele e do que a riqueza de Epulão. Esse tesouro era a
santidade verdadeira de Lázaro. Ele nunca havia transgredido a Lei, nem mesmo impelido pela necessidade
e, sobretudo, tinha obedecido ao preceito do amor para com Deus e para com o próximo. Ele, como sempre
fazem os pobres, aproximava-se da porta dos ricos para pedir uma esmola e não morrer de fome. E cada
tarde, ele ia até à porta de Epulão, esperando receber dele pelo menos as migalhas dos pomposos
banquetes que se davam nas riquíssimas salas. Ele se deitava na rua, perto da porta e ficava esperando
pacientemente. Mas se Epulão percebia que ele estava lá, mandava que o expulsassem, porque aquele
corpo coberto de feridas, desnutrido, com roupas rasgadas, era uma coisa muito triste para ser vista pelos
convidados. Assim dizia Epulão. Na verdade, porém, era porque aquela vista de miséria e de bondade era
uma reprovação contínua para ele. Mais compassivos do que ele, eram os seus cães, bem alimentados,
usando colares preciosos, que se aproximavam do pobre Lázaro e lhe lambiam as chagas, ganindo de
alegria pelas carícias que ele lhes fazia, e que chegavam até a levar-lhe dos sobejos das ricas mesas, e
assim Lázaro se ia recuperando da desnutrição com o que lhe levavam aqueles animais, pois, se dependesse
do homem, ele já estaria morto, já que o homem não lhe permitia nem mesmo entrar nas salas, depois do
banquete, para recolher as migalhas caídas das mesas.
191.6 Um dia Lázaro morreu. Ninguém ficou sabendo disso na terra, ninguém o chorou. Epulão, até pelo
contrário, se alegrou por não ver naquele dia, nem depois, aquela miséria que ele dizia ser “uma vergonha”
junto à soleira de sua casa. Mas no Céu os Anjos perceberam isso. E, em seu último suspiro, em sua
choupana pobre e necessitada de tudo, estavam presentes as coortes celestes que, em meio a um fulgurar
de luzes, recolheram a alma dele, levando-a, com cântico de hosanas, ao seio de Abraão.
Pouco tempo depois, morreu Epulão. Oh! Que funerais faustosos! A cidade toda, que soubera de sua
agonia e se aglomerava na praça em que ficava a morada dele, ou para que se notasse que era amiga
daquele “grande”, ou por curiosidade, por algum interesse junto aos herdeiros, foi unir-se ao pesar da
família, e os uivos subiram ao céu, e com os uivos do luto os elogios mentirosos feitos ao “grande”, ao
“benfeitor”, ao “justo” que havia morrido.
Mas, poderá a palavra do homem mudar o juízo de Deus? Poderá alguma apologia humana cancelar tudo
o que está escrito no livro da Vida? Não, não pode. O que está julgado, julgado está, o que foi escrito,
escrito está. E, mesmo tendo um enterro solene, Epulão teve o seu espírito sepultado no inferno.
E, então, naquele cárcere horrível, bebendo e comendo fogo e trevas, encontrando ódio e torturas por
toda parte e em todos os instantes daquela eternidade, ele levantou os olhos ao Céu. Ao Céu, que ele tinha
podido entrever[41], no meio de um esplendor fulgurante, em uma fração de minuto, e cuja beleza indizível
se lhe fazia agora presente, para ser tormento, entre os tormentos atrozes. E viu, lá no alto, a Abraão. Ele
estava lá longe, mas fúlgido, bem-aventurado… e em seu seio, também fúlgido e bem-aventurado, estava o
pobre Lázaro, que outrora fora desprezado, quando era repulsivo, miserável, e agora?… E agora, cheio da
beleza da luz de Deus e de sua santidade, rico de amor de Deus, e admirado, não pelos homens, mas pelos
Anjos de Deus.
Então, Epulão gritou gemendo: “Pai Abraão, tem dó de mim! Manda Lázaro, pois não posso esperar que
tu mesmo o faças, que ele molhe a ponta do dedo dele na água, e venha pousá-lo sobre a minha língua, para
refrescá-la, porque eu estou numa grande aflição, por causa deste fogo, que está me queimando!”
Abraão lhe respondeu: “Recorda-te, meu filho, que tu tiveste todos os bens em vida, enquanto que
Lázaro teve todos os males. Ele ainda soube fazer do mal um bem, enquanto tu não soubeste de teus bens
fazer nada que não fosse mal. Por isso, é justo que agora ele seja aqui consolado e que tu sofras. Além
disso, não é mais possível fazer o que pedes. Os santos estão espalhados pela terra, para que os homens
deles tirem alguma vantagem. Mas, quando, não obstante essa vizinhança o homem continua a ser o que
é, — no teu caso, um demônio — aí é inútil recorrer depois aos santos. Agora, nós estamos separados. As
ervas nos campos estão misturadas. Mas desde que foram cortadas pela foice, ficam separadas as boas das
más. Assim é que acontece convosco e conosco. Estivemos juntos na terra, e nos expulsastes e nos
atormentastes de todos os modos e, indo contra o amor, vós esquecestes de nós. Agora estamos separados.
Entre vós e nós há um abismo tão grande, que os que quiserem passar daqui para vós não o podem fazer;
nem vós que aí estais, podeis atravessar o tremendo abismo, para virdes até nós.”
191.7 Epulão, chorando mais fortemente, gritou: “Pelo menos, ó pai santo, manda, eu to peço, manda que
Lázaro vá à casa de meu pai. Eu tenho cinco irmãos. Eu nunca compreendi o amor, nem mesmo para com
meus parentes. Mas agora, agora eu compreendo que coisa horrível é não sermos amados. Além disso, aqui
onde estou só existe ódio, e agora é que compreendo, por aquele instante de tempo em que minha alma
pôde ver a Deus, o que é o Amor. Não quero que os meus irmãos venham a sofrer o que eu estou sofrendo.
Eu fico aterrorizado por causa deles, pois eles levam a vida que eu levei. Oh! Manda lázaro dizer-lhes
onde eu estou e porque aqui estou e que o inferno existe, e é atroz, e que quem não ama a Deus e ao
próximo vem para o inferno. Manda-o! Para que, em tempo, eles se precavenham, e não tenham que vir
para cá, para este lugar de eterno tormento.”
Mas Abraão lhe respondeu: “Os teus irmãos têm Moisés e os Profetas. Que eles os ouçam.”
E, com um gemido de alma torturada, respondeu Epulão: “Oh! Pai Abraão! Se um morto for falar com
eles, ficarão mais impressionados… Escuta-me! Tem piedade!”
Mas Abraão disse: “Se eles não quiseram escutar a Moisés e aos Profetas, não acreditarão, nem que
alguém ressuscite dos mortos, por uma hora, para ir dizer a eles palavras de Verdade. E, além disso, não é
justo que um bem-aventurado deixe o meu seio, para ir receber ofensas dos filhos do inimigo. O tempo das
injúrias para ele já passou. Agora ele está na paz, e aí fica, por ordem de Deus, que vê a inutilidade de uma
tentativa de conversão para aqueles que não crêem nem na palavra de Deus, e não a põem em prática.”
Esta é a parábola, cujo sentido é tão claro, que nem precisa de explicação.
191.8 Aqui verdadeiramente viveu, conquistando a santidade de um novo Lázaro, meu Jonas, cuja glória
diante de Deus é evidente, pela proteção que ele dá a quem espera Nele. A vós sim, Jonas pode vir, como
protetor e amigo, e virá se fordes sempre bons. Eu desejaria, e vos digo o que Eu disse[42] a ele na
primavera passada, Eu desejaria ajudar-vos a todos até com bens materiais, mas não posso, e esta é a
minha dor. Eu só posso mostrar-vos o Céu. Não posso senão ensinar-vos a grande sabedoria da resignação e
prometer-vos o Reino futuro. Não odieis nunca, por nenhuma razão. O ódio é forte no mundo. Mas o ódio
tem sempre um limite. Já o amor não tem limite, nem de poder, nem de tempo. Amai, pois, a fim de que
possais possuí-lo para a vossa defesa e conforto nesta terra, e como um prêmio no Céu. É melhor serdes
Lázaros do que Epulões, podeis acreditar. Procurai chegar a crer nisto e sereis bem-aventurados.
Não queirais ver no castigo destes campos uma palavra de ódio, ainda que os fatos o podiam justificar.
Não leiais mal o milagre. Eu sou o Amor, e não o teria ferido. Mas, visto que o Amor não podia dobrar o
Epulão cruel, Eu o abandonei à Justiça, e ela fez a vingança do mártir Jonas, e dos seus irmãos. Vós
aprendei isto do milagre. Que a Justiça está sempre vigilante, até quando parece estar ausente, e que,
sendo Deus o Senhor de todas as criaturas, pode servir-se, para a aplicação da Justiça, das mais pequeninas
delas, como as lagartas e as formigas para morderem o coração do cruel e do avarento e fazê-lo morrer, ao
vomitar o veneno que o sufoca.
191.9 Eu vos abençôo agora. Mas por vós rezarei em cada nova aurora. E tu, pai, não tenhas mais
preocupações com o cordeiro que me confias. Eu o trarei a ti, de vez em quando, para que possas alegrar-te
em vê-lo crescendo na sabedoria e na bondade pelos caminhos de Deus. Será o teu cordeiro desta tua pobre
Páscoa, o mais agradável dos cordeiros apresentados ao altar do Senhor. Jabé, saúda a teu velho pai, depois
vem ao teu Salvador, ao teu Bom Pastor, A paz esteja convosco!
– Oh! Mestre! Bom Mestre! Vais deixar-nos!…
– Sim. É doloroso. Mas não fica bem que o guarda vos encontre aqui. Eu vim aqui justamente para evitar
punições. Obedecei por amor ao Amor, que vos aconselha.
Os infelizes se levantam com lágrimas nos olhos e vão para a sua cruz. Jesus os abençoa ainda e depois,
com a mão do menino na sua e com o homem de Endor do outro lado, volta pelo mesmo caminho por onde
veio à casa de Miqueias, acompanhado por André e por João que, tendo feito o seu turno de guarda, vão
unir-se aos coirmãos.
[38] Eu já te disse em 104.5. O anterior alusão a Lázaro está ligada ao fato de 172.11.
[39] Eu vi o triste acontecimento em 139.2.
[40] do antigo, segundo a citação que segue, trata-se de 1 Crônicas 4,9-10.
[41] levantou os olhos ao Céu. Ao Céu, que ele tinha podido entrever… e cuja beleza indizível… deve se entender no sentido que MV corrigiu em
uma cópia datilografada: levantou o olhar ao Limbo dos santos que havia visto... e o qual já de indizível pacífica beleza...
[42] disse em 89.1.
192. Uma predição feita a Tiago de Alfeu. Chegada
a Enganim, depois de uma parada em Magedo.
17 de junho de l945.
192.1 – Senhor, aquele cimo é o Carmelo? –pergunta-lhe o primo Tiago.
– Sim, irmão. Aquela é a cadeia do Carmelo, e o cume mais alto é o que dá nome à cadeia.
– De lá de cima também deve ser bonito ver o mundo. Já estiveste lá?
– Já estive uma vez sozinho, no começo da minha pregação. Foi aos pés do Carmelo que Eu curei meu
primeiro leproso. Mas iremos até lá juntos, para nos lembrarmos de Elias…
– Obrigado, Jesus. Tu me compreendeste, como sempre.
– E, como sempre, Eu te aperfeiçoo, Tiago.
– Por quê?
– O porquê está escrito no Céu.
– Não me dirias, meu irmão, Tu que lês o que está escrito no Céu?
Jesus e Tiago vão andando um ao lado do outro, e só o pequeno Jabé, sempre levado pela mão de Jesus,
pode ouvir a conversação confidencial dos primos, que sorriem um para o outro, olhando-se nos olhos.
Jesus, passando um braço por sobre as costas de Tiago, para puxá-lo mais para perto, pergunta-lhe:
– Queres tu saber mesmo? Está bem, Eu irei te dizer, por meio de uma adivinhação e, quando achares a
chave dela, ficarás sabendo. Escuta[43]: “Tendo-se reunido os falsos profetas no Monte Carmelo, Elias
aproximou-se do povo, e disse: ‘Até quando ficareis mancando dos dois lados? Se o Senhor é Deus, segui-o;
se é Baal, segui-o’. O povo nada respondeu. Elias, então, continuou a dizer ao povo: ‘Dos profetas do Senhor
só fiquei eu’.” E a única força deste solitário era para gritar: “‘Ouve-me, ó Senhor Deus, ouve-me, a fim de
que este povo reconheça que Tu és o Senhor Deus, e que tornaste a converter os seus corações’. Aí o fogo
do Senhor caiu, e devorou o holocausto.” Meu irmão, agora adivinha!
Tiago fica pensando, de cabeça inclinada, e Jesus o olha sorrindo. Fazem alguns metros assim, depois
Tiago pergunta:
– Tem alguma coisa que ver com Elias, ou com o meu futuro?
– Com o teu futuro, naturalmente…
Tiago continua a pensar, depois murmura:
– Estaria eu destinado a convidar Israel para seguir de verdade por um caminho? Estaria eu chamado
para ser o único sobreviventes em Israel? Se for assim, queres dizer que os outros serão perseguidos e
dispersos e que… e que… eu rezarei a Ti pela conversão deste povo… como se fosse um sacerdote… como
se eu fosse uma vítima… Mas, se for assim, queima-me desde já, Jesus…
– Já o estás sendo. Mas serás arrebatado pelo Fogo, como Elias[44]. Sobre isso é que iremos, Eu e tu
sozinhos, conversar lá no Carmelo.
– Quando? Depois da Páscoa?
– Depois de uma Páscoa, sim. E nessa ocasião, te direi muitas coisas…
192.2 Um bonito riozinho, que vai correndo para o mar e que ficou cheio com as chuvas da primavera e
com as neves derretidas, faz que eles parem ali.
Pedro chega correndo, e diz:
– A ponte é mais lá em cima, por onde passa a estrada que de Ptolomaida vai para Enganim.
Jesus volta docilmente atrás e atravessa o riozinho por uma forte ponte de pedra. Logo depois, vão
aparecendo outras montanhas e colinas, mas de pequena importância.
– Estaremos esta tarde em Enganim? –pergunta Filipe.
– Com certeza. Mas agora nós estamos com o menino. Estás cansado, Jabé? –pergunta-lhe Jesus
amorosamente–. Sê sincero como um anjo.
– Um pouco, Senhor. Mas vou fazer força para andar.
– Este menino está debilitado –diz com sua voz gutural o homem de Endor.
– Sem dúvida nenhuma –exclama Pedro–. Com a vida que vem levando nestes últimos meses. Vem que eu
te levo nos braços.
– Oh! Não, senhor. Não te canses. Eu ainda posso caminhar.
– Vem, vem, com certeza não és pesado. Pareces um passarinbo mal alimentado –e Pedro o levanta,
pondo-o montado sobre seus ombros robustos e segurando-o pelas pernas.
Vão andando depressa, porque o sol já está forte, convidando-os e os estimulando a chegarem logo às
colinas sombreadas.
192.3 Param em um lugar, que eu ouço chamar de Magedo, para aí tomarem alimento e descanso, ao lado
de uma fonte muito fresca e barulhenta por causa da grande quantidade de água que dela brota em uma
bacia de pedra escura. Mas ninguém do lugar se interessa por aqueles viandantes, que são anônimos entre
os muitos outros peregrinos, mais ou menos ricos, que vão indo a pé ou em seus burrinhos e mulas, rumo a
Jerusalém, para a Páscoa. Já há aí um ar de festa e muitos meninos, que estão entre os peregrinos, vão
muito contentes, com o pensamento na cerimônia da maioridade.
Dois rapazinhos, de condições abastadas, que vieram brincar perto da fonte, enquanto aí está Jabé com
Pedro, que o traz consigo, agradando-o com mil coisinhas, perguntam ao rapazinho:
– Tu também estás indo para te tornares filho da Lei?
Jabé responde timidamente:
– Sim –mas vai esconder-se quase por detrás de Pedro.
– Este é o teu pai? Tu és pobre, não é?
– Eu sou pobre, sim.
Os dois meninos, talvez filhos de fariseus, ficam olhando para ele de um modo irônico e curioso, e dizem:
– Logo se vê.
E de fato se vê… Sua roupinha é bem mísera! Talvez o menino cresceu, mas, não obstante que a orla da
veste de cor marron desbotada pelas intempéries, tenha sido desfeita, o vestido mal chega a metade de
suas perninhas morenas, deixando assim bem descobertos os pés mal calçados com duas desconformes
sandálias, presas aos pés por umas cordinhas, que os devem torturar bastante.
Os meninos, desapiedados por aquele egoísmo próprio de muitos meninos e pela crueldade dos meninos
que não são bons, dizem:
– Oh! Então não terás uma roupa nova para a tua festa! Mas nós, sim!… Não é, Joaquim? A minha é toda
vermelha, com capa da mesma cor. Ele tem a dele da cor do céu e teremos sandálias com fivelas de prata,
um cinto precioso e um talete, seguro por uma lâmina de ouro e…
– … e um coração de pedra, digo eu –dispara Pedro, que acabou de refrescar seus pés e de apanhar água
para todos os odres–. Vós sois maus, rapazinhos. A cerimônia e a veste não valem nem uma rã, se o coração
não for bom. Eu prefiro o meu menino. Saí soberbos! Ide para os ricos e tende respeito para com quem é
pobre e honesto. 192.4Vem, Jabé. Esta água é boa para os teus pezinhos cansados. Vem, que eu te lavo. Depois
tu caminharás melhor. Oh! Estas cordinhas, como te fizeram mal! Não deves caminhar mais. Eu te levarei
nos braços, até chegarmos a Enganim. Lá eu vou encontrar um vendedor de sandálias e comprar para ti um
par de sandálias novas.
E Pedro lava e enxuga aqueles pezinhos que, há tempo, não recebiam tantas carícias.
O menino olha para ele, fica dúvidando, mas acaba encurvando-se sobre o homem, que lhe está atando
as sandálias, e o abraça com os seus bracinhos descarnados, e diz:
– Como és bom! –e o beija sobre os cabelos grisalhos.
Pedro fica comovido. Ele se assenta no chão, lá mesmo na terra molhada, do jeito que está, e põe o
menino em seu colo, dizendo:
– Então, chama-me de “pai.”
Forma-se um conjunto cheio de ternura. Jesus se aproxima com os outros. Mas antes, os dois
orgulhozinhos de há pouco, que lá tinham permanecido como curiosos, perguntam:
– Então, ele não é teu pai?
– Para mim, ele é pai e mãe –diz com firmeza Jabé.
– Sim, querido. Disseste bem: pai e mãe. E, meus caros senhorinhos, eu vos garanto que ele não irá mal
vestido para a cerimônia. Terá ele também uma veste de rei, vermelha como o fogo, e com um cinto verde
como a erva e um talo pequeno branco como a neve.
Ainda que a mistura não seja de todo harmoniosa, contudo ela espanta os dois vaidosos, e os põe em
fuga.
– Que estás fazendo, Simão, aí no molhado? –pergunta Jesus com um sorriso.
– No molhado? Ah! Sim. Agora é que eu percebi. Que é que estou fazendo? Eu me faço cordeiro de novo,
com a inocência no coração. Ah! Mestre! Mestre! Bem! Vamos andando. Mas me deves deixar fazer assim
com este pequeno. Depois, o cederei. Mas, enquanto não for um verdadeiro israelita, é meu.
– Mas, sim. E tu serás dele sempre o tutor como um velho pai. Está bem assim? Vamos, para podermos
estar à tarde em Enganim, sem precisarmos fazer o menino correr demais.
– Eu o levo. Minha rede pesa mais do que ele. Ele não pode caminhar assim, com estas duas solas
furadas. Vem.
E, carregando-se com o seu filhinho, Pedro retoma feliz o seu caminho, cada vez mais sombreado, por
entre bosques de várias frutas, subindo suavemente pelas colinas das quais a vista se espraia por sobre a
fértil planície de Esdrelon.
192.5 Já chegaram às vizinhanças de Enganim, — que deve ser uma bela cidadezinha, bem abastecida de
água que vem transportada das colinas por um aqueduto aéreo, provavelmente obra romana — quando o
rumor de um pelotão de soldados, que vem chegando, faz que eles se refugiem à beira do caminho. Os
cascos dos cavalos fazem barulho no caminho que, aqui nos subúrbios da cidade, apresenta uma aparência
de pavimentação, que mal aflora da poeira acumulada junto com detritos, sobre uma rua que nunca viu uma
vassoura.
– Salve, Mestre! Como? Por aqui? –grita Públio Quintiliano, apeando do cavalo e aproximando-se de
Jesus com um sorriso aberto, segurando o cavalo pela rédea. Seus soldados põem-se a andar aos passos,
para acompanharem seu superior.
– Estou indo a Jerusalém para a Páscoa.
– Eu também. Reforça-se a guarda durante as festas, mesmo porque Pôncio Pilatos vem à cidade para
elas, e também porque lá está Cláudia. Nós somos a vanguarda dela. As ruas são tão sem segurança! E as
águias espantam os chacais –diz o soldado –rindo-se e olhando para Jesus.
Depois, continua em voz baixa:
– A guarda este ano é dobrada, para proteger as costas do imundo Antipas. Há um grande
descontentamento pela prisão do Profeta. Descontentamento em Israel, por reflexo, também entre nós.
Mas… já providenciamos: vai chegar ao Sumo Sacerdote e seus cúmplices… um suave… tocar de flautas.
E, ainda em voz baixa, ele termina:
– Vai tranquilo. Todos aqueles unhões já se recolheram às suas patas. Ah! Ah! Eles têm medo de nós.
Basta limpar a garganta e já pensam que é um rugido. Vais falar em Jerusalém? Vem perto do pretório.
Cláudia fala de Ti como de um grande filósofo. É bom para Ti, porque… o procônsul é a Cláudia.
192.6Ele olha ao redor de si, e vê Pedro carregado, vermelho e suado.
– E esse menino?
– É um órfão que tomei comigo!
– Mas aquele teu homem se cansa demais! Menino, tens medo de ir alguns metros a cavalo? Eu te porei
debaixo da clâmide, e irei devagar. E te entregarei a… a este homem, quando estivermos às portas da
cidade.
O menino não faz resistência. Deve ser manso como um cordeiro e Públio o levanta consigo para a sela.
E, quando está dando ordens aos soldados para irem devagar, vê o homem de Endor, fixa nele os olhos, e
diz:
– Tu por aqui?
– Sou eu. Parei de vender ovos aos romanos. Mas os frangos ainda estão lá. Agora, eu estou com o
Mestre…
– Que bom para ti. Com isto terás mais conforto. Adeus. Salve, Mestre. Vou esperar-te naquela moita de
árvores.
E esporeia o cavalo.
– Tu o conheces? E ele te conhece? –perguntam muitos ao João de Endor.
– Sim. Eu era fornecedor de frangos. Antes, ele não me conhecia. Mas, certa vez, fui chamado ao
comando em Naim, para fixar as cotas, e ele estava lá. Desde então, quando eu ia a Cesareia comprar livros
ou utensílios, ele sempre me saudou. Ele me chama de Cíclope ou Diógenes. Não é mau homem e, por mais
que eu tenha ódio aos romanos, contudo não o ofendi, porque ele podia me ser útil.
– Ouviste, Mestre? Produziu bom efeito o meu discurso ao centurião de Cafarnaum. Agora vou mais
tranquilo –diz Pedro.
Chegam a um capão de mato, a cuja sombra a patrulha apeou dos cavalos.
– Agora, vou entregar o menino. Quais são as tuas ordens, Mestre?
– Nenhuma, Públio. Que Deus se manifeste a ti.
– Salve –e ele monta de novo e esporeia o cavalo, sendo acompanhado pelos seus com um grande
barulho das ferraduras dos cascos e das couraças dos soldados.
192.7 Entram na cidade, e Pedro, com o seu pequeno amigo, vai comprar as sandalinhas.
– Aquele homem morre de vontade de ter um filho –diz Zelotes, e termina:– Ele tem razão.
– Eu os darei aos milhares. Agora, vamos procurar abrigo, para prosseguirmos viagem amanhã à
primeira aurora.
[43] Escuta, e segue a citação que se trata de 1 Reis 18,20-22.26-38.
[44] como Elias em 2 Reis 2,11.
193. Chegada a Siquém depois de dois dias de caminho.
18 de julho de 1945.
193.1 Pelos caminhos, cada vez mais cheios de peregrinos, Jesus continua, indo para Jerusalém. Um
aguaceiro, que desceu de noite, formou um pouco de lama nas estradas, mas, em compensação, abaixou a
poeira e tornou o ar mais claro. As campinas parecem agora jardins bem cuidados pelo jardineiro.
Vão indo todos bem dispostos, porque puderam descansar bastante na parada, e porque o menino, agora
com suas sandalinhas novas, não sofre com a viagem, mas, ao contrário, cada vez mais se vai acostumando
com os companheiros, fala com um e com outro, conta a João que seu pai se chamava João, e sua mãe Maria e
que, por isso, ele gosta muito de João.
– Mas também –termina ele–, quero bem a todos, e, no Templo, vou rezar muito, tanto por vós, como pelo
Senhor Jesus.
É comovente ver como este grupo de homens, em sua maior parte sem filhos, tenham ares paternais e
cheios de cuidado para com o menor dos discípulos de Jesus. Até o homem de Endor se enternece em seu
aspecto, quando obriga o pequeno a beber um ovo, ou quando entra pelos bosques, que tornam verdes as
colinas e as montanhas, sempre mais altas, fendidas por grandes vales, em cujo fundo passa a estrada mestra,
para ir apanhar raminhos ligeiramente ácidos de sarça, ou talos cheirosos do funcho selvagem, trazendo-os
para o pequeno, a fim de matar-lhe a sede, sem enchê-lo de água. Também assim o vemos, quando ele não o
deixa ficar pensando na duração da viagem, fazendo-o observar as vistas e panoramas que vão se
apresentando.
O antigo pedagogo de Cíntium, arruinado pela maldade humana, revive por este menino, que é uma miséria
como ele mesmo também é, e vai desfazendo as rugas de sua desventura e de suas amarguras com este sorriso
bom que agora mostra. Se Jabé, agora com suas sandalinhas novas, já se sente menos infeliz e com sua carinha
menos triste, na qual não sei se não terá sido alguma mão apostólica que terá tido o cuidado de cancelar todos
aqueles sinais da vida selvagem levada por ele durante tantos meses, arrumando-lhe agora os cabelos, até aqui
descuidados, mas agora aparados e macios, depois de uma boa lavada, até o homem de Endor que ainda fica
um pouco perplexo, quando ouve que o estão chamando pelo nome de João, sacudindo depois a cabeça, com
um sorriso de compaixão para com a sua fraca memória, até ele também está bem diferente. A cada dia que
passa, seu rosto vai perdendo aquela dureza que tinha antes e vai adquirindo uma seriedade, que não causa
mais medo. Naturalmente, estas duas misérias que revivem pela bondade de Jesus, giram agora, pelo seu amor,
ao redor de seu Mestre. Os companheiros são queridos para eles, mas Jesus… Quando Ele olha para eles, ou
fala com eles, a expressão do rosto deles se torna inteiramente feliz.
193.2 Depois de terem atravessado o grande vale e, em seguida, uma colina verde e muito bonita, do alto da
qual se pode avistar a planície de Esdrelon — e isto faz que o menino suspire:
– Que estará fazendo o meu velho pai?
E faz que ele termine com um suspiro bem triste e um brilho de lágrimas em seus olhos castanhos:
– Oh! Ele está bem menos feliz do que eu… e ele é tão bom! –e o lamento do menino lança um ar de tristeza
sobre todos os rostos.
E aqui se começa a descer para um vale fértil cheio de campos cultivados e de oliveiras, e um vento brando
está fazendo cair a neve das florzinhas das videiras e das oliveiras mais precoces. E a planície de Esdrelon se
perde de vista para sempre.
Uma parada para a refeição, e de novo se toma o caminho para Jerusalém. Mas, ou deve ter chovido muito
ou, então, aqui é um lugar rico em águas subterrâneas, pois as pradarias estão parecendo mais um grande
brejo, visto que a água está brilhando por entre a folhagem cerrada, e sobe até alcançar a estrada um pouco
mais acima e, no entanto, não deixa por isso de ser muito lamacenta. Os adultos sungam as vestes, para que
elas não virem crostas de barro, enquanto Judas Tadeu põe sobre os ombros o menino, para que ele descanse e
para que possam atravessar mais depressa aquela zona inundada e talvez doentia. O dia já está no fim e eles,
depois de terem rodeado novas colinas e superado outro vale rochoso e enxuto, entram por uma região elevada
sobre um planalto rochoso e, abrindo caminho por entre os muitos peregrinos, vão procurar alojamento em
uma espécie de albergue muito rústico: é uma grande tenda, debaixo da qual foi posta palha abundante. e nada
mais.
Pequenas lâmpadas acesas aqui e ali iluminam as ceias das famílias dos peregrinos, famílias pobres como a
dos apóstolos, porque os ricos, em geral, já levantaram suas tendas fora do povoado, evitando os contatos com
os populares do lugar e com os pobres peregrinos.
Cai a noite e o silêncio….O primeiro que começa a dormir é o menino: ele se encolhe, cansado, no colo de
Pedro, que, depois, vai colocá-lo sobre a palha e o cobre com cuidado.
Jesus reúne os adultos para uma oração, depois cada um se joga sobre a palha, para descansar da longa
jornada.

193.3 No dia seguinte, a comitiva apostólica, que saiu de manhã, à tarde já está para entrar em Siquém, tendo
atravessado Samaria, de tão belo aspecto, cercada por muros, coroada por belos e majestosos edifícios, ao
redor dos quais se comprimem belas casas, enfileiradas. Tenho a impressão de que a cidade, como Tiberíades,
tenha sido reconstruída há pouco, e conforme os usos de Roma. Ao redor, do outro lado dos muros, há uma
faixa de terras muito férteis e bem cultivadas.
A estrada que da Samaria conduz a Siquém, vai se desenrolando e descendo, de um outeiro para outro, com
uma série de muros de arrimo para o terreno, o que me faz lembrar das colinas de Fiésole, com uma vista
magnífica para as verdes montanhas do sul e para uma planície muito bonita, que se estende para o oeste[45].
A estrada se inclina para descer até o vale, mas, de vez em quando, volta a subir, para atravessar outras
colinas, do alto das quais tem-se a visão da terra da Samaria, com suas belas culturas de oliveiras, de trigais,
de vinhedos, sobre os quais vigiam lá do alto das colinas os bosques de carvalhos e de outras árvores de tronco
alto, que devem ser providenciais contra os ventos que, vindos das gargantas, tendem a formar turbilhões, que
acabariam com as culturas. Esta região me faz lembrar muito aqueles pontos do nosso Apenino aqui perto da
Amiata, quando os nossos olhos contemplam, ao mesmo tempo, as culturas comuns e as de cereais da Marema,
e as colinas festivas, e os montes severos, que se elevam bem mais altos, no interior. Agora, não sei como está
a Samaria. Naquele tempo era muito bonita .
Agora, eis que, entre dois altos montes, os mais altos da região, vê-se, ao longo de um dos lados, um vale e,
no centro dele, muito férteis e com águas abundantes, estão as terras de Siquém. É aqui que Jesus e os seus
são alcançados pela faustosa caravana da corte do Cônsul, que está de viagem para as festas de Jerusalém.
Uns escravos vão a pé, outros vão em carros para tomarem cuidado com o transporte da mobília… Meu Deus,
quanta coisa podiam levar atrás de si naquele tempo! E, com os escravos, carros verdadeiros, carregados com
um pouco de tudo, e até de liteiras completas e carros para viagens: são carros amplos, de quatro rodas, com
um bom molejo, cobertos, para que neles se abriguem as damas… E depois, outros carros e escravos…
Um toldo está sendo afastado, sustentado por uma mão de uma mulher cheia de jóias, e aparece, então, o
perfil severo de Plautina, que saúda sem dizer nada, mas com um sorriso. A mesma coisa faz Valéria, que está
com sua pequenina entre os joelhos, toda animada, dando gritos e risadinhas. O outro carro de viagem, mais
pomposo ainda, passa sem que nenhum toldo seja afastado. Mas, depois de ter passado, faz-se ver, na parte
traseira do carro, o rosto rosado de Lídia, que faz um gesto de inclinação. E a caravana se distância…
193.4 – Viajam bem eles! –diz Pedro, cansado e suado–. Mas, se Deus nos ajudar, depois de amanhã, à tarde, já
estaremos em Jerusalém.
– Não, Simão. Eu preciso afastar-me do caminho e ir pelo Jordão.
– Mas, por quê, Senhor?
– Por causa do menino. Ele está muito triste e muito mais triste ficaria, ao ver o monte do triste
acontecimento.
– Mas não o vamos ver! Ou melhor, vamos vê-lo do outro lado… e… eu cuido de mantê-lo distraído. Eu e
João… Com pouca coisa ele se distrai, o pobre pombinho sem ninho. Mas, ir pelo Jordão, nunca! É melhor por
aqui. Melhor por aqui. Caminho direto. Mais breve. Mais seguro. Não. Não. Este, este. Tu o vês? Também as
romanas o fazem. Ao longo do mar e do rio se exalam as febres, com estas primeiras chuvas do verão. Por aqui
é saudável. E depois… Quando iremos chegar, se por lá se prolongar a viagem? Pensa um pouco em que aflição
ficará tua mãe depois do triste acontecimento com o Batista!…
Pedro vence e Jesus concorda.
– Repousaremos logo e bem então, e amanhã bem ao alvorecer partiremos, para estarmos depois de
amanhã à tarde no Getsêmani. No dia seguinte, sexta-feira, iremos à mãe, em Betânia, onde descarregaremos
os livros de João, que nos cansaram não pouco, e iremos encontrar Isaac, ao qual daremos este pobre irmão…
– E o menino, dá-lo-às logo?
Jesus sorri:
– Não. Eu o darei à minha mãe, a fim de que o prepare para a “sua” festa. Depois, o teremos conosco pela
Páscoa. Mas, após isso, deveremos deixá-lo também… Não te apegues demais! Ou melhor: ama-o, como se
fosse um teu filho, mas com espírito sobrenatural. Tu vês: ele é débil e se cansa. A Mim também me teria
agradado instruí-lo e fazê-lo crescer nutrido por Mim na Sabedoria. Mas Eu sou o Incansável, e Jabé é muito
novo e muito fraco para passar pelas nossas fadigas. Nós iremos pela Judeia, depois voltaremos a Jerusalém
em Pentecostes, depois iremos… iremos evangelizando… E o en contraremos de novo no verão em nossa terra.
193.5Eis-nos às portas de Siquém. Vai adiante com o teu irmão e com Judas de Simão, para procurar alojamento.
Eu irei para a praça do mercado, e lá te esperarei.
E se separam, enquanto Pedro sai correndo à procura de um abrigo, e enquanto os outros vão caminhando
com dificuldade pelas estradas cheias de gente, que grita e gesticula, de burros, de carros, todos indo para
Jerusalém para a Páscoa iminente. As vozes, os chamados, as imprecações se misturam aos urros dos asnos,
fazendo tudo um rumor, que ribomba forte sob os arcos lançados de uma casa para outra, fazendo um rumor
parecido com aquele que se ouve em certas conchas, quando as encostamos ao ouvido. O eco vai de uma
abóbada para outra, onde as sombras já se vão adensando, e o povo, como uma água, que vai sendo
empurrada, espraia-se pelas ruas e por elas vai entrando à procura de alguma área coberta, de alguma praça
ou de algum lugar onde possa passar a noite…
Jesus, segurando o menino pela mão, está encostado a uma árvore, esperando Pedro na praça que, àquela
hora, já está sempre cheia de vendedores.
– Que ninguém nos veja, nem nos reconheça –diz Iscariotes.
– Como reconhecer um grãozinho num montão de areia? –responde Tomé–. Não está vendo que mundão de
gente?
Pedro já está de volta:
– Fora da cidade, há uma tenda com feno. E não achei outra.
– Não iremos atrás de outra. É até bonita demais para o Filho do homem.
[45] para o oeste. No desenho que segue, MV escreveu, além dos quatro pontos cardiais (que se lêem por extenso porque foi escrito em lápis): planície, Samaria
e montes do sul.
194. Revelação feita ao pequeno Jabé
durante a viagem de Siquém a Berot.
19 de junho de 1945.
194.1 Como um rio que vai continuamente se avolumando, ao receber novos afluentes, assim está a
estrada, que vai de Siquém a Jerusalém, tornando-se cada vez mais cheia de peregrinos à medida que, por
outras estradas secundárias, os povoados vão despejando nela os fiéis que se dirigem à Cidade Santa. E isso
ajuda a Pedroa conservar distraído o menino, que vai passando agora por perto das colinas onde nasceu e
sob cujas glebas desmoronadas estão enterrados os seus pais, sem que ele o perceba.
Depois de uma longa marcha, interrompida depois que Silo, toda alcantilada lá no alto do seu monte, foi
deixada à esquerda, para tomar alimento e descanso ao som de águas puras e cristalinas, os peregrinos
põem-se de novo a caminho, ultrapassam um pequeno monte calcário um tanto escalvado, sobre o qual o sol
bate sem misericórdia. Começa-se a descida, através de uma série de vinhedos belíssimos, que lançam seus
festões sobre os barrancos dos montes calcários, mas totalmente expostos ao sol.
Pedro está com um sorriso meio dissimulado e faz sinal para Jesus, que também está sorrindo. O menino
não percebe nada, atento como ele está em ouvir a João de Endor, que lhe conta histórias de outras terras
por ele vistas e nas quais crescem uvas dulcíssimas, que não servem tanto ao vinho quanto para fazer doces
melhores do que as fogaças de mel.
194.2 Eis uma nova subida muito íngreme, porque a comitiva, deixando a estrada mestra, poeirenta e cheia
de gente, preferiu entrar por um atalho, que vai pelo meio do mato. E, tendo chegado ao alto, vêem brilhar,
lá ao longe, mas bem visível, um mar que resplende, suspenso sobre um aglomerado branco, que talvez
sejam casas alvejadas pela cal.
– Jabé –chama-o Jesus–, vem cá. Estás vendo aquele ponto de ouro? É a Casa do Senhor. Lá tu vais jurar
obediência à Lei. Tu a conheces bem?
– Mamãe me falou dela e meu pai me ensinou os preceitos. Eu sei ler… e acho que sei o que “eles” me
ensinaram antes de morrer.
O menino, que correra sorrindo para atender ao chamado de Jesus, agora está chorando, com a cabeça
baixa e a mão tremendo na mão de Jesus.
– Não chores. Escuta. Sabes onde estamos? Aqui é Betel. Foi aqui que o santo Jacó teve o seu sonho
angélico. Tu o conheces? Lembras-te dele?
– Sim, Senhor. Ele viu uma escada que ia da terra ao Céu e por ela, para baixo e para cima, iam e
vinham os anjos. E a mamãe me dizia que, na hora da morte, se tivermos sido sempre bons, veremos a
mesma coisa e se poderia ir, por aquele escada, até a Casa de Deus. Muitas coisas dizia-me minha mãe…
Mas agora não me dirá mais nada… eu as tenho todas aqui e é tudo o que tenho dela…
As lágrimas descem daquele rostinho triste.
– Não chores assim! Escuta, Jabé. Eu também tenho uma mãe, que se chama Maria, e que é santa e boa
e sabe dizer muitas coisas. É mais sábia do que um mestre, melhor e mais bela do que um anjo. Agora nós
estamos indo à casa dela. Ela vai gostar muito de ti. Vai dizer-te muitas coisas. E, depois, com ela está a
mãe de João, que também é boa e também se chama Maria. E a mãe do meu irmão Judas, também ela doce
como um pão de mel e também chamada Maria. Elas gostarão muito de ti. Muito mesmo. Porque tu és um
bom menino e por amor de Mim, porque te amo tanto. Depois, tu crescerás com elas e, quando cresceres,
serás um santo de Deus, pregarás como um doutor sobre Jesus, que te deu de novo uma mãe aqui e que
abrirá as portas do Céu para tua falecida mãe, para o teu pai, e que as abrirá também para ti, quando
chegar a tua hora. Tu nem terás necessidade de subir pela comprida escada dos Céus, na hora da tua
morte. Já terás subido por ela, durante a tua vida, procurando ser um bom discípulo, e te encontrarás lá, à
porta aberta do Paraíso, e Eu também lá estarei, e te direi: “Vem, meu amigo e filho de Maria”, e estaremos
juntos.
O sorriso luminoso de Jesus, que vai caminhando um pouco inclinado, para ficar mais perto do rostinho
levantado do menino, que caminha ao lado com sua mãozinha na dele, e aquela história maravilhosa
enxugam as lágrimas do menino, e fazem despontar um sorriso.
194.3 O menino, que está bem longe de ser um tolo, mas que somente está atordoado pela grande dor e
privação que sofreu, interessado por aquela história, pergunta:
– Mas, Tu dizes que abrirás as portas dos Céus. Não estão elas fechadas pelo grande Pecado? A mamãe
me dizia que ninguém podia entrar, enquanto não tivesse vindo o perdão, e que os justos o estavam
esperando no Limbo.
– É isto mesmo. Mas depois Eu irei para o Pai, depois de ter pregado a palavra de Deus e… ter obtido
para vós o perdão, e Eu direi “Pai meu, agora Eu cumpri toda a tua vontade. Agora quero o meu prêmio
pelo meu sacrifício. Que venham os justos, que estão esperando o teu Reino.” E o Pai me dirá: “Que seja
como Tu queres.” E, então, Eu descerei para chamar todos os justos e o Limbo abrirá as suas portas, ao
som da minha voz, e sairão exultantes os santos Patriarcas, luminosos Profetas, as mulheres abençoadas de
Israel e depois, sabes quantos meninos? Será como um prado florido de meninos de todas as idades! E,
cantando, eles virão atrás de Mim, subindo para o belo Paraíso.
– E lá estará também a minha mamãe?
– Com toda a certeza!
– Tu não me disseste que ela estará lá contigo na porta do Céu, quando eu também tiver morrido…
– Ela, e com ela o teu pai não terão necessidade de estar junto àquela porta. Como anjos fulgentes, eles
alçarão sempre seus vôos do Céu para a terra, de Jesus até o pequeno Jabé e, quando tu estiveres para
morrer, eles farão como estão fazendo aqueles dois passarinhos ali, naquela sebe. Estás vendo-os?
Jesus toma o menino nos braços, para que ele veja melhor:
– Estás vendo como eles estão sobre os seus pequenos ovos? Estão esperando que os ovos se abram, e
depois estenderão as asas sobre sua ninhada para protegê-la de todo mal e, em seguida, quando ela já tiver
crescido e estiver pronta para o vôo, eles os sustentarão com suas fortes asas, levando-os para cima, para
cima, ainda mais para acima… rumo ao sol. Os teus pais farão assim contigo.
– Será assim mesmo?
– Assim mesmo.
– Mas, Tu dirás a eles que se lembrem de vir?
– Não haverá necessidade disso, porque eles te amam. Mas Eu lhes direi.
– Oh! Como eu te quero bem!
O menino, ainda nos braços de Jesus, abraça-se ao pescoço dele e o beija com uma expansão de tanta
alegria, que causa comoção a quem vê. Jesus retribui o beijo, e o põe no chão.
194.4 – Oh! Está bem. Agora, vamos para a frente. Para a Cidade Santa. Devemos chegar amanhã pela
tarde. Por que tanta pressa? Sabes me dizer? Por que não depois de amanhã?
– Não. Não seria a mesma coisa. Porque amanhã é Parasceve e, depois do pôr do sol, não se pode andar
mais do que seis estádios. Além disso não se pode, porque já começou o sábado e seu repouso.
– Portanto, no sábado se fica à toa.
– Não. Faz-se a oração ao Senhor Altíssimo.
– Como ele se chama?
– Adonai. Mas os santos podem dizer o seu nome.
– Também os meninos bons. Dize-o, se o sabes.
– Jaave –(O pequeno o pronuncia com um J suave e um A muito longo).
– E por que se faz a oração do Senhor Altíssimo no sábado?
– Porque Ele assim ordenou a Moisés, quando lhe deu as tábuas da Lei.
– Ah! Sim? E que foi que Ele disse?
– Ele ordenou que se santificasse o sábado: “Trabalharás durante seis dias, mas no sétimo dia
repousarás, e farás repousar, porque assim fiz Eu também depois da criação.”
– Como? O Senhor descansou? Ter-se-á cansado ao criar? E Ele criou mesmo? Como o sabes? Eu sei que
Deus não se cansa nunca.
– Ele não se cansa , porque Deus não caminha, nem move os braços. Mas assim fez para ensinar a Adão,
e a nós, e para ter um dia em que pensemos nele. E Ele criou tudo, com toda a certeza, Assim o diz o Livro
do Senhor.
– Mas, o Livro foi escrito por Ele?
– Não. Mas é a verdade. É preciso crer nele, para não ir para a companhia de Lúcifer.
– Disseste-me que Deus não caminha, nem move os braços. Como foi, então, que Ele criou? Como é Ele?
É uma estátua?
– Não é um ídolo. É Deus. E Deus é… deixa-me pensar e recordar como dizia minha mamãe, e, melhor
ainda do que ela, aquele homem que vai em teu nome ao encontro dos pobres em Esdrelon… A mamãe me
dizia, para fazer-me compreender a Deus: “Deus é como o meu amor por ti. Não tem corpo, mas existe.” E
aquele homenzinho, com um sorriso muito doce, dizia: “Deus é um espírito Eterno, Uno e Trino e a Segunda
Pessoa se fez carne por amor de nós pobres e tem o nome de…” Oh! Meu Senhor! Agora é que eu penso
nisso… és Tu!
E o menino, assombrado, prostra-se por terra, adorando.
Correm todos para perto dele, pensando que ele tivesse caído, mas Jesus faz um sinal de silêncio, pondo
o dedo sobre os lábios, depois diz:
– Levanta-te, Jabé. Os meninos não devem ter medo de Mim!
O menino levanta a cabeça, e fica olhando para Jesus com uma expressão diferente, como de medo Mas
Jesus sorri, e lhe estende a mão, dizendo:
– Tu és um sábio, ó pequeno israelita. 194.5Continuemos o exame entre nós. Agora que Me reconheceste,
sabes se no Livro se fala de Mim?
– Oh! Senhor! Do princípio até aqui. Ele todo fala de Ti. Tu és o Salvador prometido. Agora compreendo
porque é que abrirás as portas do Limbo. Ah! Senhor! Senhor! E me quererás bem mesmo?
– Sim, Jabé.
– Não. Não mais Jabé, Dá-me um nome que queira dizer que Tu me amaste, que Tu me salvaste…
– Eu vou escolher o nome junto com minha mãe. Está bem?
– Mas que queira dizer justamente isso. E o tomarei, a partir do dia em que me tornar filho da Lei.
– Tomá-lo-às, a partir daquele dia.
Betel foi superada e, em um pequeno vale fresco e de água boa, fazem uma parada para tomarem a
refeição.
Jabé ficou meio aturdido pela revelação, e está comendo em silêncio, aceitando com veneração, todos os
bocados que Jesus lhe vai oferecendo. Mas, pouco a pouco, ele se reanima e, especialmente depois de ter
jogado uma bela partida com João, enquanto os outros estão descansando sobre a erva verde, volta a Jesus,
junto com o sorridente João e os três fazem um pequeno e lindo grupo.
– Não me disseste quem fala de Mim no Livro.
– Os Profetas, Senhor. E, antes ainda, fala disso o Livro, desde quando Adão foi expulso do Paraíso, e
depois a Jacó, e a Abraão e a Moisés… Oh! Meu pai me dizia que tinha ido a João — não a este, mas ao
outro João, o do Jordão — e que ele, o grande profeta, te chamava de cordeiro… agora, sim, eu compreendo
que o cordeiro de Moisés… que a Páscoa és Tu!
João o estimula:
– Mas qual Profeta que profetizou melhor do que ele?
– Isaías e Daniel. Mas… eu gosto mais de Daniel, agora que eu Te amo como a meu pai. Posso dizer uma
coisa? Dizer que Te amo como a meu pai? Sim? Pois bem; agora eu prefiro Daniel.
– Por quê? Quem fala muito de Cristo é Isaías.
– Sim. Mas ele fala das dores de Cristo. Daniel, ao contrário, fala do belo anjo e da tua vinda. É
verdade… ele também diz que o Cordeiro será imolado. Mas eu penso que o Cordeiro era imolado com um
golpe só. Não como dizem Isaías e Davi. Eu chorava sempre quando os ouvia ler e mamãe não me falou
mais neles.
O menino está quase chorando, ainda agora, enquanto acaricia a mão de Jesus.
– Não penses por hora. Escuta. Sabes os preceitos?
– Sim, Senhor. Acho que os sei. No bosque eu os ficava repetindo, para não me esquecer deles e para
ouvir as palavras de mamãe e de papai. Mas agora não choro mais (na verdade, sua pupilas já estão
brilhando muito), porque agora eu tenho a Ti.
João sorri e se abraça a Jesus, dizendo:
– São as minhas próprias palavras! Todos os pequenos de coração falam a mesma coisa.
– Sim. Porque as palavras deles vêm de uma única Sabedoria. 194.6Agora precisamos ir andando, de modo
que possamos chegar a Berot bem cedo. A multidão vai crescendo e o tempo está ameaçador. Os abrigos
vão ser tomados de assalto. E Eu não quero que fiqueis doentes.
João chama os companheiros e se recomeça a marcha para Berot, atravessando uma planície não muito
cultivada mas também não completamente árida, como era o pequeno monte por onde passaram, depois de
Silo.
195. Uma lição de João de Endora
Iscariotes e chegada a Jerusalém.
20 de junho de 1945.
195.1 O céu está ameaçando chuva, e Pedro me parece Eneias invertido, porque ele, em vez de estar
levando embora o próprio pai, tem sobre os ombros o pequeno Jabé, bem coberto agora com o capote de
Pedro. A cabecinha se vê aparecer acima da cabeça branca de Pedro, que está com os braços do pequeno ao
redor de seu pescoço e rindo, enquanto vai chapinhando nas pequenas poças de água barrenta.
– Podia nos ter poupado esta –murmura Iscariotes, nervoso por causa da água que cai do céu e da que o
chão espirra em sua roupa.
– Ora! Poderíamos estar livres de muitas coisas! –responde João de Endor, fitando bem o belo Judas com
o seu olho único que, eu creio, vale por dois.
– Que queres dizer?
– Pretendo dizer que é inútil exigir que os elementos tenham cuidado conosco, quando nós não o temos
com os nossos semelhantes e em assuntos bem mais graves do que umas duas gotas de água ou algum
salpico de lama.
– É verdade. Mas eu gosto de entrar na cidade bem arrumado e limpo. Tenho muitas amizades entre os
grandes.
– Toma cuidado, então, para não levares algum tombo.
– Estás querendo provocar-me?
– Naão! Mas eu sou um velho mestre e… um velho aluno. Desde que nasci, estou aprendendo. Primeiro,
eu aprendi a vegetar, depois fui observando a vida, depois conheci as amarguras da vida, procurei
exercitar-me inutilmente numa justiça, a de ir “sozinho” contra Deus e contra a sociedade. Deus me
castigou com o remorso, a sociedade com os grilhões e, por isso justiçado, por fim, acabei sendo eu. Mas
agora eu aprendi, estou aprendendo a “viver.” Agora, sendo mestre e aluno, bem podes entender que me
seja natural ficar repetindo as lições.
– Mas eu sou apóstolo…
– E eu sou um infeliz, eu sei, e não deveria tomar a liberdade de permitir-me ensinar a ti. Mas, vê bem:
ninguém nunca sabe o que é que vai ser. Eu pensava que iria morrer como um honesto e venerado
pedagogo em Chipre, e me tornei um homicida e um encarcerado. Mas, quando eu puxava minha faca para
tirar vingança e quando arrastava minhas correntes odiando o universo, se alguém me tivesse dito que eu
iria virar um discípulo do Santo, teria ficado em dúvida quanto à sanidade mental de quem o tivesse dito. E,
no entanto, tu estás vendo! Por isso, quem sabe se a ti, apóstolo, eu não poderia dar alguma boa lição. Lição
dada pela minha experiência. Não pela minha santidade. Eu nem penso nisso.
– Tem razão aquele romano de chamar-te de Diógenes.
– Está bem. Mas porém Diógenes procurava um homem e não o encontrou. E eu, mais feliz do que ele,
encontrei uma serpente onde pensava que estivesse uma mulher e um cuco onde eu pensava que estivesse
um homem amigo. Mas, depois de ter andado vagando durante tantos anos e de me ter tornado louco ao
verificar isso, encontrei o Homem, o Santo.
– Eu não conheço outra sabedoria, a não ser a de Israel.
– Se assim é, já tens com que salvar-te. Mas é que agora tens também a ciência, a Sabedoria de Deus.
– É a mesma coisa.
– Oh! Não. É como um dia nublado, comparado a um cheio de sol.
– Afinal, o que queres é ensinar-me? Eu não tenho desejo disso.
– Deixa-me falar! Antes, falava aos meninos: eram distraídos. Depois, às sombras: me maldiziam. Depois
eu falei aos frangos: eram já melhores do que os dois primeiros, muito melhores. Agora, eu falo comigo
mesmo, porque ainda não posso falar com Deus. Por que queres impedir que o faça? Eu só tenho meia vista,
uma vida estragada nas minas, um coração doente há tantos anos. Deixa, pelo menos, que não fique estéril
a minha mente.
– Jesus é Deus.
– Eu sei disso, eu creio. Mais do que tu. Porque eu renasci por obra dele, e tu não. Mas, por mais que Ele
seja o Bom, é sempre Ele: é Deus e o pobre infeliz que eu sou não ousa tratá-lo com a familiaridade com que
tu o tratas. Fala-lhe a minha alma… mas o lábio não ousa. A alma, eu penso que Ele a ouça em seus prantos
de reconhecimento e de penitente amor.
195.2 É verdade, João, Eu ouço a tua alma –diz Jesus, entrando no meio da conversa dos dois. Judas
enrubesce de vergonha e o homem de Endor, de alegria–. Eu ouço a tua alma, é verdade. E também o
trabalho da tua mente. Disseste bem. Quando estiveres formado em Mim, ficarás muito alegre por teres
sido mestre e aluno atento. Fala, fala, até contigo mesmo…
– Uma vez, Mestre, e não há muito tempo, me disseste que não é bom ficar falando com seu próprio eu –
observa, impertinente, Judas.
– É verdade. Eu o disse[46]. Mas foi porque tu estavas fazendo murmuração com o teu próprio eu. Este
homem não fica murmurando: ele medita, e com boa intenção. Ele não faz mal.
– Em resumo: eu estou errado! –diz Judas, agressivo.
– Não. O que tens são sombras no coração. Mas nem sempre se pode estar sereno. Os camponeses
desejam a chuva. É uma caridade rezar para que ela venha. Também esta é uma caridade. Mas olha: eis um
belo arco-íris que de Atarot termina o seu arco em Ramá. Estamos já além de Atarot: o triste e grande vale
foi superado. Aqui está tudo cultivado, tudo está sorrindo por baixo deste sol, que vem rasgando as nuvens.
Quando estivermos em Ramá, já estaremos a trinta e seis estádios de Jerusalém. Nós a veremos de novo
depois daquela colina, que marca o lugar onde houve aquela horrenda libidinagem, cometida pelos
gabaonitas[47]. Uma coisa horrível é a mordida da carne, Judas…
Judas não responde, mas se afasta dali, chapinhando com raiva pelas pequenas poças de água suja.
195.3 – Mas, que é que ele tem hoje? –pergunta Bartolomeu.
– Cala-te, antes que Simão de Jonas ouça. Evitemos discussões e… não exasperemos Simão. Ele está tão
feliz com o seu menino!
– Sim, Mestre. Mas não fica bem. Eu vou dizer-lhe.
– Ele é jovem, Natanael. Tu também o foste…
– Sim… mas… Ele não deve faltar-te com o respeito!
E, sem querer, ele levanta a voz.
Aí Pedro chega:
– Que está acontecendo? Quem é que falta com o respeito? Será o novo discípulo? –e olha para João de
Endor, que se havia retirado discretamente, logo que compreendeu que Jesus estava corrigindo o discípulo,
e está agora conversando com Tiago de Alfeu e Simão Zelotes.
– Nem por sombra! Ele é respeitoso como uma menina.
– Ah! Está bem. Senão… era o olho dele que corria perigo. Então… então, é Judas…
– Escuta. Simão, não poderias ir cuidar do teu pequeno? Tu o tiraste de mim, e ainda queres preocupar-
te com uma conversação amigável entre Mim e Natanael. Não te parece que queres preocupar-te com
coisas demais?
Jesus sorri de um modo tão sereno, que Pedro fica na dúvida sobre o seu juízo. Ele olha para
Bartolomeu… mas este já levantou o rosto aquilino e está perscrutando o céu… Pedro sente cair a suspeita.
O aparecimento da Cidade, já bem perto, visível agora em toda a sua beleza de colinas, de oliveiras, de
casas, e especialmente pelo Templo, esta vista que deve ter sido sempre causa de emoção e de orgulho para
os israelitas, acaba por distraí-lo completamente. O sol já bem quente de abril da Judeia, bem depressa
enxugou as pedras da rua consular. Agora, as poças d’água precisam ser procuradas. Os apóstolos estão se
arrumando, à beira da rua, descendo as vestes que tinham sungado, lavando em um córrego de águas
claras, os pés cheios de barro, pondo em ordem os cabelos e vestindo suas capas. O mesmo faz Jesus. E vejo
que todos estão fazendo assim.
195.4 A entrada em Jerusalém devia ser uma coisa importante. Apresentar-se diante dos muros, nestes dias
de festa, era como apresentar-se diante de um soberano. A Cidade Santa era a “Verdadeira” rainha dos
israelitas. Eu o compreendo bem neste ano em que posso notar, nesta rua consular, as turbas e o seu
comportamento. Aqui os cortejos das diferentes famílias se põem em ordem, as mulheres todas juntas, os
homens em outro grupo, os meninos em um dos grupos ou no outro, mas todos sérios e, ao mesmo tempo,
serenos. Alguns tornam a dobrar a capa mais usada e tiram dos sacos de viagem uma outra nova, ou trocam
de sandálias. Depois disso, até seu modo de andar muda e se torna mais solene e até mesmo religioso. Em
cada um dos grupos há um solista, que dá o tom, e os hinos são entoados, os antigos e gloriosos hinos de
Davi. As pessoas agora se olham com olhares melhores, como que abrandadas por terem visto a Casa de
Deus, e olham para esta Casa Santa, este enorme cubo de mármore, encimado pelas cúpulas douradas e
colocado como uma pérola no centro do recinto do Templo.
Aqui — na comitiva apostólica que assim está formada: na frente, Jesus e Pedro, tendo entre eles o
menino; atrás vem Simão, Iscariotes e João; depois André, que obrigou João de Endor a ficar entre ele e
Tiago de Zebedeu; na quarta fila, os dois primos do Senhor, com Mateus; por último, Tomé com Filipe e
Bartolomeu — aqui é Jesus quem entoa, com sua poderosa e belíssima voz, de um ligeiro tom barítono,
misto — para torná-lo mais belo — a vibração de tenor, e Judas Iscariotes responde. Ele é um tenor puro.
João, com sua voz límpida de quem é ainda muito jovem. As duas vozes dos barítonos, que são os primos de
Jesus, e a de quase baixo de Tomé, que é de um barítono tão grave, que quase não é mais tal. Os outros,
dotados de vozes menos belas, acompanham em surdina o coral cheio, formado por aqueles que são os
virtuoses do grupo. (Os salmos são aqueles conhecidos, chamados graduais[48]).
O pequeno Jabé, com uma vozinha de anjo, por entre as vozes robustas dos homens, canta muito bem,
talvez porque conheça melhor do que os outros, o salmo 121:
– Alegrei-me por aquilo que me foi dito: ‘Iremos à Casa do Senhor’.
Verdadeiramente tudo está iluminado pela alegria no rostinho que, há bem poucos dias, estava muito
triste.
Eis que os muros já estão perto. Aqui está a Porta dos Peixes. Aí estão as ruas apinhadas de gente.
Logo irão eles para o Templo para uma primeira oração. Depois é a paz, paz do Getsêmani, depois a ceia
e o descanso.
A viagem a Jerusalém terminou.
[46] Eu o disse a ele em 183.1.
[47] libidinagem, cometida pelos gabaoitas narrada em Juízes 19,22-28.
[48] graduais são ditos nos Salmos 120-134 segundo a nova numeração. O Salmo 121, citado mais abaixo, tornou-se Salmo 122.
196. O dia de sábado no Getsêmani. Jesus fala sobre
a mãe e dos amores de diferentes potências.
21 de junho de 1945.
196.1 A manhã do sábado foi ocupada, na maior parte do tempo, em restaurar os corpos cansados e limpar
as roupas cheias de poeira e amarrotadas pela viagem. Nas amplas cisternas do Getsêmani, que a água da
chuva foi enchendo, e no Cedron, cujas águas cantam ao bater nas pedras, espumando, cheio como ele está
pelas chuvas dos últimos dias, há tanta água que é um verdadeiro convite a quem a vê. Por isso, os
peregrinos, um depois do outro, sem terem medo da água fria, descem para mergulhar e depois, tornando a
vestir-se da cabeça aos pés, com os cabelos ainda um pouco corridos, por causa da água da torrente, tiram
água das cisternas para despejá-la em tanques de bom tamanho, onde estão as roupas, separadas pelas
cores.
– Oh! Muito bem –diz contente Pedro–. Ali elas já ficarão menos sujas e Maria as poderá lavar com
menos cansaço. –(Suponho que seja a mulher que mora no Getsêmani)–. Só tu, pequenino, não podes mudar
de roupa. Mas amanhã…
De fato, o menino tem uma vestezinha limpa, tira-a de sua sacolinha, uma sacolinha que mal daria para
o enxoval de uma boneca, de tão pequena que é. Mas a vestezinha que ele tirou, está ainda mais desbotada
e rasgada do que a outra e Pedro olha para ela preocupado e murmurando:
– Como é que eu vou fazer para levá-lo pela cidade? Eu poderia dividir em duas a minha capa, porque
com uma capa… ele se cobriria todo.
Jesus, que ouviu este solilóquio paterno, diz:
– É melhor fazer que ele descanse agora. Esta tarde iremos a Betânia…
– Mas eu quero comprar a roupa para ele. Eu lhe prometi…
– Tu o farás com certeza. Mas é melhor aconselhar-se antes com a mãe. Tu sabes… as mulheres… têm
mais capacidade do que nós nas compras… e ela se sentirá feliz por ocupar-se com um menino… Vós ireis
juntos!
A ideia de ir junto com Maria fazer as compras arrebata o apóstolo taté o sétimo céu. Não sei se Jesus
lhe expressou todo o seu pensamento, ou se omitiu uma parte , ou seja, aquela que tivesse dito que a mãe
tem um gosto mais apurado para evitar certos conjuntos horríveis de cores. Mas o fato é que Ele consegue
o seu escopo sem precisar deixar aborrecido seu Pedro.
196.2 Eles se espalham pelo olival, que está muito bonito, neste sereno dia de abril. A chuva dos dias
passados parece ter prateado as oliveiras e semeado flores, pois lindamente as copas estão brilhando ao sol
e bem numerosas são as florzinhas aos pés das oliveiras. Os passarinhos cantam e voam de todos os lados.
A cidade se estende por ali afora, na direção oeste para quem olha daqui[49].
Não se vê o formigueiro humano, que está pelo meio dela, mas vêem-se as caravanas, que vão indo para
a Porta dos Peixes e para outras portas, cujo nome eu não sei, deste lado leste, e que depois são engolidas
pela cidade, como se ela fosse um ventre esfaimado.
Jesus está passeando e observando Jabé, que alegre está brincando com João e com os mais jovens.
Também Iscariotes, depois de passada a sua raiva de ontem, está alegre e brincando. Os mais velhos
observam e sorriem.
– Que dirá a tua mãe deste menino? –pergunta Bartolomeu.
– Eu acho que Ela dirá: “É muito fraquinho” –diz Tomé.
– Oh! Não. Ela dirá: “Pobre menino” –responde Pedro.
– Ela Te dirá, pelo contrário: “Estou contente, porque Tu o amas”
–objeta Filipe.
– A mãe nunca teria dúvidado disso. Mas eu creio que Ela não dirá nada. Ela o receberá em seu
coração –diz Zelotes.
– E Tu, Mestre, que dizes que Ela dirá?
– Ela fará o que vós estais dizendo. Mas muitas coisas, ou melhor, todas Ela as pensará, e ao beijá-lo dirá
só: “Que tu sejas bendito!”, e cuidará dele como se fosse um passarinho que caiu do ninho. 196.3Um dia, Ela
me contou o que aconteceu, quando Ela era uma menininha. Ainda não tinha três anos, porque ainda não
estava no Templo, e seu coração se partia de amor, produzindo, como a flor ou a azeitona esmagadas na
prensa, todos os seus óleos ou os seus perfumes. E, em seu delírio de amor, dizia à sua mãe que queria ser
virgem para agradar mais ao Salvador, mas que teria gostado de ser pecadora, para poder ser salva e ficava
quase chorando, porque a mãe não a compreendia e não sabia dizer-lhe como é que se pode ser “pura” e
“pecadora”, ao mesmo tempo. Quem a tranquilizou foi seu pai, que lhe mostrou um pequeno passarinho,
que ele tinha conseguido salvar quando estava em perigo, à beira de uma fonte. O pai, então, com o
passarinho, criou uma parábola[50], dizendo-lhe que Deus a tinha salvado de um modo antecipado e que,
por isso, Ela lhe devia dar graças duas vezes. E a pequena Virgem de Deus, a grandíssima Virgem Maria,
exerceu pela primeira vez sua maternidade espiritual sobre aquele pequeno ser caído do ninho, que Ela
pôde lançar ao vôo, quando ficou forte, mas que nunca mais abandonou o jardim de Nazaré e lá ficou ainda,
consolando com seus vôos e seus pios, a triste casa e os tristes corações de Ana e de Joaquim, quando
Maria esteve no Templo. O passarinho morreu pouco antes da morte de Ana… Ele tinha cumprido sua
tarefa… 196.4Minha mãe tinha feito voto de virgindade por amor. Mas tinha, sendo uma criatura perfeita, a
maternidade no sangue e no espírito. Porque a mulher foi feita para ser mãe. E é até uma aberração,
quando ela se faz de surda aos apelos desse instinto, que é amor de segunda potência…
Pouco a pouco, os outros foram chegando para perto.
– Que queres dizer, Senhor, quando falas de amor de segunda potência? –pergunta Judas Tadeu.
– Meu irmão, há muitos amores e de diversas potências. Há um amor de primeira potência: é o que se dá
a Deus. Depois, o amor de segunda potência: é esse amor materno, ou paterno, porque, se o primeiro é todo
espiritual, este é espiritual em duas partes, e carnal por uma. É verdade que no homem se mistura, sim, o
sentimento afetivo humano, mas sempre predomina o superior, porque um pai e uma mãe, sadia e
santamente tais, não dão somente alimento e carícias à carne de seu filho, mas também alimento e amor à
mente e ao espírito dele. E, tanto é verdade o que digo que quem se dedica à infância, ainda que seja
apenas para instruí-la, acaba por amá-la como sua carne.
– De fato, eu amava muito aos meus discípulos –diz João de Endor.
– Já compreendi que devias ter sido um bom mestre, ao ver como tratas Jabé.
O homem de Endor se inclina, e beija a mão de Jesus, sem dizer nada.
– Continua, por favor, a tua classificação dos amores –pede-lhe Zelotes.
– Existe o amor pela companheira: é um amor de terceira potência, porque é feito — falo sempre dos
sadios e santos amores — pela metade de espírito e pela metade de carne. O homem para a esposa é um
mestre e um pai, além de esposo. e a mulher, para o esposo, é um anjo e uma mãe, além de esposa. Estes
são os três amores mais elevados.
196.5 – E o amor ao próximo? Não estás enganado? Ou terás esquecido dele? –pergunta Iscariotes.
Os outros olham espantados para ele e ameaçadores por causa da observação que ele fez.
Mas Jesus, placidamente, responde:
– Não, Judas. Mas presta atenção. Deus há de ser amado porque é Deus e, por isso, não há necessidade
de explicação para persuadir a prestar esse amor. Ele é o que é, ou seja: o Tudo; e o homem é o nada, que
se torna participante do Tudo pela alma que nele foi infundida pelo Eterno — sem a alma, o homem seria
um dos muitos animais brutos, que vivem na terra, nas águas e no ar — e que deve adorá-lo por dever, e
para merecer sobreviver no Tudo, isto é, para merecer fazer parte do Povo santo de Deus no Céu, cidadão
da Jerusalém, que não conhecerá profanações e destruições, nunca mais.
O amor do homem, e especialmente o da mulher, aos filhos, é indicado como uma ordem nas palavras de
Deus a Adão e Eva, depois de tê-los abençoado, vendo que havia feito “coisa boa”, naquele longínquo sexto
dia, o primeiro sexto dia da criação. E Ele lhes disse: “Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra…”
Vejo a tua não formulada objeção e respondo assim dado que na criação, antes da culpa, tudo era
regulado e baseado no amor, essa multiplicação dos filhos teria sido amor, um amor santo, puro, poderoso e
perfeito. E Deus o deu como primeira ordem, ao homem: “Crescei e multiplicai-vos.” Amai, pois, depois de
Mim, aos vossos filhos. O amor, como agora existe, esse amor atual gerador de filhos, antes não existia. A
malícia não existia e não existia a execrável fome da sensualidade. O homem amava a mulher, e a mulher ao
homem, de um modo natural, não natural segundo a natureza como nós a entendemos, ou melhor, como vós
homens a entendeis, mas segundo a natureza de filhos de Deus: sobrenaturalmente[51].
Que doces os primeiros dias de amor entre os dois, que eram irmãos, porque nascidos do mesmo Pai, e
que, no entanto, eram esposos, e que, ao se amarem, olhavam um para o outro com os olhos inocentes de
dois gêmeos no berço; e o homem sentia um amor de pai para com sua companheira “osso de seus ossos e
carne de sua carne”, assim como é o filho em relação a seu pai. E a mulher conhecia a alegria de ser filha,
isto é, protegida por um amor bem alto, porque sentia ter em si alguma coisa daquele maravilhoso homem
que a amava, com inocência e angélico ardor, nos belos prados do Éden!
Depois, na ordem dos mandamentos dados por Deus, com um sorriso para os seus queridos pequeninos,
vem aquilo que o próprio Adão, dotado pela Graça de uma inteligência, que só era menor que a de Deus,
decreta, falando da companheira do homem, e nela, de todas as mulheres, o decreto do pensamento de
Deus, que se refletia nítido no tenro espelho do espírito de Adão, e florescia no pensamento e na palavra:
“O homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne.”
Se não houvesse os três pilares dos três amores acima referidos, teríamos podido ter o amor ao
próximo? Não. Não o teríamos podido. O amor a Deus torna Deus amigo, e ensina o amor. Quem não ama a
Deus, que é bom, com toda a certeza não pode amar ao próximo que, em sua maior parte, é defeituoso. Se
não houvesse amor conjugal e paternidade no mundo, não teríamos o próximo, porque os próximos são os
filhos nascidos dos homens. Estás persuadido disso?
– Sim, Mestre. Eu não havia refletido.
– De fato, é difícil voltar atrás, subindo para as nascentes. O homem já está pregado, há muitos séculos e
milênios, na lama, e aquelas nascentes estão bem lá nos cumes! A primeira delas é uma nascente que vem
de um abismo de altura: É Deus… Mas Eu vos tomo pela mão e vos levo às nascentes. Eu sei onde elas
estão…
196.6 – E os outros amores? –perguntam juntos Simão Zelotes e o homem de Endor.
– O primeiro da segunda série, é o do próximo. Na realidade, é o quarto em potência. Segue o amor à
ciência. Depois vem o amor ao trabalho.
– E basta?
– E basta.
– Mas há ainda muitos outros amores! –exclama Judas Iscariotes
– Não. Há outras fomes. Mas não são amores. São desamores. São a negação de Deus e a negação do
homem. Por isso, não podem ser amores, visto que são negações, e a negação é o ódio.
– Se eu me nego a consentir no mal, isso é ódio? –pergunta Iscariotes.
– Infelizes de nós! Mas tu és mais capcioso do que um escriba. Queres dizer-me o que tens? Será o ar
fino da Judeia que te está beliscando os nervos como uma caimbra? –exclama Pedro.
– Não. Eu gosto de instruir-me e de ter muitas ideia s, mas claras. Aqui é fácil falar e logo com os
escribas. Não quero ficar sem argumentos.
– E achas que podes, no momento em que precisares, puxar para fora o fio da cor de que estás
precisando do saco que vais atulhando com todos estes trapos? –pergunta Pedro.
– Trapos, as palavras do Mestre? Estás blasfemando!
– Ora, não me queiras parecer escandalizado. Na boca do Senhor não são trapos; mas, uma vez que
sejam mal usadas por nós, tornam-se tais. Experimenta tu pôr um linho fino na mão de um menino… Não
leva muito tempo, ele já será um trapo sujo e imprestável. Isto acontece conosco… Agora se pretendes
pescar, no momento bom, um trapinho que te interessa, entre este trapinho e o que é sujo, não sei aonde
poderás chegar.
– Não penses nisso. Esses assuntos são meus…
– Oh! Está certo. que não penso. Já tenho que pensar muito nos meus. E depois!… Eu me contento que
não prejudiques o Mestre. Porque, neste caso, pensarei também nos teus assuntos…
– Quando eu lhe prejudicar, tu farás assim. Mas isso não acontecerá nunca, porque eu sei fazer as
coisas… Eu não sou um ignorante…
– Mas eu o sou, sei disso. Mas, justamente porque sei, não fico acumulando nada, para o ficar
ostentando, quando chega o bom momento. Mas nessa hora eu me recomendo a Deus e Deus me ajudará
por amor ao seu Messias, de quem eu sou o último dos servos e o mais fiel.
– Fiéis somos todos nós! –rebate, arrogante, Judas.
– Oh! Malvado! Por que ofendes o meu pai? Ele é velho e bom. Não deves. És um homem mau e me
causas medo –diz Jabé, muito sério, rompendo o silêncio atento em que estava.
– Já são dois! –diz em voz baixa Tiago de Zebedeu, dando uma cotovelada em André.
Ele falou baixo, mas Iscariotes ouviu.
– Vê, Mestre, se as palavras do estulto menino de Magdala não terão deixado um sinal? –diz Judas aceso
de raiva.
196.7 – Mas não seria mais bonito continuar a lição do Mestre, em vez de ficarmos parecendo uns cabritos
irritados? –pergunta o pacífico Tomé.
– É verdade, Mestre. Continua a falar-nos de tua mãe. É tão cheia de luz a sua infância. Ela nos torna a
alma virgem por reflexo e eu, um pobre pecador, tenho tanta necessidade disso! –exclama Mateus.
– Que é que Eu vos devo dizer? Há tantos episódios, um mais doce do que o outro…
– Ela os contou?
– Alguns. Mas muitos mais José: foi a mais bela narração feita a Mim quando criança, e também Alfeu de
Sara, que era pouco mais velho que minha mãe e foi amigo dela nos breves anos em que ela esteve em
Nazaré.
– Oh! Então, conta… –suplica-lhe João.
Todos se põem ao redor dele, sentados à sombra das oliveiras, com Jabé no centro, olhando fixamente
para Jesus, como se estivesse ouvindo uma paradisíaca lenda.
– Eu vos falarei da lição de castidade que deu minha mãe, poucos dias antes de ir para o Templo, ao seu
pequeno amigo e a muitos outros.
Havia-se casado naquele dia uma moça de Nazaré, parente de Sara, e Joaquim e Ana também tinham
sido convidados para a festa das núpcias.Com eles foi a pequena Maria que, junto com outras crianças,
tinha o encargo de jogar pétalas desfolhadas sobre caminho da esposa. Dizem que era belíssima de
pequena, e todos a disputavam, depois da festiva entrada da noiva. Era muito difícil ver Maria, porque ela
vivia sempre em casa, pois gostava muito de uma pequena gruta que dizia ser a “dos seus esponsais”, mais
do que qualquer outro lugar. Por isso, quando era vista — loura, rosada e graciosa —, era cumulada de
carícias. Chamavam-na de “A Flor de Nazaré”, ou então “A Pérola da Galileia”, ou ainda “A Paz de Deus”,
lembrando o enorme arco-íris, que se tinha formado, de repente, ao primeiro vagido dela. E ela era, de fato,
tudo o que diziam e mais ainda. É a Flor do Céu e da Criação, é a Pérola do Paraíso, e a Paz de Deus… Sim,
a Paz. Eu sou o Pacífico, porque sou Filho do Pai e filho de Maria: A Paz Infinita e a Paz Suave.
Naquele dia todos a queriam beijar e tomar no colo. E ela, esquivando-se aos beijos e aos contatos, disse
com uma delicada gravidade: “Eu vos peço: Não me amarroteis.” Eles pensaram que Ela estava falando de
sua veste de linho, cingida à cintura com uma faixa azul, e também nos pequenos pulsos, no pescoço, ou
então da pequena grinalda com florzinhas azuis com que Ana a tinha coroado, para conservar em seu lugar
os cachinhos do cabelo.
E, assim pensando, eles lhe garantiram que não amarrotariam nem a veste nem a grinalda.
Mas ela, segura, como uma pequena mulher de três anos, de pé, no meio de um círculo de adultos,
disse-lhes séria: “Não estou pensando no que se repara. Estou falando da minha alma. Ela é de Deus. E não
quer ser tocada, a não ser por Deus.” Então lhe disseram: “Nós beijamos a ti, não a tua alma.” E Ela: “O
meu corpo é templo da alma, e o sacerdote nele é o espírito. O povo não é admitido no recinto sacerdotal.
Eu vo-lo peço. Não entreis no recinto de Deus.”
Alfeu, que já tinha então mais de oito anos, e que a amava muito, encontrando-a perto da pequena gruta,
ocupada em apanhar flores, lhe perguntou: “Maria, quando fores mulher, não me quererias como esposo?”
Nele ainda estava viva a lembrança da festa de núpcias à qual estivera presente. E ela: “Eu te amo muito.
Mas, não olho para ti como para um homem. Vou dizer-te um segredo. Eu só vejo a alma dos vivos. Aquela
eu amo de todo o coração. Mas, nada mais eu vejo senão Deus, como ‘Verdadeiro Vivente’ ao qual poderei
entregar-me a mim mesma.”
Aí está um episódio.
– “Verdadeiro Vivente!” Sabes que esta é uma palavra profunda!
–exclama Bartolomeu.
E Jesus, com humildade e com um sorriso:
– Ela era a mãe da Sabedoria.
– Era?… Mas não estava só com três anos?
– Era. Desde a sua concepção, eu já vivia nela, sendo eu Deus[52] , em sua Unidade e Trindade
perfeitíssima.
196.8 – Mas, desculpa-me se eu, um culpado, ouso falar: então Joaquim e Ana sabiam que Ela era a virgem
escolhida? –pergunta Judas Iscariotes.
– Eles não sabiam.
– E então, como é que Joaquim pôde dizer que Deus a tinha salvado com antecipação? Isto não se refere
ao privilegio dela quanto à culpa?
– Refere-se. Mas Joaquim falava pela boca de Deus, como todos os profetas. Ele também não
compreendeu a sublime verdade sobrenatural, que o espírito punha em seus lábios. Porque Joaquim era um
justo. A ponto de merecer aquela paternidade. E era um homem humilde. Pois não há justiça onde existe
soberba. Ele era justo e humilde. Consolou a filha por seu amor de pai. Instruiu-a pela sabedoria de
sacerdote, pois ele o era, na qualidade de tutor da Arca de Deus. Ele a consagrou como Pontífice, com o
mais honroso dos títulos: “A sem Mancha.” Dia virá em que um outro já encanecido sacerdote dirá ao
mundo: “Ela é a concebida sem pecado”, e entregará ao mundo dos crentes esta verdade, como um artigo
de fé incontestável, para que no mundo que virá, um mundo que se irá afundando sempre mais numa
situação cinzenta e nebulosa, de heresias e de vícios, possa brilhar, plenamente conhecida, a Toda Bela de
Deus, coroada de estrelas, vestida com a luz da Lua, que é menos pura que a Dela, apoiada sobre os astros,
Rainha de todo Criado e do Incriado. Porque Deus-Rei tem Maria por Rainha, no seu Reino.
– Então, Joaquim era um profeta?
– Era um justo. Sua alma disse como um eco, aquilo que Deus dizia à sua alma amada por Deus.
196.9 – Quando iremos a esta “Mamãe”, Senhor? –pergunta, com uns olhos cheios de desejo, Jabé.
– Hoje de tarde. Que dirás a ela, quando a vires?
– “Eu te saúdo, mãe do Salvador.” Está bem assim?
– Muito bem, confirma Jesus, acariciando-o.
– Mas hoje não vamos ao Templo? –pergunta Filipe.
– Antes de irmos para Betânia, iremos ao Templo. E tu ficarás aqui. Não é verdade?
– Sim, Senhor.
A mulher de Jonas, guarda do olival, que veio se aproximando pouco a pouco, diz:
– Por que não o levas? O menino está desejando isso.
Jesus a fita com insistência, sem dizer nada.
A mulher compreende e diz:
– Já compreendi. Mas devo ter ainda uma pequena capa, a do Marcos. Vou buscá-la –e sai correndo,
depressa.
Jabé puxa João por uma manga:
– Os mestres serão muito exigentes?
– Oh! Não. Não tenhas medo. Depois não é para hoje. Em poucos dias, estando com a mãe, serás mais
sábio do que um doutor –encoraja-o João.
Os outros ouvem e sorriem diante da apreensão de Jabé.
– Mas quem é que vai apresentá-lo, como se fosse pai dele? –pergunta Mateus.
– Eu. É natural. A não ser que… o mestre queira apresentá-lo
–diz Pedro.
– Não, Simão. Não farei isso. Deixo para ti essa honra.
– Obrigado, Mestre. Mas estarás lá Tu também?
– Certamente. Todos estaremos lá. É o “nosso” menino…
Maria de Jonas está de volta, com uma capa roxo-escura, ainda em boas condições. Mas, que cor! Ela
mesma o diz:
– Marcos não a quis mais usar por que a cor não lhe agradava.
Com toda a razão. A capa é horrorosa! E o pobre Jabé, já de cor azeitonada como é, parece um afogado,
vestido com aquele roxo… Mas ele não se vê… e por isso está feliz com aquela capa, com a qual vai poder
enfeitar-se como adulto..
– A refeição está pronta, Mestre. A servente tirou agora mesmo o cordeiro do espeto.
– Então, vamos.
E, descendo do lugar onde estão, entram na ampla cozinha para a refeição.
[49] quem olha daqui. Segue o desenho que MV fez a lápis preto com parciais sobreposições em vermelho e azul e com o contorno a caneta em alguns
nomes. Ao centro é o Templo com Casas fincadas e, em semicírculo a esquerda, Subúrbios e casas mais esparsas, fechado como um todo em duplo cerco do
qual é a explicação em rodapé: (o cerco vermelho e azul são o muro). No “muro” se lê porta ao lado da indicação norte e uma outra porta em direção ao
sudeste. Fora dos “muros”: Cedron e Getsemani a leste, Casas e Casas ao sul, fiumicello e Gólgota a oeste.
[50] parábola em 7.5.
[51] sobrenaturalmente, sem as leis ordenadas de Deus – assim anota MV em uma cópia datilografada – inerentes a multiplicação e população da Terra, se
unisse a desordem da malícia, antes de “se substituir”. E anota na margem: Assim que o homem permanecer em ordem, não teriam origem nele os venenos
da tríplice concupisciência que o fizesse delirante, depois rebelde, depois decaído.
[52] sendo eu Deus: Maria, Santuário perpétuo e puríssimo onde o Deus Uno e Trino fez morada perpétua – assim anota MV em uma cópia datilografada –
não foi nunca separada da Sabedoria: o Verbo de Deus esteve sempre n’Ela, verdadeira Arca portadora da Palavra Eterna, e nenhuma criatura a conhecee
como Ela a conhece; esta Palavra que é Sabedoria Divina que se fez carne n’Ela e que ainda sempre esteve n’Ela.
197. No Templo com José de Arimateia.
A hora da incensação.
22 de junho de 1945.
197.1 Pedro está realmente solene, quando entra, em seu papel de pai, no recinto do Templo, segurando
Jabé pela mão. Ele parece ter ficado mais alto, de tão empertigado que vai indo.
Atrás, em grupo, vão entrando todos os outros. Jesus é o último, entretido em uma séria conversa com
João de Endor, que parece estar com vergonha de entrar no Templo.
Pedro pergunta ao seu protegido:
– Nunca estiveste aqui?
E tem por resposta esta frase:
– Quando eu nasci, pai. Mas não me lembro de nada.
O que faz Pedro rir à vontade, e ele repete a resposta para os seus companheiros que se riem também,
dizendo bonachões e chistosos:
– Talvez estavas dormindo, e por isso… –ou então: –Somos todos como tu. Não nos lembramos de quando
viemos até aqui, depois de termos nascido.
197.2 Também Jesus faz a mesma pergunta ao seu protegido, e recebe resposta semelhante, ou quase. Pois
João de Endor diz:
– Éramos prosélitos, e aqui cheguei nos braços de minha mãe, justamente na Páscoa, porque nasci nos
primeiros dias de Adar, e minha mãe, que era judia, pôs-se em viagem logo que pôde, para oferecer em
tempo o seu filho, do sexo masculino, ao Senhor. Talvez depressa demais… porque ela ficou doente e não
sarou mais. Eu tinha menos de dois anos, quando fiquei sem minha mãe. Foi a primeira desventura de
minha vida. Mas eu que era o seu primogênito, me tornei unigênito, por causa da doença dela; mas ela
estava tão ufana, porque morria por ter obedecido à Lei! Meu pai me dizia: “Ela morreu contente, por ter-te
oferecido no Templo…” Pobre mãe! Que foi que ofereceste? Um futuro assassino…
– João, não fales assim. Naquele tempo eras Félix, e agora és João. Tem presente a grande graça que
Deus te fez, e para sempre. Mas abandona o aviltamento pelo que foste. Não voltaste mais ao Templo?
– Oh! Sim. Aos doze anos e, desde então, sempre, enquanto… enquanto eu pude fazê-lo… Depois,
quando teria podido fazê-lo, não o fiz mais, porque já te disse qual era o culto que eu praticava; era só um:
o do ódio… E também por isso não tenho coragem de encaminhar-me para cá. Eu me sinto um estranho na
Casa do Pai… Eu o abandonei por tempo demais…
– Tu voltas aqui, seguro pela mão por Mim, que sou o Filho do Pai. Se Eu te conduzo para diante do altar
é porque sei que tudo está perdoado.
João de Endor tem um soluço áspero, e diz:
– Obrigado, meu Deus!
– Sim. Dá graças ao Altíssimo. Estás vendo como tinha espírito profético a tua mãe, uma verdadeira
israelita? Tu és o filho homem consagrado ao Senhor e jamais resgatado. És meu, és de Deus, discípulo e,
por isso, futuro sacerdote do teu Senhor na nova era e nova religião, que terá um nome tirado do meu: Eu
te absolvo de tudo, João. Anda tranquilo para a frente, indo para o Santo. Em verdade, Eu te digo que, entre
todos os que moram neste recinto, há muitos mais culpados e mais indignos do que tu de se aproximarem
do altar…
197.3 Enquanto isso, Pedro se esforça para explicar ao pequeno as coisas mais dignas de serem observadas
no Templo, mas chama em seu socorro outros mais cultos, especialmente Bartolomeu e Simão, porque ele
se acha bem à vontade com estes anciãos, nesse seu papel de pai.
Eles estão perto do gazofilácio para fazerem as suas ofertas, quando José de Arimateia os chama:
– Vós estais aqui? Desde quando? –diz ele depois das saudações recíprocas.
– Desde ontem à tarde.
– E o Mestre?
– Está ali com um novo discípulo. Daqui a pouco, virá.
José olha para o menino, e pergunta a Pedro:
– É teu netinho?
– Não… Sim… Afinal, não é nada do meu sangue, mas muito na fé e tudo no amor.
– Não te entendo bem…
– É um órfãozinho… mas nada do meu sangue. Um discípulo… porém muito na fé. Um filho… porém
tudo no amor. O Mestre o acolheu… e eu o acaricio. Deve tornar-se maior de idade por estes dias…
– Já tem doze anos? Tão pequenino?
– É… mas o Mestre o dirá… José, tu és bom… um dos poucos bons que há aqui dentro… Dize-me uma
coisa: estarias disposto a ajudar-me a resolver este problema? Tu sabes… eu o estou apresentando como se
fosse meu filho. Mas eu sou galileu e tenho em mim uma lepra feia…
– Lepra? –exclama José, apavorado e afastando-se.
– Não tenhas medo!… Estou com a lepra de ser de Jesus! E é a mais odiosa para os do Templo, a não ser
para poucas exceções.
– Naão! Não digas isso!
– É verdade e está dita. Por isso, eu temo que eles tratarão com crueldade o pequeno, por causa de mim
e de Jesus! Pois eu não sei como é que ele sabe a Lei, o Hagadã e o Midrashot. Jesus diz que ele sabe bem…
– Ora! mas se é Jesus quem o diz! Não tenhas medo!
– Bem que gostariam dar-me um aborrecimento! aqueles!
– Vejo que queres muito bem a este pequeno. Tu o tens sempre contigo?
– Eu não posso!… Vivo caminhando… O menino é pequeno e franzino…
– Mas eu iria de boa vontade contigo… –diz Jabé, que ficou mais confiante pelas palavras carinhosas de
José.
Pedro está radiante de alegria… Mas ainda diz:
– O Mestre diz que não se deve, e não o faremos… Mas, de qualquer maneira, nós nos veremos… José…
tu me ajudas?
– Mas, como não? Eu irei contigo. Diante de mim, não cometerão injustiças. Quando iremos? 197.4Oh!
Mestre! Dá-me a tua bênção!
– A paz esteja contigo, José. Tenho muito prazer em ver-te, e com boa saúde
– Eu também, Mestre, e também os amigos te verão com alegria. Estás no Getsêmani?
– Estava. Depois da oração, irei para Betânia.
– À casa de Lázaro?
– Não. À casa de Simão. Estou também com minha mãe, com a mãe dos meus irmãos e a de João e Tiago.
Irás lá ver-me?
– Ainda perguntas?! Grande alegria e grande honra. Eu te agradeço por isso. Eu irei com vários amigos!

– Vai devagar, José, com, esses amigos!… –aconselha Simão Zelotes.
– Oh! Vós já os conheceis. A prudência diz: “Que as paredes não ouçam.” Mas, quando vós os virdes,
compreendereis que são amigos.
– Então…
– Mestre, Simão de Jonas estava me falando sobre a cerimônia do pequeno. Tu chegaste na hora em que
eu lhe estava perguntando quando pretendeis realizá-la. Eu também quero estar lá.
– Será na quarta-feira, antes da Páscoa. Quero que ele faça a sua Páscoa, já como filho da Lei.
– Muito bem. Está entendido. Eu virei apanhar-vos em Betânia. Mas, na segunda-feira eu virei com os
amigos.
– Está dito.
– Mestre, eu vou deixar-te. A paz esteja contigo. Está na hora do incenso[53].
– Adeus, José. A paz esteja contigo. 197.5Vem, Jabé. Esta é a hora mais solene do dia. Há outra análoga de
manhã. Mas esta é ainda mais solene. A manhã inicia o dia. E é bom que o homem bendiga ao Senhor, para
ser abençoado durante o dia, em todos os seus trabalhos. Mas a tarde é ainda mais solene. A luz diminui,
cessa o trabalho, a noite vem chegando. A luz que diminui faz lembrar a queda no mal e de fato as ações
pecaminosas realizam-se quase sempre de noite. E porque? Porque o homem, não estando mais ocupado
com o trabalho, mais facilmente se deixa rodear pelo Maligno com seus chamarizes e pesadelos. Por isso, é
bom, depois de termos dado graças a Deus, por ter-nos protegido durante o dia, que lhe supliquemos para
que se afastem de nós os fantasmas da noite e as tentações. A noite, o sono… símbolo da morte. Mas, felizes
daqueles que, tendo vivido com a bênção do Senhor, adormecem, não nas trevas, mas em uma luminosa
aurora. O sacerdote, que oferece o incenso, assim o faz por todos nós. Ele reza por todo o povo, em
comunhão com Deus, e Deus lhe confia a sua bênção para o povo de seus filhos. Estás vendo como é grande
o ministério do sacerdote?
– Eu gostaria… Parecer-me-ia estar mais perto da mamãe…
– Se fores sempre um bom discípulo e um bom filho de Pedro, tu o serás. Agora, vem. As trompas estão
anunciando que a hora chegou. Vamos com veneração louvar a Javé. (Jesus diz assim, com o “J” longo: um
Jieovee muito cantado, com os últimos “e” muito abertos, como se fossem quase um a, mas o que vem
depois do “J” é muito fechado).
[53] incenso que no Templo queimava da manhã ao pôr do sol como está prescrito em Êxodos 30,7-8.
198. O encontro com a mãe em Betânia.
Jabé tem seu nome trocado por Margziam.
23 de junho de 1945.
198.1 Através da sombreada estrada, que liga o Monte das Oliveiras a Betânia, — e eu poderia dizer que o
monte chega com suas ramificações verdes até às campinas de Betânia — Jesus com os seus vai
caminhando solícito, para a cidade de Lázaro. Ele ainda não entrou, mas já está sendo reconhecido, e os
estafetas voluntários vão correndo por todos os lados, a fim de darem notícia de sua chegada. Por causa
deles, eis que, por um lado, vão-se pondo em movimento Lázaro com Maximino, Isaac com Timoneo e José
do outro; em terceiro lugar vem vindo Marta com Marcela e esta levanta seu véu para curvar-se e beijar a
veste de Jesus e logo depois vão chegando Maria de Alfeu com Maria Salomé, que prestam sua veneração
ao Mestre e depois abraçam seus filhos e, enquanto o pobre Jabé sempre levado pela mão de Jesus, agitado
por todos estes que chegam de todos os lados, observa espantado e João de Endor, sentindo-se um estranho,
vai para trás do grupo e fica separado, eis que vem se aproximando pelo caminho que conduz à casa de
Simão, a mãe.
Jesus abandona a mão de Jabé e, delicadamente, vai deixando para trás os amigos, apressando-se em ir
ao encontro dela. As conhecidas palavras rasgam os ares, e ressoam, como um solo de amor, pelo meio do
murmúrio da multidão: “Filho!”; “Mamãe!” E se beijam, mas no beijo de Maria vê-se a ânsia de quem ficou
temendo por muito tempo e agora — desfazendo-se o terror que a infernizou —, sente o cansaço pelo
esforço feito, mede em toda a sua extensão o perigo em que incorreu…
Jesus a acaricia, Ele que compreende e diz:
– Além do meu anjo, Eu tinha o teu, mãe, a velar sobre Mim. Assim, nada de mal me podia acontecer.
– Louvores sejam dados ao Senhor. Mas Eu sofri tanto!
– Eu queria vir mais depressa, mas tive que fazer outro caminho, para obedecer a ti. E foi bom, porque a
tua ordem, minha mãe, como sempre, floresceu para produzir o bem.
– Foi a tua obediência, Filho!
– Foi a tua ordem sábia, minha mãe…
E sorriem como dois enamorados.
Mas, será possível que esta mulher seja a mãe deste Homem? Onde estão os dezesseis anos de
diferença? O frescor e a graça do rosto e do corpo virginal fazem de Maria a irmã do seu Filho, que está na
plenitude de sua belíssima virilidade.
– E não me perguntas por que é que tudo floresceu para produzir um bem? –pergunta-lhe Jesus, sempre
sorrindo.
– Eu sei que meu Jesus não esconde nada de mim.
– Mamãe querida!
E a beija de novo…
As pessoas se conservaram longe, à distancia de alguns metros, e fazem como se não estivessem
observando aquela cena. Mas eu tenho certeza que nenhum desses olhos, que parecem estar olhando para
outro lado, deixe de estar olhando, de soslaio para uma cena de tão grande suavidade.
198.2 Quem está olhando, mais que todos é Jabé, que Jesus deixou, quando foi abraçar sua mãe, e que
ficou sozinho porque, desde que começaram a atropelar-se com perguntas e respostas, não prestaram mais
atenção no pobre menino… Ele fica olhando, olhando, depois inclina a cabeça, luta contra o choro… mas,
enfim, não aguenta mais e explode em um choro, gemendo: “Mamãe! Mamãe!”
Todos, então, e, em primeiro lugar, Jesus e Maria, e todos os outros, procuram remediar o caso e saber
quem é o menino. Maria de Alfeu chega e também Pedro — eles estavam juntos — e ambos dizem:
– Por que estás chorando?
Mas antes que, em seu forte pranto, Jabé possa achar fôlego para falar, Maria já correu e o tomou nos
braços, dizendo:
– Sim, meu filhinho, é a mamãe! Não chores mais… desculpa, se eu não te vi antes. Aqui está, meus
amigos, o meu filhinho…
Compreende-se que Jesus, naqueles poucos metros que andou até o menino, deve ter dito a Maria: “É
um pobre orfãozinho que Eu tomei comigo.” E todo o resto Maria compreendeu logo.
O menino ainda está chorando, mas agora menos inconsolável e, visto que Maria o tem nos braços e o
beija, acaba até por sorrir, com o seu rostinho banhado pelo pranto.
– Vem cá, que eu te enxugo todas estas lágrimas. Não deves chorar mais. Dá-me um beijo…
Jabé… não desejava senão aquilo, e, depois de receber tantas carícias até de homens barbudos, ele se
aconchega agora no calor do afeto, beijando a face lisa de Maria.
198.3 Mas Jesus saiu procurando e já avistou João de Endor, e vai buscá-lo lá em seu cantinho afastado. E,
enquanto todos os outros apóstolos saúdam Maria, Jesus chega até perto dela, segurando pela mão João de
Endor, e diz:
– Eis, mãe, o outro discípulo. Estes dois filhos, foi a tua ordem que os conseguiu.
– A tua obediência, meu Filho –repete Maria, e depois cumprimenta o homem, dizendo–: A paz esteja
contigo.
O homem, o rústico e inquieto homem de Endor, que já mudou tanto, desde aquela manhã em que um
capricho de Iscariotes levou Jesus até Endor, acaba agora de despojar-se do seu passado, enquanto se
inclina para Maria. Eu acho que é assim, de tal forma o rosto que se levanta, depois daquela profunda
inclinação, aparece sereno, verdadeiramente “pacificado.”
198.4 Põem-se todos a caminho da casa de Simão. Maria, com Jabé nos braços, Jesus, segurando pela mão
João de Endor, e depois, ao redor e atrás ,estão Lázaro e Marta, os apóstolos com Maximino, Isaac, José e
Timoneu.
Entram na casa, em cuja soleira o velho servo de Simão venera a Jesus e a seu patrão.
– A paz esteja contigo José, e com esta casa –diz Jesus, levantando a mão para abençoar, depois de tê-la
posto sobre a cabeça já branca do velho servo.
Lázaro e Marta, depois da primeira alegria, ficaram um pouco tristes e Jesus pergunta:
– Por que, amigos?
– Porque Tu não estás conosco e porque todos vêm a Ti, menos a alma que nós quereríamos que fosse
tua.
– Animai-vos com paciência, na esperança e na oração. Além disso, Eu estou convosco. Esta casa!… Esta
casa não é mais do que o ninho, ao qual o Filho do Homem voará todos os dias para os queridos amigos,
que estão tão perto no espaço, mas que, considerando-se sobrenaturalmente o assunto, estão infinitamente
mais perto no amor. Vós estais no meu coração, e Eu estou no vosso. Pode-se estar mais perto do que
estando assim? Mas, nesta tarde, estaremos juntos. Vinde sentar-vos à minha mesa.
– Oh! pobre de mim! E eu fico aqui me balançando. Vem cá, Salomé. Temos muito que fazer!
O grito de Maria de Alfeu faz todos sorrirem, enquanto a boa parenta de Jesus se levanta prontamente
para ir ao seu trabalho.
Mas Marta logo lhe diz:
– Não te preocupes, Maria, pela comida. Eu vou dar ordens. Tu, prepara somente as mesas. Eu vou te
mandar cadeiras suficientes e tudo mais que for preciso. Vem Marcela. Eu volto logo, Mestre.
198.5 – Eu vi José de Arimateia, Lázaro. Segunda-feira ele vai vir aqui com uns amigos.
– Oh! Então, naquele dia serás meu!
– Sim. Ele vem para estarmos juntos, mas também para combinarmos uma cerimônia, que diz respeito a
Jabé. João: leva o menino para o terraço. Ele vai se divertir.
João de Zebedeu, sempre obediente, levanta-se logo do seu lugar e, pouco depois, já se ouve a voz do
menino e o barulho de seus pezinhos, no terraço que está ao redor da casa.
– O menino –explica Jesus à mãe, aos amigos, às mulheres, entre as quais está Marta, que andou voando
para não perder nem um minuto da alegria de estar perto do Mestre–, é neto de um dos camponeses de
Doras. Eu passei por Esdrelon…
– É verdade que os campos estão uma desolação, e que ele os quer vender?
– Que estão uma desolação, estão. Quanto à venda, não estou sabendo. Um dos camponeses de Jocanã
me falou do assunto. Mas não sei se é coisa certa.
– Se ele os vendesse… eu os compraria de boa vontade, para ter neles um abrigo para Ti, também
dentro daquele ninho de serpentes.
– Não sei se conseguirás. Jocanã está disposto a ficar com eles.
– Isso veremos… Mas, continua o que ias dizendo. De que camponeses se trata? Os que tinha antes, ele
os esparramou todos.
– É verdade. Os de agora estão vindo de suas terras na Judeia, pelo menos o velho, que é parente do
menino. O menino era mantido no bosque, como um animal selvagem, a fim de que Doras não o visse… e
esteve lá desde o inverno…
– Oh! pobre menino! Mas por quê?
As mulheres estão todas comovidas.
– Porque o pai e a mãe dele ficaram sepultados pela avalancha nas vizinhanças de Emaús. Todos: o pai, a
mãe e os irmãozinhos. Ele ficou vivo, porque não estava em casa. Levaram-no para a casa do avô. Mas, que
podia fazer um camponês de Doras? Tu, Isaac, falaste de Mim, como de um salvador, também para este
caso.
– Eu fiz mal, Senhor? –pergunta humildemente Isaac.
– Fizeste bem. Deus assim queria. O velho me deu o menino, que está até para tornar-se maior de idade
por estes dias.
– Oh! pobrezinho! Tão pequeno, com doze anos?! O meu Judas tinha quase o dobro de altura, quando
estava nesta idade… E Jesus? Que flor! –diz Maria de Alfeu.
E Salomé:
– Meus filhos também eram bem mais fortes!
Marta murmura:
– De fato, é bem pequenino! Eu pensava que nem tivesse ainda dez anos.
– É isso. A fome é bruta. E ele deve ter passado fome desde que nasceu. Agora, então… Que é que o
velho lhe iria dar, se lá todos estão morrendo de fome? –diz Pedro.
– Sim, ele sofreu muito. Mas ele é muito bom e inteligente. Eu o tomei para consolar o velho e o menino.
198.6 – Tu o vais adotar? –pergunta Lázaro.
– Não. Não posso.
– Então, eu fico com ele.
Pedro vê desvanecer-se sua esperança, e solta um bem claro e verdadeiro gemido:
– Senhor! Tudo para ele?
Jesus sorri:
– Lázaro, tu já fizeste tanto e Eu te sou agradecido por isso. Mas este menino não o posso confiar a ti. É
o “nosso menino.” De todos nós. É a alegria dos apóstolos e do Mestre. Além disso, aqui ele cresceria no
meio da riqueza. E Eu lhe quero dar de presente o meu manto real: “a honesta pobreza.” Aquela que o Filho
do homem quis para Si, para poder aproximar-se de todas as grandes misérias, sem humilhar ninguém. Tu
tiveste, há pouco tempo, um presente meu…
– Ah! sim. O velho patriarca e sua filha. Muito ativa a mulher e o velho é muito bom.
– Onde estão eles agora? Quero dizer: em que lugar?
– Estão aqui, em Betânia. Achas que eu iria afastar de mim a bênção que me enviaste? A mulher
trabalha com o linho. O trabalho com ele exige mãos ligeiras e experientes. O velho, visto que ele só quer
mesmo é trabalhar, eu o mandei tomar conta das colmeias. Ontem — não é verdade, mana? — ele estava
com a barba toda cor de ouro. As abelhas, tendo enxameado, tinham-se agarrado todas àquele barba e ele
estava conversando com elas, como com umas filhas. Ele está feliz.
– Eu faço ideia! Que tu sejas bendito! –diz Jesus.
– Obrigado, Mestre. 198.7Mas aquele menino vai fazer-te gastar! Tu me permitirás, pelo menos…
– Eu estou pensando em sua veste para a festa –grita Pedro.
Todos se riem da impulsividade do grito.
– Está bem. Mas haverá necessidade também de outras roupas. Simão, sê bom. Eu também não tenho
filhos. Deixa que eu e Marta nos consolemos, tratando das pequenas vestes a serem feitas.
Pedro, tendo sido assim rogado, de repente se comove, e diz:
– As vestes… sim. Mas a veste para quarta-feira, dela eu trato. O Mestre já me prometeu, e até disse que
eu devo ir com a mãe comprá-la amanhã.
Pedro diz tudo isso por medo de que haja alguma mudança em seu desfavor.
Jesus sorri, e diz:
– Sim, mãe. Eu te peço que vás amanhã com Simão. Senão, este homem acaba morrendo de aflição. Tu o
aconselharás na escolha.
– Eu disse: veste vermelha e cinta verde. Ficará muito bem. Pelo menos melhor do que a cor que ele tem
agora.
– Vermelho ficará muito bem. Também Jesus estava vestido de vermelho. Mas eu diria que ficaria melhor
sobre o vermelho uma cinta vermelha, ou pelo menos, bordada em vermelho –diz Maria com doçura.
– Eu dizia assim, porque estou vendo como Judas, que é moreno, fica muito bem com aquelas fitas
verdes sobre o hábito vermelho…
– Mas elas não são verdes, amigo –diz, rindo, Iscariotes.
– Não? Então, de que cor são?
– Esta cor é chamada “veio de ágata.”
– E, que queres que eu entenda disso?! A mim me pareceu verde. É a cor que eu vejo nas folhas!
Maria intervém com benignidade:
– Simão tem razão. É exatamente a cor que as folhas tomam, com as primeiras chuvas de Tisri…
– Aí está! E, assim como as folhas são verdes, eu dizia que era verde –termina, contente, Pedro.
A Virgem Suave fez haver paz e alegria até numa pequena coisa como esta.
198.8 – Quereis chamar o pequeno? –pede Maria.
E o menino chega logo, junto com João.
– Como te chamas? –pergunta Maria, acariciando-o.
– Eu sou… eu era Jabé. Mas agora estou esperando o nome…
– Tu o estás esperando?
– Sim. Jabé está querendo um nome que queira dizer que Eu o salvei. Tu procurarás esse nome, minha
mãe. Um nome de amor e salvação.
Maria fica pensando… e depois diz:
– Marjiziam (Maarhgziam). Tu és a pequena gota do mar dos salvados de Jesus. Agrada-te? Assim ele faz
pensar em mim e na Salvação.
– É muito bonito –diz contente o menino.
– Mas, este, não é um nome de mulher? –pergunta Bartolomeu.
– Com um L no fim, em lugar do M, quando este esboço de homem se tornar um adulto, podereis mudar
o seu nome em nome de homem. Por enquanto, vai levar o nome que lhe deu a Mamãe. Está bem?
O menino diz que sim, e Maria o acaricia.
A cunhada lhe pergunta:
– Esta lã é bonita –e toca na capinha de Jabé–, mas tem uma cor! Que achas? Eu a tingirei de vermelho
escuro. Ficará bem.
– Amanhã de tarde faremos isso. Porque amanhã é que ele vai receber sua veste nova. Agora não
podemos tirar esta.
Marta diz:
– Virias comigo, menino? Te levo aqui perto, para ver muitas coisas e depois retornamos aqui…
Jabé não recusa. Ele nunca recusa nada… mas parece que está com um pouco de medo de ir com uma
mulher quase desconhecida. Ele diz, entre tímido e delicado:
– João poderia ir comigo?
– Sem dúvida!
E lá se vão. 198.9E, enquanto eles estão ausentes, as conversações entre os vários grupos continuam. São
narrações, comentários, suspiros por causa da dureza humana.
Isaac conta tudo o que ele pôde ficar sabendo do Batista. Há quem diga que ele está em Maqueronte, e
quem diga que está em Tiberíades. Os discípulos ainda não voltaram…
– Mas, eles não o haviam acompanhado?
– Sim. Mas, perto de Doco, os captores atravessaram o rio com o prisioneiro e não se sabe se depois
subiram para o lago ou se desceram para Maqueronte. João, Matias e Simeão puseram-se em seu encalço,
para saberem, e certamente não o abandonarão.
– E tu, Isaac, com certeza não abandonarás este novo discípulo. Por enquanto, ele está comigo. Quero
que faça a Páscoa comigo.
– Eu a farei em Jerusalém, na casa da Joana. Ela me viu, e me ofereceu um quarto para mim e os meus
companheiros. Todos irão este ano. E estaremos com Jônatas.
– Virão também os do Líbano?
– Também. Mas talvez não poderão vir os discípulos de João.
– Sabes que virão os de Jocanã?
– É verdade? Estarei junto à porta, junto aos sacerdotes que fazem as imolações. Eu os verei e levarei
comigo.
– Podes esperá-los, lá pela última hora. Pois eles têm, um tempo contado. Mas têm o cordeiro.
– Eu também. Magnífico! Foi Lázaro quem o deu. Imolaremos este; e o outro, o deles, servir-lhes-á para
a volta.
198.10 – Está entrando de novo Marta com João e o menino, vestido este com uma pequena veste de linho
branco e uma sobreveste vermelha. Sobre o braço traz umo manto também vermelho.
– Estás reconhecendo isto, Lázaro? Estás vendo como tudo serve?
Os dois irmãos sorriem.
Jesus diz:
– Eu te agradeço, Marta.
– Oh! Senhor meu! Eu tenho a mania de ficar guardando tudo. Eu a herdei de minha mãe. Tenho ainda
muitas vestes do meu irmão. Muito queridas, porque foram tocadas pela minha mãe. De vez em quando, eu
tiro uma parte delas para algum menino. Agora, vou dá-la a Margziam. São um pouco compridas, mas
podem ser encurtadas. Lázaro, quando se tornou maior de idade, não as quis mais… Um bonito capricho,
próprio de crianças… e que venceu porque minha mãe adorava o seu Lázaro.
A irmã o acaricia com amor e Lázaro pega sua belíssima mão, beija-a e diz:
– E tu, não?
Sorriem um para o outro.
– Foi providencial isto –observam muitos.
– Sim, o meu capricho deu bom resultado. Talvez me será perdoado por isso.
A ceia está pronta, e cada um vai para o seu lugar…
198.11 Já é noite, quando Jesus pode falar em paz com sua mãe. Eles subiram para o terraço e, sentados em
cadeiras um ao lado da outra, com a mão na mão, falam e escutam um ao outro. Primeiro é Jesus, que narra
as coisas que aconteceram. Depois, é Maria que diz:
– Meu Filho, depois da tua partida, logo depois, veio à minha casa uma mulher… Ela estava Te
procurando. Uma grande miséria. E uma grande redenção. Mas essa criatura tem necessidade do teu
perdão, para ser firme em sua resolução. Eu a confiei à Susana, dizendo que era uma das curadas por Ti. É
verdade. Eu a poderia ter comigo, se nossa casa não fosse o que é, um verdadeiro mar, onde todos
navegam, e muitos com más intenções. E a mulher já está com repugnância pelo mundo. Queres saber
quem é?
– É uma alma. Mas, dize-me o seu nome, para que Eu possa acolhê-la sem erro.
– É Aglaé. É a romana, dançarina e pecadora, que Tu começaste a salvar no Hebron, que Te procurou e
Te encontrou em Águas Belas e que, por sua renascida honestidade, já tem sofrido. E quanto!… Ela me
disse tudo… Que horror!…
– O seu pecado?
– Este é…., diria, mais ainda; que horror é o mundo! Oh! Meu Filho! Desconfia dos fariseus de
Cafarnaum! Daquela infeliz eles queriam servir-se para Te fazerem mal. Até dela…
– Eu sei, mãe… Onde está Aglaé?
– Chegará com Susana, antes da Páscoa.
– Está bem. Eu falarei com ela. Estarei aqui todas as tardes, menos na tarde do dia da Páscoa, que Eu
devo consagrar à família, Eu a atenderei. Basta detê-la aqui, se ela vier. É uma grande redenção, como
disseste. E tão espontânea! Em verdade, Eu te digo que em poucos corações a minha semente se enraíza
com a força com que se enraizou nesse terreno infeliz. E depois André ajudou o crescimento, até a sua
completa formação.
– Ele me disse.
– Mãe, que foi que sentiste, ao te aproximares daquela ruína?
– Senti asco e alegria. Parecia-me estar à beira de um abismo do inferno, mas, ao mesmo tempo, me
sentia sendo transportada ao azul. Como Tu és Deus, meu Jesus, quando realizas esses milagres!
Ficam calados por baixo das estrelas luminosíssimas e na brancura de um quarto de lua que já está
quase cheia. Calados, e repousando um no amor da outro.
199. Com os leprosos de Siloan e de Ben Hinon.
Pedro ganha Margziam por mediação de Maria.
24 de junho de 1945.
199.1 A esplendida manhã convida realmente a dar um passeio, a deixar as camas e as casas e os moradores
da casa do Zelotes, como abelhas ao primeiro sol, surgem muito cedo e partem para respirar o ar puro do
pomar de Lázaro, que fica ao redor da pequena casa hospitaleira. Logo se ajuntam também os que estão
hospedados com Lázaro, isto é, Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, André e Tiago de Zebedeu. O sol entra
festivo por todas as janelas e portas escancaradas, e os quartos, simples e limpos, vão-se vestindo com uma
tinta de ouro, que aviva as cores das vestes, e faz brilhar também as cores dos cabelos e das pupilas.
Maria de Alfeu e Salomé estão atentas em servir a estes homens, que estão com um apetite notável. Maria,
por sua vez, está observando um dos criados de Lázaro, enquanto ele vai compondo os cabelinhos de
Margziam, cortando-os com mais habilidade do que tinha feito o primeiro cabeleireiro dele:
– Por enquanto, fica assim –diz ele–. Depois, quando tiveres oferecido a Deus a tua cabeleira de menino, eu
a encurtarei como se deve. Quando chegar o calor, te sentirás melhor, sem cabelos no pescoço. E eles ficarão
mais fortes. Agora, estão secos e frágeis, descuidados. Estás vendo, Maria? Eles precisam de cuidados. Agora
vou untá-los, para conservá-los em seu lugar. Estás sentindo, menino, que cheirinho bom? É o óleo que Marta
usa. Amêndoa, palma, miolo do que há de mais fino e com essência rara. Isto faz muito bem. Minha patroa
disse que eu guardasse este potinho para o menino. E, então, ele está aqui. Agora, ficas parecendo o filho do
rei.
E o servo, que deve ser o barbeiro da casa de Lázaro, dá uma palmadinha na face de Margziam, saúda
Maria, e vai-se embora satisfeito.
– Vem cá, que eu vou te vestir –diz Maria ao menino que, por enquanto, está só com uma tunicazinha de
mangas curtas, que eu creio que seja a camisa ou o que naqueles tempos fazia as vezes dela.
E, pela boa qualidade do linho, compreendo que ela fazia parte do enxoval de Lázaro, quando criança.
Maria tira a toalha com que Margziam estava quase enfaixado, e o reveste com a saia feita de linho, franzida
na raíz do pescoço e nos pulsos, e com a sobreveste vermelha, de lã, com um amplo decote e mangas largas. O
linho, muito alvo, aparece no decote e nas mangas de tecido vermelho e opaco. A mão de Maria deve ter
trabalhado a noite inteira para prover a tudo, regulando o comprimento das vestes e das mangas, e agora está
tudo bem, especialmente depois que Maria o cingiu na cintura com a faixa macia, que termina em um floco de
lã branca e vermelha. O menino nem parece mais aquele ser pobrezinho de poucos dias atrás.
– Agora, vai brincar, sem sujar-te, enquanto eu vou me preparar
–diz Maria, acariciando-o.
E o menino sai, pulando de contente, para ir procurar os seus grandes amigos.
199.2 O primeiro a vê-lo é Tomé:
– Mas, como estás bonito! Vestido de noivo! Tu me fazes desaparecer –diz o alegre Tomé, gorducho e
tranquilo.
E o toma pela mão, dizendo:
– Vem cá, vamos ao lugar onde estão as mulheres. Elas estavam te procurando, para ensinarem o que deves
dizer ou fazer.
Entram na cozinha, e Tomé passa um susto nas duas Marias, gritando com o seu vozeirão para elas que
estavam inclinadas e viradas para os seus pequenos fornos:
– Aqui está um jovenzinho que quer vos ver –e rindo-se, apresenta o menino, que estava escondido atrás do
seu volumoso corpo.
– Oh! querido! Vem cá, que eu te dou um beijo! Olha, Salomé, como ele está bonito –exclama Maria de
Alfeu.
– É verdade. Agora, só falta ele ficar mais robusto. Mas disso cuidarei eu. Vem cá, que eu também te beijo –
responde Salomé.
– Mas Jesus vai confiá-lo aos pastores –objeta Tomé.
– Isso, nem por sombra! Neste ponto o meu Jesus erra. Que é que quereis fazer, que é que, vós homens,
sabeis fazer? Brigar — porque, seja dito de passagem, sois, antes de tudo, uns briguentos… como uns cabritos,
que se amam, mas dão chifradas uns nos outros, — sabeis comer, falar, ter mil necessidades e querer que o
Mestre preste toda atenção em vós… caso contrário ficais amuados… E os meninos precisam é das mamães.
Não é verdade… como te chamas?
– Margziam.
– Ah! Mais esta! Bendita a minha Maria! Ela podia ter-te dado um nome mais fácil!
– É quase como o dela! –exclama Salomé.
– Sim. Mas o dela é mais simples. Ele não tem aquelas três letras no meio… Três são demais…
Iscariotes acabou de entrar, e diz:
– Ela pôs o nome certo, em seu significado, segundo a linguagem antiga, não adulterada.
– Está bem. Mas é difícil, e eu tiro uma delas, e digo Marziam. Assim é mais fácil e o mundo não virá abaixo
por isso. Não é verdade, Simão?
E Pedro, que ia passando diante da janela, conversando com João de Endor, se aproxima, e diz:
– Que desejas?
– Estava dizendo que eu chamo o menino de Marziam. É mais fácil.
– Tens razão, mulher. Se a mãe me permite, eu também o chamarei assim. Mas, como estás bem! Mas, eu
também, hein? Olhem só!
De fato, ele está todo escovado, barbeado nas faces, com cabelos e barba alinhados e untados, a veste não
amarrotada, as sandálias parecendo novas, de tão limpas e tornadas brilhantes, não sei com quê. As mulheres
o admiram, e ele se ri contente.
O menino acabou de comer, e sai para ir andar com o seu grande amigo, a quem ele dá sempre o nome de
“Pai.”
199.3 Eis Jesus que vem da casa de Lázaro, junto com o mesmo e, ao menino que vai correndo ao seu
encontro, Ele diz:
– A paz esteja entre nós, Margziam. Demo-nos o beijo da paz.
Lázaro, saudado pelo menino, dá-lhe um docinho.
Todos se reúnem ao redor de Jesus. Também, Maria, revestida com uma veste de lã cor de turquesa, sobre a
qual cai um amplo manto mais escuro, vem vindo sorridente em direção de seu Filho.
– Podemos ir então –diz Jesus–. Tu, Simão, com minha mãe e o menino, se é que estás mesmo disposto a
gastar, ainda mais agora que Lázaro já proveu a tudo.
– Mas, sem dúvida! E depois… poderei dizer que pude, pelo menos uma vez, caminhar ao lado de tua mãe.
Uma grande honra.
– Então, vai. E tu, Simão, me acompanharás. Vamos aos teus amigos leprosos…
– De verdade, Mestre? Nesse caso, se me permites, irei na frente correndo, para reuni-los. Depois me
encontrarás. Já sabes onde eles estão…
– Está bem. Vai. Os outros façam o que quiserem. Estais todos livres até quarta-feira pela manhã. Nesse dia,
à hora terça, estajam todos junto à Porta Dourada.
– Eu irei contigo, Mestre –diz João.
– Eu também –diz Tiago, irmão dele.
– E nós também –dizem os dois primos.
– Eu irei também –diz Mateus e, com ele, André.
– E eu? Eu gostaria de ir também… mas tenho que ir às compras, e não posso ir convosco… –diz o Pedro, na
dúvida entre duas vontades.
– Pode-se fazer tudo. Primeiro, vamos aos leprosos e, nesse ínterim, minha mãe vai com o menino a uma
casa amiga em Ofel. Depois nós a encontraremos, e tu vais com ela, enquanto Eu e os outros vamos à casa de
Joana. Nos reuniremos no Getsêmani para a refeição, e depois, perto do pôr do sol, estaremos aqui.
– Eu, se me permites, vou à casa de alguns amigos… –diz Judas Iscariotes.
– Mas Eu já disse. Fazei o que quiserdes.
– Então, vou ver meus pais. Talvez meu pai já tenha vindo. Se tiver, eu o trarei a Ti –diz Tomé.
– E nós dois, que achas, Filipe? Poderíamos ir à casa do Samuel.
– Disseste bem –responde ele a Bartolomeu.
– E tu, João? –pergunta Jesus ao homem de Endor–. Preferes ficar aqui, para pôr em ordem os teus livros, ou
ir comigo?
– Na verdade, eu gostaria de ir contigo… Meus livros… já me agradam menos. Prefiro ler em Ti, o livro vivo.
– Então, vem. Adeus, Lázaro, a…
– Mas, eu vou também. Minhas pernas estão um pouco melhor, e eu te deixarei depois da visita aos leprosos
e irei esperar-te em Getsêmani.
– Vamos. A paz esteja convosco, mulheres.
Até às vizinhanças de Jerusalém, vão indo todos juntos. Depois, eles se separam, indo Iscariotes, por sua
própria conta, entrando na cidade provavelmente por aquela porta que fica perto da fortaleza Antônia,
enquanto que Tomé, com Filipe e Natanael, andam ainda algumas dezenas de metros com Jesus e os
companheiros e depois entram na cidade pelo subúrbio de Ofel junto com Maria e o menino.
199.4 – E agora vamos àqueles infelizes! –diz Jesus e, virando as costas para a cidade, se dirige para um lugar
desolado, situado nas encostas de uma colina rochosa, que fica entre as duas estradas, que vão de Jericó para
Jerusalém.
É um lugar estranho, parecendo-se mais com um conjunto de escadarias, depois da primeira subida, acima
da qual se chega a um caminho, de tal modo que o primeiro lance fica a pique, pelo menos uns três metros
acima do caminho, e igualmente o segundo. Tudo aqui é aridez e morte… Uma grande tristeza.
– Mestre –grita Simão Zelotes–, eu estou aqui. Para aí, que eu vou te ensinar o caminho…
E Zelotes, que tinha se encostado à rocha, procurando um pouco de sombra, vai para a frente, e conduz
Jesus por um caminho em degraus, que vão no rumo do Getsêmani, mas apartado dele pela estrada que, do
Monte das Oliveiras vai para Betânia[54].
– Já chegamos. Entre os sepulcros de Siloan eu vivi, e aqui estão os meus amigos. Só uma parte deles. Os
outros estão em Ben Hinon mas não podem vir… Teriam que atravessar a estrada, e seriam vistos.
– Nés iremos a eles também.
– Obrigado! Por eles e por mim.
– Eles são muitos?
– O inverno matou a maior parte. Mas aqui ainda há cinco daqueles aos quais eu havia falado. Eles estão te
esperando. Lá estão eles, ao lado da sua prisão…
Devem ser uns dez monstros. Digo “devem ser”, porque se cinco são bem visíveis de pé, os outros, ou pela
cor cinzenta da pele, ou pela deformidade do rosto, ou porque assomam apenas por cima do pedregal, podem
ser tão mal divisados, que tanto poderiam ser mais, como menos. Entre os que estão em pé, só há uma mulher.
Quem diz isto são somente os seus cabelos já embranquecidos e descuidados, que caem, duros e sujos, pelas
costas até à cintura. Mas, quanto aos outros, não se distingue sexo, porque a doença, muito adiantada, já os
reduziu a esqueletos, destruindo todas as curvas femininas e, nos homens, só um ainda mostra leves traços de
bigodes e barba. Os outros já foram rapados pela doença destruidora.
Eles gritam:
– Jesus, Salvador nosso, tem piedade de nós! –e estendem suas mãos deformadas ou cheias de feridas–.
Jesus, Filho de Davi, tem piedade!
– Que quereis que Eu vos faça? –diz Jesus, levantando o rosto para aquelas misérias.
– Que Tu nos salves do pecado e da doença.
– Do pecado salva a vontade e o arrependimento…
– Mas se Tu queres, podes cancelar os nossos pecados. Pelo menos, cancela os nossos pecados, se não
queres curar os nossos corpos.
– Se Eu vos disser: “Escolhei uma das duas coisas”, qual delas quereis?
– O perdão de Deus, Senhor. Para ficarmos menos desolados.
Jesus faz um sinal de aprovação, com um luminoso sorriso, depois levanta os braços, e grita:
– Que sejais atendidos. Assim quero.
Atendidos! Pode ser quanto ao pecado, ou quanto à doença, ou quanto às duas coisas, e os cinco infelizes
ficam sem saber. Mas, quem não ficou assim foram os apóstolos, que não podem fazer outra coisa, senão gritar
hosanas, ao verem a lepra ir desaparecendo rapidamente, assim como desaparece um floco de neve, quando
cai no fogo. E então, os cinco compreendem que foram completamente atendidos. E seu grito ressoa como uma
exclamação de vitória. Abraçam-se uns aos outros e jogam beijos a Jesus, já que ainda não podem ir precipitar-
se a seus pés. E depois se dirigem aos companheiros, dizendo:
– Vós ainda não quereis crer? Mas que espécie de infelizes sois?
– Bons! Sede bons. Os pobres irmãos precisam pensar. Não lhes digais nada. A fé não se impõe, mas se
prega com a paz, a doçura, a paciência, a constância. É isso que fareis, depois de vossa purificação, como
Simão fez convosco. Aliás o milagre, por si só já é uma pregação.. Vós, curados, ireis quanto antes mostrar-vos
ao sacerdote. Vós, doentes, aguardai-nos pela tarde. Iremos trazer-vos comida. A paz esteja convosco.
Jesus desce de novo para o caminho, acompanhado pelas bênçãos de todos.
199.5 – Agora, vamos para Ben Hinon –diz Jesus.
– Mestre… eu gostaria de ir. Mas estou vendo que não posso. Eu vou para o Getsêmani –diz Lázaro.
– Vai, vai, Lázaro. A paz esteja contigo.
Enquanto Lázaro lentamente vai se pondo a caminho, o apóstolo João diz:
– Mestre! eu vou com ele. É cansativo e o caminho não é muito bom. Depois te alcançarei em Ben Hinon.
– Então, vai. Vamos.
Passam pelo Cedron. Costeiam o lado sul do Monte Tofet e entram pelo pequeno vale coberto de sepulcros e
de lixo, sem uma árvore nem um abrigo contra o sol, que neste lado sul derrama todos os seus fogos,
abrasando as pedras destes degraus infernais, em cujas bases soltam fumaça incêndios fedorentos, que
aumentam ainda mais o calor. Dentro desses sepulcros, parecidos com fornos crematórios, há pobres corpos
que vão se consumindo… Siloan deve ser um lugar muito feio no inverno, com toda essa umidade que tem, e já
quase virado para o norte. Mas aqui deve ser horrível é no verão…
Simão Zelotes, solta um grito de chamado e, primeiro três, da comitiva, depois dois, depois um e mais um,
vão chegando como podem, até o limite marcado. Aqui há duas mulheres, e uma vem trazendo pela mão uma
criança de aspecto horroroso, pois a lepra a atacou principalmente no rosto. Ela já está cega… Há também um
homem de aspecto nobre, apesar de sua miserável condição. Ele é que toma a palavra por todos:
– Bendito seja o Messias do Senhor, que desceu até à nossa Geena, para dela tirar os que nele esperam.
Salva-nos, Senhor, porque perecemos! Salva-nos, Salvador! Ó rei da estirpe de Davi, Ó Rei de Israel, tem
piedade dos teus súditos. Ó rebento de Jessé, do qual foi dito que no seu tempo não haverá mais mal, estende a
tua mão para recolher estes restos do teu povo. Faze desaparecer de nós esta morte, enxuga as nossas
lágrimas, pois assim foi dito de Ti. Chama-nos, Senhor, às tuas pastagens excelentes, para as tuas águas doces,
pois nós estamos cheios de sede. Leva-nos para as colinas eternas, onde não há mais culpa nem dor. Tem
piedade, Senhor…
– Quem és tu?
– Sou João, um do Templo. Fui contaminado, talvez por um leproso. Como vês, faz pouco tempo que a
doença me pegou. Mas estes aí!… Alguns estão há anos esperando a morte e esta menininha está desde
quando ainda não sabia andar. Ela nem sabe que é uma criação de Deus. Tudo o que ela conhece, tudo de que
ela se lembra, entre as maravilhas de Deus, são estes sepulcros, este sol desapiedado e as estrelas da noite.
Piedade para os culpados e para os inocentes, Senhor, nosso Salvador.
E todos se ajoelharam, estendendo as mãos.
Jesus chora ao ver tanta miséria, depois abre os braços, e grita:
– Pai, Eu quero: saúde, vida, vista e santidade para eles.
Fica ainda rezando intensamente, de braços abertos, com todo o seu espírito. Ele parece adelgaçar-se e
elevar-se na oração, como uma chama branca de amor, branca e poderosa, por entre os poderosos raios de
ouro que o sol emite.
– Mamãe, eu estou vendo!
É o primeiro grito, e a este correspondem os da mãe, que aperta contra o coração a menina curada, depois
os gritos dos outros e dos apóstolos… O milagre foi feito.
– João, tu, sacerdote, guiarás os companheiros no rito. A paz esteja convosco. A vós também traremos
alimentos, lá pela tarde.
Abençoa, e faz como quem vai tomar o caminho de volta.
Mas o leproso João lhe grita:
– Sobre os teus passos eu quero ir. Dize-me o que devo fazer e onde ir pregar sobre Ti!
– Nesta terra desolada e nua, que precisa converter-se ao Senhor. Que a cidade de Jerusalém seja o teu
campo. Adeus.
199.6 – E agora vamos à mãe –diz depois aos apóstolos.
– Mas, onde está ela? –perguntam muitos.
– Em uma casa que João sabe. Na casa da menina que foi curada[55] no ano passado.
Entram na cidade, percorrem boa parte do populoso bairro de Ofel e vão até uma casinha branca. Jesus
entra, com sua doce saudação, na casa, cuja porta está semi-aberta e de lá sai a voz suave de Maria, a voz
argêntea de Anália e a voz grossa da mãe dela. A menina prostra-se adorando, a mãe ajoelha-se. Maria se
levanta.
Gostariam de deter lá o Mestre com sua mãe. Mas Jesus, prometendo voltar em outro dia, abençoa e se
despede. Pedro vai indo com Maria, todo feliz. Os dois estão segurando o menino pela mão, e parecem uma
pequena família feliz. Muitos se viram e olham para eles. Jesus observa como eles vão andando, e sorri.
– Simão está feliz –exclama Zelotes.
– Por que estás sorrindo, Mestre? –pergunta Tiago de Zebedeu.
– Porque naquele grupo estou vendo uma grande promessa.
– Que promessa, Irmão? Que estás vendo? –pergunta Tadeu.
– Vejo o seguinte: Que poderei ir-me embora tranquilo, quando chegar a hora. Que não preciso temer pela
minha Igreja. Ela, então, ainda estará pequena, como Margziam. Mas nela estará minha mãe, segurando-a
assim pela mão e a fazer para com ela as vezes da mãe, e nela estará Pedro, fazendo as vezes do Pai. Em sua
mão honesta e cheia de calos, posso colocar sem preocupações, a mão da minha Igreja nascente. Ele lhe dará a
força da sua proteção. E minha mãe, a força do seu amor. E a Igreja crescerá… como Margziam… Ele é
verdadeiramente o menino-símbolo! Deus abençoe minha mãe, meu Pedro e o menino deles e nosso! Agora,
vamos à casa de Joana…
199.7 … E novamente, pela tarde, já estamos na casinha de Betânia. Muitos, cansados, já se retiraram. Mas
Pedro anda para lá e para cá pelo caminho, levantando frequentemente os olhos para o terraço, onde estão
sentados, conversando, Jesus e Maria. João de Endor, por sua vez, está conversando com Zelotes, estando os
dois sentados debaixo de uma romãzeira toda florida.
Maria já falou muito, porque ouço Jesus dizer:
– Tudo o que me disseste é bem justo e de tudo considerarei a justiça. Também acho que é justo o teu
conselho dado à Anália. Que o homem o tenha acolhido com tanta presteza é bom sinal. Na verdade, a alta
Jerusalém está cheia de obtusosidade, de ódio e, Eu poderia até, dizer, de sujeira. Mas, no meio do seu povo
humilde, há pérolas de um valor desconhecido. Fico alegre porque Anália está feliz. É uma criatura mais do
Céu, do que da terra e talvez o homem, que agora entrou no conceito do espírito, tenha intuição disso e preste
a isso um respeito quase de veneração. Seu pensamento de ir para outro lugar, a fim de não perturbar, com
algum sobressalto humano, o cândido voto da menina, o está demonstrando.
– Sim, meu Filho. O homem percebe o perfume das virgens… Eu me lembro de José. Eu não sabia de que
palavras devia fazer uso. Ele não conhecia o meu segredo… E, no entanto, ele me ajudou a dizê-lo, com a sua
percepção de santo. Ele tinha sentido o odor da minha alma… Não vês também João?… Que paz!… E todos o
procuram… O próprio Judas de Keriot, por mais que… Não, meu Filho. Judas não mudou. Eu sei e Tu sabes.
Nós não falamos, porque não queremos ser nós que começamos a guerra. Mas, ainda que não falemos, nós o
sabemos… e, mesmo que não falemos, os outros estão enxergando… Oh! Meu Jesus! Contaram-me os jovens
hoje, em Getsêmani, o episódio de Magdala e o da manhã de sábado… A inocência fala… porque ela vê pelos
olhos do seu anjo. Mas os velhos também entrevêem… Não deixam de ter razão. É um ser esquivo… Tudo nele
é esquivança… e eu tenho medo dele, e tenho sobre os lábios as mesmas palavras do Benjamim de Magdala e
do Margziam no Getsêmani, porque tenho pelo Judas a mesma repugnância que por ele sentem as crianças.
– Nem todos podem ser como João!
– Nem eu pretendo isso. Isso seria um paraíso na terra. Mas, estás vendo, Tu me falaste do outro João… Um
homem que matou… mas que só me causa dó. Judas me dá medo.
– Ama-o, minha mãe! Ama-o por amor de Mim!
– Sim, meu Filho. Mas nem meu amor servirá. Será apenas mais um sofrimento para mim e uma culpa para
ele.. Oh! Para que foi ele entrar! Perturba a todos e ofende a Pedro, que é digno de todo respeito.
199.8 – Sim. Pedro é muito bom. Por ele Eu faria qualquer coisa, pois ele o merece.
– Se ele te ouvisse, diria com aquele seu sorriso bom e sincero: “Ah! Senhor, isso não é verdade!” E teria
razão.
– Por quê, mãe?
Mas Jesus está sorrindo porque já compreendeu.
– Porque Tu o não contentas, dando-lhe um filho. Ele me contou todas as suas esperanças, os seus desejos…
e as tuas recusas.
– E não te disse as razões com que as justifiquei?
– Sim, ele as disse, e acrescentou: “É verdade… mas eu sou um homem, um pobre homem. Jesus teima em
querer ver em mim um grande homem. Mas eu sei que não sou mais do que um ser mesquinho e, por isso… me
poderia dar um menino. Eu me casei para ter um… e vou morrer sem ter.” E, mostrando o menino que, feliz
pela veste para ele comprada por Pedro, o havia beijado, dizendo-lhe: “Meu pai amado”, disse-me: “Vê, quando
este pequenino que, há somente dez dias, eu nem conhecia ainda, fala-me assim, eu me sinto mais maleável do
que manteiga, e mais doce do que o mel, e até choro porque… cada dia que passa, ele quer me levar embora
este menino…”
Maria se cala, observando Jesus, estudando-lhe o semblante, esperando uma palavra… Mas Jesus colocou o
cotovelo sobre o joelho, a cabeça encostada na palma da mão e está também calado, olhando para a grande
extensão verde do pomar.
Maria pega a mão dele e a acaricia, dizendo:
– Simão tem esse seu grande desejo… Enquanto eu ia andando com ele, não parou de falar-me nisso, e com
razões tão justas, que… eu não pude dizer nada para fazê-lo calar-se. Eram as mesmas razões, nas quais
pensamos todas nós, mulheres e mães. O menino não é robusto. Se ele tivesse sido como eras Tu… Oh! então
teria podido ir ao encontro da vida, como um discípulo sem medo. Mas é tão fraquinho!… Muito inteligente,
muito bom… e nada mais. Quando um pombinho é delicado, não se pode lançá-lo ao vôo logo, como se faz com
os fortes. Os pastores são bons… mas são sempre homens. Os meninos precisam das mulheres. Por que não o
deixas com Simão? Enquanto lhe negas um filho nascido dele, eu compreendo o motivo. Um pequenino nosso é
para nós como uma âncora. E Simão, destinado a tão grande sorte, não pode ter âncoras que o detenham.
Contudo, deves convir que ele deva ser o ‘pai’ de todos os filhos que Tu lhe deixarás. E, como haveria ele de
ser pai, se não tiver treinado com um menino? Um pai deve ser manso. E Simão é bom, mas manso, não. Ele é
impulsivo e intransigente. Não há nada como uma criaturinha, que lhe possa ensinar a arte sutil da compaixão
para com quem é fraco… Pensa nesta sorte de Simão… Afinal, é o teu sucessor! Oh! tenho afinal que dizer esta
palavra cruel! Mas, pela grande dor que me custa dizê-la escuta-me. Eu nunca te aconselharia uma coisa que
não fosse boa. Margziam… Tu queres fazer dele um perfeito discípulo… Mas ele ainda é um menino. Tu… Terás
que ir embora, antes que ele se torne um homem. A quem, então, o entregarás para completar sua formação,
senão a Simão? Afinal, pobre Simão, Tu sabes quanto tem sofrido, também por causa de Ti, da parte de sua
sogra Contudo ele não recuperou nem um grãozinho do seu passado, da liberdade que tinha, há um ano, para
ser deixado em paz pela sogra, que nem Tu pudeste mudar. E aquela pobre criatura, que é a mulher dele? Oh!
Ela tem um grande desejo de amar e de ser amada. A mãe… Oh! O marido? Um amável prepotente. Nunca um
afeto que lhe seja dado sem tantas exigências… Pobre mulher!… Deixa-lhe o menino. Escuta, Filho. Por
enquanto, o levamos conosco. Eu também virei para a Judeia. Tu me levarás contigo à casa de minha
companheira no Templo e quase nossa parenta, porque é descendente de Davi. Ela mora em Betsur. Eu a irei
ver de boa vontade, se é que ainda vive. Depois, ao voltarmos para a Galileia, o daremos à Púrpura. Quando
estivermos nas vizinhanças de Betsaida, Pedro o tomará. E, quando viermos para longe, o menino ficará com
ela. Ah! Mas Tu agora estás sorrindo! Então contentarás à tua mamãe. Obrigada, meu Jesus.
– Sim. Seja feito como Tu queres.
199.9 Jesus se levanta, e grita com força:
– Simão de Jonas, vem aqui.
Pedro dá um salto, e vai correndo pelos degraus.
– Que queres, Mestre?
– Vem aqui, homem usurpador e corruptor!
– Eu? Por quê? Que foi que eu fiz, Senhor?
– Tu corrompeste minha mãe. Para isso é que querias estar sozinho. Que devo te fazer?
Mas Jesus está sorrindo e Pedro fica mais tranquilo.
– Oh! –diz ele–, me fizeste ficar com medo! Mas agora estás rindo… Que queres de mim, Mestre? A vida? É
só o que tenho, pois me tomaste tudo… Mas, se a queres, eu a dou.
– Eu não quero tirar-te nada. Mas quero te dar. Mas não fiques te gloriando pela vitória e não contes o
segredo aos outros, ó homem matreiríssimo, que vences o Mestre com a arma da palavra materna. Tu ficarás
com o menino, mas…
Jesus não fala mais, porque Pedro, que se havia ajoelhado, põe-se rapidamente de pé e beija Jesus com
tanto ímpeto, que lhe embargou a palavra.
– Agradece a ela, não a Mim. Mas, lembra-te que isso te deve servir de ajuda e não de estorvo…
– Senhor, não terás que arrepender-te por este presente… Oh! Maria! Que Tu sejas sempre bendita, santa e
boa…
E Pedro, que de novo caiu de joelhos, está chorando de verdade e beijando a mão de Maria.
[54] para Betânia. Segue o desenho de MV que colocou no centro da Pequena Montanha, em que está três vezes escrito acima leprosos; no norte, o Getsêmani
do qual sai a Estrada mais curta para Betânia e Jericó; além disso escreveu a lápis Aqui o monte das Oliveiras; a oeste corre o Cedron; depois traçou a Estrada
mais longa para Betânia e Jericó.
[55] menina que foi curada em 86.4/5, virgem consagrada em 156.3/5.
200. Aglaé em colóquio com o Salvador.
26 de junho de1945.
200.1 Jesus torna a entrar sozinho em casa de Zelotes. A tarde já está chegando plácida e serena, depois
de um dia de muito sol. Jesus aparece à porta da cozinha, saúda, e depois sobe para o quarto superior, já
preparado para a ceia, a fim de lá meditar. Não parece estar muito alegre o Senhor. Ele está suspirando
repetidas vezes, e andando para lá e para cá, lançando, de vez em quando, um olhar por sobre a campina
vizinha, que pode ser vista através das muitas portas desta vasta sala, que tem a forma de um cubo,
colocado sobre o térreo. Ele sai, também para passear sobre o terraço, fazendo a volta ao redor da casa, e
para no lado detrás dela, a fim de olhar para João de Endor que, de modo cortês, está tirando água de um
poço, para oferecê-la à atarefada Salomé. Jesus olha, sacode a cabeça e suspira.
A força do seu olhar atrai João, que se volta para ver o que há, e pergunta:
– Mestre, estás precisando de mim?
– Não. Eu somente estava olhando para ti.
– João é bom. Ele me ajuda –diz Salomé.
– Também por essa ajuda, Deus lhe darà recompensa.
Jesus, depois destas palavras, entra de novo no quarto e se assenta
200.2 Está tão absorto, que nem percebe o barulho das muitas vozes e do tropel dos muitos passos pelo
corredor da entrada, e depois, de dois passos mais leves de alguém que sobe pela escadinha externa e que
se aproxima do salão. Só quando Maria o chama é que Ele levanta a cabeça.
– Meu Filho, chegou a Susana de Jerusalém com a família, e logo Aglaé me acompanhou. Queres atendê-
la, enquanto estamos sós?
– Sim, mãe. Vou atendê-la já. E que ninguém suba, enquanto não terminar tudo. Espero ter acabado,
antes da volta dos outros. Mas Eu te peço que cuides para que não haja curiosidades indiscretas… em
ninguém… e especialmente em Judas de Simão.
– Estarei atenta, e cuidarei disso…
Maria sai, para voltar pouco depois, segurando Aglaé pela mão, não mais embrulhada em seu manto
cinzento e com o seu véu caído para a frente, não mais com suas sandálias altas e cheias de fivelas e fitas,
que ela antes usava, mas totalmente transformada como mulher hebreia, pelas sandálias planas e baixas,
muito simples como as de Maria, com a veste de um azul escuro, sobre a qual está posta o manto, e com um
véu branco, colocado como fazem as mulheres hebreias do povo, isto é, posto simplesmente na cabeça, com
uma parte jogada para as costas, de modo que o rosto fica coberto por ele, mas não completamente. O
hábito comum, como é usado por muitíssimas mulheres, e estando ela no meio de um grupo de galileus,
tudo isso tornava possível que Aglaé deixasse de ser reconhecida.
Ela entra de cabeça inclinada, enrubescendo a cada passo que dá, e acho que, se Maria não a fosse
puxando docemente para Jesus, ela se teria ajoelhado na soleira.
– Aqui está, meu Filho, aquela que vinha te procurando há tanto tempo. Escuta-a –diz Maria, ao chegar
perto de Jesus, e depois se retira, abaixando os toldos sobre as portas escancaradas e fechando a que
estava mais perto da escadinha.
200.3 Aglaé se separa da sacola que trazia nas costas e, em seguida se ajoelha aos pés de Jesus, em meio a
uma grande explosão de choro. Ela se estende no chão, chorando, com a cabeça apoiada nos braços
cruzados sobre a terra.
– Não chores assim. Já não é mais tempo disso. Tu devias chorar, quando estavas com ódio de Deus. Mas
não agora que o amas e por Ele és amada.
Mas Aglaé continua a chorar…
– Não acreditas que é assim?
Sua voz está procurando um caminho, por entre os soluços:
– Eu o amo, é verdade, como sei e como posso. Mas, por mais que eu saiba e creia que Deus é Bondade,
não ouso esperar de obter o seu amor. Eu pequei demais… Talvez eu o terei um dia… Mas preciso chorar
muito ainda… Por enquanto, estou sozinha no meu amor. Estou sozinha… mas já não é a solidão
desesperada dos anos passados. É uma solidão cheia do desejo de Deus e, por isso nem é mais
desesperada… mas é tão triste, tão triste…
– Aglaé, como tu ainda conheces mal o Senhor! Este desejo dele te serve de prova de que Deus
corresponde ao teu amor, de que Ele é teu amigo, que te chama e te convida, que te quer. Deus é incapaz de
permanecer inerte, diante do desejo de uma criatura sua, porque aquele desejo foi inspirado àquele coração
por Ele, o Criador e Senhor de toda criatura. Ele o inspirou, porque amou com um amor privilegiado a alma
que agora o deseja. O desejo de Deus vem sempre antes do desejo da criatura, porque Ele é Perfeitíssimo e,
por isso, o seu amor é bem mais habilidoso e abrasado do que o amor da criatura.
– Mas, como Deus pode amar-me, se eu sou lama?
– Não fiques procurando entender isso com a tua inteligência. É um abismo de misericórdia,
incompreensível para a mente humana. Mas onde a inteligência do homem não pode compreender,
compreende a inteligência do amor, o amor do espírito. Este compreende e penetra firmemente no mistério
que é Deus e no mistério dos relacionamentos da alma com Deus. Entra, Eu te digo. Entra, porque Deus o
quer.
– Oh! não, Senhor! Tudo o que me disseste[56] em Hebron se realizou.
Tu me salvaste, como o teu Nome diz. Tu procuraste a mim pobre alma perdida. Tu deste a vida a esta
alma que eu trazia morta em mim. Tu me disseste que, se eu tivesse te procurado teria te encontrado. E foi
verdade. Tu me disseste que estás por toda parte, onde o homem está precisando de médico e de remédio.
E é verdade tudo, tudo o que disseste à pobre Aglaé, desde aquelas palavras daquela manhã de junho, até
as outras ditas em Águas Belas…
– Então, deves crer também nestas.
– Sim, eu creio, eu creio. Mas, Tu me dirás: “Eu te perdôo!”
– Eu te perdôo em nome de Deus e de Jesus.
– Obrigada… 200.4Mas agora… Agora que devo fazer? Dize-me, Salvador meu, que é que eu devo fazer
para ter a vida eterna? Os homens se corrompem só ao olhar para mim… Eu não posso viver com esse
calafrio contínuo de pensar que vou ser descoberta e tentada… Nesta viagem, eu vinha tremendo, diante
dos olhares dos homens… Eu não quero mais pecar, nem fazer pecar. Dize-me que caminho devo seguir.
Seja qual for, eu o seguirei. Tu estás vendo que eu sou forte até nos sofrimentos. E, mesmo que por grandes
sofrimentos eu encontrasse a morte, não tenho medo dela. Eu até a chamarei de “minha amiga”, porque me
tirará dos perigos. Fala, meu Salvador.
– Vai para um lugar deserto.
– Onde, Senhor?
– Onde quiseres. Aonde te levar o teu espírito.
– Será capaz de fazer isso o meu espírito, só agora formado?
– Sim, porque Deus vai te conduzir.
– E, quem me falará ainda de Deus?
– A tua alma ressuscitada, por enquanto.
– Não te verei nunca mais?
– Sobre a terra, nunca mais. Mas, daqui a pouco, terei te redimido completamente e, então, virei ao teu
espírito a fim de preparar-te para subires a Deus.
– Como vai acontecer a minha completa redenção, se eu não vou te ver mais? Como a darás?
– Morrendo por todos os pecadores.
– Oh! Não! Tu, morreres!
– Para dar-vos a vida, devo dar-me a morte. É para isso que Eu vim em forma humana. Não chores… Tu
te encontrarás comigo logo, onde Eu estiver, depois do meu sacrifício e do teu.
– Meu Senhor! Também eu haverei de morrer por Ti?
– Sim. Mas de outro modo. Tua carne irá morrendo, hora por hora, e pelo desejo da tua vontade. Há
quase uma ano que ela já vem morrendo. Quando estiver completamente morta, eu te chamarei.
– Terei eu a força de destruir minha carne culpada?
– Na solidão em que vais estar e onde satanás te assaltará com a violência do seu ódio, quanto mais tu
fores sendo dos Céus, mas encontrarás um meu apóstolo, que foi pecador e depois foi redimido.
– Esse, então, não será aquele bendito, que me falava de Ti? Ele é muito honesto para ter sido pecador.
– Não é aquele. É um outro. Ele te encontrará na hora certa. E te dirá tudo o que ainda não podes saber.
Vai em paz. A bênção de Deus esteja sobre ti.
200.5 Aglaé, que todo aquele tempo tinha ficado de joelhos, curva-se para beijar os pés do Senhor. Não tem
coragem para mais do que isso. Depois, agarra sua sacola, vira-a de boca para baixo. E dela caem vestes
simples, um saquinho que retine e uma ânfora de um fino alabastro róseo.
Aglaé recoloca as vestes, apanha o saquinho e diz:
– Isto é para teus pobres. É o resto das minhas jóias. Reservei somente algumas moedas para as
despesas durante a viagem… mesmo que Tu não me tivesses dito, eu teria ido para algum lugar afastado. E
isto é para Ti. É menos suave que o perfume da tua santidade. Mas é tudo o que pode dar de melhor a terra.
E eu me servia disto para fazer o pior… Aí está. Deus me conceda exalar perfume, pelo menos como este,
na tua presença, no Céu –e destampa a ânfora, tirando-lhe a rolha preciosa e derramando o conteúdo no
chão.
Um perfume fino de rosas se levanta, em ondas, dos ladrilhos, que ficaram impregnados com aquela
essência de alto preço.
Aglaé recolhe a ânfora vazia.
– Para lembrança desta hora –diz ela, e depois se curva para tornar a beijar os pés de Jesus, levanta-se e
vai saindo dali, andando para trás. Acaba de sair e fecha a porta.
Ouvem-se os seus passos, que vão-se afastando em direção da escada e sua voz que troca algumas
palavras com Maria. Depois o rumor das sandálias que vão descendo pela escada e, por fim, nada mais. De
Aglaé só resta o saquinho aos pés de Jesus e o aroma penetrante, que se espalhou por todo o quarto.
Jesus se levanta… apanha o saquinho e o põe no peito, vai até uma abertura virada para a estrada e
sorri, ao ver a mulher que vai indo, sozinha, no seu manto de hebreia, a caminho de Belém. Ele faz um
gesto de bênção, depois vai ao terraço e chama:
– Mamãe.
Maria sobe prontamente pela escada.
– Tu a fizeste feliz, meu Filho. Ela lá se foi, cheia de fortaleza e de paz.
– Sim, mãe. Quando André voltar, manda-o a Mim, por primeiro.
200.6 O tempo passa… Ouvem-se as vozes dos apóstolos, que estão de volta… André chega correndo:
– Mestre, precisas de mim?
– Sim. Vem cá. Ninguém precisará saber disso, mas a ti é justiça que se o diga. André, obrigado em
nome de Deus e de uma alma.
– Obrigado? Por quê?
– Não estás sentindo este perfume? É a lembrança da Mulher Velada. Ela veio. Está salva.
André fica vermelho como um morango, cai de joelhos e não acha palavras… Por fim, ele diz:
– Agora, estou contente. Bendito seja o Senhor!
– Sim. Levanta-te. Não digas aos outros que ela veio.
– Guardarei silêncio, Senhor.
– Agora vai. Escuta: está aí ainda Judas de Simão?
– Sim, ele quis vir conosco… contando… muitas mentiras. Por que é que ele faz assim, Senhor?
– Porque é um jovem viciado. Dize-me a verdade: vós brigastes com ele?
– Não. O meu irmão se sente feliz demais com o seu menino, para ter vontade de brigar. E os outros… Tu
sabes… são mais prudentes. Com certeza, em nossos corações ficamos muito aborrecidos. Mas depois da
ceia ele vai embora… Outros amigos… diz ele. Oh! e despreza as meretrizes!…
– Sê bom, André. Tu também deves estar feliz esta tarde…
– Sim, Mestre. Eu também tenho a minha invisível, mas doce paternidade. Eu já me vou.
200.7 Passa mais algum tempo, e depois sobem em grupo os apóstolos com o menino e João de Endor.
Acompanham-nos as mulheres, com os diversos pratos e as luzes. Por último, vem Lázaro com Simão. Logo
que entram na sala, exclamam:
– Ah! Era daqui que saía! –e farejam o ar saturado de um perfume de rosas, saturado, por mais
escancaradas que estejam as portas–. Mas, quem foi que perfumou assim esta sala? Terá sido Marta? –
perguntam muitos.
– Minha irmã não saiu de casa hoje, depois do jantar, responde Lázaro.
– Quem terá sido, então? Algum sátrapa assírio? –caçoa Pedro.
– O amor de uma redimida –diz Jesus, sério.
– Ela podiaela ter poupado esta inútil exibição de redenção e dar tudo o que gastou aos pobres. Eles são
tantos e sabem que nós lhes damos. Eu não tenho mais nem um vintém, diz, irritado, Iscariotes. E ainda
temos que comprar o cordeiro, alugar a sala para o Cenáculo e…
– Mas eu vos ofereci tudo!… –diz Lázaro.
– Mas não é justo. O rito perde a beleza. A Lei diz: “Tomarás o cordeiro para ti e tua casa.” Não diz:
“Aceitarás o cordeiro.”
Bartolomeu se vira, de repente, abre a boca, mas logo a fecha. Pedro fica vermelho, pelo esforço feito
para calar-se. Mas Zelotes, que está em sua casa, acha que pode falar, e diz:
– Essas são sutilezas rabínicas… Eu te peço que deixes de lado isso tudo e, em compensação, conserves
o respeito para com o meu amigo Lázaro.
– Muito bem, Simão! –Pedro — se não fala — é capaz de explodir–. Muito bem. Parece-me também que
aqui se esqueçe um pouco demais de que só o Mestre tem o direito de ensinar…
Pedro diz aquelas palavras “que aqui se esquece”, com um esforço verdadeiramente heróico, para não
dizer: “que Judas se esquece”.
– É verdade… mas estou nervoso. Desculpa, Mestre.
– Sim. Eu também te respondo. A gratidão é uma grande virtude. Eu sou muito grato a Lázaro. Assim
como aquela redimida foi grata a Mim. Eu espalho sobre Lázaro o perfume da minha bênção, também por
aqueles, entre os meus discípulos, que não sabem fazer isso. Eu, chefe de todos vós. A mulher derramou a
meus pés o perfume de sua alegria de ser salva. Ela reconheceu o Rei, e veio ao Rei, antes de muitos
outros, sobre os quais o Rei tem feito a efusão de muito mais amor do que sobre ela. Deixai que ela faça o
que fez, e não a critiqueis. Ela não poderá estar presente à minha aclamação, nem à minha unção. A cruz
dela já está em suas costas. Pedro, tu disseste que parecia ter passado por aqui algum sátrapa assírio. Em
verdade, Eu te digo que, nem mesmo o incenso dos Magos, tão puro e precioso, era mais suave do que este.
A essência deste foi dissolvida no pranto, e por isso é que ela é tão penetrante: a humildade sustém o amor
e o torna perfeito. Vamos sentar-nos à mesa, amigos…
E, com o oferecimento da refeição, cessa a visão.

[56] me disseste em 77.7.


201. O exame de maioridade de Margzian.
26 de junho de 1946.
201.1 Deve esta ser a manhã de quarta-feira, porque a comitiva dos apóstolos e das mulheres, precedida
por Jesus e Maria, com o pequeno entre eles, já se vai aproximando da Porta dos Peixes. Com eles está
também José de Arimateia que, fiel à palavra dada, foi ao encontro deles.
Jesus procura com o olhar o soldado Alexandre, mas não o vê…
– Nem mesmo hoje ele está aí. Gostaria de saber o que aconteceu.
Mas a multidão é tão grande, que não há modo de perguntarem aos soldados, e talvez isso fosse até uma
imprudência, porque os judeus estão hoje mais intransigentes do que nunca, à medida que a festa vai se
aproximando e por causa do rancor pela captura do Batista, na qual eles acham que também Pilatos, com os
seus satélites, tenha sido cúmplice. Vou compreendendo tudo isso, pelos epítetos e pelo bate-boca que
continuamente se trocam, junto à Porta, entre os soldados e os habitantes da cidade, e os insultos…
pitorescos e grosseiros, que estalam a cada momento, como os fogos de uma girândola continua. As
mulheres da Galileia ficam escandalizadas com isso e se envolvem, como nunca, em seus véus e em seus
mantos. Maria enrubesce, mas vai firme para a frente, ereta como uma palmeira, olhando para o seu Filho,
o qual, por sua vez, nem tenta fazer que os exaltados hebreus raciocinem, nem aconselha compaixão aos
soldados para com os hebreus. E, posto que alguns epítetos não muito bonitos estejam sendo dirigidos
também ao grupo dos galileus, José de Arimateia passa para a frente, para perto de Jesus e a multidão, que
o conhece bem, fica calada por respeito a ele.
A Porta dos Peixes finalmente é superada e este rio de gente que, como em ondas, vai desembocando na
cidade, misturado com os asnos e os rebanhos, invade as ruas…
201.2 – Estamos aqui, Mestre! –saúda Tomé, que está com Filipe e Bartolomeu do outro lado da Porta.
– Judas não está? E por que estás tão cedo aqui? –perguntam muitos.
– Não. Nós estamos aqui desde cedo, por medo de que Tu antecipasses tua vinda. Mas ele não foi visto.
Ontem eu o encontrei com o escriba Sadoc, sabes, José? Aquele velho magro, que tem uma verruga por
baixo do olho. E havia também outros… que eram jovens. Eu lhe gritei: “Eu te saúdo, Judas.” Mas ele não
me respondeu, fingindo não me conhecer. Eu disse: “Que terá ele?”, e fui andando até alguns metros atrás
dele. Aí ele se separou de Sadoc, ao lado do qual ele parecia um levita, e lá se foi com os outros da sua
idade que… certamente não eram levitas… E agora não está aqui. Mas ele sabia que havíamos combinado
que viríamos para cá!
Filipe não diz nada. Bartolomeu aperta os lábios, até quase fazê-los desaparecer, como que para opor
uma barreira ao julgamento que lhe quer sair do coração.
– Bem, bem! Vamos para a frente assim mesmo! Eu não vou chorar certamente pela ausência dele –diz
Pedro.
– Vamos esperar mais um pouco. Ele pode ter ficado detido no caminho –diz sério Jesus.
Encostam-se a um muro, em sua parte sombreada, as mulheres em um grupo, e os homens em outro.
Todos estão com vestes de festa. Pedro, então, está um verdadeiro luxo, ostentando um chapéu novo em
folha, branco como a neve, e seguro por uns passamanes bordados em vermelho e ouro. Ele está com a sua
melhor veste, cor de granada, muito escura, adornada com um cinturão novo, como o é também o galão do
chapéu, e do cinturão está pendurada a faca na bainha, como se fosse um punhal, com o punho burilado, a
bainha de latão toda trabalhada com furinhos, através dos quais brilha o aço lustroso da lâmina. Também os
outros estão mais ou menos armados assim. Só Jesus está sem armas, vestido com uma veste de linho muito
alva e com um manto azul flor-de-lis, certamente tecido por Maria no inverno. Margziam está vestido com
uma veste de cor vermelho-pálida, com um galão de cor mais escura à altura da garganta, na orla da veste
e nos pulsos, e um galão igualmente bordado, à altura da cintura e das bordas do manto, que vai, porém,
sendo levado dobrado sobre o braço pelo menino, que o acaricia muito contente, levantando, de vez em
quando, um rostinho, sorridente por um lado… e preocupado pelo outro… Também Pedro vai segurando
com cuidado um embrulho, que está em sua mão.
201.3Passa o tempo e Judas não aparece.
– Ele não se dignou… –resmunga Pedro, e talvez fosse continuar a falar mais, mas o apóstolo João diz:
– Talvez ele nos esteja esperando junto à Porta Dourada…
Vão para o Templo. Mas Judas não está com eles.
José de Arimateia já perdeu a paciência. Ele diz:
– Vamos.
Margziam fica um pouco pálido, e beija Maria, dizendo:
– Reza!… Reza!…
– Sim, querido. Não tenhas medo. Tu sabes tudo bem…
Margziam se agarra, então a Pedro. Aperta nervosamente a mão de Pedro e, não se sentindo ainda
seguro, gostaria de segurar a mão de Jesus.
– Eu não vou, Margziam. Mas rezarei por ti. Nós nos veremos depois.
– Não vais? Por que, Mestre? –diz assombrado Pedro.
– Porque é melhor assim…
Jesus está muito serio, eu diria, triste. E termina:
– José, que é justo, não pode deixar de aprovar o meu ato.
De fato, José não diz uma palavra e, com o seu silêncio e um suspiro eloquente, confirma o que Jesus
disse.
– Então… vamos…
Pedro está um pouco aflito.
Margziam se agarra agora a João. E vão indo, precedidos por José, que vai sendo continuamente
saudado com profundas inclinações. Com eles vão Simão e Tomé. Os outros ficam com Jesus.
201.4 Entram na sala em que Jesus, quando chegou a sua vez, também entrou. Um jovem, que estava
escrevendo a um canto, levanta-se num salto ao ver José e se dobra até o chão.
– Deus esteja contigo, Zacarias. Vai depressa chamar Asrael e Jacó.
O jovem sai para voltar quase em seguida, com dois rabinos, sinagogos ou escribas, eu não sei. São dois
personagens carrancudos, que depõem essa máscara só diante de José. Atrás deles, entram outros oito,
menos imponentes. Eles se assentam, deixando de pé os postulantes, inclusive o de Arimateia.
– Que queres José? –pergunta o mais velho.
– Apresentar à vossa sagacidade este filho de Abraão, que completou o tempo prescrito para entrar na
Lei e reger-se sozinho por ela.
– É teu parente? –e olham todos, admirados.
– Em Deus somos todos parentes. Mas o menino é órfão, e este homem, de cuja honestidade eu me faço
fiador, tomou-o para si, a fim de que o seu tálamo não fique privado de descendência.
– Quem é esse homem? Que ele responda por si mesmo.
– Simão de Jonas, de Betsaida na Galileia, casado sem filhos, pescador pelo mundo, filho da Lei pelo
Altíssimo.
– E tu, galileu, queres assumir essa paternidade, por quê?
– Está dito[57] na Lei que devemos amar ao órfão e à viúva. Eu o faço.
– Por acaso, poderá esse aí conhecer a Lei, a ponto de merecer que… Mas tu, menino, responde. Quem
és?
– Jabé Margziam de João, das campinas de Emaús, nascido há doze anos.
– Portanto, és judeu. É permitido que um galileu cuide dele? Vamos ver o que dizem as leis.
– Mas, que é que eu sou? Um leproso, ou um amaldiçoado?
O Sangue de Pedro começa a ferver.
– Cala-te, Simão. Eu falo por ele. Eu vos disse que me faço fiador deste homem. Eu o conheço, como se
fosse de minha família. O Ancião José não proporia nunca uma coisa contrária à Lei, nem às leis. Procurai
examinar o menino, com justiça e presteza. O pátio está cheio de meninos, que estão esperando o exame.
Não sejais lentos, pelo amor de todos.
– Mas, quem prova que este menino tem doze anos e que foi resgatado do Templo?
– Tu o podes provar com as escrituras. E uma busca se pode fazer. Menino, disseste que és o
primogênito?
– Sim, Senhor. Podes vê-lo, porque fui consagrado ao Senhor e resgatado com os devidos dízimos.
– Vamos procurar esses apontamentos… –diz José.
– Não adianta! –respondem secamente os dois caviladores–. 201.5Vem aqui, menino. Dize o Decálogo.
E o menino o diz com firmeza.
– Dá-me aquele rolo, Jacó. Lê, se o sabes.
– Onde, rabi?
– Onde quiseres. Onde baterem os teus olhos –diz Asrael.
– Não. Aqui. Dá-me –diz Jacó. E vai abrindo o rolo até chegar a um ponto.
Depois diz:
– Aqui.
– “Então, ele lhes disse em segredo: ‘Bendizei o Deus do Céu e dai-lhe louvores, diante de todos os
viventes, porque Ele usou de misericórdia para convosco. Pois é bom conservar escondido o segredo do rei,
mas é honroso revelar…’”
– Basta! Basta! Que são estas coisas? –pergunta Jacó, mostrando as franjas do seu manto.
– São as franjas sagradas, senhor: nós as trazemos para recordar-nos dos preceitos do Senhor Altíssimo.
– É permitido a um israelita comer qualquer carne? –pergunta Asrael.
– Não, Senhor. Somente aquelas que são declaradas puras.
– Dize-me os preceitos…
Dócil, o menino começa a ladainha dos “Não farás…”
– Basta! Basta! Para um galileu, já é saber até demais. Homem, cabe-te agora jurar que o menino é
maior de idade.
Pedro, com todo o garbo de que ainda dispõe, depois de tantas grosserias pronuncia o seu discurso
paterno:
– Como observastes, o meu filho, tendo chegado à idade prescrita, já é capaz de guiar-se, conhecendo a
Lei e os preceitos, os costumes, as tradições, as cerimônias, as bênçãos, as orações. Por isso, como
pudestes verificar, pode, por mim e por ele ser pedida a maioridade. Na verdade, isto devia ter sido dito
primeiro por mim. Mas aqui foram violados, e não por galileus, os costumes, quando foi interrogado o
menino antes do pai. Contudo, agora eu vos digo: já que o considerastes capaz, a partir deste momento, eu
não sou mais responsável por suas ações, nem junto a Deus, nem junto aos homens.
– Passai agora para a sinagoga.
O pequeno cortejo passa para a sinagoga, pelo meio dos rostos carrancudos dos rabis, dos quais Pedro
chamou a atenção. Ereto, diante das Leis e das lâmpadas, Margziam passa pelo corte dos cabelos, que dos
ombros foram encurtados até as orelhas, e depois Pedro, que abriu o seu embrulhinho, tira dele um belo
cinturão de lã vermelha, bordado de vermelho ouro, e o aperta à cintura do menino. Depois, enquanto os
sacerdotes estão atando na fronte e no braço umas tirinhas de couro, Pedro está ocupado em alinhavar no
manto que Margziam lhe entregou, as franjas sagradas. E Pedro está muito comovido, quando entoa o
louvor ao Senhor!…
201.6A cerimônia terminou. Todos rapidamente saem para fora, e Pedro diz:
– Menos mal. Eu não suportava mais! Viste, José! Eles nem completaram o rito. Não faz mal. Tu… tu,
meu filho, tens quem te consagra… Vamos pegar um cordeirinho para o sacrifício de louvor ao Senhor. Um
cordeirinho querido como tu. Eu te agradeço, José. Dize, tu também, um “obrigado” a este grande amigo.
Sem ti, eles nos tratariam muito mal.
– Simão, eu estou contente por ter sido útil a um justo como tu, e te peço que venhas à minha casa, em
Bezeta, para o banquete. E contigo todos, é natural.
– Vamos contá-lo ao Mestre. Para mim é… honra demais –diz humildemente Pedro, mas está faiscando
de alegria.
Na volta, eles atravessam os pátios e os átrios, até o pátio das mulheres, onde Margziam é felicitado por
todas. Depois, os homens passam para o átrio dos israelitas, onde Jesus está com os seus. Unem-se todos
em uma bela comunhão de felicidade, e, enquanto Pedro vai sacrificar o cordeiro, eles se dirigem, pelos
pórticos e átrios, à primeira cinta.
201.7 Como está feliz Pedro com o seu menino, perfeito israelita agora! A tal ponto, que nem vê a ruga que
atravessa a fronte de Jesus. Até o ponto, que nem nota o silêncio opressivo dos companheiros. É somente na
sala da casa de José, — quando o menino, à pergunta ritual sobre o que ele vai fazer no futuro, declara:
“Vou ser pescador como meu pai” — aí é que, entre lágrimas, Pedro cai em si e compreende…
– Mas… Judas pôs uma gota de veneno nesta festa… E Tu estás magoado, Mestre… e os outros estão
também tristes por isso. Perdoai-me, vós todos, por não ter eu visto isso antes. Ah! aquele Judas!…
O suspiro dele, creio que está em todos os corações… Mas Jesus, para tirar o veneno, se esforça para
sorrir e diz:
– Não fiques magoado Simão. Só está faltando a tua mulher nesta festa… e Eu estava pensando também
nela, tão boa e sacrificada sempre. Mas logo ela vai ter a sua alegria inesperada e como será bem acolhida!
Pensemos no bem que ainda há no mundo. Vem. Então Margziam respondeu bem? Eu já sabia antes…
José torna a entrar, depois de ter dado ordens aos seus criados:
– Eu vos agradeço a todos –ele diz–, por me terdes rejuvenescido com esta cerimônia e por me terdes
dado a honra de ter em minha casa o Mestre, sua mãe, os parentes e vós, caros condiscípulos. Vinde para o
jardim. Aí fora há um ar bom e flores…
E tudo termina.

[57] Está dito em Êxodo 22,21-23; Deuteronômio 14,28-29; 16,11; 24,17-21; 26,12-13; 27,19; Isaías 1,17. Outras vezes na obra (por exemplo em 229.3 e
557.6) lembrou-se o dever de amar e socorrer o órfão e a viúva. A prescrição do Êxodo será citada textualmente em 335.14.
202. Uma repreensão a Judas Iscariotese
a chegada dos camponeses de Jocanã.
27 de junho de 1945.
202.1 Estamos na vigília da Páscoa. Sozinho com os seus apóstolos, porque as mulheres não se uniram ao
grupo, Jesus está esperando a volta de Pedro, que foi levar o cordeiro pascal para ser sacrificado. Enquanto
estão esperando e Jesus está falando ao menino sobre Salomão, eis que Judas vem atravessando o grande
pátio. Ele está com um grupo de jovens, falando com grandes e espalhafatosos gestos e com poses
estudadas. Seu manto se agita continuamente e ele o move com a gravidade própria de um sábio… Creio
que Cícero não devia ter sido mais pomposo, quando pronunciava os seus discursos…
– Olha lá Judas! –diz Tadeu.
– Está com um grupo de escribas –observa Filipe.
E Tomé diz:
– Vou ouvir o que ele está dizendo –e vai, sem esperar que Jesus diga o seu previsível não.
Jesus… Oh! com que rosto está Jesus! Tem o rosto de um verdadeiro sofrimento e de um severo
julgamento. Margziam, que estava olhando para Ele desde antes, enquanto Ele doce e suavemente lhe
falava do grande rei de Israel, nota esta mudança, quase fica espantado com ela e sacode a mão de Jesus,
para fazê-lo cair em si, e diz:
– Não fiques olhando! Olha para mim, que gosto muito de Ti.
202.2 Tomé consegue chegar perto de Judas, sem ser visto por ele, e o acompanha durante alguns passos.
Não sei o que ele ouve dizer, só sei que ele solta uma repentina exclamação, tão alta, que faz que muitos se
virem para ele, especialmente Judas, que fica lívido de raiva:
– Mas, que grande quantidade de rabis tem Israel! Eu me felicito contigo, ó nova luz de sabedoria!
– Eu não sou uma pedra. Mas uma esponja. Eu absorvo. E, quando o desejo dos que têm fome de
sabedoria o quer, eis que eu me espremo para eles com todos os meus sucos de vida.
Judas está bombástico e desdenhoso.
– Mais me pareces um eco fiel. Contudo, o eco, para continuar a ressoar, precisa estar perto da voz,
senão, ele morre, meu amigo. E parece-me que tu estás te afastando dela. Ele está lá. Não queres ir?
Judas se torna de todas as cores, com o rosto cheio de ódio e de repugnância, como em seus piores
momentos. Mas ele se domina. E diz:
– Eu vos saúdo, amigos. Eis-me aqui contigo, Tomé, meu caro amigo. Iremos logo ao Mestre. Eu não
sabia que Ele estava no Templo. Se eu o tivesse sabido, ter-me-ia posto à procura dele –e passa o braço ao
redor das costas de Tomé, como se sentisse por ele um grande afeto.
Não obstante, Tomé, plácido, mas não simplório, não se deixa ludibriar por aquelas manifestações… e
pergunta, dissimulando-se um pouco:
– Como? Não estás sabendo que é a Páscoa? E tu achas que o Mestre não seja fiel à Lei?
– Oh! Isso nunca! Mas, no ano passado, ele se mostrava, falava. Eu me lembro, como se fosse hoje. Ele
me atraiu pela sua violência de rei… Agora… parece-me que Ele perdeu o seu vigor. Tu não achas?
– Eu não acho. Parece-me que alguém perdeu a estima.
– Da missão dele, é verdade, tu dizes bem.
– Não. Tu me entendeste mal. Ele perdeu a estima dos homens. E tu és um dos que contribuem para
isso. Cria vergonha!
Tomé não está mais rindo. Está de poucas palavras, mas ao dizer “Cria vergonha” fere mais que uma
chicotada.
– Vê bem como falas! –ameaça Iscariotes.
– Vê bem como ages! Aqui estamos como dois judeus, sem testemunhas. E por isso eu falo. E torno a
dizer-te: “Cria vergonha!” Agora cala-te. Não te faças de ator, nem de choramingas, porque senão eu vou
falar diante de todos. 202.3Lá vem o Mestre e os companheiros. Controla-te.
– A paz esteja contigo, Mestre…
– A paz esteja contigo, Judas de Simão.
– É tão bom para mim achar-te aqui… Precisaria falar-te…
– Então, fala.
– Sabes… eu queria dizer-te… Não podes me ouvir separado?
– Estás entre os companheiros.
– Mas eu queria falar só contigo.
– Em Betânia Eu fico sozinho com quem me quer e procura. Mas tu não me procuras. Tu me evitas…
– Não, Mestre. Não podes dizer isso.
– Por que é que ontem ofendeste a Simão, a Mim, e conosco ao José de Arimateia, os companheiros,
minha mãe e as outras?
– Eu? mas eu nem vos vi.
– Não quiseste ver-nos. Porq ue não vieste, como combinado, para abençoar o Senhor Deus por um
inocente acolhido na Lei? Responde! Nem sentiste o dever de avisar que não vinhas.
– Lá vem meu pai –grita Margziam, que vê de longe a Pedro, que vem vindo de volta, com o seu cordeiro
já degolado, destripado e enrolado em sua pele–. Oh! Com ele vem vindo Miqueias e os outros. Eu vou,
posso ir ao encontro deles, para ouvir o que estão falando do meu velho pai?
– Vai, meu filho –diz Jesus, acariciando-o.
E acrescenta, tocando no ombro do João de Endor:
– Eu te peço, acompanha-o e… procura entretê-lo um pouco.
E volta-se de novo para Judas:
– Responde-me, agora. Eu estou esperando.
– Mestre, uma obrigação imprevista… indispensável… Senti dor por isso, mas…
– Mas, será que em toda esta Jerusalém não havia alguém para trazer tua justificação, se é que tinhas
alguma? Isto já era uma culpa. Eu te faço lembrar que ultimamente um homem deixou de ir sepultar o seu
pai para acompanhar-me, que estes meus irmãos deixaram a casa paterna, entre anátemas.. para seguir-
me., e que Simão e Tomé, e com eles André, Tiago, João, Filipe e Natanael deixaram suas famílias; e Simão
Cananeu a sua riqueza, para dar-ma. E Mateus, o pecado para Me seguir. Eu poderia continuar com cem
nomes. Há quem abandona a vida, a própria vida para seguir-me no Reino dos Céus. Mas, posto que não és
generoso sê, ao menos, educado. Não tens caridade, mas procura ter, pelo menos, um modo de proceder de
homem. Imita, já que eles te agradam, os fariseus falsos, que me atraiçoam, que nos atraiçoam mostrando-
se muito educados. O teu dever era de te conservares para nós ontem, de não ofenderes Pedro, que Eu exijo
que seja respeitado por todos. Mas, pelo menos que tivesses procurado mandar um aviso.
– Eu errei. 202.4Mas agora vinha justamente à procura de Ti para dizer-te que, sempre pela mesma causa,
amanhã não poderei vir. Tu sabes… Eu tenho amigos de meu pai e me…
– Basta. Vai, então, com eles. Adeus.
– Mestre… estás irritado comigo? Tu me disseste que me tratarias como um pai… Eu sou um jovem
estouvado, mas um pai perdoa…
– Eu te perdôo, sim. Mas, vai-te embora. Não fiques fazendo esperar-te os amigos do teu pai, assim como
Eu não faço que me fiquem esperando os amigos do santo Jonas.
– Quando deixarás Betânia?
– No fim dos ázimos. Adeus.
Jesus se vira, e se dirige para os camponeses, que estão em êxtase, diante da transformação que
notaram em Margziam. Ele dá alguns passos, e depois para, diante da consideração de Tomé:
– Por Javé! Ele queria ver-te na violência de um rei. E saiu bem servido!…
– Eu vos peço que todos vós vos esqueçais do incidente, assim como Eu faço violência a mim mesmo
para esquecer-me dele. Eu vos ordeno o silêncio com Simão de Jonas, com João de Endor e com o pequeno.
Por motivos que vossa inteligência é bem capaz de compreender, é bom não entristecer nem escandalizar
aqueles três. E também silêncio em Betânia, com as mulheres. Lá está minha mãe. Lembrai-vos disso.
– Fica tranquilo, Mestre.
– Faremos tudo para reparar o mal.
– E para consolar-te também –dizem todos.
– Obrigado… 202.5Oh! A paz esteja com todos vós. Isaac vos encontrou. Estou contente por isso. Passai em
paz a vossa Páscoa. Os meus pastores serão outros tantos bons irmãos convosco. Isaac, antes que se vão,
acompanha-os por Mim. Eu os quero abençoar de novo. Vistes o menino?
– Oh! Mestre! Como ele está bem! E mais forte já. Oh! Nós vamos contar isso ao velho. E como ele ficará
feliz com isso! Disse-nos este justo que Jabé agora é filho dele… é uma providência. Nós diremos tudo, tudo.
– Dizei também que eu já sou filho da Lei. E que me sinto feliz. E que me lembro sempre dele. E que ele
não chore nem por mim nem pela mamãe. Eu a tenho perto de mim, e ele também a tem como um anjo e a
terá sempre, até a hora de sua morte, e se Jesus já tiver aberto as portas dos Céus, eis que, então a mamãe,
mais bela do que um anjo, virá ao encontro do velho pai e o conduzirá a Jesus. Foi Ele quem o disse. Vós lhe
direis? E sabereis dizê-lo bem?
– Sim, Jabé.
– Não. Agora sou Margziam. A mãe do Senhor deu-me este nome. É como se dissesse o nome dela. Ela
gosta muito de Mim. Ela me põe na cama todas as noites, e me faz dizer as orações que fazia seu Menino
dizer. Ela me desperta com um beijo, me veste e me ensina muitas coisas. E Ele também. Mas penetram
dentro tão suavemente que se aprendem sem fadiga Ele é o meu Mestre!
O menino se abraça a Jesus com tal adoração de ato e de expressão que comove quem o vê.
– Sim, vós direis tudo isso, e também que o velho não perca a esperança. Este anjo está rezando por ele,
e Eu o abençôo. Também a vós Eu vos abençôo. Ide. A paz esteja convosco.
Os grupos se separam, indo cada um para o seu lado.
203. A oração do “Pai Nosso”.
28 de junho de 1945.
203.1 Jesus sai com os seus de uma casa perto dos muros, e creio que sempre no bairro de Bezeta, a fim de
sair para fora dos muros, devendo passar primeiro diante da casa de José, que está próxima da Porta, que
eu ouvi ser chamada Porta de Herodes. A cidade está semi-deserta, nesta noite plácida e enluarada.
Compreendo que já foi consumada a Páscoa em uma das casas de Lázaro que, contudo, não é, de modo
algum, a casa do Cenáculo. Esta é realmente como uma antípoda daquela. Uma está ao norte, a outra ao sul
de Jerusalém.
Na porta da casa, Jesus se despede, com garbo gentil, de João de Endor, que Ele deixa como proteção
para as mulheres, e a quem agradece por essa proteção. Beija Margziam, que também veio até à porta, e
depois põe-se a caminho para fora da Porta chamada Porta de Herodes.
– Aonde vamos, Senhor?
– Vinde comigo. Eu vos levo comigo, para coroarmos a Páscoa com uma pérola rara e desejada. Por isso
é que Eu quis estar somente convosco. Os meus apóstolos! Obrigado, amigos, pelo vosso grande amor por
Mim. Se pudésseis ver como isso me consola, ficaríeis admirados. Vede: Eu vivo entre contínuos atritos e
desilusões. Desilusões para vós. Para Mim, persuadi-vos disso, Eu não tenho nenhuma desilusão, pois não
me foi concedido o dom de ignorar… Também por isso, Eu vos aconselho a deixar-vos guiar por Mim. Se Eu
permito isto ou aquilo, não crieis obstáculos. Se Eu não intervenho para pôr fim a uma coisa, não penseis
em fazê-lo vós. Cada coisa a seu tempo. Tende confiança, sobretudo em Mim.
Estão no canto nordeste do recinto murado. Eles vão contornando os muros e rodeando o Monte Mória,
até o ponto em que, por uma pequena ponte, já podem atravessar o Cedron.
– Vamos indo para o Getsêmani? –pergunta Tiago de Alfeu.
– Não. Mais acima. Sobre o Monte das Oliveiras.
– Oh! Será belo! –diz João.
– Seria agradável também para o menino –murmura Pedro.
– Oh! Para aqui viremos muitas outras vezes. Ele já estava cansado. Afinal, é um menino. Eu quero dar-
vos uma grande coisa, porque agora é justo que a tenhais.
203.2 Vão subindo por entre as oliveiras, deixando à direita o Getsêmani, e subindo ainda pelo monte, até
chegarem ao cume, sobre o qual as oliveiras, com suas frondes, formam um pente, que cicia, ao soprar do
vento.
Jesus para, e diz:
– Paremos… Meus caros, tão caros como discípulos e como meus continuadores no futuro, vinde para
perto de Mim. Um dia, e não foi um dia só, vós me dissestes[58]: “Ensina-nos a rezar como Tu rezas. Ensina-
nos, como João ensinou aos dele, a fim de que nós, discípulos, possamos rezar com as mesmas palavras com
que o Mestre reza.” E Eu sempre vos respondi: “Eu farei isso, quando vir em vós um mínimo de preparação
suficiente, a fim de que vossa oração não seja uma fórmula vazia, com palavras humanas, mas uma
verdadeira conversa com o Pai.” A este ponto já chegamos. Vós já sois possuidores do que basta, para
poderdes conhecer as palavras dignas de serem ditas a Deus. Eu vo-las quero ensinar nesta tarde, na paz e
no amor que existem entre nós, na paz e no amor de Deus e com Deus, porque nós já cumprimos o preceito
pascal, como verdadeiros israelitas, e à ordem divina sobre o amor para com Deus e para com o próximo.
203.3Um entre vós sofreu muito nestes dias. Sofreu por um ato não merecido, e sofreu pelo esforço que fez
sobre si mesmo, para conter a indignação que aquele ato provocou. Sim, Simão de Jonas, vem aqui. Não
houve nenhum frêmito do teu coração honesto, que por Mim tenha ficado desconhecido, e não houve
sofrimento teu de que Eu não tenha participado contigo. Eu e os teus companheiros…
– Mas Tu, Senhor, foste muito mais ofendido do que eu! E esse era para mim um sofrimento muito maior,
não, muito mais sensível… nem mesmo… mais… mais… Eis: que Judas tenha tido nojo de participar da
minha festa me fez mal a mim, como homem. Mas ter que ver que estavas entristecido, aí é que sofri o
dobro… Mas devo dizer e, se o faço por soberba, dize-o a mim, devo dizer que sofri com minha alma… e isso
faz que soframos mais.
– Não é soberba, Simão. Sofreste espiritualmente, porque Simão de Jonas, pescador da Galileia, se está
transformando no Pedro de Jesus, Mestre do espírito, pelo qual também os seus discípulos se tornam ativos
e sábios no espírito. É por esse teu progresso na vida do espírito, e por esse vosso progredir, que Eu vos
quero esta noite ensinar a oração. Quanto estais mudados, desde aquela parada solitária[59] para cá!
– Todos Senhor? –pergunta Bartolomeu, um pouco incrédulo.
– Compreendo o que queres dizer… Mas Eu falo agora a vós onze, não a outros.
– Mas, que tem Judas de Simão, Mestre? Nós não o compreendemos mais. Ele parecia tão mudado e
agora, desde que nós deixamos o lago… –diz desolado André.
– Cala-te, meu irmão. A chave do mistério eu a tenho. Nele se apegou um pedacinho de Belzebu. Ele foi
procurá-lo na caverna de Endor, para maravilhar-se, e… ficou servido. O Mestre disse naquele dia… Em
Gamala os demônios entraram nos porcos… Em Endor, os demônios saídos daquele infeliz, que era João,
entraram nele… Compreende-se… compreende-se… Deixa-me dizê-lo, Mestre! Já está aqui em cima, na
garganta, e se eu não o disser, ele não sai e eu vou envenenar-me com ele…
– Simão, sê bom!
– Sim, Mestre… eu te garanto que não serei indelicado com ele. Mas digo e penso que, sendo Judas um
viciado, — todos nós já entendemos isso — é um pouco semelhante ao porco… e compreende-se que os
demônios escolheram de boa vontade os porcos para serem… as casas para as quais se mudaram. Eis, já o
disse.
– Tu dizes que é assim? –pergunta Tiago de Zebedeu.
– E que outra coisa queres que seja? Não houve nenhuma razão para se tornar tão intratável. Pior do
que em Águas Belas! Lá eu ainda podia pensar que era o lugar e a estação que o fizessem ficar nervoso.
Mas agora…
203.4 – Há uma outra razão, Simão…
– Dize qual é, Mestre. Eu ficarei contente se puder mudar de opinião a respeito do companheiro.
– Judas é ciumento. É inquieto por ciúme.
– Ciumento? De quem? Não tem mulher e, mesmo que a tivesse, e ainda que fosse com as mulheres, eu
creio que nenhum de nós teria desprezo para com o condiscípulo…
– É ciumento de Mim. Considera: Judas se alterou depois de Endor e depois de Esdrelon. Ou seja,
quando viu que Eu me ocupei com João e Jabé. Mas agora João, principalmente João, vai-se afastar,
passando de Mim para Isaac e verás que ele voltará a ficar alegre e bom.
– É… Está bem. Mas, não me quererás dizer que ele não está tomado por algum demoniozinho… E,
sobretudo… Não, o digo! E mais que tudo, não me quererás dizer que ele melhorou nos últimos meses.
Ciumento eu também era no ano passado… Eu não teria querido ninguém mais além de nós seis, — os
primeiros seis, — Te recordas? Agora… Agora… deixa-me invocar a Deus somente uma vez, como
testemunha do meu pensamento. Agora digo que me sinto feliz, quanto mais aumentam os discípulos ao
redor de Ti. Oh! eu quereria ter todos os homens para trazê-los a Ti, e todos os meios para poder acudir a
quem tem necessidade de Ti, a fim de que não seja a miséria que crie obstáculos a quem quiser vir a Ti.
Deus está vendo se eu estou dizendo a verdade. Mas, por que sou assim agora? Porque eu me deixei mudar
por Ti. Ele… não mudou. Pelo contrário… olha lá, Mestre… Um demoniozinho tomou conta dele…
– Não o digas. Não o penses. Reza para que ele sare. O ciúme é uma doença…
– Doença que, a teu lado se cura, se o quisermos. Ah! Eu vou suportá-lo, por causa de Ti… Mas, que
fadiga!…
– Por ela te dei como prêmio o menino. E agora vou te ensinar a rezar…
– Oh! Sim, meu irmão. Vamos falar disso… e o meu homônimo seja lembrado só como alguém que tem
necessidade disso. Parece-me que ele já está recebendo o seu castigo: Neste momento ele não está
conosco! –diz Judas Tadeu.
203.5 – Ouví. Quando rezardes! dizei assim: “Pai nosso, que estás no Céu, santificado seja o teu Nome,
venha o teu Reino na Terra, como o é no Céu e, na Terra, como no Céu, seja feita a tua Vontade. Dá-nos hoje
o nosso pão de cada dia, perdoa-nos as nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores, não nos
deixes cair em tentação, mas livra-nos do Maligno.”
Jesus se levantou para dizer a oração, e todos o imitaram, atentos e comovidos.
– Não é preciso nada mais, meus amigos. Nestas palavras está contido como num anel de ouro tudo
quanto é necessário ao homem para o espírito, a carne e o sangue. Com isto pedis o que é útil para aquele e
para estes. E, se fizerdes o que pedis, conseguireis a vida eterna. É uma oração tão perfeita, que os
vagalhões das heresias e o curso dos séculos não conseguirão embotá-la. O cristianismo será esmigalhado
pela mordedura de satanás, e muitas partes da minha carne mística serão arrancadas, separadas, formando
células por si mesmas, no vão desejo de criar para si um corpo perfeito como será o Corpo místico de
Cristo, ou seja, o que é formado por todos os fiéis unidos na Igreja apostólica, que será, enquanto existir a
terra, a única verdadeira Igreja. Mas estas pequenas partes separadas, privadas por isso dos dons que eu
deixarei à Igreja mãe para nutrir os meus filhos, continuarão a se chamar sempre de cristãos, prestando
culto ao Cristo, e sempre se recordarão, mesmo em seu erro, de que vieram do Cristo. Pois bem. Elas
também rezarão com esta oração universal. Lembrai-vos bem dela. Meditai nela continuamente. Aplicai-a às
vossas ações. Não há necessidade de mais nada para que vos santifiqueis. Se alguém estivesse sozinho,
num lugar de pagãos, sem igrejas, sem livros, teria tudo que se pode saber para meditar, nesta oração, e
uma igreja aberta em seu coração por esta oração. Teria uma regra e uma santificação segura.
203.6 “Pai nosso.”
Eu o chamo “Pai.” Pai, Ele é do Verbo, Pai é do Encarnado. Assim quero que o chameis, porque vós sois
Um comigo, se permanecerdes em Mim. Houve um tempo em que o homem devia jogar-se de rosto no chão,
para suspirar, por entre temores de espanto: “Deus!” Quem não crê em Mim e em minha palavra, ainda está
neste temor paralisante… Observai no Templo. Não Deus, mas até a lembrança de Deus está escondida aos
olhos dos fiéis, atrás de um tríplice véu. Separações por distância, separações por véus, tudo foi usado e
aplicado para dizer a quem reza: “Tu és barro. Ele é Luz. Tu és abjecto. Ele é Santo. Tu és escravo. Ele é
Rei.”
Mas agora!… Levantai-vos! Aproximai-vos! Eu sou o Sacerdote Eterno. Eu posso tomar-vos pela mão e
dizer: “Vinde.” Eu posso agarrar os véus da tenda e abri-las, escancarando as portas do lugar inacessível, e
até agora fechado. Fechado? Por quê? Fechado pela culpa, sim. Mas, mais fechado ainda pelo pensamento
aviltado dos homens. Por que fechado, se Deus é Amor, se Deus é Pai? Eu posso, Eu devo, Eu quero levar-
vos não para o pó, mas para o azul; não para longe, mas para perto; não em vestes de escravos, mas de
filhos, sobre o coração de Deus. “Pai! Pai”, vós dizeis. E não vos canseis de dizer esta palavra. Não sabeis
que, cada vez que a dizeis, o Céu cintila pela alegria de Deus? Não diríeis que nesta oração, feita com
verdadeiro amor, já teríeis feito a oração agradável ao Senhor? “Pai! Meu Pai! dizem os pequenos a seu pai.
É a palavra que aprendem a dizer primeiro: “Mãe, pai.” Vós sois os pequeninos de Deus. Eu vos gerei do
velho homem que éreis e que Eu destruí com meu amor, para fazer nascer o homem novo, o cristão.
Chamai, pois, com a primeira palavra que os pequeninos conhecem e falam, ao Pai Altíssimo, que está nos
Céus.
203.7 “Santificado seja o teu Nome.”
Oh! O nome mais santo e suave que qualquer outro nome. Nome que o terror do culpado vos ensinou a
esconder debaixo de um outro. Não, não mais digais Adonai, não mais. É Deus. É Deus que, num excesso de
amor, criou a Humanidade. A Humanidade de agora em diante, com os lábios purificados pelo banho que Eu
preparo, que ela o chame por seu Nome, reservando-o para a hora de compreender com plenitude da
sabedoria o verdadeiro significado deste Incompreensível, quando intimamente unida com Ele, a
Humanidade, em seus filhos melhores, tiver sido elevada ao Reino que Eu vim estabelecer[60].
203.8 “Venha o teu Reino assim na terra como no Céu.”
Desejai com todas as vossas forças este advento. Seria a alegria sobre toda a terra, se ele viesse. O
Reino de Deus nos corações, nas famílias, entre os cidadãos, entre as nações. Sofrei, fatigai-vos, sacrificai-
vos por este Reino. Seja a terra um espelho que reflita em cada um a vida dos Céus. Ele virá. Um dia tudo
isso virá. Séculos e séculos de lágrimas e sangue, de erros, de perseguições, de escuridão rompida por raios
de luz, que irradiam do Farol místico da minha Igreja — que, se é uma barca, que não será submersa, é
também uma rocha irremovível, frente a todos os vagalhões, e alta vai conservar a Luz, a minha Luz, a Luz
de Deus — aqueles séculos precederão o momento no qual a terra possuirá o Reino de Deus. E será então
como o flamejar intenso de um astro que, tendo chegado ao ponto mais perfeito de sua existência, se
desagrega, como uma flor descomunal dos jardins etéreos, para exalar, em palpitações rutilantes, a sua
existência e o seu amor aos pés do seu Criador. Mas, que virá, virá. Depois disso, será o Reino Perfeito, feliz
e eterno no Céu.
203.9“E na terra como no Céu seja feita a tua Vontade.”
A anulação da própria vontade pela de outra pessoa só se pode fazer, quando se alcançou o perfeito
amor para com aquela criatura. O anulamento da própria vontade pela de Deus somente se pode fazer
quando se alcançou a posse das virtudes teologais, em grau heróico. No Céu, onde tudo é sem defeitos, faz-
se a vontade de Deus. Sabei, pois, vós filhos do Céu, fazer o que se faz no Céu.
203.10 “Dá-nos o pão nosso de cada dia.”
Quando estiverdes no céu, vós vos nutrireis somente de Deus. A felicidade será o vosso alimento. Mas
aqui ainda tendes necessidade de pão. E sois os pequeninos de Deus. Portanto, é justo dizer: “Pai, dá-nos o
pão.” Tendes medo de não serdes ouvidos? Oh! Não! Considerai. Se um de vós tem um amigo e, dando-se
conta de que está sem pão para matar a fome de um outro amigo ou de um parente, que chegou à casa
dele, lá pelo fim da segunda vigília da noite, e for ao amigo, e lhe disser: “meu amigo, empresta-me três
pães, porque um hóspede chegou lá em casa, e eu não tenho nada para dar-lhe de comer”, poderá
acontecer que ele ouça esta resposta, que vem lá de dentro da casa: “Não me aborreças, porque a porta já
está fechada, as aldravas já estão trancadas, os meus filhos já estão dormindo ao meu lado. Não posso
levantar-me para dar-te o que queres”? Não. Se ele recorreu a um verdadeiro amigo, e se insiste, receberá
o que está pedindo. E o receberia também, mesmo que tivesse recorrido a um amigo não muito bom. Ele
receberia por causa de sua insistência, porque o solicitado de tal favor ia se apressar em dar-lhe tudo o que
ele quisesse, contanto que não o importunasse mais.
Mas vós, orando ao Pai, não estais recorrendo a um amigo da terra, e sim, ao Amigo Perfeito, que é o Pai
do Céu. Por isso, Eu vos digo: “Pedi, e vos será dado; procurai, e encontrareis; batei, e se vos abrirá.” De
fato, a quem pede, é dado, quem procura, acaba por encontrar, e a quem bate, a porta se abre. Quem, entre
os filhos dos homens, é visto pondo uma pedra na mão de quem está pedindo ao pai um pão? E quem é visto
dar uma cobra, em vez de um peixe assado? Seria um delinquente o pai que assim fizesse com seus filhos.
Eu já o disse[61], e o repito, para persuadir-vos e terdes sentimentos de bondade e confiança. Assim como
ninguém, de são juízo, daria um escorpião em lugar de um ovo, assim, com quanto maior bondade Deus não
vos dará o que pedis? Porque Ele é bom, enquanto que vós, uns mais, outros menos, sois maus. Pedi, pois,
com um amor humilde e filial o vosso pão ao Pai.
203.11 “Perdoa-nos as nossas dívidas como nós as perdoamos aos nossos devedores.”
Há dívidas materiais, e dívidas espirituais. E há também as dívidas morais. É dívida material a moeda ou
a mercadoria que, tomada emprestada, não foi restituída. É dívida moral a estima tirada e não devolvida, O
amor querido e não dado. É dívida espiritual a obediência a Deus, do qual muito se exigiria, e ao qual se dá
bem pouco, e o amor para com Ele. Ele nos ama e deve ser amado, assim como se ama uma mãe, uma
esposa, um filho, do qual se exigem tantas coisas. O egoísta quer ter e não dar. Mas o egoísta está entre os
antípodas do céu. Temos dívidas com todos. Desde Deus até o parente, e deste até o amigo, do amigo até o
próximo, ao criado e ao escravo, sendo todos eles seres como nós. Ai de quem não perdoa! Não será
perdoado. Deus não pode, por justiça, perdoar a dívida que o homem tem para com ele que é Santíssimo, se
o homem não perdoa a seu semelhante.
203.12 “Não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do Maligno.”
O homem, que não sentiu necessidade de participar conosco da Ceia da Páscoa, me perguntou, há
menos de um ano; “Como? Tu pedistes para não seres tentado, e para seres ajudado na tentação, contra ela
mesma?” Nós dois estávamos sozinhos… e Eu respondi[62]. Depois, éramos quatro em um lugar solitário, e
Eu ainda respondi. Mas ainda não adiantou, porque em um espírito muito resistente é preciso insinuar-se,
demolindo a má fortaleza de sua obstinação. E, por isso, o direi ainda uma, dez, cem vezes, até que tudo
chegue ao fim.
Mas vós, não encouraçados em infelizes doutrinas e em paixões ainda mais infelizes, rezai com
humildade para que Deus impeça as tentações. Oh! A humildade! Conhecer-se pelo que se é. Sem aviltar-se,
mas procurando conhecer-se. Dizer: “Eu poderia ceder, mesmo que não me pareça poder fazê-lo, porque eu
sou um juiz imperfeito de mim mesmo. Portanto, Pai meu, se for possível, liberta-me das tentações
conservando-me perto de Ti, para não permitir ao Maligno fazer-me mal.” Porque, recordai-vos disso, não é
Deus que tenta para o Mal, mas é o Mal que tenta. Rezai ao Pai para que Ele ajude a vossa fraqueza, a tal
ponto, que ela não possa ser induzida em tentação pelo Maligno.
203.13Já o disse, meus queridos. Esta é a minha segunda Páscoa entre vós. No ano passado, partimos
somente o pão e o cordeiro. Neste ano vos dou a oração. Outros presentes terei para as outras minhas
Páscoas entre vós, para que, quando Eu tiver ido para onde o Pai quer, vós tenhais uma lembrança de Mim,
Cordeiro, em todas as festas do Cordeiro de Moisés.
Levantai-vos e vamos. Entraremos de novo na cidade, ao amanhecer. Em tempo: amanhã, tu, Simão e tu,
meu irmão (indica Judas) ireis buscar as mulheres e o menino. Tu, Simão de Jonas, e vós outros, ficareis
comigo, até que estes voltem. Depois, iremos juntos para Betânia.
E descem até o Getsêmani, em cuja casa entram para descansar.
[58] me dissestes, por exemplo em 62.2, 119.10, 149.3.
[59] parada solitária, aquela de 164.3/4, dos quais os efeitos foram evidenciados em 165.5.
[60] vim estabelecer. Assim anota MV em uma cópia datilografada: Como Jesus “revelou o Pai” (João 1,18) durante o seu ministério de Mestre e do modo
que podia revelá-lo aos seres vivos, assim será sempre pelo Verbo, Filho do Pai, que os cidadão do Reino de Deus conhecerão a Deus.
[61] o disse a ele em 172.7.
[62] respondi em 69.5; Eu ainda respondi em 80.8/10.
204. A fé e a alma são explicadas
aos pagãos com a parábola dos templos.
29 de junho de 1945.
204.1Na paz do sábado, Jesus está descansando perto de um campo de linho todo em flor, pertencente a
Lázaro. Ele está mais do que perto, eu diria que Ele está submerso no meio do linho e, sentado à beira de
um sulco, absorto em seus pensamentos. Junto dele só se vê alguma silenciosa borboleta, ou alguma
lagartixa rastejando e que olha para Ele com seus olhinhos de azeviche, levantando a cabecinha triangular
para cima da garganta clara e palpitante. E nada mais. Nesta hora já adiantada do meio-dia, cala-se até o
menor sopro de vento por entre as altas hastes.
De longe, talvez lá do jardim de Lázaro, está fazendo-se ouvir o canto de uma mulher e, junto com ele,
os gritos festivos de um menino, que está brincando com algum outro. Depois, uma, duas, três vozes
exclamam: “Mestre!” “Jesus!”
Jesus volta a si e se levanta. E, por mais que o linho, em seu completo crescimento, já esteja bem alto,
Jesus emerge bem por cima deste mar verde e azul.
– Lá está Ele, João –grita Zelotes.
E João, por sua vez, chama:
– Mãe, o Mestre está aqui, no meio do linho.
E, enquanto Jesus vai-se aproximando do caminho que vai para as casas, eis que Maria chega perto dele.
– Que queres, mãe?
– Meu filho, chegaram pagãos com umas mulheres. Dizem que ficaram sabendo por Joana que estavas
aqui. Dizem também que Te ficaram esperando durante todos estes dias, perto da fortaleza Antônia…
– Ah! Compreendi! Eu já vou. Onde estão eles?
– Na casa de Lázaro, em seu jardim. Ele é amado pelos romanos e não tem repugnância por eles, como
nós temos. Ele os fez entrar, com os seus carros, no amplo jardim, para não escandalizar a ninguém.
– Está bem, mãe. 204.2São soldados e damas romanas. Eu sei.
– E que quererão de Ti?
– Aquilo que muitos de Israel não querem: Luz.
– Mas, que pensarão sobre como és e quem és? Deus, talvez?
– Deus, do modo deles, sim. Para eles é fácil acolher a ideia de uma encarnação de um deus em carne
mortal, mais do que para nós.
– Então, conseguiram crer na tua fé…
– Ainda não, minha mãe. Primeiro é preciso destruir a deles. Por enquanto, Eu sou para eles um sábio,
um filósofo, como eles dizem. Mas, ou por este desejo veemente de conhecer doutrinas filosóficas, ou
porque essa tendência deles para crer que é possível a encarnação de um deus, Eu sou muito ajudado a
levá-los à verdadeira Fé. Podes crer, eles são mais ingênuos, em seus pensamentos, do que muitos em
Israel.
– Mas, serão eles sinceros? Dizem que o Batista…
– Não. Se dependesse deles, João estaria livre e em segurança. Quem não é rebelde, é deixado
sossegado. Antes, te digo, para eles o ser profeta — eles os chamam de filósofos, porque toda elevação da
sabedoria para deles é sempre filosofia — é uma garantia para serem respeitados. Não fiques preocupada,
minha mãe. Dali não me virá mal…
– Mas os fariseus… se souberem, que irão dizer, até de Lázaro? Tu… és Tu, e deves levar a palavra ao
mundo. Mas Lázaro!… Já é tão ofendido por eles…
– Mas ele é intocável. Eles sabem que ele é protegido por Roma.
– Eu Te deixo, meu Filho. Aí vem Maximino, para levar-te aos pagãos –e Maria, que havia caminhado ao
lado de Jesus durante todo aquele tempo, se retira ligeira, indo para a casa de Zelotes, enquanto Jesus
entra por um portãozinho de ferro, aberto no muro do jardim, em uma parte mais afastada dele, lá onde o
jardim se transforma em pomar, isto é, perto do lugar onde, mais tarde, haveria de ser sepultado Lázaro.
Lá está também Lázaro e ninguém mais:
– Mestre, tomei a liberdade de hospedá-los…
– Fizeste bem. Onde estão?
– Lá naquela sombra de buxos e loureiros. Como vês, estão afastados pelo menos uns quinhentos metros
da casa.
– Está bem, está bem. 204.3Que a luz venha a todos vós!
– Salve, Mestre! –assim o saúda Quintiliano, vestido como civil.
As mulheres se levantam para saudá-lo. São Plautina, Valéria e Lídia, e mais uma, já idosa, que não sei
quem seja, se é da mesma condição, ou de condição inferior. Todas estão vestidas de modo muito simples e
nada as distingue.
– Nós quisemos ouvir-te. Tu não vieste mais. Eu estava… de guarda à tua chegada. Mas não consegui Te
ver.
– Eu também não vi mais um soldado, que me tratou amigavelmente na Porta dos Peixes. Chamava-se
Alexandre…
– Alexandre? Não tenho certeza se é aquele. Mas sei que, tempos atrás, tivemos que remover, para
acalmar os judeus, um soldado culpado de… ter falado contigo. Agora ele está em Antioquia. Mas talvez
volte. Puxa! Como são aborrecidos os… os que querem dar ordens, logo agora que nos estão submetidos! É
preciso, então, agir com muita habilidade, antes que as coisas piorem… Eles nos tornam a vida difícil, podes
crer… Mas Tu és bom e sábio. Vais falar para nós? Talvez daqui a pouco eu tenha que deixar a Palestina.
Gostaria de ter alguma coisa de Ti como lembrança.
– Eu vos falarei. Nunca decepcionei. Que quereis saber?
Quintiliano olha para as mulheres, como quem pergunta…
– O que quiseres, Mestre –diz Valéria.
204.4 Plautina se levanta de novo, e diz:
– Estive pensando muito… teria que conhecer tantas coisas… tudo, para julgar. Mas, se me for permitido
fazer uma pergunta, eu gostaria de saber como é que se constrói uma fé, a tua, por exemplo, sobre um
terreno que Tu disseste que está destituído da verdadeira fé. Disseste que as nossas crenças são vazias.
Então, ficamos sem nada. Como chegar a ter fé?
– Vou tomar como exemplo uma coisa que vós tendes. Os templos. Os vossos edifícios sagrados,
verdadeiramente belos e cuja única imperfeição é a de serem dedicados ao nada, eles vos podem ensinar
como é que se pode chegar a ter uma fé e onde colocar a fé. Vede bem. Onde são eles construídos? Que
lugar é possivelmente escolhido para eles? Como são construídos? Geralmente estão em áreas espaçosas,
livres e elevadas. E, se não for espaçosa e livre, então se faz que fique sendo, faz-se a demolição de tudo o
que a estorva ou que lhe cria obstáculos. Se o lugar não é elevado, então se faz que fique mais alto,
construindo pedestais mais altos que os de costume, de três degraus, que são usados para os templos já
colocados sobre alguma elevação natural. Fechados em um recinto sagrado, quase sempre formado por
colunatas e pórticos, dentro dos quais estão encerradas as árvores consagradas aos deuses, fontes e
altares, as estátuas e estelas são precedidas somente pelo propileu, depois do qual está o altar, onde são
feitas as preces ao nume. Diante deste, há um lugar para o sacrifício, porque o sacrifício vem antes da
oração. Muitas vezes, e especialmente nos mais grandiosos, o peristilo os circunda de uma grinalda de
mármores preciosos. Na parte interna, há um vestíbulo anterior, externo ou interno em relação ao peristilo,
a cela do nume e o vestíbulo posterior. Mármores, estátuas, frontões, acrotérios e tímpanos, todos limpos,
preciosos, decorados, que fazem do templo um edifício muito nobre até para as vistas mais incultas. Não é
assim?
– Assim é, Mestre. Tu os viste e estudaste muito bem –confirma e elogia Plautina.
– Mas, pelo que consta, nunca saíste da Palestina –exclama Quintiliano.
– Não saí nunca para ir a Roma nem a Atenas. Mas não ignoro a arquitetura da Grécia nem a de Roma,
nem o gênio do homem que decorou o Partenon. Eu estava presente, porque Eu estou em toda parte, onde
há vida e manifestação de vida. Lá, onde um sábio estiver pensando, um escultor esculpindo, um poeta
compondo, uma mãe cantando sobre um berço, um homem se cansando sobre os sulcos, um médico lutando
contra as doenças, um vivente respirando, um animal vivendo, uma árvore vegetando, lá estou Eu junto com
Aquele do qual Eu venho. No estrondo do terremoto ou no fragor dos raios, na luz das estrelas ou no fluxo
das marés, no vôo da águia ou no zumbido do mosquito, Eu estou com o Criador Altíssimo.
– De forma que… Tu… Tu sabes tudo? E o pensamento e as obras dos homens? –pergunta Quintiliano.
– Eu sei.
Os romanos olham um para o outro, assombrados.
204.5 Um longo silêncio, e depois, timidamente, Valéria faz este pedido:
– Desenvolve o teu pensamento, Mestre, para que saibamos o que fazer.
– Sim. A fé se constrói, como se constróem os templos, dos quais tanto vos orgulhais. Faz-se espaço para
o templo e liberdade ao redor dele. E se procura uma elevação para ele.
– Mas, onde é que está o templo, para que nele se coloque a fé, esta verdadeira deidade? –pergunta
Plautina.
– Não é uma deidade a fé, Plautina. É uma virtude. Não existem deidades na verdadeira fé. Mas só há
um único e verdadeiro Deus.
– Então, Ele fica lá em cima sozinho no seu Olimpo? E que é que Ele faz, se está sozinho?
– Ele se basta a Si mesmo, e se ocupa com todas as coisas que existem na criação. Eu te disse antes: até
no zumbido do mosquito Deus está presente. Não duvides, Ele não se aborrece. Ele não é um pobre homem,
dono de um imenso império, mas que se sente odiado e no qual vive tremendo. Ele é o Amor, e vive amando.
Sua vida é um contínuo Amor. Ele se basta a Si mesmo, porque é infinito e poderosíssimo, é a Perfeição.
Mas, tantas são as coisas criadas que vivem por sua contínua vontade, que Ele não tem tempo para
aborrecer-se. O aborrecimento é o fruto do ócio e do vício. No Céu do verdadeiro Deus não há ócio, nem
vício. Mas, dentro de pouco tempo, Ele terá, além dos Anjos, que agora o servem, um povo de justos, que se
alegram nele e esse povo sempre se irá tornando mais numeroso, com os que crerem no verdadeiro Deus,
nos tempos futuros.
– Os Anjos seriam os gênios? –pergunta Lídia.
– Não. São seres espirituais, como é Deus que os criou.
– E os gênios, então, que é que são?
– Do modo que vós os imaginais, são mentira. Eles não existem, do modo que os imaginais. Mas, por
essa necessidade instintiva do homem de procurar a verdade, — e isto por um estímulo da alma, que está
viva e presente até nos pagãos e que neles está sofrendo, porque está decepcionada em seus desejos,
porque está esfomeada em sua saudade do Deus Verdadeiro, de quem só ela se recorda, no corpo em que
ela mora e que é guiado por uma mente pagã, — vós também percebestes que o homem não é somente
carne, mas que ao seu corpo perecível está unida alguma coisa imortal. Também o perceberam as cidades e
as nações. Por isso é que credes, e sentis a necessidade de crer nos “gênios.” E dais a vós mesmos um gênio
individual, o da família, o da cidade, o das nações. Vós tendes o “gênio de Roma.” Tendes o “gênio do
imperador.” E os adorais como a divindades menores. Entrai na verdadeira fé. Tereis o conhecimento e a
amizade do vosso anjo, ao qual deveis veneração, mas não adoração. Só Deus deve ser adorado.
204.6 – Tu disseste: “Estímulo da alma que está viva e presente, até nos pagãos, e sofrendo neles, porque
decepcionada.” Mas a alma, de quem vem? –pergunta Públio Quintiliano.
– Vem de Deus. Ele é o Criador.
– Mas, não nascemos nós da mulher que se uniu a um homem? Também os nossos deuses foram gerados
assim.
– Os vossos deuses não existem. Eles são os fantasmas produzidos pelo vosso pensamento, que sente a
necessidade de crer. Porque esta necessidade é mais imperiosa do que a de respirar. Até mesmo quem diz
que não crê, ainda crê. Em alguma coisa ele crê. O simples fato de dizer: “Eu não creio em Deus” pressupõe
alguma outra fé. Em si mesmo, talvez, em sua própria mente soberba. Mas, crer, se crê sempre. É como o
pensamento. Se vós dizeis: “Eu não quero pensar”, ou então: “Eu não creio em Deus”, só por estas duas
frases que dizeis, já estais mostrando que pensais que não quereis crer n’Aquele que pensais que existe, e
no qual não quereis pensar. Quanto ao homem, para serdes exatos em exprimir o conceito, deveis dizer
assim: “O homem é gerado, como todos os animais, pela união entre macho e fêmea. Mas a alma, isto é,
aquela coisa que faz a diferença entre o animal-homem e o animal bruto, essa vem de Deus. Ele a cria, cada
vez que um homem é gerado, ou melhor, é concebido em um seio, e a une a esta carne que, se assim não
fosse, seria simplesmente a carne de um animal.”
– E nós a temos? Nós, pagãos? Pelo que dizem os teus conterrâneos, não pareceria… –diz, irônico,
Quintiliano.
– Todos os nascidos de mulher a têm.
– Mas, Tu disseste que o pecado a mata. Como pode, então, estar ela viva em nós pecadores? –pergunta
Plautina.
– Vós não pecais contra a fé, pois credes que estais na Verdade. Quando conhecerdes a Verdade, se
persistirdes no erro, aí estareis pecando. Igualmente, muitas coisas que para os israelitas são pecado para
vós não são. Porque nenhuma lei divina vo-lo proíbe. O pecado é quando alguém, conscientemente, se
rebela contra a ordem dada por Deus e diz: “Sei que o que faço é mal. Mas eu quero fazê-lo assim mesmo.”
Deus é justo. Ele não pode punir a quem faz o mal, pensando que está fazendo o bem. Ele castiga a quem,
tendo tido modo de conhecer o Bem e o Mal, escolhe este último, e nele persiste.
– Então, em nós a alma está viva e presente?
– Sim.
– Ela sofre? Pensas mesmo que ela se lembra de Deus? Nós não nos lembramos do útero que nos trouxe.
Nem poderíamos dizer como ele era por dentro. A alma, se eu entendi bem, é espiritualmente gerada por
Deus. Poderá ela recordar-se disso, se o corpo não se lembra do longo tempo em que esteve no útero?
– A alma não é bruta, Plautina. O feto, sim. Tão é verdade que a alma é dada quando o feto já é
formado[63]. A alma é a eterna e espiritual, semelhança de Deus. Eterna, desde o momento em que é criada,
enquanto que Deus é o perfeitíssimo Eterno e, por isso, não tem princípio no tempo, e também não terá fim.
A alma, lúcida, inteligente, espiritual, obra de Deus, se lembra[64]. E sofre, porque tem desejo de Deus, o
Verdadeiro Deus, do qual ela vem, e tem fome de Deus. Aí está porque é que ela estimula o corpo
entorpecido a procurar aproximar-se de Deus.
204.7 – Então, nós temos uma alma, como a têm aqueles que vós chamais os “justos” do vosso povo? E é
igual mesmo à deles?
– Não, Plautina. Conforme o sentido que estás querendo dizer, ela muda. Se queres falar quanto à
origem e natureza de nossas almas, elas são em tudo iguais às de nossos santos. Mas, se queres referir-te à
formação, então Eu te digo que aí elas são diferentes. Se queres referir-te à perfeição alcançada antes da
morte, então a diferença pode ser absoluta. Mas isso não acontece só convosco, que sois pagãos. Também
um filho do nosso povo pode ser absolutamente diferente de um santo, na vida futura. A alma passa por três
fases. A primeira é a de sua criação. A segunda é a da recriação. A terceira, da perfeição. A primeira é
comum a todos os homens. A segunda é própria dos justos que, com sua vontade, levam a alma a um
renascimento ainda mais completo, unindo suas boas ações à bondade da obra de Deus, e tornam por isso a
alma já espiritualmente mais perfeita do que a primeira, formando, entre a primeira e a terceira um elo de
conjunção. A terceira é própria dos bem-aventurados, ou santos, se assim vos agrada dizer, os quais
passaram milhares e milhares de graus acima da alma inicial deles, adaptada ao homem, e dela fizeram um
ser capaz de repousar em Deus.
204.8 – Como é que podemos dar espaço, liberdade e elevação para a alma?
– Destruindo as coisas inúteis que tendes no vosso eu. Livrando-o de todas as ideia s erradas e, com os
detritos dessas demolições, fazer uma elevação para o templo soberano. A alma vai sendo levada cada vez
mais para o alto, pelos três degraus.
Oh! Vós romanos gostais dos símbolos. Olhai agora os três degraus, à luz do símbolo. Eles podem dizer-
vos os seus nomes: penitência, paciência, perseverança. Ou então: humildade, pureza, justiça. Ou ainda:
sabedoria, generosidade e misericórdia. Ou enfim o esplendido trinômio: fé, esperança, caridade. Olhai
ainda o símbolo da cinta que, adornada e robusta, cinge a área do templo. É preciso saber rodear a alma,
rainha do corpo, templo do espírito eterno, com uma barreira que a defenda, sem, no entanto, impedir-lhe
os raios da luz, nem oprimi-la com a vista de sujeira. Uma cinta segura e lavrada, livre do desejo do amor ao
que é inferior: a carne e o sangue, e voltada para o que é superior: o espírito. Lavra-a com a vontade.
Apara-lhe os cantos, cuida das rachaduras, tira as manchas, reforça os veios fracos do mármore de nosso
eu, a fim de que ele seja perfeito, ao redor da alma. E, ao mesmo tempo, da cinta colocada como defesa do
templo, faze um misericordioso refúgio para os mais infelizes, que não conhecem o que é a caridade. Os
pórticos são a efusão do amor, da piedade, do desejo de que os outros venham a Deus, semelhantes a
braços amorosos, que servem de véu para o berço de um órfão. E, para lá da cinta, as plantas mais belas e
mais cheirosas, homenagem ao Criador. Semeai sobre o terreno, que antes estava nu, e depois, cultivai as
plantas, que são as virtudes de todos os nomes. A segunda cinta, viva e florida, ao redor do sacrário. E,
entre as plantas, entre as virtudes, estão as fontes, outro amor, outra purificação, antes de aproximar-se do
propileu, perto do qual, e antes de subir ao altar, deve-se fazer o sacrifício da carnalidade, um esvaziar-se-
se em sangue das luxúrias. E depois ir além, passar ao altar, para aí colocar a oferenda, e depois aproximar-
se da cela onde está Deus, superando o vestíbulo. E a cela o que será? Uma abundância de riquezas
espirituais, porque nunca nada é demais para fazer cornijas para Deus. Entendestes? –perguntastes-me
como se constrói a fé. E Eu vos disse: “Segundo o método pelo qual se levantam os templos.” Vedes que é
verdade. 204.9Tendes ainda alguma coisa a dizer-me?
– Não, Mestre. Eu acho que Flávia escreveu as coisas que disseste. Cláudia as quer saber. Não as
escreveste?
– Exatamente –diz a mulher, passando-lhe as tabuinhas enceradas.
– Está gravado. Teremos tempo para relê-las –diz Plautina.
– É cera. Apaga-se. Escrevei-as em vossos corações. Não se apagarão mais.
– Mestre, são escombros de templos vazios. Nós os jogamos contra a tua palavra, para enterrá-los. Mas
é um longo trabalho –diz Plautina, com um suspiro.
E termina dizendo:
– Lembra-te de nós em teu Céu…
– Ficai certas de que Eu o farei. Eu vos deixo. Ficai sabendo que a vossa vinda foi para Mim muito
agradável. Adeus, Públio Quintiliano. Lembra-te de Jesus de Nazaré.
As mulheres o saúdam, e vão por primeiro. Depois, pensativo, vai indo Quintiliano. Jesus olha para eles,
que vão indo em companhia de Maximino, que os guia até onde estão os carros.
204.10 – Que achas, Mestre? –pergunta Lázaro.
– Acho que há muitos infelizes neste mundo.
– Eu sou um deles.
– Por que, meu amigo?
– Porque todos vem a Ti e Maria não. A ruína dela será maior?
Jesus olha para ele, e sorri.
– Tu estás sorrindo? Não tens pena de que Maria ainda continue inconvertível? Não tens dó de mim, que
estou sofrendo? Marta não faz outra coisa, senão chorar, desde a tarde de segunda-feira. Quem era aquela
mulher? Não sabes que, durante um dia inteiro, ficamos esperando que fosse ela?
– Eu estou sorrindo, porque tu és uma criança impaciente… E sorrio porque acho que estais
desperdiçando vossas forças e vossas lágrimas. Se tivesse sido ela, Eu teria ido correndo para vos dizer.
– E, então, não era ela mesmo?
Jesus exclama:
– Oh! Lázaro!…
– Tens razão. Paciência. Paciência ainda!… Eis aíi, Mestre, as jóias que me deste para vender.
Transformaram-se em dinheiro para os pobres. Eram muito belas. De mulher.
– Eram daquela mulher.
– Eu imaginava. Ah! Se tivessem sido de Maria… Mas ela, mas ela!… Eu perco a esperança, meu
Senhor!…
Jesus o abraça, e fica um pouco sem dizer nada. Depois, Ele diz:
– Eu te peço que não fales destas jóias, seja com quem for. Ela deve desaparecer das admirações e dos
apetites, como uma nuvem que o vento leva para outro lugar, sem deixar delas nenhum traço no azul.
– Fica tranquilo, Mestre… e, em compensação, trazei-me Maria, a nossa infeliz Maria…
– A paz esteja contigo, Lázaro. O que Eu prometi, o farei.
[63] Tão é verdade que a alma é dada quando o feto já é formado é uma frase que MV acrescentou sucessivamente no caderno manuscrito, depois de
ter escrito o embrião sim sobre a palavra o feto sim. Como norma MV escreveu de imediato sem repensar. Porque aqui se trata de um remanejamento
insólito que poderia não estar de acordo com a afirmação da linha vinte-cinco mais acima: Ele a cria [Deus cria a alma] toda vez que um homem é gerado, ou
melhor, é concebido em um seio, e a semente nesta carne, que seria senão somente animal. Vê-se a nossa nota em 290.9 que reencaminha as outras notas
(incluída nesta) sobre a infusão da alma.
[64] A alma... se lembra, como já indicou mais acima em 204.5, além disso em 94.7 - 121.7 - 154.7 (com nota) - 157.5 - 169.5 - 344.7 (nas palavras de uma
criança) - 428.4 (com nota) - 534.6 (nas palavras de um idoso) - 554.10 - 556.8. Maria Santíssima, pois, “não fui nunca privada da lembrança de Deus”, como
se lê em 4.6 e como foi ilustrado em 10.8/10 e nas últimas linhas de 11.4. Da alma de Maria Santíssima se fala ainda em 136.6 e em 348.9/10. Uma
explicação luminosa sobre a conhecida “lembrança das almas”, que é diferente daquela concebida por Sócrates, é de 8 de setembro de 1945 e se encontra
no volume “I quaderni dal 1945 al 1950” (Os cadernos de 1945 a 1950).
205. Primeiros trabalhos para João de Endor.
A parábola do filho pródigo. O Iscariota
reconduzido a Jesus por Maria Ssma.
30 de junho de 1945.
205.1 – João de Endor, vem aqui comigo. Eu preciso falar-te –diz Jesus, aparecendo à porta de saída.
O homem vai logo, deixando o menino, ao qual estava ensinando alguma coisa:
– Que queres dizer-me, Mestre? –pergunta ele.
– Vem aqui para cima comigo.
Sobem para o terraço, vão sentar-se do lado mais abrigado pois, mesmo que esteja ainda de manhã, o
sol já está bem forte. Jesus corre o olhar pela campina cultivada, cujos grãos cada dia mais vão se tornando
dourados e cujas árvores já ostentam seus frutos. Ele parece estar querendo ir buscar um pensamento
naquela metamorfose vegetal.
– Escuta, João. Hoje Eu acho que virá Isaac, para trazer-me os camponeses de Jocanã, antes da partida
deles. Eu disse a Lázaro que empreste a Isaac um carro, para que possam apressar sua volta, sem ficarem
com temor de chegar com algum atraso, pois isso poderia provocar contra eles algum castigo. E Lázaro vai
fazê-lo. Pois Lázaro faz tudo o que Eu lhe digo. Mas de ti Eu quero uma outra coisa. Eu tenho aqui uma
importância, que me foi dada por uma criatura para os pobres do Senhor. Geralmente é um dos meus
apóstolos que é encarregado de tomar conta das moedas e de dar esmolas. Quase sempre é Judas de Keriot
e, vez por outra, os outros. Judas está ausente. Os outros, não quero que fiquem sabendo o que quero fazer.
Desta vez, nem Judas o saberia. E tu o irás fazer em meu nome…
– Eu, Senhor? Eu? Oh! Não sou digno disso!…
– Tu precisas acostumar-te a trabalhar em meu nome. Não vieste para isto?
– Sim. Mas eu pensava que devia trabalhar para reconstruir a minha pobre alma.
– E Eu te estou oferecendo o meio para isso. Em que foi que pecaste? Contra a Misericórdia e o Amor.
Com o ódio, destruíste a tua alma. Com o amor e a misericórdia, tu a reconstruirás. Para isso, Eu estou te
dando o material. Eu te aproveitarei particularmente nas obras de misericórdia e de amor. Tu também és
capaz de curar, tu és capaz de falar. Por isso, estás apto para teres cuidado das infelicidades físicas e
morais, e tens capacidade para fazê-lo. Começarás com esta obra. Toma a bolsa. Tu a darás a Miqueias e
aos seus amigos. Faze dela partes iguais. Mas, fazei-as do modo que Eu te estou dizendo. Divide-a em dez
partes. Depois, delas darás quatro partes a Miqueias, uma para ele, uma para Saulo, uma para Joel e uma
para Isaías. E as outras seis as entregarás a Miqueias para que as dê ao velho pai de Jabé, para ele e para
os seus companheiros. Eles poderão ter assim algum conforto..
– Está bem. Mas, que explicações hei de dar a eles?
– Dirás assim: “Isto é para que vos recordeis de orar por uma alma que está se redimindo!”
– Mas, poderão pensar que seja eu! Não é justo!
– Por quê? Não queres te redimir?
– Não é justo que eles pensem que o doador seja eu.
– Deixa, e faze como Eu estou dizendo.
– Obedeço…mas, pelo menos, permite-me pôr, eu também alguma coisa.. Tanto… agora não preciso de
mais nada. Livros, eu não compro mais, frangos para criar, não tenho mais. Para mim basta tão pouca
coisa… Toma, Mestre. Eu vou guardar somente um mínimo para as despesas com as sandálias…
Ele tira de uma bolsa, que trazia na cintura, muitas moedas e as ajunta com as moedas de Jesus.
– Deus te abençoe pela tua misericórdia… 205.2 João, daqui a pouco nos separaremos, porque tu irás ficar
com Isaac.
– Sinto muito por isso, Mestre. Mas obedeço.
– Eu também sinto por te afastares. Mas Eu tenho muita necessidade de discípulos peregrinantes. Eu já
não basto. Dentro em pouco, enviarei os apóstolos depois mandarei os discípulos. E tu farás um grande
bem. Eu te reservarei para missões especiais. Enquanto isso, irás te formando com Isaac. Ele é muito bom e
o espírito de Deus verdadeiramente o instruiu, durante sua longa enfermidade. Ele é um homem que
sempre perdoou tudo… Afinal, deixar-nos não quer dizer não vermo-nos mais. Nós nos encontraremos
frequentemente e todas as vezes que nos reencontrarmos, falarei especialmente para ti lembra-te disso…
João se inclina sobre si mesmo, esconde o rosto com as mãos e, com um áspero ataque de choro, geme,
dizendo:
– Oh! então, dizei-me logo alguma coisa que me persuada de que estou perdoado… de que posso servir a
Deus… Se tu soubesses, agora que caiu a fumaça do ódio, como estou vendo a minha alma… e como… e
como penso em Deus…
– Eu sei disso, não chores. Permanece na humildade, mas não te aviltes. O aviltamento ainda é soberba.
Procura ter somente, somente a humildade. Eia! Não chores.
João de Endor se acalma, pouco a pouco.
Depois de ter ficado calmo, Jesus lhe diz:
– Vem, vamos para debaixo da ramagem espessa daquelas macieiras, e vamos reunir-nos com os
companheiros e as mulheres. Eu falarei a todos, e te direi como é que Deus te ama.
Descem, e vão ajuntando-se os outros, à medida que se aproximam, e vão se sentando em círculos, à
sombra do pomar. Também Lázaro, que estava falando com Zelotes, aproxima-se do grupo. São vinte
pessoas ao todo.
205.3 – Ouvi. É uma bela parábola, que vos guiará com sua luz, em muitos casos.
Um homem tinha dois filhos. O mais velho era sério, trabalhador, amoroso, obediente. O segundo era
mais inteligente que o mais velho, pois este na verdade tinha pouca acuidade de espírito, e se deixava guiar
para não ter que se cansar ao tomar decisões. Em compensação, porém, o mais jovem era rebelde, dado a
passatempos, amante do luxo e do prazer, dissipador e preguiçoso. A inteligência é um grande dom de
Deus. Mas é um dom que precisa ser usado com sabedoria. Se assim não for, ele se torna como certos
remédios que, quando são mal usados, não curam, mas matam. O pai estava no seu direito e no seu dever, e
o exortava sempre a levar uma vida de um modo mais ajuizado. Mas isso não adiantava nada, ao contrário,
provocava da parte dele más respostas e um maior enrijecimento em suas próprias más ideias.
Afinal, um dia, depois de uma discussão mais violenta, o filho mais novo disse: “Dá-me a minha parte nos
bens. Assim não precisarei mais ficar ouvindo tuas repreensões, nem os queixumes do irmão. Cada um com
o que é seu e fica tudo acabado.” “Olha bem,” respondeu o pai, “que tu logo ficarás arruinado. E então, que
farás? Pensa bem, que eu não irei ser injusto, procurando ficar a teu favor, e não tomarei um vintém do teu
irmão para te dar.” “Não irei pedir nada. Fica certo disso. E dá-me a minha parte.”
O pai mandou avaliar as terras e os objetos de valor e, visto que o dinheiro e as jóias valiam tanto como
as terras, deu ao mais velho os campos e os vinhedos, os rebanhos e as oliveiras, e ao mais novo o dinheiro
e as jóias, que o jovem logo vendeu, transformando tudo em dinheiro. E, tendo feito isso, dentro de poucos
dias, foi-se embora para um lugar muito distante, onde passou a viver como um ricaço, esbanjando tudo o
que possuía em farras e patuscadas de toda espécie, querendo passar por filho de um rei, pois ele se
envergonhava de dizer: “Eu sou um camponês”, renegando assim a condição de seu pai. Festinhas, amigos
e amigas, boas vestes, vinho, jogatina…uma vida dissoluta… Bem depressa ele percebeu que o dinheiro ia
diminuindo e que a miséria ia chegando. E, com a miséria, para torná-la mais penosa, sobreveio àquele
lugar uma grande carestia, que acabou com o resto do dinheiro que ele ainda tinha.
205.4 Ele teria querido voltar para o pai. Mas era orgulhoso, e não quis. Foi, então, a um dos ricos do lugar,
que tinha sido seu amigo nos bons tempos, e lhe suplicou: “Recebe-me entre os teus servos, lembrando-te
de quando gozavas com as minhas riquezas.” Agora, vede vós como o homem é estulto! Ele prefere ir
colocar-se debaixo do chicote de um patrão, a ir dizer ao seu pai “Perdoa-me! Eu errei!” Aquele jovem havia
aprendido tantas coisas inúteis, com sua inteligência perspicaz, mas não tinha querido aprender aquela
palavra[65] do Eclesiástico: “Como é infame aquele que abandona o seu pai, e como é maldito por Deus
aquele que faz sua mãe ficar preocupada.” O rapaz era inteligente, mas não sábio.
O homem a quem ele havia se dirigido, em compensação pelo muito que ele havia gozado às custas do
estulto jovem, mandou este estulto ir tomar conta de seus porcos — pois lá era terra de pagãos, onde havia
muitos porcos — mandou que ele fosse apascentar em suas propriedades umas manadas de porcos. Imundo,
esfarrapado, fedorento e esfomeado, — pois a comida estava escassa para todos os servos, especialmente
para os empregados menos classificados, como era ele, um estrangeiro e, além disso, um porqueiro que era
tratado como objeto de zombaria, — ele via como os porcos se saciavam com as bolotas de carvalho, e
suspirava: “Ah! Se eu pudesse, pelo menos, encher a barriga com esses frutos! Mas eles são muito amargos!
Nem a fome faz com que eles pareçam bons.” E chorava, pensando nos festins feitos pouco tempo atrás, por
entre risadas, cantos e danças… depois pensava nas refeições honestas, mas bem nutritivas, de sua casa,
que agora estava tão longe: …Pensava nas porções que o pai imparcialmente distribuía a todos, reservando
sempre o menos para si, alegre por ver o apetite sadio de seus filhos… Pensava também nas partes que
eram distribuídas aos servos por aquele justo, e suspirava: “Os empregados de meu pai, até os menos
classificados, têm pão em abundância, e eu fico aqui morrendo de fome…”
Um grande trabalho de reflexão, uma longa luta para acabar com aquele orgulho…
205.5 E, afinal, chegou o dia em que, tendo renascido para a humildade e para a sabedoria, ele se pôs de
pé, e disse: “Eu vou voltar para o meu pai! É uma estultice minha este orgulho, que me mantém aqui preso.
E por quê? Por que ficar sofrendo assim no corpo, e mais ainda no coração, quando eu posso obter o perdão
e ter alívio? Eu vou voltar para o meu pai. Está dito. E, que lhe direi eu? Ah! Sim. Direi o que nasceu aqui
dentro, nesta baixeza, no meio destas sujeiras, sofrendo as mordeduras da fome! E eu lhe direi: ‘Meu pai,
eu pequei contra o Céu e contra ti e não sou mais digno de ser chamado teu filho; trata-me, pois, como o
último dos teus empregados, mas tolera-me debaixo do teu teto. Que eu possa te ver passando…’ Eu não
poderei dizer-lhe: ‘porque eu te amo’. Ele não acreditaria. Mas eu o direi com minha vida e ele
compreenderá e, antes de morrer, ainda me abençoará. Oh! Isso eu espero. Porque meu pai me ama.” E, ao
voltar de tarde para o povoado, ele foi despedir-se do patrão e depois, pedindo esmola pelo caminho, voltou
para sua casa. Já se vêem os campos do pai… e a casa… e o pai, que estava dirigindo os trabalhos, já
envelhecido, emagrecido pelos sofrimentos, mas sempre bom… O culpado, olhando aquilo que tinha sido
causado por ele, parou atemorizado… mas o pai, correndo o olhar ao redor de si, o viu, e correu ao seu
encontro, pois o filho ainda estava longe e, chegando perto dele, lançou-lhe os braços ao pescoço e o beijou.
Somente o pai havia reconhecido naquele mendigo aviltado o seu filho, e só mesmo ele é que tinha tido um
movimento de amor.
O filho, apertado entre aqueles braços, com a cabeça sobre o ombro paterno, murmura, por entre
soluços: “Pai, deixa que eu me jogue aos teus pés.” “Não, meu filho! Aos pés, não! Mas sobre o meu
coração, que tanto sofreu na tua ausência e que precisa reviver, ao sentir o teu calor sobre o meu peito.” E
o filho, chorando ainda mais fortemente, disse: “Oh! meu pai! Eu pequei contra o Céu e contra ti, e já não
sou digno de ser chamado por ti de filho. Mas, permite-me viver entre os teus servos, debaixo do teu
telhado, vendo-te, comendo o teu pão, servindo-te, sentindo o teu hálito. A cada bocado de pão, a cada teu
respiro, irá se reformando o meu coração, tão corrompido, e me tornarei honesto…”
Mas o pai, segurando-o sempre abraçado, o levou até onde estavam os servos, que se haviam
aglomerado à distancia, e que de lá estavam observando, e lhes diz: “Depressa, trazei aqui a túnica mais
bonita, os frascos com água de cheiro, dai-lhe um banho, perfumai-o, vesti-lhe a túnica, ponde-lhe sandálias
novas e um anel no dedo. Depois, ide pegar um vitelo gordo, e matai-o. E que se prepare um banquete.
Porque este meu filho estava morto e agora ressuscitou, estava perdido e foi reencontrado. Eu quero que
agora ele também reencontre aquele seu simples amor de quando era pequeno. Que o meu amor e a festa
da casa pela sua volta o façam reencontrar. Ele precisa compreender que para mim ele é sempre o querido
caçula, como o era em sua longínqua infância, quando ele caminhava ao meu lado, fazendo-me ser feliz com
o seu sorriso e o seu balbuciar.” E, como o patrão mandou, assim fizeram os servos.
205.6 O filho mais velho estava no campo e não estava sabendo de nada, enquanto não voltou. À tarde,
voltando para casa, viu que ela estava toda iluminada, e ouviu o som dos instrumentos de música e das
danças, que saía da casa. Chamou, então, um dos servos, que ia correndo muito atarefado, e lhe disse: “Que
é que está acontecendo?” E o servo respondeu: “O teu irmão voltou! E teu pai fez matar o vitelo gordo,
porque pôde reaver o filho com saúde, curado do seu grande mal, e mandou que se preparasse um
banquete. Só estamos te esperando para começar.” Mas o primogênito, encolerizado, porque lhe parecia
uma injustiça toda aquela festa para o mais jovem que, além de ser mais jovem, ainda tinha sido mau, não
quis entrar, e até estava querendo afastar-se de casa.
Mas o pai, avisado disso, saiu correndo para fora, e o alcançou, tentando convencê-lo a entrar e pedindo-
lhe que não tornasse amarga a sua alegria. O primogênito respondeu a seu pai: “E não queres que eu fique
descontente? Tu estás fazendo uma injustiça, e tratando com desprezo ao teu primogênito. Eu, desde que
pude trabalhar, sempre te servi, e isto há muitos anos. Eu nunca desobedeci a uma ordem tua, nem mesmo
a um teu desejo. Eu sempre estive perto de ti e te amei por dois, para fazer-te ficar curado da ferida feita
por meu irmão. E tu não me deste nem um cabrito para eu fazer uma festa com os meus amigos. E, para
este, que te ofendeu, que te abandonou, que foi um preguiçoso e um esbanjador, e que agora está de volta,
porque veio impelido pela fome, tu o cobres de honrarias, e matas para ele o vitelo mais bonito. Vale a pena
sermos trabalhadores e sem vícios! Isto tu não devias fazer!” O pai disse-lhe, então, apertando-o contra o
seu seio: “Oh! Meu filho! Poderás tu crer que eu não te amo, porque não estendi uma faixa festiva em honra
de tuas boas ações? As tuas ações já são santas por si mesmas, e por elas o mundo te elogia. Mas este teu
irmão, pelo contrário, precisa ser realçado na estima do mundo e em sua própria estima. Acreditarás tu que
eu não te amo, só porque não te dei um prêmio visível? Mas, de manhã e de tarde, em todos os meus
respiros e pensamentos, tu estás presente em meu coração e, a cada momento, eu te abençôo. Tu tens o
prêmio contínuo de estares sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era justo que nos
banqueteássemos e fizéssemos uma festa, por este teu irmão, que estava morto ressuscitou para o Bem,
que estava perdido voltou ao nosso amor.” E o primogênito deu-se por vencido.
205.7 Assim, meus amigos, é que acontece na Casa do Pai. E quem sabe que está como o filho mais novo da
parábola pense também que, se o imitar, voltando para o Pai, o Pai lhe dirá: “Não aos meus pés. Mas sobre
o meu coração, que sofreu pela tua ausência, e que agora está feliz pela tua volta.” Quem está na condição
de filho primogênito e sem culpa com o Pai, não seja ciumento da alegria paterna, mas participe dela,
dando amor ao irmão redimido.
Eu já falei. Fica aqui, João de Endor, e tu, Lázaro. Os outros vão preparar as mesas. Nós iremos logo.
Todos se retiram. Quando Jesus, Lázaro e João ficam sozinhos, Jesus diz a Lázaro e João:
– Assim se fará com a alma querida que tu esperas, Lázaro, e assim está sendo feito com a tua, João. A
bondade de Deus está acima de qualquer medida…
205.8 Os apóstolos, juntos com a mãe e as mulheres, vão indo para a casa, precedidos por Margziam, que
vai dando seus pulinhos na frente. Mas logo ele volta e pega Maria pela mão, dizendo-lhe:
– Vem comigo. Tenho uma coisa para dizer-te em segredo.
E Maria o contenta. Desviam-se para o lado do poço, que está num canto do pequeno pátio todo coberto
por uma latada bem espessa, que sobe da terra como um arco, para o rumo do terraço. Atrás dela está
Iscariotes.
– Judas, que queres? Vai, Margziam…Fala… Que queres?
– Eu estou culpado… Não tenho coragem de ir ao Mestre, nem de me encontrar com os companheiros…
Ajuda-me…
– Eu te ajudarei. Mas, não pensas na grande dor que estás causando? Meu Filho chorou por tua causa. E
os companheiros sofreram com isso. Mas, vem. Ninguém te dirá nada. E, se podes, não recaias mais nestas
culpas. É coisa indigna de um homem, e um sacrilégio contra o Verbo de Deus.
– E tu, mãe, me perdoas?
– Eu? Eu não valho nada para ti, que te julgas tão grande. Eu sou a menor das servas do Senhor. Como
podes te preocupar comigo, se não tens dó do meu Filho?
– Porque eu também tenho uma mãe e, se tiver o teu perdão, acho que terei o dela.
– Ela não sabe dessa tua culpa.
– Mas ela me tinha feito jurar que fosse bom para o Mestre. Eu sou um perjuro. Estou ouvindo a
reprovação da alma de minha mãe.
– Estás ouvindo isso? E o lamento do Pai e do Verbo, não o ouves? Tu és um infeliz, Judas. Semeias a dor
em ti mesmo e em quem te ama.
Maria está muito séria e triste. Ela fala sem azedume, mas de modo muito sério. Judas chora.
– Não chores. Mas trata de melhorar. Vem.
E o toma pela mão e assim entra na cozinha. Grande é o espanto de todos. Mas Maria procura evitar
qualquer palavra impiedosa. Ela diz:
– Judas voltou. Fazei como o primogênito, depois do discurso do pai. João, vai avisar Jesus.
João de Zebedeu sai correndo.
Um silêncio desce sobre a cozinha… Depois, Judas diz:
– Perdoai-me Simão, em primeiro lugar. Tens um coração tão paterno. Eu também sou um órfão.
– Sim, sim, eu te perdôo. Por favor. Não fales mais nisso. Somos irmãos… e não me agradam estes altos
e baixos de perdões pedidos e de recaídas feitas. Aviltam a quem as faz e quem os dá. Aí vem Jesus. Vai até
Ele. E basta.
Judas vai indo, enquanto Pedro, não podendo fazer outra coisa, se põe, impetuosamente, a rachar umas
achas secas.
[65] aquela palavra que está em Siracide 3,16.
206. Com duas parábolas sobre o Reino
dos Céus termina a permanência em Betânia.
1º de julho de 1945.
206.1 Na presença dos camponeses de Jocanã, de Isaac e de muitos discípulos, das mulheres, entre as
quais Maria, mãe de Jesus e Marta, e muitos de Betânia, Jesus fala. Todos os apóstolos estão presentes. O
menino, sentado em frente de Jesus, não perde uma palavra. O discurso deve ter começado há pouco, pois o
povo ainda está chegando…
Diz Jesus:
– … é por causa desse temor tão forte, que Eu estou percebendo em muitos, que quero vos propor uma
boa parábola. Boa, para os homens de boa vontade, desagradável, para os outros. Mas estes têm o modo de
acabar com o gosto desagradável. Que se tornem eles também de boa vontade e a reprovação que a
parábola suscita nas consciências, deixará de existir.
206.2 O Reino dos Céus é a casa do esposalício feito entre Deus e as almas. O Momento da entrada nele é o
dia das bodas.
Agora, escutai, então. Entre nós há o costume de que as virgens acompanhem o esposo, quando ele
chega, para levá-lo, entre luzes e cânticos, até à casa nupcial, junto com a sua amada esposa. Quando o
cortejo deixa a casa da esposa, que vai coberta com um véu e que, comovida, sai, dirigindo-se para o seu
lugar de rainha, em uma casa que não é a dela, mas que vai tornar-se dela, desde o momento em que ela se
torna uma só carne com o seu esposo, o cortejo das virgens, que em sua maior parte são amigas da esposa,
corre ao encontro dos dois felizes esposos, para rodeá-los com um halo de luzes.
Aconteceu, pois, que em um lugar celebraram-se esponsais. Enquanto os esposos, com os parentes e
amigos, estavam sapateando na casa da esposa, dez virgens foram para o seu lugar, no vestíbulo da casa do
esposo, prontas para saírem ao encontro dele, quando um longínquo som de címbalos e de cânticos
estivesse avisando que os esposos já tinham saído da casa da esposa para irem para a casa do esposo. Mas
o banquete na casa dos esponsais se prolongou muito, e assim chegou a noite. As virgens, como sabeis,
seguram sempre as lâmpadas acesas, para não ficarem perdendo tempo no momento principal. Pois bem.
Entre estas dez virgens, que deviam segurar as lâmpadas acesas e bem luzentes, havia cinco sábias e cinco
estultas. As sábias, cheias de prudência, tinham-se munido de pequenos vasos cheios de azeite, para
poderem alimentar suas lâmpadas, se a duração da espera fosse mais longa do que era previsível. Enquanto
que as estultas se limitaram só a encher, quando muito, suas pequenas lâmpadas.
Uma hora passou, e mais outra hora. Alguns discursos, histórias e palavras jocosas foram alegrando o
tempo de espera. Mas depois, não sabiam mais o que dizer, nem o que fazer. E, aborrecidas, ou também
simplesmente cansadas, as dez moças resolveram sentar-se mais comodamente, com as lâmpadas acesas e
bem próximas e, pouco a pouco, pegaram no sono.
206.3 Quando chegou a meia noite, ouviu-se um grito: “Eis o esposo chegando, ide-lhe ao encontro!”
Àquela ordem, as dez moças se levantaram, puseram os véus e as grinaldas e correram depois para a
pequena mesa, onde estavam as lâmpadas. Cinco destas já se estavam apagando. O pavio, não encontrando
mais azeite, pois este se havia acabado, estava já soltando fumaça, com uns lampejos cada vez mais fracos e
pronto para apagar-se, ao menor sopro de vento. Mas as outras cinco lâmpadas, alimentadas antes do sono
pelas virgens prudentes, estavam com suas chamas ainda bem vivas e mais vivas ainda ficaram pela nova
quantidade de azeite que colocaram sobre o pavio.
“Oh!”, imploravam as estultas, “dai-nos um pouco do vosso azeite, porque senão as nossas lâmpadas se
apagam, só ao movê-las daqui. As vossas já estão bonitas…” Mas as prudentes responderam: “Fora há o
vento da noite e o orvalho está caindo em grossas gotas. O azeite nunca é bastante para formar uma chama
forte, capaz de resistir aos ventos e à umidade. E, se nós vos dermos do nosso, vai acontecer que nossas
luzes também possam começar a vacilar. E bem triste ficaria o cortejo das virgens, sem o palpitar daquelas
chamazinhas! Ide, pois, ide correndo ao vendedor mais perto, pedi, batei à porta, fazei que ele se levante
para vos vender.”
E elas, apressadas, amarrotando os véus, sujando as vestes, perdendo as grinaldas, por terem que
esbarrar uma na outra, correndo, procuravam seguir o conselho das companheiras.
Mas, enquanto iam indo comprar o azeite, eis que já aparecem, lá no começo da rua, o esposo e a
esposa. As cinco virgens, tendo nas mãos suas lâmpadas acesas, correram ao encontro deles e, no meio
delas, os esposos entraram na casa, para o fim da cerimônia, momento este em que as virgens deveriam
acompanhar a esposa até a câmara nupcial. A porta, então, foi fechada, depois da entrada dos esposos, e
quem fora estava, fora permaneceu. E assim para as cinco estultas que, chegadas enfim com o azeite,
encontraram a porta fechada. Inutilmente bateram nela, machucando as mãos e gemendo: “Senhor, senhor
abre-nos. Nós somos do cortejo das núpcias. Somos as virgens propiciatórias, escolhidas para trazer honra
e fortuna ao teu tálamo.” Mas o esposo, lá do alto da casa, deixando por um momento os convidados mais
íntimos, dos quais ele se despedia, enquanto a esposa entrava na câmara nupcial, disse: “Em verdade, eu
vos digo que não vos conheço. Não sei quem sois. Os vossos rostos não estavam presentes ao redor da
minha amada, festejando-a. Vós sois umas usurpadoras. Que sejais, pois, deixadas fora da casa das
núpcias.” E as cinco estultas, chorando, foram-se embora, pelas estradas escuras, com suas lâmpadas já
inúteis, com suas vestes amarrotadas, os véus rasgados, as grinaldas desmanchadas ou perdidas…
206.4 E agora, ouvi a admoestação encerrada na parábola.
Eu vos disse, no princípio, que o Reino dos Céus é casa dos esponsais feitos entre Deus e as almas. Para
as núpcias celestes, são chamados todos os fiéis, porque Deus ama todos os seus filhos. Uns antes, outros
depois, chegam ao momento dos esponsais, e chegar a esse momento é uma grande sorte.
Mas agora escutai ainda. Vós sabeis como as moças consideram uma honra e uma sorte serem chamadas
para ficarem como servas, ao redor da esposa. Apliquemos ao nosso caso o papel dos personagens e
compreendereis melhor. O esposo é Deus. A esposa é a alma de um justo que, tendo passado o período do
noivado na casa do Pai, isto é, na dependência e obediência da e à doutrina de Deus vivendo segundo a
justiça, é levada à casa do Esposo para as núpcias. As servas virgens são as almas dos fiéis que, segundo o
exemplo deixado pela esposa, — ter sido escolhida pelo esposo por suas virtudes é sinal de que ela era um
exemplo vivo de santidade — procuram chegar àquela mesma honra, santificando-se.
206.5 Elas estão com veste branca, limpa e nova, em brancos véus, coroadas de flores. Elas têm lâmpadas
acesas nas mãos. As lâmpadas estão bem limpas, tendo um pavio alimentado com azeite do mais puro, para
que não seja mal-cheiroso.
Com veste branca. A justiça firmemente praticada, produz uma veste cândida e bem depressa chegará o
dia em quê será candidíssima, sem nenhuma lembrança, nem de longe, de mancha, com um candor
sobrenatural, um candor angélico.
Em veste limpa. É preciso, junto com a humildade, ter sempre limpa a veste. É muito fácil embaçar a
pureza do coração. E quem não é puro de coração não pode ver a Deus. A humildade é como uma água que
lava. O humilde se dá conta logo, porque tem olhos não embaçados pelas fumaças do orgulho, de estar com
suas vestes enodoadas, e corre para o Senhor, e diz: “u tirei a limpeza deste meu coração. Eu choro para
limpar-me. A teus pés venho chorar. E tu, ó meu Sol, alveja com os teus benignos perdões, com os teus
paternos amores, esta minha veste!”
Em veste nova. Oh! O frescor do coração! As crianças o possuem por um dom de Deus. Os justos o têm
por dom de Deus e por sua própria vontade. E os santos o têm por dom de Deus e por sua vontade elevada
até o grau de heroísmo. Mas os pecadores, com uma alma dilacerada, queimada, envenenada,
emporcalhada, será que não poderão nunca mais ter uma veste nova? Oh! Sim, que podem ter. Começam a
tê-la desde o momento em que olham para si mesmos com aversão, depois a aumentam, quando se decidem
a mudar de vida e a aperfeiçoam quando se lavam com a penitencia, e se desintoxicam, e se medicam, e
recompõem a sua pobre alma e, com a ajuda de Deus, que não nega socorro a quem lhe pede uma santa
ajuda, e com a própria vontade, elevada ao super-heroismo, — porque neles o necessário não é ficar
tomando conta do que eles têm, mas de reconstruir o que eles demoliram e para isso há uma dupla, tripla e
sétupla fadiga — e, finalmente, com uma penitência incansável e implacável para com o eu que foi pecador,
fazem voltar sua alma a um novo frescor como na infância, frescor precioso pela experiência que os faz
mestres de outros, que são[66] agora como eram eles há tempo, ou seja, pecadores.
Em brancos véus. A humildade! Eu disse[67]: “Quando rezais ou fazeis penitência, procurai que o mundo
não o perceba.” Nos livros sapiênciais está escrito: “Não é bom revelar o segredo do Rei.” A humildade é o
véu cândido posto como defesa do bem que se faz e do bem que Deus nos concede. Não é a glória pelo
amor ao privilégio que Deus concede, nem é a estulta glória humana. O dom seria imediatamente retomado.
Mas é um canto interior do coração ao seu Deus: “Minha alma canta a tua grandeza, ó Senhor… porque Tu
voltaste o teu olhar para a baixeza da Tua serva.”
Jesus faz uma breve pausa, e lança um olhar para sua mãe que, por debaixo do seu véu, se ruboriza e se
inclina profundamente, como para compor os cabelos do menino que está sentado aos seus pés, mas, na
verdade, o faz para ocultar uma sua comovida lembrança…
– Coroada de flores. A alma deve entretecer para si sua grinalda diária de atos virtuosos porque, ao
conspecto do Altíssimo, não se devem apresentar coisas murchas, nem se deve estar com aspecto
desmazelado. Diária, Eu disse. Porque a alma não sabe quando Deus-Esposo pode aparecer para dizer-lhe:
“Vem.” Por isso não nos cansemos nunca de renovar a coroa. Não tenhais medo As flores ficam murchas.
Mas as flores das coroas virtuosas não murcham. O Anjo de Deus, que cada homem tem ao seu lado,
recolhe estas grinaldas de cada dia e as leva para o Céu. E lá elas servem como um trono ao novel bem-
aventurado, quando ele entrar, como esposa, na casa nupcial.
206.6 Tem as lâmpadas acesas. E é para honrar o esposo, e para se guiarem no caminho. Como é fulgente a
fé, e que doce amiga ela é! Produz uma chama brilhante, como uma estrela, uma chama que ri, porque tem
segurança em sua certeza, uma chama que torna luminoso até o instrumento que a rege. Até a carne do
homem, nutrido pela fé, parece, desde esta terra, tornar-se mais luminosa e espiritual e imune de uma
murchidão precoce. Porque quem crê, se rege pelas palavras e pelas ordens de Deus, para chegar a possuir
a Deus, que é o seu fim e, por isso, foge de toda corrupção, não sofre perturbações, nem temores, nem
remorsos, e não é obrigado a nenhum esforço, para recordar-se de suas mentiras, ou para esconder suas
más ações, e se conserva belo e jovem pela bela incorrupção de santo. Uma carne e um sangue, uma mente
e um coração limpos de toda luxúria, para conterem o azeite da fé e para produzirem uma luz sem fumaça.
Uma constante vontade para alimentar sempre esta luz. A vida de cada dia, com as suas desilusões,
verificações, contatos, tentações, atritos, tende a diminuir a fé. Não. Não deve acontecer. Ide cada dia às
fontes do azeite suave, do azeite espiritual, do azeite de Deus.
Lâmpada pouco alimentada pode ser apagada pelo menor vento, pode ser apagada pelo pesado orvalho
da noite. A noite… A hora das trevas, do pecado e da tentação, chega para todos. É a noite para a alma.
Mas, se esta se conserva a si mesma cheia de fé, não pode a chama ser apagada pelo vento do mundo, pela
caligem da sensualidade.
Enfim, vigilância, vigilância, vigilância. Quem for imprudente, e fiar-se em si mesmo, dizendo: “Oh! Deus
virá em tempo, enquanto eu estiver lúcido”, quem se põe a dormir, em vez de vigiar e for dormir, desprovido
de tudo o que é necessário para poder levantar-se prontamente, ao primeiro chamado, quem deixa para o
último momento o trabalho de ir prover-se do azeite da fé, ou do pavio forte da boa vontade, incorre no
perigo de ter que ficar fora, quando o Esposo chegar. Vigiai, pois, com prudência, com constância, com
pureza, com confiança, para estardes sempre prontos para o chamado de Deus, porque, na realidade, não
sabeis quando Ele virá.
206.7 Meus caros discípulos, Eu não quero induzir-vos a tremer por causa de Deus, mas, antes, a terdes fé
em sua bondade. Tanto vós que ficais, como vós que ides, pensai que, se fizerdes o que fizeram as virgens
sábias, sereis chamados, não somente para fazer o cortejo ao Esposo, mas, como a jovem Ester, que foi feita
rainha[68] no lugar de Vasti, sereis escolhidos e eleitos como esposas, tendo o Esposo “encontrado em vós
toda graça e favor, mais do que em todos os outros.” Eu vos abençôo, a vós que ides. Levai em vós e para
vossos companheiros esta minha palavra. A paz do Senhor esteja sempre convosco.
Jesus se aproxima dos camponeses, para saudá-los ainda, mas João de Endor lhe sussurra:
– Judas já está aí…
– Não importa. Acompanha-os até o carro, e faze o que Eu te disse que faças.
A multidão se dispersa lentamente. Muitos falam a Lázaro… E este se dirige a Jesus que, tendo deixado
os camponeses, vem na direção dele, e diz:
– Mestre, antes que nos deixes, fala-nos ainda… Isto desejam os corações de Betânia.
– A tarde está chegando. Mas é plácida e serena. Se quiserdes reunir-vos sobre os fenos ceifados, Eu vos
falarei, antes de deixar este lugar amigo. Ou, então, amanhã bem cedo. Porque já chegou a hora da
despedida.
– Mais tarde! Hoje mesmo! –gritam todos.
– Como quiserdes. Ide agora. Na metade da primeira vigília, Eu vos falarei.
206.8 … É incansável de fato — enquanto o sol desaparece, deixando como lembrança uma vermelhidão no
céu, com o primeiro, incerto e solitário trilar dos grilos, — Jesus se põe a caminho pelo meio de um prado,
há pouco ceifado, e no qual as ervas cortadas, que já estão murchando, formam um tapete de uma
fragrância aguda e suave. Acompanham-no os apóstolos, as Marias, Marta e Lázaro com os de sua casa,
Isaac com os seus discípulos, eu diria até que com toda a Betânia. Entre os seus servos está o velhinho com
a mulher, aqueles dois que, no Monte das Bem-aventuranças, acharam também um conforto para os seus
dias.
Jesus para, a fim de abençoar o patriarca que, chorando, vai beijar-lhe a mão e acaricia o menino, que
vai caminhando ao lado de Jesus, e dizendo-lhe:
– Feliz de ti, que o podes acompanhar sempre! É uma grande felicidade! Sobre tua cabeça está suspensa
uma coroa… Oh! Feliz de ti!
206.9 Quando todos já estão em seus lugares, Jesus começa a falar:
– Já tendo ido embora os nossos pobres amigos, que tinham necessidade de muito conforto em sua
esperança, ou melhor, em sua certeza de que basta saber pouco para serem admitidos no Reino, de que
basta um mínimo de verdades com as quais a boa vontade trabalha, Eu agora me dirijo a vós, muito menos
infelizes, porque estais em condições materiais muito melhores e com maiores auxílios do Verbo. O meu
amor vai a eles, só com o pensamento. Mas aqui ,a vós, o meu amor vem também com a palavra. Por isso,
vós estais sendo tratados na terra como no Céu, com maiores exigências, porque a quem mais foi dado,
mais dele será exigido. Eles, os nossos pobres amigos, que estão de volta às suas galés, não podem ter
senão um mínimo de bens, mas têm, em compensação, um máximo de dores. Por isso são somente para eles
as promessas de benignidade, já que qualquer outra coisa para eles seria supérflua. Em verdade, Eu vos
digo que a vida deles é penitência e santidade e que nada mais lhes deve ser imposto. Também, em verdade
Eu vos digo que, semelhantes às virgens sábias, eles não terão deixado que se apaguem suas lâmpadas, até
que chegue a hora do chamado.
Deixá-la apagar-se? Não. A luz delas é todo o bem deles. Eles não podem deixá-la apagar-se.
206.10 Em verdade, Eu vos digo que, assim como Eu estou no Pai, os pobres estão em Deus. É por isso que
Eu, o Verbo do Pai, quis nascer pobre, e viver pobre. Porque, entre os pobres, Eu me sinto mais próximo do
Pai, que ama os pequeninos e é amado por eles com todas as suas forças. Os ricos têm muitos amigos. Os
pobres vivem sozinhos. Os ricos têm muitas consolações. Os pobres não tem consolações
Os ricos têm muitos divertimentos. Os pobres só têm trabalho. Os ricos têm o dinheiro, que lhes torna
tudo fácil. Os pobres, além de tudo, ainda têm que levar a cruz, que é o temor das doenças e da carestia,
que para eles só trazem a fome e a morte. Mas os pobres tem Deus consigo. Ele é amigo deles. É o
consolador deles. É Ele quem os consola com as esperanças do Céu, quando eles sofrem as penas do
momento presente. É Ele a quem eles podem dizer — e o sabem dizer, e o dizem justamente porque são
pobres, humildes e sós —: ‘Socorre-nos, ó Pai, com a tua misericórdia.’
Tudo o que Eu estou dizendo aqui nesta terra de Lázaro, meu amigo e amigo de Deus, se bem que ele
seja tão rico, pode até parecer estranho. Mas Lázaro é uma exceção entre os ricos. Lázaro chegou a ter
aquela virtude, muito difícil de ser encontrada na terra e ainda mais difícil de ser praticada para
ensinamento dos outros. A virtude de estar livre das riquezas. Lázaro é justo. Lázaro não se ofende. Ele não
pode ofender-se, porque sabe que ele é o rico-pobre e por isso não é atingido pela minha velada censura.
Lázaro é justo e reconhece que no mundo dos grandes as coisas são como Eu digo. Por isso, Eu falo e digo:
em verdade, em verdade, Eu vos digo que é muito mais fácil que esteja em Deus um pobre do que um rico.
E, no Céu do meu e vosso Pai, muitos lugares vão ser ocupados por aqueles que na terra foram desprezados
porque eram tão miúdos como grãos de poeira em que pisamos.
Os pobres conservam no coração as pérolas, que são as palavras de Deus. Elas são o seu único tesouro.
Quem tem uma só riqueza toma todo o cuidado com ela. Quem tem muitas, vive aborrecido e desatento, e
se torna soberbo e sensual. Por tudo isso, ele não admira com olhos humildes e cheios de amor o tesouro
que Deus lhe deu, mas o confunde com outros tesouros, que são preciosos só na aparência, tesouros que
são as riquezas desta terra, e fica pensando: “Já é muito o que eu faço, ao ficar ouvindo as palavras de um
que é carne e ossos como eu!” E os sabores das sensualidades fazem ficar obtusa a sua capacidade de
saborear o que é sobrenatural. Fortes sabores!… Sim, mas o que eles são é muito bem temperados, para
misturar tudo com seu fedor e sabor de podridão…
206.11 Mas, ouvi. E, então, compreendereis melhor como os requintes, as riquezas e as devassidões
impedem a entrada no Reino dos Céus.
Uma vez um rei fez a festa do casamento de seu filho. Podeis imaginar que festa houve no palácio.
Tratava-se do filho único do rei que, tendo-se tornado núbil, estava se casando com sua dileta. O rei, seu
pai, quis que tudo fosse alegria, ao redor da alegria de seu filho e de sua bem amada. Entre os muitos atos
do programa da festa, constava também um grande banquete. E ele o preparou com tempo, cuidando de
todos os pormenores do mesmo, para que a festa saísse muito bonita e digna das núpcias de um filho do rei.
Mandou com antecedência a seus servos que fossem dizer aos amigos e aliados, e também aos magnatas
do seu reino que o casamento estava marcado para aquela data de tarde, e que eles estavam convidados e
que viessem abrilhantar as festas do filho do rei. Mas os amigos, os aliados e os magnatas do reino não
aceitaram o convite.
Então o rei, na dúvida se os primeiros servos haviam ou não, falado como deviam, mandou ainda outros
servos, para insistirem, dizendo: “Nós vo-lo pedimos. Vinde à festa. Já está tudo pronto. O salão está
preparado, os vinhos mais preciosos já foram trazidos de diversos lugares, nas cozinhas já estão preparados
os bois e os animais cevados para serem cozidos, as escravas já estão amassando a farinha para fazer os
doces, e outras estão esmagando as amêndoas nos almofarizes, para confeitarem os mais finos petiscos aos
quais elas misturam os mais raros aromas. As dançarinas e os melhores tocadores de instrumentos foram
contratados para a festa. Portanto, vinde, a fim de que todos esses preparativos não tenham sido inúteis.”
Mas os amigos, os aliados e os grandes, uns se recusaram e outros disseram: “Nós temos mais o que
fazer”, enquanto que outros ainda fingiram aceitar mas, na hora, foram tratar de seus interesses, uns no
campo, outros em seus negócios, e outros em outras coisas de pouca importância. E, finalmente, houve
também alguns que, aborrecidos com aquela insistência, pegaram os servos do rei e os mataram para os
fazer calar, porque eles ficavam só repetindo: “Não negues ao rei uma coisa destas, porque poderias sair-te
mal.”
Os servos voltaram ao rei e lhe contaram tudo e o rei se encheu de indignação, mandando seus soldados
punir os assassinos de seus servos e castigar os outros que haviam desprezado o seu convite, e ficou
esperando, para recebê-los bem, aos que prometeram ir. Mas, quando chegou a tarde do dia da festa, na
hora marcada, ninguém havia chegado.
206.12 O rei, irado, chamou os seus servos e disse-lhes: “Não há de acontecer que meu filho fique sem os
festejos nesta tarde de suas núpcias. O banquete está pronto, mas os convidados não são dignos dele. Seja
como for, o banquete nupcial de meu filho haverá de realizar-se. Ide agora pelas praças e pelas estradas,
colocai-vos nas encruzilhadas, fazei parar a quem estiver passando, reuni os que pararem e trazei-os todos
para cá. E que o salão se encha com os que vêm para a festa.”
Os servos lá se foram. Tendo saído pelas estradas, e tendo-se uns espalhados pelas praças ou se
colocado nas encruzilhadas, foram ajuntando a todos os que foram encontrando, bons e maus, ricos e
pobres e os levaram para a morada do rei, fornecendo-lhes também os meios para que pudessem
comparecer à festa e entrar no salão do banquete do casamento. Depois os fizeram entrar e o salão ficou
cheio de convidados, como o rei queria.
Mas, resolvendo o rei entrar no salão, para ver se já se podia começar a festa, viu lá dentro um homem
que, mesmo com a ajuda que os servos lhe haviam oferecido, não estava com a veste própria para uma festa
de casamento. E o rei lhe perguntou: “Como foi que entraste aqui sem a veste de núpcias?” E o homem não
soube o que responder, porque de fato não tinha motivos para desculpar-se. Então, o rei chamou os servos e
lhes disse: “Pegai este homem, amarrai-o de pés e mãos e expulsai-o para fora de minha morada, que ele
fique lá no escuro e na lama gelada. Que lá ele fique chorando e rangendo os dentes, como ele mereceu por
sua ingratidão e pela ofensa que me fez, e mais do que a mim, ao meu filho, entrando aqui com esta veste
andrajosa e suja, logo aqui no salão do banquete, onde só deve entrar quem é digno de estar neste lugar e
na festa de meu filho.”
206.13 Como estais vendo, as preocupações do mundo, as avarezas, as sensualidades, as crueldades atraem
a ira do rei e fazem que esses filhos das preocupações nunca mais entrem na casa do Rei. E vede também
que, até entre os convidados pela bondade do seu filho, há castigados.
Quantos há assim, nos dias de hoje, nesta terra à qual Deus enviou o seu Verbo!
Aos aliados, aos amigos, aos grandes do seu povo Deus realmente os convidou, por meio dos seus
servos, e mais ainda os fará convidar, com um convite insistente, à medida que a hora das minhas núpcias
for-se avizinhando. Mas não aceitarão o convite, porque são falsos aliados, falsos amigos, não são grandes
senão de nome, pois a baixeza mora neles.
Jesus vai elevando cada vez mais a voz, e seus olhos, à luz de um fogo, que foi aceso entre Ele e os
ouvintes, para iluminar a noite, pois nela não há luar, estando a lua em minguante e levantando-se mais
tarde, lançam uns lampejos de luz como se fossem duas pedras preciosas.
– Sim, a baixeza mora neles. Por tudo isso, eles não compreendem que é um dever e uma honra para
eles que aceitem o convite do Rei.
Soberba, dureza e libidinagem formam um baluarte em seu coração. E — maus como são, — tem ódio de
Mim, e por isso não querem vir às minhas núpcias. Não querem vir. Preferem às núpcias os conúbios com a
política suja, com o dinheiro ainda mais sujo e com a sujíssima sensualidade. Eles preferem ir fazer os seus
cálculos cheios de astúcia, ficar conspirando numa conspiração traiçoeira, preferem o ardil e o delito.
Eu condeno tudo isso em nome de Deus. Odeia-se por isso a voz que fala e as festas a que ela convida. É
neste povo que devem ser procurados os que matam os servos de Deus: os Profetas, que são seus servos até
hoje, os meus discípulos, que são os servos, de agora em diante. Neste povo é que são escolhidos os que
querem trapacear com Deus, e dizem: “Sim, nós vamos”, enquanto, em seu interior, pensam assim: “Não
vou, nem por sombra!” De tudo isso há em Israel.
E o Rei do Céu, a fim de que o Filho possa ostentar a magnificência de suas núpcias, mandará recolher
nas encruzilhadas aqueles que nem são amigos, que nem são grandes, nem aliados, mas são simplesmente
pessoas que vão passando. Já — por minha mão, pela minha mão de Filho e de servo de Deus — a colheita
começou.
Sejam quais forem, eles virão… E já vieram. E Eu os ajudo a ficarem limpos e belos para a festa das
núpcias. Mas haverá, Oh! para sua infelicidade, haverá quem até da generosidade de Deus, que lhe dá
perfumes e vestes reais, para fazê-lo parecer o que ele não é: alguém rico e digno, haverá quem, de toda
essa bondade se aproveitará para, como um indigno, seduzir, tirar vantagem… É um indivíduo vesgo de
espírito, abraçado pelo polvo repugnante de todos os vícios… e até subtrairá alguns perfumes e vestes para
obter com essas coisas algum lucro ilícito, usando delas não para as núpcias do Filho, mas para as suas
núpcias com satanás.
Pois bem. Isto acontecerá. Porque muitos são os chamados, mas poucos os que, por saberem perseverar
em atender ao chamado, chegam a ser eleitos. Contudo, também acontecerá que a estas hienas, que
preferem as podridões a um nutrimento vivo, haverá de ser infligido o castigo de serem tocados para fora
do salão do banquete para o meio das trevas e de uma lama de um brejo eterno, onde satanás faz ouvir a
sua estridente e horrível risada por todos os triunfos conseguidos contra uma alma, e nos quais se ouve
também o eterno pranto desesperado dos mentecaptos, que foram atrás do delito, em vez de
acompanharem a Bondade, que os havia chamado.
206.14 Levantai-vos, e vamos descansar. Eu vos abençôo, ó cidadãos de Betânia, a todos vós. Eu vos
abençôo e vos dou a minha paz. Eu abençôo em particular a ti, ó Lázaro, meu amigo, e a ti, Marta. Abençôo
aos meus discípulos antigos e novos, que Eu mando pelo mundo para chamar, para convidar para as núpcias
do Rei. Ajoelhai-vos, para que Eu vos abençoe a todos. Pedro, dize a oração que Eu vos ensinei e vem dizê-la
aqui ao meu lado, de pé, porque assim há de ser feita por quem para isso foi destinado por Deus.
A assembleia toda se ajoelha sobre o feno, ficando em pé somente Jesus em sua veste de linho, com toda
a sua altura e beleza, e Pedro, em sua veste marrom escura, inflamado pela emoção, um pouco trêmulo e
que reza, com uma voz não bonita, mas viril, recitando devagar, por medo de errar: “Pai nosso…”
Ouvem-se alguns soluços… de homem, de mulher…
Margziam está ajoelhado justamente ao lado de Maria, que está segurando suas mãozinhas juntas. Olha
com um sorriso angelical para Jesus, e diz baixinho:
– Olha mãe é belo! E como é belo também o pai. Parece estarmos no Céu. Será que minha mãe está aqui
vendo?
E Maria, em um sussurro, que termina com um beijo, responde:
– Sim, querido. Ela está aqui. E está aprendendo a oração.
– E eu? Também eu a aprenderei?
– Ela a sussurrará à tua alma, enquanto estiveres dormindo, e eu a repetirei durante o dia.
O menino deixa cair para trás a cabecinha morena sobre o peito de Maria e fica assim, enquanto Jesus
abençoa com a solene bênção mosaica de sempre.
Depois todos se levantam, indo cada um para a sua própria casa. Só Lázaro é que acompanha ainda
Jesus, entrando com Ele na casa de Simão, para estar mais algum tempo com Ele. Entram também todos os
outros. Iscariotes se coloca em um canto meio escuro, contrariado. Não tem coragem de ficar perto de
Jesus, como fazem os outros…
206.15 Lázaro se congratula com Jesus. Ele diz:
– Oh! Sinto muito vê-lo partir. Mas estou mais contente do que se te tivesse visto partir anteontem!
– Por que, Lázaro?
– Porque me parecias estar muito triste e cansado… Não falavas nada e pouco sorrias…Ontem e hoje te
tornaste o meu santo e doce Mestre e isto me dá muita alegria…
– Eu o era, mesmo estando calado…
– Tu o eras. Mas Tu és serenidade e palavra. Nós queremos isto de Ti. É nestas fontes que bebemos a
nossa força. E agora estas fontes pareciam estar secas. Nossa sede nos estava atormentando. Tu estás
vendo como até os pagãos ficaram espantados e vieram procurá-las…
Iscariotes, do qual se havia aproximado João de Zebedeu, se atreve a perguntar:
– É isso. Já também a mim me haviam feito esta pergunta. Porque eu estava junto à fortaleza Antônia,
esperando ver-te.
– Tu sabias onde Eu estava, responde Jesus curtamente.
– Eu sabia. Mas eu pensava que não terias decepcionado a quem Te estava esperando. Também os
romanos ficaram decepcionados. Não sei por que fizeste assim…
– E és tu que me fazes esta pergunta? Não estarás tu a par das intenções do Sinédrio, dos fariseus e de
outros ainda, a meu respeito?
– Por quê? Terias tido medo?
– Medo não. Náusea. 206.16No ano passado, quando Eu estava sozinho, um só contra todo mundo, que nem
mesmo sabia se Eu era um Profeta, Eu mostrei que não tinha medo. E tu foste uma conquista daquela
minha coragem. Eu fiz que se ouvisse a minha voz contra todo mundo que urrava contra Mim; fiz ouvir a
voz de Deus a um povo que se tinha esquecido dela; purifiquei a Casa de Deus das sujeiras materiais que
estavam nela, não esperando que pudesse limpá-la das bem mais graves sujeiras morais que se tinham
aninhado nela, porque Eu não ignoro o futuro dos homens, mas para cumprir o meu dever, pelo zelo da
Casa do Senhor Eterno, transformada em uma praça barulhenta de revendedores, usurários e ladrões e
para sacudir do torpor aqueles que muitos séculos de desleixo sacerdotal tinham feito cair num letargo
espiritual. Foi o toque de recolher para o meu povo, a fim de levá-lo para Deus. Este ano Eu voltei.. E pude
ver que o Templo é sempre o mesmo… E que está pior ainda. Já não é mais uma espelunca de ladrões, mas
um lugar de conspiração. Depois se tornará sede do delito, depois um lupanar e finalmente, será destruído
por uma força maior que a de Sansão, esmagando uma casta indigna de ser chamada santa. É inútil falar
naquele lugar, no qual, eu peço que te lembres, foi-me proibido falar. Povo desleal! Povo envenenado em
seus chefes, povo que ousa interditar que a Palavra de Deus fale em sua Casa! Foi-me proibido. Eu me calei
por amor aos pequeninos. Não é ainda a hora de me matarem. Muitos precisam de Mim, e os meus
apóstolos ainda não estão fortes para receberem em seus braços a minha prole: o Mundo. Não chores, mãe,
perdoa, tu que és boa, a necessidade que teu Filho tem de falar a Verdade, que Eu sou, a quem quer ou
pode iludir-se… Eu me calo… Mas, ai daqueles por causa dos quais Deus se cala!… Ó mãe, ó Margziam, não
choreis!… Isto Eu vos peço. Ninguém chore.
Mas, na realidade todos mais ou menos estão chorando e com muita dor.
Judas, pálido como um morto, em sua veste amarela e vermelha com listras, ainda se atreve a falar com
uma voz choramingante e ridícula:
– Podes crer, Mestre, que eu estou assombrado e entristecido… Não sei o que queres dizer… Eu não
estou sabendo de nada… É verdade que eu não vi nenhum do Templo. Eu rompi relacionamento com
todos… Mas, se Tu estás dizendo, deve ser verdade…
– Judas, não viste nem Sadoc?
Judas inclina a cabeça, murmurando:
– É um amigo… Como tal eu o vi. E não como um dos do Templo…
206.17 Jesus não lhe dá resposta. Mas vira-se para Isaac e para João de Endor, aos quais faz ainda
recomendações sobre o trabalho deles.
Entretanto, as mulheres estão confortando Maria, que está chorando, e ao menino, que também chora,
ao ver Maria chorar.
Até Lázaro e os apóstolos estão entristecidos. Mas Jesus vai até eles. Ele retomou o seu doce sorriso e,
enquanto abraça a mãe e acaricia o menino, diz:
– E agora Eu vos saúdo, a vós que ficais. Porque amanhã cedo nós partiremos. Adeus, Lázaro. Adeus,
Maximino. José, Eu te agradeço por toda cortesia feita à minha mãe e às discípulas enquanto aguardavam
por mim. Agradeço por tudo. Adeus, Lázaro, abençoa também à Marta em meu nome. Logo Eu voltarei.
Vem, minha mãe, vamos descansar. E tu também, Maria e Salomé, se é que vós também quereis ir.
– Com certeza, nós iremos –dizem as duas Marias.
– Então, para a cama. A paz esteja com todos. Deus esteja convosco!
Jesus faz um gesto de bênção e sai, segurando pela mão o menino e abraçado com sua mãe…
A permanência em Betânia terminou.
[66] que são é em um acréscimo nosso; eu disse em 172.5/8; foi citado em Tobias 12,7.
[67] Eu disse em 172.5/8; está escrito em Tobias 12,7.
[68] foi feita rainha como se narra em Ester 2, 1-18. Ao personagem de Ester se faz alusão ainda em 136.2 e 414.1.
207. Na gruta de Beléma mãe
relembra o nascimento de Jesus.
3 de julho de 1945.
207.1 Deixada Betânia, ao primeiro riso da aurora, Jesus vai rumo a Belém com sua mãe, com Maria de
Alfeu e com Salomé, acompanhado pelos apóstolos e tendo à sua frente o menino, que encontra motivo de
alegria em tudo o que vê: as borboletas que despertam, os passarinhos que cantam ou vão dando bicadas
pela estrada, as flores que resplendem com os diamantes das orvalhadas, o aparecimento de um rebanho no
qual há muitos cordeirinhos berrando. Passada a torrente que fica ao sul de Betânia, toda uma espuma
risonha por entre as pedras, a comitiva se dirige para Belém por entre duas séries de colinas, todas verdes
com suas oliveiras e vinhedos, com pequenos campos dourados pelas messes, que já começaram a ser
colhidas. O vale está fresco e o caminho bastante cômodo.
Simão de Jonas põe-se à frente, unindo-se ao grupo de Jesus e pergunta:
– Por aqui se vai a Belém? João diz que na outra vez o fizera por outra estrada.
– É verdade –diz Jesus–. Mas é porque estávamos vindo de Jerusalém. Indo-se por aqui o caminho é mais
curto. No sepulcro de Raquel, que as mulheres querem ver, nós nos separaremos, como decidistes há
tempo. Depois, nos reuniremos em Betsur, onde minha mãe deseja permanecer.
– É verdade, nós o dissemos… Mas seria muito bonito, se fôssemos todos juntos… especialmente com a
mãe… porque a Rainha de Belém e da Gruta é ela e ela sabe tudo muito bem… Ouvindo as palavras dela,
seria outra coisa, aí está.
Jesus sorri, olhando para Simão, que insinuou delicadamente o seu desejo.
– Que gruta, pai? –pergunta Margziam.
– A gruta onde nasceu Jesus.
– Oh! Que bonito! Eu também vou lá.
– Seria bonito de fato! –dizem Maria de Alfeu e Salomé.
– Muito bonito!… Seria voltar atrás… ao tempo em que o mundo não te conhecia, é verdade, mas
também ainda não te odiava… Seria encontrar de novo o amor dos simples, que não souberam senão crer e
amar, com humildade e fé… Seria depor este peso de amargura, que me oprime o coração, quando sei como
és odiado e colocar esse peso lá no teu berço .. Lá deve ter ficado ainda a doçura do teu olhar, da tua
respiração, daquele teu sorriso incerto, lá… e fariam caríicias ao meu coração… Ele está tão amargurado!…
Maria fala baixo, com saudade e tristeza.
– Então, iremos lá, minha mãe. Guia-me, tu. Hoje és tu Mestra e eu a criança que aprende.
– Oh! Filho! Não! Tu és sempre o Mestre!
– Não, minha mãe. Simão de Jonas falou bem. Na terra de Belém, a Rainha és tu. É lá o teu primeiro
castelo. Maria, da estirpe de Davi, guia este pequeno povo por entre tuas moradas.
Iscariotes ia falar, mas resolve calar-se. Jesus, que nota aquele ato e o interpreta, diz:
– Se alguém, por cansaço ou por outro motivo, não quiser ir, prossiga por Betsur livremente.
Mas ninguém diz nada.
207.2 Prosseguem a estrada, através do fresco vale que vai na direção leste-oeste. Depois se dirigem
levemente para o norte, a fim de costearem uma colina, que vem aparecendo à frente e alcançam assim o
caminho que de Jerusalém vai para Belém, justamente perto do cubo, encimado por uma pequena cúpula
redonda, que é a da tumba de Raquel. Todos se aproximam dela para rezar com reverência.
– Foi aqui que paramos eu e José… Está tudo igual ao que era naquele tempo. Só a estação é que era
diferente. aquele era um dos dias frios do mês de Casleu. Havia chovido e as estradas tinham ficado
alagadas. Depois, veio um vento gelado, pois talvez de noite tivesse caído geada. As estradas estavam
duras, mas todas com sulcos feitos pelos carros e pelas multidões, e eram como um mar cheio de buracos e
o meu burrinho se fatigava muito…
– E tu não, minha mãe?
– Oh! eu Te tinha comigo!… –e olha para Ele com um rosto tão feliz, que comove.
Depois toma de novo a palavra:
– A tarde já vinha chegando e José estava muito preocupado… Um vento cada vez mais forte vinha se
levantando, um vento que cortava… As pessoas se apressavam a caminho de Belém, esbarrando umas nas
outras, e muitos diziam palavras injuriosas ao meu burrinho, porque ele ia muito devagar, procurando os
lugares onde podia pôr os cascos… Mas é que ele parecia que soubesse que havias Tu… e que estavas
dormindo o teu último sono no berço do meu seio. Fazia frio… Mas o que eu sentia era um forte calor. Eu
percebia que vinhas vindo. Que vinhas vindo? Poderias dizer: “Eu estava lá, minha mãe, com nove meses.”
Sim. Mas agora era como se estivesses vindo dos Céus. Os Céus se abaixavam, se abaixavam sobre mim e
eu via os esplendores deles… Eu via incendiar-se a Divindade, em sua alegria pelo teu próximo nascimento
e aqueles fogos me penetravam, me incendiavam também, me levavam para fora de mim mesma… de
tudo… Frio… vento… pessoas… nada! Eu só via a Deus… De vez em quando, com esforço, eu conseguia
fazer voltar o meu espírito por sobre a terra, e sorria para José, que tinha medo de que o frio e a fadiga me
fizessem mal e ia guiando o burrinho com cuidado, para que ele não tropeçasse, e me envolvia de novo na
coberta, para que não me resfriasse… Mas nada podia acontecer. As sacudidas, eu nem percebia. Parecia-
me estar andando por um caminho estrelado, por entre nuvens cândidas e sendo sustentada por anjos… E
eu sorria… Primeiro para Ti… Eu olhava para Ti, através da barreira da carne e estavas dormindo com os
punhozinhos fechados em teu leitozinho de rosas vivas, meu botão de lírio… Depois, sorria para o esposo,
que estava tão aflito, tão aflito, para encorajá-lo. Depois para as pessoas, que ainda não sabiam estarem já
respirando na áura do Salvador…
Paramos junto à tumba de Raquel para dar um pouco de descanso ao burrinho e para comer um pouco
de pão com azeitonas, que eram as nossas provisões de pobres. Mas Eu não tinha fome. Não podia ter fome.
Era alimentada pela minha alegria. 207.3Pusemo-nos de novo a caminho. Vinde. Vou mostrar-vos onde
encontramos o pastor… Não tenhais medo de que eu me engane. Eu revivo aquela hora e encontro de novo
cada lugar, porque vejo tudo através de uma grande luz angélica. Talvez a multidão angélica está de novo
aqui, invisível aos olhos dos corpos, mas visível para as almas, com seu luminoso candor e tudo se revela,
tudo é mostrado. Eles não podem enganar-se, e me vão conduzindo…para alegria minha e para alegria
vossa. Aí está: daquele campo para este, veio Elias com as suas ovelhas e José foi pedir-lhe leite para mim.
E ali, naquele prado, nós paramos, enquanto ele tirava o leite quente e restaurador, e dava seus conselhos a
José.
Vinde, vinde… Ali está, ali está o caminho do último pequeno vale, antes de Belém. Fomos por este,
porque a estrada principal, nas proximidades da cidade, estava numa grande confusão de pessoas e
cavalgaduras…
207.4 Eis Belém! Oh! A querida! Querida terra de meus pais, que me deste o primeiro beijo de meu Filho!

Tu te abriste, boa e fragrante, como o pão do qual tens o nome[69], para dar o Pão Verdadeiro ao mundo que
está morrendo de fome! Tu me abraçaste como uma mãe, tu, na qual ficou o amor materno de Raquel, Terra
Santa da Belém davídica, primeiro Templo do Salvador, a Estrela da Manhã, nascida de Jacó, a fim de
mostrar a rota dos Céus a toda a humanidade. Olhai para ela e vede como está bela nesta primavera! Mas,
mesmo então, ainda que os campos e os vinhedos estivessem despojados, ela estava bela! Um leve véu de
geada voltava a brilhar, a tremeluzir sobre os galhos nus, e eles se tornavam como que polvilhados com
diamantes, como se estivessem enrolados em um impalpável véu do Paraíso. Cada casa soltava fumaça por
sua chaminé, pois a hora da ceia estava próxima. E a fumaça, subindo pela encosta até o perímetro,
mostrava a cidade, ela também coberta com um véu… Tudo era casto, recolhido à espera de… de Ti, de Ti,
Filho. A terra percebia que estavas vindo. E até os belemitas Te teriam percebido, porque maus eles não
são, por mais que não o acrediteis. Eles não podiam hospedar-nos… Nas casas de Belém se comprimiam,
arrogantes como sempre, surdos e soberbos, aqueles que ainda hoje o são, e esses tais não poderiam
perceber a tua presença… Quantos fariseus, saduceus, herodianos, escribas, essênios havia lá! Oh! O serem
eles uns obcecados agora, é coisa que já vem de terem sido duros de coração então. Eles fecharam o
coração ao amor para com a sua pobre irmã naquela tarde… e permaneceram, e permanecem nas trevas.
Eles rejeitaram a Deus, desde então, rejeitando o amor ao próximo.
207.5 Vinde. Vamos à gruta. Entrar na cidade, é inútil. Os maiores amigos do meu Menino já não estão
mais lá. Fica a natureza amiga, com suas pedras, com o seu rio e sua lenha para fazer fogo. A natureza, que
percebeu a vinda do seu Senhor… Então, vinde sem temor. Vai-se por aqui… Lá estão os escombros da
Torre de Davi. Oh! querida por mim mais do que um palácio. Benditas ruínas! Bendito rio! Bendita planta
que, como por milagre, foste despojada pelo vento de tantos ramos, para que pudéssemos achar lenha e
fazer fogo!
Maria desce, ligeira, para a gruta, atravessa o pequeno rio por uma pinguela que serve de ponte, corre
pelo descampado que está diante dos escombros, cai de joelhos na entrada da gruta, inclina-se e beija o
chão. Acompanham-na todos os outros. Estão comovidos… O menino, que não a deixa um instante, parece
estar ouvindo uma maravilhosa história e os seus olhinhos negros bebem as palavras e os gestos de Maria,
não perdendo um só deles.
Maria torna a levantar-se, e entra, dizendo:
– Tudo, tudo como naquele tempo!… Só que naquele tempo era noite… José fez fogo quando entrei.
Então, só então, descendo do burrinho é que eu senti como estava cansada e gelada… Um boi me saudou e
eu fui até ele para sentir um pouco de calor e para descansar sobre o feno… Aqui, onde estou, José
espalhou mais feno, para fazer-me uma cama e o enxugou para mim, como para Ti, meu Filho, diante das
chamas do fogo aceso naquele canto… pois José era bom como um pai, em seu amor de esposo-anjo… E,
segurando-nos pelas mãos, como dois irmãos perdidos no escuro da noite, comemos nosso pão e queijo.
Depois, ele foi avivar o fogo, tirando o seu capote para tapar uma abertura… Na verdade, desceu um véu
diante da glória de Deus, que descia dos Céus, e eras Tu, meu Jesus… e eu fiquei sobre o feno, ao calor dos
dois animais, envolvida em meu manto e com a capa de lã… Ó meu querido esposo! Naquela hora de ânsia e
de temor na qual eu estava sozinha, diante do mistério da primeira maternidade, que é plena do
desconhecido para uma mulher, e para mim, naquela única maternidade, plena também de mistério, como
teria sido o de ver o Filho de Deus saindo da carne mortal, ele, José, foi para mim como uma mãe, foi um
anjo… foi o meu conforto… então e sempre…
207.6 Depois veio o silêncio e o sono que envolveram a José… para que ele não visse aquilo que era para
mim o beijo diário de Deus… E, para mim, depois de um intervalo para as necessidades humanas,
sobrevêm-me as ondas desmesuradas de um êxtase, vindas do mar do Paraíso e que me elevavam de novo
para cima das cristas luminosas, cada vez mais altas, levando-me para cima, mais para cima consigo, para
um oceano de luz, de luz, de alegria, de paz, de amor, até que me encontrei perdida no mar de Deus, do seio
de Deus… Uma voz veio ainda da terra: “Estás dormindo, Maria?” Oh! Ela vinha de tão longe! Parecia mais
um eco, uma lembrança da terra! E tão fraca, que a alma não se agita, e nem sei com que palavras respondi
enquanto subo, vou subindo ainda por este abismo de fogo, de felicidade infinita, de uma precognição de
Deus… até Ele, Ele… Oh! Mas és Tu que nasceste, ou sou Eu que nasci dos Trinos fulgores, naquela noite?
Fui eu que Te dei, ou foste Tu que me deste o sopro da vida? Eu não sei…
Depois a descida, de um coro a outro coro, de um astro a outro astro, de um estrato a outro estrato,
doce, lenta, feliz, tão plácida como uma flor levada para o alto por uma águia e depois solta no ar e vai
descendo lentamente nas asas do ar, tornando-se mais bela por uma gota de chuva que brilha como uma
pedra preciosa, por um pedacinho do arco-íris arrebatado ao céu, esse reencontra no torrão natal… É o
meu diadema: Tu! Tu sobre o meu coração…
Sentada aqui, depois de ter-te adorado de joelhos, eu te amei. Finalmente, Te pude amar sem as
barreiras da carne, e daqui eu me movi para levar-te ao amor daquele que, como eu, era digno de estar
entre os primeiros a amar-te. E aqui, entre duas rústicas colunas, eu te ofereci ao Pai. E foi aqui que
descansaste, pela primeira vez, sobre o coração de José… Depois, eu te enfaixei e, juntos, nós te colocamos
aqui… Eu te balançava, enquanto José enxugava o feno ao fogo e o conservava quente, para depois pô-lo
sobre o teu peito e, em seguida, ficávamos te adorando nós dois, assim, inclinados sobre Ti como agora,
bebendo a tua respiração, olhando até onde o aniquilamento do amor pode conduzir, chorando as lágrimas
que certamente no Céu se choram, pela alegria inexaurível de ver sempre a Deus.
207.7 Naquela sua recordação, Maria ia e vinha, mostrando os lugares, ardente em seu amor, com um
brilho de lágrimas em seus olhos azuis e um sorriso de alegria em sua boca, inclinando-se de verdade sobre
o seu Jesus, que agora está sentado ali sobre uma pedra grande, enquanto Ela vai-se lembrando de tudo e o
beija por entre os cabelos, chorando e adorando-o, como então…
– E depois, os pastores, que entravam aqui para adorar, com seu bom coração e com o grande suspiro da
terra, que aqui com eles entrava, com aquele odor de humanidade, de rebanhos e de feno. Fora e por toda
parte, os anjos para adorar-Te com seu amor, os cantos deles que a criatura humana é incapaz de repetir, e
com o amor dos Céus, com aquele ar de Céu que entrava com eles, que eles traziam junto com os seus
fulgores… Foi o teu nascimento bendito!…
Maria ajoelhou-se ao lado do Filho, e está chorando de emoção, com a cabeça inclinada sobre os joelhos
dele. Ninguém, por algum tempo, tem coragem de falar. Mais ou menos emocionados, os presentes olham
ao redor, uns para os outros, como se, por entre as teias de aranha e as pedras escabrosas, eles esperassem
ir vendo pintada a cena, que havia sido descrita…
Maria recobra a coragem e diz:
– Eis. Eu falei do infinitamente simples e infinitamente grande nascimento do meu Filho. Com meu
coração de mulher, mas não com a sabedoria de mestre. Outra coisa não há, porque foi a maior coisa da
Terra, escondida por debaixo das aparências mais comuns.
207.8 – Mas, e o dia seguinte? E depois dele? –perguntam muitos, entre os quais as duas Marias.
– No dia seguinte? Oh! Muito simples! Fui a mãe que dá leite ao seu menino, que o lava e enfaixa, como
fazem todas as outras mães. Eu esquentava a água buscada no rio, sobre o fogo que era aceso ali fora, a fim
de que a fumaça não fizesse aqueles dois olhinhos azuis chorar e, depois, no canto mais abrigado da gruta,
em uma velha gamela, eu lavava o meu Filho e o enrolava em panos frescos. Depois, eu ia ao rio lavar os
paninhos e os estendia ao sol… Em seguida, alegria das alegrias, eu punha Jesus ao peito e Ele sugava,
tornando-se mais corado e feliz. No primeiro dia, à hora do maior calor, fui sentar-me ali fora, para vê-lo
bem. Aqui a luz não entra direta, mas se filtra, e a luz e as chamas dão às coisas uma aparência esquisita.
Eu fui lá para fora, ao sol, e olhei para o Verbo Encarnado. Foi então que a mãe conheceu o Filho, a Serva
de Deus ao seu Senhor. Aí eu fui mulher e adoradora…. Depois, a casa de Ana… aqueles dias junto ao teu
berço, os teus primeiros passos, a primeira palavra. Mas isso foi depois, a seu tempo… E nada, nada foi
igual à hora do teu nascimento… Só no retorno para Deus reencontrarei aquela plenitude…
– Mas… deixar para partir assim, na última hora! Que imprudência! Por que não esperar? O decreto
previa também uma data mais afastada, para os casos excepcionais, como os de nascimentos e doenças.
Alfeu falou assim… –disse Maria de Alfeu.
– Esperar? Oh! Não. Naquela tarde em que José trouxe a notícia, eu e Tu, meu Filho, saltamos de
alegria. Era o chamado, porque aqui, somente aqui é que devias nascer, como os Profetas haviam dito. E
aquele decreto de improviso foi como um céu piedoso para José, pois acabava até com a lembrança da
suspeita dele. Era aquilo que eu esperava para Ti, para ele, para o mundo judaico e para o mundo futuro,
até o fim dos séculos. Estava dito[70]. E, como estava dito, aconteceu. Esperar! Pode a esposa aceitar uma
espera para o sonho de suas núpcias? Por que esperar?
– Mas… por tudo o que podia acontecer… –diz ainda Maria de Alfeu.
– Eu não tinha medo nenhum. Eu descansava em Deus.
– Mas, tu sabias que tudo teria sido assim?
– Ninguém me havia dito isso, nem eu pensava nisso, tanto assim, que para encorajar José, eu deixei que
ele ficasse dúvidando, e a vós também, sobre se já era, ou não, o tempo do nascimento. Mas eu sabia, isto
eu sabia, que na festa das Luzes nasceria a Luz do mundo…
– E tu, então, minha mãe, por que não acompanhaste Maria? E o pai, por que não pensou nisso? Vós
também devíeis ter vindo aqui. Hoje não viemos todos? –pergunta sério Judas Tadeu.
– Teu pai tinha decidido que viria depois das Encênias, e disse isto ao irmão dele. Mas José não quis
esperar.
– Mas tu, ao menos… –retruca ainda Tadeu.
– Não a censures, Judas. De comum acordo, achamos justo descer um véu sobre o mistério deste
nascimento.
– Mas José sabia que ele teria acontecido com aqueles sinais? Se nem tu sabias, como podia ele saber?
– Nós não sabíamos de nada, a não ser que Ele devia nascer.
– E então?
– E então a Sabedoria divina nos guiou assim, como era justo. O nascimento de Jesus, sua presença no
mundo, devia aparecer privada de tudo o que fosse extraordinário e provocasse a ira de satanás… E vós
estais vendo como o ódio atual de Belém para com o Messias é uma consequência da primeira manifestação
de Cristo. O rancor do demônio usou da revelação para fazer derramar sangue e, pelo sangue derramado,
fazer nascer o ódio. 207.9 Estás contente, Simão de Jonas, tu que não dizes nada e quase nem respiras mais?
– Muito… e a tal ponto que me parece que estou fora do mundo, em um lugar ainda mais santo, do que
se estivesse do outro lado do véu do Templo… A tal ponto, que agora que eu te vi neste lugar, e com a luz
daquele tempo, eu fico temeroso por haver-te tratado com respeito, sim, mas como uma grande mulher,
sempre mulher. Agora… agora eu não terei coragem de te chamar como antes: “Maria.” Antes, eras para
mim a mamãe do meu Mestre. Agora, agora que eu te vi sobre as alturas daquelas ondas celestes, que eu te
vi como Rainha, eu miserável, faço assim, como um escravo que sou –e se joga no chão para beijar os pés de
Maria.
Nesse momento, Jesus lhe fala:
– Simão, levanta-te. Vem cá, bem perto de Mim.
Pedro vai, então, para a esquerda de Jesus, porque Maria está à direita.
– Que é que somos agora nós? –pergunta Jesus.
– Nós? Ora, somos Jesus, Maria e Simão.
– Está bem. Mas, quantos somos?
– Três, Mestre.
– Portanto, é uma trindade. Um dia[71] no Céu à Divina Trindade veio um pensamento: “Agora chegou o
tempo de o Verbo ir à terra”, e, em uma palpitação de amor, o Verbo veio à terra. Separou-se, pois do Pai e
do espírito Santo. Veio trabalhar na terra. No Céu, os Dois que ficaram contemplaram as obras do Verbo e
se conservaram mais unidos do que nunca, para assim unirem o Pensamento e o Amor, a fim de ajudar a
Palavra que trabalha na terra. Um dia virá em que do Céu baixará esta ordem: “Já é tempo para que Tu
voltes, porque tudo já se cumpriu”, e então, o Verbo voltará aos Céus, assim (e Jesus dá um passo para trás,
deixando Maria e Pedro onde eles estavam) do alto dos Céus, contemplará as obras dos dois que ficaram na
terra, os quais, por um movimento santo, se unirão mais do que nunca, para unirem o poder e o amor, e
fazer deles um meio para que se cumpra o desejo do Verbo: A redenção do mundo através do perpétuo
ensinamento de sua Igreja. E o Pai, Filho e espírito Santo farão dos seus raios uma corrente para ajuntar
cada vez mais os dois que ficaram na terra: minha mãe, é o amor; e tu, o poder. Deverás, pois, tratar bem
Maria como rainha, sim, mas não como um escravo. Que te parece?
– A mim me parece o que Tu quiseres. Eu estou aniquilado. Eu, ficar com o poder? Oh! Se é que eu sou o
poder, então sim é que eu me devo apoiar nela! Oh! Mãe do meu Senhor, não me abandones nunca, nunca,
nunca…
– Não tenhas medo. Eu te terei sempre pela mão, do mesmo modo como fazia com o meu Menino, até
que Ele se tornou capaz de andar sozinho.
– E depois?
– E depois eu te socorrerei com a oração. Coragem, Simão. Nunca duvides do poder de Deus. Dele não
duvidei eu nem José. E nem tu deves dúvidar. Deus dá sua ajuda a cada hora, desde que permaneçamos
humildes e fiéis. 207.10Agora, vinde aqui fora, à beira do rio, à sombra daquela árvore boa que, se o verão já
tivesse chegado, vos estaria dando agora suas maçãs, além de sua boa sombra. Vinde. Vamos comer, antes
de nos pormos a caminho… Para onde, meu Filho?
– Para Jala. Fica perto. E amanhã iremos a Betsur.
Assentam-se à sombra da macieira, e Maria se coloca justamente na frente do tronco robusto.
Bartolomeu olha fixamente para ela, tão jovem e animada pela evocação feita, recebendo do Filho o
alimento que Ele abençoou, sorrindo para Ele com uns olhos cheios de amor, murmura:
– “A sombra dele eu me assentei, e seu alimento é doce ao meu paladar.”
Judas Tadeu é quem lhe responde:
– É verdade. Ela está lânguida de amor. Mas não se há de dizer que sob uma macieira é que ela foi
despertada.
– E, por que não, meu irmão? Que sabemos nós dos segredos do Rei? –responde Tiago de Alfeu.
E Jesus, sorrindo:
– A nova Eva foi concebida pelo Pensamento, aos pés da árvore do Paraíso, para que com o seu sorriso e
com o seu pranto, afugentasse a serpente e desintoxicasse a intoxicada fruta. Ela se fez assim a árvore do
fruto redentor. Vinde, amigos e comei dele. Porque nutrir-se alguém de sua doçura é nutrir-se com o mel de
Deus.
– Mestre, responde a um meu antigo desejo de saber: O Cântico, que nós estamos citando[72] tem a
previsão dela? –pergunta Bartolomeu, enquanto Maria está ocupada com o menino, e conversando com as
mulheres.
– Desde o principio do Livro se fala dela, e dela se falará nos livros que vierem depois, até que a palavra
do homem se mude no sempiterno hosana da eterna Cidade de Deus –e Jesus se vira para as mulheres.
– Como se percebe que é de Davi! Que sabedoria, que poesia! –diz Zelotes, falando com os
companheiros.
207.11 – Aí está, intervém Iscariotes que, estando ainda sob a impressão do dia anterior, pouco está
falando, mas procurando situar-se naquela liberdade em que vivia antes: Aí está. Eu quereria entender por
que é mesmo que precisou haver a Encarnação. Somente Deus pode falar, de modo a derrotar satanás. Só
Deus pode ter o poder de redenção. E disto eu não duvido. Mas, eis que me parece que o Verbo podia
aviltar-se menos do que tudo o que Ele fez, ao nascer como todos os homens, ao sujeitar-se às misérias da
infância, e assim por diante. Não teria Ele podido aparecer em forma humana, já adulto, com a aparência
de adulto? Ou, então, se Ele queria mesmo uma mãe, que a escolhesse, mas adotiva, como Ele fez para o
pai? Parece que uma vez eu lhe fiz estas perguntas, mas Ele não me respondeu amplamente, se é que não
me estou lembrando.
– Faze-lhe a pergunta agora, uma vez que estamos no assunto
–diz Tomé.
– Eu, não. Eu o fiz ficar inquieto e ainda não me sinto perdoado. Perguntai-lho vós por mim.
– Mas, perdão! Nós aceitamos tudo sem tantos esclarecimentos e logo nós é que devemos fazer-lhe
perguntas? Isso não é justo! –responde-lhe Tiago de Zebedeu.
– Que é que não é justo? –pergunta Jesus.
Fazem silêncio, e depois Zelotes se faz intérprete de todos, e repete as perguntas de Judas de Keriot e as
respostas dos outros.
– Eu não conservo rancor. É a primeira coisa que Eu digo. Faço as observações que devo, sofro e perdôo.
Isto para quem está com medo, que é ainda o fruto de sua perturbação. E, quanto à Encarnação real por
Mim feita, Eu digo: “É justo que tenha sido assim.” No futuro muitos e muitos cairão em erros sobre minha
Encarnação, atribuindo-me justamente as formas errôneas que Judas quereria que Eu tivesse assumido. Um
homem aparentemente robusto, quanto ao corpo, mas na realidade um fluido, como um jogo de luz,
segundo o qual, eu poderia ser ou deixar de ser carne. E então seria ou não seria uma maternidade a de
Maria. Na verdade, Eu sou carne e, em verdade, Maria é a mãe do Verbo Encarnado. Se a hora do
nascimento não foi mais que um êxtase, é porque Ela é a nova Eva, sem o peso da culpa e sem a herança do
castigo. Mas não foi um aviltamento para Mim o repousar nela. Por ventura, estava aviltado o maná, por
estar fechado no Tabernáculo? Não. Pelo contrário, ele estava sendo honrado por estar naquela morada.
Outros dirão que Eu, não sendo Carne real, não sofri e não morri, durante o tempo em que estive na terra.
Sim. Não podendo eles negar que Eu aqui estive, negarão a minha Encarnação real ou a minha Divindade
verdadeira. Não, porque, em verdade, Eu sou um com o Pai eternamente e estou unido a Deus como carne,
uma vez que o Amor tenha atingido o inatingível em sua Perfeição, revestindo-se de Carne para salvar a
carne. A todos esses erros quem responde é a minha vida inteira, que se sujeitou a tudo o que é comum
entre os homens, exceto ao pecado. Nascido, sim, Eu sou dela. E para o vosso bem. Vós não sabeis quanto
fica temperada a Justiça, desde que Ela tenha a mulher como sua colaboradora. Eu te fiz contente, Judas?
– Sim, Mestre.
– Faze o mesmo comigo!
Iscariotes inclina a cabeça confuso e talvez também comovido por tão grande bondade.
A permanência se prolonga, à sombra fresca da macieira. Uns estão dormindo, outros cochilando. Mas
Maria volta à gruta e Jesus a acompanha…

[69] o pão do qual tens o nome, porque Belém significa casa do pão.
[70] estava dito em Miquéias 5,1-2; o decreto era o edital do recenseamento como foi visto em 27.2.
[71] Um dia... Com o objetivo de estabelecer um paralelismo entre Trindade celeste (Pai, Filho, Espírito Santo) e Trin
[72] estamos citando de Cântico dos cânticos 2,3-5; 8,5.
208. Maria Ssma. revê o pastor Elias e
com Jesus vai à casa de Elisa em Betsur.
4 de julho de 1945.
208.1 – Quase com certeza os encontraremos, se nos conservarmos andando por algum tempo na estrada
que vai para Hebron. Eu vos peço isto: Andai dois a dois, à procura deles, pelos caminhos das montanhas.
Daqui até às piscinas de Salomão, depois de lá até Betsur. Nós vos acompanharemos. Esta é a zona de
pastagem deles –diz o Senhor aos doze, e eu compreendo que Ele está falando dos pastores.
Os apóstolos se apressam em andar, cada um com o companheiro de sua preferência e só a dupla quase
inseparável de João e André é que não se une, porque os dois vão a Iscariotes e lhe dizem:
– Eu vou contigo.
E Judas responde:
– Sim, vem André. É melhor assim, João. Eu e tu seremos dois que já conhecemos os pastores. É melhor,
então que vás com qualquer outro.
– Que venha comigo o rapaz –diz Pedro, deixando Tiago de Zebedeu que, sem protestar, vai com Tomé,
enquanto Zelotes vai com Judas Tadeu, Tiago de Alfeu com Mateus e os inseparáveis Filipe e Bartolomeu,
vão por conta deles. O menino fica com Jesus e com as Marias.
A estrada é fresca e bela entre os montes todos verdes, por causa das diferentes culturas, dos bosques e
dos prados. Encontram-se os rebanhos que, à luz dourada da aurora, vão às pastagens.
A cada batida do cincerro, Jesus para de falar e olha. Depois, pergunta aos pastores se Elias, o pastor
belemita, está por aqueles lugares. Compreendo que Elias já está sendo chamado “o belemita.” Ainda que
outros pastores também o sejam, ele é, por direito, ou por caçoada, “o belemita.” Mas ninguém sabe. Eles
respondem, parando o rebanho, e cessando de tocar suas rústicas flautas.
Os jovens, quase todos, tem estas flautas toscas feitas de caniço, e isso faz que Margziam fique
extasiado, até que um pastor velho e bom resolve dar-lhe a de seu neto, dizendo:
– Ele fará outra para si.
E Margziam sai dali feliz com o seu instrumento a tiracolo, ainda que, por enquanto não saiba tocar.
208.2 – Eu gostaria muito de encontrá-los! –exclama Maria.
– Nós os encontraremos com certeza. Nesta estação, estão sempre perto de Hebron.
O menino se interessa por estes pastores, que viram Jesus Menino e faz mil perguntas a Maria, que lhe
explica tudo, com muita paciência e bondade.
– Mas, por que foi que os castigaram? Eles só tinham feito o bem
–pergunta o menino, depois que lhe foram contadas as desventuras por que eles passaram.
– Porque muitas vezes o homem comete erros, acusando os inocentes de um mal que na realidade foi
feito por outro. Mas, visto que eles eram bons, e souberam perdoar, Jesus os ama muito. É preciso saber
perdoar sempre.
– Mas, todos aqueles meninos que foram mortos, como fizeram para perdoar a Herodes?
– Eles são pequenos mártires, Margziam, e os mártires são santos. Eles não somente perdoam ao seu
carrasco, mas o amam, porque ele abre para eles o Céu.
– Então, eles estão no Céu?
– Não, por enquanto não. Mas estão no Limbo, para serem a alegria dos Patriarcas e dos Justos.
– Por quê?
– Porque disseram, quando chegaram com suas almas tingidas de sangue: “Eis-nos aqui, nós somos os
arautos do Cristo Salvador. Alegrai-vos, vós que estais esperando, porque Ele já está na terra.” E todos os
amam porque eles são os portadores dessa boa nova.
– Meu pai me disse que a boa nova é também a palavra de Jesus. Então, quando meu pai for para o
Limbo, depois de a ter dito sobre a terra, e eu também irei para lá, seremos nós também amados?
– Tu não irás para o Limbo, pequenino.
– Por quê?
– Porque Jesus já terá voltado para os Céus, e os terá aberto, e todos os bons, na hora de sua morte, irão
logo para o Céu.
– Eu vou ser bom, assim prometo. E Simão de Jonas? Ele também, não é? Porque eu não quero ficar
órfão pela segunda vez.
– Ele também, com certeza. Mas no Céu ninguém é órfão. Lá temos Deus. Deus é tudo. Nem aqui nós
somos órfãos. Porque o Pai está sempre conosco.
– Mas, Jesus, naquela bela oração que Tu me ensinaste de dia e minha mãe de noite, diz: “Pai nosso que
estais nos Céus.” Nós ainda não estamos no Céu. Como, então podemos estar com Ele?
– Porque Deus está em toda parte, meu filho. Ele vela sobre o menino que nasce e sobre o velho que
morre. O menino que está nascendo neste momento, no ponto mais remoto da terra, tem consigo os olhares
e o amor de Deus, e os terá até à morte.
– Ainda que ele seja mau, como Doras?
– Sim. Ainda que o seja.
– Mas Deus, que é bom, como pode amá-lo, se Doras é tão mau e faz chorar ao meu velho pai?
– Deus olha para ele com desgosto e com dor. Mas, se ele se arrependesse. Ele lhe diria o que o pai da
parábola disse ao filho arrependido. 208.3Tu deverias rezar para que ele se arrependa e…
– Oh! Não, mãe! Eu rezarei para que ele morra! –diz impetuosamente o menino.
Por mais que esta saída seja pouco… angélica, o ímpeto do menino é tão veemente e tão sincero, que os
outros têm que fazer esforço para não rir.
Mas depois Maria assume de novo a sua doce seriedade de Mestra:
– Não, meu querido. Isto não deves fazer a um pecador. Deus não te ouviria e até olharia para ti com
severidade. Nós devemos desejar para o próximo, ainda que ele seja muito mau, o maior bem. A vida é um
bem porque dá ao homem o modo de adquirir méritos aos olhos de Deus.
– Mas, se alguém é mau, o que adquire são pecados.
– Reza-se para que ele se torne bom.
O menino fica pensando… mas não entende muito esta lição sublime e conclui:
– Doras não se tornará bom, mesmo se eu rezar. Ele é mau demais. Ainda que comigo rezassem todos os
meninos mártires de Belém, ele não se tornaria bom. Não sabes que… não sabes que… que um dia ele
bateu com uma barra de ferro em meu velho pai, porque o encontrou sentado na hora do trabalho? Meu pai
não podia levantar-se, porque se sentia mal, e ele… bateu nele até deixá-lo quase morto e depois lhe deu
ainda um pontapé no rosto… Eu vi tudo, porque estava escondido atrás de uma sebe… Eu tinha ido até lá
porque ninguém me tinha levado pão já havia dois dias, e eu estava com fome…E u tive que fugir de lá, para
não me perceberem, pois eu estava chorando, ao ver meu pai sendo tratado daquele modo, com a barba
cheia de sangue, e como se estivesse morto… Eu sai de lá chorando e pedindo pão… mas aquele pão, eu o
encontrei sempre foi aqui… aquele tinha sabor do sangue e das lágrimas de meu pai e também das minhas,
e de todos os que são torturados, e não podem amar a quem os tortura. Eu, gostaria de bater em Doras,
para que ele sentisse o que são as batidas, eu gostaria de deixá-lo sem pão, para que ele ficasse sabendo o
que é a fome, e quereria fazê-lo trabalhar, ao ardor do sol, ou na lama, sob as ameaças dos vigilantes e sem
comer, para que ele ficasse sabendo o que está dando aos pobres… Eu não lhe posso querer bem, porque…
ele está matando a meu santo pai, e eu, se não vos encontrasse, de quem haveria de ser depois?
O menino, tomado por uma dor convulsiva, grita e chora, tremendo, agitado, com seus pequenos punhos
fechados, dando socos no ar, já que não pode dá-los no carrasco.
As mulheres estão assombradas e comovidas, e procuram acalmá-lo. Mas ele está, de fato, numa crise
de dor, e não ouve o que lhe falam. Ele grita:
– Eu não posso, não posso amá-lo e perdoá-lo. Eu o odeio, eu o odeio por todos, o odeio!…
Causa dó e medo. 208.4É a reação da criatura que sofreu demais.
E Jesus diz:
– Este é o maior dos delitos de Doras: levar um inocente a odiar…
Mas depois Ele toma nos braços o menino, e lhe diz:
– Escuta, Margziam. Queres tu um dia ficar com a mamãe, o pai, os irmãozinhos e o velho pai?
– Siiim…
– Nesse caso não podes odiar ninguém. No Céu não entra quem odeia. Não podes rezar, por enquanto,
por Doras? Está bem: não rezes, mas também não odeies. Sabes o que tens que fazer? Não deves nunca
virar-te para trás, para ficar pensando no passado…
– Mas meu pai, que está sofrendo, não está no passado…
– É verdade. Mas olha, Margziam experimenta rezar assim: “Pai nosso, que estais nos Céus, pensa Tu
naquilo que é desejo meu…” Verás que o Pai te escuta do melhor dos modos. E, mesmo que matasses Doras,
que farias? Perderias o amor de Deus, o Céu, a união com teu pai e tua mãe, e não livrarias das penas o
velho que amas. Dize-lhe: “Tu sabes como eu amo ao velho pai e como amo a todos aqueles que são
infelizes. Pensa nisso, Tu que tudo podes.” Como? Então não queres pregar a Boa Nova? Mas ela fala de
amor e de perdão! Como podes tu dizer a um outro: “Não odeies. Perdoa”, se tu não sabes amar e perdoar?
Deixa, deixa que o bom Deus aja, e verás como tudo Ele predispõe bem. Tu farias isso?
– Sim, porque te quero bem.
Jesus beija o menino e o põe no chão. O episódio fica superado e a estrada também.
208.5 Os três grandes vales escavados na rocha do monte, obra verdadeiramente grandiosa, brilham na
superfície limpidíssima e na queda d’água que cai do primeiro vale para o segundo, e deste para o terceiro,
que já é, na verdade um pequeno lago, que depois canaliza a água por vários tubos, que vão para cidades
distantes. Mas, pela umidade do solo nesta área, desde a nascente até às piscinas, e destas até o solo, todo
o monte é de uma fertilidade incrível, e possue flores mais compostas do que aquelas selvagens, rindo pelas
encostas verdes, juntamente com ervas perfumadas e raras. Parecem até terem sido aqui semeadas pelo
homem, como as flores dos jardins e as ervas perfumadas que, com o sol que as aquece, espargem pelo ar
seus aromas de canela, cânfora, cravo, alfazema e outros odores sutis, fragrantes, fortes, suaves, numa
fusão maravilhosa dos melhores odores da terra. Eu diria que é uma sinfonia de perfumes, porque
realmente é o poema das ervas e das flores, em suas cores e fragrâncias.
Todos os apóstolos estão sentados à sombra de uma árvore carregada de grandes flores brancas cujo
nome eu não sei, com enormes campânulas de esmalte branco, penduradas, balançando ao menor sopro de
vento e, a cada sopro, é uma onda de fragrância que se espalha. Não sei qual é o nome desta árvore. Pela
flor, ela me faz lembrar daquele arbusto que há na Calábria e ao qual lá dão o nome de “bottaro”, mas
certamente no tronco não, porque esta aqui é uma árvore alta, de tronco robusto, mas não um arbusto.
Jesus os chama, e eles acorrem.
– Encontramos quase de repente José, que estava voltando de uma feira. Esta tarde estarão todos em
Betsur. Nós aqui nos reunimos, chamando-nos em altas vozes, e aqui ficamos nesta sombra fresca –explica
Pedro.
– Que lugar bonito! Parece um jardim! Entre nós estávamos discutindo se é mesmo natural, ou não, e
uns teimam em uma opinião e outros na outra –diz Tomé.
– A terra da Judeia tem essas maravilhas –diz Iscariotes, que em tudo se sente inevitavelmente levado a
ensoberbecer-se, até com as flores e as ervas.
– Sim, mas…eu creio que se, por exemplo, o jardim de Joana de Tiberíades ficasse abandonado e se
tornasse selvagem, a Galileia também teria a maravilha de esplendidas rosas, por entre ruínas
–diz Tiago de Zebedeu.
– E não estás errado. Nesta zona é que ficavam os jardins de Salomão, tão célebres no mundo daquele
tempo como os seus palácios. Talvez foi aqui que ele sonhou o Cântico dos Cânticos, aplicando à Cidade
Santa todas as belezas que cresceram aqui por sua vontade
–diz Jesus.
– Então, eu tinha razão! –diz Tadeu.
– Tinhas razão. Sabes, Mestre? Ele estava citando Eclesiastes, reunindo a ideia dos jardins à dos vales, e
terminava dizendo[73]: “Mas ele percebeu que tudo é vaidade, e nada dura sob o sol, a não ser a Palavra do
meu Jesus” –diz o outro irmão Tiago.
– Eu te agradeço. Mas agradeçamos também a Salomão, sejam ou não dele as flores originais
certamente são dele os tanques que fornecem água às ervas e aos homens. Seja ele bendito. Vamos agora
até aquele grande roseiral desgrenhado, que já foi uma galeria florida, entre uma árvore e outra. Lá nós
pararemos. Já estamos quase com meio caminho feito.
208.6 … E a viagem recomeça, por volta da hora nona, quando as sombras se alongam, a partir de cada
árvore desta zona tão bem cultivada por toda parte. Parece que o caminho vai passando por um imenso
jardim botânico, porque todas as espécies de plantas, as que têm troncos ou frutas, ou as que são
ornamentais estão aqui representadas. Os trabalhadores da terra estão por todos os lados, mas não se
interessam pela comitiva, que vai passando. Aliás, não é uma só. Pois outros grupos de hebreus estão pela
estrada, de volta das festas pascais.
A estrada é muito boa, apesar de ter sido aberta por entre os montes, e os panoramas, sempre variados,
tiram a monotonia da viagem. Pequenos rios e torrentes são como vírgulas de prata, que escorrem e vão
escrevendo palavras, que depois eles cantam em seus mil meandros, que se entrecortam, que mergulham
pelos bosques abaixo ou vão esconder-se em cavernas, para depois saírem delas ainda mais belos. Parece
que estão brincando com as plantas e as pedras, como crianças alegres.
Até Margziam, agora, já tendo ficado mais calmo, está brincando, tentando tocar o seu instrumento,
para imitar os passarinhos. Mas, na verdade, os dele não são cantos, mas lamentos muito desafinados, que
me parecem ser muito desagradáveis aos mais exigentes da comitiva, isto é, Bartolomeu, por sua idade e
Judas de Keriot por muitos motivos. Mas nenhum deles fala claramente e o menino continua a emitir seus
assobios, pulando para cá e para lá. Só duas vezes é que ele mostra ao longe, algum lugarejo aninhado
entre os bosques, e diz: “Será o meu?” tornando-se então muito pálido.
Mas Simão, que o conserva perto de si, responde:
– O teu está muito longe daqui. Vem, vamos tentar apanhar aquela flor e levá-la para Maria –e assim o
distrai.
208.7 O pôr do sol começa, quando Betsur já vem aparecendo sobre a colina e, quase de repente, na
estrada secundária, que tomaram para virem, eis que os rebanhos dos pastores vêm chegando com os
pastores. Mas, quando Elias vê que Maria também está lá, levanta os braços com espanto e fica nessa
posição, nem podendo crer no que está vendo.
– A paz esteja contigo, Elias. Sou eu mesma. Havia sido prometido a ti, mas em Jerusalém não foi
possível ver-nos…Não pense mais nisso. Agora nos estamos vendo –diz Maria com doçura.
– Oh! Mãe, mãe!…
Elias nem acha o que dizer. Depois, finalmente encontra:
– Agora! Minha Páscoa eu vou fazê-la agora… É o mesmo, e melhor ainda.
– Mas, é verdade, Elias. Nós fizemos uma boa venda. E agora bem que podemos matar um cordeirinho.
Oh! Sede bem-vindos à nossa pobre mesa… –Pede Levi, e também José.
– Nesta tarde estamos cansados. Deixai para amanhã. Escutai. Conheceis uma certa Elisa casada com
Abraão de Samuel?
– Sim. Ela está na casa dela em Betsur. Mas Abraão morreu e, no ano passado morreram os filhos dele.
O primeiro morreu com uma doença que durou poucas horas, e ninguém ficou sabendo de que foi que ele
morreu. O outro foi-se indo lentamente e nada cortou a doença. Nós lhe dávamos o primeiro leite de uma
cabra, porque os médicos diziam que isso era bom para o doente, e ele bebia muito leite que lhe era levado
por todos os pastores, pois sua pobre mãe o tinha mandado procurar com todos os que tivessem no rebanho
alguma cabra de primeiro leite. Mas não adiantou nada. Quando voltamos à planície, o jovem já nem se
alimentava mais. E, quando voltamos, no mês de Adar, já havia duas luas que ele tinha morrido.
– Pobre de minha amiga! No Templo ela me queria bem. Era-me parenta num antepassado. Era tão boa.
Saiu para ir casar-se com Abraão, ao qual estava prometida desde pequena, dois anos antes de mim! E
lembro quando ela veio fazer a oferta do seu primogênito ao Senhor. Ela mandou me chamar, não a mim
sozinha, mas me quis depois sozinha, por mais tempo… E agora, ela é que está sozinha…Oh! Preciso
apressar-me em ir consolá-la! Vós, ficai aqui. Eu vou com Elias, e entrarei sozinha. A dor exige respeito ao
redor de si…
– Nem Eu posso ir, mãe?
– Tu podes sempre. Mas os outros… Nem mesmo tu, pequenino. Seria uma dor. Vem, vem, Jesus!
– Esperai-nos na praça do povoado. Procurai um abrigo para a noite. Adeus –ordena Jesus a todos.
208.8 E, sozinhos com Elias, Jesus e a mãe vão até uma espaçosa casa, toda fechada e silenciosa, a cuja
porta o pastor bate com o seu cajado. Uma serva mostra o rosto por uma janelinha, perguntando quem é.
Maria vai à frente e diz:
– Maria de Joaquim e seu Filho, de Nazaré. Vai dizer isto à tua patroa.
– É inútil. Ela não quer ver ninguém. Quer chorar até morrer.
– Experimenta.
– Não. Eu sei como ela me repele, quando procuro distraí-la. Não quer saber de ninguém, nem ver a
ninguém, não quer falar com ninguém. Ela fica falando com a lembrança dos filhos.
– Vai, mulher, eu te ordeno. Dize a ela: “Aí está a pequena Maria de Nazaré, aquela que no Templo era
como tua filha…” Verás que ela me quer.
A mulher lá se vai, sacudindo a cabeça.
Maria explica ao Filho e ao pastor:
– Elisa era muito mais velha do que eu. Ficava esperando no Templo a volta do seu esposo, que tinha ido
ao Egito ver uns negócios de herança e por lá ficou até uma idade bem avançada. Ela tem quase dez anos
mais do que eu. As mestras costumavam dar às pequeninas algumas discípulas mais adultas, que as
guiassem… e ela foi a minha companheira-mestra. Era boa e… aí vem vindo a mulher.
De fato, a criada vem correndo, admirada, e abre um portão bem largo:
– Entra, entra –diz ela.
E depois, em voz baixa:
– Bendita sejas se a fizeres sair daquele quarto.
Elias se despede, e entram Maria e o Filho.
– Mas este homem, na verdade… Por piedade! Tem a idade de Levi…
– Deixa-o entrar. É meu Filho e a consolará mais do que eu.
A mulher encolhe os ombros e vai na frente, pelo longo vestíbulo de uma bela, mas triste casa. Tudo aí
está limpo, mas tudo parece morto…
208.9 Uma mulher alta, mas que vem vindo inclinada e com vestes escuras, vem adiante, na penumbra.
– Elisa! Querida! Eu sou Maria! –diz Maria, correndo ao seu encontro e abraçando-a.
– Maria? Tu… Pensava que tu também tinhas morrido. Tinham-me contado… quando foi? Não me lembro
mais… Eu estou com um vazio aqui na cabeça… Tinham-me dito que tu estavas morta, com muitas outras
mães, depois da vinda dos Magos. Mas quem foi que me disse que eras a mãe do Salvador?
– Talvez os pastores…
– Oh! Os pastores!
A mulher tem uma explosão de pranto cheio de aflição:
– Não me fales naquele nome. Ele me faz lembrar a última esperança para a vida de Levi… E, no
entanto… sim… um pastor me falou do Salvador e eu matei meu filho, levando-o ao lugar onde se dizia que
estava o Messias, perto do Jordão. Mas lá não havia ninguém… e o meu filho voltou a tempo para morrer…
O cansaço, o frio…eu o matei… Mas eu não quis ser uma assassina. Diziam-me que Ele, o Messias, curava
as doenças… e eu lá fui para conseguir a cura. Agora meu filho me acusa de tê-lo matado…
– Não, Elisa. És tu que pensas assim. Escuta. Eu creio que teu filho, ao contrário, foi quem me tomou
pela mão e me disse: “Vai à casa de minha mãe. Leva-lhe o Salvador. Eu estou melhor aqui do que na terra.
Mas ela só dá ouvidos ao seu pranto e não pode ouvir as palavras que eu lhe sussurro por entre beijos, a
pobre da minha mãe, que está possuída por um demônio, que a tenta para levá-la ao desespero, porque
quer nos ver separados. Enquanto que, se ela se resignar e crer que Deus tudo faz para um bom fim,
estaremos unidos para sempre com o pai e com o irmão. Jesus pode fazer isso.” E eu vim… com Ele… Não o
queres ver?…
Maria assim falou, conservando sempre entre os seus braços a desventurada, beijando-a sobre os
cabelos cinzentos e com uma doçura que só ela pode ter.
– Oh! Se fosse verdade! Mas, por que, por que, então, Daniel não foi a ti, para dizer-te que viesses
antes?…Mas, quem foi que me disse, há tempo, que tu estavas morta? Não me lembro…não me lembro…
também por isso eu fiquei esperando, para ir ao Messias. Mas me haviam dito que Ele tinha morrido, Ele, tu
e todos em Belém…
– Não fiques pensando em quem disse isto. 208.10Vem, olha, aqui está o meu Filho. Vem até Ele. Faze que
fiquem contentes teus filhos e tua Maria. Sabes que estávamos sofrendo ao te vermos assim?
E a leva para Jesus que se tinha colocado num ângulo escuro e só agora vem adiante, iluminado agora
por uma luz que a empregada pendurou em um alto escrínio.
A pobre mãe levanta a cabeça… e ali vejo que Elisa esteve também sobre o Calvário, entre as piedosas
mulheres. Jesus lhe estende as mãos com um gesto de convite, todo cheio de amor. A desventurada reluta
um pouco, depois lhe confia as suas mãos e, por fim, de repente, se abandona ao peito de Jesus, gemendo:
– Dize-me, dize-me que eu não tenho culpa da morte de Levi! Dize-me que eles não estão perdidos para
sempre! Dize-me que logo estarei com eles!…
– Sim, sim. Escuta. Eles estão cheios de uma grande alegria, neste momento em que tu estás em meus
braços. Dentro de pouco tempo, eu irei até eles e que devo dizer-lhes então: Que tu não te conformas com o
Senhor? É isto que Eu devo dizer? As mulheres de Israel, as mulheres de Davi, tão fortes, tão sábias, será
que vão ser desmentidas por ti? Não. Tu estás sofrendo, mas é porque ficaste sofrendo sozinha. A tua dor e
tu. Tu e a dor. Não podes suportar assim. Não te lembras das palavras[74] de esperança a respeito daqueles
que a morte nos tomou? “Eu vos trarei de vossos sepulcros e vos conduzirei para a terra de Israel. E vós
ficareis sabendo que Eu sou o Senhor, quando Eu tiver aberto as vossas tumbas e vos tiver tirado dos
vossos sepulcros. Quando Eu tiver infundido em vós o meu espírito, vós tereis vida.” A terra de Israel, para
os justos que dormiram no Senhor, é o Reino de Deus. Eu o abrirei e o darei aos que o estão esperando.
– E ao meu Daniel também? E também ao meu Levi?… Ele tinha tanto medo da morte!… Não podia nem
pensar em ficar longe de sua mamãe. Por isto eu queria morrer e ir ao lado dele para o sepulcro…
– Mas no sepulcro eles não estavam com a sua parte viva. Lá estavam as coisas mortas, que não te
podiam ouvir. Eles estão no lugar de espera…
– Mas existe mesmo? Oh! Não fiques escandalizado comigo. A minha memória lá se foi com o pranto!
Estou com a cabeça cheia pelo rumor do pranto e dos estertores dos filhos. Que estertores! Que estertores!
Eles me dissolveram o cérebro. Não tenho nada mais do que aqueles estertores aqui dentro…
– Mas Eu vou colocar-te aí dentro as palavras da vida. Semearei a Vida, porque Eu sou a Vida, onde está
o fragor da morte. Lembra-te do grande Judas Macabeu, que quis que se oferecesse um sacrifício pelos
mortos, pensando corretamente que eles estão destinados a ressurgir, e que é preciso acelerar a chegada
da paz para eles, por meio de oportunos sacrifícios. Se Judas Macabeu não tivesse tido a certeza da
ressurreição, teria ele rezado, ou feito rezar pelos mortos? Mas, ao contrário, como está escrito[75], ele
pensou como é grande a recompensa que está reservada àqueles que morrem piedosamente, como
certamente aconteceu com os teus filhos… Vês, pois, como estás dizendo sim? Portanto, não desesperes.
Mas santamente reza pelos teus mortos a fim de que os seus pecados sejam cancelados, antes da minha ida
a eles. E, se assim for feito, irão comigo para o Céu. Porque Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida, e
conduzo, e digo a Verdade e dou a Vida a quem crê em minha Verdade, e me segue. Dize-me: Os teus filhos
acreditavam na vinda do Messias?
– Com certeza, Senhor. Eles haviam aprendido de mim esta crença.
– E Levi acreditava que era possível a cura por minha vontade?
– Sim, Senhor. Nós esperávamos em Ti, mas… não adiantou. Ele morreu desconsolado, depois de ter
esperado tanto…
O pranto da mãe recomeça, mais calmo, mas mais desolado em sua calma, do que estava, em sua fúria
de antes.
– Não digas que não adiantou. Quem crê em Mim, ainda que tenha morrido, viverá para sempre… 208.11A
tarde vem caindo, mulher. Eu vou reunir-me aos meus apóstolos. Eu te deixo a minha mãe…
– Oh! Fica Tu também!… Tenho medo que, indo-te embora, me assalte de novo aquele tormento….
Começando apenas a acalmar-se a tempestade, ao som das tuas palavras…
– Não tenhas medo! Tens Maria contigo. Amanhã, Eu virei de novo. Eu tenho que ir dizer algumas coisas
aos pastores. Posso dizer a eles que venham para a tua casa?
– Oh! Sim. Eles vinham até aqui no ano passado, por causa do meu filho… Atrás da casa há um jardim e,
depois dele, há um pátio rústico. Eles podem ir para lá, como faziam, para recolher os seus rebanhos…
– Está bem. Eu virei. Sê boa. Lembra-te de que Maria no Templo estava confiada a ti. Eu também a
confio, por esta noite.
– Sim. Fica tranquilo. Eu cuidarei dela,… Tenho que ir pensar na ceia dela, no seu descanso… Há quanto
tempo, não penso nestas coisas! Maria, queres dormir no meu quarto, como fazia Levi em sua doença? Eu,
no leito do filho e tu no meu. E, então, me parecerá estar ouvindo novamente a sua respiração… Ele ficava
sempre segurando a minha mão…
– Sim, Elisa. Mas antes vamos falar de muitas coisas.
– Não. Tu estás cansada. Precisas dormir.
– Tu também.
– Oh! Eu! Há meses que não tenho dormido… Fico chorando… chorando… Já nem sei fazer outra coisa!
– Mas nesta noite vamos rezar, depois vamos para a cama, e tu dormirás… Dormiremos de mãos dadas,
nós duas também. Vai, pois, meu Filho, e reza por nós…
– Eu vos abençôo. A paz esteja convosco e com esta casa!
E Jesus vai com a empregada, que está assombrada e só fica repetindo:
– Que milagre, Senhor! Que milagre! Depois de tantos meses, ela falou, ela pensou! Oh! Que coisa
admirável!… Diziam que ela ia morrer louca… E eu ficava com pena dela, porque é muito boa.
– Sim, é boa, e por isso Deus a ajudará. Adeus, mulher. A paz esteja contigo também.
Jesus sai pela estrada semi-escura, e tudo termina.
[73] dizendo como em Qoèlet 1,2-3.
[74] palavras que estão em Ezequiel 37,12-14.
[75] como está escrito em 2 Macabeus 12,43-46.
209. A fecundidade da dor no sermão
de Jesus perto da casa de Elisa em Betsur.
5 de julho de 1945.
209.1 A notícia de que Elisa se decidiu sair de sua tristeza trágica deve ter se espalhado pelo povoado a tal
ponto que, quando Jesus, acompanhado pelos apóstolos e discípulos, vai indo para a casa de Elisa,
atravessando o povoado, muitas pessoas o estão observando atentamente e até perguntam a um e a outro
dos pastores a respeito dele, e por que é que nunca veio a este lugar, e sobre quem são aqueles que estão
na companhia dele, e quem é aquele menino, e aquelas mulheres, e que remédio foi que Ele deu à Elisa,
para livrá-la das trevas da loucura assim de repente, mal Ele apareceu e que fará lá, e que dirá… E quem
quer fazer mais perguntas, que as faça.
A última pergunta feita é esta:
– Não poderíamos ir lá nós também?
À qual respondem os pastores:
– Isto nós não sabemos. É preciso perguntar ao Mestre. Ide a Ele.
– E se Ele nos tratar mal?
– Ele não trata mal nem aos pecadores. Ide, ide. Ele ficará contente, se fordes.
209.2 É um grupo de pessoas, mulheres e homens, adultos na maior parte, da idade de Elisa, que trocam
ideia s uns com os outros, depois andam para a frente e vão aproximando de Jesus, que está falando com
Pedro e Bartolomeu, e o chamam, meio receosos:
– Mestre…
– Que quereis? –pergunta Bartolomeu.
– Falar com o Mestre para perguntar-lhe…
– Venha a vós a paz. Que perguntas quereis fazer-me?
Eles criam coragem, diante do sorriso dele e dizem:
– Nós todos somos amigos da Elisa e dos da casa dela. Ouvimos dizer que ela está curada. Quereríamos
vê-la. E ouvir-te falar. Podemos ir lá?
– Ouvir-me falar, sim, com certeza. Mas irdes vê-la, não, meus amigos. Fazei este sacrifício pela amizade
que tendes a ela, fazei o sacrifício da vossa curiosidade. Pois é também isso que estais sentindo. Tende
respeito por uma grande dor que não pode ser perturbada.
– Mas ela não está curada?
– Ela está voltando para a claridade…Mas, quando acaba uma noite, será que chega de repente o meio-
dia? E, quando se acende um fogão que estava apagado, achais vós que as labaredas se levantarão fortes,
num instante? Pois assim acontece com Elisa. Porque, se um vento inesperado se lança sobre a pequena
chama, que começou a surgir, ele não a apaga? Portanto, tende prudência. A mulher está uma ferida só. Até
a amizade pode exasperá-la, e ela tem necessidade de repouso, de silêncio, de uma solidão que não seja
mais trágica, como a em que estava ontem, e sim uma solidão resignada, a fim de que ela encontre a si
mesma.
– E, então, quando será que a poderemos ver?
– Mais depressa do que pensais. Porque ela já está a caminho da saúde. Mas, se soubésseis como é
difícil sair daquelas trevas! Elas são piores do que a morte. E, quem sai delas, dentro de si sente a vergonha
de ter estado nelas e de que os outros o fiquem sabendo.
– És médico?
– Sou o Mestre.
Chegaram diante da casa.
Jesus se dirige aos pastores:
– Ide para o pátio. Quem quiser pode ir convosco. Mas ninguém faça barulho lá, e não vá além do pátio.
Tomai cuidado, vós também, diz Ele aos apóstolos, a fim de que tudo assim se faça. E vós (fala à Salomé e à
Maria do Alfeu), cuidai do menino para que não faça barulho. Adeus.
Jesus bate à porta, enquanto os outros dobram a esquina, e entram por uma ruazinha, indo para onde
deviam ir.
209.3 A serva abre a porta. Jesus entra, recebendo as repetidas inclinações dela.
– Onde está tua patroa?
– Com tua mãe… e, imagina! Já desceu até o jardim! É uma coisa! Uma coisa incrível! E, ontem de tarde,
ela veio até à sala das refeições…Estava chorando, mas veio. Eu gostaria de vê-la tomar também alimentos,
em vez de ficar tomando aqueles pingos de leite, como costuma fazer, mas ainda não consegui!
– Ela os tomará. Não fiques insistindo. Sê paciente, até em teu amor para com a patroa.
– Sim, meu Salvador. Eu farei tudo o que mandares.
Eu creio que, de fato, se Jesus mandasse àquela mulher fazer as coisas mais estranhas, ela as faria sem
discutir, pois de tal modo ela se persuadiu de que Jesus é Jesus, e de que tudo o que Ele faz é bom. No
momento, ela o está acompanhando através de uma vasta horta-jardim, cheia de fruteiras e de flores. Mas,
se as fruteiras cuidaram de si mesmas, para se vestirem de folhas e de flores, para fazerem que suas
frutinhas vinguem e aumentem em volume, as pobres plantas que dão flores e que não recebem cuidados
há mais de uma ano, viraram um pequeno e emaranhado matagal, onde as plantas mais delicadas e de
pouca altura ficaram sufocadas sob o peso das mais fortes. Canteiros, caminhos, tudo desapareceu em um
único e caótico emaranhado. Só lá no fundo, onde a necessidade da empregada a fez semear verduras e
legumes, é que ainda há um pouco de ordem.
Maria está com Elisa, debaixo de uma trepadeira completamente despojada de folhas, e que deixa cair
até o chão seus sarmentos e gavinhas. Jesus para e fica olhando para sua jovem mãe, que, com arte
finíssima, desperta e dirige a mente de Elisa para coisas bem diferentes das que eram até ontem os
pensamentos da desolada mulher.
A empregada vai até sua patroa, e lhe diz:
– O Salvador chegou.
As mulheres se dirigem para Ele, uma com um doce sorriso e a outra com um rosto cheio de cansaço e
perturbado.
– A paz esteja convosco. Que belo é este jardim…
– Era belo… –diz Elisa.
– E a terra fértil. Olha quantas frutas bonitas estão a caminho de amadurecer! E quantas flores nestas
roseiras! E lá adiante? São lírios?
– Sim, ao redor de um tanque, onde gostavam muito de brincar os meus filhinhos. Naquele tempo estava
tudo em ordem… Agora tudo está arruinado. E já nem parece mais o jardim dos meus filhos.
– Dentro de poucos dias, vai ficar como antes. Eu te ajudarei. Não é, Jesus? Tu me deixas por alguns dias
aqui com Elisa. Temos muito que fazer…
– Tudo o que queres, Eu quero.
Elisa olha para Ele, e murmura:
– Obrigada.
Jesus a acaricia na cabeça encanecida e depois se despede, para ir aos pastores
209.4 As mulheres ficam no jardim, mas, pouco depois, quando ouvem a voz de Jesus, que se espalha pelo
ar tranquilo, saudando os presentes, Elisa, como se estivesse atraída por uma força irresistível, se aproxima
lentamente de uma sebe muito alta, do outro lado da qual está o pátio. Jesus fala primeiro aos três pastores.
Ele está bem perto da sebe, tendo à sua frente os apóstolos e aqueles cidadãos de Betsur, que o
acompanharam. As Marias com o menino estão sentadas a um canto.
Jesus diz:
– Mas vós estais obrigados por contrato, ou podeis sair do serviço a qualquer tempo?
– Eis. Verdadeiramente, somos trabalhadores livres. Mas, deixar o serviço de repente, logo agora que os
rebanhos precisam de tantos cuidados, agora que é difícil encontrar pastores, não nos parece bonito.
– Bonito não é. Mas não é necessário que seja já. Eu vo-lo estou dizendo com tempo, a fim de que tomeis
as providências com justiça. Eu vos quero livres, para unir-vos aos discípulos e para que me ajudeis…
– Oh! Mestre!…
E os três entram num êxtase de alegria.
– Mas, seremos capazes? –dizem eles depois.
– Disso não tenhais dúvida. Agora, está entendido, não o podeis fazer. Mas, logo que o puderdes, uni-vos
a Isaac.
– Sim, Mestre.
– Ide agora para o meio dos outros. 209.5Vou dizer duas palavras ao povo.
E, tendo deixado os pastores, dirige-se à multidão:
– A paz esteja convosco. Ontem Eu ouvi falar de dois infelizes. Um, ainda na aurora da vida e o outro, no
fim: duas almas que choravam na desolação.
Eu chorei com elas em meu coração, vendo quanta dor existe nesta terra e como só Deus pode aliviá-la.
Deus! Só o conhecimento exato de Deus, de sua grande e infinita bondade, da sua constante presença, das
suas promessas. Eu vi como o homem pode ser torturado pelo homem e como pode ser atropelado pela
morte com desolações, nas quais trabalha satanás, para aumentar a dor e para produzir ruínas. Eu disse,
então, a Mim mesmo: “Não devem os filhos de Deus sofrer com esta tortura das torturas. Demos o
conhecimento de Deus a quem não o tem, demo-lo de novo a quem o esqueceu, envolvido nas tempestades
da dor.” Mas Eu vi também que, por Mim só, Eu não basto mais para satisfazer às infinitas necessidades dos
irmãos. E decidi chamar a muitos, em número cada vez maior, a fim de que todos os que têm necessidade
do conforto do conhecimento de Deus o possam ter.
Estes doze são os primeiros. Como meus seguidores, são capazes de conduzir até Mim e, por isso, ao
conforto, todos aqueles que estão encurvados sob os pesos de dores grandes demais. Em verdade, Eu vo-lo
digo: Vinde a Mim todos os que estais angustiados, desgostosos, com o coração ferido, cansados, e Eu
compartilharei da vossa dor e vos darei paz. Vinde, por meio dos meus apóstolos, por meio dos meus
discípulos e discípulas, que cada dia aumentam com novos voluntários. Encontrareis o consolo em vossas
dores, companhia em vossas solidões, o amor dos irmãos para fazer-vos esquecer o ódio do mundo,
encontrareis, como mais alto do que todos, como mais consolador do que todos, como o companheiro
perfeito, o amor de Deus. Não dúvidareis de mais nada. E nunca mais direis: “Para mim, tudo acabou!” Mas
direis: “Tudo para mim está começando, num mundo sobrenatural, que abole as distâncias e acaba com as
separações” e pelo qual os filhos órfãos serão reunidos aos seus pais, levados ao seio de Abraão, e os pais e
as mães, as esposas e os viúvos, reencontrarão os filhos perdidos, e o consorte perdido.
209.6 Nesta terra da Judeia, aqui perto de Belém de Noemi, Eu vos lembro que o amor alivia a dor e traz

alegria. Olhai, vós que estais chorando, para a desolação de Noemi[76], depois que sua casa ficou sem
homens. Ouvi suas palavras de desconsoladas despedidas a Orfa e a Rute: “Voltai daqui para a casa de
vossa mãe. Que o Senhor use de misericórdia convosco, como vós usastes para com aqueles que morreram
e para comigo…” Ouvi as suas cansadas insistências. Já não esperava mais nada da vida aquela que, tempos
atrás, era a bela Noemi, e que agora era a trágica Noemi, esmagada pela dor, só esperava voltar aos
lugares em que tinha sido feliz no tempo de sua juventude, entre o amor do marido e os beijos dos filhos,
para lá morrer. Ela dizia: “Ide, ide. É inútil ficar comigo… Eu estou como morta…Minha vida já não é mais
aqui, e sim, lá na outra vida, onde eles estão. Não sacrifiqueis mais a vossa juventude, ao lado de uma coisa
que está morrendo. Porque realmente eu sou ‘uma coisa’. Tudo me é indiferente. Deus me tomou tudo. Eu
sou uma angústia. E faria a vossa angústia… e esta me pesaria no coração. E o Senhor me pediria contas.
Ele, que tanto já me feriu, porque ter-vos vivas junto de mim já morta, seria um egoísmo meu. Portanto, ide
para vossas mães…”
Mas Rute ficou para consolar aquela dolorosa velhice. Rute havia compreendido que há dores sempre
maiores do que a nossa, e que sua dor de jovem viúva era menor do que a da mulher que havia perdido,
além do marido, os dois filhos; assim como a dor do menino órfão, que se vê obrigado a viver pedindo
esmola, sem receber nunca mais as carícias, e nunca mais os bons conselhos, é bem maior do que a da mãe
privada dos filhos; assim como a dor de quem, por um complexo de motivos, chega a ter ódio do gênero
humano, e vê em cada homem um inimigo, que ele deve temer e do qual se defender é ainda maior do que
as outras dores, porque envolve, não somente a carne, o sangue e a mente, mas até o espírito com os seus
deveres e direitos sobrenaturais, e o leva a perder-se. Quantas mães sem filhos, e filhos sem mãe há neste
mundo! Quantas viúvas sem prole existem, para terem piedade das velhices solitárias! Quantos há, que
ficaram privados de seus amores, para se dedicarem totalmente aos infelizes, segundo a necessidade que
sentem de amor, combatendo assim o ódio, dando a si mesmo, dando sempre amor à Humanidade infeliz,
que está, sempre mais, sofrendo, porque está sempre odiando.
209.7 A dor é cruz, mas também é asa. O luto despoja, mas é para revestir. Levantai-vos, vós que estais
chorando! Abri os olhos, saí de vossos pesadelos, saí das trevas, dos egoísmos! Olhai…O mundo é como uma
terra árida e inculta, onde se chora e se morre. E ele grita: ‘Acudi-me!’ O mundo grita pela boca dos órfãos,
dos doentes, dos que estão sozinhos, dos que não sabem o que fazer, e pelas bocas daqueles que uma
traição ou uma crueldade tornaram prisioneiros do rancor. Ide a estes que estão gritando. Esquecei-vos dos
esquecidos. Fazei a cura dos doentes! Esperai entre os desesperados. O mundo está aberto às boas
vontades de servir a Deus no próximo e de conquistar o Céu: a união com Deus e a reunião com aqueles
pelos quais choramos. Aqui é o campo das competições. Lá está o triunfo.
Vinde. Imitai Rute, estando ao lado de todas as dores. Dizei, vós também: “Eu estarei convosco até à
morte.” E, se vos respondem essas desventuras que se julgam incuráveis: “Não me chameis Noemi, mas
chamai-me Mara, porque Deus me cumulou de amarguras”, persisti. E Eu, em verdade, vos digo que um
dia, pela vossa persistência nessas desventuras ainda exclamarão: “Seja bendito o Senhor, que tirou minha
amargura, minha desolação, minha solidão, por obra de uma criatura, que soube fazer sua dor produzir
frutos bons. Deus a abençoe para sempre, porque ela foi a minha salvadora.”
O ato bom de Rute para com Noemi, pensai nisso, deu ao mundo o Messias, porque de Davi, filho de
Isaí, de Isaí, filho de Obed veio o Messias, como Obed de Booz, Booz de Salmon, Salmon de Naasson,
Naasson de Aminadab, Aminadab de Aram, Aram de Esron, Esron de Farés, e eles vieram para povoar os
campos de Belém, preparando os antepassados do Senhor. Todo ato bom dá origem a grandes coisas nas
quais vós nem pensais. O esforço de alguém contra o seu egoísmo pode provocar uma tal onda de amor, que
é capaz de subir, subir, conservando em sua pureza aquele que a provocou, até o ponto de levá-lo ao pé do
altar, ao coração de Deus.
Deus vos dê a paz.
E Jesus, sem voltar ao jardim pelo portãozinho, aberto na sebe, toma cuidado para que ninguém se
aproxime da sebe, do outro lado da qual se ouve um grande pranto… Só depois quando todos aqueles de
Betsur foram-se embora, distancia-se com os seus, sem perturbar aquele pranto salutar…
[76] Noemi, cuja história, junto com aquela de Rute, está no breve livro de Rute.
210. As inquietações de Judas Iscariotes,
durante a viagem para Hebron.
6 de julho de 1945.
210.1 – Mas eu não creio que queirais fazer uma peregrinação a todos os lugares históricos de Israel, diz,
irônico, Iscariotes, que está discutindo em um grupo em que se encontram Maria de Alfeu e Salomé, além
de André e Tomé.
– Por que não? Quem o proíbe? –pergunta Maria de Cléofas.
– Ora, eu. Minha mãe está me esperando há tanto tempo…
– Ora, vai-te para tua mãe. Nós te buscaremos depois –diz Salomé, e parece acrescentar mentalmente:
“Ninguém ficará triste por tua ausência.”
– Isso não. Eu, por mim, vou com o Mestre. Já não mais está aqui a mãe, como estava previsto. E isso em
verdade não ia ser feito, porque havia sido prometido que ela estaria aqui.
– Ela se deteve em Betsur para uma boa obra. Aquela mulher estava bem infeliz.
– Jesus a podia ter curado de repente, sem precisar fazê-la recuperar-se pouco a pouco. Não sei porque
agora Ele não está gostando mais de fazer seus retumbantes milagres.
– Se Ele fez assim, deve ter suas santas razões –diz calmamente André.
– Ora, essa! É assim que Ele perde os seus prosélitos. 210.2A permanência em Jerusalém! Que desilusão!
Quanto mais há coisas pomposas, mais Ele se esconde na sombra. Tanto que eu esperava poder ver e
combater.
– Perdoa a pergunta… Mas, que querias ver e que querias combater? –pergunta Tomé.
– O quê? A quem? Queria ver suas obras milagrosas, e depois enfrentar quem diz que Ele é falso ou um
endemoninhado. Por que isso se diz, compreendes? dizem que se Belzebu não o sustém, Ele não passa de
um pobre homem. E, visto que o humor caprichoso de Belzebu é conhecido e sabemos que ele se deleita em
pegar e soltar, como faz o leopardo com a sua presa e, visto que os fatos justificam este pensamento, eu fico
inquieto, ao pensar que Ele não faz nada. E, que bela figura nós fazemos! Os apóstolos de um Mestre…todo
doutrina, isso é inegável, mas nada mais que isso.
A brusca parada de Judas depois da palavra “Mestre” nos faz pensar que, depois daquela palavra
quisesse soltar alguma grosseria.
As mulheres estão estarrecidas, e Maria de Alfeu, como parenta de Jesus, lhe fala, então bem claro:
– Eu não me admiro disso, mas, sim, de que Ele ainda te tolere, rapaz!
Mas André, o sempre manso André, perde a paciência e, muito corado, encolerizado, muito semelhante
às vezes ao seu irmão, grita:
– Vai-te embora! E não digas mais de estar fazendo o papel de bobo por causa do Mestre. E quem te
chamou? A nós, Ele nos quis. Mas a ti não. Tiveste que insistir muitas vezes para que te aceitasse. Tu te
impuseste. Não sei quem me segura para não relatar tudo aos outros…
– Convosco não se pode falar nunca. Tem razão os que vos chamam de briguentos e ignorantes
– Eis que também eu não compreendo, de verdade, onde tu encontras o erro do Mestre. Eu não sabia
desses humores caprichosos do Demônio. Pobrezinho! Certamente deve ser um trôpego. Se fosse de uma
inteligência equilibrada, não se rebelaria contra Deus… Mas, eu vou tomar nota –disso caçoa dele Tomé,
para afastar uma tempestade que vem se avizinhando.
– Não brinques, porque eu não estou brincando. Podes, acaso, dizer que em Jerusalém Ele se fez notar?
Afinal, até Lázaro já disse isto.
A risada de Tomé é ribombante. Depois, ainda rindo, e com um riso que já desorientou Iscariotes, Tomé
diz:
– Ele não fez nada? Vai perguntar isso aos leprosos de Siloan e de Hinon. Isto é, em Hinon não se
encontra mais nenhum, porque todos foram curados. Se tu não estavas lá, foi porque estavas com pressa de
ir ficar com os teus… amigos, e por isso é que não sabes, mas isso não impede que, pelos vales de
Jerusalém, e também por muito outros, ecoem os hosanas dos curados –termina, falando sério, Tomé.
210.3 E acrescenta, com severidade:
– Tu estás doente da bílis, meu amigo. E ela te faz sentir gosto amargo, e ver a cor verde por toda parte.
Ela deve elaser em ti uma doença intermitente. E podes crer que é pouco agradável conviver com alguém
como tu. Precisas mudar. Eu não irei dizer nada a ninguém e, se estas boas mulheres me quiserem escutar,
ficarão caladas como eu, e assim também fará André. Mas tu, procura mudar. Não creias que estás
desiludido, porque aqui não há desilusão. Não creias seres necessário porque o Mestre sabe fazer tudo
sozinho. Não queiras tu ser o mestre do Mestre. Se Ele, até para aquela pobre mulher que é Elisa, agiu
assim, é sinal de que estava bem fazer assim. Deixa que as serpentes cuspam à vontade. Não fiques
querendo encarregar-te para servires de mediador entre eles e Ele, e muito menos fiques pensando que te
rebaixas por estares com Ele. Ainda que Ele não curasse nem mesmo um simples resfriado, Ele seria
sempre poderoso. Só sua palavra já é um continuo milagre. E conserva-te em paz. Nós não temos arqueiros
atrás de nós. Chegaremos — Oh! se chegaremos — a convencer o mundo de que Jesus é Jesus. E fica
tranquilo também, porque, se Maria prometeu ir à casa de tua mãe, ela irá. E, nesse ínterim, nós vamos
peregrinando por estas belas regiões, e isto é o nosso trabalho! E trabalho eficiente. Procuramos contentar
também as discípulas, indo com elas ver o túmulo de Abraão, a árvore dele e, depois, o túmulo de Jessé e…
que mais foi que dissestes?
– Dizem que aqui é o lugar onde morreu Adão e onde Abel foi morto…
– São as conhecidas lendas sem sentido!… –resmunga Judas.
– Daqui a um século dirão que a Gruta de Belém é uma lenda, e dirão muitas outras coisas! 210.4E depois,
perdoa-me! Tu quiseste ir àquela caverna fedorenta lá em Endor, a qual, deves estar de acordo comigo, não
fazia parte de nenhuma série de lendas piedosas. Não te parece? E elas vêm aqui, onde se diz que estão o
sangue e as cinzas dos santos. Endor nos deu João de Endor e talvez…
– Boa aquisição, João –zomba Iscariotes,
– Pelo rosto, certamente não o é. Mas na alma pode ser melhor do que nós.
– Mais esta! Com aquele passado que teve!
– Cala-te! O Mestre disse que não devemos ficar recordando.
– É mais cômodo. Eu queria ver, se eu fizesse alguma das coisas que ele fez, se vós não o ficaríeis
recordando!
– Adeus, Judas. É melhor que fiques sozinho. Estás muito inquieto. Pelo menos, se soubesses o que tens!
– O que tenho, Tomé? O que tenho é que estou vendo sermos nós preteridos pelos primeiros que
vieram[77]. O que tenho é que vejo preferir todos a mim. O que eu tenho é que eu noto como se fica
esperando que eu não esteja aqui para se ensinar a rezar. E queres que coisas como estas me agradem?
– Não agradam. Mas, eu te faço observar que, se tu tivesses vindo conosco para a Ceia da Páscoa, lá
estarias tu também conosco no Monte das Oliveiras, quando o Mestre nos ensinou a oração. E não vejo
também em que é que tenhamos sido preteridos pelos primeiros que vieram. Estás falando porque está
conosco aquele inocente? Ou porque conosco está aquele infeliz que é João?
– Por causa de um e do outro. Jesus quase nem nos fala mais. Olha para Ele justamente neste momento:
Lá está Ele, que passa tanto tempo a falar, a falar com o menino. Deve-se esperar ainda um bom tempo,
antes que se possa trazê-lo para o meio dos discípulos! E o outro, não será nunca discípulo. Muito
orgulhoso, culto, endurecido e de más tendências…E, no entanto é “João para cá, João para lá…”
– Pai Abraão, conserva-me a paciência! E em que te parece estar o Mestre preferindo os outros a ti?
– Mas, não estás vendo nem agora? Quando chegou o tempo de deixarmos Betsur, depois de uma
permanência para instruir três pastores, que podiam muito bem ser instruídos por Isaac, eis aí quem é que
Ele deixa com sua mãe! Eu ? Tu? Não. Deixa Simão. Um velho, que quase não fala!…
– Mas o pouco que ele diz, ele o diz sempre bem –retruca Tomé, que agora está sozinho, visto que as
mulheres com André se afastaram, passaram para a frente, apressadas, como para evitar que tenham que
fazer uma parte do caminho todo sozinhas.
210.5 Os dois apóstolos estão tão excitados, que nem percebem que Jesus se aproxima, porque o barulho
dos passos dele fica abafado pela grande quantidade de poeira que há na estrada. Mas, se Ele não fez
barulho, os dois, ao contrário, estão urrando por dez e Jesus ouve. Atrás dele estão Pedro, Mateus, os dois
primos do Senhor, Filipe e Bartolomeu e os dois filhos de Zebedeu, que vão levando, entre os dois,
Margziam.
Jesus diz:
– Disseste bem, Tomé. Simão fala pouco, mas o pouco que fala, ele o diz sempre bem. Ele tem uma
mente pacata e um coração honesto. E, sobretudo, tem uma grande boa vontade. Por isso, Eu o deixei com
minha mãe. É um verdadeiro gentil-homem e, ao mesmo tempo, é alguém que sabe viver, que sofreu muito,
e que está velho. Por isso, — falo porque suponho que haja aqui alguém a quem lhe pareça injusta a minha
escolha — por isso ele era o mais apto para ficar. Eu não podia, Judas, permitir que minha mãe ficasse
sozinha ao lado de uma mulher ainda doente. E era justo que a deixasse. A mãe completará a obra iniciada
por Mim. Mas Eu não podia nem mesmo deixá-la com os meus irmãos, nem com André, Tiago e João e,
menos ainda, contigo. Se não compreendes a razão disso, não sei o que dizer…
– Porque é tua mãe, é jovem, é bela, e o povo…
– Não. As pessoas sempre terão a lama no pensamento, nos lábios e nas mãos, mas especialmente no
coração. As pessoas desonestas, que vêem em todos, os sentimentos que elas têm em si. Mas Eu não estou
tratando da lama delas.. A lama cai por si mesma depois que seca. Mas Eu preferi Simão, porque já é velho
e não teria trazido de novo à lembrança da desolada mulher os seus filhos mortos. Vós jovens os teríeis
trazido de novo à lembrança dela com a vossa juventude… Simão sabe velar, sem fazer perceber sua
presença, não exige nunca nada, sabe compadecer-se, sabe vigiar sobre si mesmo. Eu podia escolher Pedro.
Quem melhor do que ele para ficar perto de minha mãe? Mas ele ainda é muito impulsivo. Vede que Eu
estou dizendo isso na cara dele e ele não se perturba com isso. Pedro é sincero e ama a sinceridade, mesmo
quando fica prejudicado. Eu poderia escolher Natanael. Mas ele nunca esteve na Judeia. Simão, ao
contrário, a conhece bem e será muito útil para guiar a mãe até Keriot. Ele sabe também onde está a tua
casa de campo e a da cidade, e não fará…
210.6 – Mas… Mestre! Mas tua mãe irá mesmo à casa da minha?
– Mas Eu já o disse. E, quando uma coisa se diz, se faz. Nós iremos indo devagar, fazendo paradas para
evangelizar estes povoados. Não queres que Eu evangelize a tua Judeia?
– Oh! sim, Mestre… Mas eu acreditava… eu pensava…
– Mas, mais do que tudo, tu mesmo buscavas teus sofrimentos nas quimeras com que vives sonhando.
Na segunda fase da lua do mês de Ziv, estaremos todos na casa de tua mãe. Nós, quer dizer, também minha
mãe com Simão. Por enquanto, Ela está evangelizando Betsur, cidade da Judeia, assim como Joana está
evangelizando Jerusalém e, com ela, fazem a mesma coisa uma menina e um sacerdote, que já foi leproso,
assim como Lázaro com Marta e o velho Ismael estão evangelizando Betânia, assim como em Juta está
evangelizando Sara e, em Keriot certamente está falando do Messias tua mãe. Não podes absolutamente
dizer que Eu deixo a Judeia sem quem lhe leve as palavras. Mas, ao contrário, eu dou a ela, fechada e
petulante mais que as outras regiões, as palavras mais doces, que são as das mulheres, além das de Isaac,
que é santo, e as de Lázaro, meu amigo. As mulheres, que às palavras unem aquela arte própria da mulher,
que é mestra em levar as almas para o ponto que quer. Não dizes mais nada? Por que é que estás quase
chorando, menino caprichoso? Que te adianta viveres te envenenando com as sombras? Tens ainda motivo
para inquietações? Vamos! Fala…
– Eu sou mau… e Tu és tão bom. Tua bondade sempre me impressiona, porque é sempre tão serena, tão
nova… Eu… eu nada sei dizer, quando a encontro em meu caminho.
– Disseste a verdade. Nem o podes saber. Mas é porque não é nem serena, nem nova. Ela é eterna,
Judas. Ela é onipresente, Judas… 210.7Oh! Estamos chegando às vizinhanças de Hebron, e Maria e Salomé,
com André, nos estão fazendo grandes gestos. Vamos. Estão falando com uns homens. Devem ter-lhes
perguntado onde é que ficam os lugares históricos. Tua mãe rejuvenesce, meu irmão, com esta reevocação!
Judas Tadeu sorri ao Primo, que por sua vez também sorri.
E Pedro:
– Rejuvenescemos todos! Parece-me estar na escola. Mas é uma bela escola! Melhor do que a daquele
resmungão do Eliseu. Lembras-te dele, Filipe? Mas também aprontávamos das nossas! Aquela história das
tribos! “Dizei as cidades das tribos!”… “Não as dissestes em coro… Tornai a dizer…” “Simão, pareces uma
rã adormecida. Ficas sempre atrás dos outros. Começai de novo.” Ai de mim. Eu me havia transformado
todo em nomes de cidades de tempos muito remotos e não sabia mais nada. Mas aqui! Aqui se aprende de
verdade! Sabes, Margziam? Qualquer dia destes, o teu pai vai fazer o exame, pois agora ele sabe…
Todos se riem, enquanto vão indo na direção de André e das mulheres.
[77] pelos primeiros que vieram, aqui e algumas linhas mais abaixo, são, na verdade, os últimos que vieram (primeiros do presente ao passado, últimos do
passado ao presente).
211. Volta a Hebron, terra do Batista.
7 de julho de 1945.
211.1 Todos estão sentados em círculo num pequeno bosque perto de Hebron e, enquanto estão comendo,
conversam uns com os outros. Judas, agora que tem certeza de que Maria irá à casa de sua mãe, voltou às
suas melhores disposições de espírito, e está procurando cancelar a lembrança dos seus maus humores no
trato com os seus companheiros e as mulheres, com mil cortesias. Ele deve ter andado pelo povoado para
fazer compras e conta que encontrou o lugar muito diferente do que era, do ano passado para cá:
– A notícia da pregação e dos milagres de Jesus chegou até aqui. E o povo começou a refletir sobre
muitas coisas. Tu sabes, Mestre, que por estes lados há uma propriedade de Doras? Também a mulher de
Cusa tem aqui nestes montes algumas terras e um castelo que é propriedade dela, um dote que recebeu.
Vê-se que, um pouco ela e um pouco os camponeses de Doras, pois aqui devem estar alguns deles vindos de
Esdrelon, prepararam o terreno. Ele, Doras, mandou que eles se calassem. Mas eles!… Eu acho que, nem
diante dos tormentos, ficariam calados. Causou grande espanto a morte do velho fariseu, sabes? E também
a ótima saúde de Joana, que veio até aqui antes da Páscoa. Ah! E depois, para servir a Ti, esteve também
aqui o amante da Aglaé. Sabes que ela fugiu, pouco depois de termos passado por aqui? E que ele virou um
demônio contra muitos inocentes, para vingar-se? E de tal modo, que os pobres começaram a pensar em Ti
como em um libertador dos oprimidos e te desejam. Quero dizer os melhores…
– Libertador dos oprimidos! De fato Eu sou. Mas num sentido sobrenatural. Ninguém tem uma visão
justa de Mim entre aqueles que me vêem com o cetro e o machado na mão, como um rei ou um justiceiro,
segundo o espírito da terra. Mas é certo que vim para libertar das opressões. Do pecado, a mais grave, das
doenças, das desolações; das ignorâncias e do egoísmo. Muitos terão que aprender que não é justo oprimir
porque a sorte os colocou no alto. Mas que, pelo contrário, se deve usar essa alta posição para elevar quem
está embaixo.
– Lázaro faz isso e também Joana. Mas são dois contra centenas… –diz desoladamente Filipe.
– Os rios não são largos na nascente, como o são em sua desembocadura. Poucas gotas, um fio de água,
mas depois… Há rios que parecem mares em sua foz.
– Como o Nilo, não é? Tua mãe me falava coisas de quando estiveste no Egito. Ela sempre me dizia: “É
um mar, podes crer, um mar verde-azul. Vê-lo, no tempo das cheias, até parece um sonho!”, e ela me falava
das plantas, que pareciam levantar-se da água, e também de todo aquele verdor, que parecia ter nascido da
água, quando ela baixava… –diz Maria de Alfeu.
– Pois bem, Eu vo-lo digo: Como acontece com a torrente do Nilo, que antes era um fio d’água, e depois
se torna o gigante que é, assim também o que agora é um fiozinho na grossura, que se inclina com amor e
por amor para os pequeninos, se tornará em seguida uma grande multidão. Joana, Lázaro, Marta, e depois,
quantos, quantos!
Jesus vê esses que serão misericordiosos para com os irmãos, e sorri, absorto em sua visão.
211.2 Judas confidencia que o sinagogo queria vir com ele, mas que ele não se atreveu a tomar uma
decisão por si mesmo:
– Tu te lembras, João, como ele nos expulsou[78] no ano passado?
– Sim, eu me lembro… Mas digamos isto ao Mestre.
E Jesus, tendo sido interrogado, diz que eles entrarão em Hebron. Se os quiserem, se os chamarem,
pararão lá. Senão, passarão adiante, sem parar:
– Assim, nós veremos também a casa do Batista. De quem ela é agora?
– De quem a quiser, penso eu. Shamai foi-se embora e não voltou mais. Ele levou seus empregados e
móveis. Os moradores, para se vingarem de suas injustiças, derrubaram o muro e a casa agora é de todos.
Pelo menos, o jardim. Lá se reúnem para venerarem o Batista. Dizem que Shamai tenha sido assassinado.
Não sei porque… parece que por causa de mulheres…
– Alguma trama podre da corte, certamente!… –murmura Natanael por entre a barba.
211.3 Levantam-se e vão indo para Hebron, rumo à casa do Batista. Quando estão chegando a ela, vêm
vindo alguns moradores num grupo compacto. Eles vêm vindo para a frente um pouco incertos, curiosos e
meio desconfiados. Mas Jesus os saúda com um sorriso. Eles, então se animam, se dividem, e do grupo sai
aquele sinagogo descortês do ano passado.
– A paz esteja contigo –saúda-o logo Jesus–. Permites que permaneçamos na tua cidade? Estou com
todos os meus discípulos prediletos e com as mães de alguns deles.
– Mestre, mas Tu não guardas rancor de nós, nem de mim?
– Rancor? Não sei o que é isso, nem sei porque o haveria de ter.
– No ano passado eu Te ofendi.
– Ofendeste a um Desconhecido e achavas que tinhas o direito de fazê-lo. Depois compreendeste e te
arrependeste de tê-lo feito. Mas isso é coisa passada. E, assim como o arrependimento anula a culpa, assim
o presente anula o passado. Agora para ti Eu não sou mais o Desconhecido. Que sentimentos tens agora
para comigo?
– De respeito, Senhor. De…desejo…
– Desejo? Que queres de Mim?
– Conhecer-te mais do que eu te conheço.
– Como? De que modo?
– Através da tua palavra e das tuas obras. Chegou até aqui a notícia de Ti, da tua doutrina, do teu poder,
e foi dito que Tu não és alheio à libertação do Batista. Tu não o odiavas, nem procuravas suplantar, a nosso
João!… Ele mesmo não negou que é por causa de Ti que ele voltou a ver o vale do Santo Jordão. Nós
estivemos com ele, falando-lhe de Ti, e ele nos disse: “Vós não sabeis o que foi que rejeitastes. Eu devia
amaldiçoar-vos, mas eu vos perdôo, porque Ele me ensinou a perdoar e a ser humilde. Mas, se não quereis
ser amaldiçoados pelo Senhor e por mim, seu servo, amai ao Messias. E não tenhais dúvidas. O testemunho
dele é este: espírito de paz, amor perfeito, sabedoria superior a qualquer outra, doutrina celeste, humildade
absoluta, potência em cada coisa, humildade total, castidade angelical. Não podeis enganar-vos. Quando
estiverdes respirando a paz ao lado de um homem que se chama Messias, quando beberdes amor, — amor
que dele emana — quando passardes das vossas trevas para a luz e vir que os pecadores são perdoados, as
carnes serdes curadas, então dizei: ‘Este é realmente o Cordeiro de Deus!’” Nós sabemos que as tuas obras
são as de que fala nosso João. Por isso, perdoa-nos, ama-nos, dá-nos aquilo que o mundo espera de Ti.
– Estou aqui para isto. Venho de muito longe para dar também à cidade de João o que Eu dou a todos os
lugares que me acolhem. Dizei-me o que desejais de Mim.
– Nós também temos doentes e somos ignorantes. Especialmente no que se refere ao amor e à bondade.
João, no seu amor total a Deus, tem uma mão de ferro e uma palavra de fogo, e quer dobrar a todos, como
um gigante que dobra uma haste de erva. Muitos ficam desanimados, porque o ser humano é mais pecador
do que santo. É difícil sermos santos!…Tu… dizem que não dobras, mas que ajudas, que não cauterizas,
mas que aplicas bálsamo, que não esmigalhas, mas acaricias. Sabe-se que és paterno com os pecadores e és
poderoso sobre as doenças, sejam quais forem, também e sobretudo as do coração. Os rabis não sabem
mais fazer isso.
211.4 – Trazei-me os vossos doentes, e depois reuni-vos neste jardim abandonado e profanado pelo pecado,
depois de ter sido feito um templo pela Graça que nele habitou.
Os hebronitas partem dali em todas as direções, como andorinhas, e fica só o sinagogo, que entra com
Jesus e os discípulos até para lá do muro do jardim, indo à sombra de uma trepadeira misturada com
roseiras e videiras, que ali cresceram, como bem lhes pareceu. Os hebronitas apressam-se em voltar. E com
eles já vem sendo trazido um paralítico em uma padiola, uma jovem cega, um mudinho e dois doentes que
eu não sei o que têm, e que vêm acompanhados pelos que os ajudam.
– A paz esteja contigo –diz Jesus, saudando a cada um dos doentes, que vão se aproximando dele.
E, depois, a doce pergunta:
– Que quereis que Eu vos faça?
E aí vem o coro das lamentações desses infelizes e no qual cada um quer contar a sua própria história.
Jesus, que estava sentado, levanta-se, e vai até o mudinho, cujos lábios Ele molha com sua saliva, e lhe
diz a grande palavra:
– Abre-te.
E, enquanto a diz, molha também as pálpebras não separadas da cega com o dedo ainda molhado de
saliva. Depois dá a mão ao paralítico, e lhe diz:
– Levanta-te!
E, por fim, impõe a mão aos dois doentes, dizendo:
– Ficai sãos, em nome do Senhor!
E o mudinho, que antes só gemia, diz agora claramente:
– Mamãe! –enquanto que a jovem já bate as pálpebras, agora abertas para a luz, e faz com os dedos um
abrigo contra o sol, que ela ainda não conhecia, e chora e ri, esfregando os olhos, porque não está
acostumada com a luz, e olha de novo para as copas das árvores, para a terra, para as pessoas e para Jesus.
O paralítico desce com facilidade da padiola, e os seus bondosos portadores a levantam agora vazia,
para mostrar aos que estão longe que a graça fora concedida, enquanto os dois doentes estão chorando de
alegria, e se ajoelham para venerar ao seu Salvador.
A multidão está fazendo uma alvoroço frenético de hosanas. Tomé, que está perto de Judas, olha para ele
de um modo tão intenso, e com uma expressão tão clara, que ele lhe responde:
– Eu era um estulto, perdoa-me.
211.5 Quando cessou a gritaria, Jesus começa a falar.
– O Senhor falou a Josué, dizendo: “Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Separai as cidades para os
fugitivos e dos quais Eu vos falei por meio de Moisés, para que nelas possa refugiar-se quem
involuntariamente tiver matado alguém, para que ele possa escapar da ira de algum parente próximo, que
queira vingar o sangue derramado.” E Hebron é uma daquelas cidades.
Sempre foi dito: “E os mais velhos da cidade não entregarão o inocente a quem o estiver procurando
para matá-lo, mas o acolherão e lhe darão morada e aí ficará ele até o julgamento, e enquanto não morrer o
Sumo Sacerdote que estiver em função. Depois disso, ele poderá entrar em sua cidade e em sua casa.”
Nesta lei[79] já se leva em consideração o amor misericordioso para com o próximo. Esta lei foi imposta por
Deus, porque não é lícito condenar o acusado, sem ouvi-lo, nem é lícito matar em momento de ira.
Pode-se também dizer o mesmo a respeito dos delitos e acusações morais. Não é lícito acusar a quem
não se conhece, nem julgar, sem ter ouvido o acusado. Mas hoje às acusações e condenações pelas culpas
de costume, ou pelas culpas possíveis, acrescenta-se a elas uma nova série: a que se refere e se põe contra
os que vêm em nome de Deus. Durante séculos, ela se repetiu contra os Profetas, e agora volta a repetir-se
contra o Precursor de Cristo e contra Cristo. Vós o vedes. Atraído com uma cilada para fora do território de
Siquém, o Batista está esperando a morte nos cárceres de Herodes, porque ele jamais se dobrará diante da
mentira ou do compromisso e poderá ser despedaçada a sua vida e cortada sua cabeça, mas não se poderá
despedaçar a sua honestidade, nem separar sua alma da Verdade, à qual ele tem servido fielmente em todas
as suas diversas formas, divinas, sobrenaturais ou morais que sejam. Igualmente se persegue Cristo, com
dupla e décupla fúria, porque Ele não se limita a dizer: “Não te é permitido” a Herodes, mas lhe troveja o
seguinte: “Não te é permitido”, e por toda parte onde, entrando, encontra pecado, ou sabe que existe o
pecado, sem excluir nenhuma categoria, em nome de Deus e pela honra de Deus.
211.6 Como jamais pode acontecer isto? Não haverá mais servos de Deus em Israel? Sim, os há. Mas são
“ídolos.”
Na carta de Jeremias[80] aos exilados estão ditas, por entre muitas outras coisas, também estas. E sobre
estas chamo a vossa atenção, porque cada palavra do livro é um ensinamento que, desde o momento em
que o Espírito a faz escrever, por causa de um fato presente, ela se refere a um fato que virá no futuro.
Portanto, o que está escrito é isto: “Logo que entrardes em Babilônia, vereis deuses de ouro, de prata, de
pedra, de madeira… Tomai cuidado para não imitardes o modo de agir dos estrangeiros, e para não terdes
medo, não temê-los… Dizei em vosso coração: ‘É preciso adorar somente a Ti, ó Senhor.’” E a carta
enumera as particularidades desses ídolos, que têm uma língua feita por algum artífice, e não se podem
servir dela para reprovar os seus falsos sacerdotes, que os despojam, para revestir com o ouro do ídolo as
meretrizes, quando não acontece que tirem aquele ouro, que foi profanado pelo suor da prostituição, para
revestir o ídolo. Estes ídolos, que a ferrugem ou as traças podem roer e que ficam limpos e bem arrumados,
só se o homem lhes lavar a cara e os tornar a vestir, já que eles não podem fazer nada por si mesmos apesar
de ter cetro ou machado na mão. E termina o Profeta: “Por isso, não os temais.” E continua: “Inúteis, como
vasos quebrados, são estes deuses. Seus olhos estão cheios da poeira levantada pelos pés dos que entram
no templo e são conservados bem fechados: como se estivessem num sepulcro, ou como quem ofendeu o
rei, porque qualquer um pode despojá-los de suas vestes preciosas. Eles não vêem a luz das lâmpadas e, por
isso, estão no templo como vigas, e as candeias não lhes servem senão para enfumaçá-los, enquanto as
corujas, as andorinhas e outros passarinhos voam por cima da cabeça deles e a cobrem de vírgulas com os
seus excrementos e os gatos nela fazem seus ninhos, com as vestes deles, e as rasgam. Por tudo isso, não
devem ser temidos. São coisas mortas. Nem mesmo o ouro lhes serve para nada. É uma amostra, e se não
for polido, não brilha, assim como os deuses não sentiram nada, quando alguém os fabricou. Nem o fogo
conseguiu despertá-los. Eles foram comprados por preços fabulosos. E são transportados para onde o
homem quer, porque são vergonhosamente fracos… Por que, então, são chamados deuses? Por que são
adorados com ofertas e com uma pantomima de cerimônias falsas, não sinceras da parte de quem as faz,
nem acreditadas por quem as vê. Se um mal ou um bem lhes é feito, eles permanecem inertes, são
incapazes de eleger ou destronar um rei, não podem dar riquezas nem fazer o mal, não podem salvar um
homem da morte, nem salvar o fraco do prepotente. Eles não têm piedade das viúvas e dos órfãos. São
semelhantes às pedras da montanha…”
A carta diz mais ou menos isso.
211.7 Eis. Nós também temos ídolos, e não mais santos, nas fileiras do Senhor. E por isto é que o Mal pode
levantar-se contra o Bem. O mal que suja de esterco a inteligência e o coração dos que não são mais santos
e se aninha em suas falsas vestes de bondade.
Não sabem mais falar as palavras de Deus. É natural! Eles têm uma língua feita pelo homem, e falam
palavras de homem, quando não falam palavras de satanás, e não sabem nada mais do que censurar os
inocentes e os pobres, mas calam-se onde vêem corrupção nos poderosos. Porque todos são corruptos, e
não podem acusar-se um ao outro das mesmas culpas. Ávidos são, não do Senhor, mas de Mamon,
trabalham aceitando o ouro da luxúria e do delito, trocando-o, roubando-o, tomados por um frenesi, que
passa por cima de todos os limites e de tudo. Toda a poeira se aninha sobre eles, fermenta sobre eles e, se
eles mostram uma cara limpa, os olhos de Deus estão vendo como está sujo o seu coração. A ferrugem do
ódio e o verme do pecado os rói, e eles não sabem fazer nada para se salvarem. Desfecham suas maldições,
como cetros e machados, mas não sabem que eles é que estão amaldiçoados. Fechados em seus
pensamentos e em sua ira, como cadáveres em seus sepulcros, ou prisioneiros em seu cárcere, lá estão,
agarrando-se às barras, por medo de que alguma mão os tire de lá, porque lá dentro esses mortos são ainda
alguma coisa: são múmias, não mais do que múmias com aparência humana, mas com corpo reduzido a
madeira seca, enquanto que lá fora seriam objetos ultrapassados para um mundo que procura a vida, que
sente necessidade da vida, como o menino sente da mãe e quer quem lhe dê vida, e não os fedores da
morte.
Eles estão no Templo, sim, e a fumaça das lâmpadas, isto é, das honras, os enfumaça, mas a luz não
desce até eles. E todas as paixões se aninham neles como passarinhos e gatos, enquanto que o fogo de sua
missão não lhes dá o místico tormento de estarem sendo abrasados pelo fogo de Deus. Eles são refratários
ao Amor. O fogo da caridade não os incendeia, assim como a caridade não os veste com seus áureos
esplendores. A caridade para com o próximo é a forma; e a caridade que vem de Deus e do homem é a
fonte. Porque Deus se afasta do homem que não ama e, por isso, essa primeira fonte para de jorrar e ao
afastar o homem do homem malvado, para de jorrar também a segunda fonte. Tudo é tirado, pela Caridade,
do homem sem amor. Deixam-se comprar por um preço maldito e deixam se levar para onde as vantagens e
o poder querem.
Não, Não é permitido! Não existe moeda para comprar a consciência, e especialmente a dos sacerdotes
e dos mestres. Não é permitido ter condescendência com as coisas fortes da terra, quando elas querem
levar-nos a praticar atos contrários ao que é ordenado por Deus. Isto seria uma impotência espiritual, mas
está escrito[81]: “O eunuco não entrará na assembleia do Senhor.” Se, pois, não pode fazer parte do povo de
Deus quem é impotente por natureza, poderá ser ministro o que é impotente em seu espírito? Porque, em
verdade Eu vos digo que muitos sacerdotes e mestres já estão atormentados por um culpável eunuquismo
espiritual, já mutilados em sua virilidade espiritual. São muitos. E são demais!
211.8 Meditai. Observai. Confrontai. Vereis que temos muitos ídolos e poucos ministros do Bem que é
Deus. E aí está por que é que pode acontecer que as cidades refúgios já não sejam mais refúgio. Nada mais
é respeitado em Israel, e os santos morrem, porque os não santos os consideram odiosos.
Mas Eu vos convido: “Vinde.” Eu vos chamo em nome do vosso João, que está sofrendo, porque foi santo;
que recebeu o golpe, porque vai à minha frente e porque procurou limpar as sujeiras dos caminhos por
onde passa o Cordeiro. Vinde servir a Deus. O tempo está próximo. Não fiqueis despreparados para a
Redenção. Fazei que a chuva caia sobre o terreno semeado. Senão, ele terá sido semeado em vão. Vós, vós
de Hebron, deveis ir à frente! Aqui vós convivestes com Zacarias e Isabel: os santos que mereceram do Céu,
João. Aqui João espalhou o perfume da graça com sua verdadeira inocência de pequenino e, do seu deserto,
vos enviou os incensos anticorruptores de sua graça, que se tornou um prodígio de penitência. Não
decepcioneis o vosso João. Ele elevou o amor ao próximo a um nível quase divino, em que ele ama o último
habitante do deserto, como ama a vós, seus conterrâneos. Mas é certo que para vós ele suplica a Salvação.
E a Salvação é seguir a Voz do Senhor e crer em sua Palavra. Desta cidade sacerdotal, vinde em massa para
o serviço de Deus. Eu estou passando e vos chamando. Não sejais inferiores às meretrizes, às quais basta
uma palavra de misericórdia, para deixarem o caminho que percorreram antes, e virem para o Caminho do
Bem.
Foi-me perguntado, quando aqui cheguei: “Mas Tu, não conservas rancor de nós?” Rancor? Oh! Não. Eu
conservo é amor a vós. E conservo a esperança de ver-vos nas fileiras do meu povo. Do povo que Eu
conduzo para Deus, neste novo êxodo para a verdadeira Terra Prometida: para o Reino de Deus, do outro
lado do Mar Vermelho das sensualidades e desertos do pecado, livres de toda espécie de escravidão, para a
Terra eterna, cheia de delícias, repleta de paz…
Vinde! Este é o Amor que passa. Qualquer um pode acompanhá-lo, porque, para ser acolhidos por Ele,
não se precisa mais do que de boa vontade.
211.9 Jesus terminou em meio a um silêncio de estupefação. Parece que muitos ficaram sopesando as
palavras que ouviram e que ainda as estejam saboreando, percebendo melhor seu gosto profundo, e
comparando suas vidas com elas.
Enquanto isso acontece, e Jesus, cansado e com calor, se assenta para falar com João e Judas, ouve-se
um clamor do outro lado do muro do jardim. Uns gritos confusos, e que depois se tornam mais claros:
– Está aí o Messias? Está?
E tendo recebido a resposta, ei-los já levando para Ele um estropiado, que até parece um S de tão
contorcido que está.
– Oh! É Massala!
– Mas está muito estropiado! Que será que ele espera?
– Aí vem vindo a mãe dele! Uma infeliz!
– Mestre, o marido a rejeitou, por causa deste aborto de homem que é o filho, e ela vive aqui de
caridade. Mas já está velha, e pouco mais viverá…
O aborto de homem, como disseram bem, está agora na frente de Jesus. Este não pode vê-lo no rosto, de
tão encurvado e contorcido que ele está. Parece a caricatura de um homem-chipanzé, ou de um camelo
imitando o homem. A mãe, velha e infeliz, nem pode falar, mas somente geme, e solta estas palavras:
– Senhor…Senhor…eu creio…
Jesus põe suas mãos sobre as costas encurvadas do homem, que lhe chega só até a cintura, levanta o
rosto para o Céu, e troveja:
– Levanta-te e caminha pelos caminhos do Senhor –e o homem leva uma sacudidela, e depois se põe de
pé, como o mais perfeito dos homens.
Foi tão rápido o movimento, que parece terem sido quebradas algumas molas que o estivessem
sujeitando àquela posição anômala. Agora ele chega até às costas de Jesus, olha para Ele, e depois cai de
joelhos, junto com a mãe, beijando os pés do seu Salvador.
O que aconteceu por entre a multidão nem se pode dizer… E, não obstante toda a vontade em contrário,
Jesus é constrangido a permanecer em Hebron, porque as pessoas estão dispostas a pôr barreiras nas
saídas da cidade, para impedir que Ele se vá.
Jesus entra na casa do velho sinagogo, que está completamente mudado desde o ano passado…
[78] nos expulsou em 77.8.
[79] Nesta lei, o qual se refere a citação que precede (de Josué 20,1-6), se refere as cidades de refúgio, onde encontrava abrigo o homicida involutário, que
de tal modo vinha liberado da lei da vingança(a qual será feita alusão a Tadeu em 566.8, última linha, talvez referindo-se ao Gênesis 9,6 e alguns dos passos
que nos referimos novamente mais abaixo). As cidades de refúgio eram seis, entre as quais Hebron (como aqui) e Cedes (como em 342.1.2.7.9). Faziam parte
das 48 cidades levíticas nas quais moravam os levitas. As prescrições que se referem a uma e outra são em Êxodo 21,12-13; Números 35; Deuteronômio
4,41-43; 19,1-13; Josué 20-21.
[80] carta de Jeremias que está em Baruc 6.
[81] está escrito em Deuteronômio 23,2.
212. Uma onda de amor por Jesus,
quando Ele, em Juta, fala na casinha de Isaac.
8 de julho de 1945.
212.1 Juta inteira acorreu ao encontro de Jesus, com flores selvagens de suas encostas e com as primícias
de suas culturas, além dos sorrisos de suas crianças e as bênçãos de seus cidadãos. E, antes mesmo que
Jesus chegasse a pôr o pé no povoado, viu-se rodeado por aquelas boas pessoas que, avisadas por Judas de
Keriot e por João, que haviam sido mandados à frente, acorreram com tudo o que tinham encontrado de
melhor, para prestar honras ao Salvador e sobretudo com seu amor.
Jesus não para de abençoar, com gesto e com palavra, as pessoas adultas ou jovens, que o apertam de
todos os lados e querem beijar-lhe as vestes ou as mãos e lhe põem nos braços as crianças de peito para
que Ele as abençoe com um beijo. A primeira a fazê-lo é Sara, que lhe põe sobre o coração o seu pimpolho,
que é Jesaí.
De tão impetuoso que é, o amor lhe estorva o andar e, no entanto, ele é como uma onda, que o vai
levando. Eu creio que Jesus vai indo para a frente, mais levado por esta onda, do que por seus próprios pés
e, certamente, também seu coração vai sendo levado bem alto, no céu azul, pela alegria que lhe dá este
amor. Ele está com o rosto refulgente como nos momentos da mais viva alegria do Homem-Deus. Não é
aquele rosto cheio de poder com aquele olhar magnetizador das horas dos milagres, nem o rosto majestoso,
de quando manifesta a sua união continua com o Pai e nem mesmo aquele rosto severo, de quando
repreende uma culpa. Todas essas vezes seu rosto refulgia com diferentes luzes, mas esta de agora é a luz
das horas de distensão de todo o seu eu, que é atacado por todos os lados, obrigado a tomar cuidado
sempre e com todos os gestos ou palavras suas ou dos outros, envolvido em todas as ciladas do mundo que,
como uma maléfica teia de aranha, lançam os seus fios satânicos ao redor da Divina Borboleta, que é o
Homem-Deus, esperando refrear-lhe o vôo e aprisionar-lhe o espírito, a fim de que não salve o mundo;
amordaçar-lhe a palavra, para que não ensine às bem grandes e culpáveis ignorâncias da terra; amarrar
suas mãos, para que essas mãos de Sacerdote Eterno não santifiquem os homens, que o demônio e a carne
tornaram depravados; vendar-lhe os olhos, para que, com a perfeição do seu olhar, que é como um imã, que
é perdão, que é amor, que é um fascínio que vence todas as resistências, que não sejam a resistência de um
perfeito satanás, não atraiam para Ele os corações.
212.2 Oh! Não estão também agora e sempre assim contra Cristo, por obra dos inimigos de Cristo? Assim
não estão a Ciência e a Heresia, o Ódio e a Inveja, os inimigos da Humanidade, como ramos intoxicados de
uma planta boa, não fazem tudo isso para que a Humanidade morra, esses que a odeiam mais ainda do que
com todo o ódio que eles têm de Cristo, porque a odeiam ativamente, privando-a de sua alegria, procurando
descristianizá-la, enquanto que a Jesus nada podem tirar, sendo Ele Deus, e eles pó?
Sim. Eles o fazem. Mas Cristo se refugia nos corações fiéis e de lá olha, de lá fala, de lá abençoa a
Humanidade, e depois… e depois se dá a esses corações e eles atingem o Céu com sua bem-aventurança,
ainda que permaneçam aqui, mas incendiando-se, até terem com isto um delicioso tormento em todo o seu
ser: nos sentidos e nos órgãos, nos sentimentos e no pensamento e, finalmente, no espírito… Lágrimas e
sorrisos, gemidos e canto, o desfalecimento e até uma pressa de viver são os nossos companheiros, mais do
que companheiros, são o nosso próprio ser, porque, como os ossos estão na carne, e as veias e os nervos por
baixo da epiderme, e tudo faz um só homem, assim, igualmente, todas essas coisas incendiadas, nascidas
por ter-se dado Jesus a nós, estão em nós, na nossa pobre humanidade. E, que somos nós, naqueles
momentos que não poderiam durar para sempre, porque, se durassem mais do que aquele tanto,
morreríamos queimados e despedaçados? Nós não somos mais homens. Não somos mais os animais dotados
de razão, que vivem sobre a terra.. Somos, somos, ó Senhor! Deixa que eu o diga uma vez, não por soberba,
mas para cantar as tuas glórias, porque o teu olhar me queima, e me faz delirar…E, então, nos tornamos
serafins. E por que de mim não saem chamas e ardores sensíveis para as pessoas e a matéria, assim como é
nas aparições dos condenados? Por que, se é verdade que o fogo do inferno é tão forte, que, só um reflexo,
saído de um condenado, pode queimar a madeira e derreter os metais, que não será o teu fogo, ó Deus, que
tens tudo o que há de infinito e perfeito?
Não morremos de febre, não nos queimamos com ela, não nos consumimos de febre pelos males da
carne. Tu é que és nossa febre, ó Amor. E com este nos queimamos, com este morremos, com este nos
consumimos, com este e por este se dilaceram as fibras do coração, que não pode resistir a tudo isso. Mas,
eu disse mal, porque o amor é um delírio, o amor é uma cascata que arrebenta os diques, e desce
derrubando tudo o que não é ele, o amor é um apinhar-se de sensações, todas elas verdadeiras, na mente,
todas presentes, mas nossa mão não pode transcrevê-las, de tão rápida que é a mente em traduzir o
pensamento e os sentimentos que o coração experimenta. Não é verdade que morremos. Nós vivemos. E de
uma vida decuplicada. De uma vida dupla, vivendo como homens e como bem-aventurados: a vida da terra e
a vida do Céu. Alcança-se e se supera, Oh! disso estou certa, uma vida sem defeitos, sem diminuições nem
limitações que Tu, Pai, Filho e Espírito Santo, Tu, Deus Criador, Uno e Trino, tinhas dado a Adão, como um
prelúdio da vida depois da assunção a Ti, para gozar no Céu, depois de uma tranquila passagem do Paraíso
Terrestre para o Celeste, e uma passagem feita nos amorosos braços dos anjos, assim como foi o doce sono
e o doce surgir de Maria ao Céu, para ir a Ti, a Ti, a Ti! Vivemos a verdadeira vida.
E depois nos encontramos aqui e nos envergonhamos de ter andado por tantos outros lugares, e
dizemos: “Senhor, eu não sou digno de tudo isso. Perdoa, Senhor”, e batemos no peito, porque aterrorizados
pelo temor de termos tido soberba, e descemos um véu mais espesso sobre o esplendor que, se não
continua a chamejar de novo, com um ardor poderoso, por ter dó do nosso ser limitado, recolhe-se, porém,
ao centro do nosso coração, pronto a reinflamar-se poderoso para um novo momento de bem-aventurança
querida por Deus. Desce-se o véu sobre o Sacrário, onde está Deus ardente em seus fogos, em suas luzes,
em seus amores… e extenuados e também regenerados, recomeçamos a andar como…embriagados por um
vinho forte e suave, que não torna obtusa a nossa razão, mas nos preserva de ter olhos e pensamentos para
o que não seja o Senhor, Tu, meu Jesus, anel de união entre a nossa miséria e a Divindade, meio de
redenção para a nossa culpa, Criador de felicidade para a nossa alma, Tu, Filho que, com tuas mãos feridas,
colocas as nossas mãos entre as mãos espirituais do Pai e do Espírito, para que estejamos em Vós, agora e
sempre. Amém.
212.3 Mas, por onde eu andei, enquanto Jesus me queima, queimando os habitantes de Juta com o seu
olhar de amor? Vossa Rev.ma terá notado que não falo mais de mim ou muito raramente. Quantas coisas eu
poderia dizer. Mas o cansaço e a fraqueza física que me oprimem logo depois dos ditados e o pudor
espiritual sempre mais forte, quanto mais para a frente eu vou, me persuadem, me obrigam a calar-me. Mas
hoje… eu subi alto demais e o ar da estratosfera faz que percamos o controle… Eu fui muito acima da
estratosfera… e não pude mais controlar-me… Além disso, eu creio que, se nos calássemos sempre, nós que
estamos dominados por este redemoinho de amor, acabaríamos por explodir como projéteis, ou melhor,
como caldeiras superaquecidas e fechadas.
Perdoa-me padre. E agora, vamos para frente.
212.4 Jesus entra em Juta, e é conduzido à praça da feira, e desta à pobre casinha em que Isaac foi
perdendo suas forças, durante trinta anos… Explicam-lhe:
– Aqui vimos todos para falar de Ti e para rezar como em uma sinagoga, a mais verdadeira. Porque foi
aqui que começamos a conhecer-te e aqui as orações de um santo te chamaram até nós. Entra. Vê como nós
dispusemos as coisas.
A casinha, composta no ano passado só de três pequenas aberturas, que eram os quartos, a primeira era
aquele em que Isaac enfermo vivia de esmolas, a segunda era um esconderijo, e a terceira uma pequena
cozinha, que dava para o pátio, tornaram-se um ambiente único, e nele há bancos para os que aqui se
reúnem. No pátio há uma pequena barraca em que foram colocados os poucos trastes de Isaac, como
relíquias, e o respeito dos habitantes de Juta tornou menos desolado o pátio, colocando eles nele plantas
trepadeiras que agora, com suas flores, cobrem a rusticidade do lugar e formam um começo de trepadeira,
que vai subindo por cordas estendidas sobre o pátio, até a altura do teto baixo.
Jesus os elogia, e diz:
– Aqui podemos permanecer. Eu vos peço somente a hospedagem para as mulheres e o menino.
– Oh! Mestre nosso! Isso não acontecerá nunca! Para aqui viremos contigo e Tu nos falarás, mas, Tu e os
teus sede nossos hóspedes. Concede-nos esta bênção de podermos hospedar a Ti e aos servos de Deus. Só
nos desagrada que eles não sejam tantos quanto as casas…
Jesus concorda e sai da casinha, indo para a casa de Sara, que não cede a ninguém o seu direito de
hospedar, para a refeição, a Jesus e aos seus…
212.5… Jesus fala na casa de Isaac. As pessoas enchem a sala e o pátio, e se comprimem também na praça,
enquanto Jesus, para ser ouvido por todos, põe-se no meio da sala de tal forma, que sua voz se espalha
tanto no pátio como na praça. Ele deve Ele estar tratando de algum assunto que lhe levaram por qualquer
pergunta ou acontecimento. Ele diz:
– … Mas não tenhais dúvida disso. Como diz[82] Jeremias, eles reconhecerão, pelas provações, como é
doloroso e amargo terem abandonado o Senhor. Para certos delitos, meus amigos, não há salitre nem
potassa, que consigam tirar a nódoa que eles deixam, nem mesmo o fogo do inferno é capaz de tirar aquela
nódoa. Ela é indelével.
Também aqui é necessário reconhecer a justiça das Palavras de Jeremias. Realmente, os nossos grandes
de Israel parecem as jumentas selvagens das quais fala o Profeta. Acostumados com o deserto de seus
corações. Porque, podeis crer, enquanto alguém estiver com Deus, ainda que seja pobre como Jó, ainda que
esteja sozinho, ainda que esteja nu, nunca está sozinho, nunca é pobre, nunca está despojado, nunca é um
deserto. Mas, eles tiraram Deus dos seus corações, e, por isso, se acham num árido deserto. Como as
jumentas selvagens, que farejam no vento o cheiro dos machos, que aqui, no caso, pela libidinagem deles,
tem o nome de poder ou dinheiro, além da luxúria verdadeira e propriamente dita, e acompanham aquele
cheiro, até chegarem ao delito. Sim. Eles o acompanham, e ainda mais o acompanharão. Eles não sabem
que estão, não com os pés, mas com o coração exposto às flechas de Deus, que vingará o seu delito. Como,
então, não haverão de ficar confusos o rei e os príncipes, os sacerdotes e os escribas que, na verdade,
disseram e dizem àquilo que nada é, ou, pior ainda, àquilo que é o pecado: “Tu és meu pai. Tu me geraste!”
Em verdade, em verdade, Eu vos digo[83] que Moisés quebrou com ira as tábuas da Lei, ao ver o povo na
idolatria e, depois de subir de novo ao monte, orou, adorou e conseguiu. E isto, há muitos séculos. Mas
ainda não acabou, nem acabará. Ao contrário, cresce como fermento posto na farinha a idolatria no coração
dos homens. Agora, quase cada um dos homens tem o seu próprio bezerro de ouro. A terra é um matagal de
ídolos, porque cada coração virou um altar e dificilmente se encontra Deus sobre ele. Quem não tem uma
paixão maligna tem outra, quem não tem uma concupiscência tem uma outra com outro nome. Quem não é
todo pelo ouro é todo por alguma posição, quem não é todo pela carne é todo pelo egoísmo. Quantos “eus”
transformados em bezerros de ouro, não são adorados nos corações! Virá, por isso, um dia em que eles,
golpeados, clamarão ao Senhor e ouvirão dele esta resposta: “Vira-te para os teus deuses. Eu não te
conheço.”
Eu não te conheço. Terrível é esta palavra, quando dita por Deus a um homem. Deus criou o homem
como uma raça, e conhece cada homem em particular. Quando, pois, Ele diz: “Eu não te conheço”, isso é
sinal de que Ele apagou, com a força de sua vontade, aquele homem de sua lembrança. Eu não te conheço!
Será Deus severo demais por proferir este veredito? Não. O homem gritou ao Céu: “Eu não te conheço!”, e
o Céu respondeu ao homem: “Eu não te conheço”, com a fidelidade de um eco…
212.6 E, meditai: o homem é obrigado a conhecer a Deus por um dever de gratidão e por respeito para com
a sua própria inteligência.
Por gratidão: Deus criou o homem, dando-lhe o dom inefável da vida e provendo-o do dom superinefável
da graça. Perdida esta por própria culpa, o homem ouve que lhe é feita uma grande promessa: “Eu te darei
de novo a Graça.” É Deus que foi ofendido, que fala assim ao seu ofensor, como se fosse ele, Deus, o
culpado, obrigado a dar uma reparação. E Deus mantém a promessa. Eis que aqui estou para dar de novo a
Graça ao homem. Deus não se limita a dar o sobrenatural, mas faz descer até nós sua Essência Espiritual, a
fim de prover às grosseiras necessidades da carne e do sangue do homem, dá-lhe o calor do sol, o refrigério
da água, os grãos dos cereais, as videiras, as árvores de todas as espécies, os animais de todas as espécies.
Assim o homem recebeu de Deus todos os meios para conservar a vida. Deus é o seu Benfeitor. É preciso
que lhe sejamos reconhecidos e lhe mostremos isso, esforçando-nos por conhece-lo.
Por respeito para com nossa própria razão. O mentecapto e o idiota não são gratos para com quem cuida
deles, porque não compreendem os cuidados em seu verdadeiro valor, e há quem os lava ou lhes põe a
comida na boca, a quem os guia ou os põe na cama, a quem os vigia para que não se exponham aos perigos.
Eles ainda lhes tem ódio, porque, bestiais como são por causa de sua doença, acham ainda que aqueles
cuidados são torturas. O homem que está em falta contra Deus é alguém que se desonra a si mesmo, a um
ser dotado de razão. Só os idiotas e os doidos é que não conseguem distinguir o seu pai de um estranho, o
benfeitor de um inimigo. Mas o homem inteligente conhece o seu pai e o seu benfeitor e se compraz em
conhecê-lo sempre melhor, mesmo naquelas coisas que ele ignora, porque aconteceram antes que ele
nascesse ou que recebesse os benefícios do pai ou do benfeitor. Assim deve-se fazer também com o Senhor,
a fim de mostrar-lhe que somos inteligentes, e não brutos. Mas muitos em Israel são semelhantes a estes
doidos que não reconhecem o seu pai e o seu benfeitor.
Jeremias pergunta a si mesmo: “Poderá, acaso, a virgem esquecer-se de seus ornamentos e uma esposa
do seu cinto?” Oh! Sim. Israel está constituído por estas virgens doidas, por essas esposas impudicas, que
se esquecem dos seus ornamentos honestos e da cintura para usarem ouropéis, como as meretrizes. E isso
se encontra em medida sempre maior, quanto mais se sobe até às classes que deveriam ser as mestras do
povo. E a reprovação de Deus, — com sua irritação e o seu pranto,— lhes é dirigida “Por que te esforças em
mostrar tua boa conduta, e procurar amor, tu, que, ao contrário, ensinas as malícias e os teus modos de
fazer, e fizeste que se encontrassem, nas abas das tuas vestes, o sangue dos pobres e dos inocentes?”
212.7 Amigos, a distância é um bem e é um mal. Estar muito longe dos lugares, onde com facilidade Eu
falo é um mal, porque vos impede de ouvir as palavras da Vida. E vós vos queixais disso. Pois é verdade.
Mas é um bem, porque vos conserva afastados dos lugares em que fermenta o pecado, onde ferve a
corrupção, onde as ciladas sibilam, tramando contra Mim, estorvando-me em minha obra e insinuando
dúvidas e mentiras nos corações a respeito de Mim. Mas Eu prefiro que estejais longe a que estejais
corrompidos. Eu proverei à vossa formação. Vós estais vendo que Deus proveu, antes que nós nos
conhecêssemos e, por isso, nos amássemos. Eu já era conhecido, antes que nós nunca nos tivéssemos visto.
Isaac foi o vosso anunciador. Eu vou mandar muitos Isaques para dizer-vos as minhas palavras. E ficai
sabendo também que Deus pode falar em toda parte a sós com o espírito do homem e fazê-lo crescer em
sua doutrina.
Não tenhais medo de que, por estardes sozinhos, isso vos possa fazer cair em erros. Não. Se não
quiserdes, não sereis infiéis ao Senhor e ao seu Cristo. Afinal, quem de verdade não pode ficar longe do
Messias, fique sabendo que o Messias lhe abre o coração e os braços, e lhe diz: “Vem.” Vinde, vós, que
quereis vir. Permanecei, vós, que quereis ficar. Mas, pregai o Cristo, tanto uns como os outros, com uma
vida honesta. Pregai contra a desonestidade, que se aninha em muitos corações. Pregai isto contra a
leviandade dos muitíssimos que não sabem permanecer fiéis e que se esquecem dos seus ornamentos e
cintos das almas chamadas para as núpcias com Cristo. Vós me dissestes, felizes: “Desde quando Tu vieste,
nós não tivemos mais doentes nem mortos. A tua bênção nos protegeu.” Sim grande coisa é a saúde. Mas,
fazei que a minha vinda de agora vos faça a todos sãos de espírito, e sempre e em tudo. Para isso, Eu vos
abençôo e vos dou a minha paz, a vós e aos vossos filhos, aos campos, às casas, às messes, aos rebanhos, às
árvores frutíferas. Servi-vos de tudo isso com santidade, não vivendo para essas coisas, mas por meio delas,
dando o supérfluo a quem não tem e adquirindo vós assim a medida calcada das bênçãos do Pai e um lugar
no Céu. Ide. Eu fico para rezar…

9 de julho [1945].
212.8 Releio o que escrevi ontem, para colocar no lugar certas palavras incompreensíveis, por piedade dos
teus olhos, Padre. Reler isto me deixa desolada… é tão inferior àquilo que experimentei enquanto descrevia
o meu estado de ânimo! Porém, agora eu, para ajudar-me a dizer o que o Senhor me fazia experimentar e
pelo medo de dizer mal, e para ter um alívio — porque é também um sofrimento, sabes? — eu chamava o
meu São João. Dizia-lhe: “Tu sabes bem estas coisas. Tu as experimentastes. Ajuda-me.” Nem me faltou a
sua presença, o seu sorriso de eterno menino bom e a sua carícia. Mas agora sinto que a minha pobre
palavra é tão inferior ao sentimento que experimentava… Tudo quanto é humano é palha, o ouro é somente
o sobrenatural. Mas o humano não o pode nem mesmo descrever.
[82] diz em Jeremias 2 que trata de apostasia de Israel.
[83] Eu vos digo, recordando o quanto se narra em Êxodo 32-34.
213. Em Keriot Jesus faz uma profecia
e lá começa a pregação dos apóstolos.
[9 de julho de 1945.]
[84], morto,
213.1 Vejo o interior da sinagoga de Keriot. No mesmo lugar em que Saul foi estendido no chão
depois de ter visto a futura gloria de Cristo. E neste lugar, num grupo compacto, do qual emergem Jesus e
Judas — que são os mais altos, e ambos com os rostos cintilantes, um por causa do seu amor e o outro pela
alegria de ver que a sua cidade é sempre fiel ao Mestre e que se honra com a pompa e as honrarias que lhe
são prestadas, — aí estão os notáveis de Keriot e, depois, mais longe de Jesus, mas apinhados como
sementes em uma sacola, os moradores estão enchendo tanto a sinagoga, que mesmo estando abertas as
suas portas, nela mal se pode respirar. E, para lhe prestarem suas honras, para ouvirem o Mestre, acabam
por fazerem todos uma grande confusão, e um barulho tal, que já não se pode ouvir nada.
Jesus suporta tudo aquilo, e se cala. Mas os outros se inquietam, dão gritos, e dizem:
– Silêncio!
Contudo, o grito deles se perde no meio do grande barulho, como um grito lançado sobre uma praia, em
hora de tempestade.
Judas, porém, não fica só em palavras. Ele sobe numa cadeira alta e começa a bater umas nas outras as
lâmpadas que estão penduradas em feixes. O metal oco ressoa, as correntinhas retinem como instrumentos
musicais, ao baterem também umas nas outras. Então as pessoas se acalmam e, finalmente, se pode ouvir
Jesus falar.
Ele diz ao sinagogo:
– Dá-me o décimo rolo daquela estante.
E, tendo-o recebido, o desenrola e o dá ao sinagogo, dizendo:
– Lê o capítulo 4º do livro II dos Macabeus.
Obediente, o sinagogo lê. E as vicissitudes de Onias, e os erros de Jasão, as traições e furtos de Menelau
vão passando assim diante do pensamento dos presentes. O capitulo terminou. O sinagogo olha para Jesus,
que o ficou escutando atentamente.
213.2 Jesus faz sinal de que basta, e depois, se dirige ao povo:
– Na cidade do meu caríssimo discípulo Eu não vou dizer minhas costumeiras palavras de ensinamento.
Permaneceremos aqui alguns dias e Eu quero que seja ele quem vo-las diga. Porque daqui é que Eu quero
que tenha começo o contato direto, o contato contínuo entre os apóstolos e o povo. Isso foi decidido lá na
alta Galileia, e lá já começou a brilhar. Mas a humildade dos meus discípulos fez que depois eles se
retirassem para a sombra, porque eles têm medo de não saberem fazê-lo bem e de ficarem usurpando o
meu lugar. Não. Eles devem fazê-lo, e o farão bem, e ajudarão ao seu Mestre. Aqui, pois, unindo em um
único amor os confins da Galileia e da Fenícia com as terras de Judá, que são as mais meridionais e se
limitam com os países do sol e das areias, aqui é que deve ter começo a verdadeira pregação apostólica.
Porque o Mestre já não basta para atender às necessidades das multidões. E porque é justo que as
águiazinhas deixem o ninho e dêem os seus primeiros vôos, enquanto o sol está com elas, e as asas robustas
dele as sustentam.
Por isso Eu, nestes dias, serei vosso amigo e vosso conforto. Eles serão a palavra, e irão espargindo as
sementes que Eu lhes dei. Eu não direi por isso, palavras de ensinamento público, mas vos darei uma coisa
privilegiada. Uma profecia. Eu vos peço que vos lembreis dela pelos tempos futuros, quando o
acontecimento mais horrível da História tiver ofuscado o sol e, nas trevas, pode ser que os corações sejam
arrastados a um julgamento errado. Não quero que vós sejais induzidos a erro, vós, que, desde os primeiros
momentos, fostes bons para comigo. Não quero que o mundo possa dizer “Keriot foi inimiga de Cristo.” Eu
sou justo. Não posso permitir que a crítica, tanto a invejosa, como a enamorada de Mim, possa, cada uma
delas incentivada por seus sentimentos, acusar-vos de culpas contra Mim. E, assim como não se pode, em
uma família numerosa, pretender que os filhos sejam iguais em santidade, assim também não se pode
pretender que o sejam os habitantes de uma cidade populosa. Mas seria uma grande falta de caridade, se
alguém dissesse, por causa de um filho mau, ou por causa de um dos habitantes, que não era bom: “Toda a
família, ou toda a cidade está amaldiçoada.”
Portanto, ouvi, e lembrai-vos disso, sede sempre fiéis e, como Eu vos amo tanto, que quero defender-vos
de qualquer acusação injusta, assim, vós, procurai saber amar aos que não têm culpa. Sempre. Sejam quem
forem. Seja qual for o parentesco que eles tenham com os culpados.
213.3 Agora, escutai. Virá um tempo em que em Israel aparecerão delatores do tesouro e da pátria, e eles,
na esperança de se tornarem amigos dos estrangeiros, falarão mal do verdadeiro Sumo Sacerdote,
acusando-o de aliança com os inimigos de Israel, e de atos maus contra os filhos de Deus. E, para
conseguirem isso, serão capazes de cometer delitos e de atribuir a responsabilidade por eles ao Inocente. E
tempo virá, sempre em Israel, no qual, mais ainda que nos tempos de Onias, um infame, conspirando para
ser ele o Pontífice, irá procurar os poderosos de Israel e os corromperão com o ouro, ainda mais infame, de
suas palavras mentirosas e, ao mesmo tempo, alterará a verdade dos fatos; não falará contra as culpas,
mas, pelo contrário, irá atrás de suas indignas metas, pôr-se-á a corromper os costumes, para ter, como
presas mais fáceis, os espíritos privados da amizade com Deus. Tudo para atingir a sua meta. E conseguirá.
Oh! Com certeza! Porque, se na própria morada do monte Moriá não estão mais os ginásios do ímpio Jasão,
eles estão nos corações dos habitantes do monte que, como garantia, estão dispostos a vender uma coisa
que é bem mais do que um terreno, e que é a própria consciência deles. Os frutos do erro antigo são vistos
agora e, quem tiver olhos para ver, verá isso acontecer no lugar onde deveria haver caridade, pureza,
justiça, bondade, religião santa e profunda. Mas, se esses são os frutos que já fazem tremer, os frutos
nascidos das sementes destes não só serão objeto de tremor, mas de maldição divina.
E eis-nos chegados à verdadeira profecia. Em verdade Euvos digo: Por aquele que se apoderou de um
posto e da confiança, por meio de jogadas calculadas e astutas é que será entregue, por dinheiro, às mãos
dos inimigos, o Sumo Sacerdote, o Verdadeiro Sacerdote. Arrastado para a cilada por meio de um gesto de
afeto, será mostrado aos carrascos por meio de um gesto de amor, e Ele será morto sem preocupações com
a justiça. Que acusações serão feitas a Cristo, pois é de Mim que estou falando, para justificarem o direito
de matá-lo? E que sorte estará reservada para os que isso fizerem? Uma sorte, na mesma hora e de horrível
justiça. Uma sorte não individual, mas coletiva, para os cúmplices do traidor. Uma sorte mais distante, e
ainda mais horrível do que a do homem que o remorso levará a coroar o seu espírito de demônio com um
último delito contra si mesmo. Porque aquilo em um momento terminará. Mas este último castigo será
longo, terrível. Encontrai-o nesta frase: “E, aceso em ira, ordenou que Andrônico fosse despojado de sua
púrpura e morto no lugar onde havia cometido a impiedade contra Onias.” Sim. A raça sacerdotal será
punida em seus filhos e também nos executores. E o destino da massa de cúmplices, podeis lê-lo nestas[85]
palavras. “A voz deste sangue grita a Mim da terra. Agora, pois, tu serás maldito…” E ela será dita por Deus
a todo um povo que não terá sabido guardar o dom do Céu. Porque, se é verdade que Eu vim para redimir,
ai daqueles que forem assassinos, e não redimidos, no meio deste povo, que recebeu como primeira
redenção a minha Palavra.
Já o disse. Lembrai-vos disso. E, quando ouvirdes dizer que Eu sou um malfeitor, dizei: “Não. Ele já o
disse. Isto é o que foi marcado e se está cumprindo. Ele é a Vítima morta pelos pecados do mundo…”
213.4 A sinagoga se esvazia, e todos saem falando e gesticulando, e o seu assunto é a profecia e a estima
que Jesus tem por Judas. Os habitantes de Keriot estão exaltados pela honra que lhes deu o Messias, ao
escolher a terra de um apóstolo, e logo do apóstolo de Keriot, para iniciar lá o ministério apostólico, e
começando pelo dom da profecia. Ainda que seja triste, é uma grande honra tê-la ouvido e, ainda mais, com
as palavras de amor que a precederam…
Na sinagoga ficam Jesus e os grupo dos apóstolos. E passam para o pequeno jardim, que fica entre a
sinagoga e a casa do sinagogo. Judas sentou-se e está chorando.
– Por que estás chorando? Não vejo motivo para isso… –diz o outro Judas.
– Mas vede bem. Quase que eu faria também o que ele está fazendo. Vós ouvistes? Agora é preciso que
falemoos nós… –diz Pedro.
– Mas nós já falamos um pouco lá no monte. Sempre o iremos fazendo melhor. Tu e João logo já fostes
capazes –diz Tiago de Zebedeu para encorajar.
– O pior é comigo… mas Deus me ajudará. Não é mesmo, Mestre? –pergunta André.
Jesus estava enrolando os rolos, que ia levando consigo, vira-se e diz:
– Que é que estáveis dizendo?
– Que Deus me ajudará, quando eu tiver que falar. Eu procurarei repetir as tuas palavras do melhor
modo que eu puder. Mas meu irmão está com medo e Judas está chorando.
– Estás chorando? Por quê? –pergunta Jesus,
– Porque verdadeiramente eu pequei. André e Tomé o podem dizer. Eu falei mal de Ti e Tu me fizestes
bem, ao chamar-me de “caríssimo discípulo” e querendo que eu seja mestre aqui… Quanto amor!…
– Não sabias que Eu te amava?
– Sim. Mas… Obrigado, Mestre. Não murmurarei nunca mais, porque realmente eu sou as trevas e Tu és
a Luz.
O sinagogo volta, convidando-os a entrar em casa e, enquanto vai, ele diz:
– Estou pensando nas tuas palavras. Se eu compreendi bem, assim como encontraste em Keriot um
predileto, nosso Judas de Simão, também profetizas que aqui encontrarás um indigno. Isso me aflige. Mas,
menos mal, porque Judas compensará o outro…
– Com todo o meu ser –diz Judas, que já recobrou o domínio de si mesmo.
Jesus nada diz, mas olha para os seus interlocutores, e faz um gesto, abrindo os braços, como para dizer:
“Assim é.”
[84] em que Saul foi estendido no chão em 78.8.
[85] nestas, isto é, nas palavras que se leem em Gênesis 4,10-11, enquanto as outras citações são de 2 Macabeus 4, como se disse no início.
214. A mãe de Judas confidencia-se à mãe de Jesus,
que chegou a Keriot acompanhada por Simão Zelotes.
10 de julho de 1945.
214.1 Jesus está para ir colocar-se à mesa na bela casa de Judas, junto com todos os seus. E diz à mãe de
Judas, que acaba de chegar de sua casa de campo, para hospedar dignamente o Mestre:
– Não, mãe. Tu também precisas estar conosco. Aqui estamos como uma família. Não será este um
banquete frio e cerimonioso de hóspedes ocasionais. Eu te tomei um filho, assim como Eu te tomo como
mãe, porque és muito digna disso. Não é verdade, amigos, que assim nos sentiremos todos mais contentes e
mais à vontade?
Os apóstolos e as duas Marias concordam com prazer. E a mãe de Judas, com um grande brilho em suas
pupilas, vai sentar-se entre o seu filho e o Mestre, que tem à frente as duas Marias, com Margziam entre
elas. O servente chega com as iguarias, que Jesus oferece e abençoa, depois distribui, pois neste ponto a
mãe de Judas é inflexível. E Jesus distribui, sempre começando por ela, o que cada vez mais comove a
mulher, enche de orgulho Judas e, ao mesmo tempo, o faz ficar pensativo.
A conversação é sobre diversos assuntos e Jesus procura fazer que se interesse por eles a mãe de Judas,
e que ela se familiarize com as duas discípulas.
214.2 Para isso muito ajuda Margziam, que declara já querer muito bem à mãe de Judas, “porque ela se
chama Maria, como todas as mulheres que são boas.”
– E àquela, que nos está esperando lá no lago, não quererás bem, meu malvadinho? –pergunta Pedro,
meio sério.
– Oh! Muito bem, se ela for boa.
– Disto podes estar certo. Todos o dizem, e eu também devo dizê-lo, pois, se foi sempre mansa com sua
mãe e comigo, é sinal de que é boa. Mas ela não se chama Maria, meu filho. Ela tem um nome esquisito,
que foi o pai dela que lhe pôs e que é o nome da coisa que lhe havia dado riqueza e, por isso, a quis chamar
de Púrpura. Porque a púrpura é bela e preciosa. Minha mulher não é bela, mas é preciosa por sua bondade.
E eu lhe quis bem, porque ela era muito tranquila, casta e silenciosa. Três virtudes…hein?!, que não se
encontram facilmente! Eu tinha olhado para ela, desde quando ela era menina. Eu descia para Cafarnaum
com o peixe e a via junto às redes, ou à beira da fonte e também na horta da casa. Trabalhando calada, ela
não era como uma borboleta leviana, que voa para um lado e para outro, nem como uma franga,
descontrolada e que vira os olhos para onde ouve cantar o galo. Ela nunca levantava a cabeça, quando
ouvia vozes de homem, e, quando eu, apaixonado por sua bondade e pela beleza de suas tranças, que eram
as suas únicas belezas, e também compadecido por sua condição de escrava em família, quando eu lhe
dirigi as primeiras saudações, — ela estava então com dezesseis anos, — ela me respondeu com dificuldade,
baixando ainda mais o seu véu e conservando-se ainda mais retirada em sua casa. Assim é. Levou tempo
para que eu não era um bicho-papão e para lhe enviar o paraninfo!… Mas eu não me arrependo. Poderia eu
dar uma volta por toda a terra, que outra como ela eu não encontraria. Não é verdade, Mestre, que ela é
boa?
– Muito boa. Estou certo de que Margziam vai gostar dela, ainda que ela não se chame Maria. Não é,
Margziam?
– Sim. Ela se chama “mamãe.” E as mamães são boas e são amadas.
214.3 Depois, Judas conta o que fez durante o dia. Compreendi que ele foi avisar à mãe da chegada deles e
que depois, começou a falar pelas campinas de Keriot, tendo por companheiro André. Em seguida, ele diz:
– Mas amanhã eu gostaria que viésseis todos: Eu não quero brilhar por mim mesmo. Iremos, quanto
possível, um judeu e um galileu. Eu com João, por exemplo e Simão com Tomé. Se o outro Simão viesse!
Mas vós dois, (e mostra os filhos de Alfeu), podeis ir juntos. Eu tenho dito, mesmo a quem não queria saber,
que vós sois os irmãos do Mestre. E vós dois também (e mostra Filipe e Bartolomeu) podeis ir juntos. Eu
tenho dito que Natanael é um rabi que se pôs a acompanhar o Mestre. É uma coisa que impressiona. E…
vós três estais sobrando. Mas se Zelotes vier, pode-se fazer uma dupla a mais. Depois nos iremos
revezando, porque quero que conheçam a todos vós…
Judas está entusiasmado:
– Eu falei sobre o Decálogo, Mestre, procurando pôr em destaque especialmente aquelas partes nas
quais esta região mais falta…
– Não tenhas a mão pesada, Judas. Eu te peço isto. Tem sempre presente que mais consegue a doçura do
que a intransigência, e que tu também és homem. Por isso, examina-te, e reflete como é fácil que tu
também caias e como te irritas, ao fazeres censuras muito severas –diz Jesus, enquanto a mãe de Judas
inclina a cabeça, ficando muito corada.
– Não tenhas medo, Mestre. Eu me esforço por imitar-te em tudo. Mas no povoado, que daqui estamos
vendo por aquela porta, (estão comendo com as portas abertas, e vê-se um belo horizonte daqui desta
câmara sobrelevada) há um doente que quereria ficar são. Mas, não se pode transportá-lo. Poderias ir
comigo?
– Amanhã, Judas. Amanhã cedo, sem falta. E, se houver outros doentes, dizei-me ou trazei-os a Mim.
– Queres mesmo fazer o bem à minha terra, Mestre?
– Sim. Para que não se diga que Eu tenha sido injusto com quem não me fez mal. Eu faço o bem até aos
maus! Por que, então, não o faria aos bons de Keriot? Quero deixar uma lembrança indelével de Mim…
– Mas, como? Não voltaremos mais aqui?
– Voltaremos ainda, mas…
214.4 – Aí vem a mãe, a mãe com Simão! –diz o menino, que vê Maria e Simão subindo pela escada que vai
para o terraço, no qual está o quarto.
Todos se põem de pé e vão ao encontro dos dois que estão chegando. Há um rumor de exclamações, de
saudações, de cadeiras arrastadas. Mas nada desvia Maria de ir saudar primeiro a Jesus, depois à mãe de
Judas, que se inclinou profundamente e que Maria procura fazer que se reerga e abraça como se fosse uma
amiga reencontrada por ela depois de ausência.
Tornam a entrar no quarto e Maria de Judas manda mais alimentos para os que chegaram depois.
– Aqui está, meu Filho, a saudação de Elisa.
E dá um pequeno rolo a Jesus, que o abre e lê, dizendo depois:
– Eu já sabia. Eu estava certo disso. Obrigado, mamãe. Por Mim e por Elisa. Tu és verdadeiramente a
saúde dos enfermos!
– Eu? Tu, meu Filho. Não eu.
– Tu. E és a minha maior ajuda.
Depois se vira para os apóstolos e as discípulas, e diz:
– Elisa escreve: “Volta, minha Paz! Eu quero, não só amar-te, mas servir-te.” E foi assim que livramos da
angústia e da melancolia uma criatura e ganhamos uma discípula. Nós voltaremos lá, sim.
– Ela quer conhecer também as discípulas. Vai chegando pouco a pouco, mas sem paradas. Pobre
querida! Tem ainda alguns momentos de um desmaio medonho. Não é, Simão? Um dia ela quis
experimentar sair comigo, mas viu um amigo de seu Daniel… e tivemos muito trabalho para acalmar o seu
pranto. Mas Simão é muito inteligente! E me sugeriu que chamasse Joana, visto que ela tem o desejo de
voltar para o mundo, mas que o mundo de Betsur é cheio demais de lembranças para ela. E foi ele mesmo
chamá-la. Ela tinha acabado de chegar, depois das festas, a Beter, voltando para perto de seus esplêndidos
roseirais da Judeia. Diz Simão que para ele foi um sonho poder atravessar aquelas colinas cheias de
roseiras, e que isso o fazia pensar que estava no Paraíso. Ela veio logo. Ela pôde compreender e ter
compaixão de uma mãe que chora por seus filhos. Elisa se lhe afeiçoou muito e eu vim. Joana quer persuadi-
la a sair de Betsur e a ir para o seu castelo. E ela conseguirá, porque é doce como uma pomba, mas firme
em seus propósitos como o granito.
– Iremos a Betsur na volta, e depois nos separaremos. Vós, discípulas, ficareis com Elisa e Joana por
algum tempo. Nós iremos pela Judeia e nos reencontraremos em Jerusalém, na Festa do Pentecostes…
214.5 Maria, mãe de Jesus e Maria, mãe de Judas estão juntas. Não na casa da cidade, mas na do campo.
Estão sozinhas. Os apóstolos com Jesus estão fora, as discípulas com o menino estão andando pelo pomar e
se ouvem suas vozes, unidas ao rumor de panos batidos nos tanques de lavar roupa. Talvez elas estejam
fazendo a lavação enquanto o menino está brincando.
A mãe de Judas está sentada num quarto meio escuro ao lado de Maria, e lhe está falando:
– Estes dias de paz ficarão em mim como um doce sonho. Eles são tão breves! Tão breves! Eu
compreendo que não devemos ser egoístas e que é justo que vades àquela pobre mulher e a tantos outros
infelizes. Mas, se eu pudesse! Se eu pudesse fazer o tempo parar ou, então, ir convosco!… Mas eu não
posso. Não tenho outros parentes a não ser meu filho, e devo tomar conta dos bens da casa…
– Compreendo… Separar-te do teu filho é uma dor. Nós mães gostaríamos de estar sempre com os filhos.
Mas quando nós os damos por alguma razão bem grande, não os perdemos. Nem mesmo a morte nos tira os
filhos, se eles estiverem e se nós estivermos, em graça aos olhos de Deus. Mas nós os temos ainda neste
terra, mesmo quando a vontade de Deus no-los tira de nossos seios para dá-los ao mundo para o seu bem.
Podemos sempre encontrar-nos com eles e até o eco de suas almas nos faz como que uma carícia ao
coração, porque as obras deles são perfume de sua alma.
214.6 – Que é o teu Filho para ti, mulher? –pergunta em voz baixa Maria de Judas.
E Maria, mãe de Jesus, segura responde:
– É a minha alegria.
– A tua alegria!… –e depois vem uma explosão de pranto, enquanto a mãe de Judas se inclina sobre si
mesma, como para esconder o pranto. Sua fronte se abaixa quase até os joelhos, de tanto que ela se
inclinou.
– Por que estás chorando, minha pobre amiga? Por quê? Dize-o a mim. Eu sou feliz em minha
maternidade, mas sei também compreender as mães não felizes…
– Sim. Não felizes! E eu sou uma delas. Teu Filho é a tua alegria…O meu é a minha dor: tem sido, ao
menos. Agora, desde quando está com o teu Filho, ele me aflige menos. Oh! Entre todas as que rezam pelo
teu santo Filho, para que Ele se saia bem e triunfe, não existe nenhuma, depois de ti, ó bem-aventurada,
que reze tanto como esta infeliz, que te está falando… Dize-me a verdade: que pensas tu do meu filho? Nós
somos duas mães, uma na frente da outra: entre nós está Deus. E estamos falando de nossos filhos. Tu não
podes deixar de achar fácil falar do teu. Eu…eu devo fazer força contra mim mesma para falar do meu.
Mas, na verdade, quanto bem, ou quanta dor me pode provir de estar falando dele. Pois, ainda que seja
doloroso, sempre será um consolo ter falado.
Aquela mulher de Betsur ficou quase doida, por causa da morte de seus filhos, não foi? Mas eu te juro
que, às vezes, pensei e penso, quando olho para o meu Judas belo, sadio, inteligente, mas não bom, não
virtuoso, não direito de espírito, não sadio em seus sentimentos, que eu preferiria chorá-lo morto, a sabê-
lo… a sabê-lo muito desagradável a Deus. Tu, então, dize-me: Que pensas do meu filho? Sê sincera. Há mais
de um ano que esta pergunta me vem queimando o coração. Mas, fazer eu esta pergunta a quem? Aos
moradores da cidade? Eles não sabiam ainda que o Messias estava na terra e que Judas queria andar na
companhia dele. Eu sabia disso. Ele o havia dito, quando veio aqui depois da Páscoa, exaltado, violento
como sempre, quando se apodera dele algum capricho e, como sempre, desprezando os conselhos de sua
mãe. Perguntar aos amigos dele de Jerusalém? Uma santa prudência e uma piedosa esperança me detinham
de fazer isso. Eu não queria dizer a eles, aos quais não posso amar, porque tudo eles são, menos santos, o
seguinte: “Judas está acompanhando o Messias.” E eu esperava que aquele capricho acabasse, como muitos
outros, como todos os outros, custando talvez lágrimas e desolações como por mais de uma mocinha que,
aqui e em outros lugares ele namorou, pensando em si só e depois jamais tomou por esposa.
Não sabes que há lugares aonde ele não vai mais, porque poderia encontrar lá um justo castigo?
Também ser ele do Templo foi um capricho dele. Ele não sabe o que quer. Nunca. O pai dele, Deus lhe
perdoe, o estragou. Eu nunca tive voz, diante dos dois homens da minha casa. Eu só tive que chorar, e viver
com humilhações de toda sorte… Quando Joana morreu — e, ainda que ninguém o dissesse, eu sei que ela
morreu de dor, quando, depois de ter esperado durante toda a sua juventude, Judas declarou que ele não
queria mulher, ao passo que depois ficou sabido que ele tinha mandado amigos a Jerusalém para
perguntarem a uma mulher rica, e que possuía empórios até Chipre para sua filha — eu tive que chorar
muito, muito, por causa das censuras da mãe da mocinha morta, como se eu fosse cúmplice do meu filho.
Não. Eu não sou. Mas eu nem sou nada para ele.
No ano passado, quando o Mestre esteve aqui, compreendi que Ele havia entendido… e quis falar com
ele. Mas é doloroso e ainda mais para uma mãe, é doloroso ter que dizer: “Temei o meu filho: é um
avarento, um duro de coração, um viciado, um soberbo, um inconstante.” E ele é isto. Eu… eu rezo para que
teu Filho faça um milagre, Ele que faz tantos, faça um milagre sobre meu Judas… Mas tu, dize-me tu: que é
que pensas dele?
214.7Maria, que, nesse meio tempo ficou calada e com uma expressão de dor e piedade, diante deste
lamento materno, ao qual seu espírito reto não pode desmentir, diz em voz baixa:
– Pobre mãe!… Que é que eu penso? Sim, o teu filho não é aquela alma límpida de João, nem manso
como André, nem firme como Mateus, que quis mudar, e mudou. É… instável, sim, é assim. Mas nós
rezaremos muito por ele, eu e tu. Não chores. Talvez no teu amor de mãe, que gostaria de gloriar-se de seu
filho, tu o estejas vendo mais disforme do que é…
– Não! Não! Eu vejo o que é verdade e fico com muito medo.
O quarto está cheio com os lamentos e o pranto da mãe de Judas e, naquela meia escuridão, o rosto
branco de Maria fica parecendo mais pálido, depois dessa confissão materna, que faz que se tornem
evidentes aquelas coisas de que já suspeitava a mãe do Senhor.
Mas ela se domina. Atrai a si aquela mãe não feliz, e a acaricia, enquanto esta, tendo rompido os diques
de toda reserva, vai narrando, de modo confuso e cansativo, todas as durezas, exigências e violências de
Judas, e termina dizendo:
– Eu fico envergonhada por causa dele, quando me vejo tratada, como se fosse merecedora dos atos de
amor do teu Filho! Eu não os peço. Mas tenho a certeza de que, além de os fazer por sua bondade, Ele os
faz, mais para dizer, com aqueles gestos, a Judas: “Lembra-te de que é assim que se trata a mãe.” Agora,
neste momento, ele parece muito bom… Oh! Se fosse verdade! Ajuda-me, ajuda-me com a tua oração, tu,
que és santa, para que o meu filho não seja indigno da grande graça que Deus lhe concedeu! Se ele não me
quer amar, não sabe ser agradecido a mim que o dei à luz e o criei, não é nada. Mas que ele saiba amar
realmente a Jesus, que saiba servi-lo com fidelidade e reconhecimento. Se assim não for… então, que Deus
lhe tire a vida. Eu prefiro vê-lo no sepulcro… eu o teria para mim finalmente porque, desde que chegou ao
uso da razão, muito pouco ele foi meu. Melhor morto do que um mau apóstolo. Posso rezar assim? Que
achas?
– Reza ao Senhor que faça o que for melhor. Não chores mais. Eu já vi meretrizes e pagãos aos pés do
meu Filho, e com eles publicanos e pecadores. Tornaram-se todos cordeiros, pela sua Graça. Espera, Maria,
espera. Os sofrimentos das mães salvam os filhos, não sabes disso?
E, com esta piedosa pergunta, tudo termina
215. Em Betgina falam Filipe e André.
A cura da filha lunática do albergador.
11 de julho de 1945.
215.1 Não vejo nem a volta a Betsur, nem os roseirais de Beter, que eu tanto desejava ver. Jesus está
sozinho com os apóstolos. Não está aqui nem Margziam, que ficou certamente com Maria e as discípulas.
Estamos em um lugar muito montanhoso mas também muito rico de vegetação, com bosques de coníferas,
ou melhor, de pinhos, e o cheiro de suas resinas se espalha por toda parte, balsâmico e vitalizante. E,
através destes montes verdes, Jesus vai caminhando, com as costas viradas para o oriente, junto com os
seus.
Ouço que estão falando de Elisa, que apareceu muito mudada, e persuadida a acompanhar Joana em sua
propriedade de Beter, pela bondade de Joana. Ouço também que estão falando da nova excursão que vão
fazer, indo para as férteis planícies, que ficam perto da beira-mar. Os nomes das glórias passadas vêm à
tona, relembram-se histórias, fazem-se perguntas, dão-se explicações e travam-se discussões pacíficas.
– Quando estivermos no cume deste monte, Eu vos mostrarei lá do alto todas as regiões que vos
interessam. Delas podereis tirar pensamentos para as palavras que ireis dizer ao povo.
– Mas, como haveremos de fazer isso, Senhor? Eu não sou bom para isso –geme André, e a ele se
associam Pedro e Tiago–. Nós somos os mais incapazes!
– Oh! Para isso eu também não sou melhor. Se fosse de ouro e prata, eu poderia falar, mas destas
coisas… –diz Tomé.
– E eu? quem era eu? –pergunta Mateus.
– Mas tu não tens medo do publico, tu sabes discutir –replica André.
– Mas é sobre outros assuntos –responde Mateus.
– Ah! Isso é!… Mas… Afinal tu já sabes o que eu quero dizer, e faze de conta que eu já tenha dito. A
verdade é que tu vales mais do que nós –diz Pedro.
– Mas, meus caros, não há necessidade de tratar de coisas muito altas. Dizei simplesmente aquilo que
pensais, mas com a vossa convicção. Podeis crer que, quando alguém fala com convicção, persuade
sempre –diz Jesus.
E Judas de Keriot suplica:
– Dá-nos, Tu, muitas dicas. Pois uma ideia bem sugerida pode servir para muitas coisas. Estes lugares
ficaram sem nenhuma palavra a respeito de Ti, penso eu. Porque ninguém aqui dá sinais de conhecer-te.
– É porque por aqui passa muito aquele vento que vem do monte Moriá…Ele produz esterilidade –
responde Pedro.
– É porque aqui ainda não se semeou nada. Mas nós semearemos –retruca Iscariotes, seguro, sentindo-
se feliz com seus primeiros bons êxitos.
215.2 Chegaram ao alto do monte. Um amplo panorama se abre lá em cima e mais bonito ainda é vê-lo,
estando à sombra das árvores bem copadas, que coroam o cume, tão cheio de cores e tão luminoso, e que é
como um sobrepor-se de cadeias de montanhas, que vão para todos os rumos, como se fossem vagalhões
petrificados de um oceano batido por ventos contrários, que depois se transforma em um golfo de águas
tranquilas, ao ter-se acalmado, e se torna um mar de uma luminosidade sem limites, que está à frente de
uma vasta planície, na qual se ergue, solitário como um farol na entrada de um porto, um outro pequeno
monte.
– Eis aí. Esta região que se estende por todo o cume, como se quisesse aproveitar sozinha todo o sol,
este lugar, onde vamos fazer uma permanência; é como o centro de um grande círculo, no qual há muitos
lugares históricos[86]. Vinde aqui. Lá está (ao norte) Gerimot. Estais lembrados de Josué? A derrota dos reis
que queriam atacar o acampamento de Israel, que se havia tornado forte por sua aliança com os
Gabaonitas. E, perto de Betsames, a cidade sacerdotal de Judá, na qual foi restituída a Arca pelos filisteus,
com ex-votos de ouro, exigidos do povo pelos adivinhos e sacerdotes para obterem a libertação dos flagelos
que atormentavam os culpados filisteus. E lá está, toda cheia de sol, Saraá, a terra de Sansão e, um pouco
mais a leste, Tamna, onde ele se casou e fez tantas proezas e tantas loucuras. E lá Azeca e Socot outrora
território filisteu.
Mais abaixo ainda, esta Zanoé, uma das cidades de Judá. E aqui, voltai-vos, eis o Vale do Terebinto, onde
Davi se bateu com Golias. E, mais para lá está Maceda, onde Josué derrotou os Amorreus. Olhai ainda.
Estais vendo aquele monte solitário, no meio da planície que, tempos antes, havia sido dos filisteus? Lá fica
Gat, terra de Golias e lugar de refúgio para Davi, perto de Áquis, quando ele fugiu da louca ira de Saul, e
onde o sábio rei se fingiu de louco, porque o mundo preserva os loucos contra os sábios. Aquele horizonte
aberto são as planícies da fertilíssima terra dos filisteus. Nós passaremos por ela até Ramlá. E agora
estamos entrando em Betgina. Tu, tu mesmo, Filipe, que estás olhando para Mim com esses olhos
suplicantes, tu irás com André pelo povoado. Enquanto vós ides, nós permanecemos junto à fonte ou na
praça do povoado.
– Oh! Senhor! Não nos mandes sozinhos. Vem, Tu, conosco! –pedem-lhe os dois.
– Ide, Eu mandei. A obediência vos ajudará mais do que a minha presença.
215.3 … E então, Filipe e André lá se vão, ao acaso, pelo povoado, até encontrarem um pequeno albergue,
mais uma estrebaria do que um albergue, e lá dentro estão intermediários, fazendo negócios de cordeiros
com alguns pastores. Eles entram e param desorientados no meio do pátio rodeado de pórticos muito
rústicos.
Aproxima-se deles o albergador:
– Que desejais? Alojamento?
Os dois se consultam com um olhar, um olhar muito desconfiado. Muito provavelmente deve ter
acontecido que, de tudo o que haviam combinado dizer, não encontram mais nenhuma palavra. Mas é o
próprio André quem se lembra primeiro, e responde:
– Sim, alojamento para nós e para o Rabi de Israel.
– Qual rabi? Há tantos rabis. Mas são muito senhores. Eles não vêm aos povoados dos pobres, para
trazerem sua sabedoria aos pobres. São os pobres que devem ir a eles, e ainda é um favor, quando nos
suportam perto deles!
– O Rabi de Israel é um só. Ele vem justamente para trazer a Boa Nova aos pobres e, quanto mais pobres
e pecadores forem, tanto mais Ele os procura e se aproxima deles –responde docemente André.
– Mas então não vai amealhar dinheiro.
– Não vai à procura de riquezas. É pobre e bom. Considera cheio o dia em que consegue salvar uma
alma –responde ainda André.
– Hum! É a primeira vez que eu ouço dizer que um rabi é bom e pobre. O Batista é pobre, mas é severo.
Todos os outros são severos e ricos, ávidos como umas sanguessugas. Vós ouvistes? Vinde aqui vós que
andais pelo mundo. Estes homens estão dizendo que há um Mestre pobre e bom, que vem à procura dos
pobres e dos pecadores.
– Ah! Deve ser aquele que se veste de branco como um essênio. Eu já o vi, faz algum tempo, em Jericó –
diz um dos intermediários.
– Não. Aquele é sozinho. Deve ser aquele de quem falava Tomé, porque, por acaso, ouviu falar dele com
os pastores do Líbano –responde um pastor alto e musculoso.
– Sim! Com certeza! E ainda vem até aqui, ele que estava no Líbano! Por estes teus olhos de gato! –
exclama outro.
Enquanto o albergador fala com os seus clientes e os escuta, os dois apóstolos ficaram lá, no meio do
pátio, como duas estacas.
215.4 Mas, afinal, um homem diz:
– Ei! Vós, Vinde aqui. Quem é? De onde vem esse que vós dizeis?
– É Jesus de José, de Nazaré –diz sério, Filipe, e fica como quem espera ser escarnecido.
Mas André acrescenta:
– É o Messias prometido. E eu vos conjuro, para o vosso bem: ouvi-o! Vós falastes no Batista. Pois bem,
eu fui um discípulo dele, e foi ele quem nos mostrou Jesus, quando ia passando, e nos disse: “Ali está o
Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo.” E, quando Jesus desceu para ser batizado no Jordão,
abriram-se os céus e uma Voz gritou: “Este é o meu Filho amado, no qual ponho as minhas complacências”,
e o Amor de Deus desceu sobre a cabeça dele, brilhando, sob a forma de uma pomba.
– Estás vendo? É o Nazareno mesmo! Mas, dizei-me uma coisa, vós que vos dizeis amigos dele…
– Amigos, não: apóstolos, discípulos é o que somos, e mandados por Ele para anunciar sua chegada a fim
de que, quem precisa de salvação vá a Ele –corrige André.
– Está bem. Mas, dizei-me uma coisa. Ele é mesmo como alguns dizem, um santo, e mais santo que o
Batista, ou é um demônio, como dizem uns outros? Vós, que aqui estais juntos, se sois discípulos dele, não
deveríeis estar todos juntos? Dizei porque e com sinceridade. É verdade que Ele é um dissoluto e um
beberrão? Que ama as meretrizes e os publicanos? Que Ele é um nigromante e que, durante a noite, evoca
os espíritos para saber os segredos corações?
– Mas, por que perguntas isto a estes homens? –pergunta se é verdade que Ele é bom. Estes dois
poderão levar a mal e, quando forem embora, irão dizer ao Rabi os nossos maus juízos e seremos
amaldiçoados por Ele. Nunca se sabe!… Seja Deus ou o diabo que Ele seja, é melhor tratá-lo bem.
Agora é Filipe que fala:
– Nós vos podemos responder com sinceridade, porque não há nada de feio a esconder. Ele é o nosso
Mestre, é o Santo dos santos. O seu dia é passado nos trabalhos do ensinamento. Incansável, Ele vai de
lugar em lugar, procurando os corações. Ele passa a noite rezando por vós. Não despreza a mesa e a
amizade, mas não para a sua própria vantagem e sim, para fazer que se aproximem os que de outro modo
não o fariam. Ele não rejeita os publicanos nem as meretrizes. Mas somente para redimi-los. Ele marca o
seu caminho com milagres de redenção e milagres sobre as doenças. A Ele obedecem os ventos e o mar.
Mas não precisa de ninguém para operar prodígios, nem de evocar espíritos para conhecer os corações.
– E como pode? Tu disseste que os ventos e o mar lhe obedecem? Mas eles são coisas sem
entendimento. Como pode dar ordens a eles? –pergunta o albergador.
– Responde-me, homem: no teu parecer, é mais difícil dar ordens ao vento e ao mar, ou à morte?
– Por Javé! Mas à morte não se dão ordens! No mar se pode jogar azeite, pode-se usar contra ele as
velas, pode-se, se tiver juízo, não querer andar sobre ele. Ao vento se podem opor as fechaduras das portas.
Mas à morte não se dão ordens. Não há azeite que a acalme. Não há vela que, colocada em nosso
barquinho, faça que ele fique tão rápido, que possa escapar da morte. E para ela não existem fechaduras.
Quando ela quer vir passa, mesmo se usarmos ferrolhos. E ninguém dá ordens a esta rainha!
– E, no entanto, o mestre lhe dá ordens. Não somente quando ela já está perto. Mas até também quando
ela já pegou alguém. Um moço de Naim já estava para ser entregue à boca horrível do sepulcro e Ele disse:
“Eu te digo: levanta-te!”, e o jovem voltou à vida. Naim não fica nos confins do mundo. Vós podeis ir lá e ver.
– Mas assim, na presença de todos?
– Sobre a estrada, na presença de toda Naim.
215.5 O albergador e seus clientes olham um para o outro, em silêncio. Depois o albergador diz:
– Não será só para os amigos que Ele faz aquelas coisas?
– Não, homem. Para todos os que crêem nele, e não só para eles. Ele é a Piedade sobre a terra. Ninguém
se dirige a Ele sem receber nada. Ouvi, todos vós. Não há entre vós alguém que esteja sofrendo e chorando
por doenças na família, por problemas, por remorsos, tentações, ignorâncias? Ide a Ele, o Messias da Boa
Nova. Ele está aqui hoje. Amanhã estará noutro lugar. Não deixeis passar, sem vos aproveitardes dela, a
Graça do Senhor que passa, diz Filipe, que foi ficando cada vez mais convincente.
O albergador desgrenha os cabelos, abre e fecha a boca, aperta as franjas da cintura… e, finalmente,
diz:
– Eu vou experimentar!… Eu tenho uma filha. Até o verão passado, ela estava bem. Depois, tornou-se
lunática. Vive como uma fera muda em um canto, fica sempre lá e com dificuldade é que a mãe a pode
vestir ou pôr-lhe comida na boca. Os médicos dizem que o cérebro dela se queimou por ter tomado sol
demais, e outros dizem que foi por algum amor contrariado. O povo acha que ela está endemoninhada. Mas
como, se ela é uma jovenzinha que quase não saiu daqui? Onde foi que esse demônio a pegou? Que diz
sobre isso o teu Mestre? Que o demônio pode pegar até um inocente?
Filipe lhe responde com segurança:
– Sim, para atormentar os parentes e levá-los ao desespero.
– E… Ele cura os lunáticos? Poderei esperar isso?
– Deves crer –diz prontamente André.
E conta o milagre dos gerasenos, depois termina:
– Se os que eram uma legião nos corações dos pecadores, tiveram que fugir assim, como não haverá de
fugir o que penetrou à força no coração de uma jovenzinha? Eu te digo, homem: para quem espera nele, o
impossível se torna fácil como o respirar. Eu vi as obras do meu Senhor e dou testemunho do seu poder.
– Oh! Então, quem de vós pode ir chamá-lo?
– Eu mesmo, homem. Espera-me daqui a pouco.
E André vai sem demora, enquanto Filipe fica falando.
215.6 Quando André vê Jesus, parado debaixo de um alpendre para proteger-se do sol implacável, que
enche a pequena praça do povoado, corre ao encontro dele, e lhe diz:
– Vem, vem, Mestre. A filha do albergador é lunática. O pai te pede que a cures.
– Mas ele me conhecia?
– Não, Mestre. Nós procuramos fazer que te conhecesse…
– E o conseguistes. Quando alguém chega a crer que Eu possa curar um mal sem precisar de remédio, já
está adiantado na fé. E vós tendes medo de não saber fazer. Que foi que dissestes?
– Eu nem saberia te dizer. Nós dissemos o que pensamos de Ti e de tuas obras. Sobretudo, dissemos que
Tu és o Amor e a Piedade. O mundo te conhece tão mal!
– Mas vós me conheceis bem. É o que basta.
215.7 Chegaram ao pequeno albergue. Todos os clientes estão à porta, cheios de curiosidade, e no meio,
com Filipe, está o albergador, que continua a falar consigo mesmo.
Quando ele vê Jesus, corre ao encontro dele, dizendo:
– Mestre, Senhor, Jesus… eu…eu creio, eu creio tanto que Tu és Tu, que sabes tudo, que tudo vês, que
tudo conheces, que tudo podes e tanto eu creio, que te digo: Tem piedade da minha filha, ainda que eu
tenha muitas culpas no meu coração. Que não caia sobre a minha filha o castigo por ter sido eu desonesto
na minha profissão. Mas juro que não serei mais avarento. Tu estás vendo o meu coração com o seu
passado e com o pensamento que agora tem. Perdão e piedade, Mestre, e eu falarei de Ti a todos os que
vierem até à minha casa.
O homem está de joelhos.
Jesus lhe diz:
– Levanta-te, e persevera nos sentimentos de agora. Leva-me à tua filha.
– É uma estrebaria, Senhor. O mormaço faz que ela fique ainda mais doente. E ela não quer sair.
– Não importa. Eu irei até onde ela está. Não é o mormaço. É que o demônio percebe que Eu estou
chegando.
Entram no pátio e dele passam para uma estrebaria escura e todos vão atrás. A moça, despenteada,
muito magra, está se agitando no canto mais escuro e, logo que vê Jesus, grita:
– Para trás, para trás! Não me venhas perturbar. Tu és o Cristo do Senhor e eu um dos golpeados por Ti.
Deixa-me sossegado. Por que sempre vens atrás de meus passos?
– Sai dela. Vai-te embora. Eu o quero. Entrega a Deus a tua presa e cala-te!
Um urro dilacerante, um pulo e o relaxar-se de um corpo sobre a palha… e depois se ouvem, calmas,
tristes, admiradas, as perguntas: “Onde é que estou? Por que é que estou aqui? Quem são estas pessoas?” e
depois esta invocação “Mamãe” da jovem que se sente envergonhada por estar sem véu e com uma veste
rasgada, diante da vista de muitos olhos estranhos.
– Oh! Senhor Eterno! Mas ela está curada!…
E, coisa estranha de ver-se no rubicundo e corado albergador, um pranto de menino… Ele está feliz, e
chora sem saber de nada mais, a não ser beijar as mãos de Jesus, enquanto a mãe chora, no meio de uma
coroa de filhos assombrados, e beija a sua primogênita, que ficou livre do demônio.
Os presentes estão todos num vozear e outros estão chegando para ver o prodígio. O curral está cheio.
– Fica conosco, Senhor. A tarde está chegando. Permanece debaixo do meu teto.
– Homem, nós somos treze.
– Ainda que fôsseis trezentos, não faria mal. Eu sei o que queres dizer. Mas o Samuel, avarento e
desonesto, morreu, Senhor. Foi-se embora também o meu demônio. Agora, aqui está um novo Samuel.
Continuará a ser o albergador. Mas como um santo. Vem, vem comigo, para que eu te honre como a um rei,
como a um deus. Pois Tu o és. Oh! Bendito seja o sol de hoje que te trouxe a mim.
[86] lugares históricos, onde foram narrados os fatos em Josué 10; Juízes 13-16; 1 Samuel 4-6; 17; 18; 27.
216. A infidelidade dos discípulos
na parábola do assoprador.
12 de julho de 1945.
216.1 Uma planície batida pelo sol, que abrasa os grãos maduros e extrai deles um odor que já lembra o do
pão. É o odor do sol, das barrelas, das messes. É o odor do verão.
Porque cada estação, eu poderia dizer cada mês, e até cada hora do dia, tem o seu odor, assim como
cada localidade tem o seu para alguém que tiver os sentidos muito apurados e o sentido de observação
muito agudo. É muito diferente o odor de um dia de inverno, com um vento cortante, do odor pastoso de um
dia nublado de inverno, ou do odor que a neve espalha. E, como são diferentes desses o odor da primavera
que está para chegar e que se prenuncia assim, com um perfume que não é perfume, mas que é bem
diferente do odor do inverno. Levantamo-nos certa manhã, e sentimos que paira no ar um odor que antes
não havia: é o primeiro suspiro da primavera. E acima, mais acima, vamos subindo e passando pelo odor
das árvores frutíferas, que estão com flores, depois pelos dos jardins, das colheitas, até o odor quente das
vindimas e, entre eles, como para um intervalo, o odor da terra depois de um temporal…
E as horas? Seria tolice dizer que o odor da aurora é como o do meio-dia e que este é como o da tarde,
ou da noite. O primeiro é fresco e virginal, o outro é risonho e alegre, e o outro, ainda cansado é também
saturado de tudo o que, durante o dia, exalou seus odores. O último, o da noite, é pacato, recolhido, como
se a terra fosse um enorme berço, recolhendo seus pequeninos para o repouso.
E os lugares? Oh! o odor da beira-mar, tão diferente das manhãs e das tardes, dos meio-dias e das
noites, das borrascas e do tempo sereno, das regiões pedregosas e daquelas do litoral plano! E o odor das
algas, que ficam descobertas depois das marés, quando fica parecendo que o mar tenha aberto as suas
vísceras, para fazer-nos aspirar o odor do seu fundo. Como é diferente este odor daquele das planícies do
interior, e este daqueles das colinas, e este daquele dos altos montes.
É tão grande a imensidão do Criador, que só Ele foi capaz de imprimir um sinal ou de luz, ou de cor, ou
de perfume, ou de som, ou de forma, ou de altura sobre cada uma das inumeráveis criaturas que criou. Ó
Beleza Infinita do Universo, eu não te vejo mais do que assim, através das visões e da lembrança de tudo o
que vi , amando a Deus e rezando a Ele, passando pelo meio de suas obras, e pela alegria, que só de vê-las
os davam, como és imensa, poderosa, inexaurível e livre de cansaços! Disso não tens, e isso não dás. Pelo
contrário, o homem até se renova, ao olhar para ti, ó Universo do meu Senhor, e se torna melhor, mais puro,
e se eleva, e se esquece. Oh! Poder ficar sempre olhando para Ti e esquecer-nos dos homens em sua parte
inferior e amá-los na e pela sua alma, e para conduzi-los a Deus!
E eis que, acompanhando Jesus, que vai com os apóstolos por esta planície cheia de messes, eu fico
divagando de novo, deixando-me levar pela alegria de falar do meu Deus em suas esplêndidas obras. É
amor também isto, porque a criatura louva nas criaturas o que nelas ama, ou louva, simplesmente à
criatura que ela ama. E assim é também entre a criatura e o Criador. Quem o ama, o louva, e quanto mais o
ama, tanto mais o louva em Si mesmo e por suas obras. Mas agora imponho silêncio ao meu coração, e vou
atrás de Jesus, não como adoradora, mas como cronista fiel.
216.2 Jesus vai, pois, pelo meio das messes. O dia está quente. A região, deserta. Não se vê um homem
pelos campos. Só espigas maduras e árvores aqui e ali. Sol, grãos, passarinhos, lagartixas, moitas verdes,
com as folhas imóveis no ar tranquilo: isto é o que eu vejo ao redor de Jesus. Para os lados das duas
extremidades da estrada mestra, que Jesus vai percorrendo, e que é como uma fita poeirenta e
deslumbrante, por entre o ondular dos trigais, há de um lado um pequeno povoado e do outro uma fazenda.
Nada mais.
Todos vão andando em silêncio, sob o intenso calor. Eles tiraram seus mantos, mas certamente ainda
estão sentindo calor como antes, pois estão com roupas de lã, ainda que leves. Só Jesus, os dois primos e
Judas Iscariotes é que estão vestidos de linho branco ou cânhamo. Com certeza, a veste de Jesus e a de
Iscariotes são de linho branco. As outras, dos filhos de Alfeu, pela sua espessura me parecem mais pesadas
do que as de linho e são tingidas com uma cor de marfim carregada, justamente como a que tem o
cânhamo, quando não alvejado. Os outros vão como de costume, enxugando o suor com o pano de linho,
que lhes serve de véu para a cabeça.
Chegam a um pequeno grupo de árvores, em uma encruzilhada. Param debaixo daquela sombra e, com
avidez, bebem de seus odres.
– Está quente, como se tivesse sido tirada do fogo –resmunga Pedro.
– Se aqui houvesse pelo menos um riacho. Mas nada, nada! –suspira Bartolomeu–. Daqui a pouco, não
tenho mais nada.
– Estou quase dizendo que é melhor a montanha –geme Tiago de Zebedeu, congestionado pelo calor.
– Melhor do que tudo é a barca. Fresca, cômoda, limpa ah!
O coração de Pedro se lembra do seu lago e de sua barca.
– Todos vós tendes razão. Mas os pecadores estão tanto na montanha, como na planície. Se não nos
tivessem expulsado de Águas Belas, e nos perseguido, vindo atrás de nós, Eu teria vindo aqui entre os
meses de Tebet e Shebat. Mas, logo estaremos andando ao longo da beira-mar. Lá o ar é temperado pelo
vento do largo –anima-os Jesus.
– Eh! Precisamos disso. Aqui estamos parecendo uns peixes que estão morrendo. Mas, como fazem os
trigais para estarem tão bonitos, se não há água? –pergunta Pedro.
– Por aqui há águas subterrâneas. Elas conservam úmido o terreno –explica Jesus.
– Melhor seria que estivessem do lado de cima, do que no de baixo. Que vou fazer com elas, se estão
debaixo da terra? Eu não sou uma raiz! –diz o impetuoso Pedro, enquanto todos se riem.
Mas depois Judas Tadeu fica sério, e diz:
– É egoísta o solo, como o são os ânimos e é árido também. Se nos tivessem deixado parar naquele lugar
e passar lá o sábado, teríamos sombra, água e repouso. Mas eles nos expulsaram…
– Até alimento teríamos tido. Mas nem isto. Eu estou com fome. Se aqui houvesse frutas. Mas as árvores
frutíferas estão perto das casas. E quem é que vai até elas? Se todos forem do mesmo humor que aqueles
de lá… –diz Tomé, acenando para o povoado que deixaram atrás, a leste.
– Toma o meu alimento. Eu nunca tenho muita fome –diz Zelotes.
– Tomai também o meu –diz Jesus–. Quem estiver com mais fome, coma.
Mas, tendo sido postos juntos os alimentos de Jesus, de Zelotes e de Natanael, vê-se que dão uma
pequena quantidade e os olhos assustados de Tomé e também os dos jovens, estão dizendo isso. Mas eles se
calam, e vão pondo na boca os pequeninos pedaços.
Zelotes, com paciência, vai até um ponto, onde uma parte verde sobre o terreno queimado faz pensar
que lá haja umidade. E, de fato, no fundo do leito seco de um rio, há ainda um fio d’água, que em breve está
para desaparecer. Zelotes dá um grito para os que estão longe, a fim de que eles vão àquele refrigério, e lá
se vão todos, correndo, passando pela sombra descontinua das árvores crescidas à margem do fio d’água,
que já está quase enxuto, e lá eles podem refrescar os pés poeirentos, lavar o rosto suado e, mesmo antes
de encher seus odres já vazios e deixá-los depois dentro d’água, na parte em que está sombreada, para
conservar a água fresca. Assentam-se depois aos pés de uma árvore e, cansados, põem-se a cochilar.
216.3 Jesus olha para eles com amor e compaixão e meneia a cabeça
Surpreende-o nessa atitude, Zelotes, o qual tinha ido beber mais uma vez e pergunta-lhe:
– Que tens, Mestre?
Jesus se levanta, vai até Zelotes e, passando o braço ao redor dele, o vai levando consigo até debaixo de
uma outra árvore, e lhe diz:
– Que Eu tenho? Estou aflito por causa do vosso cansaço. Se Eu não soubesse o que estou fazendo de
vós, não teria mais paz, por vos estar dando tantos incômodos.
– Incômodos? Não, Mestre! É a nossa alegria! Tudo perde o valor, quando viemos contigo. Estamos todos
felizes, podes crer. Ninguém está com saudades, ninguém…
– Cala-te, Simão. A humanidade até nos bons reclama. E, humanamente falando, não deixais de ter razão
de reclamar. Eu vos tirei de vossas casas, de vossas famílias, dos vossos negócios, e vós viestes, pensando
que acompanhar-me seria uma coisa bem diferente…Mas a vossa reclamação de agora, a vossa reclamação
interior, se acalmará um dia e só então compreendereis que terá sido bom ter andado no meio das neblinas
e do barro, no meio da poeira e ao calor do sol, perseguidos, cheios de sede, cansados, sem alimento, atrás
de um Mestre perseguido, desamado, caluniado…e mais coisas ainda. Tudo, então vos irá parecer belo!
Porque, então, pensareis de um outro modo e vereis tudo esclarecido por outra luz. E me bendireis por vos
ter conduzido pelo meu caminho difícil…
– Estás triste, Mestre. E o mundo pode justificar a tua tristeza. Mas, nós não. Nós estamos todos
contentes…
– Todos? Tens certeza disso?
– Pensas tu em outra coisa?
– Sim, Simão. Em outra coisa. Tu estás sempre contente. Tu compreendeste. Muitos outros, não. Estás
vendo aqueles que estão dormindo? Sabes quantos pensamentos eles estão esgaravatando, até durante o
sono? E também todos aqueles que estão entre os discípulos? Crês tu que eles são fiéis, até tudo se
consumar?
Olha: vamos jogar aquela velha brincadeira, que certamente já brincaste, tu também, quando eras
menino (e Jesus apanha uma flor seca de dente-de-leão, bem redonda, de um pé que se ergue por entre as
pedras, e que já ficou completamente maduro. Leva-a delicadamente até perto da boca, sopra-a, e a flor se
desmancha em minúsculos para-quedas, que ficam voando pelo ar, vagueando, cada um com o seu guarda-
sol para cima, e a prumo, preso por um pequenino cabo.) Estás vendo? Olha… Quantos são os que tornaram
a cair em meus braços, como se estivessem enamorados de Mim? Podes contá-los… São vinte e três. Eles
eram pelo menos três vezes mais. E os outros? Olha. Uns ainda estão vagueando, outros já caíram por
serem mais pesados, outros sobem, porque são orgulhosos com seus penachos de prata, outros caem na
lama, que nós fizemos com os nossos odres, Somente… Olha, olha… Até dos vinte e três, que estavam sobre
os meus joelhos, sete lá se foram. Bastou aquele zangão chegar até aqui com o seu vôo, para fazê-los sair
voando também!… O que eles temiam? Ou por quem é que foram seduzidos? Talvez pelo ferrão, ou pelas
belas cores pretas e amarelas, ou pela garbosa aparência, pelas asas iridescentes… Eles lá se foram… Lá se
foram, atrás de alguma beleza mentirosa… Simão, assim vai acontecer com os meus discípulos. Uns, por
serem irrequietos, outros, por inconstância, outros por pesadume, outros por orgulho, outros por
leviandade, outros porque gostam da lama, outros por medo ou por ingenuidade ir-se-ão embora. Crês tu
que todos aqueles que agora me dizem “Eu vou contigo”, que Eu os encontrarei a meu lado, na hora
decisiva da minha missão? Eram certamente mais de setenta os penachinhos da flor seca de dente-de-leão,
que o Pai criou para Mim… e agora em meus braços há só sete, porque os outros lá se foram, levados por
esta onda de vento, que fez dizer sim aos pedúnculos mais leves. Assim vai ser. E fico pensando nas lutas
que há em vós para que me sejais fiéis.
216.4 Vem aqui, Simão. Vamos ali olhar aquelas libélulas, que estão dançando a flor d’água. A não ser que
prefiras ir descansar.
– Não, Mestre. As tuas palavras me entristecem. Mas eu espero que o leproso curado, o homem
perseguido, ao qual Tu deste a reabilitação, o solitário ao qual tu deste uma companhia, o necessitado de
afeto ao qual abriste o Céu e o mundo, a fim de que ele encontrasse e desse amor, não te abandonarão…
Mestre… que pensas de Judas? No ano passado Tu choraste comigo por causa dele. Depois… não sei, não…
Mestre, deixa lá aquelas duas libélulas, olha para mim, escuta-me. Eu não direi nada a ninguém. Nem aos
companheiros. Nem aos amigos. Mas a ti, sim. Eu não consigo amar Judas. E me confesso disso. É ele
mesmo quem rejeita o meu desejo de amá-lo. Não é que ele me despreze, não. Pelo contrário, ele até que
trata com cortesia o velho Zelotes, que ele percebe ser mais experiente do que os outros no conhecimento
dos homens. Mas é o modo como ele faz as coisas. Ele te parece sincero? Dize-o a mim.
Jesus fica em silêncio por um momento, como se estivesse fascinado pelas duas libélulas que, pousadas
à flor d’água, fazem um pequeno arco-íris, com suas asas membranosas e iridescentes, um arco-íris muito
útil, que serve para atrair algum mosquito curioso, que logo é pego por um dos dois animaizinhos que, por
sua vez, logo também é pego no vôo por um sapo achatado, ou uma rã, que a pega no vôo e a devora junto
com o mosquito que havia sido agarrado antes.
Jesus se move, levantando-se de novo, porque tinha ficado quase deitado para poder ver os dramas da
natureza, e diz:
– Assim é. A libélula tem suas robustas maxilas para poder nutrir-se com as ervas, e suas asas robustas
para derrubar os mosquitos. E a rã tem a garganta larga, para engolir as libélulas. Cada um tem o seu, e faz
uso do que tem. Vamos, Simão. Os outros despertam.
– Senhor, não me respondeste. Não o quiseste fazer.
– Mas, sim que te respondi. Meu velho sábio, medita que encontrarás[87]…
Jesus sobe do leito do rio e vai procurar os discípulos, que estão despertando e que já o estão
procurando.
[87] medita que encontrarás. A chave interpretativa pode ser encontrada ligando o precedente “Cada um tem o seu, e usa o seu” com o passo de Mateus
12,33-35 e com o texto de 219.4 e 222.5.
217. As espigas apanhadas no dia de sábado.
13 de julho de 1945.
217.1 Ainda estão no mesmo lugar, mas o sol está menos implacável, porque o fim do dia se aproxima.
– Precisamos andar para chegarmos àquela casa –diz Jesus.
E lá se vão. Afinal, chegam à casa. Pedem pão e alguma coisa para restaurarem as forças. Mas o feitor
os rechaça duramente.
– Raça de filisteus! Víboras! São sempre os mesmos! Nasceram daquele tronco e dão frutos venenosos –
resmungam os discípulos, esfomeados e cansados–. Que vos seja dado o que nos dais.
– Mas, por que faltais com a caridade? Não estamos mais no tempo do talião. Vinde para a frente. Ainda
não é noite e não estais morrendo de fome. Um pouco de sacrifício, para que estas almas cheguem a ter
fome de Mim –anima-os Jesus.
Os discípulos, porém, e eu acho que mais por despeito, do que por uma fome insuportável, entram por
um campo adentro e põem-se a colher espigas e as debulharem com as palmas das mãos, e começam a
comê-las.
– São boas, Mestre –grita Pedro–. Não vais apanhar delas? Além disso, elas têm um duplo sabor… Eu
quereria comer um campo inteiro cheio delas.
– Tens razão. Assim eles se arrependeriam de não nos terem dado pão –dizem os outros, e vão
caminhando pelo meio das espigas e comendo à vontade.
Jesus vai caminhando sozinho pela estrada poeirenta. Uns cinco ou seis metros atrás, estão Zelotes com
Bartolomeu, e vão falando um com o outro.
217.2 Em uma outra encruzilhada, onde uma estrada secundária atravessa a estrada mestra, lá está,
parado naquele ponto, um grupo de carrancudos fariseus, que certamente estão de volta das funções do
sábado, das quais eles participam no lugarejo que se vê lá no fundo da estrada secundária, um lugar largo e
plano, como se fosse um grande animal escondido em sua toca.
Jesus os vê, olha para eles, manso e sorridente, e os saúda:
– A paz esteja convosco!
Em vez de responder à saudação, um dos fariseus lhe pergunta, com arrogância:
– Quem és?
– Jesus de Nazaré.
– Estais vendo que é Ele? –diz um dos outros.
Nesse meio tempo, Natanael e Simão se aproximaram do Mestre, enquanto os outros, caminhando por
entre os sulcos, vêm vindo para o caminho. Estão ainda mastigando e com as conchas das mãos cheias de
grãos de trigo.
O fariseu que falou primeiro, talvez o mais poderoso, volta a falar com Jesus, que parou na expectativa
de ouvir o resto:
– Ah! Então és o famoso Jesus de Nazaré? Como foi que chegaste até aqui?
– Porque aqui também há almas para salvar.
– Para isso bastamos nós. Nós sabemos salvar as nossas e sabemos salvar as dos que dependem de nós.
– Se é assim, fazeis bem. Mas Eu fui enviado para evangelizar e salvar.
– Enviado! Enviado! E quem é que prova isso? Certamente que não o provam as tuas obras.
– Por que é que dizes isto? Não te importas com a tua Vida?
– Ah! Agora, sim. Tu és aquele que dá a morte àqueles que não te adoram. Queres, então, matar toda a
classe sacerdotal, a dos fariseus, a dos escribas e muitas outras, porque elas não te adoram e não te
adorarão nunca. Nunca, compreendes? Nunca nós, os eleitos de Israel, haveremos de adorar-te. E também
não te amaremos.
– Eu não vos forço a me amar. Eu vos digo: “Adorai a Deus” porque…
– Isto é, a Ti, porque tu és Deus, não é? Mas nós não somos os piolhentos populares galileus, nem os
tolos da Judeia, que andam atrás de Ti, esquecendo-se dos nossos rabis…
– Não te preocupes, homem. Eu não peço nada. Eu cumpro a minha missão, ensino a amar a Deus, e
torno sempre a repetir o Decálogo, porque ele está por demais esquecido e, pior ainda, está sendo mal
aplicado. Eu quero dar a Vida. A Vida Eterna. Eu não desejo para ninguém a morte corporal nem muito
menos, a morte espiritual. A Vida que Eu te perguntava se não te importavas em perder, era a da tua alma,
porque Eu amo a tua alma, mesmo quando ela não me ama. E fico angustiado, ao ver que tu a matas,
quando ofendes o Senhor, desprezando o seu Messias.
O fariseu parece ter sido invadido por uma convulsão, pelo tanto que está agitado: ele descompõe suas
vestes, desfia as franjas, tira o turbante, desgrenha os cabelos, e grita:
– Ouvi! ouvi! A mim, a Jônatas de Uziel, descendente direto de Simão, o Justo, a mim é que se vem dizer
uma coisa destas! Eu, ofender ao Senhor! Não sei quem me segura, que eu não te amaldiçoe, mas…
– É o medo quem te segura. Mas, faze o que queres. Por isso não é que irás ser reduzido a cinzas. A seu
tempo o serás e me invocarás então. Mas, entre Mim e ti, haverá, então, um pequeno rio vermelho: o meu
Sangue.
– Está bem. 217.3Mas, enquanto isso, Tu, que te dizes santo, por que é que permites certas coisas? Tu, que
te dizes Mestre, por que é que não instruis os teus apóstolos antes dos outros? Olha para eles ali atrás de
Ti!… Olha para eles, que estão ainda com o instrumento do pecado nas mãos! Não os estás vendo? Eles
apanharam espigas e hoje é sábado. Apanharam espigas que não eram deles. Violaram o sábado e ainda
roubaram.
– Nós estávamos com fome. Nós pedimos ao lugar aonde chegamos ontem à tarde, que nos dessem
alojamento e comida. Mas eles nos rechaçaram. Somente uma velhinha nos deu do seu pão e um punhado
de azeitonas. Que Deus lhe dê cem vezes mais, porque ela nos deu tudo o que tinha, pedindo somente uma
benção. Caminhamos uma milha, depois paramos, como é de lei, e bebemos a água de um rio. Em seguida,
quando chegou o pôr do sol, fomos àquela casa… Fomos expulsos de lá. Estás vendo que em nós havia
vontade de obedecer à Lei –responde Pedro.
– Mas não o fizestes. No sábado não é lícito fazer trabalho manual e nunca é permitido apanhar o que é
dos outros. Eu e os meus amigos ficamos escandalizados com isso.
– Mas Eu, não. Não lestes[88] como Davi, em Nob, apanhou os pães sagrados da Proposição, para
alimentar-se a si e aos seus? Os pães estavam consagrados a Deus em sua casa, reservados, por uma ordem
eterna, aos sacerdotes. Está dito[89]: “Pertencerão a Aarão e a seus filhos, que os comerão no lugar santo,
porque são uma coisa santíssima.” No entanto, Davi os apanhou para si e para os seus companheiros,
porque estava com fome. Agora, pois, se o santo rei entrou na casa de Deus e comeu os pães da Proposição
num sábado, ele a quem não era permitido comer deles e contudo isso não lhe foi imputado como pecado,
porque Deus continuou, mesmo depois disso, a tratá-lo como seu querido, como podes tu dizer que nós
somos pecadores, se colhemos no terreno de Deus as espigas que cresceram e amadureceram por vontade
dele, as espigas que pertencem também aos passarinhos, e tu negas que delas se possam alimentar os
homens, filhos do Pai? –pergunta Jesus.
– Eles haviam pedido aqueles pães. Não os apanharam sem pedir. E isso muda o aspecto da coisa. Além
disso, não é verdade que Deus não imputou aquilo a Davi como pecado. Deus o golpeou duramente.
– Mas não foi por isso. Pela luxúria, pelo recenseamento, e não por… –responde Tadeu.
– Oh! Basta. Não é permitido, e não é permitido! Não tendes direito de fazê-lo e o não fareis. 217.4Ide-vos
embora! Não vos queremos em nossas terras. Não precisamos de vós. Não sabemos o que fazer de vós.
– Nós iremos embora –diz Jesus, não permitindo aos seus discípulos de retrucar.
– E para sempre recordai-o! Que nunca mais Jonatas de Uziel te encontre em sua frente. Fora!
– Sim. Fora. Contudo, ainda nos encontraremos. E, então, será Jonatas quem me quererá ver, para
repetir a condenação e para livrar para sempre de Mim o mundo. Mas, então, será o Céu que te dirá: “Não
te é permitido fazer isso” e aquele “não te é permitido” te soará no coração como o ressoar de uma buzina
durante toda a vida, e além da vida. Assim como, nos dias de sábado, os sacerdotes no Templo violam o
repouso sabático e não cometem pecado, assim nós, servos do Senhor, podemos, uma vez que o homem nos
nega amor, buscar amor e socorro no Pai Santíssimo, sem com isto cometer faltas. Aqui está alguém que é
muito maior do que o Templo, e pode apanhar o que quiser de tudo o que houver na natureza, porque Deus
tudo fez para servir de escabelo para sua Palavra. E Eu, não só apanho, como dou. Assim, as espigas do Pai,
colocadas nesta imensa mesa que é a Terra, como a Palavra, Eu apanho e dou. Aos bons, como aos maus.
Porque Eu sou a Misericórdia. Mas vós não sabeis o que é Misericórdia. Se soubésseis o que quer dizer esse
meu “ser Misericórdia”, compreenderíeis também que Eu não quero mais do que ela. Se vós soubésseis o
que é a Misericórdia, não teríeis condenado os inocentes. Mas vós não sabeis. Vós não sabeis nem mesmo
que Eu não vos condeno, vós não sabeis que Eu vos perdoarei, e que até pedirei perdão ao Pai por vós.
Porque Eu quero a Misericórdia e não o castigo. Mas vós não sabeis. Não quereis saber. É este um pecado
maior do que aquele que me atribuís e que dizeis que estes inocentes cometeram. Afinal ficai sabendo que o
sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado, e que o Filho do homem é dono até do sábado.
Adeus…
E Jesus se vira para os discípulos:
– Vinde. Vamos procurar uma cama entre as areias, que já estão perto. Sempre teremos como
companheiras as estrelas, e nos dará sustento o orvalho. Deus proverá, Ele que mandou o maná para Israel,
alimentará a nós também, a nós pobres, mas fiéis a Ele.
E Jesus deixa assim no ar o grupo odiento, e lá se vai com os seus discípulos, enquanto a tarde vai
chegando com as suas primeiras sombras violáceas…
Encontram finalmente uma sebe de figueiras da Índia, em cuja copa, arrepiada com suas pazinhas
agressivas, estão figos, começando a ficar maduros Mas tudo é bom para quem está com fome. E, ferindo-
se, os discípulos vão colhendo os mais maduros, e vão andando, até que os campos terminam em umas
dunas arenosas. Ouve-se lá ao longe um rumor de mar.
– Permaneçamos aqui. A areia está fofa e quente. Amanhã, entraremos em Ascalon –diz Jesus e todos
caem cansados aos pés de uma alta duna.
[88] lestes em 1 Samuel 21,1-7.
[89] Está dito em Levítico 24,9. Pecados verdadeiros de Davi o qual alude Tadeu, foram a luxúria (já em 94.7) e o recencemento (em 2 Samuel 24,1-17; 1
Crônicas 21,1-17).
218. Chegada a Ascalon, cidade dos filisteus.
14 de julho de 1945.
218.1 A aurora vem chegando, com o seu hálito fresco, para despertar os adormecidos; Eles se levantam de
suas camas de areia, sobre as quais dormiram, ao abrigo de uma duna coberta por umas poucas ervas
secas, e sobem para a parte mais alta dela. Uma profunda costa arenosa está à frente deles, enquanto, um
pouco para um lado e um pouco para outro, há terrenos cultivados e bonitos. O leito de um rio sem água
põe em realce, com suas pedras brancas, o louro da areia e, com sua brancura de ossos dessecados, ele vai
até o mar, que daqui se vê reluzir lá longe, com seus vagalhões avolumados pela maré alta da manhã e
tornados ainda mais altos por um pouco do vento mistral, que está soprando e penteando o oceano.
Caminham à beira da duna até chegarem à torrente seca e a atravessam, e começam de novo a andar,
em diagonal, por sobre as dunas, que vão afundando debaixo dos seus pés, e que assim, todas onduladas,
mais parecem uma continuação do mar, agora com matérias sólidas e enxutas, em vez de suas águas
movediças. Chegam depois à praia úmida, e podem já andar mais depressa, enquanto João se deixa
hipnotizar, ao olhar o mar sem confins, que começa a luzir com os primeiros lampejos do sol e fica
parecendo estar bebendo aquela beleza, vai ficando com os olhos ainda mais azuis, e Pedro, mais prático,
tira as sandálias, sunga a veste, e vai patinhando nas pequenas ondas da margem, procurando achar algum
carangueijinho, ou algum molusco para chupar. Uma bela cidade marítima, a uns dois bons quilômetros de
distância, se estende à beira-mar por sobre o rochedo em forma de meia Lua e para além do qual o vento e
as borrascas transportaram as areias. E o rochedo, agora que a água, depois da maré, se retirou, fica
descoberto também aqui, obrigando os passantes a voltar a andar sobre as areias enxutas, para não
machucarem os seus pés nus nas pedras.
– Por onde vamos entrar, Senhor? Daqui se vê uma muralha bem compacta. Pelo mar não podemos
entrar. A cidade está no ponto mais fundo do arco –diz Filipe.
– Vinde. Eu sei por onde se entra.
– Já estiveste aqui?
– Uma vez, quando Eu era pequenino e Eu nem me lembraria mais. Mas Eu sei por onde se passa.
– É estranho! Eu já notei isso muitas vezes… Tu não erras nunca de caminho. Algumas vezes somos nós
que te fazemos errar. Mas Tu! Sempre parece que Tu tenhas estado no lugar onde te moves –observa Tiago
de Zebedeu.
Jesus sorri, mas não responde. 218.2Ele vai sem hesitações até um pequeno subúrbio rural, onde os
hortelãos cultivam verduras para a cidade. As chácaras e as hortas estão bem distribuídas e bem cuidadas,
e as mulheres e os homens as cultivam, e estão agora despejando água nos sulcos, água que tiram dos
poços com um grande trabalho para os braços, ou, então, com o velho e chiador sistema dos baldes,
elevados por um pobre burrinho que, com um tapa-olhos, fica andando ao redor do poço. Mas eles não
dizem nada. Jesus os saúda:
– Paz a vós.
E as pessoas permanecem, se não hostis, indiferentes.
– Senhor, aqui vamos correr o perigo de morrer de fome. Eles nem entendem a tua saudação. Agora,
quem vai experimentar sou eu –diz Tomé.
E fala ao primeiro hortelão que vê, dizendo-lhe:
– Custa caro a tua verdura?
– Não mais do que as das outras hortas. Cara ou não, conforme estiver mais ou menos gorda a bolsa.
– Disseste bem. Mas, como estás vendo, eu não morro por deixar de comer. Sou gordo e corado, mesmo
sem as tuas verduras. Sinal de que a minha bolsa é uma boa teta. Em poucas palavras: nós somos treze, e
podemos comprar. Que é que tens para vender?
– Ovos, verduras, amêndoas temporãs e maçãs já murchas, porque apanhadas há tempo, azeitonas… o
que quiseres.
– Dá-me ovos, maçãs e pão para todos.
– Pão, eu não tenho. Tu o achas na cidade.
– Eu estou com fome agora, e não com fome daqui a uma hora. Não creio que não tenhas pão.
– Não tenho. A mulher o está fazendo. Mas, estás vendo lá aquele velho? Ele sempre tem bastante,
porque, como mora perto da estrada, muitos peregrinos lhe pedem. Vai a Ananias, e pede-lhe. Agora, vou
buscar os ovos. Mas, olha que custam um denário cada dois.
– Ladrão. Será que as tuas galinhas põem ovos de ouro?
– Não. Mas não é bonito ficar no meio do fedor da galinhada e, de graça não se fica lá. Além disso, vós
não sois judeus? Então, pagai.
– Fica com eles para ti. Está bem pago –e Tomé lhe vira as costas.
– Eh! Ó homem, vem aqui. Eu tos dou por menos. Três por um denário.
– Nem quatro. Bebe-os tu, e que te dêem um nó na garganta.
– Vem cá. Escuta. Quanto queres dar?
O hortelão vai atrás do Tomé.
– Nada. Não os quero mais. Eu queria fazer uma ligeira refeição, antes de ir para a cidade. Mas é
melhor assim. Não perderei a voz nem o apetite para poder cantar as histórias dos reis e para tomar uma
boa refeição no albergue.
– Eu lhes dou a uma didracma cada dois.
– Puxa! És pior do que uma mutuca. Dá-me os teus ovos. E que sejam frescos. Se não, eu volto aqui e
faço teu nariz ficar mais amarelo do que já está –e Tomé já vai levando pelo menos duas dúzias de ovos na
dobra da capa–. Vistes? As despesas sou eu que as farei daqui em diante, nesta terra de ladrões. Eu sei
como lidar com eles. Eles vêm cheios de dinheiro para comprar de nós para as suas mulheres, e os
braceletes que compram nunca são grossos demais, e nos preços pechincham dias inteiros. Mas eu me
vingo. 218.3Agora, vamos àquele outro escorpião. Vem, Pedro. E tu, João, segura os ovos.
Vão indo até o velho, que tem uma horta comprida, ao lado da estrada mestra, que, vindo do norte,
passando rente às casas do subúrbio, conduz à cidade. É uma estrada bonita, bem calçada, certamente obra
dos romanos. A porta da cidade, do lado oriental, já está perto e, para além dela, se vê que a estrada
continua reta. É realmente artística, transformada em uma dupla série de pórticos sombreados, sustentados
por colunas de mármore, a cuja sombra fresca o povo caminha, deixando o centro da estrada para os
jumentos, os camelos, os carros e os cavalos.
– Bom dia! Aqui vende pão? –pergunta Tomé.
O velho, ou não ouve, ou não quer ouvir. Na verdade, a chiadeira que a nora faz é tão forte, que chega a
criar confusão.
Pedro, perde a paciência, e grita:
– Segura o teu Sansão! Pelo menos ele poderá tomar fôlego, para que não acabe morrendo aqui, diante
de meus olhos. E escuta-nos!
O homem faz o burrinho parar, e fica olhando de lado para o seu interlocutor, mas Pedro o desarma,
dizendo:
– E, então? Não será justo pôr o nome de Sansão em um burrinho? Se és filisteu, bem que te deves
alegrar, porque é uma ofensa a Sansão[90]. E, se és de Israel, te deves alegrar, porque nos faz lembrar uma
das derrotas dos filisteus. Logo, como estás vendo…
– Eu sou filisteu, e me orgulho disto.
– Fazes bem. Eu também te louvarei, se nos deres pão.
– Mas, não és tu judeu?
– Eu sou cristão.
– Que lugar é esse?
– Não é um lugar. É uma pessoa. Eu sou dessa pessoa.
– És escravo dela?
– Eu sou livre mais do que qualquer outro homem, porque quem é daquela pessoa não depende senão de
Deus.
– Dizes a verdade? Não depende nem de César?
– Que César! Que é o César em comparação com Aquele que eu acompanho e ao qual pertenço, e em
nome do qual eu te peço um pão?
– Mas, onde está esse poderoso?
– É aquele homem lá, que está olhando para cá e sorrindo. É Cristo, o Messias. Nunca ouviste falar dele?
– Sim, o rei de Israel. Vencerá Roma?
– Roma só? Ele vencerá o mundo todo, e até o Inferno.
– E vós sois os generais dele? Vestidos assim? Talvez para fugirdes às perseguições dos pérfidos judeus.
– Sim e não. Mas, dá-me um pão, que, enquanto vamos comendo, eu te explicarei.
– Pão só? Eu te darei também água, vinho, cadeiras à sombra, a ti, ao teu companheiro e ao teu Messias.
Chama-o.
E Pedro sai, movendo rapidamente as pernas, até Jesus:
– Vem, vem. O velho filisteu nos dá o que queremos. Mas eu creio que ele nos acutilará com perguntas…
Eu lhe disse quem és…mais ou menos, eu lho disse. Mas ele está bem disposto.
218.4 Vão todos para a horta, onde o homem já colocou uns bancos ao redor de uma mesa tosca, debaixo
de uma viçosa trepadeira de videira.
– A paz a ti, Ananias. Que a terra produza flores por tua caridade, e te dê abundantes frutos.
– Obrigado. A paz a Ti. Senta-te, sentai-vos. Anibe! Nubi! Pão, vinho, água. Depressa –ordena o velho a
duas mulheres, certamente africanas, pois uma é totalmente negra, dos lábios grossos e cabelos
encarapinhados, e a outra é bem escura, mas já de um tipo mais europeu.
E o velho explica:
– São as filhas das escravas de minha mulher. Ela morreu e morreram as que tinham vindo com ela. Mas
as filhas ficaram. É o alto e o baixo Nilo. Minha mulher era de lá. Proibido, não? Mas eu não ligo para isso.
Eu não sou de Israel, e as mulheres de raça inferior são mansas.
– Não és de Israel?
– Eu o sou, mas forçado, porque Israel está sobre o nosso pescoço, como um jugo. Mas… tu és israelita,
e ficarás ofendido com isto que te estou dizendo?
– Não. Eu não me ofendo. Gostaria somente que tu escutasses a voz de Deus.
– Ele não nos fala.
– Tu é que dizes isto. Eu te falo, e é a voz dele.
– Mas Tu és o rei de Israel.
As mulheres, que já vêm chegando com pão, água e vinho, e ao ouvir falar de “rei”, param, surpresas,
olhando para aquele jovem louro, sorridente, cheio de dignidade, que o patrão chamou de “rei”, e depois
procuram retirar-se, mas quase que rastejando, por causa do respeito.
– Obrigado, mulheres. E a paz também para vós.
Depois, dirigindo-se de novo ao velho:
– Elas são jovens… Podes, pois, continuar o teu trabalho.
– Não. A terra está molhada, e pode esperar. Fala um pouco. Anibe, para o asno, e leva-o para a sombra.
E tu, Nubi, vai despejar os últimos baldes, e depois… Tu ficas conosco, Senhor?
– Não te incomodes com outras coisas. Pois para Mim, basta-me tomar um pouco de alimento, e depois
vou entrar em Ascalon.
– Eu não fico incomodado. Vai, pois, Tu à cidade. Mas de tarde, volta, que vamos partir o pão e
compartilhar do sal. E vós, ide depressa: tu a fazer o pão, e tu, vai chamar o Geteu e dizer-lhe que mate um
cabrito, e o prepare para a tarde. Ide.
E as duas mulheres lá se vão, sem dizerem nada.
218.5 – De forma que, então, és rei? Mas, e as tuas armas? Herodes é cruel em tudo o que faz. Ele nos
reconstruiu Ascalon. Mas foi para glória dele. E agora… Mas as vergonhas de Israel, Tu as conheces melhor
do que Eu. Como farás?
– Eu não tenho outra arma, senão a que vem de Deus.
– Será a espada de Davi?
– A espada da minha palavra.
– Oh! Pobre ingênuo! Ela perderá a ponta e perderá o fio, ao encontro do bronze dos corações.
– Assim achas? Eu não tenho em vista um reino deste mundo. Para vós todos Eu tenho em vista o Reino
dos Céus.
– Para nós todos? Até para mim, um filisteu? Até para as minhas escravas?
– Para todos. Para ti e para elas. E até para o selvagem, que está no centro das florestas da África.
– Queres formar um reino desse tamanho? E por que é que o chamas dos Céus? Poderias chamá-lo Reino
da Terra.
– Não. Não erres em compreender. O meu é o Reino do Verdadeiro Deus. Deus está no Céu. Por isso é o
Reino do Céu. Cada homem é uma alma vestida de corpo, mas a alma só pode viver nos Céus. Eu quero
cuidar da alma, livrá-la dos erros e dos ódios, e conduzi-la para Deus pelo caminho da bondade e do amor.
– Isto me agrada muito. Os outros, eu a Jerusalém não vou, mas sei que os outros de Israel, há muitos
séculos não falam assim. Queres dizer que Tu não nos odeias?
– Eu não odeio a ninguém.
O velho fica pensando… depois pergunta:
– E as duas escravas, terão elas também uma alma como vós de Israel?
– Com toda a certeza. Elas não são feras que tenham sido capturadas. São criaturas infelizes. Devem ser
amadas. Tu as amas?
– Não as trato mal. Quero obediência, mas não faço uso do açoite, e as alimento bem. Animal não bem
nutrido não pode trabalhar, costuma-se dizer. Mas também o homem mal alimentado não é um bom negócio.
Além disso, são nascidas aqui em casa. Eu as vi pequeninas. Agora ficam só elas, porque eu sou muito
velho, sabes? Quase oitenta. Elas e Geteu são o resto de minha casa de tempos passados. Eu me afeiçoei a
elas como a móveis de minha propriedade. Elas é que me fecharão os olhos…
– E depois?
– Depois… Ora! Eu não sei. Irão trabalhar como criadas, e nossa casa se desfará. Isso me desagrada. Eu
a fiz abastada, com o meu trabalho. Esta terra se tornará arenosa, estéril… Esta vinha… Nós a plantamos,
eu e a mulher. Aquele roseiral… é egípcio, Senhor. Sinto nele o odor da minha esposa… Parece-me um
filho… o único filho que está sepultado aos pés dele, já transformado em pó… Dores… Melhor morrer jovem
e não ficar vendo isto, e a morte que vem chegando…
– O teu filho não está morto, nem a tua mulher. O espírito deles continua vivo. O que deles morreu foi a
carne. A morte não deve espantar. É vida a morte para quem espera em Deus, e vive como justo. Pensa
nisto. Eu vou à cidade. Voltarei esta tarde, e vou pedir-te aquele pórtico para dormir com os meus.
– Não, Senhor. Eu tenho muitos quartos vazios. E os ofereço.
Judas põe sobre a mesa algumas moedas.
– Não. Não as quero. Eu sou desta terra mal vista por vós. Mas talvez sejam melhor do que aqueles que
nos dominam. Adeus, Senhor.
– A paz a ti, Ananias.
As duas escravas, junto com Geteu, um musculoso camponês já ancião, vieram para vê-lo partir.
– A paz também a vós. Sede bons. Adeus.
E Jesus toca de leve nos cabelos encarapinhados de Nubi e nos claros e estendidos da Anibe, sorri para
o homem, e lá se vai.
218.6Pouco depois, entram em Ascalon, passando pelo dúplice pórtico, que vai diretamente para o centro
da cidade, uma imitação de Roma, com tanques e fontes, com praças como a do Foro, com torres ao longo
dos muros, e sobretudo com o nome de Herodes lá colocado por ele mesmo, para aplaudir-se, visto que os
ascalonitas não o aplaudem. Há muito movimento e cresce muito, a cada hora que passa, e vai ficando perto
a parte central da cidade, uma cidade aberta, bem arejada, com fundos iluminados e virados para o mar,
que fica parecendo fechado como uma turquesa em uma tenaz de coral cor-de-rosa, pelo meio das casas
espalhadas no arco profundo, que faz parte da costa, sem chegar a ser um golfo, mas um verdadeiro arco,
uma porção do círculo que o sol ilumina todo, dando-lhe um tom róseo muito suave.
– Vamos dividir-nos em quatro grupos. Eu vou, ou melhor, deixo que vades. Depois, Eu escolherei. Ide.
Depois da hora nona, Eu vos encontrarei, junto à Porta, pela qual tivermos entrado. Sede prudentes, e
tende paciência.
E Jesus fica olhando como eles vão andando, e Ele permanece sozinho com Judas Iscariotes, que já
declarou que a esses não vai dizer nada, porque são piores do que os pagãos. Mas, quando percebe que
Jesus quer ficar andando para lá e para cá, sem falar, então ele muda de pensamento, e diz:
– Desagrada-te ficar sozinho? Eu iria com Mateus, Tiago e André, que são os menos capazes…
– Então, vai. Adeus.
E Jesus vai andando pela cidade, percorrendo-a no sentido do comprimento e da largura, como um
desconhecido, por entre as pessoas atarefadas, que nem prestam atenção nele. Somente dois ou três
meninos levantam a cabeça, curiosos, e uma mulher desonestamente vestida, que vai decididamente ao
encontro dele, com um sorriso cheio de subentendidos. Mas Jesus olha para ela de um modo tão sério, que
ela fica corada, e abaixa os olhos, indo-se embora dali. Tendo ela chegado a um canto, vira-se ainda, e, visto
que um homem do povo, que observou a cena, lhe lança uma palavra mordaz de zombaria por sua derrota,
ela se enrola em seu próprio manto, e foge.
Os meninos, ao contrário, andam ao redor de Jesus, olham para Ele, sorriem ao seu sorriso. Um mais
corajoso pergunta:
– Quem és?
– Jesus –responde Ele, acariciando-o.
– Que fazes?
– Estou esperando uns amigos.
– São de Ascalon?
– Não. Da minha terra e da Judeia.
– És rico? Eu, sim. Meu pai tem uma bela casa e dentro está fazendo tapetes. Vem ver. É aqui perto.
E Jesus vai sozinho com o menino, entrando por um longo corredor, que mais parece uma estrada
coberta. No fundo, tornado mais vivo por causa da penumbra do corredor, está brilhando um escorço de
mar, muito iluminado pela luz do Sol.
218.7 Aí encontram uma menina muito magra, que está chorando.
– É Dina. É pobre, sabes? Minha mãe lhe dá comida. A mãe dela não pode mais trabalhar. O pai já
morreu, no mar. Foi numa tempestade, quando de Gaza ele ia para o porto do Grande Rio, a fim de levar
umas mercadorias e apanhar outras. Mas, como as mercadorias eram do meu pai, e o pai da Dina era um
marinheiro nosso, minha mãe agora cuida delas. Mas, há tanta gente que ficou assim sem pai… Que dizes
Tu? Deve ser triste ficar órfãos e pobres. Aqui está a minha casa. Não digas a eles que eu estava na rua. Eu
devia agora estar na escola. Mas eu fui mandado para fora, porque eu estava fazendo os companheiros rir,
com isto aqui… –e ele puxa para fora de sua veste um boneco entalhado em madeira em uma tabuinha fina
e, na verdade, muito engraçado, apresentado com uma barba e um nariz muito caricaturados.
Jesus tem um sorriso, que lhe tremula sobre os lábios, mas se refreia, e diz:
– Não é o professor, é? Nem algum parente, não fica bem.
– Não. É o sinagogo dos judeus. Ele é velho e feio, e nós sempre zombamos dele.
– Isso também não está direito. Certamente ele é muito mais velho do que tu e…
– Oh! É um velho corcunda e quase cego, mas é tão feio!… Eu não tenho culpa se ele é feio!
– Não. Mas tens culpa por zombares de um velho. Também tu, quando fores velho, serás feio, porque
ficarás encurvado, terás poucos cabelos, serás meio cego, caminharás com uma bengala e terás uma cara
como aquela. E, então? Terás prazer se algum menino sem respeito zombar de ti? E, depois, para que
perturbar o mestre e os companheiros? Não fica bem. Se teu pai soubesse disso, te castigaria, e tua mãe
ficaria aborrecida. Eu não direi nada a eles, contanto que me dês logo duas coisas: a promessa de não
cometer mais essas faltas e que me dês esse boneco. Quem foi que o fez?
– Eu mesmo, Senhor… –diz, envergonhado, o menino, já agora consciente da gravidade de suas
travessuras…
E acrescenta:
– Eu gosto muito de entalhar a madeira! Algumas vezes eu reproduzo as flores dos tapetes, ou os
animais que neles estão representados. Sabes?… Aqueles dragões, as esfinges, e outros animais ainda…
– Estas coisas tu podes reproduzi-las. Há tantas coisas bonitas neste mundo! E, então, prometes que me
dás este boneco? Se não, não somos mais amigos. Eu o conservarei como lembrança de ti, e rezarei por ti.
Como te chamas?
– Alexandre. E Tu, o que me dás?
Jesus fica embaraçado. Ele tem sempre muito pouco! Mas depois se lembra de ter uma fivela muito
bonita, na gola de uma de suas túnicas, e a procura no saco, encontra e tira, e a dá ao menino.
– E agora vamos. Mas, presta atenção: mesmo que Eu me vá embora, Eu sei de tudo do mesmo modo. E,
se Eu ficar sabendo que estás fazendo o mal, Eu volto aqui, e conto tudo à mamãe.
E o pacto ficou feito.
218.8 Eles entram na casa. Depois do vestíbulo, há um amplo pátio, e este é cercado de três lados por
umas salas grandes, onde estão os teares.
A criada foi abrir, surpresa por ver o menino chegar acompanhado por um desconhecido, e vai avisar à
patroa. E esta, uma mulher de aparência gentil, chega correndo, e pergunta:
– Mas será que o meu filho sentiu-se mal?
– Não, mulher. Ele me trouxe para ver os teus teares. Eu sou um forasteiro.
– Queres fazer compras?
– Não. Eu não tenho dinheiro. Mas tenho amigos, que gostam de coisas bonitas, e que têm dinheiro.
A mulher olha curiosamente para este homem que confessa, assim sem rodeios, que é pobre, e lhe diz:
– Eu pensava que fosses um senhor. Tens os modos e os ares de um grão senhor.
– Mas, em vez disso, Eu sou simplesmente um rabi galileu: Jesus, o Nazareno.
– Nós fazemos negócios, e não temos prevenções. Vem e olha!
E o leva a olhar os seus teares, onde umas moças trabalham, sob a direção da patroa. Os tapetes são
realmente dignos de ser apreciados, seja pelos desenhos, seja pelas cores. São de uma boa espessura,
macios. Parecem canteiros em flor, ou um caleidoscópio de pedras preciosas. Outros misturaram às flores
figuras alegóricas como hipogrifos, sereias, dragões, e até mesmo grifos heráldicos semelhantes aos nossos.
Jesus se mostra admirado:
– És muito inteligente. Fiquei contente por ter visto tudo isso. E fiquei contente porque tu és boa.
– Como sabes disso?
– Se vê, e o menino me falou de Dina. Deus te recompense por isso. Ainda que tu não creias, estás já
muito perto da Verdade, já que tens em ti a caridade.
– Qual verdade?
– A do Senhor Altíssimo. Quem ama ao próximo, e para com a família e os dependentes exercita a
caridade, e a estende até aos mise ráveis, já tem em si a Religião. 218.9Aquela ali é a Dina, não é mesmo?
– Sim. A mãe dela está para morrer. Depois, eu ficarei com ela, mas não para trabalhar nos teares. Ela é
ainda muito pequena e frágil. Vem aqui, Dina, a este senhor.
A menina, com o rostinho triste das crianças infelizes, aproxima-se dele timidamente.
Jesus a acaricia, e lhe diz:
– Tu me levas à tua mãe? Gostarias que ela ficasse sã, não é verdade? Então, leva-me a ela. Adeus,
mulher. E, adeus, Alexandre. E sê bom.
E Jesus sai com a menina pela mão.
– És tu só? –ele pergunta.
– Tenho três irmãozinhos. O último não conheceu o pai.
– Não chores. És capaz de crer que Deus pode curar tua mãe? Tu sabes, não é mesmo, que há um só
Deus, que ama os homens que Ele criou, e especialmente as crianças boas? E que Ele tudo pode?
– Eu sei, Senhor. Antes, o meu irmão Tolmé ia à escola, e na escola, nós nos misturamos com os judeus.
E assim ficamos sabendo muitas coisas. Sei que Ele existe, e que se chama Javé, e que nos puniu, porque os
filisteus foram maus para com Ele. Disso nos acusam sempre as crianças hebreias. Mas, eu não existia
ainda, nem minha mãe, nem meu pai. Por que então?… –e o pranto lhe embarga a palavra.
– Não chores. Deus te ama e me trouxe aqui por causa de ti e da tua mamãe. Sabes que os israelitas
esperam o Messias, que deve vir para fundar o Reino dos Céus? O Reino de Jesus Redentor e Salvador do
mundo?
– Eu o sei, Senhor. E nos ameaçam, dizendo: “Ai de vós!”
– E sabes que é que o Messias fará?
– Fará grande a Israel, e nos tratará muito mal.
– Não. Ele redimirá o mundo, tirará o pecado, ensinará a não pecar, amará aos pobres, os doentes, os
aflitos, irá a eles, ensinará aos ricos, aos sãos e aos felizes a amá-los, recomendará que sejam bons, para
terem a vida eterna e feliz no Céu. Isto Ele fará. E não oprimirá a ninguém.
– E, como se ficará sabendo que é Ele?
– Porque Ele amará a todos, curará os doentes que crêem nele, redimirá os pecadores, e ensinará o
amor.
– Oh! Se Ele estivesse aqui, antes que minha mãe morra! Como eu haveria de crer! Como eu o pediria!
Eu iria procurá-lo, até que o encontrasse, e lhe diria: “Eu sou uma pobre menina sem pai, minha mãe está
para morrer, e eu espero em Ti”, e tenho a certeza de que, ainda que eu seja uma filisteia, Ele me atenderia.
É uma fé simples e forte a que vibra na voz da menina. Jesus sorri, olhando para a pobrezinha, que vai
andando a seu lado. Ela não está vendo este sorriso luminoso, porque está olhando para a frente, para a
casa que já está perto…
218.10 Chegam a um casebre muito pobre, no fundo de um beco sem saída.
– É aqui, Senhor. Entra…
Um quartinho miserável, um colchão de palha, tendo sobre ele um corpo mirrado, três pequeninos com
idades entre dez e três anos, sentados perto do colchão. A miséria e a fome transparecem em cada canto.
– A paz a ti, mulher. Não te movas. Não queremos te incomodar. Encontrei a tua filha, e fiquei sabendo
que estás doente. E Eu vim. Gostarias de ficar sã?
A mulher, com um fio de voz, responde:
– Oh! Senhor!… mas, para mim tudo se acabou!… –e chora.
– Tua filha chegou a crer que o Messias poderia curar-te. E tu?
– Oh! Eu também creria. Mas, onde está o Messias?
– Sou Eu, que estou falando contigo.
E Jesus, que estava inclinado sobre o colchão, murmurando suas palavras perto do rosto da pobre
prostrada, ergue o busto, e diz em voz alta:
– Eu quero. Fica curada.
Os meninos quase que ficam amedrontados com a imponência dele e estão, os três rostinhos
espantados, fazendo uma coroa ao redor da enxerga da mãe. Dina junta e aperta as mãos sobre seu
pequeno peito. Uma luz de esperança, de felicidade, brilha em seu rostinho. Ela está arquejante, de tão
grande que é a sua emoção. Está de boca aberta, querendo dizer uma palavra, que seu coração está
murmurando, e, quando vê que sua mãe, que antes estava da cor da cera e abandonada, agora, como se
uma força a puxasse para si e se transfundisse nela, quando vê a mãe que ergue o busto para sentar-se
depois, sempre com os olhos fixos no Salvador, e se põe de pé, então Dina é que dá um grande grito de
alegria. “Mamãe!” Afinal, ela disse a palavra que lhe estava enchendo o coração!… E, depois, outra:
“Jesus!” E, abraçando a mãe, a obriga a ajoelhar-se, dizendo:
– Adora, adora! É Ele aquele que o mestre de Tolmé dizia ser o Salvador profetizado.
– Adorai o verdadeiro Deus, sede bons, lembrai-vos de Mim. Adeus.
E rapidamente Ele sai, enquanto as duas, muito felizes, ainda estão prostradas no chão…
[90] Sansão, cujaas ações empreendidas contra os filisteus são narradas em Juízes 14-16. Além disso, as lutas entre Israel e os filisteus, as quais muitas
vezes se aludem no presente capítulo e nos sucessivos (a ultima vez em 221.9), são o argumento dominante de 1Samuel 4-7; 13-14; 17; 23; 28; 31.
219. Diversos frutos da pregação
dos apóstolos na cidade de Ascalon.
15 de julho de 1945.
219.1 Obedientes à ordem recebida, os pequenos grupos dos apóstolos vão chegando, um depois do outro,
para perto da porta da cidade. Jesus ainda não está lá. Mas logo Ele também vem chegando por uma
ruazinha, que fica à beira do muro.
– O Mestre deve ter tido boa sorte –diz Mateus–. Olhai como Ele vem sorrindo.
Eles vão ao encontro dele, e saem todos juntos pela porta, para pegarem de novo a estrada mestra, que
tem aos seus lados as hortas do subúrbio.
Jesus lhes pergunta:
– E então? Como foi a vossa ida? Que foi que fizestes?
– Foi muito mal –respondem juntos Iscariotes e Bartolomeu.
– Por quê? Que vos aconteceu?
– Aconteceu que pouco faltou para nos apedrejarem. E nós tivemos que escapar deles. Vamos embora
desta terra de bárbaros. Vamos voltar para onde gostam de nós. Eu aqui não falo mais. Eu já não queria
falar. Mas, depois, eu me deixei convencer, e Tu não me detiveste. E, no entanto, Tu sabes as coisas…
Iscariotes está inquieto.
219.2 – Mas, que foi que sucedeu contigo?
– Eu tinha ido com Mateus, Tiago e André. Nós nos tínhamos dirigido para a praça dos Julgamentos,
porque lá há gente fina e que tem tempo a perder, ouvindo a quem fala. Mas nós decidimos que Mateus é
que iria falar, por ser o mais apto para falar aos publicanos e aos clientes deles. E ele começou a falar,
dizendo a dois, que estavam discutindo por disputarem um campo, em uma herança muito complicada:
“Não vos odieis por uma coisa que perece, por uma coisa que não podeis levar convosco para a outra vida.
Mas amai-vos, a fim de poderdes gozar dos bens eternos, conseguidos sem outra luta, a não ser contra as
más paixões, que por nós devem ser vencidas, e assim nos tornarmos vencedores e possuidores do Bem.”
Tu dizias assim, não é verdade? E depois ele continuou, enquanto dois ou três se aproximaram para
escutar: “Escutai a Verdade, que ensina estas coisas ao mundo para que o mundo tenha paz. Vós estais
vendo quanto se sofre por isso. Por esse excessivo interesse pelas coisas que morrem. Mas a terra não é
tudo. Existe também o Céu, e no Céu está Deus, assim como na terra agora já está o Messias, o qual nos
manda vir anunciar-vos que o tempo da Misericórdia chegou, e que não há pecador que possa dizer: ‘Eu
não serei atendido’, porque, se alguém tem um verdadeiro arrependimento, recebe perdão, é atendido, é
amado e convidado para o Reino de Deus.”
Muitas pessoas já se haviam ajuntado, e havia os que escutavam com respeito, havia os que faziam
perguntas, e perturbavam Mateus. Eu já não dou respostas, para não estragar o discurso. Eu falo, e
respondo a cada um no fim. Que eles guardem na memória o que querem dizer, e se calem. Mas Mateus
queria responder logo!… E até nós éramos interrogados. Mas havia também os que zombavam dele,
dizendo: “Eis aí mais um doido! Certamente ele vem daquela toca que é Israel. Os judeus são uma praga,
que se alastra por toda parte! Eis aí, aí estão as suas eternas lorotas. Eles têm a Deus por compadre. Escuta
o que estão dizendo. Deus está no fio da espada deles e na acidez de sua linguagem. Ei-los aí! Aí estão eles!
Agora estão tirando para o baile o seu Messias. É mais algum outro frenético, que vai nos atormentar, como
sempre foi nos séculos passados. Que a peste acabe com Ele e com sua raça!”
Então, eu perdi a paciência. Puxei para trás Mateus, que estava ainda falando e sorrindo como se lhe
estivessem prestando honras, e comecei a falar eu, tomando Jeremias[91] como base para o meu discurso:
“Eis que as águas vem subindo do norte, e se tornarão uma torrente que inunda tudo…” “Ao rumor delas,
eu disse, — porque a punição de Deus sobre vós, raça malfazeja, terá o rumor de muitas águas e serão
forças armadas e celestes fundibulários do Céu, todos mobilizados por ordem dos chefes do Povo de Deus,
para punir-vos por vossa obstinação — ao rumor delas, vós perdereis o vigor, cairão as vossas soberbas,
vossos corações, vossos braços, afetos, tudo. Sereis exterminados como uns restos da ilha do pecado, porta
do Inferno! Vós vos ensoberbecestes, porque vossa cidade foi reconstruída por Herodes? Mas sereis ainda
mais arrasados, até o ponto de vos tornardes calvos sem remédio, assim ficareis; feridos por todos os
castigos em vossas cidades e vilas, nos vales e nas planícies. A profecia não morreu ainda…” E, eu queria
continuar, mas eles se arrojaram contra nós, e, somente porque uma providencial caravana ia passando por
uma estrada é que pudemos salvar-nos, pois as pedras já estavam começando a voar. Acertaram os camelos
e os cameleiros, e se formou uma confusão, e pudemos escapar dela por um fio. Depois ficamos parados em
um patiozinho do subúrbio. Ah! Eu não venho mais aqui…
219.3 – Mas, desculpa, tu os ofendeste! A culpa é tua! Agora se compreende por que vieram tão hostis para
nos expulsarem! –exclama Natanael.
E continua:
– Escuta, Mestre. Nós, isto é, Simão de Jonas, Eu e Filipe tínhamos ido para o lado da torre voltada para
o mar. Lá havia marinheiros e capitães, que estavam carregando mercadorias para Chipre, para a Grécia e
até para mais longe. Eles estavam maldizendo o sol, a poeira, o cansaço. Blasfemavam contra sua sorte de
filisteus, escravos dos prepotentes, como eles diziam, quando podiam ser reis. Eles blasfemavam contra os
Profetas, o Templo e todos nós. Eu queria ir-me embora de lá, mas Simão não quis, e disse: “Não, pelo
contrário. Pois são justamente estes pecadores de quem nos havemos de aproximar. O Mestre faria assim e
também nós devemos fazê-lo.” “Então, fala tu a eles”, dissemos eu e Filipe. “E, se eu não o sei fazer?”, disse
Simão. “Então nós te ajudaremos”, respondemos nós. E então, Simão foi, sorridente, para o lado de dois,
que estavam suados, e se haviam sentado sobre um grande fardo, que eles não conseguiam içar para o
navio, e lhes disse: “Está pesado, não é?” “Mais do que pesado é o nosso cansaço. E precisamos terminar a
carga, porque o capitão assim o quer. Ele não quer zarpar na hora da calmaria, porque nesta tarde o mar
vai ficar muito agitado, e precisamos já ter ultrapassado os escolhos, para que não haja mais perigos.”
“Escolhos no mar?” “Sim. Lá naquele ponto em que a água está fervendo. São lugares perigosos.” “São as
correntes, não? É isso. O vento do sul lá vira a ponta, e bate contra aquela corrente…” “És marinheiro?”
“Sou pescador. De água doce. Mas a água é sempre água. E o vento é sempre vento. Bebi água mais de uma
vez, e minha carga foi para o fundo mais de uma vez. Bonito, mas perigoso é o nosso trabalho: mas em
todas as coisas existe o belo e o perigoso, o bom e o mau. Nenhum lugar é só de maus, e nenhuma raça é só
de cruéis. Com um pouco de boa vontade, sempre todos se põem de acordo, e sempre se encontra gente
boa por toda parte. Vamos! Eu vos quero ajudar.” E Simão chama Filipe, dizendo: “Força! Pega de lá, que eu
pego de cá, e essa boa gente nos guia até lá, por dentro do navio, até à estiva.” Os filisteus não queriam.
Mas, depois deixaram fazer. Tendo levado para o lugar o fardo e mais alguns que estavam sobre a ponte,
Simão começou a elogiar o navio, a falar bem do mar, da cidade tão bonita, vista do mar, a interessar-se
pela navegação marítima e por cidades de outras nações. E todos ao redor se puseram a agradecer-lhe e a
elogiá-lo… até que um deles lhe perguntou: “Mas de onde és tu? Serás nilótico?” “Não, sou do Mar da
Galileia. Mas, como estais vendo, não sou um tigre.” “É verdade. Estás procurando trabalho?” “Sim.” “Eu te
aceito, se quiseres. Vejo que és um marinheiro muito capaz, diz o capitão.” “Mas, em vez disso, eu te
aceito.” “A mim? Mas, não disseste que estás procurando trabalho?” “É verdade. O meu trabalho é levar os
homens ao Messias de Deus. Tu és um homem. És, pois, para mim um trabalho.” “Mas, eu sou filisteu!” “E,
que quer dizer isso?” “Quer dizer que vós nos odiais, nos perseguis, desde o tempo dos tempos. Os vossos
chefes sempre o disseram…” “Os Profetas, não é? Mas agora os Profetas são vozes que não urram mais.
Agora o único e grande santo é Jesus. Ele não urra, mas chama com voz amiga. Ele não amaldiçoa, mas
abençoa. Ele não traz doenças, mas as tira. Ele não odeia, e não quer que se odeie. Mas, pelo contrário, ele
ama a todos, e quer que amemos até aos inimigos. No seu reino não haverá mais vencedores e vencidos,
não mais escravos e livres, não mais amigos e inimigos. Não haverá mais essas distinções que fazem mal e
que vieram da maldade humana; mas só existirão os seguidores dele, isto é, pessoas que vivem no amor, na
liberdade, vitoriosas sobre tudo o que é peso e dor. Eu vos peço que queirais crer em minhas palavras, e
sentir desejo dele. As profecias foram escritas. Mas Ele é ainda maior do que os Profetas; e, para quem o
ama, as profecias terminaram. Estais vendo esta vossa bela cidade? Mais bela ainda a reencontraríeis no
Céu, se chegásseis a amar a Nosso Senhor Jesus, o Cristo de Deus.”
Assim dizia Simão, bondoso e inspirado ao mesmo tempo, e todos o estavam escutando com atenção e
respeito. Sim, respeito. Depois, por uma rua, se desentocaram, e saíram gritando uns moradores armados
com paus e pedras, e nos viram, e pela veste conheceram que éramos forasteiros, agora compreendo,
forasteiros da tua raça, Judas, e ficaram pensando que éramos da tua sociedade. Se não nos protegessem
aqueles que eram do navio, estaríamos mal arranjados. Eles desceram até o mar uma chalupa e nos
levaram, fazendo-nos desembarcar na praia que fica perto dos jardins do sul, e nós estamos voltando de lá
junto com os que lá cultivam flores para os ricos daqui. 219.4Mas tu, Judas, estragas tudo! Que modo é aquele
teu de insultar?
– Mas é verdade.
– É preciso saber usar dela. Pedro também não disse mentiras, mas soube falar –rebate Natanael.
– Oh! Eu! Eu procurei pôr-me no lugar do Mestre, e pensei: “Ele seria delicado assim. Então, eu
também…” –diz simplesmente o Pedro.
– Eu gosto do estilo forte. É mais próprio de um rei.
– É a tua ideia de sempre! Tu não tens razão, Judas. Já faz um ano que o Mestre vem te corrigindo nesta
ideia . Mas não aceitas as correções. Tu também estás obstinado no erro, como estes filisteus, aos quais
queres te impor –acusa-o Simão Zelotes.
– Quando foi que Ele me corrigiu por isso? Além disso, cada um faz uso do modo que tem.
Simão Zelotes sente até um sobressalto, ao ouvir estas palavras e olha para Jesus, que está calado, e
que, diante daquele olhar que traz lembranças, responde a ele com um leve e compreensivo sorriso.
– Isto não é razão –diz calmamente Tiago de Alfeu, e continua:– Nós estamos aqui para corrigir-nos,
antes de corrigir os outros. O Mestre foi antes o nosso mestre. E não o teria sido, se não tivesse querido
que nós mudássemos os nosso hábitos e ideias.
– Ele era Mestre por sua sabedoria…
– Era, ou é? –diz sério Tadeu.
– Quantas cavilações! É, sim, é.
– Ele é Mestre por tudo o mais. E não somente por sua sabedoria. O seu ensinamento se dirige a tudo
que há em nós. Ele é perfeito e nós imperfeitos. Esforcemo-nos, pois, para o sermos também –aconselha
mansamente Tiago de Alfeu.
– Não acho que eu tenha tido culpa. É porque são de uma raça maldita. Todos são uns perversos.
– Não. Não podes dizer isso –prorrompe Tomé–. 219.5João foi aos mais baixos de todos os pecadores, que
levavam os peixes para as feiras. E, olha aqui este saco úmido. É peixe do mais saboroso. Eles dispensaram
o que podiam ganhar, para no-lo dar. E, por temor de que o peixe pescado pela manhã, à tarde já não
estivesse mais fresco, eles voltaram ao mar, e quiseram que nós fôssemos com eles. Parecia que estávamos
no Mar da Galileia, e eu te garanto que, se o lugar nos fazia lembrar dele, também o faziam as barcas
cheias de rostos atentos, e o que mais fazia lembrar dele era João. Ele parecia um outro Jesus. As palavras
saíam dele doces como o mel, de sua boca risonha, e seu rosto cintilava como um outro sol. Como ele estava
semelhante a Ti, Mestre! Eu fiquei comovido. Nós ficamos durante três horas no mar, na expectativa de que
as redes, estendidas sobre as boias, estivessem cheias de peixes, e foram três horas de felicidade. Depois,
eles queriam Te ver. Mas João disse: “Eu vos prometo um novo encontro em Cafarnaum”, como se lhes
tivesse dito: “Eu vos prometo um novo encontro na praça de vossa cidade.” E eles também prometeram:
“Nós iremos”, e tomaram nota. E nós tivemos que lutar para não sermos carregados com peixe demais. E
eles nos deram do peixe mais fino. Vamos cozinhá-lo. Hoje de tarde teremos um grande banquete, para
refazer-nos do jejum de ontem.
– Mas, que foi que falaste ainda? –pergunta Iscariotes, dolorosamente surpreso.
– Nada de especial. Eu falei de Jesus –responde João.
– Mas, como tu falas dele! João também citou os profetas. Mas os virou de cabeça para baixo –explica
Tomé.
– De cabeça para baixo? –pergunta, espantado, Iscariotes.
– Sim. Tu dos profetas extraíste a aspereza, e João a doçura. Porque, afinal, até o rigor deles é amor, um
amor exclusivo, violento, se assim o queres dizer, mas é sempre um amor para com as almas, que
desejariam todas ser fiéis ao Senhor. Não sei se já refletiste nisto, tu, que foste educado entre os escribas.
Eu, sim, ainda mais por ser um ourives. Também o ouro há de ser martelado e acrisolado, mas é para torná-
lo mais bonito. Não é por ódio mas por amor. Assim os profetas são para com as almas. Eu compreendo isso,
talvez justamente porque sou ourives. Ele citou Zacarias, em sua profecia[92] contra Hadraque e Damasco,
e chegou àquele ponto: “À vista disso, Ascalon será tomada pelo espanto, Gaza ficará coberta de grande
tristeza, e também Acaron, porque desvaneceu-se sua esperança. Gaza não terá mais rei”, e se pôs a
explicar como tudo isso aconteceu, porque o homem se afastou de Deus, e, falando da vinda do Messias,
que é um perdão por amor, prometeu que, de uma pobre realeza, como os filhos da terra desejam para a
sua nação, os homens, que seguirem o Messias em sua doutrina, chegarão a ter uma realeza eterna e
infinita no Céu. Dizer isso, não é nada. Mas, ouvir isso! Parecia estar ouvindo uma música e subir, levado
pelos anjos. E eis que os Profetas, que a ti deram pauladas, a nós nos deram peixes de fino sabor.
Judas se cala, desorientado.
219.6 – E vós? –pergunta Jesus aos primos e ao Zelotes.
– Nós fomos até os estaleiros, onde os calafates trabalham. Nós também preferimos ir aos pobres. Mas
também havia ricos filisteus, que exerciam a supervisão da construção de seus navios. Não sabíamos quem
é que deveria falar, e então fizemos o jogo dos pontos, como fazem os meninos. Judas estendeu sete dedos,
eu quatro, e Simão dois. Então tocou a Judas. E ele falou –explica Tiago de Alfeu.
– E que foi que disseste? –perguntam todos.
– Eu me fiz conhecer francamente pelo que eu sou, dizendo-lhes que à hospitalidade deles eu pedia a
bondade de acolher a palavra do peregrino, que via neles seus irmãos, pois tinham uma origem e um fim
comuns, e a esperança não comum, mas cheia de amor, de poder levá-los comigo à casa do Pai e dar-lhes o
nome de “irmãos” para sempre, na grande alegria do Céu. Eu disse depois: “Está dito[93] em Sofonias, o
nosso Profeta: ‘A região do mar será lugar de pastores… e aí eles terão suas pastagens e, de tarde, irão
repousar nas casas de Ascalon’”, e eu desenvolvi o pensamento, dizendo: “O Pastor Supremo já chegou ao
meio de vós. Não veio armado de flechas, mas de amor. E Ele vos estende os braços, e vos mostra as suas
pastagens santas. Não se lembra do passado, senão para ter compaixão dos homens pelo grande mal que
fazem a si mesmos e que já se fizeram, como uns meninos loucos, com o ódio, enquanto podiam estar livres
de tão grande dor se eles o amassem uns aos outros, pois eles são irmãos: Esta terra, eu disse, será lugar
de pastores santos, os servos do Pastor Supremo, que já sabem que aqui terão os seus pastos mais viçosos e
os melhores rebanhos, e os corações deles, na tarde de suas vidas, poderão repousar, pensando nos vossos
corações e nos dos vossos filhos, mais familiares do que as casas amigas, porque terão como patrão a Jesus,
nosso Senhor.” Eles me compreenderam. Fizeram-me perguntas, ou melhor, fizeram-nos perguntas. E
Simão narrou a sua cura e, meu irmão, a tua bondade para com os pobres. E a prova, ei-la aqui: Esta bolsa
gorda para os pobres, que iremos encontrando pelo caminho. Também a nós, os Profetas não nos fizeram
mal.
Iscariotes nem toma mais fôlego.
219.7– Pois bem –Jesus o conforta–, na outra vez, Judas já fará melhor. Ele achou que fazia o bem, fazendo
assim. E, tendo assim agido para um fim honesto, não pecou de nenhum modo. E eu estou contente também
com ele. Agir como apóstolo não é fácil. Mas depois vai-se aprendendo. Uma coisa me desagrada. não ter
tido esse dinheiro antes, e não vos ter encontrado. Ter-me-ia ele servido para socorrer uma família infeliz.
– Podemos voltar atrás. Ainda é cedo… Mas, desculpa, Mestre. Como encontraste a família? Que lhe
fizeste Tu? Será que não a evangelizaste?
– Eu? Eu fiquei passeando. Com o silêncio, Eu disse a uma meretriz: “Deixa o teu pecado.” Encontrei um
menino, um tanto levado, e o evangelizei, trocando presentes com ele. Eu dei a fivela que Maria Salomé me
havia pregado na veste, em Betânia, e ele me deu este trabalho feito por ele –e Jesus tira das dobras da
veste o boneco caricatural.
Todos o observam e se riem.
– Depois, eu fui ver uns esplêndidos tapetes que um homem de Escalon faz para vender no Egito e em
outras partes… depois fui consolar uma menina sem pai, e curar a mãe dela… E basta.
– E te parece pouco?
– Sim. Porque havia necessidade também de dinheiro, e Eu não o tinha.
– Mas, voltemos lá dentro, nós que… não demos aborrecimento a ninguém –diz Tomé.
– E o teu peixe –diz, caçoando, Tiago de Zebedeu.
– O peixe? Está aqui. Vós que tendes… o anátema em cima! Ide ao velho que nos hospeda, começai a
prepará-lo. E nós vamos à cidade.
– Sim –diz Jesus–. Mas Eu vos mostrarei de longe a casa. Nela haverá pessoas. Eu não irei. Eles me
entreteriam. Não quero ofender o hospedeiro que nos atende, faltando ao seu convite. A descortesia é
sempre uma falta de caridade.
Iscariotes abaixa ainda mais a cabeça, e fica arroxeado, de tanto que muda de cor, lembrando-se de
quantas vezes ele caiu naquela falta.
Jesus continua:
– Vós, ide à casa, e perguntai pela menina, não há outra menina, senão ela, e não podeis errar. Dareis a
ela esta bolsa, e lhe direis: “Esta é Deus que te manda, porque soubeste crer. É para ti, a mamãe e os
irmãozinhos.” Não digais nada mais. E voltai logo para trás. Vamos.
E o grupo se divide, indo Jesus com João, Tomé e os primos para a cidade, enquanto os outros vão para a
casa do hortelão filisteu.
[91] Jeremias, em seu oráculo contra os filisteus: Jeremias 47.
[92] profecia que está em Zacarias 9,1-8.
[93] Está dito na profecia de Sofonias 2,4-7.
220. Os idólatras de Magdalgade
o milagre sobre a parturiente.
16 de julho de 1945.
220.1 Ascalon e suas hortas já são apenas uma recordação. Nas horas frescas de uma esplêndida manhã,
virando as costas para o mar, Jesus se dirige com os seus para umas colinas muito verdes, de pouca altura
mas muito aprazíveis, que se elevam da planície fértil. Seus apóstolos, descansados e satisfeitos, estão
muito alegres e falando de Ananias, das suas escravas, de Ascalon, do vozerio que havia na cidade, quando
eles voltaram para levar o dinheiro para Dina.
– Estava escrito que eu haveria de passar pelo pega-pega dos filisteus. O ódio e o amor têm as mesmas
manifestações, se quiserdes. E eu, que não havia sofrido pelo ódio filisteu, por pouco não sou ferido pelo
amor. Por pouco não nos prendem aqueles exaltados por causa do milagre, para fazer-nos dizer onde estava
o Mestre. E que gritaria! Não foi, João? A cidade fervia como um caldeirão. Os que estavam inquietos não
queriam ouvir razões, e queriam ir à procura dos judeus para espancá-los, enquanto os que tinham recebido
benefícios, ou os amigos deles, queriam persuadir os primeiros que era um deus que tinha passado. Que
confusão! Vão discutir durante dois meses. O pior é que eles discutem mais com um pau na mão, do que
com a língua. Mas…que fazer? Eles se entendem. Façam o que quiserem –diz Tomé.
– Mas… eles não são maus… –observa João.
– Não. Eles são apenas obcecados por muitas coisas –responde Zelotes.
Jesus não fala durante um bom tempo da viagem. Depois, Ele diz:
– Agora Eu vou àquele lugarejo, lá no alto do monte, e vós continuareis até Azoto. Prestai atenção. Sede
corteses, afáveis, pacientes. Mesmo que escarneçam de vós, suportai-o em paz, como ontem fazia Mateus, e
Deus vos ajudará. Ao pôr do sol, saí e ide para perto do brejo, que fica nas cercanias de Azoto. Lá nos
encontraremos.
– Mas, Senhor, eu não te deixo sozinho –exclama Iscariotes–. São uns violentos estes!… É uma
imprudência.
– Não precisais temer nada por Mim.. Vai, vai, Judas, e sê prudente tu. Adeus. A paz esteja convosco.
Os doze lá se vão, não muito entusiasmados. Jesus olha como eles vão indo, depois toma o caminho da
colina, fresco, sombreado, coberto de bosques de nogueiras, de oliveiras, de figueiras, de vinhedos bem
cultivados e já com promessas de uma boa colheita. Nos lugares em que o terreno se inclina para a planície,
há pequenos sítios com cereais e, pelas encostas, pastam as cabras louras sobre a erva verde.
220.2 Jesus alcança as primeiras casas da região. Está para entrar, quando se encontra com um estranho
cortejo. São mulheres que gritam em altas vozes, homens a vozear, cantando um canto triste e alternado,
em altas vozes, e todos executando uma espécie de dança, ao redor de um bode que vai à frente, com os
olhos vendados, já ferido, vertendo sangue nos joelhos, por ter tropeçado e caído nas pedras do caminho.
Um outro grupo, igualmente vociferando e gritando alto, agita-se ao redor de um simulacro esculpido, que
na verdade é muito feio, e conserva levantadas umas frigideiras com brasas acesas, que eles alimentam
jogando em cima resina e sal, pelo menos é o que parece, porque as primeiras soltam um cheiro de
terebentina, e o segundo dá estalos, como faz o sal. Um último grupo rodeia um santarrão diante do qual se
inclinam continuamente, gritando:
– Pela tua força! –(os homens).
– Só tu podes! –(mulheres).
– Suplica ao deus! –(homens).
– Tira o feitiço! –(mulheres).
– Comanda a mãe!
– Salva a mulher!
Depois todos juntos, com um uivo de bruxos:
– Morte à maga!
E, em seguida, de novo, com uma variante:
– Pela tua força!
– Só tu podes!
– Ordena ao deus!
– Que ele faça ver!
– Comanda o bode!
– Que mostre a feiticeira!
E, com um uivo de condenados:
– Que odeia a casa de Fará!
220.3 Jesus faz parar um dos do último grupo, e pergunta com doçura:
– Que acontece? Eu sou um forasteiro…
O homem, enquanto a procissão parou um pouco para bater no bode, para jogar resina sobre as brasas,
e para tomarem fôlego, explica:
– A esposa de Fará, o grande de Magdalgad, está morrendo de parto. Uma que a odeia, pôs nela um
feitiço. Suas vísceras deram um nó e o filho não pode nascer Procuramos a feiticeira para matá-la. Só assim
a esposa de Fará será salva e, se não encontramos a feiticeira, sacrificaremos o bode para impetrar
misericórdia da deusa mãe. –(Pode-se então compreender que aquela garatuja de boneco é um deusa…)
– Parai. Eu sou capaz de curar a mulher e de salvar o filho. Dizei isso ao sacerdote –diz Jesus ao homem
e a outros dois que se aproximam dele.
– És médico?
– Mais ainda.
Os três abrem a multidão, e vão ao sacerdote idólatra. E lhe falam. A notícia corre. A procissão, que
tinha recomeçado a andar, para. O sacerdote, imponente em seus farrapos multicores, faz um sinal a Jesus e
lhe diz:
– Jovem, vem cá!
E, quando Jesus já está perto, lhe diz:
– É verdade o que dizes? Olha bem que, se o que dizes não acontece, nós pensaremos que o espírito da
feiticeira se incorporou em Ti e te mataremos no lugar dela.
– É verdade. Levai-me logo à mulher e, enquanto isso, dai-me o bode. Preciso dele. Tirai-lhe as vendas e
trazei-o aqui.
Eles assim fazem. O pobre animal, espantado, cambaleando, sangrando, é levado a Jesus, que o acaricia,
passando-lhe a mão sobre o espesso pelo negro.
– Mas agora é preciso que me obedeçais, sem exceção. Vós o fareis?
– Sim! –grita a multidão.
– Vamos. Não griteis mais, não queimeis resinas. Eu o ordeno.
220.4 Vão indo, entram no povoado e, por um caminho que é o melhor, chegam a uma casa que fica no
meio de um pomar. Uivos e choros saem pelas portas escancaradas e, acima de tudo, ouve-se o lamento
triste e atroz da mulher, que não pode dar à luz o filho.
Correm para ir avisar Fará, que vem na frente, lívido, ladeado por mulheres que choram e por uns
inúteis santarrões, que vêm queimando incenso e folhas em duas frigideiras.
– Salva minha mulher!
– Salva minha filha!
– Salva-a, salva-a! –gritam, um por um, o homem, a velha e a multidão.
– Eu a salvarei, e com ela, o teu filho, pois vai ser um menino e muito viçoso, com dois olhos cor de
azeitona que está amadurecendo, e a cabeça coberta de cabelos pretos como esta lã.
– Como é que sabes disso? Será que vês? Até nas vísceras?
– Em tudo Eu vejo e penetro. Tudo Eu conheço e posso. Eu sou Deus.
Se tivesse mandado um raio, teria produzido menos efeito. Todos se jogam no chão como mortos.
– Levantai-vos. Escutai. Eu sou o Deus poderoso, e não suporto outros deuses diante de Mim. Acendei
um fogo e jogai nele aquela estátua.
A multidão se revolta. Começam a dúvidar do “deus” misterioso que ordena a queima da deusa. Os mais
irados são os sacerdotes.
Mas Fará e a mãe da esposa, aos quais interessa muito a vida da mulher, opõem-se à multidão hostil. E
como Fará é o grande do povoado, a multidão refreia a sua ira. Mas o homem pergunta:
– Como posso crer que Tu és um deus? Dá-me um sinal, e eu mandarei que se faça tudo o que quiseres.
– Olha. Estás vendo as feridas deste bode? Estão abertas, não estão? Estão sangrando, não é? O animal
está quase morrendo, não está? Pois bem. Eu quero que não seja mais assim… Aí está. Olha, agora.
O homem se inclina e olha… e grita:
– Está sem as feridas!
E se joga no chão gritando:
– A minha mulher, a minha mulher!
Então o sacerdote da procissão diz:
– Teme Fará. Não conhecemos quem é este. Teme a vingança dos deuses!
O homem fica tomado por dois medos: dos deuses, da mulher… e pergunta:
– Quem és Tu?
– Eu sou aquele que sou, no Céu e na Terra. Toda força me está sujeita, todo pensamento é por Mim
conhecido. Os habitantes do Céu me adoram, os habitantes do Inferno me temem. E os que crêem em Mim
verão realizar-se todo prodígio.
– Eu creio! Eu creio… O teu nome!
– Jesus Cristo, o Senhor Encarnado. Ponde aquele ídolo no fogo! Não suporto deuses na minha frente.
Que se apaguem aqueles turíbulos. Não tendes mais do que o meu Fogo, que pode e quer. Obedecei, ou Eu
porei fogo em vosso ídolo vazio e me irei embora, sem salvar ninguém.
É terrificante o aspecto de Jesus, vestido com sua veste de linho, e de cujos ombros pende o manto azul,
cuja cauda se arrasta atrás dele, enquanto seu braço está elevado, num gesto de comando, e seu rosto está
fulgurante. Ficam com medo dele, ninguém diz mais nada… No meio daquele silêncio, só se ouve o uivo,
cada vez mais fraco e dilacerante, da sofredora. Mas eles demoram em obedecer. O rosto de Jesus se torna
ainda mais insuportável ao ser olhado. É realmente um fogo que queima matérias e espíritos. E as
frigideiras de cobre são as primeiras a sofrer por vontade dele. Os que as estão segurando precisam jogá-
las fora, porque não resistem mais ao calor delas.. E, no entanto, os carvões parecem estar apagados…
Depois, são os portadores do ídolo que precisam pôr no chão a cadeirinha que eles estavam sustentando
nos ombros por meio de varais, porque a madeira deles vai sendo reduzida a carvão, como se alguma
misteriosa chama os estivesse lambendo e, logo que a padiola foi posta no chão, pega fogo. O povo foge,
aterrorizado…
220.5 Jesus se vira para Fará:
– Podes agora crer de fato no meu poder?
– Eu creio, creio. Tu és o Deus Jesus.
– Não, Eu sou o Verbo do Pai, de Javé de Israel, vindo em Carne e Sangue, Alma e Divindade para
redimir o mundo e para dar-lhe a fé no Deus verdadeiro, uno, trino, que está nos céus altíssimos. Venho dar
ajuda e misericórdia aos homens para que deixem o Erro e cheguem à Verdade, que é o único Deus de
Moisés e dos profetas. Podes crer ainda?
– Creio. Creio!
– Eu vim trazer o Caminho, a Verdade e a Vida aos homens, vim abater os ídolos, ensinar a sabedoria.
Por Mim o mundo terá redenção, porque Eu morrerei por amor do mundo e pela salvação eterna dos
homens. Podes crer ainda?
– Creio. Eu creio!
– Eu vim para dizer aos homens que eles, se crêem no Deus Verdadeiro, terão a vida eterna no Céu,
junto ao Altíssimo, que é o Criador de todos os homens, animais, plantas e astros. Podes crer ainda?
– Creio! Creio!
Jesus nem entra na casa. Somente ergue os braços para o lado do quarto da sofredora, com as mãos
estendidas, como fez na ressurreição de Lázaro, e grita:
– Sai à Luz, a fim de que conheças a Luz Divina e, por ordem da Luz, que é Deus!
É uma ordem trovejante, à qual, um momento depois, faz eco um grito de triunfo, que em seu som é
como um gemido de alegria e depois se ouve o queixoso choro de um recém-nascido, um queixume que
sempre vai crescendo, como pela força que vai aumentando.
– Teu filho já está chorando e saudando a terra. Vai a ele, e dize-lhe, agora e depois, que a pátria não é
esta terra, mas é o Céu. Educa-o, e tu cresce com ele, para o Céu. Esta é a Verdade, que está falando
contigo, e estas (e mostra as frigideiras de cobre, enroladas como folhas secas, inúteis para qualquer uso,
jogadas no chão, e as cinzas que mostram o lugar onde estava a padiola do ídolo) são a Mentira, que não
ajuda nem salva. Adeus.
E faz sinal de quem vai embora.
220.6 Mas uma mulher vem correndo com um recém-nascido cheio de vida, enrolado em um pano, e
gritando:
– É um menino, Fará. É belo, robusto, tem os olhos cor de amora, como as azeitonas quando
amadurecem, e os cachinhos mais pretos do que os de um cabrito sagrado. E a mulher, feliz, está
descansando. Não está mais sofrendo, como se nada tivesse acontecido. Foi uma coisa repentina, quando já
estava quase morrendo… e depois daquelas palavras…
Jesus sorri e, visto que o homem lhe apresenta o recém-nascido, Ele lhe toca na cabeça com as pontas
dos dedos. As pessoas, menos os sacerdotes que foram embora, indignados ao verem a defecção de Fará,
todas se aproximam curiosas para verem o recém-nascido e olharem para Jesus.
Fará gostaria de dar-lhe objetos e dinheiro pelo milagre. Mas Jesus diz com doçura e firmeza:
– Nada. O milagre não se paga, a não ser com a fidelidade a Deus, que o concedeu. Eu fico somente com
este bode, como lembrança da tua cidade.
E vai-se com o bode, que sai trotando perto dele, como se Jesus fosse o seu dono, curado, feliz,
berrando, como para dizer a sua alegria por estar com alguém que não bate nele… Descem assim os
barrancos da colina, para pegarem de novo a estrada mestra, que vai para Azoto….
220.7 Quando à tarde, ao lado do brejo sombreado, Jesus vê que os discípulos vêm vindo, a admiração é
dos dois lados, deles por verem Jesus com aquele bode, e dele, por vê-los com aqueles rostos humilhados de
quem não conseguiu fazer o que queria.
– Foi um desastre, Mestre! Eles não nos bateram. Mas nos expulsaram para fora da cidade. Andamos
vagando pela campina e pagando bem caro é que conseguimos achar comida. E, no entanto, procuramos
agir com doçura… –dizem eles, desolados.
– Não tem importância. Também em Hebron, no ano passado, nos expulsaram, e desta vez até que nos
prestaram honras. Não deveis desanimar.
– E Tu, Mestre? E este animal? –perguntam eles.
– Eu fui à Magdaldad. Queimei um ídolo e os turíbulos dele, fiz nascer um menino, preguei o Verdadeiro
Deus por meio de milagres e apanhei para Mim o bode, que estava destinado ao rito idolátrico, como
pagamento. Pobre animal. Ele estava todo ferido!
– Mas agora está bem! É um animal muito bonito.
– É um animal sagrado, oferecido ao ídolo… Um animal são. Sim. O primeiro milagre para convencê-los
de que Eu era o poderoso e não o pedaço de madeira deles.
– E que vais fazer dele?
– Vou levá-lo para Margziam. Ontem um boneco, hoje um bode. Eu o farei feliz.
– Mas queres que ele vá atrás de Ti até Beter?
– Certamente. Nada vejo de horroroso nisso. Se Eu sou o Pastor, poderei ter um bode. Depois o daremos
às mulheres. E irão assim para a Galileia. Encontraremos uma cabrita. Simão, tu te tornarás pastor de
cabritas. Melhor seria que fossem ovelhas… Mas o mundo é mais de bodes, que de cordeiros… Isto é um
símbolo, meu Pedro. Lembra-te disso. Com o teu sacrifício, farás dos bodes, cordeiros. Vinde. Cheguemos
até aquela vila, por entre os pomares. Encontraremos alojamento ou nas casas ou nos feixes de palha que
estão amarrados nos campos. E amanhã iremos a Jábnia.
Os apóstolos estão admirados, entristecidos, desanimados. Admirados dos milagres, entristecidos por
não terem estado lá e desanimados por sua incapacidade, enquanto que Jesus é capaz de tudo. Mas Ele,
pelo contrário, está muito contente!… E chega a persuadi-los de que “nada é inútil. Nem mesmo a derrota.
Porque ela serve para formar-vos na humildade, enquanto que falar serve para fazer ressoar um nome, que
é o meu e para deixar uma lembrança nos corações.”
E está tão convincente e luminoso em sua alegria, que eles também se tranquilizam.
[…]
221. As prevenções dos apóstolos contra
os pagãos e a parábola do filho disforme.
17 de julho de 1945.
221.1 – De Jábnia iremos a Acron? –perguntam, quando vão indo por uma campina muito fértil, onde os
trigais estão dormindo o seu último sono ao sol, ao grande sol que os fez amadurecer, estendidos em feixes
pelos campos roçados, e tristes como imensos leitos fúnebres, agora que não estão mais vestidos de
espigas, mas de toneladas de trigo, esperando ser transportadas para outro lugar.
Mas, se os campos estão despojados, os pomares estão com veste de festa, com os frutos apressando-se
para amadurecer, passando do verde ainda duro das frutinhas, para o mais tenro, amarelado ou rosado,
tornado lustroso como por uma cera do fruto quando fica maduro, ou então os figos, abrindo os escrínios,
arrebentando, em sua pele elástica, o muito doce escrínio do fruto-flor, e mostrando, para lá da fenda verde-
branca, ou roxa e branca, a gelatina transparente e coberta de sementinhas mais escuras do que a polpa.
As oliveiras, a qualquer ventinho leve, sacodem as suas gotas ovais de jade, presas a um pecíolo fino, por
entre o verde prateado de suas ramagens, e as nogueiras solenes, conservam firmes os seus pedúnculos, os
seus frutos, que incham por entre a casca felpuda, enquanto os amendoais acabam de amadurecê-los
dentro do invólucro, que enruga o seu veludo e muda a cor dele, e as videiras entumecem seus bagos, ou já
há até algum cacho, situado em posição favorável, que se atreve já até a acenar para o topázio transparente
e para o rubi futuro do cacho maduro, enquanto as cactáceas da planície ou das encostas próximas se
alegram com suas decorações, de dia para dia mais vivas, com seus óvulos de coral, que foram
artisticamente colocados por algum alegre decorador no vértice das espátulas polpudas, que parecem
mãos, fechadas em pequenas bainhas pungentes que estendem para o céu os frutos que elas criaram e
amadureceram.
Palmeiras isoladas e alfarrobeiras viçosas fazem que nos lembremos muito da vizinha África e, enquanto
as primeiras fazem ressoar as castanholas de suas folhas duras como um pente redondo, as outras já se
vestiram de um esmalte verde escuro e ficam empertigadas, em sua compostura, trajadas com uma veste
muito bela. Cabras louras e cabras negras, altas, ágeis, com longos chifres recurvos, de olhos mansos e
atentos, estão pastando cactáceas, assaltando as piteiras carnosas e estes enormes pincéis de folhas duras
e grossas que, como alcachofras abertas a partir do centro do coração, irrompem do candelabro da
catedral, do caule gigante com sete braços, sobre o qual está em chamas a flor amarela e vermelha de
agradável perfume.
A África e a Europa se dão as mãos, ao cobrirem o solo de belezas vegetais 221.2e, mal o grupo dos
apóstolos deixa a planície para tomar um caminho que vai subindo por uma colina literalmente coberta de
vinhedos, nesta sua encosta virada para o mar, — costa pedregosa, calcária, sobre a qual a uva vai tornar-se
uma coisa preciosa, provinda da transformação de seu suco em xarope — eis que o mar, o meu mar, o mar
de João, o mar de Deus, se mostra em sua vestimenta de seda rugosa e azul, e fala das lonjuras, do infinito,
do poder, enquanto canta com o céu e com o sol o trio das glórias criadoras. E a planície se ostenta toda,
em toda a sua ondulada beleza, como imitações de colinas com poucos metros de altura, misturadas com
áreas planas, com dunas de ouro, até às cidades e povoados da beira-mar, brancas em contraposição ao
azul.
– Como é belo! Como é belo! –murmura, extático, João.
– Mas, meu Senhor! Este rapaz vive de azul. Deves destiná-lo a ele. Parece estar vendo a esposa, quando
vê o mar! –diz Pedro, que não faz muita diferença entre a água do mar e a do lago. E ri, bondosamente.
– Ele já está destinado, Simão. Todos vós tendes o vosso destino.
– Oh! Que bom! E a mim, para onde me mandas?
– Oh! Tu!…
– Dize-o a mim, sê bom!
– Para um lugar maior do que a tua e a minha cidade juntas, do que Magdala e Tiberíades juntas.
– Lá, então, eu me perderei.
– Não tenhas medo. Ficarás parecendo uma formiga sobre um grande esqueleto. Mas, indo e vindo,
incansavelmente, ressuscitarás o esqueleto.
– Não estou entendendo nada. Fala mais claro.
– Entenderás, entenderás!… –e Jesus sorri.
– E eu?
– E eu?
Todos querem saber.
– Eu farei assim.
Jesus se inclina — estão ao longo da beira saibrosa de uma torrente, ainda muito cheia d’água no seu
centro — e apanha um punhado de saibro muito fino. Depois o joga para o ar e ele cai, esparramando-se em
todas as direções:
– Vede aqui. Só este grãozinho de areia me ficou por entre os cabelos. Vós também assim sereis
espalhados.
– E Tu, meu irmão, representas a Palestina, não é? –pergunta sério, Tiago de Alfeu.
– Sim.
– Eu queria saber quem será o que vai ficar na Palestina –pergunta ainda Tiago.
– Toma este grãozinho de lembrança –e Jesus dá o grãozinho, que ficou entre os seus cabelos, ao seu
primo Tiago, e sorri.
– Não poderias deixar-me na Palestina? Eu sou o mais apto, porque sou o mais grosseiro e, em nossa
casa, eu ainda me viro. Mas fora!… –diz Pedro.
– Tu, pelo contrário, és o menos apto para ficares aqui.
221.3 Em vós existe uma prevenção contra o resto do mundo, e achais que é mais fácil evangelizar em
terras de fiéis, do que nas dos idólatras e pagãos. Mas é justamente o contrário. Se refletísseis sobre o que
nos oferece a verdadeira Palestina, em suas classes altas e também, ainda que menos, em seu povo, e se
pensásseis que aqui, nos lugares em que o nome da Palestina é odiado, também o é o de Deus,
desconhecido em sua verdadeira expressão, e aqui fomos recebidos, certamente não pior do que na Judeia,
na Galileia, na Decápole, as vossas prevenções cessariam, e vós veríeis que é bem verdade o que Eu digo,
ao dizer que é mais fácil convencer aos que não conhecem ao Deus Verdadeiro, do que aos do Povo de Deus,
com sua idolatria cheia de sofismas, culpados mas que, orgulhosamente, ainda se julgam perfeitos, e que o
que são querem continuar a ser. Quantas pedras preciosas, quantas pérolas os meus olhos estão vendo,
onde vós só vedes terra e mar!
A terra das multidões que não são Palestina. O mar da Humanidade, que não é Palestina, e que, como
mar, não pede mais que acolher os que procuram, para que lhes sejam dadas essas pérolas e que, como
terra, só pede para ser rebuscada, para que ela deixe que suas pedras preciosas sejam apanhadas. Os
tesouros estão por toda parte. Mas é preciso procurá-los. Cada torrão pode estar escondendo um tesouro, e
estar nutrindo uma semente, todas as profundidades podem estar escondendo uma pérola. E então?
Pretendereis talvez que o mar entrasse em uma grande perturbação em seu fundo, com grandes borrascas,
até ao ponto de arrancar aos barrancos submarinos as ostras perolíferas, para abri-las depois sob o peso da
batida de seus vagalhões, e oferecê-las assim, na praia, aos preguiçosos e aos medrosos que não querem
correr perigos? Pretenderíeis que a terra fizesse uma planta de um grão de areia, e vos desse frutos, sem
que désseis a ela uma semente? Não, meus queridos! É preciso esforço, trabalho, ousadia. Mas, sobretudo,
não devem existir prevenções.
221.4 Vós, Eu o sei, desaprovais, uns mais, outros menos, esta viagem por entre os filisteus. Nem mesmo as
glórias, que estas terras nos recordam, as glórias de Israel de que nos falam estes campos, fecundados pelo
sangue hebreu derramado pela grandeza de Israel, daquelas cidades que foram arrebatadas uma por uma
das mãos dos que as dominavam, para coroar com elas a Judá, e fazer com elas uma nação poderosa, são
capazes de fazer-vos amar esta peregrinação E não vos digo que não vale para isso nem a ideia de estar
preparando o terreno para que seja acolhido o Evangelho e a esperança de salvar espíritos. Nem vos quero
dizer, entre as razões que apresento às vossas mentes, o quanto foi conforme a justiça esta viagem.
Está ainda por demais acima de vós este pensamento. A ele chegareis um dia. E, então, direis: “Nós
pensávamos que fosse um capricho, pensávamos que fosse uma pretensão, pensávamos que fosse pouco
amor do Mestre para conosco aquilo de ficar fazendo-nos andar por tão longe, por caminhos longos e
difíceis, até correndo o risco de passar por situações perigosas. Mas, ao contrário, era amor, era previsão,
era um aplainar de caminho para agora, que não o temos mais e que nos sentimos ainda mais desnorteados.
Porque naquele tempo éramos como uns sarmentos, que vão para todas as direções, mas sabem que quem
os está alimentando é a videira, e que ali perto está sempre a estaca robusta que a pode amparar, e agora
somos sarmentos que devem criar trepadeira por si mesmos, tirando alimento, sim, da cepa da videira, mas
sem terem mais a estaca a que se apoiarem.” Isto é o que vós direis e, então Me agradecereis.
E, além disso!… Não é bonito irmos assim, deixando cair centelhas de luz, notas de música, corolas
celestes, perfumes da verdade, a serviço e em louvor de Deus, sobre regiões envoltas nas trevas, em
corações mudos, sobre espíritos áridos como desertos, para vencermos os fedores da Mentira, e fazermos
isso juntos, assim, Eu e vós, o Mestre e os Apóstolos, todos um só coração, um só desejo, uma só vontade?
Que Deus seja conhecido e amado. Que Deus recolha todos os povos debaixo do seu pavilhão. Que onde ele
estiver, todos estejam. Esta é a esperança, o desejo, a fome de Deus e esta é a esperança, a desejo, a fome
dos espíritos, pois não são eles de raças diversas, mas são de uma única raça: a raça que Deus cria. E que,
sendo todos filhos de um único Deus, têm os mesmos desejos, as mesmas esperanças, a mesma fome do
Céu, da Verdade, do Amor real…
221.5 Parece que séculos de erro mudaram o instinto dos espíritos. Mas não é assim. O erro envolve as
mentes. Porque as mentes estão unidas à carne, e se ressentem do veneno que foi inoculado por satanás na
parte animal do homem. E assim o erro pode envolver o coração, porque também ele está inserido na carne,
e se ressente dos tóxicos que estão nela. A tríplice concupiscência morde os sentidos, os sentimentos e o
pensamento. Mas o espírito não está inserido na carne. E ficará atordoado pelos socos que satanás e a
concupiscência lhe dão. Ele ficará quase cegado pelos baluartes da carne e pelos borrifos de sangue
fervente do animal-homem, no qual ele está entranhado. Mas não mudou o seu desejo do Céu, de Deus. Não
pode mudar.
Estais vendo a água pura desta torrente? Ela desceu do céu, e ao céu voltará, por meio das evaporações
das águas, sob a ação do vento e do sol. Desce e torna a subir. O elemento não se consome, mas volta às
suas origens.
O espírito volta às origens. Esta água que está aqui entre estas pedras, se soubesse falar, vos diria que
deseja voltar ao alto, para ser impelida pelos ventos, através dos belos campos do firmamento, leve, branca
ou também cor de rosa, nas auroras, ou cor de cobre pálido, ao pôr do sol, ou arroxeada como uma flor nos
crepúsculos, quando as estrelas já estão presentes; e ela vos diria que gostaria de servir de crivo para as
estrelas, que ficam olhando através das clareiras dos cirros, a fim de fazer que os homens se lembrem do
Céu ou, então, de véu para que a Lua não veja as maldades da noite, em vez de ficar aqui encerrada em
diques, ameaçada de ser transformada em lama, constrangida a ficar vendo conúbios de cobras e de rãs,
quando ela ama tanto a liberdade solitária, na atmosfera. Também os espíritos, se ousassem falar, diriam
todos a mesma coisa: “Dai-nos Deus! Dai-nos a Verdade!” Mas não o dizem porque sabem que o homem não
lhes presta atenção, não os compreende, ou zomba da súplica dos “grandes mendicantes”, dos espíritos que
procuram a Deus, por causa de sua tremenda fome. A fome da Verdade.
221.6 Estes idólatras, estes romanos, estes ateus, estes infelizes que, ao andar encontramos e que sempre
encontrareis, estes desprezados em seus desejos de Deus, ou por política, ou por um egoísmo familiar, ou
por uma heresia nascida de um coração podre, e proliferada numa nação, eles têm fome. Eles estão com
fome! Eu tenho piedade deles. E, não teria Eu piedade, sendo Este que sou? Se Eu provejo o alimento para
o homem e para o pássaro, tendo piedade deles, porque não iria Eu ter piedade dos espíritos, para os quais
se colocaram obstáculos para não serem do Verdadeiro Deus, e que estendem os braços de seus espíritos,
dizendo: “Estamos com fome!”? Achais que eles são maus? Que sejam uns selvagens? Incapazes de
chegarem a amar a Religião de Deus e a Deus? Estais enganados. São espíritos à espera de amor e de luz.
Esta manhã fomos despertados pelos berros ameaçadores do bode, que queria afugentar aquele
canzarrão, que veio me farejar. E vós ficastes rindo, olhando como o bode fazia movimentos ameaçadores
com os seus chifres, depois de ter arrebentado a cordinha com que estava amarrado na árvore, debaixo da
qual nós dormíamos, vindo colocar-se entre Mim e o cão, com apenas um salto, sem pensar que podia ser
atacado e degolado por aquele molosso, numa luta desigual, em defesa de Mim. Igualmente os povos, que a
vossos olhos parecem bodes selvagens, saberão lançar-se corajosamente na defesa da fé em Cristo, quando
ficarem sabendo que Cristo é Amor, que os convida a acompanhá-lo. Convida-os. Sim. E vós deveis ajudá-los
a vir.
221.7 Ouvi uma parábola.
Um homem se casou, tendo tido muitos filhos de sua mulher. Mas um deles nasceu defeituoso no corpo
e, pelas aparências, era de raça diferente. O homem achou aquilo uma desonra e não teve amor para com
ele, ainda que o filho fosse inocente. O menino cresceu sem ser cuidado, entre os mais desclassificados dos
servos e por isso até os irmãos o consideravam inferior a eles. A mãe, tendo morrido ao dá-lo à luz, não
podia controlar a dureza do pai, nem impedir o desprezo dos irmãos, corrigir as ideia s erradas, nascidas do
pensamento selvagem do menino. Ele era uma pequena fera, mal suportada naquela casa pelos filhos que
eram estimados.
O menino assim tornou-se homem. E, tendo chegado ao uso da razão com algum atraso, foi atingindo
finalmente a maturidade e compreendeu que não era ser filho viver daquele modo nos currais, receber um
pedaço de pão e uma veste rasgada e nunca um beijo, nunca uma palavra, nunca um convite para entrar na
casa paterna. E ele sofria, sofria, gemendo em sua toca: “Pai! Pai!” E mordia o seu pão, mas ficava com uma
grande fome em seu coração. Cobria-se com a veste, mas um grande frio lhe ficava no coração. Tinha por
amigos os animais e alguns piedosos da região. Mas tinha a solidão em seu coração. “Pai! Pai!”… Ouviam-no
os servos, os irmãos, os concidadãos, gemendo sempre daquele modo, como louco. É “louco”, diziam.
Enfim um servo ousou ir até ele, que já se tinha tornado como uma fera, e lhe disse: “Por que não te vais
jogar aos pés do pai?” “Eu o faria, mas não tenho coragem.” “Por que não vais para casa?” “Eu tenho
medo.” “Mas, tu gostarias de ir?” “Oh! Sim! Porque é disso que eu tenho fome, e por isso que eu tenho frio
e me sinto sozinho como num deserto. Mas eu nem sei como se vive na casa de meu pai.” Aquele servo bom
começou, então, a instruí-lo, a torná-lo melhor de aparência, a tirar-lhe aquele horror de ser malvisto pelo
pai, dizendo-lhe: “Teu pai te quereria, mas não sabe se gostas dele. Tu o evitas sempre… Tira de teu pai o
remorso por ter agido de um modo severo demais e o pesar dele por saber que vives fora de casa. Vem. Os
irmãos também não querem mais zombar de ti, porque eu narrei-lhes a tua dor.”
E certa tarde o filho foi, guiado por aquele servo bom, à casa do pai, e gritou: “Meu pai, eu te amo!
Deixa-me entrar!…”
O pai, que, já velho e triste, estava pensando em seu passado e em seu futuro eterno, soluçou, ao ouvir
aquela voz, e disse: “A minha dor se atenua, afinal, porque na voz do filho deficiente eu ouvi a minha, e o
amor dele é prova de que ele é sangue do meu sangue, e carne da minha carne. Que ele venha, pois, tomar
o seu lugar junto aos seus irmãos, e bendito seja o servo bom que fez ficar completa a minha família, pondo
o filho rejeitado no meio de todos os filhos do pai.”
221.8 Esta é a parábola. Mas na aplicação dela vós deveis pensar que o Pai dos deficientes espirituais é
Deus — porque deficientes espirituais são os cismáticos, os hereges, os separados, — e Deus foi
constrangido a usar de rigor pelas deficiências voluntárias, que eles mesmos quiseram. Mas o amor dele
nunca falha no que promete. Ele os espera. Levai-os a Ele. É o vosso dever.
Eu já vos ensinei a dizer: “Dai-nos hoje o nosso pão, ó Pai nosso.” Mas, sabeis vós o que quer dizer
“nosso”?
Não quer dizer vosso, de vós doze. Não é vosso, como discípulos de Cristo. Mas é vosso como homens.
Para os presentes e para os futuros. Para os que conhecem a Deus e para os que não o conhecem. Para os
que amam a Deus e ao seu Cristo, e para os que não o amam ou o amam mal. Eu pus sobre os vossos lábios
a oração por todos. Eu vos disse que a minha oração é universal e que durará, enquanto durar a terra. Mas
vós deveis rezar universalmente, unindo as vossas vozes e os vosso corações de apóstolos e discípulos da
Igreja de Jesus àquelas e àqueles que pertencem a outras Igrejas, que serão cristãs mas não apostólicas. E
deveis insistir, porque sois irmãos, vós na casa do Pai, eles fora da casa do Pai comum, com a sua fome, sua
saudade, até que seja dado a eles, como a vós o “pão” verdadeiro, que é o Cristo do Senhor, servido nas
mesas apostólicas, e não em outras mesas em que é servido misturado com alimentos impuros. Perseverai,
até que o Pai tenha dito a estes irmãos “deficientes”: “A minha dor se atenua em vós, em vossa voz Eu ouvi
a voz e as palavras do meu Unigênito e Primogênito. Sejam benditos os servos, que vos trouxeram à Casa
do vosso Pai, para que a minha Família fique completa.” Servos de um Deus infinito, deveis pôr a infinidade
em todas as vossas intenções.
Entendestes?
221.9Eis Jábnia. Certa vez, daqui foi levada a Arca para Acron, que não pôde guardá-la, e a remeteu para
Betsames. A Arca torna a ir a Acron. João, vem comigo. Vós permanecei em Jábnia e sabei refletir e falar. A
paz esteja convosco.
E Jesus lá se vai com João e com o bode que, berrando, vai também atrás deles, como um cão.
222. Um segredo do apóstolo João.
18 de julho de 1945.
222.1 As colinas, depois de Jábnia, em direção de oeste para leste com respeito à Estrela Polar, vão
aumentando em sua altitude e atrás vêem-se surgindo sempre outras mais altas, cada vez mais altas. Lá ao
longe, à derradeira luz da tarde, vão perfilando as lombadas verdes e arroxeadas das montanhas da Judeia.
O dia já declinou rapidamente, como acontece nos lugares meridionais. Da exibição do vermelho do pôr do
sol, passou o dia, em menos de uma hora, ao primeiro cintilar das estrelas, e parece impossível que aquele
incêndio do sol tenha se apagado tão depressa, cobrindo a cor de sangue do céu com uma veladura que, a
cada momento vai-se tornando mais espessa e da cor de uma ametista sanguínea e, pouco depois, de um
malva desbotado, que vai-se tornando transparente, a ponto de fazer que apareça um céu irreal, já não mais
azul e sim verde, um verde pálido, que vai-se fazendo fosco, da cor verde-azulada das aveias novas, prelúdio
do anil, que perdurará durante a noite, com seu manto real bordado e recoberto de diamantes.
As primeiras estrelas já estão sorrindo, do lado do oriente, para a foicinha da lua, que está em seu
primeiro quarto. A terra fica embelezada, exposta sempre mais à luz dos astros, e no silêncio dos homens.
Agora cantam os seres que não pecam: os rouxinóis, as águas harpejantes, as copas que sussurram, os
grilos com os seus violinos, os sapos que fazem a marcação com os seus oboés, cantando ao sereno. Talvez
estejam cantando também às estrelas, que estão lá em cima… A elas que estão mais perto dos anjos do que
nós.
O incêndio do calor se apaga sempre mais no ar da noite, que é úmido de orvalho tão doce às ervas, aos
homens e aos animais!
222.2 Jesus, que ficou esperando ao pé de uma colina pelos apóstolos que saíam de Jábnia, para onde João
tinha ido chamá-los, está falando agora bem de frente com Iscariotes, entregando-lhe umas sacolas com
moedas e dando-lhe instruções sobre o modo de reparti-las. Atrás dele está João, que segura o bode e fica
calado, entre Zelotes e Bartolomeu. Estes estão falando de Jábnia, onde fizeram proezas André e Filipe.
Atrás ainda, vão todos os outros, num grupo barulhento, que vai fazendo comentários sobre as aventuras na
terra dos filisteus, mostrando claramente a sua alegria pela volta para a Judeia, para Pentecostes.
– Mas, será que iremos logo mesmo? –pergunta Filipe, cansado de correr por cima de areias quentes
como fogo.
– Assim disse o Mestre. E tu o ouviste –responde Tiago de Alfeu.
– Meu irmão certamente o sabe. Mas parece estar desvairado. O que terão andado fazendo nestes
últimos cinco dias é um mistério
–disse Tiago de Zebedeu.
– É verdade. E eu não suporto mais o desejo de saber. Pelo menos, como recompensa por aquele…
purgante lá em Jábnia. Cinco dias, atentos a cada palavra, a cada olhar ou a cada passo, para não ter que
enfrentar adversidades imprevistas –diz Pedro.
– Mas, afinal, nos saímos bem. Começamos a saber agir –diz contente Mateus.
– Na verdade… eu tremi duas ou três vezes. Aquele bendito rapaz, que é Judas do Simão!… Será que não
aprenderá nunca a controlar-se? –diz Filipe.
– Só quando ele ficar velho. Contudo, se o quisermos entender, ele faz suas coisas com boa intenção. Tu
o ouviste? Até o Mestre já disse isto. Ele o faz por zelo… –diz, desculpando-o André.
– Vá, que seja! Mas o Mestre falou assim, porque Ele é a Bondade e a Prudência. Mas eu acho que Ele
não o aprova –diz Pedro.
– O Mestre não mente –rebate Tadeu.
– Mentir, não. Mas sabe colocar em suas respostas toda a prudência que nós não sabemos colocar nas
nossas, e diz a verdade, sem fazer sangrar o coração de ninguém, sem excitar irritações, sem suscitar
reprovações. Ah! Ele é Ele! –suspira Pedro.
222.3 Faz-se silêncio, enquanto vão caminhando sob a claridade, sempre mais notável, da lua. Pedro diz a
Tiago de Zebedeu:
– Procura chamar João. Não sei por que nos evita.
– Eu o direi logo: porque ele sabe que nós vamos atormentá-lo, por querermos saber –responde Tomé.
– Sim! E ele está com os dois mais prudentes e sábios –confirma Filipe.
– Pois bem, experimenta assim mesmo, Tiago, tu que és bom –insiste Pedro.
E Tiago, condescendendo, chama por três vezes João, que não ouve ou faz sinal de que não está ouvindo.
Vira-se, ao invés, Bartolomeu, ao qual Tiago diz:
– Fala ao meu irmão que venha aqui.
E, em seguida, a Pedro:
– Mas eu não sei se ficaremos sabendo!
João, obediente, vai logo, e pergunta:
– Que quereis?
– Saber se daqui vamos diretamente para a Judeia –diz o seu irmão.
– Assim disse o Mestre. Quase não queria voltar atrás, a partir de Acron, mas queria que eu vos fosse
chamar. Depois, porém, achou melhor ir até às ultimas encostas… Afinal, daqui também se pode ir à Judeia.
– Por Modin?
– Por Modin.
– É uma estrada sem segurança. Lá os malfeitores ficam esperando caravanas e dão golpes –objeta
Tomé.
– Ah! Mas com Ele!… Nada resiste a Ele!…
João levanta para o céu o rosto arrebatado em possíveis recordações, e sorri.
Todos observam isso, e Pedro diz:
– Dize-me uma coisa: estarás lendo alguma bonita história no céu estrelado, quando ficas com essa cara?
– Eu? Não…
– Vá, que assim seja. Até as pedras estão vendo que ficas fora deste mundo. Dize-me: Que foi que
aconteceu contigo em Acron?
– Ora, nada, Simão. Eu te garanto. Eu não estaria feliz se tivesse acontecido alguma coisa dolorosa.
– Dolorosa, não. Pelo contrário!… Vamos, fala!
– Mas eu não tenho nada para dizer, além do que o que Ele disse. Foram bons como pessoas
assombradas pelos milagres. Aí está tudo, tal como Ele disse.
222.4 – Não.
E Pedro sacode a cabeça:
– Não, Tu não sabes mentir. És límpido como a água da fonte. Não. Estás mudando de cor. Eu te conheço
desde quando eras menino. Nunca poderás mentir. Seja pela incapacidade do coração, do pensamento, da
tua língua e até da pele, que muda de cor. Por isso é que eu te quero muito bem, e sempre te quis. Eia, vem
cá, ao teu velho Simão de Jonas, ao teu amigo. Lembras-te de quando eras um rapazinho e eu já era
homem? De como eu te acariciava? Querias as histórias e os barquinhos de cortiça “que nunca vão para o
fundo”, como tu dizias, e que te serviam para ires longe… Também agora vais longe, e deixas na margem o
pobre Simão. E a tua barquinha nunca irá para o fundo. Ela lá se vai, cheia de flores, como aquelas que
lançavas ao mar, quando menino, em Betsaida, no rio, para que o rio as levasse para o lago e elas lá se
fossem, se fossem… Lembras-te disso? Eu te quero bem, João. Todos te queremos bem. Tu és a nossa vela.
Tu és a nossa barca que não vai ao fundo. Tu nos levas no teu rasto. Por que não nos contas o prodígio de
Acron?
Pedro falou, segurando, com seu braço, João apertado pela cintura, mas ele procura evitar a pergunta,
dizendo:
– E tu, que és o chefe, por que não falas às multidões com esta intensidade persuasiva de que fazes uso
ao falares comigo? Elas é que precisam ficar convencidas. Eu, não.
– Porque contigo eu me sinto à vontade. Eu te amo. A elas eu não conheço –desculpa-se Pedro.
– E não as amas. Aí está o teu erro. Ama-as, ainda que não as conheças. Dize a ti mesmo: “Elas são do
nosso Pai.” Verás que te parecerá conhecê-las e as amarás. Vê nelas outros tantos Joões…
– É fácil dizer. Como se as cobras e os ouriços pudessem ser trocados por ti, ó eterno menino.
– Oh! Não! Eu sou como os outros.
– Não, irmão. Não como os outros. Nós, se tirarmos talvez Bartolomeu, André e Zelotes, já teríamos
contado até às ervas o que nos aconteceu e que nos faz felizes. Tu estás calado. Mas a mim, ao teu irmão
mais velho o deves dizer. Eu sou para ti como um pai –diz Tiago de Zebedeu.
– O Pai é Deus, o Irmão é Jesus, e a mãe é Maria…
– De modo que o sangue para ti não vale mais nada? –grita inquieto Tiago.
– Não te inquietes. Eu bendigo o sangue e o seio que me formaram: o pai e a mãe. E bendigo a ti, meu
irmão, igual no sangue. Os primeiros, porque me geraram e me educaram para que eu pudesse seguir o
Mestre, e a ti, porque o segues. A mãe, desde quando se tornou discípula, eu a amo de dois modos: com a
carne e o sangue, como filho; e com o espírito, como condiscípulo dela. Oh! Que alegria por estarmos
unidos no amor dele!
222.5 Jesus voltou atrás ao ouvir a voz alterada de Tiago, e as últimas palavras o esclareceram sobre o
assunto:
– Deixem em paz João. Inutilmente o atormentais. Ele tem muita semelhança com a minha mãe. E não
vai falar.
– Dize-o Tu, então Mestre –suplicam-lhe todos.
– Está bem, é isto. Eu trouxe João comigo, porque é o mais apto para tudo o que Eu queria fazer. Por ele
Eu tenho sido ajudado, e ele aperfeiçoado. É isto.
Pedro, Tiago, irmão de João, Tomé e Iscariotes, se olham, torcendo um pouco a boca, desiludidos.
E Judas Iscariotes não se limita a ficar desiludido. Ele diz:
– Para que aperfeiçoá-lo, se ele já é o melhor?
Jesus lhe responde:
– Tu disseste: “Cada um tem o seu modo e faz uso dele.” Eu tenho o meu. João tem o dele, muito
semelhante ao meu. O meu não pode aperfeiçoar-se. Mas o dele, sim. E isto Eu quero que aconteça, pois é
bom que assim seja. E por isso Eu o tomei comigo. Porque Eu tinha necessidade de alguém que tivesse
aquele modo e aquele espírito. Por isso, não fiqueis de mau humor nem com curiosidade. Vamos a Modin. A
noite está serena, fresca e clara. Vamos caminhar, enquanto houver luar, e depois dormiremos até a aurora.
E levarei os dois Judas para venerar a tumba[94] dos Macabeus, dos quais eles têm o nome glorioso.
– Nós sozinhos contigo! –diz, feliz, Iscariotes.
– Não. Com todos. Pois a visita à tumba dos Macabeus será feita por vós. Para que os saibais imitar
sobrenaturalmente, lutando e vencendo em um campo todo espiritual.
[94] tumba, dos quais se falam em 1 Macabeus 2,70; 9,19; 13,23-30.
223. Um sermão de Jesus evita o assalto
dos salteadores a uma caravana nupcial.
19 de julho de 1945.
223.1 – No lugar, ao qual estamos indo, falarei Eu, diz o Senhor, enquanto a comitiva cada vez mais vai
penetrando pelos vales, que agridem o monte com os seus caminhos difíceis, pedregosos, estreitos, subindo
e descendo, perdendo de vista os horizontes aqui, para torná-los a ver mais adiante, chegando a um vale
mais profundo, por uma descida muito íngreme, na qual somente o bode se sente à vontade, como disse
Pedro. A comitiva toma um descanso para tomar a sua refeição, perto de uma fonte muito rica de águas.
Outras pessoas estão espalhadas pelos prados e pelos pequenos bosques, também tomando suas
refeições, como Jesus e os seus. Este deve ser um lugar preferido para permanências, por estar ao abrigo
dos ventos, com prados macios e águas. São peregrinos, que vão para Jerusalém, viajantes que talvez se
dirijam ao Jordão, mercadores de cordeiros destinados ao Templo, pastores com os seus rebanhos. Alguns
fazem a viagem em suas cavalgaduras, mas a maior parte a pé.
223.2 Chega também uma caravana nupcial, toda enfeitada festivamente. Os ouros transluzem por debaixo
do véu que envolve a noiva, que é pouco mais do que uma menina, e vem acompanhada por duas matronas,
que estão cintilantes por seus braceletes e colares, e por um homem, talvez o padrinho, além de dois outros
servos. Eles chegaram em jumentos cheios de franjas e de guizos, e se afastam para um canto onde vão
comer, como se tivessem medo de que os olhos dos presentes violassem a pequena noiva. O padrinho, ou
parente que seja, monta guarda, ameaçador, enquanto as mulheres comem.
Na verdade, há uma grande curiosidade e, com a desculpa de ir pedir um pouco de sal, ou uma faca, um
pouquinho de vinagre, sempre há alguém que vá a este ou àquele para perguntar se a noiva é conhecida, e
para onde está indo, e tantas outras coisas bonitas desse gênero…
E há um que, de fato, sabe de onde ela vem e para onde vai, e se sente muito feliz em contar tudo o que
sabe, estimulado por um outro, que lhe refresca sempre a garganta, derramando dentro dela um vinho
generoso. Em alguns minutos, chegam a ser contados até os mais secretos particulares das duas famílias,
do enxoval, que a noiva traz naqueles caixotes, das riquezas que a esperam na casa do noivo, e assim por
diante. Chega-se também a saber que a noiva é filha de um rico mercador de Jope, e que vai ser esposa do
filho de um rico mercador de Jerusalém, e que o esposo já foi na frente dela, para ornar a casa das núpcias,
na iminência de sua chegada, e que aquele que a acompanha é o amigo do noivo, sendo ele também filho de
um mercador, chamado Abraão, que é quem lapida os diamantes e as pedras preciosas, enquanto que o
noivo é ourives, o pai da noiva é mercador de lã, telas, tapetes, tendas…
223.3 E, como o falador está perto do grupo dos apóstolos, Tomé escuta, e pergunta:
– Será talvez Natanael de Levi o noivo?
– É ele mesmo. Tu o conheces?
– Conheço bem o pai através de assuntos de negócios, Natanael conheço um pouco menos. É um
matrimônio rico!
– Feliz noiva! Está coberta de ouro. Abraão, parente da mãe da noiva e pai do amigo do noivo, foi
generoso, assim como o noivo e o pai dele. Dizem que naquelas caixas há um valor de muitos talentos de
ouro.
– Saúde! –exclama Pedro, e dá um curto assobio.
Depois, acrescenta:
– Vou ver de perto se a mercadoria principal corresponde ao resto –e se levanta, junto com Tomé, e vão
dar uma volta ao redor do grupo nupcial, olhando bem para as três mulheres, um montão de tecidos e de
véus, do meio dos quais emergem as mãos e os pulsos cheio de jóias e escapam umas cintilações das
orelhas e dos pescoços, olham para o fanfarrão do padrinho, que parece querer repelir algum assalto de
corsários contra a virgenzinha, de tanto que ele está bancando o valentão.
Ele olha com maus olhos até para os dois apóstolos. Mas Tomé lhe pede que saúde, em nome de Tomé,
chamado Dídimo, a Natanael de Levi. E assim se fez a paz, e tanto se fez, que, enquanto ele está falando, a
noivinha encontra um modo de fazer-se admirar, levantando-se para que o seu manto e o seu véu caiam, e
ela possa aparecer em toda a sua beleza de corpo e de vestes, e na sua riqueza de ídolo. Terá ela uns quinze
anos, quando muito, e um par de olhos muito sabidos.
Ela se move, muito afetada, apesar da recomendação das matronas, corta as pontas das tranças, e as
arruma de novo, com a ajuda de grampos de alto preço, aperta a cintura embelezada com pedras preciosas,
se desata, se desfia, desata e coloca de novo as sandálias cuja forma é de sapatinhos, bem fechados no peito
do pé com fivelas de ouro e, nesse ínterim, procura mostrar sua magnífica cabeleira cor de amora, suas
belas mãos e delicados braços, a cintura gentil, o peito e os quadris bem feitos, o pezinho sem defeitos, e
todas as jóias, que tilintam, e mostram suas facetas às ultimas horas do dia e às chamas das primeiras
fogueiras.
223.4 Pedro e Tomé voltam para trás. E Tomé diz:
– É uma bela moça.
– É uma perfeita namoradeira. Será… mas o teu amigo Natanael logo ficará sabendo que há alguém
esquentando-lhe a cama, enquanto ele esquenta o ouro para trabalhá-lo. E o amigo dele é um grande bobo.
E ele lhe confiou bem a sua noivinha! –termina Pedro, indo sentar-se entre os companheiros.
– A mim não me agradou aquele homem, que fazia falar àquele outro bobo. Quando ele chegou a saber
tudo o que queria saber, foi-se embora pelo morro acima… Estes lugares são maus. E este é o tempo bom
para os golpes dos malandros. As noites agora são de luar. O calor cansa. As árvores estão copadas. Hum!
Este lugar não me agrada –resmunga Bartolomeu–. Seria melhor prosseguir.
– E aquele imbecil que falou de tantas riquezas! E aquele outro que se faz de herói, é o guardião das
sombras, e não vê os verdadeiros corpos!… Pois bem, eu vou cuidar da fogueira. Quem vem comigo? –diz
Pedro.
– Eu, Simão –responde Zelotes–. Eu resisto bem ao sono.
Muitos do campo, especialmente os viajantes que andam sozinhos, já se levantaram e foram-se embora,
pouco a pouco. Ficaram os pastores de rebanhos, a comitiva dos noivos, o grupo dos apóstolos e três
mercadores de cordeiros, que já estão dormindo. Também a noivinha está dormindo, com as matronas,
debaixo de uma tenda que os servos montaram. Os apóstolos estão procurando um lugar, Jesus fica sozinho
em oração, os pastores fazem um grande fogo no centro do descampado onde estão. Pedro e Simão fazem
um outro perto do caminho que vai para um despenhadeiro, onde foi-se encafuar aquele homem que fez
Bartolomeu suspeitar.
223.5 Passam as horas e, quem não está roncando, está cabeceando. Jesus reza. O silêncio é total. Parece
que está calada até a fonte, que brilha ao luar, estando a Lua já alta no céu, iluminando muito bem o
descampado, enquanto os declives ficam na sombra da ramagem espessa.
Um cão dos pastores começa a rosnar. Um dos guardas do rebanho levanta a cabeça. O cão se põe de pé
e levanta o pelo sobre o dorso, colocando-se em posição de defesa e de escuta. Ele está até tremendo,
enquanto seu rosnar surdo, que está fervendo dentro dele, vai-se tornando sempre mais forte. Simão
também levanta a cabeça e sacode Pedro, que está cochilando. Um sussurro cauteloso vem vindo do lado do
bosque.
– Vamos ao Mestre. Vamos trazê-lo para a nossa companhia –dizem os dois.
Nesse ínterim, o guarda desperta os companheiros. Todos estão à escuta, e sem fazer barulho. Jesus
também se levantou, antes mesmo de ser chamado, e vai de encontro aos dois apóstolos. Reúnem-se eles
com os companheiros e, por isto, perto dos pastores, cujo cão dá sinais cada vez mais claros de agitação.
– Chamai os que estão dormindo. Todos. Dizei-lhes que venham, sem fazerem barulho, e especialmente
as mulheres e os servos com os cofres. Dizei-lhes que talvez sejam os malandros. Mas, não o digais às
mulheres. Dizei-o a todos os homens.
Os apóstolos se espalham, obedecendo ao Mestre, que diz aos pastores:
– Alimentai o fogo, que ele fique bem forte e faça uma chama bem viva.
Os pastores obedecem e, como parecem estar agitados, Jesus lhes diz:
– Não temais. Não vos será tirado nem um floco de lã.
Sobrevêm os mercadores, e sussurram:
– Lá se foram os nossos ganhos! –e acrescentam um rol de impropérios contra os governadores romanos
e judeus que não limpam o mundo dos ladrões.
– Não temais. Não perdereis nem um centavo –conforta-os Jesus.
Chegam as mulheres chorando, espavoridas, porque o corajoso padrinho, por entre os tremores de um
medo fenomenal, as aterroriza, dizendo:
– É a morte. A morte pela mão dos salteadores!
– Não temais. Não sereis atingidas nem mesmo com um olhar
–encoraja-as Jesus, levando as mulheres para o centro do pequeno conjunto de homens e animais
espantados.
Os asnos zurram, o cão uiva, as ovelhas balem, as mulheres soluçam, os homens dizem imprecações ou
desmaiam pior do que as mulheres, em uma cacofonia causada pelo espanto. Jesus está calmo, como se
nada houvesse acontecido. O sussurro no bosque nem se pode mais ouvir, no meio desta vozeria. Mas, que
no bosque estão os malfeitores, que vêm se aproximando, é o que estão denunciando os galhos, que vão
sendo quebrados e as pedras que descem rolando.
– Silêncio! –manda Jesus. E o manda de um modo tal, que logo se faz silêncio.
223.6 Jesus deixa o seu lugar, e vai na direção do bosque, no fim do descampado. Depois Ele se vira para o
bosque, e começa a falar.
– A malvada fome do ouro arrasta os homens a sentimentos muito baixos. Por causa do ouro, o homem
se desvela mais do que por outras coisas. Vede quanto mal semeia, com o seu fascinante e inútil resplendor,
este metal. Eu creio que da cor dele seja o ar do Inferno, pois ele é de natureza infernal, desde quando o
homem se tornou pecador.
O Criador o tinha deixado nas vísceras deste enorme lápis-lazuli que é a terra, criada por sua vontade, a
fim de que fosse útil ao homem com os seus sais, e servisse para embelezar os seus templos. Mas satanás,
tendo beijado os olhos de Eva e mordido o eu do homem, pôs um sabor de malefício no metal inocente. E
desde então pelo ouro se mata e se peca. Por ele a mulher se torna namoradeira e facilmente cai no pecado
carnal. Por ele o homem se torna ladrão, usurpador, homicida, duro para com o próximo e para com sua
alma, que ele despoja de sua verdadeira herança, para dar a si mesmo uma coisa efêmera, a alma por ele
depredada em seu tesouro eterno, para dar a si mesmo umas poucas escamas brilhantes que, quando
chegar a morte, vão ser abandonadas.
223.7 Ó vós, que por causa do ouro pecais mais ou menos levemente, mais ou menos gravemente, e tanto
mais pecais e tanto mais vos rides de tudo o que vos foi ensinado por vossa mãe e por vossos mestres, isto
é, que existe um prêmio e um castigo para as obras praticadas durante esta vida, e assim não refletis que
por este pecado perdereis a proteção de Deus, a vida eterna, a alegria, e tereis remorsos, maldição no
coração, o medo por companheiro, o medo das punições humanas, que são sempre um nada, em
comparação com o medo que deveríeis ter, e não tendes, o santo medo dos castigos de Deus? Não refletis
que poderíeis ter um fim terrível para os vossos crimes, se eles chegarem ao delito. E um fim ainda pior,
porque eterno, se os vossos crimes por amor do ouro, embora sem chegarem ao derramamento do sangue,
mas desprezaram a lei do amor e do respeito ao próximo, negando, por avareza, o socorro a quem tem
fome, roubando postos, ou pesos, ou dinheiro, por cobiça? Não. Não pensais nisso. Dizeis “Tudo é loucura!
Eu esmaguei estas loucuras sob o peso do meu ouro. E elas não vivem mais.” Não são loucuras. São
verdades.
Não digais: “Pois bem, uma vez que eu morra, tudo se acabou.” Não. Aí é que tudo começa. A outra vida
não vai ser um abismo sem pensamento e sem recordação do passado vivido e sem aspirações a Deus, que
vós credes: será uma pausa para esperar a libertação pelo Redentor. A outra vida é uma espera feliz para os
justos, espera paciente para os que estão sofrendo e espera horrível para os condenados. Para os primeiros,
no Limbo; para os segundos, no Purgatório e para os últimos, no Inferno. E, enquanto para os primeiros a
espera cessará com a entrada nos Céus atrás do Redentor, para os segundos, depois daquela hora, se
tornará uma espera confortada pela esperança, enquanto que para os terceiros o que os entristecerá será a
terrível certeza de uma condenação eterna. Pensai nisso, vós que pecais. Nunca é tarde para arrepender-
vos. Mudai o veredito, que está sendo escrito no Céu, com um verdadeiro arrependimento. A região dos
mortos seja para vós não um inferno, mas uma penitente espera, pelo menos esta, seja por vós desejada.
Não escuridão, mas crepúsculo de luz. Não tortura, mas saudade. Não um desespero, mas esperança.
223.8 Ide. Não procureis lutar contra Deus. Ele é o Forte e o Bom. Não desonreis o nome dos vossos pais.
Ouvi como aquela fonte gemeu, um gemido parecido com aquele que despedaça o coração de vossa mãe,
quando ela fica sabendo que sois assassinos. Ouvi como o vento está uivando no desfiladeiro. Parece vos
estar ameaçando e amaldiçoando. É assim que vos amaldiçoa o vosso pai pela vida que levais. Ouvi como o
remorso uiva em vossos corações. Por que quereis sofrer, se poderíeis ser serenamente pagos com um
pouco sobre a terra, e com tudo no Céu? Dai paz aos vossos espíritos. Dai paz aos homens que temem, que
devem ter medo de vós, como de feras! Dai a paz a vós mesmos, ó verdadeiros infelizes! Levantai vossos
olhares para o Céu, afastai de vossa boca o alimento venenoso, purificai vossas mãos, que estão deixando
pingar o sangue de irmãos, purificai os vossos corações.
Eu tenho fé em vós. Por isso é que vos falo. Porque, se todo o mundo vos odeia e vos teme, Eu não vos
odeio, nem vos temo. Eu somente vos estendo a mão, para dizer-vos: “Levantai-vos. Vinde. Voltai cheios de
mansidão para o meio dos homens, homens entre homens.” Tão pouco Eu vos temo, que agora vou dizer
também a todos estes: “Voltai para o vosso descanso. Sem rancor para com os pobres irmãos. Rezai por
eles. Eu fico aqui a fim de olhar por eles com olhos de amor, e vos juro que nada mais acontecerá. Porque o
amor desarma os violentos, e sacia os ávidos. Seja bendito o Amor, a força verdadeira do mundo. Força
desconhecida e poderosa. Força que é Deus.”
E, dirigindo-se a todos:
– Ide, ide. Não temais. Lá não há mais malfeitores, mas homens assustados e homens que choram. Quem
chora não faz mal. Deus queira que, como estão agora, eles permanecessem. Seria a redenção deles.
224. No apóstolo João atua o amor. Chegada a Beter.
20 de julho de 1945.
224.1 A comitiva apostólica passou por uma mudança em seu acompanhamento animal. Aqui não está mais
o bode e , em lugar dele, estão uma ovelha e dois cordeirinhos. A ovelha, gorda e com os úberes cheios, e
com dois cordeirinhos alegres como dois meninos. É um pequenino rebanho que, por ter um aspecto menos
cabalístico do que o do bode, que era muito preto, agrada mais a todos.
– Eu vos havia dito que viria uma cabra, para fazer de Margziam um pequeno pastor feliz. Mas, em vez
da cabra, já que de cabras não quereis saber, eis que vieram as ovelhas. E são brancas. Justamente como
Pedro sonhava.
– Mas é certo! Parecia-me estar trazendo comigo Belzebu –diz Pedro.
– De fato, desde quando ele esteve conosco, sucederam-nos coisas bem desagradáveis. Era o feitiço que
nos acompanhava –confirma irritado Iscariotes.
– Era, então, um bom feitiço, porque, que foi que aconteceu mesmo de mal? –diz calmamente João.
Todos se dirigem a ele, como para censurá-lo por sua cegueira.
– Mas não viste em Modin como fomos escarnecidos?
– E a ti parece nada aquela queda que o meu irmão levou? Ele podia ter ficado arruinado. Como
poderíamos fazer para levá-lo para fora de lá, se ele tivesse quebrado as pernas ou a espinha?
– E ontem de noite, achaste bonito aquele interlúdio?
– Eu vi tudo, considerei tudo, e bendisse ao Senhor, porque não nos aconteceu nada de mal. O mal veio
em direção a nós, mas depois fugiu, como sempre, e certamente aquele encontro serviu para deixar
sementes de bem, tanto em Modin, como perto dos vinhateiros, que acorreram com a certeza de encontrar
pelo menos um ferido, e com o pesar de terem sido sem caridade, tanto assim, que quiseram fazer uma
reparação. O mesmo se diga perto dos ladrões de ontem à noite. Eles não fizeram nada de mal, e nós, isto é,
Pedro, ganhou as ovelhas em troca do bode e, como presente por terem todos sido salvos, os pobres têm
agora muito dinheiro pelas bolsas a nós dadas pelos mercadores e pelas ofertas das mulheres. E todos, e
isto é o que vale mais, todos receberam bem as palavras de Jesus.
– João está com a razão –dizem Zelotes e Judas Tadeu.
E este último assim termina:
– Parece mesmo que cada coisa aconteça por um claro conhecimento do que está para acontecer.
Encontrarmo-nos justamente lá, e com atraso por causa da minha queda, junto com aquelas mulheres
cheias de jóias, junto com aqueles pastores com um rebanho gordo, junto àqueles mercadores carregados
de dinheiro, magníficas presas para os ladrões! 224.2Meu irmão, dize-me a verdade: Sabias que tudo isso iria
acontecer? –pergunta Tadeu a Jesus.
– Eu já vos disse muitas vezes que Eu leio nos corações e que, quando o Pai não dispõe de modo
diferente, Eu não deixo de saber o que deve acontecer.
– Mas, às vezes, por que fazes erros, como aquele de ir ao encontro dos fariseus hostis, ou a cidades
completamente hostis? –pergunta Judas Iscariotes.
Jesus olha para ele fixamente, e depois lhe diz calmamente e devagar:
– Não são erros, são necessidades de minha missão. Do médico precisam os doentes, e do Mestre os
ignorantes. Tanto estes, como aqueles, às vezes repelem o médico e o mestre. Mas este, se for um bom
médico e um bom mestre, continua a ir a quem os repele, porque o dever dele é ir. E Eu vou. Quereríeis vós
que onde Eu me apresento caíssem todas as resistências. Eu o poderia fazer. Mas Eu não violento ninguém.
Eu persuado. A coerção só é usada em casos muito excepcionais, e só quando os espíritos, iluminados por
Deus, chegam a compreender que ela pode servir para persuadir de que Deus existe e que Ele é mais forte,
ou então em caso de uma salvação coletiva.
– Será como o caso de ontem à noite? –pergunta Pedro.
– Ontem à noite, aqueles ladrões ficaram com medo, vendo que estávamos bem acordados para recebê-
los –diz, com evidente desprezo, Iscariotes.
– Não. Eles ficaram persuadidos pelas palavras –diz Tomé.
– Sim! Assim te parece! São, na verdade, as almas ternas que se persuadem com duas palavras, ainda
que sejam de Jesus. Eu sei daquela vez que fomos assaltados, eu com toda a família e muitos de Betsaida,
no desfiladeiro de Adonim! –responde Filipe.
– Mestre, dize-me uma coisa. Desde ontem estou querendo te perguntar. Mas, afinal, foram as tuas
palavras, ou a tua vontade que não deixaram acontecer nada? –pergunta Tiago de Zebedeu.
Jesus sorri e se cala.
Responde Mateus:
– Eu creio que tenha sido a sua vontade, que superou a dureza daqueles corações, e chegou a paralisá-
la, a fim de poder falar e salvar.
– Eu também acho que é assim. É por isso que Ele quis ficar lá sozinho, olhando para o bosque. Ele os
tinha subjugados pelo seu olhar, com sua confiança neles, e com sua calma, estando desarmado. Ele não
tinha nem um pau!… –diz André.
– Está bem. Tudo isso somos nós que dizemos. São ideia s nossas. Eu quero saber o que o Mestre diz –
diz Pedro.
Começa, então, entre eles uma discussão calorosa, que Jesus os deixa entabular, entre os que dizem que,
tendo Jesus declarado que não força a ninguém, logo ele não terá usado de violência, nem mesmo com
aqueles ladrões. E quem diz isso é Bartolomeu, enquanto Iscariotes, apoiado, ainda que levemente por
Tomé, diz que ele não pode crer que o olhar de um homem possa fazer tudo aquilo.
Mateus o rebate, dizendo:
– Pode tudo aquilo, e mais ainda. Eu fui convertido pelo seu olhar, antes mesmo do que por suas
palavras.
Os sim e os não entram em contraste, com violência, ficando cada qual obstinado em sua tese. João se
cala, como Jesus, e fica sorrindo, com a cabeça inclinada, para esconder o seu sorriso. Pedro volta ao
assalto, porque nenhuma das razões dos companheiros o persuade. Ele pensa e diz que o olhar de Jesus é
diferente do de qualquer outro homem, e quer saber se é porque Jesus é o Messias, ou se é porque Ele é
sempre Deus.
224.3 Jesus, então, fala:
– Em verdade, Eu vos digo que não somente Eu, mas quem quer que seja que esteja unido a Deus com
uma santidade, uma pureza, uma fé sem rachaduras, poderá fazer o que Eu fiz e mais ainda. O olhar de um
menino, se o seu espírito estiver unido ao de Deus, pode fazer desabar os templos vãos, sem fazer uso da
sacudida de Sansão, pode instilar a mansidão às feras e aos homens-feras, pode repelir a morte, vencer as
doenças do espírito, como a palavra de um menino unido ao Senhor, e feito instrumento do Senhor, pode
também curar as doenças, tirar o veneno das serpentes e operar qualquer milagre. Porque Deus opera nele.
– Ah! Agora entendi –diz Pedro.
E olha, olha, olha para João. E depois ele termina todo um raciocínio que tinha consigo, dizendo em alta
voz:
– Eis! Tu, Mestre, pudeste, porque és Deus, e porque és Homem unido a Deus. E assim sucede com
quem sabe chegar, ou já conseguiu chegar a estar unido a Deus. Eu compreendi.
– Mas, não perguntas a ti mesmo qual a chave desta união, qual o segredo deste poder. Nem todos
dentre os homens chegam a isso, e, no entanto, todos eles têm os mesmos requisitos para o conseguirem.
– É isto! Mas onde está a chave dessa força para unir-se a Deus e para dominar as coisas? Uma oração,
ou palavras secretas…
– Há pouco, Judas de Simão acusava o bode de ser o culpado de todas as coisas más que nos
aconteceram. Não há feitiços que dependam dos animais. Acabai com as superstições, que ainda são
idolatrias, e que podem causar desventuras. E, visto que não há fórmulas para fazer feitiços, não há
também palavras cabalísticas para operar milagres. O que existe é só o amor. Como Eu disse ontem de
tarde, o amor acalma os violentos e sacia os ávidos. O Amor é Deus. Com Deus em vós, plenamente
possuído, pelo merecimento de um amor perfeito, o olho se transforma em fogo que queima todos os ídolos,
e derruba os simulacros, a palavra se torna Poder. E ainda: o olho torna-se arma que desarma. Não se
resiste a Deus, ao Amor. Somente o demônio resiste, porque é ódio perfeito, e com ele resistem também os
seus filhos. Os outros, os débeis possuídos por alguma paixão, mas que não se venderam voluntariamente
ao demônio, não resistem a ele. Seja qual for a religião deles, o absenteísmo deles quanto a qualquer fé,
seja qual for o seu nível de baixeza espiritual, são golpeados pelo Amor, que é o grande Vitorioso. Procura
chegar a isto logo, e farás, então, o que fazem os filhos de Deus, os portadores de Deus.
224.4 Pedro não tira os olhos de João: Tomé, Zelotes, os filhos de Alfeu, Tiago e André, estão com a
inteligência desperta e indagadora.
– Mas, então, Senhor –diz Tiago de Zebedeu–, que aconteceu com o meu irmão? Tu falas dele. É ele o
menino que faz milagres? É isto? É assim?
– Que ele fez? Ele virou uma página do livro da vida, leu e conheceu novos mistérios. Nada mais. Ele vos
precedeu, porque ele não fica parado, a pensar em todos os obstáculos, a medir todas as dificuldades, a
calcular todas as vantagens. Mas não vê mais a terra. Vê a Luz e se dirige para ela. Sem fazer paradas.
Mas, deixai-o como está. As almas, que consomem mais chamas, não se perturbam em seu ardor, que alegra
e consome. Precisa deixá-las arder. É suma alegria e sumo cansaço. Deus lhes concede instantes de noite,
porque sabe que o ardor mata as almas-flores, como o faz com as flores dos campos. Deixai sossegado o
atleta do amor, quando Deus assim o deixa. Imitai os mestres de educação física, que concedem aos seus
alunos os necessários descansos… Quando tiverdes chegado, vós também, ao ponto a que ele já chegou, e
até além, porque ireis além tanto vós como ele, então compreendereis a necessidade do respeito, do
silêncio, da penumbra, que experimentam aquelas almas de que o Amor fez suas presas e seus
instrumentos. Não fiqueis agora pensando: “Então, eu terei prazer em ser assim conhecido, e João é um
tolo, pois as almas do próximo, como as dos meninos, querem deixar-se seduzir pelo maravilhoso.” Não.
Quando tiverdes chegado a esse ponto, tereis o mesmo desejo de silêncio e de penumbra que João tem
agora. E, quando Eu não estiver mais no meio de vós, lembrai-vos de que, quando precisardes julgar a
respeito de uma conversão ou de uma atitude de santidade, devereis sempre usar como medida a
humildade. Se em alguém continua a haver orgulho, não vos enganeis, pensando que ele esteja convertido.
E, se em alguém, ainda que seja chamado de “santo”, reinar a soberba, ficai certos de que santo ele não é.
Poderá ele, como um charlatão e um hipócrita, viver bancando o santo, e até simular milagres. Mas ele não
é. A aparência é hipocrisia, e os prodígios dele são satanismo. Compreendestes?
– Sim, Mestre…
Todos se calam, muito pensativos. Mas, se as bocas estão fechadas, podem adivinhar-se os pensamentos
claros, pelos seus olhares e por suas expressões. Uma grande vontade de saber tremula, como uma aragem,
ao redor deles…
224.5 Zelotes se esforça para entreter os companheiros, a fim de ter tempo para falar-lhes em particular, e
certamente para aconselhá-los a se calarem. Eu tenho a impressão de que Zelotes exerce muito este
ministério no grupo dos apóstolos. Ele é o moderador, o conciliador, o conselheiro dos companheiros, além
de ser o que compreende muito bem o Mestre. Agora, ele diz:
– Estamos já nas terras de Joana. Aquele lugar em forma de berço é Beter. Aquele palácio sobre aquele
cume é o seu castelo natal. Estais sentindo no ar este perfume? São os roseirais que, com o sol da manhã,
começam a exalar seu perfume. A tarde, então, é que se espalha fortemente a fragrância. Mas agora é tão
belo vê-los, nesta frescura da manhã, ainda recobertos pelo orvalho, como milhões de diamantes, jogados
sobre milhões de botões, que se abrem. Quando o sol está para se pôr, colhem-se todas as flores chegadas a
um desabrochar completo. Vinde. Quero mostrar-vos, de uma pequena elevação, a vista dos roseirais que
transbordam do cume, como de uma cascata para baixo, pelos barrancos da outra vertente. É uma cascata
de flores que depois, torna a subir, como uma onda, por sobre duas outras colinas. É um anfiteatro, um lago
de flores. É esplêndido. O caminho é mais íngreme. Mas vale a pena ir por ele, porque daquela beira se
domina todo este paraíso. E chegaremos logo também ao castelo. Lá Joana vive livre, no meio dos seus
camponeses, a única guarda para tanta riqueza. Mas eles amam tanto a sua patroa que faz destes vales um
éden de beleza e de paz, que eles valem muito mais do que os guardas de Herodes. Eis, olha, Mestre. Olhai
amigos.
E, com um gesto, mostra um semicírculo de colinas invadidas pelos roseirais.
De todos os lados, por onde os olhares pararem verão roseiras e mais roseiras debaixo das árvores
plantadas para formarem um abrigo contra o vento, contra os raios muito ardentes do sol e as chuvas de
pedra. O sol bate e o ar passa de um lado para outro, até por debaixo desta coberta ligeira que mais parece
um véu, mas que não abafa, conservando-se dentro das regras seguidas pelos jardineiros, e por baixo vivem
felizes os mais belos roseirais do mundo. São milhares e milhares de plantas de todas as espécies de rosas.
Roseiras anãs, roseiras baixas, altas, altíssimas. Colocadas em tufos, como almofadas bordadas com flores
aos pés das árvores, sobre prados de ervas muito verdes, ou em sebes, ao longo dos caminhos, ao lado dos
rios, em círculos, ao redor dos tanques de irrigação, espalhadas por este parque em parte formado por
colinas, ou, então, enroladas nos troncos das árvores, com suas cabeleiras floridas, que se lançam de um
tronco a outro, formando festões e grinaldas. Uma coisa verdadeiramente de sonho. Todos os tamanhos,
bem como as matizes, aí estão presentes, e se trançam, pondo as cores do marfim perto do ardor cor de
sangue de outras corolas, e reinando soberanas pelo número, as verdadeiras rosas da cor das maçãs do
rosto das crianças, que se esfumam nos contornos, passando para o branco matizado de rosa.
Todos ficam impressionados com tão grande beleza.
– Mas, que se faz com tudo isso? –pergunta Filipe.
– Goza-se disso –responde Tomé.
– Não. Daí também se tiram essências, dando trabalho a centenas de servos, jardineiros e de
empregados nas prensas das essências… Os romanos as procuram com avidez. Jônatas já me dizia isso,
quando me mostrou as contas da última colheita. 224.6Mas lá vem Maria de Alfeu com o menino. Eles nos
viram e estão chamando as outras…
De fato, eis que Joana e as duas Marias vêm vindo, precedidas por Margziam, que desce correndo, com
os braços já em posição de abraço, em direção de Jesus e de Pedro. As mulheres, ligeiras, se prostram
diante de Jesus.
– A paz esteja com todas vós. E minha mãe, onde está?
– Entre os roseirais, Mestre. Com Elisa. Oh! Elisa está bem curada! Ela já pode enfrentar o mundo e
seguir-te. Obrigada por me teres usado para isso.
– Obrigado Eu a ti, Joana. Estás vendo como era útil vir para a Judeia? Margziam, eis dois presentes
para ti. Este belo boneco e estas belas ovelhinhas. Eles te agradam?
O menino perdeu até o fôlego de alegria. Ele se inclina para Jesus, que se inclinou para dar-lhe o
boneco, e ficou assim curvado para poder olhá-lo no rosto e o aperta ao pescoço, beijando-o com toda a
veemência possível.
– Assim te faças humilde como as ovelhinhas e te tornes depois um bom pastor para os que crerem em
Jesus. Não é verdade?
Margziam diz sim, sim, sim, com o fôlego entrecortado e com os olhos lúcidos de júbilo.
– Agora, vai a Pedro, que Eu vou para minha mãe. Eu estou vendo lá longe a orla do véu dela, que lá vai
correndo ao longo de uma sebe de roseiras.
E corre para ir a Maria, recebendo-a sobre o coração, numa das curvas do caminho. Depois do primeiro
beijo, Maria explica, ainda ansiosa:
– Aí atrás vem Elisa… Eu corri para te beijar, porque deixar de abraçar-te, meu Filho, eu não podia… e
beijar-te diante dela eu não queria… Ela está muito mudada. Mas o coração sempre dói, diante das alegrias
dos outros, que para sempre a ela são negadas. Ei-la chegando aí.
Elisa dá rapidamente os últimos passos, e se ajoelha para beijar a veste de Jesus. Não é mais aquela
triste mulher de Betsur. Mas uma velha austera, marcada pela dor e, contudo, imponente pelos sinais que a
dor lhe deixou no rosto e no olhar.
– Que Tu sejas bendito, meu Mestre, agora e sempre, por me teres devolvido aquilo que tinha perdido.
– Sempre mais paz a ti, Elisa. estou contente por encontrar-te aqui. Levanta-te.
– Eu também estou contente. Tenho muitas coisas para te dizer, para te pedir, Senhor.
– Para isso teremos o tempo todo, porque Eu permanecerei aqui alguns dias. Vem, que Eu vou te fazer
conhecer os condiscípulos.
– Oh! Então, já compreendeste o que eu queria dizer? Isto é, que eu quero renascer para uma vida nova:
a tua. Quero refazer minha família: a tua. Quero ter filhos: os teus. Como Tu disseste, quando falavas em
Noemi, lá em minha casa, em Betsur. Sou eu uma nova Noemi, em tua graça, meu Senhor. Que Tu sejas
bendito por isso. Não estou mais na amargura, nem infecunda. Ainda vou ser mãe. E, se Maria o permitir,
um pouco tua mãe também, além de a ser dos filhos de tua doutrina.
– Sim. Tu o serás. Maria não ficará ciumenta por isso e Eu te amarei, de tal modo que não fiques
chorando por teres vindo. Vamos agora àqueles que querem dizer-te que te amam como irmãos.
E Jesus a toma pela mão, levando-a para perto de sua nova família.
A viagem para a espera do Pentecostes chegou ao fim.
225. O paralítico da piscina de Betsaida
e a discussão sobre as obras do Filho de Deus.
21 de julho de 1945.
225.1 Jesus está em Jerusalém, e se encontra precisamente nas adjacências da fortaleza Antônia. Com Ele
estão todos os apóstolos, menos Iscariotes. Uma grande multidão se dirige, apressada, para o Templo.
Todos estão com vestes de festa, tanto os apóstolos, como os outros peregrinos, e, por isso, eu acho que
eram os dias de Pentecostes. Muitos pedintes de esmola se misturam ao povo, queixando-se de suas
misérias, com cantos tristes e monótonos que comovem os corações, e procuram os melhores pontos, aos
lados das portas do Templo, ou nas encruzilhadas, das quais o povo se dirige para ele. Jesus passa, fazendo
o bem a estes miseráveis, que só pensam em fazer uma exposição completa de suas misérias, além da
narração de cada uma delas.
Tenho a impressão de que Jesus já tinha estado no Templo, porque ouço que os apóstolos estão falando
de Gamaliel, que teria feito como se não os visse, ainda que Estêvão, um dos seus ouvintes, lhe tivesse dado
notícia da passagem de Jesus por ali.
Estou ouvindo Bartolomeu, que pergunta aos seus companheiros:
– Que terá querido dizer aquele escriba com aquelas palavras: “Um grupo de carneiros não bons nem
para o corte?”
– Deverá ter falado de qualquer negócio dele –responde Tomé.
– Não. Ele se referia a nós. Eu vi logo. E, além disso, a segunda frase dele vinha confirmar a primeira.
Ele disse com sarcasmo: “Daqui a pouco, o Cordeiro vai ser Ele, primeiro tosado, e depois morto.”
– Sim, eu também ouvi isto –confirma André.
– É verdade. E eu estou queimando de vontade de voltar lá atrás e perguntar ao companheiro do escriba
o que ele sabe de Judas de Simão –diz Pedro.
– Ora, ele não sabe nada! Desta vez Judas não está aqui porque está realmente doente. Nós sabemos
disso. Talvez ele tenha até sofrido muito com a viagem que fez. Nós somos mais fortes do que ele. Aqui foi
que ele viveu comodamente. Ele facilmente se cansa –responde Tiago de Alfeu.
– Sim, nós sabemos disso. Mas aquele escriba disse: “Está faltando o camaleão do grupo.” O camaleão
não é aquele que muda de cor todas as vezes que quer? –pergunta Pedro.
– Sim, Simão. Mas certamente quiseram falar assim por causa das sempre novas roupas dele. Pensa
nisto. Ele é jovem. Tenhamos pena dele –diz, conciliador, Zelotes.
– Isso também é verdade. Mas!… que frases curiosas essas –conclui Pedro.
– Sempre fica parecendo que estão nos ameaçando –diz Tiago de Zebedeu.
– É que nós sabemos que estamos ameaçados, e passamos a ver ameaças até onde não há… –observa
Judas Tadeu.
– E vemos culpas até onde elas não existem –termina Tomé.
– É certo. A suspeita é feia… Quem sabe como estará hoje Judas. Neste meio tempo ele estará se
aproveitando daquele paraíso, com aqueles anjos… Também eu continuaria aqui, até ficar doente, para
depois ter todas aquelas delícias! –diz Pedro.
E Bartolomeu lhe responde:
– Nós esperamos que ele fique bom logo. Precisamos terminar a viagem, porque o calor nos persegue.
– Oh! Cuidados não lhe faltam, e, além disso… o Mestre providencia –garante André.
– Ele estava com muita febre, quando o deixamos. Não sei como é que ela veio assim… –diz Tiago de
Zebedeu.
E Mateus lhe responde:
– Como é que veio a febre! Porque ela tem que vir. Mas, não há de ser nada. O Mestre não está
preocupado. Se tivesse visto alguma coisa grave, não teria deixado o castelo da Joana.
225.2 De fato, não está preocupado. Ele conversa com Margziam e João, enquanto vai à frente distribuindo
esmolas. Com certeza vai explicando ao menino muitas coisas, pois eu estou vendo que Ele lhe mostra uma
ou outra coisa. Ele se dirigiu para o fim dos muros do Templo, no canto noroeste. Lá está uma grande
multidão, que vai indo para um lugar cheio de pórticos, situado à frente de uma porta, que eu ouço ser
chamada “Porta do Rebanho.”
– Esta aqui é a Probática, a piscina de Betsaida. Agora, olha bem a água. Estás vendo como está parada?
Daqui a pouco, verás como ela se põe em movimento e sobe, chegando até àquela marca úmida. Tu a estás
vendo? Aí, então, desce o Anjo do Senhor, e a água o percebe e o venera como pode. Ele dá uma ordem à
água, para que ela cure o homem que estiver pronto para mergulhar nela. Estás vendo quantas pessoas?
Mas são muitos os que ficam distraídos, e não notam o primeiro movimento da água. Ou, então são os mais
fortes que, sem caridade, afastam os mais fracos. Não se deve nunca estar distraído diante dos sinais de
Deus. É preciso estar com a alma sempre vigilante, porque nunca se sabe quando Deus vai-se mostrar, ou
vai mandar o seu anjo. E nunca devemos ser egoístas, nem mesmo por causa da saúde. Muitas vezes, por
estarem discutindo de quem é a vez, ou quem é que precisa mais, esses pobres infelizes perdem o benefício
da vinda do anjo.
Jesus explica pacientemente a Margziam, que fica olhando para ele com uns olhos bem arregalados,
atentos e, enquanto isso, os tem voltados também para a água.
– Pode-se ver o anjo? Eu gostaria de vê-lo.
– Levi, que era um pastor da tua idade, o viu. Olha bem, tu também e fica preparado para louvá-lo.
O menino não se distrai mais. Seus olhares estão dirigidos para a água e para acima da água,
alternativamente, e não ouve nada, não vê nada mais. Enquanto isso, Jesus está olhando aquele pequeno
grupo de enfermos, cegos, estropiados, paralíticos, que estão esperando. Também os apóstolos estão
observando atentamente. O sol faz jogos de luz na superfície da água e invade, como um rei, as cinco
ordens de pórticos, que estão ao redor das piscinas.
– Ei-lo aí! –grita Margziam–. A água vem subindo e se move e brilha. Que luz! Eis o Anjo!… –e o menino
se ajoelha.
De fato, com o movimento do líquido na piscina que parece crescer por um fluxo, que se torna
repentinamente grande elevando a água até às bordas, ela está brilhando como um espelho exposto ao sol.
Por um instante, se manifesta um clarão ofuscante.
Um coxo está preparado para mergulhar na água e para dela sair, pouco depois, com uma perna que
estava encolhida por uma grande cicatriz e agora perfeitamente curada. Os outros se lamentam, e discutem
com o recém curado, dizendo que afinal ele não estava agora mais impedido de trabalhar, mas eles sim. E a
balbúrdia continua.
225.3 Jesus olha ao redor, e vê um paralítico em seu pequeno leito, que está chorando baixinho. Vai para
perto dele, inclina-se e o acaricia, perguntando-lhe:
– Estás chorando?
– Sim. Ninguém pensa jamais em mim. Aqui estou sempre, aqui estou. Todos ficam curados, e eu não. Há
trinta e oito anos que estou deitado de costas, gastei tudo o que tinha, meus parentes morreram e agora eu
sou um peso para um meu parente de longe e que me traz para cá todas as manhãs, e me vem apanhar pela
tarde… Mas, como lhe deve ser pesado fazer isso! Oh! Eu gostaria antes morrer!
– Não fiques triste! Já tiveste tanta paciência e tanta fé! Deus te atenderá.
– Assim espero… Mas sempre há momentos de desânimo. Tu és bom. Mas os outros… Quem já foi
curado, poderia, como um agradecimento a Deus, ficar aqui para socorrer os pobres irmãos…!
– De fato, deveria fazer isso. Mas, não fiques com raiva deles. Eles nem pensam nisso. Não é má vontade
deles. É a alegria por terem ficado curados que os torna egoístas. Perdoa-os…
– Tu és bom. Tu não farias como eles fazem. Eu me esforço com as mãos para ir-me arrastando até lá,
quando a água da piscina se põe em movimento. Mas vai sempre alguém na minha frente e na beira eu não
posso ficar, pois lá eu seria pisoteado. E, mesmo que eu estivesse lá, quem me desceria? Se eu te tivesse
visto antes, eu te teria pedido…
– Queres mesmo ficar bom? Então, levanta-te! Pega o teu pequeno leito e anda!
Jesus se levantou de novo para dar esta ordem e até parece que Ele, ao levantar-se, com isso levantou o
paralítico, porque este se põe de pé e depois dá uns dois ou três passos, quase sem acreditar no que está
fazendo, e vai atrás de Jesus, que já se vai afastando dali, e, uma vez que vê que está andando de verdade,
dá um grito, que faz que todos se virem para ele.
– Mas, quem és tu? Em nome de Deus, dize-o a mim. És talvez o Anjo do Senhor?
– Eu sou mais do que um anjo. O meu nome é Piedade. Vai em paz.
Todos se aglomeram. Todos querem ver. Querem falar. Querem ficar sãos. Mas chegam os guardas do
Templo, que eu creio que vigiam também a piscina, e desfazem aquela aglomeração barulhenta, ameaçando
a todos com punições.
O paralítico apanha o seu pequeno leito: são dois varais sobre dois pares de pequenas rodas e um pano
rasgado pregado nos varais, e ele lá se vai todo feliz, gritando para Jesus:
– Eu ainda te encontrarei de novo. Não me esquecerei do teu nome e do teu rosto.
225.4 Jesus, misturando-se com a multidão, vai saindo em outra direção, para o rumo dos muros.
Ele ainda não chegou a passar pelo ultimo pórtico, quando chegam uns como se estivessem impelidos
por algum vento furioso. São os componentes de um grupo de judeus das piores castas, todos
mancomunados no desejo de dizer uns desaforos a Jesus. Eles procuram, olham, perscrutam. Mas não
conseguem ficar sabendo bem de que se trata, e Jesus lá se vai, enquanto ficam decepcionados pelas
informações dos guardas, assaltam o pobre, mas feliz curado, e o repreendem:
– Por que vais levando esta cama? Hoje é sábado. Isso não te é permitido.
O homem olha para eles e diz:
– Eu não sei de nada. Só sei que aquele que me curou me disse: “Pega a tua cama e anda.” Disto eu sei.
– Só pode ser um demônio, porque te mandou violar o sábado. Como era ele? Quem era? É judeu? É
galileu? É um prosélito?
– Eu não sei. Ele estava aqui. Viu-me chorando, e veio para perto de mim. Ele me curou. Depois, foi-se
embora, levando um menino pela mão. Acho que era filho dele, porque pela idade Ele pode ter um filho
daquele tamanho.
– Um menino? Então, não é Ele!… Como é que Ele disse que se chamava? Não lhe perguntaste? Não
mintas!
– Ele me disse que se chama Piedade.
– Tu és bobo. Isso não é nome de gente!
O homem encolhe os ombros e vai-se embora.
Os outros dizem:
– Era Ele com certeza. Os escribas Anias e Zaqueu o viram no Templo.
– Mas Ele não tem filhos!
– Mas é Ele. Ele estava com os discípulos.
– Mas Judas que conhecemos bem não estava com Ele. Os outros… podem ser uns quaisquer.
– Não. Eram eles.
E a discussão continua, enquanto os pórticos vão-se enchendo de enfermos…
[…]
225.5 Jesus torna a entrar no Templo, por outro lado, o lado do oeste, que é aquele que está mais defronte
da cidade. Os apóstolos o acompanham. Jesus olha ao redor de Si e finalmente vê o que estava procurando:
Jônatas que, por sua vez, também o estava procurando.
– Está melhor, Mestre. A febre baixou. Tua mãe diz que espera poder vir até o próximo sábado.
– Obrigado, Jônatas. Tu foste pontual.
– Nem tanto. Maximino de Lázaro me deteve. Ele está Te procurando. Foi ao pórtico de Salomão.
– Vou encontrar-me com ele. A paz esteja contigo. Leva a minha paz à minha mãe e às discípulas e
também a Judas.
E Jesus se dirige logo ao pórtico de Salomão, onde, de fato, encontra Maximino.
– Lázaro soube que estás aqui. Ele quer Te ver, para dizer-te uma grande coisa. Virás?
– Sem dúvida. E logo. Podes dizer-lhe que me espere nesta semana.
Também Maximino vai-se embora, depois de poucas palavras mais.
– Vamos rezar ainda, já que pudemos voltar até aqui, diz Jesus, e vai para o átrio dos hebreus.
Mas, perto do átrio, Ele se encontra com o paralítico que foi curado e que foi dar graças ao Senhor. O
miraculado o avista no meio da multidão e o saúda com alegria, e lhe conta tudo o que aconteceu junto à
piscina, depois de sua saída de lá.
E termina, dizendo:
– Depois, perguntou-me um, que estava espantado por me ver são, quem és Tu. Tu és o Messias, não é
verdade?
– Eu o sou. Mas, ainda que tivesses ficado curado pela água, ou por outro poder, terias sempre o mesmo
dever para com Deus. O dever de usar a saúde para fazer boas obras. Tu estás curado. Vai, vai, então com
boas intenções, empenhar-te de novo nas atividades da vida. E não peques nunca mais. Que Deus não tenha
que te punir mais ainda. Adeus. Vai em paz.
– Eu já estou velho… não sei nada… Mas gostaria de acompanhar-te para te servir, e para saber. Tu me
queres?
– Eu não rejeito ninguém. Pensa nisso, antes de vir. E, se estiveres decidido mesmo, vem.
– Ir aonde? Não sei aonde vais…
– Pelo mundo. Em qualquer lugar encontrarás discípulos que te guiem a Mim. O Senhor te ilumine para
o que for melhor.
Jesus vai para o seu lugar, e se põe a rezar… 225.6Eu não sei se o curado vai por si mesmo aos judeus ou
se são eles que o fazem parar, a fim de lhe perguntarem se aquele que estava falando com ele é o que o
curou. Só sei que o homem está falando com os judeus, e depois sai dali, e eles vão para perto da escada
por onde deve descer Jesus a fim de passar para os outros pátios, e sair do Templo.
Sem dirigir-lhe nenhuma saudação, quando Jesus chega, eles lhe dizem:
– Então, Tu continuas a violar o sábado, apesar de todas as repreensões que te têm sido feitas? E ainda
queres que te respeitem como a um enviado de Deus?
– Enviado? Mais ainda: como Filho. Porque Deus é meu Pai. Se não me quereis respeitar, deixai de fazê-
lo. Mas nem por isso Eu vou deixar de cumprir a minha missão. Não existe um só momento em que Deus
pare de agir. Nesta mesma hora o meu Pai está agindo e Eu também faço, porque um bom filho faz o que o
seu pai está fazendo, e porque para agir aqui nesta terra é que Eu vim.
Algumas pessoas se aproximam para ouvirem a discussão. Entre elas há pessoas que conhecem a Jesus,
outras que foram beneficiadas, outras que o estão vendo pela primeira vez; alguns o amam, outros o
odeiam, muitos estão incertos. Os apóstolos formam um núcleo com o Mestre. Margziam está ficando com
medo, e já está fazendo uma carinha de choro.
Os judeus, uma mescla de escribas, fariseus e saduceus, proclamam o seu escândalo:
– Até a isso te atreves! Oh! Ele se diz Filho de Deus! Um sacrilégio! Deus é Aquele que é e não tem
filhos! Chamai Gamaliel! Chamai Sadoc! Reuni os rabis, para que ouçam e o refutem.
– Não vos agiteis. Chamai-os, e eles vos dirão, se é que sabem, que Deus é Uno e Trino: Pai, Filho e
Espírito Santo, e que o Verbo, ou seja, o Filho do Pensamento, veio, como havia sido profetizado, para salvar
Israel e o mundo do Pecado. O Verbo sou Eu. Sou o Messias prometido. Portanto, não há nenhum sacrilégio
em dar Eu ao Pai o nome de meu Pai. 225.7Vós vos inquietais, porque Eu faço milagres, porque com isso
atraio para Mim as multidões, e as convenço. Vós me acusais de ser um demônio, porque opero prodígios.
Mas Belzebu está, há séculos, no mundo e, na verdade, não lhe faltam devotos adoradores… Por que então,
ele não faz o que Eu faço?
O povo murmura:
– É verdade. É verdade. Ninguém faz o que Ele faz.
Jesus continua:
– Eu vo-lo digo: é porque Eu sei o que ele não sabe, e posso o que ele não pode. Se Eu faço obras de
Deus, é porque Eu sou seu Filho. Por si mesmo, ninguém pode chegar a fazer senão o que viu fazer. Eu, o
Filho, não posso fazer senão o que vi ser feito pelo Pai, pois Eu sou Um com Ele, desde os séculos dos
séculos, não diferente dele nem na natureza, nem no poder. Todas as coisas que o Pai faz, Eu, que sou seu
Filho, também as faço. Nem Belzebu nem outros podem fazer aquilo que Eu faço. Porque Belzebu e os
outros não sabem aquilo que Eu sei. O Pai Me ama, a Mim seu Filho, e Me ama sem medida, como Eu O
amo. Por isso, Ele me mostrou e Me mostra tudo o que Ele faz, para que Eu faça o que Ele faz, Eu nesta
terra, neste tempo de Graça, e Ele no Céu, desde antes que existisse o Tempo na terra. E Ele me mostrará
obras cada vez maiores, a fim de que Eu as faça, e vós fiqueis maravilhados. O Pensamento dele é
inesgotável em pensar. E Eu o imito sendo indefectível em cumprir o que o Pai pensa e quer com o seu
pensamento.
225.8 Vós ainda não sabeis quantas coisas o Amor cria inesgotavelmente. Nós somos o Amor. E não há
limitação para Nós, nem existe coisa que não possa ser aplicada sobre os três graus do homem: o inferior, o
superior, o espiritual. De fato, assim como o Pai ressuscita os mortos e lhes dá a vida, igualmente Eu, o
Filho, posso dar a vida a quem Eu quiser. Antes, pelo amor infinito que o Pai tem para com o Filho, me é
concedido não só dar a vida à parte inferior, mas também à superior, livrando o pensamento do homem e o
seu coração dos erros mentais e das más paixões, e à parte espiritual, dando ao espírito ficar livre do
pecado. Porque o Pai não julga a ninguém, mas deu todo o julgamento ao Filho, sendo o Filho quem, com o
seu próprio sacrifício, comprou a humanidade para redimi-la. E isso o Pai faz por justiça, porque a quem
paga com sua moeda, é justo que seja dado, e para que todos honrem ao Filho, como honram ao Pai.
Ficai sabendo que, se separais o Pai do Filho, ou o Filho do Pai, e não vos lembrais do Amor, vós não
amais a Deus, como deve ser amado com verdade e sabedoria, mas praticais uma heresia, dando culto a um
só, quando os três são uma admirável Trindade. Por isso, quem não honra o Filho é como se deixasse de
honrar o Pai, porque o Pai, Deus, não aceita que só uma parte de Si seja adorada, mas quer que o seu Todo
seja adorado. Quem não honra o Filho, não honra o Pai, que O enviou, por pensamento perfeito de amor. E,
portanto, nega que Deus saiba fazer obras justas. Em verdade, Eu vos digo que quem escuta a minha
palavra, e crê naquele que Me enviou, tem a vida eterna, e não é fulminado pela condenação, mas passa da
morte para a vida, porque crê em Deus e aceita a minha palavra, quer dizer, infunde em si a vida que não
morre.
Está chegando a hora, e até para muitos já chegou, na qual os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e
quem a tiver ouvido ressoar vivificadora no fundo de seu coração, esse viverá. 225.9Que dizes tu, escriba?
– Eu digo que os mortos não ouvem mais nada, e que Tu estás louco.
– O Céu irá te persuadir de que não é assim, e que o teu saber é um nada, em comparação com o de
Deus. Vós tendes a tal ponto humanizado as coisas sobrenaturais, que não sabeis mais dar às palavras nada
além de um significado imediato e terreno. Vós ensinastes o Hagadá, em fórmulas fixas, vossas, sem vos
esforçardes para compreender as alegorias em suas verdades, e agora, em vosso espírito, cansado de ser
oprimido por uma humanidade que quer triunfar sobre o espírito, não credes mais nem naquilo que
ensinais. E esta é a razão pela qual não podeis mais lutar contra as forças ocultas.
A morte, de que Eu estou falando, não é a morte da carne, mas do espírito. Hão de vir aqueles que
ouvirão com seus ouvidos a minha palavra e a acolherão em seus corações, e a porão em prática. Esses,
ainda que mortos no espírito, reaverão a vida, porque a minha Palavra é Vida que se infunde neles. E Eu a
posso dar a quem Eu quero, porque ela em Mim é perfeição de Vida visto que o Pai tem em Si a Vida
Perfeita, e assim também o Filho teve do Pai a Vida em Si mesmo, perfeita, completa, eterna, inesgotável e
transmissível. E, com a Vida, o Pai me deu o poder de julgar, pois o Verbo do Pai é o Filho do homem, pode e
deve julgar o homem. E não fiqueis maravilhados por esta primeira ressurreição, a espiritual, que Eu opero
com a minha Palavra. Vereis outras mais fortes, mais fortes do que os vossos sentidos pesados, porque em
verdade Eu vos digo que não há coisa maior do que a invisível mas real ressurreição de um espírito. Bem
depressa virá a hora, na qual os sepulcros serão penetrados pela voz do Filho de Deus, e todos os que estão
neles a ouvirão. E os que fizeram o bem, de lá sairão a fim de irem para a ressurreição da Vida Eterna,
enquanto que os que fizeram o mal irão para a ressurreição da eterna condenação.
Isto Eu não digo que faço e não o farei por Mim mesmo, só por minha vontade, mas pela vontade do Pai
unida à minha. Eu falo e julgo conforme o que ouço e o meu juízo é reto porque Eu não procuro a minha
vontade mas a vontade daquele que me enviou. Eu não estou separado do Pai. Eu estou nele e Ele está em
Mim. E Eu conheço o seu Pensamento, e o traduzo em palavras e ação.
225.10 Tudo que Eu digo para dar testemunho de Mim mesmo não pode ser aceito pelo vosso espírito
incrédulo, que não quer ver em Mim outra coisa que um homem semelhante a todos vós. Também há um
outro que testemunha por Mim, e que vós dizeis que venerais como grande profeta. Eu sei que seu
testemunho é verdadeiro. Mas vós, que dizeis venerá-lo, não aceitais o seu testemunho porque é contrário
ao vosso pensamento que é meu inimigo. Vós não aceitais o testemunho do homem justo, do último profeta
de Israel porque, naquilo que vos agrada, dizeis que ele não é mais do que um homem e que pode errar. Vós
mandastes interrogar João, esperando que Ele dissesse de Mim o que vós desejáveis, isto é, o que de Mim
pensáveis, aquilo que vós de Mim quereis pensar. Mas João deu testemunho da verdade e vós não a
pudestes aceitar. Porque o profeta diz que Jesus de Nazaré é o Filho de Deus, vós, no segredo de vossos
corações, porque tendes medo da multidão, dizeis que o profeta é um doido, como o é Cristo. Eu, porém,
não recebo testemunho de homem, seja mesmo o mais santo de Israel. Eu vos digo: ele era a lâmpada
ardente e luminosa, mas vós quisestes, por pouco tempo, gozar de sua luz. Quando aquela luz se projetou
sobre Mim, para fazer-vos conhecer o Cristo por aquilo que Ele é, deixastes que a lâmpada fosse colocada
debaixo de um alqueire e, antes ainda, levantastes entre ela e vós um muro, para não verdes, à luz dela, o
Cristo do Senhor.
Eu sou grato a João pelo seu testemunho, e grato lhe é o Pai. E João terá um grande prêmio por esse seu
testemunho, ardendo também por isso no Céu, o primeiro sol que brilhará entre todos os homens lá em
cima, brilhando como brilharão todos os que tiverem sido fiéis à Verdade e tiverem fome de Justiça. Mas Eu
tenho um testemunho maior do que o de João. E esse testemunho são as minhas obras. Porque as obras que
o Pai me deu para fazer, Eu faço, e elas dão testemunho de que o Pai me mandou, dando-me todo o poder. E
assim, é o próprio Pai que me mandou, quem dá testemunho em meu favor. Vós nunca ouviste-lhe voz nem
vistes a sua Face. Mas Eu o vi e O vejo, a ouvi e a ouço. Vós não tendes morando em vós a sua palavra,
porque não credes naquele que Ele mandou..
Vós investigais as Escrituras, porque credes obter, pelo conhecimento delas, a Vida Eterna. E não
percebeis agora que são justamente as Escrituras que falam de Mim? E como, então, continuais a não
querer vir a Mim, para terdes a Vida? Eu vo-lo digo: é porque quando qualquer coisa é contrária às vossas
ideia s inveteradas, vós as rejeitais. Falta-vos a humildade. Não podeis chegar a dizer: “Eu errei. Aquele ou
este livro diz o que é certo e eu estou errado.” Foi assim que fizestes com João, assim com as Escrituras,
assim com o Verbo que vos está falando. Não podeis mais ver e compreender porque estais enfaixados com
a soberba e atordoados com as vossas vozes.
225.11 Pensais que Eu assim vos fale, porque Eu quero ser por vós glorificado? Não. Sabei-o, Eu não
procuro nem quero glória que venha dos homens. Aquilo que Eu procuro e quero é a vossa salvação eterna.
Esta é a glória que Eu procuro. A minha glória de Salvador, que não pode existir se Eu não tiver salvados,
que aumenta quanto mais salvos Eu tiver, que me há de ser prestada pelos espíritos salvos e pelo Pai,
Espírito Puríssimo.
Mas vós não sereis salvos. Eu vos conheci por aquilo que sois. Vós não tendes em vós o amor de Deus.
Sois sem amor. E por isso não vindes ao Amor que vos fala e não entrareis no Reino do Amor. Lá vós sois
desconhecidos. O Pai não vos conhece, porque vós não me conheceis a Mim que estou no Pai. Não quereis
me conhecer. Eu vim em nome do meu Pai, e vós não me recebeis, enquanto estais prontos a receber a
qualquer um que venha em seu próprio nome, contanto que vos diga o que vos agrada. Dizeis que sois
almas de fé? Não. Não o sois. Como podeis crer, vós que mendigais a glória uns dos outros, e não procurais
a glória dos Céus, que só de Deus procede? A glória que é a Verdade, não jogo de interesses que param
sobre a terra e que acariciam somente a humanidade viciosa dos degradados filhos de Adão.
Eu não vos acusarei ao Pai. Não penseis nisto. Já há quem vos acusa: Moisés no qual vós esperais. Ele
vos repreenderá por não crerdes nele, porque não credes em Mim, pois ele escreveu sobre Mim e vós não
me reconheceis segundo o que sobre Mim ele deixou escrito[95]. Vós não acreditais nas palavras de Moisés,
que é o grande sobre o qual jurais. Como podeis, então, crer nas minhas, nas do Filho do homem, no qual
não tendes fé? Humanamente falando, isso é lógico. Mas aqui estamos no campo do espírito e estão em
confronto com as vossas almas. Deus as observa à luz das minhas obras e confronta as ações que fazeis com
o que vim ensinar. E Deus vos julga.
Eu me vou. Por muito tempo não me encontrareis. E acreditai isto não é um triunfo, mas é um castigo.
Vamos.
E Jesus abre a multidão, em parte muda, em parte sussurrando aprovações, que o medo dos fariseus
reduz a uns simples sussurros, e se vai.
[95] ele deixou escrito como em Deuteronômio 18,15-19.
Segundo ano
da Vida pública de Jesus.
(continuação)

226. Um bom sinal de Maria de Magdala.


Morte do velho Ismael.
22 de julho de 1945
226.1Jesus, acompanhado pelo Zelote chega ao jardim de Lázaro numa
manhã belíssima de verão. Ainda não terminou a aurora, por isso tudo é
fresco e alegre.
O servo-jardineiro, que acorre para receber o Mestre, mostra-lhe a
fímbria de uma veste branca, que lá vai desaparecendo atrás de uma sebe, e
lhe diz:
– Lázaro está indo para o suporte dos jasmins com rolos para ler. Eu
vou chamá-lo.
– Não. Eu vou. Sozinho.
Jesus caminha desenvolto, ao longo de uma senda bordada de sebes em
flor. A erva rasteira, que está na extremidade da sebe, amortece o barulho
dos passos de Jesus. Ele procura por os pés bem em cima dela, para chegar
despercebido à até Lázaro.
Assim Ele surpreende Lázaro de pé, erguido, com os rolos colocados
sobre uma mesa de mármore, orando em voz alta.
– Não me decepciones, Senhor. Este fio de esperança, que nasceu em
meu coração, faze-o crescer. Dá-me o que com lágrimas eu te pedi cem mil
vezes. O que eu te pedi com as ações, com o perdão, com todo o meu ser.
Dá-me em troca de minha vida. Dá-me em nome de teu Jesus, que me
prometeu esta paz. Será possível que Ele minta? Deverei pensar que a
promessa dele foi só palavras? Que o seu poder é inferior ao abismo de
pecado, que é a minha irmã? Dize-o a mim, Senhor, que eu me resignarei
por teu amor…
– Sim, Eu te digo! –diz Jesus.
Lázaro se vira, com um salto, e grita:
– Oh! Meu Senhor! Mas, quando foi que vieste? –e se inclina para
beijar a veste de Jesus.
– Faz alguns minutos.
– Vieste sozinho?
– Com Simão Zelotes. Mas, até onde estás, Eu vim sozinho. Eu sei que
me deves dizer uma grande coisa. Então, dize-a.
– Não. Responde primeiro às perguntas, que eu faço a Deus. Conforme
for a tua resposta, então eu te direi.
– Dize a Mim, dize, esta tua grande coisa. Tu a podes dizer… –e Jesus
sorri, abrindo os braços, num gesto de convite.
– Ó Deus Altíssimo! Mas será verdade? Então, tu sabes que é
verdade? –e Lázaro vai pôr-se entre os braços de Jesus, para confidenciar-
lhe a sua grande coisa.
226.2– Maria chamou Marta, a Magdala. E Marta partiu aflita, temendo
alguma desventura… E eu aqui, com o mesmo temor, acabei ficando
sozinho. Mas Marta, pelo servo que a acompanhou mandou-me uma carta
que me encheu de esperança. Olha, ela está aqui, sobre o meu coração.
Conservo-a aqui, porque é mais preciosa do que um tesouro. São poucas
palavras, mas eu leio toda hora, para ficar certo de que de fato foram
escritas. Olha… –e Lázaro tira de sua veste um pequeno rolo, amarrado
com uma fitinha roxa, e o desenrola–. Estás vendo? Lê, lê. Em voz alta.
Lida por ti a coisa me parecerá mais certa.
– “Lázaro, meu irmão. A ti, paz e bênção. Cheguei logo, e bem. O meu
coração não palpitou mais pelo temor de novas desgraças, porque eu vi
Maria, a nossa Maria, com saúde e… será que devo te dizer? Está menos
frenética em sua aparência do que antes. Veio chorar sobre o meu coração.
Um grande pranto… Depois, de noite, no quarto para onde tinha me levado,
perguntou-me muitíssimas coisas sobre o Mestre. Não mais do que isto, por
enquanto. Mas eu, que estou vendo o rosto de Maria, além de estar ouvindo
suas palavras, posso dizer que em meu coração nasceu a esperança. Reza,
irmão. Espera. Oh! Se fosse verdade! Eu vou ficar por aqui ainda, porque
percebo que ela me quer perto dela, como para ser uma defesa contra a
tentação. E para aprender… O quê? O que nós já sabemos. A bondade
infinita de Jesus. Eu lhe falei daquela mulher que veio a Betânia. Vejo que
ela pensa, pensa, pensa… Precisaríamos de Jesus. Reza. Espera. O Senhor
esteja contigo.”
Jesus torna a enrolar o rolo e o entrega.
– Mestre…
– Eu irei. Tens meios para avisar Marta que vá ao meu encontro em
Cafarnaum, dentro de, no máximo, quinze dias?
– Eu tenho meios, Senhor. E eu?
– Tu ficarás aqui. Também Marta, Eu a enviarei para cá.
– Por quê?
– Porque as redenções têm um pudor profundo. E nada causa mais
vergonha do que os olhares de um pai ou de um irmão… Eu, porém, te
digo: “Reza, reza, reza.”
Lázaro chora sobre o peito de Jesus… Depois, quando retoma o fio da
conversação, conta qual foi a sua aflição, os seus esmorecimentos…
– Há quase um ano que espero… que desespero… Como é longo o
tempo da ressurreição! –exclama.
226.3Jesus o deixa falar, falar, falar…, até que Lázaro percebe que está
faltando aos seus deveres de hospitalidade, e se levanta para conduzir Jesus
para casa. Para fazerem isso, passam ao lado de uma vicejante sebe de
jasmins em flor, sobre cujas corolas estreladas zumbem abelhas douradas.
– Ah! Ia-me esquecendo de dizer-te… O velho patriarca que Tu me
mandaste voltou ao seio de Abraão. Maximino o encontrou sentado aqui,
com a cabeça apoiada nesta sebe, como se tivesse adormecido ao lado das
colmeias de que ele cuidava como casas cheias de meninos dourados. Ele
chamava as abelhas assim. Parecia que ele as compreendia e que era
compreendido por elas. E, por cima do vê-lho patriarca adormecido na paz
da boa consciência, quando Maximino o encontrou, havia um véu precioso,
formado de pequeninos corpos de ouro. Todas as abelhas estavam pousadas
sobre o seu amigo. Os servos tiveram grande trabalho para conseguirem
afastá-las dele. Ele era tão bom, que talvez tivesse gosto de mel… Era tão
honesto, que talvez para as abelhas ele fosse como uma corola não
contaminada… Eu sofri com sua morte. Eu teria querido tê-lo por mais
tempo em minha casa. Ele era um justo…
– Não fiques com saudades dele. Ele está em paz e em sua paz está
rezando por ti, que lhe tornaste agradáveis os seus últimos dias. Onde o
sepultaste?
– Lá no fundo do jardim. Para ficar perto ainda das suas colmeias. Vem
comigo, eu te levo até lá…
E lá se vão, atravessando um pequeno bosque de loureiros cerosos, e
indo para as colmeias, de onde está vindo um rumor operoso…
227. Um episódio incompleto.
23 de julho, as 8 horas da manhã.
227.1É um Judas muito pálido que está descendo do carro junto com a
Mãe de Jesus e as discípulas, isto é, com as Marias, Joana e Elisa…
… e, por causa da confusão que tive em casa nesta manhã, não pude
escrever, enquanto estava vendo e, por isso, agora que já são 18 horas, não
posso dizer mais do que eu compreendi, e percebi que Judas, convalescente,
voltando para Jesus, que está no Getsêmani com Maria, que cuidou dele, e
com Joana, que está insistindo para que as mulheres e o convalescente
voltem de carro para a Galileia. E Jesus concorda, fazendo subir também o
menino com elas. Mas Joana e Elisa ficam em Jerusalém por alguns dias,
para depois voltarem, uma para Betsur e outra para Beter. Lembro-me de
que Elisa diz:
– Agora eu tenho coragem de voltar para lá, porque a minha vida não
está mais sem rumo. Eu farei que sejas amado pelos meus amigos.
E me lembro de que Joana acrescenta:
– E eu o farei nas minhas terras, enquanto Cusa me deixar aqui. Isso
será um serviço para Ti, mesmo se eu bem que preferiria acompanhar-te.
Recordo também de que Judas diz que não desejou sua mãe nem nas
piores horas da doença, porque “tua Mãe foi uma verdadeira mãe para mim,
terna e amorosa, e nunca mais me esquecerei disso.” O resto está confuso
(nas palavras), e por isso não o digo, porque estaria sendo dito por mim, e
não pelas pessoas da visão[1].
[…]
[1] visão, em uma cópia datilografada MV anota: Esta é para suspender para não ir de encontro a quem não quer revelações… ou
deixar, caso nunca decidam permitir que a obra seja impressa na íntegra…
228. Marziam é confiado a Porfíria.
24 de julho de 1945.
228.1Jesus está no lago da Galileia, junto com os seus apóstolos. A
manhã está começando. Todos os apóstolos se acham presentes, porque até
Judas, agora em perfeita saúde e com um rosto mais sereno, um pouco por
causa da doença e também pelos cuidados que recebeu, e pela companhia
que teve. Lá está também Marziam, um pouco impressionado por estar em
cima d’água pela primeira vez. Ele não quer demonstrar, mas, a cada
balanço mais forte da barca, ele se agarra com um braço ao pescoço da
ovelha, que participa do medo dele, balindo lamentosamente. Com o outro
braço ele se segura no que pode, num mastro, ou no assento ou em algum
remo, ou até na perna de Pedro, de André ou dos empregados da barca, que
passam de um lado para outro, fazendo suas manobras, e ele fecha os olhos,
talvez tendo a certeza de que já chegou sua última hora.
Pedro, de vez em quando lhe diz, dando-lhe uma palmadinha nas faces:
– Não estás com medo, não é? Um discípulo não deve ter medo.
E o menino diz que não, balançando a cabeça, mas, como o vento está
aumentando, e a água se vai tornando mais movimentada, a medida que se
aproxima da desembocadura do Jordão no lago, ele aperta com força e
fecha muitas vezes os olhos, até que um repentino sacolejo da barca, por
causa de uma onda que a pegou de lado, faz com que ele dê um grito de
medo.
Uns se riem, outros brincam, zombando de Pedro, pelo fato de ter-se
tornado pai de alguém que nem sabe viajar de barca. Outros zombam de
Marziam, que vive dizendo querer viajar por terras e por mares para pregar
Jesus Cristo, e depois fica com medo de viajar uns poucos estádios sobre as
águas do lago. Mas Marziam se defende, dizendo:
– Cada um tem medo de alguma coisa. Eu da água. Judas da morte…
228.2Compreendo, então que Judas deve ter tido um grande medo de
morrer, e fico assombrada por não reagir ele àquela observação do menino,
mas, pelo contrário, ainda diz:
– Disseste bem. Tem-se medo daquilo que não se conhece. Mas já
estamos para chegar. Betsaida está a poucos estádios. E tu estejas certo de
que lá encontrarás amor. Assim é que eu quereria estar: a pouca distância da
Casa do Pai, e estar certo de lá encontrar amor.
Ele diz isso com cansaço e tristeza.
– Desconfias de Deus? –pergunta, espantado, André.
– Não. Eu desconfio de mim mesmo. Naqueles dias da doença, rodeado
por muitas mulheres puras, eu me senti muito pequeno no espírito! Quanto
eu fiquei pensando! Eu dizia: “Se estas mulheres ainda trabalham para se
tornarem melhores e conquistar o Céu, que é que eu não terei de fazer?”
Porque elas, todas pareciam me santas e, ainda se julgam pecadoras. E
eu?… Será que algum dia chegarei até lá, Mestre?
– Com boa vontade tudo se pode.
– Mas a minha vontade é muito imperfeita.
– A ajuda de Deus põe nela o que lhe falta para ficar completa. A tua
humildade de agora nasceu na doença. Vê, pois, como o bom Deus proveu,
por meio de um incidente que te fez sofrer, dar-te uma coisa que não tinhas.
– É verdade, Mestre. Mas, aquelas mulheres! Que discípulas perfeitas!
Não falo de tua Mãe. Ela, já se sabe. Eu falo das outras. Oh! Realmente,
elas nos superaram! Eu fui uma das primeiras experiências do seu futuro
ministério. Mas, podes crer, Mestre, podes descansar sossegado sobre elas.
Eu e Elisa estávamos sob os cuidados delas, e Elisa voltou para Betsur com
sua alma refeita, enquanto eu… espero ver refeita a minha, agora que nela
elas trabalharam…
Judas, ainda enfraquecido, chora. Jesus, que está sentado perto dele,
coloca-lhe uma mão sobre a cabeça, fazendo sinal aos outros para que
fiquem calados.
Mas Pedro e André estão muito ocupados nas últimas manobras de
atracação, e não falam. Zelotes, Mateus, Filipe e Marziam, com certeza não
estão pensando em fazê-lo, seja porque estão absortos no desejo de chegar,
e os outros porque é mais prudente agir assim.
228.3A barca entra pelas águas do Jordão e, pouco depois, para perto da
praia. E, enquanto os empregados descem para prendê-la, amarrando-a com
uma corda em uma grande pedra, e para colocarem uma tábua a fim de
servir de prancha, Pedro está se vestindo com sua veste longa, e André está
fazendo o mesmo. A outra barca também já está fazendo a manobra, e dela
vão descendo os outros apóstolos. Também Jesus e Judas estão descendo,
enquanto Pedro está pondo no menino a sua vestezinha, e o está penteando,
para apresentá-lo todo alinhado à sua mulher.
Já estão todos em terra, inclusive as ovelhinhas.
– E agora vamos –diz Pedro.
Ele está muito emocionado. Dá a mão ao menino, que também está
emocionado, a tal ponto, que chega a esquecer-se das ovelhinhas, das quais
agora está cuidando João, e pergunta, num ataque repentino de medo:
– Mas, ela me quererá depois? E gostará mesmo de mim?
Pedro lhe garante que sim. Mas parece que o medo toma conta dele
também, e ele diz a Jesus:
– Dize, Tu, isto à Porfíria, Mestre. Eu creio que não vou saber dizê-lo
bem.
Jesus sorri, mas promete que irá tratar disso.
228.4Logo chegam à casa, indo pela areia da margem. Pela porta aberta,
percebe-se que Porfíria está fazendo seus trabalhos caseiros.
– A paz esteja contigo –diz Jesus, chegando perto da porta da cozinha,
onde a mulher está pondo em ordem sua louça.
– Mestre! Simão!
A mulher corre a prostrar-se aos pés de Jesus, e depois aos do marido.
Em seguida, ela se ergue e, com seu rosto bom, ainda que não bonito, ela
diz, corando-se:
– Há tanto tempo que eu vos esperava! Passastes bem, todos vós?
Vinde! Vinde! Devem estar cansados!
– Não. Nós estamos vindo de Nazaré, onde paramos alguns dias, e
fomos até Caná para outra permanência lá. As barcas estavam em
Tiberíades. Podes ver que não estamos cansados!… Tínhamos um menino
conosco, e Judas de Simão, enfraquecido por doença.
– Um menino? Um discípulo tão pequenino?
– Um órfão, que nós recolhemos pelo caminho.
– Oh! Querido! Vem, tesouro, quero te beijar!
O menino, que até aí tinha estado com medo e meio escondido atrás de
Jesus, deixa-se agora pegar pela mulher, que se ajoelhou para ficar à altura
dele, e se deixa beijar sem resistência.
– E agora o quereis levar convosco, sempre vos acompanhando, tão
pequenino como ele é? Ele vai se cansar…
A mulher está com dó do menino. Ela o conserva apertado em seus
braços, e tem sua face apoiada à do menino.
– Na verdade, Eu estava com outro pensamento. Que era o de confiá-lo
a alguma discípula, quando estivéssemos viajando longe da Galileia e do
lago…
– A mim não, Senhor? Eu nunca tive filhos. Mas sobrinhos, sim, e eu
sei tratar dos meninos. Eu sou uma discípula que não sabe falar, que não
tem bastante saúde para acompanhar-te, como fazem as outras, que… Oh!
Tu o sabes. Não, eu estou entre duas cordas, que me puxam em direções
opostas, e eu não tenho coragem de arrebentar uma. Deixa pelo menos que
eu te sirva um pouco, sendo a mãe-discípula deste menino. Eu ensinarei a
ele tudo o que as outras ensinam a tantos… a Te amar…
228.5Jesus põe a mão sobre a cabeça dela, sorri, e diz:
– O menino foi trazido para cá, porque aqui iria encontrar uma mãe e
um pai. Aí está. Formemos a família.
E Jesus põe a mão de Marziam na de Pedro, que está com os olhos
brilhando, e na de Porfíria.
– E educai santamente este inocente.
Pedro já sabe e por isso não faz nada mais do que enxugar uma lágrima
com as costas da mão. Mas sua mulher, o que não se esperava, fica por um
instante muda e assombrada. Depois, torna a ajoelhar-se, e diz:
– Oh! Meu Senhor. Tu me tiraste meu esposo, fazendo de mim quase
uma viúva. E agora me dás um filho… Tu agora me restituis todas as rosas
à minha vida, não só as que me tiraste, mas também as que eu nunca tive.
Que Tu sejas bendito! Mais do que se tivesse nascido de minhas vísceras,
vai ser por mim amado este menino. Pois ele me vem de Ti.
E a mulher beija a veste de Jesus, beija o menino e faz que ele se
assente em seu colo… Está feliz…
– Deixemo-la entregue às suas expansões –diz Jesus–. Fica aí tu
também Simão. Nós vamos pregar na cidade. Viremos à tarde para te
pedirmos comida e lugar para descansarmos.
E Jesus vai com os apóstolos, deixando os três em paz…
João diz:
– Meu Senhor, Simão está feliz hoje!
– Queres tu também um menino?
– Não. Eu gostaria somente de ter um par de asas para elevar-me até as
portas dos Céus e aprender a linguagem da Luz, para repeti-la aos homens –
e sorri.
Fazem entrar as ovelhinhas para o fundo da horta, perto do quarto
grande das redes, dão-lhes folhas, ervas e água do poço, e partem depois
para o centro da cidade.
229. Discurso aos cidadãos de Betsaida
sobre o gesto de caridade de Simão Pedro.
25 de julho de 1945.
229.1Jesus fala da casa de Filipe. Muitas pessoas se reuniram lá, diante de
Jesus, e Ele está de pé na soleira, que fica acima de dois altos degraus.
A notícia do filho adotivo de Pedro, que chegou com a sua pequena
riqueza de três ovelhinhas, e veio para encontrar a grande riqueza que é
uma família, foi uma notícia que se espalhou como uma gota de óleo em um
pano. Todos estão falando desse assunto, e cochichando com comentários
correspondentes com os diversos modos de pensar.
Uns, que são amigos sinceros de Simão e de Porfíria, estão contentes
pela alegria deles. Outros, malévolos, dizem:
– Para fazê-lo aceitar, teve que provê-lo com um bom dote.
Os que são bons dizem:
– Todos quereremos bem a este pequeno a quem Jesus ama.
Os maus dizem:
– Será generosidade a do Simão? Nem pensar nisso. Nisso ele está
levando algum lucro, se não!…
Os cobiçosos dizem:
– Até eu o teria feito, se tivesse tido diante de mim um menino com
ovelhas. Três ovelhas, entendestes? É um pequeno rebanho. E belas! Lã e
leite assegurados, e depois os cordeirinhos para serem vendidos ou
conservados. São riquezas! E o menino pode servir, trabalhar…
Outros dão seu parecer:
– Oh! Que vergonha! Querer pagamento por uma boa ação? Simão,
com certeza, não pensou direito neste ponto. Em sua modesta riqueza de
pescador, sempre o temos conhecido como generoso para com os pobres,
especialmente crianças. É justo, agora que ele não ganha mais com a pesca,
que ele tenha um pouco de ganho de algum outro modo.
229.2Enquanto cada um faz o seu comentário, tirando do seu coração o
que tem nele de bom ou de mau, e vestindo-o com palavras, Jesus escuta e
fala com um de Cafarnaum[2], que veio ao seu encontro para dizer-lhe que
vá, o mais depressa possível, porque a filha do sinagogo está morrendo, e
também porque, há alguns dias, tem vindo uma dama com uma criada
procurá-lo. Jesus promete ir na manhã seguinte. Isto entristece os de
Betsaida, que quereriam tê-lo consigo por mais dias.
– Vós sois menos necessitados de Mim do que os outros. Deixai-me ir.
Afinal agora, até o fim do verão, Eu estarei na Galileia, e muitas vezes em
Cafarnaum. Lá nos veremos com facilidade. Lá há um pai e uma mãe
angustiados. É caridade socorrê-los. Vós aprovais a bondade de Simão para
com o órfão. Os que são bons entre vós. Mas somente o julgamento dos
bons é que tem valor. Os que não são bons não são ouvidos em seus
julgamentos sempre impregnados de veneno e de mentiras. Então vós, que
sois bons, deveis aprovar também a minha bondade para ir aliviar um pai e
uma mãe. E não façais que a vossa aprovação fique estéril, mas antes, vos
leve a imitá-la.
229.3Quanto bem pode vir de um ato bom, é o que dizem as páginas da
Escritura. Lembremo-nos de Tobias. Ele mereceu que o arcanjo protegesse
o seu Tobiazinho, e que lhe ensinasse com que devolver a visão ao pai. Mas
quanta caridade, e sem pensamento de vantagem, havia cumprido o justo
Tobias, não obstante as desaprovações da mulher e os perigos para sua vida.
E lembrai-vos das palavras[3] do Arcanjo: “Boa coisa é a oração com o
jejum, e a esmola vale mais do que montes de tesouros em ouro, porque a
esmola livra da morte, purifica dos pecados, faz achar a misericórdia e a
vida eterna… Quando tu oravas, por entre lágrimas, e ias sepultar os
mortos… eu apresentei as tuas orações ao Senhor.”
O meu Simão, em verdade Eu vos digo, superará de muito as virtudes
do velho Tobias. Ele ficará para vós como um tutor das vossas almas na
minha Vida, quando Eu tiver ido embora. E agora ele inicia a sua
paternidade de alma, para ser amanhã um pai santo de todas as almas fiéis a
Mim. Portanto, não fiqueis murmurando. E, se um dia, como um passarinho
caído do ninho, encontrardes em vosso caminho um órfão, recolhei-o. Não
é o bocado, que se reparte com o órfão, que vai empobrecer a mesa dos
verdadeiros filhos. Pelo contrário, ele traz para a casa as bênçãos de Deus.
Fazei isso, porque Deus é o Pai dos filhos órfãos, e vo-los apresenta Ele
mesmo, para que os ajudeis, refazendo para eles o ninho que foi desfeito
pela morte. E fazei-o, porque assim ensina Lei dada por Deus a Moisés[4],
que é o nosso próprio legislador, visto que, numa terra inimiga e idólatra,
encontrou, em sua fraqueza de criança, um coração compassivo, que se
inclinou para ele e o salvou da morte, arrebatando-o dela para fora das
águas, para fora das perseguições, porque Deus havia determinado que
Israel tivesse um dia o seu libertador. Um ato de piedade obteve para Israel
o seu chefe.
As repercussões de um ato bom são como as ondas do som, que se
espalham até muito longe do ponto de onde foram emitidas, ou, se vos
agrada, como ondas de vento, que consigo levam para muito longe as
sementes raptadas às glebas férteis.
Ide, agora. A paz esteja convosco.

Jesus diz depois:


229.4
– Aqui colocareis a visão da ressurreição da filha de Jairo, recebida no
dia 11 de maio de 1944.
[2] um de Cafarnaum é o homem que o hospedou em Cafarnaum como confirma a correção de MV em uma cópia datilografada.
Trata-se de um certo Tomás (assim denominado em 231.1 – 237.5 – 355.1 – 446.2), íntimo da família de Jesus (como é observado
em 47.10 e em 48.7), com a mulher e sem filhos (como se verá em 449.4). A sua casa em Cafarnaum era considerada a casa de
Jesus como em Mateus 4,13.
[3] palavras que estão em Tobias 12,8-12.
[4] Moisés, cujo nascimento e a primeira infância são tratadas em Êxodo 2,1-10.
230. Cura da hemorroíssa
e ressurreição da filha de Jairo.
11 de março de 1944.
230.1Apareceu-me, enquanto eu estava rezando, muito cansada e
atormentada, e por isso estava mesmo nas piores condições para pensar por
mim mesma em tais coisas. Mas meu cansaço físico e mental e meu
tormento desapareceram logo que me apareceu o meu Jesus, e escrevo.
Jesus vai indo por uma estrada ensolarada e poeirenta, que se estende
pela beira do lago. Ele toma o rumo do povoado, para onde acorreram
muitas pessoas, que o estavam esperando com certeza, e que vão-se
aglomerando ao redor dele, por mais que os apóstolos se esforcem, com os
braços e os ombros, para abrir-lhe caminho, e levantem a voz para induzir a
multidão a deixar um pouco de espaço.
Mas Jesus não fica inquieto no meio de tanta confusão. Mais alto do
que todas as cabeças dos que o rodeiam, Ele olha, com um doce sorriso, a
multidão que se aperta junto a Ele, responde às saudações, acaricia algumas
crianças, que conseguem penetrar através daquele muro compacto de
adultos e vão até perto dele, põe a mão sobre as cabeças dos pequeninos,
que as mães levantam acima das cabeças dos presentes, para que Ele os
toque. E, enquanto isso, Jesus vai caminhando. Vai devagar, cheio de
paciência, no meio daquele vozerio, e recebendo de todos os lados os
esbarrões que aborreceriam a qualquer um.
230.2Uma voz de homem grita: “Abri caminho, abri caminho.” É uma
voz cansada e que deve ser conhecida por muitos, e respeitada como a de
uma pessoa influente, porque o povo logo abriu caminho, com muito
trabalho, porque vão pisando uns nos outros, e deixam passar um homem
que está na casa dos seus cinquenta, coberto com uma veste longa e caída,
com uma espécie de lenço branco ao redor da cabeça e que, pelos lados,
desce ao longo do rosto e do pescoço.
Tendo chegado à frente de Jesus, ele se prostra aos pés dele, e diz:
– Oh! Mestre, por que estiveste longe tanto tempo? A minha filha está
muito doente. Ninguém pode curá-la. Tu és a minha esperança e a da mãe
dela. Vem, Mestre. Eu estava te esperando com grande angústia. Vem, vem
logo. A minha filha única está morrendo… –e ele chora.
Jesus põe a mão sobre a cabeça do homem que está chorando, sobre
aquela cabeça inclinada e sacudida pelos soluços, e lhe responde:
– Não chores. Tem fé. A tua filha viverá. Vamos a ela. Levanta-te!
Vamos!
Estas duas últimas palavras foram ditas como uma ordem. Antes, falou
o Consolador. Agora é o Dominador que fala. E eles se põem a caminho.
Jesus tem a seu lado o pai que chora, e o segura pela mão. Quando algum
soluço mais forte sacode o pobre homem, vejo que Jesus olha para ele, e lhe
aperta a mão. Jesus não faz outra coisa, mas quanta força torna a fluir em
uma alma, quando ela se sente tratada assim por Jesus! Antes, no lugar onde
está o pai, estava Tiago. Mas Jesus o fez ceder seu lugar ao pobre pai. Pedro
está do outro lado. João vai ao lado de Pedro e com ele está procurando
formar uma barreira à frente da multidão, como estão fazendo Tiago e
Iscariotes do outro lado, atrás do pai que vai chorando. Os outros apóstolos
vão, uns na frente e outros atrás de Jesus. Mas precisa-se de outro!
Especialmente os três atrás, entre os quais vejo Mateus, não estão
conseguindo deter aquela muralha viva. Quando, porém, eles começam a
resmungar um pouco demais, e põe-se a dirigir algum pequeno insulto à
multidão indiscreta, Jesus vira a cabeça e diz com doçura:
– Deixai que o façam, estes meus pequeninos!…
230.3Em certo momento, porém, Ele se vira de repente, até soltando a
mão do pai, e para. Aí Ele se vira, não somente com a cabeça, mas com
todo o corpo. Fica, então parecendo mais alto, porque tomou a atitude de
um rei. Com um rosto e um olhar severos, inquiridores, Ele perscruta a
multidão. Seus olhos lampejam, não por dureza. Mas cheios de majestade.
– Quem foi que tocou em Mim? –pergunta Ele.
Ninguém lhe responde.
– Quem foi que me tocou? Repito –insiste Jesus.
– Mestre –respondem-lhe os discípulos–, não estás vendo como a
multidão esbarra em Ti por todos os lados? Todos estão tocando em Ti,
apesar de todos os nossos esforços.
– Eu pergunto, quem foi que me tocou para conseguir um milagre. Eu
percebi o poder de um milagre saindo de Mim, porque um coração o estava
invocando com fé. Onde está esse coração?
Os olhos de Jesus se inclinam duas ou três vezes, enquanto Ele fala,
para o lado de uma mulherzinha, já na casa dos seus quarenta anos, muito
pobremente vestida e muito emagrecida no rosto, a qual está fazendo
esforço para sumir no meio do povo e não ser engolida pela multidão.
Aqueles olhares devem estar incidindo sobre ela, e queimando-a. Mas,
afinal, ela compreende que não pode escapar, e vem para frente, joga-se aos
seus pés, quase com o rosto por terra, com as mãos estendidas, mas sem
ousar tocar em Jesus.
– Perdão! Sou eu. Eu estava doente. Há doze anos que eu estava doente.
Evitada por todos. Meu marido me abandonou. Gastei todos os meus
haveres para não ser considerada uma vergonha, e para poder viver como
todos vivem. Mas ninguém foi capaz de curar-me. Estás vendo, Mestre? Eu
estou velha, antes do tempo. A força saiu de mim com aquele meu fluxo
incurável, e com ela lá se foi também a minha paz. Disseram-me que Tu és
bom. Quem o disse foi um que foi curado por Ti da sua lepra e que, por ter
sido durante muitos anos evitado por todos, não teve nojo de mim. Eu não
tive coragem de dizer isso antes. Perdão! Pensei que, logo que tivesse
tocado em Ti, ficaria curada. Mas eu não te fiz ficar impuro[5]. Eu apenas
rocei pela aba de tua veste, no ponto em que ela ia se arrastando pelo chão,
sobre as sujeiras do chão… Eu também sou uma sujeira… Mas estou
curada, e que Tu sejas bendito! No momento em que toquei na tua veste, o
meu mal cessou. Agora tornei-me como todas. Já não serei evitada por
todos. Meu marido, os meus filhos, os parentes poderão ficar perto de mim,
e eu poderei acariciá-los. Vou poder ser útil a minha casa. Obrigada, Jesus,
bom Mestre. Que tu sejas bendito para sempre!
Jesus olha para ela com uma grande bondade. E lhe sorri. E lhe diz:
– Vai em paz, minha filha. A tua fé te salvou. Fica curada para sempre.
Sê boa e feliz. Vai!…
230.4Enquanto fala ainda, chega um homem, eu diria que é um criado, o
qual se dirige ao pai que, durante todo aquele tempo, se manteve em sua
respeitosa e atormentada espera, como se estivesse em cima de brasas.
– Tua filha morreu. Inútil importunar mais o Mestre. O espírito dela a
deixou, e as mulheres já se estão lamentando. A mãe é que te mandou dizer
isso, e te pede que vás logo.
O pobre pai solta um grande gemido. Ele leva as mãos à fronte e a
aperta, comprimindo os olhos e inclinando-se, como se fosse golpeado.
Jesus, que parece não dever ver nem ouvir nada, atento como Ele está
em ouvir e responder à mulher, pelo contrário, o que Ele faz é virar-se para
o pobre pai e pôr as mãos sobre suas costas arqueadas.
– Homem! Te repito: tem fé. Não temas. A tua menina viverá. Vamos a
ela.
E se encaminha, segurando apertado contra a si o homem aniquilado.
A multidão, diante daquela dor e da graça pouco antes concedida, para
e fica aterrorizada. Depois, se reparte em grupos, e deixa que caminhem
livremente Jesus e os seus, e se põe a acompanhar, como uma sombra, a
graça que passa.
Andam assim cerca de cem metros, talvez mais — eu não sou
calculadora —, depois vão entrando cada vez mais para o centro do
povoado.
230.5Uma aglomeração de pessoas está na frente de uma casa de
condição civil, comentando todos em voz alta e estridente o que aconteceu,
ao responderem aos gritos, ainda mais estridentes, que estão saindo da porta
escancarada. São gritos finos, agudos, em uma nota monocórdica, e que
parecem dirigidos por uma voz ainda mais aguda, que faz o solo, e à qual
respondem, primeiro um grupo de vozes mais finas, e depois um outro de
vozes mais cheias. É um barulhão capaz de matar até a quem está bem de
saúde.
Jesus ordena aos seus que se detenham diante da porta de saída, e
chama consigo Pedro, João e Tiago. Entra com eles em casa, levando
sempre seguro por um braço, o pai, que está chorando. Parece estar
querendo infundir-lhe a certeza de que Ele está ali para fazê-lo feliz, com
aquele aperto. As… carpideiras (eu as chamaria urradoras), ao verem o
chefe da casa e o Mestre, aumentam a intensidade da gritaria, batem as
mãos, percutem os tamborins e os triângulos, e, ao som desta… “música”,
emitem suas lamentações.
– Calai-vos –diz Jesus–. Não é preciso chorar. A menina não está morta,
mas dorme.
As mulheres soltam gritos ainda mais fortes, e algumas rolam por terra,
arrancam os cabelos (ou melhor, fazem como se os arrancassem), para
mostrarem que a menina está morta mesmo. Os tocadores de flautas e os
amigos tocam no braço do dono da casa, diante daquela ilusão na qual está
Jesus. Mas o Senhor repete um “Calai-vos”, em um tom tão enérgico, que a
gritaria, se não cessa, se transforma em murmúrio. E Ele passa além.
230.6Entra em um quartinho. Sobre uma cama está estendida a menina
morta. Magra, muito pálida, ela está vestida e com os cabelos negros
ajeitados com cuidado. A mãe está chorando perto do pequeno leito, do
lado direito, e beijando a mãozinha cor de cera da morta. Jesus… como Ele
está bonito agora! Poucas vezes o terei visto assim. Jesus se aproxima
solícito. Parece deslizar sobre o pavimento, em voo, tanto se apressa àquele
pequeno leito. Os três apóstolos ficam junto à porta, que eles fecharam aos
olhares dos curiosos. O pai fica parado aos pés do leito.
Jesus vai para o lado esquerdo do pequeno leito, estende a mão
esquerda e, com ela, pega a mãozinha, já abandonada, da morta. Ele pegou
a mão esquerda. Eu vi bem. Assim é a esquerda, tanto a de Jesus, como a da
menina. Jesus levanta o braço direito, levando a mão aberta ate à altura dos
ombros, e depois a abaixa, com um gesto de quem jura ou comanda. E diz:
– Menina. Eu te ordeno. Levanta-te!
É um instante em que todos, menos Jesus e a morta, ficam suspensos.
Os apóstolos espicham os pescoços para verem melhor. O pai e a mãe
olham, com olhos cheios de aflição, para sua filha. É apenas um instante.
Depois, um suspiro começa a levantar o peito da morta. Uma leve cor vem
subindo pelo rostinho cor de cera, e tirando dele a lividez da morte. Um
sorriso já vem se esboçando nos labiozinhos pálidos, antes mesmo que os
olhos se abram, como se a menina estivesse tendo um bonito sonho. Jesus
continua a segurar a mão dela com sua mão. A menina já vai abrindo
docemente os olhos, gira-os ao redor de si, como se estivesse despertando.
Vê por primeiro o rosto de Jesus, que a está fitando com seus esplêndidos
olhos, e lhe sorri, com uma bondade encorajadora, e continua a lhe sorrir.
– Levanta-te –repete-lhe Jesus.
E afasta com a mão os aparatos fúnebres, que estavam espalhados sobre
o pequeno leito e dos lados (flores, velas etc., etc.) e a ajuda a descer e a dar
os primeiros passos, segurando-a sempre pela mão.
– Dai-lhe de comer agora –ordena Ele–. Ela está curada. Deus vo-la
restitui. Agradecei-lhe. E não conteis a ninguém isto que aconteceu. Vós
sabeis o que havia acontecido com ela. Vós acreditastes e merecestes o
milagre. Os outros não tiveram fé. É inútil procurar persuadi-los. A quem
não crê no milagre, Deus não se mostra. E tu, menina, sê boa. Adeus. A paz
esteja nesta casa.
E Jesus sai, tornando a fechar a porta atrás de Si. E cessa a visão.
230.7 Eu direi que os dois pontos em que ela mais me trouxe alegria
foram aqueles em que Jesus procura na multidão quem foi que tocou nele e,
sobretudo, quando Ele, de pé junto à morta, a pega pela mão e lhe ordena
que se levante. A paz, a segurança penetraram em mim. Não é possível que
um Compassivo igual a Ele, e um Poderoso como Ele, não possa ter
compaixão de nós e vencer o mal que nos faz morrer.
Jesus, por enquanto, não comenta, e nada diz sobre outras coisas. Ele
me vê quase morta, e não julga oportuno que eu esteja melhor esta tarde.
Que se faça como Ele quer. Estou já bastante feliz por ter em mim a sua
visão.
[5] não te fiz ficar impuro, pela descrição de Levítico 15,19.25.
231. Em Cafarnaum, Jesus e Marta falam
da crise que atormenta Maria de Magdala.
27 de julho de 1945.
231.1Cheio de calor e coberto de poeira, Jesus, com Pedro e João, tornam
a entrar na casa de Cafarnaum.
Ele, mal pôs o pé na horta, indo para a cozinha, quando o dono da casa
o chama familiarmente, para dizer-lhe:
– Jesus, voltou aquela dama de que eu te falei em Betsaida, voltou para
Te procurar. Eu disse a ela que Te esperasse, e a levei lá para cima, para o
quarto alto.
– Obrigado, Tomé, Eu vou logo. Se os outros vierem, procura entretê-
los aqui.
E Jesus sobe rapidamente pela escada, mesmo sem ter tirado a capa. No
terraço ao qual está apoiada a escada, está Marcela, criada de Marta.
– Oh! nosso Mestre! Minha patroa está lá dentro. Há muitos dias que Te
está esperando –diz a mulher, ajoelhando-se para venerar a Jesus.
– Eu já estava pensando nisso. Vou logo estar com ela. Deus te abençoe,
Marcela.
Jesus levanta o toldo, colocado como abrigo contra a luz, que ainda está
forte, por mais que o pôr do Sol se tenha adiantado hoje em suas cores,
transformando o ar em um fogo, que parece estar incendiando as casas
brancas de Cafarnaum, com a reverberação vermelha de um enorme
braseiro. No quarto, toda velada e envolta em uma capa, sentada perto de
uma janela, está Marta. Talvez esteja olhando uma parte do lago, no ponto
em que mergulha o focinho de uma colina cheia de bosques. Talvez ela não
esteja olhando senão para os seus pensamentos. Com certeza ela está muito
absorta, a tal ponto que nem ouviu o leve rumor dos passos de Jesus que se
aproxima. E leva um susto, quando Ele a chama.
– Oh! Mestre! –grita ela. E cai de joelhos, com os braços estendidos,
como quem está pedindo ajuda, e depois se inclina, até tocar com a fronte
no pavimento, e chora.
231.2– Mas, por que isso? Vamos, levanta-te! Por que este grande pranto?
Tens alguma desventura para contar-me? Sim? Então, qual é? Eu estive em
Betânia, sabes? E lá fiquei sabendo que havia boas notícias. Agora, tu estás
chorando… Que terá acontecido? –e a obriga a levantar-se, fazendo que ela
se assente na cadeira colocada perto da parede, sentando-se Ele à frente
dela–. Vamos, tira o véu e a capa, como Eu estou fazendo. Debaixo disso,
deves ficar sufocada. E depois, Eu quero ver o rosto desta Marta perturbada,
para expulsar todas as nuvens que o escurecem.
Marta obedece, chorando sempre, e aparece o seu rosto avermelhado, e
com olhos inchados.
– E, então? Eu vou te ajudar. Maria mandou-te chamar. Ela chorou
muito, quis saber muitas coisas de Mim, e tu pensaste que isso fosse um
bom sinal, tanto assim que para completar o milagre, desejaste que Eu
viesse. E Eu vim. E agora?
– Agora, nada mais, Mestre! Eu me enganei. É a esperança muito viva
que nos faz ver o que não existe. Eu te fiz vir à toa…. Maria está pior do
que antes… Não! Que direi? Eu estou caluniando, mentindo. Não está pior,
porque não está querendo mais homens ao seu redor. Está diferente, mas
continua muito má. Parece-me que está doida… Eu não a entendo mais.
Antes, pelo menos a entendia. Mas, agora! Agora, quem é que a
compreende mais? –e Marta chora desconsoladamente.
– Eia, fica mais calma, e dize-me o que ela está fazendo. Por que é má?
Portanto, homens ela não quer mais ao seu redor. Suponho, pois, que ela
viva retirada em casa. É isso? Sim? Isso é muito bom. Ter-te desejado perto
de si, para ser defendida da tentação — são as tuas palavras — e fugir da
tentação para evitar as relações culposas, ou até simplesmente o que poderia
levá-la a relações culposas, já é sinal de boa vontade.
– Dizes que sim, Mestre? Achas mesmo que é assim?
– Mas, com certeza. Então em que ela te parece má? 231.3Conta-me o que
ela está fazendo…
– Vamos ao assunto.
Marta, um pouco mais encorajada pela certeza de Jesus, fala agora de
modo mais ordenado.
– Vamos ao assunto. Maria, desde que eu vim embora, não saiu mais de
casa e do jardim, nem mesmo para ir pelo lago com a barca. Sua ama de
leite me disse que antes quase já não saía. Parece que essa mudança tenha
tido começo desde a Páscoa. Mas, antes da minha vinda, ainda vinham
pessoas procurá-la, e ela nem sempre as repelia. Algumas vezes dava ordem
para que não se deixasse passar ninguém. E parecia uma ordem para
sempre. Depois chegava a bater nos criados, tomada por uma ira injusta, se,
ao ir até o vestíbulo, por ter ouvido as vozes dos visitantes, via que já
haviam ido embora. Desde quando eu vim, ela não fez mais isso. Ela me
disse na primeira noite, e por isso eu fiquei com muita esperança: “Segura-
me, amarra-me, se for o caso. Mas não me deixes mais sair, não deixes mais
que eu veja ninguém, senão a ti e à ama de leite. Porque eu estou doente e
quero curar-me. Mas aqueles que vêm a mim, ou querem que eu vá a eles,
são uns brejos de febre. Eles me fazem ficar cada vez mais doente. Mas, são
tão bonitos na aparência, tão cheios de flores e canções, trazendo frutas de
aspecto agradável, às quais eu não sei resistir, porque sou uma infeliz, uma
infeliz eu sou. A tua irmã é fraca, Marta. E há quem se aproveite de sua
fraqueza para fazê-la praticar coisas infames, coisas que alguma coisa que
ainda há em mim não consente. É a única coisa que eu ainda tenho da
mamãe, da minha pobre mamãe…”, e chorava, chorava.
E eu lhe fiz isso. Com doçura, nas horas em que ela estava mais
razoável; com firmeza, nas horas em que ela me parecia uma fera
engaiolada. Mas ela, nos momentos de pior tentação, ela vinha chorar a
meus pés, com a cabeça em meu colo, e dizer-me: “Perdoa-me, perdoa-
me!” E, quando eu lhe perguntava: “Mas de que, minha irmã? Tu não me
causaste nenhuma dor”, ela me respondia: “Porque, há pouco, ou ontem à
tarde, quando tu me disseste: ‘Tu não vais sair daqui’, eu, no meu coração,
te odiei, te amaldiçoei, e te desejei a morte.”
Não dá pena, Senhor? Está louca, talvez? O seu vício a enlouqueceu?
Acho que algum dos seus amantes lhe tenha dado um filtro para ela tornar-
se sua escrava nas práticas luxuriosas, e que aquilo lhe tenha atingido o
cérebro…
– Não. Nada de filtro. Nada de loucura. É uma outra coisa. 231.4Mas,
continua.
– Comigo ela está ainda respeitosa e obediente. Até aos criados ela não
maltratou mais. Contudo, depois da primeira tarde, ela não perguntou mais
nada sobre Ti. Ao contrário, se eu falava de Ti, ela mudava de assunto. A
não ser nos dias em que ficava horas e horas sobre o penhasco, onde está o
mirante, olhando para o lago, e me perguntava, ao ver cada barca que
passava: “Aquela será a dos pescadores galileus?” Ela não fala nunca em
teu Nome, nem dos apóstolos. Mas eu sei que ela está pensando neles, e em
Ti na barca de Pedro. E também compreendo que ela está pensando em Ti,
porque algumas vezes à tarde, enquanto passeamos pelo jardim ou
esperamos a hora do descanso, eu costurando, e ela sem fazer nada, ela me
diz: “Então, é preciso viver de acordo com a doutrina que segues?” E às
vezes chora, outras vezes ri, com umas risadas sarcásticas de louca, ou de
demônio.
Outras vezes solta os cabelos, sempre caprichosamente arrumados, faz
com eles duas tranças pelas costas abaixo, ou para a frente, com a roupa
toda fechada, toda pudica, transformada pela roupa em uma jovenzinha,
como também pelas tranças, pelas expressões do rosto, e aí ela diz: “É
assim, então, que deve ficar Maria?”, e, mesmo assim, por vezes ela chora,
beijando as suas próprias e esplêndidas tranças, da grossura de braços,
compridas até os joelhos, todo aquele ouro vivo, que era a glória de minha
mãe e, de vez em quando, solta aquela horrível risada, ou então me diz:
“Mas é melhor, olha: que eu faça assim, e me mate”, e dá um nó com as
tranças na garganta, e aperta até ficar roxa, como se quisesse estrangular-se.
Outras vezes, compreende-se que é quando mais forte ela sente a sua… a
sua carne, ela se compadece de si mesma, ou então se maltrata. Eu a
encontrei, quando ela estava batendo ferozmente em seu próprio seio, no
peito, e arranhava o próprio rosto, batia a cabeça contra a parede e, se eu lhe
perguntava: “Mas por que fazes isso?”, ela se virava para mim, feroz, e me
dizia: “Para despedaçar-me a mim, as minhas vísceras e minha cabeça. As
coisas nocivas, malditas, devem ser destruídas. E eu me destruo”.
E, se eu lhe falo da misericórdia divina, de Ti — porque eu lhe falo
igualmente de Ti, como se ela fosse a mais fiel de tuas discípulas, e eu Te
juro que algumas vezes eu sinto um arrepio em falar disso diante dela —,
pois ela me responde: “Para mim não pode haver misericórdia. Eu passei da
medida.” E aí uma fúria de desespero toma conta dela, e ela grita, ferindo-
se até derramar sangue: “Mas, por quê? Por que a mim é que este monstro
dilacera? Ele não me dá paz. Ele me leva ao mal com vozes de canções,
depois me une às vozes de maldições ao pai, à mãe, a vós, porque tu e
Lázaro me maldizeis, e Israel me maldiz, me traz isto, para fazer-me
enlouquecer…”
E então, quando ela diz isso, eu lhe respondo: “Por que é que pensas em
Israel, que não passa de um povo, e não pensas em Deus? Mas visto que
não pensaste antes em pisar em cima de tudo, pensa agora em superar tudo,
e a não te preocupares senão com aquilo que não é o mundo, isto é, com
Deus, com o pai, com a mãe. Eles não te maldizem, se mudas de vida, mas
te abrem os braços…” E ela me fica escutando, pensativa, espantada, como
se eu lhe estivesse contando uma história impossível, e depois se põe a
chorar… Mas não responde nada. Por vezes, ao contrário, manda aos seus
criados servirem vinho e especiarias aromáticas, e bebe e come esses
alimentos artificiosos, e explica: “É para não ficar pensando.”
Agora, desde que ficou sabendo que Tu estás no lago, ela me diz, todas
as vezes que fica sabendo que vou vir a Ti: “Qualquer hora, eu também
vou”, e se ri com aquele riso, que é um insulto a si mesma, e termina: “Pelo
menos, assim os olhos de Deus se baixarão também sobre o estrume.” Mas
eu não quero que ela venha. E agora eu espero poder vir, quando ela,
cansada da ira, de vinhos, de chorar e de tudo, estiver dormindo, esgotada.
Hoje mesmo, eu tive que escapar assim, para poder voltar à noite, antes que
ela desperte. Esta é a minha vida… e eu não espero mais…
E o pranto, não mais refreado pelo pensamento de dizer tudo em ordem,
recomeça mais forte do que antes.
231.5– Tu te lembras, Marta, do que Eu te disse uma vez? “Maria é uma
doente.” Tu não querias crer. Agora estás vendo. Tu a chamas louca. Ela
mesma se diz doente de febres pecaminosas. Eu digo: enferma de possessão
do demônio. É sempre uma doença. E essas incoerências, essas fúrias, esses
choros, e desconsolações e desejos de Mim são as fases do seu mal que,
quando chega o momento da cura, tem suas crises mais violentas. Tu fazes
bem em ser boa com ela. Fazes bem em ter paciência com ela. Fazes bem
em falar-lhe de Mim. Não sintas arrepios por falar o meu Nome na presença
dela. Pobre alma a da minha Maria. Ela também saiu do Pai Criador, não é
diferente das outras, nem da tua, nem da de Lázaro, nem da dos apóstolos e
discípulos. Ela também foi incluída e contemplada entre as almas pelas
quais Eu me fiz carne para ser Redentor. Antes, mais para ela do que para ti,
para Lázaro, para os apóstolos e discípulos, é que Eu vim. Pobre, querida
alma que sofre, a da minha Maria. Da minha Maria, envenenada com sete
venenos, além de com o veneno primogênito e universal! Da minha Maria
prisioneira! Mas, deixa que ela venha a Mim! Deixa que ela respire o meu
respiro, que ouça a minha voz, que encontre o meu olhar!… Ela se diz:
“Um estrume”… Oh! Pobre querida que dos sete demônios o menos forte é
o da soberba! Mas só por isso ela se salvará!
231.6– Mas, se depois, ao sair, ela encontra algum que a desvia de novo
para o vício? Ela mesma tem medo disso…
– E sempre terá esse medo, agora que ela chegou a sentir náusea do
vício. Mas não tenhas medo. Quando uma alma já tem este desejo de ir para
o Bem, e só é detida pelo Inimigo diabólico, que sabe que vai perder sua
presa, e pelo inimigo pessoal do eu, que ainda raciocina humanamente,
aplicando a Deus o seu modo de julgar para impedir ao espírito de dominar
o eu humano, então aquela alma já está forte contra os assaltos do vício e
dos viciados. Ela encontrou a Estrela Polar, e não se desvia mais.
E igualmente não lhe digas mais “Não pensaste em Deus e, em vez
disso, pensas em Israel?” É uma reprovação implícita. Não a faças. Ela está
saindo das chamas. É uma chaga completa. Não lhe apliques senão os
bálsamos da doçura, do perdão, da esperança… Deixa-a livre para vir.
Deves até perguntar-lhe quando espera vir, mas não dizer-lhe: “Vem
comigo”. Pelo contrário, se consegues ficar sabendo que ela vem, tu não
venhas. Volta para trás. Fica esperando em casa. Ela irá a ti, quando
esmagada pela Misericórdia. Porque Eu devo tirar dela a força maligna que
a detém, e por algumas horas ela ficará como uma que se esvaiu em sangue,
uma a quem o médico tirou os ossos. Mas depois ficará melhor. Ficará
atordoada. Terá uma grande necessidade de carícias e de silêncio. Assiste-a,
como se fosses o seu segundo anjo da guarda, sem te fazeres perceber. E, se
a vires chorar, deixa-a chorar. E, se a ouvires fazer pedidos, deixa que os
faça. E, se a vires sorrir, e sorrir depois com um sorriso diferente, não lhe
faças perguntas, não a humilhes. Ela sofre mais agora, que está subindo, do
que quando desceu. E ela deve agir por si mesma, como por si mesma,
como por si mesma agiu quando desceu. Não suportou, então, os vossos
olhares sobre sua descida, porque nos vossos olhares estava a reprovação.
Mas agora ela não pode, em sua vergonha que finalmente despertou de
novo, suportar o vosso olhar. Como ela estava, sentia-se forte, porque tinha
em si satanás, que era seu dono, e uma força maligna que a dominava, e
podia desafiar o mundo e, no entanto, não pôde ser vista por vós em sua
vida de pecado. Agora ela não tem mais satanás como seu dono. Ele ainda é
hóspede nela, mas já está preso pela garganta, sob a vontade de Maria. Mas
ela ainda não Me tem. Por isso está ainda muito fraca. Não pode suportar
nem mesmo a carícia dos teus olhares de irmã, na sua confissão ao seu
Salvador. Toda a sua energia está voltada e está empregada em segurar pela
garganta o demônio de sete cabeças. Para tudo mais ela está indefesa, nua.
Eu a revestirei e fortalecerei. 231.7 Vai em paz, Marta. E amanhã, com muito
jeito, dize a ela que Eu irei pregar perto da torrente da Fonte, aqui em
Cafarnaum, no fim da tarde. Vai em paz! Vai em paz! Te abençôo.
Marta ainda está perplexa.
– Não caias na incredulidade, Marta –diz Jesus, que a está observando.
– Não, Senhor. Mas eu fico pensando…Oh! dá-me alguma coisa que eu
possa dar à Maria, para dar-lhe um pouco de força… Ela está sofrendo
muito… e eu estou com muito medo de que ela não consiga triunfar sobre o
demônio!
– Tu és uma menina! Maria tem a Mim e a Ti . Poderia deixar de
conseguir resultados? Mas, vem cá, e toma. Dá-me esta mão, que nunca
pecou, que soube ser doce, misericordiosa, ativa, piedosa, que sempre fez
gestos de amor e de oração, que não se tornou preguiçosa na ociosidade.
Que não se deixou corromper nunca. Eis, a tenho entre as minhas para fazê-
la mais santa ainda. Levanta-a contra o demônio, e ele não a suportará.
Toma esta minha cinta. Não te separes mais dela. E, todas as vezes que a
vires, dize a ti mesma: “Mais forte do que esta cinta de Jesus é o poder de
Jesus, e com ele tudo se vence: os demônios e os monstros. Eu não devo
temer.” Estás contente agora? A minha paz esteja contigo. Vai tranquila.
Marta faz uma reverência e sai.
Jesus sorri, enquanto a vê retomar o lugar no carro, que Marcela fez
chegar até à porta, e ir em direção a Magdala.
232. Cura de dois cegos
e de um mudo endemoninhado.
28 de julho se 1945.
232.1Depois Jesus desce à cozinha e, vendo que João está para ir à fonte,
em vez de ficar na cozinha quente e enfumaçada, ela prefere ir com João,
deixando Pedro com os peixes, que agora mesmo foram trazidos pelos
empregados de Zebedeu para a ceia do Mestre e dos apóstolos.
Não vão à fonte da nascente, que fica lá no fim da cidade, mas à outra
que está na praça e para onde certamente vem aquela água que é
transportada do abundante manancial que jorra na encosta do monte, perto
do lago. Na praça, como de costume, está a multidão dos palestinos, que lá
se ajuntam à tarde. Mulheres com suas ânforas, meninos que estão
brincando, homens que falam dos seus negócios ou dos mexericos do lugar.
Passam também, acompanhados por seus servos e clientes, os fariseus, que
vão indo para suas ricas casas. Todos se desviam para deixá-los passar,
cumprimentando-os, mas para depois, logo que eles vão ficando para trás,
amaldiçoá-los de todo o coração, contando os últimos abusos e usuras deles.
232.2Mateus está em um canto da praça, falando com os seus antigos
amigos, e isso faz que o fariseu Urias esteja dizendo, com desprezo e em
alta voz:
– As famosas conversões! O afeto ao pecado ainda continua, e isso se
vê pelas amizades que ainda existem. Ah, Ah!…
Ao que Mateus, ressentido, se vira e responde:
– Elas ainda existem para convertê-los.
– Não há necessidade disso! Basta o teu Mestre. Tu, fica longe de nós, e
que a tua doença não volte, se é que estás mesmo curado.
Mateus fica roxo, pelo esforço que faz para não dizer-lhe algumas boas,
mas se limita a responder-lhe:
– Não tenhas medo, e não fiques esperando.
– O quê?
– Não tenhas medo de que eu volte a ser Levi, o publicano, e não fiques
esperando que eu te imite em perder estas almas. As separações e os
desprezos eu os deixo para ti e para os teus amigos. Eu imito o meu Mestre,
e me aproximo dos pecadores, para levá-los à Graça.
Urias teria vontade de rebater, mas intervém outro fariseu, o velho Eli,
e diz:
– Não sujes a tua pureza, e não contamines a tua boca, meu amigo. Vem
comigo –e segura Urias por debaixo do braço, levando-o para a sua casa.
232.3Enquanto isso, a multidão, principalmente de crianças, está ainda
unida a Jesus. Entre as crianças está a dupla de irmãozinhos, Joana e
Tobiazinho, aqueles dois que um dia, no passado, estavam brigando[6] por
causa de figos, e dizem a Jesus, apalpando com suas mãozinhas o corpo alto
do Senhor, para chamar sua atenção:
– Escuta, escuta. Também hoje fomos bons, sabes? Não choramos mais,
não ficamos mais nos maltratando, por amor de Ti. Não nos dás um beijo?
– Então, tendes sido bons, e por amor a Mim! Que alegria vocês me
dão. Aqui está o vosso beijo. E amanhã sejam melhores ainda.
E aqui está Tiago, o pequeno que levava todos os sábados a bolsa de
Mateus a Jesus. Ele diz:
– Levi não me dá mais nada para os pobres do Senhor, mas eu fui
pondo de lado todos os trocados que me davam, quando eu procuro ser
bom, e agora eu te dou. Tu os dás aos pobres pelo meu avô?
– Com certeza. Que tem o teu avô?
– Ele não anda mais. Está tão velho, que suas pernas já não o sustentam.
– Ficas aborrecido com isso?
– Sim, porque ele era o meu mestre, quando íamos pelas campinas. Ele
me ensinava muitas coisas. Fazia-me amar ao Senhor. Ele ainda me fala de
Jó, e me faz olhar para as estrelas do céu, mas faz isso sentado em sua
cadeira… Antes, ele era mais bonito.
– Amanhã irei visitar o teu avô. Estás contente?
E Tiago é substituído agora por Benjamim, não aquele de Magdala, mas
Benjamim de Cafarnaum, aquele de uma visão distante[7].
Tendo chegado à praça junto com a mãe, e tendo visto Jesus, deixa a
mão da mãe e, com um grito, que parece um pio de andorinha, ele se joga
por entre a pequena multidão e, chegando diante de Jesus, o abraça, à altura
dos joelhos, dizendo:
– Também para mim, também para mim, uma carícia.
232.4Passa naquele momento o fariseu Simão, e faz uma pomposa
inclinação para Jesus, que lhe retribui. O fariseu para e, enquanto a
multidão o evita, como se estivesse com medo dele, o fariseu diz:
– E a mim, não farias uma carícia? –e fica sorrindo levemente.
– A todos os que me pedem. Congratulo-me contigo, Simão, pela tua
ótima saúde. Disseram-me em Jerusalém que tinhas estado um pouco
doente.
– Sim. Muito. Eu Te desejei para ficar são.
– Acreditavas que Eu o pudesse?
– Nunca duvidei disso. Mas eu tive que tentar curar-me por mim
mesmo, porque Tu tens estado muito ausente. Onde estiveste?
– Nos confins de Israel. Assim foi que ocupei os dias entre a Páscoa e
Pentecostes.
– Tiveste bons resultados? Eu fiquei sabendo do caso dos leprosos de
Hinon e de Siloan. Grandioso. Foi aquele caso só? Certamente que não.
Mas isso só se sabe pelo sacerdote João. Que não tem prevenção, crê em Ti
e é feliz.
– E quem não crê, por que têm prevenção? Que será dele, sábio Simão?
O fariseu se perturba um pouco… ele está dividido entre o desejo de
não condenar os seus muitos amigos, que têm prevenção contra Jesus, e o
desejo de poder merecer os elogios de Jesus. Mas este desejo é que vence, e
ele diz:
– E quem não quiser crer em Ti, mesmo depois das provas que dás, é
condenado.
– Eu quereria que ninguém o fosse…
– Tu, sim. Nós não te retribuímos com a mesma medida de bondade que
tens para conosco. Muitos não te merecemos… Jesus, eu gostaria que fosses
o meu hóspede amanhã…
– Amanhã, Eu não posso. Combinemos para daqui a dois dias. Aceitas?
– Sempre. Vou ter comigo… uns amigos… e precisarás ter paciência
com eles se…
– Sim, sim. Eu irei com João.
– Só com João?
– Os outros estão em outras missões. Aí vem eles das campinas, A paz
esteja contigo, Simão.
– Deus esteja contigo, Jesus.
O fariseu vai-se embora, e Jesus se reúne com os apóstolos.
232.5Voltam para casa para a ceia.
Mas, enquanto estão comendo o peixe assado, são alcançados por cegos
que já haviam implorado a Jesus pelo caminho. Eles voltam a repetir o seu
pedido:
– Jesus, Filho de Davi, tem piedade de nós!
– Ora, ide embora! Ele já vos disse: “amanhã”, e amanhã há de ser.
Deixa que Ele coma –censura-os Simão Pedro.
– Não, Simão. Não os mandes embora. Esta grande constância deles
merece um prêmio. Vinde para a frente, vós dois –diz depois aos cegos, e
eles entram tateando, com os seus bastões, o chão e as paredes–. Credes que
Eu vos possa dar de novo a vista?
– Oh! Sim, Senhor. Nós viemos porque temos certeza disso.
Jesus se levanta da mesa, aproxima-se deles, põe as pontas de seus
dedos sobre as pálpebras dos cegos, levanta o rosto, ora, e depois diz:
– Que vos seja feito conforme a fé que tendes.
Ele retira as mãos, e as pálpebras, que estavam imóveis, começam a
mover-se, porque a luz já fere de novo as pupilas que, em um dos dois
renasceram, enquanto se descolam as pálpebras do outro e, onde antes havia
uma sutura, devida talvez a úlceras mal curadas, eis que aí se reforma a orla
das pálpebras, agora já sem defeitos, e elas se erguem e se abaixam,
movendo-se como asas.
Os dois caem de joelhos.
– Levantai-vos e ide. E tomai cuidado para que ninguém fique sabendo
do que Eu vos fiz. Levai às vossas cidades a notícia da graça recebida, aos
vossos parentes e aos amigos. Aqui não é necessário, nem é favorável para
a vossa alma. Conservai-a longe das lesões em vossa fé, assim como agora
estais sabendo o quanto valem os olhos, e os preservareis de todas as lesões,
para não ficardes cegos outra vez.
232.6A ceia termina. Sobem para o terraço, onde o ar está mais fresco. O
lago brilha de um lado ao outro, sob a luz de um quarto da Lua, e Jesus se
assenta à beira de um muro baixo, e se entretém a olhar para aquele lago,
que parece prata fundida. Os outros estão conversando entre si, a meia voz,
para não o perturbarem.
Mas olham para Ele, como que fascinados.
E de fato! Como Ele está agradável à vista! Todo aureolado pelo luar,
que ilumina o seu rosto, severo e sereno ao mesmo tempo, permitindo que
se estudem dele os mais leves traços. Ele está com a cabeça levemente
inclinada para trás, apoiada na vara áspera da videira, que sobe por ali, para
ir estender-se sobre o terraço. Seus grandes olhos, de um azul que, de noite,
parecem quase da cor do ônix, como se estivessem derramando ondas de
paz sobre todas as coisas. Algumas vezes eles se elevam para o céu sereno,
pontilhado de astros, outras vezes se abaixam por sobre as colinas, e até
mais para baixo, sobre o lago. Outras vezes ainda, eles fitam um ponto
indeterminado, e parecem sorrir à sua própria vista daquilo que estão
vendo! Seus cabelos mostram leves ondulações, ao soprar de um vento
brando. Com uma perna suspensa, a pouca distancia do chão, Ele está assim
sentado, meio enviesado, com as mãos abandonadas no colo, e seu hábito
branco faz realçar o seu candor, parecendo tornar-se de prata, pela luz do
luar, enquanto suas longas mãos, de uma brancura de marfim, parecem pôr
em destaque sua cor de marfim velho e sua beleza viril, mas delicada.
Também o seu rosto de fronte alta, nariz reto, com as faces de um ovalado
sutil, que a barba louro-cobre disfarça, parece, a esta luz do luar, tornar-se
também de marfim velho, perdendo aquela esfumatura rósea, que de dia se
lhe nota, no alto das faces.
– Estás cansado, Mestre –pergunta-lhe Pedro.
– Não.
– Pareces pálido e pensativo…
– Eu estava pensando. Mas acho que não estou mais pálido que de
costume. 232.7Vinde aqui…A luz da Lua vos faz ficar pálidos também.
Amanhã ireis a Corozaim. Talvez lá encontrareis alguns discípulos. Falai-
lhes. E prestai atenção para estardes aqui amanhã à tarde. Eu vou pregar
perto da torrente.
– Que beleza! Nós diremos isto aos de Corozaim. Hoje, quando
voltamos, encontramos Marta e Marcela. Elas tinham estado aqui? –
pergunta André.
– Sim.
– Em Magdala havia um grande falatório sobre Maria, que ela não sai
mais, que não dá mais festas. Nós descansamos perto daquela mulher da
outra vez. Benjamim me disse que, quando sente vontade de fazer alguma
coisa má, pensa em Ti e…
– … e em mim, dize-o logo, Tiago –diz Iscariotes.
– Ele não disse isso.
– Mas o subentendeu, quando disse: “Não quero eu ser bonito, mas
mau”, e me olhou de soslaio. Ele não me tolera.
– São antipatias sem importância, Judas. Não penses nisso –diz Jesus.
– Sim. Mestre. Mas é desagradável que…
232.8– O Mestre está aí? –grita uma voz que vem da estrada.
– Está. Mas, que desejais mesmo? Não vos basta o comprimento do
dia? Esta é hora de ficar importunando a uns pobres peregrinos? Voltai
amanhã –lhes diz Pedro.
– É que temos conosco um endemoninhado mudo. E, pela estrada, ele
escapuliu de nossas mãos três vezes. Se não fosse isso, teríamos chegado
antes. Sede bons. Daqui a pouco, quando a Lua estiver alta, ele vai gritar
fortemente e espantar o povoado todo. Estais vendo como ele já começa a
agitar-se?!
Jesus se debruça sobre o pequeno muro, depois de ter atravessado todo
o terraço. Os apóstolos fazem o mesmo. Forma-se um colar de rostos
inclinados, acima de uma multidão de pessoas que levantam as cabeças no
rumo daqueles que estão inclinados. No meio, com movimentos e uivos de
um urso, ou de um lobo acorrentado, está um homem com os pulsos bem
amarrados, para que não fuja. Ele uiva, fazendo movimentos como os de
um animal, e procurando no chão, saiba-se lá o quê. Mas, quando ele
levanta o olhar, que se encontra com o olhar de Jesus, então dá um urro
monstruoso, inarticulado, um horrível ulular, e procura fugir.
A multidão, quase todos adultos de Cafarnaum, vai saindo dali,
amedrontada.
– Vem por caridade. O demônio o está atacando como antes…
– Vou logo.
E Jesus desce rápido, indo bem virado para o infeliz, que está. mais do
que nunca, agitado.
– Sai deste homem. Eu assim quero.
O uivo explode, então, numa palavra: “Paz!”
– Sim, paz. Tem paz, agora que estás libertado.
A multidão urra, maravilhada, vendo aquela repentina passagem da
fúria para o sossego, da possessão para a libertação, do mutismo para a fala.
232.9– Como ficastes sabendo que Eu estava aqui?
– Em Nazaré nos disseram: “Ele está em Cafarnaum.” E em Cafarnaum
no-lo confirmaram dois que disseram terem sido curados por Ti nos olhos,
nesta casa.
– É verdade! É verdade! Também a nós eles disseram… –gritam muitos.
E comentam:
– Nunca foram vistas coisas semelhantes em Israel!
– Se Ele não tivesse a ajuda de Belzebu, não as faria –escarnecem os
fariseus de Cafarnaum, entre os quais está faltando Simão.
– Ajudado, ou não ajudado, eu estou aqui curado, e os cegos também.
Vós não o poderíeis fazer, ainda que fizésseis vossas longas orações,
responde-lhes o mudo endemoninhado, que foi curado, e que está beijando
a veste de Jesus, o qual não responde nada aos fariseus, se limita a despedir-
se da multidão, com sua saudação de costume: “A paz esteja convosco”,
enquanto se entretém com o miraculado e com os que o acompanham,
oferecendo-lhes abrigo na sala alta, a fim de que nela possam descansar, até
o raiar do dia.

… Diz Jesus:
232.10
– Aqui colocareis a parábola da ovelhinha tresmalhada, contada em 14-
08-1944.
[6] não te deixei imundo, pela descrição de Levítico 15,19.25.
[7] visão distante, de 7 de março de 1944 que encontraremos inserida no capítulo 352.
233. Parábola da ovelhinha tresmalhada
ouvida também por Maria de Magdala.
[12 de agosto de 1944.]
233.1Jesus fala às multidões. Tendo subido à margem arborizada de uma
pequena torrente, Ele está falando a muitas pessoas, espalhadas pelo campo,
onde o trigo acabou de ser ceifado, e mostra ainda o aspecto triste dos
restolhos queimados.
Já chegou a tarde. O crepúsculo vem descendo, mas a Lua também já
vem subindo. É uma bela e clara tarde de um começo de verão. Alguns
rebanhos estão voltando para o redil, e o din-don das campainhas já se
mistura com o forte cantar dos grilos ou das cigarras, em um contínuo cri,
cri, cri…
Jesus busca o assunto nas manadas que vão passando. Ele diz:
– O vosso Pai é como um pastor cuidadoso. Como faz o bom pastor?
Ele procura pastos bons para as suas ovelhinhas, e as pastoreia onde não há
cicutas nem tóxicos, mas trevos de bom sabor, poejos aromáticos e amargos
e saudáveis agriões. Procura os lugares onde, junto com o alimento, haja
também algum pequeno regato de águas frescas e limpas, haja sombra de
árvores, e onde não encontre cobras pelo meio do verdor das ervas. Ele não
procura de preferência as pastagens mais viçosas, porque sabe que nelas é
fácil encontrar a cilada das serpentes e das ervas nocivas, mas prefere as
pastagens da montanha, onde as orvalhadas conservam sempre limpas e
frescas as pequenas ervas, enquanto o Sol as mantém sempre limpas de
répteis, lá onde o ar está sempre em movimento e é bom, e não pesado e
insalubre como o ar da planície. O bom pastor observa uma por uma as suas
ovelhas. Trata delas, quando estão doentes e faz curativos nelas, quando
estão feridas. Ele grita com a que ficaria doente, por estar comendo demais,
e a outras que pegariam alguma doença por ficarem muito tempo em
lugares encharcados ou muito isolados, ele as chama para irem para outro
lugar. E, se uma está sem apetite e não come, ele procura para ela ervas
ligeiramente ácidas e aromáticas, capazes de despertar-lhe o apetite e lhe dá
com sua mão, conversando com ela, como com uma pessoa amiga.
Assim é que faz o bom Pai, que está nos Céus, com os seus filhos
errantes sobre a terra. Seu amor é a vara que os reúne e a voz que os guia, e
as pastagens são a sua Lei, e seu redil é o Céu.
Mas acontece que uma ovelhinha se afastou dele. Quanto Ele a
233.2
amava! Ela era nova, pura, cândida, como uma nuvem em céu de abril. O
pastor olhava para ela com muito amor, pensando em quanto bem Ele podia
fazer a ela e quanto amor dela podia receber.
Mas ela o abandona.
Havia passado por ali um tentador, ao longo da estrada que vai
margeando a pastagem. Ele não vinha vestido de um modo austero, mas
com uma veste de mil cores. Não vinha com cinturão de couro, com um
machado e uma faca pendurados, mas, sim, com um cinturão de ouro, tendo
pendurados nele guizos de prata, de sons melodiosos como a voz do
rouxinol e ampolas de perfumes que inebriam…Não trazia um bordão,
como os bons pastores, para reunir e defender as ovelhas e que, quando não
basta o bordão, estão prontos a defendê-las com o machado e a faca e a até
com sua vida. Mas aquele tentador, que havia passado, tinha nas mãos um
turíbulo brilhante por suas pedras preciosas, das quais subia fumaça, que é
de mau cheiro e perfume ao mesmo tempo, mas que atordoa tanto como as
joias, que são lapidadas, sim, mas totalmente falsas! Ele estava
deslumbrante. E ia cantando e deixando cair punhados de um sal que
brilhava sobre a terra escura.
Noventa e nove ovelhas olharam, e pararam. A centésima, a mais nova
e querida, dá um pulo, e desaparece, indo atrás do tentador. O pastor bem
que a chama. Mas ela não volta. E lá vai, mais rápida do que o vento, para
alcançar aquele que passou e, para ter forças para correr, ela experimentou
daquele sal. E, quando ele ia descendo por dentro dela, a queimou. Então,
um delírio estranho fez que ela procurasse água profundas e verdes em
matas escuras. E, nas matas, indo atrás do tentador, ela vai-se entranhando,
sobe e desce, e cai… uma, duas, três vezes. E uma, duas, três vezes. ela
sente, ao redor do seu pescoço, o abraço viscoso dos répteis, e, querendo
beber, bebe daquelas águas impuras. E querendo alimentar-se, morde ervas
que têm o brilho de uma baba repugnante.
233.3Que faz, entretanto, o bom pastor? Ele fecha em lugar seguro as outras
noventa e nove, e depois põe-se a caminho, e não para de andar, enquanto
não encontra os rastros da que se perdeu. E, como ela não volta a ele, que
está confiando aos ventos as palavras com que a chama, ele continua a ir em
busca da perdida. E chega a vê-la lá ao longe, estonteada por entre as
espirais dos répteis, e já tão tonta, que nem sente mais saudade do rosto que
a ama. Até ainda zomba dele. E ele a torna a olhar, culpada por haver
penetrado, como uma ladra, em casa alheia, tão culpada, que nem tem mais
coragem de olhar para ele… Contudo, o pastor não se cansa… e vai.
Procura-a, procura-a, e a acompanha, seguindo os seus rastros. Vai
chorando sobre os sinais deixados por ela: são flocos de lã: traços de alma;
traços de sangue: delitos diversos; sinais bem diferentes, sujeiras, provas de
sua luxúria. Ele vai indo até que a alcança.
Ah! Eu te encontrei, querida, eu te alcancei. Que caminhada eu fiz por
causa de ti! Para tornar a levar-te para o redil. Não inclines tua fronte
aviltada. O teu pecado está sepultado em meu coração. Ninguém, a não ser
eu, que te amo, ficará sabendo disso. Eu te defenderei das críticas dos
outros, eu te cobrirei com a minha pessoa, para servir-te de escudo contra as
pedras dos acusadores. Vem. Estás ferida? Oh! Mostra-me as tuas feridas.
Eu as conheço. Mas eu quero que tu as mostres, com a confiança que tinhas
quando eras pura, e olhavas para mim, teu pastor e deus, com olhos
inocentes. Aqui estão elas. Todas elas têm um nome. Como são profundas!
Como foram feitas estas tão profundas, que chegam ao fundo do coração?
Foi o Tentador, eu sei. E ele, que não usa bordão nem machado, mas que
fere ainda mais fundo com a sua mordida envenenada, e, atrás dela,
continuam ferindo as joias falsas do seu turíbulo: aquelas que te seduziram
por seu brilho… e que eram os enxofres do inferno, trazidos à luz, para
queimar-te o coração. Olha, quantas feridas! Quanta lã rasgada, quanto
sangue, quanta sarça.
233.4Ó pobre, pequena alma iludida! Mas, dize-me: Se eu te perdôo, me
amarás ainda? Mas, dize-me: Se eu te estendo os braços, tu virás para cá?
Mas, dize-me: Tens sede de amor bom? E, então! Vem, e nasce de novo.
Volta para as pastagens santas. Chora. O teu com o meu pranto lavam as
manchas deixadas pelo teu pecado, e eu, para alimentar-te, visto que tu
estás consumida pelo mal, que te queimou, abro o meu peito, abro minhas
veias, e te digo: “Alimenta-te, mas vive!”
Vem, que eu te tomo nos braços: Iremos mais bem dispostos às
pastagens santas e seguras. Tudo haverás de esquecer desta hora de
desespero. E as tuas noventa e nove irmãs se alegrarão pela tua volta,
porque, eu te digo, a minha ovelhinha tresmalhada, que eu fui procurar,
tendo que andar até tão longe, e que eu afinal alcancei, que eu salvei, pois
maior festa se faz entre os bons por um tresmalhado que volta, do que por
noventa e nove justos que jamais se afastaram do redil.
Jesus nenhuma vez se virou para olhar para o caminho, que está
223.5
atrás dele, e pelo qual acaba de chegar, por entre as penumbras da tarde,
Maria de Magdala, ainda elegantíssima, mas vestida muito mais
simplesmente, coberta com um véu escuro, que uniformiza os seus gestos e
suas formas. Mas, quando Jesus fala: “Eu te encontrei, querida”, Maria põe
as mãos debaixo do véu, e chora baixo, mas continuamente. As pessoas não
a veem, porque ela está para além do barranco, que fica à beira da estrada.
Quem a vê é somente a Lua, que já vai alta, e o espírito de Jesus… o qual
me diz:
– O comentário está na visão. Mas Eu te falarei dele ainda. Agora
repousa, porque é tarde. Eu te abençôo, Maria fiel.
234. Comentário de três episódios
sobre a conversão de Maria de Magdala.
13 de agosto de 1944
234.1Diz Jesus:
– Desde janeiro, desde quando Eu te fiz ver a ceia na casa de Simão, o
leproso, tu, e quem te guia, desejastes conhecer mais sobre Maria de
Magdala e que palavras Eu tive para ela. Sete meses depois, Eu vos
descubro estas páginas do passado, para contentar-vos e para dar uma
norma àqueles que devem saber inclinar-se sobre estas leprosas da alma, e
uma palavra que conceda a essas infelizes, que se sufocam em seu sepulcro
de vícios, ao tentarem sair dele.
234.2Deus é bom. Ele é bom com todos. Ele não mede com medidas
humanas. Não faz diferença entre pecado e pecado mortal. O pecado o
entristece, seja ele qual for. O arrependimento o faz ficar alegre e pronto
para perdoar. A resistência à graça o torna inexoravelmente severo, porque
a Justiça não pode perdoar ao impenitente, que morre assim mesmo com
todos os auxílios que tiver recebido para que se convertesse.
Mas, nas conversões que falharam, se não a metade, pelo menos quatro
décimos têm como causa primeira o descuido dos que estão à frente do
trabalho de conversão, por um zelo mal entendido e mentiroso que, como
um toldo descido sobre um real egoísmo e orgulho, pelos quais ficam eles
tranquilos em seu próprio abrigo, sem descerem para o meio da lama, a fim
de arrancar dela um coração. “Eu sou puro. Eu sou digno de respeito. Não
vou aos lugares onde há corrupção moral, nem onde me podem faltar com a
reverência.” Mas quem fala não assim ao acaso não leu o Evangelho[8]
naquele ponto onde está dito que o Filho de Deus veio para converter os
publicanos e as meretrizes, além das pessoas honestas que assim o eram,
ainda que somente segundo a Lei Antiga? Não pensará esse tal que o
orgulho é uma impureza da mente, e que a falta de caridade é uma impureza
do coração? Ficarás vilipendiado? Eu já o fui antes, e mais do que tu, e Eu
era o Filho de Deus. Deverás andar com tuas vestes sobre as imundícies? E
Eu, não toquei com as minhas mãos esta imundície, para pô-la de pé e
dizer-lhe: “Caminha por este novo caminho”?
Não vos lembrais do que Eu disse aos vossos primeiros predecessores?
“Em qualquer cidade ou vila em que entrardes, informai-vos sobre quem há
nela que o mereça, e ficai na casa dele.” Isto, para que o mundo não fique
murmurando. O mundo que é fácil demais para ver o mal em todas as
coisas. Mas Eu acrescentei: “Ao entrardes nas casas, — ‘casas’, Eu disse, e
não ‘casa’ — saudai-as dizendo: ‘Paz a esta casa’. Se a casa for digna, a paz
virá sobre ela e, se não for digna, voltará para vós.” Isto é para ensinar-vos
que, enquanto não houver uma prova certa de impenitência, deveis ter para
com todos um mesmo coração. E Eu completei o ensinamento, dizendo: “E,
se algum não vos recebe e não escuta as vossas palavras, ao sairdes
daquelas casas e daquelas cidades, sacudi a poeira que ficou pegada à sola
de vossos pés.” A fornicação nos bons, pelos quais a Bondade é
constantemente amada, faz que eles sejam como um dado de vidro liso, e
ela não é mais do que pó. Um pó que, basta que o sacudamos, ou que
sopremos sobre ele, para que ele voe, sem deixar nenhuma lesão.
Sede verdadeiramente bons. Formai um só bloco, com a Bondade
eterna no centro. E nenhuma corrupção será capaz de subir para vos sujar, a
não ser nas solas de vossos pés, pois estão apoiados no chão. A alma fica
muito ao alto. A alma de quem é bom e de quem é uma coisa só com Deus.
A alma está no Céu. Até lá não chegam nem a poeira nem a lama, nem
mesmo quando esta é jogada com ódio contra o espírito do apóstolo. A
carne pode ferir-vos. Ferir-vos, quer dizer, materialmente, moralmente,
perseguindo-vos, porque o Mal odeia o Bem, ou ofendendo-vos. E que tem
isso? Eu não fui ofendido também? Não fui ferido? Mas será que aqueles
golpes ou aquelas palavras obscenas ficaram gravadas em meu Espírito?
Será que o perturbaram? Não. Será como uma cusparada lançada contra um
espelho, ou como uma pedra jogada contra a polpa suculenta de uma fruta:
deslizam sem conseguirem penetrar, ou penetram, mas somente na
superfície, sem ferirem o germe que está dentro do caroço, e, pelo contrário,
até o ajudam a nascer, porque é mais fácil sair para fora de uma massa já
meio aberta, do que de uma completamente fechada. É morrendo que o grão
germina e que o apóstolo produz. Morrendo materialmente, às vezes,
morrendo quase diariamente, num sentido metafórico, porque com isso fica
mais do que machucado o eu do homem. E isso não é morte: é Vida. Triunfa
o espírito sobre a morte da humanidade.
234.3Vinda a Mim por um capricho de ociosa, que não sabe como encher
suas horas de ócio, os seus ouvidos atordoados pelas mentirosas gentilezas
de quem a acarinhava com hinos à sensualidade, para poder tê-la como
escrava, aos seus ouvidos ressoou a voz límpida e severa da Verdade. Da
Verdade que não tem medo de ser escarnecida e incompreendida e que fala
suas palavras olhando para Deus. E, como um coro de sinos em festa, todas
as vozes se fundiram na Palavra. São as vozes usadas para ressoarem nos
Céus, no azul livre do ar, propagando-se por vales e colinas, planícies e
lagos, para fazer lembradas as glórias do Senhor e suas festividades.
Não vos lembrais do repicar festivo dos sinos em festa, que nos tempos
de paz tornava tão alegre o dia dedicado ao Senhor? O sino maior dava com
seu badalo que suscitava o som, o primeiro toque em nome da Lei divina.
Ele dizia: “Eu estou falando em nome de Deus, Juiz e Rei.” E depois os
sinos menores arpejavam: “que é bom, misericordioso e paciente”, até que
chegou a vez do sino mais sonoro, com sua voz de anjo, dizer: “cujo amor o
leva a perdoar e a compadecer-se, para vos ensinar que o perdão é mais útil
do que o rancor, e que é melhor ter compaixão do que ser inexorável. Vinde
a quem perdoa. Tende fé em quem se compadece”.
Eu também, depois de ter feito que seja lembrada a Lei, que foi pisada
pela pecadora, fiz cantar a esperança do perdão. Como uma faixa verde e
azul de seda, eu a sacudi por entre as tintas pretas, para que aí ela colocasse
as suas reconfortantes palavras. O perdão! Ele é uma orvalhada sobre o
ardor em quem está culpado. A orvalhada não é o granizo que fere, como
uma flecha, que golpeia, ricocheteia e depois vai-se, sem penetrar, matando
a flor. O orvalho desce de um modo tão leve, que a flor, ainda que seja
muito delicada, não o sente pousar sobre suas pétalas de seda. Mas depois
ela bebe o frescor dele e se restaura. O orvalho vai pousar também junto às
raízes, sobre a gleba esturricada, e vai até além… É uma umidade de
lágrimas, e um pranto das estrelas, amoroso pranto das nutrizes sobre os
filhos que têm sede e que desce, esse mesmo, restaurador, junto com o leite
gostoso e fecundo. Oh! Os mistérios dos elementos que trabalham para ele,
mesmo quando o homem descansa, ou quando peca!
O perdão é como este orvalho. Ele traz consigo, não somente a limpeza,
mas os sucos vitais, arrebatados, não dos outros elementos, mas das lareiras
divinas.
Depois, após a promessa de perdão, eis a Sabedoria que fala, e diz o
que é ou não é lícito, e nos chama e sacode. Não o faz por dureza. Mas pela
solicitude materna de salvar. Quantas vezes a vossa pederneira se faz ainda
mais impenetrável e agressiva para com a Caridade que sobre vós se
inclina!… Quantas vezes a evitais, quando Ela vos quer falar!… Quantas
vezes não zombais dela! Quantas vezes a odiais!… Se a Caridade usasse
para convosco os modos que usais para com Ela, o que seria de vossas
almas?! Mas, vede como é o contrário. Ela é a Incansável Caminhante, que
vem à procura de vós. Ela vem procurar-vos, mesmo quando vos entocais
em vossas nojentas tocas.
234.4Por que Eu quis ir àquela casa? Por que não operei nela o milagre?
Para ensinar aos apóstolos como agir, desafiando os preconceitos e as
críticas para cumprir um dever tão alto, que está acima dessas coisinhas do
mundo.
Por que Eu disse a Judas aquelas palavras? Os apóstolos eram muito
homens. todos os cristãos são muito homens, até os santos da terra o são,
ainda que de maneira menor. Alguma coisa de humano persiste até nos
perfeitos. Mas os apóstolos ainda não eram perfeitos. Os pensamentos deles
estavam cheios do que é humano. Eu os levava para o alto. Mas o peso da
humanidade deles os puxava para baixo. Para fazer que eles descessem
sempre menos, Eu devia colocar no caminho da subida algumas coisas
próprias para parar a descida, de modo tal, que, indo de encontro a elas, eles
parassem, meditassem e repousassem, para depois subirem mais, até além
do limite anterior. Coisas que fossem de primeira qualidade, a fim de
persuadi-los de que Eu era Deus. Por exemplo, a introspecção das almas, a
vitória sobre os elementos, os milagres, a transfiguração, a ressurreição e a
ubiquidade.
Eu estive na estrada de Emaús, enquanto estava no Cenáculo e, a hora
daquelas duas presenças, verificadas pelos apóstolos e discípulos, foi uma
das razões que mais os impressionou, soltando-os de seus laços e dirigindo-
os para os caminhos de Cristo.
Mais do que para Judas, que já incubava em si o plano da morte, Eu
falei para os outros onze. Que Eu era Deus, era o que Eu necessariamente
devia fazer brilhar diante dos olhos deles, não por orgulho, mas por
necessidade de sua formação. Eu era Deus e Mestre. Aquelas minhas
palavras diziam que Eu era isto. Eu me revelo com uma faculdade extra-
humana, e ensino uma perfeição: não ter discursos maus, nem mesmo com o
nosso interior. Pois que Deus está vendo e Deus deve ver um interior puro,
para poder nele descer e aí fazer sua morada.
Por que não operei o milagre naquela casa? Para fazer que todos
compreendessem que a presença de Deus exige um ambiente puro. Pelo
respeito à sua excelsa majestade. Para falar sem a palavra nos lábios, mas
com uma palavra ainda mais profunda, ao espírito da pecadora, e dizer-lhe:
“Estás vendo, infeliz? Estás tão suja, que tudo ao redor de ti fica sujo. Tão
sujo, que aí Deus não pode operar. Tu estás suja mais do que estes. Porque
tu repetes a culpa de Eva e ofereces o fruto aos Adãos, tentando-os,
afastando-os do Dever. Tu, ministra de satanás”.
Por que não quero que seja chamada “satanás” pela mãe angustiada?
Porque nenhuma razão justifica o insulto e o ódio. A primeira necessidade,
a primeira condição para termos Deus conosco é não termos rancor e
sabermos perdoar. A segunda necessidade é sabermos reconhecer que
também nós, e quem é nosso, somos culpados. Não vejamos somente a
culpa dos outros. A terceira necessidade é sabermos conservar-nos gratos e
fiéis, depois de termos recebido graças, e fazendo o que é justo para com o
Eterno. Infelizes daqueles que, depois de receberem a graça, ficam piores
do que cães, pois já não se lembram do seu Benfeitor, enquanto que o
animal se lembra dele!
234.5Eu não disse uma palavra à Madalena. Como se ela fosse uma
estátua, Eu a olhei por um instante, e depois a deixei. Voltei para os “vivos”,
que Eu queria salvar. A ela, uma matéria morta como e mais do que um
mármore esculpido, Eu a envolvi com uma indiferença aparente. Mas Eu
não disse nem uma palavra, nem fiz ato algum que não tivesse como alvo
principal a sua pobre alma, que Eu queria redimir. E a última palavra: “Eu
não insulto. Não insultes. Reza pelos pecadores. E Nada mais”, é como uma
grinalda de flores que se terminou, e tal palavra vai juntar-se com a
primeira palavra, que foi dita lá sobre o monte: “O perdão é mais útil do
que o rancor, e a compaixão do que a inexorabilidade.” E a fecharam, à
pobre infeliz, em um círculo aveludado, fresco, perfumado pela bondade,
fazendo-a perceber como servir a Deus é diferente daquela feroz escravidão
a satanás, e como é suave o perfume celeste, em comparação com o fedor
da culpa, e como é repousante ser amados santamente, em comparação com
ser possuídos satânicamente.
Vede como o Senhor usa de medidas em seu querer. Ele não exige
conversões fulminantes. Não pretende ter de um coração o absoluto. Sabe
esperar. E sabe contentar-se. E, enquanto espera que a perdida encontre de
novo o caminho, que a louca encontre a razão, Ele se contenta com tudo o
que lhe puder dar à mãe transtornada pela dor.
Eu não lhe pergunto mais do que isto: “Podes perdoar?” Quantas outras
coisas Eu teria tido que perguntar-lhe, para torná-la digna do milagre, se Eu
tivesse que julgar conforme as medidas humanas. Mas Eu meço
divinamente as vossas forças. Aquela pobre mãe transtornada já estaria
fazendo muito, se conseguisse perdoar. E Eu lhe pergunto somente isto,
naquela hora. Depois, entregando-lhe o filho, lhe digo: “Sê santa, e faze
santa a tua casa.” Mas, enquanto o espasmo a transtorna, não lhe peço senão
o perdão para a culpada. Não se pode exigir tudo de quem, pouco antes,
estava no nada das trevas. Aquela mãe viria depois à luz total, e com ela a
esposa e os meninos. No momento, aos seus olhos, cegos de tanto chorar,
era preciso que se fizesse chegar o primeiro crepúsculo da luz: o perdão,
que é a aurora do dia de Deus.
234.6Dos presentes, só um — não estou contando Judas, pois falo dos
cidadãos lá acolhidos e não dos meus discípulos — só um não teria vindo à
Luz. Estes malogros estão juntos com as vitórias do apostolado. Há sempre
alguém por quem o apóstolo se afadiga em vão. Mas essas derrotas não o
devem fazer perder o alento. O apóstolo não deve pretender conseguir tudo.
Contra ele há forças adversas, que têm muitos nomes, e que, como
tentáculos de polvos, pegam de novo a presa, que ele lhes havia arrebatado.
O merecimento do apóstolo permanece igual. Infeliz do apóstolo que diz:
“Eu sei que lá não poderei converter, e por isso, não vou.” Esse é um
apóstolo de bem pouco valor.
É preciso ir, mesmo que entre mil só um se salve. Sua jornada
apostólica será frutuosa com aquele homem, como se fossem mil. Porque
ele terá feito tudo o que podia, e Deus lhe dá o prêmio por isso. É preciso
também pensar que onde o apóstolo não pode conseguir conversões, porque
os que precisam da conversão estão por demais seguros pelas garras do
demônio e, quando as forças do apóstolo são inferiores ao esforço que delas
se requer, nesse caso Deus pode intervir. E, então? Quem é mais do que
Deus?
234.7Outra coisa que o apóstolo deve absolutamente praticar é o amor.
Amor manifesto. Não somente o amor secreto, que existe no coração dos
irmãos. Aquele basta para os bons irmãos. Mas o apóstolo é operário de
Deus, e não deve limitar-se a rezar: deve agir. Agir com amor. Com grande
amor. O rigor paralisa o trabalho do apóstolo e o movimento das almas para
a Luz. Não rigor, mas amor.
O amor é a veste de amianto, que torna uma pessoa inatacável pelas
labaredas das paixões. O amor é a saturação de essências preservadoras, que
impedem que a podridão humano-satânica penetre em nós. Para se
conquistar uma alma, é preciso saber amá-la. Para se conquistar uma alma é
preciso levá-la a amar. Amar o Bem, repudiando os seus próprios pobres
amores de pecado.
Eu queria a alma de Maria. E, como para ti, pequeno João, Eu não me
limitei a falar de minha cátedra de Mestre. Eu desci para procurá-la pelos
caminhos do pecado. Eu a acompanhei e persegui com o meu amor. Doce
perseguição! Entrei, Eu-Pureza onde estava ela-impureza.
Não tive medo de escândalo, nem para Mim, nem para os outros.
Escândalo em Mim não podia entrar, porque Eu era Misericórdia. E esta
chora, sim, sobre as culpas, mas não fica escandalizada por elas. Infeliz do
pastor que se escandaliza, e atrás deste para-vento, se entrincheira para
abandonar uma alma! Não sabeis que as almas estão mais dispostas do que
os corpos a ressurgir e que a palavra piedosa e amorosa, que diz: ‘Minha
irmã, levanta-te para o teu bem’, opera muitas vezes o milagre? Eu não
tinha medo do escândalo dos outros. Diante dos olhos de Deus, o que Eu
fazia estava justificado. Diante dos olhos dos bons estava compreendido. O
olho mau no qual fermenta malícia, evaporando-se de um interior
corrompido, não tem valor. Ele acha culpa até em Deus. Não vê ninguém
perfeito, a não ser ele mesmo. Por isso, Eu não o curava.
234.8As três fases da salvação de uma alma são:
Ser o mais íntegros, quanto for possível, para poder falar sem o temor
de ficar obrigados ao silêncio. Falar a toda uma multidão, de tal modo que a
nossa palavra apostólica, dita às turbas que se aglomeram ao redor da barca
apostólica, dita às turbas que se aglomeram ao redor da barca mística, vá
fazendo círculos como a onda, atingindo sempre pontos mais distantes, até
chegar à beira lamacenta, onde estão estendidos aqueles que se estancaram
na lama, e não se preocupam com o conhecimento da Verdade. Este é o
primeiro trabalho, para romper a crosta da gleba dura e prepará-la para
receber a semente. Isto é o mais difícil para quem o faz e para quem o
recebe, porque a palavra deve, como um vômer cortante, ferir para abrir. E
na verdade Eu vos digo que o coração do apóstolo bom se fere e derrama
seu sangue, pela dor de ter que ferir para abrir. Mas também esta dor é
fecunda. Com o sangue e o pranto do apóstolo, torna-se fértil a gleba
inculta.
Segunda qualidade: Operar também naquele lugar em que alguém,
menos compenetrado de sua missão, dela teria fugido. Sacrificar-se no
esforço de arrancar a cizânia, a tiririca e os espinheiros para pôr a nu o
terreno arado a fim de fazer brilhar sobre eles, como o Sol, o poder de Deus
e sua bondade e, ao mesmo tempo, trabalhando como juiz e como médico,
ser severo, sem deixar de ser compassivo, saber parar numa pausa de espera
para dar tempo às almas de superar a crise, meditar, decidir.
Terceiro ponto: Não só com a alma que no silêncio se arrependeu,
chorando e pensando nos seus erros, ousa vir timidamente, temerosa de ser
expulsa, até chegar ao apóstolo. Que o apóstolo tenha um coração maior do
que o mar, um coração mais doce do que um coração de mãe, mais
enamorado que um coração de esposo, e o abra todo, para fazer que fluam
dele ondas de ternura. Se tivésseis Deus em vós, Deus que é Caridade,
encontraríeis facilmente as palavras de caridade a serem ditas às almas.
Deus falará em vós e por vós e, como o mel que escorre de um favo e
bálsamo que flui de uma ampola, o amor chegará até os lábios ressequidos e
enfastiados, chegará aos espíritos feridos, e será alívio e remédio.
234.9Fazei que os pecadores vos amem, ó vós, doutores das almas. Fazei
que sintam o sabor da Caridade celeste e se rendam a Ela, cheios do desejo
de não procurarem nunca mais outro alimento. Fazei que sintam na vossa
doçura um tal alívio, que o procurem para todas as suas feridas. É preciso
que a vossa caridade expulse para longe deles todo o temor, porque, como
diz a epístola[9] que leste hoje: “O temor supõe o castigo, e quem teme, não
está perfeito na caridade.” Mas não o está também aquele que faz temer.
Não digais “Que foi que eu fiz?” Não digais “Vai-te embora” Não digais
“Tu não podes gostar do amor bom.” Mas, dizei assim, dizei-o em meu
nome “Ama, e eu te perdôo.” Dizei “Vem, os braços de Jesus estão
abertos.” Dizei “Prova deste Pão angélico e desta Palavra, e esquece-te do
piche do inferno e das zombarias de satanás.” Fazei-vos como animais de
carga para suportar as fraquezas dos outros. O apóstolo terá de suportar as
suas e as dos outros. E, enquanto estiverdes vindo a Mim, trazendo nos
ombros as ovelhas feridas, tranquilizai a estas errantes, e dizei-lhes: “Tudo
está esquecido, a partir deste instante.” Dizei: “Não tenhas medo do
Salvador. Ele veio do Céu para ti, precisamente para ti. Eu não sou mais do
que uma ponte para levar-te a Ele, que está te esperando, do outro lado do
rio da absolvição penitencial, para conduzir-te às suas pastagens santas,
cujos princípios estão aqui nesta terra, mas continuam depois, com uma
beleza eterna que nutre e faz feliz nos Céus.”
234.10Eis o comentário. A vós pouco interessa, a vós, ó ovelhas fiéis ao
Bom Pastor. Mas, se a ti, ó pequena esposa, trouxe um aumento de
confiança, para o Pai haverá ainda mais luz, na sua luz de juiz, e para
muitos será um estímulo para irem ao Bem. Mas será uma orvalhada que
penetra e que nutre, da qual Eu falei, e que faz reviverem as flores que
estavam murchas.
Levantai vossas cabeças. O Céu está acima. Vai em paz, Maria. O
Senhor está contigo.
[8] o Evangelho, do qual seguem citações mais ou menos textuais em Mateus 9,10-13 (Marcos 2,15-17; Lucas 5,29-32); em
Mateus 21,31; Lucas 19,9-10; e em Mateus 10,11-14 (Marcos 6,10-11; Lucas 9,4-5; 10,5-6.10-11).
[9] a epístola, isto é 1 João 4,18.
235. Marta tem a certeza da conversão
de sua irmã Maria.
29 de julho de 1945.
235.1Jesus já está para subir à barca, nesta clara aurora de verão, que está
despetalando rosas sobre a seda encrespada do lago, quando chega Marta
com sua criada:
– Oh! Mestre! Escuta-me, por amor de Deus.
Jesus desce de novo para a beira, e diz aos apóstolos:
– Ide esperar-me perto da torrente. E, nesse ínterim, ide preparando
tudo para a missão em Magedan. A Decápole também está esperando minha
palavra. Ide.
E, enquanto a barca vai-se afastando, e chega ao alto-mar, Jesus vai
caminhando ao lado de Marta, respeitosamente acompanhada por Marcela.
Afastam-se assim do povoado, indo pela margem que, de repente,
depois de uma faixa de areia coberta de ervas selvagens e ralas, cobre-se de
vegetação e deixa a linha horizontal para se aproximar da vertical, dando
um assalto sobre as costas que estão se espelhando no lago.
235.2Quando chegam a um lugar solitário, Jesus diz, sorrindo:
– Que queres me dizer?
– Oh! Mestre… esta noite, mal havia terminado a segunda vigília,
Maria voltou para casa. Ah! Mas eu ia me esquecendo de dizer que ela me
havia dito, enquanto estávamos comendo, à hora sexta: “Não gostarias de
emprestar-me uma das tuas vestes e uma capa? Ficarão para mim um pouco
curtas. Mas eu deixarei a veste solta, e farei que o manto desça até
embaixo…” Eu lhe disse: “Apanha o que quiseres, minha irmã”, e o
coração me batia forte, porque antes, no jardim, eu havia dito, ao falar com
Marcela: “A tarde, precisamos estar em Cafarnaum, porque hoje o Mestre
vai falar à multidão”, e eu tinha visto Maria soluçando, mudando de cor,
sem saber mais ficar quieta, mas indo e voltando sozinha, como alguém que
está sofrendo, aflita, na hora de decidir-se… mas sem saber ainda o que vai
aceitar ou o que vai rejeitar.
Depois da refeição, ela foi ao meu quarto e tomou a veste mais escura
que eu tinha, a mais modesta, experimentou-a, e pediu à nutriz que
abaixasse toda a orla, porque ela estava muito curta. Ela a havia
experimentado, mas havia confessado, chorando: “Não sou mais capaz de
costurar. Eu me esqueci de tudo o que é útil e bom…” E me jogou os braços
ao pescoço, dizendo: “Reza por mim.” Ela só saiu ao pôr do sol… Quanto
eu rezei, para que ela não se encontrasse com ninguém, que a impedisse de
vir aqui, para que a tua palavra fosse compreendida por ela, e para que ela
conseguisse estrangular definitivamente o monstro que a está
escravizando… Olha: eu pus na minha cintura a tua cinta, bem apertada por
baixo das outras e, quando eu sentia o aperto do couro duro em minha
cintura, que não estava acostumada com cintas duras como aquela, eu dizia:
“Ele é mais forte do que tudo.”
Depois, com o carro se vai depressa, e assim viemos eu e Marcela. Não
sei se nos viste no meio da multidão… Mas, que dor, que espinho no
coração por não estar vendo Maria. Eu pensei: “Ela se arrependeu. Deve ter
voltado para casa. Ou então… ou então ela fugiu, não podendo resistir mais
ao meu domínio sobre ela, como ela mesma me havia pedido.” Eu estava Te
ouvindo, e chorando por baixo do meu véu. Aquelas palavras pareciam
próprias para ela… e ela não as estava ouvindo! Assim pensava eu, que não
a estava vendo. Voltei para casa desconsolada. É verdade. Eu te desobedeci,
porque me havias dito: “Se ela vier, espera-a em tua casa.” Mas, considera o
meu coração, Mestre! Era a minha irmã que vinha a Ti. Podia eu deixar de
vê-la, se eu estava perto de Ti? E depois!… Tu me havias dito; “Será
despedaçada.” Eu queria estar perto dela logo, para ampará-la…
Eu estava ajoelhada, em lágrimas e oração, no meu quarto, e já havia
passado muito da segunda vigília, quando ela entrou. Entrou de modo tão
silencioso, que dela não ouvi nada mais, a não ser quando ela se lançou
sobre mim, sobre minhas costas, dando-me um apertado abraço, e dizendo:
“É verdade tudo o que tu dizes, minha bendita irmã. E até muito mais do
que tudo o que dizes. Sua misericórdia é muito maior. Oh! Marta minha!
Não tens mais necessidade de conter-me. Já não me verás mais cínica e
desesperada! Não me ouvirás mais dizer: ‘É para não ficar pensando!’
Agora, eu quero pensar. Eu sei em que pensar. Na Bondade que se fez
carne. Tu rezavas, minha irmã, certamente rezavas por mim. Mas tu já estás
com tua vitória na mão. A tua Maria não quer mais pecar, mas renasce
agora. Ela está aqui. Olha-a bem no rosto. Porque agora é uma Maria nova,
com um rosto lavado pelo pranto, pela esperança e pelo arrependimento.
Podes agora beijar-me, minha pura irmã. Não há mais em meu rosto sinais
de vergonhosos amores. Ele disse que ama a minha alma. Porque a ela é que
Ele falava, e dela. A ovelhinha tresmalhada era eu. Ele disse, escuta se eu
digo bem. Tu o conheces, e sabes como é aquele modo de falar do
Salvador…”, e me repetiu, de um modo perfeito, a tua parábola!
É tão inteligente Maria! Muito mais do que eu. E tem boa memória. Foi
assim que eu te ouvi duas vezes. E, se sobre os teus lábios aquelas palavras
eram santas e adoráveis, sobre os lábios dela eram para mim santas,
adoráveis e amáveis, porque vinham dos lábios de uma irmã, da minha
irmã, que foi reencontrada, que voltou ao redil familiar, como me dizia.
Estávamos abraçadas uma com a outra, sentadas sobre uma esteira no chão,
como quando éramos meninas e estávamos assim no quarto da mamãe, ou
junto ao tear em que ela tecia e onde bordava os seus esplêndidos tecidos.
Estávamos assim, não separadas pelo pecado, e me parecia que mamãe
também estava lá presente com o seu espírito. Chorávamos sem sentir dor,
mas, ao contrário, com muita paz! Beijávamo-nos felizes… E depois Maria,
cansada pela viagem feita a pé, com emoção por tantas coisas juntas,
acabou adormecendo entre os meus braços e com a ajuda da nutriz, a pus
para dormir em minha cama… e lá a deixei, e corri para cá…, e Marta,
feliz, beija as mãos de Jesus.
235.3– E Eu também te digo o que Maria te disse: “Tens a tua vitória na
mão”, vai e sê feliz. Vai em paz. Continua com um tratamento cheio de
doçura e prudência para com a renascida. Adeus, Marta. Faze que fique
sabendo disso Lázaro, que lá embaixo está angustiado.
– Sim, Mestre. Mas Maria, quando virá para o meio de nós discípulas?
Jesus sorri, e diz:
– O Criador fez o mundo em seis dias, e no sétimo descansou.
– Compreendo. É preciso ter paciência…
– Paciência, sim. Não fiques suspirando. Isto também é uma virtude. A
paz esteja convosco, mulheres. Ver-nos-emos em breve –e Jesus as deixa,
indo para o lugar onde a barca o está esperando perto da margem.

Diz Jesus:
235.4
– A qui colocareis a visão da ceia na casa do Fariseu Simão, recebida a
21 de janeiro de 1944.
236. A ceia na casa de Simão, o fariseu,
e o perdão a Maria de Magdala.
21 de janeiro de 1944.
236.1Para conforto do meu complexo sofrimento e para fazer-me
esquecer das maldades dos homens, meu Jesus me concede esta suave
contemplação.
Vejo uma sala muito rica. Um rico lampadário de muitos bicos pende
no centro, e está todo aceso. Nas paredes há tapetes muito bonitos, vem na
sala cadeiras entalhadas e incrustadas com marfim, há laminações preciosas
e também móveis muito belos.
No centro está uma grande mesa quadrada, formada por quatro mesas
unidas assim . A mesa certamente foi assim preparada por causa dos
muitos convidados (todos homens), e está coberta com toalhas muito finas e
tendo sobre ela uma rica baixela. Há também ânforas e taças preciosas, e
muitos criados se movem ao redor dela, levando as iguarias e escasseando
os vinhos. No centro do quadrado não há ninguém. Estou vendo o
pavimento no qual se reflete a luz do lampadário a óleo. Do lado externo,
ao contrário, há muitos sofás-camas, todos ocupados pelos comensais.
Parece-me estar no canto semi-escuro, colocado no fundo da sala, perto
de uma porta que está escancarada para fora, mas, ao mesmo tempo,
fechada por um pesado tapete ou arrás, que está pendente de sua arquitrave.
No lado mais distante da porta, isto é aqui está o dono da casa com
os convivas mais importantes. Ele é um homem já de idade, vestido com
uma ampla túnica branca, apertada na cintura por um cinturão bordado. Sua
veste tem ainda no pescoço e no fundo das mangas e da própria veste orlas
de bordado aplicado, como se fossem fitas ou galões, se assim quiserdes
chamá-los. Mas o rosto desse senhor de idade não me agrada. É um rosto
mau, frio, soberbo e cobiçoso.
No lado oposto, em frente dele, está o meu Jesus. Eu o estou vendo de
lado, e quase diria que, pelas costas. Ele está com sua veste branca, com
sandálias, longas como sempre.
Noto que, tanto Ele, como todos os comensais, não estão sentados,
como eu pensava que iam ficar naqueles sofás-camas, isto é,
perpendicularmente à mesa. Mas eles estão colocados paralelamente. Na
visão das núpcias de Caná eu não tinha dado muita importância a este
particular. Eu tinha visto que comiam estando apoiados sobre o cotovelo
esquerdo, mas me parecia que estivessem menos deitados, talvez porque os
leitos eram menos luxuosos, e muito mais curtos. Estes são verdadeiros
leitos, e se parecem com os modernos divãs turcos.
Jesus está perto de João e, visto que Jesus está apoiado no cotovelo
esquerdo,(como todos), resulta que a posição dos dois é assim:
.
Entre a mesa e o corpo do Senhor, João tem o seu cotovelo virado para
a virilha do Mestre, de modo a não estorvá-lo para comer, mas que lhe
permite, se ele quiser, apoiar-se em seu peito.
Nenhuma mulher está presente. Todos estão conversando, e o dono da
casa, de vez em quando, se vira, com afetada condescendência e com
evidente consideração, para Jesus. Está claro que ele quer demonstrar a
todos os presentes que ele está prestando a Jesus uma grande honra, ao tê-lo
convidado a vir à sua rica casa, convidando a Ele, que é um pobre profeta,
julgado até por alguns um pouco exaltado…
Vejo que Jesus lhe responde com cortesia, pacatamente. Ele sorri, com
aquele seu leve sorriso, a quem o interroga, sorri com um sorriso luminoso
a quem lhe fala, ou que somente fica olhando para Ele, como João.
236.2Vejo que se levanta o rico toldo, que cobre o vão da porta, e que
entra uma mulher ainda jovem, muito bonita, ricamente vestida e
cuidadosamente penteada. Sua cabeleira, loura e abundante, faz-lhe na
cabeça um fino ornato de cachos entrelaçados com arte. Parece trazer na
cabeça um elmo de ouro todo em relevos, pois a cabeleira brilha, e é farta.
Tem uma veste que, se eu a comparasse com a que sempre vemos na
Virgem Maria, diria que é muito excêntrica e complicada. Fivelas nos
ombros, joias para segurar os frisados no alto do peito, pequenas correntes
de ouro para contornar o próprio peito, cintura com broches de ouro e
pedras preciosas. Uma veste procaz, que põe em relevo as linhas de um
corpo muito bem feito. Na cabeça, ela tem um véu tão fino, que não cobre
nada. Tudo para pôr em destaque a sua afetação, e basta. Nos pés tem umas
sandálias muito ricas, com fivelas de ouro, feitas com pele vermelha e com
laços trançados nos tornozelos.
Todos, menos Jesus, se viram, olhando para ela. João a observa por um
instante, depois se volta para Jesus. Os outros fixam nela os olhos, com
aparentes e malignos desejos. Mas a mulher não olha para eles, por nenhum
motivo, nem se incomoda com o murmúrio que ela despertou com sua
entrada, nem pelo piscar de olhos de todos os presentes, menos de Jesus e
de seu discípulo. Jesus aparenta não estar percebendo nada. E continua a
falar, terminando a conversação que havia começado com o dono da casa.
A mulher vai para o lado de Jesus, e se ajoelha perto dos pés do Mestre.
Ela põe no chão um pequeno vaso, em forma de ânfora muito bojuda, tira o
véu da cabeça, corta a ponta do alfinete precioso que o conservava preso
aos cabelos, tira dos dedos os anéis, e coloca tudo sobre o sofá-cama, perto
dos pés de Jesus, depois toma entre as suas duas mãos os pés, primeiro o
direito, depois o esquerdo, tira deles as sandálias e as coloca no chão, em
seguida beija, no meio de uma grande explosão de pranto, aqueles pés, e os
apoia contra a sua fronte e os acaricia, enquanto suas lágrimas caem como
uma chuva, que brilha à luz do lampadário e rega a pele daqueles pés
adoráveis.
236.3Jesus volta lentamente a cabeça, e seu olhar azul escuro vai pousar,
por um instante, naquela cabeça inclinada. É um olhar que absolve. Depois,
torna a olhar para o centro. Deixa-a livre em seu desabafo.
Mas os outros, não. Eles estão zombando dela, piscando os olhos e
ridicularizando-a. E o fariseu põe-se, então, sentado, por um momento, para
poder ver melhor, e está com um olhar cheio de desejos e, ao mesmo tempo,
aborrecido, irônico. Cheio de desejos da mulher. Esse sentimento dele é
evidente. E ele está aborrecido, porque ela entrou lá, tomando tanta
liberdade, que até poderia fazer os outros pensarem que aquela mulher é…
alguma hóspede que frequenta sempre a sua casa. E é um olhar irônico,
quando dirigido a Jesus…
Mas a mulher não percebe nada. Ela continua a chorar muito, mas sem
gritar. São grandes lágrimas, e um ou outro soluço. Depois, ela se
despenteia, tirando os grampos de ouro, que prendiam o complicado
penteado, vai pôr também esses grampos perto dos anéis e do alfinete. As
madeixas de ouro rolam pelas costas abaixo. Ela as segura com as duas
mãos, leva-as para cima de seu peito, e as passa sobre os pés molhados de
Jesus, até vê-los enxutos. Em seguida, mergulha os dedos no pequeno vaso,
tira dele uma pomada amarelo escura e muito cheirosa. É um perfume entre
o do lírio e o da angélica, e que se espalha por toda a sala. A mulher
continua a mergulhar os dedos no pequeno vaso e, sem ter mãos a medir,
vai passando e espalmando a pomada, beijando os pés e acariciando-os.
Jesus, de vez em quando olha para ela com grande e amorosa piedade.
João que se virou, espantado, quando ouviu aquele pranto, não sabe mais
apartar seus olhares do grupo, de Jesus e da mulher. Olha, alternativamente,
para um e para a outra. O rosto do fariseu se torna cada vez mais
carrancudo.
[10] do Evangelho e as ouço
236.4Ouço aqui as conhecidas palavras
acompanhadas por um tom e um olhar, que fazem ao velho irado abaixar a
cabeça.
Ouço as palavras de absolvição à mulher, que lá se vai, deixando aos
pés de Jesus as suas joias. Ela enrolou o véu ao redor da cabeça, colocando
nele do melhor modo que pôde, sua cabeleira despenteada. Jesus, ao dizer-
lhe: “Vai em paz”, põe-lhe a mão sobre a cabeça inclinada, por um instante.
Mas com um gesto de grande bondade.

236.5Agora Jesus me diz:


– O que fez inclinar a cabeça ao fariseu e aos seus companheiros, e que
não está relatado no Evangelho, são as palavras que o meu espírito, através
do meu olhar, dardejaram e cravaram naquela alma árida e cobiçosa. Eu
respondi muito mais do que tudo o que foi dito, porque nada para Mim
estava escondido dos pensamentos dos homens. E ele me compreendeu na
linguagem do que Eu não disse, que era ainda mais carregada de
reprovação, do que pudessem ter sido as minhas palavras.
Eu lhe disse: “Não. Não fiques fazendo insinuações más para
justificares a ti mesmo, diante de ti mesmo. Eu não tenho a tua libidinagem.
Esta mulher não veio a mim por uma atração de sensualidade. Eu não sou
como tu, nem como os teus semelhantes. Ela vem a Mim, porque o meu
olhar e a minha palavra, que por acaso ela ouviu, iluminaram sua alma, na
qual a luxúria havia criado a treva. E vem, porque quer vencer a
sensualidade, compreende, pobre criatura, que sozinha nunca o conseguirá.
Em Mim ela ama o espírito, nada mais do que o espírito, que ela percebe ser
sobrenaturalmente bom. Depois de tantos males, que recebeu de vós todos,
que desfrutastes de suas fraquezas com os vossos vícios, dando-lhe em
troca, depois, as chicotadas do vosso desprezo, ela vem a Mim, porque
percebe que encontrou o Bem, a Alegria, a Paz, inutilmente procuradas em
meio as pompas do mundo. Cura-te desta tua lepra da alma, ó fariseu
hipócrita, aprende a olhar as coisas com justiça. Depõe a soberba da mente
e a luxúria da carne. Estas são lepras bem mais fétidas do que as de vossa
pessoa. Desta última o meu toque vos pode curar, porque para isso me
invocais, mas da lepra do espírito não, porque desta vós não quereis ficar
curado porque vos agrada. Esta mulher o quer. E eis que eu a purifico, eis
que Eu a livro das correntes da sua escravidão. A pecadora morreu. Ela está
lá, naqueles ornatos que ela tem vergonha de me oferecer, para que eu os
santifique usando-os para as minhas necessidades e as dos meus discípulos,
para os pobres, que Eu socorro com o que sobra dos outros, porque Eu, o
Senhor do Universo, não possuo nada, agora que Eu sou o Salvador do
homem. Ela está lá, naquele perfume derramado a meus pés, aviltado como
os seus cabelos, colocados sobre aquela parte do meu corpo, que tu
descuidaste de refrescar com a água do teu poço, depois de Eu ter feito uma
grande caminhada para vir trazer luz também a ti. A pecadora morreu. E
renasceu Maria, tornada bela como menina pudica pela sua viva dor e pelo
seu reto amor. Ela se lavou em seu pranto. Em verdade Eu te digo, ó fariseu,
que, entre este que me ama em sua juventude pura e esta que me ama em
sua sincera conversão, com um coração que renasceu para a Graça, Eu não
faço diferença, e ao Puro como à arrependida Eu os encarrego de
compreenderem o meu pensamento, como nenhuma outra pessoa, e de
prestarem ao meu corpo as últimas honras e a primeira saudação (não conto
aquela particular de minha Mãe), quando Eu tiver ressuscitado.”
Eis o que Eu queria dizer com o meu olhar ao fariseu. 236.6Mas a ti Eu
faço observar uma outra coisa: para tua alegria e para alegria de muitos.
Também em Betânia Maria repete aquele gesto que assinalou a aurora
de sua redenção. Há gestos pessoais que se repetem, e denunciam uma
pessoa como sendo parte de seu estilo próprio. Gestos inconfundíveis. Mas,
como era justo, em Betânia seu gesto foi menos aviltado e mais
confidencial, em sua respeitosa adoração. Muito caminhou Maria desde
aquela aurora de sua redenção. Muito. O amor a arrebatou como vento
rápido para o alto e para a frente. O amor a fez arder como um incêndio
destruindo nela a carne impura e fazendo que dominasse nela um espírito
purificado. E Maria, diferente em sua renovada dignidade de mulher como
diferente em suas vestes, agora simples com as de minha Mãe, em sua
maneira de arranjar-se, no olhar, em sua compostura, na palavra agora nova,
tem um novo modo de honrar-me com o mesmo gesto. Ela pega o último de
seus vasos de perfume, conservado para Mim, e o espalha em meus pés,
sem pranto, mas com um olhar que o amor e a segurança de estar perdoada
e libertada faz feliz, e sobre minha cabeça. Maria agora pode bem ungir-me
e tocar em minha cabeça. O arrependimento e o amor a purificaram com o
fogo dos serafins, e ela é um serafim.
236.7Dize isto a ti mesma, minha pequena ‘voz’. dize-o às almas. Vai,
dize-o às almas que não ousam vir a Mim, porque se sentem culpadas.
Muito, muito, muito é perdoado a quem muito ama. A quem muito me ama.
Vos não sabeis, ó pobres almas, como o Salvador vos ama! Não tenhais
medo de Mim. Vinde Com confiança. Com coragem. Eu vos abro o coração
e os braços.
Recordai-o sempre: “Eu não faço diferença entre aquele que me ama
com sua pureza íntegra e aquele que me ama na sincera contrição de um
coração renascido pela Graça.” Eu sou o Salvador. Recordai-o sempre.
Vai em paz. Eu te abençôo.

22 de janeiro de 1944
236.8Hoje passei o dia todo pensando no ditado de Jesus de ontem à
tarde, e em tudo o que eu via, e compreendia, mesmo se não dito.
No entanto, por digressão, lhe digo que os discursos dos comensais, por
aqueles que eu entendia, isto é, aqueles particularmente referentes a Jesus,
tratavam de fatos do dia: os romanos, a Lei transgredida por eles, e depois,
da missão de Jesus como Mestre de uma nova escola. Mas, sob aquela
aparente benevolência, compreende-se que eram perguntas viciosas e
capciosas, feitos para arrastá-lo e fazê-lo cair em alguma cilada. Coisa não
fácil, porque Jesus, com poucas palavras, dava-lhes sempre uma resposta
justa e conclusiva para cada discurso.
A pergunta, por exemplo, em qual escola ou seita particular fez-se
Mestre novo, respondeu simplesmente:
– Na escola de Deus. É a Ele que Eu sigo na sua santa Lei e é dele que
eu cuido, fazendo assim que a estes pequenos (e olhava para João, e em
João olhava para todos os retos de coração) ela seja renovada em toda a sua
essência assim como foi no dia em que o Senhor a promulgou no Sinai. Eu
levo de novo os homens para a Luz de Deus.
A uma outra, sobre o que é que Ele pensava do abuso de César, que se
fizera dominador da Palestina, Ele havia respondido:
– César é o que é, porque Deus o quer assim. Recorda o profeta Isaías.
Não chama[11] ele, por inspiração divina, Assur de ‘bastão’ de sua cólera? A
vara que pune o povo de Deus, que muito se afastou de Deus, e tem a
mentira como sua veste e seu espírito? E não diz que, depois de tê-lo usado
como punição, o despedaçará, porque ele abusou no cumprimento de sua
tarefa, tornando-se soberbo e feroz demais?
Estas foram as duas respostas que mais me impressionaram.
236.9Esta tarde, depois, meu Jesus me diz, sorrindo:
– Eu te deverei chamar como Daniel. És a dos desejos e a que me é
cara, porque desejas tanto o teu Deus. E poderei continuar a dizer-te o que
foi dito[12] a Daniel pelo meu anjo: “Não tenhas medo porque, desde o
primeiro dia em que aplicaste o teu coração a compreender e a afligir-te na
presença de Deus, foram ouvidas as tuas preces e Eu vim por causa delas.”
Mas aqui não é o Anjo que fala. Sou Eu que te falo: Jesus.
Sempre, ó Maria, Eu venho quando alguém “aplica seu coração a
compreender.” Eu não sou um Deus duro e severo. Eu sou a Misericórdia
Viva. E, mais rápido do que o pensamento, Eu vou a quem se dirige a Mim.
236.10Também à pobre Maria de Magdala, tão mergulhada em seu pecar, Eu
fui veloz, com o meu espírito, logo que senti surgir nela o desejo de
compreender o seu estado de trevas. E Me fiz Luz para ela.
Falava a muitos naquele dia, mas, na verdade, eu falava somente para
ela. Eu não via senão ela, que se havia aproximado trazida por um impulso
da alma que se revoltava contra a carne, que a tinha subjugada. Eu não via
nada mais que ela, com seu pobre rosto em tempestade, com seu sorriso
forçado que escondia debaixo de uma veste de esperança e de uma alegria
mentirosa, e era um desafio ao mundo e a ela mesma todo aquele pranto
interior. Eu não via senão ela, bem mais envolvida nas sarças da ovelhinha
tresmalhada da parábola, ela que se afogava no desgosto de sua vida, vindo
à tona d’água como aquelas ondas imensas, que trazem consigo as águas lá
do fundo.
Eu não disse grandes palavras, nem toquei num assunto indicado por
ela, pecadora bem conhecida, para não mortificá-la e não constrangê-la a
fugir, a se envergonhar ou a vir. Eu a deixei em paz. Eu deixei que a minha
palavra e o meu olhar descessem sobre ela e lá fermentassem para fazerem
daquele impulso de um instante o seu glorioso futuro de santa. Eu lhe falei
com uma das mais doces parábolas: um raio de luz e de bondade emitido
mesmo para ela.
236.11E, naquela tarde, enquanto colocava os pés na casa do rico soberbo,
na qual a minha palavra não podia fermentar em futura glória porque morta
pela soberba farisaica, já sabia que ela haveria de vir, depois de ter chorado
tanto em seu quarto de vício, e já haver decidido o seu futuro, à luz daquele
pranto.
Os homens, incendiados pela luxúria, ao vê-la entrar, estremeceram em
suas carnes e insinuado com o pensamento. Todos a desejaram, menos os
dois ‘puros’ do banquete: Eu e João. Todos achavam que ela tivesse vindo
por um daqueles caprichos fáceis que, verdadeira possessão diabólica, a
lançavam em imprevistas aventuras. Mas satanás estava então vencido. E
todos, então, com inveja, pensaram, vendo que ela não olhava para eles, que
ela tivesse vindo por causa de Mim. O homem suja sempre também as
coisas mais puras quando ele é somente homem de carne e sangue. Somente
os puros veem de modo correto porque neles não há pecado que lhes
perturbe o pensamento.
236.12Mas que o homem não compreenda, não te deve assustar, Maria.
Deus compreende. E isso basta para o Céu. A glória que vem dos homens
não aumenta nem um grama a glória que é a sorte dos eleitos no Paraíso.
Lembra-te disso sempre.
A pobre Maria de Magdala foi sempre julgada mal em seus atos bons.
Não o tinha sido em suas ações más porque estas eram iscas da luxúria, que
se ofereciam à fome insaciável dos libidinosos. Criticada e julgada mal em
Naim, na casa do fariseu, criticada e censurada em Betânia[13], na casa dela.
Mas João, que diz uma grande palavra, dá a razão desta última crítica:
“Judas… porque era ladrão.” Eu digo: “O fariseu e os seus amigos, porque
eram luxuriosos.” Aí está, vês? A cobiça da sensualidade, a cobiça do
dinheiro levantam a voz para criticar uma ato bom. Os bons não criticam.
Nunca. Eles compreendem.
Mas, Eu repito, a crítica do mundo não importa. O que importa é o
julgamento de Deus.
[…].
[10] palavras, aquelas de Lucas 7,40-50.
[11] chama… diz…, em Isaías 10, 5-26.
[12] foi dito, em Daniel 10, 12.
[13] em Betânia, em 586.7; dá a razão, em João 12,6.
237. O pedido de operários para a messe
e a parábola do tesouro escondido no campo.
Marta teme ainda pela irmã Maria.
29 de julho de 1945.
237.1Jesus está no caminho que, do lago Meron vai para o lago da
Galileia. Estão Ele, Zelotes e Bartolomeu perto de uma torrente, reduzida
agora a um fio d’água, e parece que está esperando, à sombra de árvores
copadas, aos que vão chegando dos dois lados contrários.
O dia está muito quente e, no entanto, muitas pessoas foram
acompanhando os três grupos dos que devem ter pregado pelas campinas e
guiado os doentes para o grupo de Jesus, reservando-se eles o direito de
pregar sobre Ele aos que estão sãos. Muitos miraculados estão formando
juntos um grupo feliz, sentados por entre as árvores, e neles a alegria é tão
grande, que nem sentem o cansaço produzido pelo calor, pela poeira e pela
luz deslumbrante, coisas essas que molestam bastante todas os outros.
Quando o grupo, chefiado por Judas Tadeu, chega em primeiro lugar
perto de Jesus, pode-se ver bem o cansaço de todos os que formam o grupo
e o acompanham. Em último lugar, vem o grupo chefiado por Pedro e no
qual há muitas pessoas de Corozaim e de Betsaida.
– Conseguimos, Mestre. Mas seria necessário que houvesse muitos
grupos…Tu estás vendo. Já não se pode mais fazer longas caminhadas por
causa do calor. E, então, como iremos fazer? Parece que o mundo vai-se
alargando, e nós precisamos ser em maior número para podermos percorrer
os povoados e atingir maiores distâncias. Eu nunca imaginei que a Galileia
fosse tão grande. Nós estamos num canto dela, num canto mesmo, e não
conseguimos evangelizá-la, de tão vasta que ela é e de tão grandes que são
as necessidades e os desejos de Ti –suspira Pedro.
– Não é que o mundo cresceu, Simão. O que cresce é o conhecimento
do nosso Mestre –responde Tadeu.
– Sim, é verdade. Olha, quanta gente. Alguns deles nos acompanham
desde a manhã. Nas horas quentes fomos abrigar-nos em um bosque. Mas,
mesmo agora que já vem chegando a tarde, é penoso caminhar. E estes
pobrezinhos estão muito mais longe de casa do que nós. Se tudo cresce
sempre assim, nem sei o que vamos fazer… –diz Tiago de Zebedeu.
– Em outubro, virão também os pastores –comenta André.
– Ah! Sim. Pastores, discípulos, belas coisas! Mas eles só sabem dizer:
“Jesus é o Salvador. Ele está lá.” Nada mais do que isso –responde Pedro.
– Mas, pelo menos, o povo ficará sabendo onde encontrá-lo. Agora, ao
contrário. Nós vamos para um lugar, e eles correm para lá. E, quando eles
vem vindo para cá, nós vamos para outro lugar, e eles têm que ir correndo
atrás de nós. E fazer isso, levando crianças e doentes, não é nada cômodo.
237.2Jesus fala:
– Tens razão, Simão Pedro. Eu também tenho compaixão destas almas,
dessas multidões. Para muitos, o não poderem achar-me em um certo
momento pode ser até causa de alguma irreparável desventura. Olhai como
eles estão cansados e desnorteados, os que ainda não têm certeza da minha
verdade, e como estão esfaimados os que já saborearam a minha palavra, e
não sabem mais ficar sem ela, pois nenhuma outra palavra é capaz de os
satisfazer. Parecem ovelhas sem pastor, que vagam, não encontrado quem as
guie e as apascente. Mas eu providenciarei. Contudo, vós haveis de ajudar-
me com todas as vossas forças espirituais, morais e físicas. Não mais em
grupos numerosos, mas dois a dois é que devereis andar. E mandaremos
dois a dois os discípulos melhores. Porque a messe é realmente grande. Ah!
Neste verão Eu vos prepararei para essa grande missão. Lá pelo mês de
Tamus, estaremos juntos com Isaque e com todos os melhores discípulos. E
Eu vos prepararei. Ainda não bastareis. Porque, se a messe é realmente
grande, os operários, por sua vez, são poucos. Rogai, pois, ao Dono da terra
que mande muitos operários para a sua messe.
– Sim, meu Senhor. Mas não mudará muito a situação destes que te
procuram –diz Tiago de Alfeu.
– Por quê, meu irmão?
– Porque esses, que estão te procurando, procuram não somente
doutrina e a palavra da Vida, mas também a cura de suas doenças, de suas
enfermidades, para toda fraqueza, que a vida ou satanás trazem para sua
parte inferior ou superior. E isto, só Tu podes fazer, porque em Ti está o
poder.
– Aqueles que estão unidos a Mim chegarão a fazer o que Eu faço, e os
pobres serão socorridos em todas as suas misérias. Mas ainda não tendes em
vós o que é necessário para fazer isso. Esforçai-vos para vos superardes a
vós mesmos, a conculcar a vossa humanidade, para que triunfe o vosso
espírito. Assimilai não somente a minha palavra, mas o espírito dela, isto é,
santificai-vos por ela, e depois, tudo podereis. E agora vamos dizer a eles a
minha palavra, visto que não querem ir-se embora, se Eu não lhes tiver
dado a palavra de Deus. Depois, voltareis a Cafarnaum. Lá também estarão
os que nos esperam…
237.3– Senhor, mas é verdade que Maria Madalena pediu perdão a Ti na
casa do fariseu?
– É verdade, Tomé.
– E Tu o deste? –pergunta Filipe.
– Eu o dei.
– Mas fizeste mal! –exclama Bartolomeu.
– Por quê? Era um arrependimento sincero, e merecia perdão.
– Mas não devias dá-lo naquela casa, publicamente… –censura
Iscariotes.
– Mas Eu não vejo em que é que errei.
– Erraste nisto: Tu sabes quem são os fariseus e quantas cavilações eles
têm na cabeça, como eles te vigiam, como te caluniam, como te odeiam.
Um deles Tu tinhas como teu amigo em Cafarnaum, era Simão. E Tu
chamas para ir à casa dele uma prostituta, para profanar a casa do amigo
Simão e dar-lhe um escândalo.
– Eu não a chamei. Ela é que foi lá. Não era uma prostituta. Era uma
arrependida. Isso muda muito. Se não se tinha nojo de aproximar-se dela
antes, nem de desejá-la sempre, e até em minha presença, também agora
que ela não é mais uma carne, mas uma alma, não se deve ter nojo de vê-la
entrar para ajoelhar-se aos meus pés, e para chorar acusando-se, aviltando-
se naquela humilde confissão pública, que era o que aquele pranto
significava. Simão fariseu teve sua casa santificada por um grande milagre:
a ressurreição de uma alma. Na praça de Cafarnaum, há cinco dias, ele me
perguntava: “De milagre, só fizeste aquele?”, e ele mesmo respondia:
“Certamente que não”, e tinha ele muito desejo de ver um deles. E Eu lhe
dei. Eu o escolhi para ser a testemunha, o paraninfo daqueles esponsais da
alma com a Graça. Ele deve estar orgulhoso.
– Pelo contrário, com isso ele ficou escandalizado. Talvez tenhas
perdido um amigo.
– Eu achei uma alma. Vale a pena perder um homem e a sua pobre
amizade de homem, para pôr uma alma na amizade com Deus.
– É inútil. Contigo não se pode conseguir uma reflexão humana.
Estamos na terra, Mestre! Lembra-te disso. Ainda estão vigentes as leis e as
ideias da terra. Tu queres agir com o método do Céu, e te moves no teu
Céu, que tens no coração, e tudo queres ver através das luzes do Céu. Pobre
Mestre meu! Como és divinamente inepto para viveres entre nós perversos!
E Judas Iscariotes o abraça, admirado e desolado, e termina dizendo:
– E eu sinto muito, porque, indo atrás de uma exagerada perfeição, Tu
estás criando uma grande quantidade de inimigos.
– Não te compadeças Judas. Está escrito que assim seja. Mas, como é
que sabes que Simão ficou ofendido?
– Eu não disse que ficou ofendido. Mas a mim e a Tomé ele deu a
entender que aquilo não estava bem. Não devias convidá-la a ir à casa dele,
pois lá só entram pessoas honestas.
– Bom. Quanto à honestidade dos que vão à casa do Simão, deixemo-la
de lado –diz Pedro.
E Mateus acrescenta:
– Eu poderia dizer que o suor das prostitutas escorreu muitas vezes por
sobre os pavimentos de Simão, o fariseu, por sobre as mesas e por outros
lugares.
– Mas não publicamente –rebate Iscariotes.
– Não. Com a hipocrisia encarregada de o esconder.
– Olha que, então, tudo muda.
– O que também muda é a entrada de uma prostituta, que entra para
dizer: “Eu deixo o meu pecado infame.” É bem diferente de outra que entra
para dizer: “Eis-me aqui para ti, a fim de praticarmos o pecado juntos.”
– Mateus está com a razão –dizem todos.
– Sim. Ele tem razão. Mas eles não pensam como nós. É preciso que
façamos tratos com eles, e nos adaptemos a eles, para podermos tê-los
como amigos.
– Isso, nunca, Judas. Na verdade, na honestidade, na conduta moral não
existem adaptações nem tratos –troveja Jesus.
E termina:
– Afinal, Eu sei que agi bem e para o bem. E basta. 237.4Vamos despedir-
nos daqueles pobres cansados.
E Ele vai até aqueles que estão espalhados por baixo das árvores, e que
estão olhando na direção dele, cheios do desejo de ouvi-lo.
– A paz esteja com todos vós, que atravessastes muitos estádios,
debaixo de um sol ardente, para virdes ouvir a Boa Nova. Em verdade, Eu
vos digo que vós estais começando a compreender realmente o que é o
Reino de Deus e quão preciosa é a posse dele, a felicidade de a ele
pertencer. Assim é que todo cansaço para nós perde a importância, quando
para os outros ele a conserva. Porque o espírito é que dá ordens em nós, e
ele diz à carne: “Alegra-te porque eu te oprimo. É para a tua felicidade que
eu o faço. Quando estiveres reunido a mim, depois da ressurreição final, tu
me amarás por eu te ter calcado aos pés, e verás tu em mim o teu segundo
salvador.” Não é assim que fala o vosso espírito? Mas, certamente, que ele
o diz! Vós agora apoiais as vossas ações no ensinamento das minhas
parábolas antigas. Mas agora vou dar-vos outras luzes, para fazer que vos
torneis cada vez mais enamorados por este Reino, que vos espera e cujo
valor é incomensurável.
Ouvi: Um homem, tendo ido a um campo apanhar terriço para a sua
pequena horta, ao escavar com muito esforço a terra dura, encontrou, por
baixo de algumas camadas da terra, um filão de metal precioso. Que faz
então aquele homem? Recobre com a terra a descoberta feita, não lhe
importa trabalhar mais ainda, porque a descoberta bem merece a fadiga.
Depois, ele vai para casa, conta as riquezas que tem em dinheiro e em
outras coisas, e estas últimas ele vende, para ter em mãos muito dinheiro.
Em seguida, ele vai ao dono do campo e lhe diz: “O teu campo me agrada.
Quanto queres para vender-me?” “Mas eu não o estou vendendo”, diz o
outro. Então o homem oferece-lhe somas cada vez maiores e
completamente fora de qualquer proporção com o valor do campo, e
termina seduzindo o dono dele, o qual fica pensando: “Este homem é um
louco! Mas, desde que ele o é, eu vou tirar vantagem disso. Eu vou pegar a
soma que ele me está oferecendo. Não estou praticando usura, porque é ele
quem a quer dar. Com ela, eu comprarei, pelo menos, outros três campos, e
mais bonitos”, e faz a venda, convencido de ter feito um esplêndido
negócio. Mas, ao contrário, o outro é que faz um esplêndido negócio,
porque ele se priva de bens que podem ser levados pelo ladrão, ou ser
perdidos, ou gastos, e procura obter um tesouro que, além de ser verdadeiro
e natural, é inesgotável. Vale, pois, a pena, sacrificar tudo o que ele tem,
para fazer essa aquisição, ficando ele, por enquanto, só com a posse do
campo, mas na realidade passando a possuir para sempre aquele tesouro
encerrado nele.
Vós já entendestes o negócio. Fazei, então como o homem da parábola.
Deixai as riquezas efêmeras, para possuirdes o Reino dos Céus, vendei-as
aos estultos do mundo, cedei-as a eles, aceitai até que se riam de vós por
isso que, aos olhos do mundo, pode parecer um modo tolo de negociar.
Fazei assim, sempre assim, e o vosso Pai, que está nos Céus, com muita
alegria vos dará um dia o vosso lugar no Reino.
Voltai para as vossas casas, antes que chegue o sábado e, durante o dia
do Senhor, pensai na parábola do tesouro, que é o Reino dos Céus. A paz
esteja convosco.
237.5O povo vai-se espalhando lentamente pelas estradas e caminhos da
campina, enquanto Jesus vai indo para Cafarnaum, ao cair da tarde.
Ele chega lá, já de noite. Atravessam em silêncio a cidade, à luz do
luar, a única luz que ainda clareia as vielas escuras e mal calçadas. Entram
assim, em silêncio, na pequena horta ao lado da casa, julgando que todos já
estão na cama. Mas, não é assim, porque uma luz está ainda acesa na
cozinha, e lá se vem três sombras, que se tornam movediças por causa do
movimento da chamazinha, e se projetam sobre a pequena parede branca do
forno, que fica perto.
– Aí há gente que te espera, Mestre. Mas desse modo não podemos
continuar. Eu vou dizer-lhes que estás muito cansado. Enquanto isso, vai,
Tu, para o terraço.
– Não, Simão. Eu vou à cozinha. Se Tomé deteve essas pessoas, é sinal
de que houve um motivo sério.
Enquanto isso, os de dentro ouviram a conversa, e Tomé, dono da casa,
vai até a soleira.
– Mestre, aqui está aquela dama. Ela já está esperando desde ontem, ao
pôr do sol. Ela está com um criado.
E depois ele diz a meia voz:
– Ela está muito agitada. E chora sem parar…
– Está bem. Dize-lhe que vá lá para cima. Onde foi que ela dormiu?
– Ela não queria dormir. Mas, finalmente, se retirou por algum tempo,
já de madrugada, para o meu quarto. E o criado eu fiz que fosse dormir em
um dos vossos leitos.
– Tudo bem. Que durma nesta noite também. E tu dormirás na minha.
– Não, Mestre. Eu irei para o terraço e dormirei nas esteiras. E dormirei
um bom sono, do mesmo jeito.
237.6Jesus sobe para o terraço. E a Marta também sobe.
– A paz esteja contigo, Marta.
Um soluço foi a resposta.
– Estás chorando ainda? Não estás bem?
A cabeça de Marta faz sinal que não.
– Mas, que há, então?
Uma longa pausa se faz, cheia de soluços. Enfim, depois de um
gemido, ela diz:
– Já faz muitas noites, que Maria não voltou. E não se sabe onde está.
Nem eu, nem Marcela, nem a nutriz a encontramos… Ela tinha saído
conduzindo o carro. Estava toda pomposa em suas vestes… Oh! Ela não
tinha querido pôr de novo as minhas!… Não estava seminua, nem daquelas
de antes, mas era muito provocante nestas… Ouros e perfumes ela levou
consigo…e não voltou mais. Mandou embora o criado, logo que chegou
perto das primeiras casas de Cafarnaum, dizendo-lhe: “Eu voltarei com
outra companhia.” Mas não voltou mais. Ela nos enganou. Ou, então, ela se
sentiu sozinha, talvez tentada… ou lhe aconteceu algum mal… Ela não
voltou mais…
E Marta cai de joelhos chorando, com a cabeça inclinada sobre o
antebraço, colocado sobre um monte de sacos vazios.
Jesus olha para ela, e diz, devagar e com firmeza, como um dominador:
– Não chores. Maria veio a Mim, há três dias. Ela me ungiu os pés com
bálsamo, e pôs aos meus pés todas as suas joias. Consagrou-se assim, e para
sempre, tomando lugar entre as minhas discípulas. Não a fiques denegrindo
em teu coração. Ela te superou.
– Mas onde, onde está, então, a minha irmã? –grita Marta, erguendo um
rosto transtornado–. Por que é que ela não voltou para casa? Teria sido
assaltada? Terá talvez tomado uma barca para ir se afogar? Ou, talvez,
algum amante rejeitado a raptou? Oh! Maria! A minha Maria! Eu a havia
reencontrado, e logo a perdi?
Marta está mesmo fora de si. Ela nem pensa mais que os que estão lá
em baixo a possam estar ouvindo. Nem pensa mais que Jesus pode dizer-lhe
onde é que está a sua irmã. Ela se desespera, sem refletir em nada mais.
237.7Jesus a segura pelos pulsos e a obriga a ficar quieta e a ouvi-lo,
dominando-a com sua alta estatura e com seu olhar magnético.
– Basta. Eu quero que tenhas fé em minhas palavras. Quero de ti
generosidade. Entendeste?
E não a deixa ir, senão quando ela se tranquiliza um pouco.
– Tua irmã foi saborear sua alegria, envolvendo-se em uma solidão
santa, porque nela há o supersensível pudor dos redimidos. Eu já te havia
dito antes. Ela não pode suportar o olhar doce, mas indagador, dos parentes,
a respeito de sua veste nova de esposa da Graça. E isto que Eu digo é
sempre verdade. Tu deves crer em Mim.
– Sim, Senhor, sim. Mas minha Maria foi demais, foi demais escrava do
demônio. Ele, de repente a pegou de novo, ele…
– Ele se está vingando em ti por ter perdido para sempre a sua presa. Eu
devo, então, ficar vendo como tu, a forte, te tornas presa dele por essa
ansiedade louca, sem razão de ser? Devo crer que, por causa dela, que agora
crê em Mim, tu tenhas que perder a tua bela fé, que Eu sempre conheci?
Marta, olha bem para Mim. Escuta-me. Não escutes satanás. Não sabes que,
quando é obrigado a soltar uma presa, por causa de uma vitória de Deus
contra ele, começa logo a agir, este incansável torturador dos seres, este
incansável ladrão dos direitos de Deus, para encontrar outras presas? Não
sabes que são as torturas de um terceiro, que resiste aos assaltos porque é
bom e fiel, que são elas que consolidam a cura de um outro espírito? Não
sabes que nada está desligado de tudo o que acontece e existe na criação,
mas que tudo segue uma lei eterna de dependências e de consequências,
pelas quais o ato de um tem repercussões naturais e sobrenaturais
vastíssimas?
237.8Tu choras aqui, tu que conheces a dúvida atroz, e permaneces fiel ao
teu Cristo, mesmo nesta hora tenebrosa. Lá, em um lugar próximo e
desconhecido por ti, Maria sente desfazer-se a última dúvida que ela tinha
sobre a totalidade do perdão recebido, e o seu pranto se muda em sorriso, e
as suas sombras em luz. Foi o teu tormento que a guiou para lá, onde ela
está em paz, lá onde se regeneram as almas, junto da Genetriz sem mancha,
junto daquela que é tanto Vida, que obteve a graça de ter dado ao mundo o
Cristo, que é a Vida. Tua irmã está na casa de minha Mãe. Ah! Não é ela a
primeira que vai recolher as velas naquele porto de paz, depois que o raio
suave da viva Estrela Maria a chamou àquele seio de amor por amor, mudo
mas ativo, do seu Filho! Tua irmã está em Nazaré.
– Mas, como é que ela foi parar lá, se não conhece a tua Mãe, nem a tua
casa?… Sozinha… E de noite!… Assim… Sem meios… Com aquelas
roupas…Com um longo caminho a fazer…Como?
– Como? Como vai a andorinha cansada até o ninho nativo,
atravessando mares e montes, enfrentando tempestades, nevoeiros e ventos
contrários? Como vão as andorinhas aos lugares de invernagem? Elas vão
por um instinto que as guia, pelo calor que as atrai, pelo sol que as chama.
Ela também foi correndo para o raio de Sol que a chamava… para a Mãe
universal. E a veremos chegar no fim da madrugada, feliz, tendo saído para
sempre das trevas, com uma Mãe a seu lado, a minha, e para que nunca
mais fique órfã. Podes tu crer nisto?
– Sim, meu Senhor.
Marta está como que fascinada. De fato, Jesus foi realmente um
dominador. Alto, ereto e levemente inclinado sobre Marta, que está
ajoelhada, Ele falou devagar, mas de um modo incisivo, como se o fizesse
para infundir-se a si mesmo na discípula transtornada. Poucas vezes eu o vi
tão poderoso assim para persuadir com a palavra um dos seus ouvintes. Mas
no fim, que luz, que sorriso em seu rosto.
– E agora, vai descansar. Em paz.
E Marta lhe beija as mãos, e desce, tranquilizada.
[…].
238. A chegada a Cafarnaum, sob um temporal,
de Maria Santíssima com Maria Madalena.
30 de julho de 1945.
238.1– Talvez haja tempestade hoje, Mestre. Vês aquelas listras cor de
chumbo, que vem avançando de trás do monte Hermon? E vês como já se
encrespa a superfície do lago? Escuta agora como está soprando o vento
norte, alternando seu sopro com as grandes lufadas quentes do siroco. Olha
o redemoinho do vento: sinal certo de tempestade.
– Daqui a quanto tempo, Simão?
– Antes que termine a hora de prima. Olha como os pescadores já se
apressam em voltar. Perceberam que o lago está rosnando. Daqui a pouco
ele estará também cor de chumbo, depois estará cor de piche, e, então, virá
a fúria.
– Mas ele parece estar tão calmo! –diz, incrédulo, Tomé.
– Tu entendes de ouro, e eu de água. Será como eu te digo. Esta não é
nenhuma tempestade imprevista. Ela se prepara com sinais muito claros. A
água está calma na superfície, com apenas aquela encrespadura, que mais
parece uma brincadeira. Mas, se estivéssemos na barca! Ouviríeis, como se
estivessem batendo na quilha, milhares de juntas de dedos, e sacudindo, de
um modo estranho, a barca. A água já está fervendo por debaixo. Espera o
sinal do céu, e depois verás o resto!… Deixa que o vento norte faça um nó
com o siroco! E depois!… Olá, mulheres! Retirai as roupas que havíeis
estendido nos varais, e procurai abrigar os vossos animais. Daqui a pouco,
vão cair pedras e baldes de água.
De fato, o céu vai-se tornando cada vez mais esverdeado, com uns
veios de ardósia, pela invasão contínua de lâminas de nuvens, que parecem
arrotadas pelo velho Hermon. Elas repelem a aurora, onde esta já tiver
chegado, como se as horas caminhassem para trás, voltando a trazer a noite,
em vez de andarem para a frente, para o meio-dia. Somente um feixe de
raios de sol persiste ainda em querer escapar obliquamente de detrás da
barricada das nuvens de piche, e lança uma irreal pincelada de um amarelo
esverdeado sobre o cume de uma colina a sudoeste de Cafarnaum. O lago já
se mudou de azul para um preto azulado, e as primeiras espumas, por entre
pequenas ondas, fracas, esmiuçadas, parecem de um branco imaginário
sobre aquela água escura. Sobre o lago não há mais nenhuma barca. Os
homens se apressaram em levar para cima da areia das praia suas barcas,
em guardar as redes, ou então, se são camponeses, em tirar dali os
mantimentos, em firmar as estacas e amarras, em fechar os animais nos
estábulos e currais, e as mulheres vão às pressas até as fontes, antes da
chuva, ou tratam de reunir seus meninos, que se levantaram muito cedo, e
os levam para suas casas, fecham as portas, solícitas como galinhas chocas,
quando percebem que o granizo vem perto.
238.2– Simão, vem comigo. Chama também o criado da Marta e Tiago,
meu irmão. Apanha um pano largo. Largo e espesso. Duas mulheres vêm
vindo pelo caminho, e precisamos ir ao encontro delas.
Pedro olha, curioso, para Jesus, mas obedece, sem perda de tempo. Ele
já está na estrada, quando eles, correndo, atravessam o povoado, indo para o
sul, e o Pedro pergunta:
– Mas, quem são elas?
– Minha Mãe e Maria de Magdala.
A surpresa é tão grande, que Pedro fica parado, como se estivesse
pregado no chão, e diz:
– Tua Mãe e Maria de Magdala?! As duas juntas?!
Depois se põe a correr, porque Jesus não parou, nem pararam o criado
nem Tiago. Mas Pedro torna a dizer:
– Tua Mãe e Maria de Magdala?! Juntas!… Mas, desde quando?
– Desde quando outra coisa ela não é, senão Maria de Jesus. Anda
depressa, Simão. Estão caindo os primeiros pingos…
E Pedro se esforça para ir ao lado desses seus companheiros, todos
mais altos e ligeiros do que ele. Na estrada esturricada a poeira já se levanta
em nuvens, por causa de um vento que se vai tornando a cada instante mais
forte, um vento que rasga a superfície do lago, e que deixa ver uma enorme
caldeira, no furor da ebulição. Ondas da altura de pelo menos um metro,
que vão para todos os rumos, e se chocam umas com as outras, crescem e se
confundem, separam-se depois, correndo em direções opostas, à procura de
alguma outra onda, contra a qual se possam chocar, com um perfeito duelo
entre as espumas, entre as cristas, entre as corcovas bojudas, entre as
fervuras, os mugidos, entre as bofetadas que dão até contra as mais
próximas da beira. Quando as casas impedem a vista do lago, ele faz notar
sua presença com o seu fragor, que supera o assobio do vento, que já está
dobrando as árvores, arrancando-lhes as folhas e fazendo cair seus frutos, e
o grande estrondo das longas trovoadas, ameaçadoras, precedidas por
relâmpagos cada vez mais frequentes e mais fortes.
– Quem sabe quanto medo terão aquelas mulheres –diz Pedro,
respirando com dificuldade.
– Minha Mãe, não. A outra, não sei. Mas, com certeza, se não andarmos
depressa, elas vão se molhar muito.
238.3Já passaram algumas centenas de metros de Cafarnaum, quando, por
entre nuvens de poeira, no meio do primeiro barulho de um aguaceiro, que
vem descendo oblíquo e violento, regando o ar escuro e tornando-se em
seguida uma verdadeira catarata, que se reparte em gotas, que nos tiram a
visão, que nos cortam o fôlego, e aí se veem duas mulheres correndo,
procurando abrigo debaixo de alguma árvore copada.
– Lá estão elas! Vamos correr!
Mas, por mais que seu amor por Maria dê asas a Pedro, ele, com suas
pernas curtas, e certamente não de bom corredor, chega perto, só quando
Jesus e Tiago já abrigaram as mulheres debaixo de um pesado pedaço de
vela.
– Aqui não se pode ficar. Há perigos de raios, e daqui a pouco a estrada
vai virar um rio. Vamos, Mestre. Pelo menos até a primeira casa –diz Pedro,
ofegante.
Eles vão, com as mulheres no meio, segurando o pano sobre as cabeças
e as costas delas.
238.4A primeira palavra que Jesus diz a Madalena, que ainda está com a
roupa daquela tarde no banquete de Simão, com um manto da Mãe de Jesus
sobre os ombros, é esta:
– Estás com medo, Maria?
Ela, que sempre esteve de cabeça inclinada, por baixo do véu, que é a
sua cabeleira, desalinhada por causa da corrida, inclina ainda mais a cabeça,
e murmura:
– Não, Senhor.
Também a Mãe de Jesus perdeu os grampos, e parece uma menina, com
as tranças caindo pelas costas abaixo. Mas sorri para o seu Filho, que está a
seu lado, e lhe fala com aquele sorriso.
– Estás muito molhada, Maria –lhe diz Tiago de Alfeu, tocando no véu
e na capa da Senhora.
– Não faz mal. Agora não nos estamos molhando mais. Não é verdade,
Maria? Ele nos salvou até da chuva –diz docemente Maria a Madalena,
percebendo a dificuldade em que ela está. E esta faz com a cabeça sinal que
sim.
– Tua irmã vai ficar contente por tornar a ver-te. Ela está em
Cafarnaum. E estava te procurando –diz Jesus.
Maria levanta por um momento a cabeça, e fixa seus belos olhos no
rosto de Jesus, que lhe vai falando no mesmo modo natural com que fala às
outras discípulas. Mas ela não diz nada. Está arrasada com tantas emoções.
Jesus termina:
– Estou contente por tê-la entretido. Eu vos deixarei ir, depois de ter-vos
abençoado.
238.5A palavra se perdeu no estampido seco de um raio, que caiu ali
perto. Madalena fica espantada. Leva as mãos ao rosto e se inclina numa
explosão de choro.
– Não tenhas medo! –conforta-a Pedro–. Agora já passou. E, com Jesus,
nunca é preciso ter medo.
Também Tiago, que vai indo ao lado direito de Madalena, diz:
– Não chores. As casas já estão perto.
– Não estou chorando por medo… Estou chorando, porque Ele disse
que vai me abençoar… Eu…eu… –e não pode dizer mais nada.
A Mãe de Jesus intervém para acalmá-la, dizendo:
– Tu, Maria, já superaste o teu temporal. Não penses mais nele. Agora
tudo é serenidade e paz. Não é verdade, meu Filho?
– Sim, minha Mãe. É tudo verdade. Daqui a pouco voltará o sol, e tudo
ficará bonito, limpo, fresco como ontem. Também para ti, Maria.
A Mãe continua, segurando a mão de Madalena:
– Direi a Marta as tuas palavras. Estou contente por poder vê-la logo, e
dizer-lhe como a sua Maria está cheia de boa vontade.
Pedro, patinando na lama, e suportando o dilúvio com paciência, sai de
debaixo do refúgio, para ir até uma casa, a fim de pedir abrigo.
– Não, Simão. Nós todos preferimos voltar para a nossa casa. Não é
verdade? –diz Jesus.
Todos estão de acordo, e Pedro volta para debaixo do pano.
238.6Cafarnaum está deserta. Quem reina aí agora, como donos, são o
vento, a chuva, os trovões, os relâmpagos, e agora o granizo, que bate e
salta sobre os terraços e as fachadas. O lago está terrível e ameaçador. As
casas perto dele estão sendo batidas pelas ondas, porque a prainha
desapareceu, e as barcas, amarradas perto das casas, parecem ter
naufragado, de tão cheias que estão de água, que cada novo vagalhão ainda
aumenta, fazendo que delas transborde o que já lá estava.
Entram, correndo, na horta que se transformou em um enorme charco,
no qual estão boiando detritos sobre a água barrenta, e de lá passam para a
cozinha, onde estão todos reunidos.
O grito de Marta, quando vê sua irmã segura pela mão por Maria, é um
grito agudo. Ela vai se abraçar ao pescoço da irmã, sem nem perceber como
fica molhada ao fazer isso, e ao beijá-la, e a chama:
– Mirí, Mirí, alegria minha! –talvez fosse esse o apelido carinhoso que
davam a Madalena, quando era pequena.
Maria chora, se inclina, com a cabeça sobre o ombro da irmã, cobrindo
a veste escura de Marta com um pesado véu de ouro, a única coisa brilhante
naquela cozinha escura, onde está apenas um pequeno fogo de gravetos,
para quebrar o escuro da treva, que a lampadazinha acesa não é capaz de
vencer.
Os apóstolos estão indiferentes, e assim também estão o dono e a dona
da casa, que apareceram por terem ouvido o grito da Marta, mas que, depois
de um momento de curiosidade, dali se afastam discretamente.
238.7Depois, quando a fúria dos abraços se acalmou um pouco, Marta se
lembra de Jesus, de Maria, da estranheza por virem assim todos juntos, e
pergunta à irmã, à Mãe de Jesus, e eu não saberia dizer a quem ela o fazia
com mais insistência:
– Mas, como? Por que todos juntos?
– Por causa do temporal, Marta, que nos fez ficar perto uns dos outros.
Eu fui com Simão, Tiago e teu criado, ao encontro das duas peregrinas.
Marta está tão espantada, que nem reflete no fato de Jesus ir com tanta
segurança ao encontro delas e não faz esta pergunta:
– Mas Tu estavas sabendo?
É Tomé quem pergunta isso a Jesus. Mas não recebe resposta, porque
Marta diz à sua irmã:
– Mas como estavas com Maria?
Madalena inclina a cabeça. A Mãe de Jesus a socorre, segurando-a pela
mão, e dizendo:
– Ela veio até minha casa como uma peregrina, que vai até um lugar,
onde lhe pode ser ensinado o caminho para chegar à meta. E ela me disse:
“Ensina-me o que devo fazer para ser de Jesus.” Oh! Como nela há uma
vontade verdadeira e total, logo ela compreendeu e entendeu essa sabedoria.
E eu a achei logo pronta para poder ser tomada pela mão, assim, e
trazê-la até a Ti, meu Filho, a ti, boa Marta, a vós, irmãos discípulos, e
dizer-vos: “Aqui está a discípula e a irmã, que não dará senão alegrias
sobrenaturais ao Senhor e aos seus irmãos.” Procurai acreditar em mim, e
amá-la todos, como Jesus e eu a amamos.
238.8Então, os apóstolos se aproximam, saudando a nova irmã. Não se exclui
também alguma curiosidade… Mas, que fazer? São ainda homens…
Mas o bom senso de Pedro toma então a palavra:
– Tudo vai bem, Vós garanti a ela ajuda e uma amizade santa. Primeiro
seria necessário pensar que a Mãe e a irmã estão muito molhadas. Nós
também, na verdade, estamos… Mas o caso delas é pior. Seus cabelos estão
pingando água, como os salgueiros depois do furacão, suas vestes estão
sujas de barro e molhadas. Vamos acender um fogo, vamos arranjar umas
vestes e preparar uma comida quente…
Todos se põem a trabalhar, e Marta leva para o quarto as duas
ensopadas viandantes, enquanto, já estando aceso o fogo, estenderam diante
dele as capas, os véus e as vestes encharcadas. Não sei como se arranjam
para prover tudo. Só sei que Marta, tendo-se lembrado de novo de sua
energia de ótima dona de casa, vai e vem, cuidando de tudo, com bacias e
água quente, com tigelas de leite quente, com vestes emprestadas pela
patroa, para socorrer as duas Marias…
239. A parábola dos peixes, a parábola da pérola
e o tesouro dos ensinamentos antigos e novos.
31 de julho de 1945.
239.1Estão todos reunidos na ampla sala superior. O temporal violento se
dissolveu em uma chuva persistente, que já vai ficando mais fina, até quase
parar, e dali a pouco engrossa de novo, com uma fúria renovada. O lago
certamente não está azul hoje, mas amarelento, com listras de espuma
branca, quando vem vindo um vento com aguaceiro. As colinas, todas
escorrendo água, umas com suas folhagens ainda inclinadas para baixo,
ainda cobertas de água, com alguns ramos quebrados pelo vento e muitas
folhas arrancadas pelo granizo, mostrando pequenos regatos por todos os
lados, com águas amarelentas, que vão transportando para o lago as folhas e
as pedras arrancadas dos declives. A própria luz do sol está meio ofuscada,
esverdeada.
Na sala, sentadas perto de uma janela virada para as colinas, estão
Maria com Marta e Madalena, com mais duas mulheres que eu não sei
exatamente quem são. Mas eu tenho a impressão de que já seriam
conhecidas de Jesus, de Maria e dos apóstolos, porque elas se sentem muito
à vontade com todos. E certamente assim estão, mais do que Madalena, que
está quieta, com a cabeça inclinada, sentada entre a Virgem e Marta. As
roupas, enxugadas ao fogo, e agora limpas do barro, já foram vestidas de
novo. Mas digo mal. Foi vestida pela Virgem a dela, de lã azul escura.
Madalena está com uma veste emprestada, curta e estreita para ela, que é
alta e de belas formas. Ela procura compensar os defeitos da veste, usando
por cima dela a capa de sua irmã. Maria Madalena recolheu o cabelo em
duas tranças, dando com elas um nó sobre a nuca, feito de qualquer modo,
porque para segurar aquele peso seriam necessários bem mais do que
aqueles poucos grampos, enfiados um aqui, outro ali. De fato, depois disso,
eu sempre vi que Maria Madalena ajuda os grampos com uma fitinha, que
fica parecendo um leve diadema, desaparecendo, por causa de sua cor de
palha, no ouro dos cabelos dela.
No outro lado da sala, sentados, uns em escabelos, outros nos peitoris
das janelas, estão Jesus com os apóstolos e o dono da casa. Está faltando o
criado de Marta. Pedro e os outros pescadores estão estudando o tempo,
fazendo prognósticos sobre o dia seguinte. Jesus escuta, ou responde a uma
ou outra pergunta.
– Se eu tivesse sabido disso, eu teria dito à minha mãe que viesse. É
bom que a mulher logo esteja à vontade com as companheiras –diz Tiago de
Zebedeu, olhando para o lado das mulheres.
– Como, se tivesses sabido? 239.2Pois, então, a mãe não veio com
Maria? –pergunta Tadeu ao irmão Tiago.
– Eu não sei. Também eu estou fazendo essa pergunta.
– Não estará ela sentindo-se mal?
– Maria teria dito.
– Eu vou perguntar-lhe isso –e Tadeu vai falar com as mulheres.
Ouve-se a voz clara de Maria, que responde:
– Ela está bem. Fui eu que lhe evitei alguma falta de cuidado com este
calor. Nós saímos por aí, como duas meninas, não foi, Maria? Maria veio à
tarde, já escuro, e, na manhã seguinte, partimos. Eu apenas disse a Alfeu:
“Toma a chave. Voltarei logo. Dize isto à Maria.” E vim para cá.
239.3– Nós voltaremos juntos, Mãe. Logo que o tempo ficar bom, e Maria
já tiver uma veste, nós iremos, todos juntos, através da Galileia,
acompanhando as irmãs até o caminho mais seguro. Assim ficarão
conhecidas também por Porfíria, por Susana, por vossas mulheres e filhas,
por Filipe e Bartolomeu.
É muito bom esse modo de dizer “serão conhecidas”, para não dizer
“Maria será conhecida.” E também é uma saída magistral, que vem derrubar
todas as prevenções e restrições mentais a respeito da redimida. O Senhor a
impõe, vencendo as relutâncias deles, a vergonha dela, tudo. Marta tem
agora um ar sereno em seu rosto. Maria Madalena fica corada e tem um
olhar suplicante, reconhecido, mas perturbado. Que sei eu? Maria, Mãe de
Jesus, está com o seu habitual sorriso suave.
– Aonde iremos em primeiro lugar, Mestre?
– A Betsaida. Depois iremos por Magdala, Tiberíades, Caná e Nazaré.
De lá, passando por Jáfia e Semeron, iremos a Belém da Galileia, depois a
Sicaminon e a Cesareia…
Jesus interrompeu suas palavras, diante da explosão de pranto de
Madalena. Ele levanta a cabeça, olha para ela, e continua, como se nada
houvesse acontecido:
– Em Cesareia encontrareis o vosso carro. Eu dei ordem assim ao servo,
e de lá ireis para Betânia. E ver-nos-emos depois, na Festa dos
Tabernáculos[14].
Madalena se recompõe logo, e não responde às perguntas de sua irmã,
mas sai da sala e se retira, talvez para a cozinha, por um pouco de tempo.
– Maria está sofrendo, Jesus, ao ouvir que deve ir a certas cidades. É
preciso entendê-la… Eu o estou dizendo mais por causa dos discípulos que
por Ti, Mestre –diz humildemente, e preocupada, Marta.
– É verdade, Marta. Mas assim deve acontecer. Se ela não enfrentar
logo o mundo, e não acabar de uma vez com aquele horrível tirano, que é o
respeito humano, ela ficará paralisada em sua conversão. E isso acontecerá
logo e também conosco.
239.4– Dentre nós, ninguém dirá nada a ela. Eu te garanto, Marta, por
mim e por todos os meus companheiros –promete Pedro.
– Com toda certeza! Nós a rodearemos como a uma irmã. Assim nos
disse Maria que ela é, e assim o será para nós –confirma Tadeu.
– E, além disso… Todos somos pecadores, e o mundo não nos poupou
também. Por isso, já compreendemos as lutas dela, diz Zelotes.
– Eu, mais do que todos, a compreendo. Nos lugares onde pecamos é
muito meritório vivermos. As pessoas sabem quem somos!… É um
tormento. Mas é também uma justiça e uma glória resistir ali. Justamente
porque é evidente em nós o poder de Deus, nós somos objeto de
conversões, até mesmo sem fazermos uso de palavras –diz Mateus.
– Estás vendo, Marta, como tua irmã é compreendida por todos, e
amada por todos. E o será cada vez mais. Ela se tornará um sinal indicador
para muitas almas culpadas e assustadas. É uma grande força até para os
bons. Porque Maria, quando tiver arrebentado as últimas correntes de sua
natureza humana, será um foco de amor. E não terá feito nada mais do que
ter dado uma nova direção à exuberância dos seus sentimentos. Terá
elevado essa sua poderosa faculdade de amar a um plano sobrenatural. E,
nesse plano, ela operará prodígios. Eu vo-lo garanto. Por enquanto, ela
ainda está perturbada. Mas vereis como cada dia irá ficando mais tranquila
e forte, em sua nova vida. Na casa de Simão, Eu disse: “Muito lhe é
perdoado, porque ela muito ama.” E agora Eu vos digo que, em verdade,
tudo lhe é perdoado, porque ela amará com todas as suas forças, com sua
alma, seu pensamento, seu sangue, sua carne, até o holocausto, o seu Deus.
– Feliz dela, que merece tais palavras! Eu quereria merecê-las, eu
também –suspira André.
– Tu? Tu as mereces já. 239.5Vem cá, meu pescador! Eu te quero contar
uma parábola, que parece que foi feita pensando em ti.
– Mestre, espera um pouco. Eu vou buscar Maria. Ela deseja tanto saber
a tua doutrina!…
Enquanto Marta sai, os outros dispõem em ordem as cadeiras,
formando com elas um semicírculo ao redor de Jesus.
Voltam as duas irmãs e tomam um lugar perto da Mãe Santíssima.
Jesus começa a falar:
– Uns pescadores saíram para o lago e jogaram sua rede ao mar. Depois
do tempo necessário, puxaram a rede para bordo. Com muito trabalho eles
iam assim fazendo a sua pesca, por ordem do patrão, que os havia
encarregado de abastecer sua cidade de peixes de boa qualidade, dizendo-
lhes assim: “Mas os peixes que fazem mal e os de qualidade inferior, não
deveis nem levá-los para terra. Jogai-os de novo no mar. Outros pescadores
os pescarão e, como eles são pescadores de um outro patrão, levarão os
peixes para a cidade dele, para que lá se coma o que faz mal e o que faz
ficar sempre mais feia a cidade do meu inimigo. Na minha cidade, que é
bela, ilustre e santa, não deve entrar nada de malsão.”
Puxada, pois, para bordo a rede, os pescadores começaram o trabalho
da separação. Os peixes eram muitos diversos, de aspecto, tamanho e cores.
Havia alguns muitos bonitos, mas cuja carne era cheia de espinhas, ou de
sabor desagradável, ou que tinham o bucho cheio de lodo, de vermes ou de
ervas podres, que aumentavam o mau gosto de suas carnes. Outros eram de
aparência feia, com um focinho que mais parecia a carranca de um
delinquente ou de um monstro visto em um pesadelo. Mas os pescadores
sabiam que a carne deles era especial. Outros, porque eram sem
importância, passaram despercebidos. Os pescadores trabalhavam,
trabalhavam. As cestas já estavam cheias de peixes especiais então, e na
rede estavam os peixes insignificantes. “Já basta. As cestas estão cheias.
Vamos jogar todo o resto no mar”, disseram muitos pescadores.
Mas um pescador, que pouco tinha falado até aí, enquanto os outros
falavam bem ou mal de cada peixe que lhes chegava às mãos, ficou a
rebuscar na rede e, por entre a miuçalha sem importância, descobriu ainda
dois ou três peixes, que ele foi colocar por cima de todos os outros, nas
cestas. “Mas, que é que estás fazendo”, perguntaram-lhe os outros. “As
cestas já estão cheias e bonitas. Tu as queres estragar, pondo por cima delas,
e atravessado, esse pobre peixe aí! Parece até que tu o queiras premiar
como o mais bonito!” “Deixai-me agir. Eu conheço esta raça de peixes e sei
o seu rendimento e que prazer dão.”
Esta é a parábola, que termina com a bênção do patrão ao pescador
paciente, esperto e silencioso, que soube separar, no grande montão, quais
eram os melhores peixes.
239.6Agora escutai a aplicação da parábola.
O patrão da cidade bonita, ilustre e santa é o Senhor. A cidade é o
Reino dos Céus. Os pescadores são os meus apóstolos. Os peixes do mar
são a humanidade, na qual estão presentes todas as categorias de pessoas.
Os peixes bons são os santos.
O patrão da cidade feia é satanás. A cidade feia é o Inferno. Os
pescadores dele são o mundo, a carne, as paixões más, encarnados nos
servos de satanás, sejam espirituais, isto é, demônios, sejam os homens que
corrompem aos seus semelhantes. Os peixes maus são a humanidade que
não é digna do Reino dos Céus: são os condenados.
Entre os pescadores de almas para a Cidade de Deus, sempre haverá os
que imitarão aquela capacidade cheia de paciência do pescador que sabe
perseverar na procura, precisamente nas diversas camadas da humanidade,
onde os outros seus companheiros, mais impacientes, apanharam somente
as coisas boas que apareceram à primeira vista. E infelizmente haverá
também pescadores que, enquanto aquele trabalho de separação exigia
atenção e silêncio, para ouvir as vozes das almas e as indicações
sobrenaturais, não verão os peixes bons e os perderão. E haverá também os
que por demasiada intransigência, repelem as almas que não são perfeitas
em suas aparências exteriores, mas que são ótimas em tudo mais.
Que vos importa, se um dos peixes que pegardes para Mim, mostrar
sinais de lutas passadas, apresentando mutilações resultantes de tantas
causas, se depois elas não prejudicam ao seu espírito? Que vos importa, se
um desses, para livrar-se do Inimigo, feriu-se, e se apresenta com essas
feridas, se o seu interior mostra a sua clara vontade de ser de Deus? Almas
provadas, almas garantidas. Mais do que aquelas, que são como crianças
salvaguardadas por meio de faixas, do berço ou da mãe, e que dormem
saciadas e boas, ou que sorriem tranquilas, mas podem mais tarde, com o
uso da razão, com a idade e com as vicissitudes da vida que vão
aumentando, dar até dolorosas surpresas de desvios morais.
239.7Eu vos recordo a palavra do filho pródigo. Outras delas ouvireis
ainda, porque Eu sempre estudarei para difundir em vós um discernimento
reto: quanto ao modo de avaliar as consciências e de escolher a maneira
como guiá-las, que são singulares, e cada uma delas tem o seu modo
especial de sentir e de reagir às tentações e aos ensinamentos. Não penseis
que seja fácil o discernimento dos espíritos. É totalmente o contrário.
Precisa-se ter um olho espiritual, completamente iluminado pela luz divina,
precisa-se ter uma inteligência que tenha infusa em si a Sabedoria divina,
precisa-se possuir as virtudes em grau heroico e, como primeira entre todas,
a caridade. Precisa-se ter a capacidade para concentrar-se na meditação,
porque a alma é como um texto obscuro, que há de ser lido e meditado.
Precisa-se ter união contínua com Deus, esquecendo-nos de todos os
interesses egoístas. Viver pelas almas e por Deus. Superar as prevenções, os
ressentimentos, as antipatias. Ser doces como pais, férreos como guerreiros.
Doces para aconselhar e encorajar. E férreos para dizer: “Isto não é
permitido, não o faças. Ou, então: Isto é bom que se faça, e tu o farás.”
Porque, pensai bem nisto, muitas almas serão jogadas nos tanques infernais.
Mas não serão somente almas de pecadores. Também almas de pescadores
evangélicos haverá lá: são as daqueles que faltaram com o seu ministério,
contribuindo para a perdição de muitos espíritos.
Chegará o dia, o último dia da terra e o primeiro da Jerusalém perfeita e
eterna, no qual os anjos, como os pescadores da parábola, separarão os
justos dos maus, para que à ordem inexorável do Juiz, os bons vão para o
Céu e os maus para o fogo eterno. Então é que se tornará conhecida a
verdade a respeito dos pescadores e dos pescados, cairão por terra as
hipocrisias, e aparecerá o povo de Deus como é, com os seus chefes e os
salvos pelos seus chefes. Veremos, então, que muitos entre os mais sem
importância pelo seu exterior, ou os maltratados em seu exterior, estarão
nos esplendores do Céu e que os pescadores calmos e pacientes serão os
que mais terão feito, brilhando agora com suas pedras preciosas, que serão
tantas, quantos forem os seus salvos.
A parábola foi contada e explicada.
239.8– E meu irmão?! Oh! Mas…
Pedro olha para ele… depois olha para Madalena…
– Não, Simão, por ela eu não tenho merecimento. Foi o Mestre sozinho
que o fez –diz, sincero, André.
– Mas os outros pescadores, os de satanás, eles ficam, então, com as
sobras? –pergunta Filipe.
– Eles tentam pegar os melhores, os espíritos capazes de maior prodígio
de Graça e usam desses mesmos homens para consegui-lo, além das suas
tentações. Ainda há muitos neste mundo que, por um prato de lentilhas,
renunciam à primogenitura!
– Mestre, outro dia Tu nos dizias que muitos são os que se deixam
seduzir pelas coisas do mundo. Seriam também eles dos que pescam para
satanás? –pergunta Tiago de Alfeu.
– Sim, meu irmão. Naquela parábola o homem se deixou seduzir pelo
muito dinheiro, que lhe podia dar muitos prazeres, perdendo o direito ao
Tesouro do Reino. Mas, na verdade, Eu vos digo que sobre cem homens só
um terço sabe resistir à tentação do ouro, ou a outras seduções e desse terço
só a metade é que sabe fazê-lo de uma maneira heroica. O mundo morre
asfixiado pelo agravamento voluntariamente aceito dos laços do pecado.
Vale mais estar despojado de tudo, do que ter riquezas irrisórias e ilusórias.
Procurai saber fazer como fazem os sábios joalheiros, os quais, tendo
sabido que em certo lugar foi pescada uma pérola raríssima, não se
preocupam mais em ter ou não ter tantas pequeninas alegrias em seus
cofres, mas se despojam de tudo, para conseguirem aquela pérola
maravilhosa.
– E, então, por que Tu mesmo pões diferenças nas missões que dás aos
que te acompanham e dizes que nós temos que considerar as missões como
dons de Deus? Então, seria necessário renunciar também a elas, porque elas
são como migalhas, em comparação com o Reino dos Céus –diz
Bartolomeu.
– Migalhas, não. Elas são meios. Migalhas elas seriam, ou melhor
ainda, seriam ciscos de palha suja, caso se tornassem uma meta humana na
vida. Aqueles que trabalham para terem uma posição, ainda que santa, com
a finalidade de conseguirem vantagens humanas, fazem de sua posição um
cisco, uma palha suja. Mas fazei de vossa missão uma obediente aceitação,
um dever cumprido com alegria, um holocausto total e, então, a
transformareis em uma pérola raríssima. A missão é um holocausto, se for
cumprida sem reservas, é um martírio e uma glória. A missão pinga
lágrimas, suor, sangue, mas forma uma coisa de eterna realeza.
239.9– Tu sabes de fato responder a tudo!
– Mas, me tereis compreendido? Compreendeis o que Eu digo, mas com
comparações que Eu vou buscar nas coisas de cada dia, iluminadas, porém,
por uma luz sobrenatural, que delas tira explicações para coisas eternas?
– Sim, Mestre.
– Lembrai-vos, então do método para instruir as turbas. Porque este é
um dos segredos dos escribas e dos rabis. Lembrarem-se. Em verdade Eu
vos digo que qualquer um de vós, instruído na Sabedoria de possuir o Reino
dos Céus, é semelhante a um pai de família, que tira para fora do seu
tesouro o que serve para a família, usando coisas antigas ou coisas novas,
mas todas com o único fito de procurar o bem-estar de seus próprios filhos.
A chuva cessou. Deixemos em paz as mulheres, e vamos ao velho Tobias,
que está para abrir os seus olhos espirituais para as auroras do além. A paz
esteja convosco, mulheres.
[14] Tabernáculos quer dizer pela a festa dos tabernáculos. As principais festas hebraicas, frequentemente mencionadas na obra,
são a Páscoa (nota em 375.3), que era celebrada no plenilunio di Nisan (março-abril) e que era seguida da Páscoa suplementar, no
décimo quarto dia do mês sucessivo, para aqueles que não puderam participar (nota em 566.17); Pentecostes, ou festa da Semana
(como é chamada, por exemplo, em 416.2), cinquenta dias depois da Páscoa; os Tabernáculos (mencionados pela primeria vez em
2.4), ou festa das Cabanas, ao fim das colheitas de outono; as Encenias, ou festa das Luzes, ou da Purificação (como é dita, por
exemplo, em 132.1, ou da Dedicação do Templo (como em 526.5), o 25 de Casleu (novembro-dezembro). Disse Maria Ss. em
207.8: “… eu sabia… que na festa das luzes a Luz do mundo nasceria.” Origem e ritual das festas hebraicas são nos livros do
Êxodo, do Levítico, dos Números e do Deuteronômio.
240. Em Betsaida, com Porfíria e Marziam,
que ensinam a Madalena a oração de Jesus.
1º de agosto de 1945.
240.1Voltou o tempo sereno sobre o Mar da Galileia. Tudo agora está até
mais bonito do que antes da tempestade, porque tudo está de novo limpo da
poeira. A atmosfera está de uma claridade perfeita, e o olho, observando o
firmamento, tem a impressão de que ele ficou mais alto e mais leve… um
velário quase transparente, estendido entre a terra e os fulgores do Paraíso.
O lago espelha este azul perfeito e se ri, tranquilo, com suas águas cor de
turquesa.
É um início de aurora. Jesus, com Maria, Marta e Madalena, sobe para
a barca de Pedro. Com Ele estão, além de Pedro e André, também Zelotes,
Filipe e Bartolomeu. Mateus, Tomé, os primos de Jesus e Iscariotes estão na
outra barca de Tiago e João. Rumam direto para Betsaida. É um trajeto
breve, e o vento está a favor. Por isso, o percurso se faz em poucos minutos.
Quando já estão para chegar, Jesus diz a Bartolomeu e a Filipe, este
inseparável daquele:
– Ireis avisar as vossas mulheres. Hoje Eu irei à vossa casa.
E fita os dois de um modo significativo.
– Assim será, Senhor. Não concedes nem a mim, nem a Filipe que Te
tenhamos por hóspede?
– Não pararemos aqui, senão até o pôr do sol, pois Eu não quero privar
Simão Pedro da alegria de estar com Marziam.
A barca já está passando rente pela beira, e para. Descem, e Filipe e
Bartolomeu e se afastam dos companheiros, para irem ao povoado.
– Aonde irão eles dois? –pergunta Simão ao Mestre, que desceu por
primeiro e está ao lado dele.
– Foram avisar as mulheres deles.
– Eu vou, então, também avisar à Porfíria.
– Não é preciso. Porfíria é tão boa, que não é necessário prepará-la para
nada. Seu coração só tem doçura para dar.
Simão Pedro fica contente, por ouvir aquele louvor à sua esposa, e não
diz mais nada.
Nesse ínterim, já desceram as mulheres, para as quais foi colocada uma
tábua, a fim de servir de prancha, e agora estão indo para a casa de Simão.
240.2 Quem as vê por primeiro é Marziam, que está saindo com as suas
ovelhinhas para levá-las a pastar a erva fresca, sobre as primeiras encostas
de Betsaida e, com um grito de alegria, dá a notícia, correndo para ir
refugiar-se no peito de Jesus, que se inclina para beijá-lo. Depois, ele vai a
Pedro. Sai correndo para lá também Porfíria, com as mãos enfarinhadas, e
se inclina para saudar.
– A paz esteja contigo, Porfíria. Tu não nos esperavas tão cedo. Mas Eu
quis trazer-te minha Mãe e duas discípulas, além de minha bênção. Minha
Mãe estava desejando ver o menino. E ele já está nos braços dela. As
discípulas desejavam conhecer-te… Esta é a mulher de Simão. A discípula
boa e silenciosa, ativa mais do que muitas outras, em sua obediência. Estas
são Maria e Marta de Betânia. Duas irmãs. Querei-vos bem.
– Aqueles que me apresentas são para mim mais queridos do que se
fossem meus parentes, Mestre. Vem. A minha casa fica mais bonita, cada
vez que nela pões os pés.
Maria se aproxima sorrindo, e abraça Porfíria, dizendo-lhe:
– Eu vejo que em ti está verdadeiramente viva a mãe. O menino cresceu
e está feliz. Obrigada.
– Oh! Mulher abençoada mais que qualquer outra! Eu sei que por ti é
que eu tive a alegria de ser chamada mamãe. E tu ficas sabendo que não te
darei o desgosto de deixar de sê-lo, com tudo o que de melhor houver em
mim. Entra, entra com as irmãs…
240.3Marziam fica olhando curiosamente para Madalena. Por sua cabeça
passam muitos pensamentos, e, enfim, ele diz:
– Mas… em Betânia tu não estavas…
– Não estava lá. Mas agora lá estarei sempre –diz Madalena,
enrubescida, e esboçando um sorriso.
E acaricia o menino, dizendo:
– Ainda que nos conheçamos só agora, tu me queres bem?
– Sim, porque és boa. Tu choraste, não é mesmo? É por isso que és boa.
E te chamas Maria, não é verdade? Minha mãe também se chamava assim e
era boa. E todas as mulheres que se chamam Maria são boas –e assim
termina, para não entristecer Porfíria e Marta–, mas há boas também entre
aquelas que têm outro nome. Tua mamãe, como se chamava?
– Euquéria… e era muito boa –e duas grandes lágrimas caem dos olhos
de Maria de Magdala.
– Estás chorando porque ela morreu? –pergunta o menino e a acaricia,
tocando em suas bonitas mãos, cruzadas sobre a veste escura, certamente
uma veste de Marta, adaptada para ela, pois pode-se ver que a aba foi
abaixada.
E ele acrescenta:
– Mas não precisas chorar. Afinal, não estamos sozinhos, sabes? As
nossas mamães estão sempre perto de nós: Jesus diz assim. E são como
anjos da guarda. Jesus diz isso também. E, se formos bons, elas vêm ao
nosso encontro, quando morremos e então, subimos para Deus nos braços
da mamãe. Isso é verdade, sabes? Foi Ele que disse.
Maria de Magdala dá um abraço apertado no seu pequeno consolador
dizendo:
– Reza, então, para que eu me torne boa assim.
– Mas tu não o és? Com Jesus só andam os que são bons…E, quando
ainda não o somos bem, aprendemos a sê-lo, para aprendermos a ser os
discípulos de Jesus, porque não se pode ensinar o que não se sabe. Não se
pode dizer: “Perdoa”, se primeiro nós não perdoamos. Não se pode dizer
Deves amar ao teu próximo, se antes mão o amamos. 240.4Tu já sabes a
oração de Jesus?
– Não.
– Ah! É verdade. Estás há pouco tempo com Ele. É uma oração muito
bonita, sabes? Diz todas estas coisas. Escuta como é bonita.
E Marziam vai dizendo, devagar, o “Pai-nosso”, com sentimento e fé.
– Como tu a sabes bem! –diz, admirada, Maria de Magdala.
– Ela me foi ensinada por minha mãe de noite e pela Mamãe de Jesus de
dia. E, se quiseres, eu te ensinarei. Queres vir comigo? As ovelhinhas estão
balindo. Estão com fome. Agora eu vou levá-las ao pasto. Vem comigo. Eu
te ensinarei a rezar e te tornarás boa –e a segura pela mão.
– Mas, eu não sei se o Mestre quer…
– Vai, vai, Maria. Tens por amigo um inocente e cordeirinhos. Então,
vai. Tranquilamente…
Maria de Magdala sai com o menino e é vista, quando vai-se afastando
dali, precedida pelas três ovelhinhas. Jesus fica olhando… e todos os outros
ficam olhando.
– Pobre de minha irmã! –diz Marta.
– Não tenhas dó dela. É uma flor que reergue o pedúnculo, depois da
tempestade. Estás ouvindo?… Ela ri… A inocência conforta sempre.
241. Vocação da filha de Filipe.
Chegada a Magdala e parábola da dracma
perdida.
2 de agosto de 1945.
241.1A barca vai bordejando, de Cafarnaum até Magdala.
Maria de Magdala está, pela primeira vez, em sua postura de
convertida: está sentada no fundo da barca, aos pés de Jesus que, por sua
vez, está modestamente sentado em um dos bancos da própria barca. O
rosto de Maria está hoje muito diferente do de ontem. Ainda não é aquele
rosto radiante da Madalena, quando vai correndo ao encontro de Jesus,
todas as vezes que Ele vai a Betânia, mas é já um rosto livre de temores e
de tormentos, e seus olhos, que antes estavam aviltados por tudo o que antes
havia de desavergonhado, agora estão sérios, mas seguros e, nessa sua
honrada seriedade, brilha de vez em quando uma centelha de alegria, ao
ouvir Jesus, quando fala com os seus apóstolos, ou com sua Mãe, ou com
Marta.
Eles estão falando da bondade de Porfíria, tão simples e tão amorosa,
referindo-se também à acolhida afetuosa de Salomé e das mulheres de
Bartolomeu e de Filipe, e este mesmo diz:
– Se não fossem elas ainda tão jovens e a mãe que não quer saber delas
pelas estradas, elas também te acompanhariam, Mestre.
– As almas delas me acompanham. Isso é também um amor santo…
241.2Filipe, escuta-me: A tua filha maior está para casar-se, não é verdade?
– Sim, Mestre. Bons esponsais e um bom esposo. Não é mesmo,
Bartolomeu?
– É verdade. Eu o garanto, porque conheço a família. Não pude aceitar
que fosse eu que houvesse de cuidar desse negócio, mas eu teria aceitado,
se não tivesse sido chamado pelo Mestre e com toda a tranquilidade, para
formar uma família santa.
– Mas a moça me pediu para não fazer nada disso.
– O noivo não lhe agrada? Ela está enganada. Mas a juventude está
louca. Espero que ela mude de ideia. Não há motivo para rejeitar um noivo
tão bom. A não ser que… Não, não pode ser –diz Filipe.
– A não ser o quê? Acaba de falar, Filipe –provoca-o Jesus.
– A não ser que esteja amando a outro. Mas isso não é possível! Ela não
sai de casa e, mesmo em casa, ela vive muito retirada. Não é possível!
– Filipe, há amantes que penetram até nas casas mais fechadas; há os
que sabem falar àquelas que eles amam, apesar de todas as barreiras e
vigias; há os que derrubam todos os obstáculos de viuvez, de meninice, de
estarem bem guardadas, ou… de outra coisa ainda e que pegam aquelas que
eles querem. E há amantes que não podem ser recusados. Porque eles são
prepotentes no que querem. Porque são sedutores, para vencerem todas as
resistências, ainda que fosse a do demônio. E tua filha está amando um
desses. E é o mais poderoso.
– Mas, quem é? Será um da corte de Herodes?
– Aquilo não é poder!
– Será um… um da casa do Procônsul, algum patrício romano? Eu não
o permitirei, de jeito nenhum. O sangue puro de Israel não terá contato com
um sangue impuro. Ainda que eu precisasse matar minha filha. 241.3Não
sorrias, Mestre! Eu sofro!
– Porque és como um cavalo irrequieto. Estás vendo sombras onde só
há luzes. Mas, fica tranquilo. Até o procônsul não passa de um servo e
servos são os amigos dele e servo é até o César.
– Ora, tu estás brincando, Mestre! Tu só me quiseste fazer passar medo.
Porque não há ninguém maior do que César, nem mais patrão do que ele.
– Aqui estou Eu, sou Eu, Filipe.
– Tu? Quererás Tu desposar minha filha?
– Não. Mas a alma dela. Eu sou o amante que penetro nas casas mais
fechadas e nos corações ainda mais fechados, com sete e mais chaves. Sou
Eu que sei falar, apesar de todas as barreiras e vigias. Sou Eu que derrubo
todos os obstáculos, e apanho o que Eu quero apanhar, entre os puros e
pecadores, entre as virgens e as viúvas, entre os que estão livres dos vícios e
os que estão escravizados por eles. E a todos Eu dou uma única e nova
alma, regenerada, bem-aventurada e eternamente jovem. São os meus
esponsais. E ninguém pode recusar-se a dar-me minhas doces presas. Nem
o pai, nem a mãe, nem os filhos e nem mesmo satanás. Seja o caso em que
Eu fale à alma de uma moça, como é a tua filha ou de um pecador
mergulhado no pecado e preso por satanás com sete correntes, a alma virá a
Mim… E nada e ninguém me arrebata mais. Nem nenhuma riqueza ou
poder, ou alegria do mundo é capaz de transmitir a alegria perfeita que é a
daqueles que se casam com a minha Pobreza, com a minha Mortificação.
Nus de todos os pobres bens, mas revestidos de todo Bem Celeste.
Contentes com a serenidade de quem pertence a Deus, somente a Deus… E
eles são os donos da terra e do Céu. Da terra, porque a dominam e do Céu,
porque o conquistam.
– Mas, na nossa Lei nunca houve isso! –exclama Bartolomeu.
– Despoja-te do velho homem, Natanael. Quando Eu te vi pela primeira
vez, Eu te saudei[15], dizendo que eras o perfeito israelita, sem fraudes. Mas
agora tu és de Cristo, não de Israel. Sê assim sem fraudes e sem ciladas.
Reveste-te desta nova mentalidade. Senão, não serás capaz de compreender
muitas das belezas da redenção, que Eu vim trazer a toda a humanidade.
Filipe intervém, dizendo:
– E minha filha, Tu dizes que foi chamada por Ti? E que fará ela agora?
De fato, eu não a nego a Ti. Mas quero saber, também para poder ajudá-la
naquilo para que tiver sido chamada…
– Para levar os lírios de um amor virginal no jardim de Cristo. Haverá
muitas dessas nos séculos futuros! Muitas! Serão canteiros de incensos para
contrabalançar as sentinas dos vícios. Serão almas que oram, para
contrabalançar os blasfemadores e os ateus. É uma ajuda para todas as
infelicidades humanas e uma alegria para Deus.
241.4Maria de Magdala abre a boca para fazer uma pergunta e a faz,
enrubescendo ainda, mas já com mais franqueza do que nos outros dias:
– E nós, as ruínas, que Tu estás reerguendo, que é que vamos ser?
– O que são as irmãs virgens…
– Oh! Não pode ser! Nós andamos pisando em muita lama e… não pode
ser.
– Maria, Maria! Jesus nunca perdoa pela metade. Ele te disse que te
perdoou. E assim é. Tu, e todos aqueles, que como tu pecaram e que o meu
amor perdoa e desposa, perfumareis, orareis, amareis, confortareis, tornadas
agora cônscias do mal e preparadas para curá-lo onde ele estiver, sereis
almas que aos olhos de Deus são mártires. E queridas, portanto, como as
virgens.
– Mártires? De que modo, Mestre?!
– Contra vós mesmas, e pelas lembranças do passado, mártires por sede
de amor e de expiação.
– Devo crer isso?
Madalena olha para todos os que estão na barca, pedindo uma
confirmação para a sua esperança, que começa a acender-se.
– Pergunta a Simão. Eu falei[16] de ti e de vós pecadores em geral, em
uma noite estrelada, em teu jardim. E os teus irmãos todos te podem dizer
se a minha palavra não cantou para todos os redimidos os prodígios da
Misericórdia e da conversão.
– Falou-me disso, com sua voz de anjo, até o menino. Eu voltei com a
alma tranquilizada por aquela lição dele. Ele me fez conhecer-te melhor
ainda do que minha irmã, e de tal modo, que hoje eu me sentia mais forte
para enfrentar Magdala. Agora que Tu me dizes isto, eu sinto crescer em
mim a fortaleza. Eu dei escândalo ao mundo. Mas, eu te juro, meu Senhor,
que agora o mundo, ao olhar para mim, chegará a compreender o que é o
teu poder.
Jesus põe, por um momento, a mão sobre a cabeça dela, enquanto
Maria Santíssima lhe sorri, como só Ela sabe fazer: com um sorriso de
Paraíso.
241.5Aí já está Magdala, que se estende à beira do lago, com o sol
surgindo em sua frente, com o monte Arbela às suas costas e que a protege
dos ventos, o vale estreito, alcantilado e selvagem, do qual desemboca uma
torrente no lago e que avança do lado do ocidente, com suas costas a pique,
cheias de uma beleza fascinante e rústica.
– Mestre –grita João, da outra barca–, aqui está o vale do nosso
retiro… –e o seu rosto brilha, como se por dentro ele tivesse o sol.
– É o nosso vale, sim. Tu o reconheceste bem.
– Não se pode deixar de lembrar dos lugares onde se conheceu a
Deus[17] –responde João.
– Então, eu vou lembrar-me sempre deste lago. Porque sobre ele é que
Te conheci. Sabes, Marta, que eu vi o Mestre[18], certa manhã?
– Sim. E por pouco todos não foram para o fundo, nós e vós. Mulher,
podes acreditar também que os teus remadores não valiam nem um
vintém –diz Pedro, que está fazendo a manobra para aproar.
– Não valiam nada nem os remadores, nem os que estavam com eles…
Mas sempre foi aquele o primeiro encontro e por isso tem um grande valor.
Depois, eu te vi sobre o monte, depois em Magdala, depois em
Cafarnaum… Tantos encontros, quantas as correntes arrebentadas… Mas
Cafarnaum foi o lugar mais belo. Foi lá que me libertaste…
241.6Descem para a terra, para onde já desceram os da outra barca. Eles
entram na cidade.
A curiosidade simples ou… sem simplicidade, dos magdalenses deve
ser como uma tortura para Madalena. Mas ela tudo suporta heroicamente,
acompanhando o Mestre, que vai na frente, no meio de todos os seus
apóstolos, enquanto que as três mulheres vão atrás deles. O murmúrio é
forte. Não falta a ironia. Todos aqueles que, enquanto Maria era a senhora
que mandava em Magdala, a respeitavam pela aparência, por temor das
represálias, agora que eles a estão vendo e sabem que ela se afastou para
sempre dos seus poderosos amigos, agora humilde e casta, eles tomam a
liberdade de demonstrar-lhe o seu desprezo e de dirigir-lhe apelidos nada
agradáveis.
Marta, que está sofrendo tanto quanto ela por isso, pergunta-lhe:
– Queres ir embora para casa?
– Não. Eu não deixo o Mestre. E a Ele, antes que a casa seja purificada
de todos os vestígios do passado, não o convidarei para entrar nela.
– Mas, tu sofres, irmã.
– Eu fiz por merecê-lo.
É preciso aceitar o sofrimento: o suor que desce do rosto, e o rubor que
o cobre até no pescoço não são devidos somente ao calor.
Atravessam toda Magdala, indo pelos quarteirões pobres, até chegarem
à casa em que ficaram[19] na outra vez. A mulher fica espantada, quando, ao
levantar a cabeça do lavadouro para ver quem é que a está saudando, se
encontra de frente com Jesus e a bem conhecida senhora de Magdala, não
mais naquela sua pompa, não mais cheia de joias, mas com um véu leve de
linho na cabeça, vestida de um roxo pervinca, com uma veste fechada à
altura do pescoço, estreita e que se está vendo que não é dela, ainda que a
tenham adaptado para parecer que o fosse, enrolada em uma pesada capa
que, com aquele calor, deve estar sendo para ela um suplício.
– Permites-me parar em tua casa e falar daqui aos que me
acompanham? –(Isto queria dizer “falar a toda Magdala”, porque a
população em peso formou acompanhamento ao grupo dos apóstolos.)
– E, ainda me perguntas, Senhor? Mas a minha casa é tua.
E se dá ao trabalho de levar cadeiras e bancos às mulheres e aos
apóstolos. Passando ela por perto de Madalena, faz-lhe uma inclinação,
como uma escrava.
– Paz a ti, minha irmã, lhe responde ela.
E a surpresa da mulher chega a tal ponto, que ela deixa cair o pequeno
banco, que estava em suas mãos. Mas ela não diz nada. Contudo, aquele ato
me fez pensar que Maria antes devia ter tratado os seus súditos de um modo
soberbo. E aquela mulher acaba de ficar mesmo assombrada, quando ouve
Madalena perguntar-lhe como vão os meninos, onde eles estão, e se a pesca
tem sido boa.
– Estão bem…Uns estão na escola e outros com minha mãe. A pesca
está boa. Meu marido te levará os dízimos…
– Não é mais preciso. Usa-os com os teus meninos. Queres deixar-me
ver o pequenino?
– Vem.
241.7As pessoas se aglomeram na rua. Jesus começa a falar:
– Uma mulher tinha dez dracmas em sua bolsa. Mas, tendo feito um
movimento, a bolsa caiu-lhe do seio e se abriu, e as moedas saíram rodando
pelo chão. Ela as recolheu, com a ajuda das vizinhas que estavam presentes
e contou as moedas. Eram nove. Não puderam encontrar a décima. Visto
que a tarde já vinha chegando, e começava a escurecer, a mulher acendeu a
candeia, e a colocou no chão. Depois pegou uma vassoura e começou a
varrer, com muita atenção para ver se a moeda havia rolado para longe do
lugar onde caiu. Mas não havia meio de achar a dracma. Então, as amigas
foram-se embora, já cansadas de tanto procurar. Aí a mulher teve a ideia de
mover do lugar a caixa-banco, o armário e o pesado cofre. Tirou com
cuidado as ânforas e jarros, que estavam colocados numa cavidade, ao pé da
parede. Mas não se achava a dracma. Então, a mulher se pôs de gatinhas e
foi procurar no monte do lixo varrido e ajuntado perto da porta da casa, para
ver se a dracma teria rodado para fora da casa, indo misturar-se com as
folhas rejeitadas das verduras. E lá, afinal, acabou achando a dracma, toda
suja, quase coberta com o lixo, que caiu depois sobre ela.
A mulher, muito alegre, foi lavá-la, e a enxugou. Ela estava mais bonita
agora, do que antes. E a mulher foi mostrá-la às vizinhas, que ela chamou
de novo, em alta voz, e que se haviam retirado, depois de a terem ajudado
nas primeiras buscas, dizendo: “Ei-la aqui! Estais vendo? Vos me estáveis
aconselhando a não me cansar mais. Mas eu resisti, e encontrei a dracma,
que eu tinha perdido. Alegrai-vos, pois, comigo, que ainda não tive a dor de
perder nem um só dos meus tesouros.”
241.8Também o vosso Mestre, e com Ele os seus apóstolos, faz como a
mulher da parábola. Ele sabe que um movimento pode fazer cair um
tesouro. Cada alma é um tesouro e satanás, que é invejoso de Deus, provoca
os maus movimentos para fazer cair as pobres almas. Há alguns que, ao
caírem, param perto da bolsa, isto é, afastam-se pouco da Lei de Deus, que
recolhe as almas na guarda dos mandamentos. E há os que vão parar mais
longe, isto é, afastam-se mais ainda de Deus e de sua Lei. Enfim, há os que
saem rodando até o lixo, até às sujeiras, à lama. E lá acabariam perecendo,
ao serem queimados nos fogos eternos, assim como as imundícies
costumam ser queimadas em lugares apropriados.
O Mestre sabe disso, e procura incansavelmente as moedas perdidas.
Ele as procura em todos os lugares, com amor. Elas são os seus tesouros.
Ele não se cansa, nem sente nojo de nada. Mas Ele as busca, rebusca, move
as coisas de seus lugares, varre, até encontrar. E, uma vez encontrada, lava a
alma encontrada com o seu perdão e chama os amigos, todo o Paraíso e
todos os bons da terra, e lhes diz: “regozijai-vos comigo, porque encontrei o
que se tinha perdido e está agora mais bonito do que antes, porque o meu
perdão o tornou novo.”
Em verdade Eu vos digo que se faz muita festa no Céu, alegram-se os
anjos de Deus e os bons da terra por um pecador que se converte. Em
verdade, Eu vos digo que não há coisa mais bela do que as lágrimas do
arrependimento. Em verdade Eu vos digo que só os demônios é que não
sabem, não podem alegrar-se por esta conversão, que é um triunfo de Deus.
E também vos digo que o modo como um homem acolhe a conversão de
um pecador é a medida de sua bondade e de sua união com Deus.
A paz esteja convosco.
As pessoas entendem a lição, e olham para a Madalena, que foi sentar-
se na porta com o pequenino nos braços, talvez para ter um modo de
controlar-se. A multidão vai-se dispersando lentamente, permanecendo
somente a dona da casa e sua mãe, rodeada pelos meninos. Falta Benjamim,
que ainda está na escola.
[15] eu te saudei, em 50.6.
[16] falei…, in 136.2.
[17] onde se conheceu a Deus, em 165.3/4.
[18] eu vi o Mestre, em 98.2/3.
[19] em que ficaram, em 184.1.
242. Discurso sobre a Verdade ao romano Crispo,
único ouvinte de Jesus em Tiberíades.
3 de agosto de 1945.
242.1Quando a barca para no pequeno porto de Tiberíades, acorrem, para
ver quem está chegando alguns desocupados, que estavam passeando perto
do molhe. Há pessoas de toda classe e de todas as nacionalidades. Por isso
às longas vestes hebraicas, de todas as cores, às cabeleiras e às barbas
imponentes dos israelitas misturam-se às vestes de lã cândida, mais curtas e
deixando os braços nus. vêm os de rostos imberbes, os de cabelos curtos, os
romanos robustos, os de vestes ainda mais curtas que cobrem os corpos
delgados e efeminados dos gregos, que parecem haver assimilado até as
poses da arte de sua longínqua nação, e estão aí como estátuas de deuses
descidas sobre a terra em corpos humanos de homens, envolvidos em
túnicas macias, com rostos clássicos por baixo de cabeleiras eriçadas e
perfumadas, com braços cobertos de braceletes, que brilham, agitados por
movimentos estudados.
Muitas mulheres do prazer estão misturadas a estas duas últimas classes
de pessoas, já que os romanos e os helenos não ficam em dúvidas, quando
querem expor os seus amores nas praças e nas ruas, enquanto que os
palestinos se abstém disso, mas vão praticar depois alegremente o seu amor
livre com as mulheres do prazer nas casas delas. Isto se nota claramente,
porque as cortesãs, mesmo com a cara feia que fazem para elas os que por
elas são interrogados, chamam, familiarmente pelo nome, diversos hebreus,
entre os quais nunca falta algum fariseu, enfeitado com grandes borlas.
242.2Jesus vai se dirigindo para a cidade, justamente para o ponto, onde a
multidão dos mais elegantes se reúne com maior densidade. Essa multidão
elegante, composta principalmente de romanos e gregos, com alguma
participação dos cortesãos de Herodes e de outros, os quais eu acho que são
grandes mercadores da costa fenícia, dos lados de Sidon e de Tiro, porque
estão falando sobre cidades, sobre empórios e navios. As termas têm seus
pórticos exteriores cheios dessas pessoas elegantes e ociosas, que perdem
assim o seu tempo, discutindo sobre assuntos muitos pequenos, por
exemplo, sobre qual é o discóbolo favorito ou o atleta mais ágil e
harmonioso na luta greco-romana. Ou, então, estão falando de modas e
banquetes, ou marcando encontros para excursões alegres, indo convidar as
mais belas cortesãs, ou as damas que saem perfumadas e encaracoladas das
termas ou dos palácios, revezando-se neste centro de Tiberíades, todo de
mármore e artístico como um salão.
Naturalmente, a passagem do grupo vai suscitando grande curiosidade e
esta se torna até anormal, quando alguém reconhece Jesus, por tê-lo visto
em Cesareia, ou alguém reconhece Madalena, por mais que ela vá indo toda
recoberta com a capa e com um véu branco bem descido sobre a fronte e
sobre as faces, estando assim velada e de cabeça inclinada, bem pouco
podendo-se ver de seu rosto.
– É o Nazareno, que curou a menina de Valéria –diz um romano.
– Eu gostaria de ver um milagre –responde-lhe outro romano.
– Eu gostaria de ouvi-lo falar. Dizem que é um grande filósofo. Vamos
pedir-lhe que fale? –pergunta um grego.
– Não te metas nisso, Teódato. Ele fala nas nuvens. Talvez agradasse a
algum escritor de tragédias, para fazer uma sátira –responde um outro
grego.
– Não te incomodes, Aristóbulo. Parece que agora ele está descendo das
nuvens, e tratando da realidade. Estás vendo como ele vem vindo escoltado
por mulheres jovens e belas? –diz, em tom de zombaria, um romano.
242.3– Mas aquela é Maria de Magdala! –grita um grego.
Depois chama os outros:
– Lúcio! Cornélio! Tito! Olhai lá Maria!
– Mas, não é ela! Maria desse jeito! Estás ébrio?
– É ela, eu te garanto. Não posso enganar-me, ainda que ela esteja assim
mascarada.
Romanos e gregos se aglomeram, indo no rumo do grupo dos
apóstolos, que vão atravessando obliquamente a praça cheia de pórticos e
de fontes. Também algumas mulheres se unem a esses curiosos, e é
justamente uma delas que vai quase até debaixo do rosto de Maria, para vê-
la melhor e fica tomada de grande surpresa, ao ver que é ela mesma.
Ela pergunta:
– Que fazes com essa roupa aí? e se ri, zombeteira.
Maria para, se endireita, levanta uma mão e descobre o rosto, jogando o
véu para trás. É Maria de Magdala, senhora poderosa sobre tudo o que é
desprezível e dona de suas impressões, que agora aparece.
– Sou eu, sim –diz ela com sua voz clara e com os lampejos de seus
bonitos olhos–. Sou eu. E eu tirei o véu, para que não fiqueis pensando que
eu estou com vergonha, por estar com estes santos.
– Oh! Oh! Maria com os santos! Mas, sai daí! Não fiques te aviltando a
ti mesma –diz a mulher.
– Aviltada eu fui até agora. Daqui para a frente, não mais.
– Mas, não estás doida? Ou será um capricho? –diz a mulher.
Um romano diz, escarnecendo e piscando os olhos:
– Vem comigo: Eu sou mais belo e mais alegre do que aquela carpideira
de bigodes que anestesia a vida, e faz dela um funeral.
– Bela é a vida. É um triunfo. É uma orgia de alegria. Vem. Eu saberei
fazer mais do que todos os outros para tornar-te feliz –diz ele, um jovem
romano de rosto vulpino, ainda que belo, e procura tocar nela.
– Para trás! Não me toques. Disseste bem: a vida que levais é uma
orgia. E das mais vergonhosas. Eu tenho nojo dela.
– Oh! Oh! Mas, até pouco tempo atrás, essa era a tua vida –responde o
grego.
– Agora ela se faz de virgem –diz, ridicularizando-a, um herodiano.
– Tu vais estragar os santos! O teu Nazareno vai perder a auréola por
causa de ti: Vem conosco –insiste um romanos.
– Vinde vós comigo atrás Dele. Deixai de serem animais e tornai-vos
pelo menos homens.
Um coro de risadas e zombarias o apoia.
Só um velho romano é que diz:
– Respeitai uma mulher. Ela é livre de fazer o que quer. Eu a defendo!
– Olhai o demagogo! Ouvi-o! Será que te fez mal o vinho de ontem à
noite? –pergunta um jovem.
– Não. Ele é hipocondríaco, porque está com dor nas costas –lhe
responde um outro.
– Vai ao Nazareno para que as raspe.
– Eu vou mas é para que Ele me raspe a lama, que eu apanhei em
contato convosco –responde o ancião.
– Oh! Crispo que se corrompeu aos sessenta anos –dizem rindo muitos,
que estão formando um círculo ao redor dele.
242.4Mas o homem chamado Crispo não se preocupa por ser feito objeto
de zombaria, e põe-se a caminhar atrás de Madalena, que já alcançou o
Mestre, e vão indo agora à sombra de um edifício muito bonito, que se
estende em forma de êxedra sobre dois lados de uma praça.
E Jesus já está discutindo com um escriba, que o censura por estar em
Tiberíades e com aquela companhia.
– E tu, por que é que estás aqui? Tu me censuras por estar Eu em
Tiberíades. Mas Eu te digo que também em Tiberíades, e até mais do que
em outros lugares, existem muitas almas necessitadas de salvação –
responde-lhe Jesus.
– Eles não vão ser salvos: São gentios, pagãos, pecadores.
– Foi para os pecadores que Eu vim. Para fazer que conheçam o
verdadeiro Deus. Vim para todos. Até por ti Eu vim.
– Eu não preciso de Mestres, nem de redentores. Eu sou puro e douto.
– Se, pelo menos o fosses o tanto quanto é necessário para conheceres o
teu estado!
– E Tu, para saberes quanto ficas prejudicado, andando em companhia
de uma meretriz!
– Eu te perdôo, também em nome dela. Ela, com sua humildade, anula o
seu pecado. Tu, pela tua soberba, duplicas a tua culpa.
– Eu não tenho culpas.
– Tens a maior delas. Tu não tens amor.
– O escriba diz: “Raca”, e vira-lhe as costas.
– Foi por minha culpa, Mestre –diz Madalena.
E, vendo a palidez da Virgem Maria, ela geme:
– Perdoa-me. Eu estou fazendo que insultem ao teu Filho. Eu vou sair
daqui…
– Não. Fica tu onde estás. Eu quero assim –diz Jesus com voz incisiva e
com um relampejar tal em seus olhos, e um ar de domínio em toda a sua
pessoa, que se torna impossível olhar para Ele.
E depois diz mais docemente:
– Tu, fica onde estás. E, se alguém não suporta a tua vizinhança, que se
vá embora, ele sozinho.
E Jesus põe-se de novo a caminho, dirigindo-se para a parte ocidental
da cidade.
242.5– Mestre! –chama o romano corpulento e já ancião, que defendeu
Madalena.
Jesus se vira.
– Chamam-te mestre, eu também te chamo assim. Eu desejaria ouvir-te
falar. Eu sou meio filósofo e meio gozador da vida. Mas talvez Tu poderias
fazer de mim um homem honesto.
Jesus olha para ele fixamente, e lhe diz:
– Estou deixando a cidade, onde reina a baixeza da animalidade humana
e onde é soberano o escárnio.
E começa a caminhar.
O homem vai atrás dele, suando e se cansando, porque o passo de Jesus
é ligeiro, e ele é gordo e já de idade, e meio pesado, por causa de seus
vícios. Pedro, que vira para trás, avisa Jesus disso:
– Deixa-o caminhar. Não te preocupes.
Pouco depois, é Iscariotes que diz:
– Mas aquele homem vem atrás de nós. Isso não pode ser!
– Por quê? Tu dizes por piedade, ou por outro motivo?
– Por piedade dele? Não. Porque, lá mais ao longe, vem vindo e nos
acompanhando aquele escriba de antes, com outros judeus.
– Deixa que o façam. Mas seria melhor que tivesses mais piedade dele
do que de ti.
– De Ti, Mestre.
– Não. De ti, Judas. Procura ser sincero em compreender teus
sentimentos e em manifestá-los.
– Eu, na verdade, estou com piedade do velho também. Ele está
cansado, sabes, por vir vindo atrás de Ti –diz Pedro, suando.
– Para se ir atrás da Perfeição, é preciso cansar-se, Simão.
O homem os acompanha, incansável, procurando estar perto das
mulheres, às quais, porém, não dirige jamais a palavra.
242.6Madalena chora silenciosamente sob seu véu.
– Não chores, Maria –conforta-a a Senhora, tomando-a pela mão–. Mais
tarde o mundo te respeitará. Os primeiros dias são os mais penosos.
– Oh! Não é por mim. Mas por Ele. Se eu tivesse que fazer-lhe mal, eu
nunca me perdoaria. Ouvistes o que o escriba disse? Eu o estou
prejudicando.
– Pobre filha! Mas, não sabes que estas palavras silvam, como outras
tantas serpentes, ao redor dele, desde quando tu nem pensavas em vir a Ele?
Disse-me Simão que o acusavam disso, desde o ano passado, por ter curado
uma leprosa, que havia sido pecadora e que Ele só viu no momento do
milagre e nunca mais, mais velha do que eu, que sou Mãe dele. Mas, não
sabes que Ele teve que fugir de Águas Belas, porque uma tua irmã infeliz
tinha ido até lá para redimir-se? Como queres que o acusem, se Ele é sem
pecado? Com mentiras. E onde encontrá-las? Na missão dele entre os
homens. Um ato bom é tomado como prova de culpa. E, qualquer coisa que
meu Filho fizesse, para eles seria sempre culpa. Se Ele se fechasse em um
deserto, ainda seria dito culpado por não cuidar do povo de Deus. Ele vai ao
meio do povo de Deus e é culpado por fazer assim. Para eles, Ele é sempre
culpado.
– Eles são odiosamente maus, então!
– Não. Eles são obstinadamente fechados à Luz. Ele, o meu Jesus, é o
Eterno Incompreendido. E sempre, sempre mais o será.
– E tu não sofres com isso? Pareces estar tão serena.
– Cala-te. É como se o meu coração estivesse enfaixado com espinhos
ardentes[20]. A cada respiração, eu sinto a ponta deles. Mas, que Ele não o
saiba! Eu me faço ver assim, para sustentá-lo com a minha serenidade. Se a
sua Mãe não o conforta, onde o meu Jesus poderá encontrar conforto?
Sobre qual seio poderá Ele inclinar sua cabeça, sem que ela fique ferida, e
receba uma ferida ou uma calunia por fazê-lo? Portanto, é muito justo que
eu, por cima dos espinhos que me laceram o coração e das lágrimas que eu
bebo nas horas de solidão, que eu ponha um macio manto de amor, ponha
um sorriso, a qualquer custo, para deixá-lo mais tranquilo, até que… até que
a onda de ódio for tal que nada mais o poderá ajudar. Nem mesmo o amor
da Mãe.
Maria está com dois fios de lágrimas, que escorrem por seu rosto
pálido.
As duas irmãs, comovidas, olham para Ela.
– Mas Ele tem a nós, que o amamos. Depois, os apóstolos… –diz Marta
para consolá-la.
– Ele vos tem, sim. E tem os apóstolos…Ainda muito aquém do que
eles lhe devem… E a minha dor é mais forte, porque eu sei que Ele sabe de
tudo…
– Então saberá Ele também que eu quero obedecer-lhe até à minha
imolação, se for preciso? –pergunta Madalena.
– Ele o sabe. Tu és para Ele uma grande alegria, em seu duro caminho.
– Oh! Mãe.
E Madalena segura a mão de Maria e a beija, emocionada.
242.7Tiberíades termina nas hortas do subúrbio. Para além delas, começa
o caminho poeirento, que vai para Caná, limitado, de um lado pelos
pomares, e do outro por uma série de prados e de campos ressecados pelo
verão.
Jesus entra por um pomar, e para à sombra de umas plantas copadas. As
mulheres o alcançam, e depois delas também o romano ofegante, que não
está aguentando mais. Ele fica um pouco afastado, não fala, mas fica
olhando.
– Enquanto descansamos, vamos comer –diz Jesus–. Lá adiante há um
poço e perto dele mora um camponês. Ide pedir-lhe água.
Lá se vão João e Tadeu. Voltam com uma moringa gotejando água,
acompanhados pelo camponês, que lhes ofereceu também figos muito
bonitos.
– Deus te recompense por tudo isso, dando-te saúde e uma boa colheita.
– Deus te proteja. Tu és o Mestre, não é?
– Eu sou.
– Vais falar aqui?
– Não há quem o deseje.
– Eu, Mestre. Mais do que a água, que é boa para quem está com sede –
grita o romano.
– Estás com sede?
– Muita. Eu vim atrás de Ti, desde a cidade.
– Não faltam em Tiberíades fontes de água pura.
– Não me entendas mal, Mestre, nem faças como se me entendesses
mal. Eu vim atrás de Ti para ouvir-te falar.
– Mas, por quê?
– Não sei por que, nem como. Foi ao ver esta mulher –(e mostra
Madalena)–. Eu não sei. Mas alguma coisa me dizia: “Este te dirá o que
ainda não sabes.” E eu vim.
– Dai ao homem água e figos. Que ele se restaure, quanto ao corpo.
– E quanto à mente?
– A mente se restaura com a Verdade.
– Foi por isso que eu vim atrás de Ti. Tenho procurado a verdade em
todos os ramos do saber. Só encontrei corrupção. Até nas melhores
doutrinas, há sempre alguma coisa não boa. Eu me aviltei, a ponto de
tornar-me um homem enojado e enojante, sem outro futuro senão a hora em
que vivo.
Jesus olha para ele fixamente, enquanto vai comendo o pão e os figos,
que os apóstolos lhe levaram.
A refeição terminou.
242.8 Jesus, permanecendo sentado, começa a falar, como se estivesse
dando uma simples lição aos seus apóstolos. O camponês também está
perto dele.
– Muitos são os que procuram a Verdade, durante toda a vida, sem
chegarem a encontrá-la. Ficam parecendo loucos, que querem ver, mesmo
tendo uma corrente de bronze sobre os olhos, e ficam apalpando e
procurando, de um modo convulsivo, e de tal maneira, que sempre vão se
afastando da Verdade, ou então a escondem, despejando sobre ela coisas
que a procura louca deles vai removendo de sua frente, ou faz sair para fora
dali. Não lhes pode acontecer senão assim, porque vão procurar a verdade
onde ela não pode estar.
Para encontrar a Verdade, é preciso unir a inteligência com o amor e
olhar as coisas, não somente com olhos sábios, mas também com olhos
bons. Porque vale mais a bondade do que a sabedoria. Aquele que ama,
sempre consegue achar um caminho para chegar à verdade.
Amar não quer dizer gozar de uma carne, ou pela carne. Isso não é
amor. É sensualidade. Amor é o afeto de um espírito a outro espírito, de
uma parte superior a outra parte superior, pelo qual na companheira não se
há de ver uma escrava, mas a geradora dos filhos, só isto, ou seja, a metade,
que forma com o homem um todo, que é capaz de criar uma vida, e mais
vidas, e até a companheira que é mãe, irmã e filha do homem, que é mais
fraco do que um recém-nascido e mais forte do que um leão, conforme os
casos, e que, como mãe, irmã, filha, é amada com um respeito confiante e
protetor. O que não é como estou dizendo, não é amor. É vício. Não leva
para o alto, mas para baixo. Não para a luz, mas para as trevas. Não para as
estrelas, mas para a lama. Amar a mulher, para saber amar ao próximo.
Amar ao próximo para saber amar a Deus.
242.9Então se terá encontrado o caminho da verdade. A Verdade está
aqui, ó homens que a estais procurando. A Verdade é Deus. A chave para
compreender o que é preciso saber está aqui.
A doutrina, que é sem defeito, é a de Deus somente. Como pode o
homem achar resposta para suas perguntas, se ele não tiver Deus para lhe
responder? Quem é que pode revelar os mistérios do universo, para falar,
por enquanto, só e simplesmente deles, senão o Criador Supremo que fez o
universo? Como compreender esse prodígio vivo que é o homem, esse ser
em que se une a perfeição animal com a perfeição imortal, que é a alma,
pela qual somos deuses, se tivermos em nós viva a alma, isto é, livre
daquelas culpas que aviltariam até um bruto, e que o homem comete e ainda
se vangloria de cometer?
Eu vos digo as palavras[21] de Jó, ó procuradores da verdade: “Interroga
os jumentos, e eles te instruirão, os passarinhos, e eles te mostrarão. Fala à
terra, e ela te responderá, aos peixes, e eles te farão saber.”
Sim, a terra, esta terra verdejante e florida, estas frutas que entumecem
nas árvores, estes passarinhos que criam seus filhotes, estas correntes de
vento, que distribuem as nuvens pelo céu, este sol que não se esquece de
nascer desde séculos e milênios, tudo fala de Deus, tudo explica Deus, tudo
revela e desvela Deus. Se a ciência não se apoia em Deus, torna-se erro, e
não mais nos eleva, mas avilta. O saber não é corrupção, mas religião.
Quem sobe por Deus, não cai, porque sente a própria dignidade e porque
crê no seu futuro eterno. Mas é preciso procurar o Deus real. Não os
fantasmas, que deuses não são, mas simplesmente delírios de homens ainda
envolvidos nas faixas da ignorância espiritual, pela qual não há nem sombra
de sabedoria em suas religiões, nem sombra de verdade em suas crenças.
242.10Qualquer idade é boa para nos tornarmos sábios. E é ainda em Jó
que está escrito[22]: “Ao chegar a tarde, te surgirá uma espécie de luz do
meio-dia e, quando pensares que estás acabado, surgirás como a estrela da
manhã. Estarás cheio de confiança pela esperança do que te aguarda.”
Basta a boa vontade de achar a verdade e, mais cedo ou mais tarde, ela
se deixará encontrar. Mas, uma vez que tenha sido achada, ai de quem não a
seguir e ficar imitando os cabeçudos de Israel que, tendo já nas mãos o fio
condutor para encontrarem a Deus, isto é, todas as coisas que de Mim foram
ditas no Livro, não querem render-se à Verdade, e a odeiam, acumulando
em suas inteligências e em seus corações os entulhos do ódio e das fórmulas
e não sabem que, por causa do peso demais, a terra se abrirá debaixo dos
pés deles, que acham que seus pés são pés de triunfadores, mas que não são
mais do que pés de escravos dos formalismos, do ódio, dos egoísmos, e que
eles serão engolidos, precipitando-se no lugar para onde vão os culpados,
conscientes de um paganismo mais culpável ainda do que o dos povos que,
por si mesmos, arranjaram para si uma religião, que lhes sirva de norma
para regularem suas vidas.
Mas é que Eu, assim como não rejeito aos que se arrependem entre os
filhos de Israel, assim também não rejeito nem mesmo a estes idólatras, que
creem naquilo que lhes foi dado para crer, mas que dentro de si, em seu
interior, gemem dizendo: “Dai-nos a Verdade!”
Tenho dito. Agora, repousemos nesta relva, se é que o homem no-lo
242.11
permite. De tarde, iremos para Caná.
– Senhor, eu Te deixo. Mas, como não quero profanar a ciência que me
deste, partirei esta tarde de Tiberíades. Deixo esta terra. retiro-me com o
meu criado para as costas da Lucânia. Lá eu tenho uma casa. Compreendo
que não podes dar mais ao velho epicurista. Mas, com o que me deste, já
tenho com que reconstruir o meu pensamento. E… Tu, ora ao teu Deus pelo
velho Crispo. O teu único ouvinte em Tiberíades. Reza, para que, antes do
estreito de Libitina, eu possa ouvir-te de novo e, com a capacidade que eu
acho poder criar em mim por tuas palavras, compreender-te melhor e
compreender a Verdade. Salve, Mestre.
Ele saúda à moda romana. Mas depois, passando por perto das
mulheres, sentadas um pouco de lado, inclina-se para Maria de Magdala, e
lhe diz:
– Obrigado, Maria. Foi bom que eu te conhecesse. Ao teu velho
companheiro de festins tu deste o tesouro que ele procurava. Se eu chegar
ao ponto em que já estás, eu o deverei a ti. Adeus.
E vai-se embora.
Madalena aperta as mãos sobre o coração, com um rosto espantado e
radiante de alegria. Depois, de joelhos, vai-se arrastando até diante de Jesus.
– Oh! Senhor! Senhor! Então, é mesmo verdade que eu posso conduzir
ao bem? Oh! Meu Senhor! Isto já é bondade demais!
E, inclinando-se com o rosto sobre a relva, beija os pés de Jesus,
lavando-os de novo com o seu pranto, agora pelo reconhecimento da grande
amorosa de Magdala.
[20] É como se o meu coração estivesse enfaixado com espinhos ardentes. Ainda entre os católicos – assim se inicia uma longa
nota de MV, escrita sobre quatro lados de uma folha dobrada e inserida em uma cópia datilografada – existem alguns que dizem
que Maria Ss., como era a Plena de Graça, conheceu apenas o gáudio enquanto não teve a herança da dor, já que este era um dos
castigos consequentes a Culpa e hereditariedade de Adão, decaído do seu estado de Graça. Eles não acharão, portanto, corretas
as palavras dessa frase de Maria, Virgem e Mãe, assim como julgarão inadmissível a sua tortura da noite de Sexta-feira Santa.
Consideram – assim prossegue a nota manuscrita de MV, da qual reportamos somente uma parte – que, como é verdade que pela
sua concepção imaculada, Maria deveria ser isenta da dor, assim como foi isenta da corrupção da morte, é ainda verdade que,
como Corredentora, Ela “deveria” sofrer, no seu coração e no seu espírito imaculado, quanto o seu Filho partiu na carne, no
coração e no espírito Ss. De fato, próprio pela plenitude de todos os dons divinos que estão nela, Ela compreende que as suas
privilegiadas e “únicas” condições de Imaculada e de Mãe de Deus foram concedidas em vista da Paixão do Redentor, e que
assim essa sua especialíssima condição de glória, segundo unicamente à infinita glória de Deus, lhe foi dada a preço do Sacrifício
do Filho de Deus e seu, do derramamento total daquele Sangue divino e da imolação daquela Carne divina que foram formados
no seu seio virginal, com seu sangue virginal, e que foram nutridos pelo seu leite virginal. Ainda este conhecimento era causa de
dor. Dor que se fundia ao gáudio, igualmente vasto e profundo como a dor. Porque com ele “que foi posto como sinal de
contradição entre os homens” (Lucas 2,34) foi causa de contraste de alegria e dor imensuráveis também pela Mulher: sua Mãe.
Ainda: sempre pela plenitude dos dons divinos que estavam nela, Maria conheceria antecipadamente ou contemporaneamente e
intelectualmente todo o complexo sofrimento do seu Filho. Sobre a alma da Imaculada, plena da Luz de Deus, se projetou sempre
a sombra dolorosa da Cruz e de todas as lutas e obstáculos que precederiam a Paixão e aflição de seu Jesus […]. Reportaremos
outros trechos da mesma nota, que todavia não a exaurem, no rodapé de 612.7, a justificação da “Angústia de Maria no Sepulcro”
e do “Lamento da Virgem”.
[21] as palavras, que estão em Jó 12,7-8.
[22] está escrito, em Jó 11,17-18.
243. Em Caná, na casa de Suzana.
As expressões, os gestos e a voz de Jesus.
Disputa entre os apóstolos sobre possessões.
4 de agosto de 1945.
243.1Na casa de Caná a festa pela chegada de Jesus é pouco menor do
que foi a das bodas do milagre. Agora faltam os músicos, não estão aqui os
convidados, a casa não está enfeitada com flores e ramos verdes, não está
com mesas para numerosos convivas nem está aí o mestre de cerimônias,
junto às credencias e às hídrias cheias de vinho. Mas tudo isso que falta é
compensado pelo amor, que agora é prestado, em sua justa forma e medida,
não propriamente ao hóspede, e talvez até um pouco parente, mas que não
deixa de ser um homem, mas ao Hóspede Mestre, do qual já se conhece a
verdadeira Natureza, cuja palavra se venera como coisa divina. Por isso, os
corações em Caná amam com todas as suas forças ao Grande Amigo, que se
fez ver com sua veste de linho, na entrada do jardim, por entre o verde da
terra e o vermelho do pôr-do-sol, embelezando todas as coisas com a sua
presença, comunicando sua paz, não somente aos espíritos, aos quais dirige
sua saudação, mas também às coisas.
Na realidade, até parece que para todas as partes, para onde ele volta os
seus olhos azuis, por lá se estende um véu de paz solene e cheia de alegria.
Pureza e paz fluem de suas pupilas, assim como flui a sabedoria de sua
boca, e o amor de seu coração.
A quem ler estas páginas parecerá impossível tudo o que eu digo. E, no
entanto, o mesmo lugar que, antes da vinda de Jesus, era um lugar comum,
ou melhor era um lugar de um intenso movimento de negócios, o que
costuma excluir aquela paz que se pressupõe livre das aflições do trabalho,
não somente, mal Ele chega, se transforma num lugar cheio de nobreza e
até o trabalho se torna uma coisa bem ordenada, que não pode excluir nele a
presença de um pensamento sobrenatural, que esteja intimamente ligado até
aos trabalhos manuais. Não sei se me explico bem.
243.2Jesus nunca está carrancudo, nem mesmo nas horas de maior
desgosto por alguma coisa que lhe acontece, mas está sempre
majestosamente exemplar e comunicando essa sua exemplaridade
sobrenatural ao próprio lugar em que Ele se move. Jesus não é nunca
folgazão, nem pedante, com o rosto desfigurado por risos imoderados, nem
com o rosto de um hipocondríaco, nem mesmo nos momentos de maior
alegria ou de maior aborrecimento.
O seu sorriso é inimitável. Nenhum pintor será capaz de o reproduzir. É
como se fosse uma luz, que emana do seu coração, uma luz radiosa, nas
horas de maior alegria por alguma alma que se redime ou por alguma outra
que se aproxima da perfeição. É um sorriso que eu diria um sorriso cor-de-
rosa, quando Ele aprova as ações espontâneas dos seus amigos e discípulos
e se alegra com a vizinhança deles. É um sorriso sempre semelhante as
cores, como o azul, um sorriso angélico, quando Ele se inclina para as
crianças, a fim de ouvi-las, a fim de ensiná-las ou abençoá-las. Um sorriso
cheio de piedade, quando Ele olha para qualquer miséria da carne ou do
espírito. Enfim, é um sorriso divino, quando Ele fala do Pai e de sua Mãe,
ou olha para esta Mãe puríssima, ou a escuta.
Não posso dizer que o tenha visto hipocondríaco, nem mesmo nas horas
de maior dor. No meio das torturas por ser traído, entre as angústias do suar
sangue, nos espasmos da Paixão e, se a tristeza faz que diminua o fulgor de
seu doce sorriso, contudo ela não é capaz de destruir aquela paz, que parece
um diadema, feito com pedras preciosas e fulgentes e posto sobre sua fronte
honrada, que é como luz a brilhar diante de sua divina Pessoa.
E assim eu não posso dizer que o tenha visto entregar-se a imoderadas
alegrias. Não fica por fora de um riso bom, quando o caso o requer, mas
retoma, logo em seguida, a sua costumeira serenidade. E, quando Ele ri,
rejuvenesce prodigiosamente, chegando a ficar com o rosto como o de um
jovem de vinte anos, e parece que o mundo também rejuvenesce com o seu
belo riso bom, sonoro e bem entoado.
Igualmente eu não posso dizer que o tenha visto fazer apressadamente
as coisas. Tanto quando Ele fala, como quando se move, Ele o faz sempre
de um modo tranquilo, ainda que nunca seja vagaroso, nem negligente.
Talvez seja porque, como Ele é alto, pode dar passos longos, sem que para
isso precise correr, para percorrer grandes distâncias, e igualmente Ele pode
alcançar, com facilidade, objetos que estão longe dele, sem precisar
levantar-se para alcançá-los. O certo é que, até em seu modo de mover-se,
Ele é senhoril e majestoso.
E sua voz? É assim: eu há dois anos que o ouço falar por alguns
momentos e, no entanto, algumas vezes perco o fio do assunto, porque eu
fico me concentrando no estudo de sua voz. E o bom Jesus, com paciência,
repete o que já disse e fica olhando para mim com o seu sorriso de Mestre
bom para não deixar que nos ditados fiquem mutilações devidas à grande
felicidade em que eu fico ao escutar a voz dele, ao saboreá-la, ao estudar o
seu tom e o seu fascínio. Mas, depois de dois anos, ainda não sei dizer
precisamente qual seu tom. Excluo absolutamente o som de baixo, como
excluo também o de tenor ligeiro. Mas estou sempre incerta sobre se é uma
poderosa voz de tenor ou a de um perfeito barítono, de uma gama vocal
muito ampla. Eu diria que é isso, porque sua voz atinge algumas vezes
notas de bronze, até quase acolchoadas, especialmente quando fala a dois
com um pecador, para levá-lo de novo à Graça, ou quando indica às turbas
os desvios humanos. Portanto, quando se trata de analisar e pôr no índice as
coisas proibidas, de descobrir as hipocrisias, o bronze se torna mais claro, e
se faz cortante como o estampido de um trovão, ao impor a Verdade e a sua
vontade, até chegar a cantar, como faz o ouro batido pelo martelo de vidro;
quando Ele se eleva cantando hinos de Misericórdia, ou para cantar as
grandezas das obras de Deus ou, então, quando envolve de amor este
timbre, para falar à Mãe ou da Mãe. Verdadeiramente, pois, está envolvida
no amor essa sua voz, em um amor reverencial de Filho e com um amor a
Deus, que louva a sua melhor obra. E este tom, ainda que menos marcado, é
o de que Ele usa para falar aos prediletos e aos convertidos e às crianças. E
não se cansa nunca, ainda mesmo no mais longo de seus discursos, porque é
uma voz que reveste e completa o pensamento e a palavra, dando-lhes
poder e doçura, à medida que for preciso.
E eu fico, às vezes, com a caneta na mão, a escutar, depois vejo que o
pensamento já foi muito para a frente e que é impossível agarrá-lo… e fico
ali… enquanto o bom Jesus não o repete, como faz quando eu tenho que
interromper, para ensinar a suportar com paciência as coisas, ou as pessoas
molestas que eu lhe faço pensar quanto elas me “molestam”, ao tirarem-me
da felicidade de estar ouvindo a Jesus.
243.3Agora, em Caná, Jesus está agradecendo a Susana pela hospitalidade
que ela deu à Aglaé. Eles estão à parte, debaixo de um viçoso suporte
carregado de cachos, que já estão amadurecendo, enquanto os outros estão
tomando uma refeição na ampla cozinha.
– A mulher era muito boa, Mestre. Ela não foi nenhum peso para nós.
Quis ajudar-me, sempre que eu ia fazer a lavação, na limpeza da casa para a
Páscoa, como se ela fosse uma criada, e trabalhou, eu te garanto, como uma
escrava para me ajudar a terminar as vestes pascais. Era prudente e se
afastava de todas as pessoas que chegavam e com o meu marido procurava
não permanecer. Pouco falava na presença da família, comia pouco.
Levantava-se antes de começar o dia para se arrumar antes que os homens
se levantassem, e eu achava já o fogo sempre aceso e a casa varrida. Mas,
quando ficávamos sozinhas, ela me perguntava sempre por Ti e me pedia
que lhe ensinasse os salmos da nossa religião. Ela dizia: “Para eu saber orar,
como ora o Mestre.” E agora, ela já parou de sofrer? Porque ela sofria
muito. De tudo tinha medo e vivia suspirando e chorando. E agora, ela está
feliz?
– Sim. Está sobrenaturalmente feliz. Está livre dos medos. Está em paz.
Eu ainda te quero agradecer pelo bem que lhe fizeste.
– Oh! Meu Senhor! Que bem foi esse? Eu não lhe dei mais do que amor
em teu nome, porque outra coisa não sei fazer. Era uma pobre irmã. Eu o
compreendia. E, por gratidão para com o Altíssimo, que me conservou em
sua graça, eu a amei.
– E tu fizeste mais do que se lhe tivesses pregado no Bel Midrash.
Agora tens aqui outra daquelas. Já a reconheceste? E quem é por aqui que
não a conhece?
– Ninguém, é verdade. Mas ainda vós não conheceis, vós e as deste
lugar, a segunda Maria, a que será sempre de sua vocação. Sempre. Eu te
peço que acredites.
– Tu o dizes. Tu sabes. Eu creio.
– Dize também: “Eu amo.” Eu sei que é mais difícil compadecer-se de
alguém e perdoar a quem cometeu uma falta, sendo dos nossos tal pessoa,
do que um outro que tem a desculpa de ser pagão. Mas, se a dor foi forte
por ver apostasias em uma família, mais forte seja a compaixão e o perdão.
Eu perdoei por todo Israel –termina Jesus, marcando bem as palavras.
– E eu perdoarei da minha parte. Porque penso que um discípulo deve
fazer o que o seu Mestre faz.
– Estás com a verdade e Deus se alegra por isso. 243.4Vamos aos outros.
A tarde está chegando. Será agradável o repouso, com o silêncio da tarde.
– Não nos dirás nada, Mestre?
– Ainda não sei.
Entram na cozinha, onde estão preparadas as comidas e as bebidas para
a próxima ceia. Susana vai para a frente, dizendo, com o leve rubor do seu
rosto juvenil:
– Querem as minhas irmãs vir comigo para a sala de cima? Devemos
preparar logo as mesas, porque precisamos arrumar as enxergas para os
homens. Eu poderia fazer isso sozinha. Mas me tomaria muito tempo.
– Eu vou também, Susana –diz a Virgem.
– Não. Bastamos nós, e servirá para nos conhecermos, porque o
trabalho nos irmana.
Elas saem juntas, enquanto Jesus, depois de ter bebido da água, tratada
com não sei qual xarope, vai sentar-se com a Mãe, com os apóstolos e os
homens da casa, ao frescor sob a sombra do suporte, deixando livres as
serventes e a patroa anciã para acabarem de preparar a comida.
243.5Ouvem-se, vindos da sala de cima, as vozes das três discípulas, que
estão preparando as mesas. Susana está contando o milagre que aconteceu
no dia do seu casamento. E Maria de Magdala responde:
– Mudar a água em vinho é sinal de ter grande poder. Mas mudar uma
pecadora em discípula é sinal de ter maior poder ainda. Queira Deus que eu
faça como aquele vinho: que eu me torne sempre melhor.
– Nem tenhas dúvida disso. Ele mudou tudo de um modo perfeito. Já
houve uma que, além de tudo, era pagã, convertida por Ele em seus
sentimentos e em sua fé. E, então, para ti, que já és de Israel, podes duvidar
que isso aconteça contigo?
– Houve uma? Era jovem?
– Era jovem. Belíssima.
– E onde está ela agora? –pergunta Marta.
– Só o Mestre sabe.
– Ah! Então é aquela de que te falei. Lázaro estava com Jesus naquela
tarde[23] e ouviu as palavras ditas por ela. Que perfume havia naquela sala!
Lázaro ficou com ele em sua roupa durante muitos dias. E, no entanto,
Jesus disse que o perfume do coração da convertida era, pelo seu
arrependimento, mais duradouro ainda. Quem sabe para onde ela terá ido?
Eu acho que foi para o deserto…
– Ela no deserto e era estrangeira. E eu aqui e sou conhecida. A
expiação dela era no deserto, e a minha consiste em viver no meio do
mundo que me conhece. Eu não invejo a sorte dela, porque estou com o
Mestre. Mas espero poder imitá-la um dia, para ficar sem nada que me
afaste dele.
– Tu o deixarias?
– Não. Mas Ele diz que irá embora. E, então, o meu espírito o
acompanhará. Com Ele eu posso desafiar o mundo. Sem Ele, eu teria medo
do mundo. Então, eu colocarei o deserto entre mim e o mundo.
– E eu e Lázaro, como faremos?
– Fareis como fizestes em vossa dor: Vós vos amareis e me amareis. E
sem ficardes envergonhados. Porque então estareis sozinhos, mas estareis
sabendo que eu estou com o Senhor. E que no Senhor eu vos amarei.
– É forte e purificada Maria, em suas decisões –comenta Pedro, que
estava ouvindo.
E Zelotes responde:
– É uma lâmina reta, como foi seu pai. De sua mãe ela herdou as
feições. Mas do pai tem o espírito indomável.
E aquela, que tem esse espírito indomável, desce agora, ágil, indo para
onde estão os companheiros, para dizer-lhes que as mesas estão prontas.
243.6A campina desaparece na noite serena, mas, por enquanto, sem luar.
Somente uma fraca claridade dos astros serve para ajudar a ver os vultos
escuros das árvores e os vultos brancos das casas. Nada mais. Alguns
pássaros noturnos estão voando com seu vôo mudo, ao redor da casa de
Susana, procurando mosquitos e passando rente às pessoas, que estão
sentadas no terraço, ao redor de uma candeia que projeta uma fraca luz
amarelenta sobre os rostos que se voltam para Jesus. Marta, que deve ter um
grande medo de morcegos, solta um grito cada vez que algum grande
morcego passa por perto dela. Jesus, por sua vez, se preocupa com as
mariposas, que a luz da candeia atrai e, com sua longa mão, procura afastá-
las da chama.
– São animais muito estúpidos, tanto estas como aqueles –diz Tomé–.
Os primeiros nos tomam por grandes mosquitos e os segundo acham que
esta chama é o sol e se queimam. Eles não têm nem a sombra de cérebro.
– São animais. Queres que eles raciocinem? –pergunta Iscariotes.
– Não. Eu quereria que eles tivessem pelo menos o instinto.
– Eles não tem tempo para tê-lo. Eu estou falando das mariposas.
Porque, depois da primeira metamorfose, são belas, mas mortas. Seu
instinto só se revela e se torna forte, depois das primeiras trabalhosas
surpresas –comenta Tiago do Alfeu.
– E os morcegos? Eles deviam ter o instinto, porque eles vivem por
alguns anos. Eles são estúpidos, é isto –rebate Tomé.
– Não, Tomé. Não são mais estúpidos do que os homens. Também os
homens se parecem com morcegos estúpidos, muitas vezes. Eles voam, ou
melhor, esvoaçam, como bêbados, ao redor de coisas que não servem senão
para fazer sofrer. 243.7Eis aqui: meu irmão, com uma boa sacudida do seu
capote, já derrubou um. Dá-me –diz Jesus.
Tiago de Zebedeu, a cujos pés caiu o morcego que agora, espavorido,
agita-se pelo chão e movendo-se com dificuldade, pega-o com dois dedos
por uma de suas asas membranosas e, segurando-o pendurado, como se
fosse um trapo sujo, o coloca no colo de Jesus.
– Aqui está o imprudente. Deixemo-lo aqui e vereis que ele se recobra,
mas não se corrige.
– É um salvamento inútil, Mestre. Eu acabaria de matá-lo –diz
Iscariotes.
– Não. Por quê? Ele também tem uma vida e a defende –responde-lhe
Jesus.
– Não me parece. Ou ele não sabe que a tem ou, então, não a defende.
Pois ele a põe em perigo!
– Oh! Judas! Judas! Como serias severo com os pecadores, com os
homens! Porque os homens sabem que têm esta vida e uma outra vida e não
têm dúvidas em colocar em perigo tanto uma quanto a outra.
– Temos, então, duas vidas?
– A do corpo e a da alma, tu sabes disso.
– Ah! Eu pensei que te estivesses referindo às reencarnações. Alguns
creem nelas.
– Não existe reencarnação. Mas há duas vidas. No entanto, o homem
põe em perigo todas as suas duas vidas. Se tu fosses Deus, como é que
julgarias os homens, que são dotados de razão, além do instinto?
– Julgaria severamente. A menos que fosse algum mentecapto.
– Não levarias em conta as circunstâncias, que tornam alguns
moralmente loucos?
– Eu não as levaria em conta.
– Assim sendo, de alguém que conhece a Deus e a Lei e, no entanto
peca, dele não terias piedade?
– Não teria piedade. Porque o homem deve dominar-se.
– Deveria.
– Deve, Mestre. É uma vergonha imperdoável que um adulto caia em
certos pecados, especialmente e ainda mais, se não tiver sido obrigado por
alguma força.
– A que pecados te referes?
– Aos da sensualidade, em primeiro lugar. É uma degradação que não
tem remédio…
Maria de Magdala inclina a cabeça… E Judas continua:
– E um modo de corromper os outros também, porque do corpo dos
impuros sai como que fermento, que perturba até os puros e os leva a imitá-
los…
243.8Enquanto Madalena vai inclinando cada vez mais a cabeça, Pedro
diz:
– Oh! Devagar! Não sejas tão severo! A primeira a cometer esta
imperdoável vergonha foi Eva. E não me queiras dizer que ela foi
corrompida por algum fermento impuro saído de algum luxurioso. No
entanto, tu sabes que, por minha conta, nada se agita, mesmo se sento ao
lado de um luxurioso. Isso é lá com eles…
– A vizinhança suja sempre a gente. Se não a carne, a alma, o que é pior
ainda.
– Tu me pareces um fariseu! Mas, desculpa-me: se for assim, será
preciso que nos fechemos dentro de uma torre de cristal e lá fiquemos
lacrados.
– E fica certo, Simão, de que isso em nada te ajudaria. Na solidão, as
tentações são muito mais terríveis –diz Zelotes.
– Oh! Ainda bem. Ficaria tudo só em sonhos. Nada mal –responde
Pedro.
– Nada mal? Mas não sabes que a tentação leva-nos ao pensamento e
este à procura de algum meio para satisfazer, de algum modo, ao instinto
que grita e que esse meio termo prepara o caminho para um refinamento no
pecado, no qual se une a sensualidade com o pensamento? –interroga
Iscariotes.
– Não entendo nada disso, caro Judas, talvez porque eu nunca me tenha
entregue a certos pensamentos, como tu dizes, sobre certas coisas. Só sei
que, pelo que me parece, sempre estivemos bem longe dos morcegos e que
é bom que tu não sejas Deus. Se assim não fosse, tu ficarias sozinho no
Paraíso com toda a tua severidade. 243.9Que dizes a isso, Mestre?
– Eu digo que é bom não sermos muito incondicionais, porque os anjos
do Senhor ouvem as palavras dos homens e as registram nos livros eternos.
Poderia ser desagradável, para algum de vós, ouvir que se lhe diz: “Que te
seja feito conforme julgaste.” Eu digo que, se Deus me mandou, é porque
Ele quer perdoar todas as culpas de que o homem se arrepende, sabendo
como ele é fraco por causa de satanás. Judas, responde-me: admites que
satanás pode apoderar-se de uma alma, a ponto de exercer sobre ela uma
coerção tal que diminua o pecado dela aos olhos de Deus?
– Não admito isso: satanás só pode atacar a parte inferior do homem.
– Mas, tu estás blasfemando, Judas de Simão! –dizem quase juntos
Zelotes e Bartolomeu.
– Por quê? Em quê?
– Desmentindo a Deus e ao Livro. Neste se lê[24] que Lúcifer atacou até
a parte superior e Deus, por boca do seu Verbo, já o disse infinitas vezes –
responde Bartolomeu.
– Foi dito também que o homem tem o livre arbítrio. Isto significa que
sobre a liberdade humana de pensar e de sentir, satanás não pode fazer
violência. Nem Deus a faz.
– Deus não, porque é Ordem e Lealdade. Mas satanás, sim, porque ele é
a Desordem e o ódio –replica Zelotes.
– O Ódio não é o sentimento oposto à Lealdade. Dizes mal.
– Digo bem, porque só Deus é Lealdade, e, por isso, não falta à palavra
dada, para deixar o homem livre em suas ações. O demônio não pode
mentir a esta palavra, pois não prometeu ao homem liberdade de arbítrio.
Mas também é verdade que isso é Ódio, e ele se arremessa entre Deus e o
homem, e assim se arremessa, indo contra a faculdade intelectiva do
homem e contra a carne dele, levando para a escravidão essa liberdade a
homens que por ele, fazem coisas que, se eles estivessem livres de satanás,
não fariam –afirma Simão, Zelotes.
– Eu não admito isso.
– Mas, e então os endemoninhados? Tu negas a evidência –grita Judas
Tadeu.
– Os endemoninhados são surdos, ou mudos ou loucos. Mas não
luxuriosos.
– Tens somente este vício em tua lembrança? –pergunta, irônico, Tomé.
– Porque é o mais espalhado e o mais baixo.
– Ah! Eu pensava que fosse o que conhecias melhor –diz Tomé, rindo.
Mas o outro se põe de pé, de repente, como se quisesse reagir. Depois,
ele se domina e desce a escadinha, afastando-se e indo através dos campos.
243.10Um silêncio… Depois, André diz:
– A ideia dele não está totalmente errada. Dir-se-ia que satanás, de fato,
domina seus possessos somente nos sentidos corporais: os olhos, os
ouvidos, a fala e o cérebro. Mas, então, Mestre, como se explicam certas
maldades? Por acaso, não são elas possessões? Por exemplo, o caso de
Doras?…
– O caso de Doras, como dizes, para não faltar à caridade com ninguém,
e Deus por isso te dê a recompensa, como o caso de Maria, como todos e
ela em primeiro lugar, pensemos, depois nas alusões claras e contra
caridade feitas por Judas, são os casos dos possuídos mais completamente
por satanás, que estende o seu poder sobre os três graus do homem. As
possessões mais tirânicas e sutis, das quais se livram somente aqueles que
estão tão pouco degradados no espírito, que ainda sabem compreender os
convites da Luz. Doras não foi um luxurioso. Mas, mesmo assim, não soube
ir ao Libertador. Aí está a diferença. Porque, enquanto nos lunáticos, nos
mudos, nos surdos ou nos cegos, por obra do demônio, os parentes
procuram e pensam em trazê-los a Mim, nesses outros, possuídos em seus
espíritos é somente o espírito deles que trata de procurar a liberdade. Por
isso, esses são perdoados além de serem libertados. Porque a vontade deles
é que iniciou a possessão pelo Demônio. E agora vamos descansar. Maria,
tu que sabes que é estar presa, reza por aqueles que se oferecem
intermitentemente ao Inimigo, fazendo pecado e causando dor.
– Sim, meu Mestre. E sem rancor.
– A paz esteja com todos. Deixemos aqui a causa de tão grande
discussão. Que a Treva esteja com a treva lá fora, na noite. E nós, entremos
de novo, para dormirmos sob o olhar dos anjos.
E Jesus põe no chão o morcego, que faz as primeiras tentativas abaixo
de um banco. Depois Jesus se retira com os apóstolos para o salão de cima,
enquanto as mulheres, com os donos da casa, descem para o térreo.
[23] naquela tarde, em 200.7.
[24] se lê, interpretando o texto do Gênesis 3,1-15; Foi dito também, em Siraque 15,14 e, implicitamente, em qualquer lugar que
se fale de livre escolha entre bem e mal, a começar por nos remeter anteriormente ao livro do Gênesis.
244. João repete o discurso de Jesus sobre a
criação
e sobre os povos que esperam a Luz.
5 de agosto de 1945
244.1Todos estão subindo por atalhos sombreados, que vão para Nazaré.
Os declives das colinas Galileias parecem ter sido criados nesta manhã, pois
a última tempestade os lavou e o orvalho os conserva cheios de luz e
frescor, brilhando todos ao primeiro sol. O ar está tão puro, que nos permite
ver todos os pormenores dos montes mais ou menos próximos e nos dá uma
sensação de leveza e boa disposição.
Quando se chega ao lado de uma colina, nossos olhos se divertem,
diante de uma vista do lago muito bonita à luz desta manhã. Todos
admiram, fazendo como Jesus. Mas Maria Madalena logo vira o olhar
daquele para outro ponto, procurando alguma coisa em outra direção. Seus
olhos vão pousar sobre os vértices das montanhas, que estão a noroeste do
ponto em que ela se acha, mas parece não ter achado o que desejava.
Susana, que também está presente, lhe pergunta:
– Que estás procurando?
– Eu quereria reconhecer o monte onde encontrei[25] o Mestre.
– Pergunta a Ele.
– Oh! Não vale a pena que eu o perturbe. Ela está agora falando
justamente com Judas de Keriot.
– Que homem, aquele Judas! –sussurra Susana.
Ela não diz mais nada, mas o resto se entende.
– Aquele monte, certamente não está perto desta estrada. Mas uma vez
eu te levarei até lá, Marta! Era uma manhã como esta, com tantas flores…
Havia muita gente… Oh! Marta! E eu tive coragem de mostrar-me a todos
com esta veste de pecado e com aqueles amigos… Não. Não podes ficar
ofendida pelas palavras de Judas. Elas são por mim merecidas. Tudo aquilo
eu mereci. E neste sofrimento está a minha expiação. Todos se lembram,
todos têm o direto de dizer-me a verdade. E eu devo calar-me. Oh! Se as
pessoas pensassem antes de pecar. Quem me ofende agora é o maior amigo,
porque ele me ajuda a expiar.
– Mas isto não quer dizer que ele não tenha cometido uma falta. Mãe,
teu filho está mesmo contente com este homem?
– É preciso rezar muito por ele. Assim diz ele.
244.2João deixa os apóstolos para ir ajudar as mulheres em uma
passagem escabrosa, sobre a qual as sandálias deslizam e principalmente
porque o caminho tem muitas pedras lisas espalhadas, parecendo escamas
de ardósia avermelhada e uma ervinha clara e dura, coisas essas que são
muito traiçoeiras para os pés, que nelas não encontram firmeza. Zelotes faz
como João e, arrimando-se a eles dois, as mulheres conseguem ultrapassar
aquele ponto difícil.
– É um pouco cansativo este caminho. Mas não tem poeira e a multidão.
Além disso, é mais curto –diz Zelotes.
– Eu o conheço, Simão –diz Maria–. Eu fui àquele pequeno povoado,
que está a meia encosta, com os meus sobrinhos, quando Jesus foi expulso
de Nazaré –diz Maria Santíssima e suspira.
– Mas, visto daqui, o mundo é belo. Lá estão o Tabor e o Hermon, e no
norte os montes de Arbela e, mais longe, o grande Hermon. É pena que não
se veja daqui o mar, como se vê do Tabor –diz João.
– Estiveste lá?
– Sim, com o Mestre.
– João, com seu amor pelo infinito, nos obteve uma grande alegria,
porque Jesus, lá no alto, falou de Deus com um arrebatamento nunca antes
ouvido. Depois, quando já tínhamos obtido tudo isso, ainda obtivemos uma
grande conversão. Tu também o ficarás conhecendo, Maria. E o teu espírito
se sentirá fortalecido, ainda mais do que já estiver. Encontramos um homem
endurecido no ódio, embrutecido pelos remorsos, e Jesus fez dele alguém,
que eu não hesito em dizer que será um grande discípulo. Como tu, Maria.
244.3Porque, podes crer é também verdade o que eu te digo, nós pecadores
somos os mais dispostos a ceder ao Bem, que nos atrai, porque sentimos a
necessidade de ser perdoados até por nós mesmos –diz Zelotes.
– É verdade. Mas tu és muito bom, quando dizes “nós pecadores.” Tu
podes ter sido um infeliz, mas não um pecador.
– Todos nós somos, uns mais outros menos, e quem pensa que o é
menos está mais sujeito a tornar-se pecador, se é que ainda não o é. Todos
nós somos. Mas os maiores pecadores, que se convertem, são os que sabem
ser sem limites no Bem, como o foram no mal.
– O teu conforto me alivia. Sempre foste um pai para os filhos de
Teófilo, tu mesmo.
– E, como um pai, eu me alegro por ver-vos, os três, como amigos de
Jesus.
– Onde foi que encontrastes aquele discípulo, grande pecador?
– Foi em Endor, Maria. Simão quer atribuir ao meu desejo de ver o mar
o merecimento por muitas coisas belas e boas. Mas, se João, o ancião, veio
até Jesus, não foi por merecimento de João, o estulto. Foi por merecimento
de Judas de Simão –diz sorrindo o filho de Zebedeu.
– Foi ele quem o converteu? pergunta duvidosa, Marta.
– Não. Mas foi ele que quis que fôssemos a Endor e…
– Sim. Para vermos a caverna da maga… É um homem muito esquisito,
Judas de Simão… Precisa-se aceitá-lo como é… E João de Endor foi quem
nos guiou até a caverna, e depois ficou conosco. Mas, meu filho, o
merecimento será sempre teu, porque sem aquele teu desejo de infinito, não
teríamos tomado aquele caminho, nem teria vindo a Judas de Simão o
desejo de ir àquela estranha busca.
244.4– Eu gostaria de saber o que foi que Jesus disse no alto do
Tabor[26]…
como eu gostaria de reconhecer o monte onde o vi –suspira Maria
Madalena.
– O monte é aquele sobre o qual parece estar-se acendendo agora o sol,
por causa daquela pequena lagoa, usada pelos rebanhos e que recolhe as
águas das nascentes. Nós estávamos mais acima, no ponto em que o cume
parece rachado por alguma gigantesca picareta, que tivesse querido pôr em
fila as nuvens e encaminhá-las para outros lugares. Quanto às palavras que
Jesus disse, eu creio que João te poderá dizer.
– Oh! Simão! Quando é que um rapaz vai poder repetir as palavras de
Deus?
– Um rapaz, não. Mas tu, sim. Experimenta. Por consideração para com
tuas irmãs e para comigo, que te quero bem.
244.5João fica muito vermelho, quando começa a repetir o discurso de
Jesus.
– E Ele disse: “Eis a página infinita sobre a qual as águas correntes vêm
escrever a palavra ‘Creio’. Pensai no caos do Universo, antes que o Criador
quisesse ordenar os elementos e estabelecer entre eles a maravilhosa
sociedade que deu aos homens a terra e tudo o que ela contém, e ao
firmamento os astros e os planetas. Nada de tudo isso existia antes. Nem
como um caos informe, nem como coisa já feita em ordem. E Deus a fez.
Portanto, Ele fez primeiro os elementos. Pois eles são necessários, ainda
que às vezes nos pareçam nocivos.
Mas pensai bem e sempre. Não há nenhuma pequena gota de orvalho
que não tenha a sua boa razão de ser. Não há inseto, por pequeno e molesto
que seja, que não tenha sua boa razão de ser. E assim também não existe
montanha, por mais monstruosa que seja, vomitando de suas vísceras fogo e
pedras incandescentes, que não tenha sua boa razão de ser. Não existe
ciclone sem motivo. E não há, passando das coisas para as pessoas, não há
acontecimento, não há pranto, não há alegria, não há nascimento, não há
morte, não há esterilidade ou maternidade fecunda não há longo convívio
nem rápida viuvez, não há desventuras de misérias e doenças, como
também não há prosperidade de meios e de saúde, que não tenha a sua boa
razão de ser, ainda que assim não pareça à miopia e soberba do homem, que
vê e julga com todas as suas cataratas e com todas as névoas que
acompanham as coisas imperfeitas. Mas o Olho de Deus, mas o Pensamento
sem limitações de Deus, vê e sabe. O segredo para se viver imunes dessas
dúvidas estéreis, que nos fazem ficar nervosos e nos exaurem, que
envenenam os nossos dias na terra, está em saber crer que Deus tudo faz por
amor e não na estulta intenção de atormentar por atormentar.
244.6Deus havia criado os anjos. E uma parte deles, por não terem
querido acreditar que já estava bom o nível de glória em que Deus os havia
colocado, se haviam rebelado e, com seus espíritos queimados pela falta de
fé em seu Senhor, haviam tentado assaltar o trono inacessível de Deus. Às
harmoniosas razões dos anjos que tinham fé, eles haviam oposto a sua
discordância, o seu pensamento injusto e pessimista, e esse pessimismo, que
é falta de fé, os tinha transformado de espíritos de luz, como haviam sido
feitos, em espíritos das trevas.
Vivam para sempre aqueles que, no Céu como na terra, sabem
fundamentar seus pensamentos em um pressuposto cheio de luz. Nunca se
enganarão completamente, ainda que os fatos os estivessem desmentindo.
Não se enganarão, pelo menos no que se refere aos seus espíritos, os quais
continuarão a crer, a esperar, a amar acima de tudo a Deus e depois ao
próximo, permanecendo por isso com Deus pelos séculos dos séculos.
O Paraíso já tinha ficado libertado desses orgulhosos pessimistas, os
quais viam como escuras até as mais luminosas obras de Deus, assim como
na terra os pessimistas veem escuras até as ações mais sinceras e brilhantes
do homem, ou por quererem viver separados em uma torre de marfim, ou
por se crerem os únicos perfeitos, eles se auto-condenam a uma prisão
escura, que termina nas trevas do reino inferior, o reino da negação. Porque
o pessimismo é negação
244.7Deus, pois, fez o conjunto dos seres criados. E, como, para
compreender o mistério glorioso de Nosso Ser Uno e Trino, é necessário
saber crer e ver que, desde o princípio, o Verbo existia, e estava junto de
Deus, unidos pelo Amor perfeitíssimo, que só podem expandir dois, que são
Deus sendo Um, assim igualmente para se ver o conjunto dos seres criados
como ele é, é necessário olhá-lo com os olhos da fé, porque no seu ser,
assim como um filho traz em si o indelével reflexo do pai, assim o conjunto
dos seres criados tem em si o indelével reflexo do seu Criador. Veremos,
então, que também aqui, no princípio foi o céu e a terra, depois foi a luz,
comparável ao amor. Porque a luz é alegria, como o é também o amor. E a
luz é a atmosfera do Paraíso. E o Ser incorpóreo, que é Deus, é Luz, e é o
Pai de toda luz intelectiva, afetiva, material, espiritual, assim no céu, como
na terra.
No princípio foi o céu e a terra, e por eles foi dada a luz, e pela luz
todas as coisas foram feitas. E, como no Céu altíssimo foram separados os
espíritos de luz dos espíritos das trevas, assim, no conjunto dos seres
criados, foram separadas as trevas da luz, e foram feitos o dia e a noite e o
primeiro dia, conjunto dos seres criados, foi, com sua manhã e sua tarde,
com seu meio-dia e sua meia-noite. E, quando o sorriso de Deus, a luz,
voltou depois da noite, eis que a mão de Deus, a sua poderosa vontade, se
estendeu sobre a terra informe e vazia, se estendeu por sobre o céu, onde
vagavam as águas, um dos elementos já libertados do caos, e quis que o
firmamento separasse o vaguear desordenado das águas entre o céu e a
terra, para que houvesse um véu aos fulgores do paraíso, medida às águas
superiores, para que sobre a agitação dos metais e dos átomos, não caíssem
dilúvios sobre a terra, arrancando e desregrando as coisas que Deus reunia.
A ordem estava estabelecida no céu. E a ordem se fez sobre a terra, pela
ordem que Deus deu às águas espalhadas pela terra. E o mar se fez. Ei-lo.
Sobre ele, como sobre o firmamento, está escrito: ‘Deus existe.’ Seja qual
for a intelectualidade de um homem e a sua fé ou a sua falta de fé, diante
desta página, na qual brilha uma partícula do infinito que é Deus, na qual
está testemunhado o seu poder — porque nenhum poder humano e nenhum
assentamento natural de elementos podem repetir, nem mesmo na menor
medida, um prodígio igual, — o homem é obrigado a crer. A crer não só no
poder, mas na bondade do Senhor, que por este mar dá alimento e estradas
ao homem, dá sais salutíferos, dá moderação para o sol e espaço para os
ventos, dá sementes à terra, uma distante da outra, dá vozes às tempestades,
para que eles chamem de novo essa formiga, que é o homem em
comparação com o infinito que é o seu Pai, e dá-lhe meios para elevar-se,
contemplando mais altas visões, em mais altas esferas.
244.8Três são as coisas que mais falam de Deus na criação que é toda
testemunho dele: A luz, o firmamento e o mar. A ordem astral e
meteorológicas, reflexo da ordem divina; a luz, que só um Deus podia
fazer; o mar, a potência que só Deus, depois de tê-lo criado, podia pôr
dentro de firme limites, dando-lhe movimento e voz, sem que por isso,
como um turbulento elemento de desordem, ele cause prejuízo à terra, que o
suporta em sua superfície.
Penetrai o mistério da luz, que nunca se consome. Levantai o olha-r
para o firmamento, onde estão rindo as estrelas e os planetas. Abaixai o
vosso olhar para o mar. Vede-o como ele é. Não há separação. Mas há uma
ponte entre os povos que estão em outras praias, invisíveis, até
desconhecidas, mas que é necessário crer que existem, só porque são deste
mar. Deus não faz nada inútil. Por isso Ele não teria feito essa infinidade, se
ela não tivesse como limite lá, para lá do horizonte, que nos impede de ver,
outras terras, povoadas por outros homens, vindas todas de um único Deus,
levadas para lá por vontade de Deus, para povoarem continentes e regiões,
levadas por tempestades e correntes marítimas. E esse mar leva em suas
ondas, nas vozes de suas águas e de suas marés, apelos que vêm de longe.
Existem caminhos, não separações.
A ânsia que produz uma doce angústia em João é este apelo dos irmãos
longínquos. Quanto mais o espírito se torna dominador da carne, tanto mais
ele é capaz de ouvir as vozes dos espíritos que estão unidos, mesmo quando
divididos, assim com os ramos que brotaram de uma única raiz estão
unidos, mesmo quando um não vê o outro, porque algum obstáculo se
interpõe entre eles.
Olhai o mar com olhos de luz. Nele cevareis terras e terras, espalhadas
ao longo das praias, dentro de seus limites e pelo interior, terras e mais
terras ainda, e de todas vem este grito: ‘Vinde! Trazei-nos a luz que vós
possuís. Trazei-nos a vida que vos é dada. Dizei ao nosso coração a palavra,
que nós ignoramos, mas que sabemos que é a base do universo: o amor.
Ensinai-nos a ler a palavra que vemos traçada sobre as páginas infinitas do
firmamento e do mar: Deus. Iluminai-nos para que vejamos que uma luz
viva é mais e mais verdadeira ainda do que aquela que avermelha os céus e
enche de pedras preciosas o mar. Dai às nossas trevas a Luz que Deus vos
deu, depois de tê-la gerado com o seu amor, e a deu a vós, mas para todos,
assim como a deu aos outros, mas para que eles a dessem à terra. Vós sois
os astros, nós a poeira. Mas, formai-vos assim como o Criador com o pó da
terra formou o homem para que a povoasse, adorando-o agora e sempre, até
que chegue a hora em que não existirá mais a terra, mas venha o Reino. O
Reino da luz, do amor, da paz, assim como a vós o Deus vivo disse que
virá, porque nós também somos filhos deste Deus e pedimos para conhecer
o nosso Pai.’
E, por caminhos do infinito, aprendei a andar. Sem temores e sem
desprezos. Indo ao encontro dos que clamam e choram. Indo àqueles que
vos causarão até tristeza, porque sentem Deus, mas não sabem adorar a
Deus, e que, no entanto, vos darão glória, porque vós sereis grandes e,
quanto mais possuirdes o amor, mais o sabereis dar, levando à verdade os
povos que vos esperam.”
244.9 Jesus falou assim, muito melhor do que eu disse. Mas pelo menos
esse é o seu conceito.
– João, tu fizeste uma repetição exata do Mestre. Só deixaste o que Ele
disse sobre o teu poder de compreender a Deus, pela tua generosidade de
doar-te. Tu és bom, João. És o melhor entre nós, Fizemos a viagem, sem
dar-nos conta disso. Lá está Nazaré sobre suas colinas. O Mestre está
olhando para nós e sorrindo. Unamo-nos a Ele para entrarmos juntos na
cidade.
– João –diz a Virgem Maria–. Deste um grande presente à Maria.
– Eu também. À pobre Maria, você abriu horizontes infinitos…
– De que é que estavam falando tanto? –pergunta Jesus aos que estão
chegando.
– João repetiu o teu discurso no Tabor. De um modo perfeito. E nós
ficamos felizes.
– Fico contente que a Mãe tenha ouvido, Ela que traz um nome, ao qual
o mar não é estranho, e possui uma caridade vasta como o mar!
– Meu Filho, Tu a possuis como homem, e isso ainda não é nada, em
comparação com a tua infinita caridade de Verbo de Deus. Meu doce Jesus!
– Vem, minha Mãe, para o meu lado. Como quando voltávamos de
Caná ou de Jerusalém, quando Eu era menino, e tu me seguravas pela mão.
E olham-se com olhares de amor.
[25] onde encontrei, em 174.11/14.
[26] no alto do Tabor… A obra não nos mostrou quando pararam sobre o monte, mas somente a ida (em 187.5) e o seu retorno
(em 188.1).
245. Uma acusação dos nazarenos a Jesus,
afastada com a parábola do leproso curado.
6 de agosto de 1945.
245.1A primeira parada que Jesus faz em Nazaré é na casa de Alfeu. Está
para entrar na horta, quando se encontra com Maria de Alfeu, que está
saindo com duas ânforas de cobre para ir à fonte.
– A paz esteja contigo, Maria! –diz Jesus, e abraça a parenta que,
expansiva como sempre, o beija com um grito de alegria.
– Vai ser certamente este um dia de paz e de alegria, meu Jesus, porque
Tu vieste! Oh! filhos meus caríssimos! Que felicidade a minha em ver-vos,
que felicidade para a vossa mãe –e beija afetuosamente os seus filhos, que
estavam logo atrás de Jesus–. Ficais comigo hoje, não é verdade? Eu já
estou com o forno aceso para os pães. E ia indo apanhar água, para não ter
que interromper a cozedura do pão.
– Mamãe, nós vamos buscar –dizem os filhos, tomando conta das
ânforas.
– Como eles são bons, não é verdade, Jesus?
– Muito bons, confirma Jesus.
– Mas, são bons também para contigo, não é verdade? Porque, se eles
tivessem que amar-te menos do que a mim, seriam para mim menos
queridos.
– Não tenhas medo, Maria. Eles só me dão alegria.
– Estás sozinho? Maria foi-se embora assim de repente… Eu também
teria ido lá. Ela estava com uma mulher… É uma discípula?
– Sim. A irmã da Marta.
– Oh! Que Deus seja bendito por isso! Tanto que eu rezei para isso!
Onde está ela?
– Ei-la que vem vindo aí, com minha Mãe, Marta e Susana.
De fato, as mulheres estavam dando uma volta pela rua, acompanhadas
pelos apóstolos. Maria de Alfeu corre ao encontro delas, e exclama:
– Como eu me sinto feliz, por ter-te como irmã! Eu deveria chamar-te
“minha filha”, porque tu és jovem, e eu já estou velha. Mas eu te chamo
com o nome para mim tão querido, desde quando eu assim chamo à minha
Maria. Querida. Vem. Deves estar cansada… Mas certamente também tu
estás feliz –e beija Madalena, segurando-a depois pela mão, como para
fazê-la compreender, ainda mais, quanto lhe quer bem.
A beleza viçosa da Madalena fica posta ainda mais em destaque, ao
lado da figura emagrecida de Maria de Alfeu.
– Hoje, todos na minha casa. Eu Não vos deixo ir embora.
E, com um suspiro profundo, que lhe vem involuntariamente, escapa-
lhe também esta confissão:
– Eu estou sempre tão sozinha! Quando não está aqui a minha cunhada,
passo os dias bem triste e solitária.
– Estão ausentes os teus filhos? –pergunta Marta.
Maria de Alfeu fica ruborizada, e suspira:
– Com suas almas, sim. Ainda. Ser discípulos une e separa. Mas, assim
como tu vieste, Maria, também eles virão –e enxuga uma lágrima.
Olha depois para Jesus, que a observa com piedade e se esforça para
sorrir e perguntar:
– São assuntos longos, não é verdade?
– Sim, Maria. Mas tu os verás.
– Eu esperava… Depois que Simão… Mas depois ficou sabendo de
outras coisas e ele voltou a ficar hesitante. Ama-o igualmente, Jesus!
– E, podes pôr isto em dúvida?
Maria, enquanto fala, prepara a refeição para os peregrinos, sem dar
ouvidos a todos os que lhe estão dizendo que não é preciso nada daquilo.
– Deixemos as discípulas em paz, diz Jesus, e termina: E vamos andar
pela cidade.
– Tu te vais? Será que não virão os outros filhos?
– Amanhã Eu fico o dia inteiro aqui. E assim estaremos juntos. Agora
vamos ver os amigos. A paz esteja convosco, mulheres. Adeus, minha Mãe.
245.2Nazaré já está alvoroçada pela chegada de Jesus e, com aquele
apêndice, que é Maria de Magdala. Uns se precipitam sobre a casa de Maria
de Alfeu, outros sobre a de Jesus para o verem, mas, tendo encontrado
fechada esta última, voltam todos para Jesus, que lá vai atravessando
Nazaré, indo para o centro da cidade. Esta tem sido sempre fechada ao
Mestre. Uma parte irônica, outra parte incrédula, alguns grupos com
evidente maldade se distinguem por suas palavras ofensivas e o vão
acompanhando por curiosidade, mas sem amor, ao seu grande Filho, que
Nazaré não compreende. Até nas perguntas que lhe dirigem não há amor,
mas incredulidade e zombaria. Ele, porém, não dá sinal de se importar com
aquilo, mas com doçura e mansidão vai respondendo a quem lhe fala.
– Dás a todos, mas pareces um filho sem vínculos com a tua pátria, pois
a ela não dás.
– Estou aqui para dar o que pedirdes.
– Mas gostas mais de não ficar aqui. Seremos nós mais pecadores do
que os outros?
– Não existe pecador, por mais que o seja, que Eu não queira converter.
E vós não sois mais pecadores do que os outros.
– Mas nem Tu estás dizendo que somos melhores do que os outros. Um
bom filho sempre diz que sua mãe é melhor do que as outras, mesmo se ela
não for. Será que Nazaré é tua madrasta?
– Eu não digo nada. Calar-nos é regra de caridade para com os outros e
para conosco mesmos, quando não se pode dizer que alguém é bom, e
quando não se quer mentir. Mas meu louvor a vós estaria prestes a brotar de
meus lábios, contanto que viésseis ouvir minha doutrina.
– Então, queres ser admirado?
– Não. Somente quero ser ouvido e acreditado, para o bem de vossas
almas.
– Então, fala! E Te ouviremos!
– Dizei-me sobre o que é que devo falar.
Um homem, de seus quarenta e cinco anos, diz:
– Aí está! Eu gostaria que Tu entrasses em minha casa e me explicasses
um ponto.
– Eu já vou lá, Levi.
E vão para a sinagoga, enquanto o povo se aglomera atrás do Mestre e
do sinagogo, enchendo logo completamente a sinagoga.
[27]:
245.3O sinagogo pega um rolo e lê
– “Ele fez subir a filha do Faraó da cidade de Davi para a casa que
havia feito para ela, porque dizia: ‘A minha mulher não deve morar na casa
de Davi, rei de Israel, pois ela foi santificada, quando nela entrou a arca do
Senhor’.” É isso aí. Eu quereria saber de Ti como é que julgas: se aquela
medida foi justa, ou não, e por quê?
– Sem dúvida, ela foi justa, porque o respeito à casa de Davi,
santificada porque nela havia entrado a arca do Senhor, assim o exigia.
– Mas, sendo ela mulher de Salomão, isso não tornava a filha de Faraó
digna de viver na casa de Davi? A mulher não se torna, segundo a palavra
de Adão, “osso dos ossos” do marido e “carne de sua carne”? Se assim é,
como há de poder profanar, se não profana o seu esposo?
– Foi dito[28] no primeiro livro de Esdras: “Vós pecastes, desposando
mulheres estrangeiras, e acrescentando mais este delito aos outros muitos de
Israel.” E uma das causas da idolatria de Salomão se deve justamente a
esses conúbios com mulheres estrangeiras. Deus havia dito: “Elas, as
estrangeiras, perverterão os vossos corações, até fazer-vos acompanhar os
estrangeiros.” E as consequências disso nós as conhecemos.
– Mas, no entanto, ele não se perverteu por ter desposado a filha do
Faraó, já que chegou até a julgar com sabedoria que ela não devia ficar na
casa santificada.
– A bondade de Deus não pode ser medida pela nossa. O homem,
depois de uma culpa, não perdoa, ainda que ele mesmo seja sempre o mais
culpado. Deus não é inexorável, depois de uma primeira culpa. Contudo,
não permite que impunemente o homem se endureça no mesmo pecado. Por
isso, Deus não o pune na primeira queda, e aí lhe fala ao coração. Mas
pune, quando a sua bondade não é aproveitada para converter-se, mas é
considerada pelo homem como uma fraqueza. Aí é que desce sobre o
homem a punição, porque de Deus não se zomba. Osso de seus ossos, carne
de sua carne, a filha do Faraó havia colocado as primeiras sementes da
corrupção no coração do Sábio, e vós sabeis que uma doença se manifesta,
não enquanto só há um germe no sangue, mas quando o sangue já está
corrompido por muitos germes, que se multiplicam, a partir daquele
primeiro. A queda do homem para baixo sempre tem seu começo em
alguma leviandade, que aparentemente era inócua. Depois disso, a
condescendência com o mal vai aumentando. Forma-se o hábito de deixar a
consciência transigir, de descuidar-se dos deveres e da obediência a Deus, e,
pouco a pouco, se chega aos grandes pecados, como Salomão chegou até à
idolatria, provocando o cisma, cujas consequências perduram até hoje.
245.4– Então, Tu dizes que se há de dar a maior atenção e prestar o maior
respeito às coisas consagradas?
– Sem dúvida.
– Explica-nos, pois, mais isso. Tu te dizes a Verdade de Deus. É
verdade?
– Eu o sou. Ele me mandou vir trazer à terra a boa nova a todos os
homens, e para que Eu os redima de todo pecado.
– Tu, pois, se o és, és mais do que a Arca. Porque não na glória que se
vê sobre a Arca, mas em Ti mesmo é que está Deus.
– Tu os estás dizendo, e é verdade.
– E, então, por que te profanas?
– Foi para dizer-me isto que me trouxeste aqui? Mas Eu me compadeço
de ti. De ti e de quem te estimulou a falar. Eu Não deveria justificar-me,
porque qualquer justificação seria espezinhada pelo vosso ódio. Mas Eu, a
vós que Me censurais por falta de amor a vós e de profanação de minha
pessoa, a vós eu darei uma justificação.
245.5Ouvi. Eu sei o que estais querendo dizer. Mas Eu vos respondo:
“Vós estais errados.” Assim como Eu abro os braços para os que estão
morrendo, a fim de trazê-los de novo à vida e chamo os mortos para dar-
lhes a vida, igualmente Eu abro os braços para os verdadeiros moribundos e
chamo os mais verdadeiros mortos, os pecadores, para levá-los à Vida
Eterna, e ressuscitá-los, se é que já estão podres, para que não morram mais.
Mas Eu vos contarei uma parábola.
Um homem, por causa de muitos vícios, tinha-se tornado leproso. A
sociedade dos homens o afastou do seu convívio e o homem, vivendo em
uma solidão impiedosa, começou a meditar em seu estado e em seus
pecados que o reduziram àquele triste estado. Passaram-se muitos anos
assim e, quando menos se esperava, o leproso ficou são. O Senhor usou de
misericórdia para com ele por causa de suas muitas orações e lágrimas. Que
é que aquele homem está fazendo agora? Pode voltar para sua casa, porque
Deus usou de misericórdia para com ele? Não. Ele deve ir mostrar-se ao
sacerdote, o qual, depois de tê-lo observado atentamente por certo tempo,
faz que ele vá purificar-se, depois de fazer um primeiro sacrifício de dois
pássaros. E depois não de uma só, mas de duas lavagens de suas roupas, o
curado volta ao sacerdote com os cordeirinhos sem mancha e a cordeirinha,
com a farinha e o óleo prescritos. O sacerdote o conduz então à porta do
Tabernáculo. É, então que o homem fica religiosamente readmitido no seio
do povo de Israel. Mas, dizei-me vós: quando ele vai a primeira vez ao
sacerdote, para que vai?
– Para ser purificado uma primeira vez, e assim poder cumprir a
purificação maior, que é a que o readmite no seio do povo santo!
– Disseste bem. Mas, então ele ainda não está completamente
purificado?
– Oh! Não. Ainda lhe falta muito para isso. Tanto em seu corpo, como
em sua alma.
– Como, então, que ele tem a coragem de aproximar-se do sacerdote na
primeira vez, quando ainda está completamente imundo e, na segunda vez,
aproxima-se até do Tabernáculo?
– Porque o sacerdote é o meio necessário para que ele possa ser
readmitido entre os viventes.
– E o Tabernáculo?
– Porque só Deus é capaz de cancelar as culpas e é de fé crer que, além
do santo Véu repousa Deus em sua glória, e de lá concede o seu perdão.
– Mas, então, o leproso curado não está ainda sem culpa, quando ele vai
aproximar-se sacerdote e do Tabernáculo?
– Não. Certamente que Não.
– Homens de pensamento torto e de coração não limpo, por que então
Me acusais, se Eu, o Sacerdote e o Tabernáculo me deixo aproximar dos
leprosos do espírito? Por que tendes duas medidas para julgar? Sim, a
mulher, que estava perdida, como Levi, o publicano, aqui presente agora
com a sua nova alma e como seu novo ofício e com esses outros e outras,
que vieram antes desses e estão agora ao meu lado. Aqui eles podem ficar,
porque agora foram readmitidos no seio do povo do Senhor. E eles foram
trazidos para perto de Mim pela vontade de Deus, que colocou em Mim o
poder de julgar e de absolver, de curar e ressuscitar. Seria uma profanação,
se neles continuasse a existir sua idolatria, assim como continuou na filha
do Faraó, mas profanação não é o fato de terem eles abraçado a doutrina,
que Eu trouxe à terra e pela qual eles ressuscitaram para a Graça do Senhor.
245.6Homens de Nazaré, que estendeis armadilhas para Mim, por não vos
parecer possível que em Mim esteja a Sabedoria verdadeira e a justiça do
Verbo do Pai, Eu vos digo: “Fazei como os pecadores.” Na verdade, eles
estão ganhando de vós, ao saberem eles ir à Verdade. E Eu vos digo ainda:
“Não fiqueis recorrendo a grosseiras armadilhas, para poderdes lutar contra
Mim.” Não façais isso. Pedi, e Eu vos darei, como dou a cada um que vem
a Mim, a Palavra da Vida. Acolhei-me como a um filho desta nossa terra.
Eu não guardo rancor de vós. As minhas mãos estão cheias de carícias e o
meu coração do desejo de instruir-vos e fazer-vos contentes. Tanto Eu estou
assim que, se Me quiserdes, Eu passarei entre vós o meu sábado, instruindo-
vos na lei Nova.
A multidão está com ideias contrárias. Mas acaba prevalecendo a
curiosidade ou o amor e muitos gritam:
– Sim, sim. Amanhã aqui. Nós te ouviremos.
– Rezarei para que de noite caia a crosta que está oprimindo os vossos
corações. Para que caiam todas as prevenções e, livres delas, possais
compreender a Voz de Deus, que veio trazer o Evangelho a toda a terra, mas
com o desejo de que a primeira região capaz de acolhê-la seja a cidade onde
Eu cresci. A paz esteja com todos vós.
[27] lê, em 2 Crônicas 8,11.
[28] Foi dito, em Esdras 10,10; havia dito, em Deuteronômio 7,3-4; 1 Re 11,1-2.
246. Um apólogo para os cidadãos de Nazaré,
que permanecem incrédulos.
7 de agosto de 1945.
246.1Ainda na sinagoga de Nazaré, mas em dia de sábado, Jesus, tendo
lido o apólogo[29] contra Abimeleque, termina com estas palavras:
“saia dele um fogo, e devore os cedros do Líbano.” Depois entrega o
rolo ao sinagogo.
– O resto não o lês? Seria bom para fazer compreender o apólogo –diz o
sinagogo.
– Não é preciso. O tempo de Abimeleque já vai longe. Eu quero aplicar
ao momento de hoje o antigo apólogo.
Ouvi, pessoas de Nazaré. Vós já sabeis, pela instrução do vosso
sinagogo, o qual em seu tempo foi instruído por um rabi e este por um outro
também, e assim pelos séculos, e sempre com o mesmo método e com as
mesmas conclusões, com as aplicações do apólogo contra Abimeleque. De
Mim ouvireis uma outra aplicação. E Eu vos peço, além disso, que saibais
usar a vossa inteligência, e que não fiqueis como as cordas, que passam
pelas roldanas do poço e, enquanto não estão estragadas, vão da roldana até
a água e da água até a roldana, sem poderem mudar nunca o percurso. O
homem não é uma corda amarrada, nem uma ferramenta mecânica. O
homem é dotado de um cérebro inteligente e deve poder usar dele
espontaneamente, conforme as necessidades e as circunstâncias.
Porque, se a letra da palavra é eterna, as circunstâncias mudam.
Infelizes daqueles mestres que não sabem querer ter a satisfação de extrair,
vez por vez, um ensinamento novo, isto é, o espírito que as palavras antigas
e sábias contém sempre. Serão semelhantes a ecos, que nada mais podem,
se não repetir, talvez dez e dez vezes uma mesma palavra, sem acrescentar a
ela nenhuma outra deles mesmos.
246.2As árvores, ou seja, a humanidade, representada pelo bosque, onde
estão reunidas todas as espécies de árvores, de arbustos e de ervas, sentem a
necessidade de ser conduzidas por alguém que receba o peso do todas as
glórias, mas também, e um peso bem maior, o de todos os ônus da
autoridade para ser o responsável pela felicidade ou infelicidade dos
súditos, o responsável junto aos súditos, junto aos povos vizinhos e, o que é
terrível, junto de Deus. Porque as coroas e proeminências sociais, sejam
elas quais forem, são dadas aos homens, é verdade, mas permitidas por
Deus, pois, sem a condescendência dele, nenhuma força humana pode
impor-se. Isto é o que explica as impensáveis e imprevistas mudanças de
dinastias, que pareciam eternas, e de potências que pareciam inabaláveis,
mas que, quando passaram da medida em que deviam ser castigo para os
povos, ou prova para eles, foram destruídas pelos mesmos, por permissão
de Deus, e voltaram ao nada, ao pó, e às vezes à lama do fundo de uma
cloaca.
Eu disse: os povos sentem a necessidade de elegerem alguém que arque
com toda a responsabilidade para com os súditos, para com as nações
vizinhas e para com Deus, e isso é o que há de mais terrível.
Porque, se o julgamento feito pela história já é terrível e em vão é que
se alegam os interesses do povo para mudá-lo, porque os acontecimentos e
os povos futuros o farão voltar à sua primeira e terrível verdade. Mas, mais
rigoroso é o juízo de Deus, o qual não sofre pressões de ninguém, e não está
sujeito a mudanças de humor e de apreciação, como frequentemente estão
os homens e, muito menos, está sujeito a erros de julgamento. Seria, pois,
necessário que os eleitos para serem chefes de povos e criadores da história
agissem com a justiça heróica, própria dos santos, para não ficarem
infamados pelos séculos futuros e punidos por Deus pelos séculos dos
séculos.
246.3Mas voltemos ao apólogo de Abimeleque. Portanto, as árvores
quiseram eleger um rei e, para isso, foram convidar a oliveira. Mas a
oliveira, uma árvore sagrada e consagrada para usos sobrenaturais, por
causa do seu óleo, que se queima diante do Senhor e que é uma parte
importante nos dízimos e nos sacrifícios, a oliveira, que oferece o seu
líquido a fim de se fazer o bálsamo santo para a unção do altar, dos
sacerdotes e do rei e que é passado com suas propriedades, que eu diria
quase taumatúrgicas, nos corpos e por sobre os corpos dos doentes, ela
respondeu: “Como eu vou poder faltar com a minha vocação santa e
sobrenatural, para aviltar-me em coisas da terra?”
Oh! Que bela resposta a da oliveira! Porque ela nunca é bem aprendida
nem praticada por todos aqueles que Deus elegeu para uma santa missão,
pelo menos por eles: Eu disse “pelo menos”? Por que na verdade ela teria
sido dita a todos os homens como resposta às sugestões do demônio, uma
vez que todo homem é rei e filho de Deus, dotado de uma alma, que o faz
tal, régio, filialmente divino, chamado a um destino sobrenatural. Existe
uma alma que em nós é um altar e uma casa. É o altar de Deus, é a casa
onde o Pai dos Céus desce para receber nosso amor e reverência de filhos e
súditos. Cada homem tem uma alma e, sendo cada alma um altar, ela faz do
homem que a tem um sacerdote, um guarda do altar, como está escrito[30]
no Levítico: “O Sacerdote não se contamine.” Portanto, o homem teria o
dever de responder à tentação do demônio, do mundo e da carne: “Posso eu
deixar de ser espiritual, para ocupar-me de coisas materiais e
pecaminosas?”
246.4Então as árvores se dirigiram à figueira, convidando-a a reinar sobre
elas. Mas a figueira respondeu: “Como poderei eu renunciar à minha doçura
e aos meus frutos tão delicados, para ir ser vosso rei?”
Muitos se dirigem a quem é manso, para o terem como rei. Não é bem
pela admiração de sua mansidão, mas porque eles esperam que, sendo ele
tão pacífico, acabe sendo um rei de burla, do qual se pode esperar que esteja
de acordo com tudo e, na companhia deles, permitir a si mesmo toda
espécie de desregramentos. Mas a mansidão não é fraqueza. É bondade. Ela
é justa. É inteligente. Firme. Não confundas nunca a mansidão com a
fraqueza. A primeira é uma virtude, a segunda, um defeito. E, justamente
por ser virtude, a primeira comunica a quem a possui uma retidão de
consciência que lhe torna possível resistir às solicitações e seduções
humanas, que se preocupam em fazê-la ceder aos seus interesses, que não
são os interesses de Deus, permanecendo fiel ao seu destino, custe o que
custar.
O que é afável em seu espírito não rebaterá nunca com aspereza as
censuras dos outros, não repelirá com dureza aos que se lhe opõem. Mas,
pedindo perdão e sorrindo, dirá sempre: “Meu irmão, deixa-me em minha
boa sorte. Aqui estou para consolar-te e ajudar-te, não para tornar-me rei,
como tu pensas, porque de uma única realeza eu cuido e com ela me
preocupo: com minha alma e com a tua, isto é, com uma realeza espiritual.”
246.5As árvores foram depois à videira, para pedir-lhe que ela fosse o rei
delas. Mas a videira respondeu: “Como posso eu renunciar a ser a alegria e
a força, para ir reinar sobre vós?”
Ser rei, tanto pelas responsabilidades, como pelos remorsos, pois mais
raro do que o diamante preto é o rei que não peca, e por isso vive carregado
de remorsos. É uma coisa que sempre traz consigo tristezas espirituais. O
poder seduz, até o dia em que, como um farol longínquo, ele estiver
brilhando. Mas, quando se chega perto, vê-se que não é nenhuma estrela,
mas a luz de um vaga-lume.
E ainda: o poder não é mais do que uma força, amarrada pelas mil
cordas de mil interesses, que se agitam ao redor de um rei. Interesses dos
cortesãos, interesses dos aliados, interesses pessoais e dos parentes.
Quantos reis juram a si mesmos, enquanto o óleo os está consagrando: “Eu
vou ser imparcial”, e depois não o sabem ser? Como uma árvore poderosa,
que não se revolta com o primeiro abraço da hera macia ou delicada, e diz:
“Ela é muito fraquinha, e não me pode fazer mal”, e fica até contente em ser
por ela engrinaldada e por agir como protetora, ajudando-a em sua subida,
assim muitas vezes eu poderia dizer: sempre o rei cede ao primeiro abraço
de um interesse palaciano, de um aliado, de uma pessoa ou de um parente
que a ele se dirige, e fica contente em poder ser um generoso protetor dele.
“É tão pouca coisa!”, diz ele, mesmo quando a consciência lhe brada:
“Cuidado!” E pensa que aquilo não lhe possa fazer mal, nem ao seu
governo, nem ao seu bom nome. A árvore também pensava assim. Mas
chega o dia em que, tendo lançado um broto atrás do outro e que vão
crescendo em força e em comprimento e crescendo na voracidade de sugar
as linfas do solo e subir para a conquista da luz e do sol, a hera acaba
abraçando aquela que era uma árvore poderosa, e a domina, sufoca e mata.
A hera que antes era tão fraquinha! Enquanto que a árvore era tão forte!
Também com os reis é assim. Um primeiro compromisso com a própria
missão, um primeiro encolher de ombros à voz da consciência, porque os
louvores são doces, porque o ar de protetor procurado lhe agrada, e chega o
momento em que o rei não reina, mas reinam os interesses dos outros, que o
aprisionam e amordaçam, chegando a sufocá-lo e até o suprimirem, quando
veem que ele não tem pressa de morrer.
Até o homem comum, que sempre é um rei em seu espírito, se perde, se
aceita outras realezas menores, por soberba, por avidez. E perde a sua
serenidade espiritual, que lhe vem de sua união com Deus. Porque o
Demônio, o mundo e a carne podem dar um ilusório poder e prazer, mas à
custa da alegria espiritual, que vem da união com Deus.
Alegria e força dos pobres em espírito, bem merecidas, de modo que o
homem sente a necessidade de dizer: “E como poderei eu querer tornar-me
um rei em minha parte inferior se, ao fazer aliança convosco, eu perco a
força e a alegria interior e o Céu e sua verdadeira realeza?” E podem,
também dizer, esses infelizes pobres em espírito que eles só têm em mira
possuir o Reino dos Céus e que desprezam qualquer outra riqueza que não
seja aquele Reino? E podem até dizer: “E, como posso voltar à missão, que
é a de amadurecer os sucos fortificantes e que alegram esta humanidade,
nossa irmã, que vive no árido deserto da animalidade e que se sente
necessitada de ser dessedentada, para não morrer, para ser nutrida com
sucos vitais, como um menino que precisa da nutriz? Nós somos as nutrizes
da humanidade que perdeu o seio de Deus, que vagueia, estéril e doente, e
que chegaria a uma morte desesperada, até aos negros ceticismos, se não
nos encontrasse a nós que, com a alegre operosidade dos que estão livres de
todo laço terreno, para os tornarmos persuadidos de que há uma Vida, uma
Alegria, uma Liberdade, uma Paz. Não podemos renunciar a esta Caridade
por causa de qualquer interesse mesquinho.”
246.6Então, as árvores foram ao espinheiro. Ele não as repeliu. Mas
impôs condições severas: “Se me quereis como rei, vinde ficar debaixo de
mim. E, se não o quiserdes fazer, depois de me terdes eleito, eu farei de
cada espinho um tormento aceso, e queimarei a todos vós, até os cedros do
Líbano.”
Ai estão as realezas que o mundo ainda aceita como verdadeiras! A
prepotência e a ferocidade são, para a humanidade corrompida, tomadas por
uma verdadeira realeza, enquanto que a mansidão e a bondade são tomadas
como estultícia e baixos sentimentos. O homem não se submete ao Bem,
mas se submete ao Mal. Por este ele é seduzido. E por ele, em seguida, é
queimado.
246.7Este é o apólogo de Abimeleque.
Mas Eu agora vos proponho um outro. Não longe de vós, nem tratando
de fatos acontecidos longe daqui. Mas aqui bem perto. Eles estão aqui
presentes.
Os animais pensaram em eleger para si um rei. E, como eram espertos,
pensaram em eleger para si um rei que não lhes desse medo por ser forte ou
feroz.
Não escolheram o leão e nenhum dos felinos. Disseram que não
queriam as águias, com seus grandes bicos e nenhuma outra ave de rapina.
Desconfiaram do cavalo que, com sua rapidez, podia alcançá-los e ficar
vigiando suas ações, e desconfiaram ainda mais do burro, cuja aparência
eles conheciam, mas de cujas fúrias repentinas e de seus cascos fortes
também eles sabiam. Ficaram horrorizados só de pensar em ter como rei o
macaco, sabido demais e vingativo. Com a desculpa de que a serpente tinha
servido a satanás para seduzir o homem, disseram que não a queriam como
rei, ainda que ela tivesse variegadas cores e elegância em seus movimentos.
Na verdade, eles não a quiseram, porque conheciam aquele seu deslizar
silencioso, o forte poder de seus músculos e o terrível efeito de seu veneno.
Arranjar para ser rei um touro ou outro animal provido de chifres? De
maneira nenhuma! “Pois o diabo também os tinha”, diziam eles. Eles
pensavam: “Se nos rebelarmos um dia, ele acaba conosco por meio de seus
chifres.”
Depois de terem rejeitado muitos, viram um cordeirinho gordo e
branco, pulando alegre em um prado verde e dando focinhadas na teta
redonda da mãe. Ele não tinha chifres, mas tinha olhos mansos como o céu
de abril. Era manso e simples. Com qualquer coisa ele se contentava. Com a
água de um pequeno rio, onde ele bebia, mergulhando nela o seu pequeno
focinho rosado. Com as florzinhas dos mais diversos sabores, que lhe
satisfaziam os olhos e o paladar. E com a erva viçosa, sobre a qual era tão
bom deitar-se, quando já estava saciado. Com as nuvens que pareciam
outros tantos carneirinhos, que estivessem vagando por aqueles prados
azuis, lá no alto, e o estivessem convidando a brincar com eles correndo
pelo prado, como elas estavam fazendo pelo céu. E sobretudo com as
carícias da mãe, que ainda lhe permitia alguma chupada morna, lambendo-
lhe, nesse ínterim, a lã branca com sua língua cor-de-rosa. E, com um redil
seguro e bem abrigado contra os ventos, com uma cama bem fofa e
cheirosa, na qual era tão bom dormir, ao lado da mãe.
“Ele é muito fácil de contentar-se. Não tem armas nem veneno. É um
ingênuo. Façamos dele o nosso rei.” E o fizeram rei. Eles gloriavam-se
disso, porque ele era bonito e bom, admirado pelos povos vizinhos e amado
pelos súditos, por sua paciente mansidão.
246.8Passou-se o tempo, e o cordeiro se tornou um carneiro, e disse:
“Agora já é tempo de eu reinar realmente. Agora eu tenho plena posse do
conhecimento da minha missão. A vontade de Deus, que permitiu que eu
fosse eleito rei, foi-me formando depois para esta missão, dando-me a
capacidade de reinar. Portanto, é justo que eu a exerça de modo perfeito,
também para não me descuidar dos dons de Deus.”
E, vendo ele que alguns súditos faziam coisas contrárias à honestidade
dos costumes, à caridade, ou contra a doçura, a lealdade, a morigeração, a
obediência, o respeito, a prudência e assim por diante, levantou a voz para
admoestá-los.
Os súditos se riram do seu balido sábio e doce, que não amedrontava
como o rugido dos felinos, nem como o grito agudo dos abutres, quando
descem rápidos sobre sua presa, nem como o sibilar da serpente e nem
mesmo como o ladrar continuo do cão que quer incutir temor.
O cordeiro, tendo-se tornado um carneiro, não se limitou mais só a ficar
balindo. Mas foi atrás dos culpados, para reconduzi-los aos seus deveres. Aí
a serpente se lhe escapou, por entre as patas. A águia levantou vôo,
deixando-o a ver navios. Os felinos com uma patada o foram afastando do
caminho e ainda o ameaçaram: “estás vendo o que é que está nesta pata
felpuda? São as nossas garras.” Os cavalos e todos os animais corredores
em geral, puseram-se a galopar ao redor dele, em sinal de zombaria. Os
fortes elefantes e outros paquidermes, com um golpe de suas trombas o
jogavam para lá e para cá, enquanto os macacos, lá do alto das árvores, o
alvejavam com os seus projéteis.
O cordeiro, que se transformou em carneiro, finalmente perdeu a
paciência, e disse: “Eu não queria usar meus chifres, nem a minha força.
Porque eu também tenho uma força neste pescoço, que vai ser usado como
modelo de uma máquina para abater obstáculos na guerra. Eu não queria
fazer uso dela, porque eu prefiro agir com amor e pela persuasão. Mas,
visto que não cedeis diante destas armas, eu vou fazer uso da força, porque,
se vós faltais com o vosso dever para comigo e para com Deus, eu não
quero faltar com o meu dever para com Deus e para convosco. Aqui eu fui
colocado para guiar-vos, a fim de que a Justiça e o Bem, ou seja, a Ordem,
aqui reinem.”
E castigou com os seus chifres, de leve, porque ele era bom, um
cachorrinho latidor, que continuava a aborrecer os vizinhos e, depois, com
seu fortíssimo pescoço, arrombou a porta, que dava para uma cova, onde
um porco gordo e egoísta tinha acumulado comida, com prejuízo para os
outros, e também derrubou uma moita de lianas, escolhida por dois
luxuriosos macaquinhos para os seus ilícitos amores.
246.9“Este rei tornou-se forte demais. Ele quer realmente reinar. Quer que
vivamos como sábios. Isto não nos agrada. É preciso destroná-lo”,
decidiram eles.
Mas um astuto macaquinho deu este conselho: “Não façamos nada, a
não ser o que tenha pelo menos a aparência de ser um motivo justo. Senão,
iremos fazer uma feia figura aos olhos dos povos e seremos mal vistos por
Deus. Examinemos, pois, cada ação do cordeiro que se tornou carneiro, a
fim de podermos acusá-lo, quando nada, com certa aparência de justiça.”
“Eu me encarrego disso”, disse a serpente. “E eu também”, disse o
macaco. A serpente, deslizando por entre as ervas e o macaco ficando nas
copas das árvores, não perderam mais de vista o cordeiro que se fez
carneiro e, todas as tardes, quando ele se retirava para meditar e descansar
dos trabalhos da missão e pensar nas medidas a serem adotadas e nas
palavras a serem usadas para dominar a rebelião e acabar com os pecados
de seus súditos, estes, menos algum raro que ainda se conservava honesto e
fiel, reuniam-se para escutar as notícias dadas pelos dois espiões e traidores.
Porque eles eram isso também.
A serpente diz ao seu rei: “Eu te acompanho porque te amo e, se eu
visse que estás sendo atacado, quero poder defender-te.” O macaco diz ao
rei: “Como eu te admiro! Eu quero te ajudar. Olha: daqui eu estou vendo
que, para lá daquele prado, estão cometendo pecado. corre!”, e depois, dizia
aos companheiros: “Hoje também ele tomou parte no banquete de uns
pecadores. Ele fingiu ir lá para convertê-los, mas depois, na realidade,
tornou-se cúmplice das orgias deles.” E a serpente ainda acrescentou: “Ele
esteve fora do seu povo, aproximando-se de borboletas, moscardos e lesmas
visguentas. É um infiel. Faz negócios com estrangeiros e imundos.”
Assim eles falavam às costas do inocente, pensando que ele não
soubesse de nada. Mas o espírito do Senhor, que o havia preparado para a
sua missão, o iluminava e fazia conhecer as conjurações de seus súditos.
Ele teria podido fugir, indignado, amaldiçoando-os. Mas o cordeiro era
manso e humilde de coração. Ele os amava. Tinha a culpa de amá-los. E
tinha a culpa maior ainda de continuar amando e perdoando, em sua missão,
mesmo que isso lhe valesse a morte, para cumprir a vontade de Deus. Oh!
Que culpas eram estas aos olhos dos homens! Eram imperdoáveis! E tanto
assim o eram, que lhe causaram a condenação.
“Que seja morto, para ficarmos livres de sua opressão.” E a serpente se
encarregou de matá-lo, pois o traidor é sempre a serpente…
246.10Este é o outro apólogo. A ti cabe entendê-lo, ó povo de Nazaré! Eu,
pelo amor que me liga a ti, faço votos que permaneças, quando muito, no
grau de um povo hostil e não mais do que isto. O amor à terra, para a qual
Eu vim, quando era pequenino, na qual Eu cresci, amando-vos e recebendo
amor, faz-me dizer a todos vós: “Não sejais mais hostis. Não façais que a
história diga: ‘De Nazaré é que saiu o seu traidor e os seus juízes iníquos’.”
Adeus. Sede retos no julgar e constantes no querer. A primeira coisa é
para todos vós, que sois meus concidadãos. A segunda é para aqueles entre
vós, que não estão perturbados por pensamentos desonestos. Eu me vou…
A paz esteja convosco.
E Jesus, no meio de um pesado silêncio, quebrado apenas por duas ou
três vozes, que o aprovam sai, tristemente, de cabeça inclinada, da sinagoga
de Nazaré.
246.11Os apóstolos o acompanham. Como últimos, atrás dos outros, estão
os filhos de Alfeu. E os olhos deles não são olhos de um manso cordeiro…
Olham severamente para a multidão inimiga, e Judas Tadeu não hesita em ir
colocar-se de pé, na frente do seu irmão Simão, para dizer-lhe:
– Eu pensava ter um irmão mais honesto e de caráter mais forte.
Simão inclina a cabeça e se cala. Mas o outro irmão, com as costas
protegidas por outros de Nazaré, diz:
– Envergonha-te por ofenderes ao teu irmão mais velho!
– Não. Eu me envergonho é de vós. De todos vós. Não é uma madrasta.
Mas esta Nazaré é uma madrasta depravada para com o Messias. Mas ouvi
a minha profecia. Tereis que chorar tantas lágrimas, que elas formarão uma
fonte. Mas elas não bastarão para lavar dos livros da história o nome
verdadeiro desta cidade e o vosso. Sabeis qual é? “Estultícia.” Adeus.
Tiago faz uma saudação mais ampla, como que augurando-lhes uma luz
de sabedoria. E saem juntos com Alfeu de Sara e dois jovenzinhos que, se
os estou reconhecendo bem, são os dois guias[31], que cuidaram dos dois
burrinhos, quando foram ao encontro de Joana de Cusa, que estava
morrendo.
246.12A multidão, que ficou dolorosamente surpresa, murmura:
– Mas, onde foi buscar tanta sabedoria?
– E os milagres, como os faz? Porque fazê-los, Ele os faz. Toda a
Palestina fala deles.
– Não é Ele o filho do José, o carpinteiro? Todos nós o vimos
trabalhando no banco do carpinteiro de Nazaré, fazendo mesas e camas,
consertando rodas e fechaduras. Ele nunca foi à escola e só sua Mãe foi sua
mestra.
– Isso também foi outro escândalo, que nosso pai criticava –diz José de
Alfeu.
– Mas também os teus irmãos terminaram a escola com Maria de José.
– É. O meu pai foi fraco para com a mulher –responde ainda José.
– E, portanto, também o irmão do teu pai?
– Ele também.
– Mas Ele é mesmo filho do carpinteiro?
– E não o estás vendo?
– Oh! Há muitas pessoas que se parecem. Eu penso que Ele é um desses
que são considerados parentes, mas não o são.
– Quem é que fala agora em Jesus de José?
– Pensais que a Mãe dele não o conheça?
– Aqui estão os irmãos e as irmãs dele e todos o dizem seu parente. E,
dizei-me vós dois: não é verdade isso?
Os dois anciãos, filhos de Alfeu, dizem que sim.
– Então Ele ficou doido ou endemoninhado, porque o que Ele diz não
pode ser dito por um operário.
– Seria necessário não dar-lhe ouvidos. Pois sua pretensa doutrina, ou é
delírio ou possessão.
246.13… Jesus está parado na praça, à espera de Alfeu de Sara, que está
conversando com um homem. E, enquanto Ele espera, um dos guias dos
burros, que havia ficado junto à porta da sinagoga, lhe conta as calúnias que
foram ditas dentro dela.
– Não fiques triste. Um profeta quase nunca é honrado em sua pátria e
por sua casa. O homem é tão estulto, que acha que para serem profetas, seja
necessário ser como seres de fora desta vida. E os concidadãos e os
familiares conhecem-no mais do que os outros e se recordam da
humanidade do concidadão e parente deles. Mas, a verdade haverá de
triunfar sempre. E agora Eu te saúdo. A paz esteja contigo.
– Obrigado, Mestre, por teres curado minha mãe.
– Tu o merecias, porque soubeste crer. Meu poder fica inerte aqui,
porque aqui não há fé. Vamos, meus amigos. Amanhã de manhã partiremos.
[29] o apólogo, que está em Juízes 9,8-15.
[30] está escrito em Levítico 21,1-4.
[31] os dois guias em 102.5/8.
247. Maria Santíssima ensina
a Madalena sobre a oração mental.
8 de agosto de 1945.
247.1– Onde vamos terminar a nossa etapa, meu Senhor? –pergunta Tiago
de Zebedeu, enquanto vão caminhando por uma garganta entre duas colinas
muito verdes, e cultivadas da base até o alto.
– Terminá-la-emos em Belém da Galileia. Mas, nas horas mais quentes,
pararemos no monte que fica acima de Meraba[32]. Assim teu irmão ficará
feliz, mais uma vez, ao ver o mar –e Jesus sorri.
Depois, Ele termina:
– Nós homens podíamos ter andado mais, mas temos atrás de nós as
discípulas, que nunca se queixam, mas que nós não devemos deixar que
fiquem cansadas demais.
– Elas nunca se queixam, é verdade. Nós nos queixamos mais
facilmente –admite Bartolomeu.
– E, no entanto, talvez estejam até menos acostumadas do que nós a este
tipo de vida… –diz Pedro.
– Talvez seja porque elas gostem deste tipo de vida –diz Tomé.
– Não, Tomé. Elas o fazem com gosto, por amor. Podes crer que nem
minha Mãe, nem as outras donas de casa, como Maria de Alfeu, Salomé e
Susana, deixem de boa vontade o seu gênero de vida para virem pelos
caminhos do mundo e pelo meio do povo. E Marta e Joana, quando esta
também vier, não acostumadas ao cansaço, não o fariam de boa vontade, se
o amor não as estimulasse. 247.2E, quanto à Maria de Magdala, só um
poderoso amor é que lhe pode dar a força para sofrer esta tortura –diz Jesus.
– Por que lha impuseste, então, se sabes que é uma tortura? –pergunta-
lhe Iscariotes–. Não é coisa boa para ela e não o é para nós.
– Nada mais do que a demonstração evidente e indubitável de sua
mudança é o que podia persuadir o mundo. Seu afastamento do passado foi
completo. É completo.
– Isto é o que vamos ver. É cedo ainda para se dizer isso. Quando
transformamos em hábito um certo gênero de vida, dificilmente poderemos
afastar-nos completamente dele. Amizades e saudades nos fazem voltar a
ele –diz Iscariotes.
– Tu tens saudades, então, de tua vida de antes? –pergunta-lhe Mateus.
– Eu… não. Mas digo por dizer. Eu sou eu, um homem, amigo do
Mestre e… Afinal, eu tenho em mim meios que me servem para persistir
em meus propósitos. Mas ela é uma mulher, e que mulher! E, além disso,
ainda que ela fosse bem firme, sempre é um pouco desagradável tê-la
conosco. Se tivéssemos que encontrar rabis, sacerdotes ou grandes fariseus,
podeis crer que não seria agradável para nós o comentário deles. Eu, só de
pensar nisso, já me sinto envergonhado.
– Não te contradigas, Judas. Se realmente cortaste os pontos que te
ligavam ao passado, por que tanto te preocupas por causa de uma pobre
alma que quer acompanhar-nos para completar a sua transformação para o
Bem?
– Ora, por amor, Mestre. Porque eu faço tudo por amor. Para contigo.
– Então, aperfeiçoa-te neste teu amor. Um amor, para ser verdadeiro
amor, nunca há de ser exclusivista. Quando alguém sabe amar somente um
objeto que ele ama, mostra que não está no verdadeiro amor. O amor
perfeito ama, com as devidas gradações, a todo o gênero humano, e até os
animais e os vegetais, as estrelas e as águas, porque vê tudo em Deus. Ama
a Deus, como é de dever, e ama tudo em Deus. Olha que o amor
exclusivista muitas vezes é egoísmo. Fica, pois, sabendo chegar a amar
também aos outros por amor.
– Sim, Mestre.
O objeto daquela discussão continua, contudo, com as outras mulheres
que estão perto de Maria, sem que esta pense que está sendo causa de tão
grande discussão.
247.3Chegam ao povoado de Jafa, e o atravessam até o outro lado, sem
que nenhum cidadão mostre desejo de acompanhar o Mestre ou de detê-lo.
Continuam depois, e os apóstolos estão inquietos, por causa da
indiferença do lugar. Jesus procura acalmá-los.
O vale continua na direção oeste, e mostra lá no fim um outro povoado,
situado junto à base de um outro monte.
Também este povoado, que eu ouço ser chamado de Meraba, está
indiferente. Só alguns meninos se aproximam dos apóstolos, enquanto estão
apanhando a água, que jorra de uma fonte límpida, ao lado de uma casa.
Jesus os acaricia, perguntando-lhes os seus nomes, e os meninos perguntam
o dele e quem é Ele, para onde vai, e que faz. Aproxima-se também um
mendigo meio cego, já velho, encurvado, e estende a mão para receber a
esmola, que de fato recebe.
A marcha recomeça com a subida de uma colina, que interrompe o vale
e no qual ela despeja as águas dos seus pequenos riachos, agora reduzidas a
uns fios d’água, ou somente a umas pedras queimadas pelo sol. Mas a
estrada é boa, aberta a princípio por entre bosques de oliveira, e depois de
outras plantas, que entrecruzam os seus ramos, formando uma galeria verde
sobre a estrada. Chegam ao alto da colina, que é coroada por um sussurrante
bosque de freixos, se não me engano. E lá eles se assentam para descansar e
tomar algum alimento. E, com o alimento e o descanso, também gozam do
prazer para as suas vistas, porque o panorama é muito bonito, com a
cordilheira do Carmelo à esquerda de quem olha para o oeste, e no lugar
onde termina a mesma cordilheira do Carmelo, aparece uma cordilheira
muito verde, onde podem ser vistos todos os tons mais belos do verde. Aí
vê-se o cintilar do mar, um mar aberto, sem fim, que se estende como pano
agitado por leves ondinhas, que se movem para o norte, indo lavar as praias
da ponta do promontório formado pela última ramificação do Carmelo, e
sobem no rumo de Ptolomaida e de outras cidades, até se perderem de vista,
em uma fina neblina, para os lados da Siro Fenícia. Mas não se vê o mar do
lado sul do promontório do Carmelo, porque a cordilheira, mais alta do que
a colina que nela se encontra, nos esconde a vista dele daqui[33].

Passam as horas à sombra e à beira roçagante do bosque bem arejado.


Uns dormem, outros falam em voz baixa, outros estão olhando. João se
afasta dos companheiros, indo para o ponto mais alto possível, a fim de
poder enxergar mais. Jesus vai pôr-se sozinho em um ponto de vegetação
mais densa, para lá orar e meditar. As mulheres, por sua vez, retiraram-se lá
para trás da cortina de uma ondulante madressilva, toda florida, e lá elas
estão se refrescando em uma pequenina nascente, reduzida agora a um fio
d’água, e que forma na terra um pequenino charco, sem chegar a formar um
rio. Depois, as de mais idade já adormeceram, cansadas, enquanto a Virgem
Maria, com Marta e Susana, conversam sobre suas casas, que estão longe, e
Maria diz que gostaria de ter aquela bela moita, toda florida, para servir de
veste à sua pequena gruta.
247.4Maria Madalena, que havia soltado os cabelos, não podendo resistir
ao peso deles, recompõe-se de novo, e diz:
– Vou a João, agora que ele está com Simão, para olhar o mar com eles.
– Eu vou também –responde Maria Santíssima.
Marta e Susana ficam com as companheiras adormecidas.
Para chegarem ao ponto onde estão os dois apóstolos, elas devem
passar por perto da amoreira selvagem, onde Jesus foi colocar-se sozinho
para orar.
– Meu Filho acha seu descanso na oração –diz Maria em voz baixa.
E Madalena lhe responde:
– Creio que isso lhe seja até indispensável, ir ficar sozinho, para poder
conservar o maravilhoso domínio que Ele tem e que o mundo submete a
duras provas. Sabes, Mãe? Eu fiz tudo o que me disseste. Todas as noites eu
me ponho sozinha, por um tempo mais ou menos longo, para poder
restabelecer em mim mesma a calma que muitas coisas perturbam. Sinto-
me muito mais forte depois.
– Agora te sentes forte. Mais tarde te sentirás feliz. Podes crer, Maria,
que, tanto na glória, como na dor, tanto na paz, como na luta, nosso espírito
sente a necessidade de mergulhar-se todo inteiro no oceano da meditação
para reconstruir o que o mundo e as vicissitudes abatem, e para criar novas
forças, a fim de poder subir sempre. Em Israel, nós usamos e abusamos da
oração vocal. Não quero dizer que esta seja inútil, ou que desagrade a Deus.
Mas digo, sim, que é sempre mais útil para o espírito a elevação mental
para Deus, a meditação, na qual, contemplando sua divina perfeição e a
nossa miséria, ou a de tantas pobres almas, não para criticá-las, mas para
compadecer-nos delas, e compreendê-las, e para termos um reconhecimento
para com o Senhor, que nos amparou, a fim de não nos deixar caídas, e
assim chegamos a orar realmente, isto é, a amar. Porque a oração, para ser
mesmo oração, deve ser amor. Porque, sem isso, ela é apenas um abrir de
lábios, do qual a alma está ausente.
247.5– Mas será lícito falar com Deus, quando temos os lábios ainda sujos
por tantas palavras profanas? Eu, nas minhas horas de recolhimento, que eu
faço como me ensinaste, tu, meu apóstolo dulcíssimo, faço violência ao
meu coração que quereria dizer a Deus: “Eu te amo…”
– Não! Por quê?
– Porque me parece que eu faria uma oferta sacrílega, ao oferecer-lhe o
meu coração…
– Não faças assim, minha filha. Não o faças. O teu coração está, antes
de tudo, consagrado de novo pelo perdão do Filho, e o Pai só vê este
perdão. Mas, mesmo que Jesus não tivesse ainda perdoado, e tu estivesses
em um lugar ermo e desconhecido, e gritasses a Deus: “Eu te amo, Pai,
perdoa as minhas misérias, porque eu sinto desgosto com elas pela dor que
te causam”, podes crer, Maria, que Deus te absolveria por si mesmo, e que
lhe seria querido o teu grito de amor. Abandona-te, abandona-te ao amor.
Não faças violência a ele. Deixa, antes, que ele se torne violento como um
incêndio abrasador. O incêndio consome tudo o que é material, mas não
destrói nem uma molécula de ar. Porque o ar é incorpóreo. Pelo contrário,
ele o purifica dos detritos minúsculos, que os ventos semeiam, e o torna
mais leve. Assim faz o amor ao espírito. Consumirá mais depressa a parte
material do homem, se Deus o permitir, mas não destrói o espírito. Pelo
contrário, até lhe acrescenta vitalidade, torna-o puro e ágil para as ascensões
até Deus. 247.6Estás vendo lá João? É mesmo um rapaz. Mas é também uma
águia. É o mais forte de todos os apóstolos. Porque ele compreendeu o
segredo da fortaleza, da formação espiritual: a meditação amorosa.
– Mas ele é puro. Eu… Ele é um rapaz. Eu…
– Olha, então, para Zelotes. Já não é um rapaz. Ele viveu, lutou, odiou.
E ele o confessa sinceramente. Mas aprendeu a meditar… E ele também
está bem no alto. Estás vendo? Os dois se procuram. Porque se sentem
iguais. Eles chegaram à mesma idade perfeita do espírito, e com o mesmo
meio: a oração mental. Por ela o menino se tornou viril em seu espírito, e
por ela o que já está velho e cansado voltou a uma virilidade forte. E sabes
de um outro que, sem ser apóstolo, será, e até já está muito adiantado, por
sua tendência natural para a meditação que, desde que se tornou amigo de
Jesus, tornou-se nele uma necessidade espiritual? O teu irmão.
– O meu Lázaro?… 247.7Oh! Mãe! Dize-me, tu, que sabes tantas coisas,
porque Deus te mostra: como Lázaro me tratará na primeira vez que nos
encontrarmos? Antes, ele se calava, desdenhoso. Mas assim fazia, porque
eu não suportava observações. Eu fui muito cruel para com os meus irmãos.
Agora eu compreendo. Agora, que ele sabe que pode falar o que me dirá?
Eu temo sua repreensão aberta. Oh! Certamente ele me fará lembrar de
todos os seus sofrimentos de que eu fui causadora. Eu queria ir voando até
Lázaro. Mas tenho medo disso. Primeiro, eu ia lá. Mas nem mesmo as
lembranças de minha mãe morta, as suas lágrimas, ainda vivas nos objetos
por ela usados, lágrimas derramadas por mim, por minha culpa, me
perturbavam. O meu coração era cínico, desavergonhado, fechado a todas
as vozes, que não fossem as do mal. Mas agora, eu não tenho mais aquela
malvada força do mal, e tremo… Que me fará Lázaro?
– Ele abrirá os braços, e te chamará, mais com o coração do que com os
lábios, “irmã querida.” Ele está tão formado nas coisas de Deus, que não
pode deixar de agir desse modo. Não tenhas medo. Ele não te dirá nem uma
palavra sobre o passado. Ele, é como se eu o estivesse vendo, está lá em
Betânia, e para ele já estão sendo muito longos os dias de espera. Ele te
espera, para apertar-te ao coração. Para saciar o seu amor de irmão. Tu só
tens que amá-lo, como ele te ama, para experimentares a doçura por terdes
nascido do mesmo seio.
– Eu o amaria, ainda que ele me censurasse. Eu o mereço.
– Mas ele somente te amará. Somente isso.
247.8Acabam de chegar a João e Simão, que estão falando das futuras
viagens, e que se levantam, reverentes, quando chega a Mãe do Senhor.
– Estamos vindo nós também para louvarmos o Senhor pelas belas
obras de sua criação.
– Mãe, já viste o mar?
– Oh! Eu já o vi. E ele era então menos perturbado em sua tempestade
do que meu coração, e menos salgado do que o meu pranto, quando eu ia
fugindo, ao longo do litoral de Gaza, para o Mar Vermelho, como meu
Menino entre os braços e o medo de Herodes nas costas. Eu o vi na volta.
Mas aí já era a primavera, na terra e no meu coração. A primavera do
retorno à pátria. E Jesus batia as mãozinhas, feliz por ver coisas novas. E eu
e José também estávamos felizes. Porque a bondade do Senhor nos havia
tornado menos duro o exílio em Matareia, e de mil modos.
A conversação deles continua, enquanto em mim cessa a capacidade de
ver e de ouvir.
[32] Meraba, aqui e mais embaixo (em 247.3), poderia se ler também Merala no manuscrito original.
[33] dele daqui. Segue o desenho de MV sobre o qual se lê os nomes de Sicaminon e Meraba.
248. Em Belém da Galileia. Juízo sobre um
homicídio e parábola das florestas petrificadas.
9 de agosto de 1945.
248.1Já é tarde, quando chegam a Belém da Galileia. Compreende-se que
seja o destino das cidades deste nome estarem elas colocadas sobre colinas
onduladas, revestidas de verde, de bosques, de prados, sobre os quais
pastam rebanhos, que vão descendo para os redis, ao cair da noite. O ar,
ainda avermelhado, deixado assim pelo sol, que acaba de se pôr, está cheio
de uma música pastoral tocada com os sinos e com os trêmulos balidos, aos
quais se juntam os gritos alegres das crianças que brincam e as vozes das
mães que os estão chamando.
– Judas de Simão, vai com Simão procurar alojamento para nós e para
as mulheres. No meio do povoado está o albergue e lá nos encontraremos.
E, enquanto Judas e Simão obedecem, Jesus se vira para a Mãe e diz:
– Desta vez não será como na outra Belém. Encontrarás descanso,
minha Mãe. Pouca gente viaja nesta estação e não há nenhum edito.
– Com este tempo seria agradável dormir até sobre os prados, ou no
meio destes pastores, por entre os cordeirinhos –e Maria sorri para o Filho e
sorri também para alguns pastorzinhos curiosos, que olham para Ela,
fitando-a.
248.2Maria sorri de tal modo, que um deles dá uma cotovelada num
outro, dizendo-lhe:
– Não pode ser outra, senão Ela.
E vai para a frente, sem dúvidas, dizendo:
– Eu te saúdo, Maria, cheia de graça. O Senhor está contigo?
Maria responde com um sorriso ainda mais amável:
– Ei-lo aí, o Senhor –e acena para Jesus, que se tinha virado para falar
com os primos, encarregando-os de ir dar esmola aos pobres, que se
aproximam com lamentosos pedidos.
E a Mãe toca levemente em seu Filho, dizendo-lhe:
– Meu Filho, estes pastorzinhos Te procuram e me reconheceram. Não
sei como…
– Certamente porque por aqui passou Isaque, deixando o perfume dessa
revelação. Jovenzinho, vem cá.
O pastorzinho, um moreninho entre doze e catorze anos, magro, mas
robusto, de olhos vivos e muito pretos, de cabelos da cor do ébano, que lhe
caem pelas costas abaixo, envolvido em sua pele de ovelha — e bem me
parece o retrato do Precursor, quando jovem — se aproxima de Jesus com
um sorriso feliz, como se estivesse fascinado por Ele.
– A paz esteja contigo, menino. Como reconheceste Maria?
– Porque só a Mãe do Salvador podia ter aquele sorriso e aquele rosto.
Foi-me dito: “Um rosto de anjo, olhos de estrela e um sorriso que é mais
doce do que beijo de Mãe, doce como o seu nome, que é Maria, tão santo,
que Ele pode reclinar-se sobre o Deus recém-nascido.” E eu vi isso nela, e a
saudei, porque eu estava à tua procura. Nós Te estávamos procurando,
Senhor, e… e eu não tinha coragem de ser o primeiro a Te saudar.
– Quem foi que te falou de nós?
– Isaque da outra Belém, prometendo conduzir-nos a Ti, quando
chegasse o outono.
– Esteve aqui Isaque?
– Ele ainda está por estas regiões, com muitos discípulos. Mas a nós
pastores foi ele que falou. E nós cremos na palavra dele. 248.3Senhor, deixa
que nós também Te adoremos, como aqueles nossos companheiros, naquela
noite feliz –e enquanto ele se ajoelha na poeira da estrada, lança um grito
aos outros pastores, que fizeram parar o rebanho junto às portas da cidade
(portas é um modo de dizer, porque a cidade não é cercada por muros), lá
onde Jesus também havia parado para esperar as mulheres e entrar com elas
na cidade.
O pastorzinho grita:
– Meu pai, meus irmãos e amigos, encontramos o Senhor. Vinde e o
adoremos.
E os pastores vem ajuntar-se, com seu rebanho, ao redor de Jesus, para
pedir-lhe que não vá para outras casas, mas que aceite a pobre casa deles,
que não fica longe, para ir morar nela com os seus amigos.
– É um redil amplo –explicam eles–, porque Deus nos protege, e lá
temos quartos e pórticos cheios de feno cheiroso. Os quartos servem para a
Mãe e para as suas irmãs, porque são mulheres. Mas também para Ti há um.
Os outros podem dormir conosco debaixo dos pórticos, em cima do feno.
– Eu também ficarei convosco. E terei um repouso mais tranquilo do
que se estivesse dormindo no quarto do rei. Vamos primeiro avisar Judas e
Simão.
– Vou eu, Mestre –diz Pedro, que lá se vai, junto com Tiago de
Zebedeu.
Param à margem da estrada, e ficam esperando a volta dos quatro
apóstolos.
248.4Os pastores estão olhando para Jesus como se fosse já Deus em sua
glória. Os mais jovens, então, estão realmente felizes, e parecem querer
gravar em suas mentes cada pormenor de Jesus e de Maria, que está
inclinada, acariciando alguns cordeirinhos, que levantam o focinho, balindo
contra as pernas dela.
– Havia um, na casa de Isabel, minha prima, que me lambia as tranças,
todas as vezes que me via. Eu o chamava de amigo, porque era de verdade
meu amigo, como um menino e, logo que podia, corria até mim. Este aqui
me faz lembrar daquele, com estes olhos de duas cores. Não o mateis! O
outro também foi deixado viver, por causa do seu amor por mim.
– É uma cordeira, Mulher, e nós a queríamos vender, porque tem os
olhos de duas cores, e eu acho que um deles pouco nos veja. Mas nós a
conservaremos, se assim o queres.
– Oh! Sim. Afinal, eu nunca quereria que fosse morto nenhum
cordeirinho. Eles são tão inocentes e com essa voz de criança que chama a
mãe. Parecer-me-ia estar matando um menino, se matasse um destes.
– Mas, então, Mulher, não haveria mais lugar para vós sobre a terra, se
ficassem vivos todos os cordeirinhos –diz o pastor mais velho.
– Eu sei. Mas eu penso na dor que sentem, e também na dor das ovelhas
mães. Elas choram muito, quando lhes tiram os filhos. Parecem mesmo
mães, como nós. Eu não posso ver ninguém sofrendo, mas sinto as aflições
de uma mãe. É esta uma dor diferente de todas as outras, porque para nós
ficam feridos, não só o coração e o cérebro pelo golpe que deu a morte a um
filho, mas também as nossas próprias vísceras. Nós, mães, permanecemos
sempre unidas aos nossos filhos. E ficamos completamente feridas, quando
eles nos são tirados. Maria não está mais sorrindo, mas tem um brilho de
pranto em seus olhos azuis, e olha para seu Jesus, que a ouve e observa, e
lhe põe uma mão sobre o braço, como se tivesse medo de que seu Filho
estivesse para ser arrancado do seu lado.
248.5Da estrada poeirenta vem vindo uma pequena escolta de homens
armados: são seis homens, em companhia de pessoas que vozeiam. Os
pastores ficam olhando, e falam entre si, em voz baixa. Depois olham para
Maria e Jesus.
O mais velho fala:
– Assim foi bom que não entrasses em Belém nesta tarde.
– Por quê?
– Porque aquelas pessoas, que passaram agora, e vão entrar na cidade,
querem arrancar um filho de sua mãe.
– Oh! Mas, por quê?
– Para matá-lo.
– Oh! Não. Que fez?
Jesus também faz essa pergunta, e os apóstolos se aglomeram para
ouvir.
– Foi encontrado morto no caminho, que vai para o monte, o rico Joel.
Ele estava voltando de Sicaminon, com muito dinheiro. Mas não foram os
ladrões que o atacaram, porque o dinheiro estava todo com o morto. O
servo, que o acompanhava, disse que o patrão o havia mandado ir correndo
à sua frente, para avisar que ele já estava voltando, e que, pelo caminho,
depois de ter-se dirigido para o lugar onde foi cometido o homicídio, viu
somente o jovem que agora vai ser morto. Dois do povoado juram tê-lo
visto agredir Joel. Agora os parentes do morto exigem a morte dele. E, se
ele é homicida…
– Tu achas que não?
– Isso não me parece ser possível. O jovem é pouco mais do que um
rapazinho, e bom, vive sempre com a Mãe, da qual ele é filho único, e ela é
viúva, e uma viúva santa. Não lhe faltam meios. Não pensa em mulheres.
Não é briguento. Não é louco. Para que, então, teria matado?
– Mas, terá talvez inimigos?
– Quem? Joel, o morto, ou Abel, o acusado?
– O acusado.
– Ah! Eu não saberia… Mas… Não saberia.
– Sê sincero, homem.
– Senhor, é uma coisa que eu estou pensando, e Isaque disse que não se
há de pensar mal do próximo.
– Mas se deve ter a coragem de falar para salvar um inocente.
– Se eu falar, tenha eu razão ou não, terei que fugir daqui, porque Aser e
Jacó são poderosos.
– Fala sem medo. Não serás obrigado a fugir.
– Senhor, a mãe de Abel é jovem, é bela e sábia. Aser não é sábio. E
não o é também Jacó. O primeiro gosta da viúva, e o segundo… toda a
cidade sabe que o segundo é um cuco no leito conjugal de Joel. Eu penso
que…
– Já compreendo. 248.6Vamos, meus amigos. Mas vós, ficai aqui,
mulheres, pastores. Eu voltarei logo.
– Não, meu Filho. Eu vou contigo.
Jesus lá se vai, caminhando apressado, indo para o interior da cidade.
Os pastores ficam indecisos, mas depois deixam o rebanho com os mais
jovens, que ficam com as mulheres, menos a Mãe e Maria de Alfeu, que
acompanham Jesus, e se põem a caminho para alcançarem o grupo dos
apóstolos.
Na terceira estrada, que atravessa a rua principal de Belém, encontram-
se com Iscariotes, Simão, Pedro e Tiago, que vêm descendo, gesticulando e
falando alto.
– Que coisa, Mestre! Que coisa e que pena! –diz Pedro, perturbado.
– Um filho, que arrebataram à força dos braços de sua mãe, e ela o
defende como uma hiena. Mas ela é uma mulher contra homens armados –
acrescenta Simão Zelotes.
– Já está sangrando em muitos pontos –diz Iscariotes.
– Arrombaram a porta dela, porque ela havia feito uma barricada em
casa –termina Tiago de Zebedeu.
– Vou a ela.
– Oh! Sim! Só Tu podes consolá-la.
248.7Eles viram para o lado direito, depois para o esquerdo, e vão indo, para o
centro da cidade. Já se vê a aglomeração de gente tumultuando, que se agita
e se comprime perto da casa de Abel, e ouvem-se os gritos dilacerantes da
mulher, desumanos, ferozes e piedosos, ao mesmo tempo, e que estão
chegando até aqui.
Jesus apressa mais o passo, e chega a uma pequenina praça, numa curva
do caminho, que neste ponto se alarga, e se torna maior do que uma
pracinha, na qual o tumulto chega ao cúmulo.
A mulher se bate ainda com os guardas por seu filho, estando ainda
segura com uma das mãos, que se tornou como garras de ferro, ao que
sobrou da porta arrombada, e com a outra mão está abraçada, pela cintura,
com o filho e, se alguém procura afastá-la dele, ela o morde ferozmente,
sem fazer caso dos golpes que recebe, nem dos que lhe arrancam os
cabelos, o que faz que ela se torne tão feroz, que chega a ficar de cabeça
baixa. E, quando não morde, ela urra:
– Deixai-o! Assassinos! Ele é inocente! Na noite em que Joel foi morto,
ele estava ao meu lado, na cama. Assassinos! Assassinos! Caluniadores!
Perjuros!
O jovenzinho, agarrado pelos ombros pelos captores, vai sendo
arrastado pelos braços, vira-se para trás, com um rosto transtornado, e grita:
– Mamãe! Mamãe! Por que é que eu devo morrer, se eu não fiz nada?
É um belo jovenzinho, alto e esguio, de olhos escuros e doces, de
cabelos cor de amora e um pouco em desordem. Pelos rasgões de sua veste,
vê-se um corpo ágil e juvenil, quase de menino ainda.
Jesus, com a ajuda dos que o acompanham, rompe a multidão compacta
como uma pedra, e abre passagem até o grupo dos que estão compadecidos,
justamente no momento em que a mulher, exausta é arrancada da porta e
arrastada como se fosse um saco amarrado ao corpo do filho, pela estrada
pedregosa. Mas isso dura poucos momentos. Um puxão mais forte arranca a
mão da mãe da cintura do filho, e a mulher cai de bruços, batendo
duramente o rosto no chão e sangrando-se ainda mais. Mas, logo ela ergue
de novo o busto, põe-se de joelhos e estende os braços, enquanto o filho,
levado embora rapidamente, tanto quanto o permite a multidão, que com
dificuldade se abre, solta o braço esquerdo e o agita, torcendo-se para trás, e
gritando:
– Mamãe! Adeus! lembra-te, pelo menos tu, de que eu sou inocente!
A mulher olha para ele, com olhos de uma louca, depois cai por terra,
desmaiada.
248.8Jesus para diante do grupo dos captores:
– Parai um momento. Eu vo-lo ordeno!
E o seu rosto não admite réplica.
– Quem és tu? –diz, agressivo, um cidadão que está no grupo–. Nós não
te conhecemos. Sai da frente e deixa-nos andar, para que o preso seja morto,
antes que a noite chegue.
– Eu sou um Rabi. O maior deles. Em nome de Javé, parai, ou Ele vos
fulminará.
Entretanto, parece que Ele fulmina:
– Quem é testemunha contra esse?
– Eu, ele e ele –responde o que falou por primeiro.
– O vosso testemunho não é válido, porque não é verdadeiro.
– E por que podes dizer isso? Nós estamos prontos a jurá-lo.
– Esse vosso juramento é pecado.
– Pecar? Nós?
– Vós. Assim como incubais a luxúria, como nutriz o ódio, como
cobiçais as riquezas, como sois homicidas, assim também sois perjuros. Vós
vos vendestes à imundície. Sois capazes de qualquer sujeira.
– Olha bem como estás falando. Eu sou Aser…
– E Eu sou Jesus.
– Não és daqui, não és sacerdote nem juiz. Não és nada. És estrangeiro.
– Sim, eu sou Estrangeiro, porque a terra não é o meu Reino. Mas sou
Juiz e Sacerdote. E, não somente desta pequena parte de Israel, mas de todo
Israel e do mundo todo.
– Vamos, vamos. Agora ainda temos que lidar com um doido –diz a
outra testemunha, e dá um empurrão em Jesus, para desviá-lo do caminho.
– Já não darás nem um passo mais –troveja Jesus, olhando com um
daqueles olhares de quando opera milagres, olhares que dominam e
paralisam, assim como dão vida e alegria, quando Ele quer–.
Tu não darás mais nem um passo. 248.9Não acreditas no que Eu estou
dizendo? Então, olha bem. Aqui não existe a poeira[34] do Templo nem a
água que há lá, e não há palavras escritas com tintas para tornar muitíssimo
amarga a água, que é o julgamento do ciúme e do adultério. Mas aqui estou
Eu. E Eu faço o julgamento.
A voz de Jesus é um toque de trompa, de tão penetrante que é.
O povo se comprime para ver. Somente Maria Santíssima e Maria de
Alfeu é que ficaram socorrendo a mãe desmaiada.
– E eu faço julgamento assim. Dai-me uma pitada de poeira e uma gota
de água em um pequeno cântaro. E, enquanto me providenciais isso, vós
que acusais, e tu, que és acusado, respondei-me. És tu inocente, meu filho?
Responde com sinceridade a Este que é o teu Salvador.
– Sim, eu o sou, Senhor.
– Aser, podes jurar que só disseste a verdade?
– Eu juro. Não teria motivo para mentir. Eu juro pelo altar. Que desça
do Céu um fogo que me queime, se eu não estiver dizendo a verdade.
– Jacó, podes tu jurar que estás sendo sincero na acusação e que a fazes
sem nenhum segredo, que te leve a mentir?
– Eu juro por Javé. Somente o amor para com o amigo morto é que me
leva a falar. Com este aqui eu nada tenho de pessoal.
– E tu, servo, podes jurar que disseste a verdade?
– Mil vezes o jurarei, se for preciso! O meu patrão, o meu pobre
patrão! –e chora, cobrindo a cabeça com a capa.
– Está bem. Aqui está a água, e aqui está a poeira. E a palavra é esta:
“Tu, Pai Santo e Deus Altíssimo, faze o julgamento da verdade, por meio de
Mim, de modo que a vida e a honra sejam dadas ao inocente e à sua mãe
desconsolada, e um justo castigo seja dado aos que não são inocentes. Mas,
pela graça que Eu tenho aos teus olhos, nem fogo nem morte, mas que uma
longa expiação venha para aqueles que cometeram o pecado.”
Ele diz estas palavras, conservando as mãos estendidas sobre o pequeno
cântaro, como faz o sacerdote no altar, durante a Missa, no ofertório.
Depois mergulha a direita no cântaro e, com a mão molhada pela água,
borrifa os quatro que estão sob julgamento, e os faz beber um gole daquela
água. Primeiro o jovenzinho e depois aos outros três.
248.10Depois cruza os braços sobre o peito, e fica olhando para eles. A
multidão também está olhando e, poucos minutos depois, eles dão um urro,
e se jogam com os rostos no chão. Então os quatro, que estavam em fila,
olham-se uns aos outros e também urram, por sua vez, por primeiro o
jovenzinho, de espanto e os outros de horror. Porque eles se veem cobertos
no rosto de uma lepra repentina, enquanto que o jovenzinho ficou imune.
O servo se joga aos pés de Jesus, que se desvia como todos, até os
soldados, e ao desviar-se, toma pela mão o jovenzinho Abel, a fim de que
não se contamine, ficando perto dos três leprosos. E o servo grita: “Não!
Não! Perdão! Eu estou leproso! Foram eles que me pagaram para que
fizesse que o meu patrão ficasse atrasado até à tarde, a fim de que pudessem
feri-lo na estrada deserta. Fizeram-me tirar as ferraduras da mula, que
estava calçada. Ensinaram-me a mentir, dizendo que eu havia ido na frente.
Mas eu ia com eles para matá-lo. E vou dizer também porque fizeram isso.
Porque Joel percebeu que Jacó amava a sua jovem mulher, e porque Aser
queria a mãe deste aqui, mas ela o repelia. Então, eles combinaram ficar
livres de Joel e de Abel, ao mesmo tempo, para se aproveitarem das
mulheres deles. Eu já disse. Tira-me a lepra, tira-a. Abel, tu és bom, pede tu
por mim!”
– Tu vai para a casa de tua mãe. Que ela, quando voltar do seu desmaio,
veja o teu rosto e volte à sua vida em paz. E vós… A vós Eu deveria dizer:
“Que vos seja feito aquilo que fizestes.” E seria uma justiça humana. Mas
Eu vos entrego a uma expiação sobre-humana. A lepra, com a qual estais
horrorizados, vos livrará de serdes apanhados e mortos, como mereceis.
Povo de Belém, afasta-te, abre caminho, como as águas do mar, para deixar
que estes passem indo para as suas longas galés. Terríveis galés. Mais
atrozes do que uma morte rápida. E isso é ainda uma piedade divina, a fim
de dar-lhes o modo de poderem arrepender-se, se o quiserem. Ide!
A multidão se move para perto dos muros, deixando livre o centro da
rua, e os três, recobertos agora pela lepra, como se houvesse muitos anos
que estavam doentes, vão, um atrás do outro, para a montanha. No silêncio
e no crepúsculo, que vem baixando e que faz calar as vozes dos passarinhos
e dos quadrúpedes, só se ouve o pranto deles.
– Purificai o caminho com muita água, depois de vos terdes queimado
com o fogo. E vós, soldados, ide e contai que a justiça foi feita, segundo a
mais perfeita lei de Moisés.
E Jesus quer ir para onde sua Mãe e Maria de Cléofas estão
continuando a socorrer a mulher que, lentamente vem voltando a si,
enquanto seu filho lhe acaricia as mãos geladas e as beija.
248.11Mas as pessoas de Belém, com um respeito quase aterrorizado,
pedem:
– Fala-nos, Senhor. Tu és realmente poderoso. Tu és certamente aquele
de quem falou o homem, que por aqui passou anunciando o Messias.
– Eu falarei à noite, perto do redil dos pastores. Por ora, vou confortar a
mãe.
E vai até à mulher, que está sentada no colo da Maria de Alfeu, e já vai
recobrando os sentidos, cada vez mais, olhando para o rosto amoroso de
Maria, que lhe sorri, mas não conseguindo ainda entender nada, até o
momento em que desce o olhar até a cabeça morena de seu filho, que está
inclinado sobre suas mãos vacilantes, e pergunta:
– Morri eu também? Este é o Limbo?
– Não, mulher. Esta é a terra, este é o teu filho, que foi salvo da morte.
E este é Jesus, meu Filho, o Salvador.
A mulher faz um movimento perfeitamente humano, em primeiro lugar.
Ela ajunta suas forças, e se inclina para a frente, a fim de pegar a cabeça
inclinada do seu filho e, então, vê que ele está vivo e são, e o beija
freneticamente, chorando, rindo, procurando lembrar-se de todos os nomes
que ele teve no berço, para dizer-lhe sua alegria.
– Sim, mamãe, sim. Mas agora olha, não para mim. Olha para Ele. Para
Ele que me salvou. Bendize o Senhor.
A mulher, ainda muito fraca para levantar-se, ou para pôr-se de joelhos,
estende as mãos, que estão tremendo e sangrando ainda, e pega na mão de
Jesus, cobrindo-a de beijos e de lágrimas.
Jesus lhe põe a mão esquerda sobre a cabeça, dizendo-lhe:
– Sê feliz. Em paz. E sê sempre boa. E tu também, Abel.
– Não, meu Senhor. A minha vida e a de meu filho são tuas. Porque Tu
as salvaste. Deixa que eu acompanhe os discípulos, como eu já desejava,
desde que eles estiveram aqui. Eu te dou minha vida com grande alegria e te
peço que deixes que eu o siga para servi-lo e servir aos servos de Deus.
– E a tua casa?
– Oh! Senhor! Pode quem ressuscitou da morte ter ainda os afetos que
tinha, antes de morrer? Mirta ficou livre da morte e do Inferno por Ti. Neste
povoado eu poderia chegar a odiar aqueles que me torturaram, quando
maltrataram o meu filho. E Tu pregas o amor. Eu sei. Deixa, pois, que a
pobre Mirta ame ao único que merece amor, à sua missão e aos seus servos.
Agora estou exausta, e não poderia acompanhar-te. Mas, logo que eu puder,
permite-me, Senhor. Estarei em tua companhia e perto de meu Abel…
– Seguirás o teu filho e a Mim com ele. Sê feliz. Fica em paz agora.
Com a minha paz. Adeus.
E, enquanto a mulher, ajudada pelo filho e por algumas pessoas
compadecidas dela, vai entrando em casa, Jesus, com os pastores, apóstolos,
sua Mãe e Maria de Alfeu, volta para fora do povoado, indo depois para o
redil que fica na extremidade de uma estrada, que termina nos campos…
248.12… Uma grande fogueira foi acesa para iluminar a reunião. Sentados
em semicírculos nos campos, muitos estão esperando que Jesus chegue para
falar. Enquanto isso, eles estão conversando sobre os acontecimentos do
dia.
Está presente também Abel, com o qual muitos se congratulam,
dizendo que todos acreditavam em sua inocência.
– Mas estáveis prontos para matar-me! Até tu, que me havias saudado
na porta de casa, justamente na hora em que estava sendo morto Joel –o
jovenzinho não pôde conter-se sem responder.
E acrescenta:
– Mas eu perdôo em nome de Jesus.
Eis que Jesus vem vindo do redil, na direção deles. Alto, vestido de
branco, rodeado pelos apóstolos, acompanhado pelos pastores e pelas
mulheres.
– A paz esteja com todos vós.
Se ter vindo foi bom para instaurar o Reino de Deus entre vós, então
bendito seja o Senhor. Se ter chegado em tempo para impedir um delito
serve também para dar a três culpados o modo de se redimirem, bendito
seja o Senhor. Agora, entre todas as muitas coisas em que este dia nos leva
a meditar, e que vamos meditar, enquanto a noite vai descendo e enfaixando
em suas trevas a alegria de dois corações e o remorso de outros três — e em
suas trevas esconde, como um véu pudico, as lágrimas alegres dos
primeiros e as ardentes dos outros, mas que Deus está vendo — há também
a que nos ensina como de tudo o que Deus nos deu como Lei nada é inútil.
248.13A lei dada por Deus, de nome é muito observada em Israel. Mas na
realidade não o é. A lei está lá, analisada, esviscerada, esmiuçada, até fazê-
la morrer, torturada por pequenas sutilezas. Ela lá está. Mas, assim como
um cadáver mumificado não tem vida, respiração, circulação do sangue,
ainda que tenha a aparência de alguém que está imobilizado pelo sono,
assim a Lei não tem vida, nem respiração, nem sangue em muitos, muitos,
muitos corações. Em uma múmia, sentamo-nos como em um escabelo.
Sobre uma múmia podem apoiar-se objetos, vestes e também sujeiras,
certos de que ela não se revolta porque está morta. Assim muitos fazem da
Lei um escabelo, um apoio, um desencargo para suas sujeiras, certos de que
ela não se revolta nas suas consciências, porque para eles ela está morta.
Eu poderia comparar uma grande parte de Israel às florestas
petrificadas, que se veem espalhadas pelo vale do Nilo e no deserto do
Egito. Eram bosques e mais bosques de plantas vivas, nutridas de linfa,
sussurrando ao sol, belas de copas, de flores, de frutos. Faziam dos pontos
onde surgiam, pequenos paraísos terrestres, queridos pelo homens e pelos
animais, que esqueciam da aridez desolada do deserto, a sede ardente, que
as areias produzem no homem, penetrando-lhe até às faces com seu pó
quente. Esqueciam-se então do sol desapiedado que calcifica os cadáveres
em pouco tempo, descarnando-os, consumindo em pó as carnes e deixando
estendidos por entre as camadas de areia esqueletos e mais esqueletos,
polidos, como por um atento operário. Esqueciam tudo nesta sombra verde,
sussurrante, rica de águas e de frutos que restauravam, consolavam, davam
audácia para novos percursos.
Depois, por uma ignorada causa, como coisas malditas, foram não só
secando, como fazem as plantas que, tendo morrido, servem ainda para
fazer fogo nas lareiras do homem, ou fogueiras para alumiar a noite, para
conservar longe as feras e diminuir a umidade da noite para os peregrinos
que vêm de povoados distantes. Mas estas aqui não serviram como lenha.
Viraram pedra. Pedra. A sílica do solo parece ter subido, por algum
sortilégio, das raízes para o tronco, para os ramos, para a copa. os ventos
quebraram depois os pequenos galhos, mais fraquinhos, que se tornaram
semelhantes ao alabastro, que é duro e mole ao mesmo tempo. Mas os
galhos mais robustos lá estão sobre seus troncos poderosos, para enganar as
caravanas cansadas que, no reflexo deslumbrante do sol, ou à luz espectral
da lua, veem perfilar-se às sombras dos troncos em pé sobre seus planaltos,
ou no fundo dos vales que só conhecem água no tempo das grandes cheias,
e que, por necessidade de um refúgio, de tomar alimento, de um poço, de
frutas frescas e, pelo cansaço dos olhos ofuscados pelo sol nos areais sem
abrigo, precipitam-se rumo às florestas fantasmas. Verdadeiros fantasmas!
Ilusórias aparências de corpos vivos! Reais presenças de coisas mortas.
Eu as vi. Ficaram impressas em Mim, ainda que eu fosse pouco mais do
que uma criança, como uma das coisas mais tristes da terra. Assim me
haviam parecido, enquanto Eu não toquei, não medi, não pesei as coisas
totalmente tristes da Terra, porque são coisas completamente mortas, as
coisas imateriais, ou seja, as virtudes e as almas mortas. Mortas as primeiras
nas almas, mortas as almas porque se mataram.
248.14A Lei está em Israel. Mas está ali como as plantas petrificadas estão
no deserto: tornaram-se sílica. Morte. Objeto de engano. Objeto destinado à
corroer-se sem servir. Antes prejudicando, porque criando miragens que
seduzem, afastando dos verdadeiros oásis, fazendo morrer de sede, de fome,
de desolação, atraindo-os para a morte. Morte que atrai outros para a morte,
como se lê em certas fábulas dos mitos pagãos.
Vós hoje tendes um exemplo do que é uma Lei reduzida a pedra, em
uma alma também reduzida a pedra. É pecado de toda espécie, e criador de
desventura. Que isto vos sirva para aprenderdes a viver e para fazerdes
viver a Lei em vós, na sua integridade, que Eu ilumino com luzes de
misericórdia.
A noite já vai alta. As estrelas estão olhando para nós e, com elas,
Deus. Levantai o olhar para o céu estrelado, e elevai o espírito para Deus.
E, sem críticas para com os infelizes, já punidos por Deus, e sem orgulho
por estardes sem o pecado deles, prometei a Deus e a vós mesmos não cair
na aridez das plantas malditas dos desertos e dos vales do Egito.
A paz esteja convosco.
Ele os abençoa, e depois se retira para o amplo recinto do redil, rodeado
pelos rústicos pórticos, sob os quais os pastores estenderam muito feno para
servir de cama para os servos do Senhor.
[34] a poeira etc. são os elementos para realizar o julgamento de Deus prescrito em Números 5,11-31.
249. Maria Santíssima ensina Judas Iscariotes
sobre o valor proeminente da fidelidade a Deus.
10 de agosto de 1945.
249.1Uma manhã calma e cheia de sol torna mais agradável a marcha por
sobre as colinas, que continuam sempre na direção do oeste, isto é, do mar.
– Fizemos bem em chegar aos montes nas primeiras horas da manhã,
debaixo de um sol assim. Mas por aqui há sombras e frescor. Tenho pena
daqueles que vão pela estrada romana. Ela é boa para o inverno –diz
Mateus.
– Depois destas colinas, já teremos o vento do mar. E ele sempre
melhora o ar –diz Jesus.
– Vamos comer lá em cima. No outro dia estava tão bonito. E, ainda
deve ser mais bonito, porque o Carmelo está mais perto e o mar está mais
próximo –acrescenta Tiago de Alfeu.
– É tão bela a nossa pátria! –exclama André.
– Sim. Aqui há de tudo. Montes nevoentos e colinas amenas, lagos, rios,
plantas de toda espécie e nem lhe falta o mar. Ela é realmente a terra das
delícias, que os nossos salmistas, os nossos profetas, os nossos grandes
guerreiros e poetas celebraram –diz Tadeu.
– Dize-nos alguma passagem[35], tu que sabes tantas coisas –pede-lhe
Tiago de Zebedeu.
– “Com a beleza do Paraíso, Ele formou a terra de Judá.
Com o sorriso de seus anjos, decorou a terra de Neftali e, com os rios
de mel do céu, deu sabor aos frutos de sua terra.
Toda a natureza se espelha em ti, ó pedra preciosa de Deus, dada por
Ele ao seu povo santo.
Mais doce do que os cachos carregados de uvas que amadurecem nas
encostas de teus montes, mais suave do que o leite que enche os úberes de
tuas ovelhas, mais inebriante do que o mel, que tem o sabor das flores que
te vestem, ó terra feliz, é a tua beleza para o coração de teus filhos.
O céu desceu para tornar-se um rio, que une as duas pedras preciosas,
para fazeres com elas um par de brincos, e uma cintura sobre o teu vestido
verde.
O teu Jordão canta, e um dos teus mares ri, enquanto o outro nos faz
lembrar que Deus é terrível, e as colinas parecem ficar dançando, nas horas
da tarde, como alegres meninas em um prado, e os teus montes rezam, nas
auroras, com os anjos ou cantam aleluia diante do sol ardente, ou também
adoram, junto com as estrelas, o teu poder, Senhor Altíssimo.
Não nos fechaste dentro de limites, mas, diante de nós, deixaste o mar
aberto, para dizer-nos que o mundo é nosso.”
– Que bonito, hein? Bonito mesmo! Eu nunca estive mais longe do que
no lago e em Jerusalém. Durante anos e anos, não vi mais do que isso. Até
agora, conheço só a Palestina. Mas tenho certeza de que nada de mais belo
existe no mundo –diz Pedro, cheio de orgulho nacional.
– Maria me dizia que é muito bonito também o vale do Nilo –diz João.
– E o homem de Endor fala de Chipre como de um paraíso –acrescenta
Simão.
– É. Mas a nossa terra!…
E os apóstolos, todos, menos Iscariotes e Tomé, que estão em
companhia de Jesus, um pouco adiante, continuam, louvando as belezas da
Palestina.
Por últimas, vêm as mulheres, que não podem deixar de apanhar
sementes de flores para plantá-las em seus jardins, ou porque são bonitas ou
porque vão servir de lembrança da viagem que fizeram.
249.2Águias, creio marítimas, e também abutres, fazem longos voos ao
redor do cume das colinas, voando baixo, às vezes, à procura de alguma
presa. E uma briga começa entre dois deles, que estavam dando suas voltas
e os dois já estão perdendo penas, em um elegante e feroz duelo, que
termina com a fuga do vencido, o qual talvez saia dali para ir morrer sobre
algum pico distante. Pelo menos assim é que acham todos, pois o vôo dele é
um vôo de cansado, de moribundo.
– A cobiça lhe fez mal –comenta Tomé.
– A cobiça e a obstinação fazem sempre mal. Também àqueles três de
ontem!… Eterna misericórdia! Que triste sorte! –diz Mateus.
– Não ficarão mais sãos? –pergunta André.
– Pergunta ao Mestre.
Jesus, interrogado, responde:
– Melhor seria perguntar se eles se converterão… Porque, em verdade,
Eu vos digo que é preferível morrer leproso e santo, a morrer são e pecador.
A lepra continua sobre a terra, no sepulcro. Mas o pecado continua para a
eternidade.
– A mim agradou muito o teu discurso de ontem à tarde –diz
249.3
Zelotes.
– Mas a mim, não. Foi muito severo para muitos em Israel –diz
Iscariotes.
– Estás tu entre esses muitos?
– Não, Mestre.
– E então? Por que te incomodas com o assunto?
– Porque pode prejudicar-te.
– Deveria Eu, então, para não ser prejudicado, transigir e ficar cúmplice
dos pecadores?
– Não digo isto. Isto não podemos fazer. Mas não atrair a inimizado dos
grandes…
– Quem cala, consente. Eu não concordo com as culpas. Nem dos
pequenos nem dos grandes.
– Mas, viste o que aconteceu com o Batista?
– Foi a sua glória.
– A sua glória? Parece-me que foi a sua ruína.
– Perseguição e morte por fidelidade ao nosso dever são uma glória
para o homem. O mártir é sempre glorioso.
– Mas, com a morte, ele impede a si mesmo de ser mestre, causa dor
aos seus discípulos e familiares. Sai ele de todo sofrimento, mas deixa os
outros em sofrimentos bem maiores. O Batista não tem parentes, é verdade.
Mas tem sempre deveres para com os discípulos.
– Mesmo que tivesse parentes, ele faria como fez. A vocação é mais do
que o sangue.
– E o quarto mandamento?
– Esse vem depois dos que são dedicados a Deus.
– Uma mãe, tu viste ontem como sofre por um filho…
– Mãe, vem cá.
Maria logo vai a Jesus e lhe pergunta:
– Que queres, meu Filho?
– Minha Mãe, Judas de Keriot está perorando a tua causa, porque ele te
ama e me ama.
– A minha causa? Em que ponto?
– Ele quer me persuadir a ter mais prudência, para que Eu não receba o
golpe, como nosso parente, o Batista. E ele me diz que Eu preciso ter dó das
mães, poupando-me por causa delas, porque assim o quer o quarto
mandamento. Que dizes a isso? Eu te passo a palavra, ó Mãe, para que
ensines com doçura este nosso Judas.
249.4– Eu digo que não amaria mais o meu Filho como Deus, e que
chegaria até a duvidar se não me teria sempre enganado sobre a sua
Natureza, se eu o visse faltar à sua perfeição, rebaixando o seu pensamento
com considerações humanas, perdendo de vista as considerações sobre-
humanas: isto é, o trabalho de redimir, a procura dos homens para redimí-
los, por amor deles mesmos e para a glória de Deus, mesmo às custas de
suscitar sofrimentos e rancores. Eu o amaria ainda como a um filho
transviado por alguma força maligna, mas só por piedade, porque é meu
filho, e porque ele iria ser um infeliz, mas já não mais com aquela plenitude
de amor com que o amo, agora que eu o vejo fiel ao Senhor.
– A Si mesmo, queres dizer.
– Ao Senhor. Agora Ele é o Messias do Senhor, e deve ser fiel ao
Senhor, como todos os outros, e até mais do que os outros, porque Ele tem
uma missão maior do que qualquer outra que já tenha havido, que há e que
haverá sobre a Terra, e certamente Ele tem de Deus os auxílios
proporcionados para tão grande missão.
– Mas, se lhe acontecesse algum mal, não chorarias?
– Choraria todas as minhas lágrimas. Mas choraria lágrimas de sangue,
se o visse traindo a Deus.
– Isto diminuirá em muito as culpas dos que o perseguirão.
– Por quê?
– Porque, tanto tu como Ele, estais como que a justificá-las.
– Não fiques pensando assim. As culpas serão sempre iguais aos olhos
de Deus, tanto quando nós julgamos que uma coisa é inevitável, como se
julgamos que nenhum homem de Israel deveria ser culpado para com o
Messias.
– Um homem de Israel? E, se fossem pagãos, não seria a mesma coisa?
– Não. Para os pagãos só haveria a culpa contra um seu semelhante.
Mas Israel sabe quem é Jesus.
– Muitos em Israel não o sabem.
– Não o querem saber. São incrédulos de propósito. À falta de caridade
eles unem, por isso, a incredulidade e negam a esperança. Pisar nas três
virtudes principais não é uma das menores culpas, Judas. É grave,
espiritualmente grave, mais do que o ato material para com o meu Filho.
Judas, por falta de argumentos, se abaixa para amarrar uma das
sandálias e assim fica para trás.
249.5Chegam ao cume, ou melhor, a uma beira, que está quase no cume,
de um dos lados, e que se estende para a frente, como se estivesse querendo
sair correndo para o riso azul daquele mar sem fim. Um bosque cerrado de
azinheiras tem sob suas copas, uma luz de esmeralda clara, pontilhada por
frágeis agulhas de sol, que brilha sobre a crista do monte, tão graciosa,
arejada e aberta sobre a praia do mar, já bem perto, em frente da majestosa
cordilheira do Carmelo. Lá embaixo, aos pés do monte, que tem aquela
beira que se projeta no espaço, como se quisesse voar por sobre pequenas
lavouras a meia encosta, lá está um estreito vale, com uma profunda
torrente, que certamente há de ser imponente pela violência das águas, nos
tempos de enchente, mas que agora está reduzida a um espumar de prata, no
centro do leito. A torrente corre para o mar e passa, raspando, pela base do
Carmelo. Uma estrada está perto da torrente e sobe pela margem direita,
indo fazer ligação de uma cidade colocada no centro da enseada da costa
com as cidades do interior, talvez da Samaria, se é que eu estou me
orientando bem.
– Aquela cidade é Sicaminon –diz Jesus–. Estaremos lá no fim da tarde.
Agora vamos descansar, porque a descida é difícil, ainda que seja fresca e
curta.
E, sentados em círculo, enquanto se assa em um rústico espeto um
cordeirinho, certamente um presente feito pelos pastores, eles vão
conversando uns com os outros e com as mulheres…
[35] alguma passagem: os trechos citados não parecem tomados textualmente da sacra Escritura, que todavia reflete o
250. Aos discípulos vindos com Isaque,
a parábola do lodo que se torna chama.
João de Endor é alma vítima.
11 de agosto de 1945.
250.1É justamente às margens da profunda torrente, que Jesus vai
encontrar Isaque, com muitos discípulos conhecidos e desconhecidos.
Entre os conhecidos estão o sinagogo de Águas Belas, Timoneu; José,
acusado de incesto em Emaús; o jovem que deixou de ir sepultar o pai para
acompanhar Jesus; Estêvão; o leproso Abel, purificado um ano antes, perto
de Corozaim com o seu amigo Samuel. Aí está também o barqueiro de
Jericó, Salomão e muitos outros e outros, que eu reconheço, mas dos quais
não me recordo absolutamente do lugar onde os vi, nem de seus nomes. São
rostos conhecidos e já são tantos, tantos conhecidos como rostos de
discípulos. E depois outros, que são conquistas de Isaque, ou dos próprios
discípulos nomeados acima, que acompanham o núcleo principal, enquanto
estão esperando um encontro com Jesus.
O encontro vai ser afetuoso, alegre e respeitoso. Isaque está radiante em
sua alegria por ver o Mestre e para poder mostrar-lhe o seu rebanho novo.
E, como prêmio, ele pede uma palavra de Jesus para o grupo que ele tem
consigo.
– Sabes de algum lugar tranquilo onde possamos reunir-nos?
– Na extremidade do golfo há uma praia deserta, na qual há caminhos
de pescadores e que não são frequentadas nesta estação, porque elas são
insalubres e porque a estação da pesca dos peixes a serem salgados já
terminou. Agora eles vão para a Siro-Fenícia pescar moluscos. Muitos deles
já creem em Ti, por terem te ouvido falar nas cidades marítimas e por terem
encontrado os discípulos e eles têm me cedido as casinhas para o nosso
repouso. Voltamos para cá, depois de uma missão. Porque há muito que
fazer nesta costa.. Ela está totalmente corrompida em tantas coisas. Eu
gostaria de chegar até a Siro-Fenícia, e poderia fazê-lo por mar, porque o
litoral está muito abrasado pelo sol, para que se possa ir por ele a pé. Mas
eu sou pastor, não sou marinheiro e entre estes não há ninguém que saiba
trabalhar com a vela.
Jesus o ouve atentamente, com um leve sorriso, e está um pouco
inclinado, pois Ele fica muito alto, quando está à frente do pequeno pastor
que, como um soldado, está referindo tudo ao seu general, e lhe responde:
– Deus te ajuda pela tua humildade. Se Eu aqui sou conhecido, é por
causa de ti, discípulo, e não por causa de outros. 250.2Agora vamos perguntar
aos do lago se estão dispostos a velejar pelo mar e iremos, se pudermos, à
Siro-Fenícia.
Jesus se vira, então, à procura de Pedro, André, Tiago e João que estão
em animada conversação com alguns discípulos enquanto Judas Iscariotes
está atrás, cumprimentando Estêvão, e Zelotes com Bartolomeu e Filipe,
estão perto das mulheres. Os outros quatro estão perto de Jesus.
Os quatro pescadores chegam logo.
– Estais dispostos a viajar de barca pelo mar? –pergunta-lhes Jesus.
Os quatro olham-se um ao outro, perplexos. Pedro começa a despentear
o cabelo, enquanto reflete. Depois pergunta:
– Mas, para onde? Muito ao largo, no mar? Mas nós somos peixes de
água doce…
– Não, ao longo da costa, até Sidon.
– Eu acho que se pode. Que dizeis a isso?
– Eu também acho. Mar ou lago sempre é a mesma coisa: é água –diz
Tiago.
– Ou melhor: será mais belo e fácil –diz João.
– Eu não sei por que o julgas assim –lhe responde seu irmão.
– Por seu amor ao mar. Quem ama uma coisa, vê tudo o que é bom nela.
Se tu amasses assim uma mulher, serias um esposo perfeito –caçoa Pedro,
sacudindo afetuosamente João.
– Não. Eu digo porque em Ascalon vi que as manobras são iguais, e a
navegação é muito serena –responde João.
– Então, vamos! –exclama Pedro.
– Mas seria sempre melhor levarmos alguém do lugar. Nós não
conhecemos este mar nem a profundidade das águas por aqui –observa
Tiago.
– Oh! Eu nem penso nisso! Nós temos Jesus conosco! Antes, eu não me
sentia seguro, mas depois que Ele acalmou o lago! Vamos, vamos com o
Mestre a Sidon. Talvez haja coisas boas a fazer –diz André.
– Então, iremos. Tu procurarás as barcas para amanhã. Faze que Judas
de Simão te dê a bolsa.
E juntos, misturados os apóstolos e os discípulos, — e não se pode
250.3
dizer em que festa estão, e são aqueles que já são bem conhecidos de Jesus
— voltam por onde vieram, e se dirigem à cidade, andando ao redor dela
pela periferia, até alcançarem a ponta extrema da baía, que se projeta como
braço encurvado para o mar. Os poucos casebres, espalhados pela costa,
saibrosa e curta, representam a parte mais miserável da cidade, a mais
despovoada, e onde se fica só de passagem. Agora as casinhas são cubos
com paredes roídas pela salinidade e pela velhice, todas fechadas e, quando
os discípulos as vão abrindo, vão mostrando sua miséria enfumaçada e seus
móveis reduzidos só mesmo ao mínimo indispensável.
– Aí estão elas. São muito cômodas e limpas, ainda que não sejam
bonitas –diz Isaque que lhes faz honra.
– Bonitas não são, mas pobrezinhas. Em Águas Belas havia um palácio
real, em comparação. E ainda havia quem se queixasse! –resmunga Pedro.
– Mas para nós são uma fortuna.
– Certo, muito bem! O que importa é ter um teto, e nos querermos bem.
Oh! Olha aqui nosso João. Como vais? Onde estavas?
Mas João de Endor, ainda que, sorrindo para Pedro, vai correndo
prestar sua veneração a Jesus, que o saúda com palavras muito boas.
– Eu não mandei que ele viesse, porque ele não estava bem… Acho
melhor que ele fique aqui. Ele sabe tratar bem com os da cidade e com
quem pede notícias do Messias… –diz Isaque.
De fato, o homem de Endor está muito mais magro do que antes. Mas
seu rosto está sereno. O emagrecimento torna mais delicados os seus
modos, pelos quais ele nos leva a pensar em alguém que já está sofrendo o
martírio duplo da carne e do espírito.
Jesus o observa e lhe pergunta:
– Estás doente, João?
– Não mais do que estava, antes de te ver. Isto, quanto à carne. Mas na
alma, se é que eu me julgo bem, vou ficando curado das minhas feridas
particulares.
Jesus olha ainda para o olhar pacífico dele, para aquela fronte escavada
nas têmporas, e não diz mais nada. Mas põe-lhe a mão sobre o ombro e
entra com ele em uma casinha, para onde foram levadas bacias com água do
mar, para refrescarem os pés cansados, e moringas de água fresca para
matarem a sede, enquanto lá fora, sobre uma mesa rústica, à sombra de um
suporte de plantas trepadeiras, estão sendo preparadas as mesas. E é bonito,
enquanto o crepúsculo vem descendo e o mar murmura as orações da tarde
com leve marulhar da ressaca sobre a praiazinha saibrosa, ver a cena de
Jesus com as mulheres e os apóstolos, sentados à rústica mesa, enquanto os
outros, parte sentados no chão, e outra parte em cadeiras ou cestas
emborcadas, fazem um círculo ao redor da mesa principal. Depressa acabou
a ceia, e mais depressa ainda foi tirada a mesa, porque os pratos eram muito
poucos e só para os hóspedes mais importantes. O mar tornou-se já de um
anil azul escuro em uma noite ainda sem luar. Toda sua majestade se revela
é nesta hora triste e solene, própria das costas marinhas.
250.4Jesus, com toda sua altura, vestido de branco por entre as sombras
cada vez mais escuras, levanta-se da mesa e vai para o meio do pequeno
grupo de discípulos, enquanto as mulheres se retiram. Isaque e algum outro
vão acendendo sobre a areia pequenas fogueiras para alumiar a noite ou
para conservar longe as nuvens de pernilongos, que parecem estar vindo
dos brejos próximos.
– A paz esteja com todos vós.
A misericórdia de Deus nos une, antecipando-se ao tempo fixado e
dando uma recíproca alegria aos nossos corações. Eu perscrutei todos estes
vossos corações moralmente bons, como demonstra o fato de estardes aqui,
à minha espera, para que Eu vos forme, espiritualmente ainda imperfeitos,
como o demonstram certas reações vossas, que mostram como em vós
ainda perdura o velho homem de Israel, com todos os seus conceitos e
preconceitos, e ainda não saiu disso, como a borboleta sai da larva, o
homem novo, o homem do Cristo, que do Cristo recebe a ampla, a luminosa
e misericordiosa mentalidade, e ainda mais ampla, a caridade. Mas não vos
sintais molestados, se Eu vos perscrutei e vos li em todos os vossos
segredos. Um Mestre deve conhecer os seus alunos, para poder corrigi-los
em seus defeitos, e, podeis crer-me, se ele é um bom mestre, não fica
aborrecido com os mais defeituosos, mas pelo contrário, para eles ele se
inclina mais, a fim de melhorá-los. E vós sabeis que Eu sou um bom
Mestre.
E agora vamos ver juntos essas reações e esses preconceitos.
Procuremos considerar juntos o motivo pelo qual aqui estamos, e a alegria
que este fato de estarmos juntos nos dá. Saibamos bendizer ao Senhor, que
sempre do bem de alguém em particular, obtém também um bem coletivo.
250.5Eu ouvi dos vossos lábios a vossa admiração por João de Endor e
vossa admiração maior ainda por ele se professar um pecador convertido, e
porque sobre aquela sua antiga qualidade e sobre esta nova é que ele apoia a
sua tese de pregação àqueles que ele quer trazer a Mim. É verdade. Ele era
um pecador. Agora é um discípulo. Muitos de vós já vieram ao Messias por
meio dele. Vede, pois, que justamente com aqueles meios, que o velho
homem de Israel desprezaria, é que Deus cria o novo povo de Deus.
Agora Eu vos peço que deixeis de julgar, com juízo doentio, a presença
de uma irmã, que o velho Israel não compreende como possa ser discípula.
Eu ordenei que as mulheres fossem descansar. Mas não foi somente o
desejo de dar-lhes repouso, mas o de poder dar-vos uma santa avaliação do
que é uma conversão, e de impedir que cometais pecado contra o amor e
contra a justiça. Foi esta a razão pela qual dei aquela ordem, que certamente
entristeceu as discípulas.
Maria de Magdala, a grande pecadora de Israel, a que não tinha
desculpas para o seu pecado, voltou para o Senhor. E de quem haverá ela de
esperar fé e misericórdia, senão de Deus e dos servos de Deus? Todo Israel,
e com Israel os estrangeiros que estão entre nós, aqueles que bem a
conhecem e a julgam com severidade, agora que ela não é mais cúmplice
deles em suas devassidões, criticam esta ressurreição e zombam dela.
Ressurreição. É a palavra mais exata. Ressuscitar uma carne, não é o
maior milagre. Este é um milagre sempre relativo, porque destinado a ser
um dia anulado pela morte. Eu não dou imortalidade ao que ressuscitou na
carne, mas dou eternidade ao ressuscitado no espírito. E, enquanto um
morto na carne não une a sua vontade de ressurgir à minha, e por isso não
existe mérito de sua parte, no ressuscitado no espírito está presente a sua
vontade, e ela é até a primeira a estar presente. Por isso, não está ausente o
mérito do ressuscitado.
Não vos digo isto para justificar-me. Somente a Deus devo prestar
contas de minhas ações. Mas vós sois os meus discípulos. Os meus
discípulos hão de ser segundos Jesus. Não deve haver neles nenhuma
ignorância e nenhuma daquelas inveteradas culpas, pelas quais muitos estão
unidos a Deus somente de nome.
250.6Tudo é capaz de boas ações. Até as coisas aparentemente menos
aptas para sê-lo. Quando uma matéria se apresenta à vontade de Deus, ainda
que fosse a mais inerte, gelada, suja, pode transformar-se em movimento,
chama, beleza pura.
Eu vos cito uma comparação tirada do[36] livro dos Macabeus.
Quando Neemias foi reenviado pelo rei da Pérsia a Jerusalém, no
Templo reconstruído e no altar purificado quiseram que se oferecessem os
sacrifícios. Neemias se lembrava de como, no momento da captura por
parte dos persas, os sacerdotes que se ocupavam do culto de Deus foram
apanhar o fogo do altar e o esconderam em um lugar secreto, no fundo de
um vale, em um poço profundo e seco, e fizeram isso tão bem e tão
secretamente, que só eles ficaram sabendo onde estava o fogo sagrado.
Disto se lembrava Neemias e, lembrando-se disso, tomou os netos daqueles
sacerdotes, para que fossem àquele lugar que, antes de morrer, os sacerdotes
haviam revelado aos seus próprios filhos, transmitindo assim o segredo de
pais para filhos, e lá apanhassem o fogo do sacrifício. Mas, descendo os
netos ao poço secreto, não acharam fogo mas densa água, lodo podre,
pesado, que chegou até ali, depois de se ter filtrado de todas as cloacas
entupidas da Jerusalém devastada. E eles foram dizer isso a Neemias. Mas
ele ordenou que fosse apanhada aquela água e lhe levassem. E feito pôr a
lenha sobre o altar, sobre a lenha, os sacrifícios, aspergiu abundantemente
tudo, para que todas as coisas ficassem aspergidas com aquela água lodosa.
O povo espantado e os sacerdotes escandalizados olharam e fizeram aquilo
com respeito, somente porque era Neemias que estava mandando. Mas
quanta tristeza nos corações! Quanta desconfiança! Como no céu havia
nuvens a tornar triste o dia, assim nos corações a dúvida a tornar
melancólicos os homens. Mas o sol rompeu as nuvens e desceu com os seus
raios sobre o altar, e a lenha, borrifada com a água lodosa, se acendeu com
grande fogo e logo consumiu o sacrifício, enquanto os sacerdotes rezavam,
com as orações compostas por Neemias e com os hinos mais belos de
Israel, até que se queimou todo o sacrifício. E, para persuadir à multidão de
que Deus pode, mesmo com as matérias menos adequadas, mas usadas para
um fim reto, produzir prodígios, Neemias ordenou que o resto da água fosse
derramado sobre grandes pedras. E as pedras molhadas também soltaram
chamas, e nestas elas se consumiram, desaparecendo na grande luz que
vinha do altar.
250.7Cada alma é um fogo sagrado posto por Deus no altar do coração, a
fim de que sirva para queimar o sacrifício da vida, com amor ao Criador da
mesma. Cada vida é um holocausto, se for bem usada, e cada dia é um
sacrifício a ser consumado com santidade. Mas, vêm os salteadores, os
opressores do homem e de sua alma. O fogo se afunda no fundo do poço. E
isso, não por alguma necessidade santa, mas por alguma estultícia nefasta.
E lá, submerso durante séculos por todas as sentinas dos vícios, torna-se ele
lama podre e pesada, até que desça naquela profundeza um sacerdote, e leve
de novo para a luz do sol aquela lama, colocando-a sobre o holocausto do
seu próprio sacrifício. Porque, ficai sabendo, não basta o heroísmo a quem
quer se converter. Exige-se também o de quem quer convertê-lo. Digo até
que este deve preceder àquele, porque as almas se salvam é pelo nosso
sacrifício. Porque é assim que se consegue que a lama se transforme em
chama e Deus julgue perfeito e agradável à sua santidade o sacrifício que se
consuma.
É então que, não bastando ainda para persuadir ao mundo que uma
lama arrependida é ainda mais ardente do que fogo comum, ainda que seja
fogo consagrado, pois o fogo comum só serve para queimar lenha e vítimas,
isto é, matérias adequadas para serem queimadas, eis que esta lama
arrependida se torna tão poderosa, que acende e queima até as pedras, que
são materiais incombustíveis.
E não vos pergunteis de onde vem a esta lama tal propriedade? Não
sabeis?
Eu vo-lo digo: porque, no ardor do arrependimento, eles se fundem
com Deus, chama com chama. Chama que sobe, chama que desce. Chama
que se oferece amando, chama que se concede amando. Abraço de dois que
se amam, que se reencontram, que se unem, fazendo uma só coisa. E, uma
vez que a chama maior é a de Deus, esta transborda, domina, penetra,
absorve, e a chama do barro arrependido não é mais a chama relativa de
uma coisa criada, mas a chama infinita de uma Coisa Incriada, do
Altíssimo, Potentíssimo, Infinito, de Deus.
Isto é que são os grandes pecadores, verdadeiramente convertidos, que
generosamente se entregaram à conversão, sem nada guardarem do passado,
queimando como primeira coisa a si mesmos, em sua parte mais pesada,
com a chama que se levanta de sua lama, tendo corrido ao encontro da
Graça, e movidos por Ela. Em verdade, em verdade Eu vos digo que muitas
pedras em Israel serão atacadas pelo fogo de Deus, por meio destas
fornalhas ardentes que queimarão sempre mais, até a consumação da
criatura humana e que continuarão a queimar as pedras, tibiezas, incertezas,
timidezes da Terra, lá do seu trono no Céu, como verdadeiros espelhos
ardentes sobrenaturais, que recolhem as Luzes Unas e Trinas para fazê-las
convergir sobre a humanidade e acendê-las em Deus.
250.8Eu vos repito que não tinha necessidade de justificar as minhas
ações, mas Eu quis que penetrásseis no meu conceito e o fizésseis vosso.
Por enquanto, e para outros casos futuros semelhantes, quando Eu já não
estiver convosco.
Um conceito errôneo, uma suspeita farisaica de contaminar a Deus,
levando-lhe um pecador arrependido, não vos impeça nunca de fazer esta
obra, que é um coroamento perfeito da missão a que Eu vos destino. Tende
sempre presente que Eu não vim salvar os santos, mas os pecadores. E fazei
vós de modo semelhante, porque o discípulo não é mais do que o Mestre e,
se Eu não tenho repugnância de tomar pela mão os refugos da Terra, que
sentem necessidade do Céu, que a sentem finalmente, jubilosos; então, Eu
os levo para Deus, porque esta é a minha missão e, se toda conquista é uma
justificação da minha Encarnação, que mortifica o Infinito, não tenhais
repugnância em fazê-lo vós também, ó homens limitados que, mais ou
menos todos conhecestes a imperfeição, feitos vós da mesma natureza que
os vossos irmãos pecadores, homens que Eu elejo como salvadores, para
que seja continuada a minha obra nos séculos dos séculos da Terra, como se
Eu estivesse continuando a viver nela em uma existência secular.
E tal será, porque a união dos meus sacerdotes será como a parte vital
do grande corpo da minha Igreja, da qual Eu serei o Espírito animador e, ao
redor dessa parte vital, concentrar-se-ão todas as infinitas partículas dos que
creem, a formar um único corpo, que do meu Nome tirará o seu nome. Mas,
se faltasse a vitalidade na parte sacerdotal, poderiam ter vida as infinitas
partículas? É verdade que Eu, enquanto estou aqui, poderia estender a
minha Vida até às partículas mais longínquas, deixando de lado as cisternas
e os canais entupidos ou inúteis, que opõem resistência ao ministério deles.
Porque a chuva cai onde quer e as partículas boas, capazes por si mesmas
de querer a vida, viveriam do mesmo modo a minha Vida. Mas, que seria,
então, o cristianismo? Apenas uma vizinhança de umas almas com outras.
Vizinhas e, no entanto, separadas por canais e cisternas, que já não são um
laço de união, distribuindo a cada partícula o sangue vital, que vem de um
centro único. Mas haveria muros e precipícios de separação, através dos
quais as partículas se olhariam, humanamente hostis umas às outras,
sobrenaturalmente aflitas, dizendo em seus espíritos: “Contudo, nós éramos
irmãos e tais ainda nos sentimos, por mais que nos tenham separado!” Há
uma vizinhança. Não uma fusão. Não um organismo. E, sobre esta ruína,
resplandeceria, doloroso, o meu amor…
E ainda. Não penseis que isto valha somente para os cismas religiosos.
Não. Vale também para todas as almas que ficam sozinhas, porque os
sacerdotes se recusam a ampará-las, a ocupar-se com elas, a amá-las, indo
contra a sua missão, que é a de dizer e de fazer o que Eu digo e faço, isto é:
“Vinde a Mim vós todos, que Eu vos conduzirei a Deus.”
250.9Ide agora em paz, e Deus esteja convosco.
O povo se dispersa lentamente, indo cada um para as casinhas que os
hospedam. Levanta-se também João de Endor, que sempre tomou
apontamentos, enquanto Jesus estava falando, deixando-se atormentar pela
proximidade do fogo para poder ver o que estava escrevendo. Mas Jesus o
faz parar, dizendo-lhe:
– Fica um pouco com o teu Mestre.
E o conserva perto de Si, até que todos se tenham afastado.
– Vamos até aquela pedra à beira d’água. A lua já vai ficando mais alta,
e já se pode ver o caminho.
João concorda, sem nada responder. Afastam-se uns duzentos metros,
mais ou menos, das casas, assentam-se em uma grande pedra, que eu não
sei se são os escombros de um molhe ou a última ponta de algum recife,
que se afundou no mar, ou então as ruínas de algum casebre meio engolido
pelas águas, que talvez tivessem avançado, durante séculos, pelo litoral
adentro. Só sei que da pequenina praia pode-se subir, apoiando os pés em
buracos e saliências, que formam como que degraus, do lado do mar, a
parede desce quase reta, e mergulha na água azul. Neste momento, porém,
por causa da maré, este obstáculo está rodeado de água, que resmunga e o
esbofeteia levemente, depois foge, soltando um som como o de uma grande
expiração, para calar-se em seguida por um momento e voltar outra vez,
sempre com um movimento e um som regulares, produzido por novas
bofetadas, expirações e silêncios, como em uma música sincopada.
Assentam-se exatamente no alto do rochedo batido pelo mar. A lua está
fazendo uma estrada prateada sobre a superfície das águas, e faz que o mar
fique de um azul muito escuro e que, antes do surgir do astro, não era mais
do que uma vastidão tenebrosa, dentro de uma noite sem luz.
250.10– João, não dizes ao teu Mestre a causa por que está sofrendo o teu
corpo?
– Tu o sabes, Senhor. Mas não digas “está sofrendo.” Dize: “Está se
consumindo.” É mais exato, e Tu sabes, e sabes que ele se consome com
alegria. Obrigado, Senhor. Eu também me reconheço na lama que se torna
chama. Mas eu não terei tempo de acender as pedras. Meu Senhor, eu
morrerei logo. Muito eu sofri pelo ódio do mundo e muito eu me alegro
pelo amor de Deus. Mas eu não me queixo da vida. Aqui eu poderia ainda
pecar e faltar com a missão a que nos destinas. Duas vezes eu já faltei em
minha vida. A minha missão de mestre, porque nela eu devia saber
encontrar com que formar a mim mesmo e não me formei. A minha missão
de marido, porque eu não soube formar minha mulher. Mas era lógico: se eu
não havia sabido formar a mim mesmo, não podia formá-la. Eu poderia
faltar também à minha missão de discípulo. E faltar para contigo, eu não
quero. Seja, pois, bendita a morte, se ela vem levar-me para onde não se
pode pecar! Mas, se eu não tiver a sorte do discípulo que ensina, terei a
sorte do discípulo que é vítima, e essa será a que mais se parece com a tua.
Tu disseste esta tarde: “Queimando, em primeiro lugar, a si mesmos.”
– João, é uma sorte que suportas, ou é uma oferta que fazes?
– Uma oferta que faço, se é que Deus não despreza a lama que se faz
fogo.
– João, tu já fazes muitas penitências.
– Os Santos as fazem, a começar por Ti. É justo que as faça aquele que
tem muito que pagar. Mas Tu talvez aches que as minhas não são
agradáveis a Deus? Proíbes que eu as faça?
– Eu nunca crio obstáculos para as boas aspirações de uma alma
enamorada. Eu vim para pregar com fatos que no sofrimento está a
expiação e na dor está a redenção. Eu não posso contradizer-me.
– Obrigado, Senhor. Será a minha missão!
250.11– Que escrevias, João?
– Oh! Mestre! Algumas vezes o velho Félix reaparece com seus hábitos
de mestre. E fico pensando em Marziam. Ele tem uma vida inteira para
pregar o teu nome, mas ele não está, por sua idade, presente às tuas
pregações. Fiquei pensando em anotar certos ensinamentos que Tu nos
deste, e que o menino não ouviu, ocupado em seus brinquedos, ou longe de
Ti com um de nós. Nas tuas palavras, até nas menores, há tanta sabedoria!
As tuas conversações familiares são já um ensinamento e tratam das coisas
de cada dia, a respeito de coisas bem pequeninas, mas que são as mais
importantes da vida, porque acumulando-se, as pequeninas formam uma
grande soma, que exige paciência, constância, resignação, para que a vida
seja vivida com santidade. Mais fácil é cumprir um grande, e fazer um
grande e único ato heroico, do que mil e dez mil pequenas coisas, que
exigem uma constante presença da virtude. E, no entanto, não se chega ao
ato grande, tanto no mal, como no bem, — e eu sou atraído pelo mal,— se
não se faz o exercício de acumular pequenos atos por muito tempo, atos
aparentemente insignificantes. Eu comecei a matar, quando, cansado da
frivolidade de minha mulher, olhei para ela com o primeiro olhar de
desprezo. Para Marziam eu anotei as tuas pequenas lições. E esta tarde eu
senti desejo de anotar a tua grande lição. Deixarei o meu trabalho para o
menino, a fim de que ele se recorde de mim, o velho mestre, e para que ele
tenha o que de outro modo não teria. É o seu esplêndido tesouro. As tuas
palavras. Tu dás licença?
– Sim, João. Mas fica em paz em tudo, como este mar. Estás vendo?
Para ti seria abrasador andar ao ardor do sol, pois a vida apostólica já é um
verdadeiro ardor. Já lutaste tanto em tua vida. Deus te está chamando a Si
neste plácido luar, que tudo ameniza e purifica. Caminha na doçura de
Deus. E Eu te digo: Deus está contente contigo.
João de Endor pega a mão de Jesus e a beija, murmurando:
– Contudo, teria sido também bonito dizer ao mundo: “Vem a Jesus!”
– Tu dirás isso lá do Paraíso, sendo tu também um espelho ardente.
Vamos, João. Eu gostaria de ler o que escreveste.
– Aqui está, Senhor. E amanhã eu te darei o outro rolo, no qual anotei as
tuas palavras.
Descem do seu rochedo e, em um alvíssimo luar, que transformou em
prata o saibro da margem, voltam para as casas. E saúdam-se, João
inclinando-se e Jesus abençoando-o, com a mão colocada sobre a cabeça
dele e dando-lhe a sua paz.
[36] tirada do 2 Macabeus 1,18-36.
251. Aos pescadores siro-fenícios,
a parábola do mineiro perseverante.
Ermasteu de Ascalon.
12 de agosto de 1945.
251.1São as primeiras horas da manhã quando Jesus chega diante de uma
cidade à beira do mar. Quatro barcas seguem a sua.
A cidade é impelida ao mar a dentro estranhamente, como se tivesse
sido construída sobre um istmo. Como se um pequeno istmo ajuntasse a
parte que se espalha sobre o mar com a que se estendeu pela margem[37].

Olhada do mar, ela parece mais um enorme cogumelo colocado sobre


as ondas com o seu cume e fincado por suas raízes na costa: o istmo é o pé.
Do lado de cá e do lado de lá dele, dois portos; um, aquele do norte, menos
fechado, é pleno de pequenas embarcações; o outro, do sul, mais abrigado,
para grandes navios, que chegam ou que partem.
– É preciso ir lá –diz Isaque, acenando para as pequenas barcas–. Lá é
que ficam os pescadores.
Fazem a volta à ilha e aí é que posso ver como o istmo é artificial: é
uma espécie de dique ciclônico, que une a pequena ilha à terra firme.
Naquele tempo se construía sem fazer economia. Isto é o que eu deduzo por
esta obra e pelo número dos navios nos portos, quanto a cidade era rica e de
grande atividade comercial. Atrás da cidade, depois de uma zona plana, há
pequenas colinas de belo aspecto e, muito ao longe, se vê o grande Hermon
e a cordilheira do Líbano. Deduzo também que esta aqui era uma das
cidades que eu via do Líbano.
A barca de Jesus está entrando agora pelo porto setentrional e já está no
ancoradouro do porto, mas ela não atraca, mas vai lenta, à força de remos
adiante e atrás, até Isaque avistar os que ele estava procurando, e os chama
em alta voz.
251.2Veem vindo na frente duas belas barcas de pesca, e toda a
equipagem se inclina para as barcas menores dos discípulos.
– O Mestre está aqui conosco, meus amigos. Vinde, se quereis ouvir sua
palavra. Esta noite retorna para Sicaminon –diz Isaque.
– Nós já vamos indo. Para onde devemos ir?
– Para um lugar tranquilo. O Mestre não vai descer em Tiro, nem à
cidade da terra. Ele vai falar da barca. Escolhei um lugar que tenha sombra
e que seja bem abrigado.
– Vinde atrás de nós, no rumo dos penhascos. Lá há enseadas tranquilas
e sombreadas. Podereis até descer.
E vão indo para uma reentrância que há nos rochedos, mais ao norte. A
costa, cortada a pique, serve como abrigo contra o sol. O lugar é solitário.
Só as gaivotas e os pombos selvagens é que vivem aqui, daqui saindo para
suas ligeiras excursões por sobre o mar, de onde voltam, com grandes gritos
de protesto, para os seus ninhos na rocha.
Mas outras pequenas naves já se uniram às que vão à frente, formando
uma flotilha. No fundo deste pequenino golfo há um arremedo de praia. É
realmente um arremedo: trata-se de uma praiazinha toda coberta de pedras.
Mas uma centena de pessoas pode caber nela.
Descem, fazendo uso de uma pedra larga e chata, que se estende sobre
as águas fundas, como se fosse um molhe natural, e vão-se colocando sobre
a praiazinha pedregosa, sobre a qual o sal cristalizado está brilhando. São
homens morenos, magros, queimados pelo sol e pelo mar. Por debaixo de
suas curtas vestes, veem-se, descobertas, as suas pernas ágeis e delgadas. É
bem visível a diversidade desta raça da dos judeus presentes, e ela se parece
mais com a dos galileus. Eu diria que estes siro-fenícios têm mais
semelhança com os longínquos filisteus do que com os povos que lhes são
mais vizinhos. Pelo menos assim são os que eu estou vendo.
251.3Jesus vira as costas para a terra, e começa a falar.
– Lê-se[38] no livro dos Reis como o Senhor ordenou a Elias que fosse a
Sarepta dos Sidônios, durante a seca e a carestia que vinham afligindo a
terra, havia mais de três anos. O Senhor não tinha falta de meios para matar
a fome do seu profeta em qualquer lugar, e o mandou a Sarepta, não porque
essa cidade fosse rica em alimentos. Não. Pelo contrário, lá se estava
morrendo de fome. Por que, então, terá Deus mandado para lá Elias, o
Tesbita?
Havia em Sarepta uma mulher de coração reto, viúva e santa, mãe de
um menino, pobre, sozinha e, apesar de tudo, não era rebelde ao castigo,
não era egoísta em sua fome, não era desobediente. Deus quis premiá-la,
dando-lhe três milagres. Um, pela água que ela levou a um sedento; outro,
pelo pequeno pão cozido debaixo das cinzas, quando ela já não tinha nada
mais do que um punhado de farinha; e outro, pela hospitalidade de que usou
para com o profeta. Deus lhe deu o pão e o óleo, a vida do filho e o
conhecimento da palavra de Deus.
Vós estais vendo que um ato de caridade não só mata a fome do corpo,
tira a dor da morte, mas instrui a alma na sabedoria do Senhor. Vós também
destes alojamento aos servos do Senhor e Ele vos dá a palavra da sabedoria.
A esta terra aonde não chega a palavra do Senhor, eis que um ato bom a faz
chegar. Eu posso comparar-vos àquela única mulher de Sarepta que acolheu
o Profeta. Porque, se Eu tivesse descido à cidade dos ricos e dos poderosos,
eles não me teriam acolhido, e os atarefados mercadores e marinheiros
teriam feito pouco caso de Mim, e inútil teria sido a minha vinda.
Agora, Eu vou deixar-vos, e vós direis: “Mas, que somos nós? Um
punhado de homens. Que possuímos nós? Uma gota de sabedoria.” E, no
entanto, Eu vos digo: “Eu vos deixo o encargo de anunciar a hora do
Redentor.” Eu vos deixo, repetindo as palavras do Profeta Elias: “A ânfora
de farinha não se esvaziará. O óleo não diminuirá mais, até que venha quem
com mais abundância o distribua.”
Vós já o fizestes. Porque aqui há fenícios misturados a vós, que sois do
outro lado do Carmelo. Isto é sinal de que falastes, assim como vos foi
falado. Vede que o punhado de farinha e a gotinha de óleo não se
esgotaram, mas sempre cresceram. Continuai a fazê-las crescer. E, se vos
parecer que seja estranho que Deus vos tenha escolhido para esta obra, e
não vos sentirdes dispostos a executá-la, dizei a palavra da grande
confiança: “Farei o que tu dizes, confiando em tua palavra.”
251.4– Mestre, mas como teremos que comportar-nos com estes pagãos?
Estes, nós os conhecemos pela pesca. O mesmo trabalho nos leva a viver
uma vida em comum. Mas, com os outros? –pergunta-lhe um pescador de
Israel.
– O trabalho em comum nos leva a vivermos todos em comum, dizes tu.
E, então, não deveria tornar comum uma proveniência comum? Deus criou
os israelitas, como criou os fenícios. Os da planície de Saron e os da Alta
Judeia não são diferentes dos deste litoral. O Paraíso havia sido feito para
todos os filhos do homem. E o Filho do Homem veio para levar ao Paraíso
todos os homens. A meta é conquistar o Céu e dar glória ao Pai. Vós vos
encontrais, pois, no mesmo caminho:amai-vos espiritualmente, assim como
vos amais por motivo de trabalho.
– Isaque nos falou muitas coisas. Mas nós quereríamos saber algumas
mais. É possível termos um discípulo que de nós fique tão longe?
– Manda para o meio de nós, Mestre, João de Endor. Ele é muito capaz
de agir e está habituado a conviver com os pagãos –sugere Judas de Keriot.
– Não. João fica conosco –responde curtamente Jesus.
E depois, dirigindo-se aos pescadores:
– Quando termina a pesca dos moluscos?
– Com as tempestades do outono. Depois delas, o mar fica agitado
demais por aqui.
– Voltareis então para Sicaminon?
– Ali mesmo. E também para Cesareia. Nós fazemos fornecimento aos
romanos.
– Podereis, então, encontrar-vos de novo com os discípulos. E,
enquanto isso, perseverai.
251.5– Há a bordo de minha barca um que eu não queria e que veio em
teu nome, como se fosse dos teus.
– Quem é?
– Um jovem pescador de Ascalon.
– Faze-o descer e vir até aqui.
O homem vai a bordo, e volta com um rapazinho, muito confuso, por
estar sendo alvo de tantas atenções. O apóstolo João o reconhece:
– É um daqueles que nos deram o peixe, Mestre –e se levanta para ir
saudá-lo–. Tu vieste, Hermasteu? Até aqui? Estás sozinho?
– Sozinho. Em Cafarnaum eu fiquei envergonhado. Eu permaneci na
costa, esperando…
– Esperando o quê?
– Esperando ver o teu Mestre.
– Que ainda não é o teu? Por que, meu amigo, ficas ainda hesitando?
Vem à Luz que te espera. Olha como Ele está te observando e sorrindo.
– Como é que eu vou ser tratado?
– Mestre, vem conosco um pouco.
Jesus se levanta, e vai até João.
– Ele não tem coragem, porque é estrangeiro.
– Para Mim não há estrangeiros. E os teus companheiros? Não éreis
muitos?… Não te perturbes, Só tu soubeste perseverar. Mas, até contigo
somente Eu já estou feliz. Vem comigo.
Jesus volta ao seu lugar, com sua nova conquista.
– Este, sim, que daremos a João de Endor –diz ao Iscariotes.
251.6E depois o diz a todos:
– Um grupo de escavadores desceu a uma mina, onde eles sabiam que
existiam alguns tesouros, mas que estavam muito escondidos nas vísceras
do solo. E começaram a escavação. O terreno, porém, era duro e o trabalho,
cansativo.
Muitos deles ficaram cansados, jogaram para longe as picaretas, e
foram-se embora. Outros praguejaram contra a sua sorte, contra o trabalho,
contra a terra, contra o metal e, cheios de raiva, feriram com violência a
terra e despedaçaram o filão, transformando-o em migalhas inúteis, e
depois, tendo conseguido fazer ruínas sem ganharem nada, também eles
foram-se embora. Só ficou o mais perseverante. Bem disposto, ele foi
abrindo as camadas da terra dura, perfurando-a com cuidado, procurou
examinar bem, aprofundou mais e, finalmente, um esplêndido filão precioso
ficou exposto à vista. A paciência do escavador foi premiada e, com o metal
puríssimo que ele encontrou, pôde conseguir fazer muitos trabalhos de
ourivesaria, conquistou muita glória e muitos clientes, porque todos querem
é daquele metal, que só a perseverança soube encontrar lá onde os outros,
preguiçosos ou iracundos, nada haviam conseguido.
Mas o ouro que foi encontrado, para ficar bonito a ponto de já servir ao
ourives, precisa, por sua vez, perseverar na vontade de deixar-se trabalhar
pelo homem. Se o ouro, depois do primeiro trabalho da escavação, não
quiser mais sofrer nada, ficaria sendo um metal bruto e não trabalhável. Vós
estais vendo, pois, que não basta o primeiro entusiasmo para ter logo bons
resultados, nem como apóstolos, nem como discípulos, nem como fiéis. É
necessário perseverar. Eram muitos os companheiros de Hermasteu, e,
naquele primeiro entusiasmo, haviam prometido que viriam todos. Mas só
ele veio. Muitos são os meus discípulos e mais ainda serão. Mas, só a terça
parte da metade é que saberão sê-lo até o fim. Perseverar. Eis a grande
palavra. Para todas as coisas boas.
Vós, quando jogais o tresmalho para arrancar as conchas dos moluscos,
será que o fazeis uma vez só? Não. Mas uma vez depois da outra, durante
muitas horas, muitos dias, durante meses, prontos a voltar àquele ponto no
ano seguinte, porque esse trabalho é que dá pão e fartura a vós e às vossas
famílias. E, então, quereríeis agir de modo diferente, quando se trata de
coisas maiores, como são os interesses de Deus e de vossas almas, se fordes
fiéis, das vossas e das dos vossos irmãos, se fordes discípulos? Em verdade
Eu vos digo que para extrair a púrpura para as vestes eternas, é preciso
perseverar até o fim.
251.7E agora fiquemos bons amigos, até a hora de voltarmos. Assim nos
conheceremos melhor, e será fácil reconhecermo-nos uns aos outros…
E eles se espalham pela pequena enseada rochosa, cozinhando
mexilhões e caranguejos, arrancados dos penhascos e peixes apanhados
com pequenas redes, dormindo em uma cama de algas secas, dentro de
cavernas abertas por terremotos ou por ondas da costa rochosa, enquanto o
céu e o mar estão com um azul ofuscante, e se encontram um com o outro
no horizonte. As gaivotas fazem um contínuo carrossel de voos, do mar
para os ninhos, com gritos e bater de asas, e são as únicas vozes que, unidas
à do bater leve das ondas, ainda estão falando nestas horas mormacentas do
verão.
[37] pela margem. Segue o desenho que reproduzimos na mesma posição na qual se apresenta no caderno manuscrito. Precisa
virá-lo para ler a escrita: cidade sobre a costa – istmo – Parte da cidade sobre o mar.
[38] Lê-se… O episódio da viúva de Sarepta, feito alusão já em 106.3, é narrado em 1 Reis 17 e não será mais registrado. Da
história do profeta Elias é um dos episódios mais citados juntamente com aquele do rapto, narrado em 2 Reis 2,1-13 e recordado
em Siraque48, 9. Este último episódio já foi registrado em 41.3 e 192.1, será mencionado ainda 256.1, 507.3, 648.4 e 651.6.
Outras referências a Elias e a o seu sucessor Eliseu estão em 63.3 - 140.2 (citação não encontrada) - 253.2 - 258.7.9 - 266.12 (Elias
comparado com João Batista) - 322.2 - 349.8 - 380.3 - 381.9 - 454.5 - 483.8 - 554.6.7.
252. O retorno de Tiro. Milagres
e parábola da videira e do olmo.
13 de agosto de 1945.
252.1O povo de Sicaminon, atraído pela curiosidade de ver, andou
rodeando, durante o dia inteiro, o lugar onde estão os discípulos e
esperando a volta do Mestre. Mas as discípulas não perderam tempo e
foram lavar suas vestes poeirentas e suadas, e sobre a praiazinha está agora
estendida uma alegre exposição de vestes, enxugando ao vento e ao sol.
Agora, que está para chegar a tarde e, com a tarde, se faz sentir o gosto
salobro do ar úmido, elas se apressam em recolher as roupas, ainda um
pouco úmidas e em estendê-las em todos os sentidos, antes de dobrá-las, a
fim de que pareçam bem arrumadas aos seus respectivos donos.
– Vamos levar logo à Maria as vestes dela –diz Maria de Alfeu.
E termina:
– Ela ficou muito mal acomodada ontem e logo naquele quartinho sem
ar!
Por aí eu fico entendendo que a ausência de Jesus foi de mais de um dia
e que, durante aquele tempo, Maria de Magdala, dona de um só vestido,
teve que ficar escondida, enquanto o dela, que é emprestado, não estivesse
completamente enxuto.
Susana responde:
– Por sorte, ela não se queixa nunca. Eu não julgava que ela fosse tão
boa.
– É muito humilde, deves dizer. E reservada. Pobre filha! Era, de fato, o
diabo que a atormentava. Libertada dele pelo meu Jesus, ela voltou a ser
certamente como era quando menina.
E, falando as duas, uma com a outra, vão voltando para casa, levando a
roupa lavada.
Nesse ínterim, na cozinha Marta está muito atarefada, preparando a
refeição, enquanto a Virgem está lavando as verduras em uma pequena
bacia de cobre e depois as põe a cozinhar para a ceia.
– Aí está! Tudo já enxuto, limpo e dobrado. Havia necessidade de tudo
isso. Vai à Maria, e dá-lhe as vestes dela –diz Susana, entregando as vestes
à Marta.
As irmãs voltam juntas pouco depois.
– Obrigada às duas! O sacrifício de não ter podido mudar a roupa
depois de muitos dias era para mim o maior de todos, diz Maria de
Magdala, sorrindo. Agora me parece estar toda fresca.
– Vai sentar-te lá fora, que lá está soprando um ventinho gostoso. Deves
estar sentindo necessidade dele, depois de teres ficado tanto tempo fechada,
observa Marta que, sendo menos alta do que sua irmã e menos formosa,
pôde pôr uma veste de Susana ou de Maria de Alfeu, enquanto as dela
estavam na lavação.
– Desta vez foi assim. Mas para o futuro faremos o nosso pequeno saco,
como as outras e não teremos mais este incômodo –diz Madalena.
– Como? Então, pretendes acompanhá-lo como nós?
– Certamente. A não ser que Ele me ordene o contrário. Eu vou agora
até à margem, para ver se eles já vêm voltando. 252.2Será que voltarão esta
tarde?
– Assim espero, responde Maria Santíssima. Estou pensativa, porque
Ele foi à Fenícia. Mas penso também que Ele está com os apóstolos, e
penso ainda que os fenícios talvez sejam melhores do que muitos outros.
Mas eu quereria que Ele voltasse, também por causa das pessoas que o
estão esperando. Quando eu fui à fonte, uma mãe me fez parar para dizer:
“Estás com o Mestre galileu, aquele que chamam o Messias? Vem, então, e
olha o meu menino. Há um ano que a febre o atormenta.” Eu entrei em uma
casinha. Pobre criatura! Parece uma florzinha que está morrendo. Eu direi
isso a Jesus.
– Há outros mais que pedem cura. Mais querem cura do que
ensinamentos –diz Marta.
– O homem dificilmente é todo espiritual. Ouve mais fortes as vozes da
carne e as suas necessidades –responde a Virgem.
– Porém, há muitos que, depois do milagre, nascem para a vida do
espírito.
– Sim, Marta. É também por isso que meu Filho faz tantos milagres. Por
bondade para com o homem. Mas também para atraí-lo por aquele meio
para o seu Caminho, que, se não fosse assim, deixaria de ser seguido por
muitos.
252.3Retorna a casa João de Endor, que não tinha ido com Jesus, e com
ele muitos discípulos, que se dirigem para as casinhas, onde estão passando
estes dias. Quase ao mesmo tempo, vem vindo Madalena, e dizendo:
– Estão chegando. São as cinco barcas que partiram, ontem de
madrugada, conheci muito bem.
– Eles deverão estar cansados e com sede. Vou apanhar outra água. A da
fonte é muito fresca –diz Maria de Alfeu, e sai com as moringas.
– Vamos ao encontro de Jesus. Vinde –diz a Virgem.
E sai, com Madalena e João de Endor, porque Marta e Susana ficam, ao
lado dos fornos, coradas, e muito atarefadas em acabar de fazer a ceia.
Indo pela margem, chegam a um pequeno molhe, aonde outras barcas
de pesca tornaram a entrar e lá estão paradas. Da extremidade do molhe, vê-
se muito bem todo o golfo e a cidade que lhe dá o nome e veem-se também
as cinco barcas, que vêm chegando, ligeiras, um pouco inclinadas por causa
da velocidade, com as velas bem esticadas por um ventinho do norte, que
lhes está favorável e que serve de ajuda aos homens afadigados pelo calor.
– Olha só como Simão e os outros desempenham bem suas tarefas.
Acompanham corretamente a barca do piloto. Eis que já passaram o quebra-
mar, e agora pegam o largo, para contornar a corrente, que naquele ponto é
forte. Pronto! Agora vai tudo bem. Daqui a pouco, eles estão aqui –diz João
de Endor.
De fato, as barcas se avizinham cada vez mais, e já vão ficando visíveis
os seus passageiros.
252.4Jesus está na primeira, junto com Isaque. Ele se pôs em pé, e sua
elevada estatura aparece em toda a sua imponência, pois que, ao amainarem
a vela, esta deixa de escondê-lo por alguns minutos. E a barca, mudando de
direção, vai indo com a proa inclinada, para entrar ao abrigo do molhe,
passam à frente das mulheres, que estão precisamente sobre o molhe. Jesus
sorri para saudá-las, enquanto elas se põem a caminhar depressa, para
chegarem ao ponto da atracação, ao mesmo tempo que a barca.
– Deus te abençoe, meu Filho! –diz Maria, saudando a Jesus, que está já
descendo ao desembarcadouro.
– Deus te abençoe, minha Mãe. Ficaste pensativa? Em Sidon não estava
quem fomos procurar. Fomos até Tiro. E lá o encontramos. Vem,
Hermasteu… Ei-lo aqui, João. Este jovem quer ser ensinado. Eu o confio ti.
– Não te decepcionarei, pois o ensinarei com a tua palavra. Muito
obrigado. Mestre! Aqui há muitos que te esperam –responde João de Endor.
– Há também um pobre menino doente, meu Filho, e a mãe quer falar
contigo.
– Vou logo a ela.
– Eu sei quem é, Mestre. Eu te acompanho até lá. Vem tu também,
Hermasteu. Começa a conhecer a bondade infinita de nosso Senhor –diz o
homem de Endor.
Da segunda barca desce Pedro, da terceira Tiago, da quarta André, da
quinta João e os quatro pilotos, acompanhados pelos outros apóstolos ou
discípulos, que estavam com eles e que se aglomeram ao redor de Jesus e de
Maria.
– Ide para casa. Eu também irei logo. Preparai, entretanto, a ceia, e dizei
a quem estiver esperando que ao fim da tarde Eu irei falar.
– E se lá houver doentes?
– Eu os curarei em primeiro lugar. Até os curarei antes da ceia, para que
já possam voltar felizes para suas casas.
Eles se separam, e Jesus vai andando com o homem de Endor e
Hermasteu, rumo à cidade. Os outros voltam a andar pela praia saibrosa,
narrando tudo o que viram ou ouviram, contentes como crianças que
retornam à mãe.
252.5Judas de Keriot está contente também. Ele mostra a todos as
esmolas que os pescadores de moluscos quiseram dar-lhe, e mostra
especialmente um pequeno embrulho com um precioso material.
– Isto é para o Mestre. Se Ele não se veste com ela, quem poderá vestir-
se? Chamaram-me a um lado, para me dizerem: “Temos preciosas
madrepérolas na barca, e temos até uma pérola. Pensa. Um tesouro. Eu nem
sei como foi que nos tocou esta fortuna. Mas nós a damos de boa vontade
para o Mestre. Vem vê-las.” Eu fui para contentá-los, enquanto o Mestre se
havia afastado para uma gruta, a fim de lá rezar. Eram belíssimos corais e
uma pérola, não grande, mas bonita. Então, eu lhes disse: “Não vos priveis
dessas coisas. O Mestre não usa nenhuma joia. Em vez disso, dai-me um
pouco daquela púrpura para fazer com ela um ornamento para a sua veste.”
Eles tinham este embrulho. Quiseram dar-ma toda, com insistência. Mãe,
faze dela um belo trabalho, como tu sabes fazer, para o nosso Senhor. Mas,
faze-o, sabes? Se Ele perceber isso, vai querer vendê-la para dar o dinheiro
aos pobres. E para nós é agradável vê-lo vestido como Ele merece. Não é
verdade?
– Oh! Se é verdade! Eu sofro com isso, quando o vejo tão simples no
meio dos outros, Ele que é Rei no meio deles que são piores do que
escravos, e todos enfeitados com borlas e esplendores. E olham para Ele
como para um pobre indigno deles! –diz Pedro.
– Tu viste, não? Que risadas aqueles senhores de Tiro davam, quando
estávamos recebendo as despedidas dos pescadores? –responde-lhe seu
irmão.
– Eu disse: “Envergonhai-vos, vós que sois cães! Vale mais um fio da
veste branca dele do que todas as vossas borlas” –diz Tiago de Zebedeu.
– Eu quereria, já que Judas pôde receber todas essas coisas, que tu as
preparasses para a festa dos Tabernáculos –diz o outro Judas, o Tadeu.
– Eu nunca fiei com a púrpura… –diz a Virgem Maria, tocando no
sedoso e leve fio, muito macio, e de uma cor esplêndida.
– A minha nutriz tem experiência com isto. Nós a encontraremos em
Cesareia. Ela te ensinará. Aprenderás logo, porque tu sabes fazer tudo bem.
Eu faria um galão junto ao pescoço, junto às mangas e na barra da veste:
púrpura sobre um linho muito branco, ou lã muito branca, com palmas e
rosáceas, como as que estão sobre os mármores do Santo, e com o nó de
Davi no centro. Ficaria muito bem –diz Madalena, entendida em toda sorte
de belezas artísticas.
Marta diz:
– Nossa mãe fez aquele desenho, por ser muito bonito sobre a veste que
Lázaro usou em sua viagem pelas terras da Síria, quando foi tomar posse
delas. Eu o conservei porque foi o último trabalho de minha mãe. Eu te
mandarei.
– E eu o farei, rezando pela vossa mãe.
252.6Já chegaram às casas. Os apóstolos se espalham para irem juntar os
que querem estar com o Mestre, especialmente os doentes.
E Jesus volta com João de Endor e Hermasteu. E passa saudando, por
entre os que se comprimem, à frente das casinhas. O sorriso de Jesus já é
uma bênção.
Apresentam-lhe o doente dos olhos, que não podia faltar, quase cego
com suas oftalmias ulcerosas, e o cura. Depois é a vez de um outro,
certamente um maleitoso, já muito enfraquecido e amarelo como um
chinês, e o cura.
Depois é uma mulher, que lhe pede um milagre especial para ela: o leite
para o seu peito, que não tem mais leite e mostra um menino de poucos
dias, desnutrido e muito vermelho, como se tivesse algum desarranjo
intestinal. Ela está chorando:
– Estás vendo: Nós temos a ordem de obedecer ao homem e de procriar,
mas, que adianta, se depois temos que ver os filhos morrendo? Este é o
terceiro que eu gero, e dois já os fui deitar no sepulcro, por causa deste
peito estéril. Este já está morrendo, porque nasceu em tempo de grandes
calores. Os outros viveram, um dez meses e o outro seis, para me fazerem
chorar mais ainda, quando morreram por doença dos intestinos. Se eu
tivesse o meu leite, isso não aconteceria…
Jesus olha para ela e diz:
– O teu menino viverá. Tem fé. Vai para a tua casa e, logo que chegares
lá, dá o peito ao menino. Tem fé.
A mulher lá se vai, obediente, com o seu pequeno infeliz, que se
lamenta como um gatinho, que ela aperta sobre o coração.
– Mas, será que o leite lhe virá?
– Virá com certeza.
– Eu acho que o menino ficará livre de perigo, mas que o leite não virá,
e já será um milagre, se ele ficar fora de perigo. Ele já está quase morto de
tanto sofrer.
– Mas eu digo que lhe virá o leite.
– Sim.
– Não.
Os pareceres são diferentes, como as pessoas.
252.7Enquanto isso, Jesus se afasta dali, para ir tomar sua refeição.
Quando Ele sai, para ir pregar de novo, as pessoas são ainda mais
numerosas, porque a notícia do milagre do menino doente de febre,
realizado por Jesus apenas desembarcado, se espalhou pela cidade.
– Eu vos dou a minha paz, a fim de preparar o vosso espírito para
entender. Na tempestade não se pode conseguir ouvir a voz do Senhor. Toda
perturbação prejudica a Sabedoria, porque esta é pacífica, vinda de Deus. E
a perturbação não vem de Deus, porque as preocupações, as ânsias, as
dúvidas são obras do Maligno, para perturbar os filhos do homem e separá-
los de Deus.
Eu vos proponho esta parábola, para que melhor entendais o
ensinamento.
Um agricultor tinha muitas árvores em seus campos e videiras que
produziam muito fruto, dentre as quais havia uma de qualidade muito
apreciada e da qual ele muito se orgulhava. Certo ano aquela videira deu
muitas folhas e poucos cachos. Um amigo disse então, ao agricultor: “Foi
porque a podaste muito pouco.” No ano seguinte o homem a podou muito.
E a videira, então, produziu poucos sarmentos e menos cachos ainda. Um
outro amigo lhe disse: “Foi porque a podaste demais.” No terceiro ano o
homem a deixou parada. A videira não deu nenhum cacho e lançou bem
poucas folhas, magras, enroladas e atacadas pela ferrugem. Um terceiro
amigo sentenciou: “Ela está morrendo, porque o terreno não é bom.
Queima-a!” “Mas, por que, se o terreno é o mesmo terreno que as outras
têm, e se eu trato dela como trato das outras? Antes, ela produzia bem!” O
amigo encolheu os ombros e foi-se embora.
Passou por ali um viandante desconhecido, e parou para observar como
o agricultor estava triste e apoiado à cepa da pobre videira. “Que tens?”,
perguntou-lhe. “Alguém morreu em tua casa?”
“Não. Mas o que me está morrendo é esta videira, que eu amava tanto.
Ela não tem mais suco para produzir frutos. Um ano deu pouco, no outro
deu menos, e neste nada. Eu fiz tudo o que me disseram, mas não adiantou
nada.”
O viandante desconhecido entrou, então, na vinha e aproximou-se da
videira. Tocou nas folhas, apanhou um torrão no chão, o cheirou, depois o
esfarelou entre os dedos e levantou o olhar para um tronco que sustentava a
videira. “Deves tirar aquele tronco. A videira está esterilizada por ele.”
“Mas, se ele é o apoio dela há muitos anos?!”
“Responde-me, homem, quando tu plantaste esta videira aqui, como é
que estava a muda, e o olmo, como estava?”
“Oh! A muda era um belo mergulhão de três anos. Eu a havia tirado de
uma outra planta minha e, para trazê-la até aqui, eu tinha escavado
profundamente ao redor dela para não ofender as raízes, ao tirá-la de sua
gleba nativa. Além disso, eu tinha feito aqui uma cova igual, e até um
pouco maior, para que ela ficasse logo bem livre, e antes eu havia capinado
toda a terra ao redor, a fim de que ela ficasse macia para as raízes e assim
elas pudessem espalhar-se logo, sem encontrarem dificuldades. Com todo o
cuidado, eu a coloquei, pondo antes no fundo um atraente adubo. As raízes,
como sabes, tornam-se fortes, quando encontram logo o que as possa nutrir.
Menos eu me ocupei com o olmo. Pois era um arbusto destinado somente a
escorar o mergulhão. Por isso, eu a coloquei quase superficialmente perto
do mergulhão, escorei-o bem e fui-me embora. Mas a videira ia crescendo
de ano em ano, amada, podada, sachada. O olmo, porém, não crescia.
Contudo, ela está fazendo aquilo para que servia… Depois, ela foi-se
tornando robusta. E estás vendo agora como está bonita? Quando eu chego,
vindo de longe, e vejo a copa dela destacando-se, alta como uma torre, ela
me fica parecendo o distintivo do meu pequeno reino. Antes a videira a
cobria, e não se via a sua bela copa. Mas agora, olha como está bonita lá no
alto, ao sol! E, que tronco! Bem em pé e forte. Ele podia sustentar esta
videira anos e anos, mesmo que ela se tornasse igual àquelas cujos cachos
foram apanhados lá à beiro do Rio do Cacho pelos exploradores de Israel.
Mas, ao contrário…”
“Ao contrário, ele a matou. Ele a dominou. Tudo estava bem para que
ela vivesse, o terreno, a posição, a luz, o sol, os cuidados que tu lhe davas.
Mas ele a matou. Ele se tornou forte demais. E ele lhe foi amarrando as
raízes, até estrangulá-las, tirou dela todo o suco do solo, pôs-lhe uma
mordaça para que ela não respirasse, nem recebesse a luz. Corta logo o
olmo tão forte e inútil, e a tua videira viverá de novo. E melhor ainda
tornará a viver, se tu, com paciência, escavares o solo para descobrir as
raízes do tronco e cortá-las, até ficares certo de que delas não nascerão
brotos. Seus galhos irão murchar sobre o solo até em suas últimas
ramificações e de sua morte eles passarão para a vida, porque se
transformarão em adubo, depois do merecido castigo por seu egoísmo. O
tronco tu o queimarás, e assim ele ainda te dará coisas úteis. Não serve
senão para o fogo uma planta inútil e nociva, e ela é tirada para que todo
bem vá para a planta boa e útil. Tem fé nisto que te digo, e ficarás
contente.”
“Mas, quem és tu? Dize-o a mim, para que eu possa ter fé.”
“Eu sou o sábio. Quem crê em mim, está seguro”, e foi-se embora.
252.8O homem ficou por um momento, na dúvida. Depois se decidiu, e
foi pegar a serra. E resolveu chamar os amigos para que o ajudassem.
“Mas, não estarás louco?” “Além da videira, ainda perderás o olmo.”
“Eu me limitaria a podar-lhe a copa, para dar mais ar à videira. Nada mais.”
“Ela precisa sempre ter um espeque. Vais fazer um trabalho inútil.” “Sabes
lá quem era o tal homem? Talvez seja um que te odeia, sem que tu o
saibas.” “Ou, então, algum doido”, e por aí afora.
“Eu vou fazer o que ele me disse. Tenho fé nele”, e serrou o olmo rente
à raiz, e, ainda não contente, dentro de uma longa faixa do terreno, pôs a
descoberto as raízes das duas plantas e, com paciência, foi serrando as do
olmo, tomando cuidado para não ferir as da videira, depois tornou a encher
o grande buraco que havia feito, e, para a videira que tinha ficado agora
sem uma estaca, pôs encostada nela uma estaca de ferro, com a palavra
“Fé” escrita em uma tabuinha amarrada no alto da estaca.
Os outros saíram dali balançando a cabeça. Passou o outono e passou o
inverno. Chegou a primavera. As gavinhas se foram enrolando umas nas
outras e na estaca, e os sarmentos se enfeitaram com gêmulas e mais
gêmulas, primeiro fechadas como em um estojo, depois já entreabertas
sobre a esmeralda das folhinhas nascentes e, finalmente abertas para, em
seguida, estenderem da cepa novos sarmentos fortes, todos num florescer de
flores minúsculas, seguido de um grande pipocar de pequeninos bagos. Há
mais cachos do que folhas, e estas são largas, verdes, como o são os
sarmentos que, por enquanto, estão com dois, três ou mais cachos. E cada
cacho está cheio de bagos carnosos, suculentos e bonitos.
“E agora, que dizeis? Era, ou não era a árvore a causa por que estava
morrendo a minha videira? Tinha, ou não tinha falado bem o sábio? Tive,
ou não tive razão para escrever naquela tabuinha a palavra ‘Fé’?” Assim
disse o homem aos amigos incrédulos.
“Tiveste razão. Feliz de ti, que soubeste ter fé, e ser capaz de destruir o
passado, isto é, o que te foi dito de prejudicial.”
Esta é a parábola.
252.9E para o que aconteceu com a mulher do peito seco, aqui está a resposta.
Olhai para a cidade.
Todos eles se viram para a cidade, e veem a mulher de antes, que está
correndo, e mesmo correndo, não desapega o filhinho de seu peito cheio,
bem cheio de leite, que o pequeno faminto suga com uma tal voracidade,
que quase se sufoca. E a mulher não para a não ser quando está aos pés de
Jesus, diante do qual tira por um momento o menino do, peito e grita:
– Abençoa-o, abençoa-o, a fim de que ele viva para Ti.
Passado esse momento, Jesus continua:
– E, às vossas hipóteses sobre o milagre, acabais de receber as
respostas. 252.10Mas a parábola tem um sentido mais amplo do que o pequeno
episódio de uma fé recompensada. E é este.
Deus havia plantado sua videira, o seu povo, em um lugar apropriado,
fornecendo-lhe tudo o de que precisava para crescer e dar sempre mais
frutos, apoiando-o aos mestres, para que mais facilmente pudesse
compreender a Lei e fazer dela a sua força. Mas os mestres quiseram
superar o Legislador, e cresceram, cresceram, cresceram, até se imporem
mais do que a palavra eterna. E Israel se esterilizou. O Senhor mandou
então o Sábio para aqueles que em Israel, com ânimo reto, preocupavam-se
com aquela esterilidade e tentando este e aquele remédio, segundo os
ditames e conselhos dos mestres, sábios humanamente mas indoutos
sobrenaturalmente e, por isso, bem distantes de conhecer o que era
necessário fazer para dar vida ao espírito de Israel e para que pudessem dar
um conselho verdadeiramente salutar.
Pois bem. Que foi que aconteceu? Por que é que Israel não retoma as
suas forças e se torna vigoroso como nos tempos áureos de sua fidelidade
ao Senhor? Porque o conselho seria: tirar todas as coisas parasitárias que
cresceram em detrimento da Coisa Santa — Lei do Decálogo —, como foi
ela dada, sem compromissos, sem tergiversações, sem hipocrisias, tirar isto
para deixar ar, espaço, alimento para a Videira, para o Povo de Deus,
dando-lhe um apoio robusto, inflexível, único, de um nome luminoso: a Fé.
E este conselho não é aceito. Por isso, Eu vos digo que Israel perecerá,
enquanto poderia ressurgir e possuir o Reino de Deus, se soubesse crer e
generosamente arrepender-se e mudar substancialmente a si mesmo.
Ide em paz e o Senhor esteja convosco.
253. Maria de Alfeu e a maternidade
espiritualizada.
Maria Madalena deve se corrigir sofrendo.
14 de agosto de 1945.
253.1Ainda é noite, uma belíssima noite de quarto minguante quando
Jesus, silenciosamente, com os apóstolos e as mulheres, mais João de Endor
e Hermasteu, se despedem de Isaque, o único que já se levantou, e
começam a viagem ao longo da margem. O rumor de seus passos é somente
uma crepitação leve que fazem no cascalho calcado com suas sandálias e
ninguém fala nada, enquanto a última casinha não tiver ficado a alguns
metros para trás. É certo que quem dorme nela ou nas outras que estão antes
dela não terá percebido a silenciosa partida do Senhor e de seus amigos. O
silêncio é profundo. Somente o mar fala à lua, que já se inclinou para o
poente, iniciando o pôr-do-sol e contando às areias as histórias do abismo
com suas ondas longas da maré alta, deixando na praia uma margem enxuta
cada vez mais estreita.
Desta vez, as mulheres é que vão à frente, junto com João, Zelotes,
Judas Tadeu e Tiago de Alfeu, que ajudam as discípulas a superar pequenos
escolhos espalhados aqui e ali, úmidos de salobra e escorregadios. Zelotes
está com Madalena, João com Marta, enquanto Tiago de Alfeu se ocupa
com sua mãe e com Susana e Tadeu não cede a ninguém a honra de segurar
com suas longas e robustas mãos, — uma outra parte na qual ele se
assemelha a Jesus —, a mão pequenina de Maria e sustentá-la nos passos
difíceis. Cada um fala em voz baixa com a sua companheira. Parece que
todos queiram respeitar o sono da terra.
Zelotes fala fitando Maria de Magdala e vejo que mais de uma vez
Simão abre os braços num gesto de quem diz: “Assim é, e não há outra
coisa que fazer”, mas eu não ouço o que é que dizem, estando mais adiante.
João fala só de vez em quando com sua companheira, mostrando-lhe o
mar e o Carmelo cuja encosta, virada para o poente, ainda está branca com
a luz do luar. Talvez ele esteja falando do caminho feito na outra vez,
costeando o Carmelo por outra estrada.
253.2Também Tiago, entre Maria de Alfeu e Susana, está falando do Carmelo.
Ele diz à sua mãe:
– Jesus me prometeu subir lá em cima só comigo, e dizer uma coisa só a
mim.
– Que será que Ele te quererá dizer, meu filho? Tu me contarás depois?
– Minha mãe, se é um segredo, eu não posso contar –responde sorrindo,
com seu sorriso sempre afetuoso, Tiago, cuja parecença com José, esposo
de Maria, é muito visível em seus traços e também em sua pacífica
brandura.
– Para a mamãe não há segredos.
– E eu não os tenho mesmo. Mas, se Jesus me quer lá em cima sozinho
com Ele para me falar, isso é sinal de que Ele quer que ninguém fique
sabendo que Ele quer me dizer. E tu, minha mãe, és a minha querida
mamãe, que eu tanto amo, mas Jesus está acima de ti, e a vontade dele
também. Mas eu perguntarei a Ele, quando chegar a hora, se eu posso dizer-
te as palavras dele. Estás contente?
– Tu te esquecerás de perguntar-lhe.
– Não, mamãe. Eu não me esqueço nunca de ti, nem quando estás
longe. Quando eu ouço ou vejo qualquer coisa bonita, eu sempre penso: “Se
estivesse aqui a minha mamãe!”
– Meu querido! Dá-me um beijo, meu filho.
Maria de Alfeu está comovida. Mas sua comoção não mata sua
curiosidade. Ela volta ao assalto, depois de haver-se calado por uns
momentos:
– Tu disseste: a sua Vontade. vamos, pelos menos isso podes dizer. Que
isto Ele te disse, quando todos os outros estavam presentes.
– Na verdade, eu estava sozinho com Ele na frente –diz, sorrindo,
Tiago.
– Mas os outros podiam ouvir.
– Não me disse muita coisa, minha mãe. Mas Ele fez lembrar as
palavras[39] e a oração de Elias sobre o Carmelo: “Dos profetas do Senhor
só fiquei eu.” “Ouvi-me, para que este povo reconheça que Tu és o Senhor
Deus.”
– E que é que ele queria dizer?
– Quantas coisas tu estás querendo saber, minha mãe! Vai, então a
Jesus, e Ele te dirá –defende-se Tiago.
– Terá Ele querido dizer que, visto que o Batista está preso, de profeta
em Israel só terá ficado Ele como profeta em Israel, e que Deus o deve
conservar por muito tempo para que o povo possa ser ensinado –diz Susana.
– Hum! Eu creio pouco que Jesus peça para ser conservado por muito
tempo. Meu Tiago, dize isto à tua mãe.
– A curiosidade é um defeito, minha mãe, uma coisa inútil, perigosa, e,
às vezes, dolorosa. Faze, então, um belo ato de mortificação…
– Ai de mim! Não terá com certeza querido dizer que o teu irmão vai
ser preso, e talvez morto?! –diz, toda perturbada, Maria de Alfeu.
– Judas não é “todos os profetas”, minha mãe, ainda que, para o teu
amor cada filho seja como se fosse o mundo…
– Penso também nos outros… porque, entre os profetas futuros, estareis
certamente vós também. Então… Se ficas tu sozinho, é sinal de que os
outros, que meu Judas… oh!…
253.3Maria de Alfeu deixa onde estão Tiago e Susana, e, ligeira como se
fosse uma mocinha, corre lá para trás, sem dar atenção à pergunta que lhe
está fazendo Tadeu. Ela chega, como se estivesse sendo perseguida, ao
grupo de Jesus.
– Jesus meu,… eu estava falando com o meu filho… sobre tudo o que
lhe disseste… sobre o Carmelo…sobre Elias… sobre os profetas… Tu
disseste que Tiago vai ficar sozinho… E com Judas, que é que vai
acontecer? Ele é meu filho, sabes? –diz ela muito cansada pela angústia e
pela corrida que deu.
– Eu sei, Maria. E sei também que te sentes feliz por ser ele meu
apóstolo. Vê, então, que tu tens todos os direitos como mãe e Eu os tenho
como Mestre e Senhor.
– É verdade… é verdade… Mas Judas é o meu menino!… –e Maria,
entrevendo o futuro, põe-se a chorar.
– Oh! Que lágrimas mal empregadas! Mas, tudo se perdoa a um coração
de mãe. Vem cá, Maria. Não chores. Eu já te confortei uma outra vez.
Desde aquela vez[40], Eu te prometi que aquela tua dor te teria trazido
grandes graças de Deus para ti, para teu Alfeu, para os teus filhos…
Jesus passou o braço por sobre o ombro da tia, puxando-a para bem
perto de Si… E Ele manda aos que estavam com Ele:
– Ide vós para a frente…
Depois, sozinho com Maria de Cléofas, Ele recomeça a falar.
– Eu não menti. Alfeu morreu invocando-me. Por isso, toda a sua dívida
para com Deus foi cancelada. Aquela volta dele para o parente
incompreendido, para o Messias que antes ele não quis reconhecer, foi a tua
dor que conseguiu tudo aquilo, Maria. E agora ela há de conseguir que o
hesitante Simão e o teimoso José imitem ao teu Alfeu.
– Sim, mas… Que farás do Judas, de meu Judas?
– Eu o amarei ainda mais do que o amo agora.
– Não. Não. Há uma ameaça naquelas palavras. Oh! Jesus! Oh!
Jesus!…
253.4A Virgem Maria volta também lá para trás, para consolar a cunhada da
dor, cuja natureza ela ainda não conhece e, quando fica sabendo, pois que a
sua cunhada, ao vê-la a seu lado, chora ainda mais fortemente, e lhe diz,
ficando mais pálida do que a própria lua.
Maria de Alfeu geme, dizendo:
– Dize-o tu a Ele, que não, que a morte para meu Judas, não…
A Virgem Maria, ainda mais descorada, lhe diz:
– E posso eu ir pedir isso para ti, se nem para o meu Filho eu peço que
fique livre da morte? Maria, dize comigo: ‘Seja feita a tua vontade, ó Pai,
no Céu, na Terra e no coração das mães’. Fazer a vontade de Deus, através
da sorte dos filhos é o martírio redentor exigido de nós mães… E, além
disso, não foi dito que Judas deve ser morto, ou morto antes que tu morras.
A tua oração de agora, para que ele viva até uma idade avançada, então
como irá ser desagradável para ti quando, já estando tu no Reino da
Verdade e do Amor, fores ver as coisas, todas as coisas, através das luzes de
Deus e através da tua maternidade, já espiritualizada. Será, então, e disso
tenho certeza, que tu, como bem-aventurada e como mãe, desejarias que
Judas fosse semelhante ao meu Jesus em sua sorte de Redentor, e te
inflamarias com a ânsia de tê-lo perto de ti, de novo, e para sempre. Porque
o tormento das mães é o de serem separadas dos filhos, até no Céu, que nos
há de acolher.
253.5O pranto de Maria, que soava tão forte no meio daquele silêncio,
que era o primeiro sinal da aurora, fez que todos se voltassem para trás,
para saberem o que havia acontecido, ouvem a palavra da Virgem Maria, e
a comoção toma conta de todos.
Chora Maria de Magdala, sussurrando:
– E esse tormento eu dei a minha mãe, já desde esta terra.
Chora Marta, dizendo:
– É uma dor recíproca estarem separados os filhos da mãe.
Não deixam de estar brilhando os olhos de Pedro, e Zelotes diz a
Bartolomeu:
– Que palavras de sabedoria para explicar o que será a maternidade de
uma bem-aventurada!
– E como por uma mãe bem-aventurada serão valorizadas as coisas:
através das luzes de Deus e de uma maternidade espiritualizada… Faz que
fiquemos sem respiração, como diante de um mistério de luz –responde
Natanael.
Iscariotes diz a André:
– A maternidade se despoja de todo o peso dos sentidos, e se transforma
toda em asa, por assim dizer. Parece-me já estar vendo as nossas mães
transformadas por uma beleza inconcebível.
– É verdade. A nossa, Tiago, nos amará assim. Imaginas, então, como
haverá de ser perfeito o seu amor? –diz João ao seu irmão, e é o único que
pode ter a luz de um sorriso, porque o pensamento de que sua mãe consiga
amá-lo de modo perfeito o comove alegremente.
253.6– Desagrada-me o fato de haver eu causado tanta dor –desculpa-se
Tiago–. Mas ela percebeu claramente, e mais do que eu cheguei a dizer…
Podes crer-me, Jesus?
– Eu sei, Eu sei. Mas Maria está trabalhando por si mesma, e este é um
golpe mais forte do que o de um escopro. Mas tira dela muito peso morto –
diz Jesus.
– Coragem, mãe. Para de chorar. Isto me entristece. Que tu fiques
sofrendo como uma pobre mulherzinha, que não conhece as certezas do
Reino de Deus. Não te estás parecendo em nada com a mãe dos jovens
Macabeus[41] –censura-a severamente Tadeu, mas sem deixar de abraçar sua
mãe.
E termina beijando-a na cabeça, por entre os cabelos encaracolados:
– Estás parecendo uma menina, que está com medo das sombras e das
histórias que lhe contam para espantá-la. E, no entanto, tu sabes onde
encontrar-me: em Jesus. Que é isso, minha mãe! Deverias chorar, se te
tivessem dito que eu, no futuro, me tornaria um traidor de Jesus, alguém
que o abandonasse, um condenado. Então, sim. Aí deverias chorar lágrimas
de sangue. Mas, se Deus me ajudar, esta dor eu não te darei nunca, minha
mãe. Quero estar contigo por toda a eternidade…
A censura primeiro, as carícias depois, acabam por fazer cessar o
pranto de Maria de Alfeu, que agora está toda envergonhada por sua
fraqueza.
A luz, na passagem da noite para o dia, diminuiu, porque a lua já se
253.7
pôs, e o dia não começou ainda. Mas é apenas um breve intervalo
crepuscular. Pouco depois a luz, primeiro cor de chumbo, depois cinzenta,
depois esverdeada, depois cor de leite com infusões de azul, e finalmente
clara, como se fosse prata imaterial, e vai-se tornando sempre mais firme,
vai ficando mais fácil o caminhar sobre a areia úmida, que as ondas vão
deixando descoberta, enquanto os olhos se alegram com a vista do mar, que
se torna de um azul mais claro e que vai começar a faiscar com um
tremeluzir de pedras preciosas. Depois o ar mistura sua cor prateada com
um cor-de-rosa cada vez mais escuro, até que este rosa dourado da aurora se
torne uma chuva cor-de-rosa ou avermelhada sobre o mar, sobre os rostos,
sobre as campinas, com contrastes de tintas cada vez mais vivas, que
atingem o ponto perfeito, e para mim o mais belo do dia, quando o sol,
saltando para cima dos seus limites no oriente, lança o seu primeiro raio
sobre os montes e as encostas, sobre os bosques, os prados e as amplas
vastidões dos mares e dos céus, acentuando bem cada cor com um anil, que
varia do verde jaspe ao cobalto do céu, que empalidece para colher o róseo,
ou se torna uma safira com veios de jade e guarnições feitas com pérolas do
mar. Hoje o mar está um verdadeiro espetáculo de beleza. Não morto, como
no peso da calmaria, não revolvido como na lutas dos ventos, mas
majestosamente vivo, num sorrir de pequenas ondas mansas, mal notadas, a
não ser por pequenas encrespaduras, que se coroam com leves coroas de
espuma.
– Chegaremos a Doras, antes que o sol esquente muito. E de lá
partiremos ao pôr-do-sol. Amanhã, em Cesareia, terá fim o vosso cansaço,
minhas irmãs. E nós também descansaremos. Vosso carro certa mente vos
estará esperando. E, então, nos separaremos… 253.8Por que é que estás
chorando, Maria? –diz Jesus a Madalena.
– Está triste por deixar-te –desculpa-a sua irmã.
– Ninguém disse que não nos vejamos de novo, e brevemente.
Maria faz sinal de que não, com a cabeça. Não está chorando por isso.
O Zelotes explica:
– Ela tem medo de não saber ser boa se não estiver perto de Ti. Tem
medo de… ser tentada com tentações fortes demais, quando Tu não
estiveres perto para deter longe o demônio. Ela me falava disso há pouco.
– Não tenhas esse medo. Eu não retiro nunca uma graça que já concedi.
Queres tu pecar? Não? E, então? Fica tranquila. Fica vigilante, sim, mas
não temas.
– Senhor… eu choro também porque em Cesareia…Cesareia está cheia
dos meus pecados. Agora eu os vejo todos… Terei muito que sofrer em
minha humanidade…
– Tenho prazer com isso. Quanto mais sofreres, melhor serás. Porque
depois não sofrerás mais por estes sofrimentos inúteis. Maria de Teófilo, Eu
te faço lembrar que és filha de um forte, e que Eu te quero fazer ficar
fortíssima. Eu tenho dó das fraquezas das outras, porque elas sempre foram
mulheres mansas e tímidas, a começar por tua irmã. Mas em ti Eu não
suporto isso. Eu te trabalharei com fogo e na bigorna. Porque és de uma
têmpera que precisa ser trabalhada assim, para não estragar o milagre da tua
e da minha vontade. Isto, fica sabendo, e também quem entre os presentes,
ou os ausentes, puder ficar pensando que Eu, pelo tanto que te amo, possa
começar a ser condescendente contigo. Eu admito que chores por
arrependimento ou por amor. Por outro motivo, não. Compreendeste?
Jesus está sugestivo e severo.
Maria de Magdala se esforça para engolir as lágrimas e soluços, e cai
de joelhos, beija os pés de Jesus e, procurando falar com voz firme, diz:
– Sim, meu Senhor. Farei o que Tu queres.
– Levanta-te, então, e fica tranquila.
[39] palavras, que estão em 1 Reis 18,22; oração, que está em 1 Reis 18,37.
[40] Desde aquela vez em 95.5/6.
[41] jovens Macabeus, dito assim porque o seu martírio, narrado em 2 Macabeus 7, acontece “ao tempo dos Macabeus”, como é
dito em 157.5. Estes últimos se chamavam assim pelo sobrenome (que poderia significar: martelo) do seu principal herói, Judas, o
Macabeu, já citado em 72.5. A sua luta, pela conquista da liberdade religiosa e política do povo judaico, são narrados nos dois
livros dos Macabeus, que reportamos por capítulos e versos cada vez que a obra mencionada trata de um fato particular ligado a
eles. Apresentado por parte do Sinédrio a semelhança entre Judas Iscariotes e Judas Macabeu em 588.4, retratado pelo apóstolo
João em 600.2. A este herói vem ao invés é comparado por Jesus, em 600.11, o apóstolo primo de Judas de Alfeu.
254. O encontro com Síntique, escrava grega,
e a chegada a Cesareia Marítima.
15 de agosto de 1945.
254.1Não estou vendo a cidade de Doras. O sol está se pondo e os
peregrinos se dirigiram para Cesareia. Mas a permanência deles em Doras
eu não vi. Talvez tenha sido apenas uma parada sem nada de importante
para se assinalar. O mar parece incendiado, de tanto que ele está refletindo,
em sua calma, o vermelho do céu, um vermelho quase irreal, de tão violento
que está. Parece que se tenha derramado sangue em toda a abóbada do
firmamento. Ainda está fazendo calor, por mais que o ar marítimo o torne
suportável. Vão caminhando sempre à beira do mar, para evitar a quentura
do terreno enxuto, e muitos deles já tiraram as sandálias, e sungaram as
vestes, para entrarem na água.
Pedro declara:
– Se não estivessem aqui as discípulas, eu ficaria nu, e iria enfiar-me lá
dentro com água até o pescoço.
Mas ele deve sair também dali, porque Madalena, que ia indo na frente
com as outras, volta lá atrás para dizer:
– Mestre, eu conheço bem esta região. Estás vendo aquele ponto em que
o mar está com aquela mancha amarela sobre o seu azul? Lá um rio que não
seca nem mesmo nestes tempos de verão entra no mar. E é preciso saber
atravessá-lo…
– Já temos atravessado tantos rios. Esse aí não vai ser o rio Nilo!
Atravessaremos também esse –diz Pedro.
– Não é o Nilo. Mas em suas águas e nas beiras há uns bichos d’água,
que são perigosos. É preciso não passar muito depressa, nem descalços,
para não sermos feridos.
– Oh! Que bichos serão esses? Serão os leviatãs[42]?
– Disseste bem, Simão. São crocodilos mesmo. São pequenos, é
verdade, mas bastam para não te deixarem caminhar nem um pouco.
– E que eles ficam fazendo aí?
– Para aí eles foram trazidos, a fim de que se lhes prestasse culto, desde
quando aqui reinavam os fenícios. E ficaram aí, tornando-se sempre
menores, mas nem por isso menos agressivos, tendo passado dos templos
para a lama dos rios. Agora eles são lagartos grandes, mas com uns dentes!
Os romanos costumam vir aqui para caçá-los e para outros divertimentos…
Eu também vim até aqui com eles. Tudo serve para… matar o tempo. Além
disso, as peles dos crocodilos são bonitas, e servem para fazer muitas
coisas. Deixai pois, que pela minha experiência eu vos guie.
– Está bem. Eu gostaria de vê-los… –diz Pedro.
– Talvez possamos ver alguns deles, ainda que já estejam quase
exterminados, de tão caçados que são.
254.2Deixam a margem e dobram para o interior, até encontrarem uma
estrada mestra, lá pela metade da distância entre as colinas e o mar, e
chegam logo a uma ponte muito arqueada, lançada sobre um riozinho, de
leito de bom tamanho, mas que agora está pobre de águas, que foram
recolher-se ao centro do leito que, onde não tem água, mostra taboas e
caniços, agora meio queimados pelo verão, mas que, em outras estações,
formam pequeninas ilhas no meio das águas. Nas beiradas, no entanto, têm
moitas e árvores viçosas.
Por mais que seus olhos perscrutem, não veem nenhum dos animais, e
muitos ficam decepcionados por isso. Mas, quando já estão para terminar a
travessia da ponte, cujo arco único é muito alto, talvez para não ser
invadido pelas águas em tempo de enchente, — é uma robusta construção,
talvez romana — Marta dá um grito muito agudo, e foge para trás,
horrorizada. Um lagarto bem grande, que não parece mais um crocodilo,
está atravessado sobre o caminho, fingindo estar dormindo.
– Mas não tenhas medo –grita Madalena–. Quando eles estão assim, não
são perigosos. O perigo é quando estão escondidos, e vamos até em cima
deles sem os vermos.
Mas Marta, por via das dúvidas, foi ficar lá atrás. Também Susana não
quer brincadeiras… Maria de Alfeu é mais corajosa em sua cautela e,
estando perto de seus filhos, vai adiante, olhando. Quanto aos apóstolos,
eles não têm propriamente medo, e olham, fazendo comentários sobre a
feiura do animal, o qual ainda resolve girar lentamente a cabeça, para ser
visto também de frente, e depois dá sinais de querer mover-se e ir em
direção dos que o estão observando. Marta dá outro grito, e foge lá para trás
e agora é imitada por Susana e por Maria de Cléofas. Maria de Magdala,
porém, apanha uma pedra e atira no animal e este, tendo sido acertado num
dos seus lados, foge pelo areal abaixo e vai afundar-se na lama.
– Vem para a frente, medrosa. Ele não está mais aqui –diz ela à sua
irmã.
As mulheres voltam a aproximar-se.
– Mas é feio mesmo –comenta Pedro.
254.3– É verdade, Mestre, que nos tempos passados davam a estes
animais vítimas humanas como alimento? –pergunta Iscariotes.
– Era considerado um animal sagrado, representava um deus e, como
nós consumimos o sacrifício oferecido ao nosso Deus, eles, os pobres povos
idólatras também assim faziam, com os modos e erros que a condição deles
lhes facultava.
– Mas fazem assim ainda? –pergunta Susana.
– Eu creio que não se pode dizer que não se faça mais em lugares de
idolatrias –diz João de Endor.
– Mas, então, as matarão antes, não?
– Não. São-lhes dadas vivas. Meninas, meninos, quase sempre. São as
primícias do povo. Pelo menos, isso é o que eu li –continua João a
responder às mulheres que, espavoridas, olham ao redor de si.
– Eu morreria de medo, se tivesse que ir para perto deles –diz Marta.
– É mesmo? Mas isso ainda não é nada, mulher, em comparação com o
verdadeiro crocodilo. Ele é comprido e grosso, pelo menos três vezes mais
do que este.
– E também esfomeado. Este certamente estava saciado com cobras e
coelhos selvagens.
– Misericórdia! Até cobras? Mas, a que lugar nos foste trazer, Senhor –
geme Marta, tão espantada, que a vontade de rir toma conta de todos.
Hermasteu, que até agora estava calado, diz:
– Não tenhais medo. Basta que se faça muito barulho, que todos fogem.
Eu tenho experiência com eles. Estive no Baixo Egito muitas vezes.
Põem-se em marcha, batendo as mãos e dando pauladas nos troncos,
até ficar para trás o ponto perigoso.
Marta foi colocar-se perto de Jesus, e muitas vezes já lhe fez esta
pergunta:
– Será que não estarão mais por aí mesmo?
Jesus olha para ela e sacode a cabeça sorrindo, mas a tranquiliza:
– A planície do Saron só tem beleza, e nós já estamos nela. Mas em
verdade hoje as discípulas me reservaram umas surpresas! E Eu não sei
mesmo porque é que estás tão medrosa!
– Eu também não sei. Mas tudo o que anda deslizando me aterroriza.
Parece-me estar sentindo o frio daqueles corpos, pois certamente são frios,
viscosos, vindo sobre mim. E fico me perguntando porque é que eles estão
aqui. Serão talvez necessários?
– Isto devia ser perguntado Àquele que os fez. Mas podes crer que, se
Ele os fez, é sinal de que são úteis. Se não o fossem para mais nada, pelo
menos para pôr em evidência o heroísmo de Marta –diz Jesus com um
brilho significativo nos olhos.
– Oh! Senhor! Tu estás gracejando e tens razão. Mas eu tenho medo e
não me controlarei nunca.
– Isso nós veremos… 254.4Que é que se está movendo lá no meio
daquelas moitas? –diz Jesus, levantando a cabeça e dirigindo o olhar para a
frente, para uns espinheiros emaranhados e outras árvores de ramos
compridos, que tomaram de assalto um grande muro formado por figueiras
da índia, que ficam do outro lado, com suas pazinhas duras fazendo frente
aos flexíveis ramos assaltantes.
– Mais um crocodilo, Senhor?!… –geme, aterrorizada, Marta.
Mas o barulho das folhas aumenta, e de lá surge um rosto humano, de
mulher. Ela está olhando. Vê todos esses homens, e fica na dúvida se deve
sair fugindo pela campina, ou se deve ir esconder-se debaixo do mato. Mas
a primeira ideia vence, e ela, com um grito agudo, foge dali.
– Será uma leprosa? Uma doida? Uma endemoninhada? –perguntam,
perplexos, uns aos outros.
Mas a mulher volta, porque de Cesareia, que já está perto, vem vindo
um carro romano. A mulher está como um rato na ratoeira. Não sabe para
onde ir, porque Jesus com os seus discípulos estão agora perto da moita,
que lhe estava servindo de refúgio, e porque não pode voltar, e para o lado
do carro não quer ir… Com as primeiras sombras da tarde, pois a noite
nesse tempo chega depressa, depois de um pôr-de-sol sem nuvens, pode-se
ver que ela é jovem e bonita, ainda que esteja com as vestes rasgadas, e
despenteada.
– Mulher! Vem cá –ordena-lhe Jesus.
A mulher estende os braços, suplicante:
– Não me faças mal!
– Vem cá. Quem és? Não quero te fazer mal –e diz isso de um modo tão
manso, que a persuade.
A mulher vai para a frente, encurvada, e se joga no chão, dizendo:
– Sejas tu quem fores, tem piedade. Mata-me, mas não me entregues ao
patrão. Eu sou uma escrava fugitiva…
– Quem era o teu patrão? E tu de onde és? Hebreia, certamente não és.
O teu modo de falar já o diz. E tuas vestes também.
– Eu sou grega. A escrava grega do… Oh! Piedade! Escondei-me! O
carro está quase chegando…
Fazem todos um grupo ao redor da infeliz, que está encolhida no chão.
A veste rasgada pelos espinhos põe à mostra as costas sulcadas pelos golpes
e cheias de arranhões. O carro passa sem que ninguém dos que vão nele
mostrem algum interesse pelo grupo que está parado ao lado da sebe.
– Já se foram eles para a frente, podes falar agora. Se pudermos, nós
ajudaremos –diz Jesus, colocando as pontas de seus dedos na cabeleira
desfeita.
254.5– Eu sou Síntique, a escrava grega de um nobre romano, que
acompanha o Procônsul.
– Mas, então, tu és a escrava de Valeriano! –exclama Maria de Magdala.
– Ah! piedade! piedade! Não me denuncies a ele –suplica a infeliz.
– Não tenhas medo. Eu não falarei nunca mais com Valeriano! –
responde Madalena.
E explica a Jesus:
– É um dos mais ricos e sujos romanos que temos. E, como é sujo, é
cruel.
– Por que é que fugiste? –pergunta Jesus.
– Porque eu tenho uma alma. Não sou uma mercadoria…( a mulher se
desabafa, ao ver que encontrou pessoas que tem dó dela). Não sou uma
mercadoria. Ele me comprou. É verdade. Ele poderá ter comprado a minha
pessoa para embelezar sua casa, para que eu lhe alegre as horas fazendo
leituras, para que eu o sirva. E nada mais. A alma é minha! Não é uma coisa
que se compre. E ele a queria também.
– Como sabes que tens uma alma?
– Eu não sou analfabeta, Senhor. Fui feita prisioneira de guerra, desde
minha tenra idade. Mas não sou plebeia. Este é o meu terceiro patrão e é um
fauno sujo. Mas em minha memória ficaram ainda as palavras dos nossos
filósofos. E eu sei que em nós não há somente carne. Há alguma coisa
imortal, encerrada em nós. Alguma coisa cujo nome exato não sabemos.
Mas recentemente passei a saber o seu nome. Certo dia passou um homem
por Cesareia, fazendo prodígios, e falando melhor do que Sócrates e Platão.
Muito se falou dele nas termas e nos triclínios, ou nos peristilos dourados, e
emporcalharam o seu augusto nome, dizendo que ele vivia nos salões das
orgias imundas. E o meu patrão, a mim, justamente a mim, que já percebia
que existe alguma coisa de imortal, que só pertence a Deus e que não se
compra como uma mercadoria em mercados de escravos, a mim ele me fez
ler as obras dos filósofos, para confrontá-los e pesquisar nelas, se esta coisa
ignorada que o Homem de Cesareia chama de “alma”, se esta palavra
naquelas obras estava escrita. A mim, a mim ele me fez ler estas coisas! Ele
queria escravizar-me à sua sensualidade! Assim é que eu fiquei sabendo que
essa coisa imortal é a alma. E, enquanto Valeriano, com outros seus pares,
ouvia a minha voz e, entre um arroto e um bocejo, tentava compreender,
comparar e discutir, eu comparava os discursos deles, que se referiam ao
Desconhecido e as palavras dos filósofos, e os retinha comigo, e ia
formando em mim um sentimento de dignidade cada vez mais forte, para
poder rejeitar a libidinagem dele… Ele me bateu para matar-me, há
algumas noites, porque eu o repeli, dando-lhe dentadas…e fugi no dia
seguinte… Há cinco dias que eu vivo naquela moita, apanhando amoras e
figos da índia, de noite. Mas eu vou acabar sendo apanhada. Certamente,
ele me está procurando. Eu lhe custei muito dinheiro, e agrado demais à
sensualidade dele, para que ele me deixe sossegada… Tem dó! 254.6 Eu te
peço, tu és hebreu e certamente sabes onde é que ele está, eu te peço que me
leves ao Desconhecido, que fala aos escravos e que fala da alma. Disseram-
me que ele é pobre. Passarei até fome, mas quero estar perto dele, para que
me instrua, e me levante de novo. Viver com os brutos embrutece, ainda
que se lhes resista. Eu quero voltar a possuir a minha dignidade moral.
– Aquele homem, o Desconhecido que procuras, está diante de ti.
– Tu? O Deus desconhecido da Acrópole, ave! –e se inclina com a
fronte até o chão.
– Aqui não podes ficar. Mas Eu vou para a Cesareia…
– Não me deixes, Senhor.
– Eu não te deixo… Estou pensando…
– Mestre, o nosso carro está precisamente no lugar que foi combinado, à
espera. Manda avisar. No carro estará segura como em nossa casa –
aconselha Maria de Magdala.
– Oh! Sim, Senhor. Nós, no lugar do velho Ismael. Nós a instruiremos
sobre Ti. Será uma arrebatada ao paganismo –suplica Marta.
– Queres vir conosco? –pede Jesus.
– Com qualquer um dos teus, contanto que não seja mais com aquele
homem. Mas… mas aqui uma mulher disse que o conhece? Não me irá
trair? Não virão em sua casa os romanos? Não…
– Não tenhas medo. A Betânia os romanos não vão, e sobretudo os
daquele gênero –afiança Madalena.
– Simão e Simão Pedro, ide a procura do carro. Nós vos esperaremos
aqui. Entraremos na cidade depois –ordena Jesus.
254.7… Quando o pesado carro coberto se anuncia com o rumor dos
cascos e das rodas e com a luz pendente da coberta, aqueles que estavam
esperando se levantam da margem, onde certamente terão ceado, e se põem
a caminho.
O carro para, oscilando sobre a margem da estrada mal arranjada e dele
descem Pedro e Simão, imediatamente seguidos por uma mulher de idade,
que corre para abraçar Madalena, dizendo:
– Nenhum momento, nenhum momento de atraso para dizer-te que eu
estou feliz, para dizer-te que tua mãe se rejubila comigo, para dizer-te que
tu te tornaste a loura rosa da nossa casa, como quando dormias no berço
depois de me teres sugado o seio, e a beija –e torna a beijar.
Maria chora entre seus braços.
– Mulher, Eu te confio esta jovem, e te peço o sacrifício de ficares aqui
a noite inteira. Amanhã poderás ir à primeira aldeia, à margem da estrada
consular e esperar ali. Viremos a hora terça –diz Jesus à nutriz.
– Que tudo seja como Tu queres, bendito sejas Tu! Deixa somente que
eu dê à Maria as vestes que eu lhe trouxe.
E sobe de novo para o carro com Maria Santíssima e Marta.
Quando voltam para fora, Madalena é qual a veremos em seguida,
sempre: com uma veste simples, com um amplo e sutil linho como véu, e
um manto sem ornatos.
– Vai também tranquila, Síntique. Amanhã nós também iremos. Adeus –
saúda Jesus. E retoma o caminho para Cesareia…
254.8A beira-mar está cheia de gente que passeia, à luz de tochas ou
lanternas levados por escravos, respirando o ar que vem do mar, um grande
refrigério para os pulmões cansados com este mormaço do verão. E quem
passeia é exatamente a classe dos ricos romanos. Os hebreus estão reclusos
em suas casas e gozam o frescor do alto das mesmas. A beira-mar parece
um longuíssimo salão na hora das visitas. Passar por ela quer dizer ser
literalmente examinado em todos os particulares. Porém, Jesus passa
exatamente por ali… por mais que seja longa a beira-mar, descuidado de
quem o observa, comenta e dele se ri.
– Mestre, Tu aqui? A esta hora? –pergunta Lídia, sentada sobre uma
espécie de poltrona ou pequeno leito, levado para ela pelos escravos no
limite da rua. E se põe de pé.
– Estou vindo de Doras, e o fiz tarde. Vou em procura de alojamento.
– Eu te diria: aqui está a minha casa –e mostra um belo edifício às suas
costas–. Mas eu não sei se…
– Não. Te agradeço. Mas não aceito. Eu estou com muitos, e dois deles
já se foram para a frente, a fim de avisar pessoas que Eu conheço. Acho que
elas me hospedarão.
254.9Os olhos de Lídia pousam também sobre as mulheres que Jesus mostrou
junto com os discípulos e, de repente, reconhece Madalena:
– Maria? És tu? Mas, então é verdade?
Maria de Magdala tem um olhar de gazela cercada: torturado. E tem
razão, porque não é somente Lídia que ela tem que enfrentar, mas muitos e
muitos a olham… Mas olha também para Jesus, e se reanima.
– É verdade.
– Então, nós te perdemos.
– Não. Me achastes. Ao menos espero reencontrar-vos um dia, e com
uma amizade melhor, no caminho, que finalmente encontrei. Dize-o, eu te
peço, a todos aqueles que me conhecem. Adeus, Lídia. Esquece todo o mal
que me viste fazer, e dele eu te peço perdão…
– Mas, Maria! Por que te aviltas? Vivemos a mesma vida de ricos e
ociosos e não há…
– Não. Eu levei uma vida pior. Mas dela eu saí. E para sempre.
– Eu te saúdo, Lídia –abrevia o Senhor, e se dirige para seu primo
Judas, que, com Tomé, vem vindo ao seu encontro.
Lídia detém ainda por instantes Madalena:
– Mas, dize-me a verdade, agora que estamos sozinhas: tu estás
realmente convencida?
– Convencida, não: eu estou feliz por ser a discípula. Só tenho um
sentimento: o de não ter conhecido antes a Luz e o de em vez de alimentar-
me com ela, ter andado comendo lama. Adeus, Lídia.
A resposta soou clara, em meio ao silêncio que se fez ao redor das duas
mulheres. Nenhum dos muitos presentes diz nada… Maria se vira e, rápida,
procura alcançar o Mestre.
Um jovem para diante dela:
– É tua última loucura? –diz ele, e faz como se quisesse abraçá-la.
Mas, meio bêbado como está e não conseguindo o que queria, Maria
livra-se dele, e grita:
– Não, é a minha única sabedoria.
Alcança as companheiras, veladas como maometanas, tanta é a
repugnância que elas têm de serem vistas por aqueles viciados.
– Maria –diz trepidante Marta–, sofreste muito?
– Não. E, tem razão, agora já não sofrerei mais por isso. Ele tem
razão…
Mudam todos de direção, e se dirigem para um beco escuro, entrando
depois em uma casa ampla, que certamente é um albergue, já de noite.
[42] Leviatã, monstro marinho, símbolo das potências do mal, está mencionado em Jó 3,8; 40,25-32; 41; Salmo 74,14; 104,26;
Isaías 27,1. No livro de Jó está identificado com o crocodilo o qual encontraremos um aceno em 398.3.
255. Partida das irmãs Marta e Maria
com Síntique. Uma lição a Judas Iscariotes.
17 de agosto de 1945.
255.1De novo estão a caminho, virando-se para o oriente, e dirigindo-se
para as campinas.
Agora os apóstolos e os dois discípulos estão com Maria Cléofas e
Susana, poucos metros atrás de Jesus, que está com sua Mãe e as duas irmãs
de Lázaro. Jesus fala continuamente. Os apóstolos, ao contrário, não falam.
Parecem estar cansados e desanimados. Não os atrai nem mesmo a beleza
das campinas, que estão realmente esplêndidas, com suas leves ondulações,
que estão em movimento através da planície, como se fossem almofadas
verdes por baixo dos pés de algum rei gigante, com suas colinas de poucos
metros de altura, colocadas aqui e ali, como uns prelúdios das cordilheiras
do Carmelo e da Samaria. Tanto nas planícies, que são o que predomina
nesta região, como nas decorações destas pequenas colinas e ondas do
terreno, é tudo um florescer de ervas e um maturar de frutas. Deve ser um
lugar molhado não obstante a região e a estação, pois é muito florido para
ser assim sem fartura de águas. Compreendo agora por que é que a planície
de Saron é tantas vezes citada com entusiasmo nas Sagradas Escrituras.
Mas esse entusiasmo não é nada partilhado pelos apóstolos, que vão
andando um pouco amuados, eles, os únicos que vão indo de mau humor
neste dia tão sereno, e através de uma tão risonha região.
A estrada consular, muito bem conservada, atravessa com sua fita
branca esta campina fertilíssima e, dada a hora matutina, ainda é fácil
encontrar camponeses carregados de provisões ou viajantes que estão indo
para Cesareia. Um, que chega com uma fila de asnos carregados de sacas,
alcança os apóstolos e os obriga a se afastarem para dar lugar à caravana de
asnos, pergunta-lhes com arrogância:
– Quison é aqui?
– É mais atrás –responde Tomé, resmungando por entre dentes–. Que
grande grosseirão!
– É um samaritano, e basta dizer isso, que tudo fica explicado! –
responde Filipe.
255.2Depois, voltam ao silêncio. Alguns metros adiante, como se estivesse
terminando um longo raciocínio, Pedro diz:
– Foi para isso que serviu! Para isso teria valido a pena fazer tão longa
viagem?
– Mas, é isso mesmo. Para que fomos a Cesareia, se Ele não disse nem
uma palavra sobre isso? Eu pensava que Ele quisesse fazer algum espantoso
milagre, para persuadir os romanos. Mas, ao contrário… –diz Tiago de
Zebedeu.
– Ele nos colocou na berlinda, e basta –comenta Tomé.
E Iscariotes ainda cobra mais:
– Ele nos fez sofrer. Mas, como a Ele as ofensas agradam, Ele pensa
que agradem a nós também.
– Na realidade, quem mais sofreu neste caso foi Maria de Teófilo –
observa, pacato, Zelotes.
– Maria! Maria! Será que Maria se tornou o centro do universo? Só ela
sofre, só ela é heroica, só ela é que precisa formar-se. Se eu soubesse, iria
virar ladrão e homicida, para ser depois feito objeto de tantos cuidados –
dispara Iscariotes.
– Na verdade, na outra vez que viemos a Cesareia e Ele lá fez um
milagre e evangelizou, nós o afligimos com o nosso descontentamento pelo
que Ele fez –observa o primo do Senhor.
– É que nós não sabemos o que queremos. Ele faz assim, e nós ficamos
resmungando. Ele faz o contrário e continuamos a resmungar. Nós é que
somos os defeituosos –diz, sério, João.
– Oh! Aí está o outro sábio que fala! Mas o que é certo é que há tempo
que não se faz nada de bom.
– Nada, Judas? Mas, e aquela grega, Hermasteu, Abel, Maria, mas…
– Não será com essas nulidades que Ele irá fundar o seu Reino –replica
Iscariotes, obsessivo pela ideia de um triunfo terreno.
– Judas, eu te peço que não fiques julgando as obras do meu Irmão.
Essa é uma pretensão ridícula. Um menino que quer julgar o Mestre. Para
não dizer uma nulidade, que se quer elevar –diz Tadeu que, se tem o mesmo
nome que o outro, tem, contudo, uma profunda antipatia pelo seu
homônimo.
– Eu te agradeço, porque te limitaste a chamar-me de menino. Na
verdade, depois de ter vivido tanto tempo no Templo, eu achava que devia
ser considerado pelo menos maior de idade –responde, sarcástico,
Iscariotes.
255.3– Ah! Como são pesadas essas discussões! –suspira André.
– É verdade! Em vez de nos unirmos mais, nós nos separamos. E, ainda
mais, se pensarmos que Ele disse em Sicaminon que precisamos estar
unidos ao rebanho. Como é que o estaremos, se até entre nós pastores, não
estamos unidos? –observa Mateus.
– Então, não se deve falar? Nem dizer nunca o nosso pensamento?
Creio que nós não somos escravos.
– Não, Judas. Não somos escravos. Mas somos indignos de acompanhá-
lo, porque não o compreendemos –diz, calmo, Zelotes.
– Eu o compreendo muito bem.
– Não. Tu não o compreendes, e contigo também não o compreendem,
uns mais, outros menos, todos aqueles que o criticam. Compreender é
obedecer sem discutir, porque estamos persuadidos da santidade de quem
nos guia –diz ainda Zelotes.
– Ah! Mas tu falas em compreender a sua santidade! Eu me referia às
palavras dele. Sua santidade é indiscutida e indiscutível –apressa-se a dizer
Iscariotes.
– E podes separar esta daquelas? Um santo terá sempre a posse da
Sabedoria e as palavras dele serão sábias.
– É verdade. Mas Ele faz atos prejudiciais. Certamente por ter santidade
demais. Isto eu concedo. Mas o mundo não é santo e Ele cria para Si
aborrecimentos. 255.4Agora, por exemplo, este filisteu e esta grega. Crês tu
que eles nos ajudam?
– Mas, se estiver perturbando, eu me retiro –diz, humilhado,
Hermasteu–. Eu tinha vindo com a ideia de dar-lhe honra e fazer uma coisa
justa.
– Tu lhe causarias tristeza, se fosses embora por esse motivo –responde-
lhe Tiago de Alfeu.
– Eu lhe farei crer que mudei de ideia. Agora mesmo vou saudá-lo, e…
irei embora.
– Tu não vais mesmo! Tu não te irás daqui. Não é justo que, pelos
nervosismos de um outro, o Mestre perca um discípulo bom –dispara Pedro.
– Mas, se ele quer ir-se embora assim por pouca coisa, é sinal de que
nem sabe bem o que quer. Deixa-o, pois, ir-se embora –responde Iscariotes.
Pedro perde a paciência:
– Eu prometi a Ele, quando me deu Marziam, que me tornaria paternal
para com todos, e me desagrada faltar com o prometido. Mas tu me queres
levar a fazê-lo. Hermasteu, é aqui que vais ficar. Sabes o que é que eu tenho
a dizer-te? Que és tu que perturbas a vontade dos outros e as tornas cheias
de dúvidas. Tu és o que gosta de separar, e pôr em desordem. Eis aí o que
és. E envergonha-te disso.
– E tu, quem és? O protetor dos…
– Sim senhor. Disseste bem. Eu sei o que queres dizer. Protetor da
Velada, protetor de João de Endor, protetor de Hermasteu, protetor daquela
escrava, protetor de tantos outros, que foram encontrados por Jesus, e que
não são os esplêndidos exemplares, que se pavoneiam, dizendo-se do
Templo, os fabricados com a cal sagrada e as teias de aranha do Templo,
com os pavios cheirando a borra de azeite das lâmpadas do Templo, os que,
para tornar mais clara a parábola, são como tu. Porque, se o Templo é
importante, a não ser que eu me tenha tornado um idiota, o mestre é mais
importante do que o Templo, e tu lhe faltas…
255.5E Pedro começa a gritar tão alto, que Jesus para e se vira, como se
quisesse voltar para trás, afastando-se das mulheres.
– Ele ouviu. E deve estar aflito –diz o apóstolo João.
– Não, Mestre. Não venhas. Nós estávamos discutindo para disfarçar os
aborrecimentos da viagem –diz prontamente Tomé.
Mas Jesus ficou parado, como quem espera ser alcançado pelos outros.
– Sobre o que é que estáveis discutindo? Será que mais uma vez vos
deverei dizer que as mulheres vos estão superando?
Essa doce repreensão toca os corações de todos. E eles se calam e
abaixam a cabeça.
– Amigos, amigos. Não sejais objeto de escândalo para aqueles que
somente agora é que estão nascendo para a Luz! Não sabeis que faz mais
mal uma imperfeição em vós do que todos os erros que há no paganismo
para a redenção de um pagão ou de um pecador?
Ninguém responde, porque não sabem o que dizer para se justificarem,
ou para não se acusarem.
255.6Junto a uma fonte, no fundo de uma torrente seca está parado o
carro das irmãs de Lázaro. Os dois cavalos estão pastando a erva viçosa das
margens da torrente, que parece ter secado faz pouco tempo e por isso ainda
tem erva abundante em suas margens. O servo de Marta e um outro, que
talvez seja o condutor, estão também sobre a areia, enquanto que as
mulheres já estão no carro fechado, todo coberto com uma coberta pesada,
feita de peles curtidas, que descem, como cortinas, até o chão, onde está o
carro.
As mulheres discípulas se apressam para entrar, e o servo, que as vê por
primeiro, dá o aviso à nutriz, enquanto o outro se apressa em conduzir os
cavalos para os varais. Enquanto isso, o servo corre para as patroas e se
inclina. E até o chão. A idosa nutriz, uma bela mulher de cor azeitonada,
mas simpática, desce rápida e se dirige para as suas patroas. Mas Maria de
Magdala lhe diz qualquer coisa e ela vai indo em direção da Virgem, e
dizendo:
– Perdoa. Mas é tão grande a alegria que eu sinto por ver-te, que não
vejo mais ninguém. Vem, bendita. O sol está muito quente. No carro há
sombra.
E sobem todos, ficando à espera dos homens, que vinham muito atrás.
Enquanto estão esperando e enquanto Síntique, vestida agora com a veste
que ontem estava com Madalena, beija os pés de suas duas patroas, como
ela teima em tratá-las, apesar de elas dizerem que para elas ela não é nem
serva, nem escrava, mas apenas hóspede em nome de Jesus e, nesse ínterim,
a Virgem está mostrando o lindo embrulhinho de púrpura e perguntando
como é que se pode fiar aquele topetinho tão curto, cuja consistência não
tolera nem umidade nem torcedura.
– Não se usa assim, mulher. É reduzido a pó, e usado como qualquer
outra tinta. Esta é a baba da cochonilha, não é um cabelo, nem pelo. Estás
vendo como é quebradiço, agora que está seco? Tu o reduzes a um pó fino,
e o passas pela peneira, a fim de que não fique nenhum pedaço mais
comprido, que mancharia o fio ou o tecido. Melhor se tinge o fio em
meadas. Quando tiveres certeza de que tudo já está em pó, dissolve-o, como
se faz com a cochonilha, ou com o açafrão, ou o pó do anil, ou com outras
cascas e frutas, e faze uso delas. Prepara a tinta com vinagre forte para a
última enxaguada.
– Obrigada, Noemi. Farei como tu ensinas. Já bordei com fios de
púrpura, mas os haviam dado, já preparados para usar… 255.7 Eis que Jesus já
vem chegando perto. É hora de despedir-nos, minhas filhas. Eu vos abençôo
a todos em nome do Senhor. Ide em paz, levando paz e alegria a Lázaro.
Adeus, Maria. Lembra-te de que choraste sobre o meu peito o teu
primeiro e feliz pranto. Por isso eu sou tua mãe, porque um filho chora o
seu primeiro pranto é sobre o peito de sua mãe. Eu sou tua mãe e o serei
sempre. Aquilo que te é difícil dizer até à mais doce das mães, à mais
amorosa das nutrizes, vem dizê-lo a mim. Eu te compreenderei sempre.
Aquilo que não ousarias dizer ao meu Jesus, por tratar-se de alguma coisa
muito humana e que Ele em ti não quer, vem dizê-lo a mim. Eu me
compadecerei de ti sempre. E, se depois quiseres contar-me também os teus
triunfos, — mas estes eu prefiro que os contes a Ele, como flores
perfumadas, porque Ele é o teu Salvador, e não eu — eu me alegrarei
contigo.
Adeus, Marta. Agora tu te vais feliz e, nessa felicidade sobrenatural
persistirás. Portanto, não tens outra necessidade, a não ser a de progredir na
justiça, em meio da paz, que nada mais perturbará em ti. Faze assim por
amor de Jesus que te amou tanto, a ponto de amar a esta a quem dedicas
tanto amor.
Adeus, Noemi. Vai com o tesouro que reencontraste. Como com o leite
com que lhe matavas a fome, mata agora a tua fome com as palavras que
esta e Marta te dirão e procura ver no meu Filho muito mais do que o
exorcista que livra do mal os corações.
Adeus, Síntique, flor da Grécia, que soubeste perceber por ti mesma
que existe alguma coisa mais do que a carne. Floresce agora em Deus e sê
tu a primeira das novas flores da Grécia de Cristo.
Eu me sinto muito contente por deixar-vos unidas assim. Eu vos
abençôo com amor.
O barulho dos passos já vem de bem perto. Levantam o pesado toldo e
veem que Jesus já está a uns dois metros do carro. Descem, debaixo do sol
ardente, que toma conta da estrada.
Maria de Magdala ajoelha-se aos pés de Jesus, dizendo:
– Eu te agradeço por tudo. E também te agradeço por me teres feito
participar desta peregrinação. Só Tu tens sabedoria. Agora eu parto já
despojada dos restos da Maria de outros tempos. Abençoa-me, Senhor, para
que eu me fortaleça sempre mais.
– Sim. Eu te abençôo. Alegra-te com os teus irmãos e com os irmãos
que, sempre em maior número, vão-se formando em Mim. Adeus, Maria.
Adeus, Marta. Dirás a Lázaro que Eu o abençôo. Eu vos confio esta mulher.
Mas não vo-la dou. É minha discípula. Eu quero que vós lhe deis um
mínimo de capacidade para entender a minha doutrina. Depois Eu irei.
Noemi, Eu te abençôo e também a vós duas.
Marta e Maria estão com lágrimas nos olhos. Zelotes se despede delas
em particular, entregando-lhes um escrito para o seu servo. Os outros se
despedem todos juntos. Em seguida, o carro põe se em movimento.
255.8 – E agora, vamos procurar alguma sombra. Deus as acompanhe… É
tanto assim que te entristeces, Maria, porque elas se foram embora? –
pergunta a Maria de Alfeu, que está chorando calada.
– Sim. Elas eram muito boas.
– Nós as tornaremos a encontrar em breve. E já aumentadas em número.
Tu terás muitas irmãs… ou filhas, se assim te agrada mais. Tudo é amor,
tanto o materno, como o fraterno –conforta-a Jesus.
– Contanto que com isso não se criem aborrecimentos… –murmura
Iscariotes.
– Aborrecimentos por se amarem?
– Não. Aborrecimentos por terem que lidar com pessoas de outra raça e
de outros costumes.
– Queres dizer : Síntique?
– Sim, Mestre. Afinal ela era um objeto do romano, e apropriar-se
daquele objeto foi um mal. Ele vai inquietar-se contra nós, e atrairemos
sobre nós Pôncio Pilatos com os seus rigores.
– Mas, quanto achas que Pilatos vá importar-se, se um dependente dele
perder uma escrava? Ele deve conhecê-lo pelo que vale! E, se ele é um
pouco honesto, como se diz que é, pelo menos com sua família, então terá
que dizer que aquela mulher fez bem em fugir. E, se ele for um desonesto,
aí dirá: “Assim está bem para ti. Talvez quem vai encontrá-la sou eu.” Os
desonestos são insensíveis às dores dos outros. Além disso, oh! Coitado do
Pôncio! Com todos os aborrecimentos que lhe damos, ele tem muitas coisas
de que tratar, em vez de ficar ouvindo os queixumes de alguém, cuja
escrava fugiu –diz Pedro.
E muitos lhe dão razão, rindo-se das raivas do luxurioso romano.
255.9Mas Jesus leva o assunto para um nível mais alto:
– Judas, conheces o Deuteronômio?
– Certamente, Mestre. E não hesito em dizê-lo: conheço-o como
poucos.
– Que pensas dele?
– Que é o porta-voz de Deus.
– Porta-voz de Deus. Portanto, repetidor de palavra de Deus?
– Isto mesmo.
– Julgaste bem. Mas então, por que pensas em não fazer o que ele
ordena?
– Eu nunca disse isso. Pelo contrário! Eu até penso que nós o
desprezamos muito, para seguir a nova Lei.
– A Nova Lei é fruto da Antiga, ou seja, é a perfeição atingida pela
árvore da Fé. Mas ninguém entre nós o despreza, pelo que me consta,
porque sou Eu o primeiro a respeitá-lo e a impedir que outros o desprezem.
Jesus é muito incisivo, ao proferir estas palavras. E continua:
– O Deuteronômio é intocável. Mesmo depois que meu Reino triunfar e,
com o meu Reino, a Lei Nova com os seus novos códigos e parágrafos, ele
será sempre aplicado aos novos ditames, assim como as pedras
esquadrejadas de antigas construções, que são usadas para as novas, porque
são pedras perfeitas, com que se fazem robustas muralhas. Mas, por
enquanto, ainda não existe o meu Reino e Eu, como um fiel israelita, não
ofendo, nem desprezo o livro de Moisés. Ele é a base do meu modo de agir
e do meu ensinamento. Sobre a base do Homem e do Mestre, o Filho do Pai
põe a celeste construção de sua Natureza e Sabedoria. No Deuteronômio
está dito[43]: “Não entregarás ao patrão o escravo, que foi refugiar-se junto a
ti. Ele morará contigo no lugar que lhe parecer bom, ficará sossegado em
uma das tuas cidades, e tu não o entristecerás.” Isto no caso em que alguém
tenha sido obrigado a fugir de uma escravidão desumana. No meu caso, isto
é, no caso de Síntique, há uma fuga, não para uma liberdade limitada, mas a
liberdade ilimitada do Filho de Deus. E queres que Eu, para esta cotovia,
que fugiu do laço do caçador, ainda coloque de novo um fio à frente dela e a
faça voltar à sua prisão, para assim tirar-lhe até a última esperança de
liberdade? Não. Jamais. Eu bendigo a Deus porque, assim como a ida a
Endor trouxe este filho para o Pai, assim também a ida a Cesareia trouxe
esta filha até Mim, para que Eu a leve ao Pai. Em Sicaminon Eu vos falei
do poder da Fé. Hoje Eu vos falarei da luz da Esperança. Mas agora, neste
frondoso pomar, paremos para comer e descansar. Porque o sol está quente,
como se o inferno estivesse aberto.
[43] está dito em Deuteronômio 23,16-17.
256. Parábola sobre a virtude da esperança
que sustenta a fé e a caridade.
18 de agosto de 1945.
256.1Avistados por alguns vinhateiros, que vão passando pelo pomar e
levando cestos de uva loura, como se fosse feita de âmbar, os apóstolos são
interrogados por eles.
– Sois peregrinos ou forasteiros?
– Somos galileus e peregrinos para o Carmelo –responde por todos
Tiago de Zebedeu que, junto com os companheiros pescadores está se
espreguiçando e espichando as pernas para acabar com algum resto de
sonolência.
Iscariotes e Mateus estão despertando sobre a grama em que estão
deitados e os mais velhos, por sua vez cansados, ainda dormem. Jesus está
conversando com João de Endor e Hermasteu, enquanto Maria e a Maria de
Cléofas, caladas, estão próximas dali, mas quietas.
Os vinhateiros dizem:
– Estais vindo de longe?
– Cesareia foi nossa última etapa. Antes estávamos em Sicaminon e
mais para lá ainda. Agora viemos de Cafarnaum.
– Oh! É uma longa estrada nesta estação! Mas, por que não fostes à
nossa casa? É aquela lá; estais vendo? Nós vos teríamos dado água fresca
para revigorar os vossos membros e comida, de camponeses, mas boa. Ide
agora.
– Estamos para partir. Deus vos pague do mesmo modo.
– O Carmelo não vai fugir do lugar num carro de fogo, como aconteceu
com o seu profeta –diz um dos camponeses, meio sério.
– Não vem mais nenhum carro do Céu arrebatar os profetas. Não há
mais profetas em Israel. Dizem que João já morreu –diz um outro
camponês.
– Morreu? Quanto tempo faz?
– Assim disseram alguns que vieram do lado de lá do Jordão. Vós o
veneráveis?
– Nós éramos discípulos dele.
– E por que foi que o deixastes?
– Para acompanhar o Cordeiro de Deus, o Messias, que ele anunciou.
Ainda existe este em Israel, ó homens. E, muito mais do que um carro de
fogo é o que seria necessário para ter-se um transporte digno dele para o
Céu. 256.2Não credes vós no Messias?
– Se cremos nele? Nós decidimos que, depois da colheita, iríamos
procurá-lo. Dizem que Ele zela pela obediência à Lei e que vai ao Templo
nas solenidades prescritas. Nós iremos logo pela festa dos tabernáculos, e
estaremos no Templo todos os dias para vê-lo. E, se não o encontrarmos,
iremos à procura dele, até que o tenhamos encontrado. Vós, que o
conheceis, dizei-nos: é verdade que Ele está quase sempre em Cafarnaum?
E que é alto, jovem, claro, de cabelos louros, e que tem a voz diferente de
todos os homens, uma voz que toca os corações, e que até os animais e as
plantas a ouvem?
– Todos os corações, menos os dos fariseus, Gamala. Eles se mostram
mais duros.
– Eles não são nem animais. São demônios, a começar por aquele de
quem trago o nome. Mas, dizei-me: é verdade mesmo que Ele é assim, tão
bom, que fala com todos, consola a todos, cura as doenças e converte os
pecadores?
– Vós acreditais nisto?
– Sim. Mas quereríamos ficar sabendo por vós, que o acompanhais. Oh!
se nos conduzísseis a Ele!
– Mas, não precisais cuidar das vinhas?
– Temos também a alma para cuidar dela e ela é mais do que as vinhas.
Ele está em Cafarnaum? Fazendo marcha forçada, em dez dias poderíamos
ir e voltar…
256.3– Está ali Aquele que procurais. Ele repousou no vosso pomar e
agora está falando com aquele velho e aquele jovem, tendo de um lado sua
Mãe e a irmã de sua Mãe.
– Aquele? Oh! Que vamos fazer?
Ficam enrijecidos pelo assombro. São todos olhos para olhar, toda a sua
vitalidade parece estar em suas pupilas.
– E, então? Tanto desejo tínheis de vê-lo, e agora, nem vos moveis?
Tereis virado estátuas de sal? –provoca-os Pedro.
– Mas… é que… Ele é mesmo assim simples o Messias?
– E que é que querias que Ele fosse? Alguém, assentado em um trono
fulgurante e coberto com o manto real? Pensáveis que Ele fosse um novo
Assuero[44]?
– Não…Mas… tão simples, Ele que é tão santo!
– Ele é simples, porque é santo, homem! Bem: façamos assim…
Mestre! Tem paciência, vem aqui fazer um milagre. Há aqui uns homens
que Te estão procurando e que, ao Te verem, ficaram petrificados. Vem dar-
lhes de novo o movimento e a palavra.
Jesus, que se vira ao ouvir que estava sendo chamado, levanta-se
sorrindo e vai na direção dos vinhateiros, que olham tão assombrados para
Ele, que até parecem amedrontados.
– A paz esteja convosco. Me queríeis? Eis-me aqui –e faz seu gesto
habitual, abrindo os braços e estendendo-os um pouco, como se oferecendo
a eles. Os vinhateiros caem de joelhos e ficam calados.
– Não temais. Dizei-me o que quereis.
Estendem os cestos plenos de uvas, sem falar. Jesus admira aquelas
esplêndidas frutas, e diz: “Obrigado”, estende uma mão para pegar um
cacho e começa a comer os bagos.
– Ó Deus Altíssimo! Ele come como nós –suspira aquele que tem o
nome de Gamala.
É impossível deixar de rir com esta saída. Até Jesus mostra um sorriso
mais significativo e, como que para se desculpar, diz:
– Eu sou o Filho do homem!
256.4Mas aquele gesto de Jesus venceu a rigidez, quase extática em que
estavam, e Gamala diz:
– Não entraríeis em nossa casa até à tarde, pelo menos? Somos muitos:
somos sete irmãos, com nossas esposas e os meninos, além dos velhos que
estão esperando a morte em paz.
– Vamos. Vós, chamai os companheiros, e ajuntai-vos. Mãe, vem tu
com Maria.
E Jesus se põe a caminho, atrás dos camponeses que se levantaram e
vão caminhando um pouco enviesados, por causa da vontade de vê-lo
caminhar. O caminho é curto, por entre os troncos das árvores, unidos um
ao outro pelos ramos das videiras.
Chegam logo à casa, ou melhor, às casas, porque é um pequeno
quadrado de casas, tendo ao centro um amplo pátio, no qual há um poço, e a
ele se chega indo-se por um profundo corredor que serve de vestíbulo e que
certamente é fechado à noite com um pesado portão.
– A paz esteja nesta casa e com quem nela mora –diz Jesus, ao entrar,
levantando a mão para abençoar e abaixando-a depois para acariciar um
pequenino seminu, que olha para Ele extasiado, de uma beleza encantadora,
vestido com uma camisa sem mangas, que desliza pelas costas gorduchas e
está de pé sobre os pezinhos descalços, com um dedinho na boca e uma
crosta de pão untado com óleo na outra mãozinha.
– É Davi, o filho do meu irmão menor –explica Gamala, enquanto um
outro dos vinhateiros entra na casa mais próxima para dar o aviso, e depois
sai dela para entrar em outra e assim faz com todas as outras, de sorte que
aparecem rostos de todas as idades e depois desaparecem para tornarem a
aparecer, logo que puderam arrumar-se um pouco.
256.5Sentado à sombra de um telheiro saliente, coberto por uma
gigantesca figueira, está um velho com uma bengala nas mãos. Ele nem
levanta a cabeça, como se nada mais lhe interessasse.
– É nosso pai –explica Gamala–. É um dos velhos da casa, porque
também a mulher de Jacó trouxe para cá seu pai, que tinha ficado sozinho e
depois veio a mãe da Lia, a mais nova das casadas. Nosso pai é cego.
Formou-se um véu sobre as pupilas dele. Com tanto sol nos campos! Com
tanto calor na terra! Pobre pai! Ele vive muito entristecido. Mas ele é muito
bom. Agora está esperando os netinhos, que são sua única alegria.
Jesus se dirige ao velho:
– Deus te abençoe, pai.
– Sejas tu quem fores, que Deus te dê a mesma bênção –responde o
velho, levantando a cabeça na direção da voz.
– É triste a tua sorte, não é mesmo? –pergunta-lhe Jesus e faz sinal para
que ninguém diga quem é que está falando.
– Ela vem de Deus, depois de tanto bem que Ele me deu, durante minha
longa vida. Como eu recebi o bem de Deus, devo receber também a
desventura de estar sem a vista. Mas, afinal, ela não é eterna. Ela acabará no
seio de Abraão.
– Dizes bem. Pior seria se fosse cega a alma.
– Eu sempre procurei conservá-la com a vista.
– Como foi que fizeste?
– Deves ser jovem, tu que estás falando, pois a tua voz o diz. Não serás
como esses jovens de agora, que são todos cegos, porque são sem religião,
não é? Olha que é uma grande desventura não crer nem cumprir o que Deus
mandou. É um velho quem te diz isso, rapaz. Se abandonares a Lei, estarás
cego nesta terra e na outra vida. Nunca mais verás a Deus. Porque chegará
um dia em que o Messias Redentor nos abrirá as portas de Deus. Eu já estou
velho demais para ver chegar esse dia sobre a terra. Mas eu o verei, lá do
seio de Abraão. Por isso, eu não me queixo de nada. Porque eu espero que,
com estas minhas sombras, eu hei de descontar o que eu tiver feito que não
agradou a Deus e ter algum merecimento para a vida eterna. Mas tu és
jovem. Sê fiel, meu filho, de modo que possas ver o Messias. Porque o
tempo dele está perto. O Batista já o disse. Tu o verás. Mas, se tiveres a
alma cega, serás como aqueles de que nos fala[45] Isaías. Terás olhos, e não
verás.
– Tu gostarias de vê-lo, pai? –pergunta Jesus, pousando-lhe uma das
mãos pela cabeça branca.
– Eu gostaria de vê-lo, sim. Mas eu prefiro ir-me embora sem vê-lo,
antes que eu o veja, mas meus filhos não o reconheçam. Eu ainda tenho a fé
antiga e isso me basta. Eles… Oh! Este mundo de hoje!…
– Pai, vê, pois, o Messias, e que a tua tarde fique coroada de alegria –e
Jesus faz deslizar sua mão, dos cabelos brancos para baixo, descendo pela
fronte até o queixo barbudo do velho, como se estivesse fazendo-lhe uma
carícia e, ao mesmo tempo, se inclina para colocar-se à altura do seu rosto
de ancião.
– Oh! Altíssimo Senhor! Mas eu estou vendo! Estou vendo… Quem és
tu, com este rosto desconhecido, mas que me parece tão familiar, como se
eu já o tivesse visto?… Mas…Oh! Que tolo sou eu! Tu, que me restituíste a
vista, és o Messias bendito! Oh! Oh!
O velho chora sobre as mãos de Jesus, que ele agarrou, cobrindo-as de
beijos e de lágrimas. Todos os parentes dele estão alvoroçados.
Jesus solta uma das mãos e acaricia ainda o velho, dizendo:
– Sim, sou Eu. Vem, para que, além de recuperar a vista, fiques
conhecendo a minha palavra.
E Jesus se dirige para uma escada, que leva a um terraço sombreado por
um frondoso suporte, que o cobre todo. E todos o acompanham.
256.6– Eu havia prometido aos meus discípulos falar sobre a Esperança e
que teria trazido para a explicação uma parábola. A parábola é esta: este
velho israelita. Quem a dá é o Pai do Céu, como um tema, a fim de ensinar
a todos vós a grande virtude que, como os braços de um jugo, sustenta a Fé
e a Caridade..
Doce é este jugo. Patíbulo da humanidade, como braço que atravessa a
cruz, trono da salvação, como apoio da serpente, que dava saúde, quando
foi elevada no deserto. Patíbulo da humanidade. Ponte para a alma, de onde
ela pode fazer a decolagem de seu vôo para a Luz. E ela está colocada no
meio, entre a indispensável Fé e a perfeitíssima Caridade, porque, sem a
Esperança não pode haver Fé; sem Esperança, morre a Caridade.
Fé pressupõe esperança firme. Como crer que se chega a Deus, se não
se espera em sua Bondade? Como manter-se nesta vida, se não se espera
uma eternidade? Como poder persistir na justiça, se não se anima a
esperança de que toda nossa boa ação esteja sendo vista por Deus, que nos
dará o prêmio por ela? Igualmente, como fazer viver a Caridade, se não
houver esperança em nós? A Esperança vem antes da Caridade e a prepara.
Porque um homem tem necessidade de esperar para poder amar. Os
desesperados já não amam mais. A escada é esta, feita com degraus e
parapeito: a Fé são os degraus, a Esperança o parapeito. No alto está a
Caridade, para a qual se sobe por meio das outras duas. O homem espera
para crer. E crê para amar.
256.7Este homem soube esperar. Ele nasceu. Foi um dos meninos de
Israel, como todos os outros. Cresceu recebendo os mesmos ensinamentos
que os outros. Tornou-se filho da Lei, como todos os outros. Tornou-se
homem, esposo, pai, velho, sempre esperando nas promessas feitas aos
patriarcas e repetidas pelos profetas. Na velhice, desceram sombras sobre
suas pupilas, mas não sobre seu coração. Neste sempre ficou acesa a
Esperança. Esperança de ver a Deus. De ver a Deus na outra vida. E, na
esperança desta vista eterna, uma outra, mais íntima e querida, a de “ver o
Messias”. E ele me disse, sem saber ainda quem era o jovem que lhe falava:
“Se abandonares a Lei, ficarás cego na terra e no Céu. Não verás a Deus,
nem reconhecerás o Messias.” Ele falou como sábio.
Muitíssimos há agora em Israel que estão cegos. Eles não têm mais
esperança, porque a matou neles a rebelião contra a Lei, que é sempre
rebelião, mesmo quando revestida de paramentos sagrados, se não estiver
com a aceitação integral da palavra de Deus, Eu digo de Deus, e não
dessas superestruturas que nela foram colocadas pelo homem e que, por
serem muitas, e todas humanas, acabam sendo desprezadas por aqueles
mesmos que as colocaram e são cumpridas maquinalmente, forçadamente,
cansadamente, de modo estéril pelos outros. Eles não têm mais esperança.
Tratam com irrisão as verdades eternas. Não têm, pois, nem mais Fé, nem
Caridade. O divino jugo de Deus dado ao homem para que fizesse dele um
motivo de obediência e merecimento, a celeste cruz que Deus deu ao
homem para ser um esconjuro contra as serpentes do Mal, a fim de que com
ela conseguisse saúde e vida, perdeu o seu braço transversal, o que segurava
a chama cândida e a chama vermelha: a Fé e a Caridade e, então, as trevas
desceram aos corações.
O velho me disse: “É uma grande desventura não crer e não cumprir o
que Deus mandou.”
É verdade. Eu o confirmo. É pior do que a cegueira material, que ainda
pode ser curada, para dar a um justo a alegria de tornar a ver o sol, os
prados, os frutos da terra, os rostos dos filhos e dos netos e, sobretudo, o
que era a esperança de sua esperança: “Ver o Messias do Senhor.” Eu
desejaria que uma virtude semelhante estivesse viva na alma de todo Israel,
e especialmente nas daqueles que são os mais instruídos na Lei. Não basta
ter estado no Templo, ou ter sido do Templo. Não basta saber de cor as
palavras do Livro. É necessário saber fazer delas a nossa vida, por meio das
três virtudes divinas.
Vós tendes disso um exemplo: onde estas estão vivas, tudo é fácil, até
uma vida de desventura. Porque o jugo de Deus é sempre um jugo leve, que
aperta somente sobre a carne, sem abater o espírito.
256.8Ide em paz, vós que estais em casa de bons israelitas. Vai em paz, velho
pai. De que Deus te ama, disso tens certeza. Fecha até o fim os teus dias,
depositando a tua sabedoria no coração dos pequeninos nascidos do teu
sangue. Não posso permanecer, mas minha bênção fica entre estas paredes
com abundância de graças, como abundantes são os cachos desta vinha.
E Jesus quereria ir-se embora. Mas Ele precisa pelo menos deter-se o
tempo necessário para conhecer esta tribo formada por todas as idades e
para receber o que eles vão querendo dar, até que os sacos de viagem
fiquem bojudos como odres… Depois Ele pode retomar seu caminho, por
um atalho que vai por entre as videiras, e que lhe mostram os vinhateiros
que o deixam, quando chegam à estrada mestra, já à vista de um lugarejo,
onde Jesus e os seus poderão passar a noite.
[44] Assuero, rei persa, cuja aparência real é apresentada em Ester 5,1c.
[45] fala em Isaías 6,9-10.
257. Jesus e Tiago de Alfeu,
em retiro sobre o monte Carmelo.
19 de agosto de 1945
257.1– Ficai evangelizando na planície de Esdrelon até que Eu volte para
o meio de vós –ordena Jesus aos seus apóstolos em uma serena manhã,
enquanto eles, às margens do Quison, estão tomando um pouco de
alimento: pão com frutas.
Os apóstolos não parecem estar muito entusiasmados, mas Jesus os
encoraja, dando-lhes uma linha a seguir, quanto ao modo de distribuírem os
trabalhos entre si e termina dizendo:
– Além disso, tendes convosco minha Mãe. Ela vos será uma boa
conselheira. Ide aos camponeses de Jocanã e procurai, no sábado, falar com
os outros de Doras. Prestai-lhes socorros e confortai o velho pai de
Marziam, dando-lhe notícias do menino e dizendo-lhe que, pelas festas dos
Tabernáculos o levaremos a ele. Dai muito, dai tudo o que tiverdes a esses
infelizes. Tudo que souberdes, todo afeto de que fordes capazes, todo o
dinheiro que tivermos. Não tenhais medo. Assim como sai, assim entra. De
fome não morreremos nunca. Ainda que vivamos somente de pão e frutas.
E, se virdes nudez, dai-lhes vestes, até as minhas. E as minhas em primeiro
lugar. Nunca ficaremos nus. E, sobretudo, se encontrardes misérias que me
estejam procurando, não as desprezeis. Não tendes o direito de fazer isso.
Adeus Mãe. Deus vos abençoe a todos por minha boca. Ide tranquilos. Vem,
Tiago.
– Não apanhas nem a tua bolsa? –pergunta Tomé, ao ver que o Senhor
se põe a caminho sem apanhá-la.
– Não precisamos dela. Estarei mais livre para andar.
Tiago também deixa a dele, mesmo depois de sua mãe ter-se apressado
em enchê-la de pão, queijo e frutas.
Vão indo, acompanhando no começo a margem do Quison, e depois,
enveredando pelas primeiras encostas que levam para o Carmelo e
desaparecendo aos olhos dos que ficaram.
– Mãe, estamos em tuas mãos. Guia-nos, porque… não somos capazes
de nada –confessa humildemente Pedro.
Maria tem um sorriso que os conforta, e diz:
– É muito simples. Não há mais do que obedecer às ordens dele e fareis
tudo bem. Vamos.
Mas eu não vou com eles… Sigo Jesus…
257.2Ele vai subindo com seu primo Tiago, nada fala e Tiago também não
fala. Jesus está concentrado em seus pensamentos. Tiago, que pressente
estar para ouvir uma revelação, está todo compenetrado de um amor
reverencial, de um tremor espiritual, e olha de vez em quando para Jesus
que, em sua concentração, deixa às vezes escapar a luminosidade de um
sorriso em seu rosto cheio de gravidade. Olha para Ele como olharia para
Deus, ainda não encarnado e resplendente com toda a sua majestade, e
aquele rosto, tão parecido com o de São José, com um moreno que não
desdenha o vermelho do alto das maçãs do rosto, se torna pálido pela
emoção. Mas ele respeita sempre o silêncio de Jesus.
Por íngremes atalhos, como se não estivessem vendo os pastores que
estão apascentando os seus rebanhos por baixo dos bosques das azinheiras,
dos carvalhos, dos freixos e de outras árvores de tronco alto, vão subindo,
sempre mais, roçando com suas capas nas moitas esverdeadas dos zimbros
e das douradas giestas, ou então as touceiras cor de esmeralda e cobertas de
pérolas dos mirtos, ou as cortinas movediças dos caprifólios e das
clematites em flor.
Eles vão subindo, deixando para trás os lenhadores e os pastores, até
atingirem, depois de um cansativo caminho, o cume do monte, ou melhor,
uma pequena planície, ao lado de uma crista coroada por gigantescos
carvalhos, limitada por uma balaustrada de altos troncos, cujas bases são as
copas das outras árvores da encosta, de modo que fica parecendo que o
pradozinho esteja como que apoiado sobre esta sussurrante base, isolada do
resto do monte, que as copas que estão por baixo nos impedem de ver,
tendo às nossas costas, o pico que projeta as suas árvores para o céu e sobre
o céu aberto e em frente de um largo horizonte, que se avermelha ao pôr do
sol e que se perde de vista sobre um mar totalmente incendiado.
Uma fenda está aberta na terra, e a terra só não desmorona, porque as
raízes dos gigantescos carvalhos a seguram como rede de tenazes. Ela se
abre mais na ribanceira, mas só tendo a largura capaz de acolher o corpo de
um homem não muito corpulento. Um capão de mato muito emaranhado,
parece prolongar-se, estendendo-se horizontalmente, a partir do lado do
barranco.
Jesus abre a boca para dizer:
– Tiago, meu irmão, aqui ficaremos esta noite e, ainda que o cansaço da
carne seja grande, Eu te peço que passemos a noite em oração. A noite e
toda a manhã até esta hora. Um dia inteiro não é demais para receber o que
Eu te quero dar.
– Jesus, meu Senhor e meu Mestre, eu farei sempre o que quiseres –
responde Tiago, que tinha ficado ainda mais pálido, quando Jesus começou
a falar.
– Eu sei. 257.3Vamos agora apanhar amoras e murtinhos para o nosso
estômago, e restaurar-nos perto de uma fonte que Eu ouvi rojando ali em
baixo. Mas deixa o manto na caverna. Ninguém o apanhará.
E, junto com o primo, rodeia o barranco, e depois, alguns metros
abaixo, na parte oposta à que foi usada para subir, eles enchem os odres, a
única coisa que haviam levado consigo, em uma fonte murmurante, que
aparece, caindo do meio de um emaranhado de grossas raízes, e nela se
lavam para se refrescarem do calor que, mesmo nestas alturas, ainda está
forte. Em seguida, tornam a subir para o seu planalto e, enquanto o ar está
todo vermelho no topo revestido pela luz do sol, que está para desaparecer
no ocidente, comem o que apanharam, bebem de novo, sorrindo um para o
outro como dois meninos felizes ou como dois anjos. Poucas palavras: uma
lembrança dos que ficaram na planície, uma exclamação cheia de
admiração por causa da grande beleza do dia, os nomes das duas mães…
Nada mais.
Depois, Jesus puxa para Si o primo e este toma a posição habitual de
João, com a cabeça apoiada no alto do peito do Primo, e ficam assim,
enquanto a tarde vem descendo com um grande pipilar dos passarinhos, que
se recolhem no mato denso, com um tilintar de cincerros, que vão se
afastando para longe, tornando-se cada vez menos audíveis, e com o
sussurrar leve do vento que acaricia as frondes, refrescando-as e animando-
as, tendo elas sofrido o calor parado do dia e que preparou as orvalhadas.
Ficam assim por muito tempo, e eu acho que há silêncio apenas nos
lábios, enquanto os espíritos, mais ativos do que nunca se entretém em
conversações espirituais..
258. Jesus revela a Tiago de Alfeu
qual será a sua missão de apóstolo.
20 de agosto de 1945.
258.1Estamos na mesma hora, mas do dia seguinte.
Tiago, que está ainda retirado na fenda do monte e sentado de cócoras
com a cabeça inclinada até quase os joelhos, que estão erguidos e rodeados
pelos braços, ou está em profunda meditação ou está dormindo. Eu não
entendo bem. Certamente ele está insensível ao que está acontecendo ao
redor dele, isto é, à briga de dois grandes pássaros que, por algum motivo
particular, estão lutando sobre o pradozinho. Eu diria que são galos da
montanha ou faisões, pois eles têm o tamanho de um frango, são de penas
variegadas, mas são sem crista, tendo apenas uma pequena carúncula,
vermelha como coral, no alto da cabeça e aos lados do bico, e eu vos
garanto que a cabeça é pequena, mas o bico deve ser como uma punção de
aço. Penas e sangue voam pelo ar, caem por terra, no meio de um grande
barulho, que até de longe se percebe e fez que ficassem em silêncio os
assobios, os trinados e gorjeios, que estavam vindo dos ramos. Talvez os
passarinhos estejam assistindo à luta feroz… Tiago não ouve nada.
Jesus, ao contrário, ouve e desce do cume, para onde havia subido, bate
as mãos e assim separa os dois litigantes, que fogem ensanguentados, um
para o lado da costa e o outro para o alto do carvalho e lá ele fica
arrumando de novo as penas, todas ainda hirtas e arrepiadas. Tiago não
levanta a cabeça, nem mesmo pelo rumor que fez Jesus, que sorrindo dá
alguns passos ainda, ficando no meio do pequeno prado. Sua veste branca
parece estar tingida de vermelho do lado direito, de tão vermelho que está o
pôr do sol. Parece que o céu está mesmo se incendiando. E, no entanto,
Tiago não deve estar dormindo, porque, mal Jesus sussurra o nome dele,
dizendo-lhe: “Tiago, vem aqui.”, ele levanta a cabeça dos joelhos, desfaz o
cruzamento dos braços e se põe de pé, indo para Jesus. Tiago põe-se parado
diante do Senhor, a uns dois passos de distância e fica olhando para Ele.
Também, Jesus olha para Tiago, sério, mas encorajador, com um sorriso
que não vem dos lábios, nem dos olhares e, contudo, é visível. Ele o olha
fixamente, como se quisesse ler as mínimas reações e emoções de seu
primo e apóstolo que, como ontem, ao sentir-se perto de uma revelação,
tornou-se pálido e ainda mais se torna, até ficar da mesma cor de sua veste
de linho, quando Jesus levanta os braços e apoia as mãos sobre os ombros
dele, ficando assim com os braços estendidos. Então, o próprio Tiago fica
parecendo uma vítima. Somente os seus mansos olhos castanho-escuros e a
barba acastanhada é que ainda põem cor naquele rosto atento.
258.2– Tiago, meu irmão, sabes tu, para que foi que Eu te quis aqui,
sozinho comigo, para falar-te, depois destas horas de oração e meditação?
Tiago dá sinais de estar cansado para responder, de tão comovido que
ainda está. Mas, afinal, ele abre os lábios, para responder em voz baixa:
– Para dar-me alguma lição especial para o futuro ou porque eu sou o
mais incapaz de todos. Eu te agradeço desde já, ainda que seja uma
repreensão. Mas, podes crer, Mestre e Senhor, que, se eu sou tardo e
incapaz, assim o sou por deficiência, mas não por má vontade.
– Não é uma repreensão, mas uma lição, isto sim, para o tempo no qual
Eu não estarei mais convosco. No teu coração, durante estes últimos meses,
ficaste pensando muito em tudo o que Eu te disse[46] um dia, aos pés deste
monte, quando te prometi que haveria de vir aqui contigo, não só para falar
do profeta Elias, nem para ficar olhando o mar, que brilha lá longe, sem
limites, mas para te falar de um outro mar, ainda maior, mutável, desleal,
deste que hoje parece o mais plácido dos lagos, e talvez, dentro de poucas
horas, engolirá navios e homens, em sua fome e voracidade. E nunca mais
separaste o pensamento de tudo o que Eu te disse naquele dia, de que a
vinda até aqui tivesse relação com o teu destino futuro. Por isso é que agora
vais ficando cada vez mais pálido, percebendo que se trata de um grande
destino, uma herança prenhe de uma responsabilidade tão grande, que faz
tremer até um herói. Uma responsabilidade e uma missão, que hão de ser
exercidas com toda a santidade possível em um homem, para não frustar a
vontade de Deus.
Não tenhas medo, Tiago. Eu não quero a tua ruína. Por isso, se a tal
missão Eu te destino, é sinal de que Eu sei que dela não te virá prejuízo,
mas uma glória sobrenatural. Escuta-me, Tiago. Põe-te em paz com um belo
ato de abandono a Mim, para poderes ouvir e recordar as minhas palavras.
Nunca mais estaremos assim sozinhos, e com o espírito assim preparado
para nos entendermos.
258.3Um dia Eu irei embora. Como todos os homens que têm o seu
tempo de permanência nesta terra. A minha permanência chegará ao fim, de
um modo bem diferente do de todos os homens, mas chegará ao fim, e vós
não me tereis mais perto de vós, a não ser com o meu Espírito, o qual, Eu te
asseguro, nunca vos abandonará. Eu irei embora, depois de vos ter dado
aquele tanto que é necessário para fazer progredir a minha Doutrina no
mundo, depois que Eu tiver completado o Sacrifício e vos tiver obtido a
Graça. Com esta, e com o Fogo sapiencial e septiforme, sereis capazes de
fazer isso, que agora poderia parecer-vos uma loucura, e uma presunção só
o imaginar fazê-lo.
Eu irei, e vós ficareis. E o mundo, que não compreendeu o Cristo, não
compreenderá também os apóstolos de Cristo. Por isso, sereis perseguidos e
dispersos, como os mais perigosos para o bem-estar de Israel. Mas, visto
que vós sois os meus discípulos, devereis sentir-vos felizes por sofrer as
mesmas aflições do vosso Mestre.
Eu te falei, num dia do mês de Nisan: “Tu serás aquele que restará dos
profetas do Senhor.” Tua mãe, por um ministério espiritual, teve uma meia
intuição do significado destas palavras. Mas, antes ainda que elas se
cumpram para os meus apóstolos, em ti e por ti serão cumpridas.
Tiago, todos serão dispersados, menos tu, e isto até que Deus te chame
para o seu Céu. Tu ficarás no posto para o qual Deus te elegeu pela boca
dos teus irmãos, tu descendente da estirpe real, na cidade real, para erguer o
meu cetro e falar do verdadeiro Rei. Rei de Israel e do mundo, segundo uma
realeza sublime, que ninguém compreende, a não ser aqueles aos quais ela é
revelada.
Serão tempos nos quais terás necessidade de uma fortaleza, de uma
constância, uma paciência e uma sagacidade sem limites. Deverás ser justo
com caridade, com uma fé simples e pura, como a de um menino e ao
mesmo tempo, erudita, como a de um verdadeiro mestre, para sustentar a fé
atacada em muitos corações e por muitas coisas inimigas dela e para refutar
os erros dos falsos cristãos e as sutilezas doutrinárias do velho Israel, o
qual, já cego desde agora, ficará mais cego do que nunca, depois de ter
matado a Luz, e torcerá as palavras proféticas e até as ordens do Pai, do
qual Eu procedo, para persuadirem-se a si mesmos, a fim de ficarem em
paz. E persuadir ao mundo de que Aquele, de quem falaram os Patriarcas e
os Profetas, não era Eu. E que Eu, ao contrário, fui um pobre homem, um
sonhador e, para os melhores, um louco e, para os menos bons do velho
Israel, um herege, um endemoninhado.
Eu te peço que sejas, então, um outro Eu. Não penses que não seja
possível. Porque o é. Tu deverás ter presente o teu Jesus, os seus atos, a sua
palavra, as suas obras. Como se tu te colocasses numa forma de argila
daquelas usadas pelos que fundem os metais, para dar-lhes uma certa
configuração, assim tu te deverás fundir em Mim. Eu estarei sempre
presente, tão presente e vivo para vós, meus fiéis, que vós vos podereis unir
a mim, tornar-vos um outro Eu, e basta que o queirais. Mas tu, que sempre
tens estado comigo, desde a mais tenra idade e recebeste o alimento da
Sabedoria pelas mãos de Maria, antes ainda do que pelas minhas, tu que és
sobrinho do homem mais justo que Israel já teve, tu deves ser um perfeito
Cristo…
258.4– Não posso, não posso, Senhor! Dá essa tarefa a meu irmão. Dá a
João, dá a Pedro, dá ao outro Simão. Não a mim, Senhor. Por que a mim?
Que fiz para merecê-lo? Não vês que eu sou apenas um pobre homem, cuja
única capacidade é a de te amar muito, e de crer firmemente em tudo o que
dizes?
– Judas tem um temperamento muito forte. Ele ficará muito bem onde
for preciso abater o paganismo. Não aqui, onde é preciso trazer para o
cristianismo aqueles que, por já serem o povo de Deus, acham que estão
certos e daí não se arredam a nenhum custo. Não aqui, onde é preciso
convencer a todos os que, mesmo acreditando em Mim, ficarão desiludidos
com o desenrolar dos acontecimentos. Convencê-los de que o meu Reino
não é deste mundo, mas é o Reino totalmente espiritual dos Céus, cujo
prelúdio é uma vida cristã, ou seja, uma vida cujos valores preponderantes
são os do espírito.
A convicção se consegue com uma firme doçura. Ai de quem precisou
agarrar pelo pescoço para persuadir. O agredido dirá “sim”, no momento,
para livrar-se do aperto. Mas depois fugirá, sem voltar mais para trás e sem
mais querer discussões, se ele não for perverso, mas só alguém que estava
fora do caminho. Ele se armará e dará morte ao prepotente afirmador de
doutrinas diferentes das suas, se ele for perverso, ou mesmo simplesmente
um fanático.
E tu ficarás rodeado de fanáticos. fanáticos entre os cristãos, fanáticos
entre os israelitas. Os primeiros quererão de ti atos de força ou, pelo menos
a licença de praticá-los. Porque o velho Israel, com as suas exigências e as
suas restrições, estará também agitando neles a sua cauda venenosa. Os
segundos, marcharão contra ti e contra os outros, como para uma guerra
santa em defesa da velha Fé, dos seus símbolos, das suas cerimônias. E tu
estarás no centro desse mar tempestuoso. Tal é a sorte dos chefes. E tu serás
o chefe de todos os que fizerem parte da Jerusalém cristianizada pelo teu
Jesus.
258.5Deverás saber amar perfeitamente, para poderes ser chefe
santamente. Não com armas e maldições, mas deverás opor o teu coração às
armas e maldições dos judeus. Não te permitas nunca ficar imitando os
fariseus em julgar que os pagãos são excremento. Também para eles foi que
Eu vim, porque, se fosse só para Israel, teria ficado desproporcionado o
aniquilamento de Deus, ao assumir um corpo capaz de sofrer a morte. E
porque, se é verdade que o meu amor me teria feito encarnar-me com
alegria, até pela salvação de uma só alma, a Justiça, que é um dos atributos
de Deus, exige que o Infinito se aniquile por uma infinidade: todo o Gênero
Humano.
Doce, para não rejeitar, deverás ser. Também para com eles, limitando-
te a seres inabalável no dogma, mas condescendente com outras formas de
vida, todas materiais, mas sem lesões para o espírito. Muito terás que
combater com os irmãos por causa disso, porque Israel está envolvido em
suas práticas externas, todas inúteis, pois que não mudam o espírito. Mas tu
fica, e ensina os outros a ficar também unicamente preocupado com o
espírito. Não pretendas que os pagãos mudem de repente os seus usos. Não
fiques ancorado junto ao teu penhasco. Porque para recolher pelo mar afora
as peças quebradas, e levá-las para o estaleiro, a fim de conservá-las para
uma nova vida, é preciso navegar, e não ficar parado E tu tens que ir atrás
das peças quebradas. Elas estão no paganismo e também em Israel. No
fundo do mar imenso está Deus, que abre os braços para todas as suas
criaturas. Quer sejam elas ricas por uma origem santa, como os israelitas,
quer sejam pobres, porque pagãos.
Eu disse: “Amareis o vosso próximo.” Próximo não é somente o
parente ou o compatriota. É próximo também o homem que mora perto do
polo da terra, e cujo rosto nem conheceis, e é próximo também o que a estas
horas está contemplando o romper da aurora, em lugares distantes e por vós
desconhecidos, ou o que percorre as geleiras das cordilheiras fabulosas da
Ásia, ou bebe da água de um rio, que abriu seu leito por entre as florestas
desconhecidas do centro da África. E se vier a ti um adorador do sol, ou
mesmo um outro que considera seu deus o voraz crocodilo, ou alguém que
se crê um sábio reencarnado, que foi capaz de conhecer a Verdade, mas não
foi capaz de adquirir a Perfeição dela, nem de dá-la como Salvação aos seus
fiéis, ou então, mesmo se vier a ti para te perguntar: “Dá-me o
conhecimento de Deus”, talvez algum nauseado cidadão de Roma ou de
Atenas, tu não poderás nem deverás dizer-lhe: “Eu vos rejeito, porque seria
uma profanação levar-vos a Deus.”
Lembra-te de que eles não sabem, ao passo que Israel sabe. No entanto,
em verdade, muitos em Israel são e serão mais idólatras e cruéis do que o
mais bárbaro e idólatra que houver no mundo, e não a este ou àquele ídolo
sacrificarão vítimas humanas, mas sim a si mesmos, ao seu orgulho, ávidos
de sangue, desde que neles se tiver acendido uma sede insaciável, que
durará até o fim dos séculos. Somente bebendo de novo e com fé o que
acendeu aquela sede atroz, é que se poderia extingui-la. Mas, então, já será
o fim do mundo, porque os últimos a dizerem “Nós cremos que Tu és Deus
e Messias” serão os de Israel, por mais que Eu tenha dado todas as provas
de minha Divindade.
258.6Velarás, e muito, para que a fé dos cristãos não seja vazia. Ela assim
seria, se fosse uma fé só de palavras, ou de práticas hipócritas. O espírito é
que vivifica. E esse espírito é o que falta no exercício rotineiro e farisaico,
que não passa de um fingimento de fé, e não é verdadeira fé. Que valeria ao
homem cantar os louvores de Deus na assembleia dos fiéis, se depois todos
os seus atos são de imprecação contra Deus, que não quer ser objeto de
escárnio dos fiéis, mas conserva sempre, em sua paternidade, suas
prerrogativas de Deus e de Rei?
Velarás, e muito, para que ninguém tome o lugar que não é seu. A Luz
será dada por Deus, de acordo com os graus que tiverdes. Deus não vos
deixará faltar a Luz, a não ser que a graça seja apagada em vós pelo pecado.
Muitos gostarão de ouvir que são chamados de “Mestres”. Um só é o
Mestre: Este que te está falando. E uma só é a Mestra: a Igreja que o
perpetua. Na Igreja serão mestres os que forem consagrados com o encargo
especial de ensinar. Mas entre os fiéis haverá aqueles que, pela vontade de
Deus e por sua santidade própria, isto é, por sua boa vontade, serão
alcançados pela corredeira da Sabedoria, e falarão. Outros desses haverá,
que por si mesmos não são sábios, mas que serão dóceis, como
instrumentos nas mãos do artífice, e em nome do Supremo Artífice, falarão,
repetindo, como uns meninos bons, o que manda dizer, ainda que não
compreendam toda a extensão daquilo que estão dizendo. Haverá, enfim, os
que falarão como se fossem mestres, e com um esplendor tal, que chegará a
seduzir os simples, mas eles serão uns soberbos, duros de coração,
ciumentos, iracundos, mentirosos e luxuriosos.
Enquanto Eu estou dizendo que recolhas as palavras dos sábios do
Senhor e dos sublimes pequeninos do Espírito Santo, ajudando-os a
compreender a profundidade das divinas palavras, porque, se eles são os
portadores da Voz Divina, vós, meus apóstolos, sereis sempre os docentes
de minha Igreja, e deveis socorrer a estes sobrenaturalmente cansados pela
extasiante e pesada riqueza que Deus depositou neles, a fim de que as
levassem aos irmãos, assim Eu te digo: rejeita as palavras de mentira dos
falsos profetas, cuja vida não está de acordo com a minha doutrina. A
bondade da vida, a mansidão, a caridade e a humildade não faltam nunca
nas sabedorias e nas pequenas vozes de Deus. Sempre faltarão nos outros.
Velarás, e muito, para que os ciúmes, as calúnias, não existam na
assembleia dos fiéis, e nem mesmo ressentimentos e espírito de vingança.
Velarás, e muito, para que a carne não tome a dianteira sobre o espírito. Não
serás capaz de suportar perseguições quem não tiver um espírito que reine
sobre a carne.
258.7Tiago, Eu sei que tu assim farás, mas faze ao teu Irmão a promessa
de que não me decepcionarás.
– Mas, Senhor, Senhor! Eu só tenho um medo: o medo de não ser capaz
de o fazer. Meu Senhor, eu te peço isto: Dá esse encargo a algum outro.
– Não. Eu não posso…
– Simão de Jonas te ama, e Tu o amas…
– Simão de Jonas não é Tiago de Davi.
– João! João, o anjo douto. Faze dele o teu servo nesse caso.
– Não. Não posso. Nem Simão, nem João possuem aquele nadinha que,
no entanto, é muito, no modo de julgar dos homens: o parentesco. E tu és
meu parente. Depois de me ter… depois de ter-me desconhecido, a parte
melhor de Israel procurará alcançar o perdão de Deus e de si mesma,
procurando conhecer o Senhor, que na hora de satanás eles terão
amaldiçoado e lhes parecerá que irão receber o perdão e também a força
para se colocarem em meu Caminho, se estiver em meu lugar um que seja
do meu sangue. Tiago, sobre este monte cumpriram-se coisas bem grandes.
Aqui o fogo de Deus consumiu[47], não só o holocausto, a lenha, as pedras,
mas até a poeira e a água que estava na fossa. Tiago, achas que Deus não
pode mais fazer uma coisa parecida, acendendo e consumindo todas as
materialidades do homem Tiago, para fazer um Tiago fogo de Deus? Temos
ficado falando, e já o pôr do sol transformou em chamas até as nossas
vestes. Assim, não menos brilhante, ou até mais brilhante achas tu que fosse
o lugar do carro que arrebatou Elias?
– Muito mais brilhante, porque foi um brilho produzido por um fogo
celeste.
– Pensa, então, como não haverá de ficar o coração, que se tornou fogo
por ter Deus em si, porque Deus quer que ele seja perpetuador do seu
Verbo, pregando a Boa Nova da Salvação.
258.8– Mestre, mas Tu, o Verbo de Deus, por que não ficas aqui?
– Porque Eu sou Verbo e Carne. Com o Verbo devo instruir e com a
Carne redimir.
– Oh! Meu Jesus, mas como redimirás? Ao encontro de quê estás indo?
– Tiago, lembra-te dos profetas.
– Mas, não é figurado o modo como eles falam? Podes Tu, o Verbo de
Deus, ser maltratado pelos homens? Não quererão eles dizer que à tua
divindade se dará um martírio, à tua perfeição, mas não mais do que isso,
nada mais? Minha mãe se preocupa comigo e com Judas, mas eu me
preocupo contigo e com Maria, e depois também conosco, pois somos tão
fracos. Jesus, Jesus, se o homem Te dominasse, não achas Tu que muitos de
nós creriam que Tu és réu e, decepcionados, se afastariam de Ti?
– Disso Eu tenho certeza. Haverá uma reviravolta em todas as camadas
dos meus discípulos. Mas depois voltará a paz e haverá até uma coesão das
partes melhores, sobre as quais, depois do meu sacrifício e do meu triunfo,
virá o Espírito fortificador e sábio: O Espírito Divino.
– Jesus, para que eu não me desvie e não me escandalize em tão
tremenda hora, dize-me: que é que te farão?
– É uma coisa muito grande, isso que me estás perguntando.
– Dize-a a mim, Senhor.
– Sabê-la exatamente, será para ti um tormento.
– Não faz mal. Por aquele amor que nos uniu sempre…
– Não deve ser conhecida.
– Dize-a a mim, e depois tira-me a lembrança dela até o momento em
que ela deverá acontecer. E, só então, faze que eu me lembre dela e também
desta hora. Assim, eu não me escandalizarei de nada e, no fundo do meu
coração, não ficarei teu inimigo.
– Não adiantará nada, porque tu também cederás à tempestade.
– Dize-a a mim, Senhor.
– Eu serei acusado, traído, torturado e condenado à morte na cruz.
– Naão! –Tiago urra, e se contorce, como se tivesse sido ferido ele de
morte–. Não! –ele repete–. Se fizerem assim contigo, que é que não farão a
nós? Como é que poderemos continuar a tua obra? Eu não posso, não posso
aceitar o posto que a mim destinas… Não posso!… Não posso! Uma vez
morto Tu, eu também serei um morto, pois não terei mais força. Jesus,
Jesus! Escuta-me. Não me deixes sem Ti. Promete-me, promete-me pelos
menos isso!
– Eu te prometo que virei guiar-te com o meu Espírito, depois que a
gloriosa Ressurreição me tiver libertado das restrições da matéria. Eu e tu
seremos ainda uma só coisa, como agora que tu estás entre os meus
braços –porque de fato Tiago abandonou-se, a chorar sobre o peito de Jesus.
258.9– Não chores mais. Saiamos desta hora de êxtase, luminosa e
penosa, como alguém que sai das sombras da morte, lembrando-se de tudo,
menos de como é o momento da morte, coisa espantosa e enregelante, que
dura um minuto, mas que, como fato, dura séculos. Vem, Eu te beijo assim,
para te ajudar a esquecer o peso da minha sorte como Homem. Encontrarás
a lembrança a seu tempo, assim como me pediste. Toma, Eu te beijo nessa
boca que deverá repetir as minhas palavras aos povos de Israel, e no
coração, que deverá amar como Eu disse, e aqui em tuas têmporas, onde
cessará a vida, juntamente com a última palavra de amorosa fé em Mim. Eu
virei, meu querido irmão, para perto de ti nas assembleias dos fiéis, nas
horas de meditação, nas de perigo e na hora da morte! Ninguém, nem
mesmo o teu anjo, recolherá o teu espírito, mas Eu, com um beijo, assim…
Ficam abraçados por longo tempo e Tiago fica parecendo quase
adormecer na alegria dos beijos de Deus, que o fazem esquecer seu
sofrimento.
Quando ele levanta a cabeça, volta a ser Tiago de Alfeu, pacato e bom,
muito parecido com José, esposo de Maria. Ele sorri para Jesus, com um
sorriso mais maduro, um pouco triste, mas sempre muito doce.
– Vamos tomar nosso alimento, Tiago, e depois vamos dormir por baixo
das estrelas. Ao raiar do dia desceremos para o vale… andando por entre os
homens… –e Jesus dá um suspiro… Mas termina com um sorriso–. … e
para Maria.
– E à minha mãe, que é que direi, Jesus? E aos companheiros? Sem
perguntas é que não me deixarão…
– Poderás dizer a eles tudo o que Eu te disse[48], fazendo que te
considerem Elias, nas suas respostas a Acab, ao povo sobre o monte e sobre
o poder de alguém amado por Deus para obter o que se quiser e de todos os
elementos, sobre o zelo que o devora, graças ao Senhor e, como já te fiz
considerar, que com a paz se entende e se serve a Deus. Dirás a eles, como a
vós Eu tenho dito: “Vinde”, e assim vós, como Elias fez com seu manto a
Eliseu, vós, com o manto da caridade, podereis conquistar novos servos de
Deus para o Senhor. E àqueles que estão sempre preocupados, dize-lhes
como foi que Eu te fiz conhecer a alegre liberdade das coisas do passado,
que nos mostra Eliseu, ao libertar-se dos bois e do arado. Dize-lhes, como
Eu fiz lembrar que a quem quer milagres por meio de Belzebu, sobrevém o
mal e não o bem, como aconteceu a Ocozias, segundo a palavra de Elias.
Dize-lhes, finalmente, como Eu te prometi que a quem for fiel até à morte
virá o fogo purificador do Amor, para queimar as imperfeições, e levá-lo
diretamente ao Céu. O mais é para ti somente.
[46] Eu te disse, em 192.1.
[47] consumiu como é dito em 1 Reis 18,38.
[48] disse se referindo a 1 Reis 18-19; 22,52-54; 2 Reis 1; Siraque 48,1-14.
259. Lição sobre a Igreja e os Sacramentos
a Tiago de Alfeu, que realiza um milagre.
21 de agosto de 1945.
259.1Jesus deixa o planalto do Carmelo, e desce pelos caminhos cobertos
de orvalho, através dos bosques, que vão se enchendo cada vez mais de
trinados e de vozes, sob sol da manhã, que já vem dourando a encosta
oriental do monte. Quando a leve neblina produzida pelo calor vai-se
evaporando sob o sol, toda a planície de Esdrelon aparece, na beleza dos
seus pomares e vinhedos, plantados perto das casas. Parece um tapete,
quase totalmente verde, com uns poucos oásis amarelados, disseminados
pelo meio de um redemoinho de cor vermelha, que são os campos, onde
acabou de ser ceifado o trigo, e agora veem-se acesas as papoulas,
encerradas na área em forma de engaste triangular, formado pelos montes
Carmelo, Tabor e Hermon (o pequeno Hermon), e pelos montes mais
distantes, cujos nomes eu não sei e que escondem o Jordão, unindo-se a
sudoeste com os montes da Samaria.
Jesus se detém para olhar, pensativo, para toda aquela parte da
Palestina. Tiago olha para Ele e diz:
– Estás olhando para a beleza desta região?
– Sim, também para ela. Mas, mais do que para ela, eu estou pensando
nas peregrinações futuras e na necessidade de enviar-vos e de enviar, sem
perda de tempo, os discípulos, não a um trabalho limitado como o de agora,
mas a um trabalho realmente missionário. Temos regiões e mais regiões,
que ainda não me conhecem e Eu não quero deixar lugares sem me
conhecerem. Esta é a minha preocupação em todas as horas: andar, fazer,
enquanto estou podendo, fazer tudo…
– De vez em quando, sucedem coisas que te fazem ir devagar.
– Mais do que Me fazerem ir devagar, Me levam a fazer alterações no
itinerário a ser seguido. Pois nunca são inúteis as viagens que fazemos. E,
enquanto isso, há tantas, tantas coisas para fazer… E também porque,
depois de ter estado ausente de um lugar, quando a ele volto, encontro
muitos corações que voltaram ao ponto em que estavam antes, e devo
começar tudo de novo.
– Sim, é cansativa e desagradável esta apatia dos espíritos, esta
volubilidade, e esta preferência pelo mal.
– É cansativa. Mas não digas desagradável. O trabalho de Deus nunca é
desagradável. As pobres almas devem causar-nos piedade, não desagrado.
Um pai nunca fica desgostoso pelas doenças do seu filho. E nós não
devemos ficar desgostosos com ninguém.
259.2– Jesus, permites-me fazer-te algumas perguntas? Eu, até nesta noite
mesmo, não dormi. Mas fiquei pensando muito, enquanto fiquei te olhando
dormir! Durante o sono pareces ficar tão jovem, meu Irmão! Ficavas
sorrindo, com a cabeça apoiada sobre um braço dobrado por baixo dela,
justamente como fazem os meninos. Eu Te via bem por causa do luar bem
claro que houve esta noite. E eu fiquei pensando. E muitas perguntas me
subiram ao coração…
– Dize quais são.
– Eu dizia a mim mesmo: é preciso que eu pergunte a Jesus como
poderemos chegar a ser esse organismo, ao qual Tu deste o nome de Igreja e
no qual, se é que eu entendi bem, haverá hierarquias, estando nós nesta
insuficiência. Tu nos dirás o que temos que fazer, ou nós é que deveremos
pensar nisso?
– Eu, quando chegar a hora, vos mostrarei o começo dela. Nada mais.
Durante a minha presença entre vós, Eu já vos vou mostrando as diversas
classes com as diferenças entre apóstolos, discípulos e discípulas. Eu quero
que, assim como os discípulos devem ter respeito e obediência para com os
apóstolos, assim também os apóstolos tenham amor e paciência para com os
discípulos.
– E, que deveremos fazer? Pregar-te sempre, e somente isso?
– Isto é essencial. 259.3Depois, devereis, em meu nome, absolver e
abençoar, tornar a colocar no estado de graça, administrar os Sacramentos
que Eu vou instituir…
– Que são essas coisas?
– São meios sobrenaturais e espirituais aplicados junto com meios
materiais, modos para persuadir os homens que o sacerdote faz realmente
alguma coisa. Tu estás vendo que o homem, se não vê, não crê. Ele tem
sempre a necessidade de alguma coisa que lhe diga que alguma coisa existe.
Por isso, quando Eu faço milagres, imponho as mãos, molho com a saliva
ou dou um bocado de pão molhado. Eu poderia fazer o milagre somente
com o meu pensamento. Mas, podes crer que, nesse caso, as pessoas diriam
“Foi Deus que fez o milagre?” Elas diriam “Ficou curado, porque era hora
de ficar curado.” E atribuiriam o merecimento ao médico, aos remédios ou
à resistência física do doente. O mesmo acontecerá com os Sacramentos.
Eles são formas de culto para administrar a Graça, conferindo-a ou
fortalecendo-a nos fiéis. João, por exemplo, usava a imersão na água para
dar uma ideia da limpeza, que exclui os pecados. Na realidade, mais do que
a água, que servia para lavar os membros, era útil a mortificação de se
confessarem sujos, pelos pecados que haviam feito. Eu também terei o
batismo, o meu batismo, que não será simplesmente uma figura, mas será
realmente uma detersão da mancha original da alma e a restituição à mesma
do estado espiritual, que Adão e Eva possuíam, antes da sua culpa, mas
agora já melhor, porque dado pelos merecimentos do Homem-Deus.
– Mas… a água não desce sobre a alma! A alma é espiritual. Quem será
capaz de tocar nela no recém-nascido, no adulto, no velho? Ninguém.
– Estás vendo que admito que a água é um meio material, que não tem
força sobre uma coisa espiritual? Portanto, não será a água, mas sim a
palavra do sacerdote, membro da Igreja de Cristo, consagrado ao seu
serviço ou de outro, que creia verdadeiramente, e que em casos
excepcionais o substitua, operará o milagre da redenção da culpa original
do que é batizado.
259.4– Está bem. Mas o homem comete também os seus próprios
pecados…E esses outros pecados, quem lhos tirará?
– Sempre o sacerdote, Tiago. Se um adulto for batizado, junto com a
culpa original, lhe serão canceladas as outras culpas. E, se o homem já é
batizado e torna a pecar, o sacerdote o absolverá, em nome do Deus Uno e
Trino e, pelo mérito do Verbo Encarnado, como faço Eu com os pecadores.
– Mas Tu és santo. Enquanto que nós…
– Vós deveis ser santos, porque tocais nas coisas santas e administrais o
que é de Deus.
– Então, batizaremos muitas vezes um mesmo homem, como João que
faz a imersão de um homem na água tantas vezes quantas o homem for a
ele?
– João, no seu batismo, não faz mais do que uma purificação por meio
da humildade daquele que vai para ser imergido. Eu já te disse isto. Vós não
batizareis de novo a quem já foi batizado, a não ser que ele tenha sido
batizado com uma fórmula não apostólica, mas cismática, e nesse caso se
pode administrar um segundo batismo, fazendo-se uma pergunta clara ao
batizando, se ele for adulto, se ele o quer, e uma clara afirmação de querer
fazer parte da verdadeira Igreja. Nas outras vezes, para restabelecer a
amizade e a paz com Deus usareis a palavra do perdão, unida aos méritos de
Cristo, e a alma, que veio a vós com verdadeiro arrependimento e humilde
acusação de si mesma, ficará absolvida.
259.5– E, se alguém não puder vir, porque está doente, a tal ponto que
nem pode ser tirado do lugar onde se acha? Morrerá, então, no pecado? Ao
sofrimento da agonia ainda se acrescentará mais esse do medo do juízo de
Deus?
– Não. O sacerdote irá ao doente, e o absolverá. E lhe dará até uma
forma mais ampla de absolvição, de um modo geral, mas para todos e cada
um dos órgãos dos sentidos, pelos quais geralmente o homem chega ao
pecado. Em Israel nós temos o óleo Santo, composto segundo a regra
dada[49] pelo Altíssimo, e com o qual é consagrado o altar, o Pontífice, os
sacerdotes e os reis. O homem é realmente um altar. E rei ele se torna, por
sua eleição para o trono do Céu; pode, portanto, ser consagrado com o Óleo
da Unção. O óleo santo será, junto com o altar, parte do culto de Israel
incluído na minha Igreja, embora com outros usos. Porque nem tudo em
Israel é mau e deve ser repelido. Antes, muitas recordações da antiga estirpe
estarão na minha Igreja, e uma será o óleo santo, usado também na Igreja
para consagrar o altar, os pontífices e as hierarquias eclesiásticas todas, para
consagrar os reis e os fiéis quando se tornarem os príncipes-herdeiros do
reino ou, então, quando tiverem necessidade de maiores auxílios para
poderem comparecer diante de Deus, com seus membros e sentidos limpos
de toda culpa. A graça do Senhor socorrerá a alma e também o corpo, se a
Deus lhe apraz, para o bem do doente. O corpo muitas vezes não reage
contra as doenças, também por causa dos remorsos que lhe perturbam a paz
e pela obra de satanás que, por aquela morte espera ganhar uma alma para o
seu Reino e levar ao desespero os sobreviventes. O doente passa da angustia
satânica e da perturbação interior à paz, mediante a certeza do perdão de
Deus, que lhe obtém também o afastamento de satanás. E, visto que o dom
da graça tinha por companheiro, em nossos primeiros pais, o dom da
imunidade às doenças e de toda espécie de dor, o doente, restituído à graça,
grande como a de um recém-nascido batizado com o meu batismo, pode
obter também a vitória sobre a doença. Nisto ajudado também pelas orações
dos irmãos na fé, nos quais existe a obrigação da piedade para com o
enfermo, piedade não só corporal, mas sobretudo espiritual, tendendo a
obter a salvação física e espiritual do irmão. A oração é já uma espécie de
milagre, Tiago. A oração de um justo, como viste em Elias, muito pode
fazer.
259.6– Eu te compreendo pouco, mas o pouco que eu compreendo já me
enche de reverência pelo caráter sacerdotal dos teus sacerdotes. Se bem
compreendo, teremos contigo muitos pontos em comum: a pregação, a
absolvição, o milagre. Três sacramentos, portanto.
– Não, Tiago. Pregação e milagre não são sacramentos. Mas os
Sacramentos serão mais. Serão sete, como o sagrado candelabro do Templo
e os dons do Espírito do Amor. E em verdade, os Sacramentos são dons e
são chamas, dados para que o homem arda diante do Senhor pelos séculos
dos séculos. Haverá também o sacramento para as núpcias do homem. Isso
é o que foi acenado[50] no símbolo das núpcias santas de Sara de Raquel,
libertada do demônio. Ele, aos esposos, dará todos os auxílios para uma
santa convivência, segundo as leis e os desejos de Deus. Também o esposo
e a esposa se tornam ministros de um rito: o da procriação. Também o
marido e a mulher se tornam sacerdotes de uma pequena igreja: a família.
Devem, por isso, ser consagrados para procriar com a bênção de Deus e
para criar uma descendência na qual se bendiga o Nome Santíssimo de
Deus.
– E a nós, os sacerdotes, quem nos consagrará?
– Eu, antes de deixar-vos. Vós, depois, consagrareis os sucessores e
todos quantos associardes para propagarem a fé cristã.
– Tu nos ensinarás, não é mesmo?
– Eu e Aquele que Eu vos mandarei. E essa sua vinda será um
Sacramento, voluntário, da parte de Deus Santíssimo em sua primeira
epifania, e depois dado por aqueles que tiverem recebido a plenitude do
sacerdócio. Será força e inteligência, será afirmação na Fé, será piedade
santa e santo temor, será uma ajuda de conselho e de sabedoria
sobrenatural, e a posse de uma justiça, que, por sua natureza e poder,
tornará adulto a criança que a recebe. Mas tu não podes, por enquanto,
compreender isto. Ele mesmo é que te fará compreender. Ele, o Divino
Paráclito, o Amor Eterno, quando tiverdes chegado ao momento de recebê-
lo em vós. E assim não podeis, por enquanto, compreender um outro
Sacramento. É quase incompreensível para os anjos, de tão sublime. E, no
entanto, vós, simples homens, o compreendereis em virtude da fé e do
amor. Em verdade Eu te digo que quem o amar e nutrir com ele o seu
espírito, poderá pisar o demônio sem ser danificado. Porque, então, Eu
estarei com ele. Procura lembrar-te destas coisas, meu irmão. A ti é que
tocará dizê-las aos companheiros e aos fiéis, muitas e muitas vezes. Vós,
então, sabereis já por ministério divino, mas tu poderás dizer: “Ele me disse
um dia, descendo do Carmelo. Tudo Ele me disse, porque eu estava sendo,
desde aquele momento, destinado a ser o chefe da Igreja de Israel.”
259.7– Eis uma outra pergunta a fazer-te. Fiquei pensando nela esta noite.
Mas serei eu que devo dizer aos companheiros: “Eu é que vou ser o chefe
aqui?” Não me agrada. Se o ordenas, o farei. Mas não me agrada.
– Não tenhas medo. O Espírito Paráclito descerá sobre todos, e vos dará
pensamentos santos para a glória de Deus em sua Igreja.
– E não haverá mais aquelas discussões tão… tão desagradáveis, que há
agora? Também Judas de Simão não será mais causador de aborrecimentos?
– Não será mais, fica tranquilo. Mas divergências, ainda haverá. E por
isso que Eu te disse: vela, e vela muito, sem te cansares nunca, fazendo o
teu dever com firmeza.
– Ainda uma pergunta, meu Senhor. Em tempo de perseguição, como
devo me comportar? Parece, pelo que Tu dizes, que eu terei que ficar
sozinho dentre os Doze. Os outros, portanto, ir-se-ão embora para
escaparem da perseguição. E eu?
– Tu continuarás no teu posto. Porque, se é necessário que não sejais
exterminados, enquanto não estiver bem consolidada a Igreja, — isso
justifica a dispersão de muitos discípulos e de quase todos os apóstolos —,
nada justificaria a tua deserção e abandono por parte de ti da Igreja de
Jerusalém. Ao contrário, quanto mais ela estiver em perigo, mais deverás
zelar por ela, como se fosse a tua filha mais querida e prestes a morrer. O
teu exemplo fortalecerá o espírito dos fiéis. Terão necessidade para
superarem a prova. Quanto mais fracos os vires, mais deverás confortá-los,
com compaixão e sabedoria. Se tu fores forte, não sejas sem piedade para
com os fracos. Mas sustenha-os, pensando “Eu recebi tudo de Deus, para
chegar a esta minha força. Humildemente devo dizê-lo e caridosamente
devo agir pelos menos abençoados com os dons de Deus”, e dar, dar a tua
força, junto com a palavra, com o socorro, com a calma, com o exemplo.
– E, se entre os fiéis houvessem malvados, causa de escândalos e
servindo de perigo para os outros, que deverei fazer?
– Prudência, ao aceitá-los, porque é melhor serem poucos e bons do que
muitos, e não bons. Tu conheces o velho apólogo das maçãs sãs e das maçãs
doentes. Faça que não se repita na tua igreja. Mas, se tu também
encontrares teus traidores, procura adverti-los de todos os modos,
reservando os modos severos só como meios extremos. Mas, se se tratar
apenas de pequenas culpas individuais, não sejas de uma severidade que
assusta. Perdoa, perdoa… Faz mais um perdão com lágrimas e com
palavras de amor, do que uma maldição, para redimir um coração. Se a
culpa for grave, mas cometida por um repentino assalto de satanás, tão
grave, que o culpado sinta necessidade de fugir da tua presença, vai tu à
procura do culpado. Porque ele é o cordeirinho extraviado e tu és pastor.
Não tenhas medo de te aviltares a ti mesmo descendo por estradas
lamacentas, procurando por brejos e precipícios. A tua fronte se coroará,
então, com a coroa do mártir do amor, que será a primeira das três coroas…
E, se tu mesmo fores traído, como foi o Batista e muitos outros, porque
cada santo tem o seu traidor, perdoa. Mais a este do que a qualquer outro.
Perdoa, como Deus perdoou aos homens e como ainda perdoará. Chama
ainda “filho” àquele que causará dor, porque o Pai os assim chama por
minha boca e, em verdade, não existe homem que não tenha dado dor ao
Pai dos Céus…
259.8Um longo silêncio enquanto vão atravessando pastos cheios de ovelhas
pastando.
Enfim, Jesus pergunta:
– Não tens outras perguntas a fazer-me?
– Não, Jesus. E esta manhã compreendi melhor a minha tremenda
missão…
– Porque hoje estás menos perturbado do que ontem. Quando for a tua
hora, estarás ainda mais em paz e compreenderás melhor ainda.
– Recordarei todas essas coisas…todas… menos…
– Que, Tiago?
– Menos aquela que não me deixava olhar para Ti sem chorar, esta
noite. Aquela que eu não sei se Tu mesmo me disseste — deverei crê-la dita
por Ti —, ou se terá sido um susto a mim passado pelo demônio. Mas,
como é que podes estar assim tão calmo, se… se aquelas coisas te devessem
mesmo acontecer?
– E tu, ficarias calmo, se eu te dissesse: “Aqui está aquele pastor que,
cansado, ainda está se arrastando por causa de uma junta contundida. Trata
de curá-lo em nome de Deus?”
– Não, meu Senhor. Eu ficaria até como fora de mim, se eu fosse
tentado a usurpar o teu lugar.
– E, se Eu te ordenasse?
– Eu o faria por obediência e já não teria nenhuma perturbação, porque
estaria sabendo que Tu o queres, e ficaria sem medo de não saber fazer.
Porque certamente Tu, ao mandar-me, me darias a força de fazer o que
queres.
– Tu o dizes, e dizes bem. Vê, pois, como Eu, prestando obediência ao
Pai, estou sempre em paz.
Tiago chora, inclinando a cabeça.
– Queres mesmo esquecer-te de tudo?
– Como Tu quiseres, Senhor.
– Há duas coisas a escolher: ou te esqueces, ou te lembras. Se te
esqueceres, isso te livrará da dor e do silêncio absoluto junto aos
companheiros, mas te deixará despreparado. Se te lembrares, isso te
preparará para a tua missão, porque nada há melhor do que recordar-se do
que sofre em sua vida o Filho do homem, para não se lamentar nunca, e
para tornar-se espiritualmente viril, vendo tudo sobre o Cristo na mais
luminosa das luzes. Escolhe.
– Crer, recordar, amar. Isto eu quereria. E morrer, quanto antes,
Senhor –e Tiago chora continuamente, e sem fazer barulho.
Se não fossem suas lágrimas, que vêm deslizando por sobre sua barba
castanha, não se saberia que está chorando.
Jesus o deixa assim. Finalmente, Tiago diz:
– E se, no futuro,Tu fizeres novas alusões ao teu martírio, eu devo dizer
que sei?
– Não. Cala-te. José sabia calar-se em sua dor de esposo, que se julgava
traído, e sobre o mistério da concepção virginal e da minha Natureza. Imita-
o. Aquele também era um grande segredo. E, no entanto, ia sendo guardado,
porque, se não fosse guardado, ou por orgulho ou por leviandade, teria
posto em perigo toda a Redenção. Satanás é constante em vigiar, e em agir.
Lembra-te. O teu falar agora seria dano a muitos. Cala-te.
– Eu me calarei… e o peso será dobrado…
Jesus não responde. Ele deixa que Tiago, tendo a cabeça protegida por
um pano de linho, chore à vontade.
259.9Encontram-se com um homem, que vai levando um infeliz menino,
amarrado às suas costas.
– É teu filho? –pergunta Jesus.
– Sim. Nasceu-me assim e matando a mãe. Agora, tendo morrido minha
mãe também, quando vou para o serviço, levo-o aqui atrás, para vigiá-lo.
Eu sou lenhador. Deixo-o sobre a grama, por cima do manto e, enquanto
vou serrando as árvores, ele se diverte com as flores, meu pobre filho!
– Tens uma grande desventura.
– É, sim. Mas o que Deus quer, aceita-se em paz.
– Adeus, homem. A paz esteja contigo.
– Adeus. Paz a vós.
O homem sobe o monte, Jesus e Tiago continuam descendo.
– Quantas desventuras! Eu estava esperando que Tu o curasses! –
suspira Tiago.
Jesus faz como se não tivesse entendido.
– Mestre, se aquele homem tivesse sabido que Tu és o Messias, talvez
te tivesse pedido o milagre.
Jesus não responde.
– Jesus, Tu me deixas voltar lá atrás para ir dizer isso àquele homem?
Tenho pena do menino. Já ando com o coração tão cheio de dor. Dá-me pelo
menos a alegria de ver curado aquele menino.
– Então, vai. Eu te espero aqui.
259.10Tiago sai correndo. Alcança o homem, e o chama:
– Homem, para e escuta! Aquele que estava comigo é o Messias. Dá-me
o teu menino, para que eu o leve a Ele. Vem, tu também, para vermos se o
Mestre o cura.
– Vai tu, homem. Eu preciso serrar toda esta lenha. Já me atrasei, por
causa do menino. E, se não trabalhar, não como. Sou pobre e ele me custa
tanto. Eu creio no Messias, mas é melhor que tu lhe fales por mim.
Tiago se inclina para recolher o menino, deitado sobre a relva.
– Pega-o devagar –aconselha o lenhador–. Ele sente muitas dores.
De fato, mal Tiago faz um movimento para levantá-lo, o menino chora
e se lamenta.
– Oh! Que pena! –suspira Tiago.
– É mesmo uma grande pena –diz o lenhador, que está serrando um
tronco duro.
E acrescenta:
– Não poderias curá-lo, tu?
– Eu não sou o Messias. Eu sou apenas um discípulo dele…
– E, então? Os médicos aprendem com outros médicos. Os discípulos,
com o seu Mestre. Vamos, sê bom. Não o faças sofrer. Experimenta, tu. Se
o Mestre quisesse vir, o faria. Ele te mandou, porque não o quer curar ou,
então, porque quer que o cures.
Tiago está perplexo. Depois, ele se decide. Põe-se de pé, ora, como viu
Jesus fazer e depois ordena:
– Em nome de Jesus Cristo, Messias de Israel e Filho de Deus, fica
curado.
E logo depois se ajoelha, dizendo:
– Oh! meu Senhor, perdão! Eu agi sem a tua licença. Mas foi por dó
deste filho de Israel. Piedade, meu Deus. Por ele, e por mim pecador! –e
desfaz-se em lágrimas, inclinado sobre o menino estendido. Suas lágrimas
caem sobre as perninhas contorcidas e inertes.
259.11Jesus aparece no caminho. Mas ninguém o vê, porque o lenhador
está trabalhando, Tiago está chorando, o menino está olhando curiosamente
para ele e carinhosamente lhe pergunta:
– Por que estás chorando? –e estende a mãozinha para acariciá-lo e, sem
perceber, assenta-se sozinho, levanta-se e abraça Tiago para consolá-lo.
É o grito de Tiago que faz com que o lenhador se vire e que ele veja seu
filho de pé, sobre suas próprias pernas, já não mais mortas e contorcidas
como antes. E, ao virar-se, o lenhador vê Jesus.
– Ei-lo! Ei-lo aí –grita ele, acenando por trás das costas de Tiago, que
também se vira, e vê Jesus olhando para ele com um rosto cheio de
luminosa alegria.
– Mestre! Mestre! Eu não sei como foi… a piedade… este homem…
este pequenino… Perdão!
– Levanta-te. Os discípulos não são mais que o Mestre, mas podem
fazer o que faz o Mestre, quando o fazem por uma santa causa. Levanta-te,
e vem comigo. Sede benditos, vós dois, e lembrai-vos de que também os
servos de Deus fazem as obras do Filho de Deus, e lá se vai, puxando atrás
de Si Tiago, que vai sempre dizendo:
– Mas, como é que eu pude? Eu ainda não entendo. Com isso eu fiz um
milagre em teu nome?
– Com a tua piedade, Tiago. Com o teu desejo de fazer-me ser amado
por aquele inocente e por aquele homem, que acreditava e duvidava ao
mesmo tempo. João, perto de Jábnia, fez milagre por amor, curando um
doente, ao ungi-lo rezando. Tu aqui curaste com o teu pranto e a tua
piedade. E com a tua confiança no meu nome. Estás vendo como é bom
servir ao Senhor, quando no discípulo há reta intenção? Agora, vamos
depressa, porque o homem vem vindo atrás de nós. Não é bom que os
companheiros saibam disso, por enquanto. Dentro de pouco tempo vos
mandarei em meu nome… (um grande suspiro de Jesus), como Judas de
Simão está ansioso por fazer (outro grande suspiro) vós o fareis. Mas nem
para todos isso será um bem. Atenção, Tiago! Simão Pedro, o teu irmão e
também os outros, ficariam tristes ao saberem disso, como se fosse uma
parcialidade. Mas não é. É para preparar, entre vós Doze, alguém que saiba
guiar os outros. Vamos descer pelo leito desta torrente coberto de folhas
secas, e assim faremos que desapareçam os nossos rastros… Tu ficas
aborrecido com isso, por causa do menino. Mas nós o tornaremos a
encontrar.
[49] dada em Êxodo 30,22-33.
[50] acenado talvez em Tobias 3,16-17.
260. Duas parábolas de Pedro
para os camponeses da planície de Esdrelon.
22 de agosto de 1945.
260.1– Que estais fazendo, amigos, perto desse fogo? –pergunta Jesus, ao
encontrar os discípulos ao redor de um fogo bem aceso, que solta labaredas
no meio das primeiras sombras da tarde, junto a uma encruzilhada da
planície de Esdrelon.
Os apóstolos ficam surpresos, por não o terem visto, quando Ele
chegou, e se esquecem do fogo para aclamarem o Mestre. Parece que faz
um século que não o veem. Depois, eles explicam:
– Silêncio. Nós apaziguamos uma briga entre dois irmãos de Jezrael, e
eles ficaram tão contentes, que quiseram dar-nos um cordeiro cada um.
Pensamos em assá-lo para darmos ao pessoal de Doras. Então, Miqueias de
Jocanã os degolou e preparou, e agora vamos assá-los. Tua Mãe, com Maria
e Susana foram avisar ao pessoal de Doras para virem, no fim da tarde,
quando o intendente estiver fechado em casa, a embebedar-se. As mulheres
atraem menos o olhar… Procuramos vê-los, quando passavam, com
viandantes pelos campos, mas pouco conseguimos. Esta tarde, tínhamos
resolvido reunir-nos aqui e dizer… alguma coisa mais para a alma, e fazê-
los sentirem-se bem também no corpo, como Tu já fizeste nas outras vezes.
Mas agora Tu estás aqui, e vai ser mais bonito.
– Quem iria falar?
– Ora!… Todos um pouco… Assim, de modo simples. Não somos
capazes de fazer mais do que João. Zelotes e o teu irmão não querem falar,
nem mesmo Judas de Simão, e até Bartolomeu se esquiva para não falar…
Já andamos até discutindo por causa disso… –diz Pedro.
– E, por que não querem falar aqueles cinco?
– João e Simão, porque dizem que não fica bem que sejam sempre
eles… Teu irmão, porque quer que eu fale e diz que, se eu nunca começo…
Bartolomeu, porque… porque tem medo de falar demais como mestre e não
saber convencê-los. Tu estás vendo quantas desculpas…
– E tu, Judas de Simão, por que não queres falar?
– Mas, pelas mesmas razões que os outros. Por todas elas juntas, pois
que todas são justas…
– Muitas são as razões. Mas de uma delas ninguém falou. 260.2Agora Eu
vou fazer o julgamento, um julgamento inapelável. Tu, Simão de Jonas,
falarás como fala Tadeu, que fala com sabedoria. E tu, Judas de Simão,
também falarás. Assim, uma das muitas razões, aquela que é conhecida por
Deus e por ti, cessa de existir.
– Mestre, podes crer, não há outra… –procura rebater Judas.
Mas Pedro o domina, dizendo:
– Oh! Senhor! Eu falar, estando Tu presente? Não conseguirei! Tenho
medo de que te rias.
– Tu não queres ficar sozinho; Tu não queres estar comigo. Que queres
então?
– Tens razão. Mas… que devo dizer?
– Olha para o teu irmão, que está vindo com os cordeiros. Ajuda-o e,
enquanto os assas, pensa nisso. Tudo serve para achar assunto.
– Até um cordeiro sobre brasas? –pergunta, incrédulo, Pedro.
– Até isso. Obedece.
Pedro solta um suspiro muito sentido, mas não responde mais. Vai ao
encontro de André e o ajuda a enfiar os animais em um pau aguçado que
serve de espeto, e põe-se a vigiar a assadura, com uma concentração tal no
rosto que mais parece um juiz no momento da sentença.
– Vamos ao encontro das mulheres, Judas de Simão –ordena Jesus.
E lá vai Ele, para o lado dos campos sem vida de Doras.
– Um bom discípulo não despreza o que o Mestre não despreza, Judas –
diz, pouco tempo depois, e sem preâmbulos.
– Mestre, eu não desprezo. Mas, como Bartolomeu, eu também acho
que não vou ser entendido, e prefiro calar.
– Natanael age assim, por medo de não fazer o que Eu desejo, ou seja,
iluminar e consolar os corações. Ele também faz mal, porque não tem
confiança no Senhor. Mas tu fazes um mal muito maior, porque em ti o que
há, não é o medo de não ser entendido, mas o desdém por teres que fazer-te
entender por pobres camponeses, que são ignorantes em tudo, mas não na
virtude. Nesta, em verdade, eles estão acima de muitos dentre vós. Tu ainda
não entendeste nada, Judas. O Evangelho é, de fato, a Boa Nova levada aos
pobres, aos doentes, aos escravos, aos desconsolados. Depois será levada
também aos outros. Mas é justamente para que os infelizes de todas as
infelicidades recebam ajuda e conforto é que ela lhes é dada.
Judas inclina a cabeça, e não responde.
260.3Do lado de uma moita de viçosas folhagens, aparecem Maria, Maria
de Cléofas e Susana.
– Mãe, te saúdo! A paz esteja convosco, mulheres!
– Meu Filho! Eu fui até àqueles… torturados. Mas recebi uma notícia
boa para não deixar-me sofrer além da medida. Doras conseguiu livrar-se
destas terras, e Jocanã as adquiriu. Não é um paraíso…Mas, já não é mais
aquele inferno. Hoje mesmo o intendente disse isso aos camponeses. Ele,
Doras, já saiu de lá, levando embora em seus carros até o último grão de
trigo, deixando todos sem o que comer. E posto que o vigilante de Jocanã
tem para hoje alimento só para os seus, os de Doras teriam que estar sem
comer. Foi, pois, providencial ganharmos aqueles cordeiros!
– Providencial é também que não sejam mais de Doras. Nós vimos as
casas deles. Umas pocilgas… –diz, escandalizada, Susana.
– Estão muito felizes aqueles pobrezinhos! –termina Maria de Cléofas.
– Eu também estou contente. Sempre estarão melhor do que antes –diz
Jesus, que se vira para os apóstolos.
João de Endor o alcança, com moringas cheias d’água, que ele vem
trazendo junto com Hermasteu:
– Elas nos foram dadas pelos homens de Jocanã –explica ele depois de
ter feito uma reverência a Jesus.
Voltam-se todos para o lugar, onde estão procurando assar bem os dois
cordeiros, por entre densas nuvens de fumaça gordurosa. Pedro continua a
virar o seu espeto e, nesse intervalo, está revolvendo também os seus
pensamentos. Judas Tadeu, por sua vez, segurando abraçado pela cintura o
seu irmão, vai para a frente e para trás, falando animadamente com ele. Os
outros, uns trazem mais lenha, outros preparam… a mesa, indo buscar
pedras grandes, que vão servir de cadeiras ou de mesa. Eu não sei. Chegam
os camponeses de Doras. Estão bem mais magros e esfarrapados. Mas
parecem mais felizes! São uns vinte, e entre eles não há nenhuma criança e
nenhuma mulher. Pobres homens sozinhos…
– A paz esteja com todos vós, e bendigamos juntos ao Senhor, por vos
ter dado um patrão melhor. Bendigamo-lo, rezando pela conversão daquele
que tanto vos fez sofrer. Não é verdade? Estás feliz, avô? Eu também.
Poderei vir mais vezes com o menino. Já te disseram? Estás chorando de
alegria, não é mesmo? Vem, vem, sem temor… –diz Jesus falando com o
avô de Marziam, o qual lhe beija as mãos, todo inclinado, chorando e
murmurando:
– Não peço nada mais ao Altíssimo. Ele me deu mais do que eu poderia
pedir. Agora eu quero morrer, por medo de viver ainda tanto, que pudesse
ainda cair nos meus sofrimentos.
Um pouco acanhados por estarem com o Mestre, os camponeses
desabafam logo, quando, sobre grandes folhas, estendidas sobre as pedras,
que para ali haviam sido levadas antes, veem eles que estão sendo
colocados à mesa os dois cordeiros, e que são cortadas as partes, e que vão
sendo apoiadas cada uma delas sobre uma fogaça grande e chata, que lhes
serve de prato, e nessa altura eles já estão tranquilos, em sua simplicidade, e
comem alegremente, saciando toda aquela fome acumulada, e contando
casos dos últimos acontecimentos
Um diz:
– Eu sempre amaldiçoei os gafanhotos, as toupeiras e as formigas. Mas,
de agora em diante, todos eles me parecerão mensageiros do Senhor. Porque
é pelo trabalho deles que nós saímos daquele inferno.
E, ainda que comparar as formigas e os gafanhotos com as fileiras dos
anjos seja um pouco exagerado, contudo, ninguém ri, porque todos
percebem o que há de trágico, o que está contido naquelas palavras.
As labaredas de fogo iluminam a reunião de pessoas, mas os rostos
delas não estão virados para o fogo, e mal elas podem olhar para o que lhes
está na frente. Porque os olhares convergem para o rosto de Jesus,
afastando-se dele só por alguns instantes, quando Maria de Alfeu, que está
ocupada em repartir as partes de carne, torna a colocar outras porções de
carne sobre as fogaças dos esfaimados camponeses, e termina seu trabalho
enrolando dois pernis assados em outras grandes folhas, e diz ao velho
parente de Marziam:
– Segura. Aí já tereis para amanhã uma porção para cada um, enquanto
o vigia do Jocanã estiver tomando as providências.
– Mas, vós…
– Nós andamos mais depressa. Pega, pega, homem.
Dos dois cordeiros, não sobram senão os ossos descarnados e um forte
cheiro de gordura derramada, que ainda está esturrando sobre a lenha que,
aos poucos, vai-se apagando, ficando a sua luz substituída agora pelo clarão
do luar.
260.5Os camponeses de Jocanã também se unem aos outros. Agora é hora
de falar. Os olhos azuis de Jesus se levantam, procurando Judas Iscariotes,
que foi se colocar perto de uma árvore, para pôr-se um pouco à sombra. E,
vendo que ele parece não estar compreendendo o seu olhar, Jesus o chama
com alta voz: “Judas!” Aí, é forçoso levantar-se e ir até Jesus.
– Não te afastes. Eu te peço que evangelizes no meu lugar. Eu estou
muito cansado. E, se Eu não tivesse chegado esta tarde, com certeza vós é
que teríeis que falar!
– Mestre… eu não sei o que dizer. Faze-me pelo menos as perguntas.
– Não sou Eu que as devo fazer. Dizei-me vós: tendes o desejo de ouvir
ou de ter as explicações? –pergunta Ele aos camponeses.
Os homens se olham uns aos outros… e estão na dúvida… Finalmente
um dos camponeses pergunta:
– Nós já ficamos conhecendo o poder do Senhor e a sua bondade. Mas
sabemos ainda muito pouco de sua doutrina. Talvez agora vamos poder
sabê-la melhor, agora que estamos com Jocanã. Mas em nós é viva a
vontade de saber quais são as coisas indispensáveis, e que se hão de fazer
para conseguir o Reino que o Messias promete. Com as poucas coisas que
podemos fazer, será que poderemos consegui-lo?
Judas responde:
– É verdade que vos encontrais em condições muito dolorosas. Tudo em
vós e ao redor de vós conspira contra vós, para afastar-vos do Reino. A
liberdade que não tendes para virdes ao Mestre, quando o desejais, a
condição de servos de um patrão que, se não é uma hiena como Doras, é,
pelo que estamos vendo, um molosso, que segura bem seguros os seus
servos, nos sofrimentos e no aviltamento em que estais, e tudo isso são
outras tantas condições desfavoráveis para que sejais escolhidos para o
Reino. Porque dificilmente deixarão de existir em vós os ressentimentos e
os sentimentos de rancor, de crítica e de vingança contra aquele que vos
trata duramente. Pois o mínimo necessário é que ameis a Deus e ao
próximo. Sem isso, não há salvação. Vós deveis vigiar para conterdes o
vosso coração em uma submissão passiva à vontade de Deus, que se mostra
claramente nessa vossa presente condição e em uma paciente tolerância
para com o vosso patrão, deixando até de permitir ao vosso pensamento a
liberdade de um julgamento, que certamente não poderia ser benévolo para
com o patrão, nem de agradecimento para com a vossa… para com o
vosso… Afinal, não deveis ficar pensando, para que não haja rebeliões
entre vós, rebeliões que matariam o amor. E, quem não tem amor, não tem
salvação, porque vai contra o primeiro mandamento. Eu, porém, estou
quase certo de que vós podereis salvar-vos, porque vejo em vós a boa
vontade, unida a uma mansidão de espírito, que dá boa esperança de que
sabereis conservar longe de vós o ódio e o espírito de vingança. Além disso,
a misericórdia de Deus é tão grande, que vos perdoará o que vos falta ainda
para a vossa perfeição.
260.6Fazem silêncio. Jesus está com a cabeça muito inclinada e não se vê
qual a expressão do seu rosto. Mas os rostos dos outros podem ser vistos. E
não são, na verdade, rostos de gente feliz. Os dos camponeses estão mais
desanimados do que antes, os dos apóstolos e das mulheres estão
assustados, eu quase diria: espantados.
– Nós vamos esforçar-nos para não deixar que se levante em nós
nenhum pensamento que não seja de paciência e de perdão –responde
humildemente o velho.
Mas um outro camponês suspira:
– Certamente vai ser difícil chegar à perfeição do amor, pois para nós já
é muita coisa não nos termos tornado ainda assassinos de nossos
torturadores! Nosso espírito sofre, sofre muito, se é que não odeia a
dificuldade para amar, como aqueles meninos muito magros, que sentem
dificuldade para crescer….
– Mas, não é assim, homem. Eu, ao contrário, acho que, justamente
porque já sofrestes tanto, sem que tenhais chegado a ser assassinos e
vingativos, por isso, tendes ânimo mais forte do que o nosso no amor. Vós
amais, até sem o perceberdes –diz Pedro, para consolá-los.
260.7Aí, ele percebe que falou e se interrompe para dizer:
– Oh! Mestre!… Mas… me disseste que eu devia falar… e buscar
assunto até no cordeiro que eu estava assando. Eu continuei a olhar para ele,
procurando palavras boas para estes nossos irmãos, para as necessidades
deles. Mas, certamente porque eu sou um estulto, nada encontrei de
apropriado, e não sei como, em pensamento já me encontrava muito longe
dali, em pensamentos que eu não sei dizer se eram extravagantes e, nesse
caso, seriam certamente meus, ou santos, e nesse caso certamente teriam
vindo do Céu. Eu os vou dizendo, assim que eles forem chegando e Tu,
Mestre, me darás a explicação deles, ou a tua reprovação, e todos vós tende
compaixão de mim.
Eu estava olhando, primeiramente para as labaredas, e veio-me este
pensamento: “Aí está! De que é feita a labareda? Da lenha. Ora, a lenha, por
si mesma, não solta labaredas. Pelo contrário, se não estiver bem enxuta,
nem pega fogo, porque a água a torna pesada e impede que a isca a acenda.
A lenha, quando secou, chega até a apodrecer, a ser esfarinhada pelos
carunchos, mas, por si mesma não pega fogo. No entanto, se alguém a
coloca de modo conveniente, aproximando-se dela a isca e o fuzil, depois se
faz sair a faísca, que cria condições para que se erga a chama, quando se
sopra sobre gravetos finos, para aumentá-la, pois se há de começar sempre
com coisas mais leves, então surge a chama, que se mostra bela e útil, e se
vai estendendo sobre tudo, até sobre a lenha mais grossa.” E eu dizia a mim
mesmo: “Nós somos a lenha. Por nós mesmos, não nos acendemos. Mas é
preciso que haja em nós o cuidado para não estarmos por demais
impregnados das pesadas águas da carne e do sangue, para deixarmos que a
chama nasça, após a faísca. E devemos desejar ser queimados, porque, se
ficarmos inertes, poderemos ser destruídos pelas intempéries e pelos
carunchos, isto é pela nossa humanidade e pelo demônio. E, se nos
abandonarmos ao fogo do amor, ele começará a queimar em nós os gravetos
mais finos e os destruirá, e os gravetos, a meu ver, eram as imperfeições, e
depois crescerá e se estenderá por sobre a lenha mais grossa, isto é, as
paixões mais fortes. E nós, que somos a lenha material, dura, opaca e até
feia, nos transformaremos naquela bela, incorpórea, ágil e brilhante coisa,
que é a labareda. E tudo isso porque estaremos entregues ao amor que é o
fuzil e a isca que, do nosso miserável ser de homens pecadores, fazem o
anjo do tempo futuro, o cidadão do Reino dos Céus.” E isso foi um
pensamento.
260.8Jesus levantou um pouco a cabeça, e está escutando, de olhos
fechados, com um leve sorriso sobre os lábios. Os outros estão olhando para
Pedro, ainda assustados, mas não espantados.
Ele, então, continua tranquilamente:
– Um outro pensamento me veio, quando estava olhando para os
animais, que estavam sendo assados. Não digais que eu sou infantil em
meus pensamentos. O Mestre me disse que eu os procurasse naquilo que eu
estivesse vendo… E eu obedeci.
Por isso, eu olhava para os animais, e dizia a mim mesmo: “Aí estão
eles. São dois inocentes, dois mansos. A nossa Escritura está cheia de doces
alusões[51] ao cordeiro, tanto para recordar Aquele que é o Messias
prometido e Salvador, desde que foi mostrado no cordeiro mosaico, como
para dizer que Deus terá piedade de nós. Isto é o que dizem os profetas. Ele
vem reunir suas ovelhas, socorrer as que estão feridas, levar sobre os
ombros as machucadas. Quanta bondade!”, eu dizia. “Como é preciso não
ter medo de um Deus, que promete tanta piedade para nós, miseráveis.
Mas”, dizia eu ainda, “é preciso sermos mansos, pelo menos mansos, uma
vez que inocentes não somos. Mansos e desejosos de ser consumidos pelo
amor. Porque até o mais belo e puro dos cordeirinhos, o que se torna, depois
de o terem matado, se a labareda não o assar? Torna-se carniça podre. Ao
passo que, se o fogo se estende sobre ele, ele se torna alimento sadio e
abençoado.”
E eu concluía: “Enfim, todo bem é feito pelo amor. Este nos despoja do
peso da humanidade, e nos torna brilhantes e úteis, torna-nos bons para com
os irmãos e agradáveis a Deus. Ele purifica as nossas boas qualidades
naturais, elevando-as a uma altura tal, que tomam o nome de virtudes
sobrenaturais. E quem é virtuoso, é santo. E quem é santo, possui o Céu.
Portanto o que nos abre os caminhos da perfeição não é a ciência, nem o
medo. Mas é o amor. Este, muito mais do que o temor do castigo, nos
conserva longe do mal, pelo desejo de não entristecer o Senhor. Ele nos faz
compadecer-nos dos irmãos e amá-los, porque eles vêm de Deus. Por isso, o
amor é a salvação e a santificação do homem.” Estas eram as coisas que eu
estava pensando, ao olhar para o meu assado, e obedecendo a meu Jesus. E
perdoai, por serem só estas. Mas a mim elas já fizeram bem. Eu vo-las dou
na esperança de que façam bem a vós igualmente.
260.9Jesus abre os olhos e eles estão radiantes. Estende o braço e põe a
mão sobre o ombro do Pedro:
– Na verdade, tu achaste as palavras que devias. A obediência e o amor
as fizeram encontrar e a humildade e o desejo de dar uma consolação aos
irmãos farão delas outras tantas estrelas a brilhar no céu escuro deles. Deus
te abençoe, Simão de Jonas!
– Deus te abençoe, Mestre meu! E tu, não falas?
– Amanhã eles irão ficar sob a nova dependência. Eu abençoarei a
entrada deles nela, com a minha palavra. Agora, ide em paz e Deus esteja
convosco.
[51] alusões, por exemplo, em Isaías 53,7; Jeremias 11,19; cordeiro mosaico, preescrito em Êxodo 12,1-11; dizem os profetas,
como em Jeremias 23,3; Ezequiel 34,11-16.
261. Exortação aos camponeses de Doras,
passados à dependência de Jocanã.
23 de agosto de 1945
261.1Ainda não surgiu completamente a aurora. Jesus está de pé no meio
do pomar arruinado de Doras. Uma sucessão de árvores mortas, ou
morrendo, das quais muitas já foram derrubadas, ou arrancadas do solo. Ao
redor de Jesus, os camponeses de Doras e de Jocanã, e os apóstolos, estão
uma parte em pé, e os outros sentados sobre os troncos derrubados.
Jesus começa a falar:
– Um novo dia, e uma nova partida. E não sou Eu somente que vou
partir. Vós também partis, se não materialmente, mas moralmente, passando
a ter um outro patrão. Estareis, pois, unidos a outros camponeses bons e
piedosos, e formareis uma família, na qual podereis falar de Deus e do seu
Verbo, sem precisardes recorrer a subterfúgios para fazer isso. Sustentai-vos
um ao outro na fé, ajudai-vos mutuamente, suportai os defeitos de cada um
de vós, e servi de edificação uns para os outros.
Isto é amor. E, ainda que de modo diferente, que no amor haja salvação,
como ouvistes ontem à tarde da boca dos meus apóstolos. Simão Pedro,
com uma palavra simples e boa, vos fez refletir como o amor muda a
natureza pesada em uma natureza sobrenatural, e como um indivíduo, que é
sem amor, pode tornar-se corrupto ou corruptor, como animal abatido, mas
não assado ou, pior ainda, ser inútil como lenha que fica apodrecendo
dentro d’água, sem prestar para acender o fogo e fazer que um homem
passe a viver na atmosfera de Deus, isto é, um ser que sai da corrupção e se
torna útil ao próximo.
Porque, podeis crer, meus filhos, a grande força do Universo é o amor.
Eu não me cansarei jamais de dizer. Todas as dores da terra vem do
desamor. A começar pela morte e pelas doenças, que nasceram da falta de
amor de Adão e Eva ao Senhor Altíssimo. Porque o amor é obediência.
Quem não obedece, é um rebelde. Quem é um rebelde, não ama aquele
contra o qual ele se rebela. Mas, também as outras desventuras, gerais ou
particulares, como as guerras ou as ruínas em que caem duas famílias, que
estão brigando uma com a outra, de onde é que nascem? Nascem do
egoísmo, que é um desamor. E, com a ruína das famílias, vêm também as
ruínas dos bens, por castigo de Deus. Porque Deus, mais cedo ou mais
tarde, pune àquele que vive sem amor. Eu sei que por aqui se conta uma
história — e por causa dela Eu sou odiado por alguns, olhado por outros
com os corações cheios de medo, ou sou invocado como um novo castigo,
ou suportado por medo de alguma punição.
261.2Eu sei que circula a história de que tenha sido o meu olhar que
tornou malditos estes campos. Não foi o meu olhar, mas o egoísmo
castigado de alguém que era injusto e cruel. Se meus olhos tivessem que ir
às terras de todos os que me odeiam, na verdade poucas áreas verdes
ficariam na Palestina!
Eu não me vingo nunca das ofensas que fazem a Mim mesmo, mas
entrego ao Pai aqueles que obstinadamente persistem em seus pecados de
egoísmo contra o seu próximo e, sacrílegamente, zombam do preceito e,
quanto mais eles ouvem palavras para persuadi-los, e com as palavras
também se fazem atos para convencê-los a amar, tanto mais cruéis se
tornam. Eu estou sempre pronto para levantar a mão e dizer a quem se
arrepende: “Eu te absolvo. Vai em paz.” Mas Eu não ofendo o Amor, a
ponto de transformá-lo em irreversíveis durezas. Tende sempre isto em
mente, para que vejais as coisas à luz justa, e para desmentir essas histórias
que, tenham ou não sido criadas por veneração ou por um medo cheio de
ira, estão sempre bem longe da verdade.
261.3Vós passais a ficar sujeitos a um outro patrão, mas não abandoneis
estas terras que, no estado em que estão, parece loucura querer tratar delas.
No entanto, Eu vos digo: cumpri nelas também o vosso dever. Vós o
cumpristes até agora por medo das punições humanas. Cumpri-o também
agora, mesmo sabendo que não sereis tratados como o fostes. Eu até vos
digo: quanto mais fordes tratados com humanidade, tanto mais trabalhai
com alegre diligência, para pagardes, com o vosso trabalho, a humanidade
que deveis a quem vos trata com humanidade. Porque, se é verdade que os
patrões têm o dever de ser humanos com os seus empregados —
lembrando-se de que somos todos de um mesmo tronco e de que em
verdade todos os homens nascem nus da mesma maneira, e morrem,
tornando-se depois podridão, da mesma maneira, tanto o pobre como o rico,
e de que as riquezas não são de quem as têm, mas daqueles para quem
foram acumuladas, com honestidade ou com desonestidade, e de que não há
necessidade de gloriar-se delas ou de por causa delas oprimir os outros, mas
fazer com elas boas obras também em favor dos outros, usando delas com
amor, discrição e justiça, a fim de sermos tratados sem severidade por parte
do verdadeiro patrão que é Deus, o qual ninguém compra nem seduz com
joias nem talentos de ouro, mas o fazemos amigo com nossas boas ações —
porque, se isso é verdade, também é verdade que os servos têm o dever de
ser bons para com os seus patrões.
261.4Fazei com simplicidade e com boa vontade a vontade de Deus, que
vos quer nessa humilde condição. Vós sabeis a parábola[52] do rico Epulão.
Vede que no Céu não é o ouro, mas a virtude é que recebe prêmio. A
virtude e a submissão à vontade de Deus tornam Deus amigo do homem. Eu
sei que é muito difícil ser sempre capazes de ver a Deus através das obras
dos homens. Quando tudo corre bem, é fácil. Quando corre mal, é difícil,
porque pode levar nosso espírito a pensar que Deus não é bom. Mas vós,
superai o mal que vos é feito pelo homem tentado por satanás, e, do lado de
lá dessa barreira, que custa lágrimas, vede a verdade da dor e a sua beleza.
A dor vem do mal. Mas Deus, não podendo aboli-la, porque essa força
existe, e é a prova do ouro espiritual dos filhos de Deus, e o constrange a
extrair do veneno dela o suco de um remédio que dá a vida eterna. Porque a
dor, com sua mordida, inocula nos bons reações tais, que os espiritualizam,
fazendo-os sempre mais santos.
261.5Vós, pois, sede bons, respeitosos, obedientes. Não fiqueis julgando
vossos patrões. Já há quem os julgue. Eu gostaria que quem vos dá ordens
se tornasse justo, a fim de tornar mais fácil o vosso caminho e alcançar para
ele a vida eterna. Mas lembrai-vos de que, quanto mais penoso for o dever a
cumprir, maior será o mérito aos olhos de Deus. Não procureis fraudar o
patrão. O dinheiro ou as mercadorias apanhadas com fraude não
enriquecem a ninguém, nem matam a fome. Tende puras as vossas mãos, os
vossos lábios e o vosso coração. E, então, celebrareis os vossos sábados, as
vossas festas de preceito, em graça aos olho-s do Senhor, mesmo quando
sejais obrigados a trabalhar na gleba. Na verdade, que valor maior teria o
vosso trabalho do que o da oração hipócrita dos que vão cumprir o preceito,
só para receberem louvor do mundo, transgredindo, na verdade, o preceito,
com a desobediência à Lei que manda obedecer, por si mesmo e por todos
os de casa, ao preceito do sábado e das solenidades de Israel. Porque a
oração não está no ato, mas no sentimento. E, se o vosso coração ama a
Deus com santidade, em qualquer eventualidade, ele cumprirá os ritos do
sábado e das festas, melhor do que os que vos impedem de cumprir.
Eu vos abençôo, e aqui vos deixo, porque o sol já vai alto, e Eu
pretendo chegar às colinas, antes que o calor fique forte demais. Rever-nos-
emos logo, porque o outono não está mais muito longe. A paz esteja com
todos vós, com os novos e os antigos servos de Jocanã, e tranquilize os
vossos corações.
E Jesus vai-se encaminhando, passando pelo meio dos camponeses, e
abençoando-os, um por um.
261.6Atrás de uma grande macieira seca, está um homem meio
escondido. Mas, quando Jesus está para passar por ele, como se não o
estivesse vendo, ele pula para fora, e diz:
– Eu sou servo do intendente Jocanã. Ele me disse: “Se o Rabi de Israel
vier, deixa-o parar nas minhas terras, e deixa que ele fale aos meus servos.
Não precisamos ter maiores preocupações com isso, porque Ele só ensina
coisas boas.” E ontem, com a notícia de que, a partir de hoje, eles (e mostra
os de Doras) estão comigo, e como estas terras são de Jocanã, ele me
escreveu: “Se o Rabi chegar até aí, escuta o que Ele diz, e comporta-te bem
com Ele. Que não venham desgraças sobre nós. Cobre-o de honras, mas
procura que Ele revogue a maldição das terras.” Porque sabes que Jocanã as
adquiriu por capricho. Mas eu creio que ele já se arrependeu do que fez.
Ainda bem se, com estas terras, pudermos fazer pastagens…
– Já me ouviste falar?
– Sim, Mestre.
– Então sabereis como comportar-vos, tu e o teu patrão, para terdes a
bênção de Deus. Dize isto ao teu patrão. E, por tua conta, procura que as
ordens dele sejam suaves, tu que conheces na prática quais são as canseiras
do homem do campo e és estimado por teu patrão. Mais vale que tu percas a
benevolência dele e o posto, do que perderes a tua alma. Adeus.
– Mas eu preciso prestar-te honras.
– Eu não sou um ídolo. Não preciso de honras interesseiras para
conceder graças. Honra-me com a tua alma, pondo em prática tudo o que
ouviste, e terás servido a Deus e, ao mesmo tempo, ao teu patrão.
E Jesus, acompanhado pelos discípulos e pelas mulheres, e depois por
todos os camponeses, vai atravessando os campos, entra depois pelo
caminho que vai para as colinas, tendo sido antes saudado por todos.
[52] parábola, narrada exatamente para eles em 191.5/7.
262. Uma filha indesejada e a missão da
mulher redimida. Iscariotes pede a ajuda de
Maria.
24 de agosto de 1945.
262.1Num sobe e desce de colinas, sobre as quais desemboca a estrada
que vai para Nazaré, aproveitando as sombras dos olivais e pomares,
espalhados por esta região fértil e cultivada, Jesus vai tomando o rumo de
Nazaré.
Tendo chegado à encruzilhada, de onde sai o caminho para Ptolomaida,
Ele para e diz:
– Vamos parar junto a esta casa, onde já parei outras vezes, tomemos
aqui o nosso alimento; e, enquanto o sol vai fazendo o seu caminho,
estejamos unidos, antes de nos separarmos de novo. Nós iremos para
Tiberíades, minha Mãe e Maria para Nazaré e João com Hermasteu para
Sicaminon.
Dirigem-se, através de um olival, para uma casa grande e baixa de
camponeses, tendo ao lado a figueira que não falta, e coroada com uma
grinalda de festões de uma videira que se alastra para cima, subindo pela
escadinha, para ir estender os seus ramos por sobre o terraço.
– A paz esteja convosco. Estou aqui de novo.
– Vem, Mestre. É sempre bem-vinda a tua presença. Deus te dê a paz, a
ti e aos teus –responde um velhinho, que ia atravessando o terreiro, com
uma braçada de gravetos.
Depois, ele grita:
– Sara! Sara! Aqui está o Mestre com os seus discípulos. Põe mais
farinha para o teu pão!
Sai de um quarto uma mulher toda embranquecida pela farinha, que
certamente ela estava peneirando, pois ainda está com a peneira na mão,
cheia de farelo, e se ajoelha sorrindo, diante de Jesus.
– A paz esteja contigo, mulher. Eu me fiz acompanhar até a tua casa por
minha Mãe, como te havia prometido. Aqui está ela. E esta é a cunhada
dela, a mãe de Tiago e de Judas. Onde estão Dina e Filipe?
A mulher, depois de ter saudado as duas Marias, responde:
– Dina teve ontem a sua terceira menina. Estamos um pouco tristes,
porque não tivemos a sorte de ter um neto. Mas assim mesmo estamos
contentes, não é, Matatias?
– Sim, porque é uma bela menina, e é sempre o nosso sangue. Eu a vou
mostrar. Filipe foi buscar Ana e Noemi na casa de seus pais. Mas ele já
estará de volta.
A mulher volta a ir fazer o seu pão, enquanto o homem, pondo no forno
os feixes de gravetos, ocupa-se com os seus hóspedes, oferecendo-lhes
cadeiras e leite tirado na hora, para quem quiser, frutas e azeitonas a quem
as preferir.
262.2O quarto térreo é sombreado e fresco, grande e aberto na frente, e no
fundo da casa, com as duas portas sombreadas, uma pela figueira, a outra
por uma sebe com flores em forma de estrelas, uma espécie de girassóis na
forma, mas menos agigantados do que estes nas corolas. Uma luz
esmeraldina entra no amplo quarto, para alívio dos olhos cansados pelo
calor do sol. Bancos e mesas estão colocados no espaçoso quarto, que
deverá ser o quarto onde as mulheres fiam e tecem, onde os homens
consertam suas ferramentas agrícolas, e aí guardam as provisões de farinha
e de frutas, como nos dão a entender aquelas vigotas cheias de ganchos,
delas pendurados, e as mesas colocadas sobre outras mesas maiores, do
outro lado das compridas caixas-bancos, postas ao longo das paredes. Umas
borlas de estopa de linho ou de cânhamo parecem-se com tranças soltas, ao
longo da parede pintada com cal, e um tecido vermelho como fogo está
estendido sobre um tear, que tinha ficado descoberto, e parece ser para
alegrar o ambiente todo com sua cor risonha e festiva.
A dona da casa está de volta, pois já acabou de fazer o pão, e pergunta
aos hóspedes se querem ver a recém-nascida.
Jesus responde:
– Eu irei abençoá-la.
Maria, por sua vez, se levanta, e diz:
– Eu também irei, para saudar a mãe.
Todas as mulheres lá se vão.
– Como se está bem aqui –diz Bartolomeu que, visivelmente, está muito
cansado.
– É verdade. Aqui há sombra e silêncio. Acabaremos dormindo –
confirma Pedro, já meio sonolento.
– Dentro de três dias, estaremos, e por muito tempo, em nossas casas.
Lá repousareis, porque ireis evangelizar pelas circunvizinhanças –diz Jesus.
– E Tu?
– Eu estarei, por algum tempo, em Cafarnaum, indo quase sempre de lá
para fazer algumas permanências em Betsaida. Depois, quando chegar a lua
de Tisri, recomeçaremos a andar. A tarde, contudo, continuarei a melhorar-
vos…
Jesus se cala, porque vê que o sono torna inúteis as suas palavras. Ele
sorri, sacudindo a cabeça, ao observar este grupo de pessoas, que o cansaço
venceu, e que, em posições mais ou menos cômodas, põem-se a dormir. O
silêncio da casa e do campo ensolarado é completo. Parece um lugar
encantado. Jesus chega até à porta, ao lado das sebes floridas, e fica
olhando, através dos ramos, as doces colinas Galileias, todas acinzentadas
pela cor das oliveiras imóveis.
262.3Um leve ruído, unido ao grito isolado de um recém-nascido, soa por
cima de sua cabeça. Jesus levanta o rosto, e sorri para sua Mãe, que vem
descendo e trazendo nos braços um pacotinho branco, do qual emergem três
coisinhas vermelhas, uma cabecinha e dois punhozinhos que se agitam,
– Olha, Jesus, que bela menina! Ela se parece um pouco contigo,
quando estavas com um dia. Eras também louro, a tal ponto, que parecias
sem cabelos, se eles não se tivessem encaracolado desde então, em flocos
leves como de nuvens, e na cor parecias uma rosa. E olha, olha como ela
abre os olhinhos, no meio desta sombra, e procura o peito da mãe. Ela tem
os olhos azul-escuros como os teus… Oh! Querida! Mas eu não tenho leite,
pequenina, rosinha, minha pombinha!
E a Senhora embala a pequenina, que transforma o seu vagido em um
arrulho, como o de uma pombinha, e adormece.
– Minha Mãe, tu fazias assim comigo? –pergunta Jesus, que está
observando sua Mãe embalar a pequena, estando com a face apoiada na
cabecinha loura.
– Sim, meu Filho. Mas a ti eu dizia “cordeirinho meu.” É bela, não é
verdade?
– Muito bela e robusta. A mãe deve estar feliz com ela –confirma Jesus,
inclinado também Ele, a observar aquele sono inocente.
– Mas não está. O marido está irritado, porque todos os filhos são
mulheres. É verdade que, com estes campos que temos, é melhor que sejam
do sexo masculino. Mas a nossa filha não tem culpa disso… –suspira a
dona da casa, que acabou de chegar.
– Eles são jovens. Que se amem e terão também filhos homens –diz
com firmeza o Senhor.
262.4– Aí vem Filipe… Já está escurecendo… –murmura, perturbada, a
mulher.
E diz em voz mais alta:
– Filipe, aqui está o rabi de Nazaré.
– Muita satisfação em vê-lo. A paz esteja contigo, Mestre.
– E contigo também, Filipe… Já vi a tua bela menina. E até a estou
olhando ainda, porque é digna de louvor. Deus te abençoa com crianças
belas, sãs e boas. Tu lhe deves ser agradecido… Não respondes? Pareces
estar angustiado…
– Eu esperava que fosse um menino homem.
– Não estarás querendo dizer-me, já que és injusto, acusando a inocente
de ser mulher e muito menos, que irás ser duro com a tua esposa? –pergunta
Jesus com severidade.
– Eu queria um filho homem! Para o Senhor e para mim! –exclama,
ressentido, Filipe.
– E vai ser com essa injustiça e com essa revolta, que esperarás
consegui-lo? Por acaso, já leste alguma coisa no pensamento de Deus?
Serás tu mais do que Ele, para lhe dizeres: “Faze assim, porque assim é
justo”? Esta mulher, minha discípula, por exemplo, não tem filhos. E ela
chegou a dizer-me: “Eu bendigo a minha esterilidade, que me dá asas para
te acompanhar.” E esta outra é mãe de quatro filhos homens e deseja que
todos os quatro não sejam mais dela. Não é verdade, Susana e Maria? Tu as
estás ouvindo? E tu, casado há poucos anos, com uma mulher fecunda,
abençoado com três botões de rosa, que pedem o teu amor, estás assim
irritado? Com quem? Por quê? Não queres dizer? Então Eu o digo: porque
és um egoísta. Deixa logo o teu rancor. Abre os braços para esta filha,
nascida da tua semente, e ama-a. Vem adiante, toma-a –e Jesus pega o
pacotinho de linhos, e o coloca nos braços do jovem pai.
Jesus continua a falar:
– Vai à tua mulher, que está chorando, e dize que tu a amas. Senão,
Deus, com toda a certeza, não te dará nunca mais um filho homem. Eu te
digo. Vai!…
O homem sobe para o quarto onde está a esposa.
– Obrigada, Mestre! –sussurra a sogra–, Ele, desde ontem estava muito
cruel…
Ele torna a descer, poucos minutos depois, e diz:
– Já o fiz, Senhor. A mulher te agradece. E diz que eu te pergunte qual
vai ser o nome da menina, porque… eu havia escolhido para ela um nome
muito feio, naquele ódio injusto em que eu estava…
– Dá-lhe o nome de Maria. Ela bebeu o pranto amargo junto com a
primeira gota de leite, amargo pela tua dureza. Por isso, ela pode chamar-se
Maria, e Maria a amará. Não é verdade, minha Mãe?
– Sim, pobrezinha dela. É tão bonitinha! E certamente vai ser boa,
tornando-se uma das estrelinhas do Céu.
262.5Voltam para a grande sala, onde os apóstolos, cansados, estão
dormindo profundamente, menos Iscariotes, que parece estar muito aflito.
– Estarás me esperando, Judas? –pergunta Jesus.
– Não, Mestre. É que eu não consigo dormir, e gostaria de sair um
pouco.
– Quem é que te proíbe? Eu também saio. Vou subir para aquele
cômoro. Lá há muita sombra. Eu descansarei rezando. Não queres ir
comigo?
– Não, Mestre. Eu iria te perturbar, porque não me sinto em condições
de rezar. Às vezes, eu não me sinto bem, e isso me perturba…
– Então, fica aí. Eu não forço a ninguém. Adeus. Adeus mulheres.
Minha Mãe, quando João de Endor acordar, dize-lhe que vá até Mim, e vá
sozinho.
– Sim, meu Filho. A paz esteja contigo.
Jesus sai, Maria e Susana se inclinam para observar o tecido que está no
tear. Maria se assenta, com as mãos no colo, ficando um pouco encurvada.
Ela também deve estar rezando. Maria de Alfeu fica logo cansada para
continuar observando o trabalho. Ela vai sentar-se no canto mais escuro e
logo pega no sono. Susana fica pensando em imitá-la.
Ficam despertos Maria e Judas. Ela muito concentrada em seus
pensamentos. Ele, que olha para Ela com olhos bem abertos, não a
perdendo de vista. Finalmente, ele se levanta e se aproxima lentamente
dela, sem fazer barulho. Não sei por que, mas assim mesmo a sua
indiscutível beleza me faz pensar em um felino, ou em uma serpente, que se
aproxima da presa. Talvez seja a antipatia que eu sinto por ele que me faz
vê-lo traiçoeiro e cruel, até em seu modo de andar… Ele a chama em voz
baixa: “Maria!”
– Que queres de mim, Judas? –pergunta Maria, e olha para ele com um
suavíssimo olhar.
– Eu gostaria de falar-te…
– Fala. Eu estou te ouvindo.
– Aqui, não. Eu não gostaria de ser ouvido… Não gostarias de sair um
pouco lá para fora? E lá está escuro…
– Então, vamos. Mas tu estás vendo… Todos estão dormindo…
podíamos, pois, falar aqui mesmo –diz a Virgem.
Mas ela se levanta e sai, em primeiro lugar, indo encostar-se a uma sebe
alta e florida.
– Que queres de mim, Judas? –torna ela a perguntar, fitando friamente o
apóstolo, que se sente um pouco perturbado, e parece estar com dificuldade
de encontrar as palavras–. Estás sentindo te mal? Ou terás feito algum mal e
não sabes como dizê-lo? Ou talvez estejas te sentindo prestes a fazer o mal
e aches difícil confessar que estás tentado? Fala, meu filho. Como já cuidei
da tua carne, cuidarei da tua alma. Dize-me o que é que te perturba, e eu, se
puder, te tranquilizarei. Se eu não o puder fazer sozinha, irei dizê-lo a Jesus.
Ainda que tivesses pecado muito, Ele te perdoará, se eu pedir perdão para
ti. O próprio Jesus te perdoaria imediatamente… Mas, talvez dele, do
Mestre, te envergonhes. Eu sou uma mãe… Não causo vergonha…
– Sim. Não causas vergonha, porque és uma mãe, e tão boa. És
realmente a paz entre nós. 262.6Eu… me sinto muito perturbado. Eu tenho um
péssimo caráter, Maria. Eu não sei o que tenho no sangue e no coração. Às
vezes eu não sei controlá-los. E nesses casos eu faria as coisas mais
estranhas… as piores coisas.
– Mesmo estando perto de Jesus, não consegues resistir a quem te tenta?
– Nem assim. E sofro com isso, podes crer. Mas assim é. Eu sou um
infeliz.
– Eu rezarei por ti, Judas.
– Não basta.
– Eu farei que rezem, sem dizer por quem é a oração que eu peço aos
justos.
– Não basta.
– Farei que as crianças rezem. Há tantas delas que vêm a mim, no meu
jardim, como passarinhos à procura de sementes. E as sementes são as
carícias e as palavras que eu lhes dou. Eu lhes falo de Deus… E eles,
inocentes, preferem isso aos seus jogos, às histórias. A oração das crianças
é agradável ao Senhor.
– Mas nunca como a tua. Mas não basta ainda.
– Direi a Jesus que ore ao Pai por ti.
– Não basta ainda.
– Mas, mais do que isso, não existe. A oração de Jesus vence até aos
demônios…
– Sim. Mas Jesus não rezaria sempre. E eu voltaria a ser o que era…
Jesus sempre está dizendo que um dia ir-se-à embora. Eu devo pensar como
haverá de ser, quando eu ficar sem Ele. Jesus agora quer mandar-nos
evangelizar. Eu tenho medo de ir com este meu inimigo, que sou eu mesmo,
para espalhar a palavra de Deus. Eu gostaria de me ter preparado para esta
hora.
– Mas, meu filho, se achas que nem Jesus consegue, que queres que eu
faça?
– Tu, ó Mãe! Deixa-me ficar um pouco de tempo contigo. Contigo
estiveram os pagãos e as meretrizes. Eu também posso estar. Se não queres
que eu esteja onde tu moras, à noite eu irei dormir na casa de Alfeu e de
Maria de Cléofas, mas o dia o passarei contigo, com as crianças. Das outras
vezes, eu procurei agir por mim mesmo, e fiquei pior. Se eu for para
Jerusalém, lá tenho muitos amigos maus e, nas condições em que me
encontro, sempre que se me cria esta situação, eu me torno um objeto de
escárnio para eles… Se vou a outra cidade, é a mesma coisa. A tentação do
caminho se acende em mim junto com esta que eu já tenho. Se eu vou a
Keriot, para perto de minha mãe, a soberba logo me escraviza. Se eu vou
para a solidão, o silêncio me dilacera, fazendo-me ouvir as vozes de
satanás. Mas em tua casa… Oh! em tua casa já sinto que vai ser diferente!
Deixa-me ir para lá! Dize-o a Jesus, que Ele me permita! Queres tu que eu
me condene? Tens medo de mim? Ficas olhando para mim com este olhar
de gazela ferida, e que não tem mais força para fugir de seus atacantes. Mas
eu não te atacarei. Eu também tenho uma mãe… e te amo mais que a minha
mãe. Tem piedade de um pecador, Maria. Olha: eu estou chorando a teus
pés… Se tu me rejeitas, isso poderá ser a minha morte espiritual…
E Judas chora de verdade, aos pés de Maria, que olha para ele com um
olhar de piedade e de angústia, um olhar meio de medo.
Ela está muito pálida. Mas, apesar de tudo, ela dá um passo à frente,
pois ela se havia jogado sobre a sebe para escapar de Judas, que se ia
aproximando dela demais, e põe uma mão sobre os cabelos trigueiros do
Iscariotes.
– Cala-te! Que não te ouçam. Eu falarei a Jesus. E, se Ele quiser, irás
para a minha casa. Com o julgamento do mundo eu não me preocupo. Ele
não lesa a minha alma. Eu só teria horror de estar sendo culpada diante de
Deus. A calúnia me deixa indiferente. Mas eu não serei caluniada, porque
toda Nazaré sabe que sua filha não é nenhum escândalo na cidade. E depois,
aconteça o que acontecer, o que me preocupa é que te salves em tua alma.
Eu irei a Jesus. Fica em paz.
E ela se envolve em seu véu, branco como o seu vestido, e se dirige,
ligeira, para um caminho que vai para um cômoro coberto de oliveiras.
262.7Procura o seu Jesus, e o encontra, absorto em profunda meditação.
– Meu Filho, sou eu… Escuta-me!
– Oh! Minha Mãe! Vieste rezar comigo? Que alegria, que consolo me
dás!
– Por quê, meu Filho? Estás cansado em tua alma? Estás triste? Dize-o
à tua Mãe!
– Cansado, como disseste, e aflito. Não somente pelo cansaço e pelas
misérias que Eu vejo nos corações, mas pela persistência em seu estado por
parte daqueles que são os meus amigos. Mas Eu não quero ser injusto com
eles. Só um deles é que me cansa. E é Judas de Simão…
– Meu Filho, é dele que eu vinha falar-te…
– Ele fez algum mal? Ele te fez sofrer?
– Não. Mas deu-me dó que eu teria se tivesse visto um leproso… Pobre
filho! Como está doente em sua alma!
– E tu tens dó dele? Não tens mais medo dele? Há tempo tu o tinhas…
– Meu Filho, a minha piedade é ainda maior do que o meu medo. E eu
gostaria de ajudar-te e a salvar a sua alma. Tu tudo podes, e não tens
necessidade de mim. Mas Tu dizes que todos devem cooperar com o Cristo
em redimir… e este filho está tão necessitado de redenção!
– Que devo fazer mais do que estou fazendo por ele?
– Tu já não podes fazer mais do que fazes. Mas poderás deixar-me agir.
Ele me pediu que o deixasse ficar em nossa casa, porque lhe parece que lá
ele poderia livrar-se do seu monstro… Tu estás sacudindo a cabeça? Não
queres assim? Eu lhe direi…
– Não, minha mãe. Não é que Eu não queira. Eu sacudo a cabeça,
porque sei que isso é inútil. Judas é como alguém que está se afogando e
que, mesmo percebendo que vai afogar-se, rejeita, por orgulho, a corda que
lhe jogaram, para puxá-lo para a margem. De vez em quando, ele, tomado
pelo terror de afogar-se, procura e pede ajuda, mas depois a rejeita, e quer
agir por si mesmo… e sempre vai ficando mais pesado, por causa da água
lamacenta que engole. Mas, para que não se diga que eu deixei de
experimentar um remédio, então que também isso se faça, pobre Mãe…
Sim, pobre Mãe, que te submetes, por amor de uma alma, ao sofrimento de
teres como vizinho a alguém que te faz medo.
– Não, Jesus. Não digas isso. Eu sou uma pobre mulher, pois estou
ainda sujeita às antipatias. Censura-me. Eu o mereço. Mas não é por outro
motivo que eu sou uma pobre mulher. Oh! Se eu pudesse devolver-te Judas
espiritualmente curado! Dar-te uma alma é dar-te um tesouro. E quem dá
tesouros não é pobre. Meu Filho!… Posso ir dizer a Judas que sim, que Tu
o permites? Tu mesmo o disseste[53]: “Tempo virá em que tu dirás: ‘Como é
difícil ser Mãe do Redentor’.” Eu já o disse uma vez…. por causa da
Aglaé… Mas que vale uma vez? A humanidade é tão grande! E Tu, de
todos és o Redentor, meu Filho! Meu Filho, assim como eu tive em meus
braços aquela pequenina, para levá-la a receber a tua bênção, deixa que eu
tenha em meus braços Judas, para trazê-lo para receber a tua bênção…
– Minha Mãe. Minha Mãe… Ele não te merece…
– Meu Jesus, quando Tu estavas titubeando em dar, ou não, Marziam a
Pedro, eu te disse que aquilo o teria alegrado. E não podes negar que Pedro
se renovou, a partir daquele momento… Deixa-me agir com Judas.
– Seja, pois, como tu queres! E que sejas bendita pela tua intenção de
amor para comigo e para com Judas! Agora, vamos rezar juntos, minha
Mãe. É tão doce rezar contigo!
262.8… E o pôr do sol apenas havia começado, quando revejo a partida da
casa que os havia hospedado.
João de Endor com Hermasteu se despedem de Jesus, logo depois de
terem chegado à estrada. Maria, porém, com as mulheres, continua junto
com o Filho, indo por um caminho por entre as oliveiras das colinas. Vão
conversando. E, naturalmente, os assuntos são os fatos do dia.
Pedro diz:
– Aquele Filipe é um grande doido! Em certos momentos chegava a
renegar sua mulher e a filha, se não o chamávamos à compreensão do que é
razoável.
– Esperamos, porém, que ele persevere no arrependimento atual, e não
torne de novo a agarrar-se com aquele mau humor para com a mulher. No
fundo… é pelas mulheres que o mundo vai para a frente –diz Tomé, e
muitos se riem de sua saída.
– É mesmo. É verdade. Mas elas são mais imundas do que nós e… –
responde Bartolomeu.
– Mas, deixa disso! A respeito do que é imundo!… Nós também não
somos uns anjos. Aí está. Eu gostaria de saber se, depois da ressurreição vai
continuar a ser assim para a mulher. Somos ensinados a honrar a mãe, a ter
o maior respeito para com as irmãs, para com as filhas, as tias, as noras, as
cunhadas, e depois… Maldição de cá, maldição de lá! No Templo, não.
Aproximar-se delas muitas vezes, não… Eva pecou? Certamente. Mas
Adão também pecou. Deus deu a Eva o seu castigo, e é bem severo. Não
basta?
– Ora, Tomé! A mulher, até por Moisés foi considerada impura.
– Mas ele, sem as mulheres, teria morrido afogado… Mas tem
paciência, Bartolomeu, pois eu quero fazer-te lembrar, ainda que eu não
seja doutor como tu, pois sou apenas um ourives, que Moisés cita as
impurezas carnais da mulher, a fim de que nós a respeitemos, e não para
amaldiçoá-la.
262.9A discussão pega fogo.
Jesus, que estava à frente, justamente com as mulheres, com João e
Iscariotes, para, vira-se e intervém:
– Deus tinha diante de Si um povo moral e espiritualmente informe,
contaminado por contatos com idólatras. E queria fazer dele um povo forte,
no físico e no espírito. Ele lhe deu como preceitos as normas saudáveis para
a robustez física e também saudáveis para a honestidade dos costumes. Ele
não podia agir de outro modo para refrear as concupiscências masculinas, a
fim de que os pecados, pelos quais a terra foi submersa[54] e foram
queimadas Sodoma e Gomorra, não se repetissem mais. Mas, no tempo
futuro, a mulher redimida não será oprimida como o é agora. Continuarão
as proibições de prudência física, mas serão tirados os obstáculos para a ida
delas ao Senhor. Eu já lhes estou tirando, a fim de preparar as primeiras
sacerdotisas do tempo futuro.
– Oh! Então, haverá mulheres sacerdotisas? –pergunta Filipe, meio
assombrado.
– Não me entendais mal. Não serão sacerdotisas como os homens, não
consagrarão, nem administrarão os dons de Deus, que vós, por enquanto,
não podeis saber. Mas pertencerão à classe sacerdotal do mesmo modo,
cooperando com os sacerdotes para o bem das almas, de muitos modos.
– Elas pregarão? –pergunta, incrédulo, Bartolomeu.
– Como minha Mãe já está pregando.
– Farão peregrinações apostólicas? –pergunta Mateus.
– Sim, levando a fé até muito longe e, devo dizê-lo, com mais heroísmo
do que os homens.
– Elas farão milagres? –pergunta, rindo-se, Iscariotes.
– Algumas farão até milagres. Mas, não vos baseeis no milagre como se
ele fosse a coisa essencial. Elas, as mulheres santas, farão também muitos
milagres de conversões por meio da oração.
– Hum! As mulheres pregando e chegando a fazer milagres! –resmunga
Bartolomeu.
– Não sejas fechado como um escriba, Bartolomeu. Que pensas que é a
oração?
– É dirigir-nos a Deus com as fórmulas que sabemos.
– É isto, e mais ainda. A oração é a conversação do coração com Deus,
e deveria ser o estado habitual do homem. A mulher, por sua vida mais
retirada do que a nossa, e pela sua faculdade afetiva mais forte do que a
nossa, e também a de suportar-nos a nós homens, encontra com que
enxugar os prantos deles e restituir um sorriso aos seus corações. Porque ela
sabe falar com Deus, e mais ainda o saberá no futuro. Os homens serão os
gigantes da doutrina, as mulheres serão sempre as que, com sua oração,
sustentarão os gigantes e até o mundo, porque muitas desventuras serão
evitadas pelas orações delas, e muitos castigos serão retidos. Por isso, elas
farão milagres, geralmente invisíveis e conhecidos só por Deus, mas nem
por isso irreais.
262.10– Também Tu hoje fizeste um milagre invisível, mas certamente
real. Não foi, Mestre? –pergunta Tadeu.
– Sim, meu irmão.
– Era melhor torná-lo visível –observa Filipe.
– Querias que Eu transformasse a pequena em um pequenino? O
milagre, na verdade, é uma alteração de coisas já estabelecidas, uma
desordem benéfica, que Deus permite para atender à oração do homem, a
fim de mostrar-lhe que o ama, e a fim de persuadi-lo que Ele é Quem é.
Mas, visto que Deus é a ordem, Ele não viola exageradamente a ordem. A
menina nasceu mulher, e mulher fica sendo.
– Eu estava muito aflita esta manhã –suspira a Virgem.
– Por quê? A menina não amada não era tua –diz Susana.
E acrescenta:
– Eu, quando vejo alguma desventura em uma criança, digo: “Ainda
bem para mim, que não tenho filhos!”
– Não digas assim, Susana! Isso não é caridade. Eu também poderia
dizê-lo, porque a minha única Maternidade se deu ultrapassando as leis
naturais. Mas não o digo, porque sempre fico pensando: “Se Deus não me
tivesse querido como virgem, talvez aquela semente teria caído em mim, e
eu seria mãe deste infeliz”, e por isso tenho piedade de todos… Porque eu
digo: “Ele teria podido ser meu filho e, como mãe, eu quereria que todos
fossem bons, sadios, amados e amáveis, porque isso é o que desejam as
mães para os seus filhos” –responde docemente Maria.
E Jesus parece estar revestindo-a de luz, enquanto está olhando para ela
com uns olhares radiantes.
– É por isso que tens piedade de mim… –diz Iscariotes a meia voz.
– De todos. Ainda que fosse do assassino de meu Filho. Porque eu
penso que seria o mais necessitado de perdão… e de amor. Porque o mundo
todo o odiaria, com certeza.
– Mulher, precisarias cansar-te muito para defendê-lo, e dar-lhe tempo
para se converter… Eu daria cabo dele em primeiro lugar… –diz Pedro.
262.11– Chegamos ao lugar da despedida. Minha Mãe, Deus esteja
contigo. E contigo, Maria. E também contigo, Judas.
Beijam-se e Jesus ainda acrescenta:
– Lembra-te de que Eu te permiti uma grande coisa, Judas. Usa dela
para o teu bem, e não para o mal. Adeus.
E Jesus, com os onze que ficaram e com Susana, vão apressados para o
lado do Oriente, enquanto Maria, a cunhada e Iscariotes vão diretamente
para casa.
[53] disseste, em 157.7; disse, em 168.9.
[54] a terra foi submersa¸como se narra em Gênesis 6,5-22; 7; queimadas Sodoma e Gomorra, como se narra em Gênesis
19,1-29.
263. Cura do homem de braço atrofiado.
28 de agosto de 1945.
263.1Jesus entra na sinagoga de Cafarnaum, que pouco a pouco vai-se
enchendo de fiéis, pois é dia de sábado. A surpresa, que os assalta ao vê-lo,
é muito grande. Todos o estão mostrando com o dedo e sussurrando, e
alguns estão puxando as vestes de uns e de outros dos apóstolos para lhes
perguntarem quando foi que chegaram de volta à cidade, pois ninguém
estava sabendo que eles haviam chegado.
– Desembarcamos agora mesmo no “poço da figueira”, e estamos vindo
de Betsaida, a fim de não darmos nenhum passo fora do itinerário
permitido, meu amigo –responde Pedro a Urias, o fariseu, e este, sentindo-
se ofendido por ter sido chamado de amigo por um pescador, sai dali todo
desdenhoso, e vai unir-se aos seus na primeira fileira.
– Não os fiques provocando, Simão –adverte-o André.
– Provocá-los? Ele me fez uma pergunta, e eu lhe respondi, dizendo
também que evitamos caminhar por respeito ao sábado.
– Eles dirão que ficamos cansados com a barca.
– Acabarão dizendo que nos cansamos até por respirarmos. Estulto! É a
barca que se cansa, é o vento, é a onda, mas não nós que viajamos na barca.
André ouve a repreensão, e se cala.
263.2Depois das orações preliminares, chega o momento da leitura de
uma passagem e a explicação da mesma. O sinagogo pede a Jesus que as
faça, mas Jesus, mostrando os fariseus, diz:
– Que o façam eles.
Mas, como eles não o querem fazer, Ele deve falar.
Jesus lê a passagem[55] do primeiro livro dos Reis, onde se narra como
Davi foi traído pelos homens de Zif, que disseram a Saul que ele estava em
Gabaa. Jesus lhes restitui o rolo, e começa a falar.
– Violar o preceito da caridade, da hospitalidade, da honestidade é
sempre um mal. Mas o homem não titubeia em fazê-lo, com a maior
indiferença. Aqui temos um duplo episódio daquela violação, e a
consequente punição de Deus. A conduta dos homens de Zif era
fraudulenta. Mas a de Saul não o era menos. Os primeiros, porque tinham a
intenção vil de cair nas graças do mais forte e tirar vantagens disso. O
segundo, porque tinha a vil intenção de dar cabo do ungido do Senhor. Era
o egoísmo que os fazia porem-se de acordo. E, diante da indigna proposta, o
falso e pecador rei de Israel ousou dar uma resposta, na qual ele inclui o
nome do Senhor: “Sede benditos pelo Senhor.”
Uma irrisão da justiça de Deus! Uma irrisão habitual! Sobre as
maldades do homem, muitas vezes se invoca como prêmio, ou como uma
fiança, o Nome do Senhor e sua bênção. Foi dito: “Não tomarás o Nome de
Deus em vão.” E poderá haver coisa mais vã, ou pior ainda, mais maldosa
do que tomar o nome de Deus para cometer um delito contra o próximo?
No entanto, isso é um pecado mais comum do que qualquer outro, e
praticado com indiferença até por aqueles que são sempre os primeiros nas
assembleias do Senhor, nas cerimônias e nas doutrinações. Lembrai-vos de
que é pecaminoso ficar indagando, ficar observando e preparando tudo para
danificar ao próximo. E também é pecaminoso mandar indagar, mandar
observar e preparar todas as coisas para danificar ao próximo por outros.
Isso é induzir os outros ao pecado, tentando-os com algum prêmio, ou
ameaçando-os com represálias.
Eu vos advirto que isso é pecado. Eu vos advirto que é egoísmo e ódio
uma conduta dessas. E vós sabeis que o ódio e o egoísmo são os inimigos
do amor. Eu vos advirto disso, porque Eu me preocupo com as vossas
almas. Porque Eu vos amo. Porque Eu não vos quero em pecado. Porque Eu
não vos quero ver punidos por Deus, como aconteceu a Saul que, enquanto
perseguia a Davi, para prendê-lo e matá-lo, viu a cidade ser destruída pelos
filisteus. Em verdade, isso acontecerá sempre a quem danifica ao próximo.
A vitória dele durará tanto como a erva do prado. Depressa surgirá, mas
depressa secará, será moída pelo pé indiferente do passante. Enquanto que a
boa conduta, a vida honesta, parecem difíceis de nascer e de se firmarem.
Mas, uma vez formado o hábito de vida, torna-se uma árvore forte e
copada, que nem os turbilhões arrancam, nem a canícula consegue queimar.
Em verdade, quem é fiel à Lei, mas fiel de verdade, torna-se uma árvore
forte, que não é dobrada pelas paixões, nem queimada pelo fogo de satanás.
Eu já falei. 263.3Agora, se alguém quer falar mais alguma coisa, que fale.
– Nós te perguntamos se falaste para nós, fariseus?
– Por acaso, a sinagoga estará cheia de fariseus? Vós sois quatro e a
multidão é de centenas de pessoas. A palavra foi para todos.
– Mas a alusão era clara.
– Na verdade, nunca se viu que alguém, ao ser indiciado em alguma
comparação, passe a acusar-se a si mesmo. E vós o estais fazendo. Mas, por
que é que vos acusais, se Eu não vos acuso? Sabeis por acaso que estais
agindo como Eu disse? Eu não o sei. Mas, se é assim, arrependei-vos disso.
Porque o homem é fraco, e pode pecar. Mas Deus o perdoa, se nasce nele
arrependimento sincero e o propósito de não mais pecar. Mas, com toda a
certeza, persistir no mal é um duplo pecado, e sobre esse pecado não desce
o perdão.
– Esse pecado, nós não temos.
– Nesse caso, não vos aflijais com minhas palavras.
O incidente terminou. E a sinagoga se enche de vozes, que estão
cantando os hinos. Depois, parece que a assembleia vai logo dispersar-se
sem mais incidentes.
263.4Mas o fariseu Joaquim descobre um homem no meio da multidão e,
por meio de sinais e com o olhar, o intima a vir para a primeira fila. É um
homem dos seus cinquenta anos, e tem um braço atrofiado, paralisado até
na mão e muito mais curto do que o outro, porque a atrofia destruiu os seus
músculos.
Jesus o está vendo. E está vendo também toda a manobra preparada
para fazer que Ele o veja. Jesus sente um começo de desgosto e de
compaixão, e isto se nota em seu rosto, um pequeno sinal significativo, mas
muito claro. Ele não se desvia do golpe. Pelo contrário, o enfrenta com
firmeza.
– Vem aqui para o meio, diz Ele ao homem.
E, quando o homem chega à sua frente, Jesus se vira para os fariseus, e
diz:
– Por que me estais tentando? Não acabei de falar agora mesmo contra
as insídias e o ódio? E vós não dissestes agora mesmo: “Nós não temos esse
pecado?” Não me respondeis? Respondei-me pelo menos a esta pergunta: é
lícito fazer o bem ou o mal aos sábados? É licito salvar, ou tirar a vida? Não
respondeis? Eu, então, responderei por vós, e o farei na frente de todo o
povo, que julgará melhor do que vós, porque é sempre sem ódio e sem
soberba. Não é lícito fazer nenhum trabalho aos sábados. Mas, assim como
é lícito rezar, assim também é licito fazer o bem, porque o bem é oração
maior do que os hinos e os salmos que acabamos de cantar, ao passo que,
nem no sábado, nem em nenhum outro dia é lícito fazer o mal. E vós o
tendes feito, manobrando para terdes aqui este homem, que nem é de
Cafarnaum, e que fizestes vir, há dois dias, sabendo que Eu estava em
Betsaida, e concluindo que Eu teria vindo à minha cidade. E vós assim
fizestes para procurar em que é que me poderíeis acusar. E assim, cometeis
também o pecado de matar a vossa alma, em vez de salvá-la. Mas no que
depende de Mim, Eu vos perdôo, e não decepcionarei a fé deste homem, ao
qual vós dissestes que viesse, dizendo-lhe também que Eu o curaria,
enquanto estáveis usando dele para armar-me uma cilada. Ele não tem
culpa, porque até aqui veio sem outra intenção, senão a de ficar são. E que
assim se faça. Homem, estende a tua mão, e vai em paz.
O homem obedece, e sua mão fica sã, igual à outra. Ele usa dela
imediatamente para segurar uma dobra da capa de Jesus a fim de beijá-la,
dizendo-lhe:
– Tu bem sabes que eu não sabia da verdadeira intenção deles. Se eu a
tivesse sabido, não teria vindo, preferindo ficar com minha mão seca a ir
contra Ti. Por isso, não me queiras mal.
– Vai em paz, homem. Eu sei a verdade, e para ti só tenho benevolência.
A multidão sai comentando e, por último, sai Jesus com os onze
apóstolos.
[55] passagem, o qual na neo-vulgata está em 1 Samuel 23,19-28.
264. Um dia de Judas em Nazaré.
27 de agosto de 1945.
264.1A casa de Nazaré seria a mais indicada para as elevações do espírito,
com esta paz, com este silêncio, Com esta ordem. A santidade parece
ressumar até das pedras dela, parece exalar das plantas do jardim, parece
chover do céu sereno, que lhe serve de cúpula. Na realidade, tudo isso
emana da Virgem, que aí mora, e que se move, ágil e silenciosa, com seus
movimentos juvenis, em nada alterados, com o mesmo passo ligeiro que
tinha, quando aqui entrou como esposa, e com aquele mesmo sorriso
sempre manso, e que, ao mesmo tempo, aplaca e acaricia.
O sol, a esta hora da manhã, invade a casa pelo lado direito, que se
apoia na primeira ondulação da colina, e somente as copas das árvores é
que tiram proveito dele, em primeiro lugar as das oliveiras, que se
apoderaram da terra do barranco, usando suas raízes. São as oliveiras que
ainda sobrevivem, todas muito retorcidas, mas bem fortes, com os galhos
mais grossos ainda levantados para o céu, como se invocassem sua bênção,
ou como se naquele lugar de paz, elas estivessem rezando. São as oliveiras
sobreviventes do olival de Joaquim, que, há tempo, tinha muitas dessas
plantas, que pareciam formar fileiras de peregrinos que lá prosseguiam
rezando até os campos longínquos, onde os olivais e os campos iam até as
pastagens, mas que agora se reduzem a umas poucas plantas que sobraram
da mutilada propriedade de Joaquim. Depois, ainda nascem bem aqui a
amendoeira e as macieiras, altas e robustas, que abrem sobre o pomar os
guarda-chuvas dos seus ramos. Em terceiro lugar, as romãzeiras, que bebem
os raios do sol e, por último, a figueira, que está perto da casa, quando já o
sol está acariciando as flores a as verduras bem tratadas nos canteiros
retangulares, ao longo das sebes dispostas por debaixo das parreiras
carregadas de cachos.
As abelhas estão zumbindo, como umas gotas de ouro, que vão voando
sobre tudo o que lhes pode fornecer sucos doces e perfumados. Vejo
também um pequeno ramo de madressilvas, que por elas está sendo tomado
de assalto, e também uma sebe de flores em forma de campânulas, dispostas
como uns penachos, e cujo nome eu ignoro, e que agora estão se fechando
— devem ser flores noturnas — de um perfume muito intenso. As abelhas
se apressam em sugar estas flores, antes que se preguem suas pétalas pelo
sono da corola.
264.2Maria vai depressa dos ninhos dos pombos para a pequena fonte,
que corre por perto da gruta e depois, desta vai para casa, ocupada como
está em seus trabalhos e, mesmo ocupada neles, ainda acha meios de
admirar as flores ou os pombos que arrulham pelos caminhos, e dando suas
voltas, quando voam por sobre a casa e o jardim.
Torna a entrar Judas Iscariotes, sobraçando plantas e mudas.
– Eu te saúdo, Mãe. Deram-me tudo o que eu queria. Dei uma corrida
para que elas não sofram. Mas espero que elas vinguem, como as
madressilvas. No ano que vem, terás um jardim semelhante a uma cesta
cheia de flores. E assim te lembrarás do pobre Judas e de sua permanência
aqui –diz ele, ao tirar, com cuidado, de uma bolsa certas mudas com as
raízes cobertas de terra e umas folhas úmidas e, de uma outra bolsa tira
umas estacas para plantio.
– Eu te agradeço, Judas. Muito mesmo. Não podes crer quanto eu estou
feliz por ter aquela madressilva perto da pequena gruta. Quando eu era
pequena, lá no fim daqueles campos, que então eram nossos, havia uma
destas, ainda mais bonita, e as heras e as madressilvas a vestiam com ramos
e flores, servindo-lhe de cortina e abrigo para os seus lírios minúsculos, que
cresciam até dentro da gruta, toda verde com aquela recamadura fina de
avencas. Porque lá era realmente uma nascente… Quando estava no
Templo, eu me lembrava sempre daquela gruta, e, eu to digo, quando eu
rezava diante do véu do Santo, eu, uma das virgens do Templo, não sentia
Deus de modo especial. Ao contrário, devo dizer que lá eu tornava a ficar
sonhando com os doces colóquios de meu espírito com o Senhor… O meu
José me fez achar aqui esta com um fio d’água para eu me servir dela, mas
mais para dar-me a alegria de ter uma grutinha que fosse uma cópia
daquela… Era bom o José, até nas coisas pequeninas…E aqui ele havia
posto uma madressilva e a hera, que ainda vive, enquanto que a primeira
morreu nos anos do exílio… Depois, ele a havia replantado. Mas morreu, há
três anos. Agora, tu aí de novo a colocaste. Ela já pegou, estás vendo? És
muito inteligente como jardineiro.
– Sim. Quando eu era menino, gostava muito das plantas, e minha mãe
me ensinava a tratar delas… Agora, volto a ser menino, ao teu lado, Mãe, e
torno a encontrar a capacidade passada. Para te agradar. És tão boa para
comigo! –responde Judas, trabalhando como entendido em pôr as plantas
em seus lugares mais adequados.
Ele vai colocar junto às sebes umas flores noturnas, com raízes, que eu
não sei se são de lirios-do-vale, ou de outras flores.
– Aqui estão bem –diz ele, enquanto vai repicando com um enxadão a
terra que está sobre as raízes por ela coberta. Não querem muito sol. O
servo de Eleazar não as queria dar. Mas eu insisti tanto, que ele as deu.
– Também aqueles jasmins da índia não os queriam dar a José. Mas ele
fez alguns trabalhos sem receber pagamento, para consegui-los para mim. E
eles prosperaram sempre mais.
– Aí está, Mãe. Agora eu vou regá-los, e tudo irá bem.
Judas os rega, e depois vai à fonte lavar as mãos.
264.3Maria olha para ele, tão diferente do seu Filho, e também tão
diferente do Judas de certas horas tempestuosas, o examina, pensa, e vai
para perto dele e pondo-lhe a mão sobre o braço, pergunta-lhe com doçura:
– Estás melhor, Judas? Quero dizer, no teu espírito.
– Oh! Mãe! Muito melhor! Estou em paz. Tu o estás vendo. Sinto gosto,
e acho salvação, lidando com coisas humildes, e estando contigo. Eu não
deveria sair nunca desta paz, deste recolhimento. Aqui… como o mundo
está longe desta casinha…
E Judas olha para a horta, as plantas, a casinha… E termina:
– Mas, se eu ficasse aqui, não seria o apóstolo. E eu o quero ser…
– Por isso, podes crer, melhor seria para ti seres uma alma justa, do que
um apóstolo injusto. Se tu percebes que o contato com o mundo te perturba,
se tu compreendes que os louvores e honras de apóstolo te fazem mal,
renuncia, Judas. Melhor para ti é seres um simples fiel, em meu Jesus, mas
um fiel santo, do que um apóstolo pecador.
Judas inclina a cabeça, pensativo. Maria o deixa em suas meditações, e
entra em casa, para os seus afazeres.
Judas fica parado por algum tempo, depois começa a passear, para
baixo e para cima, por debaixo do suporte. Está com os braços cruzados e a
cabeça inclinada. Pensa, pensa e começa a falar sozinho e a gesticular… É
um monólogo incompreensível. Mas seus gestos são os de quem está com
um grande contraste em suas ideias. Parece que ele em uma hora suplique e
na outra rejeite, ou que se compadeça, ou maldiga de alguma coisa,
passando de uma expressão interrogativa para uma outra espavorida,
angustiada, até ficar com o rosto como em seu piores momentos, e com esse
rosto ele para de repente, no meio do caminho, ficando assim por algum
tempo, com um rosto de um verdadeiro demônio… Depois, leva as mãos ao
rosto e foge para o barranco das oliveiras, para fora da vista de Maria, e
chora com o rosto escondido entre as mãos, até que enfim ele se acalma, e
fica sentado, com as costas apoiadas a uma oliveira, como um
desnorteado…
264.4… E agora já não é mais de manhã, mas está chegando ao fim um
pôr de sol muito radioso. Nazaré está abrindo as portas de suas casas,
fechadas o dia todo por causa do calor feroz do dia e, além disso, um desses
dias do Oriente. E as mulheres, os homens, os meninos estão saindo para os
jardins, ou pelas ruas ainda quentes, mas já não mais ensolaradas, em busca
de ar, e vão à fonte, aos divertimentos, às suas conversações… enquanto
esperam a ceia. Grandes saudações, bate-papos, risadas e gritos, tanto entre
os homens, como entre as mulheres e os meninos.
Também Judas sai e se encaminha para a fonte com moringas de cobre.
Ele é visto e mostrado pelos nazarenos com o apelido de “o discípulo do
Templo”, e isso, chegando aos ouvidos de Judas, tem para ele o som de uma
música. Ele, então, vai passando e saudando com muita afabilidade, mas
também com um quê de reserva que, se não é ainda uma calma de soberba,
é uma parenta muito próxima dela.
– És muito bom para com Maria, Judas –lhe diz um nazareno barbudo.
– Ela merece isso, e muito mais. É verdadeiramente uma grande mulher
de Israel. Felizes de vós, que a tendes por concidadã.
O louvor à mulher de Nazaré seduz muito os nazarenos, os quais vão
repetindo um para o outro o que Judas disse.
Enquanto isso, Judas já chegou à fonte, espera a sua vez, e realiza a sua
cortesia de transportar as moringas para uma velhinha, que não termina de
abençoá-lo, e de apanhar água para duas mulheres impedidas de fazê-lo por
causa do menino que elas têm nos braços. Entreabrindo os seus véus, elas
murmuram: “Deus te recompense.”
– O amor ao próximo é o primeiro dever de um amigo de Jesus –
responde, com uma inclinação, Judas.
E enche depois suas moringas, e vai para casa.
264.5Enquanto ele vai voltando para casa, param-no, e o sinagogo de
Nazaré, com outros, o estão convidando a falar no próximo sábado.
– Já há mais de duas semanas que estás conosco, e não fizeste mais
nenhuma outra leitura, senão aquela que foi de uma grande gentileza para
todos nós –lamenta-se o sinagogo, que está com outros anciãos da cidade.
– Mas, se não vos agrada a palavra do vosso maior filho, quando poderá
ser-vos agradável a minha palavra de discípulo, e, além disso, judeu? –
responde Judas.
– A tua suspeita é injusta, e nos entristece. Nós somos sinceros no
convite feito. Tu és discípulo, e judeu. É verdade. Mas tu és do Templo. Por
isso podes falar. Porque no Templo há doutrina. O filho de José é apenas um
carpinteiro…
– Mas Ele é o Messias!
– Ele diz que é… Será mesmo verdade? Ou não será um delírio dele?
– Mas olhai para a sua santidade, nazarenos! Para a sua santidade!
Judas está escandalizado com a incredulidade dos nazarenos.
– Ela é grande. Isso é verdade. Mas daí até ser o Messias!… E depois…
Por que ele fala daquele modo tão duro?
– Duro? Não. A mim não me parece duro. Mas, antes, sim, que o seu
falar é sincero e intransigente. Não deixa coberta uma culpa, e não hesita
em denunciar um abuso… e isso é o que desagrada. Ele põe o dedo bem no
centro das feridas. E isso faz mal. Mas é por santidade. Oh! Com certeza! É
somente por ela que Ele faz assim. Eu já lhe disse muitas vezes: “Jesus, Tu
fazes mal a Ti mesmo.” Mas Ele não quer dar-me atenção!
– Tu o amas muito e, douto como és, poderias guiá-lo.
– Oh! Douto, não… Mas prático, isso sim. Conforme o Templo,
entendeis? Eu conheço os usos. Tenho amigos. O filho de Anás para mim é
como um irmão. Por isso, se quiserdes alguma coisa do Sinédrio, falai, falai
comigo…Mas agora, deixai-me ir levar a água para Maria, que está me
esperando para a ceia.
– Volta depois. No meu terraço há um bom ar fresco. Estaremos lá entre
amigos, e falaremos…
– Sim. Adeus.
264.6E Judas vai para casa, onde se desculpa com Maria por ter-se
atrasado, porque foi detido pelo sinagogo e pelos anciãos da cidade. E
termina, dizendo:
– Eles quereriam que eu falasse no sábado… O Mestre não me deu essa
ordem. Que dizes disso? Guia-me tu.
– Falar ao sinagogo, ou falar na sinagoga?
– Uma coisa e outra. Eu não quereria falar com ninguém, nem a
ninguém, porque sei que eles são contrários a Jesus, e também porque, falar
onde só Ele tem o direito de ser Mestre, parece-me um sacrilégio. Mas eles
ficaram insistindo muito! Querem que eu vá depois da ceia… Eu quase
prometi. E, se tu achas que eu possa, falando, tirar deles aquele espírito de
resistência ao Mestre, que é uma coisa tão dolorosa, eu, ainda que me seja
pesado, irei e falarei. Falarei assim como sei fazer, em boa paz, procurando
ser muito paciente com a teimosia deles. Porque já cheguei a compreender
que sermos duros é pior. Sim! E não cairei mais no erro cometido em
Esdrelon! O Mestre ficou tão descontente com ele! Não me foi dito nada,
mas eu o entendi. Não o farei mais. Mas eu gostaria de deixar Nazaré,
depois de tê-la persuadido de que o Mestre é o Messias, e que creiam nele e
o amem.
Judas está falando, enquanto, sentado à mesa no lugar de Jesus, vai
comendo o que Maria preparou. E me faz mal ver Judas sentado naquele
lugar, à frente de Maria, que o ouve, e o serve como uma mãe.
Agora, Ela lhe responde:
– Estaria bem, de fato, que Nazaré compreendesse a verdade, e a
aceitasse. Eu não te detenho. Então, vai. Ninguém mais do que tu poderá
dizer se Jesus merece amor. Pensa quanto Ele te ama, e Ele te mostra isso,
desculpando-te sempre, e contentando-te sempre que pode… Que esta
reflexão te dê palavras e atos santos…
A ceia terminou logo. Judas vai regar as flores do jardim, antes que a
tarde se escureça demais, e depois sai, deixando Maria no terraço, ocupada
em dobrar os panos, que Ela havia estendido para enxugar.
264.7E Judas, depois de ter saudado Alfeu de Sara e Maria de Cléofas,
que estão juntos falando na porta da casa desta última, vai diretamente para
a casa do sinagogo. Estão presentes também os dois primos do Senhor, além
de outros seis anciãos.
Depois das pomposas saudações, assentam-se todos, com um ar muito
sério, refrescam-se bebendo água com anis ou com hortelã, e que deve estar
bem fresca, pois as moringas de metal estão suando, colocadas entre o
líquido gelado e o ar ainda quente, mesmo com esta brisa, que está agitando
as copas das árvores, vinda das colinas do norte de Nazaré.
– Estou contente por teres resolvido vir. És jovem. Um pouco de
divertimento faz bem –diz o sinagogo, que está todo cheio de atenções para
com Judas.
– Eu temia importunar-vos, se viesse antes. Eu sei que sois desdenhosos
para com Jesus e seus seguidores…
– Desdenhosos? Não. Incrédulos… e feridos pelas suas… digamos
puras, mas muito cruas verdades. Nós é que pensávamos que tu nos
desdenhasses, e não te convidávamos por isso.
– Desdenhar-vos eu? Mas, ao contrário! Eu vos entendo muito bem…
E, como não? Mas, eu estou convicto de que a paz entre vós e Ele acabará
acontecendo. A Ele convém sempre, e a vós também. A Ele, porque precisa
de todos, e a vós, por que não nos interessa levar o nome de inimigos do
Messias.
– E tu crês que Ele o é mesmo? –pergunta José de Alfeu–. Nele nada há
da figura do rei, que nos foi profetizada. Talvez será porque nos lembramos
dele como de um carpinteiro… Mas… onde está nele o rei libertador?
– Também Davi não parecia senão um pastorzinho, mas vós vedes que
não houve rei maior do que Davi. Nem mesmo Salomão, em sua glória, o é
tanto. Porque, afinal, Salomão não fez nada mais do que dar continuação à
obra de Davi, e nunca foi inspirado como ele. Enquanto que Davi! Mas
considerai a figura de Davi! É gigantesca. De uma realeza que passa
rojando pelo céu. Não julgueis, portanto, o Cristo por suas origens, nem
fiqueis duvidando de sua realeza. Davi, rei e pastor. Ou melhor, pastor e
depois rei. Jesus, rei e carpinteiro, ou melhor, carpinteiro e depois rei.
264.8– Tu falas como um rabi. Percebe-se em ti o educado no Templo –
diz o sinagogo–. E poderias fazer saber ao Sinédrio que eu, o sinagogo,
estou precisando da ajuda do Templo para uma causa particular?
– Mas, com certeza! Sem duvida! Com Eleazar? Ou talvez com José, o
Ancião, sabes? o ricaço de Arimateia. Ou, então, o escriba Sadoque… ou…
não preciso citar nomes.
– Então, amanhã vem ser meu hóspede. Falaremos nisso!
– Hóspede? Não. Não vou abandonar aquela santa e aflita mulher que é
Maria. Eu vim justamente para fazer-lhe companhia…
– Que é que tem a nossa parenta? Nós sabemos que ela está sã e feliz,
em sua pobreza –diz Simão de Alfeu.
– Sim. E nós não a abandonamos. Minha mãe está sempre perto dela. E
também eu e minha mulher. Ainda que… Ainda que eu não lhe possa
perdoar a sua fraqueza para com o seu Filho. Nem a dor de meu pai que,
por causa de Jesus, morreu com dois filhos somente, ao lado do seu leito.
Depois! Depois! Mas problemas de parentes não se divulgam lá do alto dos
telhados! –suspira José de Alfeu.
– Tens razão. Eles os sussurram lá no fundo da adega, confiando-os a
algum coração amigo. Mas assim sucede com muitas outras dores. Eu
também tenho as minhas, causadas por um discípulo… Mas não falemos
nisso!
– Ao contrário, falemos delas. Que é que há? Alguma coisa feia sobre
Jesus? Não aprovamos a sua conduta. Mas somos sempre parentes. E
prontos a defender a causa dele contra os inimigos. Fala! –diz ainda José.
– Coisa feia? Não. Eu dizia assim, por dizer… Além disso, são tantas as
dores do discípulo, são tantas! Não é somente uma dor por causa do modo
como o Mestre trata os amigos e inimigos, prejudicando-se, mas também
por ver que não é amado. Eu gostaria que todos o amásseis…
– Mas, como se haverá de fazer? Dize-o tu!… Há um modo de fazer.
Ele não era assim, antes de deixar a mãe –desculpa-se o sinagogo–. Não é
verdade, vós todos?
Todos aprovam com grande seriedade, falando muito bem do Jesus
manso e retirado de antes.
– Quem haveria de pensar que iria brotar daquele, alguém como Ele
está agora? Antes estava sempre em casa e com os parentes. E agora? –diz
um nazareno já muito idoso.
Judas suspira:
– Pobre mulher!
– Mas, afinal, que é que sabes? Fala –grita José.
– Ora, nada mais do que tudo o que já sabes. Achas que é agradável
para Ela ficar assim abandonada?
– Se José tivesse vivido como o vosso pai, isso não teria acontecido –
sentencia um outro nazareno, também muito idoso.
– Não fiques pensando nisso, homem. Teria sido a mesma coisa.
Quando apanham certas… ideias –diz Judas.
264.9Um servo vem trazendo as candeias, e as espalha por sobre a mesa,
pois a noite é sem luar, ainda que o céu esteja todo estrelado. E, com as
luzes, são trazidas também bebidas, que o sinagogo quer oferecer a Judas
imediatamente.
– Obrigado. Não posso deter-me mais aqui. Tenho deveres para com
Maria –diz ele, levantando-se.
Também os dois filhos de Alfeu se levantam, dizendo:
– Nós iremos contigo… O caminho é o mesmo… –e, com grandes
saudações, a reunião se dispersa, ficando com o sinagogo os seis anciãos.
A estas horas as ruas já estão desertas e silenciosas. Do alto das casas
descem uns murmúrios leves. Os meninos já estão dormindo em suas
caminhas e já não se ouvem os seus trilos de alegres passarinhos. Com as
vozes, lá do alto das casas mais ricas, descem também pequenos clarões de
candeias alimentadas com azeite.
Os dois filhos de Alfeu e Judas vão caminhando ainda por alguns
metros em silêncio. Depois, José para, pegando Judas por um braço, e lhe
diz:
– Escuta. Eu percebi que tu sabes de alguma coisa, mas que não a
quiseste falar na presença de estranhos. Mas agora a mim deves falar. Eu
sou o mais velho da casa, e tenho o direito e o dever de saber tudo.
– E eu vim até aqui com a intenção de vo-lo dizer e de proteger o
Mestre, Maria, os vossos irmãos e o vosso nome. É uma coisa muito penosa
para dizer-se, e para se ouvir. Uma coisa muito difícil de se fazer. Porque
fica parecendo uma espionagem. Mas eu vos peço que me compreendais
bem. Não se trata disto. Trata-se somente de amor e sabedoria. Eu sei de
muitas coisas, que afinal não são ignoradas por vós. Eu as sei pelos meus
amigos do Templo. Eu sei que são um perigo para Jesus e também para o
bom nome da família. Eu tenho procurado fazer que o Mestre compreenda
isso. Mas nada tenho conseguido. Muito pelo contrário. Quanto mais eu o
aconselho, pior Ele faz, tornando-se assim objeto de críticas e de ódio cada
vez mais forte. Isto, porque Ele é tão santo, que não pode compreender o
que é o mundo. Mas, em resumo, é triste ver morrer uma instituição santa
pela imprudência do seu fundador.
– Mas, afinal, que há? Dize logo tudo. E nós proveremos. Não é
mesmo, Simão?
– Certamente. Parece-me impossível que Jesus cometa imprudências, e
contra a sua missão…
– Mas, se este bravo jovem, que também ama a Jesus, o está dizendo!?
Estás vendo como tu és. És sempre assim, sem firmeza. Titubeante. Sempre
nos momentos favoráveis, me deixas sozinho. Eu fico contra toda a
parentela. Não tens piedade nem do nosso nome, e do pobre irmão nosso
que está se arruinando?
– Não! Arruinando-se, não. Ele está se rebaixando, isso sim.
– Fala, fala! –insiste José, enquanto Simão se cala, perplexo.
– Eu falaria… Mas gostaria de estar certo de que vós não falaríeis de
mim com Jesus… Jurai que não.
– Pelo santo Véu nós te juramos. Fala.
– E nem mesmo à vossa mãe, e muito menos aos irmãos deveis dizer
nada do que eu vos disser.
– Fica certo do nosso silêncio.
– E guardareis silêncio também com Maria? Para não entristecê-la,
guardai silêncio. Pois é um dever cuidar também da paz desta pobre mãe…
– Nós todos nos calaremos. Nós te juramos.
264.10– Então, escutai… Jesus não se limita mais só a aproximar-se dos
pagãos, dos publicanos e das meretrizes, a ofender aos fariseus e aos
grandes. Mas agora Ele está fazendo coisas completamente absurdas. Ficai
sabendo que Ele esteve na terra dos filisteus, e nos fez andar peregrinando,
e levando atrás de nós um bode preto. Além disso, pôs agora um filisteu
entre os seus discípulos. Antes disso, também aquele menino, que Ele
recolheu. Não ouvistes falar nos comentários que foram feitos? Também, há
poucos dias, acolheu uma grega, escrava, que fugiu de um patrão romano.
Depois, os seus discursos, que discordam daquela sabedoria bem conhecida
nossa. Enfim, está parecendo um louco. E se prejudica. Na Filisteia, andou
misturando-se a uma cerimônia de feiticeiros, andou descendo ao nível
deles, na contenda que com eles teve. Ele os venceu, mas… Os escribas e
os fariseus o odeiam. E, se essas coisas chegarem aos ouvidos deles, que é
que pode suceder? Vós tendes o dever de intervir, de impedir…
– Isso é grave. Muito grave. Mas, como é que podíamos saber disso?
Nós moramos aqui. E, mesmo agora, como poderemos saber?
– E, no entanto, a vós é que cabe intervir e impedir. A Mãe é mãe, e é
boa demais. Vós não o podeis abandonar assim. Tanto por ser Ele quem é,
como também por causa do mundo. Também isso de continuar a expulsar os
demônios… Já se ouve falar que Ele é ajudado por Belzebu. Vede vós, se
isso o pode ajudar. Além disso, que rei é que Ele poderá ser um dia, se as
turbas, desde agora já se estão rindo dele, ou ficam escandalizadas?
– Mas… Ele faz mesmo estas coisas? –pergunta, incrédulo, Simão.
– Perguntai-o a Ele mesmo. Ele vos dirá que sim. Porque Ele até se
gaba disso.
– Tu nos deverias ter avisado…
– Sim, que o farei. Quando eu vir alguma coisa de novo, mandar-vos-ei
o meu aviso. Mas eu me recomendo. Silêncio agora e sempre com todos!
– Nós já o juramos. Quando partes daqui?
– Depois do sábado. Já não há mais motivos para estar aqui. Já cumpri o
meu dever.
– E nós te agradecemos por isso. Estás vendo! Eu bem dizia que Ele
estava mudado! E tu, meu irmão, não querias acreditar em mim… Agora
estás vendo como eu tenho razão? –diz José de Alfeu.
– Eu… a mim ainda me custa crer. Judas e Tiago, afinal, não são uns
tolos. Por que é que eles não tomam providências, se essas coisas estão
acontecendo de verdade? –diz Simão de Alfeu.
– Homem, não quererás desonrar-me, deixando de crer em minhas
palavras? –dispara, ressentido, Judas.
– Não!… mas… Basta. Perdoa, se eu te digo: eu acreditarei, quando eu
verei.
– Está bem. Logo verás, e me deverás dizer: “Tu tinhas razão.”
264.11 Tudo bem. Já estais em vossa casa. Eu vos deixo. Deus esteja
convosco.
– Deus esteja contigo, Judas. E… escuta. Tu também não fales com
outros sobre este assunto. Pela nossa honra…
– Não o contarei nem ao ar. Adeus.
E ele lá se vai, em passos rápidos, tornando a entrar tranquilo na casa, e
subindo depois para o terraço, onde Maria, com as mãos no colo, contempla
o céu apinhado de estrelas, e, à fraca luz da pequena lâmpada, que Judas
acendeu para poder subir pela escada, podem ver-se duas carreirinhas de
lágrimas que descem brilhando pelas faces de Maria.
– Por que estás chorando, Mãe? –pergunta, ansioso, Judas.
– Porque me parece que o mundo está mais apinhado de ciladas, do que
o céu de estrelas. Ciladas contra o meu Jesus…
Judas, perturbado, fixa nela os olhos.
Mas ela termina, dizendo suavemente:
– Mas o que me encoraja é o amor dos discípulos… Amai muito ao meu
Jesus… amai-o… Queres ficar, Judas? Eu desço para o meu quarto. Maria
de Cléofas já se deitou, depois de já ter preparado o fermento para amanhã.
– Sim. Eu fico. Aqui se está bem.
– A paz esteja contigo, Judas.
– A paz esteja contigo, Maria.
265. Instruções aos doze apóstolos
que iniciam o seu ministério.
28 de agosto de 1945.
265.1Jesus está com os apóstolos — e aqui se acham todos, sinal de que
Judas Iscariotes, tendo realizado o seu trabalho, foi unir-se já aos
companheiros e agora eles estão sentados à mesa, na casa de Cafarnaum. Já
chegou a tarde. A luz de um dia, que já está no fim, entra ainda pela porta e
pelas janelas escancaradas, e por estas se pode ver a mudança da cor
vermelha do pôr do sol em um vermelho arroxeado e irreal, o qual, pelas
beiradas, vai-se dissipando e formando cartuchos de uma cor violáceo-
ardósia, que termina ficando pedrês. E me faz pensar numa folha de papel
jogada ao fogo, que se acende como o carvão aceso sobre o qual foi jogada,
mas que, pelas beiradas, depois de surgir a primeira chama, enrosca-se toda
e vai-se apagando até tomar uma cor chumbo-azulada, que termina em
outra cinzento-pérola, quase branca.
– Vem calor! –sentencia Pedro, ao mostrar a grande nuvem, que vai
cobrindo o ocidente com aquelas cores–. Calor. Chuva não. A chuva vem de
uma névoa, não de uma nuvem. Com esta eu até durmo na barca, para
tomar o ar fresco.
– Não. Esta noite iremos para o meio dos olivais. Eu preciso falar-vos.
Agora Judas já voltou. É tempo de falar. Conheço um lugar ventilado. Lá
ficaremos. Levantai-vos, e vamos.
– Fica longe? –perguntam, apanhando as capas.
– Não. É muito perto. A um tiro de funda da última casa. Podeis deixar
as capas aqui. Mas pegai a isca e o fuzil, para podermos ver-nos ao entrar
de volta.
Saem do quarto alto e descem pela escadinha, depois de terem saudado
o dono da casa e a mulher, que estão tomando o ar fresco no terraço.
Jesus vira decididamente as costas para o lago, e depois de ter
atravessado o povoado, anda uns duzentos ou trezentos metros por entre as
oliveiras de uma primeira pequena colina, que fica para lá do povoado. Ele
para sobre uma elevação que, pela sua posição saliente e livre de
obstáculos, tem ao seu dispor todo o ar que se deseja ter numa noite de
calor como aquela.
265.2 – Assentemo-nos, e prestai atenção. Chegou a hora da vossa
evangelização. Estou mais ou menos na metade de minha vida pública,
preparando os corações para o meu Reino. Agora já é tempo de os meus
apóstolos tomarem parte na preparação desse Reino. Os reis fazem assim,
quando decidirem conquistar um reino. Antes perguntam às pessoas, e as
chamam para perto de si, a fim de ouvirem quais são suas reações, e
prepará-los para o plano que pretendem realizar. Em seguida, eles ampliam
o trabalho preparatório, mandando mensageiros de confiança à cidade que
eles querem conquistar. Depois, vão mandando mais outros, para que a
cidade inteira fique sendo conhecida em todos os seus pormenores
geográficos e em seus costumes. Tendo feito tudo isso, o rei começa a
realizar sua obra, proclamando-se rei daquele lugar, e coroando-se como rei.
Para fazer isso, o sangue corre. Porque as vitórias sempre custam sangue…
– Nós estamos prontos a combater por Ti e a derramar o nosso sangue –
prometem unanimemente os apóstolos.
– Eu não derramarei outro sangue, senão o do Santo e dos santos.
– Queres começar a conquistar pelo Templo, irrompendo na hora dos
sacrifícios?
– Não fiquemos divagando, meus amigos. O futuro, vós o sabereis, a
seu tempo. Mas não fiqueis fremindo de horror. Eu vos garanto que não irei
perturbar as cerimônias com a violência de uma irrupção. Contudo, elas
serão perturbadas, e haverá até uma tarde na qual o terror impedirá a oração
ritual. É o terror dos pecadores. Mas Eu, naquela tarde, estarei em paz. Em
paz com o meu espírito e o meu corpo. Uma paz total, feliz…
Jesus olha para cada um dos seus doze, e é como se estivesse olhando
uma mesma página doze vezes, e nela estivesse lendo doze vezes a palavra
que nela está escrita: incompreensão. Ele sorri, e continua:
265.3– Por isso, eu decidi mandar-vos, para penetrardes mais na frente, o
mais possível, mais do que Eu sozinho poderia fazer. Contudo, entre o meu
modo de evangelizar e o vosso haverá diferenças, quanto ao uso da
prudência, da qual eu faço uso, para não vos colocar em dificuldades muito
fortes, em perigos muito sérios para vossas almas, e também para os vossos
corpos, e também para não prejudicar a minha obra.
Vós não estais ainda bem formados para poderdes aproximar-vos seja
lá de quem for, sem que saiais prejudicados, ou sem prejudicá-los, e
também, menos ainda, sois heróicos a ponto de desafiardes o mundo,
batendo-vos por uma ideia, e marchando de encontro às vinganças do
mundo. Por isso, quando fordes pregar, não vades logo para o meio dos
pagãos, não entreis logo nas cidades dos samaritanos, mas ide logo às
ovelhinhas dispersas da casa de Israel. Há tanto que fazer, aí mesmo entre
elas, que, em verdade, Eu vos digo que as multidões, que vos parecem tão
grandes, ao redor de Mim, são apenas a centésima parte das grandes
multidões que em Israel ainda estão esperando o Messias, e não o
conhecem, nem sabem que Ele está vivendo já entre vós. Levai a elas a fé e
o conhecimento de Mim.
Pelo vosso caminho, pregai, dizendo: “O reino dos céus está próximo.”
Que este anúncio seja a base. Sobre ele apoiai toda a vossa pregação: Muito
já me ouvistes falar do Reino. Não tendes que fazer mais do que repetir o
que Eu vos disse. Mas o homem, para ser atraído e convencido pelas
verdades espirituais, precisa de algumas doçuras materiais, como se ele
fosse um eterno menino, que não estuda uma lição e não aprende a trabalhar
num ofício, se não for engabelado com um doce por sua mãe, ou com um
prêmio, ou pelo mestre da escola ou pelo mestre do ofício. Eu, para que
tenhais o meio para serdes acreditados e procurados, dou-vos o dom do
milagre…
Os apóstolos põem-se de pé num pulo, menos Tiago de Alfeu e João, e
gritam, protestam e se exaltam, cada um conforme o seu temperamento. Na
verdade, quem se pavoneia com a ideia do milagre é somente Iscariotes
que, mesmo fazendo pouco caso, em sua consciência, de uma acusação
falsa e insensata, exclama:
– Já era hora de nós também fazermos isso, para termos um mínimo de
autoridade sobre as turbas!
Jesus olha para ele, mas não diz nada. Pedro e o Zelotes lhe estão
dizendo:
– Não, Senhor! Nós não somos dignos de tanto! Isto é para os santos –e
repreendem a Judas.
E o Zelotes ainda lhe diz:
– Como te permites censurar ao Mestre, ó homem estulto e orgulhoso?
E Pedro acrescenta:
– O mínimo? E que queres fazer mais do que o milagre? Talvez queres
virar Deus? Tens o mesmo prurido que tinha Lúcifer?
– Silêncio! –intima Jesus.
E continua:
– Há uma coisa que ainda é mais do que o milagre, e que convence as
multidões até em maior profundidade e duração: é uma vida santa. Mas
desta vós ainda estais longe, e tu, Judas, ainda mais longe que os outros.
Mas deixai-me falar, porque é uma longa instrução.
265.4Ide, pois, curai os enfermos, limpai os leprosos, ressuscitai os
mortos no corpo ou no espírito porque o corpo e o espírito podem estar
igualmente enfermos, leprosos, mortos. E vós ficai também sabendo como
se faz para operar um milagre: com uma vida de penitência, uma oração
fervorosa, um sincero desejo de fazer brilhar o poder de Deus, uma
humildade profunda, uma viva caridade, uma fé incendida, uma esperança
imperturbável diante das diversas dificuldades. Em verdade, Eu vos digo
que tudo é possível para quem tem em si esses elementos. Até os demônios
fugirão diante do Nome do Senhor dito por vós, se tiverdes em vós tudo
aquilo que Eu disse. Este poder vos é dado por Mim e pelo nosso Pai. Ele
não se compra com moeda alguma. Só a nossa vontade o concede, e só uma
vida justa o mantém. Mas, como ele vos é dado gratuitamente, dai-o aos
outros, aos que necessitam dele. Ai de vós, se aviltardes o dom de Deus,
fazendo-o servir para encher a vossa bolsa. Não é vosso o poder, mas é
poder de Deus. Usai dele, mas não vos aproprieis do mesmo, dizendo: “Ele
é meu.” Assim como vos foi dado, vos pode ser tirado.
Simão de Jonas, há pouco, disse a Judas de Simão: “Tens tu o mesmo
prurido que teve Lúcifer?” Ele fez uma justa definição. Dizer: “Eu faço o
que Deus faz, porque eu sou como Deus”, é imitar a Lúcifer. E o castigo
dele é conhecido. Como conhecido é também aquele que aconteceu aos dois
que, no paraíso terrestre, comeram do fruto proibido, por instigação do
invejoso, que queria pôr outros invejosos no seu Inferno, além dos anjos
rebeldes, que já lá estavam, mas também por um prurido deles mesmos, de
uma soberba perfeita.
O único fruto que vos é lícito colher disto que fazeis são as almas que
com o milagre conquistareis para o Senhor, e que ao Senhor são entregues.
Eis as vossas moedas. Não outras. Na outra vida gozareis o tesouro.
265.5Vivei sem riquezas. Não leveis convosco nem ouro, nem prata, nem
moedas em vossos cintos, nem sacos de viagem com duas ou mais vestes,
calçados duplos, nem bastão de peregrinos, nem armas, como os homens.
Porque as vossas visitas apostólicas, por enquanto, serão curtas, e, em cada
véspera de sábado, podereis tirar a vossa roupa suada, sem terdes
necessidade de levar convosco outra para troca. Não precisais de bastão,
porque o caminho é melhor, e o caminho que há por entre as colinas ou na
planície é muito diferente do que há nos desertos e nas altas montanhas.
Não precisais de armas. Estas são boas para o homem que não conhece a
santa pobreza e ignora o perdão divino. Mas vós não tendes tesouros para
guardar e defender dos ladrões. A única coisa a se temer, o único ladrão
para vós é satanás. E ele se vence com a constância e a oração, e não com
espadas e punhais.
A quem vos ofende, perdoai. Se vos despojassem da capa, devíeis dar-
lhes também a túnica. Ficai até nus de fato, pela vossa mansidão e pelo
desapego das riquezas, e com isso não escandalizareis os anjos do Senhor,
nem a infinita Castidade de Deus, porque a vossa caridade vestiria de ouro
o vosso corpo nu, e a mansidão ornaria vossas cinturas, e o perdão para com
o ladrão vos daria um manto e uma coroa real. Ficaríeis assim mais bem
vestidos do que um rei. E não com tecidos corruptíveis, mas com matérias
incorruptíveis.
Não vos preocupeis com a vossa alimentação. Tereis sempre o que vos
for próprio para a vossa condição e para o vosso ministério, porque o
operário é digno do alimento que lhe é oferecido. Sempre. E, se os homens
não o provessem dele, Deus proveria ao seu operário. Já vos mostrei que
para viver e pregar, não é necessário estar com os ventres empanturrados de
alimentos. Isto se faz com os animais imundos, cujo trabalho é só o de
engordarem, para serem depois mortos, e engordarem os homens. Mas vós
não deveis engordar senão o vosso espírito e o dos outros com alimentos de
sabedoria. E a Sabedoria brilha para uma mente, que a devassidão não fez
ficar obtusa e para um coração, que se nutre de coisas sobrenaturais. Vós
nunca fostes tão eloquentes, como depois daquele retiro no monte[56]. E
naqueles dias comestes somente o que era necessário para não morrerdes. E,
não obstante, no fim do retiro, estáveis mais fortes e alegres do que nunca.
Por acaso, não é verdade isso?
265.6Em qualquer cidade ou lugar em que entrardes, informai-vos se há
lá alguém que mereça acolher-vos. Não porque sois Simão, ou Judas, ou
Bartolomeu, ou Tiago ou João, e assim por diante. Mas porque sois os
enviados do Senhor. Ainda que tivésseis sido uns rejeitados, assassinos,
ladrões, uns publicanos, mas agora arrependidos e justos a meu serviço,
mereceis respeito, porque sois meus enviados. E digo ainda mais. Eu digo:
Ai de vós, se tiverdes a aparência de enviados meus, mas, em vosso interior
fordes uns imundos e endemoninhados. Ai de vós! O inferno ainda é pouco
para o que vós mereceis, pelo engano que praticais. Mas, ainda que tiverdes
sido, ao mesmo tempo enviados claramente por Deus, e uns rejeitados, uns
publicanos, uns ladrões, uns assassinos ocultos, ou até mesmo se uma
suspeita houvesse nos corações a respeito de vós, ou quase uma certeza, que
vos sejam prestados honra e respeito, porque vós sois meus enviados. Os
olhares dos homens devem dirigir-se para além do enviado, olhar para Deus
e para sua obra, acima do enviado, que pode ser defeituoso. Só em caso de
culpa grave, que lese a fé nos corações, Eu, por enquanto, e depois quem irá
ficar em meu lugar, é que tomará providências para amputar o membro
podre. Porque não é lícito que por um sacerdote demônio se percam as
almas dos fiéis. Nunca será lícito, para esconder as feridas nascidas no
corpo apostólico, permitir que sobrevivam nele uns corpos gangrenados
que, com seu aspecto repugnante, afastam, e com seu fedor demoníaco
envenenam.
Portanto, vós vos informareis sobre qual é a família de vida mais reta,
na qual as mulheres sabem estar retiradas e onde os costumes são
irrepreensíveis. E nela entrareis e ficareis até o dia da partida do lugar. Não
imiteis os zangões que, depois de haverem sugado uma flor, passam para
outra mais nutriente. Vós, mesmo se tiverdes ido para uma família humilde,
rica somente em virtude, ficai lá onde estiverdes. Não fiqueis procurando “o
melhor” para o corpo que perece. Mas, antes, dai a ele sempre o pior,
reservando todos os direitos ao espírito. E Eu vo-lo digo, porque é bom que
o façais, dai, se o puderdes fazer, dai preferência aos pobres para a vossa
hospedagem. Para não humilhá-los, lembrai-vos de Mim, que sou sempre
pobre, e que de ser pobre Me glorio, e também porque os pobres são muitas
vezes melhores do que os ricos. Encontrareis sempre pobres justos,
enquanto que é raro encontrar um rico sem injustiça. Por isso, não tendes a
desculpa de dizer: “Não encontrei bondade, a não ser nos ricos”, para
justificardes o vosso desejo de bem-estar.
No ato de entrardes na casa, saudai com a minha saudação, que é a mais
doce que há. Dizei: “A paz esteja convosco. A paz esteja nesta casa”, ou
então, “a paz venha a esta casa.” De fato, vós, enviados de Jesus e da Boa
Nova, levais convosco a paz, e a vossa ida a um lugar é o mesmo que fazer
ir a ele a paz. Se a casa for digna dela, a paz virá, e permanecerá na casa. E,
se não for digna dela, a paz voltará a vós. Mas, tomai cuidado para serdes
pacíficos, para terdes Deus como vosso Pai. Um pai ajuda sempre. E vós,
ajudados por Deus, tudo fareis, e tudo bem feito.
Pode acontecer também, e certamente acontecerá, que haja cidade ou
casas, que não vos queiram receber, que não queiram ouvir a vossa palavra,
expulsando-vos e zombando de vós, e até perseguindo-vos a pedradas,
como a uns profetas aborrecidos. E é aí que tereis, mais do que nunca, a
necessidade de serdes pacíficos, humildes, mansos, por hábito em vossa
vida. Porque, se assim não for, a ira tomará a dianteira, e vós pecareis,
escandalizando, e aumentando a incredulidade dos que deviam ser
convertidos. Ao passo que, se receberdes a ofensa de serdes expulsos, de
serdes feitos objetos de zombaria e perseguidos, com a paz os convertereis,
pois ela é a mais bela das pregações, a do silêncio de uma verdadeira
virtude. Reencontrareis um dia os inimigos de hoje, em vosso caminho, e
eles vos dirão: “Nós vos estamos procurando, porque o vosso modo de agir
nos persuadiu da verdade que anunciais. Que vós queirais perdoar-nos e
receber-nos como discípulos. Porque nós não vos conhecíamos, mas agora
vos conhecemos como a uns santos. Por isto, se sois santos, deveis ser os
enviados de um santo, e agora nós cremos nele.” Mas, ao sairdes da cidade,
ou da casa, onde não fostes recebidos, sacudi até o pó de vossos sapatos,
para que a soberba e a dureza daquele lugar não se apeguem nem mesmo às
vossas solas. Em verdade, Eu vos digo: No dia do Juízo, Sodoma e
Gomorra serão menos duramente tratadas do que aquela cidade.
265.7Eis: Eu vos mando como umas ovelhas entre lobos, Sede, pois,
prudentes como as serpentes, e simples como as pombas. Porque vós sabeis
como o mundo, que em verdade está mais cheio de lobos que de ovelhas,
como ele faz comigo, que sou o Cristo. Eu posso defender-me com o meu
poder, e o farei, quando chegar ao fim do triunfo temporário do mundo.
Mas vós não tendes esse poder, e precisais de maior prudência e
simplicidade. Maior perspicácia, pois, para evitar, por enquanto, os cárceres
e as flagelações. Em verdade, vós, por enquanto, mesmo com esses vossos
protestos de quererdes dar o sangue por Mim, não suportais ainda nem
mesmo um olhar irônico, ou de ira. Depois, tempo virá em que sereis fortes
como uns heróis contra todas as perseguições, fortes mais do que heróis,
com um heroísmo inconcebível segundo o mundo, inexplicável, e que será
chamado “loucura.” Não, ele não será loucura! Será a identificação, por
força do amor, do homem ao Homem-Deus, e vós sabereis fazer o que Eu já
tiver feito. Para compreender esse heroísmo, será preciso vê-lo, estudá-lo e
julgá-lo, olhando de alturas ultraterrenas. Porque é uma coisa sobrenatural,
que longe está de todas as restrições da natureza humana. Os reis, os reis do
espírito serão os meus heróis, reis e heróis para sempre…
Naquele tempo vos prenderão, levando as vossas mãos para as costas,
arrastando-vos para diante dos tribunais, para diante dos governadores e dos
reis, para vos julgarem e condenarem pelo vosso grande pecado, aos olhos
do mundo, o de serdes servos de Deus, ministros e tutores do Bem e
mestres das virtudes. E, por serdes isso, sereis flagelados e punidos de mil
maneiras, até serdes mortos. E dareis testemunho de Mim aos reis, aos
governadores, às nações, confessando, com o vosso sangue, que amais o
Cristo, Filho verdadeiro do Deus Verdadeiro.
Quando estiverdes nas mãos deles, não fiqueis preocupados sobre como
havereis de responder e sobre o que tereis de dizer. Nenhum sofrimento
deveis ter, a não ser a preocupação por causa dos juizes e acusadores, que
satanás extraviará a tal ponto, que os tornará cegos à Verdade. As palavras
que devereis dizer vos serão dadas naquele momento. O vosso Pai as
colocará em vossos lábios, porque então, não sereis vós que falareis para
converter à Fé e professar a Verdade, mas será o Espírito do vosso Pai que
falará em vós.
265.8Naquele tempo, o irmão dará a morte ao irmão, o pai ao filho, e os
filhos se insurgirão contra os seus pais, e os farão morrer. Não, não
desanimeis, nem vos escandalizeis. Respondei-Me: Para vós é um delito
maior matar um pai, um irmão, um filho, vos parece delito maior do que
matar o próprio Deus?
– Deus não se pode matar –diz a si mesmo Judas Iscariotes.
– É verdade. É Espírito, que não se pode apreender –confirma o
Bartolomeu.
E os outros, mesmo ficando calados, são do mesmo parecer.
– Eu sou Deus e sou Carne –diz, calmo, Jesus.
– Ninguém está pensando em te matar –rebate Iscariotes.
– Eu vos peço: respondei à minha pergunta.
– Mas é mais grave matar a Deus. Logo se vê!
– Pois bem: Deus vai ser morto pelo homem na Carne do Homem-Deus.
Portanto, como se chegará a esse delito, sem que haja horror em quem o
praticar, assim se chegará ao delito dos pais, dos irmãos, dos filhos, contra
os filhos, os irmãos e os pais.
265.9Sereis odiados por todos por causa de meu Nome. Mas quem
perseverar até o fim será salvo. E, quando vos perseguirem em uma cidade,
fugi para outra. Não por covardia, mas para dardes tempo à recém-nascida
Igreja de Cristo de chegar à idade, não apenas de um lactante fraco e inepto,
mas a uma idade maior na qual será capaz de enfrentar a vida e a morte,
sem temer a Morte. Aqueles a quem o Espírito aconselhar que fujam, fujam.
Como Eu fugi, quando era pequenino. Em verdade, na vida de minha Igreja
se repetirão todos os acontecimentos da minha vida de homem. Todos.
Desde o mistério da sua formação na humildade dos primeiros tempos, até
às perturbações e insídias preparadas por homens ferozes, e até à
necessidade de fugir para continuar a existir, do trabalho e da pobreza
contínuos, até a muitas outras coisas, pelas quais estou passando
atualmente, e as que padecerei logo depois, antes de chegar ao eterno
triunfo. Aqueles, porém, que o Espírito aconselha a ficar, que fiquem.
Porque, mesmo se caírem mortos, eles viverão e serão úteis à Igreja. Porque
é sempre bom o que o Espírito de Deus aconselha.
265.10Em verdade Eu vos digo que não acabareis, nem vós, nem os que
vos sucederem, de percorrer os caminhos e as cidades de Israel, antes que
venha o Filho do Homem. Porque Israel, por um seu horrível pecado, será
disperso, como o cascabulho levado por um turbilhão, e espalhado por toda
a terra, e os séculos e os milênios, um após o outro, e mais ainda, se
sucederão, antes que seja de novo recolhido no terreno de Araúna, o
Jebuseu[57]. Todas as vezes que o tentar, antes da hora marcada, será pego
de novo pelo turbilhão, e disperso, porque Israel deverá chorar o seu
pecado, por tantos séculos, quantas irão ser as gotas que choverão das veias
do Cordeiro de Deus, imolado pelos pecados do mundo. E a minha Igreja
deverá também, ela que terá sido ferida por Israel em Mim e nos meus
apóstolos e discípulos, deverá abrir seus braços de mãe e tentar recolher
Israel debaixo do seu manto, como uma galinha faz com os pintinhos que se
afastam dela. Quando Israel for todo de Cristo, então Eu virei.
265.11Mas estas serão as coisas futuras. Falemos das que estão para
acontecer em breve.
Lembrai-vos de que o discípulo não é mais do que o mestre, nem o
servo mais que o patrão por isso, basta ao discípulo ser como o mestre, e já
é uma honra imerecida. E ao servo, basta-lhe que seja bondade sobrenatural
conceder-vos que assim seja.
Se chamaram Belzebu ao Dono da Casa, como é que irão chamar aos
servos dele? E, poderão os servos revoltar-se, se seu Patrão não se revolta,
não odeia nem amaldiçoa, mas, calmamente, em sua justiça, continua a sua
obra, transferindo o julgamento para um outro momento, quando, depois de
ter tentado tudo para persuadir, tiver visto neles a obstinação para o Mal?
Não. Não poderão os servos fazer o que o patrão não faz, mas, sim, imitá-
lo, pensando que eles são também pecadores, enquanto que ele, estava sem
pecado. Não temais, pois, aqueles que vos chamarão “demônios.” A
Verdade será conhecida, e se verá, então, quem era o “demônio.”
Nada há de escondido que não tenha de revelar-se e nada de secreto que
não se venha a saber. O que Eu agora vos digo nas trevas e em segredo,
porque o mundo não é digno de saber todas as palavras do Verbo, não é
ainda digno disso, nem ainda é hora de dizê-lo aos indignos, vós, quando
chegar a hora em que tudo deverá ser conhecido, dizei-o à luz do dia e do
alto dos telhados, gritai alto o que Eu agora falo baixo, mais à vossa alma
do que ao vosso ouvido. Porque, então, o mundo já terá sido batizado pelo
Sangue, e satanás terá contra ele um estandarte pelo qual o mundo poderá,
se o quiser, compreender os segredos de Deus, enquanto satanás não poderá
danificar a não ser os que desejam sua mordida, e a preferem ao meu beijo.
Mas oito partes em dez do mundo não quererão compreender. Somente as
minorias estarão de boa vontade para procurarem saber tudo, praticar tudo o
que é minha Doutrina. Não importa. Assim como não se podem separar
estas duas partes santas da massa injusta, pregai também do alto dos
telhados a minha Doutrina, pregai-a do alto dos montes, sobre os mares sem
limites e nas vísceras da terra, se nem os homens a quiserem escutar, pois os
passarinhos e os ventos recolherão as divinas palavras, os peixes e as ondas,
e conservarão o eco delas nas vísceras do solo, para dizê-las às nascentes
das águas, aos minerais, aos metais, e com elas todos se regozijarão, porque
eles também foram criados por Deus para serem escabelo para os meus pés
e alegria para o meu coração.
Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma.
Mas temei somente aquilo que pode por a perder a vossa alma. E reunir no
último juízo esta ao corpo ressuscitado, para jogá-los no fogo do Inferno.
Não temais. Não se vendem dois pardais por uma moeda? E, no entanto, se
o Pai não o permitir, nenhum deles cairá, apesar de todas as insídias do
homem. Portanto, não temais. Vós sois conhecidos pelo Pai. Conhecidos
sois por Ele até pelo número de fios de cabelo que tendes na cabeça: Vós
sois mais do que muitos pardais! E Eu vos digo que quem me reconhecer
diante dos homens, também Eu o reconhecerei diante de meu Pai que está
nos Céus. Mas, quem me renegar diante dos homens, também Eu o
renegarei diante do meu Pai. Reconhecer aqui quer dizer seguir e praticar. E
renegar é abandonar o meu caminho por covardia, pela tríplice
concupiscência, ou por algum cálculo egoísta, por afeto humano para com
alguém dos vossos, que esteja contra Mim. Porque haverá também isso.
265.12Não penseis que Eu tenha vindo trazer a concórdia a esta terra e por
esta terra. A minha paz é mais alta do que as pazes, calculadas para tirar
partido delas cada dia. Eu não vim, trazer a paz, mas a espada. A espada
afiada para cortar os liames, que se agarram à lama, e para abrir caminhos
para voos do sobrenatural. Por isso, Eu vim para separar o filho do pai, a
filha da mãe, a nora da sogra. Porque Eu sou o que reina e tem todo o
direito sobre os seus súditos. Porque ninguém é maior do que Eu, quanto
aos direitos sobre os afetos. Porque em Mim se encontram todos os amores,
sublimando-se, e Eu sou Pai, Mãe, Esposo, Irmão, Amigo, e vos amo como
tais, e como tal sou amado. E, quando Eu digo: “Eu quero”, nenhum liame
pode resistir. E a criatura é minha: Eu, com o Pai, a criei, Eu, por Mim
mesmo a salvo, e Eu tenho o direito de possui-la.
Em verdade, os inimigos do homem são os homens, além dos
demônios. E os inimigos do homem novo, do cristão, são os de sua casa,
com os seus lamentos, ameaças e súplicas. Quem, pois, de agora em diante,
amar o pai e a mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim; quem ama o
filho ou a filha mais do que mim não é digno de mim. Quem não tomar a
sua cruz cada dia, complexa, formada de resignações, de renúncias, de
obediências, de heroísmos, de dores, de doenças, de lutos, de tudo aquilo
que manifesta a vontade de Deus ou uma prova do homem e, com essa cruz
às costas, não me seguir, não é digno de Mim. Quem dá mais importância à
sua vida terrena do que à vida espiritual, perderá a verdadeira Vida. E quem
tiver perdido a sua vida terrena por amor a Mim, a encontrará, eterna e feliz.
265.13Quem vos recebe, a Mim recebe. E quem Me recebe, recebe Aquele
que Me enviou. Quem recebe um profeta como profeta, recebe prêmio
proporcional à caridade que teve para com o profeta. E quem recebe um
justo como justo, receberá prêmio proporcional ao do justo. E assim é
porque quem reconhece no profeta o profeta, é sinal de que ele também é
profeta, isto é, muito santo, porque está seguro pelos braços do Espírito de
Deus, e quem tiver reconhecido um justo, demonstra que ele também é
justo, pois as almas semelhantes se reconhecem. A cada um, pois, será dado
conforme a justiça.
Mesmo a quem tiver dado ainda que um simples copo d’água pura a um
dos meus servos, fosse ele o menor deles,(e são servos de Jesus todos
aqueles que o pregam com uma vida santa, e tanto podem sê-lo os reis,
como os mendigos; os sábios, como os que não sabem nada, os velhos
como os pequeninos. Porque em todas as idades e classes se pode ser meu
discípulo), quem tiver dado a um meu discípulo ainda que só um copo de
água, em meu Nome, e porque ele é meu discípulo, em verdade Eu vos digo
que não perderá a sua recompensa.
265.14Era o que Eu tinha a dizer. Agora vamos rezar. Depois vamos para
casa. Amanhã cedo, partireis assim: Simão de Jonas com João; Zelotes com
Judas Iscariotes; André com Mateus; Tiago de Alfeu com Tomé; Filipe com
Tiago de Zebedeu e Judas, meu irmão, com Bartolomeu. Esta semana será
assim. Depois darei nova ordem. Rezemos.
E rezam em alta voz…
[56] retiro no monte pela eleição apostólica, nos capítulos 164-165.
[57] no terreno de Araúna, o Jebuseu recorda o fim de um flagelo desejado pelo Senhor, em 2 Samuel 24,16-25, 1 Crônicas
21,15-30.
266. Os discípulos do Batista querem certificar-se
que Jesus é o Messias. Testemunho do Precursor
e invectiva contra as cidades impenitentes.
29 de agosto de 1945.
266.1Jesus está sozinho com Mateus que, tendo-se ferido em um dos pés,
não pôde sair com os outros para ir pregar. Contudo, os doentes e os
desejosos de ouvir a Boa Nova se apinham no terraço e nos espaços livres
da horta para ouvi-lo e obterem ajuda.
Jesus termina de falar, dizendo:
– Tendo nós refletido juntos sobre a grande frase[58] de Salomão: “Na
abundância da justiça está a suma fortaleza”, Eu vos exorto a possuir essa
abundância, porque ela é a moeda com que se entra no Reino dos Céus.
Permanecei com a minha paz, e Deus esteja convosco.
Depois, o Senhor se volta para os pobres e os doentes — e, em muitos
casos, eles são uma coisa e outra ao mesmo tempo — e escuta com bondade
as suas lamentações, socorre-os com dinheiro, aconselha-os com palavras,
cura-os com a imposição das mãos e com sua palavra. Mateus, ao lado do
Senhor, se encarrega de distribuir as moedas.
266.2Jesus está ouvindo com atenção uma pobre viúva, que lhe conta, por
entre lágrimas, como foi a morte repentina de seu marido, que era
carpinteiro, quando ele estava em seu banco de trabalho, e acontecida
poucos dias antes:
– Eu saí correndo à procura de Ti, chegando até aqui e, então, todos os
parentes do falecido me acusaram de ser uma mulher sem compostura e
dura de coração, e ainda continuam a falar mal de mim. Mas eu vim porque
sei que Tu ressuscitas os mortos, e sei que se eu pudesse encontrar-te, meu
marido teria sido ressuscitado. Mas Tu não estavas aqui. Agora ele está no
sepulcro, há duas semanas… e eu estou aqui com meus cinco filhos… Os
parentes me odeiam, e não me ajudam. Eu tenho oliveiras e videiras. São
poucas, mas poderiam dar-me o pão para o inverno, se eu pudesse
conservá-las até o tempo da colheita. Mas eu não tenho dinheiro, porque o
falecido, há tempo já não vinha muito bom, e pouco podia trabalhar e, para
manter-se, comia e bebia até demais… Ele dizia que o vinho lhe fazia
bem… quando, na verdade o que lhe fez foi o mal dobrado de matá-lo e de
levar embora as nossas economias, que já estavam tão magras, por causa do
pouco trabalho dele. Ele estava para terminar um carro e um cofre e já tinha
montado duas camas, umas mesas e mesinhas. Mas agora… Mas agora
ficaram por acabar, e o meu filho homem não tem ainda nem oito anos. Eu
vou perder o dinheiro… Vou ter que vender as ferramentas, a madeira. O
carro e o cofre eu nem os posso vender como carro e cofre, porque, tendo
ficado inacabados, vou precisar vendê-los como lenha para queimar. E o
dinheiro que isso der não bastará, porque eu, minha mãe já velha e doente e
meus cinco filhos, somos sete pessoas… Eu vou vender a vinha e as
oliveiras. Dize-me: que devo fazer? Eu gostaria de conservar o banco e as
ferramentas para o meu filho, que já sabe alguma coisa a respeito de
madeira… gostaria também de conservar a terra, para dela viver, e como
dotes para as filhas…
Jesus estava ouvindo tudo isso, quando uma confusão se arma entre as
pessoas, e faz que Ele perceba que alguma novidade há por ali. Ao virar-se
para ver, o que vê são três homens, que estão procurando abrir caminho por
entre a multidão. Jesus se volta de novo para a viúva:
– Onde é que tu moras?
– Em Corozaim, perto da entrada que vai para a Fonte Quente. Moro em
uma casa baixa, entre duas figueiras.
– Está bem. Eu virei acabar de fazer o carro e o cofre, e tu os venderás a
quem os encomendou. Espera-me amanhã cedo.
– Mas, Tu!? Tu trabalhares para mim?
A mulher está sufocada pelo espanto.
– Eu voltarei a trabalhar no meu ofício, e te darei paz. E, enquanto isso,
estarei dando uma lição de caridade aos de Corozaim, que não têm coração.
– Oh! Sim. Sem coração! Se ainda estivesse aqui o velho Isaque! Ele
não me teria deixado morrer de fome! Mas ele voltou ao seio de Abraão…
– Não chores. Vai tranquila. Aqui tens o que já serve para hoje. Amanhã
Eu virei. Vai em paz.
A mulher se prostra para beijar-lhe a veste, e sai dali mais aliviada.
266.3– Mestre três vezes santo, posso eu te saudar? –pergunta um dos três
recém-chegados, que pararam respeitosamente atrás de Jesus, esperando
que Ele se despedisse da mulher e, por isso, eles ouviram a promessa de
Jesus. E este homem que saúda é Manaém.
Jesus se volta e com um sorriso diz:
– Paz a ti, Manaém! Então, te recordaste de Mim?
– Sempre, Mestre. E tinha pensado em ir a Ti na casa de Lázaro ou no
horto das Oliveiras para estar contigo. Mas antes da Páscoa foi preso João
Batista. Foi preso por traição e eu temia que, na ausência de Herodes que
veio a Jerusalém pela Páscoa, Herodíades ordenasse a morte do santo. Ela
não quis ir às festas de Sião, dizendo-se doente. Doente, sim. De ódio e de
luxúria… Eu fui a Maqueronte para controlar e… reter a pérfida mulher,
que seria capaz de matar por suas próprias mãos… E não o faz por medo de
perder o favor de Herodes, que… por medo ou convicção defende João,
limitando-se a tê-lo prisioneiro. Ora, Herodíades fugiu do calor oprimente
de Maqueronte indo para um castelo de sua propriedade. E eu vim com
estes meus amigos e discípulos de João. Ele os mandava para que te
interrogassem. E eu me uni a eles.
266.4A multidão, ouvindo falar de Herodes e compreendendo quem fala,
se aproxima curiosa em torno do grupo de Jesus e dos três.
– Que desejais perguntar-me? –pergunta Jesus depois de trocar
saudações com dois austeros personagens.
– Fala tu, Manaém, que sabes tudo e que és mais amigo –diz um dos
dois.
– Eis, Mestre. Tu deves tolerar se por tanto amor os discípulos possuem
alguma dúvida para com Aquele que creem antagonista ou suplantador de
seu mestre. Assim fazem os teus, assim aqueles de João. É um
compreensível ciúme, que demonstra todo o amor dos discípulos para os
mestres. Eu… sou imparcial, e estes que estão comigo o podem dizer,
porque te conheço e a João e vos amo com justiça, tanto que, por quanto te
ame por aquilo que és, preferi fazer o sacrifício de estar perto de João,
porque venero a ele também pelo que é, e atualmente porque está mais em
perigo do que Tu. Ora, por este amor, no qual sopram com seu ódio os
fariseus, esses chegaram a duvidar que Tu sejas o Messias. E confessaram a
João, crendo dar-lhe uma alegria ao dizer “Para nós tu és o Messias. Não
pode haver outro mais santo do que tu.” Mas João os reprovou,
primeiramente chamando-os de blasfemadores, e depois, depois da
reprovação, com mais doçura, explicou todas as coisas que te indicam como
verdadeiro Messias. Enfim, vendo-os ainda não persuadidos, tomou dois
deles, estes, e lhes disse: “Ide a Ele e dizei-lhe em meu nome: ‘És Tu aquele
que deve vir ou devemos esperar por outro?’” Não mandou os discípulos já
pastores, porque eles creem e não seria bom mandá-los. Mas tomou entre
aqueles que duvidam para fazê-los aproximar-se e para que a tua palavra
dissipe as dúvidas dos seus semelhantes. Eu os acompanhei para poder te
ver. Já disse tudo. Tu, agora, acalma as suas dúvidas.
266.5– Mas não nos creias hostis, Mestre! As palavras de Manaém o
poderiam fazer pensar. Nós… Nós… Nós conhecemos há anos Batista e o
temos visto sempre santo, penitente, inspirado. Tu… não te conhecemos
mais que pela palavra de outros. E Tu sabes o que é a palavra dos homens…
Cria e destrói fama e louvor no contraste de quem exalta e de quem abate,
assim como uma nuvem é formada e desfeita por dois ventos contrários.
– Sei, sei. Leio a vossa alma, e os vossos olhos leem a verdade em tudo
o que vos circunda, assim como os vossos ouvidos ouviram o colóquio com
a viúva. Isto bastaria para persuadir. Mas vos digo. Observai quem me
circunda. Que não são ricos nem alegres, que não são pessoas escandalosas.
Mas pobres, doentes, honestos israelitas que querem conhecer a Palavra de
Deus. E não outra coisa. Isto, isto, esta mulher, e depois aquela menina e
aquele velho, vieram aqui doentes e agora estão sãos. Interrogai-os e vos
dirão o que tinham e como os curei e como agora estão. Fazei-o, fazei-o.
Eu, entretanto, falo com Manaém.
E Jesus quer retirar-se.
– Não, Mestre. Nós não duvidamos das tuas palavras. Somente, dá-nos
uma resposta para levarmos a João, para que ele veja que viemos e para que
possa, em base nesta, persuadir os nossos companheiros.
– Ide referir isso a João: “os surdos ouvem; esta menina era surda e
muda. Os mudos falam; e aquele homem era mudo desde o nascimento. Os
cegos veem.” 266.6Homem, vem aqui. Dize a eles o que tinhas –diz Jesus
segurando por um braço a um dos miraculados.
E o homem diz:
– Eu sou pedreiro, e me caiu sobre o rosto um balde de cal viva. E me
queimou os olhos. Durante quatro anos, eu fiquei nas trevas. O Messias me
lavou os olhos secos com sua saliva, e eles ficaram mais vivos do que
quando eu tinha vinte anos. Que Ele seja por isso bendito.
Jesus continua:
– E assim é com os cegos, os surdos e os mudos curados. Os coxos se
põem de pé, os estropiados se põem a correr. Ali está aquele velho, que
antes era encolhido, e agora está ereto como uma palmeira do deserto e ágil
como uma gazela. Curam-se as mais graves doenças. Tu, mulher, que é que
tinhas?
– Um mal no seio, por ter dado leite demais a umas bocas vorazes. E o
mal que eu tinha no seio ia roendo a minha vida.
Agora, olhai, e ela entreabre o vestido, para mostrar intactas as mamas,
e acrescenta:
– Eu era uma chaga só, e o que o prova é a minha túnica, ainda molhada
pela podridão. Agora, eu vou para casa pôr uma roupa limpa, e estou forte e
feliz. Enquanto que ontem eu estava morrendo, trazida até aqui por uns que
tiveram dó de mim, e me sentia muito infeliz… por causa dos meninos, que
estavam para ficar sem mãe. Louvor eterno ao Salvador.
– Estais ouvindo? E podeis interrogar o sinagogo desta cidade a respeito
de sua filha e, voltando a Jericó, passai por Naim, perguntai pelo jovem que
foi ressuscitado na presença da cidade inteira, quando ele já estava para ser
colocado no sepulcro. Assim, podereis referir-vos aos mortos que
ressuscitaram. Que muitos leprosos estejam curados, podeis ficar sabendo
pela boca dos habitantes de muitos lugares de Israel, mas, se quiserdes ir a
Sicaminon, procurai alguns deles entre os discípulos, e encontrareis muitos.
Dizei, pois, a João que os leprosos ficam limpos. E dizei, pois o estais
vendo, que aos pobres está sendo anunciada a Boa Nova. E feliz daquele
que não se escandalizar de Mim. 266.7 Dizei isto a João. E dizei-lhe que Eu o
abençôo com todo o meu amor.
– Obrigado, Mestre. Abençoa-nos também a nós, antes de nossa partida.
– Vós não podeis partir nestas horas de calor. Ficai, então, como meus
hóspedes, até à tarde. Vivereis por um dia a vida deste Mestre, que não é
João, mas a quem João ama, porque sabe quem Ele é. Vinde para casa. Lá
está mais fresco, e tomareis uma refeição. Adeus, meus ouvintes. A paz
esteja convosco –e tendo despedido as turbas, entra em casa com os três
hóspedes…
266.8… Que coisas foram ditas naquelas horas de forte calor, eu não sei.
O que eu estou vendo agora é a preparação da partida dos dois discípulos
para Jericó. Manaém parece que vai ficar, porque não lhe trouxeram o
cavalo, com os dois jumentos, que estão diante da abertura do muro do
pátio. Os dois enviados por João, depois de muitas inclinações, feitas a
Jesus e a Manaém, montam a cavalo, e viram-se ainda, para tornarem a
olhar e saudar, até que uma curva do caminho faça que eles desapareçam de
vista.
Muitos em Cafarnaum se ajuntaram para verem esta partida, porque a
notícia da vinda dos discípulos do João, e a resposta que Jesus deu a eles já
correm pela cidade inteira, e creio que até por outras cidades vizinhas. Vejo
pessoas de Betsaida e de Corozaim, que se apresentaram aos enviados de
João, perguntando por ele, e mandando-lhe saudações — talvez sejam ex-
discípulos do Batista — e que tinham ficado numa encruzilhada, com os de
Cafarnaum, comentando os fatos. Jesus, tendo Manaém a seu lado, está
querendo entrar de novo na casa falando. Mas o povo o rodeia, e o aperta,
cheio de curiosidade, e querendo observar de perto o irmão de leite de
Herodes e as suas maneiras cheias de distinção para com Jesus e cheio do
desejo de falar com o Mestre.
266.9– Aqui está também Jairo, o sinagogo. Mas, graças a Deus, aqui não
há fariseus. É o próprio Jairo quem diz:
– Ficará contente João! Não somente mandaste uma resposta exaustiva,
mas também, detendo-os aqui, pudeste ensiná-los e mostrar-lhes um
milagre.
– E que foi de não pouca importância –diz um homem.
– Eu trouxe de propósito a minha menina aqui hoje, para que todos a
vissem. Nunca ela esteve tão bem, e para ela é uma alegria vir até o Mestre.
Vós ouvistes, não? A resposta dela? “Eu não me lembro do que é a morte.
Mas eu me lembro de que um anjo me chamou, levando-me através de uma
luz cada vez mais viva, no fim da qual estava Jesus. E como eu o vi naquela
hora com o meu espírito que estava voltando a mim, daquele modo não o
vejo mais agora. Vós e eu agora vemos o Homem. Mas o meu espírito viu a
Deus que está encerrado no Homem.” E, como ela ficou boa, desde então!
Ela já era boa. Mas agora é um verdadeiro anjo. Ah! para mim, digam os
outros o que quiserem, para nós, só Tu és santo!
– Mas João também é santo –diz um de Betsaida.
– Sim, mas é muito severo!
– Não é mais severo para com os outros do que para consigo mesmo.
– Mas não faz milagres, e dizem que ele jejua para ficar como um
faquir.
– Seja como for, mas é um santo.
E o bate-boca vai-se espalhando pelo meio da multidão. 266.10Jesus
levanta a mão e a estende naquele seu gesto habitual, que Ele faz quando
pede silencio e atenção, porque deseja falar. E logo todos fazem silêncio.
Diz Jesus:
– João é santo, e um grande santo. Não olheis para o seu modo de agir,
nem para o fato de não fazer milagres. Em verdade, Eu vos digo: “Ele é um
grande no reino de Deus.” Lá aparecerá em toda a sua grandeza.
Muitos se queixam de que ele era e é severo, até parecer um homem
rude. Em verdade, Eu vos digo que ele tem trabalhado como um gigante
para preparar os caminhos do Senhor. E quem trabalha assim, não tem
tempo a perder com molezas. Não dizia ele, enquanto ia ao longo do
Jordão, aquelas palavras[59] de Isaías, com as quais ele e o Messias foram
profetizados: “Todo vale será aterrado, todo monte será arrasado, os
caminhos tortos serão endireitados e os escabrosos serão aplanados”, e isso
para preparar os caminhos do Senhor e Rei? Mas, em verdade, ele fez mais
do que todo Israel para preparar-me o caminho! Ora, quem precisa arrasar
montes, aterrar vales endireitar caminhos ou suavizar as subidas muito
íngremes, só pode estar fazendo um trabalho rude. Porque ele era o
Precursor, e somente o curso de umas poucas luas é que o punha na minha
frente, e tudo havia de ser feito, antes que o sol já estivesse no alto, no dia
da Redenção. O tempo é este, o Sol se levanta para brilhar sobre Sião, e de
lá sobre o mundo todo. João preparou o caminho. Como devia.
Que fostes ver no deserto? Algum caniço agitado pelo vento para todas
as direções? Mas, então, que fostes ver? Algum homem vestido com vestes
delicadas? Mas os que assim se vestem moram nas casas dos reis, envoltos
em vestes macias e servidos por mil servos e cortesãos, cortesãos de um
pobre homem. Aqui está um deles. Perguntai-lhe se nele não há um
desgosto pela vida da Corte, e não há nela profunda admiração pelo
penhasco solitário e escabroso, sobre o qual em vão se arremessam os raios
e saraivadas, e os ventos loucos lutam para arrancá-lo, enquanto que ele
continua sólido, projetando todas as suas partes para o céu, com aquela
ponta que apregoa a alegria do alto, por ser tão vertical, e pontiaguda como
uma chama que sobe. Esta rocha é João. Assim é que o vê Manaém, porque
compreendeu a verdade da vida e da morte, e vê grandeza onde existe,
ainda que esteja escondida por baixo de aparências selvagens.
E vós, que vistes em João, quando fostes a ele? Um profeta? Eu vos
digo: Ele é mais do que um profeta. Ele é mais do que muitos santos, mais
do que os santos, porque é dele que está escrito[60]: “Eis que envio diante de
vós o meu anjo para preparar o teu caminho diante de Ti.”
266.11Anjo. Considerai. Vós sabeis que os anjos são espíritos puros
criados por Deus à sua semelhança espiritual, enviados para estabelecer
uma união entre o homem, que é a perfeição da criatura visível e material, e
Deus, que é a Perfeição do céu e da Terra, Criador do Reino Espiritual e do
reino animal. Até no homem mais santo existe sempre a carne e o sangue
para pôr um abismo entre ele e Deus. E o abismo se torna mais profundo
pelo pecado, que torna pesado até o que há de espiritual no homem. Eis que,
então, Deus cria os anjos, criaturas que atingem o vértice da escada das
criaturas, assim como os minerais lhe formam a base. Os minerais, o pó que
compõe a terra, os materiais inorgânicos em geral. Espelhos tersos do
pensamento de Deus, chamas cheias de vontade de trabalhar por amor,
prontas para compreender, solícitas para agir, livres em suas vontades como
nós, mas de uma vontade totalmente santa, que não conhece as rebeliões
nem os estímulos do pecado. Isto são os anjos adoradores de Deus, seus
mensageiros junto aos homens, nossos protetores, doadores a nós da Luz
que os reveste e do Fogo, que eles, ao adorarem, concentram em si.
João é chamado “anjo”, por sua palavra profética. Pois bem. Eu vos
digo: “Entre os nascidos de mulher não apareceu nenhum maior do que
João Batista.” E, no entanto, o menor no reino dos Céus é filho de Deus, e
não filho de mulher. Procurai, pois, todos vós, tornar-vos cidadãos do
Reino.
266.12Que estavam perguntando um ao outro?
– Nós estávamos dizendo: “Mas João estará no Reino? Como ele
estará?”
– Ele, em sua alma, é já do Reino, e lá ele estará depois da morte, como
um dos sóis mais esplêndidos da eterna Jerusalém. E isso pela graça, que
nele é sem defeito, e por sua própria vontade. Porque ele foi e é violento até
consigo mesmo, por um fim santo. Do Batista para a frente, o Reino dos
Céus é daqueles que sabem conquistá-lo, fazendo força contra o Mal, pois
são os violentos que o conquistam. Porque agora estão sendo conhecidas as
coisas que se hão de fazer, e todos os meios são dados para essa conquista.
Já não estamos mais naquele tempo em que quem falava eram somente a
Lei e os Profetas. Esses falaram até João. Agora fala a Palavra de Deus, e
ela não esconde nem um i de tudo o que é preciso saber-se para essa
conquista. Se credes em Mim, deveis ver João como Elias que há de vir[61].
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça. Mas, ao que é que Eu irei comparar
esta geração? É semelhante àquela de que falam os meninos que, sentados
na praça, gritam aos seus companheiros: “Nós tocamos música, e vós não
dançastes, entoamos lamentações, e não chorastes.” Com efeito, veio João,
que não come e não bebe, e esta geração diz “Ele pode fazer assim, porque
está com o demônio, que o ajuda.” Veio o Filho do homem, que come e
bebe, e dizem “Aí está um comilão e um beberrão, amigo dos publicanos e
dos pecadores.” Assim é que à Sabedoria se faz justiça pelos seus filhos!
266.13Em verdade, Eu vos digo que só os pequeninos é que sabem reconhecer
a verdade, porque neles não há malícia.
– Disseste bem, Mestre –diz o sinagogo–. Eis aí porque a minha filha,
ainda sem malícia, Te vê, como nós não conseguimos ver-Te. Contudo, esta
cidade e as cidades vizinhas estão transbordando, cheias da tua doutrina, da
tua sabedoria e bondade, e, devo confessá-lo, só sabem proceder com
maldade para contigo. Elas não se arrependem. E o bem que Tu lhes dás,
fermenta em ódio contra Ti.
– Que estás dizendo, Jairo? Tu nos estás caluniando! Nós aqui estamos,
porque somos fiéis ao Cristo –diz um de Betsaida.
– Sim. Nós. Mas, quantos somos nós? Somos menos de cem pessoas e
de três cidades, que deveriam estar aos pés de Jesus. Entre os que estão
faltando, e eu falo somente dos homens, a metade é inimiga, uma quarta
parte é indiferente, e os outros eu quero supor que não tenham podido vir.
Não é isso culpa aos olhos de Deus? E deixarão de ser punidos todo esse
ódio e essa teimosia no mal? Fala Tu, Mestre, que sabes e que, se te calas, é
pela tua bondade, e não porque não o saibas. Tu és magnânimo, e isso é por
eles tomado como ignorância e fraqueza. Fala, pois, e que a tua fala possa
sacudir pelo menos os indiferentes, já que os malvados não se convertem,
mas se tornam cada vez piores.
– Sim. Isso é uma culpa, e será punida. Porque o dom de Deus não é
nunca para ser desprezado, nem usado para fazer o mal. Ai de ti,
Corozaim, ai de ti, Betsaida, que fazeis mau uso dos dons de Deus. Se em
Tiro, ou em Sidon tivessem acontecido os milagres que aconteceram no
meio de vós, há muito tempo, vestidos de cilícios e cobertos de cinza, já
teriam feito penitência, e teriam vindo a Mim. E por isso, Eu vos digo que
para com Tiro e Sidon será usada maior clemência do que para convosco,
no dia do Juízo. E tu, Cafarnaum, crês que, só por me teres hospedado,
serás exaltada até o céu? Tu descerás até o inferno. Porque se em Sodoma
tivessem sido feitos os milagres que Eu te dei, aquela cidade estaria ainda
florescente, porque teria crido em Mim, e se teria convertido. Por isso será
usada maior clemência para com Sodoma no Juízo Final, porque ela não
conheceu o Salvador, nem sua palavra, e por isso é menor a sua culpa, mas
não será usada para contigo, que conheceste o Messias e ouviste a palavra
dele, mas não te converteste. Contudo, visto que Deus é justo, para com os
habitantes de Cafarnaum e de Betsaida que santificaram, obedecendo à
minha palavra, será usada uma grande misericórdia. Porque não é justo que
os justos sejam envolvidos na ruína junto com os pecadores. 266.14 E, quanto
à tua filha, Jairo, e quanto à tua, Simão, e quanto ao teu menino, Zacarias, e
aos teus netos, Benjamim, Eu vos digo que eles, sendo sem malícia, já estão
vendo a Deus. E vós estais vendo como a fé deles é pura, e como é ativa
neles, unida a uma sabedoria celeste e a anseios de caridade, que os adultos
não sentem.
E Jesus, levantando os olhos para o céu, que já vai ficando escuro com
o chegar da tarde, exclama:
– Eu te agradeço, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste
estas coisas aos sábios e doutos, e as revelaste aos pequenos. Assim seja, ó
Pai, porque assim te aprouve. Tudo foi confiado a Mim pelo meu Pai, e
ninguém o conhece, a não ser o Filho, e aqueles a quem o Filho tiver
querido revelar. E Eu o revelei aos pequenos, aos humildes, aos puros,
porque a esses Deus se comunica, e a verdade desce, como uma semente,
sobre os terrenos limpos, e sobre ela o Pai faz chover as suas luzes, para que
ela lance raízes, e se torne uma planta. E até, em verdade, o Pai prepara
estes espíritos dos pequeninos, em seus desejos, a fim de que eles conheçam
a Verdade, e Eu sinta a alegria pela fé que eles têm.
[58] frase, que na vulgata era a secunda parte (inexplicavelmente inexiste na neo-vulgata) do pequeno verso de Provérbios 15, 5.
[59] palavras, que estão em Isaías 40,4.
[60] está escrito, em Malaquias 3,1.
[61] come Elias que há de vir, como é dito em Malaquias 3,23. João Batista é comparado a Elias também em 81.5 (“Ele é, por
missão, equiparado a Elias…”) e em nota em 349.8.
267. Jesus carpinteiro em Corozaim.
31 de agosto de 1945.
267.1Jesus está trabalhando com prazer em uma oficina de carpinteiro.
Está terminando de fazer uma roda. Um menino magrinho e triste o está
ajudando, levando-lhe madeira ou outras coisas. Manaém, como uma
testemunha inútil, mas admirador, está sentado em um grande banco, junto
à parede.
Jesus tirou sua bela veste de linho, e vestiu outra escura e que, por não
ser a dele, chega-lhe apenas até a metade das canelas. É uma roupa de
trabalho, limpa, mas remendada, provavelmente do carpinteiro falecido.
Jesus encoraja, com sorrisos e boas palavras, o menino, ensinando-lhe
como se há de fazer para que a cola chegue ao ponto certo, a fim de que
possam ficar bem polidas as paredes do cofre.
– Levaste pouco tempo para terminá-lo, Mestre –diz Manaém,
levantando-se, e indo passar o dedo nas molduras do cofre já acabado e que
o menino já está lustrando com um verniz.
– Estava já quase acabado!
– Eu gostaria de possuir este teu trabalho. Mas já chegou o comprador, e
acho que os direitos são dele. Ele já esperava levá-lo para compensar o
pouco dinheiro que havia emprestado. Tu o contrariaste. Pois não é como
ele pensa. Que ele apanhe os seus objetos, e basta. Se ele fosse pelo menos
algum dos que creem em Ti… Aquelas coisas teriam para ele um valor
incalculável. Ouviste?
– Deixa-o fazer. 267.2Afinal, aqui há madeira, e a mulher ficará bem feliz,
se puder usá-la, para tirar dela algum lucro. Faze-me a encomenda de um
cofre que Eu te farei…
– Deveras, Mestre? Mas pensas em continuar a trabalhar?
– Enquanto houver madeira. Eu sou um operário consciencioso –diz,
sorrindo abertamente.
– Um cofre feito por Ti! Oh! Que relíquia. Mas que é que colocarei
dentro?
– Tudo o que quiseres. Não será mais que um cofre.
– Mas, se Tu o fizeste?!
– E, então? Também o Pai fez o homem, Ele fez todos os homens. E, no
entanto, que é que Ele pôs no homem e que é que os homens aí põem?
E Jesus vai falando e trabalhando, andando para cá e para lá, à procura
das ferramentas necessárias, apertando os tornos, perfurando, acepilhando e
torneando, conforme o caso.
– Nós colocamos aí o pecado. É verdade.
– Tu o estás vendo! E crês que o homem criado por Deus é muito mais
do que um cofre feito por Mim. Não confundas nunca o objeto com a ação.
De um trabalho meu, fazeis apenas uma relíquia para vosso espírito.
– Que queres dizer?
– Quero dizer dá ao teu espírito o ensinamento tirado do que Eu faço.
– A tua caridade, a tua humildade, a tua operosidade, então…Todas
estas virtudes, não é mesmo?
– Sim. E procura tu estas mesmas coisas para o futuro.
– Sim, Mestre. Mas, fazes para mim um cofre?
– Eu te farei. Mas, olha que, visto que tu o consideras sempre como
uma relíquia, Eu farei que o pagues como tal. Assim se poderá dizer que,
pelo menos uma vez também Eu fui cobiçoso de dinheiro… para os
orfãozinhos…
– Cobra-me o que quiseres. Eu te pagarei. Pelo menos ficará justificado
o meu ócio, enquanto Tu trabalhas.
267.3– Está escrito: “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto.”
– Mas isso foi dito ao homem culpado. Não a Ti.
– Ah! Um dia Eu vou ser o Culpado, e terei sobre Mim todos os
pecados do mundo. Eu os levarei embora comigo, na minha primeira
partida.
– E achas que o mundo não pecará mais?
– Deveria não pecar. Mas pecará sempre. Por isso é que o peso que Eu
terei sobre Mim será tão grande, que fará despedaçar-se o meu coração.
Porque sobre Mim Eu terei os pecados cometidos desde Adão até aquela
hora e os outros a partir daquela hora, até o fim dos séculos. Tudo Eu
expiarei em lugar do homem.
– E o homem não Te entenderá, a ainda não Te amará… Achas que
Corozaim vá se converter com esta lição silenciosa e santa, que lhe estás
dando com o teu trabalho, feito para socorrer uma família?
– Ela não o fará. Mas até dirá: “Ele preferiu trabalhar para passar o
tempo e para ter dinheiro.” Ora, Eu não tinha mais dinheiro. Eu o havia
dado todo. Eu dou sempre tudo o que tenho, até o último ceitil, e trabalhei
para poder dar dinheiro.
– E para a comida para Ti e Mateus?
– Deus a teria provido.
– Mas a nós Tu deste de comer.
– Sim.
– Como foi que fizeste?
– Pergunta-o ao dono da casa.
– Eu vou fazer-lhe, com certeza esta pergunta, logo que voltarmos a
Cafarnaum.
Jesus se ri com bondade, por entre a sua barba loura.
267.4Faz-se um silêncio em que há só o rumor do ranger do torno
apertado ao redor dos pedaços de roda.
Depois, Manaém lhe pergunta:
– Que pensas fazer antes do sábado?
– Ir a Cafarnaum, para lá esperar os apóstolos. Foi combinado que nos
unamos toda sexta-feira à tarde, e que fiquemos juntos durante todo o
sábado. Depois darei as ordens, e, se Mateus ficar são, serão seis os pares,
que irão evangelizar. Se não… Queres tu ir com eles?
– Eu prefiro ficar contigo, Mestre… Será que me deixas dar-te um
conselho?
– Dize-o. Se ele for justo, Eu o aceitarei.
– Não fiques nunca completamente sozinho. Tu tens muitos inimigos,
Mestre.
– Eu sei. Mas tu achas que os apóstolos fariam muita coisa em caso de
perigo?
– Eles te amam, acho eu.
– Certamente. Mas não adiantaria. Os inimigos, se tiverem a ideia de
capturar-me, viriam com forças muito mais fortes daquelas dos apóstolos.
– Não importa. Não fiques sozinho.
– Dentro de duas semanas, terão vindo a Mim muitos discípulos. Eu os
estou preparando para enviá-los também para a evangelização. Já não
estarei sozinho. Fica tranquilo.
Enquanto eles assim estão falando, muitos curiosos de Corozaim se
aproximam para dar uma olhadela, e depois se afastam, sem dizerem nada.
– Eles estão espantados, por te verem trabalhando.
– Sim. Eles não sabem ser humildes, até o ponto de dizerem: “É assim
que Ele nos ensina.” Os melhores que Eu tinha aqui estão com os meus
discípulos, menos um velho, que já morreu. Mas não importa. Uma lição é
sempre uma lição.
– Que dirão os apóstolos, ao saberem que estás trabalhando de
operário?
– São onze, porque Mateus já disse o que pensa. Serão, então, onze
pareceres diferentes. E, na maior parte, contrários ao que faço. Mas isso já
me servirá para ensiná-los.
– Deixas-me assistir à lição?
– Se tu quiseres ficar…
– Mas, eu sou um discípulo, e eles são apóstolos!
– Tudo o que fizer bem aos apóstolos o fará também ao discípulo.
– Eles se sentirão mal, por serem corrigidos na minha presença.
– Vai ser bom, para que se tornem humildes. Fica, fica, Manaém. Eu te
conservo com prazer junto a Mim.
– E eu com prazer vou ficar.
267.5Aparece a viúva e diz:
– A comida está pronta, Mestre. Mas Tu trabalhas demais…
– Estou ganhando o meu pão, mulher. E depois… aqui está mais um
cliente. Ele também quer um cofre. E paga bem. Teu depósito de madeira
vai ficar vazio, diz Jesus, tirando um avental rasgado, que ele trazia na
frente, e encaminhando-se para fora do quarto para ir lavar-se em uma bacia
que a mulher levou até à horta.
E ela, com um daqueles sorrisos incertos, que se fazem ver depois de
muito tempo de pranto, diz:
– Fica vazio o depósito de madeira, mas a casa fica cheia da tua
presença, e o coração, de paz. Já não tenho mais medo do amanhã, Mestre.
E Tu não tenhas mais medo de que nós nos esqueçamos de Ti.
Entram na cozinha, e tudo termina.
268. Lição sobre a caridade com a parábola
das nozes. O jugo de Jesus é leve.
1 de setembro de 1945.
268.1Jesus, tendo Manaém a seu lado, sai da casa da viúva, dizendo:
– A paz esteja contigo e com os teus. Depois do sábado, nos
reencontraremos. Adeus, pequeno José. Amanhã, vai descansar e brincar,
para depois me ajudares de novo. Por que estás chorando?
– Estou com medo de que não voltes mais…
– Eu digo sempre a verdade. Mas, será que te desagrada tanto que Eu
me vá embora?
O menino faz sinal que sim.
Jesus o acaricia, e diz:
– Um dia passa depressa. Amanhã tu estás com a mamãe e os irmãos. E
Eu estou com os meus apóstolos, e falando com eles. Nestes dias passados,
Eu falei a ti para ensinar-te a trabalhar, e agora Eu vou a eles para ensiná-
los a pregar e a serem bons. Tu, um menino, no meio de tantos homens, não
irias brincar comigo.
– Oh! Eu me divertiria, porque estaria contigo.
– Eu já entendi, mulher. O teu filho faz como muitos, e que são os
melhores. Ele não quer me deixar. Tu o confias a Mim, deixando-o comigo
até depois de amanhã?
– Oh! Senhor! Eu tos daria até todos! Contigo eles estão seguros como
no Céu… E este menino, que era o que estava mais com o pai do que os
outros, tem sofrido demais. Agora, ele tornou a encontrá-lo… Estás
vendo?… Outra coisa ele não faz, senão chorar e ir-se enfraquecendo. Não
chores, meu filho. Pergunta ao Senhor se não é verdade o que eu estou
dizendo. Mestre, eu, para consolá-lo, sempre lhe tenho dito que ele não
perdeu o pai, mas que ele somente foi para longe de nós, por algum tempo.
– E é verdade. É assim mesmo como diz tua mãe, pequeno José.
– Mas, enquanto eu não morrer, não tornarei a encontrá-lo. E eu ainda
estou pequeno. E, se eu ficar velho como Isaque, quanto tempo terei que
esperar?
– Pobre menino! Mas o tempo passa logo!
– Não, Senhor. Há três semanas que eu estou sem o pai, e me parece
muito, muito tempo!… Sem ele, para mim nada tem importância… –e
chora, sem fazer barulho, mas com muito sentimento.
– Estás vendo? Ele fica sempre assim. Especialmente quando não está
ocupado em coisas que lhe prendam a atenção. Aos sábados, é um
tormento. Eu fico com medo de que ele morra…
– Não. Eu tenho um outro menino sem pai e sem mãe. Ele era magrinho
e triste. Agora está com uma boa mulher de Betsaida e, com a certeza de
não estar separado de seus pais, ele floresceu na carne e no espírito. Assim
acontecerá com o teu. Pois, pelo que Eu vou dizer a ele, e porque o tempo é
um grande médico, e também porque, quando ele te vir mais tranquila por
causa do pão de cada dia, ele também ficará mais tranquilo. 268.2 Adeus,
mulher. O sol está quente, e Eu preciso ir. Vem, José. Saúda a mamãe, os
irmãozinhos e a vovó, e depois procura alcançar-me, correndo.
E Jesus se vai.
– E agora, que dirás aos apóstolos?
– Direi que tenho um discípulo velho e um novo.
Vão caminhando através de Corozaim, que está fervilhando de gente
nas ruas.
Um grupo de homens faz Jesus parar:
– Vais indo para a frente? Não paras no sábado?
– Não. Eu vou a Cafarnaum.
– Mas sem dizeres nem uma palavra, durante toda a semana. Não somos
dignos da tua palavra?
– Eu não vos dei, durante seis dias, a melhor palavra?
– Quando? E a quem?
– A todos. Falando do banco de carpinteiro. Por alguns dias Eu preguei
que o próximo é amado e ajudado de diversos modos, especialmente
quando se trata dos fracos, como são as viúvas e os órfãos. Adeus, vós de
Corozaim. Meditai, durante o sábado, nesta minha lição.
E Jesus se encaminha de novo para onde ia, deixando boquiabertos os
cidadãos.
Mas o menino, que o alcança na corrida, faz que esses cidadãos
despertem em sua curiosidade, e digam de novo a Jesus, que eles tornaram a
parar:
– Vais levando embora o filho homem da viúva? Para quê?
– Para ensiná-lo a crer que Deus é Pai, e que em Deus ele encontrará o
pai que ele perdeu. E também para que haja alguém que creia aqui, no lugar
do velho Isaque.
– Com os teus discípulos, há três de Corozaim.
– Com os meus. Não aqui. Este irá ficar aqui. Adeus.
E, segurando o menino no meio, entre Ele e Manaém, vai indo
depressa, através da campina, rumo a Cafarnaum, e conversando com
Manaém.
268.3Chegam a Cafarnaum, quando os outros apóstolos já tinham chegado.
Sentados no terraço, à sombra de um suporte, ao redor de Mateus, estão
contando o que fizeram a seu companheiro, que ainda não está são. Viram-
se, ao leve barulho de umas sandálias na escadinha, e veem a cabeça loura
de Jesus, que vai aparecendo aos poucos, por sobre o pequeno muro do
terraço. Correm a Ele, que está sorrindo… e ficam espantados por verem
que, atrás de Jesus, está um pobre menino. A presença de Manaém, que vai
subindo todo pomposo, vestido com sua veste de linho alvo, e tornada ainda
mais bela pela cinta preciosa, pelo manto de um vermelho chama, de linho
tingido e tão brilhante que parece seda, levemente apoiado sobre seus
ombros, a fazer-lhe como uma cauda atrás dos ombros, e pelo turbante de
bisso, preso por um leve diadema de ouro, uma lamina burilada, que lhe
parte ao meio a fronte espaçosa, dando-lhe quase um ar de rei egípcio, e
está com uma avalanche de perguntas, que seus olhos estão mostrando que
são bem claras. Mas, depois das saudações recíprocas, sentados junto a
Jesus, os apóstolos lhe perguntam: “E este?” –mostrando-lhe o menino.
– Este é a minha última conquista. Um pequenino José, carpinteiro
como o grande José, que foi meu pai. Por isso, ele me é muito querido,
como querido eu sou para ele. Não é verdade, menino? Vem cá, que Eu vou
fazer-te conhecer estes meus amigos, dos quais tanto já tens ouvido falar.
Este é Simão Pedro, o homem bom para com os meninos, como nenhum
outro. E este é João: um menino grande, que te falará de Deus, até quando
está brincando. Este é Tiago, irmão dele, sério e bom como um irmão mais
velho. E este é André, irmão de Simão Pedro: tu ficarás logo de acordo com
ele, porque é manso como um cordeiro. Depois, aqui está Simão, o Zelotes.
Ele gosta tanto dos meninos que não têm pai, que Eu acho que seria capaz
de andar ao redor de toda a terra, se não estivesse comigo, só para ir atrás
deles. Depois, aqui está Judas de Simão, e com ele Filipe de Betsaida e
Natanael. Estás vendo como estão olhando para ti? Eles gostam de tudo o
que eu gosto, e por isso gostarão de ti. Agora vamos a Mateus, que está
sofrendo com o seu pé, mas que, no entanto, não tem raiva daqueles
meninos que, brincando estouvadamente, o feriram com uma pedra
cortante. Não é assim, Mateus?
– Oh! não, Mestre. É o filho da viúva?
– Sim. É muito inteligente, mas agora ficou assim, muito triste.
– Oh! Pobre menino! Eu vou mandar chamar o Tiaguinho, e irás brincar
com ele –e Mateus o acaricia, puxando-o com uma mão para perto de si.
Jesus termina a apresentação por Tomé, que acha oportuno completá-la,
oferecendo ao menino um cacho de uvas apanhado no suporte.
– Agora sois amigos –conclui Jesus, que vai sentar-se de novo,
enquanto o menino chupa as uvas, e vai respondendo a Mateus, que o
conserva perto de si.
268.4– Mas, onde estiveste durante a semana toda?
– Em Corozaim, Simão de Jonas.
– Isto eu sei. Mas, que é que estiveste fazendo? Estiveste em casa de
Isaque?
– Isaque, o Adulto, morreu.
– E, então?
– Mateus não te disse?
– Não. Ele somente me disse que estavas em Corozaim, no dia depois
da nossa partida.
– Mateus é mais inteligente do que tu. Ele sabe calar-se. E tu não sabes
refrear a tua curiosidade.
– Não a minha. Mas a de todos.
– Pois bem. Eu fui a Corozaim para pregar a caridade por meio de
obras.
– A caridade por obras? Que é que queres dizer? –perguntam muitos.
– Em Corozaim há uma viúva com cinco meninos e uma velha doente.
O marido dela morreu de repente, no banco de trabalho, deixando atrás de si
a miséria e muitos trabalhos por acabar. Corozaim não foi capaz de achar
uma migalha de piedade para com esta família infeliz. E Eu fui até lá para
terminar os trabalhos e…
Aí começou uma gritaria. Uns perguntam, outros protestam, alguns
censuram Mateus por havê-lo permitido, uns ficam admirados, outros
criticam. E, infelizmente, os que protestam ou criticam são a maioria.
Jesus deixa que a tempestade se acalme, do mesmo modo como se
formou e, como resposta, diz somente isto:
– E Eu voltarei para lá depois de amanhã. E assim vou fazer, até
terminar os trabalhos. E fico esperando que pelo menos vós o
compreendais. 268.5Corozaim é como uma noz, fechada e sem semente. Pelo
menos vós, sede nozes com sementes. Tu menino, dá-me cá a noz que
Simão te deu, e escuta-me, tu também.
Estais vendo esta noz? E Eu pego esta, porque não tenho aqui qualquer
outro caroço de fruta, ao alcance das mãos. Mas, para compreenderdes a
parábola, pensai nas nozes dos pinheiros ou das palmeiras, pensai nas mais
duras, nas das azeitonas, por exemplo. Elas são uns estojos fechados, sem
fendas, muito duros e de uma madeira compacta. Parecem uns escrínios
mágicos, que só podem ser abertos, usando muita força. Pois bem. Se um
deles for lançado à terra, ou apenas por cima da terra, e algum passante o
afundar, pisando em cima dele e fazendo-o penetrar o tanto quanto baste
para que ele se acomode na terra, que acontece? Acontece que o escrínio se
abre, e lança raízes e folhas. Como é que isso acontece por si mesmo? Nós
temos que bater muito com o martelo na noz, para conseguirmos abri-la, e,
no entanto, sem que nela batamos, a noz se abre por si mesma. Será talvez
uma semente mágica? Não. É que ela tem dentro de si uma polpa. Oh! Uma
coisa muito fraca, em comparação com o caroço duro! E, apesar disso, ela
tem que alimentar uma outra coisa ainda menor, que é o germe. E este é que
é a alavanca, que faz força e abre e produz uma planta com raízes e copa.
Experimentai enterrar umas nozes, e ficai esperando. Vereis que umas
nascem, outras não. Tirai aquelas que não nasceram. Abri-as com o martelo,
e vereis que são sementes chochas. Portanto, não é só a umidade da terra,
nem o calor, que fazem que a noz se abra. Mas é a polpa, ou melhor, a alma
da polpa: é o germe que, inchando, funciona como uma alavanca, e a abre.
268.6Esta é a parábola. Vamos aplicá-la a vós.
Que foi que Eu fiz, que não ficasse feito? Por enquanto, teremos
entendido tão pouco, que ainda não compreendemos que a hipocrisia é um
pecado, e que a palavra é apenas um vento, se ela não for confirmada pelas
obras, pela ação? Que é que Eu vos tenho sempre dito? “Amai-vos uns aos
outros. O amor é o segredo e o preceito da glória.” E Eu, que o prego,
deveria ser Eu sem caridade? Deveria Eu dar-vos o exemplo de um Mestre
mentiroso? Não. Nunca!
Oh! Meus amigos. O nosso corpo é a noz dura. Na noz dura está
encerrada a polpa: e a alma, e nela está o germe, que Eu nela coloquei. Ele é
formado por muitos elementos. Mas o principal é a caridade. Ela é que
serve de alavanca, para abrir a noz, e livrar o espírito das constrições da
matéria, unindo-a de novo a Deus, que é Caridade.
A Caridade não se pratica só com palavras ou com dinheiro. Caridade
só se faz com caridade. E que isso não vos pareça um jogo de palavras. Eu
não tinha dinheiro, e para este caso só palavras não bastavam. Neste caso
havia sete pessoas nas soleiras da fome e da angústia. O desespero vinha
avançando, com suas garras pretas, para arrebatar e sufocar. O mundo se
retirava, duro e egoísta, diante daquela desventura. O mundo mostrava não
ter compreendido o mestre nas palavras que Ele disse. O Mestre
evangelizou por meio de suas obras. Eu tinha capacidade e liberdade para
fazê-lo. Eu tinha o dever de amar, por todo o mundo, àqueles infelizes que o
mundo desama. E Eu fiz tudo isso.
Podereis criticar-me ainda? Ou deverei Eu criticar-vos na presença de
um discípulo que não ficou com vergonha, por ter que expor sua pessoa ao
trabalho com o serrote e apanhar das aparas para não abandonar o Mestre, e
que — estou convicto disso terá ficado mais persuadido do que Eu, ao ver-
me inclinado sobre a madeira, mais do que teria ficado se me visse sentado
no trono, e de um menino que percebeu em Mim o que deveras Eu sou,
apesar de sua ignorância, da desventura que o torna rude, e da sua absoluta
virgindade de conhecimento do Messias, como Ele é na realidade?— ou
deverei ser Eu que devo criticar-vos? Não dizeis nada? Vós não quereis
humilhar-vos, a não ser quando Eu levanto a voz para corrigir ideias
erradas. É por amor que assim faço. Mas, ponde em vós o germe que
santifica, e que abre a noz. Se não, sereis sempre uns seres inúteis.
O que Eu fiz, vós deveis estar prontos a fazer. Por amor ao próximo,
para levar até Deus uma alma, nenhum trabalho vos deve ser pesado. O
trabalho, seja ele qual for, nunca é humilhante. Ao passo que humilhantes
são as ações baixas, as falsidades, as denúncias mentirosas, as durezas, os
abusos, as agiotagens, as calunias, as luxúrias. Estas humilham o homem. E
estas coisas se praticam, mesmo por aqueles que querem dizer-se perfeitos e
que certamente ficaram escandalizados por me verem trabalhar com o
serrote e com o martelo.
Oh! Oh! O martelo! O indigno martelo, mas que, se for usado para
fincar pregos em uma madeira, para se fazer uma coisa que possa dar
comida a uns órfãos, então, ele se tornará uma ferramenta nobre! O martelo,
ainda que não seja nobre, se for posto em minhas mãos, e para um fim
santo, já não aparecerá mais o que era, e como desejarão ter um todos os
que gostariam agora de gritar que estão escandalizados por causa dele! Oh!
homem, tu que deverias ser luz e verdade, como tu és treva e mentira!
Mas vós, pelo menos vós, compreendei o que é o Bem! O que é a
Caridade. O que é a Obediência. Em verdade, Eu vos digo que os fariseus
são muitos. E que eles não estão ausentes entre estes que me rodeiam.
– Não, Mestre. Não digas isso! Nós… é porque Te amamos que não
queremos certas coisas!
– É porque não entendestes nada ainda. 268.7Eu vos falei da Fé[62] e da
Esperança, e pensava que não fosse preciso falar-vos de novo sobre a
Caridade, porque Eu tanto a exalo, que dela deveríeis estar já saturados.
Mas estou vendo que vós a conheceis só de nome, sem saberdes qual é a
natureza e a forma dela. Tendes dela um conhecimento como o que tendes
da Lua. Estais lembrados de quando Eu vos disse que a Esperança é como o
braço atravessado do doce jugo, que regula a Fé e a caridade, que é o
patíbulo da humanidade, e o termo da salvação? Sim? Mas não
compreendestes as minhas palavras, qual o significado delas. E, por que não
me pedistes explicação delas? Pois Eu vos vou dá-las. É um jugo, porque
obriga o homem a conservar baixa a sua soberba estulta, sob o peso das
verdades eternas. E é um patíbulo para esta vossa soberba. O homem, que
espera em Deus, seu Senhor, necessariamente humilha o seu orgulho, que
gostaria de proclamar-se “deus”, mas reconhece que ele não é nada, e que
Deus é tudo, que ele nada pode e que Deus pode tudo, que ele, homem, é
um pó que passa, e que Deus é eternidade, que eleva o pó a um grau
superior, dando-lhe um prêmio de eternidade. O homem se prega em sua
cruz santa, para chegar à Vida. E aí o fixam as chamas da Fé, da Caridade,
mas é a Esperança que o levanta até o Céu, pois ela está entre as outras
duas. Mas guardai bem esta lição: se faltar a Caridade, o trono fica sem luz,
e o corpo, despregado de um lado, inclina-se para a lama, por não ver mais
o Céu. Ele anula assim os efeitos salutares da Esperança, e acaba tornando
estéril até a Fé, porque, afastados de duas das três virtudes teologais, caem
num enfraquecimento e enregelamento mortal.
Não recuseis a Deus, nem nas coisas muito pequenas. E já é recusar-se
a Deus deixar de prestar ajuda ao próximo, por um orgulho pagão.
268.8A minha doutrina é um jugo que dobra a humanidade culpada e é
um malho que rompe a casca dura para libertar o espírito. É um jugo e um
malho, sim. Mas também quem a aceita não sente o cansaço que produzem
as outras doutrinas humanas, e todas as outras coisas humanas, mas também
quem se deixa ferir por elas não sente a dor de ser esmagado no seu eu
humano, mas experimenta uma sensação de libertação. Por que é que
procurais livrar-vos dela, para substituí-la por tudo o que é pesado e
doloroso?
Vós todos tendes as vossas dores e as vossas canseiras. Toda a
humanidade tem dores e canseiras, às vezes até acima das forças humanas.
Desde o menino, como este, que já traz em seus pequenos ombros um
grande peso, que o faz encurvar-se, e que afasta o sorriso infantil dos seus
lábios, e a despreocupação de sua mente, que sempre, humanamente
falando, não terá por isso nunca sido de um menino, até o velho que se
inclina já para a tumba, com todos os seus desenganos e canseiras, com o
peso e as feridas de sua longa vida. Mas na minha Doutrina e na minha Fé
está o alívio para estes pesos opressores. Por isso, é chamada a “Boa Nova.”
E quem a aceita e a obedece, será feliz desde esta terra, porque terá Deus
para seu alívio, e as virtudes para lhe tornarem fácil e luminoso o caminho,
como se elas fossem boas irmãs que, segurando-o pela mão, com suas
lâmpadas acesas, lhe alumiarão o caminho e a vida, e lhe cantam as
promessas eternas de Deus, até quando, depois que seu corpo tiver se
inclinado em paz, já cansado nesta terra, e despertar-se no Paraíso.
Por que quereis, ó homens, ficar afadigados, desolados, cansados,
desgostosos, desesperados, quando podeis ser aliviados e confortados?
Porque vós também, meus apóstolos, quereis sentir os cansaços da missão,
as suas dificuldades, a sua severidade, enquanto que, se tiverdes a confiança
de um menino, podereis ter somente uma risonha tarefa, uma luminosa
facilidade para cumpri-la, e compreender e sentir que ela é severa, somente
para com os impenitentes, que não conhecem a Deus, mas que para os seus
fiéis é como uma mãe, que segura a mão do menino pelo caminho,
mostrando aos passos incertos do pequenino onde é que estão as pedras, os
espinheiros, os ninhos das serpentes e os buracos, para que ele os fique
conhecendo, e não corra perigos?
268.9Vós agora estais decepcionados. A vossa decepção teve um começo
bem miserável! Vós estais decepcionados, primeiro, pela minha humildade,
como se tivesse sido um delito contra Mim mesmo. E agora estais
decepcionados, porque compreendestes que Me entristecestes, e que ainda
estais tão longe da perfeição. Mas em alguns poucos esta segunda decepção
é sem soberba. Sem aquela soberba que se sente pela verificação de que
ainda nada são, visto que, pelo orgulho, já vos julgaríeis perfeitos. Tende
somente a humildade cheia da boa vontade de aceitar a censura e de
confessar que errastes, prometendo em vossos corações querer a perfeição,
mas para um fim sobre-humano. E, depois disso, vinde a Mim. Eu vos
corrijo, mas vos compreendo e me compadeço de vós.
Vinde a Mim, vós apóstolos, e vinde a Mim, vós todos, ó homens que
sofreis por dores materiais, por dores morais, por dores espirituais. Estas
últimas, produzidas pela dor de não saberdes santificar-vos como quereríeis
por amor a Deus e com solicitude, e sem voltardes ao Mal. O caminho da
santificação é longo e misterioso, e às vezes por ele se anda, sem que o
caminhante saiba que vai indo pelas trevas, com o sabor de um tóxico na
boca, e achando que não está indo para a frente, e que não está bebendo
nenhum líquido celeste. Ele não sabe também que essa cegueira espiritual é
um dos elementos da perfeição.
Felizes aqueles, três vezes felizes, os que continuam a andar, sem
poderem gozar da luz e de doçuras, e não param porque nada estão vendo,
nem ouvindo, e não ficam parados, dizendo “Enquanto Deus não me der
delícias, eu não vou para a frente.” Eu vo-lo digo: a estrada mais escura se
tornará mais clara, de repente, abrindo-se para paisagens celestes. O tóxico,
depois de ter tirado todos os gostos pelas coisas humanas, se transformará
em doçura do Paraíso para estes corajosos, que dirão, espantados “Como foi
isso? Como é que eu estou sentindo tanta doçura e alegria?” Porque eles
terão perseverado, e Deus os fará exultar, desde esta terra, com as coisas do
Céu.
Mas, enquanto isso, para resistirdes, vinde a Mim, vós todos que estais
afadigados e cansados, vós, apóstolos, e convosco todos os homens que
procuram a Deus, que choram por causa da dor desta terra, que se
extenuam, lutando sozinhos, e Eu vos restaurarei. Tomai sobre vós o meu
jugo. Ele não é um peso, é um apoio. Abraçai a minha Doutrina, como se
fosse uma esposa amada. Imitai o vosso Mestre, que não se limita a falar
bem dela, mas faz o que ensina. Aprendei de Mim, que sou manso e
humilde de coração. Encontrareis o repouso para as vossas almas, porque
mansidão e humildade vos dão o reino nesta terra e nos Céus. Eu já vo-lo
disse que os verdadeiros triunfadores entre os homens são os que os
conquistam pelo amor, pois o amor é sempre manso e humilde. Eu não vos
mandaria nunca fazer coisas superiores às vossas forças, porque Eu vos
amo e vos quero comigo no meu Reino. Tomai, pois, a minha insígnia e o
meu tribunal e esforçai-vos para serdes semelhantes a Mim, e tais quais a
minha Doutrina ensina. Não tenhais medo, porque o meu jugo é suave e o
meu peso é leve, enquanto que infinitamente poderosa é a glória de que
gozareis, se me fordes fiéis. Infinita e eterna…
268.10Vou deixar-vos por algum tempo. Vou com o menino para o lado do
lago. Ele encontrará amigos… Depois, partiremos juntos o pão. Vem, José.
Eu vou fazer-te conhecer os pequenos que me amam.
[62] falei da Fé, em 252.7/10; e da Esperança, em 256.6/7.
269. A disputa com escribas e fariseus em
Cafarnaum.
A chegada da Mãe e dos irmãos.
2 de setembro de 1945.
269.1É a mesma cena da visão anterior. Jesus se despede da viúva, mas
segurando já pela mão o pequeno José, e dizendo à mulher:
– Não virá ninguém antes da minha volta, a não ser que seja um pagão.
Mas, seja quem for que vier, entretenha-o até depois de amanhã, dizendo
que Eu virei sem falta.
– Eu lho direi, Mestre. E, se vierem doentes, eu os hospedarei como Tu
me ensinaste.
– Adeus, então, e a paz esteja convosco. Vem, Manaém.
Por esta breve passagem pode-se compreender como os doentes e
infelizes em geral o foram encontrar em Corozaim, e como à evangelização
por meio do trabalho Jesus uniu a que fazia pelo milagre. E, se Corozaim
ficava sempre indiferente, isso era sinal de que o terreno lá era selvagem e
inculto. Contudo, Jesus a vai atravessando, saudando àqueles que o saúdam,
como se não houvesse nada, e depois continua a conversar com Manaém,
que está na dúvida se vai para Maqueronte, ou se fica onde está por mais
uma semana…
269.2… Na casa de Cafarnaum, enquanto isso, estão se preparando para o
sábado. Mateus, que está mancando um pouco, recebe os companheiros,
serve-lhes água e frutas frescas, fazendo-lhes perguntas sobre suas missões.
Pedro franze o nariz, quando uns fariseus estão andando por perto da
casa:
– Estão com vontade de estragar o nosso sábado. Eu fico com vontade
de ir ao Mestre, e dizer-lhe que vá para Betsaida, e assim os deixe
desiludidos.
– E achas que o Mestre iria fazer isso? –pergunta-lhe o seu irmão.
– Além disso, lá naquele quarto baixo um pobre infeliz está esperando –
observa o Mateus.
– Poder-se-ia levá-lo na barca até Betsaida, e eu, ou qualquer outro iria
ao encontro do Mestre†–diz Pedro.
– Uma boa ideia… –diz Filipe que, tendo sua família em Betsaida, para
lá iria com muito gosto.
– Mas é muito mais do que…olhai, olhai! Hoje a guarda está reforçada,
contando com os escribas. Vamos, sem perda de tempo. Vós ireis com o
doente, passai pela horta, e ide por detrás da casa. Eu vou trazer a barca até
o “poço da figueira” e Tiago faz a mesma coisa. Simão, o Zelotes, e os
irmãos de Jesus vão ao encontro do Mestre.
– Eu não vou com o endemoninhado, proclama Iscariotes.
– Por quê? Tens medo de que o demônio te pegue?
– Não me aborreças, Simão de Jonas. Eu disse que não vou, e não vou.
– Vai, então, com os primos ao encontro de Jesus.
– Não.
– Ufa! Vai para a barca.
– Não.
– Mas, afinal, que queres? Estás sempre criando obstáculos…
– Eu quero ficar onde estou: aqui. Não tenho medo de ninguém, e não
vou fugir. Pois garanto que o Mestre não gostaria da ideia que tivestes. E
teríamos que ouvir mais um sermão de censura, e eu não quereria ouvi-lo
por culpa vossa. Ide vós. Eu ficarei aqui, para contar o caso…
– Assim, não! Ou todos, ou ninguém –grita Pedro.
– Então, ninguém, porque o Mestre já está aqui. Ei-lo que vem vindo –
diz sério Zelotes, que estava olhando para a estrada.
Pedro, descontente, está resmungando por entre a barba. Mas ele vai ao
encontro de Jesus com os outros.
269.3Depois das primeiras saudações, falam-lhe de um endemoninhado,
cego e mudo, que, em companhia de seus parentes, está, há muitas horas,
esperando a vinda de Jesus.
Mateus explica:
– Ele está quase inerte. Jogou-se sobre uns sacos vazios, e não se move
mais. Os parentes têm esperança em Ti. Vem tomar alguma coisa, e depois
irás socorrê-lo.
– Não. Eu vou logo a ele. Onde está?
– No quarto baixo, lá perto do forno. Eu o coloquei lá com os seus
parentes, porque por aí estão muitos, e também uns fariseus, que parecem
estar de atalaia…
– É verdade, e seria melhor não lhes darmos esse gosto –cochicha
Pedro.
– Judas de Simão não está? –pergunta Jesus.
– Ele ficou em casa. Ele há de fazer o que os outros não fazem –
cochicha de novo Pedro.
Jesus olha para ele, mas não o censura. Apressa-se em ir para casa,
entregando o menino a Pedro, que o acaricia e puxa logo para fora do cinto
um assobio, dizendo:
– Um para ti, e um para o meu filho. Amanhã de tarde, eu te levarei
para vê-lo. Eles foram feitos para mim por um pastor, ao qual falei de Jesus.
Jesus entra na casa, saúda Judas, que parece estar muito ocupado em
pôr em ordem a louça, e depois sai para a frente, na direção de uma espécie
de dispensa escura, que fica ao lado do forno.
– Fazei que o doente saia –ordena Jesus.
Um fariseu, que não é de Cafarnaum, mas que tem uma carranca mais
feia ainda do que as dos fariseus do lugar, diz:
– Não é um doente. É um endemoninhado.
– É sempre uma doença do espírito…
– Mas ele está com os olhos e a fala tolhidos…
– É sempre uma doença do espírito, que estende a possessão aos
membros e órgãos. Se me tivesses deixado terminar, terias ficado sabendo
que era isso que Eu queria dizer. Até a febre está no sangue, mas do sangue
ela passa a atacar esta ou aquela parte do corpo.
O fariseu não sabe o que responder, e se cala.
269.4O endemoninhado foi levado para a frente de Jesus. Ele está inerte.
Bem assim que falou Mateus. O homem está fortemente impedido pelo
demônio. As pessoas vão-se aglomerando. É incrível como, especialmente
em certas horas, que eu diria horas de divertimento, é que se possa achar
tempo para o povo correr na direção de algum lugar, onde haja alguma
coisa para se ver. Lá se encontram agora os notáveis de Cafarnaum, entre os
quais estão os quatro fariseus. Lá está também Jairo, e, com a desculpa de
estar mantendo a ordem, está um centurião romano e, com ele, cidadãos de
outras cidades.
– Em nome de Deus, deixa as pupilas e a língua deste homem! Eu assim
quero. Livra de ti esta criatura! Não te é mais permitido apoderar-te dela.
Fora! –grita Jesus, estendendo as mãos, enquanto dá a ordem.
O milagre começa por um urro de raiva do demônio e termina por um
urro de alegria do que ficou livre, e que grita:
– Filho de Davi! Filho de Davi! Santo e Rei!
– Como é que este homem pode saber quem o curou? –pergunta um
269.5
escriba.
– Isso é uma grande comédia! Estas pessoas foram pagas para fazerem
isso –diz um fariseu, encolhendo os ombros.
– Mas, que pessoas? Se é permitido vos perguntar –indaga Jairo.
– A tua pessoa é uma delas.
– E com que finalidade?
– Para tornar célebre a cidade de Cafarnaum.
– Não rebaixes a tua inteligência, até o ponto de ficares dizendo
estultices, nem a tua língua, sujando-a com as tuas mentiras. Tu bem sabes
que não é verdade, e deverias compreender que estás dizendo uma
estultícia. O que aconteceu aqui, aconteceu em muitos lugares de Israel.
Será que por toda parte haverá alguém que esteja pagando? Na verdade, eu
não sabia que em Israel o povo fosse tão rico assim! Porque vós, e convosco
todos os grandes, certamente nada estais pagando pelo que aconteceu.
Então, quem paga é o povo, pois somente ele é que ama o Mestre!
– Tu és sinagogo, e o amas. Lá está também Manaém. E em Betânia
está Lázaro de Teófilo. Esses não são o povo.
– Mas, eles são honestos, e eu também. E não enganamos a ninguém,
em nada. E muito menos nas coisas da fé. Nós não o permitimos, pois
tememos a Deus, e chegamos a compreender o que agrada a Deus: a
honestidade.
Os fariseus viram as costas para Jairo, e atacam os parentes do que foi
curado:
– Quem vos mandou vir até aqui?
– Quem foi?! Ora, foram muitos. Os que já foram curados, e os parentes
dos curados.
– Mas, que foi que eles vos deram?
– Que foi que eles nos deram?!
– Pois o que nos deram foi a certeza de que Ele o curaria.
– Mas ele estava doente mesmo?
– Oh! Que mentes traiçoeiras! Achais que ele se tenha fingido em tudo
o que aconteceu? Ide a Gadara, e perguntai, se não acreditais, perguntai pela
desventura da família de Anás de Ismael.
As pessoas de Cafarnaum, desdenhosas, fazem um grande tumulto,
enquanto uns galileus, que chegaram de perto de Nazaré dizem:
– E, no entanto, esse aí é filho de José, o carpinteiro!
Os cidadãos de Cafarnaum, e fiéis a Jesus, bradam:
– Não. Este é o que Ele diz e o que o curado disse: “Filho de Deus e
Filho de Davi.
– Mas, não fiqueis aumentando a exaltação do povo com essas vossas
afirmações! –diz com desprezo um escriba.
– E que é Ele, então, segundo o vosso entender?
– É um Belzebu!
– Oh! Línguas de víboras. Blasfemadores. Vós é que estais possessos!
Vós! Ó cegos de coração! Vós sois a nossa ruína. Até a alegria do Messias
quereis tirar de nós, hein? Agiotas! Pedras áridas!
Que balbúrdia!
Jesus, que se havia retirado para a cozinha, para ir beber um pouco
d’água aparece na soleira a tempo de ouvir mais uma vez a repetida e
estulta acusação dos fariseus:
– Esse aí não é mais do que um Belzebu, pois os demônios lhe
obedecem. O grande Belzebu, que é pai dele, o ajuda, e Ele expulsa os
demônios, não com algum outro meio, mas somente por obra de belzebu, o
príncipe dos demônios.
269.6Jesus desce os dois pequenos degraus da soleira, e anda para a
frente, de busto erguido, severo e calmo, indo parar precisamente na frente
do grupo dos escribas e fariseus, e, fixando os olhos firmemente neles, lhes
diz:
– Até nesta terra nós podemos ver que um reino, dividido em partidos
contrários uns aos outros, se torna um reino fraco em sua constituição
interna e fraco para ser agredido e devastado pelos estados vizinhos que,
então, fazem dele um escravo. Também até nesta terra podemos ver que
uma cidade, dividida em partes contrárias, não sabe mais o que é o bem-
estar, e assim acontece também com uma família, cujos membros estiverem
separados uns dos outros pelo ódio. Essa família se desagrega, torna-se uma
fragmentação inútil, que não serve para ninguém, e que faz até rir aos
concidadãos. A concórdia, além de ser um dever, é uma esperteza. Porque
ela os mantém independentes, fortes e amorosos. Nisto é que deveriam
refletir os patriotas, os cidadãos, os familiares, quando eles, por causa do
capricho e da vantagem de um só, sentem-se tentados a se separarem e a
usarem de violências, que são sempre perigosas, porque são recíprocas
entre os partidos e destruidoras em suas paixões. Pois esta é, com efeito, a
esperteza em que se exercitam os que são os donos do mundo. Observai
como Roma, com seu inegável poder, é para nós tão difícil de suportar. Ela
domina o mundo. Mas é que ela está toda unida em um único modo de
pensar, em uma só vontade: “dominar.” Também, entre eles, com certeza,
haverá contrastes, antipatias, rebeliões. Mas isto está no fundo. Na
superfície, é um bloco só, sem rachaduras, sem perturbações. Todos pensam
a mesma coisa, e chegam ao que desejam, porque querem. E chegarão,
enquanto quiserem a mesma coisa.
Olhai este exemplo humano de esperteza e coesão, e pensai: se estes
filhos do século são assim, como não será satanás? Estes são para nós uns
satanases. Mas a satanicidade pagã não é nada, em comparação com a
satanicidade perfeita de satanás e de seus demônios. Lá, naquele reino
eterno, onde não há século, onde não há fim, onde não há limites para a
astúcia e para a maldade, lá onde a alegria deles é fazer mal a Deus e aos
homens, pois sua respiração é fazer o mal, à sua dolorosa alegria, única,
atroz, com uma perfeição maldita ajuntou-se a fusão dos espíritos unidos
em uma só vontade: a de fazer o mal. Agora se, como quereis afirmar, para
insinuar dúvidas sobre o meu poder, se satanás é quem me ajuda, porque
dizeis que Eu sou um Belzebu menor, não acontece, então, que satanás está
em desacordo consigo mesmo e com os seus demônios, se expulsa estes dos
seus possessos? E, se estiver em desacordo, como é que poderá perdurar o
seu reino? Mas não é assim. Satanás é muito esperto, e não se move. Seu
plano é estender mais, e não reduzir o seu reino sobre os corações. Sua vida
é roubar - prejudicar - mentir - ofender - perturbar. Roubar as almas de
Deus e a paz dos homens. Prejudicar as criaturas do Pai, dando
aborrecimentos a Ele. Mentir para desencaminhar. Ofender para se alegrar.
Perturbar, porque ele é a Desordem. E não pode mudar. É eterno em seu ser
e em seus métodos.
269.7Mas, respondei-me a esta pergunta: se Eu expulso os demônios em
nome de Belzebu, em nome de quem é que os expulsam os vossos filhos?
Quereríeis confessar, então, que eles também são Belzebu? Mas, se vós o
disserdes, eles vos julgarão uns caluniadores. E, se a santidade deles não
reagir à acusação, vós vos estaríeis julgando a vós mesmos, confessando
que credes que há muitos demônios em Israel, e Deus vos julgará em nome
dos filhos de Israel, acusados de serem demônios. Por isso, venha de onde
vier o julgamento, no fundo eles serão os vossos juízes, lá onde o
julgamento não é subornado por pressões humanas.
Se, pois, como é verdade, Eu expulso os demônios pelo Espírito de
Deus, então isso é prova de que está junto de vós o Reino de Deus, e o Rei
desse Reino. E esse Rei tem um poder tal, que nenhuma força contrária ao
seu Reino lhe poderá resistir. Por isso, Eu amarro e obrigo os usurpadores
dos filhos do meu Reino a saírem dos lugares que eles estão ocupando, e a
me restituírem a presa para que dela Eu tome posse. Não é assim que faz
quem quiser entrar em uma casa habitada por um homem forte, para tirar os
bens dele, por bem ou por mal adquiridos que eles sejam? É assim que se
faz. Ele entra e o prende, e o amarra. E depois que assim tiver feito, pode
despojar a casa. Eu amarro o antigo tenebroso, que pegou para si o que é
meu, e lhe tiro o bem que ele me roubou. E somente Eu posso fazer isso,
porque Eu sou o Forte, o Pai do século futuro, o Príncipe da Paz.
269.8– Explica-nos que é que quer dizer, quando falas no “Pai do século
futuro.” Crês tu que estarás vivo até o próximo século, e, mais tolamente
ainda, pensas em criar o tempo, tu, um pobre homem? O tempo é de Deus –
pergunta-lhe um escriba.
– E tu, escriba, me fazes esta pergunta? Não sabes, então, que haverá
um século que vai ter começo, mas não terá fim, e será o meu? Nele Eu
triunfarei, reunindo ao redor de Mim os que são filhos dele, e eles viverão
para sempre naquele século que Eu já terei criado, e que já estou criando,
dando valor ao espírito, mais do que à carne ao mundo e ao inferno, porque
Eu tudo posso. Por isso, Eu vos digo que quem não está comigo, está contra
Mim, e quem comigo não recolhe, dispersa. Porque eu sou Aquele que sou.
Quem não crê nisto, que já foi profetizado, peca contra a palavra foi dita
pelos profetas, e não é mentira nem resistência.
Porque eu vos digo: tudo será perdoado aos homens, todo pecado e
blasfêmia. Porque Deus sabe que o homem não é só espírito, mas é carne, e
uma carne tentada, que está sujeita a imprevistas fraquezas. Mas a
blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada. Quem tiver falado
contra o Filho do homem, será ainda perdoado, porque o peso da carne, que
envolve a minha Pessoa, e que envolve o homem que contra Mim fala, pode
ainda arrastá-lo ao erro. Mas, quem tiver falado contra o Espírito Santo, não
será perdoado nem nesta vida, nem na vida futura, pois a Verdade é o que é:
limpa, santa, inegável e manifestada ao espírito de tal maneira que não o
induza a erro. É o contrário do que acontece com aqueles que erram
voluntariamente e querendo o erro. Negar a Verdade dita pelo Espírito
Santo é negar a Palavra de Deus e o Amor que aquela palavra demonstra
ter, por amor aos homens. E o pecado contra o Amor não é perdoado.
269.9Mas cada um dá os frutos da sua planta. Vós dais os vossos, que não
são frutos bons. Pois, se plantais uma árvore má, mau haverá de ser o fruto
que dela vai ser colhido, e todos dirão: “Esta árvore não é boa.” Porque é
pelo fruto que se conhece a árvore. E vós, como é que podeis pensar que
falais bem, vós que sois maus? Porque a boca fala daquilo de que o coração
está cheio. É da superabundância do que tivermos em nós é que nós tiramos
os nossos atos e discursos. O homem bom tira do seu bom tesouro coisas
boas; e o malvado, do seu mau tesouro tira as coisas más. Ele fala e age de
acordo com o que tiver dentro de si.
E, em verdade, Eu vos digo que o ócio é uma culpa. Mas é melhor ficar
ocioso, do que fazer coisas más. E Eu até vos digo que é melhor calar-se do
que falar palavras ociosas e más. E, mesmo que o calar-se seja um ócio,
fazei-o, e não fiqueis pecando pela língua. Eu vos garanto que de toda
palavra ociosa dita aos homens, vai ser exigida uma justificação no dia do
Juízo e que, pelas palavras ditas serão os homens justificados e pelas
mesmas palavras serão condenados. Estai atentos, pois, vós que dizeis
tantas palavras, que são mais do que ociosas, porque são, mas para fazer o
mal, e com o intuito de afastar os corações da Verdade, que vos está
falando.
269.10Os fariseus tomam o parecer dos escribas e depois, todos juntos,
fingindo ser delicados, perguntam:
– Mestre, crê-se mais naquilo que se vê. Dá-nos, então, um sinal para
que possamos crer que tu és o que estás dizendo que és.
– Vedes bem que em vós está o pecado contra o Espírito Santo, que
muitas vezes já me indicou como o Verbo Encarnado? Verbo e Salvador,
vindo no tempo marcado, precedido e acompanhado pelos sinais que foram
profetizados, e fazendo o que diz o Espírito.
Eles lhe respondem:
– No Espírito nós cremos. Mas, como podemos crer em Ti, se não
vemos com nossos olhos, um sinal?
– Como podeis, então, crer no Espírito, cujas ações são espirituais, se
não credes nas minhas que são perceptíveis aos vossos olhos? A minha vida
está cheia delas. Ainda não bastam? Não. Eu mesmo respondo que não.
Ainda não bastam. A esta geração adúltera e má, que está querendo ver um
sinal só será dado este sinal[63]: o de Jonas.
De fato, como Jonas esteve por três dias no ventre da baleia, assim o Filho
do homem ficará pôr três dias nas vísceras da terra. Em verdade, Eu vos
digo que os Ninivitas ressuscitarão no dia do Juízo, como todos os outros
homens, e se levantarão contra esta geração, e a condenarão. Porque eles
fizeram penitência, depois da pregação de Jonas, e vós, não. E aqui está
alguém que é maior do que Jonas. Assim também ressuscitará e se levantará
contra vós a Rainha do Meio-Dia, e vos condenará, porque ela veio[64] dos
últimos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. E aqui há
alguém que é mais do que Salomão.
269.11– Por que dizes que esta geração é adúltera e má? Ela não o será
mais do que as outras. Nela há os mesmos santos que havia nas outras. A
estrutura de Israel não mudou. Tu nos estás ofendendo.
– Vós vos ofendeis a vós mesmos, fazendo mal às vossas almas, porque
as afastais da Verdade e da Salvação. Mas Eu vos respondo a mesma coisa.
Esta geração não é santa, a não ser nas vestes e em seu exterior. Por dentro
ela não é. Há em Israel os mesmos nomes para significar as mesmas coisas.
Há ainda os mesmos usos, vestes e ritos. Mas falta o espírito em tudo isso.
Sois adúlteros, porque rejeitastes o casamento espiritual com a Lei divina, e
desposastes, em uma segunda e adúltera união, a Lei de satanás. Não estais
circuncidados, a não ser em um membro caduco. Pois o vosso coração não
está mais circuncidado. E sois maus, porque vos vendestes ao Maligno.
Tenho dito.
– Tu nos ofendes demais. Mas, por que, se assim é, Tu não livras Israel
do demônio, para que te tornes santo?
– Esta é a vontade de Israel? Não. Quem a tem são aqueles pobres, que
vêm para ficarem livres do demônio, pois o percebem em si mesmos como
um peso e uma vergonha. Vós não percebeis isto. E inutilmente vós ficaríeis
livres dele, porque, não tendo vontade de ficar livres, logo seríeis possessos
de novo e de maneira ainda mais forte. Porque, quando um espírito imundo
sai de um homem, sai e vai vagando por lugares áridos, em busca de
repouso, e não o encontra. Lugares áridos, não materialmente, entendei
bem. Áridos, porque lhe são hostis, não acolhedores, assim como a terra
árida é hostil à semente. E, então, ele diz: “Vou voltar para minha casa, de
onde eu fui expulso à força e contra a vontade dele. Por isso, estou certo de
que ele me acolherá de novo, e me dará repouso.” E, de fato, ele volta para
aquele que era dele, e muitas vezes o encontra disposto a acolhê-lo, porque,
em verdade, Eu vos digo, ele tem mais saudades de satanás do que de Deus
e, se satanás não lhe oprime os membros por nenhuma possessão mais, ele
se queixa. Então, satanás vai, e encontra a casa vazia, varrida, ornada, com
cheiro de limpeza. Aí, ele vai buscar outros sete demônios, porque não quer
mais perdê-la e, com estes sete espíritos, piores do que ele, entra na casa, e
aí todos se estabelecem. E este segundo estado de alguém que se converteu,
e depois se perverte de novo, é pior do que o primeiro. Porque o demônio
sabe a medida de quanto aquele homem é amante de satanás, e de quanto
ele é ingrato para com Deus, e também porque Deus não volta para lá, onde
se calcam aos pés as suas graças, onde os que já experimentaram uma
possessão abrem seus braços para receberem outra ainda maior. A recaída
no satanismo é pior do que uma recaída numa tuberculose mortal, que uma
vez já foi curada. Não é mais possível melhora nem cura. Assim acontecerá
também com esta geração que, tendo sido convertida pelo Batista, quis
voltar a ser pecadora, porque ela é amante do Malvado, e não de Mim.
269.12Um murmúrio, que não é nem de aprovação, nem de protesto, vai-
se levantando pelo meio da multidão que se comprime, de tão numerosa que
já está, e até à estrada ela está apinhada, a partir da horta e do terraço. Há
pessoas a cavalo dos pequenos muros, outras trepadas nas figueiras da horta
e nas plantas das hortas vizinhas, pois todos querem ouvir a disputa entre
Jesus e os seus inimigos. O murmúrio, como uma onda, que do alto mar
chega ate à praia, vai passando de boca em boca, chegando até aos
apóstolos que estão mais perto de Jesus, isto é, Pedro, João, Zelotes e os
filhos do Alfeu. Porque os outros estão, uma parte no terraço e outra na
cozinha. Sem falar em Judas Iscariotes, que está na estrada, no meio da
multidão.
E Pedro, João, Zelotes e os filhos do Alfeu detectam o murmúrio do
povo, e dizem a Jesus:
– Mestre, é tua Mãe que está aí com os teus irmãos. Eles estão ali fora,
na estrada, e estão te procurando, porque te querem falar. Manda que o
povo se afaste, para que eles possam vir até Ti, pois certamente deve ser
algum motivo muito sério que os terá trazido a procurar-te.
Jesus levanta a cabeça e vê, lá no meio do povo, o rosto angustiado de
sua Mãe, que está fazendo esforço para não chorar, enquanto José do Alfeu,
todo excitado, fala com Ela, e vê os sinais da recusa dela, sempre repetidos,
sempre enérgicos, apesar da insistência de José. Vê também o rosto alterado
de Simão, visivelmente entristecido, desgostoso… Deixa a Aflita em sua
dor, e os primos lá onde estão.
Depois abaixa os olhos sobre a multidão, e, dirigindo-se aos apóstolos
mais próximos, responde também aos que estão longe, e que tentam dar
mais valor ao sangue do que ao dever:
– Quem é minha Mãe? E quem é que são os meus irmãos?
Corre o olhar ao seu redor, com um rosto severo, que se torna pálido
por esta violência, que Ele precisa fazer-se para se pôr o dever acima do
afeto e do sangue, e para deixar de fazer a confissão do seu vínculo com a
Mãe, para poder servir ao Pai, e diz, acenando com um amplo gesto para o
povo, que se está comprimindo junto a Ele, à luz vermelha das tochas e à
luz prateada da Lua, que está quase cheia:
– Aqui está a minha Mãe, e aqui estão os meus irmãos. Os que fazem a
vontade de Deus são os meus irmãos e irmãs, são minha mãe. Outros, além
desses Eu não tenho. E os meus serão tais, se forem os primeiros, a com
maior perfeição do que qualquer outro, fizerem a vontade de Deus até o
sacrifício total de qualquer outra vontade, ou voz do sangue e do afeto.
A multidão solta um murmúrio mais forte, como se fosse um mar
sacudido por um repentino vendaval.
Os escribas começam a fugir, dizendo:
– É um demônio! Renega até o próprio sangue!
Os parentes avançam para a frente, dizendo:
– Ele está doido. Maltratou a própria Mãe!
Os apóstolos dizem:
– É verdade que esta palavra está cheia de heroísmo!
A multidão diz:
– Como Ele nos ama!
269.13Com dificuldade, Maria, com José e Simão, conseguem abrir
passagem por entre o povo. Ela, com toda a doçura. José, com toda a fúria.
Simão, muito agitado. E assim chegam até onde está Jesus.
José investe logo contra Jesus:
– Tu estás doido! Ofendes a todos! Não respeitas nem Tua Mãe. Mas
agora eu estou aqui, e te impedirei de fazê-lo. É verdade que estás indo,
como um trabalhador para cá e para lá? E, então, se é verdade, por que não
mais trabalhar na tua oficina, matando assim a fome de Tua Mãe? Por que é
que mentes, dizendo que o teu trabalho é a pregação, ocioso e ingrato como
és, se depois vais trabalhar sob encomenda em casas de estranhos?
Realmente Tu me pareces ter um demônio, que te extravia. Responde!
Jesus se vira, pega pela mão o menino José, puxa-o para perto de Si, e
depois o ergue, conservando-o seguro pelas axilas, e diz:
– O meu trabalho foi para matar a fome deste inocente e de seus pais, e
persuadi-los de que Deus é bom. O meu trabalho tem sido pregar em
Corozaim a humildade e a caridade. E não somente em Corozaim. Mas a ti
também, José, meu injusto irmão. Mas Eu te perdôo, porque sei que tu estás
mordido pelos dentes da serpente. E perdôo também a ti, inconstante
Simão. Não tenho nada que perdoar, nem de que pedir perdão à minha Mãe,
porque Ela sabe julgar com justiça. Que o mundo faça o que quiser. Eu faço
o que Deus quer. E, com a bênção do Pai e da minha Mãe, Eu sou mais feliz
do que se o mundo todo me aclamasse como rei, como o mundo quer. Vem
cá, minha Mãe. Não chores. Eles não sabem o que estão fazendo. Perdoa-
os.
– Oh! Meu Filho! Eu sei. Tu sabes. Não há nada mais a dizer…
– Não há nada mais a dizer, a não ser dizer a este povo: “Ide em paz.”
Jesus abençoa a multidão, e depois, segurando Maria com a direita, e
com a esquerda o menino, Ele se dirige para a pequena escada, e é o
primeiro a subir por ela.
[63] será dado este sinal, aquele do episódio de Jonas 2 (ao qual se refere em 176.3); fizeram penitência, como é narrado em
Jonas 3. A promessa do sinal de Jonas será repetida em 342.7 e dela se falará ainda em 291.5 - 344.6 - 503.8 - 525.16 - 546.5 -
547.7 - 548.14 - 592.20 - 610.11 - 625.7 - 632.25.
[64] veio, como se narra em 1 Reis 10,1-13. A mesma citação em 344.6.
270. A notícia da morte de João Batista.
4 de setembro de 1945.
270.1Jesus está curando doentes, sem outra assistência, a não ser a de
Manaém. Estão na casa de Cafarnaum, na horta, que agora de manhã ainda
está na sombra. Manaém não está mais com a cinta preciosa, nem com a
lâmina de ouro na fronte. Sua túnica está recolhida por meio de um cordão
de lã, e o seu turbante por uma tirinha de pano. Jesus está com a cabeça
descoberta, como sempre, quando se encontra em casa.
Quando terminou de curar e consolar os doentes, Jesus vai com
Manaém para o quarto de cima, e assentam-se os dois sobre o peitoril da
janela, que está virada para o monte, pois a parte virada para o lago está
agora toda exposta ao sol, e ele está ainda bem quente, por mais que a
canícula já tenha passado, há algum tempo.
– Daqui a pouco, começa a vindima –diz Manaém.
– É tempo. Depois virá a festa dos Tabernáculos… e o inverno já estará
perto. E Tu, quando pensas em partir?
– Bem…Eu não partiria nunca… Mas estou pensando no Batista.
Herodes é um fraco. Quando se deixa estimular para o bem, se não se torna
bom, pelo menos não é um sanguinário. Mas poucos são os que o
aconselham bem. E aquela mulher!… Mas eu gostaria de estar aqui,
enquanto não voltam os teus apóstolos. Não que eu presuma muito de
mim… mas alguma coisa eu valho ainda, por mais que o meu prestígio
tenha diminuído, e muito, desde quando compreendi que devo seguir os
caminhos do Bem. Mas isso não me importa.
270.2Eu gostaria de ter a verdadeira coragem de saber abandonar tudo
para Te seguir completamente, como aqueles discípulos que estás
esperando. Mas será que o conseguirei algum dia? Nós, que não somos do
povo, temos mais dificuldades em seguir-te. Por que será?
– Porque tendes os tentáculos das pobres riquezas, que vos aprisionam.
– Na verdade, eu sei de alguns, que não são propriamente ricos, mas
instruídos ou a caminho de se tornarem instruídos, e eles também não vêm a
Ti.
– Esses também têm os tentáculos das pobres riquezas que os
aprisionam. Não se é rico somente de dinheiro. Existe também a riqueza do
saber. São poucos os que chegam àquela confissão de Salomão: “Vaidade
das vaidades, tudo é vaidade”, reassumida e ampliada, não tanto no sentido
material, mas na profundidade com que ele a ela se refere no Coelet[65]. Tu
te lembras dela? A ciência humana é uma vaidade, porque aumenta somente
o saber humano, “é uma preocupação e aflição de espírito, e quem
multiplica a ciência, multiplica as preocupações.” Em verdade, Eu te digo
que assim é. E também te digo que assim não seria, se a ciência humana se
apoiasse na Sabedoria sobrenatural e no santo amor de Deus, e por aí se
controlasse. O prazer é uma vaidade, porque o prazer não tem duração, e
rapidamente se desvanece, depois de ter-se queimado, deixando em seu
lugar apenas umas cinzas, e um grande vazio. Os bens acumulados, com
várias indústrias, são vaidade para o homem que morre, porque para outros
ele os deixa, e porque, com todos os seus bens, não pode evitar a morte. A
mulher, olhada como uma fêmea, e como tal cobiçada, é uma vaidade. E por
aí se conclui que a única coisa que não é vaidade é o santo temor de Deus e
a obediência aos seus mandamentos. Isto é que é a sabedoria do homem,
que sabe que não é somente carne, mas que possui uma segunda natureza, a
espiritual. Quem souber chegar a esta conclusão, e o quiser, saberá
desapegar-se de todos os tentáculos das pobres posses, para ir livremente ao
encontro do sol.
– Eu quero lembrar-me destas palavras. Quantas coisas me deste nestes
dias! Agora eu posso andar por entre as imundícies da Corte, que só aos
estultos parece brilhante, que a eles parece poderosa e bela, e não é mais do
que uma miséria, cárcere e escuridão. Poderei andar por lá, transportando
um tesouro que me permitirá viver lá, enquanto não chego a ter outro
melhor ainda. Mas poderei eu chegar algum dia a este melhor ainda, que
consiste em ser teu, e totalmente?
– Tu chegarás lá.
– Quando? No ano que vem? Ou mais tarde? Ou quando a velhice me
fizer sábio?
– Tu lá chegarás, quando alcançares a maturidade de espírito e a
perfeição em tua vontade, dentro de poucas horas.
Manaém olha para Ele, pensativo, e de um modo indagador. Mas não
pergunta mais nada.
Faz-se silêncio. Depois Jesus diz:
– Já te aproximaste de Lázaro de Betânia?
– Não, Mestre. Posso dizer que não. Porque, se tivemos algum
encontro, não chegou a ser uma amizade. Sabes… Eu, com Herodes, e
Herodes contra ele…
– Lázaro agora te veria, não com os olhos nas coisas, mas em Deus.
Deves procurar aproximar-te dele como um condiscípulo.
– Eu o farei, se Tu assim o queres.
270.3Ouvem-se umas vozes gritando no horto. Pedem com ânsia:
– O Mestre! O Mestre! Quem é?
Responde com uma voz cantante a dona da casa:
– Ele está no quarto de cima. Quem sois vós? Doentes?
– Não. Somos discípulos do João, e queremos falar com Jesus de
Nazaré.
Jesus aparece à janela, e diz:
– A paz esteja convosco…Oh! Sois vós? Vinde! Vinde!
São os três pastores João, Matias e Simeão.
– Oh! Mestre –dizem eles, levantando as cabeças e mostrando uns
rostos entristecidos. Nem mesmo a vista de Jesus os tranquiliza.
Jesus sai do quarto, e vai até eles, no terraço. Manaém o acompanha.
Encontram-se justamente no ponto em que a pequena escada desemboca no
terraço exposto ao sol.
Os três se ajoelham, beijando o chão. Depois João diz por todos:
– E agora, acolhe-nos, Senhor, porque nós somos a tua herança –e as
lágrimas descem pelo rosto do discípulo e dos companheiros.
Jesus e Manaém deram juntos um grito:
– João?
– Foi morto…
Aquela palavra caiu como se fosse um enorme fragor, cobrindo todos
os outros rumores do mundo. E, no entanto, ela foi falada muito baixo. Mas
ela petrifica quem a diz e quem a ouve. E parece que a terra, para recolhê-
la, e para horrorizar-se com ela, suspenda todos os rumores que ela tinha, a
tal ponto, que se faz um espaço de tempo de silêncio e de profunda
imobilidade nos animais, nas copas das árvores e no ar. Fez também uma
pausa o arrulhar dos pombos, obstruiu-se a flauta dos melros, tornou-se
mudo o coral dos pássaros, e, como se tivessem sido quebradas de repente
suas pequeninas maquinas, as cigarras estridentes se calam subitamente,
enquanto que também o vento para de soprar, quando ele estava acariciando
as folhas dos parreirais e fazia ouvir um frufru de seda, e cessa até a
chiadeira das peças de madeira seca que se atritavam nas máquinas.
270.4 Jesus fica com uma palidez de marfim, enquanto seus olhos se
dilatam, e se põem vidrados pelas lágrimas. Ele abre os braços ao falar, e
sua voz se faz ouvir profunda, por causa do esforço feito para dizer com
firmeza:
– Paz ao mártir da justiça e ao meu Precursor.
Depois, ele junta os braços e se recolhe em seu espírito, e certamente
estará rezando, comunicando-se com o Espírito de Deus e do Batista.
Manaém não ousa fazer nenhum gesto. Ao contrário de Jesus, ele se
avermelhou vivamente, e teve um movimento de ira. Depois, ele tomou
uma posição mais rija, e toda a sua perturbação se nota apenas pelo
movimento inconsciente de sua mão direita, que fica esfiapando o cordão
de sua túnica, e o da esquerda que, involuntariamente fica procurando o
punhal… e ele sacode a cabeça, ficando com pena de sua própria fraqueza
mental, que nem se lembra de que está desarmado, para poder ser “o
discípulo do Manso, ao lado do Manso.”
Jesus abre de novo a boca e os olhos. Seu rosto, seu olhar, sua túnica
recuperaram a majestade divina, que lhe é habitual. Só continua uma pesada
tristeza, mas temperada pela paz.
– Vinde. Vós o contareis a Mim. Desde hoje já sois meus.
E os conduz ao quarto, fechando depois a porta e entreabrindo o toldo,
para regular a entrada da luz, a fim de poderem ter um recolhimento,
pensando na dor e na beleza da morte do Batista, e para separarem a
perfeição de sua vida do mundo corrompido.
– Falai –diz Jesus.
Manaém parece continuar petrificado. Ele está perto do grupo. Mas não
diz uma palavra.
270.5– Foi na tarde da festa. Era imprevisível o que aconteceu… Apenas
duas horas antes, Herodes se havia aconselhado com João, dando-lhe depois
benignamente a licença de poder ir-se. E, pouco antes que acontecesse… o
homicídio, o martírio, o delito, a glorificação, Herodes lhe havia mandado
um servo levando frutas geladas e vinhos raros ao prisioneiro. João havia
distribuído entre nós aquelas coisas… Ele nunca mudou a sua austeridade…
Só nós é que estávamos lá, porque, graças a Manaém, trabalhávamos no
palácio como servos, nas cozinhas e nas estrebarias. E esta era a
oportunidade que nos permitia ver sempre nosso João… Ficávamos na
cozinha eu e João, enquanto Simeão vigiava os servos das estrebarias, para
que tratassem com cuidado as cavalgaduras dos hóspedes… O palácio vivia
cheio de grandes, de chefes militares e de senhores da Galileia. Herodíades
havia se fechado em seus aposentos, depois de uma violenta cena
acontecida pela manhã entre ela e Herodes…
Manaém interrompe:
– Mas, quando é que foi para lá a hiena?
– Dois dias antes. Inesperada… dizendo ao monarca que não podia
viver longe dele, nem estar ausente no dia de sua festa. Uma víbora e uma
feiticeira, que, como sempre, o tratava como um objeto de escárnio… Mas
Herodes, pela manhã daquele dia, se havia recusado, ainda que estivesse
bêbado pelo vinho e pela luxúria, a conceder à mulher o que ela estava
pedindo em altos gritos… E ninguém podia pensar que fosse a vida de
João!… Ela estava em seus aposentos, toda desdenhosa, tinha recusado as
iguarias reais, mandadas por Herodes em bandejas preciosas. Ela só tinha
retido uma bandeja preciosa, cheia de frutas, retribuindo ao presente com
uma ânfora de vinho drogado para Herodes… Drogado… Ah! Drogado, o
tanto necessário para que a natureza de Herodes, sempre bêbado e viciado,
o levasse ao delito! Pelos servos da mesa ficamos sabendo que, depois da
dança das atrizes da corte, ou antes da metade dela, havia irrompido no
salão do banquete Salomé, dançando. E as atrizes, diante da menina real, se
haviam retirado para perto das paredes. A dança era perfeita, segundo nos
disseram. Lasciva e perfeita. Era digna dos hóspedes… Herodes… Oh!
Talvez algum novo desejo de incesto lhe estivesse fermentando por dentro.
Herodes, ao chegar o fim daquela dança, cheio de entusiasmo, disse a
Salomé: “Dançaste bem! Eu juro que mereces um prêmio. E eu juro que te
darei. Eu juro que te darei qualquer coisa, que quiseres pedir. Na presença
de todos, eu juro. Pede, então, o que quiseres.” E Salomé, fingindo estar
perplexa, inocente e modesta, envolvendo-se em seus véus, com ares de
pudica, depois de tanta impudicícia, disse: “Permite-me, ó grande, refletir
um momento. Vou retirar-me, depois virei, porque o teu favor me deixou
perturbada…, e se retirou, indo conversar com sua mãe. Selma me disse que
ela entrou rindo e disse à sua mãe: “Minha mãe, tu venceste. Dá-me a
bandeja.” E Erodíades, com um grito de triunfo, mandou à escrava que
desse à menina a bandeja, antes retida, dizendo-lhe: “Vai, e volta aqui com
aquela cabeça odiada, e eu te vestirei de pérolas e de ouro.” E Selma,
horripilando-se, obedeceu… Salomé tornou a entrar, dançando, na sala, e,
dançando, foi prostrar-se aos pés do rei, dizendo: “Eis aqui, sobre esta
bandeja, que mandaste à minha mãe, em sinal de que a amas e me amas,
sobre ela eu quero a cabeça de João. Depois dançarei ainda, se isso te
agrada. Dançarei a dança da vitória. Porque eu venci. Eu te venci, ó rei!
Venci a vida, e estou feliz!” Isso foi o que ela disse, e que nos foi repetido
por um copeiro amigo. E Herodes ficou perturbado e obrigado por duas
vontades, a de ser fiel à palavra dada e a de ser justo. Mas, não soube ser
justo, porque ele é um injusto. Fez sinal ao carrasco, que estava atrás da
cadeira do rei, e este, tomando das mãos levantadas de Salomé a bandeja,
desceu do salão do banquete para os compartimentos inferiores. Nós o
vimos atravessar a corte, eu e João… e, pouco depois, ouvimos o grito do
Simeão: “Assassinos!”. E, em seguida, o vimos passar com a cabeça na
bandeja… João, o teu Precursor, estava morto…
270.6– Simeão, podes dizer-me como foi que ele morreu? –pergunta, depois
de algum tempo, Jesus.
– Sim. Ele estava em oração… Ele me havia dito antes: “Daqui a pouco,
voltarão os dois enviados, e quem não crê, crerá. Mas, enquanto isso,
lembra-te de que, se eu não estiver mais vivo, quando eles voltarem, pois eu
sou como alguém que está perto de morrer, eu ainda te digo, a fim de que
digas a eles: “Jesus de Nazaré é o verdadeiro Messias.” Ele pensava sempre
em Ti… O carrasco entrou. Eu dei um grito forte. João levantou a cabeça, e
o viu, depois, se pôs de pé, e disse: “Não podes mais do que cortar-me a
vida. Mas a verdade, que permanece, é que não é lícito fazer o mal.” E
estava para dizer-me uma coisa, quando o carrasco rodou no ar a pesada
espada, enquanto João ainda estava de pé, e a cabeça caiu separada do
busto, com um grande jorro de sangue, que avermelhou a pele de cabra que
ele vestia, e fez ficar cor de cera o seu rosto magro, no qual continuaram
vivos, abertos, acusadores aqueles olhos. Ela me rolou aos pés. Eu caí junto
com o corpo dele, enfraquecido pela dor… Depois… Depois que
Herodíades bateu nela e a deformou, mandou que a cabeça fosse jogada aos
cães. Mas nós a recolhemos logo e, com um véu precioso, e envolvemos
junto com o corpo. Compusemos, de noite, o corpo, e o transportamos para
fora de Maqueronte. Nós fomos embalsamá-lo dentro de uma moitas de
acácias, que havia lá perto, ao raiar do sol, com a ajuda de outros
discípulos. Mas ainda ele foi tomado de nós para outras deformações.
Porque ela não pôde destruí-lo, nem pôde perdoá-lo… E os seus escravos,
por medo da morte, foram mais ferozes do que uns chacais, ao tomarem de
nós aquela cabeça. 270.7Se tu estivesses lá, Manaém…
– Se eu estivesse lá… Mas é a maldição dela aquela cabeça… Em nada
fica diminuída a glória do Precursor, ainda que seu corpo fique incompleto.
Não é verdade, Mestre?
– É verdade. Mesmo que os cães o tivessem destruído, não se teria
mudado sua glória.
– Nem ficou mudada a palavra dele, Mestre. Os seus olhos, ainda que
maltratados e transformados em uma grande ferida, ainda estão dizendo
“Não te é lícito.” Mas nós o perdemos –diz Matias.
– E nós agora somos teus, porque assim ele disse, dizendo também o
que Tu já sabes.
– Sim. Há sete meses que já sois meus. Como foi que viestes?
– A pé, por etapas. Longo, difícil era o caminho, por cima de areias
ardentes e expostas ao sol, mas mais ardente era a nossa dor. Há quase vinte
dias que estamos caminhando…
– Agora, descansareis.
Manaém pergunta:
– Dizei-me: Herodes não estranhou a minha ausência?
– Sim. Primeiro ficou inquieto. E furioso depois. Mas, quando passou o
seu furor, ele disse: “É um juiz a menos.” Isto foi o que nos contou o
copeiro nosso amigo.
Jesus diz:
– Um juiz a menos! Ele tem Deus por Juiz. E basta isso. Vinde para
onde nós dormimos. Estais cansados e empoeirados. Encontrareis as vestes
e as sandálias dos nossos companheiros. Calçai-as e alimentai-vos. O que é
de um, é de todos. Tu, Manaém, que és alto, podes pegar uma das minhas
vestes. Depois, nós proveremos. Com o cair da tarde, pois estamos na
vigília do sábado, os meus apóstolos estarão chegando. Na semana que
vem, estará aqui Isaque com os discípulos dele. Mais tarde, virão Benjamim
e Daniel e, depois da Festa dos Tabernáculos, Elias, Levi e José virão
também. Já é tempo de aos doze se unirem outros. Agora, ide descansar.
Manaém os acompanha, e depois volta. 270.8Jesus fica com Manaém, e
se assenta, pensativo, visivelmente triste, com a cabeça inclinada sobre a
mão, e o cotovelo apoiado sobre o joelho. Manaém está sentado perto da
mesa, e não se move. Seu rosto está escuro e parece uma tempestade que se
aproxima.
Depois de muito tempo, Jesus levanta a cabeça, olha para ele, e
pergunta:
– E tu, que farás agora?
– Ainda não sei… O plano de ficar em Maqueronte acabou-se. Mas, eu
gostaria ainda de continuar junto à Corte, para saber… para Te proteger,
quando soubesse.
– Para ti seria mais conveniente que me acompanhes sem demora. Mas
Eu não obrigo. Virás, quando estiver desfeito, molécula por molécula, o
velho Manaém.
– Eu gostaria também de tirar a cabeça daquela mulher. Ela não é digna
de tê-la…
Jesus tem um pálido sinal de sorriso e, com sinceridade, diz:
– Além disso, ainda não estás morto para as riquezas humanas. Mas, tu
me és querido do mesmo modo. Eu sei que não te perco, ainda que tenha de
esperar. E Eu sei esperar…
– Mestre, eu gostaria de dar-te a minha generosidade para consolar-te…
Por que Tu estás sofrendo. Eu o estou vendo.
– É verdade. Eu estou sofrendo. Muito! Muito!
– Somente por causa de João? Eu acho que não. Tu sabes que ele está
em paz.
– Eu sei que ele está em paz, e não sinto como se estivesse longe.
– E então?
– E então!… Manaém, a aurora vem antes do quê?
– Antes do dia, Mestre. Por que o perguntas?
– Porque a morte de João vem antes do dia em que Eu vou ser o
Redentor. E a parte humana de Mim freme, só diante desta ideia…
Manaém, Eu vou para o monte. Fica tu aqui para receber a quem chegar e
para socorrer os que já vieram. Fica aqui até a minha volta. Depois… farás
o que quiseres. Adeus.
E Jesus sai do quarto. Desce devagar pela escadinha, atravessa a horta
e, pela parte de trás dela, vai, por um pequeno caminho, esconder-se por
entre umas plantações despojadas de folhas e algumas oliveiras, macieiras,
videiras e figueiras. Depois, vai indo pela inclinação de uma pequena
colina, onde desaparece da vista.
[65] no Coelet, isto é, em Qoèlet 1‑2.
271. Partida em direção de Tariqueia
com os apóstolos que voltaram a Cafarnaum.
5 de setembro de 1945
271.1Já é alta noite, quando Jesus volta para casa. Ele entra pela horta,
sem fazer barulho, e olha, por um instante, para a cozinha escura. E vê que
nela não está ninguém. Olha para os dois quartos, onde estão as esteiras e as
camas, que também estão vazias. Somente as roupas, que foram mudadas,
estão amontoadas no chão, dando a entender que os apóstolos já voltaram.
A casa parece não ter mais moradores, de tão silenciosa que está.
Jesus, fazendo menos barulho do que uma sombra, sobe pela escadinha,
sua alvura aparece à luz branca da lua cheia, e Ele chega ao terraço. Depois
dá uns passos por ele, e parece um fantasma que, que se vai movendo sem
fazer barulho. É um fantasma luminoso. Ao brilho branco da lua, Ele parece
tornar-se mais delgado e mais alto. Levanta com a mão o toldo que está na
porta, do quarto de cima. Esta tinha ficado fechada desde quando os
discípulos de João ali entraram com Jesus. Dentro, sentados aqui e ali, em
grupos, ou isolados, estão os apóstolos com os discípulos de João e
Manaém e, adormecido, com a cabeça sobre os joelhos de Pedro, está
Marziam. A lua se encarrega de iluminar o quarto, entrando, com seus
jorros de luz fosforescente, pelas janelas abertas. Ninguém fala nada. E
ninguém está dormindo, a não ser o menino, sentado em uma esteira
estendida no chão.
271.2Jesus entra devagar, e o primeiro que o vê é Tomé.
– Oh! Mestre! –diz ele levando um susto.
Os outros se assustam todos. Pedro, impetuoso como sempre, procura
levantar-se com um pulo, mas logo se lembra do menino, e o faz
lentamente, colocando a cabeça morena de Marziam sobre sua cadeira, e
assim ele chega até Jesus por último, enquanto o Mestre, com a voz cansada
de quem sofreu muito, responde a João, a Tiago e a André, que lhe falam da
dor que estão sofrendo:
– Eu o compreendo. Mas só os que não creem é que têm que sentir-se
entristecidos por essa morte. Não nós, que sabemos e cremos. João não está
mais separado de nós. Antes estava. Antes até nos separava. Ou estar
comigo, ou estar com ele. Agora não é mais assim. Onde ele está, Eu estou.
Ele está perto de Mim .
Pedro intromete sua cabeça grisalha, por entre as cabeças juvenis, e
Jesus o vê:
– Tu também choraste, Simão de Jonas?
E Pedro, com uma voz mais rouca que de costume:
– Sim, Senhor. Porque eu também havia sido de João… E depois…
depois… Bem que eu dizia, na sexta-feira passada, que eu estava
angustiado, porque aquela presença dos fariseus nos iria tornar amargo o
sábado! Eu tinha trazido o menino… para ter um sábado ainda mais
bonito… Mas, ao contrário…
– Não fiques abatido, Simão de Jonas. João não está perdido. Digo isso
a ti também. E, em compensação, temos três discípulos bem formados.
Onde está o menino?
– Está lá, Mestre. Está dormindo…
– Deixa-o dormir –diz Jesus, inclinando-se sobre a cabecinha morena,
que dorme tranquilamente.
E depois pergunta ainda:
– Vós já ceastes?
– Não, Mestre. Nós estávamos Te esperando, e já estávamos
apreensivos por causa do atraso, não sabendo onde devíamos ir procurar-
te… e já nos parecia que havíamos perdido a Ti também.
– Ainda temos algum tempo para ficarmos juntos. Vamos, preparai a
ceia, porque tenho necessidade de ficar sozinho entre amigos, e amanhã, se
ficarmos aqui, estaremos sempre rodeados de pessoas.
– E eu te juro que não as suportaria, especialmente aquelas serpentes,
que são as almas farisaicas. E seria insuportável, se escapasse deles ainda
que só um sorriso, olhando para nós na sinagoga.
– Bem, Simão!… Eu também pensei nisso. Por isso é que voltei para
levar-vos comigo.
Á luz das candeias acesas dos dois lados da mesa se veem melhor as
alterações dos rostos. Só Jesus é de uma majestade solene, e Marziam sorri
no sono.
– O menino comeu antes –explica Simão.
– Então, é melhor deixá-lo dormir –diz Jesus.
E, no meio dos seus, oferece e distribui o pouco alimento, que vai
sendo comido sem vontade. E logo a ceia termina.
271.3– Dizei-me agora que fizestes –encoraja Jesus.
– Eu estive com Filipe nas campinas de Betsaida, e lá evangelizamos e
curamos um menino doente –diz Pedro.
– Na verdade, foi Simão que curou†–diz Filipe, que não quer ficar com
uma glória que não é dele.
– Oh! Senhor! Eu nem sei como o fiz. Eu rezei muito, de todo coração,
porque o doentinho me causava dó. Depois, eu o ungi com óleo, e o
esfreguei com as minhas mãos rudes… e ele ficou são. Quando eu vi que a
cor lhe ia voltando ao rosto e que ele estava abrindo os olhos, que ele
revivia, finalmente eu comecei a ficar com medo.
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça, sem dizer nada.
– João causou muita admiração por ter expulsado um demônio. Mas,
para falar, foi a minha vez –diz Tomé.
– Também o teu irmão Judas o fez –diz Mateus.
– Depois também André –diz o Tiago de Alfeu.
– Por sua vez, Simão, o Zelotes, curou um leproso. Oh! Ele não teve
medo de tocar nele. E depois ele me disse: “Não é preciso ter medo. Nós
não pegamos nenhum mal físico, por vontade de Deus” –diz Bartolomeu.
– Disseste bem, Simão. E vós dois? –pergunta Jesus a Tiago de Zebedeu
e a Iscariotes, que estão um pouco afastados, o primeiro falando com os três
discípulos de João, e o segundo sozinho e amuado.
– Oh! Eu não fiz nada –diz Tiago–. Mas Judas fez três milagres
grandes: um cego, um paralítico e um endemoninhado. A mim ele parecia
um lunático. Mas o povo dizia assim…
– E tu, por que ficas com esta cara, se Deus te ajudou tanto? –pergunta
Pedro.
– Sei ser humilde eu também –respondeu Iscariotes.
– Depois fomos hospedados por um fariseu. Eu me sentia embaraçado.
Mas Judas sabe fazer melhor as coisas, e o amansou logo. No primeiro dia,
ainda o suportamos, mas depois… Não é verdade, Judas?
Judas concorda, sem dizer nada.
– Muito bem. E fareis sempre melhor. Na próxima semana estaremos
juntos. Entretanto… Simão, vai preparar as barcas. E tu também, Tiago…
– Para todos, Mestre? Não caberemos nelas.
– Não se pode conseguir uma outra?
– Se pedirmos ao meu cunhado, sim. Eu vou.
– Vai. E, logo que conseguires, volta. E não fiques dando muitas
explicações.
Os quatro pescadores partem. Os outros descem para apanhar os sacos e
os mantos.
271.4Só fica Manaém com Jesus. O menino continua a dormir.
– Mestre, vais para longe?
– Não sei ainda. Eles estão cansados e entristecidos. E Eu também.
Espero ir até Tariqueia, nas campinas, para lá isolar-nos em paz…
– Eu tenho um cavalo, Mestre. Mas, se me permites, eu irei beirando o
lago. Ficarás lá muito tempo?
– Talvez a semana toda, e não mais.
– Então, eu irei. Mestre, abençoa-me nesta primeira despedida. E tira
um peso do meu coração.
– Qual Manaém?
– Eu tenho remorso de ter deixado João. Talvez, se eu estivesse lá…
– Não. Era a hora dele. E ele certamente deve ter ficado contente, ao ver
que vinhas a Mim. Não tenhas esse peso. Procura, antes, livrar-te logo e
bem do único peso que tens: o gosto de ser homem. Torna-te espírito,
Manaém. Tu o podes. Há em ti a capacidade de sê-lo. Adeus Manaém. A
minha paz esteja contigo. Brevemente nos veremos na Judeia.
Manaém se ajoelha, e Jesus o abençoa. Depois, o levanta e o beija.
Tornam a entrar os outros e se saúdam, tanto os apóstolos, como os
discípulos de João. Por último, chegam os pescadores:
– Tudo pronto, Mestre. Podemos ir.
– Está bem. Saudai Manaém, que fica aqui até o pôr do sol de amanhã.
Recolhei os alimentos, ide buscar água, e vamos. Fazei pouco barulho.
Pedro se inclina para despertar Marziam.
– Não, deixa. Ele poderia chorar. Eu vou tomá-lo nos braços –diz Jesus,
e docemente levanta o menino, que geme um pouco, mas depois,
instintivamente, se acomoda nos braços de Jesus.
271.5Apagam as candeias, e saem. Fecham as portas e descem. Na soleira do
lado da horta, saúdam de novo Manaém, e depois, em fila, por um caminho
iluminado pelo luar, vão ao lago: ele está parecendo um imenso espelho de
prata, sob a luz da lua, que está no zênite. Três gotas vermelhas sobre o
plácido espelho é o que parecem ser os faroletes das proas já imersas na
água. Sobem, e vão-se distribuindo pelas barcas, entrando por último os
pescadores: Pedro e um empregado vão para onde está Jesus, João e André
vão para a outra barca, Tiago e o outro empregado vão para a terceira.
– Para onde vamos, Mestre –pergunta Pedro.
– Para Tariqueia. Foi onde desembarcamos[66] depois do milagre dos
gerasenos. Agora não há pântano. Tudo está tranquilo.
Pedro chega ao alto mar, e os outros, com suas barcas atrás, cada uma
no sulco deixado pela outra. Ninguém fala. Somente quando já estão ao
largo e Cafarnaum desaparece no clarão do luar, que uniformiza tudo com a
sua poeira de prata, Pedro, como se estivesse conversando com a barra do
timão, diz:
– É disto que eu gosto. Amanhã nos procurarão, minha velha, e graças a
ti não nos encontrarão.
– Com quem falas, Simão? –pergunta Bartolomeu.
– À barca. Não sabes que para os pescadores ela é como uma esposa?
Quanto eu já falei com ela! Mais do que com Porfíria, Mestre!… Está bem
coberto o menino? De noite há orvalho no lago…
– Sim. Escuta, Simão. Vem cá. Eu preciso te falar…
Pedro entrega a barra do timão ao grumete, e vai a Jesus.
– Eu falei Tariqueia. Mas lá bastará que estejamos depois do sábado,
para saudar de novo Manaém. Não poderias encontrar um lugar perto de lá,
para ficarmos em paz?
– Oh! Mestre! Em paz nós, ou as barcas também? Para elas, precisamos
estar em Tariqueia, ou então, nos portos da outra margem. Mas, se é para
nós, basta que Tu te embrenhes do lado de lá do Jordão, onde só os animais
te poderão descobrir… ou talvez algum pescador, que esteja vigiando as
redes lançadas aos peixes. Podemos deixar as barcas em Tariqueia. Lá
chegaremos ao raiar do dia, e iremos diretamente para o outro lado do vau.
– Está bem. Faremos assim…
– Também a Ti o mundo causa nojo, não é? Preferes os peixes e os
pernilongos, não é? Tens razão.
– Eu não tenho nojo. Não é preciso tê-lo. Mas eu quero evitar que vós
façais escândalos, e quero me consolar convosco nestas horas do sábado.
– Meu Mestre!
Pedro o beija na fronte e lá se vai, enxugando uma grande lágrima, que
quer mesmo vir para fora, e já lhe vinha descendo pela barba. Ele volta ao
seu timão e se dirige para o sul, com firmeza, enquanto a claridade do luar
já vai diminuindo, pois o satélite já vai sumindo atrás de uma colina, tirando
seu grande rosto da vista dos homens, mas deixando ainda o céu
esbranquiçado por sua luz, e o lago prateado nas praias do lado do oriente.
O resto é tudo um anil escuro, que mal se distingue à luz do farol da proa.
[66] desembarcamos, em 187.1.
272. Reencarnação e vida eterna
no diálogo com um escriba.
6 de setembro de 1945.
272.1Quando Jesus põe o pé na margem direita do Jordão, a uma boa
milha, ou talvez mais, da pequena península de Tariqueia — lugar onde não
há nada mais do que campinas verdes, porque o terreno, agora enxuto, mas
úmido nas camadas profundas, conserva ainda vivas até as vegetações mais
finas —, Ele encontra muita gente a esperá-lo.
Vão ao seu encontro os primos, em companhia de Simão, o Zelotes:
– Mestre, as barcas é que indicaram onde estamos… E talvez Manaém
tenha servido de indicador…
– Mestre –desculpa-se Manaém–, eu quis partir de noite para não ser
visto, e saí sem falar com ninguém. Podes crer. Muitos me perguntaram
onde estavas. Mas a todos eu disse somente isto: “Ele partiu.” Mas eu creio
que quem fez mal foi um pescador, dizendo que te havia dado a barca…
– É aquele imbecil do meu cunhado!, troveja Pedro. Eu lhe havia dito
que não falasse nada! E lhe havia dito que íamos a Betsaida! E lhe havia
dito também que, se ele falasse, eu lhe arrancaria a barba! E agora? Adeus,
paz, isolamento, repouso!
– Está bem, está bem, Simão. Nós já tivemos os nossos dias de paz, E,
afinal, uma parte do que Eu desejava Eu consegui: ensinar-vos, consolar-
vos e acalmar-vos, para impedir ofensas e choques entre vós e os fariseus
de Cafarnaum. Agora, vamos a estes que nos esperam. Para premiar a fé e o
amor deles. Pois este amor também não é uma coisa que consola? Nós
estamos sofrendo por causa do ódio. Aqui há amor. E por isso há alegria.
Pedro se acalma, como vento que cessa de repente. E Jesus se dirige à
multidão dos doentes, que o estão esperando com o desejo visível em seus
rostos, e os vai curando, um depois do outro, cheio de benevolência,
paciente até para com um escriba, que lhe apresenta seu filhinho doente.
272.2É esse escriba que lhe diz:
– Estás vendo? Tu foges. Mas é inútil fazê-lo. O ódio e o amor são
astutos para encontrarem o que querem. Aqui foi o amor que te encontrou,
como está escrito[67] no Cântico dos Cânticos. Para muitos Tu és como o
Esposo dos Cânticos. E eles vêm a Ti, como a Sulamita vai ao esposo,
desafiando os guardas da ronda e as quadrigas de Aminadab.
– Por que estás dizendo isso, por quê?
– Porque é verdade. Vir é um perigo, porque és odiado. Não sabes que
Roma te espreita e que o Templo te odeia?
– Por que me tentas, homem? Tu estás colocando uma cilada em tuas
palavras, para ir levar depois ao Templo e a Roma as minhas respostas. Não
foi com ciladas que Eu curei o teu filho…
O escriba, diante daquela doce censura, inclina, confuso, a cabeça, e
confessa:
– Vejo que realmente Tu vês os corações dos homens. Perdoa-me. Eu
vejo que realmente és santo. Perdoa-me. Eu tinha vindo sim, fermentando
em mim o lêvedo que outros em mim haviam colocado…
– E que encontrou em ti o calor próprio para fermentar.
– Sim. É verdade… Mas agora, vou-me daqui sem lêvedo. Ou melhor,
com lêvedo novo.
– Eu sei. E não tenho rancor. Muitos estão culpados por sua própria
vontade, e muitos, por vontade dos outros. Diferente vai ser a medida com
que vão ser julgados pelo justo Deus. Tu, escriba, sê justo, e não corrompas
no futuro, como foste corrompido. Quando as pressões do mundo te
premerem, olha esta graça viva, que é o teu filho, que foi salvo da morte, e
sê reconhecido para com Deus.
– Para contigo.
– Para com Deus. A Ele toda glória e louvor. Eu sou o Messias, e sou o
primeiro a louvá-lo e a glorificá-lo. O primeiro a obedecer-lhe. Porque o
homem não se avilta por honrar e servir a Deus em verdade, mas se
degrada, servindo ao pecado.
– Dizes bem. Falas sempre assim? A todos?
– A todos. Se Eu falasse a Anás ou a Gamaliel, ou se Eu falasse ao
mendigo leproso, que está à beira de um caminho, minhas palavras seriam
as mesmas, porque a Verdade é uma só.
– Fala, então, porque todos estamos aqui, como mendigos precisando de
tua palavra, ou de tua graça.
– Eu falarei. Para que não se diga que Eu tenho preconceitos contra
quem é honesto em suas convicções.
– Morreram aquelas que eu tinha. Mas é verdade. Eu era honesto nelas.
Eu pensava estar servindo a Deus, quando combatia contra Ti.
– És sincero. E por isso mereces compreender a Deus, que nunca é
mentira. Mas as tuas convicções não estão ainda mortas. Eu te digo. Elas
são como gramíneas queimadas. Por cima parecem mortas, mas, na
verdade, elas apenas sofreram um duro assalto que as enfraqueceu muito.
Mas suas raízes estão vivas. E o terreno as nutre. E as orvalhadas as
convidam a lançar novos rizomas, e estes lançam novas folhas. É preciso
vigiar para que isso não aconteça, ou serás de novo invadido pelas
gramíneas. 272.3Israel é duro para morrer.
– Israel, então, deve morrer? É uma planta má?
– Deve morrer para ressurgir.
– Uma reencarnação espiritual?
– Uma evolução espiritual. Não há reencarnações de nenhuma espécie.
– Há quem creia que há.
– Eles estão errados.
– O helenismo colocou entre nós também essas crenças. E os doutos se
nutrem com elas, e se gloriam de serem elas um alimento muito nobre.
– É uma contradição absurda naqueles que gritam o anátema para
transcurar um dos seiscentos e treze preceitos menores.
– É verdade. Mas… assim é. Gostam de imitar até o que odeiam.
– Nesse caso, imitai a Mim, já que me odiais. Será melhor para vós.
O escriba deve sorrir de um modo sutil, mesmo que não queira, por esta
saída de Jesus. As pessoas estão de boca aberta, escutando, e os que estão
mais longe pedem aos que estão mais perto que lhes repitam as palavras dos
dois.
– Mas Tu, em confidência, que é que achas da reencarnação?
– Que é um erro. Eu já o disse.
– Há pessoas que dizem que os vivos são gerados pelos mortos, e os
mortos pelos vivos, porque o que existe não se destrói.
– O que não é eterno se destrói, de fato. Mas, dize-me: No teu parecer, o
Criador tem limites para Si mesmo?
– Não, Mestre. Aceitar isso seria um rebaixamento.
– Tu o disseste. E, então, poder-se-à pensar que Ele permita que um
espírito se reencarne, porque mais do que os muitos espíritos que já existem
não podem existir outros?
– Não se deveria pensar assim. E, no entanto, há quem assim pense.
– E, o que é pior, pensa-se assim em Israel. Esse pensamento da
imortalidade do espírito, que já é um grande pensamento em um pagão,
ainda mesmo quando ele está unido ao erro de uma avaliação injusta sobre
como é que acontece essa imortalidade, em um israelita esse pensamento
deveria ser perfeito. Mas, pelo contrário, em quem o admite, nos termos da
tese pagã, torna-se um pensamento limitado, rebaixado, culpável. Já não é
uma glória o pensamento, que se mostra como digno de admiração, por ter
passado rente à Verdade por si só, e que por isso dá um testemunho da
natureza composta do homem, como ela o é também no pagão, por essa sua
intuição de uma vida perene desta coisa misteriosa, que tem o nome de
alma, e que nos distingue dos brutos. Mas um rebaixamento do pensamento
que, conhecendo a Divina Sabedoria e o Deus verdadeiro, torna-se
materialista, até em coisa tão altamente espiritual. 272.4 O espírito não
transmigra, a não ser do Criador para o ser e do ser para o Criador, ao qual
ele se apresenta depois da vida, para receber julgamento de vida ou de
morte. Esta é a verdade. E, para onde for mandado, lá fica. Para sempre.
– Não admites o Purgatório[68]?
– Sim. Por que perguntas?
– Porque Tu dizes: “Para onde for mandado, lá fica.” O Purgatório é
temporário.
– Exatamente. Eu o absorvo no meu pensamento da Vida Eterna. Pois o
Purgatório já é “vida.” É verdade que é uma vida amortecida, ainda atada,
mas sempre é vital. Terminada a temporária parada no Purgatório, o espírito
conquista a Vida perfeita, a alcança, agora sem limites e sem nenhum outro
vínculo. Duas são as coisas que permanecerão: O Céu, o Abismo, o Paraíso
e o Inferno. Os Bem-aventurados e os condenados. Mas daqueles três
reinos, que agora existem[69], nenhum espírito voltará a revestir-se de carne.
E isso até o dia da ressurreição final, que encerrará para sempre a
encarnação dos espíritos na carne, do imortal no mortal.
– Eterno, não?
– Eterno é Deus. Eternidade é não ter principio, nem fim. E isto, só
Deus. E a imortalidade é continuar a viver, desde quando se começou a
viver. E isso se dá com o espírito do homem. Eis a diferença.
– Tu dizes “Vida eterna.”
– Sim. Desde quando alguém é criado para a vida, pode, pelo espírito,
pela graça e pela vontade, conseguir a vida eterna. Não a eternidade. Vida
pressupõe começo. Não se diz “Vida de Deus”, porque Deus não teve
princípio.
– E Tu?
– Eu viverei, porque também Eu sou carne, e ao Espírito divino Eu
tenho unida a alma do Cristo na carne do homem.
– Deus é chamado[70] “o Vivente.”
– De fato. Ele não conhece morte. Ele é vida. A vida inexaurível. Não
vida de Deus. Mas vida. Só isto. Isto são esfumaturas, ó escriba. É nas
esfumaturas que se encerra Sabedoria e Verdade.
272.5– É assim que falas aos pagãos?
– Não é assim. Eles não compreenderiam. Eu lhes mostro o Sol. Mas
assim como Eu o mostraria a um menino, até então cego e tolo que, por um
milagre, tivesse voltado a ver e a entender. Assim: como um astro. Sem
começar a explicar a composição dele. Mas vós em Israel, não sois cegos
nem tolos. Há séculos o dedo de Deus vos abriu os olhos e desanuviou a
mente.
– É verdade, Mestre. No entanto, somos cegos e tolos.
– Vós vos fizestes assim. E não quereis o milagre de quem vos ama.
– Mestre…
– É verdade, escriba.
Este inclina a cabeça, e se cala. Jesus o deixa, e anda para diante e de
passagem acaricia Marziam e o filhinho do escriba, que estavam brincando
com pedrinhas de várias cores. Mais do que uma pregação, o que Jesus faz
é uma conversação com este ou com aquele grupo. Mas é uma pregação
continua, porque vai resolvendo todas as dúvidas, esclarecendo todos os
pensamentos, resume ou amplia coisas que já foram ditas, ou conceitos, em
alguns dos pontos de que alguém vai-se lembrando. E assim passam as
horas.
[67] está escrito, especialmente no Cântico dos cânticos 3,1-4 (em 7,1 figura o nome de Sulamite dado a esposa).
[68] o Purgatório, desconhecido naquele tempo como vocábulo, porém era conhecido como conceito, esboçado em 2 Macabeus
12,45 (vulgata: 12,45-46). Portanto a expressão Purgatório, cada vez que é referida à cultura judaica e não à doutrina cristã, se
deve entender como a tradução daquele conceito na linguagem moderna da obra valtortiana. De “purificação” da alma como
“preparação ao gáudio”, fala ainda Jesus em 524.9.
[69] daqueles três reinos, que agora existem, refletem a tríplice espera no limbo, do qual tratamos em nota em 223.7.
[70] é chamado, por exemplo, em Jeremias 10,10.
273. A primeira multiplicação dos pães.
7 de setembro de 1945.
273.1O lugar é sempre aquele. Com a diferença de não estar agora o sol
vindo do oriente, filtrando entre os bosques que costeiam o Jordão, neste
lugar selvagem, que fica junto à desembocadura das águas do lago no leito
do rio, mas vem igualmente oblíquo, do poente, enquanto brilha com uma
glória vermelha e espalhando os seus últimos raios. E, por baixo dessa
densa folhagem, a luz já está bem atenuada, dando a impressão de já
estarmos vendo as cores mortiças da tarde. Os passarinhos, inebriados ainda
pelo sol, ao qual estiveram expostos durante o dia inteiro, quando foram
atrás do alimento abundante que colheram pelas campinas próximas, dão
uma festa, com seus trinados e cantos, pousados nas pontas das árvores. E a
tarde vai descendo, ao terminarem essas pompas finais do dia.
Os apóstolos fazem que Jesus note isso, pois Ele gosta de ensinar,
aproveitando os assuntos que lhe são apresentados.
– Mestre, a tarde já chegando. Este é um lugar deserto, está longe das
casas e dos povoados, e é um lugar sombreado e úmido. Daqui a pouco, já
não poderemos nem enxergar mais, nem caminhar. A lua hoje sai tarde.
Manda que o povo vá a Tariqueia, às povoações que ficam às margens do
rio Jordão, para comprarem alimento e procurarem alojamento.
– Não é preciso que eles vão. Dai-lhes vós de comer. Elas podem
dormir aqui, como dormiram, quando ficaram Me esperando.
– Só nos restam cinco pães e dois peixes, Mestre, como já sabes.
– Trazei-os aqui.
– André vai procurar o menino. Está ele guardando a bolsa. Há pouco
estava com o filho do escriba e dois outros, atento a fazer coroas de flores,
brincando de rei.
273.2André vai solícito. Também João e Filipe põem-se a procurar
Marziam por entre uma multidão, que está sempre mudando de lugar.
Encontram-no todos quase ao mesmo tempo. Ele vai levando uma bolsa de
mantimentos a tiracolo, tendo um grande ramo de clematite a rodear-lhe a
cabeça, e uma cinta de clematite, da qual está pendente, como se fosse uma
espada, um pedaço de vara encaroçada. O punho da espada é o caroço
maior de todos e a lâmina é o resto de própria vara. Com Marziam estão
outros sete, igualmente ataviados, formando um acompanhamento ao filho
do escriba, um rapazinho muito magro, com olhos muito sérios como os de
quem já sofreu tanto, que, por isso, está mais enfeitado do que os outros,
para fazer o papel de rei.
– Vem Marziam. O Mestre está te chamando!
Marziam deixa os seus amigos boquiabertos, e lá se vai, apressado,
mesmo sem ter tirado as suas… insígnias feitas com flores. Mas o seguem
também os outros, e logo Jesus se vê rodeado por uma pequena coroa de
meninos engrinaldados com flores. Ele os acaricia, enquanto Filipe vai
tirando da bolsa um pacote com pão e estão embrulhados dois grandes
peixes: dois quilos de peixe, pouco mais. Insuficientes também para os
dezessete — ou melhor, para os dezoito, com Manaém — da comitiva de
Jesus. 273.3Levam esses alimentos ao Mestre.
– Está bem. Agora, trazei-me cestos. Dezessete, que é vosso número.
Marziam distribuirá o pão às crianças…
Jesus olha fixamente para o escriba, que se conserva sempre perto dele,
e lhe pergunta:
– Queres tu também dar alimento aos famintos?
– Eu gostaria. Mas eu também não tenho nada.
– Pois distribui do meu, Eu o cedo.
– Mas… vais matar a fome de cinco mil homens, sem falar das
mulheres e crianças, só com aqueles dois peixes e aqueles cinco pães?
– Sem dúvida. Não sejas incrédulo. Quem crer verá realizar-se o
milagre.
– Oh! Nesse caso, também eu quero distribuir o alimento.
– Faze com que te deem também uma cesta.
Os apóstolos estão de volta, com cestos e cestinhos largos e rasos, e
outros fundos e estreitos. Também o escriba volta com o seu cesto. É um
pouco pequeno. Compreende-se, por um lado, a sua fé e, por outro, a sua
incredulidade, que o fizeram escolher aquele, como se fosse o maior de
todos.
– Está bem. Ponde todos aqui na frente. E fazei que o povo se sente em
ordem, por fileiras regulares, tanto quanto for possível.
E, enquanto isso acontece, Jesus ergue os pães com os peixes, tudo
junto, faz o oferecimento deles, reza e abençoa. O escriba não deixa de
acompanhá-lo com o olhar, nem por um instante. Depois, Jesus parte os
cinco pães em dezoito pedaços, parte os dois peixes em dezoito pedaços, e
coloca o pedaço de peixe, um pedacinho bem pequeno, um em cada cesto,
reduz a bocados os dezoito pedaços de pão: cada pedaço em muitos
bocados. Muitos, é um modo de dizer: uns vinte, quando muito. Cada
pedaço partido, um em cada cesto, com o peixe.
– Agora, pegai tudo isso e distribuí à saciedade. Ide. 273.4Vai, Marziam,
vai dá-lo aos teus companheiros.
– Puxa! Como está pesado! –diz Marziam, levantando o seu cesto e
indo depressa aos seus pequenos amigos, mas vai caminhando como quem,
de fato, leva um peso.
Os apóstolos, os discípulos, Manaém e o escriba ficam olhando
perplexos como ele vai indo… Depois, pegam os seus cestos e, sacudindo a
cabeça, dizem uns aos outros:
– O menino está brincando. Eles não estão mais pesados do que antes!
E o escriba olha, quer ver os cestos também por dentro, e neles enfia a
mão para apalpar o fundo, porque a claridade já está pouca naquele canto
onde está Jesus, ao passo que, mais ao longe, na clareira da mata, ainda está
bem claro.
Contudo, mesmo depois de terem verificado isso, vão indo para o lado
do povo, e começam a distribuição. E dão, dão, dão. E, de vez em quando,
se viram, assombrados, para Jesus, que vai ficando cada vez mais longe, e
que, de braços cruzados, e encostado a uma árvore, está sorrindo
amorosamente do assombro deles.
A distribuição é longa e farta… O único que não demonstra assombro é
Marziam, que se ri, feliz por poder saciar com pão e peixe a tantas crianças
pobres. E ele é o primeiro a voltar para Jesus, dizendo:
– Eu dei muitos, mas muitos mesmo, porque eu sei o que é a fome… –e
levanta aquele seu rostinho, não mais magro, como me lembro que antes
era, mas que está pálido e arregalando os olhos…
Jesus, então, o acaricia, e o sorriso volta, todo luminoso, àquele
rostinho juvenil que, confiante, se apoia em Jesus, seu Mestre e Protetor.
Pouco a pouco, vão voltando os apóstolos e os discípulos, todos
emudecidos pelo assombro. O último é o escriba, que nada diz. Mas faz um
ato, que é mais que um discurso. Ajoelha-se e beija a orla da veste de Jesus.
– Pegai a vossa parte, e dai-me também um pouco. Vamos comer o
alimento de Deus.
E eles comem de fato pão e peixe, cada qual conforme sua
necessidade…
Entretanto, o povo troca suas impressões. Até os que estão ao redor
273.5
de Jesus criam coragem para falar, observando como Marziam, ao acabar de
comer o seu peixe, vai brincar com os outros meninos.
– Mestre –pergunta o escriba–, por que o menino percebeu logo o peso,
e nós não? Eu também apalpei o fundo do cesto. Sempre estavam lá aqueles
poucos bocados de pão e aquele único de peixe. Eu comecei a sentir o peso,
quando fui me dirigindo para o povo. Mas, se eu tivesse pesado o tanto que
eu distribuí, teria sido necessária uma grande quantidade de pessoas só para
transportá-lo, e já não em cestos, mas em carroças cheias, e bem cheias de
alimento. No princípio, eu ia economizando… mas depois passei a dar cada
vez mais e, para não ser injusto, tornei aos primeiros, dando-lhes outra vez,
pois a eles eu tinha dado pouco. E, enfim, foi suficiente para todos.
– Eu também percebi que o cesto ficou pesado quando eu ia começar, e
logo passei a distribuir maior quantidade, pois compreendi que tinhas feito
um milagre –diz João.
– Pois eu parei, e sentei-me para despejar aquele peso, e olhar… E o
que vi foi pão e mais pão. Então, pus-me a andar –diz Manaém.
– Eu também os contei, porque não queria ficar com menos. Eram
cinquenta pãezinhos. Então, eu disse: “Vou dá-los a cinquenta pessoas, e
depois voltarei para trás.” E os contei. Mas, quando cheguei aos cinquenta,
o peso era o mesmo de antes. Então, olhei para dentro do cesto. Eram ainda
muitos. Andei para a frente, e distribuí centenas. Eles não diminuíam
nunca –diz Bartolomeu.
– Eu confesso que não acreditava, e tomei nas mãos os pedaços de pão e
aquela migalha de peixe, e olhava para eles, dizendo: “mas, para que
servem? Jesus quis fazer uma brincadeira!, e ficava olhando para eles.
Olhava, estando escondido atrás de uma árvore, esperando, e não esperando
ver se eles aumentavam. Mas continuavam sempre os mesmos. Eu já estava
para voltar, quando Mateus passou, dizendo: “Já viste como são bonitos?”
“O quê?”, disse eu. “Ora, os pães e os peixes!” “Não estás doido? Eu estou
vendo sempre pedaços de pães.” “Vai distribuí-los com fé, e verás.” Joguei
dentro do cesto aqueles poucos pedaços, e continuei, apesar da relutância…
Depois… Perdoa-me, Jesus, porque sou um pecador –diz Tomé.
– Não. Tu és um espírito deste mundo. As tuas são razões mundanas.
– Eu também, então, Senhor. Tanto que eu pensava em dar uma moeda
junto ao pão, pensando: “Eles irão comer em outro lugar” –diz Iscariotes–.
Eu estava esperando, ao fazer assim, estar Te ajudando a ter uma melhor
figura. Que é que serei eu, então? Serei como Tomé, e ainda mais?
– Muito mais que Tomé. Tu és mundo.
– Contudo, eu fiquei pensando fazer uma esmola para ser Céu! O
dinheiro era meu mesmo…
– Esmola feita a ti mesmo, ao teu orgulho. E não esmola a Deus. Este
último não tem necessidade dela, e a esmola feita a teu orgulho é culpa, e
não mérito.
Judas inclina a cabeça e se cala.
– Eu, por minha vez, pensava que aquele bocado de peixe, que aquele
bocado de pão, Tu terias devido reparti-lo mais, até que eles fossem
suficientes. Mas eu não duvidava se teriam sido suficientes, nem por seu
número, nem para alimentar o povo. Uma gota d’água, dada por Ti, pode
ser mais nutriente do que um banquete –diz Simão Zelotes.
– E vós, que pensáveis? –pergunta Pedro aos primos de Jesus.
– Nós recordávamos de Caná… e não tínhamos dúvidas… –diz com
seriedade Judas.
– E tu, Tiago, meu irmão, pensavas só nisso?
– Não, Eu pensava que fosse um sacramento, como Tu me disseste[71]…
É isso mesmo, ou estou errado?
Jesus sorri:
– É, e não é. A verdade do poder alimentício que há em uma gota
d’água, como falou Simão, está unido o teu pensamento, por uma figura
longínqua. Mas ainda não é um sacramento.
273.6O escriba ainda está com uma crosta de pão entre os dedos.
– Que vais fazer com ela?
– Vai… ser uma lembrança.
– Eu também guardei uma. E vou colocá-la no pescoço de Marziam,
dentro de uma pequenina bolsa –diz Pedro.
– Eu a levarei à nossa mãe –diz João.
– E nós? Nós comemos tudo… –dizem, mortificados, os outros.
– Levantai-vos. Sacudi novamente os cestos, recolhei as sobras, separai
os mais pobres do meio do povo, e trazei aqui, junto com os cestos. Depois,
ide todos vós, meus discípulos, às barcas, e dirigi-vos ao alto mar, indo para
a planície de Genezaré. Eu vou despedir o povo, depois de ter beneficiado
aos mais pobres, e depois vos alcançarei.
Os apóstolos obedecem… e voltam com doze cestos cheios com as
sobras, e acompanhados por uns trinta mendigos ou pessoas muito
necessitadas.
– Está bem. Agora, ide.
Os apóstolos e os discípulos de João saúdam Manaém, e lá se vão, com
um pouco de relutância, por terem que deixar Jesus. Mas obedecem.
Manaém espera para deixar Jesus quando a multidão, já com as últimas
luzes do dia, ou vai se encaminhando para as vilas, ou procura algum lugar
onde dormir, por entre tábuas altas e secas. Depois ele se despede. Antes
dele, já lá se foi o escriba, um dos primeiros, porque, junto com seu
filhinho, se pôs a caminho, logo atrás dos apóstolos.
273.7Já Tendo partido muitos, e outros caído no sono, Jesus se ergue,
abençoa os adormecidos e, em passos lentos, se dirige para o lago, ao lado
da pequena península de Tariqueia, elevada alguns metros acima do lago,
como se fosse parte de uma colina penetrando nele. E, tendo chegado às
bases dela, sem entrar na cidade, mas rodeando-a, sobe para um pequeno
monte, e vai colocar-se sobre uma saliência, em oração, diante do azul do
mar e da alvura da noite serena e lunar.

Diz Jesus:
273.8
– Aqui colocareis a visão de 4 de março de 1944: Jesus que caminha
sobre as águas.
[71] disseste, em 259.3/6.
274. Jesus caminha sobre as águas.
Sua prontidão em socorrer quem o invoca.
4 de março de 1944.
[…]
274.1A tarde já vai bem avançada, já é quase noite, e plantas parecidas
com oliveiras, que estão espalhadas por sobre uma colina, daqui mal estão
podendo ser vistas. Mas, à luz mais clara, podem ser outras coisas. Afinal,
são árvores não muito altas, frondosas e contorcidas, como costumam ser as
oliveiras.
Jesus está sozinho. Vestido de branco, e com o seu manto azul escuro.
Sobe e se adentra entre as plantas. Caminha com passos longos e firmes.
Não vai andando muito depressa, mas, por causa do comprimento do seu
passo, percorre sempre uma boa distância, mesmo quando vai sem pressa.
Caminha até chegar a uma espécie de balcão natural, do qual se descortina
o lago, todo sereno, à luz das estrelas, que pouco a pouco vão enchendo a
abóbada celeste com seus focos de luz. O silêncio envolve Jesus com um
abraço que convida ao repouso, e o separa das multidões e da terra,
fazendo-o perder a lembrança delas e unindo-o ao Céu que parece estar
descendo para adorar o Verbo de Deus, e para acariciá-lo com a luz de seus
astros.
Jesus está orando em sua posição habitual: de pé, com os braços abertos
em cruz. Tem atrás de si uma oliveira, e parece já estar crucificado sobre o
seu tronco escuro. As folhas estão pouco acima dele, pois Jesus é alto, e
elas substituem, com um nome parecido ao de Cristo, a tabuleta da cruz. Lá
estava escrito “Rei dos Judeus.” Aqui está escrito “Príncipe da Paz” A
pacífica oliveira fala precisamente a quem é capaz de entender.
Jesus ora por muito tempo. Depois se assenta junto ao barranco, que
fica ao pé da oliveira, sobre uma grossa raiz, que por ali se estendeu, e toma
sua posição de costume, com as mãos cruzadas e os cotovelos postos sobre
os joelhos. Medita. Quem saberá qual o divino colóquio que Ele entretém
com o Pai e com o Espírito nesta hora em que se acha sozinho e pode ficar
todo em Deus! Deus com Deus!
Parece-me que muitas horas se passem assim, porque estou vendo que
as estrelas mudaram de posição, e muitas delas já desapareceram no
ocidente.
274.2 Justamente, enquanto um esboço de luz, ou melhor, de claridade,
pois não se pode ainda chamar de luz, se desenha no extremo horizonte do
oeste, um arrepio de vento sacode a oliveira. Depois cessa. Em seguida, ele
volta mais forte. E vem vindo, após pausas entrecortadas, mas sempre com
maior ímpeto. A luz da aurora mal e mal começou, e está fazendo esforço
para abrir caminho pelo meio de um amontoado de nuvens escuras, que
estão vindo cobrir o céu, impelidas por rajadas de vento cada vez mais
fortes. O barulho da folhagem e a zoeira das águas estão enchendo agora o
ar que, pouco antes, estava tão silencioso.
Mas antes, me parece que esteja surgindo uma borrasca como aquela[72]
já vista na visão da tempestade. O rumo das frondes e o bater das águas
enchem agora o espaço, pouco antes tão quieto.
Jesus desperta de sua meditação. Levanta-se. Olha para o lago. Procura
pela superfície dele, à luz das poucas estrelas que ainda restam e da pobre
aurora enfermiça, e vê a barca de Pedro, na qual vão remando com grande
esforço e procurando alcançar a margem oposta, mas sem conseguirem.
Jesus se envolve em seu manto, cobrindo-se bem, e sungando a barra, que
está suspensa, e, vendo que ela lhe cria dificuldade para descer, Ele a leva
para cima da cabeça, fazendo com ela uma espécie de capuz, e desce
depressa, não pela estrada por onde tinha vindo, mas por uma trilha mais
curta, que vai em linha reta para o lago. E Ele vai indo assim, com tão
grande velocidade, que parece estar voando.
Ao chegar à margem, que está sendo açoitada pelas águas, que estão
fazendo sobre a areia uma orla de espuma flocosa e que chia, Ele prossegue
o seu caminho, apressado, como se não estivesse caminhando sobre um
elemento líquido e movediço, mas sobre o pavimento mais liso e sólido da
terra. Agora Ele se tornou luminoso. parece que a pouca luz, que ainda está
vindo das últimas e agonizantes estrelas e da aurora tempestuosa, se
concentra nele, e que por Ele seja recolhida, formando uma fosforescência
ao redor de seu corpo, que avança rapidamente. Ele vai quase voando sobre
as ondas, sobre aquelas cristas de espuma, por sobre as dobras escuras,
entre uma e outra onda, com seus braços estendidos para frente, com o
manto que, pelo vento, fica inflado aos lados de sua face, mas que esvoaça,
o tanto quanto pode, por mais que esteja apertado junto ao corpo, como se
fosse o bater de uma asa.
274.3Os apóstolos o veem, e lançam um grito de medo, que o vento leva
até Jesus.
– Não temais. Sou Eu.
A voz de Jesus, mesmo tendo ido contra o vento, espalhou-se por sobre
o lago, sem dificuldade.
– És Tu mesmo, Mestre? –pergunta Pedro–. Se és Tu, manda que eu vá
ao teu encontro, caminhando sobre as águas, como Tu.
Jesus sorri e diz:
– Vem!
E diz isso simplesmente, como se fosse mais natural do mundo
caminhar sobre a água.
E Pedro, seminu como está, isto é, com uma túnica curta e sem manto,
dá um salto da barca e vai para Jesus.
Mas, quando ele já está a uns cinquenta metros da barca, e a quase
outros tantos de Jesus, fica tomado pelo medo. Até aquele ponto, ele ia indo
impulsionado pelo amor. Agora, sua natureza humana o domina… e ele
teme por sua própria pele. Como alguém colocado sobre chão escorregadio,
ou melhor, sobre areia movediça, ele começa a bambolear, a bracejar e a
afundar. E, quanto mais braceja, com mais medo vai ficando, e mais vai
afundando.
274.4Jesus parou, e está olhando para ele. Está sério. Está esperando. Mas
nem estende uma das mãos, pois continua com as duas juntas sobre o peito,
e não dá mais nem um passo, não diz nem uma palavra.
Pedro vai afundando. Já desapareceram seus tornozelos, suas canelas,
os joelhos, e as águas já estão atingindo sua virilha, já vão alcançando sua
cintura. O terror já está em seu rosto. É um terror que paralisa até o
pensamento. Ele não passa de carne com medo de se afogar. Não pensa nem
em pôr-se a nadar. Nada. Fica apatetado de medo.
Finalmente, ele resolve olhar para Jesus. E bastou olhar para Ele, e logo
começou a raciocinar, a compreender onde está a salvação.
– Mestre, Senhor, salva-me.
Jesus abre os braços e, como que transportado pelo vento ou pela onda,
precipita-se no rumo do apóstolo, e lhe estende a mão, dizendo:
– Oh! Que homem de pouca fé! Por que duvidaste de Mim? Por que
quiseste fazer tudo por ti mesmo?
Pedro, que havia agarrado convulsivamente a mão de Jesus, nem
responde. Somente olha para Ele, para ver se Ele está com raiva. Olha para
Ele com uma mistura de um resto de medo e de arrependimento.
Mas Jesus sorri e o conserva bem seguro pelo pulso, até que, tendo
alcançado a barca, transpõem a borda dela, e entram. E Jesus ordena:
– Ide para a margem. Este aqui está todo molhado.
E sorri, olhando para o discípulo humilhado.
As ondas se espraiam para facilitar a arribação, e a cidade, vista outra
vez do alto de uma colina, já vem aparecendo para lá da margem. A visão
termina aqui.

274.5 Diz Jesus:


– Muitas vezes não fico esperando nem mesmo ser chamado, quando
vejo que filhos meus estão em perigo. E muitas vezes vou correndo a eles, e
até aos que para comigo são filhos ingratos.
Vós estais dormindo, ou estais preocupados com os cuidados da vida,
com as solicitudes da vida. Eu estou velando e orando por vós. Anjo de
todos os homens, Eu estou inclinado sobre vós, e nada para Mim é mais
doloroso do que não poder intervir, pois que sois contra a minha
intervenção, e preferis agir por vós mesmos, ou, pior ainda, pedindo a ajuda
do Mal. Como um pai que recebe do filho estas palavras: “Eu não te amo,
não te quero. Sai da minha casa”, e Eu fico humilhado e entristecido, mais
do que se o fosse por ter recebido feridas. E, se vós somente me dizeis “Vai-
te embora”, e estais somente despreocupados com a vida, então Eu sou o
Eterno Vigilante, que está pronto a intervir, até mesmo antes de ser
chamado. E, se Eu fico esperando somente que Me digais uma palavra,
algumas vezes espero para ouvir que Me estais chamando.
Que carícia é para Mim, que doçura é ouvir que estou sendo chamado
pelos homens. Ouvir que eles se lembram de que Eu sou o “Salvador.” Por
isso, Eu não te digo qual a alegria infinita que Me penetra, e Me exalta,
quando há quem me ama e me chama, mesmo sem que fique esperando a
hora da necessidade. Ele Me chama, porque Me ama mais do que tudo no
mundo, e percebi que está cheio de uma alegria semelhante à minha, ao
chamar-me “Jesus, Jesus”, como fazem as crianças, quando chamam
“Mamãe, Mamãe”, e lhes parece que é mel que desce sobre os seus lábios,
porque só a palavra “mamãe” já traz consigo o sabor dos beijos maternos.
274.6Os apóstolos estavam remando, obedientes à minha ordem de que
fossem esperar-me em Cafarnaum. E Eu, depois do milagre dos pães, Me
havia isolado da multidão, não por indignação contra ela ou por cansaço.
Eu nunca tinha indignação para com os homens, nem mesmo quando
eram maus para comigo. Somente quando Eu via que a Lei estava sendo
pisoteada ou profanada a Casa de Deus, é que Eu chegava à indignação.
Mas nesses casos não era Eu que estava em causa, e, sim, os interesses do
Pai. E Eu era sobre a terra o primeiro dos servos de Deus para servir ao Pai
dos Céus. Eu nunca estava cansado por dedicar-me às multidões, e também
nem mesmo quando as via tão obtusas, lerdas e humanas, que faziam perder
o entusiasmo até aos mais bem dispostos em sua missão. E até, justamente
porque eram tão deficientes é que Eu multiplicava até o infinito a repetição
de minhas lições, e os tratava mesmo como alunos mais tardos, e guiava
seus espíritos para as descobertas e iniciações mais rudimentares, tal qual
faz um mestre paciente, guiando as mãozinhas inexperientes dos alunos
para traçarem os primeiros sinais e para torná-los cada vez mais capazes de
compreender e fazer. Quanto amor Eu dediquei às multidões! Eu as afastava
da carne, para levá-las ao espírito. Também, Eu havia começado na carne.
Mas enquanto satanás começa por ela para levar para o Inferno, Eu
começava por ela para levar para o Céu.
Eu me havia isolado para dar graças ao Pai pelo milagre dos pães.
Muitos milhares de pessoas haviam comido. E Eu lhes havia recomendado
que dissessem: “Obrigado” ao Senhor. Mas, depois de ter recebido ajuda, o
homem não sabe dizer “obrigado.” Então, Eu ia dizer isso por eles.
274.7E depois… E depois, Eu me havia unido ao meu Pai, do qual Eu
estava com uma saudade infinita e cheia de amor. Eu estava na terra, como
uma casca seca e sem vida. O meu espírito se havia arremessado ao
encontro de meu Pai, que Eu sentia inclinado sobre o seu Verbo, e lhe dizia
“Eu Te amo, ó Pai Santo!” E era a minha alegria dizer-lhe “Eu Te amo.”
Dizer-lhe isso como homem, além de dizer-lhe como Deus. Humilhar
diante dele o sentimento do homem, assim como lhe oferecia as minhas
palpitações de Deus. Parecia-me que Eu era o ímã que atraía a si todos os
amores do homem, capaz de amar um pouquinho a Deus, de acumulá-los e
de oferecê-los do fundo do meu Coração. Parecia-me que Eu estava
sozinho: era o Homem, isto é, a raça humana, que voltava, como nos dias
da sua inocência, a conversar com Deus, à brisa fresca da tarde.
Mas, por mais que a felicidade fosse completa, pois era uma felicidade
de amor, ela não me fazia esquecer das necessidades dos homens. Por isso é
que Eu percebi o perigo dos meus filhos no lago. E deixei o Amor por causa
do amor. A caridade precisa ser pronta.
Julgavam que Eu fosse um fantasma. Oh! quantas vezes, pobres filhos,
Me tomais por um fantasma, um objeto que causa medo! Se pensásseis
sempre em Mim, Me teríeis reconhecido logo. Mas tendes tantos outros
fantasmas no coração, e é isso que vos causa vertigem. Mas Eu me faço
conhecer. Oh! Se Me soubessem perceber!
274.8Por que afunda Pedro, depois da haver caminhado tantos metros? Já
o disseste: porque os sentimentos humanos dominam o seu espírito.
Pedro era muito “homem.” Se tivesse sido João, não teria nem
dominadoramente ousado, nem voluvelmente mudado de pensamento. A
pureza dá prudência e firmeza. Mas Pedro era “homem” em toda a extensão
da palavra. Ele tinha o desejo de ser o primeiro, de fazer ver que “ninguém”
como ele amava o Mestre, queria impor-se, e, só porque era um dos meus,
julgava-se já acima das fraquezas da carne. Mas, ao contrário, pobre Simão,
que nas provas dava contraprovas nada sublimes. Mas era necessário para
que ele fosse um dia aquele que iria perpetuar a misericórdia do Mestre no
seio da Igreja nascente. Pedro, não somente se deixa levar pelo assalto do
medo, por estar sua vida em perigo, mas se torna nada mais, como disseste,
do que “carne que treme.” Ele não reflete mais, não olha mais para Mim.
Também vós fazeis assim, e quanto mais o perigo é eminente, mais quereis
fazer por vós. Como se vós pudésseis fazer algo! Jamais, como nas horas
em que deveríeis esperar em Mim, e chamar-me, vos afastais e fechais o
coração, e também me maldizeis.
Pedro não fala mal de Mim. Mas se esquece de Mim, e Eu preciso dar-
lhe uma ordem, para que seu espírito volte a Mim e o faça levantar os olhos
para o seu Mestre e Salvador.
Eu o absolvo, antes que ele o peça, do seu pecado, do seu pecado de
dúvida, porque Eu o amo, a este homem impulsivo que, quando for
confirmado na graça, saberá proceder sem ter mais perturbações ou
cansaços, até o martírio, e tornando incansável, até a morte, a sua mística
rede para levar almas para o seu Mestre. E, quando ele me invoca, Eu não
vou caminhando, mas vou voando em seu socorro, e o seguro firmemente,
para conduzi-lo a salvo. Branda foi a minha censura, porque conheço todos
os atenuantes de Pedro. Eu sou o defensor e o juiz melhor que há, e ao qual
nunca terá havido igual. Isso para todos.
274.9Eu vos compreendo, meus pobres filhos. E, mesmo quando vos digo
uma palavra de censura, o meu sorriso vo-la adoça. Eu vos amo. Eis tudo.
Eu quero que tenhais fé. E, se a tiverdes, Eu virei, e vos levarei para longe
do perigo. Oh! Se a Terra soubesse dizer “Mestre, Senhor, salva-me!”,
bastaria um grito, mas de toda a Terra, para que, no mesmo instante, satanás
e os seus carrascos, se calassem vencidos. Mas não sabeis ter fé. Eu vou
multiplicando os meios para levar-vos à fé. E, no entanto, eles caem na
vossa lama, como pedra jogada na lama de um brejo, e lá jazem sepultados.
Não quereis purificar as águas do vosso espírito, porque gostais de ser
lodo podre. Não importa. Eu cumpro o meu dever de Eterno Salvador. E
até, se Eu não puder salvar o mundo, porque o mundo não quer ser salvo,
Eu salvarei do mundo aqueles que, por me amarem como devo ser amado,
já não são mais deste mundo.
[…]
[72] como aquela, que está descrita em 185.3.
275. Quatro discípulos novos. Discurso sobre
as obras de misericórdia espirituais e corporais.
8 de setembro de 1945.
[…]
275.1Jesus está nas planícies de Corozaim, ao longo do vale do alto
Jordão, entre o lago de Genezaré e de Meron. Está agora em uma campina
cheia de vinhedos, nos quais já estão começando a vindima.
Ele deve estar aí, já há alguns dias, porque a Ele vieram unir-se esta
manhã os discípulos que estavam em Sicaminon e, entre estes, estão de
novo Estêvão e Hermes, e Isaque se desculpa por não ter podido estar ali
antes, porque, diz ele, os novos que chegaram e as perguntas se era bom ou
não. Dá trazê-los consigo o fizeram atrasar.
– Mas –diz ele ainda–, eu pensei que o caminho para o céu está aberto
para todos os de boa vontade, e parece-me que esses, ainda que alunos de
Gamaliel, sejam tais.
– Disseste e fizeste bem. Traze-os aqui a Mim.
Isaque vai, e volta com os dois.
– A paz esteja convosco. Ter-vos-á parecido a palavra dos apóstolos tão
verdadeira, a ponto de quererdes vir unir-vos a nós?
– Sim. Mas principalmente a tua. Não nos rejeites, Mestre.
– Por que haveria Eu de fazer isso?
– Porque nós somos de Gamaliel.
– E que tem isso? Eu honro o grande Gamaliel, e gostaria que ele
estivesse comigo, pois é digno de estar. Só lhe falta isso, para que ele faça
de sua sabedoria uma perfeição. Que vos disse ele, quando o deixastes?
Pois certamente vos despedistes dele.
– Sim. E ele nos disse: “Felizes vós, que podeis crer. Rezai para que eu
me esqueça, a fim de poder lembrar-me.”
Os apóstolos que, cheios de curiosidade, estavam juntos ao redor de
Jesus, olham um para o outro e, em voz baixa, perguntam:
– Que terá ele querido dizer? Que quererá ele? Esquecer-se para
recordar?
Jesus ouve esse cochicho, e explica:
– Ele quer esquecer-se de sua sabedoria, para assumir a minha. Quer
esquecer-se de que ele é o rabi Gamaliel, para lembrar-se de que é um filho
de Israel à espera do Cristo. Ele quer esquecer-se de si mesmo para
lembrar-se da Verdade.
– Gamaliel não é mentiroso, Mestre –desculpa-o Hermes.
– Não. Mas a mistura de palavras humanas é mentirosa. As palavras
substituídas pela Palavra. É necessário esquecê-las, despojar-se delas,
dirigir-se, nu e virgem, para a Verdade, a fim de que se fique revestido e
fecundado. Mas isso requer humildade. O obstáculo…
– Então, nós também temos que esquecer?
– Sem dúvida. Esquecer-vos de tudo o que é coisa do homem. E
lembrar-vos de tudo o que é coisa de Deus. Vinde. Vós podeis fazer isso.
– Nós queremos fazê-lo –afirma Hermes.
– Já tereis vivido uma vida de discípulos?
– Sim. Desde o dia em que ficamos sabendo da morte do Batista. A
notícia chegou a Jerusalém muito depressa, levada pelos cortesãos e chefes
de Herodes. A morte dele nos sacudiu do nosso torpor –responde Estêvão.
– O sangue dos mártires sempre é vida para os entorpecidos, Estêvão.
Lembra-te disso.
– Sim, Mestre. 275.2Irás falar hoje? Eu estou com fome da tua palavra.
– Eu já falei hoje. Mas falarei ainda, e muito, a vós discípulos. Os
vossos companheiros, os apóstolos, já começaram a missão deles, depois de
uma ativa preparação. Mas eles não bastam para as necessidades do mundo.
É necessário que se tenha feito tudo, e exatamente a tempo. Eu sou como
alguém que tem um prazo marcado, e deve ter feito tudo dentro daquele
tempo. Eu vos peço a todos a vossa ajuda em nome de Deus e vos prometo
ajuda e um futuro de glória.
Os olhos agudos de Jesus descobrem um homem todo envolvido em um
manto de linho:
– Não és tu o sacerdote João?
– Sim, Mestre. Mais árido do que o vale maldito é o coração dos judeus.
Eu fugi deles, para vir à procura de Ti.
– E o sacerdócio?
– A lepra me havia expulsado dele da primeira vez. Os homens o
fizeram, na segunda, porque eu te amo. A tua Graça me atraia a si: a Ti. Ela
também me expulsa de um lugar profanado, para levar-me a um lugar puro.
Tu me purificaste, Mestre, no corpo e no espírito. E uma coisa pura não
pode, não deve aproximar-se de uma coisa impura. Seria uma ofensa a
quem a tivesse purificado.
– Julgas de modo severo. Mas não é injusto.
– Mestre, as sujeiras da família são conhecidas por quem vive na
família, e só são contadas a quem tem coração reto. E Tu o és. E, além
disso, já sabes. A outros eu não o diria. Aqui estamos Tu, os teus apóstolos
e mais dois, que sabem como Tu e como eu. Portanto…
– Está bem. Mas… Oh! Tu também? A paz esteja contigo. Vieste para
repartir outro alimento?
– Não, mas para receber do teu alimento.
– Será que os que recolheste se estragaram?
– Oh! Não. Nunca estiveram tão bonitos. Mas, meu Mestre, eu procuro
um outro pão, de uma outra colheita, da tua! E comigo está o leproso que
Tu curaste em minhas terras. Ele voltou ao seu patrão. Mas, tanto ele como
eu, temos agora um patrão para seguir e servir: és Tu.
– Vinde. Um, dois, três, quatro… Uma boa colheita! Mas, já pensastes
como vai ficar a vossa posição para com o Templo? Vós sabeis, Eu sei… e
não digo mais nada…
– Eu sou um homem livre, e vou com quem eu quero –diz o sacerdote
João.
– E eu também –diz o último que chegou: o escriba João, que é aquele
que distribuiu alimento[73] no sábado, aos pés do Monte das Bem-
aventuranças.
– E nós também –dizem Hermes e Estêvão.
E Estêvão acrescenta:
– Fala-nos, Senhor. Nós não sabemos exatamente qual a nossa missão.
Dize-nos qual é o mínimo em que possamos servir-te logo. O mais virá,
quando Te acompanharmos.
– Sim. No monte falaste das bem-aventuranças. E aquela lição era para
nós. Mas, estando nós juntos com os outros, em um segundo amor, que é o
para com o próximo, que é que devemos fazer? –pergunta o escriba João.
275.3– Onde está João de Endor? –pergunta Jesus, em resposta.
– Está lá, Mestre, com aqueles curados.
– Que ele venha aqui.
João de Endor se aproxima. Jesus lhe passa a mão sobre o ombro, com
uma saudação especial, e lhe diz:
– Muito bem. Agora Eu vou falar. Quero ter diante de Mim a vós, que
tendes um nome santo. Tu, meu apóstolo; tu, sacerdote; tu, escriba; tu, João
do Batista; e, por fim, tu, para fechar a coroa das graças dadas por Deus. E,
se Eu te nomeio por último, sabes que não és o último em meu coração. Eu
te prometi um dia este discurso. Ei-lo.
E Jesus, como costuma fazer, sobe a um lugar alto, a fim de que todos
possam vê-lo, tendo à sua frente, na primeira fila, os cinco Joãos. Atrás
deles, está a multidão dos discípulos, misturada com a dos que vieram de
todos os lados da Palestina, pela necessidade de saúde ou da palavra.
275.4– A paz esteja com todos vós, e a sabedoria sobre vós.
Escutai. Foi-me perguntado um dia, faz muito tempo, até que ponto
Deus é misericordioso para com os pecadores. Quem fazia aquela pergunta
era um pecador perdoado que não conseguia persuadir-se do completo
perdão de Deus. E Eu, com algumas palavras, o tranquilizei, e lhe garanti e
lhe prometi que para ele Eu teria sempre falado da misericórdia, para que o
seu coração arrependido, que dentro dele parecia o de um menino perdido
que chorava, se sentisse na certeza de estar já entre os que pertencem ao seu
Pai dos Céus.
Deus é Misericórdia, porque Deus é Amor. O servo de Deus deve ser
misericordioso para imitar Deus.
Deus se serve da misericórdia como de um meio para atrair a Si os
filhos desviados. O preceito do amor é obrigatório para todos. Mas deve ser
três vezes mais nos servos de Deus.
Não se conquista o Céu, se não se ama. Mas basta dizê-lo aos que
creem. Aos servos de Deus Eu digo: “Não se consegue que os que creem
conquistem o Céu, se não se amarem com perfeição.”
E vós, que sois? Vós que vos aglomerais aqui ao redor de Mim ? Em
vossa maior parte, sois criaturas que vos inclinais para a vida perfeita, para
a vida bendita, cansativa, luminosa do servo de Deus, do ministro de Cristo.
E, que deveres tendes nessa vida de servos e ministros? Um amor total a
Deus, um amor total ao próximo. A vossa meta: servir. Como? Restituindo
a Deus aqueles que o mundo, a carne e o demônio arrebataram a Deus. De
que modo? Com o amor. O amor que tem mil formas para manifestar-se, e
um único fim: fazer amar.
275.5Pensemos em nosso belo Jordão. Como é imponente em Jericó.
Mas, ele era assim na nascente? Não. era um fio de água, e assim teria
ficado, se tivesse ficado sempre só. Mas, eis que dos montes e colinas, de
uma e outra margem do seu vale, descem milhares e milhares de afluentes,
uns deles solitários outros formados por centenas de córregos, vão despejar-
se em seu leito, que cresce, cresce, cresce sempre mais, até se transformar
do doce regato de prata azulada, que se ria e brincava em sua meninice de
rio, no largo, solene e plácido rio, que enxerta uma fita azul celeste por
entre suas ubertosas e esmeraldinas margens.
Assim é o amor. É um fio inicial para as crianças que estão começando
o Caminho da Vida, as quais mal sabem salvar-se do pecado grave, por
temor do castigo, e depois, continuando no caminho da perfeição, eis que
das montanhas da humanidade, escabrosas, áridas, soberbas e duras,
surgem, por um desejo de amor, córregos e mais córregos desta virtude
principal, e tudo serve para fazê-la nascer e jorrar: as dores e as alegrias,
assim como nos montes servem para formar os arroios as neves geladas e o
sol que as derrete. Tudo serve para abrir-lhes o caminho: tanto a humildade,
como o arrependimento. Tudo serve para canalizá-las para o córrego inicial.
Porque a alma, impelida para aquele caminho, gosta das descidas para o
aniquilamento do eu, aspirando reerguer-se, atraída pelo Sol-Deus, depois
de ter-se transformado em um rio poderoso, belo e benfeitor.
Os riachos que nutrem o rio embrionário do amor temeroso são, além,
das virtudes, as obras que as virtudes ensinam a praticar. As obras que,
justamente para serem rios de amor, são obras de misericórdia. Vamos
percorrê-las juntos. Algumas já eram conhecidas de Israel, enquanto outras,
Eu as torno conhecidas, porque a minha Lei é perfeição de amor.
275.6Dar de comer a quem tem fome.
É um dever de reconhecimento e de amor. Dever de imitação. os filhos
são agradecidos ao pai pelo pão que ele lhes dá e, quando homens feitos,
eles o imitam ao darem o pão aos seus filhos e ao pai, que já não pode
trabalhar por causa de sua idade, e lhes dão o pão com o seu próprio
trabalho, como uma amorosa restituição, uma restituição devida dos bens
adquiridos. O quarto preceito diz: “Honra a teu pai e à tua mãe.” É um
modo de honrar os seus cabelos brancos o que se faz para não deixá-los ir
pedir a outros o pão por esmola.
Mas, antes do quarto, diz-nos o primeiro preceito: “Ama a Deus com
todo o teu ser”, e o segundo: “Ama a teu próximo como a ti mesmo.” Amar
a Deus por ser quem é, e amá-lo no próximo, é perfeição,
Ama-se ao próximo dando pão a quem tem fome, em lembrança das
muitas vezes que Ele matou a fome do homem por meio do milagre. Mas
sem ficar olhando só para o maná e as codornizes, olhemos para o milagre
contínuo do grão que germina pela bondade de Deus, que nos deu terra
própria para a cultura, e controla os ventos, chuvas, calor e estações, a fim
de que a semente se vá transformando em espiga, e a espiga em pão.
E não foi um milagre da sua misericórdia o fato de ter o Senhor, com
uma luz sobrenatural, ensinado ao filho culpado que aquelas ervas altas e
esguias, que terminavam produzindo frutos de sementes douradas pelo
quente cheiro do sol, fechadas dentro da dura faixa de escamas espinhentas,
eram um alimento que haveria de ser colhido, descascado, transformado em
farinha, amassado e assado? Deus ensinou tudo isso. Foi Ele que ensinou
como colhê-lo, limpá-lo, moê-lo, amassá-lo e assá-lo. Ele pôs as pedras
perto das espigas, a água perto das pedras, acendeu com os reflexos da água
e do sol o primeiro fogo sobre a terra e, sobre o fogo, o vento levou alguns
grãos que, ao se queimarem, exalaram um odor agradável, a fim de que o
homem compreendesse que, melhor do que quando eles são tirados da
espiga, como sabem fazer os passarinhos, ou só molhado com água, depois
de ter virado farinha, e ter sido transformado em uma massa grudenta,
muito melhor é quando o fogo o assa. Não pensais nisso, vós que hoje
comeis o pão gostoso, assado no forno de vossa casa, não pensais quanto é
bom podermos ter chegado a esta perfeição no modo de assar, e quanto
caminho teve que ser percorrido pelo conhecimento humano, desde a
primeira espiga, que foi mastigada, como faz o cavalo, até chegarmos ao
pão que hoje temos? Por quem fomos ensinados? Pelo Doador do pão. E
assim aconteceu com todas as espécies de alimento que o homem soube por
meio de uma luz benfazeja, descobrir e separar, dentre as plantas e animais
com que o Criador cobriu a terra, paterno para o filho culpado.
Portanto, dar de comer a quem tem fome é uma oração de
reconhecimento ao Senhor e Pai, que mata a fome, e é bom imitar o Pai, do
qual recebemos esta semelhança gratuita, que é preciso aumentar sempre,
com a imitação de suas ações.
275.7Dar de beber a quem tem sede.
Já pensastes que aconteceria, se o Pai não fizesse mais chover as águas
do céu? Ou, então, se Ele dissesse: “Pela vossa dureza para com quem está
com sede, Eu vou impedir as nuvens de descerem sobre a terra”,
poderíamos nós protestar e falar mal dele? A água, mais ainda do que o
trigo, é de Deus. Porque o trigo é cultivado pelo homem, mas só Deus é
quem cultiva os campos das nuvens, que descem em forma de chuva ou de
orvalho, como névoa ou neve, nutrem os campos e abastecem as cisternas,
enchem os rios e os lagos, dão abrigo aos peixes, que matam a fome dos
homens e de outros animais. Portanto, podeis vós responder a quem vos diz
“Dá-me de beber”, dizendo-lhe: “Não. Esta água é minha, e eu não te dou?”
Mentirosos! Quem de vós já fez um só floco de neve, ou um só pingo de
chuva? Quem já fez evaporar um só dos diamantes do orvalho com o seu
calor astral? Ninguém. É Deus quem faz isso. E, se as águas descem do céu,
e voltam a subir, somente Deus regula esta parte da criação, assim como
tudo mais.
Dai, pois, a boa água fresca dos lençóis do subsolo, ou a água limpa do
vosso poço, ou a que encheu as vossas cisternas, dai-a a quem tem sede.
São águas de Deus. São para todos. Dai-as a quem tiver sede. Por uma tão
pequena boa obra, que não custa o vosso dinheiro, que não exige outro
trabalho senão o de estender com a mão um copo ou uma vasilha, Eu vo-lo
digo, tereis uma recompensa no Céu. Porque não é a água, mas é o ato de
caridade que é grande, diante dos olhos e do julgamento de Deus.
275.8Vestir os nus.
Veem-se pelas estradas deste mundo pessoas em estado vergonhoso por
uma nudez que nos causa dó. São velhos abandonados, são inválidos por
doenças ou por outras desventuras, são leprosos que voltaram à vida por
vontade do Senhor, são viúvas com prole numerosa, são feridos por
acidentes que os privaram de toda comodidade, são órfãos inocentes. Se Eu
lançar um olhar por toda a vastidão da terra, verei por toda parte pessoas
nuas, ou cobertas com trapos, que mal lhes salvam a decência, e não as
protegem contra o frio. E essas pessoas ficam olhando, com um olhar
humilhado, para os ricos, que vão passando com suas roupas macias e com
os pés calçados com sapatos delicados. Humilhados com a bondade dos
bons e com o ódio dos menos bons. Mas por que não os auxiliais no
aviltamento em que se acham, tornando-os melhores, se já são bons, e
destruindo-lhes o ódio, se são menos bons, com o vosso amor?
Não digais: “O que eu tenho é só para mim.” Como acontece com o
pão, sempre tendes alguma coisa a mais do que o necessário, nas mesas e
nos armários de quem não está completamente abandonado. Entre estes que
Me estão ouvindo, há mais de um que soube, de uma roupa que ele deixou
de usar por estar muito batida, tirar uma roupinha para um órfão ou algum
menino pobrezinho e, de um lençol velho, fazer faixas para algum inocente
que não as tem, soube repartir, durante muitos anos, o pão esmolado
cansativamente com quem, por estar leproso, não podia ir estender a mão às
soleiras dos ricos. E, em verdade, Eu vos digo que esses misericordiosos
não devem ser procurados entre os possuidores de bens, mas por entre as
fileiras humildes dos pobres que, por serem assim é que sabem quão penosa
é a pobreza.
Também aqui, como para a água e o pão, pensai que a lã e o linho com
que vos vestis provêm dos animais e das plantas, que o Pai criou não
somente para os ricos entre os homens, mas para todos os homens. Porque
Deus deu somente uma riqueza ao homem: a da sua Graça, da salvação, da
inteligência. Mas não a riqueza suja que é o ouro, que vós andastes
enaltecendo, fazendo dele, que é um metal não melhor do que os outros,
muito menos útil que o ferro, com que se fazem as pás e os arados, as
grades e as foices, os escopros, os martelos, os serrotes, as plainas, as santas
ferramentas do santo trabalho, fazeis dele o nobre metal, que vós elevastes a
uma nobreza inútil, mentirosa, por uma instigação de satanás que, de filhos
de Deus, vos tornou selvagens como feras. A riqueza daquilo que é santo
vos havia dado com que vos pudésseis tornar-vos sempre mais santos! Mas
não esta riqueza homicida, que tanto sangue e lágrimas derrama.
Dai, pois, como vos foi dado. Dai em nome do Senhor, sem terdes
medo de ficar nus. Melhor seria morrer de frio, por sermos despojados em
favor do mendigo, do que fazer enregelar-se o coração, mesmo por baixo de
vestes cômodas, pela falta de caridade. O leve calor que sentimos pelo bem
feito é mais doce do que aquele de um manto da mais pura lã. E as carnes
do pobre, agora por nós cobertas, falam a Deus, e lhe dizem: “Abençoa a
quem nos vestiu.”
275.9Se matar a fome, a sede, vestir, tirando de si para dar aos outros são
atos que unem a santa temperança à santíssima caridade e vós mesmos à
bem-aventurada justiça, pela qual se modifica com santidade a sorte dos
nossos irmãos infelizes, dando daquilo que temos em quantidade, por
permissão de Deus, a favor de quem, ou por malvadeza dos homens, ou por
doenças, daquilo tiver ficado privado, nesse caso albergar os peregrinos
une a caridade à confiança e aos bons pensamentos do próximo a nosso
respeito. Esta também é uma virtude, sabeis? Uma virtude que denota em
quem a possui, além da caridade, a honestidade. Porque quem é honesto,
age bem e, visto que quem age bem tem o costume de pensar que assim
também ajam os outros, acontece, então, que a confiança, a simplicidade
com que se acredita sempre que as palavras dos outros sejam verdadeiras,
mostram que aquele que as ouve é alguém que diz a verdade nas grandes e
nas pequenas coisas, não chegando, por isso, a desconfiar do que os outros
dizem.
Por que pensar, diante do peregrino que nos pede abrigo: “E se ele for
um ladrão ou um assassino?” Será que estais tão apegados às vossas
riquezas, que temeis, por causa delas, cada vez que chega até vós um
estranho? Será que estais tão apegados à vossa vida, que ficais arrepiados
de medo, ao pensardes que podeis dela ficar privados? E, então? Achais que
Deus não vos pode defender dos ladrões? Será? Temeis no passante um
ladrão, e não tendes medo do hóspede tenebroso, que vos pode roubar o que
é insubstituível? Quantos dão hospedagem em seus corações ao demônio?
Eu poderia dizer-vos: todos dão hospedagem aos pecados capitais e, no
entanto, ninguém fica tremendo por isso. Será, então, só o bem da riqueza e
da existência que é precioso? Não será mais preciosa a eternidade, que vós
deixais que vos seja roubada e morta pelo pecado? Pobres, bem pobres
essas almas roubadas em seu tesouro, postas nas mãos de seus assassinos,
como se fossem coisas de pouco valor, ao passo que se fazem barricadas ao
redor das casas, põem-se ferrolhos nas portas, cães e cofres são usados para
guardar e defender muitas coisas que nós não iremos levar para a outra
vida!
Por que querer ver em cada peregrino um ladrão? Nós somos irmãos. A
casa se abre para os irmãos que estão de passagem. O peregrino não é do
nosso sangue? Oh! Sim! É do sangue de Adão e Eva. Não é nosso irmão? E,
como não? O pai é um só: Deus que nos deu uma alma igual, assim como
aos filhos de um mesmo leito o pai dá um sangue igual. E um pobre?
Procurai que não seja mais pobre do que ele o vosso espírito privado da
amizade do Senhor. A veste dele está rasgada? Fazei que não esteja ainda
mais rasgada a vossa alma, pelo pecado. Estão enlameados ou empoeirados
os pés dele? Fazei que mais do que a sandália dele, suja pela longa viagem,
e rota pelo muito andar, não esteja o vosso eu, consumido pelos vícios. É
feia a aparência dele? Fazei que não seja mais feia ainda a vossa aos olhos
de Deus. É estranho o seu modo de falar? Fazei que não tenhais vós a
linguagem do coração incompreensível na cidade de Deus.
Vede no peregrino um irmão. Todos nós somos peregrinos a caminho
para o Céu, e todos nós batemos às portas que estão ao longo do caminho
do que vai para o Céu. Essas portas são os patriarcas e os justos, os anjos e
os arcanjos, aos quais nos recomendamos, para termos a ajuda e a proteção
deles, a fim de podermos chegar à nossa meta, sem que caiamos no escuro
da noite, no rigor do frio, presas das ciladas dos lobos e dos chacais, que
são as paixões malvadas e os demônios. Como queremos que os anjos e os
santos nos demonstrem o seu amor para hospedar-nos e dar-nos de novo o
alento para continuarmos o caminho, assim façamos nós para com os
peregrinos deste mundo. E cada vez que abrirmos a casa e os braços para
saudarmos com o doce nome de irmão a um desconhecido, pensando em
Deus que o conhece, Eu vos digo que tereis percorrido muitas milhas do
caminho que vai para os Céus.
275.10Visitar os enfermos
Oh! Como é verdade que, sendo todos peregrinos, todos são enfermos!
E suas doenças mais graves são as do espírito, que são invisíveis e as mais
mortais. E, no entanto, eles não tomam cuidado. Não lhes repugna a chaga
moral. Não lhes causa nojo o fedor do vício. Não lhes faz medo a loucura
diabólica. Não lhe causa horror a gangrena de alguém que é leproso em seu
espírito. Não os faz fugir o sepulcro cheio da podridão de um homem morto
e putrefato em seu espírito. Não é anátema aproximar-se dessas impurezas.
Como é pobre e restrito o pensamento do homem!
Dizei-me: o que tem mais valor, o espírito ou a carne e o sangue? Terá
o que é material o poder de corromper, por sua proximidade, o que é
incorpóreo? Não. Eu vos digo que não. O espírito tem um valor infinito, se
comparado com a carne e o sangue, isto sim. Mas a carne não tem maior
poder do que o espírito. O espírito pode ser corrompido, mas não por coisas
materiais, e, sim, pelas espirituais. Se até alguém, que trata de leprosos, não
fica leproso em seu espírito, mas, pelo contrário, por causa da caridade, que
ele praticou heroicamente, chegando até a segregar-se nos vales da morte,
por piedade para com o seu irmão, caem dele todas as manchas de pecado.
Porque a caridade absolve o pecado, e é a primeira das purificações.
Parti sempre deste pensamento: “O que eu gostaria que me fosse feito,
se eu estivesse como está esse aí?” E, como tu gostarias que a ti fosse feito,
faze-o tu.
Agora Israel ainda tem as suas antigas leis. Mas dia virá, e a sua aurora
não está mais muito longe, quando se venerará, como um símbolo de
perfeita beleza a imagem de Um no qual estará reproduzido materialmente
o homem das dores de Isaías, e o torturado do Salmo de Davi, Aquele que,
por se ter feito semelhante a um leproso, tornar-se-à o Redentor do gênero
humano, e às suas chagas acorrerão, como uns cervos que vão à fonte, todos
os sedentos, os doentes, os exaustos, os chorosos da terra, e Ele os
dessedentará, os curará, e os restaurará, os consolará em seus espíritos e em
suas carnes, e o anseio dos melhores será o de se tornarem semelhantes a
Ele, também eles cheios de feridas, esvaídos em sangue, espancados,
coroados de espinhos, crucificados por amor dos homens, que precisam ser
remidos, continuando assim a obra do Rei dos reis e Redentor do mundo.
Vós, que ainda sois Israel, mas já estais levantando as asas, a fim de voar
para o Reino dos Céus, começai desde agora esta concepção e avaliação
nova das enfermidades, e, bendizendo a Deus, que vos conserva sãos,
inclinai-vos sobre os que estão sofrendo e morrendo.
Um dos meus apóstolos disse um dia: “Não tenhas medo de tocar nos
leprosos. Nenhum mal se apegará a nós, por vontade de Deus.” Ele falou
bem. Deus guarda os seus servos. Mas, ainda que ficásseis contagiados, ao
cuidardes dos enfermos, seríeis colocados na lista dos mártires por amor, na
outra vida.
275.11Visitar os encarcerados
Credes vós que nas galeras estão somente os criminosos? A justiça
humana tem um olho cego e o outro perturbado por distúrbios visuais, pelos
quais vê camelos onde há apenas nuvens, ou toma uma serpente por um
ramo florido. Ela julga mal. E, pior ainda, porque, muitas vezes, quem a
guia, cria de propósito nuvens de fumaça, para que ela veja menos ainda.
Mas, ainda que os encarcerados fossem todos ladrões e homicidas, não é
justo que nos façamos ladrões e homicidas, tirando deles a esperança de
perdão com o nosso desprezo.
Pobres prisioneiros! Nem ousam levantar os olhos para Deus, pesados
como estão pelos delitos deles. Seus grilhões, em verdade, estão mais em
seu espírito do que nos pés. Mas, ai deles, se perdem a esperança em Deus!
Ao delito contra o próximo eles unem o do desespero do perdão. A galera é
expiação, assim como o é a morte no patíbulo. Mas não basta pagar a parte
que é devida à sociedade humana pelo delito cometido; é necessário pagar
também, e em primeiro lugar, a parte que deve ser paga a Deus, para expiar
e ter a vida eterna. E, quem é rebelde e desesperado, expia somente o que
deve à sociedade. Que ao condenado ou ao prisioneiro chegue o amor dos
irmãos. Será para ele uma luz nas trevas. Será uma voz. Será uma mão que
mostra o alto, enquanto a voz diz: “Que o meu amor te diga que Deus
também te ama. Ele colocou em meu coração este amor por ti, meu irmão
desventurado”, e essa luz permite entrever a Deus como Pai piedoso.
Que a vossa caridade vá, com maior razão, consolar os mártires da
injustiça humana. Os que são inculpáveis de fato, ou os que uma força cruel
levou a matar. Não julgueis, porém, o que já foi julgado. Vós não sabeis por
que o homem teve que matar. Não sabeis que muitas vezes não é mais do
que um morto aquele que mata, ele é autômato, privado da razão, porque
um assassinato sem sangue tirou-lhe o juízo, por causa da velhacaria de
alguma traição cruel. Deus o sabe. E basta. Na outra vida se verão muitos
das galeras, muitos que mataram e roubaram, no Céu, e se verão muitos,
que pareciam ter sido roubados ou mortos, no Inferno, porque na verdade,
os verdadeiros ladrões da paz dos outros, da honestidade, da confiança, os
verdadeiros assassinos terão sido aqueles que passaram por vítimas.
Vítimas, só porque foram feridos por último, mas depois de terem ferido,
sem que ninguém falasse nada, durante muitos anos. O homicídio e o furto
são pecados. Mas, entre o que mata e rouba, porque é levado a isso por
outros, e depois se arrepende, e o que induz outros ao pecado, e não se
arrepende disso, terá mais castigo aquele que leva outro ao pecado, e disso
não sente remorso.
Por isso, não julgueis nunca, e sede compassivos com os encarcerados.
Pensai sempre que, se devessem ser punidos todos os homicídios e furtos do
homem, poucos homens e poucas mulheres não morreriam nas galeras ou
nos patíbulos.
Aquelas mães, que conceberam, e depois não querem dar à luz o seu
fruto, com que nome é que deverão ser chamadas? Oh! Não façamos jogos
de palavras. Digamos sinceramente a elas o seu nome: “Assassinas.”
Aqueles homens que roubam reputações ou postos, como os chamaremos?
Simplesmente “Ladrões.” Aqueles homens e mulheres que, sendo adúlteros
ou atormentadores familiares daqueles com quem convivem, e os levam ao
homicídio ou ao suicídio, e também aqueles que, sendo os grandes da terra,
levam ao desespero os que estão sujeitos a eles, e, com o desespero, à
violência, que nome é que eles têm? É este: “Homicidas.” E, então?
Ninguém foge? Vós estais vendo que entre esses condenados, que
escaparam da justiça, que enchem as casas e as cidades, que esbarram em
nós pelos caminhos, que dormem conosco nos albergues, dividem a mesa
conosco, e vive-se sem pensar nisso. E, no entanto, quem é sem pecado?
Se o dedo de Deus escrevesse na parede do quarto, onde se reúnem para
o banquete, os pensamentos do homem, na frente estariam as palavras
acusadoras do que vós fostes, do que sois e do que sereis, e poucas paredes
trariam escrita com letras luminosas a palavra “Inocente.” As outras
paredes, com letras verdes como a inveja, ou pretas como a traição, ou
vermelhas como o delito, trariam estes nomes: “Adúlteros”, “Assassinos”,
“Ladrões”, “Homicidas.”
Sede, pois, misericordiosos, sem soberba, para com os irmãos menos
afortunados. de um modo humano, com os que estão na galera expiando o
que vós não expiais, tendo vós a mesma culpa que eles. Disso poderá tirar
proveito a vossa humildade.
275.12Sepultar os mortos.
A contemplação da morte é uma escola de vida. Eu gostaria de poder
levar-vos para diante da morte, e dizer: “Aprendei a viver como santos, para
não terdes outra morte, senão esta: uma separação temporária do corpo e da
alma, para depois ressurgirdes triunfalmente para sempre, reunidos e
felizes.”
Todos nós nascemos nus. Todos morremos, tornando-nos despojos
mortais, destinados à corrupção. Reis ou mendigos, como todos nascemos,
também todos morremos. E, se o fausto dos reis permite uma mais longa
preservação do cadáver, a sorte da carne que morreu é a de se desfazer. Até
as próprias múmias, que são? Serão de carne? Não. São matéria fossilizada
por meio de resinas lignificadas. Ela não é mais presa dos vermes, porque
está vazia e queimada pelas essências, mas é presa de carunchos, como
qualquer madeira velha.
Mas o pó volta ao pó, como disse Deus. E, no entanto, só porque esse
pó enfaixou o espírito e por ele foi vivificado, então, como coisa que tocou
na glória de Deus — e assim é a alma do homem — é preciso pensar que
esse pó é santificado, e não de modo diferente dos objetos que estiveram em
contato com o Tabernáculo. Pelo menos um momento houve em que a alma
foi perfeita: o momento em que o Criador a criou. E se depois a mancha a
deturpou, tisnando-lhe a perfeição, só por sua origem ela já comunica
beleza à matéria e, por essa beleza que vem de Deus, o corpo também fica
embelezado e merece respeito. Nós somos templos e, como tais, merecemos
honra, como sempre são honrados os lugares onde se deteve o Tabernáculo.
Dai, pois, aos mortos a caridade de um repouso honrado, enquanto ele
espera a ressurreição, vendo nas admiráveis harmonias do corpo humano a
mente e o dedo de Deus, que o idealizou e modelou com perfeição, e
venerando até nos despojos mortais a obra do Senhor.
275.13 Mas o homem não é só carne e sangue. É também alma e
pensamento. Estes últimos também sofrem e são misericordiosamente
socorridos.
Há ignorantes, que praticam o mal só porque não conhecem o bem.
Quantos não sabem, ou sabem mal as coisas de Deus e também as leis
morais! Como estão enfraquecidos pela fome, porque não há quem a mate,
e caem em marasmo, por falta das verdades que os nutram. Ide vós instruí-
los, pois para isso Eu vos reúno e vos mando. Dai o pão do espírito à fome
dos espíritos.
Instruir os ignorantes corresponde, no campo espiritual, a matar a fome
dos esfomeados e, se um prêmio é dado pelo pão oferecido ao corpo
enfraquecido, para que não morra naquele dia, que prêmio não será dado,
então, a quem mata a fome que um espírito sente das verdades eternas,
dando-lhe a vida eterna? Não sejais avarentos com o que sabeis. Tudo vos
foi dado sem despesas para vós, e sem medida. Dai-o sem avareza, porque é
coisa de Deus, como a água do céu, que é dada, assim como nos foi dada.
Não sejais avarentos nem soberbos daquilo que sabeis. Mas dai com
humilde generosidade.
275.14E dai o refrigério puro e benéfico da oração aos vivos e aos mortos,
que sentem sede de graças. Não se deve recusar água às faces sedentas. E,
então, aos corações dos vivos angustiados e aos espíritos sofredores dos
mortos? Orações, orações fecundas por serem atos de amor, feitos com
espírito de sacrifício.
A oração há de ser verdadeira, não mecânica, como o som de uma roda
na estrada. Será o som ou será a roda que faz o carro ir para a frente? É a
roda que se desgasta para levar o carro para a frente. A mesma coisa se diga
da oração vocal e mecânica e da oração ativa. A primeira é som, e nada
mais. A segunda age, enquanto se desgastam as forças e cresce o
sofrimento, mas consegue o que se desejava. Rezai mais com o sacrifício do
que com os lábios, e dareis um refrigério aos vivos e aos mortos, praticando
a segunda obra de misericórdia espiritual. O mundo será mais salvo pelas
orações dos que sabem orar do que pelas fragorosas, inúteis e mortíferas
batalhas.
275.15Muitas pessoas do mundo sabem disso. Mas não sabem crer com
firmeza. Como se estivessem presas entre dois campos opostos. Elas ficam
movendo-se de um lado para outro, sem conseguirem dar um só passo para
a frente e esgotam suas forças, sem nenhum resultado. Estes são os
duvidosos. São os que vivem dizendo: “mas”, ou “se”, ou “depois”. São os
que vivem fazendo perguntas: “Depois vai ser assim?”, “E se não for?”,
“Poderei eu?”, “E se não conseguir?”, e assim por diante. São como as
trepadeiras que, se não acharem onde agarrar-se, não sobem, ou que,
mesmo se o encontrarem, vão se pendurando aqui e ali, mas não só ainda
precisam que se lhes dê uma escora, mas é preciso guiá-las ao longo da
escora, ao correr das horas, ao passar dos dias. Oh! Como elas fazem
realmente que exercitemos nossa paciência e caridade, mais do que o faz
um menino retardado!
Mas, em nome do Senhor, não as abandoneis. Dai de vós uma fé cheia
de luz, uma fortaleza ardorosa a estes prisioneiros de si mesmos e de sua
nebulosa doença. Guiai-os para o sol e para o alto. Sede mestres e pais para
esses duvidosos, não tenhais com eles canseiras nem impaciências. Eles vos
fazem deixar cair os braços? Tudo bem. Vós também Me fazeis cair os
meus tantas vezes, e mais ainda, ao Pai, que está nos Céus, que deve muitas
vezes pensar que inutilmente sua Palavra deve ter-se feito carne, até mesmo
agora que Ele está ouvindo falar o Verbo de Deus. Não queirais já ficar
presumir que vós sois mais do que Deus, e mais do que Eu!
Portanto, abri os cárceres a estes prisioneiros dos “mas” e dos “se”.
Soltai-os dos grilhões dos “poderei?”, e “se não consigo?”. Procurai
persuadi-los de que basta fazer tudo na melhor maneira que puder e Deus
fica contente. E, se estais vendo que eles estão escorregando para longe da
escora, não vades adiante, mas tornai a erguê-los. Fazei como fazem as
mamães, que não vão para diante, se o seu pequenino cai, mas param, e o
reerguem, o limpam, o consolam, e o seguram até que lhe tenha passado o
medo de um novo tombo. E elas fazem isso durante meses e anos, se o
pequenino ainda está com as pernas fracas.
275.16Vesti os nus no espírito, com o perdão a quem vos ofende.
A ofensa é uma falta de caridade. A falta de caridade nos esvazia de
Deus. Por isso, quem ofende se torna nu, e só o perdão do ofendido
recoloca vestes na nudez dele. Pois Deus as dá de novo. Para perdoar, Deus
espera que o ofendido haja perdoado. Perdoar tanto ao que foi ofendido
pelo homem, como ao ofensor do homem e de Deus. Porque, podeis crer,
não há ninguém sem ofensas ao Senhor. Mas Deus nos perdoa, se nós
perdoamos ao próximo, e perdoa ao próximo, se o ofendido pelo seu
próximo lhe perdoa. Ser-vos-á feito conforme fizerdes.
Perdoai, pois, se quereis o perdão. E vos alegrareis no Céu pela
caridade que tiverdes praticado, como se um manto de estrelas tivesse sido
posto sobre vossos ombros santos.
275.17Sede misericordiosos com os que choram. São os feridos da vida,
os doentes do coração com os seus afetos.
Não vos fecheis na vossa serenidade, como em uma fortaleza. Sabei
chorar com quem chora, consolar os que estão aflitos, encher o vazio de
quem pela morte ficou sem um parente. Sede pais com os filhos, filhos com
seus progenitores, irmãos uns dos outros.
Amai. Por que haveremos de amar só os que são felizes? Estes já têm a
sua parte ao sol. Amai os que choram. Para o mundo são eles os menos
amáveis. Mas o mundo não sabe qual o valor das lágrimas. Vós o sabeis.
Amai, portanto, os que choram. Amai-os, que em seu choro estiverem
resignados. Amai-os, e ainda mais, se em sua dor estiverem revoltados. Não
useis de censura, mas de doçura, ao quererdes persuadi-los da verdade da
dor e da própria dor. Podem eles, por entre o véu do pranto, estar vendo
deformado o rosto de Deus, reduzido à expressão de uma prepotência
vingativa. Não. Não vos escandalizeis. Não é mais do que uma alucinação
produzida pela febre da dor. Socorrei-os, até que a febre baixe. A vossa fé
serena seja como o gelo que se aplica em quem está delirando.
E, quando a febre mais aguda baixa, e começa o abatimento e a
alienação cheia de surpresa de quem está voltando de um trauma, então,
como a crianças a quem uma doença impediu de se desenvolver
intelectualmente, voltai a falar-lhes de Deus, como de uma coisa nova, com
doçura e paciência…Oh! alguma bela história, contada para entreter o
eterno menino que é o homem! Depois, calai-vos. Não imponhais nada… A
alma trabalha por si. Ajudai-a com carícias e com a oração. E, quando ela
diz: “Então, não foi Deus?”, dizei-lhe: “Não. Ele não te queria fazer mal,
porque Ele te ama, até por quem já não te ama, porque morreu, ou por
outras causas.” E, quando a alma diz: “Mas eu o acusei”, dizei-lhe: “Ele já
se esqueceu disso, pois foi por causa da febre.” E, quando ela diz: “Então,
eu quereria”, dizei-lhe: “Ei-lo! Está à porta do teu coração, só esperando
que tu lhe abras.”
275.18Suportai as pessoas aborrecidas. Elas entram para perturbar a
pequena casa do nosso eu, assim como os peregrinos entram para perturbar
a casa em que moramos. Mas, assim como Eu vos disse que acolhais
aqueles, assim vos digo que acolhais estes.
Elas vos aborrecem? Mas, se vós não as amais pelo incômodo que vos
dão, elas, mais, ou menos bem, vos amam. Por este amor, acolhei-as. E,
ainda que elas viessem indagando, odiando, insultando, exercitai paciência
e caridade. Podeis melhorá-las com a vossa paciência. Podeis escandalizá-
las com vossa falta de caridade. Que vos entristeça que elas pecam por si
mesmas; mas, que vos cause mais tristeza fazê-las pecar e vós mesmos
pecardes. Recebei-as em meu nome, se não as podeis receber por vosso
amor. E Deus vos recompensará, vindo Ele, depois, a retribuir a visita e a
apagar a lembrança desagradável com as suas carícias espirituais.
275.19Finalmente, procurai sepultar os pecadores, para preparar a volta
à Vida da Graça. Sabeis quando fazeis isso? Quando admoestais os mesmos
com uma fraterna, paciente e amorosa insistência. É como se vós
sepultásseis pouco a pouco as feiúras do corpo, antes de entregá-lo ao
sepulcro para ficar à espera da ordem de Deus: “Levanta-te, e vem a Mim.”
Não purificamos os mortos, nós hebreus, por respeito ao corpo que
haverá de ressuscitar? Admoestar os pecadores é como que purificá-los em
seus membros, primeira operação para o sepultamento. O resto, a Graça do
Senhor o fará. Purificai-os com caridade, lágrimas e sacrifícios. Sede
heroicos em arrebatar uma alma da corrupção. Sede heroicos. Isto não
ficará sem prêmio. Porque, se um Prêmio vai ser dado por um copo de água
dado a um sedento de corpo, o que não será dado a quem tira da sede
infernal uma alma?
Tenho dito. Estas são as obras de misericórdia corporais e espirituais
que aumentam o amor. Ide e praticai-as. E a paz de Deus e a minha esteja
convosco agora e sempre.
[73] distribuiu alimento, como se narra em 175.4/5.
276. O homem avarento e a parábola do rico
estulto.
As inquietudes e a vigilância nos servos de Deus.
10 de setembro de 1945.
276.1Jesus está sobre uma das colinas da margem ocidental do lago. A
seus olhos se mostram as cidades e os povoados espalhados pelas beiras de
um e do outro lado, mas exatamente ao pé da colina estão Magdala e
Tiberíades, a primeira com o seu bairro de luxo, com seus muitos jardins,
claramente separados das pobres casas dos pescadores, dos camponeses e
das pessoas comuns por uma pequena torrente, agora completamente seca.
A outra, esplêndida em todas as suas partes, é uma cidade que não sabe o
que é miséria e decadência, e se ri, toda bela e nova, exposta ao sol,
defronte ao lago. Entre uma e outra cidade, são cultivadas hortas, poucas,
mas bem cuidadas, a partir da pequena planície. Depois crescem as oliveiras
que tomam conta das colinas. Por trás das costas de Jesus, se olharmos
deste cume, vê-se a selada do Monte das Bem-aventuranças, a cujos pés
está a estrada mestra, que do Mediterrâneo vai até Tiberíades.
Talvez por causa desta vizinhança de uma estrada mestra é que Jesus
terá escolhido este lugar, ao qual podem chegar as pessoas vindas de muitas
localidades da beira do lago ou da Galileia interior, e de onde, à tarde, é
fácil voltar para as casas, ou encontrar hospedagem em muitos pontos. O
calor aqui também é mais temperado por causa da altitude e por causa das
árvores de tronco alto, que no cume tomaram o lugar das oliveiras. Há de
fato muita gente, além dos apóstolos e dos discípulos. São pessoas que
precisam de Jesus para obterem saúde ou para pedir conselhos. Uns vieram
por curiosidade, outros foram levados por amigos, ou apenas por imitação.
De qualquer modo, são muitos. A estação já não é a da canícula, mas agora
está mudada para uma agradável amenidade de outono, que convida mais
do que nunca a quem quiser ir em peregrinação à procura do Mestre.
276.2Jesus já curou os doentes e já falou ao povo e, certamente, terá
exposto o tema das riquezas injustas e do desapego delas, que é necessário a
todos para ganharem o Céu, mas indispensável para os que querem ser seus
discípulos. Agora Ele está respondendo à pergunta de um ou de outro dos
discípulos ricos, que estão um pouco perturbados com este assunto.
O escriba João diz:
– Devo, então, destruir o que tenho, despojando os meus familiares do
que é deles?
– Não. Deus te deu bens. Faze que eles sirvam à Justiça, serve-te deles
com justiça, isto é, atende com eles às necessidades de tua família, é o teu
dever. Trata humanamente os servos é caridade. Ajuda os pobres, acode às
necessidades dos discípulos pobres. Então, as riquezas não te servirão de
tropeço, mas de ajuda.
Depois, falando a todos, diz:
– Em verdade, Eu vos digo que o mesmo perigo de perder o Céu, por
amor das riquezas, pode tê-lo também até o discípulo mais pobre, se, tendo-
se tornado meu sacerdote, faltar com a justiça, ou pactuar com o rico. Quem
é rico, ou mau, muitas vezes tentará seduzir-vos com donativos, para que
estejais de acordo com o seu modo de viver e com seu pecado. E haverá,
entre os meus ministros, os que cederão à tentação dos presentes. Não deve
ser assim. Que o Batista vos ensine. Realmente nele, ainda que não fosse
juiz nem magistrado, havia a perfeição do juiz e do magistrado, como é
indicada[74] pelo Deuteronômio: “Tu não farás acepção de pessoas, não
aceitarás presentes, porque eles tornam cegos os olhos dos sábios e mudam
as palavras dos justos.” Muitíssimas vezes o homem deixa que lhe embotem
o fio da espada da justiça, pelo ouro que um pecador passa por cima dele.
Não, isso não pode ser. Sabei ser pobres, sabei saber morrer, mas nunca
pactuar com a culpa. Nem mesmo com a desculpa de querer usar aquele
ouro em benefício dos pobres. É um ouro maldito e não lhes faria nenhum
bem. É ouro de um compromisso infame. Vós sois constituídos discípulos
para serdes mestres, médicos e redentores. Que seríeis, se vos tornásseis
cúmplices no mal, por algum interesse? Mestres de uma ciência maligna,
médicos que matam o doente, não redentores, mas colaboradores para a
ruína dos corações.
276.3Um da multidão, vem para a frente, e diz:
– Eu não sou discípulo. Mas eu te admiro. Responde, então, a esta
minha pergunta: Será permitido a alguém ficar com o dinheiro de outro?
– Não, homem. Isso é furto igual ao praticado por aquele que tira da
bolsa de quem vai passando.
– Mesmo quando o dinheiro é da família?
– Mesmo assim. Não é justo que um se aproprie do dinheiro de todos os
outros.
– Então, Mestre, vai a Abelmain, na estrada de Damasco, e manda a
meu irmão que reparta comigo a herança que nos deixou o nosso falecido
pai, mas sem ter deixado nada por escrito. Ele a apanhou toda. E nota que
nós somos gêmeos, nascidos do primeiro e único parto. Portanto, eu tenho
os mesmos direitos que ele!
Jesus olha para ele e lhe diz:
– É uma situação difícil e o teu irmão certamente não está agindo bem.
Mas tudo o que Eu posso fazer é rezar por ele, para que se converta, e ir ao
teu povoado para evangelizar e tocar-lhe assim o coração. Não me será
pesada a viagem, se Eu puder restabelecer a paz entre vós.
O homem, irritado, dispara:
– E que queres que eu faça com as tuas palavras? É preciso outra coisa,
em vez de palavras, neste caso!
– Mas, não me disseste que mande ao teu irmão que…
– Mandar não é evangelizar. Mandar sempre se faz com ameaça.
Ameaça-o, então, de ferir a pessoa dele, se não me der o que é meu. Tu o
podes fazer. Assim como dás saúde, podes também dar doença.
– Homem, Eu vim para converter, não para bater. Mas, se tiveres fé nas
minhas palavras, encontrarás paz.
– Que palavras?
– Eu te disse que rezarei por ti e por teu irmão, a fim de que fiques
consolado e que ele se converta.
– Histórias! Histórias! Eu não tenho a ingenuidade de crer nelas. Vem e
manda.
276.4Jesus, que era manso e paciente, torna-se imponente e severo. Ele se
endireita — antes estava um pouco inclinado sobre o homenzinho
corpulento e irado —, e diz:
– Homem, quem foi que me constituiu juiz e árbitro entre vós?
Ninguém. Mas, para acabar com uma briga entre dois irmãos, Eu estava
disposto a ir exercer minha missão de pacificador e de redentor e, se
tivesses crido nas minhas palavras, quando voltasses para Abelmain, terias
encontrado, já convertido, o teu irmão. Tu não sabes crer. E não terás o
milagre. Tu, o primeiro a agarrar o tesouro, terias ficado com ele, deixando
teu irmão sem uma parte dele, porque, em verdade, assim como vós
nascestes gêmeos, assim tendes também gêmeas as mesmas paixões e tu,
como o teu irmão, só tendes um amor: o ouro. E só uma fé: o ouro. Fica,
então com a tua fé. Adeus.
O homem vai-se embora, blasfemando e escandalizando a todos os que
gostariam de vê-lo castigado. Mas Jesus se opõe a eles. Ele diz:
– Deixai que ele se vá. Por que quereis sujar vossas mãos, batendo num
irracional? Eu o perdôo porque é um possesso do demônio do ouro que o
seduz: fazei assim também. Melhor é rezarmos por esse infeliz para que se
torne um homem de alma bela pela liberdade.
– É verdade. Até no rosto ele ficou horrível pela sua cobiça. Tu viste? –
perguntam um ao outro os discípulos e os que estavam presentes e se
encontravam mais perto do avarento.
– É verdade! É verdade! Nem parecia mais aquele de antes.
– Sim. Quando ele repeliu o Mestre, pouco faltou para que batesse nele,
enquanto o maldizia, e no rosto parecia um demônio.
– Um demônio tentador. Tentava o Mestre para a maldade…
276.5– Ouvi –diz Jesus–. Verdadeiramente as alterações do espírito se
fazem ver no rosto. É como se o demônio assomasse à superfície daquele
seu possesso. Poucos são os que, sendo demônios, ou por atos ou por sua
aparência, não deem sinais daquilo que são. E esses poucos são os perfeitos
no mal, os perfeitamente perversos. O rosto do justo, ao contrário, é sempre
belo, mesmo quando materialmente ele é deforme, e de uma beleza
sobrenatural, que se derrama do seu interior para o exterior. E, não por
medo de dizer, mas pela verdade dos fatos, nós podemos observar nos que
estão sem a impureza dos vícios um frescor até em suas carnes. A alma está
em nós e presente em todas as nossas partes. Os maus cheiros de uma alma
corrompida corrompem também as carnes. Enquanto que os perfumes de
uma alma pura preservam tudo. A alma corrompida impele a carne para os
pecados obscenos e estes a tornam envelhecida e deformada. A alma pura
impele a carne a uma vida pura. E isso conserva o frescor e comunica
majestade.
Fazei que em vós permaneça uma juventude pura de espírito, e que
ressurja, se já estiver perdida, e tomai cuidado para resguardar-vos de toda
cobiça, tanto da sensualidade, como do poder. A vida do homem não
depende da abundância dos bens que ele possui. Nem esta, nem, muito
menos a outra: a eterna. Mas depende de sua maneira de viver. E, com a
vida, a felicidade desta terra e a do Céu. Porque o viciado não é feliz,
realmente feliz. Enquanto que o virtuoso é sempre feliz, tem sempre alegria
celestial, mesmo quando é pobre e sozinho. Nem a morte o impressiona.
Porque ele não tem culpa nem remorsos que o façam ter medo do encontro
com Deus, e não tem saudades das coisas que deixa na terra. Ele sabe que
no Céu é que está o seu tesouro e, como alguém que vai pegar a herança
que o espera, uma herança santa, ele vai alegre, bem disposto, ao encontro
da morte, que lhe abre as portas do Reino, onde está o seu tesouro.
Formai logo o vosso tesouro. Começai-o desde a juventude, vós que
sois jovens; trabalhai incansavelmente, vós anciãos que, pela idade, estais já
mais perto da morte. Mas, posto que a morte tem um prazo desconhecido, e
muitas vezes chega para o menino antes de chegar para o velho, não fiqueis
adiando o trabalho de formar para vós um tesouro de virtude e de boas
obras para a outra vida, a fim de que a morte não vos pegue, sem que
tenhais posto no Céu um tesouro de merecimentos. Muitos são os que
dizem: “Oh! Eu sou jovem e forte. Por enquanto, quero gozar nesta terra,
depois me converterei.” Que grande erro!
276.6Ouvi esta parábola. As terras de um homem rico haviam produzido
muito. Ele havia feito uma colheita imensa. Pôs-se ele, então a contemplar
toda aquela riqueza, os montes de cereais sobre os seus campos e terreiros
e, não tendo mais lugar nos celeiros, precisava colocar a colheita sob
telheiros provisórios e até nos quartos de sua casa. Então, ele disse: “Eu
trabalhei como um escravo, mas a terra não me decepcionou. Trabalhei e
consegui uma colheita que vale por dez, e agora preciso descansar por
outras dez. Como vou fazer para guardar toda esta colheita? Vendê-la, eu
não quero, porque seria obrigado a trabalhar para ter uma nova colheita no
ano que vem. Eu vou fazer o seguinte: Vou desmanchar os meus celeiros, e
farei outros bem maiores, onde possam caber todas as colheitas, todos os
meus bens. Depois, eu direi a mim mesmo: ‘Desperta, homem! Tens
garantida agora a posse de muitos bens, e por muitos anos. Descansa, então,
come, bebe, regala-te!’” Aquele homem, como muitos outros, não fazia
diferença entre o corpo e a alma, misturava o que é sagrado com o que é
profano, porque na verdade a alma não se regala nas glutonarias nem no
ócio, e aquele homem, como muitos outros, depois de ter feito a primeira
boa colheita nos campos do bem, logo parou, achando que já havia feito
tudo.
Mas, não sabeis vós que, uma vez posta a mão ao arado, é preciso que
quem assim fez persevere, durante um, dez, cem anos, enquanto durar esta
vida, porque ficar parado é um delito contra nós mesmos, pois com isso
deixamos de dar valor a uma glória maior, e isso é voltar atrás, pois quem
para, quase sempre não só deixa de ir para a frente, mas fica para trás? O
tesouro do Céu deve aumentar o amor de ano em ano, para que seja
realmente bom. Visto que a misericórdia vai ser benigna até para com quem
teve poucos anos para formar o seu tesouro. Mas ela não será cúmplice dos
preguiçosos, que têm longa vida, e trabalham pouco. Há de ser um tesouro
em contínuo aumento. E, se ele não for mais um tesouro frutífero e ficar
inerte, isso irá em detrimento da paz já preparada no Céu.
Deus disse ao estulto: “Homem estulto, que confundes o corpo e os
bens da terra com o que é espiritual, e de uma graça de Deus fazes um mal,
fica sabendo que nesta mesma noite te será exigida e tirada a tua alma, e o
teu corpo jazerá sem vida. Tudo o que acumulaste, de quem será? Pensas
em levá-lo contigo? Não. Tu ficarás como nu, sem teres as tuas colheitas
terrenas, nem obras espirituais praticadas diante dos meus olhos, e assim
serás pobre na outra vida. Melhor teria sido para ti se, com tuas colheitas,
tivesses feito obras de misericórdia para com o próximo e para ti próprio.
Porque, sendo misericordioso para com os outros, era para a tua alma que o
estarias sendo. E, em vez de nutrir pensamentos de ócio, devias exercer
atividades das quais pudesses tirar honestas vantagens para o teu corpo e
grandes méritos para a tua alma, até que Eu te houvesse chamado.” E o
homem naquela noite morreu e foi severamente julgado.
Em verdade, Eu vos digo que assim acontece a quem ajunta tesouros
para si e não se torna rico aos olhos de Deus. Agora ide e fazei um tesouro
da doutrina que vos acaba de ser transmitida. A paz esteja convosco.
E Jesus, tendo abençoado, vai-se afastando dali, indo para um ponto
bem fechado do bosque com os apóstolos e discípulos paravtomarem
alimento e descanso. 276.7Mas, enquanto estão comendo, Ele continua ainda
falando sobre a lição de antes, repetindo um assunto de que Ele já falou[75]
muitas vezes aos apóstolos e que eu creio que dele nunca se fala demais,
porque o homem é sempre vítima de medos insensatos.
– Crede –diz Ele–, que somente desse enriquecimento de virtudes é
necessário preocupar-se. E prestai atenção: que vossa preocupação nunca
seja cheia de angústia nem de inquietação. O bem é inimigo da inquietação,
dos medos, daquelas pressas que muito têm ainda de avareza, de ciúme, de
desconfiança humana. O vosso trabalho seja constante, confiante, pacífico.
Sem partidas bruscas, nem paradas repentinas. Quem faz assim são os
burros selvagens. Mas ninguém faz uso deles, a não ser que seja algum
doido, para ir fazer uma viagem sem segurança. Pacíficos nas vitórias,
pacíficos nas derrotas. Até o choro por causa de algum erro cometido e que
vos entristece, porque com tal erro desagradastes a Deus, deve também ele
ser pacífico, confortado pela humildade e pela confiança. A prostração, o
rancor contra si mesmo é sempre um sintoma de soberba e, portanto, de
desconfiança. Se alguém é humilde, sabe que é pobre homem sujeito às
misérias da carne, que às vezes triunfa. Se alguém é humilde, tem
confiança, não somente em si mesmo, mas em Deus, e fica calmo nas
derrotas, dizendo: “Perdoa-me, Pai. Eu sei que Tu conheces a minha
fraqueza, que me vence de vez em quando. Eu creio que Tu tens compaixão
de mim. Tenho a firme confiança de que Tu me ajudarás no futuro, ainda
mais do que antes, apesar de eu ter satisfeito tão pouco à tua vontade.”
E não sejais nem apáticos, nem avarentos com os bens de Deus. De
tudo o que tiverdes de sabedoria e virtude, distribuí. Sede ativos nas coisas
espirituais, como os homens o são nas coisas da carne.
276.8E, quanto à carne, não fiqueis imitando os que são do mundo, que
estão sempre tremendo por causa do seu amanhã, pelo medo de que lhes
falte o supérfluo, de que os pegue uma doença, de que chegue a morte, de
que os inimigos lhes possam fazer mal, e assim por diante. Deus sabe do
que precisais. Não temais, pois, pelo vosso dia de amanhã. Ficai livres
daqueles medos, que pesam mais do que os grilhões dos galeotes. Não
fiqueis preocupados com vossa vida, nem com o que havereis de comer, ou
beber, nem com que vestir-vos. A vida do espírito é mais do que a do corpo
e do que as vestes, porque é com o corpo e não com as vestes que vós
viveis. E com a mortificação do corpo, ajudais o espírito a conseguir a vida
eterna. Deus sabe até quando vai deixar a alma no corpo e até que hora vos
dará o necessário. Ele o dá aos urubus, animais impuros, que vivem de
comer cadáveres e que tem sua razão de existir justamente nessa sua função
de eliminar as podridões. E Ele não o dará a vós? Aquelas aves não têm
despensas nem celeiros, e assim mesmo Deus as nutre. Vós sois homens, e
não urubus. Atualmente vós sois a flor da humanidade, pois sois os
discípulos do Mestre, os evangelizadores do mundo, os servos de Deus. E
podeis pensar que Deus cuida até dos lírios dos vales, e os faz crescer, e os
veste com a veste mais bela do que as que teve Salomão, sem que eles
tenham outro trabalho senão o de exalar o seu perfume, adorando, poderá
Ele deixar de pensar também em vossa veste? Vós que, por vós mesmos,
não sois capazes nem de pôr mais um dente nas bocas desdentadas, nem de
encompridar com mais uma polegada uma perna encolhida, nem de dar
mais agudeza de vista a uma pupila enevoada. E, se não podeis fazer nem
estas coisas, como achais que podereis afastar de vós a miséria e a doença e
fazer brotar alimento da poeira? Não podeis. Mas não sejais gente de pouca
fé. Vós tereis sempre o que vos é necessário. Não fiqueis aflitos como as
pessoas do mundo que ficam excitadas, querendo prover-se do que querem
gozar. Vós tendes vosso pai que sabe de que precisais. Vós só tendes que
procurar, e que seja a primeira de vossas procuras, o Reino de Deus e a sua
justiça, pois tudo mais vos será dado, sem que o procureis.
276.9Não temais, ó vós do meu pequeno rebanho. Aprouve a meu Pai
chamar-vos para o Reino, para que tenhais esse Reino. Podeis, pois, aspirar
a ele e ajudar o Pai com a vossa vontade e uma santa operosidade. Vendei
os vossos bens, fazei com eles esmola, se estais sozinhos. Dai aos vossos
um conforto, abandonando vossa casa para seguir-me, pois é justo não tirar
o pão aos filhos e às esposas. E, se não podeis assim fazer sacrifício de
riquezas em dinheiro, sacrificai as riquezas do afeto. Estas também são
riquezas que Deus avalia bem, por serem o que são: ouro mais puro que
qualquer outro, pérolas mais preciosas do que as que foram arrebatadas aos
mares, rubis mais raros do que os que foram extraídos das vísceras do solo.
Porque renunciar à família por Mim é caridade perfeita mais do que o ouro
sem impurezas, é pérola nascida do pranto, rubi feito do sangue que geme
da ferida do coração, lacerado pela separação do pai e da mãe, da esposa e
dos filhos. Mas estas bolsas não se desgastam, este tesouro não míngua
nunca. Os ladrões não penetram no Céu. O caruncho não rói o que lá é
depositado. E, tende o Céu no coração, e o coração no Céu. Junto ao vosso
tesouro. Porque o coração, tanto para o bem, como para o mal, estará lá
onde estiver aquilo que lhe parece ser o seu querido tesouro. Porque, assim
como o coração está onde está o tesouro (no Céu), assim o tesouro está
onde estiver o coração (isto é, em vós), ou melhor, o tesouro está no coração
e, com o tesouro dos santos, está no coração o Céu dos santos.
276.10Estai sempre prontos, como quem está preparado para viagem ou à
espera do patrão. Vós sois servos do patrão que é Deus. A qualquer hora
Ele pode chamar-vos para onde Ele está, ou vir aonde vós estais. Estai, pois,
sempre prontos para ir ou a prestar-lhe honras, estando com vossos lados
cingidos com cintos de viagem e de trabalho e com as lâmpadas acesas nas
mãos. Se sairdes de uma festa de núpcias com alguém que tenha ido à vossa
frente para os Céus, ou antes de vós se tenha consagrado a Deus nesta terra,
Deus poderá lembrar-se de vós, que estais esperando, e pode dizer-vos:
“Vamos para onde está Estêvão, ou João ou, então Tiago ou Pedro.” E Deus
é sempre rápido para vir e para dizer: “Vem.” Portanto, estai prontos para
abrir-lhe a porta, quando Ele chegar ou para partir, quando Ele vos chamar.
Felizes aqueles servos que o Patrão, quando chegar, encontrar
vigilantes. Em verdade, para recompensá-los por sua espera fiel, Ele se
cingirá com sua veste, e fazendo-os assentar-se à mesa, pôr-se-á a servi-los.
Ele pode vir na primeira vigília, ou na segunda, ou na terceira. Vós não o
sabeis. Por isso, estai sempre vigilantes. E felizes sereis vós, se assim o
Patrão vos encontrar. Não vos enganeis, dizendo: “Há muito tempo! Esta
noite Ele não vem.” Vós vos sairíeis mal. Vós não sabeis. Se alguém
soubesse quando o ladrão haveria de vir, não deixaria de guardar a casa,
porque o malandro poderia forçar a porta e os ferrolhos. Vós também estai
preparados, porque, quando menos pensardes, virá o Filho do homem,
dizendo: “Chegou a hora.”
276.11Pedro, que quase já se esqueceu de acabar de comer, para ficar
ouvindo o Senhor, vendo que Jesus se cala, pergunta:
– Isto que estás dizendo é para nós, ou para todos?
– É para vós e para todos. Mas é mais para vós, porque vós sois os
intendentes colocados pelo Patrão à frente dos servos e tendes o duplo
dever de estar preparados, seja para vós como intendentes, seja para vós
como simples fiéis. Como deve ser o intendente posto pelo patrão à frente
de seus familiares para dar a cada um, a seu tempo, a justa porção? Ele deve
ser perspicaz e fiel. Para cumprir o seu próprio dever e para fazer que os
que lhe estão submissos cumpram o dever deles. Se assim não fosse,
ficariam prejudicados os interesses do patrão, que paga ao intendente para
que faça as suas vezes e, em sua ausência, zele por seus interesses.
Feliz daquele servo que, quando o patrão voltar para casa, o encontrar
fielmente em seu trabalho, com diligência e justiça. Em verdade, Eu vos
digo que ele o fará intendente de mais outras propriedades e até mesmo de
todas as suas propriedades, e ficará tranquilo e se alegrando em seu íntimo
pela segurança que aquele servo lhe dá. Mas, se aquele servo disser: “Oh!
Que bom! O patrão está muito longe, e me escreveu que vai tardar a voltar.
Por isso, eu posso fazer o que eu achar bom e depois, quando a volta dele
estiver próxima, tomarei minhas providências.” E, assim pensando, se ele
começar a comer e a beber até ficar bêbado, e a dar ordens aos servos como
um ébrio, confiando na bondade deles, pois lhe são submissos, mas se
recusam a cumprir suas ordens quando elas são em prejuízo do patrão, e ele,
então passar a bater nos servos e nas servas, até fazê-los cair doentes e
debilitados, e ele, crendo ainda que é feliz, disser: “Afinal, eu gosto de ser
patrão e de ser temido por todos”, que será, então, que lhe vai acontecer?
Vai-lhe acontecer que o patrão logo chegará, quando ele menos o esperar, e
talvez até surpreendendo-o no ato de embolsar do dinheiro do patrão ou de
estar subornando algum dos servos mais pobres. E nesse caso, Eu vo-lo
digo, o patrão o tirará do cargo de intendente, e até do rol dos seus
empregados, pois não é justo conservar os infiéis e traidores no meio dos
honestos.
E agora o patrão o punirá tanto, quanto antes o havia amado e instruído.
Porque quem mais conhece a vontade e o pensamento do patrão, mais está
obrigado a cumpri-los exatamente. Se não fizer assim, como o patrão lhe
mandou, e de modo mais exato do que todos os outros, ele receberá muitas
pancadas, enquanto que os que, como servos menores, pouco sabem ou
erram pensando que estão fazendo o bem, terão castigos menores. A quem
muito foi dado, muito será exigido, e deverá prestar conta de muito quem
tomou conta de muito, pois vão ser exigidas dos meus intendentes contas
até de um pequenino, que tem apenas uma hora de nascido.
276.12A escolha que Eu fiz dele não foi para ele ir descansar em algum
pequeno bosque fresco e florido. Eu vim trazer fogo a esta terra. E que é
que Eu posso desejar, a não ser que ele se acenda? Por isso Eu me canso, e
quero que vos canseis até à morte, e até que a terra toda seja uma fogueira
de fogo celeste. Eu devo ser batizado com um batismo. E, como estarei
angustiado, enquanto ele não for feito! Vós não me perguntais por quê?
Porque para isso Eu poderei fazer de vós os portadores do Fogo, agitadores
que haverão de se mover em todos e contra todos os estratos sociais, para
fazer deles uma só coisa: o rebanho de Cristo.
Credes que Eu tenha vindo para trazer a paz à terra? E para estar de
acordo com o modo de ver da terra? Não. Pelo contrário, venho trazer
discórdia e separação. Porque, de agora em diante, e enquanto a terra toda
não for um único rebanho, de cinco pessoas que houver em uma casa, duas
estarão contra três, o pai estará contra o filho e esse contra o pai, a mãe
contra as filhas e estas contra aquela, as sogras e as noras terão um motivo a
mais para não se entenderem, porque uma linguagem nova estará sobre
certos lábios e se tornará uma Babel, pois que uma agitação profunda
sacudirá o reino dos afetos humanos e sobre-humanos. Mas depois virá a
hora em que tudo se unificará em uma língua nova, falada por todos os que
foram salvos pelo Nazareno, e se depurarão as águas dos sentimentos, indo
para o fundo as escórias, e brilhando na superfície as límpidas ondas dos
lagos celestes.
É verdade que servir-me pode não ser tomar repouso, conforme o
sentido que o homem der a esta palavra. É preciso ter heroísmo, e ser
incansável. Mas Eu vos digo: no fim será Jesus, sempre e ainda Jesus, que
cingirá a veste para vos servir, e depois sentar-se-á convosco para um
banquete eterno, e ficarão esquecidas todas as fadigas e dores.
276.13Agora, visto que ninguém mais nos procurou, vamos para o lago.
Repousemos em Magdala. Nos jardins de Maria de Lázaro há lugar para
todos, e ela pôs a sua casa à disposição do Peregrino e de seus amigos. Não
é preciso que Eu vos diga que Maria de Magdala morreu com o seu pecado
e renasceu em seu arrependimento, sendo agora Maria de Lázaro, discípula
de Jesus de Nazaré. Vós já o sabeis, porque a notícia correu ruidosa, como
vento por uma floresta. Mas Eu vos digo o que não sabeis: que todos os
bens pessoais da Maria de Lázaro são para os servos de Deus e para os
pobres de Cristo. Vamos…
[74] indicada, em Deuteronômio 16,19.
[75] já falou, por exemplo, no capítulo 173.
277. Em Magdala, nos jardins de Maria.
O amor e a correção entre irmãos.
16 de setembro de 1945.
[…]
277.1Jesus não está mais onde estava na última visão. Mas está em um
vasto jardim, que se estende até o lago, além do qual, ou melhor, no meio
do qual há uma casa precedida e rodeada por este jardim que, do lado de
trás, porém, se prolonga pelos menos três vezes o espaço que tem aos lados
e à frente da casa.
Nele há flores, mas, mais do que outras coisas, há árvores, pequenos
bosques e recantos verdes, como que cercados por piscinas de mármore
precioso, que mais parecem quiosques, que estão ao redor de mesas e
cadeiras de pedra. E haveria estátuas aqui e ali, tanto ao longo dos
caminhos, como passando por entre as piscinas. Restam delas ainda os
pedestais, como uma lembrança ao lado dos loureiros e buxos, ou a
espelhar-se nas piscinas cheias de água límpida.
A presença de Jesus com os seus e a de pessoas de Magdala, entre as
quais está o pequeno Benjamim, aquele que teve a coragem de dizer[76] a
Iscariotes que ele era mau, me faz pensar que estes sejam os jardins da casa
de Madalena… revistos e corrigidos agora para o seu novo uso, tendo sido
tiradas deles todas aquelas coisas que podiam causar desgosto e escândalo,
fazendo lembrar o passado.
O lago está todo encrespado, com uma cor cinzento-azulada, refletindo
o céu, pelo qual vão passando, sem rumo certo, nuvens trazendo a carga das
primeiras chuvas do outono. Mas, assim mesmo, ele está belo, com esta luz
parada e pacífica de um dia que não está sereno, mas também ainda não de
todo chuvoso. Suas margens não têm mais tantas flores como antes e
contudo, em compensação, vão sendo pintadas aqui e ali pelo grande pintor
que é o outono, e vão mostrando pinceladas de ocre ou de púrpura, junto a
uma fraca palidez das folhas, que estão morrendo nas árvores, e dos
vinhedos, que vão perdendo suas cores, antes de entregarem à terra suas
vestes vivas. Há um ponto, no jardim de uma casa de campo, que está à
beira do lago como ela, que está avermelhando agora, como se das águas
estivesse transbordando sangue, ao longo de uma sebe de ramos flexíveis,
que o outono fez ficar cor de cobre, iluminado por fogo, enquanto os
salgueiros esparsos por sobre as margens, não muito longe, estão tremendo
em suas folhas azul-prateadas, leves, mais pálidas ainda do que costumam
estar, antes de morrerem.
277.2Jesus não olha para aquilo que eu olho. Olha os pobres doentes, aos
quais está concedendo a cura. Olha para velhos mendigos, aos quais dá
dinheiro. Olha para crianças que as mães lhe apresentam, a fim de que Ele
as abençoe. E olha piedosamente para um grupo de irmãs, que lhe contam a
conduta do seu único irmão, que foi causa da morte da mãe, pela angústia
que por ele lhe foi causada, lhe pedem, estas pobres mulheres, que Ele lhes
de conselho, e reze por elas.
– Com certeza, Eu rezarei. Rezarei para que Deus vos dê paz, e para que
vosso irmão se converta e se lembre de vós, dando-vos o que é justo e,
sobretudo, para que ele volte a amar-vos. Porque, se ele fizer isso, fará tudo
mais. Mas, vós o amais, ou estais com raiva dele? Vós o perdoais de
coração ou esse vosso choro é pela raiva que tendes dele? Pois ele também
é infeliz. E mais do que vós. E, mesmo com as suas riquezas, ele está mais
pobre do que vós e é preciso ter dó dele. Ele não tem mais o vosso amor, e
está sem o amor de Deus. Estais vendo como ele está infeliz? Vós e vossa
mãe, com a morte acabareis ficando alegres por terminardes esta triste vida
que ele vos fez viver. Mas ele, não, pelo contrário, da falsa alegria de agora,
ele passaria para um tormento eterno e atroz. Vinde para perto de Mim.
Falarei a todos, ao falar a vós.
E Jesus se encaminha para o centro de um prado, cheio de moitas
floridas, ao centro do qual, há tempo, deve ter havido uma estátua. Agora aí
ainda se vê o pedestal, rodeado por uma sebe baixa de mirto e de roseiras
miúdas. 277.3Jesus se abaixa naquela sebe e faz o ato de falar. Todos se
calam, e se aglomeram em volta dele.
– A paz esteja convosco. Ouvi.
Foi dito[77]: “Ama a teu próximo como a ti mesmo.” Mas, quem está no
próximo? Está todo o gênero humano, tomado de um modo geral. Depois,
em sentido mais restrito, todos os conterrâneos. Depois, sempre em sentido
mais restrito, todos os parentes. E, enfim, como no último círculo desta
coroa de amor, fechada como as pétalas de uma rosa ao redor do coração da
flor, o amor aos irmãos pelo sangue, que são os primeiros próximos. O
centro do coração da flor do amor é Deus, e o amor para com Ele é o
primeiro que se há de ter. Ao redor deste centro está o amor aos pais, o
segundo que se há de ter, porque realmente o pai e a mãe são os pequenos
“deuses” da terra, criando-nos, e cooperando com Deus para criar-nos, além
de cuidarem de nós com um amor incansável. Em torno desse ovário, que
está chamejante de pistilos e exalando os perfumes dos amores mais seletos,
eis que se concentram os círculos dos diversos outros amores. O primeiro é
o devido aos irmãos nascidos do mesmo seio e do mesmo sangue do qual
nós nascemos.
Mas por que é que tem que ser amado o irmão? Será porque sua carne e
seu sangue são iguais aos nossos? Isto até os passarinhos, unidos em seu
ninho, sabem fazer. Na verdade, eles têm apenas isto em comum: terem
nascido de uma única ninhada e terem de comum sobre a língua o sabor da
saliva da mãe e do pai. Nós, homens, somos mais do que os passarinhos.
Temos mais do que a mesma carne e o mesmo sangue. Temos um pai, uma
mãe e um sangue. Temos um Pai, além de um pai e uma mãe. Temos uma
alma, e temos Deus, Pai de todos. E, então, é preciso saber amar o irmão
como irmão, amar o irmão pelo pai e pela mãe que nos tem gerado e como
irmão por Deus, que é Pai universal.
Deveis amá-lo, pois, espiritualmente, mais do que carnalmente. Amá-
lo, não só pela carne e pelo sangue, mas pelo espírito, que nós temos em
comum. Amar, como se deve, amar mais o espírito do que a carne do nosso
irmão. Porque o espírito é mais do que a carne, visto que o Pai, que é Deus,
é mais do que o pai que é homem. Porque o valor do espírito é maior do que
o valor da carne. Porque o nosso irmão seria muito mais infeliz, se perdesse
o Pai, que é Deus, do que se perdesse o pai que é homem. A orfandade,
quanto ao pai que é homem, já é uma dor dilacerante, mas ela não é mais do
que uma orfandade. Ela nos priva do que é terreno, quando temos
necessidade de ajuda e de carícias. Mas o espírito, se ele souber crer, não
fica lesado pela morte do pai. Pelo contrário, para acompanhá-lo até lá onde
o justo se encontra, o espírito do filho sobe, como que atraído pela força do
amor. E, em verdade, Eu vos digo que isto é amor, amor a Deus e ao pai,
que subiu com o seu espírito a um lugar de sabedoria. Sobe para os lugares
onde está mais perto de Deus, e age com mais retidão, porque não lhe falta
a verdadeira ajuda, que são as orações do pai, que agora sabe amar
perfeitamente, nem lhe falta a segurança, que agora lhe é dada pela certeza,
por estar o pai agora vendo, melhor do que em vida, as obras do filho e pelo
desejo de poder unir-se a ele por meio de uma vida santa.
Por isso é preciso preocupar-se mais com o espírito do que com o corpo
do próprio irmão. Seria um amor bem pobre o que se interessasse só pelo
que perece, descuidando-se do que não perece e que, tendo sido deixado de
lado, pode levar a perder-se a alegria eterna. Muitíssimos são os que se
cansam com coisas inúteis e se esforçam para conseguir o que tem apenas
um mérito relativo, perdendo assim de vista o que é realmente necessário.
As boas irmãs, os bons irmãos não devem preocupar-se somente de ter bem
compostas as suas vestes, preparados os alimentos ou então de ajudar com o
seu trabalho os irmãos. Eles devem inclinar-se sobre os seus espíritos e
ouvir a voz deles, procurar perceber os defeitos e, com amorosa paciência,
afadigar-se para dar a eles um espírito sadio e santo, se, naquelas vozes e
naqueles defeitos virem algum perigo para a sua vida eterna. E devem, se
ele pecou contra eles, esforçar-se para perdoar e para que ele seja perdoado
por Deus, tendo ele voltado ao amor, sem o que Deus não perdoa.
277.4Está dito no Levítico: “Não odeies o teu irmão no teu coração, mas
repreende-o publicamente para não ficares responsável pelos pecados
cometidos por ele.” Mas, do não odiar ao amar, há um abismo de distâncias.
Pode parecer-vos que a antipatia, o afastamento e a indiferença não sejam
pecados, porque não chegam a ser ódio. Não. Eu não venho dar luzes novas
ao amor, e necessariamente também não ao ódio, porque o que torna claro
em cada caso o primeiro, sabe tornar claro em cada caso também o
segundo. A mesma elevação para altas esferas pelo primeiro, traz consigo,
em consequência, um maior afastamento pelo segundo, porque, quanto mais
o primeiro se eleva, parece que o segundo se afunda, cada vez mais para
baixo.
A minha doutrina é perfeição. É uma fineza de sentimentos e de juízo.
É verdade sem metáforas e paráfrases. E Eu vos digo que antipatia,
afastamento e indiferença já são ódio, simplesmente porque não são amor.
Pois o contrario do amor é o ódio. Podereis dar outro nome à antipatia? Ao
ato de afastar-vos de alguém? À indiferença? Quem ama tem simpatia para
com o amado. Portanto, se o considera antipático, já não o ama. Quem ama,
ainda que os negócios da vida o afastem materialmente do amado, continua
a estar perto dele com seu espírito. Portanto, se um se afasta de outro com o
espírito, não mais o ama. Quem ama nunca tem indiferença para com o
amado, mas, ao contrário, tudo dele lhe interessa. Logo, se alguém tem
indiferença por outro, é sinal de que não mais o ama. Vós, pois, estais
vendo que estas três coisas são ramificações de uma mesma planta: a do
ódio.
277.5Ora, que é que acontece, quando alguém que nós amamos nos
ofende? Em noventa por cento, se não cresce um ódio, crescem a antipatia,
o afastamento e a indiferença. Não. Não façais assim. Não fiqueis com um
coração gelado, por causa dessas três formas de ódio. Amai. Mas vós estais
perguntando uns aos outros: “Como poderemos?” Eu vos respondo: “Como
o pode Deus, que ama até a quem o ofende. É um amor doloroso, mas
sempre bom.” Vós dizeis: “E como fazer?” Eu dou a nova lei, tendo em
vista o irmão culpado, e digo: “Se o teu irmão te ofende, não o aviltes
publicamente, repreendendo-o publicamente, mas obriga o teu amor a andar
para a frente e a esconder a falta do teu irmão aos olhos do mundo.” Porque
com isto terás grande mérito aos olhos de Deus, fechando assim, por amor,
a porta de todos os desejos do teu orgulho.
Oh! Como agrada ao homem fazer que se saiba que ele foi ofendido e
que com isso sofreu! Ele vai, como um mendigo louco, não pedir moedas
de ouro ao rei, mas vai a outros, tolos e pedintes como ele, pedir mãozadas
de cinza e de estrume, e uns goles de um tóxico que queima. Isto é o que o
mundo dá ao ofendido, que vai lastimando-se, e pedindo a esmola de um
consolo. Deus, o Rei, dá ouro puro a quem, tendo sido ofendido, vai, sem
rancor, sozinho chorar a seus pés a sua dor, e pedir a Ele, que é Amor e
Sabedoria. um conforto de amor e de ensinamento pela contingência de
estar ele sofrendo. Portanto, se quiserdes conforto, ide a Deus, e agi com
amor.
Eu vos digo, corrigindo a lei antiga: “Se teu irmão pecou contra ti, vai
corrigi-lo entre ti e ele somente. Se ele te ouvir, ganhaste novamente o teu
irmão. E, junto com ele, ganhaste muitas bênçãos de Deus. E, se o teu irmão
não te ouvir, mas te rejeitar, obstinado em sua culpa, tu, para que não se
diga que tu estás consentindo nela, ou que és indiferente ao bem do espírito
fraterno, toma contigo duas ou três testemunhas sérias, boas, confiáveis, e
com elas volta ao teu irmão e, benignamente, repete na presença delas as
tuas observações, a fim de que as testemunhas possam por suas bocas dizer
que tu fizeste tudo o que podias para, com santidade, corrigir o teu irmão.
Porque este é o dever de um bom irmão, visto que o pecado contra ti, feito
por ele, é uma lesão à alma dele, e com a alma dele tu deves te preocupar.
Se isso também não der resultado, leva o assunto ao conhecimento da
sinagoga, para que ela o chame de novo à ordem, em nome de Deus. Se
nem com isto ele se corrigir, e rejeitar a sinagoga e o Templo, como rejeitou
a ti, considera-o, então, um publicano, um pagão.”
Fazei assim com os irmãos pelo sangue e com os irmãos pelo amor.
277.6
Porque até com o vosso próximo mais afastado deveis agir com santidade,
sem avidez, sem inexorabilidade, sem ódio. E, quando são causas pelas
quais se torna preciso ir aos juízes, e tu vais a eles com o teu adversário, Eu
te digo, ó homem, que muitas vezes estarás indo ao encontro de males
maiores, por tua culpa, e Eu te digo que procures fazer tudo o que for
possível, enquanto vais indo pela estrada, para te reconciliares com ele,
tanto se tiveres razão, como se não a tiveres. Porque a justiça humana é
sempre imperfeita, e geralmente o astuto ganha na justiça, podendo o
culpado passar por inocente, e tu, inocente, passares por culpado. E, então,
te aconteceria, não somente não teres como reconhecido o teu direito, mas
também perderes a causa, e de inocente passares para a lista dos culpados
por difamação, e o juiz te passaria para o executor da justiça, e este não te
deixaria ir embora, sem que tivesses pago até o último centavo.
Procura, pois, ser conciliador. O teu orgulho sofre com isso? Melhor
ainda. Basta que a tua santidade cresça. Não tenhas saudade do ouro. Não
sejais ávidos de louvores. Fazei que seja Deus quem vos louve. Procurai
fazer para vós uma bolsa no Céu. E rezai por aqueles que vos ofendem.
Para que se arrependam. Se isso acontecer, eles mesmos vos prestarão
honras e bens. E, se eles não fizerem isso, disso Deus cuidará.
Ide agora, que é hora da refeição. Fiquem aqui somente os mendigos,
para se assentarem à mesa dos apóstolos. A paz esteja convosco.
[76] a coragem de dizer, em 184.7.
[77] Foi dito, em Levítico 19, 17-18, que compreende a citação sucessiva em 277.4.
278. O perdão e a parábola do servo iníquo.
O mandato aos setenta e dois discípulos.
17 de setembro de 1945.
278.1Depois da refeição, Jesus diz aos pobres que se retirem e Ele fica
com os apóstolos e discípulos no jardim de Maria de Magdala. Vão sentar-
se lá no fim do jardim, bem perto das águas tranquilas do lago, sobre o qual
algumas barcas estão velejando, ocupadas na pesca.
– Vão ter uma boa pesca –comenta Pedro, que está observando.
– Tu também terás uma boa pesca, Simão de Jonas.
– Eu, Senhor? Quando? Queres dizer que eu vá pescar para a refeição
de amanhã? Então, eu vou ao lago e…
– Nesta casa não precisamos de refeições. A pesca que irás fazer será no
futuro e no campo espiritual. E contigo estarão ótimos pescadores, e a
maior parte será destes.
– Não estarão todos, Mestre? –pergunta Mateus.
– Nem todos. Mas os que perseverarem, tornando-se meus sacerdotes,
terão uma boa pesca.
– Haverá conversões? –pergunta Tiago de Zebedeu.
– Conversões, perdões, encaminhamentos para Deus. Oh! Tantas coisas.
278.2– Escuta, Mestre. Tu antes disseste que, se alguém não escuta o seu
irmão, nem na presença de testemunhas, que se vá tomar conselho com a
sinagoga. Mas, se eu compreendi bem tudo o que nos disseste desde quando
nos conhecemos, parece-me que a sinagoga vai ser substituída pela Igreja,
essa coisa que Tu irás fundar. Então, aonde é que teremos de ir para fazer
que sejam aconselhados os irmãos teimosos.
– Ireis a vós mesmos, porque vós sereis a minha Igreja. Por isso, os fiéis
irão a vós, ou para o conselho de que eles precisam para uma causa própria,
ou para um conselho a ser dado a outros. Eu vos digo mais. Não só podereis
dar conselhos. Mas podereis também absolver em meu Nome. Podereis
desatar das cadeias do pecado e podereis unir duas pessoas que se amam,
fazendo delas uma só carne. E tudo o que tiverdes feito será válido aos
olhos de Deus, como se fosse o próprio Deus que o houvesse feito. Em
verdade, Eu vos digo: tudo o que tiverdes ligado na terra, estará ligado no
Céu, e tudo o que por vós for desligado na terra, será desligado no Céu. E
ainda vos digo, para fazer-vos compreender o poder do meu Nome, do amor
fraterno e da oração, que, se dois discípulos meus, e como tais Eu entendo
todos os que haverão de crer no Cristo, se reunirem para pedir qualquer
coisa justa em meu Nome, ela lhes será concedida pelo meu Pai. Porque
grande poder é a oração, grande poder tem a união fraterna, e muitíssimo
grande, de infinito poder é o meu Nome e a minha presença no meio de vós.
E onde dois ou três estiverem reunidos em meu Nome, lá estarei Eu no
meio deles, e rezarei com eles, e o Pai não negará a quem reza comigo. Pois
muitos não obtêm o que pedem, porque rezam sozinhos, ou rezam para
obter coisas ilícitas, ou rezam com orgulho, ou com o pecado no coração.
Purificai o vosso coração, para que Eu possa estar convosco. Depois, rezai e
sereis atendidos.
Pedro está pensativo. Jesus o vê assim, e lhe pergunta a razão. Pedro,
então, explica:
– Estou pensando nos grandes deveres que estamos para assumir. E
tenho medo disso. Medo de não saber cumpri-los bem.
– De fato, Simão de Jonas, ou Tiago de Alfeu, ou Filipe, e assim por
diante, vós não o saberíeis. Mas o sacerdote Pedro, o sacerdote Filipe ou
Tomé saberão cumpri-los bem, porque o farão unidos à Divina Sabedoria.
278.3– E… quantas vezes teremos que perdoar aos irmãos? Quantas, se
eles pecarem contra os sacerdotes, e quantas, se eles pecarem contra Deus?
Porque, se for acontecer naquele tempo como acontece agora, certamente
irão pecar contra nós, pois estão pecando contra Ti tantas e tantas vezes.
Dize-me se devo perdoar sempre, ou um certo número de vezes. Sete vezes,
ou mais ainda, por exemplo.
– Não te digo sete, mas setenta vezes sete. Um número de vezes sem
medida. Porque também o Pai dos Céus vos perdoará muitas vezes, um
grande número de vezes, a vós, que deveríeis ser perfeitos. E, como Ele faz
convosco, assim deveis fazer, porque vós representais Deus na terra. Mas,
antes, escutai. Vou contar uma parábola, que vai servir para todos.
E Jesus, que estava rodeado só pelos apóstolos em um pequeno
quiosque de buxos, vai caminhando ao encontro dos discípulos, que estão
respeitosamente agrupados em um lugar, onde há um tanque cheio de águas
limpas. O sorriso de Jesus é sinal de que Ele vai falar. E, enquanto Ele vai
indo, com seus passos lentos e compridos, com os quais percorre grandes
distâncias em poucos momentos, e, portanto sem precisar apressar-se, os
discípulos ficam todos alegres, como crianças em volta de quem as faz ficar
felizes, e reúnem-se em círculo. Uma coroa de rostos atentos, até que Jesus
chega e vai encostar-se ao tronco de uma árvore alta, e começa a falar.
278.4– Tudo o que Eu disse antes ao povo é agora aperfeiçoado, para vós
que, do meio dele, sois os escolhidos.
Pelo apóstolo Simão de Jonas me foi dito: “Quantas vezes deverei
perdoar? A quem? E por quê?” Eu lhe respondi em particular, e agora repito
a todos a minha resposta quanto ao que é justo que fiqueis sabendo desde já.
Ouvi quantas vezes, e como, e porque se deve perdoar.
É preciso perdoar como Deus perdoa e Ele, se alguém peca mil vezes, e
depois se arrepende, perdoa mil vezes. Contanto que veja que no culpado
não há mais desejo do pecado, mas que este é apenas produzido pela
fraqueza do homem. No caso de persistência voluntária no pecado, não
pode haver perdão para as culpas cometidas contra a Lei. Mas, enquanto
essas culpas produzirem em vós a dor, perdoai individualmente. Perdoai
sempre a quem vos faz mal. Perdoai para serdes perdoados, porque também
vós tendes culpas para com Deus e para com os irmãos. O perdão abre o
Reino dos Céus, tanto para o perdoado, como para o que perdoa. Isto é
semelhante a este fato, que aconteceu entre um rei e os seus súditos.
Um rei quis ajustar as contas com seus súditos. Chamou-os, pois, um
depois do outro, começando por aqueles que estavam em mais alta posição.
Chegou um que lhe devia dez mil talentos. Mas o súdito não tinha com que
pagar o adiantamento que o rei lhe havia concedido para que ele pudesse
construir casas e fazer outros diversos serviços, na verdade por muitos
motivos, uns mais e outros menos justos, e não tinha usado com o
necessário cuidado da soma recebida para fazer aquelas coisas. O rei patrão,
indignado pela preguiça do súdito, e pela falta do cumprimento da palavra
por parte dele, mandou que ele fosse vendido, ele, a mulher, os filhos e tudo
o que ele tinha, até que desse para pagar a sua dívida. Mas o súdito se jogou
aos pés do rei e, entre prantos e súplicas, assim lhe rogava: “Deixa-me ir.
Tem um pouco de paciência ainda comigo, que eu te pagarei tudo o que te
devo, até o último centavo.” E o rei, com dó de todo aquele sofrimento —
era um rei bondoso — não somente resolveu atender ao homem, mas
depois, tendo ficado sabendo que, entre as causas da pouca atividade
daquele homem e da falta do pagamento, havia também a de que ele tinha
estado doente, resolveu perdoar-lhe a dívida.
O súdito saiu dali e, feliz, ia indo embora. Mas, ao sair, encontrou no
caminho um outro súdito, um pobre homem a quem ele havia emprestado
cem denários, tirados dos dez mil talentos recebidos do rei. Animado pelo
favor que o rei lhe fizera, achou que agora podia fazer tudo o que quisesse
e, agarrando aquele infeliz pelo pescoço, lhe disse: “Entrega-me já o que
me deves.” Foi em vão que o pobre homem, chorando, beijando-lhe os pés
e gemendo, lhe dizia: “Tem piedade de mim, que sou um infeliz. Tem um
pouco de paciência, e eu te pagarei tudo, até o último centavo.” O súdito
desapiedado chamou os soldados e fez levar para a prisão o infeliz, até que
ele se decidisse a pagar-lhe, sob a pena de perder a liberdade, ou até a vida.
O acontecido chegou ao conhecimento dos amigos do infeliz, os quais,
muito entristecidos, foram contá-lo ao rei e patrão. E este, posto a par do
que lhe contaram, mandou que levassem à sua presença aquele servidor
desapiedado e, olhando severamente para ele, disse: “Servo iníquo, eu te
havia ajudado antes, para que te tornasses misericordioso, e para que
pudesses ter riqueza, e te ajudei também, ao perdoar a tua dívida, por causa
de quanto me imploravas que eu tivesse paciência. Tu não tiveste dó do teu
semelhante, enquanto que eu, o rei, de ti me compadeci. Por que não fizeste
a ele o que eu fiz a ti?” E, irado, o entregou aos carcereiros para que o
detivessem até que ele tivesse pago tudo, dizendo: “Como ele não teve dó
de alguém que bem pouco lhe devia, ao passo que recebeu de mim, que sou
o rei, tanta piedade, que ele não ache agora piedade em mim.”
278.5Assim também fará o meu Pai convosco, se fordes desapiedados
para com os vossos irmãos, se vós, tendo recebido tanto de Deus, fordes
culpados mais do que não é um simples fiel. Recordai-vos de que em vós
existe a obrigação de serdes, mais do que qualquer outro, sem culpa.
Recordai-vos que Deus vos concede adiantado um grande tesouro, mas quer
que presteis conta dele. Lembrai-vos de que ninguém como vós deve saber
praticar amor e perdão.
Não sejais servos que para vós quereis muito e, depois, nada dais a
quem vos pede. Como fizerdes, assim vos será feito. E vos serão exigidas
também contas de como fazem os outros, que são arrastados para o bem ou
para o mal pelo vosso exemplo. Oh! Que em verdade, se tiverdes dado
exemplo de santidade, possuireis no Céu uma glória muito grande! Mas,
igualmente, se derdes exemplo de perversão, ainda que seja somente o de
serdes preguiçosos em vos santificar, sereis duramente punidos.
Eu vo-lo digo mais uma vez. Se algum de vós não se sente com
coragem para ser vítima de sua própria missão, que vá embora. É preciso
que não falte a ela. E eu digo que não falte, nas coisas realmente ruinosas
para a sua própria formação e a dos outros. E saiba ter a Deus como amigo,
tendo sempre no coração o perdão para com os fracos. Então, a cada um de
vós, que souber perdoar, será dado por Deus Pai o perdão.
278.6Nossa parada aqui terminou. A festa dos Tabernáculos está próxima.
Aqueles a quem Eu falei em particular nesta manhã, a partir de amanhã,
irão à minha frente, anunciando-me às populações. E os que ficam aqui não
se sintam desprezados. Eu detive aqui alguns deles por motivo de
prudência, e não por desprezo para com eles. Eles ficarão comigo, e logo
Eu os mandarei, como estou mandando agora os primeiros setenta e dois. A
messe é muita, e os operários serão sempre poucos em relação à
necessidade. Portanto, haverá trabalho para todos. E ainda não basta. Por
isso, sem ciúmes, rezai ao Dono da messe para que mande sempre novos
operários para sua colheita.
E agora ide. Eu e os apóstolos completamos, nestes dias de parada aqui,
a vossa instrução acerca do trabalho que tereis que fazer, repetindo[78]
aquilo que Eu disse, antes de mandar os doze. Um dentre vós me perguntou:
“Mas, como é que eu curarei em teu nome?” Tratai sempre primeiro do
espírito, prometei aos enfermos o reino de Deus, se souberem crer em Mim,
e, tendo visto neles a fé, mandai à doença que se vá embora, e ela se irá. E
assim também fazei com os doentes do espírito. Acendei neles primeiro a
Fé. Comunicai-lhes, com uma palavra segura, a Esperança. Eu virei em
seguida pôr neles a Divina Caridade assim como Eu a coloquei em vossos
corações, depois que crestes em Mim, e esperastes na Misericórdia. E não
tenhais medo, nem dos homens, nem do demônio. Eles não vos farão mal.
As coisas de que deveis ter medo são a sensualidade, a soberba, a avareza.
Por estas podereis entregar-vos a satanás e aos homens satanases, pois esses
também existem.
Ide, pois, ide à minha frente pelos caminhos do Jordão. E, quando
chegardes a Jerusalém, ide unir-vos aos pastores no vale de Belém e com
eles ide a Mim, ao lugar que já sabeis, e juntos celebraremos a festa santa, e
voltaremos depois, mais fortalecidos, ao nosso ministério. Ide em paz. Eu
vos abençôo com o Nome Santo do Senhor.
[78] repetindo [vide Lucas 10,2-12] aquilo que Eu disse [vide Mateus 10,5-42]. Portanto os dois textos evangélicos não
pertenceriam ao mesmo episódio: o de Mateus corresponde ao capítulo 265 é concernente à instrução de Jesus aos doze apóstolos;
o de Lucas corresponde ao presente capítulo 278 e reporta os textos do primeiro, repetidos pelos 72 discípulos. É um dos dez casos
o qual a obra valtortiana não considera paralelos aos episódios reportados dos demais Evangelistas (sinóticos). A nossa publicação
intitulada “Evangelho unificado sobre a linha da Obra de Maria Valtorta” organiza os Evangelhos canônicos sobre a linha
narrativa do Evangelho valtortiano que, diferente dos primeiros, expõe os fatos da vida pública de Jesus em uma ordem
cronológica. Outros exemplos são assinalados em nota de 464.17 e 596.51.
279. Encontro com Lázaro no campo dos Galileus.
18 de setembro de 1945.
279.1O famoso Campo dos Galileus — isto acredito que queira dizer a
palavra usada por Jesus para designar o lugar do reencontro com os setenta
e dois discípulos mandados à frente — não é outra coisa senão uma parte do
Monte das Oliveiras, mais afastada para o lado da estrada de Betânia, pois
ela passa por perto dali. E é também justamente o lugar onde, em uma visão
distante, eu vi[79] que acamparam Joaquim e Ana, com o então pequeno
Alfeu, ao lado de outras pequenas cabanas de ramagens, na festa do
Tabernáculo que veio antes da concepção da Virgem.
O Monte das Oliveiras tem um cume em curva suave:
Tudo é suave naquele monte: as subidas, os panoramas e o cume.
Emana realmente paz, vestido como é de oliveiras e de silêncio. Mas, neste
momento, não. Porque neste momento está fervilhando de gente ocupada
em fazer as cabanas. Mas geralmente é mesmo um lugar de sossego, de
meditação. À sua esquerda, em relação a quem olha com o rosto dirigido ao
norte, há uma leve depressão, e depois um novo cume, ainda menos curvo

que o do Monte das Oliveiras:


E aqui, sobre este planalto, se acampam os galileus. Não sei se por um
costume religioso e então secular, ou se por ordem dos romanos, a fim de
evitar altercações com os judeus de outras regiões, pouco corteses para com
os galileus. Isto não sei. O que sei é que já estou vendo muitos galileus,
entre os quais está Alfeu de Sara, de Nazaré, Judas, velho rico perto de
Meron, o sinagogo Jairo e outros que são de Betsaida, de Cafarnaum e de
outras cidades da Galileia, mas cujos nomes eu não sei.
Jesus lhes mostra o lugar que devem ocupar com suas pequenas
cabanas, bem perto dos limites orientais do Campo dos Galileus. E os
apóstolos, juntos com alguns discípulos, entre os quais está o sacerdote João
e o escriba João, o sinagogo Timoneu, mais Estêvão, Hermasteu, José de
Emaús, Abel de Belém da Galileia, que se põem a construir as pequenas
cabanas.
279.2Eles as estão fazendo e Jesus está falando com crianças de
Cafarnaum, que estão todas juntas ao redor dele, perguntando-lhe cem
coisas e confidenciando-lhe outras cem, quando, da estrada que vem de
Betânia, chega inesperadamente Lázaro junto com o inseparável Maximino.
Jesus está de costas e não o vê vir. Mas, em troca o vê Iscariotes e avisa o
Mestre, o qual deixa no ar as crianças e vai, sorridente, em direção ao seu
amigo. Maximino para, a fim de deixar em plena liberdade os dois em seu
primeiro encontro. E Lázaro anda os últimos metros, o mais ligeiro que
pode, caminhando com mais dificuldade do que nunca, com um sorriso no
qual aparecem sofrimento e lágrimas, tanto em sua boca, como em seu
olhos. Jesus lhe abre os braços, e Lázaro cai sobre os seu coração, com uma
grande explosão de pranto.
– Que é isso, meu amigo? Ainda estás chorando?… –pergunta Jesus,
beijando-o sobre as têmporas. Sendo Jesus mais alto do que Lázaro, passa
acima de sua cabeça, e fica parecendo ainda mais alto, porque Lázaro está
inclinado, naquele seu abraço de amor e respeito.
Enfim, Lázaro levanta a cabeça, e diz:
– Estou chorando, sim. Eu te dei, no ano passado as pérolas do meu
pranto de alegria. Oh! Mestre, Mestre meu! Creio que não existe coisa mais
humilde e santa do que um bom pranto… E te ofereço, para dizer-te:
“Obrigado” pela minha querida Maria, que agora não é mais do que uma
meiga menina, feliz, serena, pura e boa…Oh! Muito melhor ainda do que
quando era menina. E eu, eu que me julgava muito mais que ela, no meu
orgulho de israelita fiel à Lei, agora me sinto tão pequenino, tão nada, em
comparação com ela, que já não é mais uma criatura, mas uma chama. Uma
chama santificante. Eu… eu não posso entender onde ela encontra a
sabedoria, as palavras, os atos que ela pratica, e que edificam a casa toda.
Eu olho para ela como se olha para um mistério. Mas, como é que um
grande fogo, tantas pedras preciosas podiam estar por baixo de toda aquela
podridão, e viver tão despreocupadamente? Nem eu nem Marta subimos até
onde ela conseguiu subir. Como pode ser isso, se ela ficou com suas asas
despedaçadas pelo vício? Eu não compreendo…
– E nem há necessidade de que tu o compreendas. Basta que eu
compreenda. Mas te digo: Maria voltou para o bem as energias poderosas
de seu ser. Ela inclinou o seu temperamento para a Perfeição. E, ainda que
seja o seu temperamento de um absolutismo forte, ela se atira sem reservas
por esse caminho. Ela faz uso de sua experiência no mal para ter força no
bem, como o fez para o mal e, usando os seus próprios modos de empenhar-
se toda, como fazia para o pecado, agora ela se doa toda a Deus. Ela
compreendeu a lei[80] que diz: “Ama a teu Deus com todo o teu ser, com o
teu corpo e com a tua alma, com todas as tuas forças.” Se Israel fosse feito
todo de Marias assim, se o mundo fosse feito de tais Marias, teríamos o
Reino de Deus na terra, como ele irá ser no Céu altíssimo.
– Oh! Mestre, Mestre! E é Maria de Magdala a que está merecendo
estas palavras…
– É Maria de Lázaro! A grande amiga, irmã do meu grande amigo.
279. Como foi que ficastes sabendo que Eu estava aqui se minha Mãe ainda
3

não veio para Betânia?


– Mas veio, em marcha forçada, o feitor de Águas Belas, para dizer-me
que Tu ias vir. E eu todos os dias tenho mandado para cá um dos meus
servos. Há pouco, ele veio a mim, para dizer-me: “Ele já chegou e está no
Campo dos Galileus.” Então, eu vim logo…
– Mas tu estás sofrendo…
– Muito, Mestre! Estas pernas…
– E tu vieste. Eu teria ido logo.
– Mas a pressa que eu tinha, para contar-te a minha alegria, me
atormentava. Há muitos meses que eu estou com ela aqui dentro: é uma
carta. Mas, que é uma carta para se dizer uma coisa assim? Eu já não podia
esperar mais… Irás a Betânia?
– Com certeza. Logo depois da Festa.
– Estás sendo muito esperado… Aquela grega… Que inteligência! Eu
falo muito com ela, pois é ávida de conhecer a Deus. Mas ela é muito
culta… e eu lhe fico devendo, porque não sei bem certas coisas. Precisas
estar lá…
– E Eu irei. Agora vamos a Maximino, depois te peço que sejas meu
hóspede. Minha Mãe te irá ver com alegria, e tu repousarás. Daqui a pouco,
ela virá com o menino.
E Jesus se aproxima de Maximino, que se ajoelha para saudá-lo…
[79] vi, em 3.2/4.
[80] lei, que está em Deuteronômio 6,5.
280. O retorno dos setenta e dois.
Profecia sobre futuros místicos.
19 de setembro de 1945.
280.1No longo crepúsculo de um dia sereno de outubro, voltam os setenta
e dois com Elias, José e Levi. Cansados, empoeirados, mas muito alegres!
Alegres os três pastores, porque agora estão livres para servirem ao Mestre.
Felizes também por estarem, depois de tantos anos de separação, unidos aos
companheiros de outros tempos. Felizes os setenta e dois por terem-se saído
bem em sua primeira missão. Seus rostos estão brilhando mais do que as
pequenas luzes que iluminam as pequenas cabanas que foram construídas
para este numeroso grupo de peregrinos.
No centro está a de Jesus e, abaixo dela, está a de Maria com Marziam,
que está ajudando-a a preparar a ceia. Ao redor, estão as cabanas dos
apóstolos. Na de Tiago e Judas está Maria do Alfeu; na de João e Tiago está
Maria Salomé, com seu marido. Na que fica do lado dela está Susana com
seu marido, que não é apóstolo nem discípulo… oficial, mas que está
fazendo valer o seu direito de estar ali, pois deu à sua mulher licença para
ser toda de Jesus. Depois, ao redor, estão as dos discípulos, uns com a
família, outros sem ela. E quem está sozinho, e é a maioria, ficou junto com
um ou mais companheiros. João de Endor levou consigo o solitário
Hermasteu, mas procurou ficar o mais perto possível da cabana de Jesus, de
tal modo que Marziam possa ir muitas vezes a ele, levando-lhe isto ou
aquilo, ou alegrando-o com as suas palavrinhas de menino inteligente, e
feliz por estar com Jesus, com Maria e Pedro, e em uma festa.
280.2Acabadas nas cabanas as ceias, Jesus se encaminha para o lado do
Monte das Oliveiras, e os discípulos o acompanham em massa.
Isolados do murmúrio e da multidão, depois de terem feito uma oração
em comum, eles contam tudo a Jesus, mais amplamente do que haviam
podido fazer antes, por entre as pessoas que iam e vinham.
Eles estão ainda espantados e alegres, enquanto dizem:
– Tu sabes, ó Mestre, que, não só as doenças, mas até os demônios nos
ficaram sujeitos pela força do teu Nome? Que coisa, Mestre! Nós, nós uns
pobres homens, só porque Tu nos mandaste, podíamos livrar o homem do
poder terrível de um demônio!…
E contam casos e mais casos, acontecidos aqui ou ali. Somente de um é
que eles dizem:
– Os parentes, ou melhor, a mãe e os vizinhos no-lo trouxeram à força.
Mas o demônio zombou de nós, dizendo: “Eu voltei aqui, por vontade dele,
depois que Jesus Nazareno me havia expulsado, e não o deixo mais, porque
ele me ama mais do que ao vosso Mestre, e por isso tornou a procurar-me”
e, de repente, com uma força indomável, arrebatou o homem das mãos que
o estavam segurando, e o arremessou por um despenhadeiro abaixo. Nós
corremos para ver se ele se tinha despedaçado. Mas, qual nada! Ele ia
correndo como uma gazela nova, dizendo blasfêmias e chalaças, que não
eram desta terra… Ficamos com dó da mãe… Mas ele! Oh! É assim que o
demônio pode fazer?
– Assim, e mais ainda –diz Jesus com tristeza.
– Talvez, se Tu lá estivesses…
– Não. Eu havia dito àquele homem: “Vai, e não queiras recair em teu
pecado.” E ele quis. Sabia que estava querendo o mal e o quis. Está perdido.
Diferente é o caso de quem vem possesso por causa de sua ignorância, do
caso de quem se deixa possuir, sabendo que assim fazendo, se vende de
novo ao demônio. Mas não faleis dele. É um membro cortado, sem
esperança, é um voluntário do mal. Louvemos, sim, ao Senhor, pelas
vitórias que vos deu. Eu via satanás cair do Céu como um raio, pelo vosso
mérito unido ao meu Nome. Porque Eu vi também os vossos sacrifícios, as
vossas orações, o amor com que íeis aos infelizes, para fazerdes o que Eu
tinha dito que fizésseis. Vós o fizestes com amor e Deus vos abençoou.
Outros farão isto que vós fazeis, mas o farão sem amor. E não conseguirão
conversões, Contudo, não vos alegreis, por terdes conseguido sujeitar os
espíritos, mas alegrai-vos, sim, porque os vossos nomes estão escritos no
Céu. Não os retireis nunca de lá…
280.3– Mestre, quando virão os que não vão conseguir conversões?
Talvez será, quando não estiveres mais conosco? –pergunta um dos
discípulos, cujo nome eu não sei.
– Não, Agapo. Em qualquer tempo.
– Como? Até mesmo enquanto nos ensinas e nos amas?
– Também. Amar, Eu vos amarei sempre, mesmo que estejais longe de
Mim. O meu amor a vós existirá sempre, e vós o sentireis.
– Oh! É verdade. Eu o senti numa tarde em que eu estava angustiado,
porque não sabia o que haveria de dizer a um que estava me interrogando.
Eu estava para fugir, envergonhado. Mas aí eu me lembrei daquelas tuas
palavras: “Não tenhais medo. Ser-vos-ão dadas, no momento oportuno, as
palavras que haveis de dizer”, e eu, com o meu espírito, Te invoquei. Eu
disse: “Certamente Jesus me ama. Eu chamo em meu socorro o seu amor”,
e me veio o amor. Veio como um fogo, uma luz… uma força… O homem,
que estava à minha frente, me observava e me ridicularizava com ironia,
piscando os olhos para os seus amigos. Ele estava certo de que ia vencer a
discussão. Então, eu abri a boca, e era como um rio de palavras que saía
com alegria de minha boca tola. Mestre, Tu vieste mesmo, ou foi uma
ilusão minha? Eu não sei. Só sei que, afinal o homem, que era um jovem
escriba, lançou me os braços ao pescoço, dizendo-me: “Feliz de ti e feliz
quem a essa sabedoria te conduziu”, e me pareceu que ele estava com
vontade de procurar-te. Ele virá?
– As ideias do homem são passageiras, como a palavra escrita sobre a
superfície da água, e irrequietas como as asas das andorinhas, antes de
voarem para a última refeição do dia. Mas tu, reza por ele… E, sim. Eu fui
a ti. Como tu, também Me tiveram Matias e Timoneu, João de Endor e
Simão, Samuel e Jonas, há quem percebeu minha presença, e há quem não a
percebeu. Mas Eu estive convosco. E Eu estarei com quem me serve em
amor e verdade, até o fim dos séculos.
280.4– Mestre, ainda não nos disseste se, entre as pessoas presentes,
haverá pessoas sem amor.
– Não é necessário saber isso. Seria uma falta de amor da minha parte,
se Eu vos fizesse sentir desprezo para com algum companheiro que não
soubesse amar.
– Mas há alguns desses? Isto Tu podes dizer…
– Há. O amor é a mais simples, a mais doce e a mais rara coisa que há e,
nem sempre, mesmo que tenha sido semeada, ela medra.
– Mas, se não Te amarmos, quem te poderá amar?
Há uma quase indignação e entre eles se forma um tumulto pela
suspeita e pela dor.
Jesus desce as pálpebras sobre os olhos. Esconde também o seu olhar,
para que ele não sirva de indicador. Mas faz um gesto resignado, doce e
triste, ficando com as mãos de palmas abertas para fora, num gesto de
resignada confissão, de resignado conhecimento, e diz:
– Assim haveria de ser. Mas assim não é. Muitos ainda não se
conhecem. Mas Eu os conheço. E tenho dó deles.
– Oh! Mestre, Mestre! Mas, não serei eu, não é? –pergunta Pedro, indo
para o lado de Jesus e comprimindo o pobre Marziam entre si mesmo e o
Mestre, e lançando seus braços curtos e musculosos sobre os ombros de
Jesus, e os segura e sacode, como se tivesse ficado louco e aterrorizado, ao
pensar que podia ser um dos que não amam a Jesus.
Jesus torna a abrir os olhos luminosos, mas entristecidos, olha para o
rosto indagador e espavorido de Pedro, e lhe diz:
– Não, Simão de Jonas. Não és tu. Tu sabes amar, e ainda o saberás
sempre mais. Tu és a minha Pedra, Simão de Jonas. Uma boa pedra. Sobre
ela Eu irei apoiar as coisas que me são mais caras, e estou certo de que tu as
sustentarás, sem conhecer perturbação.
– Eu, então?
– Eu?
– Eu?
As interrogações se repetem, como um eco, quando vai-se repetindo de
boca em boca.
– Paz! Paz! Ficai tranquilos e esforçai-vos por possuir todos o amor.
280.5– Mas quem entre nós sabe amar mais?
Jesus corre o olhar sobre todos: uma carícia sorridente, e depois abaixa
o olhar sobre Marziam, que continua apertado entre Ele e Pedro e,
afastando um pouco Pedro, e virando o rosto do menino para a pequena
multidão, diz:
– Aqui está o que mais sabe amar entre vós. O menino. mas não
tremais, vós, que já tendes barba sobre as vossas faces, e até fios brancos
nos cabelos. Todo aquele que renasce em Mim se torna “um menino.” Oh!
Ide em paz, dai louvores a Deus, que vos chamou, porque realmente vós
estais vendo, com vossos próprios olhos, os prodígios do Senhor. Felizes
aqueles que verão igualmente o que vós estais vendo. Porque Eu vos
garanto que muitos profetas e reis desejaram ver o que vós estais vendo, e
não viram. E muitos patriarcas teriam querido ouvir o que vós ouvis, e não
puderam escutar. Mas, de agora em diante, aqueles que me amarem
conhecerão todas as coisas.
– E depois? Quando tiveres ido embora daqui, como dizes?
– Depois, vós falareis por Mim. E depois…Oh! que grandes fileiras,
não pelo número, mas pela graça, as daqueles que verão, saberão e
escutarão o que vós agora estais vendo, sabendo e ouvindo! Oh! Que
grandes e amadas fileiras dos meus “pequenos-grandes!” Olhos eternos,
mentes eternas, ouvidos eternos! Como poder explicar-vos, a vós que estais
ao redor de Mim, o que será esse viver eterno, mais que eterno,
desmesurado, daqueles que me amarão e que Eu amarei até o fim dos
tempos, que serão os “cidadãos de Israel”, ainda que vivam, quando Israel
não mais existir, a não ser como uma lembrança de nação, e serão os
contemporâneos de Jesus vivente em Israel? E estarão comigo, em Mim, até
chegarem a conhecer o que o tempo cancelou e a soberba confundiu. Que
nome Eu lhes darei? Vós sois apóstolos e vós sois discípulos, e os que
crerem serão chamados “cristãos.” E estes? Estes, que nome terão? Um
nome conhecido somente no Céu. Que prêmio eles terão, desde esta terra?
O meu beijo, a minha voz, o calor da minha carne. Tudo, tudo, Eu mesmo
todo. Eu, eles. Eles, Eu. Uma comunhão total… Ide. Eu fico a encher de
felicidade o meu espírito na contemplação dos meus conhecedores futuros e
amantes absolutos. A paz esteja convosco.
281. No Templo para a festa dos Tabernáculos.
As condições para seguir Jesus. A parábola
dos talentos e a parábola do bom samaritano.
20 de setembro de 1945.
281.1Jesus se dirigiu para o Templo. À sua frente, foram, em grupos, os
discípulos; acompanham-no em grupo as discípulas, isto é, sua Mãe, Maria
de Cléofas, Maria Salomé, Susana, Joana de Cusa, Elisa de Betsur, Anália
de Jerusalém, Marta e Marcela. Madalena não está. Ao redor de Jesus estão
os doze apóstolos e Marziam.
Jerusalém vive nestes dias as pompas dos seus dias de solenidades.
Vem gente por todas as estradas e de todos os lugares. Ouvem-se cantos,
discursos, murmúrio de preces, imprecações dos guias dos asnos, algum
choro de criança. Acima de tudo isso, vê-se, ao passar de uma para outra
casa, o céu limpo e um sol, cujos raios descem alegres, a reavivar as cores
das vestes, intensificando as cores mortiças dos suportes e das árvores, que
podem se entrever aqui e ali, do outro lado dos muros dos jardins fechados
ou dos terraços.
De vez em quando, Jesus cruza com pessoas conhecidas, e as saudações
são mais ou menos respeitosas, conforme os humores dos que se encontram.
Por exemplo, é uma saudação profunda e tranquila a de Gamaliel, o qual
olha fixamente para Estêvão, que do grupo dos discípulos lhe sorri, e que
Gamaliel, depois de ter-se inclinado para Jesus, chama para um lado e lhe
diz umas poucas palavras, voltando depois Estêvão para o seu grupo.
Respeitosa é a saudação do velho sinagogo Cléofas de Emaús, que chega
com os seus concidadãos ao Templo. Áspera como uma maldição é a
saudação com que lhe respondem os fariseus de Cafarnaum.
281.2Jogarem-se ao chão, para beijar os pés de Jesus, cobertos pelo pó
dos caminhos, é o gesto dos camponeses de Jocanã, chefiados pelo
intendente. A multidão fica parada para observar, assombrada, aquele grupo
de homens que, com um grito, se precipitam aos pés de um jovem homem,
que não é um fariseu, nem algum escriba famoso, que não é nenhum sátrapa
nem cortesão prestigioso, e alguns perguntam quem é ele, e um murmúrio
se ouve:
– É o Rabi de Nazaré, o que dizem ser o Messias.
Prosélitos e pagãos se aglomeram, então, curiosos, apertando o grupo
contra o muro, e criando um estorvo na pequenina praça, até que chegam
uns guiadores de asnos, que os espalham, dizendo em altas vozes suas
imprecações contra aquele estorvo. Mas a multidão, separando as mulheres
dos homens, logo se reúne de novo, exigente e brutal, naquela sua
manifestação, que não deixa de ser de fé. Todos querem tocar nas vestes de
Jesus, dizer-lhe uma palavra, fazer-lhe perguntas. Mas é um esforço inútil,
porque a própria pressa deles, sua ânsia, sua inquietação fazendo força a
fim de irem para frente, empurrando-se uns aos outros, tudo isso faz que
ninguém o consiga, e até os pedidos e as perguntas se transformam num
grande rumor incompreensível.
O único que não toma parte naquela cena é o avô de Marziam, o qual
acaba de responder com um grito ao grito do netinho e, logo depois de ter
prestado sua veneração ao Mestre, foi apertar contra o seu peito o neto e,
ficando assim, descansando ainda sobre os calcanhares, mas com os joelhos
no chão, assentou-o no seu colo, e olha admirado para ele e o acaricia, com
lágrimas e beijos de alegria, faz-lhe perguntas, e o fica escutando. O velho
já está no Céu, de tão feliz que se sente.
Chegam as milícias romanas, pensando que está havendo alguma briga,
e fazem que se lhes abra caminho. Mas, quando veem Jesus, sorriem, e vão-
se retirando tranquilamente, limitando-se a aconselhar os presentes a
deixarem livre a dupla encruzilhada. E Jesus logo obedece, aproveitando-se
do espaço feito pelos romanos, que vão alguns passos à sua frente, como
para abrir-lhe caminho, mas na verdade o fazem para irem voltando ao seu
posto da guarda, pois esta está agora muito reforçada, como se Pilatos
estivesse sabendo que no meio daquela multidão há muitos descontentes
com ele, e temesse subversões nestes dias em que Jerusalém está cheia de
hebreus de todas as partes. É bonito vê-lo andar, precedido pelo pelotão de
soldados romanos, como um rei para o qual se abre caminho, enquanto ele
vai indo para as suas possessões.
Ele disse, ao virar-se, ao menino e ao velho:
– Ficai juntos e acompanhai-me.
E ao intendente:
– Peço-te que me deixes os teus homens. Eles serão meus hóspedes até
à tarde.
O intendente, obsequioso, responde:
– Tudo o que quiseres seja feito –e vai-se embora, depois de uma
profunda inclinação.
281.3O Templo já está perto, e aquele formigueiro humano, parece
mesmo com as formigas, quando já estão perto da entrada do buraco, pois
está agora mais numeroso, quando um dos camponeses do Jocanã grita:
– Eis aqui o patrão! –e cai de joelhos para saudar, sendo imitado pelos
outros.
Jesus fica de pé, no meio de um grupo de prostrados, pois os
camponeses se haviam posto unidos a Ele, e Ele gira seu olhar para o lado
de onde veio aquele grito, e seu olhar se encontra com o olhar de um
empertigado fariseu, que não me é desconhecido, mas que não sei mais
onde por mim foi visto.
O fariseu Jocanã está com outros de sua casta. É um amontoado de
estofos preciosos, de franjas, de fivelas, de cintos, de filactérios, mais
amplos do que os comuns. Jocanã está atento, olhando para Jesus: é um
olhar de pura curiosidade, mas não é desrespeitoso. Pelo contrário, faz sua
saudação todo rijo com apenas uma inclinação de cabeça. Mas é sempre
uma saudação, à qual Jesus responde com respeito. Também outros dois ou
três fariseus saúdam, enquanto outros olham com desprezo, ou fingem que
estão olhando para outro lado, e somente um é que profere uma ofensa, e
certamente assim o é, porque, como estou vendo, quem está perto de Jesus
estremece, e o próprio Jocanã se vira um pouco para fulminar com o olhar o
ofensor, que é um homem mais novo do que ele, de feições sombrias e
duras.
Depois de terem passado por eles, os camponeses criam coragem para
falar, e um deles diz:
– É Doras, Mestre, aquele que Te amaldiçoou.
– Deixa-o. Eu vos tenho a vós, que me abençoais –diz calmamente
Jesus.
Apoiado em uma arquitrave, em companhia de outros, está Manaém, e,
logo que vê a Jesus, o abraça, com uma exclamação de alegria:
– Dia de alegria é este, porque Te encontrei.
E vai para perto de Jesus, acompanhado pelos que estão com ele. E o
venera, sob a sombreada arquitrave, que faz que ressoem as vozes, como se
estivessem debaixo de uma cúpula.
Na mesma hora em que lhe está prestando sua veneração, vão passando
ao lado do grupo dos apóstolos os primos Simão e José com outros
nazarenos… que não o saúdam… Jesus olha para eles, amargurado, mas
nada diz.
Judas e Tiago falam um com o outro, excitados, e Judas está inflamado
de ira, e em seguida parte dali correndo, sem parar, ainda que o irmão o
queira deter. Mas Jesus o faz voltar, dizendo-lhe energicamente:
– Judas, vem cá!
E o inquieto filho de Alfeu volta atrás…
– Deixa que o façam. São sementes que ainda não perceberam a
primavera. Deixa-os na escuridão da gleba renitente. Eu penetrarei nela do
mesmo modo, ainda que a gleba se torne de jaspe em torno da semente. A
seu tempo, Eu farei isso.
Mas, mais forte do que a resposta de Judas de Alfeu, é o pranto, que
ressoa, da Maria de Alfeu, que ficou desolada. É o pranto longo de uma
pessoa envilecida… Contudo, Jesus não se vira para ir consolá-la, por mais
que tenha sido bem ouvida aquela lamentação, emitida debaixo da
arquitrave cheia de ecos…
Ele continua a falar com Manaém, que lhe diz:
– Estes que estão comigo são discípulos de João. Querem, como eu, ser
teus.
– A paz esteja com os bons discípulos. Lá adiante estão Matias, João e
Simão, que já estão comigo para sempre. Eu vos escolho, como os escolhi
porque me são caros todos os que do Santo Precursor vêm a Mim.
281.4Chegaram ao muro do Templo.
Jesus dá ordem a Iscariotes e a Simão, Zelotes, para que adquiram o
necessário para o rito e as ofertas. Depois, chama o sacerdote João, e lhe
diz:
– Tu, que és deste lugar, procurarás convidar algum levita, que sabes
que é digno de conhecer a Verdade. Porque realmente neste ano Eu posso
celebrar uma festa de alegria. Nunca mais será tão doce o dia…
– Por quê, Senhor? –pergunta o escriba João.
– Porque estou convosco ao redor de Mim, visível ou por vosso espírito.
– Mas estaremos sempre aqui! E conosco muitos outros –afirma, com
veemência, o apóstolo João. E todos fazem coro com ele.
Jesus sorri, e fica calado, enquanto o sacerdote João, junto com Estêvão
está entrando no Templo, a fim de cumprir a ordem. Jesus, atrás deles, lhes
grita:
– Ide esperar-nos no Pórtico dos Pagãos.
Eles entram e, quase em seguida, encontram Nicodemos, que lhes faz
uma profunda inclinação, mas não se aproxima de Jesus. Mas ele tem para
com Jesus um sorriso cheio de paz.
Enquanto isso, as mulheres vão parando onde podem. Jesus com os
homens vai fazer a oração, no lugar dos hebreus, depois volta atrás, tendo
cumprido todos os ritos, para ir reunir-se aos que o estão esperando no
Pórtico dos Pagãos.
As séries de pórticos são muito longas e muito altas, cheias de pessoas
que estão ouvindo as leituras feitas pelos rabis. Jesus se dirige ao ponto,
onde vê que estão parados os dois apóstolos e os dois discípulos, que Ele
mandou na frente. Logo se forma um círculo ao redor dele, e aos apóstolos
e discípulos se unem também muitas outras pessoas, que estavam
espalhadas pelo bem frequentado pátio de mármore. A curiosidade é tão
grande, que até alguns dos alunos dos rabis, não sei se espontaneamente ou
se mandados por seus mestres, aproximam-se do círculo formado ao redor
de Jesus.
281.5Jesus faz uma pergunta à queima-roupa:
– Por que vos apertais ao redor de Mim? Dizei-o. Tendes rabis
conhecidos e sábios, bem vistos por todos. Eu sou o Desconhecido e Mal
Visto. Por que é, então, que vindes a Mim?
– Porque nós te amamos –dizem alguns.
E outros:
– Porque Tu tens palavras diferentes das dos outros.
E outros ainda:
– Para ver os teus milagres.
E:
– Porque já te ouvimos falar.
E ainda:
– Porque somente Tu tens palavras de vida eterna, e obras que estão de
acordo com as tuas palavras.
E, finalmente:
– Porque queremos unir-nos aos teus discípulos.
Jesus olha para as pessoas, à medida que vão falando, como se quisesse
traspassá-las com seu olhar, para ler as suas mais secretas sensações, e
alguns, não resistindo àquele olhar, se afastam, ou, quando não, vão
esconder-se atrás de alguma coluna, ou de pessoas mais altas do que eles.
Jesus retoma:
– Mas, sabeis vós o que quer dizer, e o que é ‘vir atrás de Mim’? Eu
respondo apenas a estas perguntas, porque não merece resposta a
curiosidade, e porque quem tem fome das minhas palavras é, por
consequência, meu amigo e desejoso de unir-se a Mim. Portanto, entre os
que já falaram, há dois grupos: os curiosos, que Eu deixo de lado, e os
cheios de vontade, aos quais Eu ensino, sem enganos, qual é a severidade
desta vocação.
281.6Vir a Mim como discípulo quer dizer renunciar a todos os amores
por causa de um só amor: o meu. O amor egoísta para consigo mesmos, o
amor culpável para com as riquezas, ou à sensualidade, ou ao poder, o amor
honesto para com a esposa, o amor santo para com a mãe, o pai, o amor
amável dos e aos filhos e irmãos, tudo deve ceder lugar ao meu amor, se
quiserdes ser meus. Em verdade, Eu vos digo que mais livres do que uns
passarinhos, que voam pelos ares, devem ser os meus discípulos, mais
livres do que os ventos, que percorrem os ares, sem que ninguém os
detenha, nem as pessoas, nem nenhuma outra coisa. Livres, sem pesados
grilhões, sem laços de um amor material, e até sem as mais leves barreiras,
como são as das teias de aranha. O espírito é como uma delicada borboleta,
fechada ainda dentro do pesado casulo da carne, que pode tornar-lhe pesado
o vôo, ou refreá-lo completamente, até por uma irisdescente e impalpável
teia de aranha: a aranha da sensibilidade, da falta de generosidade no
sacrifício. Eu quero tudo, sem reservas. o espírito precisa dessa liberdade de
dar, dessa generosidade de dar, para poder estar certo de que não está
embaraçado pela teia de aranha das intenções, dos hábitos, das reflexões,
dos medos, estendida, com numerosos fios por aquela aranha monstruosa,
que é satanás, ladrão de almas.
Se alguém quer vir a Mim, e não odeia santamente a seu pai, à sua mãe,
à sua mulher, aos seus filhos, aos seus irmãos e irmãs, e até à sua própria
vida, não pode ser meu discípulo. Eu disse: “não odeia santamente.” Vós
em vosso coração estais dizendo: “O ódio, que Ele assim está ensinando,
nunca é santo. Portanto, Ele está em contradição.” Não. Eu não me
contradigo. Eu mando odiar o pesadume do amor, isto é, o lado apaixonado
e carnal do amor ao pai e à mãe, à esposa e aos filhos, aos irmãos e irmãs e
à própria vida, mas antes Eu ordeno que se ame, com a liberdade que não
pesa, e que é própria dos espíritos, aos parentes e à vida. Amai-os em Deus
e por Deus, não pondo a Deus em segundo lugar, depois deles, mas ocupai-
vos e preocupai-vos em levá-los até onde o discípulo chegou, isto é, a Deus
Verdade. Assim amareis santamente aos parentes a à vida, e conciliareis os
dois amores, e fareis liames de sangue, que não são pesos, mas são asas,
não são culpa, mas justiça.
Até a vossa vida deveis estar prontos a odiar para acompanhar-me.
Odeia sua vida aquele que, sem medo de perdê-la, nem de torná-la
humanamente triste, a põe a meu serviço. Mas isso não é mais do que uma
aparência de ódio. É um sentimento erroneamente chamado “ódio” pelo
pensamento do homem, que não sabe elevar-se, do homem todo terreno,
pouca coisa superior aos brutos. Na realidade, esse ódio aparente, que
consiste em dizer não às satisfações sensuais da existência para dar sempre
mais vasta vida ao espírito, é Amor. Amor é o mais alto que existe, o mais
abençoado. Isto de negar a si mesmo as baixas satisfações, isto de interditar
a si a sensualidade dos afetos, isto de sair à procura de censuras e
comentários injustos, isto de correr o risco de punições, repúdios,
maldições, talvez até de perseguições, é uma sequência de sofrimentos. Mas
é necessário abraçá-los e tomá-los sobre nós como uma cruz, um patíbulo
sobre o qual se expiam todas as culpas passadas, a fim de irmos justificados
para Deus, do qual se obtém toda graça verdadeira, poderosa, a santa graça
de Deus para todos aqueles que nós amamos. Quem não leva a sua cruz, e
não vem com ela atrás de Mim, quem não sabe fazer isso, não pode ser meu
discípulo
281.7Pensai, pois, muito nisso, vós que dizeis: “Nós viemos porque
queremos unir-nos aos teus discípulos.” Não é vergonha, mas uma
sabedoria, saber cada um pesar-se a si mesmo, julgar-se, e confessar a si
mesmo e aos outros: “Eu não tenho qualidades para ser discípulo” Por que
não? Os pagãos têm como base dos seus ensinamentos a necessidade de
“conhecerem-se a si mesmos”, e vós, israelitas, não saberíeis fazer isso para
conquistardes o Céu?
Porque, lembrai-vos bem disso, felizes aqueles que virão a Mim. Mas,
melhor do que vir, para depois trair a Mim e Aquele que me enviou, melhor
é não vir mesmo, e permanecerem como filhos da Lei, como até agora
fostes. Ai daqueles que, tendo dito “Eu venho”, causam dano depois ao
Cristo, sendo uns traidores do ideal cristão, escandalizando os pequenos, os
bons! Ai deles! E, no entanto, haverá desses, e haverá sempre.
Imitai, pois aquele que quer edificar uma torre. Antes, ele calcula,
atentamente, a despesa que terá, e faz as contas do dinheiro que tem, para
ver se tem com que levá-la a termo, a fim de que, tendo terminado os
fundamentos, não possa levantar a obra, por não ter mais dinheiro. Nesse
caso, ele perderia também o que tinha antes, ficando sem a torre e sem seu
dinheiro e, em troca disso, receberia as zombarias do povo, que diria: “Esse
aí começou a construir, e não pôde acabar. Agora ele pode encher seu
estômago com as ruínas de sua obra inacabada.”
Imitai também os reis da terra, fazendo que os pobres acontecimentos
do mundo sirvam de ensinamento sobrenatural. Eles, quando querem mover
uma guerra contra outro rei, examinam antes, com calma e atenção, todas as
circunstancias pró e contra, meditam se as vantagens da conquista valem
mesmo o sacrifício das vidas dos súditos, estudam se vai ser possível
conquistar aquele lugar, se o seu exército que é só a metade do exército do
seu rival, ainda que mais preparado para o combate, será, ou não, capaz de
vencer. E, justamente pensando se dez mil vão ser capazes de vencer vinte
mil, antes que se trave o primeiro combate, manda ao encontro do seu rival
uma embaixada com ricos presentes, e, aplacando o seu rival, que já havia
suspeitado de alguma coisa, ao ver aquelas mobilizações das tropas feitas
pelo outro, o desarmam, com provas de amizade, anulam as suspeitas e
fazem com ele um tratado de paz, na verdade sempre muito mais vantajoso,
tanto humana, como espiritualmente, do que uma guerra.
Assim deveis fazer vós, antes de começardes a nova vida, e pôr-vos em
marcha contra o mundo. Porque isto é que é ser meus discípulos: ir contra a
turbulenta e violenta corrente do mundo, da carne, de satanás. E, se não
sentis em vós mesmos a coragem de renunciar a tudo por meu amor, não
venhais a Mim, porque não podeis ser meus discípulos.
281.8– Está bem. Isto que Tu dizes é verdade –admite um escriba, que
entrou no meio do grupo–. Mas, se nos despojarmos de tudo, com que é que
te serviremos depois? A Lei tem mandamentos, que são como umas
moedas, que Deus dá ao homem, para que ele, usando delas, com elas possa
comprar a vida eterna. Mas Tu dizes: “Renunciai a tudo”, e te referes ao pai,
à mãe, às riquezas, às honras. Deus, com efeito, deu estas coisas e nos disse,
pela boca de Moisés, que as usássemos com santidade, para aparecermos
justos aos olhos de Deus. E Tu, se nos tiras tudo isso, que nos dás?
– O verdadeiro amor, como Eu disse, ó rabi. Eu vos dou minha
doutrina, que não tira da antiga Lei nem um jota, mas, ao contrário, a
aperfeiçoa.
– Nesse caso, todos somos igualmente discípulos, porque todos
possuímos as mesmas coisas.
– Todos as temos, segundo a Lei de Moisés. Mas não todos, segundo a
lei aperfeiçoada por Mim, segundo o Amor. Pois nem todos conseguem,
segundo ela, a mesma soma de merecimentos. Também entre os meus
próprios discípulos nem todos conseguem ter uma soma de merecimentos
em medida igual, e algum entre eles, não só não terá tal soma, mas acabará
perdendo até a sua última moeda, que é a sua alma.
– Como? A quem mais é dado, mais sobrará, os teus discípulos e,
melhor ainda, os teus apóstolos Te seguem em tua missão, e estão a par de
teus modos, receberam em grande abundância, receberam muito os
discípulos efetivos, receberam menos os que são discípulos só de nome, e
nada receberam os que, como eu, não te ouvem, a não ser por acaso. É claro
que muitíssimo receberão no Céu os apóstolos, muito os discípulos, menos
os discípulos só de nome, e nada os que são como eu.
– Humanamente, é claro, e mal, também humanamente. Porque nem
todos são capazes de fazer frutificar os bens que receberam. Escuta esta
parábola, e perdoa, se aqui fico ensinando por um tempo demasiado longo.
Mas Eu sou uma andorinha de passagem, e não paro, senão por pouco
tempo, na casa do Pai, tendo vindo para o mundo todo, e não querendo, este
pequeno mundo, que é o Templo de Jerusalém, permitir que Eu recolha o
véu e permaneça lá onde a glória do Senhor me está chamando.
– Por que dizes isto?
– Porque é verdade.
O escriba olha ao redor de si, e inclina a cabeça. Que seja verdade, ele o
vê escrito em muitíssimos rostos de sinedritas, rabis e fariseus, que foram
chegando e aumentando a aglomeração ao redor de Jesus. Há rostos
esverdeados pela bílis, ou avermelhados pela ira, olhares que valem por
palavras de maldição e por cusparadas de veneno, rancor que fermenta de
todo lado, desejo de ultrajar o Cristo, mas que fica só no desejo, por medo
dos muitos que estão ao redor do Mestre com devoção, e que estão prontos
a fazer tudo para defendê-lo, e por medo também do castigo por parte de
Roma, que trata com benignidade o manso Mestre galileu.
281.9Jesus continua, calmo, a expor, com a parábola, o seu pensamento:
– Um homem, estando para fazer uma longa viagem e ficar ausente por
muito tempo, chamou todos os seus servos, e pôs nas mãos deles todos os
seus bens. A um entregou cinco talentos de prata, a outro dois de prata e a
um somente um talento de ouro. A cada um conforme a sua posição e sua
habilidade. Depois partiu.
Ora, o servo, que tinha recebido cinco talentos de prata, saiu dali, e foi
negociar de modo inteligente os seus talentos, de tal modo que, em pouco
tempo, eles lhe renderam outros cinco. O que havia recebido dois talentos
de prata fez o mesmo, e dobrou a soma recebida. Mas aquele a quem o
patrão mais havia dado, um talento de ouro puro, tomado pelo medo de não
saber administrar, pelo medo dos ladrões e de mil outras coisas, que sua
fantasia criava, mas sobretudo por sua preguiça, fez um buraco bem fundo
no chão, e lá escondeu o dinheiro do seu patrão.
Passados muitos e muitos meses, o patrão voltou. Mandou chamar logo
os seus servos, para que entregassem o dinheiro recebido.
Chegou primeiro aquele que havia recebido cinco talentos de prata, e
disse: “Aqui estão, meu senhor. Tu me deste cinco. E eu, achando que não
ficaria bem deixar de fazer que tudo o que me deste produzisse fruto, pus-
me a trabalhar, e te consegui outros cinco talentos. Mais do que isso não
pude fazer…” “Bem. Muito bem, servo bom e fiel. Foste fiel no pouco,
forte, corajoso e honesto. Eu te darei agora autoridade sobre muito. Vem
participar da alegria do teu senhor.”
Depois, veio o outro, o dos dois talentos, e disse: “Eu tomei a liberdade
de usar dos teus bens para tua vantagem. Aqui estão as contas que te farão
ver como usei o teu dinheiro. Estás vendo? Eram dois talentos de prata.
Agora, são quatro. Estás contente, meu senhor?” E o patrão deu àquele
servo bom a mesma resposta que deu ao primeiro servo.
Veio por último aquele em quem o patrão depositou a maior confiança,
e que dele havia recebido o talento de ouro. Ele o tirou de onde o tinha
guardado, dizendo: “tu me confiaste o maior valor, porque sabes que eu sou
prudente e fiel, assim como eu também sei que és intransigente e exigente,
que não toleras perdas em teu dinheiro, mas que, se te acontece um mau
negócio, logo queres recuperar o que perdeste nas costas do primeiro que
aparecer, pois em verdade gostas de fazer colheitas onde não semeaste, e
recolhes onde não espalhaste, e não perdoas um centavo ao teu banqueiro,
ou ao teu feitor, por nenhum motivo. O dinheiro há de ser tanto, como tu
dizes. Por isso, eu, com medo de diminuir este tesouro que recebi, fui
escondê-lo. Não confiei em ninguém, nem em mim mesmo. Agora, eu o
desenterrei, e te entrego. Aqui está o teu talento.”
“Servo mau e preguiçoso! Na verdade, não me tiveste amor, porque não
me conheceste bem e não zelaste pelo meu bem-estar, pois deixaste
improdutivo o talento. Tu traíste a estima que eu havia posto em ti, e te
desmentes a ti mesmo, te acusas e te condenas. Tu, que sabias que eu colho
onde não semeei, e recolho onde nada espalhei, por que, então, nada fizeste
para que eu pudesse ceifar e colher? Foi assim que correspondeste à minha
confiança? É assim que dizes conhecer-me? Por que não levaste o dinheiro
aos banqueiros, e eu o teria de volta, retirado com juros? Sobre isto, com
um cuidado especial eu te havia chamado a atenção, e tu, estulto,
preguiçoso, não fizeste caso da minha observação. Que te seja, pois, tomado
o talento e todos os outros bens, e que ele seja dado ao que recebeu os dez
talentos.”
“Mas aquele já recebeu dez, enquanto que este vai ficar sem nada…,
lhe disseram.”
“É isso mesmo. A quem já tem, e também porque ele trabalha, será
dado ainda mais, até que ele possua em grande abundância. Mas a quem
nada tem, porque não quis ter, ser-lhe-á tirado o que ele recebeu. E, quanto
a este servo inútil, que traiu a minha confiança, e deixou improdutivos os
meus dons, jogai-o para fora de minha propriedade, e que ele se vá
chorando, e roendo-se em seu coração.”
Esta é a parábola. Como estás vendo, ó rabi, a quem mais tinha, menos
sobrou, porque não soube merecer e conservar o dom de Deus. Pois foi dito
que um daqueles, que tu chamas discípulos só de nome, e que têm por isso
bem pouca coisa para negociar, e, do mesmo modo, entre os que me
ouvindo apenas por acaso, como tu dizes, e, tendo como única moeda a sua
alma, não cheguem a ter o talento de ouro, e os juros do mesmo também,
que será tirado de um dos que mais receberam. Infinitas são as surpresas do
Senhor, porque infinitas são as reações do homem. Vereis pagãos que
chegarão à vida eterna, e samaritanos que possuirão o Céu, e vereis
israelitas e seguidores meus perderem o Céu e a Vida eterna.
281.10Jesus se cala, e, como se quisesse acabar com toda a discussão, Ele
se vira para o muro do Templo. Mas um doutor da Lei, que se havia sentado
para ouvir com atenção, estando por baixo da série de pórticos, levantou-se
e foi diante dele, perguntando-lhe:
– Mestre, que devo fazer para conseguir a vida eterna? Tu respondeste
já a outros. Responde a mim também.
– Por que queres me tentar? Por que é que queres mentir? Estás
esperando que Eu diga alguma coisa diferente da Lei, porque Eu acrescento
a ela alguns conceitos mais luminosos e perfeitos? Que está escrito na Lei?
Responde-me: Nela, qual é o mandamento principal?
– “Amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua
alma, com todas as tuas forças, com toda a tua inteligência. Amarás ao teu
próximo como a ti mesmo.”
– Aí está. Respondeste bem. Faze isso e terás a vida eterna.
– E quem é o meu próximo? O mundo está cheio de gente boa e má,
conhecida e desconhecida, amiga ou inimiga de Israel. Qual é o meu
próximo?
– Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó, pelas gargantas das
montanhas, e caiu nas mãos dos ladrões que, depois de o terem ferido, o
despojaram de tudo o que ele tinha, e até de suas vestes, deixando-o mais
morto que vivo, à beira da estrada.
Pelo mesmo caminho passou depois um sacerdote, que havia terminado
o seu turno no Templo. Oh! Ele vinha ainda perfumado com os incensos do
Santo! E teria devido ter também uma alma perfumada de bondade
sobrenatural e de amor, tendo estado na Casa de Deus, quase em contato
com o Altíssimo. O sacerdote estava com pressa de chegar à sua casa.
Olhou, por isso, para o ferido, mas não parou. Assim ele passou apressado,
deixando o infeliz à margem da estrada.
Passou um levita. Iria contaminar-se, logo ele que tinha que servir no
Templo? Nunca! Sungou sua veste, para não ficar suja de sangue, lançou
um olhar de relance sobre aquele que estava gemendo e sangrando e
apressou seus passos em direção do Templo.
Um terceiro, vinha da Samaria, e se dirigia para o vau. Ele era um
samaritano. Viu o sangue, parou, descobriu o ferido, quando o crepúsculo já
estava chegando ao fim, apeou-se do seu jumento, aproximou-se do ferido,
reanimou-o com um bom gole de vinho, rasgou o próprio manto, para fazer
dele faixas, e, tendo lavado e untado as feridas, primeiro usando o vinagre,
e depois o azeite, ele o enfaixou com amor e, tendo colocado o ferido sobre
o jumento, foi guiando o animal com cuidado, consolando, ao mesmo
tempo ao ferido com boas palavras, sem preocupar-se por estar cansado,
nem desprezando-o por ser ele de nacionalidade judaica. Tendo chegado à
cidade, levou-o até um albergue, passou ao lado dele a noite inteira, e, ao
romper do dia, vendo que ele havia melhorado, o recomendou ao
albergador, pagando-lhe antecipadamente com alguns denários, e dizendo-
lhe; “Toma cuidado dele, como se o fizesses a mim próprio. Na minha
volta, tudo o que tiveres gasto com ele eu to pagarei, e bem pago, se o
tiveres feito bem.” E lá se foi.
– Doutor da Lei, responde-me: Qual daqueles três foi o “próximo” para
o que caiu nas mãos dos ladrões? Terá sido o sacerdote? Terá sido o levita?
Oh! Não. Ou não foi o samaritano, que nem perguntou quem era o ferido,
nem por que é que estava ferido, nem ficou pensando se fazia mal em
socorrê-lo, perdendo o seu tempo e o dinheiro, nem se estava se arriscando
a que alguém o acusasse de ter ferido o homem?
O Doutor da Lei respondeu:
– O “próximo” foi este último, porque teve misericórdia.
– E faze tu também de modo semelhante, e estarás amando o próximo, e
a Deus no próximo, e merecerás a vida eterna.
281.11Ninguém mais ousa falar, e Jesus se aproveita disso para reunir as
mulheres, que estavam esperando perto do muro, a fim de com elas ir
novamente para a cidade. Agora aos discípulos ajuntaram-se dois
sacerdotes, ou melhor, um sacerdote e um levita, muito jovem este último, e
de um ar patriarcal o outro.
Mas Jesus agora está falando com a Mãe, tendo no meio, entre Ele e
Ela, Marziam. E Ele pergunta a Maria:
– Tu me ouviste, Mãe?
– Sim, meu Filho, e à tristeza de Maria de Cleófas ajuntou-se a minha.
Ela chorou, pouco antes de entrar no Templo…
– Eu sei, Mãe. Eu sei também o motivo disso. Mas ela não deve chorar.
Só deve rezar.
– Oh! Ela reza tanto! Nestas tardes, debaixo de sua cabana, por entre os
filhos que estavam dormindo, ela rezava e chorava. Eu a ouvia chorar,
através da parede pouco espessa feita com ramagens. Ter que ver, a poucos
passos José e Simão, vizinhos um do outro, mas tão separados!… E ela não
é a única a chorar. Comigo chorou Joana, que te parece tão serena…
– Por quê, Mãe?
– Porque Cusa… Está com uma conduta… inexplicável. Um pouco, ele
a ajuda em tudo. E um pouco ele a rejeita em tudo. Quando estão sozinhos,
onde ninguém os vê, é o marido exemplar de sempre. Mas, se com eles
estiverem outras pessoas da Corte, o que é normal, ele se torna autoritário e
indiferente para com sua mansa esposa. Ela não compreende o porquê.
– Eu te vou dizer. Cusa é servo de Herodes. Compreende-me, Mãe. Ele
é “servo.” Eu não digo isso à Joana, para não aumentar sua dor. Mas assim
é. Quando ele não teme a repreensão ou a decisão do soberano, ele é Cusa,
o bom. Mas, quando ele pode temer aquelas coisas, já não é como era.
– Será porque Herodes está muito irritado por causa de Manaém e…
– É porque Herodes está louco pelo remorso tardio de ter cedido a
Herodíades. Mas Joana já tem tanto bem em sua vida. Agora, ela deve
trazer, por debaixo do seu diadema, o cilício.
– Anália também está chorando…
– Por quê?
– Porque o esposo dela toma partido contra Ti.
– Que ela não chore. Dize isto a ela. O que Eu digo é uma decisão. É
uma bondade de Deus. O sacrifício dela trará de novo Samuel para o bem.
Por enquanto, isto a deixará livre das pressões do matrimônio. Eu lhe
prometi tomá-la comigo. Ela me precederia na morte…
– Meu Filho!
Maria aperta a mão de Jesus, com um rosto que fica muito pálido.
– Mãe querida! É pelos homens. Tu o sabes. É por amor dos homens.
Bebamos o nosso cálice de boa vontade. Não é verdade?
Maria engole as lágrimas, e responde:
– Sim.
Um “sim” dilacerado e muito dilacerante.
281.12Marziam levanta o seu rostinho, e diz a Jesus:
– Por que dizes estas coisas feias que causam dor à Mamãe? Eu não te
deixarei morrer. Como defendi os cordeirinhos, assim Te defenderei.
Jesus o acaricia e, para elevar o moral dos dois aflitos, pergunta ao
menino:
– Que estarão fazendo agora as tuas ovelhinhas? Não estás com saudade
delas?
– Oh! Eu estou contigo. Mas eu sempre penso nelas, e pergunto a mim
mesmo: “Será que Porfíria as levou a pastar? E terá tomado cuidado para
que o Espuma não vá para o lago?” O Espuma é muito esperto, sabes? A
mãe dele o chama, chama… Mas, nada. Ele faz o que quer. E a Neve, tão
gulosa, que come até ficar doente? Sabes, Mestre? Eu compreendo o que é
ser sacerdote em teu Nome. Eu o compreendo melhor do que os outros. Eles
(e acena com a mão para os apóstolos que vem vindo atrás) dizem tantas
bravatas… fazem tantos projetos… para depois. Eu digo: “irei ser pastor.
Como para as ovelhinhas, eu o serei para os homens. E isso bastará.” A
minha e tua Mamãe me falou ontem de um ponto tão bonito dos profetas…
e me disse: “É exatamente assim o nosso Jesus.” E eu, em meu coração,
disse: “E eu também serei exatamente assim.” Depois, eu disse à nossa
Mamãe: “Por enquanto, eu sou um cordeirinho, mas depois serei pastor.
Jesus, ao contrário, agora é Pastor, e depois é também Cordeiro. Mas tu és
sempre a Cordeira, somente a nossa Cordeira, branca, bela, querida, que
tem palavras mais doces que o leite. É por isso que Jesus é apenas Cordeiro,
porque nasceu de ti, Cordeirinha do Senhor…”
Jesus se inclina, e o beija com carinho. Depois, pergunta:
– Tu, então, queres mesmo ser sacerdote?
– Certamente, meu Senhor! Para isso procuro tornar-me bom e saber
muito. Vou sempre a João de Endor. Ele me trata sempre como homem, e
com muita bondade. Eu quero ser pastor das ovelhas desviadas, e médico-
pastor das feridas e machucadas, como diz[81] o Profeta. Oh! Que beleza! –e
o menino dá um salto, batendo as mãos.
– Que viu este tisiu, para estar assim tão alegre? pergunta Pedro, indo
para a frente.
– Ele está vendo o seu caminho. Com toda a clareza. Até o fim. E Eu
consagro essa sua visão com o meu “sim.”
281.13Param diante de uma casa alta que, se não me engano, fica perto do
subúrbio de Ofel, mas em um lugar mais nobre.
– Vamos parar aqui?
– Esta é a casa que Lázaro me ofereceu para o banquete da alegria.
Maria já está aqui.
– Por que ela não veio conosco? Teria ficado com medo das zombarias?
– Oh! Não. Eu apenas lhe dei esta ordem.
– Por quê, Senhor?
– Porque o Templo é mais susceptível do que uma esposa grávida.
Enquanto Eu puder, e não por covardia, não quero provocá-lo.
– Isso não te adiantará nada, Mestre. Eu, se estivesse em teu lugar, o
provocaria. E o derrubaria do Monte Mória, com todos os que estão dentro
dele.
– Tu és um pecador, Simão. É preciso rezar por nossos semelhantes, e
não matá-los.
– Eu sou pecador. Mas Tu, não… e deverias fazê-lo.
– Haverá quem o faça. Depois que a medida do pecado for atingida.
– Que medida?
– Uma medida tão grande, que encherá o Templo todo, transbordando
para Jerusalém. Tu não podes entender… Oh! Marta! Abre então, para o
Peregrino a tua casa!
Marta se apresenta e faz abrir. Entram todos para um longo átrio, que
termina em um pátio calcetado, que tem quatro árvores, uma em cada canto.
Uma vasta sala se abre no meio do terreno, e pelas janelas abertas se vê
toda a cidade, com seus sobe-desces. Concluo daí que a casa esteja sobre as
encostas do sul ou do sudeste da cidade. A sala está preparada para muitos,
muitos hóspedes. Mesas e mais mesas estão colocadas, umas paralelas às
outras. Uma centena de pessoas pode aí comodamente tomar refeição.
Chega Maria Madalena, que estava noutro lugar, ocupada nas preparações,
e se prostra diante de Jesus. Chega também Lázaro, com um sorriso de
contentamento em seu rosto doentio. Pouco a pouco vão entrando os
hóspedes, alguns um pouco acanhados, outros mais desembaraçados. Mas a
gentileza das mulheres faz que todos se sintam à vontade.
281.14O sacerdote João apresenta a Jesus os dois que ele trouxe do
Templo.
– Mestre, meu bom amigo Jônatas e meu jovem amigo Zacarias. São
verdadeiros israelitas sem malícia e sem ódio.
– A paz esteja convosco. Sinto-me alegre por ter-vos aqui. O rito há de
ser observado também nestes encontros familiares. É bonito ver a Fé antiga
dar sua mão amiga à nova Fé, que vem do mesmo tronco que ela. Sentai-
vos a meu lado, enquanto não chega a hora da refeição.
Toma a palavra o patriarcal Jônatas, enquanto o jovem levita olha para
cá para lá, espantado, e talvez também atemorizado. Penso que ele queira
tomar um ar de desenvoltura, mas na verdade ele se está sentindo como um
peixe fora d’água. Por sorte, Estêvão vem em seu socorro, e lhe apresenta,
um depois do outro, os apóstolos e discípulos principais.
O velho sacerdote, cofiando a barba de neve, diz:
– Quando João veio a mim, precisamente a mim, seu mestre, para
mostrar-me a sua cura, eu tive vontade de conhecer-te. Mas, Mestre, eu
quase não saio mais do meu recinto. Já estou velho… Mas eu esperava ver-
te, antes de morrer. E Javé me ouviu. Louvor a Ele seja dado! Hoje eu te
ouvi no Templo. Tu superas Hilel, o velho, o sábio. Eu não quero, ou
melhor, não posso duvidar de que Tu sejas aquilo que o meu coração vem
esperando. Mas Tu sabes o que é ter bebido por quase oitenta anos a fé de
Israel, como ela se tornou durante séculos de… um testemunho humano?
Ela se fez nosso sangue. Eu já estou velho assim! Ouvir-te é como ouvir a
água, que sai de uma fonte fresca. Oh! Sim! Uma água virgem. Mas eu…
mas eu estou saciado da água cansada, que vem de tão longe… que se torna
uma água pesada, contendo tanta coisas. Como é que farei para sair desta
saturação, para poder gostar de Ti?
– Crer em Mim e me amar. Não é preciso nada mais para o justo
Jônatas.
– Mas em breve eu morrerei. Estarei ainda em tempo de crer em tudo
aquilo que dizes? Não conseguirei mais nem acompanhar todas as tuas
palavras, nem a conhecê-las por boca de outros. E, então?
– Tu as aprenderás no Céu. Só morre para a Sabedoria o condenado…
Mas quem morre na graça de Deus chega à Vida, e vive na Sabedoria. Que
crês tu que Eu seja?
– Não podes ser senão o Esperado, do qual foi precursor o filho do meu
amigo Zacarias. Tu o conheceste?
– Era meu parente.
– Oh! Então, Tu és parente do Batista?
– Sim, sacerdote.
– Ele morreu… e não posso chamá-lo de infeliz, porque morreu fiel à
justiça, depois de haver cumprido sua missão, e porque…Oh! Que tempos
atrozes estes em que vivemos! Não será melhor voltarmos aos de Abraão?
– Sim. Mais atrozes ainda virão, sacerdote.
– Tu o dizes? Estás referindo-te a Roma, não?
– Não somente a Roma. Israel culpado será disso a primeira causa.
– É verdade. Deus nos está castigando. Nós o merecemos. Contudo,
também Roma… 281.15Ouviste falar dos galileus mortos por Pilatos,
enquanto estavam consumando um sacrifício? O sangue deles misturou-se
com o sangue da vítima. E até perto do altar! Até perto do altar!
– Eu ouvi falar.
Todos os galileus estão fazendo tumulto por causa desse abuso. Eles
estão gritando:
– É verdade que ele era um falso Messias. Mas, por que matar os seus
seguidores, depois de já o terem matado? E, por que naquela hora? Eram
eles, por acaso, mais pecadores?
Jesus restabelece a paz, e depois diz:
– Vós nos perguntais se eram mais pecadores aqueles, do que muitos
outros galileus, e se é por isso que eles foram mortos? Não. Eles não eram.
Em verdade, Eu vos digo que eles pagaram, e que muitos outros pagarão, se
não vos converterdes ao Senhor. Se todos não fizerdes penitência, morrereis
todos do mesmo modo, na Galileia e em outros lugares. Deus está sendo
odiado pelo seu povo. Eu vo-lo digo. Não é necessário crer que os que
morreram tenham sido sempre os piores. Cada um examine-se a si mesmo,
julgue-se a si mesmo, e não ao outro. Também aqueles dezoito sobre os
quais caiu a torre de Siloé e os matou, não eram os mais culpados em
Jerusalém. Eu vo-lo digo. Fazei, fazei penitência, se não quereis ser
esmagados como eles, e também em vosso espírito. 281.16Vem, sacerdote de
Israel. A mesa está posta a ti, porque o sacerdote é sempre o que há de ser
honrado, por causa da Ideia que ele representa e evoca, cabe a ti, que és o
patriarca entre nós, que somos todos mais jovens, oferecer e abençoar.
– Não, Mestre! Não. Diante de Ti, não posso. Tu és o Filho de Deus!
– Contudo, ofereces o incenso diante do altar. E, por acaso, não crês que
lá está Deus?
– Sim, que eu o creio! Com todas as minhas forças!
– E, então? Se não tremes ao ofereceres o incenso, diante da Glória
Santíssima do Altíssimo, por que quererás tremer, diante da Misericórdia,
que veio vestir-se de carne, para trazer também a ti a bênção de Deus, antes
que chegue a noite? Oh! Vós de Israel não sabeis que justamente para que o
homem possa aproximar-se de Deus sem morrer, Eu coloquei sobre a minha
Divindade insuportável o véu da carne. Vem e crê e sê feliz. Em ti Eu
venero todos os sacerdotes santos, desde Aarão, até o último que for
sacerdote de Israel com justiça, até a ti, talvez, porque em verdade, a
santidade sacerdotal está enlanguescendo entre nós, como uma planta
desamparada.
[81] diz, em Ezequiel 34,16.
282. A acusação ao Sinédrio com relação
a Ermasteo, João de Endor e Síntique.
21 de setembro de 1945.
282.1Jesus, com os apóstolos e discípulos, dirigiu-se para Betânia,
falando ao discípulos, aos quais dá a ordem de se separarem, indo os judeus
para a Judeia, os galileus subindo de novo para o outro lado do Jordão, e
anunciando o Messias.
Isto evita qualquer objeção. Parece-me que o além-Jordão não gozava
de boa fama entre os israelitas. Falam dele quase como de regiões pagãs.
Mas isso é uma ofensa para os discípulos do além-Jordão, entre os quais,
como uma voz mais autorizada do que todas as outras, o sinagogo de Águas
Belas, e depois um jovem, cujo nome eu não sei, e defendem com unhas e
dentes as suas cidades e os seus concidadãos.
Timoneu diz:
– Vai, Senhor, a Aera, e verás se lá não te respeitam. Não encontrarás
tanta fé na Judeia, como lá. Eu nem quero ir. Conserva-me contigo, e que
um judeu vá com um galileu à minha cidade. Verão como ela soube crer em
Ti, só pela minha palavra.
E o jovem diz:
– Eu soube crer, sem nem mesmo nunca haver-te visto. Eu te procurei,
depois do perdão de minha mãe. Mas eu estou feliz por poder voltar lá em
cima, por mais que isso signifique para mim ir receber as zombarias dos
meus concidadãos malvados, como eu era há tempo, e a censura dos bons
pela minha conduta passada. Mas não me importa. Eu te pregarei com o
meu exemplo.
– Disseste bem. E tu também, Timoneu, tu também falaste bem. Irão,
então, Hermas com Abel de Belém da Galileia, para me anunciarem em
Aera, enquanto tu, Timoneu, ficarás comigo. Mas Eu não quero essas
disputas. Não sejais mais judeus nem galileus; sede discípulos. Assim basta.
O nome e a missão vos igualam na região, no grau, em tudo. Só em uma
coisa podeis ser diferentes: na santidade. Essa será individual, e na medida
em que cada um a souber atingir. Mas Eu gostaria que tivésseis todos uma
mesma medida: a medida perfeita. Estais vendo os apóstolos? Eles eram
como vós, divididos por questões de raças e outras coisas. Mas agora,
depois de um ano e tanto de instrução, eles são apenas os apóstolos. Fazei-
vos também assim e, como entre vós o sacerdote está perto do antigo
pecador, e o rico está perto do mendigo, o jovem ao lado do velho, por isso
procurai fazer desaparecer isto de andardes dizendo que sois desta ou
daquela região. Vós tendes uma só Pátria: é o Céu agora. Porque no
caminho do Céu vós vos colocastes, porque quisestes. Não deis nunca aos
meus inimigos a impressão de que sois inimigos uns dos outros. O inimigo
é o pecado. E nenhum outro.
282.2Andam ainda em silêncio por algum tempo. Depois Estêvão se
aproxima do mestre e diz:
– Deverei dizer-te uma coisa. Eu esperava que Tu me perguntasses, mas
não o fizeste. Ontem Gamaliel me falou…
– Eu vi.
– E não me perguntas o que foi que ele me disse?
– Estou esperando que tu o digas, porque o bom discípulo não tem
segredo para o seu Mestre.
– Gamaliel… Mestre, vem alguns metros à frente comigo.
– Vamos em frente. Mas poderias falar na presença de todos…
Afastam-se alguns metros. Estêvão, com um rosto muito corado, diz:
– Eu te devo dar um conselho, Mestre. Perdoa-me…
– Se o conselho for bom, Eu o aceitarei. Então, fala.
– Mestre, no Sinédrio tudo se sabe antes e depois. É uma instituição que
tem mil olhos e cem garras. Ela penetra por toda parte, tudo vê, tudo ouve.
Além disso… tem mais informantes do que os tijolos que o Templo tem…
Muitos vivem disso…
– Fazendo espionagem… Continua o que ias dizendo. É verdade, e Eu
sei disso. E então? Que terá sido dito de mais ou menos verdadeiro ao
Sinédrio?
– Foi-lhe dito… tudo. Eu nem sei como podem saber tantas coisas. Não
sei nem se são verdadeiras. Mas vou dizer-te o que me disse Gamaliel,
exatamente com estas palavras: “Dize ao Mestre que faça circuncidar
Hermasteu ou, então o afaste para sempre. Não é preciso dizer mais nada.”
– De fato, não é preciso dizer mais nada. Antes de tudo porque Eu vou a
Betânia justamente para isso, e por lá ficarei, até que Hermasteu possa
viajar de novo. Em segundo lugar, porque nenhuma justificação poderia
acabar com as prevenções e… os rigores de Gamaliel, escandalizado pelo
fato de ter Eu comigo a alguém que não foi circuncidado em um membro
do corpo. Oh! Seria bom que ele olhasse ao redor de si, e dentro de si!
Quantos incircuncisos há em Israel!
– Mas Gamaliel…
– Ele é o perfeito representante do velho Israel. Não é mau, mas… Olha
esta pedra. Eu poderia quebrá-la, mas não achatá-la com um martelo, pois
ela não se torna maleável. Assim é ele. Ele precisa ser triturado, para que se
possa montar suas peças de novo. E Eu o farei.
– Queres combater com Gamaliel? Cuidado! Ele é forte!
– Combater? Como se fosse um inimigo? Não. Em vez de o combater,
Eu o amarei, atendendo a um desejo dele para o seu cérebro mumificado,
derramando nele um bálsamo que o dissolverá, para depois montá-lo de
novo.
– Eu também rezarei para que isso aconteça, porque eu lhe quero bem.
Faço mal?
– Não. Deves querer-lhe bem, rezando por ele. E o farás. É certo que o
farás. Até me ajudarás, tu mesmo, a preparar o bálsamo. Dirás depois a
Gamaliel que Eu tinha já preparado para Hermasteu, e que lhe sou grato
pelo conselho. 282.3 Chegamos a Betânia. Paremos aqui, para que Eu vos
abençoe a todos, já que aqui é o lugar da nossa separação.
E, reunindo-se ao grupo cerrado dos apóstolos e dos discípulos, Ele os
abençoa e se despede de todos, menos de Hermasteu, de João de Endor e de
Timoneu.
Depois, com os que ficaram, dá, apressado, os poucos passos que ainda
o separam da cancela de Lázaro, já escancarada para recebê-lo, e entra no
jardim, elevando a mão para abençoar a casa hospitaleira, em cujo amplo
parque estão espalhados os donos das casas e as piedosas mulheres, que se
riem das corridas de Marziam pelos caminhos enfeitados com as últimas
rosas. E, com os donos das casas e as mulheres, ao grito destas últimas,
apontam por um caminho José de Arimateia e Nicodemos, também eles
hóspedes de Lázaro, para poderem estar em paz com o Mestre. E vão todos
ao encontro de Jesus; Maria, com o seu doce sorriso, Maria de Magdala
com um grito de amor: “Raboni!”, e Lázaro, que sai mancando, os dois
graves sinedritas e, por fim, as piedosas mulheres de Jerusalém e da
Galileia, umas com os rostos já marcados pelas rugas, outras que são ainda
jovens com uns rostos lisos e, suave como o rosto de um anjo, o rostinho
virginal da Anália, que fica toda corada, ao saudar o Mestre.
– Síntique não veio? –pergunta Jesus depois das primeiras saudações.
– Ela ficou com Sara, Marcela e Noemi, arranjando as mesas. Mas elas
já estão vindo.
E, de fato, elas já vêm vindo, junto com velha Ester de Joana, dois
rostos marcados pela idade e pelas dores passadas — entre dois outros
rostos serenos e, diferente pela raça e em tudo mais, um outro rosto severo
e, contudo, luminoso e cheio de paz: o rosto da grega Síntique.
Eu não poderia nem mesmo descrevê-la como sendo de uma verdadeira
e genuína beleza. Mas, mesmo assim, os olhos dela são de um negror
adocicado com esfumaturas de anil muito escuro, por baixo de uma fronte
alta e muito nobre, e chamam a atenção ainda mais do que o seu corpo que,
sem dúvida, é mais belo que o rosto, isto sim. É um corpo esbelto, sem
chegar a ser magro, bem proporcionado, harmônico no andar e em seus
movimentos. Mas é o olhar, este olhar inteligente, aberto, profundo, que
parece querer aspirar o mundo, selecioná-lo, segurar o que é bom, o que é
útil, que é santo, e rejeitar o que é mau. É este um olhar sincero, que se
deixa examinar até o fundo, e através do qual a alma se mostra, para
perscrutar quem se aproxima dela, e isto é o que nela chama a atenção. Se é
verdade que os olhos permitem conhecer a pessoa, eu digo que Síntique é
dona de um juízo seguro e de firmes e honestos pensamentos.
Ela também se ajoelha com as outras e, para levantar-se, espera que o
Mestre o ordene.
282.4Jesus continua a andar pelo verde jardim, indo até o pórtico, que
está à frente da casa, e depois entra em uma sala, onde os servos estão
prontos para servir a refeição e para ajudar os que acabaram de chegar, em
suas purificações antes de irem pôr-se à mesa. Enquanto as mulheres se
retiram todas, Jesus fica com os apóstolos na sala e João de Endor com
Hermasteu vão à casa de Simão Zelotes, para lá deixarem os sacos que
trouxeram,
– Aquele jovem, que foi com João, o caolho, é aquele filisteu que Tu
aceitaste? –pergunta José.
– Sim, José. Como foi que soubeste disso?
– Mestre… Eu e Nicodemos perguntamos, há alguns dias, como
poderíamos sabê-lo, e como é que o podem saber os outros do Templo,
infelizmente. Mas o certo é que nós o sabemos. Antes da festa dos
Tabernáculos, durante a sessão que sempre há antes da festa, alguns fariseus
disseram que sabiam com certeza que, entre os teus discípulos, além de…
— perdoa-me, Lázaro —, pecadoras conhecidas, e de publicanos — perdoa-
me, Mateus, filho de Alfeu —, e com os galeotes se haviam unido um
filisteu incircunciso e uma pagã. Quanto à pagã, que com certeza é Síntique,
compreende-se que se possa saber ou, pelo menos perceber. O barulho que
o romano fez foi grande, e tornou-se motivo de risadas entre os seus
semelhantes e entre os judeus, ainda mais porque ele andou, entre queixoso
e ameaçador ao mesmo tempo, a procurar por toda parte a sua fujona, indo
importunar até a Herodes, porque dizia que ela se havia escondido na casa
de Joana e que o Tetrarca devia dar ordens ao seu intendente para entregá-la
ao seu dono. Mas, que, entre tantos homens que te seguem, se possa saber
que um é filisteu e incircunciso e outro que já foi galeote!… É estranho.
Muito estranho. Não te parece?
– É e não é. 282.5Tomarei providências quanto a Síntique e quanto ao que
já foi galeote.
– Sim. Farás bem em afastar sobretudo João. Ele não fica bem nas tuas
fileiras.
– José, terás tu, por acaso, te tornado fariseu? –pergunta Jesus com
severidade.
– Não…mas…
– E Eu deveria desprezar uma alma, que se regenerou, só por causa de
um estulto escrúpulo do pior dos farisaísmos? Não, isto não farei. Eu
tomarei providências para a tranquilidade dela. Não da minha. Eu velarei
para a sua formação, como velo pelo inocente Marziam. Em verdade, não
há diferença na ignorância espiritual deles! Um diz, pelas primeiras vezes,
palavras de sabedoria, porque Deus o perdoou, por ter renascido em Deus,
pois Deus abraçou e uniu a Si o pecador. O outro as diz, porque, tendo
passado de uma meninice abandonada para uma adolescência sobre a qual
vela mais o amor do homem que o de Deus, abre, então, sua alma como
uma corola ao sol, e o sol, por Si mesmo, o ilumina. O sol dele: Deus. E um
está para dizer as últimas palavras… Não tendes olhos para ver que ele se
consome na penitência e no amor? Oh! Que em verdade Eu quereria ter
muitos Joãos de Endor em Israel, e entre os meus servos. Eu gostaria que tu
também, José, e tu, Nicodemos, tivésseis o coração dele e, sobretudo, que o
tivesse o seu delator, a serpente vil, que se esconde debaixo da veste de
amigo, e que exerce a espionagem, antes de tornar-se assassino. A serpente
que tem inveja das asas do passarinho, e lhe arma ciladas para arrancar-lhe
as asas e jogá-lo na prisão. Ah! Não. O passarinho está para virar anjo. E,
ainda que a serpente pudesse arrancar-lhe as asas, elas, colocadas sobre o
seu corpo viscoso, mudar-se-iam em asas de demônio. Todo delator já é um
demônio.
282.6– Mas, onde estará esse tal? Dize-o a mim, para que eu possa ir logo
arrancar-lhe a língua –exclama Pedro.
– Farias melhor em arrancar-lhe os dentes do veneno –diz Judas de
Alfeu.
– Mas, não. É melhor estrangulá-lo. Assim não fará mais mal com nada.
Há seres que sempre podem fazer mal… –diz Iscariotes.
Jesus o fita, e termina dizendo:
– … e mentir. Mas ninguém deve fazer nada contra ele. Não vale a pena
ocupar-nos com a cobra, e deixar morrer o passarinho. Quanto a Hermasteu,
Eu estarei por aqui, ficando na casa de Lázaro, para a circuncisão do mesmo
Hermasteu que, por amor de Mim e para evitar perseguições das tacanhas
mentes hebreias, abraça a relíquia santa do nosso povo. Isso não é mais que
uma passagem das trevas para a Luz. E não é necessário para que venha a
Luz ao coração. Mas Eu consinto para que se acalmem as susceptibilidades
de Israel, e para mostrar a verdadeira vontade do filisteu de chegar a Deus.
Mas Eu vos digo que no tempo do Cristo isso não é necessário para que se
seja de Deus. Basta a vontade e o amor, basta a retidão de consciência. E,
onde circuncidaremos a grega? Em que ponto do seu espírito, se, por si
mesma ela soube sentir a Deus melhor do que muitos em Israel? É verdade
que, entre os presentes, muitos são trevas, em comparação com estes
desprezados, que vós achais que são trevas. De qualquer modo, tanto o
delator, como vós, sinedritas, podeis informar a quem deveis fazê-lo que o
escândalo está tirado, a partir de hoje mesmo…
– De quem? De todos os três?
– Não, Judas de Simão. De Hermasteu. Quanto aos outros, iremos
providenciando. Tens mais o que perguntar?
– Eu não, Mestre.
– E nem Eu tenho nada mais a te dizer. 282.7Mas Eu é que vos pergunto, a
fim de que mo digais, se o souberdes, que é que está acontecendo com o
patrão de Síntique?
– O que está acontecendo é que Pilatos o mandou para a Itália, com o
primeiro navio que teve à sua disposição, para não ter aborrecimentos com
Herodes nem com os hebreus em geral. Pilatos está passando maus
momentos… e esses lhe bastam… –diz Nicodemos.
– A notícia é verdadeira?
– Eu posso verificar se é, e se o quiseres, Mestre –diz Lázaro.
– Sim. Faze isso. E dize-me a verdade depois.
– Mas em minha casa Síntique está em segurança, como tem estado.
– Eu sei disso. Também Israel protege[82] a escrava, que fugiu de um
patrão estrangeiro e cruel. Mas Eu quero sabê-lo.
– E eu gostaria de saber quem é o delator, o informante, o espião
gratuito dos fariseus… e isto se pode saber, e eu quero saber quais são os
fariseus denunciadores. Fora os nomes dos fariseus e das cidades deles. Eu
me refiro aos fariseus que fizeram o belo trabalho de informar, com uma
antecipada traição por um dos nossos, já que somente nós é que sabemos de
certas coisas, nós, discípulos velhos e novos, o trabalho de ir informar o
Sinédrio sobre coisas feitas pelo Mestre, coisas todas justas, pois é um
demônio quem diz e pensa o contrário, e…
– E basta, Simão de Jonas. Eu te ordeno.
– E eu obedeço, ainda que às custas de que se me arrebentem as veias
do meu coração, pela emoção. Mas, enquanto isso, a beleza deste dia foi-se
embora…
– Não. Por quê? Mudou-se alguma coisa entre nós? E então? meu
Simão! Mas vem cá, ao meu lado, e vamos falar do que é bom…
– Vieram dizer-te que está na hora da refeição, Mestre –diz Lázaro.
– Então, vamos…
[82] protege, como já dito em 255.9. As leis sobre a escravatura e sobre a conduta a se ter com os escravos estão em Êxodo 21,1-
11.20-21.26-27.32; Levítico 25,39-55; Deuteronômio 15,12-18; 16,11; 23,16-17; Jeremias 34,8-22.
283. Síntique fala de seu encontro com a Verdade.
2 de setembro de 1945.
283.1Jesus está sentado no pátio dos pórticos, que fica na parte interna da
casa de Betânia. É o pátio que eu vi cheio de discípulos na manhã da
Ressurreição de Jesus. Sentado em uma cadeira de mármore coberta com
almofadas, e com as costas viradas para a parede da casa, rodeado pelos
donos da casa, pelos apóstolos e discípulos, por João e Timoneu, além de
José e de Nicodemos e das piedosas mulheres, em diversas posições: uns
sentados em cadeiras, outros no chão, alguns em pé e outros apoiados em
colunas, ou à parede.
– … Era uma necessidade. Para não sentir todo o peso da minha
condição. Era não estar nem querer estar persuadida de que estava sozinha,
escrava e exilada longe da pátria. Devia pensar que a mãe e os irmãos, que
o pai e a tão meiga e doce Ismene não estavam para sempre perdidos. E
também que, se todo o mundo se esforçava para separar-nos, assim como
Roma nos havia afastado uns dos outros e vendido, nós, que éramos livres,
estávamos sendo uns animais de carga, mas um lugar haveria de nos ter
reunidos, depois desta vida. Tínhamos de pensar que o nosso viver não é
somente uma coisa material, uma matéria que vai se transformando. Mas
dentro da vida existe uma força livre, que nenhuma transformação detém, a
não ser a transformação voluntária de quem quer viver na desordem moral e
no desregramento materialista.
Vós chamais a isso “pecado”. Ele e os outros, que eram as minhas luzes
na escuridão da minha noite de escrava, dão um outro nome a isso. Mas
também eles admitem, que uma alma escravizada ao corpo, pelas paixões
perversas e corporais, não chega àquilo que vós chamais Reino de Deus, e
que nós chamamos a convivência com os deuses no Hades. E, para isso, é
preciso evitar cair no materialismo e esforçar-se para conseguir a liberdade
do corpo, obtendo para si uma herança de virtude, a fim de poder ter posse
de uma imortalidade feliz, e poder também reunir-se com os seus seres
amados.
Tínhamos de pensar que a alma dos mortos não fica impedida de estar
junto às almas dos vivos, e de sentir por isso perto de si a alma da mãe,
encontrar de novo o olhar e a voz dela falando com a alma de sua filha, e
poder dizer-lhe: “Sim, minha mãe. Para ir a ti, sim. Para não fazer que se
perturbe o teu olhar, sim. Para não pôr lágrimas na tua voz, sim. Para não te
vestir de luto. Para tudo isso eu estarei com minha alma livre. É a única
posse que eu tenho, e que ninguém me poderá tirar. E que eu quero
conservar para poder raciocinar de acordo com a virtude.”
Pensar assim era liberdade e alegria. E assim eu quis pensar. E agir.
Porque não é somente uma filosofia pela metade, e falsa, ficar pensando, e
depois agindo de modo diferente do que se pensou. Pensar assim era como
que reconstruir para si uma pátria no exílio. Uma pátria no eu, com os seus
altares, a sua fé, sua instrução e seus afetos…Uma pátria grande, misteriosa
e, no entanto, não a tal ponto por aquilo que a alma tem de misterioso, que
sabe que não está ignorando o que está do outro lado, ainda que, por
enquanto, só o conheça como um marinheiro que, lá do meio do vasto mar,
em uma manhã nevoenta, conhece os pormenores da costa: de um modo
confuso, como um esboço, apenas com um ou outro ponto que se delineia
nítido, mas que lhe basta, oh! que basta ao cansado navegante, que as
tempestades andaram torturando, para dizer-lhe: “Lá está: é o porto, é a
paz.” A pátria das almas, o lugar de onde somos, o lugar da vida. Porque a
vida é gerada pela morte…
283.2Oh! Isto eu compreendia pela metade, enquanto eu não sabia de uma
das tuas palavras. Depois, depois foi como se um raio de sol batesse no
diamante do meu pensamento. Tudo virou luz, e eu compreendi até onde
eram justos os mestres da Grécia, e como depois se extraviaram, faltando-
lhes conhecer um ponto, um só, para resolverem o teorema da vida e da
morte. O ponto era este: o Verdadeiro Deus, Criador e Senhor de todas as
coisas.
Posso eu dizer o seu nome com estes meus lábios pagãos? Sim, que o
posso. Porque dele, como todos, eu também venho. Porque Ele pôs
capacidade nas mentes de todos os homens, e nos mais sadios pôs uma
inteligência superior, pela qual verdadeiramente eles parecem uns
semideuses, pois seu poder ultra-humano. Sim, porque Ele fez escrever
aquelas verdades, que já são da religião, se não divina como a tua, moral, e
capaz de conservar as almas “vivas”, não só por este espaço de tempo que é
a nossa parada na terra, mas para sempre.
Depois, eu compreendi o que quer dizer “a vida é gerada pela morte.”
Aquele que o disse foi como alguém não completamente ébrio, mas já com
a inteligência em dificuldades. Disse uma palavra sublime, mas não a
entendeu completamente. E, perdoa, ó Senhor, o meu orgulho, eu
compreendi mais do que ele, e, desde aquele momento, me sinto feliz.
– Que foi que compreendeste?
– Que esta existência não é mais do que o princípio embrionário da
vida, e que a verdadeira vida tem início, quando a morte nos dá à luz… ao
Hades, eu diria como pagã, à Vida Eterna, digo como alguém que crê em Ti.
Terei falado errado?
– Falaste bem, mulher –diz Jesus aprovando-a.
283.3Nicodemos interrompe:
– Mas, como pudeste saber das palavras do Mestre?
– Quem está com fome, procura o alimento, senhor. Eu vivia
procurando o meu alimento. Leitora, porque tenho cultura, e tendo boa voz
e pronúncia, eu podia ler muito nas bibliotecas dos meus patrões. Mas eu
não estava ainda satisfeita. Percebia que havia outras coisas, do outro lado
das paredes cheias de lendas da ciência humana, e, como uma prisioneira
em um cárcere de ouro, eu batia os nós dos dedos, procurava forçar as
portas para sair, para achar… Vindo para a Palestina com meu último
patrão, tive medo de cair nas trevas… mas, ao contrário, eu estava vindo ao
encontro da Luz. As palavras dos servos de Cesareia eram como uns golpes
de picareta, que abriam nas paredes uns buracos cada vez maiores, pelos
quais entrava a tua Palavra. E eu ia recolhendo aquelas palavras e notícias.
E, como uma criança, que vai colocando pérolas em um fio, eu as alinhava
para mim, e com elas me enfeitava, tirando delas a força para ficar sempre
mais purificada, a fim de receber a Verdade. Na purificação eu ia
percebendo que a teria encontrado. E já desde esta terra. A custa da vida, eu
quis ser pura para o encontro com a Verdade, com a Sabedoria, com a
Divindade. Senhor, eu estou dizendo palavras loucas. Estes me estão
olhando espantados. Mas foste Tu que as pediste…
– Fala, fala. É necessário.
– Com fortaleza e esperança, eu consegui resistir às pressões externas.
Eu teria podido ser livre e feliz, segundo o mundo, e bastava que eu tivesse
querido. Eu não quis trocar o saber pelo prazer. Porque sem sabedoria nada
vale ter as outras virtudes. Ele, o filósofo, já o disse: “Justiça, Temperança e
Fortaleza, se não forem acompanhadas da Sabedoria, serão semelhantes a
um cenário pintado, uma virtude realmente de escravos, sem nada de sólido
e real.” Eu queria ter coisas reais. O patrão, um estulto, falava de Ti na
minha presença. Foi, então, como se as paredes se transformassem num
véu. Bastava querer para se rasgar o véu, e unirmo-nos à Verdade. E foi isto
que eu fiz.
283.4– Tu não sabias que nos terias encontrado –diz Iscariotes.
– Eu sabia crer que o deus premia a virtude. Eu não queria ouro, nem
honras, nem liberdade física, nem mesmo esta. Mas eu queria a Verdade. A
Deus eu pedia ou isto, ou morrer. Eu queria ser poupada do aviltamento de
ser tratada como um “objeto”, e mais ainda: de consentir que o fizessem.
Renunciando a tudo o que é corporal, ao procurar-te, Senhor, porque as
pesquisas por meio dos sentidos são sempre imperfeitas - e Tu as viste
quando, por ter-te visto, eu fugi, levada ao engano por meus olhos - eu me
abandonei a Deus, que está acima de nós, e em nós, e que por Si mesmo
informa a alma. E eu te encontrei, porque a alma me conduziu a Ti.
– A tua é uma alma pagã –diz ainda Iscariotes.
– Mas a alma tem sempre em si algo de divino, especialmente quando,
com seu esforço, ela se preserva do erro… E, por isso, ela se inclina para as
coisas de sua própria natureza.
– Tu te comparas com Deus, tu?
– Não.
– E, então, por que dizes isso?
– Como? E tu, discípulo do Mestre, me fazes esta pergunta? Quando Ele
fala, tu não o estás ouvindo? Ou em ti o fermento do corpo é tão forte, que
te torna obtuso? Não diz Ele sempre que nós somos filhos de Deus?
Portanto, deuses somos, filhos do Pai, daquele que é Pai dele e nosso Pai, e
do qual Ele fala sempre. Tu me poderás censurar por não ser humilde, mas
não uma incrédula e desatenta.
– Desse modo, então, tu crês mais do que eu? Crês que dos livros da tua
Grécia aprendeste tudo?
– Não. Nem isto nem aquilo. Mas os livros dos sábios, sejam eles de
onde forem, deram-me o mínimo para eu me poder dirigir. Não duvido que
um israelita seja mais do que eu. Mas eu estou feliz na minha sorte, que de
Deus me vem. Que posso desejar mais? 283.5 Tudo eu encontrei, ao encontrar
o Mestre. E acho que esse era o meu destino, porque, na verdade, eu vejo
que vela sobre mim um Poder, que traçou para mim um grande destino, para
mim, que nada mais fiz, a não ser acompanhá-lo, tendo percebido como Ele
era bom.
– Bom? Tu foste escrava, e de patrões cruéis. Se o teu último patrão te
tivesse tornado a apanhar, por exemplo, como terias caminhado para o teu
destino, tu que és tão sábia?
– Tu te chamas Judas, não é mesmo?
– Sim, e daí?
– Daí… não se segue nada. Eu quero lembrar-me do teu nome, e da tua
ironia. Olha, que a ironia é desaconselhável também aos virtuosos… Como
teria eu acompanhado o destino? Eu teria me matado. Porque, realmente,
em certos casos, é melhor morrer do que viver, ainda que o filósofo diga
que isso não é bem, e que é ímpio, e que é uma coisa ímpia procurarmos o
bem por nós mesmos, porque só os deuses é que têm o direito de nos
chamar para eles. E essa ideia de ficar esperando um sinal dos deuses para
fazê-lo foi sempre o que me conteve, quando eu estava acorrentada naquela
minha triste sorte. Mas agora, em alguma nova captura pelo asqueroso
patrão, eu teria visto o último sinal. E teria preferido morrer a viver. Eu
também tenho uma dignidade, homem.
– E, se ele te tornasse a apanhar agora? Estarias sempre nas mesmas
condições…
– Agora eu não me mataria mais. Agora eu sei que as violências feitas à
carne não lesam o espírito, que não consente. Agora, eu resistiria, até ser
dominada pela força, ser morta pela violência. Porque também isso eu
tomaria como um sinal de Deus de que com aquela violência, Ele me
haveria chamado. Agora eu morreria tranquila, sabendo que não ia perder
nada mais do que o que é perecível.
– Respondeste bem, mulher –diz Lázaro, e Nicodemos também o
aprova.
– O suicídio nunca é permitido –diz Iscariotes.
– Muitas são as coisas proibidas, e não se respeita a proibição. Mas tu,
Síntique, deves pensar que Deus, como sempre te guiou, assim te teria
preservado também da violência de si mesma. 283.6Agora, vai. Eu gostaria
que tu fosses procurar o menino, e mo trouxesses –diz Jesus com doçura.
A mulher se inclina até o chão, e lá se vai.
Lázaro murmura:
– E é sempre assim! Eu não consigo compreender como é que as coisas
que para ela foram ‘vida’, para nós de Israel foram ‘morte’. Se tiveres um
modo de examiná-la de novo, verás que no próprio helenismo, que nos
corrompeu, há possuidores de uma sabedoria que a salvou. Por quê?
– Porque admiráveis são os caminhos do Senhor. E Ele os abre para
quem os merece. E agora, meus amigos, Eu me despeço de vós, pois a tarde
já vai bem adiantada. Fico contente por todos vós terdes ouvido a grega
falar. Da comparação de como Deus se revela aos melhores, tirai a lição de
que querer excluir a todos os seres, que não sejam de Israel, das fileiras de
Deus, é uma coisa odiosa e perigosa. Tomai isto como uma norma para o
futuro… Não fiques resmungando, Judas de Simão. E tu, José, não tenhas
esses escrúpulos fora de lugar. Não estais contaminados por nada, depois de
ter-vos aproximado de uma grega. Fazei, por onde não vos aproximardes do
demônio. Adeus, José. Adeus, Nicodemos. Poderei eu ver-vos ainda,
enquanto estou aqui? Aí vem Marziam… Vem cá, menino, saúda os chefes
do Sinédrio. Que dizes a eles?
– A paz esteja convosco e… na hora do incenso, rezai por mim.
– Tu não precisas disso, pequeno. Mas, por que logo naquela hora?
– Porque, na primeira vez que eu entrei no templo com Jesus, Ele me
falou[83] da oração da tarde… Oh! Como é bonito!
– Tu, que rezarás por nós? Quando?
– Rezarei… Rezarei pela manhã e pela tarde. Para que Deus vos
preserve do pecado durante o dia e durante a noite.
– E que dirás, pequeno?
– Eu direi: “Senhor Altíssimo, faze de José e de Nicodemos verdadeiros
amigos de Jesus.” E isso bastará, porque quem é amigo verdadeiro, não
entristece o amigo. E quem não entristece a Jesus está certo de possuir o
Céu.
– Deus te conserve assim, pequeno! –dizem os dois sinedritas,
acariciando-o.
Depois, eles saúdam o Mestre, em seguida a Virgem, e a Lázaro em
particular, e a todos os outros de uma só vez, e vão-se embora.
[83] me falou, em 197.5.
284. A casa doada por Salomão.
Quatro apóstolos permanecerão na Judeia.
23 de setembro de 1945.
284.1Jesus volta, com os apóstolos, de um giro apostólico feito pelas
vizinhanças de Betânia. Deve ter sido um giro breve, pois eles não levaram
nem as sacolas com os alimentos. Agora eles estão falando uns com os
outros, e dizem:
– Foi uma boa ideia, aquela do barqueiro Salomão, não é mesmo,
Mestre?
– Sim, foi uma boa ideia.
Naturalmente, Iscariotes não concorda com os outros:
– Eu não vejo muita coisa boa nisso. Ele nos deu o que, para ele,
discípulo, não servia mais. Não há motivo para elogiá-lo…
– Uma casa, sempre é útil –diz, sério, Zelotes.
– Se ela fosse como a tua. Mas, que vale aquela? É uma choupana
insalubre.
– Mas é tudo o que Salomão tem –explica Zelotes.
– E, como nela ele chegou a ficar velho sem doenças, bem que nela nós
podemos parar de vez em quando. Que queres tu? Que todas as casas sejam
como a de Lázaro? –acrescenta Pedro.
– Eu não quero nada. Não vejo a necessidade deste presente. Quando se
está num lugar como aquele, poder-se-ia estar também em Jericó. Não há
mais do que poucos estádios de distância. E, para pessoas como nós, que
somos parecidos com uns perseguidos, e obrigados a mudar sempre, que é
que são uns poucos estádios?
Jesus intervém, antes que a paciência dos outros se acabe, e disso
alguns sinais claros já estão aparecendo.
– Salomão, em proporção de suas riquezas, deu mais do que todos os
outros. Porque ele deu tudo. E o deu por amor. E o deu para oferecer-nos
um abrigo para o caso de alguma chuva, que nos apanhe em um lugar tão
difícil de achar hospedagem, ou mesmo para hospedagem contínua,
sobretudo no caso da má vontade dos judeus tornar-se tão forte contra nós,
que nos leve a procurar ter o rio entre nós e eles. Digo isto quanto ao valor
do presente. Que um discípulo, humilde e rústico, mas tão fiel e decidido,
tenha sabido praticar um tal ato de generosidade, o que denota nele a clara
vontade de ser meu discípulo para sempre, tudo isso me causa uma grande
alegria. Em verdade, Eu vejo que muitos discípulos, com o pouco de lições
que receberam de Mim, vos superaram a vós, que tantas tendes recebido.
Vós não me sabeis oferecer o sacrifício, e especialmente tu, nem mesmo
daquilo que não vos custa nada: do vosso parecer pessoal. O teu, tu o
conservas inflexível, resistente a qualquer dobra.
– Tu dizes que a luta contra si mesmo é a mais difícil!
– E, com isto, queres dizer-me que Eu erro, dizendo que não custa nada.
Não é verdade? Mas tu entendeste bem o que quero dizer! Para o homem —
e em verdade — tu és, sem dúvida, um homem, não tem valor senão o que é
comerciável. O eu não se comercia a troco de moedas. A não ser que… nos
vendamos a alguém, a troco de alguma vantagem. E esse é que é um
negócio ilícito, semelhante àquele que a alma faz com satanás, e é até de
consequências mais duradouras. Porque, além da alma, abarca também o
pensamento, isto é, o juízo, ou a liberdade do homem, dá-lhe tu o nome que
quiseres. Existem também tais infelizes… Mas, por enquanto, não
pensemos neles. Eu elogiei Salomão, porque vejo todo o bem que há em seu
ato. E assim basta.
284.2Há uns momentos de silêncio, e depois Jesus toma de novo a
palavra:
– Dentro de poucos dias, Hermasteu já estará em condições de poder
caminhar sem sentir dor. E Eu voltarei para a Galileia. Mas vós não ireis
todos comigo. Uma parte ficará na Judeia, para subir de volta com os
discípulos judeus, de modo que possam estar todos juntos na festa das
Luzes.
– Esse tempo todo? Ai, ai! E quais são os que vão? –dizem uns aos
outros os apóstolos.
Jesus ouve aquele murmúrio, e responde:
– Irão Judas de Simão, Tomé, Bartolomeu e Filipe. Mas Eu não disse
que fiquem na Judeia até a festa das Luzes. O que Eu quero é que reunais e
aviseis aos discípulos para que estejam presentes à festa das Luzes. Por
isso, ireis agora, e os procurareis, os reunireis e avisareis, e, enquanto isso,
vós os guiareis e ajudareis, depois vireis procurar-me, trazendo convosco os
que tiverdes encontrado, deixando espalhada a notícia, para que os outros
também venham. Agora já temos amigos nos principais lugares da Judeia.
Eles nos darão este prazer, avisando aos discípulos. E, subindo de novo para
a Judeia, ao longo da região do outro lado do Jordão, recordando que irei
por Gerasa, Bosra e Arbela até Aera, recolhei também aqueles que, à minha
passagem, não tiveram coragem de ir para a frente, a fim de pedirem
doutrina e milagres, mas que depois ficaram muito sentidos por não o terem
feito. Vós os conduzireis a Mim. Eu permanecerei em Aera, até a vossa
chegada.
284.3– Então, seria bom irmos logo –diz Iscariotes.
– Não. Partireis na tarde da véspera de minha partida. Ficareis na casa
de Jonas, no Getsêmani, até um dia depois, e, em seguida, ireis pela Judeia.
Assim tu verás tua mãe, e lhe servirás de ajuda, por ocasião dos contratos
com os agricultores.
– Ela aprendeu a fazer isso sozinha, há muitos anos.
– Não te lembras de que, no ano passado, tu eras indispensável para a
vindima? –pergunta-lhe Pedro, um pouco malicioso.
Judas fica mais vermelho do que uma papoula, e feio em sua ira e
vergonha. Mas Jesus previne qualquer resposta dele, dizendo-lhe:
– Um filho é sempre uma ajuda e um conforto para a mãe. Além disso,
até à Páscoa, e depois da Páscoa, ela não te verá mais. Por isso, vai, e faze o
que te digo.
Judas não responde mais a Pedro, mas revira a sua cólera contra Jesus:
– Mestre, sabes o que te devo dizer? Que eu tenho a impressão de que
queres desfazer-te de mim, ou pelo menos afastar-me, porque estás com
uma suspeita, pois injustamente me crês culpado de alguma coisa, e faltas à
caridade para comigo, porque…
– Judas! Basta! Eu poderia dizer-te muitas palavras. Mas Eu te digo
somente: “Obedece.”
Jesus está majestoso, ao dizer isso. Alto, como é, Ele ainda está
cintilando, e com um rosto severo… Vê-lo já faz tremer. Até Judas está
tremendo. Ele vai pôr-se atrás de todos, enquanto Jesus vai colocar-se
sozinho na frente. Assim, entre um e outro, está o grupo emudecido dos
apóstolos.
285. Lázaro oferece um refúgio
para João de Endor e Síntique.
Viagem alegre para Jericó, sem Iscariotes.
24 de setembro de 1945.
285.1– Lázaro, meu amigo, Eu te peço que venhas comigo –diz Jesus,
aparecendo à soleira da sala, onde Lázaro está meio deitado sobre uma
pequena cama lendo um pergaminho.
– Já estou indo, Mestre. Para onde vamos? –pergunta Lázaro,
levantando-se logo.
– Vamos pela campina. Preciso estar completamente sozinho contigo.
Lázaro, perturbado, olha para Jesus, e lhe pergunta:
– Terás notícias tristes para dar-me em segredo? Ou então… Não, nem
quero pensar nisso…
– Não tenho mais do que tomar um conselho contigo, e nem o ar deve
ficar sabendo do que vamos falar. Prepara o carro, porque não quero que
fiques cansado. Quando estivermos no campo aberto, Eu te falarei.
– Então, eu mesmo guio o carro, porque assim nem o servo fica sabendo
do que tivermos falado.
– Sim. Isto mesmo.
– Eu vou logo, Mestre, Daqui a pouco estarei pronto.
E sai. Também Jesus sai, depois de ter permanecido um tanto pensativo
dentro da rica mansão. Enquanto Ele estava pensando, moveu
involuntariamente do lugar dois ou três objetos, apanhou o pergaminho, que
estava no chão, e, finalmente, ao colocá-lo em seu lugar em uma estante,
por um instinto inato de pôr tudo em ordem, já tão costumeiro em Jesus, Ele
fica com o braço levantado, observando estranhos objetos de arte, quando
não por outros motivos, por serem diferentes dos que se viam na Palestina,
e que estavam alinhados numa prateleira da estante. São ânforas e copas
antiquíssimas, pelo que parece, com relevos e desenhos imitando os frisos
da antiga Grécia, e umas urnas funerárias. Que Ele esteja vendo, para lá
daqueles objetos, eu não sei… Mas Ele sai dali, e vai para o pátio interno,
onde estão os apóstolos.
– Para onde vamos, Mestre? –perguntam-lhe eles, ao verem que Jesus
está colocando o manto.
– A nenhum lugar. Eu vou sair com Lázaro. Vós ficareis aqui a esperar-
me, todos juntos. Daqui a pouco, estarei de volta.
Os doze olham uns para os outros… não estão muito contentes… Pedro
diz:
– Vais sozinho? Toma cuidado…
– Não tenhais medo de nada. Enquanto ficais esperando, não fiqueis à
toa. Instruí mais Hermasteu, para que ele conheça sempre melhor a Lei, e
sede bons companheiros sem discussões, nem grosserias. Sede compassivos
uns com os outros. Amai-vos.
Dirige-se para o jardim, e todos o acompanham. Logo chega um carro
veloz, coberto, no qual está Lázaro.
– Vais de carro?
– Sim, para que Lázaro não se afadigue nas pernas. Adeus Marziam, sê
bom. A paz esteja com todos vós.
Jesus sobe para o carro que, fazendo ranger o cascalho do caminho, sai
do jardim para pegar a estrada mestra.
– Vais às Águas Belas, Mestre? –grita-lhe lá atrás Tomé.
– Não. Digo-vos de novo: sede bons.
285.2O cavalo parte com um trote firme. O caminho, que é o que de
Betânia vai para Jericó, passa pela campina, que agora está perdendo a
folhagem. E cada vez mais pode-se notar que o verde vai desaparecendo,
tanto mais, quanto mais se desce para a planície.
Jesus fica pensando. Lázaro se cala, ocupando-se somente em guiar o
cavalo. Quando já chegaram à planície, uma planície fértil, já toda
preparada para nutrir a semente, que dará o futuro trigo, e que agora está
dormindo por entre os vinhedos, como uma mulher que há pouco deu à luz
o seu fruto, e agora está descansando do leve cansaço, Jesus faz um sinal de
parar. E Lázaro, obediente, para, levando o cavalo para uma estradinha
secundária, que se dirige para umas casas distantes… e explica:
– Aqui estaremos mais tranquilos do que na estrada larga. Estas árvores
nos abrigam da vista de muitos.
De fato, é um capão de árvores baixas e com muita folhagem, que
servem de para-vento contra a curiosidade dos que passam. E Lázaro fica de
pé, diante de Jesus, esperando.
– Lázaro, Eu estou precisando afastar João de Endor e Síntique. Tu
estás vendo que a prudência assim aconselha e a caridade também. Para ele
e para ela seria uma prova perigosa, uma dor inútil, se eles tivessem
conhecimento da perseguição que se lhes faz… e que poderia, pelo menos
para um, provocar surpresas muito desagradáveis.
– Em minha casa…
– Não. Nem em tua casa. Talvez não seriam materialmente tocados.
Mas seriam moralmente aviltados. O mundo é cruel. Ele tritura as suas
vítimas. Eu não quero que se percam assim estas duas belas forças. Porque,
assim como Eu uni um dia o velho Ismael com Sara, agora unirei o meu
pobre João com Síntique. Quero que ele morra em paz, e não fique sozinho,
e com a convicção de ter ido mandado para outro lugar, não porque é um
“ex-galeote”, mas porque é o discípulo prosélito, que pode ser transferido
para outro lugar, a fim de pregar o Mestre. E Síntique o ajudará. Síntique é
uma bela alma, e será uma grande força na e para Igreja futura. 285.3Podes tu
aconselhar-me aonde enviá-los? Não para a Judeia, nem para a Galileia e,
muito menos para a Decápole, para onde Eu e os apóstolos estamos indo,
não. E, então, para onde? Para qual lugar, onde sejam úteis e estejam
seguros?
– Mestre… eu… Mas, eu te aconselhar?
– Não, não. Fala, Tu me queres bem, tu não me trais, tu amas a quem
Eu amo, tu não és de mente estreita, como os outros.
– Eu … Sim. Eu te aconselharia a mandá-los para onde eu tenho
amigos. Para Chipre, ou para a Síria. Escolhe Tu. Em Chipre tenho pessoas
de confiança. Na Síria… Tenho lá ainda algumas pequenas casas, zeladas
por um intendente mais fiel do que uma ovelhinha. É o nosso velho Filipe!
Para mim ele fará qualquer coisa que eu mandar. E, se me permites, esses a
quem Israel persegue, e que te são caros, poderão dizer-se meus hóspedes
desde agora, e na casa estarão em segurança. Oh! Ela não é um palácio real!
É uma casa, na qual mora somente Filipe com seu neto, que toma cuidado
dos jardins de Antigônio. Os jardins de que tanto gostava a minha mãe. Nós
os temos conservado para lembrança dela. Ela havia levado para eles as
plantas dos seus grandes jardins na Judeia, de essências raras… A minha
mãe!… Com aquelas essências quanto bem ela fazia aos pobres… Lá estava
o seu feudo secreto… A minha mãe… Mestre, eu estou para ir logo a ela:
“Alegra-te, minha boa mãe. O Salvador está na terra.” Ela te esperava…
Duas fileiras de lágrimas estão sobre o rosto sofredor do Lázaro. Jesus
olha para ele, e sorri.
285.4Lázaro retoma o assunto:
– Mas, vamos falar de Ti. Parece-te bom esse lugar?
– Parece-me. E, mais uma vez, Eu te agradeço, por Mim e por eles.
Alivias-me de um grande peso…
– Quando eles partirão? Eu o pergunto, a fim de preparar uma carta para
Filipe. Eu direi que são dois meus amigos daqui, necessitados de paz. E isso
bastará.
– Sim. Isso bastará. Mas, Eu te peço, nem o ar precisa saber de tudo
isso. Tu estás vendo. Eu estou sendo espionado…
– Eu estou vendo. Não falarei nem mesmo com minhas irmãs. Mas,
como farás para conduzi-los até lá? Tu tens contigo os apóstolos…
– Agora, Eu tornarei a subir até Aera, sem Judas de Simão, Tomé, Filipe
e Bartolomeu. Nesse meio tempo, Eu irei instruir a fundo Síntique e João,
para que eles partam, levando uma grande provisão de Verdade. Depois, Eu
descerei até Meron e de lá a Cafarnaum. E os… mandarei embora os quatro,
com outras missões e, então, farei que os dois partam para Antioquia. A
isso Eu sou constrangido…
– Deves temer pelos teus… Tens razão. Mestre, eu sofro, por ver-te
magoado…
– Mas a tua boa amizade me conforta muito. Lázaro, Eu te agradeço…
Depois de amanhã, Eu parto, e te tiro as irmãs. Tenho necessidade de muitas
discípulas, para Síntique desaparecer no meio delas. Joana de Cusa virá de
Meron e irá para Tiberíades, porque passará lá o inverno. Assim quer o seu
marido, para tê-la mais perto de si, visto que Herodes volta a ficar por
algum tempo em Tiberíades.
– Será feito como Tu desejas. As minhas irmãs são tuas, como o sou
também eu, e o são as minhas casas, os meus servos, os meus haveres. Tudo
é teu, Mestre. Usa de tudo para o Bem. Eu vou preparar-te a carta para
Filipe. É melhor que Tu a recebas de mim diretamente.
– Obrigado, Lázaro.
– Isto é tudo o que eu posso fazer… Se eu estivesse são, eu iria. Cura-
me, meu Mestre e irei.
– Não, amigo. Eu preciso de ti, assim como estás.
– Ainda que eu não faça nada?
– Assim mesmo. Oh! Meu Lázaro!
Jesus o abraça e o beija.
285.5Sobem de novo para o carro, e voltam. Agora é Lázaro que está
meio silencioso e pensativo, e Jesus lhe pergunta porque está assim.
– Estou pensando que vou perder Síntique. Eu admiro a ciência e a
bondade dela…
– Jesus a está adquirindo…
– É verdade. É verdade. Quando te tornarei a ver, Mestre?
– Na primavera.
– Até a primavera ainda? No ano passado estavas na minha casa nas
Encênias…
– Neste ano Eu quero contentar os apóstolos. Mas no ano que vem
estarei muito tempo contigo. Eu te prometo.
Betânia já vem aparecendo, por baixo de um sol de outubro. Já estão
quase chegando, quando Lázaro faz parar o cavalo, para dizer:
– Mestre, fazes bem em afastar o homem de Keriot. Eu desconfio dele.
Ele não te ama. Ele me desagrada. Nunca me agradou. É um sensual e um
ambicioso. Por isso pode chegar a cometer qualquer pecado. Mestre, foi ele
quem te denunciou…
– Tens provas disso?
– Não.
– Então, não julgues. Não és muito perito para julgar. Lembra-te que tu
julgavas inexoravelmente Maria… Não vás dizer que o merecimento é meu.
Pois foi ela quem me procurou primeiro.
– Também isso é verdade. Mas, em todo caso, desconfia de Judas.
Pouco tempo depois, já estão entrando de novo no jardim, onde os
apóstolos, cheios de curiosidade, os estão esperando.

A ausência de quatro apóstolos, e especialmente do Judas, torna


285.6
mais íntimo e feliz o grupo dos que ficaram. Fica até parecendo uma
família, cujos chefes são Jesus e Maria, ela que, virando as costas para
Betânia, em uma serena manhã de outubro, se dirige para Jericó, a fim de
atravessar para o lado oposto do rio Jordão. Tendo-se reunido de novo as
mulheres ao redor de Maria, e não faltando senão Anália no grupo feminino
das discípulas, isto é, as três Marias, Joana, Susana, Elisa, Marcela, Sara e
Síntique. Também reunidos ao redor de Jesus estão Pedro, André, Tiago e
Judas de Alfeu, Mateus, João e Tiago de Zebedeu, Simão Zelotes, João de
Endor, Hermasteu e Timoneu, enquanto que Marziam, saltando como um
cabrito, vai de um grupo para o outro, pois os grupos estão separados por
poucos metros de distância. Arcando com pesados sacos, lá se vão eles,
alegres, pela estrada docemente ensolarada, através da campina, majestosa
em seu descanso.
285.7João de Endor vai andando com dificuldade, por causa do peso que
está levando nas costas. Pedro percebe isso, e diz:
– Dá-mo aqui, já que quiseste sobrecarregar-te com todo esse
enchimento. Estavas com saudade dele?
– Foi o Mestre que me mandou levá-lo.
– Sim? Esta é boa! Para que será?
– Isso eu não sei. Ele me disse ontem de tarde: “Pega de novo os teus
livros, e vem atrás de Mim com eles.”
– Oh! Esta é mesmo boa!… Mas, se Ele te disse isso, certamente se
trata de coisa boa, talvez vá fazer o mesmo com aquela mulher. Quantas
coisas ela sabe, não? Tu as sabes também?
– Quase tanto como ela. Ela é muito douta.
– Mas, não irás continuar a vir atrás de nós com esse peso, não é
mesmo?
– Oh! Eu acho que não. Mas não sei. Mas eu também posso levá-lo…
– Não, amigo. Eu fico preocupado, porque podes ficar doente. Estás mal
vestido, sabes?
– Eu sei. Acho que vou morrer.
– Não fiques brincando! Deixa que cheguemos a Cafarnaum. Estamos
tão bem! Agora estamos sem aquele… Maldita língua! Faltei de novo com
a promessa que fiz ao Mestre!… 285.8Mestre? Mestre?
– Que queres, Simão?
– Murmurei contra Judas, e te havia prometido não fazê-lo mais.
Perdoa-me.
– Sim. Procura não fazê-lo mais.
– Tenho ainda 489 vezes para ter o teu perdão…
– Mas, que é que estás dizendo, meu irmão, pergunta, espantado, André.
E Pedro, com um brilho de esperteza em seu rosto bondoso, encurva o
pescoço por baixo do pesado saco que vai sendo levado por João de Endor,
e diz:
– E não te lembras de que Ele disse que perdoemos setenta vezes sete
vezes? Portanto, eu tenho ainda em haver 489 perdões. E vou trazer a conta
bem feita…
Todos se riem, e até Jesus é obrigado a sorrir, mas lhe diz:
– Farias melhor em fazer a conta de todas as vezes que sabes ser bom,
grande menino que tu és.
Pedro se aproxima de Jesus e, com o braço direito abraça Jesus pela
cintura, dizendo:
– Meu caro Mestre! Como estou feliz por estar contigo sem… Deixa
para lá! Tu também estás contente… E Tu entendes o que eu quero dizer.
Estamos entre nós. Também aí está a tua Mãe. Aí está este menino. Vamos
indo para Cafarnaum. A estação é bela… Aí estão cinco razões para
estarmos alegres. Oh! é realmente belo estar contigo! Onde é que vamos
ficar esta tarde?
– Em Jericó.
– No ano passado foi aí que vimos a mulher velada. Mas, quem sabe o
que aconteceu com ela?… Eu estaria curioso para saber… E encontramos
também aquele das vinhas…
A risada de Pedro é contagiosa, de tão sonora que é. Todos se riem,
lembrando-se da cena do encontro com Judas de Keriot.
– Mas tu és incorrigível, Simão –censura-o Jesus.
– Eu não disse nada, Mestre. Mas deu-me vontade de rir, ao lembrar-me
da cara dele, quando nos encontrou lá… nas vinhas dele…
Pedro está rindo com tanto prazer, que tem que parar, enquanto os
outros vão indo para a frente, ainda sob o frouxo do riso…
285.9Pedro é alcançado pelas mulheres. Maria pergunta com doçura:
– Que tens, Simão?
– Ah! Eu não posso dizer, porque cometeria uma outra falta de caridade.
Mas… aí está, Mãe, dize-me uma coisa, tu que és sábia. Se eu faço uma
insinuação, ou pior, digo uma calúnia, eu peco, com certeza. Mas, se eu me
rio de uma coisa conhecida por todos, ou de um fato, também conhecido
por todos, um fato que faz rir, como, por exemplo, a surpresa de um
mentiroso e o seu embaraço, as suas desculpas, e tornar a rir, como nós já
rimos, é também um mal?
– É uma imperfeição na caridade. Não chega a ser um pecado como a
maledicência e a calúnia, e nem mesmo como a insinuação, mas é sempre
uma falta de caridade. É como um fio puxado para fora de um tecido. Não
chega propriamente a fazer um rasgo, nem a estragar o pano. Mas é sempre
uma coisa que desfaz a integridade dele e sua beleza, tornando fácil nele a
formação de rasgões e buracos. Não te parece?
Pedro esfrega a própria fronte, e diz, um pouco humilhado:
– Parece-me que sim. Nunca havia pensado nisso.
– Pensa nisso agora, e não o faças mais. Há risadas que ofendem mais à
caridade do que bofetadas. Alguém errou? E nós o pegamos em culpa de
mentira, ou de outra coisa? E, então? Para que ficar relembrando aquilo?
Ou fazer que daquilo ele se lembre? Baixemos um véu sobre as culpas do
irmão, pensando sempre assim: “Se fosse eu o culpado, gostaria que outra
pessoa ficasse lembrando minha culpa, e fizesse que ela fosse lembrada?”
Existem vergonhas íntimas, Simão, que fazem sofrer muito. Não fiques
sacudindo a cabeça. Eu sei o que queres dizer… Mas também os culpados
as têm, podes crer. Parte, parte sempre deste pensamento “Gostaria eu
disso?” E verás que nunca mais pecarás contra a caridade. E terás sempre
muita paz em ti. Olha lá Marziam, como está pulando feliz, e cantando. É
porque ele não tem em seu coração nenhum pensamento contra a caridade.
Ele não tem que pensar nos lugares para onde iremos, nem nas despesas,
nem nas palavras que há de dizer. Ele sabe que outros estão pensando em
todas essas coisas por ele. Faze assim também. Deixa tudo para Deus.
Também o julgamento das pessoas. Enquanto podes ser como um menino,
que o bom Deus conduz, por que hás de querer carregar-te com o peso de
ter que decidir e julgar? Virá o momento em que deveras ser juiz e árbitro,
e, então, dirás: “Ah! Como a vida era mais fácil antes, e menos perigosa!”,
e te chamarás de estulto, por teres querido carregar-te antes de tão grande
responsabilidade. Julgar! Que coisa difícil! Ouviste o que disse Síntique, há
dias? “As pesquisas por meio dos sentidos são sempre imperfeitas.” Ela
falou muito bem. Muitas vezes nós julgamos pelas reações dos sentidos, e,
por isso, com grande imperfeição. Deixa de julgar…
– Sim, Maria. Eu te prometo mesmo. 285.10Mas eu não sei todas as belas
coisas que Síntique sabe!
– E ficas preocupado por isso, homem? Não sabes que eu quero me
livrar dessas coisas, para fazer uso somente daquelas que sabes?
– É verdade? Por quê?
– Porque com a ciência podes governar-te na terra, mas é com a
sabedoria que conquistas o Céu. Eu tenho a ciência, e tu tens a sabedoria.
– Mas, com a tua ciência, soubeste ir a Jesus. Logo, ela é coisa boa.
– Misturada com tantos erros, por causa dos quais eu quereria despojar-
me dela, para revestir-me apenas da sabedoria. Fora as vestes adornadas e
fúteis. Que seja a minha uma veste severa e sem aparência externa de
sabedoria, que não é uma coisa corruptível, mas é uma veste imortal, uma
veste que não se acaba nunca. A luz da ciência estremece e vacila. Mas a da
sabedoria brilha firme e invariavelmente constante, como o atributo divino
pelo qual ela é gerada.
Jesus vem, mais devagar, para poder ouvir. Ele se vira, e diz à grega:
– Não deves desejar despojar-te de tudo o que sabes. Mas deves saber
escolher no meio do que sabes quais são os átomos da Inteligência eterna,
que algumas mentes de inegável valor conseguiram conquistar.
– Terão, então, aquelas mentes repetido em si mesmas o mito do fogo
que foi roubado dos deuses?
– Sim, mulher. Só que aqui não foi roubado. Mas foi ensinado como
pode ser recebido, quando a Divindade estava despetalando como flores
seus fogos, acariciando-os como a modelos que iam sendo espargidos por
entre a humanidade decaída, espargia sobre o homem aquilo que faz dele
um ser dotado de razão.
– Mestre, Tu deverias mostrar-me o que devo conservar e o que devo
deixar. Eu não seria um bom juiz. Para depois eu poder encher os espaços
vazios com as luzes da tua Sabedoria.
– É isso que eu desejo fazer. Eu te mostrarei até que ponto é sábio o
conhecimento que tens, e o continuarei, a partir daquele ponto, até o fim da
ideia verdadeira. Para que tu fiques sabendo. Isso fará bem até àqueles que
estão destinados a ter muitos futuros contatos com os pagãos.
– Não entenderemos nada disso, Senhor –geme Tiago de Zebedeu.
– Um pouco, por enquanto. Mas um dia compreendereis. Tanto as lições
de agora, como a necessidade delas. E tu, Síntique, dize-me quais são os
pontos que achas obscuros. Em nossas paradas, Eu os esclarecerei.
– Sim, meu Senhor. É o desejo de minha alma, que se une ao teu desejo.
Eu, discípula da Verdade, e Tu o Mestre. O sonho de toda a minha vida: ter
a posse da Verdade.
286. Em Ramot, com o mercador Alexandre
Misaque.
Lição a Síntique sobre a recordação das almas.
25 de setembro de 1945.
286.1Tendo deixado para trás uma fértil planície, e continuando por uma
boa distância de terreno do outro lado do Jordão, é agradável ir andando,
numa estação serena e deliciosa, como é a deste fim de outubro e, depois de
uma parada em uma vilazinha, encolhida aos pés das primeiras encostas de
uma cadeia de montanhas não muito pequena, — pois qualquer um dos
cumes já pode ser considerado uma verdadeira montanha — Jesus se põe a
caminho de novo, indo postar-se atrás de uma caravana, composta de
muitos animais e de homens armados, com os quais Ele esteve conversando
antes, enquanto eles estavam levando os animais a beber nos tanques da
praça.
São homens quase todos altos e bem morenos, de aparência asiática.
Montado em um burro muito forte, está o chefe da caravana, armado até os
dentes, e com outras armas que estão pendentes da sela. Mas com Jesus ele
tem sido muito respeitoso.
Os apóstolos perguntam a Jesus:
– Quem é ele?
– É um rico mercador do Além-Eufrates. Eu lhe perguntei para onde ia,
e ele foi cortês. Ele passa pelas cidades por onde Eu quero ir. Isto é
providencial nestes montes, pois levamos mulheres conosco.
– Temes alguma coisa?
– Que furtem de nós, não, porque nada temos. Mas, seria preocupante,
se assustassem as mulheres. Um pequeno número de ladrões nunca assalta
uma caravana forte como esta, que poderá também ser-nos útil, para
conhecermos os melhores lugares de passagem, e como passar pelos lugares
difíceis. Ele me perguntou: “És Tu o Messias?”, e, tendo ficado sabendo
que sim, ele disse: “Eu estava no Pátio dos Pagãos, há dias, e te ouvi, mais
do que vi, pois eu sou de baixa estatura. Bem, eu protegerei a Ti, e Tu me
protegerás. Eu vou levando uma carga de grande valor.”
– É prosélito?
– Acho que não. Mas talvez ainda seja descendente do nosso povo.
A caravana vai indo devagar, como se não quisesse esgotar as forças
dos quadrúpedes, e querendo adiantar bastante a viagem. Por isso, é fácil
acompanhá-la a passo, e até muitas vezes é preciso fazer alguma parada,
porque os condutores fazem que os animais carregados vão passando, um
por um, segurando-os pelo cabresto, nos pontos difíceis.
Por mais que se trate de uma montanha, a terra é muito fértil e bem
cultivada. Talvez os montes, cada vez mais altos, que vão aparecendo a
nordeste, sirvam de abrigo contra as frentes frias do norte ou contra as
insalubres do leste, e isso é muito bom para as culturas. A caravana vai
beirando uma torrente, que certamente vai lançar-se no Jordão, levando-lhe
uma boa quantidade de águas, que descem de alguns daqueles cumes. A
vista que se tem é bela, sempre mais bela, à medida que se vai subindo e,
então, vai-se espraiando para o lado do oeste sobre a planície do Jordão,
tendo, além desta, os encantadores aspectos das colinas e montes da Judeia
do norte, enquanto, a leste e ao norte, há uma contínua mudança de
panoramas, abertos para grandes distâncias e amplidões, outros oferecendo
aos olhares um amontoado de dorsos e de cumes verdes, ou rochosos, que
parecem surgir de repente, como obstáculos à passagem pelo caminho,
surgindo à frente como a parede de um labirinto.
286.2O sol está para sumir atrás dos montes da Judeia, avermelhando
vivamente o céu e o litoral, enquanto o rico mercador, que parou, deixando
passar a caravana para a frente, dirige a palavra a Jesus:
– É preciso chegar ao povoado antes da noite. Mas muitos dos que estão
contigo parecem cansados. Esta é uma marcha dura. Faze-os montar nos
burrinhos da escolta. São animais mansos. Eles terão a noite toda para
descansar, e para eles não é grande o peso de uma mulher.
Jesus concorda, e o homem manda parar, a fim de fazer que as
mulheres montem nos animais. Jesus faz montar também João de Endor. E
os que vão a pé, inclusive Jesus, pegam as rédeas para tornar mais segura a
marcha para as mulheres. Marziam quer… bancar o homem, e, ainda que
esteja caindo de cansaço, não quer, de modo nenhum, ir para a sela com
ninguém, mas pega, ele também, as rédeas do burrinho da Virgem Maria,
que fica assim entre Jesus e o menino, que vai caminhando muito bem.
O mercador ficou perto de Jesus, e diz a Maria:
– Estás vendo, mulher, aquele povoado? É Ramot. Lá faremos nossa
parada. Sou conhecido no albergue, porque faço esta viagem duas vezes
cada ano, enquanto que as outras duas as faço pelo litoral, para comprar ou
vender. É a minha vida, uma vida dura. Mas eu tenho doze filhos, e ainda
pequeninos. Eu me casei tarde. Em casa deixei um com nove dias. E, ao
voltar, o encontrarei com os primeiros dentes.
– Uma bela família… –comenta Maria.
E termina:
– Que o Céu a conserve.
– De fato, eu não me queixo de não ter sido ajudado por ele, ainda que
eu o mereça muito pouco!
286.3Jesus lhe pergunta:
– Nem prosélito és?
– Eu deveria sê-lo… Os meus antepassados eram verdadeiros israelitas.
Depois… nós nos acomodamos por lá…
– A alma só se acomoda bem no clima do Céu.
– Tens razão. Mas Tu sabes… Meu bisavô desposou uma não israelita.
Os filhos já foram menos fiéis… Os filhos dos filhos se casaram com novas
mulheres, também elas não de Israel, dando-lhes filhos, que apenas
respeitavam o nome judeu, porque, de origem, somos judeus. Agora, eu,
neto dos netos… não sou nada. Estando em contato com todos, eu peguei
alguma coisa de todos, e acabei não sendo mais de ninguém.
– Essa tua razão não é boa, e Eu vou te provar isso. Se tu, andando por
esta estrada, que sabes que é boa, encontrasses cinco ou seis pessoas, que te
dissessem “Por aí, não!”, “Vem por aqui!”, “Volta para trás!”, “Para!”, “Vai
para o lado do Oriente”, “Dá a volta pelo lado do Ocidente”, que é que tu
lhes dirias?
– Eu lhes diria: “Eu sei que este é o caminho mais breve e certo, e não o
vou deixar.”
– Outra coisa: tu, se tivesses que fazer um negócio, e sabendo bem o
modo como fazê-lo, irias ouvir aqueles que, só para se mostrarem, ou por
uma calculada malícia, te aconselhassem a fazê-lo de modo diferente?
– Não. Eu faria o que a minha experiência me diz que é melhor.
– Muito bem. Milhares de anos estão atrás de ti, que és descendente de
Israel. Tu não és tolo, nem analfabeto. Por que, então, vais aceitando todas
as opiniões em matéria de fé, quando tu és capaz de refutá-las em matéria
de dinheiro, ou quando se trata de qual o caminho mais certo e seguro? Não
te parece que esse modo de agir, mesmo só humanamente falando, não é
honroso para ti? Pões o dinheiro e a segurança do caminho em primeiro
lugar, antes de Deus…
– Não. Eu não ponho a Deus para trás. Eu o perdi de vista.
– É porque tens como deuses o comércio, o dinheiro, a vida. Mas é
Deus quem te permite ter tudo isso… 286.4Por que entraste no Templo?
– Por curiosidade. Na estrada, enquanto eu ia saindo de uma casa, onde
havia feito um contrato de mercadorias, vi um grupo de homens que
estavam te saudando respeitosamente, e voltaram-me à memória as palavras
que eu ouvi em Ascalon, de um fabricante de tapetes. Eu lhe perguntei
quem eras Tu, porque veio-me a suspeita de que fosses Tu a pessoa de
quem aquela mulher estava falando. E, tendo ficado sabendo que eras Tu
mesmo, vim atrás de Ti. Eu tinha acabado, por aqueles dias, os meus
negócios… Depois, eu te perdi de vista. Em Jericó tornei a ver-te. Mas só
por um momento. Agora, te encontrei outra vez… É isso…
– Portanto, vê-se que Deus está fazendo que convirjam e se cruzem os
nossos caminhos. Mas, antes de deixar-te, Eu espero poder dar-te um
presente, contanto que tu não me abandones depois.
– Não, eu não o farei! Alexandre Misaque não abandona, quando
prometeu não fazê-lo. Olhai lá! Depois daquela curva, começa o povoado.
Eu vou à frente. Nós nos veremos de novo no albergue.
E espora o animal, partindo quase a galope, pela beira do caminho.
– É um homem honesto e um infeliz, meu Filho –diz Maria.
– E tu o quererias ver feliz, quanto à Sabedoria, não é mesmo?
Os dois sorriem um para o outro, enquanto já vão chegando as
primeiras sombras da tarde.

… Naquela longa tarde de outubro, reunidos todos num amplo salão


286.5
do albergue, os peregrinos esperam deitar-se. A um canto, sozinho, está o
mercador, atento em fazer as suas contas. No canto oposto, está Jesus, com
todos os seus. Não há outros hóspedes. Nas estrebarias chegam até aqui os
zurros, os relinchos e os balidos, o que faz supor que no albergue haja mais
pessoas. Mas é possível que já tenham ido deitar-se.
Marziam adormeceu nos braços da Senhora, esquecendo-se de repente
de que ele era “muito homem.” Pedro está cochilando, e não é só ele que
está assim. Até as mulheres anciãs, cochichadeiras, adormeceram e se
calaram. Bem acordados estão Jesus, Maria e as irmãs de Lázaro, Síntique,
Simão Zelotes, João e Judas. Síntique está rebuscando na sacola de João de
Endor, como quem está procurando alguma coisa. Mas depois ela resolve ir
para perto dos outros, e ficar ouvindo Judas de Alfeu, que está falando das
consequências do exílio na Babilônia[84], e termina, dizendo:
– … e talvez aquele homem seja ainda uma consequência daquilo. Todo
exílio é uma ruína…
Síntique faz um sinal involuntário com a cabeça, mas nada diz, e Judas
de Alfeu termina:
– Mas é estranho que, com tanta facilidade, alguém possa ficar
despojado daquilo que é um tesouro de séculos, para tornar-se
completamente novo, especialmente em coisas de religião, e de uma
religião como é a nossa…
Jesus responde:
– Não deves ficar admirado, quando, no seio de Israel, contemplas
Samaria.
286.6Fazem silêncio. Os olhos escuros de Síntique olham fixamente para
o perfil sereno de Jesus. Ela o olha com intensidade. Mas sem falar nada.
Jesus percebe aquele olhar, e se vira, a fim de olhar também para ela.
– Não encontraste nada a teu gosto?
– Não, Senhor. Eu cheguei a um ponto em que não posso mais conciliar
o passado com o presente, as ideias de antes com as de agora. E me parece
como que uma defecção, porque as ideias de antes me ajudaram a ter as de
agora. Bem que dizia o teu apóstolo… Mas a minha é uma ruína feliz.
– Que foi que se arruinou em ti?
– Toda a fé no Olimpo pagão, Senhor. E, contudo, estou um pouco
perturbada, porque, lendo a vossa Escritura, — quem a deu foi João, e eu a
leio, porque sem conhecimento não há posse — descobri que também na
vossa história dos inícios, eu direi assim, há fatos não muito diferentes dos
nossos. Agora eu gostaria de saber…
– Eu já te disse: pergunta, que Eu te responderei.
– Tudo é erro na religião dos deuses?
– Sim, mulher. Não existe mais do que um Deus, o qual não é gerado
por outros, não está sujeito ao que são as paixões e necessidades humanas,
um Deus único, eterno, Perfeito, Criador.
– Eu o creio. Mas quero poder responder, não de uma forma que não
aceita discussão, mas com uma forma que se pode discutir para convencer,
para responder às perguntas que outros pagãos poderiam fazer-me. Eu, por
mim mesma, pela virtude desse Deus benéfico e paterno, procurei dar a
mim mesma respostas, não bem formuladas, mas suficientes para dar paz ao
meu espírito. Não obstante, continuava em mim a vontade de atingir a
Verdade. Outros serão menos desejosos por ela do que eu. No entanto, essa
busca deveria ser feita por todos. Eu não penso em ficar inerte junto às
almas. Aquilo que eu ganhei gostaria de dar. Mas, para dar, devo saber. Dá-
me o saber, e eu te servirei em nome do amor. Hoje, enquanto vínhamos
pelo caminho, e enquanto eu vinha observando as montanhas e certos
aspectos nelas, que me traziam vivas à memória as cordilheiras da Hélade e
as histórias da Pátria, por uma associação de ideias, apresentou-me o mito
do Prometeu, aquele de Deucalião… Vós tendes alguma coisa semelhante
na fulminação de Lúcifer, na infusão da vida na argila e no Dilúvio de Noé.
São circunstâncias leves, mas sempre fazem lembrar… Pois bem, dize-me:
como pudemos nós conhecê-las, se nenhum contato houve entre nós e vós,
e nós as tivemos, mas não há explicações de como as tivemos? Neste
assunto ignoramos ainda muitas coisas. Como, então, milênios atrás, nós
tivemos lendas, que recordam as vossas verdades?
– Mulher, tu me deverias perguntar isso menos do que os outros. Porque
tu já leste obras, que por si mesmas poderiam dar resposta a este teu porquê.
286.7Hoje tu, por uma associação de ideias, da lembrança dos montes de tua
terra natal, passaste para a lembrança dos mitos e dos confrontos. Não é
verdade? Por que isso?
– Porque meu pensamento, despertado, se lembrou.
– Muito bem. Também as almas de povos antiquíssimos, que deram
uma religião à tua terra, se lembraram. De um modo confuso e imperfeito,
como podia fazê-lo alguém separado da religião revelada. Mas sempre se
lembraram. No mundo há muitas religiões. Pois bem. Se nós tivéssemos
aqui, em um quadro claro, todos os pormenores delas, veríamos que há
como que um fio de ouro, perdido no meio de muita lama, um fio cheio de
nós, nos quais estão encerrados pedacinhos da Verdade verdadeira.
– Mas, não procedemos todos de um tronco? Tu assim o dizes. Então,
por que os antigos mais antigos, que vieram do primeiro tronco de origem,
por que eles não souberam trazer consigo a Verdade? Não é uma injustiça
havê-los privado dela?
– Tu leste o Gênesis, não é mesmo? Que encontraste[85]? Um pecado
complexo em seu começo. Um pecado abrangendo os três estados do
homem: a matéria, o pensamento e o espírito. Depois um fratricídio. Depois
um homicídio; para contrabalançar a obra de Enoque de conservar luz nos
corações, depois corrupção, unindo por libidinagem dos sentidos os filhos
de Deus com as filhas do sangue. E, não obstante a purificação do Dilúvio e
a restauração da raça por uma boa semente, não nascendo das pedras, como
se diz nos vossos mitos, bem como também, não por rapto do fogo vital por
obra do homem, eis que de novo aparece o fermento da soberba, o ultraje
feito a Deus: “Vamos tocar no Céu”, e a maldição divina: “Sejam dispersos,
e não se entendam um ao outro”… E o único tronco, como a água que se
choca contra uma pedra e se espalha em pequenos rios, e não se reúne mais,
assim se dividiu a raça, e se repartiu em várias raças. A humanidade, posta
em fuga pelo seu pecado e pela punição divina, eis que se espalha e não se
reúne mais, levando consigo a confusão, que a soberba havia criado. As
almas se lembram. Alguma coisa sempre permanece nelas. E as mais
virtuosas e sábias entreveem uma luz, ainda que fraca, nas trevas dos mitos:
a luz da Verdade. E essa lembrança da Luz antes da Vida é o que agita nelas
as verdades nas quais estão os pedacinhos das Verdades reveladas.
Compreendeste-me?
– Em parte. Mas vou pensar nisso. A noite é amiga de quem pensa e se
concentra em si.
– Então, vamos concentrar-nos cada um em si mesmo. Vamos, amigos.
A paz a vós, mulheres, a paz a vós, meus discípulos. A paz a ti, Alexandre
Misaque.
– Adeus, Senhor. Deus esteja contigo, responde o mercador, inclinando-
se.
[84] exílio da Babilônia, narrado em 2 Reis 24-25; 2 Crônicas 36.
[85] encontraste, em Gênesis 3-11.
287. De Ramot a Gerasa
com a caravana do mercador.
26 de setembro de 1945.
287.1Na luz ainda um pouco fraca desta manhã um tanto ventosa, a
singularidade deste povoado apoiado sobre uma plataforma rochosa,
erguida entre uma coroa de picos, uns mais altos, outros mais baixos do que
ele, aparece em toda a sua beleza característica. Parece uma grande bandeja
de granito, tendo sobre si apoiadas casas, casinhas, pontes, fontes, para o
divertimento de um menino gigante.
As casas parecem ter sido entalhadas na rocha calcária, que constitui a
matéria básica desta região[86]. Esquadradas em blocos superpostos, mas
sem nenhum revestimento de reboco, outros nem mesmo trabalhados, até
parecem mesmo as casinhas de um presépio construído com cubos por
alguma criança engenhosa.

E, ao redor de todo este pequeno povoado, pode-se ver a sua fértil


campina cheia de árvores, com culturas variadas, as quais, vistas do alto,
parecem um tapete feito de quadrados, de trapézios, de triângulos, outros
amorenados pela cor da terra recentemente capinada, outros ainda verdes
como esmeraldas, por causa da erva que já nasceu, depois das chuvas de
outono e os que vão ficando avermelhados pelas extremas folhas das
videiras e dos pomares, outros, enfim, de um verde cinzento por causa dos
choupos e salgueiros, ou do verde esmalte dos carvalhos e das alfarrobeiras,
ou ainda de um verde bronze, que é devido aos ciprestes e às coníferas. É
muito, muito belo!
Há estradas que vão, como fitas que saem de um nó, ou seja, do
povoado para a planície distante ou então para os montes, até para os mais
altos, e descem por baixo dos bosques, ou separam, com sua cor cinzenta, o
verde dos prados cor de amora dos campos arados.
Vê-se um risonho curso d’água, que é cor de prata, para lá do povoado,
que é de um azul desbotado meio cor de jade, na parte oposta onde está a
descida para o vale, por entre gargantas e declives, que numa hora aparece e
noutra desaparece, brincalhão, cada vez mais crescido e mais azul, pois vai
aumentando pouco a pouco o volume de suas águas, não permitindo mais
que os caniços nascidos em seu fundo nem as ervas de seu fundo o pintem
de verde nos meses da seca, mas agora está refletindo o céu, tendo
sepultado os caules sob um espesso véu de águas profundas.
O céu está de um azul irreal: uma escama preciosa de um azul esmalte
forte, sem nenhuma rachadura, em seu conjunto maravilhoso.
287.2A caravana põe-se assim de novo em movimento, com as mulheres
ainda a cavalo, porque, como diz o mercador, a estrada é difícil através
desta região, e é preciso percorrê-la logo, para se poder chegar a Gerasa já
de noite. Cobertos com seus mantos, bem dispostos, porque bem
descansados, vão indo, ligeiros, pela estrada que vai subindo por baixo de
uma mata bem cerrada e que passa rente aos altos barrancos de um monte
solitário, que se ergue como um enorme bloco sobre as costas dos outros
montes subjacentes. Um verdadeiro gigante, semelhante ao qual só se
encontra nos pontos mais altos do nossos Apeninos.
– Galaad –diz, fazendo um sinal, o mercador, que permanece perto de
Jesus, o qual vai segurando sempre as rédeas do burrinho da Virgem.
E acrescenta:
– Depois disto, a viagem é melhor. Já estiveste por aqui?
– Nunca. Queria vir na primavera. Mas em Gálgala fui repelido.
– Repelido, Tu? Que erro!
Jesus olha para ele, e se cala.
O mercador trouxe para sua sela Marziam, que estava de fato passando
mal com suas perninhas curtas, para manter a distância, atrás do passo
rápido dos cavalos. E Pedro é que sabe se esse passo é rápido! Ele faz todo
o esforço para caminhar à frente, e é imitado pelos outros, mas vai ficando
sempre um tanto distanciado da caravana. Está suado, mas está contente
porque ouve Marziam rir, vê repousada a Senhora, e alegre o Senhor. Fala,
esbaforido, com Mateus e com seu irmão André, que são os que vão na
retaguarda como ele, e faz que eles se riam, dizendo que, assim como tem
pernas, se tivesse asas, seria bem feliz, naquela manhã. Ele se
desembaraçou de todos os pesos, como os outros, amarrando os sacos nas
selas das mulheres, mas a estrada é difícil mesmo, ainda mais nos lugares
em que se vai pisando sobre as pedras que o orvalho fez ficar escorregadias.
Os dois Tiagos, juntos com João e Tadeu são os mais valentes, e dão seus
passos ao mesmo tempo que as mulas das mulheres. Simão Zelotes fala
com João de Endor. Timoneu e Hermasteu também se ocupam em guiar os
burros.
287.3Finalmente, a pior parte já passou e um grande e diferente cenário se
abre aos olhos admirados. O vale do Jordão desapareceu completamente.
Agora os olhares se espalham para o lado do oriente, por cima de um
altiplano de grande extensão, sobre o qual somente uma encrespadura de
colinas faz um leve sinal de querer elevar-se, para quebrar a monotonia da
paisagem. Eu nunca teria pensado que pudesse haver na Palestina uma coisa
assim. Parece que, depois da tempestade rochosa dos montes, ela se tenha
petrificado e sossegado, transformando-se em um enorme vagalhão, que
ficou suspenso entre o nível do fundo e o céu, com uma única lembrança da
sua primitiva fúria, e que ficou naquelas fileiras de colinas, com a espuma
das cristas solidificada aqui e ali, enquanto que a água do vagalhão se
esparramou, formando esta superfície plana de maravilhosa beleza. E a esta
região de paz luminosa se chega, atravessando uma última garganta,
selvagem como é o abismo entre dois vagalhões que se chocam, os dois
últimos vagalhões de uma tempestade no mar, em cujo fundo há uma
torrente espumante, que corre para o oeste, vinda do leste por um agitado e
furioso caminho, por entre rochas e cascatas, e que contrasta tanto com
aquela paz lá ao longe, no enorme planalto.
– Agora o caminho vai ser bom. Se permites, eu vou dar ordens de
parar –diz o mercador.
– Eu me deixo guiar por ti, homem. Tu sabes.
Descem todos e se espalham pelo declive, indo procurar lenha para
cozinhar os alimentos, água para os pés cansados e para as gargantas
sedentas. Os animais, aliviados do peso de suas cargas, estão pastando a
erva viçosa, e descem para onde possam beber a água límpida da torrente.
Pelo ar se espalha o cheiro de resinas e de carne assada: ele vem de
pequenas fogueiras, que eles já acenderam, e já começaram a assar os
cordeiros.
Os apóstolos já prepararam também o seu pequeno fogo, e sobre ele
estão esquentando peixes salgados, depois de os terem lavado na água
fresca da torrente. Mas o mercador vê isso, e se aproxima deles, levando um
cordeirinho já esfolado, ou um cabritinho, e os obriga a aceitá-lo. E Pedro
se prontifica a assá-lo, depois de tê-lo enchido com poejos frescos.
A refeição é logo preparada, e logo consumida. 287.4E, debaixo de um
sol que está em pleno meio-dia, a marcha é retomada por um caminho
melhor, que vai ladeando a torrente, em direção ao nordeste, por uma região
de uma fertilidade maravilhosa e muito bem cultivada, rica de ovelhas e de
manadas de porcos, que fogem grunhindo, diante da caravana.
– Aquela cidade murada é Gerasa, Senhor. Cidade de grande futuro.
Agora ela está se formando, e creio não errar, se disser que ela logo irá
competir com Jope e Ascalon, com Tiro e com muitas outras cidades pela
beleza, comércio e riqueza. Os romanos estão vendo a importância dela,
colocada sobre esta estrada que, do Mar Vermelho, e, portanto, do Egito,
passando por Damasco, vai até o Mar do Ponto. E os gerasenos ajudam a
construí-la… Eles têm olhos e faro muito bons. Por enquanto, ela tem só
bons negócios. Mas depois!… Oh! Ela será bela e rica! Será uma pequena
Roma com templos e piscinas, circos e termas. Eu aí só tinha negócios, mas
agora já adquiri aí muitos terrenos, para neles construir empórios, e vende-
los a alto preço daqui a pouco, talvez para construir uma casa de grão-
senhor, e vir para ficar aí em minha velhice, quando Baltasar, Nabor, Félix e
Sidmia já estiverem podendo, respectivamente, tomar conta dos empórios e
administrá-los em Sinopo, em Tiro, em Jope, e em Alexandria, que fica na
foz do rio Nilo. Enquanto isso, irão crescendo os outros três filhos homens,
e eu lhes darei os empórios de Gerasa, de Ascalon, e de Jerusalém talvez. E
as moças, ricas e belas, serão cortejadas e farão bons casamentos, e me
darão muitos netos…
O mercador está sonhando, de olhos abertos, com um futuro mais cor-
de-rosa e dourado.
287.5Jesus, calmo, lhe pergunta:
– E depois?
O mercador estremece, olha, perplexo, para Jesus, e depois diz:
– E depois? Basta. Depois virá a morte… É triste. Mas é assim.
– E deixarás todas as atividades? Todos os empórios? Todos os afetos?
– Mas, Senhor! Eu não quereria isso. Mas, assim como nasci, também
tenho que morrer. E deverei deixar tudo –e dá um suspiro tal, que faz andar
para a frente a caravana com seu sopro.
– Mas, quem te diz que com a morte se deixa tudo?
– Quem? Ora, os fatos. Uma vez mortos… Nada mais. Nem mãos, nem
olhos e ouvidos.
– Tu não és somente mãos, olhos e ouvidos.
– Eu sou um homem. Eu sei. Tenho outras coisas. Mas tudo se acaba
com a morte. É como o pôr-do-sol. Ele muda tudo…
– Mas a aurora torna a criá-lo, ou melhor, no-lo reapresenta. Tu és um
homem, como disseste, não és um animal, como esse que estás cavalgando.
Ele, uma vez morto, de fato se acabou. Mas tu, não. Tu tens uma alma. Não
sabes disso? Nem isso tu sabes mais?
O mercador ouve a triste censura, triste e doce, e inclina a cabeça,
murmurando:
– Isto eu ainda sei…
– E, então? Não sabes que a alma sobrevive?
– Eu sei.
– E, então? Não sabes que ela sempre tem uma atividade na outra vida?
Uma atividade santa, se ela for santa. Má, se ela for má. Ela tem os seus
sentimentos. Oh! Se tem! De amor, se for santa. De ódio, se for condenada.
Ódio por quem? ódio pelas causas de sua condenação. No teu caso são as
tuas atividades: os empórios, os afetos totalmente humanos. E de amor por
quem? Pelas mesmas coisas. E, que bênçãos para os filhos e para as
atividades dos filhos não lhes poderá dar uma alma que estiver na paz do
Senhor?
O homem está pensativo. Depois ele diz:
– É tarde. Já estou velho.
E faz parar o burro. Jesus sorri, e responde:
– Eu não te obrigo. Eu te aconselho.
E depois se vira, e fica olhando para os apóstolos que, nesta última
etapa, antes de entrarem na cidade, estão ajudando as mulheres a descer e
apanhando os seus sacos.
287.6A caravana parte dali, e vai entrando logo na cidade, pela porta que
é vigiada das torres, nesta cidade de tráfego intenso.
O mercador volta até Jesus:
– Queres ficar ainda comigo?
– Se tu não me repeles, porque haveria Eu de não querer?
– Por aquilo que eu te disse. Eu devo estar causando-te náuseas, porque
Tu és Santo.
– Oh! Não! Eu vim para aqueles que são como tu. Eu vos amo, porque
sois os mais necessitados. Tu ainda não me conheces. Mas Eu sou o Amor
que passa mendigando amor.
– Então, não me odeias?
– Eu te amo.
O homem está com um brilho em seus olhos fundos. Mas, ele diz, com
um sorriso:
– Então, vamos ficar juntos. Em Gerasa, eu pararei três dias para
negócios. Lá eu deixarei os burros, e passarei a usar camelos. Eu tenho um
ponto de caravanas em cada lugar de parada maior, e tenho um servo
cuidando dos animais que eu deixo no lugar. E Tu, que farás?
– Evangelizarei no sábado. Eu te teria deixado, se tu não tivesses
parado, porque o sábado é um dia consagrado ao Senhor.
O homem franze a testa, pensa e, como alguém que sente muita
dificuldade, afinal concorda:
– Sim. É verdade. É consagrado ao Deus de Israel. É consagrado. É
consagrado.
Ele olha para Jesus…
– Eu te consagrarei, se me permites.
– A Deus. Não ao Servo.
– A Deus e a ti, ouvindo-te. Farei hoje e amanhã de manhã os meus
negócios. E depois te ouvirei. Vais para o albergue agora?
– É preciso. Estou com as mulheres, e aqui sou desconhecido.
– Aqui está a minha propriedade. É minha, porque nela estão as minhas
cavalariças todos os anos. Mas eu tenho amplos quartos para as
mercadorias. Se quiseres…
– Que Deus te recompense por isso. Vamos.
[86] desta região, da qual MV fez dois esboços sobre a face interna de um folheto dobrado, que costurou entre as páginas
autografadas do caderno. Sobre o esboço da esquerda, se lê: Como se apresenta no panorama Ramot – Judeia – Planície do
Jordão – Mar Morto – Jordão – Planície além Jordão – Galaad – Ramot. Sobre o esboço da direita, se lê: Como depois de ter
superado os montes – Gerasa – Altiplano. Sobre a face externa do folheto, MV escreveu: Fazer cadeias montanhosas tão
próximas não é fácil, e eu só farei bem pouco. Porém muito embrionariamente o esboço serve para dar ideia, ainda mais se nos
ajuda com a descrição.
288. Discurso aos cidadãos de Gerasa
e louvor de uma mulher à Mãe de Jesus.
27 de setembro de 1945.
288.1Ele achava que era desconhecido! Quando, na manhã seguinte, põe
os pés para fora do casarão de Alexandre, já vai-se encontrando com
pessoas que o estão esperando. Jesus está agora somente com os apóstolos.
As mulheres e os discípulos ficaram em casa, descansando. As pessoas o
saúdam e o rodeiam, dizendo-lhe que o conhecem pelo que falou dele um
que foi curado, por estar em poder dos demônios, e que agora está ausente,
pois foi para adiante com dois dos discípulos, que passaram por ali, há
alguns dias. Jesus vai ouvindo complacentemente todas essas conversas e,
enquanto falam, Ele vai caminhando pela cidade que, em certos pontos faz
ouvir os fortes ruídos dos canteiros de obras. Pedreiros, cavadores,
ferreiros, carpinteiros, que trabalham para construir, outros para aplainar ou
aterrar desníveis, outros aparelhando pedras para as muralhas, trabalhando o
ferro para um ou outro uso, serrando, acepilhando, a repartindo troncos
robustos em peças transportáveis. Jesus passa e olha, atravessa uma ponte
lançada sobre um pequeno riacho, que passa bem pelo centro do povoado, e
as casas estão alinhadas de um e do outro lado dele, com a pretensão de
fazer dele um grande rio. Depois, Jesus sobe, indo para a parte alta da
cidade, que está construída um pouco em desnível, de tal modo que o lado
do sudoeste é mais alto que o lado do nordeste, mas os dois são mais altos
do que o centro da cidade, cortado em duas partes pelo pequeno curso
d’água.
Do ponto em que Jesus parou, a vista é muito bonita. Daí a cidade toda,
que é bastante grande, se deixa ver, e, atrás dela, dos lados do oriente, do
sul e do ocidente, há uma ferradura formada por pequenas colinas verdes,
enquanto para o norte nosso olhar pode espraiar-se sobre uma planície
aberta e extensa que, lá no horizonte, deixa ver um relevo, tão sumido, que
nem pode ser chamado de colina, dourado pelo sol da manhã, que torna
muito bonitas as folhas amareladas das oliveiras, que cobrem esta
ondulação do terreno, como se quisesse atenuar, com o luxo de uma
pincelada de ouro, a tristeza das folhas que estão morrendo.
288.2Jesus está observando, e as pessoas de Gerasa estão olhando para
Ele. Jesus as conquista, dizendo-lhes:
– Esta cidade é muito bonita, fazei que ela seja bonita também por sua
justiça e santidade. As colinas, o riacho, a planície verde, são coisas que
Deus vos deu. Roma vos está ajudando agora, dando-vos casas e belas
construções. Mas depende de vós dar à vossa cidade o nome de cidade santa
e justa.
A cidade é o que dela fazem os seus habitantes. Porque a cidade é uma
parte da sociedade, fechada dentro de muros. Contudo, os que constituem a
cidade são os cidadãos. A cidade, por si mesma, não peca. Não podem
pecar o riacho, nem a ponte, nem as casas, nem as torres. Tudo isso é
matéria, não tem, alma. Mas quem pode pecar são os que estão fechados
dentro dos muros da cidade, nas casas, nas lojas comerciais, os que passam
pela ponte e vão banhar-se no rio. Costuma-se dizer, quando se fala de uma
cidade facciosa e cruel: “É uma cidade péssima.” Mas está mal falado. Não
é a cidade. São os cidadãos que são péssimos.
São cada um deles, um por um, que se tornam, quando se unem, uma só
coisa multiforme, que se chama cidade. Então, escutai agora. Se em uma
cidade dez mil habitantes são bons, e só mil não o são, poder-se-ia dizer que
aquela cidade é má? Não. Não se poderia dizer isso. Também, se em uma
cidade de dez mil habitantes houver muitos partidos, e cada um deles
procurar só o benefício de si mesmo, poder-se-ia dizer que aquela é uma
cidade unida? Não. Não se pode dizer isso. Mas, pensais vós que aquela
cidade irá para a frente? Não irá.
Vós de Gerasa estais agora todos unidos com a intenção de fazer da
vossa cidade uma grande coisa. E o conseguireis, porque todos quereis a
mesma coisa, e porfiais um com o outro, para chegardes a esta meta. Mas,
se amanhã entre vós surgissem partidos diferentes, e um deles dissesse:
“Não. É melhor fazer a cidade crescer para o ocidente”, e um outro partido:
“Nada disso! Vamos fazê-la crescer para o norte, onde está a planície”; e
um terceiro dissesse: “Nem uma coisa, nem outra. Unidos no centro,
queremos ficar é perto do rio”, que aconteceria? Aconteceria que as obras
começadas iriam ficar paradas, que os que nos emprestam os capitais se
afastariam, e os que pensavam em vir estabelecer-se nela iriam para outra
cidade, cujos habitantes fossem mais unidos. E o trabalho, que já tinha sido
feito, ficaria perdido, por ser deixado exposto às intempéries, sem ter
podido ser acabado, por causa das discussões acerbas dos cidadãos. É, ou
não é assim? Vós estais dizendo que é assim, e dizeis bem. Portanto, é
necessário que haja concórdia entre os cidadãos. Porque o bem da
sociedade existe, quando existe o bem-estar dos cidadãos, porque na
sociedade o bem dela existe quando existe o bem-estar dos que a compõem.
288.3Mas o que existe não é somente a sociedade como a entendeis, a
sociedade dos concidadãos, ou dos que pertencem à mesma nação, ou a
pequena e querida sociedade da família. Existe uma outra sociedade muito
mais extensa, infinita: a sociedade dos espíritos.
Todos nós que vivemos temos uma alma. Essa alma não morre com o
corpo, mas sobrevive a ele, para sempre. A ideia de Deus Criador, que deu
ao homem uma alma, foi que todas as almas dos homens se reunissem em
um único lugar, o Céu, constituíndo o Reino dos Céus, cujo monarca é
Deus, e cujos súditos felizes teriam sido os homens, depois de uma vida
santa e uma morte tranquila. satanás veio para dividir e subverter, para
destruir e desagradar a Deus e aos espíritos. E introduziu o pecado nos
corações, e com ele trouxe a morte no fim desta existência, esperando poder
dar a morte também aos espíritos. A morte destes é a condenação, a qual
ainda é existir, sim, mas numa existência privada do que é a verdadeira Vida
e alegria eterna, isto é, da visão beatífica de Deus e de sua posse eterna nas
luzes eternas. E a Humanidade se dividiu em suas vontades, como uma
cidade dividida por partidos contrários. E, assim agindo, caminhou para a
sua ruína.
Eu já disse[87] isto aos que me acusavam de expulsar os demônios com
a ajuda de Belzebu: “Todo reino dividido contra si mesmo irá para a ruína.”
De fato, se satanás se expulsasse a si mesmo, ele e seu reino tenebroso se
arruinaria. Eu, pelo amor que Deus tem para com a Humanidade por Ele
criada, vim para fazer lembrar que só um Reino é Santo: o dos Céus. E vim
para anunciá-lo, para que os melhores o procurem. Oh! Eu quereria que
todos, até os piores, viessem a se converter, livrando-se do demônio que,
evidentemente, nas possessões corporais, além das espirituais, ou
secretamente naquelas que são completamente espirituais, os conserva
escravizados. Por isso, Eu vou curando os doentes, expulsando os demônios
dos corpos dos possessos, convertendo os pecadores, perdoando em nome
do Senhor, instruindo sobre o Reino, realizando milagres para persuadir-vos
do meu poder e de que Deus está comigo. Porque não se pode fazer
milagre, se não se tiver a Deus como amigo. Por isso, se Eu expulso os
demônios com o dedo de Deus, e curo os doentes, se limpo os leprosos,
converto os pecadores, anuncio o reino e instruo sobre ele, se chamo para
ele em nome de Deus, e se a condescendência de Deus está comigo clara e
indiscutível, e somente os inimigos desleais é que podem dizer o contrário -
é sinal de que o Reino de Deus chegou ao meio de vós, e de que ele está
constituído, porque esta é a hora de sua fundação.
288.4Como se funda o Reino de Deus no mundo e nos corações? Com a
volta à Lei de Moisés, ou com o conhecimento exato dela, quando não se
conhece-a, mas, sobretudo, com a aplicação total da Lei em si mesmos em
todos os acontecimentos e momentos da vida. Qual é essa Lei? Será uma
coisa de tal modo severa, que se torne impraticável? Não. Ela é uma série
de dez preceitos santos e fáceis, dos quais até o homem moralmente bom,
verdadeiramente bom, sente a necessidade, mesmo se ele estiver sepultado
sob o denso teto vegetal das mais impenetráveis florestas da misteriosa
África. Essa Lei diz:
“ Eu sou o Senhor teu Deus, e não há outro Deus fora de Mim.
Não tomes o Nome de Deus em vão.
Respeita o sábado, conforme a ordem de Deus, e a necessidade da
criatura.
Honra a teu pai e à tua mãe, se queres viver longamente, e ter o bem na
terra e no Céu.
Não mates.
Não furtes
Não cometas adultério.
Não levantes falso testemunho contra o próximo.
Não desejes a mulher do próximo.
Não cobices as coisas alheias.”
Qual é o homem que, se for de bom coração, ainda mesmo sendo ele
um selvagem, e que volvendo o olhar para tudo o que o circunda, não
chegue a dizer: “Não era possível que tudo isso se fizesse por si mesmo. Por
isso, existe Um, mais poderoso do que a natureza e do que o próprio
homem, que fez tudo isso?” E adora esse Poderoso, do qual ele saiba, ou
não saiba o Nome Santíssimo, mas que ele percebe que existe. E tem para
com esse Ser uma tão grande reverência, que, ao pronunciar o nome que lhe
deu, ou que lhe foi ensinado dizer, para nomeá-lo, treme de respeito, e
percebe que está em oração, só por dizer com respeito o seu Nome. Porque
de fato já é uma oração dizer o Nome de Deus com a intenção de adorá-lo e
de fazê-lo conhecido pelas pessoas que o desconhecem.
Assim, pois, só por prudência moral todo homem percebe que deve
conceder um descanso aos seus membros, a fim de que eles resistam até o
fim da vida. Com mais razão, este repouso animal o homem que não ignora
o Deus de Israel, o Criador e Senhor do Universo, percebe que o deve
consagrar ao Senhor, para não ficar semelhante ao jumento que, quando
cansado, repousa sobre sua cama de palhas, e fica quebrando com seus
fortes dentes os grãos dos cereais.
Também o sangue exige amor por aqueles dos quais ele veio, e vemos
isso até no potrinho da jumenta que, correndo e zurrando, vai ao encontro
da mãe, quando ela está voltando do mercado. Ele estava brincando no
meio dos outros, quando a viu, e lembrou-se de que havia mamado nela, e
que ela o havia lambido com amor, o havia defendido e aquecido, e estais
vendo como, com seu focinho macio ele lhe coça o pescoço, esfregando
suas ancas contra o lado de sua mãe. Amar aos pais é um dever e um prazer.
Não há animal que não ame a quem o gerou. E, então? Será o homem
inferior ao verme, que vive na lama da terra?
O homem moralmente bom não mata. A violência lhe causa aversão.
Ele sabe que não é lícito tirar a vida a ninguém. E que só Deus, que no-la
deu, é que tem o direito de tirá-la. E evita o homicídio.
Igualmente quem é moralmente são não se apodera das coisas alheias.
Prefere o pão comido com uma consciência tranquila, junto a uma fonte
prateada, a um suculento assado, feito de uma criação furtada. Ele prefere
dormir no chão, com a cabeça sobre uma pedra e as estrelas amigas acima
de sua cabeça, derramando paz e consolo em sua consciência honesta, a um
sono perturbado em uma boa cama, mas apanhada em algum furto.
E, se ele é moralmente são, não vive cobiçando mais mulheres, que não
são suas, nem penetra, como um vil emporcalhador, no leito conjugal de
outro. Mas na mulher do seu amigo ele vê uma irmã, e não tem para com
ela os olhares e os desejos, que para com uma irmã não se tem.
O homem de coração reto, ainda que só naturalmente reto, sem ter
outro conhecimento do Bem, a não ser o que lhe vem de sua boa
consciência, nunca toma a liberdade de dar testemunho de uma coisa que
não é verdade, pois isto lhe parece coisa semelhante a um homicídio e a um
furto, e de fato assim é. Mas ele tem lábios honestos, como honesto ele tem
o coração, e com eles tem honestos também os seus olhares, com os quais
ele não cobiça as mulheres dos outros. E ele nem mesmo as deseja, porque
tal desejo é o primeiro estímulo para o pecado. Não inveja. Porque é bom.
Quem é bom não inveja nunca. Fica tranquilo com o que tem.
288.5Parece-vos que esta lei é tão intransigente, que não se pode praticar?
Não vos enganeis. Eu estou certo de que não vos enganareis. E, se não vos
deixardes enganar, fundareis o Reino de Deus em vós, e em vossa cidade. E
vos reencontrareis um dia, felizes, com aqueles que amastes e que, como
vós, conquistaram o Reino eterno, nas alegrias sem fim do Céu.
Mas, no vosso próprio interior, estão as paixões, como outros tantos
cidadãos fechados e cercados pelos muros da cidade. É preciso que todas as
paixões do homem queiram a mesma coisa, isto é, a santidade. Se assim não
for, é inútil que uma parte se incline para o Céu, se depois uma outra deixa
sem guardar as portas, deixando penetrar o sedutor e neutralizando, por
meio de discussões e da preguiça, os esforços de uma parte dos cidadãos,
que tratam de coisas espirituais, fazendo assim que pereça a cidade interior
e que ela fique abandonada ao reino das urtigas, dos tóxicos, das gramíneas,
das serpentes, escorpiões, ratos, chacais e corujas, isto é, das más paixões e
dos anjos de satanás. É preciso velar, sem cessar, como sentinelas colocadas
sobre os muros, para impedir que o Maligno entre onde nós queremos
construir o Reino de Deus.
Em verdade, Eu vos digo que, enquanto o homem forte e armado
guarda a entrada de sua casa, ele dá segurança a tudo o que está dentro dela.
Mas, se chegar um outro mais forte do que ele, ou se ele deixar descuidada
a porta, então o mais forte o vence e o desarma, e ele, ficando sem suas
armas, nas quais ele confiava, se enche de medo, e se entrega, e o forte o
faz prisioneiro e se apodera dos despojos do vencido. Contudo, se o homem
vive em Deus, por meio da fidelidade à Lei e à justiça santamente praticada,
Deus está com ele, e nada de mal pode acontecer-lhe. A união com Deus é a
arma que nenhum forte pode vencer. A união comigo é segurança de obter
vitória e de arrebatar presas de guerra, que são as virtudes eternas pelas
quais será dado para sempre um lugar no Reino de Deus. Mas, quem de
Mim se afasta ou de Mim se torna inimigo, repele, por consequência as
armas e a segurança da minha palavra. Quem repele o Verbo, repele a Deus.
Quem repele a Deus, chama satanás. Quem chama satanás destrói tudo o
que tinha para conquistar o Reino.
Portanto, quem não está comigo, está contra Mim. E quem não cultiva
o que Eu semeei, vai recolher o que o Inimigo semeia. Quem não ajunta
comigo, espalha, e, pobre e nu, haverá de chegar diante do Juiz supremo,
que o mandará para o patrão ao qual ele se vendeu, preferindo Belzebu a
Cristo.
Cidadãos de Gerasa, edificai em vós e em vossa cidade o Reino de
Deus.
288.6Uma voz cantada de mulher se faz ouvir límpida, como canto da
cotovia, por sobre o sussurro da multidão admirada, e ela canta uma nova
felicidade, que é a glória de Maria:
– Feliz o seio que te trouxe, e o peito em que Tu sugaste.
Jesus se vira para a mulher, que exaltou sua Mãe, por admirar-lhe o
Filho. Ele sorri, porque lhe é agradável o louvor dado à sua Mãe. Mas
depois ele diz:
– Mais felizes ainda aqueles que ouvem a palavra de Deus, e a praticam.
Faze tu isto, ó mulher.
Depois Jesus dá a sua bênção e se encaminha para a campina,
acompanhado pelos apóstolos, que lhe perguntam:
– Por que disseste isso?
– Porque, em verdade, Eu vos digo que no Céu não se mede com as medidas
da terra. E a minha própria Mãe será feliz, não só por sua alma imaculada,
mas por ter ouvido a palavra de Deus e a ter posto em prática, pela
obediência. Aquela palavra “que seja feita sem culpa a alma de Maria” é
um prodígio do Criador. A Ele, pois, é que se deve louvor. Mas aquela
palavra “que se faça, em Mim segundo a tua palavra” é prodígio de minha
Mãe. Por isso, pois, é grande o merecimento dela. Tão grande que, só por
aquela sua capacidade de ouvir a Deus, que lhe falou pela boca de Gabriel e
pela sua vontade de pôr em prática a palavra de Deus, sem ficar a medir as
dificuldades e as dores que lhe viriam logo e no futuro e que desta adesão
dela agora haveriam de provir, é que veio o Salvador do mundo. Vós, pois,
vede que Ela é a minha feliz Mãe, não só porque me gerou e amamentou,
mas porque ouviu a palavra de Deus e a pôs em prática pela obediência. 288.7
Mas agora, vamos para casa. Minha Mãe sabia que Eu estaria fora por
pouco tempo, e poderia ficar preocupada, vendo que Eu estava demorando.
Estamos em uma região semi-pagã. Mas em verdade é melhor do que
outras. Então, vamos. E vamos dar uma volta por detrás dos muros, para
escaparmos da multidão, que gostaria de me deter ainda. Vamos descer
depressa por detrás destas moitas frondosas.
[87] Eu já disse, em 269.6.
289. O sábado em Gerasa. O divertimento de
Marziam
e a pergunta de Síntique sobre a salvação dos
pagãos.
28 de setembro de 1945.
289.1Como são longas as horas de um dia, quando não sabemos o que
fazer! E não sabem mesmo que fazer naquele sábado os que estão com
Jesus, num lugar onde não são conhecidos, numa casa onde a língua e os
costumes diferentes os separam dos caravaneiros, servos de Alexandre
Misaque. Por isso, muitos preferiram ficar deitados e outros foram cochilar
ao sol, que já está aquecendo o amplo pátio quadrado da casa. É um pátio
bem adaptado para receber as caravanas, tendo tanques de água e argolas
presas aos muros ou às colunas de um rústico pórtico, que se estende ao
longo dos quatro lados, e numerosas cavalariças e depósitos de feno e de
palha em três dos quatro lados. As mulheres estão retiradas em seus
quartos. Não se vê nenhuma delas.
Marziam encontra divertimento também no pátio fechado, observando
o trabalho dos moços das estrebarias, que estão passando a raspadeira nos
burros, pondo palha nova nos cochos, examinando os cascos dos animais,
rebatendo os cravos frouxos das ferraduras, ou então — e isso é para ele de
um interesse bem maior porque é uma coisa nova —, encantado, fica
olhando como os cameleiros fazem com os camelos, preparando desde a
véspera a carga para cada um dos animais, cada carga na proporção da
capacidade de cada um deles, para poderem pôr-lhes a carga, ou
descarregar, recompensando-os depois com um punhado de legumes secos,
que me parecem favas, e tudo termina com uma distribuição de bagas de
alfarrobeira, que os homens também gostam de mastigar.
Marziam está admirado e fica olhando ao redor de si para ver se
encontra alguém com quem possa dividir sua admiração. Mas ele fica
decepcionado, já que os adultos não dão importância aos camelos, porque,
ou estão falando uns com os outros, ou estão cochilando. Ele vai até Pedro,
que dorme um bom sono com a cabeça apoiada no feno macio, pega-o pela
manga e o sacode.
Pedro abre os olhos pela metade, e pergunta:
– Que há? Que queres?
– Sou eu. Vem ver os camelos.
– Deixa-me dormir. Já vi muitos camelos. São animais muito feios.
O menino vai, então, a Mateus, que está fazendo as contas do caixa,
pois nesta viagem ele é o tesoureiro:
– Eu estava vendo os camelos, sabes? Eles comem como as ovelhas, e
se ajoelham como os homens, e parecem barcas que sobem e descem. Tu já
os viste?
Mateus, que perdeu a conta, por causa daquela interrupção, responde
com um curto “sim”, e volta a contar suas moedas. É outra desilusão.
Marziam torna a olhar ao redor… Lá estão Simão Zelotes e Judas
Tadeu conversando…
– Que bonitos são os camelos! E como são bons! Já foram carregados e
descarregados, e eles se abaixaram até o chão para que o homem não se
cansasse. Depois comeram as alfarrobas. Os homens também comeram
delas. Eu gostaria… Mas não sei como fazer para que me entendam. Vem,
tu… –e pega pela mão Simão.
Este, absorto na pacífica discussão com Tadeu, responde
distraidamente:
– Sim, querido… Vai, vai e toma cuidado para que não te machuques.
Marziam olha admirado para ele. Simão não lhe respondeu sobre o que
ele queria. O menino está quase chorando. Ele se afasta desconfortado e vai
apoiar-se numa coluna…
289.2Jesus vai saindo de um quarto e o vê assim sozinho e amuado. Vai
até ele e lhe põe uma mão sobre a cabeça.
– Que é que estás fazendo aí, sozinho e triste?
– Ninguém me dá atenção …
– Que querias dos outros?
– Nada. Eu estava falando dos camelos…Que são bonitos… gostei
deles. Estar lá em cima deles deve ser como estar na barca… E eles comem
alfarrobas. Os homens também comem…
– E tu estás com vontade de ir ficar lá em cima e de comer alfarrobas.
Vem cá, vamos até os camelos –e Jesus o pega pela mão, e vai com ele,
agora tranquilo, lá para o fim do grande pátio.
Vai direto a um dos cameleiros, e o saúda com um sorriso. O homem se
inclina, e continua a dar atenção ao animal no qual está pondo o cabresto e
as rédeas.
– Homem, tu me entendes?
– Sim, Senhor. Há vinte anos Eu vos conheço.
– Este menino está com um grande desejo. Ele quer subir sobre um
camelo. E um desejo pequeno: comer uma alfarroba –e Jesus sorri ainda
mais.
– É teu filho?
– Não. Eu não tenho filhos. Não tenho esposa.
– Tu, tão bonito e forte, não achaste mulher?
– Não a procurei.
– Não sentiste desejo de mulher?
– Não. Jamais.
O homem olha para Ele, assombrado, depois diz:
– Eu tenho nove filhos em Isquilo… Vou, um filho…Vou, um filho.
Sempre um filho.
– Gostas dos filhos?
– São o meu sangue. Mas o trabalho é duro. Eu aqui e eles lá. Eles estão
longe. Mas é pelo pão para eles. Compreendes?
– Compreendo. Então, podes também compreender o menino que
gostaria de montar no camelo e de comer alfarrobas.
– Sim. Vem cá. Estás com medo? Não? Bravo! Bonito menino! Eu
também tenho um assim. Moreno assim. Olha aqui. Toma, segura bem
aqui –e lhe põe na mão um estranho cabo, que está na frente da sela–.
Segura. Agora eu vou subir. E o camelo vai levantar-se. Não tens medo, não
é verdade?
E o homem sobe para a sela alta, assenta-se bem e incita o camelo, que
se levanta obediente, dando um grande balanço. Marziam ri feliz. E, ainda
mais feliz, porque o cameleiro lhe pôs na boca uma bonita alfarroba. O
homem faz que o camelo ande, aos passos, ao longo do pátio, depois o faz
andar a trote e, enfim, vendo que Marziam não tem medo, grita algumas
palavras ao seu companheiro, e este abre a porta mais larga, que fica atrás
do pátio e o cameleiro desaparece com a sua carga, indo para o verde da
campina.
289.3Jesus volta para a casa, e entra em uma grande sala, onde estão as
mulheres. Ele está tão sorridente que Maria lhe pergunta:
– Que tens, meu Filho, para estares tão feliz?
– Tenho a felicidade de Marziam que está galopando sobre um camelo.
Vinde para cá, que o veremos vir de volta.
Saem todos para o pátio e se assentam sobre um muro baixo perto dos
tanques. Os apóstolos, que não estão dormindo, vão para perto dos outros.
Os que estão nas janelas dos quartos altos olham para baixo, veem, e vão
também eles. As vozes altas e juvenis, que são as de João e dos dois Tiagos,
fazem que Pedro e André despertem, e eles sacodem Mateus. Agora lá estão
todos, porque até João de Endor vai com seus dois discípulos.
– Mas onde está Marziam, que não o vejo? –pergunta Pedro.
– Está passeando, montado num camelo. Ninguém de vós quis dar-lhe
ouvidos. Eu o vi triste e tomei providências.
Pedro, Mateus e Simão se lembraram:
– Ah! Sim. Ele estava falando de camelos… e de alfarrobas. Mas eu
estava com sono!
– E eu tinha contas por fazer para prestar-te conta do que eu recebi dos
gerasenos, e de quanto eu dei de esmola.
– E eu estava falando com o teu irmão sobre a fé.
– Não importa. Eu pensei no caso. Mas de passagem Eu vos digo que
ocupar-se com os brinquedos de um menino também é amor… E agora
vamos falar de outra coisa. Do lado de fora a cidade está toda em festa. Do
nosso sábado ninguém está lembrado, a não ser por uma alegria geral. Por
isso é melhor que fiquemos aqui dentro então. Ainda mais porque, se
alguém nos procurar, saberão onde estamos. 289.4Eis que lá vem Alexandre
fazendo uma vistoria em seus camelos.
E agora Eu vos digo que um deles está faltando por minha culpa.
E Jesus vai logo ao mercador, e lhe fala. E voltam juntos. O mercador
diz:
– Muito bem, Ele se divertirá, e lhe fará bem uma corrida ao sol. Podes
estar certo de que o homem o tratará bem. Calípio é um homem muito bom.
Em troca da corrida, eu te peço que me digas uma coisa. Nesta noite eu
fiquei pensando nas tuas palavras… naquelas que eu ouvi em Ramot, ditas
entre Ti e a mulher, e naquelas de ontem. Ontem me parecia que eu estava
subindo por um alto monte, como aqueles das terras onde eu moro, e que
têm os seus cumes precisamente nas nuvens. Tu me levavas para cima, cada
vez mais para cima. Parecia-me ter sido apanhado por uma águia. Por uma
daquelas do nosso monte mais alto, o primeiro que apareceu depois do
Dilúvio. Eu estava vendo tudo novo, como eu nunca havia pensado, tudo
nascido de uma luz… E eu estava entendendo tudo. Depois se me
confundiram as ideias. Dize-as a mim de novo.
– Que devo dizer?
– Eu nem sei… Era tudo tão bonito. Aquilo que dizias que se encontra
de novo no Céu… Fiquei compreendendo que lá se amará de modo
diferente, mas sempre constante. Por exemplo, não teremos mais as ânsias
de agora e, no entanto, seremos todos por um e um por todos, como se
fôssemos uma só família. Estarei falando errado?
– Não. Pelo contrário! Formaremos uma família até com os que estão
vivos. As almas não ficam separadas pela morte. Eu estou falando dos
justos. Eles constituem uma só e grande família. Faze de conta que em um
grande templo estão os que adoram e rezam, e aqueles que se afadigam. Os
primeiros rezam também por aqueles que se afadigam, e os segundos
trabalham por aqueles que rezam. Assim acontece com as almas. Nós nos
afadigamos nesta terra. Eles se lembram de nós em suas orações. Mas nós
devemos oferecer os nossos sofrimentos pela paz deles. É uma corrente que
não se arrebenta. É o amor que une os que já se foram com os que estão
vivos. E os que estão vivos devem ser bons, para poderem reunir-se aos que
já se foram e que nos desejam em sua companhia.
289.5Síntique faz um gesto involuntário, que imediatamente refreia. Mas
Jesus o nota, e a convida a sair daquele recato, que a mulher sempre guarda.
– Eu estava pensando… Há muitos dias que eu venho pensando,
porque, para dizer a verdade, me parece que crer no teu Paraíso seja perder
para sempre minha mãe e minhas irmãs… –e um soluço embarga a voz de
Síntique, que se interrompe para não chorar.
– Que pensamento é esse, que tanto te perturba?
– Agora eu creio em Ti. Eu não sou capaz de pensar em minha mãe a
não ser como pagã. Ela era boa… Oh! Se era! E também as irmãs! A
pequena Ismene era a melhor criatura que a terra já havia tido. Mas elas
eram pagãs… Agora eu, enquanto era como elas, pensava no Hades, e dizia:
“Lá nos reuniremos.” Agora não existe mais o Hades. Existe o teu Paraíso,
o Reino dos céus para aqueles que serviram com justiça ao Deus
Verdadeiro. E aquelas pobres almas? Elas não têm culpa de terem nascido
gregas. Nenhum dos sacerdotes de Israel foi lá para dizer-nos: “O
Verdadeiro Deus é o nosso.” E, então? As virtudes delas não valeram nada?
Os sofrimentos delas, nada? É uma escuridão eterna e uma eterna separação
de mim? Eu te digo: isso para mim é um tormento. Parece-me tê-las
renegado. Perdoa, Senhor… Eu choro…
E ela se ajoelha chorando fortemente, desolada.
Alexandre Misaque diz:
– Eis aí! Eu também pensava que, se me tornasse justo, nunca mais
encontraria meu pai, minha mãe, meus irmãos, meus amigos…
289.6Jesus pousa os dedos sobre a cabeça morena de Síntique, e lhe diz:
– Culpa existe quando conhecemos o que é Verdadeiro e persistimos no
Erro. Não é, quando, convencidos de estar na Verdade e nenhuma voz veio
dizer-nos: ‘Esta, que eu prego, é a Verdade. Deixai as vossas quimeras por
esta Verdade, e tereis o Céu.’ Deus é justo. Queres tu que não se premie a
virtude, só porque ela se formou e cresceu no meio da corrupção de um
mundo pagão? Fica em paz, minha filha.
– Mas, e a culpa original? E o culto nefando? Mas…
Ficaria fora de propósito, se os israelitas fizessem da alma aflita de
Síntique um montão de escombros, se Jesus, com um gesto, não tivesse
imposto silêncio.
Ele diz:
– A culpa de origem é comum a todos de Israel e de fora de Israel. Não
é uma prerrogativa dos pagãos. O culto pagão será culposo a partir do
momento em que for sendo difundida no mundo a Lei de Cristo. A virtude
será sempre virtude, aos olhos de Deus. E, pela união minha com o Pai, Eu
digo, e digo em Nome dele, traduzindo em palavras o Pensamento
Santíssimo, que as vias do poder misericordioso de Deus são tantas, e de tal
modo inclinadas a dar alegria aos virtuosos, que serão levantadas as
barreiras entre uma e outra alma, e haverá paz para aqueles que mereceram
paz. E não só isso. Eu digo que no futuro aqueles que, convictos de estarem
na Verdade, seguirem a religião de seus pais com justiça e santidade, serão
amados e não castigados por Deus. É a malícia e a má vontade dos que
rejeitam deliberadamente a Verdade conhecida, e sobretudo dos que atacam
a Verdade revelada, e a combatem, é o levar uma vida nos vícios o que
realmente irá separar para sempre as almas dos justos das dos pecadores.
Levanta o teu espírito abatido, Síntique. Estas tristezas são um assalto
infernal pela raiva que satanás tem de ti, que foste uma presa que ele perdeu
para sempre. O Hades não existe. O que existe é o meu Paraíso. Mas isso
não é motivo de dor, e, sim de alegria. Nada da Verdade haverá de ser
motivo de abatimento ou de dúvida, mas antes motivo para crer sempre
mais e com alegre segurança. Mas tu, dize-me sempre os teus motivos. Eu
quero ver em ti uma luz segura e firme como a do sol.
Síntique, estando ainda ajoelhada, pega a mão de Jesus, e a beija…
Os gritos emitidos pelo cameleiro dão a entender que o camelo vai
289.7
começar a andar aos passos, sem fazer barulho sobre a erva viçosa, que está
do lado de fora do portão de trás, que logo é aberto por um servo. E
Marziam volta, muito alegre e corado, por causa da cor-rida: é um
homenzinho, levantado por cima da alta garupa, que se ri agitando os
braços, enquanto o camelo se ajoelha. O menino desliza por baixo da
estranha sela, acariciando o moreno cameleiro. Depois corre para Jesus,
gritando:
– Que bonito! Foi sobre animais como aqueles ali que os sábios do
Oriente vieram adorar-te? E eu irei com eles a pregar-te por toda parte! O
mundo parece maior, visto lá de cima, e diz: “Vinde, vinde vós, que sabeis a
Boa Nova!” Ah! Sabes?… Aquele homem também precisa dela… E tu
também, mercador, e todos vós, servos… Quanta gente a está esperando e
morre sem poder recebê-la… Mais pessoas do que a areia do rio. Todos
estão sem Ti, Jesus! Oh! Mas faze dizê-la que ela chegue logo a todos!
E, de cabeça baixa, ele se agarra aos lados de Jesus.
E Jesus se inclina e o beija, prometendo:
– Tu verás o Reino de Deus evangelizado até os confins mais distantes
de Roma. Estás contente?
– Eu, sim. E, depois, irei dizer-te: “Aí estão esta, aquela e aquela outra
cidade que te conhecem.” E, então, eu saberei os nomes daquelas terras
longínquas. E Tu, que me dirás?
– Eu te direi: “Vem pequeno Marziam. Recebe uma coroa por cada
cidade em que me tiveres pregado e depois vem para o meu lado, como
naquele dia em Gerasa, e descansa das tuas fadigas. Porque foste servo fiel,
agora é justo que sejas feliz no meu Reino.”
290. O homem dos olhos ulcerados.
A permanência na “fonte dos cameleiros”.
Ainda sobre a recordação das almas.
29 de setembro de 1945.
290.1A caravana está saindo do grande pátio de Alexandre. Vai indo em
ordem, como em um desfile militar. Na retaguarda vai Jesus com todos os
seus. Os camelos, com seu andar balançante, vão, em passos cadenciados,
transportando grandes cargas, com suas cabeças sobre os pescoços
encurvados e parecem estar perguntando, a cada passo: “Por quê? Por
quê?”, naquele movimento mudo, mas muito peculiar, como o dos pombos
que, a cada momento, parecem estar dizendo: “sim, sim”, diante de tudo o
que veem. A caravana vai ter que atravessar a cidade. E o vai fazendo,
rodeada pelo ar claro desta manhã. Todos vão bem agasalhados, porque está
fazendo frio. Os chocalhos dos camelos e os gritos dos cameleiros, a careta
de um dos camelos, que já está com saudade da vida ociosa em que estava
no estábulo, tudo isso está dizendo aos gerasenos que Jesus está partindo de
Gerasa.
A notícia se espalha rapidamente, como um relâmpago, e alguns
gerasenos vêm saudá-lo, e trazer-lhe ofertas de frutas e de outros
comestíveis. Também um homem chega correndo, com um pequenino
doente.
– Abençoa-o para que ele fique bom. Tem piedade!
Jesus levanta a mão, e abençoa, acrescentando:
– Vai seguro. Tem fé.
E o homem responde com um “sim” tão cheio de confiança, que uma
mulher pergunta:
– Meu marido está doente com úlcera nos olhos. Tu o curarias?
– Se fordes capazes de crer.
– Então, eu vou buscá-lo. Espera-me, Senhor –e ela sai dali voando
como uma andorinha.
Esperar? Isso é o que ela pensa! Os camelos já arrancaram para a
frente. Alexandre, à testa da coluna, não está sabendo o que é que estão
querendo lá na retaguarda. É preciso mandar um aviso ao homem.
– Vai correndo, Marziam. Vai dizer ao mercador que pare, antes de sair
dos muros –diz Jesus.
E Marziam sai como uma flecha, para ir cumprir sua missão. A
caravana para, enquanto o mercador vai indo a Jesus.
– Que acontece?
– Fica e verás.
290.2Logo já está de volta a mulher de Gerasa com o marido doente dos
olhos. É uma coisa bem diferente de úlceras! São dois buracos cheios de
podridão, abertos no meio do rosto. Os olhos aparecem lá no meio,
embaçados, avermelhados, meio cegos, por entre o escorrimento de
lágrimas repugnantes. Mal o homem levanta a venda escura, que lhe está
servindo de anteparo contra a luz, o choro aumenta, porque a luz aumenta a
dor dos olhos doentes.
O homem geme:
– Tem dó de mim! Estou sofrendo muito!
– Também pecaste muito. E, disso não te queixas? Somente te afliges,
porque podes perder a pobre vista do mundo? Não tens medo da escuridão
eterna? Por que fizeste o mal?
O homem chora, e se inclina, sem falar. A mulher também está
chorando, e geme:
– Eu lhe perdoei…
– E Eu também lhe perdoarei, se ele aqui me jura que não recairá mais
em seu pecado.
– Sim, sim. Perdão! Agora eu sei o que é que o pecado traz consigo.
Perdoa-me. Como a mulher me perdoa. Tu és o Bom.
– Eu te perdôo. Vai àquele rio, lava o rosto na água, e ficarás são.
– A água fria o faz ficar pior, Senhor –geme a mulher.
Mas o homem não pensa em nada mais, a não ser em ir andando, e lá se
vai, tateando, até que o apóstolo João, sempre bondoso, o pega pela mão e o
vai guiando sozinho, até a mulher chegar, para pegá-lo pela outra mão. O
homem desce até à beira da água gelada, que vem borbulhando por entre as
pedras e se inclina, apanha água com a concha feita por suas mãos, e lava e
torna a lavar aquele rosto. O doente não dá sinal de sentir dor. Mas, com
aquilo, parece estar sentindo alívio.
Depois, com o rosto ainda molhado, sobe de novo para a margem e
volta para Jesus, que lhe pergunta:
– E então? Estás curado?
– Não Senhor. Não agora. Mas tu disseste e eu me curarei.
– Então permanece em tua esperança. Adeus.
A mulher se agacha chorando… Está decepcionada. Jesus faz sinal ao
mercador de que já se pode ir embora. O mercador, decepcionado também,
faz que passem a ordem adiante. Os camelos recomeçam a marcha, com
aquele seu movimento como o de uma barca, que levanta e abaixa a proa e
o beque sobre a onda, e já vão saindo para fora dos muros, e pegando a
estrada das caravanas, larga e poeirenta, que se estende na direção do
sudoeste.
Os últimos dois do grupo dos apóstolos são João de Endor e Simão
Zelotes. Eles já passaram uns vinte metros para além dos muros, quando um
grito corta os ares silenciosos, e parece querer encher o mundo, e se repete
ainda mais alto, cheio de alegria, proclamando:
– Estou enxergando! Jesus! Bendito meu! Eu vejo! Eu vejo! Eu
acreditei! Eu vejo! Jesus, Jesus! Bendito meu!
E o homem, com o rosto completamente curado e com os olhos agora
bonitos como duas pedras preciosas, cheios de luz e de vida, entra pelo
meio das fileiras dos apóstolos, cai aos pés de Jesus, tendo ido parar quase
debaixo das patas do camelo do mercador, que mal teve tempo de desviar o
animal do homem prostrado.
O homem beija a veste de Jesus e repete:
– Eu tive fé! Eu acreditei e vejo! Bendito meu!
– Levanta-te, e sê feliz. E, principalmente, sê bom. Dize à tua mulher
que saiba crer completamente. Adeus.
E Jesus se livra do aperto que o miraculado lhe está dando e recomeça
sua caminhada.
290.3O mercador cofia, pensativo, a barba… E, enfim, pergunta:
– E, se ele não tivesse sabido persistir em crer, depois da desilusão,
depois de ter-se lavado?
– Teria ficado como estava.
– Por que é que exiges tanta fé para fazer milagre?
– Porque a fé dá testemunho de que há presença de esperança e de amor
a Deus.
– E, por que antes quiseste o arrependimento?
– Porque é pelo arrependimento que fazemos a Deus nosso amigo.
– Eu, que não tenho doença, que deveria fazer para dar testemunho de
minha fé?
– Vir para a Verdade.
– E poderei vir sem a amizade de Deus?
– Não poderias chegar a isso sem a bondade de Deus. O Senhor permite
que aquele que, ainda sem arrependimento, o está procurando, o encontre.
Porque o arrependimento geralmente vem, quando o homem, cientemente,
ou apenas com uma sombra de consciência daquilo que sua alma quer,
conhece a Deus. Antes, ele é como um obtuso, guiado apenas por seu
instinto. Tu, não terás sentido nunca a necessidade de crer?
– Muitas vezes. Eu não estava satisfeito com o que eu tinha. Percebia
que havia outras coisas. Mais forte do que o dinheiro e os meus filhos eram
as minhas esperanças… Mas eu não tomava o cuidado de procurar saber o
que sem saber eu estava procurando.
– A tua alma estava procurando a Deus. A bondade de Deus permitiu
que tu encontrasses a Deus. O arrependimento pelo teu passado inativo,
pois estavas longe de Deus, te dará a amizade de Deus.
– Então, para… para ter o milagre de ver com a alma a Verdade, deveria
eu arrepender-me do passado?
– Certamente. Arrependeres-te e decidir-te por uma mudança completa
de vida…
O homem torna a cofiar a barba, e parece que está estudando e
contando os fios do pelo do camelo, pelo modo com que está com um olhar
fixo. Sem querer, ele esbarra o calcanhar no animal, e este toma aquele
esbarro como um incitamento para acelerar o passo, e assim o faz, levando
mais para diante o mercador, até à frente da caravana.
290.4Jesus não o detém. Pelo contrário, Ele para, deixando que passem à
sua frente mulheres e apóstolos, até que eles alcancem Simão Zelotes e João
de Endor. E Jesus se une a eles.
– De que faláveis? –pergunta.
– Falávamos do desconforto que deve sentir quem não crê em nada, ou
quem perde a fé que antes tinha. Ontem Síntique estava angustiada mesmo,
ainda que tenha passado a ter uma fé perfeita –responde Zelotes.
– Eu dizia a Simão que, se é penoso passar do Bem para o Mal, é
também uma coisa desorientadora passar do Mal para o Bem. No primeiro
caso a pessoa é torturada por sua consciência, que a censura. No segundo,
ela fica… dilacerada… como deve ficar alguém que é levado para uma terra
estrangeira, totalmente desconhecida… Ou, então, é o susto de quem, sendo
miserável e sem instrução, se encontrasse na Corte do rei, entre pessoas
doutas e grandes senhores. É um sofrimento… Eu sei… Um grande
sofrimento… Não se pode crer que isso seja verdade e que possa durar…
que se possa merecer isso… especialmente quando se tem a alma
manchada… como estava a minha…
– E agora, João? –pergunta Jesus.
O rosto cansado de João de Endor, cansado e triste, se ilumina com um
sorriso, que o torna menos descarnado. Ele diz:
– E agora não é mais assim. Ficou a gratidão, e esta cresce, para com o
Senhor, que assim quis. Fica a lembrança do passado, para conservar-me
humilde. Mas fica também a segurança. Eu me sinto aclimatado, não mais
um estrangeiro neste belo mundo que é o teu, de perdão e de amor. E estou
em paz, sereno, feliz.
– Achas que é boa a tua experiência?
– Sim. Se não fosse porque eu me arrependo de ter pecado, e porque
com o pecado desagradei a Deus, eu diria que foi bom este meu passado.
Ele pode me servir muito para confortar algumas almas cheias de boa
vontade, mas perturbadas nos primeiros momentos de sua nova fé.
– Simão, vai dizer ao menino que não fique pulando tanto. Quando
chegar a tarde, ele estará esgotado.
Simão olha para Jesus, mas compreende a razão daquela ordem. Mostra
um sorriso inteligente e lá se vai, deixando sozinhos os dois.
290.5– Agora que estamos sós, João, escuta este meu desejo. Tu, por
muitos motivos, tens uma grande capacidade de julgar e de pensar que,
entre os que me acompanham, nenhum outro tem. E tens uma cultura mais
vasta do que a que é comum entre os israelitas. Por isso, Eu te peço que me
ajudes…
– Eu Te ajudar? Em quê?
– Para Síntique. Tu és um excelente pedagogo! Marziam vai
aprendendo depressa, e bem contigo. Tanto assim, que Eu penso em deixar-
vos juntos por alguns meses, porque quero que Marziam tenha um
conhecimento mais vasto do que o deste pequeno mundo de Israel. Tu
sentes alegria em ocupar-te com ele. Também Eu tenho alegria em ver-vos
unidos, tu ensinando, e ele aprendendo, tu a rejuvenescer, e ele a
amadurecer nesta ocupação. Mas deverias cuidar também de Síntique, como
de uma irmã que perdeu o caminho. Tu o disseste: é um descaminho…
Ajuda-a a alimentar-se na minha atmosfera. Tu me fazes este favor?
– Mas é uma graça para mim fazer isso, meu Senhor! Eu não me
aproximava dela, porque me parecia ser uma coisa desnecessária. Mas, se
Tu queres. Ela já lê os meus rolos. Eu tenho rolos sobre assuntos sagrados e
rolos somente de cultura: livros de Roma e de Atenas. Eu vejo que ela
medita sobre eles e os consulta. Mas eu nunca me pus a ajudá-la. Se Tu
queres…
– Sim, Eu quero. Quero-vos amigos. Também ela, como Marziam e
como tu, parareis em Nazaré por algum tempo. Será muito bom. Minha
Mãe e tu, como mestres de duas almas que se abrem para Deus. Minha
Mãe, a angélica Mestra da Ciência de Deus. E tu, o experiente mestre do
saber humano, mas que agora já o podes explicar com referências
sobrenaturais. Será bonito. E será bom.
– Sim, meu bendito Senhor. É bonito demais para o pobre João! –e o
homem sorri, só de pensar nestes próximos dias de paz junto a Maria, na
casa de Jesus…
290.6E a estrada se estende, ao calor do sol, que sempre vai aumentando,
por entre a beleza de uma campina já agora toda plana, depois de ter
costeado aquelas pequenas elevações, que aparecem logo depois de ter-se
saído de Gerasa. É uma estrada até bem conservada, sobre a qual se pode
andar comodamente, e também recomeçar a andar, quando se faz alguma
parada ao meio-dia.
É quase noite quando eu ouço rir, pela primeira vez e com gosto,
Síntique, à qual Marziam contou não sei o quê, mas que fez rir todas as
outras mulheres. Vejo que a grega se inclina para acariciar o menino e para
tocar de leve na fronte dele com um beijo. Depois o menino recomeça a dar
pulos, como se não sentisse cansaço.
Mas todos os outros estão cansados e com alegria é que recebem a
decisão de pernoitarem junto à Fonte do Cameleiro. O mercador diz:
– Eu aqui pernoito sempre. É longa demais a etapa de Gerasa até Bozra.
Tanto para os homens, como para os animais.
– É humano este mercador –observam entre si os apóstolos,
comparando-o com Doras…
A “Fonte do Cameleiro” não é mais do que um punhado de casas, ao
redor de muitos poços. É uma espécie de oásis, não no meio da aridez do
deserto, porque aqui não há aridez. Mas é uma espécie de oásis no meio da
vastidão desabitada dos campos e dos pomares, ao longo de várias milhas, e
que, quando vão chegando as tardes de outubro, fazem-nos sentir aquela
mesma tristeza que se tem, ao ver o mar na hora do crepúsculo. Porque
poder ver casas, ouvir rumores de vozes, choro de crianças, sentir o cheiro
das chaminés que soltam fumaça, ver as primeiras luzes que se acendem,
tudo isso são coisas tão agradáveis, como se estivéssemos chegando à nossa
própria casa.
Enquanto os cameleiros param, a fim de abeberarem aos camelos pela
primeira vez, os apóstolos e as mulheres acompanham a Jesus que, com o
mercador, entram no… verdadeiramente pré-histórico albergue, que os
hospedará naquela noite…
290.7… No fumacento salão, onde tomaram a refeição, onde dormirão os
homens, lá, enquanto os servos estão preparando as enxergas de feno
amontoado sobre esteiras, reúnem-se todos junto a um grande fogão, que
abarca toda a parede do fundo do salão. Já acenderam o fogo, porque, com
o cair da tarde, chegou a umidade e o frio.
– Contanto que o tempo não nos traga chuva –suspira Pedro.
O mercador o tranquiliza:
– Deve passar esta primeira fase da lua, antes que venha o mau tempo.
Aqui é sempre assim a noite. Mas amanhã teremos sol.
– Eu falo por causa das mulheres, sabes? Não é por mim. Eu sou
pescador e na água nós vivemos. E te asseguro que prefiro a água às
montanhas e à poeira.
Jesus fala com as mulheres e os dois primos. Escutam-no também João
de Endor e Zelotes. Timoneu e Hermasteu, em companhia de Mateus estão
lendo um dos rolos de João e os dois israelitas estão explicando a
Hermasteu as passagens bíblicas mais difíceis para ele.
Marziam os ouve, encantado, mas com um rostinho que está cheio de
sono. Maria de Alfeu o vê, e diz:
– Esse menino está cansado. Vem cá, querido, que nós já vamos dormir.
Vem, Elisa, vem, Salomé. Velhos e meninos estão bem é quando já estão na
cama. E todos vós faríeis bem em ir também. Estais todos cansados.
Mas, além das velhas, com exceção de Marcela e de Joana de Cusa,
ninguém mais se move.
Quando, depois de terem sido abençoadas, elas lá se foram, Mateus
murmura:
– Quem haveria de dizer que estas mulheres teriam que dormir em cima
de palha, tão longe de suas casas, pouco tempo atrás!
– Eu nunca dormi tão bem –diz, em poucas palavras, Maria de Magdala.
E Marta confirma o que Maria disse.
Mas Pedro dá razão ao seu companheiro:
– Mateus tem razão. E eu pergunto a mim mesmo, sem chegar a
compreender, por que será que o Mestre vos trouxe até aqui.
– Ora, é porque somos as discípulas!
– Então, se Ele fosse… para onde estão os leões, vós iríeis?
– Mas, com certeza, Simão Pedro! Já é uma grande coisa poder dar
alguns passos com Ele perto!
– Aí está! Na verdade, são muitos passos. E, para mulheres, que não
estão acostumadas com isso…
Mas as mulheres protestam tanto, que Pedro dá de ombros, e se cala.
Tiago de Alfeu, levantando a cabeça, vê um sorriso tão luminoso no
rosto de Jesus, que lhe pergunta:
– Queres dizer-nos qual a verdadeira meta desta viagem, no meio de
nós, com as mulheres, e… com pouco fruto, apesar de nosso cansaço?
– Poderias tu querer ver agora os frutos da semente que ficou enterrada
nos campos por nós atravessados?
– Eu, não. Mas os verei na primavera.
– Pois Eu te digo: “Tu os verás a seu tempo.”
Os apóstolos não contestam nada.
290.8Levanta-se a voz clara e penetrante de Maria:
– Meu Filho, hoje entre nós estávamos falando sobre tudo o que existe
em Ramot. E cada uma de nós tinha impressões e reflexões diversas.
Quererias dizer-nos o teu pensamento. Eu dizia que era melhor chamar-te
logo. Mas Tu estavas conversando com João de Endor.
– Realmente era eu a que suscitava a questão, porque eu sou uma pobre
pagã, e não tenho as luzes esplêndidas da vossa fé. É preciso ter dó de mim.
– Pois eu quereria ter a tua alma, minha irmã! –diz, impulsiva,
Madalena. E sempre com sua exuberância, a abraça, conservando-a
apertada contra si com um braço.
Admirável em sua beleza, ela, sozinha, parece iluminar o pobre salão, e
colocar nele a opulência de sua casa suntuosa. Unida estreitamente a ela, a
grega está completamente indiferente, e, ainda que singular em sua pessoa,
põe uma nota que faz pensar no grito de amor, que parece querer escapar
sempre da apaixonada Madalena, enquanto, sentada com seu sereno rosto
levantado para o seu Filho, com as mãos juntas, como se estivesse rezando,
com seu perfil perfeitamente em realce contra a parede escura, a Virgem é a
perpetua Adoradora.
Susana está na penumbra de um canto, e está cochilando, enquanto
Marta está aproveitando a luz do fogão para pregar umas fivelas na
vestezinha de Marziam, trabalhando ainda, apesar do cansaço e das
importunações dos outros.
Jesus diz a Síntique:
– Mas não era um pensamento doloroso. Eu te ouvi, quando estavas
rindo.
– Sim, por causa do menino, que resolvia uma questão com habilidade,
dizendo: “Eu não quero voltar, se Jesus não volta. Mas, se tu queres saber
tudo, vai até lá, e depois vem contar-nos, se te lembrares.”
Todas ainda estão rindo, e dizem que Síntique estava pedindo a Maria
esclarecimentos sobre a explicação não bem entendida, a respeito da
lembrança que as almas conservam, o que nos explica certa possibilidade
que há entre os pagãos, de terem umas vagas recordações da Verdade.
– Eu estava dizendo: “Talvez isso confirme a teoria da reencarnação na
qual creem os pagãos?”, e tua Mãe, Mestre, me explicava que o que estavas
dizendo era outra coisa. Agora, queres explicar-me também isso, meu
Senhor?
290.9– Escuta. Por terem os espíritos lembranças espontâneas da Verdade, não
deves crer que fique demonstrado que nós vivamos outras vidas. Já sabes
bastante, ao saberes como foi criado o homem, como o homem pecou e
como foi punido. Foi-te explicado como no animal-homem por Deus foi
incorporada uma alma só. Esta é criada, uma de cada vez, e nunca mais
usada para sucessivas encarnações. Esta certeza deveria anular a minha
afirmação sobre as recordações das almas. Deveria, para qualquer outro ser
que não fosse o homem, dotado de uma alma feita por Deus. O animal não
pode lembrar-se de nada, nascendo uma só vez. Já o homem pode recordar-
se, também ele nascendo uma só vez. Ele pode recordar-se por meio de sua
parte melhor, que é a alma. De onde vem a alma? E todas as almas dos
homens? De Deus. Quem é Deus? É o Espírito inteligentíssimo,
poderosíssimo, perfeito. Esta coisa admirável, que é a alma, coisa por Deus
criada para dar ao homem a sua imagem e semelhança, como um sinal
indiscutível de sua Paternidade Santíssima, dá provas dos dotes que são
próprios daquele que a criou. Por isso, ela é inteligente, é espiritual, é livre
e imortal, como o Pai que a criou. Ela[88] sai perfeita do pensamento divino
e, no momento de sua criação, ela é igual, por um milésimo de instante, à
do primeiro homem: é uma perfeição que inclui a posse da Verdade, por um
dom gratuito de Deus. Um milésimo de um instante. Depois, uma vez que
ela foi criada, é atingida pela lesão da culpa original. Para te fazer entender
melhor, Eu te direi que é como se Deus estivesse grávido da alma que Ele
cria, e que essa criatura, ao nascer, fosse ferida por um sinal indelével. Tu
me compreendes?
– Sim. Enquanto a alma é pensada, é perfeita. E, num milésimo de
instante, nesse pensamento criador. Depois, o pensamento é transformado
em fato, e o fato fica sujeito à Lei, que foi provocada pela Culpa.
– Respondeste bem. A alma se encarna, pois, no corpo humano, levando
consigo, como uma pedra preciosa, no mistério do seu ser espiritual, a
lembrança do Ser Criador, isto é, da Verdade. Um menino nasce. Ele poderá
ser bom, e até ótimo, e poderá ser um pérfido. Tudo ele poderá tornar-se,
porque é livre em sua vontade. Sobre as suas “recordações” o ministério dos
anjos lança as luzes, enquanto que o insidioso lança trevas. Conforma o
homem apetecerem as luzes e, por isso, uma virtude sempre maior,
tornando a alma senhora do seu ser, nele aumentará a faculdade de lembrar-
se, como se sempre mais a virtude fosse adelgaçando a parede que se
interpõe entre a alma e Deus. Aí está o porquê os virtuosos de todas as
regiões percebem a Verdade, não perfeitamente, porque foram tornados
obtusos por doutrinas contrárias, ou por ignorância mortal, mas o necessário
para darem páginas de formação moral aos povos aos quais eles pertencem.
Compreendeste? Estás persuadida?
– Sim. Concluindo: a religião das virtudes heroicamente praticadas
predispõe a alma para a Religião verdadeira e para o conhecimento de
Deus.
– Isto mesmo. E agora vai descansar, e sejas abençoada. E tu também,
minha Mãe, e vós, discípulas. Que a paz de Deus abençoe o vosso descanso.
[88] Ela [isto é, a alma] sai perfeita do pensamento divino… Depois, uma vez que ela foi criada, é atingida pela lesão da
culpa de origem. A afirmação é análoga a uma outra encontrada acima em 275.12: Ao menos em um momento a alma foi perfeita:
enquanto o Criador a criava… depois a Mancha a deturpou, retirando-lhe perfeição… O presente contexto esclarece, todavia,
que não se trata de dois momentos, mas de dois atos que se seguem, “por um milésimo de segundo”, no mesmo momento. O
segundo ato, que é aquele no qual a alma contrai a mancha do pecado original, perdendo a perfeição recebida no ato de criação,
deve se intensificar com a ilusão da alma como é dito no início da parábola do tecido rasgado (em 567.3) e como é explicado em
um verso do “ditado” de 28 de janeiro de 1947, reportado no volume “I cadernos de 1945 a 1950”: … não sai nada impuro do
Pensamento criador. A Culpa original é no homem e nos filhos do homem, não em Deus. Portanto, não no ser criado por Deus,
mas no encarnar-se no homem concebido do homem a alma contrai a hereditariedade ligada aos descendentes de Adão… Enfim,
os dois atos (em um só momento) da criação e da infusão da alma, por obra de Deus, são simultâneos ao ato da concepção do
corpo por obra do homem, como se lê em 204.6: Ele a cria [isto é, Deus cria a alma] cada vez que um homem é gerado, melhor, é
concebido em um seio, e a insere na carne…; e em 550.5: criada [a alma] toda vez que cada novo homem é concebido. Na obra
valtortiana o embrião é considerado pessoa (tanto que será chamado “inocente” em 381.6), porque nele já existe a alma (como se
dirá explicitamente em 444.5). As notas inseridas em 118.6 - 127.5 - 204.6 - 348.10 - 428.3 nos conduzem a esta interpretação.
291. Marziam descobre por que Jesus
reza todos os dias à hora nona.
30 de setembro de 1945.
291.1Tinha razão o mercador. O mês de outubro não podia oferecer um
dia mais bonito aos peregrinos. Tendo-se dissipado as névoas ligeiras, que
cobriam a campina, como se a natureza tivesse querido estender um véu
sobre o sono das plantas, durante a noite, a campina nos mostra agora sua
majestosa vastidão cheia de culturas, que o sol começa a aquecer. Parece
que as névoas tenham ido recolher-se, para encherem de flocos de espuma
transparente os cumes distantes, tornando-os ainda mais esfumados no céu
sereno.
– Que montanhas são aquelas? Teremos que subir por elas? –pergunta,
preocupado, Pedro.
– Não, não. São os montes de Auran. Nós ficamos na planície, para cá
deles. Durante a tarde, estaremos chegando a Bozra de Auranítide. É uma
bela e boa cidade. Há muitos negócios –encoraja-o o mercador.
E faz seus elogios, ele que toma a beleza de um lugar como base de
toda prosperidade comercial.
291.2Jesus está sozinho, atrás, como às vezes faz, quando quer ficar
isolado. Marziam se vira muitas vezes, a fim de olhar para Ele. Depois, não
resiste mais, deixa Pedro e João de Zebedeu, assenta-se à beira do caminho,
sobre um cipó, que deve ser um marco militar romano, e lá fica esperando.
Quando Jesus chega à altura do lugar onde ele está, o menino se levanta e,
sem dizer nada, vai pôr-se ao lado de Jesus, ficando um pouco atrás, para
não dar-lhe aborrecimento nem mesmo com a vista, e fica observando…
E continua a observar, até que Jesus, tendo saído de sua meditação, se
vira, ao ter ouvido um barulho leve, feito com os pés atrás dele, e sorri,
estendendo a mão ao menino, e dizendo:
– Oh! Marziam! Que estás fazendo aqui sozinho?
– Eu estava olhando para Ti. Há muitos dias que te venho olhando.
Todos têm olhos, mas nem todos veem as mesmas coisas. Eu tenho visto
que Tu, de vez em quando, te pões sozinho… Nos primeiros dias, eu
pensava que estivesses ofendido por alguma coisa. Mas depois eu vi que Tu
o fazes sempre, nas mesmas horas, e que a Mamãe, que sempre te consola
quando estás triste, não te diz nada, quando ficas com aquele rosto. Mas, ao
contrário, se Ela estava falando, se cala, e se recolhe toda, Ela também. Eu
vejo, sabes? Porque eu olho sempre para Ti e para Ela, para fazer o que vós
estiverdes fazendo. Eu perguntei aos apóstolos que é que ficas fazendo, pois
certamente ficas fazendo alguma coisa. Eles me disseram: “Ele reza.” E eu
lhes perguntei: “O que Ele diz?” Ninguém me respondeu, porque eles não
sabem. Hoje eu vim atrás de Ti, todas as vezes que te vi ficar com aquele
rosto, e fiquei te olhando, quando estavas rezando. Mas, não é sempre o
mesmo o teu rosto. Nesta manhã, ao romper do dia, parecias um anjo de
luz. Olhavas para as coisas com certos olhos, que eu creio que as tiravam
das trevas mais do que o sol, tanto as coisas, como as pessoas. E depois
olhavas para o céu, e tinhas o rosto que tens, quando à mesa, ofereces o pão.
Mais tarde, quando íamos atravessando aquela cidadezinha, Tu te foste
colocar sozinho, no último lugar, e me parecias um pai, pois estavas muito
ansioso para dizer, enquanto ias passando, palavras boas aos pobres daquele
lugar. A um deles, Tu disseste: “Suporta com paciência, que logo Eu te
aliviarei, e aliviarei aos outros teus companheiros.” Era o escravo daquele
homem mau, que açulou contra nós os seus cães. Depois, enquanto se
preparava a comida, Tu ficavas olhando para nós, com olhos cheios de
bondade e de amor. Parecias uma mãe… Mas agora o teu rosto tem sido de
dor… Que estás pensando, Jesus, nessas horas, sempre que ficas assim?…
E também, às vezes, pela tarde, se não estou dormindo, eu te vejo muito
sério. 291.3Tu me dizes como rezas, e por que rezas?
– Certamente, eu te direi. E assim tu rezarás comigo. O dia quem no-lo
dá é Deus. O dia todo: tanto em sua parte luminosa, como na escura, tanto o
dia, como a noite. É um dom de Deus podermos viver e ver a luz. É um
meio de santificação a vida que vivemos. Não é verdade? Então é
necessário santificar os momentos do dia inteiro, para conservar-nos em
santidade e termos sempre presente em nosso coração o Altíssimo e as suas
bondades e, durante esse mesmo tempo, manter longe o demônio. Observa
os passarinhos. Ao primeiro raio do sol, eles já cantam. Eles bendizem a
luz. Também nós devemos bendizer a luz, que é um dom de Deus, e
bendizer a Deus, que a concede, a Deus, que é a Luz. Ter desejo dele, desde
a primeira luz da manhã, como para pôr um selo de luz, uma nota de luz,
sobre todo o dia que vem chegando, a fim de que ele seja todo luminoso e
santo. E unir-se a todas as criaturas para cantar hosanas ao Criador. Depois,
a medida que as horas vão passando, com o seu passar elas nos levam a
verificar quanta dor e ignorância há neste mundo, e então é preciso rezar
também para que as dores sejam aliviadas, para que a ignorância cesse, e
Deus seja conhecido, amado, louvado por todos os homens que, se
conhecessem a Deus, seriam sempre consolados também em seus
sofrimentos. E na hora de sexta, rezar por amor à família. Saborear este
dom de podermos estar unidos com quem nos ama. Isto também é um dom
de Deus. E rezar para que o nosso alimento não se transforme de alimento
em pecado. E, ao pôr-do-sol, rezar, pensando que a morte é o pôr-do-sol que
espera a todos nós. Então, rezemos para que o nosso pôr-do-sol, tanto o de
cada dia, como da vida inteira, seja sempre realizado com nossa alma em
estado de graça. E, quando se acenderem as luzes, rezai para dar graças por
mais um dia que se foi, e para pedir proteção e perdão, a fim de podermos
entregar-nos ao sono, sem medo de sermos julgados sem estarmos
preparados, e dos assaltos dos demônios. Rezai, enfim, durante a noite, —
mas isto é para aqueles que não são mais meninos — em reparação pelos
pecados da noite, para afastar satanás dos fracos, a fim de que nos culpados
nasçam a reflexão, a contrição e os bons propósitos, que deverão tornar-se
realidades, ao nascer do sol. Aí está como há de rezar, e porque é que reza
um justo, durante o dia inteiro.
291.4– Mas, não me disseste porque é que te apartas dos outros, ficas
sério e com um ar grave, à hora nona…
– Porquê… Eu digo: “Pelo sacrifício desta hora, venha o teu Reino ao
mundo, e sejam redimidos todos aqueles que creem no teu Verbo.” Dize
assim também tu.
– Que sacrifício é? O incenso, como disseste[89], se oferece pela manhã
e à tarde. As vítimas também na mesma hora todos os dias, sobre o altar do
Templo. Depois, as vítimas, que são um cumprimento de votos, ou
expiações. Essas se oferecem em todas as horas. A hora de nona não está
indicada para nenhum rito especial.
Jesus para, segura o menino pelas duas mãos, e o levanta, conservando-
o firme diante de Si, e, como se estivesse recitando um salmo, com o rosto
levantado, diz:
– E entre a sexta e a nona, Aquele que veio como Salvador e Redentor,
Aquele do qual falam os profetas, consumará o seu sacrifício, depois de ter
comido o pão amargo da traição, e dado o doce Pão da Vida, depois de ter-
se espremido a Si mesmo como um cacho na tina, e depois de ter usado a Si
mesmo para matar a sede dos homens e das ervas, de ter feito para Si
púrpura de Rei com o seu sangue, depois de ter recebido uma coroa, de ter
em suas mãos o cetro, e de ter transportado o seu trono para um lugar alto a
fim de que pudesse ser visto por Sião, por Israel e pelo mundo. Levantado,
com a purpurina veste de suas chagas inumeráveis, no meio das trevas, para
fazer brilhar sua Luz, na morte para dar Vida, morrerá na hora nona e o
mundo será redimido.
291.5Marziam, espantado e muito pálido, olha para Ele, dando sinal, com
seus lábios e com seus olhos assustados, de uma grande vontade de chorar.
E, com uma voz sem firmeza, diz:
– Mas o Salvador és Tu. E, então, serás Tu que irás morrer naquela
hora?
As lágrimas começam a correr-lhe ao longo das faces e a pequena boca
as vai bebendo, enquanto, entreaberta, espera ainda um desmentido.
Mas Jesus diz:
– Serei Eu, ó pequeno discípulo. E por ti também.
E, como o menino prorrompe em convulsivos soluços, Ele o aconchega
sobre o seu coração, e diz:
– Ficas triste se Eu morrer?
– Oh! Minha única alegria! Eu não quero isto! Eu… Faze-me morrer no
teu lugar…
– Tu terás que pregar-me por todo o mundo. Está dito. Mas escuta. Eu
morrerei contente, porque sei que tu me amas. E depois ressuscitarei. Tu te
lembras de Jonas? Ele saiu mais bonito do ventre da baleia, descansado,
forte. Eu também, e virei logo a ti, e te direi: “Pequeno Marziam, o teu
pranto me tirou a sede. O teu amor me fez companhia no sepulcro. Agora,
Eu venho dizer-te: ‘Sê meu sacerdote’” –e Eu te beijarei, tendo, então, em
Mim o odor do Paraíso.
– Mas eu onde estarei? Não estarei com Pedro? Ou com a Mãe?
– Eu te salvarei das ondas infernais naqueles dias. Aos mais fracos e aos
mais inocentes Eu os salvarei, menos a um… Marziam, pequeno apóstolo,
queres ajudar-me a rezar para aquela hora?
– Oh! sim, Senhor! Mas, e os outros?
– Este é um segredo entre Mim e ti. Um grande segredo. Porque Deus
gosta de revelar-se aos pequenos… Não chores mais. Sorri, agora, pensando
que depois Eu não sofrerei nunca mais e me lembrarei somente de todo o
amor dos homens, e, em primeiro lugar, do teu. 291.6Vem, vem. Olha como
os outros estão longe. Vamos dar uma corrida para alcançá-los –e Jesus o
põe no chão, depois pega-o pela mão e se põem a correr, até se reunirem ao
grupo.
– Mestre, que estavas fazendo?
– Estava explicando a Marziam as horas do dia.
– E o rapazinho chorou? Terá sido mau e, nesse caso, Tu, por bondade,
perdoa-lhe –diz Pedro.
– Não, Simão. Ele me ficou olhando rezar. Vós não fizestes isso. Ele me
perguntou a razão. Eu lhe expliquei. O menino ficou comovido com as
minhas palavras. Agora deixai-o em paz. Vai à minha Mãe, Marziam. E vós,
ouvi todos. Não fará mal nem a vós a lição.
E Jesus explica de novo a utilidade da oração nas horas principais do
dia, deixando de lado a explicação da hora nona e terminando com estas
palavras:
– A união com Deus é isto: tê-lo presente em todos os momentos para
louvá-lo ou invocá-lo. Fazei isto e progredireis na vida do espírito.
Bozra já está perto. Estendida pela planície, parece vasta, e sempre
bonita, com seus muros e torres. A tarde, que vem descendo, amortece as
cores das casas e das campinas, dando-lhes a cor de um lilás acinzentado,
sem firmeza, no qual os contornos se confundem, enquanto os balidos e
grunhidos das ovelhas e dos porcos, fechados em recintos fora dos muros,
quebram o silêncio da campina. Esse silêncio somente cessa quando, depois
de atravessado o portão, a caravana entra por um labirinto de caminhos que
decepcionam aos que, tendo olhado de fora, achavam que era uma bela
cidade. Vozes, odores e… fedores estão acumulados nos becos contorcidos,
e vão acompanhando os peregrinos, até que eles cheguem a uma praça,
onde certamente há uma feira e na qual está o albergue.
E foi assim que aconteceu a chegada a Bozra.
[89] disseste, em 197.5.
292. Em Bozra, a insídia dos escribas e fariseus.
1º de outubro de 1945.
292.1Bozra, tanto pela estação do ano, como por estar assim fechada no
meio de suas estradinhas, mostra-se, agora pela manhã, pouco visível, por
causa da névoa. Pouco visível e muito suja. Os apóstolos, tendo voltado das
compras feitas na feira, estão falando entre si delas. Porque a indústria dos
albergues daquele tempo e de lugares como este é de tal modo pré-histórica,
que cada um precisa pensar em seus mantimentos. Compreende-se que os
albergadores não queiram perdoar nem uma migalha. Eles se limitam a
cozinhar o que os que chegam vêm trazendo e esperamos que nada roubem
do que foi trazido. Ou o mais que podem é fazer as compras para os que
chegam ou, então, vender diretamente a eles os alimentos dos quais eles
tenham provisão, e fazendo-se também de açougueiros, se for necessário,
com os pobres cordeirinhos destinados a ser assados.
Isto de comprar do albergador não agradou a Pedro e até agora ainda
continua o bate-boca entre o apóstolo e o albergador: este tem cara de
malandro, não deixa de insultar o apóstolo, chamando-o de “galileu”,
enquanto que o outro rebate, mostrando um leitão que foi degolado agora
mesmo, por conta de alguns que ali estão de passagem:
– Eu sou galileu, e tu és um porco, um pagão é que és. No teu mal
cheiroso albergue, eu não ficaria nem uma hora, se eu fosse dono de mim
mesmo. Ladrão e… –(aqui ele diz uma outra palavra muito… expressiva,
que eu deixo de escrever.)
Percebo que, entre estes de Bozra e os galileus, deve haver uma das
muitas incompatibilidades regionais e religiosas, das quais Israel estava
cheio, ou melhor, a Palestina.
O albergador grita mais forte:
– Se não fosse porque tu estás com o Nazareno, eu, que sou melhor do
que os vossos imundos fariseus, que o odeiam sem motivo, eu te lavaria a
cara com o sangue do porco e terias que sair daqui correndo, para ires
purificar-te. Mas eu presto respeito a Ele, cujo poder é indiscutível. E a ti eu
digo que, com todas as vossas histórias, sois pecadores. Nós somos
melhores do que vós. Nós não armamos ciladas. Nós não traímos. Vós, ah!
Uma raça de traidores, injustos e velhacos, que não respeitais nem mesmo
os poucos santos que tendes entre vós.
– A quem dizes que são traidores? A nós? Ah! Viva o Céu, que agora…
Pedro, irritado, está para atirar-se sobre o homem, mas seu irmão e
Tiago o seguram e Simão Zelotes, junto com Mateus, se interpõem.
292.2Todavia, mais do que a intervenção deles, o que vale para fazer
cessar a ira é a voz de Jesus, quando Ele aparece por uma porta, e diz:
– Agora, tu, Simão, cala a boca. E tu, também, homem cala-te.
– Senhor, este albergador andou insinuando coisas e me ameaçando por
primeiro.
– Nazareno, eu é que fui ofendido por primeiro.
Eu, ele. Ele, eu. Os dois culpáveis jogam a culpa um ao outro.
Jesus vai para a frente, sério e calmo:
– Vós dois não tendes razão. E tu, Simão, menos razão do que ele.
Porque tu conheces a doutrina do amor, do perdão, da mansidão, da
paciência, da fraternidade. Para não serdes maltratados como galileus,
precisais fazer-vos respeitar como santos. E tu, homem, se te sentes melhor
do que os outros, dá graças a Deus e torna-te digno de seres sempre melhor.
E, sobretudo, não sujes a tua alma com acusações mentirosas. Os meus
discípulos não traem, nem armam ciladas.
– Tens certeza disso, Nazareno? E, então, por que é que aqueles quatro
vieram fazer-me perguntas se Tu tinhas vindo, com quem é que estavas e
muitas outras coisas?
– Coisas? Que coisas? E quem são eles? Onde estão?
Os apóstolos se agrupam, esquecendo-se de que se estão pondo ao lado
de um que está sujo com sangue de porco, coisa esta que antes os fazia ficar
horrorizados.
– Ide para os vossos trabalhos. Mas tu fica, Misaque.
292.3Os apóstolos lá se vão para a sala da qual saiu Jesus. No pátio ficam
sozinhos, um na frente do outro, Jesus e o albergador. A poucos passos de
Jesus está o mercador que, assombrado, está observando a cena.
– Responde-me, homem. Com sinceridade. E perdoa, se o sangue irritou
a língua de um discípulo meu. Quem são os tais quatro e que foi que
disseram?
– Quem sejam eles, eu não sei exatamente. Mas com certeza são
escribas e fariseus do outro lado. Quem foi que os trouxe até aqui, eu não
sei. Eu nunca os havia visto. Mas eles estão bem informados a respeito de
Ti. Sabem de onde vens, para onde vais e quem és. Mas queriam que eu
confirmasse tudo isso. Não. Eu posso ser um velhaco. Mas eu sei o meu
ofício. Eu não conheço ninguém, não vejo nada, não sei nada para dizer aos
outros, compreenda-se. Porque para mim eu sei tudo. No entanto, por que
eu devo dizer aos outros o que eu sei, e especialmente àqueles hipócritas?
Velhaco, eu? Sim. Se for necessário, defendo até os ladrões. Tu bem o
sabes… Mas eu não seria capaz de roubar ou tentar roubar-te a liberdade, a
honra, a vida. E aqueles — já não sou mais Farã de Ptolomeu, se não for
verdade o que digo — e aqueles estão à espera de ti para te fazerem mal. E
quem os manda? Será talvez alguém da Pereia ou da Decápole? Talvez
alguém da Traconítide, ou da Gaulanítide ou da Auranítide? Não. Nós, ou
não te conhecemos ou, se de Ti sabemos, te respeitamos, como a um justo,
se é que não cremos em Ti como um santo. Quem, pois, os terá mandado?
Será alguém do teu lado, e talvez um dos teus amigos, porque eles estão
sabendo coisas demais…
– Saber por meio de minha caravana é fácil… –diz Misaque.
– Não, mercador. Não é por meio de ti. Mas de outros, que estão com
Jesus. Eu não sei, nem quero saber. Não vejo, nem quero ver. Mas, eu te
digo: se sabes que és culpado, procura reparar o mal e, se sabes que estás
sendo traído, toma providências.
– Culpa, eu não tenho, homem. E não estou sendo traído. O que
acontece é que Israel não me compreende. 292.4Mas, como tiveste notícias de
Mim?
– Por um rapaz. Um libertino, que dava o que falar de si, tanto em
Bozra, como em Arbela. Aqui, pois para cá ele vinha consumar os seus
pecados. E lá, porque lá ele desonrava a sua família. Mas depois ele se
converteu. Ele se tornou mais honesto do que um justo. Agora mesmo ele
passou com os teus discípulos, pois ele é discípulo também e te espera em
Arbela para prestar-te homenagem, junto com seu pai e sua mãe. E ele
conta a todos que Tu lhe mudaste o coração, pela oração da mãe dele. Filipe
de Jacó, se algum dia esta região se tornar santa, terá o merecimento de ter
sido o santificador dela. E, se em Bozra há quem creia em ti, é por causa
dele.
– Onde estão agora os escribas que aqui vieram?
– Eu não sei. Eles foram embora, porque eu disse que não tinha lugar
para eles. Bem que tinha. Mas eu não quis dar hospedagem às serpentes,
perto da pomba. Certamente eles estão nesta região. Fica atento.
– Eu te agradeço, homem. Como te chamas?
– Farã. Não fiz mais do que meu dever. Lembra-te de mim.
– Sim. E tu lembra-te de Deus. E perdoa a meu Simão. O grande amor
que ele me tem faz, às vezes, que ele fique cego.
– Já passou. Nada de mal. Eu também o ofendi. Mas, sentimo-nos mal,
ao sermos insultados. Tu não insultas…
Jesus suspira… Depois diz:
– Queres ajudar o Nazareno?
– Se eu puder…
– Eu falaria deste pátio, com prazer.
– E eu te deixarei falar. Quando?
– Entre a sexta e a nona.
– Vai tranquilo para onde quiseres. Bozra vai ficar sabendo que Tu vais
falar. Eu cuido disso.
– Deus te recompense por isso.
E Jesus lhe dá um sorriso, que já é uma recompensa. Depois se
encaminha para a sala onde estava antes.
Alexandre Misaque diz:
– Mestre, sorri assim para mim também… Eu também irei dizer aos
habitantes da cidade que venham ouvir a Bondade que está falando. Eu
conheço muitos deles. Adeus.
– A ti também Deus recompensa –e Jesus lhe sorri.
292.5Entra na sala. As mulheres estão ao redor de Maria, que está com o
rosto entristecido e se levanta logo, indo ao encontro do Filho. Ela não fala.
Mas tudo nela são perguntas. Jesus lhe sorri, e lhe responde, dizendo a
todos:
– Procurai estar livres na hora sexta, falarei em seguida a muitos. Por
enquanto ide, todos, menos Simão Pedro, João e Hermasteu. Anunciai-me
ao povo, e dai muitas esmolas.
Os apóstolos vão. Pedro se aproxima lentamente de Jesus, que está
perto das mulheres e lhe pergunta:
– Por que não eu também?
– Quando somos impulsivos demais, ficamos em casa. Simão, Simão!
Quando chegará o dia em que saberás usar de tua caridade para com o
próximo? Por enquanto, ela é uma chama ardente, mas toda por Mim, é
uma lâmina reta e rija, mas só por Mim. Sê manso, Simão de Jonas!
– Tens razão, Senhor. Tua Mãe já me censurou, como Ela sabe fazer,
sem me rebaixar. Mas penetrou até dentro de mim. Mas censuras-me Tu
também, mas… depois, não fiques olhando para mim, assim tão triste.
– Sê bom… Sê bom… 292.6Síntique, eu quereria falar-te em particular.
Sobe para o terraço. Vem tu também, minha Mãe…
E, no rústico terraço, que cobre toda uma ala da construção, ao sol
quente que está aquecendo o ar, Jesus está dando lentamente uns passos,
entre Maria e a grega, e diz:
– Amanhã nos separaremos por algum tempo. Perto de Arbela, vós,
mulheres, junto com João de Endor, ireis para o Mar da Galileia,
continuando juntos até Nazaré. Mas, para não mandar-vos sozinhas, só com
um homem já bem enfraquecido, Eu vos farei acompanhar pelos meus
irmãos e por Simão Pedro. Eu prevejo que haverá repugnância por esta
separação. Mas a obediência é a virtude do justo. Passando pelas terras de
que Cusa cuida em nome de Herodes, Joana pode ter escolta para o resto do
caminho. Então, vós dispensareis a companhia dos filhos de Alfeu e de
Simão Pedro. Mas o motivo pelo qual Eu pedi para subires até aqui é o
seguinte: Quero dizer-te, Síntique, que Eu decidi que passes algum tempo
na casa de minha Mãe. Ela já o sabe. Contigo ficarão João de Endor e
Marziam. Estando lá, tratai-vos bem, formando-vos sempre mais na
Sabedoria. Eu quero que tomes muito cuidado com o pobre João. À minha
Mãe Eu nem digo isso, porque Ela não precisa de conselhos. Tu podes
compreender João e ter dó dele e ele pode fazer-te muito bem, pois é um
mestre experiente. Depois, Eu irei. Oh! Irei logo! E nos veremos
frequentemente. Espero achar-te mais sábia no conhecimento da Verdade.
Eu te abençôo particularmente, Síntique. Este é o meu adeus para ti, por
esta vez. Em Nazaré, encontrarás amor e ódio, como em toda parte. Mas na
minha casa encontrarás paz. Sempre.
– Nazaré me ignorará, e Eu a ignorarei. Viverei instruindo-me na
Verdade e o mundo não será nada para mim, Senhor.
– Está bem. Vai, então, Síntique. E, por enquanto, silêncio. Mãe, tu
sabes… Eu te confio estas minhas pérolas mais caras. Enquanto estamos em
paz entre nós, minha Mãe, faze que o teu Jesus se restaure com as tuas
carícias…
– Quanto ódio, meu Filho!
– Quanto amor.
– Quanta amargura, caro Jesus!
– Quanta doçura!
– Quanta incompreensão, meu Filho!
– Quanta compreensão, minha Mãe!
– Oh! meu Tesouro, querido Filho!
– Minha Mãe! Alegria de Deus e minha. Minha Mãe!
Beijam-se, ficando perto depois um do outro, sobre o banquinho de
pedra que rodeia o pequeno muro do terraço, Jesus segurando abraçada sua
Mãe, como um protetor amoroso e Ela estando com a cabeça sobre o ombro
do Filho e as mãos nas mãos dele, felizes… O mundo está tão longe…
sepultado por ondas de amor e de fidelidade…
293. O discurso e os milagres em Bozra
depois da irrupção de dois fariseus.
O dom da fé de Alexandre Misaque.
2 de outubro de 1945.
293.1… Mas o mundo está também muito perto de nós com as suas ondas
de ódio, de traição, de dor, de necessidades, de curiosidade. E as ondas vêm,
como as do mar, para um porto, vêm morrer aqui, dentro do pátio do
albergue de Bozra, que o respeito do albergador, melhor de coração do que
se poderia pensar olhando para o seu rosto, mandou limpar de todos os
excrementos e sujeiras. Ondas de pessoas e mais pessoas, do lugar e de
fora, mas pertencentes a esta região. São pessoas que, pela fala, posso
compreender que venham de longe, das beiras do lago, ou de para lá do
lago. Os nomes das cidades lembram fragmentos de dores, que se podem
perceber pelas conversações, que se entrecruzam, enquanto estão à espera
de Jesus. Gadara, Hipo, Gergesa, Gamala, Afeca. E ainda: Naim, Endor,
Jezrael, Magdala e Corozaim, são nomes que passam de boca em boca, e a
eles estão unidas as narrações dos motivos pelos quais vieram de tão longe
até aqui.
– Quando fiquei sabendo que Ele tinha vindo pelo outro lado do Jordão,
fiquei desanimado. Mas, quando eu já estava querendo voltar para Jezrael,
chegaram uns discípulos e nos disseram a nós que o estávamos esperando
em Cafarnaum: “A estas horas, Ele certamente já está para lá de Gerasa.
Não percais tempo, e ide logo para Bozra, ou para Arbela”, e, então, eu vim
com estes…
– Pois eu sou de Gadara, e vi passar fariseus. Eles perguntavam se era
Jesus de Nazaré que estava na região. Eu estou com minha mulher doente.
Então, eu me uni a eles. Depois, ontem em Arbela, fiquei sabendo que antes
Ele viria a Bozra, e por isso vim para cá.
– Eu venho de Gamala, por causa deste menino. Uma vaca furiosa o
atacou. E ele ficou assim… –e mostra o filho, todo encolhido, sem poder
mover nem os braços livremente.
– Eu não pude trazer o meu. Venho de Magedo. Que me dizeis? Será
que Ele o curará daqui mesmo? –geme uma pobre mulher, que está com o
rosto avermelhado de tanto chorar.
– Mas, é preciso trazer o doente!
– Não. Basta ter fé.
– Não. Se Ele não lhe impuser as mãos, não ficará curado. Os dois
discípulos dele também é assim que fazem.
– Fizeste uma longa caminhada à toa, mulher!
A mulher se põe a chorar, dizendo:
– Ó infeliz de mim! Eu o deixei quase à morte, e vim na esperança…
Não o curará e eu não poderei estar consolando-o na hora da morte…
Mas uma outra mulher a consola:
– Não dês ouvidos a eles, mulher. Eu vim agradecer a Ele, porque fez
para mim um grande milagre, sem ter eu deixado o monte no qual Ele
estava falando.
– Que doença tinha o teu filho?
– Não era o filho. Era o meu marido, que tinha ficado doido…
E as duas continuam a falar em voz baixa.
– É verdade. Também aquela mãe, que veio de Arbela, teve o seu filho
recuperado, sem que o Mestre o visse –diz alguém de Arbela, e continua a
conversar com uns que estão por perto.
– Abri caminho, por piedade! Abri caminho! –gritam os que vêm
transportando uma liteira toda coberta.
A multidão abre caminho, e a liteira passa com sua carga de dor, e vai
colocar-se lá no fundo, quase por detrás de um palheiro. Será homem, ou
mulher, o que está estendido naquela caminha? Quem é que vai saber?
293.2Entram dois fariseus, enfatuados e pomposos, cheios de orgulho,
agora mais do que nunca. Atacam logo o pobre albergador, como dois
loucos, gritando:
– Maldito mentiroso! Por que nos disseste que Ele não estava? És tu um
dos cúmplices dele? Escarneces assim de nós, os santos de Israel, para
favorecer… A quem? Que é que sabes dele? Quem é Ele? E para ti, que é
Ele?
– Quem é Ele? É aquilo que vós não sois. Mas eu não menti. Ele veio
poucas horas depois da vossa chegada. E ele não se escondeu, nem eu o
escondo. Mas, visto que o dono daqui sou eu, neste instante eu vos digo:
“Saí da minha casa!” Aqui não se injuria o Nazareno. Entendestes bem? E,
se não entendeis as minhas palavras, eu poderia falar-vos com fatos, e vós
não sois mais do que uns chacais.
O musculoso albergador parece tão decidido a passar às vias de fato,
que os dois fariseus mudam de tom, e se põem a rastejar como uns
cachorrinhos ameaçados pelo chicote.
– Mas nós o procuramos para venerá-lo! Que é que estás pensando?
Ficamos furiosos, só de pensar que não podemos vê-lo, por tua culpa. Nós
bem sabemos quem é Ele. O Messias santo e bendito, para o qual nós não
somos dignos nem de levantar o olhar. Nós somos pó, Ele é a glória de
Israel. Leva-nos a Ele. A nossa alma está ardendo de vontade de ouvir a
palavra dele.
O albergador dá-lhes muito bem o troco, respondendo-lhes:
– Oh! Vede só! E, como é que eu fui poder pensar que assim não fosse,
eu que bem conheço, pela fama que ela tem, a justiça dos fariseus?! Mas,
está bem. Vós viestes para adorá-lo! vós vos estais queimando por esse
desejo! Eu vou dizê-lo a Ele! Vou… Não, por satanás! Tu não me sigas. E
nem tu também, ou eu vos bato tanto, ó velhas múmias venenosas, que vos
farei entrar uma na outra. Ficai aqui. Tu aqui, onde eu te coloco. E tu aqui.
E não fico satisfeito, por não poder fincar-vos na terra até o pescoço, para
servir-me de vós como de uma estaca, para amarrar nela os porcos, que vão
ser degolados.
E une suas palavras à ação, pegando primeiro, pelas axilas, o mais
magro dos fariseus, levantando-o e jogando-o de novo no chão, de um
modo tão violento que, se não fosse firme o terreno, o infeliz teria entrado
pelo chão a dentro, pelo menos até o tornozelo. Mas o terreno é firme, e o
fariseu fica em pé, depois da forte sacudidela, como se tivesse virado um
boneco. Depois, o albergador pega o outro, e, ainda que ele seja bastante
gordo, levanta-o e o abaixa com a mesma fúria, e, como o outro reage e lhe
escapa das mãos, ele, em vez de pô-lo em pé, o abaixa, pondo-o sentado,
como se fosse um volume de carne e de pano… E depois vai-se embora,
dizendo uma palavra feia, que se perde por entre os gemidos dos dois e as
risadas de muitos outros.
Ele entra por um corredor, passa por um pequeno curral, pega uma
escadinha, põe o pé sobre uma varanda em forma de pórtico, e dela passa
para um vasto salão, no qual estão terminando sua refeição Jesus e todos os
seus, junto com o mercador.
– Chegaram aí dois dos quatro fariseus. Toma cuidado. Por enquanto, eu
mesmo cuidei deles. Queriam vir atrás de mim. Mas eu não quis. Estão eles
agora no pátio, no meio de muita gente, muitos doentes e outras pessoas
ainda.
– Eu irei logo. Obrigado, Farã. Então, vai.
293.3Todos se levantam. Mas Jesus manda que os discípulos fiquem onde
estão, e também as mulheres, menos sua Mãe, Maria de Cléofas, Susana e
Salomé. E, percebendo a tristeza que se nota nos rostos dos que foram
excluídos, diz:
– Ide para o terraço. De lá me ouvireis do mesmo modo.
Sai com os apóstolos e as quatro mulheres, faz de volta o caminho feito
pelo albergador, e entra no grande pátio. A multidão espicha o pescoço para
ver, e, quem é mais esperto vai para cima dos palheiros, dos carros que
estão escorados por um dos lados, ou por sobre a beirada dos tanques…
Os dois fariseus vão indo ao seu encontro, muito obsequiosos. Jesus os
saúda com sua saudação de costume, como se eles fossem os seus mais fiéis
amigos. Mas Ele não para a fim de responder às perguntas capciosas deles:
– Sois assim tão poucos? E sem discípulos? Então, eles te
abandonaram?
Jesus, continuando a caminhar, responde sério:
– Nada de abandonar. Vós estais vindo de Arbela, onde encontrastes
quem vem na minha frente e, na Judeia, vos encontrastes com Judas de
Simão, Tomé, Natanael e Filipe.
O fariseu mais corpulento já não tem mais coragem de acompanhá-lo, e
para de repente, ficando vermelho como uma brasa. O outro, que é mais
descarado, insiste:
– É verdade. Mas justamente ficamos sabendo que Tu estavas com os
discípulos fiéis, e com as mulheres, e ficamos admirados por te vermos com
tão poucos. Queríamos ver as tuas novas conquistas, para nos
congratularmos contigo –e se ri, com falsidade.
– As minhas novas conquistas? Ei-las!
E Jesus faz um gesto em semi-círculo, mostrando a multidão, quase
toda do Além-Jordão, isto é, desta região em que fica Bozra. Depois, sem
dar tempo ao fariseu de replicar, começa a falar.
[90] aqueles que antes não perguntavam por Mim.
293.4– “Procuraram-me
Encontraram-me aqueles que antes não me procuravam. E Eu disse:
‘Eis-me aqui, eis-me aqui’ a uma nação que não invocava o meu Nome.”
Glória ao Senhor, que fala a Verdade pela boca dos profetas!
Verdadeiramente, Eu, olhando para esta multidão, que me aperta de todos
os lados, alegro-me vivamente no Senhor, porque vejo cumpridas as
promessas que Eu mesmo acendi, fiz brilhar, unido ao Pai e ao Paráclito, no
pensamento, na boca, no coração dos profetas, promessas que Eu conheci,
antes de fazer-me carne. Elas me confortam. Sim. Elas me confortam contra
todo o ódio, rancor, dúvida e mentira. Procuraram-me aqueles que, antes,
nem perguntavam por Mim. E me encontraram aqueles que não me
procuravam. Por que será isso assim, se, ao contrário, aqueles aos quais Eu
estendi as mãos, dizendo “Eis-me aqui”, foram os que me rejeitaram? E, no
entanto, eles é que me conheciam, enquanto que estes não me conheciam. E
então?
Eis aqui a chave do mistério. Ignorar, ainda não é culpa, mas renegar é
culpa. E muitos daqueles que sabem de Mim, e aos quais Eu estendi as
mãos, me renegaram, como se Eu fosse um bastardo ou um ladrão, um
satanás corruptor, porque, em sua soberba, apagaram a luz da fé e se
desviaram para caminhos não bons, tortos, pecaminosos, abandonando o
caminho que a minha voz lhes indica. O pecado está no coração, nos pratos,
nos leitos, nos corações, nas mentes deste povo que me rejeita e que, vendo
por toda parte o reflexo de sua própria imundície, também em Mim ele a vê,
e o seu ódio ainda mais a concentra, para, então, me dizer: “Afasta-te, que
és imundo”.
E, então, que é que dirá Aquele, que vem com as vestes tingidas de
vermelho, belo em sua veste e caminhando na grandeza de sua força?
Cumprirá o que diz Isaías, e não se calará, e despejará no meio deles o que
eles merecem? Não. Antes haverá de se esmagar em sua prensa, ele
sozinho, abandonado por todos, para fazer o vinho da Redenção. O vinho
que inebria os justos, a fim de fazer deles uns bem-aventurados, o vinho que
inebria os culpados da grande culpa, para despedaçar seu sacrílego poder.
Sim, o meu vinho, o que está amadurecendo a cada hora, ao sol do Eterno
Amor, será ruína e salvação para muitos, como está dito em uma profecia
que ainda não está escrita, mas depositada na rocha sem rachadura, da qual
brotou a Videira, que dá o vinho da Vida Eterna.
293.5Entendeis vós? Não, vós não entendeis, ó doutores de Israel. Não
importa que vós compreendais. Está descendo sobre vós a escuridão, da
qual fala[91] Isaías: “Têm olhos, e não veem. Têm ouvidos, e não ouvem.”
Escarnecei da Luz, com o vosso ódio, para que se possa dizer que a Luz foi
repelida pelas trevas, e que o mundo não a quis conhecer.
Mas vós, exultai. Vós que estáveis nas trevas e soubestes crer na Luz,
que vinha sendo anunciada, vós que a desejastes, procurastes e encontrastes.
Exultai, ó povo dos fiéis, que pelos montes, rios, vales e lagos, fostes à
Salvação, sem fazer conta do peso de um longo caminho. Assim se faz
também para o outro caminho espiritual, que é aquele que, das trevas da
ignorância. te conduzirá, ó povo de Bozra, à luz da sabedoria. Exulta, ó
povo da Auranítide! Exulta na alegria do conhecimento. Verdadeiramente
também de ti está dito, e dos povos teus limítrofes, quando canta o profeta
que os vossos camelos e dromedários se aglomerarão pelos caminhos de
Neftali e Zabulon, para irem adorar ao verdadeiro Deus, e para serem
servos seus, na santa e doce lei, que não impõe tais coisas para garantir a
paternidade divina e a felicidade eterna, mas a observância dos dez
mandamentos do Senhor, amar o verdadeiro Deus com todo o vosso ser,
amar ao próximo como a nós mesmos, respeitar os sábados sem profaná-
los, honrar os pais, não matar, não roubar, não cometer adultério, não ser
falso nos testemunhos, não desejar a mulher e as coisas dos outros. Oh!
Felizes de vós, se, vindos de mais longe, superardes os que eram da casa do
Senhor e que dela saíram, estimulados pelos dez mandamentos de satanás,
que ensinam a desamar a Deus, a amar a si mesmos, a prestar a Deus um
culto corrompido, a tratar os pais com dureza, a ter o desejo de cometer o
homicídio, a tentativa de furtar a santidade dos outros, a fornicação com
satanás, os falsos testemunhos, a inveja da natureza e da missão do Verbo, e
do pecado horrível, que fermenta e amadurece no fundo dos corações, de
muitíssimos corações.
293.6Exultai, ó vos que estais com sede! Exultai, ó vós que estais com
fome. Éreis vós os proscritos? Éreis vós os desprezados? Éreis os
estrangeiros? Vinde, exultai! Agora já não é mais assim. Eu vos dou casas,
bens, paternidade, pátria. O Céu, Eu vos dou. Segui-me, que Eu sou o
Salvador! Segui-me, que Eu sou o Redentor! Segui-me, que Eu sou a vida.
Segui-me que Eu sou Aquele ao qual o Pai não nega suas graças! Exultai no
meu amor! Exultai! E, para que vejais que Eu vos amo, ó vós que me
procurastes com as vossas dores, ó vós que crestes em Mim, antes ainda de
me terdes conhecido, para que este dia seja de uma verdadeira exultação,
Eu rezo assim: “Pai, Pai Santo! Sobre todas as feridas, doenças, chagas do
corpo, angústias, tormentos, remorsos dos corações, sobre toda a fé que
nasce, sobre a que vacila, sobre a que se robustece, desça, oh! desça
Salvação, graça e paz! Paz em meu Nome! Graça em teu Nome! Salvação
pelo nosso recíproco amor! Abençoa, ó Pai Santíssimo! Recolhe e une em
um só rebanho estes teus e meus filhos dispersos! Faze que, onde eu estiver,
estejam eles, uma só coisa contigo, Pai Santo, contigo, comigo e com o
Diviníssimo Espírito!”
Jesus, de braços abertos, em forma de cruz, com as palmas no alto,
viradas para o céu, o rosto levantado, a voz ressoando como uma trombeta
de prata, está arrastando aos que ouvem suas palavras… E fica assim, em
silêncio, por alguns minutos. Depois, os seus olhos de safira deixam de ficar
olhando para o céu, a fim de olharem para o amplo pátio, cheio de uma
multidão, que está suspirando de comoção, ou fremindo de esperança. Suas
mãos se unem, sendo levadas para a frente, e Ele, com um sorriso que o
transfigura, lança o último grito:
– Exultai, ó vós que credes e esperais. Ó povo de sofredores, levanta-te,
e ama ao Senhor teu Deus!
293.7É simultânea e total a cura de todos os doentes. Um barulho de
gritos, um estrondo de vozes dá hosanas ao Salvador. E, do fundo do pátio,
ainda arrastando o lençol que a cobria, uma mulher abre caminho pelo meio
da multidão, indo cair aos pés de Jesus. A multidão dá, então, um urro
diferente, de terror:
– Maria, mulher de Joaquim, a leprosa! –e todos fogem para todas as
direções.
– Não temais. Ela está curada. Nem o contato dela pode fazer-vos mal –
diz Jesus.
Depois diz à que está prostrada:
– Levanta-te, mulher. A tua grande esperança te premiou, e faz que
sejas perdoada por teres deixado de usar de prudência para com os irmãos.
Volta para tua casa, depois das purificações salutares.
A mulher, ainda jovem e relativamente bonita, está chorando, e pondo-
se em pé. Jesus a mostra à multidão, que se aproxima um pouco e fica
admirando o milagre, e proclamando as suas maravilhas.
– O marido, que a estimava muito, havia construído para ela um
refúgio, no fundo de suas terras, e todas as tardes ia até o limite delas e,
chorando, dava-lhe alimentos…
– Ela havia ficado doente, por causa de sua piedade, quando estava
tratando de um mendigo que não dizia que estava leproso.
– Mas, como foi que veio até aqui a boa Maria?
– Com aquela padiola. Será que não nos lembramos de que Joaquim
tinha dois servos?
– Eles se arriscaram a ser apedrejados por isso!
– Maria era a patroa deles. Eles a amam mais do que a si mesmos, pois
ela sabe fazer-se amar…
Jesus faz um gesto, e todos se calam:
– Vós estais vendo como o amor e a bondade produzem milagre e
alegria. Por isso, procurai saber ser bons. Vai, mulher. Ninguém te fará mal.
A paz esteja contigo e na tua casa.
A mulher, acompanhada pelos servos, que já puseram fogo na padiola
no meio do pátio, sai dali acompanhada por muitos.
293.8Jesus despede a multidão, depois de ter ouvido alguns, e se retira
para casa acompanhado pelos que estavam com Ele.
– Que palavras, Mestre!
– Como estavas transfigurado!
– Que voz!
– Que milagres!
– Viste quando os fariseus fugiram?
– Foram-se embora, quase rastejando, como dois lagartos, logo depois
das primeiras palavras.
– Os de Bozra e de todas estas redondezas guardam de Ti a lembrança
como do sol…
– Mãe, que é que dizes?
– Eu te abençôo, Filho. Por mim e por eles.
– Pois bem. A tua bênção nos acompanhará até que de novo nos
encontremos.
– Por que falas assim, Senhor? Então, as mulheres nos vão deixar?
– Sim, Simão. 293.9Amanhã, às primeiras horas do dia, Alexandre parte
para Aera. Nós iremos com ele até a estrada de Arbela, e depois o
deixaremos. É com tristeza, podes crer, Alexandre Misaque, porque foste
um guia muito gentil para com o Peregrino. Eu me lembrarei sempre se ti,
Alexandre…
O velho fica comovido. Ele está com os braços cruzados sobre o peito,
na profunda saudação oriental, um pouco inclinado, na frente de Jesus. Mas,
ao ouvir estas palavras, diz:
– Sobretudo, lembra-te de mim, quando estiveres no teu Reino.
– Assim desejas, Misaque?
– Sim, meu Senhor.
– Eu também desejo uma coisa de ti.
– Qual é, Senhor? Se eu puder, eu te darei. Ainda que fosse a coisa mais
preciosa que eu possuo.
– É a mais preciosa. Eu quero a tua alma. Vem a Mim. Eu te disse, no
começo desta viagem, que no fim Eu esperava dar-te um presente. O dom
da Fé. Crês tu em Mim, Misaque?
– Eu creio, Senhor.
– Então, santifica a tua alma, a fim de que a fé não seja para ti, não
semente inerte, mas prejudicial.
– Já está velha a minha alma. Mas eu me esforçarei para fazê-la ficar
nova. Senhor, eu sou um velho pecador. Mas Tu, absolve-me e me abençoa,
para que, desde hoje, eu comece uma vida nova. Levarei comigo a tua
bênção, como a melhor das escoltas, no meu caminho para o teu Reino…
Não nos veremos nunca mais, Senhor?
– Sobre esta terra, nunca mais. Mas terás notícias de Mim, e crerás
ainda mais, porque não te deixarei sem evangelização. Adeus, Misaque.
Amanhã teremos pouco tempo para despedir-nos. Façamo-lo, então, agora,
antes de terminarmos, pela última vez, esta refeição juntos.
E o abraça e o beija. Também os apóstolos e os discípulos. As mulheres
se despedem com uma saudação única. Mas Misaque chega quase a
ajoelhar-se diante de Maria, dizendo:
– Que a tua luz de pura estrela da manhã brilhe no meu pensamento, até
à morte.
– Até à vida, Alexandre. Ama meu Filho, e me estarás amando, e eu te
amarei.
293.10Simão Pedro pergunta:
– Mas de Arbela, iremos para Aera? Eu tenho medo de que o mau
tempo nos pegue. O nevoeiro está forte… Há três dias que ele se forma pela
manhã, e à tarde…
– É porque até aqui viemos descendo. Não te parece que descemos
muito? Mas é assim. A partir de amanhã, subirás de novo para os montes da
Decápole, e não terás mais névoas –explica Misaque.
– Descemos? Quando? A estrada era plana…
– Sim, mas em contínua descida. Oh! Uma descida tão lenta, que nem
se percebe. Mas que se estende por milhas e mais milhas!
– A quanto tempo estamos de Arbela?
– Para ti, Tiago e Judas, não leva nem uma hora –diz brevemente Jesus.
– Eu… Tiago e Judas… nem uma hora? E, para onde vou, se não fico
com todos vós?
– Vai. Vai até as terras que estão sob a guarda de Cusa. Acompanharás
com os outros a minha Mãe e as mulheres, até lá. Depois elas irão sozinhas
com os servos da Joana, e vós voltareis, reunindo-vos em Aera.
– Oh! Senhor! Tu estás zangado comigo, e me queres castigar… Quanta
tristeza me dás, Senhor!
– Simão, sente-se castigado, pois sabe que é culpado. Isto de estar
culpado é que deve dar tristeza, e não o castigo por si mesmo. Mas Eu não
acho que seja um castigo ir acompanhando minha Mãe e discípulas no
caminho da volta.
– Mas, não seria melhor que Tu fosses também conosco? Deixa de lado
Aera, e esses lugares, e vem conosco.
– Eu prometi que iria lá, e vou.
– Então, eu também vou.
– Tu, obedece, como fazem os meus irmãos, sem protestarem.
– E, se encontrares os fariseus?
– Certamente tu não és o mais indicado para convertê-los. Mas é
precisamente porque Eu os vou encontrar, que Eu quero que tu, Tiago e
Judas vades, a partir de Arbela, com as mulheres, com João de Endor e
Marziam.
– Ah!… Agora compreendi! Está bem.
Jesus se volta para as mulheres e as abençoa, uma por uma, dando-lhes
conselhos adaptados a cada uma.
Madalena, ao inclinar-se para beijar os pés do seu Salvador, pergunta:
– Eu te verei ainda, antes de voltar para Betânia?
– Sem dúvida, Maria. No mês de etanim estarei no lago.
[90] Procuraram-me… é citação de Isaías 65,1. Mas o discurso que segue se refere ainda aos pequenos versos e de Isaías 63.
[91] da qual fala, em Isaías 6,9-10.
294. O rico óbolo deixado pelo mercador.
Despedida da Mãe e das discípulas.
3 de outubro de 1945.
294.1A veneração de Misaque se faz ver na manhã seguinte, depois dos
primeiros quilômetros que fizeram, montados nos camelos, sobre os quais
ele mandou acomodar a carga, de tal modo, que se forme lá em cima um
berço bem cômodo para os improvisados cameleiros. E é discretamente
burlesco ver como aparecem por cima dos pacotes e caixas as cabeças,
morenas ou louras, com cabelos longos, até às orelhas, dos homens, ou com
tranças que saem dos topetes escondidos por baixo dos véus das mulheres.
De vez em quando, o vento, produzido pela corrida, pois os camelos vão
indo velozmente, faz voar para trás esses véus, e brilham, então, ao sol, os
cabelos dourados de Maria de Magdala, ou os mais suavemente louros da
Virgem Maria, enquanto que as cabeças escuras, ou levemente cor de amora
de Joana, de Síntique, de Marta, de Marcela, de Susana e de Sara tomam
reflexos anilados ou uns bronzeados escuros, ao passo que as cabeças
encanecidas de Elisa, de Salomé e de Maria de Cléofas parecem ter sido
polvilhadas com pó de prata, brilhando ao forte sol que as aquece. Os
homens vão indo garbosamente neste novo meio de transporte, e Marziam
se ri feliz.
Eles, então se dão conta de que o que afirmou o mercador é verdade,
quando, virando-se, veem Bozra lá em baixo, com as suas torres e as suas
casas altas, pelo meio do labirinto de suas ruas estreitas. Umas pequenas
colinas se fazem ver a noroeste. É ao pé delas que passa a estrada, que vai
para Aera. E aí é que para a caravana, a fim de que os peregrinos possam
descer, e depois se separarem. Os camelos se ajoelham, fazendo aquele seu
balanceio, com o qual algumas mulheres gritam de susto. Agora é que estou
percebendo que as mulheres tinham sido prudentemente amarradas às selas
com cintos. Elas descem um pouco espantadas com todo aquele balanceio,
mas repousadas.
Desce também Misaque, que havia segurado na sela Marziam e,
enquanto os cameleiros ajeitam as cargas, como de costume, ele se
aproxima de Jesus para despedir-se de novo.
– Eu te agradeço, Misaque. Tu nos poupaste muita fadiga, e o gasto de
muito tempo.
– Sim. Mais de vinte milhas foram feitas em uma breve hora. Os
camelos têm pernas compridas, mesmo quando vão num trote pouco
agradável. Eu espero que as mulheres não tenham sofrido demais com isso.
As mulheres todas afirmam que se sentem repousadas e não sentindo
nada.
– Agora, já estais a seis milhas de Arbela. Que o Céu vos acompanhe,
vos dê um caminho bom. Adeus, meu Senhor. Permite-me que eu beije os
teus pés santos. Estou feliz por ter te encontrado, Senhor. Lembra-te de
mim.
Misaque beija os pés de Jesus, depois monta de novo na sela e, com seu
grito, faz que os camelos se levantem. E a caravana parte a galope pela
estrada plana, no meio de nuvens de poeira.
– Bom homem! Estou todo esmagado, mas, em compensação, meus pés
descansaram. Cessaram as sacudidelas! Muito diferente das tempestades
trazidas pelo vento norte sobre o lago! Vós estais rindo? Eu não tinha
almofadas, como as mulheres. Viva a minha barca! Ela é ainda a coisa mais
limpa e mais segura. 294.2E agora, vamos pôr os sacos nas costas, e vamos,
afinal.
Há uma verdadeira competição, para ver quem se carrega com mais. E
os que a vencem são os que ficaram com Jesus, isto é, Mateus, Zelotes,
Tiago e João, Hermasteu e Timoneu, que apanham tudo para poupar os três
que irão com as mulheres, ou melhor, os quatro, porque está aí também
João de Endor, ainda que a ajuda dele vá ser muito relativa, de tão
desprovido de meios como ele está.
Vão indo depressa por alguns quilômetros. Quando chegam ao alto da
planície da colina, que fazia de para-vento do lado do ocidente, apareceu de
novo uma planície fértil, rodeada por um anel de colinas mais altas do que a
primeira encontrada, e tendo em seu centro uma colina comprida e isolada.
Na planície está uma cidade: Arbela[92].
Descem, e logo já estão na planície. Andam ainda por algum tempo,
depois Jesus para, dizendo:
– Chegou a hora da separação. Vamos tomar juntos a refeição, e depois
nos separemos. Aqui é a encruzilhada, de onde se vai para Gadara. Vós
pegareis aquele caminho. É o caminho mais curto, e, antes da tarde podereis
estar nas terras que Cusa tem em consignação.
Não há muito entusiasmo. Mas, afinal, obedecem.
294.3Enquanto estão tomando a refeição, Marziam diz:
– Então, chegou também o momento de entregar-te esta bolsa. Ela me
foi entregue pelo mercador, enquanto eu estava com ele na sela. Ele me
disse: “Tu a darás a Jesus, antes de separar-te deles, e lhe dirás que me ame,
como te ama.” Aqui está ela. Estava me pesando na roupa. Parece cheia de
pedras.
– Deixa ver! Deixa ver! O dinheiro pesa!
Estão todos curiosos.
Jesus desata as cordinhas de couro retorcido, que conservam bem
fechada a bolsa de pele de gazela, pelo que me parece, pois tem uma
aparência de pele de camurça, e despeja o conteúdo sobre sua veste. Rolam
para fora algumas moedas. Mas isto é o menos. Rolam também para fora
muitos pacotinhos amarrados com um fio. Várias cores se veem através do
linho muito tênue, e o sol parece acender um fogo naqueles pacotinhos,
fazendo-os parecerem umas brasas, por baixo de uma leve camada de cinza.
– Que é? Que é? Desata, Mestre.
Todos estão inclinados sobre Ele que, muito calmo, está desatando o nó
do primeiro pacotinho, de um fogo louro: são topázios de diversos
tamanhos, ainda não trabalhados, e que brilham, quando expostos ao sol.
Um outro pacotinho: são rubis, como gotas de sangue coagulado. Um outro:
contém um doce sorrir verde de fragmentos de esmeraldas. Um outro: são
como umas escamas do céu, genuínas safiras. Um outro: amortecidas
ametistas. Outro: o anil violeta dos berilos. Um outro: são esplendores
sombrios do ônix… E assim por diante, nos doze pacotinhos. No último, o
mais pesado, vê-se o brilho de ouro dos crisólitos, e um pequeno
pergaminho, onde se lê: “Para o teu Racional de verdadeiro Pontífice e
Rei.”
Sobre os joelhos de Jesus há agora um pequeno prado no qual estão
desfolhadas muitas pétalas luminosas… Os apóstolos mergulham as mãos
nesta luz, que se tornou matéria multicor. Eles estão assombrados… Pedro
murmura:
– Se estivesse aqui Judas de Keriot…
– Cala a boca! É melhor que ele não esteja aqui –diz brevemente Tadeu.
294.4Jesus pede um pedaço de pano, para pôr as pedras todas em um só
pacotinho e, enquanto estão fazendo os comentários, Ele fica pensando.
Os apóstolos dizem:
– Como era rico aquele homem!
E Pedro faz que todos riam, dizendo:
– Nós viemos trotando sobre um trono de pedras preciosas. Eu não
podia crer que estava sobre tais esplendores! Que vais fazer delas agora?
– Vou vendê-las para os pobres.
Levanta depois os olhos e, com um sorriso, olha para as mulheres.
– E onde irás encontrar aqui um joalheiro que te compre isso?
– Onde? Aqui. Joana, Marta e Maria, quereis adquirir o meu tesouro?
As três mulheres, mesmo sem antes se consultarem, dizem: “sim”,
impetuosamente.
Mas Marta acrescenta:
– Aqui temos pouco dinheiro.
– Procurai-o comigo em Magdala, na lua nova.
– Quanto queres, Senhor?
– Para Mim, nada. Para os pobres, muito.
– Dá aqui. Muito receberás –diz Madalena, e pega a bolsa, pondo-a no
seio.
Jesus segura só as moedas. Ele se levanta. Beija sua Mãe, os primos,
Pedro, João de Endor e Marziam. Abençoa as mulheres, e se despede delas.
E eles lá se vão, até que os esconda uma curva do caminho.
Com os que ficaram, Jesus vai indo para Arbela. Agora a comitiva é
pequena, formada por apenas oito pessoas. Vão indo apressados e em
silêncio para a cidade, que já está cada vez mais perto.
[…]
[92] Arbela. Segue aqui o desenho de MV. Na transversal, que une Bozra (a sudeste) a Arbela (a noroeste), é a Estrada principal
Bozra-Arbela, que cruza a vertical caravaneira para Aera.
295. O discurso e os milagres em Arbela,
já evangelizada por Filipe de Jacó.
4 de outubro de 1945.
295.1À primeira pessoa a quem perguntam por Filipe de Jacó, logo ficam
sabendo quanto trabalhou aquele jovem discípulo. A pessoa que foi
interrogada foi uma velhinha, já toda enrugada, que vai levando com
dificuldade uma grande vasilha com água e que, fitando seus olhinhos, já
encovados pela idade, no belo rosto de João que, sorrindo, lhe fez a
pergunta, dizendo-lhe antes a saudação “a paz esteja contigo”, mas de um
modo tão suave, que, por ele a velha se viu conquistada, e diz:
– És tu o Messias?
– Não. Mas apóstolo dele. Ele está lá, e vem vindo.
A velha põe no chão sua vasilha, e parte na direção que lhe foi
mostrada, desejosa de ir ajoelhar-se diante de Jesus.
João, que ficou com Simão ao lado da vasilha, que quase virou de
borco, tendo derramado a metade da água que ia sendo levada, sorri,
dizendo ao companheiro:
– Acho que é bom apanharmos esta vasilha e irmos até a velha.
E assim faz, pondo-se a caminho, enquanto o companheiro acrescenta:
– E nos servirá para beber. Todos estamos com sede.
Quando estão se aproximando da velhinha, que não sabendo
exatamente o que dizer, continua a repetir:
– Belo, santo Filho da mais santa das Mães –e que continua de joelhos,
e bebendo com seus olhos a figura de Jesus que, sorrindo, vai repetindo, por
sua vez:
– Levanta-te, mãe. Afinal, levanta-te.
Ao chegarem perto dela, João lhe diz:
– Nós apanhamos a tua vasilha, mas ela quase se virou de boca para
baixo. Ela está com pouca água. Mas, se tu nos dás licença, nós vamos
beber esta água, e depois iremos encher de novo a tua vasilha.
– Sim, meus filhos, sim. E não me agrada não ter mais do que água para
vos oferecer. Leite é o que eu quereria ter em meus peitos, como quando eu
alimentava meu Judas, para poder dar-vos a bebida mais doce que há sobre
a terra, o leite de uma mãe. Eu quereria ter vinho, e do melhor, para dar-vos
mais forças. Mas Mariana de Eliseu é velha e pobre…
– A tua água para Mim é vinho e é leite, mãe, porque é dada com
amor –responde Jesus, bebendo em primeiro lugar, da vasilha que João lhe
apresenta. Depois os outros bebem.
A velha, que afinal se levantou, olha para eles, como se estivesse
olhando para o Paraíso, e, quando vê que todos já beberam, e que estão para
jogar fora a água que sobrou, e para se dirigirem à fonte, que lá está
cantarolando no fim da rua, aí eis que a velha se joga diante deles,
agarrando a vasilha dizendo:
– Não, não. Mais do que a água lustral, é santa esta, da qual Ele bebeu.
Eu a conservarei com cuidado, para ser com ela purificada, depois da minha
morte.
E segura a vasilha, dizendo:
– Vou levá-la para casa. Eu tenho outras como esta. E vou enchê-las.
295.2Mas antes vem, ó Santo, que eu vou te mostrar a casa de Filipe.
E caminha, ligeira, e dando pulinhos, toda encurvada, mas com o rosto
rugoso sorrindo e reavivado pela alegria. Ela vai dando seus pulinhos e
segurando a aba do manto de Jesus entre os dedos, como se tivesse medo de
que Ele se lhe escapasse, e defendendo a sua vasilha das insistências dos
apóstolos, que não quereriam que ela se fosse, transportando aquele peso.
Mas ela lá se vai, feliz, dando os seus pulinhos, olhando para a rua e para as
casas de Arbela, vazia a primeira e fechadas as outras, nesta tarde que já
vem chegando. Ela vai indo com o olhar de um vencedor, que está feliz com
sua vitória.
Finalmente, passando desta rua secundária para outra mais central,
onde há pessoas que se apressam para chegarem a suas casas — e as
pessoas, espantadas, a estão observando, apontando-a e a
interpelando — ela, depois de ter esperado que se formasse em torno dela
um círculo de pessoas, grita:
– Está aqui comigo o Messias de Filipe. Cor-rei a levar esta notícia por
toda parte e, em primeiro lugar, à casa do Jacó. Que eles estejam prontos
para virem honrar o Santo!
Ela grita, a ponto de perder o fôlego. Sabe fazer-se obedecer. Agora é a
sua hora de comando, para a pobre velhinha do meio do povo, sozinha,
desconhecida. E vê uma cidade inteira mover-se sob o seu comando.
Jesus, muito mais alto do que ela, sorri, quando ela olha para Ele, de
vez em quando, e lhe põe a mão sobre a cabeça já senil, como fazendo-lhe
uma carícia de filho, o que a faz quase desfalecer de felicidade.
A casa do Jacó está em uma das ruas do centro. Toda aberta e
295.3
iluminada, ele mostra, desde o portão, uma larga entrada na qual muitas
pessoas agitam suas luzes, pessoas que correm para fora, a fim de festejá-lo,
logo que Ele aparecer na rua. Lá estão o jovem discípulo Filipe e, atrás dele,
sua mãe e seu pai, os parentes, os servos, os amigos.
Jesus para, responde com benevolência à saudação respeitosa de Jacó,
depois se inclina para a mãe de Filipe, que o venera ajoelhando-se, e a faz
levantar-se, abençoando-a, e dizendo-lhe:
– Sê sempre feliz pela tua fé.
Depois saúda o discípulo que veio com o outro, que já estava com ele, e
que Jesus saúda também.
A velha Mariana, apesar de tudo, não solta a aba do manto, nem cede o
seu lugar ao lado de Jesus, enquanto não estão ainda pondo o pé na entrada.
É aí que ela geme:
– Uma bênção para que eu seja feliz! Agora Tu estás aqui… eu vou para
minha pobre casa e… e tudo o que é bonito se acabou!
Quanta saudade naquela voz senil!
Jacó, ao qual sua mulher falou em voz baixa, diz:
– Não, Mariana de Eliseu. Fica tu também na minha casa, como se tu
fosses uma discípula. Fica, enquanto o Mestre estiver conosco, e alegra-te
com isso.
– Deus te abençoe, homem. Tu compreendes a caridade.
– Mestre… Ela te conduziu à minha casa. Tu me fizeste esta graça e
caridade. Eu não estou fazendo nada mais do que retribuir, e sempre de uma
maneira deficiente, ao muito que de Ti e dela eu recebi. Entra, entrai, e
hospedai-vos em minha casa.
Lá fora, na rua, a multidão os vê entrar, e grita:
– E nós? Nós queremos ouvir a palavra dele.
Jesus se vira para eles:
– Já é noite. Vós estais cansados. Preparai vossa alma para um santo
repouso, e amanhã ouvireis a palavra de Deus. Por enquanto, estejam
convosco a paz e a bênção.
E o portão se fecha, com a bênção e paz que vêm daquela casa.
Tiago de Zebedeu faz uma observação ao Senhor, enquanto estão
lavando as mãos, após a viagem:
– Talvez fosse melhor falar logo, e partir amanhã cedo. Os fariseus
estão na cidade. Filipe me disse. Eles te irão aborrecer.
– Os que teriam ficado aborrecidos por causa deles estão longe. O
aborrecimento que Me poderão dar não tem importância. O amor o anulará.
295.4Na manhã seguinte… A saída da casa está muito festiva, com a
presença dos familiares de Filipe, e dos apóstolos. A velhinha vai atrás. Dá-
se o encontro com os habitantes de Arbela que, pacientes, o estão
esperando. Dirigem-se para a praça principal, onde Jesus já está começando
a falar.
– Lê-se no capítulo oitavo do segundo livro de Esdras isto que agora
vou repetir-vos: “Tendo chegado o sétimo mês…” –(Jesus me diz: “Não
ponhas outra coisa. Estou repetindo integralmente as palavras do livro[93]”).
Quando é que um povo volta para sua pátria? Quando volta para as
terras de seus pais. Eu venho para levar-vos de novo para as terras do vosso
Pai, para o Reino do Pai. E Eu posso fazer isso, porque para isso é que Eu
fui enviado. Eu venho, pois, para levar-vos para o Reino de Deus, e por isso
é justo comparar-vos com os repatriados que chegaram com Zorobabel a
Jerusalém, a cidade do Senhor, e é justo fazer convosco como o escriba
Esdras fez com o povo reunido de novo do lado de dentro dos sagrados
muros. Porque reconstruir uma cidade e dedicá-la ao Senhor, mas fazê-lo
deixando de reconstruir as almas, que são como umas pequenas cidades de
Deus, seria uma estultícia inominável.
Como reconstruir estas pequenas cidades espirituais, que tantas causas
fizeram desmoronar? De que materiais iremos lançar mão para reconstruí-
las sólidas, belas e duradouras? Os materiais estão nos preceitos do Senhor,
os dez mandamentos, e vós os sabeis, porque Filipe, vosso filho e meu
discípulo, vo-los fez recordar. Os dois santos, entre os santos preceitos, são:
“Ama a Deus com todo o teu ser. E ao próximo como a ti mesmo.” Nestes
dois está o compêndio da Lei. E estes são os que Eu prego, porque com eles
está assegurada a conquista do Reino de Deus. No amor é que se encontra a
força de conservar-se santos, de se tornar santos, a força do perdão, a força
do heroísmo nas virtudes. Tudo se encontra no amor.
295.5Não é o medo o que salva. O medo do julgamento por Deus, o medo das
sanções humanas, o medo das doenças. O medo nunca foi construtivo. Ele
abala, tritura, desorganiza, arrebenta. O medo leva ao desespero, a buscar
artifícios para esconder as malfeitorias, a temer, quando o temor é inútil,
porque o mal já está em nós. Quem pensa, enquanto está são, em agir com
prudência, por ter dó do seu corpo? Ninguém. Mas, logo que o primeiro
arrepio da febre percorre as suas veias, ou uma mancha o faz pensar em
doenças imundas, eis que, então, vem o medo, com um tormento aliado da
doença, como mais uma força desagregadora, em um corpo que a doença já
começou a desagregar. O amor, pelo contrário, é construtor. Ele edifica,
solidifica, mantém a compacidade e preserva. O amor nos leva a ter
esperança em Deus. Ele nos leva a evitar fazer o mal. O amor nos leva a ser
prudentes para com a nossa própria pessoa, que não é o centro do universo,
como pensam e como agem os egoístas e os falsos amorosos de si mesmos,
porque amam de si mesmos só uma parte: a menos nobre, com prejuízo da
parte imortal e santa, a que sempre nós temos o dever de conservar sã,
enquanto Deus não desejar o contrário, para poderem ser úteis a si mesmos,
aos pais, à própria cidade e a toda a nação.
É inevitável que venham as doenças. E não está dito que toda doença
seja prova da existência de algum vício, ou uma punição. Há santas
doenças, mandadas pelo Senhor aos seus justos, para que no mundo, que
pensa que ele mesmo e tudo é um meio de prazer, haja santos, que são como
uns reféns de guerra, para a salvação dos outros, e que pagam pessoalmente,
a fim de que seja expiada, com o seu sofrimento, que o mundo diariamente
vai acumulando, e que terminaria desmoronando sobre a Humanidade,
sepultando-a sob a sua maldição. Estais lembrados[94] do velho Moisés,
orando, enquanto Josué combatia em nome do Senhor? Deveis pensar que,
quem sofre com santidade, move a maior das ofensivas ao feroz guerreiro
que está no mundo, escondido sob as aparências de homens e de povos, a
satanás, e, naquela ofensiva, ele se bate também por todos os outros
homens. Mas, que grande diferença destas santas doenças, que Deus envia,
daquelas que são mandadas pelo vício, por algum pecaminoso amor para
com a sensualidade! As primeiras são provas da vontade benéfica de Deus
para conosco; as segundas são provas da corrupção, que vem de satanás.
Porém, é necessário amar para ser santos, porque o amor cria, preserva,
santifica.
295.6Também Eu, anunciando-vos esta verdade, vos digo, como Neemias
e Esdras: “Este dia é consagrado ao Senhor nosso Deus. Nele não ponhais
luto, não choreis.” Porque todo luto há de cessar, quando se vive o dia do
Senhor. Com a aspereza da morte, porque da perda de um filho, de um
esposo, de um pai, de uma mãe ou irmãos, vem apenas uma separação
temporária e limitada. Temporária, porque ela cessa com a nossa morte.
Limitada, porque se limita ao corpo, aos sentidos. A alma nada perde com a
morte do parente falecido, pelo contrário, com isso, não fica limitada a
liberdade em que fica somente uma das partes: a de nós que ainda ficamos
vivos com nossa almas encerradas na carne, enquanto que a outra parte, a
que já passou para a segunda vida goza da liberdade e do poder de velar por
nós, e de conseguir para nós muito, muito mais do que quando ela vos
amava, ainda encerrada no cárcere do corpo.
Eu vos digo, como Neemias e Esdras: “Ide comer carnes gordas e beber
vinho doce, e mandai porções disso aos que isso não têm, pois hoje é dia
consagrado ao Senhor, e por isso nele ninguém deve sofrer. Não vos
entristeçais, porque a alegria do Senhor, que está entre vós, é a força de
quem recebe a graça do Senhor Altíssimo dentro dos seus próprios muros,
em seus próprios corações.”
Vós não podeis mais fazer os Tabernáculos. O tempo deles já passou.
Mas erguei tabernáculos espirituais em vossos corações. Subi ao monte, isto
e, crescei na Perfeição. Colhei ramos de oliveiras, de mirto, de palmeiras,
de carvalho, de hissopo, de toda planta bela. Ramos das virtudes da paz, da
pureza, do heroísmo, da mortificação, de todas, todas as virtudes. Ornai o
vosso espírito, celebrando a festa do Senhor. Os seus Tabernáculos vos
esperam. Os seus. E são belos, santos, eternos, abertos a todos aqueles que
vivem no Senhor. E junto comigo, hoje, proponde fazer penitencia pelo
passado, proponde começar uma vida nova.
Não tenhais medo do Senhor. Ele vos chama, porque vos ama. Não
tenhais medo. Sois seus filhos, como cada um de Israel. Também para vós
Ele fez todas as criaturas e o Céu. Para vós suscitou Abraão e Moisés, abriu
pelo meio o mar, criou a nuvem que guiava o povo, desceu do Céu para dar
a Lei e abriu as nuvens, para que chovesse o maná, tornou fecunda a rocha,
para que ela desse água. E agora, ah! agora também para vós manda o vivo
Pão do Céu para as vossas fomes, manda a Verdadeira Videira e a Fonte de
Vida eterna para a vossa sede. E, por minha boca, Ele vos diz: “Entrai, e
possuí a terra sobre a qual Eu ergui a mão, a fim de vo-la dar.” A minha
terra espiritual: o Reino dos Céus.
295.7A multidão troca palavras cheias de entusiasmo… Depois é a vez
dos doentes. São muitos. Jesus faz que eles se ponham em duas filas e,
enquanto vão fazendo isso, Ele pergunta a Filipe de Arbela:
– Por que não os curaste tu?
– Para que eles possam ter o que eu tive: a graça de receber a cura por
tuas mãos.
Jesus passa, abençoando um por um os doentes e é o prodígio de
costume que se vai repetindo de cegos que passam a ver, de surdos que
passam a ouvir, de mudos que começam a falar, de encolhidos que se
endireitam, de febres que cessam, de fraquezas que desaparecem.
As curas terminaram. 295.8Por fim, tendo sido curado o último doente,
chegam os dois fariseus, que haviam ido a Bozra, com mais dois.
– A paz esteja contigo, Mestre. E a nós não dizes nada?
– Eu falei para todos.
– Mas nós, daquelas palavras não temos necessidade. Nós somos os
santos de Israel.
– A vós, que sois mestres, Eu digo: comentai entre vós o capítulo que
vem em seguida, o nono[95] do segundo livros de Esdras, lembrando-vos de
quantas vezes até hoje Deus usou para convosco de misericórdia, batei no
peito, e dizei, como se fosse uma oração, a conclusão do capítulo.
– Muito bem, muito bem, Mestre. E os teus discípulos fazem isso?
– Sim. É a primeira coisa que exijo deles.
– Todos eles o fazem? Até os homicidas, que estão nas tuas fileiras?
– Achais que o sangue cheira mal?
– A voz dele brada ao Céu.
– Nesse caso, fazei por onde não imitar aos que o derramam.
– Nós não somos assassinos.
Jesus os fita, transpassando-os com seu olhar. Por algum tempo eles
não ousam dizer nada. Mas vão colocar-se atrás do grupo, que vai indo de
volta para a casa de Filipe, o qual se sente no dever de convidá-los a entrar
e tomar parte no banquete.
– Com muito gosto, muito! Estaremos por mais tempo com o Mestre –
dizem eles com grandes inclinações.
Mas, tendo chegado à casa, parecem cães sabujos… Olham, especulam,
fazem perguntas maldosas aos servos, e até à velhinha, que me parece
atraída por Jesus como o ferro pelo imã. Mas ela prontamente lhes
responde:
– Ontem, eu vi estes sozinhos. Vós estais sonhando. Eu os acompanhei
até aqui, e dos discípulos de João não estava aqui senão aquele rapaz louro
e bom como um anjo.
Eles fulminam a vovozinha com um palavrão e saem dali para outro
lado. Mas um dos servos, sem responder diretamente a eles, inclina-se para
Jesus, que está sentado e conversando com o dono da casa, e lhe pergunta:
– Onde está João de Endor? Este senhor o está procurando.
O fariseu olha, irado, para o servo, e lhe chama “estulto.”
Mas Jesus já está ciente das intenções deles, e é preciso tomar as
medidas possíveis. O fariseu diz:
– Era nossa intenção congratular-nos contigo por esse prodígio que é a
tua doutrina, Mestre, e prestar-te uma homenagem por aquele que se
converteu.
– João está longe para sempre e sempre mais o estará.
– Ele tornou a cair no pecado?
– Não. Ele está subindo para o Céu. Imitai-o e o encontrareis na outra
vida.
Os quatro não sabem mais o que dizer e, prudentemente, estão
conversando sobre outro assunto.
Os servos anunciam que as mesas já estão prontas e todos passam para
a sala do banquete.
[…]
[93] as palavras do livro são aquelas de Neemias 8, segundo a neo-vulgata.
[94] Estais lembrados, como se narra em Êxodo 17,8-16.
[95] o nono [capítulo] do segundo [livro] de Esdras corresponde, na neo-vulgata, a Neemias 9.
Segundo ano
da Vida pública de Jesus.
(continuação e fim)

296. Chegando em Aera sob a chuva


e a cura dos doentes que estavam à espera.
6 de outubro de 1945.
296.1 Arbela também já ficou longe. Na comitiva estão agora Filipe de
Arbela e outro discípulo, que eu ouço chamarem de Marcos.
A estrada está barrenta e parece ter chovido muito. O céu está cinzento.
Um riozinho, bem digno deste nome, cruza o caminho que vai para Aera.
Ele está transbordando por causa das chuvas que, com certeza, desabaram
sobre esta região, e por isso ele não está da cor do céu, mas está de um
amarelo avermelhado, como se estivesse levando águas que passaram por
terrenos ferruginosos.
– Que tempo feio. Bem fizeste Tu em mandar as mulheres embora Não
é conveniente mais que elas andem pelas estradas –sentencia Tiago.
E Simão Zelotes, sempre pacato, até em sua completa dedicação ao
Mestre, proclama:
– O que o Mestre faz faz bem. Ele vê e prevê tudo para o melhor, e
mais para nós do que para Ele.
João, feliz por estar ao lado de Jesus, olha para Ele, de alto a baixo,
com seu rosto sorridente, e diz:
– És o mais querido e bom Mestre que a terra já teve, tem e terá, além
de ser o mais santo.
– Aqueles fariseus… Que desilusão! E para aquilo serviu também o
mau tempo, para persuadi-los de que João de Endor não estava mesmo.
Mas, por que, então, estariam eles tão contra ele? –pergunta Hermasteu, que
sempre fala de João de Endor com muita ternura.
Responde Jesus:
– O ódio deles não é sobre ele, ou por causa dele. Mas para eles ele é
uma arma, que eles usam contra Mim.
Filipe de Arbela diz:
– Pois bem. A chuva os fez ficar mais do que persuadidos de que era
inútil esperar e suspeitar de João de Endor. Viva a chuva! Ela serviu
também para eu ter-te em minha casa por cinco dias.
– Quem poderá saber o que é que estão pensando aqueles de Aera! Já
será bom, se não virmos vindo ao nosso encontro o meu irmão –diz André.
– Ao nosso encontro? Ele virá atrás de nós –observa Mateus.
– Não. Ele vinha pela estrada do lago. Porque, de Gadara ele podia ir ao
lago e, com alguma barca, chegar até Betsaida para ver a mulher e dizer-lhe
que o menino está em Nazaré e que ele logo estará de volta. De Betsaida,
passando por Meron, ele tomará o caminho de Damasco, por pouco tempo,
e depois o de Aera. Certamente ele está em Aera.
296.2Fazem um silêncio. Depois, João diz, sorrindo:
– Mas, e aquela velhinha, Senhor!
– Eu tinha quase certeza de que Tu lhe ias dar a alegria de morrer sobre
o teu peito, como fizeste a Saul de Keriot[1] –observa Simão Zelotes.
– Eu desejei para ela um bem ainda maior. Porque Eu espero chamá-la
a Mim, quando o Cristo estiver para abrir as portas dos Céus. Não terá que
parar e ficar me esperando por muito tempo, a pequena mãe. Agora que ela
está vivendo de suas lembranças e, com a ajuda de teu pai, Filipe, a vida
dela será menos triste. Eu te abençôo ainda, e aos teus pais.
A alegria de João cobriu-se com uma nuvem mais espessa do que a que
está cobrindo o céu agora. Jesus vê isso, e diz:
– Não ficas contente por ir a velhinha logo para o Paraíso?
– Sim… Mas não estou, porque isso quer dizer que Tu irás embora…
Por que morrer, Senhor?
– Quem nasceu de mulher, morre.
– Terás aquela só, Senhor?
– Oh! Não. E como vai ser festivo o caminhar destes que Eu salvo
como Deus e que amei como homem…
296.3Mais dois riozinhos, um perto do outro, já ficaram para trás.
Começa a chover sobre a região plana, que se estende diante dos
peregrinos, depois que eles passaram pelas colinas, na encruzilhada deles
com a estrada, que entra por um vale e continua, indo para o norte[2].
Para o lado do norte, ou melhor, de um noroeste muito pouco ocidental,
vêem-se os delineamentos de uma grande cadeia de montanhas, sobre os
quais estão acasteladas nuvens e mais nuvens, parecendo formarem novos
cumes ilusórios sobre os cumes reais de rocha, cobertos de bosques dos
lados e de neve nos picos. Mas é uma cadeia muito distante.
– Aqui, chuva. Lá em cima, neve. Aquela é a cadeia do Hermon. Ela se
avolumou em uma colcha de brancura sobre o cume mais ampla. Se
tivermos sol em Aera, vós vereis como é bonito, quando o sol faz ficar cor-
de-rosa o grande pico –diz Timoneu, que o amor à sua pátria leva a louvar
as belezas de sua região.
– Neste meio tempo continua chovendo. Aera ainda está longe? –
pergunta Mateus.
– Muito. Até à tarde, não chegaremos lá.
– Deus nos salve das doenças então –termina Mateus, pouco disposto a
caminhar com este mau tempo.
Todos estão agasalhados com seus mantos e, por baixo deles, levam os
sacos de viagem, que assim ficam protegidos da umidade e também ficam
protegidas as vestes, a fim de que possam mudá-las logo que chegarem,
visto que as que estão usando agora já estão pingando água e, em suas
partes baixas, já estão pesadas, carregadas de lama.
Jesus vai à frente, absorto em seus pensamentos. Os outros vão
comendo aos pouquinhos o seu pão, e João graceja, dizendo:
– Não há necessidade de procurar fontes para matar a sede: basta virar a
cabeça para trás e abrir a boca, que os anjos te dão água.
Hermasteu que, por ser também jovem, tem, junto com Filipe de Arbela
e João, a disposição de levar tudo com alegria, diz:
– Simão de Jonas se queixava dos camelos. Mas eu preferiria estar
naquela torre derrubada por um terremoto, a estar nesta lama. Que dizes tu?
E João:
– Eu digo que estou bem em toda parte, contanto que tenhamos Jesus…
Os três jovens põem-se a falar, olhos nos olhos uns dos outros. Os
quatro mais adultos apertam o passo, indo para perto de Jesus. Os últimos
dois, Timoneu e Marcos, vão ficando atrás, falando…
296.4– Mestre, em Aera estaremos com Judas de Simão… –diz André.
– Certamente. E com ele estarão Tomé, Natanael e Filipe.
– Mestre, eu vou ter saudades destes dias de paz –suspira Tiago.
– Não deves dizer isto, Tiago.
– Eu sei… Mas não posso deixar por menos… –e Tiago solta um outro
suspiro.
– Estará convosco também Simão Pedro com os meus irmãos. Não
ficas contente?
– Eu muito! Mestre, por que Judas de Simão é tão diferente de nós?
– Por que a chuva se alterna com o sol, o calor com o frio, a luz com as
trevas?
– É porque não se poderia ter sempre uma só coisa. A vida sobre a terra
morreria.
– Falaste bem, Tiago.
– Sim. Mas com Judas isso não dá certo.
– Responde-me. Por que as estrelas não são todas como o sol, grandes,
belas e fortes?
– Porque a terra se queimaria, exposta a tanto fogo.
– Por que as plantas não são todas como aquelas nogueiras? Por plantas
entendo todos os vegetais.
– Porque… os animais não poderiam comer delas.
– Então, por que não são todas como as ervas?
– Porque não teríamos lenha para queimar, nem madeira para fazer as
casas, os utensílios, os carros, as barcas, os móveis.
– Por que os passarinhos não são todos águias e os animais não são
todos elefantes ou camelos?
– Estaríamos bem arranjados, se assim fosse!
– Então estas variedades te parecem, uma coisa boa?
– Sem dúvida.
– Pensas, então, que no teu parecerpara que será, que Deus as fez?
– Para dar-nos toda a ajuda possível.
– Portanto, foi para o bem? Tens certeza disso?
– Como tenho certeza de estar vivo neste momento.
– E, então? Se tu achas justo que haja diversidades nas espécies
animais, vegetais e astrais, por que pretendes que todos os homens sejam
iguais? Cada um tem a sua missão e a sua forma. A infinita diversidade das
espécies te parece um sinal de poder do Criador?
– Sinal de poder. Uma serve para fazer ressaltar a outra.
– Muito bem, Também Judas serve para isso, e tu serves aos teus
companheiros, e eles servem a ti. Nós temos trinta e dois dentes na boca e,
se olhares bem para eles, verás que são bem diferentes uns dos outros. Não
somente em suas três classes, mas até entre os indivíduos de uma mesma
classe. E agora que tu estás comendo, podes observar qual o trabalho deles.
Verás que aqueles dentes que te parecem pouco úteis, e que trabalham
pouco são justamente os que fazem o primeiro trabalho de cortar o pão, que
vai ser levado para os outros, que esmiúçam os pedaços, para passá-los aos
outros, que reduzem os pedaços a uma papa. Não é assim? Judas, a ti te
parece não faz nada, ou faz mal o que faz. Eu te lembro que ele
evangelizou, e bem, toda a Judéia meridional e que, como tu disseste, sabe
tratar com os fariseus.
– É verdade.
Mateus observa:
– É também muito hábil para arranjar dinheiro para os pobres. Ele
pode, e sabe pedir, como nem eu sei… talvez porque o dinheiro agora me
causa náuseas.
296.5 Simão Zelotes inclina o rosto, que se torna carmesim, de tão
vermelho. André, que viu isso, lhe pergunta:
– Estás sentindo-te mal?
– Não, não… O cansaço… não sei.
Jesus olha fixamente para ele, e ele vai ficando cada vez mais
vermelho. Mas Jesus não diz nada.
Vai correndo para a frente Timoneu:
– Mestre, lá adiante já se pode ver o lugarejo que fica logo antes de
Aera. Poderemos parar lá, ou pedir uns burrinhos.
– Mas a chuva já está passando. É melhor prosseguir.
– Como quiseres, Mestre. Mas, então, se me permites, eu vou à frente.
– Então, vai.
Timoneu parte correndo, com Marcos.
E Jesus, sorrindo, observa:
– Ele está querendo que tenhamos uma entrada triunfal lá.
Já estão de novo todos no grupo. Jesus deixa que se anime a
conversação sobre as diferenças das regiões, e depois se retira para trás,
tomando consigo o Zelotes. Logo que os dois ficam sozinhos, Ele pergunta:
– Por que estás tão corado, Simão?
Simão fica como uma brasa, e não fala. Jesus repete a pergunta, e ele
fica mais corado e mais calado. Jesus torna a perguntar.
– Senhor, mas Tu sabes. Por que queres fazer que eu o diga –grita o
Zelotes, sentindo a dor, como se estivesse sendo torturado.
– Tens certeza disso?
– Ele não mo negou. Mas disse: “Eu faço assim por previdência. Eu
tenho bom senso. O Mestre não pensa nunca no dia de amanhã.” Que se
sabe que é verdade. Contudo… é sempre… é sempre… Mestre, dize Tu
qual é a palavra exata.
– É sempre demonstração de que Judas é apenas um “homem.” Não
sabe elevar-se, para ser um espírito. Mas, uns mais, outros menos, sois
todos assim. Tendes medo de coisas sem importância e vos atormentais com
previdências inúteis. Não sabeis crer que a Providência é poderosa e está
presente. Está bem: que isto fique entre nós dois. Não é verdade?
– Sim, Mestre.
Faz-se silêncio. Depois Jesus diz:
– Dentro de pouco tempo chegaremos ao lago… Vai ser bom um pouco
de recolhimento, depois de termos andado tanto. Nós dois iremos a Nazaré,
por algum tempo, por ocasião das Encênias. Tu estás sozinho… Os outros
estarão com suas famílias… Tu ficarás comigo.
– Senhor, Judas e Tomé, e também Mateus estão sozinhos.
– Não penses nisso. Cada um fará as festas em família. Mateus tem a
irmã dele. Tu estás sozinho. A não ser que queiras ir para a casa de
Lázaro…
– Não, Senhor, prorrompe Simão. Não. Eu amo Lázaro. Mas estar
contigo é estar no Paraíso. Obrigado, Senhor.
E lhe beija a mão.
296.6O lugarejo já ficou um pouco para trás, quando, debaixo de um novo
aguaceiro, tornam a aparecer na estrada inundada, Timoneu e Marcos, que
gritam:
– Parai! Aqui está Simão Pedro com uns burrinhos. Eu me encontrei
com ele que vinha vindo para este lugar com os animais, debaixo de chuva.
Eles param debaixo das copas de uns carvalhos, que os protegem um
pouco do aguaceiro. E eis que lá vem, montado num burro, que está
servindo de guia para uma fileira de burrinhos, Pedro, que mais está
parecendo um frade, por baixo da cobertura que ele pôs sobre a cabeça e os
ombros.
– Deus te abençoe, Mestre! Mas, eu havia dito que ficaria molhado
como alguém que caiu no lago! Vamos logo, todos a cavalo, que Aera está
pegando fogo, de tanto que conserva acesos os fogões para Te enxugar!
Vamos, vamos logo… Em que condições estais! Mas, olhai para cá! Não
éreis capazes de detê-lo? Ah! Se eu estivesse aqui! Ah! Olhem para cá. Ele
está com os cabelos eriçados como se fosse um afogado. Deves estar
gelado. Debaixo deste aguaceiro! Que imprudências! E vós? E vós? Oh!
Coitados! Tu, em primeiro lugar, meu estulto irmão, e depois todos os
outros. Como estais bonitinhos! Pareceis uns sacos, que caíram num charco.
Vamos depressa! Ah! Eu não confio em vós para vo-lo contfiar. Eu vou
indo atrás e me sufoco de horror…
– E também de falar, Simão –diz calmamente Jesus, enquanto o burro
começa a trotar ao lado do de Pedro, na frente da caravana dos burros.
Jesus repete:
– E também de falar. E de um falar inútil. Não me disseste se os outros
chegaram… Se as mulheres partiram. Se tua mulher está bem. Não me
contaste nada.
– Eu te direi tudo. Mas, por que partiste debaixo desta chuva?
– E tu, por que vieste?
– Porque eu tinha pressa de ver-te, Mestre meu!
– Porque eu tinha pressa de unir-me a ti, meu Simão.
– Oh! Caro Mestre meu! Como te quero bem! Esposa, meninos, casa?
Nada, nada! Tudo é feio, se não estás aqui. Crês Tu que eu te amo assim?
– Eu o creio. Eu sei quem tu és, Simão.
– Quem?
– Um menino grande, cheio de pequenos defeitos e, por baixo deles,
estão sepultados muitos belos dotes. Mas um deles não está sepultado. E é a
tua honestidade em tudo. 296.7E, então, quem é que está em Aera?
– Judas, teu irmão, com Tiago, mais Judas de Keriot com os outros.
Parece-me que Judas fez um grande bem. Todos o estão elogiando…
– Ele te fez perguntas?
– Oh! Muitas! Eu não respondi a nenhuma, dizendo que não sabia nada.
De fato, que sei eu, a não ser que acompanhei as mulheres, até perto de
Gadara? Sabes… eu não lhe disse nada sobre João de Endor. Ele acha que
João esteja contigo. Deverias dizê-lo aos outros.
– Não. Eles também, como tu, não sabem onde está João. É inútil falar
mais. Mas, estes burros!… Durante três dias!… Quantas despesas! E os
pobres?
– Os pobres… Judas está cheio de dinheiro, e pensa neles. Estes burros
não me custaram um centavo. As pessoas de Aera me teriam dado até mil
deles, sem despesa para Ti. Eu tive que levantar a voz para impedir que
tivesse que vir ao teu encontro com um exército de asnos. Tem razão
Timoneu. Aqui todos crêem em Ti. Eles são melhores do que nós… –diz
Pedro, e suspira.
– Simão, Simão! No Além-Jordão nós fomos honrados: um galeote,
umas pagãs e umas pecadoras e umas mulheres que nos deram lição de
perfeição. Lembra-te disso, Simão do Jonas. Sempre.
– Procurarei fazê-lo, Senhor. Eis, eis os primeiros de Aera. Olha,
quantas pessoas. Eis a mãe de Timoneu. Eis os teus irmãos, no meio da
multidão. Eis os discípulos, os que tinhas mandado na frente àqueles que
foram com Judas de Keriot. Eis o mais rico de Aera, com os seus servos.
Ele te queria em sua casa. Mas a mãe de Timoneu fez valer o seu direito, e
Tu ficas na casa dela. Olha, olha como estão encolerizados, porque o vento
está apagando as tochas. 296.8Lá há muitos doentes, sabes? Eles ficaram na
cidade, perto das portas, para poderem ver-te logo.Um homem, que tem um
depósito de lenha, os acolheu debaixo dos seus telheiros. E há três dias que
lá estão, pobre gente, desde quando nós chegamos, e ficamos espantados
por não estares lá.
O grito da multidão impede Pedro de continuar, e ele cala, ficando ao
lado de Jesus, como um escudeiro. A multidão, que já se aglomerou, se
abre, e Jesus passa, montado em seu burrinho, abençoando enquanto passa,
continuamente.
Entram na cidade.
– Vamos aos doentes, logo –diz Jesus sem dar importância aos protestos
dos que o quereriam ver abrigando-se dentro de casa e dar-lhe comida e
aquecimento, porque eles temem que Ele esteja sofrendo muito–. Eles
sofrem mais do que Eu –responde.
Dobram para a direita. Chegam ao rústico recinto do depósito de
madeira. A porta está escancarada, e um queixoso gemido vem lá de dentro:
– Jesus, Filho de Davi, tem piedade de nós!
É um coro suplicante e contínuo como uma ladainha.Vozes de meninos,
vozes de mulheres, vozes de homens, vozes de velhos. Vozes tristes, como
balidos de cordeirinhos que estão sofrendo, cheios de amargura como as de
mães que estão morrendo, esmorecidas como os de quem só tem uma
esperança, trêmulas como quem não sabe mais por qual motivo precisa
chorar…
Jesus entra no recinto, ergue a cabeça o mais que pode, levanta bem a
mão direita, e diz, com sua voz forte:
– A todos os que crêem em Mim, saúde e bênção.
Depois torna a montar no burrinho, e faz como se fosse voltar pelo
mesmo caminho. Mas a multidão o aperta, e os recém-curados se
aproximam dele e o rodeiam. E, à luz de tochas que, ao abrigo dos pórticos
estão acesas, e tornam vivo de luz o crepúsculo, ve-se a multidão que se
movimenta, em um delírio de alegria, aclamando o Senhor. O Senhor quase
desaparece, pelo meio de uma florada de meninos recém-curados, que as
mães foram pôr em seus braços, no colo, e até sobre o pescoço do burrinho,
segurando-os para que não caiam. Jesus está com os braços cheios deles,
como se eles fossem flores, e sorri alegremente, beijando-os, porque não
pode abençoá-los, visto que está com os braços segurando os meninos.
Finalmente, os meninos são tirados de 1á, e são os velhos recém-curados
que choram de alegria, e lhe beijam a veste. Depois, vem os homens e as
mulheres…
É noite feita, quando Ele consegue entrar na casa de Timoneu e
restaurar-se com o fogo e as vestes secas.
[1] como Saul de Keriot em 78.8.
[2] para o norte. No texto autógrafo MV realizou o esboço a lápis, sem palavras, que é reproduzido na página ao lado.
297. Com o discurso em Aera termina
a segunda grande viagem apostólica.
7 de outubro de 1945.
297.1 Jesus fala na praça principal de Aera:
– … E Eu não estou a falar-vos, como já falei em outros lugares, das
primeiras e indispensáveis coisas que se devem saber ou fazer, para que
possais salvar-vos. Vós as sabeis, e muito bem, por obra de Timoneu, sábio
sinagogo da Lei antiga, e agora sapientíssimo, porque a renova à luz da
nova Lei. Mas Eu quero que estejam praparados contra um perigo que, no
estado de espírito em que vos achais, não estais podendo enxergar. É o
perigo de serdes desviados por meio de pressões e insinuações para afastar-
vos dessa fé que agora tendes em Mim. Agora Eu vou deixar-vos Timoneu
por algum tempo. E com os outros ele vos explicará as palavras do Livro, à
luz nova da minha Verdade, que ele abraçou. Mas, antes de deixar-vos,
depois de ter perscrutado os vossos corações e ter visto que eles são
sinceros em seu amor, cheios de boa vontade e humildade, Eu quero
comentar convosco um ponto do quarto livro dos Reis.
297.2Quando Ezequias, rei de Judá, foi atacado por Senaqueribe, foram a
ele, para amedrontá-lo, os três grandes do rei inimigo.para aterrorizá-lo com
alianças desfeitas e potências que o circundavam. E, às palavras prementes
daqueles enviados, Eliaquim, Sobna e José responderam. “Fala-nos de
modo que o povo não compreenda”, e diziam assim a fim de que não
acontecesse que o povo, aterrorizado, pedisse a paz. Mas os enviados de
Senaqueribe queriam isso mesmo e, em alta voz, disseram, falando em
hebraico, e bem claro: “Que Ezequias não vos engane. Fazei conosco o que
é bom para vós, e entregai-vos. Assim, cada um poderá comer uvas de sua
vinha e figos de suas figueiras, e bebereis das águas de vossas cisternas,
enquanto não viermos transportar-vos para uma terra parecida com a vossa,
para uma terra fecunda, que produz um bom vinho, uma terra onde há
abundância de pão e de uvas, uma terra de oliveiras, de azeite e mel, onde
vós vivereis, e não morrereis de fome.” E está escrito no livro: “O povo não
respondeu, porque havia recebido ordem do rei para não responder.”
Aí está. Eu também, por piedade para com as vossas almas, assediadas
por forças ainda mais ferozes do que as do Senaqueribe, que podia matar os
corpos mas não podia atacar os espíritos — enquanto que a vós é aos vossos
espíritos que se move guerra por um exército inimigo capitaneado pelo mais
feroz e cruel déspota que existe entre as criaturas —, roguei aos que eram
enviados para isso, os quais, para Me ofenderem em vós, tentam aterrorizar
a mim e a vós, com ameaças de tremendos castigos, dizendo: “Falai
somente comigo. Mas deixai em paz as almas que estão nascendo agora
para a Luz. Atormentai-me, torturai-me, acusai-me, matai-me, mas não vos
encarniceis contra estes filhinhos da Luz. Eles são débeis ainda. Um dia
serão fortes. Mas, por enquanto, são débeis Não vos enfureçais contra eles.
Não vos enfureçais contra a liberdade que hão de ter os espíritos para
escolherem seu caminho. Não vos enfureçais contra o direito de Deus de
chamar a Si a estes que o procuram com simplicidade e amor.”
Mas, quando irá acontecer que alguém que odeia ceda às orações
daquele que ele odeia? Pode, por acaso, alguém que está tomado pelo ódio
conhecer o amor? Não pode. Por isso, ainda com maior dureza, e sempre
com mais dureza, virão dizer-vos: “Que não vos seduza o Cristo. Vinde
conosco, e tereis todo o bem.” E vos dirão: “Ai de vós, se o seguirdes.
Sereis perseguidos.” E irão em vosso encalço, com uma fingida bondade
para convosco: “Salvai as vossas almas. Ele é um Satanás.” Eles vos dirão
muitas coisas de Mim. E serão tantas, capazes de persuadir-vos a abandonar
a Luz.
Eu vos digo: “Aos tentadores, respondei com o silêncio.” Quando,
então, a força do Senhor tiver descido aos corações dos fiéis de Jesus
Cristo, Messias e Salvador, então podereis falar, porque já não sois vós, mas
o próprio Espírito de Deus, que falará pelos vossos lábios, e os vossos
espíritos já serão adultos na Graça, fortes e invencíveis na Fé.
Sede perseverantes. Não vos peço mais do que isto. Recordai-vos de
que Deus não pode consentir nos sortilégios de algum inimigo seu. Os
vossos doentes, os que tiveram conforto e paz para o seu espírito, que falem
sempre entre vós, apenas com a sua presença, de quem é Aquele que veio
entre vós para dizer “Perseverai no meu amor e na minha doutrina, e tereis
o Reino dos Céus.” As minhas obras falam ainda mais do que as minhas
palavras, e por mais que seja perfeita felicidade saber crer sem ter
necessidade de provas, Eu vos permiti ver os prodígios de Deus, a fim de
ficardes fortificados na fé. Respondei ao vosso cérebro, tentado pelos
inimigos da Luz, com as palavras de vosso espírito: “Eu creio porque vi a
Deus em suas obras.” Respondei aos inimigos com um silêncio operoso. E,
com estas duas respostas, andai para a frente, na Luz. A paz esteja sempre
convosco.
E se despede deles, andando para fora da praça.
297.3 – Por que falaste a eles tão pouco, Senhor? Timoneu poderia ficar
decepcionado por isso –diz Natanael.
– Não ficará, porque ele é um justo, e compreende que advertir alguém
de um perigo, é amá-lo com um amor mais forte. E esse perigo está muito
presente.
– Sempre os fariseus, não é? –pergunta Mateus.
– Eles e outros.
– Estás muito cansado, Senhor? –pergunta, angustiado, João.
– Não. Não mais do que de costume.
– Contudo, estavas bem alegre nestes dias passados…
– Será uma tristeza não ter mais os discípulos contigo. Mas, por que os
mandastes embora? Queres ainda continuar a viagem –pergunta Iscariotes.
– Não. Esta é a última viagem longa. Daqui iremos para casa. Pois as
mulheres não podiam mais prosseguir com esta estação. Elas já fizeram
muito. E não devem fazer mais do que fizeram.
– E João?
– João está doente e hospedado numa casa, como tu estiveste.
297.4Depois Jesus se despede de Timoneu e de outros discípulos, que vão
ficar naquela região e aos quais certamente Ele já deu suas ordens para o
futuro, pois não repete outros conselhos.
Estão na porta da casa de Timoneu, porque Jesus quis abençoar mais
uma vez a dona da casa. A multidão, respeitosa, o observa e o acompanha,
quando Ele retoma o caminho para o subúrbio, para as plantações de
hortaliças e para as campinas. E os mais bem dispostos o acompanham um
pouco mais em um grupo que sempre vai diminuindo, até chegarem a nove,
depois a cinco, depois a três, depois a um… e esse último também vira-se
para trás, e volta para Aera, enquanto Jesus toma a direção do ocidente, só
com os doze apóstolos, porque Hermasteu ficou com Timoneu.

Jesus diz:
297.5
– E a viagem, a segunda grande viagem dos apóstolos, está terminando.
Agora estão voltando para as conhecidas campinas da Galiléia.
Pobre Maria, estás mais extenuada do que João de Endor. Eu te autorizo
a omitir as descrições dos lugares. Tudo isso temos dado para os
pesquisadores curiosos. E sempre haverá “pesquisadores curiosos.” Nada
mais. Por enquanto, basta. A força se esvai. Conserva-a para a palavra. Com
o mesmo ânimo que Eu verificava a inutilidade de muitas das minhas
fadigas, verifico também a inutilidade de muitas das tuas fadigas. Por isso,
Eu te digo: “Conserva-te somente para a palavra.”
Tu és o “porta-voz.” Oh! Como é verdade que para ti se repete aquele
ditado[3]: “Nós tocamos músicas, e vós não cantastes; nós soltamos
lamentações, e vós não chorastes.” Tens repetido somente as minhas
palavras e os doutores difíceis torceram o nariz. Uniste às minhas palavras
as tuas descrições. E eles ainda encontram o que dizer. E tu estás extenuada.
Eu te direi quando terás que descrever a viagem. Somente Eu.
Estás para fazer um ano que Eu te feri. Não queres, antes que o ano se
complete, repousar de novo no meu coração? Vem, então, minha pequena
mártir…
[3] ditado, em 265.13.
298. O socorro aos órfãos Maria e Matias
e os ensinamentos que lhe derivam.
8 de outubro de 1945.
298.1 Revejo o lago Meron, em um dia de chuva cinzento. Barro e
nuvens. Silêncio e nevoeiros. O horizonte desaparece na névoa. As
cordilheiras do Hermon estão cobertas pelas formações de nuvens baixas.
Mas deste lugar — um pequeno planalto situado um pouco acima do
pequeno lago de cor cinzento-amarelada, por causa do barro que desce de
mil riozinhos, que nas enchentes transbordam, e pelo céu de um novembro
cheio de nuvens — vê-se bem este pequeno espelho de água formado pelo
Alto Jordão, que se alarga depois, para ir formar o outro lago maior, que é o
de Genezaré.
A tarde vem descendo, sempre mais triste e chuvosa, enquanto Jesus
vai indo pela estrada, que atravessa o Jordão, depois do lago Meron, para,
em seguida, entrar por um caminho estreito, e dirigir-se a uma casa…
(Jesus diz:
– Neste ponto colocareis a visão dos órfãos Matias e Maria, que teve
lugar a 20 de agosto de 1944).

20 de agosto de 1944.
298.2 Uma outra doce visão de Jesus e duas crianças.
Eu digo assim, porque estou vendo Jesus passando por um caminho
estreito, situado entre dois campos, que há pouco devem ter sido semeados,
pois a terra ainda está fofa e escura, como quando faz pouco tempo que
recebeu as sementes, mas ele procura ficar firme para acariciar a dois
pequeninos: um menino, que não tem mais do que quatro anos, e uma
menina que terá oito ou nove. Devem ser umas crianças muito pobres, pois
estão vestidas com umas roupinhas desbotadas e esfarrapadas, e tem uns
rostinhos tristes e definhados pelos sofrimentos.
Jesus não pergunta nada. Ele somente olha fixamente para eles,
enquanto os acaricia. Depois, se apressa em ir para uma casa, que fica no
fim do caminho. É uma casa de campo, mas bem situada, com uma escada
externa, que sobe do chão para o terraço, no qual há uma latada de videira,
que agora está despida de cachos e de folhas. Somente uma ou outra folha,
já amarelada, está pendente e sendo balançada pelo vento úmido de um
triste dia de outono. No parapeito da casa uns pombos estão arrulhando, e
esperando a chuva que o céu cinzento e todo nublado está prometendo.
Jesus, acompanhado pelos seus, empurra a cancela vermelha, que está
no muro de pedras soltas, ao redor da casa, e entra pelo pátio, nós diríamos
pelo terreiro onde está o poço e, a um canto, também está o forno. Acho que
este deve ser aquele pequeno quarto, de paredes enegrecidas pela fumaça,
que até agora mesmo dele está saindo, e que o vento está fazendo descer
para o chão.
Tendo ouvido o barulho dos passos, uma mulher aparece à porta da
casa, e vendo Jesus, o saúda com alegria, e vai correndo avisar aos de casa.
E eis que um homem, já velhinho e gordo, se apresenta à porta e se
apressa a ir a Jesus:
– Que grande honra e alegria, Mestre, poder ver-te –ele o saúda.
Jesus também diz a sua saudação:
– A paz esteja contigo.
E acrescenta:
– A tarde está chegando, e a chuva já vem perto. Eu te peço abrigo e um
pão para Mim e para os meus discípulos.
– Entra, Mestre. A minha casa é tua. O servo já está para desenfornar o
pão. Fico muito feliz em poder oferecê-lo com o queijo do leite de minhas
ovelhas e com os frutos de meus terrenos. Entra, entra, que o vento está
úmido e frio…
E, muito atencioso, segura aberta a porta, e se inclina, quando Jesus vai
passando. 298.3Mas depois, de repente, muda de tom, para dirigir-se a alguém
que ele está vendo, e lhe diz, cheio de ira:
– Ainda estás aqui? Vai-te embora. Aqui não há nada para ti. Vai-te!
Entendeste? Aqui não há lugar para vagabundos…
E resmunga por entre dentes.
– … E talvez até ladrões como tu.
Uma vozinha chorosa responde:
– Tem piedade, senhor. Um pão, pelos menos, para o meu irmãozinho.
Nós estamos com fome…
Jesus, que tinha entrado na ampla cozinha, muito vistosa, por causa da
grande lareira, que serve também de fogão para alumiá-la, vai até a entrada.
Já mudou o seu rosto. Severo e triste agora, ele pergunta, não ao
hospedeiro, mas em geral, parecendo estar falando à eira silenciosa, ou à
figueira despojada de folhas, ou ao poço escuro:
– Quem é que está com fome?
– Eu, Senhor. Eu e o meu irmão. Um pão somente, e nós iremos
embora.
Jesus está do lado de fora, na eira, que vai ficando mais sombria, por
causa do crepúsculo e de uma chuva que está para cair.
– Vêm cá –diz Ele.
– Tenho medo, Senhor.
– Vem, te digo. Não tenhas medo de Mim.
Da parte detrás da casa, aponta a pobre menina. À pequena e miserável
túnica com que ela está vestida, vem agarrado o seu irmãozinho. Eles vêm
vindo cheios de medo. Lançam um olhar tímido para Jesus, outro olhar
espavorido para o dono da casa, que está olhando para eles de soslaio, e
dizendo:
– São uns vagabundos, Mestre. E ladrões. Há pouco, eu encontrei este
esgaravatando perto do lagar. Certamente queria roubar. Ninguém sabe de
onde eles vêm. Não são deste lugar.
Jesus lhe presta atenção, por assim dizer. Olha, com um olhar muito
fixo para a menina, que está com um rosto macilento e com as trancinhas
despenteadas, com dois rabichos por detrás das orelhas, amarrados sobre a
nuca com uma tirinha de trapo. Mas o rosto de Jesus não está severo ao
olhar para a menina. Ele está triste, mas sorri para encorajá-la.
– É verdade que querias roubar? Dize a verdade.
– Não, Senhor. Eu tinha pedido um pouco de pão, porque estou com
fome. Mas não me deram. Então, eu vi uma crosta de pão, untada com óleo,
lá no chão, perto do lagar, e fui apanhá-la. Eu estou com fome, Senhor.
Ontem me foi dado somente um pão, e eu o guardei para Matias… Por que
não nos colocaram juntos com a mamãe no sepulcro?
A menina chora desconsoladamente, e o irmãozinho faz como ela.
– Não chores.
Jesus a consola, acariciando-a, e puxando-a para Si:
– Responde-me: de onde és?
– Da planície de Esdrelon.
– E vieste até aqui?
– Sim, Senhor.
– Faz muito tempo que morreu a tua mãe? E pai, tu não tens?
– Meu pai foi morto pelo sol, no tempo da colheita, e a mamãe na lua
passada… ela e o menino que ia nascer morreram…
E o choro aumentou.
– Não tens nenhum parente?
– Nós viemos de muito longe! Não éramos pobres… Depois o pai
precisou pôr-se a serviço de outros. Agora ele está morto, e minha mãe com
ele.
– Quem era o patrão dele?
– O fariseu Ismael.
– O fariseu Ismael!… –(não se pode reproduzir o modo como Jesus
repetiu esse nome)–. Vieste embora por tua vontade, ou foi ele que te
mandou?
– Ele me mandou, Senhor. Ele disse: “Que vão para a estrada os cães
esfaimados.”
298.4– E tu, Jacó, por que não deste pão a estas crianças? Um pão, um
pouco de leite e um punhado de feno para se deitarem nele, nessa canseira
em que estão?
– Mas… Mestre… o pão que eu tenho é a conta para mim… o leite é
pouco… e tê-los em casa… Esses aí são como animais vadios. Se fizermos
cara boa para eles, eles não se vão embora…
– Então, estão te faltando lugar e alimento para estes dois infelizes?
Podes dizer isso sem mentir, Jacó? A colheita grande, o vinho em
quantidade, o óleo em abundância, as frutas que tornam famosa a tua
propriedade este ano, para que foi que tudo isso veio? Tu ainda te lembras?
No ano passado, a chuva de pedras havia arruinado os teus bens, e tu
estavas pensativo, pensando em tua vida… Eu vim[4], e te pedi um pão…
Tu me havias ouvido falar um dia e me tinhas permanecido fiel… e, em teu
sofrimento, me abriste o coração e a casa, e me deste um pão e um abrigo. E
Eu, ao sair, que te disse, na manhã seguinte? Jacó, tu compreendeste a
Verdade. Sê sempre misericordioso, e acharás misericórdia. Pelo pão que
deste ao Filho, do homem, estes campos te darão riquezas de cereais e,
carregados, como se sobre eles estivessem os grãos da areia do mar, assim
serão os teus olivais, carregados de azeitonas. E ficarão inclinadas até o
chão, pelo peso das maçãs, as tuas macieiras. Tudo isso tu tiveste, e és o
mais rico desta região, neste ano. E tu estás negando um pão a duas
crianças!…
– Mas, Tu eras o Rabi…
– Justamente porque Eu o era é que Eu podia fazer das pedras pães.
Mas estes, não. Eu te digo: verás um novo milagre, e te virá um castigo, um
grande castigo. Mas, então, batendo no peito, dize: “Eu o mereci.”
298.5 Jesus volta-se para as crianças:
– Não choreis. Ide àquela planta, e colhei.
– Senhor, mas ela não tem nada –objeta a menina.
– Vai.
A menina vai e volta com umas maçãs vermelhas e bonitas, que ela
recolheu em suas vestes.
– Comei, e vinde comigo.
E diz aos apóstolos:
– Vamos levar estes dois pequeninos à Joana de Cusa. Ela sabe lembrar-
se dos benefícios recebidos, e é misericordiosa, por amor a quem foi
misericordioso. Vamos.
O homem, espantado e humilhado, tenta fazer-se perdoar:
– Já é noite, Mestre, a chuva pode cair, enquanto vais pelo caminho.
Entra de novo em minha casa. A serva já vai desenfornar o pão… Ela dará
também para estes…
– Não é preciso. Tu o darias, não por amor, mas por medo do castigo
prometido.
– Não é então este (e mostra as maçãs apanhadas na árvore, que antes
estava nua, e que os esfaimados comem avidamente), não é, então, este o
milagre?
– Não.
Jesus está muito severo.
– Oh! Senhor, Senhor, tem piedade de mim. Já compreendi. Tu me
queres punir nas colheitas! Tem piedade, Senhor!…
– Nem todos aqueles que me chamam Senhor me terão, porque não é na
palavra, e sim no ato, que se dá testemunho de amor e respeito. Terá
piedade, quem a tiver tido.
– Eu te amo, Senhor.
– Não é verdade. Ama-me quem ama, porque assim Eu ensinei. Tu não
amas senão a ti mesmo. Quando me amares como Eu ensinei, o Senhor
voltará. 298.6Agora Eu me vou. A minha parada é para fazer o bem, para
consolar os aflitos e enxugar as lágrimas dos órfãos. Como uma galinha
estende as asas sobre os seus pintinhos indefesos, assim Eu estendo o meu
poder sobre aqueles que sofrem e que estão sendo atormentados. Vinde,
crianças. Logo tereis casa e pão. Adeus, Jacó.
E, não contente só por ir, faz ainda que alguém tome nos braços a
menina cansada. É André que a pega e a envolve em seu manto. E Jesus
pega o menino e vão indo pelo caminhozinho, já no escuro, com as suas
cargas, que eles vão levando por piedade e que não choram mais.
Pedro diz:
– Mestre! Grande felicidade foi para estes, que Tu tenhas chegado.
Mas, para Jacó!… Que lhe farás, Mestre?
– Justiça. Ele conhecerá, não a fome, porque está com seus celeiros
cheios para muito tempo ainda. Mas a restrição, pois não darão semente os
grãos semeados, e as macieiras e as oliveiras ficarão cobertas só de folhas.
Estes inocentes, não de Mim, mas do Pai, receberam pão e casa. Porque o
meu Pai é Pai também dos órfãos. É Ele que dá ninho e comida aos
passarinhos dos bosques. Eles podem dizer, e todos os miseráveis com eles,
os miseráveis que sabem permanecer como “filhos inocentes e amorosos”
que em sua pequena mão foi posto por Deus o alimento, e que com sua guia
paterna Ele os conduz para uma casa hospitaleira.
A visão cessa assim, e eu fico numa grande paz.

298.7Diz Jesus:
– Esta é mesmo para ti, ó alma que choras, olhando para as cruzes do
passado e as nuvens do futuro. O Pai terá sempre pão para pôr na tua mão e
ninho para recolher sua pomba chorosa.
Para todos é o ensinamento de que Eu sei ser o “Senhor” com justiça.
Mas não se me engana, nem se me adula, com uma saudação mentirosa.
Aquele que fecha o coração para o irmão, fecha o coração para Deus, e
Deus para ele.
É o primeiro dos mandamentos, ó homem: Amor e amor. Quem não
ama, mente ao dizer-se cristão. É inútil a freqüência aos sacramentos e aos
ritos, inútil é a oração, se falta a caridade. Tornam-se fórmulas e até
sacrilégios. Como podeis ir ao Pão eterno e matar com ele vossa fome,
quando negastes pão ao faminto? Será mais precioso o vosso pão do que o
meu? Será mais santo? hipócritas! Eu não uso de uma medida, ao entregar-
me à vossa miséria, e vós, que sois miséria, não tendes piedade das misérias
que são, aos olhos de Deus, não odiosas, como as vossas. Porque aquelas
são desventuras, e as vossas são pecado. Muitas e muitas vezes me dizeis:
“Senhor, Senhor”, a fim de me tornardes benigno para com os vossos
interesses. Mas, não dizeis por amor ao próximo. Vós não fazeis nada em
nome do Senhor pelo próximo.
Olhai: na coletividade e na individualidade, que é que vos deu a vossa
religião mentirosa e vossa verdadeira falta de caridade? O abandono de
Deus. E o Senhor voltará, quando souberdes amar como Eu ensinei. Mas
para vós, pequeno rebanho dos que sofrem sendo bons, Eu digo: “Nunca
sois órfãos. Nunca sois abandonados. Antes deveria não existir Deus, do
que faltar com a Providência para com os seus filhos. Estendei a mão: o Pai
vos dá tudo como ‘pai’, isto é, com um amor que não avilta. Enxugai vossas
lágrimas. Eu vos tomo e vos levo, porque tenho piedade da vossa fraqueza.”
O mais amado das criaturas é o homem. Quereis duvidar se o Pai será mais
piedoso para com um passarinho, do que para com o homem? Ele o será
mais para com o homem fiel, Ele, que é longânime também para com o
pecador, e lhe dá tempo e modo de ir a Ele? Oh! Se o homem
compreendesse quem é Deus!
Vai em paz, Maria. Tu me és querida como os dois orfãozinhos que
viste, e mais ainda. Vai em paz. Eu estou contigo.
[…]

21 de agosto de 1944.
298.8 Diz Maria:
– Maria, fala a Mãe. O meu Jesus falou da infância do espírito[5], um
dos requisitos necessários para a conquista do Reino. Ontem eu te mostrei
uma página da sua vida de Mestre. Tu viste meninos. Uns pobres meninos.
Não havia outras coisas a dizer? Sim. E eu as vou dizer. A ti, que eu quero
tornar sempre mais querida para Jesus. É um detalhe, no quadro que falou
ao teu espírito, para o espírito de muitos. Mas os detalhes, é que fazem ficar
bonito um quadro, são eles que revelam a capacidade do pintor e a
sabedoria do observador. Eu quero fazer-te notar a humildade do meu Jesus.
Aquela pobre menina, em sua ignorante simplicidade, não trata de
modo diferente o pecador, que tem um coração de pedra, e o meu Filho. Ela
não entende o que é Rabi, nem o que é Messias. É pouco menos do que uma
selvagem, que viveu nos campos, em uma casa onde desprezavam o Mestre,
porque o fariseu Ismael desprezava o meu Jesus e, por isso, ela nunca ouviu
falar dele, e nunca o tinha visto.
O pai e a mãe dela, alquebrados por um trabalho duro, que o cruel
patrão exigia deles, não tinham tido tempo nem modo de levantar a cabeça
dos torrões das glebas, que eles esboroavam. Talvez já tivessem ouvido,
enquanto estavam ceifando o feno ou as messes, ou colhendo frutas e
cachos de uvas, ou quebrando azeitonas no duro trabalho das moendas,
algum clamor de hosanas e, então, terão levantado por um momento a
cabeça cansada. Mas o medo e o cansaço terão feito abaixarem-se de novo
aquelas cabeças, como sob um jugo. Eles tinham morrido, pensando que o
mundo fosse somente ódio e dor. Enquanto que, pelo contrário, o mundo era
amor e bem, desde quando os santíssimos pés do meu Jesus o passaram a
calcar. Pobres servos de um desapiedado patrão, eles morreram, sem terem
encontrado, nem uma vez, o olhar e o sorriso do meu Jesus, nem ouviram a
sua palavra, que dava uma tal riqueza ao espírito que, por ela, os indigentes
se sentiam como que enriquecidos os esfaimados saciados, os doentes sãos
os que sofriam consolados.
Pois bem. Jesus não diz: “Eu, que sou o Senhor, te digo: Faze isto.” Ele
se conserva anônimo.
E aquela pequena, tão ignorante que não compreendia nada, nem
mesmo diante do milagre da macieira despojada até de folhas, mas que
enche um dos seus ramos de maçãs para matar a fome deles, ela o continua
a chamar “Senhor”, como chamava a Ismael de patrão e a Jacó de cruel. Ela
se sente atraída pelo bom Senhor, pois a bondade sempre atrai. E mais nada.
Ela o acompanha com confiança. E passa a amá-lo de repente, como por um
instinto, pobre pequeno ser, perdido neste mundo, e numa ignorância
desejada pelo mundo, do grande mundo dos poderosos e gozadores, que
querem deter nas trevas os inferiores, a fim de poderem torturá-los à
vontade e tirar deles o maior proveito.
298.9Saberá, pois, quem era aquele “Senhor” que, pobre como ela, sem
casa nem alimento, sem mãe, pois tudo havia deixado por amor aos
homens, até daquela migalha de homem que era ela, pobre criatura ainda
pequena, aquele Senhor que lhe havia dado frutos miraculosos, querendo
tirar-lhe dos lábios e do coração o amargor da maldade humana, que cria o
ódio dos miseráveis contra os poderosos, por meio de um fruto do Pai, não
com um pedaço de pão oferecido tardiamente e que para ela teria tido
sempre um sabor de dureza e de pranto.
Verdadeiramente aquelas maçãs recordavam a do Paraíso Terrestre. Um
fruto que apareceu no ramo para o Bem e para o Mal, teria significado a
redenção de todas as misérias e, antes de todas, a da ignorância de Deus,
para os dois orfãozinhos, e significado o castigo para aquele que,
conhecendo já a Palavra, tinha agido como se não a conhecesse. Saberá pois
da boa mulher que a acolheu em nome de Jesus, quem era Jesus, que para
ela foi muitas vezes Salvador. Salvador da fome, das intempéries, dos
perigos do mundo e da culpa original.
Mas para ela Jesus sempre teve a luz daquele dia, e naquela luz sempre
lhe apareceu: o Senhor bom, de uma bondade incrível, o Senhor que tinha
carícias e dons, o Senhor que a tinha feito esquecer de que não tinha pai
nem mãe, que estava sem casa e sem roupa, porque Ele é doce como uma
mãe, e lhes havia dado um ninho em seu cansaço e uma coberta para a sua
nudez, com a veste do seu peito e o seu manto e os de outras pessoas boas
que estavam com Ele.
Uma luz paternal e suave, que não pereceu sob as ondas das lágrimas,
nem mesmo quando ela ficou sabendo que Ele estava sendo atormentado
sobre uma cruz, nem mesmo quando, como uma das pequenas fiéis da
primitiva Igreja, ela viu em que se havia transformado o rosto do seu
“Senhor”, debaixo das pancadas e dos espinhos, e quando pensou como
estava Ele agora no Céu, à direita do Pai. Uma luz que lhe sorriu, em sua
última hora na terra, conduzindo-a sem temor para o seu Salvador, uma luz
que lhe sorriu de novo, e tão inefavelmente doce, no fulgor do Paraíso.
298.10Jesus olha assim também para ti. Procura vê-lo sempre, como a tua
longínqua homônima, e sê feliz por este amor dela. Sê simples, humilde,
fiel como a pobre pequena Maria, que ficaste conhecendo. Vê até onde ela
chegou, apesar de ser uma pobre e pequena ignorante de Israel: chegou ao
Coração de Deus. O amor se lhe revelou, como a ti, e ela se tornou douta na
verdadeira Sabedoria.
Tem fé, fica em paz. Não há miséria que o meu Filho não possa
transformar em riqueza e não há solidão que Ele não possa preencher, como
não há falta que Ele não possa cancelar. O passado não existe, quando o
amor o anula. Mesmo que tenha sido um passado horrendo. Queres tu
temer, se não teve medo Dimas, o ladrão[6]? Ama,ama, e não tenhas medo
de nada.
A Mãe te deixa a sua bênção.
[4] Eu vim, en 110.5.
[5] falou da infância do espírito em um “ditado” no mesmo dia, o que é relatado no livro “I quaderni del 1944” (Os Cadernos de
1944).
[6] Dimas, o ladrão 609.11/14.
299. A entrega dos órfãos
Maria e Matias a Joana de Cusa.
11 de outubro de 1945.
299.1 O lago de Tiberíades está todo como uma grande escama cinzenta.
Parece estar feito de um mercúrio fosco de tão pesado que ele se mostra
nesta calmaria, pois mal permite o sinal de umas poucas ondas grandes, que
chegam até aqui cansadas, e nem mais produzem espuma, mas param e se
acalmam, logo depois de terem tentado mover-se, mas vão ajuntar-se às
outras águas sem nenhum brilho, por baixo de um céu sem esplendor.
Pedro e André estão dando voltas ao redor de sua barca. Tiago e João
também estão perto da deles, e estão preparando a partida na praiazinha de
Betsaida. Sente-se o cheiro das ervas e da terra encharcadas de água, e
vêem-se nevoas ligeiras sobre a superfície coberta de ervas, para o lado de
Corozaim. A tristeza de novembro se deixa ver em todas as coisas.
299.2 Jesus sai da casa de Pedro, segurando pelas mãos os pequenos
Matias e Maria, que a mão da Porfíria, com um cuidado maternal, fez que
ficassem bem alinhados, trocando a veste de Maria por uma de Marziam.
Mas Matias, como está ainda muito pequeno para poder ganhar aquele
mesmo presente fica, por enquanto, tremendo dentro da sua sovada túnica
de algodão, e de tal modo, que a compassiva Porfíria volta para casa e sai
de lá trazendo um pedaço de coberta e com ele envolve o menino, como se
a coberta fosse um manto. Jesus lhe agradece, enquanto ela se ajoelha na
despedida e se afasta, depois de um ultimo beijo nos dois órfãos.
– Por mais meninos que tivesse, ela ficaria também com estes –comenta
Pedro, que estava observando a cena e que, por sua vez, se inclina para
oferecer às duas crianças um pedaço de pão recoberto com mel, que ele
tinha guardado debaixo de um dos bancos da barca, o que faz André rir e
dizer:
– Logo tu, hein? Chegaste até a roubar mel da tua mulher para dar um
pouco de alegria a estes dois.
– Roubado! Roubado! O mel é meu!
– Sim, mas a minha cunhada está com ciúme, porque é para Marziam.
E tu, que sabes disso, penetraste, descalço como um ladrão, na cozinha, na
noite passada, para apanhar o tanto necessário para preparar aquele pão. Eu
te vi, meu irmão, e ri, porque tu estavas olhando para todos os lados, como
um menino que está com medo das palmadas da mãe.
– Grande espião –diz, rindo, Pedro, abraçando seu irmão que, por sua
vez, o beija, dizendo:
– Meu caro espertalhão!
Jesus observa e sorri abertamente, estando entre as duas crianças, que
estão devorando o seu pão.
299.3 Do interior de Betsaida chegam os outros oito apóstolos. Talvez
estivessem como hóspedes de Filipe e Bartolomeu.
– Depressa! –grita Pedro, e pega num só abraço as duas crianças, para
levá-las à barca, sem que elas molhem seus pezinhos nus–. Não tendes
medo, não é verdade? –pergunta ele, enquanto vai chapinhando na água,
com suas pernas curtas e robustas, nu como está, até um bom palmo acima
dos joelhos.
– Não, senhor –diz a menina, mas agarrando-se convulsivamente ao
pescoço de Pedro e fechando os olhos, quando ele a coloca na barca, que
está balançando com o peso de Jesus, que nela acabou de entrar. O menino,
mais corajoso ou mais assombrado, nem pode falar.
Jesus vai sentar-se, e puxa para perto de Si os dois pequeninos,
recobrindo-os com o grande manto, que parece uma asa estendida para
proteger dois pintinhos.
Seis em uma barca, seis na outra, já estão todos a bordo. Pedro tira a
tábua de embarque e, com um vigoroso empurrão na barca, para que ela vá
mais para o meio da água e, dando um salto, pula para bordo, sendo imitado
por Tiago na barca dele. Aquele empurrão e o pulo de Pedro fizeram
balançar muito a barca, e a pequenina geme: “Mamãe!”, escondendo o rosto
no colo de Jesus e agarrando-se aos joelhos dele. Mas a barca já vai indo
suavemente, ainda que seja muito trabalhoso para Pedro, André e o
empregado, que precisam remar, ajudados por Filipe, que faz o trabalho de
quarto remador. A vela está pendurada, pois nesta calmaria pesada e úmida,
ainda não pode ser usada. Todo o trabalho há de ser feito com os remos.
– É um belo vogar! –grita Pedro para os da outra barca, na qual ocupa o
lugar de quarto homem Iscariotes, com uma voga bem feita, que Pedro
elogia.
– Força, Simão! –responde Tiago–. Força, ou te venceremos. Judas é
forte como um das galeras. Bravo, Judas!
– Sim. Vamos fazer-te o chefe da equipagem –confirma Pedro, que vai
vogando por dois.
E se ri, dizendo:
– Mas, por Simão de Jonas, não fiqueis torcendo para que ele se
apodere do primeiro lugar. Aos vinte anos, eu já era chefe dos remadores
nas apostas que havia entre vários lugares.
E, alegre, continua remando com os seus companheiros:
– Oh! Vamos! Oh! Para a frente!
E as vozes se esvaem pelo meio silencioso do lago, que está deserto
nesta hora da manhã.
299.4 As crianças já vão criando coragem. Continuando ainda debaixo do
manto, elas levantam seus rostinhos, uma de um lado, e a outra do lado de
lá do Mestre, que as segura abraçadas, e já estão esboçando a sombra de um
sorriso. Estão interessadas em olhar o trabalho dos remadores. E trocam
seus comentários.
– Parece que anda em um carro sem rodas –diz o menino.
– Não. Em um carro sobre as nuvens. Olha! Parece estar caminhando
no céu. Olha! Vamos subir em uma nuvem –diz Maria, ao ver que a barca
mergulha num lugar onde se reflete uma grande nuvem fofa. Ela se ri
levemente. Mas o sol vem interromper aquela meia penumbra e, ainda que
seja um pálido sol de novembro, as nuvens estão douradas, e o lago as
reflete muito brilhantes.
– Oh! Que bonito! Agora vamos para o fogo. Oh! Que bonito! Bonito –
e o menino bate as mãozinhas.
A menina, porém, se cala e depois explode num choro. Ela, soluçando,
explica:
– A mamãe recitava uma poesia, um salmo, não sei, para conservar-nos
bons, a fim de que pudéssemos rezar, ainda que com tantas dores… e
recitava aquela poesia que fala de um Paraíso, que vai ser como um lago
cheio de luz, de um fogo suave, onde só haverá Deus e alegria, e para onde
irão todos os que são bons… quando tiver vindo o Salvador… Este lago
dourado me faz lembrar isto… A minha mamãe!
Matias também está chorando. E todos se compadecem dele.
299.5 Levanta-se um murmúrio de várias vozes, e, mais alta do que o
lamento dos orfãozinhos, ouve-se a voz de Jesus:
– Não choreis. A vossa mamãe vos conduziu a Mim, e ela está aqui
conosco, enquanto Eu vos levo a uma mamãe sem filhos. Ela ficará muito
contente por ter duas crianças, em lugar do filho dela, que está onde está a
vossa mamãe. Porque ela também chorou, vós sabeis? Morreu o seu
pequenino, como morreu a vossa mamãe…
– Oh! Então, nós vamos a ela e o pequenino irá ficar com a nossa
mamãe! –diz Maria.
– É assim mesmo. E sereis todos felizes.
– Como é essa mulher? O que ela faz? Ela é camponesa? Tem um
patrão bom?
Os pequenos se interessam.
– Não é camponesa, mas tem um jardim cheio de rosas, e é boa como
um anjo. Tem um bom marido. Também ele vos quererá bem.
– Achas que sim, Mestre? –pergunta Mateus, um pouco incrédulo.
– Tenho certeza. E ficareis persuadidos disso. Há algum tempo, Cusa
queria Marziam para fazer dele um cavaleiro.
– Ah! Isto, não –grita Pedro.
– Marziam será um cavaleiro de Cristo. Somente isso, Simão. Fica
tranqüilo.
O lago fica cinzento outra vez. Levanta-se um pé de vento, que enruga
as águas. Estendem a vela, e a barca vai agora em linha reta e mais rápida.
Mas as crianças de tal modo estão sonhando com a nova mãe, que nem
sentem medo.
299.6 Passam por Magdala, com suas casas brancas pelo meio do verde.
Passam em frente à campina, que fica entre Magdala e Tiberíades. Já
aparecem as primeiras casas de Tiberíades.
– Para onde vamos Mestre?
– Para o pequeno porto de Cusa.
Pedro se vira e dá ordens ao empregado. A vela vai descendo, enquanto
a barca se aproxima do pequeno porto e depois vai entrando por ele, indo
parar junto ao pequeno molhe, acompanhada pela outra. Estão paradas, uma
ao lado da outra, como duas patinhas cansadas. Desembarcam todos, e João
vai correndo na frente, para avisar aos jardineiros.
Os pequeninos se agarram sem medo a Jesus e Maria, com um suspiro,
puxando a veste de Jesus, lhe pergunta:
– Será boa mesmo?
João já voltou:
– Mestre, um servo já está abrindo a cancela. Joana já se levantou.
– Está bem. Esperai todos aqui. Eu vou à frente.
E Jesus vai sozinho. Os outros o ficam olhando ir, e estão fazendo
comentários, uns mais, outros menos favoráveis sobre o que Jesus quer
fazer. Não faltam dúvidas nem críticas. Mas do lugar em que eles estão não
vêem mais do que a corrida de Cusa, que se inclina até o chão, na soleira da
cancela e, em seguida, entra pelo jardim, à esquerda de Jesus. Depois não se
vê mais nada.
299.7 Mas eu vejo. Vejo Jesus que vai lentamente, ao lado de Cusa, que
lhe mostra toda a sua alegria em tê-lo como hóspede:
– Minha Joana ficará muito alegre. E eu também. Ela está sempre
melhor. Ela me falou da viagem. Que triunfos, meu Senhor!
– Não ficaste apreensivo?
– Joana está feliz. Eu fico alegre por vê-la assim. Eu podia ter ficado
sem ela, há meses, Senhor.
– Podias. Eu ta restituí. Procura ser grato a Deus por isso.
Cusa olha para Ele dolorosamente surpreso… e depois murmura:
– É uma censura, Senhor?
– Não. É um conselho. Sê bom, Cusa.
– Mestre, eu sou servo do Herodes.
– Eu sei. Mas a tua alma não é serva de ninguém, a não ser de Deus, se
tu quiseres.
– É verdade, Senhor. Eu vou me corrigir. As vezes, sou vítima do
respeito humano…
– Tu o terias tido no ano passado, quando querias salvar Joana?
– Ah! Não. À custa de perder até toda a honra, eu teria me dirigido a
quem achasse que a podia salvar.
– Faze o mesmo pela tua alma Ela é mais preciosa ainda do que Joana.
299.8Ei-la que vem.
Apressam o passo, indo para ela, que vem correndo pela avenida, ao
encontro deles.
– Mestre meu! Eu não esperava ver-te tão cedo. Que bondade essa a
tua, que te traz até à tua discípula?
– Uma necessidade, Joana.
– Uma necessidade? Qual é? Fala e, se pudermos, te ajudaremos –
dizem os dois ao mesmo tempo.
– Encontrei ontem de tarde, em uma estrada deserta, duas pobres
crianças… uma menina pequena e um meninozinho…, Descalços,
esfarrapados, famintos, sozinhos… e os vi, quando um homem, que tem um
coração de lobo, os expulsava, como se fossem lobos. Eles estavam
morrendo de fome… Àquele homem Eu havia dado um bem-estar no ano
passado. E ele agora negava um pão a dois órfãos. Pois eles são órfãos.
Órfãos, e indo pelos caminhos do mundo cruel. Esse homem terá o seu
castigo. Quereis vós ter a minha bênção? Eu vos estendo a mão. Sou um
mendigo de amor para estes órfãos sem casa, sem roupas, sem alimento,
sem amor. Quereis vós ajudar-me?
– Mas, Mestre, Tu o pedes? Dize o que queres, quanto queres, dize
tudo –diz, impetuoso, Cusa.
E Joana não fala, mas, com as mãos colocadas sobre o coração, com
uma lágrima sobre os longos cílios e um sorriso de desejo sobre seus lábios
vermelhos, ela espera, e assim fala mais do que se estivesse falando.
Jesus olha para ela, e sorri:
– Desejaria que aquelas crianças tivessem uma mãe, um pai, uma casa.
E que a mãe tivesse o nome de Joana…
Não teve tempo de acabar, porque o grito de Joana é como o de alguém
que ficou livre de uma prisão, enquanto ela se prostra para beijar os pés do
seu Senhor.
– E tu, Cusa, que dizes a isso? Acolhes em meu nome, estes meus
diletos, queridos, oh! muito mais queridos do que jóias para o meu coração?
– Mestre, onde estou eu? Leva-me a eles e, por minha honra, eu te juro
que, desde o momento em que eu puser minha mão sobre as cabeças
inocentes deles, eu os amarei como um verdadeiro pai, em teu nome.
– Então, vinde. Eu sabia que não viria perder meu tempo. Vinde. Eles
são rústicos e espantados, mas são bons. Acreditai em Mim, que vejo os
corações e o futuro. Eles darão paz e união à vossa união, não somente
agora, mas também no futuro. No amor a eles vós vos encontrareis. Seus
inocentes abraços serão a melhor cal para a vossa casa de esposos. E o Céu
estará sobre vós, benigno e misericordioso sempre para com a vossa
caridade. Já estão do lado de fora da cancela. Estamos vindo de Betsaida…
Joana não escuta mais nada. Ela corre na frente, movida pelo desejo
ardente de acariciar crianças.
E ela o faz, caindo de joelhos, para apertar contra o seu seio os dois
orfãozinhos, beijando-os em suas faces macilentas, enquanto eles ficam
olhando, espantados, a bela senhora de ricas vestes. E olham também para
Cusa, que os acaricia, e pega Matias nos braços. E ficam olhando o belo
jardim e os servos que vão chegando… E olham a casa, que abre os seus
vestíbulos cheios de riquezas para Jesus e para os seus apóstolos. Olham
para Ester, que os cobre de beijos.
Um mundo de sonhos abriu-se para os pequeninos desamparados…
Jesus observa e sorri.
300. Com escribas e fariseus
na casa do ressuscitado de Naim.
12 de outubro de 1945.
300.1 A cidade de Naim está em grande festa, pois hospeda Jesus pela
primeira vez, depois do milagre[7] do jovem Daniel, que foi por Ele
ressuscitado.
Precedido e acompanhado por um grande número de pessoas, Jesus
atravessa, bendizendo, a cidade. Àqueles de Naim, se uniram pessoas de
outros lugares, provenientes de Cafarnaum, onde tinham ido procurá-lo e de
onde tinham sido encaminhados para Caná, de onde vieram para Naim.
Tenho a impressão de que, agora que Jesus já tem muitos discípulos, Ele já
constituiu com eles uma espécie de rede de informações, de tal modo que os
peregrinos, que o estiverem procurando, o possam encontrar, apesar dos
seus constantes deslocamentos, ainda que de poucas milhas cada dia,
conforme o permitam as estações e os dias curtos. E, entre essas pessoas,
que vêm de outros lugares para procurá-lo, não faltam os fariseus e
escribas, aparentemente muito cerimoniosos…
300.2 Jesus é hóspede na casa do jovem ressuscitado. Na mesma casa
estão reunidos os notáveis da cidade. E a mãe de Daniel, vendo os escribas
e fariseus — sete, como os vícios capitais —, com muita humildade os
convida, desculpando-se por não poder oferecer-lhes uma casa mais digna.
– Aqui está o Mestre, aqui está o Mestre, mulher. Isto dá valor até a
uma espelunca. Mas a tua casa é bem mais do que uma espelunca, e nós
nela entramos, dizendo: “Paz a ti e à tua casa.”
De fato, a mulher, embora não seja uma ricaça, desdobrou-se em
quatro, para honrar Jesus. Certamente devem ter entrado em competição
todos os ricaços de Naim, que se puseram de acordo para prepararem a casa
e a mesa. E as suas respectivas esposas estão olhando furtivamente de todos
os lados, a comitiva, que vai passando pelo corredor de entrada e dirigindo-
se para duas salas, que estão em frente uma da outra, e nas quais a dona da
casa mandou colocar as mesas. Talvez tenham pedido somente isso, porque
houve um empréstimo de louça e de cadeiras, e uma prestação de serviço
junto aos fornos, mais para poderem ver de perto o Mestre e respirar onde
Ele respira. E agora estão deixando-se ver aqui e ali, coradas, enfarinhadas,
encinzadas, ou com as mãos gotejando, conforme as suas incumbências na
cozinha. Elas fazem sinais com seus olhares umas para as outras, pegam
seus retalhos do olhar divino, suas migalhas da voz divina, bebem a doce
bênção e a doce figura, com o olhar e os ouvidos, e voltam ainda mais
coradas para os seus fornos, para suas masseiras e suas pias: felizes.
Felicíssima aquela que com a dona da casa, oferece a bacia para as
abluções aos hóspedes de respeito. Ela é uma jovenzinha, de cabelos e
olhos morenos, mas com uma tonalidade difusa de rosa. E ainda mais rosa
ela fica, quando a dona da casa informa a Jesus que ela é noiva do seu filho,
e que logo vai ser o casamento.
– Nós esperamos a tua vinda para realizá-lo, a fim de que a casa toda
fosse santificada por Ti. Abençoa-a, então, para que ela seja uma boa
mulher nesta casa.
Jesus a olha e, como a noivinha já se inclina, lhe impõe as mãos,
dizendo:
– Refloresçam em ti as virtudes de Sara, Rebeca[8] e Raquel e de ti
sejam gerados verdadeiros filhos de Deus, para sua glória e para alegria
desta casa.
Já Jesus e os notáveis todos se purificaram e entram na sala do
banquete com o jovem dono da casa, enquanto os apóstolos, com outros
homens de Naim, menos influentes, entram na sala da frente. E o banquete
começa.
300.3 Pelas conversas, entendo que, antes que tivesse início a visão, Jesus
havia pregado e curado em Naim. Mas osfariseus e os escribas pouco se
detêm sobre isso, enquanto estão enchendo de perguntas os que são de
Naim para saber pormenores da doença de que havia morrido Daniel e
quantas horas eram decorridas desde a hora da morte até a hora de sua
ressurreição, e se ele tinha sido completamente embalsamado etc. etc.
Jesus se afasta de todas essas indagações falando com o ressuscitado,
que está muito bem e come com grande apetite. Mas um fariseu chama
Jesus, para perguntar-lhe se Ele tinha conhecimento de qual era a doença de
Daniel.
– Eu estava vindo de Endor por pura casualidade, desejando contentar
Judas de Keriot como havia contentado João Zebedeu. Eu não sabia nem
mesmo que teria que passar por Naim, quando comecei o caminho para a
peregrinação pascal –respondeu Jesus.
– Ah! Então, não tinhas ido de propósito para Endor –pergunta,
espantado, um escriba.
– Não. Eu não tinha, então, a menor vontade de ir para lá.
– E, então, como é que foste?
– Eu já disse: porque Judas de Simão queria ir.
– E por que este capricho?
– Para ver a gruta da maga.
– Talvez Tu lhe tivesses falado…
– Não. Eu não tinha motivo.
– Eu quero dizer… talvez explicaste, junto com aquele episódio[9],
outros sortilégios, para fazer a iniciação dos teus discípulos em…
– Em quê? Para iniciar na santidade não é preciso fazer peregrinações.
Uma cela ou uma pradaria deserta, um pico de montanha ou uma casa
solitária, servem do mesmo modo. Basta que em quem ensina haja
austeridade e santidade, e em quem ouve, a vontade de santificar-se. É isto
o que Eu ensino, e não outra coisa.
– Mas os milagres que agora fazem estes teus discípulos não são mais
do que prodígios e…
– E vontade de Deus. Somente isto. E, quanto mais santos eles se
tornarem, mais milagres farão. Com a oração, o sacrifício e a obediência
deles a Deus. Não com outras coisas.
– Tens certeza disso? –pergunta um escriba, segurando o queixo com a
mão e medindo a Jesus de alto a baixo com o seu olhar.
E o tom com que ele fala é discretamente irônico e até compassivo.
– Estas são as armas que Eu dei a eles e estas as doutrinas. Portanto, se
entre eles, e são muitos, houver algum que se corromperá com práticas
indignas, por soberba ou outros motivos, não será de Mim que eles terão
recebido este conselho. Eu posso rezar para ver se redimo o culpado. Posso
impor-me a mim mesmo duras penitências expiatórias para obter de Deus
os auxílios, especialmente com as luzes de sua Sabedoria, para que se veja o
erro. Eu posso jogar-me a seus pés, para suplicar-lhe, com todo o meu amor
de Irmão, Mestre e Amigo, a fim de que deixe a culpa. Nem Eu pensaria
estar me aviltando ao fazer isso, porque o preço de uma alma é tão grande,
que vale a pena sofrer todas as humilhações para conquistá-la. Mais do que
isso não posso fazer. E se, não obstante, a culpa continuar, o pranto e o
sangue escorrerão dos meus olhos e de meu coração de Mestre e Amigo
traído e incompreendido.
Que doçura, e que tristeza na voz e no aspecto de Jesus!
Escribas e fariseus olham-se uns aos outros. Fazem uma troca de
olhares, mas não dizem mais nada sobre o assunto.
300.4 Interrogam o jovem Daniel. Se recorda que é a morte? Que sentiu
ao voltar à vida? O que viu naquele intervalo entre a morte e a vida?
– Eu sei que estava gravemente doente, e que passei pela agonia. Oh! É
uma coisa terrível Não me façais pensar nela!… E, no entanto, virá o dia
em que de novo passarei por ela! Oh! Mestre!…
E, aterrorizado, olha para Ele, empalidecendo, ao pensar em ter que
morrer de novo. Jesus o conforta com doçura, dizendo:
– A morte é, por si mesma, uma expiação. Tu, morrendo duas vezes,
ficarás completamente limpo das manchas, e gozarás imediatamente do
Céu. Mas, que este pensamento te faça viver como santo, de modo que haja
em ti somente culpas involuntárias e veniais.
Aí os fariseus voltam a atacar:
– Mas, que foi que sentiste ao voltares à vida?
– Nada. Eu encontrei-me vivo e são, como se tivesse despertado de um
sono longo e pesado.
– Mas te lembras de teres morrido?
– Eu me lembrava de que tinha estado muito doente, tendo chegado à
agonia, e basta.
– E que lembranças tens do outro mundo?
– Nenhuma. Não tenho nada. É um buraco negro, um espaço vazio em
minha vida… Nada.
– Então, para ti não existem o Limbo, nem o Purgatório, nem o
Inferno?
– Quem é que diz que não existem? Certamente eles existem. Mas eu
não me recordo deles.
– Mas, tu tens a certeza de teres estado morto?
Neste ponto, reagem violentamente todos os habitantes de Naim:
– Se ele estava morto? Que quereis mais do que isso? Quando o
colocamos no caixão, o corpo dele já estava começando a cheirar mal. E,
então? Com todos aqueles bálsamos e aquelas faixas, até um gigante estaria
morto.
– Mas tu não te lembras de teres estado morto?
– Eu já disse que não.
O jovem começa a impacientar-se, e acrescenta:
– Que estais querendo concluir com lúgubres discursos? Que uma
cidade inteira estivesse fingindo, ao dizer que eu estava morto, inclusive
minha mãe e minha noiva, que estava ao lado de minha cama quase morta
de tristeza, e eu, tendo sido enfaixado, embalsamado, sem que nada daquilo
fosse verdade? Que dizeis vós? Diríeis que em Naim todos fossem crianças
ou idiotas, que queriam divertir-se? Minha mãe, em poucas horas, ficou de
cabelos brancos. Minha noiva teve que passar por um tratamento, porque a
tristeza e a alegria a haviam tornado quase louca. E vós ainda duvidais? E
para que haveríamos feito uma coisa dessas?
– Para que? É verdade. Para que o teríamos feito? –dizem os de Naim.
300.5 Jesus não diz nada. Ele se entretém pegando e examinando a toalha
da mesa, como faria alguém que estivesse distraído ou fora do assunto. Os
fariseus não sabem o que dizer… Mas Jesus, de repente, abre a boca,
quando a conversação terminou e o assunto ficou esgotado, e diz:
– A razão é a seguinte: Esses aí (e mostra os fariseus e os escribas)
querem dizer que a tua ressurreição não foi nada mais do que um plano
combinado e bem feito para aumentar a estima que as multidões já sentem
por Mim. Eu teria sido o idealizador do plano, e vós os meus cúmplices,
para mentir a Deus e ao próximo. Não. Eu deixo os embustes para os que
não têm nenhuma dignidade. Eu não tenho necessidade de feitiçarias, nem
de estratagemas, brincadeiras e cumplicidades para ser o que sou. Por que
quereis vós negar a Deus o poder de restituir a alma a um corpo de carne?
Se Ele a dá quando começa a formar-se a carne, se cria as almas, uma de
cada vez, não poderá dar-lha de novo, quando a alma, voltando à carne pela
oração do seu Messias, pode ser um estímulo para a volta à verdade por
parte de numerosas multidões? Podeis negar a Deus o poder de operar
milagres? Por que lho quereis negar?
– És Tu Deus?
– Eu sou quem sou. Os meus milagres e a minha doutrina dizem quem
Eu sou.
– Mas, então, por que é que este não se lembra de nada, quando os
espíritos que são evocados sabem dizer como são as coisas no além-
túmulo?
– Porque esta alma fala a verdade, já santificada como está pela
penitência de uma primeira morte, ao passo que o que dizem os
necromantes não é verdade.
– Mas Samuel…
– Mas Samuel veio por ordem de Deus, e não da feiticeira, para trazer
ao que foi infiel à Lei a palavra da verdade da parte do Senhor, porque
ninguém pode rir-se das suas ordens.
300.6 – E, então, por que os teus discípulos fazem isso?
A voz arrogante de um fariseu, que quer realçar vivamente o tom da
mesma, chama a atenção dos apóstolos, que estão na sala da frente,
separados desta apenas por um corredor, que tem a largura de pouco mais
de um metro e que não tem portas, nem cortinas pesadas. Ao perceberem
que parecia que estavam sendo chamados, eles se levantam e, sem fazerem
barulho, vão até o corredor, e ficam escutando.
– Em que ponto eles o estão fazendo? Explica-te bem e, se a tua
acusação for verdadeira, Eu os avisarei a fim de que não façam mais uma
coisa contrária à Lei.
– Em que ponto o fazem, eu o sei e comigo muitos outros o sabem. Mas
Tu, que ressuscitas os mortos, e te dizes mais que um profeta, descobre-o
por Ti mesmo. Certamente nós te diremos. Afinal, Tu tens olhos para verem
muitas outras coisas, feitas quando não devem ser feitas, ou não feitas
quando o deveriam ser, faltas essas cometidas pelos teus discípulos. E Tu
não cuidas disso.
– Quereis indicar-me algumas delas?
– Por que os teus discípulos transgridem as tradições[10] dos antigos?
Hoje nós os ficamos observando. Hoje mesmo! Faz menos de uma hora.
Eles entraram na sala deles para comer, e não se purificaram, lavando antes
as mãos!
Se os fariseus tivessem dito: “e antes degolaram alguns cidadãos,” não
teriam proferido aquelas palavras em um tom de tão profundo horror, como
eles fizeram.
300.7 – Vós os ficastes observando, sim. Há tantas coisas que podemos
ver. Coisas belas e coisas boas. Coisas que nos levam a bendizer o Senhor
por ter-nos dado a vida, para que tivéssemos ocasião de vê-las, e porque Ele
criou e permitiu a existência daquelas coisas. Mas vós não as observais. E,
como vós, muitos outros. Mas vós perdeis o tempo e a paz, ao procurardes
ir atrás das coisas não boas.
Sois semelhantes a chacais, ou melhor, a hienas, que vão correndo,
guiadas pelas emanações de algum fedor, sem que o vosso faro seja capaz
de sentir as dos perfumes, que vem transportados pelo vento, que passa
pelos jardins cheios de aromas. As hienas não gostam dos lírios e das rosas,
dos jasmins e da cânfora, dos cinamomos e dos cravos. Para elas estes são
odores desagradáveis. Mas o fedor de um corpo já podre, que está lá no
fundo de um precipício ou à beira de uma rodovia, sepultado debaixo das
moitas, onde o jogou um assassino, ou lançado pela tempestade sobre
alguma praia deserta, inchado, arroxeado, arrebentado, horrível, oh! esse é o
perfume agradável para as hienas! Elas ficam farejando o vento da tarde,
que condensa e transporta consigo todos os odores, que o sol destilou das
coisas que ele aqueceu, para perceberem este especial e convidativo odor.
E, depois de descobrirem o rumo dele, e marcarem bem a direção, partem
correndo, com o focinho levantado, com os dentes já descobertos, tremendo
os maxilares, mostrando um riso histérico, lá se vão para o lugar onde está a
carniça podre. E o cadáver, seja ele de homem ou de algum quadrúpede, de
alguma cobra esmagada pelo camponês, ou de alguma fuínha morta pela
caseira, ou mesmo que seja um simples rato, oh! como isso lhes agrada. E
naquele fedor que está fermentando é que elas mergulham os seus dentes e
comem o seu jantar, lambendo depois os seus beiços…
Há homens que se santificam cada dia? Isto não é coisa que interesse!
Mas se um só homem faz algum mal, ou se mais de um deixa de cumprir,
não um mandamento divino, mas uma prática humana — chamai-a, se
quiserdes, tradição, preceito, mas é sempre uma coisa humana —, eis que
então se vai observá-lo. Vai-se também atrás de alguém que é suspeito… só
para se divertir com isso, ao ver-se que a suspeita é realidade.
300.8 Então, respondei-me vós, respondei-me vós, que até aqui viestes,
não por amor, nem por fé, não por honestidade, mas com uma intenção
maldosa. Respondei-me: por que é que vós transgredis o mandamento de
Deus por uma vossa tradição? Não querereis vós dizer-me que uma tradição
é mais do que um mandamento? Pois bem. Deus disse[11]: “Honra a teu pai
e à tua mãe, e quem amaldiçoar o pai e a mãe é réu de morte.” E vós, ao
contrário, dizeis: “Todo aquele que tiver dito ao seu pai e à sua mãe:
‘Korban’, não está mais obrigado a usar aquilo em favor do pai ou da mãe.”
Portanto vós, com a vossa tradição, anulastes um mandamento de Deus.
Hipócritas! Bem que disse de vós o profeta Isaías[12], profetizando:
“Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim,
e, por isso, eles me honram em vão, ensinando doutrinas e mandamentos
humanos.”
Vós, enquanto vos descuidais dos preceitos de Deus, ficais com as
vossas tradições dos homens, com as vossas lavaduras de ânforas e cálices,
de pratos e das mãos, e outras coisas semelhantes. Enquanto justificais a
ingratidão e a avareza de um filho, com oferecer-lhe o pretexto da oferta de
um sacrifício, para não dar um pão a quem o gerou e está necessitado de
ajuda, e ele tem a obrigação de honrá-los, porque são seus genitores, ficais
escandalizados porque alguém não lava as mãos. Vós alterais e violais a
palavra de Deus, para obedecerdes a palavras feitas por vós e por vós
estabelecidas como preceitos. Vós assim vos proclamais mais justos do que
Deus. Vós vos arrogais o direito de legisladores, enquanto que só Deus é o
Legislador para o seu povo. Vós…
E Ele continuaria, mas o grupo inimigo se retira, debaixo de uma
saraivada de acusações, e sai esbarrando nos apóstolos e em todos os que
estavam reunidos no corredor, como hóspedes e ajudantes da dona da casa,
que para lá tinham sido atraídos pelo forte tom da voz de Jesus.
300.9 Jesus, que se havia posto em pé, torna a sentar-se, fazendo sinal aos
presentes para que entrem todos para onde Ele está e lhes diz:
– Escutai-me todos, e entendei bem esta verdade. Não há nada fora do
homem que, entrando nele, possa contaminá-lo. Mas o que sai do homem,
isso é o que o contamina. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça e use de sua
razão para compreender e use de sua vontade para agir. E agora, vamos.
Vós de Naim, perseverai no bem, e esteja sempre convosco a minha paz.
Jesus se levanta, saúda em particular os donos da casa, e lá se vai pelo
corredor. Mas Ele vê as mulheres amigas que, reunidas em um canto, o
olham pasmadas, e vai diretamente a elas, dizendo-lhes:
– Paz a vós também. Que o Céu vos pague por me terdes assistido com
um amor que não me deixou ter saudade da mesa de minha Mãe. Eu percebi
o vosso amor de mães em cada migalha de pão, em cada iguaria ou assado,
nos doces com mel, no vinho fresco e perfumado. Querei-me sempre bem
assim, ó boas mulheres de Naim. E, em outra vez, não vos canseis tanto por
Mim. Basta-me um pão e um punhado de azeitonas, temperado com o vosso
sorriso materno e o vosso olhar honesto e bom. Sede felizes nas vossas
casas, porque o reconhecimento do Perseguido está sobre vós e Ele parte
consolado pelo vosso amor.
As mulheres, felizes, mas, assim mesmo, chorando, estão todas de
joelhos, e Ele, ao passar, toca levemente nos cabelos brancos ou pretos de
cada uma, como a abençoá-las. Depois sai, e retoma o caminho…
As primeiras sombras da tarde já estão descendo e escondendo a
palidez de Jesus, amargurado por tantas coisas.
[7] do milagre narrado no capítulo 189.
[8] Rebeca era a esposa de Isaac e mãe de Esaú e Jacó, como narrado em Gênesis 24; 25,19-28.
[9] episódio tratado no capítulo 188 com referências bíblicas nas notas.
[10] transgridem as tradições, não a lei. A Lei Mosaica prescrevia para os sacerdotes a ablução das mãos para atos de adoração,
como em Êxodo 30,19-21; 40,30-32. Mas foi a tradição de impor a todos os judeus lavarem as mãos antes de cada refeição, como
também vemos em 160.2 e 414.5/7.
[11] disse, em Êxodo 20,12; 21,17; Levítico 20,9; Deuteronômio 5,16; Korban é um termo hebraico para o que foi oferecido no
templo.
[12] Bem que disse… Isaías, em Isaías 29,13.
301. Parábola das frontes destronadas
e explicação da parábola sobre a impureza.
13 de outubro de 1945.
301.1 Jesus não volta para outro lugar, mas para Endor. Ele pára na
primeira casa do povoado e que é mais um aprisco do que uma casa. Mas,
justamente por ser assim, com estábulos baixos, fechados, cheios de feno, é
que ele pode abrigar os treze peregrinos. O dono dela, um homem rústico
mas bom, se apressa em arranjar uma candeia e um baldezinho de leite
espumoso, além de uns pães de forma muitos escuros. Depois, ele se retira,
sendo abençoado por Jesus, que fica sozinho com os seus doze.
Jesus oferece e distribui o pão e, na falta de tigelas ou cálices, cada um
ensopa suas fatias de pão no baldezinho e bebe, quando está com sede,
diretamente do mesmo. Jesus bebe somente um pouco de leite. 301.2Ele está
sério e silencioso… E a tal ponto que, tendo terminado a refeição e matado
a fome, que nos apóstolos não falta nunca, eles acabam percebendo o
mutismo dele.
André é o primeiro a perguntar:
– Que tens, Mestre? Pareces-me triste ou cansado…
– Não digo que não.
– Por quê? Por causa daqueles fariseus? Mas já devias ter-te
acostumado com eles… Quase que eu já me acostumei, eu que… deixa para
lá! Tu sabes como eu era nas primeiras vezes que eu tratava com eles. Eles
cantam sempre aquela sua canção!… As serpentes não sabem senão sibilar,
na verdade, e nunca nenhuma delas será capaz de imitar o canto do
rouxinol. A gente acaba não fazendo mais caso deles –diz Pedro, um pouco
por convicção, e um pouco para tranqüilizar a Jesus.
– E é desse modo que se perde o controle, e se cai em uma de suas
armadilhas. Eu vos peço que não vos acostumeis nunca a ouvir as vozes do
Mal, como se fossem umas vozes inofensivas.
– Oh! Está bem! Mas, se é só por isso que estás triste, fazes mal. Tu
estás vendo como o mundo te ama –diz Mateus.
– Mas, será só por isso que estás triste assim? Dize-o a mim, bom
Mestre. Ou será que te contaram mentiras ou insinuaram calúnia, suspeitas,
que sei eu? Até a respeito de nós que te amamos –pergunta solícito e
carinhoso, Iscariotes, abraçando com um braço a Jesus, que está sentado no
feno, ao lado dele.
301.3Jesus vira o rosto para o lado de Judas. Seus olhos têm um brilho
fosforescente, à luz trêmula da candeia, colocada acima do chão, no meio
do círculo formado pelos que estão sentados em cima do feno, posta sobre
uma cadeira baixa e redonda. Jesus olha bem fixamente para Judas de
Keriot e, ao olhar para ele, lhe pergunta:
– E tu achas que eu sou tão tolo para aceitar as insinuações, sejam elas
de quem forem, a ponto de perturbar-me com elas? São as realidades, Judas
de Simão, o que me perturba –e o olhar de Jesus não deixa, nem por um
instante, de se cravar, direto como um estilete, na pupila morena de Judas.
– Então, quais as realidades que te perturbam? –insiste seguro
Iscariotes.
– Aquelas que Eu vejo no fundo dos corações, e que Eu leio nas frontes
destronadas.
Jesus dá um forte destaque a esta palavra. Todos ficam alvoroçados:
– Destronadas? Por quê? Que queres dizer?
– Um rei é destronado, quando é indigno de ficar no trono, e a primeira
coisa que lhe é tirada é a coroa, que está em sua fronte, sendo aí o lugar
mais nobre do homem, o único animal que tem a fronte levantada para o
céu, pois ele é animal em sua parte material, mas sobrenatural por ser
dotado de uma alma. Mas, não é necessário que se seja rei sobre um trono
terreno, para que se deva ser destronado. Todo homem é rei por sua alma e
o trono dele é no Céu. Mas, quando um homem prostitui a sua alma, e se
torna um animal, então ele se destrona. O mundo está cheio de frontes
destronadas, que não estão mais levantadas para o Céu, mas inclinadas para
o Abismo, e tornadas mais pesadas, por causa da palavra que Satanás
esculpiu nelas. Quereis saber qual é? É a que eu leio sobre as frontes. Nelas
está escrito: “Vendido!” E, para que não tenhais dúvidas sobre quem é o
comprador, Eu vos digo que é Satanás, por si mesmo ou os seus
trabalhadores que estão no mundo.
– Eu compreendo! Aqueles fariseus, por exemplo, são empregados de
um outro empregado maior do que eles, o qual é empregado de Satanás! –
diz convicto Pedro.
Jesus não contesta nada.
301.4 – Mas… Sabe, Mestre, que aqueles fariseus, depois de terem ouvido
aquelas tuas palavras, saíram de lá escandalizados? Quando iam saindo,
deram de encontro comigo, e o diziam. Foste muito áspero –observa
Bartolomeu.
E Jesus replica:
– Mas muito mesmo. Não é culpa minha, mas deles, se certas
coisasdevem ser ditas. E é ainda uma caridade minha dizê-las. Toda planta,
não plantada por meu Pai celeste, vai ser arrancada. Pois é planta não
plantada por Ele, inútil carcaçacheia de ervas parasitas que sufocam as
outras, que as oprimem, espinhosas, querendo abafar a semente da Verdade
Santa. É uma caridade extirpar essas tradições e preceitos, que sufocam o
Decálogo e o desfiguram, e o tornam inerte e impossível de ser observado.
Para as almas honestas é uma caridade fazê-lo. E, quanto àqueles teimosos
cabeçudos, fechados a toda ação e conselho do Amor, deixai-os fazer… e
sejam seguidos por aqueles que são, por seu espírito e suas tendências,
semelhantes a eles. São cegos que guiam outros cegos. Se um cego guia
outro cego, só poderão cair os dois no mesmo buraco. Deixai-os, que se
nutram de suas contaminações, às quais dão o nome de “pureza.” Elas não
os podem mais contaminar, porque não fazem mais do que deitar-se na
matriz, de onde provêm.
301.5 – Isto que agora estás dizendo é a continuação de tudo o que
disseste na casa do Daniel, não é mesmo? Que não é o que entra no homem
o que o contamina, mas sim o que sai dele –pergunta, pensativo, Simão
Zelotes.
– Sim –diz brevemente Jesus.
Pedro, depois de alguns momentos de silêncio, — pois a seriedade de
Jesus enregela até os caracteres mais expansivos —, pergunta:
– Mestre, eu, e não eu somente, não compreendi bem a parábola.
Explica-a um pouco para nós. Como é que o que entra não contamina, e o
que sai é que contamina? Eu, se pego uma ânfora limpa, e a encho com
água suja, a contamino. Portanto, o que entra na ânfora a contamina. Mas,
se uma ânfora cheia de água limpa, eu derramar daquela água no chão, eu
não contamino a ânfora, porque da ânfora sai água pura. E, então?
301.6 E Jesus:
– Nós não somos ânforas, Simão. Não somos ânforas, amigos. E nem
tudo é puro no homem! Mas, será que vós também já estais sem
inteligência? Refleti no caso que os fariseus apresentavam para vos acusar.
Eles diziam que vós vos contamináveis, porque leváveis alimento à boca
com mãos empoeiradas, suadas, sujas, afinal. Mas, aquele alimento para
onde ia? Passava da boca para o estômago, e deste para o ventre, e do
ventre para a cloaca, depois de ter cumprido o seu ofício, que é o de nutrir a
carne, somente ela, e indo acabar, como é justo que acabe, em um esgoto.
Não é isso que contamina o homem!
O que contamina o homem é aquilo que é dele, unicamente dele, gerado
e parido pelo eu dele. Quer dizer, aquilo que ele tem em seu coração, e que
do coração sai para os lábios e para a cabeça, e vai corrompendo o
pensamento e a palavra, e contaminando o homem todo. É do coração que
vêm os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os
furtos, os falsos testemunhos e as blasfêmias. É do coração que vêm as
avarezas, as libidinagens, as soberbas, as invejas, as iras, os apetites
imoderados, os ócios pecaminosos. É do coração que vêm os estímulos para
todas as ações. E se o coração é mau, elas serão más como o coração. Todas
as ações: desde as idolatrias até as murmurações não sinceras… Todas estas
coisas más, que procedem do interior para o exterior, contaminam o
homem, mas não o comer sem lavar as mãos. A ciência de Deus não é uma
coisa vulgar, uma lama pisada por todos os pés. Mas é uma coisa sublime,
que vive nas plagas estelares e que de lá desce com raios de luz, para dar
aos justos informações sobre si. Não queirais, pelo menos vós, arrancá-la
dos céus, para aviltá-la na lama…
Ide descansar agora. Eu saio para ir rezar.
302. Em Magdala, antes de enviar
todos à família para as Encênias.
14 de outubro de 1945.
302.1 Chuva e mais chuva.Os apóstolos, pouco satisfeitos com isso de
estarem sempre tomando chuva, perguntam a Jesus se não seria melhor irem
abrigar-se em Nazaré, que não ficava longe… e Pedro diz:
– Depois se poderia partir de lá com as crianças…
O “não” de Jesus é tão terminante, que ninguém mais ousa insistir
Jesus vai à frente, sozinho. Os outros vão atrás, em dois grupos,
amuados.
Depois, Pedro não agüenta mais e vai para perto de Jesus.
– Mestre, queres-me perto de Ti?
– Tu me és sempre querido, Simão. Vem.
Pedro então se tranqüiliza. Ele põe-se a trotear ao lado de Jesus que,
com os seus longos passos, transpõe grandes distâncias com facilidade. Dali
a pouco ele diz:
– Mestre, teria sido bom se tivéssemos o menino durante a festa…
Jesus não responde.
– Mestre, por que não me fazes feliz?
– Simão, tu estás correndo o risco de Eu ter que tirar-te o menino.
– Não! Senhor! Por quê?
E Pedro fica espantado com essa ameaça e entristecido.
– Porque Eu não quero que tu fiques ligado a coisa alguma. Eu te disse
quando Eu te concedi Marziam. Mas tu te estás encalhando na areia com
esta tua afeição.
– Não é pecado amar. E amar Marziam. Tu também o amas,
– Mas esse amor não me impede de entregar-me todo à minha missão.
Não te lembras das minhas palavras sobre os afetos humanos? Os meus
conselhos tão claros, tão claros que são até ordens, para quem quiser pôr as
mãos ao arado? Será que estás ficando cansado, Simão de Jonas, de ser
heroicamente meu discípulo?
A voz de Pedro já está enrouquecida pelo pranto, quando ele responde:
– Não Senhor. Eu me lembro de tudo e não estou cansado. Mas eu
tenho a impressão de que seja o oposto… És Tu que estás cansado de mim,
do pobre Simão, que deixou tudo para te acompanhar…
– Que achou tudo ao acompanhar-me, é o que queres dizer.
– Não… Sim… Mestre… Sou um pobre homem, eu…
– Eu sei. E é justamente por isso que Eu te estou aperfeiçoando. É para
fazer de um pobre homem um homem, e deste homem um santo, o meu
Apóstolo, a minha Pedra. Eu sou duro para tornar-te duro. Eu não quero te
ver mole, como esta lama. Eu quero te ver como um bloco esquadrejado,
perfeito. Não te lembras do Sábio[13]? Ele diz que quem ama é severo.
302.2Mas compreende-me. Compreende-me, pelo menos tu. Não estás vendo
como estou sendo oprimido, entristecido por tantas incompreensões, com
tantos e tantos fingimentos demais com tantos desamores e as ainda mais
numerosas desilusões?
– Está sendo assim, Mestre? Oh! Divina Misericórdia! E eu nem me
dava conta disso! Que grande animal eu sou!… Mas, desde quando? Por
quem te estão sendo feitas essas coisas? Dize-o a mim…
– Não adianta. Nada poderias fazer. Nem Eu posso fazer nada…
– Deveras, eu não poderia fazer nada para aliviar-te?
– Eu já te disse: compreender que a minha severidade é amor. Ver em
cada ato meu a teu respeito o amor.
– Sim, sim. Não falo mais. Caro Mestre meu! Não falo mais. E Tu,
perdoa a este grande animal que eu sou. Dá-me uma prova de que me
perdoas mesmo…
– Uma prova! Na verdade, deveria bastar-te o meu sim. Mas Eu te darei
a prova. Escuta: Eu não posso ir a Nazaré, porque em Nazaré estão João de
Endor e Síntique, além de Marziam. E Eu não quero que se saiba disso.
– Nem nós? Por quê?… Ah!… Mestre?! Mestre?! Estarás temendo de
algum de nós?
– A prudência ensina que, quando se quer manter uma coisa em
segredo, já é demais que duas pessoas saibam dela. Pode-se fazer mal até
com uma palavra descuidada. E nem todos, e nem sempre vós sois
ponderados.
– É verdade. Eu também não sou. Mas, quando eu quero, sei calar-me.
E agora vou calar-me. Oh! Se vou… Não serei mais o Simão de Jonas, se
eu não souber calar-me. Obrigado, Mestre, pela tua estima. Esta, sim, que é
uma grande prova de amor… 302.3Então, agora vamos para Tariquéia?
– Sim. Depois, com as barcas, para Magdala. Preciso receber o ouro das
jóias.
– Estás vendo que eu sei calar-me? Eu nunca disse nada para Judas,
sabes?
Jesus não comenta a interrupção de Pedro. E continua:
– Depois que Eu receber o ouro, vos porei todos em liberdade, até o dia
depois das Encênias. Se Eu quiser algum de vós, chamar-vos-ei a Nazaré.
Os judeus, menos Simão Zelotes, acompanharão as irmãs de Lázaro e as
outras servas, e também Elisa de Betsur, até à casa de Betânia. Depois irão
para as Encênias em suas casas. Para Mim, bastará que estejam de volta
pelo fim do Shebat, quando voltaremos a peregrinar, Somente tu ficas
sabendo isto, não é, Simão Pedro?
– Sim, só eu fico sabendo. Mas… Tu também deverás dizê-lo…
– Eu o direi no momento oportuno. Agora, vai aos teus companheiros e
fica certo do meu amor.
Pedro obedece contente e Jesus volta a aprofundar-se em seus
pensamentos.

As ondas vão-se quebrando sobre a praiazinha de Magdala, quando


302.4
as duas barcas lá estão atracando, ao cair de uma tarde de novembro. Não
são grandes as ondas. Mas sempre incomodam a quem desembarca, porque
suas vestes podem molhar-se. Mas a perspectiva de que logo estejam
abrigados na casa de Maria de Mágdala faz que suportem sem reclamações
algum banho não desejado.
– Ponde as barcas no abrigo, e reuni-vos –diz Jesus aos empregados.
E Ele põe-se logo a caminhar, ao longo do litoral, pois fizeram a
atracação em um encaixe um pouco fora da cidade, onde estão outras barcas
de pescadores de Magdala.
– Judas de Simão e Tomé, vinde comigo –chama-os Jesus.
Os dois vão a Ele.
– Eu resolvi dar-vos um encargo de confiança e uma alegria, ao mesmo
tempo. O encargo é o seguinte: que acompanheis as irmãs de Lázaro até
Betânia. E com elas vai Elisa. Eu vos estimo bastante para confiar-vos as
discípulas. E também levareis uma carta minha para Lázaro. Depois, tendo
cumprido esse encargo, ireis para as vossas casas para as Encênias… Não
interrompas, Judas. Todos faremos as Encênias em nossas casas este ano. O
inverno está muito chuvoso para que se possa viajar. Vede que até a
freqüência dos doentes diminuiu. Por isso, aproveitemos a ocasião para
descansar e dar alegria às nossas famílias. Eu vos espero em Cafarnaum, no
fim do Shebat.
– Mas, Tu estarás em Cafarnaum? –pergunta Tomé.
– Por enquanto, não tenho certeza de onde estarei. Aqui ou lá, para
Mim é a mesma coisa. Basta que minha Mãe esteja perto de Mim.
– Eu preferia fazer as Encênias contigo –diz Iscariotes.
– Eu creio. Mas, se me queres bem, obedece. Muito mais do que a
vossa obediência, isso vos servirá de modo para ajudar os discípulos que
tornaram a espalhar-se por toda parte. Deveis ajudar-me bem nisso! Nas
famílias são os filhos maiores que ajudam os pais na formação dos filhos
menores. Vós sois os irmãos maiores dos discípulos, que são os menores, e
deveis ficar alegres, porque Eu confio em vós. Isto mostra que Eu estou
contente com o vosso último trabalho.
302.5 Tomé simplesmente diz:
– Muito bem, Mestre. Mas eu, no que depende de mim, agora
procurarei fazer ainda melhor. Mas não gosto de deixar-te… Contudo, isso
passará logo… E meu velho pai ficará contente por estar comigo na festa…
e também minhas irmãs… E a minha gêmea, então!… Ela já deve ter tido,
ou está para ter, um menino… É o primeiro sobrinho… Se for homem, e
nascer quando eu estiver por lá, que nome lhe porei?
– José.
– E se for mulher?
– Maria. Não há nomes mais doces.
Mas Judas, cheio de orgulho pelo encargo recebido, já se está
pavoneando e faz projetos sobre projetos… Ele está completamente
esquecido de que vai afastar-se de Jesus e de que, pouco tempo antes,
quando da festa dos Tabernáculos, se bem me lembro, ele tinha protestado,
como um poldro selvagem, contra a ordem de Jesus de separar-se dele por
algum tempo. Ele perde completamente de vista a suspeita que tinha
naquela ocasião de que aquilo fosse um desejo de Jesus para afastá-lo. Ele
se esquece de tudo… e se sente feliz por ser considerado alguém a quem se
pode encarregar de missões delicadas. Ele promete:
– Eu te trarei muito dinheiro para os pobres.
E, assim falando, já vai tirando a bolsa, e diz:
– Aqui está. Toma este dinheiro. É o que nós temos. Não temos mais.
Dá-me Tu o necessário para a nossa viagem de Betânia até as nossas casas.
– Mas nós não vamos partir hoje de tarde –objeta Tomé.
– Não faz mal. Não é necessário mais dinheiro na casa de Maria, eu
portanto, fico bem… contente por não ter mais para administrar. Quando eu
voltar, irei levar à tua Mãe sementes de flores. Eu as arranjarei com minha
mãe. Quero levar também um presente para Marziam…
Ele está muito excitado. Jesus olha para ele…
302.6Já chegaram à casa de Maria de Magdala. Fazem-se reconhecer e
todos entram. As mulheres vêm correndo ao encontro do Mestre, que veio
abrigar-se junto à lareira delas…
E é depois da ceia, quando os apóstolos, cansados, já se retiraram, que
Jesus, sentado no centro de uma sala, faz um círculo com as discípulas e as
adverte que o seu desejo é que partam quanto antes. Ao contrário dos
apóstolos, nenhuma delas protesta. Inclinam a cabeça, dando o seu
assentimento, e saem para ir preparar suas bagagens. Mas Jesus chama
Madalena, que já está na soleira.
– E então, Maria? Por que foi que me sussurraste, quando Eu cheguei:
“Preciso falar-te em segredo?”
– Mestre, eu vendi as pedras preciosas. Em Tiberíades. Quem as
vendeu foi Marcela, com a ajuda de Isaque. Estou com o dinheiro no meu
quarto. Eu não quis que Judas visse nada… –e fica vivamente corada.
Jesus olha fixamente para ela. Mas nada diz. Madalena sai para voltar
com uma bolsa pesada, que ela entrega a Jesus:
– Aqui está –diz ela–. Pagaram bem.
– Obrigado, Maria.
– Obrigada, Rabi, por me teres pedido este favor. Tens outras coisas a
pedir-me?
– Não, Maria. E tu, tens outras coisas a dizer-me?
– Não, Senhor. Abençoa-me, Mestre meu.
– Sim. Eu te abençôo… 302.7Maria… estás contente por voltar a ficar
com Lázaro? Pensa que não esteja Eu mais na Palestina. E, assim sendo,
voltarias contente mesmo para tua casa?
– Sim, Senhor. Mas…
– Acaba, Maria. Não tenhas medo de dizer-me o teu pensamento.
– Mas, eu teria voltado mais contente se, em vez de Judas de Keriot,
estivesse Simão Zelotes, grande amigo da família.
– Preciso dele para uma séria missão.
– Então, os teus irmãos. Ou João que tem um coração de pomba. Todos,
pois, menos ele… Senhor, não me fiques olhando com severidade… Quem
andou comendo luxúria, sente a proximidade dela… Eu não a temo. Eu sei
conservar em seu lugar a qualquer um, e muito mais a Judas. Sinto medo de
não ser perdoada, temo pelo meu eu, por Satanás, que certamente está ao
redor de mim, e pelo mundo… Mas, se Maria de Teófilo não tem medo de
ninguém, Maria de Jesus tem repugnância pelo vício que a havia dominado,
e a… Senhor, o homem que vive excitado pela sensualidade me causa
náuseas…
– Não estás sozinha na viagem, Maria. E contigo Eu estou certo de que
ele não voltará atrás… Lembra-te de que Eu devo fazer partir Síntique e
João para Antioquia, e que não se deve ficar sabendo disso por meio de
alguém que seja imprudente…
– É verdade. Então, irei… Mestre, quando nos veremos de novo?
– Não sei, Maria. Talvez somente pela Páscoa. Vai em paz agora. Eu te
abençôo nesta tarde, e em todas as tardes, e contigo também à Lázaro.
Maria se inclina para beijar os pés de Jesus e sai, deixando Jesus
sozinho na sala silenciosa.
[13] do Sábio é Salomão, que fala da severidade como um sinal de amor: Provérbios 3,12; 13,24.
303. Jesus com a Mãe em Nazaré.
15 de outubro de 1945.
303.1 Estamos em uma tarde já escura de dezembro. Tarde fria e com
vento. Tiradas as folhas, arrancadas das árvores que ainda as tinham, e que
fazem um rumor por entre o sibilar do vento, não se ouve nenhum outro
barulho nas ruas de Nazaré, que estão agora no escuro, como as de uma
cidade morta. Parece até uma cidade de lobos…
Mas, enquanto isso, pelas ruas desertas de Nazaré, lá vai andando o
Cordeiro de Deus, que se dirige para a sua casa. Sua alta sombra, escura
como a veste que ele traja, quase desaparece na penumbra de uma noite sem
estrelas, e o passo dele produz apenas um leve barulho, quando Ele passa
por sobre algum montinho de folhas secas e, depois de fazê-las redemoinhar
pelo ar, levadas pelo vento, este as depõe de novo no chão, e está pronto a
transportá-las de novo para algum outro ponto.
Chega perto da casa de Maria de Cléofas. Fica um pouco na dúvida se
entra ou não no jardim e se bate na porta da cozinha, ou vai para diante.
Mas acaba prosseguindo, sem ficar parado ali. Ei-lo já na pequena rua, onde
fica sua casa. A agitada ondulação das copas das oliveiras, por cima do
pequeno outeiro, ao lado do qual está a casa, que já se vê como, uma
ondulação negra sob um céu escuro. Jesus apressa o passo. Já está chegando
à porta. Escuta com atenção. É tão fácil poder ouvir-se o que está
acontecendo dentro de uma casa tão pequena! Basta que alguém ajuste o
ouvido ao umbral, para ter apenas uns poucos centímetros de madeira, entre
quem escuta e quem está falando… Mas Ele não ouve nenhuma voz.
– Agora é tarde –suspira Ele–… Vou esperar a aurora, para bater à
porta.
303.2 Mas, quando Ele está para afastar-se dali, chega até Ele o barulho
cadenciado do tear. Ele sorri. E diz:
– Ela está desperta ainda. Está tecendo. Certamente é Ela. Esta é a
cadência de minha Mãe.
Não posso ver o seu rosto, mas estou certa de que Ele está sorrindo,
porque o sorriso já está em sua voz, que antes era triste, e agora já está
alegre.
Ele bate à porta. Aquele rumor cessa por um momento, depois ouve-se
outro rumor, que é o de uma cadeira empurrada e, finalmente, uma voz
clara, que pergunta:
– Quem está batendo?
– Sou Eu, minha Mãe!
– Meu Filho!
É um doce grito de alegria, e um grito, ainda que tenha sido emitido em
baixo tom. Ouve-se o barulho feito pelas mãos nos ferrolhos, e o deslizar
destes… e a porta se abre, deixando passar uma onda de luz dourada por
sobre a escuridão da noite. Maria cai nos braços de Jesus, ali mesmo na
entrada, como se não pudessem tardar nem um minuto, Ele a recebê-la, e
Ela a lançar-se sobre o seu Coração.
– Filho, meu Filho…
Beijos e doces palavras: “Minha Mãe”, “Meu Filho”… Depois entram e
a porta se fecha completamente.
Maria explica em voz baixa:
– Todos estão dormindo. Eu velava… Desde quando voltaram Tiago e
Judas, dizendo que Tu virias depois deles, eu sempre fiquei te esperando até
tarde. Estás com frio, Jesus? Sim. Estás gelado. Vem. Eu deixei a lareira
acesa. Vou jogar nela um feixe de gravetos. Assim te aquecerás.
E o leva pela mão, como se Ele continuasse a ser o seu pequenino
Jesus…
A chama brilha, alegre e crepitante, na lareira realimentada. Maria olha
para Jesus, que estende as mãos para aquecê-las perto das chamas.
– Como estás pálido! Não estavas assim, quando nos separamos…
Estás ficando magro e descorado, meu Filho. Há tempo, Tu eras de leite e
rosas. Mas agora pareces ser feito de marfim velho. Que houve de novo
contigo, meu Filho? Serão, como sempre, os fariseus?
– Sim… e mais outras coisas. Mas agora estou feliz, aqui contigo, e
logo estarei bem. Este ano as Encênias se fazem aqui, minha Mãe! Eu atinjo
a idade perfeita, aqui ao teu lado. Estás contente?
– Sim. Mas a idade perfeita para Ti, meu coração, ainda está longe…
És ainda jovem, e para mim és o meu Menino. Aqui tens o leite quente.
Queres bebê-lo aqui, ou lá?
– Lá, minha Mãe. Ainda está muito quente. Eu o beberei, enquanto
fores cobrir o tear.
303.3Voltam para a saleta, e Jesus se assenta numa caixa-banco, ao lado
da mesa, e bebe o seu leite. Maria olha para Ele, e sorri. E sorri mais ainda,
quando toca no saco que Jesus trouxe, e o põe sobre uma pequena mesa.
Sorri tanto, que Jesus lhe pergunta:
– Que é que estás pensando?
– Estou me lembrando de que Tu chegaste justamente no aniversário de
nossa partida para Belém… também naquele dia havia sacos e cofres
abertos e cheios de roupas, especialmente uns paninhos… para um
Pequenino, que podia nascer, como dizia José. Que devia nascer, dizia eu a
mim mesma, em Belém de Judá… Eu os havia escondido no fundo, porque
José tinha medo disso. Ele não sabia ainda que o nascimento do Filho de
Deus não estaria sujeito, nem por Ele mesmo, nem pela Mãe do Menino, às
misérias do dar à luz e do nascer. Não sabia… e por isso é que tinha medo
de estar longe de Nazaré comigo naquele estado. Eu tinha certeza de que lá
eu já seria uma parturiente… Tu estavas muito exultante em mim, pela
alegria de teres chegado ao teu Natal e ao Natal da Redenção, e eu não
podia enganar-me. Os Anjos volteavam, como turbilhões, ao redor da
Mulher, que consigo trazia a Ti, meu Deus… Agora, não era mais o Arcanjo
sublime, nem era o dulcíssimo Anjo que me guarda, como faziam eles nos
meses que vieram antes. Agora, eram coros e mais coros de anjos, que
desciam do Céu de Deus ao meu pequeno Céu: o meu seio, onde Tu
estavas… Eu os ouvia cantar e dizerem uns aos outros suas palavras de
luz… palavras que revelavam a ânsia deles por te verem, o Deus
Encarnado… E eu os ouvia, durante suas fugas de amor, vindos do Paraíso
para te adorarem a Ti, o Amor do Pai, escondido em meu seio. E eu
procurava aprender as palavras deles… os cantos deles… os seus ardores…
Mas uma criatura humana não pode dizer nem ter coisas do Céu…
Jesus a escuta sentado e Ela em pé, perto da mesa, como uma
sonhadora, e Jesus cheio de felicidade, com uma das mãos posta sobre a
madeira escura, e a outra sobre o coração… E Jesus lhe cobre a mãozinha
branca e gentil com a sua, que é mais longa e escura, e aperta em seu punho
aquela mãozinha santa… E, quando Ela se cala, quase lastimando-se por
não ter podido aprender dos Anjos as palavras, os cânticos e todos os
ardores deles, Jesus diz:
– Todas as palavras dos anjos, todos os seus cantos, todos os seus
ardores não me teriam feito feliz sobre a terra se Eu não tivesse tido os teus,
minha Mãe. Tu me disseste e me deste o que eles não puderam dar-me. Não
tu deles, mas eles de ti é que aprenderam… 303.4Vem cá, minha Mãe, ao meu
lado, e continua a contar… Não coisas daquele tempo… mas de agora. Que
é que estavas fazendo agora?
– Estava trabalhando…
– Eu sei. Mas, que trabalho estavas fazendo? Eu aposto que estavas te
cansando por Mim. Deixa-me ver…
Maria fica mais vermelha do que a peça que está no tear, e que Jesus,
tendo-se levantado, está observando.
– Púrpura? Quem foi que ta deu?
– Judas de Keriot. Ele fez que lha dessem os pescadores de Sidon,
parece-me. Ele quer que eu te faça uma veste de rei. A veste, eu faço, sim.
Mas para Ti não há necessidade de púrpura para seres rei.
– Judas é mais cabeçudo do que um mulo –e foi esse o único
comentário sobre a púrpura que Judas ganhou…
Depois, Jesus se vira para a Mãe:
– E vai sair uma veste inteira do pedaço que ele te deu?
– Oh! Não, meu Filho. Poderá servir para as orlas da veste e do manto.
Não mais do que isso.
– Está bem. Agora compreendo porque é que a estás fazendo com fitas
em baixo. Então… Minha Mãe: agrada-me este pensamento. Tu me
conservarás separadas estas fitas, e um dia Eu te direi que as uses para uma
bela veste. Mas temos ainda tempo. Não te afadigues.
– Eu trabalho, quando estou em Nazaré…
– É verdade… 303.5E os outros, que é que fizeram nesse tempo?
– Eles se instruíram.
– Ou melhor, tu os terás instruído. Que te parece?
– São três boas pessoas. Tirando a ti, nunca tive alunos mais dóceis e
atentos. Tomei o cuidado de zelar também por João. Ele está muito doente.
Não irá viver muito…
– Eu sei. Mas para ele é um bem. Afinal, ele mesmo o deseja. Ele
compreendeu espontaneamente o valor do sofrimento e da morte. E
Síntique?
– É uma pena afastá-la. Vale por cem discípulas, pela santidade e pela
capacidade de entender o sobrenatural.
– Compreendo. Mas, que devo fazer?
– O que fizeres está sempre bem feito, meu Filho!
– E o menino?
– Também ele está aprendendo. Mas está muito triste nestes dias… Está
lembrando-se da desventura por que passou, há um ano. Oh! Não havia
muita alegria aqui… João e Síntique suspiram, ao pensarem que vão partir
daqui, e o menino chora, pensando em sua mãe morta…
– E tu?
– Eu… Tu sabes, Filho. Não brilha o sol para mim, quando Tu estás
longe. Nem brilharia se o mundo não te amasse. Mas, pelo menos, seria um
sol sereno… E, no entanto…
– Ela chora. Pobre Mãe! Não te fizeram muitas perguntas sobre João e
Síntique?
– E quem Tu querias que as fizesse? Maria de Alfeu sabe, e se cala.
Alfeu de Sara já viu João, mas não é curioso. Ele o chama “o discípulo.”
– E os outros?
– Tirando Maria e Alfeu, nenhum outro vem à minha casa. Alguma
mulher para procurar serviço ou conselho. Mas os homens de Nazaré não
atravessam mais a minha soleira.
– Nem José e Simão?
– Não… Simão me manda óleo, farinha, azeitonas, lenha, como para
obter o perdão por não te compreender, como quem quisesse falar por meio
de presentes. Ele os entrega à Maria, sua mãe, mas não vem aqui. Afinal,
qualquer um que viesse não veria mais do que a mim, porque Síntique e
João se retiram quando alguém bate à porta…
– É uma vida muito triste…
– Sim. E o menino sofre um pouco com isso, de modo que Maria de
Alfeu o leva consigo, quando vai fazer compras. Contudo, agora não
estaremos mais tristes, meu Jesus. Porque Tu estás conosco!
– Eu estou aqui… Agora vamos dormir. Abençoa-me, minha Mãe,
como quando Eu era pequeno.
– Abençoa-me, meu Filho. Eu sou a tua discípula.
Beijam-se. Acendem outra candeia, e saem dali para irem dormir.
304. Com João de Endor, Síntique
e Marziam. Maria é mãe e mestra.
16 de outubro de 1945.
304.1 – Mestre! Mestre! Mestre –são os três gritos do João de Endor que,
saindo do seu quartinho, para ir ao tanque lavar-se, encontra-se de frente
com Jesus, que está vindo. Aqueles gritos despertaram Marziam, que sai
correndo do quarto de Maria, unicamente com a sua pequena túnica sem
mangas, e curta, ainda descalço, todo olhos e boca para ver e gritar: “Jesus
está aí”, e todo pernas para correr, e ir parar nos braços dele. Eles despertam
também Síntique, que estava dormindo onde foi a oficina de José, e que de
lá sai, alguns momentos depois, já vestida, com suas tranças cor de amora,
trançadas pela metade, e uns pingentes sobre os ombros.
Jesus, com o menino ainda nos braços, saúda João e Síntique, e os
convida a entrar na casa, porque o vento do norte está muito forte. E Ele
entra por primeiro, levando seminu Marziam, que está batendo os dentes,
não obstante o seu entusiasmo, ao lado da lareira já acesa, onde Maria está
procurando fazer esquentar o leite, e também as vestes do menino, para que
ele não pegue nenhum resfriado.
Os outros dois estão em silêncio, e parecem a personificação da alegria
extática. Jesus, que está sentado com o menino no colo, enquanto a Virgem
com agilidade o vai vestindo com suas roupas esquentadas, levanta o rosto,
e sorri, dizendo:
– Eu vos havia prometido que haveria de vir. E hoje ou amanhã, virá
também Simão Zelotes. Ele foi encarregado por Mim de ir a outro
lugar.Mas logo ele virá, estaremos juntos muitos dias.
304.2 Maria já acabou de mudar a roupa do Marziam, e a cor volta àquele
rostinho meio arroxeado pelo frio. Jesus faz que ele desça dos seus joelhos
e se põe de pé, indo para o quartinho do lado, acompanhado por todos. Por
último vem Maria, segurando o menino pela mão. E o censura docemente
dizendo:
– Que deveria eu te fazer agora? Tu desobedeceste. Eu te havia dito:
“Fica na cama até eu voltar”, e tu vieste para cá antes da hora…
– Eu acordei com os gritos de João… –desculpa-se Marziam.
– Pois devias saber obedecer justamente naquele momento. Ficar na
cama enquanto se está dormindo não é obedecer, e fazer isso não tem
merecimento algum. Deverias saber fazer isso de modo que houvesse
merecimento, porque dependia da tua vontade. Eu te teria trazido Jesus. Tu
o terias tido todo para ti, e sem te arriscares a pegar um resfriado.
– Eu não sabia que estava fazendo tanto frio.
– Mas eu sabia. Fico triste por te ver tão desobediente.
– Não, minha Mãe. Eu é que fico mais triste por te ver assim… Se não
fosse por Jesus, eu não me levantaria, nem mesmo se me esquecessem na
cama sem comer. Minha Mãe bela, minha Mãe!… Dá-me um beijo, minha
Mãe. Tu sabes que eu sou um pobre menino!…
Maria o toma nos braços, e o beija, fazendo assim que cessem de correr
as lágrimas pelo rostinho, e fazendo voltar a ele o sorriso, com esta
promessa:
– Não te desobedecerei mais, nunca, nunca mais!
304.3 Enquanto isso, Jesus está falando com os dois discípulos. Ele está se
informando sobre os progressos deles na Sabedoria e, visto que eles dizem
que tudo se esclarece neles pela palavra de Maria, Jesus lhes diz:
– Eu sei. A Sabedoria de Deus, sobrenaturalmente luminosa, se torna
uma luz compreensível até para os corações mais duros, quando Ela
explica. Mas vós não sois uns duros de coração, e, por isso, vos aproveitais
bem do seu ensinamento.
– Agora, Tu estás aqui, meu Filho. A mestra se torna aluna.
– Oh! Não. Tu continuas a ser Mestra. Eu te ouvirei como eles. Eu sou
apenas “o Filho” nestes dias. Nada mais. Tu serás a Mãe e Mestra dos
cristãos. E o és, desde agora: Eu, o teu primogênito e primeiro aluno, e
estes, e com eles Simão, quando ele vier, e os outros… Estás vendo, Mãe?
O mundo está aqui. O mundo de amanhã, no pequeno israelita puro, que
nem se dará conta de que se tornará “o cristão.” E o mundo, o velho mundo
de Israel, representado pelo Zelotes. A humanidade, representada por João,
e os pagãos por Síntique. E todos virão a ti, Santa Nutriz, que dás o leite da
Sabedoria e da Vida ao mundo e aos séculos. Quantas bocas desejaram
sugar em teu peito! E quantas o farão no futuro! Por ti suspiraram os
Patriarcas e os Profetas, porque do teu seio fecundo é que haveria de provir
a Nutrição do homem. E te procurarão os “meus”, a fim de serem
perdoados, instruídos, defendidos, amados, como outros tantos Marziam. E,
felizes dos que o fizerem! Porque não será possível perseverar em Cristo, se
não se tornarem fortes, por meio da graça, com a tua ajuda, ó Mãe cheia de
Graça.
Maria fica parecendo uma rosa, em sua veste escura, pelo tanto que se
lhe enrubesce o rosto, ao ouvir ela o elogio feito por seu Filho. E uma rosa
fulgente, vestida de modo tão modesto, com uma lã grosseira de cor
marrom escuro…
304.4 Batem à porta, e vão entrando todos juntos Maria de Alfeu, Tiago e
Judas, estes últimos trazendo vasilhas com água e uns feixes. A alegria de
verem-se juntos uns com os outros é grande. E ela aumenta, quando eles
ficam sabendo que logo virá também o Zelotes. O afeto dos filhos do Alfeu
para com ele é evidente, desde mesmo antes que Judas dissesse em resposta
àquela observação de sua mãe, que havia notado aquela alegria deles:
– Minha mãe, justamente nesta casa, em uma tarde bem triste para nós,
ele nos tratou com um afeto de pai, e ainda o conserva para conosco. Não
podemos esquecer-nos disso. Para nós, ele é “o pai.” E nós para ele somos
“os filhos.” Que filhos há que não se alegrem muito, quando tornam a ver
um bom pai?
Maria de Alfeu fica pensando, e suspira… Depois, muito experiente até
em seus sofrimentos, ela pergunta:
– Não tendes lugar. Mandai-o vir a mim.
– Não, Maria, diz Jesus. Ele virá ficar em minha casa. Isto se faz logo.
Síntique irá ficar com minha Mãe. Eu, com Marziam, Simão na oficina, e
até será melhor preparar tudo isso logo. Vamos.
E os homens saem para a horta com Síntique, enquanto as duas Marias
vão para a cozinha, tratar de seus afazeres domésticos.
305. Jesus conforta Marziam
com a parábola dos passarinhos.
17 de outubro de 1945.
305.1 Jesus sai de casa, levando o menino seguro pela mão. Eles não vão
indo para o centro de Nazaré mas, ao contrário, vão saindo para longe dele,
pelo mesmo caminho por onde foi Jesus na primeira vez que deixou sua
casa, para entrar na vida pública. E, tendo chegado às primeiras oliveiras,
deixam a estrada mestra, para seguirem por caminhos estreitos, por entre as
plantações, procurando o calor do sol depois de vários dias de um tempo
chuvoso e sombrio.
Jesus convida o menino a correr e a pular. Mas Marziam responde:
– Eu prefiro estar perto de Ti. Eu já estou grande, e sou um discípulo.
Jesus sorri a esta… austera profissão de idade e dignidade. Na verdade,
é bem pequeno o adulto que vai caminhando a seu lado. Ninguém lhe daria
mais de dez anos. Mas ninguém pode negar que seja um discípulo, e menos
ainda Jesus, o qual se limita a dizer:
– Mas tu ficarás aborrecido enquanto Eu estiver orando. Eu te trouxe
comigo, mas para te divertires.
– Eu não poderia divertir-me nestes dias… Mas, estar perto de Ti me
alivia muito… 305.2 Eu desejei muito este tempo… porque… porque…
O menino aperta os lábios, que lhe estão tremendo, e não fala mais.
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça, dizendo:
– Quem crê na minha palavra não deve ficar triste como aqueles que
não crêem. Eu digo sempre a verdade. Mesmo quando eu afirmo que não há
separação entre as almas dos justos que estão no seio de Abraão e as dos
justos que estão na terra. Eu sou a Ressurreição e a Vida, Marziam. E esta
Eu a trago até mesmo antes de cumprir a minha missão. Tu sempre me
disseste que os teus pais suspiravam pela vinda do Messias e pediam a Deus
que pudessem viver muito, para poderem vê-lo. Portanto, eles acreditavam
em Mim. Eles adormeceram nesta fé. Por ela, pois, eles já estão salvos, por
ela eles já estão ressuscitados e vivos. Porque essa é uma fé que dá vida, ao
dar uma sede de justiça. Pensa bem quantas vezes eles terão precisado
resistir às tentações, para serem dignos de ir ao encontro do Salvador…
– Mas eles morreram sem chegarem a ver-te, Senhor… E morreram
daquela maneira… Eu os vi, sabes, quando tiraram da terra todos os mortos
da cidade… A minha mãe, o meu pai… os meus irmãozinhos… Que me
importa, se para me consolarem, me diziam: “Os teus não são assim. Eles
não sofreram.” Oh! Eles não sofreram. Então, eram penas, as pedras que
caíram por cima deles? Eram como o ar a terra e a água que os sufocaram?
E o pensamento deles nada terá sofrido, quando perceberam que iam
morrer, e estando preocupados comigo?…
O menino está muito agitado e triste. Faz gestos de quem está sofrendo
muito, e está de pé diante de Jesus, como se quisesse agredi-lo… Mas Jesus
compreende aquele sofrimento, aquela necessidade de desabafar-se, e o
deixa falar. Jesus não é daqueles que, a quem está delirando por uma
verdadeira dor, ainda lhe diz:
– Cala-te. Estás me escandalizando.
305.3 O menino continua:
– E depois? Que foi que aconteceu depois? Tu sabes o que aconteceu
depois! Se Tu não tivesses vindo, eu viraria uma fera, ou teria morrido, ou
seria morto como uma serpente no mato. E não teria mais voltado para a
mamãe, para o meu pai e para os irmãos, porque eu odiava Doras e… não
amava mais a Deus como antes, quando eu tinha mamãe a querer-me bem, a
ensinar-me a amar ao próximo. Eu quase que tinha inveja dos passarinhos,
que enchiam seus papos, que tinham penas quentes, que faziam de novo os
seus ninhos, enquanto que eu tinha fome, tinha uma roupa rasgada e não
tinha mais casa… eu os espantava, eu que gosto tanto dos passarinhos, por
causa da raiva que eu tinha, ao comparar-me com eles, e depois eu chorava,
porque via que havia sido mau, e que merecia o Inferno…
– Ah! Então te arrependias por teres sido mau?
– Sim, Senhor. Mas como eu haveria de fazer para ser bom? Meu pai
era velho. Mas ele dizia: “Daqui a pouco, tudo acabará…” Eu já estou
velho… Mas eu não estava velho! Quantos anos ainda eu teria que passar,
antes de poder trabalhar e comer como homem, e não como um cão vadio.
Eu me teria tornado um ladrão, se Tu não viesses.
– Não te terias tornado, porque tua mamãe rezava por ti. Estás vendo
que Eu vim, e te tomei comigo. Isto é prova de que Deus te amava e de que
a tua mãe velava por ti.
O menino se cala, e fica pensando. Parece que está procurando uma luz
no chão em que está pisando, de tanto que fica olhando para ele, enquanto
vai caminhando ao lado de Jesus, por sobre a grama um pouco sapecada
pelo vento do norte, que esteve soprando dias atrás. Depois, ele levanta a
cabeça, e pergunta:
– Mas não teria sido uma prova mais bela, se não se fizesse morrer
minha mãe?
305.4Jesus sorri, diante da lógica humana daquela pequena mente. Mas,
com seriedade e bondade, lhe explica:
– Olha, Marziam. Eu vou fazer-te compreender as coisas, por meio de
uma comparação. Tu me disseste que gostas de passarinhos, não é verdade?
Agora, escuta uma coisa. Os passarinhos foram feitos para voar, ou para
ficarem numa gaiola?
– Para voar.
– Está bem. E as mamães dos passarinhos, como fazem para alimentá-
los, quando estão pequeninos?
– Põem-lhes a comida no bico.
– Sim. Mas levando-lhes o quê?
– Sementes ou moscas, lagartas ou migalhas de pão ou pedacinhos de
frutas, que vão encontrando, ao voarem para cá e para lá.
– Muito bem. Agora escuta: Se tu, nesta primavera, encontrares um
ninho caído no chão, com os filhotes dentro e a mãe sobre eles, que farias?
– Eu a apanharia.
– O ninho com tudo? Como ele está? Com a mãe também?
– Tudo. Porque é muito desagradável ficarem os pequenos sem a
mamãe.
– Na verdade, no Deuteronômio está dito[14] que se apanhem os
pequenos, deixando livre a mãe, que se deve dedicar à geração de outros
filhos.
[15]
– Mas, se ela é uma boa mamãe, não vai embora. Ela corre para onde
estão os seus pequenos. A minha mãe teria feito assim. E nem mesmo a Ti
ela teria me dado para sempre, porque eu sou ainda menino. Também ela vir
comigo, não teria sido possível, porque os irmãozinhos eram ainda menores
do que eu. E, então, ela não me teria deixado sair.
– Está bem. Mas escuta: como disseste, gostarias mais se a mãe
daqueles passarinhos e se eles também, tivessem a porta da gaiola aberta
para poderem sair, e voltar com a comida apropriada, ou que ela também
ficasse presa?
– Ah! eu a quereria livre para sair e voltar, até que os pequeninos
crescessem… e eu lhes quereria todo bem se, tendo-os eu depois de terem
crescido, eu os deixasse livres, porque o passarinho é feito para voar… E
assim… para ser de fato bom mesmo, eu deveria deixar voar também os
filhotes já crescidos, e dar-lhes a liberdade… Seria esse o mais verdadeiro
amor que eu poderia ter para com eles. E também o mais justo… Sim! O
mais justo, porque eu não faria nada mais do que permitir que se cumpra o
que Deus quis que os passarinhos tivessem…
– Mas, muito bem, Marziam. Falaste mesmo como um sábio. Serás um
grande mestre do teu Senhor e quem te escutar acreditará em ti, porque
falarás como um sábio.
– É verdade. Jesus?
E aquele rostinho, antes inquieto e triste, depois confuso em seus
pensamentos e preocupado com o esforço para julgar o que era melhor,
agora se sente desembaraçado, e está radiante de alegria pelo elogio
recebido.
– É verdade. 305.5Agora estás enxergando um pouco.E, visto que és um
menino inteligente, julgas assim. Pensa, então, como julgará Deus, que é
perfeito em tudo, ao cuidar das almas para o verdadeiro bem delas. As
almas são como outros passarinhos, que a carne ainda segura presos na
gaiola. Mas eles desejam a liberdade do Céu, do Sol que é Deus e da
comida justa para eles, que é a contemplação de Deus. Nenhum amor
humano, nem mesmo o santo amor da mãe pelos filhos, ou dos filhos pela
mãe, é tão forte, que seja capaz de sufocar este desejo das almas de se
reunirem em sua origem, que é Deus. Assim como Deus, por seu perfeito
amor por nós, não encontra nenhuma razão que seja tão forte, que supere o
seu desejo de unir-se à alma que o deseja. E, então, que acontece? Algumas
vezes, Ele a ama tanto, que lhe diz “Vem! Vou dar-te a liberdade.” E Ele diz
isso, mesmo quando se trata de meninos, que estão ao redor de sua mãe. Ele
vê tudo. Ele tudo sabe, Ele faz bem feito tudo o que faz. Quando Ele livra
uma alma — poderá não parecer assim aos homens, de inteligência relativa,
mas assim é —, quando Ele livra uma alma, faz isso sempre por um bem
maior, tanto para a própria alma como para os seus parentes. Ele, então,
como Eu já te disse outras vezes, acrescenta ao ministério do anjo da guarda
o ministério da alma que Ele já chamou a Si, e que ama, com um amor livre
de toda impureza humana, os seus parentes, amando-os em Deus. Quando o
Senhor livra uma alma, Ele se empenha em fazer as vezes dela, nos
cuidados com os que ficaram vivos. Contigo Ele não fez assim? Não fiz Eu
de ti, pequeno filho de Israel, o meu discípulo, o meu sacerdote de amanhã?
– Sim, Senhor!
– Agora, pensa um pouco. Tua mãe será libertada por Mim, e já não
terá necessidade dos teus sufrágios. Mas tu, se ela tivesse morrido depois da
Redenção, e tivesse necessidade de sufrágios, poderias sufragá-la como
sacerdote. Pensa: não terias antes podido mais do que gastar, dando ofertas
a um sacerdote do Templo para que fosse feito por ela o sacrifício de
vítimas como cordeiros e pombos, ou de outro produto da terra. Isto teria
acontecido, se tivesses continuado a ser aquele camponezinho, o Jabé, na
casa de tua mãe. Agora é diferente. Tu, Marziam, como sacerdote de Cristo,
poderias celebrar por ela diretamente o Sacrifício verdadeiro da Vítima
Perfeita, em nome da qual todos os perdões são concedidos.
– E não o poderei mais fazer?
– Por teu pai, tua mãe e os irmãozinhos, não. Mas as poderás fazer por
teus amigos e teus discípulos. 305.6Não é belo tudo isso?
– Sim, Senhor.
– Então, vamos voltar tranqüilos para casa.
– Sim. Mas eu não te deixei fazer a oração!… E isto me desagrada…
– Mas, nós fizemos a oração! Fizemos considerações sobre a verdade, e
contemplamos a Deus em suas bondades… Tudo isso é oração, e tu a
fizeste como um verdadeiro adulto. Vamos, agora. Vamos cantar um belo
salmo de louvor pela alegria que está em nós.
E Jesus entoa[16]:
– Um belo canto brotou do meu coração…
Marziam une a sua voz fina à voz forte e viril de Jesus.
[14] está dito em Deuteronômio 22,6-7.
[15] está dito em Deuteronômio 22,6-7.
[16] entoa o Salmo 45.
306. Também Simão Zelotes em Nazaré.
Lições sobre o perigo do Óócio.
18 de outubro de 1945.
306.1 A tarde chega cedo em dezembro, e cedo se acendem as lâmpadas e
se reúne a família em uma só sala. Isto é o que acontece também na casinha
de Nazaré e, enquanto as duas mulheres trabalham, uma no tear e a outra
com a agulha, Jesus, com João de Endor, sentados à mesa, conversam um
com o outro em voz baixa, e Marziam está acabando de lixar dois cofres,
que estão no chão.
O menino procura caprichar, com toda a força que tem, até que Jesus,
tendo-se levantado e inclinando-se para a madeira, passa a mão sobre ela e
diz:
– Agora, basta. Já está bem lisa e a poderemos envernizar amanhã.
Agora põe todas as coisas em seus lugares, que amanhã continuaremos a
trabalhar.
E, ao ir Marziam com seus apetrechos de polimento — são espátulas
duras com peles raspentas de peixe pregadas nelas, para fazerem o que faz o
nosso papelão com pequeninos fragmentos de vidro, e facas, que não são de
aço, usadas nesse mesmo serviço — Jesus pega com seus braços robustos
um dos cofres e o leva para a oficina, onde certamente ele vai ser
trabalhado, porque lá se faz o trabalho de serrar e cortar as aparas, junto a
um dos bancos, colocado para isso no centro da oficina. Marziam já
colocou em seus lugares as suas ferramentas, pendurados em seus ganchos
os seus apetrechos, e agora está ajuntando as aparas para jogá-las ao fogo,
como ele diz, e gostaria de ir agora varrer o pó da serra, mas João de Endor
acha melhor que ele mesmo o faça. Tudo está em ordem, quando Jesus
chega com o segundo cofre, que Ele coloca perto do primeiro.
306.2 E os três estão para sair, quando ouvem bater à porta da casa e, logo
depois, a voz grave do Zelotes ressoa como uma saudação profunda feita à
Maria:
– Eu te saúdo, Mãe do meu Senhor, e bendigo a vossa bondade, que me
concede poder morar debaixo do vosso teto.
– Simão chegou. Agora vamos saber qual a razão do seu
atraso.Vamos… –diz Jesus.
Quando entram na pequena sala, onde está o apóstolo com as mulheres,
ele está procurando livrar-se de um grande volume que traz às costas.
– A paz a ti, Simão…
– Oh! Mestre bendito! Eu estou atrasado, não é? Mas procurei fazer
tudo e bem…
Eles se beijam. Depois Simão continua a sua exposição dos
acontecimentos:
– Estive com a viúva do lenhador[17]. Os socorros que mandaste
chegaram na hora. A velha está muito doente e por isso as despesas
aumentaram. O pequeno carpinteiro se aplica em trabalhar em objetos
pequenos como ele, e está sempre lembrando-se de Ti. Todos Te bendizem.
Depois, eu fui a Nara, Samira e Sira. O irmão está mais duro do que nunca.
Mas elas estão em paz, como santas que são, e comem o seu pobre pão
temperado com o pranto e o perdão. Elas te bendizem pelo socorro enviado.
Mas te suplicam que rezes para que seu duro irmão se converta. Também a
velha Raquel Te agradece pela esmola. Finalmente, eu estive em Tiberíades,
para as compras. Espero tê-las feito bem. Agora as mulheres irão vê-las. Em
Tiberíades eu fui detido por alguns que pensavam que eu fosse um teu
estafeta. Eles me detiveram durante três dias… Oh! Uma prisão dourada,
para quem gostar dela! Porque, enfim, sempre é uma prisão. Eles queriam
saber muitas coisas… Eu falei a verdade, dizendo-lhes que tu nos havias
licenciado, e que, por tua vez, te havias retirado durante o tempo mais duro
do inverno… Quando eles se persuadiram de que era verdade, e também
porque eles foram conversar com Simão de Jonas e com Filipe, sem terem
te encontrado e sem mais notícias de Ti, foi, então, que eles me deixaram
vir-me embora. Pois também a desculpa de mau tempo perdeu o valor, com
estes belos dias que estamos gozando agora. Esta a razão por que me
atrasei.
– Não tem importância. Teremos tempo para estarmos juntos. Eu te
agradeço por tudo… 306.3Mãe, olha com Síntique o que há no embrulho, e
dize-me se te parece suficiente para aquilo que já sabes… –e, enquanto as
mulheres desembrulham o volume, Jesus vai sentar-se, e está falando com
Simão.
– E Tu, que fizeste, Mestre?
– Eu fiz dois cofres, para não ficar à toa, e porque eles serão
úteis.Tenho passeado e aproveitado de minha casa…
Simão olha para ele fixamente… Mas nada diz.
As exclamações de Marziam que vê como vão saindo do embrulho
panos, lãs, sandálias, véus e cintos, fazem que se virem para aquele lado
Jesus e os seus dois companheiros.
Maria diz:
– Vai tudo bem, muito bem. Nós vamos começar já, e logo tudo estará
cosido.
O menino pergunta:
– Vais casar-te, Jesus?
Todos se riem, e Jesus pergunta:
– Por que é que tens esta suspeita?
– Por causa destas roupas que são para homem e para mulher, e por
causa dos dois cofres que fizeste. São para o teu enxoval e para o da esposa.
Tu farás com que eu a conheça?
– Queres mesmo conhecer a minha esposa?
– Oh! Sim. Como deve ser bonita e boa. Como se chama?
– Por enquanto, isso é um segredo. Porque ela tem dois nomes, como
tu, que primeiro eras Jabé, e depois Marziam.
– E eu não posso saber quais são?
– Por enquanto, não. Mas um dia saberás.
– Tu me convidas para os esponsais?
– Não vai ser uma festa para meninos. Mas Eu te convidarei para a
festa do casamento. Serás um dos convidados e uma das testemunhas. Está
bem assim?
– Mas, vai ser daqui a quanto tempo? Um mês?
– Oh! Muito mais!
– E, então, por que é que trabalhaste com tanta pressa, que te saíram até
bolhas nas mãos?
– Elas vieram, porque Eu perdi o hábito de trabalhar com as mãos.
306.4Vê, menino, como a ociosidade nos faz mal? Sempre. Pois, quando
voltamos ao trabalho, sofremos o dobro, porque ficamos muito delicados.
Pensa! Se nos faz mal assim às mãos, que mal não nos fará à nossa alma?
Estás vendo? Nesta tarde Eu precisei te dizer: “ajuda-me”, porque Eu estava
com tanta dor na mão que nem podia segurar a grosa, enquanto que, dois
anos antes, Eu era capaz de trabalhar até catorze horas cada dia, sem sentir
dor. A mesma coisa acontece com quem se torna tíbio no fervor, na
vontade. Ele se entrega sem resistência, pois tornou-se fraco, e nele
penetram os venenos das doenças espirituais. Com dupla dificuldade é que
ele agora realiza as boas obras, que antes tinha toda a facilidade para
realizar, porque ele estava sempre se exercitando nelas. Oh! Nunca é
conveniente ficar na ociosidade, como aqueles que dizem: “Quando passar
este período, eu vou voltar mais disposto ao trabalho!” Ele não o
conseguiria, a não ser com grande fadiga.
– Mas Tu não ficaste na ociosidade!
– Não. Eu tenho feito outro trabalho. Mas, não vês como a ociosidade
de minhas mãos foi prejudicial a elas mesmas?
E Jesus mostra as palmas avermelhadas e com bolhas aqui e ali.
Marziam as beija, dizendo:
– Era assim que minha mãe me fazia, quando eu me machucava, porque
o amor cura.
– Sim, o amor cura de muitas coisas… Pois bem. vem, Simão, tu
dormirás no quarto do carpinteiro. Vem, então, que Eu te vou mostrar onde
podes colocar as tuas vestes e… –e eles saem dali, e tudo termina.
[17] viúva do lenhador, do qual se tratou em 266.2, 267, 268.1/2, 269.1. Nara, Samira e Sira, abaixo indicadas, são as irmãs
mencionadas em 277.2.
307. Na casa de Nazaré, se discute as culpas dos
nazarenos. Lições sobre a tendência ao pecado.
Malgrado a redenção.
19 de outubro de 1945.
307.1 O tear está parado, porque Maria e Síntique estão cosendo, quase
sem parar, os tecidos trazidos pelo Zelotes. Os pedaços das vestes já
cortadas estão dobrados em uns montes, separados sobre a mesa, cor por
cor e, de vez em quando, as mulheres vão apanhar um daqueles pedaços e o
alinhavam sobre a mesa, e assim os homens vão sendo empurrados para o
canto do inativo tear ficando eles perto do trabalho das mulheres, mas não
interessados nele. Estão presentes também os dois apóstolos Judas e Tiago
de Alfeu que, por sua vez, estão observando a labuta das mulheres, sem
fazer-lhes perguntas, mas creio que não sem curiosidade.
Os dois primos estão falando de seus irmãos e especialmente de Simão,
que os acompanhou até à porta de Jesus, e depois foi-se embora “porque ele
está com um dos seus meninos sofrendo”, diz Tiago, para amenizar a
notícia e desculpar o irmão.
Judas é mais severo, e diz:
– Justamente por isso é que ele devia ter vindo. Mas parece que ele
também virou um idiota. Como todos os nazarenos, aliás, com exceção de
Alfeu e dos dois discípulos, que agora sabe-se lá onde estão.
307.2Compreende-se que Nazaré não tem mais nada de bom, pois o que tinha
ela o cuspiu todo fora, como se Ele fosse de um sabor desagradável para
esta nossa cidade…
– Não fales assim –pede Jesus–. Não intoxiques o teu coração… Não é
culpa deles…
– De quem é, então?
– De tantas circunstâncias… Não vale a pena indagar. Pois Nazaré é
toda inimiga. As crianças…
– Porque são crianças.
– As mulheres…
– Porque são mulheres. Mas não são as crianças, nem as mulheres que
darão firmeza ao teu Reino.
– Por que, Judas? Estás enganado. Os meninos de hoje serão justamente
os discípulos de amanhã, os que propagarão o Reino por sobre toda a terra.
E as mulheres… Por que não o poderão fazer?
– Certamente não poderás fazer das mulheres apóstolas mas, no
máximo, discípulas, como Tu disseste[18], para ajudarem aos discípulos.
– Tu mudarás de opinião em muitas coisas, meu irmão. Mas Eu nem
tento fazer-te mudar de opinião. Eu iria chocar-me contra uma mentalidade,
que chegou até a ti, vinda de séculos com os seus conceitos e preconceitos
errados a respeito da mulher. Eu somente te peço que observes e anotes,
para o teu uso, as diferenças que descobres entre as discípulas e discípulos,
e que prestes atenção, desapaixonadamente, à correspondência delas aos
meus ensinamentos. Verás, então, começando por tua mãe, que, se o
quisermos ver, tem sido a primeira das discípulas, por ordem de tempo e de
heroísmo, e o é, mesmo agora, estando corajosamente à frente de toda uma
cidade que zomba dela por Me ser fiel, por resistir até às vozes do seu
sangue, e que não lhe poupam censuras, porque ela Me é fiel, e então verás
que as discípulas são melhores do que vós.
– Eu o reconheço. É verdade. Mas em Nazaré também as mulheres
discípulas onde estão? As filhas do Alfeu, as mães do Ismael e do Aser e as
irmãs delas. E basta. É pouco demais. Eu gostaria de nem vir mais a Nazaré
para não ver tudo isso.
– Pobre mãe! Tu lhe causarias uma grande tristeza –diz Maria,
intervindo na conversação.
– É verdade –diz Tiago–. Ela tem tanta esperança de conseguir
conciliar nossos irmãos com Jesus e conosco. Eu acho que este é o único
desejo dela. Mas não é certo que o consigamos, ficando de longe. Até
agora, eu te tenho prestado atenção, ficando de lado neste assunto. Mas, de
amanhã em diante, eu quero sair, quero aproximar-me deste e daquele…
Porque, se nós temos que evangelizar também os pagãos, por que não
vamos evangelizar a nossa cidade? Eu me recuso a crer que ela seja toda má
e inconvertível.
Judas Tadeu não replica. Mas está visivelmente inquieto.
307.3 Simão Zelotes, que permanecera o tempo todo calado, também
intervém:
– Eu não desejaria insinuar suspeitas. Mas, deixai que, para aliviar-vos
o espírito, eu vos faça uma pergunta. É esta: estais bem certos de que nessa
posição orgulhosa, tomada por Nazaré, não haja forças estranhas, vindas de
fora, e que aqui trabalham bem na base de um elemento que deveria, se se
raciocinasse com justiça, dar as melhores garantias para convencer a todos
que o Mestre é o Santo de Deus? O conhecimento da vida santa de Jesus,
cidadão de Nazaré, seria um motivo para tornar mais fácil aos nazarenos a
aceitação dele como o Messias prometido. Eu, mais do que vós, e comigo
muitos outros da minha idade em Nazaré, temos conhecido pelo menos pela
fama, os pretensos Messias. E eu vos garanto que a vida íntima deles
arrasava de uma vez a mais obstinada das afirmações da messianidade
deles. Roma os perseguia ferozmente, como a rebeldes. Mas, deixando de
lado o aspecto político, pois Roma não podia permitir que existissem, onde
ela reina, esses falsos Messias que, por muitos motivos particulares, eram
passíveis de punição. Nós os agitávamos e os sustentávamos, porque eles
nos serviam para fomentar o nosso espírito de rebelião contra Roma. Nós os
ajudávamos porque, obtusos como somos, passamos a acreditar, — até que
enfim o Mestre veio esclarecer a verdade, e infelizmente, não tendo em
conta isso, ainda não cremos, como devíamos, isto é, com uma fé total, — e
passamos a ver em cada um deles o “rei” prometido. Eles acariciavam
nosso espírito aflito, com esperanças de uma independência nacional e de
uma reconstrução do reino de Israel. Mas, oh! que miséria! Que reino
caduco e corrupto teria sido aquele?! Não. Porque, na verdade, chamar
aqueles falsos Messias de reis de Israel, de fundadores do Reino prometido,
era aviltar profundamente a idéia messianica. No Mestre, à profundidade se
une a Santidade de Vida. E Nazaré, como nenhuma outra cidade, a conhece.
Eu nem penso em fazer acusação da incredulidade dos nazarenos sobre o
sobrenatural davida dele, que eles, os nazarenos, ignoram. Mas a vida! Mas
a vida dele! Agora, tanto ódio, tão grande e impenetrável resistência… Mas,
o que estou dizendo? Tão grande e aumentada resistência não poderia ter
origem em manobras inimigas? Nós os conhecemos, os inimigos de Jesus.
Sabemos o que valem. Credes vós que eles só aqui tenham ficado inertes ou
ausentes se, por toda parte, ou eles foram à nossa frente ou a nosso lado ou
atrás de nós, para destruírem a obra de Cristo? Não acuseis Nazaré, como se
fosse a única culpada. Mas chorai sobre ela, extraviada pelos inimigos de
Jesus.
– Falaste muito bem, Simão. Chorai sobre ela… –diz Jesus. E Ele está
triste.
João de Endor observa:
– Falaste ainda muito bem, quando disseste que o elemento favorável se
transforma em desfavorável, porque o homem raramente usa de justiça ao
pensar. Aqui o primeiro obstáculo é o nascimento humilde, a infância
humilde, a adolescência humilde, a juventude humilde de nosso Jesus. O
homem se esquece de que os valores se ocultam sob aparências modestas,
enquanto que as nulidades ficam camufladas como grandes seres, para se
imporem às turbas.
– Assim será. Mas nada modifica o meu pensamento acerca dos meus
concidadãos. Seja o que for que lhes possa ter sido dito, eles deviam saber
julgar pelas obras reais do Mestre e não pelas palavras de desconhecidos.
307.4 Houve um longo silêncio, rompido apenas pelo rumor dos tecidos
que a Virgem está dividindo em tiras, para com elas fazer orlas. Síntique
não falou nunca, mas permaneceu sempre muito atenta. Ela conserva
sempre uma atitude de profundo respeito, de uma reserva que somente com
Maria e o menino se torna menos rígida. Mas agora o menino adormeceu,
sentado em um banquinho, precisamente aos pés de Síntique, e com a
cabeça apoiada nos joelhos dela, sobre o braço dobrado. Por isso ela não se
move e fica esperando que Maria lhe passe as tiras.
– Que sono inocente… Ele sorri… –observa Maria, inclinando-se sobre
o rostinho adormecido.
– Quem sabe com que ele estará sonhando –diz, sorrindo, Simão.
– É um menino muito inteligente. Aprende com facilidade e quer ouvir
explicações claras. Faz perguntas muito sutis, e quer respostas exatas.
Pergunta sobre tudo. Confesso que às vezes me vejo embaraçado para
responder. Tem argumentos superiores aos próprios de sua idade e, às vezes,
até à minha capacidade de explicar-lhe –diz João.
– Sim! Como naquele dia… Estás lembrado, João? Tiveste dois alunos
bem incômodos naquele dia! E muito ignorantes –diz Síntique, sorrindo
levemente e fitando o discípulo com seu olhar profundo.
João sorri, por sua vez, e diz:
– E vós tivestes um mestre muito incapaz, que teve que chamar em sua
ajuda a verdadeira Mestra… porque em nenhum dos livros que ele havia
lido, este estulto pedagogo havia encontrado a resposta a ser dada a um
menino. É sinal de que eu sou ainda um pedagogo ignorante.
– A ciência humana é ignorante ainda, João. Não é o pedagogo, mas
sim o que lhe haviam dado para que ele o fosse, e que era insuficiente. A
pobre ciência humana! Oh! Como me parece mutilada! Faz-me pensar em
uma das deidades que era honrada na Grécia.Era mesmo necessária a
materialidade pagã para poder crer que, porque era privada de asas, a
Vitória fosse para sempre uma posse dos gregos. Não só tiraram as asas à
Vitória, mas também a liberdade… Melhor seria que tivesse tido asas, com
a nossa fé. Teríamos podido pensar que ela fosse capaz de voar para roubar
os raios do céu, e fulminar os inimigos. Mas, assim como ela estava, não
dava esperança, mas sim um desconforto e uma palavra de tristeza. Eu não
podia vê-la, sem sofrer com isso… Parecia-me que ela estava sofrendo,
aviltada por aquela mutilação. Era um símbolo de dor, não de alegria… E o
foi. Mas, o que faz com a Vitória, o mesmo faz o homem com a Ciência.
Ele lhes mutila as asas, que poderiam impregnar o saber de sobrenatural,
dando a chave para abrir tantos segredos sobre o que se pode saber da
criação. Creram e crêem que a têm como prisioneira por lhe terem cortado
as asas. Fizeram dela uma deficiente… A ciência, com asas, seria
Sabedoria. Mas, assim como está, é apenas um conhecimento parcial.
307.5 – E minha Mãe vos respondeu naquele dia?
– Com uma perfeita clareza e com uma palavra casta, capaz de poder
ser ouvida por um menino e por dois adultos de sexo diferente, sem que
ninguém precisasse enrubescer.
– Sobre qual palavra?
– Sobre a culpa original, Mestre. Eu anotei a explicação de tua Mãe,
para lembrar-me dela –dizia Síntique.
E João de Endor também diz:
– Eu também: Creio que será uma coisa muito indagada, se um dia
formos para o meio dos pagãos. Eu não penso em ir, porque…
– Por que não, João?
– Porque ainda terei pouco tempo de vida.
– E tu irias com gosto?
– Mais do que muitos outros em Israel, porque eu não tenho
prevenções. E também… Sim, também por isto. Eu dei um mau exemplo
entre os pagãos em Cintium e na Anatólia. Eu gostaria de poder fazer
chegar a tua palavra até lá, onde eu fiz o mal. O bem a ser feito: levar a tua
palavra até lá, fazer-te conhecido… Mas isto seria honra demais. Eu não
mereço isto.
Jesus olha para ele sorrindo, mas não diz nada sobre o assunto. 307.6Ele
pergunta:
– Não tendes outras perguntas a fazer?
– Eu tenho uma. Ela surgiu-me na outra tarde, quando estavas falando
sobre a ociosidade com o menino. Procurei eu mesma dar-me uma resposta.
Mas não consegui. Fiquei esperando o sábado, para te apresentar, quando as
mãos não estão trabalhando e nossa alma, em tuas mãos, se eleva para
Deus –diz Síntique.
– Faze, então a tua pergunta, enquanto esperamos a hora de ir
descansar.
– Ei-la, Mestre. Tu disseste que, se alguém se entorpece no trabalho
espiritual, se enfraquece e se predispõe para as enfermidades do espírito.
Não é verdade?
– Sim, mulher.
– Ora, isso me parece um contraste com tudo o que eu ouvi de Ti e de
tua Mãe sobre a culpa original, os seus em nós, a libertação dela por Ti.
Ensinaste-me que com a Redenção será anulada a culpa original. Eu creio
não errar, se eu disser que será anulada, não para todos, mas somente para
aqueles que crerem em Ti.
– É verdade!
– Deixo, pois, de lado os outros, e tomo um destes salvos. Eu o
contemplo, depois dos efeitos da Redenção. Sua alma não tem mais a culpa
de origem. Ele torna a possuir a Graça, como a possuíam os progenitores.
Isto não lhe confere, então, uma saúde inatacável por toda sorte de
enfermidades? Tu dirás: “O homem faz também os seus pecados pessoais.”
Está bem. Mas eu penso que eles também serão cancelados com a tua
Redenção. Não te pergunto como. Mas suponho que, como um testemunho
de que ela existiu realmente, — e eu não sei como isso sucederá, porque
tudo o que a Ti se refere no Livro Sagrado me faz tremer, desejo que seja
um sofrimento simbólico, restrito a um âmbito moral, embora não seja
ilusão a dor moral, mas espasmo talvez até muito mais atroz do que o
físico, — Tu deixarás como meios, símbolos. Todas as religiões os têm, e às
vezes são chamados de mistérios… O batismo atual, praticado em Israel, é
um deles, não é?
– É. E haverá, com um nome diferente desse que lhes dás, haverá
também na minha religião alguns sinais desta minha Redenção, que serão
aplicados às almas para purificá-las, fortificá-las, nutri-las e absolvê-las.
– E, então, se elas são absolvidas também dos seus pecados pessoais,
sempre estarão na graça… E então, como é que serão ainda fracas, e
predispostas a enfermidades espirituais?
307.7– Eu vou te apresentar uma comparação. Tomemos um menino que
acabou de nascer, filho de pais muito sãos, sendo ele também são e robusto.
Nele não se nota nenhuma tara física e hereditária. Seu corpo é perfeito,
tanto na ossatura, como em seus órgãos, e ele tem sangue sadio. Portanto,
ele tem todos os requisitos para crescer forte e são, também porque sua mãe
tem leite abundante e substancioso. Mas, no primeiro instante de sua vida,
ele foi atacado por uma enfermidade muito grave, que ninguém sabe pelo
que foi causada. É uma doença mortal, sem dúvida. Se ele se salva dela com
dificuldade, é pela piedade de Deus, que lhe conserva a vida, que já está
prestes a sair daquele corpinho. Pois bem. Crês tu que aquele vai ser um
menino robusto, como se não tivesse tido aquela doença? Não. Ele vai ter
um enfraquecimento para o resto de sua vida. Ainda que ele não esteja
visível, estará nele e o predisporá com mais facilidade para as enfermidades
do que se nunca tivesse ficado doente. Nenhum dos seus órgãos estará mais
inteiramente são como antes. Seu sangue já não será sadio e puro como
antes. Todas essas razões serão causas pelas quais ele contrairá doenças
com facilidade. E essas doenças o atacarão, e o deixarão sempre predisposto
a recaídas.
A mesma coisa acontece no campo espiritual. A culpa original será
cancelada naqueles que crêem em Mim. Mas o espírito conservará uma
tendência para o pecado que, se não houvesse acontecido a culpa original,
não teria existido. Por isso é preciso vigiar, e continuamente cuidar do seu
próprio espírito, assim como faz uma mãe cuidadosa com o seu filhinho que
ficou enfraquecido por alguma doença infantil. Por isso, é necessário não
ficar ocioso, mas estar sempre atento para fortalecer-se na virtude. Se
alguém cai em grande abatimento ou tibieza, mais facilmente poderá ser
seduzido por Satanás. E todo pecado grave, sendo semelhante a uma grave
recaída, sempre irá predispondo mais para as enfermidades e para a morte
do espírito. Ao passo que, se a Graça, restituída pela Redenção, for
coadjuvada por um vontade ativa e incansável, aí então ela se conserva.
Não somente isso. Mas ela aumenta, porque estará unida às virtudes
conseguidas pelo homem. Santidade e Graça! Que asas seguras para voar
até Deus! Compreendeste?
– Sim, meu Senhor. Tu, ou seja, a Trindade Santíssima, dais o Meio que
serve de base para o homem. O homem, com o seu trabalho e sua atenção,
não o deve destruir. Eu compreendi. Todo pecado grave é uma destruição da
Graça, isto é, da saúde da alma. Os sinais, que nos serão deixados, darão a
saúde, é verdade. Mas o pecador obstinado, que não luta para não pecar,
ficará cada vez mais fraco, ainda que cada vez seja perdoado. Por isso é
preciso vigiar para não perecer. Obrigada, Senhor… 307.8Marziam está
acordando. Já é tarde…

– Sim. Rezemos todos juntos, depois iremos descansar.


Jesus se levanta, e todos fazem o mesmo, até o menino, ainda meio com
sono. E o Pai-nosso ressoa, forte e harmonioso, na pequena sala.
[18] Tu disseste, por exemplo, 153.3, 157.2, 262.9.
308. Cura do filho de Simão de Alfeu.
Marziam é o primeiro dos meninos discípulos.
20 de outubro de 1945.
308.1 Jesus, com Simão Zelotes e Marziam, atravessa Nazaré, direto para
a campina, entre Caná e Nazaré. E atravessa essa sua cidade incrédula e
hostil, passando exatamente pelas ruas mais centrais e cortando
obliquamente a praça do mercado, cheia de gente àquela hora da manhã.
Muitos se viram para olharem para ele: um ou outro dos moradores o
saúdam, as mulheres, especialmente as de mais idade, lhe sorriem. Mas, a
não ser algum menino, ninguém vai até Ele. Um murmúrio se forma atrás
dele, depois que Ele passa. Certamente Jesus está vendo tudo, mas faz como
se não visse. Ele conversa com Simão ou com o menino, que está entre os
dois homens, e vai para a frente, seguindo o seu caminho.
308.2 Aparecem já as últimas casas. À porta de uma delas, está uma
mulher na casa dos quarenta anos. Parece estar esperando alguém. Quando
ela vê Jesus, faz um gesto como quem quer mover-se, depois inclina a
cabeça, enrubescendo.
– É uma parenta minha. É a mulher de Simão de Alfeu –diz Jesus ao
apóstolo.
A mulher parece estar pisando sobre espinhos, pelo grande contraste
que há em seus sentimentos. Ela muda de cor, levanta e abaixa o olhar, todo
o seu rosto exprime uma vontade de falar, que está detida por algum
motivo.
– A paz a ti, Salomé –saúda-a Jesus, que a alcançou.
A mulher olha para Ele, como espantada pela afetuosidade que há na
voz do seu Parente, e responde, enrubescendo ainda mais:
– A paz a…
Um nó na garganta e um pranto a impedem de terminar a frase. Ela
cobre o rosto com o braço dobrado e chora angustiadamente, encostada à
ombreira da porta da casa.
– Por que chorar assim, Salomé? Não poderei fazer nada para consolar-
te? Vem cá, até para lá daquele canto, e dize-me o que é que tens…
E a pega pelo cotovelo, levando-a para uma ruazinha, entre a casa dela
e a horta de outra casa. Simão com Marziam, este todo assustado, ficam na
entrada da mesma ruazinha.
– Que tens, Salomé? Tu sabes que Eu sempre te quis bem. Eu sempre
vos quis bem. A todos. E vos quero. Deves acreditar nisto, e ter confiança no
que digo…
O choro dela tem pausas e suspensões, como se fosse para escutar
aquelas palavras e compreendê-las em seu verdadeiro significado. Depois,
ele recomeça mais forte, entremeado com palavras interrompidas:
– Tu sim… Nós… Mas não eu… E nem Simão… Mas ele é mais
estulto do que eu… Eu lhe dizia… “Chama Jesus”… Mas a população toda
está contra nós… contra Ti… contra mim… contra o meu filho…
Tendo tocado no ponto trágico, o pranto, por sua vez, também se torna
trágico. A mulher se contorce e geme, batendo-se no rosto, como se
estivesse num delírio de dor. Jesus lhe segura as mãos, dizendo:
– Assim, não. Eu estou aqui para consolar-te. Fala e Eu farei tudo…
A mulher olha para Ele com olhos arregalados pelo espanto e pela dor.
Mas a esperança ainda lhe dá alento para falar, e falar ordenadamente:
– Mesmo que Simão seja culpado, terás piedade de mim? Terás
mesmo? É Alfeu, o último. Ele está mal… está morrendo!… Tu amavas
Alfeu. Entalhavas na madeirabrinquedos para ele. Tu o levantavas para que
ele colhesse a uva e os figos das tuas plantas… e, antes de partir para…
para andar pelo mundo, já lhe ensinavas tantas coisas boas… Agora, não
poderias mais… Ele está como morto… Não comerá mais uvas nem figos.
Não aprenderá mais nada… –e ela chora fortemente.
– Salomé, sê boa. Dize-me, o que há?
– O ventre dele está muito doente. Ele grita, cai em espasmos, fica
delirando durante muitos dias. Agora já não fala mais. Está como se tivesse
sido ferido na cabeça. Ele geme, mas não responde. Nem sabe que está
gemendo. Está lívido. Já está ficando frio. 308.3Há muitos dias que venho
suplicando a Simão que vá a Ti. Mas… oh! eu o amei sempre, mas agora o
odeio, porque é um ignorante que, por uma idéia estulta, deixa morrer o
filho. Mas, morrendo ele, eu também me irei. Vou para minha casa. Com os
outros filhos. Ele não é capaz de ser pai, quando é preciso. Eu cuido de
meus filhos. Eu me vou, sim. Diga o mundo o que quiser. Eu me vou.
– Não digas isso. Deixa logo esse pensamento de vingança.
– De justiça. Eu me revolto. Estás vendo? Eu te esperei, porque
ninguém te dizia: “Vai.” Mas eu to digo. Eu tive que fazer isso, como se se
tratasse de uma má ação. Eu não te posso dizer “Entra”, porque lá em casa
estão aqueles do José e…
– Não é preciso. Tu me prometes que perdoarás a Simão? Que serás
sempre sua boa mulher? Se tu me prometes, Eu te digo: “Vai para tua casa,
que o teu filho te sorrirá, já curado.” Podes crer nisso?
– Eu creio em Ti. Até contra o mundo todo, eu creio.
– E, assim como tens fé, podes também perdoar?
– … Mas tu o curas mesmo?
– Não somente isso. Eu te prometo que terá fim a dúvida de Simão a
meu respeito, e que o pequeno Alfeu, e com ele os teus outros filhos, e tu,
junto com o esposo e pai, voltareis à minha casa. Maria está sempre falando
em ti.
– Oh! Maria! Maria! Alfeu nasceu, quando ela estava aqui… Sim,
Jesus. Perdoarei. Não lhe direi nada… Ou melhor, eu lhe direi: “Vê como
Jesus responde ao teu modo de agir: dando-te de novo o filho.” Isto eu
posso dizer.
– Podes dizê-lo… Vai, Salomé. Vai. Não chores mais. Adeus. A paz
esteja contigo, boa Salomé. Vai, vai.
E Ele a reconduz até à porta, e a fica olhando entrar, e sorri, ao ver que
pela grande ânsia em que ela está, lá se vai correndo pela estrada, sem nem
pensar em fechar a porta, que Ele depois, devagarzinho vai encostando, até
fechá-la completamente.
308.4Ele se vira para os dois companheiros, e diz:
– Agora vamos para onde devíamos ir…
– Crês que Simão se converterá? –pergunta o Zelotes.
– Ele não é um infiel. É apenas alguém que se deixa dominar pelo mais
forte.
– Oh! Mas, então! Mais forte do que o milagre!
– Estás vendo que respondes a ti mesmo… 308.5Estou contente por ter
salvo o menino. Eu o vi com poucas horas de nascido, e ele sempre me quis
bem…
– Assim como eu te quero bem? E ele se tornará discípulo? –pergunta
Marziam, interessado e um pouco sem acreditar que alguém possa amar a
Jesus como ele o ama.
– Tu me amas como menino e como discípulo. Alfeu me amava
somente como menino. Mas depois ele me amará também como discípulo.
Por enquanto, é muito menino. Acaba de fazer oito anos. Tu o verás.
– Então, quem é menino e discípulo sou só eu?
– Somente tu, por enquanto. Tu és o chefe dos meninos discípulos.
Quando já estiveres feito homem, lembra-te que tu soubeste ser discípulo
não menos do que os homens, e por isso abre os braços a todos os meninos
que virão a ti para me procurarem, dizendo “Quero ser discípulo de Cristo.”
Farás isto?
– Eu o farei, promete, sério, Marziam…
A campina aberta, cheia de sol, já está ao redor deles, e eles vão
ficando longe de mim, ao sol…
309. Sacrifício de Marziam pela cura
de uma menina. Arrependimento de Simão de
Alfeu.
21 de outubro de 1945.
309.1 Acolhe-os uma pobre casa, onde uma avozinha está rodeada por um
bom número de netos, dos dez aos doze anos mais ou menos. A casa fica no
meio de chácaras pouco cuidadas, muitas delas formadas em prados, nos
quais aparece aqui e ali alguma árvore frutífera.
– A paz esteja contigo, Joana. Estás melhor hoje? Eles vieram te
ajudar?
– Sim, Mestre e Jesus. E me disseram que voltarão para semear. Dizem-
me que a plantação vai ser feita com atraso, mas que produzirá ainda.
– Com certeza produzirá. Aquilo que deveria ser o milagre da terra e da
semente, se tornará um milagre de Deus. E, portanto, um milagre perfeito.
Os teus campos serão os mais belos desta região, e estes passarinhos, que
estão ao redor de ti, terão trigo em abundância para as suas bocas. Não
chores mais. No ano que vem já estará muito melhor. Mas Eu te ajudarei
ainda. Ou melhor: vai ajudar-te uma que tem o teu mesmo nome, e que
nunca deixa de ser boa. Olha: isto é para ti. Com isto poderás ir para a
frente até às colheitas.
A velha pega a bolsa e a mão de Jesus junto com ela, e beija a mão,
chorando. Depois pergunta:
– Dize-me quem é essa criatura boa, para que eu diga o nome dela ao
Senhor.
– É uma discípula minha e irmã tua. O nome é conhecido por Mim e
pelo Pai dos Céus.
– Oh! Então és Tu!…
– Eu sou pobre, Joana. Eu dou o que me dão. De meu, Eu só posso dar
o milagre. E me desagrada não ter podido saber antes da tua desventura. Eu
vim logo que Susana me falou dela. Já era tarde. Mas assim brilhará mais a
obra de Deus.
– Era tarde. Sim. Era tarde. Assim é que a morte veio rápida e passou
ceifando por aqui. E pegou os jovens. Não a mim, que sou inútil. Não a
estes, incapazes, mas os que estavam válidos e podiam trabalhar. Maldita a
Lua de Elul, cheia de tantos malignos influxos!
– Não amaldiçoes o planeta. Ele nada tem que ver com isto… 309.2São
bons estes pequeninos? Vinde cá. Estais vendo? Este aqui também é um
menino sem pai e sem mãe. Mas nem com o avô ele pôde viver. Contudo,
Deus também a ele não abandonou. E não o abandonará, enquanto ele for
bom. Não é verdade, Marziam?
Marziam faz sinal que sim, e fala com os pequeninos, que chegaram
bem para perto ao redor dele, alguns dos pequenos com mais idade do que
ele, mas alguns bem mais altos. Ele diz:
– Oh! É verdade que Deus não abandona. Eu o posso dizer. Por mim
rezou o meu avô. E, certamente, também da outra vida, a mãe e o pai. E
Deus escutou aquelas orações, porque Ele é muito bom, e escuta sempre as
orações dos justos, sejam eles mortos ou vivos. Para vós certamente
rezaram os vossos mortos e esta vovozinha querida. Quereis bem a ela?
– Sim, sim… –responde entusiasmada a ninhada de órfãos.
Jesus cala para escutar a conversa de seu pequeno discípulo e dos
órfãos.
– Fazeis bem. Aos velhos não convém fazê-los chorar. E até nem se
deve fazer chorar a ninguém, porque quem entristece ao próximo desagrada
a Deus. E fazer isso, logo com os velhos! O Mestre trata bem a todos. Mas
com os velhos, então, Ele é todo carícias, como com os meninos. Porque os
meninos são inocentes e os velhos são sofredores. Eles já choraram tanto! É
necessário amá-los duas vezes, por todos aqueles que não os amam mais.
Jesus diz sempre que quem não respeita o velho é mau duas vezes, como
quem maltrata um menino. Porque os velhos e os meninos não podem
defender-se. Vós, pois, sede bons para com a velha mãe.
– Eu algumas vezes não a ajudo –diz um dos mais crescidos.
– Por queê? No entanto, tu comes o pão que ela faz para ti, cansando-se
com isso! E não sentes o gosto amargo do pranto, quando tu a fazes sofrer?
309.3E tu, mulher (a mulher tem, quando muito, dez anos, e está muito pálida
e fraca), tu a ajudas?
Os irmãozinhos dizem em coro:
– Oh! Raquel é boa! Ela vela até alta noite para fiar o pouco de lã e de
estame que temos, e ela apanhou umas febres, por ter ido trabalhar no
campo a fim de prepará-lo para o plantio, enquanto nosso pai estava
morrendo.
– Deus te recompensará por isso –diz, sério, Marziam.
– Ele já me recompensou, ao livrar dos seus sofrimentos a avó.
Jesus intervém:
– Não pedes nada mais?
– Não, Senhor.
– Mas, tu estás curada?
– Não, Senhor. Mas não importa. Agora, mesmo que eu morra, a vovó
sobreviveu. Antes, eu não queria morrer, porque tinha que ajudá-la.
– Mas a morte é feia, menina…
– Deus, como me ajuda em vida, me ajudará na morte, e eu irei ficar
com a mamãe… Oh! Não chores vovó! Eu quero bem também a ti, querida.
Eu não direi mais, se for para fazer-te chorar. Pelo contrário, se assim
queres, pedirei ao Senhor que me cure… Não chores, minha mãezinha… –e
abraça a velhinha desconsolada.
– Faze que ela fique curada, Senhor. Ao meu avô Tu o tornaste feliz,
por causa de mim. Torna feliz esta velha, agora.
– As graças se conseguem com sacrifício. E tu, que sacrifício fazes para
consegui-la? –pergunta, sério, Jesus.
Marziam fica pensando… Procura a coisa mais difícil à qual
renunciar… depois sorri:
– Não comerei mais mel durante uma Lua completa.
– É pouco! A Lua de Casleu já vai bem adiantada…
– Eu, quando digo Lua, quero dizer as quatro fases. E, pensa bem, que
nestes dias cai a Festa das Luzes, com as fogaças de mel…
– É verdade. Está bem. Então, Raquel vai ficar curada por merecimento
teu. 309.4Agora vamos. Adeus, Joana. Antes de ir-me embora, Eu virei ainda
outra vez. Adeus, Raquel, e tu, Tobiazinho. Sê sempre bom. Adeus a todos
vós, pequenos. Fique convosco a minha bênção e em vós a minha paz.
Saem, acompanhados pelas bênçãos da velha e dos meninos.
Marziam, tendo acabado de ser “apóstolo e vítima”, põe-se a pular,
como um cabrito, que vai correndo na frente.
Simão observa com um sorriso:
– Sua primeira pregação e o seu primeiro sacrifício. Promete muito, não
te parece, Mestre?
– Sim. Mas ele já pregou muitas vezes. Até a Judas de Simão…
– … ao qual parece que o Senhor faz que lhe falem os meninos…
Talvez para impedir que ele se vingue…
– Vinganças, não… Não creio que ele chegue a tanto. Mas reações
muito vivazes, sim. A verdade não agrada a quem merece censura…
Contudo ela é dita… –Jesus suspira.
Simão o observa, depois pergunta:
– Mestre, dize-me a verdade. Tu o afastaste, e tomaste a decisão de
mandar todos para as suas casas pelas Encênias, para impedir que Judas
esteja agora na Galiléia. Eu não te pergunto, nem quero que Tu me digas a
razão pela qual é bom que o homem de Keriot não esteja entre nós. Basta-
me saber se eu adivinhei. Todos nós pensamos assim, sabes? Até Tomé. Ele
me disse: “Eu vou sem reagir, porque percebo que, por baixo disso, há um
motivo sério.” E ele acrescentou: “E o Mestre, como faz, está fazendo bem.
Já há muitos demais chamados Naum, Sadoque, Jocanã e Eleazar, nas
amizades de Judas…” E Tomé não é estúpido!… E não é mau, ainda que
muito homem. Em seu afeto por Ti, ele é muito sincero…
– Eu sei. E é verdade. E é verdade o que pensastes. Dentro em breve,
sabereis a razão…
– Nós não te perguntamos.
– Mas Eu terei que pedir-vos ajuda, e vo-la terei que dizer.
309.5 Marziam já vem correndo de volta:
– Mestre, lá adiante, onde o caminho termina na estrada, está o teu
primo Simão, todo suado, como quem tivesse corrido muito. Ele me
perguntou: “Onde está Jesus?” Eu respondi: “Vem vindo aí atrás, com
Simão Zelotes.” Ele me disse: “Ele vai passar por aqui?” “Com certeza”, eu
respondi. “Por aqui é que se passa quando se volta para casa, a não ser que
se faça como os passarinhos, que voam, e vão de todos os lados, para
voltarem aos ninhos. Tu o queres ver”, perguntei-lhe eu. Mas teu irmão
ficou indeciso. Ele quer, sim, te ver, tenho certeza.
– Mestre, ele já esteve com sua mulher… Vamos fazer assim: Eu e
Marziam te deixaremos sozinho. Iremos dar umas voltas por Nazaré. Mas
nós não teremos pressa de chegar… E Tu vais indo pela estrada certa.
– Sim. Obrigado, Simão. Adeus aos dois.
Separam-se, e Jesus acelera o passo, rumo à estrada mestra.
309.6 Eis Simão encostado a um tronco, ofegante e enxugando o suor. E,
tendo visto Jesus, levanta os braços… depois os deixa cair, e abaixa a
cabeça, desanimado.
Jesus chega até ele, e põe-lhe a mão sobre o ombro, e lhe pergunta:
– Que queres de Mim, Simão? Será fazer-me feliz, com uma tua
palavra de amor, que eu estou esperando há tantos dias?
Simão abaixa ainda mais a cabeça, e cala-se…
– Então fala. Serei Eu um estranho para ti? Não, porque em verdade tu
és sempre o meu bom irmão Simão, e Eu para ti o pequeno Jesus, que tu, já
cansado, levavas nos braços, mas com tanto amor, quando nós voltávamos
para Nazaré.
O homem cobre o rosto com as mãos e cai de joelhos, gemendo:
– Oh! Meu Jesus: Eu sou o culpado, mas já fui castigado bastante…
– Vamos, levanta-te! Nós somos parentes. Vamos. Que queres?
– O meu menino! Está… O pranto o sufoca.
– O teu menino? E então?
– Está mesmo morrendo. E, com ele, morre também o amor de
Salomé… e eu fico com dois remorsos: o de ter perdido o filho e a mulher,
ao mesmo tempo. Esta noite eu sonhei que já estava morto, e ela me parecia
uma hiena. Ela me gritava na cara: “Assassino do teu filho!” Eu rezei para
que isso não acontecesse, e jurei a mim mesmo que viria a Ti, se o menino
recuperasse a saúde, ainda mesmo que me expulsassem, — pois, afinal, eu
o mereço — para fazer-te saber que só Tu é que podes impedir a minha
desventura. Ao romper da aurora, o menino se recuperou um pouco…
309.7Eu fugi de minha casa, vindo à tua, por detrás da cidade, para não
encontrar obstáculos… Bati à porta. Maria me abriu, admirada. Teria
podido tratar-me mal. Mas ela somente disse: “Que tens, pobre Simão?” E
me acariciou, como se eu fosse ainda um menino. Isto me fez chorar muito.
E toda soberba e indecisão terminaram assim. Não é possível que seja
verdade o que nos disse Judas, teu apóstolo, não o meu irmão. Isto a Maria
não disse, mas a mim o digo, batendo no peito, e dizendo a mim mesmo
todas as ofensas daquele momento. A ela eu disse: “Jesus está? É para
Alfeu. Ele está morrendo…” Maria me disse: “corre! Está para as bandas de
Caná, com o menino e um apóstolo. Está na estrada de Caná. Mas, vai
depressa. Ele saiu ao romper da aurora. Já deve estar voltando. Eu vou rezar
para que o encontres.” Nem uma palavra de censura, nem uma, para mim
que mereço tantas!
– Eu também não te censuro. Mas Eu te abro os braços para…
– Ai de mim! Para dizer-me que Alfeu morreu!…
– Não. Para dizer-te que Eu te quero bem.
– Então, vem. Depressa! Depressa!…
– Não. Não é preciso.
– Não vens? Ah! Então, não perdoas? Alfeu morreu? Mas, ainda que
tenha morrido, Jesus, Jesus, Jesus, que ressuscitas os mortos, entrega-me o
meu filho! Oh! Bom Jesus!… Oh! Jesus Santo… Oh! Jesus que eu
abandonei!… Oh! Jesus, Jesus, Jesus…
O pranto do homem enche a estrada solitária enquanto ele, novamente
de joelhos, apalpa contraído a veste de Jesus ou beija lhe os pés, no
tormento da dor, do remorso, do amor paterno…
309.8 – Tu não passaste por tua casa, antes de vir para cá?
– Não. Corri como um doido até aqui… Por quê? Haverá outra dor?
Salomé terá fugido? Tornou-se louca? Parecia-o já esta noite…
– Salomé me falou. Ela chorou. Ela creu. Vai para casa, Simão. Teu
filho está curado.
– Tu!… Tu!… Tu fizeste isso, a mim, que te ofendi, crendo naquela
serpente? Oh! Senhor! Eu não sou digno disso! Perdão! Perdão! Perdão!
Dize-me o que queres que eu te faça para reparar, para dizer-te que eu te
amo, para persuadir-te de que eu sofria, ao fazer-me de ofendido, para
dizer-te que, desde que aqui estás, mesmo antes que Alfeu ficasse tão
doente, eu já desejava falar-te!… Mas… Mas…
– Não te preocupes com isso. Tudo são coisas passadas. Eu nem me
lembro mais delas. Faze tu assim também. E esquece até as palavras de
Judas de Keriot. É um rapaz. De ti eu quero somente isto: que tu, nem
agora, nem nunca, repitas aquelas palavras aos meus discípulos, aos meus
apóstolos e, menos ainda, à minha Mãe. Somente isto. Agora, vai, Simão
para a tua casa. Vai. Fica em paz… Não tardes a gozar da minha alegria que
enche a tua casa. Vai.
E o beija, e o empurra suavemente para Nazaré.
– Tu não vais comigo?
– Eu vou te esperar em minha casa, com Salomé e Alfeu. Vai. E
lembra-te que é por tua mulher, que soube crer somente na verdade, que
tens tua alegria atual. Por ela.
– Queres dizer que a mim…
– Não. Quero dizer que Eu soube perceber o arrependimento em ti. E o
arrependimento veio pelo grito acusador dela… Verdadeiramente, Deus
grita pela boca dos bons, e reclama e aconselha!… E Eu vi a fé humilde e
forte de Salomé. Vai, Eu te digo. Além disso, não tardes em dizer a ela
“Obrigado”.
Quase o empurra rudemente, para persuadi-lo a andar. E, quando Simão
finalmente vai, o abençoa… e depois abaixa a cabeça em um mudo
solilóquio, e lágrimas lentas escorrem pelo seu rosto pálido… Somente uma
palavra dá o endereço do seu pensamento: “Judas!”…
Ele toma a mesma estradinha por onde foi o Zelotes, atrás do limite da
cidade, dirigindo-se para casa.
310. Com Pedro em Nazaré, Jesus organiza
a partida de João de Endor e Síntique.
22 de outubro de 1975.
310.1 A manhã já está adiantada, quando Pedro chega, sozinho e
inesperado, à casa de Nazaré. Está carregado como um carregador, trazendo
cestas e sacolas. Mas está tão feliz que não sente nenhum peso nem
cansaço.
A Maria, que lhe vai abrir a porta, dedica um sorriso feliz junto a uma
saudação alegre e respeitosa. Depois pergunta:
– Onde está o Mestre com Marziam?
– Na saliência acima da gruta, mas do lado da casa do Alfeu. Creio que
Marziam está colhendo azeitonas e Jesus certamente está meditando. Agora
eu vou chamá-los.
– Eu trato disso.
– Mas, pelo menos, livra-te de todos esses pesos.
– Não, não. São surpresas para o menino. Eu gosto de vê-lo esbugalhar
os olhos e rebuscar ansiosamente… São sua felicidade, meu pobre menino.
Sai para a horta, vai pôr-se debaixo da saliência e se esconde bem na
cavidade da gruta, e depois grita, alterando um pouco a voz:
– A paz a Ti, Mestre.
E, em seguida, com a voz natural:
– Marziam!…
A vozinha de Marziam, que enchia de exclamações o ar tranqüilo, cala-
se… Há uma pausa. Depois a vozinha, que parece de menina, do rapazinho,
pergunta:
– Mestre, mas não era o meu pai aquele que chamou?
Talvez Jesus estivesse tão mergulhado em seus pensamentos, que nem
ouviu nada, e o confessa simplesmente.
Pedro chama de novo:
– Marziam! –e depois ri com sua risada aberta.
– Oh! É ele mesmo! Pai! Meu pai! Onde estás?
Ele desce a cabeça abaixo da saliência e procura olhar pela horta. Mas
não vê nada… Também Jesus avança e olha… Vê Maria que está sorrindo
na porta, e João e Síntique, que a imitam lá do quarto que fica no fundo da
horta, ao lado do forno.
Mas Marziam acaba com aquela demora e joga-se lá de cima da
saliência, para ir cair bem perto da gruta, e Pedro já está pronto para pegá-
lo, antes que ele toque no chão. É comovente a saudação dos dois. Jesus,
Maria e os outros dois lá do fundo da horta o observam sorrindo, e depois
todos se aproximam do grupinho de amor.
310.2 Pedro se livra como pode do aperto que lhe está dando o menino,
para inclinar-se diante de Jesus, saudando-o novamente. E Jesus o abraça,
abraçando junto com ele o menino que não se afasta do apóstolo, e que
pergunta:
– E a mãe?
Mas Pedro responde a Jesus, que lhe perguntou:
– Por que vieste tão cedo?
– E achavas que eu podia passar tanto tempo sem ver-te? E depois…
Depois a Porfíria, que não me dava sossego: “Vai ver Marziam. Leva-lhe
isto. Leva-lhe aquilo.” Parecia que ela estava sabendo que Marziam estava
no meio de ladrões, ou em algum deserto. Na outra noite, ela se levantou, e
foi fazer as fogaças, naquela hora. E logo que elas ficaram cozidas, fez-me
partir…
– Ah! As fogaças!… –grita Marziam. Mas depois fica em silêncio.
– Sim. Elas estão aqui dentro com os figos secos no forno, as azeitonas
e as maçãs vermelhas. Depois ela fez para ti um pão untado. Além disso, te
mandou os pequenos queijos feitos com o leite de tuas ovelhinhas. E depois
há uma veste impermeável. E depois, e depois… Não sei o que mais.
Como? Não tens mais pressa? Estás quase chorando. Oh! Por quê?
– Porque eu preferia que fosse ela quem me trouxesse todas essas
coisas. Eu a quero bem, eu, sabes?
– Oh! Divina Misericórdia! Mas, quem o teria pensado? Se ela
estivesse aqui para ouvir-nos, iria se derreter como manteiga.
– Marziam tem razão. Tu podias vir com ela. Certamente ela deseja vê-
lo, depois de tanto tempo. Nós, mulheres, somos assim com os nossos
meninos… –diz Maria.
– Bem. Dentro de pouco tempo o verá, não é, Mestre?
– Sim. Depois das Encênias, quando nós formos embora… Ou
melhor… Sim, quando voltares, depois das Encênias, virás com ela. Estará
com ele aqui por alguns dias, e depois, voltarão juntos para Betsaida.
– Oh! Que beleza! Aqui com duas mães!
O menino está alegre e feliz.
310.3Entram todos na casa, e Pedro se livra dos seus embrulhos.
– Eis aqui: peixe seco, na salmoura e fresco. Tua mãe vai gostar. Aqui
está aquele queijo fresco de que tanto gostas, Mestre. Aqui estão uns ovos
para João. Esperemos que não se tenham quebrado… Não. Menos mal.
Depois, a uva. Foi-me dada por Susana, em Caná, onde eu dormi. E
depois… Ah! Depois isto! Olha, Marziam, como é louro! Parece feito dos
cabelos de Maria…
E abre uma pequena moringa cheia de mel, que está escorrendo.
– Mas, para que tantas coisas? Tu ficaste sacrificado, Simão –diz
Maria, diante dos pacotes e pacotinhos, dos vasos e moringas que estão
sobre a mesa.
– Sacrificado? Não. Eu pesquei muito e fiquei com muito peixe. Isto
quanto ao peixe. Quanto ao resto, são coisas de casa. Não custa nada e dá
muita alegria levá-las. Além disso… Já chegaram as Encênias. É costume.
Não é? Não queres provar o mel?
– Não posso –diz, sério, Marziam.
– Por quê? Estás doente?
– Não. Mas não posso comê-lo.
– Mas, por que?
O menino fica corado, mas não responde. Ele olha para Jesus, e se cala.
Jesus sorri, e explica:
– Marziam fez um voto, para obter uma graça. Por quatro semanas, não
pode comer mel.
– Ah! Bem! Tu o comerás depois… Segura a vasilha assim mesmo…
Mas olha! Eu não podia crer que ele fosse assim… assim…
– Assim generoso, Simão. Quem começa a fazer penitência desde
menino, encontrará facilmente o caminho da virtude por toda a vida –diz
Jesus, enquanto o menino vai-se embora com sua vasilha nas mãos.
Pedro, o vê andar, admirado. Depois, pergunta:
– O Zelotes não está?
– Está na casa da Maria de Alfeu. Mas virá logo. Esta tarde dormireis
juntos. 310.4Vem cá, Simão Pedro.
Eles saem, enquanto Maria e Síntique põem em ordem a sala, que está
cheia de pacotes.
– Mestre… Eu vim para te ver e ao menino. É verdade. Mas também
porque tenho pensado muito nestes dias, especialmente depois da vinda dos
três zangões venenosos… aos quais eu disse mais mentiras do que os peixes
que há no mar. Agora eles estão indo para o Getsêmani, pensando que vão
encontrar João de Endor, e depois vão a Lázaro, esperando encontrar
Síntique e a também a Ti. Que eles caminhem bastante!… Mas depois
voltarão, e… Mestre, eles te querem aborrecer por causa daqueles dois
infelizes…
– Eu já provi a tudo, há meses. Quando eles voltarem à procura destes
dois perseguidos, não os acharão mais em nenhum lugar da Palestina. Estás
vendo estes cofres? São para eles. Viste todas aquelas vestes dobradas perto
do tear? São para eles. Estás surpreso?
– Sim, Mestre. Mas, para onde os mandas?
– Para Antioquia.
Pedro dá um pequeno assobio significativo, e pergunta:
– Para a casa de quem? E como irão?
– Irão para uma das casas de Lázaro. É a ultima que ele tem lá, onde
seu pai governou em nome de Roma. E eles irão por mar…
– Ah! Ainda bem. Porque se João tivesse que andar com as pernas
dele…
– Por mar. 310.5Tenho prazer também em poder falar-te nisto. Eu teria
mandado Simão para te dizer “Vem”, a fim de preparar tudo. Escuta. Dois
ou três dias depois das Encênias, nós partiremos daqui em grupos
separados, para não chamar a atenção. Da comitiva faremos parte Eu, tu,
teu irmão, Tiago e João e os meus dois irmãos, além de João e Síntique.
Iremos a Ptolomaida! De lá, com uma barca, tu os acompanharás até Tiro.
Lá arranjareis lugar em um navio, que vai para Antioquia, como se fôsseis
prosélitos, que estão de volta para as suas casas. Depois, voltareis para trás
e me encontrareis em Aqsib. Eu estarei no alto do monte o dia inteiro e,
quanto ao resto, o Espírito vos guiará.
– Como? Tu não irás conosco?
– Eu seria muito notado. Quero dar paz ao espírito de João.
– E como farei eu, que nunca fui para fora daqui?
– Tu não és uma criança… e logo terás que ir para muito mais longe do
que Antioquia. Eu confio em ti. Vê bem quanto te estimo.
– E Filipe e Bartolomeu?
– Eles virão ao nosso encontro em Jotapata, evangelizando enquanto
nos esperam. Eu escreverei a eles, e tu lhes levarás a carta.
– E aqueles dois de lá, já estão sabendo qual vai ser o seu destino?
– Não. Eu deixo que eles façam a festa em paz.
– Hum! Pobrezinhos! Pensa só se alguém tem que ser perseguido por
criminosos de espírito e…
– Não sujes a boca, Simão.
– Sim, Mestre… Escuta… Mas, como vamos fazer para levar estes
cofres? E para levar João? Ele me parece estar mesmo muito doente.
– Arranjaremos um burro.
– Não. Arranjaremos uma pequena carroça.
– E quem a guiará?
– Ora! Se Judas de Simão aprendeu a remar, Simão de Jonas aprenderá
a guiar. Não deve ser coisa difícil conduzir um burro com a rédea. Na
carrocinha poremos os cofres e aqueles dois… e nós iremos a pé. Sim,
sim.É bom fazer assim. Podes crer.
– E a carroça, quem no-la dará? Lembra-te de que Eu não quero que se
note a partida.
Pedro fica pensando… E decide:
– Tens dinheiro?
– Sim. E muito ainda, das jóias de Misaque.
– Então, tudo é fácil. Dá-me uma certa importância. Vamos adquirir o
burro e a carroça de alguém, o que é fácil. Depois, daremos o burro a algum
necessitado e a carroça… veremos… E devo mesmo voltar com a mulher?
– Sim. É bom.
– E bom será. 310.6Mas, aqueles dois pobrezinhos! Desagrada-me não
termos mais João conosco. Já o teremos por pouco tempo… Mas, coitado!
Ele poderia morrer aqui, como Jonas…
– Não lho teriam permitido. O mundo odeia a quem o redime.
– Ele se mortificará…
– Eu acharei um argumento para fazê-lo partir elevado.
– Qual é?
– O mesmo que serviu para mandar embora Judas de Simão, aquele de
trabalhar por Mim!
– Ah! Com a diferença de que em João isso vai ser santidade, ao passo
que em Judas será só soberba.
– Simão, não murmurar.
– É mais difícil do que fazer um peixe cantar! É verdade, Mestre, não é
murmuração… Mas parece-me que veio Simão com os teus irmãos. Vamos
até lá.
– Vamos. E, silêncio com todos.
– Tu me dizes isso? Eu não posso calar a verdade, quando falo, mas eu
sei calar-me completamente, quando quero. E eu quero. Jurei a mim
mesmo. Eu irei até Antioquia! No topo do mundo! Oh! Nem vejo a hora de
já ter voltado! E não vou dormir, enquanto não estiver tudo feito…
Eles saem, e eu não sei mais nada.
311. A renúncia de Marziam provoca
uma lição sobre os sacrifícios feitos por amor.
23 de outubro de 1945.
311.1 Não sei se é no mesmo dia, mas suponho, por causa da presença do
Pedro à mesa da família de Nazaré. A refeição já está quase no fim, e
Síntique se levanta para pôr sobre a mesa maçãs, nozes, uvas e amêndoas
para terminarem a ceia, pois já é tarde e as luzes já estão acesas.
Justamente sobre as luzes corre o discurso, enquanto Síntique traz as
frutas. Pedro diz:
– Neste ano vamos acender uma luz a mais, e depois sempre mais, por
ti, meu filho. Porque a queremos oferecer por ti, ainda que estejas aqui
presente. É a primeira vez que a acendemos por um menino…
E Simão se comove um pouco, terminando:
– É verdade… se estivesses tu também aqui, seria mais bonito.
– No ano passado era eu, Simão, que suspirava assim pelo filho
distante, e comigo Maria de Alfeu e Salomé, e também Maria de Simão, em
sua casa de Keriot, e a mãe de Tomé…
– Oh! A mãe de Judas! Este ano ela terá consigo o filho… mas não
creio que estará mais feliz… Deixemos para lá!… Nós estávamos em casa
de Lázaro. Quantas luzes!… Parecia um céu de ouro e fogo. Este ano
Lázaro está com sua irmã. Mas estou certo de dizer a verdade, se eu disser
que suspirarão, pensando que Tu não estás. 311.2E no outro ano? Onde
estaremos?
– Eu estarei muito longe… –murmura João.
Pedro se vira e olha para ele, pois ele está a seu lado, e está para
perguntar uma coisa, mas felizmente consegue refrear-se, por causa de um
sinal que lhe foi dado por uma olhada de Jesus.
Marziam pergunta:
– Onde estarás?
– Pela misericordia de Deus, espero estar no seio de Abraão…
– Oh! Queres morrer? Não queres evangelizar? Não te desagrada
morrer, sem tê-lo feito?
– A palavra do Senhor deve sair de lábios santos. Já é muito que Ele me
tenha permitido ouvi-la, e que me redima por ela. Eu teria gostado… Mas é
tarde…
– Contudo, tu evangelizarás. Já o tens feito. E a ponto de atrair sobre ti
a atenção. Por isso serás igualmente chamado discípulo evangelizador,
ainda que não saias peregrinando para espalhar a Boa Nova, e terás na outra
vida o prêmio reservado aos meus evangelizadores.
– A tua promessa me faz desejar a morte… Cada minuto de vida pode
esconder uma cilada e eu, enfraquecido como estou, talvez nem pudesse
superá-la. Se Deus me acolhe, em pagamento pelo que eu tiver feito, já não
é uma grande bondade, que deve ser bendita?
– Em verdade, Eu te digo que a morte será uma grande bondade para
muitos, que assim poderão conhecer até que ponto o homem se
endemoninha, a partir de um ponto em que a paz os consolará com esse
conhecimento e o transformará em um hosana, porque estará unido à alegria
inexprimível da libertação do Limbo.
– E nos anos que vêm depois, onde estaremos, Senhor? –pergunta
Simão Zelotes.
– Onde for do agrado do Eterno. Queres tu anotar com antecedência o
tempo distante, quando não estamos seguros nem do momento que agora
vivemos, nem se nos vai ser concedido chegar ao fim dele? Afinal, seja qual
for o lugar onde forem celebradas as futuras Encênias, sempre será uma
coisa santa se nele estiverdes reunidos para cumprir a vontade de Deus.
– Estareis? E Tu? –pergunta Pedro.
– Eu sempre estarei onde estiverem os meus amados.
Maria não falou nada. Mas os seus olhos não deixaram, nem por um
momento, de perscrutar o rosto do Filho…
311.3 Fá-la estremecer a observação de Marziam, que diz:
– Por que, Mãe, não puseste à mesa as fogaças com mel? Jesus gosta
delas, e a João fariam bem à garganta. Além disso, elas agradam também ao
meu pai…
– E a ti também –termina Pedro.
– Para mim… é como se não existissem. Fiz uma promessa…
– Foi por isso, querido, que eu não as pus na mesa… –diz Maria
acariciando-o, pois Marziam está entre Ela e Síntique, em um dos lados da
mesa, enquanto que os quatro homens estão do lado oposto.
– Não, não. Podes trazê-las. Ou melhor: deves trazê-las. E eu as
distribuirei a todos.
Síntique pega uma candeia, sai e volta com as fogaças. E Marziam as
recebe numa bandeja, e começa a fazer a distribuição. A mais bonita,
dourada, uma obra fina de confeitaria, ele a dá a Jesus. Outra, a segunda em
perfeição, a Maria. Depois é a vez de Pedro, depois de Simão, depois de
Síntique. Mas, para dá-la a João, o menino se levanta, e vai até o lado do
velho e doente pedagogo, e lhe diz:
– Para ti, a tua e a minha, e também um beijo, por tudo o que me
ensinas.
Depois ele volta ao seu lugar, colocando decididamente a bandeja no
meio da mesa e cruzando os braços.
– Tu me fazes ficar zonzo de alegria com isto! –diz Pedro, vendo que
Marziam não apanhou a dele.
E acrescenta:
– Pelo menos um pedacinho, ora, da minha, para não morreres de
desejo. Estás sofrendo muito… Jesus te dá licença.
– Mas, se eu não sofresse, não teria merecimento, meu pai. Foi
justamente por saber que me faria sofrer, que eu ofereci este sacrifício… E,
afinal… Eu estou tão contente, desde que fiz isso, que me parece estar eu
cheio de mel. Sinto o sabor dele em tudo e até me parece que o estou
respirando com o ar…
– É porque estás morrendo de vontade…
– Não. É porque eu sei que Deus me diz “Estás fazendo bem, meu
filho.”
– O Mestre te teria contentado, mesmo sem esse sacrifício. Ele te ama
tanto!
– Sim. Mas não é justo que, porque eu sou amado, disso eu me
aproveite. Ele o diz[19], afinal, que grande é a recompensa no Céu, até por
um copo d’água oferecido em seu nome. Penso que, se ela é grande por um
copo d’água dado a outrem em seu nome, também o será por uma fogaça ou
um pouco de mel negado a nós mesmos por amor de um irmão. 311.4Estou
dizendo mal, Mestre? – Estás falando com sabedoria. Eu podia, de fato,
conceder-te o que me estavas pedindo em favor da pequena Raquel, mesmo
sem o teu sacrifício, porque era uma coisa boa a fazer-se e o meu coração a
queria. Mas eu o fiz com mais alegria, porque ajudado por ti. O amor a
nossos irmãos não se limita a meios e limites humanos, mas se eleva a
lugares muito mais altos. Quando ele é perfeito, toca diretamente no trono
de Deus, e se funde com sua infinita Caridade e Bondade. A Comunhão dos
Santos é justamente este trabalho contínuo, como o de Deus que trabalha
continuamente e com todos os meios, para ajudar aos irmãos, tanto em suas
necessidades materiais como em suas necessidades espirituais, ou em
ambas, como foi o caso de Marziam que, obtendo a cura de Raquel, aliviou
o espírito abatido da velha Joana, e acendeu uma confiança sempre maior
no Senhor, no coração de todos os daquela família. Se até uma colherada de
mel oferecida em sacrifício pode servir para trazer de novo a paz e a
esperança a um aflito, assim também a fogaça, que se deixa de comer por
uma intenção de amor, pode obter um pão, milagrosamente oferecido. E a
palavra de ira, por mais justa que seja, se for detida com espírito de
sacrifício, pode impedir um delito em algum lugar longínquo, assim como
resistir à vontade de colher um fruto, e feito por amor, pode servir para que
seja dado um pensamento de arrependimento a um ladrão, e assim se possa
frustrar um latrocínio. Nada se perde na economia santa do amor universal.
Não. O heróico sacrifício de um menino, diante de um prato de fogaças, não
é como o holocausto de um mártir. Pelo contrário. Eu vos digo que o
holocausto de um mártir tem muitas vezes sua origem na educação heróica
que ele aceitou desde a infância, por amor a Deus e ao próximo.
311.5– Então, é de fato bom que eu faça sempre sacrifícios. Para o tempo
em que todos iremos ser perseguidos –diz convicto Marziam.
– Perseguidos? –pergunta Pedro.
– Sim. Não te recordas do que Ele disse[20]? “Sereis perseguidos por
causa de Mim”, e tu mesmo mo disseste, quando foste pela primeira vez
evangelizar sozinho em Betsaida, no verão.
– Lembra-se de tudo este menino –comenta Pedro, admirado.
A ceia termina. Jesus se levanta. Reza por todos e abençoa. E depois,
enquanto as mulheres vão indo para os seus trabalhos de limpar e pôr em
ordem a louça, Jesus com os homens vai colocar-se em um canto da sala, e
está entalhando um pedaço de madeira que, sob a vista admirada de
Marziam, vai-se transformando em uma ovelhinha…
[19] o diz, em 265.13.
[20] Ele disse, em 265.7.9.
312. Jesus comunica a João de Endor a decisão
de mandá-lo a Antioquia. Fim do segundo ano.
24 de outubro de 1945.
312.1 É uma manhã chuvosa de inverno. Jesus já se levantou, e está
trabalhando em sua oficina. Seu trabalho é com pequenos objetos. Mas, a
um canto, já está pronto um tear novo, não muito grande, mas bem
aparelhado.
Entra Maria com uma tigela de leite ainda soltando vapores.
– Bebe Jesus. Já faz tempo que te levantaste. E o tempo está úmido e
frio…
– Sim. Mas pelo menos pude acabar tudo. Estes oito dias de festa
haviam paralisado o trabalho…
Jesus sentou-se no banco grande de carpinteiro, um pouco enviesado, e
vai bebendo o seu leite, enquanto Maria fica observando o tear e o
acariciando com a mão.
– Tu o estás abençoando, minha Mãe? –pergunta sorrindo Jesus.
– Não. Eu o acaricio porque Tu o fizeste. A bênção, Tu já lhe deste,
fazendo-o. Pensaste bem em fazê-lo. Para Síntique vai ser bom. Ela é muito
rápida para tecer. E isso servirá para que se aproximem dela as mulheres e
as moças. Que mais fizeste, pois eu estou vendo maravalhas finas de
oliveira, ao que me parece, ao lado do torno?
– Fiz algumas coisas úteis para João. Estás vendo? Um estojo para os
estiletes e uma pequena mesa de escrever. E depois estas estantes, para
guardar nelas os seus livros. Eu não teria podido fazer isso, se Simão de
Jonas não tivesse pensado na carroça. Mas agora poderemos levar estas
também… e eles perceberão que Eu os amei até nestas pequenas coisas…
– Tu sofres, ao mandá-los para longe, não é?
– Sofro. Por Mim e por eles. Eu esperei até agora para falar… E deve
estar chegando Simão com Porfíria. É hora que eu fale. Um sofrimento que
tem estado em meu coração durante todos estes dias e que me entristeceu
até as luzes daquelas numerosas candeias… Um sofrimento que agora devo
dar a outros… Ah! Minha Mãe, Eu teria querido sofrer sozinho!…
– Meu bom Filho!
Maria lhe acaricia uma das mãos, para consolá-lo.
312.2 Silêncio… Depois Jesus torna a falar:
– João já se levantou?
– Sim. Eu o ouvi tossir. Talvez esteja na cozinha, bebendo leite. Pobre
João!… –e uma lágrima escorre ao longo das faces de Maria.
Jesus se põe em pé:
– Eu vou. Devo ir dizer-lhe. Com Síntique será mais fácil… Mas para
ele… Minha Mãe, vai a Marziam, desperta-o, e rezai enquanto Eu falo com
aquele homem… É como se Eu tivesse que esgravatar suas vísceras. Posso
matá-lo ou paralisá-lo em sua vitalidade espiritual… Que pena, Pai meu!…
Eu vou… –e sai, realmente abatido.
Dá os poucos passos, que da oficina conduzem para a saleta de João,
que é a mesma onde morreu Jonas, isto é, a de José. Encontra-se com
Síntique, que vem entrando com um pequeno feixe de lenha apanhada no
forno, e que o saúda sem saber de nada. Jesus, absorto, responde à saudação
da grega, depois fica parado, olhando para um canteiro de lírios, que mal
mostra as pequenas folhas… Depois se decide. Vira-se, e bate à porta de
João, que logo aparece, e cujo rosto mostra alegria por ver Jesus que vem a
ele.
– Posso entrar um pouco em teu quarto? –pergunta Jesus.
– Oh! Mestre! Mas sempre. 312.3Eu estava escrevendo o que Tu dizias
ontem à tarde sobre a prudência e a obediência.E até é bom que tu o vejas,
pois parece-me não ter guardado bem o que falaste sobre a prudência.
Jesus entrou na pequena sala, já arrumada, na qual foi colocada uma
mesinha, para comodidade do velho mestre. Jesus se inclina sobre o
pergaminho e lê.
– Muito bem. Guardaste muito bem.
– Olha aqui. Parecia-me ter escrito mal nesta frase. Tu dizes sempre
que não é preciso preocupar-se com o amanhã e com o próprio corpo.
Agora, dizendo que a prudência, até para as coisas ligadas ao dia de
amanhã, é uma virtude, parecia-me isso um erro. Um erro meu,
naturalmente.
– Não, Não erraste. Eu disse isso mesmo. Diferente é a ânsia exagerada
e medrosa, de quem é egoísta, daquele cuidado prudente de quem é justo.
Pecado é a avareza pelo dia de amanhã, do qual talvez nem gozaremos. Mas
não é pecado a economia, com que garantimos o pão, e o garantimos para
os nossos parentes, nos tempos de escassez. Pecado é o cuidado egoísta do
próprio corpo, exigindo que todos os que estão ao redor de nós estejam
preocupados com ele, deixando de lado todo trabalho e sacrifício por medo
de que a carne sofra, mas não é pecado preservá-lo das enfermidades
evitáveis, contraídas por imprudências, e que são depois um peso para os
familiares e perda de horas de trabalho proveitosas para todos nós. Deus nos
deu a vida. É um dom. Devemos, pois usá-la santamente, sem imprudências
e sem egoísmos. 312.4Estás vendo? Por vezes, a prudência aconselha ações
que aos estultos podem parecer vilez ou volubilidade, e que não são mais do
que santas prudências, depois de acontecimentos novos que se
apresentaram. Por exemplo: se Eu te mandasse agora para o meio de um
povo que te pudesse fazer mal… os parentes de tua mulher, por exemplo, ou
os guardas das minas onde trabalhaste, Eu faria bem ou mal?
– Eu… não quereria julgar-te. Mas eu diria que era melhor mandar-me
para outro lugar, onde não haja perigo de que a minha pouca virtude seja
sujeita a alguma prova dura demais.
– Aí está. Julgarias com sabedoria e prudência. É por isso que não te
mandarei nunca para a Bitínia ou para a Mísia, onde estiveste. E nem para
Cintium, ainda que tu, espiritualmente, tenhas o desejo de ir para lá. O teu
espírito poderia ficar oprimido por muitas durezas humanas e poderia
retroceder. A prudência, pois, ensina a não mandar-te aonde serias inútil,
enquanto que poderias ser mandado para outro lugar com muita utilidade
para Mim, para as almas do próximo e a tua. Não é verdade?
João, sem estar sabendo o que o destino lhe está reservando, não se
atém às alusões feitas por Jesus sobre a possibilidade de uma missão fora da
Palestina. Jesus estuda o seu rosto e vê que ele está calmo, contente em
ouvi-lo, e pronto para responder-lhe assim:
– Com certeza, Mestre, eu poderia ser mais útil em outro lugar. Eu
mesmo, já há muitos dias que disse: “Eu gostaria de ir para o meio dos
pagãos, a fim de dar um bom exemplo”, onde eu dei o mau, mas eu me
censurei depois, dizendo: “Entre os pagãos, sim, pois tu não tens as
prevenções dos outros em Israel. Mas em Cintium não, e nem também
sobre os montes desolados, onde viveste como galeote e como lobo, nas
minas de chumbo e de mármores preciosos. Nem mesmo por uma sede de
sacrifício absoluto poderias ir para lá. Teu coração se revoltaria com as
lembranças cruéis e, se fosses reconhecido, ainda que não te tratassem com
crueldade, eles te diriam: ‘Cala-te, assassino. Não podemos ouvir-te’, e
seria inútil ir para lá.” Isto foi o que eu disse a mim mesmo. E é um
pensamento bom.
– Estás vendo, pois, que tu também possuis a prudência. Eu também
312.5
a possuo. Por isso, Eu te tirei das fadigas do apostolado, como é feito pelos
outros, e te trouxe para cá, onde há repouso e paz.
– Oh! sim! Esta paz! Se eu vivesse ainda cem anos, aqui seria tudo
igual. É uma paz sobrenatural. E, se eu me fosse embora, a levaria comigo.
Até mesmo na outra vida eu a levarei… As recordações poderão ainda
revoltar-me o coração, e as ofensas podem fazer-me sofrer. Porque eu sou
homem. Mas não serei mais capaz de odiar, porque o ódio foi extinto para
sempre, até às suas ramificações mais distantes. Não tenho mais nem
antipatia para com a mulher, que eu via como se fosse o animal mais
imundo e desprezível da terra. Tua Mãe está fora de tudo isso. A Ela eu
venerei, desde o momento em que a vi, porque percebi que Ela era diferente
de todas as outras mulheres. Ela é o perfume da mulher, mas o perfume da
mulher santa. Quem não ama o perfume das flores mais puras? Mas, mesmo
as outras mulheres, as discípulas, boas, amorosas, pacientes sob o peso da
dor que as faz derramar lágrimas, como Maria de Cléofas e Elisa, ou as
generosas, como Maria de Magdala, tão decidida em sua mudança de vida;
ou as suaves e puras, como Marta e Joana; as cheias de dignidade e
inteligência, mulheres de pensamento e retidão, como Síntique, essas
fizeram com que eu me reconciliasse com a mulher. Síntique, então, eu te
confesso, é a que tem a minha predileção. As afinidades de mentalidades a
tornam querida a mim, e as afinidades de condição: ela, escrava, e eu
galeote, me permitem ter com ela aquela confiança, que a diferença com as
outras me impede ter. É um repouso, Síntique, para mim. Eu não saberia
dizer-te o que e como precisamente eu vejo nela. Eu, já velho, a respeito, e
olho para ela como para uma filha, a filha sábia e estudiosa, que eu teria
gostado de possuir… Mas eu, um doente de que ela trata com tanto afeto,
eu, um homem triste e solitário, que chorou e chorou a saudade da mãe por
toda a vida e, tendo procurado uma mulher-mãe em todas as mulheres, sem
tê-la encontrado, eis que agora a estou vendo nela, como a realidade do
sonho que eu sonhei, e, sobre minha cabeça já cansada e uma alma que já
vai indo ao encontro da morte, eu sinto descer o orvalho de um afeto
materno… Vê que, sentindo eu em Síntique uma alma de filha e de mãe,
sinto nela a perfeição da mulher e, por causa dela, perdôo todo mal que da
mulher me adveio. Se, por impossível que pareça, aquela infeliz, que foi
minha e que eu matei, ressuscitasse, eu sinto que a perdoaria, porque agora
compreendo a alma feminina, inclinada para o afeto, generosa em entregar-
se… tanto no mal como no bem.
– Eu sinto muito prazer que tu tenhas encontrado tudo isso em Síntique.
Ela te será uma boa companheira para o resto da vida, e juntos fareis muito
bem. Porque Eu vos associarei…
Jesus examina novamente o rosto de João. Mas nenhum sinal de ter-se
despertado sua atenção se nota no discípulo, que, afinal, não é um homem
superficial. Será como a misericórdia divina, que oculta até o momento
decisivo a sua sentença? Só sei que João sorri, dizendo:
– Procuraremos servir-te com o melhor de nós.
– Sim. E Eu também estou certo de que o fareis, sem ficardes
discutindo o trabalho e o lugar que Eu vos darei, mesmo se ele não for
como vós o desejais…
312.6 João percebe um primeiro vislumbre do que o espera. Ele muda de
semblante e de cor. Torna-se sério e pálido, e o seu olho único fixa agora,
atento e perscrutador, o rosto de Jesus, que prossegue:
– Lembra-te, João, quando Eu, para desfazer as tuas dúvidas sobre o
perdão de Deus, te disse[21]: “Para fazer-te compreender a Misericórdia, vou
aproveitar o teu trabalho em obras especiais de misericórdia, e para ti terei
as parábolas da misericórdia”?
– Sim. E foi verdade. Tu me persuadiste, e me concedeste mesmo fazer
obras de misericórdia e, eu diria, até as mais delicadas, como as esmolas e a
instrução de um menino, de um filisteu e de uma grega. Isto me fez ver que
Deus tinha conhecido tanto o meu verdadeiro arrependimento, e o tinha
visto por obras, que me confiava almas inocentes, ou almas que precisavam
ser convertidas, a fim de que eu as formasse para Ele.
Jesus abraça João e o estreita contra seu peito, no ato que costuma ter
com o outro João e, empalidecendo pela dor que lhe vai causar, diz:
– Agora também Deus te confia uma tarefa delicada e santa. Uma tarefa
de predileção. Somente tu, que és generoso, que és sem restrições e
prevenções, que és sábio e que, acima de tudo, te ofereceste[22] a todas as
renúncias e penitências, para expiar, com aquele resto de purificação, aquela
dívida que ainda tinhas para com Deus, só tu podes fazer isso. Qualquer
outro se recusaria, e teria razão, porque estaria em falta dos requisitos
necessários. Nenhum dos meus apóstolos possui tudo o que tu possuis, para
poder ir preparar os caminhos do Senhor… Além disso, tu te chamas João.
Serás, pois, um precursor da minha doutrina… prepararás o caminho para o
teu Mestre.. Farás até as vezes do Mestre, que não pode ir até tão longe…
(João estremece, e procura desvencilhar-se do braço de Jesus, para olhá-lo
no rosto, mas não consegue. O aperto que Jesus lhe está dando é doce, mas
cheio de autoridade, enquanto sua boca vai dando o golpe final…)… Não
pode ir tão longe… ate à Síria… a Antioquia…
312.7 – Senhor –grita João, livrando-se violentamente do abraço de
Jesus–. Senhor! A Antioquia? Dize-me que eu ouvi mal! Dize-me, por
piedade!…
Ele está de pé… é todo ele uma súplica, que está em seu olho único,
num rosto que se tornou cor de cinza, nos lábios que tremem, nas mãos
estendidas para diante e que também tremem, na cabeça, que parece
inclinar-se para a terra como se estivesse pesada por causa daquela notícia.
Mas Jesus não lhe pode dizer “Tu entendeste mal.” Ele abre os braços,
levantando-se por sua vez, para acolher sobre o coração o velho pedagogo,
e abre os seus lábios para confirmar o que disse:
– A Antioquia, sim. Na casa de Lázaro. Com Síntique. Partireis amanhã
ou depois de amanhã.
A desolação de João é verdadeiramente aflitiva. Ele se livra, pela
metade, do abraço e, rosto contra rosto, todo banhado pelo pranto, descido
sobre suas magras faces, grita:
– Ah! Tu não me queres mais contigo. Em que terá sido que eu te
desagradei, meu Senhor?
Depois de desvencilhar-se e deixar-se cair sobre a pequena mesa, num
frouxo de soluços dilacerantes, intercalados com assaltos ásperos de tosse,
surdo a todas as carícias de Jesus, e murmurando:
– Tu me expulsas, me expulsas, não te verei nunca mais…
Jesus está visivelmente sofrendo, e reza… Depois, sai devagar, e vê na
porta da cozinha Maria com Marziam, que está espantado com aquele
choro… Mais adiante está Síntique, também ela surpresa.
– Mãe, vem cá um momento.
Maria vai depressa e pálida. Entram juntas. Maria se inclina sobre o
choroso, como se ele fosse um pobre menino, dizendo:
– Bom, bom, pobre filho meu. Não fiques assim. Isto te fará mal.
João levanta o rosto desfigurado e grita:
– Ele está mandando me embora!… Vou morrer sozinho, longe daqui…
Oh! Ele bem que podia esperar alguns meses, e deixar-me morrer aqui. Por
que esta punição? Em que foi que eu pequei? Terei dado aborrecimento a ti?
Por que dar-me esta paz para depois, para depois…
Ele se abate de novo sobre a mesa, chorando mais fortemente,
ofegante… Jesus lhe passa a mão sobre seus ombros magros e arquejantes,
dizendo-lhe:
– E tu és capaz de crer que, se eu tivesse podido, não te teria
conservado aqui? Oh! João! No caminho do Senhor há tremendas
necessidades. E o primeiro a sofrer com elas sou Eu. Eu, que suporto a
minha dor e a de todo o mundo,olha-me, João.Vê bem se o meu é o rosto de
quem te odeia, de quem está cansado de ti… Vem cá, entre os meus braços,
ausculta como está palpitando de dor o meu coração. Procura entender-me,
e não interpretar-me mal.É a última expiação que Deus te impõe, para abrir-
te as portas do Céu. 312.8Escuta… –e o alivia, conservando-o entre os seus
braços–. Escuta… Minha Mãe, sai por um momento… Agora que estamos
sós, escuta. Tu sabes quem Eu sou. Crês tu firmemente que Eu sou o
Redentor?
– E como não? É por isso que eu queria estar contigo sempre, até à
morte!…
– Até à morte… Horrenda vai ser a minha morte!…
– A minha, eu digo. A minha!…
– Tua morte será plácida, confortada pela minha presença, o que
infundirá em ti a certeza do amor de Deus, e do amor de Síntique, além da
alegria de teres preparado o triunfo do Evangelho em Antioquia. Mas, a
minha! Terias que ver-me reduzido a um montão de carne cheio de feridas,
escarrada, vilipendiada, abandonada a uma multidão enraivecida, preparado
para morrer pendurado numa cruz, como um malfeitor… Poderias tu
suportar isso?
João, que, a cada descrição de como será Jesus tratado em sua Paixão,
ia gemendo: “Não, não”, grita ainda um “não”! muito forte, e acrescenta:
– Vou voltar a odiar a humanidade… Mas eu é que serei morto, porque
Tu és jovem e…
– E Eu já não verei mais do que uma Encênia.
João o fita estupefato…
– Eu te disse isto em segredo, para explicar-te que uma das razões pelas
quais te mando para longe é esta. Não serás o único a receber esta ordem.
Todos aqueles que Eu não quero que sejam perturbados de modo superior às
suas forças, Eu os mandarei para longe, antes. E isto te parece um desamor?
– Não, meu mártir Deus… .Mas eu, enquanto isso, Te devo deixar… e
ir morrer longe.
– Pela Verdade, que sou Eu, Eu te prometo que estarei inclinado sobre o
travesseiro da tua agonia.
– Mas, como, se eu estarei tão longe, e Tu me dizes que longe assim
não vais? Tu o dizes para mandar-me embora menos triste…
– Joana de Cusa, que estava à morte, aos pés do Líbano, me viu, e de lá
Eu a conduzi à pobre vida da terra. Podes crer que, no dia da minha morte,
ela ficará com saudade de ter vivido!… Mas para ti, alegria do meu coração
neste segundo ano de Mestre, Eu farei mais. Virei para levar-te em paz,
dando-te a missão de dizer aos que Me estão esperando: “A hora do Senhor
chegou. Como agora chega a primavera sobre a terra, assim para nós
desponta a primavera do Paraíso.” Mas não virei somente naquela
ocasião… Virei, e tu me ouvirás, sempre. Eu posso fazer isso, e o farei.
Terás o Mestre em ti, como nem mesmo agora o tens. Porque o amor pode
comunicar-se a quem ama, e de modo tão sensível, que chegue a tocar não
só no espírito, mas até nos próprios sentidos. 312.9Estás mais tranqüilo agora,
João?
– Sim, meu Senhor. Mas que dor!
– Acho que não estás revoltado…
– Revoltar-me eu? Nunca. Eu te perderia completamente. Eu digo no
“meu” Pai-nosso: Seja feita a vossa vontade.
– Eu sabia que tu acabarias me entendendo…
E o beija naquelas faces, que estão sendo regadas por um contínuo,
ainda que pacato, pranto.
– Deixas-me ir saudar o menino? É esta uma outra dor… Eu lhe queria
bem…, e o pranto volta mais forte.
– Sim. Vou chamá-lo logo. E chamo também Síntique. Ela também
sofrerá… Tu deves ajudá-la. Tu, que és homem…
– Sim, Senhor.
Jesus vai, enquanto João fica chorando, beijando e acariciando as
paredes e os móveis da salinha hospitaleira.
Entram juntos Maria e Marziam.
– Oh! Mãe! Tu ouviste? Tu sabias?
– Eu sabia. E isso me entristecia. Mas eu também estou separada de
Jesus, eu que sou a Mãe…
– É verdade!… Marziam, vem cá. Tu sabes que eu vou-me embora, e
que não nos veremos mais?…
Ele quer ser forte. Mas pega em seus braços o menino, senta-se à beira
da cama, e chora, chora sobre a cabeça morena de Marziam, que fica
pensando em imitá-lo.
312.10 Entra Jesus com Síntique, que pergunta:
– Por que, João, esse pranto todo?
– Ele nos manda embora, não estás sabendo? Não o sabes ainda? Ele
nos manda para Antioquia!
– E daí? Não disse[23] Ele que, onde dois estiverem congregados em seu
nome, Ele estará entre eles? Eia, João! Tu talvez, até hoje, sempre tenhas
escolhido por ti mesmo a tua sorte, e, por isso, a imposição de uma vontade,
ainda que amorosa, é para ti uma angústia. Eu… eu estou acostumada a
aceitar a sorte que me é imposta por outrem. E que sorte!… Por isso,
inclino com alegria a cabeça a este novo destino. Por que não? Eu não me
revoltei contra a escravidão despótica, a não ser quando ela queria exercer-
se sobre a minha alma. E deveria eu agora revoltar-me sob esta doce
escravidão de amor, que não lesa, mas eleva a nossa alma, e nos confere o
título de servos seus? Tens medo do amanhã, porque estás doente? Eu
trabalharei por ti. Tens medo de ficar sozinho? Eu não te deixarei nunca.
Fica certo disso. Eu não tenho outra meta na minha vida, a não ser amar a
Deus e ao próximo. Tu és o próximo que Deus me confia. Pensa, então,
como por mim serás querido!
– Não tereis necessidade de trabalhar para viver, porque estais em casa
de Lázaro. Mas Eu vos aconselho a usar métodos de ensino para que o povo
se aproxime. Tu, como mestre e tu, mulher, com trabalhos próprios para as
mulheres. Isso servirá para o apostolado e para dar uma meta aos vossos
dias.
– Assim será feito, Senhor, responde firmemente Síntique.
312.11 João continua com o menino nos braços e chora baixinho. Marziam
o acaricia…
– Tu te lembrarás de mim?
– Sempre. João, e rezarei por ti… E até… Espera um pouco… –e sai
correndo.
Síntique pergunta:
– Como é que nós iremos a Antioquia?
– Por mar. Tens medo?
– Não, Senhor. Tu mandas, afinal, e isso nos protegerá.
– Vós ireis com os dois Simões, com os meus irmãos, os filhos de
Zebedeu André e Mateus. Daqui até Ptolomaida, ireis de carroça, e nela
serão colocados os cofres e um tear, que Eu fiz para ti, Síntique, e alguns
objetos úteis para João…
– Eu não havia imaginado, ao ver os s baús e as vestes. E fiquei
preparando minha alma para a separação. Era belo demais viver aqui!…
Um soluço reprimido interrompe a voz de Síntique. Mas ela torna a
falar para dar mais coragem a João. Ela pergunta com voz mais firme:
– Quando partiremos?
– Logo que os apóstolos chegarem.Talvez amanhã.
– Então, se me permites, vou arrumar as vestes nos baús. Dá-me os teus
livros, João.
Creio que Síntique está ansiosa por ficar sozinha para chorar… João
responde:
– Pega-os… Mas dá-me aquele rolo amarrado com um cordão azul.
Entra de novo Marziam com sua vasilha cheia de mel.
– Toma, João. Tu o comerás por mim…
– Isso não, menino! Por quê?
– Porque Jesus disse que uma colherada de mel oferecida em sacrifício
pode dar paz e esperança a um aflito. Tu estás aflito… Eu te dou todo o
mel, para que fiques todo consolado.
– Mas é sacrifício demais, menino.
– Oh! Não. Na oração de Jesus se diz: “Não nos deixes cair em
tentação, mas livra-nos do mal.” Este vaso era tentação para mim… e podia
ser um mal, porque podia fazer-me violar o voto. Assim, não o vejo mais…
e é mais fácil… e estou certo de que Deus te ajuda por mais este sacrifício.
Mas não chores mais. Nem tu, Síntique.
De fato, a grega já está chorando, sem fazer barulho, enquanto recolhe
os livros de João. E Marziam os acaricia, por sua vez, com uma grande
vontade de chorar também ele. Mas a grega sai carregada de rolos e Maria a
acompanha com a vasilha de mel.
312.12 João fica com Jesus, que se assenta ao seu lado, e com o menino
nos braços. Está calmo, mas arrasado.
– Põe também no rolo a última coisa que escreveste –aconselha Jesus–.
Penso que tu a queiras dar a Marziam…
– Sim… eu fiquei com uma cópia para mim… Pronto, rapaz. Estes têm
as palavras do Mestre. As que Ele disse, quando tu não estavas presente, e
outras mais… Eu queria continuar a copiá-las para ti, porque tu tens a tua
vida pela frente… e, quem sabe, quando fores evangelizar… Mas eu não
posso mais fazê-lo… Agora, sou eu que fico sem as suas palavras…
E volta a chorar fortemente.
Marziam está delicado e viril em seu novo ato. Ele se agarra ao pescoço
de João, e diz:
– Agora sou eu que passo a escreve-las para ti, e tas mandarei. Não é
verdade, Mestre? Pode-se fazer, não é?
– Com certeza que se pode. E será uma grande caridade fazê-lo.
– Eu o farei. E, quando não estiver aqui, eu o farei escrever pelo Simão
Zelotes. Ele me quer e te quer bem, e no-lo fará por caridade. Portanto, não
chores mais. Depois, eu irei te encontrar. Certamente não irás para longe.
– Oh! Se é longe! São centenas de milhas… E eu morrerei logo.
O menino está decepcionado e desconsolado. Mas ele volta ao caso
com a graciosa serenidade do menino ao qual tudo parece fácil.
– Como vais tu para lá assim, também eu posso ir com o meu pai. E
depois… nos escreveremos. Quando se lêem as páginas sagradas, é como
estar com Deus, não é verdade? Portanto, quando se lê uma carta é como
estar com quem amamos, e que no-la escreveu. Portanto, vai até lá,
comigo…
– Sim, vamos até lá, João. 312.13Daqui a pouco, virão os meus irmãos,
com o Zelotes. Eu os mandei chamar.
– Eles estão sabendo?
– Ainda não. Estou esperando para dizer, quando estiverem todos
presentes…
– Está bem, Senhor. Vamos…
É um velho já bem encurvado o que está saindo do quarto de José. Um
velho que parece ir saudando até as colunas, todos ostroncos, o tanque e a
gruta, enquanto vai-se dirigindo para a grande sala da oficina, onde Maria e
Síntique, em silêncio, vão colocando os objetos e as vestes no fundo dos
baús…
E assim, silenciosos e tristes, é que os encontram Simão, Judas e Tiago.
Eles observam… mas não fazem perguntas, e eu não consigo compreender
se eles estão percebendo a verdade.
Diz Jesus:
312.14
– Eu tinha querido dar uma clara indicação aos leitores sobre os lugares
da expiação carcerária de João, com o nome que ele tem, agora. Mas com
ele foi feita uma exceção. E agora eu especifico: “Bitinia” e “Misia”, para
quem prefere os nomes antigos.
Mas este é o Evangelho para os simples e os pequenos. E os simples e
os pequenos compreendem melhor “Anatólia” do que Bitinia e Misia. Não é
verdade, pequeno João, que está chorando por causa da tristeza de João de
Endor? Mas há tantos João de Endor pelo mundo. São os irmãos
desconsolados pelos quais Eu te fazia sofrer[24] no ano passado. Agora
descansa, pequeno João, porque não serás nunca mandado para longe pelo
Mestre, mas, ao contrário, sempre mais para perto.
E com isto termina o segundo ano de pregação e de vida pública, o ano
da Misericórdia… E só posso repetir o lamento colocado como fecho do
primeiro ano. Mas não me refiro ao meu porta-voz, o qual, contra os
obstáculos de todo gênero, continua a sua obra. Verdadeiramente não são os
“grandes”, mas os “pequenos” os que percorrem as vias heróicas,
aplainando-as com o seu sacrifício também para aqueles que estão
sobrecarregados com muitas coisas. Os “pequenos”, isto é, os simples, os
mansos, os puros de coração e entendimento, os “pequeninos”.
E Eu vos digo, ó pequeninos, ó Romualdo e Maria e convosco aqueles
que são vossos pares: “Vinde a Mim para ouvirdes ainda e sempre o Verbo
que vos fala porque vos ama, que vos fala para abençoar-vos. A minha paz
esteja convosco.”
[21] te disse, como em 205.1.
[22] te ofereceste, em 250.10.
[23] disse, em 278.2.
[24] te fazia sofrer, como você pode ler no “ditado” de 29 de maio de 1944, relatado no livro “I quaderni del 1944” (Os Cadernos
de 1944).
Terceiro ano
da Vida pública de Jesus.

313. Preparação para partida de Nazaré


depois da visita de Simão de Alfeu com a família.
No terceiro ano Jesus será o justo.
29 de outubro de 1945.
313.1 João, Tiago, Mateus e André já chegaram a Nazaré, e, à espera de
Pedro, vão dando voltas pelo jardim de Nazaré, brincando com Marziam ou
conversando entre eles. Não vejo nenhum outro, parece que Jesus está fora
de casa e Maria, ocupada em seus trabalhos. Do forno que esfumaça diria
está lá dentro cuidando do pão.
Os quatro apóstolos estão contentes por se verem na casa do Mestre e
também o demonstram. Marziam por três vezes lhesdiz:
– Não riam assim!
E na terceira vez a recomendação é notada por Mateus, que pergunta:
– Por que, rapaz? Não é justo que estejamos contentes por estarmos
aqui? Tu gozaste bastante deste lugar, não? Pois agora somos nós que o
gozamos.
E lhe dá bondosamente um piparote. Marziam olha para ele, muito
sério. Mas sabe calar-se.
Jesus volta em companhia de seus primos Judas e Tiago que, com muita
expansão, saúdam aos companheiros dos quais estiveram separados durante
muitos dias. Maria de Alfeu põe a cabeça para fora do forno, toda vermelha
e enfarinhada, e sorri para os seus rapagões.
Em último lugar, está chegando o Zelotes, que diz:
– Eu fiz tudo, Mestre. Daqui a pouco, Simão estará aqui.
– Qual Simão? O meu irmão ou Simão de Jonas?
– O teu irmão, Tiago. Ele vem com toda a sua família para saudar-te.
313.2 De fato, poucos minutos depois, ouvem-se batidas na porta e um
falatório muito animado anuncia a chegada da família de Simão de Alfeu,
que entra por primeiro, trazendo pela mão um menininho com cerca de oito
anos. Atrás dele, vem Salomé, no meio de sua ninhada.
Maria de Alfeu sai correndo para fora do quarto, onde está o forno, e
beija os netinhos, toda feliz por vê-los ali.
– Então, Tu vais partir de novo? –pergunta Simão, enquanto os seus
filhos já estão estreitando amizade com Marziam que, pelo que me parece,
conhece bem somente o Alfeu que foi curado.
– Sim. Já é tempo.
– Mas terás ainda uns dias chuvosos.
– Não faz mal. Cada dia vamos nos aproximando mais da primavera.
– Vais a Cafarnaum?
– Com certeza, irei até lá também. Mas não logo. Agora irei para a
Galiléia e outros lugares.
– Eu irei encontrar-me contigo, quando souber que estás em
Cafarnaum. E Te acompanharei com a tua Mãe e a minha.
– E Eu te serei grato por isso. Por enquanto, não a abandones. Ela fica
sempre sozinha. Leva-lhe os teus meninos. Lá eles não aprenderão maus
costumes. Fica certo disso.
Simão fica muito corado, por causa da alusão que Jesus está fazendo a
seus pensamentos passados e por causa da olhadela muito significativa de
sua mulher, que parece estar dizendo-lhe: “Estás ouvindo? Bem que
precisavas ouvir isso.”
Mas Simão passa de um assunto para outro, dizendo:
– Onde está a tua Mãe?
– Está fazendo pão. Ela já vem…
Os filhos de Simão, porém, não querem esperar mais, e lá se vão para o
lado do forno, atrás da avó. Também, uma meninazinha, um pouco maior do
que Alfeu que foi curado, sai de lá quase de repente, dizendo:
– Maria está chorando. Por que, hein, Jesus? Por que tua Mãe está
chorando?
– Chorando? Oh! Querida! Eu vou até ela –diz Salomé, toda
pressurosa.
E Jesus explica:
– Ela está chorando, porque Eu vou embora… Mas tu virás fazer-lhe
companhia, não é verdade? Ela te ensinará a bordar, e tu a alegrarás. Tu me
prometes?
– Eu também virei, agora que o pai me deixa vir, diz Alfeu, comendo
um pedaço de fogaça que lhe deram.
Mas, por mais quente que o pedaço de fogaça estivesse, a tal ponto que
mal o podia segurar entre os dedos, eu creio que ele está até gelado, em
comparação com o calor despertado pela vergonha que chegou ao rosto de
Simão de Alfeu, ao ouvir aquelas palavras de seu filhinho. E, ainda que se
esteja em uma manhã de inverno até bastante fria, e com aquele ventinho do
norte, que vai varrendo as nuvens do céu, mas que com seu frio atinge
também nossa pele, Simão põe-se a suar, e com uma transpiração tão
abundante, como se estivesse em pleno verão.
Jesus não dá nenhum sinal de ter visto aquilo, e os apóstolos simulam
um grande interesse pelo que estão cantando os filhos de Simão, e assim é
que termina aquele incidente, 313.3conseguindo Simão controlar-se, até ao
ponto de perguntar a Jesus por que não estão presentes todos os apóstolos.
– Simão de Jonas está para chegar. Os outros virão ao meu encontro no
momento oportuno. Assim ficou combinado.
– Todos?
– Todos.
– Tambem Judas de Keriot?
– Ele também.
– Jesus, vem um momento comigo –roga-lhe o seu primo Simão.
E, tendo-se afastado para o fundo da horta, Simão lhe pergunta:
– Mas sabes Tu bem quem é Judas de Simão?
– É um homem de Israel. Nada mais, nada menos.
– Oh! Não me quererás dizer que é… –e começa e excitar-se e a
levantar a voz.
Mas Jesus o acalma, e, pondo-lhe a mão sobre o ombro, lhe diz:
– Ele é o que fazem dele as idéias agora em voga e aqueles que se
avizinham dele. Porque, por exemplo, se aqui (e Ele destaca bem as
palavras), se aqui ele tivesse encontrado todos os corações justos e as
mentes inteligentes, ele não teria achado gosto em pecar. Mas ele não os
encontrou. Pelo contrário, o que ele encontrou foi um ambiente
completamente humano, ao qual ele se acomodou com suma facilidade para
o seu eu muito humano, que vive a sonhar, tendo em mira trabalhar por
Mim e em Mim como Rei de Israel, no sentido humano do termo, assim
como Me sonhas e gostarias de ver e gostarias de trabalhar tu, e contigo teu
irmão José e, como vós dois, Levi, o sinagogo de Nazaré, e Matatias,
Simeão, Matias, Benjamim e Jacó, e fora uns três ou quatro, todos vós de
Nazaré, e não só de Nazare… Ele sente dificuldade para formar-se, porque
vós todos trabalhais para deformá-lo. E cada vez mais. Ele é o mais fraco
dos meus apóstolos. Mas não é, por enquanto, mais do que um fraco. Ele
tem bons impulsos, intenções retas e amor por Mim. Está desviado em seus
modos, mas amor sempre tem. Vós não o ajudais a separar estas partes boas
das partes que não são boas, e que formam o eu dele, e vós sempre as
piorais, jogando dentro delas as vossas incredulidades e limitações
humanas. 313.4Mas, vamos agora para casa. Os outros já foram na nossa
frente…
Simão o acompanha, um pouco humilhado. Já estão quase na soleira,
quando ele detém Jesus, e lhe diz:
– Meu irmão, estás com raiva de mim?
– Não. Mas estou procurando formar a ti também, como formo todos os
outros discípulos. Não disseste que querias ser?
– Sim. Mas das outras vezes não falavas assim nem mesmo quando
censuravas alguém. Falavas com mais doçura…
– E para que serviu? Antes, Eu assim fazia. Há dois anos que Eu vinha
fazendo assim… Sobre a minha paciência e bondade vós vos deitastes, ou
melhor, afiastes vossos dentes e garras. O amor vos serviu para Me fazerdes
mal. Não é isso mesmo?
– É isso mesmo, é verdade. Mas então, não serás mais bom?
– Eu serei justo. E, mesmo sendo assim, serei sempre como vós não
mereceis, vós de Israel, que em Mim não quereis reconhecer o Messias
prometido.
313.5 Entram no pequeno quarto, tão cheio de pessoas que muitas tiveram
que ir para a cozinha ou para a oficina de José. E estes últimos são os
apóstolos, menos os dois filhos de Alfeu, que ficaram com sua mãe e a
cunhada, às quais se une Maria, que entra segurando pela mão o pequeno
Alfeu. No rosto de Maria há claros sinais de lágrimas derramadas.
Mas, enquanto ela está para responder a Simão, que lhe garante vir à
casa dela todos os dias, pela rua estreita vem vindo um pequena carroça,
com um chocalhar tão forte de guizos que, com aquele barulhão todo,
chama a atenção dos filhos de Alfeu e, enquanto os do lado de fora estão
batendo, no mesmo instante já estão abrindo os que estão do lado de dentro.
Aparece o rosto alegre de Simão Pedro, ainda sentado na carroça, e que está
batendo com o cabo do chicote… A seu lado, tímida mas sorridente, está
Porfíria, sentada sobre umas caixas e caixinhas, como se estivesse sobre um
trono.
Marziam corre para fora e vai subir na carroça para ir saudar sua mãe
adotiva. Saem também os outros, entre os quais está Jesus.
– Mestre, eis-me aqui. Eu trouxe a mulher, e por este meio, porque é
uma mulher que não agüenta fazer a viagem a pé. Maria, o Senhor esteja
contigo. E também contigo, Maria de Alfeu.
Ele olha para todos, enquanto vai descendo do seu veículo. Ajuda a
mulher a descer, enquanto vai saudando a todos, ao mesmo tempo.
Querem todos ajudá-lo a descarregar a carrocinha. Mas ele se opõe
energicamente:
– Depois, depois –diz ele.
E, em seguida, sem mais cerimônias, vai até à porta larga da oficina de
José e a abre completamente, procurando fazer passar por ela a carrocinha
como ela está. E, naturalmente, não dá para passar. Aquela manobra serve
para distrair os hóspedes e fazê-los entender que eles estão sendo demais…
De fato, Simão de Alfeu já está se despedindo com toda a sua família.
313.6 – Oh! Agora que estamos sós, vamos pensar em nós… –diz Simão
de Jonas, fazendo andar para trás o burrinho, que faz um barulho por dez,
coberto como está de guizos, a tal ponto que Tiago de Zebedeu não se pode
conter sem que pergunte, rindo:
– Mas onde foi que o encontraste tão bem arreado?
Enquanto isso, Pedro está ocupado em pegar as caixas que estão na
carroça e as ir entregando a João e a André, os quais acham que terão que
arcar com o peso delas, mas ficam decepcionados por serem as caixas muito
leves, e eles o dizem…
– Ide com elas à horta, e não fiqueis espantandos –ordena Pedro, que já
vai descendo, por sua vez, com uma caixinha, ela, sim, bastante pesada, e
que ele vai pôr em um canto do pequeno quarto.
– E agora, o burrinho e a carroça!… O burrinho e a carroça? O burrinho
e a carroça!… Isto é que é o difícil!… E, no entanto, é preciso que tudo
fique em casa…
– Vai para a horta, Simão –diz Maria em voz baixa–. Lá existe uma
passagem na sebe do fundo. Ela não parece estar 1á, porque está coberta
pelos ramos… Mas está. Acompanha o caminho pelo lado da casa, entre
esta e a horta, que está aí perto, que eu irei te mostrar onde é que está a
passagem… Quem é que vai afastar os ramos que a cobrem?
– Eu. Eu.
Todos correm para o fundo da horta, enquanto Pedro lá se vai com sua
barulhenta equipagem e Maria de Alfeu fecha a porta… E, fazendo uso de
uma pequena foice, vai livrando dos ramos a cancela rústica, e abrindo o
espaço suficiente para a passagem do burrinho e da carroça.
– Oh! Que bom! E agora vamos tirar tudo isso. Estou com os ouvidos
estourados!
E Pedro se apressa em cortar os laços, que conservam amarrados os
guizos no arreio.
– Mas, para que foi que os puseste aí, então? –pergunta-lhe André.
– Para que toda Nazaré percebesse que eu estava chegando. E agora eu
o consegui… Agora eu os estou tirando para que toda Nazaré não perceba,
quando nós estivermos partindo. Eu coloquei as caixas vazias… Mas nós
partiremos com as caixas cheias, e ninguém, se algum deles nos vir, ficará
espantado por ver uma mulher sentada sobre as caixas, a meu lado. Os que
são de longe se gabam de ter bom senso e senso prático. Mas, quando
quero, também eu tenho…
– Desculpa, meu irmão. Para que é necessário tudo isso –pergunta-lhe
André, que já deu de beber ao burrinho, levando-o depois para o rústico
depósito de lenha, que fica perto do forno.
– Por quê? Mas, então, não sabes?… Mestre, mas eles não sabem ainda
de nada?
– Não, Simão. Eu estava te esperando para falar. Vinde todos à oficina.
As mulheres estão bem, lá onde estão. E tu fizeste bem em fazer assim,
Simão de Jonas.
313.7 Eles vão para a oficina, enquanto Porfíria, com o menino e as duas
Marias, ficaram em casa.
– Eu vos quis aqui, porque me deveis ajudar a fazer que vão embora
para muito longe João e Síntique. Desde a festa dos Tabernáculos é que Eu
decidi fazer assim. Vós já vistes bem que não era possível conservá-los
conosco, nem mesmo aqui, a não ser que quiséssemos perturbar a paz deles.
Como sempre, é Lázaro de Betânia que me está ajudando neste assunto.
Eles já foram avisados. Simão Pedro ficou sabendo, faz poucos dias. E vós
o ficais sabendo agora. Esta noite estaremos deixando Nazaré. Ainda que
haja chuva e ventania, pois estamos na Lua crescente. Nós já deveriamos ter
partido. Mas suponho que Simão de Jonas tenha tido dificuldades para
achar o transporte…
– E como! Eu já estava sem esperança de achá-lo. Mas finalmente
comprei-o de um grego sujo de Tiberíades… E vai ser útil…
– Sim. Vai ser util, especialmente para João de Endor.
– Onde é que está ele, que não se vê? –pergunta Pedro.
– Está no quarto dele com Síntique.
– E… como foi que ele recebeu a decisão? pergunta ainda Pedro.
– Com muita tristeza. A mulher também…
– E Tu também, Mestre. A tua fronte está marcada por uma ruga, que
antes não tinha, e estás com uns olhares sérios e tristes –observa João.
– É verdade. Estou sentindo muito… 313.8 Mas vamos falar do que
devemos fazer. Prestai-me bem atenção, porque depois iremos separar-nos.
Partiremos esta tarde, lá pela metade da primeira vigília[25].
Partiremos como pessoas que estão fugindo… porque são culpadas.
Mas, ao contrário, nós não estaremos indo fazer o mal nem fugindo por tê-
lo feito. Mas daqui nós nos vamos para impedir que outros o façam a quem
não teria força para suportá-lo. Portanto, partiremos. Iremos pela estrada de
Séforis… Permaneceremos em uma casa, na metade do caminho, para
continuarmos depois, ao romper do dia. É uma casa que tem muitas séries
de pórticos para os animais. Lá estão os pastores amigos do Isaque. Eu os
conheço. E eles me hospedarão sem exigirem nada. Depois, precisaremos
fazer esforço para chegarmos até Jeftael, já de tarde, e lá determo-nos.
Achas que o animal vai agüentar?
– E, como não? Eu tive que pagá-lo àquele grego sujo, mas recebi dele
um animal bom e forte.
– Então, está bem. Na manhã seguinte, iremos para Ptolemaida, e lá nos
separaremos. Vós, sob a guia de Pedro, que é o vosso chefe e a quem
devereis obedecer cegamente, ireis por mar até Tiro. Lá encontrareis um
navio, que vai para Antioquia. Subireis a bordo dele, entregando esta carta
ao capitão do navio, para que a leia. É uma carta de Lázaro de Teófilo. Vós
passareis por servos dele, mandados por ele às suas terras de Antioquia, ou
melhor, aos seus jardins de Antigônio. Assim vós sereis considerados por
todos. Sabei estar atentos, sérios, prudentes e silenciosos. Quando
chegardes a Antioquia, ide logo a Filipe, que é o intendente de Lázaro, e ao
qual entregareis esta carta…
– Mestre, ele me conhece –diz o Zelotes.
– Muito bem.
– E como vai acreditar que eu seja um servo?
– Quanto a Filipe, não é preciso. Ele sabe que deve receber e hospedar
dois amigos de Lázaro, e ajudá-los em tudo. Isto está escrito. E vós os
acompanhastes. Nada mais do que isso. Ele vos chama de “meus caros
amigos da Palestina.” E isto é o que vós sereis, unidos pela fé. e no
desempenho da ação que estareis realizando. Descansareis até que o navio,
depois de ter terminado as operaçoes de carga e descarga, torne a partir para
Tiro. De Tiro, com a barca, ireis a Ptolemaida, e de lá Me ireis encontrar em
Aqzib…
– Por que Não vais conosco, Senhor? –suspira João.
– Porque Eu fico rezando por vós, e especialmente por aqueles po-
brezinhos. Eu fico para rezar. 313.9É assim que vai iniciar-se o meu terceiro
ano de vida pública. Ele se inicia com uma partida bem triste, como
também foi o primeiro e o segundo. Ele se inicia com uma grande oração e
penitência, como o primeiro… Porque este tem as dificuldades dolorosas do
primeiro, e mais ainda. Naquele tempo Eu me estava preparando para
converter o mundo. Agora, Eu me estou preparando para uma obra bem
mais vasta e importante. Mas, escutai-me bem, e ficai sabendo que, se no
primeiro Eu fui Homem-Mestre, o Sábio que invoca a Sabedoria com sua
humanidade perfeita e sua perfeição intelectual, e que no segundo fui o
Salvador e Amigo, o Misericordioso, que passa acolhendo, perdoando,
compadecendo-se e suportando, no terceiro Eu serei o Deus Redentor e Rei,
o Justo: não vos espanteis, pois, se virdes em Mim formas novas, se no
Cordeiro virdes brilhar o Forte. Que foi que Israel me respondeu, ao meu
convite de amor, ao abrir-lhe Eu os braços, dizendo “Vem, Eu amo e
perdôo”? Foi com uma sempre crescente e obstinada obtusidade e dureza de
coração, com a mentira e com suas ciladas. Pois bem. Assim seja. Eu o
havia chamado, em todas as suas classes, inclinando minha fronte até o pó.
E, sobre essa Santidade, que se humilhava, ele ainda escarrou. Eu o havia
convidado a santificar-se. E ele me respondeu, endemoninhando-se. Eu
cumpri o meu dever, em tudo. E ele chamou o meu dever de “pecado”. Eu
calei-me. E ele tomou o meu silêncio por culpabilidade. Eu falei. E ele
chamou a minha palavra de blasfêmia. Agora basta! Ele Não me deixou
respirar. Não me concedeu nenhuma alegria. E a alegria para Mim consistia
em fazer que Eu crescesse na vida espiritual dos recém-nascidos para a
Graça. São-lhes armadas ciladas, e eles vêm a Mim, que os devo tirar do
meu peito, causando a eles e a Mim a angústia que sentem os progenitores e
os filhos separados uns dos outros, a fim de colocá-los a salvo de um Israel
malévolo. Eles, os poderosos de Israel, que se dizem os “santificadores”, e
se gabam de o serem, impedem a Mim e gostariam de impedir-me de salvar
e de alegrar-me com os salvos por Mim. Eu tenho, há muitos e muitos
meses um Levi publicano em minha amizade e a meu serviço, e o mundo
pode ver se Mateus é um escândalo, ou uma emulação. Mas a acusação
continuará a ser feita: e continua a ser feita por causa de Maria de Lázaro e
de tantos e tantos outros, que Eu salvarei. Agora, basta! Eu vou indo pelo
meu caminho sempre áspero e molhado pelo pranto… Eu vou… Nenhuma
de minhas lágrimas cairá em vão. Elas gritam ao meu Pai… E depois,
haverá de gritar um outro humor bem mais poderoso. Eu vou. Eu não me
detenho. Quem me ama, que me siga, e tenha coragem, porque vêm-se
aproximando as horas da dureza. Eu não me detenho. Nada me faz parar.
Eles também não pararão… Mas, ai deles! Ai deles! Ai daqueles por cuja
causa o Amor tem que virar Justiça!… O sinal do novo tempo vai ser o de
uma Justiça severa para todos aqueles que estão obstinados no seu pecado
contra as palavras do Senhor e contra a ação do Verbo do Senhor!…
313.10 Jesus está parecendo um arcanjo punidor. Eu diria que Ele está em
chamas, contra a parede enfumaçada, de tanto que seus olhos estão
brilhando… Parece que Ele brilha até em sua voz, que está com sons
agudos como os do bronze e da prata, quando nesses metais se bate com
violência.
Os oito apóstolos estão pálidos e como que diminuídos pelo temor.
Jesus olha para eles… Com piedade e amor. E diz:
– Não digo isto para vós, meus amigos. Não são para vós estas
ameaças. Vós sois os meus apóstolos, e Eu vos escolhi.
Sua voz se torna doce e profunda. E Ele termina:
– Vamos até lá. Vamos fazer que os dois perseguidos ouçam — e Eu
vos lembro que eles crêem que estão partindo para irem preparar-me o
caminho em Antioquia — que nós os amamos mais do que a nós mesmos.
Vinde…
[25] lá pela metade da primeira vigília pode corresponder, em nossos tempos, às sete / oito da noite. O dia judeu corria de sol a
sol a sol e foi dividido em duas partes. A primeira parte do dia e da noite, consistia em quatro vigílias de três horas. (Galicinio, o
que significa canto do galo, foi o nome dado à terceira vigília). A segunda parte do dia, a diurna, incluía as restantes 12 horas.
Uma vez que as duas partes do dia foram regulamentadas, respectivamente, do pôr do sol e do nascer do sol, o comprimento do
tempo das horas noturnas (agrupados em vigílias) e das diurnas variavam de uma estação para outra.
314. A ceia na casa de Nazaré e a dolorosa
partida.
30 de outubro de 1945.
314.1 Já chegou a tarde. É mais uma tarde de despedidas da casinha de
Nazaré e dos seus moradores. É mais uma ceia, durante a qual o pesar torna
indesejáveis para as bocas os alimentos e taciturnas as pessoas.
À mesa estão sentados Jesus com João e Síntique, Pedro, João, Simão e
Mateus. Os outros não puderam sentar-se junto a ela, de tão pequena que é a
mesa de Nazaré! Na verdade ela foi feita para uma pequena família de
justos que, quando muito, podem fazer que a ela se assente ou algum
peregrino ou algum aflito, para dar-lhe mais um socorro de amor do que de
comida! Nesta tarde, quem poderia ter-se sentado junto a ela era, quando
muito, Marziam, porque é um menino muito magro, ocupando por isso
somente um pequeno espaço…
Mas Marziam, muito sério e silencioso, está comendo a um canto,
sentado sobre um banquinho, aos pés de Porfíria, que a Virgem colocou em
sua cadeira do tear e que, mansa e silenciosa, está comendo o alimento que
lhe deram, olhando com um olhar de dó os dois que estão perto da hora de
partir, e que estão tentando engolir os bocados, mas com a cabeça muito
inclinada, para esconderem os seus rostos banhados pelas lágrimas.
Os outros, isto é, os dois filhos de Alfeu, André e Tiago de Zebedeu,
foram alojar-se na cozinha, junto a uma especie de masseira. Mas lá eles
podem ser vistos através da porta, que está aberta.
314.2 A Virgem Maria e Maria de Alfeu vão e vêm, servindo a uns e a
outros, com seu ar maternal, cansadas e tristes. E, se a Virgem Maria
acaricia com o seu sorriso, que está tão cheio de tristeza nesta tarde, àqueles
de quem ela se aproxima para servir, Maria de Alfeu, menos reservada e
com franqueza, une ao sorriso alguma coisa que ela faz e alguma palavra, e
mais de uma vez põe-se a encorajar, fazendo ora uma carícia, ora até dando
um beijo, conforme a pessoa a quem estiver atendendo, para que esta ou
aquela se alimentem bem, e dizendo-lhes quais são os alimentos mais
apropriados para o físico de cada um e para a viagem que estão para
começar. Eu acho que por um amor de piedade para com o extenuado João
que, nestes dias de expectativa, emagreceu ainda mais, ela se daria até a si
mesma como alimento, pelo tanto que ela se esmera em persuadi-lo a tomar
isto ou aquilo, encarecendo o sabor daquelas coisas e suas propriedades
medicinais. Mas, mesmo com todas as suas… seduções, os alimentos
permanecem quase sem ser tocados, no prato de João, e Maria de Alfeu fica
aflita com isso, como uma mãe que visse o seu lactente rejeitar o bico do
peito.
– Mas assim tu não podes partir, meu filho! –exclama ela.
E, em sua alma de mãe, ela nem reflete que João de Endor tem mais ou
menos a sua idade, e que o nome que ela lhe dá de “filho” é mal dado por
isso. O que acontece é que ela vê nele uma criatura que sofre e, por isso,
não acha, para consolá-lo, outro nome, a não ser este…
– Viajar com o estômago vazio naquela carrocinha balançante e com o
frio úmido da noite, vai fazer-te mal. E, além disso, quem é que pode saber
como ireis comer, durante esta horrível e longa viajem!… Ó eterna piedade!
Por mar, e à distância de tantas milhas! Eu morreria de medo. E ao longo
das costas fenícias, e depois… pior ainda! E, certamente, o capitão do navio
será algum filisteu ou fenício, ou de qualquer outra nação do inferno… e
não terá piedade de vós… Eia, pois, enquanto estás perto de uma mamãe
que te quer bem!… Vamos, come: um pedacinho só deste ótimo peixe.
Somente para fazer contente também a Simão de Jonas, que o preparou em
Betsaida com tanto amor e hoje me ensinou a cozinhá-lo assim para ti e
para Jesus a fim de que com ele vos alimenteis bem. 314.3Não queres
mesmo?… Então… Mas disto aqui irás gostar.
E sai correndo para a cozinha, voltando logo com uma coisa parecida
com uma polenta, e que está ainda soltando vapor. Eu não sei o que pode
ser aquilo. Certamente é uma especie de farinha feita com grãos cozidos até
se desfazerem no leite:
– Olha bem: eu tive a idéia de fazer isto, porque eu me lembrei de que
um dia tu falaste disto como de uma coisa que te trouxe uma doce
lembrança da tua meninice… É gostoso e faz bem. Vamos, toma um pouco.
João consente em pôr umas poucas colheradas daquele mingau em seu
prato e procura engoli-lo, mas as lágrimas descem e misturam o seu sal
delas com a comida, enquanto João vai inclinando ainda mais o rosto sobre
o prato.
Os outros estão festejando, com muita alegria esse prato, que para eles
deve ser uma coisa nova e excelente. Os rostos deles se abriram em sorrisos
ao vê-lo, e Marziam se pôs de pé… mas depois achou que era necessário
fazer esta pergunta à Virgem Maria:
– Posso eu comer dele? Faltam ainda cinco dias para o fim de minha
promessa…
– Sim, meu filho. Podes comer dele –diz Maria com uma carícia.
Mas o menino está ainda duvidoso e então Maria, para acalmar os
escrúpulos do pequeno discípulo, interpela o seu Filho:
– Jesus, Marziam está perguntando se pode comer dessa cevada
descascada… por causa do mel, que é o que faz dela um prato doce,
sabes…
– Sim, sim, Marziam. Nesta tarde Eu te dispenso do teu sacrificio,
contanto que João coma, ele também, a sua parte da cevada com mel. Estás
vendo como o menino a deseja? Ajuda-o, então, a conseguir o que deseja –e
Jesus, que tem João perto de Si, pega a mão dele e a segura, enquanto João,
obedecendo, se esforça para comer a sua cevada.
314.4 Maria de Alfeu está mais contente agora. E volta ao assalto, com
um belo prato de peras, cozidas no forno, e ainda soltando vapor. Ela vem
voltando da horta com o seu tabuleiro e diz:
– Chove. Começa agora. Que pena!
– Nada de pena! É melhor assim. Assim não encontraremos ninguém
pelos caminhos. Quando a gente está de partida, as saudações sempre fazem
mal… É melhor partir-se com o vento na vela, do que ficar batendo em
bancos de areia ou em rochedos à flor d’água, que nos obrigam a fazer
muitas paradas e a ir devagar. E os curiosos são exatamente como aqueles
bancos de areia e os rochedos à flor d’água… –diz Pedro, que, em tudo o
que faz, sempre está pensando em vela e navegação.
– Obrigado, Maria. Mas não quero mais nada –diz João, procurando
rejeitar as frutas.
– Ah! Isso não! Foi Maria quem as cozinhou. Queres desprezar o
alimento preparado por Ela? Vê como as preparou bem! Levam suas
especiarias no buraquinho, têm no fundo sua manteiga… São uns bons-
bocados para um rei. E a calda! E até Ela mesma ficou meio assada, lidando
junto ao fogo do forno para cozinhá-las, até que ficassem assim douradas. E
elas são boas para a garganta, para curar a tosse. Elas produzem calor e
curam a gente. Maria, dize-o a ele, como elas faziam bem até ao meu Alfeu,
quando ele estava doente. E ele as queria feitas por ti. E com razão. Pois as
tuas mãos são santas, e dão saúde!… Benditos os alimentos que tu
preparas!… Ficava mais sossegado o meu Alfeu, depois de ter comido
aquelas peras… sua respiração ficava mais tranqüila… Pobre do meu
marido!…
E Maria se aproveita daquela lembrança para chorar, e sair chorando.
Talvez eu tenha um mau pensamento, mas acho que, sem aquela compaixão
pelos dois que vão partir, o “pobre Alfeu” não teria tido nem mesmo uma
lágrima de sua mulher naquela tarde… Maria de Alfeu estava com vontade
de chorar, mas sim por João e Síntique, e por Jesus, Tiago e Judas, que lá se
vão e, com tanta vontade estava, que teve que achar um desabafo para o seu
pranto, a fim de não ficar sufocada.
314.5 A Virgem Maria vai ocupar agora o lugar de Maria de Alfeu. Ela
passa a mão por sobre o ombro de Síntique, que está na frente de Jesus,
entre Simão e Mateus.
– Vamos, então: Comei! Será que querereis partir deixando-me
angustiada, por terdes partido em jejum?
– Eu já comi, Mãe –diz Síntique, levantando seu rosto cansado e
marcado pelo pranto derramado durante muitos dias. Depois, ela abaixa o
rosto por sobre o ombro, onde está a mão de Maria, roçando sua face por
sobre aquela pequena mão, para ser por ela acariciada. Maria lhe acaricia os
cabelos com a outra mão e puxa para si a cabeça de Síntique, que agora lhe
está apoiando o rosto sobre o seio.
– Come, João. Isto te fará muito bem: Precisas tomar cuidado para não
te resfriares. Tu, Simão de Jonas, tomarás cuidado para dar-lhe leite quente
com mel todas as tardes, ou, pelo menos, água bem quente com mel.
Lembra-te disso.
– Eu mesma tomarei as providências, Mãe. Fique tranqüila –diz
Síntique.
– Eu fico tranqüila de verdade, quanto a isso. Mas terás que fazer isso,
quando já estiveres instalada em Antioquia. Por enquanto, quem vai cuidar
disso é Simão de Jonas. E, lembra-te, Simão, de dar-lhe muito óleo de
oliveira. Para isso eu te dei esta moringuinha. Toma cuidado para que ela
não se quebre. E, se vires que ela está um pouco fechada no suspiro, faze,
então, o que eu te disse com o outro vasinho de bálsamo. Toma dele o tanto,
quanto for suficiente para ungir-lhe o peito, as costas e os rins e esquenta-o
até o ponto em que ainda se possa tocar nele sem se queimar, e cobre-o,
logo em seguida, com aquelas faixas de lã, que eu te dei. Eu já preparei
estas coisas para isso. E tu, Síntique, lembra-te de sua composição. A fim
de que possas fazê-los de novo. Poderás sempre encontrar lírios, cânfora e
dictamnos, resinas e cravos com louros, artemísia e outras coisas. Já ouvi
dizer que Lázaro tem lá em Antigônio jardins de essências.
– E esplêndidos –diz o Zelotes, que já os viu.
E acrescenta:
– Eu não aconselho nada. Mas acho que para João aquele lugar deveria
ser muito saudável, tanto para o espírito, como para o corpo, mais ainda do
que Antioquia.O lugar é abrigado dos ventos e o ar leve vem dos pequenos
bosques de plantas resinosas, que ficam nas encostas de uma pequena
colina, que serve de anteparo contra os ventos do mar e, ao mesmo tempo,
permite aos saudáveis sais marinhos que se espalhem até lá. É um lugar
sereno, silencioso, mas tambem alegre pelas mil flores e passarinhos que lá
vivem em paz…
Afinal, vós é que vereis o que mais vos convém. 314.6Síntique tem muito
juizo. E nestas coisas é melhor confiar nas mulheres. Não é verdade?
– De fato. Eu confio o meu João ao bom senso e ao bom coração de
Síntique –diz Jesus.
– E eu tambem –diz João de Endor–. Eu… eu… eu não tenho mais
nenhuma energia… e… não serei mais útil para nada…
– João, não digas isso! Quando o outono despoja as plantas, isso não
quer dizer que elas fiquem inertes. Pelo contrário, aí é que elas trabalham,
com uma energia que estava escondida preparando o triunfo, que vai ser a
sua próxima frutificação. Tu és assim. Agora, estás despojado pelo vento
frio desta dor. Mas, na verdade, em teu íntimo tu já estás trabalhando para
os novos ministérios. O teu próprio sofrimento já será um estímulo para
trabalhar. Eu estou certa disso. E, então, serás tu, sempre tu, quem me vai
ajudar a mim, pobre mulher, que ainda tem muito que aprender para se
tornar alguma coisa de Jesus
– Oh! Que queres que seja ainda? Não tenho nada mais que fazer…
Estou acabado!
– Não. Não fica bem dizer isso! Somente quem morre é que pode dizer:
“Eu estou acabado como homem.” Outros, não. Achas que não tens mais
nada a fazer? Ainda te falta aquilo que me disseste um dia: consumar o
sacrifício. E como, a não ser com o sofrimento? João, para ti, um pedagogo,
é inutil ficar citando os sábios, mas Eu te faço lembrar do Górgias de
Leontine. Ele ensinava que não se faz expiação, nem nesta, nem na outra
vida, a não ser com as dores e os sofrimentos. E lembro-te ainda o nosso
grande Sócrates: “desobedecer a quem é superior a nós, seja ele Deus ou
homem, é um mal e uma vergonha.” Pois bem. Se era justo agir assim,
diante de uma sentença injusta, dada por homens injustos, que não será,
então, por uma ordem dada pelo Homem santíssimo e por nosso Deus?
Grande coisa é obedecer, só porque é obedecer. Grandíssima coisa, então,
será obedecer a uma ordem santa, que eu acho, e que tu comigo deves
achar, que é uma grande misericórdia. Tu sempre estás dizendo que tua vida
está chegando ao fim. Mas ainda não estás ouvindo que foi anulada a tua
dívida com a Justiça. E, por que, então, não tomas esta grande dor como um
meio para chegar a anular essa dívida, e fazer isso no breve tempo que te
resta? É aceitar uma grande dor para obter uma grande paz! Acredita-me
que vale a pena sofrê-la. A unica coisa que há de importante nesta vida é
chegar à morte, tendo conquistado a virtude.
– Tu me confortas, Síntique… Faze isso sempre.
– Eu o farei. Aqui o prometo. Mas tu me ajuda, como homem e como
cristão.
314.7 A refeição terminou. Maria recolhe as peras que sobraram e as
coloca em uma vasilha, entregando-a a André, que sai, para logo voltar
dizendo:
– Está chovendo cada vez mais. Eu diria que é melhor…
– Sim. Ficar esperando é sempre mais angustioso. Eu vou logo preparar
o animal. E vós tambem vinde com os baús e tudo mais. E tu também,
Porfíria. Ligeira! És tão paciente, que o burro já aprendeu com isso, e se
deixa vestir (ele diz assim mesmo), sem dar sinais de querer embirrar.
André, que é parecido contigo, pensará no mais que for preciso. Vamos
todos para fora!
Pedro põe todos para fora do quarto e da cozinha, menos Jesus, Maria,
João de Endor e Síntique.
– Mestre! Oh! Mestre, ajuda-me! Chegou a hora de… sentir que se
divide o meu coração! Chegou mesmo! Oh! por que, bom Jesus, não me
fizeste morrer aqui, depois que eu já tinha tido o tormento da minha
condenação, e feito o esforço para aceitá-la?
E João se abate sobre o peito de Jesus, chorando angustiadamente.
Maria e Síntique procuram acalmá-lo, e Maria, ainda que sempre tão
reservada, o afasta de Jesus, abraçando-o, e dizendo-lhe:
– Caro filho, meu predileto filho…
314.8 Síntique, por sua vez, se ajoelha aos pés de Jesus, dizendo:
– Abençoa-me e consagra-me para que eu seja fortalecida, Senhor,
Salvador e Rei. Eu, aqui na presença de tua Mãe, juro e professo seguir a
tua doutrina, e servir-te até o meu último suspiro. Juro e professo dedicar-
me à tua doutrina e aos seguidores dela por amor de Ti, Mestre e Salvador.
Juro e professo que a minha vida não terá outra meta, e que tudo quanto é
mundo e carne para mim morreu definitivamente, enquanto, com a ajuda de
Deus, e das orações de tua Mãe, espero vencer o Demônio, para que não me
arraste ao erro e, na hora do teu julgamento, eu não seja condenada. Juro e
professo que as seduções e ameaças não me dobrarão, e que sempre me
lembrarei disso, a não ser que Deus o permita de outro modo. Mas eu
espero nele e creio em sua Bondade, porque estou certa de que não me
deixará entregue ao capricho de forças ocultas mais fortes do que a minha.
Consagra a tua serva, ó Senhor, para que ela esteja defendida contra as
insídias de todos os inimigos.
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça, com as palmas abertas, como
costumam fazer os sacerdotes, e ora por ela.
Maria conduz João até o lado de Síntique, e faz que ele se ajoelhe,
dizendo:
– Também este, meu Filho, a fim de que te sirva em santidade e paz.
E Jesus repete o ato sobre a cabeça inclinada do pobre João. Depois o
levanta e faz que Síntique se levante, pondo as mãos deles nas mãos de
Maria, e dizendo:
– E que seja Esta a última a vos acariciar aqui –e sai, ligeiro, indo não
sei para onde.
– Mãe, adeus. Não me esquecerei nunca destes dias –geme João.
– Nem eu me esquecerei de ti, querido filho.
– Eu também, Mãe… Adeus. Deixa que eu te beije ainda… Oh! Depois
de tantos anos, eu estava com fome dos beijos de minha mãe!… Agora, não
estou mais…
Síntique está chorando nos braços de Maria, e a beija. João soluça sem
parar. Maria o abraça também, e agora está com os dois nos braços, como
verdadeira Mãe dos Cristãos, e toca de leve, com seus lábios purissimos, a
face enrugada de João, com um beijo cheio de pudor, mas muito amoroso.
E, com o beijo, fica também o pranto da Virgem sobre aquela face
descarnada…
314.9 Pedro vem entrando:
– Está pronto. Vamo-nos… –e não diz mais nada, porque está
comovido.
Marziam, que acompanha seu pai, como a sombra acompanha o corpo,
agarra-se ao pescoço de Síntique e a beija, beija… Mas também ele está
chorando. Saem. Maria, segurando pela mão Síntique, e Marziam indo pela
mão de João.
– Os nossos mantos… –diz, entre lágrimas, Síntique, e faz como se
quisesse entrar nos quartos.
– Estão aqui, estão aqui. Peguem logo…
Pedro se faz de rude, para não se mostrar comovido, mas, atrás das
costas dos dois, que se envolvem nos mantos, ele está enxugando as
lágrimas com as costas das mãos…
Lá adiante, do outro lado da sebe, a luzinha bruxuleante da pequena
carroça vai projetando uma mancha amarela no ar escuro… A chuva está
fazendo ruído nas frondes das oliveiras e um barulho no tanque cheio de
água… Um pombo, que acordou com a luz das tochas que os apóstolos vão
levando, meio abrigadas pelos mantos e a baixa altura para que possam
alumiar os caminhos, que estão cheios de poças, está arrulhando, e como
que se queixando por ter sido despertado.
Jesus já está perto da carrocinha sobre a qual foi estendida uma coberta
para servir de telhado.
– Vamos, vamos que está chovendo forte! –diz Pedro.
E, enquanto Tiago de Zebedeu substitui Porfíria nas rédeas, ele, sem
muita cerimônia, levanta Síntique do chão e a põe na carroça, e, com mais
agilidade ainda, agarra João de Endor, e o põe lá em cima, depois sobe ele
também, dando de repente uma vergastada tão forte no pobre burro, que ele
arranca para a frente já de carreira, quase derrubando Tiago. E Pedro insiste,
até chegarem ao verdadeiro caminho, já a um bom trecho das casas… Um
último grito de adeus acompanha aos que partem e que choram sem parar…
Pedro faz parar o burro, já fora de Nazaré, para esperar Jesus e os
outros, que não tardam a chegar, caminhando ligeiro sob a chuva, que já
está engrossando. Tomam uma estrada, que vai por entre hortas, para se
dirigirem novamente ao norte da cidade, mas sem a atravessarem. Nazaré
está no escuro e adormecida por baixo da água gelada de uma noite de
inverno… e eu acho que o barulho dos cascos do burro, que já pouco se
ouve num terreno molhado, e de terra batida, não tenha sido percebido nem
pelos que estão acordados…
A comitiva vai para a frente no maior silêncio. Somente os soluços dos
dois discípulos é que se ouvem, misturados ao rumor que faz a chuva nas
copas das oliveiras.
315. A viagem em direção a Jeftael
e as reflexões de João de Endor.
31 de outubro de 1945.
315.1 Deve ter chovido a noite inteira. Mas, ao romper da aurora,
sobreveio um vento seco, que empurrou as nuvens para o sul, para além das
colinas de Nazaré.
Por isso, um tímido sol de inverno vem se atrevendo a mostrar-se e a
acender com os seus raios um diamante em cada folha das oliveiras. Mas
isso é uma veste de gala, que as oliveiras bem depressa perdem, porque o
vento os sacode para longe das copas, que parecem ficar derramando, como
um pranto, escamas de diamantes, os quais, depois, se desfazem por entre
as ervas orvalhadas e por sobre a estrada lamacenta.
Pedro, com a ajuda de Tiago e André, prepara a carroça e o burro. Os
outros ainda não se vêem. Mas depois vão saindo, um após o outro, talvez
de uma cozinha, porque eles dizem aos três que estão fora:
– Agora, ide vós tomar algum alimento.
E estes vão, para sairem pouco depois e desta vez em companhia de
Jesus.
– Tornei a pôr a cobertura por causa do vento, explica Pedro. Se queres
mesmo ir a Jeftael, nós o teremos batendo em nossos rostos… e isso nos
aborrecerá. Não sei por que não tomamos o caminho que vai direto para
Sicaminon, e depois o da beira-mar. Seria mais longo, mas menos áspero.
Ouviste o que dizia aquele pastor, a quem eu fiz falar o que eu quis? Ele
disse: “Jotapata, nos meses de inverno fica isolada. Não há senão uma
estrada para ir-se até lá, e com cordeirinhos não se vai mesmo. Nos ombros
não se pode ter nada, porque alguns passos têm que ser dados mais com as
mãos do que com os pés, e cordeiros não podem flutuar… Há dois rios,
quase sempre cheios, e a própria estrada já é uma torrente, que vai correndo
sobre um fundo rochoso. Eu costumo ir lá depois da festa dos Tabernáculos
e em plena primavera, e lá eu vendo bem, porque nesse tempo eles se
abastecem por alguns meses.” Assim ele disse. E nós… com esta carga (e
dá um pontapé na roda da carroça)… e com este burro… hum…
– A estrada direta de Séforis a Sicaminon, seria melhor. Mas ela é
muito transitada… Lembra-te que é bom não deixarmos rastos de João…
– O Mestre tem razão. Além disso, podemos encontrar-nos com Isaque
e alguns discípulos. E depois iríamos a Sicaminon… –diz o Zelotes.
– Assim sendo… então vamos…
– Eu vou chamar aqueles dois… –diz André.
E, enquanto ele o faz, Jesus está se despedindo de uma velha e de um
menino, que estão saindo de um aprisco com uns baldes de leite. Estão
chegando também pastores barbudos aos quais Jesus agradece a
hospitalidade que lhe ofereceram naquela noite chuvosa. 315.2João e Síntique
já estão na carroça que já vai se dirigindo para a estrada, guiada por Pedro.
Jesus, ladeado pelo Zelotes e por Mateus, e acompanhado por André, Tiago,
João e pelos dois filhos de Alfeu, apressa o passo para alcançá-lo.
O vento está fustigando os rostos e enfunando os mantos. A cobertura
estendida sobre os arcos do carro estala como uma vela, por mais que a
chuva da noite a tenha tornado pesada:
– Tomara que ela se enxugue logo! –murmura Pedro, olhando para ela–.
Contanto que não se enxuguem os pulmões daquele pobre homem!…
Espera aí, Simão de Jonas… Vamos fazer assim.
Ele pára o burro, tira o manto, sobe para o carro, e enrola com muito
cuidado João.
– Mas, por quê? Eu já tenho o meu…
– Porque eu, para puxar o burro, já fico com calor, como se estivesse
em um forno de assar pão. Além disso, eu estou acostumado a ficar nu na
barca e, quanto mais nu eu fico, mais aumentam as rajadas do vento. O frio
me serve de aguilhão, e eu fico mais esperto. Vamos! Agora estás bem
coberto! Maria, em Nazaré me fez tantas recomendações sobre ti que, se
ficas doente, eu nunca mais poderei ir adiante …
315.3 Ele desce da carroça, e pega de novo as rédeas, fazendo o burro
andar. Mas logo ele precisa chamar em sua ajuda o seu irmão e também
Tiago, para ajudarem o burro a sair de um lugar lamacento, onde a roda
afundou. E vão indo assim, empurrando a carroça para ajudarem o burro,
que está fazendo força, firmando os seus cascos no barro e puxando, o
pobre do animal que está bufando e suando, pelo cansaço e pela vontade de
comer, pois Pedro, para provocá-lo a andar, lhe está mostrando uns bocados
de pão e pedaços de maçã, que lhe vai dando somente nos momentos de
descanso.
– Tu és um enganador, Simão de Jonas –diz, caçoando, Mateus, que
está observando a manobra.
– Não. Eu faço o animal a cumprir o seu dever, e com doçura. Se eu
não fizesse assim, teria que usar o chicote. E não quero fazer isso. Eu não
bato na barca, quando ela fica teimando, e ela é de madeira. Por que deveria
bater neste que é de carne? Agora, este é a minha barca… está na água … e
como! Por isso, eu o trato como trato a barca. Eu não sou Doras! Sabeis
disso? Eu queria chamá-lo Doras, antes de adquiri-lo. Mas depois ouvi falar
o seu nome, e ele me agradou. Eu o deixei…
– Como é que ele se chama? –perguntam-lhe curiosos.
– Adivinhai!
E Pedro ri por entre a barba. Eles falaram os nomes mais estranhos e os
dos mais ferozes fariseus ou saduceus, etc. Mas Pedro sempre ia sacudindo
a cabeça. Falaram vinte nomes.
– Ele se chama Antônio! Não é um lindo nome? É o nome daquele
maldito romano! Logo se vê que o grego, que o vendeu, teria lá suas razões
contra Antônio!
Todos se riem, enquanto João de Endor explica:
– Será um dos que foram multados, depois da morte de César? Ele é
velho?
– Terá seus setenta anos… e deve trer trabalhado em todos os ofícios…
Agora, ele tem um albergue em Tiberíades…
315.4 Chegaram ao trívio de Séforis, onde se encontram as estradas de
Nazaré para Ptolemaida, de Nazaré para Sicaminon, de Nazaré para
Jotapata. O marco miliar traz as três indicações de Ptolemaida, Sicaminon e
Jotapata.
– Vamos entrar em Séforis, Mestre?
– É inútil. Vamos para Jeftael. Sem parar. Comeremos, enquanto vamos
caminhando. É preciso que estejamos lá antes da tarde.
Vão, vão indo, atravessando duas pequenas torrentes bem cheias,
enfrentando as primeiras encostas de um sistema de colinas, na direção
norte-sul que, para o norte, fazem um nó inesperado, que depois se desata
para leste[26].
– Lá está Jeftael –diz Jesus.
– Não estou vendo nada –observa Pedro.
– Está ao norte. Viradas para nós estão as costas a pique, bem como ao
oriente e ao poente.
– De modo que teremos que rodear aquele monte todo?
– Não. Há uma estrada junto ao monte mais alto, ao pé dele, no vale.
Ela atalha muito, ainda que seja uma estrada muito íngreme.
– Tu já estiveste lá?
– Não. Mas Eu sei.
E de fato é uma estrada íngreme! A tal ponto, que, quando lá chegam,
fica parecendo que se precipitaram no fundo da noite, pois o lugar se
escurece tanto que a luz diminui ao chegar-se a este vale, o qual me faz
pensar nos círculos dantescos, de tão horrível e alcantilado que é. É uma
estrada estreita, selvagem, fechada entre uma torrente furiosa e uma costa
ainda mais raivosa, que se estende à nossa frente, subindo rapidamente para
o norte e, quando lá chegam, ficam amedrontados…
Se a luz aumenta, à medida que se vai subindo, em compensação,
aumenta também a fadiga e por isso descarregam a carroça de todos os
volumes pessoais, e até Síntique resolve descer para que a pequena carroça
fique o mais leve possível. João de Endor que, depois daquelas poucas
palavras, não tinha mais aberto a boca, a não ser para tossir, gostaria de
descer também. Mas não o deixam fazer isso, e ele fica onde está, enquanto
todos, uns empurram a carroça e outros puxam o animal e a carroça, e suam
a cada mudança de nível. Mas ninguém fica resmungando. Pelo contrário,
todos procuram mostrar-se contentes com aquele exercício, para não
desvalorizarem os dois, pelos quais eles o estão fazendo, eles que, já mais
de uma vez, têm proferido palavras de queixa, por estarem cansados.
A estrada faz um ângulo reto. Depois um outro ângulo e vai terminar
em uma cidade empoleirada sobre uma encosta tão íngreme, que, como diz
João de Zebedeu, ela dá a impressão de que vai deslizar para o vale com
suas casas.
– Mas, pelo contrário, ela está bem firme, e faz uma só coisa com a
rocha.
– Então, é como Ramot… –diz Síntique recordando-se.
– Mais ainda. Porque aqui a rocha já é uma parte das casas, não é
somente a base delas. Parece-se mais com Gamala. Estais lembrados de lá?
– Sim, e com esta lembrança, nos lembramos também daqueles
porcos… –diz André.
– Justamente de lá é que partimos para Tariquéia, para o Tabor e
Endor… –lembra-se Simão Zelotes.
315.5 – Eu fui destinado a dar-vos recordações tristes e grandes
fadigas… –suspira João de Endor.
– Não. Deixa disso. Tu nos brindaste com uma amizade fiel, é, isto
amigo –diz Judas de Alfeu.
E todos se unem a ele, para tornar mais clara a confirmação.
– E, no entanto, eu não tenho sido amado… Ninguém o diz a mim…
Mas eu sei meditar e reunir os fatos isolados em um quadro único. Esta
partida não, não estava prevista, e a decisão de fazê-la não foi espontânea…
– Por que dizes isso, João? –pergunta, docemente aflito, Jesus.
– Porque é a verdade. Não me quiseram. Eu, e não outros, nem mesmo
os grandes discípulos, eu é que fui escolhido para ir para longe.
– E de Síntique, o que dizes? –pergunta Tiago de Alfeu, entristecido por
aquela luz, que veio à mente do homem de Endor.
– Síntique está indo para não mandar-me embora sozinho… para, por
compaixão, não me deixarem ver a realidade…
– Não, João!…
– Sim, Mestre. E estás vendo? Eu poderia até dizer-te o nome do meu
torturador. Sabes onde o estou lendo? Somente ao olhar para estes oito
bons, já o estou lendo! É aquele por causa do qual eu fui achado por Ti, é
também aquele que me quereria fazer achar Belzebu. E me trouxe até esta
hora, assim como a Ti, Mestre, porque Tu estás sofrendo como eu, e me
trouxe a esta hora para fazer-me voltar ao desespero e ao ódio. Porque ele é
mau. Ele é cruel. Ele é invejoso. E é ainda outra coisa, é Judas de Keriot, a
alma escura no meio dos teus servos, todos cheios de luz…
– Não fales assim, João. Não é só ele que falta. Todos estiveram
ausentes nas Encênias, menos o Zelotes, que não tem família. Lá de Keriot,
ainda mais neste tempo, não se pode vir em poucas etapas, São quase
duzentas milhas de caminho. E era justo que ele fôsse ficar com sua mãe,
como Tomé. Também Natanael foi poupado, porque já é velho e, com ele,
Filipe, para servir de companheiro a Natanael…
– Sim… São outros três, que aqui não estão… Mas, ó bom Jesus. Tu
conheces os corações, porque és Santo. Mas não és somente Tu que os
conheces! Tambem os perversos conhecem os perversos, pois eles se
reconhecem uns aos outros. Eu fui perverso, e me pude ver de novo, nos
meus piores instintos, na pessoa de Judas. Mas eu o perdôo. Somente por
uma coisa é que eu o perdôo por fazer que eu vá morrer tão longe: porque
justamente por meio dele eu pude vir a Ti. E que Deus o perdoe por tudo
mais… por tudo mais.
Jesus não precisa desmentir… E se cala. Os apóstolos se olham uns aos
outros, enquanto, à força de braços, vão empurrando a carroça por sobre a
estrada escorregadia.
315.6Já chega a tarde, quando eles vão chegando à cidade onde, como uns
desconhecidos entre desconhecidos, conseguem arranjar alojamento em um
albergue situado na extremidade da cidade. É uma extremidade a qual já
causa vertigens só o olhar para baixo, do alto de sua parede, de tão a pique e
alta que ela é. No fundo — um rumor e nada mais, naquela sombra de paz
que já está no vale —, ruge uma torrente.
[26] para leste. Segue o desenho da MV, em que você vê os quatro pontos cardeais e para o norte, Jiftael.
316. Adeus de Jesus a João de Endor e a Síntique.
1 de novembro de 1945.
316.1 A mesma estrada — a única, afinal, desta região que parece um
ninho de águia, no alto de um pico solitário — que retomam no dia
seguinte, perseguidos por um tempo chuvoso e frio, que dificulta o andar.
Deve descer da carroça também João de Endor, porque a estrada na
descida é mais perigosa que na subida, e se o burro, por si mesmo não
correria grande perigo, o peso que está na carroça, que a inclinação faria
correr todo para a frente, faz que o pobre animal se encontre em má
situação. E mal também se sentem os seus condutores, que devem, hoje, já
não mais suar para empurrar, mas muito mais para segurar o veículo, que
poderia despencar, provocando desventuras ou, no mínimo, a perda da
carga. A estrada é feia assim até à terça parte do seu comprimento, a
últimaem direção do vale. Depois, ela se bifurca, e um dos seus ramos se
dirige para o oeste, tornando-se mais cômoda e plana.
Param para descansar, enxugando-o suor, e Pedro recompensa o
burrinho, que é todo um frêmito de ânsia, sacudindo as orelhas e bufando,
por certo absorto em alguma profunda reflexão sobre a dolorosa condição
dos burros e sobre os caprichos dos homens que escolhem certas estradas.
Pelo menos Simão de Jonas atribui a considerações assim a expressão
pensativa do animal e, para acalmar-lhe o humor, pendura-lhe ao pescoço
um saco cheio de favas e, enquanto o burro vai mastigando o duro alimento
com ávido prazer, também os homens estão comendo pão com queijo e
bebendo o leite com que encheram também os odres.
A refeição terminou. Mas Pedro quer ir abeberar o “seu Antônio, que
bem merece mais honras do que César”, diz ele, e vai com um pequeno
balde, que tem sobre a carroça, buscar água numa torrente que se dirige
para o mar.
316.2– Agora, podemos ir… e iremos também a trote, pois penso que
além daquela colina seja tudo plano… mas depois não poderemos trotar.
Contudo, andaremos depressa. Vamos, João, e tu, mulher. Subi, e vamos.
– Eu também subo, Simão, e guio Eu. Vós todos acompanhai-nos… –
diz Jesus, logo depois que os dois subiram.
– Por quê? Estás sentindo-te mal? Estás tão pálido!…
– Não, Simão. Eu quero falar a sós com estes… –e mostra os dois, que
também estão empalidecidos, percebendo que chegou o momento do adeus.
– Ah! Está bem.Suba e nós te seguiremos
Jesus se assenta sobre a mesa, que faz de banqueta para o condutor, e
diz:
– Vem cá para o meu lado, João. E tu, Síntique, vem para perto…
João se assenta à esquerda do Senhor e Síntique a seu pés, quase na
beira da carroça, virando as costas para a estrada, conservando o rosto
levantado para Jesus. Assim colocada, sentada sobre os calcanhares,
enfraquecida, como se estivesse sendo oprimida por algum peso que a
deixasse extenuada, as mãos abandonadas sobre o regaço e cruzadas para
poder conservá-las firmes porque um tremor as sacode, o rosto cansado, os
belíssimos olhos de uma cor violeta-negra, como que embaçados por tanto
pranto derramado, à sombra do véu e do manto muito descidos, parece mais
uma imagem da Virgem da Piedade desolada. João, então!… Acho que se
no fim do caminho estivesse o seu patíbulo, ele estaria menos transtornado.
O burro se põe a dar passos, tão obediente e cuidadoso, que não obriga
Jesus a uma contínua vigilância. E Jesus se aproveita para abandonar as
rédeas e segurar as mãos de João e pôr a outra sobre a cabeça de Síntique.
316.3 – Meus filhos, Eu vos agradeço por toda a alegria que me tendes
dado. Este foi para Mim um ano coberto de flores de alegria, porque Eu
pude colher as vossas almas e tê-las diante de Mim a esconder de Mim as
feiuras do mundo, a perfumar o ar corrompido pelo pecado do mundo, a
infundir-me doçura e confirmar-me na esperança de que a minha missão
não é inútil. Marziam, tu, meu João, Hermasteu, tu, Síntique, e Maria de
Lázaro, Alexandre Misaque e outros ainda… As flores triunfais do
Salvador, que somente os retos de coração sabem sentir assim… Por que
estás sacudindo a cabeça, João?
– Porque Tu és bom, e me colocas entre os retos de coração. Mas o meu
pecado está sempre presente no meu pensamento…
– O teu pecado é o fruto de uma carne incitada por dois malvados. A
tua retidão de coração é o substrato do teu eu honesto, desejoso de coisas
honestas, desgraçado, porque elas te foram tiradas pela morte ou pela
malvadeza, mas nem por isso menos vivo, ainda que sob o acúmulo de
tantas dores. Bastou que a voz do Salvador descesse até o fundo onde
estava enlanguescendo o teu eu para que te pusesses de pé, sacudindo todo
o peso, para vires até Mim. Não é assim? Portanto, tu és um reto de
coração. Muito, muito mais reto do que outros que não tem o teu pecado,
mas têm outros muito piores, porque premeditados e obstinadamente
conservados vivos… .
Vós, pois, vós, as minhas flores do meu triunfo de Salvador, sede
benditos. Neste mundo obtuso e inimigo, que abebera de amargura e de
desgosto o Salvador, representastes o amor. Obrigado! Nas horas mais
penosas que neste ano Eu vos tive presentes para receber de vós consolação
e apoio. E nas coisas ainda mais penosas que terei, mais ainda vos terei
presentes. Até à morte. E comigo estareis pela eternidade. Eu vo-lo
prometo.
316.4 Eu vos confio os meus mais caros interesses, isto é, a propaganda
da minha Igreja na Ásia Menor, lá onde Eu não posso ir, porque aqui na
Palestina é o meu lugar de missão, e porque também a mentalidade atrasada
dos grandes de Israel por todos os meios me prejudicaria, se Eu fosse para
outro lugar além daqui. Assim, tivesse Eu outros Joãos e outras Síntiques
para os outros lugares, de modo que os meus apóstolos encontrassem o
terreno arado para nele espalharem a semente na hora que virá!
Sede doces e pacientes e, ao mesmo tempo, fortes para penetrar e
suportar. Encontrareis obtusidades e derisões. Não desanimeis por isso.
Pensai assim: “Nós comemos o mesmo pão e bebemos o mesmo cálice que
bebe o nosso Jesus.” Vós não sois mais do que o vosso Mestre, e não podeis
pretender ter melhor sorte. A melhor sorte é esta: participar daquilo que é
do Mestre.
Dou somente uma ordem: não vos acomodeis, não fiqueis querendo
encontrar resposta a esta separação que não é um exílio, como quer pensar
João, mas é antes um colocar-vos às soleiras da Pátria antes de todos os
outros, como servos formados, como nenhum outro o é. O Céu desceu sobre
vós como véu materno e o Rei dos Céus vos acolhe já em seu seio, vos
protege sob as suas asas de luz e de amor, como primogênitos da
desmesurada ninhada dos servos de Deus, do Verbo de Deus, que em nome
do Pai e do Eterno Espírito vos abençoa agora e para sempre.
E rogai por Mim, o Filho do Homem, que vai ao encontro de todas as
suas torturas de Redentor. Oh! que em verdade a minha Humanidade está
para ser triturada por tudo o que se pode pensar de mais amargo!… Rezai
por Mim. Eu vou ter necessidade das vossas orações[27]… Serão carícias…
Serão declarações de amor… Serão ajuda para não chegar a dizer: “A
humanidade toda virou-se para Satanás…”
316.5 Adeus, João. Demo-nos o beijo do adeus… Não chores assim.
Ainda que me arrancassem pedaços de minha carne, Eu ainda te teria
conservado, se não tivesse visto todo o bem, que desta separação vai
resultar para ti e para Mim. Um bem eterno.
Adeus, Síntique. Sim, beija, sim, as minhas mãos, mas pensa que, se o
sexo diferente me proíbe[28] beijar-te como uma irmã, à tua alma Eu dou o
meu fraterno beijo…
E esperai-me com o vosso espírito. Eu irei. Vós me tereis ao lado de
vossas fadigas e de vossas almas. Porque, se o amor para com o homem
encerrou a minha Natureza divina nesta carne mortal, não pôde, no entanto,
limitar sua liberdade. E Eu sou livre como Deus, para ir a quem merece ter
Deus consigo.
Adeus, meus filhos. O Senhor está convosco…
E se afasta, com força, do abraço apertado de João, que lhe comprime
as costas, e de Síntique, que se agarrou aos seus joelhos, e pula da carroça,
fazendo um sinal de adeus aos seus apóstolos, e sai correndo pela estrada,
por onde veio, veloz como um cervo perseguido…
316.6O burro parou, ao perceber que caíram por terra as rédeas, que antes
estavam sobre os joelhos de Jesus. E lá, parados, atônitos, lá estão os oito
apóstolos, olhando o Mestre, que vai se afastando cada vez mais.
– Ele estava chorando… –sussurra João.
– E estava pálido como um morto –murmura Tiago de Alfeu.
– Nem mesmo sua sacola Ele pegou… Lá está ela na carroça… –
observa o outro Tiago.
– E como é que Ele fará agora –pergunta Mateus.
Judas de Alfeu solta toda a sua voz forte para chamar:
– Jesus! Jesus! Jesus!…
O eco das colinas responde lá de longe: “Jesus! Jesus! Jesus!” Mas uma
curva da estrada absorve o Mestre, no meio do verde das árvores das
margens, sem que Ele nem se vire, para ver quem o está chamando…
– Ele foi-se embora… Não temos outra coisa a fazer, senão andar… –
diz, desolado, Pedro, subindo para a carroça, e pegando as rédeas, para
incitar o burrinho.
E a carroça entra pelo caminho, balançando, por entre aquele rumor
ritmado dos cascos ferrados e o pranto angustiado dos dois que,
abandonados no fundo da carroça, estão gemendo:
– Não o veremos mais, nunca. Nunca mais…
[27] Eu vou ter necessidade das vossas orações: necessidade não como um homem qualquer para suas necessidades de cada
espécie. Mas para sentir o seu espírito no consolo do amor de seus discípulos, expressa através da oração, “a Ele” e “por Ele”.
Assim dizem as notas de MV numa cópia datilografada, e acrescenta: Para evitar más interpretações explico: lembre-se que orar
é recordar-se de alguém, seja ele Deus ou ao próximo. Recordar-se de alguém é amar esse alguém. Jesus tinha o desejo de amor e
de consolação para compensar todo o ódio que o cercava. Mesmo agora, ele deseja que os homens devem se lembrar de rezar
para o mundo amá-lo para a sua própria saúde. Os dois registros de MV também se aplicam a outras etapas do trabalho em que
Jesus pede auto amor, oração, ajuda (por exemplo, em: 121.2 - 162.8 - 176.1 - 339.2 - 339.4 última linha - 355.4 - 356.6 - 395.3 -
415.5 - última linha 455.4 - 478.11 - 517.2/3 - 520.11 - 528.2 - 587.7 - 599.4 - 600.40 - 602.9.10.13.16 - 608.9 últimas linhas).
Significativa com as seguintes palavras de Jesus em 478.11: “… o Filho do homem tem um coração… e esse coração precisa de
amor…”.
[28] me proíbe, não porque era a coisa em si ilícita, mas porque era conveniente para a utilidade dos outros, de acordo com o
conceito expresso por São Paulo em 1 Coríntios 6,12; 10,23-24. No entanto, alguns contatos com mulheres (outro exemplo é
519.7: impedidas de abraçá-Lo porque eram mulheres) também pode ser considerada proibida pelos comentários rabínicos da
Sagrada Escritura, que, talvez, favoreceu o desprezo insensato, como aquele expresso por um escriba em 525.8. Jesus resgata a
mulher do seu estado de inferioridade, por exemplo, em 511.3 e 525.8.
317. A oração de Jesus pela salvação de Judas
Iscariotes.
2 de novembro de 1945.
317.1 Jesus está de novo aos pés do maciço sobre o qual está construída
Jeftael. Mas Ele não está na estrada mestra (digamos assim), isto é, o
caminho por onde passaram antes com a carroça. Ele está indo por uma
trilha de cabritos, muito escarpada, cheia de estilhaços e de rachaduras
profundas, como se tivesse sido colada ao monte, ou riscada por alguma
unha descomunal, limitada por um precipício, que se abre a pique sobre
novas profundezas, no fundo das quais espuma raivosa a torrente. Pôr um
pé em falso num lugar destes é o mesmo que precipitar-se sem esperança,
tendo-se que ir pulando de uma moita de espinheiro ou de outros arbustos
selvagens em outra, moitas nascidas não sei como, por entre as fendas do
rochedo, e não conservando a linha vertical própria das plantas, mas uma
linha oblíqua, ou até horizontal, pelas quais se delimita o seu habitat. Pôr
um pé em falso num lugar destes quer dizer fazer-se dilacerar por todos os
pentes espinhosos destes arbustos, ou ficar com os rins despedaçados nos
choques contra os troncos rígidos, que se estendem sobre o abismo. Pôr um
pé em falso quer dizer ser rasgado pelas pontas agudas das pedras que se
projetam das paredes do precipício. Pôr um pé em falso aí quer dizer chegar
sangrando e todo quebrado, às águas espumantes da torrente e ir afogar-se
nelas, ficando submerso sobre um leito de pedras pontudas, batidas por
águas violentas.
Apesar de tudo, Jesus vai percorrendo este caminho, este arranhão feito
na rocha, e tornado ainda mais perigoso pela umidade, que sai vaporizada
da torrente, e escorre da parede do lado de cima e a pique, e eu diria que até
ligeiramente côncava.
Eu me esforço para mostrar ao leitor este lugar[29] infernal no desenho.
Ele vai indo devagar, cauteloso, medindo os passos sobre as pedras
aguçadas, algumas delas soltas, obrigado algumas vezes a ir passando rente
à parede, de tanto que o caminho se estreita. E, para conseguir passar por
pontos que são sobremaneira perigosos, Ele precisa agarrar-se aos ramos,
que estão pendurados da parede. Ela continua pelo lado norte, chegando
mais adiante ao lado sul, no qual o monte, depois de ter descido
perpendicularmente do cume, torna-se côncavo mais do que em outros
pontos, dando mais comodidade pela largura do caminho, mas, em
compensação, tirando-a, por causa da altura, tanto que em certos pontos,
Jesus precisa andar de cabeça inclinada, para não bater a testa no rochedo.
317.2 Talvez Ele tenha a intenção de parar ali, onde o caminho termina
bruscamente, como se lá houvesse algum desmoronamento. Mas,
observando, Ele vê que, por baixo da saliência, há uma caverna, mais uma
fenda no monte, do que uma caverna, e para lá Ele desce, indo por cima das
pedras desmoronadas. Jesus entra. Há uma rachadura logo no começo, com
uma ampla gruta em seu interior, como se o monte tivesse sido escavado
muito tempo antes, e a golpes de picareta, não se sabe para quê, e vê-se
nitidamente onde às curvas naturais da rocha associaram-se as produzidas
pelo homem, o qual, no lado oposto à rachadura da entrada, abriu uma
espécie de longo corredor, em cujo fundo se nota, numa fraca claridade, as
formas de uns bosques distantes, e tudo nos faz ver que o corredor penetra
do sul para o leste, atravessando o esporão do monte.
Jesus vai entrando por aquele caminho subterraneo, semi-escuro e
estreito, e o percorre até chegar à saída, que está por cima da estrada, por
onde passaram Ele, os apóstolos e a carroça com que eles subiram para
Jeftael. Os montes, que contornam o lago da Galiléia, estão à frente dele, do
outro lado do vale e na direção noroeste, onde está brilhando o grande
Hermon, em sua veste de neve. Uma tosca escadinha está escavada num dos
lados do monte, que aqui não é muito vertical, nem nas subidas, nem nas
descidas, e esta escadinha conduz àquele caminho estreito, que passa pelo
vale, e chega até o cume, onde está o povoado de Jeftael.
Jesus está contente com a exploração que fez. Ele volta para trás, até à
ampla caverna, procura nela um ponto mais abrigado, onde amontoa as
folhas secas, levadas pelo vento para dentro da caverna. É uma cama bem
pobre, uma camada de folhas secas, postas entre o seu corpo e o solo nu e
gelado… Ele se deixa cair em cima daquilo, e lá fica estendido e quieto,
com as mãos por baixo da cabeça, o olhar fixado na abóbada rochosa,
absorto, eu diria, como alguém que está atordoado por ter feito algum
grande esforço ou passado alguma dor superior às suas forças.
317.3Depois, lágrimas lentas, mas sem soluços, começam a descer de
seus olhos e a cair dos dois lados do rosto, sumindo por entre os cabelos,
passando por perto das orelhas, e desaparecendo pelo meio da folhagem
seca…
Fica assim chorando por longo tempo, sem falar e sem mover-se…
Depois se assenta e, com a cabeça por entre os joelhos, levantados e
abraçados pelas mãos, que estão cruzadas, chama, com toda sua alma, a
Mãe, que está distante:
– Minha Mãe! Minha Mãe! Minha eterna doçura! Oh! Minha Mãe! Oh!
Minha Mãe! Oh! Minha Mãe! Como Eu gostaria que estivesses aqui perto!
Por que é que não te tenho sempre, ó meu único conforto de Deus?
Somente a gruta profunda é que responde, com o murmúrio de um eco
imperfeito, aos seus soluços, e parece chorar e soluçar também ela, em suas
arestas, em suas pedras, e as poucas e ainda pequenas estalactites, que estão
penduradas a um canto, que talvez seja o mais exposto à força da circulação
das águas interiores.
O pranto de Jesus continua, ainda que calmo, como se só ter invocado
sua Mãe já o tivesse consolado, e lentamente se transformado em um
diálogo.
– Eles lá se foram… E por quê? E por quem? Por que Eu tive que dar
esta dor? E por que me haverão de dá-la, se com ela o mundo já me enche o
dia?… Judas!…
Quem saberá por onde anda agora o pensamento de Jesus, que está
levantando a cabeça dentre os joelhos, e olhando para diante de Si, com uns
olhos arregalados e um rosto tenso de quem está absorvido por visões
espirituais do futuro ou por uma profunda meditação. Ele não chora mais
chamando, mas sofre visivelmente. Pois parece estar respondendo a um
interlocutor invisível. E, para melhor fazê-lo, Ele se põe de pé.
– Eu sou homem, meu Pai. Eu sou homem. A virtude da amizade,
ferida e dilacerada em Mim, se torce e se lamenta dolorosamente…
Eu sei que devo sofrer tudo. Eu sei. Como Deus, Eu sei, e, como Deus,
Eu quero para o bem do mundo, também como homem. Eu sei, porque o
meu espírito divino o comunica à minha humanidade. E até como homem
Eu quero, para o bem do mundo. Mas, que dor, ó meu Pai!
Esta hora é muito mais penosa do que aquela que Eu vivi com o teu e
com o meu Espírito no deserto[30]… E é bem mais forte a tentação presente
de não amar e de não suportar ao meu lado este ser viscoso e tortuoso, que
tem o nome de Judas, a causa da grande dor que me abebera e me sacia, e
que tortura as almas às quais Eu já havia dado a paz.
317.4 Pai, Eu sinto. Tu te fazes severo com o teu Filho à medida que Eu
me vou me aproximando do fim desta minha expiação em favor do gênero
humano. Sempre mais vai-se afastando de Mim a tua doçura, e o teu rosto
se mostra severo para com o meu espírito, que vem sendo sempre rejeitado
em sua parte mais profunda, naquela em que a humanidade, atingida pelo
teu castigo, vem gemendo, há milênios.
Para Mim era doce o sofrer, era doce o caminho para o início da
existência, doce também, quando de filho do carpinteiro Eu me tornei
Mestre do mundo, afastando-me de minha Mãe para dar-te, ó Pai, ao
homem decaído. Era-me doce também, em comparação com esta hora, a
luta com o Inimigo, na Tentação no deserto. Eu o enfrentei com a galhardia
de um herói que tem força total… Oh! Meu Pai!… como agora as minhas
forças estão sob o peso do desamor e de muitas e muitas coisas demais…
Satanás, Eu sabia, depois de terminada a tentação, se teria ido embora,
e de fato se foi, e os anjos vieram consolar o teu Filho feito homem, porque,
como tal é que Ele era objeto da tentação do Demônio.
Mas agora ela não cessará, quando tiver passado esta hora, na qual o
Amigo está sofrendo pelos amigos, por Ele mandados para longe, e pelo
amigo perjuro, que o prejudica, tanto de perto como de longe. Ela não
cessará. Não virão mais os teus anjos consolar-me nessa hora. Mas quem
virá vai ser o mundo. Com todo o seu ódio, com sua derisão, sua
incompreensão. Mas virá, e estará sempre mais perto, mais tortuoso e
viscoso, o perjuro, o traidor, o vendido a Satanás. Meu Pai!…
É verdadeiramente um grito dilacerante de espanto, de invocação, e
Jesus se agita, o que me faz pensar na hora do Getsêmani.
– Pai, Eu sei. Eu o vejo… Enquanto Eu aqui sofro e sofrerei, Eu te
ofereço o meu sofrimento pela conversão deles, e por aqueles, que me
foram arrancados dos braços, e que vão indo com seus corações
traspassados, para os seus destinos, e ele se vende, para tornar-se maior do
que Eu, o Filho do homem!
Sou Eu, não é verdade, o Filho do homem? Sim. Mas não sou o único a
ser. A humanidade, esta Eva prolífica, gerou os seus filhos e, se Eu sou o
Inocente Abel, não falta um Caim entre os filhos da humanidade. E se Eu
sou o Primogênito, porque Eu o sou, como teriam devido ser os filhos do
homem, sem mancha diante de teus olhos, ele, que foi gerado no pecado, é
o primeiro daquilo que se tornaram depois aqueles que morderam o fruto
envenenado. E agora, não saciados por terem em si os estímulos
repugnantes e blasfemos da mentira, da falta de caridade, a sede de sangue,
a avidez de dinheiro, a soberba e a luxúria, se endemoninharam, para serem,
em vez de homens, que podiam chegar a ser anjos, a ser homens que se
tornam demônios[31]… E Lúcifer quis ser semelhante a Deus, e por isso foi
expulso do Paraíso e, transformado em demônio, foi morar no Inferno.
317.5 Mas, meu Pai! Oh! Meu Pai! Eu o amo… Eu o amo ainda. Ele é um
homem… É um daqueles pelos quais Eu te deixei… Pela minha
humilhação, salva-o… concede-me que Eu possa redimi-lo, Senhor
Altíssimo! Esta penitência seja mais por ele do que pelos outros! Oh! Eu sei
qual a incongruência do que Eu estou pedindo, Eu que sei tudo o que
existe!… Mas, meu Pai, deixa de ver, por um momento, em Mim o teu
Verbo! Contempla somente a minha Humanidade do Justo na tua graça, do
Homem que não conhece o futuro, e que pode iludir-se… o Homem que,
não conhecendo o inevitável fato, pode rezar, com esperança absoluta, para
conseguir arrancar-te o milagre. Um milagre! Um milagre concedido a
Jesus de Nazaré, a Jesus de Maria de Nazaré, a nossa eterna amada! Um
milagre que profane o que está escrito, e o cancele! A salvação de Judas!
Ele viveu a meu lado, bebeu as minhas palavras, participou comigo das
refeições, dormiu sobre o meu peito… Não ele. Não seja ele o meu
Satanás!…
Eu não te peço para não ser traído… Isso terá que ser, e será… para que
sejam, pela minha dor de traído, anuladas todas as mentiras, como pela
minha dor de vendido, sejam expiadas todas as avarezas, como pelo meu
tormento de blasfemado sejam reparadas todas as blasfêmias, como por não
ser acreditado seja concedida a fé àqueles que sem fé estão e estarão, pela
minha tortura sejam limpas todas as culpas da carne… Mas, te peço: não
ele, não ele, Judas, o meu amigo, o meu apóstolo!
Nenhum Eu quereria que fosse o traidor… Nenhum… nem mesmo o
que estivesse mais longe, no meio dos gelos do Norte, ou por entre os
calores da zona tórrida… Eu quereria que o Sacrificador fosse Tu
somente… como em outras vezes já o foste, incendiando[32] os holocaustos
com os teus fogos… Mas, posto que devo morrer pela mão do homem, e
que mais do que o carrasco real, será carrasco o amigo traidor, a podridão
que terá em si o fedor de Satanás, ele já o aspira em si, para ser semelhante
a Mim no poder… assim ele pensa, em seu orgulho e em sua luxúria; já que
pela mão do homem Eu devo morrer, ó Pai, concede-me que não seja aquele
a quem Eu dei o nome de amigo, e que é amado como tal, que não seja ele o
traidor.
Multiplica, Pai meu, as minhas torturas, mas dá-me a alma de Judas…
Coloco esta oração sobre o altar da minha Pessoa vítima… Meu Pai, acolhe
esta oferta!…
317.6 O Céu está fechado e mudo!… É, então, este o horror que haverei
de ter comigo até à Morte? O Céu está fechado e mudo!… Será, então, este
o silêncio e o cárcere onde entregarei o meu espírito? O Céu está fechado e
mudo!… Esta será então, a suprema tortura do Mártir?…
Pai, seja feita a tua vontade, e não a minha… Mas, pelos meus
sofrimentos, oh! Pelo menos isto! Pelos meus sofrimentos, dá paz e
esperança ao outro mártir de Judas, João de Endor, ó meu Pai… Ele
realmente é melhor do que muitos. Ele percorreu um caminho que poucos
sabem e saberão. Para ele tudo da Redenção já está cumprido. Dá-lhe, pois,
a tua paz plena e completa, para que Eu o tenha na minha glória, quando o
que se refere a Mim se tiver completado, para tua honra e obediência…
Meu Pai!…
Jesus pouco a pouco se tinha ido pondo de joelhos, e agora está
chorando com o rosto no chão, rezando, enquanto a luz de um curto dia de
inverno vai diminuindo prematuramente na caverna escura, enquanto o
barulho da torrente parece crescer, como uma voz tanto mais forte, quanto
mais vai escurecendo a sombra no vale…
[29] lugar, de que MV fez o esboço que reproduzimos. No centro está a montanha de Jiftael com o pico Jiftael, que é acessado a
partir do oeste pela trilha de mulas. Para o sudoeste é o caminho para Ptolemaida e Sudeste o caminho feito por Jesus, sob a qual
é a ravina com um córrego no fundo.
[30] no deserto, 46.3/10. No que diz respeito a essa tentação, MV faz a seguinte observação numa cópia datilografada: luta entre
as duas naturezas unidas em Cristo. Como Deus só podia amar. Como o homem não podia deixar de sentir desprezo pelo falso
discípulo. Na passagem para o fim de sua missão redentora, intuia a preparação do abandono paterno, que teria sido total nas
horas da Paixão. O grande solitário e desconhecido, que era o Verbo que se fez carne, vivendo entre os homens, sempre se sentiu
“sozinho e desconhecido”. Apenas a mãe o conhecia realmente e foi sua companheira perfeita. Nos outros, quanto mais perto do
momento da redenção, mais cresciam os mal-entendidos, o ódio ou o abandono. A paixão sem derramamento de sangue, mas
sempre paixão. E ainda, no que diz respeito à oração que se segue em 317.5, MV comenta: Esta oração ao Pai, não surpreenda
aos supercríticos. É o evangelho que Cristo foi tentado “como homem” no deserto e sofreu até suar sangue em sua luta de
Homem, um Homem só não mais suportado pela Divindade, no Getsêmani, na noite de Quinta-Feira Santa. Esta é outra das suas
horas de homem “real”, totalmente homem, o amor e sujeito ao sofrimento humano, Nele perfeita, porque perfeita entre todos os
homens. Das tentações da natureza humana de Jesus, unidos à Sua natureza divina, tratam também as notas: 46.5 - 47.6 - 54.5 -
69.5 - 80.10 - 174.9 - 203.12 - 527.7 - 540.12 - 567.20/23 - 602.17 - 603.6/7 - 610.16.
[31] demônios... A frase seguinte parece obtida com palavras novas de: Isaías 14,12-15.
[32] incendiando, como em Levítico 9,24; Juízes 6,21; 1 Reis 18,38; 1 Crônicas 21,26; 2 Crônicas 7,1.
318. Na barca, de Ptoleimada para Tiro.
3 de novembro de 1945.
318.1 A cidade de Ptolemaida parece que vai ficar achatada por um céu
baixo, um céu de chumbo, sem ter nenhum respiradouro no azul, sem nem
mesmo um pouco de claridade para variar. Não, nem uma nuvem, um cirro,
um nimbo, que vá velejando solitário sobre a capa fechada do firmamento.
O que se vê é uma abóbada única, convexa e pesada, como uma tampa que
esteja para descer sobre uma caixa. É uma tampa enorme, de estanho sujo,
enfumaçado, opaco e opressivo. As casas brancas da cidade parecem de
gesso, um gesso grosseiro, não trabalhado, triste, e ainda mais com esta
luz… até o verde das plantas sempre verdes parece amortecido, triste, e elas
estão lívidas ou espectrais, bem como os rostos das pessoas, desbotadas
parecem as cores das vestes. A cidade está abafada sob o peso de um vento
do sudeste o Siroco.
O mar responde ao céu igualmente, com um mesmo aspecto de morte.
É um mar sem confins, parado e deserto. Nem da cor de chumbo ele é, e
seria errado dizê-lo. É uma extensão sem limite, e eu diria sem rugas,
formada por uma substância oleosa, cinzenta, como devem ser os lagos de
petróleo bruto, ou melhor, se fosse possível haver lagos de uma prata
misturada com fuligem, com cinza, para fazer de tudo isso uma pomada de
um brilho especial de uma escama quartzífera e que, contudo, não parece
brilhar, pois é morta e opaca. Este seu esplendor não se percebe senão pela
dificuldade que com ele nosso olho sente, quando fica ofuscado por este
cintilar de madrepérola escura, que nos cansa, sem produzir em nós alegria.
Não há nenhuma onda, a perder de vista. O olhar chega até o horizonte, até
lá onde este mar morto toca no céu morto, sem ver um só movimento de
onda. Mas logo se compreende que estas águas não estão solidificadas, pois
há um pequeno rumor por baixo delas e que mal é percebido na superfície
sobre o brilho sujo das águas. Está tão morto, que à margem, as águas estão
ali como as águas de um tanque, sem o menor sinal de onda nem de ressaca.
E a areia está claramente marcada pela umidade ali, a um metro ou pouco
mais da água, dizendo-nos com isso que não houve movimento das ondas
junto às margens há muitas horas. É uma calmaria total.
Os navios, os poucos navios, que estão no porto, não estão fazendo
nenhum movimento. Parecem pregados ali por alguma substância sólida, de
tão imóveis que estão, e aqueles poucos pedaços de pano, que estão
estendidos nas altas pontes, nem parecem ser roupas ou insígnias, pois tudo
está pendurado e inerte.
318.2 Do beco de um bairro popular do porto vêm vindo para a beira-mar
os apóstolos com os dois que vão para Antioquia. Não sei que fim eles
deram ao burro e à carroça, pois não estão aí. Pedro e André vêm trazendo
um baú, enquanto Tiago e João vêm trazendo o outro e Judas de Alfeu fez
um feixe com as peças do tear desmontado, e o vem trazendo nas costas, e
Mateus, Tiago de Alfeu e Simão Zelotes se carregaram com as sacolas de
todos, compreendendo também a de Jesus. Síntique só traz nas mãos um
cesto de alimentos. João de Endor não traz nada.
Eles vão apressados, pelo meio das pessoas que estão voltando do
mercado, em sua maior parte, com as coisas que compraram ou, se são
marinheiros, vão andando depressa para o porto para o trabalho de carga ou
descarga dos navios, ou para fazer reparos neles se houver necessidade.
Simão de Jonas está bem informado. Ele já deve estar sabendo por onde
ir, porque não fica olhando para os lados. Todo vermelho, ele está
segurando por baixo, por meio de um nó corrediço, a corda colocada de seu
lado no baú, para servir de alça, e para o lado de André também, com sua
ajuda. E pode-se ver, tanto nestes dois, como nos companheiros Tiago e
João, o esforço que estão fazendo pelo peso que vão levando, e isso se vê
pela intumescência dos músculos das barrigas de suas pernas e dos braços,
pois eles, para ficarem mais livres, estão só com a veste de baixo, curta e
sem mangas, estando assim em tudo semelhantes aos carregadores do porto,
que se apressam em ir das lojas para os navios, ou vice-versa, em suas
operações. Por isso, eles vão passando completamente inobservados.
318.3 Pedro não se dirige para os grandes bancos de carga e descarga,
mas, por uma passarela chiadeira, vai para o banco menor de todos, em
forma de arco, que faz uma espécie de segundo molhe, muito mais estreito,
para os barcos de pesca. Pedro olha, e grita.
Responde-lhe um homem, levantando-se do fundo de uma barca,
bastante ampla:
– Queres mesmo partir? Olha, que a vela hoje não serve. E terás que
viajar a poder de remos.
– Servirá para aquecer-me e dar-me apetite.
– Mas, tu és mesmo capaz de navegar?
– Ora, homem! Eu ainda não sabia dizer “mamãe”, e já o meu pai me
tinha posto na mão a sondareza e as cordas das velas. Nestas coisas eu já
rangia os meus dentes de leite…
– É porque sabes de uma coisa? É porque esta barca é tudo o que eu
tenho, sabes?
– Já me disseste isto desde ontem… Não sabes outra cantilena?
– Eu sei que se tu vais ao fundo, e eu ficarei arruinado e…
– Arruinado ficarei eu, que nela perderei a pele, e não tu!
– Mas nela estão meus bens, o meu pão, a minha alegria e a de minha
esposa. Nela está o dote de minha menina, e…
– Ufa! Escuta, não me fiques beliscando os nervos, que já estão com
uma câimbra… uma câimbra mais terrível do que a dor dos nadadores. Eu
já te dei tanto, que até poderia dizer: “eu te comprei a barca”, pois não
diminuí nada do tanto que tu pedias, e um ladrão marítimo é que és, e eu te
mostrei que entendo de remo e de vela mais do que tu, e tudo estava
combinado. Agora, se a salada de alho, que comeste ontem de tarde faz que
tua boca fique fedendo como uma sentina, e te deu alguns pesadelos e
remorsos, isso a mim não importa. O negócio foi feito com duas
testemunhas, uma tua, e a outra minha, e basta. Salta para fora daí, seu
caranguejo peludo, e deixa-me entrar.
– Mas eu… pelo menos uma garantia… Se tu morres, quem é que paga
a minha nave?
– A nave? Ainda chamas de nave a esta abóbora despolpada? Oh!
Homem miserável e soberbo! Mas eu te darei paz, contanto que tu te
decidas: eu te darei outras cem dracmas. Com estas e com aquilo que
quiseste de aluguel, já poderás fazer outras três toupeiras como esta… E
não o contrário: nada de dinheiro. Serias capaz de te fazeres de doido, e
quereres mais de volta. Porque voltarei, fique certo. Talvez para fazer-te a
barba com uns sopapos, se me tiveres dado uma barca com defeitos na
quilha. Eu te darei em penhor o burro e a carroça… Não! Isso também não.
O meu Antônio, eu não to confio. Serias capaz de mudar de ofício e, de
barqueiro, poderias passar a ser carroceiro, e sumir, enquanto eu estiver
fora. O meu Antônio vale dez vezes a tua barca. Melhor é dar-te dinheiro.
Mas, olha bem: é uma garantia, e tu ma devolves na volta. Entendeste, ou
não? Olá, pessoal da nave, quem aí é de Ptolemaida?
De um navio que está perto, se mostram três rostos:
– Nós.
– Vinde aqui...
– Não, não, não é necessário. Façamos entre nós, suplica o barqueiro.
Pedro olha para ele com um olhar indagador, raciocina e, vendo que o
outro está deixando a barca, e se apressando em colocar nela o tear, que
Judas tinha posto no chão, e murmura:
– Eu entendi!
Grita para os outros do navio:
– Não é preciso mais. Ficai aí.
E depois tira de uma pequena bolsa umas moedas, as conta e beija,
dizendo:
– Adeus, minhas queridas! –e as dá ao barqueiro.
– Por que foi que as beijaste? –pergunta ele assustado.
– É um costume. Adeus, ladrão. Coragem, vós. Tu tens pelo menos a
barca. Tu as contarás depois. E verás que estão certas. Não quero ter-te por
companheiro no inferno, sabes. Eu não roubo. Iça, vamos.
E puxa para bordo o primeiro cofre. Depois ajuda os outros a
transportar o deles, as sacolas e tudo mais, e vai equilibrando os pesos, e
colocando os objetos de tal modo que deixem passagem para as manobras e,
depois dos objetos, as pessoas.
– Estás vendo como eu sei fazer as coisas, sugador? Solta agora as
amarras, e vai para o teu destino.
E, junto com André, ele estende o remo contra o molhe, para afastar-se
dele.
318.4 E, tendo pegado o fio da correnteza, dá o timão a Mateus, dizendo-
lhe:
– Até que ponto tu, que vinhas para tirar-nos a pele como se devia fazer,
e nos vinhas pescar a nós que estávamos pescando, já estás sabendo segurar
sofrivelmente o timão.
E depois se assenta na proa, ficando de costas para ela, no primeiro
banquinho, tendo André a seu lado. Diante dele, estão sentados Tiago e
João de Zebedeu, que vogam com um ritmo regular e forte. A barca vai sem
sacudidelas e velozmente, por mais que esteja bem pesada, passando rente a
grandes navios, de cujos bordos descem palavras de elogio para os peritos
remadores.
Depois, já estão no mar aberto, fora dos diques… Ptolemaida passa
deslizando, diante dos olhos deles, que estão partindo, estendida como ela é
ao longo da beira-mar, e com o seu porto ao sul da cidade.
Na barca, o silêncio é completo. Ouve-se somente o chiar dos remos
nas cavilhas. Passado um bom tempo, e tendo já Ptolemaida ficado para
trás, diz Pedro:
– Vai bem. Mas, se houvesse um pouco de vento… Mas não há nada!
Nem um fiapo…
– Tomara que não chova… –diz Tiago de Zebedeu.
– Hum! Mas parece que é o que quer vir.
Há um silêncio, e o trabalho dos remos continua por muito tempo.
Depois, André pergunta:
– Por que foi que beijaste as moedas?
– Porque quem parte se despede para sempre. Eu não as verei mais. E
isso me desagrada. Eu preferiria dá-las a algum infeliz… Mas paciência! A
barca realmente é boa, e forte e bem construída. É a melhor de Ptolemaida.
Foi por isso que eu atendi às pretensões de seu dono. E também para não ter
que ficar ouvindo muitas perguntas sobre qual o lugar para onde se vai. Por
isso é que eu lhe disse: “Vamos fazer compras no jardim branco”… Ai, ai!
Está começando a chover. Cobri-vos, vós que o puderdes fazer, e tu,
Síntique, dá o ovo a João. Agora é a hora… E ainda mais, porque, com um
mar assim, nada fica se movendo no estômago… E Jesus, que estará
fazendo? E que me fará? Ele está sem roupa e sem dinheiro. Mas, onde será
que Ele está, agora?
– Certamente que Ele está rezando por nós –responde João de Zebedeu.
– Está bem. Mas onde?
Ninguém sabe dizer onde. E a barca vai navegando à beira-mar, pesada
e cansativamente, por baixo de um céu de chumbo e por cima de um mar de
betume cinzento, por entre uma chuvinha fina como uma névoa, incômoda
como umas cócegas prolongadas. Os montes que, depois de uma região de
planícies, tornam a aproximar-se do mar, vão ficando mais perto, lívidos,
por causa desse ar nebuloso.
318.5 – Naquele lugar vamos parar, a fim de descansar e comer –diz
Pedro, que é incansável na voga. E os outros confirmam o que ele diz.
Chegaram ao lugar. É um pequeno amontoado de casas de pescadores,
situado ao abrigo de uma saliência do monte, que se estende para o rumo do
mar.
– Aqui não se pode desembarcar. Não se alcança o fundo –resmunga
Pedro–. Está bem. Iremos comer aqui mesmo onde estamos.
E de fato os remadores comem de boa vontade e, sem vontade, os dois
exilados. A chuva recomeça e pára, alternativamente. O lugar é
despovoado, parecendo que aqui não mora ninguém. Contudo, há uns
pombos voando de uma casa para outra, e há umas roupas estendidas nas
varandas, e tudo isso nos diz que por aqui mora gente. Finalmente aparece
no caminho um homem seminu, que está indo para uma pequena barca, que
foi puxada para a margem.
– Ei! Homem! És pescador –grita Pedro, fazendo um funil com as
mãos.
– Sim.
E este sim chega muito fraco de volta, por causa da distância.
– Que tempo irá fazer?
– Mar de ondulação lenta, daqui a pouco. Se não és daqui, eu te digo
que vás logo para lá do cabo. Do outro lado, a onda é mais tranqüila,
especialmente se fores para perto da beira, e podes ir, porque lá o mar é
fundo. Mas, vai logo…
– Sim. A paz esteja contigo!
– Paz e felicidade para vós.
– Força, então –diz Pedro aos companheiros–. E Deus esteja convosco.
– Isto é certo. Jesus com certeza está rezando por nós –responde André,
recomeçando a remar.
Mas a onda longa aqui já se formou, e ela empurra e atrai a pobre
barca, cada vez que vem, enquanto a chuva começa a engrossar… e um
vento, que vem com rajadas, se une a ela para torturar os pobres
navegantes. Simão de Jonas o presenteia com todos os epítetos mais
pitorescos, porque é um vento mau, que não pode ser usado pelo barco que
está com vela, e que procura empurrar a barca para cima dos escolhos do
cabo, que já está próximo. A barca se esforça para navegar na curva deste
pequeno golfo, que é escuro como uma tinta. Vão remando, remando, já
cansados, corados, apertando os dentes, sem desperdiçar nem um
pouquinho de suas forças com palavras. Os outros, sentados defronte
deles, — eu os vi pelas costas — estão calados, mudos, debaixo de uma
chuva incômoda, tendo João e Síntique no centro, perto do mastro da vela, e
atrás deles os filhos de Alfeu, e, por último, Mateus e Simão, que lutam
para segurarem certo o timão, a cada golpe das ondas.
318.6 Dobrar o cabo é uma empresa difícil. Mas, enfim, ela terminou… E
um pouco de paz foi concedido aos remadores, que devem estar muito
cansados. Eles estão falando em irem refugiar-se em algum pequeno
povoado, para lá do cabo. Mas predomina o conceito de que se deve
obedecer ao Mestre, mesmo quando se vai contra o bom senso. Pois Ele
disse que é preciso chegar a Tiro em um só dia.. E eles lá se vão…
O mar se acalma de repente. Eles notam o fenômeno e Tiago de Alfeu
diz:
– É o prêmio da obediência.
– Sim. Satanás foi-se embora, porque não conseguiu fazer-nos
desobedecer –confirma Pedro.
– Mas chegaremos a Tiro de noite. Isto que aconteceu atrasou-nos
muito… –diz Mateus.
– Não faz mal. Vamos dormir, e amanhã procuraremos ir encontrar a
nave –responde Simão Zelotes.
– Mas depois a encontraremos?
– Jesus já disse. Portanto, a encontraremos –diz Tadeu, com segurança.
– Podemos levantar a vela, meu irmão –observa André–. Agora o vento
está bom, e iremos depressa.
De fato, a vela já se vai enfunando, ainda não muito, mas o tanto que já
torna muito menos necessário remar, e a barca já vai deslizando, como se
tivesse ficado mais leve, indo para Tiro, cujo promontório, ou melhor, cujo
istmo já está mostrando sua cor branca, lá ao norte, nestas últimas horas do
dia.
E a noite vem chegando rápida. Parece estranho, depois de um céu
fosco por tanto tempo, verem-se as estrelas, apontando com uma
imprevisível claridade, e a Ursa cintilando muito lúcida, com os seus astros,
enquanto o mar também adquire luz por meio de um raiar plácido da lua,
tão claro, que fica parecendo que está para raiar a aurora, depois de um dia
penoso, sem o intervalo de uma noite, em seguida.
318.7 João de Zebedeu levanta o rosto para o céu, olha e sorri, e de
improviso, abre a boca para cantar, acompanhando o movimento do remo
com a estrofe, ritmando esta por aquele:

– Ave, Estrela da Manhã,


ó jasmim da noite escura,
luar de ouro do meu Céu,
ó Mãe Santa de Jesus.
Em ti espera o navegante,
Contigo sonhando morre,
Brilha, Estrela Santa e pia.
Para quem te ama, ó Maria!…

Canta, em sua voz clara de tenor, o bem-aventurado.


– Mas, que é que estás fazendo? Nós estamos falando de Jesus, e tu
falas de Maria –pergunta-lhe o seu irmão.
– Ele está nela, e Ela nele. Mas Ela está aqui, porque aqui Ele esteve…
Deixa-me cantar…
E ele continua cantando e arrastando os outros…
Chegam assim a Tiro, e é cômodo o desembarque no mais pequenino
dos portos, o do sul do istmo, vigiado pelas lâmpadas penduradas em
muitas barcas, e não é negada a ajuda, aos recém chegados por parte dos
presentes.
Enquanto Pedro e Tiago ficam na barca, para vigiarem os báus, os
outros, com um homem de uma outra barca, vão para o albergue, a fim de
descansarem.
319. Partida de Tiro
no navio do cretense Nicomedes.
4 de novembro de 1945.
319.1 Tiro está despertando, por entre rajadas do vento do nordeste. O mar
está todo risonho, com suas pequenas ondas branco-amarelas, que
resplendem, agitado por baixo de um céu também azul, com cirros brancos,
que estão lá nas alturas, assim como cá em baixo a espuma das ondas, que
estão em movimento. O sol também está gostando deste dia sereno, depois
de tantos dias cinzentos de mau tempo,
– Agora compreendi –diz Pedro, pondo-se em pé na barca, onde ele
dormiu–. É hora de mover-se. E “ele” (Pedro mostra o mar, que está
entrando calmamente pelo porto adentro) nos deu a água lustral…
Hum!Vamos agora fazer a segunda parte do sacrifício… Dize-me, Tiago:
Não te parece mesmo que estamos levando duas vítimas para o sacrifício?
A mim, parece que sim.
– A mim também, Simão. E agradeço ao Mestre pela confiança que Ele
deposita em nós. Mas… Eu nunca teria querido a ver tanta dor. Eu nunca
teria pensado que haveria de ver isso…
– Eu também não… Mas… Sabes de uma coisa? Eu acho que o Mestre
não teria feito isso, se o Sinédrio não tivesse metido o nariz no assunto…
– De fato, Ele disse… Mas, quem é que terá levado certas coisas ao
conhecimento do Sinédrio? Isto é o que eu gostaria de saber…
– Quem teria sido?! Ó Deus eterno, faze-me calar, e faze que eu não
fique pensando! Eu já fiz este voto, para afastar esta suspeita que me
tortura. Ajuda-me, Tiago, a não ficar pensando. Fala-me de outras coisas.
– Mas, falar-te de quê? Do tempo?
– Sim, pode ser.
– Mas, é que de mar eu pouco entendo…
– Eu creio que vamos dançar –diz Pedro, olhando para o mar.
– Naão! As ondas são miúdas. Mas não fiques brincando. Ontem estava
mais feio. Olhado lá do alto da nave, deverá ser bonito todo esse mar
movimentado assim. João vai gostar dele. Ele o fará cantar.
319.2Qual será o navio?
Ele também se põe de pé para observar os navios colocados do outro
lado e já visíveis, com suas altas sobrestruturas, especialmente quando se
levanta a barquinha deles, com um movimento de balanço. Ficam olhando e
estudando os diferentes navios e tentando adivinhar… O porto vai ficando
movimentado.
Pedro resolve interpelar um barqueiro, ou coisa semelhante, que está
limpando umas armas sobre uma banqueta:
– Sabes se está no porto, naquele porto lá, o navio de… espera um
pouco, que eu vou ler esse nome… –(e tira para fora um pergaminho
amarrado, que ele traz na cintura)–, aqui está: Nicomedes Filadelfo de
Filipe, cretense de Paleocastro…
– Oh! O grande navegante! E quem não o conhece? Eu acho que ele é
conhecido, não só desde o Golfo das Pérolas até as Colunas de Hércules,
mas até nos mares gelados, aqueles nos quais se diz que a noite dura meses
inteiros! Como é que não o conheces, tu que és marinheiro?
– Não. Não o conheço, mas logo o conhecerei, porque o estou
procurando por conta do nosso amigo Lázaro de Teófilo, que há tempo foi
governador da Síria.
– Ah! Quando eu navegava — agora já estou velho — ele estava em
Antioquia… Belos tempos… Ele é teu amigo? Então estás procurando
Nicomedes, o cretense? Irás seguro, então. Estás vendo aquele navio lá
adiante, o mais alto, com aquelas bandeiras ao vento? É o dele. Ele zarpa,
antes do meio-dia. Ele não tem medo do mar!…
– De fato, não precisa temê-lo. Não está muito ruim… –observa Tiago.
Mas uma onda forte lhe corta a palavra, dando nos dois um banho, da
cabeça aos pés.
– Ontem, tão parado, e hoje tão movimentado, é um belo doido, Não?
Eu prefiro o lago… –resmunga Pedro, enxugando o rosto.
– Eu vos aconselho a entrar para as docas. Não estais vendo como todos
vão indo para lá?
– Mas é que nós temos que partir. Temos que ir-nos embora com o
navio do… do… espera: do Nicomedes, além dos outros nomes que
faltam! –diz Pedro, que não consegue reter na memória os nomes para ele
esquisitos do cretense.
– Não querereis levar também a barca no navio?
– Não, já se entende!
– Porque nas docas há lugar para a guardar e homens que ficam de
guarda até à volta. Uma moeda por dia, até à volta, pois eu acho que vós
tenhais de voltar…
– Certo, certo. Vamos e voltamos, depois de termos visto o estado em
que estão os jardins de Lázaro, é isto.
– Sois, então, os intendentes dele?
– E até mais do que isso…
– Bem. Vinde comigo. Eu vos mostrarei o lugar. É um lugar apropriado
para os que, como vós, vão deixar as barcas…
– Espera… 319.3 Eis os outros. Daqui a um momento estaremos contigo.
E Pedro salta por cima da banqueta, e sai correndo, ao encontro dos
companheiros, que já vêm vindo.
– Dormiste bem, meu irmão? –pergunta, pressuroso, André.
– Como um menino no berço. Não me fez falta nem o balanceio, nem a
cantiga…
– Parece-me que não te fez falta nem o banho –diz Tadeu, sorrindo.
– É certo. O mar é… tão bom, que veio lavar-me o rosto, para me tirar
o sono.
– Um pouco pesado –objeta Mateus.
– Oh! Mas, soubésseis com quem se vai! Com alguém que é conhecido
até pelos peixes dos mares polares.
– Tu já o viste?
– Não. Mas falou-me dele um homem que me disse que existe um lugar
para as barcas, um depósito… Vinde para descarregarmos os baús, e irmos,
porque Nicodemos, não, Nicomedes, o cretense, vai partir daqui a pouco.
– No canal de Chipre, vamos dançar bem –diz João de Endor.
– Ah! Sim –pergunta, preocupado, Mateus.
– Sim. Mas Deus nos ajudará.
319.4 Já estão de novo perto da barca.
– Aí está o homem. Agora, vamos tirar esta roupa, e, depois vamos,
pois foste muito bom para conosco!
– Aqui nós nos ajudamos –diz o homem de Tiro.
– Sim, isto mesmo. Nós nos ajudamos, nos deveríamos ajudar.
Deveríamos amar-nos, porque esta é a Lei de Deus…
– Ouvi dizer que em Israel surgiu um novo profeta que prega isso. É
verdade?
– Se é verdade! Isso, e outras coisas! E faz milagres. Força, André,
mais para a direita. Força, enquanto a onda levanta a barca. Oh! Muito bem
feito… Eu ia te dizendo, homem: e que milagres! Mortos que ressuscitam,
doentes que ficam curados, cegos que passam a ver, ladrões que se
convertem e até… Estás vendo? Se Ele estivesse aqui, diria ao mar: “Fica
quieto”, e o mar se acalmaria… Será que consegues, João? Espera que eu
vou aí. Vós fazei força, e bem juntos… Vamos, vamos. Ainda um pouco…
Tu, Simão, toma a manivela… Cuidado com a mão, Judas! Vamos,
vamos… Obrigado, homem. Cuidado para não cairdes n’água, vós do
Alfeu… Vamos… Já chegamos! Louvado seja Deus! Nós nos cansamos
menos para pô-los lá em baixo, do que para puxá-los para cima… Mas
estou com os braços doendo por causa do exercício de ontem. Então, eu
dizia, te estava dizendo que o mar…
– Mas, é verdade, então?
– Verdade? Eu estava lá vendo tudo!
– Sim? Oh! Mas onde foi isso?
– No lago de Genezaré. Vem conosco na barca que, enquanto vamos
indo para o depósito, eu te conto…
E lá se vai ele com o homem e com Tiago, remando pelo canal que vai
para as docas.
319.5 – E Pedro costuma dizer que não sabe fazer nada… –observa o
Zelotes–. Mas, pelo contrário, ele sabe a arte de ir fazendo as coisas, assim
de um modo natural, e faz melhor do que os outros…
– O que me agrada muito nele é sua honestidade –diz o homem de
Endor.
– E a sua constância –acrescenta Mateus.
– E a sua humildade. Olha como ele não se ensoberbece, sabendo que é
o chefe! Ele se cansa mais do que todos, e se preocupa mais conosco do que
consigo mesmo… –diz Tiago de Alfeu.
– E é tão virtuoso em seu bom senso. É um bom irmão. Nada mais… –
termina Síntique.
– Então, é mesmo do modo que dissestes? E é assim que viveis –
pergunta, depois de algum tempo, o Zelotes aos dois discípulos.
– Sim. E melhor ainda. Não é mentira, mas uma verdade espiritual.
Para mim, ele é um irmão mais velho, de outra mãe, mas do mesmo pai. O
Pai é Deus, e as mães diferentes são Israel e a Grécia. João é meu irmão
mais velho, como se vê, pela idade, como se vê e — isso não se vê, mas é
verdade —, por ser ele discípulo já havia tempo, antes de mim. 319.6Eis
Simão, que vem voltando…
– Tudo pronto. vamos…
Eles pegam os baús e, atravessando o istmo estreito, passam para o
outro porto. O homem de Tiro os vai acompanhando, com a prática que
tem, pelos becos formados pelos fardos de mercadorias, empilhados por
baixo de uns telheiros muito amplos, até o grande navio do cretense, que já
está fazendo as manobras para a partida já próxima, e já estão gritando aos
que estão a bordo para que tornem a descer a passarela, que já haviam
levantado.
– Não se pode. A carga já está colocada –grita o chefe da equipagem.
– Ele tem umas cartas para entregar –diz o homem, acenando para
Simão de Jonas.
– Cartas? De quem?
– De Lázaro de Teófilo, que já foi governador de Antioquia.
– Ah! Vou conversar com o patrão.
Simão diz ao outro Simão e a Mateus:
– Fazei isso vós, agora. Eu sou rústico para tratar com um homem
destes…
– Não. Tu és o chefe, e tu o sabes fazer, e o fazes bem. Nós te
ajudaremos, se for o caso. Mas não haverá necessidade disso.
– Onde é que está o homem das cartas? Que ele suba! –diz um homem,
moreno como um egípcio, magro, bonito, desembaraçado, severo, e que se
debruça sobre a alta amurada do navio. E faz que a passarela seja descida de
novo.
Simão de Jonas, que tornou a pôr o hábito e o manto, enquanto estava
esperando a resposta, sobe, todo cheio de dignidade. Atrás dele vão o
Zelotes e Mateus.
– A paz esteja contigo, ó homem –saúda-o sinceramente Pedro.
– Salve. Onde está a carta –pergunta o cretense.
– Aqui está.
O cretense rompe o selo, estende o rolo, e lê.
– Sejam benvindos os enviados da família de Teófilo. Os cretenses não
se esquecem de quanto ele era bom e gentil. Mas, andai depressa. Tendes
muita carga?
– Toda a que estás vendo sobre a banqueta.
– E, quantos sois vós?
– Somos dez.
– Está bem. Vamos arranjar um lugar para a mulher. Vós vos arranjareis
do melhor modo possível. Vamos logo. É preciso que saiamos e peguemos
o largo, antes que o vento tome força e, depois do meio dia, isso vai
acontecer.
E dá ordem com uns assobios dilacerantes, para que se faça o embarque
dos baús e a colocação deles na estiva. Depois, sobem os apóstolos e os
dois discípulos. Levantam, então, a passarela, fecha-se a amurada, soltam-
se as amarras, e levantam-se as velas. O navio começa a sair, oscilando
fortemente na saída do porto. Depois, as velas se estendem, rangendo
muito, ao enfurná-las o vento e, com um grande balanço, o navio alcança o
largo, fugindo rápido para Antioquia…
Apesar do vento violento, João e Síntique, que estão perto um do outro,
agarrados a um cadernal, perto da popa, ficam olhando como na costa vai
ficando longe a terra da Palestina, e choram…
320. Prodígios sobre o navio no mar em
tempestade.
5 de novembro de 1945.
320.1 Na superfície do Mediterrâneo, suas águas verde-azuladas se
chocam em vagalhões muito altos, com suas cristas cobertas de espuma.
Hoje não se vê nele nenhuma nevoa, o céu está claro. Mas a água do mar,
esborrifada pelos embates de um vagalhão contra outro, se transforma em
um pó salgado, que queima e penetra até por baixo das roupas, avermelha
os olhos, queima as gargantas, e parece espargir-se como um pó-de-arroz
salino por toda parte, por sobre as coisas, que ficam parecendo terem sido
pulverizadas com uma espécie de farinha luminosa, que são os diminutos
cristais de sal. Isto se dá onde não chegam as bofetadas das ondas, nem as
suas enxaguaduras vigorosas, que lavam a ponte do navio de um lado ao
outro, precipitando-se para dentro, ao transporem a amurada, para depois
tornarem a cair no mar, produzindo o ruído de uma cascata, e saindo pelos
buracos da amurada oposta.
O navio sobre e desce, como uma palhinha sujeita aos caprichos do
oceano, tendo-se tornado um nada em comparação com ele, e chia, e se
lamenta, desde as sentinas, até à ponta de seus mastros… O mar é realmente
o dono, e o navio é o seu brinquedo.
Com exceção dos que estão fazendo as manobras, ninguém mais está na
ponte, nem as mercadorias, mas somente as chalupas de salvamento. Os
homens da equipagem, e o cretense Nicomedes à frente de todos, estão
completamente nus, e balanceiam quando o navio balança, correndo para cá
e para lá, fazendo reparos, ou tomando parte nas manobras, que agora se
tornaram difíceis, com a ponte sempre alagada e escorregadia. As escotilhas
estão atravancadas, e não deixam que se veja o que está acontecendo sobre
a coberta. Mas com certeza, eu acho que eles não estão muito sossegados lá
dentro.
Não posso compreender onde é que estamos, porque só se vê mar ao
redor de nós, e uma costa muito distante, que parece montanhosa, formada
por verdadeiros montes, e não por colinas. Eu diria que já faz mais de um
dia que estamos navegando, pois pode-se ver claramente que estas horas
são da manhã, já que o so1, que aparece e desaparece, está ainda do lado do
oriente.
Eu creio que o navio bem pouco esteja indo para a frente, por maior
que seja o bailado que ele tem que executar. O mar parece ir ficando cada
vez mais feio. Com um barulho medonho, parte-se um pedaço do mastro,
não sei qual o nome desta parte da mastreação, e, ao cair, é arrastado agora
por uma avalanche de água, que se precipitou sobre a ponte, junto com um
verdadeiro turbilhão de vento, que derruba um pedaço da amurada.
320.2 Os que estão lá embaixo devem estar tendo a impressão de que vão
para o fundo… E, para fazer parecer ainda mais isso, dali a pouco vê-se
como se entreabre o postigo de uma escotilha, e por lá aparece a cabeça
grisalha de Pedro. Ele olha, vê, torna a fechar, antes que uma torrente de
água desça pela escotilha entreaberta. Mas depois, enquanto há uma pausa
entre uma e outra onda, ele torna a abrir, e salta para fora. Pedro se agarra
no que pode e fica observando aquele inferno, que é o mar, e o único
comentário que faz é dar um assobio e um gemido.
Nicomedes o vê:
– Sai, Sai daí! –ele grita –. Fecha o postigo. Se o navio se encher
d’água, vai para o fundo. E ainda será bom, se eu não tiver que jogar fora a
carga… Nunca vi uma tempestade assim! Sai daí, eu te digo! Não quero
homens da terra andando por aí. Aqui não é lugar para jardineiros, e…
Não pôde continuar, porque um outro vagalhão arrebentou a ponte,
recobrindo os que estavam em cima dela.
– Estás vendo? –grita ele a Pedro, que está escorrendo água.
– Eu estou vendo. Mas isto não me faz estremecer. Eu não sou somente
capaz de tomar conta de jardins. Eu nasci na água, de um lago, é verdade…
Mas o lago também… Antes de ser cultivador, eu fui pescador, e sei…
Pedro está muito calmo, e sabe acompanhar o balanço do navio com
perfeição, conservando suas musculosas pernas bem abertas. O cretense o
observa, enquanto se move para ir chegando para perto dele.
– Não tens medo? –ele lhe pergunta.
– Nem no sonho!
– E os outros?
– Três deles são pescadores como eu, quero dizer, eram. Os outros, fora
o que está doente, são fortes.
– A mulher também… Olha! Olha! Cuidado!
Uma outra avalanche d’água, como chefe das outras, cai sobre a ponte.
Pedro espera que ela passe, e depois diz:
– Este frescor teria sido desejado por mim neste verão… Paciência!
Estavas perguntando que é que está fazendo a mulher? Ela está rezando… e
tu farias bem, fazendo a mesma coisa. Mas, em que ponto exatamente nos
encontramos agora? Será o canal de Chipre?
– Antes fosse! Eu iria me encostar na ilha, esperar que tudo ficasse em
paz. Nós estamos apenas à altura da Colônia Júlia, ou Beritus, se te agrada
mais… E agora é que vem o que é feio… Aquelas são as montanhas do
Líbano.
– E não poderias entrar ali, naquele povoado?
– O porto não é bom, cheio de quebra-mares e de escolhos. Não se
pode. Cuidado!…
320.3 Um outro turbilhão, e outro pedaço de mastro que se quebra, depois
de ter atingido um homem, que não é jogado para fora, somente porque a
onda o lança contra um obstáculo.
– Vai para baixo! Vai para baixo! Não estás vendo?
– Eu estou vendo, estou vendo… Mas, e aquele homem?
– Se não tiver morrido, vai voltar a si. Eu não posso curá-lo… Tu o
estás vendo!…
De fato o cretense deve ter olhos para olhar tudo, para a vida de todos.
– Entrega-o a mim. A mulher cuidará dele…
– Tudo o que quiseres, mas sai daí…
Pedro vai deslizando até o homem, que está imóvel, agarra-o por um pé
e o puxa para si.. Olha para ele, dá um assobio… E resmunga:
– Está com a cabeça aberta como uma romã madura. Seria preciso que
estivesse aqui o Senhor. Oh! Se Ele estivesse! Senhor Jesus! Meu Mestre,
por que nos deixaste?
Há uma grande dor em sua voz…
Ele pega o moribundo nas costas, ensangüentando-se todo, e volta para
a escotilha. O cretense lhe grita:
– Estás te cansando inutilmente. Não há nada que fazer. Tu estás
vendo!…
Mas Pedro, carregado como está, lhe faz um sinal, como para dizer:
“Veremos”, e se abraça com um pau, para poder resistir a uma nova onda.
Depois abre a escotilha, e grita:
– Tiago, João, vinde cá –e, com a ajuda deles, vai baixando o ferido, até
descê-lo, trancando depois o postigo.
A luz enfumaçada de umas lâmpadas por ali penduradas, vêem Pedro,
todo ensangüentado:
– Estás ferido –perguntam-lhe.
– Eu, não. O sangue é deste aqui… Mas… rezai também para que…
320.4Síntique, olha um pouco aqui. Uma vez me disseste que sabes cuidar
dos feridos. Olha esta cabeça, então…
Síntique deixa, então, de atender a João de Endor, que está sofrendo
muito, para ir até à mesa, sobre a qual estendera o infeliz, e fica olhando.
– É uma ferida feia! Já vi uma ferida assim duas vezes, em dois
escravos feridos por seu patrão, e a outra por uma pedrada em Caprarola.
Precisaríamos de água, muita água, para limpar e estancar o sangue…
– Se só queres água!… Isso temos, e até demais. Vem, Tiago, com o
alguidar. Nós dois traremos mais.
Vão e voltam gotejando água. E Síntique, com uns panos ensopados,
vai lavando e aplicando compressas na nuca… Mas a ferida é feia. Das
têmporas até à nuca, o osso está descoberto. Apesar disso, o homem torna a
abrir os olhos, com uns olhares vagos, e gorgoleja, por entre estertores. É o
medo instintivo de morrer que toma conta dele.
– Bem! Bem! Já estás ficando bom –conforta-o maternalmente a grega,
e lho diz em grego, pois o que ele tinha falado foi em grego.
O homem, mesmo atordoado como está, olha espantado para ela e, com
uma sombra de sorriso, por ouvir sua língua nativa, procura a mão de
Síntique… Todo homem é um menino, logo que começa a sofrer, e procura
a mulher, que lhe faz sempre de mãe nesses casos.
– Eu vou experimentar o ungüento de Maria –diz Síntique, quando o
sangue começa a deixar de escorrer.
– Mas é para as dores… –objeta Mateus, que está pálido como um
morto, não sei se por causa do mar, ou por causa do sangue, ou pelas duas
coisas.
– Oh! Foi feito por Maria com as suas proprias mãos! E eu vou aplicá-
lo rezando… Rezem vocês também. Mal não fará. O óleo é sempre uma
substancia curativa….
Ela vai à sacola de Pedro, tira de lá uma vasilha de bronze, como me
parece, e a abre, tira um pouco do ungüento, e o esquenta à chama de uma
lâmpada, na própria tampa da vasilha. Depois, o despeja sobre um pano
dobrado de linho, e o aplica à cabeça ferida. Em seguida, a enfaixa bem
com uns panos de linho que ela reduziu a tiras. Põe um manto dobrado por
baixo da cabeça ferida, que parece querer adormecer, e fica sentada ali
perto, rezando, enquanto os outros também ficam rezando.
320.5 Lá em cima continua o desmoronamento, o navio empina e afunda
sem parar, naquele vai-vem. Abre-se, depois de algum tempo, o postigo, e
um marinheiro se precipita do lado de dentro.
– O que está acontecendo? –pergunta Pedro.
– O que houve é que estamos em perigo. Eu vim apanhar os incensos e
as oblações para um sacrifício…
– Deixa de lado essas histórias!
– Mas Nicomedes quer oferecer um sacrifício a Vênus! Nós estamos no
mar dela…
– Um mar, que é frenético, como ela –resmunga baixo Pedro.
Depois ele diz mais alto:
– Vinde, vós, vamos para a ponte. Talvez haja lá o que fazer… Tens
medo de ficar aqui com o ferido e com aqueles dois?
Os dois são Mateus e João de Endor, que o enjôo marítimo deixou
reduzidos a dois trapos.
– Não, não. Podeis ir, responde Síntique.
E, quando eles vão saindo por sobre a ponte, encontram-se com o
cretense, que está procurando acender os incensos e que os enfrenta furioso
para fazer que voltem para dentro, gritando:
– Mas, não estais vendo que, sem um milagre, haverá um naufrágio? É
a primeira vez! A primeira vez, desde que comecei a navegar.
– Fica atento, que agora ele está dizendo que somos nós os que fizemos
o malefício! –sussurra Judas de Alfeu.
E de fato o homem está gritando ainda mais forte:
– Malditos israelitas, que desgraças trazeis convosco? Cães hebreus,
fizestes-me um malefício! Fora! Eu agora vou sacrificar a Vênus
nascente…
– De modo nenhum. Quem vai sacrificar somos nós…
– Fora! Vós sois pagãos, sois uns demônios, sois…
– Escuta. Eu te juro que, se nos deixas fazer, verás o prodígio.
– Não. Fora!
E acende os incensos, jogando ao mar, como pode, uns líquidos que ele
antes ofereceu e provou, e uns pós, que não sei o que são. Mas as ondas
apagam os incensos e, em vez de acalmar-se, o mar se enfurece ainda mais,
arrastando para fora todas as tábuas usadas no rito, e por pouco não arrasta
também o próprio Nicomedes…
– Bela resposta te dá a tua deusa! 320.6Agora é a nossa vez. Também nós
temos uma, mais pura do que esta, feita de espuma, mas depois… Canta,
João, como ontem, e nós iremos atrás de ti, e vamos ver!
– Sim, vamos ver! Mas, se acontecer coisa pior, eu vos mandarei jogar
ao mar, como vítimas de propiciação.
– Está bem. Força, João!
E João entoa a sua canção, sendo acompanhado por todos os outros, até
por Pedro, que não costuma cantar nunca, por ser desafinado. O cretense,
com os braços cruzados, e com um sorriso meio irado e irônico no rosto,
está olhando para eles. Depois, terminada a canção, eles rezam de braços
abertos. Deve ser o “Pai-nosso”, mas está dito em hebraico, e eu não
entendo nada. Numa segunda vez, eles cantam mais forte. E assim vão
alternando, sem medo, sem interrupção, apesar dos vagalhões que os
esbofeteiam. Eles não se estão agarrando a nada, e contudo, estão tão
seguros, como se estivessem colados na madeira da ponte. E as ondas
realmente vão diminuindo de violência, pouco a pouco. Não cessam
totalmente, como também o vento não pára completamente. Mas já não é
mais aquela fúria de antes, e as ondas já não alcançam mais a ponte.
O rosto do cretense é simplesmente a imagem do espanto…
Pedro olha para ele, de soslaio, e não cessa de rezar. João sorri, e canta
mais forte… Os outros o acompanham, vencendo aquele fragor do mar, que
vai ficando sempre menor, aplacando-se até chegar a um movimento
moderado e o vento amainar-se até se tornar um sopro tolerável.
– E agora? Que nos dizes?
– Mas, que foi que dissestes? Que fórmula é?
– A do Deus verdadeiro e da sua santa Serva. Levanta, pois, as velas e
prepara-as, mas… aquilo não é uma ilha?
– Sim. É Chipre… E o mar está ainda mais quieto no seu canal!… É
estranho! Mas aquela estrela, que vós adorais, quem é? É sempre Vênus,
não é?
– Venerais, é como dizemos, só a Deus se adora. Mas não é Vênus. É
Maria, Maria de Nazaré, Maria, a hebréia, a Mãe de Jesus, Messias de
Israel.
– E aquela outra coisa, o que era? Não era hebraico aquilo.
– Não. Era o nosso dialeto, do nosso lago, da nossa pátria. Mas não se
pode dizer a ti, que és pagão. É um discurso feito a Javé, e só os que têm fé
o podem saber. 320.7 Adeus, Nicomedes. E não fiques com saudade daquilo
que foi para o fundo. Um sortilégio a menos para trazer-te desventura.
Adeus, hein? Viraste de sal?
– Não… Mas… Desculpai-me. Eu vos insultei antes!
– Oh! Não faz mal! São efeitos do… culto de Vênus… Vamos, rapazes,
ver os outros –e, rindo feliz, Pedro se encaminha para a escotilha.
O cretense vai atrás deles, e diz:
– Escutai! E o homem? Morreu?
– Que nada. Talvez nós to entreguemos logo, e são… É outra
brincadeira dos nossos malefícios…
– Oh! Desculpai, desculpai! Mas, dizei-me, onde posso aprendê-los,
para que eles me ajudem? Eu vos pagaria por isso…
– Adeus, Nicomedes! É um negócio longo e… não permitido. Que não
sejam dadas as coisas sagradas aos pagãos! Adeus! Fica bem, amigo! Fica
bem!
E Pedro, acompanhado por todos, vai lá para baixo, rindo, enquanto se
ri também o mar, aplacado por um vento moderado do nordeste, que
favorece a navegação. O sol vai descendo e no oriente se mostra uma fatia
de lua, que caminha para ficar cheia.
321. Chegada a Selêucia e licença de partir de
Nicomedes.
6 de novembro de 1945.
321.1 Estava um belíssimo pôr do sol, quando a cidade de Selêucia
começou a ser vista como um grande amontoado branco de casas, no limite
das águas azuis do mar, que está agora plácido e risonho, todo ele com
pequenas ondas brincando, por baixo de um céu que mescla sua cor de um
cobalto sem nuvens com a púrpura do pôr do sol. O navio, com suas velas
desdobradas, se dirige velozmente para a cidade ainda distante, e parece
estar pegando fogo, pela alegria festiva por causa da próxima chegada,
estando toda revestida com os resplendores do sol que se põe.
Sobre a ponte, por entre os marinheiros, que não estão mais azafamados
e agitados, como antes, os passageiros vêem que está chegando a sua meta.
E, sentado perto de João de Endor, ainda mais magro do que quando partiu,
está o marinheiro ferido. Está ainda com a cabeça enfaixada por uma leve
bandagem e com uma palidez de marfim, pelo muito sangue que perdeu.
Contudo, ele está sorridente e falando com os seus salvadores ou com os
companheiros que, ao passarem, se congratulam com ele, por tornarem a
vê-lo na ponte.
321.2 Também o cretense o nota, e deixa por uns momentos o seu posto,
confiando-o ao chefe da equipagem, para ir saudar o seu “ótimo Demete”,
que está voltando à ponte pela primeira vez depois de ter-se ferido:
– E graças a todos vós –diz ele aos apóstolos–. Eu não acreditava
mesmo que ele pudesse viver mais, ferido como foi pela trave pesada e pelo
ferro qua ainda a tornava mais pesada. É verdade, Demete, estes te deram
de novo a luz da vida, porque tu já estavas morto, duas vezes morto. A
primeira, quando jazias como uma mercadoria sobre a ponte, e pelo sangue
que se perdia, e por isso te teriam jogado ao mar, descendo tu para o reino
de Netuno, onde irias morar entre as Nereides e os Tritões. E a segunda, por
teres ficado curado com aqueles maravilhosos ungüentos. Queres deixar-me
ver a ferida?
O homem tira a bandagem, e mostra a cicatriz bem fechada, lisa,
parecendo um sinal vermelho, que vai da têmpora até à nuca, no limite dos
cabelos, que parecem ter sido aparados, talvez por Síntique, para que não
penetrassem na ferida. Nicomedes passa levemente a mão sobre aquele
sinal:
– Até o osso se soldou! Amou- te a Vênus marinha! E não quis ver-te, a
não ser sobre a superfície do mar e nas praias da Grécia. Que Éros te seja
propício, agora que vamos descer à terra, e te ajude a te esqueceres da
desventura e do terror de Tânatos, em cujo abraço já estavas.
O rosto do Pedro é um verdadeiro panorama de impressões, à medida
que vai ouvindo todas essas fábulas da mitologia. Apoiado a um dos
mastros de vela, com as mãos atrás das costas, tudo nele lhe está dizendo
que aplique um bom apelido no pagão Nicomedes e no seu paganismo, e
que dê a entender a sua repulsa por tudo o que é gentilismo.
Támbém os outros não ficam atrás… Judas de Alfeu está com o rosto
fecha-do, como em seus piores momentos, o irmão dele gira ao redor de si
mesmo, co-mo quem estivesse interessado em ver alguma coisa no mar.
Tiago de Zebe-deu e André pensam bem e resolvem deixar todos no ar,
descendo para pega-rem as sacolas e o tear, Mateus está brincando com a
faixa que ele tem na cintura, e o Zelotes o imita dando demasiada atenção
as suas sandálias, como se elas fôssem novas, e João de Zebedeu parece que
ficou hipnotizado, olhan-do para o mar.
Tão claro é o desprezo e o aborrecimento dos oito, — e não é menor o
mutis-mo dos dois discípulos, que estão sentados ao lado do ferido — que o
creten-se cai em si, e se acusa:
– É a nossa religião, sabeis? Como vós credes na vos-sa, eu e nós todos
cremos na nossa…
Ninguém responde nada, 321.3e o cretense pensa bem, e resolve deixar
em paz os seus deuses e descer do Olimpo para a terra, ou melhor, para o
mar, para o navio, convidando os apóstolos a irem à proa para verem bem a
cidade que se aproxima.
– Lá está, estais vendo? Nunca estivestes aqui?
– Eu, uma vez, mas vindo por terra –diz o Zelotes, sério e breve.
– Ah! Está bem! Então sabes pelo menos que o verdadeiro porto de
Antioquia é Selêucia, que está junto ao mar, na foz do rio Orontes, que
acolhe com alegria os navios e que, nos tempos de águas profundas, dá
passagem por ele às barcas mais leves, que sobem até Antioquia. Aquela
que agora estais vendo é Seléucia, a maior. A outra, mais para o sul, não é
cidade, mas apenas ruínas de um lugar devastado. Parece ser uma coisa,
mas é outra: pois é um lugar morto. Aquela cadeia de montanhas é o Piério,
que faz que a cidade seja chamada Selêucia Piéria. Aquele pico mais para
dentro, além da planície, é o monte Cásio, que domina, como um gigante, a
planície de Antioquia. A outra cadeia, ao norte, é a do Amano. Oh! Vereis
que obras, os romanos fizeram na Selêucia e em Antioquia! Maiores não
podiam fazer. Um porto com docas, que é um dos melhores, e canais, e
antemurais e diques. Tais coisas não há na Palestina. Mas a Síria é melhor
do que outras províncias do Império…
Suas palavras têm como resposta um silêncio glacial. Até Síntique que,
por ser grega, e menos susceptível do que os outros, também cerra os
lábios, e o seu rosto toma, mais do que nunca, o ar cortante de um rosto
esculpido em uma medalha ou em um baixo-relevo: um rosto de deusa,
desdenhosa para com os contatos terrenos.
O cretense percebe isso, e se acusa:
– Que quereis? Afinal, com os romanos eu saio ganhando!…
A resposta da Síntique é clara, como um golpe de sabre:
– É que o ouro embota o fio da espada da honra nacional e da
liberdade –e o diz de uma tal maneira e em um latim tão puro, que o outro
fica pasmado.
Depois, ele cria coragem para perguntar:
– Mas tu não és grega?
– Eu sou grega. Mas tu amas os romanos. Eu te falo na língua dos teus
patrões, não na minha, a da Pátria mártir.
O cretense fica confuso, e os apóstolos estão silenciosos, mas
entusiasmados pela lição dada ao elogiador de Roma. 321.4Ele fica pensando,
e resolve mudar o fio da conversa, perguntando com que meios eles irão de
Selêucia para Antioquia.
– Com nossas pernas, homem –responde Pedro.
– Mas já está tarde. E já será noite, quando desembarcardes …
– Haverá lugar para dormir.
– Oh! Com certeza. Mas poderíeis dormir aqui mesmo até amanhã.
Judas Tadeu, que já viu como iam levando todo o necessário para um
sacrifício aos deuses, que talvez irão fazer na chegada, diz:
– Não é preciso. Nós te agradecemos por tua bondade, mas preferimos
desembarcar. Não é verdade, Simão?
– Sim, sim. Nós também temos que fazer as nossas orações e … ou tu e
os teus deuses, ou nós e nosso Deus.
– Fazei como quiserdes. Eu teria o prazer de fazer uma coisa agradável
ao filho do Teófilo.
– Também nós ao Filho de Deus, procurando persuadir-te de que há um
só Deus. Mas tu és uma pedra que não se move. Como estás vendo, estamos
em condições parecidas. Mas, quem sabe se um dia nos encontraremos, e tu
estejas menos tenaz… –diz, sério, o Zelotes.
Nicomedes faz um gesto, como se dissesse: “Sabe-se lá quando!” É um
gesto de indiferença e de ironia, quanto àquele convite para que ele
reconheça o verdadeiro Deus e abandone os falsos. Depois, ele vai para o
seu posto de piloto, porque o porto já está perto.
– Vamos descer, e pegar os baús. Façamos isso por nós mesmos. Não
vejo a hora de nos afastarmos desse fedor pagão –diz Pedro.
E, menos Síntique e João, todos os outros descem.
321.5Eles, os dois exilados, estão perto um do outro, e estão olhando os
diques, que vão ficando cada vez mais perto.
– Síntique, mais um passo, rumo ao desconhecido, uma ruptura com o
doce passado, mais uma agonia, Síntique… Não sei se agüento mais…
Síntique segura a mão dele. Está muito pálida, angustiada. Mas é
sempre a mulher forte, que sabe confortar:
– Sim, João, uma outra ruptura, uma outra agonia! Mas não digas um
outro passo rumo ao desconhecido… Isso não é justo.Nós sabemos qual é a
nossa missão aqui. Jesus disse qual é. Portanto, nós não estamos indo rumo
ao desconhecido mas, pelo contrário, sempre mais nos unimos, com tudo o
que sabemos, com a Vontade de Deus. Tambem não é justo falar em “uma
outra ruptura.” Nós nos unimos à sua vontade. Uma ruptura separa. E por
isso nós não nos separamos. Simplesmente nós nos afastamos de todas as
delícias sensíveis do nosso amor para com Ele, o nosso Mestre, reservando
para nós as delícias supra-sensíveis, transportando o nosso amor e o nosso
dever para um plano ultraterreno. Estás persuadido de que é assim? Estás?
E, então, não deves ficar falando nem em “uma outra agonia.” Agonia
pressupõe uma morte próxima, mas nós, ao chegarmos aos que eram os
nossos planos espirituais, e tendo nossa casa, nossa aragem, e nossa comida,
não estamos morrendo, mas assim é que estamos “vivendo.” Porque o que é
espiritual é eterno. Por isso nós subimos para uma vida mais viva,
antecipação da grande Vida dos Céus. Coragem, pois! Esquece-te de que és
o homem João, e lembra-te te de que és um destinado ao Céu. Raciocina,
age, pensa e espera somente como cidadão desta Pátria imortal…
321.6Estão voltando os outros com as suas cargas, justamente enquanto o
navio vai entrando, majestoso, no amplo porto de Selêucia.
– E agora, vamos depressa, o mais depressa possível, ao primeiro
albergue que virmos. Certamente haverá alguns por perto, e amanhã, ou de
barca, ou com algum veículo, iremos para o nosso destino.
Por entre assobios secos do comando, o navio atraca, e descem pela
passarela. Nicomedes vai pôr-se perto dos que vão saindo.
– Adeus, homem. E muito obrigado, diz Pedro por todos.
– Salve, hebreus. E obrigado também eu. Se fordes por aquela rua,
encontrareis logo alojamentos. Adeus.
Os apóstolos descem por um lado, e ele se afasta para o lado do seu
altar e, enquanto Pedro com os outros, levando suas cargas, vão tomar o seu
repouso, o pagão está começando o seu inútil rito…
322. Partida de Selêucia sobre um carro
e chegada a Antioquia.
[sem data]
322.1 – Nas feiras com certeza encontrareis alguma pequena condução.
Mas, se quereis a minha, eu vo-la dou, em atenção a Teófilo. Se eu hoje sou
um homem remediado, é a ele que eu o devo. Ele me defendeu, porque era
justo. E de certas coisas a gente não se esquece –diz o velho albergador, que
está de pé, diante dos apóstolos, aos primeiros raios do sol da manhã.
– Mas é que nós levaremos o teu carro por muitos dias… E, além disso,
quem vai conduzi-lo? Eu já estou chegando a conduzir o carro puxado a
burro… Mas, o puxado por cavalos…
– Mas, é a mesma coisa, homem! Eu não te irei dar um poldro chucro,
mas um animal manso, para carruagem, manso como um cordeirinho.Com
ele fareis a viagem logo, e sem cansar-vos. Ao meio dia estareis em
Antioquia, e até antes, porque o cavalo conhece bem a estrada, e vai até por
si mesmo.Tu mo entregarás quando quiseres, sem outro interesse de minha
parte, a não ser o de poder fazer uma coisa agradável ao filho do Teófilo, ao
qual vós direis que eu lhe devo muito, e que me lembro disso, e me
considero servo dele.
– Que vamos fazer? –pergunta Pedro aos companheiros.
– Faze o que achares melhor. Tu determinas, e nós obedecemos.
– Vamos tentar com o cavalo? Eu estou pensando em João… e também
em chegar mais depressa… Parece-me estar levando alguém para a morte, e
não vejo a hora em que tudo isso já tenha passado…
– Tens razão –dizem todos.
– Então, homem, eu aceito.
– E eu com alegria o cedo. Já vou preparar a carruagem.
322.2 O albergador sai dali. Então, Pedro desabafa a sua preocupação
completamente:
– Eu consumi a metade do tempo de vida que eu tinha, nestes poucos
dias. É uma pena! Uma pena! Eu gostaria de estar com o carro[33] de Elias,
com o manto dele apanhado por Eliseu, tudo o que fôsse bem rápido, para
poder fazer tudo ir para a frente bem depressa… E, mais do que tudo, eu
gostaria do, ainda que para isso tivesse que sofrer a morte, gostaria de achar
alguém que consolasse àqueles pobrezinhos, e os fizesse esque-cer os…
Nem sei o que dizer, afinal… Qualquer coisa que fôsse, para que eles não
ficassem sofrendo tanto… E, se eu conseguir saber qual é a causa principal
desse sofrimento, não serei mais Simão de Jonas, se eu não o torcer como
um pano que foi preciso espremer. Eu não falo propriamente em matá-lo,
isso não. Mas em espremê-lo, como ele espremeu a alegria e a vida destes
dois pobrezinhos…
– Tu tens razão. É uma grande pena. Mas Jesus diz que se devem
perdoar as ofensas… –diz Tiago de Alfeu.
– Se a tivessem feito a mim, eu deveria perdoá-los. E poderia. Eu sou
são e forte e, se alguém me ofende, eu tenho força para reagir até à dor. Mas
o pobre daquele João! Não, eu não posso perdoar a ofensa feita ao redimido
pelo Senhor, a um pobre que vai morrendo, aflito assim…
– Eu fico pensando na hora em que o vamos deixar definitivamente… –
suspirá André.
– Eu também. É para mim um pensamento fixo, e que vai se
intensificando, à medida que o momento se aproxima… –murmura Mateus.
– Façamos aquilo logo, por piedade –diz Pedro.
– Não, Simão. Perdoa, se eu te faço considerar que não tens razão em
querer isso. O teu amor está se tornando um amor desviado do próximo, e,
em ti, que és sempre reto, não deve acontecer tal coisa –diz, pacato, o
Zelotes, pondo a mão sobre o ombro do Pedro.
– Por que, Simão? Tu és muito culto e bom. Mostra-me em que é que
eu estou errado, e eu, se vejo que estou mesmo, direi que: Tu tens razão.
– O teu amor está ficando doente, porque está se transformando em
egoísmo.
– Como? Eu me aflijo por eles, e sou egoísta?
– Sim, meu irmão. Porque tu, por um excesso de amor, — e todo
excesso é uma desordem que, por isso, induz ao pecado — tu te tornas vil.
Queres não sofrer tu, por estares vendo sofrer. Isto é egoísmo, meu irmão
em nome do Senhor.
– É verdade. Tens razão. Eu te agradeço, por me teres admoestado. É
assim que se faz entre bons companheiros. Está bem. Então não vou mais
ter pressa… Contudo, dizei a verdade: Não é uma coisa que causa dó?
– Sim, que o é, sim, que o é… –dizem todos.
322.3 – Como faremos, então, para deixá-los?
– Eu diria que o fizéssemos, depois que Filipe lhes der hospedagem,
ficando nós escondidos em Antioquia por algum tempo, indo às vezes ao
Filipe para saber como eles se vão adaptando… –sugere André.
– Não. Seria fazê-los sofrer demais, com uma separação tão violenta –
diz Tiago de Alfeu.
– Então, façamos assim: tomemos o conselho do André pela metade.
Fiquemos em Antioquia, mas não na casa de Filipe. E, alguns dias depois,
iremos vê-los, e voltaremos cada vez menos, sempre menos, até que, afinal,
não voltamos mais –diz o outro Tiago
– É uma dor sempre renovada, e uma cruel desilusão. Não. Assim não
se deve fazer –diz Tadeu.
– Que vamos fazer, Simão?
– Ah! Eu gostaria de estar em vosso lugar, mais do que ter que dizer:
“Eu vos saúdo” –diz Pedro, abatido.
– Eu proponho uma coisa. Vamos com eles para a casa do Filipe, e lá
fiquemos. Depois, sempre juntos, vamos a Antigônio. É um lugar muito
aprázível … E lá fiquemos. Quando eles já estiverem aclimatados, nós nos
retiramos, com tristeza, mas com virilidade. Isto eu faria. A não ser que
Simão Pedro tenha recebido ordens diferentes do Mestre –diz Simão
Zelotes.
– Eu? Não. Ele me disse: “Faze tudo bem, com amor, sem preguiça e
sem pressa e do modo que julgares que é melhor.” Até agora parece-me ter
feito assim. Houve aquilo de eu ter dito que era pescador!… Mas, se eu não
dissesse aquilo, ele não me deixaria sobre a ponte!
– Não fiques criando escrúpulos tolos, Simão. Isto são insídias do
demônio para te perturbar –anima-o Tadeu.
– Oh! Sim. É assim mesmo. Creio que ele está ao redor de nós, como
nunca esteve, criando-nos obstáculos e temores, para induzir-nos a alguma
covardia –diz o apóstolo João.
E termina em voz baixa:
– Creio que ele quisesse induzir aqueles dois ao desespero, detendo-os
na Palestina… e agora, que eles fogem de suas insídias, então ele se vinga,
vindo contra nós… Eu o percebo ao redor de mim, como uma serpente
escondida na erva… E há meses que eu o percebo ao redor assim… Mas,
eis que chega o albergador, e vem chegando de um lado, e João com
Síntique do outro. Eu vos direi o resto, quando estivermos sozinhos, se é
que vos interessa.
De fato, de um lado do pátio vem vindo um carro grande, ao qual está
atrelado um robusto cavalo, guiado pelo hospedeiro, enquanto do outro lado
vêm vindo ao encontro deles os dois discípulos.
– Já é hora de irmos? –pergunta Síntique.
– Sim. Já é hora. Estás bem coberto, João? Estás melhor de tuas dores?
– Sim. Estou envolvido em lãs e o ungüento me ajudou.
– Então sobe, que agora nós vamos também…
322.4 … E, tendo terminado o carregamento, tendo todos subido, vão
saindo pelo amplo portão, depois das repetidas afirmações do hospedeiro
sobre a docilidade do animal. Atravessam uma praça, que lhes foi indicada,
e pegam uma estrada, ao lado dos muros, até saírem por uma porta,
beirando, primeiro um fundo canal, e depois o próprio rio. É uma bela
estrada, bem conservada, que vai para a direção nordeste, mas seguindo
sempre as voltas do rio. Do outro lado há montes muito verdes, em suas
encostas, enseadas e despenhadeiros, e já se podem ver, nos pontos mais
ensolarados dos bosques, como vêm brotando as borbulhas de mil arbustos.
– Quantos mirtos! –exclama Síntique.
– E loureiros! –acrescenta Mateus.
– Perto de Antioquia há um lugar consagrado a Apolo –diz João de
Endor.
– Talvez os ventos tenham trazido até aqui as sementes.
– Talvez. Mas este já é um lugar cheio de belas vegetações –diz o
Zelotes.
– Tu, que já estiveste aqui, achas que passaremos por perto de Dafne?
– Certamente. Vereis um dos vales mais belos do mundo. Com exceção
do culto obsceno e degenerado em orgias cada vez mais sujas, o vale é um
paraíso terrestre e, se nele penetrar a Fé, será um verdadeiro paraíso. Oh!
Quanto bem podereis fazer aqui! Eu vos auguro que encontreis corações
férteis, como fértil é o solo… –diz o Zelotes, para suscitar pensamentos de
consolação nos dois.
Mas João inclina a cabeça, e Síntique suspira.
322.5 O cavalo vai trotando cadenciadamente, e Pedro está calado, todo
preocupado no trabalho de guiar, ainda que o animal vá com muita
segurança, sem precisar de guia nem de estímulo. A estrada vai, pois, sendo
percorrida com bastante rapidez, até o ponto em que eles param, perto de
uma ponte, para comer e para dar um descanso ao cavalo. O sol já está à
altura do meio-dia, e o que há de belo, em toda essa singular natureza, está
podendo agora ser visto.
– Mas… acho melhor aqui do que no mar… –diz Pedro, dando uma
olhadela ao redor de si.
– Mas, que tempestade!
– O Senhor orou por nós. Eu percebi que Ele estava perto de nós,
quando nós estávamos rezando na ponte do navio. Perto de nós, como se
estivesse entre nós… –diz, sorrindo, João.
– Onde é que estará Ele agora? Eu não fico em paz, ao pensar que Ele
está sem as suas roupas … Tomará banho? Que será que Ele come? Talvez
esteja jejuando…
– Podes estar certo de que Ele está fazendo isso para nos ajudar –diz
com segurança Tiago de Alfeu.
– E também por outros motivos. O nosso irmão está muito aflito já faz
algum tempo. Eu acho que Ele vem-se mortificando continuamente para
vencer o mundo –diz Tadeu.
– Quererás dizer o demônio que está no mundo –diz Tiago de Zebedeu.
– É a mesma coisa.
– Mas ele não conseguirá. Eu estou com o coração aflito por mil
temores… –suspira André.
– Oh! agora que nós estamos longe, tudo irá melhor! –diz, com certa
amargura João de Endor.
– Não o penses. Tu e ela não éreis nada a respeito dos “grandes erros”
do Messias, segundo os grandes de Israel –diz Tadeu, decidido.
– Tu estás seguro? Eu, no meu sofrer, tenho também este prego no
coração: de ter sido causa de mal a Jesus com a minha vida. Se estivesse
seguro de que isto não acontece, sofreria menos –diz João de Endor.
– Crês que eu seja sincero, João? –pergunta Tadeu.
– Sim, eu o creio!
– Pois bem, em nome de Deus e no meu, eu te garanto que tu só deste
uma tristeza a Jesus: e foi a de ter que mandar-te para cá, em missão. De
todas as outras tristezas passadas, presentes e futuras, tu não és o motivo.
Um primeiro sorriso, depois de tantos dias de uma profunda
melancolia. Enche-se de luz o rosto descarnado de João de Endor, que diz:
– Que consolo me estás trazendo! Parece-me que o dia se torna mais
claro, mais leve o meu sofrimento, mais conformado meu coração.
Obrigado, Judas de Alfeu! Obrigado!
322.6Sobem de novo para o carro e, tendo atravessado a ponte, passam
para a outra margem do rio, para a outra estrada, que vai direta a Antioquia,
atravessando uma região de grande fertilidade.
– Lá está! Naquele vale poético está Dafne com o seu templo e os seus
pequenos bosques. E lá adiante, naquela planície, está Antioquia, com suas
torres sobre os muros. Nós entraremos pela porta, que está do lado do rio. A
casa de Lázaro não fica muito longe dos muros. Suas mais belas casas
foram vendidas. Ficou ainda esta que, há tempo, servia como ponto de
parada para os servos e os clientes de Teófilo, possuíndo muitas cavalariças
e celeiros. Agora lá mora Filipe. É um bom velho. Um amigo fiel de
Lázaro. Lá vos sentireis bem. E juntos, iremos a Antigônio, onde ficava a
casa habitada por Euquéria e por seus filhos, que naquele tempo eram
meninos…
– É muito fortificada esta cidade, não? –pergunta Pedro, que está
recuperando o fôlego, agora que está vendo como, em sua primeira
experiência de cocheiro, saiu-se bem.
– Sim. Bem fortificada. As muralhas são de uma altura e de uma
espessura muito grandes, tem mais de cem torres que, como estais vendo,
mais parecem uns gigantes postados sobre os muros, e que têm, junto as
suas bases, uns valos intransponíveis. Também o monte Sílpio pôs os seus
cumes a serviço da defesa e como contraforte para os muros, em sua parte
mais frágil… Aqui está a porta. É melhor que pares aqui, e entres segurando
o freio. Eu te irei conduzindo, porque sei o caminho.
Passam pela porta, guardada por romanos. O apóstolo João diz:
– Quem sabe não estará aqui aquele soldado da Porta dos Peixes…
Jesus gostaria de sabê-lo…
– Vamos procurar saber. Mas agora, caminha depressa –ordena
Pedro,preocupado pela idéia de estar indo para uma casa desconhecida.
João obedece, sem dizer nada. Somente ele fica olhando atentamente
para todo soldado que vê.
322.7 É um caminho curto, depois uma casa grande e simples, isto é, que
tem uma parede alta e sem janelas. Só há um portão, no meio da parede.
– Pronto. Pode parar –diz o Zelotes.
– Oh! Simão! Cria coragem! Fala tu agora!
– Pois sim, se isto te der prazer, falarei eu –e o Zelotes bate no pesado
portão.
Ele se apresenta como um enviado de Lázaro. Entra sozinho. Sai com
um velho alto e cheio de dignidade, que faz grandes inclinações, e dá ordem
a um servo para abrir o portão, a fim de que o carro possa entrar. E pede
desculpas por fazê-los entrar todos por ali, um de cada vez, pela porta da
casa.
O carro vai parar em um amplo pátio, que tem uma série de pórticos,
bem conservado, tendo quatro grandes plátanos, nos quatro cantos e dois no
centro, como defesa de um poço e de um tanque para dar de beber aos
cavalos.
– Trata do cavalo –ordena o intendente ao servo.
E depois diz aos hóspedes:
– Eu vos peço, vinde, e seja bendito o Senhor que me mandou os seus
servos e amigos do meu patrão. Mandai, que o vosso servo vos escuta.
Pedro fica vermelho, porque especialmente a ele é que estão sendo
dirigidas aquelas palavras e aquelas inclinações, e nem sabe o que dizer…
Mas o Zelotes o socorre:
– São discípulos do Messias de Israel, dos quais te fala Lázaro de
Teófilo, que de agora em diante virão morar na tua casa para servirem ao
Senhor, e eles só precisam de um repouso. Queres mostrar-me onde eles
poderão morar?
– Oh! Há sempre quartos prontos para os peregrinos, como era o
costume de minha patroa. Vinde, vinde…
E, acompanhado por todos, entra por um corredor, passa depois por um
pequeno pátio, no fundo do qual está a verdadeira casa. Abre a porta, vai
indo por uma passagem lateral, depois dobra à direita. Aparece uma escada.
Eles sobem. Vem um novo corredor, com quartos nos dois lados.
– Aí está. E que a casa vos seja agradável. Agora eu vou mandar buscar
água e roupa de cama. Deus esteja convosco –diz o velho, e vai-se embora.
Abre as portas dos quartos, que eles vão escolhendo… Os muros e os
fortes de Antioquia estão à frente dos que estão ao lado. E o tranqüilo pátio
decorado com roseiras trepadeiras, por enquanto sem flores por causa da
estação, é visível para os outros do outro lado.
E, depois de tanto andar, eis finalmente uma casa, um quarto, uma
cama… Para alguns vai ser uma morada. Para os outros, um ponto de
chegada.
[33] o carro, como em: 2 Reis 2,11, e o manto, como em: 2 Reis 2,14.
323. A visita a Antigônio.
7 de novembro de 1945.
323.1 – Meu filho Tolmai veio para os mercados. Hoje, à sexta hora, ele
volta para Antigônio. O dia está morno. Quereis ir até lá, como desejáveis –
pergunta o velho Filipe, enquanto serve aos hóspedes um leite quente.
– Iremos sem falta. A que hora falaste?
– À sexta. Podeis voltar amanhã, se quiserdes, ou então antes do
sábado, se assim mais vos agradar. Então, todos os servos hebreus, ou os
que entraram na fé, virão para as funções do sábado.
– Assim faremos. 323.2E não foi dito que não seja escolhido aquele lugar
para estes morarem nele.
– Terei sempre prazer com eles, ainda que eles não fiquem comigo.
Porque lá é um lugar saudável. E vós poderíeis fazer muito bem entre os
servos, alguns dos quais são ainda daqueles servos deixados pelo patrão. E
alguns lá estão por causa da bondade de sua bendita patroa, que os resgatou
de patrões cruéis. Portanto, não são todos israelitas. Mas já não são mais
nem mesmo pagãos. Eu falo das mulheres, pois os homens são todos
circuncidados. Não tenhais aversão para com eles. Mas, muito longe ainda
estão da justiça de Israel. Os santos do Templo, que são perfeitos, se
escandalizariam com eles…
– Ah! Sim! Sim!… Bem! Agora, poderão progredir, aspirando a
sabedoria e a bondade dos enviados do Senhor… Estais ouvindo quanto
trabalho tereis? –termina Pedro, dirigindo-se aos dois.
– Nós o faremos. Não decepcionaremos o Mestre –promete Síntique. E
sai para ir preparar o que ela julga oportuno.
João de Endor pergunta a Filipe:
– Achas que em Antigônio eu poderia fazer um pouco de bem também
aos outros, ensinando como pedagogo?
– Muito bem. O velho Plauto morreu, há três luas, e os meninos pagãos
estão sem escola. Quanto aos hebreus, esses estão sem mestre, porque todos
os nossos evitam aquele lugar que fica perto de Dafne. Precisamos de um
que seja… que seja… como era Teófilo… sem muita rigidez para… para….
– Sim, afinal, sem farisaismo, queres dizer –termina Pedro de modo
expedito.
– É isto… sim… Eu não quero criticar. Mas acho… Maldizer não
adianta. Melhor seria ajudar… Como fazia a patroa que, com o seu sorriso,
ensinava a Lei mais e melhor do que um rabi.
323.3– Eis aí por que foi que eu fui mandado até aqui pelo Mestre! Eu sou
mesmo o homem que tem os requisitos necessários… Eu farei a vontade
dele. Até o último suspiro. Agora eu creio, creio mesmo, que não é outra
coisa, senão uma missão de predileção a minha. Eu vou dizer isso à
Síntique. Vereis que nós ficaremos juntos nesse modo de ver… Eu vou, vou
dizer a ela –e sai, animado como há tempo não era visto.
– Altíssimo Senhor, eu te agradeço e bendigo! Ele sofrerá ainda, mas
não como antes … Ah! Que alívio –exclama Pedro.
E depois se sente no dever de explicar a Filipe um pouco como ele pode
fazer, e qual a razão de sua alegria:
– Deves saber que João caiu na mira dos… “rígidos” de Israel … Tu os
chamas “rígidos”…
– Ah! Compreendo! Perseguido político, como… como… –e fica
olhando para o Zelotes.
– Sim, como eu e, além disso, por outro motivo ainda. Porque, além de
o ser por pertencer a uma casta diferente, ele os excita por estar com o
Messias. Por isto, e seja dito isto uma vez por todas, à tua fidelidade é que
estão confiados ele e ela … Compreendes?
– Compreendo. E saberei me controlar.
– Com que título os chamarás diante dos outros?
– Direi que são dois pedagogos recomendados por Lázaro de Teófilo,
ele para os meninos e ela para as meninas. Vejo que ela tem bordados e
teares… muitos trabalhos femininos se fazem e se vendem em Antioquia,
vindos de fora. Mas, aqueles são uns trabalhios rústicos e pesados. Ontem
eu vi um trabalho dela que me fez lembrar de minha boa patroa…
Trabalhos assim serão muito procurados.
– E, mais uma vez, seja louvado o Senhor –diz Pedro.
– Sim. Isto diminuirá em nós a tristeza pela próxima partida.
– Já estais querendo partir?
– Precisamos. O tempo nos atrasou. Nos primeiros dias de shebat,
devemos estar com o Mestre. Ele já nos está esperando, porque já estamos
atrasados –explica Tadeu.
323.4 Separam-se, e cada um vai andando para as suas tarefas, ou seja,
Filipe para onde o está chamando uma mulher, e os apostólos para cima,
para o sol.
– Poderíamos partir no dia depois do sábado. Que achais –pergunta
Tiago de Alfeu.
– Por mim!… Imagina! Todos os dias eu me levanto com a
preocupação por Jesus estar sozinho, sem suas roupas, sem quem cuide
dele, e todas as noites vou-me deitar com esses pensamentos. Mas hoje nós
nos decidiremos.
– Dizei-me uma coisa. Mas, o Mestre sabia de tudo isso? Eu pergunto a
mim mesmo como é que Ele sabia que teríamos encontrado o cretense,
como é que Ele previu o trabalho de João e de Síntique, como, como…
Tantas coisas, enfim –diz André.
– Na verdade, eu acho que o cretense tem épocas fixas para suas
paradas em Selêucia. Talvez Lázaro tenha dito isso a Jesus, e Jesus por isso
tenha decidido partir, sem esperar a Páscoa… –explica o Zelotes.
– Sim. Está bem. E, pela Páscoa, como fará João –pergunta Tiago de
Alfeu.
– Ora, fará como os outros israelitas… –diz Mateus.
– Não. Isso seria ir cair na boca do lobo.
– Nada disso. No meio de tanta gente, quem iria descobri-lo?
– O Iscar… Oh! Que foi que eu disse? Não penseis nisso.É uma
brincadeira da minha mente…
Pedro ficou corado e aflito por ter falado.
Judas de Alfeu põe-lhe uma mão sobre o ombro, sorrindo com o seu
sorriso sério, e diz:
– Deixa para lá! Vamos todos pensar a mesma coisa… Mas não a
contemos a ninguém. E bendigamos ao Eterno que desviou deste
pensamento a mente de João.
Calam-se todos, absortos. Mas para eles, verdadeiros israelitas, é
preciso pensar como vai poder fazer a sua Páscoa em Jerusalém aquele
discípulo exilado… e voltam a falar do assunto.
– Eu creio que Jesus proverá a isso… Talvez João o esteja sabendo. É
só perguntar a ele –diz Mateus.
– Não lho pergunteis. Não ponhais desejos e preocupações, onde
apenas se refez a paz –suplica o apóstolo João.
– Sim. É melhor perguntar isso ao Mestre mesmo –confirma Tiago de
Alfeu.
– Quando é que vamos vê-lo? Que achais –pergunta André.
– Oh! Se partirmos no dia depois do sábado, lá pelo fim da lua
estaremos certamente em Ptolemaida… –diz Tiago de Zebedeu.
– Se encontrarmos navio… –observa Judas Tadeu.
E o irmão dele acrescenta:
– E se não houver tempestade.
– Quanto a navio, sempre há algum que parte para a Palestina. E,
pagando, faremos escala em Ptolemaida, ainda que o navio se esteja
dirigindo para Jope. Tens ainda com que pagar, Simão –pergunta o Zelotes a
Pedro.
– Sim. Por mais que aquele ladrão do cretense me tenha esfolado como
quis, fazendo sempre os seus protestos de querer fazer gentilezas a Lázaro.
Mas eu tenho que pagar pela parada da barca e pela do Antônio… No
dinheiro dado para João e Síntique, eu não quero nem tocar. Ainda que eu
fique sem comer, nele eu não toco.
– Fazes bem. Aquele homem está muito doente. Ele pensa que ainda
pode ser um pedagogo. Eu acho que ele só poderá ser um enfermo, e que
logo… –diz o Zelotes.
– Sim, eu também acho. Síntique, mais do que os seus trabalhos, o que
terá que fazer são os seus ungüentos –confirma Tiago de Zebedeu.
– Mas, aquele ungüento, hein? Que prodígio! Síntique me disse que
quer compô-lo de novo, a fim de com ele poder penetrar nas famílias
daqui –diz João.
– Boa idéia! Um doente, que fica curado, é sempre mais um discípulo
conquistado e, com ele, os de sua família –proclama Mateus.
– Ah! Isso, não –exclama Pedro.
– Como? Então, queres dizer que um milagre não atrai as pessoas para
o Senhor? –pergunta-lhe André, e com ele mais dois ou três outros.
– Oh! criancinhas! Parece que estais chegando agora do Céu! Mas, não
vedes como eles fazem a Jesus? Eli de Cafarnaum, por acaso se converteu?
E Doras? E o Oséias de Corozaim? E Melquias de Betsaida? E — perdoai-
me, vós de Nazaré — e toda Nazaré pelos cinco, seis, dez milagres lá feitos,
até o último aquele em favor do vosso sobrinho? –pergunta Pedro.
Ninguém responde nada, porque é uma amarga verdade.
– Ainda não encontramos o soldado romano. Jesus o tinha feito
compreender… –diz João, pouco depois.
– Nós diremos isso aos que vão ficar. E, então isso será mais uma coisa
que eles terão em vista em suas vidas –responde o Zelotes.
323.5Filipe está de volta:
– Meu filho[34] está pronto. Ele faz as coisas depressa. Ele está com a
mãe, que prepara os presentes para os netinhos.
– A tua nora é boa, não é mesmo?
– Ela é boa. Ela me consolou pela perda do meu José. É como uma
filha. Era serva de Euquéria e educada por ela. Vinde tomar uma refeição,
antes da partida. Os outros já estão comendo…

… E, precedidos pelo carro de Tolmai, neto do Filipe, lá se vão


trotando para Antigônio… Logo chegam à pequena cidade. Escondida pelo
viço dos seus jardins, protegida pelas cadeias de montanhas, que estão ao
seu redor, bastante longe dela para não sufocá-la, mas bastante perto para
protegê-la e para lançar sobre ela os aromas de seus bosques de plantas
resinosas e de essências vegetais, toda cheia de sol, alegrando, ao mesmo
tempo, a vista, o olfato e o coração dos que a atravessam.
323.6 Os jardins de Lázaro ficam ao sul da cidade e têm, à sua frente uma
alameda, que agora está despojada de folhas e, ao longo da qual, estão as
casas dos que cuidam dos jardins. São umas casinhas baixas, mas bem
conservadas, e às soleiras delas se mostram os rostos de meninos e e de
mulheres, que estão observando, curiosos, e que saúdam, sorrindo. As raças
diferentes podem ser notadas pela diferença dos rostos.
Tolmai, mal passou a cancela, que marca o começo da propriedade, faz
ao passar por diante de cada casa, um estalido especial com o chicote, o que
deve ser algum sinal. Então, os moradores de cada casa, depois de terem
observado aquilo, entram para as suas casas, e depois saem, tendo fechado
as portas, e ido pela alameda, atrás dos dois carros, que vão, com os animais
andando passo a passo, parar no centro de um círculo, em que os raios são
os caminhos, que dali partem em todos os sentidos, como os raios de uma
roda, por entre campos e mais campos, dispostos em canteiros, alguns deles
despidos de vegetação, outros em seu verde perene, vigiados pelos
loureiros, as acácias, ou plantas semelhantes e por outras plantas que, pelos
cortes feitos em seus troncos, nos estão dizendo que produzem algum látex
odorífero ou resinas. No ar sente-se um odor mesclado de aromas
balsâmicos, resinosos, perfumados. Há colméias por toda parte. E também
tanques para irrigação, aonde vão beber uns pombos alvíssimos. E, em
certas faixas especiais de terra nua, capinada há pouco, estão esgaravatando
o chão umas galinhas, também brancas, das quais umas mocinhas estão
cuidando.
323.7Tolmai continua dando estalidos com o seu chicote, repetidamente,
até que todos os súditos do pequeno reino se reúnam ao redor dos recém-
chegados. E, então, ele dá começo ao seu pequeno discurso:
– Aí está. Filipe, o nosso chefe, e pai de meu pai, manda e recomenda a
estes santos de Israel, que até aqui vieram, para que Deus esteja sempre
com ele e com sua casa. Muitos de nós nos lamentávamos, porque aqui nos
faziam falta as palavras dos santos rabis. E eis que a bondade do Senhor e
de nosso patrão, que está lá longe, mas que nos tem tanto amor — que Deus
lhe retribua pelo bem que ele faz aos seus servos — nos vieram trazer o que
nossos corações desejavam. Em Israel surgiu o Prometido aos povos. Assim
no-lo haviam dito nas Festas do Templo e na casa de Lázaro. Mas agora
realmente chegou para nós o tempo da graça, porque o Rei de Israel pensou
em seus menores servos e mandou aos seus ministros trazer-nos as suas
palavras. Estes são os seus discípulos, e dois destes vão viver no meio de
nós aqui ou em Antioquia, ensinando-nos a Sabedoria para sermos doutos
nas coisas do Céu, e também nas que se referem às necessidades desta terra.
João, pedagogo e discípulo de Cristo, ensinará aos meninos as duas
sabedorias. Síntique, discípula e mestra em trabalhos de agulha, ensinará a
ciência do amor a Deus e a arte dos trabalhos femininos às meninas.
Recebei-os como uma bênção do Céu, e amai-os como os ama Lázaro de
Teófilo e de Euquéria, — glória e paz às suas almas —, e como os amam as
filhas de Teófilo: Marta e Maria, nossas amadas patroas e discípulas de
Jesus de Nazaré, o Rabi de Israel, o Prometido, o Rei.
O pequeno povoado, formado por homens de túnicas curtas, que têm as
mãos sujas de terra, e manejam ferramentas de jardinagem, por mulheres e
meninos de todas as idades, fica escutando assombrado, depois começa a
cochichar e, por fim, se inclina profundamente.
Tolmai começa as apresentações:
– Simão de Jonas, o chefe dos enviados do Senhor. Simão, Cananeu,
amigo de nosso patrão. Tiago e Judas, irmãos do Senhor. Tiago e João.
André e Mateus.
E depois diz aos apóstolos e discípulos:
– Esta é Ana, minha mulher, da tribo de Judá, como minha mãe, por
outro lado, porque somos genuínos, vindos por Euquéria, de Judá. José, o
varão consagrado a Deus, e Teoquéria, a primogênita, que em seu nome traz
a lembrança dos justos patrões, sábia filha e amante de Deus, como uma
verdadeira israelita. Nicolau e Dositeu, terceiro filho, este já é esposo (um
profundo suspiro acompanha esta nota) e que há muitos anos está com
Hermion. 323.8 Vem cá, mulher…
E vem para a frente uma moreninha muito jovem, com um menino
lactante nos braços.
– Vede-a. É filha de um prosélito[35] e de uma grega. Meu filho a viu
em Alexandrocene, na Fenícia, quando lá esteve a negócios e a desejou.
Lázaro não se opôs, mas até disse: “É melhor assim, antes que suceda coisa
pior”. Pior, não é. Mas eu queria um sangue de Israel, eu…
A pobre da Hermion está de cabeça baixa, como se estivesse sendo
acusada. Dositeu está tremendo e sofrendo. Ana, que é mãe e sogra, os fica
olhando com olhares cheios de dó…
João, ainda que seja o mais jovem de todos, sente a necessidade de
socorrer aos espiritos humilhados, e diz:
– No Reino do Senhor não há mais gregos e israelitas, romanos nem
fenícios, mas somente filhos de Deus. Quando, por meio destes que vieram,
tiveres conhecido a Palavra de Deus, teu coração se iluminará com novas
luzes, e esta mulher não será mais a “estrangeira”, mas a discípula, como tu
e como todos, de Nosso Senhor Jesus.
Hermion levanta a cabeça abatida, sorri com gratidão para João e, nos
rostos de Dositeu e de Ana vê-se a mesma expressão de reconhecimento.
Tolmai responde sério:
– E assim queira Deus que aconteça, porque, ela é de outra origem, mas
nada se pode censurar em minha nora. 323.9 Aquele, que está em seus braços,
é Alfeu, que tomou o nome do pai dela, um prosélito. A pequenina, com
aqueles olhinhos da cor do céu, por baixo de uns cabelos anelados e da cor
do ébano, é Mírtica, do nome da mãe de Hermion, e este aqui, que é o
primogênito, é Lázaro, porque o patrão desejou esse nome, e o outro é
Hermes.
– O quinto se deverá chamar Tolmai, e a sexta Ana, para dizer ao
Senhor e ao mundo que o teu coração se abriu para novas compreensões –
diz ainda João.
Tolmai se inclina sem dizer nada. Depois, continua a fazer as
apresentações:
– Estes são dois irmãos de Israel, Míriam e Salviano, da tribo de
Neftali. E estes são Elbônida, da tribo de Dã e Simeão da de Judá. Depois,
aqui estão os prosélitos romanos, que a caridade de Euquéria trabalhou para
resgatar da escravidão e do paganismo. São eles: Lúcio, Marcelo e Solón,
filho de Helateu.
– É um nome grego –observa Síntique.
– É de Tessalônica. Escravo de um servo de Roma –e o desprezo é
evidente na expressão “servo de Roma”–. Euquéria o acolheu, junto com
seu pai já moribundo, em uma hora de grande confusão e, se o pai morreu
pagão, Solón já é um prosélito. Priscila, vem cá para a frente com os teus
filhos…
Uma mulher alta e esguia, de aspecto aquilino, anda para a frente,
empurrando uma menina e um menino e, levando, enroladas em suas
vestes, duas pequeninas irriquietas.
– Aqui está a mulher de Solón, que foi liberta de uma romana que já
morreu, e Mário, Cornélia, Maria e Martila, que são gêmeas. Priscila tem
experiência com essências. Amicléia, vem agora com os teus filhos. Esta
mulher é filha de prosélitos. Prosélitos são também os dois meninos, Cássio
e Teodoro. Tecla, não fiques te escondendo. É mulher de Marcelo. A sua
tristeza é por ser estéril. Ela também é filha de prosélitos. Estes são os
colonos. 323.10Agora estão nos jardins. Vinde.
E ele os conduz, através da vasta propriedade, acompanhados pelos
jardineiros, que vão explicando quais as culturas e os trabalhos, enquanto as
meninas vão voltando para as suas galinhas, que aproveitam a ausência de
suas vigilantes, para irem desaparecendo por outros lugares.
Tolmai explica:
– Elas são trazidas para cá para limparem a terra das lagartas, antes da
primeira semeadura de sementes, que se faz cada ano.
João de Endor sorri, ao ouvir as galinhas cacarejando, e diz:
– Parecem com as que eu tinha, há tempo… –e se inclina, jogando-lhes
pequenas migalhas de pão apanhadas na sacola, até que as frangas
comecem a rodeá-lo, e se ri, porque uma, mais atrevida, lhe arranca as
migalhas de entre os dedos.
– Ainda bem! –exclama Pedro, dando uma cotovelada em Mateus, e
mostrando João, que está brincando com os frangos, enquanto Síntique está
falando em grego com Solón e Hermion.
Depois, voltam para a casa de Tolmai, que diz:
– Este é o lugar. Mas, se quereis ensinar, pode-se fazer uma escola ou
ficar aqui, ou…
– Sim, Síntique! Aqui mesmo. Aqui é muito bonito. Antioquia me
oprime com as recordações que faz crescer em mim… –pede em voz baixa
João à sua companheira.
– Mas, sim… Como desejas. Contanto que tu te sintas bem. Para mim
tudo é indiferente. Eu não olho mais para trás. Só para frente, para frente…
Vamos, João. Aqui estaremos bem. Meninos, flores, pombos, galinhas para
nós que somos umas pobres criaturas. Que dizeis vós a isso –diz ela
dirigindo-se aos apóstolos.
– Nós pensamos como tu, mulher.
– Então, fica como foi dito.
– Muito bem. Nós partiremos contentes!
– Oh! Vós não partireis! Eu não vos verei mais! Por que tão cedo? Por
quê?
João recai em sua tristeza.
– Nós não nos estamos indo agora! Aqui estamos, enquanto… enquanto
aqui estiveres!
Pedro não sabe dizer o que João vai ser e, para não deixar que se veja
que seus olhos também estão cheios de lágrimas, ele abraça o choroso João,
e procura consolá-lo assim.
[34] Meu filho é chamado de Tolmai pelo velho Philip, seu avô, pai de José, seu pai. Os judeus chamavam sobrinho também de
filho, como também chamavam pai e mãe seus avós e primos e cunhados estendendiam a qualificação de um irmão ou irmã. Não
era usado (como em 100,12) dizer tio e tia. Na Obra valtortiana encontram-se ambas as formas de chamar os diferentes graus de
relacionamento: a do tempo de Jesus e dos nossos tempos (especialmente “tia” em 95.5/6).
[35] prosélito era um gentio convertido à religião judaica e circuncidado. Recorrente na obra valtortiana, a figura do prosélito é
uma ênfase particular no contexto deste capítulo
324. Os discursos dos oito apóstolos antes de
partir
de Antioquia. O adeus a João de Endor e a
Síntique.
8 de novembro de 1945.
324.1 Os apóstolos estão de novo na casa de Antioquia, e com eles estão
os dois discípulos e todos os homens de Antigônio, não mais vestidos com
as vestes curtas de trabalho, mas com vestes longas e festivas. Por aí eu
verifico que é dia de sábado.
Filipe roga aos apóstolos que falem pelo menos uma vez a todos eles,
antes da partida, que já está iminente.
– Sobre o quê?
– Sobre o que quiserdes. Vós já ouvistes nestes dias os nossos
discursos. Podeis tratar dos assuntos que ouvistes neles.
Os apóstolos se olham uns aos outros. A quem caberá a palavra? A
Pedro, naturalmente. Ele é o chefe. Mas Pedro não gostaria de falar, e passa
a honra de fazer isso a Tiago de Alfeu e a João Zebedeu. E, somente quando
ele vê que eles não aceitam é que ele se decide a falar.
– Hoje nós ouvimos na sinagoga o capitulo 52 de Isaías. De um modo
douto, conforme o mundo, mas deficiente, conforme a Sabedoria, é que foi
feito o comentário. Não se deve por isso censurar o comentador, o qual fez
o que podia, com sua sabedoria mutilada, em sua melhor parte, que é o
conhecimento do Messias e do tempo novo que Ele nos trouxe. Mas não
façamos críticas, e sim orações para que ele chegue ao conhecimento dessas
duas graças e as possa aceitar com facilidade. Vós me dissestes que na
Páscoa ouvistes falar do Mestre, com fé por parte de alguns, e com escárnio
por parte de outros. E que somente pela grande fé, que enche os corações da
casa de Lázaro, todos os corações, é que tínheis podido resistir ao mal-estar
que aquelas insinuações dos outros queriam transmitir aos vossos corações,
e, muito pior ainda, por serem aqueles outros justamente os rabis de Israel.
Mas ser doutos não quer dizer ser santos, nem já estar em posse da Verdade.
A Verdade é esta: Jesus de Nazaré é o Messias prometido, é o Salvador, do
qual falam os profetas, o último dos quais faz pouco tempo que foi repousar
no seio de Abraão, depois do glorioso martírio que sofreu morrendo pela
justiça. João Batista disse, e aqui estão presentes os que ouviram, estas
palavras: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo.” Suas
palavras foram cridas pelos mais humildes entre os presentes, porque a
humildade ajuda a chegar à Fé, enquanto que para os soberbos é difícil o
caminho, — carregados como eles estão de tantas coisas — para chegarem
ao cume do monte, onde, casta e luminosa, vive a Fé. Estes humildes,
porque eram tais e porque creram, mereceram ser os primeiros no exército
do Senhor Jesus. Vede, pois, quanto é necessária a humildade, para se ter
uma fé pronta,equanto é premiado o saber crer, mesmo diante de aparências
contrárias. Eu vos exorto e vos incito a terdes estas duas qualidades em vós,
e, então sereis do exército do Senhor, e conquistareis o Reino dos Céus…
324.2A ti, agora, Simão Zelotes. Eu já falei. Agora, tu, continua.
O Zelotes, apanhado assim de improviso, e tão claramente indicado
para ser o segundo orador, deve ir para a frente sem demora e sem
reclamação. E ele o faz, dizendo:
– Continuarei o discurso de Simão Pedro, chefe de todos nós por
vontade do Senhor. E continuarei sempre, tomando o assunto do capítulo 52
de Isaías, visto por um que conhece a Verdade Encarnada, da qual sou servo
para sempre. Lá está dito: “Levanta-te, reveste-te de tua força, ó Sião,
veste-te para a festa, ó cidade do Santo.” Assim verdadeiramente devia ser.
Porque, quando se cumpre uma promessa, quando se faz uma paz, cessa,
então, uma condenação, e chega o tempo da alegria, os corações e a cidade
deviam vestir-se para a festa, e levantar de novo as frontes abatidas,
sentindo-se não mais odiados, vencidos, espancados, mas amados e
libertados. Não viemos aqui para mover um processo contra Jerusalém. A
caridade, primeira entre todas as virtudes, o proíbe. Deixemos, pois, de ficar
observando os corações dos outros, e olhemos para o nosso. Enchamos de
força o nosso coração com aquela fé da qual falou Simão, vistamo-nos
festivamente, pois que nossa fé secular no Messias vê realizada a presença
dele entre nós. O Messias, o Santo, o Verbo de Deus, já veio. E disso têm a
prova, não somente as almas que já estão ouvindo dizer as palavras da
Sabedoria, que as confortam e infundem nelas santidade e paz, mas até os
corpos. Por obra do Santo, ao qual tudo é concedido pelo Pai, vêem-se
libertados dos males mais atrozes e até da morte, para que nas terras dos
vales da nossa Pátria de Israel ecoem hosanas ao Filho de Davi e ao
Altíssimo, que nos enviou o seu Verbo, como havia prometido aos
Patriarcas e aos Profetas. Eu, que vos estou falando, era um leproso,
destinado a morrer, depois de anos de uma angústia cruel, naquela solidão
em que ficavam os leprosos, como se fossem feras. Então, um homem me
disse: “Vai a Ele, ao Rabi de Nazaré, e tu ficarás curado.” No corpo. No
coração. Sobre o corpo não havia mais aquela doença, que me separava dos
outros homens. E no coração não havia mais aquele rancor, que nos separa
de Deus. E, com uma alma nova, de proscrito, de doente e inquieto, eu
passei a ser o seu servo, chamado para a feliz missão de ir por entre os
homens, amando-os, em nome dele, instruindo-os no único conhecimento
que é necessário e que é o de Jesus de Nazaré, do Salvador. E felizes são
aqueles que crêem nele. 324.3Fala tu, agora, Tiago de Alfeu.
– Eu sou o irmão do Nazareno. Meu pai e o pai dele eram irmãos,
nascidos de um mesmo seio. Contudo, eu não posso dizer-me irmão, mas
servo dele. Porque a paternidade de José, irmão de meu pai, foi uma
paternidade espiritual, e em verdade eu vos digo que o verdadeiro Pai de
Jesus, nosso Mestre, é o Altíssimo que nós adoramos, o Qual permitiu que
sua Divindade, Una e Trina, se encarnasse na Segunda Pessoa, e viesse à
terra, permanecendo, contudo, sempre unida com as outras Duas, que
habitam no Céu. Porque isso Deus pode fazer, sendo Ele infinitamente
poderoso. E Ele o faz por amor, já que o amor é a sua natureza. Jesus de
Nazaré é o nosso irmão, ó homens, porque nasceu de uma mulher e é
semelhante a nós por sua humanidade. É o nosso Mestre, porque Ele é
Sábio, é a própria Palavra de Deus, que veio falar-nos, para fazer que
sejamos de Deus. E é nosso Deus, sendo um só com o Pai e o Espírito
Santo, com os quais está sempre em união de amor, de poder e por natureza.
Esta verdade, que, com manifestas provas, me foi dado conhecer, o Justo,
que foi meu parente, ficai, vós também, de posse dela. E contra o mundo,
que procura roubar-vos de Cristo, dizendo “Ele é um homem como os
outros”, respondei[36], dizendo “Não. Ele é o Filho de Deus, é a Estrela
nascida de Jacó, é a vara que se levanta lá, em Israel, é o Dominador.” Não
vos deixeis levar por nada. Esta é a Fé. 324.4Fala, tu, agora, André.
– Esta é a Fé. Eu sou um pobre pescador do lago da Galiléia e, nas
silenciosas noites de pesca, sob a luz dos astros, eu tinha mudos colóquios
comigo mesmo. Eu dizia: “Quando virá? Estarei eu ainda vivo? Faltam
ainda muitos anos, conforme a profecia[37].” Para o homem, que tem uma
vida limitada, até umas poucas dezenas de anos já parecem séculos… Eu
me perguntava: “Como virá Ele? Onde? De quem?” E a minha obtusidade
humana me fazia sonhar com régios esplendores, régias moradas, cortejos,
clamores, poder, e uma majestade de um brilho insuportável … Eu dizia:
“Quem poderá olhar para este grande Rei?” Eu pensava que Ele fosse mais
aterrorizante, quando se manifestasse, do que o próprio Javé no Sinai. E
dizia a mim mesmo: “Lá no Sinai os hebreus viram o monte relampejar, e
só não ficaram reduzidos a cinzas, porque o Eterno lhes falava por detrás
das nuvens. Mas aqui, Ele olhará para nós com olhos mortais e nós
morreremos…” Eu era discípulo do Batista. E, quando não estava pescando,
eu ia a ele, com outros companheiros. E acontece que um dia deste mês…
As margens do Jordão estavam cheias de multidões que tremiam, quando o
Batista falava. Eu havia notado um jovem belo e calmo, que vinha vindo
por um caminho, em direção a nós. Era humilde em suas vestes mas doce
em seu semblante. Parecia pedir amor e dar amor. Seus olhos azuis
pousaram um momento sobre mim, e eu senti uma coisa, que nunca havia
sentido. Parecia-me estar sendo acariciado em minha alma, estar sendo
tocado de leve pelas asas de um anjo. Por um momento, eu me senti tão
longe da terra, tão diferente, que cheguei a dizer: “Agora estou morrendo!
Este é o chamado que Deus faz ao meu espírito.” Mas eu não morri. Fiquei
fascinado, ao contemplar aquele jovem desconhecido que, por sua vez,
havia fixado os seus olhos azuis sobre o Batista. E o Batista virou-se, correu
até Ele e o saudou, inclinando-se. Falaram um com o outro. E, como a voz
de João era sempre no mesmo tom, as misteriosas palavras chegaram até
mim, que as estava escutando, cheio do desejo de saber quem era aquele
jovem desconhecido. Minha alma o ouvia e o achava diferente de todos.
Eles diziam: “Eu é que deveria ser batizado por Ti…” “Deixa por enquanto.
Convém cumprirmos toda a justiça”… João havia dito: “Virá aquele, ao
qual eu não sou digno de desatar os cordões das sandálias.” Ele tinha dito:
“Entre vós, em Israel, está Alguém que vós não conheceis. Ele já tem na
mão a peneira, e vai limpar o seu terreiro e atear nas palhas um fogo que
não se acaba.” Eu tinha, pois, diante de mim um jovem do povo, de aspecto
manso e humilde e, no entanto, ouvi dizer que era Aquele do qual nem
mesmo o Santo de Israel, o último Profeta, o Precursor, era digno de desatar
as sandálias. Eu ouvi dizer que Ele era Aquele que nós não conhecíamos.
Mas eu não fiquei com medo dele. Pelo contrário, quando João, depois do
superextasiante trovão de Deus, depois do inconcebível esplendor da Luz
em forma de uma pomba de paz, disse “Eis o Cordeiro de Deus”, eu, com a
voz da alma, muito alegre por ter pressentido que aquele jovem manso e
humilde de aspecto era o Rei Messias, gritei, com a voz do meu espírito
“Eu creio!” É por causa dessa fé que eu sou servo dele[38]. Sêde-o vós
também, e tereis paz. 324.5Mateus, cabe a ti narrar as outras glórias do
Senhor.
– Eu não posso usar das palavras serenas de André. Ele era um justo, eu
era um pecador. Por isso, não tem cores festivas a minha palavra, mas tem a
paz de um salmo, cheia de confiança. Eu era um pecador. Um grande
pecador. Vivia no erro completo. Eu me havia endurecido e não me sentia
mal. Se alguma vez os fariseus ou o sinagogo me açoitavam com os seus
insultos ou censuras, falando em Deus, que é um juiz inexorável, eu, por um
momento, ficava horrorizado… mas eu me arrimava nesta estulta idéia: “Eu
já estou completamente condenado. Por isso, vamos gozar, ó meus sentidos,
enquanto pudermos.” E, então, mais do que nunca, eu me aprofundava no
pecado. Já há duas primaveras que um Desconhecido veio a Cafarnaum.
Também para mim Ele era desconhecido. E o era para todos, pois estava no
começo de sua missão. Só poucos homens já o conheciam, sabiam quem
Ele realmente era. Estes que aqui estais vendo, e mais uns poucos outros.
Eu fiquei admirado de sua esplêndida virilidade, mais casta do que a de
uma virgem. Esta foi a primeira coisa que me surpreendeu nele. Eu via
como Ele, sério e, no entanto, estando sempre pronto a ouvir os meninos,
que iam até Ele, como as abelhas vão a uma flor. O único entretenimento
dele eram os brinquedos inocentes deles e as palavras sem malícia deles.
Depois fiquei maravilhado com o seu poder. Ele fazia milagres. E eu disse:
“Ele é um exorcista. Um santo.” Contudo, eu me sentia tão vituperável
diante dele, que me esquivava a encontrar-me com Ele. Mas Ele me
procurava. Ou talvez eu tivesse a impressão de que Ele o fazia. Ele não
dava uma volta ao redor de minha banca, sem que ficasse me olhando com
aquele seu olhar doce e um pouco triste. E, cada uma daquelas vezes, em
mim havia um sobressalto da consciência, que estava entorpecida, mas que
já não voltava mais ao grau de torpor de antes. Um dia — as pessoas
estavam sempre elogiando as palavras dele —, eu tive o desejo de ir ouvi-
lo. E, tendo ido esconder-me atrás do canto de uma casa, eu o ouvi falando
a um pequeno grupo de homens. falava com simplicidade a respeito da
caridade, que é como uma indulgência para os nossos pecados… Desde
aquela tarde, eu, o avarento e duro de coração, quis fazer por onde Deus me
perdoasse muitos pecados… Comecei a fazer as coisas em segredo… Mas
Ele sabia que era eu, porque Ele tudo sabe. Uma outra vez eu o ouvi
explicar justamente o capítulo 52 de Isaías: dizia Ele que em seu Reino, na
Jerusalém Celeste, não haverá imundos e incircuncisos de coração, e
prometia que aquela Cidade celeste, de cuja beleza Ele falava com uma
palavra tão persuasiva, que eu tenho saudades dela, cidade aquela que
haveria de ser de quem o acompanhasse. E depois… E depois… Oh!
Aquele não foi um dia de tristeza, mas de ordem. Feriu o meu coração,
despiu a minha alma e a cauterizou, pegou-a com seu punho, esta pobre
alma doente, torturou-a com seu amor exigente… E eu fiquei com uma
alma nova. Eu fui à direção dele, com arrependimento e desejo. Ele não
esperou que eu lhe dissesse “Senhor, tem piedade!” Ele disse “Segue-me!”
O manso havia vencido Satanás, no coração do pecador. E que isto vos
ensine, se algum de vós está perturbado por culpas, que Ele é o salvador
bom e que não é preciso fugir dele, mas, quanto mais pecadores formos,
vamos a Ele com humildade e arrependimento para sermos perdoados. 324.6
Tiago de Zebedeu, fala tu.
– Na verdade, não sei o que dizer. Vós falastes e dissestes o que eu teria
dito. Porque a verdade é esta, e não pode mudar. Eu também estava com
André à margem do Jordão, e não prestei atenção em Jesus, senão quando
no-lo mostrou o Batista. Mas eu acreditei logo, e quando Ele partiu, depois
de sua luminosa manifestação, eu fiquei como alguém que sai de um cume
cheio de sol para ser fechado dentro de um cárcere escuro. Eu ficava
angustiado por não encontrar o sol. O mundo estava todo cheio de luz,
depois que me havia aparecido a Luz de Deus, e que depois me
desaparecera. Entre os homens eu estava sozinho. Enquanto eu me saciava,
ficava com fome. Durante o sono, eu velava com minha melhor parte e o
dinheiro, a profissão, os afetos, tudo, haviam passado para trás deste desejo
ardente dele, sem ter outros atrativos. Como um menino que perdeu a mãe,
eu gemia: “Volta, Cordeiro do Senhor! Ó Altíssimo, como mandaste
Rafael[39] para guiar Tobias, manda o teu anjo para conduzir-me pelos
caminhos do Senhor, para que eu o encontre, o encontre, o encontre!”
Contudo, quando depois de dezenas de dias[40] de uma inútil espera, de
buscas cansativas, que, por sua inutilidade, nos tornavam mais cruel a perda
do nosso João, parado pela primeira vez, Ele nos apareceu no caminho, e
estava vindo do deserto, eu não o reconheci logo. E aqui, meus irmãos no
Senhor, quero aproveitar para ensinar-vos um outro caminho para ir a Ele e
reconhecê-lo. Simão de Jonas disse que é preciso ter fé e humildade para
reconhecê-lo. Simão Zelotes confirmou também a absoluta necessidade da
Fé, para reconhecer em Jesus de Nazaré Aquele que é, no Céu e na terra,
conforme tudo o que foi dito[41]. E Simão Zelotes, precisava de uma fé bem
grande, até para esperar pelo seu corpo, que estava irremediavelmente
doente. Por isso Simão Zelotes diz que Fé e Esperança são os meios para
termos o Filho de Deus. Tiago, irmão do Senhor, fala do poder da Fortaleza
para conservar o que se encontrou. A Fortaleza que impede que as insídias
do mundo e de Satanás tirem a base da nossa Fé. André mostra toda a
necessidade de unir à Fé uma santa sede de Justiça, procurando conhecer e
reter a Verdade, seja qual for a boca santa que a anuncia, não pelo orgulho
humano de parecer douto, mas pelo desejo de conhecer a Deus. Quem se
instrui na verdade, encontra a Deus. Mateus, que antes foi pecador, vos
indica um outro caminho pelo qual se chega a Deus: despojar-se da
sensualidade, por espírito de imitação, eu diria, por um reflexo de Deus que
é Pureza infinita. Ele, o pecador é, em primeiro lugar, ferido pela “virilidade
casta” do Desconhecido, que foi a Cafarnaum e, como se esta tivesse o
poder de ressuscitar a sua continência morta, ele proíbe a si mesmo, em
primeiro lugar, a sensualidade carnal, desembaraçando assim o caminho
para a vinda de Deus e para a ressurreição das outras virtudes mortas. Da
continência passa para a misericórdia, da misericórdia para a contrição, da
contrição para a vitória sobre si mesmo e para a união com Deus. “Segue-
me.” “Eu vou.” Mas a sua alma já havia dito “Eu vou”, e o Salvador já
havia dito “Segue-me”, desde quando, pela primeira vez, a Virtude do
Mestre tinha atraído a atenção do pecador. Imitai-o. Porque qualquer
experiência dos outros, ainda que seja penosa, serve-nos de guia para evitar
o mal e para encontrar o bem naqueles que são de boa vontade. Eu, por
mim, digo que, quanto mais o homem se esforça para viver pelo espírito,
mais se torna apto para reconhecer o Senhor, e uma vida angélica muito
contribui para isso. Entre nós, discípulos de João, aquele que o reconheceu,
depois daquela ausência, foi a alma virgem. Mais ainda do que André, ele o
reconheceu, não obstante a penitência ter mudado o rosto do Cordeiro de
Deus. Por isso, eu digo: “Sede castos para que possais reconhece-lo.”
324.7Judas, queres tu falar agora?
– Sim. Sede castos para que possais reconhecê-lo. Mas, sede-o também
para que possais conservar em vós sua Sabedoria, com seu Amor, com toda
a sua Identidade. É ainda Isaias, que diz no capítulo 52: “Não toqueis no
que é impuro… Purificai-vos, vós que levais os vasos do Senhor.” É bem
verdade que toda alma, que se faz sua discípula, é semelhante a um vaso
cheio pelo Senhor, e o corpo que a contém é como quem leva o vaso
consagrado ao Senhor. Deus não pode estar onde está a impureza. Mateus
disse como foi que o Senhor explicou que nada de imundo, de separado de
Deus haverá na Jerusalém celeste. Sim. Mas é necessário que não seja
imundo aqui em baixo, nem separado de Deus, para se poder entrar lá.
Infelizes daqueles que vão adiando até à última hora para se arrependerem.
Nem sempre terão tempo para mudar seus corações no momento do triunfo,
e não gozarão, portanto, dos frutos que daí decorrem. Aqueles, que no Rei
Santo e humilde esperam ver um monarca terreno e, mais ainda, aqueles
que têm medo de ver nele um monarca terreno, estão despreparados naquela
hora, arrastados pelo engano e decepcionados por seus próprios
pensamentos, que não são pensamentos de Deus, mas uns pobres
pensamentos humanos, esses pecarão muito mais. A humilhação de ser
homem está sobre Ele. Disso deveremos lembrar-nos. Isaías diz que todos
os nossos pecados fazem que fique mortificada a Pessoa Divina, que está
debaixo de uma aparência comum. Quando eu penso que o Verbo de Deus
tem ao redor de Si, como uma crosta suja, toda a miséria da humanidade,
desde quando esta existe, fico pensando também, com profunda compaixão
e profunda compreensão, no sofrimento que Ele deve sentir por isso, em sua
alma sem culpa. É como a repugnância de uma pessoa sã, que ficasse re-
coberta de trapos e com as sujeiras de um leproso. Realmente é aquele que
foi transpassado por causa de nossos pecados e todo coberto de chagas por
todas as concupiscências do homem. Sua alma, vivendo entre nós, deve
tremer, na convivência conosco, como os que têm arrepios de febre.
Contudo, Ele não fala. Não abre a boca para dizer “Isto me faz horror.” Mas
abre a boca para dizer: “Vinde a mim, para que Eu vos tire as vossas
culpas.” Ele é o salvador. Em sua infinita bondade, Ele quis esconder a sua
beleza insuportável, para ser observada por nossos olhos. Se ela nos
aparecesse como é vista no Céu, nos teria reduzido a cinzas, como disse
André. Naquela hora, ela se tornou atraente, como a de um Cordeiro manso,
para podermos aproximar-nos dela e salvar-nos. Sua opressão, sua
condenação durará até que, tendo-se consumado o esforço de ser o homem
perfeito no meio dos homens imperfeitos, Ele será exaltado acima da
multidão dos que tiverem sido resgatados no triunfo de sua realeza santa.
Deus conhece a morte, a fim de salvar-nos para a Vida! Que estes
pensamentos vos façam amá-lo sobre todas as coisas. Ele é o Santo. Eu o
posso dizer, eu que com Tiago, cresci com Ele. Eu digo e direi, pronto a dar
a minha vida para fazer esta confissão, a fim de que os homens creiam nele,
e tenham a Vida eterna. 324.8João Zebedeu, é a tua vez de falar.
– Como são belos[42] sobre os montes os pés do mensageiro! Do
mensageiro da paz, daquele que anuncia a felicidade e prega a salvação,
daquele que diz a Sião “Reinará o teu Deus!” E estes pés vão indo,
incansáveis, já há dois anos pelos montes de Israel, chamando para a
reunião as ovelhas do rebanho de Deus, confortando, curando, perdoando,
dando a paz. A sua paz. Na verdade, eu fico admirado ao ver que não
estremecem de alegria as colinas e não exultam as águas da Pátria, sob as
carícias de seus pés. Mas o que mais me espanta é ver que não estremeçam
de alegria os corações, nem exultem, dizendo. “Louvor ao Senhor! O
Esperado chegou! Bendito o que vem em nome do Senhor!”, o que espalha
graças e bênçãos, paz e salvação, e chama para o seu Reino, abrindo-nos o
caminho para ele, o que, sobretudo, derrama amor em cada um dos seus
atos e palavras, em cada olhar, em cada respiro. Que é, então, este mundo,
para ficar cego, diante da Luz, que está vivendo entre nós? Que lajes, pois,
haverá, de mais espessura do que a pedra que fica nas portas dos sepulcros,
que lajes são estas, que muraram a vista das almas para que não vejam esta
Luz? Que montanha de pecados terá o homem sobre si mesmo para ficar
assim, oprimido, separado, cego, ensurdecido, encadeado, paralisado, para
ficar assim inerte, diante do Salvador?
Que é o Salvador? É a Luz unida ao Amor. A boca dos meus irmãos
engrandeceu os louvores do Senhor, revocou as suas obra, relembrou as
virtudes, que hão de ser praticadas, para chegarmos ao caminho. E eu vos
digo: Amai. Não há outra virtude maior e mais semelhante à Natureza dele.
Se amardes, praticareis todas as virtudes, sem cansar-vos, a começar pela
virtude da castidade. Não vos será uma coisa pesada ser castos porque,
amando a Jesus, não amareis a nenhum outro imoderadamente. Sereis
humildes, porque vereis nele as suas infinitas perfeições com olhos de amor
e, por isso, não vos ensoberbecereis pelas vossas, que são mínimas. Sereis
pessoas de fé. Quem não crê em quem ama? Sereis contritos por causa do
arrependimento que salva, pois o vosso arrependimento será sincero, isto é,
um arrependimento pela tristeza a Ele causada, e não por aquela por vós
merecida. Sereis fortes. Oh! Sim! Unidos a Jesus seremos fortes! Fortes
contra tudo. Sereis cheios de esperança, porque não duvidareis do Coração
dos corações, que vos amam com todo o seu Ser. Sereis sábios. Sereis tudo.
Amai Aquele que anuncia a felicidade verdadeira, que prega a salvação!
Que vai incansável pelos montes e vales, chamando o rebanho para a
reunião, e no caminho está a paz, pois a paz está no seu Reino, que não é
deste mundo, mas que é verdadeiro, como Deus é verdadeiro. Deixai todos
os caminhos, que não sejam o dele. Livrai-vos de toda nebulosidade. Andai
na Luz. Não sejais como o mundo, que não quer ver a Luz, que não a quer
conhecer. Mas ide ao nosso Pai, que é o Pai das Luzes, que é Luz sem
medida, através do Filho, que é Luz do mundo, para gozar de Deus no
abraço do Paráclito, que é o fulgurar das Luzes, em uma só felicidade de
amor, que centraliza os Três em Um só. Ó Infinito oceano do Amor, sem
tempestades, sem trevas, acolhe-nos! A todos nós! Na tua Paz. A todos! Por
toda a Eternidade. A todos sobre a terra, porque te amamos, ó Deus, e ao
próximo como Tu queres. A todos, no Céu. Porque, ainda e sempre,
amamos, não somente a Ti e aos celestes habitantes, mas também, e ainda,
aos irmãos militantes nesta terra, à espera da paz e, como anjos de amor, os
defendemos e socorremos nas lutas e nas tentações, para que eles possam
estar contigo em tua Paz, para glória eterna do Senhor nosso, Jesus,
Salvador, Amante do homem, até o limite sem limite do seu sublime
aniquilamento.
324.9 Como sempre João, levantando-se em seus vôos de amor, leva
consigo as almas em que há rarefação de amor e silêncio místico.
Somente depois de algum tempo é que volta aos lábios dos ouvintes a
palavra. E o primeiro a dizê-la é Filipe, que se dirige a Pedro:
– E João, o pedadgogo, não fala?
– Ele falará por nós continuamente. Agora, deixai-o em sua paz, e
deixai-nos com ele um pouco. E tu, Saba, faze o que eu te disse antes, e a
mesma coisa tu, boa Berenice…
324.10 Todos saem, ficando na vasta sala os oito com os dois. Faz-se um
silêncio pesado. Todos estão um pouco pálidos: os apóstolos, porque sabem
o que está para acontecer, e os dois discípulos, porque o pressentem.
Pedro, então, abre a boca, mas não encontra outra palavra, senão esta:
“Rezemos”, e entoa o “Pai-nosso”. Depois, visto que está muito pálido,
como talvez não irá estar nem em sua morte, diz, indo entre os dois, e
pondo as mãos sobre os ombros de cada um deles:
– É hora da despedida, meus filhos. Que devo dizer ao Senhor em
vosso nome? A Ele que certamente estará ansioso por saber como vai vossa
santidade?
Síntique cai de joelhos, cobrindo o rosto com as mãos, e João faz o
mesmo. Pedro está com eles a seus pés, e, maquinalmente os acaricia,
enquanto morde os lábios para reprimir sua emoção.
João de Endor levanta um rosto dilacerado, e diz:
– Dirás ao Senhor que nós estamos fazendo a sua vontade…
E Síntique:
– E que nos ajude a cumpri-la até o fim…
Mas o pranto impede longas frases.
– Está bem. Demo-nos o beijo de despedida. Esta hora tinha que
chegar… –e Pedro também fica nisso, como se tivesse um nó na garganta.
– Antes, abençoa-nos –pede Síntique.
– Não. Eu não. É melhor que seja um dos irmãos de Jesus…
– Não, Tu és o chefe. Nós os abençoamos com o beijo. Abençoa-nos a
todos, tanto a nós que partimos, como aos que ficam –diz Tadeu,
ajoelhando-se em primeiro lugar.
E Pedro, o pobre Pedro, que agora está vermelho, pelo esforço para
conservar a voz firme e pela ansiedade em que está, por estar abençoando
com as mãos estendidas para o pequeno grupo inclinado a seus pés, diz,
com uma voz tornada ainda mais áspera pelo pranto, uma voz como a de
um velho, diz a Bênção mosaica[43]. Depois, ele se inclina, beija na fronte à
mulher, como se fosse sua irmã, levanta e abraça, beijando com veemência
João e … sai decididamente para fora da sala, enquanto os outros imitam o
seu gesto para com os dois que ficam…
Fora o carro já está pronto. Só estão presentes Filipe e Berenice e o
servo que segura o cavalo. Pedro já está no carro…
– Dirás ao patrão que fique tranqüilo quanto aos seus recomendados –
diz Filipe a Pedro.
– Dirás a Maria que eu sinto a paz de Euquéria, desde quando ela se
tornou discípula –diz, em voz baixa, Berenice ao Zelotes.
– Direis ao mestre, a Maria, a todos que nós os amamos e que… Adeus!
Adeus! Oh! Não os veremos mais! Adeus, irmãos! Adeus…
Saem correndo para fora, pela estrada, os dois discípulos… Mas o carro
já partiu, com os cavalos a trote, já deu a volta no canto… Desapareceu…
– Síntique!
– João!
– Estamos sozinhos!
– Deus está conosco!… Vem cá, pobre João. O sol está baixando e te
faz mal ficar aqui…
– O sol para mim desceu para sempre… Só no Céu ele se levantará de
novo.
Eles entram no lugar onde antes estavam com os outros, inclinam-se
sobre uma mesa e choram sem parar…

Diz Jesus:
324.11
– E o tormento causado por um homem, não querido senão por um
homem mau, cumpriu-se parando, como um curso d’água que pára em um
lago, depois de ter feito o seu percurso…
Eu te faço observar como até Judas de Alfeu, mais alimentado pela
Sabedoria do que os outros, dê a passagem de Isaías sobre os meus
sofrimentos de Redentor, uma explicação humana. E assim estava todo
Israel, que se recusava a aceitar a realidade profética, e contemplava as
profecias sobre as minhas dores como alegorias e símbolos. O grande erro,
pelo qual, na hora da Redenção bem poucos em Israel souberam ainda ver o
Messias naquele Condenado.
A Fé não é somente uma coroa de flores. Ela também tem espinhos. E é
santo aquele que sabe crer nas horas de glória, como nas horas trágicas, e
sabe amar, tanto quando Deus o cobre de flores, como quando o coloca
sobre espinhos.
[36] respondei, a partir de: Números 24,17-19.
[37] profecia, que está em: Daniel 9,22-27.
[38] seu servo dele. A re-evocação do Apóstolo André é completada com a explicação dada por Jesus em 49.9.
[39] Rafael é o anjo que se revela a Tobias (Tobias 5,4; 12,15), no contexto da história de Tobias 5-13, para que a obra repete
várias vezes em 5.2 - 632.33. Uma citação do texto é em 229.3.
[40] Depois de dezenas de dias (como reiterou no fim do discurso com as palavras após a ausência) é uma afirmação que
confirma a explicação dada em 47.10 no tempo entre a manifestação na Jordânia o encontro com os primeiros discípulos.
[41] foi dito em Êxodo 3,14.
[42] Como são belos… citação de Isaías 52,7. Os discursos dos oito apóstolos são, quase todos, baseados no capítulo 52 do livro
do profeta Isaías.
[43] a Bênção mosaica, feita em 108.6, 363.3 prolongada e algumas vezes mencionada ou mostrada no trabalho (Jesus vai usar a
fórmula em 397.4) , é encontrada em Números 6,22-27.
325. Os oito apóstolos se reúnem a Jesus perto de
Aqzib.
10 de novembro de 1945.
325.1 Jesus — um Jesus muito magro e pálido, muito triste, eu diria, e
sofredor — está lá no cume, justamente no cume mais alto de um pequeno
monte, sobre o qual está também um povoado. Mas Jesus não está no
povoado, que fica no cume, e sim, virado para a encosta do sudeste. Jesus
se encontra em uma pequena saliência do monte, a mais alta, que se projeta
para o noroeste. É mais leste do que norte[44].
Jesus, olhando, como agora está fazendo, para diversos lados, vê uma
cadeia de montes ondulados que, no extremo noroeste e no sudeste
mergulha suas últimas ramificações no mar, ao sudeste do Carmelo, que
daqui se vê bem, lá ao longe, ainda que com pouca nitidez, nos dias serenos
e sem nuvens. A noroeste, como um cabo que penetra nas águas, parecendo
o esporão de um navio, muito semelhante às montanhas dos Alpes
Apuanos, por seus veios rochosos, que se embranquecem ao sol. Desta
cadeia ondulada de montes descem torrentes e pequenos rios, todos bem
cheios de água nesta estação, e que, através da planície da costa, correm
para irem jogar-se ao mar. Perto da ampla baía de Sicaminon, o mais
galhardo deles, o Kison, desemboca no mar, depois de ter formado um
espelho d’água, no ponto de confluência de um outro riozinho, já perto da
foz. O Sol do meio-dia, nos dias serenos, faz sair dos cursos d’água
cintilações de topázio ou safiras, enquanto que o mar se transforma numa
enorme safira, listrado com leves colares de pérolas.
O lugar é assim:
A primavera do sul já vem dando sinais de sua chegada, com as folhas
novas, que estão irrompendo das borbulhas entreabertas, ainda tenras,
luzidias, como direi, virginais, de tão novas que estão, ainda não
conhecedoras do que é a poeira e do que são as tempestades, as mordidas
dos insetos e os contatos com o homem. E os ramos das amendoeiras já
estão cheios de flocos de uma espuma branco-rosada, tão macios, que
parecem uma coisa aérea, e dão a impressão de que querem separar-se do
seu tronco natal para saírem navegando à vela, através do ar sereno, como
se fossem pequeninas nuvens.Também os campos da planície, não muito
vasta mas muito fértil, compreendida entre o cabo noroeste e o que está ao
sul, estão mostrando um delicado verdejar de trigais, que levam embora
toda a tristeza dos campos que há bem pouco tempo estavam nus.
Jesus fica olhando. Do ponto em que Ele está podem ver-se três
estradas. A que sai do povoado e vem terminar ali é uma estradazinha só
para uma pessoa, e as outras duas, que descem do povoado e se bifurcam
em direções opostas vão, uma para o noroeste, e a outra para o sudoeste.
Quanto Jesus tem sofrido. Traz em Si todos os sinais da penitência
feita, muito mais do que quando jejuou no deserto. Naquele tempo Ele era
um homem pálido, mas ainda jovem e de aspecto alegre. Agora é o homem
exausto por causa de um sofrimento complexo, que lhe abate tanto as forças
físicas como as morais. Seus olhos estão muito tristes, com uma tristeza
mansa e séria ao mesmo tempo. Suas faces, sutilizadas, fazem ressaltar
ainda mais a espiritualidade do seu perfil, de fronte alta, nariz longo e reto,
com boca e lábios completamente privados de sensualidade. Um rosto tão
angélico, que exclui toda materialidade. Está com a barba mais longa que
de costume, crescida até sobre as faces, chegando a confundir-se com os
cabelos caídos sobre as orelhas, de modo que de seu rosto são visíveis
apenas a fronte, os olhos, o nariz e os zigomas delicados e de uma cor de
marfim, nada tendo de róseo. Está com os cabelos penteados de modo
simples, pois ficaram como sem vida, e conservam como recordação do
antro em que Ele esteve, muitos pedacinhos de folhas e de raminhos secos,
que ficaram enredados em seus longos cabelos. Sua veste e seu manto,
amarrotados e empoeirados, denunciam, também eles o lugar selvagem a
que foram levados e onde não puderam ser cuidados por muitos dias.
325.2 Jesus fica olhando… O sol do meio-dia o faz sentir calor e parece
que Ele sente prazer com isso, porque parece estar evitando a sombra de
uns carvalhos para ir expor-se ao sol. Mas, por mais que seja um sol bem
claro e sem nuvens, não pode conseguir que seus esplendores se reflitam em
seus cabelos empoeirados, em seus olhos cansados, nem faz aparecerem as
cores de seu rosto emagrecido.
Não é o sol que o restaura, nem lhe aviva as cores. Mas, sim, é a vista
dos seus caros apóstolos, que vêm subindo gesticulando e olhando para o
povoado, da estrada que vem do noroeste, e que é a mais plana. Então vem
a metamorfose. Os olhos se lhe avivam, o rosto parece tornar-se menos
macilento, tomando uma esfumatura de tom róseo, que se vai estendendo
pelas faces, e mais ainda, até o sorriso, que o enche de luz. Ele abre os
braços, que estavam cruzados, e exclama “Ó meus queridos!” Ele diz isso
levantando o rosto, passando um olhar sobre as coisas, como para
comunicar sua alegria aos caules, às plantas, ao céu sereno e ao ar, que já
está com um sabor de primavera.
Ele puxa o manto até ficar bem apertado ao redor de seu corpo, para
não ser agarrado pelas varetas das moitas, e vai descendo rapidamente por
um atalho, indo ao encontro deles, que vêm subindo, e que não o viram
ainda.
Quando chega ao alcance da voz, Ele os chama, para fazê-los parar em
sua ida para o povoado.
Eles ouvem o chamado, lá ao longe. Talvez do ponto onde estão não
podem ainda ver Jesus, cujas vestes escuras se confundem com o verde
escuro do bosque, que cobre a encosta. Eles olham para os lados,
gesticulam… Jesus torna a chamar… Finalmente, numa clareira do bosque,
Ele aparece aos olhos deles, ao sol, como se já os quisesse abraçar.
Então, ouve-se um grande grito, que ecoa por toda a encosta: “É o
Mestre!”, e, numa grande corrida por sobre a ladeira íngreme, por fora do
caminho, lá se vão eles, arranhando-se, tropeçando, ofegantes, não sentindo
mais o peso dos sacos, nem o cansaço da caminhada… levados pela alegria
de revê-lo.
325.3 Naturalmente, os primeiros a chegar são os mais jovens, mais ágeis,
isto é os dois filhos de Alfeu, com seus passos firmes de quem nasceu sobre
as colinas, João e André, que vão correndo como dois cervos, rindo-se de
tão felizes. Eles caem a seus pés, amorosos e reverentes, felizes, sumamente
felizes. Depois chega Tiago de Zebedeu e, por último, quase juntos, os três
menos capazes de correr e de subir montanhas: Mateus, o Zelotes e, por
fim, o próprio Pedro.
Mas este abre passagem — oh! como abre — para chegar até o Mestre,
que está apertado entre as pernas dos primeiros que chegaram e que não se
cansam de beijar-lhe as vestes ou as mãos, que Ele deixou entregues a eles.
Pega energicamente João e André agarrados, como ostras a um penhasco, às
vestes de Jesus e, ofegante pelo cansaço, os afasta o tanto necessário para
que possa cair aos pés de Jesus, dizendo:
– Oh! Mestre meu! Agora, torno a viver, finalmente! Eu já não podia
mais. Estou envelhecido e magro, como se tivesse estado muito doente.
Olha se não é verdade, Mestre…
E levanta a cabeça, para deixar-se ver por Jesus. Contudo, ao fazer isso,
vê como Jesus está mudado e põe-se de pé, gritando:
– Mestre? Mas que foi que fizeste? Ó tolos! Olhai só! Não estais vendo
nada? Jesus esteve doente!… 325.4Mestre, Mestre meu, que foi que
aconteceu? Dize-o a teu Simão!
– Nada, amigo.
– Nada? Com esse rosto. Então, te fizeram mal?
– Nada disso, Simão.
– Não é possível! Ou estiveste doente, ou foste perseguido! Eu estou
vendo!…
– Eu também. Também Eu te estou vendo, emagrecido e envelhecido,
de fato. Por que então, estás assim –pergunta sorrindo o Senhor ao seu
Pedro, que o está perscrutando, como se quisesse descobrir a verdade pelos
cabelos, pela pele, pela barba de Jesus.
– Más eu sofri, eu. E não o nego. Acreditas que tenha sido agradável
ficar vendo aquela grande dor?
– Tu o disseste. Eu também sofri pelo mesmo motivo…
– Terá sido mesmo só por isso, Jesus? –pergunta, compadecido e
afetuoso, Judas de Alfeu.
– Pela dor, sim, meu irmão. Pela dor causada pela necessidade de
mandar embora…
– E pela dor de ter sido obrigado a isso por…
– Eu te peço!… Silêncio. Para mim é mais querido o silêncio a respeito
de minha ferida do que qualquer outra palavra que queira consolar-me,
dizendo “Eu sei o que sofreste”. Afinal, ficai todos sabendo, eu sofri por
muitas coisas, e não só por esta. E se Judas não me tivesse interrompido, Eu
o teria dito.
Jesus está muito sério, ao dizer isso. Todos ficam atemorizados.
Mas Pedro é o primeiro a retomar a palavra, e pergunta:
– E onde estiveste, Mestre? Que fizeste?
– Eu estive em uma gruta… rezando… meditando… para fortificar o
meu espírito, para conseguir a fortaleza para vós em vossa missão, por João
e Síntique em seu sofrimento.
– Mas onde estiveste? Onde? Sem roupas, sem dinheiro! Como foi que
viveste.
Simão está agitado.
– Em uma gruta. Eu não precisava de nada.
– E a comida? E o fogo? E a cama? Tudo, afinal! Eu esperava que
fosses, pelo menos hospedar-te, como um peregrino que perdeu o caminho,
em Jeftael ou em outro lugar, afinal, em alguma casa. Isso já me dava um
pouco de paz. Mas, e então? Dizei-o vós, se não era o meu tormento ficar
pensando que Ele estava sem roupas, sem comida e sem meios de consegui-
la, e sobretudo sem isto, que é a vontade de ir procurá-la. Ah! Jesus! Isso
não devias ter feito! E não o farás nunca mais! Eu não te deixarei mais
sozinho nem por uma hora. Eu vou coser-me à tua veste para ir atrás de Ti,
como se fosse a tua sombra, quer queiras, quer não. Só ficarei separado de
Ti, se eu morrer.
– Ou se Eu morrer.
– Oh! Tu, não. Tu não deves morrer antes de mim. Não digas isso. Será
que me queres ver completamente triste?
– Não. Pelo contrário, Eu quero estar contigo, com todos, alegrarme
nesta bela hora que me torna a trazer os meus queridos, os meus prediletos
amigos. Vede. Eu já me sinto melhor, só porque o vosso amor sincero me
alimenta, me aquece e me consola muito.
E Ele os acaricia a um por um, enquanto os rostos deles brilham, com
um sorriso feliz, e seus olhos reluzem, e tremem seus lábios de tanta
emoção por aquelas palavras, e eles perguntam:
– É verdade, Senhor?
– É mesmo assim, Mestre?
– Somos assim por Ti tão queridos?
– Sim. Sois tão queridos assim! 325.5 Tendes alimento convosco?
– Sim. Eu calculava que Tu estivesses esgotado e o vim adquirindo pelo
caminho. Tenho pão e carne assada, tenho leite, queijos e mel. Além disso,
tenho um odre com vinho generoso e também ovos para Ti. Tomara que não
se tenham estragado.
– Está bem. Vamos sentar-nos, então, aqui sob este belo sol e vamos
comer. Enquanto vamos comendo, me falareis…
Assentam-se ao sol, em uma saliência do terreno e Pedro abre a sacola
e observa os seus tesouros:
– Está tudo salvo –exclama ele–. Até o mel de Antigônio. E, por que
não? Eu não o disse? Ainda que na volta tivéssemos sido colocados dentro
de uma barrica e tivéssemos vindo rolados por algum doido ou trazidos em
uma barca sem remos, e talvez até furada na hora da tempestade, teríamos
chegado sãos e salvos… Mas na ida! Eu sempre mais me convenço de que
antes era o Demônio que nos criava obstáculos. Para não nos deixar
acompanhar aqueles pobrezinhos…
– É verdade. Agora ele não tinha mais aquele motivo –confirma o
Zelotes.
– Mestre, Tu fizeste penitência por nós? –pergunta João, que até se
esquece de comer para ficar contemplando Jesus.
– Sim, João. Eu vos acompanhei com o pensamento. Eu percebi os
vossos perigos e as vossas aflições. Eu vos ajudei como pude…
– Oh! Eu o percebi. Eu até vo-lo disse. Estais lembrados?
– Sim. É verdade –confirmam todos.
– Pois bem. Agora vós me entregais o que Eu vos dei.
– Tu jejuaste, Senhor? –pergunta André.
– Sem dúvida! Ainda que tivesse querido comer, estando em uma gruta,
e sem dinheiro, como quererias que Ele comesse? –responde Pedro.
– Por causa de nós. Como eu sinto com isso –diz Tiago de Alfeu.
– Oh! Não. Não vos aflijais com isso! Não foi só por causa de vós. Foi
também pelo mundo todo. 325.6Como Eu fiz, quando iniciei a minha missão,
assim fiz também agora. Naquela vez, Eu fui, no fim, socorrido pelos anjos.
Agora, sou socorrido por vós. E, podeis crer, Eu tenho uma dupla alegria.
Porque nos anjos é insubstituível o ministério da caridade. Mas nos homens
ele é menos fácil de cumprir-se. Vós o estais exercendo. E, por meu amor,
vos transformastes de homens em anjos, tendo escolhido a santidade apesar
de tudo. Por isso, me fazeis feliz como Deus e como Homem-Deus. Porque
me dais o que é de Deus: a Caridade, e me dais o que é do Redentor: a
vossa elevação à Perfeição. Isto me vem de vós e é mais nutritivo do que
qualquer alimento. Também naquele tempo, no deserto, Eu fui nutrido pelo
amor, após o jejum. E por ele fui restaurado. Assim acontece agora. Todos
nós tivemos que sofrer. Eu e vós. Mas não foi um sofrimento inútil. Eu
creio, eu sei que esse sofrimento vos ajudou mais que um ano inteiro de
ensinamento. A dor, a meditação sobre o que pode fazer de mal o homem a
um seu semelhante, a piedade, a fé, a esperança que tivestes que exercitar, e
estando sozinhos, vos fizeram amadurecer, como meninos que se tornaram
homens…
– Oh! Sim. Eu me tornei velho. Não serei mais o Simão de Jonas que
eu era quando partimos. Compreendi como é dolorosa, cansativa, em sua
beleza, a nossa missão… –suspira Pedro…
– Pois bem, agora que estamos aqui juntos, 325.7contai-me…
– Fala tu, Simão. Tu sabes falar melhor do que eu –diz Pedro ao
Zelotes.
– Não. Tu, como um valoroso chefe, conta por todos –responde o outro.
E Pedro começa, dizendo como introdução:
– Mas vós ajudai-me.
Ele conta ordenadamente até a partida para Antioquia. Depois começa a
narrar como foi a volta:
– Estávamos todos sofrendo, sabes? Nunca mais me esquecerei das
últimas palavras daqueles dois…
Pedro enxuga com as costas da mão duas grandes lágrimas, que
irrompem imprevistas…
– Eles me pareceram o último grito de alguém que está se afogando…
Mas, afinal, falai vós… eu não posso… –e se levanta, indo um pouco para
longe dali, para ver se consegue controlar sua emoção.
Fala, então, Simão Zelotes:
– Nós não falamos, nenhum de nós, por muito tempo, na viagem… Não
podíamos falar… A garganta nos doía, pelo tanto que estava cheia de
pranto… E nós não queríamos chorar… porque, se tivéssemos começado,
ainda que fosse um só, tudo haveria terminado. Eu tinha pego as rédeas,
porque Simão de Jonas, para não deixar que se percebesse que ele estava
chorando, foi para o fundo do carro e estava revistando as sacolas. Nós
paramos em um pequeno povoado, a meio caminho, entre Antioquia e
Selêucia. Por mais que a lua fosse se tornando clara, tanto mais a noite ia se
tornando alta também, e nós, pouco práticos como éramos, resolvemos
parar lá. E ficamos cochilando, vestidos como estávamos. Não comemos,
nenhum de nós… porque não podíamos. Nós estávamos pensando naqueles
dois… Aos primeiros clarões da aurora, atravessamos a ponte e, antes da
hora de tércia, chegamos a Selêucia. Levamos o carro e o cavalo ao
albergador e — era um homem muito bom — nos aconselhamos com ele a
respeito do navio. Ele disse: “Eu mesmo vou ao porto, Sou conhecido lá, e
conheço as pessoas.” E assim ele fez. Descobriu três navios que estavam de
partida para estes portos. Mas sobre um deles estavam certos seres que não
quisemos ter como vizinhos. Assim no-lo disse o homem, que o ficou
sabendo pelo capitão do navio. O segundo era de Ascalon, e não queria
fazer escala para nós em Tiro, a não ser que nós pagássemos uma soma, que
nós não tínhamos mais. O terceiro era um navio pequeno, muito sem
conforto, carregado de madeira em toras. Era uma pobre barca sem
equipagem, e creio eu que com muita miséria. Por isso, ainda que se
estivesse dirigindo para Cesaréia, consentiu em parar em Tiro,
desembolsando nós um dia de comida e de pagamento a toda a tripulação.
Isso nos convinha. Eu, na verdade, e comigo estava Mateus, me achava com
um pouco de medo. É tempo de tempestades… e Tu sabes o que foi que
encontramos na ida. Mas Simão Pedro disse: “Não acontecerá nada.” Então,
subimos para bordo. Parecia que as velas do navio eram anjos, de tão macio
e veloz que ele ia. Foi menos da metade do tempo que gastamos na ida para
chegarmos a Tiro, e o capitão foi tão bom que nos consentiu levar a barca a
reboque, até perto de Ptolemaida. Dentro dela desceram Pedro e André,
com João, para as manobras. Mas era muito simples… Não como na ida…
Em Ptolemaida nos separamos. E estávamos tão contentes, que lhe demos
até dinheiro além do ajustado, antes de descermos todos para a barca, onde
já estavam nossas coisas. Em Ptolemaida paramos um dia, e depois viemos
para cá… Mas não nos esqueceremos mais do que sofremos. Simão de
Jonas tem razão.
– Não temos razão também nós, ao dizermos que o demônio nos criava
obstáculos na ida? –perguntam alguns deles.
– Tendes razão. 325.8Agora, escutai. A vossa missão se acabou. Agora
vamos voltar para Jeftael, onde esperaremos Filipe e Natanael. E é preciso
irmos logo. Depois virão os outros… Enquanto isso, iremos evangelizando
por aqui, nos confins da Fenícia, e na própria Fenícia. Mas tudo o que
aconteceu fique sepultado para sempre nos nossos corações. A nenhuma
pergunta se dará resposta.
– Nem mesmo a Filipe e a Natanael? Eles sabem que nós viemos
contigo…
– Eu lhes falarei. Eu sofri muito, meus amigos, e vós o vistes. Eu
paguei com o meu sofrimento a paz de João e de Síntique. Fazei que o meu
sofrimento não seja inútil. Não aumenteis com mais um peso o que Eu já
tenho sobre os meus ombros. Eu já tenho tantos!… E o peso deles cresce
dia a dia, hora por hora… Dizei a Natanael que Eu sofri muito. Dizei-o
também a Filipe, e que eles sejam bons. Dizei-o aos outros dois. Mas não
digais nada mais do que isto. Dizer que compreendestes que Eu sofri, e que
Eu vo-lo confirmei, é verdade. Não é preciso dizer mais.
Jesus fala, muito cansado… Os oito olham para Ele, compadecidos, e
Pedro ousa acariciá-lo na cabeça, estando por detrás dele. Jesus levanta a
cabeça e olha para o seu bom Simão, com um sorriso de afetuosa tristeza.
– Oh! Não posso ver-te assim! Parece-me, e tenho a impressão de que a
alegria da nossa união cessou e que dela só resta a santidade. Enquanto isso,
vamos indo para Aqzib. Lá tu mudarás a roupa, rasparás a barba e pentearás
os cabelos. Assim, não. Não te posso ver assim… Pareces-me alguém que
escapuliu de mãos cruéis, um espancado, um exausto… Pareces-me o
Abel[45] de Belém da Galiléia, libertado de seus inimigos…
– Sim, Pedro. Mas é o coração do teu Mestre que está maltratado… e
ele não ficará bom nunca mais… será sempre mais ferido. Vamos…
325.9 João suspira:
– Isso me desagrada… Eu teria querido contar a Tomé, tão amigo de
tua Mãe, o milagre da canção e do ungüento…
– Tu o dirás um dia… Agora, não. Tudo vós direis um dia. Só então é
que podereis falar. Eu mesmo vos direi: “Ide dizer tudo o que sabeis.” Mas,
por enquanto, saibam ver no milagre a verdade. É esta: o poder da fé. Tanto
João, como Síntique acalmaram o mar e curaram o homem, não com
palavras, nem pelo ungüento. Mas pela fé com que eles usaram o nome de
Maria e o ungüento feito por ela. E ainda: isto aconteceu porque, ao redor
da fé deles, estava a vossa, a de todos vós, e a vossa caridade. Caridade para
com o ferido. Caridade para com o cretense. A um vós quisestes conservar a
vida e ao outro dar a fé. Mas, se ainda é fácil curar os corpos, é coisa bem
dura curar os espíritos. Não há doença mais difícil de ser debelada do que a
espiritual…
E Jesus dá um forte suspiro.
Estou vendo Aqzib. Pedro vai à frente com Mateus para achar
alojamento. Acompanham-no os outros, muito juntos ao redor de Jesus. No
ocidente o sol vai descendo com rapidez, enquanto eles vão entrando no
povoado.
[44] norte. Acompanham, o manuscrito original, as palavras o lugar é assim e no esboço de MV: eles relatam na página virada
para as necessidades de layout de página. No esboço se lê, no lado oeste (de cima para baixo): Mar Mediterrâneo, Ptolemaida,
Sicaminon, Quisom, Carmelo, e na encosta leste: Aczibe, aqui embaixo deve ser Jiftael. Também vamos ver os quatro pontos
cardeais.
[45] Abel, o jovem protagonista do episódio narrado em 248.5/11.
326. Uma permanência em Aqzib.
11 de novembro de 1945.
326.1 – Senhor, esta noite eu fiquei pensando… Por que queres tu vir para
tão longe, para depois voltar para os confins da Fenícia? Deixa que eu vá
com um outro. Eu vou vender o Antônio… Isso me desagrada, mas agora
ele não tem uso e ficaria dando na vista. E eu irei ao encontro de Filipe e de
Bartolomeu. Eles não podem passar senão por aquela estrada, e com certeza
me encontrarei com eles… E tu podes ficar certo de que eu não falarei. Eu
Não quero dar-te tristeza. Tu, fica repousando aqui com os outros, e assim
deixamos todos aquela estrada de Jeftael, e vamos mais depressa –diz
Pedro, enquanto vão saindo da casa onde dormiram.
E já estão parecendo menos magros, porque mudaram de roupa e suas
barbas e cabelos foram postos em ordem por uma mão habilidosa.
– Teu pensamento é bom. Não me oponho a que o realizes. Vai, então,
com os companheiros que quiseres.
– Com Simão, então. Senhor, abençoa-nos.
Jesus os abraça, dizendo:
– Com um beijo. Ide.
Ficam olhando como eles vão descendo ligeiros para a planície.
– Como é bom Simão de Jonas! Nestes dias eu o apreciei, como nunca
havia feito antes –diz Judas Tadeu.
– Eu também –diz Mateus–. Ele nunca é egoísta, nunca soberbo, nunca
exigente.
– Nunca se prevaleceu de ser ele o chefe. Pelo contrário! Parecia o
último de nós, mesmo quando se conservava em seu posto –acrescenta
Tiago de Alfeu.
– A nós isso não espanta. Há anos que o conhecemos. Ele é impetuoso,
mas tem um grande coração. Além disso, é tão honesto –diz Tiago de
Zebedeu.
– Meu irmão é bom, ainda que seja um pouco rude. Mas, desde quando
veio ficar com Jesus, sua bondade cresceu o dobro. Eu tenho um caráter
muito diferente e por isso, às vezes ele se impacientava. Mas era porque
compreendia que eu sofria com aquele caráter. Era para o meu bem que se
impacientava. Quando se chega a compreendê-lo, concorda-se com ele –diz
André.
– Nestes dias nos entendemos sempre bem e fomos todos um só
326.2
coração –afirma João.
– É verdade! Também eu notei isso. Durante o mês inteiro, e em
momentos de ansiedade, nunca tivemos desentendimentos… Enquanto
que,às vezes… não sei por que… –fica falando sozinho Tiago de Zebedeu.
– Por quê? Ora, é fácil de entender-se! Porque estamos firmes em nossa
intenção. Perfeitos, ainda não. Mas firmes, sim. E, por isso, aceitamos o
bem que alguém propõe ou rejeitamos o mal que alguém nos mostra como
tal, quando antes não o tínhamos conseguido ver assim por nós mesmos. E
por quê? Não é difícil dizê-lo. Porque nós oito temos um só pensamento:
fazer todas as coisas de modo a dar alegria a Jesus. Eis aí tudo –exclama
Tadeu.
– Eu não creio que os outros tenham outro pensamento –diz,
conciliador, André.
– Não. Nem Filipe, nem Bartolomeu, ainda que este esteja já com muita
idade e esteja muito por Israel. E também não Tomé, ainda que seja muito
mais homem do que espírito. Eu seria injusto para com esses, se os acusasse
de… Jesus, bem que tens razão. Perdoa. Mas, se soubesses o que é para
mim ficar vendo o que estás sofrendo. E tudo por causa dele! Eu sou teu
discípulo como todos os outros. Mas, além disso, sou teu irmão e teu amigo,
e o sangue quente de Alfeu está em mim. Jesus, não fiques olhando para
mim, assim sério e triste. Tu és o Cordeiro, e eu… o leão… E podes crer
que muito me custa o refrear-me, para não rasgar com uma patada esta rede
de calúnias que te envolve e derrubar o abrigo no qual está escondido o
verdadeiro inimigo. Eu gostaria de ver qual é a realidade do rosto espiritual
dele, ao qual eu dou um nome… mas pode ser que assim o esteja
caluniando. Nele eu deixaria um tal sinal, se eu conseguisse conhecê-lo sem
possibilidade de engano, que lhe tiraria para sempre a vontade de fazer-te
mal –diz com veemência Tadeu, que foi detido por um olhar de Jesus,
quando ia começando a falar.
Tiago de Zebedeu lhe responde:
– Terias que deixar esse sinal na metade da população de Israel!… Mas
Jesus irá para frente do mesmo modo. Tu viste nestes dias como nada se
pode contra Jesus. 326.3Que vamos fazer agora, Mestre? Já falaste aqui?
– Não. Há menos de um dia que eu cheguei a estas encostas, Eu dormi
na mata.
– Será porque eles não te aceitaram?
– O coração deles rejeitou o Peregrino… Eu estava sem dinheiro…
– Então, eles são de uns corações de pedra. Eles teriam medo de quê?
– De que Eu fosse um ladrão… mas não importa. O Pai, que está nos
Céus, me fez encontrar uma cabra, perdida ou fujona. Vinde cá, que Eu vo-
la mostro. Ela está no meio do mato com o seu cabritinho. A cabra não
fugiu ao ver que Eu me aproximava dela. Mas me deixou até espremer o
leite em minha boca… como se Eu também fosse um filhote dela. Eu dormi
perto dela, com o cabritinho quase sobre o meu coração. Deus é bom para
com o seu Verbo!
Vão indo para aquele lugar de ontem, para um capão de mato bem
fechado e cheio de espinheiros. Um carvalho secular, que eu não sei como
pode ainda estar vivo com esta rachadura na base, como se o terreno se
tivesse aberto e tivesse partido em dois o seu forte tronco, tudo enfaixado
por heras verdes e por sarças que agora estão sem folhas. E Jesus está no
meio disso tudo. Perto dali está pastando a cabra com o seu cabritinho e,
vendo tantos homens aponta para eles os seus chifres, como uma defesa.
Mas depois ela reconhece Jesus e se acalma. Eles lhe oferecem migalhas de
pão e se afastam.
– Eu dormi ali –explica Jesus–. E ali Eu teria ficado, se vós não
tivésseis vindo. Eu já estava com fome. A finalidade do jejum havia
terminado… Não era preciso ficar insistindo por causa de outras coisas que
não têm mais jeito…
Jesus está triste de novo… Os seis se olham de soslaio, mas nada
dizem.
– E agora? Aonde vamos?
– Vamos ficar aqui, por hoje. Amanhã desceremos para pregar na
estrada de Ptolemaida e depois iremos para os confins da Fenícia, para
voltarmos para cá, antes do sábado.
E devagar vão voltando para o povoado.
327. Nos confins da Fenícia. Discurso sobre
a igualdade dos dons e parábola do fermento.
[Sem data]
327.1 A estrada, que da Fenícia vai para Ptolemaida, é uma bela estrada,
de traçado em linha reta, na planície, entre o mar e os montes. E, pelo modo
como é conservada, deve ser muito freqüentada. Em muitos pontos é
atravessada por estradas menores que, dos povoados do interior, se dirigem
para os da costa, tem diversas encruzilhadas, junto às quais há, quase
sempre, uma casa, um poço e uma rudimentar alveitaria, que atende
também aos quadrúpedes, que possam estar precisando de ferraduras.
Jesus percorre um bom trecho da estrada uns dois quilômetros ou mais
com os seis que ficaram com Ele, sempre vendo as mesmas coisas. Afinal,
Ele pára perto de uma dessas casas com poço e alveitaria, em uma
encruzilhada, ao lado de uma torrente, sobre a qual há uma ponte que, por
robusta que seja, tem apenas a largura que basta para um carro, e assim faz
que nela seja o ponto de parada forçada para quem vai e para quem vem,
porque os que vêm de lados opostos não podem passar ao mesmo tempo. E
isto serve de pretexto aos que por ali passam, pessoas de raças diferentes,
pelo que eu estou podendo deduzir, por exemplo, fenícios e israelitas
verdadeiros e autênticos, e que têm ódio uns aos outros, para se
encontrarem ali, com uma única intenção: a de rogarem pragas a Roma…
Sem Roma eles não teriam nem aquela ponte e, com a cheia da torrente, não
teriam também nem podido passar. Mas, não importa! O opressor é sempre
odiado, ainda que ele faça coisas úteis!
Jesus pára perto da ponte, no lado cheio de sol onde está a casa que, do
lado da torrente, fica perto da malcheirosa alveitaria, na qual estão forjando
as ferraduras para um cavalo e dois burros, que perderam as que iam
levando. O cavalo está atrelado a um carro romano, no qual estão alguns
soldados, que se deleitam em fazer caretas para os hebreus, que lhes rogam
pragas. E a um velho narigudo, mais irado do que os outros, uma verdadeira
língua viperina que eu acho que de boa vontade iria morder os romanos
para envenená-los, eles lhe atiram em cima uma mãozada de estrume de
cavalo… Imaginai o que aconteceu! O velho hebreu sai dali gritando, como
se o tivessem infectado de lepra e a ele se unem em coro outros hebreus. Os
fenícios gritam, zombeteiros:
– Gostastes do maná novo? Comei, comei, a fim de terdes fôlego para
gritar contra os que são bons demais para convosco, víboras hipócritas.
Os soldados escarnecem deles… Jesus cala.
O carro romano finalmente parte, e os soldados saúdam ao ferrador
com este grito:
– Salve, ó Tito, e que passes bem!
O homem, um garboso ancião, tem um pescoço de touro, um rosto
imberbe, uns olhos muito pretos, ao lado de um nariz volumoso, sob o
alpendre de uma fronte saliente e ampla, um pouco calva pois são poucos os
cabelos e, nos pontos em que existem, são curtos e um pouco crespos. Ele
levanta o martelo, num gesto de despedida, depois se vira de novo para a
bigorna, sobre a qual um jovem acabou de pôr um ferro em brasa, enquanto
um outro rapaz está queimando o casco de um burrinho, a fim de prepará-lo
para a próxima ferração.
327.2 – São quase todos romanos estes ferradores, ao longo das estradas.
São soldados que ficaram por aqui, depois de terem prestado o serviço
militar. E aqui eles ganham… Não estão impedidos nunca de cuidar dos
animais… E um burro pode perder a ferradura antes do pôr-do-sol do
sábado, ou no tempo das Encênias… –observa Mateus.
– Aquele que ferrou para nós o Antônio era casado com uma hebréia –
diz João.
– As mulheres tolas são em maior número do que as mulheres sábias –
sentencia Tiago de Zebedeu.
– E os filhos, de quem são? De Deus, ou do paganismo? –pergunta
André.
– São do cônjuge mais forte, quase sempre –responde Mateus–. Mas,
uma vez que a mulher não seja uma apóstata, eles são hebreus, porque o
homem, estes homens, consentem que assim seja. Eles não são muito
fanáticos, nem com o seu Olimpo. Eu acho que eles não crêem em nada
mais, a não ser na necessidade do seu ganho. Eles são cheios de filhos.
– Suas uniões, porém, são desprezíveis. Eles não têm uma fé, uma
verdadeira pátria… são malvistos por todos… –diz Tadeu.
– Não. Estás enganado. Roma não os despreza. Pelo contrário, os ajuda
sempre. Eles lhe servem mais agora do que quando portavam as armas. Eles
penetram entre nós mais pela corrupção do sangue, do que pela violência.
Quem sofre, quando isso acontece, é a primeira geração. Depois eles se
espalham e… o mundo se esquece… –diz Mateus, que parece muito bem
informado.
– Sim, os filhos são os que sofrem. Mas também as mulheres hebréias
assim unidas… Sofrem por elas mesmas e pelos seus filhos. Tenho dó
deles. Ninguém lhes fala mais de Deus. Mas isto não será mais assim no
futuro. Então, não haverá mais tais separações entre criaturas e nações,
porque as almas estarão unidas numa só Pátria: a minha –diz Jesus, que até
aqui havia ficado calado.
– Mas, então, elas estarão mortas!… –exclama João.
– Não. Elas serão acolhidas em meu Nome. Não haverá mais romanos,
nem líbios, nem gregos, nem pônticos, nem ibéricos, nem gauleses, egípcios
nem hebreus, mas almas de Cristo. E ai daqueles que quiserem distinguir as
almas, todas por Mim igualmente amadas, e pelas quais, de modo igual, Eu
terei sofrido, sejam quais forem as suas pátrias terrenas. Aquele que assim
fizesse demonstraria não ter compreendido a Caridade, que é universal.
Os apóstolos percebem a censura que está nestas palavras, inclinam
suas cabeças, e ficam calados…
327.3 O barulho da marreta batida na bigorna cessou, e já se vão
espaçando mais as marteladas sobre o casco do último burro. Jesus
aproveita, então, para levantar a voz e fazer-se ouvir pela multidão.
Parece que Ele está continuando a falar o que estava dizendo aos
apóstolos. Na realidade, porém, Ele está falando aos que vão passando, e
talvez também aos que estão dentro da casa, certamente algumas mulheres,
porque o barulho que de lá está vindo pelos ares é de vozes femininas.
– Ainda que pareça não haver parentesco, ele sempre existe entre os
homens. É aquele parentesco por parte do único Criador, que foi o mesmo
para todos. E, se depois os filhos de um Pai único se foram separando, isso
não significa que se alterou o liame de origem, assim como não fica
mudado o sangue de um filho, quando ele abandona a casa paterna. Nas
veias de Caim estava o sangue de Adão, mesmo depois que seu delito o
obrigou a fugir pelo mundo afora. E nas veias dos filhos nascidos depois
das dores de Eva, que gemeu sobre o cadáver de seu filho assassinado,
estava o mesmo sangue que circulava nas do distante Caim.
A mesma coisa, e ainda com mais razão, se pode falar sobre a
igualdade entre os filhos do Criador.
Estão eles dispersos? Sim. Estão exilados? Sim. São culpados? Sim.
Falam eles outras línguas, e crêem em outra fé, por nós não aceitas? Sim.
Estão eles corrompidos por suas uniões com os pagãos? Sim. Mas a alma
deles veio de Um só, e há de ser sempre ela, ainda que ferida, desviada,
exilada, corrompida… Ainda que seja um motivo de dor para Deus Pai, ela
é sempre uma alma por Ele criada.
327.4 Os filhos bons de um Pai muito bom devem ter sentimentos bons.
Bons para com o Pai, bons para com os irmãos, tais como eles se tornaram,
porque são filhos de um mesmo Pai. Bons para com o Pai, procurando
consolá-lo em sua dor, fazendo voltar a Ele os filhos causadores de sua dor,
ou porque são pecadores, ou se tornaram apóstatas, ou porque são pagãos.
Bons para com os próprios homens, porque eles têm uma alma, que veio do
Pai, e está encerrada num corpo culpado, embrutecida, tornada obtusa por
alguma religião errada, mas sempre uma alma do Senhor, igual à nossa.
Lembrai-vos, ó vós de Israel, de que não há ninguém, ainda que fosse o
idólatra mais afastado de Deus, por sua religião idolátrica, ainda que fosse o
mais pagão entre os pagãos, ele não estaria absolutamente privado de um
traço de sua origem. Lembrai-vos, ó vós, que errastes, ao afastar-vos da
justa Religião, descendo a uma mistura de sexos que a nossa Religião
condena[46] e, ainda que vos pareça que o que era Israel já morreu em vós, e
morreu sufocado pelo amor a um homem de fé e raça diferente, morto não
está. É alguém que ainda está vivo. É Israel. E vós tendes o dever de soprar
sobre esse fogo que está morrendo, de sustentar a labareda, que subsiste
ainda por vontade de Deus, para fazê-la crescer acima do amor carnal. Este
acaba com a morte. Lembrai-vos disso. E vós, vós, quem quer que sejais,
que estais vendo, e muitas vezes ficais horrorizados, ao verdes os híbridos
conúbios de filhas de Israel com alguém de outra raça ou de outra fé,
lembrai-vos que tendes a obrigação, o dever de ajudar com caridade a irmã
extraviada, para que ela reencontre os caminhos do Pai.
Esta é a nova Lei, santa e agradável ao Senhor: que os seguidores do
Redentor redimam onde houver alguém para ser redimido, a fim de que
Deus sorria pelas almas que voltam à casa Paterna, e para que não fique
estéril ou muito vilipendiado o sacrifício do Redentor.
327.5 Para fazer que muita farinha fermente, a dona de casa toma um
pouquinho da massa feita na semana que passou. Oh! Apenas uma migalha
é tirada da grande quantidade de massa. E ela a enterra na montanha de
farinha e conser-va tudo isso ao abrigo dos ventos contrários, à temperatura
morna e propícia da casa.
Fazei assim, vós, que sois seguidores do Bem, fazei assim vós, ó
criaturas, que vos afastastes do Pai e do seu Reino. Dai vós, por primeiro,
uma migalha do vosso fermento para aumentar e ajudar as moléculas da
justiça que ainda subsistem nelas. E vós e elas conservai o fermento novo
ao abrigo dos ventos contrários do Mal, na temperatura agradável da
Caridade, conforme o vosso estado: se ela é que manda em vós como
senhora, ou se ainda se esforça para estar viva em vós, por mais que já
esteja moribunda. Fechai ainda as paredes da casa de uma falta de religião a
respeito daquilo que está fermentando no coração a uma pessoa que tem a
vossa mesma fé, mas está tão desviada, que se sinta ainda amada por Israel,
ainda filha de Sião e irmã nossa, para que assim fermentem todas as boas
vontades e venha às almas e para as almas todas o Reino dos Céus.
327.6 – Mas, quem é? Mas, quem é? –perguntam as pessoas, que não
estão mais com pressa de passar, mesmo que a ponte já esteja livre, e
também de continuar a viagem, depois de já a terem atravessado.
– É um rabi.
– Um rabi de Israel.
– Quem? Aqui nos confins da Fenícia? É a primeira vez que isto
acontece!
– No entanto, assim é. Aser me disse que Ele é aquele a quem chamam
o Santo,
– Então, talvez esteja procurando refugiar-se entre vós, porque lá o
estão perseguindo.
– Eles são como certos répteis!
– Que bom que Ele venha para o meio de nós. Fará milagres…
Enquanto isso, Jesus se afastou, tomou um caminho através dos
campos, e lá se vai…
[46] condena, como em Gênesis 24,1-8; Deuteronômio 7,3-4; 1 Reis 11,1-13, Esdras 9-10, Neemias 13,23-29; Malaquias 2,11-12.
Várias vezes, o trabalho mostra que os casamentos mistos (aqui chamado: mistura de sexos… de diferentes credos e de raça
diferente) foram reprovados pelos judeus em relação à letra da lei, cujo real significado é revelado nos ensinamentos de Cristo,
como aqui e em 245.3 e 323.8.
328. Até Alexandrecene, dos irmãos de Hermion.
12 de novembro de 1945.
328.1 Chegam de novo à estrada, depois de um longo giro através dos
campos e depois de terem atravessado a torrente, passando por uma
pinguela de tábuas chiantes, que só serve mesmo para passagens de
pessoas: é mais uma passarela, do que uma ponte.
E a marcha continua pela planície, que vai se tornando sempre mais
estreita, porque as colinas avançam sobre o litoral, e tanto, que depois se
passar por mais uma torrente, que também tem sua ponte romana, a estrada
deixa a planície, para continuar no monte, bifurcando-se na ponte com uma
outra menos íngreme, que se estende para o nordeste por um vale, enquanto
este, por onde Jesus quer ir, seguindo a indicação do cipo romano:
“Alexandrecene – m.v°”.
É uma verdadeira e propriamente dita escada no monte rochoso e
escarpado, que mergulha seu focinho agudo no Mediterrâneo, que se vai
desdobrando sem-pre mais à vista, à medida que se sobe. Só os pedestres e
os burros é que percorrem esta estrada, esta escadaria, como seria melhor
dizer. Mas talvez se-ja porque ela serve para se atalhar muito, pois é
também muito batida e as pessoas estão observando, curiosas, este grupo de
galileus, tão pouco vistos por aqui, e que a vão percorrendo.
– Este deve ser o cabo da tempestade –diz Mateus, mostrando o
promontório, que se lança no mar.
– Sim, lá embaixo está o povoado, do qual o pescador nos falou[47] –
confirma Tiago de Zebedeu.
– Mas, quem terá feito esta estrada?
– Quem sabe de quando é? Obra fenícia, talvez…
– Lá do alto veremos Alexandrecene, para lá da qual está o Cabo
Branco. Lá verás muito mar, meu João! –diz Jesus, pondo um braço ao
redor das costas do apóstolo.
– Ficarei alegre com isso. Mas, daqui a pouco, chega a noite. Onde
iremos parar?
– Em Alexandrecene. Estás vendo? A estrada já começa a descer. Mais
abaixo ela é plana até à cidade, que se pode ver lá em baixo.
[48]… Como poderemos fazer
328.2 – É a cidade da mulher de Antigônio
para contentá-la? –diz André.
– Sabes, Mestre, ela nos disse: “Ide a Alexandrecene. Meus irmãos têm
empórios lá, e são prosélitos. Fazei que eles ouçam falar do Mestre. Nós
também somos filhos de Deus…”, e chorava, porque é pouco tolerada como
nora… de tal modo, que nunca os irmãos vão a ela, e ela não tem notícias
deles… –explica João.
– Nós iremos procurar os irmãos da mulher. Se eles nos acolherem
como peregrinos, nós teremos meios de fazê-la contente…
– Mas, como faremos para dizer que a vimos?
– Ela é dependente de Lázaro. E nós somos amigos de Lázaro –diz
Jesus.
– É verdade. Tu falarás…
– Sim. Mas apressai o passo, para encontrarmos a casa. Sabes onde é?
– Sim. Perto do Castelo. Eles têm muito relacionamento com os
romanos, aos quais vendem muitas coisas…
– Está bem.
328.3 Terminam rapidamente a estrada, toda plana, bonita, uma
verdadeira estrada consular, que certamente vai unir-se com as do interior,
ou melhor, que certamente continua para o interior, depois de ter lançado
suas ramificações rochosas em escadarias, ao longo da costa e a cavaleiro
do promontório.
Alexandrecene é mais uma cidade militar do que civil. Ela Deve ter
uma importância estratégica, que eu não sei qual é. Agachada como ela está
entre dois promontórios, mais parece uma sentinela colocada de guarda
naquele trecho do mar. Agora, que os olhares já podem ver um e outro cabo,
pode-se ver também como sobre eles é grande o número de torreões
militares, que formam uma corrente com os da planície e os da cidade,
onde, perto da costa, se ergue o imponente castelo.
Entram na cidade, depois de terem atravessado uma outra pequena
torrente, situada justamente perto das portas, e se dirigem para o molhe da
fortaleza, de aspecto severo, olhando, curiosos, ao redor de si, e sendo
também curiosamente observados.
Os soldados são em grande número, e parece que têm bom
relacionamento com os cidadãos, o que faz que os apóstolos fiquem
murmurando por entre dentes:
– Gente fenícia! Gente sem honra!
328.4 Chegam aos armazéns dos irmãos de Hermion, enquanto os últimos
fregueses estão saindo carregados com as mais variadas mercadorias, que
podem ser desde os panos, tecidos para enxugar louças, até o feno, o óleo e
os mantimentos que estão nos celeiros e depósitos. O cheiro dos couros, das
especiarias, das palhas, de lãs ainda não trabalhadas, enche o amplo espaço,
através do qual se chega ao pátio, vasto como uma praça, sob cujos pórticos
estão os diversos depósitos.
Aparece um homem barbudo e moreno.
– Que quereis? Alimentos?
– Sim… e também alojamento, se não ficas aborrecido por alojar
peregrinos. Estamos vindo de longe, e nunca estivemos por aqui. Acolhe-
nos em nome do Senhor.
O homem olha atentamente para Jesus, que falou em nome de todos. O
homem o perscruta… Depois diz:
– Para dizer a verdade, eu não costumo dar alojamento. Mas Tu me
agradas. És galileu, não é mesmo? São melhores os galileus do que os
judeus. Nestes há muita bazófia. Eles não nos perdoam porque temos um
sangue não puro. Fariam eles melhor se procurassem ter uma alma pura.
Vem, entra para cá que eu já volto. Vou fechar, porque já é noite.
De fato, a luz já é de crepúsculo, e o é ainda mais no pátio, que está
atrás do poderoso castelo.
Entram em uma sala e vão-se assentando em umas cadeiras espalhadas
por aqui e por ali.
O homem já está de volta com dois outros, um mais velho e outro mais
novo. Ele lhes mostra os hóspedes, que se levantam saudando, e diz:
– Aí estão. Que vos parece? A mim me parecem honestos…
– Sim. Fizeste bem –diz o mais velho ao seu irmão.
E depois, virado para os hóspedes, ou melhor, para Jesus, que
claramente está dando a entender que é o chefe, e lhe pergunta:
– Como vos chamais?
– Jesus de Nazaré, Tiago e Judas, também de Nazaré. Tiago e João de
Betsaida, e também André e Mateus, que é de Cafarnaum.
– Como é que viestes parar aqui? Estais sendo perseguidos?
– Não. Estamos evangelizando. Já percorremos mais de uma vez a
Palestina, da Galiléia até a Judéia, de um até o outro mar. E até no além-
Jordão, na Auranítida já estivemos. Agora, viemos até aqui… para ensinar.
– Um rabi aqui? Para nós isso é espantoso, não é mesmo, Filipe e
Elias? –pergunta o mais velho.
– E muito. De que casta sois vós?
– De nenhuma. Eu sou de Deus. Crêem em Mim os bons do mundo. Eu
sou pobre, amo os pobres, mas não desprezo os ricos, aos quais Eu ensino o
amor e a misericórdia, o desapego das riquezas, assim como ensino aos
pobres a amar a sua pobreza, confiando em Deus, que não deixa ninguém
perecer. 328.5Entre os amigos ricos e discípulos meus está Lázaro de
Betânia…
– Lázaro? Temos uma irmã casada com um servo dele.
– Eu sei. Também por isso é que Eu vim. Para dizer-vos que ela vos
manda saudações, e vos ama.
– Tu a viste?
– Eu não. Mas estes que estão comigo, e que foram mandados por
Lázaro a Antigônio.
– Oh! Que é que estais dizendo? Que Hermion está fazendo? Ela está
feliz mesmo?
– O esposo e a sogra gostam muito dela. O sogro a respeita… –diz
Judas Tadeu.
– Mas não lhe perdoa o sangue da mãe. Dize isto também!
– Ele está para lhe perdoar. Ele nos disse grandes louvores a respeito
dela. Ela tem quatro meninos muito bonitos e bons. Isto a faz muito feliz.
Mas ela os traz sempre no coração e disse que virá trazer-vos o Mestre
Divino.
– Mas… como… Tu és o… És aquele que chamam o Messias, és Tu?
– Eu sou.
– És verdadeiramente o… Disseram-nos em Jerusalém que Tu és e que
Te chamam o Verbo de Deus. É verdade?
– Sim.
– Mas Tu o és para aqueles de lá, ou para todos?
– Para todos. Podeis crer que Eu sou Aquele?
– Crer não custa nada, e ainda menos quando se espera que a coisa que
se crê pode tirar-nos o que nos faz sofrer.
– É verdade, Elias. Mas, não digas assim. É um pensamento muito
impuro, muito mais do que o sangue mestiço. Alegra-te, não pela esperança
de que caia o que te faz sofrer como homem, pelo desprezo dos outros, mas
alegra-te pela esperança de conquistar o Reino dos Céus.
– Tens razão. Eu sou um meio pagão, Senhor…
– Não te rebaixes. Eu amo também a ti e por ti também Eu vim.
– Eles devem estar cansados, Elias. Tu os estás detendo com
328.6
discursos. Vamos para a ceia e depois leva-os ao lugar do repouso. Aqui não
há mulheres… Nenhuma de Israel nos quis e nós queríamos uma delas…
Perdoa, pois, se a casa te parecer fria e desabitada.
– O vosso bom coração a tornará ornada e aquecida.
– Quanto tempo ficas por aqui?
– Não mais de um dia. Eu quero ir para Tiro e Sidon, e gostaria de estar
em Aqzib, antes do sábado.
– Não podes, Senhor! Sidon está longe!
– Amanhã Eu gostaria de falar aqui.
– A nossa casa é como um porto. Sem sair dela, terás ouvintes ao teu
gosto e tanto mais, porque amanhã a feira é grande.
– Então vamos e que o Senhor vos recompense pela vossa caridade.
[47] falou conosco no passeio de barco a partir de Ptolemaida a Tiro, 318.5.
[48] da mulher Antigonio, nas dez linhas mencionadas abaixo, é Hermione, encontrada em 323.8.
329. No mercado de Alexandrecene.
A parábola dos operários da vinha.
13 de novembro de 1945.
329.1 O pátio dos três irmãos está pela metade na sombra e com a outra
metade iluminada pelo sol. Ele está cheio de pessoas, que vão e vêm para
fazerem suas compras, enquanto do lado de fora do portão, na pequenina
praça, ouve-se o vozerio da feira de Alexandrecene, em um confuso ir e vir
de adquirentes e compradores, de burros, de ovelhas, cordeiros, galinhas.
Porque se entende que aqui eles encontrem menos dificuldades e, com os
frangos trazidos para a feira, não se precisa ter medo de contaminações. Os
relinchos, os balidos, o cacarejar das galinhas e o canto dos galos novos se
misturam com as vozes dos homens em um alegre coro que, de vez em
quando, faz ouvir algumas notas agudas e dramáticas, por causa de alguma
altercação.
Também no pátio dos irmãos há um murmúrio e não falta alguma
altercação, ou por causa do preço, ou porque algum freguês pegou alguma
coisa que um outro já tinha a intenção de pegar. Não faltam as lamentações
nem a voz chorosa dos mendigos que, perto do portão da praça, recitam a
ladainha de suas misérias, com uma voz cantada e triste, como o gemido de
um moribundo.
Os soldados romanos vão e vêm, como se fossem os donos das lojas e
da praça. Acho que eles estão a serviço da ordem, porque estão armados, e
nunca estão sozinhos, indo por entre os fenícios, que estão todos armados.
Também Jesus vai e vem pelo pátio, dando algumas voltas com os seis
apóstolos, como quem está esperando o momento oportuno para falar.
Depois Ele desce por um instante até à praça, passando por perto dos
mendigos, aos quais dá uma esmola. O povo se diverte por alguns minutos a
olhar o grupo dos galileus, e muitos ficam perguntando quem serão aqueles
homens estrangeiros. Mas há alguém que se informa, tendo ido perguntar
aos três irmãos, que são os hospedeiros deles.
Um novo murmúrio surge agora, o dos que vão acompanhando os
passos de Jesus, que lá se vai tranqüilamente, acariciando os meninos que
vai encontrando em seu caminho. Entre os que estão falando em voz baixa,
não faltam também os sorrisos de escárnio e os apelidos pouco agradáveis
para os hebreus. Mas também não falta o desejo honesto de ouvir falar o
“Profeta”, o “Rabi”, o “Santo”, o “Messias de Israel”, pois com estes nomes
é que o estão mostrando, conforme o grau de sua fé e a retidão de seu
coração.
329.2 Ouço a voz de duas mães:
– Mas é verdade?
– Disse Daniel a mim mesma. Ele falou em Jerusalém com pessoas que
viram os milagres do Santo.
– Sim, está bem. Mas será assim mesmo esse homem?
– Oh! Daniel me disse que não pode ser senão Ele, pelo que Ele está
falando.
– Então… que achas? Ele me concederá a graça, ainda que eu seja
apenas uma prosélita?
– Eu diria que sim… Experimenta. Talvez Ele não volte mais aqui entre
nós. Experimenta, experimenta! Mal, certamente não te fará!
– Eu vou –diz a mulherzinha, deixando no ar o vendedor de louças, do
qual ela queria comprar umas tigelas, mas o vendedor, que estava ouvindo a
conversa das duas, irritado pelo bom negócio que ficou frustrado,
decepcionado se dirige contra a mulher, que lá ficou parada, cobrindo-a de
insultos, e dizendo: “Maldita prosélita. Sangue de judia. Mulher vendida”,
etc. etc.
Ouço a voz de dois homens sérios e barbudos:
– Eu gostaria de ouvi-lo. Dizem que é um grande Rabi.
– Um Profeta, deves dizer. Maior que o Batista. Elias me disse certas
coisas! Certas coisas! Elias o sabe, porque ele tem uma irmã casada com o
servo de um ricaço de Israel e, para ter notícias dela, costuma fazer
perguntas aos companheiros de serviço. E o tal ricaço é muito amigo do
Rabi…
Um terceiro, talvez um fenício que, estando ali perto, ouviu o que
estavam dizendo, intromete o seu rosto esguio e satírico entre os dois e diz,
zombeteiro:
– Bela santidade! Temperada com riquezas! Pelo que eu sei, o Santo
deveria viver pobremente!
– Cala-te, Doro, língua maldizente. Não és digno tu, um pagão, para
julgar tais coisas.
– Ah! Então vós é que sois dignos disso, e especialmente tu, Samuel!
Farias bem, se me pagasses aquilo que me estás devendo!
– Ora, veja! E não me fiques rodeando, ó vampiro, seu cara de fauno!
Ouço um velho meio cego, que está acompanhadode uma menininha, e
que pergunta:
– Onde está, onde está o messias?
E a menininha diz:
– Abri caminho para o velho Marcos. Por favor, dizei ao velho Marcos
onde está o Messias!
Foram duas vozes: a senil, fraca e trêmula. E a da menina, clara e firme.
E elas se espalham pela praça inutilmente, até que, afinal, um outro homem
diz:
– Quereis ir ao Rabi? Ele voltou e foi para a casa de Daniel. Lá está Ele
parado, e está conversando com os mendigos.
329.3 Ouço dois soldados romanos, que dizem:
– Deve ser o que os judeus estão perseguindo, aqueles boas peças!
Basta que se olhe para Ele e logo se vê que é melhor do que eles.
– É por causa disso que Ele lhes desagrada!
– Vamos dizê-lo ao alferes. Esta é a ordem.
– És muito tolo, ó Caio. Roma trata com desconfiança os cordeirinhos e
os suporta. Mas eu diria que ela acaricia os tigres. –(Cipião)[49].
– Não me parece, Cipião! A Pôncio se mata facilmente! –(Caio).
– Sim… mas ele não fecha sua casa às aduladoras hienas que o
bajulam. –(Cipião).
– Isto é política, Cipião! É política! –(Caio).
– É vileza, Caio, e estultícia. Deste ele deveria fazer-se amigo. Para ter
uma ajuda com que manter obediente essa canalha asiática. Ele não serve
bem a Roma, Pôncio, pois deixa de tratar bem a este para ir adular os
maus. –(Cipião).
– Não fiques criticando o Procônsul. Nós somos soldados, e o superior
é sagrado como um deus. Nós juramos obediência ao divo César, e o
Procônsul é um representante dele. –(Caio).
– Está bem, enquanto se trata de um dever para com a Pátria, sagrada e
imortal. Mas não em nosso foro interno. –(Cipião).
– Mas a obediência vem do juízo. Se o teu juízo se rebela contra uma
ordem e a critica, já não estarás obedecendo completamente. Roma se apóia
sobre a nossa obediência cega para defender suas conquistas. –(Caio).
– Pareces um tribuno, e falas bem. Mas eu te faço observar que, se
Roma é rainha, escravos é que não somos. Somos súditos. Roma não tem,
não pode ter cidadãos escravos. É uma escravidão querer impor silêncio às
razões dos cidadãos. Eu digo que a minha razão julga que Pôncio faz mal
em não cuidar deste israelita e em não dar-lhe o nome de Messias, Santo,
Profeta, o que quiseres. E acho que posso fazer isso, porque com isso não
diminui a minha fidelidade a Roma, nem meu amor a ela. Mas, mesmo sem
isso, acho que Ele ensina o respeito às leis e aos Cônsules, como está
fazendo, e que assim coopera para o bem-estar de Roma. –(Cipião).
– Tu és muito culto, Cipião… Terás um futuro. Já vais indo à frente. Eu
sou apenas um pobre soldado. No entanto, estás vendo aquilo lá adiante?
Há uma aglomeração ao redor do Homem. Vamos dizê-lo aos chefes
militares. –(Caio).
329.4 De fato, perto do portão dos três irmãos, há uma multidão de
pessoas em torno de Jesus que, por causa de sua altura, pode ser bem visto.
Pouco depois, de repente, ouve-se um grito, e o povo começa a agitar-se.
Outros vêm correndo da feira, enquanto alguns, do meio da multidão, saem
correndo pela praça e para outros lados. Ouvem-se perguntas… respostas…
– Que aconteceu?
– Que há?
– O Homem de Israel curou o velho Marcos!
– A névoa dos olhos dele se desfez.
Enquanto isso, Jesus entrou no pátio, acompanhado por um grande
número de pessoas. Mancando, no meio daquele acompanhamento, vai indo
um dos mendigos, um pouco coxo, que mais se arrasta com as mãos do que
anda com as pernas. Mas, se suas pernas estão tortas e sem força a tal ponto
que sem suas bengalas ele não iria para a frente, contudo, a força dele está
em sua voz estentórea:
– Santo, Santo! Messias! Rabi! Tem piedade de mim!
Ele grita até perder o fôlego, e sem parar.
Duas ou três pessoas se viram para ele, e lhe dizem:
– Não precisas ficar perdendo o fôlego! Marcos é hebreu, e tu, não.
– Para os verdadeiros israelitas, Ele concede graças. Mas não para os
filhos de um cão!
– Mas minha mãe era hebréia…
– Mas Deus a feriu, e te deu a ela como um monstro por causa do
pecado dela. Fora, filho de uma loba! Volta para o teu lugar, fica em tua
lama!…
O homem se encosta ao muro, abatido, apavorado pela ameaça dos
punhos que lhe estão mostrando…
Jesus pára, vira-se, e fica olhando. E diz:
– Homem, vem cá!
O homem olha para Ele, olha para os que o estão ameaçando… e não
tem coragem de ir para a frente.
Jesus abre caminho por entre uma pequena aglomeração e vai até ele.
Pega-o pela mão, põe a mão sobre o ombro dele, e lhe diz:
– Não tenhas medo. Vem para frente comigo.
E, olhando para aqueles malvados, diz com seriedade:
– Deus é de todos os homens que o procuram e que são
misericordiosos.
Eles entendem aquela antífona, e agora são eles que ficam no
acompanhamento, ou melhor, que ficam parados onde estão.
Jesus torna a virar-se. E os vê lá, confusos, querendo irem-se embora, e
lhes diz:
– Não. Vinde, vós também. Será bom também para vós, para endireitar
e fortalecer as vossas almas, como Eu endireito e fortaleço a este, porque
ele soube ter fé. Homem, Eu te digo, fica curado da tua enfermidade.
E deixa de continuar com a mão sobre o ombro do aleijado, depois de
este ter tido como que uma sacudida.
O homem se endireita, firme sobre as pernas, joga fora as muletas, já
desgastadas pelo uso. E grita:
– Ele me curou! Louvado seja Deus e minha mãe! –e depois se ajoelha
para beijar a orla da veste de Jesus.
329.5O tumulto criado pelos que querem ver e pelos que já viram e estão
comentando, chega ao auge. No fundo do corredor, que vai da praça para o
pátio, as vozes ecoam como se estivessem saindo de um poço, e o eco que
elas produ-zem se nota quando elas se chocam contra as muralhas do
Castelo.
As milícias começam a temer que tenha surgido alguma briga — pois
isto é fácil acontecer nestes lugares, aonde vêm encontrar-se tantas raças e
religiões — e um pelotão de soldados vem abrindo caminho rudemente,
perguntando o que foi que aconteceu.
– Um milagre, um milagre! Jonas, o aleijado, foi curado. Lá está ele
perto do Homem galileu.
Os soldados olham uns para os outros. E nada falam, enquanto a
multidão não passa toda, e atrás dela não se amontoou outra, formada pelos
que estavam nos armazéns e na praça, na qual podem ver-se os que ficaram:
são os vendedores, que estão com raiva, por causa da imprevista dispersão
dos fregueses, o que vai estragar a feira daquele dia. Depois, vendo passar
um dos três irmãos, perguntam:
– Filipe, sabes o que está fazendo agora o Rabi?
– Está falando, ensinando e é lá no pátio –diz Filipe todo contente.
Os soldados trocam idéias:
– Vamos ficar aqui, ou vamo-nos embora?
– O alferes disse que vigiemos…
– A quem? Ao Homem? Mas, por Ele, poderíamos apostar com os
dados, sendo o prêmio uma ânfora de vinho de Chipre –diz Cípião, aquele
que antes estava defendendo Jesus, diante de seu companheiro.
– Eu diria que Ele é que tem necessidade de ser protegido e não o
direito de Roma! Vós o estais vendo lá? Entre os nossos deuses, nenhum é
tão manso e, contudo, de um aspecto tão viril. Essa canalha não é digna de
tê-lo. E os indignos sempre são maus. Fiquemos aqui a protegê-lo. Se for
preciso, lhe salvaremos as costas e acariciaremos as destes galeotes –diz,
meio sarcástico e meio admirado, um outro.
– Dizes bem, Prudente, e até para que Prócoro, o alferes, que vive
sonhando com sublevações contra Roma… e promoções para si, em
recompensa e por merecimento, por sua constante vigilância, em favor da
saúde do divo César e da deusa Roma, mãe e senhora do mundo, a fim de
que ele se persuada de que aqui vai conquistar braçadeiras ou coroas… Vai
chamá-lo, Acio.
329.6 Um jovem soldado sai correndo e volta correndo, para dizer:
– Prócoro não vem. Ele mandou o triário Aquila…
– Bem! Bem! É melhor do que o próprio Cecílio Máximo. Aquila
serviu na África, na Gália, e esteve nas florestas vorazes, que nos levaram o
Varo e suas legiões. Ele conhece os gregos e os bretões e tem bom faro para
distinguir… Oh! Salve! Eis aqui o glorioso Aquila! Vem, ensina-nos a nós,
pobrezinhos, a compreender o valor das pessoas!
– Viva o Aquila, mestre das milícias! –gritam todos, dando afetuosas
sacudidas no velho soldado que tem o rosto cheio de cicatrizes, e assim
como está no rosto, do mesmo modo estão os seus braços nus e as barrigas
das pernas nuas.
Ele sorri com benevolência, e exclama:
– Viva Roma, mestra do mundo! E não eu, um pobre soldado. Afinal,
que está havendo?
– É preciso vigiar aquele homem alto e louro, como o cobre mais claro.
– Bem. Mas, quem é Ele?
– Dizem que é o Messias. Chama-se Jesus, e é de Nazare. É aquele,
sabes, pelo qual foi dada a ordem…
– Hum!… Será… mas parece-me que vamos correndo atrás das nuvens.
– Dizem que Ele quer fazer-se rei e suplantar Roma. Já o denunciaram
o Sinédrio e os Fariseus, os Saduceus, e os Herodianos a Pôncio. Tu sabes
que os hebreus têm esta minhoca na cabeça e, volta e meia, aparece um
rei…
– Sim, sim… Mas, se é para isso! Seja lá como for, vamos ouvir o que
Ele está dizendo. Parece-me que Ele está se preparando para falar.
– Fiquei sabendo pelo soldado que está com o centurião que o Públio
Quintiliano lhe falou dele como de um filósofo divino… As mulheres
imperiais são entusiastas dele… –diz um outro soldado, ainda jovem.
– Eu creio. Eu seria também um entusiasta dele se eu fosse uma mulher,
e o quereria em minha cama!… –diz, rindo-se de contente, um outro jovem
soldado.
– Cala a boca, seu sem vergonha! A luxúria te está carcomendo –caçoa
um outro.
E a ti não, Fábio? Ana, Sira, Alba, Maria… –caçoa um outro.
– Silêncio, Sabino. Ele está falando e eu quero escutar –ordena o
triário.
E todos se calam.
329.7Jesus subiu sobre uma caixa colocada encostada à parede. Por isso,
Ele está bem visível a todos. Sua doce saudação já se espalhou pelos ares e
foi seguida por estas palavras: “Filhos de um único Criador, ouvi!” e depois
prossegue, no meio de um auditório atento:
– O Tempo da Graça chegou para todos, não só para Israel, mas para
todo o mundo. Homens hebreus, cada qual por motivos diferentes, os
prosélitos, os fenícios, os pagãos, todos vós, ouvi a Palavra de Deus,
compreendei a Justiça, conhecei a Caridade. Se tiverdes Sabedoria, Justiça e
Caridade, tereis os meios de chegardes ao Reino de Deus, àquele Reino que
não é exclusivamente para os filhos de Israel, mas é para todos aqueles que,
de agora em diante, amarem o Verdadeiro e único Deus, e crerem na palavra
do seu Verbo.
329.8 Escutai. Eu vim de muito longe, não com planos de usurpador, nem
com a violência do conquistador. Eu vim somente para ser o Salvador de
vossas almas. O domínio, as riquezas, os cargos, não me seduzem. Tudo
isso para mim é nada, e nem olho para isso. Ou melhor, Eu só olho para ter
dó deles, pois fazem compadecer-me, pois são outras tantas correntes para
conservarem prisioneiro o vosso espírito, impedindo-o de ir ao Senhor
Eterno, único, Universal, Santo e Bendito. Eu olho para todos esses, e me
aproximo deles, como quem tem que lidar com as maiores misérias. E
procuro curá-los do seu fascinante e cruel engano, que seduz os filhos do
homem, para que eles possam usar de suas coisas com justiça e santidade,
não como armas cruéis, que ferem e matam o homem, e até, em primeiro
lugar, o espírito de quem não usa delas retamente.
Mas, em verdade, Eu vos digo, para Mim é mais fácil curar um corpo
disforme do que uma alma deformada. Para mim é mais fácil dar luz aos
olhos apagados, saúde a um corpo moribundo, do que dar luz aos espíritos e
saúde às almas doentes. Por que assim? Porque o homem perdeu de vista o
verdadeiro fim de sua vida, e se ocupa só com o que é transitório.
O homem não sabe, ou não se lembra, ou então se lembra mas não quer
obedecer a esta santa injunção do Senhor e digo também para os pagãos que
me estão ouvindo de fazer o Bem, que tanto é Bem em Roma, como em
Atenas, na Gália como na África, porque a lei moral existe debaixo de todos
os céus e em todas as religiões, em todos os corações. E as religiões, desde
a de Deus até a da moral individual, nos dizem que a parte melhor de nós
sobrevive, e que a segunda, como tiver vivido nesta vida, terá marcada
também qual será a sua sorte na outra.
Portanto o fim do homem é conquistar a paz na outra vida. Não certas
coisas como a folgança, a usura, a prepotência, o prazer, que sendo por tão
pouco tempo, são coisas que nem podem ser levadas em conta, em
comparação com uma eternidade de tormentos bem duros. E, apesar disso,
o homem não quer saber desta verdade, não quer lembrar-se dela. Se ele
não sabe dela, é menos culpado. Se não se lembra dela, é culpado até certo
ponto, porque a luz da verdade deve ser mantida acesa, como um facho
santo, nas mentes e nos corações. Mas, se dela não quer recordar-se e,
quando ela brilha, ele fecha os olhos para não vê-la, considerando-a
desagradável como a voz de um reitor pedante, nesse caso a culpa dele é
grave, muito grave.
329.9 E, no entanto, Deus perdoa, se a alma renuncia à sua má ação e
toma o propósito de procurar chegar, por todo o resto de sua vida, ao
verdadeiro fim do homem, que é conquistar para si a paz eterna no Reino do
verdadeiro Deus. Tereis vindo até hoje por uma má estrada? Estais
desanimados e pensando que já é tarde para retomar o bom caminho? Estais
desconsolados e dizendo “Eu não sabia nada disso! e, por isso, sou agora
um ignorante e não sei o que fazer”? Não. Não fiqueis pensando que tudo
acontece como com as coisas materiais, e que seja preciso muito tempo e
muita fadiga para fazer de novo o que já foi feito, mas agora com santidade.
A bondade do Eterno e verdadeiro Senhor Deus é tão grande, que não exige
de vós que volteis para trás e percorrais todo o caminho já feito, até
chegardes àquela encruzilhada onde começastes a errar, deixando o
caminho justo, para irdes pelo injusto. Aquela bondade é tanta que, no
momento em que vós disserdes: “Eu quero estar com a Verdade”, isto é, eu
quero ser de Deus, porque Deus é a Verdade, então Deus, por um milagre
todo espiritual, infunde em vós a Sabedoria, pela qual vós, de ignorantes,
vos tornais possuidores da Ciência sobrenatural, de modo igual ao daqueles
que já a possuem há anos.
Sabedoria é querer Deus, amar Deus, cultivar o espírito, inclinar-se para
o Reino de Deus, renunciando a tudo que é carnal, ao que é mundo, ao que
é de Satanás. Sabedoria é obedecer à Lei de Deus, que é uma Lei de
Caridade, de obediência, de Continência, de Honestidade. Sabedoria é amar
a Deus com todo o nosso ser e amar ao próximo como a nós mesmos. Estes
são os dois indispensáveis elementos para sermos sábios com a Sabedoria
de Deus. E no próximo estão, não só os que são de nosso sangue, da nossa
raça ou religião, mas estão todos os homens, ricos ou pobres, sábios ou
ignorantes, hebreus, prosélitos, fenícios, gregos, romanos…
329.10 Jesus foi interrompido por um urro ameaçador de alguns fanáticos.
Jesus olha para eles, e diz:
– Sim, isso é amor. Eu não sou um Mestre servil. Eu falo a verdade,
porque assim devo fazer, a fim de semear em vós o que é necessário para
terdes a vida eterna. Quer gosteis, quer não, Eu vo-lo devo dizer, para
cumprir com o meu dever de Redentor. Portanto, amai ao próximo. Todo o
próximo. Com um amor santo. Não com um sujo concubinato de interesses,
pelo qual se transforma em “anátema” o romano, o fenício ou o prosélito,
ou vice-versa, enquanto que, se o interesse for a sensualidade ou o dinheiro,
a cobiça da sensualidade ou da vantagem em dinheiro que surgirem entre
vós, aí, então, não é mais “anátema.”
Ouve-se um outro rumorejar da multidão, e os romanos, de seu posto de
observação no átrio, exclamam:
– Por Júpiter! Como fala bem este homem!
Jesus deixa que o rumor se acalme e continua:
– Amar ao próximo, como gostaríamos de ser amados. Porque nós não
gostamos de ser maltratados, de passar por vexames, de ser roubados,
oprimidos, caluniados, insultados. Até a susceptibilidade nacional ou
individual, que nós temos, os outros também a têm. Não façamos, pois, uns
aos outros o mal, o mal que não gostaríamos que nos fosse feito.
Sabedoria é obedecer, é obedecer aos dez Mandamentos de Deus:
“Eu sou o Senhor teu Deus. Não tenhas outro deus, além de Mim. Não
tenhas ídolos, e não lhes prestes culto.
Não uses o Nome de Deus em vão. É o Nome do Senhor teu Deus, e
Deus punirá a quem usa dele sem razão, ou para fazer imprecações, ou para
garantia de algum ato pecaminoso.
Lembra-te de santificares as festas. O sábado é consagrado ao Senhor,
que nesse dia repousou da Criação e o abençoou e santificou.
Honra a teu pai e à tua mãe, a fim de que vivas em paz por longos anos
sobre a terra, e eternamente no Céu.
Não matar.
Não cometer adultério.
Não roubar.
Não levantar falso testemunho contra o teu próximo.
Não desejar a casa, nem a mulher, nem o servo, nem a serva, nem o boi,
o asno, nem nenhuma outra coisa que pertença ao teu próximo.”
Isto é a sabedoria. Quem faz assim é sábio, e conquista a Vida e o
Reino sem fim. Desde hoje, pois, procurai viver segundo a Sabedoria,
dando assim mais importância a ela, do que às coisas podres da terra.
329.11 Que estais dizendo? Falai. Estais dizendo que já está tarde? Não.
Ouvi ainda uma parábola. Um patrão, ao despontar do dia, saiu para
contratar trabalhadores para a sua vinha e combinar com eles em pagar-lhes
um denário por dia. Depois saiu novamente à hora de tércia e, pensando que
os trabalhadores contratados pela manhã ainda eram poucos, e vendo pela
praça muitos desocupados, à espera de quem os contratasse, chamou-os e
lhes disse:
“Ide para a minha vinha, que eu vos pagarei o que eu prometi aos
outros.” E eles para lá se foram.
Saiu o homem outra vez pela hora sexta, e pela nona, e ainda viu
outros, e lhes disse:
“Quereis trabalhar para mim? Eu pagarei um denário por dia aos meus
trabalhadores.” E eles aceitaram, e foram.
Saiu o dono da vinha finalmente, lá pela undécima hora e viu outros
que por ali estavam despreocupadamente tomando os últimos raios do sol.
“Que estais fazendo aqui, assim despreocupados? Não tendes vergonha
de ficar assim, sem fazerdes nada o dia inteiro?”, perguntou-lhes ele.
“Ninguém nos assalariou por dia. Teríamos querido trabalhar, ganhar
nosso pão. Mas ninguém nos chamou para a sua vinha.”
“Está bem. Eu vos chamo para a minha vinha. Ide, e recebereis o
mesmo pagamento que os outros.” Ele assim disse, porque era um patrão
bom e tinha dó da humilhação de seu próximo.
Quando chegou a tarde e terminado o trabalho, o homem chamou o seu
feitor, e lhe disse:
“Chama os trabalhadores e paga-lhes o salário como foi combinado,
mas começa pelos que chegaram por último, que são os mais necessitados,
pois nem tiveram durante o dia o alimento que os outros receberam uma e
mais vezes e que, além disso, foram os que, por reconhecimento para com a
minha compaixão, trabalharam mais do que os outros. Eu os estava
observando. Despacha-os para que possam ir tomar o merecido descanso,
gozando com os seus familiares do fruto do seu trabalho.”
E o feitor fez como o patrão lhe ordenou, dando a cada um deles um
denário.
Por último chegaram os que haviam trabalhado desde a primeira hora
do dia, e ficaram admirados por receberem eles também só um denário, e
começaram a queixar-se uns com os outros e com o feitor, e este disse:
“Eu recebi esta ordem. Ide reclamar com o patrão e não comigo.”
E eles foram, e disseram:
“Tu não estás sendo justo! Nós trabalhamos doze horas, desde antes do
orvalho até o meio-dia, pelo meio do orvalho, e depois expostos ao sol
ardente e em seguida dentro da umidade da tarde, e tu nos deste tanto como
àqueles preguiçosos que trabalharam só uma hora!… Por que isso?”, e um
especialmente levantava a voz, dizendo-se traído e usado indignamente.
“Meu amigo, em que fui injusto contigo? Que eu combinei contigo pela
manhã? Foi um dia de trabalho contínuo e o salário de um denário. Não é
verdade?”
“Sim, é verdade. Mas tu pagaste o mesmo tanto àqueles, por um
trabalho muito menor…”
“Tu não estiveste de acordo com aquele pagamento e não o julgaste
justo?”
“Sim. Estive de acordo, porque os outros trabalhavam por menos.”
“Foste maltratado aqui por mim?”
“Não. Em consciência, não.”
“Eu te concedi um descanso durante o dia e a comida, não é verdade?
Três refeições eu te dei. E, tanto a comida como o descanso, não estavam
combinados. Não é verdade?”
“Sim. Não estavam combinados.”
“Por que, então, os aceitaste?”
“Mas… Tu já o disseste: ‘Preferi assim para não fazer que vos canseis,
tendo que voltar às vossas casas’. E a nós nem parecia verdade aquilo… A
tua comida era boa. E era uma economia, era…”
“Era uma graça que eu vos dava gratuitamente e que ninguém podia
pretender receber. Não é verdade?”
“É verdade.”
“Então, eu vos fiz o bem. Por que, então, vos estais queixando? Eu que
deveria queixar-me de vós que, compreendendo como devíeis proceder com
um patrão bom, estáveis trabalhando com preguiça, enquanto estes últimos,
que vieram depois de vós, tendo recebido o benefício de uma só refeição e
os últimos até sem nenhuma refeição, trabalharam com mais afinco,
fazendo, em menos tempo, o mesmo tanto de trabalho feito por vós em doze
horas. Eu vos teria traído, se tivesse partido ao meio o salário para pagar
também a estes últimos. Mas não foi assim. Por isso, pega o que é teu, e
vai-te! Estarias querendo vir à minha casa para me impores o que queres?
Eu faço o que quero e o que é justo. Não queiras ser malvado, nem tentar-
me para que eu seja injusto. Eu sou bom.”
329.12 Ó vós todos que estais ouvindo, em verdade Eu vos digo que Deus
Pai a todos os homens propõe este mesmo contrato, e promete uma
recompensa igual. A quem com diligência se põe a serviço do Senhor, Ele
dará um tratamento com justiça, ainda que o trabalho seja pouco, por estar
próxima a morte. Em verdade, Eu vos digo que nem sempre os primeiros
serão os primeiros no Reino dos Céus, e que veremos últimos serem
primeiros e primeiros serem últimos. Lá veremos homens que não são de
Israel e mais santos do que muitos em Israel. Eu vim para chamar a todos,
em nome de Deus. Mas, se muitos são chamados, poucos são os escolhidos,
porque poucos são os que desejam a Sabedoria.
Não é sábio quem vive do mundo e da carne, e não de Deus. Não é
sábio nem para a terra, nem para o Céu. Porque na terra se criam inimigos,
punições, remorsos. E, quanto ao Céu, esse para eles fica perdido para
sempre.
Eu repito: sede bons para com o próximo, seja ele quem for. Sede
obedientes, deixando para Deus o direito de punir a quem não é justo e o de
dar or-dens. Sede continentes, sabendo resistir à sensualidade e honrados,
sabendo resistir ao ouro, e coerentes, sabendo dizer o anátema a quem o
merece, e não a quem assim vos parece, a não ser para estreitar depois
contactos com algum objeto que antes foi amaldiçoado como idéia. Não
façais aos outros o que vós não quereríeis que a vós fosse feito, e por isso…
329.13 – Fora, fora daqui, enfadonho profeta! Tu estragaste a nossa
feira!… Tu nos tiraste os clientes!… –urram os vendedores, irrompendo
dentro do pátio…
E aqueles que haviam rumorejado no pátio, diante dos primeiros
ensinamentos de Jesus, — eles não são todos fenícios, mas também
hebreus, que estão presentes, e eu não sei por qual motivo, nesta
cidade — todos se unem aos vendedores para insultar e ameaçar e,
sobretudo para expulsar… Jesus não lhes agrada, porque Ele não aconselha
a fazer o mal…
Ele cruza os braços e fica olhando. Está triste. Mas cheio de dignidade.
As pessoas, divididas em dois partidos, começam a brigar, uns
defendendo e outros ofendendo o Nazareno. Ouvem-se impropérios,
louvores, maldições e gritos dos que dizem:
– Têm razão os fariseus. Tu és um vendido a Roma, um amigo dos
publicanos e das meretrizes.
E também os que dizem:
– Calai-vos, línguas blasfemas! Vós é que estais vendidos a Roma,
fenícios do inferno!
– Vós sois o Satanás!
– Que o inferno vos engula.
– Fora! Fora!
– Fora, vós que vindes fazer feira aqui, seus usurários –e assim por
diante.
Aí os soldados intervêm, dizendo:
– Em vez de incitador, Ele é que é provocado.
E, com suas lanças, expulsam todos para fora do pátio, e fecham o
portão.
Só ficam os três irmãos prosélitos e os seis discípulos com Jesus.
– Mas, como foi que tivestes a idéia de fazê-lo falar? –pergunta o triário
aos três irmãos.
– Eles também falam a tantos! –responde Elias.
– Sim. E não acontece nada, porque eles pregam o que agrada ao
homem. Mas este não prega isso. E por isso é indigesto…
O velho soldado fica olhando atento para Jesus, que desceu do seu
lugar e está em pé, como alguém que está pensando.
Do lado de fora, a multidão continua a discussão. Então, do quartel vão
saindo outros soldados, e com eles está o próprio centurião. Batem no
portão e o fazem abrir, enquanto alguns se põem a repelir, tanto aos que
gritam: “Viva o Rei de Israel!”, como aos que o amaldiçoam.
O centurião vem para frente, apreensivo. Ataca, encolerizado, o velho
Aquila:
– É assim que tu defendes Roma? Deixando que aclamem um rei
estrangeiro numa terra que lhe está sujeita?
O velho saúda com aspereza, e responde:
– Ele estava ensinando respeito e obediência e falava de um reino não
desta terra. Por isso é que o odeiam. Porque Ele é bom e respeitoso. Não vi
motivo para impor silêncio a quem não estava ofendendo à nossa lei.
O centurião se acalma, e resmunga:
– Trata-se, então, de uma nova sedição desta canalha fedorenta… Bem.
Dái ao homem a ordem de ir-se embora logo. Não quero aborrecimentos
aqui. Cumpri esta ordem, escoltai-o até fora da cidade, logo que a estrada
estiver livre. Que Ele vá para onde quiser. Até para o inferno, se quiser. Mas
que saia de minha jurisdição. Compreendestes?
– Sim. Nós o faremos.
O centurião vira as costas, fazendo brilhar vivamente sua couraça, faz
uma onda no ar com seu manto de púrpura, e lá se vai, sem nem olhar para
Jesus.
329.14 Os três irmãos dizem ao Mestre:
– Isto nos desagrada.
– Vós não tendes culpa. E não temais. Daí não virá nenhum mal para
vós. Eu vo-lo digo…
Os três mudam de cor… Felipe diz:
– Como sabe desse nosso medo?
Jesus sorri docemente, e um raio de sol ilumina seu rosto triste:
– Eu sei o que existe nos corações e no futuro.
Os soldados foram expor-se ao sol, na expectativa, olhando de soslaio
uns para os outros, e fazem comentários…
– Poderão eles amar-nos, se odeiam até Aquele ali, que não os oprime?
– E que faz milagres, devias dizer…
– Por Hércules! Quem foi aquele de nós que tinha vindo para avisar que
havia um indiciado a ser vigiado?
– Foi Caio!
– Logo o zelador! E, enquanto isso, nós perdemos o rancho, e eu
prevejo que vou perder o beijo de uma menina!… Ah!
– Epicurista! Onde está a beldade?
– Certamente não é a ti que eu vou dizer, amigo!
– Está atrás do oleiro nos alicerces. Eu sei. Eu te vi, uma tarde
destas… –diz um outro.
329.15 O triário, como quem está passeando, vai até Jesus, anda ao redor
dele, olha para Ele e torna a olhar. Não sabe o que dizer… Jesus lhe sorri,
para encorajá-lo. O homem não sabe o que fazer… Mas se aproxima mais.
Jesus aponta para as cicatrizes:
– Foram feridas? Então és um valente e um fiel…
O velho soldado fica corado pelo elogio.
– Tens sofrido muito por amor à tua Pátria e ao teu imperador… Não
gostarias de sofrer um pouco por uma Pátria maior, que é o Céu? Por um
imperador eterno, que é Deus?
O soldado sacode a cabeça, e diz:
– Eu sou um pobre pagão, mas não está dito que eu também não chegue
lá, pela undécima hora. E quem vai me instruir? Tu estás vendo… Eles te
expulsam. E estas, sim, são feridas que fazem mal, e não as minhas!… Pelo
menos, eu devolvi as minhas aos inimigos. Mas tu, o que dás a quem te
fere?
– Dou o perdão, soldado. O perdão e amor.
– Eu estou com a razão. A suspeita contra ti é estulta. Adeus, galileu.
– Adeus, romano.
329.16 Jesus fica sozinho até que voltem os três irmãos e os discípulos
com uns alimentos que eles, os irmãos, oferecem aos soldados, enquanto os
discípulos os oferecem a Jesus. Comem ao sol, sem vontade, enquanto os
soldados comem e bebem com alegria.
Depois, um soldado sai dali, e vai dar uma olhada pela praça silenciosa.
– Podemos ir, grita ele. Todos já foram embora. Lá estão somente as
patrulhas.
Jesus se levanta mansamente, abençoa e conforta os três irmãos, com os
quais ele marca um encontro pela Páscoa, no Getsêmani, e depois sai no
meio de quatro soldados, com os seus discípulos humilhados que vêm vindo
atrás dele. Eles percorrem a estrada vazia, até chegarem à campina.
– Salve, galileu –diz o triário.
– Adeus, Aquila. Eu te peço: não façais mal a Daniel, a Elias e a Filipe.
Só Eu é que fui o culpado. Dize isto ao centurião.
– Eu não digo nada. A esta hora, ninguém mais está pensando nisso, e
os três irmãos é que nos fornecem bens, especialmente aquele vinho de
Chipre do qual o centurião gosta mais do que a vida. Fica em paz. Adeus.
Eles se separam, os soldados voltam para o outro lado das portas e
Jesus com os seus tomam o caminho que vai pela campina silenciosa, na
direção do leste.
[49] Cipião e Caio, nomes repetidos entre parênteses em cada linha de diálogo, são tomadas a partir da transcrição datilografada,
pois o manuscrito original simplesmente relata as iniciais S e C, escrito a lápis.
330. Tiago e João, “filhos do trovão”.
Para Aqzib com o pastor Anás.
14 de novembro de 1945.
330.1 Jesus caminha por uma região muito montanhosa. Não são montes
altos, mas é um contínuo subir e descer por colinas e um fluir de torrentes,
alegres nesta estação fresca, e agradáveis, límpidas como o céu, ainda
novinhas, como as primeiras folhinhas, que sempre vão-se tornando mais
numerosas sobre os ramos. Mas, por mais que a estação seja bela e alegre, a
ponto de aliviar-nos o coração, não parece que Jesus esteja muito aliviado
em seu espírito, e menos ainda do que Ele, os Apóstolos. Eles vão indo
muito silenciosos, pelo fundo de um vale. Só os pastores e os rebanhos é o
que se apresenta a seus olhos. Jesus, porém, nem parece vê-los.
Um suspiro desconsolado de Tiago de Zebedeu e suas palavras
imprevistas, nascidas de um pensamento aflitivo, é que chama a atenção de
Jesus… Tiago diz:
– Derrotas… e mais derrotas! Parecemos uns amaldiçoados…
Jesus lhe põe a mão sobre o ombro:
– Não sabes que esta é a sorte dos melhores?
– É. Eu sei disso, desde que estou contigo! Mas, de vez em quando,
seria bom termos alguma coisa diferente, e antes nós a tínhamos, para
animar de novo os corações e a fé…
330.2 – Estás duvidando de Mim, Tiago?
Grande é a dor que há nas palavras trêmulas do Mestre.
– Naaão!…
O “não” dele, na, verdade, não tem muita firmeza.
– Mas, que estás duvidando, estás. De que é, então, que estás
duvidando? Já não me amas como antes? Ao veres que fui expulso, ou feito
objeto de zombaria, ou somente perdido por estes confins da Fenícia, foi
isso que enfraqueceu o teu amor?
Há um pranto cheio de temor nas palavras de Jesus, ainda que não haja
soluços nem lágrimas. É a própria alma dele que está chorando.
– Isto não, Senhor meu. Pelo contrário, o meu amor por Ti está
crescendo mais, quando Te vejo incompreendido, não querido, abatido,
aflito. E, para não ver-te assim, para poder mudar o coração dos homens, eu
estaria pronto a dar a minha vida em sacrifício. Tu deves crer em mim. Não
fiques me triturando o coração, já tão aflito, com essa dúvida de pensar que
eu não te amo. Porque senão… Senão, eu poderei sair do sério, voltarei
atrás e tirar vingança de quem te está fazendo sofrer, para provar-te que te
amo, para tirar de Ti esta dúvida, e, se eu for preso ou morto, pouco me
importará. Para mim bastará o ter-te dado uma prova de amor.
– Oh! Filho do trovão! Para que tanta impetuosidade? Queres, então,
ser um raio exterminador?
Jesus sorri do ardor e dos propósitos de Tiago.
– Oh! Pelo menos te vejo sorrir! Isto já é um fruto destes meus
propósitos. Que dizes, João? Deveremos pôr em prática o meu pensamento
para consolar o Mestre abatido por tantas rejeições?
– Oh! Sim. Vamos nós. Vamos voltar a falar. E, se o insultarem ainda
como um rei de palavras, rei de ludíbrio, rei sem dinheiro, rei louco,
batamos duro, para que percebam que o rei tem também um exército de
fiéis, e que estes não estão dispostos a ser escarnecidos. A violência é útil
em certos casos. Vamos, meu irmão!
E nem parece ó doce João, de tão raivoso que está.
330.3 Jesus se põe entre os dois, segura-lhes os braços para retê-los e diz:
– Ora, escutai só o que estão dizendo! E o que que preguei durante todo
este tempo! Oh! Surpresa das surpresas. Até João, a minha pomba, se me
tornou um gavião. Olhai bem para ele, todos vós, e vede como está feio,
perturbado, desgrenhado e com as feições desfiguradas pelo ódio. Oh! Que
vergonha! E ainda ficais admirados, se os fenícios ficam indiferentes, se os
hebreus estão irados, se os romanos me ordenam que saia, quando vós, os
primeiros, ainda não compreendestes nada, depois destes dois anos que
estais comigo, agora que vos transformais em fel, pelo ódio que trazeis no
coração, quando pondes para fora de vossos corações a minha doutrina de
amor e de perdão, e a expulsais como uma coisa sem valor, e acolheis,
como vossa boa aliada, a violência! Oh! Pai Santo! Isto, sim, que é uma
derrota! Em vez de serdes como outros tantos gaviões, que afiam os bicos e
as garras, não seria melhor que fosseis anjos, orando ao Pai, para Ele dar
um conforto ao seu Filho? Quando foi que já se viu um temporal produzir o
bem, com os seus raios e suas saraivadas? Pois bem. Como lembrança deste
vosso pecado contra a Caridade, como lembrança de quando Eu vi aparecer
em vosso rosto o animal-homem, em lugar do homem-anjo, que Eu quero
ver sempre em vós, Eu vos darei um sobrenome: “os filhos do trovão.”
Jesus está meio sério, enquanto está falando aos dois inflamados filhos
de Zebedeu. Mas sua censura cessa, diante do arrependimento deles e, com
um rosto iluminado pelo amor, Ele os aperta contra seu coração, dizendo:
– E nunca mais fiqueis feios assim. E obrigado, pelo vosso amor. E
também pelo vosso, meus amigos, diz ainda Jesus, virando-se para André,
Mateus e os dois primos. Vinde cá, para que Eu vos abrace também. Mas
vós não sabeis que, se não houvesse outra coisa, a não ser a alegria de fazer
a vontade de meu Pai e de ter o vosso amor, Eu seria sempre feliz, ainda
que o mundo todo me esbofeteasse? Estou triste, mas não é por mim, pelas
minhas derrotas, como vós as chamais, mas por compaixão para com as
almas, que rejeitam a Vida. Aí está. Agora estamos todos contentes, não é
verdade, ó grandes meninos que vós sois? Eia, então. 330.4Ide àqueles
pastores, que estão tirando o leite de suas ovelhas, e pedi-lhes um pouco de
leite, em nome de Deus. Não tenhais medo, acrescenta Ele, ao ver o olhar
desanimado dos apóstolos. Obedecei com fé. Recebereis leite, e não
pauladas, mesmo que o homem seja um fenício.
E os seis vão indo, enquanto Jesus os fica esperando na estrada. E,
nesse ínterim, Jesus fica rezando, o triste Jesus que ninguém quer…
Retornam os apóstolos, com um pequeno balde de leite, e dizem:
– Ele mandou dizer-te que vás até lá, que ele precisa te falar, pois ele
não pode deixar lá as cabras inquietas, só com os pequenos pastores.
Jesus diz:
– Então, vamos ate lá para comermos o nosso pão.
E lá se vão todos, beirando o despenhadeiro, em cujas bordas estão se
dependurando as cabras aventureiras.
330.5 – Eu te agradeço pelo leite que me deste. Que queres de Mim?
– Tu és o Nazareno, não é mesmo? Aquele que faz milagres?
– Eu sou aquele que prega a Salvação Eterna. Eu sou o Caminho para
ir-se ao Deus Verdadeiro, sou a Verdade que se doa, a Vida que vivifica.
Não sou um feiticeiro, que faz prodígios. Os milagres são as manifestações
da minha bondade e da vossa fraqueza, que sente necessidade de provas
para crer. Mas, o que queres de Mim?
– É o seguinte: Há dois dias, Tu não estavas em Alexandrecene?
– Sim. Por quê?
– Eu também estava lá com os meus cabritos, e quando percebi que
havia lá uma briga, procurei sair de lá, porque é costume lá suscitarem
brigas para, na hora delas, roubarem o que está nas feiras. Todos são
ladrões: os fenícios… e os outros também. Eu não deveria dizer isso,
porque sou filho de pai prosélito e de mãe síria, sendo prosélito eu também.
Mas é verdade. Bom. Voltemos ao caso. Eu me havia colocado em um
grande curral com os meus animais, esperando pelo carro de meu filho. E, à
tarde, ao sair da cidade, encontrei uma mulher que estava chorando, com
uma filha pequenina nos braços. Ela tinha andado oito milhas, para chegar a
Ti, Porque ela mora fora, nas campinas. Eu lhe perguntei o que ela tinha. É
uma prosélita. Tinha ido para vender e comprar. Tinha ouvido falar de Ti. E
a esperança havia crescido em seu coração. Então, ela foi correndo até sua
casa, e apanhou a menina. Mas, quando se leva peso, tem-se que caminhar
devagar! Quando ela chegou ao empório dos irmãos, Tu não estavas mais
lá. Contudo, eles, os irmãos, lhe disseram: “Eles o expulsaram daqui. Mas
Ele nos disse ontem de tarde que fará de novo uma permanência em Tiro.”
Eu — também sou pai — então, eu lhe disse: “Vai, pois, até lá.” E ela me
respondeu: “E, se, depois de tudo o que aconteceu, Ele resolver ir por
outros caminhos, para voltar à Galiléia?” E eu lhe disse: “Escuta: ou Ele vai
por aquele caminho, ou pelo outro dos confins. Eu pastoreio entre Rohob e
Lesendam, justamente aos lados da estrada que serve de limite entre aqui e
Neftali. Se eu o vir, lhe direi. Palavra de prosélito.” E acabei de te dizer.
– E Deus que te pague por isso. Eu irei à mulher. 330.6Pois devo voltar a
Aqzib.
– Vais a Aqzib? Então, podemos viajar juntos, se tu não desprezas a um
pastor.
– Eu não desprezo a ninguém. Para que vais a Aqzib?
– Porque os cordeiros estão lá… A não ser que não os tenha mais.
– Por quê?
– Porque por lá está passando a doença. Não sei se foi feitiçaria ou
outra coisa. Só sei que a minha bela manada ficou doente. Por isso eu
trouxe para cá as cabras, que ainda estão sãs, para separá-las das ovelhas.
Aqui estarão com dois filhos. Agora eu estou na cidade, fazendo as
compras. Mas vou voltar para lá… para vê-las morrer, as minhas belas
ovelhas lanudas…
O homem suspira… Olha para Jesus, e se desculpa:
– Falar destas coisas a Ti, que és quem és, e afligir a Ti, que já vives
aflito pelo modo como te tratam, é uma espécie de estultícia. Mas as
ovelhas são afeto e dinheiro para nós, sabes?
– Eu compreendo. Mas elas ficarão sãs. Tu não as fizeste ver por quem
entende do assunto?
– Oh! Todos me disseram a mesma coisa: “Mata-as, e vende suas peles.
Não há mais nada a fazer.” E ainda me ameaçaram, se eu as deixar
vagueando por aí. Eles têm medo de que a doença pegue nas deles. Por isso,
devo conservá-las fechadas… e morrem em maior número. Eles são maus,
sabes? aqueles de Aqzib.
Jesus diz simplesmente:
– Eu sei.
– Eu digo que fizeram feitiço contra elas…
– Não. Não creias nessas histórias… Quando vierem os teus filhos, vais
partir logo?
– Logo. Daqui a momentos, estarão aqui. 330.7Estes são os teus
discípulos? São só estes?
– Não, tenho ainda outros.
– E por que eles não vêm aqui? Uma vez, perto de Meron, encontrei um
grupo deles. O chefe deles era um pastor. Assim se dizia. Um alto, robusto,
chamado Elias… Foi em outubro, me parece. Antes ou depois dos
Tabernáculos. Agora, ele te deixou?
– Nenhum discípulo me deixou.
– Haviam-me dito que…
– Que foi?
– Que Tu… que os fariseus… Afinal, que os discípulos te haviam
deixado por medo, e porque Tu eras um…
– Demônio. Dize-o logo. Eu sei. Duplo mérito é o teu que, mesmo
assim, ainda crês.
– E por este mérito você não poderia… mas talvez eu esteja pedindo
uma coisa sacrilega….
– Diga. Se for maléfica, te direi.
– E, por esse mérito, não poderias, de passagem, abençoar o meu
rebanho?
O homem está muito ansioso…
– Eu abençôo o teu rebanho. Este… –e levanta a mão, abençoando os
cabritos espalhados–,… e também o das ovelhas. Acreditas que minha
bênção as salve?
– Como salvas os homens das doenças, assim poderás salvar também os
animais. Dizem que és o Filho de Deus. As ovelhas foram criadas por Deus.
Por isso elas são coisas do Pai. Eu… Eu não sabia se era respeitoso fazer
este pedido. Mas, se podes, faze-o, Senhor, e eu levarei ao Templo grandes
ofertas de louvor. Ou melhor, darei a Ti para os pobres. E será muito bom.
Jesus sorri, e fica calado.
330.8 Chegam os filhos do pastor e, pouco depois, Jesus com os seus e o
velho partem, deixando os jovens tomando conta das cabras.
Vão indo rápidos, querendo chegar logo a Quedes, para saírem de lá o
quanto antes, procurando alcançar a estrada que do mar vai para o interior.
Deve ser a mesma que se bifurca aos pés do promontório, por onde
passaram, quando iam para Alexandrecene. Pelo menos é assim que
compreendo pelas palavras do pastor aos discípulos. Jesus está na frente,
sozinho.
– Será que não teremos outros aborrecimentos? –pergunta Tiago de
Alfeu.
– Quedes não depende daquele centurião. Está fora dos confins da
Fenícia. Os centuriões, basta não irritá-los, pois se desinteressam pelas
religiões.
– Além disso, nós não vamos parar lá…
– Seríeis capazes de fazer mais de trinta milhas em um dia? –pergunta o
pastor.
– Oh! Nós somos peregrinos perpétuos!
Vão indo sempre para frente. Já chegaram a Quedes. E Quedes já vai
ficando para trás, sem incidentes. Pegam a estrada direta. Num cipo está
marcado: Aqzib. O pastor observa isso, e diz:
– Amanhã estaremos lá. Esta noite vireis ficar comigo. Conheço
cidadãos dos vales, mas muitos estão nos confins da Fenícia… Bem!
Atravessaremos a fronteira. E certamente não seremos logo descobertos…
Oh! A vigilância deles! Melhor seria que a praticassem com os ladrões…
O sol vai descendo, e os vales não servem para ajudar a manter a
claridade, pois estão cheios de bosques. Mas o pastor tem muita prática, e
vai com segurança.
330.9 Chegam a uma pequena vila, ou melhor, a um punhado de casas.
– Se eles nos hospedarem aqui, são israelitas. Estamos já nos confins.
Se não nos quiserem, iremos para outro lugar, que é fenício.
– Eu não tenho prevenções, homem.
Batem à porta de uma casa.
– És tu, Anás? Vens com amigos? Vem, vem, e Deus esteja contigo –diz
uma mulher muito velha.
Entram em uma cozinha grande, alumiada por um fogo. Uma família
numerosa, com pessoas de todas as idades, está reunida a mesa do jantar,
mas amigavelmente arranja lugares para os recém-chegados.
– Este é Jonas. Esta é a mulher dele, os filhos, netos e as noras. Uma
família de patriarcas fiéis ao Senhor –diz o pastor Anás a Jesus.
E depois, virando-se para o velho Jonas:
– E este, que está comigo é o rabi de Israel. É aquele que tu desejavas
conhecer.
– Eu bendigo a Deus por poder hospedá-lo e por ter lugar nesta tarde. E
bendigo ao Rabi, que veio à minha casa, e lhe peço a bênção.
Anás explica que a casa de Jonas é como um albergue para os
peregrinos que do mar vão para o interior.
Assentam-se todos na cozinha quente e as mulheres servem aos recém-
chegados. Aí reina um respeito tão grande, que quase ninguém se move.
Mas Jesus resolve o problema, chamando ao redor de Si, depois da refeição,
os muitos meninos que logo se tornam seus amigos. E, atrás deles, naquele
breve espaço de tempo que separa a ceia do repouso, vão-se tornando
corajosos os homens da casa, narrando o que ficaram sabendo sobre o
Messias, e fazendo perguntas sobre o que há de novo.
E Jesus corrige, confirma, explica com bondade, em uma conversação
amistosa, até que os peregrinos e os familiares vão tomar seu repouso,
depois que Jesus abençoou a todos.
331. A fé da mulher Cananéia
e outras conquistas. Chegada a Aqzib.
15 de novembro de 1945.
331.1 – O Mestre está contigo? –perguntou o velho camponês Jonas a
Judas Tadeu, que vem entrando na cozinha, onde o fogo já está aceso para
esquentar o leite e para aquecer o ambiente, que está friozinho nestas
primeiras horas de uma belíssima manhã de fim de janeiro, creio, ou de
início de fevereiro, belíssima, mas um tanto dolorosa.
– Ele deve ter saído para orar. Ele sai muitas vezes ao romper da aurora
quando sabe que vai poder ficar sozinho. Daqui a pouco virá. Por que
perguntas?
– Eu perguntei isso também aos outros, que agora já se espalharam por
aí a procurá-lo, porque há uma mulher, do outro lado, com minha mulher.
Ela é do povoado do outro lado da fronteira, e eu nem sei dizer como foi
que ela pôde ficar sabendo que o Mestre está aqui. Mas ela já sabe. E quer
falar com Ele.
– Está bem. Ela falará. Talvez seja aquela que Ele está esperando, com
uma filhinha doente. Ela deve ter sido guiada pelo seu espírito.
– Não. Ela está sozinha. Não tem outros filhos consigo. Eu a conheço,
porque os lugares são muito próximos… e o vale é de todos. Eu, pois, acho
que não há necessidade de sermos cruéis com os vizinhos, se forem
fenícios, para servirmos ao Senhor. Poderei estar errado, mas…
– O Mestre o diz sempre também que devemos ser bondosos com
todos.
– Ele é bondoso, não é verdade?
– É.
– Disse-me Anás que agora mesmo foi maltratado. Mal, sempre mal…
Na Judéia, como na Galiléia, em todos os lugares… Mas, por que Israel é
tão mau com o seu Messias? Quero dizer, os maiorais de Israel, entre nós.
Porque o povo o ama.
– Como é que tu sabes dessas coisas?
– Oh! Vivo aqui, longe. Mas eu sou um fiel israelita. Basta ir às festas
de preceito no Templo para saber tudo o que há de bem ou de mal! E o bem
se fica sabendo menos do que o mal. Porque o bem é humilde, e não se
louva a si mesmo. Deveriam ser os que receberam o benefício os que
haveriam de proclamá-lo. Mas poucos são os agradecidos, depois de terem
recebido a graça. O homem aceita o benefício e o esquece… o mal, ao
contrário, toca fortemente as suas trombetas e faz que se ouçam as suas
palavras mesmo por aqueles que não as querem ouvir. Vós, que sois os seus
discípulos, não sabeis quanto se fala mal do Messias e o quanto é acusado
no Templo! Não se tem mais lições dos escribas a não ser sobre isto. Eu
acho que se tornaram um livro de lições sobre como acusar o Mestre e de
fatos que podem ser aceitos como objetos de acusação. E é preciso ter-se a
consciência muito reta, e firme, e livre para se poder resistir e julgar com
sabedoria. Ele sabe dessas manobras?
– Ele sabe de todas. E nós também, uns mais, outros menos, sabemos
delas. Mas Ele não estremece por isso. E continua a sua obra e os discípulos
ou os que têm fé nele aumentam cada dia.
– Queira Deus que eles assim permaneçam até o fim. Mas o homem é
mutável em seu pensamento. E fraco… 331.2Eis, o Mestre vem para casa com
três discípulos.
O velho sai, acompanhado por Judas Tadeu, a fim de venerar Jesus que,
cheio de dignidade, vai-se aproximando da casa.
– A paz esteja contigo, neste dia e sempre, Jonas.
– Glória e paz estejam sempre contigo, Mestre.
– A paz a ti Judas. André e João ainda não voltaram?
– Não. Eu nem ouvi quando eles saíram. A nenhum dos dois. Eu estava
cansado e dormindo um sono pesado.
– Entra Mestre. Entrai. O ar está fresco esta manhã. Lá no bosque devia
estar muito frio. Ali há leite quente para todos.
Estão bebendo o leite e, a não ser Jesus, todos estão ensopando um bom
pedaço de pão no leite, quando acabam de chegar André e João juntos com
Anás, o pastor.
– Ah! Tu estás aqui? Tínhamos tornado a dizer que não te havíamos
encontrado… –exclama André.
Jesus faz sua saudação de paz aos três, e acrescenta:
– Depressa. Apanhai as vossas coisas e vamos partir, pois Eu quero
nesta tarde estar pelo menos nas faldas do monte de Aqzib. Esta tarde
começa o sábado.
– Mas, e as minhas ovelhas? –pergunta o pastor perplexo.
Jesus sorri, e responde:
– Estarão curadas, desde que foram abençoadas.
– Mas, eu fico do lado leste do morro! Tu vais para o poente, para
chegar à casa da mulher…
– Deixa Deus agir e Ele proverá a tudo.
331.3 A refeição terminou e os apóstolos estão subindo, para irem apanhar
suas sacolas de viagem, preparando-se para a partida.
– Mestre… Aquela mulher, que é de lá… não a vais atender?
– Não tenho tempo, Jonas. A viagem é longa e, afinal, Eu vim para
atender às ovelhas de Israel. Adeus, Jonas. Deus te pague pela tua caridade.
A minha bênção sobre ti e sobre todos os teus parentes. Vamos.
Mas o velho se põe a gritar, com toda a força de seus pulmões:
– Filhos! Mulheres! O Mestre está partindo. Venham aqui!
E, como uma ninhada de pintinhos espalhada sobre um palheiro que
vem correndo ao grito da galinha que os chama, assim, de todas as partes da
casa, vêm correndo mulheres e homens, que estavam fazendo alguma coisa,
ou ainda meio dormindo, e os meninos seminus, com um rostinho risonho,
pois acabaram de sair do sono… Eles se reúnem ao redor de Jesus, que está
no meio do terreiro, enquanto as mães envolvem em suas amplas saias os
meninos, a fim de protege-los do ar ou então os apertam em seus braços, até
que alguma servente chegue com os vestidinhos, que logo são postos neles.
331.4 Mas vem vindo também uma que não é da casa. É uma pobre
mulher chorosa, envergonhada… Ela vem andando encurvada, quase se
arrastando e, tendo chegado perto do grupo, em cujo centro está Jesus, ela
se põe a gritar:
– Tem piedade mim, ó Senhor, Filho de Davi! Minha filha está sendo
muito atormentada pelo demônio, que a faz praticar coisas vergonhosas.
Tem piedade, porque eu sofro muito, e todos zombam de mim por isso. É
como se minha filha tivesse culpa pelo que ela faz… Tem piedade, Senhor,
Tu que tudo podes. Levanta a tua voz e a tua mão, e dá ordem ao espírito
imundo para que saia da Palma. Eu só tenho essa filha, e sou viúva… Oh!
Não te vás, Senhor! Tem piedade!
Jesus, de fato, tendo acabado de abençoar um por um dos membros da
família, depois de ter repreendido os adultos por terem falado de sua
vinda, — e depois deles se desculparem, dizendo: “Não fomos nós que
falamos, podes crê-lo, Senhor!” — Ele se vai, inexplicavelmente severo
para o lado da pobre mulher, que vai-se arrastando sobre os joelhos, com os
braços estendidos em um gesto de súplica, ansiosa, enquanto vai dizendo:
– Eu, eu te vi, quando estavas atravessando a torrente, eu ouvi que
alguém te chamou “Mestre.” Então, eu vim vindo atrás de Ti, por entre as
moitas, e ouvi as conversas deles. E fiquei sabendo quem és… E esta
manhã eu vim, mas como era ainda noite para estar aqui, fiquei na soleira
como um cachorrinho, até que Sara se levantou e me fez entrar. Oh! Senhor,
tem piedade! Piedade de uma mãe e de uma menina!
Mas Jesus vai andando ligeiro, surdo a todo chamado. Os da casa dizem
a mulher:
– Resigna-te! Ele não quer te ouvir. Ele disse: É para os de Israel que
Ele veio…
Mas ela se levanta, desesperada e, ao mesmo tempo, cheia de fé, e
responde:
– Não, Eu tanto hei de pedir que Ele me ouvirá.
E se põe a acompanhar o Mestre, sempre gritando em suas súplicas, que
atraem para as portas das casas da vila todos os que já despertaram e que,
como os da casa de Jonas, se põem a acompanhá-la, para verem como vai
terminar aquilo.
331.5 Enquanto isso, os apóstolos olham atônitos uns para os outros, e
murmuram:
– Por que será que Ele faz isso? Ele nunca fez assim!…
E João diz:
– Em Alexandrecene, contudo, Ele curou aqueles dois.
– Mas eles eram prosélitos, responde Tadeu.
– E esta vai tratar de que agora?
– Ela também é prosélita –diz o pastor Anás.
– Oh! Mas quantas vezes ele curou também aos gentios ou pagãos! E a
menina romana, então? –diz desconsolado André, que não se conforma com
a dureza de Jesus para com a mulher cananéia.
– Eu vou dizer-vos por que é –exclama Tiago de Zebedeu–. É porque o
Mestre foi desdenhado. Sua paciência tem limites, diante de tantos ataques
da maldade humana. Não estais vendo como Ele está mudado? Ele tem
razão! De agora em diante, Ele vai dedicar-se somente àqueles que Ele
conhece. E faz bem!
– Sim. Mas, por enquanto, essa aí vem gritando atrás de nós e um
grande acompanhamento de pessoas vem atrás dela. Se Ele quiser passar
por inobservado, achou agora o meio de chamar a atenção até das
plantas… –resmunga Mateus.
– Vamos dizer-lhe que a mande embora… Olhai daqui que belo cortejo
vem vindo às nossas costas! Se chegarmos assim à estrada consular,
estamos bem arranjados! E esta mulher, se Ele não a mandaembora, não vai
nos deixar… –diz Tadeu, importunado, que também se vira, e intima à
mulher–: Cala-te, e vai-te embora!
E a mesma coisa faz Tiago de Zebedeu. Mas ela não se impressiona
com as ameaças e as injunções, e continua a suplicar.
– Vamos dizer ao Mestre que a expulse, visto que Ele não a quer
atender. Assim não pode continuar! –diz Mateus, enquanto André murmura:
“Pobrezinha!”
E João fica repetindo sem parar:
– Eu não estou entendendo… Eu não estou entendendo…
João está atordoado com o modo de agir de Jesus. Mas, apressando o
passo, eles já alcançaram Jesus, que vai indo ligeiro como um perseguido.
– Mestre! Por favor, manda embora aquela mulher! É um escândalo!
Ela vem gritando atrás de nós. Está mostrando com o dedo a todos nós. A
estrada está ficando sempre mais cheia de passantes, e muitos vão-se
colocando atrás dela. Dize a ela que se vá embora.
– Dizei-o, vós. Eu já lhe dei resposta.
– Ela não escuta. Vamos, fora! Dize-lhe assim Tu. E com severidade.
331.6 Jesus pára e se vira. A mulher entende que isto é um sinal de que
vai ser atendida e acelera o passo, levanta o tom, já agudo, de sua voz, com
um rosto que empalidece, por causa da esperança que cresce.
– Cala-te, mulher. E volta para tua casa. Eu já te disse: “Eu vim para as
ovelhas de Israel”. Para curar as doentes, e ir buscar as perdidas. Tu não és
de Israel.
Mas a mulher já está a seus pés, e os beija, adorando-o, segurando-o
pelos tornozelos, como se ela fosse uma náufraga, que encontrou um
penhasco de salvação, e que geme:
– Senhor, ajuda-me! Tu o podes, Senhor. Dá ordem ao demônio, Tu que
és Santo… Senhor, Senhor, Tu és o dono de tudo, da graça e do mundo.
Tudo te está sujeito, Senhor. Eu o sei. Eu o creio. Lança mão, pois, do que é
o teu poder, e usa dele em favor de minha filha.
– Não fica bem tomar o pão dos filhos da casa e jogá-los aos cães da
rua.
– Eu creio em Ti. E crendo, de cão da rua eu me tornei um cão da casa.
Eu te disse: Eu vim antes da aurora deitar-me na soleira da porta da casa
onde estavas e, se tivesses saído por lá, terias tropeçado em mim. Mas Tu
saíste pelo outro lado, e não me viste. Não viste este pobre cão torturado,
cheio de fome da tua graça, que esperava entrar, rastejando, para onde Tu
estavas para beijar-te os pés e assim pedir-te que não o rejeitasses…
– Não fica bem jogar o pão dos filhos aos cães –repete Jesus.
– Mas os cães entram na sala, onde o dono da casa está, e comem com
os filhos, comem o que cai da mesa ou os restos do que eles dão aos
familiares e que não vai mais ser usado. Eu não te peço que me trates como
filha nem que me faças sentar-me à tua mesa. Mas dá-me pelo menos as
migalhas…
331.7 Jesus sorri. Oh! Como se transfigura o seu rosto neste sorriso de
alegria!… As pessoas, os apóstolos, a mulher olham, admirados, para Ele…
percebendo que alguma coisa está para acontecer.
E Jesus diz:
– Oh! Mulher! Grande é a tua fé! E com ela tu consolas o meu espírito.
Vai, pois, e que te seja feito como queres. Desde este momento, o demônio
saiu de tua filhinha. Vai em paz. E, visto que de um cão perdido, soubeste
querer passar a ser um cão da casa, que saibas, por isso, no futuro, ser filha,
sentada à mesa do Pai. Adeus.
– Oh! Senhor! Senhor! Senhor!… Eu quereria sair correndo para ir ver
a minha Palma querida… E quereria ficar contigo, seguir-te! Ó Bendito! Ó
Santo!
– Vai, vai, mulher. vai em paz.
E Jesus retoma o seu caminho, enquanto a cananéia, mais ligeira do que
uma menina, vai correndo pela estrada por onde veio, acompanhada pela
multidão curiosa por ver o milagre…
– Mas, por que, Mestre, fizeste que ela ficasse pedindo tanto, para só
depois atendê-la? –pergunta Tiago de Zebedeu.
– Por tua causa, e por causa de todos vós. Isto não é uma derrota, Tiago.
Aqui Eu não fui expulso, escarnecido, amaldiçoado… Que isto reerga o
vosso espírito abatido. Eu já recebi hoje o meu alimento saborosíssimo. E
por ele bendigo a Deus. 331.8E agora vamos a essa outra, que sabe crer e
esperar com fé firme.
– E as minhas ovelhas, Senhor? Pouco faltou para que eu tivesse que
tomar um outro caminho, que não é o teu, a fim de ir para as minhas
pastagens… –pergunta de novo o pastor Anás.
Jesus sorri, mas não responde.
É agradável andar, agora que o sol aqueceu o ar e faz brilhar como
esmeraldas as pequeninas folhas novas nos bosques e as ervas nos prados,
transformando em engastes os cálices das flores, pelas gotas de orvalho, que
brilham nas auréolas multicores destas florzinhas dos campos. E Jesus lá se
vai, sempre sorrindo. E os apóstolos, de repente reanimados, o seguem
sorrindo…
Chegam à encruzilhada. O pastor Anás, preocupado, diz:
– Aqui eu deveria Te deixar… Não vais mesmo curar as minhas
ovelhas? Eu também tenho fé e sou prosélito… Tu me prometes, pelos
menos, que irás lá depois do sábado?
– Oh! Anás! Mas, não entendeste ainda que as tuas ovelhas já estão
curadas desde a hora em que Eu levantei as mãos para o rumo de Lesendão?
Vai, pois, tu também, para ver o milagre e bendizeres o Senhor.
Acho que a mulher de Ló[50], quando ficou transformada em uma
estátua de sal, não terá ficado diferente do pastor, que permaneceu na
posição em que estava: um pouco encurvado, como quem se inclina, e com
a cabeça virada, a fim de poder olhar para Jesus e com um braço meio
estendido no ar… Ele também está parecendo uma estátua, e poderia ter por
baixo este letreiro: “O suplicante.” Mas, logo depois, ele se reergue, e em
seguida se prostra, dizendo:
– Bendito sejas Tu! Tu, que és bom! Tu, que és Santo!… E eu te
prometi muito dinheiro e agora não tenho aqui senão umas poucas
dracmas… Vai, vai à minha casa depois do sábado…
– Eu irei. Não por causa do dinheiro, mas para abençoar-te de novo pela
tua fé simples. Adeus, Anás. A paz esteja contigo.
E eles se separam.
– E esta também não é uma derrota, meus amigos! Pois também aqui
Eu não fui escarnecido, expulso, nem amaldiçoado… 331.9Vamos, depressa!
Há uma mãe que nos está esperando há dias.
E a marcha continua, com uma pequena parada para comer pão com
queijo e beber água de uma fonte…
O sol está no meio-dia, quando se vê aparecer a bifurcação do caminho.
– Lá está o começo da escada de Tiro, lá no fundo –diz Mateus.
E ele se alegra, ao pensar que a maior parte do percurso já está feita.
Encostada justamente no cipo romano está uma mulher. Aos pés dela,
sobre um pequeno colchão, está uma menininha de uns sete ou oito anos. A
mulher está olhando para todas as direções. Olha para a escada no rochedo.
Olha para caminho de Ptolemaida. Olha para este por onde vai Jesus e, de
vez em quando, se inclina para acariciar a menina e para proteger-lhe a
cabeça com um pano contra os raios do sol e para recobrir-lhe os pés e as
mãos com o seu xale…
– Lá está a mulher! Mas onde terá ela dormido nestes dias? –pergunta
André.
– Talvez naquela casa perto da encruzilhada. Não há outras casas por
perto –responde Mateus.
– Ou então, ao sereno da noite –diz Tiago de Alfeu.
– Não. Ela não faria isso por causa da menina –pondera o irmão dele.
– Oh! Contanto que conseguisse a graça!… –diz João.
331.10 Jesus não fala. Mas sorri. Todos estão em fila, com Ele no centro,
estando três de um lado e três do outro, ocupando toda a largura da estrada,
nesta hora em que há uma parada dos passantes, porque eles costumam ir
almoçar no ponto em que estiverem quando chega o meio-dia.
Jesus sorrri lá do alto de sua estatura e beleza, no centro do grupo. E
parece que toda a luz do sol tenha vindo concentrar-se em seu rosto, de tão
radioso que ele está. Parece mesmo estar até emitindo raios de luz.
A mulher levanta os olhos… Eu já estou à distância de uns cinqüenta
metros. Talvez o que tenha atraído a atenção dela, que estava distraída pelo
choro da filha, possa ter sido o olhar de Jesus, que estava fixado sobre ela.
Ela fica olhando… depois leva as mãos para sobre o coração, em um gesto
involuntário de ânsia e sobressalto.
Jesus sorri ainda mais. Ele está com aquele sorriso luminoso,
inexplicável, e que deve estar dizendo muitas coisas à mulher que, ansiosa
mas também sorridente, comose já tivesse sido atendida, inclina-se para
pegar a sua pequenina e, colocando-a sobre o seu colchão, com os braços
estendidos, como se a estivesse oferecendo a Deus, anda para a frente e,
chegando junto aos pés de Jesus, se ajoelha, levantando o mais que pode a
menina a Ele apresentada, a qual fica olhando, extasiada, o belíssimo rosto
de Jesus.
A mulher nada diz. E o que deve dizer de mais profundo do que com
todo seu aspecto?…
E Jesus só diz uma palavra, pequena mas poderosa e cheia de alegria,
como o “faça-se” de Deus na criação do mundo:
– Sim.
E pousa a mão sobre aquele pequeno peito que lhe está sendo
apresentado.
E a menina, dando um grito, como a calhandra, ao ver-se livre da
gaiola, diz: “Mamãe!” e, de repente, se assenta, põe-se de pé e abraça sua
mãe que, ela sim, está exausta e cambaleia, e está para cair de costas, em
um desmaio causado pelo cansaço, pela ânsia que chega ao fim, pela
alegria, que é uma sobrecarga para as forças do coração, já enfraquecido
pelas muitas dores que ela vinha sofrendo.
Jesus está pronto para socorrê-la. É uma ajuda certamente mais valiosa
do que a da menininha que, sobrecarregando com o seu peso os membros
maternos, com certeza não é o melhor meio de sustentar a mãe sobre os
joelhos. Jesus faz que ela se assente e lhe transfunde forças… E fica
olhando para ela, enquanto umas lágrimas mudas vão descendo por aquele
rosto cansado e feliz da mulher.
331.11 Depois é que lhe vêm as palavras:
– Obrigada, meu Senhor! Obrigada e bendito sejas! A minha esperança
está coroada… Eu te esperei tanto tempo… Mas agora estou feliz…
A mulher, tendo passado aquele seu meio desmaio, torna a ajoelhar-se,
adorando e tendo na sua frente a pequenina que foi curada, e que Jesus está
acariciando. E ela explica:
– Fazia dois anos que lhe havia apodrecido um osso na espinha,
paralisando-a e levando-a lentamente para a morte, no meio de grandes
dores. Nós fizemos que a vissem os médicos de Antioquia, de Tiro, de
Sidon, e até de Cesaréia e de Panéades, e gastamos tanto com os médicos e
com remédios que foi preciso vender a casa que tínhamos na cidade para
irmos na do campo, despedindo os empregados da casa e conservando
somente os da lavoura, e tendo agora que vender até aqueles produtos que
consumíamos… Mas nada disso adiantava. Foi então que eu Te vi. E fiquei
sabendo do que havias feito em outros lugares. Fiquei esperando que eu
também fosse receber uma graça… E a recebi! Agora, vou voltar para casa,
leve e cheia de alegria… e levarei esta alegria para o meu esposo… Ao meu
Tiago, que foi quem me pôs no coração a esperança, ao contar-me o que
aconteceu, pelo teu poder, na Galiléia e na Judéia. Oh! Se não tivéssemos
ficado com medo de não encontrar-te, teríamos vindo com a menina. Mas
Tu estás sempre na estrada…
– Foi caminhando que Eu cheguei a ti… Mas, onde permaneceste
nestes dias?
– Naquela casa… Mas de noite ficava lá somente a menina. Lá mora
uma boa mulher, que tomava conta dela para mim. E eu fiquei sempre aqui,
com medo de que tu passasses de noite.
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça:
– És uma boa mãe. Deus te ama por isso. Estás vendo como Ele te
ajudou em tudo.
– Oh! Sim. Eu o percebi justamente quando eu vinha vindo. Eu já vinha
vindo da casa para a cidade, esperando encontrar-te, já com pouco dinheiro
e sozinha. Depois, seguindo o conselho do homem, eu vim até este lugar.
Mandei um recado para casa e vim… e nunca me faltou nada. Nem pão,
nem abrigo, nem forças.
– Sempre com aquele peso nos braços? Não podias usar alguma
carroça?… –pergunta, compadecido, Tiago de Alfeu.
– Não. Ela teria sofrido muito e podia morrer com aquilo. Foi nos
braços da mamãe que veio a minha Joana à Graça.
Jesus acaricia as duas sobre os cabelos:
– Ide, então, e sede sempre fiéis ao Senhor. O Senhor esteja convosco e
convosco esteja a minha paz.
Jesus volta a tomar a estrada que vai para Ptolemaida.
– Esta também não é uma derrota, meus amigos. E também aqui Eu não
fui expulso, nem escarnecido, nem amaldiçoado.
331.12 Seguindo pela estrada direta, logo chegaram ao posto do alveitar,
ao lado da ponte. O ferrador romano está descansando ao sol, sentado junto
ao muro da casa. Ele reconhece Jesus e o saúda. Jesus responde à saudação
e acrescenta:
– Deixas-me parar aqui para descansar um pouco e comer um pouco de
pão?
– Sim, Rabi. Minha mulher te queria ver… porque eu falei a ela
também do ponto que ela não tinha ouvido do teu discurso da outra vez.
Ester é hebréia. Mas eu não tinha coragem de te dizer, pois sou romano. Eu
te teria mandado atrás dela…
– Chama-a, então.
E Jesus se assenta no banco, que está junto à parede, enquanto Tiago de
Zebedeu distribui pão e queijo…
Sai uma mulher dos seus quarenta anos, confusa, corada de vergonha.
– A paz esteja contigo, Ester. Tiveste o desejo de conhecer-me. Por
quê?
– Por causa daquilo que disseste… os rabis nos desprezam a nós que
nos casamos com um romano… Mas eu tenho filhos, e os levei todos ao
Templo, e os do sexo masculino foram todos circuncidados. Eu disse isto
antes a Tito, quando ele me queria… E ele é bom… Deixa-me sempre agir
a respeito dos filhos. Os usos, os ritos, tudo aqui é hebraico… Mas os rabis,
os arquisinagogos nos amaldiçoam. Tu, não… Tu tens palavras de
compaixão para conosco… Oh! Sabes o que vem a ser isso para nós? É
como se sentíssemos ao redor de nós os braços do pai e da mãe a nos
repudiar e amaldiçoar, a serem severos para conosco… É como pôr de novo
os pés na casa abandonada e não nos sentirmos estranhos nela… Tito é
bom. Para as nossas festas ele fecha o posto de alveitar, com grande perda
de dinheiro, e me acompanha com os filhos ao Templo. Porque ele diz que
sem religião não se pode ficar. Ele diz que a dele é a da família e do
trabalho, como antes era a do dever de soldado… Mas eu… Senhor… eu te
quis falar por causa de uma coisa… Tu disseste[51] que os seguidores do
verdadeiro Deus devem tirar um pouco do seu fermento santo e colocá-lo
em boa farinha, para fazê-la fermentar santamente. Eu, com o meu esposo,
fizemos isso. Eu procurei, nestes vinte anos que estamos juntos, melhorar a
alma dele, que é boa, com o fermento de Israel. Mas ele não se decide
nunca… e já está velho… Eu o desejaria comigo na outra vida… Unidos na
fé, como estamos no amor… O que possuímos é suficiente, e graças a Deus
por isso! Mas isso eu quereria… Que rezes pelo meu esposo! Que ele seja
do verdadeiro Deus…
– Ele o será. Fica segura. Tu pedes uma coisa santa e a terás. Tu
compreendeste os deveres da mulher para com Deus e para com o esposo.
Assim fossem todas as esposas! Em verdade, Eu te digo que muitas
deveriam imitar-te. Continua a ser assim e terás a alegria de ter o teu Tito a
teu lado na oração, e no Céu. 331.13Mostra-me os teus filhos.
A mulher chama sua numerosa prole:
– Jacó, Judas, Levi, Maria, João, Ana, Elisa, Marcos.
Depois, ela entra na casa e sai de lá com um que está aprendendo a
andar e com outro de três meses, quando muito.
– E este é Isaque e esta pequenina é Judite –diz ela, terminando a
apresentação.
– Que abundância! –diz sorrindo, Tiago de Zebedeu.
E Judas exclama:
– Seis homens! E todos circuncidados! E com nomes puros! Bravo!
A mulher está feliz, e elogia Jacó, Judas e Levi, que ajudam o pai
“todos os dias, menos o sábado, dia em que Tito trabalha apenas para
colocar as ferraduras já feitas”, diz ela. E elogia Maria e Ana, “ajudantes da
sua mamãe.” Mas não deixa de elogiar também os quatro menores “bons e
sem teimosias. Tito me ajuda a educá-los, ele que foi um soldado
disciplinado”, diz ela, olhando com um olhar afetuoso o homem que,
encostado ao umbral com uma mão no flanco, escutou tudo o que a mulher
disse com um sorriso bom em seu rosto aberto, e que agora se envaidece ao
ouvir como são lembrados os seus méritos de soldado.
– Muito bem. A disciplina das armas não é mal vista por Deus, quando
se cumpre com humanidade o próprio dever de soldado. Tudo consiste em
ser sempre moralmente honestos em todos os trabalhos, para ser sempre
virtuosos. Esta disciplina de tua vida passada, na qual formas os teus filhos,
deve preparar-te para iniciar um serviço mais alto: o serviço de Deus. Agora
separamo-nos. Apenas tenho tempo de chegar a Aqzib, antes que termine o
pôr-do-sol. Paz a ti, Ester, e à tua casa. Sejais, daqui a pouco, todos do
Senhor.
A mãe e os filhos se ajoelham, enquanto Jesus levanta a mão,
abençoando. O homem, como se fosse de novo o soldado de Roma diante
do imperador, perfila-se, rígido, fazendo a saudação romana.
331.14 E vão… Depois de terem andado alguns metros, Jesus põe a mão
sobre o ombro de Tiago:
– E, uma vez mais, a quarta vez neste dia, Eu te faço notar que isto não
é uma derrota, não é ser expulso, escarnecido, amaldiçoado… E agora, que
dizes?
– Que eu sou um estulto, Senhor –diz impetuosamente, Tiago de
Zebedeu.
– Não. Tu, como todos vós, sois ainda e sempre humanos demais e
tendes todas as alternativas de quem está dominado mais por sua
humanidade, do que pelo espírito. O espírito, quando é soberano, não se
altera por qualquer soprinho de vento, que nem sempre é uma aragem
perfumada… Poderá sofrer, mas não se perturba. Eu rezo sempre para que
vós chegueis a essa soberania do espírito. Mas vós me deveis ajudar com o
vosso esforço… Pois bem! Nossa viagem terminou. Nela Eu semeei aquele
tanto que é necessário para preparar o vosso trabalho, quando fordes vós os
evangelizadores. Agora podemos ir para o repouso sabático com a
consciência de termos cumprido o nosso dever. E vamos esperar os
outros… Depois iremos… ainda… sempre… até que tudo se complete…
[50] a mulher de Ló, em Gênesis 19,26, que faz parte do episódio da destruição de Sodoma: Gênesis 19,1-29.
[51] Tu disseste, em 327.5.
332. A sofrida separação de Bartolomeu,
que com Filipe se encontra com o Mestre.
17 de novembro de 1945.
332.1 Jesus se reuniu com os seis em uma sala, onde estão umas caminhas
muito pobres, colocadas umas ao lado das outras. o espaço que fica livre
entre elas é só para alguém poder passar de um lado para o outro da sala.
Eles estão comendo sua comida bem simples, sentados nas camas, porque
não há mesas, nem cadeiras. E João, em certo momento, vai sentar-se no
peitoril da janela, à procura dos raios do sol. E foi assim que ele foi o
primeiro a ver os que estavam sendo esperados: Pedro, Simão, Filipe e
Bartolomeu, que vinham vindo para casa. Ele os chama, e depois corre para
fora, acompanhado por todos. Fica lá somente Jesus, cujo único movimento
foi o de pôr-se em pé e virar-se, olhando para o lado da porta…
Entram os que chegaram. A vivacidade de Pedro já era de esperar-se,
bem como a profunda reverência de Simão Zelotes. O que causa surpresa é
a atitude de Filipe e, mais ainda, a de Bartolomeu. Eles entram, eu diria que
quase com temor, com ansiedade e, apesar disso, Jesus lhes abre os braços
para dar e receber deles o beijo da paz, que Ele já deu a Pedro e a Simão,
que caíram de joelhos e inclinaram suas cabeças até o chão para beijarem os
pés de Jesus, e que assim ficam… enquanto os suspiros de Bartolomeu
mostram que ele está chorando em silêncio, aos pés de Jesus.
– Por que toda esta ansiedade, filho de Tolmai? Não vieste aos braços
do Mestre? E tu, Filipe, por que é que estás com tanto medo? Se Eu não
soubesse que sois dois homens honestos, em cujo coração não tem lugar a
malícia, Eu poderia suspeitar que tivésseis alguma coisa. Mas não há nada
disso. E então? Coragem! Eu estava desejando tanto o vosso beijo e ver o
olhar límpido dos vossos olhos fiéis…
– Nós também, Senhor… –diz Bartolomeu, levantando o rosto pelo
qual estão descendo as lágrimas–. Nós nada mais temos desejado senão a
Ti, e ficamos perguntando um ao outro em que poderíamos ter-te
desagradado para merecermos ficar separados todo este tempo. E nos
parecia uma injustiça… Mas agora ficamos sabendo… Oh! Perdão, Senhor!
Nós te pedimos perdão. Especialmente eu, porque Filipe foi separado de Ti
por mim. Eu já pedi a Filipe. Eu, eu é que sou o culpado, eu, o velho
israelita duro para renovar-se, fui eu que te fiz ficar triste…
Jesus se inclina e o pega, e o levanta à força, levantando também Filipe
e, ao mesmo tempo o abraça, e lhe diz:
– Mas, de que é que te acusas? Tu não fizeste mal. Nenhum mal! Nem
Filipe. Vós sois os meus queridos apóstolos e hoje Eu me sinto bem feliz
por ter-vos comigo, reunidos para sempre…
– Não, não… 332.2Durante muito tempo, nós ficamos sem saber qual o
motivo pelo qual com justiça Tu perdeste a confiança em nós, até o ponto
de excluir-nos da tua família apostólica. Mas agora já o estamos sabendo…
e te pedimos perdão, perdão, perdão, especialmente eu, ó Jesus, meu
Mestre…
E Bartolomeu o olha com ansiedade, com amor, com compaixão. Idoso
como ele está, parece mais um pai que olha para um filho aflito, que fica
olhando para o seu rosto emagrecido por um sofrimento que ele não havia
percebido antes, pois em seu rosto não havia notado o emagrecimento, o
envelhecimento… E novas lágrimas gotejam das faces de Bartolomeu. E ele
exclama:
– Mas, que foi que te fizeram. Que te fizeram para fazer-nos a todos
sofrer deste modo? Fica parecendo que um mau espírito tenha entrado no
meio de nós para perturbar-nos, para tornar-nos tristes, enfraquecidos,
apáticos, estultos… Tão estultos, que não percebíamos que Tu estavas
sofrendo… Ao contrário, servia para aumentar o teu sofrimento com as
nossas asperezas, obtusidades, respeitos humanos e a velhice, que é própria
da humanidade… Sim o homem velho triunfou em nós sempre, sem que a
tua Vitalidade perfeita nunca nos tenha podido renovar. É isto, isto é o que
não me deixa ter paz! Com todo o meu amor, eu não soube renovar-me, e
compreender-te, e seguir-te… Eu Te segui só materialmente… Enquanto
que tu querias que te seguíssemos espiritualmente e coubéssemos na tua
perfeição… para tornar-nos capazes de perpetuar-te… Oh! Mestre meu!
Mestre meu, que te irás embora um dia, depois de tantas lutas, insídias,
desgostos, dores e com a dor de saber que não estamos ainda preparados!…
E Bartolomeu reclina sua cabeça sobre o ombro dele e chora,
completamente desconsolado, arrependido por verificar agora que foi um
discípulo obtuso.
– Não te rebaixes, Natanael. Tu vês tudo como umas coisas enormes,
que te surpreendem. Mas o teu Jesus sabia que vós sois homens… e nada
exige de vós, a não ser o que vós possais dar. Oh! Vós me daríeis tudo.
Tudo mesmo. Mas agora vós deveis crescer, formar-vos. É um trabalho
lento. Mas Eu sei esperar. E eu me alegro com o vosso crescimento. Porque
este há de ser um crescimento contínuo na minha Vida. Também o teu
pranto, também a concórdia daqueles que estavam comigo, também a
compaixão que vem depois das asperezas, que faziam parte da vossa
natureza, inclinada aos egoísmos e a avareza de espírito, também a vossa
seriedade atual, tudo isso são fases do crescimento vosso em Mim.
Coragem, pois. Fica com a paz que sou Eu. Fica todo. Com a tua
honestidade, a tua fé, a tua generosidade, o teu amor sincero. Iria Eu
duvidar do meu sábio filho de Tolmai, e de Filipe, tão equilibrado e fiel?
Isso Seria ser injusto com meu Pai, que me concedeu poder ter-vos entre os
meus mais queridos. 332.3Mas agora… Coragem, vamos sentar-nos aqui e
quem descansou pense nos irmãos cansados e famintos, dando-lhes comida
e conforto. E, enquanto isso, contai ao vosso Mestre e aos irmãos o que eles
não estão sabendo.
E Ele se assenta em sua caminha, tendo a seu lado Filipe e Natanael,
enquanto Pedro e Simão se assentam na cama ao lado, virados para Jesus,
joelhos contra joelhos.
– Fala tu, Filipe. Eu já falei. E tu tens sido mais justo do que eu durante
este tempo…
– Oh! Bartolomeu! Justo! Eu apenas tinha compreendido que não era
má vontade ou volubilidade do Mestre para conosco o não nos ter Ele
querido… E eu procurava com isso dar-te paz… afastando-te do
pensamento sobre coisas que depois teriam te feito sofrer por tê-las
pensado, e do remorso… Eu disso tinha um só remorso… Por ter-te detido,
quando querias desobedecer ao Mestre, quando querias acompanhar Simão
de Jonas, que ia para Nazaré buscar Marziam… Depois… eu te vi sofrer
tanto no corpo e na alma, que dizia: “Teria sido melhor se eu o deixasse
fazer o que queria. O Mestre lhe teria perdoado a desobediência e
Bartolomeu não iria envenenar ainda mais a sua alma com estas idéias”…
Mas, tu estás vendo! Se tivesses ido não terias mais a chave do mistério… e
talvez a tua suspeita sobre a volubilidade do Mestre não se teria desfeito
nunca. Assim, ao contrário.
– Assim, ao contrário, cheguei a compreender. 332.4Mestre, Simão de
Jonas e Simão Zelotes, que eu crivei de perguntas, querendo saber muitas
coisas para obter a confirmação de muitas já sabidas, só me disseram isto:
“O Mestre tem sofrido muito e está muito magro e envelhecido. E todo
Israel, a começar por nós, tem culpa disso. Ele nos ama e perdoa. Mas
deseja que não se fale no passado. Por isso eu vos aconselho a não
perguntar e não falar…” Mas eu quero falar. Perguntar, não perguntarei.
mas preciso dizer. Para que Tu saibas. Porque nada te deve ser te escondido
daquilo que existe na alma do teu apóstolo. Um dia — Simão e os outros
estavam fora havia alguns dias — veio a mim Miguel de Caná. Meio
parente, muito amigo e companheiro de estudos desde a infância… Ele,
tenho certeza, veio de boa fé. Queria saber como é que eu tinha ficado em
casa… enquanto que os outros tinham partido. E ele me disse: “Então, é
verdade? Tu te separaste porque, como bom israelita, não podes ficar
aprovando certas coisas. E de boa vontade te deixam separado dos outros, a
começar por Jesus de Nazaré, porque eles têm certeza de que tu não os
ajudarias nem mesmo com a cumplicidade do silêncio. Fazes bem. Eu
reconheço em ti o homem que eras há tempo. Eu pensava que te tivesses
corrompido, renegando Israel. Fazes bem para o teu espírito e para o teu
bem-estar, e para os teus. Porque tudo o que está acontecendo não vai ser
perdoado pelo Sinédrio e serão perseguidos os que tomaram parte nisso.” E
eu lhe disse: “Mas, de que tu estás falando? Eu te disse que tinha recebido a
ordem de ficar em casa, seja por causa da estação, seja para encaminhar
para Nazaré os eventuais peregrinos, ou dizer a eles que esperassem o
Mestre no fim do sábado em Cafarnaum, e tu estás falando de separações,
de cumplicidades, de perseguições? Explica-te!…”.Não é verdade, Filipe,
que eu falei assim?
Filipe faz sinal que sim.
– Então –continua Bartolomeu–, Miguel me disse que era sabido que tu
te rebelavas contra o conselho e a ordem dos sinedritas, conservando
contigo João de Endor e uma grega… Senhor, eu te causo tristeza, não é
verdade? E, no entanto, eu preciso falar. Eu te pergunto: é verdade que
estavam em Nazaré?
– Sim. É verdade.
– É verdade que eles partiram contigo?
– Sim. É verdade.
– Filipe, Miguel tinha razão? Mas, como é que ele podia estar sabendo?
– Ora, deixa para lá! São aquelas serpentes que fizeram parar a mim e a
Simão, e talvez a muitos outros. São as conhecidas víboras –diz Pedro com
veemência.
Jesus, ao invés, diz calmamente:
– Não te disse mais nada? Sê sincero com o teu Mestre, até o fim.
– Nada mais. Ele queria sondar-me. E eu menti a Miguel. Eu lhe disse:
“Até a Páscoa estarei em minha casa”, por medo Por medo que me
seguissem, que… não sei… por medo de fazer-te mal… E foi então que
cheguei a compreender porque foi que me deixaste… Tu havias percebido
que eu estava ainda demais em Israel… –Bartolomeu torna a chorar–… e
duvidaste de mim…
– Não. Isto não. Absolutamente. Tu não eras necessário naquela hora
junto aos teus companheiros, mas o eras, e tu o estás vendo, em Betsaida. A
cada um a sua missão. E cada idade tem as suas fadigas…
– Não, não! Não me separes mais por nenhuma fadiga, Senhor. Não te
preocupes com nada… Tu és bom. Mas eu quero estar contigo. É uma
punição estar longe te Ti. E eu, estulto, incapaz de tudo, podia pelo menos
te consolar, quando não podia fazer outra coisa. Eu compreendi… Tu
mandaste embora estes com aqueles dois. Não digas a mim. Não quero
saber. Mas percebo que é assim e o digo. Pois bem, então eu teria podido e
devia estar contigo. Mas Tu não me tomaste, para punir-me por estar eu tão
indisposto a tornar-me “novo”. Mas eu te juro, Mestre, que o que eu sofri
me renovou e que nunca mais verás o velho Natanae!
– Portanto, tu estás vendo como o sofrimento termina para todos em
alegria. 332.5E agora vamos lentamente ao encontro de Tomé e Judas. Sem
esperar que eles vão para lá onde foram mandados. Depois, continuaremos
a ir com eles… Temos muito que fazer!… Amanhã nos poremos a caminho.
Vamos logo.
– E farás bem. Porque o tempo está mudando do lado do norte. Ai de
nossas culturas… –diz Filipe.
– É certo. As últimas chuvas de pedra queimaram e reduziram a uns
fiapos as campinas. Se tivesses visto, Senhor. Parecia que o fogo tivesse
passado por certos lugares. E o curioso é que a calamidade fez mesmo
como eu disse: reduziu a fiapos –diz Pedro.
– Enquanto não estáveis aqui, houve muitas chuvas de pedras. Um dia,
no meado da Lua de Tebet, parecia um flagelo. Disseram-me que na
planície muitos vão ter que semear de novo. Antes, fazia calor. Mas, desde
então, procuramos com prazer o sol. Voltamos para trás… Que sinais
estranhos! Que serão eles? –pergunta Filipe.
– Nada mais que efeitos das lunações. Não fiques pensando nisso. Não
são estas coisas que nos haverão de impressionar. Afinal, nós estamos indo
para a planície e estará bonito por lá. Faz frio, mas não é muito e, em
compensação, temos a estiagem. Vinde, pois. No terraço há um bom sol.
Vamos ficar lá em cima, descansando, todos juntos….
333. Com dez apóstolos, a caminho de Sicaminon.
18 de novembro de 1945.
333.1 – E agora, que já contentamos o pastor, que faremos? –pergunta
Pedro, que está sozinho com Jesus, enquanto os outros estão formando um
grupo, alguns metros atrás.
– Vamos voltar para a estrada da margem, e ir para Sicaminon.
– Sim? Eu pensava que iríamos para Cafarnaum!…
– Não é preciso, Simão de Jonas. Não é preciso. Notícias de tua mulher
e do menino, tu já as tiveste, e por Judas… será mais simples ir ao encontro
deles.
– É bem verdade, Senhor. Não vem ele pela estrada do interior, que
passa pelo rio e pelo lago? É a mais curta e mais conservada…
– Mas ele não vem por ela. Lembra-te de que ele deve cuidar dos
discípulos, e estes estão muito espalhados pelo lado do poente, durante esta
estação que, além de tudo mais, está tão fria de novo.
– Está bem, está bem. Se Tu o dizes… Para mim, basta-me estar
contigo, e ver-te menos triste. E… não estou com nenhuma pressa de
encontrar Judas de Simão. Oxalá não o encontrássemos!… Estivemos tão
bem só entre nós!…
– Simão! Simão! É esta a tua caridade fraterna?
– Senhor… esta é a minha verdade –diz Pedro, com sinceridade. E o
diz com um ímpeto tal, e com tal expressão, que Jesus tem que fazer
esforço para não rir. Mas, como é que se pode repreender a um homem
assim tão sincero e fiel?
Jesus prefere calar-se, mostrando um muito grande interesse pelas
encostas que ficam a sua esquerda, à medida que a planície vai aparecendo,
cada vez mais plana, à direita. Atrás deles, no grupo dos nove também estão
falando e João está parecendo um bom pastor, pois ele vai levando um
cordeiro nas costas, talvez um presente do pastor Anás.
Depois de algum tempo, Pedro torna a perguntar:
– E não se vai a Nazaré?
– Certamente iremos até lá. Minha Mãe terá prazer em saber como foi a
viagem de João e Síntique.
– E também por ver-te!
– E também por ver-me.
– Será que a terão deixado em paz?
– Logo o saberemos.
– Mas, por que será que depois eles ficaram tão obstinados? Há tantos
como João também na Judéia e, no entanto… ou melhor, amuados por
causa de Roma, tomam precauções e se escondem.
– Persuade-te de que não é por João que o fazem, mas porque ele é um
libelo de acusação contra Mim.
– Mas eles não o encontrarão mais! Tu tens feito tudo bem… Tu nos
mandaste sozinhos… e por mar… primeiro em uma pequena barca, por
algumas milhas, e depois para além dos confins, em um navio… Oh! Foi
tudo bem! Eu espero que tenham ficado desnorteados.
– E assim ficarão.
– Eu estou curioso é por ver Judas de Keriot para perguntar-lhe quais
são as suas predições astrológicas, em que ele vê o céu cheio de ventos e
signos, e ver se ele…
– Mas, afinal de contas…
– Tens razão. É como um prego fincado aqui dentro, e bate na testa.
333.2 Jesus, para distraí-lo, chama todos os outros e faz que eles notem a
inexplicável destruição feita pela saraiva e pelo frio, quando já se pensava
que este já não viria mais neste ano… Uns dizem uma coisa, outros dizem
outra, todos querendo ver naquilo um sinal do castigo divino para a
insolente Palestina, que não acolhe o Senhor. E os mais doutos citam fatos
semelhantes, contados nas histórias antigas, enquanto os mais jovens e
menos cultos ficam ouvindo, espantados e atentos.
Jesus sacode a cabeça:
– É o efeito da Lua e dos ventos, que vêm de longe. Eu já vo-lo disse.
Nas regiões setentrionais produziu-se um fenômeno, cujas conseqüências
estão atingindo outras grandes regiões.
– Mas, por que, então, alguns dos campos estão bonitos?
– A saraiva faz assim.
– Mas não poderia ser um castigo para os mais obstinados?
– Poderia. Mas não o é. Ai de nós, se o fosse…
– Ficaria árida e desolada toda a nossa Pátria, não é verdade, Senhor? –
diz André.
– Mas, nas profecias está escrito, numa linguagem simbólica, que sairá
mal quem não acolher o Messias. Poderiam mentir os profetas?
– Não, Bartolomeu. E o que foi escrito acontecerá. Mas o Altíssimo é
tão infinitamente bom, que espera ainda mais do que o que está
acontecendo agora, para punir. Sede bons, vós também, sem ficardes
desejando sempre punições para os duros de coração e de entendimento.
Desejai para eles a conversão, não a punição. 333.3João, entrega o cordeiro a
um companheiro, e vem cá, vem olhar o teu mar, dali do alto daquelas
dunas de areia. Eu também vou para lá.
E, de fato, eles estão agora em uma estrada bem perto do mar, separada
deles apenas por uma larga faixa de dunas onduladas, sobre as quais se
balançam umas palmeiras esguias, ou vegetam umas descabeladas
tamareiras, lentiscos e outras árvores dos areais.
Jesus vai com João. Mas, quem o deixa? Ninguém. E logo estão todos
lá em cima, ao sol que traz alegria, à vista do mar sereno e risonho…
A cidade de Ptolemaida está ali bem perto, como suas casas brancas.
– Vamos entrar nela? –pergunta Judas de Alfeu.
– Não é preciso. Permaneceremos nas primeiras casa para comer. Quero
estar a tarde em Sicaminon. Talvez encontraremos Isaque.
– Quanto bem ele está fazendo, não? Ouviste o que disseram Abel, João
e José?
– Sim. Pois todos os discípulos são muito habilidosos. Eu bendigo por
isso ao meu Pai, noite e dia. Todos vós… As minhas alegrias, minhas horas
de paz, as minhas seguranças…
E olha para eles com tanto amor, que aos dez vêm lágrimas aos olhos…
E é diante deste olhar de amor, que cessa a minha possibilidade de ver.
334. Tomé e Judas Iscariotes
também se reúnem ao grupo apostólico.
19 de novembro de 1945.
334.1 O vale do Kison, ainda que o sol esteja brilhando num céu sem
nuvens, tem um ar áspero, parecendo estar sendo penteado por um vento
gelado que varre as colinas setentrionais e arruína as tenras culturas, que
estão todas arrepiadas e se enroscam, de tão queimadas que estão e
destinadas a morrer no seu novo verde.
– E durará ainda muito tempo este frio? –pergunta Mateus, enrolando-
se ainda mais em sua capa, sob a qual aparece apenas um pouquinho do seu
rosto, isto é, os olhos e o nariz.
Com a voz sufocada pela capa, que também está segurando até sobre a
boca, responde-lhe Bartolomeu:
– Talvez pelo resto da lua.
– Estamos bem arranjados, agora! Mas, paciência! Ainda bem que em
Nazaré ficaremos em casas hospitaleiras… E, enquanto isso, tudo passará.
– Sim, Mateus. Mas para mim já passou ao ver Jesus menos abatido.
Não te parece que Ele está mais alegre? –pergunta André.
– Está, sim. Mas eu… escuta, parece-me impossível que Ele tenha
ficado tão emagrecido, só por aquilo que nós sabemos. Será mesmo que não
houve nada de novo, e que vós saibais? –pergunta Filipe.
– Nada. Nada mesmo. Eu te digo que nos confins sírio-fenícios Ele teve
até muita alegria por aqueles espíritos cheios de fé, e fez até os milagres de
que já te falamos –afirma Tiago de Alfeu.
– Ele tem estado muito com Simão de Jonas nestes últimos dias. E
Simão mudou muito. Ora, mas vós também mudastes. Não sei, não… Vós
estais mais austeros, esta é a verdade –diz Filipe.
– Mas te faz esta impressão!… Na realidade me parece que
continuamos a ser o que éramos antes. Certamente que ver o Mestre assim
entristecido por causa de tantas coisas, isso não nos causou prazer e também
ao percebermos como se encheram de ódio contra Ele… Mas nós o
defenderemos… Oh! Não lhe farão nada se nós estivermos com Ele.
334.2Ontem de tarde eu lhe disse, depois de ter ouvido o que estava dizendo
Hermes, que é um homem sério e digno de fé: “Tu não deves ficar mais
sozinho. Tu já tens os discípulos que, como estás vendo, trabalham, e
trabalham bem, e que estão sempre aumentando. Por isso, nós estaremos
contigo. Não te digo que Tu tenhas que fazer tudo. Já é tempo de socorrer-
te, meu irmão. Mas Tu ficarás conosco, como fez Moisés, sobre o monte, e
nós nos bateremos por Ti, prontos para o que vier e para defender-te, até
com meios materiais. O que aconteceu com João Batista não te deverá te
acontecer.” Porque, afinal, se os discípulos do Batista não se tivessem
reduzido a dois ou três tímidos, ele não teria sido preso. Nós somos doze
como fundo de resistência, e eu quero persuadir a se unirem a nós e a se
conservarem perto de nós pelo menos alguns dos discípulos mais fiéis e
mais enérgicos. Os que estavam com João em Maqueronte, por exemplo.
Gente de fé e de coragem. João, Matias e também José. Sabeis que aquele
jovem promete muito? –diz Tadeu.
– Sim. Isaque é um anjo, mas toda a sua força está no espírito. José,
porém, é forte também no corpo. E eles têm a mesma idade que nós.
– E é rápido para aprender. Tu ouviste o que disse Hermes? “Se este
homem tivesse estudado, seria um rabi, além de ser um justo.” E Hermes
sabe o que diz.
– Mas eu… teria perto também Estevão e Hermes e o sacerdote João.
Pelo conhecimento que eles têm da Lei e do Templo. Sabeis o que será a
presença deles diante dos escribas e fariseus? Um controle, um freio… E as
pessoas que estão em dúvida terão que dizer: “Vede como não faltam os
melhores de Israel ao redor do Rabi, como seus alunos e servos” –diz Tiago
de Alfeu.
– Tens razão. Vamos dizer isso ao Mestre. Ouvistes o que Ele disse
ontem: “Vós deveis obedecer, mas tendes também a obrigação de abrir o
vosso coração a Mim e dizer o que vos parece justo. Para que vos habitueis
a saber dirigir o futuro… E Eu, se vir que estais dizendo o que é justo,
aceitarei os vossos pensamentos” –diz o Zelotes.
– Talvez Ele o faça também para mostrar-nos que nos ama, visto que
estamos todos mais ou menos convictos de sermos nós a causa dos seus
sofrimentos –observa Bartolomeu.
– Ou então Ele está realmente cansado por ter que pensar em tudo, e
por estar sozinho a tomar decisões, a assumir responsabilidades. Talvez
também Ele reconheça que sua santidade perfeita é… eu diria, quase uma
imperfeição, ao considerar quem Ele tem pela frente: um mundo que não é
santo. Nós não somos santos, perfeitos. Somos apenas um pouco menos
desonestos que os outros… e, por isso, mais capazes de responder aos que
são quase como nós –diz Simão Zelotes.
– E de conhecê-los, deves dizer! –acrescenta Mateus.
– Oh! Como tais, eu estou certo de que Ele também os conhece. E até
os conhece melhor do que nós, porque Ele lê nos corações. Estou tão
convicto disso, como de estar vivo –diz Tiago de Zebedeu.
– E então? Por que às vezes Ele faz como faz, indo ao encontro de
aborrecimentos e perigos? –pergunta André, desolado.
– Aí está! Nem sei o que responder –diz Tadeu, encolhendo os ombros.
E, com ele, fazem a mesma confissão os outros.
334.3 João está calado. E o seu irmão o provoca:
– Tu, que sabes sempre tudo de Jesus, — às vezes ficais parecendo dois
namorados — Ele nunca te disse porque é que faz assim?
– Sim. Faz até pouco tempo que lhe perguntei. E Ele sempre me
respondeu: “Porque devo fazer. Eu preciso agir como se o mundo todo fosse
composto de criaturas ignorantes mas boas. A todos Eu ofereço a mesma
doutrina, e assim se separarão os filhos da Verdade dos filhos da Mentira.”
E Ele me disse ainda: “Estás vendo, João? Este é como um primeiro juízo,
não o universal, coletivo, mas particular.Tomando por base suas ações de fé,
de caridade e de justiça, serão separados os cordeiros dos cabritos. E isso
continuará também depois, quando Eu não estiver mais aqui. Mas aqui
estará a minha Igreja, pelos séculos dos séculos, até o fim do mundo. O
primeiro juízo das pessoas humanas se fará no mundo, no qual os homens
agem livremente, tendo diante de si o Bem e o Mal, a Verdade e a Mentira.
Assim como o primeiro juízo foi feito no Paraíso Terrestre, diante da árvore
do bem e do Mal, que foi violada pelos que desobedeceram a Deus. Depois,
quando vier a morte de cada um, será ratificado o juízo, que já foi escrito no
livro das ações humanas por uma Mente que não tem nenhum defeito. Por
fim, virá o Grande Juízo, o Terrível, e então, novamente serão julgados, em
massa, os homens. Desde Adão até o último homem. Julgados por aquilo
que eles tiverem querido para eles livremente nesta terra. Porque, se Eu
selecionasse por Mim quem merece a Palavra de Deus, o Milagre, o Amor,
e quem não merece, e Eu poderia fazer isso por direito divino e por minha
divina capacidade, os excluídos, mesmo os que fossem de Satanás,
gritariam, fortemente, no dia do juízo particular de cada um: ‘O culpado é o
Teu Verbo, que não quis nos ensinar’. Mas isto eles não irão poder dizer…
Ou melhor, eles o dirão, mas mentindo, mais uma vez. E por isso, serão
julgados.”
– Então, os que não acolhem a doutrina merecem ser condenados? –
pergunta Mateus.
– Isto eu não sei, se todos os que não crerem serão mesmo condenados.
Se vós estais lembrados, falando a Síntique, Ele deu a entender que aqueles
que agem honestamente nesta vida não serão condenados, ainda que creiam
em outras religiões. Mas nós lhe podemos perguntar. É certo que Israel, que
conhece o Messias e que agora crê parcialmente, e mal, no Messias, ou que
o rejeita, será severamente julgado.
334.4 – O Mestre fala muito contigo e tu sabes muitas coisas, que nós não
sabemos –observa o seu irmão Tiago.
– A culpa é tua e vossa. Eu lhe faço perguntas com simplicidade.
Algumas vezes lhe pergunto certas coisas, que devem fazer que o seu João
fique parecendo um grande estulto. Mas não me importa parecer isso.
Basta-me saber qual o pensamento dele e tê-lo em mim para fazê-lo meu.
Deveríeis fazer assim, vós também. Mas sempre tendes medo. Ora, medo de
quê? De ser ignorantes? De ser superficiais? De ser cabeçudos? Deveríeis
ter medo somente de estardes ainda despreparados quando Ele for-se
embora. Ele sempre diz isso… e eu sempre digo a mim mesmo, a fim de
preparar-me para a separação… mas já percebo que ela sempre será uma
grande dor…
– Nem me faças pensar nisso! –exclama André.
E os outros lhe fazem eco, suspirando.
– Mas, quando isso acontecerá, Ele diz sempre: “Dentro em breve.”
Mas breve pode ser dentro de um mês, ou daqui a uns anos. Ele é muito
jovem e o tempo passa rapidamente… Que estás sentindo, irmão? Estás
ficando muito pálido… –pergunta Tadeu a Tiago.
– Nada, nada! Eu estava pensando… –diz logo Tiago de Alfeu, que está
com a cabeça inclinada.
E Tadeu se inclina para vê-lo bem:
– Mas, tu estás com lágrimas nos olhos! Que tens?…
– Nada mais do que vós tendes… Eu estava pensando em nós, quando
estivermos sozinhos.
334.5 – Oh! Mas que tem Simão de Jonas para ir assim correndo na
frente, como um mergulhão em dia de tempestade? –pergunta Tiago de
Zebedeu, mostrando Pedro, que deixou Jesus sozinho e lá se foi, correndo e
gritando palavras que o vento não permite ouvir.
Apressam o passo e vêem que Pedro, tendo entrado por um pequeno
caminho, que vem de Séforis, que já está perto (assim dizem os discípulos
uns aos outros, perguntando se ele está indo a Séforis por ordem de Jesus, e
por aquele atalho). Mas depois, observando bem, vêem que os dois únicos
viandantes, que estão vindo da cidade para a estrada mestra, são Tomé e
Judas.
– Que é isso? Eles estão aqui? Logo aqui? Oh! Que estão fazendo por
aqui? De Nazaré, caso lá estivessem, deveriam ir para Caná, e de lá para
Tiberíades… –ficam perguntando muitos.
– Talvez eles estivessem vindo à procura dos discípulos. Esta era a
missão deles –diz prudentemente o Zelotes, que percebe como a suspeita
está levantando sua cabeça de serpente, despertada nos corações de muitos.
– Apressemos o passo. Jesus está sozinho e parece que nos espera… –
aconselha Mateus.
Eles lá se vão e chegam perto de Jesus ao mesmo tempo que Pedro,
Judas e Tomé. Jesus está muito pálido, a ponto de João lhe perguntar:
– Estás sentindo alguma coisa?
Mas Jesus lhe sorri e faz um sinal de que não, enquanto saúda os dois,
que voltaram depois de uma ausência bem prolongada.
Ele abraça primeiro Tomé, vistoso e alegre como sempre mas que se
torna sério, ao olhar para o Mestre, que está evidentemente mudado, e lhe
pergunta, preocupado:
– Estiveste doente?
– Não, Tomé. Não é nada. E tu, tens estado bem e feliz?
– Eu, sim, Senhor. Sempre bem e feliz. Só Tu é que faltavas para fazer
feliz o meu coração. Meu pai e minha mãe te agradecem por me teres
mandado a eles por algum tempo. Meu pai estava um pouco doente e,
então, quem foi trabalhar fui eu. Estive em casa de minha gêmea e fiquei
conhecendo o sobrinho pequenino, e fiz que lhe pusessem o nome que Tu
me disseste.Depois veio Judas e me fez andar como uma rolinha no tempo
dos amores, para baixo e para cima, por onde houvessem discípulos. Ele já
tinha andado, e não pouco, por sua conta. Mas agora, quem vai falar é ele,
pois ele trabalhou por dez e merece que Tu o escutes.
Jesus o deixa ir e aguarda a vez de Judas, que pacientemente ficou
esperando, e agora anda para frente, intrépido, desembaraçado, como um
triunfante. Jesus o traspassa com seu olhar de safira. Mas o beija, e por ele é
beijado, do mesmo modo como aconteceu com Tomé. E as palavras que
profere são afetuosas:
– E tua mãe, Judas, ficou contente por ter-te com ela? Está bem aquela
santa mulher?
– Sim, Mestre, e te bendiz por lhe teres mandado o seu Judas. Ela
queria mandar-te uns presentes. Mas, como poderia eu transportá-los
quando tinha que andar por montes e vales? 334.6Podes ficar tranqüilo,
Mestre. Todos os grupos de discípulos que eu visitei estão trabalhando
santamente. A idéia se propaga sempre mais. Eu pessoalmente quis
controlar as repercussões dela sobre os mais poderosos escribas e fariseus.
Muitos deles eu conhecia e outros eu fiquei conhecendo agora, por amor a
Ti. Eu me aproximei de saduceus, de herodianos… Oh! Eu te garanto que a
minha dignidade ficou bem prejudicada… Mas foi por teu amor. Isto e
outras coisas eu farei. Recebi rejeições desdenhosas e anátemas. Mas
também consegui suscitar simpatias em alguns que estavam com
prevenções a teu respeito. Não quero os teus elogios. Basta-me ter feito o
meu dever, e agradeço ao Eterno por me ter sempre ajudado. Tive que
lançar mão do milagre em certos casos. Mas Tu nos dizes que amemos e
tenhamos paciência… Eu assim fiz para honra e glória de Deus e para a tua
alegria. Eu espero que muitos obstáculos sejam afastados para sempre e
ainda mais porque, sob minha palavra de honra, eu garanti que junto a Ti,
não havia mais do que dois que faziam muita sombra. Depois me veio um
escrúpulo de ter afirmado o que eu não sabia com certeza. E, então, eu quis
verificar, para poder tomar providências, a fim de não ser apanhado em
mentira, pois isso me teria posto sob suspeita para sempre no meio dos que
se deviam converter… Imagina! Até de Anás e Caifás eu me aproximei…
Oh! Eles quiseram reduzir-me a pó com suas censuras… Mas eu fiquei tão
humilde e persuasivo, que eles acabaram tendo que me dizer: “Pois bem. Se
as coisas de fato são assim… Nós pensávamos que fossem diferentes. Os
reitores do Sinédrio, que podiam saber delas, no-las referiam todas ao
contrário, e…”
– Não quererás dizer que José e Nicodemos tenham sido uns
mentirosos –interrompe o Zelotes, que se conteve até aquele ponto, mas não
além dele, e está lívido pelo esforço que fez.
– E quem esta dizendo isso? Ao contrário! José me viu quando eu ia
saindo da casa de Anás, e me disse: “Por que estás assim mudado?” E eu,
então lhe contei tudo e como, seguindo o conselho dele e de Nicodemos,
Tu, Mestre, tinhas afastado o galeote e a grega. Porque tu os afastaste, não é
verdade? –diz Judas, olhando fixamente para Jesus, com aqueles seus olhos
de azeviche brilhantes e fosforescentes.
Parece querer perfurá-lo com o olhar, para ler o que Jesus fez.
Jesus, que o tem sempre em sua frente e muito perto, diz, com calma:
– Peço que continues o teu relato, pois me interessa muito. É uma
relação exata que pode ser muito útil.
– Ah! Então, como eu ia dizendo, Anás e Caifás mudaram de opinião, o
que já é muito para nós. Não é verdade? Além disso!… Oh! eu não quero
fazer-vos rir! Mas, será que estais sabendo que os rabis me tomaram à parte,
e me fizeram passar por um novo exame, como se eu fosse ainda um menor
de idade, que vai tornar-se de maior idade? E, que exame! Bem. Eu os
persuadi e eles me deixaram ir embora. Então, eu tive a suspeita e o medo
de ter dito alguma coisa que não era verdade. E pensei em tomar Tomé
comigo e ir de novo onde se encontravam alguns dos discípulos, ou então,
onde se podia presumir que se tivessem abrigado João e a grega. Estive na
casa de Lazáro, na de Manaem, no palácio de Cusa, na casa da Elisa de
Betsur, em Beter, nos jardins da Joana, no Getsêmani, no caminho de
Salomão, do outro lado do Jordão, em “Águas Belas”, na casa do
Nicodemos, na de José…
– Mas não os viste?
– Sim. E ele me havia garantido que nunca tinha visto aqueles dois.
Mas sabes… Eu queria certificar-me… Em poucas palavras: eu inspecionei
todos os lugares onde eu podia ter suspeitas de que lá ele estivesse. E não se
creia que eu sofresse por não encontrá-lo. Seríeis injustos comigo. Todas as
vezes — e Tomé o pode confirmar — todas as vezes que eu saía de um
lugar, sem tê-lo encontrado, e nem mesmo sem ter obtido nenhuma noticia
dele, eu dizia: “Louvado seja o Senhor”, e ainda: “ó Eterno, faze que eu não
o encontre nunca mais!” Isso mesmo! E minha alma suspirava… O último
lugar a que fui foi Esdrelon… 334.7Ah! A propósito. Ismael ben Fabi, que
mora em seu palácio nas campinas de Magedo, deseja ter-te como seu
hóspede… Mas eu, se estivesse em teu lugar, não iria lá…
– Por queê? Eu irei sem falta. Também Eu estou com desejo de vê-lo. E
até iremos logo lá. Em vez de irmos a Séforis, iremos a Esdrelon e depois a
Magedo, depois de amanhã, que é a vigília do sábado, e de lá iremos para a
casa de Ismael.
– Assim não, Senhor! Por queê? Achas que ele te ama?
– Mas, se tu te aproximaste dele e o tornaste favorável a Mim, por que
é que não queres que Eu vá lá?
– Eu não me aproximei dele… Ele estava nos campos e me reconheceu.
Mas eu, — não é, verdade, Tomé? — eu queria fugir, quando o vi. Mas não
pude, porque ele me chamou pelo nome. Eu… eu não posso fazer outra
coisa, senão aconselhar-te a não ires nunca a nenhum fariseu, ou escriba ou
outros semelhantes. Não é coisa útil para Ti. Fiquemos entre nós, sozinhos
com o povo, e basta. Fiquemos também com Lázaro, Nicodemos, José…
será um sacrifício… Mas é melhor fazê-lo para não criar ciúmes e iras,
fornecendo armas às críticas… À mesa se fala. E eles trabalham
maldosamente com as tuas palavras. Mas, voltemos a João… Eu ia indo
para Sicaminon, visto que Isaque, que eu encontrei nos confins da Samaria,
me havia jurado não tê-lo mais visto desde outubro.
– E Isaque jurou a verdade. Mas tudo o que me aconselhas, sobre os
contatos com os escribas e fariseus, está em contradição com tudo o que
disseste antes. Tu me defendeste… Foi isto que fizeste, não é verdade? Tu
disseste: “Eu destruí muitas prevenções a respeito de Ti.” Tu disseste isto,
não é verdade?
– Sim, Mestre.
– E, então, por que não posso Eu mesmo terminar a defesa de Mim
mesmo? Então, iremos à casa de Ismael. E tu, agora, volta para trás, e vai
até ele, para avisá-lo. Contigo irão André, Simão Zelotes e Bartolomeu. Nós
iremos descansar com os camponeses. Quanto a Sicaminon, nós iremos lá.
Nós éramos onze. E te afirmamos que João não está conosco. E ele não está
também nem em Cafarnaum, nem em Betsaida, nem em Tiberíades, nem
em Magdala, nem em Nazaré, nem em Corozaim, nem em Belém da
Galiléia, e assim por diante em todas as etapas, que talvez tivesses a idéia
de fazer, para… teres a certeza da presença de João entre os discípulos ou
em casas amigas.
334.8 Jesus fala calmo, em tom natural… Contudo, alguma coisa deve
haver nele que esteja perturbando Judas, pois este muda de cor por um
instante. Jesus o abraça, como se fosse beijá-lo. E, enquanto assim está
fazendo, rosto contra rosto, lhe sussurra em voz baixa:
– Desgraçado! Que fizeste com tua alma?
– Mestre… eu…
– Vai-te! Tens o mau cheiro do inferno, mais ainda do que o próprio
Satanás! Cala-te!… E arrepende-te, se o podes.
Judas… eu teria saído dali precipitadamente. Mas ele! O descarado
ainda diz em voz alta:
– Obrigado Mestre. Mas eu te peço, antes que me vá: dá-me duas
palavras em segredo.
Todos se afastam muitos metros.
– Por que, Senhor, me disseste aquelas palavras? Tu me fizeste sofrer…
– Porque elas são a verdade. Quem faz comércio com Satanás, apanha o
mau cheiro de Satanás.
– Ah! É por causa da necromancia? Oh! Que medo me fizeste. É uma
brincadeira. Não é mais do que uma brincadeira de menino curioso. E me
serviu para aproximar-me dos saduceus e perder a vontade disso. Portanto,
estás vendo que me podes absolver em perfeita paz. São coisas inúteis,
quando se tem o teu poder. Tinhas razão. Vamos, Mestre! A minha culpa é
tão leve!… Grande é a tua sabedoria. Mas, quem foi que te disse isso?
Jesus olha para ele muito sério e não responde.
– Mas, me viste mesmo com o pecado no coração? –pergunta Judas, um
pouco amedrontado.
– E me repugnaste. Vai! E não digas mais nada.
Jesus lhe vira as costas, voltando-se para os seus discípulos, aos quais
ordena que mudem de caminho, dando antes as despedidas a Bartolomeu, a
Simão e a André, que já estão alcançando Judas, e vão indo a passos
rápidos, enquanto que os que ficam vão indo lentamente, sem conhecerem a
verdade que só Jesus conhece.
E tanto eles a desconhecem, que ainda ficam elogiando Judas por sua
atividade e sagacidade. E o honesto Pedro, com toda a sua sinceridade, se
acusa do pensamento temerário que ele tinha em seu coração contra o
condiscípulo.
Jesus sorri com um sorriso manso, um pouco cansado, como se
estivesse absorto e ouvisse apenas o tagarelar dos seus companheiros, que
das coisas sabem apenas aquele tanto que lhes permite saber a natureza
humana deles.
335. A falsa amizade de Ismael ben Fabi
e o hidrópico curado em dia de sábado.
11 de setembro de 1944.
335.1 Vejo Jesus caminhar rapidamente por uma estrada mestra, que o
vento frio de uma manhã de inverno está varrendo e endurecendo. Os
campos, de um lado e do outro da estrada, tem apenas uma rala penugem
das plantações que despontam, uma coberta verde na qual há uma promessa
de futuro pão, mas uma promessa na qual mal se acaba de pensar. Há sulcos
sombreados ainda privados deste verde abençoado, e somente os que estão
nos pontos mais ensolarados é que mostram um verdejar muito leve e já
festivo porque fala da próxima primavera. As árvores frutíferas ainda estão
nuas, nem mesmo um broto desabrocha sobre os seus ramos escuros.
Somente as oliveiras possuem seu eterno cinzento verde, tristes tanto sob o
sol de agosto como sob esta claridade do começo de uma manhã de inverno.
E, junto com elas, mostram seu verde, um verde pastoso de cerâmica que
acabam de ser pintadas, as folhas carnudas das cactáceas.
Jesus caminha, como de costume, a dois ou três passos à frente dos
discípulos. Todos estão bem cobertos com suas capas de lã.
Em certo ponto, Jesus pára e se vira, interpelando os discípulos:
– Conheceis bem este caminho?
– O caminho é este, mas onde está a casa não se sabe, porque ela fica
para dentro do terreno… Talvez esteja lá adiante, onde se vêem aquelas
oliveiras…
– Não. Deve ser mais lá para o fundo, onde estão aquelas árvores
grossas e sem folhas…
– Devia haver uma estrada para os carros…
Em suma, não sabem nada de preciso. Pessoas pela estrada ou pelos
campos não se vêem. Vão indo ao acaso, para frente, procurando o
caminho.
Encontram uma casinha de gente pobre, com dois ou três pequenos
campos ao redor. Uma mocinha vem trazendo água de um poço.
– Paz a ti, menina –diz Jesus, parando no limite marcado pela sebe,
onde há uma passagem, para quem vai e para quem vem.
– Paz a ti. Que queres?
– Uma informação. Onde é a casa de Ismael, o fariseu?
– Estás fora da estrada, Senhor. Deves voltar até a encruzilhada, e
tomar a estrada que vai para o ponto do pôr-do-sol. Mas tens que caminhar
muito, porque deves voltar até a encruzilhada, e depois andar e andar. Já
comeste? Está fazendo frio, e o estômago vazio o faz sentir mais. Entra, se
quiseres. Nós somos pobres. Mas Tu também não és rico. Por isso podes
adaptar-te. Vem.
E grita com sua voz aguda:
– Mamãe!
335.2 Aparece na soleira uma mulher dos seus trinta e cinco, quarenta
anos. Tem um rosto honesto, mas um pouco triste. Traz nos braços um
menino de uns três anos, meio despido.
– Entra! O fogo está aceso. Eu te darei leite e pão.
– Eu não estou sozinho. Estou com estes amigos.
– Que entrem todos e a bênção de Deus esteja com os peregrinos que eu
hospedo.
Entram em uma cozinha baixa e escura que alegra um fogo vivo.
Sentam-se aqui e ali sobre caixa-bancos rústicos.
– Agora, eu vos vou preparar… É manhã… Não pus ainda nada em
ordem. Desculpai-me.
– Vives sozinha?
É Jesus quem pergunta.
– Tenho marido e filhos. Sete. Os dois maiores estão ainda na feira de
Naim. Eles devem ir lá porque meu marido está doente. Uma grande dor!…
As meninas me ajudam. Este é o menorzinho. Tenho um outro, só um pouco
maior.
O pequenino, agora vestido com sua pequena túnica, corre de pés
descalços para Jesus e o olha curiosamente. Jesus lhe sorri. A amizade está
feita.
– Quem és tu? –pergunta, confiante, o menino.
– Sou Jesus.
A mulher se vira para olhá-lo atentamente. Permaneceu com um pão
nas mãos, entre o fogão e a mesa. Abre a boca para falar, mas depois cala.
O menino continua:
– Para onde vais?
– Pelos caminhos do mundo.
– Fazendo o que?
– Abençoando os meninos bons e as casas deles, onde são fiéis à Lei.
A mulher torna a fazer um gesto. Depois ela faz um sinal a Judas
335.3
Iscariotes, que é o que está mais perto dela. Ele se inclina para a mulher que
pergunta:
– Mas, quem é teu amigo?
E Judas, inchado, (fica parecendo que o Messias é quem é pelo
merecimento e bondade dele):
– É o Rabi da Galiléia, Jesus de Nazaré. Não o sabias, mulher?
– Este é caminho fora de mão e eu tenho tantos sofrimentos!… Mas
poderei dizer a Ele?
– Podes –diz tranqüilamente Judas.
Parece-me um desses grandes do mundo, quando concedem
audiência…
Jesus continua a falar com o menino, que lhe pergunta se Ele também
tem meninos.
Enquanto a menina já vista e uma outra um pouquinho maior estão
trazendo leite e vasilhas, a mulher vai para perto de Jesus. Fica um pouco
hesitante, depois dá um grito sufocado:
– Jesus, piedade do meu marido!
Jesus se levanta. A ultrapassa com sua altura, mas a olha com tanta
bondade que ela se anima.
– Que queres que Eu faça?
– É muito doente. Inchado como um odre, não pode dobrar-se e
trabalhar. Não acha descanso porque se sufoca e fica impaciente… E nós
temos meninos ainda pequenos…
– Queres que eu o cure? Mas, por que o queres de Mim?
– Porque Tu és Tu. Eu não te conhecia, mas ouvi falar de Ti. A sorte te
trouxe à minha casa depois de ter-te procurado três vezes em Naim e Caná.
Por duas vezes estava também meu marido. Procurava-te, ainda que viajar
de carro o fizesse sofrer muito… Agora mesmo ele está fora com o irmão
dele… Deram-nos a notícia de que o Rabi, depois de sair de Tiberíades, iria
para a Cesaréia de Filipe… E ele foi para lá, a fim de esperar-te…
– Eu não fui a Cesaréia. 335.4Vou até o fariseu Ismael e depois irei em
direção ao Jordão…
– Tu, que és bom, vais à casa do Ismael?
– Sim. Porque?
– Porque… Porque… Senhor, eu sei que Tu dizes de não julgar, de
perdoar e amar-nos. Eu nunca te vi. Mas tenho procurado saber de Ti o mais
que eu podia e pedia ao Eterno que eu pudesse ouvir-te pelo menos uma
vez. Não quero fazer coisa que te desagrade… Mas, como podes deixar de
julgar Ismael e amá-lo? Eu não tenho nada de comum com ele e por isso
nada tenho a perdoar-lhe. As insolências que ele nos dirige quando encontra
a nossa pobreza em seu caminho, a sacudimos para longe de nós com a
mesma paciência com que sacudimos a lama e a poeira que ele nos joga
quando ele passa veloz com suas carruagens. Mas amá-lo, e não julgá-lo, é
difícil demais… Ele é muito mau!
– É muito mau com quem?
– Com todos. Oprime os servos, empresta com usura e exige
cruelmente. Só se ama a si mesmo. É o homem mais cruel desta região. Não
merece, Senhor!
– Eu sei. Tu dizes a verdade.
– E Tu vais lá?
– Ele me convidou.
– Desconfia, Senhor. Ele não terá feito por amor. Não te pode amar… E
Tu… não o podes amar.
– Eu amo até os pecadores, mulher. Eu vim para salvar a quem se
perdeu…
– Mas a este não salvarás. Oh! Perdão por ter julgado! Tu sabes… Tudo
o que fazes está bem. Perdoa à minha língua estulta e não me castigues.
– Eu não te castigo. Mas não o faças mais. Ama mesmo aos malvados.
Não pela sua malvadeza, mas porque é com o amor que se obterá a
misericórdia que converte. Tu és boa e desejosa de o ser ainda mais. Tu
amas a verdade, e a Verdade, que te está falando, te diz que te ama, porque
és piedosa, segundo a Lei[52], para com o hóspede e o peregrino e assim é
que tens educado os teus filhos. Deus será a tua recompensa. 335.5Eu devo ir
à casa de Ismael que me convidou para mostrar-me a muitos amigos seus
que me querem conhecer. Eu não posso atender mais do que a teu marido,
saibas, já está no caminho de retorno. Mas, dize a ele que sofra ainda um
pouco e vá logo à casa do Ismael. Vai tu também. Eu o curarei.
– Oh! Senhor!…
A mulher está de joelhos aos pés de Jesus, e olha para Ele, rindo e
chorando. Depois ela diz:
– Mas hoje é sábado!…
– Eu sei. Eu preciso que seja um sábado para que possa dizer alguma
coisa a Ismael a respeito disso. Tudo o que eu faço, o faço com um fim
claro e sem erro. Ficai sabendo disso todos, também vós, meus amigos, que
estais com medo e quereríeis que eu seguisse uma conduta segundo as
conveniências humanas, para não ficar prejudicado em nada. É o amor que
vos guia. Eu o sei. Mas precisais saber amar melhor do que amais. Não
desprezando nunca os interesses divinos por causa do interesse do vosso
amado. Mulher: Eu vou e te vou atender. A paz seja perene nesta casa, onde
se ama a Deus e sua lei e é respeitado o cônjuge e educada santamente a
prole, onde o próximo é amado e procurada a Verdade. Adeus.
Jesus pousa a mão sobre a cabeça da mulher e das duas jovenzinhas,
depois se inclina para beijar os meninos menores e sai.
Agora um sol de inverno tempera a aspereza do ar. Um rapazinho de
uns quinze anos, está esperando com um carro rústico muito desconjuntado.
– Só tenho este, Senhor. Mas sempre irá mais depressa, e com mais
comodidade.
– Não, mulher. Conserva descansado o cavalo, para irdes com ele à
casa de Ismael. Mostra-me somente a estrada mais breve.
O rapazinho se põe a seu lado e, por campos e prados, vão em direção
de uma ondulação do terreno, além da qual há uma grande depressão de
alguns hectares, bem cultivada, ao no centro da qual há uma bonita casa
larga e baixa, cercada por uma faixa de jardim bem tratado.
– A casa é aquela, Senhor, diz o rapaz. Se não precisas mais de mim,
vou voltar para casa, a fim de ajudar minha mãe.
– Vai, e sê sempre um bom filho. Deus está contigo.

… Jesus entra na suntuosa casa de campo do Ismael. Os servos, em


335.6
grande número, correm ao encontro do Hóspede, certamente esperado.
Outros vão avisar o patrão, o qual sai com grandes inclinações ao encontro
de Jesus.
– Sê bem-vindo, Mestre, à minha casa.
– Paz a ti, Ismael ben Fabi. Desejaste-me. Eu vim. Por que me querias
aqui?
– Para ser honrado por ter-te em minha casa e apresentar-te aos meus
amigos. Quero que sejam também teus. Como quero que Tu sejas meu
amigo.
– Eu sou amigo de todos, Ismael.
– Eu sei. Mas sabes? É bom ter amizades entre os grandes. E a minha e
a dos meus amigos são assim. Tu perdoa se te digo, descuidas muito
daqueles que te podem dar uma mão…
– E tu és desses? Por quê?
– Eu sou desses. Por quê? Porque te admiro, e quero que Tu sejas meu
amigo.
– Amigo! Mas sabes tu, Ismael, qual o significado que Eu dou a essa
palavra? Para muitos, amigo quer dizer conhecido, para outros, cúmplice,
para outros, servo. Para Mim, quer dizer: fiel à Palavra do Pai. Quem não
for assim, não pode ser meu amigo, nem Eu dele.
– Mas é justamente porque eu quero ser fiel, que eu quero a tua
amizade, Mestre. Não acreditas? 335.7Olha: eis Eleazar que chega. Pergunta a
ele como eu te defendi junto aos Anciãos. Eleazar, eu te saúdo. Vem, que o
rabi quer te perguntar uma coisa.
Grandes saudações e recíprocos olhares indagadores.
– Dize-me tu, Eleazar, o que foi que Eu falei do Mestre, na última vez
em que estivemos reunidos –diz Ismael. E depois se vai, deixando o amigo
junto a Jesus.
– Oh! Um verdadeiro elogio! Uma defesa apaixonada! Um grande
desejo de ouvir-te me veio, então, por quanto Ismael falou de Ti Mestre,
como do maior profeta que já veio ao povo de Israel! Recordo-me que disse
que ninguém tem palavras mais profundas do que as tuas, fascínio maior e
que, se como sabes falar souberes também manejar a espada, não haverá rei
maior do que Tu em Israel.
– O meu Reino!… Não é humano esse Reino, Eleazar.
– Mas o Rei de Israel?
– Abram-se as vossas mentes para compreender o sentido das palavras
arcanas. Virá o Reino do Rei dos Reis. Mas não segundo as medidas
humanas. Não para o que perece, mas para o que é eterno. A ele se chega,
não por um caminho florido de triunfos nem sobre tapetes encarnados pelo
sangue inimigo. Mas por um áspero caminho de sacrifício e pela humilde
escada do perdão e do amor. As vitórias contra nós mesmos é que nos darão
este Reino. E queira Deus que a maior parte de Israel possa entender-me.
Mas não será assim. Vós pensais no que não é. Na minha mão haverá um
cetro e o povo de Israel é que nela o terá colocado. Real e Eterno. Nenhum
rei poderá tirá-lo da minha Casa. Mas muitos em Israel não poderão, sem
fremirem de horror, porque ele terá um nome terrível para eles.
– Tu não nos achas capazes de seguir-te?
– Se o quisésseis, poderíeis. Mas não quereis. E por que não quereis?
Vós já sois anciãos. A idade deveria dar-vos compreensão e justiça. Justiça
também para convosco mesmos. Os jovens… esses poderão errar e

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