Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
de Maria e de Jesus.
22 de agosto de 1944.
1.1
Jesus me ordena: “Pega um caderno todo novo. Copia, na primeira
folha, o ditado do dia 16 de agosto. Neste livro se falará dela”.
Obedeço e copio.
16 de agosto de 1944.
1.2
Jesus diz:
– Hoje escreve apenas isto. A pureza, na sua expressão máxima, tem um
tal valor que torna o seio de uma criatura capaz de conter o que não podia
ser contido.
A Santíssima Trindade desceu com a sua perfeição em um pequeno
espaço, habitando-o com as suas Três Pessoas, encerrando lá o seu Infinito,
sem diminuir-se com isso, pois o amor da Virgem e a vontade de Deus
dilataram este espaço até transformá-lo num Céu. Eis como essas
características se manifestaram:
Assim como no sexto dia[1], o Pai recria a Criatura, tendo uma “filha”
digna e verdadeira, feita à sua perfeita semelhança. A imagem de Deus
estava estampada em Maria de tal modo que só no Primogênito do Pai lhe
era superior. Maria pode ser chamada a “segundogênita” do Pai porque, pela
perfeição que lhe foi dada e sabida conservar, por dignidade de esposa e
mãe de Deus e também de Rainha do Céu, vem depois do Filho do Pai no seu
eterno Pensamento, que “ab aeterno” nela se compraz;
o Filho, sendo também para ela “Filho” ensinando-a, por mistério de
graça, a sua verdade e sabedoria quando ainda não era mais que um embrião
que lhe crescia no ventre;
o Espírito Santo, aparecendo entre os homens por uma antecipada
Pentecostes, por uma prolongada Pentecostes, Amor “naquela que amou”,
consolação dos homens, pelo fruto do seu ventre, santificação, pela
maternidade do Santo.
1.3
Deus, para manifestar-se aos homens, da forma nova e completa que
inicia a era da Redenção, não escolheu para seu trono um astro do céu, nem
o palácio real de um poderoso. Não quis nem mesmo as asas dos anjos como
base para seus pés. Quis um seio sem mácula.
Eva também tinha sido criada sem mancha. Mas espontaneamente quis
corromper-se. Maria, tendo vivido num mundo corrupto (Eva, ao contrário,
vivera num mundo puro) não quis prejudicar a sua inocência nem mesmo
com um pensamento voltado ao pecado. Sabia que o pecado existe. Viu os
vultos diversos e horríveis. Viu todos, até o mais horrendo vício: o deicídio.
Mas os conheceu para expiá-los e ser, eternamente, aquela que tem piedade
dos pecadores e ora por suas redenções.
1.4
Este pensamento será introdução a outras coisas santas que darei para
teu conforto e de muitos outros.
[1] sexto dia da criação, descrito em: Génesis 1,24-31.
2. Joaquim e Ana fazem um voto ao Senhor.
22 de agosto de 1944.
2.1
Vejo o interior de uma casa. Nela está sentada, junto a um tear, uma
mulher de idade. Diria, ao vê-la com os cabelos antes pretos, agora
grisalhos, e no rosto não enrugado mas já cheio daquela seriedade que vem
com os anos, que ela possa ter entre cinqüenta e cinqüenta e cinco anos. Não
mais.
Ao indicar estas idades femininas me baseio no rosto de minha mãe,
cuja imagem tenho mais que nunca presente nestes dias que me lembram os
seus últimos dias junto ao meu leito… Depois de amanhã fará um ano que
não a vejo mais… Minha mãe tinha um rosto jovial, sob os cabelos
precocemente embranquecidos. Aos cinqüenta anos eram brancos e pretos
como no fim de sua vida. Mas, exceto a maturidade do olhar, nada
denunciava os seus anos. Por isso poderia errar também ao dar às mulheres
idosas um certo número de anos.
Esta que vejo tecer, em uma sala toda clara de luz, que penetra da porta
escancarada sobre um grande pomar — diria, um sitiozinho, porque se
estende num sobe e desce, até uma encosta verde — é bonita em seus traços
decididamente hebreus. Olhos negros e profundos que, não sei porquê, me
lembram os de João Batista. Mas este olhar sendo altivo como de uma
rainha, é doce também. Como se sobre o seu coruscar semelhante ao de uma
águia fosse estendido um tênue véu azul. Doce e apenas um pouco triste,
como de quem pensa, e lamenta, as coisas perdidas. A tez é morena, mas não
excessivamente. A boca, levemente grande, é bem desenhada, e está parada
num gesto austero que porém não é duro. O nariz é comprido e delicado,
levemente inclinado para baixo. Um nariz aquilino que fica bem com aqueles
olhos. É robusta, mas não gorda. Bem proporcionada e creio que alta, a
julgar de como aparece sentada.
Parece-me que está tecendo uma cortina ou um tapete. As lançadeiras
multicolores correm rápidas sobre a trama que é marrom escuro, e o que já
está feito mostra um vago entrelaçamento de galões e rosáceas nos quais
verde, amarelo, vermelho e azul profundo se cruzam e se fundem como em
um mosaico. A mulher está vestida com uma roupa muito simples e escura.
Um roxo-avermelhado que parece igual a alguns amores-perfeitos.
2.2
Levanta-se ao ouvir bater à porta. É alta realmente. Abre.
Uma mulher lhe pede:
– Ana, queres dar-me a tua ânfora? Eu a encherei para ti.
A mulher tem consigo um menininho travesso de cinco anos que se
pendura imediatamente nos vestidos da nominada Ana, que o acaricia
enquanto vai em um outro cômodo e retorna com uma bonita ânfora de cobre,
que oferece à mulher dizendo:
– Tu és sempre boa, com a velha Ana. Deus te recompense por isto e
pelos filhos que tens e terás, tu bem-aventurada!
Ana suspira.
A mulher a olha e não sabe o que dizer por aquele suspiro; para desviar
a compaixão, que se compreende existe, diz:
– Eu te deixo Alfeu, se não te aborreces, assim posso andar mais
depressa e te encherei muitas moringas e jarras.
Alfeu está bem alegre de ficar, e explica-se o motivo. Tendo ido embora
a mãe, Ana o pega no colo e o leva ao pomar, o levanta até uma parreira de
uvas loiras como topázio e diz:
– Come, come, que são gostosas.
E o beija no rostinho sujo de suco de uva, que o menino arranca
avidamente do cacho.
Depois ri com gosto, e parece imediatamente mais jovem por causa dos
dentes bonitos que aparecem e pela alegria que lhe cobre o rosto, anulando
os anos, quando o menino diz:
– E agora o que me dás?
Ele a olha com dois olhos grandes arregalados de um cinzento azul
escuro.
Ela ri e brinca inclinando-se sobre os joelhos, dizendo:
– O que me dás se te dou… se te dou… adivinha!
O menino, batendo as mãozinhas, diz todo risonho:
– Beijos, beijos te dou, Ana bonita, Ana boa, Ana mamãe!…
Ana, ouvindo dizer: “Ana mamãe”, dá um verdadeiro grito de afeto
jubiloso e se abraça contra o pequenino, dizendo:
– Oh que alegria! Querido! Querido! Querido!
A cada “querido” um beijo desce sobre a pequena face rósea. E depois
vão a uma estante, e vai tirando de um prato pãezinhos de mel.
– Fiz os pãezinhos para ti, beleza da pobre Ana, para ti que me queres
bem. Mas, diz-me, quanto me queres bem?
E o menino, pensando naquilo que mais o impressionou, diz:
– Tanto quanto amo o Templo do Senhor.
Ana o beija ainda sobre os olhinhos espertos, sobre a boquinha
vermelha, e o menino a toca de leve como um gatinho.
A mãe vai e vem com o cântaro cheio e ri sem dizer nada. Ela os deixa
ao seu entusiasmo.
2.3
Entra do pomar um homem ancião, um pouco mais baixo que Ana, com
uma cabeça de cabelos espessos todos brancos. Um rosto claro, de barba
aparada, com dois olhos azuis como turquezas entre cílios de um castanho
claro quase loiro. Está vestido de marrom escuro.
Ana não o vê porque virou-se de costas à porta, e ele vem atrás dela
dizendo:
– E a mim nada?
Ana vira-se e diz:
– Oh Joaquim! Terminastes o teu trabalho?
Ao mesmo tempo, o pequeno Alfeu lhe abraça os joelhos dizendo:
– A ti também, a ti também!
Quando o ancião se inclina e o beija, o menino cinge-lhe o pescoço
despenteando-lhe a barba com as mãozinhas e com beijos.
Joaquim também tem o seu presente. Tira de trás das costas a mão
esquerda e lhe oferece uma maçã tão bonita que parece de cerâmica. Rindo
diz ao menino, que estende as mãozinhas avidamente:
– Espera que a corto em fatias para ti. Assim não podes. É maior do que
tu!
Com um canivete que carrega à cintura, uma faca de podador, a corta em
fatias, parecendo dar de comer a um passarinho no ninho, tal é o cuidado
com que coloca os bocados na boquinha aberta que mastiga e mastiga.
– Mas olha só que olhos, Joaquim! Não parecem dois pedacinhos do
mar da Galiléia, quando o vento da noite lança um véu de nuvem no céu?
Ana fala apoiando uma mão nas costas do marido e apoiando-se também
levemente a si mesma, num gesto que revela um profundo amor de esposa,
um amor intacto, depois de muitos anos de casamento.
Joaquim a olha com amor e concorda dizendo:
– Maravilhosos! E aqueles caracoizinhos? Não têm a cor da palha que o
sol secou? Olha: entre eles há uma mistura de ouro e cobre.
2.4
– Ah! Se tivéssemos tido um menino, teria querido assim, com estes
olhos e estes cabelos…
Ana está inclinada, aliás, ajoelhada e com um grande suspiro, beija os
dois grandes e belos olhos cinza-azulados.
Joaquim também suspira. Mas quer consolá-la. Coloca-lhe a mão sobre
seus cabelos crespos e embranquecidos e lhe diz:
– Convém ainda esperar. Deus tudo pode. Enquanto se é vivo, o milagre
pode acontecer, especialmente quando se ama e se é amado.
Joaquim frisa muito as últimas palavras.
Mas Ana calada, desalentada, está com a cabeça inclinada para não
mostrar duas lágrimas que descem, e que somente o pequeno Alfeu vê;
admirado e angustiado por ver a sua grande amiga chorar, como faz algumas
vezes, levanta a mãozinha e enxuga aquele pranto.
– Não chores Ana! Somos felizes assim mesmo. Ao menos eu sou,
porque tenho a ti.
– Eu também. Mas não te dei um filho… Penso que desagradei ao
Senhor, já que me secou as entranhas…
– Oh minha mulher! Em que tu, santa, queres ter-lhe desagradado?
Escuta. Vamos ainda uma vez ao Templo. Por este motivo. Não só pelos
Tabernáculos. Façamos uma longa oração… Talvez te aconteça como com
Sara… ou com Ana de Elcana[2]. Muito esperaram, e se acreditavam
reprovadas por serem estéreis. Ao invés disso, nos céus de Deus,
amadurecia um filho santo para elas. Sorri, minha esposa. O teu pranto me
dói mais do que não ter prole… Levaremos Alfeu conosco e o faremos orar,
ele que é inocente… Deus ouvirá a sua e a nossa oração, nos atendendo
então.
– Sim. Façamos um voto ao Senhor. Será seu o recém-nascido. Contanto
que nos conceda… Oh! Ouvi-lo chamar-me “mamãe”!
E Alfeu, espectador admirado e inocente:
– Eu te chamo assim!
– Sim, querida alegria… mas tu tens a tua mamãe e eu… eu não tenho
nenhuma criança…
A visão termina aqui.
2.5
Entendo que iniciou o ciclo do nascimento de Maria. E estou muito
contente, porque o desejava muito. Penso que também o senhor[3] ficará
contente.
Antes que eu começasse a escrever, ouvi a Mãe dizer:
– Filha, escreve então sobre mim. Todo o teu desgosto será consolado.
Enquanto dizia isto, me pousava a mão sobre a cabeça em uma suave
carícia. Depois veio a visão. Mas a princípio, ou seja, enquanto não ouvi
chamar a senhora de cinqüenta anos por nome, não havia compreendido estar
diante da mãe da mãe e por isto da graça do seu nascimento.
[2] como com S ara, em: Génesis 17,15-21; 18,10-15; 21,1-3; com Ana de Elcana, em: 1 Samuel 1; 2,1-10. M encionadas
como as mulheres que tiveram o Dom da maternidade mesmo sendo idosas e estéreis (Sara é mãe de Isaac, Ana de Elcana é mãe
do p rofeta Samuel), serão igualmente recordadas em: 104.4 -138.4 -300.2 -346.4 -473.8 -486.4 -561.15 -569.4.
[3] também o senhor é o director esp iritual da escritora, o p adre Romualdo M . M igliorini, da Congregação “Ordine dei Servi
di M aria”, ao qual M V se dirige com frequência. Por vezes vem favorecido um seu desejo (como em: 44.7 e em 45.10) ou lhe é
dedicado um ep isódio (como em: 58.1) ou lhe é dirigido um ensinamento (como em nota a 180.5 e em 234.10) ou lhe vem feita
uma confidência (como em 185.1 e 212.3). Leva a Comunhão à escritora (108.3).
3. A festa dos Tabernáculos.
Joaquim e Ana possuíam a sabedoria.
23 de agosto de 1944.
3.1
Antes de continuar, faço aqui uma observação.
A casa não me parece aquela já bem conhecida de Nazaré. Ao menos o
ambiente é muito diferente. Também o pomar é mais vasto, e além disso,
pode-se ver os campos. Não muitos, mas enfim, alguns. Depois, quando
Maria casou-se, havia só o horto, vasto mas limitado a horto, e este quarto
que vi, nunca vi em outras visões. Não sei se devo pensar que, por motivos
pecuniários, os pais de Maria se desfizeram de parte de seus pertences ou se
Maria, saindo do Templo, passou para uma outra casa, talvez presenteada
por José. Não me lembro se nas visões e lições passadas tive qualquer
indício seguro de que a casa de Nazaré fosse a casa nativa.
A minha cabeça está muito cansada. E depois, sobretudo por causa dos
ditados, eu me esqueço logo das palavras, mesmo se os comandos me
permanecem gravados na mente e a luz me permanece na alma. Mas os
pormenores se desvanecem imediatamente. Se depois de uma hora tivesse
que repetir aquilo que ouvi, com exceção de uma ou duas frases principais,
não saberia mais nada. Enquanto que as visões ficam vivas na mente, porque
tive de observá-las por mim mesma. Recebo os ditados. As visões, ao invés,
devo perceber. Por isto, elas ficam vivas no pensamento, pelo esforço em
observar as suas fases.
Esperava que houvesse um ditado sobre a visão de ontem. Em vez disso,
nada.
3.2
Começo a ver e escrevo.
Fora dos muros de Jerusalém, sobre as colinas e entre as oliveiras há
uma grande multidão. Parece uma enorme feira. Mas não existem bancas e
barracões. Não há o vozerio de charlatães e vendedores. Nem jogos. Há ali
muitas tendas de lã ásperas, certamente impermeáveis, estendidas sobre
estacas cravadas ao chão. Ligadas às estacas há ramos verdes que ornam e
refrescam. Outras tendas, ao invés, são de ramos fincados ao chão e sendo
ligadas assim: , são como pequenas galerias verdes. De baixo de cada uma,
há pessoas de toda idade e condição, e um falar tranqüilo e concentrado,
interrompido apenas por algum grito de criança.
Desce a noite e as luzes de candeiazinhas a óleo, já brilham
intensamente aqui e ali, pelo acampamento estranho. Ao redor das luzes
algumas famílias consomem a ceia. As mães estão sentadas no chão. com os
menores no colo, onde alguns, cansados, adormecem ainda com o pedaço de
pão nos dedinhos róseos, tombando a cabecinha sobre o seio materno, como
pintinhos sob a galinha; as mães terminam de comer como podem, com uma
das mãos, enquanto a outra segura o filhinho junto ao coração. Outras
famílias, ao contrário, não estão jantando ainda e conversam na semi-
escuridão do crepúsculo, esperando que a refeição fique pronta. Alguns
fogos são acesos aqui e ali, e ao seu redor as mulheres afadigam-se. Alguma
cantiga de ninar muito lenta, diria quase lamentosa, embala uma criança que
custa a adormecer.
No alto, um bonito céu sereno torna-se sempre mais azul profundo até
parecer um enorme velário de veludo macio de um azul escuro; sobre ele
lentamente, invisíveis artífices e decoradores diligentemente fixam jóias e
lamparinas, as quais isoladas, como em bizarras linhas geométricas, deixam
sobressair a Ursa maior e a menor com a sua forma de carro com a estaca
apoiada ao chão, depois que os bois foram destacados do jugo. A estrela
polar ri com todo o seu esplendor.
Percebo que é outubro porque uma voz grave de homem o diz:
– É bonito este outubro[4] como poucos o foram!
3.3
Eis Ana que vem de um fogaréu com algumas coisas entre as mãos,
estendidas sobre um grande pão bem plano que serve também de bandeja.
Preso às suas saias está Alfeu, que tagarela com a sua vozinha. Joaquim está
na soleira da sua pequena cabana de ramos falando com um homem de uns
trinta anos. (Alfeu de longe o saúda com um gritinho agudo dizendo:
“Papai”) Quando Joaquim avista Ana que se aproxima, apressa-se em
acender a candeiazinha.
Ana passa com o seu porte majestoso entre as fileiras de cabanas. Real,
mesmo se humilde, Ana não é soberba com ninguém. Levanta o menino de
uma pobre mulher, que caiu, exatamente a seus pés, ao tropeçar na sua
corrida travessa. Visto que havia sujado o rostinho de terra, ela o limpa,
consolando-o porque chora, e o devolve à mãe, que chega correndo e se
desculpa. Ana respode:
– Oh! Não é nada! Estou contente que não tenha se machucado. É um
bonito menino. Quantos anos tem?
– Três anos. É o penúltimo e logo terei um outro. Tenho seis meninos.
Agora queria uma menina… Para uma mãe é importante uma menina…
– O Altíssimo muito te consolou, ó mulher!
Ana suspira. E a outra:
– Sim. Sou pobre, mas os filhos são a nossa alegria e os maiorzinhos já
ajudam no trabalho. E tu, senhora (tudo indica que Ana seja de condição
mais elevada, pois a outra o notou) quantas crianças tens?
– Nenhuma.
– Nenhuma?! Esta não é tua?
– Não, de uma vizinha muito boa. É o meu conforto…
– Morreram ou…
– Não, nunca as tive.
– Oh!
A pobre mulher a olha com piedade.
Ana se despede com um grande suspiro e vai à sua cabana.
– Eu te fiz esperar, Joaquim! Uma pobre mulher entreteve-me; mãe de
seis filhos, imagine! E terá outro!
Joaquim suspira.
O pai de Alfeu chama o seu filho, mas este lhe responde:
– Eu fico com a Ana. Estou ajudando-a.
Todos riem.
– Deixa-o. Ele não me dá aborrecimento. Ainda não está obrigado a
observar a Lei. Estando aqui ou ali, ele não passa de um passarinho
comilão –diz Ana que senta-se com o menino no colo, ao qual dá pão com
peixe assado.
Vejo que antes de dar o peixe, parece estar lhe tirando os espinhos.
Depois serve o marido. Ela come por último.
3.4
A noite está sempre mais cheia de estrelas e as luzes sempre mais
numerosas no campo. Depois lentamente muitos candeeiros se apagam. São
daqueles que jantaram antes e que agora se põem a dormir. Também o
murmúrio diminui devagar. Vozes de meninos não se ouvem mais. Só alguma
criança de peito faz ouvir a sua vozinha de cordeirinho buscando o leite da
mamãe. A noite sopra o seu hálito sobre as pessoas, apagando desgostos e
lembranças, esperanças e rancores. Aliás, talvez Joaquim e Ana sobrevivam
tranqüilizados, seja no sono, que no sonho.
Ana o diz ao marido, enquanto embala Alfeu que começa a dormir em
seus braços:
– Esta noite sonhei que no próximo ano eu virei à Cidade Santa para
duas festas, ao invés de uma. E uma será a dádiva da minha criança ao
Templo… Oh! Joaquim!…
– Espera, espera Ana. Não ouvistes outra coisa? O Senhor não te
segredou nada em teu coração?
– Nada. Somente um sonho…
– Amanhã é o o último dia de oração. Todas as ofertas já foram feitas.
Mas as renovaremos ainda amanhã, solenemente. Convenceremos Deus com
o nosso amor fiel. Eu penso sempre que te acontecerá o mesmo que com a
Ana de Elcana.
– Queira Deus… e que houvesse logo alguém que me dissesse: “Vá em
paz. O Deus de Israel te concedeu a graça que pedistes!”
– Se a graça vier, o teu menino dir-te-á mexendo-se pela primeira vez no
teu ventre, e será voz de inocente, por isto, voz de Deus.
Agora o campo cala-se no escuro. Ana também devolve Alfeu à cabana
contígua e o põe sozinho sobre a enxerga de feno próximo aos irmãozinhos
que já dormem. E depois deita-se ao lado de Joaquim, e também a sua
lamparina se apaga. Uma das últimas estrelinhas da terra. Ficam mais
bonitas as estrelas do firmamento a velar sobre todos os que dormem.
3.5
Jesus diz:
– Os justos são sempre sábios porque, sendo amigos de Deus, vivem em
sua companhia e são instruídos por Ele, que é Infinita Sabedoria.
Os meus avós eram justos e por isto tinham a sabedoria. Podiam dizer
com verdade quanto diz o Livro[5], cantando os louvores da Sabedoria, no
livro: “Eu a amei e a procurei desde a juventude e procurei torná-la minha
esposa”.
Ana de Arão era a mulher forte de quem fala o nosso Avô[6]. E Joaquim
da estirpe do rei Davi, não tinha procurado tanto a formosura ou riqueza,
quanto a virtude. Ana possuía uma grande virtude. Todas as virtudes
reunidas num maço perfumado de flores, para tornar-se uma única lindíssima
coisa, a Virtude. Uma virtude real, digna de estar perante o trono de Deus.
Joaquim tinha portanto desposado duas vezes a sabedoria “amando-a
mais que qualquer outra mulher”: a sabedoria de Deus encerrada no coração
da mulher justa. Ana de Arão não procurara outra coisa senão unir a sua vida
à de um homem reto, certa de que na retidão está a alegria das famílias.
3.6
Sendo a insígnia da “mulher forte” não lhe faltava nada a não ser a coroa
dos filhos, glória da mulher casada, justificação do casamento, do qual fala
Salomão. À sua felicidade não lhe faltavam senão os filhos, flores da árvore
que se une à árvore vizinha obtendo assim a abundância de novos frutos, na
qual duas bondades se fundem em uma, pois, também do lado do esposo,
nunca lhe viera nenhuma desilusão.
3.7
Ela, agora a caminho da velhice, há decênios mulher de Joaquim, era
sempre para ele “a esposa da sua juventude, a sua alegria, a cerva tão
querida, a graciosa gazela”, cujas carícias tinham sempre o fresco encanto
da primeira noite de núpcias e fascinavam docemente o seu amor, mantendo-
o fresco como uma flor que o orvalho umedece e ardente como fogo
constantemente alimentado. Por isto, em suas aflições por não terem filhos,
um dizia ao outro “palavras de consolo em pensamento e em cuidados”.
3.8
Quando chegou a hora, a Sabedoria eterna, depois de tê-los instruído
na vida, os iluminou com os sonhos da noite, alvorada do poema de glória
que devia provir deles, Maria Santíssima, a minha mãe. Se na sua humildade
não pensaram nisto, seus corações porém, tremeram de esperança, ao
primeiro sinal evidente da promessa de Deus. Nas palavras de Joaquim já
havia certeza: “Espera, espera… convenceremos Deus com nosso amor
fiel”. Sonhavam com um filho: tiveram a mãe de Deus.
3.9
As palavras do livro da Sabedoria parecem escritas para eles: “Por
ela alcançarei glória perante o povo… por ela alcançarei imortalidade e
deixarei memória eterna àqueles que depois de mim virão”. Mas, para
conseguir tudo isto, tiveram de fazer-se discípulos de uma virtude veraz e
duradoura, imune a qualquer acontecimento. Virtude de fé. Virtude de
caridade. Virtude de esperança. Virtude de castidade. A castidade dos
esposos! Eles a possuíram; porque não é preciso ser virgem para ser casto.
E os leitos conjugais castos têm a proteção dos anjos recebendo filhos bons,
que fazem da virtude dos pais a norma de suas vidas.
3.10
Mas agora onde estão estes filhos? Hoje não se quer mais filhos e
não se quer tampouco a castidade. Por isso eu digo que o amor e o leito
conjugal estão profanados.
[4] Outubro: por vezes — assim anota M aria Valtorta na cóp ia dactilografada — os nomes são ditos em italiano, (p or
consenguinte, traduzidos em p ortuguês), para melhor compreensão do leitor. A corresp ondência entre os meses do calendário
hebraico, regulado p elo ano lunar, que iniciava na Primavera (como referido em 68.4), e os meses do nosso calendário, regulado
p elo ano solar, é ap roximativa: 1. nisam, ou abid como em 413.6 (M arço-Abril); 2. ziv ou zio como em vulgata ou em 461.7
(AbrilM aio); 3. sivan (M aio-Junho); 4. tamnuz ou tanuz como em 442.3 ou tamuz como em 461.16 (Junho-Julho); 5. ab
(Julho-Agosto); 6. elul (Agosto-Setembro); 7. tisri ou etanim (Setembro-Outubro); 8. marchesvan ou bul (Outubro-
Novembro); 9. casleu (Novembro-Dezembro); 10. tebet (Dezembro-Janeiro); 11. scebat (Janeiro-Fevereiro); 12. adar
(Fevereiro-M arço). O mês de marchesvan ou bul não é jamais mencionado na obra, que talvez reserva ao oitavo mês o nome de
etanim sep arando-o de tisri. Os meses tinham início com o novilúnio, chamado neoménia. Para recup erar o atraso do ciclo lunar
sobre o ano solar, de vez em quando se dup licava o mês de adar e se obtinha um ano de treze meses (chamado anno
embolismico em 114.8).
[5] o livro, isto é em: Sabedoria 8,2.
[6] o nosso Avô, isto é Salomão, em: Provérbios 31,10-31. Seguem citações de: Provérbios 5,18-19; Sabedoria 8,10.13.
4. Ana, com um cântico anuncia que será mãe.
No seu ventre está a alma imaculada de Maria.
24 de agosto de 1944.
4.1
Revejo a casa de Joaquim e Ana. Nada mudou no seu interior, se se
tirarem os muitos ramos floridos, colocados em ânforas aqui e ali, fruto das
podas feitas nas árvores do pomar em flor: uma nuvem que varia do branco
neve ao vermelho de certos corais.
O trabalho de Ana também é diferente. Sobre um tear menor, ela tece
algumas bonitas telas de linho, e canta, cadenciando o movimento do pé com
o canto. Canta e sorri… A quem? A si mesma, a alguma coisa que ela vê no
seu interior.
Eis o canto, lento mas alegre, que escrevi à parte para segui-lo, porque o
repete muitas vezes deleitando-se nisso, sempre mais forte e segura, como
quem encontrou um ritmo no seu coração; primeiro o murmura em surdina,
depois, segura, canta mais veloz e alto (aqui o transcrevo porque, na sua
simplicidade é muito doce):
“Glória ao Senhor onipotente que dos filhos de Davi teve amor. Glória
ao Senhor!
A sua suprema graça do Céu me visitou.
A velha planta colocou novo ramo e eu sou bem-aventurada.
Pela festa das Luzes a semente lançou a esperança;
ora a fragrância de Nisam o vê brotar.
Como a amendoeira na minha carne floresce a primavera.
O seu fruto, nesta tarde, ela sente transportar.
Naquele ramo há uma rosa, há um pomo dos mais doces.
Há uma estrela reluzente, há uma criança inocente.
Há a alegria da casa, do esposo e da esposa.
Louvor a Deus, ao meu Senhor, que teve piedade de mim.
A sua luz me disse: “Uma estrela virá a ti”.
Glória, glória! Será teu este fruto da planta,
primeiro e derradeiro, santo e puro como dádiva do Senhor.
Teu será e por causa dele venha alegria e paz sobre a terra.
Vôa, oh lançadeira. O fio se aperta sobre o tecido da criança.
Ele nasce! A Deus glorioso vá o canto do meu coração”.
4.2
Joaquim entra quando ela está para repetir pela quarta vez o seu canto.
– Estás feliz, Ana? Pareces-me um pássaro que viu a primavera. Que
canto é este? Nunca ouvi. De onde ele vem?
– Do meu coração, Joaquim.
Ana levanta-se e agora se dirige até o esposo, toda risonha. Parece mais
jovem e mais bonita.
– Não te imaginava poetisa –diz o marido, olhando-a com clara
admiração. Não pareciam dois esposos idosos. Em seus olhares, existia uma
ternura de jovens esposos–. Vim do fundo do pomar ouvindo-te cantar. Eram
anos que não ouvia a tua voz de rolinha enamorada. Queres repetir-me
aquele canto?
– Eu o repetiria mesmo que tu não me pedisses. Os filhos de Israel
sempre confiaram ao canto os clamores mais verdadeiros de suas
esperanças, alegrias e dores. Eu confiei ao canto o cuidado de dizer-me e
dizer-te uma grande alegria. Sim, também dizer a mim mesma, porque é uma
coisa imensa que, por quanto esteja certa, parece-me ainda não ser
verdadeira…
E recomeça o canto, mas chegando ao ponto: “sobre aquele ramo há uma
rosa, há uma maçã das mais doces, há uma estrela…” a sua voz bem entoada
de contralto fez-se primeiro trêmula, depois se rompe e com um soluço de
alegria olha Joaquim e, levantando os braços grita:
– Sou mãe meu deleite –e se refugia no seu coração, entre os braços que
ele estendeu para encerrarem em torno de sua feliz esposa. O mais casto e
feliz abraço que eu jamais vi, desde que estou no mundo. Casto e ardente, na
sua castidade.
E a doce repreensão entre os cabelos grisalhos de Ana:
– E não me disseste antes?
– Porque queria estar certa. Velha como sou… Saber-me mãe… Não
podia acreditar ser verdade… não queria dar-te uma desilusão mais amarga
ainda. Desde fins de dezembro sinto fazerem-se novas as minhas profundas
entranhas e brotar, como posso dizer, um novo ramo. Mas agora sobre aquele
ramo está seguro o fruto. Vês? Aquele tecido já é para aquele que virá.
– Não é o linho que comprastes em outubro em Jerusalém?
– Sim. Eu o teci depois enquanto esperava. 4.3Esperava porque no último
dia, enquanto orava no Templo, o maior tempo que pudesse uma mulher ficar
na Casa de Deus, até a noite… Tu te recordas que eu dizia: “Ainda, ainda um
pouco.” Não podia afastar-me dali sem receber a graça! Pois bem! Na
sombra que já descia do interior do lugar sagrado, que eu olhava com
atração de alma para arrancar uma anuência do Deus presente, vi partir uma
luz, uma centelha de luz maravilhosa. Era alva como a lua, contudo tinha em
si as luzes de todas as pérolas e pedras preciosas que existem sobre a terra.
Parecia que uma das estrelas preciosas do Véu, daquelas estrelas postas sob
os pés dos querubins, se desprendesse uma e se tornasse esplêndida, de uma
luz sobrenatural… Parecia partir um fogo para além do Véu sagrado,
proveniente da própria Glória, vindo a mim veloz, e ao cortar o ar cantasse
com voz celeste dizendo: “O que pedistes venha a ti.” É por isso que eu
canto: “Uma estrela virá a ti.” Que filho será esse nosso, que se manifesta
como luz de estrela no Templo e que diz: “Eu sou” na festa das Luzes? Que
filho fez com que tu tenhas visto em mim uma nova Ana de Elcana? 4.4Como
chamaremos a nossa criança, que doce como um canto de águas ouço falar-
me no ventre com o seu pequeno coração que bate como o de uma rolinha
apanhada na cavidade das mãos?
– Se for menino o chamaremos Samuel. Se for menina Estrela. A palavra
que fortaleceu o teu canto para dar-me a alegria de saber-me pai. A forma
que escolheu para manifestar-se entre a sacra sombra do Templo.
– Estrela. A nossa estrela, porque, não sei, penso que seja mesmo uma
menina. Parece-me que carícias tão doces não possam vir senão de uma
dulcíssima filha. Eu não a carrego, não tenho nenhum sofrimento. É ela que
me carrega sobre uma vereda azul e florida, como se eu estivesse amparada
pelos santos anjos e a terra já estivesse longe… Sempre ouvi as mulheres
dizerem que conceber e gerar é sinônimo de dor. Mas eu não tenho dor.
Sinto-me forte, jovem, fresca, mais do que quando te dei a minha virgindade
na juventude distante. Filha de Deus, visto que é mais de Deus do que nossa
aquela que nasce de um tronco árido, não dá dores à sua mãe. Ela traz
somente paz e bênção: os frutos de Deus, seu verdadeiro Pai.
– Então a chamaremos Maria. Estrela do nosso mar, pérola, felicidade.
O nome[7] da primeira grande mulher de Israel. Mas esta não pecará nunca
contra o Senhor, e só a Ele dará o seu canto porque a Ele é oferecida, como
hóstia, antes de nascer.
– A Ele é oferecida, sim. Homem ou mulher que seja, depois de nos
alegrarmos por três anos com a nossa criança, nós a daremos ao Senhor.
Hóstia também nós com ela, pela glória de Deus.
Não vejo nem ouço mais nada.
4.5
Jesus diz:
– A Sabedoria, depois de tê-los iluminado com os sonhos da noite,
desceu àquela que é “vapor[8] da virtude de Deus, certa emanação da glória
do Onipotente”, e tornou-se Palavra para a estéril. Aquele que agora via
próximo o Seu tempo de redimir, Eu, o Cristo, neto de Ana, quase cinqüenta
anos depois, mediante a Palavra, farei milagres sobre as estéreis e as
doentes, sobre as endemoninhadas, sobre as desoladas, sobre todas as
misérias da terra.
No entanto, pela alegria de ter uma mãe, eis que murmuro
misteriosamente a Palavra na sombra do Templo que continha as esperanças
de Israel. Templo agora no limiar da sua vida, porque o novo e verdadeiro
Templo não contém mais as esperanças de um povo, mas a certeza de um
Paraíso para o povo de toda a terra, por todos os séculos até o fim do
mundo; Paraíso que está para vir sobre a terra. E esta Palavra opera o
milagre de tornar fecundo o que era infecundo. Dar-me uma mãe, que não
teve apenas ótima proveniência, como era seu destino, nascida de dois
santos; não teve somente um aumento contínuo da bondade pelo seu bem
querer, não teve somente um corpo imaculado, teve também o espírito
imaculado, sendo única entre as criaturas.
4.6
Tu vistes[9] a geração contínua das almas de Deus. Agora imagines
qual deva ser a beleza desta alma que o Pai almejou antes que o tempo
existisse, desta alma que constituía as delícias da Trindade, que ardia por
enfeitá-la com as suas dádivas para lhe fazer um dom a Si mesma. Ó toda
santa, que Deus criou para Si e depois para refúgio dos homens! Portadora
do Salvador, tu fostes a primeira salvação. Paraíso Vivente, com teu sorriso,
começastes a santificar a terra.
A alma criada para ser a alma da mãe de Deus! Quando, de uma mais
viva palpitação do Trino Amor, brotou esta centelha vital, jubilaram os
anjos, porque o Paraíso nunca viu luz mais viva. Como pétala de uma
empírea rosa, uma pétala imaterial e preciosa que era jóia e chama, que era
o hálito de Deus que descia para animar uma carne diferentemente das
outras, que descia com fogo tão potente que a Culpa não pode contaminá-la,
atravessando os espaços e encerrando-se num seio santo.
Ainda sem saber, a terra já tinha a sua flor. A verdadeira, única flor que
floresce eternamente: lírio e rosa, violeta e jasmim, girassol e ciclame
fundidos juntos, e com essas todas as flores da terra numa única flor, Maria,
na qual se reúne toda virtude e graça.
Em abril, a terra da Palestina parecia um enorme jardim: as fragrâncias
e as cores davam delícia ao coração dos homens. Mas a rosa mais bonita
ainda era desconhecida. Ela já era florescente a Deus no segredo do ventre
materno, já que minha mãe amou desde que foi concebida, mas só quando a
videira dá o seu sangue para fazer vinho, e o perfume dos mostos, açucarado
e forte, enche as eiras e as narinas, ela iria sorrir primeiro a Deus e depois
ao mundo, dizendo com o seu sorriso super inocente: “Eis que a Videira, que
vos dará o Cacho espremido na prensa, como Remédio eterno contra o vosso
mal, está entre vós.”
Eu disse: “Maria amou desde que foi concebida.” O que dá ao espírito
luz e conhecimento? A Graça. O que leva a Graça? O pecado de origem e o
pecado mortal. Maria, aquela sem mácula, nunca foi despojada da lembrança
de Deus, da sua proximidade, do seu amor, da sua luz, da sua sabedoria. Ela
pôde por isto, compreender e amar até quando era apenas carne em torno de
uma alma imaculada que sempre amou.
4.7
Depois, faço-te contemplar mentalmente a profundidade da virgindade
de Maria. Terás uma vertigem celeste, como quando te fiz entender a nossa
eternidade. Por enquanto, considera apenas como o trazer no ventre uma
criatura isenta da mácula da ausência de Deus, dá à mãe uma inteligência
superior e a transforma em um profeta, mesmo tendo esta mãe concebido
natural e humanamente. O profeta da sua filha, que a chama: “Filha de Deus.”
Imagina o que seria se pais inocentes concebessem filhos inocentes, assim
como Deus gostaria.
Ó homens, que vos dizeis semelhantes ao “super-homem”, mas com os
vossos vícios vos assemelhais unicamente ao “super-demônio”, neste
exemplo teríeis encontrado o meio de chegardes ao “super-homem.” Saber
permanecer sem a contaminação de satanás para deixar a Deus a
administração da vida, do conhecimento, do bem, não desejando mais do que
isto, que é pouco menos que o infinito. Deus vos teria dado poder de gerar
em uma contínua evolução até a perfeição, filhos que fossem homens no
corpo e filhos da Inteligência no espírito, ou seja triunfadores, fortes,
gigantes contra satanás, que seria derrubado muitos milhares de séculos
antes da hora em que o será, junto a todo o seu mal.
[7] nome da irmã de Aarão e de M oisés, dela se fala em: Êxodo 15,20-21; Números 12,1-15; 20,1; 26,59. Outras referências a
Maria de Aarão (ou de Moisés) encontram-se em 131.2, 525.7, 609.3.
[8] vapor..., como dito em: Sabedoria 7,25.
[9] Tu vistes, a 25 de M aio de 1944, em “Os cadernos de 1944”.
5. Nascimento de Maria. A sua virgindade
no eterno pensamento do Pai.
26 de agosto de 1944.
5.1
Vejo Ana sair no pomar. Apóia-se ao braço provavelmente de uma
parente, porque se assemelha a ela. Está muito volumosa e parece afadigada
talvez pelo afã, parecido com o que eu sinto agora.
Embora o pomar esteja na sombra, o ar ali está quente, pesado. Um ar
que se poderia cortar como uma massa mole e quente, de tão denso, sob um
impiedoso céu de um azul embaçado pela poeira suspensa nos espaços. Faz
tempo que deve ter havido estiagem, porque a terra, onde não é irrigada, está
literalmente reduzida a uma poeira finíssima, quase branca. De um branco
levemente tendente a um rosa-escuro, mais para o marrom ao pé das plantas
ou ao longo dos breves canteiros, onde banhadas crescem fileiras de
hortaliças, em torno aos roseirais, aos jasmineiros, outras flores, que estão
ao lado de uma parreira bonita cortando pela metade o jardim, até ao início
dos campos, despojados de gramináceas. Também a relva do prado,
assinalando o fim da propriedade, está chamuscada e rala. Só às margens
dela, onde há uma cerca de espinheiro-alvar selvagem, marcado pelos rubis
dos pequenos frutos, a grama é mais verde e espessa. Alí estão as ovelhinhas
com um pequeno pastor, à procura de pasto e de sombra.
Joaquim está ao redor das fileiras e das oliveiras. Com ele há dois
homens que o ajudam. Mesmo ancião, Joaquim é agil e trabalha com gosto.
Estão abrindo pequenos cercados nos limites de um campo, para dar água às
plantas sequiosas. A água abre um caminho borbulhando entre a relva e a
terra abrasada, e se estende em anéis, que por um momento parecem de um
cristal amarelado e depois são só anéis escuros de terra úmida, em torno aos
sarmentos e as oliveiras sobrecarregadas.
Ana lentamente vai na direção de Joaquim que quando a vê se apressa a
encontrá-la andando pela parreira sombreada, sob a qual abelhas de ouro
zumbem ávidas do açúcar dos grãos de uva branca.
– Chegastes até aqui?
– A casa está quente como um forno.
– E tu sofres.
– O único sofrimento é desta minha última hora de grávida. O sofrimento
de todos, homens e animais. Não te acalores demais, Joaquim.
– A água, que esperamos faz tempo e que de três dias para cá parecia
bem próxima, ainda não veio, e o campo queima. É bom para nós que temos
a nascente próxima e é muito rica de águas. Abri os canais. Um pouco de
refrigério para as plantas, que têm as folhas murchas e cobertas de poeira.
Mas é suficiente só para mantê-las vivas. Se chovesse!…
Joaquim, com a ânsia de todos os agricultores, perscruta o céu, enquanto
Ana, cansada, se abana com um leque que parece feito com uma folha seca
de palma, entrelaçada com fios multicolores que a tornam rígida.
A parente diz:
– Lá, além do grande Hermon, surgem nuvens velozes. Vento do norte.
Refrescará e talvez trará água.
– São três dias que se levanta e depois cai com o surgir da lua. Será
ainda assim.
Joaquim está desanimado.
– Voltemos para casa. Aqui também não se respira, e depois penso que
seja bom voltarmos… –diz Ana, que parece ainda mais olivácea por causa
de uma palidez que lhe veio sobre o rosto.
5.2
– Sofres?
– Não. Mas sinto aquela grande paz que senti no Templo quando me foi
dada a graça e que senti ainda quando soube que seria mãe. É como um
êxtase. Um doce sono do corpo, enquanto o espírito jubila e se aplaca em
uma paz sem comparação humana. Eu te amei, Joaquim, e quando entrei na
tua casa e disse a mim mesma: “Sou esposa de um justo”, tive paz, e assim
todas as vezes que o teu amor providencial cuidou da tua Ana. Mas esta paz
é diferente. Veja, eu creio que é uma paz como aquela que devia invadir,
como óleo que se expande e suaviza o espírito de Jacó, nosso pai, depois do
seu sonho[10] de anjos; e, melhor ainda, semelhante à paz jubilosa dos Tobias
depois que Rafael se manifestou a eles. Se me abandono a apreciá-la, ela
sempre cresce mais. É como se eu subisse pelos espaços azuis do céu… e,
não sei por que, desde que eu tenho em mim esta alegria pacífica, eu tenho
um cântico no coração, aquele do velho Tobias. Parece-me que tenha sido
escrito para esta hora… para esta alegria… para a terra de Israel que a
recebe… para a Jerusalém pecadora e agora perdoada… mas, não rides dos
delírios de uma mãe, quando digo: “Agradece o Senhor pelos teus bens e
glorifica o Deus dos séculos, a fim de que reedifiques em ti o seu
Tabernáculo”, eu penso que aquele que reedificará em Jerusalém o
Tabernáculo do Deus verdadeiro será este que está para nascer; penso ainda
que não mais do que a Cidade santa, mas pela minha criança seja profetizado
o destino quando o cântico diz: “Tu brilharás com uma luz esplêndida, todos
os povos da terra se prostrarão a ti, as nações virão a ti trazendo presentes,
em ti adorarão o Senhor e julgarão santa a tua terra, porque dentro de ti
invocarão o Grande Nome.” “Tu serás feliz nos teus filhos, porque todos
serão abençoados e se reunirão ao lado do Senhor. Bem-aventurados aqueles
que te amam e regozijam tua paz!…”; e a primeira a regozijar sou eu, a sua
mãe bem-aventurada…
Ana empalidece e se inflama como algo trazido pela luz lunar a um
grande fogo e vice-versa, ao dizer estas palavras. Doces lágrimas descem
sobre suas faces e ela nem as percebe, sorrindo de alegria. E assim vai em
direção à casa, entre o esposo e a parente, que a escutam e calam-se
comovidos.
5.3
Apressam-se porque as nuvens, impelidas por um vento forte galopam
e crescem pelo céu, e a planície torna-se escura e estremece por um aviso de
temporal. Quando alcançam à soleira da casa, um primeiro relâmpago lívido
sulca o céu e o barulho do primeiro trovão parece o rufar de um enorme
tambor que se mistura ao harpejo dos primeiros pingos sobre as folhas
secas.
Entram todos e Ana se retira, enquanto Joaquim, alcançado pelos
criados, fala, da porta, desta longa espera pela água, que é uma bênção para
a terra sedenta. Mas a alegria se transforma em temor, porque vem um
temporal violentíssimo com raios e nuvens carregadas de granizo.
– Se a nuvem rompe, a uva e as oliveiras serão esmagadas como pela
moenda. Pobres de nós!
Joaquim tem uma outra ansiedade: pela esposa para a qual chegou a hora
de dar à luz o seu filho. A parente o tranqüiliza que Ana não sofre
absolutamente nada. Mas ele está ansioso; cada vez que a parente ou outras
mulheres, entre as quais a mãe de Alfeu, saem do quarto de Ana para depois
voltarem com água quente e bacias e linhos enxutos junto ao fogo da lareira
central numa cozinha ampla, Joaquim pergunta algo, não se acalmando com
as respostas. Também a ausência de gritos de Ana o preocupa. Diz:
– Eu sou homem e nunca vi um parto. Mas lembro-me de ter ouvido
dizer que a ausência de dores é fatal…
Vem a noite, antecipada pela fúria tempestuosa que é violentíssima.
Agua torrencial, vento, raios, ali tem de tudo, menos o granizo, que foi cair
em outra parte.
Um dos criados percebe a violência e diz:
– Parece que satanás saiu do inferno com seus demônios. Olha que
nuvens negras! Sente que cheiro de enxôfre no ar, assobios, sibilos, vozes de
lamento e maldição. Se é ele, está furioso esta noite!
O outro criado ri e diz:
– Fugiu-lhe uma grande presa, ou Miguel o espancou com uma nova
faísca de Deus, e ele ficou com o chifre e o rabo cortado e queimado.
Passa correndo uma mulher e grita:
– Joaquim! Está para nascer! E foi tudo rápido e feliz!
E desaparece com uma pequena ânfora entre as mãos.
5.4
O temporal pára de improvisio depois de um último raio tão violento
que arremessa contra as paredes os três homens; e na frente da casa, no chão
do horto-jardim, fica como lembrança um buraco preto e fumegante. Ao
mesmo tempo um gemido vem de lá da porta de Ana, gemido que parece o
lamento de uma rolinha que pela primeira vez não pia, mas arrulha. Um
enorme arco-íris estende a sua listra em semicírculo sobre toda a amplidão
do céu. Surge, ou pelo menos parece surgir, do cume do Hermon que beijado
por uma lama de sol, parece de alabastro de um branco-rosado
delicadíssimo. Este arco-íris levanta-se até o mais claro céu de setembro, e,
atravessando por espaços limpos de toda impureza, sobrevoa as colinas da
Galiléia e a planície que aparece, entre duas árvores de figo, ao sul e depois
ainda um outro monte, indo pousar a sua ponta final no extremo horizonte, lá
onde uma áspera cadeia de montanhas fecha qualquer outro panorama.
– Nunca vi isso!
– Olhai, olhai!
– Parece que toda a terra de Israel esteja ligada em um círculo, mas
olhai, ali já há uma estrela, enquanto que o sol ainda não desapareceu. Que
estrela! Brilha como um enorme diamante!…
– A lua é toda plena, enquanto que ainda faltam três dias para a lua
cheia. Mas olhai como resplandece!
5.5
As mulheres chegam repentinamente, alegres com um embrulhozinho
rosado entre tecidos alvos.
É Maria, a mãe! Uma Maria pequenina que poderia dormir entre o
círculo de braços de um menino, uma Maria comprida tanto quanto um braço,
uma cabecinha de marfim tingido de um rosa tênue, com a boquinha de
carmim, que já não chora mais, mas faz o instintivo ato de sugar, tão pequena
que não se sabe como fará para pegar um mamilo, um narizinho diminuto
entre duas pequenas faces arredondadas e ao tocá-lo abrem-se os olhinhos,
dois pedacinhos do céu, dois pontinhos inocentes e azuis que olham, mas não
vêem, entre cílios delicados, de um loiro tão intenso que é quase róseo.
Também os cabelinhos sobre a cabecinha arredondada são a cor loiro-
rosado de algumas qualidades de mel quase branco.
No lugar de orelhas, duas conchinhas rosadas e transparentes, perfeitas.
E por mãozinhas… o que são aquelas duas coisinhas que agitam-se no ar e
depois vão à boca? Fechadas como agora, dois botões de rosa musgo que
separam o verde das sépalas e lhes estende a seda de um tênue rosa; abertas
como agora, duas pequenas jóias de marfim de alabastro ligeiramente
rosado, com cinco romãs pálidas no lugar das unhazinhas. Como farão
aquelas mãozinhas para enxugar tanto choro?
E os pezinhos? Onde estão? Por enquanto são só um espernear
escondido entre os linhos. Mas eis que a parente senta-se e a descobre…
Oh! Os pezinhos! Compridos uns quatro centímetros, têm por planta, uma
concha coralina, como dorso uma concha de um branco neve com veiazinhas
azuis, têm por dedinhos as obras-primas de escultura liliputiana, são também
coroados por pequenos fragmentos de pálida romã. Mas como se
encontrarão sandalinhas tão pequenas para poder estar naqueles pezinhos,
quando tais pezinhos de boneca derem os primeiros passos? E como estes
mesmos pezinhos farão tão áspero caminho e sustentarão tanta dor, debaixo
de uma cruz?
Mas agora isto não se sabe, e se ri e sorri do seu debater-se e espernear,
das perninhas bonitas torneadas, das coxas pequenas que fazem covinhas e
dobrinhas de tanto que são gorduchas, da barriguinha, uma taça emborcada
do pequeno tórax perfeito sob cuja seda cândida se vê o movimento da
respiração que certamente se ouve. O pai feliz escuta seu peitinho agora, e o
beija ao ouvir bater um coraçãozinho… Um coraçãozinho que é o mais
bonito que a terra teve nos séculos dos séculos, o único coração humano
imaculado.
E as costas? Eis que a viram, e se vê a forma dos rins e depois os
ombros gorduchos e a nuca rosada tão forte que a cabecinha se ergue sobre o
arco das pequenas vértebras, parecendo a cabecinha de um pássaro que
perscruta ao redor o mundo novo e tem um gritinho de protesto por ser assim
mostrada, ela, a pura e casta, aos olhos de tantos, ela que homem nenhum a
verá nua, a toda virgem, a santa e imaculada. Cobri, cobri este botão de flor-
de-lis que nunca se abrirá sobre a terra e que dará, ainda mais bonita que
ela, a sua flor, sempre permanecendo botão. Só nos Céus o Lírio do Trino
Senhor abrirá todas as suas pétalas. Porque no céu não há poeira de culpa
que possa involuntariamente profanar aquele candor. Porque lá em cima
deve ser acolhido, à vista de todo o Empíreo, o Deus Trinitário que agora
ocultado em um coração sem mácula, entre poucos anos estará nela: Pai,
Filho, Esposo.
Eis ali de novo entre os linhos e entre os braços do pai terreno, com
quem ela se assemelha. Não agora. Agora é um esboço de homem. Eu digo
que se lhe assemelhará quando mulher. Da mãe não tem nada. Do pai, a cor
da pele, dos olhos e certamente dos cabelos que, se agora são brancos, na
juventude eram certamente loiros como o dizem as sobrancelhas. Do pai, as
feições, feitas mais perfeitas e gentis por ser ela mulher, a mulher. Do pai o
sorriso, o olhar, o modo de mexer-se e a estatura. Pensando em Jesus, como
o vejo, acho que Ana deu a sua estatura ao Neto e a cor marfim mais
carregada da pele. Enquanto que Maria não tem aquela imponência de Ana,
um palmo mais alta e flexível, mas tem a gentileza do pai.
5.6
As mulheres também falam do temporal e do prodígio da lua, da
estrela, do imenso arco-íris, enquanto junto ao Joaquim entram onde está a
mãe feliz e lhe entregam a criancinha.
Ana sorri a um pensamento:
– É a Estrela –diz–. O seu sinal está no céu. Maria, arco de paz! Maria,
minha estrela! Maria, lua pura! Maria, nossa pérola!
– Chama-se Maria?
– Sim. Maria, estrela, pérola, luz e paz…
– Mas também quer dizer amargura… Não temes trazer-lhe desventura?
– Deus está com ela. Já era Dele antes de ser. Ele a conduzirá pelos seus
caminhos e toda amargura se transformará em um paradisíaco mel. Agora
sejas da tua mãe… ainda por um pouco, antes de seres toda de Deus…
E a visão termina sobre o primeiro sono de Ana mãe e de Maria criança.
27 de agosto de 1944.
5.7
Jesus diz:
– Surge e apressa-te pequena amiga. Tenho um desejo ardente de te
levar Comigo para o azul paradisíaco da contemplação da Virgindade de
Maria. Sairás com a alma jovem como se tu também fosses criada há pouco
pelo Pai, uma pequena Eva que ainda não conhece a carne. Sairás com o
espírito repleto de luz, porque tu mergulharás, na contemplação da obra-
prima de Deus. Sairás com todo o teu ser saturado de amor, porque
compreenderás como Deus sabe amar. Falar da concepção de Maria, a sem
mácula, quer dizer mergulhar-se no azul, na luz, no amor.
5.8
Vem e lê[11] as suas glórias no Livro do Avo: “Deus me possuiu no
início de suas obras, desde o princípio, antes da criação. “Ab aeterno” fui
predeterminada no princípio. Antes que fosse feita a terra, ainda não
existiam os abismos e eu já era concebida. Nem as nascentes das águas
transbordavam, nem os montes tinham-se erguido em suas grandes
dimensões, nem as colinas eram cadeias montanhosas ao sol, e eu já tinha
sido gerada. Deus ainda não tinha feito a terra, os rios, e as bases do mundo,
e eu era. Quando preparava os céus eu estava presente, quando com lei
imutável fechou sob a orla celeste o abismo, quando tornou estável no alto a
abóbada celeste e suspendeu as fontes das águas, quando fixava ao mar os
seus confins e dava leis às águas de não passar os seus limites, quando
assentava os fundamentos da terra, eu estava com Ele a dispor todas as
coisas. Sempre na alegria brincava diante Dele continuamente, brincava no
universo…”. Aplicaram estas palavras à Sabedoria, mas na realidade elas
falam dela: a bela mãe, a santa mãe, a virgem mãe da Sabedoria, que sou Eu
que te falo.
5.9
Eu quis que tu escrevesses o primeiro verso deste hino no início do
livro que fala dela, para que fosse confessada e percebida a consolação e a
alegria de Deus; a razão do constante, perfeito, íntimo regozijo deste Deus
uno e trino, que vos guia e ama, que do homem teve tantas razões de tristeza;
a razão pela qual Deus perpetuou a raça, mesmo quando, à primeira
prova[12], merecia ser destruída; a ra zão do perdão que vocês tiveram.
Ter Maria que o amasse. Oh! bem merecia criar o homem, e deixá-lo
viver, e decretar perdoá-lo, para ter a virgem bela, a virgem santa, a virgem
imaculada, a virgem enamorada, a filha dileta, a mãe puríssima, a esposa
amorosa! Muito e mais ainda vos deu e vos daria Deus para poder possuir a
criatura das suas delícias, o sol do seu sol, a flor do seu jardim. E muito
continua a dar-vos por ela, a pedido dela, pela alegria dela, porque a sua
alegria se derrama na alegria de Deus e a aumenta de esplendor que enche de
faíscas a luz, a grande luz do Paraíso; cada centelha é uma graça para o
universo, para a raça do homem, para os próprios bem-aventurados, que
respondem-lhes com um grito radiante de aleluia a cada geração de milagre
divino, criado pelo desejo do Deus Trino de ver o cintilante riso de alegria
da Virgem.
5.10
Deus quer um rei no universo que Ele havia criado do nada. Um rei
que, pela natureza da matéria, fosse o primeiro entre todas as criaturas
criadas e dotadas de matéria. Um rei que, pela natureza do espírito, fosse
quase divino, fundido na Graça como no seu inocente primeiro dia. Mas a
Mente suprema, onde são notórios todos os acontecimentos mais distantes
em séculos, cuja vista vê incessantemente tudo quanto era, é, e será,
enquanto contempla o passado e observa o presente, eis que aprofunda o
olhar no último futuro sem ignorar a morte do último homem, sem confusão
nem descontinuidade, esta Mente nunca ignorou o rei criado por Ele, para
estar ao seu lado, semidivino, no Céu, herdeiro do Pai. Ao entrar adulto no
seu reino, depois de ter vivido na casa da mãe, a terra com a qual foi feito,
durante a sua infância de Eterno, na sua jornada sobre a terra, este rei teria
cometido contra si mesmo o delito de matar-se na Graça e o latrocínio de
furtar-se do Céu.
Por que então o criara? Certamente muitos se perguntam isto. Teríeis
preferido não existir? Este dia não merecia ser vivido, por si mesmo, tão
pobre, nu e amargo pela vossa maldade, mas para conhecer e admirar a
Beleza infinita que a mão de Deus semeou no universo?
Para quem teria feito estes astros e planetas que deslizam como setas e
flechas, riscando o arco do firmamento? Ou os aparentemente lentos,
majestosos na sua corrida como bólidos, presenteando-vos com luzes e
estações como se fossem eternos, imutáveis, ainda que em contínua mudança,
oferecendo-vos uma página nova para ser lida sobre o azul, toda noite, todo
mês, todo ano, quase como dizendo-vos: “Esquecei-vos do cárcere, deixai
as vossas gravuras repletas de coisas obscuras, podres, sujas venenosas,
enganosas, blasfemadoras, corruptoras e elevai, ao menos com o olhar na
ilimitada liberdade dos firmamentos. Tende uma alma azul olhando tão
grande serenidade, criai-vos uma reserva de luz, para levar à vossa prisão
escura. Lede a palavra que nós escrevemos cantando o nosso coro sideral
mais harmonioso do que acompanhado por um órgão de catedral. A palavra
que nós escrevemos brilhando, a palavra que nós escrevemos amando, visto
que sempre temos presente Aquele que nos quis dar a alegria de existir, e o
amamos por nos ter dado este ser, este esplendor, este deslizar, este sermos
livres e belos em meio ao azul suave, além do qual vemos um azul ainda
mais sublime, o Paraíso. E do qual cumprimos a segunda parte do preceito
de amor amando a vós, o nosso próximo universal, amando-vos doando guia,
luz, calor e beleza. Lede a palavra que nós dizemos, e é aquela sobre a qual
regulamos o nosso canto, o nosso resplandecer, o nosso riso: Deus?”
Para quem teria feito aquele líquido azul, que é um espelho para o céu,
um caminho para a terra, sorriso das águas, voz das ondas, palavra também
essa que como os sussurros de seda farfalhando, com risadinhas de crianças
serenas, com suspiros de velhos que lembram e choram, com bofetões
violentos e com chifradas, mugidos e estrondos, sempre fala e diz: “Deus?”
O mar é para vós, como o céu e os astros. E com o mar, os lagos, os rios, os
pântanos, os riachos e as nascentes puras, que servem a todos para vos
transportar, nutrir, dessedentar e purificar, e que vos servem, servindo o
Criador, sem saírem para fora dos seus limites, afogando-vos, como
mereceis.
Para quem teria feito todas as inumeráveis famílias dos animais, como
flores que voam cantando, os servos que correm, que trabalham, nutrem e
são recreação para vós, os reis?
Para quem teria feito todas as inumeráveis famílias das plantas, e das
flores que parecem borboletas, que parecem jóias e passarinhos imóveis,
dos frutos que parecem os cofres de pedras preciosas, como tapetes para
vossos pés, proteção para as vossas cabeças, recreação útil, alegria para a
vossa mente, membros, vista e olfato?
Para quem teria feito os minerais nas entranhas da terra, os sais
dissolvidos nas fontes de águas geladas ou ferventes, as fontes sulfurosas, as
iodadas, as alcalinas? Não teria sido para que alguém gozasse de tudo,
alguém que não era Deus, mas filho de Deus? O homem.
Para a alegria de Deus, para as necessidades de Deus, nada era preciso.
Deus se basta a Si mesmo. Não tem que se contemplar para alegrar-se,
nutrir-se, viver e repousar. Tudo o que foi criado não aumentou um átomo a
sua infinita alegria, sua beleza, seu poder. Mas tudo Ele fez pela sua criatura,
que Ele quis colocar como rei na Sua obra: o homem.
Para ver tão grandes obras de Deus e por reconhecimento para com o
seu poder, vale a pena viver. Como viventes deveis ser gratos. Deveríeis ter
sido gratos, mesmo se não tivésseis sido redimidos, hoje ou no fim dos
séculos, porque não obstante tenhais sido os Primeiros, singularmente, sois
até hoje prevaricadores, soberbos, luxuriosos, homicidas. Mas Deus ainda
vos concede sabor de gozar das belezas do universo e da bondade do
universo, e vos trata como se fosseis bons, filhos bons aos quais tudo é
ensinado e concedido, a fim de tornar-lhes mais doce e sadia a vida. Quanto
sabeis, vós o sabeis pela luz que Deus vos deu. Tudo quanto descobris, vós
o descobris porque Deus vô-lo indica no Bem. Porque os outros
conhecimentos e descobertas, que têm o sinal do mal, vêm do Mal supremo,
satanás.
5.11
A Mente suprema, que nada ignora, antes ainda que o homem existisse,
sabia que o homem, por si mesmo, teria sido um ladrão e um homicida. E, já
que a Bondade eterna não tem limites, antes que acontecesse a Culpa, pensou
no meio para anulá-la. E o meio seria: Eu. E o instrumento para fazer do
meio um instrumento operante seria: Maria. Assim é que a virgem foi criada
no Pensamento sublime de Deus.
5.12
Todas as coisas foram criadas para Mim, Filho dileto do Pai. Eu,
como Rei, deveria ter tido sob os meus pés de Rei divino tapetes e jóias
como nenhum palácio real jamais teve. Cantos, vozes, servos e ministros tão
numerosos ao redor de minha pessoa que nenhum soberano jamais teve.
Flores, pedras preciosas, todo o sublime, o grandioso, o gentil, o minucioso,
tudo o que é possível buscar no Pensamento de um Deus.
Mas Eu devia ser Carne, além de ser Espírito. Carne, para salvar a
carne. Carne para sublimar a carne, levando-a para o Céu, muitos séculos
antes da hora. Porque a carne, habitada pelo espírito, é a obra-prima de
Deus, e por ela, o Céu fora feito. Para ser Carne, eu tinha necessidade de
uma mãe. Para ser Deus, eu tinha necessidade de que meu Pai fosse Deus.
Eis que, então, Deus criou para Si uma esposa, e lhe disse: “Vem
comigo. A meu lado, vê tudo quanto Eu faço pelo nosso Filho. Olha e jubila-
te, virgem eterna, menina eterna, que o teu riso encha todo este empíreo, e dê
aos anjos a nota inicial, e ensina ao Paraíso uma harmonia celeste. Eu olho
para ti. E te vejo como serás, ó mulher imaculada que, por enquanto, és
apenas espírito, o espírito em que me deleito. Olho para ti, e dou o azul do
teu olhar ao mar e ao firmamento, a cor dos teus cabelos ao trigo, a tua
candura ao lírio, o tom róseo à rosa, semelhante à tua pele de seda. Imito nas
pérolas os teus dentes graciosos; olhando tua boca, faço os doces morangos,
ponho na voz rouxinóis às tuas notas, e na das rolinhas o teu pranto. Ainda
lendo os teus futuros pensamentos, ouvindo as palpitações do teu coração, eu
encontrei os modelos de arte para criar. Vem, minha Alegria! Habita os
mundos para divertimento teu, enquanto fores a luz que se move em meu
Pensamento, teus hão de ser os mundos pelo teu sorriso, tuas as belas
formações das estrelas e o colar dos astros todos. Coloca a lua sob os teus
pés gentis, cinge-te com o cinto de estrelas da Via Láctea. As estrelas e os
planetas são para ti. Vem e diverte-te, vendo as flores que serão o
divertimento do teu Menino, servindo de almofada para o Filho do teu
ventre. Vem, e vê como se criam as ovelhas e os cordeiros, as águias e as
pombas. Fica perto de mim, enquanto eu faço como uns vasos, os mares e os
rios, enquanto ergo as montanhas e as enfeito com a neve e as florestas,
enquanto semeio as searas, as árvores, as videiras, enquanto faço para ti a
oliveira, minha rainha de paz, para ti a videira, meu sarmento que levará o
Cacho eucarístico. Corre, voa, jubila-te, ó minha beleza, e que o mundo
todo, que vai sendo criado de hora em hora, aprenda contigo a me amar, ó
amorosa, e se torne mais bonito com o teu sorriso, ó mãe do meu Filho,
rainha do meu Paraíso, amor do teu Deus.” Vendo o Erro, e olhando para a
Sem Erro diz ainda: “Vem a Mim, tu que anulas a amargura da
desobediência, da ingratidão, da fornicação humana com satanás. Eu terei
contigo a desforra sobre satanás”.
5.13
Deus, Pai Criador, criara o homem e a mulher com uma lei de amor
tão perfeita, que não podeis, nem ao menos compreender. E vós vos
enganais ao pensar como teria aparecido a raça humana, se o homem não o
tivesse alcançado pelo ensinamento de satanás.
Olhai as plantas que produzem fruto e semente. Por acaso elas
conseguem ter semente e fruto por meio de uma fornicação ou de uma
fecundação em cada cem encontros conjugais? Não. Da flor masculina sai o
pólen, guiado por um complexo de leis meteóricas e magnéticas, vai ao
ovário da flor feminina. Esta se abre, o recebe e produz. Não se suja e o
rejeita depois, como vós fazeis, para poderdes gozar, no dia seguinte, da
mesma sensação. Depois de produzir não floresce, até a próxima estação e,
quando floresce, é para reproduzir.
Olhai os animais. Todos. Já vistes algum animal, macho ou fêmea, ir um
ao outro para algum abraço estéril, ou só para algum encontro lascivo? Não.
De perto ou de longe, voando, rastejando, pulando ou correndo, eles vão,
quando chega a hora, ao rito fecundativo, e não se subtraem a isso para
ficarem só no prazer, mas vão além, vão até às conseqüências sérias e
santas, que conduzem à geração da prole, o único escopo que, no homem,
semideus pela origem da Graça que Eu restituí inteira, deveria fazê-lo
aceitar a animalidade do ato necessário, uma vez que descestes um grau no
nível do animal.
Vós não fazeis como as plantas e os animais. Vós tivestes por mestre
satanás, pois o escolhestes e o desejais. As obras que praticais são dignas
do mestre que quisestes ter. Mas, se tivésseis sido fiéis a Deus, teríeis tido
santamente, sem dor, a alegria de filhos, sem vos esgotardes em cópulas
obscenas, indignas, que os próprios animais não conhecem, os animais que
não têm alma racional e espiritual.
Ao homem e à mulher, depravados por satanás, Deus quis opor o
Homem nascido de mulher tão purificada por Deus, a ponto de poder gerá-
Lo sem relação com homem. Flor que gera flor, sem necessidade de semente,
mas apenas com o beijo do Sol sobre o cálice inviolado do Lírio que é
Maria.
5.14
A desforra de Deus!
Solta os teus silvos de inveja, ó satanás, enquanto ela está nascendo.
Esta menina te venceu! Antes que tu fosses o Rebelde, o Tortuoso, o
Corruptor, já estavas vencido, e ela é a tua vencedora. Mil exércitos
alinhados nada podem contra o teu poder, e contra as tuas couraças caem as
armas das mãos dos homens, ó perene, e não há vento que possa dispersar o
mau cheiro do teu hálito. No entanto, este calcanharzinho de criança, tão
rosado, que parece o interior de uma camélia também rosada, tão liso e tão
macio que a seda é áspera comparado a ele, tão pequenino, que poderia
caber no cálice de uma tulipa e usá-la como sapatinho, eis que ele te pisa
sem medo, e te confina em teu antro. Eis que só o seu vagido já te põe em
fuga, a ti que não tens medo dos exércitos. O hálito dela purifica o mundo do
teu fedor. Estás derrotado. Só o nome dela, só o seu olhar, só a sua pureza já
são uma lança, um fulgor de raio, uma enorme pedra que te transpassam, que
te abatem, que te aprisionam no teu covil do inferno, ó Maldito, que tiraste a
Deus a alegria de ser Pai de todos os homens criados.
Foi inútil, pois, teres corrompido os que haviam sido criados inocentes,
levando-os a conhecer e a conceber sinuosidades da luxúria, privando Deus,
de ser o doador dos filhos, em suas diletas criaturas, dando-lhes regras que,
se respeitadas, teriam mantido sobre a terra um equilíbrio entre os sexos e as
raças, capaz de evitar guerras entre os povos e desventuras entre famílias.
Obedecendo, teriam conhecido o amor. Só obedecendo, teriam
conhecido e conservado o amor. Uma posse plena e tranqüila desta
emanação de Deus, que do sobrenatural desce ao inferior, para que também a
carne se alegre santamente, esta que está ligada ao espírito, criada por
Aquele que criou o espírito.
Agora, o vosso amor, ó homens, os vossos amores o que são? Ou
libidinagem vestida de amor, ou medo insanável de perder o amor do
cônjuge, seja pela libidinagem própria, ou alheia. Já não estais mais seguros
quanto à posse do coração do esposo ou da esposa, desde quando a
libidinagem entrou neste mundo. Tremeis, chorais e tornais-vos loucos de
ciúmes, até assassinos, às vezes, para vingar alguma traição, desesperados,
ou então abúlicos e até dementes.
Eis o que fizeste, satanás, aos filhos de Deus. Estes, que corrompeste,
teriam conhecido a alegria de ter filhos sem sentirem dor, a alegria de nascer
sem o medo de morrer. Mas agora estás vencido em uma mulher e por uma
mulher. De agora em diante, quem a amar, tornará a ser de Deus, superando
as tuas tentações, para poder imitar a sua pureza imaculada. De agora em
diante, não mais podendo conceber sem dor, as mães a terão para o seu
conforto. De agora em diante, as esposas a terão por guia e os moribundos
por mãe, sendo doce para eles morrer sobre aquele seio, que é um escudo
contra ti, oh Maldito, e proteção, diante do julgamento de Deus.
Maria, minha cara interlocutora, viste o nascimento do Filho da virgem e
o nascimento da virgem no Céu. Viste, pois, que para os sem culpa é
desconhecido o castigo de dar a vida e também o sofrimento de dar-se à
morte. Mas, se à inocentíssima mãe de Deus foi reservada a perfeição dos
dons celestes, a todos, que tivessem permanecido inocentes e filhos de Deus,
teria sido possível gerar sem dor e morrer sem afã, por justiça de terem
sabido unir-se e conceber sem luxúria.
A sublime desforra de Deus sobre a vingança de satanás foi a de elevar
a perfeição da criatura dileta a uma super-perfeição, capaz de anular, ao
menos nela, toda lembrança de humanidade, que fosse suscetível ao veneno
de satanás, e para a qual, não de um casto abraço de homem, mas de um
divino amplexo, que empalidece o espírito num êxtase de Fogo, lhe teria
vindo o Filho.
5.15
A virgindade da Virgem!…
Vem. Medita nesta virgindade profunda, que produz em quem a
contempla vertigens de abismo! O que é a pobre virgindade forçada da
mulher que por nenhum homem foi desposada? É menos do que nada. O que
é a virgindade daquela que quer ser virgem, para ser de Deus, mas sabe sê-
lo só no corpo e não no espírito, no qual deixa entrar muitos pensamentos
estranhos, acaricia e aceita as carícias de pensamentos humanos? Isto já
começa a ser uma máscara de virgindade, mas muito pouco ainda. O que é a
virgindade de uma enclausurada, que vive só para Deus? É muito. Mas,
mesmo assim, ainda não é uma virgindade perfeita, se comparada com a
virgindade da minha mãe.
Sempre existiu um enlace, até mesmo no mais santo. O enlace da origem,
entre o espírito e a Culpa. Só o Batismo o desfaz. Mas, é como uma mulher
separada do marido pela morte, não restitui mais em si a virgindade total,
como a virgindade dos nossos Primeiros, antes do Pecado. Uma cicatriz
permanece, e dói ao ser lembrada, e está sempre pronta para reabrir-se em
ferida, como certas doenças que periodicamente voltam com seus vírus,
ainda mais ativos. Na virgem não fica esse sinal de um enlace dissolvido
com a Culpa. Sua alma apresenta-se bonita e intacta, como quando estava na
mente do Pai, e reúne em Si todas as Graças.
É a virgem, a única, a perfeita, a completa, foi assim pensada, gerada,
querida, coroada. É eternamente a virgem, o abismo da intocabilidade, da
pureza, da graça que se perde no Abismo do qual brotou: em Deus,
intangibilidade, pureza e graça perfeitíssima.
Aí está a desforra do Deus Trino e Uno. Contra suas criaturas
profanadas, Ele ergue esta Estrela de perfeição. Contra a curiosidade
doentia, esta se esquiva, recompensada em poder amar somente a Deus.
Contra a ciência do mal, esta sublime ignorante. Nela não existe somente a
ignorância do que é um amor aviltado; não há também somente a ignorância
do amor que Deus havia dado aos esposos. E ainda mais. Nela há a
ignorância das concupiscências, herança do pecado. Nela há somente a
sabedoria gélida, mas incandescente, do Amor divino. Fogo que protege de
gelo a carne, para que se torne espelho transparente no altar onde um Deus
desposa uma virgem, e não se avilta, porque sua Perfeição abraça aquela
que, como convém a uma esposa, só em um ponto é inferior ao esposo,
sendo-lhe sujeita por ser mulher, mas é sem mancha, como Ele.
[10] sonho, narrado em: Génesis 28,10-16; seguem reenvio a: Tobias 12-13.
[11] lê, em: Provérbios 8,22-31. Assim anota M aria Valtorta numa cop ia dactilografada: Inspiradas ao autor dos Provérbios
para celebrar a Sabedoria, podem aplicar-se também a Maria, Mãe da Sabedoria, porque Maria foi sempre, desde sempre,
pensada e contemplada por Deus. À Sabedoria, da qual era M ãe, M aria foi semp re unida, como realça uma nota de M aria
Valtorta em 196.7.
[12] primeira prova, aquela narrada em: Génesis 6-9.
6. Purificação de Ana e oferecimento de Maria,
a menina perfeita para o reino dos Céus.
28 de agosto de 1944.
6.1
Em Jerusalem, vejo Joaquim e Ana com Zacarias e Isabel saírem
juntos de uma casa, certamente de parentes ou amigos, e dirigirem-se ao
Templo, onde vão para a cerimônia da Purificação.
Ana tem nos braços a menina, toda envolta em cueiros, tendo sido antes
enrolada com um amplo tecido de lã mais leve, que deve ser macio e quente.
Com que cuidado e amor leva a sua filhinha, levantando de vez em quando a
beirada do pano fino e quente, para ver se Maria respira bem, e depois,
cobre-a bem de novo, para protegê-la do ar gelado deste dia sereno, embora
de pleno inverno.
Isabel tem alguns pacotes nas mãos. Joaquim puxa com uma corda dois
cordeiros grandes e muito brancos, que já são mais carneiros que cordeiros.
Zacarias não leva nada. Ele está muito bonito em sua veste de linho, que um
pesado manto de lã também branco, deixa entrever. Um Zacarias muito mais
jovem do que aquele visto no tempo do nascimento do Batista, em plena
virilidade, como também Isabel é agora uma mulher madura, mas ainda de
aparência jovem. Todas as vezes que Ana olha a menina, ela também se
inclina extasiada, sobre o rostinho adormecido. Muito bonita, com um
vestido azul que tende ao violeta escuro, com um véu que lhe cobre a
cabeça, descendo depois sobre os ombros e sobre o manto mais escuro que o
vestido.
Joaquim e Ana, enfim, estão realmente esplêndidos em suas vestes de
festa. Ao contrário do seu costume, ele não está com sua túnica marrom
escuro, mas com uma longa veste de um vermelho bem escuro, diríamos, um
vermelho de fundo, e as franjas colocadas em seu manto são muito novas e
bonitas. Na cabeça, ele tem também uma espécie de véu retangular, cingido
com uma tira de couro. Sua roupa é toda nova e fina.
Ana, oh! ela não se veste de escuro hoje. Está com um vestido amarelo
muito claro, quase da cor do marfim velho, ajustado à cintura, ao pescoço e
aos pulsos por meio de um cinturão que parece ser de prata e ouro. A sua
cabeça está coberta com um véu muito leve, que parece adamascado e está
preso à fronte por uma lâmina delgada e preciosa. Ao pescoço, um colar de
filigrana e nos pulsos, braceletes. Parece uma rainha, também pela dignidade
com que caminha com sua veste, em especial o manto amarelo claro, com
galões formando um bordado muito bonito, tom sobre tom.
– Parece-me estar te vendo no dia em que fostes a noiva. Eu era pouco
mais que uma menina, mas lembro-me ainda como estavas bonita e feliz –diz
Isabel.
– Mas hoje estou ainda mais… Quis pôr a mesma roupa daquele dia
para a cerimônia de hoje. Eu a guardei sempre para este dia… Já não
esperava mais poder usá-la para esta festa.
6.2
– O Senhor te amou muito… – diz Isabel com um suspiro.
– É por isso que eu Lhe dou a coisa que eu mais amo. Esta minha flor.
– Como farás para arrancá-la do seio, quando chegar a hora?
– Recordando-me que eu não a tinha, e a recebi de Deus. Estarei sempre
mais feliz agora, do que antes. Quando pensar que ela estará no Templo,
direi a mim mesma: “Reza junto ao Tabernáculo, ora ao Deus de Israel
também por sua mãe” e ficarei em paz. E ainda maior paz terei, ao dizer:
“Ela é toda Sua. Quando estes dois velhos felizes que a receberam do Céu
não estiverem mais em vida, Ele, o Eterno, lhe será eternamente Pai.” Podes
crer, eu tenho disso a firme convicção, esta pequenina não é nossa. Nada
mais eu podia fazer… Foi Ele que a colocou em meu ventre, este dom divino
para enxugar o meu pranto, confortar as nossas esperanças e atender as
nossas orações. Por isso ela é Sua. Nós somos somente os felizes guardiães
dela… e por isso Deus seja bendito!
6.3
Chegam até os muros do Templo.
– Enquanto vos dirigis para a porta de Nicanor, eu vou avisar o
sacerdote. Depois, eu virei também –diz Zacarias, desaparecendo atrás de
um arco, que dá para um grande pátio rodeado de pórticos.
A comitiva continua a encaminhar-se pelos sucessivos terraços. Porque
(não sei se já o disse) o recinto do Templo não está sobre um terreno plano,
mas vai-se elevando por degraus sucessivos sempre mais altos. A cada lance
pode-se chegar por escadarias, e em cada lance há pátios, pórticos e portais
muitos bem trabalhados, de mármore, bronze e ouro.
Antes de chegarem ao lugar combinado, eles param e vão tirar dos
pacotes as coisas que tinham levado, ou seja, pães cozidos, de formato
achatado e de pouca espessura, feitos com muita gordura, um pouco de
farinha branca, duas pombas em uma pequena gaiola de vime e grandes
moedas de prata, certas patacas tão pesadas, que por sorte não havia bolsos
naquele tempo, pois não resistiriam.
Eis a bonita porta de Nicanor, um trabalho bem acabado de entalhe, feito
de pesado bronze com lâminas de prata. Lá já se encontra Zacarias, ao lado
de um sacerdote esplêndidamente vestido de linho.
Ana recebe a aspersão de uma água, que eu suponho seja a água lustral,
e depois recebe a ordem de aproximar-se do altar do sacrifício. A menina
não está mais em seus braços. Isabel carrega, estando ainda do outro lado da
porta.
Joaquim, por sua vez, entra, atrás de sua mulher, puxando um pobre
cordeiro balindo. Faço como na purificação de Maria: fecho os olhos para
não ver degolações como esta.
Agora Ana está purificada.
6.4
Zacarias diz em voz baixa algumas palavras a um colega, o qual
concorda, sorrindo. Depois aproxima-se do grupo, que já se reuniu de novo,
congratulando-se com a mãe e o pai pela sua alegria e pela fidelidade às
promessas feitas, recebendo o segundo cordeiro, a farinha e os pães cozidos.
– Então, esta filha está sendo consagrada ao Senhor? Que a Sua bênção
esteja com ela e convosco. Eis Ana que chega. Ela será uma de suas mestras.
É Ana de Fanuel, da tribo de Aser. Vem, mulher! Esta pequenina é oferecida
ao Templo em hóstia de louvor. E tu serás sua mestra. Submissa a ti, ela
crescerá na santidade.
Ana de Fanuel, já com os cabelos todos brancos, acaricia a menina, que
acabou de acordar e olha com seus olhos inocentes e espantados toda aquela
brancura e todo aquele ouro, que a luz do sol faz brilhar.
A cerimônia deve ter acabado. Não vi nenhum rito especial para a oferta
de Maria. Talvez fosse suficiente dizê-lo ao sacerdote e sobretudo que o
dissessem a Deus, no lugar sagrado.
6.5
– Eu gostaria de fazer a oferta ao Templo, e ir depois àquele lugar,
onde vi aquela luz no ano passado.
Vão assim para lá, acompanhados por Ana de Fanuel. Mas não entram
no Templo propriamente dito. Compreende-se que, tratando-se de mulheres e
de uma menina, não chegaram até o lugar, ao qual Maria chegou, quando veio
oferecer o seu Filho. Mas, bem perto da porta toda aberta, olham para o
interior meio escuro, de onde estão vindo doces cantos de meninas, e de
onde vem o brilho de lâmpadas preciosas, que espalham uma luz de ouro
sobre dois canteiros de cabecinhas cobertas com véus brancos, dois
verdadeiros canteiros de lírios.
– Daqui a três anos tu também estarás lá, meu Lírio –promete Ana a
Maria, que olha como que fascinada para o interior do Templo, sorrindo ao
lento canto.
– Parece até que ela compreende –diz Ana de Fanuel.– É uma linda
menina! Será querida por mim, como se fizesse parte de minhas entranhas.
Assim eu te prometo ó mãe, se a idade me permitir.
– Sim, que poderás, mulher! –diz Zacarias.– Tu a receberás entre as
meninas consagradas. Eu também estarei lá. Quero estar lá naquele dia para
dizer a ela que reze por nós desde o primeiro momento…
E olha para a sua mulher, que compreende, suspirando.
A cerimônia terminou, e Ana de Fanuel se retira, enquanto os outros
saem do Templo, conversando entre si.
Ouço a voz de Joaquim, que diz:
– Eu teria dado até todos os meus cordeiros, não só os dois melhores,
em troca desta alegria, para dar louvor a Deus!
Nada mais vejo.
6.6
Jesus diz:
– Salomão faz a Sabedoria dizer[13]: “Quem é criança, venha a mim.” Na
verdade, é da fortaleza e dos muros de sua cidade que a eterna Sabedoria
dizia à eterna menina: “Vem a mim.” Ansiava por tê-la.
Mais tarde, o Filho desta puríssima menina dirá: “Deixai vir a Mim os
pequeninos, porque deles é o Reino dos Céus, e quem não se tornar
semelhante a eles, não terá parte no meu Reino.” As vozes se perseguem e,
enquanto a voz do Céu grita à pequena Maria: “Vem a Mim”, a voz do
Homem pensa em sua mãe, ao dizê-lo: “Vinde a Mim, se souberdes ser
pequeninos.”
Dou-vos um modelo em minha mãe.
Eis a perfeita criança, do coração de pomba, simples e puro, eis Aquela
que os anos e os contatos do mundo não conseguem embrutecer pela barbárie
de um espírito corrompido, tortuoso, mentiroso. Porque Ela não quer este
espírito. Vinde a Mim, olhando para Maria.
6.7
Tu, que a estás vendo, diz-me: o seu olhar de criança é muito diferente
do olhar com que a viste aos pés da Cruz, na alegria do Pentecostes, na hora
em que suas pálpebras desceram sobre seus olhos de gazela para o seu
último sono? Não. Aqui está o olhar incerto e espantado da criança; mais
tarde será o olhar espantado e verecundo da Anunciada; mais tarde ainda, o
olhar feliz da mãe de Belém; depois, o olhar de adoradora da minha primeira
e sublime discípula; depois ainda, o olhar dilacerado da atormentada no
Gólgota; depois, o olhar radiante da Ressurreição e Pentecostes; e, por fim,
o olhar velado do sono extático da última visão. Mas, seja que se abra às
primeiras vistas, seja que se feche cansado sobre a última luz, depois de ter
visto tanta alegria e tanto horror, o olho é sereno, puro, plácido, nesga de
céu que brilha sempre de modo igual, sob a fronte de Maria. Ira, mentira,
soberba, luxúria, ódio, curiosidade, nunca o sujam com suas nuvens de
fumaça.
É o olho que olha para Deus com amor, tanto quando chora, como
quando ri. Por amor de Deus acaricia e perdoa, tudo suportando. Por amor
ao seu Deus se torna inatacável aos assaltos do Mal, que muitas vezes se
serve dos olhos para penetrar no coração. O olhar puro, repousante,
benevolente, que têm os puros, os santos, os enamorados de Deus.
Eu disse[14]: “A luz do teu corpo são os teus olhos. Se os olhos são
puros todo o teu corpo estará iluminado. Mas se os olhos são turvos, toda a
tua pessoa estará em trevas.” Os santos tiveram esse olho que é luz para o
espírito e salvação para a carne, porque como Maria, durante toda a sua
vida, não olharam senão para Deus. Ao contrário, eles sempre se lembraram
de Deus.
Explicarei a ti, pequena voz, qual é o sentido desta minha palavra.
[13] faz a S abedoria dizer, em: Provérbios 9,4; dirá, em 378.8.
[14] Eu disse, em: Mateus 6,22-23 (174.9); Lucas 11,34-35 (413.7).
7. A pequena Maria com Ana e Joaquim.
Em seus lábios já está a Sabedoria do Filho.
29 de agosto de 1944.
7.1
Ainda vejo Ana. Desde ontem à tarde, que a estou vendo assim: ela
está sentada no começo da sombra da parreira, atenta a um trabalho de
costura. Está toda vestida de uma cor cinzento-areia, com um vestido muito
simples e solto, talvez por causa do grande calor que deve estar fazendo.
No fim da parreira, podem ver-se os ceifadores, que estão cortando o
feno. Mas ainda não deve ser o feno de maio, porque a uva já está para
colorir-se de ouro e uma macieira grande já vem mostrando os seus frutos,
entre as folhas escuras, que vão se tornando da cor de uma cera lustrosa,
amarela e vermelha. Além disso, o campo de cereais é agora um restolho
sobre o qual, ondulam leves as chamazinhas das papoulas e se levantam,
rígidas e serenas, as flores-de-lis, raiadas como uma estrela, e azuis como o
céu do Oriente.
Da parreira sombria vem vindo, à frente, uma Maria pequenina, mas já
andando ligeira e independente. Seu passo é curto, mas seguro, e suas
sandalinhas já não tropeçam nas pequenas pedras. Tem já um esboço do seu
doce passo, levemente ondulante, de pomba, e ela está parecendo mesmo
uma pombinha em seu vestidinho de linho, que desce até os tornozelos, um
vestidinho bem cômodo, franzido no pescoço por um cordãozinho azul
celeste, e com manguinhas curtas, que deixam ver os antebraços rosados e
gorduchos. Com os seus cabelinhos, que parecem de seda e de um loiro-mel,
não muito encaracolados, mas formando ondas suaves, que terminam em um
gracioso cacho; com seus olhinhos cor do céu, e o doce rostinho levemente
rosado e sorridente, ela parece um pequeno anjo. Até o ventinho leve que lhe
vai entrando pelas mangas largas, e enchendo seu vestido de linho e fazendo-
o ficar mais saliente nas costas, tudo contribui para dar à menina o aspecto
de um pequeno anjo, com as asas já entreabertas, e prontas para voar.
Nas mãozinhas ela leva papoulas, flores-de-lis e outras florzinhas, que
crescem por entre os cereais, mas das quais eu não sei o nome. Ela vai indo
e, ao chegar perto da mãe, dá uma corridinha, solta uma vozinha festiva, e
como uma pequena rolinha, pára o seu vôo contra os joelhos da mãe, que se
abrem um pouco para recebê-la, enquanto que o trabalho, que estava sendo
feito, é posto de lado, para acolhê-la sem que ela se machuque, e os braços
estão estendidos para abraçá-la.
7.7
Jesus diz:
– Já estou ouvindo os comentários dos doutores, em suas ironias
maliciosas, dizendo: “Como é que pode uma menina, que não tem ainda nem
três anos, falar coisas assim? Isso é um exagero.” E não refletem que me
tornam monstruoso, alterando a minha infância, atribuindo-me atos de adulto.
A inteligência não se manifesta em todos do mesmo modo e na mesma
idade. A Igreja marcou a idade de seis anos como a idade em que começa a
responsabilidade das ações, porque essa é a idade na qual até um retardado
é capaz de distinguir o bem do mal, pelo menos de modo rudimentar. Mas há
crianças que muito antes são capazes de discernir, entender e querer,
usando de uma razão já suficientemente desenvolvida. A pequena Imelde
Lambertini, Rosa de Viterbo, Nellie Organ, Nennolina, vos sirvam de base, ó
doutores difíceis, para crerdes que minha mãe podia pensar e falar assim.
Não citei mais do que quatro nomes por acaso, no meio de milhares de
santas crianças que povoam o meu Paraíso, depois de terem raciocinado
como adultos sobre a terra, umas com mais, outras com menos idade.
7.8
Qual é a razão? Um dom de Deus. Portanto, Deus o pode dar na
medida que quiser, a quem quiser e quando quiser. A razão é uma das coisas
que mais vos tornam semelhantes a Deus, Espírito inteligente e raciocinante.
A razão e a inteligência foram graças dadas por Deus ao homem no Paraíso
terrestre. Quanto elas eram vivas, junto com a graça ainda intacta, operando
no espírito de nossos dois Primeiros Pais!
No livro de Jesus Bar Sirac está escrito[19]: “Toda sabedoria vem do
Senhor Deus, e sempre esteve com Ele, mesmo antes dos séculos.” Quanta
sabedoria teriam, então, os homens, se tivessem permanecido filhos de
Deus?
As lacunas em vossas inteligências são o fruto natural do vosso
decaimento da graça e da honestidade. Perdendo a Graça, vós vos afastastes,
por séculos, da Sabedoria. Como os meteoros, que se escondem atrás de uma
nebulosidade de muitos quilômetros, a Sabedoria não chegou mais até vós
com os seus nítidos fulgores, mas somente através de um nevoeiro, que as
vossas prevaricações foram tornando cada vez mais graves.
Depois veio o Cristo, e vos deu a Graça, dom supremo do amor de
Deus. Mas, vós sabeis guardar esta gema tão límpida e pura? Não. Quando
não a destruis com a vossa vontade individual de pecado, a sujais com
contínuas culpas menores, as vossas fraquezas, as vossas simpatias para com
o vício, e também aquelas simpatias que não chegam ainda a ser verdadeiros
casamentos com o vício septiforme, mas, são um enfraquecimento da luz da
Graça e de sua atividade. Depois, tivestes séculos e séculos de corrupções,
para enfraquecer ainda mais a magnífica luz da inteligência que Deus havia
dado aos Primeiros, corrupções que se repercutem como nocivas sobre o
físico e sobre a mente.
7.9
Maria porém era não somente a Pura, a nova Eva, criada de novo para
a alegria de Deus: era a super-Eva, a Obra-Prima do Altíssimo, a cheia de
graça, a mãe do Verbo na mente de Deus.
“O Verbo é a Fonte da Sabedoria”, diz Jesus Bar Sirac. O Filho, então,
não terá posto a sua sabedoria sobre os lábios da própria mãe?
Se a um profeta[20] foi-lhe purificada a boca com carvões ardentes,
porque devia dizer aos homens as palavras que o Verbo, a Sabedoria, lhe
confiava, não terá o Amor à sua esposa ainda menina, mas que um dia iria
trazer em si a Palavra, a linguagem limpa e exaltada, não terá este Amor
feito com que ela não falasse mais como menina, nem mais tarde, como
mulher, mas somente e sempre como uma criatura celeste, unida à grande luz
e sabedoria de Deus?
O milagre não está em uma inteligência superior, demonstrada por Maria
em sua idade infantil, como depois aconteceu Comigo. Mas o milagre está
em poder conter em si a Inteligência infinita, que nela habitava, dentro dos
diques preparados para não assombrar as multidões e não despertar a
atenção satânica.
Ainda voltarei a falar sobre este assunto, que reaparece sempre naquele
“lembrar-se” de Deus, que é próprio dos Santos.
[15] caminhou, como se narra em: 1 Reis 8,1-5.
[16] aquela, da p rofecia que se encontra em: Daniel 9,20-27, e que será interp retada em 10.5 e em 41.3/4.
[17] Anunciação, é a efígie sagrada que se venera na “Basilica della Ss. Anunziata” em Florença, como veremos igualmente em
27.1.
[18] diz, em: Cântico dos Cânticos 6,8.
[19] está escrito, em: Eclesiástico 1,1-8.
[20] um profeta, isto é, Isaías, como se narra em: Isaías 6,6-7. É um facto citado muitas vezes na obra, em modo directo (como
aqui e, p or exemp lo, em 166.8 e em 626.2) ou indirecto (como em 364.8). Contudo, vêm recordadas as p rofecias messiânicas de
Isaías, como indicam as notas em 561.11 e em 577.4.
8. Maria é acolhida no Templo. Ela, em sua
humildade, não sabia que era a cheia de sabedoria.
30 de agosto de 1944.
8.1
Vejo Maria caminhar entre o pai e a mãe, pelas ruas de Jerusalém.
Os passantes detêm-se para olhar a formosa menina, toda vestida de um
branco neve, coberta com um véu muito leve que, por seus desenhos de
ramos e de flores, mais escuros por entre os pontos mais claros do fundo,
parece-me ser o mesmo que Ana usou no dia de sua Purificação. Com esta
diferença: enquanto para Ana ele chegava só até a cintura, para a pequenina
Maria desce quase até o chão, e a envolve em uma nuvem tênue e clara de
uma extraordinária beleza.
O loiro dos cabelos soltos sobre os ombros, ou melhor, sobre a graciosa
nuca, transparece aqui e ali, nos pontos em que o véu não é adamascado,
apresentando à vista apenas o fundo, que é quase diáfano. O véu está preso
sobre a fronte por meio de uma fita de um azul muito claro sobre a qual,
certamente por obra da mamãe, estão bordadas, a fio de prata, pequenos
lírios.
O vestido de Maria, como eu disse, é alvíssimo, desce até o chão, e os
pezinhos mal se mostram, quando ela anda, com suas sandalinhas brancas.
Suas mãozinhas lembram duas pétalas de magnólia, saindo das mangas
largas. Fora o círculo azul formado pela fita, não se vê nenhuma outra cor.
Tudo é branco. Maria parece vestida de neve.
Joaquim e Ana estão vestidos, ele com a mesma roupa da Purificação e
Ana ao invés, com um vestido de cor violeta muito escuro. Até o manto, que
lhe cobre a cabeça, é de um violeta escuro. Ela o traz caído totalmente sobre
os olhos, dois pobres olhos de mãe, vermelhos de tanto chorar, que não
queriam ser vistos assim, por isso choram sob a proteção do manto. Essa
proteção serve por causa dos transeuntes e também por Joaquim que, embora
tenha sempre olhos serenos, hoje eles estão avermelhados e opacos de
lágrimas. Ele caminha, muito encurvado, debaixo do seu véu colocado como
um turbante, com as beiras laterais descendo ao longo do rosto.
Joaquim agora está, realmente, envelhecido. Quem o vê deve pensar que
ele seja o avô, talvez até bisavô daquela pequenina que leva pela mão. O
sofrimento por ter que separar-se dela faz que o pai ande como que
arrastando os pés, desanimado em todos os seus movimentos e modos, o que
o faz ficar vinte anos mais velho. Seu rosto parece o de uma pessoa doente,
além de envelhecida, tão grande é o grau do seu cansaço e de sua tristeza, e
sua boca está com um leve tremor, por entre duas rugas ao lado do nariz,
mais acentuadas hoje.
Os dois estão procurando esconder o pranto. Mas, se o podem esconder
para muitos, não o escondem de Maria que, pelo seu pequeno tamanho, pode
ver, olhando de baixo para cima e, levantando a cabecinha, olha uma vez o
pai, outra vez, a mãe. Eles se esforçam para sorrir a ela, com um tremor na
boca, aumentando o aperto de suas mãos sobre a pequenina mão, cada vez
que sua filhinha olha para eles sorrindo. Eles devem ficar pensando: “Aí
está. É esta uma vez a menos que vemos este sorriso”.
8.2
Vão andando bem devagar. Parecem querer que aquela sua viagem
dure o mais possível. Tudo serve de motivo para mais uma parada… Mas,
afinal, uma estrada uma hora tem que acabar. E esta já está no fim. No alto
deste último trecho da estrada, que vai subindo, estão os muros que rodeiam
o Templo. Ana solta um gemido e aperta com mais força a mãozinha de
Maria.
– Ana querida, eu estou contigo!
Assim diz uma voz, que vem da sombra de um arco baixo, que se projeta
sobre um cruzamento.
Isabel, que, com certeza, a estava esperando, se aproxima dela e a
aperta ao coração. Vendo que Ana está chorando, lhe diz:
– Vem, entra um pouco nesta casa amiga. Depois, iremos juntos.
Zacarias também está aqui.
Entram todos em uma morada baixa e escura, na qual se vê o clarão de
um grande fogo. A dona da casa deve ser amiga de Isabel, mas para Ana é
estranha, e então se retira dali delicadamente, deixando os recém-chegados
mais a vontade.
– Não pense que eu esteja arrependida, ou esteja dando o meu tesouro
de má vontade ao Senhor –explica-lhe Ana, entre lágrimas–, mas o
coração… oh! como o meu coração está doendo, o meu velho coração, que
vai voltar para aquela solidão dos que não têm filhos!… Se pudesses sentir
o que estou sentindo…
– Eu compreendo, minha querida Ana… Mas, tu és boa, Deus te
confortará em tua solidão. Maria rezará pela paz de sua mamãe. Não é
mesmo?
Maria acaricia as mãos maternas e as beija, e as passa em seu rosto para
ser acariciada, enquanto Ana aperta entre as suas aquele rostinho, e o beija,
repetidamente. E não se sacia de beijá-lo.
Entra Zacarias, e saúda:
– Aos justos, a paz do Senhor!
– Sim –diz Joaquim– suplica para nós a paz, pois as nossas entranhas
estão trêmulas, ao fazermos nossa oferta, como deviam estar as entranhas de
nosso Pai Abraão[21], quando subia o monte, só que nós não encontraremos
outra oferta para darmos no lugar desta. Também não quereríamos fazer isso,
pois somos fiéis a Deus. Mas estamos sofrendo, Zacarias. Sacerdote de
Deus, procura compreender-nos e não fiques escandalizado conosco.
– Nunca. Pelo contrário, a vossa dor, que sabe não passar além do
permitido e levar-vos à infidelidade, serve para mim até como um exemplo
de amor ao Altíssimo. Mas, tende coragem! 8.3Ana, a profetisa, tomará muito
cuidado desta flor de Davi e de Arão. Neste momento ela é o único lírio de
sua estirpe santa, que Davi ainda tem no Templo, e cuidaremos dela como de
uma pérola real. Visto que os tempos vão chegando ao fim, as mães da
estirpe deveriam consagrar suas filhas ao Templo, dado que há de ser de
uma virgem, da estirpe de Davi, que nascerá o Messias. No entanto, por um
relaxamento na fé, os lugares das virgens estão vazios. São muito poucas no
Templo, e nenhuma da estirpe real, depois que Sara, a esposa de Eliseu, saiu
para se casar, há três anos. É verdade que ainda faltam seis lustros para o
fim, mas… ainda bem! Esperemos que Maria seja a primeira de muitas
outras virgens da estirpe de Davi diante do Sagrado Véu. E depois… quem
sabe…
Zacarias não diz mais nada, mas, pensativo olha para Maria. Depois,
retoma o assunto:
– Eu mesmo velarei por ela. Sou sacerdote, e lá dentro tenho as minhas
funções. E, no desempenho delas cuidarei deste anjo. Isabel também virá
muitas vezes se encontrar com ela…
– Oh! Decerto! Eu tenho tanta necessidade de Deus, e virei dizer isso a
esta menina, para que ela o transmita ao Eterno.
8.4
Ana se sente reanimada. Isabel, para aliviá-la ainda mais, lhe pergunta:
– Esse não é o teu véu de esposa? Ou será que o fiaste de um novo
linho?
– É aquele mesmo. Eu o consagro com ela ao Senhor. Já não tenho mais
aquela vista boa… Depois, as riquezas estão muito diminuídas pelos
impostos e pelas desventuras… Nem eu podia estar fazendo pesadas
despesas. Tomei as providências necessárias só para um bom enxoval
durante o tempo que vai passar na Casa de Deus, e para depois… pois penso
que não serei eu quem a vai vestir para as núpcias… Mas quero que tenha
sido a mão de sua mamãe, ainda que fria e imóvel, a preparar-lhe para as
núpcias, fiando os linhos e as vestes de esposa.
– Oh! Por que ficar pensando estas coisas?!
– Eu estou velha, prima. Nunca me senti assim, como agora que estou
passando por esta dor. As últimas forças de minha vida foram dadas a esta
flor, quando a trouxe comigo, quando a alimentei, e agora… agora que estou
nas últimas, estou sentindo a dor de perdê-la, o que vai acabar com minhas
forças.
– Não digas uma coisa dessas. Pensa no Joaquim.
– Tens razão. Procurarei viver para o meu homem.
Joaquim fez como se não tivesse ouvido, atento como estava em ouvir
Zacarias; mas bem que ele ouviu, e dá um forte suspiro, com os olhos
marejados de lágrimas.
– Estamos entre a terça e a sexta horas. Acho que seria bom irmos
andando –diz Zacarias.
Levantam-se todos para colocarem-se os mantos e partirem.
8.5
Mas antes de saírem, Maria se ajoelha sobre a soleira, de braços
abertos. É um pequeno querubim, que implora:
– Pai! Mãe! Dai-me a vossa bênção!
A pequenina é forte, não chora. Mas seus labiozinhos tremem, e a voz,
entrecortada por um interno soluço, tem, mais do que nunca, o som do
gemido trêmulo da rolinha. Seu rostinho está mais pálido, e seus olhos têm
aquele olhar cheio de uma resignada angústia que parece sempre mais forte
até provocar-nos um profundo sofrimento. Este olhar só o verei de novo no
Calvário e junto ao Sepulcro.
Seus pais a abençoam e beijam. Uma, duas, dez vezes. Não sabem
saciar-se… Isabel chora silenciosamente, e Zacarias, por mais que não
queira demonstrá-lo está comovido.
Saem. Maria entre o pai e a mãe, como antes. Na frente, vão Zacarias e a
mulher.
Ei-los dentro dos muros do Templo.
– Vou ao Sumo Sacerdote. Vós subi até o grande terraço.
Atravessam três pátios e três átrios sobrepostos. Chegam aos pés do
grande cubo de mármore coroado de ouro. Cada cúpula, convexa como uma
enorme laranja, está brilhando agora ao sol, cujos raios incidem
perpendicularmente sobre o vasto pátio que circunda a majestosa construção,
ocupando toda a ampla esplanada, abrangendo a escadaria que conduz ao
Templo. Só o pórtico, que fica à frente da escadaria, está na sombra,
tornando a alta porta feita de bronze e ouro ainda mais escura e majestosa,
rodeada de muita luz.
Maria parece ainda mais ser feita de neve, quando anda ao sol. Agora
ela está aos pés da escadaria. Entre o pai e a mãe. Como devem estar
batendo os corações dos três! Isabel está ao lado de Ana, mas a um meio
passo atrás.
8.6
Um toque de trombetas de prata, e a porta, girando sobre as
dobradiças, parece produzir um som de cítara, ao correr sobre as esferas de
bronze. Pode-se ver agora o interior, com suas lâmpadas lá no fundo, e um
cortejo que vem saindo do interior. É um cortejo pomposo, com o soar das
trombetas de prata, nuvens de incenso e muitas luzes.
Ei-lo que chega à soleira da porta. O Sumo Sacerdote parece vir à
frente. É um ancião cheio de majestade, vestido de linho finíssimo, tendo
sobre o linho uma túnica mais curta, também de linho, sobre a qual traz uma
espécie de casula, um paramento multicolor, parecido com a planeta e a
veste dos diáconos. Nas suas vestes, as cores púrpura e ouro, roxo e branco
se alternam, e brilham como pedras preciosas ao sol; duas gemas
verdadeiras brilham ainda mais vivamente sobre os ombros. Também
parecem ser duas fivelas em seus engastes preciosos. Sobre o peito uma
larga placa reluzente com pedras preciosas presas por uma corrente de ouro.
Há ainda pingentes e ornamentos vários, que reluzem na barra da túnica
curta, enquanto o ouro lhe resplende sobre a fronte por cima da cobertura da
cabeça, fazendo lembrar os padres ortodoxos, na mitra que eles usam em
forma de cúpula, diferente da católica, que tem uma ponta.
O solene personagem avança sozinho, até o começo da escadaria,
exposto ao brilho do sol, que o torna ainda mais esplêndido. Os outros, numa
fila em semicírculo, o esperam do lado de fora da porta, à sombra do
pórtico. A esquerda, há um grupo de meninas vestidas de branco, em
companhia de Ana, a profetisa, e outras anciãs, que certamente são mestras.
O Sumo Sacerdote olha para a pequena e sorri. Ela deve estar-lhe
parecendo muito pequena, ainda mais, aos pés daquela escadaria que parece
digna de um templo egípcio! Ele eleva os braços em oração. Todos abaixam
a cabeça, como que aniquilados, diante da majestade sacerdotal que está em
comunhão com a Majestade eterna.
Depois, chegou a hora! Ele faz um sinal a Maria. E ela se separa da mãe
e do pai e sobe, vai subindo, como se estivesse fascinada. Ela sorri. Está
sorrindo, agora já à sombra do Templo, onde desce o Véu precioso… Já está
no alto da escadaria, aos pés do Sumo Sacerdote, que lhe impõe as mãos
sobre a cabeça, a vítima é aceita. Que hóstia mais pura terá tido algum dia o
Templo?
Depois o Sumo Sacerdote se volta até a porta do Templo, conservando a
mão sobre o ombro dela, como para conduzir a cordeirinha sem mácula ao
altar. Antes de fazê-la entrar, lhe pergunta:
– Maria de Davi, sabes qual é o teu voto?
Ao “sim” alto e claro, com que ela lhe responde, ele exclama:
– Entra, então. Caminha em minha presença. E sê perfeita.
Maria entra, pois, e a sombra a faz desaparecer, enquanto o grupo das
virgens e das mestras, e depois o dos levitas, a escondem cada vez mais, até
separá-la. Acabou-se…
Agora a porta também gira sobre suas dobradiças harmoniosas… Uma
pequena fresta, permite ainda que se veja o cortejo, que se vai encaminhando
para o Santo. A fresta torna-se apenas um fio. Já não se vê mais nada. A
porta é então fechada.
Ao último acorde das dobradiças sonoras, responde o soluço de dois
velhinhos e um único grito:
– Maria! Minha filha!
Depois, dois gemidos, um que chama o outro:
– Ana!
– Joaquim!
E terminam, dizendo:
– Demos glória ao Senhor, que a recebe em sua Casa, e a conduz pelo
seu caminho.
E tudo termina assim.
Jesus diz:
8.7
10.2
Maria se cala, sorri e suspira, e depois se inclina e se ajoelha em
oração. Seu pequeno rosto é todo uma só luz. Erguido depois para o azul
límpido de um belo céu de verão, parece atrair para si toda aquela
luminosidade, e irradiá-la de si. Ou melhor, parece que um sol escondido no
seu interior irradie suas luzes e incendeie a neve levemente rosada da face
de Maria, derramando-se sobre as coisas e o sol que brilha na terra,
abençoando e prometendo toda sorte de bens.
Enquanto Maria está para levantar-se, depois de sua amorosa oração, e
em seu rosto ainda lhe permanece a luminosidade do êxtase, entra a anciã
Ana de Fanuel, e pára, assombrada, ou, pelo menos, admirada pelo ato e
pelo aspecto de Maria.
Depois a chama:
– Maria!
E a menina se volta com um sorriso, diferente, mas sempre muito lindo,
saudando-a:
– Ana, a paz esteja contigo!
10.3
– Estavas rezando? A oração não te basta nunca?
– A oração poderia me bastar. Mas eu falo com Deus! Ana, não fazes
uma idéia como eu O sinta próximo de mim. Mais do que próximo, sinto-O
em meu coração. Deus me perdoe esta soberba. Mas eu não me sinto sozinha.
Estás vendo? Lá, naquela casa de ouro e de neve, atrás da dupla Cortina,
está o Santo dos santos. Nenhum olho, a não ser o do Sumo Sacerdote, pode
fixar-se no Propiciatório sobre o qual repousa a glória do Senhor. Mas eu
não preciso olhar, com toda a alma cheia de veneração, para aquele duplo
Véu bordado, que se move com as ondas dos cantos das virgens e dos
levitas, e guarda o perfume dos preciosos incensos, como para tentar
perfurar sua urdidura, a fim de ver transparecer o Testemunho. Sim, também
eu olho para ele! Não temas que eu não o olhe, cheia de veneração, como
fazem todos os filhos de Israel. Não temas que o orgulho me cegue, a ponto
de fazer-me pensar isto que estou te dizendo. Eu olho para ele. Não há
nenhum servo humilde no povo de Deus que olhe com mais humildade para a
Casa do Senhor, como eu, pensando ser a mais indigna de todos. O que eu
vejo? Vejo um véu. O que deve estar atrás do Véu? Um Tabernáculo. O que
há nele? Se olho em meu coração, eis que vejo Deus, que brilha em sua
glória e amor, dizendo-me: “Eu te amo”, e eu Lhe digo: “Eu te amo” e sinto-
me derreter, me deleito em cada palpitação do coração, neste beijo
recíproco… Eu estou no meio de vós, mestras e companheiras queridas. Mas
um círculo de fogo me separa de vós. Dentro do círculo estamos Deus e eu,
que vos vejo, através do Fogo de Deus, e assim vos amo… Mas não posso
amar-vos segundo a carne. Jamais poderei amar ninguém segundo a carne.
Só posso amar a Este que me ama, segundo o espírito. 10.4Eu conheço a minha
sorte. A Lei secular de Israel quer que cada menina se torne esposa, e cada
esposa mãe. Mas eu, ainda que obedecendo à Lei, obedeço uma Voz que diz:
“Eu te quero”, mas como poderei fazer isso se sou e serei virgem? Esta tão
doce e invisível Presença, que está comigo me ajudará, porque Ela é que
quer assim. Eu não temo. Não tenho mais pai nem mãe… só o Eterno sabe
como nesta dor se purificou tudo o que eu tinha de humano. Foi uma
purificação por meio de uma dor atroz. Agora não tenho ninguém, além de
Deus. A Ele obedeço, portanto, cegamente. Já teria obedecido até contra meu
pai e minha mãe, porque a Voz me instrui que quem quer acompanhá-la deve
ir além dos pais, que são amorosos guardiães, rondam os muros do coração
filial, querendo conduzi-lo à alegria, mas, segundo o modo de ver deles…
Não sabem que há outros modos que conduzem a uma alegria infinita… Eu
lhes teria deixado as vestes e o manto, para acompanhar a Voz, que me diz:
“Vem, ó minha querida, ó minha esposa!” Eu lhes teria deixado tudo. As
pérolas das lágrimas, que choraria por dever desobedecer, e os rubis do meu
sangue, dado que até a morte eu teria desafiado para acompanhar a Voz que
me chama, lhes diriam que há algo maior e mais doce do que o amor paterno
e materno. É a Voz de Deus. A Sua vontade agora me deixou livre até do laço
da piedade filial. Talvez não teria sido propriamente um laço. Eles eram
dois justos, e Deus certamente lhes falava, como faz comigo. Eles seguiriam
a justiça e a verdade. Quando penso neles, os vejo na tranqüila espera dos
Patriarcas. Apresso, com o meu sacrifício, a chegada do Messias para abrir-
lhes as portas do Céu. Sobre a terra, sou eu que me dirijo, ou melhor, é Deus
que dirige a sua pobre serva, dando-lhe as Suas ordens. Eu as cumpro, pois
cumpri-las é a minha alegria. Quando chegar a hora, direi ao esposo o meu
segredo… e ele o aceitará.
– Mas, Maria, que palavras encontrarás para persuadi-lo? Terás contra
ti o amor de um homem, a Lei e a vida.
– Eu terei Deus comigo… Deus abrirá à luz o coração do meu esposo…
A vida perderá os espinhos da sensualidade, tornando-se uma pura flor com
perfume de caridade. 10.5A Lei… Ora, Ana, não me digas que sou uma
blasfemadora. Eu acho que a Lei está para ser mudada. Por quem, dirás tu, se
a Lei é divina? Pelo único que a pode mudar. Por Deus. O tempo está mais
perto do que pensais, eu vos digo. Porque, lendo Daniel, uma grande luz se
fez em mim, partindo do fundo do meu coração, e minha mente compreendeu
o sentido das palavras misteriosas. As setenta semanas serão abreviadas
pelas orações dos justos. Foi mudado o número dos anos? Não. A profecia
não mente. A medida do tempo profético não é o curso do sol e sim o da lua.
Portanto, eu te digo: “A hora está perto, quando se ouvirá o vagido daquele
que nasceu de uma Virgem.” Oh! Se esta Luz que me ama quisesse me dizer,
já que me diz tantas coisas, onde está a feliz donzela[27] que dará à luz o
Filho de Deus, que dará o Messias ao seu povo! Caminhando descalça,
percorreria a terra, e nem o frio, nem o gelo, nem a poeira, nem a canícula,
nem as feras, nem a fome seriam para mim obstáculos para eu chegar perto
dela e dizer-lhe: “Concede à tua serva e à serva dos servos de Cristo de
viver sob o teu teto. Eu trabalharei o moinho e a prensa. Coloca-me como
escrava ao lado do moinho, ou como pastora do teu rebanho, como a que
limpa as fraldas do teu Filho, coloca-me em tuas cozinhas, junto aos teus
fornos… coloca-me onde quiseres, mas me aceita! Que eu o possa ver! Que
eu ouça a sua voz! Que dele eu receba um olhar.” Se ela não me quisesse,
como mendiga à sua porta, eu haveria de viver de esmolas e de zombarias,
ao ar livre, sujeita aos rigores do tempo, contanto que pudesse ouvir a voz
do Messias menino, o eco dos seus risos, depois vê-lo caminhar… Talvez
algum dia eu recebesse Dele a esmola de um pão… Oh! ainda que a fome me
estivesse dilacerando as entranhas, eu estivesse desfalecendo, depois de
tanto tempo sem comer, eu não comeria aquele pão. Eu o conservaria como
um saquinho de pérolas sobre o meu coração, e o beijaria para sentir o
perfume da mão do Cristo. E já não sentiria mais fome nem frio, porque
aquele contato me daria êxtase e calor, êxtase e alimento…
10.6
– Tu deverias ser a mãe do Cristo, tu que o amas tanto assim! Será
para isso que queres permanecer virgem?
– Oh! não. Eu sou apenas miséria e pó. Não ouso levantar o olhar em
direção à Glória. É por isso que eu gosto de olhar para dentro do meu
coração mais do que para o duplo Véu, além do qual está a invisível
Presença de Jeová. Lá está o Deus terrível do Sinai. Mas aqui, em mim, eu
vejo o nosso Pai, uma Face amorosa que me sorri e me abençoa, porque eu
sou pequena como um passarinho, que o vento sustenta sem sentir peso
algum, e frágil como o caule do pequeno lírio selvagem que só sabe
florescer e exalar seu perfume, não opondo outra resistência ao vento, a não
ser a de sua perfumada e pura doçura. Deus, o meu vento de amor! Não é por
isso que permaneço virgem. Mas porque se o Filho de Deus é de uma
virgem, ao Santo do Altíssimo não pode agradar senão aquilo que no Céu
Ele escolheu por mãe e aquilo que na terra lhe fala do Pai Celeste: a Pureza.
Se a Lei meditasse isto, e os rabis que as multiplicaram em todas as
sutilezas, voltassem sua mente para horizontes mais altos, mergulhando-se no
sobrenatural, deixariam de lado o humano e o lucro, que é o que eles
procuram esquecendo-se de seu Fim supremo, orientando os seus
ensinamentos à Pureza, a fim de que o Rei de Israel a encontre ao chegar.
Com a oliveira do Pacífico, com as palmas do Triunfador, espalhai lírios,
mais lírios, muitos lírios… Quanto Sangue o Salvador não deverá derramar
para redimir-nos! Quanto sangue! Das milhares e milhares de feridas que
Isaías viu no corpo do Homem das dores, está caindo uma chuva de Sangue
como o orvalho de um vaso poroso. Que este Sangue divino não caia onde
houver profanação e blasfêmia, mas, sim, em cálices de pureza odorífera,
que o acolhem e recolhem, para depois espargi-lo sobre os doentes do
espírito, sobre os leprosos da alma, que estão mortos para Deus. Dai lírios,
dai lírios para enxugar os suores e as lágrimas do Cristo, com a cândida
veste de pétalas puras! Dai lírios e mais lírios para o ardor de sua febre de
Mártir! Oh! Onde estará aquele Lírio que te carrega? Onde estará quem te
dessedentará, em tua febre ardente? Onde estará aquela que se tornará
vermelha pelo teu Sangue, morrendo pela dor de te ver morrer? Onde estará
quem chorará pelo teu Corpo esvaído em sangue? Oh! Cristo! Cristo! Meu
suspiro!
Maria se cala, lacrimejante e esmagada.
10.7
Ana se cala por algum tempo e depois, com sua branca voz de anciã
comovida, diz:
– Tens mais alguma coisa para ensinar-me, Maria?
Maria leva um susto. Em sua humildade, ela crê que sua mestra a esteja
censurando, e diz:
– Oh! Perdão! Tu és mestra, eu sou um pobre nada. Mas esta Voz me saiu
do coração. Eu bem que a vigio, para não falar. Mas, como um rio, que sob o
impulso da onda, arrebenta os diques, eis que eu fui apanhada
transbordando. Não faças conta de minhas palavras, e castiga a minha
presunção. As palavras misteriosas deveriam ficar na arca secreta do
coração, que Deus, em sua bondade, trata tão bem. Eu sei disso, mas é tão
doce esta invisível Presença, que dela eu estou ébria… Ana, perdoa a tua
pequena serva!
Ana a abraça, e todo o seu velho rosto rugoso treme, brilhando em
prantos. As lágrimas escorrem por entre as rugas, como a água por um
terreno acidentado se transforma em um pântano que treme. Mas a velha
mestra não provoca riso. Pelo contrário, o seu pranto excita a mais alta
veneração.
Maria está entre os seus braços, com o rostinho contra o peito da velha
mestra, e tudo termina assim.
10.8
Jesus diz:
– Maria se recordava de Deus. Sonhava com Deus. Pensava estar
sonhando. Não fazia mais do que rever tudo o que o seu espírito havia visto
no fulgor do Céu de Deus, no momento em que tinha sido criada, para ser
unida à carne concebida na terra. Ela partilhava uma das propriedades de
Deus ainda que de modo bem menor, como exigia a justiça. Assim, ela tinha
a faculdade de recordar, ver e prever por atributo de uma inteligência
poderosa e perfeita, não lesada pela Culpa.
10.9
O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Uma das
semelhanças está na sua possibilidade de recordar, ver e prever, através do
espírito. Isto explica também a faculdade de ver o futuro. Muitas vezes, esta
faculdade aparece, pela vontade de Deus, de modo direto, outras vezes, vem
pela lembrança, que se ergue, como o sol da manhã, iluminando um
determinado ponto do horizonte dos séculos, como é visto no seio de Deus.
Estes são mistérios altos demais, para que os possais compreender
plenamente. Mas, pensai.
Aquela Inteligência suprema, aquele Pensamento que tudo sabe, aquela
Vista que tudo vê, que vos criou por um ato de sua vontade, com um sopro de
Seu infinito amor, fazendo-vos filhos Seus, por origem, filhos Seus também
pela meta a que fostes destinados, poderá Ele, por acaso, dar-vos algo sem
ser Ele mesmo? Ele vo-lo dá em uma medida infinitamente pequena, porque
nunca uma criatura poderia ter a capacidade do seu Criador. Mas a medida
que vos dá, ainda que em sua infinita pequenez, é perfeita e completa.
Que tesouro de inteligência Deus deu ao homem Adão! A culpa,
certamente, diminuiu essa inteligência, mas o Meu sacrifício reintegra o
homem, e abre para vós os fulgores da Inteligência, os seus canais, a sua
ciência. Oh! Que sublimidade tem a mente humana, unida a Deus pela Graça,
participando da Sua capacidade de conhecer!… A mente humana unida a
Deus pela Graça.
Não existe outro modo. Os curiosos de segredos ultra-humanos que
pensem nisso. Todo conhecimento que não proceda de uma alma em estado
de graça — e não está em graça quem está contra a Lei de Deus, tão clara em
suas ordens — só pode provir de Satanás. Dificilmente satanás corresponde
à verdade em tudo o que se refere a assuntos humanos, e nunca corresponde
à verdade no que se refere ao sobrenatural, porque o demônio é pai da
mentira, conduzindo-vos consigo aos caminhos da mentira. Não há nenhum
outro método para conhecer a verdade, senão o método de Deus, o qual fala,
diz ou faz lembrar, assim como um pai que faz um filho recordar-se da casa
paterna, ao dizer: “Estás lembrado de quando Comigo fazias isto, vias
aquilo, ou ouvias aquilo outro? Estás lembrado de quando recebias o meu
beijo de despedida? Lembras-te de quando me viste pela primeira vez, o sol
fulgurante do meu rosto sobre a tua alma virgem, que tinha acabado de ser
criada, e estava ainda limpa do marasmo, que mais tarde te diminuiu e
degradou, quando mal acabavas de sair de Mim? Lembras-te ainda de
quando chegaste a compreender, em um sobressalto de amor, o que é o
Amor? Qual é o mistério do nosso Ser e da nossa Procedência?” Até onde a
capacidade limitada do homem em estado de graça não consegue chegar,
vem o Espírito falar-lhe e ensinar-lhe.
Contudo, para o homem possuir o Espírito, é necessária a Graça. Para
possuir a Verdade e a Ciência, é necessária a Graça. Para o homem ter o Pai,
é necessária a Graça. A Graça é a Tenda em que as Três Pessoas fazem a sua
morada, é o Propiciatório sobre o qual pousa o Eterno, e fala, não mais de
dentro da nuvem, mas revelando sua Face ao filho fiel. Os santos se
recordam de Deus, das palavras ouvidas da Mente criadora e que a Bondade
ressuscita em seus corações, para elevá-los, como águias, à contemplação
do Verdadeiro e ao conhecimento do Tempo.
Maria era a cheia de Graça. Toda a Graça, una e trina estava nela,
10.10
anúncio da morte dos pais de Maria, dado por Zacarias, quem saberá
porquê? Assim, também eu pensava como Jesus teria tratado a “lembrança
de Deus, por parte dos santos.” Hoje de manhã, quando começou a visão, eu
disse: “Agora vão dizer que Maria está órfã”, e já ia ficando com o coração
pequenino porque… era a minha tristeza destes dias que eu teria visto e
sentido. Pelo contrário, não há nada de tudo o que eu pensava ver ou ouvir,
nem mesmo uma só palavra. Isto me consola, porque me diz que não há nada
de mim própria, nem mesmo uma honesta sugestão sobre determinado ponto.
Tudo vem mesmo de outra fonte. Meu medo contínuo cessa… até a próxima
vez, porque este medo de ser enganada e de enganar me haverá de
acompanhar sempre.
[27] onde está a feliz donzela… Não deve maravilhar — assim anota M aria Valtorta numa cóp ia dactilografada — esta
ignorância de Maria quanto ao seu futuro como Mãe de Jesus. Deus, que por singular privilégio lhe havia concedido
sabedoria proporcional ao seu estado de Imaculada e de Predestinada Mãe do Verbo Encarnado, por motivos que nos são
imperscrutáveis quis que Maria ignorasse algumas coisas até ao momento oportuno de o saber. Tal conceito vem reforçado no
texto de 10.10, 17.9, 108.2.
11. Maria confidencia o seu voto ao Sumo
Sacerdote.
3 de setembro de 1944.
11.1
Que noite de inferno! Parecia mesmo que os demônios estivessem
soltos sobre a terra. Canhonaços, trovões, relâmpagos, perigo, medo,
sofrimento por estar em uma cama não minha e, em meio a tudo isso, como
uma flor toda branca e suave, colocada entre labaredas e espinheiros, a
presença de Maria, que está um pouco mais adulta do que na visão de ontem,
mas sempre jovem, com as suas tranças loiras sobre os ombros, com o seu
vestido branco, com seu sorriso doce e cheio de recolhimento, um sorriso
interior, voltado para o mistério glorioso, que ela acolheu em seu coração.
Passo a noite comparando o seu suave aspecto com a ferocidade que há no
mundo, e relembrando suas palavras de ontem cedo, um canto de viva
caridade, com o ódio dos que se dilaceram.
Agora de manhã, tendo voltado ao silêncio do meu quarto, assisto a esta
cena.
11.2
Maria está sempre no Templo. Agora, ela está saindo com outras
virgens do Templo verdadeiro e propriamente dito.
Lá dentro deve ter havido alguma cerimônia, pois o cheiro do incenso se
espalha pelo ar, que está todo avermelhado por causa de um belo pôr-do-sol,
que eu diria de um outono adiantado, com um céu docemente cansado, como
um outubro sereno, inclinando-se sobre os jardins de Jerusalém, nos quais o
amarelo-ocre das folhas, estando para cair, vão derramando manchas loiro-
avermelhadas no verde-prateado das oliveiras.
A fileira, ou melhor, o cândido enxame das virgens, atravessa o pátio
dos fundos, sobe por uma escadaria, passa por uma série de pórticos, entra
em um outro pátio mais simples, quadrado, tendo uma única entrada. Deve
ser este o lugar que serve para acomodar os pequenos quartos das virgens
destinadas ao Templo, pois cada menina se dirige para a sua cela, como uma
pombinha para o seu ninho, e até parece um bando de pombas que se
separam, depois de estarem unidas respondendo a um apelo. Muitas, eu diria
todas, falam entre si em voz baixa e alegre, antes de se separarem. Maria
está calada. Somente antes de se separar das outras, ela as saúda
afetuosamente, depois se dirige para o seu pequeno quarto, que fica num
canto à direita.
Lá, ela se encontra com uma mestra também anciã, embora não tanto
11.3
Jesus diz:
13.8
Sua voz é como um doce arpejo, como pérolas jogadas sobre um metal
precioso.
Maria estremece, abaixando o olhar. Estremece mais ainda, quando vê
aquela fulgurante criatura ajoelhada a cerca de um metro de distância dela,
olhando para ela com uma veneração sem limites, com as mãos cruzadas
sobre o peito.
Maria se põe de pé, encostando-se à parede. Ela se torna, ora pálida,
ora vermelha. Seu rosto exprime estupor e susto. Instintivamente une as mãos
sobre o seio, escondendo-as nas longas mangas, e se inclina quase que para
esconder, do melhor modo possível, o seu corpo. É um ato de delicado
pudor.
– Não tenhas medo… O Senhor está contigo. Bendita és tu entre todas as
mulheres.
Maria, porém, continua com medo. De onde terá vindo esse ser
extraordinário? Será ele um enviado de Deus, ou do enganador?
– Não tenhas medo, Maria! –lhe repete o Arcanjo–. Eu sou Gabriel, o
Anjo de Deus. Meu Senhor me mandou a ti. Não tenhas medo, porque achaste
graça junto de Deus. Eis que agora conceberás em teu ventre, e darás à luz
um Filho, e lhe porás o nome de “Jesus.” Ele será grande, será chamado
Filho do Altíssimo (como de fato é). O Senhor Deus lhe dará o trono de
Davi seu pai. Ele reinará para sempre na casa de Jacó e o seu Reino nunca
terá fim. Procura compreender, ó santa virgem amada do Senhor, filha
bendita do Senhor, que foste chamada para ser mãe de seu Filho, o Qual tu
gerarás.
– Como poderá acontecer isso, se eu não conheço varão? Talvez o
Senhor Deus não quer mais receber a oferta de sua serva, de ficar virgem
por amor Dele?
– Não serás mãe por obra de homem, ó Maria. Tu és a virgem eterna, a
santa de Deus. O Espírito Santo descerá sobre ti, e o poder do Altíssimo te
cobrirá com Sua sombra. Por isso, Aquele que nascer de ti, se chamará
Santo, Filho de Deus. Tudo pode o Senhor nosso Deus. Isabel, a estéril,
concebeu em sua velhice aquele que será o profeta do teu Filho, ele
preparará o caminho para teu Filho. O Senhor tirou de Isabel o seu opróbrio,
e os povos lembrarão dela, unida ao teu nome, como também o nome do filho
dela ficará unido ao do teu, até o fim dos séculos. As nações vos chamarão
bem-aventuradas, pela Graça do Senhor que veio a vós, e especialmente a ti,
pois esta Graça chegou a todos os povos por meio de ti. Isabel já está em seu
sexto mês, e o peso que ela carrega, a soergue até à alegria. Nada é
impossível para Deus, Maria, cheia de Graça. O que devo ir dizer ao meu
Senhor? Nenhuma dificuldade deverá perturbar-te. O Senhor defenderá os
teus interesses, se confiares Nele. O mundo, o Céu, o Eterno estão esperando
pela tua palavra!
Maria, por sua vez, cruzando as mãos sobre o peito, e fazendo uma
profunda inclinação, diz:
– Eis aqui a serva de Deus. Faça-se de mim conforme a sua palavra.
O Anjo cintila de alegria. Ele adora, porque certamente está vendo o
Espírito de Deus descer sobre a virgem, que está inclinada ao dar sua
resposta de assentimento, e depois desaparece, sem precisar mover a
cortina, que fica bem estendida sobre o mistério santo.
17. A desobediência de Eva e a obediência de
Maria.
5 de março de 1944.
17.1
Jesus diz:
– […][37].
Não se lê no Gênesis[38] que Deus fez o homem para dominar tudo o que
havia sobre a terra, ou seja, tudo, com exceção de Deus e dos seus ministros
angélicos? Não se lê que fez a mulher para ser companheira do homem na
alegria e na dominação de todos os seres vivos? Não se lê que eles podiam
comer de tudo, menos da árvore da ciência do Bem e do Mal? Por quê? O
que está sub-entendido nas palavras “para que domines”? O que está sub-
entendido na árvore da ciência do Bem e do Mal? Nunca vos fizestes tais
perguntas, vós que viveis perguntando tantas coisas inúteis, mas não indagam
vossa alma a respeito das verdades celestes?
A vossa alma, se estivesse viva, vos responderia. Quando ela está na
graça de Deus, está bem segura, como uma flor entre as mãos do vosso anjo.
Quando está na graça de Deus, é como uma flor beijada pelos raios do sol,
borrifada por um orvalho do Espírito Santo, que a aquece e ilumina, que a
irriga e adorna com suas luzes celestes. Quantas verdades vos diria a vossa
alma, se soubésseis conversar com ela, se a amásseis, como se ama alguém
que voz faz semelhantes a Deus, que também é Espírito. Que grande amiga
teríeis, se amásseis a vossa alma, em vez de odiá-la, ao ponto de matá-la?
Que grande e sublime amiga com a qual poderíeis falar das coisas do céu,
vós que gostais tanto de falar, e vos arruinais reciprocamente, com amizades
que, se não são indignas, pelo menos são quase sempre inúteis,
transformando-se num vazio vão e nocivo de palavras, totalmente terrenas.
Não disse[39] Eu: “Quem me ama guardará a minha palavra e meu Pai o
amará, e viremos a ele e faremos nele morada”? A alma no estado de graça
possui o amor, possuindo então Deus, ou seja, o Pai que mantém esta alma, o
Filho que a ensina, o Espírito que a ilumina. Possui, portanto, o
Conhecimento, a Ciência, a Sabedoria. Possui a Luz. Pensai, então, nas
conversações sublimes que vossa alma poderia entabular convosco. São os
diálogos que encheram os silêncios dos calabouços, das celas, dos ermos,
dos aposentos dos enfermos santos. Souberam confortar os que estavam
encarcerados, à espera do martírio, os enclausurados por amor à busca da
Verdade, os ermitãos ansiosos pelo conhecimento antecipado de Deus, os
enfermos pela suportação. Em suma, souberam ensinar o amor à cruz.
17.2
Se soubésseis fazer perguntas à vossa alma, ela vos diria que o
significado verdadeiro, exato, vasto como a criação, da palavra “domina” é
este: “O homem deve dominar tudo, em todos os estados: o estado inferior,
que é o animal; o estado mediano, que é o moral e o estado superior, que é o
espiritual. O homem usa os três estados[40] para atingir um único fim, que é
possuir a Deus.” Merecer isto através deste férreo domínio, que subjuga as
forças do eu, tornando-as escravas deste único objetivo: merecer a
possessão de Deus. Vossa alma vos diria que Deus proibira o conhecimento
do Bem e do Mal, porque o Bem tinha sido dado por Ele às suas criaturas
gratuitamente, mas Ele desejava que o Mal vós não conhecêsseis, porque é
um fruto doce ao paladar, mas que, descendo para o sangue, desperta uma
febre que mata, produzindo uma tal ardência, que quanto mais se bebe
daquele suco mentiroso, mais se tem sede dele.
17.3
Vós me objetareis: “Então, por que o Mal foi colocado diante de
nós?” Porque é uma força que nasceu por si mesma, como nascem certos
males monstruosos até nos corpos mais sadios.
Lúcifer era um anjo, o mais belo dos anjos. Espírito perfeito, inferior
somente a Deus. No entanto em seu ser luminoso nasceu uma sombra de
soberba, que ele não tratou de dispersar, mas, ao contrário, procurou
condensar, incubando-a. Dessa incubação, nasceu o Mal. Este existia, antes
que o homem fosse criado. Deus havia precipitado o maldito incubador do
Mal para fora do Paraíso, que tinha se maculado com este Mal. Não podendo
mais sujar o Paraíso, o eterno incubador do Mal sujou a Terra.
17.4
A planta metafórica quer demonstrar esta verdade. Deus tinha dito ao
homem e à mulher: “Vós conheceis todas as leis e os mistérios da criação.
Mas não queirais usurpar-me o direito de ser o Criador do homem. Para
propagar a raça humana, bastará o meu amor, que circulará entre vós, sem
libido de sensualidade, mas pelo impulso da caridade, que suscitará novos
Adãos. Tudo eu vos dou. Só me reservo este mistério da formação do
homem.”
17.5
Satanás quis tirar esta virgindade intelectual do homem e, com sua
língua serpentina, aplacou, acariciando membros e olhos da Eva, fazendo
surgir neles reflexos e sagacidades, que antes não tinham, quando a malícia
não os tinha intoxicado ainda.
Ela “viu.” E quis experimentar. A carne foi despertada. Oh! se tivesse
chamado por Deus! Se tivesse corrido para ir dizer-lhe: “Pai, eu estou
doente. A Serpente me acariciou, e estou perturbada.” O Pai a teria
purificado, e curado com o seu hálito, que podia infundir-lhe novamente a
inocência, como lhe havia infundido a vida, fazendo-a esquecer-se do tóxico
da Serpente, colocando nela a repugnância por ela, como acontece com
aqueles que foram assaltados por algum mal, guardando uma instintiva
repugnância dele. Mas Eva não foi ao Pai. Ela voltou à Serpente. Aquela
sensação foi doce para ela: “Vendo que o fruto da árvore era bom para se
comer, bonito de se ver e agradável ao aspecto, foi apanhá-lo, e comeu.”
E “compreendeu.” A malícia já tinha começado a morder-lhe as
entranhas. Ela passou a ver com outros olhos, e a ouvir com outros ouvidos,
os usos e as vozes dos irracionais. Passou a desejá-los com uma louca
cobiça.
17.6
Ela iniciou sozinha o pecado. E o terminou com o seu companheiro.
Por isso é que sobre a mulher pesa uma pena maior. Foi por meio dela que o
homem se tornou rebelde a Deus e que ele conheceu a luxúria e a morte. Foi
por ela que ele não soube mais dominar os três reinos: do espírito, porque
permitiu que o espírito desobedecesse a Deus; da moral, porque permitiu
que as paixões o dominassem; e da carne, porque o aviltou, submetendo-o às
leis instintivas que regem os brutos. “A Serpente me seduziu”, diz Eva. “A
mulher me ofereceu o fruto, e eu o comi”, diz Adão. A tríplice
concupiscência rouba os seus três reinos do homem.
17.7
Somente a Graça pode desacorrentar o homem preso àquele monstro
impiedoso. Mas, se a Graça é viva, mantida sempre assim pela vontade do
filho fiel, ela chega a destroçar o monstro, e não é preciso temer mais nada:
nem os tiranos internos, isto é, a carne e as paixões; nem os tiranos externos,
ou seja, o mundo e os poderosos dele. Nem as perseguições. Nem a morte. É
como diz o Apóstolo Paulo[41]: “Nenhuma destas coisas eu temo, nem amo a
minha vida mais do que a mim mesmo, contanto que eu leve a bom termo a
minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus, que é o de dar
testemunho do Evangelho da Graça de Deus.”
[…].
[8 de março de 1944.]
17.8
Maria diz:
– Estou na alegria, pois, desde que compreendi a missão a que Deus me
destinava, fiquei repleta de alegria. O meu coração se abriu como um lírio
que desabrocha e o sangue derramou dele, como terreno para o Embrião do
Senhor.
17.9
Alegria de ser mãe.
Eu me tinha consagrado a Deus desde a mais tenra idade, porque a luz
do Altíssimo me havia feito conhecer a causa do mal no mundo e eu quis, por
quanto estava em meu poder, anular, por mim mesma, o plano de satanás.
Eu ainda não sabia que não possuía a mancha do pecado. Nem eu podia
pensar nisso,pois, teria sido presunção e soberba, dado que, nascida de pais
humanos, não me era lícito pretender que logo eu é que seria a escolhida
para não ter mácula.
O Espírito de Deus me tinha instruído sobre a dor do Pai, diante da
corrupção de Eva, que tinha querido aviltar-se, pois, sendo criatura por
graça, desceu ao nível de uma criatura inferior. Havia em mim a intenção de
amenizar aquela dor, reconduzindo a minha carne à pureza angélica,
conservando-me inviolada por pensamentos, desejos e contactos humanos.
Só por Ele o meu coração palpitava de amor, só a Ele eu consagrava o meu
ser. Mas, se não havia em mim o ardor da carne, contudo ainda havia o
sacrifício de não ser mãe.
A maternidade, livre de tudo o que agora a avilta, tinha sido concedida
assim pelo Pai Criador também a Eva. Uma doce e pura maternidade, sem o
peso da sensualidade! Eu a experimentei! De quantas vantagens Eva se
despojou, quando renunciou a uma riqueza de tal porte! Essa riqueza era
muito mais do que a imortalidade. E que não vos pareça um exagero dizer
isso. De fato, o meu Jesus, e com Ele eu, sua mãe, tivemos de passar pelos
langores da morte. Eu passei por ela, como alguém que, cansado, adormece
docemente, e Ele, por meio do atroz sofrimento de quem está morrendo,
porque foi condenado a isso. Portanto, também para nós houve morte. Mas a
maternidade sem pesos e sem violações só aconteceu comigo, a nova Eva, a
fim de que ela pudesse dizer ao mundo que doçura teria sido para a mulher
chamada a ser mãe, se não sentisse dor em sua carne. Ora, o desejo dessa
maternidade pura estava também na virgem toda de Deus, pois a maternidade
é a glória da mulher. Se pensardes, então, na honra que era ser mãe para a
mulher israelita, ainda mais podereis compreender o meu sacrifício, ao
consagrar-me a Deus, com a privação da maternidade.
Mas o Eterno Bem quis dar à Sua serva este dom, sem deixá-la perder o
candor que a revestia, tornando-a uma flor no seu trono. Eu me sentia
jubilosa com a dupla alegria de poder ser a mãe de um homem e, ao mesmo
tempo, ser a mãe de Deus.
17.10
AAlegria de ser aquela pela qual a paz se estabelecia entre o Céu e
a Terra.
Oh! Ter tanto desejado essa paz, por amor de Deus e do próximo, e
saber que através de mim, uma pobre serva do Todo-Poderoso, é que tal paz
viria ao mundo! Poder dizer: “Ó homens, não choreis mais, pois eu trago em
mim o segredo que vos fará felizes. Não posso lhes comunicar este segredo,
porque está selado no meu coração, assim como o Filho no meu ventre
inviolado. Mas já O trago em meio a vós, e cada hora que passa, fica mais
perto o momento em que o vereis, e conhecereis seu Nome Santo”.
17.11
A Alegria de ter contentado a Deus: a alegria do fiel que faz feliz o
seu Deus.
Oh! Sim! Ter tirado do coração de Deus a amargura da desobediência de
Eva! Da soberba de Eva! Da sua incredulidade!
17.12
Meu Jesus me explicou a culpa com que o primeiro casal se manchou.
Eu anulei aquela culpa, refazendo de modo retroativo as etapas da descida
deste casal, para depois subir de novo.
O princípio da culpa estava na desobediência: “Não comais daquela
árvore, e não toqueis nela”, Deus havia dito. Mas o homem e a mulher não
levaram em conta aquela proibição. Eles que eram os reis da criação,
podiam tocar em tudo, comer de tudo, menos daquela árvore, pois Deus
queria torná-los inferiores só aos anjos.
A árvore: meio para provar a obediência dos filhos.
O que é a obediência ao mandamento de Deus? É um bem, porque Deus
só exige o bem. O que é a desobediência? É um mal, porque põe a alma na
disposição de rebeldia, oferecendo a satanás um campo propício para as
suas operações.
Eva vai até à árvore, da qual receberia o bem, ao evitá-la, ou o mal,
aproximando-se dela. Ela é arrastada por uma curiosidade infantil que
deseja ver o que a árvore tem de especial. É levada pela imprudência, que
lhe faz conceber o mandamento de Deus como inútil, pois se sente forte e
pura, rainha do Éden, no qual tudo lhe obedece, onde nada lhe fará mal. Esta
presunção causa sua ruína. A presunção é um fermento da soberba.
Junto à árvore, ela encontra o sedutor, que se aproveita da sua
inexperiência, daquela inexperiência virgem e bela, tão mal protegida por
ela mesma, para cantar-lhe a canção da mentira: “Crês tu que isso seja um
mal? Não. Deus te disse isso porque vos quer conservar escravos do seu
poder! Pensais que sois reis? Nem liberdade tendes, como a têm os animais.
Pois aos animais foi concedido que se amem com verdadeiro amor. Mas a
vós, não. Ao animal foi concedido tornar-se criador, como Deus. Ele gerará
filhos e verá crescer sua família, à vontade. A vós, porém, é negada essa
alegria. Porque, então, ser homem ou mulher, se tendes que viver desse
modo? Sede deuses! Não sabeis que alegria é estarem ambos numa só carne,
para que dessa união se crie uma terceira criatura, e depois muitas outras
criaturas? Não acrediteis na promessa de Deus de que tereis alegria em
vossos descendentes, vendo os vossos filhos criarem novas famílias,
deixando pai e mãe, por causa delas. Deus vos deu apenas uma sombra de
vida: a verdadeira vida é conhecer as suas leis. Então, sim, sereis
semelhantes a deuses e podereis dizer a Deus: ‘Somos iguais a ti’.”
E a sedução continuou, porque não houve vontade de acabar com ela,
pelo contrário, houve vontade de continuar conhecendo o que não era lícito
ao homem conhecer. É aí que a árvore proibida se torna realmente mortífera
para a raça humana, pois dos seus ramos está o fruto da amarga sabedoria,
que vem de satanás. A mulher se torna fêmea e, com o fermento do
conhecimento satânico no coração, corrompe o companheiro, Adão.
Aviltada, pois, a carne, corrompida a moral, degradado o espírito, eles
passaram a conhecer a dor e a morte do espírito, sem a graça, e morte da
carne, sem a imortalidade. A ferida de Eva gerou o sofrimento, que não se
aplacará, enquanto não se extinguir a vida do último casal, sobre a terra.
17.13
Eu percorri, de modo regressivo, os caminhos daqueles dois
pecadores. Obedeci. Obedeci de todos os modos. Deus me pediu que eu
permanecesse virgem. Eu obedeci. Tendo amado a virgindade, que me
tornava pura como a primeira das mulheres, antes de conhecer satanás, Deus
me pediu que fosse esposa. Eu obedeci, colocando o matrimônio naquele
primeiro grau de pureza conforme o pensamento de Deus, quando criou o
primeiro homem e mulher. Convicta de que estava destinada à solidão no
matrimônio, a ser desprezada pelos outros, pela minha esterilidade
voluntária, Deus me pedia para me tornar mãe. Eu obedeci. Eu acreditei que
seria possível e que aquela palavra tinha vindo de Deus, pois, ao ouvi-la,
difundiu-se em mim uma grande paz. Não fiquei pensando: “Eu mereci isto.”
Não fiquei dizendo a mim mesma: “Agora, o mundo vai me admirar, pois sou
semelhante a Deus, criando a carne de Deus.” Não. Eu me aniquilei na
humildade.
A alegria brotou-me do coração, como um pedúnculo de roseira florida.
Mas esta viu-se bem depressa ornada com agudos espinhos, apertada no
emaranhado da dor, como aqueles ramos que ficam enrolados por alguma
trepadeira. A dor pela dor do esposo: eis a angústia na minha alegria. A dor
pela dor do meu Filho: eis o espinho na minha alegria.
Eva quis o gozo, o triunfo, a liberdade. Eu aceitei a dor, o
aniquilamento, a escravidão. Renunciei à minha vida tranqüila, ao amor do
meu esposo, à minha própria liberdade. Não conservei nada para mim. Fiz-
me a serva de Deus na carne, na moral, no espírito, confiando-me a Ele, não
só para a concepção virginal, mas para a defesa de minha honra, para a
consolação do esposo, para o meio com o qual ele pudesse entender a
purificação do matrimônio, de tal modo a fazer de nós dois os que haveriam
de restituir a dignidade perdida ao homem e à mulher.
17.14
Abracei a vontade do Senhor, por mim mesma, pelo esposo e por meu
Filho. Eu disse “sim” pelos três, certa de que Deus não teria faltado com sua
palavra, quando prometeu me socorrer na minha dor de esposa, que está
sendo julgada culpada, de mãe que gera um Filho para entregá-Lo à dor.
Eu disse sim, e basta. Aquele “sim” anulou o “não” de Eva ao
mandamento de Deus. “Sim, Senhor, como quiseres. Conhecerei o que Tu
queres. Viverei como Tu queres. Alegrar-me-ei, se Tu quiseres. Sofrerei o
que Tu quiseres. Sim, sempre sim, meu Senhor, desde o momento em que o
Teu raio me fez mãe, até o momento em que me chamaste para Ti. Sempre
sim. Todas as vozes da carne, todas as paixões da moral, sob o peso deste
meu perpétuo sim. Acima, como num pedestal de diamante, o meu espírito,
ao qual faltam asas para voar a Ti, mas que é senhor de todo o eu domado,
servo teu. Serva na alegria, serva na dor. Sorri, ó meu Deus! Sê feliz! A
culpa foi vencida, excluída, destruída. Ela, agora sob o meu calcanhar, está
lavada em meu pranto, destruída pela minha obediência. De meu ventre
nascerá a árvore nova, que há de ter em si o Fruto, que conhecerá todo o
Mal, por tê-lo padecido em Si, e que doará todo o Bem. Os homens poderão
ir a Ele. Eu me darei por feliz, se eles colherem desse fruto, ainda que não se
lembrem que este fruto está nascendo de mim. Contanto que o homem se
salve, e que Deus seja amado, que se faça desta tua serva o que se faz do
solo sobre o qual surge uma árvore: um degrau para subir.”
Maria, é preciso saber sempre ser degrau, para que os outros subam
17.15
para Deus. Se nos pisam, não faz mal. Contanto que consigam chegar à Cruz.
É a nova árvore que tem o fruto do conhecimento do Bem e do Mal, pois diz
ao homem o que é um e outro, a fim de que ele saiba escolher e viver. Esta
árvore também tornar-se-a licor que cura os intoxicados do mal que
quiseram saborear. O nosso coração esteja sob os pés dos homens, contanto
que o número dos redimidos cresça, e que o Sangue do meu Jesus não seja
derramado sem fruto. Eis a sorte das servas do Senhor. Depois mereceremos
receber no ventre a Hóstia santa e, aos pés da Cruz, impregnada pelo Seu
Sangue e pelo nosso pranto, dizer: “Eis aqui, ó Pai, a Hóstia imaculada, que
te oferecemos pela salvação do mundo. Olha para nós, ó Pai, unidas com ela
e pelos seus merecimentos infinitos, dá-nos a tua bênção.”
Eu te dou minhas carícias. Repousa, minha filha. O Senhor está contigo.
17.16
Jesus diz:
– A palavra de minha mãe deveria dissipar toda e qualquer titubeação
de pensamento, até mesmo dos mais bloqueados com relação às fórmulas.
[…].
Eu chamei antes de “árvore metafórica.” Agora vou chamar de “árvore
simbólica.” Talvez compreendais melhor. O símbolo é claro: assim como os
dois filhos de Deus procederam a respeito desta árvore, se entende como
estava neles a tendência para o Bem ou para o Mal. Como a água régia prova
o ouro, a balança do ourives pesa os quilates de ouro, aquela árvore tinha
assumido uma “missão” pela ordem de Deus a seu respeito, dando a medida
de pureza do metal que era Adão e Eva.
17.17
Estou já ouvindo a vossa objeção: “Não foi rigorosa demais a
condenação, e pueril o meio usado para condená-los?”
Não foi. Uma vossa desobediência hoje, que sois os herdeiros de Adão
e Eva, é menos grave do que a deles. Vós fostes redimidos por Mim. Mas o
veneno de satanás continua sempre pronto a se reerguer, como certas
doenças que nunca saem totalmente do sangue. Os dois progenitores eram
possuidores da graça, sem nunca terem sido nem tocados pela desgraça. Por
isso eram mais fortes, mais amparados pela graça, que gerava neles
inocência e amor. O dom que Deus lhes havia dado era infinito. A queda
deles, portanto, foi bem mais grave, não obstante aquele dom.
17.18
O fruto oferecido e comido também é simbólico. Era o fruto de uma
experiência que se quis fazer contra a ordem de Deus, por instigação
satânica. Eu não havia proibido o amor aos homens. Queria unicamente que
se amassem sem malícia; como Eu os amava com a minha santidade. Eles
deviam amar-se na santidade de afetos, sem sujarem-se com a luxúria.
17.19
Não se há de esquecer que a graça é luz e quem a possui conhece o
que é útil e bom. Aquela que é cheia de graça conheceu tudo, porque a
Sabedoria a instruía. A sabedoria é graça, e ela soube guiar-se santamente.
Eva conhecia o que lhe era bom conhecer. Não mais do que isso, porque é
inútil conhecer o que não é bom. Não teve fé nas palavras de Deus e não foi
fiel à sua promessa de obediência. Acreditou em satanás, infringiu a
promessa, quis saber o que não é bom e o amou sem remorso, fazendo com
que o amor, que Eu lhe tinha dado como algo santo, se corrompesse, se
aviltasse. Anjo decaído, rolou na lama e no esterco, enquanto poderia correr
feliz entre as flores do Paraíso terrestre, vendo florescer a prole ao redor de
si, assim como uma árvore que se cobre de flores, sem precisar curvar sua
copa sobre o brejo.
17.20
Não fiqueis como os meninos tolos de que Eu falo[42] no Evangelho os
quais ouviram cantar, e taparam os ouvidos, ouviram tocar e não dançaram,
ouviram chorar, e quiseram rir. Não sejais mesquinhos, não sejais negadores.
Aceitai, aceitai a Luz sem malícia e teimosia, sem ironia e incredulidade. A
respeito deste assunto, basta por enquanto.
17.21
Para fazer-vos compreender o quanto deveis ser gratos Àquele que
morreu para elevar-vos ao céu e vencer a concupiscência de satanás, neste
tempo de preparação para a Páscoa, Eu vos quis falar do primeiro elo da
corrente com que o Verbo do Pai foi arrastado à morte, do Cordeiro Divino
no matadouro. Eu vos quis falar disso, porque agora noventa por cento entre
vós é semelhante à Eva, intoxicada pelo hálito, pela palavra de lúcifer, e não
viveis para amar-vos, mas para saciar-vos de sensualidade, não viveis para
o Céu, mas para a lama, não sois criaturas dotadas de alma e de razão, mas
cães sem alma e sem razão. Vós já matastes a alma; já depravastes a razão.
Em verdade, vos digo que os animais irracionais estão acima de vós, na
honestidade dos seus amores.
[37] [...] Este sinal indicará semp re a omissão de uma p assagem não p ertinente, que se encontrará referido em um dos volumes
intitulados “Os cadernos” ou então num outro p onto da obra.
[38] se lê no Génesis, é uma constante referência à história das origens (criação do universo e do homem, culp a de Adão e Eva
e suas consequências) p ela qual se remete, uma vez p or todas, a: Génesis 1-3. O tema da criação resp landecerá no discurso de
Jesus rep etido p or João em 244. 5/8 e no p roferido p or Jesus em 506.2, e ainda será tratado em 540.8/10 e 651.14/15. O tema
do pecado original é tratado, além do p resente cap ítulo, em 5.14/15 -29.7/12 -45.6 -47.6 (com nota) -122.8 -126.3 -131.2
-140.3 -174.9 (com uma extensa anotação) -188.6 -196.5 (com nota) -207.10 -242.6 (em nota) -265.4 -267.3 -286.7 -307.6/7
-317.4 -365.6 -381.6 -406.10 -412.2 -414.8 -420.10/11 -477.3 (antep enúltima linha) -511.3 -515.3 -527.7 -553.6 -554.10
(exp licado em p arábola) -567.19.23 (em nota) -593.6 -596.29 (com nota) -600.36 -606 (todo o cap ítulo) -620.5 -635.2 -642.8
-643.2 -645.12.
[39] disse, em: João 14,23 (600.27).
[40] três estratos, como os classifica também S. Paulo em: 1 Tessalonicenses 5,23. A obra Valtortiana ap resenta com
frequência a divisão trip artida do homem: corpo (ou carne, matéria, sentido, etc.), alma (ou mente, p ensamento, moral, coração,
etc.), espírito (ou alma esp iritual, essência esp iritual, etc.). Semp re mantendo a substancial gradualidade das três p artes, com
frequência chama “alma” à alma esp iritual ou esp írito, a p onto de dar, em 651.1, a singular definição de “p arte eleita do
esp írito”. A divisão trip artida do homem rep resenta-se neste cap ítulo e em 35.10 -36.9 -37.8 -46.13 -47.4 -69.1.3 -80.9 -122.8
-125.2 -137.5 -174.9 (na nota sobre o p ecado original) -196.4 -204.5/6 -209.6 -212.2 -225.8 -237.2 -243.10 -272.4 -275.13
-286.7 -346.5 -406.10 -465.4 -473.9 -524.7/8 -527.7 -548.18 -555.6 (nota) -567.21 -601.1 -608.13 -610.16 -613.9 -651.4.17.
[41] diz o Apóstolo Paulo, em: Actos 20,24.
[42] Eu falo, em: Mateus, 16-17; Lucas 7,31-32 (266.12). M esma citação em 45.9.
18. Maria anuncia a José a maternidade de Isabel
e confia a Deus a tarefa de justificar a sua.
25 de março de 1944.
18.1
Aparece-me agora a casinha de Nazaré, onde está Maria. Muito
jovem, como quando o Anjo de Deus lhe apareceu, sua imagem faz minha
alma encher-se do perfume virginal daquela morada e do perfume angélico,
que ainda permanece no ambiente ventilado pelas asas douradas do anjo. É o
perfume divino, que se concentrou em Maria, para lhe fazer mãe, e que agora
exala de sua pessoa.
Começa a entardecer, porque as sombras invadem o ambiente de onde
viera tanta luz do Paraíso.
Maria, de joelhos junto de sua pequena cama, está rezando com os
braços cruzados sobre o peito, e com o rosto muito inclinado sobre a terra.
Está ainda vestida, como estava no momento da Anunciação. Tudo está como
naquele dia. O ramo florido ainda está no vaso, e os móveis na mesma
ordem. Somente a roca e o fuso estão encostados em um canto, a roca com
sua estriga de linho, e o fuso com seu alvo fio enrolado.
Maria termina sua oração, e se levanta, com o rosto abrasado, como que
em chamas. Sua boca sorri, mas o pranto deixa os seus olhos molhados. Ela
pega a candeia e a acende, com a pederneira. Olha se tudo está em ordem em
seu pequeno aposento. Acerta a coberta da cama, que tinha saído do lugar.
Põe mais água no vaso do ramo florido, e o leva para fora, a fim de que tome
o frescor da noite. Depois torna a entrar. Toma o bordado que está dobrado
sobre um móvel da prateleira com o candeeiro e sai, fechando a porta.
Dá alguns passos pelo jardim e pelos lados da casa, depois entra no
pequeno aposento, onde vi[43] Jesus se despedindo dela. Reconheço bem o
lugar, ainda que estejam faltando agora alguns móveis que haverá naquele
tempo. Maria desaparece, levando consigo o candeeiro para um outro
pequeno quarto, e eu fico ali com a única companhia do trabalho que ela
deixou sobre um canto da mesa. Ouço os passos ligeiros de Maria, que vai e
vem, ouço o barulho de água, como o de quem está lavando alguma coisa,
depois o barulho de quem está quebrando uns pequenos galhos, e
compreendo que ela está acendendo fogo com uns gravetos.
Depois, volta. Sai de novo para o pequeno jardim. Torna a entrar com
algumas maçãs e verduras. Põe as maçãs sobre a mesa em uma bandeja de
metal que parece ser cobre burilado. Volta para a cozinha (certamente deve
ser a cozinha). Agora a luz da lareira está projetando-se alegre pela porta
aberta, chegando até aqui dentro, e está produzindo uma dança de sombras
nas paredes.
Algum tempo depois, Maria volta, com um pãozinho escuro e uma tigela
de leite quente. Ela se assenta, e vai molhando fatias de pão no leite, e come
devagar. Depois, deixando a metade da tigela com leite, entra de novo na
cozinha, voltando com as verduras sobre as quais derrama azeite, e as come
com pão. Depois bebe o leite. Em seguida, apanha uma maçã e come. É uma
ceia de menina.
Maria vai comendo e pensando, e tem algum pensamento que a está
fazendo sorrir. Levanta-se, corre o olhar pelas paredes, parecendo querer
comunicar a elas um segredo. Mas, de vez em quando, fica séria, quase
triste. Contudo, logo em seguida volta o seu sorriso.
18.2
Ouve-se bater à porta. Maria se levanta e abre. José entra. Saúdam-se.
José se assenta sobre um banco, em frente a Maria, do outro lado da mesa.
José é um belo homem, na plenitude dos seus trinta e cinco anos, quando
muito. Seus cabelos castanho-escuros, e também sua barba da mesma cor,
emolduram o seu rosto bastante regular, com dois doces olhos de um
castanho quase preto. Ele tem a fronte espaçosa e lisa, nariz fino levemente
aquilino, faces um tanto arredondadas, de cor morena não oliváceas, mas um
pouco rosadas no centro. Ele não é muito alto. Mas é robusto e bem feito de
corpo.
Antes de sentar-se, tirou o manto que é uma peça inteira (é o primeiro
que vejo feito assim), presa à altura da garganta por um alfinete, ou coisa
semelhante, e tem um capuz. É de cor marrom clara, e parece ser de tecido
impermeável, lã não trabalhada. Parece um daqueles mantos dos
montanheses, próprio para chuva.
18.3
Mas, antes mesmo de sentar-se, ele oferece a Maria dois ovos e um
cacho de uvas, um pouco murchas, mas ainda bem conservadas. Ele sorri,
dizendo:
– Trouxeram-me estas uvas de Caná. O centurião me deu os ovos, por
um trabalho que eu fiz em seu carro. O carro estava com uma roda quebrada,
e o carpinteiro dele está doente. Os ovos são frescos. Foram apanhados no
ninho. Toma-os. Eles te farão bem.
– Amanhã os tomarei, José. Acabei de comer agora mesmo.
– Mas a uva podes chupar. É boa. Doce como mel. Eu a trouxe com
cuidado para não estragá-la. Chupa-as. Eu ainda tenho mais. Eu as trarei
amanhã em um cestinho. Esta tarde eu não podia, porque estou vindo
diretamente da casa do centurião.
– Então, não ceaste ainda?
– Não, mas não tem importância.
Maria se levanta logo, e vai para a cozinha, e volta com leite, azeitonas
e queijo.
– Não tenho outra coisa –ela diz–. Toma um ovo.
José não quer. Os ovos são para ela. Ele come com gosto o seu pão com
queijo e bebe o leite, que ainda está morno. Depois aceita uma maçã. E
termina a ceia.
Maria pega o seu bordado, depois de ter tirado as louças da mesa, e
José a ajuda na cozinha, mesmo quando ela torna a sair. Estou ouvindo como
ele se move, indo colocar cada coisa em seu lugar. Depois, atiça de novo o
fogo, porque a noite vai ser fria. Quando volta, Maria lhe agradece.
18.4
Conversam um com o outro. José conta como passou aquele dia. Fala
de seus pequenos sobrinhos. Interessa-se pelos trabalhos de Maria e por
suas flores. Promete trazer-lhe umas flores muito bonitas que o centurião lhe
prometeu.
– São flores que nós não temos por aqui. Trouxeram-lhe de Roma. Ele
me prometeu mudas. E, quando a lua for boa, eu as plantarei para ti. Elas têm
belas cores e um cheiro muito agradável. Eu as vi no verão passado, pois
florescem no verão. Vão te perfumar toda a casa. Depois, quando a lua for
boa, podarei as plantas. Logo é tempo para isso.
Maria sorri, e agradece. Ficam os dois em silêncio. José olha para a
cabeça loira de Maria, que está inclinada para o bordado. É um olhar de
amor angelical. Pois, certamente, se um anjo amasse uma mulher com amor
de esposo, seria assim que a olharia.
18.5
Maria, como alguém que toma uma decisão, põe sobre os joelhos o
bordado, e diz:
– José, eu também tenho uma coisa para te dizer: Nunca tenho nada, pois
sabes como vivo retirada. Mas hoje tenho para ti uma notícia. Tive notícia
de que nossa parenta Isabel, mulher de Zacarias, está para ter um filho…
José arregala os olhos, e diz:
– Naquela idade?
– Naquela idade –responde Maria, sorrindo–. O Senhor tudo pode. E
agora quis dar esta alegria à nossa parenta.
– Como ficaste sabendo disso? É notícia certa?
– Veio até aqui um mensageiro. É um que não pode mentir. Eu gostaria
de ir à casa de Isabel para ajudá-la e dizer-lhe que me congratulo com ela.
Se me deres licença…
– Maria, tu és a minha esposa, e eu sou o teu servo. Tudo o que fazes é
bem feito. Quando gostarias de ir?
– Quanto antes. Mas ficarei fora alguns meses.
– E eu ficarei contando os dias, à tua espera. Vai tranqüila. Cuidarei da
casa e do pomar. Encontrarás na volta as tuas flores tão bonitas, como se
tivesses cuidado delas. Só uma coisa… espera. Eu preciso ir, antes da
Páscoa, a Jerusalém, comprar alguns objetos para o meu trabalho. Se
esperares um ou dois dias, te acompanharei na viagem. Não mais, porque eu
preciso voltar logo. Mas, daqui até lá, podemos ir juntos. Eu fico mais
tranqüilo, quando sei que não estás sozinha pelas estradas. Para a tua volta,
me mandarás notícia, e irei te buscar.
– És tão bom, José. O Senhor te recompense com as suas bênçãos, e
mantenha a dor longe de ti. Peço isso sempre a Ele.
18.6
Os dois castos esposos sorriem angelicalmente um para o outro. Faz-
se silêncio por algum tempo.
Depois, José se levanta. Torna a colocar o manto, puxa o capuz sobre a
cabeça. Saúda Maria, que também se levanta, e sai.
Maria o fica olhando, enquanto ele caminha, e dá com um suspiro, como
de pena. Depois, eleva os olhos para o céu. Certamente, está rezando. Fecha
a porta com cuidado. Dobra o bordado. Vai à cozinha. Apaga, ou cobre o
fogo. Olha se tudo está em seu lugar. Toma o candeeiro, e sai, fechando a
porta. Com a mão faz um anteparo de proteção para a chama do candeeiro,
que está tremendo pelo vento frio da noite. Entra no aposento, e vai rezar
ainda.
A visão termina assim.
Maria diz:
18.7
20.3
Também agora, quando a visão me fica suspensa, como aconteceu
ontem, fico com a mãe junto de mim, bem visível para a minha vista interior,
e tão nítida, que posso descrever a cor rosada leve de sua face, não muito
cheia, mas suavemente delicada, o vermelho vivo de sua pequena boca, o
luzir doce de seus olhos azulados, entre o loiro escuro de seus cílios.
Posso dizer como os seus cabelos, repartidos no alto da cabeça, descem
delicadamente com três ondulações de cada lado, até cobrirem a metade das
pequenas orelhas rosadas, desaparecendo, com o seu ouro pálido e brilhante,
atrás do véu que lhe cobre a cabeça. Estou vendo-a com o manto na cabeça,
vestida com a sua veste de seda paradisíaca e com seu manto leve como um
véu, embora opaco, feito do mesmo tecido que a veste.
Esta veste é ajustada ao seu pescoço por uma bainha, da qual sai um
cordão, cujas pontas formam um laço na frente, na base do pescoço, e está
apertada à altura da cintura, por um cordão mais grosso, sempre de seda
branca, que desce ao longo de cada lado com duas borlas nas pontas.
Posso dizer também que, ajustada como está ao pescoço e à cintura, a
veste forma sobre o peito sete pregas redondas e frouxas, o único enfeite de
sua roupa castíssima.
Posso dizer ainda da castidade que emana do aspecto todo de Maria, de
suas formas tão delicadas e harmoniosas, que a tornam tão angelicalmente,
mulher.
20.4
E, quanto mais a olho, tanto mais eu sofro, pensando em quanto a
fizeram sofrer, e fico perguntando, a mim mesma, como puderam deixar de
ter piedade dela, tão mansa e gentil, tão delicada, até em seu próprio aspecto
físico. Eu a fico olhando, e torno a ouvir os gritos do Calvário, também
contra ela, com todas as zombarias e gracejos grosseiros. Todas as
maldições, dirigidas a ela, por ser a mãe do condenado. Vejo-a bela e
tranqüila, agora. Mas o seu aspecto de hoje não me desfaz a lembrança de
suas trágicas feições, naquelas horas de agonia, e o seu semblante desolado
em sua casa em Jerusalém, depois da morte de Jesus. Eu queria poder
acariciá-la e beijá-la em sua face tão rósea e delicada, para tirar com o meu
beijo aquela recordação de pranto que certamente ela, como eu, também tem.
20.5
É inimaginável a paz que sinto ao tê-la perto de mim. Penso que mor‐
rer, vendo-a, seja doce, e até mais do que a mais doce hora desta vida.
Nesse tempo em que eu não a via assim, toda para mim, sofri a sua ausência,
como a ausência de uma mãe. Agora sinto de novo a inefável alegria, que foi
minha companheira em dezembro e nos primeiros dias de janeiro. Estou
feliz, não obstante ter visto os tormentos da Paixão, que lançam sobre toda a
minha felicidade um véu de dor.
É difícil dizer e fazer compreender o que eu experimentei e o que
aconteceu a 11 de fevereiro, desde a tarde em que vi Jesus sofrer em sua
Paixão. Foi uma visão que me mudou radicalmente. Morresse eu agora, ou
daqui a cem anos, aquela visão permaneceria sempre igual na intensidade e
nos efeitos. Antes, eu pensava nas dores de Cristo. Agora, eu as vivo, porque
basta-me uma palavra, uma imagem, para eu sofrer de novo tudo o que sofri
naquela tarde, horrorizando-me com aquele seu desolado padecimento.
Mesmo quando nada me faz recordar aquilo, sinto essa recordação me
atormentar.
Maria começa a falar e eu me calo.
Maria diz:
20.6
– Vou falar pouco, porque estás muito cansada, ó minha pobre filha.
Somente quero chamar a tua atenção, e a de quem estiver lendo, sobre o
hábito constante de José, e meu também, de dar sempre o primeiro lugar à
oração. Cansaço, pressa, desgostos, ocupações eram coisas que não
impediam as orações, pelo contrário, a ajudavam até. Ela era sempre a
rainha das nossas ocupações. O nosso conforto, a nossa luz, a nossa
esperança. Se nas horas tristes, a oração era um conforto, nas horas felizes,
era um canto. Mas era sempre a amiga constante de nossa alma. Era ela que
nos fazia desprender-nos da terra deste exílio, elevando-nos ao Céu, nossa
Pátria.
Não somente eu, que já tinha Deus dentro de mim, não precisava senão
olhar para o meu interior, para adorar o Santo dos santos, mas também José
se sentia unido a Deus quando rezava, porque a nossa oração era adoração
verdadeira, com todo o nosso ser que se fundia em Deus, adorando-O e
sendo por Ele abraçado.
Olhai bem, mesmo assim, eu que tinha em mim o Eterno, não me senti
isenta de prestar um reverente obséquio ao Templo. A santidade mais alta
não exime ninguém de sentir-se nada diante de Deus, e de humilhar esse
nada, pois o Senhor no-lo permite, em um contínuo hino de louvor à Sua
glória.
20.7
Sois pobres, fracos, defeituosos? Invocai a santidade do Senhor:
“Santo, Santo, Santo!” Clamai por Ele, Santo bendito, sobre a vossa miséria.
Ele virá e derramará sobre vós a sua santidade. Sois santos e ricos de
merecimentos aos Seus olhos? Invocai, do mesmo modo, a santidade do
Senhor. Essa santidade é infinita e fará crescer sempre mais a vossa. Os
anjos, seres que estão acima das fraquezas da humanidade, não cessam um
instante de cantar o seu “Sanctus”, e a beleza sobrenatural deles aumenta,
cada vez que invocam a santidade de nosso Deus. Imitai os anjos.
Não vos priveis nunca da proteção da oração, contra a qual ficam
embotadas as armas de satanás, as malícias do mundo, os apetites da carne e
as soberbas da mente. Não deponhais nunca esta arma, pela qual se abrem os
céus, de onde chovem graças e bênçãos.
A terra está precisando de um banho de orações para limpar-se das
culpas que atraem os castigos de Deus. Mas, como são poucos os que rezam,
esses poucos precisam rezar como se fossem muitos, multiplicando as suas
orações vivas, para fazerem delas o total necessário para se obter a graça
pedida. Orações vivas, são as temperadas com verdadeiro amor e com
sacrifício.
20.8
Que tu, minha filha, sofras, principalmente porque o teu sofrimento,
unido ao meu e ao de Jesus, torna-se uma coisa boa, agradável a Deus, com
muitos merecimentos. Gosto muito do teu amor de compaixão. Queres dar-
me um beijo? Beija as chagas de meu Filho. Embalsama-as com o teu amor.
Eu senti espiritualmente as dores, a angústia e a aflição causadas pelos
flagelos, pelos espinhos e pela tortura dos cravos e da cruz. Mas, de modo
igual, eu sinto espiritualmente todas as carícias feitas ao meu Jesus: são
beijos dados a mim. Depois, vem. Eu sou a rainha do céu. Mas sou sempre a
mãe…
Maria termina a fala. E me sinto abençoada!
21. Chegada de Maria a Hebron
e seu encontro com Isabel.
1 de abril de 1944.
21.1
Estou num lugar montanhoso. Não são grandes montes, mas também
não são colinas. Eles também têm suas lombadas e grotões, como as grandes
montanhas, por exemplo, os nossos Apeninos na região da Toscana e da
Umbria. A vegetação é densa e bela, onde há, em abundância, nascentes de
águas frescas, que mantêm sempre verdes as pastagens, com as árvores dos
pomares carregadas de frutos, quase todas macieiras, figueiras e videiras,
sendo estas, ao redor das casas. Devemos estar na primavera, porque os
cachos já estão bem desenvolvidos, e os pequenos bagos da uva já aparecem
como grãos nos ramos, como bolinhas verdes. Sobre os galhos das figueiras
vêm aparecendo os primeiros frutos, por enquanto ainda embrionários, mas
já com o seu formato natural. Os prados se exibem, formando um grande
tapete fofo e bastante colorido. Por cima deles, pastam as ovelhas, puxando
e comendo folhas, ou repousando aqui, ou ali, como se fossem manchas
brancas sobre o mar de esmeralda formado pelas ervas.
21.2
Maria vai subindo, no seu burrinho, por uma estrada em muito bom
estado e que deve ser a estrada mestra. Ela vai subindo, porque o povoado,
que nos oferece uma vista muito agradável, fica no alto. Meu monitor interior
me diz: “Este lugar é o Hebron.” Ela falava-me de “Montana.” Não sei o que
dizer. A mim foi dito este nome. Não sei se “Hebron” é o nome dado a toda
esta região, ou ao povoado. Mas eu digo como ouço.
Maria está entrando no povoado. Há mulheres nas portas — já chegou a
tarde — e observam a chegada da forasteira. Depois começam a falar umas
com as outras sobre o que viram. Vão acompanhando a forasteira com o
olhar, e não ficam sossegadas, enquanto não a vêem parar na frente de uma
das mais belas casas, situadas bem no meio do povoado, tendo à frente um
jardim, e atrás um pomar muito bem tratado, estendendo-se o terreno depois
por um vasto prado, que sobe e desce pelas sinuosidades do monte,
acabando num bosque de árvores altas, além das quais não sei o que há.
Tudo está cercado por uma sebe de amoreiras e roseiras selvagens. Eu não
distingo bem, porque, como se sabe, a flor e a folhagem dessas moitas
espinhosas são muito parecidas e, enquanto não aparecerem os frutos nos ga‐
lhos, é fácil nos enganarmos. No lado da frente da casa, que é o lado onde
termina o povoado, a propriedade está cercada por um pequeno muro
branco, no qual se espraiam os ramos das roseiras verdadeiras, que embora
estejam ainda sem flores, estão cheias de botões. No centro há um portão de
ferro, fechado. Logo se vê que esta deve ser a casa de um dos notáveis do
povoado, ou de pessoas abastadas, porque tudo demostra, se não riqueza e
ostentação, certamente demonstra bem-estar. Tudo está em ordem.
21.3
Maria desce do burrinho e se aproxima do portão. Olha por entre as
barras. Não vê ninguém. Então, procura fazer-se ouvir. Uma pequena
senhora, mais curiosa do que as outras, a tinha acompanhado e mostra-lhe um
utensílio muito especial, que faz as vezes de uma campainha. São dois
pedaços de metal, colocados em equilíbrio sobre uma barra: sacudindo-se
esta barra, ao puxar-se uma corda, as duas peças batem uma na outra,
produzindo o som de um sino, ou de um gongo.
Maria puxa a corda, mas de um modo tão delicado, que o som produzido
é um levíssimo tinido, que ninguém ouve. Então, a mulherzinha, uma velhota
do nariz e queixo grande, com uma língua imensa, agarra a corda e puxa
muitas vezes em seguida. O barulho que ela fez com isso dava para
ressuscitar um morto.
– É assim que se faz, mulher. Pois, de outro modo, como vos poderiam
ouvir? Ficai sabendo que Isabel está velha, e Zacarias também está velho.
Além disso, agora ele, além de mudo, está também surdo. Os dois criados
estão velhos também, sabes? Nunca viestes aqui? Conheceis Zacarias?
Sereis vós talvez…
Para livrar Maria de um dilúvio de notícias e de perguntas, apareceu um
velhinho decidido, que deve ser o jardineiro, ou um agricultor, pois traz na
mão um sacho e, amarrada à cintura, uma podadeira. Ele abre o portão,
Maria entra, agradecendo à mulherzinha, mas… deixando-a sem resposta.
Que desilusão para a curiosa!
Logo que entrou, Maria disse:
– Sou Maria de Joaquim e de Ana, de Nazaré. Prima de teus patrões.
21.4
O velhinho se inclina e a saúda, e depois em voz alta, chama:
– Sara! Sara!
E torna a abrir o portão para fazer entrar o burrinho, que tinha ficado de
fora, porque Maria, para ver-se livre da pegajosa velhinha, tinha escapado
rapidamente para dentro, e o jardineiro, tão rápido como Maria, tinha
fechado o portão no nariz da importuna. Enquanto está fazendo o jumento
passar, ele diz:
– Ah! que grande felicidade e que grande desgraça aconteceram a esta
casa! Pois o céu concedeu um filho à estéril, bendito seja o Altíssimo! Mas
Zacarias, já há sete meses, voltou mudo de Jerusalém! E ele só se faz
entender por acenos, ou escrevendo. Teríeis vós sabido disso? Minha patroa
desejou ter-te aqui, em sua alegria e em sua dor. Ela sempre falava de vós
com Sara, e dizia: “Se eu tivesse a minha pequena Maria aqui comigo! Se
ela tivesse ficado ainda no Templo! Eu teria mandado Zacarias ir buscá-la.
Mas agora o Senhor quis que ela se casasse com José de Nazaré. Só ela é
que poderia me confortar nesta dor e ajudar-me a orar a Deus, pois ela é tão
boa. No Templo todos sentem saudades dela. Na festa passada, quando fui
com Zacarias a Jerusalém, para agradecer a Deus por me ter dado um filho,
ouvi as mestras dela que diziam: ‘O Templo parece estar sem os querubins
da glória, desde que a voz de Maria deixou de ser ouvida por estas
paredes’.” Sara! Sara! Minha mulher é um pouco surda. Mas vem, vem que
eu mesmo te guio.
21.5
Mas, em vez de Sara, quem aponta no alto de uma escada, que está ao
lado da casa, é uma mulher muito velhinha, já toda cheia de rugas, e com os
cabelos bem salpicados de fios brancos, cabelos que um dia devem ter sido
muito pretos, bem como os cílios e as sobrancelhas. Ela deve ter sido
morena, pela cor do seu rosto. Um contraste estranho com a sua evidente
velhice é o seu estado, já muito visível, mesmo estando com vestes amplas e
soltas. Ela olha, fazendo um anteparo com a mão, para amortecer a
claridade. Logo reconhece Maria. Levanta, então os braços para o céu, diz
um “Oh!” cheio de pasmo e de alegria, e se precipita, do melhor modo que
pode, ao encontro de Maria. Também Maria, que é sempre tranqüila em seus
movimentos, corre agora, ágil como um cervo, chega até os pés da escada,
na mesma hora em que Isabel também chega, e recebe a sua prima sobre o
coração, que com viva expansão, chora de alegria ao vê-la.
Ficam abraçadas por um instante, depois Isabel solta um “Ah!”, que é
um misto de dor e de alegria, e leva as mãos sobre o ventre avolumado.
Abaixa o rosto, empalidecendo e ruborizando-se alternadamente. Maria e o
criado estendem as mãos para sustentá-la, porque ela está vacilando, como
quem se sente mal.
Mas Isabel, depois de ter ficado um minuto como que recolhida em si
mesma, levanta um rosto de tal modo radiante, que parece rejuvenescido,
olha para Maria, sorrindo com veneração, como se estivesse vendo um anjo,
e depois se inclina em uma saudação, que vem do fundo do seu ser, dizendo:
– Bendita és tu entre todas as mulheres! Bendito é o Fruto do teu ventre!
(ela fala assim em duas frases bem destacadas). Como foi que eu mereci que
tenha vindo a mim, Sua serva, a mãe do meu Senhor? Pois, ao som da tua voz
o menino saltou em meu ventre, como cheio de alegria, quando eu te abracei,
e o Espírito do Senhor disse ao meu coração verdades altíssimas. Tu és
bem-aventurada, Maria, porque acreditaste que para Deus fosse possível até
o impossível, segundo a nossa mente humana! Tu és bendita porque, por
causa da tua fé, farás cumprir as coisas que foram para ti preditas pelo
Senhor e preditas aos Profetas, para este tempo! Tu és bendita, pela saúde
que geras à estirpe de Jacó! Tu és bendita por teres trazido a santidade ao
meu filho que salta como um cabrito, querendo externar sua alegria. Salta de
puro júbilo em meu ventre, porque está sentindo-se libertado do peso da
culpa, chamado para ser aquele que deve preceder sendo, para isso,
santificado antes da Redenção, pelo Santo que está crescendo em ti!
Maria, com duas lágrimas que descem como pérolas de seus olhos, que
estão rindo com a boca que sorri, com o rosto levantado para o céu e com as
mãos também elevadas, naquela postura que, mais tarde, muitas vezes vai ser
tomada por Jesus, exclama:
– Minha alma canta as grandezas do seu Senhor –e continua o cântico
como nos foi transmitido[44]. No fim, ao versículo: “Veio em socorro de
Israel, seu servo, etc.,” ela junta as mãos sobre o peito, e se ajoelha, muito
inclinada para a terra, adorando a Deus.
21.6
O criado que prudentemente tinha tratado de desaparecer dali, logo
que percebeu que Isabel não estava passando mal, mas que estava
confidenciando o seu pensamento a Maria, volta do pomar com um
imponente ancião vestido de branco, de barba e cabelos completamente
brancos, e que, com grandes gestos, e emitindo sons guturais, saúda de longe
Maria.
– Zacarias vem chegando –diz Isabel, tocando no ombro da virgem, que
está absorta em oração–. O meu Zacarias está mudo. Deus o castigou porque
ele não acreditou. Depois te contarei. Agora eu espero o perdão de Deus,
porque tu vieste a nós. Tu, ó cheia de graça!
Maria se ergue e vai ao encontro de Zacarias, inclinando-se até à terra
diante dele, beijando-lhe a fímbria da veste branca, que o cobre até o chão.
É uma veste muito ampla, presa em seu lugar na cintura por um galão grosso
e bordado.
Zacarias, por meio de gestos, dá as boas vindas a Maria e os dois, em
companhia de Isabel, entram todos em um salão térreo, vasto e bem
arrumado, onde fazem com que Maria se assente, e lhe oferecem uma taça de
leite tirado na hora, ainda espumante, com uns pãezinhos.
Isabel dá ordens à criada, que afinal também apareceu, com as mãos
enfarinhadas e com os cabelos ainda mais brancos, também por causa da
farinha que está por cima deles. Talvez ela estivesse fazendo o pão. Dá
ordens também ao criado, que percebi chamar-se Samuel, para que ele leve
o baú de Maria para um quarto que ela lhe está mostrando. Cumprem-se
todos os deveres de uma dona de casa para com a sua hóspede.
Nesse meio tempo, Maria está respondendo às perguntas que Zacarias
lhe faz, escrevendo sobre uma tabuinha encerada com um estilete. Percebo,
pelas respostas, que ele está perguntando por José, e como vai ela casada
com ele. Nesse ponto eu chego a compreender que a Zacarias foi negada
também toda luz sobrenatural a respeito do estado de Maria e de sua
condição de mãe do Messias. É Isabel que, indo para perto do seu marido, e
pondo-lhe com amor uma mão sobre o ombro, como para uma casta carícia,
lhe diz:
– Maria também é mãe. Alegra-te com a felicidade dela!
Mas não lhe fala nada mais. Olha para Maria. Maria olha para ela, sem
convidá-la a falar nada mais, e ela então se cala.
Doce, dulcíssima visão! Ela desfaz o horror que ficou em mim pela
21.7
22.10
Maria diz:
– A primeira caridade para com o próximo há de ser exercida para com
o próximo. Não penses que isso seja um jogo de palavras. Porque a caridade
se exerce para com Deus e para com o próximo. Na caridade para com o
próximo está compreendida também a que é dirigida a nós mesmos. Mas, se
nos amarmos mais do que aos outros, já não estaremos sendo caridosos, e,
sim egoístas. Mesmo nas coisas lícitas, precisamos ser tão santos, a ponto de
darmos sempre a precedência às necessidades do próximo. Ficai bem
atentos, meus filhos, que Deus compensa os generosos com os meios do seu
poder e da sua bondade.
22.11
Esta certeza me fez ir a Hebron, ajudar minha parenta no estado em
que ela se achava. E, a esta minha intenção de prestar socorro humano, Deus,
acima de toda medida, como Ele costuma fazer, uniu um dom de socorro
sobrenatural, que ninguém esperava. Eu vou para prestar ajuda material, e
Deus santifica a minha reta intenção, fazendo que ela santificasse o fruto do
ventre de Isabel, e, através dessa santificação, com a qual o Batista foi pré-
santificado, Deus suavizou os sofrimentos físicos daquela filha de Eva já
madura, que concebeu em idade não mais apropriada.
Isabel, mulher de fé intrépida e confiante abandono à vontade de Deus,
merece compreender o mistério escondido em mim. O Espírito Santo lhe
fala, através do saltar de seu ventre que ela sente. Assim, o Batista
pronunciou o seu primeiro discurso de anunciador do Verbo, através dos
véus e das paredes formadas pelas veias e pela carne, que o separa de Isabel
e, ao mesmo tempo, o unem à sua santa mãe.
A Isabel eu não nego a minha qualidade de mãe do Senhor, pois ela é
digna de sabê-lo. A Luz se revela a ela. Negar-lhe isso teria sido negar a
Deus um louvor que era justo Lhe dar, o louvor que eu levava em mim e que,
não podendo dizer a ninguém, eu o dizia às ervas, às flores, às estrelas, ao
sol, aos pássaros canoros, às pacientes ovelhas, às águas murmurantes e à
luz de ouro que me vinha beijar, descendo do céu. Mas, rezarmos juntas, é
muito mais doce do que ficarmos dizendo, cada uma sozinha, a sua oração.
Eu teria querido que o mundo todo soubesse da minha sorte, não por mim,
mas para que o mundo se unisse a mim, em dar louvor ao meu Senhor.
Foi a prudência que me impediu de revelar a Zacarias a verdade. Teria
sido isso dar passos além do plano de Deus. Se eu era Sua esposa e mãe,
continuava a ser sempre sua serva, e não devia, porque Ele me tinha amado
sem medida, permitir-me a ousadia de me substituir a Ele, tomando o seu
lugar, por uma decisão minha.
Isabel, em sua santidade, compreende tudo isso, e se cala. Pois quem é
santo é sempre indulgente e humilde.
22.12
É preciso que o dom de Deus nos torne sempre melhores. Quanto mais
recebemos Dele, mais devemos dar. Porque, se recebemos muito, isso é
sinal de que Ele está em nós. Quanto mais Ele estiver em nós, mais devemos
esforçar-nos, para alcançar a perfeição que recebemos Dele.
Este é o motivo porque eu, deixando de lado o meu trabalho, trabalho
para Isabel. Não me deixo tomar pelo medo de não ter tempo. Deus é o
Senhor do tempo. A divina Providência nada deixa faltar a quem espera
Nele, mesmo as coisas mais comuns. O egoísmo não faz nada andar
depressa, mas atrasa. A caridade não atrasa, mas faz andar depressa. Tende
sempre isso presente.
Quanta paz na casa de Isabel! Se eu não tivesse tido sempre o
22.13
Maria diz:
23.9
24.6
Maria diz:
– Deus perdoa a quem reconhece a sua culpa, se arrependendo e se
acusando dela com humildade e coração sincero. E, não somente perdoa,
mas ainda dá uma compensação. Oh! Como o meu Senhor é bom para com
quem é humilde e sincero, com quem Nele crê e confia.
24.7
Desembaraçai o vosso espírito de tudo quanto o entulha e torna
preguiçoso. Tornai-o bem disposto para acolher a Luz; Ela é como um farol
nas trevas, um guia e conforto santo.
Oh, amizade com Deus, felicidade dos seus fiéis, riqueza que nenhuma
outra coisa iguala, quem te possui, nunca mais estará sozinho, nem sentirá o
amargor do desespero. Não eliminas a dor, ó santa amizade, porque esta foi
a sorte do Deus encarnado, e pode também ser a sorte do homem. Mas fazes
com que esta dor fique doce, apesar de amarga, e misturas a ela uma luz e
uma carícia que aliviam o peso da cruz, com um toque celeste.
Quando a Bondade Divina vos der uma graça, usai desse bem recebido
para dar glória a Deus. Não sejais como loucos que, de um objeto bom
fazem uma arma nociva, ou como pródigos que transformam sua riqueza em
miséria.
24.8
Muita dor me causais, ó filhos, pois atrás de vossos rostos, vejo
aparecer o inimigo, que se lança contra o meu Jesus. Muito sofrimento! Eu
queria ser para todos a nascente da graça. Mas muitos entre vós não querem
a graça. Pedis graças, mas, com o espírito que se privou da graça. Como a
graça pode socorrer-vos, se sois inimigos dela?
24.9
O grande mistério de Sexta-Feira Santa se aproxima[48]. Nos templos
tudo faz lembrar e celebra isto. Mas, é preciso recordá-lo e celebrá-lo nos
vossos corações, e bater no peito, como aqueles que desciam do gólgota,
dizendo: “Este é realmente o Filho de Deus, o Salvador” ou “Jesus, pelo teu
Nome, salva-nos” ou “Ó Pai, perdoa-nos.” E dizer finalmente: “Senhor, eu
não sou digno. Mas, se Tu me perdoas, vens a mim e minha alma ficará
curada.Eu não quero mais pecar, para não ficar doente e com ódio de Ti.”
Rezai, meus filhos, com as palavras do meu Filho. Rezai assim ao Pai
pelos vossos inimigos: “Pai, perdoa-lhes.” Chamai o Pai, que se retirou,
desprezado pelos vossos erros: “Pai, por que me abandonaste? Eu sou
pecador. Mas, se Tu me abandonas, perecerei. Volta, Pai Santo, para que eu
me salve.” Confia no Único que pode conservar o vosso espírito, vosso
eterno bem, ileso do demônio: “Pai, em vossas mãos entrego o meu
espírito.” Oh! Se entregais o vosso espírito a Deus humilde e amorosamente,
Ele vo-lo conduzirá como um pai conduz o seu filho pequenino, e não
permitirá que nada vos faça mal.
Jesus, em suas agonias, rezou para ensinar-vos a rezar. Eu vos faço
lembrar isso nestes dias da Paixão.
24.10
E tu, Maria, tu que estás vendo a minha alegria de mãe, e te extasias
com ela, lembra-te que eu possuí Deus, através de uma dor sempre
crescente. Esta dor desceu sobre mim com o embrião de Deus e, como uma
árvore gigantesca, cresceu até tocar o céu com o vértice, e o inferno com as
raízes, ao receber os despojos exânimes da carne da minha carne em meu
regaço, podendo eu ver nela e contar as feridas, tocando em Seu coração
rasgado, por consumar a dor até a última gota.
[47] até o fim, do cântico, referido em: Lucas 1,67-79.
[48] se aproxima, p ois que, como anota M aria Valtorta numa cóp ia dactilografada, Maria Ss ditava essas palavras na Quarta
Feira Santa.
25. Apresentação de João Batista no Templo
e partida de Maria. O Sofrimento de José.
5-6 de abril de 1944.
25.1
Na noite entre quarta e quinta-feira da Semana Santa, eis o que estou
vendo.
De um carro cômodo ao qual está amarrado também o burrinho de
Maria, vejo descer Zacarias, Isabel e Maria, que tem nos braços o pequeno
João, e Samuel com um cordeiro e uma pomba numa cesta. Eles descem na
frente da estalagem, da qual costumam servir-se, e que deve ser a etapa final
para todos os peregrinos que vão ao Templo, pois é onde deixam os animais.
Maria chama o homenzinho, que é o dono da estalagem, e lhe pergunta se
no dia de ontem, ou nas primeiras horas da manhã de hoje, não terá chegado
nenhum nazareno.
– Nenhum, mulher –respondeu o velhinho.
Maria fica admirada, mas não pergunta mais nada.
Ela manda que Samuel vá cuidar do burrinho, depois vai se encontrar
com os dois pais da criança, e lhes fala do atraso de José:
– Ele terá precisado ocupar-se com alguma coisa. Mas hoje certamente
virá.
Maria retoma o menino, que havia entregue a Isabel, e se dirigem para o
Templo.
25.2
Zacarias é recebido com grandes honras pelos guardas, saudado e
cumprimentado pelos outros sacerdotes. Zacarias está muito bonito hoje, em
suas vestes sacerdotais e em sua alegria de pai feliz. Parece um patriarca.
Penso que Abraão devia estar assim, quando se alegrou, ao oferecer Isaque
ao Senhor.
Vejo a cerimônia da apresentação do novo israelita e a da purificação da
mãe. Esta é ainda mais pomposa do que a de Maria, porque para o filho de
um sacerdote, os sacerdotes fazem festa. Acorrem todos, e se entregam a uma
grande atividade ao redor do grupo das mulheres e do recém-nascido.
Também o povo se aproximou com curiosidade, e estou podendo ouvir
os comentários. Visto que Maria está com o menino nos braços, enquanto
vão-se dirigindo para o lugar estabelecido, o povo está pensando ser ela a
mãe.
Mas uma mulher diz:
– Não pode ser. Não estais vendo que ela está grávida? O menino tem
apenas poucos dias de nascido, e ela já está grávida?!
– Contudo –diz um outro–. Ela não pode deixar de ser a mãe. Pois a
outra já está velha. A outra, pode ser uma parenta. Mas, naquela idade, mãe
é que ela não pode ser.
– Vamos atrás delas, e veremos quem tem razão.
E o espanto se torna geral, quando todos podem ver que quem está
cumprindo o rito da purificação é Isabel, pois ela é que está oferecendo o
cordeirinho berrador para o holocausto, e o pombo pelo pecado.
– A mãe é aquela? Viste?
– Não!
– Sim.
O povo está cochichando, ainda incrédulo. Mas está cochichando tão
alto, que vem um “Psiu” imperioso do grupo sacerdotal, que está presente à
cerimônia. As pessoas se calam por um momento, mas recomeçam a
cochichar mais forte, quando Isabel, radiante de santo orgulho, pega o
menino, e avança pelo Templo a dentro, para fazer a apresentação dele ao
Senhor.
– É ela mesmo.
– É sempre a mãe que oferece.
– Mas, que milagre é este?
– Que menino será esse, concedido por Deus àquela mulher, numa idade
tão tardia?
– Afinal, que sinal será este?
– Não sabeis? –diz alguém que chega todo ofegante–. É o filho do
sacerdote Zacarias, da estirpe de Arão, aquele que ficou mudo, enquanto
estava oferecendo o incenso no Santuário.
– Mistério! Mistério! Pois agora ele está falando de novo. O nascimento
do filho soltou a língua dele!
– Que espírito lhe terá falado, tornado morta a sua língua, para fazê-lo
acostumar-se ao silêncio sobre os segredos de Deus?
– Mistério! Qual verdade conhecerá Zacarias?
– Seria o Messias o filho dele, esperado por Israel?
– Ele nasceu na Judéia. Mas não em Belém, e não de uma virgem. O
Messias ele não pode ser.
– Quem, então?
Mas a resposta a tantas perguntas continua a ficar no silêncio de Deus,
enquanto o povo permanece na sua curiosidade.
O cerimonial terminou. Os sacerdotes festejam então a mãe e o menino.
A única pouco observada, e até evitada com aversão[49], desde quando
perceberam o seu estado, é Maria.
25.3
Acabadas todas as felicitações, quase todos vão voltando ao seu
caminho, ao passo que Maria quer voltar à estalagem, para ver se José
chegou. Ele não chegou ainda. Maria se sente desiludida, e fica pensativa.
Isabel está preocupada por ela:
– Até a hora sexta, poderemos ficar, mas depois precisamos partir, para
chegarmos em casa antes da primeira vigília. O menino está ainda muito
pequeno para estar fora de casa pela noite a dentro.
E Maria, calma e triste:
– Eu vou ficar num dos pátios do Templo. Vou procurar minhas
mestras… Não sei. Mas alguma coisa preciso fazer.
Zacarias intervém com uma idéia, que foi logo aceita:
– Vamos aos parentes de Zebedeu. José certamente vai te procurar lá, e,
ainda que ele não esteja, será fácil para ti encontrar alguém que te
acompanhe a caminho da Galiléia, porque aquela casa é um contínuo entra e
sai dos pescadores de Genezaré.
Pegam, pois o burrinho, e vão à casa dos parentes de Zebedeu, os quais,
são aqueles mesmos com quem José e Maria ficaram, há quatro meses.
As horas passam velozes, e José não aparece. Maria procura dominar
sua aflição ninando o pequeno, mas pode-se ver que continua pensativa.
Como que para esconder o seu estado, ela não tirou o manto, ainda que o
calor esteja intenso e fazendo suar a todos.
25.4
Finalmente, uma grande batida na porta anuncia a chegada de José. O
rosto de Maria se torna sereno de novo.
José a saúda, pois ela é a primeira a apresentar-se e a saudá-lo com
reverência:
– A bênção de Deus sobre ti, Maria!
– E sobre ti, José. Graças a Deus, que vieste! Eis Zacarias e Isabel que
estavam para partir, pois queriam chegar em casa antes da noite.
– O teu mensageiro chegou a Nazaré, enquanto eu estava em Caná,
fazendo uns trabalhos. Anteontem à tarde, é que recebi a notícia. E, então, eu
parti logo. Mas, mesmo caminhando sem parar, cheguei tarde, porque no
caminho o burrinho perdeu uma ferradura. Perdoa-me.
– Perdoa-me, tu, por ter ficado tanto tempo afastada de Nazaré. Mas,
estavam tão felizes de ter-me com eles, que eu quis contentá-los até agora.
– Fizeste bem, mulher. Onde está o menino?
Entram no quarto onde Isabel está dando de mamar a João, antes de
partirem. José cumprimenta os pais pela robustez do menino que, tendo sido
tirado do peito para ser mostrado a José, grita e esperneia, como se lhe
estivessem tirando a pele. Todos riem, diante dos seus protestos. Também os
parentes de Zebedeu, riem e se unem na conversação com os outros,pois eles
tinham chegado trazendo frutas frescas, leite e pão para todos e um grande
tabuleiro com peixes.
25.5
Maria fala muito pouco. Está quieta, silenciosa, sentada em seu
cantinho com as mãos no colo e por debaixo do manto. E, mesmo quando ela
toma uma taça de leite, ou ao comer um cacho de uvas com um pouco de pão,
fala pouco e pouco se move. Olha para José, com um misto de pena e de
curiosidade.
Ele também olha para ela. E, depois de algum tempo, inclinando-se
sobre o ombro dela, lhe pergunta:
– Estás cansada ou sentindo alguma coisa? Estás pálida e triste.
– Estou triste por ter que separar-me do pequeno João. Gosto dele. Eu o
tive sobre o meu coração, poucos momentos depois que nasceu…
José não pergunta mais nada.
Chegou a hora da partida de Zacarias. O carro pára à porta, e todos se
dirigem para ele. As duas primas se abraçam com amor. Maria beija duas
vezes o pequeno, antes de colocá-lo no colo da mãe, que já está sentada no
carro. Depois, saúda Zacarias, e lhe pede a bênção. Ao ajoelhar-se diante do
sacerdote, o manto se lhe desliza pelo ombro, e suas formas se tornam
visíveis, à luz intensa daquela tarde de verão. Não sei se José notou alguma
coisa naquele momento, atento como ele está em saudar Isabel. O carro
parte.
25.6
José torna a entrar em casa com Maria, que vai de novo sentar-se no
canto mais escuro.
– Se não te desagrada viajar de noite, eu proporia que partíssemos ao
pôr-do-sol. De dia o calor está forte. Mas a noite está fresca e sossegada. Eu
digo isto por ti, para não fazer-te tomar muito sol. Para mim estar exposto ao
sol é o mesmo que nada. Mas para ti…
– Como quiseres, José. Eu também acho que é bom irmos de noite.
– A casa está em pefeita ordem. E também o pequeno pomar. Verás que
belas estão as flores. Vais chegar a tempo de vê-las todas se abrindo. A
macieira, a figueira e a videira estão carregadas de frutos como nunca, e a
romãzeira, precisei até escorá-la, de tanto que os ramos estavam carregados
de frutos, já tão maduros, coisa que nunca se viu a esta altura do ano.
Depois, a oliveira… Terás azeite com fartura. Houve uma florada milagrosa,
e não se perdeu uma só flor. Todas já se tornaram pequenas azeitonas.
Quando estiverem maduras, a oliveira vai ficar parecendo cheia de pérolas
escuras. Não há pomar mais bonito do que o teu em toda Nazaré. Até nossos
parentes estão admirados. Alfeu diz que isso é um prodígio.
– Teus cuidados é que fizeram isso.
– Oh! Não. Pobre de mim. Que é que devo ter feito? Um pouco de
cuidado com as plantas, e um pouco de água nas flores… Sabes de uma
coisa? Fiz para ti uma fonte lá no fundo, perto da gruta, e construí um tanque.
Assim, não precisarás sair para ir buscar água. Conduzi a água lá daquela
nascente que está acima do olival do Matias. É uma nascente de água pura e
abundante. Eu trouxe até perto de ti um pequeno rio. Fiz também um reguinho
bem coberto, e agora a água chega no fim dele, cantando como uma harpa. Eu
ficava com dó de ti, ao ver-te ir à fonte da cidade e voltar carregando baldes
cheios d’água.
– Obrigada, José. Tu és bom.
Os dois esposos se calam agora, como se estivessem cansados. José está
cochilando. Maria está rezando.
25.7
Chega a tarde. Os hospedeiros insistem com os dois para que comam,
antes de se porem a caminho. José, então, come pão e peixe. Maria, só frutas
e leite.
Depois, eles partem. Montam em seu burrinhos. José amarrou sobre o
seu, como na vinda, o baú de Maria, e, antes que ela monte no burrinho,
verifica se a sela está bem segura. Vejo que José fica observando Maria,
quando ela monta. Mas ele não diz nada.
E a viagem se inicia, quando as primeiras estrelas começam a tremeluzir
no céu. Eles se apressam para chegarem às portas, antes que sejam fechadas.
Ao saírem de Jerusalém, tomam a estrada mestra, que vai para a Galiléia,
quando as estrelas já enchem todo o céu sereno. Há um grande silêncio pelo
campo. Ouve-se apenas o canto de algum rouxinol e o barulho dos cascos
dos dois burrinhos, que vão batendo no solo duro da estrada, ressecada pelo
calor do verão.
25.8
Maria diz:
– Estamos na vigília de Quinta-Feira Santa. A alguns parecerá fora de
propósito esta visão. Mas a tua dor de amante do meu Jesus Crucificado está
em teu coração, e aí fica, mesmo quando uma doce visão se apresenta. Esta é
como o pequeno calor que nasce de uma chama, que ainda é fogo, mas que já
não é mais fogo. O fogo é a chama. Mas não é o calor dela, pois este não é
mais do que uma derivação. Nenhuma visão beatífica ou pacífica será capaz
de tirar-te aquela dor do coração. E considera-a muito mais querida do que a
tua própria vida. Porque é o maior dos dons que Deus possa conceder a
quem crê em seu Filho. Além disso, a minha visão não é, em sua forma
pacífica, em nada discordante dos acontecimentos desta semana.
25.9
Também o meu José teve a sua Paixão. Ela começou em Jerusalém,
quando ele percebeu o meu estado. Durou muitos dias, como aconteceu com
Jesus e comigo. E não foi espiritualmente pouco dolorosa. Mas unicamente
pela santidade de um justo, como era o meu esposo, é que ela ficou limitada
a uma forma tão cheia de dignidade e de segredo, que ficou pouco
conhecida, através dos séculos.
Oh! a nossa primeira paixão! Quem poderá falar da íntima e silenciosa
intensidade dela? Quem saberá dizer qual a minha dor, ao ver que o céu
ainda não me havia atendido em revelar o mistério a José?
Que ele ainda nada sabia, eu já tinha compreendido, ao vê-lo respeitoso
comigo, como de costume. Se ele tivesse sabido que eu trazia em mim o
Verbo de Deus, ele teria adorado o Verbo encerrado em meu ventre, com os
atos de veneração que são devidos a Deus, e que ele não teria deixado de
praticar, como eu também não me teria recusado a receber, não por causa de
mim, mas por Aquele que estava em mim, que eu em mim trazia, assim como
a Arca da aliança continha o código escrito na pedra e os vasos de maná.
Quem pode dizer qual foi a minha luta contra o desânimo, que queria me
vencer, para me persuadir de que eu havia esperado em vão no Senhor? Oh!
Eu creio, que isso vinha da raiva de satanás! Eu senti a dúvida que crescia
em meus ombros, e que espichava suas garras geladas para aprisionar minha
alma e fazê-la deixar de orar. A dúvida, que é tão perigosa e letal para o
espírito. Letal, porque ela é o primeiro agente da doença mortal chamada
“desespero”, e contra a qual é preciso reagir com toda a força para não
perecer na alma e perder Deus.
Quem pode dizer com toda a verdade qual a dor de José, quais os seus
pensamentos, qual a perturbação que ele sentiu em seus afetos? Como um
pequeno barco apanhado por uma grande tempestade, ele se achava num
encontro entre idéias opostas, como em uma dança ao redor de reflexões,
cada uma mais pungente e mais capaz de fazer sofrer do que a outra. Ele era
um homem que, pelas aparências, só podia ter sido traído por sua mulher.
Por isso, ele via desmoronar, ao mesmo tempo, o seu bom nome e a estima
em que ele era tido naquele lugar. Por causa disso, ele se sentia apontado a
dedo e alvo de compaixão pelos habitantes da cidade, via morrerem o afeto
e a estima de que até então eu vinha gozando, diante da evidência de um fato.
25.10
É aqui que a santidade dele resplende ainda mais brilhante do que a
minha. Eu dou testemunho disso com todo o meu afeto de esposa, porque
quero que ameis o meu José, este homem sábio e prudente, este homem
paciente e bom, que não está separado do mistério da Redenção, mas muito
unido a ele, pois, por essa dor que o consumou, ele salvou para vós o
Salvador, às custas de seu sacrifício e de sua santidade.
Tivesse ele sido menos santo, teria agido como os homens: me teria
denunciado como adúltera, para que eu fosse apedrejada, e o filho do meu
pecado morresse comigo. Tivesse ele sido menos santo, Deus não lhe teria
concedido a sua luz em tão grande provação. Mas José era santo. Seu
espírito puro vivia em Deus. A caridade nele era acesa e forte. Foi pela
caridade que ele salvou para vós o Salvador, tanto quanto ele não quis me
acusar diante dos anciãos, como também quando, deixando tudo, com uma
pronta obediência, salvou Jesus, levando-o consigo para o Egito.
25.11
Breves em número, mas grandes em intensidade, foram aqueles três
dias do sofrimento de José. E deste meu primeiro sofrimento. Porque eu
compreendia o sofrimento dele, mas não podia aliviá-lo de modo algum, por
causa da obediência ao decreto de Deus, que me havia dito: “Cala-te!”
Quando, tendo chegado a Nazaré, eu o vi sair, depois de uma curta
saudação, todo curvo e como se tivesse envelhecido em pouco tempo, e não
voltar mais a mim, como era de costume, vos digo, filhos, que o meu coração
chorou com uma dor grande e aguda. Fechada em minha casa, só, naquela
casa em que tudo me fazia recordar a Anunciação e a Encarnação, e onde
tudo me falava de José, desposado por mim em uma virgindade imaculada,
eu tive que resistir ao desconforto, às insinuações de satanás, e ficar
esperando. Orando, perdoar a suspeita de José, e ao seu gesto de justo
desdém para comigo.
Filhos, é preciso esperar, rezar, perdoar, para se obter que Deus
intervenha em nosso favor. Vivei, vós também, o vosso sofrimento. Ele é
devido às vossas culpas. Eu vos ensino como superá-lo e transformá-lo em
alegria. Esperar, além de toda medida. Rezar sem desconfiança, perdoar,
para serdes perdoados. O perdão de Deus será a paz que desejais, meus
filhos.
25.12
Nada mais, por enquanto, vos direi. Enquanto não chega o triunfo
pascoal, haverá silêncio. São estes os dias da Paixão. Tende compaixão do
vosso Redentor. Ouvi seus lamentos. Contai suas feridas e lágrimas. Cada
uma delas veio por causa de vós, e foi por vós sofrida. Que qualquer outra
visão desapareça, diante desta que vos recorda a Redenção, cumprida por
vós.
[49] com aversão, enquanto a mulher grávida era imunda segundo a lei, que p rescrevia a p urificação p ara a p arturiente e a
circuncisão p ara o filho macho: Génesis 17,9-14; Levítico 12. O p rimogénito macho era consagrado ao Senhor e dep ois
resgatado, como p rescrito em: Êxodo 13,1-2.11/16; 34,19-20; Números 3,13; 18,15-16. Para a mulher são contemp ladas outras
imp urezas em: Levítico 15,18-30, ao qual se referirá, p or exemp lo, em 230.3 e 262.8. Além dos casos esp ecíficos p revistos na
lei (sobretudo em matéria de matrimónio e de divórcio) a mulher geralmente sup ortava certos tratamentos discriminatórios p or
tradição rabínica, como se realça, em nota, em 316.5.
26. José pede perdão a Maria.
Fé, caridade e humildade para receber a Deus.
31 de maio de 1944.
26.1
Depois de cinqüenta e três dias, a mãe vem mostrar-se com esta visão,
e manda que eu faça constar neste livro. A alegria se renova em mim. Porque
ver Maria é possuir a alegria.
26.2
Vejo, então, o pequeno pomar de Nazaré. Maria está fiando à sombra
de uma macieira, toda carregada de frutos, que já começam a avermelhar-se
e se parecem com bochechinhas de menino por seu formato arredondado e
por um belo cor-de-rosa.
Maria, porém, não é sem motivo que não está com seu rosto rosado,
como antes. Aquela bela cor, que lhe avivava as faces lá em Hebron,
desapareceu. Seu rosto está de uma palidez de marfim, e nele somente os
lábios ainda assinalam uma curva com um leve tom de coral. Sob as
pálpebras abaixadas, vejo duas sombras escuras, e os cantos dos olhos estão
inchados, como os de quem acabou de chorar. Não posso ver os olhos,
porque ela está com a cabeça um tanto inclinada, atenta ao trabalho, e mais
ainda, a um pensamento que a deve estar afligindo, pois ouço os seus
suspiros, como os de alguém que sofre no coração.
Está toda vestida de branco, de linho branco, porque está fazendo muito
calor, não obstante o frescor ainda intacto das flores nos estar dizendo que
ainda é de manhã. Maria está com a cabeça descoberta, e o sol, que brinca
com as folhas da macieira movidas por um vento muito suave, se filtra em
agulhas de luz, que vão pousar sobre a terra escura dos canteiros, formando
pequenos círculos de luz sobre sua cabeça loira, fazendo os seus cabelos
ficarem parecendo fios de ouro antigo.
Da casa não vem nenhum barulho, nem dos lugares vizinhos. Ouve-se
apenas o murmúrio de um fio d’água que cai dentro de um tanque, lá no
fundo do pomar.
26.3
Maria leva um susto, ao ouvir uma batida forte na porta de saída da
casa. Ela deixa ali mesmo a roca e o fuso, e se levanta para ir abrir. Ainda
que sua roupa seja solta e ampla, não consegue esconder completamente a
redondez de seu ventre.
Ei-la, agora, diante de José. Maria empalidece, até nos lábios. Agora
seu rosto está parecendo o de uma vítima exangue. Maria olha com uns olhos
como os de quem interroga tristemente. José olha para ela com uns olhos que
parecem suplicantes. Eles se calam, olhando um para o outro. Depois, Maria
abre a boca:
– A esta hora, José? Estás precisando de alguma coisa? Que me queres
dizer? Vem.
José entra, e fecha a porta. Mas não fala nada.
– Fala, José. Que queres de mim?
– Quero o teu perdão.
José se inclina, como se quisesse ajoelhar-se. Mas Maria, sempre tão
reservada em tocar nele, agora o agarra pelos ombros decididamente, e o
impede de ajoelhar-se.
A cor vai e volta ao rosto de Maria, que ora está corada, ora branca
como antes:
– O meu perdão? Não tenho nada que te perdoar, José. Só tenho que te
agradecer, mais uma vez, por tudo o que fizeste aqui dentro na minha
ausência, e pelo amor que me tens.
José olha para ela, e vejo duas grandes gotas que se formam nas
cavidades de seus olhos profundos, e ali estão como sobre a borda de um
vaso prontas para, logo em seguida, rolarem por sobre as faces e a barba de
José.
– Perdão, Maria. Eu desconfiei de ti. Agora eu sei. Sou indigno de
possuir tão grande tesouro. Faltei-te com a caridade, e te acusei em meu
coração. Acusei-te injustamente, porque não te perguntei antes a verdade.
Faltei contra a lei de Deus, não te amando como me amaria…
– Oh! não! Não faltaste!
– Sim, faltei, Maria! Se eu tivesse sido acusado de um tal delito, eu teria
me defendido. Tu… Eu não te estava concedendo o direito de te defenderes,
porque eu já estava até tomando decisões, sem te perguntar nada. Faltei para
contigo, ofendendo-te com minha suspeita. Ora, até mesmo a suspeita já é
uma ofensa, Maria. Porque quem suspeita, não conhece. E eu não te
conhecia, como devia. Mas, pela dor que eu sofri… três dias de suplício,
perdoa-me, Maria!
– Não tenho nada que te perdoar. Pelo contrário, eu é que te peço perdão
pela dor que te causei.
– Oh! Sim. Foi uma grande dor. Que dor! Olha, hoje de manhã me
disseram que sobre as têmporas meus cabelos já estão brancos e que no
rosto já estou com rugas. Estes três dias pareceram-me mais de dez anos!
Mas, por que, Maria, foste tão humilde, a ponto de calares tua glória até
26.4
26.6
Maria diz:
– Ninguém interprete de modo errado a minha palidez. Ela não era
causada por nenhum medo humano. Conforme o modo de tratar dos homens,
eu deveria ter de esperar o apedrejamento. Mas eu não tinha medo disso. Eu
sofria por causa de José. Também o pensamento de que ele podia me acusar,
não me perturbava por mim mesma. A única coisa que me desagradava era
que ele pudesse, se insistisse na acusação, faltar com a caridade. Quando o
vi, o sangue me foi todo ao coração, por causa disso. Era aquele um
momento em que um justo poderia ter ofendido a justiça, ofendendo a
caridade. E, que um justo cometesse uma falta, logo este que não cometia
faltas, isso me teria causado uma dor muito grande.
26.7
Se eu não tivesse sido humilde até o extremo limite, como eu disse a
José, não teria merecido trazer em mim Aquele que, para cancelar a soberba
da raça, sendo Deus, Se aniquilava até à humilhação de fazer-se homem.
26.8
Eu te mostrei esta cena, que nenhum Evangelho relata, porque eu quero
de novo chamar a atenção tão desviada dos homens sobre as condições
essenciais para agradar a Deus e recebê-lo em sua contínua vinda aos
corações.
Fé. José acreditou cegamente nas palavras do mensageiro celeste[50].
Ele não desejava outra coisa, senão crer, porque tinha a convicção sincera
de que Deus é bom e de que a ele, que havia esperado no Senhor, o Senhor
não lhe teria reservado a dor de ser um traído, um decepcionado, alguém que
fosse feito objeto de zombaria pelo próximo. Com grande dor ele não
perguntava em que devia crer a meu respeito, porque, honesto como era, não
era capaz nem de pensar que outras pessoas não fossem assim. Ele vivia a
Lei, e a Lei diz: “Ama a teu próximo como a ti mesmo.” Nós amamos a nós
mesmos tanto, que nos cremos perfeitos, até quando não o somos. Por que,
então, desamar o próximo, julgando-o imperfeito?
Caridade absoluta. Caridade que sabe perdoar, que quer perdoar.
Perdoar com antecipação, desculpando em nosso coração as fraquezas do
próximo. Perdoar na hora, dando ao culpado todas as atenuantes.
Humildade absoluta como a caridade. Saber reconhecer que se faltou,
até mesmo com um simples pensamento, e não se ter o orgulho, mais nocivo
ainda, de não querer dizer: “Eu errei”, a respeito da culpa precedente. Todos
erram, menos Deus. Quem é que pode dizer: “Eu não erro nunca”? E há
ainda uma humildade mais difícil: é a que sabe se calar a respeito das
maravilhas de Deus em nós, quando não é necessário proclamá-las, para
dar-lhe louvores por elas, a fim de não aviltar o nosso próximo, que não
recebeu tais dons especiais de Deus. Quando Deus quer, então sim. Então
Ele se revela a Si mesmo em seu servo. Isabel me “viu” como eu era e meu
esposo me conheceu pelo que eu era, quando chegou a hora de ele conhecer
isso por si mesmo.
26.9
Deixai ao Senhor o cuidado de proclamar-vos servos Seus. Ele tem
uma amorosa pressa disso, porque toda criatura que é elevada a alguma
missão particular é uma nova glória acrescentada à sua infinita, porque é um
testemunho de quanto o homem é assim como Deus o queria: uma perfeição
menor que espelha o seu Autor. Permanecei na sombra e no silêncio, ó
prediletos da graça, para poderdes ouvir as únicas palavras que são de
“vida”, e para poderdes merecer o Sol que resplende eternamente sobre vós
e em vós.
Oh! Luz felicíssima, que és Deus, que és a alegria dos teus servos, brilha
sobre estes teus servos, e que então eles exultem em sua humildade,
louvando-Te e a Ti somente, que arruínas os soberbos, e elevas os humildes,
que te amam, até os esplendores do teu Reino.
[50] palavras do mensageiro celeste, que se lêm em: Mateus 1,20-21.
27. O edito do censo. Ensinamento
sobre o amor ao esposo e sobre a confiança em
Deus.
4 de junho de 1944.
27.1
Vejo ainda a casa de Nazaré e o pequeno quarto onde habitualmente
Maria toma as suas refeições. Agora ela está trabalhando em uma tela
branca. Pára seu trabalho para acender um candeeiro, porque a tarde vem
chegando, e ela não está mais enxergando bem, com essa luz esverdeada que
está entrando pela porta semi-aberta, do lado do pomar. Maria também fecha
a porta.
Vejo como já está volumosa de corpo. Mas ainda muito bonita. Seu
passo é sempre ligeiro, e gentis são todos os seus gestos. Não há nada
daquele peso próprio da mulher, que está perto de dar à luz. Só no rosto é
que ela está mudada. Agora é “a mulher.” Antes, no tempo da Anunciação,
era uma jovenzinha de rosto sereno e inocente: um rosto inocente de criança.
Depois, na casa de Isabel, no momento do nascimento do Batista, seu rosto
já se apresentava com uma graça mais madura. Agora é um rosto sereno, mas
docemente majestoso, da mulher que atingiu sua plena perfeição na
maternidade.
Não faz lembrar mais a sua querida “Annunziata” de Florença, pai.
Quando eu era pequena, a reconhecia ali.
Agora, o rosto está mais longo e magro, e os olhos mais pensativos e
maiores. Em suma, é como Maria hoje no Céu. Porque ela retomou o aspecto
e a idade do momento em que nasceu o Salvador.
A sua eterna juventude, a qual não só não conheceu a corrupção mortal,
mas nem mesmo murchou com o passar dos anos. O tempo não teve ação
sobre ela, a nossa rainha e mãe do Senhor, que criou o tempo. Nos tormentos
da Paixão (tormentos que começaram para ela muito antes, pois eu diria que
começaram desde o início da evangelização de Jesus) ela apareceu
envelhecida, mas esse envelhecimento era como um véu colocado pela dor
sobre a sua incorruptível pessoa. De fato, desde o momento em que
reencontra Jesus ressuscitado, ela se torna novamente a criatura cheia de
vida e perfeita, que era antes da Paixão, como se tendo beijado as
Santíssimas Chagas, tivesse bebido nelas um elixir de juventude, que anulou
a ação do tempo e, mais ainda do que isto, anulou a ação da dor. Também há
oito dias que eu vi a descida do Espírito Santo, no dia de Pentecostes, vi
Maria “extraordinariamente bela, e de repente rejuvenecida”, como escrevi,
e como tinha escrito antes: “Ela parece um anjo azul.” Os anjos não
conhecem velhice. São eternamente belos com eterna juventude, do eterno
presente que é Deus e que eles refletem em si.
A juventude angélica de Maria, o anjo azul, se completa e atinge a idade
perfeita (idade que ela levou consigo para os céus, e que conservará para
sempre em seu santo corpo glorificado, quando o Espírito adorna a sua
esposa, coroando-a diante dos olhos de todos) Agora ela não está mais no
segredo de um quarto desconhecido pelo mundo, sendo testemunhada apenas
por um arcanjo.
Quis fazer esta digressão, porque me pareceu necessária. Agora volto à
descrição.
Maria, pois, tornou-se verdadeiramente “mulher”, cheia de dignidade e
de graça. Até seu sorriso é diferente, por sua doçura e majestade. Como é
bela!
27.2
José vem entrando. Parece que está vindo da cidade, porque está
entrando pela porta da casa, e não da oficina. Maria levanta a cabeça e sorri
para ele. José retribui ao sorriso dela. Mas parece que ele faz isso como
quem está cansado, preocupado. Maria observa isso. Depois, ela se levanta
para pegar o manto, que José está tirando, o dobra e o coloca sobre um baú.
José se assenta junto à mesa. Apóia um cotovelo sobre a mesa e a
cabeça sobre a palma da mão, enquanto com a outra mão, alisa a barba,
muito pensativo.
– Tens algum pensamento que te atormenta? –pergunta-lhe Maria–.
Posso te consolar?
– Tu me consolas sempre, Maria. Mas desta vez o meu grande
pensamento és… tu.
– Eu, José? O que é?
– Colocaram um edito sobre a porta da sinagoga. Está ordenado o
recenseamento de todos os palestinos. E é preciso que cada um vá
recensear-se em seu lugar de origem. Nós temos que ir a Belém…
27.3
– Oh! –interrompe Maria, pondo uma mão sobre o ventre.
– Isso te assusta, não é?
– Não, José. Não é isso. Penso nas Sagradas Escrituras[51]: Raquel, mãe
de Benjamim e mulher de Jacó, da qual nascerá a Estrela: o Salvador.
Raquel está sepultada em Belém, da qual está escrito: “E tu, Belém Efrata,
és a menor entre as terras de Judá, mas de ti sairá o Dominador.” É o
Dominador que foi prometido, da estirpe de Davi. Ele vai nascer lá…
– Achas… achas que já chegou o tempo? E, então, como faremos?
José está completamente perturbado. Ele olha para Maria com dois
olhos cheios de piedade.
Ela percebe isso, e sorri. Sorri, mais para si mesma, do que para ele. É
um sorriso que parece dizer: “É um homem justo, sim, mas um homem. E vê
as coisas como homem. Pensa como homem. Tem compaixão dele, minha
alma, e guia-o para que possa ver como homem espiritual.” Mas a bondade
de Maria a leva a tranqüilizá-lo. Não mente, porém afasta a sua
preocupação:
– Não sei, José. O tempo está muito perto. Mas não poderia o Senhor
fazê-lo chegar mais devagar, para te livrar dessa preocupação? Ele pode
tudo. Não tenhas medo.
– Mas, e a viagem? Depois, pensa só na multidão que se vai
aglomerar… Encontraremos bom alojamento? E poderemos fazer tudo, a
tempo de voltar? E se… se tivesses de dar à luz por lá, como é que
faríamos? Nós não temos casa em Belém… Não conhecemos ninguém lá…
– Não tenhas medo. Tudo irá sair bem. Deus faz que os animais
encontrem uma toca para darem cria. Queres que Ele não faça que achemos
um lugar para o nascimento do seu Messias? Nós confiamos Nele. Não é
verdade? Sempre confiamos Nele. Quanto mais forte é a provação, mais
confiamos. Como duas crianças, colocamos nossas mãos na Sua de Pai. Ele
nos guia. Estamos completamente entregues a Ele. Olha como nos conduziu
até aqui com amor. Um pai, por melhor que seja, não poderia tê-lo feito com
maior cuidado. Somos seus filhos e seus servos. Façamos a Sua vontade.
Nada de mal nos pode acontecer. Até mesmo esse edito é da vontade Dele.
Pois, afinal, quem é César? Apenas um instrumento de Deus. Desde quando o
Pai decidiu perdoar ao homem, Ele dispôs os fatos com antecedência, para
que o seu Cristo nascesse em Belém. Esta, a menor das cidades de Judá,
ainda não existia, e já a sua glória estava planejada. A fim de que essa glória
se realize, e a palavra de Deus não seja desmentida, com o nascimento do
Messias noutro lugar, bem longe daqui surgiu um poderoso, que nos
dominou, e que agora, que o mundo está em paz, quer saber quantos são os
seus súditos. Oh! O que é toda esta nossa pequena fadiga, se pensarmos na
beleza deste momento de paz? Pensa, José. Um tempo em que não há ódio no
mundo! Mas que pode ser ainda mais feliz, ao surgir a “Estrela”, cuja luz é
divina, e cujo influxo é redenção? Oh! Não tenhas medo, José. Se as estradas
são inseguras e a multidão de gente torna difícil a nossa passagem, os anjos
nos defenderão, e abrirão caminho para nós. Não propriamente para nós,
mas para o Rei deles. Se não encontramos abrigo, eles nos farão uma tenda
com suas asas. Nada nos acontecerá de mal. Não pode acontecer: Deus está
conosco.
27.4
José olha para ela, e a ouve extasiado. As rugas de sua fronte parecem
diminuir, e seu sorriso volta. Ele se levanta, já sem cansaço e sem desânimo.
Sorri.
– Bendita és tu, ó sol do meu espírito! Bendita és tu, que sabes ver tudo
através da graça, da qual estás cheia! Então, não percamos tempo. Pois é
preciso partir quanto antes e… voltar sem demora, porque aqui já está tudo
pronto para o… para o…
– Para o nosso Filho, José. Isso é o que deve ser aos olhos do mundo,
lembra-te bem disso! O Pai encobriu com mistério esta sua vinda, e nós não
devemos levantar o véu do mistério. Jesus fará isso, quando chegar a hora…
A beleza do rosto, do olhar, da expressão e da voz de Maria, quando
pronuncia o nome de “Jesus”, é indescritível. É em êxtase. E, com este
êxtase, cessa a visão.
Maria diz:
27.5
29.6
Maria diz:
– Eu te havia prometido que Ele te traria a paz. Estás lembrada da paz
que havia em ti nos dias do Natal? De quando me vias com o meu Menino?
Aquele era o teu tempo de paz. Agora é o teu tempo de sofrimento. Mas tu o
sabes. É no sofrimento que se conquista a paz e toda graça para nós e o
próximo. Jesus-Homem revelou-se Jesus-Deus, depois do tremendo
sofrimento da Paixão. Revelou-se como a Paz. Paz no Céu, do qual Ele tinha
vindo, derramada sobre aqueles que no mundo o amam. Mas, nas horas da
paixão, Ele, a Paz do mundo, foi privado dela. Não teria sofrido, se tivesse
tido a paz. Mas devia sofrer. Sofrer de modo completo.
29.7
Eu, Maria, redimi a mulher com a minha maternidade divina. Mas isso
não foi mais que o início da redenção da mulher. Negando-me a quaisquer
esponsais pelo voto de virgindade, eu tinha rejeitado todo prazer de
concupiscência, e merecido a graça de Deus. Isso, porém ainda não bastava.
Porque o pecado de Eva era uma árvore de quatro ramos: soberba, avareza,
gula e luxúria. Todos os quatro deviam ser cortados, a fim de esterilizar a
árvore desde as raízes.
29.8
Humilhando-me profundamente, eu venci a soberba.
Humilhei-me diante de todos. Não estou falando da minha humildade
para com Deus. Esta é devida ao Altíssimo por toda criatura. O Verbo de
Deus a teve. Eu, uma mulher, a devia ter. Mas terás já refletido por quantas
humilhações da parte dos homens eu tive que passar, sem me defender de
modo nenhum? Até José, que era justo, me havia acusado em seu coração. Os
outros, que não eram justos, tinham pecado por murmuração a respeito do
meu estado, e o barulho dessas palavras veio, como uma onda amarga,
quebrar-se contra a minha natureza humana.
Foram estas as primeiras das infinitas humilhações que a minha vida,
como mãe de Jesus e do genero humano, me fizeram sofrer. Humilhações de
pobreza, humilhações de uma fugitiva, humilhações pelas censuras dos
parentes e amigos que, não sabendo a verdade, julgavam fraco o meu modo
de ser mãe para com o meu Jesus, quando Ele se tornou jovem. Humilhações
durante os três anos do seu ministério, humilhações cruéis na hora do
Calvário, humilhações até em ter que reconhecer que eu não tinha com que
comprar o lugar e os aromas, para a sepultura do meu Filho.
29.9
Eu venci a avareza dos Progenitores, renunciando antecipadamente
ao meu Filho.
Uma mãe não renuncia nunca ao seu filho, a não ser que seja forçada. Se
essa renúncia for solicitada ao seu coração pela Pátria, pelo amor de uma
esposa, ou até pelo próprio Deus, ela sente o desejo de insurgir-se contra a
separação. É natural. O filho cresce em nosso ventre, e nunca é
completamente cortada a ligação que sua pessoa tem com a nossa. Mesmo
depois de cortado o canal vital que é o cordão umbilical, sempre fica um elo
espiritual, que nasce no coração da mãe, mais vivo e sensível do que um elo
físico, o qual se introduz no coração do filho, esticando até à dor, se o amor
de Deus, de uma criatura, da Pátria afasta o filho da própria mãe. Este elo se
despedaça, dilacerando o coração, se a morte arrebata o filho de sua mãe.
Eu renunciei ao meu Filho, desde o momento em que O tive. Dei-O a
Deus. Dei-O a vós. Eu me despojei do Fruto do meu ventre, para reparar o
furto cometido por Eva, do fruto de Deus.
29.10
Eu venci a gula, tanto do saber como do gozar, aceitando saber
unicamente o que Deus queria que eu soubesse, sem perguntar a mim
mesma nem a Ele nada mais, além do que foi dito. Acreditei sem investigar.
Venci a gula do gozar, porque neguei a mim mesma todo sabor de
sensualidade. Pus minha carne debaixo dos meus pés. Confinei a carne,
instrumento de satanás, colocando satanás debaixo de meu calcanhar, a fim
de fazer da carne um degrau para aproximar-me do Céu. O Céu! Ele era a
minha meta. Era lá que estava Deus. Deus, a minha única fome. Fome esta
que não é gula, mas sim, necessidade abençoada por Ele, o qual quer que a
tenhamos.
29.11
Eu venci a luxúria, que é a gula, convertida em voracidade, porque
todo vício não contido conduz a um vício maior. A gula de Eva, além de
reprovável em si mesma, a conduziu à luxúria. Não lhe bastou procurar a
satisfação sozinha. Quis levar o seu delito até uma refinada intensidade,
conhecendo e se fazendo mestra de luxúria para o companheiro. Eu inverti os
termos e, em lugar de descer, sempre subi. Em lugar de fazer descer, eu
sempre atraí para o alto, e do meu companheiro, um homem honesto fiz um
anjo.
Agora que eu possuía Deus, e com Ele as Suas riquezas infinitas,
apressei-me a despojar-me delas, dizendo: “Que seja feita a tua vontade
para Ele e por Ele”. Casto é aquele que se auto contém, não só na carne, mas
também nos afetos e nos pensamentos. Eu devia ser a casta, para anular a
impudica da carne, do coração e da mente. Não saí da minha reserva, para
dizer a respeito do meu único Filho na terra e único Filho de Deus no Céu:
“Ele é meu, e eu O quero.”
29.12
Contudo, isso não bastava para obter para a mulher, a paz perdida por
Eva. Aquela paz eu vo-la obtive aos pés da Cruz. Ao ver morrer Aquele que
tu viste nascer. Ao sentir minhas entranhas sendo arrancadas, ao grito do meu
Filho que estava morrendo, fiquei vazia de todo feminismo: não mais carne,
mas anjo. Maria, a virgem desposada com o Espírito, morreu naquele
momento. Ficou a mãe da graça, aquela que do seu tormento gerou e vos deu
a graça a Graça. O gênero da mulher que eu tinha voltado a consagrar na
noite de Natal, aos pés da Cruz conseguiu se tornar criatura dos Céus.
Fiz isso por vós, negando-me qualquer satisfação, ainda que santa. Eu
fiz de vós, se o desejais, santas de Deus, vós que fostes reduzidas por Eva a
fêmeas não superiores às companheiras dos animais. Por vós eu subi. Como
fiz com José, eu vos levei para o alto. A rocha do calvário é o meu Monte
das Oliveiras. Foi dali que eu tomei o impulso para levar a alma da mulher
aos céus, de novo santificada, junto com minha carne glorificada, por ter
trazido o Verbo de Deus, e anulado em mim todo vestígio de Eva. Ela foi a
última raiz daquela árvore dos quatro ramos venenosos, com a raiz fincada
na sensualidade, que arrastou a humanidade à queda e que haverá de morder
as vossas entranhas, até ao fim dos séculos, até à última mulher. De lá, de
onde agora eu brilho no raio do Amor, eu vos chamo, e vos indico o remédio
para vós vencerdes a vós mesmas: a graça do meu Senhor e o sangue do meu
Filho.
29.13
E tu, minha porta-voz, repousa a tua alma na luz desta aurora de
Jesus, a fim de que tenhas força para as futuras crucificações, que não te
serão poupadas, porque te queremos aqui, para onde se vem através da dor;
e para tão mais alto se vem, quanto mais se suporta o sofrimento, a fim de
obter graça para o mundo.
Vai em paz. Eu estou contigo”.
30. O anúncio aos pastores, que se tornam
os primeiros adoradores do Verbo feito homem.
7 de junho de 1944. Vigília de Corpus Christi.
[…].
30.1
Mais tarde, vejo um extenso campo. A lua está no zênite e navega
mansamente por um céu apinhado de estrelas. Parecem broches de diamantes
fincados em um enorme baldaquim de veludo azul escuro; a lua, ali no meio,
sorri com sua cara toda branca, da qual descem rios de uma luz leitosa, que
torna branca também a terra. As árvores, sem folhas, parecem mais altas e
escuras, sobre um solo esbranquiçado, enquanto os pequenos muros, que vão
surgindo aqui e ali, parecem cor de leite, e uma casinha, que se vê ao longe,
parece um bloco de mármore de Carrara.
À minha direita, vejo um lugar cercado por uma sebe de espinheiros e
um muro baixo ao lado de outros dois. Este muro sustenta o teto de uma
espécie de alpendre largo e baixo, que, na parte interna do recinto está
construído: uma parte com paredes, e outra com madeira, de modo que, no
verão, as partes em madeira possam ser removidas, transformando-se o
alpendre em um grande pórtico. Desse pórtico fechado, sai, de vez em
quando um balir intermitente e curto. Devem ser ovelhinhas que estão
sonhando, ou talvez achando que já esteja próximo o dia, pela claridade da
lua. Uma claridade excessiva, tal é a intensidade, está crescendo, como se o
satélite estivesse se aproximando da terra, ou brilhando por algum
misterioso incêndio.
30.2
Um pastor chega até à porta; levando o braço sobre a fronte para
proteger os olhos, olha para cima. Parece impossível que ele tenha de se
proteger da claridade da lua. Mas está mesmo uma claridade tão viva, que
ofusca os olhos, especialmente os olhos de quem acaba de sair de um lugar
fechado e escuro. Tudo está calmo. Mas aquela luz causa espanto.
O pastor chama os companheiros. Todos vão até à porta. É um grupo de
homens cabeludos e de idades diferentes. Alguns ainda são adolescentes, e
outros já estão de cabelos brancos. Estão comentando aquele fato estranho.
Os mais jovens estão com medo, especialmente um menino dos seus doze
anos, que começa a chorar, tornando-se alvo das brincadeiras dos mais
velhos.
– De que estás com medo, seu tolo? –lhe diz o mais velho–. Não estás
vendo o ar assim parado? Nunca viste a claridade do luar? Será que
estiveste sempre debaixo da saia da mamãe, como um pintinho sob as asas
da galinha choca? Mas ainda terás que ver coisas! Uma vez eu tinha
caminhado até as montanhas do Líbano, e continuei até além destas
montanhas. Eu era jovem e andar não era pesado para mim. Naquele tempo
eu também era rico… Uma noite, vi uma luz tão clara, que pensei que Elias
estivesse voltando com seu carro de fogo. O céu parecia um grande incêndio.
Um velho, daquela época, me disse: “Algum grande acontecimento está para
sobrevir ao mundo.” Mas para nós o que de verdade veio foi uma grande
desventura: os soldados de Roma. Oh! Mas tu verás, se sobreviveres!…
30.3
O pastorzinho, porém, não o está escutando mais. Parece que não tem
mais medo, pois deixa a soleira da porta, escapa por detrás das costas do
musculoso pastor, onde se refugiou, e sai na paragem cheia de erva, que está
na frente do alpendre. Olha para o alto, e vai caminhando como sonâmbulo,
ou hipnotizado por algo que o atrai fortemente. Chegando a um certo ponto,
ele grita: “Oh!”, e fica como que petrificado, com os braços um pouco
abertos.
Os outros olham-se assombrados.
– Mas, que é que tem aquele tolo? –diz um deles.
– Amanhã eu o mando embora, de volta para sua mãe. Não quero doidos
para guardar as ovelhas –diz outro.
E o velho, que falou há pouco, diz:
– Vamos ver, antes de julgar. Chamai também os outros que estão
dormindo, e pegai os bastões. Que não seja alguma fera ruim, ou
malandros…
Eles entram, chamando os outros pastores, e saem com tochas e bastões.
Chegam até onde está o menino.
– Lá, lá –ele murmura sorrindo–. Por cima da árvore, olhai aquela luz
que está vindo. Parece que ela vem caminhando sobre o raio da lua. Eis que
se aproxima. Como é bela!
– Eu só estou vendo um grande clarão.
– Eu também.
– Eu também –dizem os outros.
– Não. Eu estou vendo algo como um corpo –diz um dos pastores, no
qual eu reconheço ser aquele que deu a escudela de leite para Maria.
– É um… é um anjo! –grita o menino–. Eis que ele vem descendo e
chegando para perto… Ajoelhemo-nos, diante do anjo de Deus!
Um “Oh!” longo e cheio de respeito se levanta do grupo de pastores,
que, prostrando-se com o rosto por terra, parecem estar tanto mais
esmagados por aquela aparição fulgente, quanto mais velhos são. Os jovens
estão de joelhos, mas estão olhando para o anjo, que se aproxima cada vez
mais e, finalmente, paira suspenso no ar, agitando suas grandes asas, candura
de pérola na alvura do luar que o circunda, acima do muro do recinto.
– Não temais. Não vos trago desventura. Eu vos anuncio uma grande
alegria para o povo de Israel e para todo o povo da terra.
A voz do anjo é como uma harmonia de harpa, que acompanha o canto
dos rouxinóis.
– Hoje, na cidade de Davi, nasceu o Salvador.
Ao dizer isso, o anjo abre ainda mais as suas grandes asas, e as move,
como se tivesse sentido um sobressalto de alegria, e, nesse momento uma
chuva de centelhas de ouro e de pedras preciosas parece sair dele. Um
verdadeiro arco-íris, um arco de triunfo que se forma sobre as pastagens.
– … o Salvador, que é Cristo.
O anjo cintila, com redobrada luz. Suas duas asas, agora paradas e
estendidas, com as pontas viradas para o céu, como duas velas imóveis
sobre a safira do mar, parecem duas chamas, que sobem ardendo.
– … Cristo, o Senhor!
O anjo recolhe as suas duas fúlgidas asas, e se veste com elas, como se
fossem uma sobreveste de diamante sobre uma veste de pérola; inclina-se,
como quem está adorando, com os braços cruzados sobre o coração e o
rosto, que aí desaparece, porque está inclinado sobre o peito e sob a sombra
das pontas das asas que o anjo agora dobrou. Não se vê mais que uma
alongada forma luminosa, imóvel, pelo espaço de tempo de um “Glória.”
Mas ele se move de novo. Reabre as asas, levanta o rosto, no qual a luz
se funde com um sorriso paradisíaco, e diz:
– Vós o reconhecereis por estes sinais: em uma pobre estrebaria, do
outro lado de Belém, encontrareis um menino envolto em faixas, numa
manjedoura de animais, porque, para o Messias, não foi encontrado um teto
na cidade de Davi.
Ao dizer isso, o anjo ficou sério, ou melhor, ficou triste.
30.4
Mas dos Céus vieram muitos, muitíssimos outros anjos, semelhantes
àquele primeiro, como por uma escada de anjos que descem, exultantes, e
superando a luz da lua com o seu esplendor do paraíso. Eles se reúnem ao
redor do anjo anunciador, com um grande agitar de asas e um intenso exalar
de perfumes, com um arpejar de notas, nas quais todas as vozes mais belas
da criação encontram uma recordação, mas levado à perfeição, quanto à
pureza e beleza do som. Se a pintura é o esforço da matéria para se
transformar em luz, aqui a melodia é o esforço da música para fazer brilhar
aos homens a beleza de Deus. Ouvir esta melodia é conhecer o paraíso, onde
tudo é harmonia do amor que se desprende de Deus, alegrando os bem-
aventurados, que, por sua vez, se dirigem a Deus, dizendo: “Nós te
amamos!”
O “Glória” dos anjos se espalha, sempre mais ao longe, pelo campo
silencioso e com ele vai o clarão da luz. Os passarinhos unem seu canto,
como saudação a esta luz que chegou antes da hora, e as ovelhas dão os seus
balidos, por este antecipado sol. Mas eu gosto de pensar que são os animais
que saúdam ao seu Criador, como também o boi e o jumento na gruta.
Saúdam o próprio Criador que veio até eles, para amá-los como Homem,
além de amá-los como Deus.
O canto vai diminuindo, e a luz também, enquanto os anjos vão subindo,
de volta para os céus…
30.5
… Os pastores também voltam a si.
– Ouviste?
– Vamos lá ver?
– E as ovelhas?
– Oh! Não acontecerá nada com elas! Nós vamos para obedecer à
palavra de Deus!…
– Mas, aonde iremos?
– Ele não disse que nasceu hoje? E que não achou alojamento em
Belém?
É o pastor que deu a escudela de leite, o que está falando agora.
– Vinde comigo, eu sei: encontrei a mulher, e ela me causou pena.
Ensinei um lugar para ela, pois imaginava que não iriam encontrar
alojamento. Entreguei ao homem uma escudela de leite para ela. É tão jovem
e bela, deve ser boa como o anjo que nos falou. Vinde. Vinde. Vamos
apanhar leite, queijos, cordeiros e peles curtidas. Eles devem ser muito
pobres e… que frio não estará passando Aquele cujo nome não ouso
pronunciar! E pensar que eu falei à mãe como a uma pobre esposa!…
Vão, então, até o alpendre, saindo de lá pouco depois. Um deles com
pequenas botijas de leite, outro com cestinhas de esparto trançadas, contendo
queijinhos redondos, outros com cestos nos quais se encontram, um cordeiro
balindo e peles de ovelha curtidas.
– Eu levo uma ovelha. Há um mês que ela deu cria. O leite dela está
bom. Ela lhes poderá ser útil, se a mulher não tiver leite. Pois me parecia
uma menina, tão branca!… É um rosto de jasmim, à luz da lua –diz o pastor
da escudela. É ele que vai guiando os outros.
30.6
Saem todos à luz da lua e das tochas, depois de terem fechado o
alpendre e o recinto. Vão pelas trilhas campestres, por entre sebes de
espinheiros, que estão sem folhas, por ser inverno.
Dão a volta por detrás de Belém. Chegam à estrebaria, indo pelo lado
oposto que foi Maria, de modo a não passarem diante das estrebarias mais
bonitas, sendo esta a primeira que encontram. Aproximam-se da abertura.
– Entra!
– Eu não tenho coragem.
– Entra tu.
– Não.
– Olha lá dentro, pelo menos.
– Tu, Levi, que viste o anjo primeiramente, sinal de que és melhor do
que nós, olha!
Na verdade, antes disseram que ele era doido… mas agora convém que
ele tenha a coragem que eles não têm.
O menino vacila, mas depois se decide. Aproxima-se da abertura, afasta
um pouquinho o manto, olha… e fica extasiado.
– Que é que estás vendo? –perguntam-lhe ansiosos, em voz baixa.
– Vejo uma mulher jovem e bela e um homem curvados sobre uma
manjedoura, e ouço… ouço chorar um menino pequeno, e a mulher lhe fala
com uma voz… oh! que voz!
– Que está ela dizendo?
– Ela está dizendo assim: “Jesus pequenino! Jesus, amor da tua mamãe!
Não chores meu filhinho!” Ela diz ainda: “Oh! Se eu pudesse dizer-te: ‘Toma
o leite, meu pequenino!’ Mas ainda não o tenho.” Ela diz: “Tem tanto frio,
meu amor! E o feno te está espinhando. Que dor para tua mamãe ouvir-te
chorando assim, e não poder dar-te conforto!” Ela está dizendo: “Dorme,
minha alma! Parte-me o coração ao ouvir-te chorar, e ao ver-te derramar
lágrimas!”, e o beija e o aquece certamente nos pezinhos com suas mãos,
pois ela está inclinada, com as mãos para dentro da manjedoura.
– Chama! Faça com que te ouçam!
– Eu, não. Chama tu, que até aqui nos conduzistes e que a conheceis.
O pastor abre a boca, e se limita a dar um gemido.
30.7
José se vira, e vai à porta.
– Quem sois vós?
– Somos pastores. Viemos trazer-vos alimento e lã. Viemos adorar o
Salvador.
– Entrai.
Eles entram, e a estrebaria se torna mais clara por causa da luz das
tochas. Os velhos empurram os novos à sua frente.
Maria se vira e sorri.
– Vinde –ela diz–. Vinde!
E os convida com um gesto e um sorriso, segurando aquele que viu o
anjo e puxando-o para perto de si, junto à manjedoura. O menino olha, feliz.
Os outros, convidados também por José, vão à frente com os seus
presentes, e os colocam todos, com breves e comovidas palavras, aos pés de
Maria. Depois se detêm em olhar o Menino Jesus, que está chorando
baixinho, e sorriem, emocionados e felizes.
Um deles, mais corajoso, diz:
– Toma, ó mãe. É macia e limpa. Eu a tinha preparado para o meu filho
que está para nascer. Mas te dou. Envolve o teu Filho com esta lã delicada e
quente.
E lhe oferece a pele de uma ovelha, uma pele muito bonita, com muita
lã, uma lã muito clara e comprida.
Maria soergue Jesus e o enrola nela. E o mostra aos pastores que, de
joelhos sobre o feno do chão, o contemplam enlevados.
Tornam-se agora mais corajosos, e um deles propõe:
– Seria necessário dar-lhe um pouco de leite, ou melhor, água e mel.
Mas nós não temos mel, que é muito bom para os bebês. Tenho sete filhos, e
sei disso…
– Aqui está o leite. Toma-o, ó mulher.
– Mas está frio. Precisa ser quente. Onde está o Elias? Ele tem a ovelha.
Elias deve ser aquele da escudela de leite e não está. Ficou parado lá
fora, olhando por uma fenda e não podendo ser visto, por causa da escuridão
da noite.
– Quem vos guiou até aqui?
– Um anjo, que nos disse para virmos e junto com Elias, nos guiou até
aqui. Mas onde estará ele agora?
A ovelha de Elias é que, com o seu balido, denuncia-o.
– Venha para a frente, que te estamos esperando.
Ele entra com sua ovelha, envergonhado, porque todos estão de olhos
nele.
– Então, és tu? –diz José, ao reconhecê-lo.
E Maria lhe sorri, dizendo:
– És bom.
Tiram o leite da ovelha e, com a ponta de um pano mergulhado no leite
quente e espumoso, Maria molha os lábios do Menino Jesus, que suga aquela
doçura cremosa. Todos sorriem, ainda mais, quando, com a ponta do paninho
ainda entre os lábios, Jesus adormece com o bom calor da lã.
30.8
– Mas aqui não podeis ficar. Aqui faz frio e é muito úmido. E
depois… aqui tem um cheiro forte de animais. Isto não faz bem… e… não
fica bem para o Salvador.
– Eu sei –diz Maria com um grande suspiro–, mas, não há lugar para nós
em Belém.
– Coragem, Mulher! Nós vamos procurar uma casa para ti.
– Vou falar com minha patroa –diz Elias.
– Ela é boa, e vos acolherá, ainda que precisasse ceder-vos o seu
quarto. Logo que raiar o dia, vou falar com ela. Ela está com a casa cheia de
gente. Mas vos arranjará um lugar.
– Pelo menos para o meu Menino. Eu e o José estamos dormindo no
chão. Mas para o Pequenino…
– Não fiques suspirando, mulher. Nisso penso eu. Vamos dizer a muitos
o que nos disseram. Não vos faltará nada. Por enquanto, tomai o que a nossa
pobreza vos pode dar. Nós somos pastores…
– Nós também somos pobres. E não vos podemos pagar –diz José.
– Oh! Nem nós queremos! Ainda que o pudésseis, nós não quereríamos!
O Senhor já nos pagou. Ele prometeu a paz a todos. Os anjos diziam assim:
“Paz aos homens de boa vontade.” Mas a nós, Ele já a deu, porque o anjo
disse que este Menino é o Salvador, que é o Cristo, o Senhor. Nós somos
pobres e ignorantes, mas sabemos que os profetas dizem que o Salvador será
o Príncipe da Paz. E a nós Ele disse que viéssemos adorá-lo. Com isso nos
deu a Sua paz. Glória a Deus nos céus altíssimos e glória ao seu Cristo, e
bendita sejas tu, mulher, que o geraste! És santa, porque mereceu carregá-lo
no seio! Dá-nos tuas ordens, como nossa rainha, que seremos felizes em
podermos servir-te. Que é que podemos fazer por ti?
– Amar o meu Filho, e ter sempre no coração os pensamentos que tendes
agora.
– Mas, e para ti? Não desejas nada? Não tens parentes aos quais desejas
comunicar que Ele nasceu?
– Sim, eu os teria. Mas não moram perto daqui. Moram em Hebron.
– Eu vou até lá –diz Elias–. Quem são eles?
– Zacarias, o sacerdote, e Isabel, minha prima.
– Zacarias?! Oh! Eu o conheço bem. Durante o verão, eu vou por
aqueles montes, pois as pastagens por lá são muito boas e bonitas, e sou
amigo do pastor. Quando eu souber que estás alojada, irei à casa de
Zacarias.
– Obrigada, Elias.
– Não precisas agradecer. Grande honra é para mim, um pobre pastor, ir
falar ao sacerdote, e dizer-lhe: “Nasceu o Salvador.”
– Não. Tu dirás assim: “Maria de Nazaré, tua prima, manda dizer que
nasceu Jesus, e que vades a Belém.”
– Assim eu direi.
– Deus te recompense por isso. 30.9Eu me recordarei de ti, e de todos vós.
– Falarás de nós ao teu Menino?
– Sim, falarei.
– Eu sou Elias.
– Eu sou Levi.
– Eu sou Samuel.
– Eu sou Jonas.
– Eu sou Isaque.
– Eu sou Tobias.
– Eu sou Jônatas.
– Eu sou Daniel.
– Eu sou Simeão.
– Eu me chamo João.
– Eu José, e meu irmão Benjamim, somos gêmeos.
– Eu me lembrarei dos vossos nomes.
– Precisamos ir… Mas voltaremos… E te traremos outros, que virão
para adorar!
– Como voltar ao ovil, deixando este Menino?
– Glória a Deus, que já no-Lo mostrou!
– Deixa-nos beijar a roupinha dele –diz Levi com o sorriso de um anjo.
Maria ergue Jesus devagar e, sentada sobre o feno, oferece os pezinhos
envolvidos no linho, para que os beijem. Os pastores se inclinam até o chão
e beijam aqueles pés minúsculos, cobertos por um tecido. Quem tem barba,
ajeita-a primeiro, quase todos choram e, quando chega o momento de partir,
saem, relutantes, deixando alí o coração.
A visão cessa aqui, com Maria sentada sobre o feno com o Menino no
colo e José que, apoiado com um cotovelo sobre a manjedoura, olha e adora.
Jesus diz:
30.10
– Hoje sou Eu que falo. Estás muito cansada, mas tem ainda um pouco
de paciência.
Estamos na vigília de Corpus Christi. Eu poderia falar-te da Eucaristia e
dos santos que se fizeram apóstolos do seu culto, assim como já te falei[52]
dos santos que foram apóstolos do Sagrado Coração. Mas eu quero falar-te
de uma outra coisa e de uma categoria de adoradores do meu Corpo,
precursores do culto a Ele prestado. Os pastores são os primeiros
adoradores do meu Corpo de Verbo feito Homem.
Uma vez Eu te disse isto, que é dito também pela minha Igreja. Os
Santos Inocentes são os protomártires de Cristo. Agora te digo que os
pastores são os primeiros adoradores do Corpo de Deus. Neles se encontram
todos os requisitos exigidos para vos tornardes adoradores do meu Corpo, ó
almas eucarísticas.
Fé firme: eles crêem pronta e cegamente no anjo.
Generosidade: eles dão toda a sua riqueza ao Senhor.
Humildade: eles se aproximam dos que humanamente são mais pobres
do que eles, com uma modéstia tal em seus atos, que não rebaixam os
pobres, mas se confessam seus servos.
Desejo: tudo o que não podem dar por si mesmos, esforçam-se para
encontrá-lo com apostolado e fadiga.
Prontidão na obediência: Maria deseja que Zacarias seja avisado e
Elias vai sem demora, sem pedir nenhum prazo.
Amor: enfim, eles não sabem como afastar-se, e tu dizes: “deixam alí o
coração.” E dizes bem.
Não seria necessário fazer assim também com o meu Sacramento?
Uma outra coisa, e essa é toda para ti: observa bem, a quem o anjo
30.11
2 de fevereiro de 1944.
32.7
Jesus diz:
– Nascem dois ensinamentos para todos, da descrição que fizeste.
O primeiro: Não é a um sacerdote mergulhado nos ritos, mas o espírito
ausente, e, sim, a um simples fiel que a verdade se revela.
O sacerdote, sempre em contato com a Divindade, voltado a tudo que é
relacionado a Deus, dedicado a tudo o que está acima da carne, deveria ter
percebido logo quem era o Menino que estava sendo oferecido ao Templo,
naquela manhã. Mas, para que pudesse pressentir, precisava de um espírito
vivo. Não simplesmente de uma veste para cobrir um espírito, que, se não
estava morto, estava muito adormecido.
O Espírito de Deus pode, se quiser, trovejar e sacudir, como um raio e
um terremoto, até o espírito mais obtuso. Isto Ele pode. Mas geralmente,
visto que Ele é Espírito de ordem, dado que Deus é ordem em cada uma de
Suas Pessoas e em Seu modo de agir, Ele se expande e se comunica, não
digo só onde há merecimento suficiente para receber a sua efusão (e nesse
caso, seriam poucos os casos em que Ele se expandiria, nem mesmo tu
conhecerias as suas luzes) mas, sim, onde Ele vê “boa vontade” em merecer
a sua efusão.
Como se explica essa boa vontade? Tanto quanto possível, com uma
vida inteira em Deus. Na fé, na obediência, na pureza, na caridade, na
generosidade, na oração. Não tanto no ativismo, mas na oração. Há uma
diferença menor entre a noite e o dia, do que entre o ativismo e a oração. A
oração é comunhão de espírito com Deus, da qual, vós saís revigorados e
decididos a serdes sempre mais d’Ele. O ativismo é um hábito qualquer,
feito por diversos fins, mas sempre egoístas, deixando-vos como sois, ou
melhor, vos agrava até de uma culpa de mentira e de acídia.
32.8
Simeão tinha esta boa vontade. A vida não lhe tinha poupado trabalhos
e provações. Mas ele não perdeu a boa vontade. Os anos e as vicissitudes
não tinham enfraquecido nem abalado a sua fé no Senhor, nas Suas
promessas, e não tinham diminuido a sua boa vontade de ser sempre mais
digno de Deus. Antes que os olhos de seu servo fiel se fechassem à luz do
sol, na esperança de se reabrirem ao Sol de Deus rutilando nos Céus (que
seriam abertos, quando Eu lá subisse, após o meu martírio) Deus lhe mandou
um raio do Espírito, que o guiou ao Templo para ver a Luz do mundo.
“Movido pelo Espírito Santo”, diz o Evangelho. Oh! Se os homens
soubessem que Amigo perfeito é o Espírito Santo! Que Guia, que Mestre! Se
amassem e invocassem, este Amor da Santíssima Trindade, esta Luz da Luz,
este Fogo do Fogo, esta Inteligência, esta Sabedoria! Muito além do
necessário, eles haveriam de saber!
Escuta, Maria; escutai, meus filhos: Simeão esperou durante toda uma
longa vida para “ver a Luz”para saber que a promessa de Deus estava
cumprida. Mas ele nunca duvidou. Nunca disse a si mesmo: “É inútil que eu
persevere em esperança e em oração.” Ele perseverou. E alcançou a graça
de “ver” o que nem o sacerdote, nem os sinedritas, cheios de soberba e
opacidade, viram: o Filho de Deus, o Messias, o Salvador naquele corpo
infantil, que lhe dava calor e sorrisos. Ele recebeu portanto o sorriso de
Deus, como primeiro prêmio de sua vida honesta e piedosa, através dos
meus lábios de Menino.
Segunda lição: As palavras de Ana. Também ela, que é profetisa, vê o
32.9
33.3
Falar da graça desta cena, é impossível. Não é mais que uma mãe que
embala o seu pequenino. Mas é aquela mãe, e Ele é aquele Pequenino!
Poderia pensar que graça, que amor, que pureza, que Céu há nesta pequena,
grande e suave cena, que só com sua lembrança me alegra. Para confirmá-la
fica a melodia, que eu repito para mim. Para fazê-la ouvir também a ela. Mas
eu não tenho aquela voz de Maria, de prata, puríssima, a voz virginal!… E,
ao cantar, ficarei parecendo um realejo sem sonoridade. Mas, não importa.
Farei como puder. Que bela canção não seria, para ser cantada em torno ao
Berço de Natal!
A mãe antes balançava o berço. Mas depois, vendo que Jesus não se
aquietava, tomou-o no colo, sentou-se perto da janela aberta, ao lado do
bercinho e, balançando-o levemente, ao ritmo do canto, repetiu a cantiga
duas vezes, até que o pequeno Jesus fechou os olhinhos, inclinou a cabecinha
sobre o peito materno, e adormeceu assim, com o rostinho comprimido no
calor bom daquele seio, com uma das mãozinhas apoiada sobre o seio da
mãe, perto de seu rostinho rosado, e a outra mão abandonada sobre o colo
materno. O véu de Maria fazia sombra para o santo Filhinho.
Depois Maria se levantou, com o maior dos cuidados, e colocou o seu
Jesus no bercinho, cobrindo-o com os pequenos panos, estendeu por cima um
véu para protegê-lo das moscas e do ar, e ficou parada ali, contemplando o
seu Tesouro adormecido. Maria tinha uma mão sobre o coração, e a outra
ainda apoiada sobre o berço, pronta para balançá-lo, se houvesse algum
sinal de que o menino ia despertar, e sorria, feliz, estando um pouco
inclinada, enquanto as sombras e o silêncio desciam sobre a terra e invadiam
o quartinho da Virgem.
Que paz! Que beleza! Que felicidade!
33.4
Não é uma visão grandiosa, talvez seja julgada inútil no conjunto das
outras porque não revela nada de especial. Eu sei. Mas para mim é uma
verdadeira graça, e assim a reputo, porque torna plácido o meu espírito,
puro e amoroso, como se estivesse sendo recriado pelas mãos da mãe. Penso
que também a ela será agradável por este motivo. Somos todos “crianças.”
Melhor assim! Desta forma agradamos a Jesus. Os outros, doutos e
complicados, pensem o que quiserem, e nos chamem de “pueris.” Nós não
nos preocupamos com isso, não é mesmo?
34. Adoração dos Magos. É “Evangelho da fé”.
28 de fevereiro de 1944.
34.1
Meu monitor interior me diz:
– Dá a estas contemplações[57] que terás, e ao que irei te ditar o nome de
“evangelhos da fé”, porque virão ilustrar o poder da fé e dos seus frutos, a ti
e aos outros, confirmando-vos na fé em Deus.
Vejo Belém pequena e branca, toda recolhida como uma ninhada, sob
34.2
a luz das estrelas. Duas ruas principais a cortam em cruz, uma que vem de
fora da cidade, e é a rua mestra que depois prossegue além da cidade, e a
outra, que vai de uma à outra extremidade da cidade, mas sem ultrapassá-la.
Outras vielas repartem esta pequena cidade, sem a menor norma de um plano
de ruas como nós o concebemos, pelo contrário, adaptam-se a um solo cheio
de desníveis e às casas que surgem aqui e ali, segundo os caprichos do solo
e de seus construtores. De tal modo que possam servir de esquinas para a rua
que passa ao lado, obrigando esta a ficar como uma fita que vai-se
desenrolando sinuosamente, em vez de seguir uma linha reta, que vai daqui
até lá, sem desvios. De vez em quando, aparece uma pracinha: ou é a
pracinha de uma feira, ou por ali há alguma fonte, ou, então, por causa do
costume de construir aqui e ali sem nenhuma regra, sobrou um resto
enviesado de terreno, sobre o qual já não é possível construir mais nada.
No ponto em que tive a idéia de parar um pouco, há um exemplo dessas
pracinhas irregulares. Ela deveria ser quadrada ou, pelo menos, retangular.
Mas, ao contrário, saiu um trapézio tão estranho, que ficou parecendo um
triângulo agudo, cortado perto do vértice. No lado mais longo, o da base do
triângulo, há uma construção ampla e baixa. É a maior construção da cidade.
Por fora passa um paredão liso e nu, no qual se abrem apenas dois portões
que estão bem fechados. Por dentro, ao invés, no seu largo quadrado, abrem-
se muitas janelas no primeiro plano, enquanto embaixo ficam os pórticos,
que cercam os pátios cheios de palha e de detritos espalhados pelo chão,
com tanques, onde os cavalos e outros animais são levados para beber. Nas
rústicas colunas dos pórticos existem argolas às quais ficam amarrados os
animais, e há também um grande telheiro para abrigar os rebanhos e
cavalgaduras. Compreendo que aqui é o albergue de Belém.
Sobre os dois lados iguais há casas e casinhas, tendo algumas hortas à
frente, porque entre elas há uma que está com a fachada para a praça, e outra
com os fundos da casa para a mesma praça. Do lado mais curto, defronte ao
caravançará, há uma casinha isolada com uma pequena escada externa que,
ao meio da fachada, dá entrada para os quartos dos moradores. Os quartos
estão todos fechados, porque agora é noite. E a esta hora, não há ninguém
pelas ruas.
34.3
Vejo que a noite vai-se tornando mais clara pela luz das estrelas que
descem do céu; são tão belas no céu do Oriente, tão vivas e grandes, que até
parecem estar perto de nós, e que nos será fácil alcançá-las e tocar com a
mão essas flores que brilham no veludo do firmamento. Elevando o olhar,
tento compreender qual será a fonte deste aumento de luz. É uma estrela, de
grandeza extraordinária, que a faz parecer uma pequena lua, que vem
avançando pelo céu de Belém. As outras estrelas parecem eclipsar-se,
abrindo caminho para ela, como servas diante de sua rainha que vai
passando, pois a tal ponto ela as supera em brilho, que as faz desaparecer!
Do corpo da estrela, que parece uma grande safira clara e acesa por um sol
que está no seu interior, sai uma esteira de luz, na qual fundem-se o loiro dos
topázios, o verde das esmeraldas, o leitoso das opalas, o sanguíneo fulgor
dos rubis e o suave cintilar das ametistas, com a cor predominante da safira.
Todas as pedras preciosas da terra estão naquela esteira de luz, que vem
varrendo o céu, num movimento veloz e ondulante, como se fosse viva. Mas
a cor que predomina é a que desce do corpo da estrela: uma cor celeste de
safira clara, que tinge de prata azulada as casas, as ruas e o chão de Belém,
berço do Salvador. Já não é mais a pobre cidade, que para nós era menos
importante do que um povoado rural. Agora, é uma fantástica cidade dos
contos de fada, na qual tudo é de prata. Até a água das fontes e dos tanques
parece de diamante líquido.
Emitindo um fluxo de luz mais vivo, a estrela paira sobre a pequena
casa, que está do lado mais curto da pracinha. Nem os moradores da casa,
nem os habitantes de Belém a vêem, porque estão dormindo, e suas casas
estão fechadas; mas a estrela acelera as suas palpitações de luz, faz vibrar
sua cauda, e solta ondulações luminosas mais fortes, traçando pequenos
semicírculos no céu, que se ilumina todo com esta rede de astros que ela
arrasta consigo, numa rede de pedras preciosas, que esplendem, tingindo nas
mais indistintas cores as outras estrelas, como para comunicar-lhes uma
palavra de alegria.
A casinha está toda iluminada por este fogo líquido de gemas. O teto do
pequeno terraço, a escadinha de pedra escura, a pequena porta, tudo virou
um bloco de pura prata, polvilhado com pó de diamantes e pérolas. Nenhum
palácio real da terra jamais teve, ou terá, uma escada como esta, feita para
receber a passagem dos anjos, feita para ser usada pela mãe, que é mãe de
Deus. Seus pequenos pés de virgem imaculada podem pousar sobre aquele
cândido esplendor, os seus pequenos pés destinados a pousar sobre os
degraus do trono de Deus. Mas a virgem ainda não está sabendo de nada. Ela
está velando sobre o berço de seu Filho, rezando. Sua alma tem esplendores
que superam a estrela que está embelezando as coisas.
34.4
Da rua mestra, vem chegando uma cavalgada. Cavalos arreados ou
conduzidos a mão, dromedários e camelos, montados ou carregados com
suas cargas. O barulho dos cascos faz um rumor como o da água, quando cai
sobre as pedras de um riacho. Reunidos na praça, todos param. A cavalgada,
vista sob a luz da estrela, é fantástica em seu esplendor. Os ornamentos de
primeira classe sobre as cavalgaduras, as vestes dos cavaleiros, o seu
aspecto, as bagagens, tudo está brilhando, unindo e reavivando, o esplendor
do metal, do couro, da seda, das pedras preciosas, dos pelos, ao brilho da
estrela. Os olhos também cintilam, as bocas se enchem de riso, porque um
outro esplendor brilhou nos corações: o esplendor de uma alegria
sobrenatural.
Enquanto os servos se põem a caminho do caravançará com os animais,
três da caravana desmontam de suas cavalgaduras, que um servo logo leva
para outro lugar, dirigindo-se a pé para a casa. Prostram-se com a fronte até
o chão, beijando o pó. São três poderosos. Isto é o que nos estão dizendo as
suas vestes, riquíssimas. Um, de pele muito escura, tendo apeado de um
camelo, envolve-se todo num manto de seda brilhante, ajustado à cinta por
um aro precioso do qual pendem um punhal ou uma espada, tendo esta o
punho cravejado de pedras preciosas. Os outros, que apearam de dois
esplêndidos cavalos, estão vestidos, um de um tecido listrado muito bonito,
no qual predomina a cor amarela, com uma veste feita como um longo
dominó, ornado com capuz e cordão, parecendo um só trabalho de filigrana
de ouro, com muitos pespontos de bordados em ouro. O terceiro traz uma
espécie de camisa de seda, calças largas e longas, que se estreitam perto dos
pés e se envolve com um xale muito fino, que mais parece um jardim florido,
de tão vivas que são as flores com que está todo decorado. Na cabeça traz
um turbante preso por uma correntinha feita de engastes, com diamantes.
Depois de terem venerado a casa onde está o Salvador, eles se
levantam, e vão até o caravançará, onde os servos já bateram à porta,
fazendo-a abrir.
Aqui cessa a visão, 34.5que recomeça, três horas depois, com a cena da
adoração de Jesus pelos Magos.
Agora, já é dia. Um belo sol resplende no céu da tarde. Um dos três
servos atravessa a praça e sobe a escadinha da pequena casa. Depois, entra.
Torna a sair. Volta ao albergue.
Saem os três sábios, acompanhados cada um pelo próprio servo.
Atravessam a praça. Os raros transeuntes viram-se para olhar os pomposos
personagens que passam pela praça lentamente e com solenidade. Entre a
entrada do servo e aquela dos três, passou-se um bom quarto de hora, e esse
tempo serviu aos moradores da casinha para se prepararem a receber os
hóspedes.
Eles se mostram agora mais ricamente vestidos do que na tarde anterior.
As sedas resplendem, as gemas brilham, um grande penacho de penas
preciosas entremeadas com fragmentos ainda mais preciosos, tremula e
cintila sobre a cabeça daquele que está com o turbante.
Os servos vão levando, um deles um cofre todo marchetado, cujas partes
mais reforçadas são de ouro burilado; o segundo leva um cálice muito bem
trabalhado, coberto com uma tampa ainda mais artística, toda de ouro; o
terceiro leva uma espécie de ânfora larga e baixa, também de ouro, tampada
com uma peça em forma de pirâmide, com um brilhante no vértice. Devem
ser coisas pesadas, porque os servos que as transportam estão fazendo muita
força, especialmente o que transporta o cofre.
Os três sobem a escada e entram. Entram em um quarto, que se estende
da rua até os fundos da casa. Vê-se a pequena horta na parte posterior da
casa, por uma pequena janela aberta ao sol. Outras portas se abrem nas duas
outras paredes, e olhando de soslaio, lá estão os proprietários: um homem e
uma mulher, três ou quatro adolescentes e crianças.
34.6
Maria está sentada com o Menino no colo, perto dela, em pé, está
José. Mas ela também se levanta e se inclina, quando vê entrar os três
Magos. Maria está toda vestida de branco. Tão bonita na sua simples veste
cândida, que a cobre da base do pescoço até aos pés, dos ombros aos
delicados pulsos, tão bonita em sua cabeça pequena e coroada de tranças
loiras, no rosto que a emoção faz ficar vivamente rosado, nos olhos que
sorriem com doçura, na boca que se abre para a saudação, dizendo: “Deus
esteja convosco”, que, por um instante, os três se detêm, impressionados.
Depois, eles dão mais alguns passos para a frente, indo prostrarem-se aos
seus pés. Pedem a ela que se assente.
Eles, por sua vez, não se sentam, por mais que ela lhes peça. Ficam de
joelhos, apoiados sobre os calcanhares. Atrás deles, também de joelhos,
estão os três servos. Estes estão logo atrás da soleira. Eles puseram diante
de si os três objetos que levaram, e estão esperando.
Os três sábios contemplam o Menino, que me parece ter de nove meses a
um ano, de tão esperto e robusto que está! Ele está sentado no colo da
mamãe, sorri e balbucia com uma vozinha de passarinho. Ele também está
todo vestido de branco, como a mamãe, com sandalinhas nos pés
minúsculos. Sua veste é muito simples: uma pequena túnica, da qual saem os
pezinhos irrequietos, as mãozinhas gorduchas que gostariam de apanhar tudo
o que os olhos vêem, e, sobretudo seu rostinho muito bonito, no qual brilham
os olhos de um azul escuro, enquanto a boca faz umas covinhas aos lados,
quando ele ri, descobrindo os primeiros dentinhos pequenos. Os
caracoizinhos de seus loiros cabelos parecem ouro puro em pó, de tão leves
e brilhantes que são.
34.7
O mais velho dos sábios fala por todos. Explica a Maria que eles
viram, numa noite no mês de dezembro passado, acender-se uma nova estrela
no céu com esplendor fora do comum. Nunca os mapas do céu tinham trazido
aquele astro, nem falado nele. O seu nome não era conhecido, porque não
tinha nome. Tendo, então, nascido do seio de Deus, aquela estrela teria
aparecido para vir dizer aos homens alguma verdade bendita, algum segredo
de Deus. Mas os homens não lhe haviam dado importância, estando eles com
a alma presa na lama. Não eram capazes de levantar o olhar para Deus, não
sabendo ler as palavras escritas por Ele, eterno bendito, com seus astros de
fogo na abóbada dos céus.
Eles a tinham visto, e se esforçaram para escutar sua voz. Deixando,
pois, de lado, mas com alegria, o pouco descanso do sono que concediam
aos seus membros, esquecendo-se até de comer, eles se haviam aprofundado
no estudo do zodíaco. As conjugações dos astros, o tempo, a estação, o
cálculo das horas passadas e das combinações astronômicas lhes haviam
dito o nome e o segredo da estrela. O seu nome: “Messias.” E o seu segredo:
“O Messias veio ao mundo.” Então, partiram para adorá-lo. Cada um deles,
sem os outros dois saberem. Por montes e desertos, vales e rios, viajando de
noite, foram tomando o rumo da Palestina, porque este era o rumo da estrela.
Para cada um deles, vindo de três pontos diferentes da terra, ela ia naquele
rumo. Eles se tinham encontrado depois, além do Mar Morto. A vontade de
Deus os tinha reunido lá, e continuaram a viagem, juntos, se entendiam, ainda
que cada um falasse a sua própria língua, entendendo e podendo falar a
língua de cada região em que se achassem, por um milagre do Eterno.
Juntos tinham ido a Jerusalém, porque o Messias devia ser o Rei de
Jerusalém. O Rei dos judeus. Mas lá a estrela se tinha escondido, sob o céu
daquela cidade, e eles sentiram seus corações partirem-se de dor,
começando então a examinar suas consciências, para descobrirem se não
teriam deixado de merecer a proteção de Deus. Mas, tranqüilizadas suas
consciências, haviam se dirigido ao rei Herodes – perguntando-lhe em que
palácio havia nascido o Rei dos judeus, pois eles o tinham vindo adorar. O
rei, tendo reunido os príncipes dos sacerdotes e os escribas, lhes perguntou
onde se esperava que nascesse o Messias. Eles lhe responderam: “Em
Belém de Judá.”
Tomaram, pois, os Magos o rumo de Belém, e a estrela tornou a
aparecer aos seus olhos. Quando deixaram a Cidade Santa, na tarde anterior,
a estrela tinha aumentado seus esplendores, e o céu parecia um incêndio.
Depois, a estrela parou, reunindo toda a luz das outras estrelas com a sua
luz, sobre esta casa. Então, eles compreenderam que ali estava o Filho de
Deus. E agora o estavam adorando, oferecendo-lhe os seus pobres presentes
e, mais do que tudo, oferecendo-lhe os seus corações, que nunca mais
cessariam de bendizer a Deus pela graça concedida, nem de amar o seu
Filho, cuja Humanidade eles estavam vendo. Depois, iriam, na volta,
informar ao rei Herodes, porque ele também queria adorar o Menino.
34.8
– Aqui tens o ouro, como convém a um rei; aqui tens o incenso, como
convém a Deus; e aqui tens, ó mãe, a mirra, pois o teu Filho é Homem, além
de Deus e da carne e da vida humana conhecerá a amargura e a lei inevitável
da morte. Nosso amor não queria dizer-lhe estas palavras, mas ficar sempre
pensando que Ele é eterno, até em sua carne, como eterno é o seu Espírito.
Mas, ó mulher, se os nossos mapas, e também as nossas almas, não erram,
Ele é o teu Filho, é o Salvador, o Cristo de Deus, e por isso deverá, para
salvar a terra, tomar para Si o seu mal, um dos quais é o castigo da morte.
Esta resina é para aquela hora. Para que os corpos que são santos não
conheçam a putrefação da corrupção, e conservem sua integridade até o dia
da ressurreição. Que por estes nossos presentes Ele se lembre de nós e salve
a estes seus servos, dando-lhes o seu Reino. Por enquanto, para que sejamos
santificados, que a mãe, conceda o seu Pequenino ao nosso amor, para que,
beijando os seus pés, desça sobre nós a bênção celestial.
Maria, passada a angústia em que as palavras do sábio a haviam
mergulhado, esconde, com um sorriso, a tristeza daquelas fúnebres
evocações, e lhes apresenta o Menino. Coloca-o nos braços do mais velho,
que o beija e é por ele acariciado, e depois o passa para os outros dois.
Jesus sorri, e brinca com as correntinhas e as franjas dos três e olha com
curiosidade o cofre aberto, cheio de uma coisa amarela que brilha, e ri, ao
ver que o sol faz uma espécie de arco-íris, ao bater sobre a brilhante tampa
da mirra.
34.9
Depois, os três entregam a Maria o Menino, e se levantam. Maria
também se levanta. Inclinam-se reciprocamente, depois que o mais novo da
ordens ao seu servo, que sai. Os três falam ainda um pouco. Não conseguem
decidir-se a se afastarem daquela casa. Em seus olhos há lágrimas de
emoção. Por fim, eles se dirigem à saída, acompanhados por Maria e José.
O Menino quis descer e dar a mãozinha ao mais velho dos três, e
caminha assim, ajudado pela mão de Maria e do sábio, que se inclinaram
para pegá-lo pela mão. Jesus dá um passinho ainda incerto como fazem os
pequeninos e ri, batendo os pezinhos sobre os riscos que a luz do sol faz
sobre o pavimento.
Chegando à soleira (não se deve esquecer que o salão tinha o mesmo
comprimento da casa) os três se despedem, ajoelhando-se mais uma vez e
beijando os pezinhos de Jesus. Maria, inclinada sobre o Pequenino, toma-lhe
a mãozinha, e a vai guiando, fazendo-o traçar um gesto de bênção sobre a
cabeça de cada um dos Magos. É já um sinal da cruz[58], traçado pelos
dedinhos de Jesus, guiados por Maria.
Depois, os três descem a escada. A caravana já pronta os está
esperando. Os cavalos já estão arreados e seus arreios ornados brilham aos
últimos raios do sol, que está para se pôr. O povo se aglomerou na pracinha
para presenciar aquele espetáculo único.
Jesus ri e bate as mãozinhas. A mamãe o ergueu e colocou sobre o
parapeito, que limita o patamar, segurando-o com um dos braços para que
não caia. José desceu com os três e segura para cada um deles o estribo,
enquanto eles sobem em seus cavalos e no camelo.
Agora os servos e os patrões estão montados. É dada a ordem de partir.
Os três se inclinam até o pescoço da cavalgadura, em uma última saudação.
José também se inclina. Maria também o faz, e torna a guiar a mãozinha de
Jesus, em um gesto de adeus e de bênção.
34.10
Jesus diz:
– E agora? Que vos direi, ó almas, que percebeis que a fé está mor‐
rendo? Aqueles sábios do Oriente nada tinham que lhes desse a certeza da
verdade. Nada tinham de sobrenatural. Tinham apenas os cálculos
astronômicos e as suas reflexões, que a vida íntegra, que eles levaram,
tornava perfeitas. Contudo, tiveram fé. Fé em tudo: fé na ciência, fé na
consciência, fé na bondade divina.
Pela ciência, acreditaram no sinal da nova estrela, que não podia deixar
de ser “aquela”, que era esperada, havia séculos, pela humanidade: o
Messias. Pela consciência, tiveram fé na voz da mesma que, recebendo
“vozes” celestes, lhes dizia: “É aquela estrela que assinala a chegada do
Messias.” Pela bondade, tiveram fé que Deus não os teria enganado e, visto
que a sua intenção era reta, Ele os teria ajudado, de todos os modos, a
chegar até à meta desejada.
E eles tiveram êxito. Só eles, entre tantos estudiosos de sinais,
compreenderam aquele sinal, porque só eles tinham na alma a ânsia de
conhecer as palavras de Deus com um fim reto, que consistia antes de tudo
em dar imediata honra e louvor a Deus.
34.11
Não procuravam sua própria utilidade. Ao contrário, eles vão de
encontro a fadigas e despesas, e não pedem nenhuma compensação humana.
Pedem somente que o seu Deus se lembre deles e os salve para a eternidade.
Assim como não têm nenhum pensamento de futura compensação
humana, não têm, quando decidem a viagem, nenhuma preocupação humana.
Se fôsseis vós, teríeis pensado em mil dificuldades: “Como poderei fazer
uma viagem tão grande, através de países e povos de línguas tão diferentes?
Será que vão acreditar em mim, ou irão prender-me como espião? Que ajuda
me darão, quando tiver que atravessar desertos, rios e montanhas? E o calor?
E os ventos dos planaltos? E as febres dos pantanais? E as cheias das águas
fluviais? E as comidas diferentes? E a linguagem diferente? E… e… e…”.
Assim é que raciocinais. Eles não raciocinam assim. Mas dizem, com uma
sincera e santa ousadia: “Tu, ó Deus, lês os nossos corações, e vês qual o
fim que perseguimos. Em tuas mãos nos entregamos. Concede-nos a alegria
sobre humana de adorar a tua Segunda Pessoa, que se fez Carne para a
salvação do mundo”.
Basta. Eles se põem a caminho, partindo das longínquas Índias[59].
(Jesus me diz depois que por Índias querem dizer Ásia meridional, onde
agora está a Turquia, o Afeganistão e a Pérsia). Das cadeias de montanhas da
Mongólia, sobre as quais voam somente águias e abutres, onde Deus fala
pelo zumbido dos ventos, pelo estrondo das torrentes, escrevendo mistério
sobre as páginas imensas das geleiras. Das terras onde nasce o Nilo, que vai
deslizando como uma veia verde-azul, ao encontro do coração azul do
Mediterrâneo, nem os picos, nem as selvas, nem os desertos, oceanos secos
mais perigosos do que os marinhos, nada disso detêm a marcha deles. A
estrela brilha sobre a noite deles, não lhes permitindo dormir. Quando se
procura a Deus, os hábitos animais devem ceder às impaciências e às
necessidades sobre humanas.
A estrela os chama, ora do Norte, ora do Oriente, ora do Sul, e, por um
milagre de Deus, vai guiando os três para um certo ponto, como por um outro
milagre, os reúne, depois de tantos milhares de quilômetros, naquele ponto,
e, por um outro milagre ainda, lhes dá, antecipando a sabedoria pentecostal,
o dom de se entenderem e de se fazerem entender, assim como é no Paraíso,
onde se fala uma única língua: a de Deus.
34.12
Um único momento de aflição os assalta, e é quando a estrela
desaparece, e eles, humildes, porque são realmente grandes, não pensam
que isto tenha acontecido por causa da maldade de outrem, já que os
corruptos de Jerusalém não mereceram ver a estrela de Deus. Mas, o que
eles pensam é que eles próprios não mereçam a ajuda de Deus, pondo-se a
examinarem suas consciências com tremor e com uma contrição, pronta a
pedir perdão.
Mas a sua consciência os tranqüiliza. Almas acostumadas à meditação,
eles têm uma consciência muito sensível, aperfeiçoada por uma atenção
constante, por uma introspecção aguda, que faz do seu interior um verdadeiro
espelho sobre o qual refletem as menores sombras dos acontecimentos
diários. Eles fizeram da voz que os adverte a própria mestra, voz que grita,
não só ao menor erro, mas até a uma simples possibilidade de erro, o que é
humano, como a complacência com o seu próprio eu. Por isso, quando eles
se põem diante desta mestra, diante deste espelho tão severo e tão nítido,
sabem que ele não lhes mente, mas os encoraja, tomando novo alento.
“Oh! Que doce coisa é sentir que nada há em nós de contrário a Deus!
Sentir que Ele olha com complacência o ânimo do filho fiel e o abençoa.
Deste sentimento provém o aumento de fé e de confiança, de esperança,
fortaleza e paciência. Agora é hora de tempestade. Mas ela passará, porque
Deus me ama e sabe que eu o amo, e não deixará de ajudar-me ainda.”
Assim é que falam os que têm aquela paz, que provém de uma consciência
reta, que é a rainha de todas as suas ações.
34.13
Eu disse que eles eram “humildes, porque verdadeiramente grandes.”
Em vossa vida, ao invés, que é que acontece? Acontece que um, não porque
seja grande, mas porque é mais prepotente, se faz poderoso por sua
prepotência, nunca humilde, pela vossa insensata idolatria,. Há pobres
coitados que, só por serem mordomos de alguém arrogante, ou porteiros de
algum gabinete, funcionários de alguma repartição, servos afinal, de quem
assim os fez, costumam tomar a pose de semideuses. Tem-se pena até de vê-
los!…
Eles, os três sábios, eram realmente grandes. Em primeiro lugar, por
virtude sobrenatural; em segundo lugar, pela ciência; e, por último, pela
riqueza. Mas eles se julgam nada: pó sobre o pó da terra, se comparados
com Deus Altíssimo, que cria os mundos com um sorriso, espalhando-os
pelo espaço, como grãos de trigo, para alegrar os olhos dos anjos com os
colares de estrelas.
Mas eles se consideram nada, diante de Deus Altíssimo, que criou o
planeta, sobre o qual eles vivem, e como Escultor infinito em sua ilimitada
obra fez tudo bem diversificado, colocando, aqui uma série de colinas de
suave declive, com a força do seu polegar, acolá uma ossatura de picos e
escarpas, iguais as vértebras da terra, neste corpo desmesurado, do qual os
rios são as veias, os lagos são as pelves, os oceanos são os corações, tendo
as florestas como vestes, as nuvens como véus, as geleiras de cristal como
decorações, as turquezas e as esmeraldas como gemas, as opalas e os berilos
de todas as águas que descem cantando, com as selvas e os ventos, formando
o grande coro de louvor ao seu Senhor.
Eles se consideram nada em sua sabedoria, diante do Deus Altíssimo,
do qual vem a sua sabedoria, pois foi Ele quem lhes deu olhos, ainda mais
poderosos que suas duas pupilas, pelas quais eles vêem as coisas: os olhos
da alma, que sabem ler a palavra não escrita por mão humana nas coisas,
onde esta palavra foi gravada pelo pensamento de Deus.
Eles se consideram nada em sua riqueza: um átomo, diante da riqueza do
Dono do universo, que espalha metais e pedras preciosas nos astros e
planetas, e abundâncias sobrenaturais, riquezas inesgotáveis, no coração de
quem O ama.
34.14
Tendo eles chegado diante de uma pobre casa, na mais insignificante
das cidades de Judá, não sacodem a cabeça dizendo: “Impossível”, mas
dobram as costas, os joelhos, e especialmente o coração, e adoram. Lá, atrás
daquela pobre parede, está Deus. Aquele Deus que eles sempre invocaram,
não ousando nunca, nem de longe, esperar que o haveriam de ver. Mas que
por eles foi invocado pelo bem de toda a humanidade e pelo bem eterno
“deles” mesmos. Oh! Só isto é o que eles desejavam para si. Poderem vê-lo,
conhecê-lo, possuí-lo naquela vida que não tem nem auroras, nem
crepúsculos!
Ele está lá, atrás daquela pobre parede. Quem sabe se o seu coração de
Menino, que é também o coração de um Deus, não ouça estes três corações
que, inclinados no pó da estrada, bradam: “Santo, Santo, Santo. Bendito o
Senhor nosso Deus. Glória a Ele nos Céus altíssimos, e paz aos seus servos.
Glória, glória, glória e bênção”? Isto eles perguntam, tremendo de amor. Por
toda a noite, e na manhã seguinte preparam com a mais viva oração, o seu
espírito, para entrarem em comunhão com o Deus-Menino.
Eles não vão a este altar, que é um seio virginal, que traz em si a Hóstia
Divina, como vós ides a eles com a alma cheia de solicitudes humanas. Eles
se esquecem do sono e do alimento e se usam suas mais belas vestes, não é
para ostentação humana, mas para prestar honra ao Rei dos reis. Nos
palácios dos soberanos, os dignitários se apresentam com suas mais belas
vestes. Então, não deveriam eles ir apresentar-se a este Rei com suas vestes
de gala? Que festa maior podia haver para eles do que esta?
Oh! Lá em suas terras longínquas, muitas e muitas vezes precisaram se
adornar para prestar honras e oferecer seus préstimos a homens como eles.
Era, pois, justo que se humilhassem aos pés do Rei supremo e lá
depositassem as suas púrpuras e jóias, sedas e plumas preciosas. Pôr-lhe
aos pés, diante daqueles benditos pezinhos, as fibras da terra, as gemas da
terra, as plumas da terra, os metais da terra — que são ainda obras
dele — para que também elas, essas coisas da terra, adorem o seu Criador.
Seriam felizes se a Criancinha lhes ordenasse que se estendessem no chão,
como se fossem um tapete vivo, aos seus passinhos de Menino, e os pisasse,
Ele que deixou as estrelas por amor deles, que nada mais são do que pó.
34.15
Humildes e generosos. Obedientes às “vozes” do Alto. Essas vozes
mandam que eles levem presentes ao Rei recém-nascido. Eles levam
presentes. Não dizem: “Ele é rico, e não precisa disso. Ele é Deus, e não
conhecerá a morte”. Eles obedecem. São os primeiros que acodem à pobreza
do Salvador. Como chegou em boa hora aquele ouro, para quem amanhã
deveria sair de sua terra como fugitivo! Como foi significativa aquela mirra,
para quem, dentro em breve, seria morto. Como foi piedoso aquele incenso,
para quem teria que sentir o mau cheiro da luxúria humana fervendo ao redor
de sua infinita pureza!
Humildes, generosos, obedientes e respeitosos um para com o outro. As
virtudes geram outras virtudes. Das virtudes voltadas para Deus, nascem
virtudes para o próximo. Respeito que, no fim, é caridade. Combinaram com
o mais velho que lhe tocaria falar por todos, recebendo o primeiro beijo do
Salvador, segurando-o pela mãozinha. Os outros ainda poderão vê-lo outras
vezes. Mas ele, não. Ele está velho, e o dia de sua volta para Deus está
perto. Ele verá o Cristo, depois de sua terrível morte, e o acompanhará junto
com os outros que serão salvos, no dia da volta do Cristo para o Céu. Mas
não o verá mais nesta terra. Então, para seu viático, que lhe fique o calor
daquela mãozinha, que se confiou à sua mão enrugada.
Não há nenhuma inveja nos outros. Pelo contrário, há até um aumento de
veneração para com o mais velho dos sábios. Mais do que eles, mereceu na
certa, e por mais tempo. O Deus-Menino sabe disso. Ainda não fala, Ele que
é a Palavra do Pai, mas os Seus atos são palavras. E seja bendita a sua
inocente palavra, que mostra ser o seu predileto este velho.
34.16
Mas, ó filhos, há outros dois ensinamentos nesta visão.
A postura de José, que sabe ficar em “seu” lugar. Ele está presente como
guarda e tutor da Pureza e da Santidade. Mas não é um usurpador dos
direitos delas. É Maria, com o seu Jesus, que está recebendo homenagens e
palavras. José se alegra por ela, não ficando amargurado por ser uma figura
secundária. José é um justo: o Justo. É justo sempre, também nesta hora. As
fumaças da festa não lhe sobem à cabeça. Ele continua humilde e justo.
Ele se sente feliz pelos presentes. Não por si mesmo. Mas porque pensa
que com eles poderá fazer a vida de sua esposa e do doce Menino mais
cômoda. Não existe avidez em José. Ele é um trabalhador, e continuará a
trabalhar. Contanto que “Eles”, os seus dois amores, tenham o necessário, e
algum conforto. Nem ele nem os magos sabem que aqueles presentes vão
servir durante uma fuga e uma vida no exílio, nas quais as substâncias
desaparecem como uma nuvem impelida pelo vento… mas eles vão servir
também para quando voltarem à pátria, depois de terem perdido tudo o que
tinham deixado, os clientes, os móveis, salvando-se somente as paredes da
casa, protegida por Deus, porque nela é que Ele se uniu à virgem e se fez
Carne.
José é humilde, ele, que é guarda de Deus e da mãe de Deus, esposa do
Altíssimo, chega até a segurar o estribo para estes vassalos de Deus. José é
um pobre carpinteiro, porque a prepotência humana despojou os herdeiros
de Davi de suas propriedades reais. Mas ele é sempre da estirpe de Davi e
tem traços de rei. Também em relação a ele vale aquele dito: “Era humilde,
porque era realmente grande.”
34.17
Ainda um último, suave e significativo ensinamento.
É Maria, que segura a mão de Jesus, que ainda não sabe abençoar, e a
guia no gesto santo.
É sempre Maria que segura a mão de Jesus e a guia. Ainda hoje é assim.
Agora, Jesus sabe abençoar. Mas, às vezes, sua mão traspassada cai,
cansada e sem poder mais confiar, pois Ele sabe que é inútil abençoar. Na
verdade, vós destruís a minha bênção. Ela cai também indignada porque vós
me maldizeis. Então, é Maria que tira o desprezo feito a esta mão, ao beijá-
la. Oh! O beijo de minha mãe! Quem pode resistir a esse beijo? Depois, ela
segura o meu pulso, com seus dedos delicados, mas que são amorosamente
tão imperiosos e me força a abençoar.
Eu não posso repelir a minha mãe. Mas é preciso que vós vades à
procura dela, para fazê-la vossa advogada. Ela é minha rainha, antes de ser
vossa, e o seu amor por vós tem indulgências tais, que nem o meu conhece.
Ela, mesmo sem palavras, mas só com as pérolas do seu pranto e com a
lembrança da minha Cruz, cujo sinal ela me faz traçar no ar, defende a vossa
causa, e ainda me admoesta: “Tu és o Salvador. Salva!”
34.18
Eis, meus filhos, o “Evangelho da fé”, na aparição da cena dos
Magos. Meditai e imitai. Para o vosso bem.
[57] estas contemplações, a p rimeira das quais é a única a fazer p arte da obra. As outras, chamadas igualmente “evangelhos da
fé”, não são ep isódios p rop riamente do “Evangelho come me foi revelado” e encontram-se no volume I Quaderni del 1944 (Os
cadernos de 1944).
[58] um sinal da cruz, que é o Tau, como M aria Valtorta anota entre p arêntesis sobre uma cóp ia dactilografada. Letra do
alfabeto grego em forma de cruz, o “tau” é o sinal dos salvados indicado em: Ezequiel 9,4-6. Encontrá-lo-emos ainda, p or
exemp lo, em: 397.3 -413.6 -491.3 -567.15 -635.4.11.
[59] longínquas Índias, Jesus me diz depois -assim anota M aria Valtorta em rodap é na p ágina do caderno autógrafo -que por
Índias quer dizer Ásia meridional, onde agora se encontra o Turkemenistão, o Afganistão e a Pérsia; e acrescenta: exp licações
a incluir em rodap é na folha.
35. A Fuga para o Egito. Ensinamentos
sobre a última visão ligada à vinda de Jesus.
9 de junho de 1944.
35.1
O meu espírito vê a seguinte cena.
É noite. José dorme em sua cama no seu pequeno quarto. Um sono
tranqüilo de quem descansa de muito trabalho, feito com honestidade e
capricho.
Eu o vejo na escuridão do ambiente, rompida apenas por um pouco da
luz do luar, que penetra por uma abertura da janela, encostada, mas não
totalmente fechada, como se José tivesse calor ou quisesse ter aquele pouco
de luz, para saber calcular o despontar da alvorada, levantando-se diligente.
Ele está deitado de lado e, no sono, sorri, quem sabe a qual sonho que esteja
tendo.
Mas, seu sorriso se transforma em preocupação. Ele suspira
profundamente, como se faz quando se tem um pesadelo, e acorda
sobressaltado. José se assenta sobre a cama, esfrega os olhos, e olha ao
redor de si. Olha, depois, para a janela, por onde está entrando a claridade
do luar. É noite alta, mas ele pega a roupa, que está estendida aos pés da
cama e, continuando sentado sobre a mesma, a vai vestindo sobre a túnica
branca de mangas curtas que ele trazia sobre a pele. Afastadas as cobertas,
põe os pés no chão e procura as sandálias. Depois ele as calça e amarra.
Põe-se em pé e vai até a porta, que está em frente de sua cama, não a que
está de lado e que dá para o salão onde foram recebidos os Magos.
Ele bate à porta, de leve, só um toc-toc, com a ponta dos dedos. José
deve ter ouvido que está sendo convidado a entrar, porque abre com cuidado
a porta, e a torna a encostar, sem fazer barulho. Antes de ir até à porta, ele
acendeu uma pequena candeia, de um só bico, e assim tem uma luz para
poder andar. Ele entra. Mas, em um quarto pouco maior do que o seu, e no
qual está uma caminha ao lado de um berço, ele vê uma luzinha já acesa; a
chama vacilante, que está a um canto, parece uma estrelinha de uma luz tênue
e dourada, que permite enxergar, mas sem incomodar quem estiver
dormindo.
35.2
Maria, porém, não está dormindo. Ela está ajoelhada junto ao berço,
vestida com sua veste clara, e está rezando, velando a Jesus que dorme
tranqüilo, Jesus que tem a idade em que o vi na visão dos Magos. É uma
criança de cerca de um ano, bonita, rósea e loira, que está dormindo, com a
cabecinha de cabelos encaracolados afundada no travesseiro, e com uma
mãozinha com o punho fechado, encostada na garganta.
– Não estás dormindo? –pergunta José, em voz baixa, e admirada–. Por
que? Jesus não está bem?
– Oh, não! Ele está bem. Eu estou rezando. Mas certamente depois
dormirei. Por que vieste, José?
Maria fala, permanecendo ajoelhada onde estava.
José fala em voz muito baixa, para não despertar o Menino, mas sua voz
é agitada.
– Precisamos ir embora logo daqui. Mas logo! Prepara o baú e um saco
com tudo o que puder caber nele. Eu vou preparar tudo o mais, e levarei o
mais que puder. Ao romper da aurora, fugiremos. Eu faria isso até antes, mas
preciso falar com a dona da casa…
– Mas, por que esta fuga?
– Depois, eu te falarei melhor. É por causa de Jesus. Um anjo me disse:
“Pega o Menino e a mãe, e foge para o Egito.” Não percas tempo. Eu vou
preparar o que puder.
35.3
Não há necessidade de dizer a Maria que não perca tempo. Assim que
ela ouviu falar de anjo, de Jesus e de fuga, compreendeu que está em perigo
o seu Filho, pôs-se em pé, branca como se tivesse um rosto de cera, com
uma mão posta sobre o coração, angustiada. Logo começou a mover-se,
desembaraçada e ligeira, e a arrumar as roupas no baú e num grande saco,
que ela estendeu sobre o leito, e que ainda não foi usado. Certamente está
aflita, mas não perde a cabeça, e faz tudo apressadamente, mas com ordem.
De vez em quando, ao passar por perto do berço, olha para o Menino, que
está dormindo sem saber de nada.
– Estás precisando de ajuda? –pergunta-lhe José, de vez em quando,
pondo a cabeça para dentro da porta, que está entreaberta.
– Não, obrigada –responde sempre Maria.
Somente quando o saco está cheio, e fica pesado, é que ela chama José
para ajudá-la a fechá-lo e levantá-lo da cama. Mas José não quer ser
ajudado e faz tudo sozinho, pegando o grande volume, e levando-o para o
seu quartinho.
– Pego também as cobertas de lã? –pergunta Maria.
– Pega o mais que puderes. Porque o que ficar estará perdido. Por isso,
o mais que puderes, apanha-o! Para nós vai ser bom, porque… porque
teremos pela frente uma longa viagem, Maria!…
José fica muito sentido, ao ter que dizer isso. Pode-se imaginar como
está Maria. Suspirando, ela vai dobrando suas colchas e as de José e ele as
amarra com uma corda:
– Vamos deixar os acolchoados e as esteiras –diz ele, enquanto amarra
as colchas–. Ainda que eu levasse três burrinhos, não posso sobrecarregá-
los demais. Temos que fazer uma longa e incômoda viagem, uma parte pelas
montanhas, e outra pelo deserto. Cobre bem Jesus. As noites serão frias tanto
nas montanhas, como no deserto. Apanhei os presentes dos Magos, porque
eles nos serão úteis lá embaixo. Tudo o que eu tiver gastarei para comprar
os dois burrinhos. Nós não podemos mandá-los de volta, e por isso eu
preciso adquiri-los. Eu vou, sem ficar esperando o romper da aurora. Sei
onde procurá-los. Tu, acabas de preparar tudo.
E sai. Maria recolhe ainda alguns objetos e, depois de ter ido ver Jesus,
sai e volta com duas pequenas vestes que parecem estar ainda úmidas, talvez
tenham sido lavadas no dia anterior. Ela as dobra e envolve em um pano e as
ajunta com as outras coisas. Já não há mais nada.
Ela olha ao redor e vê um brinquedo de Jesus em um canto: é uma
ovelhinha entalhada em madeira. Ela a pega com um soluço, e a beija. A
madeira está com os sinais dos dentinhos de Jesus, e as orelhas da ovelhinha
estão mordiscadas. Maria acaricia aquele objeto sem valor, feito com uma
madeira clara e comum, mas que para ela é de grande valor, porque lhe fala
do afeto de José por Jesus e lhe fala também do seu Menino. Por isso o põe
também junto com as outras coisas sobre o baú já fechado.
35.4
Agora, já não há mais nada mesmo. Só falta Jesus, que ainda está em
seu bercinho. Maria acha que é bom prepará-Lo também. Vai ao berço e o
sacode um pouco para despertá-Lo. Mas Ele dá apenas um leve sinal, e
virando-se para o outro lado, continua a dormir. Maria o acaricia de leve,
sobre os caracoizinhos. Jesus abre a boquinha para um bocejo. Maria se
inclina e o beija na face. Jesus acaba de despertar. Abre os olhos. Vê a
mamãe, e sorri, e estende as mãozinhas para o seio dela.
– Sim, amor da mamãe. Sim, o leite. Antes da hora habitual… Mas Tu
estás sempre pronto para sugar tua mamãe, meu santo cordeirinho!
Jesus ri e brinca, agitando os pezinhos para fora das cobertas, agitando
os braços com uma daquelas alegrias de criança, tão bela de se ver. Ele
apóia os pezinhos sobre o estômago da mãe, curva-se como um arco e apóia
também a cabecinha loira sobre o seu seio e, depois, se atira para trás,
rindo, com as mãozinhas agarradas aos cordõezinhos que ajustam o vestido
ao pescoço de Maria, procurando abri-lo. Em sua camisinha de linho Ele
está muito bonito, gorducho, rosado como uma flor.
Maria se inclina e, estando assim por cima do berço como uma
proteção, chora e sorri ao mesmo tempo, enquanto o Menino balbucia
aquelas palavras, de todos os bebês, que não são palavras, e entre as quais
ouve-se já clara e repetidamente a palavra “mamãe”. Ele olha para ela,
admirado por vê-la chorar. Estende uma mãozinha para as lágrimas que
caem, e se deixa molhar por aquelas carícias. Gracioso, torna a apoiar-se no
seio materno, e se encolhe todo, acariciando-o com sua mãozinha.
Maria o beija por entre os cabelos, e o pega no colo, senta-se e o veste.
O vestidinho de lã já está posto, e as sandalinhas também. Maria lhe dá de
mamar, Jesus suga contente o bom leite de sua mamãe e, quando percebe que
da direita está vindo menos, procura a esquerda, ri ao fazer isso, olhando de
alto a baixo para sua mamãe. Depois adormece de novo sobre o seio dela.
Sua bochecha rosada e gorducha está ainda contra o seio branco e redondo.
Maria se levanta, lentamente, e o coloca sobre a colcha de seu leito.
Cobre-o com o seu manto. Volta ao berço e dobra as pequenas cobertas. Fica
pensando se não será bom pegar também o pequeno colchão. É tão pequeno!
Pode-se levar. Então, Ela o coloca, junto com o travesseiro, perto das coisas
já postas sobre o baú. Chora sobre o berço vazio a pobre mãe, que está
sendo perseguida com seu Filho.
35.5
José já está de volta.
– Estás pronta? Jesus está pronto? Pegaste as suas cobertas, a sua
caminha? Não podemos levar o berço, mas pelo menos que Ele tenha o seu
pequeno colchão, pobre Pequenino, que procuram a sua morte!
– José!
Maria dá um grito, enquanto se agarra ao braço de José.
– Sim, Maria, a sua morte. Herodes o quer morto… porque tem medo…
por causa do seu reino humano, ele tem medo deste Inocente, aquela fera
imunda. Que irá ele fazer, quando ficar sabendo que o Menino fugiu, eu não
sei. Mas nós já estaremos longe. Não creio que ele queira se vingar,
procurando-o até na Galiléia. Já lhe seria muito difícil descobrir que nós
somos galileus, e mais ainda, que nós somos de Nazaré, e quem é que somos
exatamente. A não ser que Satanás o ajude, para agradecê-lo por ser-lhe um
servo fiel. Mas… se isso acontecesse… Deus nos ajudará do mesmo modo.
Não chores, Maria. Ver-te chorar é para mim uma dor bem mais forte do que
a de ter que ir para o exílio.
– Perdoa-me, José. Não é por mim que eu choro, nem pelas poucas
coisas que vamos deixar. Eu choro por ti… Já tiveste que sacrificar-te tanto!
E agora tornas a ficar de novo sem clientes e sem casa. Quanto eu custo para
ti, ó José!
– Quanto? Não, Maria. Tu não me custas nada. Tu me consolas. Sempre.
Não fiques pensando no dia de amanhã. Nós temos as riquezas dos magos.
Elas nos ajudarão nos primeiros tempos. Depois, eu acharei trabalho. Um
operário honesto e que tenha capacidade, logo abre caminhos. Já viste como
foi aqui. As horas não me bastam para o trabalho que tenho.
– Eu sei. Mas, quem te aliviará da saudade?
– E a ti, quem te aliviará da saudade daquela casa de que tanto gostas?
– Jesus. Tendo-o, tenho o que lá tive.
– E eu, tendo Jesus, tenho a pátria a qual tenho esperado até a poucos
meses. Tenho o meu Deus. Estás vendo como não vou perder nada do que me
é mais querido sobre todas as coisas. Basta que salvemos a Jesus, que tudo
ficará conosco. Mesmo que não tivéssemos mais de ver este céu, estes
campos, nem aqueles ainda mais queridos da Galiléia, teríamos sempre tudo,
porque o temos. 35.6Vem, Maria, que o amanhecer está chegando. É hora de
irmos saudar a nossa hospedeira e pegar as nossas coisas. Tudo irá bem.
Maria se levanta, obediente. Envolve-se no manto, enquanto José está
fazendo um último embrulho, e depois sai, transportando-o.
Maria soergue delicadamente o Menino, e o envolve com um xale,
apertando-o contra o coração. Olha para as paredes que a hospedaram
durante alguns meses, e, com uma mão, toca nelas de leve. Feliz casa, que
mereceu ser amada e abençoada por Maria!
Ela sai. Atravessa o pequeno quarto, que era de José, e entra no salão. A
dona da casa, em lágrimas, a beija e saúda, e, levantando uma das
extremidades do xale, beija na fronte o Menino, que está dormindo tranqüilo.
Descem pela escadinha externa.
Vem chegando uma primeira claridade da aurora, quando se começa a
ver alguma coisa. Naquela pouca luz, pode-se ver três burrinhos. O mais
robusto está carregado com as alfaias. Os outros, estão selados. José faz
força para acomodar bem o baú e os embrulhos sobre a albarda do primeiro.
Vejo as suas ferramentas de carpinteiro, amarradas em pacotes, dentro do
saco.
Ainda há saudações e lágrimas. Depois Maria monta no seu burrinho,
enquanto a dona da casa segura Jesus no colo, e o beija ainda, devolvendo-O
depois a Maria. José monta também, tendo antes amarrado o seu jumento ao
outro jumento, que vai com a bagagem, a fim de ficar com a mão livre para
segurar o burrinho de Maria, pelo cabresto.
A fuga tem início, enquanto Belém, que sonha ainda com a fantástica
cena dos Magos, dorme quieta, sem saber o que a espera.
E a visão cessa assim.
Jesus diz:
35.7
26 de janeiro de 1944.
36.7
Jesus diz:
– A lição para ti e para os outros é dada pelas coisas que estás vendo. É
lição de humildade, de resignação e de boa harmonia. Posta como exemplo a
todas as famílias cristãs, e especialmente às famílias cristãs deste especial e
doloroso momento.
36.8
Tu viste uma casa pobre. O que é mais doloroso, uma casa pobre em
país estrangeiro.
Muitos, só porque são dos fiéis “passáveis”, que rezam e Me recebem
na Eucaristia, rezam e comungam pelas “suas” necessidades, não pelas
necessidades das almas e pela glória de Deus, porque é raro alguém rezar
sem ser egoísta, muitos pretenderiam ter uma vida material fácil, bem
protegida de qualquer menor sofrimento, próspera e feliz.
José e Maria tinham a Mim, Deus verdadeiro, como seu Filho e, no
entanto, não tiveram nem o pobre bem de serem pobres na própria pátria, no
lugar onde eram conhecidos, onde ao menos tinham a “própria” casinha, e
um alojamento não era uma preocupação constante entre tantas outras,
naquele lugar onde, por serem conhecidos, era mais fácil encontrar trabalho
e prover-se do necessário para a vida. Eles são dois fugitivos, e justamente
porque Me têm consigo. O clima é diferente, o lugar é diferente, tão triste em
comparação com os doces campos da Galiléia, língua e costumes diferentes,
em meio a uma população que não os conhece, e que tem a habitual
desconfiança para com desconhecidos.
Privados daqueles móveis cômodos e estimados da “sua” casinha, de
tantas coisas humildes mas necessárias que lá havia, e que não pareciam tão
necessárias, enquanto que aqui, neste nada que os rodeia, parecem tão belas,
como aquelas coisas supérfluas, que tornam as casas dos ricos deliciosas.
Com saudade da cidade e da casa, com o pensamento naquelas pobres coisas
lá deixadas, do pomar, do qual talvez ninguém esteja cuidando, da videira e
da figueira e de outras muitas árvores úteis. Com a necessidade de prover ao
alimento de cada dia, às roupas, ao fogo, dia após dia, às Minhas
necessidades de criança, à qual não se pode dar o alimento dos grandes.
Com tanto desgosto no coração. Pelas saudades, pelo amanhã, que ainda é
desconhecido, pela desconfiança de um povo que se esquiva, principalmente
nos primeiros tempos, a aceitar as ofertas de trabalho de dois
desconhecidos.
Contudo, tu viste a casa. Naquela morada paira a serenidade, o sorriso,
a concórdia, e se procura torná-la mais bela de comum acordo; também a
pobre hortinha, para que fique parecida com a que foi deixada, e mais
confortável. Nesta casa só há um pensamento: que esta terra se torne menos
hostil, menos miserável para Mim, Santo, que venho de Deus. O amor destas
pessoas de fé, que são os meus pais, amor que se manifesta em mil cuidados,
desde a cabrita que compraram a preço de muitas horas extras de trabalho,
até aos brinquedos entalhados em sobras de madeira, às frutas apanhadas só
para Mim, sem que delas eles nem provassem.
Meu querido pai da terra, como foste amado por Deus, por Deus Pai no
alto dos Céus, por Deus Filho, que se fez Salvador sobre a terra!
Naquela casa não houve nervosismos, mau humor, caras fechadas, nem
reprovações recíprocas, nem, muito menos, se falou contra Deus, que não os
cumulou com o bem-estar material. José não censura Maria por ser causa de
suas dificuldades, nem Maria censura José por ele não saber-lhe dar um
maior bem-estar. Eles se amam santamente, eis a explicação. Portanto, a
preocupação não é com o próprio bem-estar, mas cada um se preocupa com
o outro. O verdadeiro amor não conhece egoísmo. O verdadeiro amor é
sempre casto, mesmo sem castidade perfeita dos dois esposos virgens. A
castidade unida à caridade leva consigo todo um acompanhamento de outras
virtudes, fazendo de dois que se amam castamente, duas perfeições de
cônjuges.
O amor de minha mãe e de José era perfeito. Por isso ele era um
incentivo para todas as outras virtudes e especialmente para a da caridade
para com Deus, bendito em todo tempo, não obstante sua santa vontade fosse
penosa para a carne e o coração, bendito porque, acima da carne e do
coração, o espírito estava mais vivo e senhor nos dois santos. Este espírito,
com reconhecimento, exaltava o Senhor, por tê-los escolhido para serem
guardas do seu eterno Filho.
36.9
Naquela casa se rezava. Agora reza-se pouco nas casas. Nasce o dia e
chega a noite, começam-se os trabalhos, e sentai-vos à mesa sem um
pensamento dirigido ao Senhor, que vos permitiu ver um novo dia, podendo
chegar a uma nova noite, que abençoou as vossas fadigas, concedendo que
essa fadigas se tornassem o meio de conquistar aquele alimento que o fogo
cozinhou, as vestes que vestis, aquele teto, todo o necessário à vossa
natureza humana. Sempre é “bom” o que vem do bom Deus. Ainda quando
pobre e escasso, o amor lhes dá sabor e substância, esse amor que vos faz
ver o Pai que vos ama no eterno Criador.
Naquela casa há frugalidade. Haveria, mesmo que o dinheiro não
faltasse. Eles se nutrem para viver, e não para agradar à gula, com a
voracidade dos insaciáveis, com os caprichos dos gulosos, que se vão
enchendo até não poderem mais, e esbanjam seus haveres em alimentos
caros, sem um pensamento aquem tem pouco ou é privado de alimento, sem
refletirem que, se tivessem moderação, muitos poderiam ser aliviados do
tormento da fome.
Naquela casa se ama o trabalho. Ele seria amado, mesmo se o dinheiro
fosse abundante, porque no trabalho o homem obedece ao mandamento de
Deus e se livra do vício que, como hera firme, aperta e sufoca os ociosos,
como blocos imóveis de pedra. Bom é o alimento, sereno é o repouso,
contente está o coração, quando se trabalhou bem e se goza o tempo de pausa
entre um trabalho e outro. Aquele vício que tem múltiplas faces, não se
arraiga na casa e na mente de quem ama o trabalho. Não se arraigando, então
aí prospera o afeto, a estima, o respeito recíproco, e os pequenos pimpolhos
crescem numa atmosfera pura, e dão origem a futuras famílias santas.
Naquela casa reina a humildade. Esta é uma lição de humildade para
vós, soberbos! Maria teria tido, humanamente, mil e uma razões para se
ensoberbecer fazendo-se adorar por seu cônjuge. Tantas mulheres assim
fazem, somente por serem um pouco mais cultas, ou de nascimento mais
nobre, ou mais ricas que o marido. Maria é Esposa e mãe de Deus, e, no
entanto, serve o seu cônjuge, não se fazendo servir por ele, é toda amor para
com ele. José é o chefe de casa, julgado por Deus tão digno de ser um chefe
de família, a ponto de receber de Deus a guarda do Verbo feito carne e da
Esposa do eterno Espírito. Contudo, é sempre solícito em poupar Maria de
fadigas e trabalhos, fazendo até os mais humildes trabalhos de casa, para que
Maria não se canse. Mas não só, pois procura proporcionar a Ela alguma
recreação o quanto pode, esforçando-se para tornar-lhe a casa cômoda, e a
pequena horta com flores viçosas.
Naquela casa a ordem é respeitada. Sobrenatural, moral e material.
Deus é o Chefe supremo e a Ele é prestado culto e amor: ordem
sobrenatural. José é o chefe da família e a ele é dado afeto, respeito e
obediência: ordem moral. A casa é um dom de Deus, como as vestes e os
móveis. Em todas as coisas é a Providência de Deus que se mostra, daquele
Deus que provê a lã às ovelhas, as penas aos pássaros, as ervas aos prados,
o feno aos animais, as sementes e as árvores frondosas às aves, tecendo a
veste para o lírio do vale. A casa, as vestes, os móveis são recebidos com
gratidão, bendizendo a mão divina, tratando-os com respeito como dons do
Senhor, sem olhar com descontentamento porque são pobres, sem estragar os
dons, abusando da Providência: ordem material.
36.10
Não entendeste as palavras trocadas no dialeto de Nazaré, nem as
palavras de oração. Mas as coisas vistas deram uma grande lição. Meditai-
as, ó vós todos, que agora tanto estais sofrendo por terdes falhado para com
Deus, também aquelas coisas em que não falharam nunca os santos Esposos,
que foram mãe e pai para Mim.
E tu, deleita-te com a recordação do pequeno Jesus, sorri, pensando em
seus passinhos de criança. Dentro em pouco, o verás, caminhando debaixo
de uma cruz. E será uma visão de pranto.
37. Primeira lição de trabalho dada a Jesus,
que não saiu da regra da idade.
21 de março de 1944.
37.1
Vejo aparecer, como um doce raio de sol em um dia de chuva, o meu
Jesus, pequeno menino beirando os seus cinco anos, todo loiro e bonito, na
sua simples vestezinha azul-clara que lhe desce até o meio da barriga da
perna.
Ele está brincando com terra na horta. Está fazendo montinhos e, em
cima deles, vai fincando raminhos, como se estivesse formando bosques em
miniatura. Com pedrinhas faz pequenas estradas, e depois queria fazer um
pequeno lago, aos pés de suas minúsculas colinas, e, para isso, pega o fundo
de uma vasilha velha e o enterra até a beira, depois o enche d’água com um
jarro que ele mergulha em um tanque, certamente usado como lavatório ou
para regar a pequena horta. Mas não consegue nada mais do que molhar toda
a roupa, especialmente as mangas. A água escapa da vasilha, que está toda
esburacada… e o lago continua seco.
José aparece à porta e, em silêncio, fica a olhar, por algum tempo, a
trabalheira do Menino, e sorri. De fato, é um espetáculo que faz sorrir de
alegria. Depois, para que Jesus não continue a se molhar, ele o chama. Jesus
se vira sorrindo e, vendo José, corre para ele com os bracinhos estendidos.
José, com a ponta de sua veste de trabalho enxuga as pequenas mãos
molhadas e cheias de terra, e as beija. E um doce diálogo se inicia entre os
dois.
Jesus explica o seu trabalho e o seu brinquedo, e as dificuldades que
encontrou para executá-los. Ele queria fazer um lago, como aquele de
Genezaré (Deste eu suponho que lhe haviam falado, ou que o tinham já
levado até lá). Ele queria fazer aquele lago em miniatura para seu
divertimento. Aqui, neste ponto era Tiberíades, ali Magdala, lá adiante
Cafarnaum. Esta era a estrada que, passando por Caná, ia para Nazaré. Ele
queria lançar pequenos barcos no lago — estas folhas são os barcos — e
passar para a outra margem. Mas a água está escapando…
José observa, e se interessa, como se fosse uma coisa séria. Depois ele
se propõe a fazer, no dia seguinte, um pequeno lago, não com aquela vasilha
furada, mas com um pequeno tanque de madeira, bem calafetado com breu,
sobre o qual Jesus poderia lançar verdadeiros barquinhos de madeira que
José o ensinaria a fazer. 37.2Agora mesmo ele já estava trazendo pequenas
ferramentas de trabalho, apropriadas para Jesus, a fim de que Ele pudesse
aprender a usá-las, sem se cansar muito.
– Assim eu te ajudarei! –diz Jesus, com um sorriso.
– Sim, vais me ajudar, e depois te tornarás um bom carpinteiro. Vem vê-
las!
E entram na oficina. José lhe mostra um pequeno martelo, uma serrinha,
pequenas chaves de fenda, uma plaina de boneca, tudo colocado sobre um
banco de carpinteiro na relva: um banco adaptado à altura do pequeno Jesus.
– Olha: para serrar, coloca-se esta madeira apoiada assim. Pega-se
depois a serra assim, e prestando atenção para não ir com ela sobre os
dedos, se serra. Experimenta…
E a lição começa. Jesus tornando-se vermelho, pelo esforço feito, e
apertando os lábios, vai serrando com atenção e, depois, alisa a pequena
tábua com a plaina e, ainda que tenha ficado um pouco torta, parece-lhe
bonita, e José o elogia, e o ensina a trabalhar com paciência e amor.
37.3
Maria retorna, pois certamente estava fora, e ao chegar à porta
olha. Os dois não a vêem, porque estão de costas. A mamãe sorri, ao ver
o cuidado com que Jesus trabalha com a plaina, e o afeto com que José o
ensina.
Mas Jesus deve estar sentindo aquele sorriso. Ele se vira, vê a mamãe, e
corre para ela com a sua tabuinha semi-aplainada, e lhe mostra. Maria fica
admirada, e se inclina para beijar Jesus. Ela compõe os cachinhos do cabelo
desalinhado, enxuga-lhe o suor do rosto afogueado, escuta com afeto que Ele
lhe promete fazer-lhe um banquinho, para ficar mais cômodo para ela
trabalhar.
José, em pé junto ao pequeno banco, com as mãos nas ilhargas, olha e
sorri.
Eu assisti à primeira lição de trabalho do meu Jesus. E toda a paz desta
Família santa está em mim.
37.4
Jesus diz:
– Eu te consolei, alma querida, com uma visão da minha infância, feliz
em sua pobreza, porque ela estava cercada do afeto dos dois maiores santos
do mundo.
37.5
Dizem que José foi o meu sustento. Oh! Se ele não pôde, por ser
homem, dar-me o leite, que Maria me nutriu, se desdobrou em pedaços no
trabalho, para me dar pão e conforto, tendo para comigo a gentileza de afetos
de uma verdadeira mãe. Eu aprendi dele — e nenhum aluno jamais teve um
mestre melhor — tudo o que faz de um menino, um homem. E um homem que
tem que ganhar o seu pão.
Mesmo se a minha inteligência de Filho de Deus fosse perfeita, é
preciso refletir que eu não quis sair insolitamente dos limites da minha
idade. Por isso, rebaixando a minha perfeição intelectual de Deus ao nível
de uma perfeição intelectual humana, sujeitei-me a ter um homem por mestre,
com a necessidade de alguém para me ensinar. Mesmo se tenha aprendido
com rapidez e boa vontade, isso não me tira o merecimento de ter-me
sujeitado a um homem, ao homem justo, que ensinou à minha pequena mente,
as noções necessárias para a vida.
As horas saudosas, passadas ao lado de José, para o qual foi um
brinquedo ensinar-me a ser capaz de trabalhar, Eu não me esqueço, nem
agora que estou no Céu. E, quando olho para o meu pai putativo, revejo o
pequeno pomar e a oficina fumacenta, e me parece estar vendo a mamãe
chegar com aquele seu sorriso, que transformava em ouro aquele lugar, e nos
tornava felizes.
37.6
Quanto teriam que aprender as famílias com a perfeição destes
esposos que se amaram como nenhum outro casal!
José era o chefe. A sua autoridade familiar era evidente e não discutida,
diante da qual se inclinava respeitosamente a da esposa e mãe de Deus e se
sujeitava o Filho de Deus. Tudo estaria bem, se José resolvia fazê-lo, sem
discussões, sem teimosia, sem resistências. A sua palavra era a nossa
pequena lei. E, não obstante isso, quanta humildade nele! Nunca um abuso de
poder, nunca uma vontade contra a razão, só por ser ele o chefe. A esposa
era a sua suave conselheira. E se, em sua humildade também profunda, ela se
julgava a serva de seu consorte, o consorte ia buscar na sabedoria dela, que
era a cheia de Graça, a luz que o guiava em todos os acontecimentos.
Eu crescia como uma flor protegida por duas árvores vigorosas, entre
estes dois amores, que se entrelaçavam sobre Mim para me proteger e me
amar.
Enquanto a idade me fez ignorar o mundo, Eu não tive saudades do
Paraíso. Deus Pai e o Divino Espírito não estavam ausentes, porque Maria
estava repleta Deles. E os anjos ali moravam, porque nada os afastava
daquela casa. Um deles, pode-se dizer assim, havia assumido a carne. Era
José, alma angélica, libertada do peso da carne, somente ocupada em servir
a Deus e à sua causa, amando-O, como amam os serafins. O olhar de José!
Plácido e puro como uma estrela que não conhece as concupiscências
terrenas. Ele era o nosso repouso e a nossa força.
37.7
Muitos acham que Eu não tenha humanamente sofrido, quando a morte
veio apagar aquele olhar santo, que vigiava a nossa casa. Se Eu era Deus e,
como tal, conhecedor da feliz sorte que esperava José, não entristecido,
portanto, pela sua partida que, depois de uma breve parada no Limbo, lhe
teria aberto o Céu, contudo, como Homem chorei naquela casa, que ficou
para nós vazia da sua amorosa presença. Chorei sobre o amigo falecido. Não
teria devido chorar por este meu santo, sobre cujo peito Eu tinha dormido,
quando era pequenino, e durante tantos anos, tinha recebido amor?
37.8
Enfim, faço observar aos pais como, sem o auxílio de uma erudição
pedagógica, José soube fazer de Mim um hábil operário. Logo que cheguei à
idade em que já podia manejar as ferramentas, sem deixar que Eu me
entregasse à ociosidade, ele me encaminhou para o trabalho, valendo-se do
meu amor por Maria para me estimular a trabalhar. Fazer objetos úteis à
mamãe. Era assim que ele me inculcava o devido respeito para com a
mamãe, que todo filho deveria ter, e sobre esta respeitosa e poderosa
alavanca, ele se apoiava ao ensinar o futuro carpinteiro.
Onde estão hoje as famílias nas quais se ensina os pequenos a amar o
trabalho, como meio de fazer algo agradável aos pais? Os filhos, agora, são
os tiranos da casa. Crescem duros, indiferentes, grosseiros para com os seus
pais. Acham que seus pais são seus servos, seus escravos. Não os amam e
são pouco amados. Porque, ao mesmo tempo que fazeis de vossos filhos uns
prepotentes caprichosos, também ficais longe deles, com um desinteresse
vergonhoso.
Os filhos são de todos, menos de vós, ó pais do século vinte. Eles são
da babá, da governanta, do colégio, se sois ricos. E são dos colegas de rua,
das escolas, se sois pobres. Mas, já não são vossos. Vós, ó mamães, os
gerais, e isso basta. Vós, ó pais, fazeis o mesmo. Mas o filho não é só carne.
Ele é mente, coração, espírito. Crede, pois, que ninguém, mais do que um pai
ou uma mãe, tem o dever e o direito de formar esta mente, este coração, este
espírito.
37.9
A família existe, e deve existir. Não existe nenhuma teoria ou
progresso que seja capaz de destruir esta verdade, sem provocar ruína. De
um instituto familiar desfeito, só podem vir futuros homens e futuras
mulheres cada vez mais depravados, e que serão causa de ruínas cada vez
maiores. Eu vos digo, em verdade, que seria melhor que não houvessem mais
casamentos e mais filhos sobre a terra, do que famílias menos unidas do que
as tribos dos macacos, famílias que não são escolas de virtude, de trabalho,
de amor e de religião, mas são caos, cada um vivendo como engrenagens
desmanteladas, que acabam se despedaçando.
Quebrai. Despedaçai. Os frutos desse vosso ato de despedaçar a forma
mais santa de vida social, vós os estais vendo e suportando. Continuai,
então, se quiserdes. Mas não vos lamenteis, se esta terra vai-se tornando
cada vez mais um inferno, morada de monstros, que devoram famílias e
nações. Vós o estais querendo. Que, então, isto vos aconteça!”
38. Maria, mestra de Jesus, de Judas e de Tiago.
29 de outubro de 1944.
38.1
Jesus diz:
– Vem pequeno João, e vê. Volta atrás, segura pela minha mão que te
conduz, aos anos da minha infância. O que vires deverá ser inserido no
Evangelho da minha infância, onde quero que seja colocada também a visão
da estadia da Família no Egito. Colocarás assim: a Família no Egito, depois
a primeira lição de trabalho do menino Jesus, depois o que agora vais
descrever, a cena da maioridade (prometida hoje 25-11)[62], por último a
visão de Jesus entre os doutores no Templo, na sua 12ª. Páscoa. Não é sem
motivo também o que agora irás ver. Mas, antes, esclarece alguns pontos e
ligações dos meus primeiros anos, e entre os parentes. É um presente para ti,
nesta festa da minha Realeza, para ti que sentes entrar-te a paz da Casa de
Nazaré, quando a vês. Escreve.
38.2
Vejo o quarto onde, habitualmente, se fazem as refeições e onde Maria
trabalha junto ao seu tear, ou com a agulha. O quarto é perto da oficina de
José, do qual se ouve o incansável trabalho. Mas neste quarto há silêncio.
Maria está costurando tiras de lã, certamente tecida por ela, com cerca de
meio metro de largura, por mais do que o dobro de comprimento, e me
parece que desse trabalho vai sair um manto para José.
Da porta aberta, que dá para o pomar-jardim, vêem-se sebes cheias de
folhas de pequenas margaridas de um azul violeta, que comumente são
chamadas “Marias” ou “Céu estrelado”, mas cujo nome científico eu não sei.
Estão floridas, e por isso deve ser outono. Mas o verde ainda está espesso e
bonito nas plantas, e as abelhas de duas colméias, que estão em cima de um
muro bem exposto ao sol, vão zumbindo, dançando e brilhando à luz solar,
indo de uma figueira para uma videira, e desta para uma romãzeira, cheia de
suas frutas redondas, que já estão se arrebentando pelo excesso de vigor, e
mostrando os colares de suculentos rubis, alinhados no interior do escrínio
verde-avermelhado, com compartimentos amarelos.
38.3
Debaixo das árvores, Jesus está brincando com dois meninos, mais ou
menos da sua idade. São de cabelos encaracolados, mas não loiros. Um,
aliás, é até moreno: uma cabecinha de cordeirinho preto, que faz aparecer
ainda mais branca a pele do rostinho redondo, no qual estão abertos dois
grandes olhos, de um azul tendente ao violáceo, muito bonitos. O outro tem
os cabelos menos encaracolados, e de uma cor castanho-escuro, olhos
castanhos e de um colorido mais moreno, mas com uma tonalidade rosada
nas faces. Jesus com a sua cabecinha loira, entre os outros dois, parece estar
nimbado por um fulgor. Eles brincam em boa harmonia com uns carrinhos
sobre os quais estão diversas mercadorias: folhas, pedrinhas, maravalhas,
pauzinhos. Fazem-se de mercadores certamente, e Jesus é que compra para a
mamãe, à qual vai levar, ora um objeto, ora outro. Maria, aceita com um
sorriso, as compras.
Mas depois a brincadeira muda. Um dos dois meninos propõe[63]:
– Vamos representar o Êxodo, atravessando o Egito. Jesus será Moisés,
eu Arão, e tu… Maria.
– Mas eu sou homem!
– Não faz mal. Faz assim mesmo. Tu és Maria, e dançarás diante do
bezerro de ouro, que vai ser aquela colméia lá.
– Eu não danço. Eu sou homem, e não quero ser mulher. Depois, eu sou
um fiel, e não quero dançar diante do ídolo.
Jesus, então, intervém:
– Vamos deixar este ponto. Vamos representar outro: quando Josué foi
escolhido para ser o sucessor de Moisés. Assim não entra aquele feio
pecado de idolatria, e Judas fica contente por ser um homem, e meu sucessor.
Assim ficas contente não é verdade?
– Sim, Jesus. Mas, então, Tu tens que morrer, porque Moisés morre,
depois. E eu não quero que Tu morras, logo Tu que me queres tão bem!
– Todos morrem… Mas Eu, antes de morrer, abençoarei a Israel, e,
como aqui estais somente vós, em vós Eu abençoarei todo Israel.
Foi aceita a proposta. Surge, porém, depois, uma dúvida. Se o povo de
Israel, depois de tanto andar, ainda teria, ou não, os carros que tinha, quando
saiu do Egito. As idéias são contraditórias.
Vão, então, recorrer a Maria.
– Mamãe, Eu digo que os israelitas tinham ainda os carros. Tiago diz
que não. E Judas não sabe a quem dar razão. Tu sabes?
– Sim, meu Filho. O povo nômade tinha ainda os seus carros. Nas
paradas os consertava. Subiam nos carros os mais fracos, onde também eram
transportadas as provisões, e coisas necessárias para o povo. Menos a Arca,
que era levada nas mãos. Tudo o mais ia nos carros.
A dúvida foi desfeita.
38.4
Os meninos vão para o fundo do pomar e, de lá, cantando salmos, vêm
vindo em direção da casa. Jesus vem na frente e, com sua vozinha clara e
afinada, canta alguns salmos. Atrás Dele vêm Judas e Tiago, segurando por
baixo uma carriolinha que está elevada ao grau de Tabernáculo. Mas, como
eles têm que fazer também a parte do povo, além da de Arão e Josué, tiraram
as suas cintas e com elas amarraram a seus pés os outros carros em
miniatura, e assim vão para frente, como se fossem verdadeiros atores.
Percorrem toda a parreira, passam diante da porta do quarto onde está
Maria, e Jesus diz:
– Mamãe, saúda a Arca que está passando.
Maria se levanta com um sorriso, e se inclina diante do Filho, que passa
radiante, em um nimbo de sol.
Depois, Jesus vai subindo pelo lado do monte que cerca a casa, ou
melhor, o jardim. Em cima da pequena gruta, tendo-se posto em pé, Ele fala
a… Israel. Fala das ordens e promessas de Deus, indica Josué como guia e o
chama para perto de Si. Judas, por sua vez, salta sobre a gruta. Jesus o
encoraja e abençoa. Depois, manda que lhe tragam uma tabuleta… (é uma
folha grande de uma figueira), nela escreve o cântico, e o lê. Não o lê todo,
mas uma boa parte, e parece que está lendo mesmo sobre a folha. Depois,
despede-se de Josué, que o abraça chorando, e sobe mais, até chegar à beira
da saliência onde estão. De lá, abençoa todo Israel, isto é, aos dois que estão
prostrados por terra, em seguida se estende sobre a erva curta, fecha os
olhos e… morre.
38.5
Maria, que tinha ficado à porta sorrindo, quando viu que ele ficou
estendido e rígido, gritou:
– Jesus! Jesus! Levanta-te! Não fiques assim! A mamãe não te quer ver
morto!
Jesus se levanta com um sorriso, e corre para ela e a beija. Vêm também
Tiago e Judas. Eles também recebem carícias de Maria.
– Como pode Jesus lembrar-se daquele cântico tão comprido e difícil e
de todas aquelas bênçãos? –pergunta Tiago.
Maria sorri, e responde simplesmente:
– Ele tem uma memória muito boa, e está sempre muito atento quando eu
leio.
– Eu fico atento na escola. Mas, depois, me dá um sono, com toda aquela
lamentação… Será que não vou aprender nunca?
– Aprenderás, sim. Tenha paciência.
Batem à porta. José atravessa rapidamente o pomar e o quarto e abre.
38.6
Jesus diz:
38.9
19 de dezembro de 1944.
39.2
Vejo Maria inclinada sobre um alguidar, ou melhor, sobre uma bacia
de cerâmica, misturando alguma coisa que solta fumaça no ar frio e sereno
que enche o pomar de Nazaré.
Deve ser pleno inverno, porque, a não ser as oliveiras, todas as outras
plantas estão nuas, desprovidas de folhas. No alto, um céu muito limpo, e
também um belo sol. Mas não consegue amenizar o vento do Norte, que puxa
e faz bater uns nos outros os ramos despojados de folhas e ondular os
pequenos ramos verde-cinzentos das oliveiras.
Maria está vestida com uma pesada veste de um marrom quase preto e
amarrou na frente uma tela rústica, em lugar de um avental, para proteger sua
veste. Tira da tina o bastão com que estava mexendo um líquido, e vejo
caírem dele gotas de uma bonita cor avermelhada. Maria observa, molha um
dedo nas gotas que caem, experimenta se a cor está boa, passando-a na tela
que está sobre sua veste. Parece satisfeita.
Entra em casa, e sai com muitas meadas de uma lã muito branca.
Mergulha-as uma por uma na tina, com paciência e com habilidade.
39.3
Enquanto ela faz isso, entra, vindo da oficina de José, sua cunhada
Maria, mulher de Alfeu. Elas se saúdam e começam a falar.
– Vai indo bem? –pergunta Maria de Alfeu.
– É o que espero.
– Aquela gentia[65] me garantiu que se trata da tinta e do modo de
prepará-la como fazem em Roma. Deu a mim só porque és tu que fizeste
esses trabalhos. Ela diz que nem em Roma há quem faça bordados como tu.
Deves ter sacrificado a vista, para fazê-los…
Maria sorri, e faz um movimento com a cabeça, como para dizer:
“Coisas sem importância!”
A cunhada olha, antes de entregar a Maria as últimas meadas de lã.
– Como foi que as fiaste? Parecem cabelos, de tão finos e iguais que
são! Fazes tudo tão bem… e, como és esperta! Estas últimas meadas ficarão
mais claras?
– Sim. São para a veste. O manto é mais escuro.
As duas mulheres trabalham juntas, na tina. Depois, tiram as meadas
com uma bela cor de púrpura, e correm rápidas para irem mergulhá-las na
água gelada que enche o tanque sob uma pequena fonte, que cai dando
notinhas de música, que parecem umas risadinhas baixas. Elas enxaguam, e
tornam a enxaguar, depois estendem sobre bambus as meadas e as prendem
de um ramo a outro das árvores.
– Com este vento, logo estarão secas –diz a cunhada.
– Vamos ver o José. Lá temos fogo. Deves estar gelada –diz a mãe de
Jesus–. Foste muito boa em ajudar-me. Acabei depressa e com menos
cansaço. Eu te agradeço.
– Oh! Maria! Que não faria eu por ti? Estar perto de ti, já é uma festa!
Além disso… é para Jesus todo este trabalho. E é tão querido o teu Filho!…
A mim me parece que fico sendo também a mãe dele, se eu te ajudar a
preparar a festa de sua maioridade.
As duas mulheres entram na oficina, cheia daquele cheiro de madeira
aplainada, cheiro próprio das oficinas de carpinteiro.
39.4
Aqui a visão parou um pouco… para continuar no ato da partida de
Jesus para Jerusalém, aos seus doze anos.
Ele, muito bonito e crescido, parece ser um irmão mais novo de sua
jovem mãe. Já alcança os ombros dela, com sua cabeça loira, de cabelos
encaracolados, e cuja cabeleira, já não mais curta como era em seus
primeiros anos de vida, mas longa até abaixo das orelhas parece um pequeno
casquete de ouro todo recoberto de caracóis que brilham.
Está vestido de vermelho. Um belo vermelho de rubi claro. Uma longa
veste lhe desce até os tornozelos, deixando descobertos somente os pés
calçados de sandálias. A veste é solta, com mangas longas e largas. Perto do
pescoço, na base das mangas, na orla, está tecido um galão, cor sobre cor,
muito bonito.
(ao copiar a visão, aguardar o resto, que está no novo caderno).
20 de dezembro de 1944.
Vejo Jesus entrar com sua mamãe, na espécie de sala de jantar de
Nazaré.
Jesus é um belo jovenzinho de doze anos, alto, bem feito de corpo e
robusto, sem ser gordo. Parece mais adulto do que é, pela sua compleição.
Já está alto, tanto que atinge os ombros da mãe. Tem ainda o rosto redondo e
rosado do Jesus menino, rosto que, depois, com a idade juvenil e viril, se
emagrecerá, e se tornará de uma cor indefinida, a cor de certos delicados
alabastros, que lembram, de longe, o amarelo rosado.
Os olhos, também os olhos, são ainda de menino. Grandes, bem abertos
e com uma centelha de alegria, perdida no meio da seriedade com que
olham. Depois, eles não serão mais tão abertos… As pálpebras descerão até
a metade dos olhos, para encobrir o mal demasiado que está no mundo aos
olhos do Santo e Puro. Só nos momentos de milagres é que eles estarão bem
abertos e cintilantes, mais ainda do que agora… para expulsar os demônios e
a morte, para curar as doenças e os pecados. E não estarão mais, nem mesmo
com aquela centelha de alegria misturada com a seriedade… A morte e o
pecado lhe estarão cada vez mais presentes e próximos, e com eles o
conhecimento, também humano, da inutilidade do seu sacrifício, por causa da
má vontade do homem. Só os raríssimos momentos de alegria, por estar com
os remidos, e especialmente com os puros, meninos em sua maior parte,
farão brilhar de alegria estes olhos santos e bons.
Mas agora Ele está com sua mamãe, em sua casa, e diante Dele está
José, que lhe sorri com amor, e estão também os seus priminhos, que o
admiram, e a tia Maria de Alfeu, que o acaricia… Ele está feliz. O meu
Jesus tem necessidade de amor para ser feliz. Neste momento Ele tem amor.
Jesus está vestido com uma veste solta de lã vermelha, de tonalidade
rubi claro. Ela é macia, de textura perfeita, na sua compacta tenuidade. Junto
ao pescoço, na frente, por baixo das mangas longas e largas, e da veste, que
desce até o chão, deixando descobertos apenas os pés, que estão calçados
com sandálias novas e muito bem feitas — não as costumeiras solas, fixadas
ao pé por meio de tiras de couro — está um galão, não bordado, mas tecido
em cor mais escura sobre o vermelho rubi da veste. Deve ser obra da
mamãe, porque a cunhada a admira e elogia.
Os belos cabelos loiros já estão carregados de uma tonalidade bem
diferente de quando Ele era pequenino, agora com cintilações de cobre nas
volutas dos caracóis, que terminam abaixo das orelhas. Não são mais os
caracoizinhos curtos e leves da infância. Não são ainda os cabelos
ondulados e compridos até aos ombros, onde terminam em macias madeixas
aneladas na idade adulta. Mas já tendem mais para esta última na cor e na
forma.
39.5
– Eis aqui o nosso Filho –diz Maria, levantando a sua mão direita, na
qual está a mão esquerda de Jesus.
Parece que o está apresentando a todos e reconfirmando a paternidade
do Justo, que está sorrindo. E ela acrescenta:
– Abençoa-o, José, antes de Ele partir para Jerusalém. Não foi
necessária a bênção ritual, em sua idade de ir para a escola, primeiro passo
na vida. Mas agora que Ele vai ao Templo, para ser declarado maior de
idade, dá-lhe a bênção. E abençoa a mim também, junto com Ele. A tua
bênção… (Maria dá um soluço) O fortificará e me dará força, para me
desapegar um pouco mais Dele…
– Maria, Jesus será sempre teu. A fórmula não incidirá em nossos
mútuos relacionamentos. Nem eu vou disputá-lo contra ti, este Filho que nos
é tão caro. Ninguém como tu merece guiá-lo na vida, ó minha Santa.
Maria se inclina, pega a mão de José, e a beija. Ela é a esposa, oh! e
quão amorosa e respeitosa para com o seu consorte!
José acolhe aquele sinal de respeito e de amor com dignidade, mas
depois levanta aquela mão que foi beijada, e a coloca sobre a cabeça da
esposa, dizendo:
– Sim, eu te abençôo, ó Bendita, e a Jesus junto contigo. Vinde, minhas
únicas alegrias, minha honra e meu ideal.
José está solene. Com os braços estendidos, e as palmas das mãos
voltadas para o chão sobre as duas cabeças inclinadas, igualmente loiras e
santas, ele pronuncia a bênção:
– O Senhor vos guarde e vos abençoe. Tenha misericórdia de vós, e vos
dê a paz. O Senhor vos dê a sua bênção.
E depois diz:
– Agora vamos. A hora é propícia para a viagem.
Maria apanha um manto grande, cor de romã, coloca sobre o corpo do
39.6
foi capaz de perturbar sua resposta. Que ele seja levado à verdadeira
sinagoga.
Passam para uma sala mais ampla e pomposa. Aqui a primeira coisa que
lhe fazem é encurtar-lhe os cabelos. Os grandes caracóis são recolhidos por
José. Depois, apertam-lhe a veste vermelha com uma cinta comprida,
passada em diversas voltas em torno da cintura, amarram-lhe umas fitazinhas
na fronte, no braço e no manto. Elas ficam seguras por uma espécie de
broche. Depois, cantam salmos, e José, com uma longa oração, louva ao
Senhor e invoca sobre o Filho todos os bens.
A cerimônia chega ao fim. Jesus sai com José. Voltam para o lugar onde
estavam e se reúnem aos seus parentes homens, compram e oferecem um
cordeiro; depois, com a vítima já degolada, vão ao encontro das mulheres.
Maria beija o seu Jesus. Parece que havia muitos anos que ela não o via.
Ela olha para Ele, feito agora mais homem, com aquela veste e aqueles
cabelos, e o acaricia.
Saem e tudo termina.
[66] três ramos, p oderiam ser, resp ectivamente, o conjunto das normas de comp ortamento (Halakah), a série dos comentários
rabínicos da Sagrada Escritura (Midrash), os mesmos comentários exp ostos de forma mais acessível ao p ovo (Haggadah).
Encontrá-los-emos em: 197.3 -225.9 -414.4 -625.4. Da obra dos rabinos se falará em 252.10 e 335.9.
[67] Eu leio, com citação segundo a “Vulgata” (como em 35.11) que se usava no temp o da escritora. Na “neo-Vulgata”,
introduzida ap ós o Concílio Vaticano II, os p rimeiros dois livros dos Reis tomaram o nome de 1 Samuel e 2 Samuel, e os
sucessivos dois livros tomaram o número de ordem de 1 Rei e 2 Reis. Além do mais: Paralipómenos tornou-se Crónicas; o
segundo livro de Esdras (conhecido também p or livro de Neemias) tornou-se Neemias; Eclesiastes manteve-se Eclesiastes ou
tornou-se Qohélet; Eclesiástico tornou-se Sirácide ou Ben Sira. Enfim, semp re na neo-Vulgata, o Salmo 9 foi dividido em dois,
fazendo aumentar de uma unidade a numeração dos Salmos seguintes até 145 (transformado 146), enquanto a antiga numeração
retoma com o Salmo 147, que une os Salmos 146-147 da Vulgata. Outras diferenças entre Vulgata e neo-Vulgata vêm assinaladas
com nota onde e quando necessário: 50.9 -68.6 (sobre o nome Betsaida) -266.1 -272.4 -368.6 (sobre o termo gazofilácio) -413.3
-434.6 -439.2 -457.2 -463.2 -476.9 -487.6 -520.9 -544.8 (duas notas). O texto da p resente edição da obra, que rep roduz
fielmente o manuscrito original de M aria Valtorta, conserva os reenvios bíblicos segundo a “Vulgata”. No lugar das notas, que
devem facilitar a busca p or p arte do leitor, trazem os reenvios bíblicos segundo a “neo-Vulgata”, mesmo quando esses reenvios
forem retomados p or anotações de M aria Valtorta referidas na “Vulgata”. -Na obra de Valtorta o modo de citar a Bíblia (livro,
cap ítulo, versículos) não é do temp o de Jesus mas do da escritora e nosso, assim como Jesus fala não na língua do seu temp o de
vida terrena, mas na do nosso temp o. Também no modo de citar a Bíblia, p or conseguinte, a obra deve ser considerada como
uma “tradução” p ara utilidade dos seus destinatários.
41. A disputa de Jesus com os doutores no Templo.
A angústia da mãe e a resposta do Filho.
28 de janeiro de 1944.
41.1
Vejo Jesus. Já é um adolescente. Está vestido com uma túnica muito
branca, que me parece de linho, comprida até os pés. Sobre ela está posto
um manto retangular vermelho claro. Jesus está com a cabeça descoberta, os
longos cabelos descendo até a metade das orelhas, e mais escuros do que
quando o vi menino. É um rapaz robusto, muito alto para a sua idade e que,
como seu rosto está mostrando, é ainda a de um jovem.
Ele olha para mim, sorri, estendendo-me as mãos. É porém, o seu, um
sorriso parecido com aquele que nele vejo quando já homem feito: doce e
um tanto sério. Ele está sozinho. Por enquanto, não vejo outra pessoa. Está
encostado a um muro que fica acima de uma estradinha cheia de altos e
baixos, pedras e com uma cavidade ao centro, por onde certamente se forma
um córrego, no tempo da chuva. Mas agora ela está seca, porque o dia está
claro.
Tenho a idéia de ir-me encostar também ao muro, e de lá olhar ao redor
e para baixo, como Jesus está fazendo. Estou vendo um aglomerado de casas.
É um aglomerado desordenado. As casas são, umas altas, outras baixas, e
foram construídas sem a preocupação de fazê-las num mesmo alinhamento.
Fazendo uma comparação muito simples, mas com muita semelhança, parece
um punhado de pedras brancas, jogadas sobre um terreno escuro. As ruas e
vielas são como veias, no meio daquela brancura. Aqui e ali algumas
árvores estendem suas copas sobre os muros. Muitas delas estão em flor, e
muitas também já estão cobertas de folhas novas. Deve ser primavera.
À esquerda, para quem olhar de onde estou, há um grande aglomerado
disposto em três ordens de terraços repletos de construções e torres, pátios e
séries de pórticos. No centro se ergue uma construção mais alta, majestosa,
com cúpulas redondas que brilham ao sol, como se estivessem cobertas de
metal: cobre ou ouro. O conjunto é cercado por uma muralha guarnecida de
ameias, na forma de um ,
como uma fortaleza. Uma das torres é mais alta do que as outras, e está
construída no fim de uma rua estreita e em aclive, dominando aquele grande
aglomerado. Parece uma sentinela atenta.
Jesus olha fixamente para aquele lugar. Depois, volta à sua posição
anterior, apóia as costas ao muro, como estava, olhando para um pequeno
monte, na frente do aglomerado. O pequeno monte está tomado pelas casas,
de alto a baixo. Vejo que ali termina uma rua com um arco, além do qual só
há uma rua calçada com pedras quadrangulares, irregulares e desconexas.
Não são muito grandes, não são como as pedras das estradas consulares
romanas. Mais parecem as clássicas pedras das ruas de Viareggio (não sei
se ainda existem aquelas pedras) colocadas sem nenhuma ligação entre si. É
uma estrada ruim. O rosto de Jesus fica tão sério, que eu me ponho a
procurar sobre aquele pequeno monte a causa de sua melancolia. Mas não
encontro nada de especial. Vejo somente um monte despido de tudo. E basta.
Enquanto isto, perco de vista Jesus, pois, quando me viro, Ele não está mais
ali. Com esta visão eu adormeço.
41.2
… Quando acordo, com a lembrança daquela visão no coração, tendo
recobrado um pouco as forças e a paz, porque todos estão dormindo, me
encontro em um lugar que eu nunca tinha visto antes. Nele há pátios e fontes,
séries de pórticos e casas, ou melhor, pavilhões, pois têm mais
características de pavilhões do que de casas. Há uma grande multidão de
gente, vestida à antiga moda hebraica, num forte vozerio. Olhando ao meu
redor, compreendo que estou dentro daquele aglomerado para o qual Jesus
estava olhando, porque vejo a muralha com ameias que o rodeia, a torre que
o vigia e a imponente construção, que se ergue no centro, e contra a qual
vão-se estreitando os pórticos, muito bonitos e espaçosos, sob os quais há
muita gente, tratando de uma coisa ou de outra.
Compreendo que estou no recinto do Templo de Jerusalém. Vejo fariseus
com suas compridas vestes ondulantes, sacerdotes vestidos de linho e com
uma placa preciosa na parte superior do peito e da fronte, e outros pontos
brilhantes espalhados aqui e ali sobre diversas vestes muito amplas e
brancas, ajustadas à cintura por um cinto precioso. Depois, vejo outros que
estão menos ornados, mas que devem certamente pertencer à classe
sacerdotal, e que estão rodeados por discípulos mais jovens. Compreendo
que eles são os doutores da Lei. Entre todos estes personagens, eu me
encontro desorientada, porque não sei ao certo o que estou fazendo aqui.
41.3
Aproximo-me do grupo dos doutores, onde se iniciou uma disputa[68]
teológica. Muita gente faz a mesma coisa.
Entre os “doutores” há um grupo chefiado por um homem chamado
Gamaliel e por um outro, velho e quase cego, que defende Gamaliel na
disputa. Este, que ouço ser chamado de Hilel, (coloco o h porque ouço uma
aspiração ao princípio do nome) parece-me ser mestre ou parente de
Gamaliel, porque este o trata com confiança e respeito, ao mesmo tempo. O
grupo de Gamaliel tem vistas mais largas, enquanto que um outro grupo, mais
numeroso, é dirigido por um homem que chamam de Shamai, dotado daquela
intransigência cheia de ódio retrógrado do qual o Evangelho tão bem nos
mostra.
Gamaliel, rodeado por um grupo numeroso de discípulos, fala da vinda
do Messias e, apoiando-se na profecia de Daniel, sustenta que o Messias já
deve ter nascido, porque já há cerca de dez anos que as setenta semanas
profetizadas se completaram, desde que saiu o decreto da reconstrução do
Templo. Shamai o combate, afirmando que, se é verdade que o Templo foi
reedificado, também é verdade que a escravidão de Israel aumentou, e a paz,
que haveria de trazer consigo Aquele que os Profetas chamavam “Príncipe
da Paz”, está longe de existir no mundo, especialmente em Jerusalém, agora
oprimida por um inimigo, que ousa levar a sua dominação até dentro do
recinto do Templo, que está dominado pela torre Antônia, cheia de
legionários romanos, prontos a reprimir com suas espadas qualquer levante
de independência dos patriotas.
A disputa, cheia de cavilações, dá sinais de que irá prolongar-se. Cada
um dos mestres faz ostentação de erudição, não só para vencer o rival, mas
para impor-se à admiração dos ouvintes. Esta intenção é evidente.
41.4
Do numeroso grupo dos fiéis, ouve-se sair a voz jovem de um
rapazinho:
– Gamaliel está certo!
Então começa um movimento no meio da multidão e do grupo dos
doutores. Estão procurando quem foi que disse aquelas palavras. Mas não é
preciso procurá-lo. Ele não se esconde, e vem abrindo caminho por entre a
multidão, aproximando-se do grupo dos “rabinos.” Reconheço nele o meu
Jesus adolescente. Ele está seguro do que diz, com aqueles seus dois olhos
cintilando e cheios de inteligência.
– Quem és tu? –lhe perguntam.
– Sou um filho de Israel, que vim cumprir o que ordena a Lei.
Esta resposta, audaz e firme, agrada e provoca sorrisos de aprovação e
benevolência. Interessam-se pelo pequeno israelita.
– Como te chamas?
– Jesus de Nazaré.
A benevolência diminui no grupo de Shamai. Mas Gamaliel, mais
benigno, prossegue no diálogo com Hilel. Aliás, é Gamaliel que com
deferência diz ao velho:
– Pergunta ao rapazinho alguma coisa.
– Em que é que se baseia a tua segurança? –pergunta Hilel.
(Vou pôr os nomes antes das respostas, para abreviar e tornar-se mais
claro).
Jesus:
– Na profecia, que não pode errar quanto à época e quanto aos sinais
que a acompanham, quando chega o momento da verificação. É uma verdade
que César nos está dominando. Mas o mundo estava tão em paz, e a Palestina
em tão grande calma, quando se cumpriram as setenta semanas, que foi
possível a César ordenar que se fizesse o recenseamento em seus domínios.
Ele não teria podido fazer, se houvesse guerra no Império ou levantes na
Palestina. Como aquele tempo se cumpriu, assim também está se cumprindo
o outro tempo de sessenta e duas semanas mais uma, desde a realização do
Templo, para que o Messias seja ungido e se confirme a continuação da
profecia, para o povo que não o quis. Podeis ter dúvidas? Não vos lembrais
que a estrela foi vista pelos Sábios do Oriente e que foi parar justamente no
céu de Belém de Judá, e que as profecias e as visões, desde Jacó e após ele,
indicam aquele lugar como o destinado a acolher o nascimento do Messias,
filho do filho do filho de Jacó, através de Davi, que era de Belém? Não vos
lembrais de Balaão? “Uma estrela nascerá de Jacó”. Os Sábios do Oriente,
cuja pureza e fé tornavam abertos os seus olhos e seus ouvidos, viram a
estrela e entenderam o seu nome: “Messias”, e vieram adorar a Luz que
desceu ao mundo.
41.5
Shamai, com um olhar rancoroso:
– Tu dizes que o Messias nasceu no tempo da estrela, em Belém-Efrata?
Jesus:
– Eu o digo.
Shamai:
– Então, ele não existe mais. Não sabes, rapaz, que Herodes fez matar
todos os meninos de um dia até dois anos de idade em Belém e nos
arredores? Tu, que és tão sábio na Escritura, deves saber também isto: “Um
grito se ouviu no alto… É Raquel, que está chorando os seus filhos.” Os
vales e as colinas de Belém, que recolheram o pranto de Raquel, que estava
morrendo, ficaram cheios de pranto, e as mães choravam também sobre seus
filhos que foram mortos. Entre elas estava certamente também a mãe do
Messias.
Jesus:
– Estás enganado, ó velho! O pranto de Raquel se transformou em
hosana, porque lá onde ela deu à luz o “filho da sua dor”, a nova Raquel deu
ao mundo o Benjamim do Pai celeste, o Filho da sua destra, Aquele que está
destinado a reunir o povo de Deus sob o seu cetro, e livrá-lo da mais
tremenda escravidão.
Shamai:
– E como, se Ele foi morto?
Jesus:
– Não leste a respeito de Elias? Ele foi arrebatado no carro de fogo. E
não poderá o Senhor Deus ter salvo o seu Emanuel para que fosse o Messias
do seu povo? Ele, que abriu o mar diante de Moisés, para que Israel
passasse a pé seco para a sua terra, não terá podido mandar os seus anjos
para salvarem o seu Filho, o seu Cristo, da ferocidade do homem? Em
verdade, eu vos digo: o Cristo vive, e está entre vós, e, quando chegar a
sua hora, Ele se manifestará em seu poder.
Jesus, ao dizer estas palavras, que eu sublinho, tem na voz um som que
enche o espaço. Os seus olhos cintilam mais ainda e, com um gesto de
império e de promessa, Ele estende o braço e a mão direita, e os abaixa,
como fazendo um juramento. É um rapazinho, mas está solene como um
homem.
41.6
Hilel:
– Rapazinho, quem te ensinou estas palavras?
Jesus:
– Espírito de Deus. Eu não tenho mestre humano. Esta é a Palavra do
Senhor, que vos está falando, através dos meus lábios.
Hilel:
– Vem cá entre nós, para que eu te possa ver de perto, ó mocinho, e a
minha esperança se reavive ao contato da tua fé, e a minha alma se ilumine
ao sol da tua.
E Jesus vai, de fato, sentar-se em um banco alto entre Gamaliel e Hilel,
e lhe são levados uns rolos para que os leia e explique. É um exame em
plena regra. A multidão se aglomera e escuta.
A voz juvenil de Jesus lê:
– “Consola-te, ó meu povo! Falai ao coração de Jerusalém, consolai-a
porque a sua escravidão se acabou… Voz do que grita no deserto: preparai
os caminhos do Senhor… Então aparecerá a glória do Senhor…”
Shamai:
– Estás vendo, nazareno! Aqui se fala de escravidão que se acaba.
Nunca fomos escravos como o somos agora. Aqui se fala de um precursor.
Onde está ele? Tu estás delirando.
Jesus:
– Eu te digo que a ti, mais do que a outros, está feito o convite do
Precursor. A ti e aos teus semelhantes. De outra maneira, não verás a glória
do Senhor, nem compreenderás a palavra de Deus, porque as baixezas, as
soberbas, as duplicidades serão para ti um obstáculo para veres e ouvires.
Shamai:
– Falas assim a um mestre?
Jesus:
– Assim falo. E assim falarei até à morte. Porque, acima do que me é
útil, está o interesse do Senhor e o amor à Verdade, da qual sou Filho. E te
digo ainda, ó rabi, que a escravidão, de que fala o Profeta, e da qual Eu falo,
não é aquela que pensas, como a realeza não será aquela que pensas. Mas,
sim, é pelo mérito do Messias que o homem se tornará livre da escravidão
do Mal, que o separa de Deus, e o sinal do Cristo estará sobre os espíritos,
livres de todo jugo, e feitos súditos do Reino eterno. Todas as nações
curvarão suas cabeças, ó estirpe de Davi, diante do Rebento nascido de ti, e
que se tornou árvore que cobre toda a terra, e se levanta até o Céu. E no Céu
e na terra, toda boca louvará o seu Nome, e dobrarão o joelho, diante do
Ungido de Deus, do Príncipe da Paz, do Chefe, Daquele que se dará a si
mesmo para delícia das almas cansadas, saciará a alma faminta, do Santo
que fará uma aliança entre a terra e o Céu. Não como aquela aliança feita
com os Pais de Israel, quando Deus os tirou do Egito, tratando-os ainda
como escravos, mas imprimindo a paternidade celeste no espírito dos
homens, por meio da Graça novamente infundida pelos méritos do Redentor,
pelo qual todos os homens bons conhecerão o Senhor, e o Santuário de Deus
não será mais derribado e destruído.
Shamai:
– Não fiques blasfemando, mocinho! Lembra-te de Daniel. Ele diz que,
depois da morte de Cristo, o Templo e a Cidade serão destruídos por um
povo e por um chefe que virá. E Tu estás dizendo que o Santuário de Deus
não será mais derrubado! Respeita os Profetas!
Jesus:
– Em verdade eu te digo que aqui está Alguém que é mais do que os
Profetas, e tu não o conheces, e não o conhecerás, porque te falta a vontade.
E te digo que tudo o que Eu disse é verdade. Não conhecerá mais a morte o
verdadeiro Santuário. Mas como o seu Santificador, ressurgirá para a vida
eterna e, no fim dos dias do mundo viverá no Céu.
41.7
Hilel:
– Escuta, jovenzinho. Ageu diz: “virá o Desejado dos povos. Grande
será, então, a glória desta casa, maior do que a que coube à primeira.”
Estará ele se referindo ao Santuário de que Tu falas?
Jesus:
– Sim, mestre. Quer dizer isso. A tua retidão te leva para a Luz, e Eu te
digo: quando o Sacrifício do Cristo se consumar, terás paz, porque és um
israelita sem malícia.
Gamaliel:
– Diz-me, Jesus. A paz, de que falam os Profetas, como poderá ser
esperada, se a este povo virá a destruição pela guerra? Fala, e dá luz a mim
também.
Jesus:
– Não te lembras, mestre, o que foi que disseram aqueles que estiveram
presentes na noite do nascimento de Cristo? Não te lembras de que os
exércitos celestiais cantavam: “Paz aos homens de boa vontade”? Mas este
povo não tem boa vontade, e não terá paz. Ele desconhecerá o seu Rei, o
Justo, o Salvador, porque espera que Ele seja um rei de poderes humanos,
enquanto que Ele é o Rei do espírito. Este povo não o amará, porque o
Cristo pregará o que a este povo não agrada. O Cristo não debelará os seus
inimigos com seus carros e cavalos, mas, sim, os inimigos da alma, que
dominam, com possessão infernal, o coração do homem criado pelo Senhor.
E esta não é a vitória que Israel está esperando Dele. Ele virá, Jerusalém, o
teu Rei, cavalgando uma “jumenta e um jumentinho”, ou seja, os justos de
Israel e os gentios. Mas o jumentinho, Eu vo-lo digo, será mais fiel a Ele, e o
seguirá precedendo a jumenta, e crescerá no caminho da Verdade e da Vida.
Israel, pela sua má vontade, perderá a paz, e sofrerá em si, através dos
séculos, aquilo que fizer sofrer ao seu Rei, depois de tê-lo reduzido ao Rei
das dores, de que fala Isaías.
41.8
Shamai:
– Tua boca tem, ao mesmo tempo, cheiro de leite e de blasfêmia,
nazareno. Responde-me: E onde está o Precursor? Quando o teremos?
Jesus:
– Ele já está aqui. Não diz Malaquias: “Eis que eu mando o meu anjo a
preparar o caminho diante de Mim; e logo virá ao seu Templo o Dominador,
por vós procurado, e o Anjo do Testamento por vós desejado”? Portanto, o
Precursor virá imediatamente antes de Cristo. Ele já está aqui, como o Cristo
está. Se passassem anos entre aquele que prepara os caminhos do Senhor e o
Cristo, todos os caminhos se tornariam cheios de entulhos e obstáculos. Deus
sabe disso, e predispõe que o Precursor venha uma hora só antes do Mestre.
Quando virdes o Precursor, podereis dizer: “A missão do Cristo começou.”
E a ti Eu te digo: O Cristo abrirá muitos olhos e muitos ouvidos, quando ele
vier por estes caminhos. Mas não os teus, nem os dos iguais a ti, que lhe
dareis a morte, em troca da Vida, que Ele vos oferece. Mas quando, mais
alto do que este Templo, mais alto do que o Tabernáculo, fechado no Santo
dos santos, mais alto do que a Glória sustentada pelos Querubins, o Redentor
estiver sobre o seu trono e sobre o seu altar, fluirão de suas mil e mil feridas
maldições para os deicidas e vida para os gentios, porque Ele, ó mestre, que
disso não sabes, não é, eu repito, Rei de um reino humano, mas de um Reino
espiritual, e os seus súditos serão somente aqueles que por seu amor
souberem regenerar-se no espírito e, como Jonas, depois de terem nascido,
renascerem em outras praias: “as de Deus”, através da geração espiritual
que virá por Cristo, o qual dará à humanidade a verdadeira Vida.
41.9
Shamai e seus acólitos:
– Este nazareno é Satanás!
Hilel e os seus:
– Não. Este jovem é Profeta de Deus. Fica comigo, Menino. A minha
velhice transfundirá tudo o que sabe ao teu saber, e Tu serás Mestre do povo
de Deus.
Jesus:
– Em verdade, te digo que, se muitos fossem como tu és, viria a
salvação para Israel. Mas a minha hora ainda não chegou. A Mim falam as
vozes do Céu, e, na solidão, Eu as devo acolher, enquanto não chegar a
minha hora. Então, com os lábios e com o sangue, falarei a Jerusalém, e
minha sorte será a dos Profetas que foram apedrejados e mortos por esta
cidade. Mas, acima do meu ser, está o Senhor Deus, ao qual Eu submeto a
Mim mesmo, como servo fiel, para que Ele faça de Mim o escabelo à sua
glória, na esperança de que Ele faça do mundo o escabelo aos pés de Cristo.
Esperai-me na minha hora. Estas pedras ouvirão de novo a minha voz, e
tremerão à minha última palavra. Felizes aqueles que naquela voz tiverem
ouvido a Deus, e crerem Nele, através dela. A estes o Cristo dará aquele
Reino que o vosso egoísmo deseja que seja um reino humano, mas que é
celeste e pelo qual Eu digo: “Eis aqui o teu servo, Senhor, que veio para
fazer a tua vontade. Consuma-a, pois Eu anseio para cumpri-la.”
E aqui, com a visão de Jesus com o rosto inflamado pelo ardor
espiritual erguido ao céu, os braços abertos, em pé, no meio dos doutores
atônitos, termina a minha visão.
(Já são 3:30 do dia 29).
29 de janeiro de 1944.
41.10
Aqui eu teria que dizer duas coisas, que lhe interessam com certeza, e
que eu havia decidido escrever, logo que saísse da visão. Mas, como há
outra coisa mais urgente, escreverei aquilo depois.
[…].
O que queria lhe dizer no começo é isto.
Ela hoje me perguntou como foi que eu pude saber os nomes de Hilel, de
Gamaliel e de Shamai.
Foi a voz, que eu chamo de “segunda voz”, que me disse estas coisas.
Uma voz ainda menos audível do que a do meu Jesus e dos outros que ditam
para mim. Estas são vozes, como já lhe disse e repito, que o meu ouvido
espiritual percebe iguais a vozes humanas. Eu as ouço doces ou iradas,
fortes ou suaves, risonhas ou tristes. Como se alguém falasse bem perto de
mim. Esta “segunda voz” é como uma luz, uma intuição que fala no meu
espírito. “No”, e não “ao” meu espírito. É uma indicação.
Assim é que, enquanto eu ia me aproximando do grupo dos disputantes, e
não sabia quem era aquele ilustre personagem que, ao lado de um velho,
disputava com tanto calor, este “alguém” me disse: “Gamaliel – Hilel”. Sim.
Primeiro Gamaliel, depois Hilel. Não tenho dúvidas. Enquanto eu pensava
quem seriam esses homens, o indicador interno me indicou o terceiro
antipático indivíduo, exatamente enquanto Gamaliel o chamava pelo nome. E
assim é que eu pude ficar sabendo quem era este de aspecto farisaico.
[…].
22 de fevereiro de 1944.
[…].
41.11
Jesus diz:
[…].
– Voltemos muito, muito atrás. Voltemos ao Templo, onde Eu, aos doze
anos, estou disputando. Ou melhor, voltemos às ruas que levam a Jerusalém,
e de Jerusalém ao Templo.
Vê a angústia de Maria, quando, tendo-se reunido às filas dos homens e
das mulheres, viu que Eu não estava com José.
Ela não levanta a voz, em ásperas repreensões contra o esposo. Todas as
mulheres o teriam feito. Vós o fazeis por muito menos, esquecendo-vos de
que o homem é sempre o chefe da casa. Mas a dor que transparece no rosto
de Maria, magoa José, mais do que qualquer repreensão. Maria não se
abandona a cenas dramáticas. Vós, por muito menos, o fazeis, pois gostais de
ser notadas, e feitas alvos de compaixão. Mas a dor contida de Maria é tão
evidente, pelo tremor que a toma, pelo rosto que empalidece, pelos olhos
que se dilatam, que comove mais do que qualquer cena de pranto e de
clamor.
Não sente mais cansaço, nem fome. O caminho foi longo e, depois de
tantas horas, não tomou nenhum alimento! Mas ela deixa tudo. Tanto a
enxerga, que está sendo arrumada, como a comida que ia ser distribuída.
Volta atrás. É tarde, a noite desce. Não importa. Cada passo que dá leva-a de
volta a Jerusalém. Faz parar as caravanas e os peregrinos. Pergunta a todos.
José a segue e a ajuda. Um dia de caminho, voltando, e depois uma penosa
busca pela cidade.
Onde, onde poderá estar o seu Jesus? E Deus permite que ela não saiba,
durante tantas horas onde é que devia ir me procurar. Procurar um menino no
Templo, seria uma coisa sem sentido. Que teria um menino ido fazer no
Templo? No máximo, teria se perdido na cidade, e se tivesse voltado para
dentro do Templo, levado pelos seus pequenos passos, sua voz chorosa teria
chamado pela mãe atraindo a atenção dos adultos, dos sacerdotes, os quais
teriam providenciado para que se procurassem os pais dele, por meio de
avisos colocados nas portas. Mas não havia nenhum aviso. Ninguém na
cidade sabia desse Menino. Bonito? Loiro? Robusto? Mas há tantos assim!
Era muito pouco para se poder dizer: “Eu o vi. Estava em tal ou tal lugar!”
Três dias depois, símbolo de outros três dias de futura angústia, eis
41.12
42.8
Jesus diz:
– A todas as mulheres que estão sendo torturadas por alguma dor, Eu
ensino a imitar Maria na sua viuvez: unindo-se a Jesus.
Aqueles que pensam que Maria não sofreu as penas do coração, estão
errados. Minha mãe sofreu. Ficai sabendo disso. Santamente, porque tudo
nela era santo, mas profundamente.
Aqueles que pensam que Maria amava o seu esposo com um amor
tépido, visto que ele era um esposo para as coisas espirituais, e não para as
carnais, estão igualmente errados. Maria amava intensamente o seu José, ao
qual dedicou seis lustros (30 anos) de uma vida de fidelidade. Para Ela José
foi pai, esposo, irmão, amigo e protetor.
Agora, ela se sentia sozinha, como uma vara de videira ao qual foi
cortada a árvore em que se apoiava. Sua casa ficou como que ferida por um
raio. Ficou dividida. Antes era uma unidade na qual os membros se
sustinham um ao outro. Agora, vinha a faltar a parede mestra, sendo este o
primeiro dos golpes desferido naquela Família, sinal de que dentro em breve
o seu amado Jesus também a deixaria.
A vontade do Eterno, que tinha querido que ela fosse esposa e mãe,
agora lhe impunha a viuvez e a entrega de seu Filho. Maria diz entre
lágrimas, um dos seus sublimes “sim.” “Sim, Senhor, faça-se em mim
segundo a tua palavra.” E, para ter força naquela hora, ela Me abraça.
Sempre Maria abraçou Deus nas horas mais graves da sua vida. No
Templo, quando chamada para as núpcias; em Nazaré, quando chamada para
a Maternidade; ainda em Nazaré, derramando as lágrimas da viuvez; em
Nazaré no suplício da separação do Filho; no Calvário, em que sofreu a
tortura de Me ver morrer.
42.9
Aprendei, vós que chorais. Aprendei, vós que morreis. Aprendei, vós
que viveis para morrer. Procurai merecer as palavras que Eu disse a José.
Serão a vossa paz em vossa agonia. Aprendei, vós que morreis, a merecer a
presença de Jesus perto de vós, para vosso conforto. Mesmo se não tiverdes
merecido, ousai chamar-me para perto de vós. Eu virei. Com as mãos cheias
de graça e de conforto, o coração cheio de perdão e amor, com os lábios
cheios de palavras de absolvição e encorajamento.
A morte perde toda a sua aspereza, se ela acontecer nos meus braços.
Crede nisso. Eu não posso abolir a morte, mas posso torná-la suave para
quem morre confiando em Mim.
O Cristo disse[70] para todos vós, em sua Cruz: “Senhor, a Ti entrego o
meu espírito.” Ele o disse, pensando na sua e nas vossas agonias, nos
vossos terrores, nos vossos erros, nos vossos temores, nos vossos desejos
de perdão. Ele o disse com o coração dilacerado, antes mesmo do golpe da
lança, numa dilaceração mais espiritual do que física, para que as agonias
daqueles que morrem pensando Nele, sejam amenizadas pelo Senhor e o
espírito deles passe da morte à Vida, da dor ao júbilo eterno.
42.10
Esta, pequeno João, é a lição de hoje. Sê boa, e não temas. A minha
paz refluirá em ti sempre, através da palavra e através da contemplação.
Vem. Faz de conta que és José, que tem por travesseiro o peito de Jesus, e
Maria como enfermeira. E repousa entre nós, como um menino em seu berço.
[69] não posso dizer qual, mas dep ois M aria Valtorta anota a láp is, nas p róp rias p áginas autografas, os diversos reenvios, que
referidos à neo-Vulgata são: Salmos 16; 84; 85; 91; 112; 132.
[70] disse, em: Lucas 23,46 (609.22).
43. A conclusão da vida escondida.
10 de junho de 1944.
43.1
Maria diz:
– Antes de entregar estes cadernos, Eu quero unir a eles a minha bênção.
Agora, basta que queiras fazer com um pouco de paciência; podereis ter
uma coleção completa da vida íntima do meu Jesus. Desde a Anunciação, até
o momento em que Ele sai de Nazaré para a pregação, tendes, não só os
ditados, mas também a ilustração dos fatos que acompanharam a vida
familiar de Jesus.
A infância, a meninice, a adolescência e a juventude do meu Filho têm
apenas uns breves traços no grande quadro de sua vida descrito pelos
Evangelhos. Neles Ele é o Mestre. Aqui é o Homem. É o Deus que se
humilha por amor do homem. 43.2E que também opera milagres, mesmo em seu
aniquilamento de uma vida comum. Ele opera em mim, que sinto a minha
alma levada à perfeição, em contato com o Filho que me cresce no ventre.
Opera na casa de Zacarias, santificando o Batista, ajudando Isabel em seu
trabalho, dando palavra e fé a Zacarias. Ele opera em José, abrindo-lhe o
espírito à luz de uma verdade, de tal modo excelsa, que por si mesmo não
podia compreender, embora fosse um justo. 43.3E, depois de mim, quem mais
foi beneficiado por esta chuva de divinos benefícios foi José.
Observa o caminho que ele percorre, um caminho espiritual, desde
quando vem para a minha casa, até o momento da fuga para o Egito. No
início, não era mais do que um homem justo do seu tempo. Depois, por fases
sucessivas, tornou-se o homem justo do tempo cristão. Adquire a fé no
Cristo, e se entrega a essa fé firme, que passa à esperança, desde aquela
frase dita no começo da viagem de Nazaré para Belém: “Como faremos?”,
frase em que ali estava todo o homem que se revela com os seus temores
humanos e as suas preocupações humanas. Na gruta, diante do nascimento,
diz: “Amanhã será melhor.” Jesus, que está para chegar, já o fortalece, com
esta esperança que, entre os dons de Deus, é um dos mais belos. E, dessa
esperança, quando o contato com Jesus o santifica, ele passa à ousadia.
Deixou-se sempre dirigir por mim, pelo respeito reverente que nutria por
mim. Agora é ele que dirige tanto as coisas materiais, como as superiores, e
decide como chefe da Família, quando é preciso decidir. Não só isso, mas
na hora penosa da fuga, depois que meses de união com o Filho de Deus o
saturaram de santidade, é ele quem conforta o meu penar, e me diz: “Ainda
que não tivéssemos mais nada, teríamos sempre tudo, porque teremos a Ele.”
43.4
Seus milagres de graça, meu Jesus os opera nos pastores. O Anjo vai
até onde está o pastor, que um fugaz encontro comigo predispõe para a
Graça, e o leva até à Graça para que Esta o salve para sempre.
Ele os opera por onde passa, tanto no exílio, como quando volta à sua
pequena Nazaré. Porque, onde Ele estava, a santidade se expandia como o
óleo sobre um pano, como a fragrância das flores no ar, e quem por ela era
tocado, se não fosse um demônio, sentia grande desejo de santidade. Onde há
esse desejo, há raiz de vida eterna, porque quem quer ser bom, consegue a
bondade, e a bondade leva ao Reino de Deus.
43.5
Vós agora tendes, apresentada em pontos, que refletem momentos
diversos, a santa Humanidade de meu Filho. Desde o seu nascimento, até à
sua morte. E, se o Pe. M. achar bom, pode fazer deles uma ordenada coleção
dos pontos, de modo a poder formar um conjunto sem lacunas. Isso se julgar
útil fazê-lo.
Teríamos podido dar tudo junto. Mas a Providência julgou ser bom fazer
assim para ti, ó minha alma! Em todos os ditados te demos os remédios para
as tuas feridas, que haveriam de ser-te infligidas. Demos com antecedência
para te preparar. Na hora do granizo, parece que nada serve de abrigo. Mas
não é assim. A tempestade faz aflorar a humanidade, que está adormecida e
sepultada debaixo das águas espirituais, mas traz à tona também as gemas de
uma doutrina sobrenatural, que caíram no vosso coração, e que estão
esperando justamente a hora da tempestade, para reaparecerem e dizer-vos:
“Aqui estamos nós também. Lembra-te de nós”.
Há, além disso, minha alma, uma razão de bondade, além de ser de
Providência. Como terias podido, no atual estado de enfraquecimento, ver e
ouvir certas visões e ditados? Estas coisas te teriam prostrado, até te
tornarem incapaz da tua missão de “porta-voz”. Por isso, porque em nós há
bondade nós os demos antes, evitando despedaçar teu coração com visões e
palavras por demais consoantes com o teu sofrimento, e por isso intensas até
ao espasmo. Não somos cruéis, Maria. Agimos sempre de modo que vós de
nós tenhais conforto, não angústia, nem aumento de dor. Basta-nos que vos
confieis a nós. Basta-nos que digas como José: “Se ainda tenho Jesus, tenho
tudo!”, para que venhamos com os dons celestes a consolar o vosso espírito.
43.6
Não te prometo dons, nem consolações humanas. Eu te prometo as
mesmas consolações que teve José, as sobrenaturais. Porque é bom que
todos fiquem sabendo que os presentes dados pelos Magos, na usura que
aperta pela garganta um fugitivo, sumiram rapidamente, como um relâmpago,
com a compra de uma casinha e daquele mínimo de utensílios necessários
para a vida, daqueles alimentos que eram também necessários, que só
podiam vir daquela fonte, enquanto não encontrávamos trabalho.
Na comunidade hebraica sempre todos se ajudaram mutuamente. Mas a
comunidade reunida no Egito era quase toda composta de fugitivos
perseguidos e, por isso, pobres como nós, que tínhamos ido nos juntar a eles.
Um pouco daquela riqueza que queríamos manter para Jesus, para o nosso
Jesus adulto, preservada dos gastos da instalação no Egito, foi providencial
para a nossa volta e apenas suficiente para reorganizar nossa casa e a
oficina em Nazaré, ao nosso retorno. Porque os tempos mudam, mas a cobiça
humana é sempre a mesma, servindo-se da necessidade alheia para sugar a
sua parte de maneira odiosa.
Não. Termos Jesus conosco não serviu para trazer-nos bens materiais.
Muitos de vós pretendem isto, quando apenas se sentem um pouco unidos a
Jesus. Esquecem-se de que Ele disse[71]: “Procurai as coisas do espírito.”
Tudo o mais é supérfluo. Deus provê também o alimento. Tanto aos homens
como os pássaros. Porque sabe que eles têm necessidade do alimento,
enquanto a carne for armadura em torno de vossa alma. Mas, pedi primeiro a
sua Graça. Pedi primeiro pelo vosso espírito. O resto vos será dado como
acréscimo.
Da união com Jesus, José teve, humanamente falando, angústias, fadigas,
perseguições, fome. Outra coisa não teve. Mas, visto que servia a Jesus
somente, tudo isso se transformou em paz espiritual, em sobrenatural alegria.
Eu queria trazer-vos ao ponto em que estava o meu esposo ao dizer: “Ainda
que chegássemos a não ter mais nada, teríamos sempre tudo, porque temos
Jesus.”
43.7
Eu sei. O coração se despedaça. Eu sei, a mente se ofusca. Eu sei, a
vida se consome. Mas Maria!… És de Jesus? Queres ser de Jesus? Onde,
como morreu Jesus? Menina querida, estás chorando, mas persevera na
fortaleza. O martírio não consiste na forma de tormento, mas, sim na
constância com que o mártir o suporta. Por isso, é martírio tanto uma arma,
como um sofrimento moral, quando é suportado por um mesmo objetivo. Tu
estás suportando por amor ao meu Filho. O que fazes pelos irmãos é sempre
por amor de Jesus, que os quer salvos. Por isso, o teu sofrimento é
verdadeiro martírio. Persevera nele. Não queiras fazer isso por ti mesma.
Basta — porque a aflição é forte demais para que tu possas ter ainda tanta
força para guiar-te por ti mesma e dominar também a tua humanidade
impedindo-la de chorar — basta que deixes que a dor te torture, sem
rebelar-te. Basta que digas a Jesus: “Ajuda-me!”. Aquilo que não podes
fazer, Ele o fará por ti. Permanece Nele. Sempre Nele. Não queiras sair
Dele. Se não quiseres, não sais. Se a dor for tão forte, que te impeça de ver
onde estás, tu estarás sempre em Jesus.
Eu te abençôo. Diz comigo: “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.”
Seja este sempre o teu grito. Até que, um dia, o digas no Céu. A graça do
Senhor esteja sempre contigo!
[71] disse, em: Mateus 6,33 (173.7); Lucas 12,31 (276.8).
Primeiro ano
da Vida publica de Jesus.
Jesus diz:
44.7
4 de fevereiro de 1944.
45.6
Jesus diz:
– João para si mesmo não tinha necessidade do sinal. O seu espírito,
pré-santificado desde o ventre de sua mãe, possuía aquela vista da
inteligência sobrenatural, que teria sido a de todos os homens sem a culpa de
Adão.
Se o homem tivesse permanecido na graça, na inocência, na fidelidade
ao seu Criador, teria visto Deus, através das aparências externas. No
Gênesis está dito que o Senhor Deus falava familiarmente com o homem
inocente e que, diante daquela voz o homem não desfalecia, nem se
enganava, ao discerni-la. Tal era a sorte do homem: ver e compreender a
Deus, exatamente como um filho faz com o seu pai. Depois veio a culpa, e o
homem não mais ousou olhar a Deus, não mais soube ver e compreender
Deus. E o compreende cada vez menos.
Mas João, o meu primo João, tinha sido purificado da culpa, quando a
cheia de graça se curvou amorosamente para abraçar a que tinha sido estéril,
sendo agora, a fecunda Isabel. O pequenino, no seu ventre, tinha saltado de
alegria, sentindo sair de sua alma o vestígio da culpa, assim como uma
crosta cai da ferida que ficou curada. O Espírito Santo, que fez de Maria a
mãe do Salvador, Ele iniciou a Sua obra de salvação, através de Maria,
cibório vivo da salvação encarnada, por meio deste nascituro, que estava
destinado a estar unido a Mim, não tanto pelo sangue, mas também pela
missão que fez de ambos, lábios que formam a palavra. João era os lábios,
Eu era a Palavra. Ele, o Precursor no Evangelho e em seu destino de mártir.
Eu, Aquele que aperfeiçoa, com a minha divina perfeição, o Evangelho
iniciado por João, e o seu martírio, pela defesa da Lei de Deus.
João não precisava de nenhum sinal. Mas o sinal era necessário para a
obtusidade dos outros. Sobre o que teria João baseado a sua afirmação senão
sobre uma prova inegável que até os olhos dos lentos e os ouvidos dos
aborrecidos tivessem podido perceber?
45.7
Eu também não precisava de batismo. Mas a sabedoria do Senhor
tinha julgado ser aquele o momento e o modo de nos encontrarmos. Tirando
João da sua caverna, e a Mim da minha casa, Ele nos uniu naquela hora para
abrir sobre Mim os Céus, descendo a Pomba divina sobre Aquele que teria
de batizar os homens com esta Pomba, e descendo também o anúncio, ainda
mais poderoso do que o do anjo, porque era de meu Pai: “Eis o meu Filho
dileto, com o qual Eu me comprazo.” Para que os homens não tivessem
desculpas ou dúvidas se deveriam seguir-me ou em não.
45.8
As manifestações do Cristo foram muitas. A primeira depois do
nascimento foi aquela dos Magos, a segunda, no Templo, e a terceira às
margens do Jordão. Depois vieram infinitas outras, que eu te farei conhecer,
pois os meus milagres são manifestações da minha natureza divina, até a
Ressurreição e a Ascensão ao Céu.
A minha pátria encheu-se das minhas manifestações. Como semente
lançada aos quatro pontos cardeais, essas manifestações aconteceram em
todas as camadas da sociedade e em todos os lugares da vida: dos pastores,
aos poderosos, aos doutos, aos incrédulos, aos pecadores, aos sacerdotes,
aos dominadores, às crianças, aos soldados, aos hebreus, aos gentios. Ainda
agora elas se repetem. Mas, como naquele tempo, o mundo não as recebe
bem. Não recebe bem as atuais, esquecendo-se também das passadas. Pois
bem, Eu não desisto. Eu me repito para salvar-vos, para levar-vos a ter fé
em Mim.
45.9
Sabes, Maria, o que estás fazendo? Sabes o que Eu estou fazendo, ao
mostrar-te o Evangelho? Uma tentativa mais forte de trazer os homens a
Mim. Tu tens desejado isto com ardentes orações. Eu não me limito mais à
palavra. Ela os cansa e os afasta. É uma culpa, mas é assim. Recorro à
visão, a visão do meu Evangelho, e a explico para torná-la mais clara e
atraente.
A ti Eu te dou o conforto da visão. A todos Eu dou o modo de desejar
me conhecer. Se ainda não servir, e como crianças caprichosas, jogarem fora
o presente sem compreenderem o seu valor, contigo ficará o meu presente, e
a eles, a minha indignação. Poderei, mais uma vez, dar-lhes[79] aquela antiga
repreensão: “Tocamos, e não dançastes; entoamos lamentações, e não
chorastes.”
Mas, não importa. Deixemos que eles, esses inconvertíveis, acumulem
sobre suas cabeças os carvões ardentes, e voltemos às ovelhinhas, que
procuram conhecer o Pastor. Eu sou o Pastor, e tu és a vara que as conduz a
Mim.
Meu monitor interior me avisa que aquela pedra, sobre a qual o Senhor
está sentado, é também o seu genuflexório e o seu travesseiro, quando Ele
tira suas breves horas de repouso, envolto em seu manto, à luz das estrelas e
exposto ao ar frio da noite. De fato, a sacola está perto dele, a mesma que eu
o vi pegar, antes de partir de Nazaré. É tudo o que Ele tem. E, como está
dobrada e frouxa, compreendo que está vazia, sem aquele pouco alimento
que Maria havia posto nela.
Jesus está muito magro e pálido. Está sentado com os cotovelos
apoiados nos joelhos e os antebraços estendidos para a frente, com as mãos
unidas e os dedos entrelaçados. Ele está meditando. De vez em quando,
ergue o olhar, e o gira ao seu redor, olha para o sol alto, quase à pino, no céu
azul. De vez em quando, e especialmente depois de ter girado o olhar ao
redor e de tê-lo erguido em direção à luz solar, Ele fecha os olhos e se apóia
ao penhasco, que lhe serve de abrigo, como se estivesse sendo tomado por
uma vertigem.
46.3
Vejo, então, aparecer a cara feia de Satanás. Não que ele se apresente
na forma com que nós costumamos figurá-lo com chifres, rabo, etc. Parece
um beduíno, envolto em sua veste e em seu grande manto, como um dominó
mascarado. Na cabeça tem um turbante, cujas extremidades brancas descem
como uma proteção sobre os ombros e ao longo dos lados do rosto. De modo
que deste aparece um pequeno triângulo muito moreno, de lábios finos e
sinuosos, de olhos muito pretos e encavados, cheios de brilhos magnéticos.
São duas pupilas que te perscrutam até o fundo do coração, mas nas quais
não lês nada, somente esta palavra: mistério. O oposto dos olhos de Jesus,
também estes magnéticos e fascinantes e que perscrutam os corações, mas
nos quais tu também podes ler que no seu coração há amor e bondade para
contigo. O olhar de Jesus é uma carícia para a alma. Enquanto que o olhar de
Satanás é como um duplo punhal que te perfura e te queima.
46.4
Ele se aproxima de Jesus:
– Estás sozinho?
Jesus olha para ele, e não responde.
– Como vieste parar aqui? Estás perdido?
Jesus o olha novamente, e continua calado.
– Se eu tivesse água no odre, eu te daria. Mas eu também estou sem.
Meu cavalo morreu, e eu vou indo a pé até o vau do Jordão. Lá eu beberei, e
hei de encontrar alguém que me dê um pão. Eu sei o caminho. Vem comigo.
Eu te guiarei.
Jesus não levanta nem mesmo o olhar.
– Não respondes? Sabes que, se ficares aqui, morrerás? O vento está
começando a soprar. Vai vir uma tempestade. Vem comigo.
Jesus une as mãos em muda oração.
– Ah! Então, és Tu mesmo? Há tanto tempo que te procuro! Agora faz
tempo que te venho observando. Desde o momento em que foste batizado.
Estás chamando o Eterno? Ele está longe. Agora estás sobre a terra e em
meio aos homens. No meio dos homens, quem reina sou eu. Eu também tenho
dó de ti e te quero socorrer, porque és bom, e vieste sacrificar-te à toa. Os
homens te odiarão pela tua bondade. Eles só entendem, se lhes falares de
ouro, comida e sentidos. Sacrifício, dor, obediência, são para eles palavras
mortas mais do que esta terra, que está ao redor de nós. Eles são ainda mais
áridos do que esta poeira. Só a serpente pode esconder-se aqui, esperando a
hora de dar o bote; e o chacal, a hora de despedaçar sua vítima. Vem, vamos
embora. Não mereces sofrer por eles. Eu os conheço melhor do que Tu.
Satanás sentou-se de frente a Jesus e o examina com esse seu olhar‐
horrível, sorrindo com a sua boca de serpente. Jesus continua calado,
rezando mentalmente.
46.5
– Tu estás desconfiando de mim. Fazes mal. Eu sou a sabedoria da
terra. Posso ser teu mestre, para te ensinar a triunfar. Vê: o importante é
triunfar. Depois, quando nos impusermos e o mundo ficar fascinado, então o
levaremos para onde quisermos. Mas antes, é necessário fazer o que agrada
a eles. Ser como eles. Seduzi-los, fazendo-os crer que nós os admiramos e
os acompanhamos em seus pensamentos.
Tu és jovem e belo. Começa pela mulher. É sempre por ela que se deve
começar. Eu errei, induzindo a mulher à desobediência. Eu devia tê-la
aconselhado de outro modo. Eu teria feito dela um instrumento melhor, e
teria vencido a Deus. Eu fui apressado. Mas Tu! Vou te ensinar, porque
houve um dia em que eu olhei para Ti com um júbilo angelical, e um resto
daquele amor [81]ainda ficou, mas Tu, escuta-me, aproveita-te da minha
experiência! Arruma uma companheira. Porque o que não conseguires, ela
conseguirá. Tu és o novo Adão: deves ter a tua Eva.
Além disso, como podes compreender e curar as doenças da
sensualidade, se não sabes o que elas são? Não sabes que aí é que está o
ponto central do qual nasce a planta da cobiça e da prepotência? Para que é
que o homem quer reinar? Para que é que quer ser rico e poderoso? Para
possuir a mulher. Ela é como a cotovia. Ela precisa do brilho para ser
atraída. O ouro e o poder, são as duas faces do espelho que atraem as
mulheres e são as causas do mal no mundo. Olha bem: atrás de mil delitos de
diversas faces, há, pelo menos novecentos que têm suas raízes na fome da
posse da mulher, ou na vontade de uma mulher, que arde num desejo que o
homem ainda não conseguiu satisfazer ou não mais satisfaz. Se quiserdes
saber o que é a vida procura a mulher. Só depois, saberás cuidar e curar as
doenças da humanidade.
A mulher é bonita, como sabes! Não há nada de mais belo no mundo. O
homem tem o pensamento e a força. Mas, a mulher! O seu pensamento é um
perfume, seu contato é carícia de flores, sua graça é como um vinho que
desce, sua fraqueza é como uma meada de seda ou anel de cabelo de bebê
nas mãos do homem, sua carícia é uma força que se derrama sobre a nossa
inflamando-a. Acaba-se a dor, o cansaço, a aflição, quando nos colocamos
perto de uma mulher, pois ela, nos nossos braços, é como um feixe de flores.
46.6
Mas, que tolo que eu sou! Tu estás com fome, e eu te falando da
mulher. O teu vigor está esgotado. É por isso que essa fragrância da terra,
essa flor da criação, esse fruto que dá e suscita o amor, te parece uma coisa
sem valor. Mas olha estas pedras, como são redondas e lisas, como são
douradas sob à luz do sol que desce. Não parecem pães? Tu, Filho de Deus,
só precisas dizer: “Eu quero”, para que elas se transformem em pães
cheirosos, como aqueles que as donas de casa tiram do forno para o jantar
de seus familiares. E estas acácias, tão secas, se Tu queres, não podem
encher-se de maçãs doces e de tâmaras com gosto de mel? Sacia-te, ó Filho
de Deus! Tu és o Senhor da terra. Ela se inclina para pôr-se aos teus pés,
matando a tua fome.
Não vês que empalideces e vacilas, só de ouvires falar em pão? Pobre
Jesus! Estás tão fraco, a ponto de não poderes mais tampouco fazer um
milagre? Queres que eu o faça por Ti? Não sou igual a ti. Mas alguma coisa
eu posso fazer. Ainda que por um ano eu fique privado das minhas forças, eu
as juntarei todas, pois eu te quero servir, porque Tu és bom e eu sempre me
lembro de que és o meu Deus, mesmo tendo eu desmerecido agora de poder
chamar-te assim. Ajuda-me com a tua oração para que eu possa….
– Cala-te! “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que vem
da boca de Deus.”
O demônio estremece de raiva. Range os dentes e fecha os punhos. Mas
ele se contém, e muda o ranger de dentes em um sorriso.
– Compreendo. Tu estás acima das necessidades da terra e tens aversão
a servir-te de mim. Bem que eu mereci isto. 46.7Mas, vem, então, e vê o que
está acontecendo na Casa de Deus. Vê como até os sacerdotes não se
recusam a fazer transações entre o espírito e a carne. Porque, afinal, eles são
homens, não são anjos. Faz um milagre espiritual. Eu te levo até o pináculo
do Templo, e Tu, transfigura-te em beleza lá em cima, depois, chama a
multidão de anjos, e diz a eles que façam de suas asas entrelaçadas, uma
esteira para os teus pés, e que Te levem para desceres no pátio principal.
Que todos Te vejam e se lembrem de que Deus existe. De vez em quando é
necessária uma manifestação, porque o homem tem uma memória muito
fraca, especialmente nas coisas espirituais. Bem sabes como os anjos se
sentirão felizes por poderem oferecer um apoio aos teus pés e uma escada
para desceres!
– Está escrito: “Não tentes ao Senhor teu Deus.”
– Compreendes que, mesmo com a tua aparição, não se mudariam as
coisas, e o Templo continuaria a ser um lugar de mercado e corrupção. A tua
divina sabedoria bem o sabe, como os corações dos ministros do Templo
são um ninho de víboras, que se dilaceram, contanto que consigam
prevalecer. Só podem ser dominados com força humana.
46.8
Então, vem. Adora-me. Eu te darei a terra. Alexandre, Ciro, César,
todos os maiores dominadores do passado ou do presente serão semelhantes
a chefes de umas mesquinhas caravanas, se comparados a Ti, que terás sob o
teu cetro todos os reinos da terra. Com os reinos, terás todas as riquezas,
todas as belezas da terra, mulheres, cavalos, forças armadas e templos.
Poderás erguer em qualquer lugar o teu Sinal, quando serás o Rei dos reis e
Senhor do mundo. Então, serás obedecido e venerado pelo povo e pelo
sacerdócio. Todas as castas te honrarão e te servirão, porque serás o
Poderoso, o Único, o Senhor.
Adora-me, ainda que por um só momento! Tira-me esta sede que eu
tenho de ser adorado! Foi ela que me perdeu. Mas ela ficou em mim,
queimando-me. As chamas do inferno são como o ar fresco da manhã,
comparado a este ardor que me queima interiormente. Esta sede é o meu
inferno. Um momento, um momento só, ó Cristo, Tu que és bom! Um
momento de alegria para o eterno Atormentado! Deixa-me sentir o que quer
dizer ser deus, e eu serei teu devoto e servo obediente por toda a vida, para
todas as tuas obras. Um momento! Um só momento, e não te atormentarei
mais!
Satanás se põe de joelhos, suplicando.
46.9
Jesus, ao contrário, se levantou. Tendo-se tornado mais magro nestes
dias de jejum, parece ainda mais alto. Seu rosto está cheio de severidade e
poder. Seus olhos são duas safiras ardentes. Sua voz é como um trovão, que
se repercute na cavidade do penhasco, espanlhando-se sobre o pedregal e a
planície desolada, ao dizer:
– Vai-te, Satanás. Está escrito: “Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele
servirás!”
Satanás, com um urro de condenado e com um ódio indescritível,
levanta-se com ímpeto, tremendo, ao ver-se na sua furiosa e fumante figura.
Depois, desaparece, com um novo urro de maldição.
46.10
Jesus se assenta, cansado, apoiando atrás a cabeça no penhasco.
Parece estar exausto. Está suando. Mas os seres angélicos vêm soprar
levemente, com suas asas no mormaço da caverna, purificando-o e
refrescando-o. Jesus abre os olhos, e sorri. Eu não o vejo comer. Eu diria
que Ele se nutre do aroma do Paraíso, saindo revigorado.
O sol desaparece no poente. Jesus pega o alforje vazio e, acompanhado
pelos anjos que, suspensos acima de sua cabeça, produzem uma luz suave,
enquanto a noite cai rapidamente, se encaminha para o leste, ou melhor, para
o nordeste. Já retomou sua expressão habitual, o passo firme. Só resta, como
lembrança do seu longo jejum, um aspecto mais ascético no rosto magro e
pálido e nos olhos, arrebatados, numa alegria que não é desta terra.
46.11
Jesus diz:
– Ontem estavas sem a tua força, que é a minha vontade, e eras por isso
um ser semivivo. Eu fiz que teus membros repousassem e te fiz jejuar no
único jejum que é pesado para ti: aquele da minha palavra. Pobre Maria!
Tiveste uma Quarta-Feira de Cinzas. Em tudo sentiste o sabor da cinza, visto
que estavas sem o teu Mestre. Eu não me fazia ouvir. Mas Eu estava
presente.
Nesta manhã, já que a aflição é recíproca, Eu te murmurei em teu
cochilo: “Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, dá-nos a paz”, e
te fiz repetir isso muitas vezes, e outras tantas repeti para ti. Pensaste que Eu
ia falar sobre isto. Mas, primeiro foi o ponto que Eu já te mostrei, e que vou
comentar. Depois, hoje à tarde, te ensinarei sobre aquele outro assunto.
46.12
Satanás, como viste, se apresenta sempre com uma aparência
benévola. Com um aspecto comum. Se as almas estiverem atentas, e
sobretudo em contatos espirituais com Deus, perceberão aquele aviso, que
as tornará cautelosas e prontas para combater as insídias do diabo. Mas, se
as almas estiverem desatentas ao divino, separadas por uma carnalidade que
as domina e ensurdece, não ajudadas pela oração que as une a Deus e
derrama sua força como por um canal no coração do homem, então
dificilmente elas notam a cilada escondida sob uma aparência inócua, caindo
nela. Livrar-se, depois, é muito difícil.
46.13
Os dois caminhos mais comuns, tomados por Satanás para chegar às
almas, são a sensualidade e a gula. Ele começa sempre pela matéria.
Desmantelada e dominada esta, aí ele ataca a parte superior. Primeiro, o
moral: o pensamento com suas soberbas e cobiças; depois, o espírito,
tirando dele não só o amor — este já nem existe mais, quando o homem
substituiu o amor divino por outros amores humanos — mas também o temor
de Deus. É então que o homem se abandona de corpo e alma a Satanás,
contanto que chegue a gozar do que quer, e a gozar sempre mais.
46.14
Como Eu me comportei, tu o viste. Silêncio e oração. Silêncio.
Porque, se Satanás faz seu trabalho de sedutor e vem ao redor de nós, é
preciso suportá-lo sem tolas impaciências e temores inúteis. Mas reagir com
altivez à sua presença e com oração à sua sedução.
É inútil discutir com satanás. Ele venceria, porque é forte em sua
dialética. Só Deus o vence. Por isso é preciso recorrer a Deus, que fale por
nós, através de nós. Mostrar a satanás aquele nome e aquele sinal, não tanto
escritos em papel ou gravados em madeira, quanto escritos e gravados no
coração. O meu Nome, o meu Sinal. Rebater a satanás, somente quando
insinua que ele é como Deus, usando a palavra de Deus[82]. Ele não suporta
esta palavra.
46.15
Depois, passada a luta, vem a vitória, e os anjos servem e defendem
o vencedor do ódio de satanás. Eles o restauram com o orvalho celeste, com
a graça que tornam a derramar às mãos cheias no coração do filho fiel, com
a bênção que acaricia o espírito.
É preciso ter a vontade de vencer a satanás e fé em Deus e em sua ajuda.
Fé no poder da oração e na bondade do Senhor. Então, satanás não pode
fazer nenhum mal.
Vai em paz. Nesta tarde te alegrarei com o que ainda virá.
[81] júbilo e amor, referem-se aos anjos, esp íritos p uros, cuja criação e função (que exclui o p rivilégio, reservado ao homem, de
p oder coop erar p ara a redenção, como se diz em 96.5) serão ilustrados em 266.11 e em nota a 428.4. Lúcifer, enquanto anjo
rebelde, teve na origem as p rerrogativas angélicas. Da sua queda ou exp ulsão do Céu, que se entrevê em Isaías 14,12, a obra
Valtortiana trata p elo menos em: 17.3 -69.4 -96.2 -131.2 -244.6 -265.4 -317.4 -414.8 -448.2 -483.3 -486.4/5 -487.6/7 (culp a
dos anjos rebeldes sem esp erança de redenção) -507.9 -515.3 -537.7. Em mérito do p resente p asso das tentações de Jesus,
assim anota M aria Valtorta sobre uma cóp ia dactilografada: O carácter serpentino de Lúcifer revela-se aqui em pleno. Cada
palavra é mentira e desejaria ser sedução. Apenas o dizer que nele há ainda um resto de amor, enquanto o ódio e apenas ódio,
para Deus e o homem, o impele para esta tentativa de arruinar e destruir o fruto da Incarnação. Tanto ódio que a sua malícia
se torna estupidez: a estupidez de pensar que se pode induzir a pecado Cristo. -Como Miguel é o nome do p ríncip e dos anjos
(nota em 376.10), assim Lucífer tornou-se, junto com Satanás e Belzebú (e semelhantes), um dos nomes dos p ríncip es dos
demónios; e em 243.9 vem identificado com a Serp ente tentadora). Outros nomes demoníacos são “Mammona” (p ersonificação
da riqueza material) e Leviatão (nota em 254.1).
[82] a palavra de Deus, que Jesus rebatendo Satanás, retirou de Deuteronómio 6,13.16; 8,3.
47. O encontro com João e Tiago.
João de Zebedeu é o puro entre os discípulos.
25 de fevereiro de 1944.
47.1
Vejo Jesus que caminha ao longo da faixa verde que costeia o Jordão.
Ele voltou mais ou menos ao mesmo lugar que viu o seu batismo. É perto do
vau do Jordão, que parece ser muito conhecido e freqüentado como meio de
passar-se à outra margem, na direção de Peréia. Mas o lugar, antes tão
povoado, agora parece quase deserto. Só algum viajante, a pé ou montado
em jumentos ou cavalos, é que o percorre. Jesus parece nem perceber isso.
Ele prossegue por sua estrada, subindo novamente para o norte, como que
absorto em seus pensamentos.
Ao chegar à altura do vau, encontra-se com um grupo de homens de
diversas idades, que discutem animadamente entre si, separando-se depois,
uma parte para o sul e a outra para o norte. Entre aqueles que se dirigem ao
norte, vejo João e Tiago.
47.2
João é o primeiro a avistar Jesus, monstrando-o ao irmão, e aos
companheiros. Falam eles ainda um pouco entre si e, depois, João se põe a
caminhar rapidamente para alcançar Jesus. Tiago o segue mais devagar. Os
outros não se interessam, continuando a caminhar lentamente e discutindo.
Quando João chega perto de Jesus, às suas costas, à distância de uns
dois ou três metros, grita:
– Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo!
Jesus se vira, e olha para ele. Os dois estão a poucos passos um do
outro. Eles se observam. Jesus, com seu aspecto sério e indagador. João,
com seus olhos puros e risonhos, no belo rosto tão juvenil, que parece
feminino. Podem-se lhe dar uns vinte anos e, sobre a face rosada, não tem
ainda mais do que alguns poucos pelos loiros, como uma veladura dourada.
– A quem estás procurando? –pergunta Jesus.
– A Ti, Mestre.
– Como sabes que eu sou mestre?
– Foi o Batista que me disse.
– E, por que me chamas Cordeiro?
– Porque o ouvi chamar-te assim, um dia em que ias passando, há pouco
mais de um mês.
– Que queres de Mim?
– Que nos digas palavras de vida eterna, e nos consoles.
– Quem és tu?
– João de Zebedeu, sou eu, e este é Tiago, meu irmão. Somos da
Galiléia. Somos pescadores. Mas somos também discípulos de João. Ele nos
dizia palavras de vida, nós o escutávamos, porque queríamos seguir a Deus
e, com a penitência, merecer o seu perdão, preparando os caminhos do
coração para a vinda do Messias. Tu és o Messias. João o disse, porque viu
o sinal da Pomba pousar sobre Ti. Disse –nos também: “Eis o Cordeiro de
Deus.” Eu, então, digo a Ti: Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do
mundo, dá-nos a paz, porque não temos mais quem nos guie, e nossa alma
está turbada.
– Onde está João?
– Herodes o pôs na prisão, em Maqueronte. Os mais fiéis entre os seus
discípulos tentaram libertá-lo. Mas não é possível. Nós estamos voltando de
lá. 47.3Deixa-nos ir Contigo, Mestre. Mostra-nos onde é que moras.
– Vinde. Mas sabeis o que estais pedindo? Quem me segue deverá
deixar tudo: sua casa, seus parentes, seu modo de pensar, e até a vida. Eu
vos farei meus discípulos e meus amigos, se quiserdes. Mas Eu não tenho
riquezas, nem privilégios. Sou pobre, e o serei ainda mais, até o ponto de
não ter nem onde encostar a cabeça, serei perseguido pelos lobos mais do
que uma ovelha perdida. Minha doutrina é ainda mais severa do que a de
João, porque proíbe também o ressentimento. Ela dirige-se não tanto ao
exterior, quanto ao espírito. Tereis que renascer, se quereis ser meus.
Quereis fazer assim?
– Sim, Mestre, só Tu tens palavras que nos dão luz. Elas descem e, onde
havia trevas e desolação, pois estávamos sem guia, derramam a claridade do
sol.
– Vinde, então, e vamos. Eu vos irei ensinando pelo caminho.
Jesus diz:
47.4
47.9
Jesus ainda diz:
– Eu não quis que tu falasses sobre a tentação de sensualidade do teu
Jesus. Mesmo que a tua voz interior te fez entender o motivo de satanás para
atrair-me à sensualidade, Eu preferi falar disso. E não pensais além. Era
necessário falar. Agora vai avante. Deixa a flor de satanás sobre suas areias.
Vem atrás de Jesus, como João. Caminharás entre os espinhos, mas
encontrarás, como rosas, as gotas de sangue de Quem as derramou por ti,
para vencer a carne, também em ti.
47.10
Antecipo uma observação. Diz[85] João em seu Evangelho, falando do
encontro Comigo: “E, no dia seguinte”. Parece com isso que o Batista me
tivesse mostrado no dia seguinte ao batismo, e que, logo, João e Tiago me
seguiram, mas isso contrasta tudo o que disseram os outros evangelistas a
respeito dos quarenta dias passados no deserto. Mas deveis ler assim:
“(Tendo já acontecido a prisão de João), um dia depois os dois discípulos
de João Batista aos quais ele me havia mostrado, dizendo: ‘Eis o Cordeiro
de Deus’, ao me verem de novo, chamaram e me seguiram.” Depois da minha
volta do deserto.
Juntos voltamos às margens do lago da Galiléia, onde Eu tinha ido
refugiar-me, para, de lá, iniciar a minha evangelização. Os dois falaram de
Mim aos outros pescadores, depois de terem estado Comigo por todo o
caminho, e por um dia inteiro na casa hospitaleira de um amigo da parentela
de minha casa. Mas a iniciativa foi de João, cuja alma a vontade de
penitência e a sua pureza tinha tornado tão limpa, que era uma verdadeira
obra-prima de limpidez, sobre a qual a Verdade se refletia nitidamente,
dando-lhe também a santa audácia dos puros e dos generosos, que não temem
andarem avante, onde está Deus, onde está a verdade, a doutrina, o caminho
de Deus.
Quanto Eu o amei por essa sua simples e heróica característica!”.
[83] para ferir Adão. O homem-filho de Deus — assim anota M aria Valtorta numa cóp ia dactilografada — tinha já sido ferido
pela soberba da desobediência. Sobrava o homem animal, e foi ferido pela luxúria porque, perdida a Graça, pecou como
homem natural. Jesus era Deus e Homem. Intocável como Deus. Por isso, apenas como “Homem” podia ser tentado por
Satanás.
[84] Eu disse, em: Mateus 5,8 (170.5.11).
[85] Diz, em: João 1,35.
48. João e Tiago falam a Pedro
sobre o encontro com o Messias.
12 de outubro de 1944.
48.1
Sobre o Mar da Galiléia vem raiando uma belíssima aurora. O céu e a
água têm brilhos rosados, pouco diferentes daqueles que esplendem
suavemente por entre os muros dos pequenos jardins do povoado lacustre,
jardins dos quais se elevam e se deixam ver, quase lançando-se sobre as
vielas as frondes despenteadas e vaporosas das árvores frutíferas.
O povoado começa a despertar, com uma ou outra mulher que vai à fonte
buscar água, ou a algum tanque lavar roupa e com os pescadores que
descarregam as cestas de peixe, fazendo negócio com os mercadores em alta
voz, que vieram de outros lugares, ou levam peixes para casa. Eu disse um
povoado, mas não é tão pequeno. É um tanto humilde, ao menos do lado que
o vejo, embora vasto e extenso na parte mais longa do lago.
48.2
João aparece no fim de uma pequena estrada, indo apressado em
direção ao lago. Tiago o segue, mas muito mais calmo. João olha os barcos
que já chegaram à margem, mas não vê aquele que está procurando. Agora
ele acaba de enxergá-lo, mas está a algumas centenas de metros da beira,
atento às manobras para atracar, e grita bem alto, levando as mãos à boca
com um longo: “Oh-é!”, que deve ser um sinal combinado entre eles. E
depois, quando percebe que o ouviram, agita os braços em gestos largos, que
indicam: “Vinde, vinde!”
Os homens do barco, pensando quem sabe o que, agarram os remos, e o
barco vai mais veloz do que só com a vela, que eles amainaram, talvez para
conseguirem ir mais depressa. Quando estão a uns dez metros da margem,
João não espera mais. Tira o manto e a veste longa, e os lança sobre a praia,
tira as sandálias, levanta a túnica, tendo-a segura com uma mão quase à
virilha, e entrando na água, vai ao encontro dos que estão chegando.
– Por que vós dois não viestes? –pergunta André. Pedro, amuado, não
diz nada.
– E tu, por que não vieste comigo e o Tiago? –responde João a André.
– Eu fui pescar. Não tenho tempo para perder. Tu desapareceste com
aquele homem…
– Eu te havia feito sinal para que fosses. 48.3É Ele mesmo. Se ouvisses
que palavras!… Ficamos com Ele o dia todo e até tarde da noite. E agora,
viemos dizer-vos: “Vinde.”
– É Ele mesmo? Estais certos disso? Nós só o vimos naquele dia em
que o Batista no-lo mostrou.
– É Ele, pois, não o negou.
– Qualquer um pode dizer o que lhe interessa para impor-se aos
crédulos. Já não é a primeira vez… –resmunga Pedro, descontente.
– Oh! Simão. Não digas assim. Ele é o Messias! Ele sabe tudo! Ele te
está ouvindo!
João ficou magoado e consternado com as palavras de Simão Pedro.
– Ora essa! O Messias! E se mostra justamente a ti, a Tiago e André!
Três pobres ignorantes! Vai querer coisas bem diferentes o Messias! Ele me
está ouvindo! Mas, meu pobre rapaz, os primeiros dias do sol da primavera
te fizeram mal. Vamos, vem trabalhar. Será melhor. Deixa de histórias.
– Ele é o Messias, eu te asseguro. João Batista dizia coisas santas, mas
este fala como Deus. Quem não for o Cristo, não pode dizer semelhantes
palavras.
48.4
– Simão, eu não sou um jovenzinho. Eu já tenho muitos anos, sou
calmo e sensato. Tu sabes disso. Eu falei pouco, mas ouvi muito nestas horas
em que estivemos com o Cordeiro de Deus, e eu te digo que verdadeiramente
ele não pode ser senão o Messias. Por que não acreditar? Por que não querer
crer? Tu o podes fazer, porque não o ouviste. Mas eu creio. Somos pobres e
ignorantes? Ele bem disse que veio para anunciar a Boa Nova do Reino de
Deus, do Reino de Paz, aos pobres, aos humildes, aos pequenos, mais do que
aos grandes. Ele disse: “Os grandes já têm as suas delícias. Não são delícias
invejáveis, se comparadas àquelas que Eu venho trazer. Os grandes já têm
seu modo de chegar a compreender, somente pela força do estudo. Mas Eu
venho aos ‘pequenos’ de Israel e do mundo, àqueles que choram e esperam,
àqueles que procuram a Luz e têm fome do verdadeiro Maná; não é pelos
doutos que a luz e os alimentos são doados, pois o que eles dão é somente
opressão, escuridão, prisão e desprezo. Eu chamo os ‘pequenos.’ Eu vim
para virar o mundo de cabeça para baixo. Porque Eu abaixarei o que agora
está no alto, e elevarei o que agora está sendo desprezado. Quem quer
verdade e paz, quem quer vida eterna, venha a Mim. Quem ama a Luz, venha.
Eu sou a Luz do mundo.” Não foi assim que Ele disse, João?
Tiago falou de modo calmo, mas comovido.
– Sim. E Ele disse ainda: “O mundo não me amará. O grande mundo,
porque se corrompeu com vícios e comércios idolátricos. O mundo aliás,
não me quererá. Porque, como filho das Trevas, não ama a Luz. Mas a terra
não é feita só do grande mundo. Nela existem aqueles que, mesmo estando
misturados com todos, do mundo não são. Há alguns que são do mundo,
porque nele foram aprisionados como os peixes pela rede”: ele falou
justamente assim, porque nós estávamos conversando à margem do lago e
Ele apontava as redes que vinham arrastadas com os peixes para a praia.
Disse mais: “Vede. Nenhum daqueles peixes queria cair na rede. Também os
homens, intencionalmente, não iriam querer cair como presas de Mamon.
Nem mesmo os mais malvados porque estes, pela soberba que os cega, não
crêem que não tenham o direito de fazer o que fazem. O verdadeiro pecado
deles é a soberba. Deste pecado nascem todos os outros. Mas aqueles que
não são completamente maus, ainda mais não iriam querer ser de Mamon.
Eles caem por leviandade, por um peso que os arrasta para o fundo, que é a
culpa de Adão. Eu vim para tirar aquela culpa e para dar, na esperança da
hora da Redenção, uma tal força aos que em Mim crerem, que será capaz de
livrá-los do laço que os prende, tornando-os livres para Me seguirem: a Luz
do mundo!”
48.5
– Mas, então, se Ele falou mesmo assim, é preciso irmos para Ele, e
logo.
Pedro, com os seus impulsos tão sinceros, que me agradam tanto, de
repente decidiu, e já vai começando a fazer o que decidiu, apressando-se
para acabar os trabalhos da descarga, pois o barco já chegou à margem, e os
empregados já o puxaram para fora d’água, descarregando também as redes,
as cordas e o velame.
– E tu, André, por que foste tão tolo, para não teres ido com eles?
– Mas, Simão! Tu me censuraste, porque eu não consegui fazer que eles
viessem comigo. A noite inteira ficaste resmungando isso, e agora me
censuras porque eu não fui com eles?!…
– Tens razão… Mas eu não o tinha visto… E tu, sim… Deves ter visto
que Ele não é como nós… Ele deve ter alguma coisa de mais belo do que os
outros!…
– Oh! Sim –diz João–. Ele tem um rosto! Uns olhos! Não é verdade,
Tiago? Uns olhos! E uma voz!… Oh! Que voz! Quando Ele fala, dá a
impressão de que estás no Paraíso.
– Depressa, depressa! Vamos procurá-lo. Vós (fala aos empregados),
levai tudo para Zebedeu, e dizei-lhe que faça o que for preciso. Nós
voltaremos esta noite para a pesca.
Vestem-se todos de novo, e põem-se a caminho. 48.6Mas Pedro, depois de
andar uns metros pára, agarra João por um braço, e lhe pergunta:
– Disseste que Ele sabe tudo e que ouve tudo…
– Sim. Imagina que quando nós, vendo a lua alta, dissemos: “Que é que
estará fazendo o Simão?”, Ele disse: “Ele está lançando a rede e não se
conforma em ter que fazer isso sozinho, porque vós não saístes com o barco
gêmeo, justamente numa noite de tão boa pesca… Ele não sabe que, daqui a
pouco, não pescará senão com outras redes e que os peixes que apanhará
serão outros.”
– Misericórdia divina! É verdade! Então, Ele ouviu também… também o
que eu disse, julgando-O menos do que um mentiroso… Eu já não posso ir
até Ele.
– Oh! Ele é muito bom. Certamente sabe que tu pensaste assim. Ele já o
sabia. Porque, quando nós O deixamos, dizendo que viríamos a ti, Ele disse:
“Ide. Mas não vos deixeis vencer pelas primeiras palavras de escárnio.
Quem quer vir Comigo, deve saber ter a cabeça erguida, diante das
zombarias do mundo e das proibições dos parentes. Porque Eu estou acima
do sangue e da sociedade, e triunfo sobre eles. E quem está Comigo, também
triunfará eternamente.” E disse também: “Sabeis falar sem medo. Quem vos
ouvir, virá, porque é homem de boa vontade.”
– Ele falou assim? Então, eu vou. 48.7Fala, vai falando Dele, enquanto
vamos indo. Onde Ele está?
– Em uma pobre casa. Deve ser de pessoas amigas.
– Mas, Ele é pobre?
– É um operário de Nazaré. Assim Ele disse.
– E de que vive agora, se não está mais trabalhando?
– Não lhe perguntamos. Talvez os parentes O estejam ajudando.
– Melhor seria levarmos peixes, pão, frutas… alguma coisa. Vamos
perguntar a algum rabi, pois Ele é mais do que um rabi, mas de mãos
vazias!… Os nossos rabinos não querem ser assim…
– Mas Ele quer. Não tínhamos mais do que vinte moedas, eu e o Tiago
juntos, e oferecemos a Ele, como é costume fazer com os rabinos. Mas Ele
não as queria. Nós, então, insistimos e Ele disse: “Deus vo-los restitua, nas
bênçãos dos pobres. Vinde Comigo”, e prontamente as distribuiu aos
pobrezinhos, que Ele sabia onde moravam, e a nós, que estávamos
perguntando: “E para Ti, Mestre, não guardas nada?”, Ele respondeu: “A
alegria de fazer a vontade de Deus e de servir à sua glória.” Nós lhe
dissemos também: “Tu nos estás chamando, Mestre. Mas nós somos todos
pobres. Que é que te devemos trazer?” Ele nos respondeu com um sorriso,
que nos fez sentir o gosto do Paraíso: “Um grande tesouro quero de vós.”
Nós Lhe dissemos: “Mas … nada temos?” E Ele respondeu: “É um tesouro
de sete nomes, que até o mais pobre pode ter, mas o rei mais rico não pode
possuir; vós o tendes, e Eu o quero. Ouvi os nomes deste tesouro: caridade,
fé, boa vontade, reta intenção, continência, sinceridade e espírito de
sacrifício. Isto Eu quero de quem me segue, só isto, e vós o tendes. Está
dormindo como uma semente, sob um solo invernal, mas o sol da minha
primavera o fará nascer em setêmplice espiga.” Assim Ele falou.
– Ah! Isto me assegura que é o verdadeiro Rabi, o Messias prometido.
Não é duro com os pobres, não pede dinheiro… Basta isto para chamá-lo o
Santo de Deus. Vamos tranqüilos.
E tudo termina.
49. O encontro com Pedro e André
depois de um discurso na sinagoga.
João de Zebedeu, grande também na humildade.
13 de outubro de 1944.
[…].
49.1
As 14:00 horas vejo isto:
Jesus vem avante por uma estradinha, uma vereda entre dois campos.
Ele está sozinho. João, prossegue em sua direção, por um outro caminho, por
entre os campos, e enfim o alcança, passando por uma abertura entre as
sebes.
João, tanto na visão de ontem, como de hoje, é simplesmente um
jovenzinho. Um rosto rosado e imberbe de quem acaba de chegar à idade
viril e, além disso, é loiro. Por isso não tem sinal nem de bigode, nem de
barba, mas apenas o rosado das faces lisas, os lábios vermelhos com a luz
risonha do seu belo sorriso e do olhar puro, não tanto pela sua cor de
turqueza escura, quanto pela limpidez da alma virgem que transparece neles.
Os cabelos loiro-castanhos, compridos e macios, ondulam, a cada passo
veloz, quase como uma corrida.
Quando está para atravessar a sebe, ele chama:
– Mestre!
Jesus se detém, e se volta com um sorriso.
– Mestre, eu queria muito te ver! Na casa onde estás, me disseram que
tinhas vindo em direção aos campos… mas não sabia onde. Temia não te
ver.
João fala levemente inclinado, em sinal de respeito. Contudo está cheio
de um afeto confiante, em sua atitude e em seu olhar, que, estando com a
cabeça ligeiramente curvada no ombro, eleva Jesus.
– Eu vi que me estavas procurando, e vim ao teu encontro.
– Tu me viste? Onde estavas, Mestre?
– Eu estava lá.
E Jesus aponta as copas de umas árvores afastadas, que, pela cor, diria
que são oliveiras:
– Eu estava lá rezando e pensando no que Eu vou dizer esta tarde na
sinagoga. Mas Eu saí de lá, logo que te vi.
– Mas, como fizeste para me ver, se eu mal posso ver aquele lugar,
escondido como está, atrás daquela curva?
– Ainda assim o estás vendo! Eu vim ao teu encontro, porque te vi. O
que o olho não pode ver, pode o amor.
– Sim, o amor pode. 49.2Então, tu me amas, Mestre?
– E tu me amas, João, filho de Zebedeu?
– Muito, Mestre. Parece-me que sempre te amei. Antes de ter-te
conhecido, antes ainda, a minha alma te procurava, e quando eu te vi, ela me
disse: “Eis Aquele que procuras.” Eu creio que te encontrei, porque a minha
alma te sentiu.
– Tu o dizes, João, e o dizes certo. Eu também vim ao teu encontro,
porque minha alma te sentiu. Por quanto tempo me amarás?
– Para sempre, Mestre. Não quero mais amar a outros, a não ser a Ti.
– Tens pai e mãe, irmãos, irmãs, tens tua vida, e, com a vida, a mulher e
o amor. Como farás para deixar tudo isso por Mim?
– Mestre… não sei… mas me parece, se não for soberba dizer isso, que
a tua predileção tomará para mim o lugar de pai, mãe, irmãos, irmãs, e
também da mulher. De tudo, sim, de tudo estarei saciado, se me amares.
– E se o meu amor te trouxer dores e perseguições?
– Não haverá de ser nada, Mestre, se Tu me amares.
– E no dia em que Eu tivesse que morrer…?
– Não. És ainda jovem, Mestre… Por que morrer?
– Porque o Messias veio para pregar a Lei em sua verdade e para
cumprir a Redenção. A Lei aborrece o mundo, que também não quer
redenção. Por isso persegue os enviados de Deus.
– Oh! Que isto não aconteça! Não digas a quem te ama, este prognóstico
de morte!… Mas, se Tu tiveres que morrer, eu Te amarei ainda. Deixa que eu
te ame.
João tem o olhar suplicante. Mais inclinado que nunca, ele vai
caminhando ao lado de Jesus, parecendo estar mendigando amor.
Jesus pára. Olha para ele, traspassa-o com o olhar de seus olhos
profundos, e depois lhe põe a mão sobre a cabeça inclinada.
– Quero que tu me ames.
– Oh! Mestre!
João está feliz. Ainda que seus olhos estejam brilhando pelas lágrimas,
ele está sorrindo; com sua boca jovem e bem desenhada, pegando a mão
divina, beija-a nas costas e a aperta junto ao coração.
49.3
Depois eles retomam o caminho.
– Disseste que me estavas procurando…
– Sim. Para dizer-te que os meus amigos querem te conhecer… e
também porque… oh! porque eu sentia vontade de estar Contigo de novo!
Fazia poucas horas que eu te havia deixado… mas já não podia mais estar
sem Ti.
– Então, terás sido um bom anunciador do Verbo?
– Tiago também, Mestre, falou de Ti, de maneira… convincente.
– De maneira que até aquele que desconfiava — nem é culpado porque a
prudência era a causa de sua reserva — também se persuadiu. Vamos agora
fazê-lo ficar completamente convicto.
– Ele estava com um pouco de medo…
– Não! Medo de Mim, não! Eu vim para os bons e mais ainda para quem
está no erro. Eu quero salvar. Não condenar. Com os honestos serei todo
misericórdia.
– E com os pecadores?
– Também. Por desonestos Eu entendo aqueles que têm a desonestidade
espiritual e, hipocritamente, se fingem bons, enquanto fazem obras más.
Fazem tais coisas, de tal modo, para o seu próprio proveito e para se
aproveitarem do próximo. Com esses Eu serei severo.
– Oh! Então Simão pode estar seguro. É sincero como nenhum outro.
– Assim me agrada, e quero que sejais todos.
– Simão quer dizer-te muitas coisas.
– Eu o ouvirei, depois que tiver falado na sinagoga. Mandei avisar os
pobres e os doentes, além dos ricos e os sadios. Todos precisam da Boa
Nova.
49.4
O povoado está próximo. Alguns meninos brincam na estrada e um
deles, correndo, vem chocar-se contra as pernas de Jesus e teria caído, se
Ele não o segurasse com presteza. O menino chora mesmo assim, como se se
tivesse se machucado, mas Jesus, tomando-o nos braços, diz:
– Um israelita que chora? Que deveriam fazer os milhares e milhares de
crianças, que se tornaram homens, atravessando o deserto, atrás de Moisés?
Contudo foi mais para eles do que para os outros justamente para estes é que
fez descer o maná tão doce, porque o Altíssimo ama os inocentes e provê o
necessário a estes anjinhos da terra, a estes passarinhos sem asas, como faz
com os pássaros da mata e dos telhados. Gostas de mel? Sim? Pois bem, se
fores bom, comerás de um mel mais doce do que aquele das tuas abelhas.
– Onde? Quando?
– Quando, depois de uma vida de fidelidade a Deus, fores para Ele.
– Eu sei que não irei para lá, enquanto não vier o Messias. Minha mãe
me diz que, por ora, nós de Israel somos todos como Moisés, e morremos,
vendo de longe a Terra Prometida. Ela diz que estamos ali, à espera de
podermos entrar, e que só o Messias nos fará entrar.
– Mas que pequeno israelita esperto! Pois bem, Eu te digo que, quando
morreres, entrarás logo no Paraíso, porque o Messias já terá aberto as portas
do Céu. Mas precisas ser bom.
– Mamãe! Mamãe!
O menino escorrega dos braços de Jesus e corre ao encontro de uma
jovem esposa, que regressa com uma ânfora de cobre.
– Mamãe! O novo Rabi me disse que eu irei logo para o Paraíso, quando
eu morrer, e que vou comer muito mel… mas se eu for bom. Eu vou ser bom!
– Queira Deus! Desculpa, Mestre, se ele te aborreceu. É muito levado.
– A inocência não causa aborrecimento, mulher. Deus te abençoe,
porque és uma mãe que educa os filhos no conhecimento da Lei.
A mulher fica toda vermelha, diante do elogio, e responde:
– A bênção de Deus também para Ti.
E desaparece com o seu pequeno.
49.5
– As crianças Te agradam, Mestre?
– Sim, porque são puras… sinceras… e amorosas.
– Tens sobrinhos, Mestre?
– Eu só tenho minha mãe… Mas nela está a pureza, a sinceridade, o
amor dos pequeninos mais santos, junto à sabedoria, justiça e fortaleza dos
adultos. Eu tenho tudo em minha mãe, João.
– E Tu a deixaste?
– Deus está acima até da mais santa das mães.
– Eu irei conhecê-la?
– Sim. Tu a conhecerás.
– E ela me amará?
– Sim, te amará, porque ela ama a quem ama o seu Jesus.
– Então, não tens irmãos?
– Eu tenho primos, por parte do marido de minha mãe. Mas cada homem
para mim é irmão, e Eu vim para todos. 49.6Eis-nos diante da sinagoga. Eu
entro, e tu virás a Mim depois com os teus amigos.
João sai dali, e Jesus entra em uma sala quadrada, onde há velas em um
triângulo, como de costume, e estantes com rolos de pergaminho. A multidão
já está ali, em expectativa e em oração. Também Jesus está rezando. O povo
está cochichando e comentando atrás Dele, que se curva para saudar o chefe
da sinagoga, pedindo depois que lhe dêem um rolo.
Jesus começa a leitura. Diz:
– Estas coisas o Espírito Santo me faz ler para vós. No capítulo sétimo
do livro de Jeremias se lê[86]: “Assim diz o Senhor dos exércitos, o Deus de
Israel: ‘Corrigi os vossos costumes e os vossos afetos e, então, habitarei
convosco neste lugar. Não vos fiqueis iludindo com as palavras vãs por vós
repetidas: aqui está o Templo do Senhor, o Templo do Senhor, o Templo do
Senhor. Porque, se melhorardes os vossos costumes e os vossos afetos, se
fizerdes justiça entre o homem e o seu próximo, se não oprimirdes o
estrangeiro, o órfão e a viúva, se não derramardes neste lugar sangue
inocente, se não fordes atrás dos estrangeiros, para a vossa desventura, então
Eu habitarei convosco neste lugar, na terra que Eu dei a vossos pais, por
séculos e séculos’.”
Ouvi, ó vós de Israel. Eis que Eu venho esclarecer-vos sobre as
palavras de luz que a vossa alma ofuscada não sabe mais ver e compreender.
Ouvi. Muito pranto desce sobre a terra do povo de Deus, e choram os velhos
que se lembram das glórias antigas, choram os adultos curvados pelo jugo,
choram os jovens, que não têm um futuro de glória. Mas a glória da terra
nada é, se comparada a uma glória, que nenhum opressor, que não seja
Mamon ou a má vontade, vos podem arrebatar.
Por que chorais? Como é que o Altíssimo, que sempre foi bom para com
o seu povo, agora virou o olhar para o outro lado, negando aos seus filhos de
verem o seu Rosto? Não será Ele mais o Deus que abriu o mar e por ele fez
passar Israel, conduzindo-o e nutrindo-o pelas areias, defendendo-o contra
os inimigos, para desviar-se do caminho do Céu, assim como Ele deu a
nuvem aos corpos, deu a Lei para as almas? Não será mais Ele o Deus que
adoçou as águas e fez cair o maná para os que estavam extenuados? Não é
Ele o Deus que vos quis estabelecer nesta terra, firmando convosco uma
aliança de Pai para filhos? Então, por que é que agora o estrangeiro vos
feriu?
Muitos de vós murmuram: “Aqui está o Templo!” Não basta termos o
Templo, indo rezar a Deus nele. O primeiro templo, está no coração de cada
homem, onde a oração santa deve ser feita. Mas, ela não pode ser santa, se
antes o coração não se emenda, como também os costumes, os afetos, as
normas de justiça para com os pobres, para com os servos, para com os
parentes, para com Deus.
Agora, olhai. Eu vejo ricos, de coração duro, que fazem ricas ofertas no
Templo, mas que não sabem dizer ao pobre: “Irmão, eis aqui um pão e um
dinheiro. Aceita-o. De coração para coração, e que a minha ajuda não te
humilhe, como também para mim não cause soberba.” Eis, Eu estou vendo
pessoas rezando, lamentando-se com Deus, porque não as ouve prontamente,
mas que depois, com um coração de pedra, respondem “Não!” ao
necessitado, que às vezes com seu sangue lhes pede: “Escutai-me.” Aí está,
Eu vejo que vós chorais, porque a vossa bolsa foi espremida pelo
dominador. Mas depois vós espremeis o sangue daquele que odiais, e ao
esvaziar um corpo do seu sangue e de sua vida, vós não tendes horror.
Ó, vós de Israel! O tempo da Redenção chegou. Mas preparai seus
caminhos em vós com a boa vontade. Sede honestos, bons, amai-vos uns aos
outros. Ricos, não desprezeis; mercadores, não defraudeis; pobres, não
invejeis. Sois todos de um sangue e de um Deus. Sois todos chamados a um
mesmo destino. Não fecheis para vós, com os vossos pecados, o Céu que o
Messias vos abrir. Tereis errado até aqui? Agora, não erreis mais. Que cesse
todo erro.
A Lei que volta aos dez mandamentos iniciais é simples, boa, fácil, mas
devem estar mergulhados na luz do amor. Vinde. Eu vos mostrarei quais são
os amores: amor, amor, amor. Amor de Deus por vós e de vós por Deus.
Amor para com o próximo. Sempre amor, porque Deus é Amor e aqueles que
sabem viver o amor são filhos do Pai. Eu estou aqui para todos e para dar a
luz de Deus a todos. Eis aqui a Palavra do Pai, que se faz alimento em vós.
Vinde, provai, mudai o sangue do espírito com este alimento. Que todo
veneno caia. Que toda concupiscência morra. Uma glória nova vos é
oferecida, aquela eterna, e a ela virão os que fizerem da Lei de Deus assunto
de um verdadeiro estudo para os seus corações. Começai pelo amor. Não
existe coisa maior. Mas, quando souberdes amar, já sabereis tudo, e Deus
vos amará, e o amor de Deus significa ajuda contra toda tentação.
A bênção de Deus esteja sobre aquele que volta para Ele um coração
cheio de boa vontade.
Jesus se cala. O povo cochicha. A reunião se dissolve depois dos hinos
cantados, muitos salmodiando-os.
49.7
Jesus sai para a pequena praça. João, Tiago, Pedro e André estão à
porta.
– A paz esteja convosco –diz Jesus, acrescentando–: O homem, para ser
justo, precisa não julgar sem antes conhecer. Mas é também honesto em
reconhecer a sua culpa. Simão, quiseste me ver? Eis-me aqui. E tu, André,
por que não vieste antes?
Os dois irmãos se olham, embaraçados. André murmura:
– Eu não ousava…
Pedro, vermelho, não diz nada. Mas, quando ouve Jesus dizer ao irmão:
“Faríeis mal em vir? Só o mal não se deve ousar fazer” ele intervém sincero:
– Fui eu. Ele queria trazer-me logo a Ti. Mas eu… disse… sim. Eu
disse: “Não creio” e não quis vir. Oh! Agora estou melhor!…
Jesus sorri. Depois diz:
– E, pela tua sinceridade, Eu te digo que te amo.
– Mas eu… eu não sou bom… não sou capaz de fazer aquilo que
disseste na sinagoga. Eu sou iracundo, e, se alguém me ofende… Eu sou
cobiçoso e gosto de ter dinheiro… No meu mercado de peixe… não é
sempre… nem sempre eu tenho ficado sem cometer alguma fraude. Sou
ignorante. Tenho pouco tempo para seguir-te, para ter a luz. Como farei? Eu
gostaria de me tornar como Tu dizes… mas…
– Não é difícil, Simão. Sabes um pouco a Escritura? Sim? Pois bem,
pensa no profeta Miquéias. Deus quer de ti aquilo que diz[87] Miquéias. Não
te pede que arranques o coração, nem que sacrifiques os afetos mais santos.
Por enquanto, não te pede isto. Um dia, sem que Deus te peça, darás até a ti
mesmo a Deus. Mas Ele espera que o sol e o orvalho façam de ti, que és
ainda um fio de erva, uma palmeira forte e gloriosa. Por enquanto, Ele te
pede isto: praticar a justiça, amar a misericórdia, e tomar todo o cuidado em
seguir o teu Deus. Esforça-te para fazer isso, o passado de Simão será
cancelado e tu te tornarás um homem novo, o amigo de Deus e do seu Cristo.
Não serás mais Simão. Serás Cefas. Pedra firme sobre a qual me apóio.
– Isto me agrada. Isto eu entendo. A Lei é assim… é assim… eu não sei
mais cumpri-la como fazem os rabinos!… Mas, isto que Tu dizes, sim.
Parece-me que vou conseguir. E Tu me ajudarás. Moras aqui? Eu conheço o
dono da casa.
– Eu estou aqui. Mas agora irei para Jerusalém, e depois pregarei pela
Palestina. Vim para isso. Mas virei aqui freqüentemente.
– Eu virei ouvir-te ainda. Quero ser teu discípulo. Um pouco de luz
entrará na minha cabeça.
– Sobretudo no coração, Simão. No coração. E tu, André, não dizes
nada?
– Eu ouço, Mestre.
– Meu irmão é tímido.
– Mas se tornará um leão. A noite está chegando. Deus vos abençoe e
vos dê uma boa pesca. Ide.
– Paz a Ti.
E vão embora.
49.8
Mal saíram, Pedro diz:
– O que terá Ele querido dizer antes, quando falou[88] que eu hei de
pescar com outras redes e que farei outras pescas?
– Por que não lhe perguntaste? Querias dizer tantas coisas e, afinal,
quase não falaste.
– Eu… estava com vergonha. Ele é tão diferente de todos os outros
rabinos!
– Agora vai para Jerusalém… –João diz isso com muita saudade e
desejo–. Eu queria perguntar-lhe se me deixava ir com Ele, mas… não tive
coragem…
– Vai dizer-lhe isso, rapaz –diz Pedro–. Nós o deixamos assim… sem
uma palavra de amor… Que pelo menos Ele saiba que nós o admiramos. Vai,
vai, que eu falo com teu pai.
– Posso ir, Tiago?
– Vai.
João vai e volta correndo… e jubiloso.
– Eu disse a Ele: “Queres-me Contigo em Jerusalém?” Ele me
respondeu: “Vem, amigo!” Amigo, Ele me disse! Amanhã a esta hora virei
para cá. Ah! Em Jerusalém com Ele!…
… A visão termina.
Como motivo para esta visão, disse-me Jesus esta manhã (14 de
49.9
outubro):
– Quero que tu e todos observeis o comportamento de João. É um lado
seu que sempre passa desapercebido. Vós o admirais porque ele é puro,
amoroso, fiel. Mas não notais que foi grande também sua humildade. Ele,
artífice da vinda de Pedro a Mim, modestamente se cala neste particular.
O apóstolo de Pedro e, por isto, o primeiro dos meus apóstolos, foi
João. O primeiro a reconhecer-me, o primeiro a dirigir-me a palavra, o
primeiro a seguir-me, o primeiro a pregar sobre Mim. No entanto, estais
vendo o que ele diz? Diz[89] assim: “André, irmão de Simão Pedro, era um
dos dois, que tinham ouvido as palavras de João, e tinham seguido a Jesus. O
primeiro, com quem se encontrou foi com o seu irmão, Simão, ao qual disse:
‘Encontramos o Messias’, e o levou a Jesus.”
Justo, além de bom, ele sabe que André se angustia por ter um caráter
fechado e tímido, que gostaria de fazer muitas coisas mas não consegue, e
João quer que o reconhecimento da sua boa vontade chegue a ele, na
memória dos pósteros. João quer que André apareça como o primeiro
apóstolo de Cristo junto a Simão, perto do irmão, não obstante a sua timidez
e acanhamento lhe terem dado alguma derrota em seu apostolado.
49.10
Quem, entre aqueles que fazem alguma coisa por Mim, sabem imitar
João, sem se autoproclamarem apóstolos insuperáveis, sem pensar que o seu
êxito provém de um complexo de coisas, não somente santidade, mas
também audácia humana, sorte e, ocasionalmente, encontram-se com outros
menos audazes e felizardos, embora talvez mais santos?
Quando vós vos saís bem no que fazeis de bom, não vos glorieis, como
se o mérito fosse todo vosso. Dai louvor a Deus, Senhor dos operários
apostólicos, tende os olhos limpos e o coração sincero para ver e para dar a
cada um o aplauso que lhe cabe. Olhos limpos para discernir os apóstolos
que cumprem o holocausto, e que são as primeiras e verdadeiras alavancas
no trabalho dos outros. Só Deus vê estes que, tímidos, parecem nada fazer,
mas, ao contrário, são os raptores do fogo do céu, que ataca os audazes. Um
coração sincero para saber dizer: “Eu trabalho. Mas este ama mais do que
eu, prega melhor do que eu, se imola, como eu não sei fazer, e como Jesus
disse[90]: ‘… dentro do próprio quarto, com a porta fechada para rezar em
segredo’. Eu, que vejo a sua humilde e santa virtude, quero torná-la
conhecida, e dizer: ‘Eu sou instrumento ativo; este é força que me põe em
movimento, porque, ligado a Deus como ele, que é para mim canal de força
celeste’.”
A bênção do Pai, que desce para recompensar o humilde, que em
silêncio se imola para dar força aos apóstolos, descerá também sobre o
apóstolo que sinceramente reconhece a sobrenatural e silenciosa ajuda que
lhe vem do humilde, e o seu mérito, que a superficialidade dos homens não
nota.
Aprendei todos.
49.11
É o meu predileto? Sim. Mas não tem também esta semelhança
Comigo? Puro, amoroso, obediente, mas também humilde. Eu me espelhava
nele, via nele as minhas virtudes. Eu o amava por isso, como um segundo Eu.
Via sobre ele o olhar do Pai que o reconhecia como um pequeno Cristo. E
minha mãe me dizia: “Nele sinto ter um segundo filho. Parece-me estar
vendo a Ti, reproduzido em um homem.”
Oh! a cheia de sabedoria como te conheceu, ó meu dileto! Os céus azuis
de vossos corações de pureza se fundiram em um único velário para me dar
proteção de amor, e tornarem-se assim um só amor, antes ainda que Eu desse
minha mãe a João, e João à minha mãe. Eles se amaram, porque se
reconheceram semelhantes: filhos e irmãos do Pai e do Filho.
[86] se lê, em: Jeremias 7,3-7.
[87] quer de ti aquilo que diz, em: Miqueias 6,8.
[88] quando falou, o que João lhe referiu em 48.6.
[89] Diz, em: João 1,40-42.
[90] disse, em: Mateus 6,6 (172.5/6).
50. Em Betsaida na casa de Pedro.
O encontro com Filipe e Natanael.
15 de outubro de 1944.
[…].
50.1
Mais tarde (às 9:30 horas) preciso descrever isto.
João bate à porta da casa onde Jesus está hospedado. Aparece uma
mulher, que ao vê-lo, vai chamar Jesus.
Saúdam-se com a saudação da paz. E depois:
– Vieste sem demora, João –diz Jesus.
– Eu vim para dizer-te que Simão Pedro te pede que passes por
Betsaida. Ele falou de Ti a muitos. Esta noite não fomos pescar. Ficamos
rezando, como sabemos, e renunciamos ao lucro porque… o sábado ainda
não havia terminado. Esta manhã estivemos andando pelas ruas, falando de
Ti. Há pessoas que gostariam de te ouvir. Irás então, Mestre?
– Vou. Mesmo se Eu deva ir a Nazaré, antes de Jerusalém.
– Pedro te levará de Betsaida a Tiberíades, com seu barco. Assim irás
mais depressa.
–Então, vamos.
Jesus pega o manto e o alforje. Mas João lhe toma este último. Lá se vão
os dois, depois de terem saudado a dona da casa.
50.2
A visão me mostra a saída do povoado e o começo da viagem para
Betsaida. Mas não ouço discursos, ao contrário, a visão tem uma
interrupção, mas continua, na entrada de Betsaida. Compreendo que é essa a
cidade, porque vejo Pedro, André e Tiago, junto com algumas mulheres que
estão esperando Jesus na entrada do povoado.
– A paz esteja convosco. Eis-me aqui.
– Obrigado, Mestre, por nós e pelos que Te estão esperando. Hoje não é
sábado, mas, dirás tuas palavras aos que estão esperando para Te ouvir?
– Sim, Pedro. Eu o farei. Na tua casa.
Pedro está exultante:
– Então, vem. Esta é minha mulher, esta é a mãe do João, e estas são as
amigas delas. Mas há outros também à tua espera: são parentes e amigos
nossos.
– Avisa-os que partirei de tarde, mas que antes falarei a eles.
Deixei de dizer que, tendo eles partido de Cafarnaum ao pôr-do-sol, os
vi chegar a Betsaida pela manhã.
– Mestre, eu Te peço. Fica uma noite em minha casa. O caminho para
Jerusalém é longo, mesmo que eu o encurte para Ti, com o barco até
Tiberíades. Minha casa é pobre, mas honesta e amiga. Fica conosco esta
noite.
Jesus olha para Pedro e para os outros, que estão todos esperando a
resposta. Jesus os olha perscrutador. Depois, sorri e diz:
– Sim.
Nova alegria para Pedro.
Muitas pessoas estão olhando das portas, fazendo sinais com os olhos.
Um homem chama Tiago pelo nome, fala-lhe baixo, indicando Jesus. Tiago
anui, e o homem vai conversar com outros, que ficaram esperando numa
encruzilhada.
Entram na casa de Pedro. Uma cozinha grande e enfumaçada. Em um
canto há redes, cordas e cestas para a pesca. No meio, a lareira larga e baixa
que, por enquanto, está apagada. Das duas portas opostas se vê a rua e o
pequeno pomar com uma figueira e uma videira. Do outro lado da rua, vê-se
o cérulo das ondas do lago. Além do pomar, está a parede escura de outra
casa.
– Ofereço a Ti o que tenho, Mestre, e como sei…
– Melhor e mais não poderias, porque me ofereces com amor.
Dão a Jesus água para se refrescar e depois, pão e azeitonas. Jesus
prova uns poucos bocados, mais para mostrar que aceita, depois recusa,
agradecendo.
Do outro lado do pomar e da rua alguns meninos estão observando com
curiosidade. Mas não sei se são filhos de Pedro. Só sei que, de vez em
quando, ele lhes dá uns olhares ameaçadores, para barrar os pequenos
invasores. Jesus sorri, e diz:
– Deixa-os à vontade.
– Mestre, queres descansar? Ali é o meu quarto, aquele é o de André.
Escolhe. Não faremos barulho, enquanto descansas.
– Por acaso, não tens um terraço?
– Sim. A videira faz um pouco de sombra, mesmo que esteja ainda quase
sem folhas.
– Leva-me, então, ao terraço. Prefiro descansar lá em cima. Lá, pensarei
e rezarei.
– Como quiseres. Vem.
Do pequeno pomar, uma escadinha sobe para o teto, que é um terraço
limitado por um baixo muro. Aqui também há redes e cordas. Mas quanta luz
do céu e quanto azul do lago!
Jesus se assenta em um banco, com as costas apoiadas ao muro. Pedro
lida com uma vela, que estende perto da videira para fazer uma proteção
contra o sol. Há brisa e silêncio. Jesus está visivelmente gostando.
– Eu já me vou, Mestre.
– Vai. Tu e João, ide dizer que, ao pôr-do-sol, falarei aqui.
Jesus fica só e faz uma longa oração. Exceto dois casais de pombos, que
vão e vêm dos ninhos, e um gorjeio de pássaros, não há barulho nem pessoas
em torno de Jesus que reza. As horas passam calmas e serenas.
50.3
Depois, Jesus se levanta, dá uns passos pelo terraço, olha o lago, sorri
para uns meninos que estão brincando na rua e que lhe sorriem, olha a rua, na
direção da pracinha, que fica a uns cem metros da casa. Depois desce. Vai
até a cozinha:
– Mulher, vou passear à beira do lago.
Sai, e de fato vai para a beira do lago, junto dos meninos. E lhes
pergunta:
– O que estais fazendo?
– Nós queríamos brincar de guerra. Mas ele não quer e, então, vamos
brincar de pesca.
O “ele” que não quer é um homenzinho de corpo delgado, mas com um
rosto que revela grande perspicácia. Talvez ele perceba que, delgado como
é, ao fazer “a guerra”, poderia sair perdendo, e por isso, defende a paz.
Jesus aproveita o assunto para falar aos meninos:
– Ele tem razão. A guerra é um castigo de Deus para a punição dos
homens, e sinal de que o homem não é mais verdadeiro filho de Deus.
Quando o Altíssimo criou o mundo, fez todas as coisas: o sol, o mar, as
estrelas, os rios, as plantas, os animais, mas não fez as armas. Criou o
homem, e lhe deu olhos para que tivesse olhares de amor, boca para dizer
palavras de amor, ouvido para ouvi-las, mãos para dar socorro e carícias,
pés para correrem velozes até o irmão necessitado, e coração capaz de amar.
Deu ao homem a inteligência, a palavra, os afetos, os gostos. Mas não deu o
ódio. Por que? Porque o homem, criatura de Deus, devia ser amor, como
Deus é Amor. Se o homem tivesse continuado a ser criatura de Deus, teria
permanecido no amor, e a família humana não teria conhecido nem guerra
nem morte.
– Mas ele não quer brincar de guerra, porque perde sempre (eu já tinha
adivinhado isso).
Jesus sorri, e diz:
– Não é preciso não querer aquilo que nos prejudica, só porque nos
prejudica. Mas é preciso não querer uma coisa, quando ela prejudica a
todos. Se um, diz: “Eu não quero isto, porque vou perder”, ele é egoísta. Ao
contrário, o bom filho de Deus diz: “Irmãos, eu sei que vou ganhar, mas eu
vos digo: não vamos fazer isso, porque vós teríeis prejuízo.” Oh! Como esse
compreendeu bem o mandamento principal! Quem sabe me dizer qual é?
Em coro, as onze bocas dizem:
– “Amarás o teu Deus com todo o teu ser e ao teu próximo como a ti
mesmo.”
– Oh! Sois uns meninos muito inteligentes! 50.4Ides todos à escola?
– Sim.
– Quem é o mais inteligente?
– Ele.
É o magrinho, que não quer brincar de guerra.
– Como te chamas?
– Joel.
– É um grande nome! Ele diz[91]: “… o fraco diga: ‘sou forte’.” Mas
forte no quê? Na lei do verdadeiro Deus, para estar entre aqueles que Ele
vai julgar como santos seus, no vale da decisão final. Mas esse juízo já está
perto. Não no vale da decisão, mas no monte da Redenção. Lá, entre o sol e
a lua, escurecidos de horror, e as estrelas tremendo num pranto de piedade,
serão julgados e separados os filhos da Luz, dos filhos das Trevas. Toda
Israel saberá que o seu Deus veio. Felizes aqueles que o tiverem
reconhecido. A eles mel, leite e águas claras lhes descerão aos corações, e
os espinhos se tornarão rosas eternas. Quem de vós quer estar entre aqueles
que vão ser julgados santos de Deus?
– Eu! Eu! Eu!
– Amareis, então, o Messias?
– Sim! Sim! A Ti! A Ti! Nós Te amamos! Nós sabemos quem és! Simão
e Tiago nos disseram, e nossas mães também. Leva-nos Contigo!
– Na verdade, Eu vos levarei, se fordes bons. Nada mais de palavras
feias, nem atitudes prepotentes, nem brigas, ou respostas más aos pais.
Oração, estudo, trabalho, obediência. Eu vos amarei e virei estar convosco.
Os meninos estão todos em círculo em volta de Jesus. Parece uma corola
de cores matizadas, apertada ao redor de um longo pistilo azul escuro.
50.5
Um homem já maduro aproximou-se curioso. Jesus se vira para
acariciar um menino, que lhe está puxando a veste, e o vê. Fita-o
intensamente. O homem o saúda, enrubescendo, mas não diz nada.
– Vem, segue-me!
– Sim, Mestre.
Jesus abençoa os meninos e, ao lado de Filipe (chama-o pelo nome),
volta para casa. Sentam-se no pequeno pomar.
– Queres ser meu discípulo?
– Quero… mas não ouso ter esperança de o ser.
– Eu te chamei.
– Então, eu sou. Eis-me aqui.
– Sabias de Mim?
– André me falou de Ti. Ele me disse: “Aquele por quem tu suspiravas,
chegou.” Porque André sabia que eu vivia suspirando pelo Messias.
– A tua espera não foi decepcionada. Ele está diante de ti.
– Meu Mestre e meu Deus!
– És um israelita de reta intenção. Por isso Eu me manifesto a ti.
50.6
Um outro teu amigo está esperando, também ele um sincero israelita.
Vai dizer-lhe: “Encontramos Jesus de Nazaré, filho de José, da estirpe de
Davi, Aquele de quem falaram Moisés e os Profetas.” Vai!
Jesus ficou sozinho, até que Filipe volta com Natanael-Bartolomeu.
– Eis um verdadeiro israelita, no qual não há fraude. A paz esteja
contigo, Natanael!
– Como me conheces?
– Antes que Filipe fosse chamar-te, Eu te vi debaixo da figueira.
– Mestre, Tu és o Filho de Deus, Tu és o Rei de Israel!
– Porque Eu disse ter-te visto, enquanto pensavas debaixo da figueira, tu
crês? Verás coisas bem maiores do que esta. Em verdade Eu vos digo que os
céus estão abertos, e pela fé, vereis os anjos descerem e subirem sobre o
Filho do homem: Eu que te falo.
– Mestre! Eu não sou digno de tão grande favor!
– Crê em Mim, e serás digno do Céu. Queres crêr?
– Quero, Mestre.
A visão tem aqui uma interrupção e continua sobre o terraço cheio de
50.7
gente; outras pessoas estão no pequeno pomar de Pedro. Jesus está falando.
– Paz aos homens de boa vontade. Paz e bênção às suas casas, às suas
mulheres, aos seus filhos. A graça e a luz de Deus reine nelas e nos corações
que nelas habitam.
Vós desejastes ouvir-me. A Palavra está falando. Fala aos honestos com
alegria, fala aos desonestos com dor, fala aos santos e aos puros com deleite,
fala aos pecadores com piedade. Ela não se nega. Veio para derramar-se
como um rio, que irriga as terras necessitadas de água, às quais leva
refrigério com suas ondas, e alimento com o seu limo.
Vós desejais saber o que se requer para ser discípulos da Palavra de
Deus, do Messias que é o Verbo do Pai, que vem reunir Israel, para ouvir
novamente as palavras do imutável e santo Decálogo, e se santifique com
elas, purificando o homem quanto ele puder por si mesmo, para a hora da
Redenção e do Reino.
Aí está. Falo aos surdos, aos cegos, aos mudos, aos leprosos, aos
paralíticos, aos mortos: “Levantai-vos, ficai curados, ressurgi, caminhai,
abram-se em vós os rios da luz, da palavra, do som, para que possais ver,
ouvir e falar de Mim.” Mais do que aos corpos, Eu falo aos vossos espíritos.
Homens de boa vontade, vinde a Mim sem temor. Se o espírito está ferido,
Eu o curo. Se está doente, Eu o torno são. Se está morto, Eu o ressuscito. Eu
quero só a vossa boa vontade.
Será difícil o que Eu vos estou pedindo? Não. Eu não vos imponho as
centenas e centenas de preceitos dos rabinos. Eu vos digo: Guardai o
Decálogo. A Lei é una e imutável. Muitos séculos se passaram desde a hora
na qual essa lei foi dada bela, pura, fresca como um filho recém-nascido,
como uma rosa que acaba de se abrir sobre a haste. Simples, limpa, suave
para se seguir. No correr dos séculos, as culpas e as tendências a
complicaram com outras leis menores, com pesos e restrições, com
excessivas e penosas cláusulas. Eu vos reporto à Lei, assim como o
Altíssimo a deu. Mas Eu vos peço para o vosso bem, recebei-a com o
coração sincero dos verdadeiros israelitas daquele tempo.
Vós, os humildes, murmurais, mais com os corações do que com os
lábios, que a maior culpa está nos homens importantes. Eu sei. No
Deuteronômio se diz tudo o que deve ser feito: não era necessário nada mais.
Mas não julgueis quem pede aos outros, e não a si. Vós façais tudo o que
Deus diz. E sobretudo, esforçai-vos para serdes perfeitos nos dois
mandamentos principais. Se amardes a Deus com todo o vosso ser, não ireis
cometer pecado, que é uma dor causada a Deus. Quem ama não quer causar
dor. Se amardes o próximo como a vós mesmos, não sereis mais que filhos
respeitosos para com os vossos pais, esposos fiéis aos consortes, homens
honestos nos negócios, sem violências com os inimigos, sem mentira nos
vossos depoimentos, sem inveja de quem possui, sem concupiscência, sem
luxúria para com a mulher do próximo. Não querendo fazer aos outros o que
não quereríeis que fosse feito a vós, não roubaríeis, não mataríeis, não
caluniaríeis, não entraríeis, como os cucos, nos ninhos dos outros.
Mas, ao contrário, Eu vos digo: “Levai à perfeição a obediência aos
dois preceitos de amor: amai também os vossos inimigos.”
Oh! Como vos amará o Altíssimo, que tanto ama o homem, que se tornou
inimigo Dele pela culpa de origem e por seus pecados individuais, a ponto
de enviar-lhe o Redentor, o Cordeiro, que é o seu Filho, Eu que vos falo, Eu,
o Messias prometido, para remir-vos de toda culpa, se souberdes amar como
Ele.
Amai. Que o amor seja para vós escada por onde, tendo-vos tornado
anjos, subireis, como viu Jacó, até o Céu, ouvindo o Pai dizer a todos e a
cada um: “Eu serei o teu protetor por onde andares, e te reconduzirei a esta
cidade: ao Céu, ao Reino Eterno.”
A paz esteja convosco.
50.8
O povo diz palavras de uma aprovação comovida, e se afasta
lentamente. Ficam Pedro, André, Tiago, João, Filipe e Bartolomeu.
– Partes amanhã, Mestre?
– Amanhã, ao alvorecer, se não te desagrada.
– Desagradar-me que Tu vás, sim. Mas por causa da hora, não. É, aliás,
propícia.
– Irás pescar?
– Esta noite, quando sair a lua.
– Fizeste bem, Simão Pedro, por não teres ido pescar na noite passada.
O sábado ainda não havia terminado. Neemias, em suas reformas, quis
que[92] em Judá fosse respeitado o sábado. Ainda agora muita gente aos
sábados põe em movimento as prensas, carrega fardos, transporta vinho e
frutas, vende e compra peixes e cordeiros. Vós já tendes seis dias para isso.
O sábado é do Senhor. Só uma coisa podeis fazer aos sábados: praticar a
bondade para com o próximo. Mas o lucro deve ser absolutamente excluído
dessa ajuda. Quem por causa do lucro viola o sábado, não pode ter senão o
castigo de Deus. Faz uma coisa de utilidade? Vai ter que descontá-la com as
perdas nos outros seis dias. Faz uma coisa sem utilidade? Então, em vão
cansou o seu corpo, não lhe concedendo o descanso que a Inteligência
estabeleceu para ele, deixando alterar-se pela ira o seu espírito por ter-se
afadigado inutilmente, chegando até a praguejar. Enquanto que o dia de Deus
há de ser passado com o coração unido a Deus, em doce oração de amor. É
preciso ser fiel em tudo.
– Mas… os escribas e os doutores, que são tão severos conosco… não
trabalham aos sábados, nem mesmo dão um pão ao próximo, para não ter o
trabalho de estender o braço para dá-lo… mas a usura, eles praticam
também nos sábados. Será por não ser um trabalho material, que a usura se
pode praticar aos sábados?
– Não. Nunca. Nem no sábado, nem em nenhum outro dia. Quem pratica
a usura, é desonesto e cruel.
– Então, os escribas e os fariseus…
– Simão, não julgues. Tu não faças assim.
– Mas eu tenho olhos para ver…
– Existirá só mal para se ver, Simão?
– Não, Mestre.
– Assim sendo, por que olhar só o mal?
– Tens razão, Mestre.
50.9
– Então, amanhã, na alvorada, partirei com João.
– Mestre…
– Que tens a dizer, Simão?
– Mestre… vais a Jerusalém?
– Tu já estavas sabendo disso.
– Eu também vou lá pela Páscoa… e também André e Tiago…
– Então? Queres dizer que gostarias de ir Comigo. Mas, e a pesca? E o
teu ganha-pão? Me disseste que gostas de ter dinheiro, e Eu vou ficar por lá
muitos dias. Primeiro, vou ver minha mãe. Para lá irei na volta, onde me
deterei a pregar. Como farás, então?
Pedro fica perplexo, combalido… mas depois se decide:
– Por mim… eu vou também. Prefiro a Ti, que ao dinheiro!
– Eu também vou.
– Eu também.
– E nós também, não é Filipe?
– Então, vinde. Vós me ajudareis.
– Oh! –Pedro fica excitado só com a idéia de ajudar a Jesus–. Como
faremos?
– Depois Eu vos direi. Não tereis que fazer mais do que Eu vos disser,
para fazer bem. O obediente sempre faz bem. Agora, vamos rezar, e depois
cada um irá para a sua casa.
– E Tu, Mestre, que irás fazer?
– Eu vou rezar ainda. Eu sou a Luz do mundo, mas sou também o Filho
do homem. Devo por isso sempre alcançar a Luz, para ser o Homem que
redime o homem. Rezemos.
Jesus diz um salmo. É aquele que começa assim:
– “Quem repousa na ajuda do Altíssimo, viverá sob a proteção do Deus
do Céu. Dirá ao Senhor: ‘Tu és o meu protetor, o meu refúgio. És o meu
Deus, Nele a minha esperança. Ele me livrou do laço dos caçadores e das
palavras ásperas’ etc…”. Eu o encontro no livro 4°[93]. É o segundo do livro
4°, parece-me ser o de n° 90 (se é que leio bem os números romanos).
A visão termina assim.
[91] diz, em: Joel 4,10; e dos versículos sucessivos são retiradas as imagens do juízo.
[92] quis que, em: Neemias 13,15-22.
[93] livro 4°, p orque a Bíblia usada p or M aria Valtorta traz a antiga sub-divisão em 5 livros da colectânea dos Salmos. O
segundo salmo do quarto livro é o Salmo 90, tornado Salmo 91 na numeração das versões modernas.
51. Maria manda Judas Tadeu
convidar Jesus para as bodas de Caná.
17 de outubro de 1944.
51.1
Vejo a cozinha de Pedro. Nela, além de Jesus, estão Pedro e sua
mulher, Tiago e João. Parece que eles acabaram de jantar, faz pouco tempo e
estão conversando. Jesus se interessa pelos assuntos da pesca.
André entra, e diz:
– Mestre, está aí fora o homem, que mora com alguém que se diz teu
primo.
Jesus se levanta, vai até à porta e diz:
– Entrem!
E, quando, à luz da candeia e das chamas da lareira, vê entrar Judas
Tadeu, exclama:
– Tu, Judas?!
– Eu mesmo, Jesus.
Beijam-se. Judas Tadeu é um belo homem, na plenitude de sua beleza
viril. Alto, se bem que não como Jesus, bem proporcionado em sua robustez,
moreno, como era José, quando jovem, de um oliváceo, não térreo, com
olhos que têm alguma coisa em comum com os de Jesus, porque são de uma
cor azul, mas tendente à pervinca. Tem uma barba quadrada e escura,
cabelos em desalinho, menos encaracolados que os de Jesus, escuros como a
barba.
– Eu venho de Cafarnaum. Fui até lá com um barco, depois também vim
até aqui desta forma, para chegar mais depressa. É tua mãe que me manda a
Ti. Ela manda dizer: “Susana se casa amanhã. Eu te peço, Filho, que vás ao
casamento.” Maria vai tomar parte na festa e com ela minha mãe e meus
irmãos. Todos os parentes estão convidados. Só Tu estarias ausente, e os
parentes te pedem que vás para fazer contentes os noivos.
51.2
Jesus se inclina levemente, abrindo um pouco os braços, e diz:
– O desejo de minha mãe para Mim é lei. Mas também Susana e os
parentes. Eu irei. Só… me desagrada por causa de vós… –e olha para Pedro
e os outros–. São os meus amigos –explica ao primo. E vai dizendo os
nomes, começando por Pedro.
Por último diz:
– E este é o João.
O diz de um modo todo especial, que atrai o olhar mais atento de Judas
Tadeu, e faz enrubescer o seu predileto. Termina a apresentação, dizendo:
– Amigos, este é Judas, filho de Alfeu, meu primo-irmão, segundo o
modo de falar do mundo, porque é filho do irmão do esposo de minha mãe. É
um bom amigo meu no trabalho e na vida.
– Minha casa está aberta para ti, como para o Mestre. Assenta-te! –e,
depois, voltando-se para Jesus, Pedro diz:
– E então? Não iremos mais Contigo para Jerusalém?
– Certamente que ireis. Depois da festa das núpcias, Eu irei para lá.
Somente que não me deterei mais em Nazaré.
– Fazes bem, Jesus. Porque tua mãe é minha hóspede por alguns dias.
Foi combinado assim, e para lá ela irá depois das núpcias.
Assim falou o homem de Cafarnaum.
– Assim faremos, então. Agora, com o barco de Judas, Eu irei a
Tiberíades, e de lá a Caná, e com o mesmo voltarei a Cafarnaum com minha
mãe e contigo. No dia seguinte ao próximo sábado, tu irás, Simão, se ainda
quiseres ir, e iremos a Jerusalém pela Páscoa.
– Claro que irei! Aliás, irei no sábado, para Te ouvir na sinagoga.
51.3
– Já estás ensinando, Jesus? –pergunta Judas Tadeu.
– Sim, primo.
– E que palavras! Ah! Não se ouvem sair dos lábios de outros!
Judas suspira. Com a cabeça apoiada na mão e com o cotovelo firmado
sobre o joelho, ele olha para Jesus e suspira. Parece querer falar, mas não
tem coragem.
Jesus o estimula:
– Que tens, Judas? Por que me olhas e suspiras?
– Não é nada.
– Não. Nada não pode ser. Não sou mais o Jesus que tu amavas? Aquele
para quem não tinhas segredos?
– Sim, que o és! Que falta me fazes, Tu, Mestre do teu primo mais
velho!…
– E, então? Fala.
– Eu queria dizer-te… Jesus… sê prudente… tens uma mãe… que só
tem a Ti… Tu queres ser um “rabi” diferente dos outros, e Tu sabes, melhor
do que eu, que… que as castas poderosas não permitem que as coisas sejam
diferentes daquelas de costume, por eles estabelecidas. Conheço o teu modo
de pensar… é santo… mas o mundo não é santo… e persegue os santos…
Jesus… Tu sabes qual a sorte do teu primo, o Batista… Está na prisão, e, se
ainda não morreu, é porque aquele sórdido Tetrarca tem medo da multidão e
do raio de Deus. Tão sórdido e supersticioso, como cruel e libidinoso. Tu…
que farás? A que sorte queres ir de encontro?
– Judas, isto me estás perguntando, tu que conheces tão bem o meu
pensamento? Estás falando por ti mesmo? Não. Não mintas. Alguém te
mandou, e, certamente, minha mãe não foi, para vires me dizer estas
coisas…
Judas abaixa a cabeça, e se cala.
– Fala, primo.
– Meu pai… e com ele José e Simão… sabes… para o teu bem… pelo
afeto por Ti e por Maria… não vêem com bons olhos aquilo que estás
querendo fazer… e… e gostariam que Tu pensasses em tua mãe…
51.4
– E tu, que pensas disso?
– Eu… Eu…
– Tu estás sendo combatido pelas vozes do alto e da terra. Não digo
pelas vozes daqui de baixo. Digo vozes da terra. Também Tiago está assim
ainda mais do que tu. Mas Eu vos digo que acima da terra está o céu, acima
dos interesses do mundo está a causa de Deus. Precisais mudar vosso modo
de pensar. Quando souberdes fazer isso, sereis perfeitos.
– Mas… e tua mãe?
– Judas, ninguém melhor do que ela teria o direito de me chamar de
volta aos meus deveres de Filho, segundo a luz da terra, ou seja, ao meu
dever de trabalhar para ela, a fim de atender às suas necessidades materiais,
ao meu dever de assistência e conforto, ficando sempre perto da mãe. Mas
ela não me pede nada disso. Desde que me teve, ela sabia que teria que me
perder, para depois encontrar-me de novo, e de um modo muito mais amplo
do que o do pequeno círculo da família. Desde então, ela vem-se preparando
para isso. Esta vontade absoluta de se doar a Deus não é novidade no seu
sangue. Sua mãe a ofereceu ao Templo, antes que ela sorrisse à luz. Ela se
doou a Deus, e me contou isso inúmeras vezes quando, tinha-me junto ao seu
coração, nas longas tardes de inverno, ou nas claras noites de verão cheias
de estrelas, falando-me da sua infância santa, desde as primeiras luzes da
sua aurora no mundo. Doou-se a Deus ainda mais, quando me teve, para que
eu estivesse aqui a caminho da missão que me vem de Deus. Em uma certa
hora, todos me deixarão; talvez por poucos minutos, mas a covardia se
apoderará de todos, e pensareis que teria sido melhor para vossa segurança,
se nunca me tivésseis conhecido. Mas ela, que compreendeu e que sabe, Ela
estará sempre comigo. Vós tornareis a ser meus por meio dela. Com a força
de sua segura e amorosa fé, ela vos atrairá a si, e depois vos tornará a atrair
para Mim, porque Eu estou na mãe, e ela está em Mim, e Nós em Deus. Isto
Eu queria que compreendêsseis, todos vós, parentes segundo o mundo,
amigos e filhos segundo o sobrenatural. Tu e os outros, não sabeis quem é
minha mãe. Mas, se o soubésseis, não a criticaríeis em vosso coração por
não saber ter-me subjugado a ela, mas a veneraríeis como a amiga mais
íntima de Deus, a poderosa que tudo pode no coração do Eterno Pai, e sobre
o Filho do seu coração. Certamente Eu irei a Caná. Quero fazê-la feliz.
Compreendereis melhor depois desta hora.
Jesus está imponente e persuasivo.
Judas o olha atentamente. Fica pensando. E diz:
– Eu também certamente irei Contigo, junto com estes, se me quiseres…
porque sinto que Tu dizes coisas justas. Perdoa a minha cegueira e a dos
meus irmãos. És muito mais santo do que nós!…
– Não tenho rancor de quem não me conhece. Não tenho rancor nem de
quem me odeia. Mas sinto dor pelo mal que alguém se faz a si mesmo. 51.5O
que tem naquela sacola?
– A veste que a mãe te manda. Amanhã há uma grande festa. Ela pensa
que o seu Jesus precise da veste para não fazer má figura entre os
convidados. Ela fiou, incansavelmente, das primeiras horas do dia até às
últimas, cada dia, para te preparar esta veste. Mas não terminou o manto.
Ficaram faltando as franjas. Ela ficou desolada por isso.
– Não é preciso. Eu vou com esta, e aquela guardarei para Jerusalém. O
Templo é ainda mais do que uma festa de casamento.
– Ela ficará feliz.
– E vós, se quereis estar ao amanhecer no caminho de Caná, precisais
partir logo. A lua surge, e será boa a travessia –diz Pedro.
– Então, vamos. Vem, João. Eu te levo Comigo. Simão Pedro, Tiago e
André, até logo. Eu vos espero na tarde de sábado em Cafarnaum. Adeus,
mulher. Paz a ti e à tua casa.
Jesus sai com Judas e João. Pedro os acompanha até à beira do lago, e
ajuda na manobra de partida do barco.
Termina a visão.
51.6
Jesus diz:
– Quando for a hora de fazer um trabalho em ordem, será inserido aqui a
visão das bodas de Caná. Põe a data (16.1.44).
52. As bodas de Caná. O Filho, não mais sujeito
à mãe, realiza, a pedido dela, o primeiro milagre.
Tarde de 16 de janeiro de 1944. As bodas de Caná.
52.1
Vejo uma casa. Uma característica casa oriental — um cubo branco,
mais largo do que alto, com raras aberturas — transposta por um terraço,
que serve de telhado, cercada por um pequeno muro de mais ou menos um
metro de altura e sombreada pela parreira de uma videira, que sobe até o
alto e estende os seus ramos além da metade deste ensolarado terraço. Uma
escada externa, ao longo da fachada, vai até uma porta que se abre a meia
altura da fachada. Em baixo, no térreo, há portas baixas e poucas, não mais
do que duas de cada lado, que dão para quartos baixos e escuros. A casa
surge em meio a uma espécie de eira, mais um espaço gramado do que uma
eira, tendo ao centro um poço. Ali há figueiras e macieiras. A casa tem a sua
frente que dá para a rua, mas não está junto à rua. Fica um pouco para dentro
do terreno e um atalho, pelo meio da grama, faz a ligação com a rua, que
parece uma rua mestra.
Dir-se-ia que a casa está na periferia de Caná: casa cujos donos são
camponeses que vivem no meio do seu sitiozinho. O campo se estende além
da casa, com as suas distâncias verdejantes e plácidas. Faz um belo sol e o
céu está de um azul muito claro. Em princípio, não vejo outra coisa. É uma
casa solitária.
52.2
Depois, vejo duas mulheres com longas vestes e um manto, que serve
também de véu, irem pela rua e em seguida pelo atalho. Uma delas é mais
velha, terá seus cinqüenta anos, veste-se de escuro, uma cor pardo-marrom,
como o da lã natural. A outra está com uma veste mais clara, de um amarelo
claro com um manto azul; parece ter uns trinta e cinco anos. É muito bonita,
esbelta, e tem um porte cheio de dignidade, mesmo sendo muito gentil e
humilde. Quando ela está mais perto, posso notar a cor pálida do seu rosto,
os olhos azuis e os cabelos loiros, que aparecem sob o véu que lhe cobre a
fronte. Reconheço nela Maria, mãe de Jesus. Quem é a outra, que é morena e
mais velha, eu não sei. Falam entre si, e ela sorri. Quando estão próximas da
casa, alguém, certamente encarregado de receber os que vão chegando, dá o
aviso e vêm homens e mulheres ao encontro das duas, todos com roupas de
festa e fazendo grandes demonstrações de alegria pela vinda delas,
especialmente por Maria, mãe de Jesus.
A hora parece ser matutina, eu diria lá pelas nove, talvez antes, porque o
campo tem ainda aquele aspecto fresco das primeiras horas do dia, por
causa do orvalho que faz mais verde a relva e pelo ar, não ainda embaçado
pela poeira. A estação parece-me primaveril, porque os prados não estão
com a relva abrasada do verão, e os campos têm os trigos ainda novos e sem
espigas, tudo verde. As folhas da figueira e da macieira estão verdes e até
tenras ainda, assim como as da videira. Mas, não vejo flores na macieira e
não vejo frutos nem na macieira, nem na figueira, nem na videira. Sinal de
que a macieira já floriu, mas há pouco tempo e os seus frutos ainda não se
vêem.
52.3
Maria, muito festejada, ladeada por um idoso que parece ser o
dono da casa, sobe pela escada externa e entra em uma ampla sala, que
parece ocupar todo ou boa parte do andar de cima.
Parece-me compreender que os cômodos do térreo são os verdadeiros
dormitórios, as despensas, os depósitos, as adegas, e que este seja o
ambiente reservado para ocasiões especiais, como festas excepcionais, ou
trabalhos que exijam muito espaço; ou também para depósito de produtos
agrícolas. Nas festas, retiram tudo o que ocupa o espaço e enfeitam, como
fizeram hoje, com ramos verdes, esteiras e mesas preparadas. No centro está
uma mesa suntuosa, sobre a qual há ânforas e pratos cheios de frutas. Ao
longo da parede da direita, em relação a mim que estou olhando, está uma
outra mesa preparada, mas de modo mais simples. Ao longo da parede da
esquerda, está uma espécie de longo aparador, sobre o qual há pratos com
queijos e outros alimentos que me parecem pães cozidos cobertos com mel e
doces. No chão, sempre junto a esta parede, há outras ânforas e três[94]
grandes vasos em forma de bilha de cobre (mais ou menos). Eu os chamaria
de jarras.
Maria escuta com benevolência tudo o que lhe dizem. Depois, bem
disposta, tira o manto e vai ajudar a terminar os preparativos da mesa. Eu a
vejo ir e vir, arrumando as cadeiras-leitos, endireitando as grinaldas de
flores, dando melhor aspecto às fruteiras, examinando se nas candeias não
está faltando óleo. Ela sorri e fala muito pouco e em voz baixa. Mas escuta
muito e com muita paciência.
Um grande barulho de instrumentos musicais (na verdade pouco
harmônicos) ouve-se na rua. Todos, menos Maria, correm lá fora. Vejo entrar
a noiva, toda ataviada e feliz, rodeada pelos parentes e amigos, ao lado do
noivo, que foi o primeiro a correr ao seu encontro.
52.4
Neste ponto a visão tem uma mudança. Vejo, ao invés da casa, uma
aldeia. Não sei se é Caná ou outra aldeia vizinha. E vejo Jesus com João e
um outro, que me parece Judas Tadeu, mas sobre este segundo eu poderia
estar me enganando. Quanto a João, não há engano. Jesus está vestido de
branco e com um manto azul escuro. Ouvindo o barulho dos instrumentos, o
companheiro de Jesus pergunta qualquer coisa a um homem do povo e leva a
informação a Jesus.
– Vamos fazer feliz minha mãe –diz então, Jesus, sorrindo.
E se encaminha através dos campos, com os dois companheiros, em
direção da casa. Esqueci de dizer que tenho a impressão de que Maria seja
parente ou muito amiga dos parentes do noivo, pois pode-se ver que está em
confidência com eles.
Quando Jesus chega, conforme o costume, o que está de sentinela avisa
aos outros. O dono da casa, acompanhado por seu filho, que é o noivo, e por
Maria, desce ao encontro de Jesus e o saúda respeitosamente. Saúda também
os outros dois; o noivo faz o mesmo.
Mas o que me agrada é a saudação cheia de amor e de respeito de Maria
ao seu Filho, e vice-versa. Não são grandes expansões, mas é um olhar
especial que acompanha as palavras de saudação: “A paz esteja contigo”, e
um sorriso tal, que vale por cem abraços e cem beijos. O beijo treme nos
lábios de Maria, mas não chega a ser dado. Ela somente põe a sua mão
branca e pequena sobre o ombro de Jesus e toca de leve num caracol de sua
longa cabeleira. É uma carícia de namorada cheia de pudor.
52.5
Jesus sobe ao lado da mãe, seguido pelos discípulos e pelos donos da
casa, e entra na sala do banquete onde as mulheres estão atarefadas em
colocar os assentos e os pratos para os três hóspedes, inesperados, ao que
me parece. Eu diria que a vinda de Jesus era incerta e que a de seus
companheiros era absolutamente imprevista.
Ouço distintamente a voz cheia, viril e dulcíssima do Mestre, dizer, ao
entrar na sala:
– A paz esteja nesta casa, e a bênção de Deus sobre todos vós.
É uma saudação coletiva a todos os presentes e cheia de majestade.
Jesus, com seu aspecto e sua estatura, domina todos os outros. É um
hóspede, fortuito, mas parece o rei do banquete, mais do que o esposo, mais
do que o dono da casa. Ainda que humilde e condescendente, é aquele que se
impõe.
Jesus toma um lugar à mesa do centro, com o noivo, a noiva, os parentes
dos noivos e os amigos mais influentes. Os dois discípulos, por respeito ao
Mestre, são convidados a sentar-se à mesma mesa.
Jesus está com as costas viradas para a parede, onde estão as grandes
jarras e os aparadores.
Observo uma coisa. Exceto as respectivas mães dos esposos, e também
Maria, nenhuma outra mulher está sentada àquela mesa. Todas as mulheres
estão na outra mesa, viradas para a parede, fazendo um barulho como se
fossem cem, e são servidas depois de terem sido servidos os esposos e os
hóspedes importantes. Jesus está perto do dono da casa e tem à sua frente
Maria, a qual está sentada ao lado da noiva.
O banquete começa. Eu vos asseguro que apetite não falta, nem sede.
Aqueles que pouco se sobressaem são Jesus e sua mãe, a qual, além disso,
fala muito pouco. Jesus fala um pouco mais. Mas, ainda que seja comedido
em suas palavras, não é, no seu escasso falar, nem carrancudo nem
desdenhoso. É um homem cortês, mas não um conversador. Quando é
interrogado, responde; se alguém fala com Ele, Ele se interessa, dá o seu
parecer, mas depois se recolhe, como alguém habituado a meditar. Sorri, não
ri nunca. E, se ouve alguma brincadeira muito leviana, faz como se não a
tivesse ouvido. Maria se alimenta na contemplação do seu Jesus, e assim
também João, que está na ponta da mesa, atento aos lábios do seu Mestre.
52.6
Maria nota que os serventes cochicham com o mordomo e que este
está embaraçado; então, ela percebe o que é que está acontecendo de
desagradável.
– Filho –ela fala baixinho, chamando a atenção de Jesus com aquela
palavra–. Filho, eles não têm mais vinho.
– Mulher, o que ainda há entre Mim e ti?
Jesus, ao dizer esta frase, sorri ainda mais docemente e Maria também
sorri; fazem como duas pessoas que sabem uma verdade que é para elas um
alegre segredo ignorado por todos os outros.
sustenta um outeiro, bem perto do limite do sítio. Deve ter subido ali por um
pequeno atalho que lá conduz costeando o córrego.
Quando vê Jesus vir em sua direção, grita:
– Para trás, para trás! Mas também piedade!
E descobre o seu tronco, deixando cair a veste. Se o rosto já está
coberto de crostas, o tronco é um bordado de chagas. Algumas já reduzidas a
buracos fundos, outras simplesmente como queimaduras vermelhas, outras
esbranquiçadas e lúcidas como se sobre elas tivesse um vidro branco.
– És leproso! Que queres de Mim?
– Não me amaldiçoes! Não me apedrejes! Disseram-me que na outra
tarde Te manifestaste como Voz de Deus e Portador da Graça. Disseram-me
que Tu asseguraste que, erguendo o teu sinal, curas com ele todos os males.
Ergue-o sobre mim. Eu venho dos sepulcros… lá… Eu rastejei como uma
serpente por entre as sarças da beira do córrego para chegar até aqui sem ser
visto. Esperei que a tarde chegasse para poder vir, porque na penumbra vê-
se menos quem eu sou. Eu ousei… encontrei este, que é da casa e que é
muito bom. Ele não me matou. Somente me disse: “Espera junto ao muro.”
Tem piedade, Tu também!
Visto que Jesus se aproxima (sozinho, porque os seis discípulos e o
dono do lugar, com os dois desconhecidos, estão longe e mostram claramente
aversão) diz ainda:
– Não te adiantes mais! Não mais! Eu estou infeccionado!
Mas Jesus prossegue. Olha para ele com tanta piedade, que o homem se
põe a chorar, ajoelha-se com o rosto quase ao chão e geme, dizendo:
– O teu sinal! O teu sinal!
– Ele será elevado, quando chegar a sua hora. Mas, a ti Eu digo:
levanta-te! Sê curado. Eu quero. E sê tu o meu sinal nesta cidade que precisa
conhecer-me. Levanta-te. Eu te digo! E não peques mais, em reconhecimento
a Deus!
O homem se levanta devagar. Parece que ele emerge por entre as ervas
altas e floridas como de um lençol do túmulo… e está curado. Ele se olha,
aos últimos raios da luz do dia. Está mesmo curado. E grita:
– Eu estou limpo! Oh! Que é que devo fazer agora por Ti?
– Obedecer a Lei. Vai ao sacerdote. Sê bom daqui em diante. Vai.
O homem faz um movimento para se jogar aos pés de Jesus, mas ele se
lembra de que ainda está impuro, segundo a Lei, e se detém. Mas ele beija
suas próprias mãos e manda o beijo a Jesus e chora. De alegria.
54.3
Os outros estão imobilizados, como que petrificados. Jesus volta as
costas ao curado e, sorrindo, os faz voltarem a si.
– Amigos, não era mais que uma lepra da carne. Mas vós vereis cair a
lepra dos corações. Sois vós que me procurais? –diz aos dois
desconhecidos–: Eis-me aqui. Quem sois?
– Nós Te ouvimos na outra tarde… no Templo. E Te procuramos pela
cidade. Um que se diz teu parente, nos disse que estavas aqui.
– Por que me estais procurando?
– Para seguir-te, se nos quiseres, porque Tu tens palavras de verdade.
– Para seguir-me? Mas sabeis para onde me dirijo?
– Não Mestre. Mas com certeza para a glória.
– Sim. Mas para uma glória que não é da terra. Para uma glória que tem
sua sede no Céu e que se conquista com a virtude e o sacrifício. Por que
quereis me seguir? –torna a perguntar.
– Para termos parte na tua glória.
– Segundo o Céu?
– Sim, segundo o Céu.
– Nem todos podem chegar ali. Porque Mamon arma ciladas aos
desejosos do Céu, mais do que aos outros. E só quem sabe querer fortemente
é quem resiste. Por que seguir-me se o seguir-me quer dizer uma luta
contínua com o inimigo que está em nós, com o mundo inimigo e com o
Inimigo, que é Satanás?
– Porque assim quer o nosso espírito, que ficou conquistado por Ti. Tu
és santo e poderoso. Nós queremos ser teus amigos.
– Amigos!!!
Jesus se cala e suspira. Depois, olha fixo àquele que sempre vinha
falando e que agora deixou cair o manto da cabeça apresentando-a toda
descoberta. É Judas de Keriot.
– Quem és tu, que falas melhor do que um homem do povo?
– Sou Judas, de Simão. Sou natural de Keriot. Mas sou do Templo (ou
estou no Templo). Espero o Rei dos judeus; vivo sonhando com ele. Rei te
reconheci na palavra e Rei te vi no gesto. Toma-me Contigo.
– Tomar-te? Agora? Tão depressa? Não.
– Por que, Mestre?
– Porque é melhor pesar-nos a nós mesmos, antes de pegarmos caminhos
muito íngremes.
– Não crês em minha sinceridade?
– Tu o disseste. Eu creio no teu impulso. Não creio na tua constância.
Pensa nisso, Judas. Agora Eu vou-me embora, e voltarei para a festa de
Pentecostes. Se estiveres no Templo, me verás. Pesa-te a ti mesmo. 54.4E tu,
quem és?
– Um outro que te viu. Queria estar contigo. Mas agora sinto temor.
– Não. A presunção é uma ruína. O temor pode ser um obstáculo, mas,
se ele vem da humildade, pode até ajudar. Não temas. Pensa, tu também, e,
quando Eu vier…
– Mestre, tu és muito santo. Tenho medo de não ser digno. Não de outra
coisa. Porque sobre o meu amor eu não temo.
– Como te chamas?
– Tomé, chamado o Dídimo.
– Eu me lembrarei do teu nome. Vai em paz.
Jesus se despede deles e se retira para a casa onde está hospedado, para
o jantar.
54.5
Os seis, que já estão com Ele, querem saber de muitas coisas.
– Por que, Mestre, fizeste diferença entre os dois?… Porque uma
diferença houve! Os dois tinham o mesmo impulso… –pergunta João.
– Amigo, também o mesmo impulso pode ter diversa substância e
produzir efeito diferente. É verdade que os dois têm o mesmo impulso. Mas
um não é igual ao outro, quanto ao fim a que visam. E aquele que parece o
menos perfeito é o mais perfeito, porque não está seduzido pela glória
humana. Ele me ama, porque me ama.
– Eu também.
– E eu também.
– E eu.
– E eu.
– E eu.
– E eu.
– Eu sei. Eu conheço quem sois.
– Então, somos perfeitos?
– Oh! Não! Mas, assim como Tomé, vós também o sereis, se
permanecerdes em vossa vontade de amor. Perfeitos?! Oh! Meus amigos! E
quem é perfeito, a não ser Deus?
– Tu o és.
– Em verdade vos digo que não sou perfeito por Mim, se pensais que Eu
sou um profeta. Nenhum homem é perfeito. Mas perfeito Eu sou, porque Este
que vos está falando é o Verbo do Pai. Ele é parte[98] de Deus, é o seu
Pensamento, que se faz Palavra. Eu tenho a Perfeição em Mim. E deveis crer
que Eu sou assim, se credes ser Eu o Verbo do Pai. Contudo vós estais
vendo, amigos. Eu quero ser chamado o Filho do homem[99] porque aniquilo
a Mim mesmo, pondo em minhas costas todas as misérias do homem para
levá-las comigo, primeiro ao meu patíbulo e depois de tê-las levado, anulá-
las, mas não por as ter tido como minhas. Que peso, amigos! Mas, Eu o
levo com alegria. Levá-lo é a minha alegria porque sendo o Filho da
humanidade, tornarei a humanidade filha de Deus, como foi no primeiro dia.
Jesus fala docemente, sentado à pobre mesa, com as mãos que
gesticulam calmamente sobre a mesma, o rosto um pouco inclinado,
iluminado de alto a baixo pela luz de uma pequena candeia colocada sobre a
mesa. Ele sorri levemente, já Mestre na imponência e tão amigo no trato. Os
discípulos o escutam atentos.
54.6
– Mestre, por que é que o teu primo, mesmo sabendo onde moras, não
veio?
– Ah! Meu Pedro!… Tu serás uma das minhas pedras, a primeira. Mas
nem todas as pedras são fáceis de se usar. Já viste os mármores do palácio
pretório? Arrancados, com muito trabalho, do seio das montanhas, agora
fazem parte do Pretório. Por outro lado, olha aquelas pedras, que estão
brilhando lá longe à luz do luar, por entre as águas do Cedron. Elas vieram
por si mesmas para o leito do rio e se alguém as quiser, elas logo se deixam
levar. O meu primo é como as primeiras pedras da qual falo… O seio do
monte, a família, o disputa Comigo.
– Mas eu quero ser em tudo como as pedras do Cedron. Por Ti, estou
pronto a deixar tudo: casa, esposa, pesca, irmãos. Tudo, Rabi, por Ti.
– Eu sei, Pedro. Por isto Eu te amo. Mas Judas também virá.
– Quem? Judas de Keriot? Não o levo muito em conta. É um belo moço,
mas… eu prefiro… prefiro a mim mesmo…
Riem-se todos da piada de Pedro.
– Não há nada para rir. Quero dizer que prefiro um galileu franco, rude,
um pescador, mas sem fraude, a… homens da cidade que… não sei… Mas o
Mestre entende o que eu quero dizer.
– Sim, entendo. Mas não julgues. Temos necessidade uns dos outros
nesta terra e os bons estão misturados com os maus, como as flores em um
campo. A cicuta está ao lado da saudável malva.
54.7
– Eu queria perguntar uma coisa….
– Qual, André?
– João me contou o milagre feito em Caná… Nós tínhamos muita
esperança de que Tu fizesses um deles em Cafarnaum… e Tu disseste que
não farias milagre, se antes não tivesses cumprido a Lei. Por que então o
fizeste em Caná? E por que não em tua pátria?
– Toda obediência à Lei é união com Deus e, por isso, um aumento de
nossa capacidade. O milagre é a prova da união com Deus, da presença
benévola e consciente de Deus. Por isso Eu quis cumprir o meu dever de
israelita antes de iniciar a série de prodígios.
– Mas Tu não estavas obrigado pela Lei.
– Por que? Como Filho de Deus, não. Mas, como filho da Lei,
sim. Israel, por enquanto, só me conhece como tal… E, mesmo depois, quase
todo Israel me conhecerá como tal, aliás, como menos ainda. Mas Eu não
quero dar escândalo a Israel e por isso obedeço a Lei.
– Tu és santo.
– A santidade não exclui a obediência. Ao contrário, a aperfeiçoa. Além
de tudo mais, é preciso dar o exemplo. Que diríeis de um pai, de um irmão
mais velho, de um mestre, de um sacerdote, que não desse bom exemplo?
– E então, o caso de Caná?
– Em Caná, era a alegria que à minha mãe devia ser dada. Caná é a
antecipação que se deve à minha mãe. Ela é a antecipadora da Graça. Aqui
Eu presto honra à Cidade santa, fazendo dela publicamente o lugar do início
do meu poder de Messias. Mas lá, em Caná, Eu prestava honra à santa de
Deus, à toda santa. O mundo me tem por meio dela. É justo que para ela seja
feito o meu primeiro prodígio no mundo.
54.8
Batem à porta. É Tomé de novo. Ele entra e se lança aos pés de Jesus.
– Mestre… eu não posso ficar esperando a tua volta. Deixa-me ficar
Contigo. Eu sou cheio de defeitos, mas tenho este amor, único, grande,
verdadeiro, o meu tesouro. Ele é teu, é para Ti. Deixa-me Mestre…
Jesus põe-lhe a mão sobre a cabeça.
– Fica, Dídimo. Segue-me. Felizes aqueles que são sinceros e de
vontade firme. Benditos sois vós. Para Mim sois mais do que parentes,
porque me sois filhos e irmãos, não segundo o sangue, que morre, mas
segundo a vontade de Deus e a vossa vontade espiritual. Agora Eu digo que
não tenho parente mais chegado do que aquele que faz a vontade de meu Pai;
e vós a fazeis, porque quereis o bem.
Assim termina a visão. 54.9São 16:00 horas, e já caem sobre mim as
sombras do malestar que sinto que será violento, lógica conseqüencia da
penosa hora de ontem…
Mas também em 24 de Outubro estava muito mal. Tanto que, terminada a
visão, escrita com uma dor de cabeça própria de meningite, não tive
coragem de acrescentar que vi finalmente Jesus vestido como me aparece
quando é todo para mim: de uma suave veste de lã branca quase da cor
marfim e com o manto igual. A veste que trazia[100] na sua primeira
manifestação em Jerusalém como Messias.
[98] Ele é Parte, a entender-se não como “p orção”, mas como “p ertença”. Diferente do homem, que p ertence a Deus não p or
natureza mas p or semelhança (nota em 167.9), Jesus p ertence a Deus p or natureza, ou seja, é Deus como o Pai (Ele dirá em
487.4: “Eu sou dele, sou sua p arte e um Todo com Ele”) . Ainda p or natureza Jesus é também Homem, sendo Ele a Palavra
encarnada do Pai. Por isso, não no ser um profeta (como disse acima) está a sua p erfeição, mas em ser o Homem-Deus, o qual
p ela p arte humana foi comp letado com o sup erar das tentações (como dirá em 80.10 e como resulta no fim da nota em 174.9).
Sobre as duas naturezas, divina e humana, de Jesus, são fundamentais os discursos dos cap ítulos 487 e 506.
[99] Filho do homem, é p rovavelmente o mais recorrente dos títulos atribuídos a Jesus e que Jesus atribui a Si p róp rio. O seu
significado genérico é ilustrado em 343.4; mas o seu significado messiânico encontra-se aqui e, p or exemp lo, em 126.3 e em
603.1.
[100] veste que trazia, em 53.3.
55. Um encargo confiado a Tomé.
27 de outubro de 1944.
55.1
Esta manhã, voltando de um pesadíssimo sofrimento de muitas horas,
enquanto rezo esperando que chegue o dia, retomo a visão.
Digo retomo, porque estamos ainda no mesmo ambiente: a cozinha larga
e baixa, escura em suas paredes enfumaçadas, mal iluminada pela chama de
uma candeia colocada sobre uma mesa rústica, longa e estreita, à qual estão
sentadas oito pessoas — Jesus, os seis discípulos, mais o dono da
casa — quatro de cada lado.
Jesus ainda virado sobre o seu banco — por aqui não há outros assentos,
senão bancos sem espaldar com três pés, como é costume nas casas de
campo — está falando ainda com Tomé. A mão de Jesus desceu da cabeça
de Tomé para o ombro. Jesus diz:
– Levanta-te, amigo. Já jantaste?
– Não, Mestre. Andei poucos minutos com o outro que estava comigo e
depois o deixei e voltei atrás dizendo-lhe que eu queria falar com o leproso
curado…Mas eu falei assim porque pensava que ele certamente teria
recebido com desdém a idéia de aproximar-se de um impuro. E adivinhei.
Mas eu estava procurando era a Ti, não o leproso… Eu queria dizer-Te:
“Toma-me contigo!”… Andei vagueando para baixo e para cima, pelo
olival, até que um jovem me perguntou o que é que eu estava fazendo. Ele
deve ter pensado que eu era alguém mal intencionado… Ele estava junto a
uma pilastra, no lugar em que começa o sítio.
O dono da casa sorri.
– É o meu filho –explica ele, e depois acrescenta–: Ele fica de guarda
no lagar. Temos nas cavernas, sob o lagar, ainda quase toda a colheita deste
ano. Foi uma colheita muito boa. Deu-nos muito óleo. Nas épocas em que se
reúnem grandes multidões, sempre aparecem alguns malandros que saqueiam
os lugares sem guarda. Há oito anos, pela Parasceve, roubaram-nos tudo.
Desde então, nos revezamos cada noite, para fazermos uma boa guarda. A
mãe dele foi levar-lhe a janta.
– Pois bem, disse-me ele: “Que queres?”, e o disse em um tom que, para
salvar minhas costas das pauladas, expliquei rápido: “Estou procurando o
meu Mestre, que mora aqui.” E ele então me respondeu: “Se é verdade o que
estás dizendo, vai até à minha casa.” E me acompanhou até aqui. Foi ele que
bateu à porta, e só foi embora depois de ter ouvido as minhas primeiras
palavras.
– Moras longe daqui?
– Estou em um alojamento do outro lado da cidade, perto da porta
Oriental.
– Estás sozinho?
– Eu estava com os parentes. Mas eles foram à casa de outros parentes,
no caminho de Belém. Eu fiquei para Te procurar, noite e dia, até Te
encontrar.
Jesus sorri, e diz:
– Então, ninguém te espera?
– Não, Mestre.
– A estrada é longa, a noite é escura, as patrulhas romanas estão
rondando pela cidade. Eu te digo: se queres, fica conosco.
– Oh! Mestre!
Tomé está feliz.
– Arranjai-lhe, vós, um lugar. E dai alguma coisa ao irmão.
Do seu, Jesus dá o pedaço de queijo que estava à sua frente. E explica a
Tomé:
– Nós somos pobres, e a janta já está quase no fim. Mas quem dá, tem
bom coração.
E a João, sentado ao seu lado, ele diz:
– Dá o lugar ao amigo.
João se levanta logo e vai sentar-se junto ao canto da mesa, perto do
dono da casa.
– Assenta-te, Tomé. Come.
55.2
E depois diz a todos:
– Assim fareis sempre, amigos, pela lei da caridade. O peregrino já está
protegido pela Lei de Deus. Mas agora, em meu nome, mais ainda o devereis
amar. Quando alguém vos pedir um pão, um gole de água, um abrigo em
nome de Deus, deveis dá-lo neste mesmo nome. E tereis de Deus a
recompensa. Isto deveis fazer com todos. Também com os inimigos. E esta é
a Lei nova. Até agora vos tinha sido dito: “Amai aqueles que vos amam, e
odiai aos inimigos.” Eu vos digo: “Amai também aqueles que vos odeiam.”
Oh! Se soubésseis como sereis amados por Deus, se amardes como Eu vos
digo! Portanto, quando alguém diz: “Eu quero ser vosso companheiro a
serviço do Senhor Deus verdadeiro, e seguir o seu Cordeiro”, então ele deve
ser para vós mais querido do que um irmão de sangue, porque estareis
unidos por um vínculo eterno: o vínculo do Cristo.
– Mas, e se depois chega um que não é sincero? E disser: “Eu quero
fazer isto ou aquilo”, é fácil. Mas nem sempre a palavra corresponde à
verdade –diz Pedro, um tanto irritado.
Não sei o que há, mas ele não está com o seu costumeiro humor jovial.
– Pedro, escuta. Tu falas com bom senso e com justiça. Mas, vê bem: é
melhor pecar pela bondade e pela confiança do que pela desconfiança e pelo
rigor. Se fizeres um benefício a um indigno, que mal te acontecerá? Nenhum.
Mas, ao contrário, o prêmio de Deus estará sempre preparado para ti,
enquanto que para ele haverá um desmerecimento, por ter traído a tua
confiança.
– Não acontece nenhum mal? As vezes quem é indigno não se contenta
só com a ingratidão, mas vai além, e chega também a prejudicar na estima,
nos bens e na própria vida.
– É verdade. Mas isso diminuiria o teu merecimento? Não. Ainda que
todos acreditassem nas calúnias, ainda que ficasses mais pobre do que Jó,
ainda que um homem cruel te tirasse a vida, que é que seria mudado aos
olhos de Deus? Nada. Aliás, haveria sim uma mudança. Mas para o teu bem.
Deus uniria aos méritos de tua bondade os méritos do teu martírio
intelectual, financeiro ou físico.
– Bem. Está bem! Então, será assim.
Pedro não fala mais. Ele está amuado e com a cabeça apoiada na mão.
55.3
Jesus se volta para Tomé:
– Amigo, Eu te falei antes, lá no olival: “Quando Eu voltar por aqui, se
ainda quiseres, serás meu.” Agora Eu te digo: “Estás disposto a fazer um
favor a Jesus?”
– Sem dúvida.
– Mas, e se esse favor exigir de ti um sacrifício?
– Servir a Ti não é nenhum sacrifício. Que queres?
– Eu queria te dizer… mas poderias ter teus negócios, teus afetos…
– Nada, nada. Eu tenho a Ti! Fala.
– Escuta. Amanhã, com as primeiras horas do dia, o leproso sairá dos
sepulcros para encontrar quem vai avisar ao sacerdote. Mas, antes disso, tu
irás aos sepulcros. É uma caridade. E dirás em alta voz: “Ó tu, que ontem
foste limpo, vem para fora! Fui mandado a ti por Jesus de Nazaré, o Messias
de Israel, Aquele que te curou.” Faz que o mundo dos “mortos e vivos”
conheça o meu Nome e vibre de esperança, e quem à esperança unir a fé,
venha a Mim, para que Eu o cure. É a primeira forma da limpeza que Eu
trago, da ressurreição, da qual Eu sou dono. Um dia Eu darei uma limpeza
bem mais profunda… Um dia os sepulcros selados deixarão escapar os
mortos verdadeiros, que aparecerão para se rirem com as órbitas de seus
olhos vazios, com as mandíbulas descobertas pelo júbilo longínquo, e
entretanto sentido pelos esqueletos, dos espíritos liberados do Limbo de
espera. Eles aparecerão para se rirem diante dessa sua libertação, e para
vibrarem, sabendo a quem é que a devem… Vai tu! Ele virá ao teu encontro.
Tu farás o que vai te pedir que faças. O ajudarás em tudo, como se fosse teu
irmão. E lhe dirás também: “Quando estiveres completamente purificado,
iremos juntos pela estrada do rio, além de Doco e de Efraim. Lá o Mestre
Jesus te espera e me espera, para dizer-nos em que é que o devemos servir.”
– Assim farei. E o outro?
– Quem? O Iscariotes?
– Sim, Mestre.
– Para ele persiste o meu conselho. Deixa-o decidir por si e por longo
tempo. Evita até de encontrá-lo.
– Estarei junto ao leproso. No vale dos sepulcros só os imundos é que
vagueiam ou os que têm contatos de piedade para com eles.
55.4
Pedro resmunga alguma coisa. Jesus ouve.
– Pedro, que tens? Ou estás calado, ou resmungas. Pareces descontente.
Por que?
– Eu estou descontente. Nós somos os primeiros, e Tu não fazes um
milagre para nós. Nós somos os primeiros, e Tu te sentas ao lado de um
estrangeiro. Nós somos os primeiros e Tu dás encargos a ele, e não a nós.
Nós somos os primeiros e… sim, é isso mesmo, e parece que somos os
últimos. Por que vais esperá-los no caminho do rio? Certamente para dar a
eles alguma missão. Por que a eles e não a nós?
Jesus olha para ele. Não está irado. Ao contrário, sorri, como se sorri a
um rapazinho. Levanta-se, vai lentamente até Pedro, põe-lhe a mão sobre o
ombro, e diz, sorrindo:
– Pedro! Pedro! És um grande velho menino!
E a André, sentado perto do irmão, diz:
– Vai para o meu lugar –assenta-se ao lado de Pedro, cingindo-o com o
braço pelas costas e lhe fala, segurando-o assim contra o seu ombro:
– Pedro, está te parecendo que Eu cometo injustiça, mas não é injustiça
o que faço. É, ao contrário, uma prova de que sei o que valeis. Olha bem.
Quem é que precisa de provas? Aquele que ainda não está firme. Pois bem,
Eu sabia que vós estáveis tão firmes Comigo, que não senti necessidade de
dar-vos provas do meu poder. Aqui em Jerusalém são necessárias as provas,
aqui onde o vício, a irreligião, as políticas e muitas coisas do mundo
ofuscam os espíritos a ponto de eles não poderem ver a Luz que passa. Mas
lá, sobre o nosso belo lago, tão puro sob um límpido céu, lá, entre pessoas
honestas e desejosas do bem, não são necessárias as provas. Ali tereis os
milagres. Derramarei sobre vós chuvas de graças. Mas, olha como vos tenho
estimado: Eu vos tomei Comigo sem exigir provas e sem achar necessidade
de vo-las dar, porque Eu sei quem sois. Queridos, tão queridos e tão fiéis a
Mim.
Pedro se acalma:
– Perdoa-me, Jesus.
– Sim, Eu te perdôo, porque o teu amuo é amor. Mas, não tenhas mais
inveja, Simão de Jonas. Sabes o que é o coração do teu Jesus? Já viste o
mar, o verdadeiro mar? Sim? Pois bem, o meu coração é bem mais vasto do
que o grande mar. Nele há lugar para todos. Para toda a humanidade. E o
pequenino encontra lugar, como o maior dos grandes. O pecador encontra
amor, como o inocente. A eles Eu dou uma missão. Com toda a certeza.
Queres probir-me de dá-la? Eu é que vos escolhi. Não fostes vós. Portanto,
Eu sou livre para julgar como empregar-vos. E, se a estes Eu os deixo aqui
com uma missão — que pode também ser uma prova, como pode ser uma
misericórdia o lapso de tempo concedido ao Iscariotes — podes tu
reprovar-me? Sabes se para ti não estarei reservando uma maior? E não é a
mais bela aquela de ouvires Eu te dizer: “Tu virás Comigo”?
– É verdade, é verdade! Eu sou um animal! Perdão…
– Sim. Tens todo o perdão. Oh! Pedro!… Mas Eu vos peço a todos: não
fiqueis mais discutindo sobre merecimentos e postos. Eu teria podido nascer
rei. Nasci pobre, em uma estrebaria. Teria podido ser rico. Vivi do trabalho
e agora da caridade. Contudo, crede-o, amigos, não há ninguém maior aos
olhos de Deus do que Eu. Do que Eu, que estou aqui como servo do homem.
– Servo Tu? Nunca.
– Por que, Pedro?
– Porque eu é que serei o teu servo.
– Ainda que tu me servisses, como uma mãe serve ao seu filhinho, Eu
vim para servir ao homem. Para ele Eu serei o Salvador. Que serviço existe
igual a este?
– Oh! Mestre! Tu nos explicas tudo. E o que nos parecia escuro, logo se
torna claro.
– Estás contente agora, Pedro? 55.5Então, deixa-me acabar de falar com
Tomé. Estás certo de que reconhecerás o leproso? Lá só ele é que está
curado; mas poderia ele já ter partido com a luz das estrelas, para encontrar
algum viajante solícito. E pode ser que algum outro, ansioso para entrar na
cidade e ver seus parentes, se apresente no lugar dele. Escuta bem como ele
é. Eu estava perto dele e, no crepúsculo, ainda pude vê-lo bem. Ele é alto e
magro. É de cor escura, como um mestiço, tem os olhos profundos e muito
pretos, sob sobrancelhas brancas, cabelos brancos como o linho e bastante
encaracolados, nariz longo, achatado na ponta como o dos líbios, lábios
grossos, especialmente o inferior, e salientes. É tão oliváceo que os lábios
são um pouco tendentes ao violáceo. Na fronte traz uma cicatriz antiga que
lhe ficou e será a única mancha, agora que ficará limpo das crostas e
imundície.
– Então é um velho, se já está com a cabeça toda branca.
– Não Filipe. Parece, mas não é. Foi a lepra que o fez ficar encanecido.
– Que há com ele? Terá um sangue mestiço?
– Talvez, Pedro. Tem uma semelhança com os povos da África.
– Então será ele israelita?
– Disso saberemos depois. E se ele não for?
– Ora, se não fosse, já teria ido embora. Já é muito ter merecido ser
curado.
– Não, Pedro. Ainda que seja idólatra, Eu não o rejeitarei. Jesus veio
para todos. E, na verdade, te digo que os povos das trevas ultrapassarão os
filhos do povo da Luz…
Jesus suspira. Depois se levanta. Dá graças ao Pai com um hino e
abençoa.
A visão cessa assim.
55.6
Incidentalmente faço notar que o meu monitor interior me disse, desde
ontem à tarde, quando eu estava vendo o leproso: “É Simão, o apóstolo.
Verás a vinda dele e a de Tadeu ao Mestre.” Esta manhã, depois da
Comunhão (é sexta-feira), eu abro o missal e vejo que justamente hoje é a
vigília da festa dos Santos Simão e Judas, e o Evangelho de amanhã fala
sobre a caridade quase repetindo as palavras ouvidas por mim, antes, na
visão. Mas Judas Tadeu, por enquanto, não o vi.
56. Simão Zelote e Judas Tadeu unidos na sorte.
28 de outubro de 1944.
56.1
Sois mesmo belas, ó margens do Jordão, assim como éreis no tempo
de Jesus! Eu vos vejo e me deleito na vossa majestosa paz verde-azulada,
soante de águas e frondes com um tom doce como melodia.
Estou andando por uma estrada muito longa e também muito bem
conservada. Deve ser uma estrada mestra, ou melhor, militar, traçada pelos
romanos para convergir as diversas regiões com a capital. Perto dela desliza
o Jordão, mas ela não passa exatamente ao longo dele. Está separada do rio
por uma zona silvestre, que parece cumprir a finalidade de reforçar as beiras
oferecendo alguma resistência às águas nos tempos de cheia. Do outro lado
da estrada os bosques continuam, de modo que a rua parece um túnel natural,
sobre o qual se entrelaçam os ramos frondosos. É um bom lugar de descanso
para os viajantes nestas regiões de sol ardente.
O rio, e naturalmente também a rua, têm, no ponto em que me encontro,
uma curva lenta, de modo que eu vejo a continuação da margem frondosa,
como se fosse uma muralha verde destinada a represar um açude de águas
tranqüilas. Parece quase um lago de um parque senhoril. Mas a água não é a
água parada de um lago. Ela desliza, se bem que lentamente. E a prova disso
é o sussurro que ela faz contra os primeiros caniços, os mais audazes que
nasceram justamente ali em baixo no leito do rio, e a ondulação que têm as
longas fitas formadas por suas folhas, suspensas sobre a superfície da água e
movidas por ela. Há também um grupo de salgueiros com flexíveis ramos
pendentes, que confiaram as pontas de suas cabeleiras verdes ao rio que
parece penteá-las com a graça de uma carícia, estendendo-as suavemente ao
fio da água corrente.
Há silêncio e paz na hora matutina. Só os cantos, os chamados dos
pássaros, o sussurro das águas e frondes e um grande brilho do orvalho
sobre a erva verde, alta, que está entre as árvores; elas ainda não estão
endurecidas e amareladas pelo sol do verão, mas tenras e novas para
nascerem, depois da primaveril efusão de águas que vêm nutrir a terra, até à
profundidade, de umidade e de sucos vitais.
56.2
Três viajantes estão parados nesta volta da estrada bem no meio da
curva. Estão olhando para baixo e para cima, para o sul, onde está Jerusalém
e para o norte, onde fica a Samaria. Perscrutam entre a colunata das árvores,
para ver se chega alguém que estão esperando. São eles Tomé, Judas Tadeu
e o leproso curado. Estão conversando.
– Não estás vendo nada?
– Eu não.
– Nem eu.
– No entanto este aqui é o lugar.
– Tens certeza disso?
– Toda certeza, Simão. Um dos seis me disse enquanto o Mestre se
afastava entre as aclamações da multidão, depois do milagre de um aleijado
que pedia esmola, que foi curado junto à porta dos Peixes: “Nós agora
vamos para fora de Jerusalém. Espera-nos a cinco milhas entre Jericó e
Doco, na curva do rio, ao longo da rua arborizada.” É esta. Disse também:
“Lá nós estaremos dentro de três dias, ao romper do dia.” Já é o terceiro dia,
e a quarta vigília nos apanhou aqui.
– Ele virá? Talvez teria sido melhor segui-lo, a partir de Jerusalém.
– Não podias ainda andar por entre a multidão, Simão.
– Se meu primo disse que vem até aqui, até aqui virá. Ele cumpre
sempre o que promete. É só esperar.
56.3
– Tu sempre estiveste com Ele?
– Sempre. Desde quando Ele voltou a Nazaré foi para mim um bom
companheiro. Sempre estivemos juntos. Somos da mesma idade, sendo eu um
pouco mais velho. Além disso, dos meus irmãos eu era o preferido do pai
Dele, irmão de meu pai. Também a mãe me queria muito bem. Eu cresci mais
com ela do que com minha mãe.
– Ela te queria… Então agora não te quer mais o mesmo bem?
– Oh! Sim. Mas nós temos estado um pouco divididos desde que Ele se
fez profeta. Meus parentes não gostam disso.
– Quais parentes?
– Meu pai e os dois filhos mais velhos. O outro está titubeante… Meu
pai está muito velho e não tive coragem de irritá-lo. Mas agora… agora, não
mais. Agora eu vou onde o coração e a mente me levam. Vou a Jesus. Creio
que não ofendo a Lei fazendo assim. Mas já… se não fosse justo o que eu
quero fazer Jesus me diria. Eu farei o que Ele disser. É lícito a um pai criar
obstáculos a um filho no caminho do bem? Se eu sinto que ali está a
salvação, por que impedir-me de tê-la? Por que os pais, às vezes, são nossos
inimigos?
Simão suspira, como quem se lembra de coisas tristes e inclina a
cabeça, mas não fala.
É Tomé quem responde:
– Eu já superei esse obstáculo. Meu pai me ouviu e me compreendeu.
Ele me abençoou dizendo: “Vai. Que esta Páscoa seja para ti a libertação da
escravidão de uma expectativa. Feliz de ti que podes crer. Eu espero. Mas,
se for Ele mesmo, e ao segui-lo perceberes que é, vem dizer ao teu velho
pai: ‘Vem. Israel já tem o Esperado’.”
– És mais feliz do que eu. E dizer que nós temos vivido ao seu lado!… E
não cremos, logo nós da família!… E dizemos, ou melhor, eles dizem: “Ele
perdeu o juízo!”
56.4
– Olhai, lá vem um grupo de pessoas –grita Simão–. É Ele, é Ele!
Reconheço a sua cabeça loira! Oh! Vinde. Vamos correr!
E põem-se a caminhar em passos rápidos para o sul. Agora que o alto do
arco foi alcançado, as árvores escondem o resto da rua, de modo que os dois
grupos se encontram quase de frente quando menos esperam. Jesus parece
estar subindo do rio, porque está entre as árvores da margem.
– Mestre!
– Jesus!
– Senhor!
Os três gritos do discípulo, do primo e do curado ressoam cheios de
adoração e de festiva acolhida.
– Paz a vós!
Eis a bonita, inconfundível voz, cheia, sonora, tranqüila, expressiva,
clara, viril, doce e incisiva:
56.5
– Tu também estás aqui, meu primo Judas?
Eles se abraçam. Judas chora.
– Por que este pranto?
– Oh! Jesus! Eu quero estar Contigo!
– Eu te esperei sempre. Por que não vieste?
Judas inclina a cabeça e fica calado.
– Eles não quiseram! E agora?
– Jesus, eu… eu não posso obedecer a eles. Eu quero obedecer somente
a Ti.
– Mas Eu não te dei uma ordem.
– Não. Tu, não. Mas é a tua missão que nos dá ordem! É Aquele que Te
mandou que fala aqui, no meio do meu coração, e me diz: “Vai a Ele!” É
aquela que te gerou e que para mim tem sido uma mestra suave que, com seu
olhar de pomba, me diz, sem fazer uso de palavras: “Sê de Jesus!” Poderei
eu não fazer conta daquela voz excelsa que me perfura o coração? Desta
oração de santa que certamente me suplica para o meu bem? Só porque eu
sou teu primo por parte de José, não deverei Te conhecer por aquilo que és,
enquanto o Batista Te conheceu, aqui, nas margens deste rio, ele que nunca
Te havia visto, e Te saudou como o “Cordeiro de Deus”? E eu, eu que cresci
junto Contigo, eu que procurei tornar-me bom Te imitando, eu que me tornei
filho da Lei pelo merecimento de tua mãe, e que dela aprendi, não os
seiscentos e treze preceitos dos rabinos, além da Escritura e das orações,
porém a alma disso tudo, eu não deveria ser capaz de nada?
– E o teu pai?
– Meu pai? Não lhe falta pão nem assistência, e depois… Tu me dás o
exemplo. Tu tiveste o pensamento no bem do povo, mais do que no pequeno
bem de Maria. E ela está sozinha. Diz-me, Tu, meu Mestre, não é lícito
talvez, sem faltar com o respeito, dizer a um pai: “Pai, eu te amo. Mas acima
de ti está Deus, e a Ele eu sigo”?
– Judas, meu parente e amigo, Eu te digo: tu estás bem adiantado no
caminho da Luz. Vem. É lícito falar ao pai assim quando é Deus que chama.
Não há nada acima de Deus. Até as leis do sangue cessam, ou seja,
sublimam-se, porque com as nossas lágrimas damos aos pais, às mães, uma
ajuda muito maior e por coisas mais eternas do que a jornada do mundo.
Conosco os conduzimos para o Céu e pelo mesmo caminho do sacrifício dos
afetos, os levamos para Deus. Portanto, fica, Judas. Eu te esperei e estou
feliz por reaver-te, amigo da minha vida nazarena.
Judas está comovido.
56.6
Jesus se volta para Tomé:
– Obedeceste fielmente. É a primeira virtude do discípulo.
– Eu vim para ser-te fiel.
– E o serás. Eu te digo. Vem, tu que estás envergonhado na sombra. Não
temas.
– Meu Senhor!
O ex-leproso está aos pés de Jesus.
– Levanta-te. Qual o teu nome?
– Simão.
– Qual a tua família?
– Senhor… era poderosa… eu também era poderoso… mas o ódio de
seitas e… erros da juventude estragaram o seu poder. Meu pai… Oh! Devo
falar contra ele que me custou lágrimas, e não para o céu. Tu o vês, já viste
que presente ele me deu!
– Ele era leproso?
– Não. Não era leproso, como eu também não. Mas era doente de uma
enfermidade de outro nome, que nós de Israel costumamos pôr junto com
outros diversos tipos de lepra. Ele… — naquele tempo a sua casta ainda
triunfava — e ele viveu e morreu prestigiado em sua casa. Eu… se Tu não
me tivesses salvado, iria morrer nos sepulcros.
– Tu és sozinho?
– Sozinho. Eu tenho um servo fiel que cuida de tudo o que me resta.
Mandei já um aviso a ele.
– E tua mãe?
– Ela… morreu.
O homem parece embaraçado. Jesus o observa atentamente:
– Simão, tu me disseste: “Que devo fazer por Ti?” E agora Eu te
respondo: “Segue-me”.
– Imediatamente, Senhor!… Mas… mas eu… deixa que eu Te diga uma
coisa. Eu sou, eu era chamado “Zelote”[101] pela casta, e “cananeu” por
minha mãe. Tu vês. Eu sou escuro. Em mim eu tenho sangue de escrava. Meu
pai não tinha filhos de sua mulher e me teve de uma escrava. A mulher dele,
boa mulher, me criou como filho e cuidou de mim em minhas muitas doenças
até morrer…
– Aos olhos de Deus, não há escravos ou libertos. Aos seus olhos só há
uma escravidão: a do pecado. E Eu vim para removê-la. Eu vos chamo a
todos porque o Reino é de todos. Tens cultura?
– Tenho. Eu tinha também o meu lugar entre os grandes. Isso, enquanto o
meu mal ficou escondido sob as roupas. Mas, quando subiu ao rosto… meus
inimigos aproveitaram-se de meu mal para me confinarem entre os “mortos.”
No entanto, como disse um médico de Cesaréia, romano, a quem eu fui
consultar, a minha não era verdadeira lepra, mas uma impigem hereditária,
pelo que bastava que eu não procriasse para não propagá-la. Posso eu não
maldizer meu pai?
– Deves não maldizê-lo. Ele te fez todos os males…
– Oh, sim. Dilapidador dos bens, vicioso, cruel, sem coração nem afeto.
Ele me negou a saúde, as carícias, a paz, me carimbou com um nome de
desprezo e com uma doença que é uma marca de opróbrio… De tudo ele se
fez dono. Também do futuro de seu filho. Tudo ele me tirou: até a alegria de
ser pai.
– Por isso é que Eu te digo: “Segue-me.” Ao meu lado, e seguindo-me,
encontrarás Pai e filhos. Levanta o olhar, Simão. Lá o verdadeiro Pai te está
sorrindo. Olha pelos espaços da terra, pelos continentes, pelas regiões. Há
neles filhos e filhos, filhos de alma para os sem filhos. Estão à tua espera e a
espera de muitos outros como tu. Sob o meu sinal não há mais abandonos.
No meu sinal não há mais solidões nem diferenças. É um sinal de amor. E
amor dá. 56.7Vem, Simão, que não tiveste filhos. Vem, Judas, que deixas teu pai
por amor de Mim. Eu vos uno na sorte.
Ele está com os dois junto a si. Tem as mãos sobre os seus ombros,
como quem toma posse, como para impor um jugo comum. Depois, diz:
– Eu vos uno. Mas agora vos separo. Tu, Simão, ficarás aqui, com Tomé.
E prepararás com ele os caminhos da minha volta. Daqui a não muito tempo
Eu voltarei e quero que povos e povos me esperem. Dizei aos doentes, e tu o
podes dizer, que vai chegar Aquele que cura. Dizei aos povos que esperam,
que o Messias está entre o seu povo. Dizei aos pecadores que já há quem
perdoa a fim de dar a força para subir…
– Mas, seremos capazes disso?
– Sim. Basta que faleis assim: “Ele já chegou. Ele vos está chamando.
Ele vos espera. Ele vem trazer-vos a graça. Ficai aqui prontos para vê-lo”; e
às palavras, acrescentai a narração do que já sabeis. E tu, Judas, meu primo,
vem Comigo e com estes. Mas tu ficarás em Nazaré.
– Por que, Jesus?
– Porque deves preparar-me o caminho em minha pátria. Achas que é
uma missão pequena? Na verdade, não há nenhuma outra mais grave…
Jesus suspira.
– E eu conseguirei?
– Sim e não. Mas isso será suficiente para justificar-nos.
– Justificar-nos de quê? E junto à quem?
– Junto a Deus. Junto à pátria. Junto à família. Não poderão censurar-
nos, porque temos oferecido o bem. E se a pátria e a família desprezarem o
que fazemos, não teremos culpa de sua perdição.
– E nós?
– Vós, Pedro? Vós voltareis às redes.
– Por que?
– Porque Eu vos instruirei lentamente e virei buscar-vos quando vos
achar preparados.
– Mas Te veremos, então?
– Com certeza. Eu virei a vós freqüentemente, ou vos farei chamar,
quando Eu estiver em Cafarnaum. Agora, saudai-vos, amigos, e vamos. Eu
vos abençôo, a vós que ficais. Minha paz esteja convosco.
E termina a visão.
[101] “Zelote” pela casta, a dos zelotes, assim chamados p elo seu zelo em observar a lei e em op or-se a toda a dominação
estrangeira sobre o p ovo eleito. M as o significado da exp ressão escap a a M aria Valtorta, que em rodap é à p ágina autografa
anota: quem são os zelotes? Igualmente ignoradas p ela escritora as p alavras “sciemanflorasc” (em 503.9/10) e “gulal” (em
542.7).
57. Em Nazaré com Judas Tadeu
e com outros seis discípulos.
31 de outubro de 1944.
57.1
Jesus chega com o primo e os seis discípulos nas proximidades de
Nazaré. Do alto do outeiro onde se encontram vê-se a pequena cidade,
branca entre o verde, subindo e descendo pelas encostas sobre as quais ela
está construída, um doce ondular de encostas, num ponto apenas percebido e
noutro, mais acentuado.
– Já chegamos, amigos. Eis ali a minha casa. Minha mãe lá está, porque
a fumaça se está levantando da casa. Talvez ela esteja fazendo o pão. Eu não
vos digo: “Ficai”, porque penso que deveis estar ansiosos para chegar em
vossas casas. Mas, se quiserdes partir o pão Comigo e conhecer aquela que
João já conhece, então, Eu vos digo: “Vinde.”
Os seis, que já estavam tristes pela iminente separação, voltam a ficar
alegres, e aceitam de coração.
– Então vamos.
Descem rapidamente a pequena colina e pegam a rua mestra. A tarde
vem chegando. Ainda faz calor, mas as sombras já descem sobre o campo,
onde os cereais já estão amadurecendo.
Entram na cidade. Mulheres que vão e vêm da fonte, homens às soleiras
das pequenas oficinas, ou nas hortas, saúdam a Jesus e a Judas.
Os meninos se aglomeram ao redor de Jesus.
– Já voltaste?
– Agora vais ficar aqui?
– Quebrou-se de novo a roda do meu carrinho.
– Sabes, Jesus? Nasceu minha irmã e deram a ela o nome de Maria.
– O mestre me disse que eu sei tudo e que sou um verdadeiro filho da
Lei.
– Sara não está porque está com a mãe muito doente. Chora porque tem
medo.
– Meu irmão Isaque se casou. Houve uma grande festa.
Jesus escuta, acaricia, elogia, promete ajudar.
57.2
E assim chegaram à casa. E sobre a soleira já está Maria, que foi
avisada por um rapazinho atencioso.
– Meu Filho!
– Mãe!
Os dois se abraçam. Maria, muito mais baixa que Jesus, está com a
cabeça apoiada no alto do peito do Filho, fechada entre o círculo dos seus
braços. Ele a beija sobre os cabelos loiros. Entram em casa.
Os discípulos, incluindo Judas, ficam lá fora, para deixarem livres os
dois em suas primeiras expansões.
– Jesus, meu Filho!
A voz de Maria está trêmula, como a de quem está com as lágrimas na
garganta.
– Por que estás assim, mãe?
– Ó Filho! Disseram-me… No Templo estavam os galileus, os
nazarenos, naquele dia… Eles voltaram… E contaram… Ó Filho!…
– Mas tu o estás vendo, mãe! Eu estou bem. Nenhum mal veio sobre
Mim. Só veio a glória a Deus em sua Casa.
– Sim. Eu sei, Filho do meu coração. Sei que foi como o toque da
trombeta, despertando os que dormem. E, pela glória de Deus, eu me sinto
feliz… feliz que este meu povo desperta para Deus. Eu não te censuro… eu
não te ponho obstáculo… eu te compreendo… e… e fico feliz… mas eu te
gerei, eu, meu Filho!…
Maria está ainda envolvida pelo abraço de Jesus e falou, com as
mãozinhas abertas e apoiadas sobre o peito do Filho, a cabeça levantada
para Ele, os olhos mais brilhantes pelo pranto que está prestes a descer;
agora se cala, apoiando novamente a cabeça sobre o peito Dele. Parece uma
rolinha cinzenta, vestida como está com uma veste acinzentada, sob a
proteção de duas fortes asas de candor, pois Jesus ainda está com sua veste e
o manto branco.
– Mãe! Pobre mãe! Querida mãe!…
Jesus a beija outra vez. 57.3Depois, diz:
– E então, não estás vendo? Eu estou aqui e não estou sozinho. Tenho
Comigo os meus primeiros discípulos, e ainda outros que ficaram na Judéia.
Também o primo Judas está Comigo e agora me segue…
– Judas?
– Sim, Judas. Eu sei porque é que estás admirada. Certamente, entre os
que falaram do que aconteceu, estavam Alfeu com seus filhos… e não erro
se disser que eles me criticaram. Mas, não tenhas medo. Hoje é assim,
amanhã não será mais assim. O homem tem que ser cultivado como a terra e
onde hoje há espinhos, amanhã haverá rosas. Judas, que tu amas, já está
Comigo.
– Onde ele está agora?
– Ali fora, com os outros. Tens pão para todos?
– Sim, Filho. Maria de Alfeu está junto ao forno desenfornando os pães.
Muito boa é Maria para comigo; especialmente numa hora destas.
– Deus lhe dará glória!
Vai até à porta e chama:
– Judas! Tua mãe está aqui! Amigos, vinde!
Eles entram e saúdam. Judas beija Maria. Só depois corre em direção à
sua mãe.
Jesus diz os nomes dos outros cinco: Pedro, André, Tiago, Natanael e
Filipe; porque João, já conhecido de Maria, saudou-a logo depois de Judas,
inclinando-se e recebendo dela a bênção.
57.4
Maria os saúda e os convida a se sentarem. Ela é a dona da casa e,
mesmo adorando com o olhar o seu Jesus, ocupa-se com os hóspedes; parece
que sua alma continua a falar, com os olhos, ao seu Filho. Ela queria ir
buscar água para matarem a sede. Mas Pedro dispara:
– Não, mulher. Não posso permitir isso. Assenta-te perto do teu Filho, ó
mãe santa. Eu irei; nós iremos refrescar-nos lá na horta.
Chega Maria de Alfeu toda corada e enfarinhada e saúda Jesus, que a
abençoa; depois leva os seis até à horta, ao tanque, e volta feliz.
– Oh! Maria! –diz à Virgem–. Judas me falou. Como estou contente! Por
Judas e por ti, minha cunhada. Eu sei que os outros vão ralhar comigo. Mas
não me importa. Serei feliz no dia em que souber que todos eles são de
Jesus. Nós, mães, sabemos… percebemos o que é bom para os filhos. E eu
percebo que o bem de meus filhos és Tu, Jesus.
Jesus lhe faz uma carícia sobre a cabeça, sorrindo.
Voltam os discípulos. Maria de Alfeu lhes serve um pão cheiroso,
azeitonas e queijo. Leva também uma pequena ânfora de vinho tinto que
Jesus serve aos seus amigos. É sempre Jesus quem oferece e depois
distribui.
57.5
Um pouco embaraçados, a princípio, os discípulos depois se tornam
mais corajosos e falam de suas casas, da viagem a Jerusalém e dos milagres
acontecidos. Agora eles estão cheios de zelo, de afeto. Pedro procura fazer
de Maria uma sua aliada, para conseguir que sejam logo tomados por Jesus
sem ter que esperar até que chequem em Betsaida.
– Fazei tudo que Ele diz –exorta ela, com um suave sorriso–. Esta
espera vos será mais útil do que uma aliança imediata. O meu Jesus faz bem
tudo que faz.
A esperança de Pedro morre. Mas ele se resigna e se sai bem. Só faz
esta pergunta:
– Essa espera durará muito?
Jesus olha para ele com um sorriso, mas não diz nada.
Maria interpreta aquele sorriso como um bom sinal, e diz:
– Simão de Jonas, Ele está sorrindo… e por isso, eu te digo: rápido,
como o vôo de uma andorinha sobre o lago será o tempo da tua obediente
espera.
– Obrigado, mulher.
57.6
– Não falas nada, Judas? E tu, João?
– Estou olhando para ti, Maria.
– E eu também.
– Eu também olho para vós e… sabeis de uma coisa? Está vindo à minha
lembrança uma hora que já vai longe. Também eu, naquele tempo, tinha
sempre três pares de olhos fixados em meu rosto com amor. Lembras-te
Maria, dos meus três discípulos?
– Oh! Se me lembro! É verdade! Também agora, há três quase da mesma
idade que olham para ti com todo amor que podem ter. E este aqui, o João,
eu penso, me parece o Jesus daquele tempo: tão loiro e rosado, o mais novo
de todos.
Os outros querem saber, e as recordações e anedotas fluem em meio à
conversação, enquanto o tempo passa. Chega a tarde.
– Meus amigos, Eu não tenho cômodos. Mas ali é a oficina onde eu
trabalhava. Se quiserdes abrigar-vos nela… Mas lá só há os bancos do
ofício.
– Leito confortável é este para pescadores acostumados a dormir sobre
estreitas tábuas. Obrigado, Mestre. Dormir debaixo do teu teto é honra e
santificação.
Retiram-se com muitas saudações. Judas também se retira com sua mãe
e vão para sua casa.
Neste quarto ficam Jesus e Maria, sentados sobre o arquibanco, à luz de
uma pequena candeia, um braço ao redor das costas do outro. Jesus narra e
Maria escuta contente, trêmula e feliz…
Assim cessa a visão.
58. Cura de um cego em Cafarnaum
após uma lição de pesca aplicada às almas.
7 de outubro de 1944.
58.1
Jesus diz, e logo a tranqüilidade penetra em mim; e a alegria dessa
tranqüilidade luminosa torna-me risonho o coração:
– Vê como lhe agradam os episódios dos cegos. Demos-lhe um outro
deles.
E eu vejo.
58.2
Vejo um belíssimo pôr-do-sol de verão. O sol encheu de fogo todo o
poente e o lago de Genezaré tornou-se uma imensa laje incandescente sob um
céu aceso.
As ruas de Cafarnaum mal começam a se encher de gente: mulheres que
vão à fonte, homens, pescadores que preparam as redes e os barcos para a
pesca noturna, meninos que correm brincando, pequenos jumentos que vão
indo para o campo com seus cabazes, talvez para trazerem verduras.
Jesus aparece em uma porta que dá para um pequeno pátio sombreado
por uma videira e uma figueira, além do qual há uma viela pedregosa que
margeia o lago. Deve ser a casa de Pedro (ao invés, é a casa da sogra de
Pedro)[102], porque ele está com André à margem; estão no barco preparando
as cestas e as redes para os peixes, pondo em ordem os bancos e os rolos de
cordas. Tudo, em suma, o que é necessário para a pesca. André o está
ajudando, indo e vindo da casa ao barco.
58.3
Jesus interpela o seu apóstolo:
– Vai ser boa a pesca?
– O tempo está favorável. A água está calma, e a lua vai ser clara. Os
peixes emergirão das profundezas e a minha rede os arrastará consigo.
– Iremos sozinhos?
– Oh! Mestre! Como queres que façamos, com este sistema de redes, se
ficarmos sozinhos?
– Eu nunca pesquei e espero que tu me ensines.
Jesus vai descendo muito devagar em direção ao lago e pára à margem
da areia grossa e pedregosa, junto ao barco.
– Vê, Mestre: é assim que se faz. Eu saio ao lado do barco de Tiago,
filho de Zebedeu e vamos assim, um ao lado do outro até o ponto bom para a
pesca. Depois se desce a rede. Nós costumamos segurar uma ponta. Tu a
queres segurar, me disseste isto.
– Sim, se me disseres o que devo fazer.
– Oh! Basta tomar cuidado com a descida. Que a rede vá descendo
devagar e sem fazer nós. Devagar, porque estaremos em áreas de pesca e
qualquer movimento muito brusco pode espantar os peixes. E sem nós, para
que a rede não fique fechada, pois ela deve ir sendo aberta como uma bolsa,
ou como um véu, se te agrada assim, que vai sendo enchida pelo vento.
Depois, quando a rede já foi toda descida, iremos remando devagar, ou
iremos com a vela, conforme for necessário, fazendo um semicírculo sobre o
lago; quando o vibrar da estaca de segurança nos disser que a pesca foi boa,
dirigiremos o barco para a terra e lá perto da beira içaremos a rede; não
antes, para não nos arriscarmos a ver escapar a presa, nem depois para não
estragar os peixes nem as redes sobre as pedras. Neste ponto é preciso ter
olhos atentos porque os barcos devem estar muito próximos para que de um
se possa recolher a ponta da rede dada pelo outro, mas sem se bater para não
esmagar o saco cheio de peixes. 58.4Eu confio em Ti, Mestre, pois este é o
nosso pão. Olhos na rede, para que não se arrebente com as sacudidas. Os
peixes defendem a sua liberdade com fortes golpes de cauda e se forem
muitos… Tu entendes… São pequenos animais, mas reunidos em dez, em
cem, em mil, tornam-se fortes como o Leviatã.
– É como acontece com as culpas, Pedro. Sendo a primeira, aindanão é
irreparável. Mas, se alguém não toma cuidado, não limitando-se àquela, vai
acumulando, acumulando… acabará acontecendo que aquela pequena culpa,
talvez uma simples omissão, uma simples fraqueza, vai se tornando sempre
maior, passe a ser um hábito, e se transforme em um vício capital. Às vezes,
começa-se por um olhar concupiscente e se termina por um adultério
consumado. Às vezes, por uma falta de caridade de palavras contra um
parente, acaba-se por uma violência contra o próximo. Ai de quem começa e
deixa que as culpas aumentem de peso, por seu número! Tornam-se
perigosas e prepotentes como a própria Serpente infernal e arrastam para o
abismo da Geena.
– Falas bem, Mestre… Mas, somos tão fracos!
– Advertência e oração para ser fortes e obter ajuda e uma firme vontade
de não pecar. Depois, uma grande confiança na amorosa justiça do Pai.
– Tu dizes que Ele não será muito severo com o pobre Simão?
– Com o velho Simão, Ele até que podia ser severo. Mas com o meu
Pedro, o homem novo, o homem do seu Cristo… não, Pedro. Ele te ama e te
amará.
– E eu?
– Também tu, André; e contigo, João e Tiago, Filipe e Natanael. Vós
sois os meus primeiros eleitos.
58.5
– Virão outros? Tem o teu primo, e na Judéia…
– Oh! Muitos. O meu Reino está aberto a todo o gênero humano e em
verdade Eu te digo que mais abundante do que a mais abundante de tuas
pescas será a minha nas noites dos séculos… Porque cada século é uma
noite, na qual é guia e luz, não a pura luz do Orion ou aquela da navegante
lua, mas, a palavra de Cristo e a Graça que Dele virá; noite que conhecerá a
aurora de um dia sem fim, de uma luz na qual todos os fiéis irão viver, de um
sol que revestirá os eleitos e os fará belos, eternos, felizes como uns deuses.
Deuses menores, filhos de Deus Pai e semelhantes a Mim… Por enquanto,
não podeis compreender. Mas em verdade Eu vos digo que a vossa vida
cristã vos concederá semelhança com o vosso Mestre, e resplandecereis no
Céu pelos próprios sinais dele. Pois bem, Eu terei, não obstante a inveja de
Satanás e a vontade fraca do homem, uma pesca mais abundante do que a tua.
– Mas, só nós é que seremos teus apóstolos?
– Ciumento, Pedro? Não. Não o sejas. Outros virão, e no meu coração
haverá amor para todos. Não sejas avarento, Pedro. Tu ainda não sabes
Quem te ama. Já contaste alguma vez as estrelas? E as pedras do fundo deste
lago? Não. Não poderias. Mas, menos ainda, irias poder contar as
palpitações de amor de que é capaz o meu coração. Pudeste alguma vez
contar quantas vezes este mar beija a margem com o seu beijo de ondas no
curso de doze luas? Não. Não poderias. Mas, menos ainda poderias contar
as ondas de amor que deste coração se derramam para beijar os homens.
Esteja certo, Pedro, do meu amor.
Pedro pega a mão de Jesus e a beija. Está comovido.
André olha e não ousa fazer o mesmo. Mas Jesus lhe põe a mão por
entre os cabelos e lhe diz:
– Também te amo muito. Na hora da tua aurora, verás, refletido na
abóbada do céu, sem que precises levantar teus olhos, o teu Jesus sorridente,
que te dirá: “Eu te amo. Vem”; e a tua passagem por essa aurora te será mais
doce do que a entrada numa câmara nupcial…
58.6
– Simão! Simão! André! Estou chegando…
João chega apressado:
– Oh! Mestre! Eu te fiz esperar?
João olha para Jesus com seu olhar amoroso.
Responde Pedro:
– Verdadeiramente, eu já estava começando a pensar que não viesses
mais. Prepara logo o teu barco. E Tiago?…
– Aí está… nós ficamos atrasados por causa de um cego. Ele estava
pensando que Jesus estivesse em nossa casa e foi para lá. Então, nós lhe
dissemos: “Ele está em algum outro lugar. Talvez amanhã Ele te cure.
Espera.” Mas ele não queria esperar. Tiago lhe dizia: “Tens esperado tanto a
luz, que te custa esperar mais uma noite?” Mas ele não quer saber de
razões…
– João, se tu fosses cego, não terias pressa de rever a tua mãe?
– Ah! Sem dúvida!
– E então? Onde está o cego?
– Ele vem vindo com o Tiago. Está agarrado ao manto de Tiago e não o
solta. Mas vem vindo devagar, porque a margem é pedregosa, ele tropeça…
Mestre, me perdoas, por ter sido duro?
– Sim. Mas para compensar, vai ajudar o cego e o traz a Mim.
João vai correndo.
Pedro sacode um pouco a cabeça, mas se cala. Olha para o céu que
começa a ficar azul depois de ter estado tanto tempo cor de cobre; olha para
o lago, olha para os outros barcos que já saíram para a pesca e suspira.
– Simão?
– Mestre?
– Não tenhas medo. Terás uma pesca abundante, ainda que saias por
último.
– Desta vez também?
– Todas as vezes que tiveres caridade Deus usará para contigo da graça
de abundância.
58.7
– Eis o cego.
O pobre homem avança entre Tiago e João. Ele tem nas mãos um bastão,
mas não está servindo-se dele agora, pois acha mais seguro confiar nos
dois.
– Pronto, homem! O Mestre está na tua frente.
O cego se ajoelha:
– Meu Senhor, piedade!
– Queres ver? Levanta-te. Desde quando és cego?
Os quatro apóstolos se agrupam ao redor dos dois.
– Faz sete anos, Senhor. Antes, eu via bem e trabalhava. Eu era ferreiro
em Cesaréia Marítima e ganhava bem. O porto, os muitos negócios, sempre
precisavam de mim para trabalhos. Mas, ao bater um ferro de âncora, e
podes fazer idéia de como devia estar vermelho para se tornar macio ao
golpe, soltou-se um estilhaço incandescente e me queimou um olho. Eu já
estava com os dois doentes por causa do calor da forja. Perdi o olho que foi
atingido e o outro também se foi, três meses depois. Acabei com minhas
economias e agora vivo de caridade…
– És sozinho?
– Tenho esposa e três filhos pequenos… de um deles eu nem sei como é
o rosto… e tenho minha mãe, já idosa. Contudo, agora é ela e minha mulher
que ganham para um pouco de pão; com isto e com a esmola que eu ajunto,
não se morre de fome. Se me curasses!… Eu voltaria ao trabalho. Não
desejo senão trabalhar, como um bom israelita e dar um pão àqueles que eu
amo.
– E vieste a Mim? Quem foi que te contou?
– Um leproso que Tu curaste aos pés do monte Tabor, quando ias de
volta para o lago, depois daquele tão belo discurso.
– Que foi que ele te disse?
– Que Tu podes tudo. Que és a saúde dos corpos e das almas. Que és luz
para as almas e para os corpos porque és a Luz de Deus. Ele, o leproso,
havia ousado misturar-se com a multidão, correndo o risco de ser
apedrejado, todo envolvido num manto, porque ele te havia visto passar
dirigindo-se para o monte; o teu rosto tinha colocado em seu coração uma
esperança. Ele me disse: “Eu vi naquele rosto qualquer coisa que me disse:
‘Ali está a saúde. Vai!’ E eu fui.” E assim me repetiu o teu discurso,
dizendo-me que Tu o curaste, tocando-o com a tua mão sem repugnância. Ele
estava voltando dos sacerdotes depois da purificação. Eu o conhecia, porque
eu já tinha trabalhado para ele, quando ele tinha uma loja em Cesaréia. Eu
vim perguntando por Ti pelas cidades e povoados. Agora Te achei… Tem
piedade de mim!
58.8
– Vem. É bem viva ainda a luz para alguém que vem da escuridão.
– Vais curar-me, então?
Jesus o guia em direção à casa da sogra de Pedro, à pouca luz que ainda
há no pequeno pomar e o põe à sua frente, mas de tal modo que os olhos, ao
ficarem curados, não fossem ter como primeira visão, o lago, ainda todo
cheio de reflexos de luz. O homem parece um menino muito dócil, deixa
Jesus fazer como quer, sem lhe perguntar o porquê.
– Pai! A tua luz a este filho!
Jesus estendeu as mãos sobre a cabeça do homem que está de joelhos.
Ele fica assim por um instante. Depois Jesus molha as pontas dos dedos na
saliva e, com a direita, toca-as de leve sobre os olhos abertos, mas sem
vida.
Um instante. Em seguida, o homem move as pálpebras e as esfrega como
quem sai do sono, mas está ainda com uma névoa nos olhos.
– Que estás vendo?
– Oh! Oh!… oh, Deus eterno! Parece-me… parece-me… oh! que eu
estou vendo… estou vendo a tua veste… é vermelha, não é? E uma mão
branca… e uma cinta de lã… oh! bom Jesus… estou vendo cada vez melhor,
vou-me acostumando a ver… Ali está a erva do chão… aquilo certamente é
um poço, e ali está uma videira…
– Levanta-te, amigo.
O homem, que chora e ri ao mesmo tempo, se levanta e, depois de um
instante de luta entre o respeito e o desejo, ergue o rosto e encontra o olhar
de Jesus. Um Jesus sorridente, cheio de piedade e de amor. Deve ser muito
belo recuperar a vista e ver, como primeiro sol, aquele rosto! O homem dá
um grito e estende os braços. É um ato instintivo. Mas ele se refreia.
Mas é Jesus quem lhe abre os braços e atrai para Si o homem, que é
muito mais baixo do que Ele.
– Vai agora para tua casa, sê feliz e justo. Vai com a minha paz.
– Mestre, Mestre! Senhor! Jesus! Santo! Bendito! A luz… Eu vejo…
vejo tudo… Ali está o lago azul e o céu sereno, e os últimos raios de sol, e
lá a primeira sombra da lua… Mas o azul mais belo e sereno eu o vejo nos
teus olhos e em Ti vejo a beleza do sol mais verdadeiro, e resplandecer a
pureza da mais santa lua. Astro dos doentes, Luz dos cegos, Piedade viva e
operante!
– Luz dos espíritos, Eu sou. Sê tu um filho da Luz.
– Sempre, Jesus. A cada batida da minha pálpebra sobre a pupila
renascida, eu renovarei este juramento. Sê bendito Tu e o Altíssimo!
– Bendito seja o Altíssimo Pai! Vai!
E o homem vai feliz, andando com passos firmes, enquanto Jesus e os
pasmados apóstolos, descem em dois barcos e começam a manobra da
navegação.
E a visão termina.
[102] (ao invés, é a casa da sogra de Pedro), é a rectificação de M aria Valtorta sobre uma cóp ia dactilografada; da sogra, nas
p rimeiras linhas de 58.8, é um acréscimo de M aria Valtorta sobra a mesma cóp ia dactilografada. Das duas casas de Pedro (a
p róp ria em Betsaida e a da sogra em Cafarnaum) se falará em vários p ontos do cap ítulo 60.
59. O endemoninhado curado
na sinagoga de Cafarnaum.
2 de novembro de 1944.
59.1
Vejo a sinagoga de Cafarnaum. Ela já está cheia pela multidão que
encontra-se em expectativa. Pessoas que estão à porta olham com freqüência
para a praça ainda ensolarada, se bem que a tarde já vem chegando.
Finalmente, ouve-se um grito:
– Eis o Rabi.
As pessoas viram-se todas para a porta, os mais baixos se levantam nas
pontas dos pés, ou procuram lançar-se para a frente. Algumas discussões,
alguns empurrões, não obstante as repreensões partidas dos encarregados da
sinagoga e dos maiorais da cidade.
– A paz esteja sobre todos os que procuram a Verdade!
Jesus está na entrada e saúda abençoando, com os braços estendidos
para a frente. A luz bem forte que há na praça cheia de sol faz com que sua
figura alta se destaque, aureolando-a de luz. Jesus tirou sua veste branca
ficando, como é o costume, com outra azul escura. Ele avança entre a
multidão, que se abre e se fecha ao redor Dele, como a onda ao redor de um
navio.
59.2
– Eu estou doente, cura-me! –geme um jovem, que pelo aspecto, me
parece estar tuberculoso e que segura Jesus pela veste.
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça e diz:
– Confia. Deus te ouvirá. Deixa agora que Eu fale ao povo, depois virei
a ti.
O jovem o deixa ir e fica quieto.
– Que foi que Ele te disse? –pergunta-lhe uma mulher que está com um
menino nos braços.
– Disse-me que depois de ter falado ao povo virá a mim.
– Então, vai te curar?
– Não sei. Ele me disse: “Confia.” Eu espero.
– Que foi que Ele disse? Que foi que Ele disse?
A multidão quer saber. E a resposta de Jesus vai sendo comentada entre
o povo.
– Então, eu vou buscar o meu menino.
– E eu vou trazer aqui o meu velho pai.
– Oh! Se o Ageu quisesse vir! Eu vou tentar… mas ele não virá.
59.3
Jesus chegou ao seu lugar. Saúda o chefe da sinagoga e é saudado por
ele. É um homenzinho baixo, gordo e de idade. Para falar a ele, Jesus precisa
inclinar-se. Parece uma palmeira que se curva sobre um arbusto mais largo
do que alto.
– Que queres que eu te dê? –pergunta o arqui-sinagogo.
– O que quiseres, ou melhor, o que apanhares. O Espírito te guiará.
– Mas… estás preparado?
– Estou. Dá-me um qualquer. Repito: O Espírito do Senhor guiará a
escolha para o bem deste povo.
O arqui-sinagogo estende a mão sobre a pilha dos rolos, tira um, abre-o,
e pára num certo ponto.
– Este –diz ele.
Jesus pega o rolo e lê o ponto indicado[103]:
– Josué: “Levanta-te e santifica o povo, e diz a eles: ‘Santificai-vos para
amanhã, porque diz o Senhor Deus de Israel, o anátema está no meio de vós,
ó Israel; tu não poderás estar à frente dos teus inimigos, enquanto não for
tirado do meio de ti quem se tiver contaminado com tal delito’.”
Ele pára, enrola o volume, e o entrega de volta.
A multidão está muito atenta. Somente se ouve a voz de alguém que
murmura:
– Vamos ouvir hoje das boas contra os inimigos!
– É o Rei de Israel, o Prometido, que reúne o seu povo!
59.4
Jesus estende os braços em seu costumeiro gesto oratório. O silêncio
se torna completo.
– Quem veio para santificar-vos se levantou. Ele saiu do segredo da
casa onde se preparou para esta missão. Ele se purificou para dar-vos
exemplo de purificação. Tomou sua posição frente aos poderosos do Templo
e ao povo de Deus e agora está entre vós. Sou Eu. Não como alguns entre
vós pensam e esperam, com uma mente enevoada e com um fermento no
coração. Mais alto e maior é o Reino do qual Eu sou o futuro Rei e ao qual
Eu vos chamo.
Eu vos chamo, ó vós de Israel, antes de qualquer outro povo, porque vós
sois os que, nos pais dos pais, tiveram a promessa desta hora e aliança com
o Senhor Altíssimo. Mas não será com multidões armadas nem com
ferocidades sangrentas que este Reino vai ser formado; e nele não entrarão
os violentos, nem os prepotentes, nem os soberbos, os iracundos, os
invejosos, os luxuriosos, os avarentos, mas os bons, os mansos, os
continentes, os misericordiosos, os humildes, os que têm amor ao próximo e
a Deus, os pacientes.
Israel! Não é contra os inimigos de fora que és chamado a combater.
Mas contra os inimigos de dentro. Contra aqueles que estão no coração de
cada um de vós. No coração de dezenas e dezenas de milhares de filhos teus.
Tirai o anátema do pecado de todos os vossos corações um por um, se
quereis que amanhã Deus vos reúna e vos diga: “Povo meu, para ti o Reino
que não será mais derrotado, nem invadido, nem emboscado pelos
inimigos.”
Amanhã. Que amanhã é este? Dentro de um ano ou de um mês? Oh! Não
procureis. Não procureis, com uma sede doentia, saber o que está para
acontecer, usando para isso de meios que têm o sabor de uma culpável
feitiçaria. Deixai aos gentios o espírito pitônico. Deixai ao Deus eterno o
segredo do seu tempo. Vós de amanhã, o amanhã que surgirá depois desta
hora da tarde, e a que virá à noite, que surgirá com o canto do galo, vinde
purificar-vos na verdadeira penitência.
Arrependei-vos dos vossos pecados para serdes perdoados e
preparados para o Reino. Tirai de vós o anátema do pecado. Cada um tem o
seu. Cada um tem aquele que é contrário aos dez mandamentos de salvação
eterna. Examinai-vos cada um com sinceridade e encontrareis o ponto em
que errastes. Humildemente tende dele um arrependimento sincero. Tende a
vontade de arrepender-vos. Não só com palavras. De Deus não se zomba e a
Deus não se engana. Mas arrependei-vos com vontade firme, que vos leve a
mudar de vida, a entrar de novo na Lei do Senhor. O Reino dos Céus vos
espera. Amanhã.
Amanhã? Estais perguntando. Oh! É sempre um amanhã solícito a hora
de Deus, ainda que ela chegue ao fim de uma vida longa como a dos
Patriarcas. A eternidade não tem por medida de tempo o correr lento da
clepsidra. E aquelas medidas de tempo que vós chamais dias, meses, anos,
séculos, são palpitações do Espírito eterno, que vos mantêm vivos. Mas, vós
sois eternos em vosso espírito e deveis, para o vosso espírito, ter o mesmo
método de medição do tempo que o vosso Criador tem. Então, dizeis:
“Amanhã será o dia da minha morte.” Aliás, não morte para os fiéis. Mas
repouso de espera, à espera do Messias, que abrirá as portas do Céu.
E, em verdade, vos digo que, entre os aqui presentes, só vinte e sete é
que morrerão e deverão esperar. Os outros estarão já julgados, antes da
morte, e a morte será sua passagem para Deus ou para Mamon, sem demora,
porque o Messias já veio, está entre vós e vos chama para dar-vos a Boa
Nova, para instruir-vos na Verdade e para salvar-vos no Céu.
Fazei penitência! O “amanhã” do Reino dos Céus é iminente. Que ele
vos encontre limpos, a fim de vos tornardes possuidores do dia eterno.
A paz esteja convosco.
59.5
Para contradizê-lo, levanta-se um empertigado e barbudo israelita. Ele
diz:
– Mestre, tudo o que dizes me parece em contraste com tudo o que está
dito[104] no segundo livro dos Macabeus, glória de Israel. Lá está dito: “É de
fato sinal de grande benevolência não permitir aos pecadores que fiquem
andando por muito tempo atrás de seus caprichos, mas dar-lhes logo o
castigo. O Senhor não faz como as outras nações, que as espera com
paciência, para puni-las quando chegar o dia do Juízo, quando estiver cheia
a medida dos pecados.” Tu ao invés, falas como se o Altíssimo pudesse ser
muito lento em punir-nos, esperando-nos como os outros povos, no tempo do
Juízo, quando estiver cheia a medida dos pecados. Verdadeiramente os fatos
te desmentem. Israel está punido, como diz o histórico dos Macabeus. Mas,
se fosse como dizes, não há uma divergência entre a tua doutrina e a que está
encerrada na frase que eu te disse?
– Quem és, Eu não sei[105]. Mas, seja quem fores, Eu te respondo. Não
há divergência na doutrina, mas no modo de interpretar as palavras. Tu as
interpretas segundo o modo humano. Eu, segundo aquele do espírito. Tu,
representante da maioria, vês tudo com referências ao presente e ao
transitório. Eu, representante de Deus, tudo explico, e aplico ao que é eterno
e sobrenatural. Javé vos feriu sim, no presente, na soberba e na injustiça de
ser um “povo”, segundo a terra. Mas, como vos tem amado e usado de
paciência para convosco, mais do que com todos os outros, concedendo-vos
o Salvador, o seu Messias, para que o escuteis, e vos salveis, antes da hora
da ira divina! Não quer mais que sejais pecadores. Mas, se no transitório
Ele vos feriu, vendo que a ferida não sara, mas ao contrário, torna sempre
mais obtuso o vosso espírito, eis que Ele vos manda, não punição, mas
salvação. Vos manda Aquele que vos cura e vos salva. Eu, que vos falo.
59.6
– Não achas que estás sendo ousado ao professar-te representante de
Deus? Nenhum dos Profetas ousou tanto. E Tu… Quem és, Tu que estás
falando? E com ordem de quem falas?
– Os Profetas não podiam falar deles mesmos o que Eu de Mim mesmo
falo. Quem sou Eu? Sou o Esperado, o Prometido, o Redentor. Já ouviste
aquele que o precede dizer: “Preparai o caminho do Senhor… Eis que o
Senhor Deus vem… Como um pastor apascentará o seu rebanho, sendo
também o Cordeiro da verdadeira Páscoa.” Entre vós estão aqueles que
ouviram do Precursor estas palavras, e viram o céu relampejar com uma luz
que descia em forma de pomba, e ouviram uma voz que falava, dizendo quem
Eu era. Por ordem de quem Eu falo? Daquele que é, e que me envia.
– Tu podes estar dizendo isto, mas podes também ser um mentiroso, ou
um iludido. As tuas palavras são santas, mas às vezes, Satanás tem palavras
enganosas, tingidas de santidade, para induzir em erro. Nós não te
conhecemos.
– Eu sou Jesus de José, da estirpe de Davi, nascido em Belém Efrata,
segundo as promessas, chamado nazareno, porque minha casa é em Nazaré.
Isto segundo o mundo. Segundo Deus, sou o seu Enviado. Os meus discípulos
sabem disso.
– Oh! Os teus discípulos! Eles podem falar o que quiserem e o que Tu os
mandas dizer.
– Um outro falará, um que não me ama, e dirá quem Eu sou. Espera aí,
que Eu vou chamar um dos que estão aqui presentes.
59.7
Jesus olha para a multidão, que está espantada com esta discussão,
irritada e dividida entre correntes opostas. Jesus olha para ela, procurando
alguém com seus olhos de safira, e depois chama com voz forte:
– Ageu, vem para a frente. Eu te ordeno.
Há um grande murmúrio entre a multidão, que se abre, para deixar
passar um homem, todo sacudido pelo tremor e sustentado por uma mulher.
– Conheces este homem?
– Sim. É o Ageu de Malaquias, aqui de Cafarnaum. É possuído por um
espírito mau, que o desatina em fúrias repentinas.
– Todos vós o conheceis?
A multidão grita:
– Sim, sim.
– Poderá alguém aí dizer que ele já esteve conversando Comigo, ainda
que por poucos minutos?
A multidão grita:
– Não, não, ele é quase um idiota, e não sai nunca de casa, e nunca
ninguém te viu lá.
– Mulher, traze-o aqui diante de Mim.
A mulher o empurra e o arrasta, enquanto o pobre homem treme
fortemente.
O arqui-sinagogo adverte a Jesus:
– Estai atento! O demônio vai atormentá-lo… e então se arroja, arranha
e morde.
A multidão abre caminho, comprimindo-se contra as paredes.
Agora os dois estão frente a frente. É um momento de luta. Parece que o
homem, acostumado a ficar mudo, sente dificuldade para falar, e gane, mas
depois sua voz toma a forma de palavras:
– Que há entre nós e Ti, Jesus de Nazaré? Por que vieste atormentar-
nos? Por que vieste exterminar-nos, Tu, Senhor do Céu e da terra? Eu sei
quem és: o Santo de Deus. Ninguém, na carne, foi maior do que Tu, porque
em tua carne de homem está encerrado o Espírito do eterno Vencedor. Já me
venceste em…
– Cala-te! Sai deste homem. Eu te ordeno!
O homem é tomado como que de um estranho paroxismo. Ele se agita
aos arrancos, como se alguém o estivesse maltratando com empurrões e
safanões, grita com uma voz desumana, espuma, em seguida é jogado ao
chão, do qual depois se levanta assombrado e curado.
59.8
– Ouviste? Que respondes agora? –pergunta Jesus ao seu opositor.
O homem barbudo e empertigado encolhe os ombros e, vencido, vai-se
embora sem responder. O povo zomba dele e aplaude a Jesus.
– Silêncio. O lugar é sagrado! –diz Jesus, e depois ordena–: Venha a
Mim o jovem a quem prometi a ajuda de Deus.
Aproxima-se o doente. Jesus o acaricia:
– Tiveste fé! Sê curado. Vai em paz e sê justo.
O jovem dá um grito. Quem sabe o que estará sentindo? Ele se prostra
aos pés de Jesus e os beija, agradecendo:
– Obrigado por mim e por minha mãe!
Vêm outros doentes: um menino com as perninhas paralisadas. Jesus o
toma nos braços, o acaricia e o põe no chão… e o solta. E o menino não cai,
mas sai correndo ao encontro da mãe que, chorando, o recebe sobre o seu
coração e o bendiz com grande voz “o Santo de Israel.” Vem depois um
velhinho cego guiado pela filha. Também ele é curado com uma carícia feita
sobre as órbitas doentes.
A multidão se transforma num tumulto de bênçãos.
Jesus se afasta sorrindo e ainda que Ele seja alto, não conseguiria abrir
caminho entre a multidão se Pedro, Tiago, André e João não trabalhassem
generosamente com os seus cotovelos abrindo uma passagem do canto onde
estão até Jesus e depois o protegessem até à saída para a praça onde já não
há mais sol.
Assim termina a visão.
[103] o ponto indicado, o de: Josué 7,13.
[104] está dito, em: 2 Macabeus 6,13-14.
[105] Quem és, Eu não sei, Esta afirmação de Jesus vem exp licada com a seguinte nota de M aria Valtorta sobre uma cóp ia
dactilografada: o Cristo, como Deus e como Santo dos santos, penetrava nas consciências e via e conhecia os seus segredos
mais escondidos (introspecção perfeita); como Homem conhecia apenas segundo o modo humano as pessoas e os locais,
quando seu Pai e sua própria natureza divina não consideravam útil conhecer locais e pessoas sem perguntar. Sobre a mesma
cóp ia dactilografada M aria Valtorta p õe a seguinte nota às p alavras Ageu! Vem para a frente ..., que estou ao início de 59.7:
Aqui, devendo dar prova ao fariseu da sua omnisciência divina, chama por nome o desconhecido Ageu, que está
endemoninhado, enquanto na página precedente, como Homem, tinha dito ao fariseu: “Eu não sei quem sejas”. As duas notas
de M aria Valtorta terão confirmação no texto de 224.2, 357.3, 527.4/6, 554.7 e justificam as declarações de “ignorância” p or
p arte de Jesus que encontraremos, p or exemp lo, em: 73.7 – 75.3 – 362.2 – 365.10 – 376.9 – 377.2 – 382.5 – 395.2 – 406.9 –
413.8 – 433.5 – 472.4 – 488.5 – 583.23 – 584.6. – Uma segunda exp licação sobre as “ignorâncias” de Jesus é dada a p rop ósito
de uma série de p erguntas que Ele dirige a Annalia em 156.3. A relativa nota de M aria Valtorta, colocada sobre uma cóp ia
dactilografada, diz: “Jesus sabia e recordava, mas queria que as almas se abrissem com a máxima liberdade e confiança.”
Esta exp licação encontra confirmação no texto de 128.1 e de 153.1, p ara além de uma singular exp ressão do Iscariota em 468.4:
“Sei que Tu sabes mas esp eras que eu diga”. – Uma terceira exp licação encontra-se numa longa nota de M aria Valtorta a
p rop ósito da afirmação de Jesus: “Quem seja não sei”, que se encontra em 175.5. Trazemos de novo a p arte essencial da nota
autografa, que ocup a quatro p áginas de uma folha inserida numa cóp ia dactilografada: “E o Pai eterno, para provar os corações
e separar os filhos de Deus, da Luz, dos filhos da carne e das trevas, permitia, na presença dos apóstolos, dos discípulos e das
multidões, lacunas na omnividência do Filho, iguais a estas perguntas e respostas: ‘Quem é esse? Eu não o conheço…’ E isto
para os homens. Mas também para o seu Filho bem-amado, e prepará-lo para a grande obscuridade da hora das trevas, ao
abandono do Pai, horas terríveis nas quais Jesus foi o Homem, e o Homem rejeitado do Pai, tornou-se ‘Anátema para nós’.”
A exp licação dada p or M aria Valtorta é confirmada p elas p alavras do Ap óstolo João no contexto de 334.2/3 enquanto se refere
aos corações a serem p rovados. No que diz resp eito à p rep aração do Filho amado na hora das trevas, é confirmada e
ap rofundada em 582.14, 598.4, 602.5, 603.4, e é uma exp licação que confere um significado p rofundo a alguma indecisão de
Jesus (como em 302.4.7) e sobretudo às suas desconcertantes incertezas encontradas em 339.4 e em 464.14. – Feitas as acima
mencionadas e motivadas excep ções, a obra valtortiana ap resenta Jesus omnisciente e omnividente, ou p resciente e p revidente,
como vem exp licitamente declarado em: 48.6 – 60.7 – 78.3 – 80.9.10 – 89.2 – 117.5 – 133.2 – 149.1/2 – 160.6 – 174.7 – 203.1
– 204.4 – 218.1 – 220.4 – 224.2 – 236.5 – 317.3/5 – 329.14 – 335.13 – 340.5 – 351.4 – 357.3 – 371.9 – 387.3 – 391.8 – 406.11
– 409.3 – 411.8 – 471.3 – 473.5 – 503.2 – 522.5 – 524.8 – 525.2 – 531.10 últimas linhas – 531.20 últimas linhas – 532.4.6 –
534.9 – 540.7 – 548.27 – 555.4 – 561.14 – 563.5 – 565.3/4 – 566.18 – 567.18.21 – 580.2 – 587.5..8 – 595.6 – 602.4/5.
60. Cura da sogra de Simão Pedro.
3 de novembro de 1944.
60.1
Pedro fala a Jesus:
– Mestre, eu queria pedir-te que vás à minha casa. Não tive coragem de
dizer isso no sábado passado. Mas… queria que fosses.
– Em Betsaida?
– Não, aqui… na casa de minha mulher, quero dizer, a casa nativa.
– Por que tens esse desejo, Pedro?
– Ah!… por muitas razões… e, além disso, hoje me disseram que minha
sogra está doente. Se quisesses curá-la, talvez te…
– Acaba de falar, Simão.
– Eu queria dizer… se Tu te aproximasses, ela acabaria… sim, em
suma, Tu sabes, uma coisa é ouvir falar de alguém e outra é vê-lo e ouvi-lo
e, se essa pessoa depois fica sã, então…
– Então, também o ódio se acaba, queres dizer.
– Não, ódio não. Mas Tu sabes… o povoado está dividido em muitos
pareceres e ela… não sabe a quem dar razão. Vai, Jesus.
– Eu vou. Vamos. Avisarás aos que estão esperando que da tua casa
falarei a eles.
60.2
Vão até uma casa baixa, mais baixa ainda do que a de Pedro em
Betsaida e ainda mais próxima ao lago. Está separada deste por uma
pequena faixa da margem e creio que nas borrascas as ondas venham a
morrer contra as paredes da casa que, se é baixa, é em compensação bem
espaçosa, como se fosse habitada por mais pessoas.
Na horta-pomar, que está à frente da casa, perto do lago, nada mais há
do que uma videira já velha e nodosa que se estende em uma rústica parreira
e uma velha figueira que os ventos do lago curvaram em direção à casa. A
fronde despenteada da árvore roça as paredes e bate contra as venejiadas
das janelinhas que estão fechadas para servirem de proteção contra o sol
forte que bate sobre a baixa casa. Nada mais há além desta figueira e desta
videira e de um poço raso com um muro esverdeado.
– Entra, Mestre.
Algumas mulheres estão na cozinha, umas ocupadas em consertar as
redes, outras em preparar a comida. Elas saúdam a Pedro e depois se
inclinam confusas diante de Jesus; entretanto, olham-no de soslaio, com
curiosidade.
– A paz esteja nesta casa. Como vai a doente?
– Fala, tu que és a nora mais velha –dizem três mulheres a uma que está
enxugando as mãos na barra da veste.
– A febre está forte, muito forte. Nós fizemos com que o médico a visse,
mas ele disse que ela está velha para sarar e que quando aquele mal dos
ossos chega ao coração e dá febre, especialmente naquela idade, o doente
morre. Ela não está comendo mais… Eu procuro fazer-lhe comidas boas,
mesmo agora, vê Simão? Eu lhe estava preparando aquela sopa de que ela
gostava tanto. Escolhi o peixe melhor que peguei com os cunhados. Mas
acho que ela não vai poder comer. E depois… está tão inquieta! E se
lamenta, grita, chora, pragueja…
– Tende paciência, como se fosse vossa mãe e tereis merecimento diante
de Deus. 60.3Levai-me a ela.
– Rabi… Rabi… não sei se ela irá querer te ver. Não quer ver a
ninguém. Eu nem tenho coragem de dizer-lhe: “Agora vou te trazer o Rabi.”
Jesus sorri sem perder a calma. Depois se vira para Pedro:
– Cabe a ti, Simão. Tu és homem, e o mais velho dos genros, como me
disseste. Vai.
Pedro faz uma careta muito significativa mas obedece. Ele atravessa a
cozinha, entra em um quarto; através da porta fechada atrás dele, eu o ouço
conversar com uma mulher. Depois, põe a cabeça e uma mão fora da porta e
diz:
– Vem, Mestre. Anda depressa!
E acrescenta, em voz mais baixa, só o tanto necessário para ser
entendido:
– Antes que ela mude de idéia.
Jesus atravessa rápido a cozinha e abre a porta toda. De pé, à porta, Ele
diz a sua doce e solene saudação:
– A paz esteja contigo.
Em seguida, entra, não obstante não tenha recebido resposta. Vai para
perto da enxerga sobre a qual está estendida uma pequena mulher toda
grisalha, descarnada e ofegante pela forte febre que lhe torna corado o rosto
abatido.
Jesus se inclina para o pequeno leito e sorrindo para a velhinha, diz:
– Que estás sentindo?
– Eu estou morrendo!
– Não. Não estás morrendo. Podes crer que Eu te posso curar?
– E por que irias fazer isso? Não me conheces.
– Por causa de Simão, que pediu a mim… e também por causa de ti,
para dar tempo à tua alma de ver e amar a Luz.
– Simão? Ele faria melhor em… Como Simão foi capaz de pensar em
mim?
– Porque ele é melhor do que pensas. Eu o conheço e sei. Eu o conheço
e estou contente por vir atendê-lo.
– E, então, tu me curarias? Não vou mais morrer?
– Não, mulher. Por enquanto não morrerás. Podes crer em Mim?
– Creio, creio. Basta-me não morrer!
60.4
Jesus sorri ainda. E a pega pela mão. A mão enrugada e de veias
inchadas desaparece na mão juvenil de Jesus que se endireita e toma aquele
aspecto de quando faz um milagre; exclama:
– Sê curada! Eu quero! Levanta-te!
Solta-lhe a mão que recai sem que a velha se lamente, enquanto que
antes, mesmo tendo-a Jesus pegado com muita delicadeza, só de tê-la
movido já tinha sido causa de um lamento por parte da enferma.
Houve um breve tempo de silêncio. Depois a velha exclama com voz
forte:
– Oh! Deus de nossos pais! Mas eu não tenho mais nada! Estou curada!
Vinde! Vinde!
Acorrem as noras.
– Mas olhai! –dizia a velha–. Eu me movo, e não sinto mais dor! E não
tenho mais febre! Vede como estou com saúde. E o coração não se parece
mais com o martelo do ferreiro. Ah! Não vou mais morrer!
E não tem nenhuma palavra para o Senhor!
Mas Jesus não leva isso em consideração. Ele diz à mais velha das
noras:
– Vesti-a para que se levante. Ela já pode levantar-se.
E vai-se encaminhando para sair.
Simão, mortificado, se vira para a sogra:
– O Mestre te curou. E não lhe dizes nada?
– Está certo! Não pensei nisso. Obrigada. Que posso fazer para mostrar-
te o meu agradecimento?
– Ser boa, muito boa. Porque o Eterno foi bom para contigo. E, se não te
for muito incômodo, deixa-me repousar hoje em tua casa. Percorri nesta
semana todos os povoados vizinhos e cheguei ao despertar desta manhã.
Estou cansado.
– Certo! Certo! Fica, sim, se assim te agrada.
Mas não existe muito entusiasmo em suas palavras.
60.5
Jesus, com Pedro, André, Tiago e João vai sentar-se no pomar.
– Mestre!…
– Que há, meu Pedro?
– Eu estou mortificado.
Jesus faz um gesto, como se dissesse: “Deixa para lá.” Depois, diz:
– Não é esta a primeira nem será a última que não sinto um
reconhecimento imediato. Mas Eu não peço reconhecimento. Basta-me dar às
almas o modo de se salvarem. Faço o meu dever. A elas cabe fazer o delas.
– Ah! Então já houve outros assim? Onde?
– Simão curioso! Mas Eu quero te contentar, embora não goste de
curiosidades inúteis. Foi em Nazaré. Lembras-te da mãe de Sara? Estava
muito doente quando chegamos a Nazaré e nos disseram que a menina estava
chorando. Para não fazer dela, que é boa e dócil, uma órfã e amanhã uma
enteada, fui procurar a mulher… Eu queria curá-la. Mas, ainda não tinha
posto os pés na casa dela, quando o seu marido e um irmão me expulsaram,
dizendo: “Vai embora, vai embora! Não queremos aborrecimentos com a
sinagoga.” Para eles, para muitos, Eu já sou um rebelde… mas Eu a curei do
mesmo jeito… por causa de seus filhos. E à Sara, que estava na horta, Eu
disse, acariciando-a: “Eu curo tua mãe. Vai para casa. Não chores mais.” E a
mulher ficou curada no mesmo instante; a menina foi dizer isso a ela, e
também ao pai e ao tio… E foi castigada por ter falado Comigo. Eu sei,
porque a menina veio correndo atrás de Mim, quando Eu já ia deixando o
povoado… Mas não importa.
– Eu faria com que ela ficasse doente de novo!
– Pedro!
Jesus está severo:
– É isso que Eu ensino a ti e aos outros? Que foi que ouviste dos meus
lábios desde a primeira vez que me ouviste? De que é que Eu tenho sempre
falado como primeira condição para serdes meus verdadeiros discípulos?
– É verdade, Mestre. Eu sou um verdadeiro animal. Perdoa-me. Mas…
não posso suportar que não te amem!
– Ó Pedro, verás um desamor bem maior! Quantas surpresas terás,
Pedro! Há pessoas que o mundo chamado “santo” despreza como
publicanos, e que, ao invés, serão exemplos para o mundo, e um exemplo
não seguido por aqueles que as desprezam. Há gentios que estarão entre os
meus maiores fiéis. Há meretrizes que se tornam puras, por vontade e por
penitência. Pecadores que se emendam…
– Escuta, que se emende um pecador… ainda pode ser. Mas uma
meretriz e um publicano!…
– Tu não acreditas?
– Eu não.
– Estás errado, Simão. 60.6Mas, eis tua sogra que está vindo a nós.
– Mestre… eu te peço que te assentes à minha mesa.
– Obrigado, mulher. Deus te recompense por isto.
Entram na cozinha e se assentam à mesa e a velha serve aos homens com
grande distribuição de peixe ensopado e assado.
– Não há mais do que isso –ela se desculpa.
E, para não perder o costume, diz a Pedro:
– Os teus cunhados fazem até demais, sozinhos como ficaram, desde
quando foste para Betsaida! E ao menos se prestasses a fazer mais rica a
minha filha… Mas ouço dizer que freqüentemente estás ausente e que não
vais pescar.
– Eu sigo o Mestre. Estive com Ele em Jerusalém e aos sábados estou
com Ele. Não perco o tempo em farras.
– Mas não ganhas nada com isso. Farias melhor, já que queres ser o
servo do Profeta, que venhas para cá de novo. Pelo menos aquela pobre
criatura, que é a minha filha, enquanto tu ficas aí te fazendo de santo, terá os
parentes que lhe matem a fome.
– Mas, não te envergonhas de falar assim diante Dele que te curou?
– Eu não o critico. Ele faz o seu trabalho. Eu critico é a ti, que vives
como um mandrião. Afinal, tu não serás nunca um profeta, nem um sacerdote.
És um ignorante e um pecador, és um bom para nada.
– Tens razão, porque Ele está aqui, senão…
– Simão, tua sogra te deu um ótimo conselho. Podes pescar também aqui.
Pescavas também antes em Cafarnaum, pelo que ouço. Podes voltar até
agora.
– E morar aqui de novo? Mas Mestre, Tu não…
– Bom, meu Pedro, se ficares aqui estarás no barco sobre o lago, ou
Comigo. Por isso, para ti que diferença há entre estar ou não estar nesta
casa?
Jesus pôs a mão sobre o ombro de Pedro e parece que a calma de Jesus
passa para Pedro que já estava fervendo.
– Tens razão. Sempre tens razão. É assim que eu vou fazer. Mas… e
estes? –e mostra João e Tiago, seus sócios.
– Não poderão vir eles também?
– Oh! O nosso pai, e principalmente a nossa mãe, estarão sempre mais
felizes, se souberem que estamos Contigo, do que com eles. Eles não criarão
obstáculos.
– Talvez também Zebedeu virá –diz Pedro.
– É mais que provável. E com eles outros. Viremos, Mestre. Viremos
sem falta.
60.7
– Está aqui Jesus de Nazaré? –pergunta um menininho que aparece à
porta.
– Está sim. Entra.
Vem à frente um menino, que eu reconheço como um daqueles das
primeiras visões em Cafarnaum; justamente como aquele que, brincando por
entre os pés de Jesus, prometeu que seria bom… para comer o mel do
Paraíso.
– Pequeno amigo, vem cá –lhe diz Jesus.
O menino, um pouco amedrontado no meio de tanta gente que está
olhando para ele, se encoraja e corre para Jesus que o abraça, o põe sobre
os joelhos e lhe dá um pedacinho do seu peixe sobre uma fatiazinha de pão.
– Aqui está, Jesus. Isto é para Ti. Ainda hoje aquela pessoa me disse:
“Hoje é sábado. Vai levar isto para o Rabi de Nazaré e diz ao teu amigo que
reze por mim.” Ela sabe que és o meu amigo!…
O menino ri feliz, e come o seu pão com peixe.
– Muito bem, pequeno Tiago! Dirás àquela pessoa que as minhas
orações sobem ao Pai por ela.
– É para os pobres? –pergunta Pedro.
– Sim.
– Será o presente de costume? Vamos ver.
Jesus lhes entrega a bolsa. Pedro despeja as moedas e as conta:
– Sempre a mesma grande importância! Mas, quem é essa pessoa? Diz-
me, menino! Quem é?
– Eu não o devo dizer, e não o direi.
– Que malcriado! Vamos, sê bom que eu te darei umas frutas.
– Eu não o direi nem se me insultares nem se me acariciares.
– Mas ouvi só que língua!
– O Tiago tem razão, Pedro. Ele mantém a palavra dada. Deixa-o em
paz.
– Tu, Mestre, sabes quem é essa pessoa?
Jesus não responde. Ele se entretém com o menino, a quem dá outro
pedacinho de peixe assado, já bem limpo das espinhas. Mas Pedro insiste e
Jesus precisa responder:
– Eu sei tudo, Simão.
– E nós, não o podemos saber?
– E tu, nunca vais ficar curado deste teu defeito?
Jesus censura, mas sorri. E acrescenta:
– Logo o saberás. Porque como o mal gosta de ficar oculto e nem
sempre pode permanecer assim, o bem, ainda que queira ficar oculto, para
ter seu merecimento, um dia será descoberto para a glória de Deus, cuja
natureza brilha em um filho seu. A natureza de Deus é o amor. E essa pessoa
o compreendeu, porque ama o seu próximo. Vai, Tiago. Vai levar àquela
pessoa a minha bênção.
Assim termina a visão.
61. Jesus faz o bem aos pobres depois de ter
contado
a parábola do cavalo amado pelo rei.
4 de novembro de 1944.
61.1
Jesus subiu a um monte de cestas e cordas que está à entrada do pomar
da casa da sogra de Pedro. O pomar está apinhado de gente. Também há
gente junto à margem do lago, uns sentados, outros sobre os barcos que
foram puxados para a terra. Parece que Ele já vinha falando por algum
tempo, porque seu discurso já vai bem adiantado. Eu o ouço:
– … Certamente vós muitas vezes, em vosso coração, já tereis pensado
assim. Mas não é bem assim. O Senhor não faltou à benignidade para com o
seu povo, ainda que este tenha faltado à fidelidade para com Ele mil e dez
mil vezes.
Ouvi esta parábola. Ela vos ajudará a entender.
Um rei tinha muitos e esplêndidos cavalos em suas estrebarias. Mas ele
gostava de um deles com uma estima toda especial. Antes de possuí-lo, o rei
o tinha almejado muito; depois, tendo-o adquirido, colocou-o num lugar
delicioso, para onde ele se dirigia, com os olhos e o coração, só para tornar
a ver aquele seu predileto, sonhando fazer dele um dia a maravilha do seu
reino. E, quando o cavalo, rebelando-se contra todos os comandos, havia
desobedecido e fugido para outro patrão, o rei, ainda que com dor, em seu
rigor, tinha prometido ao rebelde o perdão, depois de tê-lo castigado. E, fiel
a isso, mesmo de longe, velava sobre o seu predileto, mandando-lhe
presentes e guardas que o conservassem com a lembrança do dono em seu
coração.
Mas o cavalo, ainda que sofrendo por estar exilado do reino, não era
constante, como o rei o era, em amar e desejar o perdão completo. E, se em
certos tempos era bom, em outros tempos era mau; nem o bom era maior do
que o mau. Pelo contrário. Contudo, o rei tinha paciência; com censuras e
carícias procurava fazer do seu cavalo mais querido um dócil amigo. Quanto
mais o tempo passava, mais o animal se mostrava rebelde. Invocava o seu
rei, chorava sob o chicote dos outros patrões, mas não queria ser
verdadeiramente do rei. Não tinha vontade de o ser. Esgotado, oprimido e
gemente, não era capaz de dizer: “Por culpa minha é que estou assim”, mas
acusava ao seu rei.
Este, depois de ter tentado de tudo, recorreu a uma última prova. “Até
agora, disse, eu mandei mensageiros e amigos. Agora vou mandar o meu
próprio filho. Ele tem o mesmo coração meu e falará com o mesmo amor que
eu, terá carícias e presentes semelhantes aos que eu tinha; aliás, ainda mais
doces, porque meu filho sou eu mesmo, mas sublimado no amor.” E mandou
o seu filho.
Esta é a parábola. 61.2Agora dizei-me vós: Achais que o rei amava o seu
animal preferido?
O povo responde a uma só voz:
– Infinitamente o amava.
– Podia o animal lamentar-se do seu rei, por todo o mal que sofreu, por
tê-lo abandonado?
– Não, não podia –responde a multidão.
– Respondei-me ainda ao seguinte: aquele cavalo, segundo o vosso
parecer, como terá recebido o filho do rei, que ia para resgatá-lo, curá-lo e
levá-lo novamente para o lugar de delícias?
– Com alegria, naturalmente, com reconhecimento e afeto.
– Mas, se o filho do rei tiver dito ao cavalo: “Eu vim para isto e para
fazer-te isto, mas tu precisas ser bom, obediente, cheio de boa vontade e fiel
a mim”, que achais que o cavalo terá respondido?
– Oh! Não é preciso perguntar! Ele terá respondido que sabia bem o que
lhe custava ser expulso do reino e que queria ser como o filho do rei dizia.
– Então, segundo vós, qual era o dever daquele cavalo?
– Ser ainda melhor do que lhe estava sendo pedido, mais afetuoso, mais
dócil, para ser perdoado do mal passado, em reconhecimento pelos bens
obtidos.
– E se ele não tivesse feito assim?
– Seria digno de uma morte, porque seria pior do que uma fera
selvagem.
– Amigos, vós julgastes bem. Mas fazei também vós como quereríeis
que o cavalo fizesse. Vós, homens, criaturas prediletas do Rei dos Céus,
Deus, meu Pai e vosso; vós a quem, depois dos Profetas, foi mandado por
Deus o seu próprio Filho, sede, oh! sede — eu vos conjuro pelo vosso bem e
porque vos amo como só um Deus pode amar, aquele Deus que está em Mim
para operar o milagre da Redenção — sede, ao menos, como vós julgais que
deve ser aquele animal. Ai daquele que rebaixa a si próprio, homem, a um
grau inferior ao do animal! Mas, se ainda podia haver desculpa para aqueles
que até o momento presente estavam pecando — porque muito tempo e muita
poeira do mundo já passaram, desde quando foi dada a Lei, e sobre esta se
pousou — agora já não podeis mais. Eu vim para trazer-vos de novo a
palavra de Deus. O Filho do homem está entre os homens para levá-los
novamente a Deus. Segui-me. Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.
61.3
Ouve-se o murmúrio de costume por entre a multidão.
Jesus, então, ordena aos discípulos:
– Fazei que os pobres venham para a frente. Para eles Eu tenho a rica
oferta de alguém que a eles se recomenda para obter o perdão de Deus.
Vêm avante três velhinhos esfarrapados, dois cegos e um encolhido;
depois uma viúva com sete meninos macilentos.
Jesus os olha fixamente um por um, sorri para a viúva e especialmente
para os orfãozinhos. Antes diz a João:
– Que essas pessoas sejam colocadas lá no pomar. Quero falar com elas.
Mas Ele se torna severo, com os olhos flamejantes, quando a Ele se
apresenta um dos velhinhos. Porém, não diz nada no momento.
Jesus chama Pedro e faz com que ele lhe dê a bolsa recebida pouco
antes e uma outra cheia de moedas menores, esmolas diversas recolhidas
entre os bons. Despeja tudo sobre o banco que está junto ao poço, conta e
divide. Faz seis partes: uma delas bem grande, toda com moedas de prata;
cinco menores em dimensão, com muito bronze e só uma ou outra moeda
grande. Chama os pobrezinhos doentes e lhes pergunta:
– Não tendes nada a dizer-me?
Os cegos se calam. Mas o encolhido diz:
– Que Aquele de quem vens te proteja.
E nada mais.
Jesus lhe põe a esmola na mão sã. O homem lhe diz:
– Que Deus te recompense. Mas, mais do que isto, eu de Ti queria a
cura.
– Tu não a pediste.
– Sou pobre, um verme que os grandes pisam, não ousava esperar que
Tu tivesses piedade de um mendigo.
– Eu sou a Piedade que se inclina sobre toda miséria que clama por
Mim. Não rejeito ninguém. Não peço mais do que amor e fé, para dizer: “Eu
vou te atender.”
– Oh! Meu Senhor! Eu creio! Eu te amo! Salva-me, então! Cura o teu
servo!
Jesus põe a mão sobre aquele dorso curvado e a faz deslizar como que
acariciando-o; diz então:
– Quero que sejas curado.
O homem se endireita, ágil e íntegro, com palavras de bênçãos infinitas.
61.4
Jesus dá a esmola aos cegos, e espera um momento para despedi-
los…depois os deixa ir.
Chama os velhos. Dá ao primeiro uma esmola e o conforta ajudando-o a
pôr na cinta as moedas.
Jesus se interessa piedoso pelas desventuras do segundo, que lhe conta a
doença de uma filha:
– Só tenho essa! E agora ela está morrendo. Que será de mim? Oh! Se Tu
pudesses ir lá! Ela não pode vir, não se mantém em pé. Queria… Mas não
pode. Mestre, Senhor, Jesus, tem piedade de nós!
– Onde moras, pai?
– Em Corozaim. Pergunta por Isaque de Jonas, chamado o Adulto. Irás
mesmo? Não te vais esquecer da minha desventura? E curarás a minha filha?
– Podes crer que Eu a possa curar?
– Oh! Se eu creio! Por isso é que Te estou falando dela.
– Vai para casa, pai. Tua filha estará à porta para te saudar.
– Mas ela está de cama e não pode levantar-se há três… Ah!
Compreendi! Oh! Obrigado, Rabi! Bendito és Tu e Aquele que Te enviou!
Louvor a Deus e ao seu Messias!
O velho vai chorando, coxeando, o mais rápido que pode. Mas quando
já está quase saindo do pomar, ele diz:
– Mestre, mas irás assim mesmo à minha pobre casa? Isaque Te espera
para beijar-te os pés, lavá-los com suas lágrimas e oferecer-te o pão do
amor. Vai Jesus, eu falarei de Ti aos da cidade.
– Irei. Vai em paz e sê feliz.
61.5
Vem para a frente o terceiro velhinho, que parece o mais esfarrapado.
Mas Jesus só tem agora o monte maior de moedas. E Ele chama em voz alta:
– Mulher, vem com os teus pequeninos.
A mulher, jovem e macilenta, vem para a frente, de cabeça inclinada.
Parece uma galinha choca, entre a sua triste ninhada.
– Desde quando és viúva, mulher?
– Faz três anos, na lua de Tisri.
– Quantos anos tens?
– Vinte e sete.
– São todos filhos teus?
– Sim, Mestre, e… e não tenho mais nada. Tudo se acabou… como
posso trabalhar, se ninguém me quer com todos estes pequeninos?
– Deus não abandona nem o verme que Ele criou. Ele não te abandonará,
mulher. Onde moras?
– Perto do lago, a três estádios fora de Betsaida. Ele me disse que
viesse… Meu marido morreu no lago, era pescador.
“Ele” é André, que ficou corado, e querendo desaparecer.
– Fizeste bem, André, em dizer à mulher que viesse a Mim.
André se anima e murmura:
– O homem era meu amigo, era bom, e morreu durante uma tempestade,
perdendo também seu barco.
– Toma mulher. Isto te ajudará por muito tempo; depois virá outro sol no
teu dia. Sê boa, educa na Lei os teus filhos e não te faltará a ajuda de Deus.
Eu te abençôo, a ti e aos teus pequenos.
E os acaricia um por um com grande piedade.
A mulher vai-se com o seu tesouro apertado sobre o coração.
61.6
– E a mim? –pergunta o velhinho que ficou por último.
Jesus olha para ele, e se cala.
– Nada para mim? Não és justo! A ela deu seis vezes mais do que aos
outros e a mim nada. Mas… e era mulher!
Jesus olha para ele e se cala.
– Olhai todos se está havendo justiça! Eu venho de longe, porque me
disseram que aqui se dava dinheiro; depois, estou vendo aqui quem ganha
demais e a mim não se dá nada. Um pobre velho que é doente! E quer que se
creia Nele!…
– Velho, não te envergonhas de mentir assim? Estás com a morte atrás de
ti, e mentes; procuras roubar de quem está com fome. Por que queres roubar
dos irmãos a esmola que Eu recebi para distribuir com justiça?
– Mas eu…
– Cala-te! Deverias já ter compreendido pelo meu silêncio e pelo meu
ato que Eu havia te conhecido; e,então, seguir o meu exemplo de silêncio.
Por que queres que Eu te envergonhe?
– Eu sou pobre.
– Não. Tu és um avarento e um ladrão. Vives para o dinheiro e para a
usura.
– Eu nunca emprestei com usura. Deus é minha testemunha.
– E isto não é usura, e da mais feroz, roubar de quem tem
verdadeiramente necessidade? Vai. Arrepende-te. Para que Deus te perdoe.
– Eu te juro…
– Cala-te! Eu te ordeno. Foi dito: “Não jurarás em falso.” Se Eu não
tivesse respeito pelos teus cabelos brancos, Eu daria uma busca em ti e em
teu peito acharia uma bolsa cheia de ouro, que é o teu coração. Vai-te
embora.
Mas agora o velhinho, envergonhado, vendo-se descoberto em seu
segredo, vai-se embora sem que seja necessário o som de trovão que há na
voz de Jesus.
A multidão o ameaça, o escarnece e o insulta como a um ladrão.
– Calai-vos! Se ele errou não queirais vós também errar. Ele falta com a
sinceridade, é um desonesto. Vós, se o insultardes, faltais com a caridade.
Ao irmão, que comete uma falta, não se insulta. Cada um tem o seu pecado.
Ninguém é perfeito, a não ser Deus. Eu precisei envergonhá-lo, porque não é
lícito ser ladrão e, menos ainda, ladrão que rouba dos pobres. Mas só o Pai
é que sabe quanto sofri por dever fazer isso. Vós também sofrei com isso, ao
verdes que um de Israel falta contra a Lei procurando defraudar o pobre e a
viúva. Não sejais cobiçosos. Que o vosso tesouro seja a vossa alma, não o
dinheiro. Não sejais perjuros. Que a vossa linguagem seja sincera e honesta
como as vossas ações. A vida não é eterna e a hora da morte chega. Vivei de
modo que na hora da morte a paz possa estar em vosso espírito. A paz de
quem viveu como um justo. Ide para as vossas casas…
61.7
– Piedade, Senhor! Este meu filho é mudo, por causa de um demônio
que o maltrata.
– E este meu irmão é semelhante a um animal imundo: ele se revolve na
lama e come excrementos. E um espírito maligno o arrasta; ele, mesmo sem
querer, faz coisas imundas.
Jesus se dirige para o grupo que o está implorando. Ele ergue os braços
e ordena:
– Sai deles. Deixai a Deus as suas criaturas.
Entre gritos e barulho, os dois infelizes ficam curados. As mulheres que
os conduziam prostram-se dando louvores a Deus.
– Ide para as vossas casas e sede reconhecidos a Deus. A paz esteja
com todos. Ide.
A multidão vai-se, comentando os fatos. Os quatro discípulos colocam-
se ao redor do Mestre.
– Amigos, em verdade Eu vos digo que em Israel estão todos os
pecados, e os demônios aí fizeram sua morada. E não são possessões só
aquelas que tornam mudos os lábios e levam os homens a viver como
animais comendo sujeiras. Mas as mais verdadeiras e numerosas são aquelas
que tornam os corações mudos para a honestidade e para o amor, fazendo
deles um antro de vícios imundos. Oh! Meu Pai!
Jesus, abatido, se assenta.
– Estás cansado, Mestre?
– Cansado não, meu João. Mas desolado pelo estado dos corações e
pela pouca vontade de se emendarem. Eu vim… mas o homem… o homem…
oh! Meu Pai!…
– Mestre, eu Te amo, nós todos Te amamos.
– Eu sei disso. Mas sois tão poucos… e meu desejo de salvar é tão
grande!
Jesus abraça João e mantém a cabeça dele sobre a sua. Está triste.
Pedro, André, Tiago, ao redor Dele, olham-no com amor e tristeza.
E a visão cessa assim.
62. Jesus procurado pelos discípulos
enquanto reza na noite.
5 de novembro de 1944.
62.1
Vejo Jesus sair, fazendo o menor barulho possível da casa de Pedro
em Cafarnaum. Compreende-se que Ele pernoitou lá para contentar o seu
Pedro.
É ainda noite alta. O céu parece um bordado de estrelas. O lago reflete
apenas este brilho; mais que vê-lo, se adivinha este lago tranqüilo que dorme
sob as estrelas, pelo suave sussurro das águas sobre o seu leito.
Jesus encosta novamente a porta, olha o céu, o lago, o caminho. Pensa
um pouco, e depois se encaminha, não ao longo do lago, mas em direção ao
povoado, percorrendo-o em parte, indo depois para o campo. Entra nele,
caminha, aprofundando-se ali; pega uma vereda que leva às primeiras
ondulações de um terreno plantado com oliveiras, se introduz nesta paz
verde e silenciosa e lá vai prostrar-se em oração.
É uma oração ardente! Ele reza de joelhos e, em seguida, como que
fortalecido, põe-se de pé e reza ainda, com o rosto erguido para o alto, um
rosto ainda mais espiritualizado pela nascente luz que vem de uma serena
aurora de verão. Reza agora sorrindo, enquanto que antes suspirava forte
como se estivesse sob o peso de algum grande sofrimento moral. Reza com
os braços abertos. Parece uma cruz viva, alta, angélica, de tão suave que é.
Parece abençoar todo o campo, o dia que nasce, as estrelas que
desaparecem, o lago que se revela.
62.2
– Mestre! Procuramos tanto a Ti! Vimos a porta encostada pelo lado
de fora, quando voltamos da pesca e pensamos que tivesses saído. Mas não
te encontrávamos. Enfim, um camponês que estava enchendo suas cestas para
levá-las para a cidade foi quem nos informou. Nós estávamos te chamando:
“Jesus! Jesus!”, e ele nos disse: “Estais procurando o Rabi que fala às
multidões? Ele se foi por aquele caminho acima em direção ao monte. Ele
deve estar no olival do Miquéias, porque vai lá freqüentemente. Eu já o vi
outras vezes.” Ele tinha razão. Por que saíste assim tão cedo, Mestre? Por
que não descansaste? Talvez a cama não estava cômoda…
– Não, Pedro. A cama estava cômoda e o quarto muito bom. Mas Eu
costumo fazer assim freqüentemente para soerguer o meu espírito e para
unir-me ao Pai. A oração é uma força para si e para os outros. Tudo se
consegue com a oração. Se não a graça, que nem sempre o Pai concede — e
não se deve pensar que isto seja desamor, mas sempre crer que isso é uma
coisa querida por uma Ordem que rege as sortes de cada homem, cujo
escopo é o bem — certamente a oração dá paz e equilíbrio, para poder
resistir a tantas coisas que incomodam sem sair do caminho santo. É fácil,
sabes, Pedro, ter a mente ofuscada e o coração agitado pelas coisas que nos
circundam! E com uma mente ofuscada e um coração agitado, como pode-se
ouvir a Deus?
– É verdade. Mas nós não sabemos rezar! Não sabemos dizer as bonitas
palavras que Tu dizes.
– Dizei aquelas que sabeis, como as sabeis. Não são as palavras, mas os
movimentos que as acompanham, que tornam as orações agradáveis ao Pai.
– Nós gostaríamos de rezar como Tu rezas.
– Eu vos ensinarei a rezar também. Eu vos ensinarei[106] a mais santa das
orações. Mas, para que ela não seja uma fórmula vazia sobre os vossos
lábios, Eu quero que o vosso coração tenha já em si pelo menos um mínimo
de santidade, de luz, de sabedoria… Por isso é que Eu vos instruo. Depois
Eu vos ensinarei a santa oração. 62.3Queríeis alguma coisa de Mim, vós que
Me andastes procurando?
– Não, Mestre. Mas há muitos que estão querendo muito de Ti. Já chegou
gente que veio de perto de Cafarnaum; eram pessoas pobres, doentes,
pessoas angustiadas, homens de boa vontade, com o desejo de se instruirem.
Nós lhes dissemos, visto que nos perguntavam de Ti: “O Mestre está
cansado e dormindo. Ide-vos embora. Voltai no próximo sábado.”
– Não, Simão. Isto não se diz. Não existe só um dia para a piedade. Eu
sou o Amor, a Luz, a Salvação todos os dias da semana.
– Mas… até agora, falaste só aos sábados.
– Porque Eu era ainda desconhecido. Mas, à medida que Eu for ficando
conhecido, todos os dias serão de efusão de Graça e de graças. Em verdade,
Eu te digo que virá um tempo em que nem o espaço de tempo, que é
concedido a um pássaro para repousar sobre um ramo e saciar-se de
grãozinhos, será dado ao Filho do homem para o seu repouso e sua
alimentação.
– Mas assim ficarás doente! Nós não permitiremos isso. Tua bondade
não deve fazer-te infeliz.
– E tu achas que Eu possa me tornar infeliz por isso? Oh! Mas se o
mundo todo viesse a Mim para me ouvir, para chorar os seus pecados e as
suas dores sobre o meu coração, para ser curado na alma e no corpo, e Eu
me consumisse em falar-lhe, em perdoá-lo, em derramar sobre ele o meu
poder, aí sim, então Eu seria muito feliz, Pedro, a ponto de nem mais
recordar com saudade do Céu, no qual Eu estava no Pai!… 62.4De onde eram
esses que vieram a Mim?
– De Corozaim, de Betsaida, de Cafarnaum; até de Tiberíades e de
Gergesa tinham vindo; e das centenas e centenas de pequenas cidades
espalhadas entre uma e outra.
– Ide a eles e dizei-lhes que estarei em Corozaim, em Betsaida e nas
cidades entre esta e aquela.
– Por que não em Cafarnaum?
– Porque Eu sou para todos e todos me devem ter; e depois… lá está o
velho Isaque que me espera… Não fique ele desiludido em sua esperança.
– Tu nos esperas aqui, então?
– Não. Eu vou e vós ficais em Cafarnaum para encaminhar as multidões
para Mim; depois Eu virei.
– Nós vamos ficar sozinhos…
Pedro está preocupado.
– Não fiques preocupado. Que a obediência te faça alegre e com ela
tenhas a persuasão de seres a Mim um discípulo útil. E contigo e, como tu,
estes outros.
Pedro e André, com Tiago e João, se tranqüilizam. Jesus os abençoa, e
se separam.
Assim termina a visão.
[106] Eu vos ensinarei... Se alguém — assim anota M aria Valtorta numa cóp ia dactilografada — possa ter feito ou faça
excepção [= objecção] ao “Pai” dito por Jesus e Maria na noite do adeus [em 44.3], considere esta resposta. Maria não tinha
necessidade de ser preparada para rezar com a oração de Cristo. Os apóstolos sim. Por isso Jesus disse o “Pai” com Maria
antes de com os discípulos porque Ela era cheia de Graça, de Luz e Sabedoria, e os discípulos não.
63. O leproso curado perto de Corozaim.
6[107] de novembro de 1944.
63.1
Com a precisão de uma fotografia perfeita, tenho diante de minha vista
espiritual, desde esta manhã, antes até da aurora, um pobre leproso.
Este é verdadeiramente um farrapo humano. Eu não saberia dizer que
idade ele pode ter, de tão devastado está pelo mal. Definhado, seminu,
mostra o seu corpo reduzido ao estado de uma múmia corroída, com as mãos
e os pés retorcidos, e já lhe faltando algumas partes, de tal modo que aquelas
pobres extremidades nem parecem mais ser de um corpo humano. As mãos,
como garras e retorcidas, mais parecem patas de algum monstro alado; os
pés parecem quase cascos de boi, de tão decepados e desfigurados.
E a cabeça, então!… Eu creio que só alguém que tivesse ficado
insepulto e mumificado pelo sol e pelo vento é que poderia ter ficado com
uma cabeça semelhante a esta. Poucos fios de cabelo ainda lhe restam,
espalhados aqui e ali, agarrados a uma pele amarelenta e cheia de crostas,
parecendo poeira seca sobre uma caveira. Olhos apenas entreabertos e muito
encovados, lábios e nariz roídos pelo mal, mostrando já as cartilagens e as
gengivas; as orelhas são dois embrionários pavilhões em ruínas e sobre tudo
isto, está uma pele ressequida, amarela como certos caulins, sob a qual os
ossos penetram. Parece que recebeu a incumbência de reunir esses pobres
ossos dentro do seu saco sujo, todo cheio de remendos de cicatrizes ou
dilacerações de feridas já apodrecidas. Uma ruína!
Penso até em uma Morte que esteja vagante pela terra e recoberta por
uma pele mirrada sobre o esqueleto, envolvida em um manto sujo todo em
tiras e tendo na mão, não a foice, mas um bastão cheio de nós, certamente
arrancado de alguma árvore.
Ele está à porta de uma caverna afastada da estrada, uma verdadeira
espelunca, tão desmoronada que nem sei dizer se no princípio foi um
sepulcro, ou uma cabana de lenhadores, ou os restos de alguma casa
demolida. Ele olha para a estrada, que está a uns cento e poucos metros do
seu antro, uma estrada mestra poeirenta e ainda cheia de sol. A perder de
vista, sol, poeira e solidão reinam sobre a estrada. Muito mais acima, a
noroeste, deve haver um povoado, ou cidade. Vejo as primeiras casas. Estará
à distância de pelo menos um quilômetro.
O leproso olha e suspira. Depois, pega uma tigela quebrada, enche-a
com água de um córrego e bebe. Entra em um emaranhado de sarças, atrás do
antro, inclina-se, arranca do chão umas raízes selvagens. Volta ao córrego,
limpa-as da poeira mais grossa com a sua água escassa, e as come devagar,
levando-as até à boca com dificuldade por causa de suas mãos arruinadas.
As raízes devem estar duras como uns gravetos. Custa a mastigá-las e muitas
ele até cospe, sem as poder engolir embora procure ajudar-se bebendo uns
goles de água.
63.2
– Onde estás, Abel? –grita uma voz.
O leproso estremece e tem algo sobre os lábios parecido com um
sorriso. Mas estão de tal modo reduzidos aqueles lábios, que é também
informe esta sombra de sorriso. Responde com uma voz estranha, estridente
(me faz pensar no grito de certos pássaros dos quais ignoro o nome exato):
– Estou aqui! Eu pensei que tu não viesses mais! Pensei que tivesse te
acontecido algum mal; fiquei triste… Se tu também me faltares, que restará
ao pobre Abel?
Ao dizer isso, ele caminha em direção à estrada até o ponto em que,
segundo a Lei, ele podia chegar e, por isso, a uma certa distância, ele se
detém.
Pela estrada vem vindo um homem, quase correndo, de tão rápido que
vem.
– Mas és tu mesmo, Samuel? Oh! Se não és tu, a quem eu espero, sejas
lá quem fores, não me faças mal!
– Sou eu, Abel, sou eu mesmo. E são. Olha como eu corro. Estou
atrasado, eu sei. E já estava com pena de ti. Mas, quando souberes… Oh! Tu
ficarás feliz! E aqui te trago, não só os costumeiros pedaços de pão, mas um
pão inteiro, fresco e bom, todo para ti; trago também um bom peixe e um
queijo. Tudo para ti. Quero que faças festa, meu pobre amigo, para preparar-
te para uma festa maior.
– Mas, como é que estás assim tão rico? Eu não entendo…
– Agora vou te contar.
– E estás são. Nem pareces mais Tu!
63.3
– Então escuta. Eu soube que em Cafarnaum estava aquele Rabi que é
santo, e para lá fui…
– Pára, pára, eu estou infeccionado.
– Oh! Não tem importância! Não tenho mais medo de nada.
O homem, que outro não é senão aquele pobre encolhido curado e
ajudado por Jesus no pomar da sogra de Pedro, chegou de fato com o seu
passo rápido a poucos passos do leproso; falou, caminhando e rindo feliz.
Mas o leproso lhe diz ainda:
– Pára, em nome de Deus. Se alguém te vê…
– Eu vou parar. Olha, vou colocar aqui as provisões. Come, enquanto eu
falo.
Ele põe sobre uma pedra grande um pequeno embrulho e o abre. Depois,
dá um passo atrás, enquanto o leproso avança e se atira sobre o alimento
inusitado.
– Oh! Quanto tempo faz que eu não comia assim! Como é bom! E eu
pensando que iria dormir com o estômago vazio. Não veio hoje um
piedoso… nem mesmo tu… Eu mastiguei algumas raízes…
– Pobre Abel! Eu estava pensando. Mas dizia: “Bom. Agora, ele deve
estar triste, mas depois ficará feliz!”
– Feliz, sim, por esta comida tão boa. Mas depois…
– Não! Serás feliz para sempre.
O leproso sacode a cabeça.
– Escuta, Abel. Se puderes ter fé, serás feliz.
– Mas fé em quem?
– No Rabi. No Rabi que me curou.
– Mas eu sou leproso e estou no fim! Como poderá me curar?
– Oh! Ele pode. É santo.
– Sim. Também Eliseu curou Naamã, o leproso[108]… eu sei… Mas eu…
Eu não posso ir ao Jordão.
– Tu serás curado, sem precisar de água. Escuta: este Rabi é o Messias,
entendes? O Messias! É o Filho de Deus. E cura todos aqueles que têm fé.
Ele diz: “Eu quero”, e os demônios fogem, e os membros se endireitam, e os
olhos cegos vêem.
– Oh! Se eu tivesse fé! Mas como posso ver o Messias?
– Eis-me aqui… eu vim para isso. Ele está lá, naquele povoado. Sei
onde estará nesta tarde. Se quiseres… Eu disse: “Eu falo a Abel, e se Abel
sente que tem fé o conduzo ao Mestre.”
– Estás louco, Samuel? Se eu me aproximar das casas, serei apedrejado.
– Não nas casas. A tarde está para cair. Eu te levarei até aquele pequeno
bosque e depois irei chamar o Mestre. Eu te levarei…
– Vai, vai logo! Eu vou por mim mesmo até aquele ponto. Caminharei no
fosso, entre a sebe, mas tu vai, vai… Oh! vai, meu bom amigo! Se soubesses
o que é ter este mal e o que é esperar sarar!… O leproso não pensa em mais
nada, nem em comer. Ele chora e gesticula, implorando ao amigo.
– Eu vou, e tu vais.
O ex-encolhido vai embora correndo.
63.4
Abel desce com dificuldade no fosso que costeia a estrada, todo cheio
de sarças que cresceram no fundo seco. Ali há apenas um fio de água ao
centro. A tarde desce enquanto o infeliz escorrega por entre as sarças,
sempre alerta se ouve qualquer passo. Duas vezes agacha-se no fundo: a
primeira, por causa de um cavaleiro que percorre a trote a estrada; a
segunda, por causa de três homens que vão levando cargas de feno para o
povoado. Depois ele prossegue.
Mas Jesus e Samuel chegam antes dele ao pequeno bosque.
– Daqui a pouco ele estará aqui. Ele anda devagar por causa das feridas.
Tem paciência!
– Não tenho pressa.
– Tu o curarás?
– Ele tem fé?
– Oh!… Ele estava morrendo de fome e estava vendo aquele alimento
depois de anos de abstinência; no entanto, depois de ter comido poucos
bocados, deixou tudo para correr aqui.
– Como tu o conheceste?
– Sabes… eu vivia de esmolas, depois da minha desventura,
percorrendo os caminhos, indo de um lugar para outro. Por aqui eu passava
cada sete dias quando conheci aquele pobrezinho… num dia em que,
constrangido pela fome, ele impeliu-se, sob um temporal, que teria posto em
fuga até os lobos, indo até o caminho que leva ao povoado, a procura de
alguma coisa. Buscava entre as imundícies, como um cão. Eu tinha pão seco
no alforje, donativo de pessoas boas; dividi ao meio com ele. Desde então,
somos amigos e cada semana eu o reabasteço. Com aquilo que tenho… se
tenho muito, dou muito; se pouco, pouco. Faço o que posso, como se fosse
meu irmão. E é desde aquela tarde em que me curaste, bendito sejas Tu, que
eu venho pensando nele… e em Ti.
– Tu és bom, Samuel; por isso a graça te visitou. Quem ama merece tudo
de Deus. 63.5Mas eis ali qualquer coisa entre as ramagens…
– És tu, Abel?
– Sou eu.
– Vem. O Mestre está te esperando aqui, debaixo da nogueira.
O leproso emerge do fosso, sobe para a borda, atravessa-a e entra pelo
prado. Jesus, com as costas apoiadas em uma nogueira muito alta, o espera.
– Mestre, Messias, Santo, tem piedade de mim!
E se lança todo entre a relva, aos pés de Jesus. Com o rosto no chão, diz
ainda:
– Ó meu Senhor! Se queres, podes limpar-me!
Depois, toma coragem para pôr-se de joelhos, estende os braços
esqueléticos, com aquelas mãos retorcidas e ergue o rosto ossudo e
devastado… As lágrimas descem das órbitas doentes para os lábios
corroídos.
Jesus o olha com muita piedade. Olha para aquela sombra de homem que
o mal horrendo devora, que só uma verdadeira caridade pode suportar perto
de si de tão repugnante e mal cheiroso que ele está. Contudo, eis que Jesus
lhe estende uma mão, a sua sã e bonita mão direita, como que para acariciar
o pobrezinho.
Este, sem se levantar, afasta-se sobre seus calcanhares, e grita:
– Não me toques! Tem piedade de Ti!
Mas Jesus dá um passo à frente. Solene, bom, suave, Ele pousa os seus
dedos sobre aquela cabeça carcomida pela lepra e diz, com voz baixa e
cheia de amor, mas imperiosa:
– Eu quero! Fica limpo!
A mão ainda permanece, por alguns minutos, sobre a pobre cabeça.
– Levanta-te. Vai ao sacerdote. Cumpre tudo o que a Lei prescreve. E
não fales do que Eu te fiz: somente sê bom. Não peques mais. Eu te abençôo.
– Oh! Senhor! Abel! Mas tu estás curado!
Samuel, que vê a metamorfose do amigo, grita de alegria.
– Sim. Está são. Ele o mereceu por sua fé. Adeus. A paz esteja contigo.
– Mestre! Mestre! Mestre! Eu não te deixo! Não posso te deixar.
– Faze tudo o que a Lei quer. Depois nos veremos ainda. Pela segunda
vez esteja sobre ti a minha bênção.
Jesus se põe a caminho, fazendo sinal a Samuel para que fique. E os dois
amigos choram de alegria, enquanto, à luz de um quarto de lua, voltam à
caverna para uma última parada naquele antro de desventura.
Assim cessa a visão.
[107] 6 é de incerta leitura do manuscrito original, onde p areceria corrigido em 8. Precisamos que as datas, colocadas p or M aria
Valtorta no início de cada cap ítulo, vêm mencionadas de modo uniforme, isto é, mantendo o nome do mês mesmo quando M aria
Valtorta indica o mês com o número de ordem, e acrescentando o ano se M aria Valtorta o omite.
[108] Eliseu curou Naamã, o leproso, como se narra em: 2 Reis 5,1-14.
64. O paralítico curado em Cafarnaum.
9 de novembro de 1944.
[…].
No mesmo dia 9 de novembro, logo depois.
64.1
Vejo as margens do lago de Genezaré. E vejo os barcos dos
pescadores, arrastados para a margem. Junto a eles estão Pedro e André,
ocupados em consertar as redes, que os empregados levam, gotejantes,
depois de as terem enxaguado no lago, para limpá-las dos detritos que nelas
ficaram presos. À distância de uns dez metros, João e Tiago, encurvados
sobre seu barco, estão ocupados a pô-lo em ordem, ajudados por um
empregado e por um homem de seus cinqüenta a ciqüenta e cinco anos, que
eu penso ser Zebedeu, porque o empregado o chama de “patrão”, e porque
ele é muito parecido com Tiago.
Pedro e André, de costas para o barco, trabalham em silêncio para
reatar os fios e as bóias de sinal. De vez em quando, trocam algumas
palavras, a respeito do trabalho deles que, pelo que eu pude entender, foi
infrutífero.
Pedro se queixa, não pela bolsa vazia, nem pelo trabalho inútil, mas diz:
– Isso me aborrece porque… como faremos para alimentar aqueles
pobrezinhos? A nós só são feitas raras ofertas, e aquelas dez moedas e sete
dracmas que recolhemos nestes quatro dias, nelas eu não toco. Só o Mestre
me deve indicar a quem e como vão ser dadas aquelas moedas. E até o
sábado Ele não volta! Se eu tivesse feito uma boa pesca!… O peixe mais
miúdo, eu o cozinharia, e o daria àqueles pobres… e, se alguém em casa
resmungasse, eu não daria importância a isso. Os sãos podem ir procurá-lo.
Mas os doentes!…
– Aquele paralítico, por exemplo!… Andaram tanto para trazê-lo aqui…
–diz André.
– Escuta, meu irmão. Eu penso… que não se pode estar divididos, e não
sei porque o Mestre não nos quer sempre com Ele. Ao menos… eu não veria
mais estes pobrezinhos que não posso socorrer, e quando eu os visse poderia
lhes dizer: “Ele está aqui.”
64.2
– Estou aqui!
Jesus se aproximou deles devagar caminhando sobre a areia molhada.
Pedro e André dão um pulo. Gritam:
– Oh! Mestre!
Chamam os outros:
– Tiago! João! O Mestre! Vinde!
Os dois chegam correndo. E todos abraçam Jesus. Um lhe beija a veste,
outro as mãos; João ousa passar-lhe um braço ao redor da cintura e pousar a
cabeça sobre o seu peito. Jesus o beija sobre os cabelos.
– De que estáveis falando?
– Mestre… dizíamos que Te desejaríamos aqui.
– Para que, amigos?
– Para ver-te e vendo-te, te amar e, depois, por causa dos pobres e
doentes. Estão à tua espera há dois ou mais dias… Eu fiz o que podia.
Coloquei-os lá, estás vendo aquela cabana naquele campo inculto? Lá os
operários do barco trabalham fazendo reparos. Lá coloquei abrigado um
paralítico, um que tem febre alta, e um menino que está morrendo sobre o
seio de sua mãe. Eu não podia mandá-los à tua procura.
– Fizeste bem. Mas, como pudeste socorrê-los e quem foi que os trouxe?
Me disseste que são pobres.
– É verdade, Mestre. Os ricos têm carros e cavalos. Os pobres, só as
pernas. Não podem ir atrás de Ti diligentes. Eu fiz o que pude. Olha: este é o
donativo que eu recebi. Mas não toquei em nenhuma moeda. Tu é que farás
isso.
– Pedro, tu podias tê-lo feito. Certo… Meu Pedro, me desagrada saber
que por causa de Mim tu tenhas que sofrer censuras e passar canseiras.
– Não, Senhor. Não deve desagradar-te isso. Eu não tenho dor. Somente
o que me desagrada é não ter podido fazer maior caridade. Mas, podes crer,
eu fiz, todos nós fizemos tudo o que pudemos.
– Eu sei. Sei que trabalhaste e sem resultado. Mas, se não há comida, a
tua caridade permanece viva, ativa e santa aos olhos de Deus.
64.3
Uns meninos chegaram gritando:
– O Mestre está aqui! O Mestre está aqui! Eis aqui Jesus! Eis aqui Jesus!
Abraçam-se a Ele, que os acaricia, mesmo falando com os discípulos.
– Simão, Eu vou entrar em tua casa. Tu e vós ide dizer que Eu vim;
depois, trazei-me os doentes.
Os discípulos saem rapidamente em diferentes direções. Mas, que Jesus
já tenha chegado, toda Cafarnaum o sabe, graças aos pequeninos que
parecem umas abelhas ao formarem enxame e que, depois, partem da
colméia para as mais diversas flores: as casas, neste caso, as ruas, as
praças. Eles vão e vêm festivos, levando a notícia às mamães, aos
transeuntes, aos velhos sentados ao sol; depois voltam para serem
acariciados por Aquele que os ama. Um deles, audaz, diz:
– Fala a nós, para nós hoje, Jesus! Nós te queremos bem, Tu sabes, e
somos melhores que os homens.
Jesus sorri para o pequeno psicólogo e promete:
– Falarei especialmente para vós.
E, seguido pelos pequenos, vai até à casa, entra, saudando com a sua
saudação de paz:
– A paz esteja nesta casa.
O povo se aglomera na grande sala posterior, destinada às redes, cabos,
cestas, remos, velas e provisões. Vê-se que Pedro a colocou à disposição de
Jesus, amontoando tudo em um canto, para dar mais espaço. O lago não se vê
daqui. Ouve-se dele apenas o marulho lento. O que se vê é só o muro
esverdeado do pomar, onde está a velha videira e a figueira frondosa. As
pessoas estão até na estrada, transbordando da sala para o pomar, e deste
para a estrada.
64.4
Jesus começa a falar. Na primeira fila — tendo aberto caminho com
gestos prepotentes e graças ao temor que deles tem o povo — estão cinco
pessoas… influentes. Paludamentos, vestes ricas e soberba, os denunciam
como fariseus e doutores. Mas Jesus quer ter ao seu redor os seus pequenos.
Uma coroa de rostinhos inocentes, de olhos luminosos, de sorrisos
angelicais, levantados para Ele. Jesus fala, e ao falar, acaricia de vez em
quando a cabecinha encaracolada de um menininho que está sentado aos seus
pés, com a cabeça encostada aos seus joelhos sobre o bracinho dobrado.
Jesus fala sentado sobre um grande monte de cestas e redes.
– “O meu dileto desceu ao seu jardim, ao canteiro dos aromas, a
apascentar por entre os jardins e a colher lírios… ele que se deleita entre os
lírios”, diz Salomão[109] de Davi, do qual Eu venho, Eu, o Messias de Israel.
O meu jardim! Qual jardim mais bonito e mais digno de Deus e do Céu,
onde as flores são os anjos criados pelo Pai? Contudo, não. Um outro jardim
quis o Filho unigênito do Pai, o Filho do homem, porque pelo homem Eu
tenho a carne, sem a qual Eu não poderia redimir[110] as culpas da carne do
homem. Um jardim que poderia ser pouca coisa inferior ao celeste, se do
Paraíso terrestre se tivessem espalhados, como mansas abelhas de uma
colméia, os filhos de Adão, os filhos de Deus, para povoar a terra com uma
santidade toda destinada ao Céu. Mas o Inimigo semeou abrolhos e espinhos
no coração de Adão e os abrolhos e os espinhos desse coração extravasaram
sobre a terra. Agora, já não há jardim, mas um mato áspero e cruel, no qual
mora a febre e se aninha a serpente.
Mas o Dileto do Pai também tem ainda um jardim nesta terra, sobre a
qual impera Mamon. O jardim no qual Ele vai nutrir-se do seu celeste
alimento: amor e pureza; o canteiro do qual Ele colhe as flores que lhe são
caras, no qual não há mancha de sensualidade, de cobiça, de soberba. Estes.
(Jesus acaricia o maior número de crianças que pode, passando sua mão
sobre aquela coroa de cabecinhas atentas, uma única carícia que os toca de
leve e os faz sorrir de alegria). Eis os meus lírios.
Não teve Salomão, em sua riqueza, veste mais bonita do que o lírio que
perfuma o vale, nem diadema de graça mais delicado e esplêndido do que
aquele que tem o lírio em seu cálice de pérola. No entanto, para o meu
coração, não há lírio que valha o que vale um destes. Não há canteiro, não há
jardim de ricos, todo cultivado com lírios, que Me valha o que vale um só
destes puros, inocentes, sinceros, simples pequeninos.
Ó homens, ó mulheres de Israel! Ó vós, grandes e humildes, pelo censo
ou por vosso cargo, ouvi! Vós estais aqui porque quereis conhecer-me e
amar-me. Então ficai sabendo qual é a primeira condição para serdes meus.
Eu não vos digo palavras difíceis. Não vos dou exemplos mais difíceis
ainda. Eu só vos digo: “Tomai a estes como exemplo.”
Quem entre vós não tem em casa um filho, um sobrinho, um pequeno
irmão ainda na infância, na meninice? Não é um descanso, um conforto, um
vínculo entre os esposos, entre os parentes, entre os amigos, um destes
inocentes, cuja alma é pura como uma aurora serena, cujo rosto afugenta as
nuvens e incute esperanças e cujas carícias enxugam lágrimas e infundem
força de vida? Por que é que existe neles tanto poder? Neles, ainda fracos,
indefesos e ignorantes? Porque têm Deus em si, têm a força e a sabedoria de
Deus. A verdadeira sabedoria: sabem amar e crer. Sabem crer e querer.
Sabem viver nesse amor e nessa fé. Sede como eles: simples, puros,
amorosos, sinceros, crentes.
Não há sábio em Israel que seja maior do que o menor destes, cuja alma
é de Deus e dela é o seu Reino. Benditos pelo Pai, amados pelo Filho do
Pai, flores do meu jardim, a minha paz esteja convosco e com aqueles que
vos imitarem por meu amor.
Jesus terminou.
– Mestre! – grita Pedro do meio da multidão–, aqui estão os doentes.
64.5
Dois podem esperar que Tu saias, mas este está comprimido por esta
multidão e, além disso, não se aguenta mais… E nós não podemos passar.
Devo mandá-lo de volta?
– Não. Descei-o pelo telhado.
– Está bem. Vamos fazer isso já.
Ouve-se o barulho dos pés sobre o telhado baixo da sala que não sendo
propriamente uma parte da casa não tem por cima nenhum assentamento com
argamassa, mas somente um telhadinho de madeira coberto de cascalhos
semelhantes a ardósia. Mas não sei que pedra era. Eles fazem uma abertura
e, por meio de cordas, fazem descer a pequena padiola sobre a qual está o
doente. Desce exatamente diante de Jesus. O povo se aglomera mais ainda
para ver.
– Tiveste grande fé, e contigo também quem te trouxe.
– Oh! Senhor! Como não ter fé em Ti?
– Portanto, Eu te digo: filho (o homem é muito jovem) são-te perdoados
todos os teus pecados.
O homem o olha chorando… talvez se sinta um pouco decepcionado,
porque esperava a cura do corpo.
Os fariseus e os doutores cochicham entre si, torcendo o nariz, a fronte e
a boca, com desdém.
– Por que estais murmurando, e mais ainda com o coração do que com
os lábios? Segundo vós é mais fácil dizer ao paralítico: “Estão perdoados os
teus pecados”, ou dizer-lhe: “Levanta-te, pega a tua cama e anda”? Vós
pensais que só Deus pode perdoar os pecados. Mas não sabeis responder o
que é mais importante, porque este, tendo perdido a tal ponto a saúde do
corpo, gastou seus haveres para recuperá-la, sem nada conseguir. Não o
pode, a não ser por Deus. Ora, para que saibais que tudo Eu posso, para que
saibais que o Filho do homem tem poder sobre a carne e sobre a alma, na
terra e no Céu, Eu digo a este: “Levanta-te, toma a tua cama e anda. Vai para
a tua casa e sê santo.”
O homem sente um choque, dá um grito, põe-se de pé, lança-se aos pés
de Jesus, beija-os e os acaricia, chora e ri; com ele os parentes e a multidão
que, depois, se abre para deixá-lo passar, como se fosse em triunfo, e o
segue toda festiva. A multidão, não os cinco invejosos, que vão-se embora,
altivos e duros como estacas.
64.6
Assim pôde entrar a mãe com seu pequenino: uma criança ainda de
peito, esquelética. Ela o estende, e diz só isto:
– Jesus, Tu amas a estes. Tu o disseste. Por este amor e por Tua mãe!…
–e chora.
Jesus pega o bebê que está mesmo à morte, coloca-o sobre o seu
coração, mantém-no assim por um momento, com aquele rostinho céreo, os
lábios arroxeados e as pálpebras já fechadas, leva-o de encontro à sua boca.
Mantém-no assim por um momento…, e quando o afasta de sua barba loira, o
rostinho já está rosado, a boquinha já faz um daqueles sorrisos incertos,
como as crianças fazem, os olhinhos olham ao redor, vivos e curiosos, as
mãozinhas, antes fechadas e abandonadas, apalpam entre os cabelos e a
barba de Jesus que ri.
– Oh! Meu filho! –grita a mãe feliz.
– Pega-o, mulher. Sê feliz e boa.
E a mulher pega o filho renascido e o aperta ao seio. O pequenino
reclama logo os seus direitos ao alimento e procura, abre, encontra e mama,
mama, ávido e contente.
Jesus abençoa e dá uns passos até à porta onde está o doente de febre
alta.
– Mestre! Sê bom!
– E tu também. Usa a saúde na justiça.
Jesus o acaricia e sai.
64.7
Volta à margem, seguido, precedido, louvado por muitos que suplicam:
– Nós não te ouvimos falar. Não pudemos entrar. Fala a nós também.
Jesus faz sinal que sim e como a multidão o aperta, a ponto de quase
sufocá-lo, ele entra no barco de Pedro. Não basta. O assédio é premente.
– Leva o barco para o mar e afasta-te um pouco da margem.
A visão termina aqui.
[109] diz S alomão, em: Cântico dos cânticos 6,2-3.
[110] sem a qual Eu não poderia redimir, não p orque fosse indisp ensável a encarnação p ara redimir, mas p orque essa
corresp onde à vontade do Pai à qual adere a obediência do Filho: isto deduz-se de todo o contexto da obra valtortiana. A
realidade da encarnação do Verbo é afirmada, p or exemp lo, em 207.11 e em 587.3; e a sua razão de ser é exp licada em: 69.5 –
96.5 (o redentor não p odia ser um anjo) – 126.3 – 167.13 – 281.16 – 444.7 – 487.6 – 498.5 –567.23. (Significado bem diferente
tem a encarnação da qual trataremos em nota a 587.3).
65. A pesca milagrosa
e a eleição dos quatro primeiros apóstolos.
10 de novembro de 1944.
65.1
E recomeça com as palavras de Jesus:
– Quando chega a primavera e tudo floresce, o homem do campo diz,
contente: “Terei muito fruto.” E jubila em seu coração por esta esperança.
Mas, da primavera até o outono, do mês das flores ao das frutas, quantos
dias, quantos ventos e chuvas, sol e borrascas haverão de passar e, às vezes,
guerra ou crueldade da parte dos poderosos, as doenças das plantas e
doenças do homem do campo, pelo que as plantas — não mais cavadas e
reforçadas, regadas, podadas, sustentadas, limpas — que prometiam muito
fruto, entristecem e morrem ou totalmente ou na sua colheita!
Vós me estais seguindo. Vós me amais. Vós, como as plantas na
primavera, vos ornais com bons propósitos e com amor. Na verdade, Israel,
esta aurora do meu apostolado está como os nossos doces campos no
luminoso mês de Nisam. Mas, ouvi. Como um ardor de estiagem, virá
Satanás a queimar-vos com o seu hálito, pois tem inveja de Mim. Virá o
mundo com o seu vento gelado para gelar o vosso florescer. Virão as
paixões, como tempestades. Virá o tédio, como uma chuva obstinada. Todos
os inimigos meus e vossos virão para esterilizar tudo o que deveria vir desta
vossa santa inclinação de florescer em Deus. Eu vos aviso porque sei.
Mas, será que tudo, então, estará perdido quando Eu, como agricultor
doente — mais do que doente, morto — não mais poderei dar a vós palavras
e milagres? Não. Eu semeio e cultivo, enquanto for o meu tempo. Depois,
sobre vós crescerá e amadurecerá, se tomardes os necessários cuidados.
Olhai para aquela figueira da casa de Simão, filho de Jonas. Quem a
plantou, não encontrou o ponto certo e propício. Plantada junto ao úmido
muro do norte, já teria morrido se não tivesse, por si mesma, tratado de se
defender para viver. E procurou sol e luz. Lá está ela, toda dobrada, mas
forte e orgulhosa, que bebe desde a aurora o sol, e dele extrai suco para as
suas centenas e centenas de doces frutos. Defendeu-se sozinha. Disse: “O
Criador me quis para dar alegria e alimento ao homem. Eu quero que a sua
vontade tenha a minha por companheira!” Uma figueira! Uma planta que não
fala! Uma planta sem alma! E vós, filhos de Deus, filhos do homem, seríeis
menos do que uma planta?
Tomai bom cuidado para dar frutos de vida eterna. Eu vos cultivo e por
fim vos darei um suco, o mais poderoso que existe. Não deixeis, não deixeis
que Satanás ria sobre as ruínas do meu trabalho, do meu sacrifício e da
vossa alma. Procurai a luz. Procurai o sol. Procurai a força. Procurai a vida.
Eu sou a Vida, Força, Sol, Luz de quem me ama. Aqui estou para levar-vos
para o lugar de onde vim. Aqui falo para chamar-vos todos e mostrar-vos a
Lei dos dez mandamentos que dão a vida eterna. Com conselho de amor, Eu
vos digo: “Amai a Deus e ao próximo.” É a primeira condição para se
realizar todos os outros bens. O mais santo dos dez mandamentos: Amai.
Aqueles que amarem em Deus, a Deus e o próximo, pelo Senhor Deus terão
na terra e no Céu a paz como sua morada e sua coroa.
O povo com custo afasta-se, depois da bênção de Jesus. Não há doentes
nem pobres.
65.2
Jesus diz a Simão:
– Chama também os outros dois. Vamos para o lago, lançar a rede.
– Mestre, eu estou com os braços cansados por ter lançado e levantado a
rede a noite inteira e por nada. O peixe está nas profundezas e quem sabe
onde.
– Faz o que te digo, Pedro, e escuta sempre a quem te ama.
– Farei o que me estás dizendo, em respeito à tua palavra –e chama em
voz alta os empregados e também Tiago e João–: Vamos sair para a pesca. O
Mestre assim quer.
E enquanto eles vão se afastando, diz a Jesus:
– Porém, Mestre, Te asseguro de que esta hora não é propícia. A esta
hora, quem sabe onde é que os peixes estão descansando!…
Jesus, sentado à proa, sorri e cala-se.
Fazem um arco de círculo sobre o lago e depois lançam a rede. Poucos
minutos de espera; depois o barco começa a receber uns solavancos
estranhos, dado que o lago está liso como se fosse de vidro fundido sob um
sol já alto.
– Mas isto é peixe, Mestre! –diz Pedro com os olhos arregalados.
Jesus sorri, e cala-se.
– Iça, iça a rede! –ordena Pedro aos empregados. Mas o barco inclina-
se para o lado da rede:
– Ohé! Tiago! João! Depressa! Vinde! Com os remos! Depressa!
Eles correm, e os esforços dos dois grupos conseguem içar a rede sem
estragar os peixes.
Os barcos se aproximam. Estão até juntos. Um cesto, dois, cinco, dez.
Estão todos cheios e ainda há muitos peixes saltitantes na rede: prata e
bronze vivos que se movem para fugir da morte. Então, não há senão um
remédio: despejar o resto no fundo dos barcos. Eles o fazem e o fundo é toda
uma agitação de vidas em agonia. Os pescadores estão no meio desta
abundância que lhes ultrapassa os tornozelos e os barcos afundam além da
linha de imersão por causa do peso excessivo.
– Para a terra! Vira! Força! Põe a vela! Cuidado com o fundo! Varas
prontas para amortecer o choque! O peso é demais!
65.3
Enquanto dura a manobra Pedro não reflete. Mas, quando chegam à
terra, ele o faz. E compreende. Por isso fica perturbado:
– Mestre! Senhor! Afasta-te de mim! Eu sou um homem pecador. Não
sou digno de estar perto de Ti!
Ele está de joelhos sobre o úmido leito do rio. Jesus olha para ele e
sorri.
– Levanta-te! Segue-me! Eu não te deixo mais! De agora em diante serás
pescador de homens e contigo estes teus companheiros. Não temais nada
mais. Eu vos chamo. Vinde!
– Já, Senhor. Vós ocupai-vos dos barcos. Levai tudo para Zebedeu e
para o meu cunhado. Vamos. Todos por Ti, Jesus! Bendito seja o Eterno por
esta escolha.
E a visão termina.
66. Judas de Keriot no Getsêmani torna-se
discípulo.
28 de dezembro de 1944, 12:00 horas.
[…].
66.1
Pela tarde, vejo Jesus… debaixo das oliveiras… Ele está sentado
sobre uma saliência do terreno em sua posição habitual, com os cotovelos
apoiados nos joelhos, os antebraços para a frente e as mãos juntas. Cai a
tarde, a luz diminui sempre mais no basto olival. Jesus está sozinho. Ele
tirou o manto como se sentisse calor e sua veste branca põe uma nota clara
no verde do lugar que o crepúsculo já vai tornando muito escuro.
Um homem desce por entre as oliveiras. Parece estar procurando alguma
coisa ou alguém. É alto, vestido com uma roupa de cor alegre, um amarelo
rosado, que torna mais vistoso o grande manto, todo de franjas ondulantes.
Não o vejo bem no rosto, porque a pouca luz e a distância não me permitem
e também porque ele tem uma ponta do manto caído sobre o rosto. Quando
vê Jesus, faz um gesto, como para dizer: “Lá está Ele!” e apressa o passo. A
poucos metros de distância, saúda-o:
– Salve, Mestre!
Jesus se vira de repente e levanta o rosto, porque o recém-chegado está
na saliência superior. Jesus o olha sério e eu diria triste.
O outro repete:
– Eu te saúdo, Mestre. Sou Judas de Keriot. Não me reconheces? Não te
lembras de mim?
– Eu me lembro e reconheço. És aquele que me falaste, junto com Tomé,
na Páscoa passada.
– E ao qual Tu disseste: “Pensa e saiba decidir antes da minha volta.”
Eu me decidi. Eu venho.
– Por que vens, Judas?
Jesus está mesmo triste.
– Porque… eu já te disse na outra vez o porquê. Porque eu sonho com o
reino de Israel e em ti eu vi o rei.
– Para isso vens?
– Para isso. Coloco-me a mim mesmo e tudo o que possuo: capacidade,
conhecimento, amizades, trabalho, ao teu serviço e a serviço da tua missão
para reconstituir Israel.
Os dois agora estão de frente, próximos, de pé, e se olham fixamente.
Jesus com uma seriedade que chega a ser tristeza, o outro, exaltado pelo seu
sonho, sorridente, belo e jovem, leviano e ambicioso.
– Eu não te procurei, Judas.
– Eu vi. Mas eu Te estava procurando. São dias e dias que eu venho‐
colocando pessoas às portas, para me anunciarem a tua chegada. Eu pensava
que virias com os teus seguidores e que, por isso, teria sido fácil notar-te.
Ao invés… Compreendi que já havias chegado porque um grupo de
peregrinos te estava bendizendo por teres curado um doente. Mas ninguém
sabia me dizer onde estavas. Então, eu me lembrei deste lugar. E vim. Se eu
não tivesse Te encontrado aqui, eu teria me resignado a não Te encontrar
mais…
– Achas que tenha sido um bem para ti o teres-me encontrado?
– Sim, visto que te procurava, te desejava, te quero.
– Por que? Por que Me procuraste?
– Mas eu já disse a Ti, Mestre! 66.2Não me compreendeste?
– Eu te compreendi sim. Mas quero que tu também me compreendas,
antes de Me seguires. Vem. Falaremos enquanto caminhamos.
E se põem a caminhar, um ao lado do outro, para cima e para baixo,
pelas estradinhas que entrecortam o olival.
– Tu Me segues por uma idéia que é humana, Judas. Eu te devo dissuadir
disto. Eu não vim para isto.
– Mas, não és Tu o que foi designado para ser o Rei dos judeus? Aquele
de quem falaram os Profetas? Surgiram já outros. Mas a eles faltavam muitas
coisas e caíram como folhas que o vento não levanta mais. Tu tens a Deus
Contigo, tanto que operas milagres. Onde está Deus, o bom êxito da missão
está garantido.
– Falaste bem. Eu tenho Deus Comigo. Eu sou o seu Verbo. Sou aquele
que foi profetizado pelos Profetas, prometido aos Patriarcas, esperado pelas
multidões. Mas, por que, ó Israel, te tornaste tão cego e surdo, a ponto de
não saberes mais ler nem ver, ouvir e compreender a verdade dos fatos? O
meu Reino não é deste mundo, Judas. Dissuade-te disso. À Israel Eu venho
trazer a Luz e a Glória. Mas não a luz e a glória da terra. Eu venho para
chamar os justos de Israel ao Reino. Porque é de Israel e com Israel que há
de se formar e vir a planta da vida eterna, cuja linfa será o Sangue do
Senhor, a planta que se estenderá por toda a terra, até o fim dos séculos. Os
meus primeiros seguidores são de Israel. Os meus primeiros confessores, de
Israel. Mas também os meus perseguidores são de Israel. Também os meus
carrascos, de Israel. E também o meu traidor, de Israel…
– Não, Mestre. Isto não acontecerá nunca. Se todos te traírem, eu ficarei
Contigo, e te defenderei.
– Tu, Judas? E sobre o que se funda esta tua segurança?
– Sobre a minha honra de homem.
– Isso é uma coisa mais frágil do que uma teia de aranha, Judas. É a
Deus que devemos pedir a força para sermos honestos e fiéis. O homem!…
O homem faz obras de homem. Para fazer obras do espírito — e seguir o
Messias em verdade e justiça significa fazer obra de espírito — é preciso
matar o homem e fazê-lo renascer. És tu capaz disso?
– Sim, Mestre. Além disso… Nem todo Israel te amará. Mas carrascos e
traidores ao seu Messias não sairão de Israel. Israel te espera, há séculos!
– Mas dele sairão. Lembra-te dos Profetas. As palavras deles… e o seu
fim. Eu estou destinado a decepcionar a muitos. E tu és um deles. Judas, tu
tens à tua frente, um manso, um pacífico, um pobre, que pobre quer
permanecer. Eu não vim para impor-me e para fazer guerra. Eu não disputo
aos fortes e poderosos nenhum reino, nenhum poder. Eu só disputo a Satanás
as almas e venho para quebrar as correntes de Satanás com o fogo do meu
amor. Eu venho para ensinar misericórdia, sacrifício, humildade,
continência. Eu te digo, e a todos digo: “Não tenhais sede de riquezas
humanas, mas trabalhai pelas moedas eternas.” Desilude-te Judas, se pensas
que sou um triunfador sobre Roma e sobre as castas que imperam. Os
Herodes, como os Césares podem dormir tranqüilos enquanto Eu falo às
multidões. Eu não vim para arrancar cetros de ninguém… e o meu cetro,
eterno, já está pronto. Mas ninguém, que não fosse amor, como Eu sou, iria
querer empunhá-lo. 66.3Vai Judas, e medita.
– Estarás me rejeitando, Mestre?
– Eu não rejeito ninguém, pois quem rejeita não ama. Mas, diz-me,
Judas: que nome darias ao ato de alguém que, sabendo-se doente de um mal
contagioso, dissesse a um inocente que se aproxima para beber do seu
cálice: “Pensa no que estás fazendo”? O nome seria ódio, ou amor?
– Eu diria que é amor porque não quer que o inocente arruíne sua saúde.
– Então dá este nome também ao meu ato.
– Posso arruinar minha saúde indo Contigo? Nunca!
– Podes arruinar mais do que a saúde porque pensa bem isso, Judas,
pouco será imputado a quem se tornar assassino, pensando que está fazendo
justiça, e assim pensando, porque não conhece a Verdade; mas muito será
imputado a quem, tendo-a conhecido, não só não a segue, mas se faz até
inimigo dela.
– Eu não serei esse tal. Toma-me Contigo, Mestre. Não me podes
recusar. Se és o Salvador e vês que eu sou um pecador, uma ovelha
desviada, um cego fora do caminho certo, por que é que recusas salvar-me?
Toma-me Contigo. Eu te seguirei até à morte…
– Até à morte! É verdade. Isto é verdade. Depois…
– Depois, o quê, Mestre?
– O futuro está no seio de Deus. Vai. Amanhã nos tornaremos a ver, junto
à porta dos Peixes.
– Obrigado, Mestre. O Senhor esteja Contigo.
– E que a sua misericórdia te salve.
E tudo termina.
67. O milagre das lâminas quebradas à porta dos
Peixes.
31 de dezembro de 1944.
67.1
Vejo Jesus que vai andando sozinho por uma estrada sombreada.
Parece um fresco e pequeno vale, rico de águas. Digo um pequeno vale,
porque está levemente encaixado entre pequenas elevações do solo e no
centro corre um riacho.
O lugar está deserto na hora matutina. Deve ter acabado de surgir o dia,
um belo dia sereno de início de verão e não se ouve mais nada exceto o
canto dos pássaros entre as árvores e o arrulhar lamentoso das rolas
selvagens, que fazem seus ninhos nas fendas do monte sem vegetação.
Especialmente entre as oliveiras da colina da esquerda, enquanto que a
outra, mais despojada, tem arbustos baixos de lentisco, acácias espinhosas,
agaves, etc.. Também o pequeno rio de águas escassas e limitadas ao centro
do álveo, parece não fazer rumor algum e se vai, refletindo em suas águas o
verde circunstante, pelo qual parece de esmeralda escura.
Jesus atravessa o rio por uma pinguela — é um tronco semi-aplainado,
jogado sobre o rio, sem apoio, sem segurança — e prossegue na outra
margem.
Agora já se vêem os muros e as portas; também vendedores de
hortaliças e mantimentos, que vão se aglomerando às portas, ainda fechadas,
para entrar na cidade. Ouve-se um grande zurrar de burros e brigas entre
eles; também os seus donos não estão para brincadeiras. Insultos e até
algumas pancadas voam, não só sobre os lombos dos burros, mas também
sobre cabeças humanas.
67.2
Dois homens estão numa briga séria, porque o burro de um deles
resolveu passar bem, comendo toda uma bonita cesta de alface do burro do
outro. Talvez não seja mais do que um pretexto para algum antigo rancor. O
fato é que de sob as vestes curtas até às barrigas das pernas, eles já tiraram
dois cutelos pequenos e da largura de um palmo: parecem umas adagas
quebradas, mas bem pontiagudas, e que brilham ao sol. Gritos de mulheres e
vozerio de homens. Mas ninguém intervém para apartar os dois, que estão
prontos para o rústico duelo.
Jesus, que procedia pensativo, levanta a cabeça, vê o que está
acontecendo e, a passos rápidos, se põe entre os dois.
– Parem, em nome de Deus! –ordena.
– Não! Eu quero acabar com este maldito cão!
– Eu também! Gostas de franjas? Farei para ti uma franja com as tuas
tripas.
Os dois rodeiam Jesus, esbarrando nele, insultando-o para que saia do
meio, procurando golpearem-se, sem o conseguirem, porque Jesus, com
sábios movimentos do seu manto, desvia os golpes e impede que acertem o
alvo. O manto de Jesus já está rasgado.
O povo grita:
– Vem para cá, nazareno, antes que te tirem do meio.
Mas Ele não se move de lá e procura induzir os dois à calma, evocando-
os a Deus. Inútil! A ira enlouquece os dois contendedores.
Jesus emite um milagre. Ordena-lhes pela última vez:
– Eu vos mando que deixeis disso!
– Não! Retira-te daqui! Pega o teu caminho, nazareno!
Jesus então estende as mãos, com o seu aspecto de potência fulgurante.
Não diz uma palavra. Mas as lâminas caem esmigalhadas no chão, como se
fossem de vidro e se tivessem chocado contra uma rocha.
Os dois homens olham para os cabos curtos e inúteis que ficaram entre
os dedos. O espanto embota a ira. A multidão também grita de espanto.
67.3
– E agora? –pergunta Jesus, severo–. Onde está a vossa força?
Até os soldados que estavam de guarda à porta, tendo chegado quando
ouviram os últimos gritos, olham assombrados; um deles se inclina para
apanhar os fragmentos das lâminas e os experimenta sobre a unha, incrédulo
que fossem de aço.
– E agora? –repete Jesus–. Onde está a vossa força? Sobre o que é que
baseáveis o vosso direito? Sobre estes pedaços de metal que agora estão
quebrados no meio da poeira? Sobre estes pedaços de metal que não tinham
outra força, senão a do pecado da ira contra um irmão, tirando de vós, por
aquele pecado, toda a bênção de Deus e, portanto, toda força? Oh! Infelizes
daqueles que se baseiam em meios humanos para vencer e não sabem que
não é a violência, mas a santidade que nos faz vitoriosos sobre a terra, e
mais além dela! Porque Deus está com os justos.
Ouvi, ó vós todos de Israel, e vós também, soldados de Roma. A
Palavra de Deus fala a todos os filhos do homem, e não será o Filho do
homem que irá recusá-la aos gentios.
O segundo dos preceitos do Senhor é o preceito do amor para com o
próximo. Deus é bom e nos seus filhos quer benevolência. Quem não é
benevolente com o seu próximo, não pode dizer-se filho de Deus e não pode
ter Deus consigo. O homem não é um animal irracional, que se arroja e
morde pelo direito de fazer uma presa. O homem tem uma razão, e uma alma.
Pela razão deve saber conduzir-se como homem. Pela alma deve saber
conduzir-se como santo. Quem assim não faz, coloca-se abaixo dos animais,
desce ao abraço com os demônios, porque ele endemoninha sua alma com o
pecado da ira.
Amai. Eu não vos digo outra coisa. Amai ao vosso próximo, como o
Senhor Deus de Israel o quer. Não sejais sempre do sangue de Caim. E por
que é que o sois? Por poucas moedas, vós podíeis agora ser uns homicidas.
Outros, por uns poucos palmos de terra. Por uma posição melhor. Por uma
mulher. Que são estas coisas? Eternas? Não. Duram muito menos do que a
vida, a qual dura um instante da eternidade. E que é que perdeis, seguindo
essas coisas? A paz eterna, que está prometida aos justos e que o Messias
vos trará, junto com o seu Reino. Vinde para o caminho da Verdade. Segui a
Voz de Deus. Amai-vos. Sede honestos. Sede continentes. Sede humildes e
justos. Ide e meditai.
67.4
– Quem és Tu, que falas semelhantes palavras e quebras as espadas só
com a tua vontade? Só há um que pode fazer estas coisas: o Messias. Nem
mesmo João Batista é mais do que Ele. Por acaso, és Tu o Messias? –
perguntam-lhe uns três ou quatro.
– Eu sou.
– Tu? Tu és aquele que cura os doentes e pregas a Deus pela Galiléia?
– Sou Eu.
– Eu tenho minha velha mãe que está morrendo. Salva-a!
– E eu, estás vendo? Estou perdendo as forças pelas dores que sinto.
Tenho filhos ainda pequenos. Cura-me!
– Vai para a tua casa. Tua mãe, esta tarde, te preparará a tua janta; E tu,
sê curado. Eu quero!
A multidão dá um grito. E depois lhe perguntam:
– O teu Nome? Qual o teu Nome?
– Jesus de Nazaré!
– Jesus! Jesus! Hosana! Hosana!
A multidão está exultante. Os burros podem fazer aquilo que quiserem
que ninguém se preocupa mais. As mães chegam lá do meio da cidade,
compreende-se que a notícia já correu e erguem seus pequeninos. Jesus
abençoa e sorri. E procura romper o círculo que o aclama, para entrar na
cidade, e ir aonde quer. Mas a multidão não quer saber disso.
– Fica conosco! Na Judéia! Na Judéia! Nós também somos filhos de
Abraão! –grita.
67.5
– Mestre!
Judas corre para Jesus.
– Mestre, me precedestes. Mas, que é que está acontecendo?
– O Rabi fez um milagre! Na Galiléia não; aqui, aqui o queremos
conosco.
– Estás vendo, Mestre? Todo Israel Te ama. É justo que Tu fiques
também aqui. Por que Te esquivas?
– Eu não me esquivo, Judas. Eu vim justamente só para que a rudeza dos
discípulos galileus não aborreça a sutileza judéia. Eu quero reunir todas as
ovelhas de Israel sob o cetro de Deus.
– Por isso é que eu Te disse: “Toma-me Contigo.” Eu sou judeu, e sei
como tratar os meus iguais. Ficarás, então, em Jerusalém?
– Por poucos dias. Para esperar um discípulo que também é judeu.
Depois, Eu irei pela Judéia…
– Oh! Eu irei Contigo. Eu Te acompanharei. Irás ao meu povoado. Eu Te
levarei à minha casa. Irás, Mestre?
– Irei… 67.6Do Batista, tu que és judeu, e vives perto dos poderosos, não
sabes nada?
– Sei que ele está ainda na prisão, mas que o querem soltar, porque a
multidão está ameaçando fazer um motim se não lhe for restituído o seu
profeta. Tu o conheces?
– Eu o conheço.
– Tu o amas? Que pensas dele?
– Penso que não houve ninguém mais do que é igual a Elias.
– Achas que ele é verdadeiramente o Precursor?
– Ele o é. É a estrela da manhã que anuncia o sol. Felizes daqueles que
são preparados para o Sol, através da sua pregação.
– João é muito severo.
– Não é mais para com os outros do que para consigo mesmo.
– Isto é verdade. Mas é difícil segui-lo em sua penitência. Tu és melhor
e é fácil amar-te.
– No entanto…
– No entanto, Mestre?
– No entanto, como ele é odiado por sua austeridade, Eu o serei pela
minha bondade, porque tanto uma como a outra anunciam a Deus e Deus é
mal visto pelos maus. Mas está escrito que assim seja. Como ele Me precede
na pregação, assim me precederá na morte. Ai, porém, daqueles assassinos
da Penitência e da Bondade.
– Por que Mestre, sempre esta tristeza de previsões? A multidão te ama,
como estás vendo…
– Porque é uma coisa certa. A multidão humilde sim, me ama. Mas a
multidão não é toda humilde, feita só de humildes. Mas a minha não é
tristeza. É a tranqüila visão do futuro e a adesão à vontade do Pai que me
mandou para isto. E para isto Eu vim. Eis-nos diante do Templo. Eu vou ao
Bel Nidrash, para ensinar as multidões. Se queres, fica.
– Eu ficarei ao teu lado. Não tenho senão esta meta: Servir-te e fazer-te
triunfar.
Entram no Templo, e tudo termina.
68. Jesus, no Templo com o Iscariotes, ensina.
1 de janeiro de 1945.
68.1
Vejo Jesus que, tendo Judas a seu lado, entra no recinto do Templo, e,
depois de terem superado o primeiro terraço, ou escalão, se preferis chamá-
lo assim, detém-se num ponto onde há uma série de pórticos, que rodeiam um
amplo pátio, pavimentado com mármore de diversas cores. O lugar é muito
bonito e cheio de gente.
Jesus olha ao redor de si e vê um lugar que lhe agrada. Mas, antes de
dirigir-se para lá, diz a Judas:
– Chama-me o magistrado do lugar. Devo fazer-me reconhecer, para que
não se diga que Eu falto com os costumes e o respeito.
– Mestre, Tu estás acima dos costumes e ninguém mais do que Tu tem o
direito de falar na Casa de Deus. Tu, o seu Messias.
– Eu sei disso, tu o sabes, mas eles não sabem. Eu vim, não para
escandalizar, nem para ensinar a violar não só a Lei, mas também os
costumes. Pelo contrário, Eu vim justamente para ensinar o respeito, a
humildade, a obediência e para acabar com os escândalos. Por isso Eu quero
pedir para poder falar em nome de Deus, fazendo-me reconhecer pelo
magistrado do lugar como digno de fazer isso.
– Mas na outra vez não fizeste assim.
– Na outra vez ardeu em Mim o zelo pela Casa de Deus, profanada por
muitas coisas. Na outra vez era o Filho do Pai[111], o Herdeiro que, em nome
do Pai e por amor à minha Casa, agia em sua majestade, à qual os
magistrados e sacerdotes são inferiores. Agora Eu sou o Mestre de Israel e
ensino a Israel também isso. Além disso, Judas, crês tu que o discípulo seja
maior do que o Mestre?
– Não, Jesus.
– E tu, quem és? E quem sou Eu?
– Tu, o Mestre, eu, o discípulo.
– E então, se reconheces que assim são as coisas, porque queres ensinar
o Mestre? Vai e obedece. Eu obedeço a meu Pai. Tu obedeces ao teu Mestre.
Primeira condição do Filho de Deus: obedecer sem discutir, pensando que o
Pai não pode dar senão ordens santas. Primeira condição do discípulo:
obedecer ao Mestre, pensando que O Mestre sabe e não pode dar senão
ordens justas.
– É verdade. Perdoa. Eu obedeço.
– Eu perdôo. Vai. E Judas, escuta ainda uma coisa: recorda-te disto.
Recorda-te disto sempre, no futuro.
– De obedecer? Sim.
– Não. Lembra-te de que Eu fui respeitoso e humilde para com o
Templo, ou seja, com as castas poderosas. Vai.
Judas olha para Jesus pensativamente, interrogativamente… mas não
ousa perguntar mais nada. E vai-se pensativo.
68.2
… Ele volta com um personagem muito bem trajado.
– Eis, Mestre, o magistrado.
– A paz esteja contigo. Eu peço para poder ensinar, entre os rabinos de
Israel, a Israel.
– És Tu rabi?
– Eu sou.
– Quem foi o teu mestre?
– O Espírito de Deus, que me fala com a sua sabedoria e me ilumina
com sua luz sobre todas as palavras dos textos sagrados.
– És então, maior do que Hilel, Tu que, sem mestre, dizes saber toda a
doutrina? Como pode alguém se formar, se não tem quem o forme?
– Como se formou Davi, o pastorzinho desconhecido, e que se tornou o
rei poderoso e sábio pela vontade do Senhor.
– Qual o teu Nome?
– Jesus de José de Jacó, da estirpe de Davi, e de Maria de Joaquim, da
estirpe de Davi, e de Ana de Arão, Maria, a Virgem desposada no Templo,
porque era órfã, pelo Sumo Sacerdote, segundo a lei de Israel.
– Quem prova isso?
– Ainda devem estar aqui os levitas, que se recordam do fato e que
foram contemporâneos de Zacarias, da classe de Abias, o meu parente.
Interroga-os, se duvidas da minha sinceridade.
– Eu creio em Ti. Mas, quem me prova que sejas capaz de ensinar?
– Escuta-me e tu mesmo julgarás.
– Estás livre para fazeres isso… Mas… não és nazareno?
– Eu nasci em Belém de Judá, no tempo do recenseamento ordenado por
César. Proscritos por ordens injustas, os filhos de Davi estão em toda a
parte. Mas a estirpe é de Judá.
– Sabes… os fariseus… toda a Judéia… pela Galiléia…
– Eu sei. Mas podes ficar tranqüilo. Em Belém Eu vi a luz, em Belém
Efrata, de onde vem a minha estirpe e se agora vivo na Galiléia, não é senão
para que se cumpra o que foi determinado…
O magistrado se afasta alguns metros, indo atender a alguém que o
chamou.
68.3
Judas pergunta:
– Por que não disseste que és o Messias?
– As minhas palavras o dirão.
– Qual era a profecia que se devia cumprir?
– A reunião de todo Israel sob o ensinamento da palavra de Cristo. Eu
sou o Pastor de que falam os Profetas, e venho para reunir as ovelhas de
todas as regiões, venho para curar as doentes e levar para uma pastagem boa
as errantes. Para Mim não há Judéia ou Galiléia, Decápolis ou Iduméia. Só
há uma coisa: o Amor, que olha com um só olhar e une em um único abraço
para salvar…
Jesus está inspirado. Parece emitir raios de tão sorridente que está em
seu sonho. Judas o olha admirado.
As pessoas, curiosas, se aproximam dos dois, cuja imponência diferente
atrai e impressiona.
Jesus abaixa o olhar, sorri para esta pequena mulidão com aquele seu
sorriso, cuja doçura nenhum pintor jamais conseguirá reproduzir, e nenhum
crente, que não o tenha visto, poderá imaginar como é. Ele diz:
– Vinde, se sentis o desejo de palavra eterna.
68.4
Ele se dirige sob um arco do pórtico e, encostado a uma coluna,
começa a falar. Toma como tema o fato daquela manhã.
– Esta manhã, ao entrar em Sião, vi que por umas poucas moedas dois
filhos de Abraão estavam prontos para se matarem. Em nome de Deus, Eu
teria podido amaldiçoá-los, porque Deus diz: “Não matarás”, e diz também
que quem não lhe obedece em sua Lei, será maldito. Mas Eu tive piedade da
ignorância deles a respeito do espírito da Lei, e somente impedi o
homicídio, para dar-lhes oportunidade de se arrependerem, conhecerem a
Deus, o servirem em obediência, amando, não somente a quem os ama, mas
também aos seus inimigos.
Sim, Israel. Um dia novo surge para ti e também se torna mais luminoso
o preceito do amor. Porventura começa o ano com o nebuloso Etanim, ou
com o triste Casleu de dias curtos como um sonho e de noites longas como
numa doença? Não, ele começa com o florido, ensolarado e alegre Nisam,
no qual tudo ri e o coração do homem, ainda que fosse o mais pobre e triste,
se abre à esperança porque vem o verão, os cereais, o sol, as frutas; doce é
dormir também sobre um prado em flor tendo as estrelas por candeias e fácil
o nutrir-se, porque cada gleba produz erva ou fruto para matar a fome do
homem.
Eis aqui, ó Israel. Terminou o inverno, o tempo da espera. Agora é a
alegria da promessa que se cumpre. O Pão e o Vinho em breve estarão
prontos para matar a tua fome. O Sol está no meio de ti. A este Sol, tudo
toma um fôlego mais amplo e mais doce, até o preceito da nossa Lei, o
primeiro e mais santo dos preceitos: “Ama a teu Deus e ama ao teu
próximo.”
Na relativa luz que até aqui te foi concedida, te foi dito — não terias
podido fazer mais, porque sobre ti ainda pesava a irritação de Deus, pela
culpa do desamor de Adão — te foi dito: “Ama aqueles que te amam e odeia
ao teu inimigo.” E inimigo para ti era não somente quem ultrapassava as
fronteiras de tua pátria, mas também quem havia faltado para contigo em
particular, ou que te parecia ter faltado. Onde o ódio aninhava-se em todos
os corações visto que, qual é o homem que, querendo ou não, não ofende ao
seu irmão? E qual o que alcança a velhice, sem ser ofendido?
Eu vos digo: amai também aos que vos ofendem. Fazei isto pensando
que Adão, e por meio dele todos os homens, são prevaricadores perante
Deus, e não há ninguém que possa dizer: “Eu não ofendi a Deus.” Contudo,
Deus perdoa, não uma mas dez e dez vezes perdoa, mas mil e dez mil vezes
perdoa; e disso é prova o fato de o homem ainda estar existindo sobre a
terra. Perdoai, pois, como Deus perdoa. E, se não o podeis fazer por amor
para com o irmão que vos prejudicou, fazei-o pelo amor de Deus, que vos dá
pão e vida, que vos ampara nas necessidades da terra, e predispôs cada
acontecimento para proporcionar-vos a paz eterna em seu seio. Esta é a Lei
nova, a Lei da primavera de Deus, do tempo florido da Graça vinda entre os
homens, do tempo que vos dará o Fruto sem par, que vos abrirá as portas do
Céu.
68.5
A voz que falava no deserto já não se ouve. Mas muda não está.
Ela fala ainda a Deus por Israel e fala ainda a todo israelita reto de
coração. Diz — diz depois de os haver ensinado a fazer penitência para
preparar os caminhos ao Senhor que vem, a ter caridade, dando o supérfluo a
quem não tem nem o necessário, a ter honestidade, não extorquindo ou
vexando — ela vos diz: “Está entre vós o Cordeiro de Deus, Aquele que tira
os pecados do mundo, Aquele que batizará com o fogo do Espírito Santo.
Ele limpará a sua eira, e recolherá o seu trigo.”
Sabei conhecer Aquele que o Precursor vos indica. Seus sofrimentos
operam diante de Deus para dar-vos luz. Vede. Abram-se os vossos olhos
espirituais. Conhecei a Luz que vem. Eu recebo a voz do Profeta que anuncia
o Messias e, com o poder que me vem do Pai, Eu a amplifico e vos uno ao
meu poder, vos chamo para a verdade da Lei. Preparai os vossos corações à
graça da Redenção que está próxima. O Redentor está entre vós. Felizes
aqueles que forem dignos de ser redimidos, porque terão tido boa vontade.
A paz esteja convosco.
Alguém pergunta:
– És Tu discípulo do Batista, para falares dele com tanta veneração?
– Fui batizado por ele nas águas do Jordão, antes que ele fosse preso. Eu
o venero, porque ele é santo aos olhos de Deus. Em verdade Eu vos digo que
entre os filhos de Abraão não há outro maior em graça do que ele. Desde a
sua vinda, até à sua morte, os olhos de Deus estarão pousados sem nenhum
desdém, sobre este bendito.
– Ele te deu a certeza sobre o Messias?
– Sua palavra, que não mente, mostrou aos presentes o Messias, que já
vivia entre os homens.
– Onde? Quando?
– Quando foi a hora de mostrá-lo.
68.6
Mas Judas se sente no dever de dizer à direita e à esquerda:
– O Messias é Ele, que vos fala. Eu vo-lo testifico, eu que o conheço e
sou o seu primeiro discípulo.
– É Ele?! Oh!…
O povo se afasta amedrontado. Mas Jesus é tão afável que voltam a se
aproximar.
– Pedi a Ele algum milagre. Ele é poderoso. Ele cura. Ele lê nos
corações. Responde a todas as perguntas.
– Fala a Ele por mim, que eu estou doente. Meu olho direito está morto e
o esquerdo está secando.
– Mestre.
– Judas.
Jesus que estava acariciando uma menininha, se volta.
– Mestre, este homem está quase cego e quer ver. Eu disse a ele que Tu
podes curá-lo.
– Eu posso, para quem tem fé. Tu tens fé, homem?
– Eu creio no Deus de Israel. Venho aqui para jogar-me na piscina de
Betsaida[112]. Mas sempre tem alguém que me precede.
– Podes crer em Mim?
– Se creio no anjo da piscina, não deverei crer em Ti, que o teu
discípulo diz que és o Messias?
Jesus sorri. Molha o dedo com a saliva e o roça no olho doente.
– Que estás vendo?
– Estou vendo as coisas sem aquela névoa de antes. E o outro, não o
curas?
Jesus sorri de novo. Repete o ato sobre o olho cego.
– Que estás vendo? –pergunta Ele, tirando a ponta do dedo da pálpebra
caída.
– Ah! Senhor de Israel! Estou vendo, como quando eu, ainda menino,
corria pelos prados! Sê Tu eternamente bendito!
O homem chora, prostrado aos pés de Jesus.
– Vai. Sê bom, agora, em reconhecimento a Deus.
68.7
Um levita, que chegou quase ao fim do milagre, pergunta:
– Com que poder fazes estas coisas?
– Tu me perguntas? Mas Eu te digo, se responderes à minha pergunta.
Segundo a tua opinião: é maior um profeta que anuncia o Messias, ou o
próprio Messias?
– Que pergunta! O Messias é maior: é o Redentor prometido pelo
Altíssimo!
– Então, por que os Profetas fizeram milagres? Com que poder?
– Com o poder que Deus dava a eles para provarem às multidões que
Deus estava com eles.
– Pois bem, com o mesmo poder, Eu faço milagres. Deus está Comigo,
Eu estou com Ele. Eu provo às multidões que assim é e que o Messias bem
pode, com maior razão e medida, o que podiam os Profetas.
O levita vai-se embora pensativo, e tudo termina.
[111] Na outra vez era o Filho do Pai… Agora Eu sou o Mestre… Também aqui — assim anota M aria Valtorta numa cóp ia
dactilografada — resultam as duas Naturezas unidas numa única Pessoa, mas bem distintas: Deus e Homem.
[112] Betsaida (e p or vezes Betseida), é dita na obra Valtortiana, assim como nas versões da “vulgata”, seja a p iscina de
Jerusalém (João 5,2) como a cidade sobre o lago de Genezaré (João 1, 44). Nas modernas versões da Bíblia, a p iscina é dita
Bethesda ou Betzaetà.
69. Jesus instrui Judas Iscariotes.
3 de janeiro de 1945.
69.1
Ainda Jesus e Judas que, depois de terem rezado no lugar mais
próximo do Santo, concedidos aos israelitas varões, saem do Templo.
Judas queria ficar com Jesus. Mas esse desejo encontra oposição da
parte do Mestre.
– Judas, Eu desejo estar sozinho nas horas noturnas. Na noite o meu
espírito obtém do Pai o seu alimento. Oração, meditação e solidão são para
mim mais necessárias do que alimento material. Aquele que quiser viver
pelo espírito, e levar outros a viver essa mesma vida, deve preterir a carne,
Eu diria quase matá-la nas suas prepotências, para dar todos os seus
cuidados ao espírito. Todos devem fazer assim, Judas. Também tu, se queres
verdadeiramente ser de Deus, ou seja, do sobrenatural.
– Mas nós somos ainda desta terra, Mestre. Como podemos descuidar-
nos da carne, dando todos os cuidados ao espírito? Isto que estás dizendo
não é uma antítese ao mandamento de Deus: “Não matarás”? Neste não está
compreendido também o não matar-se? Se a vida é um dom de Deus,
devemos amá-la, ou não?
– Responderei a ti como não responderia a uma pessoa simples, para a
qual basta fazer levantar o olhar da alma, ou da mente, a esferas
sobrenaturais, para levá-lo conosco, como num vôo, até os reinos do
espírito. Mas tu não és uma pessoa simples. Tu te formaste em ambientes que
te refinaram… mas que também te corromperam com suas sutilezas e com
suas doutrinas. Lembras-te de Salomão, Judas? Ele era um sábio, o mais
sábio daqueles tempos. Lembras-te do que ele disse[113], depois de ter
conhecido todo o saber? “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Temer a
Deus e observar os seus mandamentos, para o homem isso é tudo.” Agora Eu
te digo que é preciso saber tirar dos alimentos a nutrição, mas não veneno.
E, se compreendemos que um alimento nos está sendo prejudicial, porque há
em nós reações pelas quais aquele alimento é nefasto, sendo ele mais forte
do que os nossos bons humores que o poderiam neutralizar, é preciso não
fazer mais uso desse alimento, mesmo sendo gostoso ao paladar. É melhor
um simples pão e água de fonte do que os pratos complicados da mesa do
rei, nos quais há drogas que perturbam nosso organismo e envenenam.
– Que é que eu devo deixar, Mestre?
– Tudo aquilo que sabes que te faz mal. Porque Deus é Paz e se quiseres
andar no caminho de Deus deves desembaraçar a tua mente, o teu coração e
a tua carne de tudo o que não é paz e que traz consigo perturbação. Eu sei
que é difícil reformar-se a si mesmo. Mas Eu estou aqui para ajudar-te a
fazê-lo. Estou aqui para ajudar o homem a se tornar filho de Deus, a recriar-
se, como em uma segunda criação, uma autogênese desejada por ele mesmo.
69.2
Mas deixa que Eu te responda o que perguntaste para que não digas que
ficaste no erro por minha culpa. É verdade que o suicidar é o mesmo que
matar. A vida, tanto a própria, como a dos outros, é um dom de Deus, e só a
Deus, que no-la deu, está reservado o direito de tirá-la. Quem se mata,
confessa sua soberba e a soberba é abominada por Deus.
– Confessa sua soberba? Eu diria que o seu desespero.
– E que é desespero, senão soberba? Pensa bem, Judas. Por que é que
uma pessoa se desespera? É, ou porque as desventuras recrudescem sobre
ela e essa pessoa quer vencê-las sozinha e não consegue, ou então porque ela
é culpada e julga que Deus não pode perdoá-la. No primeiro e no segundo
caso, não é talvez a soberba que está prevalecendo? A pessoa, que quer agir
sozinha, não tem a humildade de estender a mão ao Pai e dizer-lhe: “Eu não
posso, mas Tu podes. Ajuda-me, que de Ti eu tudo espero.” Aquela outra
pessoa que diz: “Deus não pode me perdoar”, fala assim porque quer medir
a Deus por si mesma e sabe que alguém, ofendido como aquele a quem ela
ofendeu, não poderia perdoá-la. Ou seja, é soberba também aqui. O humilde
se compadece e perdoa, mesmo se sofre pela ofensa recebida. O soberbo
não perdoa. É soberbo porque não sabe inclinar a cabeça e dizer: “Pai, eu
pequei, perdoa ao teu pobre filho culpado.” Mas não sabes, Judas, que tudo
será perdoado pelo Pai se for pedido o perdão com um coração sincero e
contrito, humilde e cheio de boa vontade de renovação no bem?
– Mas certos delitos não são perdoados. Não podem ser perdoados.
– És tu quem diz isso. E assim será, se o homem assim quiser. Mas em
verdade, oh!, em verdade Eu te digo que, mesmo depois do delito dos
delitos, se o culpado corresse aos pés do Pai — Ele se chama Pai para isso,
Judas, e é um Pai de perfeição infinita — e chorando lhe suplicasse o
perdão, oferecendo-se à expiação, mas sem desespero, o Pai lhe daria o
modo de expiar para poder merecer o perdão e salvar sua alma.
69.3
– Então, Tu dizes que os homens que a Escritura cita[114], e que
suicidaram, fizeram mal.
– Não é lícito fazer violência contra ninguém, nem contra si mesmo.
Fizeram mal. Em seu relativo conhecimento do bem, em certos casos eles
terão tido ainda a misericóridia de Deus. Mas, desde quando o Verbo tiver
esclarecido toda a verdade e dado força aos espíritos com o seu Espírito,
desde então, não haverá mais perdão para quem morre em desespero. Nem
no momento do juízo particular, nem depois de muitos séculos na Geena, no
dia do Juízo final, nem nunca. Será isso uma dureza de Deus? Não: é justiça.
Deus dirá: “Tu julgaste, tu, criatura dotada de razão e de ciência
sobrenatural, criada livre por Mim, tu julgaste seguir o caminho que
escolheste, e disseste: ‘Deus não me perdoa. Estou separado Dele para
sempre. Julgo que devo por mim mesmo aplicar-me justiça pelo meu delito.
Saio da vida para fugir dos remorsos’, sem pensar que os remorsos não te
teriam mais atingido, se tu tivesses vindo ao meu seio paterno. E, como tu
mesmo te julgaste, que te advenha; Eu não violento a liberdade que te dei.”
Isto dirá o Eterno ao suicida. Pensa nisso, Judas. A vida é um dom e
deve ser amada. Mas que dom é? Um dom santo. E, então, que ela seja
amada santamente. A vida dura, enquanto a carne aguenta. Depois começa a
grande Vida, a Vida eterna. De bem-aventurança para os justos e de
maldição para os não-justos. A vida é uma meta ou um meio? É um meio.
Serve para chegar ao fim, que é a eternidade. E, então, damos à vida o tanto
que lhe sirva para durar e para servir o espírito em sua conquista.
Continência da carne em todos os seus apetites, em todos. Continência da
mente em todos os seus desejos, em todos. Continência do coração em todas
as paixões do que é humano. Ilimitado, ao invés, há de ser o ímpeto pelas
paixões que são do Céu: o amor a Deus e ao próximo, a vontade de servir a
Deus e ao próximo, a obediência à Palavra divina, o heroísmo no bem e na
virtude.
69.4
Eu te respondi, Judas. Ficaste persuadido? Basta-te esta explicação?
Sê sempre sincero e se não souberes ainda bastante – pergunta: Eu estou aqui
para ser Mestre.
– Eu compreendi, e para mim basta. Mas… é muito difícil fazer o que
compreendi. Tu o podes, porque és santo. Mas eu… Sou um homem, jovem,
cheio de vitalidade…
– Eu vim para os homens, Judas. Não para os anjos. Os anjos não
precisam de mestre. Eles vêem a Deus. Vivem no seu Paraíso. Não ignoram
as paixões dos homens porque a Inteligência, que é a Vida deles, os faz
conhecedores de tudo, mesmo aqueles que não são anjos da guarda de um
homem. Mas, espirituais como são, não podem ter senão um pecado, como
um deles teve, e arrastou consigo os menos fortes na caridade: a soberba,
flecha que desfigurou Lúcifer, o mais bonito dos arcanjos, e fez dele o
monstro horripilante do Abismo. Eu não vim para os anjos, os quais, depois
da queda de Lúcifer, se horrorizam só diante da sombra de um pensamento
de orgulho. Mas Eu vim para os homens. Para fazer dos homens, anjos.
O homem era a perfeição de tudo o que foi criado. Ele tinha do anjo o
espírito e do animal a completa beleza em todas as suas partes animais e
morais. Não havia criatura que o igualasse. Era o rei da terra, como Deus é o
Rei do Céu; um dia, aquele dia em que ele teria adormecido pela última vez
sobre a terra, ele se tornaria rei com o Pai no Céu. Satanás arrancou as asas
do anjo-homem e colocou nele garras de fera e veementes desejos de
imundícies; fez dele alguém que mais tem o nome de homem-demônio, do
que o de homem somente. Eu quero cancelar a deturpação feita por Satanás,
anular a fome corrompida da carne infectada, restituir as asas ao homem,
levá-lo a tornar a ser rei, co-herdeiro do Pai e do celeste Reino. Eu sei que o
homem, se quiser, pode fazer tudo o que digo, para voltar a ser rei e anjo. Eu
não vos mandaria fazer coisas que não pudésseis fazer. Eu não sou um desses
retóricos que pregam doutrinas impossíveis. 69.5Eu assumi uma verdadeira
carne para poder saber, sentindo-as na carne, quais são as tentações do
homem.
– E os pecados?
– Tentados, todos podem ser. Pecadores, só os que o querem ser.
– Nunca pecaste, Jesus?
– Eu nunca quis pecar. E isto, não só porque Eu sou o Filho do Pai. Mas
assim Eu quis e vou querer, para mostrar ao homem que o Filho do homem
não pecou porque não quis pecar e que o homem, se não quiser, pode não
pecar.
– Nunca foste tentado?
– Tenho trinta anos, Judas. E não vivi em um caverna sobre um monte.
Mas entre os homens. E, ainda que tivesse estado no lugar mais solitário da
terra, pensas que as tentações não teriam vindo? Tudo temos em nós: o bem e
o mal. Tudo levamos em nós[115]. Sobre o bem, passa o sopro de Deus, que o
acende como um turíbulo que leva agradáveis e sacros incensos. E sobre o
mal, Satanás sopra e o acende com uma fogueira de um ardor feroz. Mas a
vontade atenta e a oração constante são como a areia úmida sobre o ardor do
inferno: ela o sufoca e domina.
– Mas, se nunca pecaste, como podes julgar os pecadores?
– Eu sou homem, e sou o Filho de Deus. Tudo o que Eu poderia ignorar
como homem, e julgar mal, Eu o conheço e julgo como Filho de Deus. E
afinal!… Judas, responde a esta minha pergunta: alguém que está com fome,
sofre mais ao dizer: “Agora vou sentar-me à mesa”, ou quando diz: “Não há
comida para mim”?
– Sofre mais no segundo caso, porque só o saber que está privado dela,
já o faz sentir o cheiro da comida e suas entranhas se torcem de desejo.
– Aí está. A tentação é mordente como esse desejo, Judas. Satanás o
torna ainda mais agudo, perfeito e sedutor, do que qualquer ato já praticado.
Além disso, o ato dá satisfação mas, às vezes, também causa náuseas;
enquanto que a tentação não cai, mas, como uma árvore podada, lança uma
fronde mais robusta.
– E nunca cedeste?
– Nunca cedi.
– Como te foi possível isso?
– Eu disse: “Pai, não me exponhas à tentação.”
– Como? Tu, o Messias, Tu que operas milagres, pediste a ajuda do Pai?
– E não só a ajuda, Eu lhe pedi que não me exponha à tentação. Pensas tu
que porque Eu sou Eu, já posso deixar de contar com o Pai? Oh! Não! Em
verdade Eu te digo que o Pai concede tudo ao Filho, mas também que o Filho
recebe tudo do Pai. E te digo que tudo o que for pedido em meu nome ao Pai,
será concedido. 69.6Mas, eis-nos ao Get-Sammi, onde moro. Já são visíveis as
primeiras oliveiras além dos muros. Tu moras para lá de Tofet. A noite já
vem chegando. Não te convém subir até lá. Nós nos veremos novamente
amanhã no mesmo lugar. Adeus. A paz esteja contigo.
– A paz esteja Contigo também, Mestre… Mas eu queria dizer-te ainda
uma coisa. Eu te acompanharei até o Cedron, depois voltarei para trás. Por
que moras num lugar tão humilde como aquele? Sabes, o povo olha tantas
coisas. Não conheces ninguém na cidade, que tenha uma bela casa? Eu, se
quiseres, poderei levar-te à casa de amigos. Eles te hospedarão, porque são
meus amigos; e seriam moradas mais dignas de Ti.
– Achas isso? Eu não acho. O digno e o indigno existem em todas as
castas. E, sem faltar com a caridade, mas para não ofender a justiça, Eu digo
que o indigno, e maliciosamente indigno, está muitas vezes no meio dos
grandes. Não é preciso, nem útil serem poderosos para serem bons, ou para
esconder o pecado aos olhos de Deus. Tudo deverá mudar sob o meu sinal. E
será grande, não quem é poderoso, mas quem é humilde e santo.
– Mas, para ser respeitado, para se impor…
– Herodes é respeitado? E César, é respeitado? Não. Eles são tolerados
e amaldiçoados pelos lábios e pelos corações. Sobre os bons, ou também
sobre os que somente têm desejo de bondade, podes crer, Judas, que Eu
saberei me impor, mais com a modéstia, do que com a imponência.
– Mas, então… desprezarás sempre os poderosos? Assim, farás deles
teus inimigos! E eu estava pensando em falar de Ti a muitos que eu conheço
e que têm um nome…
– Eu não desprezarei a ninguém. Irei aos pobres como aos ricos, aos
escravos como aos reis, aos puros como aos pecadores. Mas, se é verdade
que ficarei grato a quem me der pão e abrigo em minhas fadigas, seja qual
for o abrigo e o alimento, Eu darei sempre preferência ao que é humilde. Os
grandes já têm muitas alegrias. Os pobres não têm mais que uma reta
consciência, um amor fiel, os filhos, e verem-se ouvidos pelos que são mais
do que eles. Eu serei sempre inclinado para os pobres, os aflitos e os
pecadores. Eu te agradeço pela tua boa vontade. Mas deixa-me neste lugar
de paz e oração. Vai. E Deus te inspire o que é bom.
Jesus deixa o discípulo e se introduz entre as oliveiras, e tudo termina.
[113] disse, em: Qohélet 1,1-2; 12,8.13.
[114] cita, p or exemp lo em: Juizes 9,54; 1 Samuel 31,4-5; 2 Samuel 17,23; 1 Rei 16,18; 2 Macabeus 14,41-46.
[115] Tudo temos em nós: o bem e o mal. Tudo levamos em nós. Estas afirmações são correctas enquanto referidas à
condição humana no geral. Todavia, M aria Valtorta corrigiu-as, numa cóp ia dactilografada, da seguinte forma, que p arece mais
conforme à natureza humano-divina d’Aquele que fala: Tudo temos em torno a nós: o bem e o mal. Tudo podemos acolher em
nós.
70. No Getsêmani com João de Zebedeu.
Uma comparação entre o Predileto e Judas de
Keriot.
4 de janeiro de 1945.
70.1
Vejo Jesus que se dirige à baixa casinha branca, que fica no meio do
olival. Um jovenzinho o saúda. Parece ser ele do lugar porque tem nas mãos
as ferramentas de podar e de sachar.
– Deus esteja Contigo, Rabi. O teu discípulo João veio e agora partiu
novamente para ir ao teu encontro.
– Faz muito tempo?
– Não. Ele apenas passou aquele caminho. Nós pensávamos que Tu
virias do lado de Betânia…
Jesus, rápido, toma o caminho, contorna o outeiro, vê João que desce
quase correndo em direção à cidade e o chama.
O discípulo se vira e, com o rosto iluminado pela alegria, grita:
– Oh! Meu Mestre! –e volta correndo.
Jesus lhe abre os braços e os dois se abraçam afetuosamente.
– Eu ia procurar-te… Pensávamos que tinhas estado em Betânia, como
havias dito.
– Sim. Eu queria fazer assim. Devo começar a evangelizar também os
arredores de Jerusalém. Mas depois me entretive na cidade… para instruir
um novo discípulo.
– Tudo o que fazes é bem feito, Mestre. E é bem sucedido. Estás vendo?
Agora mesmo, de repente nos encontramos.
Os dois caminham, tendo Jesus um braço sobre as costas de João que,
sendo mais baixo do que Ele, o olha de baixo para cima, contente com
aquela intimidade. E assim eles voltam para a casinha.
– Há muito tempo que vieste?
– Não, Mestre. Eu parti de Doco, ao amanhecer, junto com Simão, ao
qual eu disse aquilo que Tu desejavas. Depois, paramos juntos nos campos
de Betânia, repartimos o alimento, e falamos de Ti aos camponeses que lá
encontramos. Quando o sol já estava menos quente nos separamos. Simão foi
à casa de um amigo, o qual quer falar de Ti. É o dono de quase toda a
Betânia. Simão o conhece de antes, desde quando eram vivos os pais de um
e do outro. Mas amanhã Simão virá para cá. Disse-me para falar-te que é
feliz em servir-te. Simão é muito capaz. Eu gostaria de ser como ele. Mas
sou um moço ignorante.
– Não, João. Tu também fazes muito bem.
– Estás mesmo contente com o teu pobre João?
– Muito contente, meu João. Muito.
– Oh! Meu Mestre!
João se inclina, num impulso, para pegar a mão de Jesus e a beija e a
passa pelo rosto como uma carícia.
70.2
Chegaram à casinha. Entram na cozinha baixa e fumacenta. O dono o
saúda:
– A paz esteja Contigo.
Jesus responde:
– Paz a esta casa, a ti e a quem vive contigo. Tenho Comigo um
discípulo.
– Teremos pão e óleo para ele também.
– Eu trouxe peixe seco que Tiago e Pedro me deram. E, passando por
Nazaré, tua mãe me deu pão e mel para Ti. Caminhei sem parar, mas agora o
pão já deve estar duro.
– Não tem importância, João. Ele terá sempre o sabor das mãos da
minha mãe.
João vai tirando os seus tesouros do alforje que ele tinha posto em um
canto. E vejo preparar o peixe seco de uma maneira estranha. Eles o molham
por poucos instantes, em água quente, depois o untam e assam sobre as
chamas.
Jesus abençoa a comida e, com o discípulo, assenta-se à mesa. Estão ali
também o dono da casa, que ouço ser chamado Jonas, e seu filho. A mãe vai
e vem, levando o peixe, azeitonas pretas, verduras cozidas e temperadas com
óleo. Jesus também põe na mesa o mel. E o oferece à mãe, estendendo-o com
o pão.
– É da minha colméia –diz–. Minha mãe é quem cuida das abelhas.
Come dele. É bom. És tão boa para Comigo, Maria, que mereces este e mais
outro–, diz Ele depois, ao ver que a mulher não queria privá-lo do doce mel.
O jantar chega logo ao fim entre breves conversações em que todos
participam. Assim que termina, depois de ter agradecido pelo alimento,
Jesus diz a João:
– Vem. Vamos sair um pouco até o olival. A noite está morna e clara.
Será agradável estar um pouco lá fora.
O dono da casa diz:
– Mestre, eu te saúdo. Estou cansado e meu filho também está cansado.
Nós vamos dormir. Eu deixo a porta encostada e a candeia sobre a mesa. Já
sabes como fazer.
– Vai então, Jonas, e apaga a candeia. Há um luar tão claro, que nós
enxergaremos até sem levar luz.
– Mas o teu discípulo, onde é que vai dormir?
– Comigo. Em minha esteira há lugar também para ele. Não é verdade,
João?
João, à idéia de dormir ao lado de Jesus, fica extasiado.
70.3
Saem para o olival. Mas antes, João pegou qualquer coisa no saco que
está no canto. Caminham um pouco e chegam a um ponto de onde se vê toda
Jerusalém.
– Sentemo-nos aqui, e vamos conversar –diz Jesus.
Mas João prefere ir sentar-se aos pés de Jesus, sobre a erva cortada;
está com o braço pousado sobre os joelhos do Mestre, com a cabeça apoiada
sobre o braço, olhando de vez em quando para o seu Jesus. Parece um
menino perto da pessoa para ele mais querida.
– É bonito também aqui, Mestre. Olha como a cidade parece grande de
noite. Maior do que de dia.
– É porque a luz da lua fez desaparecer os contornos. Vê, parece que os
limites se alargam nesta luminosidade prateada. Olha a cúpula do Templo lá
em cima. Não parece estar suspensa no ar?
– Parece que os anjos a estão transportando sobre suas asas de prata.
Jesus suspira.
– Por que suspiras, Mestre?
– Porque os anjos abandonaram o Templo. Seu aspecto de pureza e
santidade está limitado às paredes. Aqueles que deviam dar-lhe a
alma — porque cada lugar tem sua alma, ou seja, o espírito para o qual ele
foi erguido, e o Templo tem, deveria ter, alma de oração e santidade — são
os primeiros a tirar-lhe. Não se pode dar o que não se tem, João. E, se
muitos são os sacerdotes e os levitas que lá vivem, deles não há nem um
décimo que seja apto para dar vida ao Lugar Santo. Morte é o que dão.
Comunicam a ele a morte que está no seu espírito, morto ao que é santo. Eles
têm as fórmulas. Mas não têm a vida delas. São cadáveres que estão quentes
só pela putrefação que os está inchando.
– Eles te fizeram mal, Mestre?
João está com muita pena.
– Não. Ao contrário, me deixaram falar, quando pedi para fazê-lo.
– Tu o pediste? Por que?
– Porque não quero ser Eu aquele que inicia a guerra. A guerra virá
assim mesmo. Porque a alguns Eu farei um tolo medo humano, e para outros,
eu serei uma censura. Mas isto deve estar no livro deles. Não no meu.
70.4
Fazem um pouco de silêncio e depois João volta a falar:
– Mestre, eu conheço Ana e Caifás. Por necessidades de negócios,
minha família manteve um relacionamento com eles e quando estive na
Judéia por causa de João, eu ia também ao Templo, e eles eram bons aos
filhos de Zebedeu. Meu pai sempre se lembra deles com o melhor peixe.
Virou até um costume, sabes? Quando se quer tê-los como amigos, continuar
a tê-los, é preciso fazer assim…
– Eu sei.
Jesus está sério.
– Pois bem. Se achas bom, eu falarei de Ti ao Sumo Sacerdote. E
depois… se quiseres, eu conheço um que está tratando de negócios com meu
pai. É um rico comerciante de peixe. Ele tem uma casa bonita e grande, perto
do Hípico, porque são pessoas ricas, mas são também muito boas. Para Ti
ficaria mais cômodo e Te cansarias menos. Para se vir aqui deve-se passar
também por aquele subúrbio de Ofel tão mal cuidado e sempre cheio de
burros e de rapazes briguentos.
– Não, João. Eu te agradeço. Mas estou bem aqui. Estás vendo quanta
paz? Eu disse isto também ao outro discípulo que me fazia a mesma
proposta. Ele dizia: “Para seres melhor considerado.”
– Eu o dizia para que Tu não te cansasses muito.
– Eu não me canso. Caminharei muito e não me cansarei nunca. Sabes o
que é que me cansa? O desamor. Oh! aquele, que peso! É como se Eu tivesse
um peso no coração.
– Eu te amo, Jesus.
– Sim. E tu me alivias. Eu te quero muito bem, João, e te quererei
sempre, porque tu não me trairás nunca.
– Trair-te? Oh!
– Contudo, haverá muitos que me trairão… 70.5João, escuta. Eu te disse
que parei aqui para instruir um novo discípulo. É um jovem judeu instruído e
conhecido.
– Então, terás com ele muito menos trabalho do que conosco, Mestre.
Estou contente por teres alguém mais capaz do que nós.
– Pensas tu que me dará menos trabalho?
– Ora, se é menos ignorante do que nós, Te compreenderá melhor e Te
servirá melhor, especialmente se Te amar melhor.
– Aí está. Disseste bem. Mas o amor não depende da instrução e nem da
formação. Um virgem ama com toda a força do seu primeiro amor. Isso
também se dá com a virgindade do pensamento. E o amado penetra e se
imprime mais em um coração e em um pensamento virgem do que em um no
qual já estiveram outros amores. Mas, se Deus quiser… Escuta, João. Eu te
peço que sejas amigo dele. O meu coração treme, ao colocar-te, cordeiro
insonso, junto a alguém já experimentado na vida. Mas também se acalma,
porque sabe que tu serás cordeiro, mas também águia e se o experimentado
quiser fazer-te tocar o chão, sempre lamacento, o chão do bom sentido
humano, tu, com um bater de asas, saberás livrar-te e querer só o azul e o
sol. Por isto te peço que… — conservando-te como és — sejas amigo do
novo discípulo, que não vai ser muito amado por Simão Pedro e também
pelos outros, para lhe transfundires o teu coração…
– Oh! Mestre! Mas já não bastas Tu?
– Eu sou o Mestre ao qual não se dirá tudo. Tu és o condiscípulo, um
pouco mais jovem, com o qual é mais fácil abrir-se. Eu não estou dizendo
que me venhas repetir tudo o que ele te disser. Abomino os espias e os
traidores. Mas o que te peço é que o evangelizes com a tua fé e tua caridade,
com a tua pureza, João. É uma terra corrompida por águas mortas. Há de ser
seca com o sol do amor, purificada com a honestidade de pensamentos,
desejos e obras e cultivada com a fé. E tu podes fazer isso.
– Se achas que eu posso… oh! sim. Se Tu dizes que eu posso fazer isso,
isso farei. Por amor a Ti…
– Obrigado, João.
70.6
– Mestre, falaste de Simão Pedro. E voltou-me à lembrança o que eu
devia dizer-te primeiro, mas que a alegria de ouvir-te tinha afastado do meu
pensamento. Quando voltamos a Cafarnaum, depois do Pentecostes,
encontramos logo a importância de costume daquele desconhecido. O
menino a tinha entregue à minha mãe. Eu a dei a Pedro e ele me devolveu
dizendo que a usasse um pouco para a volta e a parada em Doco e que o
restante o levasse a Ti, pois podias estar precisando… porque Pedro
também pensava que aqui não tens comodidade… mas Tu dizes que tens…
Eu não tirei senão duas moedas para dois pobrezinhos que encontrei perto de
Efraim. Quanto ao mais, vim passando com o que minha mãe me havia dado
e com o que me deram algumas pessoas boas, às quais eu preguei o teu
Nome. Aqui está a bolsa.
– Amanhã a distribuiremos aos pobres. Assim, também Judas irá
aprendendo os nossos costumes.
– O teu primo veio? Como fez para chegar aqui tão rápido? Ele estava
em Nazaré e não me disse que partiria…
– Não. Judas é o novo discípulo. Ele é de Keriot. Mas tu o viste pela
Páscoa, aqui, naquela tarde da cura de Simão. Ele estava com Tomé.
– Ah! É aquele?
João fica um pouco admirado…
– É ele. E Tomé, que está fazendo?
– Ele obedeceu as tuas ordens deixando Simão Cananeu e, indo pela
estrada do mar, foi ao encontro de Filipe e Bartolomeu.
– Sim, Eu quero que vos ameis sem preferências, ajudando-vos
reciprocamente, suportando-vos um ao outro. Ninguém é perfeito, João. Nem
os jovens, nem os velhos. Mas, se tiverdes boa vontade, chegareis à
perfeição, e o que faltar, Eu colocarei em vós. Vós sois como os filhos de
uma santa família. Dentro dela há muitos caráteres diferentes. Um é forte,
outro é calmo, outro é corajoso, outro é tímido, um é impulsivo, outro é
muito cauteloso. Se todos fossem iguais, seríeis uma força em um caráter e
deficiências em todos os outros. Enquanto que, como estais, formais uma
união perfeita, porque vos completais mutuamente. O amor vos une, vos deve
unir, o amor por causa de Deus.
– E por Ti, Jesus.
– Primeiro por causa de Deus, e depois por amor ao seu Cristo.
– Eu… que é que eu sou na nossa família?
– És a paz amorosa do Cristo de Deus. 70.7Estás cansado, João? Queres
voltar? Eu fico aqui para rezar.
– Eu também fico para rezar Contigo. Deixa-me ficar para rezar Contigo.
– Então fica.
Jesus diz os salmos e João o acompanha. Mas a voz dele vai sumindo, e
o apóstolo acaba adormecendo com a cabeça sobre o colo de Jesus, que
sorri e estende o seu manto sobre as costas do adormecido e depois continua
a rezar, mentalmente.
A visão termina assim.
70.8
Depois Jesus diz:
– Ainda um paralelo entre o meu João e um outro discípulo. Paralelo no
qual sai sempre mais nítida a figura do meu predileto.
Ele é aquele que se despoja do seu modo de pensar e de julgar, para ser
“o discípulo.” É aquele que se doa, sem querer de si nem mesmo uma
molécula — do si mesmo antecedente à eleição. Judas é aquele que não quer
se despojar de si mesmo. A sua doação é, por isso, uma doação irreal. Ele
traz consigo o seu eu doente de soberba, de sensualidade, de cobiça.
Conserva o seu modo de pensar. Com isso ele neutraliza os efeitos da
doação e da Graça.
Judas é o chefe da família de todos os apóstolos fracassados. E são
tantos! João é o chefe da família dos que se fazem hóstias por meu amor. Ele
é o teu modelo.
Eu e minha mãe somos as Hóstias excelsas. Alcançar-nos é difícil, aliás,
impossível, porque o nosso sacrifício foi de uma aspereza total. Mas o meu
João! É a hóstia imitável por todas as classes dos meus amadores: virgem,
mártir, confessor, evangelizador, servo de Deus e da mãe de Deus, ativo e
contemplativo, é um exemplo para todos. É aquele que ama.
Observa os diferentes modos de raciocinar. Judas investiga, argumenta,
teima, e, mesmo quando parece estar cedendo, na realidade está conservando
ainda o seu modo de pensar. João se julga um nada, aceita tudo, não pergunta
as razões, e se sente bem pago se puder me fazer feliz. Eis o exemplo.
70.9
Não é verdade que te sentiste toda cheia de paz, diante daquela sua
simples e querida amorosidade? Oh! O meu João! E o meu pequeno João que
Eu quero seja sempre mais parecido com o meu dileto. Aceita tudo, dizendo
sempre como o Apóstolo: “Tudo aquilo que fazes é bem feito, Mestre”, para
merecer ouvir sempre que se lhe diga: “És a minha amorosa paz.” Preciso de
consolo Eu também, Maria. Dá-me. O meu Coração seja o teu repouso.
71. Judas Iscariotes apresentado a João e a Simão
Zelote.
6 de janeiro de 1945.
71.1
Vejo Jesus com Judas Iscariotes, dando uns passos, para cima e para
baixo, junto a uma das portas do recinto do Templo.
– Estás certo de que ele virá? –pergunta Judas.
– Estou certo. Ele ia partir ao amanhecer de Betânia e no Get-Sammi ia
encontrar-se com o meu primeiro discípulo…
Uma pausa, depois Jesus se detém e olha fixamente para Judas. Coloca-
se em sua frente. Perscruta-o. Em seguida põe-lhe uma mão sobre o ombro e
lhe pergunta:
– Por que é Judas, que não me dizes o teu pensamento?
– Que pensamento? Não tenho um pensamento especial neste momento,
Mestre. Perguntas eu te faço até demais. E certamente não te podes queixar
do meu mutismo.
– Faz-me muitas perguntas e me dás muitas informações sobre a cidade e
seus habitantes. Mas não me abres a tua alma. Que importância queres que
tenham para Mim informações sobre o seu patrimônio e a estrutura desta ou
daquela família? Eu não sou um mandrião que tenha vindo aqui por
passatempo. Tu sabes porque é que Eu vim. E bem podes compreender que
me importa antes de tudo, ser o Mestre dos meus discípulos. Por isso quero
da parte deles sinceridade e confiança. 71.2Teu pai te amava, Judas?
– Sim, me amava muito. Eu era o seu orgulho. Quando eu voltava da
escola, e também mais tarde, quando eu voltava de Jerusalém para Keriot,
ele queria que eu lhe contasse tudo. Interessava-se por tudo o que eu fazia e
se eram coisas boas, se alegrava, se eram coisas menos boas, me animava.
Se — alguma vez, como sabes, todos erram — eu tinha cometido algum erro
e recebido alguma repreensão, ele me fazia ver toda a justiça da repreensão
recebida e quanto eu havia errado. Mas o fazia tão docemente… parecia um
irmão maior. E terminava sempre assim: “Isto eu te digo, porque quero que o
meu Judas seja um justo. Quero ser abençoado através do meu filho…” Meu
pai…
Jesus que ficou o tempo todo fitando atentamente o discípulo,
sinceramente emocionado com a evocação da memória de seu pai, lhe diz:
– Aí está, Judas, fica certo de tudo o que te digo. Nenhuma obra fará
mais feliz o teu pai do que a de seres meu fiel discípulo. O espírito de teu
pai exultará, lá onde está esperando a Luz — porque, se assim ele te educou,
justo deve ter sido — vendo-te meu discípulo. Mas, para o seres, deves
dizer-te a ti mesmo: “Reencontrei o meu pai que eu tinha perdido, um pai que
parecia um irmão mais velho, eu o encontrei no meu Jesus e a Ele, como ao
meu pai amado que eu ainda choro, direi tudo, para ter dele guia, bênção ou
mansa repreensão.” Queira o Eterno e tu, sobretudo tu, queiras agir de tal
modo, que Jesus só possa te dizer: “És bom, Eu te abençôo.”
– Oh! Sim Jesus, sim. Se Tu me amares muito, eu saberei tornar-me bom,
como Tu queres, e como meu pai queria. E minha mãe não terá mais aquele
espinho no coração. Ela dizia sempre: “Estás agora sem guia, meu filho, e
ainda tens tanta necessidade!” Quando ela souber que tenho a Ti!
– Eu te amarei, como nenhum outro homem poderia, Eu te amarei muito,
te amo muito. Não me decepciones.
– Não, Mestre, não. Eu era cheio de contrastes: invejas, ciúmes, manias
de querer ser o primeiro, a sensualidade, tudo se chocava em mim contra os
sentimentos bons. Queres ver? Agora há pouco, Tu me causaste uma dor. Ou
seja, Tu, não. O que a causou foi a minha natureza má… Eu pensava que era
o teu primeiro discípulo… e Tu me disseste que já tens um outro.
– Tu mesmo o viste. Não te lembras de que no Templo, pela Páscoa, Eu
estava com muitos galileus?
– Pensava que fossem amigos… Eu pensava que eu fosse o primeiro
escolhido para tal condição e por isso, o predileto.
– Não há distinções em meu coração entre os últimos e os primeiros. Se
o primeiro cometesse falta, e o último fosse um santo, aí então, aos olhos de
Deus é que se faria uma distinção. Mas Eu, Eu amarei da mesma forma, com
um amor feliz ao santo e com um amor sofredor ao pecador. 71.3Mas eis João
que chega com Simão. João, o meu primeiro. Simão, aquele do qual te falei
dois dias atrás. Simão e João, tu já os viste. Um era doente…
– Ah! O leproso! Eu me lembro. Já é o teu discípulo?
– Desde o dia seguinte.
– E comigo, por que tanta espera?
– Judas?!
– É verdade. Perdão.
João viu o Mestre e o mostra a Simão. Apressam o passo. A saudação
de João é um beijo trocado com o Mestre. Simão, ao invés, prostra-se ao pés
de Jesus e os beija, exclamando:
– Glória ao meu Salvador! Abençoa o teu servo para que as suas ações
sejam santas aos olhos de Deus, e eu lhe possa dar glória para bendizê-lo
por ter-me dado a Ti!
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça:
– Claro que Eu te abençôo para agradecer-te por teu trabalho. Levanta-
te, Simão. Eis, João; eis, Simão: este é o último discípulo. Ele também quer
seguir a Verdade. Por isso, é irmão de todos vós.
Saúdam-se, os dois judeus com uma indagação recíproca e João com sua
expansão.
– Estás cansado, Simão? –pergunta Jesus.
– Não, Mestre. Junto com a saúde, veio-me um vigor que eu ainda não
conhecia.
– E sei que o estás empregando bem. Tenho falado com muitos e todos
me falaram de ti como daquele que já os instruiu sobre o Messias.
Simão sorri contente:
– Ontem mesmo, à tarde, falei de Ti com uma pessoa que é um israelita
honesto. Espero que um dia o conheças. Gostaria que fosse eu quem Te
conduzisse a ele.
– Isto não é impossível.
Judas intervém:
– Mestre, Tu me prometeste ir comigo à Judéia.
– E irei. Simão continuará a instruir as pessoas sobre a minha vinda. O
tempo é breve, amigos, e o povo é numeroso. 71.4Agora Eu vou com Simão. A
tarde, vós dois ireis ao meu encontro pela estrada do Monte das Oliveiras e
distribuiremos dinheiro aos pobres. Ide.
Jesus, sozinho com Simão, lhe pergunta:
– Aquela pessoa de Betânia é um verdadeiro israelita?
– Um verdadeiro israelita. Há nele todas as idéias predominantes, mas
ele tem também uma verdadeira ânsia pelo Messias. E quando eu lhe disse:
“Ele já está entre nós”, ele respondeu imediatamente: “Feliz de mim, que
vivo nesta hora!”
– Iremos a ele um dia para levar a bênção à sua casa. Viste o novo
discípulo?
– Eu vi. É jovem e parece inteligente.
– Sim. Ele é. Tu, que és judeu, mais do que os outros será compatível de
suas idéias.
– É um desejo, ou uma ordem?
– É uma ordem serena. Tu, que sofreste, és capaz de ter mais
indulgência. A dor ensina tantas coisas!
– Se me mandas, eu serei todo indulgência para com ele.
– Sim, isto mesmo. Talvez o meu Pedro, e não só ele, fique um pouco
escandalizado, ao ver como trato e me preocupo com este discípulo. Mas um
dia eles entenderão… quanto mais alguém é mal formado, mais precisa de
cuidados. Os outros… oh! os outros vão-se formando também por si,
somente por contato. Eu não quero fazer tudo por Mim. Peço a vontade do
homem e a ajuda dos outros para formar um homem. Eu vos chamo para que
me ajudeis… e vos fico agradecido pela ajuda.
– Mestre, estás supondo que dele te venham decepções?
– Não. Mas ele é jovem e cresceu em Jerusalém…
– Oh! Perto de Ti ele se corrigirá de todos os vícios desta cidade…
Estou certo disso. Eu, já velho e tornado insensível pelo fastio da vida,
tornei-me completamente novo, desde o dia em que Te vi…
Jesus murmura:
– E assim seja.
E depois, em voz alta:
– Vem Comigo ao Templo. Vou evangelizar o povo.
E a visão termina.
72. Em direção a Belém com João,
Simão Zelote e Judas Iscariotes.
7 de janeiro de 1945.
72.1
Vejo Jesus que, desde o amanhecer, sempre junto à mesma porta, se
une aos discípulos Simão e Judas. Jesus já estava com João. Eu o ouço
dizer:
– Meus amigos, Eu vos peço que venhais Comigo pela Judéia. Se não
vos custar demais, especialmente para ti, Simão.
– Por que, Mestre?
– Porque é áspero o caminho pelos montes judaicos… e talvez ainda
mais áspero será para ti, o encontrar com alguns dos que te tenham feito mal.
– Quanto ao caminho, eu Te garanto uma vez mais que depois que me
curaste fiquei mais forte do que um jovem e nenhum trabalho me cansa, ainda
mais quando ele é feito por Ti; agora, melhor ainda, Contigo. Quanto ao
encontro com quem me tiver prejudicado, não existe mais aspereza de
ressentimentos e nem de sentimentos no coração de Simão, desde quando ele
se tornou teu. O ódio caiu junto com as escamas do meu mal. E não sei,
podes crê-lo, se devo dizer-te que fizeste um milagre maior ao curar-me a
carne corroída, ou a alma queimada pelo rancor. Penso que não estou errado
ao dizer que o milagre maior foi este último. É sempre menos fácil que fique
curada uma chaga do espírito… e Tu curaste a minha num instante. Isto é
milagre. Porque, num instante não fica curado, por mais que o queira com
todas as suas forças, o homem que está doente de um hábito moral, se Tu não
anulares aquele hábito com a tua vontade santificante.
– Não estás errado em teu julgamento.
72.2
– Por que não o fazes assim com todos? –pergunta Judas, um pouco
ressentido.
– Mas Ele o faz, Judas. Por que falas assim ao Mestre? Não percebes
que estás diferente, desde que te aproximaste Dele? Eu era discípulo de
João, o Batista. Mas me achei todo mudado, desde quando Ele me disse:
“Vem!”
João, que geralmente não intervém, e especialmente se tem que fazer
diante do Mestre não o faz nunca, desta vez não é capaz de ficar calado.
Doce e afetuoso, ele pousou uma mão sobre o braço de Judas, como para
acalmá-lo, e lhe fala muito preocupado e persuasivo. Depois, se dá conta de
que falou antes de Jesus, se enrubesce e diz:
– Perdão, Mestre. Falei no teu lugar… mas queria… queria que Judas
não Te desse um desgosto.
– Sim, João. Mas ele não me deu desgosto como discípulo. Quando o
for, então, se ele persistir em seu modo de pensar, me dará um desgosto. 72.3O
que me entristece é constatar quanto o homem está corrompido por Satanás,
que lhe desvia o pensamento. Todos, sabeis? Todos tendes o pensamento
perturbado por ele! Mas virá, oh! virá o dia em que tereis em vós a Força de
Deus, a Graça, tereis a Sabedoria, com o seu Espírito… Então, tereis tudo
para julgar com justiça.
– E todos nós julgaremos com justiça?
– Não, Judas.
– Mas, estás falando para nós, discípulos, ou para todos os homens?
– Falo referindo primeiro a vós, depois a todos os outros. Quando for a
hora, o Mestre elegerá seus operários e os enviará pelo mundo…
– Já não estás fazendo isso?
– Por enquanto, o que Eu quero é que digais: “O Messias já está entre
nós. Vinde a Ele.” Então, Eu vos farei capazes de pregar em meu nome, de
realizar milagres em meu nome…
– Oh! Também milagres?
– Sim, sobre os corpos e sobre as almas.
– Oh! Como seremos então admirados!
Judas fica exultante, com esta idéia.
72.4
– Não estaremos mais com o Mestre então, mas… eu terei sempre
medo de fazer aquilo que é de Deus, com capacidade de homem –diz
João, e olha para Jesus pensativamente e também um pouco triste.
– João, se o Mestre der licença, eu queria te dizer o que penso –diz
Simão.
– Dize-o ao João. Eu desejo que vos aconselheis mutuamente.
– Como é que sabes que é um conselho?
Jesus sorri e fica calado.
– Pois bem. Então eu te digo, João, que não deves, não devemos temer.
Apoiamo-nos em sua sabedoria de Mestre santo, e em sua promessa. Se Ele
diz: “Eu vos enviarei”, é sinal de que Ele sabe que pode enviar-nos, sem que
isso prejudique a Ele e a nós, ou seja, à causa de Deus, que todos nós
consideramos querida, como uma esposa recém-casada. Se Ele nos promete
que vestirá a nossa miséria intelectual e espiritual com os fulgores do poder
que o Pai lhe dá em favor de nós, devemos estar certos de que Ele o fará e
de que nós o poderemos, não por nós mesmos, mas pela sua misericórdia.
No entanto, certamente tudo isso acontecerá, se nós não formos orgulhosos,
nem colocarmos desejo humano em nosso trabalho. Eu penso que, se
corrompermos a nossa missão, que é toda espiritual, com elementos que são
terrestres, então não se cumprirá também a palavra de Cristo. Não por sua
incapacidade, mas porque nós estrangularemos essa capacidade com o laço
da soberba. 72.5Não sei se me explico bem.
– Tu te explicas muito bem. Eu é que estava errado. Mas, sabes… eu
penso que, no fundo, o fato de desejarmos ser admirados como discípulos do
Messias, e tão dele, a ponto de termos merecido fazer o que Ele faz, seja
mais um desejo de realçar a poderosa figura do Cristo, junto aos povos.
Louvor ao Mestre, que tem tais discípulos, isto é o que quero dizer –
responde-lhe Judas.
– Nem tudo está errado no que dizes. Mas… olha, Judas. Venho de uma
casta que é perseguida por… por ter compreendido mal o que é, e como
deve ser o Messias. Sim. Se nós o tivéssemos esperado, com uma justa visão
do seu ser, não teríamos caído em erros, que são blasfêmias à Verdade e
rebelião à lei de Roma; por isso, por Deus e por Roma fomos punidos. Nós
quisemos ver no Cristo um conquistador e um libertador de Israel, um novo
Macabeu[116], e maior do que Judas… Só isto. E, por que? Porque mais do
que dos interesses de Deus, nós temos cuidado dos nossos interesses: da
pátria e dos cidadãos. Oh! santo também é o interesse da pátria. Mas, que é
ela, diante do Céu eterno? Quanto pensei e vi: vi a verdadeira figura do
Messias… a tua, Mestre humilde e bom, a tua, Mestre e Rei do espírito, a
tua, o Cristo, Filho do Pai e que ao Pai conduzes e não aos palácios feitos de
pó, não às deidades de barro. Primeiro nas longas horas de perseguição e
depois nas de segregação quando, fugitivo, me escondia nas tocas dos
animais selvagens partilhando com eles cama e comida para escapar das
forças romanas e sobretudo da delação dos falsos amigos; ou quando,
esperando a morte, já sentia o cheiro do sepulcro na minha caverna de
leproso. Tu… oh! Como me é fácil seguir-te… Porque, perdoa a minha
ousadia que se proclama justa, porque te vejo como antes pensei que eras, eu
te reconheço, eu logo Te reconheci. Sim, não foi um conhecimento de Ti, mas
um reconhecer Alguém que minha alma já havia conhecido…
– Por isto é que te chamei… e por isto te levo Comigo, agora, nesta
minha primeira viagem pela Judéia. 72.6Quero que tu completes o
reconhecimento… e quero que também estes, que a idade torna menos
capazes de chegar à verdade, por meio de uma meditação severa, saibam
como foi que o Mestre deles chegou até esta hora… Depois entendereis. Eis-
nos à vista da torre de Davi. A porta Oriental fica lá perto.
– Sairemos por ela?
– Sim, Judas. Em primeiro lugar, vamos a Belém. Ao lugar onde Eu
nasci… É bom que o saibais… para dizê-lo aos outros. Isto também faz
parte do conhecimento do Messias e da Escritura. Encontrareis as profecias
escritas nas coisas, com voz não mais de profecia mas de história. Vamos
dar uma volta ao longo das casas de Herodes…
– A velha raposa malvada e luxuriosa.
– Não julgues. Deus é quem julga. Vamos por aquele caminho, por entre
estas hortaliças. Pararemos à sombra de uma árvore, perto de alguma casa
hospitaleira enquanto o sol estiver quente. Depois, prosseguiremos o nosso
caminho.
A visão termina.
[116] um novo Macabeu, isto é, um novo Judas M acabeu, o chefe dos judeus das quais gestas se fala esp ecialmente em: 1
Macabeus 3,1-26.
73. Em Belém, na casa de um camponês
e na gruta do Nascimento.
8 de janeiro de 1945.
73.1
Uma estrada na planície pedregosa, poeirenta, seca pelo sol do verão.
Ela se estende entre possantes oliveiras, todas carregadas de pequenas
azeitonas, que mal acabaram de formar-se. O chão, nos lugares não pisados,
tem ainda um tapete de miúdas florzinhas das oliveiras, que caíram depois
da fecundação.
Jesus, com os três, anda em fila indiana, ao longo da beira da estrada,
onde a sombra das oliveiras conservou a erva ainda verde e, por isso, ali há
menos pó.
A estrada tem uma dobra em ângulo reto, além da qual sobe levemente
em direção a um vale em forma de grande ferradura, sobre a qual estão
espalhadas numerosas casas e casinhas, de modo a formar uma pequena
cidade. Justamente no ponto em que a estrada faz esta curva, há uma
construção em forma de cubo, por onde se entra através de uma cúpula
baixa. Ela está toda fechada, e parece abandonada.
– Lá está o sepulcro de Raquel –diz Simão.
– Então, já estamos quase chegando. Vamos entrar logo na cidade?
– Não, Judas. Antes vos mostrarei um lugar… Depois, entraremos na
cidade e, visto que ainda é dia claro e a noite vai ser de luar, poderemos
falar à população. Se ela quiser escutar.
– E ela não vai querer te escutar?
73.2
Chegaram ao sepulcro, antigo, mas bem conservado, bem caiado.
Jesus se detém para beber em um poço rústico ali perto.
Oferece-lhe água uma mulher que veio apanhá-la. Jesus lhe pergunta:
– És de Belém?
– Eu sou. Mas agora em tempo de colheita estou com o meu marido neste
campo, cuidando das hortas e dos pomares. E Tu, és galileu?
– Nasci em Belém, mas moro em Nazaré da Galiléia.
– Perseguido, também Tu?
– Minha família. Mas, por que dizes “também Tu”? Entre os belemitas,
há muitos perseguidos?
– E não sabes disso? Quantos anos tens?
– Trinta.
– Então nasceste justamente quando… oh! que desventura! Mas, por que
foi nascer aqui, Aquele?
– Quem?
– Ora, aquele que se dizia o Salvador. Maldição aos tolos que,
embriagados com cerveja, viram anjos nas nuvens, ouviram nos balidos das
ovelhas e nos zurros dos burros vozes do Céu e, nas névoas da embriaguez,
confundiram três miseráveis como sendo os mais santos da terra. Maldição
para eles! E para os que creram neles.
– Mas, com todas as tuas maldições, não me explicaste ainda o que foi
que aconteceu. Por que amaldiçoas?
– Porque… Mas escuta, para onde queres ir?
– Para Belém com os meus amigos. Tenho umas coisas a fazer lá.
Preciso saudar velhos amigos e levar-lhes a saudação de minha mãe. Mas
antes, Eu queria saber muitas coisas, porque estivemos fora, nós da família,
por muitos anos. Nós deixamos a cidade, quando Eu ainda estava com
poucos meses.
– Então, foi antes da nossa desventura. 73.3Escuta, se não ficas aborrecido
com a casa de um camponês, vem dividir conosco o pão e o sal. Tu e os teus
companheiros. Falaremos durante o jantar e eu vos darei alojamento até
amanhã de manhã. Minha casa é pequena. Mas, sobre a estrebaria há muito
feno amontoado. A noite é quente e serena. Se quiseres, podes dormir.
– O Senhor de Israel recompense a tua hospitalidade. Eu irei com
alegria à tua casa.
– O peregrino traz consigo a bênção. Vamos. Mas eu preciso ainda ir
despejar seis ânforas de água sobre as verduras, que nasceram há pouco.
– Eu te ajudarei.
– Não. Tu és um senhor. Teus modos o dizem.
– Eu sou um operário, mulher. Este aqui é um pescador. Estes, judeus,
gente de posses e bem colocados. Eu, não.
E pega uma ânfora bojuda pousada perto do baixíssimo murinho do
poço, a amarra e desce-a.
João o ajuda. Os outros também não querem ficar atrás e dizem à
mulher:
– Onde estão tuas hortaliças? Mostra-nos que para lá levaremos as
ânforas.
– Deus vos abençoe! Estou com os rins machucados pelo cansaço.
Vinde.
E enquanto Jesus está tirando do poço a sua ânfora, os três desaparecem
por uma vereda abaixo… Depois voltam com as suas ânforas vazias,
enchem-nas, e vão novamente. E assim fazem, não três, mas bem umas dez
vezes. E Judas ri, dizendo:
– Ela deve estar cansada de abençoar-nos. Nós levamos tanta água para
as suas verduras que, pelo menos por dois dias, a terra estará úmida e a
mulher não precisará machucar os seus rins.
Quando ele volta pela útima vez, diz:
– Mestre, creio porém, que vamos nos dar mal.
– Por que, Judas?
– Porque a briga dela é com o Messias. Eu lhe disse: “Não blasfemes.
Não sabes que a maior graça para o povo de Deus é o Messias? Jeová o
prometeu a Jacó e a todos os profetas e justos de Israel. E tu o odeias?” E
ela me respondeu: “Não a Ele. Mas aquele que foi chamado ‘Messias’ por
uns pastores bêbados e por uns malditos adivinhos do Oriente.” E já que o
Messias és Tu…
– Não importa. Eu sei que estou colocado à prova e contradição de
muitos. E tu lhe disseste que sou Eu?
– Não. Eu não sou tolo. Eu quis salvar as tuas e as nossas costas.
– Fizeste bem. Não por causa das costas. Mas porque desejo manifestar-
me quando julgar que seja o momento justo. Vamos.
Judas o guia até às hortaliças.
73.4
A mulher despeja as últimas três ânforas e depois os conduz a uma
rústica construção que está no meio do pomar.
– Entrai –diz ela–. Meu marido já está em casa.
Eles entram em uma cozinha baixa e enfumaçada.
– A paz esteja nesta casa –saúda Jesus.
– Quem quer que sejas, a bênção para Ti e para os teus. Entra –responde
o homem.
E antes vai buscar uma bacia com água, para que os quatro se
refresquem e se lavem. Em seguida, todos entram e se assentam junto a uma
mesa tosca.
– Eu vos agradeço por minha mulher. Ela me falou. Eu nunca tinha me
aproximado de galileus; me diziam que eles eram rudes e briguentos. Mas
vós fostes gentis e bons. Vós já estáveis cansados… e ter ainda que trabalhar
daquele modo. Estais vindo de longe?
– De Jerusalém. Estes são judeus. Eu e este outro somos da Galiléia.
Mas, podes crer, homem, o bom e o mau estão em toda parte.
– É verdade. Eu, no meu primeiro encontro com os galileus, encontro o
bom. Mulher, traz a comida. Não tenho outra coisa a não ser pão, verdura,
azeitonas e queijo. Eu sou camponês.
– Eu também não sou um senhor. Eu sou carpinteiro.
– Tu? Com estes modos?
A mulher intervém:
– O hóspede é de Belém, como eu te disse, e são perseguidos ele e os
seus; talvez tenham sido ricos e instruídos, como o eram Josué de Ur, Matias
de Isaque, Levi de Abraão… pobres infelizes!
– Ninguém te perguntou nada. Perdoa-a. As mulheres são mais faladeiras
do que os pássaros à tarde.
– Eram famílias belemitas?
– Como? Não sabes quem eram, tu que és de Belém?
– Nós fugimos, quando Eu tinha poucos meses…
A mulher, que deve ser mesmo faladeira, torna a falar:
– Ele foi-se embora, antes do massacre.
– É. Estou vendo. De outro modo, não estaria mais no mundo. Não
voltaste mais por aqui?
– Não.
73.5
– Que infelicidade! Poucos encontrarás daqueles que, como me disse
Sara, Tu queres conhecer e saudar. Muitos foram mortos, muitos fugiram,
muitos… ah! estão dispersos, e nunca se soube se foram mortos no deserto,
ou se faleceram no cárcere, em punição por sua rebelião. Mas foi rebelião?
E quem ficaria passivo deixando que degolassem tantos inocentes? Não, não
é justo que ainda estejam vivos o Levi e o Elias, enquanto tantos inocentes
morreram!
– Quem são esses dois, e que foi que fizeram?
– Mas… ao menos da matança ficaste sabendo. A matança feita por
Herodes… Mais de mil crianças[117] na cidade, um outro milhar nos campos.
E todos, aliás, quase todos varões, porque naquela fúria, no escuro, no
conflito que se armou, os ferozes pegaram, arrancaram dos berços, dos leitos
maternos, das casas assaltadas, até as menininhas, e as transpassaram como
filhotinhos de gazela, transformados em alvos por um arqueiro. Pois bem, e
tudo isso por que? Porque um grupo de pastores que, para vencerem o frio
da noite, por certo beberam bastante cerveja, foram tomados pelo delírio, e
disseram ter visto anjos, ouvido canções, recebido indicações… e disseram
a nós de Belém: “Vinde. Adorai. O Messias nasceu.” Pensa: o Messias em
uma caverna! Em verdade, devo dizer que embriagados fomos todos, eu
também, então adolescente e minha mulher, que naquele tempo tinha poucos
anos… porque todos nós acreditamos, e em uma pobre mulher galiléia
quisemos ver a Virgem parturiente da qual falaram os Profetas. Mas, se ela
estava na companhia de um rude galileu! O marido certamente. Se ela era sua
mulher, como podia ser a “Virgem”? Em suma, acreditamos. Presentes,
adorações… casas abertas para hospedá-los… Oh! Como souberam
representar bem a parte deles! Pobre Ana! Perdeu os bens e a vida, e
também os filhos de sua filha, a primeira, a única que se salvou, porque
casada com um comerciante de Jerusalém, mas perderam os bens, sua casa
foi queimada, e todo o seu sítio foi arrasado por ordem de Herodes. Agora, é
um campo inculto, sobre o qual pastam os rebanhos.
– Tudo culpa dos pastores?
– Não, também dos três bruxos, que vieram dos reinos de Satanás.
Talvez fossem compadres dos três… E nós, tontos, considerávamos aquilo
tudo como uma honra para nós! E aquele pobre arqui-sinagogo! Nós o
matamos porque ele jurou que as profecias punham o selo da verdade nas
palavras dos pastores e dos magos…
– Tudo culpa, então, dos pastores e dos magos?
– Não, galileu. Nossa também. Da nossa credulidade. Havia tanto tempo
que se esperava o Messias! Séculos de espera. Muitas desilusões nos
últimos tempos, por causa dos falsos Messias. Um deles era galileu, como
Tu, um outro se chamava Teúdas. Mentirosos! Messias eles! Não eram mais
do que ávidos aventureiros, à caça de fortuna! A lição devia ter-nos feito
mais espertos. Ao invés…
73.6
– E então, por que maldizer todos, os pastores e os magos? Se vos
julgais tolos vós também, então deveríeis maldizer-vos também. Mas a
maldição não é permitida pelo preceito do amor. Maldição atrai maldição.
Tendes certeza de que estais com a verdade? Não poderia ser que os
pastores e os magos tivessem dito a verdade, a eles revelada por Deus? Por
que querer crer que eles eram mentirosos?
– Porque os anos da profecia não se tinham completado. Depois
percebemos… depois que o sangue, que avermelhou a água de nossos
tanques e rios, nos abriu os olhos do pensamento.
– E não poderia o Altíssimo, por um excesso de amor para com o seu
povo, antecipar a vinda do Salvador? Sobre o que foi que os magos
basearam suas afirmações? Disseram-me que eles vinham do Oriente…
– Nos cálculos que fizeram sobre uma nova estrela.
– E não está escrito[118]: “Uma estrela nascerá de Jacó, e uma vara se
levantará de Israel”? E Jacó não é o grande patriarca, e não fez ele uma
parada nesta terra de Belém, que para ele era tão querida como a pupila de
seus olhos, por ter aí morrido a sua querida Raquel? Além disso, não foi dito
pela boca do profeta: “Um broto despontará da raiz de Jessé, e uma flor
nascerá dessa raiz”? Isai, o pai de Davi nasceu aqui. O broto da estirpe,
cortada perto da raiz pela usurpação dos tiranos, não é a “Virgem”, que dará
à luz o Filho, não tido de homem, porque então não seria mais virgem, mas
da vontade divina, onde Ele será “o Emanuel”, porque, como Filho de Deus,
será Deus e levará por isso Deus entre o seu povo, como diz o seu nome? E
não será anunciado, como diz a profecia, aos povos das trevas, ou seja, aos
pagãos “por uma grande luz”? E a estrela vista pelos magos não poderia ser
a estrela de Jacó, a grande luz das duas profecias, a de Balaão e a de Isaías?
E a própria matança realizada por Herodes não faz parte das profecias? “Um
grito foi ouvido no alto… É Raquel que chora os seus filhos.” Estava
marcado que as lágrimas fizessem gemer os ossos de Raquel em seu
sepulcro em Efrata, quando, por meio do Salvador, tivesse chegado a
recompensa ao povo santo. Lágrimas que depois se transformariam em um
riso celeste, como o arco-íris, que é formado pelas últimas gotas do
temporal, mas diz: “Eis um tempo sereno que vos é concedido.”
– Tu és muito douto. És rabi?
– Eu sou.
– Eu estou percebendo. Há luz e verdade nas tuas palavras. Mas… oh!
muitas feridas ainda sangram nesta terra de Belém por causa do verdadeiro
ou do falso Messias… Eu não o aconselharia a vir mais aqui. A terra o
rejeitaria, como se rejeita um enteado por causa do qual morreram os filhos
verdadeiros. Mas agora… se era Ele… já está morto como os outros que
foram degolados.
73.7
– Onde estão morando agora Levi e Elias?
– Tu os conheces?
O homem suspeita de alguma coisa.
– Eu não os conheço. O rosto deles para Mim é desconhecido. Mas são
infelizes e Eu sempre tive dó dos infelizes. Quero ir procurá-los.
– Pois, sim. Serás o primeiro, depois de quase seis lustros. Eles ainda
são pastores e trabalham para um rico herodiano de Jerusalém que se
apropriou de muitos bens dos mortos… Há sempre quem ganha! Tu os
encontrarás com os rebanhos nos altos que ficam perto de Hebron. Mas, dou-
te um conselho: não te deixes ver pelos belemitas falando com eles. Ficarias
prejudicado. Nós os suportamos porque aí está o herodiano. Senão…
– Oh! Que ódio! Por que odiar?
– Porque é justo. Eles nos fizeram mal.
– Acreditavam estarem fazendo o bem.
– Mas fizeram mal. E mal a eles advenha. Devíamos matá-los, como
eles fizeram; matar por sua estultícia. Mas nós estávamos apatetados, e
depois… lá estava o herodiano.
– Se ele não estivessse lá, então, depois do primeiro, ainda compatível
impulso de vingança, vós os teríeis matado?
– Mesmo agora, nós os mataríamos, se não tivéssemos medo do patrão
deles.
– Homem, Eu te digo: não odeies. Não desejes o mal. Não desejes fazer
o mal. Aqui não há culpa. Mas ainda que houvesse, perdoa. Em nome de
Deus, perdoa. Vai dizer isto aos outros belemitas. Quando cair o ódio de
vossos corações, virá o Messias; o conhecereis, então, porque Ele está vivo,
Ele já existia, quando se deu a matança. Eu vo-lo digo. Não por culpa dos
pastores e dos magos, mas por culpa de Satanás é que aconteceu a matança.
O Messias nasceu aqui e veio trazer a Luz à terra de seus pais. Filho de mãe
virgem, da estirpe de Davi, nas ruínas da casa de Davi abriu para o mundo o
rio das graças eternas, abriu a Vida ao homem…
– Fora, fora! Sai daqui! Tu, seguidor desse falso Messias, que só podia
ser falso, porque trouxe a desventura a nós de Belém. Tu o defendes,
portanto…
– Silêncio, homem. Eu sou judeu, e tenho amigos altamente colocados.
Poderia fazer-te arrepender do insulto, dispara Judas, segurando o camponês
pela veste e sacudindo-o, com violência e ira.
– Não, não, fora daqui! Não quero aborrecimentos nem com belemitas,
nem com Roma, nem com Herodes. Ide embora, malditos, se não quereis que
vos deixe com uma marca. Fora!…
– Vamos, Judas. Não reajas! Deixemo-lo no seu ódio. Deus não penetra
onde há rancor. Vamos.
– Sim. Vamos. Mas vós me pagareis.
– Não, Judas. Não fales assim. Eles são cegos… Haverão tantos no meu
percurso…
73.8
Saem, seguindo Simão e João, que já estão fora conversando com a
mulher, atrás do canto da estrebaria.
– Perdoa ao meu marido, Senhor. Eu não esperava causar este
transtorno… Eis aqui, pega. Tu os tomarás amanhã cedo. São frescos, foram
postos hoje. Não tenho outra coisa… Perdão. Onde irás dormir? (E dá-lhe
uns ovos).
– Não penses nisso. Eu sei para onde ir. Vai em paz pela tua bondade.
Adeus.
Caminham alguns metros em silêncio. Depois, Judas explode:
– Mas Tu não te fizeste adorar! Por que não fizeste que se curvasse até à
lama, aquele sujo blasfemador? Até o chão! Abatido por ter faltado contra
Ti, que és o Messias… Oh! Eu o teria feito! Os samaritanos têm que ser
incinerados com o milagre. Só isso os convence.
– Oh! Quantas vezes terei que ouvir falar isso! Se Eu devesse incinerar a
todos os que pecam contra Mim!… Não, Judas. Eu vim para criar. Não para
destruir.
– É. Mas, enquanto isso, os outros Te destroem.
Jesus não rebate.
Simão pergunta:
– Para onde vamos agora, Mestre?
– Vinde Comigo. Eu conheço um lugar.
– Mas, se nunca estiveste aqui, desde o tempo em que fugiste, como o
conheces? –pergunta Judas, ainda irritado.
– Eu conheço. Não é bonito. Mas nele Eu já estive uma vez. Não é em
Belém… mas um pouco afastado… Vamos virar para aquele lado.
Jesus vai na frente, depois Simão, depois Judas, por último João…
73.9
Em silêncio, interrompido apenas pelo barulho das sandálias sobre as
pedrinhas do caminho, quando se ouve um soluço.
– Quem está chorando? –pergunta Jesus, virando-se.
E Judas:
– É o João. Ele ficou com medo.
– Não. Não fiquei com medo. Eu já estava com a mão na faca que trago
na cintura… Mas eu me lembrei de tua palavra: “Não mates, perdoa.”
Sempre falas assim…
– E então por que choras? –pergunta Judas.
– Porque sofro, ao ver que o mundo não quer Jesus. Não o reconhece, e
não o quer conhecer. Oh! É uma grande dor! É como se me enfiassem no
coração uns espinhos de fogo. É como se eu tivesse visto alguém pisar em
minha mãe ou cuspir no rosto de meu pai… É mais ainda do que isso… É
como se tivesse visto os cavalos romanos comendo na Arca Santa, e irem
repousar no Santo dos Santos.
– Não chores, meu João. Tu o dirás por esta e por infinitas outras vezes:
“Ele era a Luz, que veio para brilhar entre as trevas, mas as trevas não o
compreenderam. Veio ao mundo, que por Ele tinha sido feito, mas o mundo
não o conheceu. Veio à sua cidade, à sua casa, e os seus não o receberam.”
Oh! Não chores assim!
– Isto não sucede na Galiléia! –suspira João.
– E muito menos na Judéia –rebate Judas–. Jerusalém, que é a capital, há
três dias, estava dando hosanas a Ti, Messias. Aqui… lugar de rudes
pastores, camponeses e hortelãos… não pode ser tomado por base. Afinal,
os galileus também não serão todos bons. De resto, Judas o falso Messias,
de onde era? Dizia-se…
– Basta, Judas. Não convém inquietar-se. Eu estou calmo. Que vós
também assim estejais. Judas, vem cá. Eu preciso falar contigo.
Judas se aproxima dele.
– Pega a bolsa. Tu farás as despesas de amanhã.
– E agora, onde iremos hospedar-nos?
Jesus sorri, e se cala.
73.10
A noite já desceu. A lua cobre tudo de candura. Os rouxinóis cantam
entre as oliveiras. Um rio passa como uma fita de prata sonante. Dos prados,
que foram roçados, vem o cheiro do feno: quente, eu diria um cheiro sensual.
Ouve-se um ou outro mugido. Um ou outro balido. E estrelas e mais estrelas
sem conta, uma sementeira de estrelas sobre o velário do céu, um dossel de
gemas vivas, estendido sobre as colinas de Belém.
– Mas, por aqui… só há ruínas. Para onde nos estás levando? A cidade
fica daquele lado.
– Eu sei. Vem. Segue o rio, atrás de Mim. Ainda uns poucos passos, e
depois… depois vou te oferecer a hospedagem do Rei de Israel.
Judas encolhe os ombros, e se cala.
Mais uns poucos passos. Em seguida, aparece um amontoado de casas
desmoronadas. Restos de moradia… Um antro entre duas fendas do paredão.
Jesus diz:
– Trouxestes o acendedor? Acendei.
Simão acende um pequeno candeeiro que tirou do seu alforje, e o
entrega a Jesus.
– Entrai –diz o Mestre levantando a pequena luz–. Entrai. Este é o quarto
onde nasceu o Rei de Israel.
– Estás brincando, Mestre! Isto aqui é uma fétida caverna. Ah! Eu aqui
não fico mesmo! Tenho nojo de tudo isso. Este lugar é úmido, frio, fétido,
cheio de escorpiões, e talvez até de serpentes…
– Contudo… Amigos, aqui, na noite do dia 25, das Encênias, da Virgem
nasceu Jesus Cristo, o Emanuel, o Verbo de Deus feito Carne por amor do
homem: Eu, que vos falo. Também naquele tempo, como hoje, o mundo se fez
surdo às vozes do Céu, que falavam aos corações… e rejeitou a mãe… e
aqui… Não, Judas, não desvies com desgosto o teu olhar daquelas corujas
esvoaçantes, daquelas lagartixas, daquelas teias de aranha, e não soergas
com repugnância a tua bonita veste bordada para que não se arraste no chão,
que está coberto de excrementos dos animais. Aquelas corujas são as filhas
das filhas daquelas que foram os primeiros brinquedos sacudidos diante dos
olhos do Menino, para o qual os anjos cantavam o “Glória” ouvido pelos
pastores, não embriagados, senão por uma alegria extática, uma verdadeira
alegria. Aquelas lagartixas, com sua cor de esmeralda, foram as primeiras
cores que passaram pelas pupilas de meus olhos, as primeiras, depois do
candor do rosto e das vestes de minha mãe. Aquelas teias de aranha foram
dossel de meu berço real. Este chão… oh! tu o podes pisar sem desprezo…
Ele está coberto de excrementos, mas está santificado pelos pés dela, a
santa, a grande santa, a pura, a inviolada, a puérpera deípara, aquela que deu
à luz porque devia dar à luz, deu à luz, porque Deus, não o homem, lhe
mandou, e a fez ficar grávida de si. Ela, a sem mácula, pisou neste chão. Tu o
podes pisar. E, pela planta dos teus pés, queira Deus que te suba ao coração
a pureza por ela aqui derramada….
73.11
Simão está ajoelhado. João vai diretamente à manjedoura, e chora
com a cabeça nela apoiada. Judas está estarrecido… Depois é vencido pela
emoção e, sem mais pensar em sua bonita veste, prostra-se no chão, segura a
ponta da veste de Jesus, a beija e bate no peito, dizendo:
– Oh! Misericórdia, bom Mestre, da cegueira do teu servo! Minha
soberba cai por terra… eu Te vejo como és. Não o rei que eu pensava. Mas
o Príncipe eterno, o Pai do século futuro, o Rei da paz. Piedade, meu Senhor
e meu Deus! Piedade!
– Sim. Toda a minha piedade! Agora vamos dormir onde dormiu o
Infante e a virgem, onde João tomou agora o lugar da mãe em adoração, onde
Simão está parecendo o meu pai adotivo. Ou, se assim preferis, Eu vos
falarei daquela noite….
– Oh! Sim, Mestre. Faze-nos conhecer o teu florescer!
– Para que seja uma pérola de luz em nossos corações. E para que o
possamos narrar ao mundo.
– E venerar tua mãe, não somente por ser mãe, mas por ser… oh! por ser
a virgem!
Primeiro falou Judas, depois Simão e, por fim João, com um rosto que
está chorando e rindo, lá junto à manjedoura!…
– Vinde sobre o feno. Ouvi…
E Jesus narra como foi a noite do seu nascimento:
– … estando a mãe já perto do tempo de dar à luz, foi, por ordem de
César Augusto, feito um edito pelo delegado imperial Públio Sulpício
Quirino, quando era governador da Palestina Sêncio Saturnino. O edito era:
que se fizesse o recenseamento de todos os habitantes do Império. Aqueles
que não fossem escravos deviam ir para os seus lugares de origem, para se
inscreverem nos registros do Império. José, esposo da mãe, era da estirpe de
Davi, e de Davi era a mãe. Obedecendo, por isso, ao edito, deixaram Nazaré
para virem até Belém, berço da estirpe real. O tempo estava frio…
Jesus continua a narração e tudo cessa neste ponto.
[117] mil crianças…, Assim escreve M aria Valtorta num folheto que inseriu no fascículo da cóp ia dactilografada: Em mérito
aos Inocentes mortos no massacre de Erodes: Número exacto é 32. Desses, 18 foram mortos na cidade de Belém e 14 nos
campos próximos de Belém. Entre os mortos figuram também 6 crianças do sexo feminino, não identificadas como fêmeas
pelos sicários, dado que estavam, machos e fêmeas, vestidos todos de igual modo, e também pela pressa de matar e pela
escuridão da noite. Como sempre acontece, o camponês exagera e desvirtua a verdade das coisas. E assim, muitas legendas
falsas se criaram substituindo-se à verdade. Exclusa a consideração sobre o exagero do camp onês, a nota de M aria Valtorta é a
transcrição, não de todo textual e p rovavelmente feita de mente, de uma nota de 28 de Fevereiro de 1947 (mencionada no
volume “Os Cadernos de 1945 a 1950”), da qual discorda nos números: 320 em vez de 32, 188 em vez de 18, 132 em vez de
14, 64 em vez de 6.
[118] está escrito, em: Génesis 35,15-20; Números 24,15-17; 1 Samuel 17,12; Isaías 7,14; 9,1; 11,1; Jeremias 31,15. Os
reenvios bíblicos, de que fizemos o elenco p or ordem canónica dos livros, comp reendem seja as exp ressões citadas que os
eventos ap resentados.
74. No albergue de Belém e nos escombros da casa
de Ana.
9 de janeiro de 1945.
74.1
As primeiras horas de uma luminosa manhã de verão. O céu tinge-se
de cor-de-rosa em algumas tênues nuvenzinhas, que parecem feitas de gaze
desfiada sobre um tapete de cetim azul. Por toda parte ouve-se o canto dos
pássaros, já embriagados pela luz… pardais, melros, pintarroxos cantam,
chilreiam, brigam por um pedacinho de erva seca, por uma lagarta, por um
raminho a ser levado ao ninho, a ser enfiado no papinho, a servir de poleiro.
As andorinhas se arrojam do céu ao pequeno rio, para lavar seus alvos
peitos, tingidos, em cima, de ferrugem, e, alegres pelo frescor da água,
apanham algum mosquito ainda dormente sobre o talo da erva, e fendem o ar
como uma lâmina brunida, chilreando alegres.
Duas lavandiscas, vestidas de uma seda cinzenta, passeiam graciosas
como duas senhoritas, ao longo da beira do riacho, conservando erguida a
cauda, ornada com veludinhos negros; vão espelhar-se na água, acham-se
bonitas, retomam o passeio, escarnecidas por um melro, verdadeiro gaiato
do bosque, que assobia atrás delas, com o seu comprido bico amarelo. Em
uma ramosa macieira silvestre, que se ergue solitária junto às ruínas, um
rouxinol chama insistentemente sua companheira, e somente se cala quando a
vê chegar com uma comprida lagarta, que se torce, no aperto do bico fino.
Dois pombos de torre, provavelmente evadidos de algum pombal da cidade,
e que escolheram uma morada livre nas fendas de um torreão em ruínas,
abandonam-se às suas expansões, ele, sedutor, garganteando, e ela
arrulhando pudica.
Jesus, com os braços cruzados sobre o peito, olha para todos estes
alegres animaizinhos e sorri.
– Já estás pronto, Mestre? –pergunta Simão às suas costas.
– Já estou pronto. Os outros ainda estão dormindo?
– Ainda estão.
– São jovens… Fui tomar um banho no rio… Uma água fresca que
desanuvia a mente…
– Agora eu vou.
Enquanto Simão, vestido apenas com uma curta túnica, toma seu banho e
depois põe a roupa, aparecem Judas e João.
– Deus te salve, Mestre. Estamos atrasados?
– Não. A manhã ainda está começando. Mas agora preparai-vos logo e
vamos.
Os dois tomam banho, e se vestem com a túnica e o manto.
Jesus, antes de pôr-se a caminho, arranca umas florzinhas nascidas entre
as fendas de duas pedras e as coloca em uma caixinha de madeira, na qual já
estão outras coisas, que eu não distingo bem. Ele explica:
– Vou levá-las para a mãe. Ela gostará muito… 74.2Vamos.
– Aonde vamos, Mestre?
– A Belém.
– Ainda? Parece-me que por lá não encontraremos bons ares…
– Não importa. Vamos. Quero mostrar-vos o lugar onde os Magos
apearam e onde Eu estava.
– Então escuta. Perdoa, sim, Mestre? Mas deixa-me falar. Vamos fazer
uma coisa. Em Belém, e no albergue, deixa que eu faça o discurso e as
perguntas. Para vós, galileus, não há muito amor na Judéia, e aqui ainda
menos do que em outros lugares. Então, vamos fazer assim: Tu e João
pareceis galileus até na veste. Tendes uma veste muito simples. E depois…
esses cabelos! Por que teimais em conservá-los tão compridos? Eu e Simão
daremos a vós os nossos mantos, e usaremos os vossos. Tu, Simão, darás o
teu a João. E eu ao Mestre. Eis… assim. Estás vendo? Num momento
ficareis parecendo um pouco mais judeus. Agora, isto.
Judas tira o seu capuz — é um pedaço de tela com listras amarelas,
marrons, vermelhas, verdes, como o manto, todas alternadas, estando preso
em seu lugar por um cordão amarelo — e o coloca na cabeça de Jesus,
ajeitando-o ao longo das faces, para esconder os longos cabelos loiros. João
fica com o verde bem escuro de Simão:
– Oh! Agora está melhor! Eu tenho um senso prático.
– Sim, Judas. Tu tens o senso prático. É verdade. Toma cuidado, porém,
para que ele não supere o outro senso.
– Qual, Mestre?
– O senso espiritual.
– Não! Mas em certos casos é bom sabermos ser mais políticos do que
embaixadores. E escuta… Sê bom ainda… é para o teu bem… Não me
desmintas se eu disser algumas coisas… algumas coisas… que não são
verdade, é isso.
– Que é que estás querendo dizer? Por que mentir? Eu sou a Verdade, e
não quero mentira, nem em Mim, nem em torno a Mim.
– Oh! Eu não direi senão meias mentiras. Direi que estamos todos
voltando de lugares distantes, do Egito talvez, e que desejamos ter notícias
de amigos queridos. Direi que somos judeus que estamos de volta de um
exílio… No fundo, em tudo há um pouco de verdade… e depois, quem está
falando sou eu… mentira mais, mentira menos…
– Mas, Judas! Para que enganar?
– Deixa para lá, Mestre! O mundo se rege sobre mentiras. E algumas
vezes elas são necessárias. Bem, para fazer-te contente, eu direi só que
viemos de longe e que somos judeus. Isto é verdade, são três quartos da
verdade. E tu, João, não fales nunca, porque te trairias.
– Eu ficarei calado.
– Depois… se as coisas forem andando bem… então diremos o resto.
Mas não tenho muitas esperanças. Eu sou astuto, e pego as coisas no ar.
– Eu estou vendo, Judas. Mas, Eu preferiria que fosses simples.
– Pouco adianta. No teu grupo eu serei aquele das missões difíceis.
Deixa-me agir.
Jesus está pouco propenso, mas cede.
74.3
Eles vão. Passam ao longo das ruínas, depois vão beirando um
paredão sem aberturas, além do qual se ouve o zurrar, o mugir, o relinchar, o
balir e aquele rinchar escangalhado dos camelos ou dromedários. O paredão
tem um canto. Eles o contornam. Ei-los na praça de Belém. O tanque da fonte
está no centro da praça, que tem a forma enviesada de sempre; contudo, é
diferente no lado oposto ao albergue. Lá, onde estava a casinha, na qual,
quando penso, vejo-a ainda toda de prata pura, sob os raios da Estrela, é um
campo aberto, cheio de escombros. Somente a pequena escada está ainda, de
pé, com o seu pequeno terraço. Jesus olha e suspira.
A praça está cheia de pessoas em volta dos vendedores de mantimentos,
utensílios, tecidos, etc., que estenderam sobre esteiras, ou colocaram em
cestas suas mercadorias, todas postas no chão, e estão eles também
acocorados no centro de seu… negócio, quando não estão gritando e
gesticulando em pé, em altercação com algum comprador seguro.
– É dia de feira –diz Simão.
A porta, ou melhor, o portão do albergue está aberto de par em par, e
por ele sai uma fila de burros carregados de mercadorias.
Judas entra primeiro. Olha ao seu redor. Arrogante, ele agarra um
pequeno moço de estrebaria, sujo e sem camisa, ou seja, vestido apenas com
uma veste de baixo, sem mangas e que chega até os joelhos:
– Rapaz! –grita–. O patrão! Já! Vai rápido, que eu não estou acostumado
a esperar.
O rapaz vai correndo, arrastando atrás de si uma vassoura de limpeza.
– Mas Judas! Que modos!
– Silêncio, Mestre. Deixa-me agir. É preciso que acreditem que somos
uns ricaços da cidade.
Chega correndo o patrão, que quase quebra as costas, em mesuras diante
de Judas, que está todo imponente, no manto vermelho escuro de Jesus, sobre
sua rica veste amarelo-ouro, toda cheia de cintas e franjas.
– Homem, nós viemos de longe. Somos judeus das comunidades
asiáticas. Este aqui, nascido em Belém, está sendo perseguido e procura os
seus amigos daqui. E nós viemos com Ele. Estamos chegando de Jerusalém,
onde adoramos o Altíssimo na sua Casa. Pode dar-nos algumas informações?
– Senhor… o teu servo… Tudo por ti. Manda.
– Queremos saber de muitos… e especialmente de Ana, que tinha casa
defronte do teu albergue.
– Oh! Coitada! Ana não será mais por vós encontrada, a não ser no seio
de Abraão. E, com ela, os seus filhos.
– Foi morta? Por que?
– Não sabeis da matança de Herodes? O mundo todo falou dela, e até
César o definiu como “um porco que se nutre de sangue.” Ai! Que foi que eu
disse! Não me denuncieis! És mesmo judeu?
– Eis o sinal da minha tribo. E então? Fala.
– Ana foi morta pelos soldados de Herodes, com todos os seus filhos,‐
menos uma.
– Mas, por que? Era tão boa!
– Tu a conheceste?
– Muito.
Judas mente descaradamente.
– Ela foi morta, por ter hospedado aqueles que se diziam pai e mãe do
Messias… 74.4Vem cá, neste quarto… As paredes têm ouvidos, e falar de
certas coisas… é perigoso.
Entram em um pequeno quarto escuro e baixo. Assentam-se num baixo
sofá.
– Pois é… eu tive um bom faro. Não é sem motivo que eu sou
albergueiro. Eu nasci aqui, sou filho de filhos de albergueiros. Tenho a
malícia no sangue. Por isso, eu não quis recebê-los. Talvez um buraco para
eles eu teria encontrado. Mas… galileus, pobres, desconhecidos… ah! não!
O Ezequias não cai nessa! E depois… eu sentia… sentia que eram
diferentes… aquela mulher… com uns olhos… não, não, ela devia ter o
demônio dentro de si, e que lhe falava. E ela o trouxe aqui… a mim não, mas
na cidade. Ana era mais inocente do que uma ovelhinha, e os hospedeu
poucos dias depois, já com o Menino. Diziam que ele era o Messias… Oh!
Quanto dinheiro eu ganhei naqueles dias! Mais do que durante o
recenseamento! Vinham também aqueles que não estavam obrigados a vir
para o recenseamento. Vinham do mar, e até do Egito, para ver… e isso
durante meses! Quanto eu ganhei!… Por último, vieram três reis, três
poderosos, três magos… sei lá! Foi um verdadeiro cortejo! Não acabava
mais! Ocuparam-se todas as estrebarias, e pagaram em ouro, o feno que dava
para um mês, e foram embora no dia seguinte, deixando tudo aí. E, quantos
presentes deram aos empregados nas estrebarias, às mulheres, e a mim!
Oh!… Eu, do Messias, verdadeiro ou falso, só posso falar bem. Ele me fez
ganhar moedas aos montes. Prejuízos eu não tive. Mortos tampouco, porque
eu tinha acabado de me casar. Portanto… Mas os outros!
74.5
– Queremos ver os lugares da matança.
– Os lugares? Mas todas as casas foram lugar de matança. Até várias
milhas ao redor de Belém, houve mortos. Vinde comigo.
Sobem uma escada até um grande terraço sobre o teto. Do alto se vê um
grande campo e toda Belém[119] estendida como um leque aberto sobre suas
colinas.
– Estais vendo os pontos destruídos? Ali foram queimadas também as
casas, porque os pais defenderam os seus filhos, com armas. Estais vendo lá
aquela espécie de poço coberto de hera? Aquilo é o que restou da sinagoga.
Queimada com o arqui-sinagogo, que havia afirmado ser aquele o Messias.
Queimada pelos sobreviventes, enlouquecidos por causa da morte de seus
filhos. Quantos aborrecimentos tivemos depois… E lá, e lá, e lá… estais
vendo aqueles sepulcros? São das vítimas… Parecem ovelhinhas espalhadas
entre o verde, a perder de vista… Todos os inocentes e os pais e as mães
dos mesmos… Estais vendo aquele tanque? Era vermelha a sua água depois
que nele os sicários limparam suas armas e suas mãos. E aquele rio, lá atrás,
vós o vistes? Chegou a ficar cor-de-rosa, por causa da grande quantidade de
sangue que ele recebeu das cloacas… E ali, eis, ali… na frente. Aquilo é o
que resta de Ana.
Jesus chora.
– Tu a conhecias bem?
Responde Judas:
– Ela era como uma irmã para a sua mãe. Não é verdade, amigo?
Jesus responde somente:
– Sim.
– Compreendo –diz o albergueiro, e fica pensativo.
74.6
Jesus se inclina para falar mais baixo com Judas.
– O meu amigo queria andar sobre aquelas ruínas –diz Judas.
– Pois vá. Elas são de todos!
Eles descem. Saúdam, e vão. O hospedeiro fica decepcionado. Talvez
esperasse ganhar alguma coisa.
Atravessam a praça. Sobem pela escadinha que sobrou.
– Daqui –diz Jesus– minha mãe me fez saudar os Magos, e daqui
descemos, para irmos ao Egito.
Algumas pessoas estão olhando os quatro sobre as ruínas. Uma delas
pergunta:
– Serão parentes da morta?
– Amigos.
Uma mulher grita:
– Não façais mal à morta, ao menos vós, como os outros seus amigos
fizeram mal a ela enquanto viva, e depois escaparam salvos.
Jesus está ereto no corredor, junto à parede que o limita, e por isso a
uma boa altura, cerca de dois metros, acima da praça, com o vazio atrás de
si. Um vazio cheio de sol, que o nimba todo e faz ainda mais cândida a veste
de linho alvíssimo, que o cobre sozinho, agora que o manto escorregou-lhe
das costas e está aos pés Dele como uma base multicor. Atrás ainda, o fundo
verde e desordenado daquilo que foi a horta e o campo de Ana, agora
transformado em um matagal coberto de escombros espalhados.
74.7
Jesus estende os braços. Judas, que vê o gesto, diz:
– Não fales! Não é prudente!
Mas Jesus enche a praça com sua voz potente:
– Homens de Judá! Homens de Belém, ouvi! Ouvi, ó vós, mulheres da
terra consagrada a Raquel! Ouvi a alguém que vem de Davi que, perseguido,
sofreu, e que tornado digno de falar, fala, para dar-vos luz e conforto. Ouvi.
As pessoas param de gritar, discutir, comprar, e se ajuntam.
– É um rabi!
– Certamente vem de Jerusalém.
– Quem é?
– Que belo homem!
– Que voz!
– Que modos!
– E, além disso, se é da descendência de Davi!
– Então é nosso.
– Ouçamos, ouçamos!
Toda a praça está agora perto da escadinha, que parece um púlpito.
– No Gênesis está escrito[120]: “Eu porei inimizade entre ti e a mulher…
esta te esmagará a cabeça, e tu armarás ciladas ao seu calcanhar.” E está
escrito ainda: “Eu multiplicarei os teus sofrimentos e as tuas gestações… e a
terra produzirá abrolhos e espinhos.” Esta foi a condenação do homem, da
mulher e da serpente.
Tendo vindo de longe para venerar o túmulo de Raquel, ouvi no vento da
tarde, no orvalho da noite, no lamento do rouxinol pela manhã, repetir-se os
soluços da antiga Raquel[121], pelas tantas bocas das mães de Belém
encerradas nos sepulcros, ou nos corações. E ouvi o rugir da dor de Jacó, na
dor dos viúvos, que ficaram sem suas esposas, porque a dor as matou… Eu
choro convosco. Mas ouvi, ó irmãos da minha terra. Belém, terra bendita, a
menor das cidades de Judá, mas a maior aos olhos de Deus e da humanidade
porque berço do Salvador, como diz Miquéias[122], exatamente por ser
assim, por ser destinada a ser o tabernáculo sobre o qual pousaria a Glória
de Deus, o Fogo de Deus, o seu Amor encarnado, desencadeou o ódio de
Satanás.
“Porei inimizade entre ti e a mulher. Ela te manterá sob o seu pé, e tu
armarás ciladas ao seu calcanhar.” Que inimizade há maior do que aquela,
que tem em mira os filhos, que são o coração do coração da mulher? E qual
é o mais forte pé do que aquele da mãe do Salvador? Eis porque foi natural a
vingança de Satanás vencido, o qual, não ao calcanhar, mas ao coração das
mães, pela Mãe, ocorreu a sua insídia.
Oh! Multiplicados sofrimentos, ao perderem os filhos, depois de tê-los
dado à luz! Oh! Terríveis espinhos de ter semeado e suado pela prole e
serem pais sem terem mais a sua prole! Mas jubila, Belém! O teu sangue
mais puro, o sangue dos inocentes, fez um caminho de fogo e de púrpura para
o Messias…
74.8
A multidão, que vinha sempre mais rumorejando, desde quando Jesus
falou no Salvador, e depois na mãe Dele, agora mostra um sinal mais claro
de agitação.
– Cala-te, Mestre –diz Judas–. E vamos embora.
Mas Jesus não lhe dá ouvidos, e continua:
– … para o Messias, que a Graça de Deus Pai salvou dos tiranos, a fim
de conservá-lo para a salvação do povo e…
Uma voz estridente de mulher grita:
– Cinco, cinco deles eu tinha dado à luz, e mais nenhum está em minha
casa! Pobre de mim!
E grita histericamente. É o começo da algazarra.
Uma outra se revolve na poeira, rasga as vestes, mostra uma de suas
mamas mutilada no bico, e grita:
– Aqui, aqui sobre esta mama é que degolaram o meu primogênito! A
espada cortou-lhe o rosto, juntamente com o bico do meu seio. Oh! O meu
Eliseu!
– E eu? E eu? Eis ali o meu palácio! Três túmulos em um, velados pelo
pai. Marido e filhos juntos. Eis, eis!… Se aqui está o Salvador, que ele me
devolva os filhos, me devolva o esposo, me salve do desespero e de
Belzebu, me salve!
Todos gritam.
– Os nossos filhos, os maridos, os pais! Devolva-os, se é que está aqui!
Jesus move os braços, impondo silêncio.
– Irmãos da minha terra, Eu gostaria de devolver-vos vossos filhos em
sua própria carne. Mas Eu vos digo: Sede bons, resignados, perdoai,
esperai, alegrai-vos em uma esperança, jubilai em uma certeza. Logo
reavereis os vossos filhos, anjos no Céu, porque o Messias está para abrir as
portas dos Céus e, se fordes justos, a morte será Vida que vem e Amor que
volta…
– Ah! És Tu o Messias? Dize-o em nome de Deus!
Jesus abaixa os braços, com aquele seu gesto suave, manso, que parece
um abraço, e diz:
– Eu o sou!
– Fora! Fora! Então é por tua culpa!
Passa voando uma pedra, por entre assobios e escárnios.
74.9
Judas dá um belo salto… oh! se ele tivesse sido sempre assim!
Coloca-se na frente do Mestre, de pé sobre o muro do terraço, o manto
desdobrado, e recebe, destemido, as pedradas, e até uma que lhe sangra, e
grita para o João e o Simão:
– Levai Jesus embora. Levai-o para atrás daquelas árvores. Depois eu
irei. Ide, em nome do Céu!
E para a multidão:
– Cães hidrófobos! Eu sou do Templo, e ao Templo e a Roma vos
denunciarei.
A multidão, por um momento, sente medo. Mas depois recomeça o
apedrejamento, por sorte, inábil. E Judas, impassível o recebe, respondendo
com afrontas às maldições do povo. Aliás, agarra no ar uma das pedras e a
remete sobre a cabeça de um velhote, que grita, como uma pega que está
sendo depenada viva. E, como estão tentando subir até o seu pedestal, ele,
rápido, pega um galho seco, que está no chão (agora ele desceu do muro), e
desce o galho sobre costas, cabeças, mãos, sem piedade.
Chegam as milícias e, com suas lanças, vão abrindo caminho:
– Quem és? Por que essa briga?
– Um judeu está sendo agredido por estes plebeus. Estava comigo um
rabino conhecido dos sacerdotes. Ele estava falando a estes cães. E eles
escaparam das correntes, e nos atacaram.
– Quem és tu?
– Judas de Keriot, que já fui do Templo, e agora sou discípulo do Rabi
Jesus da Galiléia. Sou amigo do fariseu Simão, do saduceu Jocanã, do
conselheiro do Sinédrio José de Arimatéia, e, enfim, isto podes conferir, de
Eleazar ben Ana, o grande amigo do Procônsul.
– Irei verificar. Para onde vais?
– Vou com meu amigo para Keriot, e depois para Jerusalém.
– Vai. Nós defenderemos tuas costas.
Judas estende a mão com umas moedas para o soldado. Deve ser uma
coisa ilícita… mas usual, porque o soldado as pega, rápido e cauteloso, o
saúda e sorri. Judas desce do seu pódio e vai aos saltos pelo campo inculto,
e alcança os companheiros.
– Estás muito ferido?
– Coisa de nada, Mestre. Depois, foi por Ti… Mas eu também bati.
Devo estar todo sujo de sangue…
– Sim, na face. Aqui há um fio de água.
João molha um paninho e lava a face de Judas.
– Lamento Judas… Mas vê… também dizer a eles que éramos judeus,
segundo o teu senso prático…
– São uns animais. Creio que terás ficado persuadido disso, Mestre. E
que não insistirás.
– Oh! Não. Não por medo. Mas porque é inútil, por enquanto. Quando
não nos querem, não os maldizemos, mas nos retiramos, rezando pelos
pobres loucos, que estão morrendo de fome, e não enxergam o Pão. Vamos
por este caminho remoto. Creio que podemos tomar o caminho para Hebron.
Para os pastores, se os encontrarmos.
– Para levarmos mais pedradas?
– Não. Para dizer a eles: “Sou Eu”.
– Ah! Então é certo que vão bater em nós. Há trinta anos que estão
sofrendo por tua causa!….
– Veremos.
E lá se vão por um pequeno bosque compacto, sombreado, fresco, e eu
os perco de vista.
[119] Belém, da qual M aria Valtorta esboçou uma p equena carta num p edaço de p ap el de linhas, no verso do qual escreveu as
duas linhas que p usemos no alto do desenho: Se não me engano na primeira parte (porque não o vi nas visões) vejo Belém
assim. As p alavras no desenho são, além das dos quatro p ontos cardeais: Jerusalém – estrada principal (duas vezes) – estrada
secundária percorrida por Jesus – primeira leve ondulação do solo – IIº arco de colinas – perímetro de Belém – fonte –
pousada – gruta – sepulcro de Raquel – casa de camponês.
[120] está escrito, em: Génesis 3,14-19.
[121] soluços da antiga Raquel, como em: Jeremias 31,15.
[122] diz Miqueias, em : Miqueias 5,1.
75. Jesus reencontra os pastores Elias e Levi.
11 de janeiro de 1945.
75.1
As montanhas vão ficando muito mais altas e selvosas do que aquelas
de Belém, e elevam-se cada vez mais, em uma verdadeira cadeia de
montanhas.
Jesus sobe na frente de todos, lançando o olhar à frente, em torno, como
se procurasse alguma coisa. Ele não fala. Escuta mais as vozes da mata do
que a dos discípulos, que vão alguns metros atrás Dele, conversando entre
si.
Ouve-se ao longe um cincerro, mas o vento traz o seu som até Jesus. Ele
sorri, e se volta para os outros:
– Estou ouvindo as ovelhas –diz Ele.
– Onde, Mestre?
– Parece-me que na direção daquela colina. Mas o bosque não me deixa
ver.
João não diz nada. Tira o seu hábito — os mantos, todos os estão
levando a tiracolo, enrolados, porque estão acalorados — e, só com a túnica
curta, se abraça a um tronco alto e liso, que eu diria de um freixo, e sobe, vai
subindo… até que vê:
– Sim, Mestre. Há muitos rebanhos e três pastores lá atrás daquele
bosque.
Depois, ele desce, e vão tranqüilos.
– Serão eles?
– Nós perguntaremos, Simão, e se não são eles, nos dirão alguma coisa.
Eles se conhecem entre si.
Depois de andarem cerca de uns cem metros, aparece um grande pasto
verde, todo cercado por grossas e velhas árvores. 75.2Muitas ovelhas estão
sobre o prado ondulado, pastando a basta erva. Três homens as estão
olhando. Um deles é velho, já todo encanecido, os outros têm, um os seus
trinta, e o companheiro seus quarenta anos, mais ou menos.
– Cuidado, Mestre. São mandriões… –aconselha Judas, ao ver que Jesus
apressou o passo.
Mas Jesus nem lhe responde. E vai alto, bonito, com o sol poente lhe
batendo no rosto, e com sua veste branca. Parece um anjo, de tão luminoso
que está…
– A paz esteja convosco, amigos, Ele saúda, quando chega na entrada do
prado.
Os três se viram, espantados. Há um silêncio. Depois, o mais velho
pergunta:
– Quem és?
– Alguém que te ama.
– Serias o primeiro, depois de tantos anos. De onde vens?
– Da Galiléia.
– Da Galiléia? Oh!
O homem o olha atentamente. Os outros também já se aproximam.
– Da Galiléia –repete o pastor, e acrescenta em voz baixa, falando para
si mesmo–: Ele também tinha vindo da Galiléia… De que lugar, Senhor?”
– De Nazaré.
– Oh! Diz-me, então. Terá voltado para lá um menino, com uma mulher
chamada Maria e um homem chamado José, um menino ainda mais bonito do
que a sua mãe, que flor mais bonita nunca se viu nas encostas de Judá? Um
menino nascido em Belém de Judá, no tempo do edito? Um menino que fugiu
depois, para a grande sorte do mundo. Um menino, que eu daria a vida para
saber se ainda está vivo, se já é um homem feito!
– Por que dizes que foi a grande sorte do mundo o ter Ele fugido?
– Porque Ele era o Salvador, o Messias, e Herodes queria matá-lo. Eu
não estava aqui, quando Ele fugiu com o pai e a mãe… Quando fiquei
sabendo da matança, e voltei… — porque eu também tinha filhos (um
soluço), Senhor, e uma mulher… (soluço) e ouvi dizer que estavam mortos
(outro soluço), mas eu te juro pelo Deus de Abraão, por causa Dele eu
tremia mais do que pela minha própria carne — fiquei sabendo que Ele tinha
fugido, e nem pude fazer perguntas; nem pude ir recolher os corpos dos meus
filhos degolados… Perseguido a pedradas, como se fosse um leproso, um
imundo, um assassino… e precisei fugir para os bosques, levar uma vida de
lobo… até que encontrei um patrão. Oh! Ana não existe mais… É duro e
cruel… Se uma ovelha se aleija, se o lobo me pega um cordeiro, ou eu vou
ser espancado até o sangue, ou vão tirar-me o meu pouco ganho, ou vou
trabalhar nos bosques para os outros, fazer qualquer coisa, mas pagando
sempre três vezes mais do que o justo valor. Mas não importa. Eu sempre
tenho dito ao Altíssimo: “Deixa-me ver o teu Messias, deixa-me pelo menos
saber que Ele está vivo, e tudo o que tenho sofrido é nada.” Senhor, eu te
disse como fui tratado pelos belemitas e como estou sendo tratado pelo
patrão. Eu podia ter retribuído ao mal com mal, ou praticar o mal, roubando,
para não ter que sofrer com o patrão. Mas, eu só quis perdoar, sofrer, ser
honesto, porque os anjos haviam dito: “Glória a Deus nos Céus altíssimos, e
paz na terra aos homens de boa vontade.”
– Foi assim mesmo que os anjos disseram?
– Sim, Senhor, podes crê-lo Tu, ao menos Tu, que és tão bom. Fica
sabendo Tu, pelo menos, e crede que o Messias já nasceu. Ninguém quer
mais crer nisso. Mas os anjos não mentem… e nós não estávamos bêbados,
como disseram. Este, que estás vendo, naquele tempo era um menino, e foi o
primeiro a ver o anjo. Ele só bebia leite. Será que o leite pode embriagar?
Os anjos disseram: “Hoje na cidade de Davi nasceu o Salvador, que é
Cristo, o Senhor. E vós o reconhecereis pelo seguinte: Encontrareis um
Menino deitado em uma manjedoura, envolvido em faixas.”
– Foi assim mesmo que falaram? Não tereis entendido mal? Não estareis
enganados, depois de tanto tempo?
– Oh! Não! Não é verdade, Levi? Para não nos esquecermos daquelas
palavras — e nem o poderíamos, porque eram palavras do Céu, e foram
escritas com o fogo do Céu em nossos corações — todas as manhãs, todas as
tardes, quando o sol surge, quando brilha a primeira estrela, nós as dizemos
como oração, como pedido de bênção, para termos força e conforto, em
nome Dele e da mãe.
– Ah! Vós dizíeis: “O Cristo”?
– Não, Senhor. Nós dizemos: “Glória a Deus nos Céus altíssimos e paz
na terra aos homens de boa vontade, por Jesus Cristo que nasceu de Maria
em uma estrebaria em Belém e que, envolvido em faixas, estava em uma
manjedoura, Ele que é o Salvador do mundo.”
75.3
– Mas em suma, a quem vós procurais?
– A Jesus Cristo, Filho de Maria, o Nazareno, o Salvador.
– Sou Eu.
Jesus resplandece ao dizer isso, manifestando-se a esses seus firmes
amadores. Firmes, fiéis, pacientes.
– Tu! Oh! Senhor, Salvador, Nosso Jesus!
Os três se prostram por terra e beijam os pés de Jesus chorando de
alegria.
– Levantai-vos. Levanta-te Elias, e tu, Levi, e tu que não sei quem és.
– José, filho de José.
– Estes são os meus discípulos: João, galileu, Simão e Judas, judeus.
Os pastores não estão mais com o rosto por terra, mas estão ainda de
joelhos, largados para trás sobre os calcanhares, e adoram o Salvador com
olhos de amor, com lábios que tremem de emoção, com rostos
embranquecidos ou avermelhados pela alegria.
Jesus se assenta sobre a relva.
– Não, Senhor. Sobre a relva, Tu não, ó Rei de Israel!
– Deixai, amigos. Eu sou pobre. Para o mundo, Eu sou carpinteiro. Só
sou rico de amor que tenho para com o mundo, e do amor que os bons me
dão. Eu vim para estar convosco, para partir convosco o pão da tarde, para
dormir ao vosso lado sobre o feno, e receber de vós um conforto…
– Oh! Conforto! Nós somos rudes e perseguidos.
– Eu também sou perseguido. Mas vós me dais o que Eu procuro: amor,
fé e esperança que resiste através dos anos, e ainda dá flor. Estais vendo?
Vós soubestes esperar, crendo sem dúvidas que era Eu. E Eu vim.
– Oh! Sim! Vieste. Agora, mesmo que eu morra, não tenho nada mais que
me dê aquela pena por uma coisa que foi esperada, e não tida.
– Não, Elias. Tu viverás, até depois do triunfo de Cristo. Tu, que viste a
minha aurora, deves ver também o meu fulgor. 75.4E os outros? Vós éreis doze:
Elias, Levi, Samuel, Jonas, Isaque, Tobias, Jônatas, Daniel, Simeão, João,
José e Benjamim. Minha mãe me dizia sempre os vossos nomes. Como sendo
dos meus primeiros amigos.
– Oh!
Os pastores estão cada vez mais comovidos.
– Onde estão os outros?
– O velho Samuel morreu de idade, há vinte anos. José foi morto por ter
combatido à porta do recinto, para dar tempo à esposa, que havia dado à luz
poucas horas antes, para fugir com este aqui, que eu recolhi por amor ao
amigo, e para… para ter ainda meninos ao meu redor. Também a Levi eu
tomei comigo… Ele era um dos perseguidos. Benjamim é hoje pastor nas
terras do Líbano, junto com Daniel. Simeão, João e Tobias, que agora tomou
o nome de Matias em memória de seu pai, também ele assassinado, são
discípulos de João. Jonas está na planície de Esdrelon, a serviço de um
fariseu. Isaque está com os rins quebrantados, vive em uma miséria absoluta,
e mora sozinho em Juta. Nós o ajudamos, como podemos… mas vivemos
perseguidos, e o que lhe podemos dar é como gotas de orvalho em um
incêndio. Jônatas agora é servo de um dos grandes de Herodes.
– Como pudestes, especialmente Jônatas, Jonas, Daniel e Benjamim ir
trabalhar nesses serviços?
– Eu me lembrei de Zacarias, teu parente… Tua mãe me tinha mandado a
ele. E, quando nos encontramos nos desfiladeiros da Judéia, fugitivos e
malditos, eu os levei a ele. Ele foi bom. Protegeu-nos, matou-nos a fome.
Procurou um patrão para nós. Fez o que pôde. Eu já havia pego todo o
rebanho de Ana, encampado pelo herodiano… e fiquei com ele[123]…
Tendo-se feito homem, o Batista, e começado a pregar, Simeão, João e
Tobias o acompanharam.
– Mas agora o Batista está preso.
– Sim. Mas eles estão de ronda perto de Maqueronte, com um punhado
de ovelhas, para não levantar suspeitas, dadas por um homem rico, discípulo
de João, teu parente.
– Eu gostaria de vê-los todos.
– Sim, Senhor. Nós iremos dizer a eles: “Vinde. Ele está vivo. Ele se
lembra de nós e nos ama.”
– E vos quer entre os seus amigos.
– Sim, Senhor.
– Mas, antes, nós iremos a Isaque. E Samuel e José, onde estão
sepultados?
– Samuel está em Hebron. Ficou a serviço de Zacarias. José… não tem
sepultura, Senhor. Ele foi queimado com a casa.
– Não entre as chamas dos cruéis, mas entre as chamas do Senhor, e na
glória, logo ele haverá de estar. Eu vo-lo digo. A ti, José, filho de José, Eu te
digo. Vem cá, para que Eu te beije e para dizer um obrigado ao teu pai.
– E os meus meninos?
– São anjos, Elias. Anjos que repetirão o “Glória”, quando o Salvador
for coroado.
– Coroado Rei?
– Não. Coroado Redentor. Oh! Cortejo dos justos e santos! E, na frente,
as falanges, brancas e purpurinas dos pequenos mártires! E, abertas as portas
do Limbo, eis que subiremos juntos ao Reino, onde não há morte. E depois,
vós ireis e reencontrareis vossos pais, mães e filhos no Senhor! Crede.
– Sim, Senhor.
– Chamai-me Mestre. 75.5A tarde cai, a primeira estrela já está nascendo.
Diz a tua oração antes da janta.
– Eu não. Diz tu.
– Glória a Deus nos Céus altíssimos, e paz na terra aos homens de boa
vontade, que mereceram ver a Luz e servi-la. O Salvador está entre eles. O
Pastor da estirpe real está no meio do seu rebanho. A Estrela da manhã já
surgiu. Jubilai-vos, ó justos! Jubilai no Senhor. Ele, que fez a abóbada dos
céus, e os semeou de estrelas, Ele que pôs, como limite para as terras, os
mares, Ele que criou os ventos e o orvalho e regulou o curso das estações
para dar pão e vinho aos seus filhos, eis que vos manda agora um Alimento
mais alto: o Pão vivo que desce dos Céus, o Vinho da Videira eterna. Vinde,
vós, primícias dos meus adoradores. Vinde conhecer o Pai em verdade, para
o seguirdes na santidade e terdes Dele o prêmio eterno.
Jesus rezou de pé, com os braços estendidos, enquanto os discípulos e
os pastores ficaram de joelhos.
Depois é servido o pão e uma escudela de leite tirado na hora, e como
são três as escudelas, ou cabaças, não sei, primeiro comem Jesus, Simão e
Judas. Depois João, ao qual Jesus passa a sua escudela, com Levi e José.
Por último come Elias.
As ovelhas já não estão mais pastando, elas se reúnem em um grande
grupo cerrado à espera de serem levadas ao seu cercado. Mas, ao contrário,
vejo que os pastores as levam para o bosque, debaixo de um rústico galpão,
feito de ramos tapados com cordas. E cuidam solícitos de preparar o feno
que vai servir de cama para Jesus e os discípulos. Acendem-se as fogueiras,
talvez por causa dos animais selvagens.
Judas e João, cansados, se deitam, e pouco depois estão dormindo.
Simão queria fazer companhia a Jesus. Mas, pouco depois, também ele está
dormindo, sentado sobre o feno e com as costas apoiadas a uma estaca.
75.6
Ficam acordados Jesus e os pastores. E falam: de José, de Maria, da fuga
para o Egito, da volta… E depois destas perguntas de amor, as perguntas
mais altas: que fazer para servir a Jesus? Como poderão fazer isso, eles,
rudes pastores?
E Jesus os instrui e explica:
– Agora Eu irei pela Judéia. Vós sereis sempre informados pelos
discípulos. Depois Eu vos farei vir. No entanto, reuni-vos. Fazei que um
saiba notícias do outro e da minha presença no mundo, como Mestre e
Salvador. Como puderdes, fazei que todos saibam disso. Não vos prometo
que acreditarão em vós. Eu sofri escárnio e maus tratos. Vós também os
sofrereis. Mas, assim como soubestes ser fortes e justos nesta espera, sede-o
mais ainda, agora que sois meus. Amanhã iremos para Juta, depois para
Hebron. Podeis ir?
– Oh! Sim. As estradas são de todos e os pastos são de Deus. Só Belém
está interditada pelo ódio injusto. Os outros lugares sabem… mas só
zombam de nós, chamando-nos “beberrões.” Por isso pouco poderemos fazer
aqui.
– Eu vos chamarei a um outro lugar. Não vos abandonarei.
– Por toda a vida?
– Por toda a minha vida.
– Não. Eu morrerei antes, Mestre. Sou velho.
– Pensas tu assim? Eu não. Um dos primeiros rostos que Eu vi foi o teu,
Elias. E será um dos últimos. Levarei Comigo na pupila o teu rosto
transtornado de dor pela minha morte. Mas depois será o teu a levar no
coração o raiar de uma manhã triunfal, e com ele esperarás a morte… A
morte: o encontro eterno com Jesus que tu adoraste pequenino. Também
então os anjos cantarão o Glória: “pelo homem de boa vontade.”
Não ouço mais nada, a doce visão se ofusca. Termina.
[123] Eu já havia pego todo o rebanho de Ana , encampado pelo herodiano... e fiquei com ele..., significa: O rebanho que
pastava por conta de Ana foi tomado por erodiano e, por conseguinte, passei ao serviço dele.
76. Em Juta na casa do pastor Isaque.
Sara e os seus meninos.
12 de janeiro de 1945.
76.1
Um fresco vale sonante de águas que vão em direção ao sul, entre
saltos e espumas de um pequeno córrego de prata, que borrifa o seu risonho
frescor sobre os pequenos pastos das margens, mas parece até que sua linfa
suba pelas encostas, de tanto que estão verdes: um esmeralda matizado no
seu verde, que do solo sobe, através das moitas e arbustos do cerrado até às
copas das árvores altas, entre as quais estão muitas nogueiras, que formam o
bosque propriamente dito, todo ele entrecortado por zonas abertas de
terreno, que são planaltos verdes de erva densa, pasto sadio e forte para os
rebanhos.
Jesus desce com os seus discípulos e com os três pastores, a caminho do
córrego. Pacientemente Ele pára, quando tem que esperar uma ovelha que se
atrasa, ou um dos pastores que deve correr atrás de alguma que se desvia. É
realmente o Bom Pastor agora. Ele também se muniu de uma vara comprida,
para afastar as ramagens das amoreiras, do espinheiro-alvar e das plantas
trepadeiras, que se estendem por todas as partes e procuram se agarrar às
vestes dos passantes. E isso completa a sua figura pastoral.
– Estás vendo? Juta é lá em cima. Agora atravessaremos o córrego; há
um vau que no verão serve, sem recorrer à ponte. Teria sido mais rápido vir
por Hebron. Mas Tu não quiseste.
– Não. Hebron fica para depois. Primeiro se vai sempre a quem está
sofrendo. 76.2Os mortos não sofrem mais, quando foram justos. E Samuel era
um justo. Portanto, para os mortos, que precisam de orações, não é
necessário estar perto dos seus ossos para dar-lhes (orações). Que são os
ossos? São uma prova do poder de Deus, que com o pó criou o homem. Mas
nada além disso. O animal também tem ossos. O esqueleto de todos os
animais é menos perfeito que o do homem. Somente o homem, o rei da
criação, tem uma posição ereta, de um rei sobre os seus súditos, com um
rosto que olha para a frente e para o alto, sem precisar torcer o pecoço; para
o alto, onde está a morada do Pai. Mas são sempre ossos. Pó que ao pó
retorna. A Bondade eterna decidiu reconstituí-lo, no Dia eterno, para dar
uma alegria ainda mais viva aos bem-aventurados. Pensai, não só os
espíritos serão reunidos e se amarão como e muito mais do que sobre a
terra, mas também se alegrarão por poderem ver-se de novo com aqueles
aspectos que tiveram na terra: os meninos de cabelos encaracolados, e
queridos como os teus, Elias, os pais e as mães com um coração e com um
rosto que era todo amor, como os vossos, Levi e José. Aliás, para ti, José,
será um conhecer finalmente, aqueles rostos dos quais sentias falta. Já não
haverá mais órfãos, não mais viúvos entre os justos, lá em cima… O
sufrágio aos mortos, se pode prestar em qualquer lugar. É a oração de um
espírito pelo espírito de alguém que nos era próximo, ao Espírito perfeito
que é Deus, e que está em toda parte. Oh! Santa liberdade de tudo isso que é
espiritual! Não há distâncias, nem exílios, nem prisões, nem sepulcros…
Nada que divida ou que acorrente, em uma impotência penosa, aquilo que
está fora e acima das correntes da carne. Vós ides, aos vossos diletos, com a
melhor parte de vós mesmos. E eles, com sua melhor parte, vêm a vós. E
tudo — dessa efusão de espíritos que se amam — gira ao redor do Fulcro
eterno, Deus: Espírito perfeitíssimo, Criador de tudo quanto foi, é e será,
amor que vos ama e vos ensina a amar… 76.3Mas eis-nos ao vau, Eu creio.
Vejo uma fileira de pedras emergir da pouca água.
– Sim, é aquele, Mestre. Em tempo de cheia, é uma sonante cascata.
Agora, não há mais do que sete pequenos córregos que passam, rindo, entre
as seis grandes pedras do vau.
De fato, seis grandes pedras, bastante esquadrejadas, estão estendidas à
distância de um bom palmo entre elas, no fundo do córrego, e a água, antes
unida em um única fita brilhante, se divide em sete fitas menores,
apressando-se, risonhas, a reunirem-se além do vau, em um único frescor
que escorre murmurando por entre os cascalhos do fundo.
Os pastores vigiam a passagem das ovelhas, que parte delas atravessa
sobre as pedras, e parte prefere entrar na água, à altura de não mais do que
um palmo, e beber desta diamantina onda que espuma e ri.
Jesus passa sobre as pedras, e atrás Dele os discípulos. Retomam o
caminho na outra margem.
76.4
– Tu me disseste que queres que Isaque fique sabendo que estás aqui,
mas isso sem precisares entrar no povoado?
– Sim, assim quero.
– Então, é bom que nos separemos. Eu irei até ele. Levi e José ficarão
com o rebanho e convosco. Eu vou subir por aqui. Irei mais depressa.
E Elias começa a subir pela encosta, em direção a um branquear de
casas que brilham ao sol, lá no alto. Parece-me que estou seguindo-o. Ei-lo
às primeiras casas. Pega uma viela entre as casas e as hortas. Anda uma
dezena de metros. Depois, vira para uma rua mais larga, e desta entra em
uma praça.
Eu não disse que tudo isso aconteceu nas primeiras horas da manhã.
Digo agora, para explicar que na praça ainda há a feira, e as donas de casa e
vendedores gritam ao redor das árvores que fazem sombra à praça.
Elias vai firme, até ao ponto onde a praça volta a ser rua, uma rua muito
bonita. Talvez a mais bonita do povoado. Num canto há um casebre, ou
melhor, um quarto com a porta aberta. Quase à porta, está uma pobre cama, e
em cima dela um doente muito magro que, lamentosamente pede uma esmola
a cada passante.
Elias entra como um foguete:
– Isaque… sou eu.
– Tu? Eu não estava te esperando. Vieste aqui na lua passada.
– Isaque… Isaque… Sabes por que eu vim?
– Não sei… Estás comovido… Que aconteceu?
– Eu vi Jesus de Nazaré, homem, já rabi. Ele veio procurar-me… e nos
quer ver. Oh! Isaque! Estás mal?
De fato, Isaque deixou-se cair como se morresse. Mas depois se
recobra:
– Não. Esta notícia… Onde está Ele? Como está? Oh! Se eu pudesse vê-
lo!
– Ele está lá em baixo, no vale. E me manda dizer-te assim, exatamente
assim: “Vem, Isaque, que Eu te quero ver e abençoar.” Agora, eu vou chamar
alguém que me ajude a levar-te lá em baixo.
– Assim Ele disse?
– Assim. Mas, que é que estás fazendo?
– Eu vou.
Isaque afasta as cobertas, move as pernas inertes, lança-as fora da
enxerga, e as apóia no chão, levanta-se, ainda incerto, cambaleante. Tudo em
um instante, sob os olhos arregalados de Elias… que finalmente compreende
e grita…
Aí aparece uma mulherzinha curiosa. Vê o enfermo de pé, que se cobre
com um cobertor, não encontrando outra coisa, e sai correndo, gritando como
uma galinha.
– Vamos. Saiamos daqui, para fazermos mais depressa, antes que a
multidão comece a se ajuntar… Depressa, Elias.
E saem correndo pelo portãozinho de uma pequena horta, situada atrás,
empurram o fecho de ramos secos, e estão fora; seguem por uma viela
miserável, descem depois por uma estradinha entre as hortas, e desta passam
para os prados e pequenos bosques até o córrego.
76.5
– Eis ali Jesus –diz Elias, indicando-o–. É aquele alto, bonito, loiro,
vestido de branco, com o manto vermelho….
Isaque corre, abre caminho por entre o rebanho que está pastando, e com
um grito de triunfo, de alegria, de adoração, prostra-se aos pés de Jesus.
– Levanta-te, Isaque. Eu vim. Para trazer-te paz e bênção. Levanta-te
para Eu conhecer o teu rosto.
Mas Isaque não pode levantar-se. Emoções demais ao mesmo tempo, e
está, em seu choro feliz, com o rosto no chão.
– Vieste depressa. Nem perguntaste a ti mesmo se podias…
– Tu me disseste para vir… e eu vim.
– Tampouco fechou a porta, nem recolheu as esmolas, Mestre.
– Não importa. Os anjos velarão a casa dele. Estás contente, Isaque?
– Oh! Senhor!
– Chama-me Mestre.
– Sim, Senhor, meu Mestre. Ainda que não tivesse ficado curado, teria já
ficado feliz, só por Te ver. Como pude encontrar tanta graça junto a Ti?
– Pela tua fé e paciência, Isaque. Eu sei quanto sofreste…
– Nada, nada! Mais nada! Eu Te encontrei! Estás vivo! Estás aqui! Estás
mesmo aqui… O resto, todo o resto é passado. Mas, Senhor e Mestre, agora
não vais mais embora, não é?
– Isaque, tenho que evangelizar todo Israel. Eu vou… Mas, se Eu não
posso ficar, tu sempre podes servir e seguir-me. 76.6Queres ser meu discípulo,
Isaque?
– Oh! Mas eu não serei um bom discípulo!
– Saberás tu declarar quem Eu sou? E confessá-lo, apesar dos escárnios
e ameaças? E dizer que Eu te chamei, e tu vieste?
– Mesmo que Tu não o quisesses, eu diria tudo isso. Nisto eu Te
desobedeceria, Mestre. Perdoa-me, se eu digo isto.
Jesus sorri.
– E então, estás vendo que estás bom para seres meu discípulo?
– Oh! Se for só para fazer isso! Eu pensava que fosse mais difícil. Que
precisava ir para a escola dos rabinos, para servir a Ti, o Rabi dos rabis… e
ir para a escola depois de velho…
De fato, o homem tem pelo menos, cinqüenta anos.
– A escola tu já fizeste, Isaque.
– Eu? Não.
– Tu, sim. Não tens continuado a crer e a amar, a respeitar e bendizer a
Deus e ao próximo, a não ter invejas, a não desejar o que é dos outros, e
também o que era teu e não o tinhas mais, a não falar senão a verdade, ainda
que isso te prejudicasse, a não fornicar com Satanás, fazendo pecados? Não
tens feito tudo isso, nestes trinta anos de desventura?
– Sim, Mestre.
– Então estás vendo. A escola tu já fizeste. Continua assim, e acrescenta
a isso a revelação de minha presença no mundo. Não há outra coisa a fazer.
– Eu já tenho falado de Ti, Senhor Jesus. Aos meninos que vinham a
mim, quando eu, quase inválido, cheguei a este povoado, pedindo um pão e
fazendo ainda algum trabalho de tosquia ou preparação de laticínios, e
depois, quando vinham ao redor de minha cama, quando a doença se agravou
e fez que ficasse paralítico da cintura para baixo. Eu falava de Ti aos
meninos de então, e aos meninos de agora, filhos daqueles… Os meninos são
bons, e crêem sempre.. Eu lhes falava de quando tinhas nascido… dos
anjos… da Estrela e dos Magos… e de tua mãe… Oh! Diz-me: Ela ainda
está viva?
– Está viva, e te saúda. Ela sempre me falava de vós.
– Oh! Se eu pudesse vê-la!
– Tu a verás. Um dia irás à minha casa. Maria te saudará: amigo.
– Maria… sim. Dizer esse nome é como ter mel na boca. 76.7Há uma
mulher em Juta, agora ela é mulher, e se tornou mãe do seu quarto filho, mas
tempos atrás era uma menina, uma das minhas pequenas amigas… e aos seus
filhos ela deu os nomes de Maria e José aos dois primeiros e, não ousando
chamar o terceiro de Jesus, deu-lhe o nome de Emanuel, como um bom
augúrio para si mesma, para sua casa e para Israel. E está pensando no nome
que haverá de dar ao quarto, que nasceu há seis dias. Oh! Quando ela souber
que eu estou curado! E que Tu estás aqui! Sara é boa como o pão da mamãe,
e bom é também o seu esposo, Joaquim. E os seus parentes? Por causa deles
é que eu estou ainda vivo. Eles sempre me deram abrigo e ajuda.
– Vamos a eles pedir-lhes um abrigo para as horas de sol, e levar-lhes a
bênção por sua caridade.
– Por aqui, Mestre. É mais cômodo para o rebanho e para esquivar-nos
das pessoas, certamente excitadas. A velha que viu quando eu me pus de pé,
com certeza, já falou.
76.8
Seguem o córrego, o deixam mais ao sul, para pegarem um caminho
que sobe bastante íngreme, contornando um esporão da montanha, semelhante
a um quebra-mar de navio. Agora o córrego vai em direção contrária para
quem sobe, e desliza no fundo entre duas ordens de montanhas, que se
entrecortam, formando um vale acidentado e bonito.
Reconheço o lugar. Ele é inconfundível. É aquele da visão que eu tive de
Jesus e os meninos[124], na primavera passada. O pequeno muro, de pedras
soltas, delimita a propriedade que pende para o vale. Eis os prados com as
macieiras, as figueiras, as nogueiras, eis a casa, branca sobre o verde, com
sua ala saliente que protege a escada, formando um pórtico e um alpendre,
eis a pequena cúpula sobre a parte mais alta, eis a horta-jardim com o poço,
a parreira e os canteiros…
Um grande vozerio sai da casa. Isaque vai à frente. Entra. Chama em voz
alta:
– Maria, José, Emanuel! Onde estais? Vinde a Jesus.
Correm três pequeninos: uma menina de quase cinco anos e dois
meninos dos quatro aos dois, o último com um passo ainda um pouco incerto.
Ficam de boca aberta diante do… renascido. Depois, a menina grita:
– Isaque! Mamãe! Isaque está aqui! A Judite viu bem!
De um quarto onde há o grande vozerio, sai uma mulher; é a mãe em flor,
morena, alta, formosa, de uma visão longínqua, muito bonita em suas vestes
de festa: uma veste de linho muito alvo, como uma rica camisa, que desce em
dobras até os tornozelos, apertada aos flancos opulentos por um xale com
listras matizadas, que lhe modela os quadris estupendos, recaindo em franjas
até a parte posterior dos joelhos, e ficando entreaberto na frente, depois de
ter-se cruzado, à altura da cintura, sob uma fivela de filigrana. Um véu leve,
com ramos de roseira, colorido, sobre um fundo de marfim está fixado, sobre
as tranças pretas, como um pequeno turbante, e depois desce da nuca, com
ondas e dobras, pelas costas e o peito. Conservam-no firme na cabeça uma
pequena coroa de medalhinhas unidas por uma pequena corrente entre elas.
Brincos pesados, em forma de anéis, descem das orelhas, e um colar de
prata, que passa entre os ilhoses da veste, ajusta a túnica ao pescoço. Nos
braços, pesados braceletes de prata.
– Isaque! Mas como? Judite… estava já pensando que o sol a tivesse
feito endoidecer… Tu estás caminhando! Mas que foi que aconteceu?
– O Salvador! Oh! Sara! Ele está aqui! Ele já veio!
– Quem? Jesus de Nazaré? E onde está Ele?
– Ali! Atrás da nogueira. E Ele manda perguntar se tu o recebes!
– Joaquim! Mãe! Vinde todos! O Messias está aqui!
Mulheres, homens, rapazes, meninos, todos vão correndo, gritando…
mas, quando vêem Jesus, alto e majestoso, perdem toda aquela coragem, e
ficam como que petrificados.
– A paz a esta casa e a todos vós. A paz e a bênção de Deus.
Jesus caminha devagar, sorridente, em direção ao grupo:
– Amigos, quereis hospedar o Viajante?
E sorri ainda mais.
O seu sorriso vence os receios. O esposo cria coragem para falar:
– Entra, Messias. Nós já Te amávamos, sem Te conhecer. Mais ainda Te
amaremos conhecendo-Te. Nossa casa está em festa por três motivos hoje:
por Ti, por Isaque e pela circuncisão do meu terceiro filho homem. Abençoa-
o, Mestre. Mulher, traze aqui o menino! Entra, Senhor.
76.9
Entram numa sala preparada para a festa. Mesas e iguarias, tapetes e
ramagens por todos os lados.
Sara volta com um belo recém-nascido nos braços. E o apresenta a
Jesus.
– Deus esteja sempre com ele. Que nome tem?
– Nenhum. Esta é Maria, este é José, este é Emanuel, e este… ainda não
tem nome…
Jesus fita os dois esposos próximos, e sorri:
– Procurai um nome. Se hoje vai ser circuncidado…
Os dois se olham, olham para Ele, abrem a boca, a fecham, sem dizer
nada. Todos estão atentos.
Jesus insiste:
– Há tantos nomes grandes, doces, benditos, tem a história de Israel. Os
mais doces e benditos já foram dados. Mas talvez ainda haja algum.
Juntos, os dois esposos irrompem:
– O teu, Senhor!
E a esposa termina, dizendo:
– Mas é santo demais…
Jesus sorri e pergunta:
– Quando será circuncidado?
– Estamos esperando o homem que fará a circuncisão.
– Eu estarei presente à cerimônia. Entrementes, vos agradeço pelo meu
Isaque. Agora ele não tem mais necessidade dos bons. Mas os bons ainda
têm necessidade de Deus. Destes ao terceiro filho o nome de “Deus
conosco.” Mas vós já tínheis a Deus, quando tivestes caridade para com o
meu servo. Sede benditos. Na terra e no Céu vosso ato será lembrado.
– Isaque parte, agora? Ele vai nos deixar?
– Ficais tristes por isso? Mas ele deve servir a seu Mestre. Contudo, ele
voltará, e Eu também virei. Enquanto isso, vós falareis do Messias… Há
tantas coisas a dizer para convencer o mundo! 76.10Mas eis o esperado.
Entra um pomposo personagem, com um ajudante. Saudações e
inclinações.
– Onde está o menino? –pergunta ele com altivez.
– Está aqui. Mas saúda o Messias. Ele está aqui.
– O Messias?… Aquele que curou o Isaque? Eu sei. Mas… Falaremos
dele depois. Estou com muita pressa. Vejamos o menino e o seu nome.
Os presentes estão mortificados pelos modos do homem. Mas Jesus
sorri, como se aquelas grosserias não fossem para Ele. Pega o menino, toca
em sua pequena fronte com seus dedos bonitos, como que para consagrá-lo, e
diz: “O seu nome é Jesai”, e o devolve ao pai que, com o homem soberbo e
outros, vai a um quarto próximo. Jesus fica onde está, até que eles voltam
com o menino, que grita desesperadamente.
– Dá-me o pequenino, mulher. Ele não chorará mais –diz Jesus para
consolar a mãe angustiada. O menino, colocado sobre os joelhos de Jesus,
de fato se cala.
Jesus forma um grupo com os pequeninos todos ao seu redor, e depois
com os pastores e os discípulos. Fora há um balir de ovelhas que Elias
colocou em um cercado. Na casa há um barulho de festa. Levam a Jesus e
aos seus, doces e bebidas. Mas Jesus os distribui aos pequeninos.
– Não bebes, Mestre? Não aceitas? É dado de coração.
– Eu sei Joaquim, e de coração o aceito. Mas deixa que primeiro Eu
faça contentes os pequeninos. Eles são a minha alegria…
– Não repares naquele homem, Mestre.
– Não, Isaque. Eu rezo para que ele veja a Luz. João, leva os dois
meninos para que vejam as ovelhinhas. 76.11E tu, Maria, vem mais perto, e diz-
me: Quem sou Eu?
– Tu és Jesus, Filho de Maria de Nazaré, nascido em Belém. Isaque te
viu e me pôs o nome de tua mamãe, para que eu seja boa.
– Boa como o anjo de Deus, pura mais do que um lírio desabrochado no
cume da montanha, piedosa como o levita mais santo deve ser, para imitá-la.
Serás assim?
– Sim, Jesus.
– Fala “Mestre” ou “Senhor”, menina.
– Deixa que me chame com o meu Nome, Judas. Só passando por lábios
inocentes é que não perde o som que tem sobre os lábios de minha mãe.
Todos, nos séculos, dirão esse nome, mas uns por um interesse, outros por
outro, e muitos para blasfemá-lo. Só os inocentes, sem malícia e sem ódio, o
dirão com um amor igual ao desta menina e ao de minha mãe. Os pecadores
também me chamarão, quando pedirem misericórdia. Mas minha mãe e os
pequeninos! Por que me chamas Jesus? –pergunta, acariciando a pequenina.
– Porque eu te quero bem… como ao papai, à mamãe e aos meus
irmãozinhos –diz ela, abraçando os joelhos de Jesus, e rindo com o rostinho
erguido.
Jesus se inclina e a beija… e assim tudo termina.
[124] visão .... de Jesus e os meninos, escrita a 7 de Fevereiro de 1944 e que será introduzida no cap ítulo 396. Tinha sido
excluída das duas p rimeiras edições da obra.
77. Em Hebron na casa de Zacarias.
O encontro com Aglae.
13 de janeiro de 1945.
77.1
– A que hora chegaremos? –pergunta Jesus, que caminha no centro do
grupo, precedido pelas ovelhas que vão pastando a erva da beira do
caminho.
– Por volta da hora terceira. São cerca de dez milhas –responde Elias.
– E depois iremos a Keriot? –pergunta Judas.
– Sim. Iremos lá.
– E não era mais rápido, se tivéssemos ido de Juta a Keriot? Não deve
estar muito longe. Não é verdade, pastor?
– Duas milhas a mais, pouco mais, ou pouco menos.
– Assim vamos fazer mais de vinte milhas à toa.
– Judas, por que estás assim inquieto? –diz Jesus.
– Inquieto não, Mestre. Mas me tinhas prometido que irias à minha
casa…
– E lá irei. Mantenho sempre as minhas promessas.
– Mandei avisar a minha mãe… e além disso, Tu o disseste: com nosso
espírito podemos estar unidos aos mortos.
– Eu o disse. Mas Judas, reflete: tu, por Mim, ainda não sofreste. Estes
são trinta anos que sofrem, e nunca traíram nem mesmo a lembrança de Mim.
Nem mesmo a lembrança. Não sabiam se Eu estava vivo ou morto…
contudo, permaneceram fiéis. Lembravam-se de Mim quando recém-nascido,
quando menino que só sabia chorar e querer leite… no entanto, sempre me
veneraram como Deus. Por minha causa, eles foram ofendidos,
amaldiçoados, perseguidos como um opróbrio da Judéia, contudo a cada
ofensa recebida, a sua fé não vacilava, não se extinguia, mas lançava raízes
ainda mais profundas, tornando-se cada vez mais vigorosa.
77.2
– A propósito. Há alguns dias que eu estou com uma pergunta me
queimando os lábios. Esses são amigos teus e de Deus, não é verdade? Os
anjos os abençoaram com a paz do Céu, não foi? Eles permaneceram justos,
contra todas as tentações, não é mesmo? Explica-me então, por que é que
foram infelizes? E Ana? Foi morta por ter querido bem a Ti….
– Tu deduzes, por isso, que o meu amor e que amar a Mim traz
infortúnio.
– Não… mas….
– Mas é assim. Lamento ver-te tão fechado para a Luz e tão preocupado
com o que é humano. Não, deixa estar, João, e também tu, Simão. Prefiro que
ele fale. Eu não censuro nunca. Só quero abertura de almas, para poder
introduzir nelas a luz. Vem cá, Judas. Escuta. Tu partes de um juízo comum a
muitos viventes e a muitos que viverão. Eu disse: juízo. Deveria dizer: erro.
Mas, posto que o fazes sem malícia, por ignorância do que é a verdade, não
é um erro, mas somente um juízo imperfeito, como o pode ser, aquele de um
menino. E vós sois meninos, pobres homens! E Eu estou aqui, Mestre, para
fazer de vós adultos, capazes de discernir o verdadeiro do falso, o bom do
mau, o melhor do que é bom. Portanto, escutai. O que é a vida? É um tempo
de espera, Eu diria é o limbo do Limbo, que Deus Pai vos dá para provar se
vossa natureza é de filhos bons ou de bastardos, e para destinar-vos,
conforme as vossas obras, a um futuro que não terá mais esperas nem provas.
Agora, dizei-me, vós: Seria justo que alguém que teve o bem extraordinário
de poder servir a Deus de uma maneira especial, possua também por toda
esta vida um bem contínuo? Não vos parece que já recebeu muito, e que por
isso pode dizer-se feliz, mesmo se nas coisas humanas não é feliz? Não seria
injusto que aquele que já tem a luz da divina manifestação no coração e o
sorriso da consciência que o aprova, tenha também honras e bens terrenos? E
não seria até imprudente?
77.3
– Mestre, eu digo que seria até profanador. Por que colocar alegrias
humanas onde Tu estás? Quando alguém tem a Ti — e estes te têm tido, eles,
os únicos ricos em Israel, por terem tido a Ti há trinta anos — não deve ter
nenhuma outra coisa. Não se coloca coisas humanas no Propiciatório… e o
vaso consagrado só serve para os usos sagrados. Estes são consagrados,
desde o dia em que viram o teu sorriso… e nada, não, nada que não sejas Tu,
deve entrar nos corações que têm a Ti. Fosse eu como eles! –diz Simão.
– Porém tu, bem que te apressaste em tomar posse dos teus bens, depois
de teres visto o Mestre e teres sido curado –responde ironicamente Judas.
– É verdade. Eu disse e fiz isso. Mas sabes por que? Como é que podes
julgar, se não sabes tudo? O meu agente recebeu ordens claras. Agora que
Simão, o Zelote, está curado — e os seus inimigos não podem mais
prejudicá-lo segregando-o, nem persegui-lo, porque ele agora é somente de
Cristo, e não de nenhuma seita: ele tem Jesus, e basta — pode dispor de seus
haveres, que um homem fiel e honesto lhe conservou. E eu, dono deles ainda
por uma hora, dei ordens que fossem reformados para receber mais dinheiro
na venda, e poder dizer… não, isto eu não digo.
– Os anjos o dizem por ti, Simão, e o escrevem no livro eterno –diz
Jesus.
Simão olha para Jesus. E os dois olhares se encontram, um admirado, o
outro abençoante.
– Como sempre, eu não tenho razão.
– Não, Judas. Tu tens o senso prático. Tu mesmo o dizes.
– Oh! Mas com Jesus!… Também Simão Pedro estava apegado ao senso
prático, e agora ao invés!… Tu também, Judas, te tornarás como ele. Faz
pouco tempo que estás com o Mestre, nós há mais tempo, e já melhoramos –
diz João, sempre afável e conciliador.
– Ele não me quis. De outra forma, eu já estaria sendo seu desde a
Páscoa.
Judas está mesmo nervoso hoje. Jesus corta o assunto, dizendo a Levi:
– Tu já estiveste na Galiléia?
– Sim Senhor.
– Tu irás Comigo para conduzir-me à Jonas. Tu o conheces?
– Sim. Na Páscoa sempre nos víamos. Eu ia à casa dele.
José inclina a cabeça, mortificado. Jesus vê:
– Juntos não podeis ir. O Elias ficaria sozinho com as ovelhas. Mas tu
irás Comigo até o passo de Jericó, onde nos separaremos por algum tempo.
Depois te direi o que terás que fazer.
– E para nós, nada mais?
– Vós também, Judas, vós também.
77.4
– Já se vêem as casas –diz João, que vai alguns passos na frente dos
outros.
– É Hebron. Abrange dois rios com seu dorso. Estás vendo, Mestre?
Aquele casarão, lá ao longe, entre todo aquele verde, um pouco mais alto
que os outros? É a casa de Zacarias.
– Vamos apressar o passo.
Percorrem rapidamente os últimos metros da estrada, entram na cidade.
Os pequenos cascos das ovelhas parecem castanholas sobre as pedras
irregulares da rua, neste ponto calçada de maneira bem rudimentar. Chegam
à casa. As pessoas olham aquele grupo de homens de diferentes aspectos, na
idade e na veste, entre o branco das ovelhas.
– Oh! Como está mudada! Aqui era a cancela –diz Elias.
Agora, ao invés da cancela, há um portão de ferro, que impede a vista, e
como o muro é mais alto do que um homem, nada se vê.
– Talvez seja aberto na parte de trás. Vamos.
Dão a volta em um grande quadrilátero, ou melhor, um grande retângulo,
mas o muro é igual em todos os lados.
– Este muro foi feito, há pouco tempo –diz João, observando-o–. Ele
está sem avarias, e no chão ainda há pedras calcárias.
– Não vejo nem mesmo o sepulcro… Ele era perto do bosque. Agora o
bosque ficou do lado de fora do muro e… e parece que é de todos. Aqui
todos vêm tirar a lenha.
Elias está perplexo.
77.5
Um homem, um lenhador, já velhinho, de baixa estatura, mas robusto,
que observa o grupo, pára de serrar um tronco abatido, e se aproxima do
grupo:
– A quem procurais?
– Queríamos entrar na casa, para rezarmos no sepulcro de Zacarias.
– Não há mais sepulcro. Não estais sabendo disso? Quem sois?
– Eu sou amigo do pastor Samuel. Ele…
– Não é preciso, Elias –diz Jesus.
Elias se cala.
– Ah! O Samuel!… Sim! Mas, desde que João, filho de Zacarias, foi
levado para a prisão, a casa não é mais sua. E é uma pena, porque ele fazia
com que todo o ganho dos seus haveres fosse dado aos pobres de Hebron.
Certa manhã, veio um homem da corte de Herodes, expulsou Joel, lacrou as
entradas, depois voltou com uns operários e começou a levantar o muro…
Naquele canto lá é que estava o sepulcro. Ele não o quis… e uma manhã o
encontramos todo destruído, e meio espalhado pelo chão… os pobres ossos
misturados… Nós os recolhemos como foi possível… Agora estão numa
única arca… E na casa do sacerdote Zacarias, aquele sujo tem as suas
amantes. Agora, ele está com uma atriz de Roma. Por isso levantou o muro.
Não quer que se veja… A casa do sacerdote, um lupanar! A casa do milagre
e do Precursor! Porque certamente ele o é… mesmo não sendo ele o
Messias. E quantos aborrecimentos tivemos por causa do Batista! Mas ele é
o nosso grande! Verdadeiramente grande! Desde o seu nascimento houve
milagre. Isabel, velha como um cardo seco, tornou-se fértil como as
macieiras no mês de Adar, primeiro milagre. Depois, veio uma prima dela,
que era uma santa, para servi-la e para soltar a língua do sacerdote. Ela se
chamava Maria. Lembro-me dela. Ainda que não a visse, a não ser
raramente. Como foi, eu não sei. Conta-se que, para fazer Isabel feliz, ela
teria deixado Zacarias pousar a boca muda sobre o seu ventre cheio, ou que
ela teria introduzido os seus dedos na boca dele. Não sei bem. O certo é que,
depois de nove meses de silêncio, Zacarias falou, louvando o Senhor e
dizendo que o Messias já estava na terra. Não deu mais explicações. Mas
minha mulher garante — ela estava presente naquele dia — que Zacarias
disse, louvando ao Senhor, que o seu filho iria à sua frente. Agora eu digo:
não é como as pessoas crêem. João é o Messias, que vai diante do Senhor,
como Abraão, de Deus. Eis. Não tenho razão?
– Tens razão, quanto ao que diz respeito ao espírito do Batista, que
sempre procede adiante de Deus. Mas não tens razão quanto ao que diz
respeito ao Messias.
– Então aquela, que se dizia mãe do Filho de Deus — e quem disse isto
foi Samuel — não é verdade que o era? Não nasceu ainda?
– Sim, ela o era. O Messias nasceu, precedido por aquele que, no
deserto, levantou sua voz, como disse o Profeta[125].
– És tu o primeiro que afirma isso. João, na última vez que Joel lhe
levou uma pele de ovelha, como fazia cada ano ao chegar o inverno, ao ser
interrogado a respeito do Messias, não disse: “Ele já está aí.” Quando o
disser…
– Homem, eu fui discípulo de João, e o ouvi dizer: “Eis o Cordeiro de
Deus” indicando… –diz João.
– Não, não. O Cordeiro é ele. Verdadeiro Cordeiro, que cresceu por si
mesmo, quase sem necessidade de pai e mãe. Assim que se tornou filho da
Lei, isolou-se nas cavernas dos montes que olham para o deserto e ali
cresceu, falando com Deus. Isabel e Zacarias morreram e ele não veio. Para
ele, pai e mãe era Deus. Não há santo maior do que ele. Perguntai a toda a
cidade de Hebron. Samuel o dizia, mas os belemitas devem ter tido razão. O
santo de Deus é João.
– Se alguém te dissesse: “O Messias sou Eu”, que dirias tu? –pergunta
Jesus.
– Eu o chamaria de “blasfemador”, e o afugentaria a pedradas.
– E se ele fizesse um milagre para provar que o era?
– Eu diria que ele era um “endemoninhado.” O Messias virá quando
João se revelar na sua verdadeira identidade. O próprio ódio de Herodes é a
prova. Ele, o astuto, sabe que João é o Messias.
– Mas João não nasceu em Belém.
– Quando ele for solto, depois de ter anunciado por si mesmo o seu
próximo advento, manifestar-se-á em Belém. Também Belém o espera.
Enquanto… oh! vai falar aos belemitas de algum outro Messias, se tens
coragem… e verás.
– Tendes uma sinagoga?
– Sim. Basta ir direto daqui a duzentos passos por esta rua. Não há erro.
Fica perto da arca dos despojos violados.
– Adeus. E que o Senhor te ilumine.
Eles se vão. Voltam à parte da frente.
77.6
No portão está uma mulher jovem e descaradamente vestida. É muito
bonita:
– Senhor, queres entrar na casa? Entra!
Jesus a fita, severo como um juiz, e não fala nada.
Quem fala é Judas, neste ponto apoiado por todos:
– Volta para dentro, despudorada! Não nos profanes com o teu hálito,
cadela faminta!
A mulher enrubesce vivamente e inclina a cabeça. Confusa, procura
desaparecer dali, escarnecida pelos moleques e pelos passantes.
– Quem será tão puro, para dizer: “Eu nunca desejei a maçã oferecida
por Eva”? –diz Jesus severo.
E acrescenta:
– Indicai-me um e sauda-lo-ei “santo”. Nenhum? E então, se não por
aversão, mas por fraqueza, vos sentis incapazes de aproximar-vos dela,
retirai-vos. Eu não obrigo os fracos a entrarem em luta desigual. Mulher, eu
queria entrar. Esta casa foi de um parente meu. Para Mim, ela é querida.
– Entra, Senhor, se não tens nojo de mim.
– Deixa a porta aberta. Para que o mundo possa ver, e não fique
murmurando…
Jesus passa sério, solene. A mulher se inclina, subjugada, e não ousa
mover-se. Mas as chalaças da multidão a ferem fundo. Ela foge correndo até
o fundo do jardim, enquanto Jesus vai até ao pé da escada, olha de soslaio as
portas entreabertas, mas não entra. Depois vai ao lugar onde era o sepulcro e
onde agora é uma espécie de pequeno templo pagão.
– Os ossos dos justos, ainda que estejam secos e dispersos, destilam um
bálsamo purificador, e espalham sementes de vida eterna. Paz aos mortos
que viveram no bem! Paz aos puros que dormem no Senhor! Paz aos que
sofreram, mas não quiseram conhecer os vícios! Paz aos verdadeiros
grandes do mundo e do Céu! Paz!
77.7
A mulher, costeando uma sebe que a protege dos olhares, alcança
Jesus:
– Senhor!
– Mulher!
– Qual o teu nome, Senhor?
– Jesus.
– Nunca ouvi este nome. Eu sou romana, atriz e bailarina. Em nada mais
eu sou perita, a não ser em lascívias. Que quer dizer o teu Nome? O meu é
Aglae e… e quer dizer: vício.
– O meu quer dizer: Salvador.
– Como é que salvas? E a quem?
– A quem tem vontade de salvação. Eu salvo ensinando os homens a ser
puros, a querer a dor, mas com honra, e o bem a todo custo.
Jesus lhe fala sem aspereza, mas tampouco sem virar-se para a mulher.
– Eu estou perdida.
– Eu sou Aquele que procura os perdidos.
– Eu estou morta.
– Eu sou Aquele que dá vida.
– Eu sou sujeira e mentira.
– Eu sou a Pureza e a Verdade.
– Tu és também a Bondade, Tu, que não me olhas, não me tocas e não me
pisas. Tens piedade de mim…
– Tem, tu, primeiro, piedade de ti. Da tua alma.
– O que é a alma?
– É o que do homem o faz um deus e não um animal. O vício, o pecado a
mata e, com a alma morta, o homem vira um animal repelente.
– Poderei ver-te ainda?
– Quem me procura, me encontra.
– Onde moras?
– Onde os corações precisam de médico e de remédio para se tornarem
honestos.
– Então… eu não te verei mais… Eu vivo num meio onde não se quer
saber de médico, nem de remédio, nem de honestidade.
– Nada impede que vás ao lugar em que Eu estiver. O meu Nome será
gritado pelas ruas, e chegará a ti. Adeus.
– Adeus, Senhor. Deixa que eu te chame “Jesus”. Oh! Não por
familiaridade!… Mas para que entre em mim um pouco de salvação. Eu sou
Aglae, lembra-te de mim.
– Sim. Adeus.
A mulher fica lá no fundo do jardim. Jesus sai muito sério. Olha para
todos. Vê perplexidade nos discípulos e zombaria nas pessoas de Hebron.
Um criado fecha o portão.
77.8
Jesus vai reto pela rua. Bate à porta da Sinagoga.
Aparece um velhinho hostil. Não dá a Jesus nem tempo para falar:
– A sinagoga está interditada, neste lugar santo, para aqueles que
negociam com as meretrizes. Fora!
Jesus se volta sem falar, e continua a caminhar pela rua. Seus discípulos
vão atrás. Até sairem de Hebron. Então começam a falar.
– Mas foste Tu que o quiseste, Mestre! –diz Judas–. Uma meretriz!
– Judas, na verdade te digo que ela vai te superar. E agora, tu, que me
queres censurar, que é que me dizes a respeito dos judeus? Nos lugares mais
santos da Judéia, fomos escarnecidos e expulsos… Mas é assim mesmo. Virá
o tempo em que Samaria e os Gentios adorarão o verdadeiro Deus, e o povo
do Senhor estará sujo de sangue e de um delito… de um delito em
comparação do qual aquele das meretrizes, que vendem sua carne e sua
alma, será pouca coisa. Não pude rezar sobre os ossos de meus primos e do
justo Samuel. Mas não importa. Repousai, ossos santos, jubilai, ó espíritos
que neles habitáveis. A primeira ressurreição está próxima. Depois virá o
dia em que sereis mostrados aos anjos, como sendo os dos servos do Senhor.
Jesus se cala e tudo termina.
[125] como disse o Profeta, isto é: Isaías 40,3.
78. Em Keriot. Morte do velho Saul.
14 de janeiro de 1945.
78.1
Tenho a impressão de que a parte mais íngreme, ou seja, o nó mais
apertado das montanhas da Judéia, fica entre Hebron e Juta. Mas eu poderia
também estar enganada e ser este um vale mais amplo e aberto que se abra
sobre largos horizontes, do qual sobressaem montanhas isoladas, e não mais
a cadeia. Talvez seja uma depressão entre duas cadeias, não sei. É a
primeira vez que a vejo, e disto pouco entendo. Culturas diversas em campos
não vastos, mas bem cultivados com cereais: cevada, centeio em quase todos
eles, e também belos vinhedos nas partes mais ensolaradas. Além disso,
mais ao alto há bonitos bosques de pinheiros, abetos e outras árvores das
selvas. Uma estrada… razoável, conduz a uma pequena vila.
– Este é um subúrbio de Keriot. Peço-te que venhas até a minha casa de
campo. Minha mãe te espera lá. Depois iremos para Keriot –diz Judas, que
nem sabe mais o que está dizendo, de tão agitado que está.
Não disse que agora estão juntos só Jesus com Judas, Simão e João. Os
pastores não estão. Talvez tenham ficado nos pastos de Hebron, ou tenham
voltado para Belém.
– Como quiseres, Judas. Mas podíamos parar também aqui para
conhecermos tua mãe.
– Oh! Não! É um casebre. Minha mãe só vem aqui no tempo da colheita.
Fora desse tempo, está em Keriot. Por acaso, não queres que a minha cidade
te veja? Não queres trazer a ela a tua luz?
– Claro que Eu quero, Judas. Mas tu já sabes que Eu não reparo na
humildade do lugar que me hospeda.
– Mas hoje és meu hóspede… e Judas sabe ser hospitaleiro.
Caminham ainda alguns metros entre casinhas esparsas pelo campo, e
mulheres e homens aparecem, chamados pelos meninos. É evidente que uma
certa curiosidade foi despertada. Judas deve ter feito algum anúncio de
propaganda.
– Eis a minha pobre casa. Perdoa a sua pobreza.
Mas a casa não é nenhum casebre: é um cubo com um só andar, mas
grande e bem cuidado, no meio de um pomar basto e viçoso. Uma estradinha
particular, toda muito limpa, vai da estrada até à casa.
– Permites de eu vá na frente, Mestre?
– Vai.
Judas parte.
– Mestre, Judas fez as coisas em grandes proporções –diz Simão–. Eu já
suspeitava disso. Mas agora tenho certeza. Tu dizes, Mestre, e dizes bem:
espírito, espírito… Mas ele… ele não quer saber disso. Não Te entenderá
nunca… ou então, muito tarde –corrige-se, para não causar dor a Jesus.
Jesus suspira e se cala.
78.2
Judas sai com uma mulher que tem cerca de cinqüenta anos. Ela é bem
alta, não como o filho, ao qual deu os seus olhos pretos e os cabelos
encaracolados. Mas os olhos dela são mansos, um tanto tristes, enquanto que
os de Judas são imperiosos e astutos.
– Eu te saúdo, ó Rei de Israel –diz ela, prostrando-se em uma
verdadeira saudação de súdita–. Concede à tua serva de hospedar-te.
– Paz a ti, mulher. E Deus esteja contigo e com o teu filho.
– Oh! Sim! Com o meu filho!
É mais um suspiro do que uma resposta.
– Levanta-te, mãe. Eu também tenho uma mãe, e não posso permitir que
tu me beijes os pés. Em nome de minha mãe, Eu te beijo, mulher. Ela é tua
irmã… no amor e no destino doloroso de mães de marcados.
– Que queres dizer, Messias? –pergunta Judas, meio inquieto.
Mas Jesus não responde. Está abraçando a mulher, a qual ele levantou
do chão benignamente, e a está beijando na face. Depois, segurando-a pela
mão, vai em direção à casa.
Entram em uma sala fresca, à qual fazem sombra umas leves cortinas
listradas. Ali estão preparadas bebidas e frutas frescas. Antes porém, a mãe
de Judas chama uma serva, e esta traz água e toalha. A patroa queria
descalçar Jesus e lavar-lhe os pés empoeirados. Mas Jesus se opõe:
– Não, mãe. A mãe é uma criatura muito santa, especialmente quando é
honesta e boa como tu és, para permitir que tome a atitude de uma escrava.
A mãe olha para Judas… um olhar estranho. Depois, sai dali.
Jesus refrescou-se. Quando está para pôr de novo as sandálias, a mulher
volta com um par de sandálias novas:
– Eis, nosso Messias. Creio tê-las feito bem… como Judas queria… Ele
me disse: “Um pouco mais compridas do que as minhas, e da mesma
largura.”
– Mas por que, Judas?
– Não me queres permitir que Te ofereça um presente? Não és o meu
Rei e meu Deus?
– Sim, Judas. Mas não devias dar tanto incômodo à tua mãe. Tu sabes
como Eu sou…
– Eu sei. És santo. Mas deves aparecer como Rei santo. Assim é que nos
devemos impor. No mundo, que em dez partes tem nove de tolos, é preciso
impor-se com a presença. Eu sei.
Jesus amarrou as sandálias novas, feitas de pele vermelha nas correias
perfuradas e na parte superior que sobe até o tornozelo. Muito mais bonitas
do que as suas sandálias simples de operário, e semelhantes às sandálias de
Judas, que são como uns sapatinhos, nos quais aparecem somente pedaços
dos pés.
– Também a veste, meu Rei. Eu a tinha preparado para o meu Judas…
Mas ele te doa. É de linho, fresco e novo. Permite a uma mãe te vestir…
como se fosse o seu filho.
Jesus torna a olhar para Judas… mas não rebate. Ele solta a bainha da
veste no pescoço, fazendo recair das costas a ampla túnica, permanecendo
com a tunicela de baixo. A mulher lhe coloca a bela veste nova. Oferece-lhe
um cinto, que é um galão muito bordado, do qual parte um cordão, que
termina em abundantes franjas. Jesus certamente se sentirá bem nas vestes
frescas e sem poeira. Mas não parece muito feliz. Enquanto isso, os outros,
por sua vez, se lavaram.
– Vem, Mestre. São do meu pobre pomar. Este é o hidromel que minha
mãe prepara. Tu, Simão, talvez prefiras este vinho branco. Toma. É da minha
vinha. E tu, João? O mesmo que o Mestre?
Judas exulta em poder servir nos belos cálices de prata, em mostrar que
é alguém que pode.
A mãe pouco fala. Olha… olha… olha para o seu Judas… e mais ainda
olha para Jesus… e quando Jesus, antes de comer, lhe oferece a mais bela
das frutas (parecem-me grandes damascos, são frutos amarelo-avermelhados
e não são maçãs) e lhe diz: “Primeiro, sempre a mãe”, seus olhos se enchem
de lágrimas.
– Mamãe, tudo mais já foi feito? –pergunta Judas.
– Sim, meu filho. Acho que fiz tudo bem. Mas eu cresci sempre aqui e
não sei… não sei quais os usos dos reis.
– Que usos, mulher? Que reis? Mas que fizeste, Judas?
– Mas não és Tu o prometido Rei de Israel? É hora de o mundo Te
saudar como tal, e isto deve acontecer pela primeira vez aqui, na minha
cidade, na minha casa. Eu Te venero como tal. Por amor a mim e por
respeito ao teu nome de Messias, de Cristo, de Rei, que os Profetas, por
ordem de Javé Te deram, não me desmintas.
78.3
– Mulher, amigos. Eu vos peço. Preciso falar com Judas. Devo dar-lhe
ordens precisas.
A mãe e os discípulos se retiram.
– Judas, que fizeste? Tão pouco me entendestes até aqui? Por que
rebaixar-me a ponto de fazer de Mim apenas um poderoso da terra, aliás, um
que luta para ser poderoso? E não compreendes que isso é uma ofensa à
minha missão, ou melhor, um obstáculo? Sim. Não o negues. Obstáculo.
Israel está sujeito a Roma. Tu sabes o que acontece quando quer levantar-se
contra Roma alguém que parecia chefiar o povo e que se tornou suspeito de
criar uma guerra de libertação. Tu ouviste, e ouviste nestes dias mesmo,
como se usou de crueldade para com um Pequenino, só por se supor que ele
seria o futuro rei, segundo o mundo. E tu! E tu! Oh! Judas! Mas que esperas
de alguma minha soberania carnal? Que esperas? Eu te dei tempo para
pensares e decidires. Eu te falei bem claro, desde a primeira vez. Também te
rejeitei, porque Eu sabia… porque Eu sei, sim, porque Eu sei, Eu leio, Eu
vejo o que há em ti. Por que me queres seguir, se não queres ser como Eu
quero? Vai-te embora, Judas. Não faças mal a ti mesmo, nem a Mim… Vai. É
melhor para ti. Não és um operário apto para esta obra… Ela é muito alta
para ti. Em ti há soberba, há cobiça em todos os três ramos; há
prepotência… até tua mãe precisa te temer…; há tendência para a mentira…
Não. Não é assim que deve ser o meu seguidor. Judas, Eu não te odeio. Eu
não te amaldiçôo. Somente te digo, e com dor de quem vê que não pode
mudar alguém que ama, somente te digo: vai pela tua estrada, abre caminho
no mundo, posto que é o que tu queres, mas não fiques Comigo. O meu
caminho!… O meu palácio real! Oh! Que angústia há neles! Sabes onde é
que serei Rei? Quando serei proclamado Rei? Quando Eu for levantado no
madeiro infame, e por púrpura terei o meu Sangue, por coroa uma grinalda
de espinhos, por insígnia um cartaz de escárnio, por trombetas, címbalos,
órgãos e cítaras, para saudar o Rei proclamado, Eu ouvirei as blasfêmias de
um povo inteiro: do meu povo. E sabes por obra de quem, tudo isso? De um
que não me terá entendido. Que nada terá entendido. Coração de bronze
vazio, cuja soberba, sensualidade, e avareza terão destilado os seus
humores, e estes terão gerado um nó de serpentes que servirão como
correntes para Mim e… como maldição para ele. Os outros não sabem tão
claramente a minha sorte. E, te peço, não digas qual é. Que isto fique entre
Mim e ti. Afinal… é uma censura… e tu te calarás, para não teres que dizer:
“Eu fui censurado…” Entendeste, Judas?
78.4
Judas está roxo, de tão vermelho. Está em pé, diante de Jesus. Está
confuso, de cabeça baixa… Depois, se lança de joelhos, e chora, com a
cabeça sobre os joelhos de Jesus:
– Eu te amo, Mestre. Não me rejeites. Sim. Eu sou soberbo. Sou um tolo.
Mas, não me mandes embora. Não, Mestre. Será esta a última vez que eu
falho. Tu tens razão. Eu não refleti. Mas também neste erro, há amor. Eu
queria prestar-te tanta honra… e que os outros também te prestassem…
porque eu te amo. Há três dias que Tu disseste: “Quando errais sem malícia,
por ignorância, não é erro, mas um julgamento imperfeito, como o dos
meninos, e Eu estou aqui para fazer de vós adultos.” Eis, Mestre, eu estou
aqui sobre os teus joelhos… me disseste que serias um pai para mim…
sobre os teus joelhos como aqueles de meu pai, e te peço perdão, e te peço
que faças de mim um “adulto” e um adulto santo… Não me mandes embora,
Jesus, Jesus, Jesus… Nem tudo em mim é maldade. Tu estás vendo, por Ti,
eu deixei tudo e vim. Tu és mais do que as honras e as vitórias que eu
obtinha, quando a serviço de outros. Tu, sim, Tu és o amor do pobre, infeliz
Judas, que queria dar-te somente alegria e que, ao contrário, Te está dando
dor…
– Basta, Judas. Mais uma vez, Eu te perdôo…
Jesus parece estar fadigado…
– Eu te perdôo, esperando… esperando que, daqui para diante, me
compreendas.
– Sim, Mestre. Sim. Mas agora… agora… não me humilhes sob o peso
de um desmentido, que faria de mim um alvo de zombaria. Toda Keriot sabe
que eu viria com o Descendente de Davi, o Rei de Israel… e esta minha
cidade se preparou para receber-te… Eu pensei que estivesse agindo bem…
para mostrar-te e como fazer para sermos temidos e obedecidos… e fazer
que vejam isto também o João, o Simão e, através deles, os outros que Te
amam, mas Te tratam como um seu igual… Minha mãe também seria
escarnecida como mãe de um filho mentiroso e louco. Por ela, meu Senhor…
e Te juro que eu…
– Não jures a Mim. Jura a ti mesmo, se podes, que não pecarás mais
neste ponto. Por tua mãe e pelos teus concidadãos, não lhes farei a desfeita
de ir-me embora sem parar por aqui. Levanta-te.
– E que é que vais dizer aos outros?
– A verdade…
– Não!
– A verdade: que te dei ordens para hoje. Há sempre um modo de se
dizer a verdade, com caridade. Vamos. Chama tua mãe e os outros.
Jesus está um tanto severo. Nem volta a sorrir, senão quando Judas volta
com a mãe e os discípulos. A mulher perscruta a Jesus. Mas o vê benigno. Se
tranqüiliza. Tenho a impressão de ser ela uma alma que sofre.
– Vamos a Keriot? Eu já descansei e te agradeço, ó mãe, por toda a tua
bondade. O Céu te recompense e te dê, pela caridade que tiveste para
Comigo, descanso e alegria ao esposo que ainda choras.
A mulher procura beijar-lhe a mão, mas Jesus, põe-lhe a mão sobre a
cabeça com uma carícia, e não permite.
– O carro está pronto, Mestre. Vem.
Lá fora, de fato, está chegando um carro puxado por bois, um carro
bonito e cômodo, sobre o qual foram colocados alguns travesseiros para
servirem de assento, e, no alto, está armado um toldo de estofo vermelho.
– Sobe, Mestre.
– Primeiro a mãe.
A mulher sobe e depois Jesus e os outros.
– Aqui, Mestre. (Judas não o chama mais rei).
Jesus se assenta na frente, e ao seu lado Judas. Atrás, a mulher e os
discípulos. O condutor aguilhoa os bois, e os incita, caminhando ao lado
deles.
78.5
O trajeto é curto. Uns quatrocentos metros, ou pouco mais, e em
seguida eis que se vêem as primeiras casas de Keriot, que me parece uma
discreta cidadezinha. Um menininho olha, na rua cheia de sol, e depois parte
como um foguete. Quando o carro alcança as primeiras casas, os notáveis do
lugar e o povo lá estão para recebê-lo com bandeiras e ramos, ramos e
bandeiras pelas ruas, de casa em casa. Gritos de júbilo, e reverências até o
chão. Jesus, sentado no alto do seu oscilante trono, não pode deixar por
menos: saúda e abençoa a todos.
O carro prossegue e depois vira, além de um praça, em uma rua, pára
diante de uma casa, cujo portão já está escancarado, e nele estão duas ou três
mulheres. Param. Descem.
– A minha casa é tua, Mestre.
– Paz a ela, Judas. Paz e santidade.
Entram. Depois do vestíbulo, há uma grande sala com sofás baixos e
móveis entalhados. Com Jesus e os outros, entram os notáveis do lugar.
Reverências, curiosidade, uma recepção pomposa.
Um velho imponente pronuncia um discurso:
– Grande é a ventura da terra de Keriot por ter-te em seu seio, ó Senhor.
Grande ventura! Dia feliz! Ventura por ter-te, e ventura por ver que um filho
seu é teu amigo e ajudante. Bendito seja ele, que te conheceu antes de
qualquer outro! E Tu, sê cem vezes bendito, por te teres manifestado, Tu, o
Esperado por gerações e gerações. Fala, Senhor e Rei. Os nossos corações
esperam a tua palavra, como a terra sedenta do ardente verão espera a
primeira chuva mansa de setembro.
– Obrigado, seja quem fores. Obrigado. E obrigado a estes cidadãos que
ao Verbo do Pai, ao Pai do qual Eu sou o Verbo, abriram os seus corações.
Para que saibais que não é ao Filho do homem, que vos fala, mas ao Senhor
Altíssimo é que vão rendidas graças e honra por este tempo de paz com que
Ele reata sua quebrantada paternidade com os filhos do homem. Louvemos o
Senhor verdadeiro, o Deus de Abraão, que teve piedade e amor para com o
seu povo, e lhe concede o Redentor prometido. Não a Jesus, servo da eterna
Vontade, mas glória e louvor a esta Vontade de amor.
– Tu falas como um santo… Eu sou o sinagogo. Hoje não é sábado. Mas
vem até a minha casa para nos explicar a Lei, Tu, sobre o qual, mais do que
o óleo da consagração dos reis, foi derramada a unção da Sabedoria.
– Eu irei.
– O meu Senhor talvez esteja cansado.
– Não, Judas. Nunca me canso de falar de Deus e nunca desejoso de
decepcionar os corações.
– Então, vem –insiste o sinagogo–. Toda Keriot lá fora, está Te
esperando.
– Vamos.
Saem. Jesus está entre Judas e o arqui-sinagogo. Ao seu redor vão os
notáveis e uma grande multidão. Jesus vai passando e abençoando.
78.6
A sinagoga fica na praça. Entram. Jesus vai ao lugar de quem ensina.
Começa a falar, todo cândido na esplêndida veste, o rosto inspirado e os
braços estendidos, no seu gesto habitual.
– Povo de Keriot, o Verbo de Deus fala. Ouvi. Este que vos fala não é
outro, senão a Palavra de Deus. A sua soberania vem do Pai, e ao Pai
voltará, após ter evangelizado Israel. Abram-se os corações e as mentes à
Verdade, a fim de que o erro não se aninhe e não nasça confusão.
Isaías disse[126]: “Toda rapina feita com tumulto e as vestes encharcadas
de sangue serão queimadas pelo fogo. Eis que nasceu-nos um pequenino, foi-
nos dado um Filho. Em seus ombros Ele tem o principado. Eis o seu nome:
Admirável, Conselheiro, Deus Forte, Pai do século futuro, Príncipe da Paz.”
Este é o meu Nome. Deixemos aos Césares e aos Tetrarcas as suas presas.
Eu farei rapina. Mas não rapina que mereça a punição do fogo. Pelo
contrário, Eu arrancarei do fogo de Satanás presas e mais presas, para levá-
las ao Reino da paz, do qual Eu sou Príncipe, e ao século futuro: o tempo
eterno, do qual sou Pai.
– Deus, diz ainda Davi[127], de cuja estirpe Eu provenho, como estava
predito por aqueles que viram, por sua santidade agradável a Deus e
escolhida para falar de Deus, “escolheu somente um… meu filho… mas a
obra é grandiosa, por que se trata, não de preparar a casa para um homem,
mas para Deus.” Assim é. Deus, o Rei dos reis, escolheu somente um: o seu
Filho, para construir, nos corações, a sua casa. E já preparou o material. Oh!
Quanto ouro de caridade! E cobre, e prata, e ferro, e madeiras raras, e
pedras preciosas! Todos estão acumulados em seu Verbo, e Ele os usa para
construir em vós a morada de Deus. Mas se o homem não ajuda ao Senhor,
inutilmente o Senhor quererá construir a sua casa. Ao ouro se responde com
o ouro. À prata com a prata, ao cobre com o cobre, ao ferro com o ferro. Ou
seja, dá-se amor por amor, continência para servir a Pureza, constância para
ser fiéis, força para não se dobrar. Em seguida levar hoje a pedra, amanhã a
madeira: hoje o sacrifício, amanhã a obra, e construir. Sempre construir o
templo de Deus em vós.
O Mestre, o Messias, o Rei do eterno Israel, do eterno povo de Deus,
vos chama. Mas quer que estejais limpos para a obra. Abaixo as soberbas: a
Deus o louvor. Abaixo os pensamentos humanos: de Deus é o Reino.
Humildes, dizei Comigo: “Todas as coisas são tuas, ó Pai. Teu é tudo o que é
bom. Ensina-nos a conhecer-Te e a servir-Te em verdade.” Dizei: “Quem
sou eu?” E reconhecei que sereis alguma coisa, somente quando fordes
moradas purificadas, às quais Deus pode descer e nelas descansar.
Sendo todos peregrinos e estrangeiros nesta terra, sabei reunir-vos e ir
rumo ao Reino prometido. O caminho são os mandamentos, cumpridos não
por temor do castigo, mas por amor a Ti, ó Pai Santo. Arca, um coração
perfeito, no qual há o nutritivo maná da sabedoria e onde floresce a vara da
vontade pura. E, para que a casa seja luminosa, vinde à Luz do mundo. Eu
vo-la trago. Trago-vos a Luz. Nada mais do que isto. Não possuo riquezas e
não prometo honras que são da terra. Mas possuo todas as riquezas
sobrenaturais do meu Pai, e aos que seguiram a Deus em amor e caridade, Eu
prometo a honra eterna do Céu.
A paz esteja convosco.
78.7
As pessoas, que escutaram atentas, cochicham um pouco inquietas.
Jesus fala com o sinagogo. Unem-se ao grupo também outras pessoas, talvez
os notáveis.
– Mestre… mas não és Tu o Rei de Israel? Haviam-nos dito…
– Eu o sou.
– Mas Tu disseste…
– Que não possuo nem prometo as riquezas do mundo. Não posso dizer
senão a verdade. Assim é. Eu sei o vosso pensamento. Mas o erro vem de
um erro de interpretação e de um grande respeito vosso para com o
Altíssimo. Foi-vos dito: “Vem o Messias”, e vós pensastes, como muitos em
Israel, que Messias e rei fossem a mesma coisa. Levantai mais alto o
espírito. Observai este belo céu de verão. Parece-vos que termina ali, o seu
limite, ali onde o ar parece uma abóbada de safira? Não. Além estão os
estratos mais puros, os azuis mais límpidos até àquele inimaginável do
Paraíso, onde o Messias conduzirá os justos que morreram no Senhor. A
mesma diferença existe entre a realeza messiânica, em que acreditam os
homens, e aquela que é real: toda divina.
– Mas, poderemos nós, pobres homens, levantar o espírito até onde Tu
dizes?
– Basta que o queirais. E, se o quiserdes, eis que Eu vos ajudarei.
– Como Te devemos chamar, se não és rei?
– Mestre, Jesus, como quiserdes. Mestre Eu sou, e sou Jesus, o
Salvador.
78.8
Um velho diz:
– Ouve, Senhor. Há tempo, há muito tempo, quando saiu o edito, chegou
até aqui a notícia de que o Salvador havia nascido em Belém… e eu fui até
lá em companhia de outros… Vi um pequeno Menino, em tudo igual aos
outros… Mas eu o adorei, por fé. Depois soube que havia um homem santo,
que se chamava João. Qual é o Messias verdadeiro?
– Aquele que tu adoraste. O outro é o seu Precursor. Grande santo aos
olhos do Altíssimo, mas não é o Messias.
– Eras Tu?
– Era Eu. E que foi que viste em torno à minha pessoa recém-nascida?
– Pobreza e limpeza, honestidade e pureza. Um operário gentil e sério
chamado José, operário, mas da estirpe de Davi. Uma jovem mãe, loira e
gentil, chamada Maria, diante de cuja graça empalidecem as rosas mais
belas de Engadi e parecem disformes os lírios dos canteiros reais. E um
Menino de grandes olhos da cor do céu, cujos cabelos pareciam fios de ouro
pálido… E não vi mais nada… E ouço ainda a voz da mãe me dizer: “Pelo
meu Filho eu te digo: seja o Senhor contigo até o encontro eterno, e a sua
Graça venha ao teu encontro em tua estrada.” Estou com oitenta e quatro
anos… a estrada está chegando ao fim… Não esperava mais encontrar a
Graça de Deus. Mas, ao invés, Te encontrei… e agora não desejo mais ver
outra luz que não seja a tua. Sim. Eu Te vejo como és, sob esta veste de
piedade que é a carne que assumiste. Eu Te vejo! Ouvi a voz deste que ao
morrer vê a Luz de Deus!
As pessoas se aglomeram ao redor do idoso inspirado, que está no
grupo de Jesus e que, não mais sustentando-se em sua bengala, levanta os
braços trêmulos, a cabeça toda encanecida, com uma barba comprida e
repartida, uma verdadeira cabeça de patriarca ou profeta.
– Eu vejo Este: O Eleito, o Supremo, o Perfeito, descido aqui por força
do Amor, subir de volta à destra do Pai, e tornar-se Um com Ele. Mas eis!
Não Voz e Essência incorpórea, como Moisés viu o Altíssimo, e como o
Gênesis diz que os nossos Primeiros o conhecessem e com Ele falassem, no
vento da tarde. Como verdadeira Carne o vejo subir ao Eterno. Carne
fulgurante! Carne gloriosa! Oh! pompa de Carne divina! Oh! Beleza do
Homem-Deus! É o Rei! Sim. É o Rei. Não de Israel: do mundo. A Ele se
inclinam todas as realezas da terra e todos os cetros e coroas se anulam no
fulgor do seu cetro e de suas jóias. Uma coroa, uma coroa Ele tem em sua
fronte. Um cetro, um cetro Ele tem em sua mão. Sobre o peito tem um
racional: pérolas e rubis de um esplendor nunca visto estão nele. Chamas
dele saem como de uma fornalha sublime. Em seus pulsos há dois rubis, e
uma fivela de rubis está sobre os seus santos pés. Luz, luz dos rubis! Olhai, ó
povos, o Rei eterno! Eu Te vejo! Eu Te vejo! Eu subo Contigo… Ah! Senhor!
Nosso Redentor! A luz cresce no meu olho da alma… O Rei está adornado
com o seu próprio Sangue! A coroa é uma coroa de sangrentos espinhos, o
cetro é uma cruz… Eis o homem! Ei-lo! És Tu!… Senhor, pela tua imolação,
tem piedade do teu servo. Jesus, à tua piedade, entrego o meu espírito.
O velho, até então em pé, tornado jovem no fogo do profetizar, prostra-
se de repente, e cairia, se Jesus prontamente não o amparasse contra o seu
peito.
– Saul!
– Saul está morrendo!
– Socorro!
– Correi.
– Paz ao justo que morre –diz Jesus, que lentamente se ajoelhou para
poder sustentar melhor o velho cada vez mais pesado.
Faz-se silêncio. Depois, Jesus o deposita completamente no chão. E se
endireita.
– Paz ao seu espírito. Morreu vendo a Luz. Na expectativa, que será
breve, ele já verá a face de Deus, e será feliz. Não há morte, ou seja,
separação da vida, para aqueles que morrem no Senhor.
78.9
As pessoas, depois de algum tempo, afastam-se comentando. Ficam os
maiorais, Jesus, os seus discípulos e o sinagogo.
– Ele profetizou, Senhor?
– Os seus olhos viram a Verdade. Vamos.
Saem.
– Mestre, Saul morreu investido pelo Espírito de Deus. Nós, que o
tocamos, estamos puros, ou impuros?
– Impuros.
– E Tu?
– Eu, como os outros. Eu não mudo a Lei. A Lei é lei, e o israelita a
observa. Nós ficamos impuros[128]. Entre o terceiro dia, e o sétimo nos
purificaremos. Alé lá, estamos impuros. Judas, Eu não volto passando por
tua mãe. Não levo impureza na sua casa. Faz que ela seja avisada por alguém
que o possa fazer. Paz a esta cidade. Vamos.
Nada mais vejo.
[126] Isaías disse, em: Isaías 9,4-5.
[127] diz ainda David, em: 1 Crónicas 29,1.
[128] Nós ficamos impuros, p or ter tocado um morto, como vem estabelecido em: Números 19,11-22, que comp reende as
regras p ara p urificar-se. Ainda a p rop ósito dos contactos com um morto, são contemp lados casos esp ecíficos em: Levítico
21,1-4; 22,4-7; Números 6,6-12; 9,6-12; 31,19-20; Ezequiel 44,25-27; Ageu 2,13. A p resente nota deve valer p or todas as
vezes que se ap resenta um caso similar de “imp ureza legal”. – No fim de cada volume o leitor encontrará o índice temático p ara
consultar as notas p rincip ais e de ligação, que são distribuídas nos dez volumes da obra.
Primeriro ano
da Vida pública de Jesus.
(continuação e fim)
79. Indo ao encontro dos pastores. As joias de
Aglaé
e uma parábola sobre a sua conversão.
15 de janeiro de 1945.
79.1 Jesus caminha com os discípulos por uma estrada ao longo da
torrente. Ao longo, é um modo de dizer. A torrente fica lá em baixo; no alto,
ao longo da costa, é que fica a estrada cheia de curvas, como costuma ser
em lugares montanhosos.
João está vermelho como um tomate, pois está carregando, como um
estivador, um grande saco bem cheio de viagem. Judas leva o de Jesus, e o
seu. Simão leva apenas a própria bagagem e os mantos. Jesus recebeu de
volta a veste e as sandálias. A mãe de Judas deve tê-la mandado lavar,
porque não está mais amarrotada.
– Quantas frutas! Que belos vinhedos sobre aquelas colinas! –diz João,
que não perde o bom humor apesar do calor e do cansaço–. Mestre este é o
rio em cujas margens nossos antepassados colheram[1] os cachos
milagrosos?
– Não. É outro, mais ao sul. Mas toda a região era um lugar abençoado
por frutos em abundância.
– Agora não é mais, embora continue bonita.
– Muitas guerras devastaram este chão. Aqui se formou Israel… Este
chão para formar-se teve que ser fecundado com o sangue seu e dos
inimigos.
– Onde iremos encontrar os pastores?
– A cinco milhas do Monte Hebron, às margens daquele rio sobre o
qual vós indagastes.
– Atrás daquela colina, então?
– Atrás da colina.
– Está muito quente. O verão… Aonde iremos depois, Mestre?
– A um lugar mais quente ainda. Mas Eu vos peço que venhais.
Viajaremos de noite. As estrelas são tão claras que não há escuridão. Eu
quero mostrar-vos um lugar…
– Uma cidade?
– Não… Um lugar… que vos fará entender o Mestre… talvez melhor
do que suas palavras.
79.2 – Nós perdemos muitos dias com aquele estúpido acidente. Estragou
tudo…e minha mãe, que tanto havia trabalhado, ficou desiludida. Além
disso, não sei por que Tu quiseste segregar-te até à purificação.
– Judas, por que chamas estúpido um fato que foi uma graça para um
verdadeiro fiel? Não quererias tu, para ti, tal morte? Ele esperou o Messias
a vida toda; já velho, foi levado, por caminhos difíceis, até adorá-Lo, ao
ouvir: “Ei-Lo.” Conservou no coração, por trinta anos, a palavra de minha
Mãe. O amor e a fé o investiram com seus ardores, naquela última hora,
reservada por Deus. O seu coração rompeu-se de alegria, incinerado pelo
fogo de Deus, como um holocausto agradável. Qual sorte melhor do que
esta? Ele estragou a festa que tu tinhas preparado? Vê nisto uma resposta de
Deus. Que não se misture o que é do homem com o que é de Deus… Tua
mãe ainda me terá. Aquele velho nunca mais me teria tido. Toda Keriot
pode vir ao Cristo, o velho não tinha mais forças para fazê-lo. Eu fiquei
feliz por ter acolhido sobre meu coração o velho pai moribundo, e ter
recomendado o seu espírito. Além do mais… Por que dar escândalo,
mostrando desprezo pela Lei? Para dizer: “Segui-me”, precisa caminhar.
Para levar ao caminho santo, precisa fazer o mesmo caminho. Como Eu
poderia dizer: “Sede fiéis”, sendo Eu infiel?
– Creio ser este erro a causa da nossa decadência. Os rabis e os fariseus
abatem o povo sob os preceitos, e depois… depois fazem como aquele que
profanou a casa de João Batista, fazendo dela um lugar de vício –observa
Simão.
– É um dos de Herodes… –rebate Iscariotes.
– Sim, Judas. Mas as mesmas culpas estão também nas castas que se
dizem santas. Que dizes disto, Mestre? –diz Simão.
– Digo que, só se houver um punhado de verdadeiro fermento, e de
verdadeiro incenso em Israel, é que se formará o pão, e se perfumará o altar.
– Que queres dizer?
– Quero dizer que, se houver quem venha à Verdade com um coração
reto, a Verdade se espalhará, como fermento, na massa da farinha e como
incenso por todo Israel.
– Que foi que te disse aquela mulher? –pergunta Judas.
Jesus não responde. Vira-se para João:
– Está muito pesado, e estás cansado. Dá-me a tua carga.
– Não, Jesus. Estou acostumado com os pesos e, além disso… torna-me
leve o pensamento da alegria de Isaque.
79.3 Contornaram a colina. À sombra do bosque, na outra vertente, estão
as ovelhas de Elias. Os pastores, sentados à sombra, estão vigiando-as. Ao
verem Jesus correm.
– A paz esteja convosco. Chegaste?
– Nós estávamos preocupados por pelo Teu atraso… na dúvida se era
melhor virmos ao Teu encontro, ou obedecer a um outro, decidimos vir até
aqui… obedecendo assim a Ti e ao nosso amor, ao mesmo tempo. Devias
estar aqui há muitos dias.
– Tivemos que parar….
– Aconteceu alguma coisa?
– Não, amigo. Foi a morte de um fiel sobre o meu peito. Nada mais.
– Que querias que acontecesse, pastor? Quando as coisas estão bem
preparadas… Certamente é necessário saber prepará-las, e preparar os
corações para recebê-las. A minha cidade deu ao Cristo toda honra. Não é
verdade, Mestre?
– É verdade. Isaque, passamos, na volta, por Sara. Também a cidade de
Juta, soube compreender a essência da minha doutrina, e amar, com um
amor prático, desinteressado e santo, sem outra preparação exceto sua
simples bondade e a verdade das palavras de Isaque. Mandou-te roupas e
alimento, Isaque, e, aos óbolos que ficaram sobre tua enxerga, todos
quiseram acrescentar alguma coisa para ti, que voltas ao mundo, privado de
tudo. Toma. Eu nunca carrego dinheiro. Mas este Eu peguei, porque está
purificado pela caridade.
– Não, Mestre, guarda-o Tu. Eu… estou acostumado a viver sem ele.
– Agora deverás ir aos lugares aos quais te mandarei. Tu precisarás
dele. O operário tem direito ao salário… mesmo se operário das almas…
porque ainda temos um corpo para alimentar, como um burrinho que ajuda
o seu dono. Não é muito. Mas tu saberás fazer uso dele… João, naquele
saco há roupas e sandálias. Joaquim as obteve com os seus familiares.
Talvez sejam grandes… mas é um presente dado com tanto amor!
Isaque pega o saco, e se afasta dali, indo vestir-se atrás de uma moita.
Ele ainda estava descalço e vestido com sua extravagante toga, feita de uma
coberta.
79.4 – Mestre –diz Elias–. Aquela mulher… que está na casa de João…
Após três dias que Tu tinhas ido embora, e nós estávamos apascentando as
ovelhas nos prados do monte Hebron (porque os prados são de todos, e de
lá não nos podem expulsar) ela nos mandou uma serva com esta bolsa e
dizendo que queria falar conosco… Não sei se fiz bem… mas desta
primeira vez, eu devolvi a bolsa, e lhe disse: “Não tenho nada para ouvir…”
Depois, ela tornou a dizer: “Vem, em nome de Jesus”, e eu fui… Ela
esperava que não estivesse lá o seu marido, enfim, o homem que a tem!
Muitas coisas ela queria saber! Mas eu… falei pouco. Por prudência. Ela é
uma meretriz. Eu temia que fôsse uma cilada para Ti. Perguntou-me quem
és, onde estás, que é que fazes, se és um senhor… E eu disse: “É Jesus de
Nazaré, está em toda parte, porque é um mestre, e vai ensinando por toda a
Palestina”; eu disse que és um homem pobre, simples, um operário que a
Sabedoria tornou sábio… E nada mais.
– Fizeste bem –diz Jesus.
E, ao mesmo tempo, Judas exclama:
– Fizeste mal! Por que não disseste que Ele é o Messias, que é o Rei do
mundo? Esmagar a soberba romana sob o fulgor de Deus!
– Ela não me teria entendido… Além disso, podia eu estar certo de que
ela estava sendo sincera? Tu mesmo o disseste, quando a viste, o que ela é.
Podia eu jogar as coisas santas (tudo o que é de Jesus é santo) em sua boca?
Podia eu pôr Jesus em perigo, dando tantas notícias? Se muitos Lhe fazem
mal, não será nunca por meu intermédio.
– Vamos nós, João, dizer a ela quem é o Mestre, e explicar-lhe a
verdade santa.
– Eu não. A não ser que Jesus me ordene.
– Estás com medo? Que queres que te faça? Tens nojo? O Mestre não
teve!
– Nem medo e nem nojo. Tenho pena. Mas acho que, se Jesus quisesse,
teria parado para instruí-la. Se não o fez… não é necessário que nós o
façamos.
– Não havia nela então sinais de conversão… Agora… 79.5Elias, deixa-
me ver a bolsa. E Judas, que está sentado na grama, vira sobre a ponta de
seu manto o conteúdo da bolsa. Anéis, pulseiras, braceletes, um colar
rolam: amarelo ouro sobre o amarelo pálido da veste de Judas.
– Tudo são joias!… Que faremos com elas?
– Podem ser vendidas –diz Simão.
– São coisas que trazem aborrecimentos –diz Judas, embora admirando-
as.
– Eu também lhe disse isso, ao pegá-las; disse ainda: “O teu patrão vai
te bater.” Ela me respondeu: “Não são dele. São minhas, e delas faço o que
eu quero delas. Eu sei que é ouro do pecado… mas se tornará bom, se for
usado por quem é pobre e santo. Para que se lembre de mim”, e pôs-se a
chorar.
– Vai Tu, Mestre.
– Não.
– Manda o Simão.
– Não.
– Então vou eu.
– Não.
Os “não” de Jesus são secos e imperativos.
– Fiz mal, Mestre, em falar com ela e em pegar aquele ouro? –pergunta
Elias, vendo que Jesus está sério.
– Não fizeste mal. Mas nada mais há a fazer.
79.6 – Mas talvez aquela mulher queira redimir-se, e tenha necessidade
de ser instruída… –objeta ainda Judas.
– Nela já existem faíscas suficientes, aptas a levantar um incêndio que
pode queimar este vício, tornando-se uma alma novamente virgem, pelo
arrependimento. Há pouco, Eu vos falei do fermento, que se espalha pela
farinha, e a transforma em um santo pão. Ouvi uma breve parábola: Aquela
mulher é a farinha. Uma farinha na qual o maligno misturou os seus pós
infernais. Eu sou o fermento, ou seja, a minha Palavra é o fermento. Mas, se
houver folhelho demais na farinha, ou se houver pedras e areia, ou até cinza
na farinha, pode-se fazer o pão, mesmo com o fermento bom? Não se pode.
É preciso que, pacientemente, se tire da farinha o folhelho, as cinzas, as
pedras e a areia. A Misericórdia passa e oferece o crivo… O primeiro:
aquele feito de breves verdades fundamentais, necessárias para alguém que
está na rede da completa ignorância, do vício, do paganismo. Se a alma o
acolhe, começa a primeira purificação. A segunda acontece com o crivo da
própria alma, que compara o seu ser com o Ser que se lhe revelou. Fica
horrorizada. E inicia a sua obra. Por uma operação cada vez mais
minuciosa, depois das pedras, depois da areia, depois da cinza, chega a tirar
até aquilo que já é farinha, mas com grãozinhos ainda pesados demais, para
darem um ótimo pão. Agora ei-la toda pronta. Volta, então a Misericórdia, e
se introduz naquela farinha preparada — esta também é preparação,
Judas — transformando-a em pão. Mas é uma operação longa e de
“vontade” da alma. Aquela mulher… aquela mulher já tem em si o mínimo
que era justo dar-lhe e que lhe pode servir para terminar o seu trabalho.
Deixemos que o termine, se o quiser fazer, sem perturbá-la. Tudo serve para
perturbar uma alma que se trabalha: a curiosidade, os zelos imprudentes, as
intransigências como a excessiva piedade.
79.7 – Então não vamos?
– Não. E, para que nenhum entre vós tenha a tentação de fazê-lo,
partamos daqui já. No bosque há sombra. Pararemos nas faldas do vale do
Terebinto. E lá nos separaremos. Elias voltará para suas pastagens com
Levi. José virá Comigo até o vau de Jericó. Depois… nos reuniremos de
novo. Tu, Isaque, continua o que estavas fazendo em Juta, indo daqui,
passando por Arimateia e Lida, até chegar em Doco. Lá nos encontraremos
novamente. É preciso preparar a Judeia. E tu sabes como fazê-lo. É como
fizeste em Juta.
– E nós?
– Vós? Vireis, Eu disse, para verdes a minha preparação. Eu também
me preparei para a missão.
– Terás ido procurar algum rabi?
– Não.
– Foste a João?
– Dele Eu só recebi o batismo.
– E então?
– Belém falou com as pedras e os corações. Também ali aonde Eu te
levo, Judas, as pedras e um coração, o meu, falarão e te darão resposta.
79.8 Elias, que levou leite e pão preto, diz:
– Eu os procurei enquanto esperava, e Isaque me ajudou a procurá-los e
persuadir aquelas pessoas de Hebron… Mas elas não creem, não juram, não
querem senão João. É o “santo” deles, e não querem ninguém mais senão
ele.
– É um pecado comum a muitos lugares e a muitos crentes, presentes e
futuros. Olham o operário, e não o patrão que o enviou. Fazem perguntas ao
operário, sem nem mesmo dizer-lhe: “Diz isto ao teu patrão.” Eles se
esquecem de que o operário existe porque o patrão existe, e que é o patrão
que instrui o operário e o torna apto ao trabalho. Esquecem-se de que o
operário pode interceder, mas só um pode conceder: o patrão. Isto é, Deus e
o seu Verbo com Ele. Não importa. O Verbo tem dor, mas não rancor.
Vamos.
A visão termina.
[1] colheram, como se narra em: Números 13, 23-24.
80. Sobre o monte do jejum
e no penedo da tentação.
17 de janeiro de 1945.
80.1 Uma aurora maravilhosa, em um lugar selvagem. Uma aurora, vista
do alto da encosta de um monte. O dia está começando. No céu ainda
brilham as últimas estrelas e o arco fino da lua minguante, que persiste,
como uma vírgula de prata, sobre o veludo ainda azul escuro do céu.
O monte parece que é sozinho, não ligado a nenhuma cordilheira. Mas
é um verdadeiro monte, não uma colina. O cume fica bem mais acima, e, no
entanto, do meio da encosta já se abrange um horizonte bem largo, sinal de
que aqui já se está muito acima do nível do solo. No ar fresco da manhã,
através do qual abre seu caminho a luz incerta e branco-esverdeada da
aurora, que pouco a pouco se torna mais clara, revelam-se os contornos e os
pormenores, que antes estavam escondidos por aquela névoa que precede o
dia, e que se torna mais escura do que uma noite, porque parece que, na
passagem da noite para o dia, a luz dos astros diminui, e diria, se anula.
Vejo assim que o monte é rochoso e pelado, fendido em saliências que
formam grutas e cavernas. Um lugar realmente selvagem onde — e só nos
pontos em que restou um pouco de terra, que pode recolher a água do céu e
conservá-la — há pequenos tufos verdes; mas a vegetação em geral é de
árvores rígidas, espinhosas, com poucas folhas, e de muitas ervas rasteiras e
duras, que parecem uns pauzinhos verdes, e que eu não sei o nome.
Abaixo, há uma extensão ainda mais árida, plana, pedregosa, cuja
aridez vai se acentuando, à medida que se aproxima um ponto escuro, bem
mais comprido do que largo, ao menos cinco vezes maior do que a largura,
que acho que se trata de um oásis espesso, nascido no meio daquela
desolação, devido à existência de águas subterrâneas. Mas, quando a luz se
torna mais clara, vejo que não é nada mais do que água. Uma água parada,
escura, morta. Um lago de uma tristeza infinita. À esta luz ainda incerta, ele
me faz lembrar a visão[2] de um mundo morto. Parece-me que absorve toda
a escuridão do céu, toda a tristeza do solo circunstante, diluindo em suas
águas paradas o verde escuro das árvores espinhosas e das ervas duras que,
por quilômetros e quilômetros, na parte plana como nas mais altas, são a
única decoração do solo, e que, tendo feito disso um filtro de escuridão, a
emana e espalha por todos os arredores. Como é diferente do ensolarado e
risonho lago de Genezaré! No alto, olhando o céu completamente sereno,
que vai-se tornando cada vez mais claro, olhando para a luz que avança do
oriente em ondas sempre mais amplas, o espírito volta a alegrar-se. Mas,
olhando para aquele enorme lago morto, aperta-se o coração. Nenhum
pássaro sobrevoa suas águas. Nenhum animal está em suas margens. Nada.
80.2 Enquanto olho esta desolação, desperta-me a atenção a voz do meu
Jesus:
– Eis-nos aqui juntos, onde Eu queria.
Eu me viro. Vejo-O às minhas costas, entre João, Simão e Judas, junto à
encosta rochosa do monte, lá onde chega uma vereda… seria melhor dizer:
lá onde um longo trabalho das águas, nos meses de chuva, arranhou o
calcário escavando, através dos séculos, um canal mal desenhado, que irá
servir para o escoamento das águas do cume, e que agora é mais um
caminho para as cabras selvagens, do que para gente.
Jesus olha ao seu redor, e repete:
– Sim, era aqui que Eu vos queria trazer. Aqui o Cristo se preparou para
a sua missão.
– Mas aqui não há nada!
– Não há nada, como disseste.
– Com quem estiveste aqui?
– Com o meu Espírito e com o Pai.
– Ah! A tua parada aqui foi só de poucas horas!
– Não, Judas. Não de poucas horas. De muitos dias….
– E quem é que te servia? Onde dormias?
– Eu tinha como servos os onagros que, à noite, vinham dormir em sua
toca… nesta, onde Eu também me havia entocado… Eu tinha como servas
as águias que, com seu grito agudo, me diziam: “É dia”, e partiam depois
para a sua caça. Eu tinha como amigas as pequenas lebres, que vinham roer
as ervas selvagens, quase aos meus pés… para Mim, alimento e bebida era
aquilo que é alimento e bebida da flor silvestre: o orvalho da noite, a luz do
sol. Nada mais.
– Mas, Por quê?
– Para preparar-me bem, como tu dizes, para a minha missão. As coisas
bem preparadas produzem bons resultados. Tu também o disseste. E esta
não era a pequena, inútil coisa de mostrar a Mim mesmo, Servo do Senhor,
mas de fazer compreender aos homens o que é o Senhor e, através dessa
compreensão, fazê-lo ser amado em espírito de verdade. Infeliz do servo do
Senhor, que pensa em seu triunfo, e não no de Deus! Que procura as suas
próprias vantagens, que sonha colocar-se no alto de um trono feito…oh!
Feito pelos interesses de Deus, mas aviltados até tocarem o chão, eles que
são interesses celestiais. Este não é mais servo, ainda que exteriormente
pareça sê-lo. Ele é um mercador, um traficante, um falso que se engana a si
mesmo, aos outros, e quer enganar até Deus… É um infeliz que pensa ser
um príncipe, e é um escravo… É do demônio, o seu rei de mentira. Aqui
nesta toca, o Cristo, por muitos dias, viveu de macerações e orações, a fim
de preparar-se para a sua missão. 80.3E, onde querias que Eu tivesse ido
preparar-me, Judas?
Judas está perplexo, desorientado. Enfim, responde:
– Eu não saberia… Eu pensava… que em companhia de algum rabi…
junto aos essênios… não sei.
– Podia Eu encontrar um rabi que me dissesse mais do que me dizia o
Poder e a Sabedoria de Deus? Podia Eu ir em busca da ciência e da
capacidade daqueles que negam a imortalidade da alma, negando a
ressurreição no último dia, e negam a liberdade de ação do homem,
atribuindo as virtudes e os vícios, ações santas e perversas, a um destino,
que dizem ser fatal e inevitável? Eu, Verbo eterno do Pai, presente quando o
Pai criou o homem, e sei de que espírito imortal e animado, de que poder de
julgamento livre e capaz, o Criador dotou o homem? Ah! Não. Vós tendes
um destino. Sim. Vós o tendes. Na mente de Deus que vos cria, há um
destino para vós. O Pai vo-lo deseja. E é destino de amor, de paz, de glória:
“a santidade de serdes seus filhos.”
Este é o destino que, estando presente na mente divina, desde o
momento em que do barro foi feito Adão, estará presente até a criação da
alma do último homem. Mas o Pai não usa de violência para convosco em
vossa condição de rei. O rei, se está na prisão, não é mais rei, é um
rejeitado. Vós sois reis, porque sois livres em vosso pequeno reino
individual. Em vosso eu. Nele podeis fazer o que quiserdes, como
quiserdes.
80.4À frente e nos confins do vosso pequeno reino, tendes um Rei amigo,
e duas potências inimigas. O Amigo vos mostra as regras por Ele dadas
para fazer felizes os que são seus. Ele vo-las mostra. E vos diz: “Ei-las.
Com estas é certa a eterna vitória.” Ele, o Sábio e Santo, vo-las mostra, para
que possais, se o quiserdes, praticá-las e, ter a glória eterna. As duas
potências inimigas são satanás e a carne. Por carne, entendo a vossa e a do
mundo, ou seja, as pompas e seduções do mundo, isto é, a riqueza, as festas,
as honras, os poderes que do mundo e no mundo se tem, e que nem sempre
são obtidos honestamente, e menos ainda sabe usar honestamente, se, por
um complexo de causas, o homem chega a possuí-los.
Satanás, mestre da carne e do mundo, fala também pelo mundo e pela
carne. Ele também tem as suas regras… Oh! Se as tem! E, como o eu está
enfaixado pela carne, e a carne se inclina para a carne, como os fragmentos
de ferro se inclinam para o ímã, e, visto que o canto do Sedutor é mais doce
do que o gorjeio do rouxinol enamorado, sob os raios da lua e o perfume
dos roseirais, é mais fácil andar em direção à estas regras, inclinar-se para
estas potências, dizer-lhes: “Considero-vos amigas. Entrai.” Entrai… Já
vistes um aliado que se conserve sempre honesto, sem pedir cem por um
pela ajuda dada?
Assim fazem essas potências. Entram… E tornam-se donas. Donas?
Não, tiranas. Elas vos amarram, ó homens, ao banco de sua galera, lá vos
acorrentam, não vos deixam mais erguer o pescoço sob o seu jugo, e o
chicote delas vos fere até o sangue, se delas procurardes fugir. Ou deixar-se
ferir, até virar um amontoado de carne despedaçada, tão inútil, como carne,
a ponto de ser repelida por seus pés cruéis, ou morrer debaixo deles.
Se sabeis entregar-vos a um tal martírio, eis então que passa a
Misericórdia, a Única que pode ainda ter piedade daquela repugnante
miséria, da qual o mundo, um dos seus donos, agora tem nojo, e sobre a
qual o outro dono, satanás, dirige suas flechas de vingança. E a
Misericórdia, a Única que passa, se inclina, a recolhe, a medica, a cura e lhe
diz: “Vem. Não temas. Não olhes para ti mesmo. As tuas feridas não são
mais do que cicatrizes, mas são tantas, que te causariam horror, a ponto de
te desfigurarem. Mas Eu não olho para elas, olho para a tua vontade. Por
essa boa vontade é que estás assim marcada. Por isso, Eu te digo: te amo.
Vem Comigo”, e a leva para o seu Reino. Agora podeis compreender que a
Misericórdia e o Rei amigo são uma mesma pessoa. Encontrais de novo as
regras que Ele vos tinha mostrado e que vós não quisestes seguir. Agora o
quereis… e alcançais a paz da consciência primeiro, e a paz com Deus
depois.
Dizei-me, agora. Este destino foi imposto por Um só a todos, ou foi
escolhido, cada um por si?
– Foi escolhido por cada um.
– Estás julgando bem, Simão. Podia Eu dirigir-me aos negadores da
bem-aventurada ressurreição e do dom de Deus para que fossem meus
formadores? 80.5Eu vim aqui. Trabalhei minha alma de Filho do homem até
os últimos retoques, terminando um trabalho de trinta anos de
aniquilamento e de preparação a fim de, com perfeição, começar o meu
ministério. Agora Eu vos peço que fiqueis Comigo por alguns dias nesta
toca. Será sempre menos desolada esta nossa parada, porque seremos quatro
amigos lutando contra as tristezas, os medos, as tentações, as necessidades
da carne. Eu estive aqui sozinho. Será sempre menos penosa, porque agora
é verão, e aqui no alto, passa o vento das cumeadas, que abranda o calor. Eu
vim aqui no fim da lua de Tebet, e rígido era o vento que descia das neves
dos cumes. Será sempre menos tormentosa, porque será mais breve, e
porque agora nós temos um mínimo de alimentos que pode matar a nossa
fome, e nos pequenos odres de pele que Eu pedi aos pastores que nos
dessem, há tanta água que bastará para os dias desta parada. Eu… Eu
preciso arrancar duas almas das garras de satanás. Nada mais o pode fazer, a
não ser a penitência. Eu vos peço ajuda. Será também para a vossa
formação. Aprendereis como se arrancam as presas das garras de mamona.
Não tanto com as palavras, quanto com sacrifício… As palavras!… O
barulho satânico impede que sejam ouvidas… Toda alma que é presa do
Inimigo fica envolvida em turbilhões de vozes infernais… Quereis ficar
Comigo? Mas, se não quiserem, podem ir embora. Eu fico. Encontrar-nos-
emos de novo em Técua, junto ao mercado.
– Não, Mestre, eu não te deixo –diz João, enquanto Simão, ao mesmo
tempo, exclama:
– Tu nos elevas, querendo-nos Contigo nesta redenção.
Judas… não me parece muito entusiasmado. Mas faz cara boa ao…
destino, e diz:
– Eu fico.
– Então peguem os odres e os sacos, e tragam para dentro e, antes que o
sol esquente, partam a lenha e a amontoem junto à fenda da rocha. Aqui a
noite é muito fria, mesmo no verão, e nem todos os animais são bons.
Acendam um ramo agora mesmo, lá daquela acácia viscosa. Queima bem.
Olhemos por entre as fendas, para expulsar com o fogo as cobras venenosas
e os escorpiões. Vamos…
80.6 …No mesmo lugar do monte. Só que agora é noite. Uma noite toda
estrelada. Uma beleza de céu noturno como creio que só se pode
contemplar nos países subtropicais. Estrelas de grandeza e brilho
admiráveis. As constelações maiores parecem cachos de brilhantes, de
claros topázios, de pálidas safiras, de plácidas opalas, de desbotados rubis.
Piscam, se acendem, apagam-se como um olhar que a pálpebra esconde por
um instante, e tornam a acender-se, ainda mais belas. De vez em quando,
uma estrela risca o céu, e some em direção a quem sabe quais horizontes. É
um risco de luz que parece um grito de júbilo estrelar, ao poder voar assim,
por aqueles prados intermináveis.
Jesus está sentado junto à abertura da caverna e fala aos três que o
cercam. O fogo deve ter ficado aceso, porque, no meio do círculo formado
pelos quatro, um montinho de tições mostra ainda o clarão de algumas
brasas e lança seus reflexos vermelhos sobre os rostos dos quatro.
– Sim. Nossa parada terminou. Esta parada. Na outra vez, durou
quarenta dias… E vos digo ainda: nestas encostas era ainda inverno… e Eu
não tinha alimento. Um pouco mais difícil do que desta vez, não é verdade?
Eu sei que sofrestes agora também. O pouco que tínhamos, e que Eu vos
dava, não era nada, especialmente para a fome dos jovens. Era apenas
suficiente para que não desfalecêsseis de fraqueza. Água, menos ainda. O
calor é tórrido durante o dia. E vós me direis que isso não havia naquele
tempo de inverno. Mas havia então, um vento seco, que descia lá do cume,
queimando os pulmões, e subia daquela baixada carregado de poeira do
deserto e enxugava mais ainda do que este calor de verão, no qual se pode
buscar alívio em sugar estes acídulos frutos, que estão quase maduros.
Naquele tempo, o monte não tinha mais do que vento e ervas queimadas
pelo gelo, em torno das acácias mirradas. Eu não vos dei tudo, porque
reservei os últimos pães e o último queijo, com o último odre, para a
volta… Eu sei o que foi a minha volta, exausto como estava, na solidão do
deserto… Recolhamos nossas coisas e vamos embora. A noite está ainda
mais clara do que aquela que nos conduziu até aqui. Não há luar. Mas o céu
derrama luz. Vamos. Lembrai-vos deste lugar. Sabei lembrar-vos de como o
Cristo se preparou e de como se preparam os apóstolos. Preparem-se os
apóstolos como Eu vos ensino.
80.7 Levantam-se. Simão, com um galho, revira as brasas, as reaviva,
antes de espalhá-las com o pé, jogando sobre elas ervas secas. Na chama,
ele acende um ramo de acácia e o conserva no alto, à entrada da caverna,
enquanto Judas e João recolhem os mantos, os sacos e os pequenos odres de
pele, dos quais só um ainda está cheio. Depois, apaga o ramo, contra a
rocha, pega seu saco e põe o manto, como os outros, amarrando-o à cintura,
para que não estorve o caminhar.
Descem sem falar mais nada, um atrás do outro, por uma vereda
bastante íngreme, pondo em fuga os pequenos animais que estão roendo as
poucas ervas que ainda resistem ao sol. O caminho é longo e difícil.
Finalmente chegam à planície. O caminho não é muito cômodo nem aqui,
onde pedras e lascas de pedras movem-se, traiçoeiras, sob os pés, chegando
até a feri-los, pois a terra, reduzida a pó, as esconde e não podem ser
evitadas, enquanto moitas de espinheiros tostadas arranham e dificultam
grudando na parte inferior das vestes. Mas é caminho mais rápido.
No alto as estrelas estão cada vez mais bonitas.
Vão, vão indo por horas. A planície é sempre mais estéril e triste.
Pontos brilhantes cintilam nas pequenas dobras do terreno, entre a aspereza
do solo. Parecem fragmentos de brilhantes sujos. João se inclina para olhá-
los.
– É o sal do subsolo, que dele está saturado. Aflora com as chuvas da
primavera, depois seca. Por isso é que a vida aqui não se mantém. O mar
Oriental, por profundos canais, espalha a morte até muitos estádios ao seu
redor. Somente onde as nascentes de água doce o combatem é que é
possível encontrar árvores e algum conforto –explica Jesus.
80.8 Continuam a andar. Depois Jesus para junto a uma rocha escavada
na qual eu O vi ser tentado por satanás.
– Paremos aqui. Sentai-vos. Daqui a pouco o galo vai cantar. Faz seis
horas que estamos caminhando, e deveis estar com fome, sede e cansados.
Tomai. Comei e bebei, sentados aqui, ao meu redor, enquanto Eu vou dizer-
vos uma coisa, que vós contareis aos amigos e ao mundo.
Jesus abriu o seu saco de viagem e dele tira pão e queijo, que parte e
distribui, e de uma cabacinha vai pondo água em uma tigela e a distribui
também.
– Tu não comes, Mestre?
– Não. Eu vos falo. Ouvi. Uma vez houve alguém, um homem, que me
perguntou[3] se Eu nunca tinha sido tentado. Perguntou-me se nunca tinha
pecado. Perguntou-me se nunca tinha caído em tentação. E ele se admirou
de que Eu, o Messias, pedisse a ajuda do Pai para resistir, quando dizia:
“Pai, não me deixes cair em tentação.”
Jesus fala baixo e calmo, como se narrasse um fato que todos
ignoravam… Judas abaixa a cabeça como quem está embaraçado. Mas os
outros estão tão atentos, olhando para Jesus, que nem veem Judas.
Jesus continua:
– Agora vós, meus amigos, podereis saber o que só levemente aquele
homem ficou sabendo. Depois do batismo — Eu estava limpo, mas nunca
se é limpo bastante diante do Altíssimo, e a humildade de dizer: “Sou
homem e pecador” já é um batismo que purifica o coração — Eu vim até
aqui. Fui chamado “o Cordeiro de Deus”, por aquele que, santo e profeta,
via a Verdade e via descer o Espírito sobre o Verbo e torná-lo Ungido pelo
seu carisma de amor, enquanto a voz do Pai enchia os céus com o seu som,
dizendo: “Eis o meu Filho dileto no qual Eu me comprazo.” Tu, João,
estavas presente, quando o Batista repetiu as palavras… Depois do batismo,
se bem que limpo por natureza e limpo pelo aspecto, Eu quis “preparar-
me.” Sim, Judas. Olha para Mim. Que meus olhos te digam o que a boca
ainda se cala. Olha para Mim, Judas. Olha para o teu Mestre que não se
sentiu superior ao homem por ser o Messias, e que, ao contrário, sabendo-se
o Homem, quis sê-lo em tudo, exceto em condescender com o mal. Isso
mesmo.
Agora Judas levantou o rosto e olha Jesus que está à sua frente. A luz
das estrelas faz brilhar os olhos de Jesus, como se fossem duas estrelas fixas
em um rosto pálido.
80.9 – A fim de se prepararem para serem mestres é preciso que tenham
sido alunos. Como Deus, Eu sabia tudo. A minha inteligência me podia
também fazer entender as lutas do homem, por um poder intelectivo e de
modo intelectual. Mas um dia algum pobre amigo meu, algum pobre filho
meu poderia dizer-me e o diria: “Tu não sabes o que é ser homem e ter
sensualidade e paixões.” E seria uma censura justa. Eu vim até aqui, ou
melhor, lá, sobre aquele monte, para me preparar… não somente para a
missão… mas para a tentação. Estais vendo? Aqui, onde vós estais, Eu fui
tentado. Por quem? Por um mortal? Não. Muito fraco teria sido o seu poder.
Eu fui tentado por satanás diretamente.
Estava esgotado. Havia quarenta dias que não comia… Mas, enquanto
estava imerso na oração, tudo se tinha anulado na alegria de falar com
Deus, mais que anulado: tornado suportável. Eu o sentia como um
incômodo da matéria, circunscrito apenas na matéria… Depois, Eu voltei ao
mundo… pelos caminhos do mundo… e senti as necessidades de quem está
no mundo. Tive fome. Tive sede. Senti o frio cortante das noites no deserto.
Senti o corpo abatido pela falta de descanso, de cama, e pelo longo caminho
feito em condições de exaustão tal, que me impediam de continuar…
Porque Eu também tenho uma carne, meus amigos. Uma verdadeira
carne. E ela está sujeita às mesmas fraquezas que todas as carnes têm. E,
com a carne, Eu tenho um coração. Sim. Do homem Eu peguei a primeira e
a segunda das três partes que fazem o homem. Eu assumi a matéria com as
suas exigências e o moral com as suas paixões. E, se, por minha vontade,
dominei em seu nascimento todas as paixões não boas, deixei que
crescessem, poderosas como os cedros seculares, as santas paixões do amor
filial, do amor pátrio, das amizades, do trabalho, de tudo o que é ótimo e
santo. Aqui senti saudade de minha mãe, que estava longe, aqui senti
necessidade dos seus cuidados em minha fragilidade humana. Aqui senti
renovar-se a dor de haver-me apartado da única que me amava
perfeitamente, aqui pressenti a dor que me estava reservada e a dor pela sua
dor, pobre mãe, que não terá mais lágrimas, de tantas que terá que derramar
pelo seu Filho e por obra dos homens. E aqui senti o cansaço do herói e do
asceta que, em uma hora de premonição, se apercebe da inutilidade do seu
esforço… Chorei… A tristeza… chamariz mágico usado por satanás. Não é
pecado estar triste, se a hora é penosa. É pecado ceder demais à tristeza, e
cair na inércia ou no desespero. satanás vem sem demora, quando vê que
alguém cai na fraqueza de espírito.
Veio. Vestido como um bondoso viajante. Toma sempre ares de
bondade… Eu tinha fome… e tinha os trinta anos no sangue. Ofereceu-me
ajuda. E, antes, me disse: “Diz a estas pedras que se transformem em pão.”
Mas, antes ainda… sim… antes ainda me tinha falado da mulher… Oh! Ele
sabe falar. Conhece-a a fundo. Foi o primeiro a corrompê-la, para fazer dela
sua aliada na corrupção. Não sou somente o Filho de Deus. Sou Jesus, o
operário de Nazaré. Disse àquele homem, que falara então Comigo,
perguntando se Eu conhecia a tentação, e quase me acusava de ser
injustamente feliz, por não haver pecado: “O ato aplaca com a satisfação. A
tentação rejeitada não cai, mas se torna mais forte, mesmo porque satanás a
estimula.” Repeli a tentação, tanto da fome de mulher, como da fome de
pão. E ficai sabendo que satanás me apresentava a primeira, e humanamente
falando, não estava enganado, como a melhor aliada para quem quer vencer
no mundo.
A tentação, não vencida por aquelas minhas palavras: “Não só dos
sentidos vive o homem”, falou-me, então, da minha missão. Ele queria
seduzir o Messias, depois de ter tentado o Jovem. E passou a incitar-me a
que, com um milagre, aniquilasse os indignos ministros do Templo… Não
se pode dobrar o milagre, chama do céu, e fazer dele um arco de vime para
coroar-se com ele… E não se tenta a Deus pedindo-lhe milagres para fins
humanos. Isto queria satanás. O motivo apresentado era apenas um
pretexto; a verdade era: “Gloria-te de seres o Messias”, para levar-me a
outra concupiscência: a do orgulho.
Não vencido por aquelas minhas palavras: “Não tentarás o Senhor teu
Deus”, circundou-me com a terceira força de sua natureza: o ouro. Oh! O
ouro! Grande coisa é o pão, e maior é a mulher para quem tem o desejo de
alimento ou de prazer. Coisa muito maior é a aclamação das multidões ao
homem… por estas três coisas, quantos delitos se cometem! Mas o ouro…
o ouro… é uma chave que abre, círculo que fecha, é o alfa e o ômega de
noventa e nove por cento das ações humanas. Por causa do pão e da mulher
o homem torna-se ladrão. Por causa do poder torna-se também homicida.
Mas pelo ouro ele torna-se um idólatra. satanás, o rei do ouro, me ofereceu
seu ouro, com a condição de que Eu o adorasse… Eu o traspassei com as
palavras eternas: “Só ao Senhor teu Deus adorarás.”
Aqui. Foi aqui que aconteceu isso.
80.10 Jesus se levantou. Parece mais alto do que antes naquela terra plana
que o circunda e sob aquela luz levemente fosforescente que desce das
estrelas. Os discípulos também se levantam. Jesus continua a falar, fitando
intensamente Judas.
– Então, vieram os anjos do Senhor… O Homem tinha vencido a
tríplice batalha. O Homem sabia o que queria dizer ser homem, e tinha
vencido. Estava exausto. A luta tinha sido mais desgastante do que o longo
jejum… Mas o espírito se agigantava… Creio que com isto os céus se
regozijaram, diante deste meu aperfeiçoamento de criatura dotada de
conhecimento. Eu creio que, a partir daquele momento, veio a Mim o poder
do milagre. Tinha sido Deus. Tornara-me o Homem. Agora, vencendo o
animal, que estava ligado à natureza do homem, eis que Eu era o Homem-
Deus. Eu sou. E, como Deus, tudo posso. E como Homem, tudo conheço.
Fazei vós também como Eu, se quiserdes fazer o que Eu faço. E fazei-o em
memória de Mim.
Aquele homem se admirava de que Eu tivesse pedido a ajuda do Pai. E
que Eu lhe tivesse pedido que não me deixasse cair em tentação. Isto é, que
não me deixasse entregue ao poder da tentação, além das minhas forças.
Creio que aquele homem, agora que sabe, não se admirará mais. Fazei vós
assim também, em memória de Mim, e para vencer como Eu, e não
duvideis nunca, vendo-me forte em todas as tentações da vida, vitorioso na
batalha dos cinco sentidos, do sentido e do sentimento, sobre a minha
natureza de verdadeiro Homem, além do verdadeiro Deus. Lembrai-vos de
tudo isso.
80.11 Tinha prometido levar-vos ao lugar em que teríeis podido conhecer
o Mestre… desde a aurora do seu dia, uma aurora pura como esta que surge
no meio dia da sua vida. O lugar de onde Eu parti, ao encontro da minha
tarde humana… Eu disse a um de vós: “Eu também me preparei.” Vós
estais vendo que era verdade. Agradeço-vos por me terdes feito companhia
nesta volta ao meu lugar natal e penitencial. Os primeiros contatos com o
mundo já me tinham causado náuseas e desconforto. É feio demais. Agora a
minha alma nutriu-se com o tutano do leão: da união com o Pai, na oração e
na solidão. E posso voltar ao mundo para tomar de novo a minha cruz, a
minha primeira cruz de Redentor: aquela do contato com o mundo. Com o
mundo no qual bem poucas são as almas que têm o nome de Maria e de
João…
Agora ouvi, especialmente tu, João. Voltemos para a Mãe e para os
amigos. Eu vos peço isto: não conteis à Mãe, a dureza que o amor de seu
Filho encontrou. Ela sofreria muito. Por essa crueldade do homem Ela
sofrerá tanto… mas não lhe apresentemos o cálice desde já. Quando ele lhe
for dado, será tão amargo! Tão amargo que, como um tóxico, lhe descerá,
serpenteando, pelas suas entranhas santas e por suas veias, mordendo-as e
gelando-lhe o coração. Oh! Não conteis à minha Mãe que Belém e Hebron
me repeliram como a um cão! Tende pena Dela! Tu, Simão, és velho e bom,
és um espírito de reflexão, e não falarás, Eu sei. Tu, Judas, és judeu, e não
falarás por um orgulho regional. Mas tu, João, tu, Galileu e jovem, não
caias em pecado de orgulho, de crítica, de crueldade. Cala-te. Mais tarde…
mais tarde dirás aos outros o que agora te peço que te cales. Também os
outros. Já há tanta coisa para se dizer sobre tudo o que é de Cristo. Por que
unir o que é de satanás contra o Cristo? Meus amigos, vós me prometeis
tudo isso?
– Oh! Mestre! Prometemos sim! Estejas certo!
– Obrigado. Vamos até aquele pequeno oásis. Lá existe uma nascente,
uma cisterna cheia de águas frescas, sombra e verdura. A estrada para o rio
passa perto. Poderemos encontrar alimento e repouso até a tarde. À luz das
estrelas, alcançaremos o rio e o vau. E esperaremos José, ou nos uniremos a
ele, se já tiver voltado. Vamos.
E se encaminham, enquanto os primeiros tons cor-de-rosa no céu, no
limite do oriente, estão dizendo que um novo dia surge.
[2] visão de 29 de Janeiro 1944, em “I quaderni del 1944” (Os cadernos de 1944).
[3] me pergunto, em 69.5.
81. No vau do Jordão com os pastores Simeão,
João e Matias. Um plano para libertar o Batista.
18 de janeiro de 1945.
81.1 Revejo o vau do Jordão: a estrada verde que margeia o rio, tanto de
um lado, como do outro, muito percorrido por viajantes, por causa da sua
sombra. Filas de burrinhos que vão e que vêm, e homens com eles. À
margem do rio, três homens apascentam algumas ovelhas. Na estrada José,
à espera, olha para cima e para baixo.
Lá longe, no ponto onde uma estrada se liga à beira do rio, aponta
Jesus, com os três discípulos. José chama os pastores, e estes levam as
ovelhas para a estrada, fazendo-as caminhar pela beira relvosa. Vão
depressa ao encontro de Jesus.
– Eu estou quase sem coragem… Que direi a Ele como saudação?
– Oh! Ele é tão bom! Tu lhe dirás: “A paz esteja Contigo.” Ele também
saúda sempre assim.
– Ele, sim… mas nós….
– E eu, quem sou? Não sou nem mesmo um dos seus primeiros
adoradores, e Ele me quer tão bem… muito bem!
– Quem é Ele?
– Aquele mais alto e loiro.
– E nós lhe falaremos do Batista, Matias?
– Oh! Sim!
– Não achará que nós preferimos o Batista a Ele?
– De modo nenhum, Simeão. Se Ele é o Messias, vê os corações, e verá
no nosso que, procurando o Batista, era a Ele que queríamos procurar.
– Tens razão.
Os dois grupos já estão a poucos metros um do outro. Jesus já sorri,
com aquele seu sorriso que não se pode descrever. José apressa o passo. As
ovelhas também se põem a trotar, impelidas pelos pastores.
– A paz esteja convosco –diz Jesus, levantando os braços, como para
dar um abraço. Depois se dirige a cada um:
– A Paz a ti, Simeão, João e Matias, meus fiéis, e fiéis de João, o
Profeta! Paz a ti, José –e o beija na face.
Os outros três estão agora de joelhos.
– Vinde, amigos. Vinde debaixo destas árvores, à margem do rio, e
vamos conversar.
Eles descem, e Jesus assenta-se sobre uma grande raiz saliente, os
outros se assentam no chão. Jesus sorri, e os olha fixamente um a um:
– Deixai que Eu conheça os vossos rostos. Vossas almas, Eu já
conheço, como justos que procuram o Bem, que é por eles amado, contra
todas as vantagens do mundo. Eu vos trago a saudação de Isaque, de Elias e
de Levi. E uma outra saudação: a de minha Mãe. 812 Tendes notícia do
Batista?
Os homens, que até então estavam amordaçados pelo acanhamento,
reanimam-se e encontram as palavras:
– Ele ainda está preso. E o nosso coração teme por ele, porque está nas
mãos de um homem cruel, dominado por uma criatura infernal e cercado
por uma corte corrupta. Nós o amamos… Tu sabes que o amamos e que ele
merece o nosso amor. Depois que Tu deixaste Belém, nós fomos
perseguidos pelos homens… Mas nós ficamos desolados e abatidos como
árvores quebradas pelo vento, mais do que pelo ódio deles, por termos
perdido a Ti. E, então, depois de anos de sofrimento, se tivéssemos as
pálpebras costuradas, procurando o sol sem podermos ver, por estarmos
fechados numa cadeia impedidos de enxergar na tepidez de nossas carnes,
eis que ouvimos dizer ser o Batista o homem de Deus, predito[4] pelos
Profetas para preparar os caminhos do seu Cristo. Fomos até ele então.
Dissemos a nós mesmos: “Se o Batista O precede, O encontraremos no
Batista.” Porque eras Tu, Senhor, aquele que nós procurávamos.
– Eu sei. E me encontrastes. Eu estou convosco.
– José nos disse que Tu vieste até o Batista. Nós não estávamos lá
naquele dia. Talvez tivéssemos ido, a mando dele, a algum outro lugar.
Servíamos a ele, nos serviços da alma, que ele nos pedia com tanto amor e
também o escutávamos com amor, embora fôsse tão severo, por não ser Tu,
o Verbo, mas nos dizia sempre palavras de Deus.
– Eu sei. 80.3E a este, não conheceis? –indicando João.
– Nós o vimos com outros galileus, no meio das multidões mais fiéis ao
Batista. E, se não estamos enganados, tu és aquele João, do qual ele
revelava aos seus íntimos: “Eu sou o primeiro, ele será o último. Mas
depois será: ele o primeiro e eu, o último.” Nunca pudemos entender o que
é que ele queria dizer.
Jesus volta-se para a sua esquerda, onde está João, e o atrai contra o seu
coração, com um sorriso ainda mais luminoso, e explica:
– Ele queria dizer ser o primeiro a revelar: “Eis o Cordeiro”, e que este
será o último dos amigos do Filho do homem que falará do Cordeiro às
multidões. Mas, no coração do Cordeiro, este é o primeiro, porque lhe é
mais caro do que qualquer outro homem. Isto é o que ele queria dizer. Mas,
quando virdes o Batista e o vereis ainda, e ainda o servireis até a hora
marcada, dizei-lhe que ele não é o último no coração do Cristo. Ele é tão
amado quanto este outro João, não tanto pelo sangue, mas pela santidade.
Recordai-vos disto. Se por humildade o santo se proclama “último”, a
Palavra de Deus o proclama companheiro do discípulo que me é querido.
Dizei-lhe que amo a este, porque tem o seu mesmo nome, e porque
encontro nele os sinais do Batista, o preparador de almas para o Cristo.
– Nós lhe diremos… Mas nós o veremos ainda?
– Vós o vereis.
81.4 – Sim. Herodes não ousa matá-lo, por medo do povo e, naquela corte
de avidez e corrupção, seria fácil livrá-lo, se tivéssemos muito dinheiro.
Mas…ainda que seja muito o que temos — os amigos nos deram — ainda
falta muito. E nós temos muito medo de não chegarmos a tempo… e que ele
seja morto.
– Quanto acha que vos falta para o resgate?
– Não é para um resgate, Senhor. Ele é muito mal visto por Herodíades,
que domina tanto Herodes, que é difícil em conseguirmos um resgate.
Mas… em Maqueronte estão reunidos, penso eu, todos os ávidos do reino.
Todos buscam o prazer, todos querem sobressair, desde os ministros até os
servos. E, para se viver assim, é preciso ter dinheiro… Nós encontraríamos
alguém que por uma grande importância de dinheiro deixaria o Batista sair.
Até Herodes talvez deseje isto… porque tem medo. Medo do povo e medo
de sua mulher, não de outras coisas. Assim, ele faria o povo contente, e não
seria acusado pela mulher de tê-la descontentado.
– E essa pessoa, quanto pede?
– Vinte talentos de prata. Nós só temos doze e meio.
81.5 – Judas, tu disseste que aquelas joias são muito bonitas.
– Bonitas e preciosas.
– Quanto poderão valer? Parece-me que entendes disso.
– Sim, eu entendo. Por que queres saber o valor delas, Mestre? Queres
vendê-las? Por quê?
– Talvez… Diz: quanto poderão valer?
– Se forem bem vendidas, pelo menos seis talentos.
– Tens certeza disso?
– Sim, Mestre. Só o colar, grosso e pesado, feito de ouro maciço, vale
pelo menos três talentos. Eu o examinei bem. E também os braceletes…
Não sei nem como os pulsos delicados de Aglaé podiam sustentá-los.
– Eles eram as suas algemas, Judas.
– É verdade, Mestre… Mas muitos queriam ter umas algemas destas!
– Pensas assim? Quem?
– Ora… muitos!
– Sim. Muitos que, de homem, só têm o nome… E tu conhecerias um
possível comprador?
– Em suma, Tu queres vendê-las? Por causa do Batista? Mas, olha, é
ouro amaldiçoado!
– Oh! Incoerência humana! Acabaste de dizer, com evidente desejo,
que muitos gostariam de possuir aquele ouro, e depois o chamas de
amaldiçoado?! Judas, Judas!… É amaldiçoado, sim. É amaldiçoado! Mas
ela lhe disse: “Este ouro santificar-se-á se for posto a serviço do pobre e do
santo.” Ela o deu para isso, a fim de que o beneficiado reze por sua pobre
alma que, como o embrião de uma futura borboleta intumesce na semente
do coração. Quem mais santo e pobre do que o Batista? Por sua missão, ele
é igual a Elias, mas na santidade é ainda maior do que ele. O Batista é mais
pobre do que Eu. Eu tenho uma Mãe e uma casa… Quando se tem uma
Mãe, tão pura e santa como Eu tenho, nunca estamos abandonados. Ele não
tem mais casa, e de sua mãe não tem mais nem o sepulcro. Apoderaram-se
de tudo, tudo foi profanado pela maldade humana. 81.6 Portanto, quem é o
comprador?
– Existe um em Jericó, e muitos outros em Jerusalém. Mas aquele de
Jericó!! Ah! É um oriental astuto, um ourives usurário, trapaceiro, mercador
de amor, certamente um ladrão, talvez homicida… com certeza perseguido
por Roma. Ele quer ser chamado de Isaque, a fim de parecer hebreu. Mas
seu verdadeiro nome é Diomedes. Eu o conheço bem…
– Estamos vendo! –interrompe Simão Zelote, que fala pouco, mas
observa tudo. E pergunta:
– Como foi que chegaste a conhecê-lo tão bem?
– Bom… Tu sabes… Para agradar a amigos poderosos… Eu fui até
ele… e fiz negócios… Nós, lá do Templo… Tu sabes…
– Sim!… Vós fazeis quaisquer negócios –termina Simão, com fria
ironia.
Judas fica com raiva, mas se cala.
– Ele pode comprá-las? –pergunta Jesus.
– Acho que sim. Dinheiro nunca lhe falta. Certamente precisa saber
vender, porque o grego é astuto, e, se perceber que está tratando com um
homem honesto, um… filhote de pomba, ele o depena em regra. Mas,
quando tem que lidar com um abutre de sua igualha…
– Vai tu, Judas. És o tipo adequado. Tens a astúcia da raposa e a
rapacidade do abutre. Oh! Perdoa-me, Mestre. Eu falei antes de Ti –diz
ainda Simão Zelote.
– Eu penso como tu, e por isso digo a Judas para ir. João, vai com ele.
Nós nos encontraremos ao cair do sol. O lugar do reencontro será junto à
praça do mercado. Vai. E faze tudo do melhor modo possível.
Judas se levanta prontamente. João tem os olhos implorantes como os
de um cachorro enxotado. Mas Jesus fala de novo com os pastores, e não vê
este olhar implorante. João põe-se a caminho atrás de Judas.
81.7 – Eu gostaria de contentar-vos –diz Jesus.
– Tu o farás sempre, Mestre. O Altíssimo te bendiga por nós. Aquele
homem é teu amigo?
– Sim, é. Não te parece que ele o possa ser?
O pastor João inclina a cabeça, e se cala. O discípulo Simão fala:
– Só quem é bom, sabe enxergar. Eu não sou bom e não enxergo aquilo
que a Bondade enxerga. Vejo o exterior. O bom desce também ao interior.
Tu também, João, enxergas como eu. Mas o Mestre é bom… e enxerga…
– Que enxergas em Judas, Simão? Eu te ordeno que fales!
– É isto: ao vê-lo, eu penso, em certos lugares misteriosos, que parecem
antros de feras e águas estagnadas pela febre, nos quais, o que se vê é
somente um grande emaranhado, e a gente logo se afasta com temor. Mas,
ao contrário… ao contrário, dentro, há também rolas e rouxinóis, e o solo é
rico em águas potáveis e ervas medicinais. Eu quero crer que Judas seja
assim. Talvez porque Tu o tens Contigo. E Tu sabes…
– Sim. Eu sei… Há muitas dobras no coração daquele homem… Mas
não falta seu lado bom. Tu o viste em Belém e também em Keriot. Este lado
bom, que é de uma bondade humana, há de ser elevado até à altura de uma
bondade que seja espiritual… Então, Judas será como gostaríeis que fosse.
É jovem…
– João também é jovem…
– E tu conclues em teu coração que ele seja melhor! Mas João é João!
Ama a este pobre Judas, Simão… Eu te peço. Se o amares… ele te parecerá
melhor.
– Eu me esforço por fazer isso… por Ti. Mas ele é que destrói os meus
esforços, tal como caniços de beira-rio… Contudo, Mestre, para mim só há
uma lei: fazer o que Tu queres. Por isso, amo Judas, apesar de alguma coisa
dentro de mim gritar contra ele.
– O que é esta coisa, Simão?
– Não sei dizer precisamente… É uma coisa assim como o grito do
guarda na noite… e que me diz: “Não durmas! Fica atento!” Não sei… Esta
coisa não tem nome. Mas existe… existe dentro de mim contra ele.
– Não penses mais nisso, Simão. Não te esforces para explicá-la. Faz
mal conhecer certas verdades… e o conhecimento poderia enganar-te.
Deixa isto para o teu Mestre. Tu, dá-me o teu amor, e pensa que isso me
deixa feliz…
E tudo termina.
[4] predito, em: Isaías 40,3-5.
82. Em Jericó. Iscariotes conta
como vendeu as joias de Aglaé.
19 de janeiro de 1945.
82.1 Estamos na praça da feira, em Jericó. A manhã já passou, é tarde, de
um longo pôr-do-sol, com um forte calor de pleno verão. Da feira da manhã
só restam os sinais, ou seja, os detritos das verduras, os montículos de
excrementos, a palha caída dos cestos ou dos cabazes dos burros e os
pedaços de trapos… Acima de tudo, as moscas triunfam, e o sol fermenta
tudo isso fazendo evaporar fedores e cheiros de coisas pouco agradáveis.
A grande praça está vazia. Algum raro passante, algum moleque brigão,
que derruba a pedradas os pássaros que estão nas árvores da praça. Uma ou
outra mulher que vai à fonte. E é só.
Jesus chega por uma estrada, e olha ao seu redor. Ainda não vê
ninguém. Pacientemente, Ele se encosta a um tronco, e espera, encontrando
modo de falar aos moleques sobre a caridade, que começa para com Deus, e
desce do Criador a todas as criaturas.
– Não sejais cruéis. Por que quereis perturbar os pássaros dos ares?
Eles têm seus ninhos no alto das árvores. Têm os seus filhotes. Não fazem
mal a ninguém. Dão a nós os seus cantos e limpeza, comendo os restos
deixados pelo homem e os insetos que danificam os cereais e as frutas. Por
que feri-los e matá-los, privando os filhotes dos pais e das mães, ou
privando-os de seus filhotes? Gostaríeis, que um malvado entrasse em vossa
casa, e a destruísse, ou que matasse vossos pais, ou vos levasse para longe
deles? Não, vós não gostaríeis. E, então, por que fazer a estes inocentes o
que não quereríeis que vos fôsse feito? Como podereis um dia não fazer mal
ao homem, se desde pequenos endureceis o vosso coração contra pequenas
criaturas inermes e tão graciosas, como são os passarinhos? Não sabeis que
a Lei diz: “Ama a teu próximo como a ti mesmo”? Quem não ama ao
próximo, não pode tampouco amar a Deus. E, quem não ama a Deus, como
pode ir à sua Casa para rezar? Deus poderia dizer-lhe, e o diz no Céu: “Vai-
te embora. Eu não te conheço. Tu és meu filho? Não. Não amas os irmãos,
não respeitas o Pai, que os fez, por isso, não és irmão, nem filho, mas um
bastardo: enteado de Deus, meio-irmão para os irmãos.” Vedes como o
Senhor eterno ama? Nos meses mais frios faz que os seus passarinhos
encontrem os depósitos cheios de feno para neles se aninharem. Nos meses
quentes, dá a sombra das folhas para protegê-los do sol. No inverno, nos
campos, os grãos estão mal cobertos de terra, e é fácil encontrar a semente
com que se nutrem. No verão, alivia-se a sede com as frutas suculentas, e os
ninhos podem ser feitos bem firmes e quentes com os fios do feno e a lã que
as ovelhas deixam presas nos espinheiros. Assim é o Senhor. Vós, pequenos
homens, criados por Ele como os pássaros, e por isso, irmãos deles, por que
quereis ser diferentes, achando que podeis tratar mal a estes pequenos
animais? Sede misericordiosos para com todos, não privando ninguém do
que seria justiça de Deus, seja para os vossos irmãos homens, seja para os
animais, vossos servos e amigos…
– Mestre –chama Simão–. Judas está chegando!
– … e Deus será misericordioso para convosco, dando-vos tudo o de
que precisais, como dá a estes inocentes. Ide, e levai convosco a paz de
Deus.
82.2 Jesus abre o círculo dos meninos, ao qual se haviam unido alguns
adultos, e vai em direção de Judas e João, que chegam apressados, por um
outro caminho. Judas está exultante. João sorri para Jesus… mas não parece
exatamente feliz.
– Vem, vem, Mestre. Creio que fiz um bom negócio. Mas, vem comigo.
Na estrada não se pode ficar conversando.
– Ir aonde, Judas?
– À estalagem. Já reservei quatro quartos… oh! é coisa modesta, não
temas. É só para podermos repousar em uma cama, depois de tantos
incômodos com este calor, e comer como homens, e não como pássaros
sobre algum ramo, e também para podermos falar em paz. Fiz uma venda
muito boa. Não é verdade, João?
João anui sem muito entusiasmo. Mas Judas está de tal modo contente
com o seu trabalho, que não nota nem o descontentamento de Jesus com
aquela preocupação por um alojamento cômodo, nem a ainda menos
entusiasmada atitude de João. E prossegue:
– Tendo eu vendido por mais do que havia avaliado, disse: “É justo que
eu fique com uma pequena soma (cem denários) para pagar os nossos
quartos e as nossas refeições. Se nós, que temos comido sempre estamos
exaustos, imagino Jesus.” E tenho o dever de ficar atento, a fim de que o
meu Mestre não fique doente! É um dever de amor, porque Tu me amas, eu
te amo… Tem lugar também para vós e para as ovelhas, diz ele aos
pastores. Eu pensei em tudo.
Jesus não diz uma palavra. Vai com ele e com os outros…
Chegam a uma pequena praça secundária. Judas diz:
– Estás vendo aquela casa sem janelas, com aquela portinha tão estreita,
que mais parece uma fenda? É a casa do ourives Diomedes. Parece uma
casa pobre, não é? Mas lá dentro há tanto ouro, que dá para comprar toda
Jericó e… ah! ah!… (Judas ri maldosamente…) No meio daquele ouro
podem encontrar-se também muitas joias e louças e… também outras coisas
usadas pelas pessoas mais influentes de Israel. Diomedes… oh! todos
fingem não conhecê-lo, mas todos o conhecem: desde os herodianos, até…
afinal, todos. Sobre aquela parede lisa e pobre, poder-se-ia escrever:
“Mistério e Segredo.” Se aquelas paredes falassem! Em vez de
escandalizar-te do modo como eu fiz o negócio, João, tu morrerias sufocado
pelo assombro e pelo escrúpulo. A propósito, escuta, Mestre! Não me
mandes mais com João a certos negócios. Por pouco, ele quase faz malograr
tudo. Não sabe pegar as coisas no ar, não sabe dizer não, e, com um astuto
como o Diomedes, precisamos ser ágeis e corajosos.
João murmura:
– Tu dizias cada coisa! Tão inesperada, e então… Oh, sim, Mestre não
me mandes mais. Eu sou só capaz de amar….
– Dificilmente teremos mais necessidade desse tipo de vendas –
responde Jesus, que está sério.
– Lá está a estalagem. Vem, Mestre. Falo eu Por que… fui eu que fiz
tudo.
82.3 Após entrarem, Judas fala com o dono, que está mandando levarem
as ovelhas para o curral e, em seguida, conduz pessoalmente os hóspedes
para um pequeno quarto, onde há duas esteiras para servir de cama,
algumas cadeiras e uma mesa pronta. Depois, se retira.
– Vamos conversar agora, Mestre, enquanto os pastores estão ocupados
em acomodar suas ovelhas.
– Eu te estou ouvindo.
– João pode dizer se estou sendo sincero.
– Não duvido disso. Entre homens honestos não deve ser necessário
jurar, nem apresentar testemunhas. Fala.
– Chegamos a Jericó, ao meio-dia. Estávamos suados como animais de
carga. Não quis dar ao Diomedes a impressão de que tivesse necessidade
urgente. E antes eu vim aqui, refresquei-me bem, pus uma veste limpa, e
quis que ele fizesse o mesmo. Oh! Ele não queria nem pôr óleo nos cabelos,
ou pentear-se… Mas eu havia feito o meu plano, enquanto vinha pelo
caminho!… Quando a tarde estava próxima, eu disse: “Vamos.” Já
estávamos repousados e refrescados, como dois ricaços em viagem de
veraneio. Quando estávamos para chegar à casa do Diomedes, eu disse a
João: “Tu me ajudarás. Não me contradigas, e sê pronto para entender.”
Mas teria sido melhor, se eu o tivesse deixado fora! Em nada ele me ajudou.
Ao contrário… Eu, por sorte, sou esperto por dois, e consertei o que ele
atrapalhou.
Da casa saía o cobrador ide impostos. “Bem”, disse eu, “se aquela
pessoa está saindo, encontraremos na casa dinheiro e tudo o que quero para
fazer uma comparação.” Porque o cobrador, usurário e ladrão, como todos
os de sua laia, a fim de gozar com crápulas e mulheres, tem sempre muitas
joias arrancadas, com ameaças e usura daqueles infelizes que são taxados,
acima do permitido. Ele é muito amigo do Diomedes, que compra e vende
ouro e carne… Entramos, depois de eu ter me apresentado. Eu disse:
entramos, porque, uma coisa é ir ao corredor onde ele finge trabalhar
honestamente com o ouro, e outra, é descer no subterrâneo, onde ele realiza
seus verdadeiros negócios. Para ter acesso a este lugar, a gente precisa ser
muito conhecida dele. Quando ele me viu, perguntou: “Ainda queres vender
ouro? Os tempos estão feios, tenho pouco dinheiro.” É a sua canção de
sempre. Eu lhe respondi: “Não venho para vender, mas para comprar. Tens
joias para mulheres? Mas bonitas, ricas, preciosas e pesadas, de ouro puro?”
Diomedes ficou espantado. E me perguntou: “Queres comprar uma
mulher?” “Não se preocupe com isto”, respondi-lhe. “Não é para mim. É
para este meu amigo, que é noivo, e quer comprar ouro para a sua amada.”
Neste ponto João começou a bancar a criança. Diomedes, que o olhava,
viu-o fortemente ruborizado, dizendo, como velho sujo que é: “Olha! O
rapaz, só de ouvir falar da noiva, já está com febre de amor. É muito bonita
a tua mulher?”, perguntou ele. Eu dei uma cutucada em João para despertá-
lo e fazê-lo entender que não ficasse ali como um bobo. Mas João
respondeu um “sim” tão forçado, que Diomedes ficou desconfiado. Então
falei: “Se é bonita, ou não, meu velho, não é da tua conta. Não será nunca
do tipo daquelas mulheres, pelas quais irás para o inferno. Ela é virgem e
honesta, e será uma esposa honesta. Mostra o teu ouro. Eu sou o paraninfo,
e estou encarregado de ajudar o jovem… eu, um judeu, e cidadão”. “Ele é
Galileu, não é mesmo?” Pelos vossos cabelos, sempre vos traís. “Ele é
rico?” “Muito”.
Então fomos lá para baixo, e o Diomedes abriu os cofres. Mas, diz a
verdade, João! Não parecia estar no céu, diante de todas aquelas gemas e
ouro? Colares, grinaldas, braceletes, brincos, redinhas de ouro e pedras
preciosas para os cabelos, grampos, fivelas, anéis… ah! que esplendores!
Com muita calma, escolhi um colar, mais ou menos como o de Aglaé, e
anéis, fivelas, braceletes… tudo como aqueles que eu tinha na bolsa, e em
número igual. Diomedes se espantou, e perguntava: “Mais ainda? Mas,
quem é este? E a noiva quem é? Uma princesa?” Quando tive tudo o que eu
queria, perguntei: “Qual o preço?”
Oh! Que ladainha, então, se ouviu de lamentações preparatórias, tanto a
respeito dos tempos, como das taxas, dos riscos e dos ladrões! Oh! E que
outra ladainha de garantias de honestidade. Só depois é que veio a resposta:
“Como se trata de ti, vou dizer-te a verdade. Sem nenhum exagero. E,
menos disso, nem uma dracma. Peço doze talentos de prata.” “Ladrão!”, eu
disse. Depois falei: “Vamos embora, João. Em Jerusalém encontraremos
alguém menos ladrão do que este.” E simulei uma saída. Ele correu atrás de
mim. “Meu grande amigo, meu caro amigo, vem aqui, escuta o teu pobre
servo. Por menos eu não posso. Não posso mesmo. Olha. Vou fazer um
esforço e vou arruinar-me. Faço, porque sempre me deste a tua amizade, e
contigo sempre fiz bons negócios. Onze talentos, então. É o que eu daria, se
tivesse que comprar este ouro de alguém que estivesse com fome. Nem um
centésimo a menos. Seria como tirar o sangue de minhas velhas veias.” Não
é verdade que ele falava assim? Fazia rir, e causava náuseas.
Quando vi que ele estava bem firme no preço, dei o golpe. “Velho sujo,
fica sabendo que eu quero é vender, e não comprar. Quero vender isto.
Olha: É bonito como o que tu tens. É ouro de Roma e de feitio novo.
Muitos irão querer comprá-lo de ti. É teu por onze talentos. É o que pediste
pelo teu. Tu mesmo o avaliaste e, por isso, paga-o”. Ui! Então… “É uma
traição. Traíste a minha estima por ti! Tu és a minha ruína! Não posso dar
tanto!” “Tu mesmo deste o preço. Paga!” “Não posso.” “Olha que eu vou
vender a outro.” “Não, amigo”, e esticava as mãos aduncas para o pequeno
monte de Aglaé. “Então, paga: eu devia exigir doze talentos. Mas contento-
me com o teu último pedido.” “Não posso.” “Usurário! Olha que eu tenho
uma testemunha, e posso denunciar-te como ladrão…” e lhe disse ainda
outras virtudes, que não vou repetir por causa deste rapaz…
Enfim, visto que precisava vender e vender logo, eu lhe disse uma
coisinha, entre eu e ele, e que não vou cumprir… Mas, que valor tem uma
promessa feita a um ladrão? E fechei o negócio por dez talentos e meio.
Saímos de lá entre prantos e ofertas de amizade e… de mulheres. E João
por pouco não chora… Mas, que importância tem se te acharem viciado?
Basta que tu não o sejas. Não sabes que o mundo é assim, e que tu és um
aborto do mundo? Um jovem que ignora o sabor de uma mulher? Quem
queres que creia nisso? Ou se te acreditam… oh! Eu não queria que
pensassem de mim o que podem pensar de ti ao considerar-te não desejoso
de mulher.
É isto, Mestre. Conta o dinheiro Tu mesmo. Tinha um montão de
dinheiro. Mas passei pelo cobrador de impostos, e lhe disse: “Toma de novo
para ti este estorvo, e entrega-me os talentos que o Isaque te deu.” Pois,
pelas últimas notícias, fiquei sabendo também disso, depois de feito o
negócio. 82.4 E finalmente, eu disse ao Isaque-Diomedes: “Lembra-te de que
Judas do Templo não existe mais. Agora sou discípulo de um Santo. Por
isso, finjas que nunca me conheceste, se tens amor ao teu pescoço.” E por
pouco não o torci naquela mesma hora, porque ele me respondeu mal.
– Que foi que ele te disse? –pergunta Simão, com indiferença.
– Ele me disse: “Tu, discípulo de um Santo? Nunca acreditarei nisso,
ou logo verei também aqui o santo, pedindo-me uma mulher.” Ele me disse:
“Diomedes é uma velha calamidade do mundo, mas tu és a nova. Eu
poderia mudar, porque tornei-me aquilo que sou depois de velho. Mas tu
não mudarás. Tu já nascestes assim.” Velho imundo! Ele nega o teu poder,
entendes?
– E, como bom grego que é, diz muitas verdades.
– Que estás querendo dizer, Simão? Estás referindo-te a mim?
– Não. Eu me refiro a todos. Ele é alguém que conhece o ouro e os
corações, da mesma forma. É um ladrão, um sujo que lida com os negócios
mais sujos. Mas percebe-se nele a filosofia dos grandes gregos. Conhece o
homem, animal que tem os sete ramos do pecado, polvo que esgana o bem,
a honestidade, o amor e muitas outras coisas, tanto em si mesmo, como nos
outros.
– Mas não conhece a Deus.
– E tu quererias lhe ensinar?
– Eu? Sim. Por quê? São os pecadores que têm necessidade de
conhecer a Deus.
– É verdade. Mas… um mestre deve conhecer para ensinar.
– E eu não conheço?
– Paz, amigos. Estão chegando os pastores. Não perturbemos o espírito
deles com discussões entre nós. Tu contaste o dinheiro? Basta. Leva a bom
termo cada ação tua como levaste esta, e te repito, se puderes, no futuro,
não mentir, nem mesmo para praticar uma boa ação….
82.5 Entram os pastores.
– Amigos. Aqui estão dez talentos e meio. Faltam somente cem
denários que Judas tirou para as despesas de alojamento. Tomai.
– Tu dás tudo? –pergunta Judas.
– Tudo. Não quero nem um centésimo daquele dinheiro. Nós temos o
óbolo de Deus e daqueles que honestamente O procuram … e não nos
faltará nunca o indispensável. Crê nisto. Tomai, e sede felizes, como Eu
sou, por causa do Batista. Amanhã ireis dirigir-vos à sua prisão. Irão dois:
João e Matias. Simeão com José irá a Elias contar o acontecido e dar-lhe
instruções para o futuro. Elias sabe. Depois José voltará com Levi. O lugar
do nosso reencontro será daqui a dez dias, junto à porta dos Peixes, em
Jerusalém, à hora primeira. Agora vamos comer e descansar. Amanhã, pela
manhã, Eu partirei com os meus. Não tenho, por enquanto, mais nada a
dizer-vos. Mais tarde, tereis notícia de Mim.
E tudo mais desaparece, quando Jesus corta o pão.
83. Jesus sofre por causa de Judas, o qual é
uma lição vivente para os apóstolos de todos os
tempos.
20 de janeiro de 1945.
83.1 O campo onde Jesus se encontra é muito fértil. Magníficos pomares,
esplêndidos vinhedos com os cachos já formados e prontos para tomarem as
cores do ouro e do rubi. Jesus está sentado em um pomar e come as frutas
oferecidas a Ele por um camponês.
Talvez Jesus tenha falado antes, porque o homem diz:
– Matar a tua sede é para mim uma alegria, Mestre. O teu discípulo nos
havia falado da tua sabedoria, mas nós ficamos admirados ao ouvir-te.
Estando tão perto da Cidade Santa, costumamos ir frequentemente lá vender
frutas e verduras. Depois, subimos até o Templo, para ouvirmos os rabis.
Mas eles não falam como Tu, não. Voltamos de lá dizendo: “Se é assim
como dizem, quem poderá salvar-se?” Tu, ao invés! Oh! Parece que
ficamos com o coração aliviado! Um coração que se torna criança, mesmo
permanecendo homem. Eu sou rústico… não sei explicar-me. Mas
certamente Tu me entendes.
– Sim. Eu te entendo. Tu queres dizer que, com a seriedade e o
conhecimento das coisas, próprios de quem é adulto, depois de teres ouvido
a Palavra de Deus, sentes renascer em teu coração a simplicidade, a fé e a
pureza. Parece que te tornaste uma criança sem culpa e malícia, com uma fé
tão grande, como quando, guiado pela mão da tua mãe, subiste pela
primeira vez ao Templo, ou como quando rezavas sobre os seus joelhos.
Isto é o que queres dizer.
– Certo, sim, é isto mesmo. Felizes sois vós, que estais sempre com
Ele! –diz depois a João, Simão e Judas, que, sentados sobre um muro baixo,
comem figos suculentos. E termina:
– E feliz de mim, por ter-te como hóspede por uma noite. 83.2 Não temo
mais desventura nesta minha casa, porque nela entrou a tua bênção.
Jesus responde:
– A bênção produz efeito, se as almas permanecerem fiéis à Lei de
Deus e à minha doutrina. Caso contrário, a graça cessa. E é justo. Porque, se
é verdade que Deus dá sol e ar tanto aos bons como aos maus, para que
vivam, e se há bons se tornam melhores, e maus que se convertem, também
é justo a proteção do Pai se volte para determinados lugares, como castigo
do mau, a fim que o sofrimento o chame de volta à lembrança de Deus.
– Mas a dor não é sempre um mal?
– Não, amigo. É um mal do ponto de vista humano; mas do ponto de
vista sobrenatural a dor é um bem. Aumenta os merecimentos dos justos,
que a suportam sem desespero ou revolta, e a oferecem, com sua
resignação, como um sacrifício de expiação pelas próprias faltas e as culpas
do mundo, sendo redenção para aqueles que não são justos.
– É tão difícil sofrer! –diz o camponês, ao qual se uniram os seus
familiares: dez pessoas, entre adultos e crianças.
– Eu sei que o homem acha isso difícil. E, sabendo disso, o Pai não
haveria dado dor aos seus filhos. A dor veio pela culpa. Mas, quanto dura a
dor sobre a terra? Ou na vida de um homem? Pouco tempo. Sempre pouco,
mesmo que dure toda a vida. Agora Eu vos digo: não é melhor sofrer por
pouco tempo, do que para sempre? Não é melhor sofrer aqui, do que no
Purgatório? Pensai que lá o tempo é multiplicado de um para mil. Oh! Em
verdade Eu vos digo que se deveria não maldizer, mas bendizer o
sofrimento e chamá-lo de “graça”, chamá-lo de “piedade.”
– Oh! As tuas palavras, Mestre! Nós as bebemos, como sedentos no
verão bebem água e mel numa fresca ânfora. Vais mesmo embora amanhã,
Mestre?
– Sim, amanhã. Mas ainda voltarei. Para agradecer-te tudo o que fizeste
por Mim e pelos meus, e para pedir-te, outra vez, pão e descanso.
– Sempre, Mestre, aqui os encontrarás.
83.3 Aproxima-se deles um homem com um burrinho carregado de
verduras.
– Olá! Se o teu amigo quiser ir… O meu filho vai a Jerusalém, para a
grande feira de Parasceve.
– Vai, João. Tu sabes o que tens a fazer. Dentro de quatro dias nos
tornaremos a ver. A minha paz esteja contigo.
Jesus abraça João e o beija. Simão também faz o mesmo.
– Mestre –diz Judas–, se me permites, eu vou com João. Preciso ver um
amigo. Todos os sábados ele está em Jerusalém. Eu iria com João até
Betfagé, e, a partir de lá, iria por minha conta… É um amigo da família…
sabes… minha mãe me disse…
– Eu não te perguntei nada, amigo.
– Dói-me o coração por deixar-te. Mas, dentro de quatro dias estarei de
novo Contigo. E serei tão fiel em acompanhar-te, que te cansarás de mim.
– Então, vai. Na aurora que virá daqui a quatro dias, estejas junto à
porta dos Peixes. Adeus, e Deus te guarde.
Judas beija o Mestre e vai para perto do burrinho, que segue troteando
pela estrada poeirenta.
A tarde cai sobre o campo, que se torna silencioso. Simão observa o
trabalho dos hortelãos, que estão irrigando seus sulcos.
83.4 Jesus permanece em seu lugar por algum tempo. Depois se levanta,
contorna a casa, e afasta-se em direção ao pomar. Isola-se. Vai até um ponto
mais fechado, onde grandes romãzeiras estão separadas umas das outras por
moitas baixas, que eu diria serem de groselheiras. Mas não sei exatamente.
Porque estão despojadas de frutos, e eu não conheço bem a folha dessa
planta. Jesus se esconde atrás destas plantas. Ajoelha-se. Reza… e depois se
inclina com o rosto contra o chão, sobre a erva, e chora. Noto isso pelos
seus suspiros profundos e entrecortados. Um choro desconsolado, sem
soluços, mas muito triste.
Passa algum tempo assim. A luz já é crepuscular. Mas ainda não está
tão escuro, que não se possa enxergar nada. E na pouca luz, eis que
desponta de cima de uma moita o rosto feio e honesto de Simão. Ele olha,
procura e distingue a forma agachada do Mestre, todo coberto com o manto
azul escuro que quase o faz desaparecer nas sombras do chão. Somente a
cabeça loira e as mãos unidas em oração, para a qual seus pulsos estão
servindo de apoio, é que se sobressaem. Simão olha com aqueles seus olhos
meio bovinos. Compreende que Jesus está triste, por causa dos Seus
suspiros. A sua boca, de lábios inchados e até arroxeados se abre:
– Mestre! –chama.
Jesus levanta o rosto.
– Estás chorando, Mestre? Por quê? Permites-me que eu vá até aí?
O rosto de Simão está espantado e aflito. Decididamente, é um homem
feio. Às suas feições não bonitas, ao colorido oliváceo escuro, se une um
bordado azulado e cheio de buracos, pelas cicatrizes que a doença lhe
deixou. Mas, tem um olhar tão bondoso que a feiura desaparece.
– Vem cá, Simão, meu amigo.
Jesus sentou-se sobre a relva. Simão senta-se perto dele.
– Por que estás tão triste, meu Mestre? Eu não sou João, e não saberia
dar-te tudo o que ele te dá. Mas em mim há o desejo de dar-te todo o
conforto. E só tenho uma dor, a de ser incapaz de fazê-lo. Diz-me: será que
eu te desagradei nestes últimos dias, a ponto de abater-te só por teres que
ficar comigo?
– Não, bom amigo. Nunca me desagradaste, desde o momento em que
te vi. E creio que para mim nunca serás motivo de choro.
– E, então, Mestre? Eu não sou digno das tuas confidências. Mas, pela
idade, eu quase poderia ser teu pai, e Tu sabes que sede de filhos eu sempre
tive… Deixa que eu te acaricie, como se fosses um filho e que te faça, nesta
hora de sofrimento, o papel de pai e de mãe. É de tua Mãe que estás
precisando, para te esqueceres de tantas coisas…
– Oh! Sim. É de minha Mãe!
– Pois bem. Enquanto esperas poder consolar-te com Ela, dá ao teu
servo a alegria de poder consolar-te. 83.5 Tu choras, Mestre, porque houve
alguém que te desagradou. Há muitos dias que o teu rosto está como o sol
coberto pelas nuvens. Eu te venho observando. A tua bondade encobre a tua
ferida, para que nós não fiquemos com ódio de quem te está ferindo. Mas
esta ferida dói, e te causa náusea. Então, diz-me, meu Senhor, por que não
afastas a causa do sofrimento?
– Porque humanamente é inútil, e seria uma falta de caridade.
– Ah! Tu entendeste que eu estou falando de Judas! É por ele que estás
sofrendo. Como podes Tu, a Verdade, suportar aquele mentiroso? Ele mente
sem mudar de cor. É mais falso do que uma raposa. Mais fechado do que
uma rocha. Agora mesmo, ele se foi. Que terá ido fazer? Quantos amigos
terá por aí? Sofro em deixar-te. Mas eu gostaria de segui-lo e ver… Oh!
Meu Jesus!… Aquele homem… afasta-o, meu Senhor.
– É inútil. Aquilo que deve ser, será.
– Que queres dizer?
– Nada de especial.
– Tu de boa vontade o deixaste ir, Por que… porque te repugnou aquele
seu modo em Jericó.
– É verdade, Simão, Eu te digo ainda: aquilo que deve ser, será. E Judas
é parte desse futuro. Ali também ele deve estar.
– Mas João me disse que Simão Pedro é todo sinceridade e fogo… Ele
suportará esse homem?
– Deve suportá-lo. Pedro também está destinado a uma parte, e Judas é
o estame no qual ele vai tecer a sua parte, ou, se te agrada mais, é a escola
na qual Pedro se exercitará mais do que em qualquer outra. Ser bons em
companhia de João, compreender espíritos como o de João, é uma virtude
até de imbecis. Mas ser bons com quem é um Judas, saber entender
espíritos como os de Judas, ser médico e sacerdote para pessoas assim, é
difícil. Judas é para vós um ensinamento vivo.
– Para nós?
– Sim, para vós. O Mestre não estará para sempre nesta terra. Daqui Ele
partirá, depois de ter comido do mais duro pão e bebido do mais amargo
vinho. Mas vós ficareis como meus continuadores… e precisais saber.
Porque o mundo não termina com o Mestre, mas continua, até à Sua volta e
o juízo final do homem. Em verdade te digo que por um João, um Pedro,
um Simão, um Tiago, um André, um Filipe, um Bartolomeu, um Tomé, há
pelo menos outras tantas vezes sete Judas. E mais, mais ainda!…
Simão reflete e se cala. Depois diz:
– Os pastores são bons. Judas os despreza. Mas eu os amo.
– Eu os amo e elogio.
– São almas simples, das que agradam a Ti.
– Judas viveu na cidade.
– Sua única desculpa. Mas tantos viveram na cidade e, no entanto…
83.6Quando irás ao meu amigo?
– Amanhã, Simão. Com prazer, porque Eu e tu estaremos sós. Acho que
ele é um homem culto e experiente como tu.
– Um grande sofredor… no corpo, e ainda mais no coração. Mestre…
queria pedir-te uma coisa: se ele não te falar de suas tristezas, não lhe faças
perguntas sobre sua casa.
– Não as farei. Eu procuro quem está sofrendo, mas não forço as
confidências. O choro tem o seu pudor….
– Eu não Te respeitei… Fiquei com tanta pena de Ti…
– Tu és meu amigo, e já tinhas dado um nome à minha dor. Para o teu
amigo Eu sou o Rabi desconhecido. Quando ele me conhecer… aí então…
Agora vamos! A noite já chegou. Não façamos que os hóspedes fiquem
esperando, pois estão cansados. Amanhã, ao romper do dia, iremos para
Betânia.
Jesus diz:
105.6
– Aqui colocareis a terceira visão e a quarta, tidas no dia 13 de
fevereiro de 1944.
Como estás vendo, o Simão, menos obstinado, deixou-se persuadir,
senão completamente, ao menos em parte, à justiça com santa prontidão. E
não foi logo meu discípulo, e muito menos meu apóstolo, como tu, há um
ano o chamaste em tua ignorância, mas pelo menos tornou-se um
expectador não inimigo, depois deste encontro pela morte de Alfeu. Fez-se
também o defensor de sua mãe e da minha, quando foi preciso que um
homem as acompanhasse e defendesse das sátiras do povo. Não foi forte a
ponto de impor-se contra quem me chamava de “doido”; era ainda bastante
humano para envergonhar-se um pouco de Mim, e para ter suas
preocupações com os perigos da família toda, por causa do meu apostolado
contrário às seitas. Mas ele já está no caminho do Bem. Sobre o qual, mais
tarde, depois do Sacrifício, ele soube proceder sempre mais firme, até
confessar-me com o sangue. A Graça, às vezes opera de modo fulminante,
e, outras vezes, lentamente. Mas sempre opera onde há a vontade de ser
justos.
Vai em paz. Fica em paz no meio das tuas dores. O tempo preparatório
para a Páscoa está começando, e tu leva a cruz por Mim. Eu te abençoo,
Maria da Cruz de Jesus.
[18] Eu estou com o Pai, mas não sou mais o Pai, o qual criou o homem livre de querer o próprio bem; e Jesus, que não é mais
do que o Pai, respeitou o a livre vontade de Alfeu.
106. Expulsão de Nazaré e conforto à Mãe.
Reflexões sobre quatro contemplações.
Tarde de 13 de fevereiro de 1944.
106.1 Vejo um sala grande e quadrada. Digo sala grande, ainda que eu
saiba que é a sinagoga de Nazaré (como me diz o monitor interior), porque
nada mais há do que as paredes nuas, pintadas de uma cor amarelada, e uma
espécie de cátedra num dos lados. Há também uma estante alta, com uns
rolos. Estante, ou atril, diga como quiser. É, em suma, uma espécie de mesa
inclinada, sustentada por um pé, e sobre a qual estão alinhados os rolos.
Há pessoas que rezam, não como nós rezamos, mas voltadas todas para
um lado, não com as mãos juntas, mas, mais ou menos como fica um
sacerdote no altar..
Há lâmpadas colocadas assim: sobre a cátedra e a estante.
Não vejo o fim desta visão, que não muda, e que se fixa em mim assim
por algum tempo. Mas Jesus me manda escrevê-la, e eu a faço[19].
[…].
106.2 Encontro-me novamente na sinagoga de Nazaré. Agora o rabino
está lendo. Ouço o canto, em uma voz nasalada, mas não entendo as
palavras, ditas em uma língua que me é desconhecida.
Entre o povo está também Jesus, com os seus primos apóstolos e com
outros que certamente são seus parentes também, mas que não conheço.
Depois da leitura o rabino corre o olhar sobre a multidão, em uma
pergunta muda.
Jesus vai à frente e pede para fazer hoje a reunião.
Ouço sua bela voz ler a passagem[20] de Isaías, citada no Evangelho: “O
espírito do Senhor está sobre Mim…” E ouço o comentário que Ele faz
sobre essa passagem, dizendo-se “o portador da Boa Nova, da lei de amor
que substitui o rigor de antes pela Misericórdia, e pela qual todos aqueles
que a culpa de Adão torna doentes no espírito e, por reflexo, na carne,
porque o pecado sempre suscita vício, e o vício a doença, também física,
obterão a salvação. Por ela, todos os que estão prisioneiros do Espírito do
mal terão libertação. Eu vim quebrar essas correntes, reabrir o caminho dos
Céus, dar luz às almas cegas e ouvido às surdas. Chegou o tempo da Graça
do Senhor. Ela está entre vós. É esta que vos fala. Os Patriarcas desejaram
ver este dia, cuja existência a voz do Altíssimo proclamou, e cujo tempo os
Profetas predisseram. Pelo ministério sobrenatural, conhecem que a aurora
deste dia já raiou e que a entrada deles no Paraíso já está próxima. E, por
isso, exultam em seus espíritos, esses santos aos quais só falta a minha
bênção para serem cidadãos dos Céus. Vós o estais vendo. Vinde à Luz que
surgiu. Despojai-vos das vossas paixões, para serdes ágeis em seguir o
Cristo. Tende a boa vontade de crer, de melhorar, de querer a salvação, e a
salvação vos será dada. Ela está em minha mão. Mas só a dou a quem tem a
boa vontade de possuí-la. Porque seria uma ofensa à Graça, dá-la a quem
quer continuar a servir a Mamon.”
106.3 Um murmúrio se levanta pela sinagoga.
Jesus corre o seu olhar. Lê nos rostos e corações, e continua:
– Compreendo o vosso pensamento. Vós, visto que Eu sou de Nazaré,
quereríeis de Mim um favor, um privilégio. Mas isso é por causa do vosso
egoísmo, não pelo poder da fé. Pelo que, Eu vos digo que, em verdade,
nenhum profeta é bem aceito em sua terra. Outras cidades me acolheram e
me acolherão com maior fé, até mesmo aqueles, cujos nomes para vós são
um escândalo. Lá Eu vou escolher os meus seguidores, enquanto que nesta
terra nada poderei fazer, porque ela me é fechada e hostil. Mas Eu vos
lembro[21] Elias e Eliseu. O primeiro, encontrou fé em uma mulher fenícia e
o segundo, em um sírio. E àquela e à este, puderam operar o milagre. Os
que estavam morrendo de fome em Israel e os leprosos de Israel não
tiveram pão nem limpeza, porque os corações deles não tinham a boa
vontade, aquela pérola fina, que o Profeta via. Isto sucederá a vós também,
que sois hostis e incrédulos à Palavra de Deus.
106.4 A multidão tumultua e impreca e tenta agarrar Jesus. Mas os
apóstolos-primos[22] — Judas, Tiago e Simão — o defendem e então, os
enfurecidos nazarenos expulsam a Jesus para fora da cidade. Seguem-no
com ameaças, não somente verbais, até chegarem na beira do monte. Mas
Jesus se volta e os imobiliza com o seu olhar magnético, e passa incólume
no meio deles, desaparecendo lá em cima, por uma vereda do monte.
106.5 Vejo uma aldeia muito pequena. Um punhado de casas. Agora
diríamos que é uma fração. Ela está mais ao alto do que Nazaré, que se vê
mais em baixo, e dista da mesma uns poucos quilômetros. É uma aldeia
muito pobre.
Jesus fala com Maria, sentado num murinho, junto a um casebre.
Talvez é uma casa amiga, ou pelo menos hospitaleira, segundo as leis da
hospitalidade oriental. Jesus nela se refugiou, depois de ter sido expulso de
Nazaré, para esperar os apóstolos que, certamente, se tinham espalhado
pelas redondezas, enquanto Ele estava ao lado da Mãe.
Com Ele estão somente os três apóstolos primos, os quais, nesse
momento, estão reunidos no interior da cozinha e falam com uma mulher
idosa à qual Tadeu chama de “mãe”. Por isso, compreendo que ela é Maria
de Cléofas. É uma mulher já de bastante idade, e eu reconheço nela aquela
que estava com Maria Santíssima nas bodas de Caná. Certamente Maria de
Cléofas e os filhos se retiraram para lá, a fim de deixarem a Jesus e Maria
mais à vontade, que estão conversando.
106.6 Maria está aflita. Soube do que aconteceu na sinagoga, e ficou
angustiada. Jesus a consola. Maria suplica ao Filho que fique longe de
Nazaré, onde todos estão indispostos contra Ele, até os outros parentes, que
o julgam um louco desejoso de suscitar rancores e disputas. Mas Jesus faz
um gesto sorrindo. Parece estar dizendo: “Isso não é nada. Deixa para lá!”
Mas Maria insiste.
Então Ele responde:
– Mãe, se o Filho do homem tivesse que ir só por onde é amado,
deveria mudar de rumo os seus passos, e voltar para o Céu. Por toda parte,
Eu tenho inimigos. Porque a Verdade é odiada, e Eu sou a Verdade. Mas Eu
não vim para encontrar um amor fácil. Eu vim para fazer a vontade do Pai e
redimir o homem. O amor és tu, Mãe, o meu amor, aquele que me
compensa de tudo. Tu, e este pequeno rebanho que todos os dias vai
crescendo com mais uma ou outra ovelhinha, que Eu arranco das garras dos
lobos, que são as paixões, e levo ao ovil de Deus. O resto é o dever. Vim
para cumprir esse dever, e devo cumpri-lo, até mesmo esfacelando-me,
contra as pedras dos corações que se opõem ao bem. Antes, só quando tiver
caído, banhando de sangue aqueles corações, Eu os abrandarei, gravando
neles o meu sinal, que anula o do Inimigo. Mãe, desci do Céu para isso.
Não posso desejar senão a realização disso.
– Oh! Filho! Meu Filho!
Maria está com uma voz dilacerada. Jesus a acaricia. Noto que Maria
tem na cabeça, além do véu, também o manto. E mais que nunca, velada
como uma sacerdotisa.
106.7 – Ficarei ausente, por algum tempo, para contentar-te. Quando Eu
estiver por perto, mandarei avisar-te.
– Manda João. Parece-me estar te vendo um pouco, quando vejo João.
Também a sua mãe é cheia de cuidados para comigo e para Contigo. Ela
espera, é verdade, um posto privilegiado para os seus filhos. É mulher e é
mãe, Jesus. É preciso compadecer-nos dela. Também Contigo vai falar
sobre isto. Mas é devota sinceramente de Ti. E quando ela ficar livre dessa
fraqueza humana, que fermenta tanto nela, como nos seus filhos, nos outros,
como em todos, então, meu Filho, ela será grande na fé. É doloroso que
todos esperam de Ti um bem humano, um bem que, mesmo Não sendo
humano, é egoísta. Mas o pecado está neles com a sua concupiscência.
Ainda não chegou a hora bendita, e tão, temida, mesmo se o amor a Deus e
ao homem faça que eu a deseje, pois nela é que Tu anularás o pecado. Oh!
Aquela hora! Como treme o coração de tua Mãe, pela chegada daquela
hora! Que é que te farão, Filho? Filho Redentor, do qual os Profetas
predizem um tão grande martírio?
– Não fiques pensando nisso, minha Mãe. Naquela hora, Deus te
ajudará. Deus ajudará a Mim e a ti. Depois, virá a paz. Eu digo a ti mais
uma vez. Agora vai, porque a tarde cai, e o caminho é longo. Eu te abençoo.
Pegou esta mais escarpada e mais curta, que vai em direção do noroeste
para o leste, muito menos batida, talvez por ser tão íngreme. Só os viajantes
apressados se servem dela, aqueles que têm rebanhos, e que preferem não
levá-los pelo meio do vaivém da estrada mestra, aqueles que, como Jesus,
no momento, não querem fazer-se notar. Ele sobe na frente, falando
ininterruptamente com o Zelote. Atrás, estão os primos em grupo, com João
e André, depois um outro grupo com Tiago de Zebedeu, Mateus, Tomé e
Filipe e, por fim, Bartolomeu com Pedro e Iscariotes.
Mas, quando alcançaram o altiplano, sobre o qual Betânia está sorrindo
ao sol de um sereno dia de novembro, e do qual, olhando para o lado do
oriente, vê-se o vale do Jordão e a estrada que vem de Jericó, Jesus manda
que João vá na frente, para avisar Lázaro da sua chegada. Enquanto João
vai a passos rápidos, Jesus com os seus prossegue lentamente, sendo
saudado, em toda parte, pelas pessoas do lugar.
A primeira a vir da casa de Lázaro é uma mulher que se prostra até
117.2
o chão, dizendo:
– Feliz este dia para a casa de minha senhora. Vem, Mestre. Eis
Maximino.
Também Maximino acorre. Não sei exatamente quem é este. Tenho a
impressão de que seja um parente menos rico e que esteja hospedado com
os filhos de Teófilo, ou então, um intendente de suas grandes propriedades,
tratado como amigo por seus merecimentos e pelo tempo de serviços
prestados à casa. Talvez seja filho de algum dos intendentes do pai, que
tenha ficado depois no seu lugar, junto com os filhos de Teófilo. É pouca
coisa mais velho do que Lázaro, e terá seus trinta e cinco anos, ou pouco
mais.
– Não esperávamos ter-te aqui tão cedo –diz ele.
– Eu peço abrigo por uma noite.
– Se fôsse para sempre, nos farias felizes.
Estão na soleira e Lázaro beija e abraça a Jesus, e saúda os discípulos.
Depois, com um braço ao redor da cintura de Jesus, entra com Ele no
jardim e se isola dos outros, perguntando logo:
– A que é que eu devo a alegria de ter-te aqui?
– Ao ódio dos sinedritas.
– Fizeram-te algum mal? Ainda?
– Não. Querem fazer. Mas não é hora. Enquanto Eu não tiver arado
toda a Palestina e espalhado a semente, não devo ser abatido.
– Deves também fazer a tua colheita, bom Mestre. É justo que assim
seja.
– A minha colheita será feita pelos meus amigos. Eles colocarão a foice
onde Eu semeei. 117.3Lázaro, Eu decidi afastar-me de Jerusalém. Sei que de
nada serve, já o sei antecipadamente. Mas me servirá para poder
evangelizar, se não para outra coisa. Em Sião até isso me foi negado.
– Eu te havia mandado dizer por Nicodemos que fosses para uma das
minhas propriedades. Ninguém ousa violá-las. Lá poderias exercer o teu
ministério, sem seres molestado. E, oh! Em minha casa! A mais feliz de
todas as minhas casas, por ser santificada pelos teus ensinamentos, por tua
respiração dentro dela! Dá-me a alegria de ser-te útil, meu Mestre.
– Estás vendo que te dou esta alegria. Mas em Jerusalém não posso
ficar. Eu não seria molestado, mas muito molestados seriam os que fossem
a Mim. Vou para o rumo de Efraim, entre este lugar e o Jordão. Lá
evangelizarei e batizarei como o Batista.
– Nos campos dessa região eu tenho uma casinha. Mas é um abrigo
para guardar os utensílios dos trabalhadores. Às vezes eles dormem nela,
quando vão cortar o feno ou podar as videiras. É pobre. Um simples teto
sobre quatro paredes. Contudo, sempre está em minhas terras. E é sabido…
Saber isso já é um bom espantalho para os chacais. Aceita, Senhor.
Mandarei os servos prepará-la…”.
– Não precisa. Se nela dormem os teus camponeses, bastará também
para nós.
– Não levarei riquezas, mas completarei o número de camas, oh! pobres
como Tu queres, e farei que levem cobertas, cadeiras, ânforas e copos.
Precisareis também de comer e de cobrir-vos, especialmente nestes meses
de inverno. Deixai que eu o faça. E nem serei eu quem o vai fazer. 117.4Eis
Marta que vem até nós. Ela tem o gênio prático e cuidadoso de todos os
afazeres domésticos. Foi feita para a casa e para ser o conforto dos corpos e
dos espíritos dos que estão na casa. Vem, minha doce e pura hospedeira!
Estás vendo? Eu também me refugiei sob os seus maternos cuidados, na
parte da herança que coube à ela. Desse modo, não sinto tão duramente
saudades de minha mãe. Marta, Jesus vai abrigar-se na planície de Águas
Belas. De belo nada há, a não ser a fertilidade do solo. A casa é um ovil.
Mas Ele quer uma casa de pobres. É necessário abastecê-la com um mínimo
de coisas. “Dá as tuas ordens, minha brava irmã!” e Lázaro beija a formosa
mão da irmã, que se levanta logo, para acariciá-lo com um verdadeiro amor
de mãe.
Depois Marta diz:
– Eu já vou. Levo comigo Maximino e Marcela. Os homens do carro
ajudarão a arrumar as coisas. Abençoa-me, Mestre, assim levarei comigo
alguma coisa de Ti.
– Sim, minha doce hospedeira. Eu te chamarei como Lázaro. Dou-te o
meu coração para que o leves contigo no teu.
117.5 – Estás sabendo, Mestre, que hoje estará por estes campos, Isaque
com Elias e os outros? Eles me pediram pasto lá em baixo na planície, para
estarem um pouco juntos, e eu consenti. Hoje eles transmigram. Eu os
espero para a refeição.
– Fico alegre com isto. Eu lhes darei instruções…
– Sim. Para podermos ficar em contato. Porém, alguma vez Tu virás…
– Eu virei. Já falei disso com Simão. E, como não é justo que Eu invada
a tua casa com os discípulos, irei para a casa de Simão…
– Não, Mestre. Por que essa dor?
– Não perguntes, Lázaro. Eu sei que assim está bem.
– Mas então…
– Mas então estarei sempre em tuas propriedades. Aquilo que também
Simão ignora Eu sei. Aquele que quis adquirir sem se fazer ver e sem
discutir, contanto que pudesse ficar perto de Lázaro da Betânia, era o filho
de Teófilo, o fiel amigo de Simão, o Zelote, e o grande amigo de Jesus de
Nazaré. Aquele que dobrou a soma em favor de Jonas, e não cortou nada
dos bens de Simão, para dar a ele a alegria de poder fazer muito pelo
Mestre pobre e pelos pobres do Mestre, é alguém chamado Lázaro. Aquele
que, discreto e atento, move, dirige, ajuda todas as forças boas para me
darem ajuda, conforto e proteção, é Lázaro de Betânia. Eu sei.
– Oh! Não digas isto! Eu pensava em fazer bem assim e em segredo!
– Para os homens há segredo. Mas para Mim, não. Eu leio os corações.
117.6 Queres que Eu te diga por que a tua já natural bondade fica impregnada
de perfeição sobrenatural? É porque pedes dom sobrenatural, pedes a
salvação de uma alma, a santidade tua e a de Marta. E sentes que não basta
ser bons segundo o mundo, mas que é preciso ser bons segundo as leis do
espírito, para ter a graça de Deus. Tu não ouviste as minhas palavras. Mas
Eu disse[36]: “Quando fizerdes o bem, fazei-o em segredo, e por ele o Pai
vos dará grande recompensa.” Tu o fizeste por um natural impulso de
humildade. E em verdade te digo que o Pai prepara para ti uma recompensa
que tu nem podes imaginar.
– A redenção de Maria?!!
– Esta, e mais, mais ainda.
– O que é Mestre, mais impossível do que isso?
Jesus o olha e sorri. Depois diz com o tom de um salmo:
– O Senhor reina e com Ele os seus santos.
Com os seus raios tece uma coroa, e sobre a cabeça dos santos a pousa.
Onde para sempre ela brilhe aos olhos de Deus e do universo.
De que metal ela é feita? Com que pedras é ornada? Ouro, ouro
puríssimo é o círculo obtido com o duplo fogo do amor divino e do amor do
homem, trabalhada a cinzel pela vontade que martela, lima, corta e
adelgaça.
Pérolas em grande abundância e esmeraldas mais verdes do que a erva
nascida em abril, turquesas da cor do céu, opalas da cor da lua, ametistas
como pudicas violetas, e jaspes e safiras e jacintos e topázios. Estes
engastados para toda a vida. E além disso, um círculo de rubis colocados
como arremate do trabalho, um grande círculo sobre a fronte gloriosa.
Pois que o bendito terá tido fé e esperança, terá tido mansidão e
castidade, temperança e fortaleza, justiça e prudência, Misericórdia sem
medida, e no fundo terá escrito com sangue o meu Nome e com sua fé em
Mim, o seu amor por Mim, terá o seu nome no Céu.
Exultai, ó justos do Senhor. O homem ignora e Deus vê.
Ele escreve nos livros eternos as minhas promessas e as vossas obras, e
com essas os vossos nomes, príncipes do futuro século, triunfadores eternos
com o Cristo do Senhor.
Lázaro o olha assombrado. Depois murmura:
– Oh! eu… não serei capaz…
– Pensas assim?
E Jesus apanha um ramo flexível de um salgueiro pendente sobre o
caminho, e diz:
– Olha: assim como minha mão dobra facilmente este ramo, o amor
dobrará a tua alma, e dela fará uma coroa eterna. É o amor que redime cada
um. Quem ama, inicia a sua redenção. O completamento desta será feito
pelo Filho do homem.
Tudo termina.
[35] Betânia, cuja posição é ilustrada com o desenho que MV fez num folheto que encontramos colado na abertura do caderno
autógrafo. Atrás do folheto, MV escreveu a seguinte nota, na qual inserimos, entre parêntesis reto, algumas precisões nossas:
Betânia e o que vejo a partir dela. Atrás, a cadeia montanhosa central na qual se insere Jerusalém (círculo vermelho com a cruz
vermelha [no alto à esquerda]. O tracejado duplo, o caminho íngreme que vai de Jerusalém a Betânia, que é o pequeno círculo
vermelho no planalto [mais baixo]. O traço duplo unido, a via principal para Jericó (círculo vermelho com cruz preta [no alto à
direita], que desce pelas colinas cada vez mais baixas
[36] Eu disse, como se citasse o Evangelho (Mt 6,3-4) num eterno presente, porque no tempo o dirá em 173.4.
118. Início da vida em comum
nas Águas Belas e discurso de abertura.
26 de fevereiro de 1945.
118.1 Se se compara esta casinha baixa e rústica com a casa de Betânia,
certamente ela é um ovil, como diz Lázaro. Mas, se ela for comparada com
as dos camponeses de Doras[37], é uma habitação até bonita.
É muito baixa e muito larga, de construção sólida, tem uma cozinha, ou
seja, um grande fogão em um quarto todo enfumaçado no qual há uma
mesa, algumas cadeiras, ânforas e uma rústica prateleira, onde estão alguns
pratos e copos. Uma larga porta de madeira tosca, lhe dá luz além de
acesso. Depois, na mesma parede onde se abre esta, há três outras portas,
que dão acesso a três quartos longos e estreitos, de paredes caiadas e chão
de terra batida como o da cozinha. Em dois deles estão agora algumas
caminhas. Parecem pequenos dormitórios. Os muitos ganchos fincados nas
paredes testemunham que ali ficavam penduradas as ferramentas e talvez
também produtos agrícolas. Agora eles servem de cabides, segurando
mantos e alforjes. O terceiro quarto (que é mais um corredor largo, do que
um quarto, porque é desproporcionado o comprimento para a largura) está
vazio. Ele devia servir também para o abrigo de animais, porque tem uma
manjedoura e argolas presas nas paredes, e apresenta no piso buracos
próprios de terrenos pisados por cascos ferrados. Agora não há mais nada.
Fora, junto a este último quarto, há um pórtico largo e rústico, feito
com um teto coberto de varas e placas de ardósia, apoiadas sobre troncos de
árvores ligeiramente arranhados. Nem mesmo chega a ser um pórtico, é
mais um telheiro, pois é aberto de três lados, dois deles com um
comprimento de pelo menos dez metros, e o outro mais curto, com uns
cinco metros, não mais. No verão, uma videira deve estender os seus ramos,
de um tronco ao outro, do lado sul. Agora está nua, e mostra os seus ramos
despidos, como nua está uma figueira gigantesca, que no verão sombreia o
tanque, que está no centro da eira, certamente para dar de beber aos
animais. Fica ao lado de um poço rudimentar, ou seja, de um buraco ao
nível do solo; apenas algumas pedras chatas e brancas ao redor o assinalam.
Esta é a casa que hospeda Jesus e os seus, no lugar chamado “Águas
Belas.” Campos, ou melhor, prados e vinhas a circundam, e à distância de
uns trezentos metros (não se deve tomar como artigo de fé as minhas
medições), vê-se uma outra casa, no meio dos campos, mais bonita porque
tem um terraço em sua parte superior, o que esta ao invés não tem. Além
dessa outra casa, bosques de oliveiras e de outras plantas, parte despidas,
parte frondosas, encobrem a vista.
118.2 Pedro, com seu irmão e com João, trabalham com gosto varrendo a
eira e os quartos, arrumando as camas e buscando água. Aliás, Pedro faz
uma armação ao redor do poço, para ajustar e reforçar as cordas, tornando-o
mais prático e cômodo para tirar a água. Enquanto isso, os dois primos de
Jesus trabalham com martelo e lima, nas fechaduras e nos batentes, e Tiago
do Zebedeu os ajuda, serrando e trabalhando com o machado, como um
operário de arsenal.
Na cozinha ocupa-se Tomé, e parece um cozinheiro muito experiente,
que sabe regular a altura do fogo e da chama e lavar agilmente as verduras
que o belo Judas se dignou trazer do povoado vizinho. Entendo que deve
ser um povoado mais ou menos grande, porque Judas explica que lá fazem
pão só duas vezes por semana e que por isso, para aquele dia não havia pão.
Pedro escuta e diz:
– Faremos pães sobre as chamas. Lá está a farinha. Rápido, tira a tua
veste e vai fazer a massa, que em assar penso eu. Eu sei fazer isso.
E eu não posso deixar de rir, ao ver que Iscariotes se humilha,
apresentando-se com as vestes de baixo, para ir amassar a farinha,
enfarinhando-se todo.
Jesus não está, e com Ele faltam Simão, Bartolomeu, Mateus e Filipe.
– O dia mais feio é hoje –responde Pedro a um resmungo de Judas de
Keriot–. Mas amanhã já estará melhor. E na primavera estará tudo bem…
– Na primavera? –diz assustado Judas–. Mas ficaremos sempre aqui?
– Por que? Aqui não é uma casa? Chover, aqui não chove. Água para
beber tem. O fogão não falta. E que queres mais? Eu aqui, estou muito bem.
Ainda mais porque não estou sentindo o mau cheiro dos fariseus e de seus
companheiros…
– Pedro, vamos retirar as redes –diz André, e puxa o irmão, antes que
comece algum bate-boca entre ele e Iscariotes.
– Aquele homem não pode me ver –exclama Judas.
– Não. Não podes dizer isto. Ele é assim franco com todos. Mas é bom.
Tu é que estás sempre descontente –responde Tomé que, ao contrário, está
sempre de muito bom humor.
– É que eu pensava que era outra coisa… –diz Judas.
– Meu primo não te proíbe de ir atrás de outras coisas –diz tranquilo
Tiago do Alfeu–. Creio que todos, porque somos tolos, achávamos que era
outra coisa segui-lo. Mas é porque somos de cabeça dura, e de grande
soberba. Ele nunca nos escondeu o perigo e os incômodos de segui-lo.
Judas resmunga entre dentes.
Quem lhe responde é o outro Judas, o Tadeu, que trabalha ao redor de
uma prateleira da cozinha, para transformá-la num pequeno armário.
– Tu não tens razão. Mesmo segundo os nossos costumes, não tens
razão. Todo israelita deve trabalhar. E nós trabalhamos. O trabalho te pesa
tanto? Eu não o sinto, porque desde quando estou com Ele, todo cansaço
perdeu o seu peso…
– Eu também não lamento nada. E estou contente por estar agora em
família –diz Tiago de Zebedeu.
– Faremos grandes coisas, aqui!!! –observa irônico Judas de Keriot.
– Mas afinal, que queres tu? Que é que pretendes? A corte de um
sátrapa? Não permito que fiques criticando o que meu primo faz.
Entendeste? –explode o Tadeu.
– Cala-te, meu irmão. Jesus não quer estas discussões. Vamos falar o
menos possível e fazer o mais que pudermos. Será melhor para todos.
Aliás… se Ele não consegue mudar os corações… poderás tu querer fazer
isso com tuas palavras? –diz Tiago de Alfeu.
– O coração que não muda é o meu, não é? –pergunta agressivo
Iscariotes.
Mas Tiago não lhe responde. Antes, coloca um prego entre os lábios e
entrementes prega vigorosamente algumas tábuas, fazendo um tal barulho,
que os resmungos de Judas se perdem no ar.
118.3 Passa algum tempo, depois entram juntos Isaque com uns ovos e um
cesto de pães cheirosos, e André com alguns peixes em uma cesta[38].
– Aqui estão –diz Isaque–. É o feitor que os manda e pergunta se não
precisamos de nada. A ordem que ele tem é esta.
– Estás vendo que de fome não se morre? –diz Tomé a Iscariotes.
Depois acrescenta:
– Dá-me os peixes, André. Que bonitos! Mas como se faz para prepará-
los? Isto eu não sei fazer.
– Disso trato eu –diz André–. Eu sou pescador –e vai para um canto
destripar os peixes, ainda vivos.
– Está vindo o Mestre. Deu uma volta pelo povoado e pelos campos.
Vereis que logo haverá quem virá. Ele já curou um que estava doente da
vista. Além disso eu já havia percorrido estes campos e eles sabiam…
– Ah! Sim! Eu, eu!! Somos os pastores… Nós deixamos, eu pelo
menos, uma vida segura e temos feito isto e aquilo, mas acabamos não
fazendo nada…
Isaque olha espantado para Iscariotes… mas filosoficamente não
rebate. Os outros o imitam… mas por dentro estão fervendo.
118.4 – Paz a todos vós.
É Jesus que está na soleira, sorridente e bom. Parece que, com sua
chegada, o sol aumenta o esplendor.
– Que pessoal disposto! Todos trabalhando! Posso ajudar-te, primo?
– Não. Vai descansar. Já acabei.
– Estamos bem providos de mantimentos. Todos quiseram dar. Se todos
tivessem os corações dos humildes! –diz Jesus um pouco triste.
– Oh! O meu Mestre! Que Deus te abençoe!
É Pedro que entra com um feixe de lenha nos ombros e que saúda
assim, debaixo daquele peso, ao seu Jesus.
– A ti também, Pedro, que o Senhor te abençoe. Vós trabalhastes muito!
– E mais trabalharemos nas horas livres. Nós temos uma casa de
campo!! E dela vamos fazer um Éden. Até agora, ajustei o poço, tanto para
se poder enxergar melhor, de noite, onde é que ele está, como também para
estarmos certos de que não iremos perder nossas ânforas, ao descê-las.
Depois, estás vendo que disposição têm os teus primos? Tratam de tudo o
que é necessário a quem vai passar muito tempo em um lugar coisa que eu
como pescador, nem haveria pensado. São dispostos de verdade! Também
Tomé. Ele poderia ir trabalhar na cozinha do Herodes. Até Judas está
disposto. Ele fez uns pães maravilhosos…
– E inúteis. Já temos pão –responde Judas com mau humor.
Pedro o olha, e eu fico esperando alguma resposta apimentada, mas
Pedro sacode a cabeça, ajunta a cinza, e estende sobre ela os seus pães.
– Daqui a pouco estará tudo pronto –diz Tomé. E ri.
118.5 – Vais falar hoje? –pergunta Tiago de Zebedeu.
– Sim. Entre a sexta e a nona horas. Os vossos companheiros já o
disseram. Por isso, vamos comer logo.
Passa ainda algum tempo e depois João põe o pão sobre a mesa, põe
nos lugares as cadeiras, leva os copos e as ânforas, e Tomé traz as verduras
cozidas e o peixe assado.
Jesus está no centro, oferece e abençoa, distribui, e todos comem com
gosto.
Estão ainda comendo quando, na eira, aparecem algumas pessoas.
Pedro se levanta, e vai até à porta.
– Que desejais?
– O Rabi. Ele não vai falar aqui?
– Vai. Mas agora está comendo, porque Ele também é homem. Sentai-
vos lá embaixo, e esperai.
O pequeno grupo vai sob o rústico telheiro.
– Mas vai fazer frio e chover a qualquer hora. Acho que seria melhor
usar aquela estrebaria vazia. Eu já a limpei, como é preciso. E a manjedoura
servirá de banco…
– Deixa de brincadeiras bobas. O Rabi é um rabi –diz Judas.
– Mas que brincadeiras! Se Ele nasceu numa estrebaria, poderá falar de
cima de uma manjedoura!
– Pedro tem razão. Mas Eu vos peço, amai-vos uns aos outros!
Jesus parece até cansado ao dizer estas palavras.
Acabam de comer e Jesus sai logo para ir junto à pequena multidão.
– Espera, Mestre –grita-lhe Pedro–. O teu primo fez para Ti uma
cadeira, porque lá embaixo o chão está úmido.
– Não é preciso. Tu o sabes. Eu falo em pé. O povo quer me ver, e Eu
quero vê-lo. Antes… fazei cadeiras e pequenas camas. Talvez venham
pessoas doentes… e servirão.
– Sempre estás pensando nos outros, bom Mestre! –diz João, beijando-
lhe a mão.
Jesus vai, com um sorriso levemente triste, em direção à pequena
multidão. Com Ele vão todos os discípulos.
Pedro, que está justamente ao lado de Jesus, faz que Ele se incline, e
lhe murmura ao ouvido:
– Do outro lado da parede, está aquela mulher do véu. Eu a vi. Está lá
desde esta manhã. Ela veio atrás de nós, desde Betânia. Mando-a embora,
ou a deixo lá?
– Deixe-a. Eu já disse.
– Mas, e se ela for uma espiã, como diz Iscariotes?
– Não o é. Confia no que te estou dizendo. Deixe-a e não digas nada
aos outros. E respeita o seu segredo.
– Eu me calei, porque pensei que assim estava bem…
118.6 – Paz a vós, que estais procurando a Palavra –começa Jesus.
E vai até o fundo do galpão, ficando de costas para a parede da casa.
Fala devagar a uma vintena de pessoas que estão sentadas no chão ou
encostadas nas colunas, na tepidez de um solzinho de novembro.
– O homem cai em erro, quando considera a vida e a morte, e ao usar
estes dois nomes. Chama de “vida” o tempo em que ele, tendo sido dado à
luz por sua mãe, começa a respirar, a comer, a andar, a pensar, a agir; e
chama de “morte” o momento em que ele cessa de respirar, de comer, de se
mover, de pensar, de trabalhar, e se torna um cadáver, frio e insensível,
pronto para reentrar em um seio, que é o sepulcro. Mas não é assim. Eu
quero fazer-vos compreender o que é a “vida”, e indicar-vos as obras aptas
à vida.
Vida não é existência. Existência não é vida. Existe também esta vinha
que está encostada nestas colunas. Mas não tem a videira de que Eu estou
falando. Existe também aquela ovelha que bale, amarrada àquela árvore, lá
longe. Mas não tem a vida de que Eu estou falando. A vida, de que Eu falo
não começa com a existência, e não acaba com o findar da carne. A vida de
que Eu falo, não começa em um ventre materno. Começa, quando do
pensamento de Deus, uma alma nasce, criada por Ele, para ir habitar numa
carne, e termina, quando o Pecado a mata!
Primeiramente, o homem não é mais do que uma semente[39] que
cresce, semente de carne, e não glúten ou medula como dos cereais e das
frutas. Primeiramente, não é mais do que um animal que vai tomando
forma, um embrião de animal, não diferente do que está ganhando volume
nas entranhas daquela ovelha. Mas, desde o momento em que, na
concepção do homem é infundida esta parte incorpórea, e que também é a
mais poderosa, eis que, então, o embrião animal não somente existe, como
um coração pulsante, mas “vive”, segundo o pensamento criador, e se torna
homem, criado à imagem e semelhança de Deus, o filho de Deus, futuro
cidadão dos Céus.
Mas isto acontece, se a vida continuar. O homem pode existir, tendo a
imagem de homem, já não sendo mais homem, quando ele passa a ser um
sepulcro no qual a vida está apodrecendo. Por isso, eis o que Eu digo: A
vida não começa com a existência e não termina quando a carne morre. A
vida começa antes do nascimento. A vida, pois, não tem fim, porque a alma
não morre, ou seja, não se reduz a nada. Morre o seu destino, que se ela é
celeste, sobrevive no seu castigo, se assim mereceu. A esse destino feliz ela
morre, quando morre pela Graça. Esta vida, tendo sido ferida por uma
gangrena, que é a morte para o seu destino, permanecerá através dos
séculos, na condenação e no tormento. Esta vida se, ao invés, for
conservada tal, alcança a perfeição do viver, tornando-se eterna, perfeita,
feliz como o seu Criador.
118.7 Temos deveres para com a vida? Sim. Ela é um dom de Deus. Todo
dom de Deus tem de ser usado e conservado com cuidado, porque é uma
coisa santa como o Doador. Estragaríeis vós um presente dado por um rei?
Não. Passa aos herdeiros e aos herdeiros dos herdeiros, como glória da
família. E então por que estragar o dom de Deus? Mas como está sendo
usado e conservado esse dom divino? De que modo manter viva a
paradisíaca flor da alma e conservá-la para os Céus? Como conseguir
“viver” acima e além da existência?
Israel tem leis claras sobre isso, e a nós basta observá-las. Israel tem
profetas e justos que dão exemplo e palavra para a prática das leis. Israel
tem também agora os seus santos. Portanto, Israel não pode, não deveria
errar. Ao invés, Eu vejo manchas nos corações e espíritos mortos que
pululam por toda parte. Pelo que, Eu vos digo: fazei penitência; abri vossa
alma à Palavra; colocai em prática a Lei imutável; dai um sangue novo à
“vida”, que está perdendo o vigor; se em vós ela já está morta, vinde à
verdadeira Vida: Deus. Chorai sobre as vossas culpas. Gritai: “Piedade!”
Mas levantai-vos. Não sejais agora uns mortos-vivos, para não serdes
amanhã uns eternos penados. Eu não vos falarei de outra coisa, senão do
modo de alcançar e conservar a vida. Um outro vos disse: “Fazei
penitência. Limpai-vos do fogo impuro da luxúria, da lama de vossas
culpas.” Eu vos digo: pobres amigos, vamos estudar juntos a Lei. Ouçamos
de novo a voz paterna do Deus verdadeiro. E depois, rezemos ao Eterno,
dizendo: “A tua Misericórdia desça sobre os nossos corações.”
Agora estamos no escuro inverno. Daqui a pouco, virá a primavera. Um
espírito morto é mais triste do que um bosque despojado pela geada. Mas,
se em vós penetrarem a humildade, a vontade, a penitência e a fé, como no
bosque durante a primavera, a vida voltará a vós, e vós florescereis para
Deus, para levardes, no amanhã dos séculos, um fruto perene de verdadeira
vida.
Vinde à Vida! Cessai de somente existir, e começai a “viver”. A morte
então não será um “fim”, mas um princípio. O princípio de um dia sem
ocaso; de uma alegria sem cansaço e sem medida. A morte será o triunfo
daquilo que viveu antes. Triunfo da carne, que vai ser chamada para a
eterna ressurreição, para compartilhar desta Vida, que Eu prometo, em
nome do verdadeiro Deus, a todos aqueles que tiverem “querido” a “vida”
para suas almas, esmagando a sensualidade e as paixões, gozando da
liberdade dos filhos de Deus.
Ide. Cada dia, a esta hora, Eu vos falarei da eterna Verdade. O Senhor
esteja convosco.
As pessoas vão-se afastando devagar, com muitos comentários. Jesus
volta à casinha solitária, e tudo termina.
[37] com as dos camponeses de Doras vistas em 89.1 e em 109.11.
[38] cesta: cesto de vime, de forma afunilada, para pegar peixe [N.T.]
[39] Primeiramente, o homem não é mais do que uma semente… deveria entender-se não em sentido temporal, mas em sentido
hipotético e modal, como para significar: Se fôsse sem alma, o homem concebido não seria senão uma semente de carne. O
discurso, de fato, não se propõe estabelecer o momento de infusão da alma, mas fazer compreender em termos simples que a vida
verdadeira é a espiritual.
119. Os discursos de Águas Belas: Eu sou
o Senhor teu Deus. Jesus batiza como João.
27 de fevereiro de 1945.
119.1 O número de pessoas é, pelo menos, o dobro de ontem. Há também
as que pertenciam a classes menos populares. Alguns vieram montados em
burrinhos, e estão agora tomando sua refeição debaixo do telheiro, depois
de terem amarrado seus animais nas estacas, à espera do Mestre.
O dia está frio, mas sereno. As pessoas conversam entre si e os mais
instruídos explicam quem e o Mestre porque fala naquele lugar.
Alguém pergunta:
– Mas Ele é maior do que João?
– Não. Ele é diferente. Eu era de João, que é o Precursor, e é a voz da
justiça. Este é o Messias, e é a voz da sabedoria e da Misericórdia.
– Como é que sabes disto? –perguntam-lhe muitos.
– Assim me disseram três dos discípulos, que sempre estiveram com o
Batista. Se soubésseis ! Eles o viram nascer. Pensem, que Ele nasceu da luz.
Era uma luz tão forte, que eles, que eram pastores, tiveram que sair do ovil,
entre os animais aterrorizados, e viram que Belém inteira estava em fogo e
depois, do céu vieram uns anjos que, com suas asas, apagaram o fogo, e na
terra estava Ele, o Menino nascido da luz. E aquele fogo todo transformou-
se em uma estrela…
– Não diga, não acredito!
– Sim, foi assim. Foi o que me disse alguém que trabalhava na
estrebaria em Belém, quando eu era menino. Ele se gaba de poder contar
isso, agora, que o Messias é homem.
– Não é assim. A estrela veio depois, veio com aqueles magos do
oriente, dos quais um era parente de Salomão e, portanto, do Messias,
porque o Messias é descendente de Davi. E Davi é o pai de Salomão, e
Salomão amou a rainha de Sabá, porque era bonita e pelos presentes que lhe
levou, e dela teve um filho, que é de Judá, apesar de ser de além Nilo.
– Mas, que é que estás dizendo? Estás doido?
– Não. Queres dizer que não é verdade que o parente lhe trouxe os
aromas, como é o costume entre os reis daquela linhagem?
– Eu sei que é verdade –diz um outro–. Foi assim, porque Isaque é um
dos pastores e é meu amigo. Pois bem, o Menino nasceu em uma estrebaria
da casa de Davi. Era a profecia…
– Mas Ele não é de Nazaré?
– Deixai-me falar. Nasceu em Belém, porque era descendente de Davi,
e foi no tempo do edito. Os pastores viram uma luz, que mais bela não há, e
o menor deles, porque era um inocente, foi o primeiro a ver o anjo do
Senhor que falou com uma música de harpa, dizendo: “Nasceu o Salvador.
Ide e adorai”, e depois anjos e anjos cantaram: “Glória a Deus e paz aos
homens bons.” E os pastores foram e viram o pequenino, em uma
manjedoura, entre um boi e um asno, e a Mãe e o pai. E o adoraram, e
depois o levaram para a casa de uma boa mulher. O Menino crescia como
todos, bonito, bom, um amor de menino. Depois, os magos vieram de além
do Eufrates e de além do Nilo, porque tinham visto uma estrela e
reconhecido nela a estrela de Balaão. Mas o Menino já era capaz de
caminhar. E o rei Herodes ordenou o extermínio, por ciúme do reino. Mas o
anjo do Senhor os tinha advertido do perigo, e os pequeninos de Belém
morreram, mas não Ele, que havia fugido para Matarea. Depois, voltou a
Nazaré para trabalhar como carpinteiro e, quando chegou o seu tempo,
depois que o Batista, seu primo, o havia anunciado, iniciou sua missão,
indo, antes, procurar os seus pastores. A Isaque Ele livrou da paralisia,
depois de trinta anos de enfermidade. E Isaque não se cansa de apregoá-lo.
Esta é a verdade.
– Mas os três discípulos do Batista disseram mesmo essas palavras! –
disse o primeiro, mortificado.
– E elas são verdadeiras. O que não é verdade é a descrição feita pelo
moço da estrebaria. Ainda se gaba disso? Faria bem em ir dizer aos
belemitas que sejam bons. Nem em Belém nem em Jerusalém pode fazer
pregação.
– Sim! Imagina se os escribas e fariseus vão querer ouvir as palavras
dele! Eles são víboras e hienas, como lhes chama o Batista.
119.2 – Eu gostaria de ficar curado. Estás vendo? Estou com uma perna
gangrenada. Quase morri para chegar até aqui no lombo de um burro. Mas o
tinha procurado em Sião, e não estava mais lá… –diz um.
– É que o ameaçaram de morte… –responde outro.
– Cães!
– Sim. De onde é que estás vindo?
– De Lida.
– Fica longe!
– Eu… eu queria falar-lhe de um erro meu… Eu o disse ao Batista…
mas tive que sair de lá, de tanto que me censurou. Acho que não posso mais
ser perdoado… –diz ainda um outro.
– Que foi que fizeste de mal?
– Fiz muito mal. A Ele vou dizer. Que achais? Será que vai me
amaldiçoar?
– Não. Eu o ouvi falar em Betsaida. Estava lá por acaso. Que palavras!!
Estava falando de uma pecadora. Ah! Quase gostaria de ser ela, para
merecê-las!!! –diz um velho imponente.
119.3 – Eis que vem vindo –gritam vária vozes.
– Misericórdia! Estou envergonhado! –diz o culpado, e faz como quem
quer fugir.
– Para onde queres fugir, meu filho? Estarás com o coração tão escuro,
para teres ódio da Luz, a ponto de quereres fugir dela? Terás pecado tanto,
para ter medo de Mim: o Perdão? Mas que pecado terás cometido? Nem
mesmo se tivesses matado a Deus, precisarias temer, desde que tivesses em
ti um verdadeiro arrependimento. Não chores! Ou melhor, vem aqui, vamos
chorar juntos.
Jesus que, tendo levantado uma mão, impôs ao fugitivo uma parada,
agora o conserva abraçado a si, e depois se vira para quem o está esperando,
e diz:
– Só um momento, para reerguer este coração. E depois irei a vós.
Ele se afasta para além da casa, esbarrando, ao dobrar o canto, contra a
mulher velada, que lá estava em seu lugar de escuta. Jesus a olha fixamente,
por um momento, depois dá ainda uns dez passos e para:
– Que foi que fizeste filho?
O homem cai de joelhos. É um homem dos seus cinquenta anos. Um
rosto queimado por muitas paixões, e devastado por um tormento secreto.
Ele estende os braços e grita:
– Para gozar com as mulheres toda a herança paterna, matei minha mãe
e meu irmão… Não tive mais paz… A minha comida… sangue! O meu
sono… pesadelos! O meu prazer… Ah! no seio das mulheres, no grito de
luxúria delas, eu sentia o gelo de minha mãe morta e os estertores de meu
irmão envenenado. Malditas as mulheres dos prazeres, áspides, medusas,
moreias insaciáveis, ruína, ruína, minha ruína!
– Não amaldiçoes. Eu não te amaldiçoo…
– Não me amaldiçoas?
– Não. Eu choro e tomo sobre Mim o teu pecado!! Como ele é pesado!
Seu peso me quebra os membros. Mas Eu o abraço apertado para destruí-lo
para ti… e a ti dou o perdão. Sim. Eu perdoo o teu grande pecado.
Jesus estende as mãos sobre a cabeça do homem, soluçante e reza:
– Pai, também para ele o meu Sangue será derramado. Por ora, eis o
pranto e a oração. Pai, perdoa, pois ele está arrependido. O teu Filho, a cujo
julgamento cada coisa foi entregue, assim o quer!!!
Fica assim por alguns minutos ainda, depois se inclina, levanta o
homem e lhe diz:
– Tua culpa está perdoada. A ti agora cabe expiar, com uma vida de
penitência, tudo o que resta do teu delito.
– Deus me perdoou? E a mãe? E o irmão?
– O que Deus perdoa, por todos é perdoado. Vai e não peques mais.
O homem chora mais forte e lhe beija a mão. Jesus o deixa entregue ao
seu pranto. Volta em direção à casa. A mulher do véu faz um movimento,
como querendo ir-lhe ao encontro, mas depois inclina a cabeça e não se
move. Jesus passa diante dela, sem olhá-la.
119.4 Chega ao seu lugar. Fala:
– Uma alma voltou ao Senhor. Seja bendita a sua onipotência, que
arranca das espirais demoníacas as almas que Ele criou, e as leva para o
caminho dos Céus. Por que aquela alma se perdera? Porque tinha perdido a
Lei de vista.
Está dito[40] no Livro que o Senhor se manifestou no Sinai em todo o
seu terrível poder, para dizer: “Eu sou Deus. Esta é a minha vontade. E estes
são os raios que Eu preparei para aqueles que forem rebeldes à vontade de
Deus.” E, antes de falar, ordenou que ninguém do povo subisse para
contemplar Aquele que é, e que também os sacerdotes se purificassem,
antes de se aproximarem do limite marcado por Deus, para que não fossem
fulminados. Isto porque era tempo de justiça e de prova. Os Céus estavam
fechados, como por uma pedra, sobre o mistério do Céu e sobre a ira de
Deus, e somente as lâminas da Justiça dardejavam do Céu, sobre os filhos
culpados. Mas agora não. Agora o Justo chegou para consumar toda a
justiça, e chegou o tempo, no qual, sem raios e sem limites, a Palavra divina
fala ao homem, para dar-lhe Graça e Vida.
119.5 A primeira palavra do Pai e Senhor é esta: “Eu sou o Senhor teu
Deus.”
Não existe um instante do dia em que esta palavra não soe, e não seja
escrita pela voz e pelo dedo de Deus. Onde? Por toda parte. Tudo o
proclama continuamente. Da erva à estrela, da água ao fogo, da lã ao
alimento, da luz às trevas, da saúde à doença, da riqueza à pobreza. Tudo
diz: “Eu sou o Senhor. Por Mim é que tens isto. Um pensamento meu é que
te dá isto, um outro o tira de ti, e não há força de exércitos, nem de defesas
que te possa preservar da minha vontade”. Grita na voz do vento, canta no
riso das águas, perfuma na fragrância da flor, incide-se no dorso das
montanhas e sussurra, fala, chama, grita nas consciências: “Eu sou o Senhor
teu Deus.”
Não vos esqueçais disto nunca! Não fecheis os olhos, os ouvidos, não
estranguleis a consciência, para não ouvirdes esta palavra. De tal modo ela
é, que chega o momento em que ela é escrita pelo dedo de fogo de Deus
sobre a parede da sala do banquete, ou sobre a onda agitada do mar, sobre
os lábios sorridentes da criança ou sobre a lividez do velho que está
morrendo, sobre a rosa fragrante ou sobre o fétido sepulcro. E assim chega
o momento em que, entre a embriaguez do vinho e do prazer, entre o
turbilhão dos negócios, ou no repouso da noite, ou em um passeio solitário,
ela levanta a sua voz e diz: “Eu sou o Senhor teu Deus”, e não esta carne
que estás beijando ávido, e não este alimento que com voracidade devoras,
e não este ouro que avaramente acumulas, nem este leito sobre o qual ficas
preguiçoso. E não adianta o silêncio, nem o estar sós, nem o estar
dormindo, para fazê-la calar-se.
“Eu sou o Senhor teu Deus”, o Companheiro que não te abandona, o
Hóspede que não podes expulsar. És bom? Eis que o Hóspede e
Companheiro é um bom Amigo. És mau e culpado? Eis que o Hóspede e
Companheiro se torna o Rei irado, e não te deixa em paz. Mas não te deixa,
não deixa, não deixa. Só aos condenados é concedido que se separem de
Deus. Mas a separação é um tormento insaciável e eterno.
119.6 “Eu sou o Senhor teu Deus”, e acrescenta: “que te tirei da terra do
Egito, da casa da escravidão.” Oh! Que em verdade agora o diz com
propriedade! De qual Egito, de que Egito Ela te tira, para levar-te para a
Terra Prometida, que não é aqui neste lugar, mas no Céu! O Reino eterno do
Senhor, no qual não haverá mais fome nem sede, nem frio nem morte, mas
tudo destilará alegria e paz, e de paz e alegria ficarão saciados todos os
espíritos.
Agora Ele vos tira da verdadeira escravidão. Eis o Libertador. Sou Eu.
Venho para quebrar vossas correntes. Todo dominador humano um dia pode
morrer deixando livres os povos escravizados. Mas satanás não morre. É
eterno. E é o dominador, que vos colocou em grilhões, para arrastar-vos
para onde ele quer. O Pecado está em vós. E o Pecado são as correntes com
que satanás vos prende. Eu venho quebrar essas correntes. Em nome do Pai,
Eu venho. E por desejo meu. Por isso, eis que se cumpre a incompreendida
promessa: “Eu te tirei do Egito e da escravidão.”
Agora, isto está cumprindo espiritualmente. O Senhor vosso Deus vos
tira da terra do ídolo, que seduziu os progenitores, arranca-vos da
escravidão da culpa, reveste-vos de graça, admite-vos em seu Reino. Em
verdade vos digo que aqueles que vierem a Mim, poderão, com a doçura da
voz paterna, ouvir o Altíssimo dizer em seus felizes corações: “Eu sou o
Senhor teu Deus, que te atraio a Mim, livre e feliz.”
Vinde. Voltai o vosso coração e rosto, vossa oração e vontade para o
Senhor. A hora da graça chegou.
119.7 Jesus terminou. Passa abençoando e acariciando uma velhinha e
uma menina pequena, moreninha, toda sorridente.
– Cura-me, Mestre. Estou muito mal! –diz o doente da gangrena.
– Antes a alma, antes a alma. Faz penitência…
– Dá-me o batismo, como João. Não posso ir até ele. Estou doente.
– Vem.
Jesus desce em direção ao rio, que está dos prados e do bosque. Tira as
sandálias, e o mesmo faz o homem que até lá tinha ido, arrastando-se com
suas muletas. Descem à beira do rio e Jesus, fazendo concha com as duas
mãos juntas, derrama a água sobre a cabeça do homem, que está dentro do
rio, com a água batendo-lhe pelo meio das canelas.
– Agora, tira fora as faixas –manda Jesus, enquanto sobe de volta para o
caminho.
O homem obedece. A perna está curada. A multidão grita de
admiração.
– Eu também!
– Eu também!
– Também eu quero receber de Ti o batismo –gritam muitos.
Jesus, que já vai indo a meio caminho, se vira:
– Amanhã. Agora ide e sede bons. A paz esteja convosco.
Tudo termina e Jesus volta para casa, entra na cozinha que está escura,
não obstante sejam ainda as primeiras horas da tarde.
119.8 Os discípulos se reúnem ao seu redor. E Pedro pergunta:
– Aquele homem que levaste para trás da casa, que é que tinha?
– Necessidade de purificação.
– Mas ele não voltou, nem estava aqui para pedir batismo.
– Ele foi onde Eu o mandei.
– Onde?
– À expiação, Pedro.
– Ao cárcere?
– Não. À penitência para o resto de sua vida.
– Então, ele não se purifica com a água?
– O pranto também é água.
– Isto é verdade. 119.9Agora que fizeste o milagre, quem sabe quantos
virão!! Hoje já eram o dobro….
– Sim. Se Eu tivesse que fazer tudo, não poderia. Vós tereis que batizar.
Primeiramente um de cada vez. Depois, sereis em dois, três, muitos. E Eu
pregarei e curarei os doentes e os culpados.
– Nós iremos batizar? Oh! Eu não sou digno disso! Livra-me Senhor,
dessa missão! Eu é que preciso ser batizado!
Pedro está de joelhos, suplicando.
Mas Jesus se inclina e diz:
– Exatamente tu é que vais batizar primeiro. A partir de amanhã.
– Não, Senhor! Como vou fazer, se estou mais preto do que aquela
chaminé?
Jesus sorri da humilde sinceridade do apóstolo, que está de joelhos
apoiando no Seu colo as suas grossas mãos de pescador. E depois o beija na
fronte, no limite dos cabelos grisalhos e ásperos, que se encaracolam:
– Eis. Eu te batizo com um beijo. Estás contente?
– Iria fazer logo outro pecado para ganhar mais um!
– Isto não. Não se zomba de Deus, abusando dos seus dons!
– E a mim, não dás um beijo? Algum pecado eu também tenho –diz
Iscariotes.
Jesus o olha fixamente. Seu olhar, tão mutável, passa da luz da alegria,
que o tornava claro enquanto falava com Pedro, a uma profundidade severa,
e diria, cansada, e diz:
– Sim… também a ti. Vem. Eu não faço injustiça com ninguém. Sê
bom, Judas. Se tu quisesses!! És jovem. Tens uma vida inteira para subir
sempre, até à perfeição da santidade…
E o beija.
– Agora tu, Simão, meu amigo. E tu, Mateus, minha vitória. E tu, sábio
Bartolomeu. E tu, Filipe fiel. E tu, Tomé, de risonha vontade. Vem, André,
que trabalhas em silêncio. E tu, Tiago, do primeiro encontro. E agora tu, a
alegria do teu Mestre. E tu, Judas, meu companheiro de infância e de
juventude. E tu, Tiago, que me fazes lembrar do Justo, no aspecto e no
coração. Eis, todos, todos… Mas lembrai-vos de que o meu amor é muito,
mas que é necessária também a vossa boa vontade. Amanhã dareis um
passo avante em vossa vida de discípulos. Mas pensai que cada passo à
frente é uma honra e um compromisso.
[41] a mim, a João, a Tiago e ao André
119.10 – Mestre… Um dia disseste
que nos irias ensinar a rezar… Eu acho que, se nós rezássemos como Tu
rezas, seríamos capazes de ser dignos do trabalho que estás querendo de
nós –diz Pedro.
– E Eu também te respondi então: “Quando estiverdes bem formados,
Eu vos ensinarei a oração sublime. Para deixar-vos a minha oração. Mas,
mesmo essa será nada, se for dita só com a boca. Por enquanto, elevai-vos
para Deus com a alma e a vontade.” A oração é um dom que Deus concede
ao homem, e que o homem doa a Deus.
– Mas como? Não somos ainda dignos de rezar? Israel inteiro reza… –
diz Iscariotes.
– Sim, Judas. Mas pelas obras de Israel, podes ver como ele reza. Eu
não quero fazer de vós uns traidores. Quem reza com o exterior, mas em seu
interior está contra o bem, é um traidor.
119.11 – E os milagres, quando é que no-los vais mandar fazer? –continua
Judas a perguntar.
– Nós, nós fazermos milagres? Misericórdia eterna! Já é bom beber a
água pura! Mas fazer milagres? Rapaz, estás delirando?
Pedro está escandalizado, espantado, fora de si.
– Foi Ele que disse[42] a nós na Judeia. Por acaso, não é verdade?
– Sim. É verdade. Eu o disse. E vós o fareis. Mas, enquanto em vós
houver carne demais, não tereis milagres.
– Nós jejuaremos –diz Iscariotes.
– Não adianta. Por carne Eu quero dizer as paixões corrompidas, a
tríplice fome, e, atrás dessa pérfida trindade, o acompanhamento dos seus
vícios… Semelhantes a filhos de uma união bígama e suja, a soberba da
mente gera, com a avidez da carne e do poder, todo o mal que há no homem
e no mundo.
– Por Ti, nós tudo deixamos –insiste Judas.
– Mas não deixastes a vós mesmos.
– Então, precisamos morrer? Contanto que estejamos Contigo, nós o
faríamos. Eu, pelo menos…
– Não. Não peço a vossa morte material. Peço que morra em vós a
animalidade e a satanicidade, e esta não morre, enquanto a carne for
saciada, com a mentira, o orgulho, a ira, a soberba, a gula, a avareza e a
preguiça estiverem em vós.
– Somos tão homens, perto de Ti, tão santo! –murmura Bartolomeu.
– E foi sempre santo assim. Nós o podemos dizer –afirma o primo
Tiago.
– Ele sabe como somos… Nós não devemos nos sentir abatidos por
isso. Somente dizer-lhe: Dá-nos cada dia a força de servir-te. Se nós
disséssemos: “Somos sem pecado”, estaríamos enganados e enganando.
Enganando a quem? A nós mesmos, que sabemos o que somos, ainda que
não o queiramos dizer? A Deus, a quem não se engana? Mas, se dissermos:
“Somos fracos e pecadores. Ajuda-nos com a tua força e o teu perdão”,
Deus então não nos desiludirá, e em sua bondade e justiça, nos perdoará e
purificará as iniquidades de nossos pobres corações.
– Feliz de ti, João. Pois a Verdade fala em teus lábios, que têm o
perfume da inocência, e só beijam o adorável Amor –diz Jesus, levantando-
se e atraindo sobre o seu coração o predileto, que falou lá do seu canto
escuro.
[40] Está dito, em Êxodo 19,10-25. Inicia aqui um série de discursos que ilustram o Decálogo, transmitido em: Êxodo 20,1-17;
Deuteronômio 5,1-22. A leio dos 10 mandamentos é tratada ou citada outras vezes na obra, por exemplo em: 288.4 (como lei
natural) – 293.5 – 329.10 – 335.9 – 397.1 – 414.9 – 452.7/11 – 453.6 – 455.15 – 471.7 – 472.6/7 – 476.8 – 486.8 – 493.4/5 –
534.7 – 565.4 – 576.6 – 592.12.18 – 600.26 – 604.7 – 632.38 – 635.17. No espírito do Decálogo estão o mandamento de amar a
Deus (Deuteronômio 6,5) e o de amar o próximo (Levitíco 19,18), como em: 122.10 – 196.5 – 277.3 – 279.2 – 281.10 – 295.4 –
444.3 – 596.2.10.
[41] um dia disseste... em 62.2; e repetirá a promessa em 149.3.
[42] Foi Ele que disse, em 72.3.
120. Os discursos de Águas Belas:
Não farás deuses para ti em minha presença.
28 de fevereiro de 1945.
120.1 – Foi dito: “Não farás para ti deuses em minha presença. Não farás
para ti nenhuma escultura ou representação daquilo que está no céu, na
terra, ou nas águas. Não adorarás tais coisas, nem lhes prestarás culto. Eu
sou o Senhor teu Deus, forte e ciumento, que visito a iniquidade dos pais
nos filhos[43], até a terceira e quarta gerações daqueles que me odeiam, e
faço Misericórdia até à milésima geração daqueles que me amam e
observam os meus mandamentos.”
A voz de Jesus ribomba no quarto grande cheio de gente, porque está
chovendo, e todos foram abrigar-se nele. Na primeira fila estão quatro
doentes, ou seja, um cego conduzido por uma mulher, um menino cheio de
crostas, uma mulher amarelenta por causa de icterícia ou malária, e um
outro que foi trazido numa pequena padiola.
Jesus fala, apoiado na manjedoura vazia. João e os dois primos, em
companhia de Mateus e Filipe, estão perto Dele, enquanto Judas com Pedro,
Bartolomeu, Tiago e André estão na porta e controlam a entrada daqueles
que ainda chegam, Tomé e Simão circulam entre o povo, fazendo que as
crianças se calem, recolhendo os óbolos, ouvindo os pedidos.
120.2 – “Não farás para ti deuses em minha presença.”
Vós já ouvistes como Deus é onipresente, com o seu olhar e a sua voz.
Na verdade, estamos sempre na Sua presença. Fechados dentro de um
quarto, ou entre o público do Templo, estamos igualmente na sua presença.
Benfeitores escondidos, que até aos beneficiados ocultam o rosto, ou
assassinos, quando assaltam o viajante em algum desfiladeiro solitário e o
trucidamos, igualmente estão na Sua presença. Em sua presença está o rei
no meio de sua corte, o soldado no campo de batalha, o levita no interior do
Templo, o sábio debruçado sobre os livros, o camponês sobre o sulco, o
mercador em seu balcão, a mãe inclinada sobre o berço, a esposa no quarto
nupcial, a virgem no segredo da morada paterna, o menino que estuda na
escola, o velho que se deita para morrer. Todos estão em Sua presença, e
todas as ações do homem igualmente estão em Sua presença.
Todas as ações do homem! Tremenda palavra! E consoladora palavra!
Tremenda, se as ações são de pecado; consoladora, se são ações de
santidade. Saber que Deus vê é um freio para quem quer fazer o mal e um
conforto para quem quer fazer o bem. Deus vê que estou fazendo o bem. Eu
sei que Ele não se esquece do que vê. Eu creio que Ele premia as boas
ações. Por isso estou certo de que irei receber um prêmio e com esta
certeza, descanso. Ela me dará uma vida serena e uma morte plácida,
porque na vida e na morte minha alma será consolada pelo raio da estrela da
amizade de Deus. Assim é que raciocina aquele que faz o bem.
120.3 Mas aquele que faz o mal, por que não pensa que, entre as ações
proibidas estão os cultos idolátricos? Por que não diz: “Deus está vendo
que, enquanto finjo estar prestando um culto santo, estou adorando um deus
ou deuses mentirosos, aos quais levanto um altar secreto aos homens, mas
conhecido a Deus”? Que deuses são esses, poderíeis dizer, se nem no
Templo existe figura de Deus? Que rosto têm esses deuses, se ao verdadeiro
Deus foi impossível dar um rosto?
Sim. Impossível dar-lhe um rosto, porque o Perfeito e o Puríssimo não
pode ser dignamente representado pelo homem. Só o espírito pode entrever
a sua incorpórea e sublime beleza, e ouvir a sua voz, sentir a sua carícia,
quando Ele se efunde a um dos seus santos, merecedor desses contatos
divinos. Mas o olho, o ouvido, a mão do homem não podem ver nem ouvir
e nem, repetir com o som sobre a cítara, com o macete e o cinzel no
mármore, aquilo que é o Senhor. Oh! Felicidade sem fim, quando, ó
espíritos dos justos, chegardes a ver a Deus! O primeiro olhar será a aurora
da felicidade que, pelos séculos dos séculos será vossa companheira.
Contudo, o que não nos foi possível fazer pelo verdadeiro Deus, eis que
o homem o faz pelos deuses mentirosos. Cada um ergue um altar à mulher;
ou ao ouro; ou ao poder; ou à ciência; ou aos triunfos militares; um adora o
homem poderoso, seu semelhante por natureza e superior apenas em
prepotência ou fortuna; ou adora a si mesmo, e diz: “Não há outros iguais a
mim.” Aí estão os deuses daqueles que são do povo de Deus.
Não vos admireis de que os pagãos adorem animais, répteis e astros.
Quantos répteis! Quantos animais! Quantos astros apagados adorais em
vossos corações! Os lábios pronunciam palavras de mentira para adular,
possuir, corromper. E não são estas as orações dos idólatras secretos? Os
corações planejam pensamentos de vingança, de comércio ilícito, de
prostituição. E não são estes os cultos aos deuses imundos do prazer, da
avidez, do mal?
120.4 Foi dito: “Não adorarás nada daquilo que não é o teu Deus
verdadeiro, único, eterno.” Foi dito: “Eu sou o Deus forte e ciumento.”
Deus Forte: nenhuma outra força é maior do que a Dele. O homem é
livre para agir, satanás é livre para tentar. Mas quando Deus diz: “Basta”, o
homem não pode mais agir mal e satanás não pode mais tentar. Rechaçado
fica este em seu inferno e derrubado fica aquele em seu abuso de fazer o
mal, porque há um limite para isso, além do qual Deus não permite que se
vá.
Deus Ciumento: de que? De qual ciúme? Será o mesquinho ciúme dos
homens pequenos? Não. O santo ciúme de Deus por seus filhos. O justo
ciúme. O amoroso ciúme. Ele vos criou. Ele vos ama. Ele vos quer. Ele sabe
o que vos prejudica. Conhece o que é que pode separar-vos Dele. E é
ciumento daquilo que se intromete entre o Pai e os filhos, desviando-os do
único amor que é salvação e paz: Deus. Compreendei esse sublime ciúme,
que não é mesquinho, que não é cruel, nem carcerário. Mas que é um amor
infinito, que é uma infinita bondade, que é uma liberdade sem limites, que
se dá a uma criatura finita, por desejá-la na eternidade para si e, e fazê-la
partícipe de sua infinidade. Um pai bom não quer gozar sozinho de suas
riquezas. Mas quer que os filhos as gozem com ele. No fundo, foi mais para
os filhos do que para si que ele as acumulou. Assim é com Deus colocando
a perfeição neste amor que há em todas as suas ações.
120.5 Não decepcioneis o Senhor. Ele promete castigo aos culpados e aos
filhos dos culpados. E Deus nunca mente em suas promessas. Mas não
fiqueis abatidos, em vosso ânimo, ó filhos do homem e de Deus. Ouvi, e
exultai com esta outra promessa: “Eu uso de Misericórdia até à milésima
geração daqueles que me amam e observam os meus mandamentos.” Até à
milésima geração dos bons. E até à milésima fraqueza dos pobres filhos do
homem, os quais caem, não por malícia, mas por irreflexão e por ciladas de
satanás. Mais ainda. Eu vos digo que Ele vos abre os braços se, com o
coração contrito e o rosto lavado pelo pranto, vós disserdes: “Pai, eu pequei.
Eu sei. Mas eu me humilho por isso e a Ti me confesso. Perdoa-me. O teu
perdão será a minha força para voltar a ‘viver’ a verdadeira vida.”
Não temais. Antes que vós pecastes por fraqueza, Ele sabia que iríeis
pecar. Mas seu Coração só se fecha, quando persistis no pecado, querendo
pecar, fazendo de um certo pecado, ou de muitos pecados, os vossos deuses
horrorosos. Abatei todos os ídolos, e dai lugar ao Deus verdadeiro. Ele
descerá com a sua glória para consagrar o vosso coração, quando se vir
sozinho em vós.
Dai a Deus a sua morada. Não em templos de pedra, mas no coração
dos homens. Lavai a soleira dela, livrai o seu interior de todo aparato inútil
ou culposo. Somente Deus. Só Ele. Ele é tudo! E em nada é inferior ao
Paraíso o coração de um homem com Deus, o coração de um homem que
cante o amor ao Hóspede divino.
Fazei de cada coração um Céu. Iniciai a coabitação com o Excelso. Ela
se aperfeiçoará em vosso eterno amanhã, em poder e alegria. Mas aqui será
tal, que superará o tremente espanto de Abraão, Jacó e Moisés. Porque não
será mais o encontro fulgurante e assustador com o Poderoso, mas a
permanência com o Pai e o Amigo que desce para dizer-vos: “A minha
alegria é estar entre os homens. Tu me fazes feliz. Obrigado, filho.”
120.6 A multidão que supera uma centena, sai, depois de algum tempo, do
encantamento. Há quem se aperceba chorando ou sorrindo pela mesma
esperança de alegria. Enfim a multidão parece despertar, tem como que um
sussurro, um suspiro forte, e finalmente um grito como de libertação:
– Bendito sejas Tu! Tu nos abres o caminho da paz!
Jesus sorri e responde:
– A paz está em vós, desde que sigais o Bem, a partir de hoje!
Depois Ele se dirige aos doentes, passa a mão sobre o menino doente,
sobre o cego, sobre a mulher com icterícia, inclina-se sobre o paralítico e
diz:
– Eu quero.
O homem o olha e depois grita:
– Há calor no corpo que estava morto!
E se põe em pé, assim como estava, até que lhe ponham nas costas a
coberta da sua pequena cama, enquanto a mãe levanta o menino já sem
crostas, o cego agita os olhos por causa do primeiro contato com a luz, e
algumas mulheres gritam:
– A Dina já não está mais amarela como os ranúnculos selvagens.
O alvoroço alcança o auge. Alguns gritam, outros abençoam, outros
empurram para ver, outros procuram sair para ir informar a cidade. Jesus é
investido por todos os lados.
Pedro vê que o estão quase comprimindo e grita:
– Rapazes! Estão sufocando o Mestre! Vamos abrir caminho!
E com uma verdadeira ginástica de cotovelos e até algum pontapé nas
canelas, os doze conseguem abrir caminho e libertar Jesus, levando-o para
fora dali.
– Amanhã cuidarei disso –diz–. Tu ficarás na porta e os outros no
fundo. Eles te machucaram?
– Não.
– Pareciam doidos! Que modos!
– Deixa que o façam. Estavam felizes… E Eu com eles. Ide para
aqueles que pedem o batismo. Eu entro em casa. Tu, Judas, com Simão, dai
o óbolo aos pobres. Tudo. Nós temos muito mais do que é justo para uns
apóstolos do Senhor. Vai, Pedro, vai. Não tenhas medo de trabalhar demais.
Eu te justifico ao Pai, porque Eu é que te mando. Adeus amigos.
E Jesus, cansado e suado, se fecha na casa, enquanto os discípulos
executam cada um sua tarefa junto aos peregrinos.
[43] a iniquidade dos pais nos filhos, em vez de iniquidade dos filhos, é correção de MV numa cópia datilografada, em
conformidade como texto de Êxodo 20,5.
121. Os discursos de Águas Belas: Não proferirás
em vão o meu Nome. A visita de Manaém.
1 de março de 1945.
[…].
121.1 Os discípulos estão todos alvoroçados. Parecem uma colmeia
atiçada, de tão agitados que estão. Falam, olham de soslaio para fora, para
todos os lados… Jesus não está. Enfim, tomam uma decisão sobre os
motivos de sua agitação e Pedro ordena a João:
– Vai procurar o Mestre. Ele está no bosque acima do rio. Diz-lhe que
venha logo, ou que diga o que é que temos que fazer.
João vai correndo.
Iscariotes diz:
– Eu não entendo porque tanta agitação e tanta descortesia. Eu teria ido
e o teria recebido com todas as honras… O que ele está fazendo é uma
honra para nós. Portanto…
– Eu não sei de nada. Ele poderá ser diferente do seu parente colaço…
Mas… quem vive com as hienas pega delas o cheiro e o instinto. Além
disso, tu quererías que se fôsse embora aquela mulher… Porém toma
cuidado! O Mestre não quer, e eu a tenho sob minha proteção. Se tocares
nela… eu não sou o Mestre… E o estou dizendo para o teu governo.
– Ih! Quem será ela? Talvez a bela Herodíades?
– Não fiques bancando o engraçado!
– És tu mesmo que me fazes agir assim. Tens feito guarda ao redor dela
como a uma rainha…
– O Mestre me disse: “Toma cuidado para que ela não seja perturbada e
respeite-a.” E eu o estou fazendo.
– Mas quem é ela? Tu o sabes? –pergunta Tomé.
– Eu não.
– Vamos, diz… Tu o sabes –insistem muitos.
– Eu vos juro que não sei de nada. O Mestre certamente o sabe. Mas eu
não.
– É preciso fazer que João pergunte a Ele. A ele o Mestre diz tudo.
– Por que? Que é que João tem de especial? Será um deus o teu irmão?
– Não, Judas. É o melhor de nós.
– Podeis poupar-vos o cansaço, diz Tiago do Alfeu. “Ontem meu irmão
a viu, enquanto ele voltava do rio com o peixe que André lhe havia dado, e
perguntou a Jesus. Ele respondeu: “Ela não tem rosto. É um espírito que
procura Deus. Para Mim não é outra coisa, e assim quero que seja para
todos.” E disse aquele “quero” de tal maneira… que eu vos aconselho a não
insistir.
– Eu irei a ela –diz Judas de Keriot.
– Experimenta, se és capaz –diz Pedro, vermelho como um galinho.
– Estás me espionando para Jesus?
– Eu deixo este ofício para aqueles do Templo. Nós, os do lago,
ganhamos o pão com o trabalho, e não com a delação. Não tenhas nunca
medo de nenhuma espionagem feita por Simão de Jonas. Mas não me fiques
provocando e não tomes a liberdade de desobedecer ao Mestre, porque aqui
estou eu…
– E quem és tu? Um pobre homem como eu.
– Sim, senhor. Aliás, mais pobre, mais ignorante, mais grosseiro do que
tu. Eu sei e por isso não fico triste. Eu ficaria triste se fôsse igual a ti no
coração. Mas o Mestre me deu este encargo e eu o cumprirei.
– Igual a mim no coração? E que é que há em meu coração que te cause
repugnância? Fala, acusa, ofende…
– Ora, chega! –disparam o Zelote e o Bartolomeu–. Afinal, para com
isso, Judas. Respeita os cabelos brancos do Pedro.
– Respeito a todos, mas quero saber o que é que há em mim…
– Logo serás atendido… Deixai-me falar… há uma soberba tão grande
que dá para encher esta cozinha; há falsidade e há luxúria.
– Falsidade em mim?
Todos intervêm, e Judas deve calar-se.
121.2 Simão, pacato, diz a Pedro:
– Desculpa-me, amigo, se eu vou te dizer uma coisa. Ele tem seus
defeitos. Mas tu também tens alguns. Um deles é não seres indulgente com
os jovens. Por que é que não levas em conta a idade deles, o nascimento… e
tantas outras coisas? Vê, tu ages por amor a Jesus. Mas não percebes que
estas discussões cansam? A Ele eu não digo (e aponta Judas), mas a ti, que
és maduro e tão honesto, eu faço este pedido. Ele tem tanto desgosto por
causa dos inimigos. Mas nós também lhe damos desgosto!! Há tanta guerra
ao nosso redor. Mas, por que também criar guerras no seu ninho?
– É verdade. Jesus está muito triste, e até emagreceu –diz Judas
Tadeu–. De noite, percebo que Ele fica se virando em sua caminha e
suspirando. Há algumas noites tenho me levantado e vi que estava chorando
e rezando. Eu lhe disse: “Que tens?” E Ele me abraçou e me disse:
“Queiram-me bem. Como é duro ser o ‘Redentor’!”
– Eu também o vi com sinal de pranto, lá no bosque do rio –diz Filipe–.
E ao meu olhar interrogativo, Ele me respondeu: “Sabes o que faz diferente
o Céu da terra, além da diferença da presença não visível de Deus? É a falta
de amor entre os homens. Isso me estrangula como um cabresto. Eu vim
aqui para espalhar grãos aos passarinhos, para ser amado por seres que se
amam.”
Judas Iscariotes (deve estar um pouco desequilibrado) se joga no chão e
chora como um rapazinho.
121.3 Justamente naquele momento, Jesus entra com João:
– Que é que está acontecendo? Por que este choro?
– Foi por culpa minha, Mestre. Errei. Censurei a Judas de um modo
duro demais –diz com franqueza Pedro.
– Não… eu… eu… o culpado sou eu. Eu te causo dor… eu não sou
bom… eu perturbo, causo o mau humor, desobedeço, sou…Pedro tem
razão. Mas ajudai-me, então a ser bom! Porque eu tenho uma coisa, aqui no
coração, que me leva a fazer coisas que eu não queria fazer. É mais forte do
que eu… e causo dor a Ti, a Ti, Mestre, a quem gostaria de dar somente
alegria… Acredita-me! Não é falsidade…
– Está bem, Judas. Não duvido disso. Tu vieste a Mim com toda a
sinceridade de coração, com grande disposição. Mas és jovem… Ninguém,
nem tu mesmo, te conheces como Eu te conheço. Vamos, levanta-te e vem
aqui. Depois falaremos nós dois sozinhos. Por enquanto vamos falar
daquilo para o que me havíeis mandado chamar. Que mal existe em ter
vindo também Mananen? Será que um parente de Herodes não pode ter
sede do Deus verdadeiro? Vós temeis por Mim? Oh, não. Tende fé em
minha palavra. Aquele homem só veio para um fim honesto.
– Por que então, ele não veio apresentar-se? –perguntam os discípulos.
– Precisamente porque ele veio como “alma”, não como irmão colaço
de Herodes. Ele se envolveu no silêncio, porque acha que, diante da palavra
de Deus, o parentesco com um rei não é nada… Nós respeitaremos o seu
silêncio.
– Mas, se ao invés, ele o tivesse mandado?
– Quem? Herodes? Não. Não tenhais medo.
– Quem é então que o manda? Como é que ele te conhece?
– Ora, pelo próprio João, meu primo. Achais que ele, no cárcere, não
falou sobre Mim? Ou então, por meio de Cusa… Ou pela voz da
multidão… Ou pelo mesmo ódio dos fariseus… Até as frondes das árvores
e o ar já falam de Mim. A pedra foi lançada na água imóvel e o bastão bateu
no bronze. As ondas vão-se ampliando cada vez mais, levando às águas
longínquas a revelação, confiando-a aos espaços… A terra aprendeu a dizer
“Jesus” e nunca mais se calará. Ide, e sede corteses para com ele, como com
qualquer outro. Ide. Eu fico com Judas.
Os discípulos vão.
121.4 Jesus olha para Judas, que ainda está lacrimoso e lhe pergunta:
– E então? Não tens nada a dizer-me? Eu sei tudo sobre ti. Mas quero
sabê-lo por ti. Por que este pranto? E sobretudo, por que este desequilíbrio
que te torna sempre tão descontente?
– Oh! Sim, Mestre. É como disseste. Eu, por natureza, sou ciumento.
Certamente Tu o sabes. E sofro por ver que… por ver tantas coisas. Isto me
torna inquieto e… injusto. E me torno mau, quando não queria isso não…
– Não chores de novo! De que é que tens ciúmes? Habitua-te a falar
com a tua verdadeira alma. Tu falas muito, até demais. Mas, com que falas?
Com o instinto e com a mente. Segues um cansativo e contínuo trabalho
para dizer aquilo que queres dizer: falo de ti, do teu eu, porque quanto
àquilo que deves dizer dos outros e aos outros não impões a ti mesmo nem
rédea nem limite. Igualmente não impões rédea nem limite à tua carne. Essa
é o teu cavalo louco. Pareces um cocheiro, ao qual o intendente das corridas
deu dois cavalos loucos. Um é a sensualidade, o outro… queres ouvir qual é
o outro? Sim? É o erro que não queres domar. Tu, um cocheiro capaz, mas
imprudente, confias em tua capacidade e achas que é suficiente. Queres
chegar em primeiro lugar… não perdes tempo em mudar nem ao menos um
dos cavalos. Ao contrário, tu os incitas e os chicoteias. Queres ser “o
vencedor.” Queres o aplauso… Não sabes que toda vitória é certa, quando
conquistada com um trabalho constante, paciente e prudente? Fala com a
tua alma. É dela que Eu quero que venha a tua confissão. Ou devo Eu dizer-
te o que é que tens dentro de ti?
– Eu acho que Tu também não és justo e não és constante, e sofro com
isso.
– Por que me acusas? Em que foi que faltei, aos teus olhos?
– Quando eu queria levar-te aos meus amigos. Tu não quiseste,
dizendo: “Prefiro estar entre os humildes.” Depois, Simão e Lázaro te
disseram que seria bom que te colocasses sob a proteção de um poderoso e
Tu aceitaste. Tu dás preferência a Pedro, a Simão, a João… Tu…
– Que mais?
– Nada mais, Jesus.
– Nuvens!! bolhas na espuma da onda. Tenho pena de ti, porque és um
miserável que te torturas, quando podias alegrar-te. Podes dizer que este
lugar é luxuoso? Podes dizer que não houve uma grande razão que me fez
aceitá-lo? Se Sião tivesse sido menos madrasta com os seus profetas, estaria
Eu aqui, escondido como um que teme a justiça humana, e que se abriga em
um lugar assim?
– Não.
– E então? Podes dizer que não te dei missões como dei aos outros?
Podes dizer que Eu fui áspero para contigo, mesmo quando tu estavas em
falta? Tu não foste sincero… As vinhas!! Oh! As vinhas! Que nome tinham
aquelas vinhas? Tu não foste complacente com quem estava sofrendo e se
redimia. Tu não foste nem respeitoso para Comigo. E os outros viram…
Contudo, uma só voz se levantou em tua defesa e sempre. A minha. Os
outros teriam tido o direito de ficar com ciúmes, porque se havia alguém
sendo protegido, eras tu.
Judas chora, humilhado e comovido.
121.5– Eu vou. É esta a hora em que sou de todos. Tu fica. E medita.
– Perdoa-me, Mestre. Não poderei ter paz, se não tiver o teu perdão.
Não fiques triste por causa de mim. Sou um rapaz mau… Amo e atormento.
Assim sou com minha mãe… Assim Contigo… Assim seria com a esposa,
se amanhã tivesse uma… Melhor seria que eu morresse!!
– Melhor seria que te corrigisses. Mas estás perdoado. Adeus.
Jesus vai saindo e se aproxima da porta.
Do lado de fora está Pedro:
– Vem, Mestre. Já é tarde. E há muita gente. Daqui a pouco, cai a tarde.
E Tu nem comeste ainda… Aquele rapaz é a causa de tudo.
– Aquele “rapaz” precisa de vós todos para não ser mais causa destas
coisas. Vê se te lembras disso, Pedro. Se ele fôsse teu filho, terias
compaixão dele?
– Hum! Sim e não. Eu me compadeceria… mas… também lhe
ensinaria alguma coisa, ainda que ele já fôsse homem, como se faz com um
garoto mau. E, se fôsse meu filho, não seria assim…
– Basta.
– Sim, basta, meu Senhor. Eis lá Mananen. É aquele com o manto
quase preto, de tão vermelho escuro que é. Ele me deu isto para os pobres, e
me perguntou se podia ficar para dormir.
– E o que lhe respondeste?
– A verdade: “Temos camas só para nós. Vai ao povoado.”
Jesus não diz nada. Mas deixa Pedro só, e vai a João, ao qual lhe diz
qualquer coisa.
121.6 Depois volta ao seu lugar e começa a falar.
– A paz esteja com todos vós, e, com a paz, vos venha luz e santidade.
Foi dito: “Não proferir em vão o meu Nome.”
Quando é que se profere em vão esse Nome? Só quando se blasfema?
Não. Também quando o proferimos, sem nos tornarmos dignos de Deus.
Poderá um filho dizer: “Eu amo a meu pai e o honro”, se depois, em tudo
aquilo que o pai deseja dele, ele faz sempre o contrário? Não é dizendo
“pai, pai”, que se ama ao progenitor. Não é dizendo: “Deus, Deus”, que se
ama o Senhor.
121.7 Em Israel onde, como anteontem Eu expliquei, há tantos ídolos no
segredo dos corações, existe também um louvor hipócrita a Deus, louvor ao
qual não correspondem as obras dos louvadores. Em Israel há também uma
tendência: que é a de achar tantos pecados nas coisas exteriores, e não
querer encontrá-los no lugar em que realmente estão, que é nas coisas
interiores. Em Israel há ainda uma estulta soberba, um costume anti-
humano e antiespiritual: o de julgar que seja uma blasfêmia o Nome de
nosso Deus em lábios pagãos, e se chega até a proibir os gentios de se
aproximarem do Deus verdadeiro, julgando que isso seja um sacrilégio.
Isto até agora. A partir de agora, não será mais assim.
O Deus de Israel é o mesmo Deus que criou todos os homens. Por que
impedir que as criaturas sintam atração pelo seu Criador? Pensais vós que
os pagãos não sintam alguma coisa no fundo de seus corações, qualquer
coisa de insatisfação, que grita neles, e os agita, que os leva a procurar?
Procurar a quem? É o Deus desconhecido. E pensais vós que, se um pagão
sente propensão pelo altar do Deus desconhecido, por aquele altar
incorpóreo que é a alma, na qual existe sempre uma lembrança do seu
Criador, pois é a alma que espera ser possuída pela glória de Deus, como o
foi o Tabernáculo erguido por Moisés, segundo a ordem recebida e que
chora, enquanto essa posse não se realiza, pensais que Deus rejeite esse seu
oferecimento, como se rejeita uma profanação? Pensais que seja pecado o
ato suscitado por um honesto desejo da alma que, despertada por apelos
celestes, diz: “Eu vou” ao Deus que diz: “Vem”, e que seja santidade o
corrompido culto de um de Israel, que oferece ao Templo aquilo que sobra
de seus prazeres, e vai à presença de Deus e profere seu Nome, Puríssimo,
com uma alma e um corpo, onde pululam as culpas como uma grande
quantidade de vermes?
Não. Em verdade Eu vos digo que sacrilégio máximo está naquele
israelita que, com a alma impura, pronuncia em vão o Nome de Deus. Esse
Nome é pronunciado em vão, quando (e vós não sois tolos), pelo estado de
vossa alma, sabeis que o estais pronunciando inutilmente. Oh! Eu estou
vendo o rosto indignado de Deus, que se vira, desgostoso, para o outro lado,
quando um hipócrita o chama, quando um impenitente o nomina! E fico
horrorizado, até Eu que não mereço aquela ira divina.
121.8 Leio em mais de um coração este pensamento: “Mas então, com
exceção dos pequeninos, ninguém poderá chamar Deus? Porque tudo no
homem é impureza e pecado.” Não. Não digais assim. É pelos pecadores
que aquele Nome há de ser invocado. É por aqueles que se sentem
estrangulados por satanás e que querem livrar-se do pecado e do Sedutor.
Eles querem. Eis o que transforma o sacrilégio em um rito. Querer ficar
curado. Chamar o Poderoso para ser perdoado e para ser curado. Invocá-lo,
para pôr o Sedutor em fuga.
Foi dito no Gênesis que a Serpente tentou Eva na hora em que o Senhor
não estava passeando no Éden. Se Deus tivesse estado no Éden, satanás não
teria podido estar lá. Se Eva tivesse invocado Deus, satanás teria fugido.
Tende sempre no coração este pensamento. E, com sinceridade, invocai o
Senhor. Aquele Nome é salvação.
Muitos de vós querem descer para se purificarem. Mas purificai o vosso
coração, incessantemente, escrevendo sobre ele com amor a palavra: Deus.
Nada de orações mentirosas. Nada de práticas habituais. Mas com o
coração, com o pensamento, com os atos, com todo o vosso próprio ser,
dizei aquele Nome: Deus. Dizei-o para não ficardes sozinhos. Dizei-o para
serdes sustentados. Dizei-o para serdes perdoados.
Compreendei o significado da palavra do Deus do Sinai. “Em vão” quer
dizer a pronúncia da palavra “Deus”, sem mudança para o bem. E, nesse
caso, é pecado. Mas ela não é “em vão”, quando como a pulsação do sangue
no coração, cada minuto do vosso dia, cada vossa ação honesta, cada
necessidade, tentação, dor, trazer de novo aos vossos lábios a filial palavra
de amor: “Vem, meu Deus!” Então, em verdade não cometeis pecado, ao
proferirdes o Nome santo de Deus.
Ide. A paz esteja convosco.
121.9 Não há nenhum doente. Jesus fica com os braços cruzados,
encostado à parede, debaixo do telheiro, no qual já caem as sombras. Jesus
olha os que partem montados em seus burrinhos, os que vão depressa para o
rio, por um impulso de purificação, e os que, através dos campos, se
dirigem ao povoado.
O homem vestido de vermelho muito escuro parece incerto sobre o que
há de fazer. Jesus está de olho nele. Finalmente, ele se move e vai para o
seu cavalo, pois ele tem um cavalo branco muito bonito, ornado com um
xaile vermelho, que pende por sob a sela, cheia de brochas.
– Homem, espera-me –diz Jesus e o alcança–. A tarde cai. Tens onde
dormir? Estás vindo de longe? Estás sozinho?
O homem responde:
– Venho de muito longe… e irei… não sei… A algum povoado, se
encontrar… se não… a Jericó… Lá deixei a escolta, porque não confiava
nela.
– Não. Eu te ofereço a minha cama. Já está pronta. Tens alimento?
– Não tenho nada. Pensava encontrar um lugar mais hospitaleiro…
– Aqui nada falta.
– Nada. Nem mesmo o ódio contra Herodes. Sabes quem sou eu?
– O nome daqueles que me procuram é um só: irmãos em nome de
Deus. Vem. Vamos repartir o pão juntos. Podes abrigar o cavalo naquele
quarto grande. Eu vou dormir ali e tomarei conta dele para ti…
– Não, isto nunca. Eu dormirei ali. Aceito o pão e nada mais. Não irei
pôr o meu corpo sujo onde deitas o teu corpo santo.
– Achas que Eu sou santo?
– Sei que tu és santo. João, Cusa… as tuas obras… as tuas palavras…
O palácio real as ressoa como concha que conserva o rumor dos vagalhões.
Eu costumava ir a João… depois o perdi. Mas ele me havia dito: “Um que é
mais do que eu te recolherá e te elevará.” Não podia ser outro senão Tu. E
vim quando fiquei sabendo onde estavas.
Ficaram sozinhos sob o telheiro. Os discípulos estão cochichando perto
da cozinha e olhando de soslaio.
Zelote está voltando do rio, pois era quem estava batizando hoje,
121.10
acompanhado pelos últimos que foram batizados. Jesus abençoa e depois
diz a Simão:
– O homem é o peregrino que procura abrigo em nome de Deus. E em
nome de Deus o saudamos como amigo.
Simão se inclina, e o homem também. Entram no quarto grande e
Manaém amarra o cavalo na manjedoura. Acorre João, advertido por um
sinal de Jesus, e traz erva e uma ânfora com água. Acorre também Pedro,
com uma pequena candeia de azeite, pois já está escuro.
– Aqui estarei muito bem. Deus vos pague, diz o cavaleiro, e depois
entra, entre Jesus e Simão, na cozinha, que está iluminada por um feixe de
acendalhas[44] que acabaram de pôr no fogo.
Tudo termina.
[44] acendalhas: produtos destinados a facilitar a combustão [N.T.]
122. Os discursos de Águas Belas: Honra
o pai e a mãe. Cura de um hebetado[45].
3 de março de 1945.
122.1 Jesus caminha lentamente para cima e para baixo, ao longo da beira
do rio. O dia deve ter começado a pouco, porque a neblina de uma triste
jornada invernal ainda está estagnada sobre os caniços das margens. Não se
vê ninguém, a perder de vista, em nenhuma das margens do Jordão.
Somente uma névoa baixa, um sussurro da água contra os caniços, um
murmúrio das águas que, com as chuvas caídas nos dias anteriores, estão
um pouco lamacentas, um ou outro pio de pássaros, curto e triste, como
acontece quando já passou a estação dos amores e os penudos estão aflitos,
por causa da estação e do pouco alimento.
Jesus os escuta e parece interessar-se muito pelo pio de um passarinho
que, com a regularidade de um relógio, inclina a cabecinha para o norte e
diz um “chiruit?” lamentoso, depois inclina-a para o sul e repete o seu
interrogativo “chiruit?” sem obter resposta. Finalmente, o passarinho parece
ter tido uma resposta no “chip” que vem da outra beira, e bate as asas,
atravessando o rio, com um pequeno grito de alegria. Jesus faz um gesto,
como para dizer: “Ainda bem!”, depois retoma a sua caminhada.
122.2 – Estou te incomodando, Mestre? –pergunta João, que vem dos
prados.
– Não. Que queres?
– Queria dizer-te… acho que é uma notícia que poderá dar-te um
consolo, e vim logo, também para pedir-te um conselho. Estava varrendo os
nossos quartos, quando chegou Judas de Keriot. Disse-me: “Vou te ajudar.”
Fiquei admirado, porque sempre faz de má vontade até o que lhe é
mandado, quando se trata destes trabalhos humildes… mas não lhe disse
nada mais do que isto: “Oh! Obrigado! Assim acabarei logo e melhor.” Ele
se pôs a varrer e acabamos logo. Então disse: “Vamos ao bosque. Sempre
são os velhos que transportam a lenha. Não está bem. Vamos nós fazer isso.
Eu não sei muito bem como fazê-lo. Mas se me ensinares…” E fomos. E
enquanto eu estava lá amarrando os feixes com ele, me disse: “João, eu
quero te dizer uma coisa.” “Fala”, eu disse. E pensava que ia fazer alguma
crítica. Ao invés, ele me disse: “Eu e tu somos os mais jovens.
Precisaríamos estar mais unidos. Tu tens um pouco de medo de mim, e tens
razão, porque eu não sou bom. Mas, podes crer… eu não faço assim de
propósito. Algumas vezes tenho necessidade de ser mau. Talvez porque,
como sou filho único, me tenham acostumado mal. E eu gostaria de tornar-
me bom. Os velhos, eu sei, não me olham muito bem. Os primos de Jesus
estão irritados porque… sim, eu tenho faltado muito com eles, e também
para com o primo deles. Mas tu és bom e paciente. Queira-me bem. Faz de
conta que eu seja um teu irmão, mau sim, mas que é preciso amar, ainda
que seja mau. Até o Mestre diz que é preciso fazer assim. Quando vires que
estou fazendo não muito bem as coisas, dize-me. E depois, não me deixes
sempre só. Quando eu vou aos povoados, vem tu também. Ajudar-me-ás a
não fazer o mal. Ontem eu sofri muito. Jesus me falou e eu olhei para Ele.
No meu insípido rancor, eu não olhava nem a mim mesmo, nem aos outros.
Ontem eu olhei e vi… Têm razão aqueles que dizem que Jesus está
sofrendo… e eu sinto que eu também tenho culpa. Não quero mais tê-la.
Vem comigo. Virás? Ajudar-me-ás a ser menos mau?” Assim ele disse, e
eu, confesso, estava com o coração batendo, como aquele de um pardal
seguro por um menino. Batia de alegria, porque tenho prazer que ele se
torne bom, por causa de Ti tenho prazer, e batia também por medo
porque… não queria ficar como é Judas. Mas depois veio em minha mente
tudo que me disseste no dia em que tomaste Judas, e respondi: “Sim, te
ajudarei. Mas devo obedecer e, se as ordens que receber forem outras…”
Pensava: agora vou dizer ao Mestre e se Ele quiser eu o faço, se não quiser,
pedir-lhe-ei que me dê ordem de não ir para longe da casa.
– Escuta, João. Eu te deixo ir. Mas me deves prometer que, se ouvires
alguma coisa que te perturbe, tu venhas dizer a Mim. Tens-me dado tanta
alegria, João. 122.3Eis aqui Pedro com o seu peixe. Vai, João.
Jesus se volta para Pedro:
– Foi boa a pesca?
– Hum! Não muito. Uns peixinhos… Mas tudo bem. Aí está Tiago
resmungando, porque algum animal roeu a corda, e se perdeu uma rede. Eu
disse: “Ele não precisava comer? Tem compaixão pelo pobre animal.” Mas
Tiago não entende assim… –Pedro ri.
– É o que estou falando de um que é irmão. E vós não sabeis fazê-lo.
– Estás falando de Judas?
– Estou falando de Judas. Ele sofre com isso. Tem desejos bons e
tendências perversas. Mas diz-me uma coisa, tu, pescador experiente. Se Eu
quisesse ir de barco pelo Jordão e alcançar o lago de Genezaré, como teria
que fazer? Será que Eu o conseguiria?
– Ah! Seria um trabalhão! Mas o conseguirias, com pequenos barcos de
fundo chato… É cansativo, sabes? E leva tempo! Precisaria estar sempre
medindo a profundidade, estar de olho nas beiras, nos bancos de areia, nas
vegetações flutuantes e na correnteza. A vela, num caso destes, não serve,
ao contrário… Mas queres ir para o lago, seguindo as águas do rio? Olha
que navegar contra a corrente é difícil. É preciso que sejam muitos, se
não…
– Tu o disseste. Quando alguém está viciado, para caminhar rumo ao
Bem precisa ir contra a corrente, e não pode, sozinho, conseguir. Judas é
justamente um destes. E vós não o ajudais. O coitado vai indo rio acima, só,
e bate no fundo, roça os bancos de areia, enreda-se nas vegetações
flutuantes e é arrastado pelos redemoinhos. Por outro lado, se precisar
medir a profundidade, não pode, ao mesmo tempo, segurar a barra do leme
e o remo. Por que, então, censurá-lo, se ele não é capaz de prosseguir?
Tendes piedade dos estranhos, mas dele, vosso companheiro não? Não é
justo. 122.4Estás vendo lá João e ele, que vão ao povoado buscar pão e
verduras? Ele pediu por favor que não o deixe sozinho. E pediu isso a João,
porque não é tolo, e sabe o que vós, mais velhos, pensais a respeito dele.
– E Tu o mandaste? E se João também se estragar?
– Quem? Meu irmão? Por que haverá ele de se estragar? –pergunta
Tiago, que chega, trazendo a rede, que conseguiu apanhar entre os caniços.
– Porque Judas vai com ele.
– Desde quando?
– Desde hoje, e Eu o permiti.
– Então, se Tu o permites…
– Sim, e Eu aconselho, aliás, a todos. Vós o deixais muito só. Não
sejais juízes dele somente. Ele não é pior do que muitos outros. Mas é
viciado desde a infância.
– Sim, deve ser assim. Se tivesse tido por pai e mãe Zebedeu e Salomé,
não seria assim. Meus pais são bons. Mas eles se lembram de que têm um
direito e um dever para com os filhos.
– Falaste bem. Hoje falarei justamente sobre isso. 122.5Agora vamos. Já
vejo pessoas que estão se movimentando pelos prados.
– Eu não sei como haveremos de fazer para viver. Não temos mais hora
de comer, de rezar, de descansar… e o povo sempre aumentando –diz
Pedro, entre admirado e aborrecido.
– E tu ficas aborrecido com isso? Isso é sinal de que ainda existe uma
procura de Deus.
– Sim, Mestre. Mas com isso Tu sofres. Ficaste até sem comer ontem, e
esta noite não terias outra coberta, se não tivesses o teu manto. Se tua Mãe
ficasse sabendo disso!
– Ela bendiria a Deus que me traz tantos fiéis.
– E censuraria a mim, a quem Ela te recomendou –termina Pedro.
Vêm descendo em direção à eles, e gesticulando, Filipe e Bartolomeu.
Veem a Jesus, e apressam o passo, dizendo:
– Oh! Mestre! Como iremos fazer? Vem aí uma verdadeira
peregrinação; doentes, pessoas que choram, pobres sem recursos, e vêm de
longe.
– Compraremos pão. Os ricos nos dão óbolos. É só fazer uso deles.
– Os dias são curtos. O telheiro já está lotado de gente, em bivaques. As
noites são úmidas e frias.
– Tens razão, Filipe. Nós nos apertaremos todos em um quarto grande.
Podemos fazer isso, e prepararemos os outros dois para aqueles que não
podem alcançar as suas casas antes do anoitecer.
– Entendi! Daqui a pouco teremos que pedir aos hóspedes licença para
mudar a veste! Serão tão invasores que nos farão fugir –resmunga Pedro.
– Verás outras fugas, meu Pedro! 122.6Que tem aquela mulher?
Eles já estão na eira e Jesus nota uma mulher chorando.
– Ora! Ela estava aqui ontem também, também chorando. Quando Tu
falavas com Mananen, ela movimentou-se para ir ao teu encontro, mas
depois foi-se embora. Deve morar no povoado, ou perto daqui, porque
voltou. Doente ela não parece estar…
– A paz esteja contigo, mulher –diz Jesus, passando ao lado dela.
E ela responde baixo:
– E Contigo.
Nada mais.
Haverá aí pelo menos trezentas pessoas. Debaixo do telheiro, há coxos,
cegos, mudos; um, muito agitado por um tremor; um jovenzinho,
visivelmente hidrocéfalo, seguro pela mão de um homem, não faz mais do
que ganir, babar-se, sacudir sua cabeçorra, com uma expressão de
hebetismo.
– Será ele filho daquela mulher? –pergunta Jesus.
– Não sei. Simão que cuida dos peregrinos, deve saber.
Chamam o Zelote e lhe interrogam. Mas o homem não está com a
mulher. Ela está sozinha.
– Ela não faz outra coisa, senão chorar e rezar. E, há pouco, ela me
perguntou: “O Mestre cura também os corações?” –explica o Zelote.
– Será alguma mulher traída –comenta Pedro.
Enquanto Jesus vai em direção aos doentes, Bartolomeu com Mateus
vão à purificação com muitos peregrinos.
Em seu canto a mulher chora e não se move.
122.7 Jesus não nega a ninguém o milagre. Belo milagre foi o do
hebetado, no qual Ele infundiu a inteligência, com seu hálito, segurando
depois a cabeçorra entre suas longas mãos. Todos se aglomeram. Também a
mulher velada, talvez porque há muita gente, ousa aproximar-se um pouco,
e se põe perto da mulher chorosa.
Jesus diz ao doente:
– Eu quero em ti a luz da inteligência, para abrir caminho à luz de
Deus. Escuta, diz Comigo: “Jesus.” Diz. Eu quero.
O hebetado, que antes gania como um animal, e não dava mais do que
um ganido, balbucia com dificuldade: “Jesus”, ou melhor, “Jejú.”
– Outra vez –ordena Jesus, continuando a segurar entre as suas mãos
aquela cabeça disforme e dominando-o com o seu olhar.
– Jes-su.
– Outra vez.
– Jesus! –diz finalmente o doente.
E seu olhar já não é mais vazio de expressão, a boca tem um sorriso
diferente.
– Homem –diz Jesus ao pai–. Tu tiveste fé! Teu filho está curado.
Interroga-o. O nome de Jesus é milagre contra as doenças e as paixões.
O homem diz ao filho:
– Quem sou eu?
E o menino:
– O meu pai.
O homem aperta o filho contra o seu coração e explica:
– Ele nasceu assim. Minha esposa morreu no parto e ele era retardado
na mente e na fala. Agora, vê. Eu tive fé, sim. Eu estou vindo de Jope. Que
devo fazer por Ti, Mestre?
– Ser bom. E o teu filho contigo. Nada mais.
– E amar-te. Oh! Vamos logo contá-lo à mãe de tua mãe. Foi ela que me
persuadiu a fazer isto. Bendita seja ela!
Os dois vão felizes. Da passada desventura só ficou a cabeça grande do
menino. A expressão e a palavra são normais.
122.8 – Mas ele foi curado por tua vontade, ou pelo poder do teu Nome? –
perguntam-lhe muitos.
– Pela vontade do Pai, sempre benigno para com o Filho. Mas também
o meu Nome é salvação. Vós o sabeis: Jesus quer dizer Salvador. A
salvação é da alma e do corpo. Quem diz o Nome de Jesus com verdadeira
fé, ressuscita das doenças e do pecado, porque em toda doença espiritual ou
física estão as garras de satanás, o qual cria as doenças físicas para levar as
pessoas à revolta e ao desespero através do sofrimento da carne, e cria as
doenças morais ou espirituais para levar à condenação.
– Então, segundo o teu parecer, em todas as aflições do gênero humano
não deixa de estar atuando Belzebu.
– Não deixa de estar atuando. Por ele é que a doença e a morte entraram
no mundo. Também o delito e a corrupção entraram no mundo por ele.
Quando virdes alguém atormentado por qualquer desventura, pensai
também que ele está sofrendo pela atuação de satanás. Quando virdes que
alguém está sendo causa de desventura, pensai que ele também está sendo
usado como um instrumento de satanás.
– Mas as doenças vêm de Deus.
– As doenças são uma desordem na ordem. Porque Deus criou o
homem são e perfeito. A desordem foi posta por satanás dentro da ordem
dada por Deus, e trouxe consigo as enfermidades da carne e as
consequências das mesmas, ou seja, a morte, ou então as hereditariedades
funestas. O homem herdou de Adão e Eva a mancha de origem. Mas não é
somente ela. E a mancha vai-se alastrando, e tomando conta das três partes
do homem: a carne, sempre mais viciada e por isso, fraca e doente; a moral,
cada vez mais soberba e por isso, corrompida, o espírito, cada vez mais
incrédulo, ou seja, sempre mais idólatra. Por isso, como Eu fiz com aquele
deficiente; é preciso ensinar o Nome que afugenta satanás, esculpi-lo na
mente e no coração, colocá-lo sobre o eu como um selo de propriedade.
– Mas Tu nos possuis? Quem és Tu para te creres tão grande?
– Antes fôsse assim! Mas não é. Se Eu vos possuísse, já estaríeis salvos.
E isto seria o meu direito. Porque Eu sou o Salvador. Mas aqueles que
tiverem fé em Mim, Eu os salvarei.
122.9 – João… (eu estou vindo de parte de João) me disse: “Vai Àquele
que está falando e batizando perto de Efraim e Jericó. Ele tem poder de
ligar e desligar, enquanto que eu só posso dizer-te: faz penitência, para
tornares tua alma ágil a seguir o caminho da salvação”, assim diz um dos
miraculados, que antes se servia de suas muletas, e agora se move expedito.
– E o Batista não sofre, pelo fato de perder a multidão? –pergunta
alguém.
Aquele que tinha falado primeiro, responde:
– Sofrer? Ele diz a todos: “Ide! Ide! Eu sou o astro que desce. Ele é o
astro que sobe e se fixa eterno em seu esplendor. Para não ficardes nas
trevas, ide a Ele, antes que o meu pavio se apague.”
– Os fariseus não falam assim! Eles estão cheios de rancor, porque Tu
atrais as multidões. Estás sabendo disso?
– Eu estou sabendo –responde Jesus em poucas palavras.
Trava-se, então, uma discussão sobre a razão ou semi-razão do modo de
agir dos fariseus. Mas Jesus a interrompe, com um: “Não critiqueis”, que
não admite réplica.
122.10 Voltam Bartolomeu e Mateus com os que foram batizados.
Jesus começa a falar.
– A paz esteja com todos vós.
Estive pensando — posto que agora estais vindo aqui, desde a manhã, e
mais cômodo vos seja partirdes ao meio dia —, em falar-vos de Deus pela
manhã. Pensei também em alojar os peregrinos que não podem voltar para
suas casas no meio da tarde. Eu, por minha vez, sou peregrino e não possuo
senão o mínimo indispensável que me foi dado pela piedade de um amigo.
João tem ainda menos do que Eu. Mas a João se dirigem pessoas sãs ou
simplesmente pouco doentes, encolhidos, cegos, mudos. Mas não os que
estão à morte ou febris, como os que vêm a Mim. Vão a ele pelo batismo da
penitência. A Mim vêm também para a cura de seus corpos. A Lei diz[46]:
“Ama ao teu próximo como a ti mesmo.” Eu penso: como Eu poderia
mostrar que amo os irmãos, se Eu fechasse o meu coração às suas
necessidades, mesmo físicas? E concluo: darei a eles o que me foi dado.
Estendendo a mão aos ricos, pedirei o pão para os pobres, levantando-me da
cama, acolherei nela o cansado e o que sofre.
Somos todos irmãos. E o amor não se prova com palavras, mas com
fatos. Aquele que fecha o coração ao seu semelhante, tem um coração de
Caim. Aquele que não tem amor é um rebelde ao mandamento de Deus.
Somos todos irmãos. Contudo, Eu vejo, e vós vedes, que também no
interior das famílias — lá onde o sangue igual reforça, também com o
sangue e a carne, a irmandade que nos vem de Adão — há ódios e atritos.
Os irmãos estão contra os irmãos, os filhos contra os pais, os esposos,
inimigos um do outro.
Mas, para não serem sempre maus irmãos e esposos adúlteros um dia, é
preciso aprender, desde a primeira idade, o respeito para com a família,
organismo que é o menor e o maior do mundo. O menor, em relação ao
organismo de uma cidade, de uma região, de uma nação, de um continente.
Mas o maior, porque é o mais antigo; porque foi colocado por Deus, quando
ainda o conceito de pátria e de cidade não existia, mas já era vivo e
operante o núcleo familiar, fonte da raça e das raças, pequeno reino no qual
o homem é rei, a mulher a rainha, e súditos os filhos. Poderá um reino ter
duração, se ele tiver divisões e inimigo em cada um dos seus habitantes?
Não pode durar. E, na verdade, uma família não dura, se nela não houver
obediência, respeito, economia, boa vontade, operosidade, amor.
122.11 “Honra o pai e a mãe” –diz o decálogo. Como é que se honra? Por
que devem ser honrados?
Honram-se com uma verdadeira obediência, com um amor justo, com
um respeito confiante, com um temor reverencial, que não impede a
confiança, mas, ao mesmo tempo, não nos faz tratar os maiores, como se
fôssemos servos e inferiores. Devem ser honrados, porque depois de Deus,
os doadores da vida, e de todas as necessidades materiais da vida, os
primeiros mestres, os primeiros amigos do jovem ser, que nasceu sobre a
terra, são o pai e a mãe.
Diz-se: “Deus te abençoe” ou “obrigado” àquele que recolhe um objeto
caído ou nos dá um pedaço de pão. E a estes, que se cansam no trabalho
para nos sustentar, para nos dar nossas vestes e conservá-las limpas, a estes
que se levantam para escrutarem o nosso sono, que sacrificam seu repouso
para cuidar de nossa saúde, que fazem de seus colos um leito para as nossas
mais dolorosas canseiras, não lhes haveremos de dizer, com amor: “Deus te
abençoe”, “obrigado”?
São os nossos mestres. O mestre é temido e respeitado. Mas ele toma
conta de nós, quando já sabemos o indispensável sobre o modo de
comportar-nos, de alimentar-nos e de dizer as coisas essenciais, e ele nos
deixa, quando o mais árduo ensinamento da vida, ou seja, “o viver” nos
deve ainda ser ensinado. E são o pai e a mãe que nos preparam à escola
primeiro e à vida depois.
São os nossos amigos. Mas que amigo pode ser mais amigo do que um
pai? E quem mais amiga do que uma mãe? Podeis tremer, diante deles?
Podeis dizer: “Serei traído por ele, por ela”? Contudo, eis o jovem tolo, e a
moça, mais tola ainda, que se fazem amigos de estranhos, e fecham seus
corações ao pai e à mãe, estragando suas mentes e corações com
relacionamentos que são imprudentes, quando não chegam a ser até
culpáveis, causando lágrimas paternas e maternas, que sulcam como se
fossem gotas de chumbo fundido seus corações paternos. Aquelas lágrimas,
porém, Eu vo-lo digo, não caem no chão nem no esquecimento. Deus as
recolhe e as conta. O martírio de um pai espezinhado receberá um prêmio
do Senhor. Mas o ato do filho, que é o suplício de um pai, tampouco será
esquecido, mesmo quando o pai e a mãe, em seu doloroso amor, suplicam a
piedade de Deus para o filho culpado.
“Honra o pai e a mãe”, se queres viver longos dias sobre a terra, foi
dito. “E eternamente no Céu”, Eu acrescento. Pequeno demais seria o
castigo de viver pouco aqui por ter faltado com os pais! O além não é uma
fábula, e do lado de lá haverá prêmio ou castigo, conforme o modo como
tivermos vivido. Quem falta com seus pais, falta para com Deus, porque
Deus deu para os pais um mandamento de amor, e quem não ama, peca. Por
isso, ele perde mais do que a vida material, perde a verdadeira vida de que
Eu vos falei, e vai ao encontro da morte, pois sua alma está fora da graça do
Senhor, está culpada pelo delito, visto que fere o amor mais santo que há
depois do de Deus, e já traz em si os germes dos futuros adultérios, porque
o filho mau se torna um pérfido esposo, já tem em si os estímulos da
perversão social, porque um filho mau já é o desabrochar de um futuro
ladrão, do truculento e violento assassino, do frio usurário, do libertino
sedutor, do gozador cínico, do repugnante traidor da pátria, dos amigos, dos
filhos, da esposa, de todos. E podereis ter estima e confiança em quem foi
capaz de trair o amor de uma mãe e de zombar dos cabelos brancos de um
pai?
122.12 Porém, ouvi ainda: Aos deveres dos filhos corresponde um dever
igual dos pais. Maldição ao filho culpado! Mas maldição também ao
culpado pai. Fazei que os vossos filhos não vos possam criticar, nem imitar
no mal. Fazei-vos amar por um amor dado com justiça e Misericórdia. Deus
é Misericórdia. Os pais, que acima de si só têm a Deus, sejam
misericordiosos. Sede exemplo e conforto para os filhos. Sede paz e guia.
Sede o primeiro amor de vossos filhos. Uma mãe é sempre a primeira
imagem da esposa que nós quereríamos. Um pai, para suas filhas
jovenzinhas, tem o rosto que elas sonham que seu esposo vai ter. Fazei que,
sobretudo, os filhos e as filhas escolham com sabedoria os consortes
recíprocos, pensando na mãe, no pai, e desejando que o seu consorte tenha
o que o pai ou a mãe tem: uma virtude veraz.
Se Eu tivesse que falar até esgotar o argumento, o dia e a noite não
seriam suficientes. Vou abreviá-lo por amor de vós. O resto, que vo-lo diga
o Espírito eterno. Eu jogo a semente, e passo adiante. Mas a semente nos
bons lançará raízes e produzirá espigas. Ide. A paz esteja convosco.
122.13 Os que partem, vão embora rápido. Os que ficam, entram no
terceiro quarto grande e comem pão, ou o que os discípulos lhes oferecem
em nome de Deus. Sobre os rústicos cavaletes foram colocadas tábuas e
palhas e lá podem dormir os peregrinos.
A mulher velada vai embora, com passo rápido, a outra que antes já
chorava, e que continuou chorando enquanto Jesus estava falando,
perambula incerta, mas depois resolve ir embora.
Jesus entra na cozinha para alimentar-se. Mas, mal começa a comer,
batem à porta.
André se levanta, pois está mais perto da porta, e sai para a eira. Fala, e
depois torna a entrar:
– Mestre, uma mulher, aquela que estava chorando, quer falar Contigo.
Ela diz que precisa ir embora, e que deve falar-te.
– Mas, desse modo, quando e como é que o Mestre vai poder comer? –
exclama Pedro.
– Devias ter-lhe dito que viesse mais tarde –diz Filipe.
– Silêncio. Eu comerei depois. Continuai, vós.
Jesus sai. A mulher está lá fora.
– Mestre… uma palavra… Tu disseste… Oh! Vem atrás da casa! É
penoso dizer a minha dor!
Jesus faz-lhe a vontade, sem dizer nada. Só quando estão atrás da casa,
Ele pergunta:
– Que queres de Mim?
– Mestre… eu te ouvi antes, quando estavas falando no meio de nós…
e depois eu te ouvi, quando estavas pregando. Parecia que estavas falando
para mim. Tu disseste que em toda doença física ou moral está satanás… Eu
tenho um filho que está doente no coração. Se ele te tivesse ouvido, quando
falaste dos pais! É o meu tormento! Ele se desviou com maus companheiros
e é… é justamente como Tu dizes… ladrão… em casa, por enquanto,
mas… É rixento… prepotente… Jovem como é, se arruína com luxúrias e
crápulas. Meu marido quer expulsá-lo. Eu… eu sou a mãe… e sofro
mortalmente. Estás vendo como o meu peito está arquejando? É o meu
coração que se despedaça de tanta dor. Desde ontem estou querendo falar-te
porque… espero em Ti, meu Deus. Mas não ousava dizer nada. É tão
doloroso para uma mãe ter que dizer: “Eu tenho um filho cruel!”
A mulher chora, encurvada e angustiada, diante de Jesus.
– Não chores mais. Ele vai ficar curado do seu mal.
– Se ele pudesse ouvir-te, sim. Mas ele não quer ouvir-te. Oh! Ele
nunca ficará são!
– Mas tu não tens fé por ele? Não queres tu por ele?
– E o perguntas a mim? Venho lá da Alta Pereia para pedir-te por ele…
– Então vai. Quando chegares em casa, teu filho virá ao teu encontro,
arrependido.
– Mas, como?
– Como? Pensas que Deus não pode fazer o que Eu peço? Teu filho está
lá. Eu estou aqui. Mas Deus está em toda parte. Eu digo a Deus: “Pai,
piedade por esta mãe.” E Deus trovejará o seu chamado no coração do teu
filho. Vai, mulher. Um dia passarei pelas regiões da tua cidade e tu,
orgulhosa do teu filho homem, virás ao meu encontro junto a ele. E quando
ele estiver chorando sobre os teus joelhos, pedindo-te perdão e contando-te
sua misteriosa luta, da qual saiu com uma alma nova, e te perguntar como
foi que aconteceu aquilo, tu lhe dirás: “É por Jesus que renasceste para o
Bem.” Fala a ele de Mim. Se tu vieste a Mim, é sinal que sabes. Faz que ele
saiba e pense em Mim, para que tenha consigo a força que salva. Adeus.
Paz à mãe que teve fé, ao filho que volta, ao pai contente, à família
recomposta. Vai.
A mulher vai-se em direção ao povoado e tudo termina.
[45] hebetado: Aparvalhado [N.T.]
[46] diz, em: Levítico 19,18.
123. Os discursos de Águas Belas: Não
fornicar. A afronta dos cinco notáveis.
4 de março de 1945.
123.1 Jesus me diz:
– Tem paciência, minha alma, pelo duplo cansaço. É tempo de
sofrimento. Sabes como Eu estava cansado nos últimos dias? Tu o estás
vendo. No andar me apoio em João, a Pedro, em Simão, também em
Judas… Sim. E Eu, que emanava milagre, só roçando com as minhas
vestes, não pude mudar aquele coração! Deixa que Eu me apoie em ti,
pequeno João, para repetir as palavras já ditas nos últimos dias, àqueles
persistentes obtusos, sobre os quais o anúncio do meu tormento escorria,
sem penetrar. E deixa também que o Mestre preencha as suas horas de
pregação na triste planície das Águas Belas. E Eu te abençoarei duas vezes.
Pelo teu cansaço e pela tua piedade. Enumero os teus esforços, recolho as
tuas lágrimas. Aos esforços por amor dos irmãos será dada a recompensa
daqueles que se consomem para tornar Deus conhecido aos homens. Às
tuas lágrimas pelo meu sofrimento da última semana será dado como
prêmio o beijo de Jesus. Escreve e sê abençoada.
Jesus diz:
140.7
– E com isto termina o primeiro ano de evangelização. Tomai nota
disto. Que vos direi? Eu o dei porque era meu desejo que fôsse conhecido.
Mas assim como com os fariseus, acontece o mesmo com este trabalho. O
meu desejo de ser amado — conhecer é amar — é rejeitado por demasiadas
coisas. E isto é para Mim, uma grande dor, o Mestre eterno ser aprisionado
por vós…
[72] há punição, estando às prescrições de: Levítico 18,6-18.29; 20,17.
Segundo ano
da Vida pública de Jesus.
141. Indo para Arimateia
com os discípulos e com José de Emaús.
19 de abril de 1945.
141.1 – Senhor, que faremos com este? –pergunta Pedro a Jesus,
indicando o homem chamado José, que os segue, desde que deixaram
Emaús e que agora está ouvindo os dois filhos de Alfeu, que se ocupam
particularmente dele.
– Eu já disse. Ele vai conosco até a Galileia.
– E depois??
– Depois… ele fica conosco. Verás que assim vai acontecer.
– Vai ser discípulo, ele também? Depois daquele fato que sucedeu com
ele?
– És fariseu, tu também?
– Eu não! Mas… parece-me que os fariseus estão de olhos em nós até
demais…
– E se eles o veem conosco, vão dar-nos aborrecimentos. Tu queres
dizer isto. E então, pelo medo de sermos perturbados, deveríamos deixar
um filho de Abraão entregue à desolação? Não, Simão Pedro. Ele é uma
alma que se pode perder ou se pode salvar, conforme o modo como for
tratada a sua grande ferida.
– Mas os teus discípulos já não somos nós??
Jesus olha para Pedro e sorri amavelmente. Depois diz:
– Um dia, há muitos meses, Eu te disse: “Muitos outros ainda virão…”
O campo é vasto, muito vasto. Os trabalhadores serão sempre insuficientes,
por causa da vastidão do campo… e também porque muitos farão como
Jonas: morrerão na aspereza do trabalho. Mas vós sereis sempre os meus
prediletos –termina Jesus, puxando para perto de si o perturbado Pedro que,
com esta promessa, se tranquiliza.
– Então ele vai conosco?
– Sim. Até que se fortaleça o seu coração, que está envenenado por
tanto ódio que teve que suportar. Está intoxicado.
Tiago e João, junto com André, alcançam também o Mestre e escutam.
141.2– Vós não podeis avaliar o mal imenso que um homem pode fazer a
outro com a sua intransigência hostil. Eu vos peço que vos recordeis de que
o vosso Mestre sempre foi muito benigno para com os enfermos espirituais.
Vós pensais que os meus maiores milagres e minha principal virtude sejam
manifestados nas curas dos corpos. Não, amigos… Sim, vinde aqui também
vós, que estais na frente e vós que estais atrás de Mim. O caminho é largo e
podemos andar por ele em grupo.
Todos se apertam junto a Jesus, que prossegue:
– As minhas principais obras, as que mais testemunham a minha
natureza e a minha missão, que são olhadas com alegria pelo meu Pai, são
as curas dos corações, sejam elas curas de um ou mais vícios capitais, sejam
desolações que abalam aqueles que se persuadiram de que estão sendo
punidos por Deus, abandonados por Deus.
Uma alma que perdeu esta certeza da ajuda de Deus, que é ela ainda? É
como uma trepadeira mirrada, que se arrasta no pó, não podendo mais
agarrar-se à ideia que era a sua força e a sua alegria. Viver sem esperança é
um horror. A vida, em suas asperezas, é bela, somente porque recebe estes
raios de Sol divino. Esta vida tem como meta aquele Sol. É tétrico o dia
humano, molhado pelo pranto, marcado pelo sangue? Sim. Mas depois
teremos o Sol. Não haverá mais dor, não mais separações, não mais
asperezas, não mais ódios, não mais misérias e solidões nem névoas
opressoras. Mas luminosidade e canto, serenidade e paz, mas Deus. Deus: o
Sol eterno! Olhai como fica triste a terra, quando há um eclipse. Se o
homem tivesse que dizer: “O sol morreu”, não lhe pareceria estar sempre
vivendo em um escuro hipogeu murado, sepultado, morto, antes de morrer?
Mas o homem sabe que, além daquele astro, que esconde o sol e lança um
ar fúnebre sobre o mundo, existe sempre o alegre sol de Deus. Assim é o
pensamento da união com Deus, durante toda a vida. Os homens ferem,
roubam, caluniam? Mas Deus cura, restitui, justifica. E com uma medida
bem cheia. Os homens dizem: “Deus te rejeitou”? Mas a alma tranquila
pensa, deve pensar: “Deus é justo e é bom. Ele vê as causas e é benigno. E
o é ainda mais do que o pode ser o mais benigno dos homens. Ele o é em
grau infinito. Por isso, não, Ele não me rejeitará, se, inclinando o rosto
choroso sobre o seu seio, eu lhe disser: ‘Pai, só tenho a Ti. Teu filho está
aflito e abatido. Dá-me a tua paz…’.”
141.3 Agora Eu, o Enviado por Deus, recolho aqueles que o homem
perturbou, ou que satanás arrastou e os salvo. Eis a minha obra. Esta é
verdadeiramente minha. O milagre sobre o corpo é o poder divino. A
redenção dos espíritos é obra de Jesus Cristo, o Salvador e Redentor. Eu
penso, e não erro, que os que acharam em Mim a sua reabilitação aos olhos
de Deus e aos olhos deles, serão os meus discípulos fiéis, aqueles que com
maior força poderão levar as turbas para Deus, dizendo: “Vós sois
pecadores? Eu também. Estais aviltados? Eu também. Estais desesperados?
Eu também. Contudo, estais vendo? Da minha miséria espiritual o Messias
teve piedade e quis que eu fôsse seu sacerdote, porque Ele é a Misericórdia
e quer que disso o mundo se persuada. E ninguém está mais apto para
persuadir do que aquele que a experimentou em si mesmo.”
Agora, Eu uno estes aos meus amigos e aos meus adoradores desde que
nasci, portanto, a vós e aos pastores. Antes, os uno aos pastores, aos
curados, àqueles que, sem especial escolha, como foi a vossa, dos doze,
colocaram-se no meu caminho e seguiram por ele até à morte. Perto de
Arimateia está Isaque, quem me pediu isso foi o nosso amigo José. Eu
tomarei Comigo o Isaque para que se una ao Timoneo, quando ele chegar.
Se creres que em Mim há paz e meta para toda uma vida, poderás unir-te a
eles. Eles serão para ti bons irmãos.
141.4 – Ó meu Conforto! É mesmo como Tu dizes. As minhas grandes
feridas, tanto de homem, como de homem de crença, estão sendo curadas de
hora em hora. Há três dias que estou Contigo. E parece-me que aquilo que,
há apenas três dias, era o meu tormento, já é um sonho. Eu tive esse sonho.
Mas, quanto mais o tempo passa, mais o sonho se desvanece, diante da
realidade, daqueles contornos que me feriam. Nestas noites tenho pensado
muito. Em Jope tenho um bom parente. Ele foi… a causa involuntária do
meu sofrimento, porque, por meio dele, é que fiquei conhecendo aquela
mulher. E isto já te pode dar uma ideia de se podíamos ou não saber de
quem era filha… Dela, da primeira mulher de meu pai, sim, pode ter sido.
Mas não de meu pai. Tinha outro nome, e tinha vindo de longe. Conheceu o
parente numa troca de mercadorias. E eu a fiquei conhecendo assim. O
parente se interessa muito pelos meus negócios. Eu os oferecerei a ele.
Perder-se-iam, ficando sem dono. Ele os vai adquirir, sem dúvida, também
para não sentir o remorso de ter causado o meu sofrimento. E eu poderei ter
o suficiente e seguir-te tranquilo. Só te peço que me concedas esse Isaque
de que falas. Tenho medo de ficar sozinho com os meus pensamentos. Eles
são ainda muito tristes…
– Eu te darei Isaque. É uma alma boa. A dor o aperfeiçoou. Durante
trinta anos levou a sua cruz. Ele sabe o que é sofrer… Enquanto isso, nós
iremos avante. E nos encontraremos em Nazaré.
– Não pararemos com José, na casa dele?
– José, provavelmente, está em Jerusalém… O Sinédrio tem muito que
fazer. Mas ficaremos sabendo por Isaque. Se ele estiver lá, levar-lhe-emos a
nossa paz. Se não estiver, pararemos uma noite, só para descansar. Tenho
pressa de chegar à Galileia. Lá há uma Mãe que está sofrendo. Porque,
lembrai-vos disso, lá há quem só cuida de afligi-la. E Eu a quero
tranquilizar.
142. Com os doze indo para Samaria.
21 de abril de 1945.
142.1 Jesus está com os seus doze. O lugar continua montanhoso, mas
sendo a estrada suficientemente cômoda, todos estão em grupo e falando
entre eles.
– Porém, agora que estamos sós, podemos dizê-lo: por que tanto ciúme
entre dois grupos? –diz Filipe.
– Ciúme? Não é nada mais do que soberba –rebate Judas de Alfeu.
– Não. Eu digo que é só um pretexto para justificar, de qualquer modo,
a injusta conduta deles para com o Mestre. Sob o véu de um zelo para com
o Batista, consegue-se afastá-lo sem desagradar demais a multidão –diz
Simão.
– Eu os desmascararia.
– Nós, Pedro, faríamos tantas coisas que Ele não faz.
– Por que não as faz?
– Porque sabe que é bom não fazê-las. Nós não temos mais do que
procurar segui-lo. Não nos cabe guiá-lo. E é necessário dar-nos por felizes
com isso. É um grande alívio ter só que obedecer…
– Disseste bem, Simão, diz Jesus que, na frente, parecia ir pensativo.
Disseste bem. Obedecer é mais fácil do que dar ordens. Não parece. Mas é
assim. Certamente isto é fácil quando o espírito é bom. Como é difícil
mandar quando o espírito é reto. Porque se um espírito não é reto, dá ordens
insensatas e mais do que insensatas. Então é fácil dar ordens. Mas… quanto
se torna mais difícil obedecer! Quando alguém tem a responsabilidade de
ser o primeiro de um lugar ou de uma reunião de pessoas, deve ter sempre
presente a caridade e a justiça, a prudência e a humildade, a temperança e a
paciência, a firmeza, mas sem teimosia. Oh! É difícil!! Vós, por enquanto,
não tendes senão que obedecer. A Deus e ao vosso Mestre.
142.2Tu, e não somente tu, perguntas a ti mesmo por que é que Eu faço
ou não faço algumas coisas; perguntas por que Deus permite ou não permite
tais coisas. Vê, Pedro, e vós todos, meus amigos. Um dos segredos do
perfeito fiel está em não arvorar-se nunca em inquiridor de Deus. “Por que
fazes isto?”, pergunta alguém mal formado, ao seu Deus. E parece ter ele
posto as vestes de um adulto sábio diante de um menininho da escola, para
dizer-lhe: “Isto não se faz. É uma tolice. É um erro·” Quem mais do que
Deus?
Agora vós estais vendo como, sob o pretexto de um zelo por João, Eu
fui expulso. E estais escandalizados com isso. E quereríeis que Eu
retificasse o erro, tomando uma atitude polêmica com os defensores desta
causa. Não. Isto não se dará nunca. Ouvistes o que diz o Batista pela boca
dos seus discípulos: “É preciso que Ele cresça e que eu diminua.” Nada de
lamentações nem de apegos à própria posição. O santo não se apega a essas
coisas. Ele trabalha, não pelo número dos “próprios” fiéis. Ele não tem fiéis
próprios. Mas trabalha para aumentar os fiéis a Deus. Somente Deus tem o
direito de ter fiéis. Por isso, assim como Eu não fico amargurado porque,
por boa ou por má fé, alguns continuem como discípulos do Batista,
também ele não se aflige, pois o ouvistes, que alguns discípulos seus
venham a Mim. Ele nem dá importância a estas pequenezas numéricas. Ele
olha para o Céu. E Eu olho para o Céu. Não estejais, portanto, a discutir
entre vós se é justo ou injusto que os judeus me acusem de tomar discípulos
ao Batista, se é justo ou injusto que se deixe que continuem a dizer isso.
Essas são brigas de mulheres faladeiras, ao redor de uma fonte. Os santos se
ajudam, se dão e permutam entre si os espíritos com alegre facilidade,
sorrindo à ideia de trabalhar para o Senhor.
142.3 Eu batizei, ou melhor, vos mandei batizar, porque, tão pesado está o
espírito agora, que é preciso apresentar-lhe formas materiais de piedade,
formas materiais de milagre, formas materiais de escolas. Por causa desse
peso espiritual, deverei recorrer ao auxílio de substâncias materiais, quando
quiser fazer de vós operadores de milagres. Mas, crede que não estará no
óleo, como não na água, como não em outras cerimônias, a prova da
santidade. Está para chegar o tempo no qual uma coisa impalpável,
invisível, inconcebível para os materialistas, será rainha, a rainha ‘que
voltou’, poderosa e santa, de todas as coisas santas e em todas as coisas
santas. Por ela o homem se tornará o ‘filho de Deus’ e operará o que Deus
opera, porque terá Deus consigo.
A Graça. Eis a rainha que volta. Então o batismo será sacramento.
Então o homem falará e compreenderá a linguagem de Deus e dará vida; e
Vida, dará poder de ciência e de poder; então… oh! então! Mas ainda estais
imaturos para saberdes o que a Graça vos concederá. Eu vos peço, ajudai a
sua vinda com a vossa contínua obra de formação de vós mesmos e deixai
as coisas inúteis dos mesquinhos…
142.4 Eis ali os confins da Samaria. Achais vós que faria bem em ir falar
por lá?
– Oh!
Estão todos mais ou menos escandalizados.
– Em verdade, vos digo que os samaritanos[73] estão em toda parte, e se
Eu não devesse falar onde há um samaritano, não deveria mais falar em
lugar nenhum. Portanto, vinde. Não procurarei falar, mas não desprezarei a
ocasião de falar de Deus, se isso me for pedido. Um ano terminou. Começa
o segundo. Ele está a cavaleiro entre o princípio e o fim. No princípio ainda
predominava o Mestre. Agora, eis que se revela o Salvador. O fim terá o
rosto do Redentor. Vamos. O rio vai crescendo, quanto mais se aproxima da
foz. Eu também aumento as obras de Misericórdia, porque a foz já está
perto.
– Vamos para algum grande rio, para lá da Galileia? Talvez para o
Nilo? Ou para o Eufrates? –cochicham alguns.
– Talvez vamos para o meio dos gentios… –respondem outros.
– Não fiqueis falando entre vós. Vamos para a “minha” foz. Ou seja,
para o cumprimento de minha missão. Estai bem atentos, porque depois Eu
vos deixarei e vós devereis continuar em meu nome.
[73] os samaritanos, habitantes da Samaria, eram considerados bastardos e pagãos pelos judeus pela sua descendência impura e
pelo seu cisma, como aparece com frequência na obra mas sobretudo nos cinco capítulos seguintes. O título de samaritanos vinha
por vezes estendido aos romanos enquanto pagãos, como em 110.4, e por desprezo era chamado “samaritano” o próprio Jesus
(como em: 501.4 – 507.10 – 540.7 – 560.6 -645.2). A história do cisma está em: 1 Reis 12-13; 2 Reis 17,24-41; 2 Crônicas 10; e a
raiz do cisma podia considerar-se, como dito em 245.3, o pecado de idolatria de Salomão. A situação nos tempos de Jesus nas
impressões da escritora em 483.1 e nas palavras de um notável samaritano em 484.2. A consideração que Jesus tinha pelos
samaritanos vem expressa na parábola de 281.10, no mandato aos apóstolos em 552.2 e no colóquio com notáveis judeus em
560.4/5.
143. A samaritana Fotinai.
22 de abril de 1945.
143.1 – Eu vou parar aqui. Vós, ide à cidade e comprai o que é preciso
para a refeição. Aqui comeremos.
– Vamos todos?
– Sim, João. É bom que andeis em grupo.
– E Tu? Ficas sozinho… Eles são samaritanos…
– Não serão os piores entre os inimigos do Cristo. Ide, ide. Eu fico
rezando, enquanto vos espero. Rezando por vós e por eles.
Os discípulos lá se vão, a contragosto e por três ou quatro vezes se
viram para olhar Jesus, que sentou-se em um murinho baixo, exposto ao sol
e que está perto da beira baixa e larga de um poço. Um poço grande, quase
uma cisterna, de tão largo. No verão, deve ser sombreado por grandes
árvores, que agora estão despidas. A água não se vê, mas o terreno, perto do
poço, mostra claros sinais das águas que foram tiradas, pelas pequenas
poças e círculos deixados pelas bilhas molhadas.
Jesus assentou-se e está meditando, em sua posição de costume, com os
cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos juntas à frente, o corpo levemente
dobrado e a cabeça curvada para o chão. Depois sente o belo solzinho
aquecê-lo e deixa cair o manto da cabeça e dos ombros, segurando-o,
porém, no regaço.
Levanta a cabeça para sorrir diante de um bando de pardais briguentos,
que estão disputando um grande miolo de pão, perdido por alguém junto ao
poço. Mas os pardais fogem com a chegada inesperada de uma mulher que
vem ao poço com uma ânfora vazia com uma asa segura pela mão esquerda,
enquanto com a direita afasta, num gesto de surpresa, o véu, para ver quem
é o homem que ali está sentado.
Jesus sorri para essa mulher de seus trinta e cinco a quarenta anos, alta,
de traços fortemente marcados, mas belos. Um tipo que diríamos ser quase
espanhol, por causa de sua cor de um pálido oliváceo, de lábios muito
vermelhos e bastante túmidos, os olhos desmesuradamente grandes e pretos
sob sobrancelhas cerradas, e as tranças escuras, que transparecem por baixo
do véu fino. Também as formas, tendentes ao formoso, tem um acentuado
tipo oriental, de uma leve moleza, como a das mulheres árabes. Está vestida
com um vestido de listras multicores, bem justo na cintura, esticado nos
flancos e no peito gorducho, caindo depois em uma espécie de orla
ondulante, até o chão. Tem muitos anéis e pulseiras nas mãos gorduchas e
morenas e nos pulsos que aparecem na parte inferior das mangas de linho.
No pescoço um pesado colar, do qual pendem umas medalhas, eu diria uns
amuletos, porque são de todas as formas. Pesados brincos descem-lhe até o
pescoço e brilham sob o véu.
143.2 – A paz esteja contigo, mulher. Podes dar-me de beber? Caminhei
muito e tenho sede.
– Mas não és Tu judeu? E pedes de beber a mim, samaritana? Então,
que foi que aconteceu? Teremos nós sido reabilitados, ou vós vos dais por
vencidos? Certamente algum grande acontecimento sucedeu, se um judeu
está falando educadamente com uma samaritana. Porém eu deveria dizer-te:
“Não te dou nada, para punir em Ti todas as afrontas que, através dos
séculos, os judeus nos têm feito.”
– Disseste bem. E por ele muitas coisas mudaram e mais serão
mudadas. Deus deu um grande dom ao mundo e por ele muitas coisas se
mudaram. Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é Aquele que te está
dizendo “Dá-me de beber”, talvez tu mesma lhe terias pedido de beber, e
Ele te teria dado água viva.
– A água viva está nos lençóis subterrâneos. Este poço a tem, mas é
nosso.
A mulher é zombeteira e prepotente.
– A água é de Deus. Como a bondade é de Deus. Como a vida é de
Deus. Tudo é de um único Deus, mulher. E todos os homens vêm de Deus,
tanto os samaritanos, como os judeus. Este poço não é o do Jacó[74]? E Jacó
não é a cabeça de nossa estirpe? Portanto, se um erro nos separou, isso não
muda a nossa origem.
– Erro nosso, não é? –pergunta agressiva a mulher.
– Nem nosso, nem vosso. Erro de alguém que havia perdido de vista a
caridade e a justiça. Eu não te ofendo, nem ofendo a tua raça. Por que
queres ser ofensiva?
– És o primeiro judeu que ouço falar assim. Os outros… Mas, quanto
ao poço, sim, é o poço de Jacó e tem uma água tão abundante e clara, que
nós de Sicar o preferimos às outras fontes. Mas ele é muito fundo. Tu não
tens ânfora nem odre. Como, pois, poderias tirar para mim água viva? Serás
mais do que Jacó, o nosso santo patriarca, que achou este abundante lençol
de água para ele, para os seus filhos e seus rebanhos e no-lo deixou como
lembrança e presente dele?
– Tu o disseste. Mas quem bebe desta água, ainda terá sede. Eu, ao
invés, tenho uma água que, quem a beber, não sentirá mais sede. Mas é só
minha. E Eu a darei a quem me pedir. E, em verdade, te digo que quem
tiver a água que Eu lhe der, ficará para sempre coberto de orvalho e não terá
mais sede, porque a minha água se tornará nele nascente certa e eterna.
– Como? Eu não entendo. És um mago? Como pode um homem se
transformar num poço? O camelo bebe e faz sua reserva de água no amplo
ventre. Mas depois a consome e não lhe dura a vida inteira. E Tu dizes que
a tua água dura para a vida toda?
– E mais ainda: ela jorrará até a vida eterna. Estará em quem a bebe,
jorrando até a vida eterna e dará frutos de vida eterna. Porque é uma fonte
de salvação.
– Dá-me dessa água, se é verdade que a possuis. Eu me canso por ter
que vir até aqui. Eu a terei e não terei mais sede, e não ficarei nunca doente,
nem velha.
143.3 – Só disto é que te cansas? Não será de outra coisa? Só sentes
necessidade de apanhar água para beber e para o teu pobre corpo? Pensa
nisso. Existe alguma coisa que é mais do que o corpo. E é a alma. Jacó não
deu a si mesmo e aos seus somente a água do poço. Mas se preocupou em
dar a si mesmo e aos outros a santidade, que é a água de Deus.
– Vós nos chamais de pagãos… Se for verdade isso que dizeis, nós não
podemos ser santos…
A mulher perdeu o tom petulante e irônico e está submissa e levemente
confusa.
– Um pagão também pode ser virtuoso. E Deus, que é justo, o premiará
pelo bem feito. Não será um prêmio completo, mas Eu te digo, entre um fiel
com culpa grave e um pagão sem culpa, Deus olha com menos rigor o
pagão. E, por que vós, sabendo que sois assim, não vindes ao verdadeiro
Deus? Como te chamas?
– Fotinai.
– Pois bem. Responde-me, Fotinai. Tu sentes por não poderes aspirar à
santidade, porque és pagã, como tu dizes, porque estás nas névoas de um
antigo erro, como Eu digo?
– Sim. Eu o sinto.
– E por que então, não vives pelo menos como uma pagã virtuosa?
– Senhor!!
– Sim. Podes negá-lo? Vai chamar o teu marido… e volta aqui com ele.
– Eu não tenho marido…
A confusão da mulher aumenta.
– Disseste bem. Não tens marido. Tiveste cinco homens e agora tens
um contigo, que não é teu marido. Era necessário isto? Tua religião também
não aconselha a impudicícia. Vós também tendes o Decálogo. Por que
então, Fotinai, tu vives assim? Não te sentes cansada dessa fadiga de seres a
carne para tantos e não a mulher honesta de um só? Não ficas com medo da
tua velhice quando te encontrarás sozinha com as tuas lembranças? Com as
saudades? Com os medos? Sim, com estes também. Medo de Deus e dos
fantasmas. Onde estão os teus filhos?
A mulher abaixa totalmente a cabeça e não fala.
– Não os tens nesta terra. Mas as suas pequenas almas, às quais tu
impediste de conhecer a luz do dia, te censuram. Sempre. Joias… belos
vestidos… casa rica… mesa farta… Sim. Mas um vazio e lágrimas, e
miséria interior. És uma desamparada, Fotinai. E somente com um
arrependimento sincero, através do perdão de Deus e, por consequência, do
perdão de teus filhos, podes tornar-te rica.
143.4 – Senhor, eu vejo que és um profeta. E tenho vergonha…
– E do Pai, que está no Céus, tu não tinhas vergonha, quando praticavas
o mal? Não chores por estares aviltada diante do Homem… Vem aqui,
Fotinai. Perto de Mim. Eu te falarei de Deus. Talvez não o conhecias bem.
E por isso, certamente por isso, tu errastes tanto. Se tivesses conhecido bem
o verdadeiro Deus, não estarias aviltada assim. Ele te teria falado e
amparado…
– Senhor, os nossos pais adoravam neste monte. Vós dizeis que só em
Jerusalém é que se deve adorar. Mas Tu o dizes: Deus é um só. Ajuda-me a
ver onde e como devo fazer…
– Mulher, crê em Mim. Dentro em pouco chegará a hora na qual nem
no monte de Samaria, nem em Jerusalém será adorado o Pai. Vós adorais
Aquele a quem não conheceis. Nós adoramos Aquele a quem conhecemos,
porque a salvação vem dos judeus. Eu te lembro os Profetas. Mas vem a
hora, aliás, já começou, na qual os verdadeiros adoradores adorarão o Pai
em espírito e em verdade, não mais com o rito antigo, mas com o novo rito,
no qual não haverá sacrifícios e hóstias de animais consumidos pelo fogo.
Mas o sacrifício eterno da Hóstia imaculada, queimada pelo Fogo da
Caridade. Culto espiritual do Reino espiritual. E será compreendido por
aqueles que saberão adorar em espírito e em verdade. Deus é Espírito.
Aqueles que o adoram devem adorá-lo espiritualmente.
– Tu tens santas palavras. Eu sei, porque alguma coisa nós também
sabemos, que o Messias está para chegar, Aquele que é também chamado
“o Cristo.” Quando Ele vier, nos ensinará todas as coisas. Aqui perto está
também aquele que dizem ser o seu Precursor. Muitos vão ouvi-lo. Mas ele
é tão severo!! Tu és bom… e as pobres almas não têm medo de Ti. Penso
que o Cristo será bom. Dão-lhe o nome de Rei da paz. Tardará muito para
vir?
– Eu te disse que o tempo Dele já chegou.
– Como o sabes? És porventura seu discípulo? O Precursor tem muitos
discípulos. O Cristo também os terá.
– Eu, que te estou falando, sou o Cristo Jesus.
– Tu!! Oh!!
A mulher, que se havia assentado perto de Jesus, levantou-se e quer
fugir.
– Por que queres fugir, mulher?
– Porque tenho horror de ficar perto de Ti. Tu és santo…
– Sou o Salvador. Cheguei até aqui — não era necessário — porque
sabia que a tua alma estava cansada de andar errante. Tu te enjoaste do teu
alimento… Vim para dar-te um alimento novo e que te tirará as náuseas e o
cansaço… 143.5Eis os meus discípulos que já estão voltando com o meu pão.
Mas Eu já estou nutrido, por te ter dado as migalhas iniciais para a tua
redenção.
Os discípulos olham de soslaio, meio dissimuladamente, para a mulher,
mas nenhum fala nada. A mulher se afasta dali, sem mais pensar na água
nem na ânfora.
– Eis, Mestre –diz Pedro–. Eles nos trataram bem. Aqui estão o queijo,
o pão fresco, as azeitonas e as maçãs. Pega o que quiseres. Aquela mulher
fez bem em deixar a ânfora. Faremos mais depressa do que com as nossas
pequenas bolsas. Beberemos e as encheremos. Sem ter que pedir mais nada
aos samaritanos. Nem de irmos às fontes deles. Não comes? Eu quis trazer
peixe para Ti, mas não achei. Talvez gostasses mais. Estás cansado e pálido.
– Eu tenho um alimento que vós não conheceis. Comerei dele. Com ele
me restaurarei bem.
Os discípulos se olham interrogativamente.
Jesus responde a essas perguntas mudas:
– Meu alimento é fazer a vontade Daquele que me enviou e levar a bom
termo a obra que Ele deseja que Eu realize. Quando um semeador lança a
semente, pode, por acaso, dizer que já fez tudo, que já está garantida a
colheita? Realmente, não. Quanto tem ainda que fazer para poder dizer “Eis
o meu trabalho terminado!” E, enquanto não chega aquela hora, não pode
descansar. Olhai para estes pequenos campos, sob o alegre sol da hora
sexta. Faz apenas um mês, até menos de um mês, a terra estava nua e
escura, por ser molhada pelas chuvas. Agora, olhai. Hastes e hastes de trigo,
que mal acabam de aparecer, de um verde muito tênue, exposto à plena luz,
ainda parece mais claro, fazendo que a terra fique como coberta de um fino
véu branquejante. Esta é a futura colheita e vós, vendo-a, dizeis: “Daqui a
quatro meses, vai ser a colheita. Os semeadores irão contratar os ceifeiros,
porque, se um só é suficiente para semear o seu campo, muitos são
necessários para ceifá-lo. E ambos estão contentes. Tanto o que semeou um
saquinho de trigo, e agora precisa preparar os celeiros para recebê-lo, como
aquele que, em poucos dias, ganha com que viver por algum mês.” Também
no campo espiritual, aqueles que vão ceifar o que Eu semeei se alegrarão
Comigo e como Eu, porque Eu lhes darei o meu salário e o fruto devido.
Dar-lhes-ei com que viver no meu Reino eterno. Vós não tereis que fazer
outra coisa, senão ceifar. O trabalho mais duro, Eu já fiz. Contudo vos digo:
“Vinde, ceifai no meu campo. Eu fico contente, se vos carregardes com os
manípulos do meu trigo. Quando todo o meu trigo, que Eu houver semeado
incansavelmente por toda parte, for por vós colhido, então se terá cumprido
a vontade de Deus e Eu me sentarei para o banquete da Jerusalém celeste.”
Eis que chegam os samaritanos com Fotinai. Usai de caridade para com
eles. São almas que vêm a Deus.
[74] Jacó, filho de Isaac e irmão de Esaú. A sua história está em: Gênesis 25,19-34; 26-36; 37,1; 46,1-7; 47,27-31; 48-49; 50,1-
14. Não vem mencionado o seu poço em Samaria cuja existência remonta ao passo de: Gênesis 33, 18-19; Josué 24, 32. Uma vez
por todas reenviamos a Gênesis 28,10-15 pelo sonho ou a escada de Jacó (citados ao menos em: 5.2 – 50.7 – 89.1 – 111.5 – 130.7
– 194.2); a Gênesis 25, 29-34 pela primogenitura vendida por Esaú e Jacó por uma sopa de lentilhas (episódio chamado em: 239.8
– 402.2 – 503.8 – 604.39). Outros reenvios, como o de 364.9, vêm anotados de cada vez. Sobrenominado “Israel” (Gênesis 32,29),
Jacó teve 12 filhos, dos quais descendem as 12 tribos (muitas vezes citadas na obra valtortiana, especialmente em 600.8.24) que
formaram o povo hebraico: os “israelitas”. Não pertence ao livro de Gênesis a profecia da “Estrela de Jacó”, do qual tratamos em
nota a 436.2. – Os reenvios bíblicos sobre Jacó incluem a história de Raquel, mulher recordada muitas vezes (a partir de 27.3)
sobretudo pelo seu sepulcro em Belém. Foi a segunda esposa (depois de Lia, sua irmã mais velha) de Jacó. Uma referência à sua
maternidade em 104.4, às suas virtudes em 300.2, à sua beleza em 525.5.
144. Os samaritanos convidam Jesus em Sicar.
23 de abril de 1945.
144.1 Vêm ao redor de Jesus um grupo de notáveis samaritanos, guiados
por Fotinai.
– Deus esteja Contigo, Rabi. Esta mulher nos disse que és um profeta e
que não te indignas por falar conosco. Nós te pedimos que fiques conosco e
que não nos negues a tua palavra, porque, se é verdade que estamos
separados de Judá, também não está dito que todo Judá seja santo e que o
pecado todo esteja em Samaria. Também entre nós há quem é justo.
– Eu também disse a esta mulher este conceito. Eu não me imponho,
mas também não rejeito a quem me procura.
– Tu és justo. 144.2A mulher nos disse que Tu és o Cristo. É verdade?
Responde-nos em nome de Deus.
– Eu o sou. Os tempos messiânicos chegaram. Israel está sendo reunido
por seu Rei. E não somente Israel.
– Mas Tu serás para aqueles que… que não estão em erro, como nós
estamos, observa um imponente ancião.
– Homem, Eu vejo em ti o chefe de todos estes e também em ti vejo
uma honesta busca da Verdade. Agora escuta, tu que és instruído nas
leituras sagradas. A Mim foi dito aquilo que o Espírito disse[75] a Ezequiel,
quando lhe deu a missão profética: “Filho do homem, Eu te envio aos filhos
de Israel, aos povos rebeldes que se afastaram de Mim… São filhos que têm
uma face dura e um coração indomável… Pode ser que eles se ponham a
ouvir-te e depois não façam conta das tuas palavras, que são minhas, porque
é uma casa rebelde, mas ao menos saberão que no meio deles há um
profeta. Tu, portanto, não tenhas medo deles, que não te espantem os seus
discursos, porque eles são incrédulos e subversivos… Conta a eles as
minhas palavras, seja que eles te derem ouvidos ou não. Tu, faz o que Eu te
digo, escuta o que Eu te digo, para que não sejas rebelde como eles. Por
isso, coma qualquer que seja o alimento que Eu te oferecer.” E Eu vim. Não
me iludo, nem tenho a pretensão de ser acolhido como um triunfador. Mas,
visto que a vontade de Deus é o meu mel, eis que Eu a cumpro e, se
quiserdes, vos direi as palavras que o Espírito colocou em Mim.
– Como pode ter o Eterno pensado em nós?
– Porque Ele é Amor, filhos.
– Os rabis de Judá não dizem assim.
– Mas é assim que vos diz o Messias do Senhor.
[76] que o Messias nasceria de uma virgem de Judá. Tu,
144.3 – Está dito
dequem e como nasceste?
– Nasci em Belém Efrata, de Maria da estirpe de Davi, por obra de uma
concepção espiritual. Crede.
A bela voz de Jesus ressoa com um som claro de alegre triunfo, ao
proclamar a virgindade da Mãe.
– O teu rosto brilha com uma grande luz. Não. Tu não podes estar
mentindo. Os filhos das trevas têm um rosto tenebroso e olhos turbados. Tu
és luminoso; límpidos como uma manhã de abril são os teus olhos, e a tua
palavra é boa. Entra em Sicar, eu te peço, e ensina aos filhos deste povo.
Depois poderás ir… e nós nos lembraremos da Estrela que riscou o nosso
céu…
– E por que não a seguiríeis?
– Como queres que o possamos?
Vão conversando, enquanto se dirigem para a cidade.
– Nós somos os separados. Ao menos assim se diz. Mas já nascemos
nesta fé e não sabemos se é justo deixá-la. Além disso… Sim, Contigo
podemos falar, eu sinto. Além disso, também nós temos olhos para ver e
cérebro para pensar. Quando em viagens ou negócios passamos pelas vossas
terras, nem tudo o que nós vemos é santo, a ponto de persuadir-nos de que
Deus está convosco de Judá, nem convosco da Galileia.
– Em verdade te digo que do fato de não vos ter persuadido nem
reconduzido a Deus, será feita imputação ao resto de Israel, não com as
ofensas e as maldições, mas com o exemplo e a caridade, será feita
imputação ao resto de Israel.
– Quanta sabedoria há em Ti! Estais ouvindo!?
Todos concordam com um murmúrio de admiração.
144.4 Enquanto isso, alcançaram a cidade e muitas outras pessoas se
achegam, enquanto vão-se dirigindo para uma casa.
– Escuta, Rabi. Tu, que és sábio e bom, resolve uma dúvida nossa.
Muito do nosso futuro pode depender disso. Tu, que és o Messias,
restaurador, portanto, do reino de Davi, deves ter alegria em unir de novo
este membro disperso ao corpo do Estado. Não é verdade?
– Não tanto de reunir as partes separadas do que é caduco, quanto de
reconduzir a Deus todos os espíritos, Eu cuido e sinto alegria, quando
restauro a Verdade em um coração. Mas, diz-me qual é a tua dúvida?
– Os nossos pais pecaram. Desde então, as almas de Samaria são
malvistas por Deus. Por isso, que vantagem teremos, se seguirmos o Bem?
Para sempre seremos uns leprosos aos olhos de Deus.
– A vossa é a eterna saudade, o perene descontentamento de todos os
cismáticos. Mas te respondo[77] ainda com Ezequiel: “Todas as almas são
minhas”, diz o Senhor. Tanto a do pai, como a do filho. Mas só morrerá a
alma que tem pecado. Se um homem for justo, se não for idólatra, se não
fornicar, se não roubar nem praticar a usura, se tiver Misericórdia para com
a carne e o espírito dos outros, esse será justo aos meus olhos e viverá a
verdadeira vida. E ainda. Se um justo tiver um filho rebelde, por acaso esse
filho terá a vida, porque o pai era justo? Não terá. E ainda. Se o filho de um
pecador for um justo, morrerá como o pai, por ser filho dele? Não. Vivo
estará com a vida eterna, porque foi justo. Não seria justiça, se um levasse o
pecado do outro. A alma que pecou, morrerá. A que não pecou, não
morrerá. E, se quem pecou se arrepende e vem para a Justiça, eis que ele
também terá verdadeira vida. O Senhor Deus, único e só Senhor, diz: “Eu
não quero a morte do pecador, mas que ele se converta e tenha a Vida.” Para
isso Ele me enviou, ó filhos errantes! Para que tenhais a verdadeira vida. Eu
sou a Vida. Quem crê em Mim e Naquele que me enviou, terá a vida eterna,
ainda que até agora tenha sido pecador.
– Eis-nos à minha casa, Mestre. Não sentes horror de entrar nela?
– Só tenho horror do pecado.
– Então vem, e para um pouco. Partiremos juntos o pão e depois, se não
te for incômodo, Tu partirás para nós a palavra de Deus. Tem um outro
sabor essa palavra, dita por Ti… e nós temos aqui um tormento: o de não
nos sentirmos seguros de estarmos no certo…
– Tudo se acalmaria se tivésseis coragem de ir abertamente à Verdade.
Deus fale em vós, ó cidadãos. Logo desce a tarde. Mas amanhã, à hora
terceira, Eu vos falarei longamente, se o quiserdes. Ide com a Misericórdia
perto de vós.
[75] disse, em: Ezequiel 2,2-8.
[76] Está dito, em: Isaías 7,14; Miqueias 5,1-2.
[77] respondo, como em: Ezequiel 18.
145. O primeiro dia em Sicar.
24 de abril de 1945.
[…].
145.1 Jesus fala a muita gente, do centro de uma praça. Ele subiu sobre o
pequeno banco de pedra, que está perto da fonte. As pessoas estão todas ao
redor Dele. Também ao redor Dele estão os doze, com uns rostos…
consternados ou aborrecidos, ou até mostrando aversão por certos contatos.
Especialmente Bartolomeu e Iscariotes estão mostrando abertamente o seu
incômodo e, para evitar o mais possível a proximidade dos samaritanos,
Iscariotes foi pôr-se a cavalo sobre um galho de árvore, como se quisesse
dominar a cena, enquanto que o Bartolomeu foi encostar-se a um portão, no
canto da praça. O preconceito está vivo e ativo em todos.
Jesus, ao invés, não tem nada de diferente do costume. Aliás, diria que
procura não assustar com a sua majestade, e ao mesmo tempo, procura fazê-
la brilhar, para tirar qualquer dúvida. Acaricia dois ou três pequeninos aos
quais pergunta os seus nomes, se interessa por um velho cego, ao qual dá
pessoalmente o óbolo, responde a duas ou três perguntas que lhe foram
feitas, não sobre coisas de interesse geral, mas particulares.
145.2Uma é a pergunta de um pai a respeito da filha que fugiu por amor e
que agora lhe pede perdão.
– Dá-lhe logo o teu perdão.
– Mas eu sofri com isto, Mestre! E ainda sofro. Em menos de um ano,
envelheci dez anos.
– O perdão te dará alívio.
– Não pode ser. A ferida está aberta.
– É verdade. Mas na ferida há duas pontas que fazem sofrer. Uma é a
inegável afronta que te fez tua filha. A outra é o esforço que fazes para
deixar de amá-la. Tira ao menos esta. O perdão, que é a forma mais alta do
amor, a tirará. Pensa, pobre pai, que aquela criatura nasceu de ti e que tem
sempre o direito ao teu amor. Se tu a visses doente com uma doença da
carne, e soubesse que, se não cuidas dela tu mesmo, morre, a deixarias
morrer? Certamente não. E então, pensa que tu, tu mesmo, com o teu
perdão, podes fazer parar o seu mal e até levá-la a ficar sã em seu instinto.
Porque, vê, nela predominou o lado mais vil da matéria.
– Então dirias que eu devo perdoar?
– Tu o deves.
– Mas como farei para ficar a vê-la em casa, depois do que ela fez, e
não amaldiçoá-la?
– Mas então não a terias perdoado. O perdão não consiste em reabrir-
lhe a porta de tua casa, mas em reabrir-lhe o coração. Sê bom, homem. Por
que não? A paciência que temos com o novilho teimoso, não a teríamos
para com a nossa filha?
145.3 Uma mulher pergunta se está certo que ela se case com o cunhado
para dar um pai aos seus orfãozinhos.
– Achas que ele seria um verdadeiro pai?
– Sim, Mestre. São três filhos homens. É preciso que um homem os
guie.
– Então faz e sê uma mulher fiel, como o foste ao primeiro.
145.4 Um terceiro lhe pergunta se, aceitando o convite que lhe fizeram de
ir para Antioquia, ele fará bem ou mal.
– Homem, por que queres ir para lá?
– Porque aqui não tenho meios para sustentar a mim e aos meus muitos
filhos. Conheci um gentio que me tomaria a seu serviço, porque viu que sou
bom no trabalho e daria trabalho também para os meus filhos. Mas eu não
queria… parecer-lhe-á estranho o escrúpulo de um samaritano, mas eu o
tenho. Eu não queria que perdêssemos a fé. É um pagão aquele homem,
sabes?
– E então? Nada contamina se não se quer ser contaminado. Vai, pois,
para Antioquia e sê do Deus verdadeiro. Ele te guiará e tu serás até o
benfeitor do teu patrão, que conhecerá a Deus, através da tua honestidade.
145.5 Depois, começa a falar a todos.
– Eu ouvi a muitos de vós, e em todos senti que há uma dor secreta,
uma pena, da qual talvez nem vos deis conta, e que vos faz chorar em
vossos corações. Há séculos que ela vem se acumulando e nem as razões
que vós dizeis, nem as injúrias, que se vos fazem, conseguem desfazê-la.
Ao contrário, sempre mais endurece e pesa como a neve que se transforma
em gelo.
Eu não sou um de vós e não sou tampouco um dos que vos acusam. Eu
sou Justiça e Sabedoria. E, para a solução do vosso caso, vos cito ainda
Ezequiel. Ele, profeticamente, fala[78] de Samaria e de Jerusalém,
chamando-as de filhas de um seio e dando-lhes os nomes de Oolá e Oolibá.
A primeira a cair em idolatria foi a primeira, chamada Oolá, porque já
privava da ajuda espiritual, que lhe provinha de sua união com o Pai dos
Céus. A união com Deus sempre é salvação. Trocou a verdadeira riqueza, o
verdadeiro poder, a verdadeira sabedoria pela pobre riqueza, poder e
sabedoria de alguém que era inferior a Deus, ainda mais do que ela, e foi
seduzida a tal ponto, que se tornou escrava do modo de viver desse alguém
que a havia seduzido. Para ser forte, tornou-se fraca. Para ser maior, tornou-
se menor. Por ser imprudente, enlouqueceu. Quando alguém
imprudentemente se contamina com alguma infecção, só pode livrar-se dela
com muito trabalho. Vós direis: “Tornou-se menor? Não. Nós fomos
grandes.” Grandes, sim, mas como? A que preço? Vós o sabeis. Quantas,
mesmo entre as mulheres, conquistam a riqueza pelo preço tremendo de sua
honra! Conquistam uma coisa que pode acabar. E perdem uma coisa que
nunca tem fim: o bom nome.
Oolibá, vendo que a loucura de Oolá lhe tinha trazido riqueza, quis
imitá-la e enlouqueceu mais do que Oolá, e com culpa dobrada, porque ela
tinha consigo o verdadeiro Deus e não deveria nunca ter desprezado a força,
que de tal união lhe provinha. Por isso lhe veio uma dura e tremenda
punição, e maior virá à duplamente louca e fornicadora Oolibá. Deus lhe
virará as costas. Já o está fazendo, para ir àqueles que não são de Judá. E
não se poderá acusar a Deus de ser injusto, porque Ele não se impõe. Abre a
todos os seus braços, a todos convida, mas, se alguém lhe diz: “Vai-te
embora”, Ele se vai. Vai em busca de amor, vai levar seus convites a outros,
até encontrar quem lhe diga: “Eu vou.” Por isso, Eu vos digo que podeis ter
alívio em vosso tormento, e deveis tê-lo, se pensardes nisto.
Oolá, cai em ti mesma! Deus está te chamando. A sabedoria do homem
está em saber reconhecer as próprias faltas, a sabedoria do espírito está em
amar ao Deus verdadeiro e à sua Verdade. Não fiqueis olhando nem para
Oolibá, nem para a Fenícia, nem para o Egito, nem para a Grécia. Olhai
para Deus. Aquela é a Pátria de todos os espíritos retos: o Céu. Não existem
muitas leis. Mas uma só: a de Deus. Por esse código, tem-se a Vida. Não
digais: “Pecamos”, mas dizei: “Não queremos pecar mais.” Que Deus ainda
vos ame, tendes a prova, nisto de ter-vos mandado o seu Verbo para dizer-
vos “Vinde”, tendes a prova. Vinde, vos digo. Sois injuriados e proscritos?
E por quem? Por pessoas semelhantes a vós. Mas Deus é mais do que eles,
e Ele vos diz “Vinde.” Um dia chegará em que vos jubilareis por não terdes
estado no Templo… Com a mente vos jubilareis por isso. Mas ainda mais
se jubilarão os espíritos, porque sobre os retos de coração, espalhados pela
Samaria, já terá descido o perdão de Deus. Preparai a chegada dele. Vinde
ao Salvador universal, ó filhos de Deus que perdestes o Caminho.
145.6 – Mas, pelo menos alguns, nós iremos. São os do outro lado que
não nos querem.
– E ainda com o sacerdote e profeta Eu vos digo[79]: “Eu pegarei a
madeira de José, que está na mão de Efraim, com as tribos de Israel a ele
unidas e a ajuntarei com a madeira de Judá, fazendo de tudo uma só
madeira…” Sim. Não ao Templo. A Mim, vinde. Eu não rejeito. Eu sou
aquele que é chamado o Rei que domina sobre todos. O Rei dos reis sou Eu.
Eu vos purificarei a todos, ó povos que quereis ser purificados. Eu vos
reunirei, ó rebanhos sem pastor, ou com pastores que se fazem ídolos,
porque Eu sou o bom Pastor. Eu vos darei um tabernáculo único e o
colocarei no meio dos meus fiéis. Esse tabernáculo será fonte de vida, pão
de vida, será luz, será salvação, proteção, sabedoria. Tudo será, porque será
o Vivente dado em alimento aos mortos para torná-los vivos, será o Deus
que se derrama com a sua santidade para santificar. Isto Eu sou e serei. O
tempo do ódio, da incompreensão, do temor, está superado. Vinde! Povo de
Israel! Povo separado! Povo aflito! Povo distante! Povo querido, tão
infinitamente querido porque doente, porque enfraquecido, porque esvaído
em sangue por uma flecha que te abriu as veias da alma e dela fez fugir a
união vital com o teu Deus, vem! Vem ao seio do qual nasceste, vem ao
peito do qual te veio a vida. Doçura e calor ainda há aqui para ti. Sempre.
Vem! Vem à Vida e à Salvação.
[78] fala, em: Ezequiel 23.
[79] digo, em: Ezequiel 37,19.
146. O segundo dia em Sicar
e despedida dos samaritanos.
25 de abril de 1945.
146.1 Jesus diz aos samaritanos de Sicar:
– Antes de deixar-vos, porque tenho outros filhos para evangelizar,
quero abrir-vos os caminhos luminosos da esperança e neles colocar-vos,
dizendo: Ide seguros pois a meta é certa. E hoje não vou lançar mão do
grande Ezequiel, mas sim, do discípulo predileto de Jeremias, o grande
profeta.
Baruque fala para vós[80]. Oh! Como realmente ele representa as vossas
almas e fala por todas elas ao Deus sublime que está nos Céus. Às vossas
almas. Não digo somente às dos samaritanos, mas todas as vossas almas, ó
estirpes do povo eleito, que caístes em múltiplos pecados, e representa
também as vossas, ó povos gentios, que percebeis haver um Deus
desconhecido, entre os muitos deuses que adorais, um Deus que a vossa
alma sente que é o Único e Verdadeiro e que o vosso peso vos impede de
procurar, para o conhecerdes, como vossa alma desejaria. Pelo menos uma
lei moral vos havia sido dada, ó gentios, ó idólatras, porque sois homens, e
o homem tem em si uma essência que vem de Deus e que se chama espírito,
a qual tem uma voz e sempre um conselho de elevação, que a impele para
uma vida santa. E vós a obrigastes a tornar-se escrava de uma carne viciosa,
espezinhastes a lei moral humana, que tínheis, e vos tornastes, também
humanamente, pecadores, rebaixando o conceito das vossas crenças e a vós
mesmos, até ao nível da bestialidade, que vos torna inferiores aos brutos.
Contudo, escutai. Ouvi todos. Quanto mais conheceis a Lei de uma
moral sobrenatural que vos foi dada pelo verdadeiro Deus, tanto mais
compreendereis e, por consequência, tanto melhor ireis agir.
146.2 Reza — e esta é a oração que deve estar em vossos corações
humilhados em uma humildade nobre, que não é uma degradação e
indolência, mas sim, o conhecimento exato das próprias miseráveis
condições e o desejo santo de encontrar o meio para melhorá-las
espiritualmente — Baruque reza assim: “Olha para nós, ó Senhor, lá de tua
santa morada, inclina para nós os teus ouvidos e escuta-nos. Abre os olhos e
reflete que não serão os mortos, que estão no inferno, cujos espíritos estão
separados de suas entranhas, os que prestarão honra e justiça ao Senhor,
mas a alma aflita pela grandeza de suas desventuras, que vai andando
encurvada e enfraquecida, com os olhos abatidos. É a alma que tem fome de
Ti, ó Deus, a que te rende glória e justiça.”
E Baruque chora humildemente, e todo justo deve chorar com ele
vendo e chamando com seus verdadeiros nomes as desventuras que têm, de
um povo forte que se tornou um povo triste, dividido e subjugado: “Não
demos ouvido à tua voz e Tu cumpriste as tuas palavras, ditas por meio dos
teus servos, os Profetas… E eis que os ossos dos nossos reis e dos nossos
pais foram tirados dos seus sepulcros e jogados ao calor do sol, ao gelo da
noite, e os cidadãos morreram, entre dores atrozes, ou pela fome, ou pela
espada, ou pela peste. E o Templo, no qual era invocado o teu Nome, Tu o
reduziste ao estado em que hoje se encontra por causa da iniquidade de
Israel e de Judá.”
Oh! filhos do pai, não digais: “Tanto o nosso, como o vosso Templo,
surgiram e ressurgiram, e são belos.” Não. Uma árvore rachada pelo raio,
desde a copa até as raízes, não sobrevive. Poderá vegetar miseravelmente,
com um esforço de vida, dado pelos rebentos nascidos daquelas raízes que
não querem morrer, mas será um espinheiro infrutífero, nunca mais aquela
opulenta árvore, rica de frutos agradáveis e suaves. O desmoronamento,
iniciado com a separação, sempre mais se acentua, não obstante a
construção material não pareça ter sido danificada; antes, pode parecer bela
e nova. Ele destrói aos poucos as consciências que nela moram. Depois
chegará a hora que, apagadas todas as chamas sobrenaturais, faltará ao
Templo altar de metal precioso que, para subsistir, deve ser conservado em
contínua fusão, pelo calor da fé e da caridade de seus ministros — pois isto
é a sua vida — e ele, gelado, apagado, emporcalhado, cheio de mortos,
virará uma podridão, sobre a qual os urubus estrangeiros e a avalanche da
punição divina se arremessarão para fazer dessa construção uma ruína.
Filhos de Israel, rezai, chorando Comigo, vosso Salvador. Que minha
voz sustente as vossas e penetre, pois ela o pode, até o trono de Deus. Quem
reza com o Cristo, Filho do Pai, é ouvido por Deus, Pai do Filho.
Rezemos a antiga e justa oração de Baruque: “E agora, Senhor
Onipotente, ó Deus de Israel, todas as almas angustiadas, todos os espíritos
cheios de ansiedade clamam por Ti. Escuta-os, Senhor, e tem piedade. Tu és
um Deus misericordioso, tem piedade de nós, porque pecamos diante de Ti.
Tu, desde a eternidade, estás sentado e nós deveremos perecer para sempre?
Senhor Onipotente, Deus de Israel, escuta a oração dos mortos de Israel e
dos seus filhos, os quais pecaram diante de Ti. Eles não deram ouvidos à
voz do Senhor seu Deus e em nós pagaram os seus males. Não te lembres
da iniquidade de nossos pais, mas recorda-te do teu poder e do teu Nome…
Para que nós invoquemos esse Nome e nos convertamos da iniquidade de
nossos pais, tem piedade.”
Rezai assim e convertei-vos verdadeiramente, voltando-vos à
verdadeira sabedoria, que é a de Deus e que se encontra no Livro dos
mandamentos de Deus e na Lei que dura para sempre e que agora Eu,
Messias de Deus, vim trazer de novo, em sua forma simples e inalterável,
para os pobres do mundo, anunciando-lhes a boa nova da era da Redenção,
do Perdão, do Amor, da Paz. Quem crer nesta Palavra, alcançará a vida
eterna.
146.3 Eu vos deixo, ó cidadãos de Sicar, que fostes bons para com o
Messias de Deus. Eu vos deixo com a minha paz.
– Fica ainda conosco!
– Volta outra vez!
– Nunca mais ninguém nos falará como nos falaste!
– Sê bendito, bom Mestre!
– Abençoa o meu pequenino.
– Reza por mim, Tu que és santo.
– Deixa que eu conserve uma das tuas franjas como uma bênção.
– Lembra-te do Abel.
– E de mim, Timóteo.
– E de mim, Jorai.
– De todos. De todos. A paz venha sobre vós.
Eles o acompanham até fora da cidade, por algumas centenas de
metros, depois, lentamente voltam para trás…
[80] fala para vós, em Baruc 2,18-18.24-26; 3,1-7.
147. Cura de uma mulher
de Sicar e conversão de Fotinai.
26 de abril de 1945.
147.1 Jesus caminha sozinho, passando rente a uma sebe de cactáceas que,
zombando de todas as outras árvores despidas, brilham ao sol com suas
pazinhas gordas e espinhosas, sobre as quais ficou ainda um ou outro fruto
ao qual o tempo deu uma cor vermelho tijolo e sobre as quais já vêm
sorrindo alguma precoce flor, com seu amarelo pincelado de cinabre.
Atrás, os apóstolos cochicham entre eles, e não me parece que estejam
fazendo propriamente elogios ao Mestre.
O qual, em certo momento, vira-se de repente e diz:
– “Quem olha para os ventos, não semeia e quem fica olhando para as
nuvens, nunca irá fazer a colheita.” É um provérbio[81] antigo. Mas Eu o
sigo. E vós estais vendo que, onde tínheis medo de encontrar ventos
contrários e nem queríeis parar, Eu encontrei terreno e modo de semear. E
não obstante as “vossas” nuvens que, seja-vos dito, não é bom que as
fiqueis mostrando onde a Misericórdia quer mostrar o seu sol, estou certo
de já ter feito uma colheita.
– No entanto, ninguém te pediu um milagre. É uma fé muito estranha a
que eles têm em Ti!
– E crês tu, Tomé, que só o pedido de um milagre já prove que há fé?
Estás enganado. É tudo ao contrário. Quem quer um milagre para poder
crer, é sinal de que, sem o milagre, que é uma prova palpável, ele não
acreditaria. Ao invés, aquele que diz: “Eu creio”, só pela palavra de outrem,
mostra a máxima fé.
– De modo, então, que os samaritanos são melhores do que nós!
– Não digo isto. Mas na condição em que estão de rebaixamento
espiritual, mostraram uma capacidade de entender a Deus muito superior à
dos fiéis da Palestina. Encontrareis isso muitas vezes em vossa vida, e Eu
vos peço, recordai-vos também deste episódio para saberdes controlar-vos,
sem preconceitos para com as almas que virão à fé no Cristo.
– Porém, perdoa Jesus, se eu te digo, parece-me que, com todo o ódio
que já tens atrás de Ti, seja ruim para Ti dar pretextos a novas acusações. Se
os sinedritas soubessem que Tu tiveste…
– Mas diz logo: “amor”, porque isto é o que Eu tive e tenho, Tiago. E
tu, que és meu primo, podes compreender que Eu não posso ter outra coisa,
senão amor. Eu te mostrei que não tenho senão amor, até para com quem
era meu inimigo, entre os do meu sangue e da minha terra. E, deveria Eu,
para com estes que me respeitaram, ainda que não me conhecessem, não ter
amor? Os sinedritas podem fazer todo o mal que quiserem. Mas não há de
ser a consideração desse mal futuro que me fechará as comportas do meu
amor onipresente e onioperante. Além do mais… mesmo que Eu o
fizesse… não impediria ao Sinédrio de, em seu ódio, achar as acusações.
– Mas Tu, Mestre, estás perdendo o teu tempo em uma cidade idólatra,
enquanto tantos lugares em Israel te estão esperando. Tu dizes que todas as
horas devem ser consagradas ao Senhor. E estas horas aqui não estão
perdidas?
– Não é perdida uma jornada, que foi usada para recolher as ovelhas
dispersas. Não é perdida, Filipe. Está dito: “Faz muitas oblações aquele que
respeita a Lei… mas aquele que usa de Misericórdia, oferece um
sacrifício.” Está dito: “Dá ao Altíssimo, na proporção em que Ele te deu e
oferece com olhos alegres, os teus bens.” Assim Eu faço, amigo. E não é
tempo perdido aquele do sacrifício. Eu faço Misericórdia e uso dos bens
que tenho tido, oferecendo o meu trabalho a Deus. Portanto, ficai
tranquilos. 147.2E afinal… Aquele de vós que queria um pedido de milagre,
para persuadir-se de que os habitantes de Sicar creem em Mim, agora vai
ser contentado. Aquele homem certamente nos segue por algum motivo.
Paremos aqui.
De fato, um homem vem avante. Parece estar encurvado sob o peso de
um grande fardo, que ele traz equilibrado nas costas. Vê que o grupo para e
ele para também.
– Ele quer nos atacar. Parou porque viu que nós percebemos a presença
dele. Ah! São samaritanos!
– Tens certeza disso, Pedro?
– Oh! Toda certeza!
– Então parai aqui. Eu vou ao encontro dele.
– Não faças isso, Senhor! Se vais, eu vou também.
– Então vem.
Jesus se dirige para o homem. Pedro vai caminhando aos pulos ao lado
de Jesus, curioso e ao mesmo tempo hostil. Quando estão a poucos metros
do homem, Jesus lhe diz:
– Que queres, homem? Quem procuras?
– A Ti.
– E por que não me procuraste na cidade?
– Não ousava… Se me tivesses rejeitado na presença de todos, eu teria
ficado muito magoado e envergonhado.
– Podias ter-me chamado logo que Eu estivesse sozinho com os meus.
– Eu esperava alcançar-te, quando estivesse sozinho, como aconteceu
com Fotinai. Eu também tenho um grande motivo para ficar sozinho
Contigo…
– Que queres? Que é que estás trazendo nas costas com tanta
dificuldade?
– É a minha mulher. Um espírito tomou posse dela e fez dela um corpo
morto e uma inteligência que se apagou. Tenho que dar-lhe comida na boca,
vesti-la e transportá-la, como se faz com uma criança. Ela ficou assim de
repente, sem ficar doente…Chamam-lhe “a endemoninhada.” Sofro tanto
com ela, me dá trabalho. E despesas. Olha.
O homem põe no chão o seu fardo de carnes inertes, envolvidas em um
manto, como se fôsse um saco, e descobre um rosto de mulher ainda nova,
mas que, se não estivesse respirando, poder-se-ia dizer que estava morta.
Olhos fechados, boca entreaberta… o rosto de alguém que expirou.
Jesus se inclina sobre a infeliz, que está deitada no chão, olha para ela,
olha para o homem:
– Crês tu que Eu o possa? Por que é que crês?
– Porque Tu és o Cristo.
– Mas tu não viste nada que o prove.
– Eu ouvi a tua palavra. Ela basta.
147.3 – Pedro, estás ouvindo? Que dizes que Eu tenha que fazer agora,
diante de uma fé tão boa?
– Mas… Mestre… Tu… Eu… Mas, faz Tu, em suma.
Pedro ficou muito embaraçado.
– Sim. Eu faço. Homem, olha.
Jesus pega pela mão a mulher e ordena:
– Sai dela. Eu quero.
A mulher, até então inerte, tem uma horrível convulsão, primeiro muda
e depois com gritos e lamentos, que terminam com um grande grito, durante
o qual ela abre os olhos, que até aquele momento tinham estado fechados,
arregalando-os, como alguém que desperta de um sono de pesadelo. Depois
se acalma e um pouco atordoada olha ao redor de si, fixando os olhos,
primeiro em Jesus, o Desconhecido que lhe sorri… olha a poeira do
caminho em que está deitada, uma moita de erva que nasceu na beira do
caminho e sobre a qual estão as cabecinhas brancas e vermelhas dos botões
das margaridinhas, ali colocadas como pérolas, que estão para abrir-se
numa auréola… Olha para a sebe de cactáceas, para o céu tão azul, e depois
vira os olhos e vê o seu homem… o seu homem, que a olha ansioso e a
escruta em todos os seus movimentos. Ela sorri, e depois, na completa
liberdade que volta, em um pulo põe-se de pé e vai refugiar-se sobre o peito
do marido que a acaricia e abraça chorando.
– Como? Como é que eu estou aqui? Por quê? Quem é aquele homem?
– É Jesus, o Messias. Tu estavas doente. Ele te curou. Diz a Ele que tu
lhe queres bem.
– Oh! Sim! Obrigada… Mas que é que eu tinha? Os meus meninos…
Simão… eu não me lembro do dia de ontem, mas me lembro que tenho uns
meninos…
Jesus fala:
– Não é preciso que te lembres do dia de ontem. Lembra-te sempre do
dia de hoje. E sê boa. Adeus. Sede bons e Deus estará convosco.
E Jesus, seguido pelas bênçãos dos dois, retira-se rapidamente.
Quando alcança os outros, que ficaram encostados na sebe, não lhes
fala nada. Mas diz a Pedro:
– E agora? Tu que tinhas certeza de que aquele homem queria me
atacar, que dizes? Simão, Simão! Quanto ainda te falta para seres perfeito!
Quanto vos falta! Vós tendes, menos a evidente idolatria, todos os pecados
que estes têm, além da soberba de juízo. Agora vamos tomar a nossa
refeição. Não vamos poder chegar até onde Eu queria, antes que a noite
venha. Dormiremos em algum palheiro, se não acharmos coisa melhor.
Os doze, com o sabor da repreensão no coração, assentam-se em
silêncio e comem seus alimentos.
O sol de um plácido dia ilumina o campo, que desce em suaves
ondulações, em direção à planície.
147.4 Terminada a refeição, ficam parados ainda por algum tempo, até
que Jesus se levanta e diz:
– Vinde tu, André e tu, Simão. Vou ver se aquela casa é amiga ou
inimiga.
E lá se vai, enquanto os outros ficam e permanecem calados, até que
Tiago do Alfeu diz a Judas Iscariotes:
– Mas esta, que vem vindo, não é a mulher de Sicar?
– Sim. É ela. Reconheço-a pela veste. Que quererá ela?
– Ir pelo seu caminho –responde Pedro, amuado.
– Não. Está olhando muito para nós, enquanto protege os olhos com a
mão.
Ficam observando-a, até que ela chega perto e diz, toda submissa:
– O vosso Mestre, onde está?
– Está fora. Por que perguntas por Ele?
– Eu tinha necessidade Dele…
– Ele não se perde com as mulheres –responde secamente Pedro.
– Sei disso. Com as mulheres não. Mas eu sou uma alma de mulher,
que preciso Dele.
– Deixa-a –aconselha Judas do Alfeu.
E responde à Fotinai:
– Espera. Daqui a pouco Ele volta.
A mulher se coloca em um cantinho da estrada, onde há uma curva e
fica lá quieta e em silêncio, enquanto todos deixam de preocupar-se com
ela. Mas Jesus logo volta e Pedro diz:
– Eis o Mestre. Diz-lhe o que queres e sem demora.
A mulher nem lhe responde, mas vai aos pés de Jesus e, calada, se
curva até o chão.
– Fotinai, que queres de Mim?
– A tua ajuda, Senhor. Sou muito fraca. E não quero mais pecar. Eu já
disse isto ao homem. Mas agora, que não sou mais pecadora, não sei mais
nada. O bem eu o ignoro. Que devo fazer? Diz a mim. Eu sou uma lama.
Mas o teu pé pisa nos caminhos para ir atrás das almas. Pisa na minha lama,
mas vem à minha alma com o teu conselho.
E chora.
– Atrás de Mim, mulher sozinha não poderá vir. Mas, se não queres
mesmo pecar mais e conhecer a ciência de não pecar, volta para a tua casa
com espírito de penitência e espera. Virá o dia no qual, mulher entre muitas
outras igualmente redimidas, poderás estar perto do teu Redentor e aprender
a ciência do Bem. Vai. Não tenhas medo. Sê fiel à presente vontade de não
pecar. Adeus.
A mulher beija a poeira, levanta-se e se retira retrocedendo alguns
metros, depois vai-se embora, dirigindo-se para Sicar…
[81] provérbio, que está em: Eclesiastes 11,4; seguem citações de: Ben Sira 35,1-2.9.
148. Jesus visita o Batista perto de Hinon.
27 de abril de 1945.
148.1 Uma clara noite de luar, tão clara, que o terreno se revela em todos
os seus particulares e os campos com o trigo nascido há poucos dias,
parecem tapetes de uma felpa verde prateada, listrados pelas fitas escuras
dos caminhos e vigiados pelos troncos das árvores todos brancos do lado da
lua e todos pretos do lado do poente.
Jesus caminha tranquilo e sozinho. Vai muito rápido, até encontrar um
curso d’água, que desce borbulhante em direção à planície, no sentido
noroeste. Sobe por ele até um lugar solitário, perto de uma encosta cheia de
árvores. Faz uma volta ainda, subindo por um atalho, e chega a um abrigo
natural, num dos lados da colina.
Entra e se inclina sobre alguém que está deitado, e que mal pode ser
visto ao clarão do luar que ilumina o caminho, mas não penetra na caverna.
Jesus o chama:
– João.
O homem desperta e se assenta, ainda ofuscado pelo sono. Mas logo
dá-se conta de Quem é que o está chamando e num pulo põe-se de pé, para
depois prostrar-se por terra, dizendo:
– Como é que veio a mim o meu Senhor?
– Para contentar o teu coração e o meu. Tu me querias ver João. Eis-
me. Levanta-te. Vamos sair para a luz do luar e sentar-nos na pedra que está
junto à caverna para conversarmos.
João obedece, levanta-se e sai. Mas quando Jesus sentou-se, ele, em sua
pele de ovelha, que mal lhe cobre o corpo magríssimo, põe-se de joelhos
diante do Cristo, joga para trás seus cabelos longos e descompostos, que lhe
estavam caindo sobre os olhos, para ver melhor o Filho de Deus.
O contraste é muito forte. Jesus é pálido e loiro, de cabelos macios e
penteados, com uma barba curta por baixo do rosto, e o outro é uma
verdadeira touceira de pelos muito pretos dos quais apenas aparecem dois
olhos encovados, eu diria febris, de tanto que brilham em sua cor negra de
azeviche.
148.2 – Vim para dizer-te “obrigado.” Tu tens cumprido e estás
cumprindo, com a perfeição da Graça que há em ti, a tua missão de meu
Precursor. Quando chegar a hora, entrarás a meu lado no Céu, porque tudo
terás merecido de Deus. Mas, naquela espera, já estarás na paz do Senhor,
meu amigo dileto.
– Bem depressa entrarei na paz. Meu Mestre e Deus, abençoa o teu
servo para fortalecê-lo na última prova. Eu não ignoro que ela já está
próxima e que ainda tenho que dar um testemunho: o sangue. E Tu, mais
ainda do que eu, não ignoras que está para chegar a minha hora. A tua vinda
foi a misericordiosa bondade do teu coração de Deus que a quis, para
fortalecer o último mártir de Israel e o primeiro mártir dos tempos novos.
Mas diz-me uma coisa: terei que esperar muito a tua vinda?
– Não, João. Não muito mais do que o tempo que decorreu do teu ao
meu nascimento.
– Seja bendito o Altíssimo por isso. Jesus… posso dizer-te assim?
– Tu o podes, tanto pelo sangue, como pela santidade. Aquele Nome,
que os pecadores também dizem, pode ser dito pelo santo de Israel. Para
eles é salvação, para ti seja doçura. Que queres de Jesus, teu Mestre e
primo?
– Eu vou morrer. Mas como um pai se preocupa com seus filhos, eu me
preocupo com os meus discípulos. Os meus discípulos… Tu és Mestre e
sabes como para com eles é vivo em nós o amor. A única pena que eu tenho
ao morrer é o temor de que eles se percam, como ovelhas sem pastor.
Recolhe-os, Tu. Eu te entrego os três que já são teus e que me foram
perfeitos discípulos, à espera de Ti. Neles, e especialmente em Matias, está
realmente presente a Sabedoria. Outros tenho. E a Ti virão. Mas a estes,
deixa que eu os confie a Ti pessoalmente. São os três mais queridos.
– E Eu também os considero queridos. Vai tranquilo, João. Eles não se
perderão. Nem estes nem os outros que tens, verdadeiros discípulos. Eu
recolho a tua herança e a velarei como o tesouro mais caro, vindo de
perfeito amigo meu e servo do Senhor.
148.3 João se prostra por terra e, o que parece impossível em tão austero
personagem, chora com fortes soluços de alegria espiritual.
Jesus pousa a mão sobre a cabeça dele.
– O teu pranto, que é de alegria e humildade é o eco de um canto
longínquo, ao som do qual o teu pequeno coração pulou de júbilo. São,
aquele canto e este pranto, o mesmo hino de louvor ao Eterno que “fez
grandes coisas, Ele que é poderoso, nos espíritos humildes.” Também
minha Mãe está para entoar de novo o seu canto, já cantado então. Mas
depois, também para Ela virá a maior glória, como para ti, depois do
martírio. Eu te trago também as saudações Dela. Todas as despedidas e
todos os confortos. Tu o mereces. Aqui não há mais do que a mão do Filho
do homem, que está sobre a tua cabeça, mas, do Céu aberto, desce a Luz e o
Amor a abençoar-te, João.
– Eu não mereço tanto. Eu sou o teu servo.
– Tu és o meu João. Naquele dia, junto ao Jordão, Eu era o Messias que
se manifestava; aqui agora é o primo e o Deus, que te quer dar o viático do
seu amor de Deus e de parente. Levanta-te, João. Demos um ao outro o
beijo de adeus.
– Não mereço tanto… Eu sempre o desejei durante toda a vida. Mas
não ouso fazer este ato sobre Ti. Tu és o meu Deus.
– Sou o teu Jesus. Adeus. A minha alma estará perto da tua até à paz. E
vive e morre em paz quanto aos teus discípulos. Não posso dar-te senão isto
agora. Mas no Céu te darei o cêntuplo, porque achaste graça aos olhos de
Deus.
Jesus o levantou e o abraçou, beijando-o nas faces e sendo por ele
beijado. Depois João se ajoelha ainda e Jesus lhe impõe as mãos sobre a
cabeça e reza com os olhos voltados para o céu. Parece que o está
consagrando. É majestoso.
O silêncio se prolonga assim por algum tempo. Depois Jesus se
despede, com sua doce saudação:
– A minha paz esteja sempre contigo, e retoma o caminho por onde
veio.
149. A herança do Batista. A hora da
morte para os apóstolos. O amor de Deus em
João.
28 de abril de 1945.
149.1 – Senhor, por que não tomas um descanso, de noite? Esta noite, eu
me levantei e não te vi. O teu lugar estava vazio –diz Simão Zelote.
– Por que estavas me procurando, Simão?
– Para ceder-te o meu manto. Temia que Tu estivesses com frio na
noite, que estava serena, mas muito fresca.
– E tu, não estavas com frio?
– Eu me habituei, em muitos anos de miséria, a ficar mal coberto, mal
nutrido e mal alojado… Aquele vale dos mortos!! Que horror! Neste
momento não seria oportuno. Mas numa outra vez que tivermos que ir para
Jerusalém, pois certamente teremos que ir, vai, meu Senhor, para os lados
daqueles lugares de morte. Lá há tantos infelizes… e a miséria corporal não
é a mais grave… O que mais rói lá e consome é o desespero… Não achas,
meu Senhor, que existe dureza demais para com os leprosos?
É Iscariotes quem responde, antes até de Jesus, ao Zelote, que perora
em favor dos seus antigos companheiros. Iscariotes diz:
– E quereria, então, deixá-los no meio do povo? Pior para eles, se são
leprosos!
– Não nos faltaria nada mais do que isto, para fazer dos hebreus uns
mártires. Até a lepra, tendo o seu espaço nas ruas, junto com as milícias e
outras coisas! –exclama Pedro.
– Parece-me que seja uma medida de justa prudência conservá-los
separados –observa Tiago do Alfeu.
– Sim. Mas haveria de ser praticada com piedade. Tu não sabes o que é
ser leproso. Não podes falar. Se é justo ter cuidado com os nossos corpos,
por que não temos a mesma justiça para com as almas dos leprosos? Quem
fala a eles de Deus? E só Deus sabe quanto eles têm necessidade de pensar
em Deus e em uma paz, naquela sua atroz desolação!
– Simão, tens razão. Eu irei a eles. Porque é justo e para ensinar-vos
esta Misericórdia. Até agora, tenho curado os leprosos encontrados por
acaso. Até este momento, ou seja, até o dia em que fui expulso de Judá, Eu
me dirigi aos grandes de Judá, como aos mais afastados e necessitados de
serem redimidos para serem auxiliares do Redentor. Mas agora, convicto da
inutilidade dessa minha tentativa, Eu os abandono. Não aos grandes, mas
aos mínimos, às misérias de Israel é que Eu vou. E entre elas estarão os
leprosos do vale dos mortos. Não decepcionarei a fé que têm em Mim estes
evangelizados pelo leproso reconhecido.
– Como sabes, Senhor, que eu fiz isso?
– Como sei o que pensam de Mim amigos ou inimigos, cujos corações
perscruto.
149.2 – Misericórdia! Mas Tu sabes mesmo tudo de nós, Mestre? –grita
Pedro.
– Sim. Também sei que tu, e não tu somente, querias afastar a Fotinai.
Mas não sabes que não te é lícito afastar uma alma do bem? Não sabes que
para penetrar numa cidade é preciso ser de uma piedade toda doce, até para
com aqueles que a sociedade, que não é santa, porque não está identificada
com Deus, chama e julga indignos de piedade? Mas não te perturbes por Eu
saber estas coisas. Tem, sim, pena de que o teu coração tenha movimentos,
que Deus não aprova e esforça-te para não tê-los mais. Eu vo-lo disse. O
primeiro ano terminou. No ano novo, Eu progredirei, e com novas formas,
pelo meu caminho. Vós deveis no segundo ano também progredir. Se assim
não fosse, seria inútil que Eu me cansasse a evangelizar e a vos
superevangelizar, meus futuros sacerdotes.
149.3 – Tinhas ido rezar, Mestre? Tu nos havias prometido ensinar-nos as
tuas orações. Irás fazê-lo neste ano?
– Eu o farei. Mas quero ensinar-vos a serdes bons. A bondade já é
oração. Mas Eu o farei, João.
– E também a fazer milagres, nos ensinarás neste ano? –pergunta
Iscariotes.
– O milagre não se ensina. Não é um jogo de prestidigitador. O milagre
vem de Deus. Consegue-o quem tem graça junto a Deus. Se aprenderdes a
ser bons, tereis graça e conseguireis milagres.
149.4 – Mas Tu nunca respondes a nossa pergunta. Perguntou Simão,
perguntou João, e nunca nos dizes aonde foste esta noite. Sair assim
sozinho, numa terra pagã, pode ser perigoso.
– Fui fazer feliz uma alma reta e, como era um moribundo, fui receber a
sua herança.
– Sim? Era muita?
– Muita, Pedro, e de muito valor. Era o fruto do trabalho de um
verdadeiro justo.
– Mas… eu não vi nada mais na tua sacola. Serão talvez joias que
trazes no peito?
– Sim. São joias muito queridas ao meu coração.
– Mostra-nos, Senhor!
– Eu as receberei, quando aquele moribundo morrer. Por ora, servem a
ele, e a Mim, deixando-as onde estão.
– Ele as pôs a juros?
– Mas, pensas tu que o que tem valor é só o dinheiro? Este é a coisa
mais inútil e suja que há sobre a terra. E só serve para a matéria, para os
delitos e o inferno. Raramente o homem o usa para o bem.
– Então… se não é dinheiro, o que é?
– Três discípulos formados por um santo.
– Estiveste com o Batista? Oh! Mas por que?
– Por que!! Vós me tendes sempre; e todos vós valeis menos do que
uma só unha do Profeta. Não era justo que Eu fôsse levar ao santo de Israel
a bênção de Deus para fortalecê-lo para o martírio?
– Mas se é santo… não precisa de fortificação. Age por si mesmo!!
– Um dia chegará em que os “meus” santos serão levados aos juízes e à
morte. Serão santos, estarão na graça de Deus, serão confortados pela fé,
pela esperança e pela caridade. Contudo, Eu já estou ouvindo o grito deles,
o grito de seus espíritos: “Senhor, ajuda-nos nesta hora!” Só com a minha
ajuda é que os meus santos serão fortes nas perseguições.
149.5 – Mas… estes não seremos nós, não é? Porque eu não tenho mesmo
a capacidade de sofrer.
– É verdade. Tu não tens a capacidade de sofrer. Mas tu, Bartolomeu,
ainda não foste batizado.
– Eu o fui sim.
– Com a água. Mas falta-te ainda um outro batismo. Só depois é que
saberás sofrer.
– Eu já estou velho.
– E quando muito mais velho, serás mais forte do que um jovem.
– Mas Tu nos ajudarás do mesmo modo, não é verdade?
– Eu estarei sempre convosco.
– Procurarei habituar-me a sofrer –diz Bartolomeu.
– Eu rezarei sempre, desde agora, para receber esta graça de Ti –diz
Tiago do Alfeu.
– Eu estou velho e não peço senão poder ir à tua frente e entrar Contigo
na paz –diz Simão Zelote.
– Eu… nem sei o que quereria: Se ir à tua frente ou estar perto de Ti
para morrer Contigo –diz Judas do Alfeu.
– Eu ficarei pesaroso, se sobreviver a Ti. Mas me consolarei pregando o
teu nome aos povos –professa Iscariotes.
– Eu penso como o teu primo –diz Tomé.
– Eu, ao invés, como Simão, o Zelote –diz Tiago do Zebedeu.
– E tu, Filipe?
– Mas… eu digo que não quero nem pensar nisso. O Eterno me dará o
que for melhor.
– Oh! Calai-vos! Parece que o Mestre vai morrer logo! Não me façais
pensar em sua morte! –exclama André.
– Disseste bem, meu irmão. Estás jovem e são, Jesus. Terás que
sepultar-nos todos, pois somos mais velhos do que Tu.
– E se me matassem?
– Que isso não te aconteça nunca. Mas eu te vingarei.
– Como? Com vinganças de sangue?
– Eh!! Até com elas, se me dás licença. Mas, se não a deres, irei
destruir, com a minha profissão de fé entre os povos as acusações lançadas
contra Ti. O mundo te amará, porque serei incansável em pregar o teu
Nome –termina Pedro.
– É verdade. Assim será. E tu, João? E tu, Mateus?
– Eu devo sofrer e esperar ter, com muito sofrimento, lavado o meu
espírito –diz Mateus.
– E eu… eu não sei. Gostaria de morrer logo, para não te ver sofrer.
Gostaria de estar ao teu lado, para consolar-te na agonia. Gostaria de viver
por longo tempo para servir-te por longo tempo. Gostaria de morrer Contigo
para entrar Contigo no Céu. De tudo isso eu gostaria, porque te amo. E
penso que eu, o menor de meus irmãos, poderei tudo isso, se eu souber
amar-te com perfeição. 149.6Jesus, aumenta em mim o teu amor! –diz João.
– Quererás dizer: “Aumenta o meu amor” –comenta Iscariotes–. Porque
somos nós que devemos amar sempre mais…
– Não. Eu digo: “Aumenta o teu amor.” Porque nós mais amaremos
quanto mais Ele nos queimar com seu amor.
Jesus atrai para perto de si o puro e apaixonado João e o beija na fronte,
dizendo depois:
– Revelaste um mistério de Deus sobre a santificação dos corações.
Deus se derrama sobre os justos e, quanto mais eles se entregam ao seu
amor, mais Ele o aumenta e cresce a santidade. É este o misterioso e
inefável modo de operar de Deus e dos espíritos. Cumpre-se nos silêncios
místicos, e a sua potência, indescritível com palavras humanas, cria
indescritíveis obras-primas de santidade. Não é um erro, mas é uma palavra
sábia esta de pedir que Deus aumente o seu amor em um coração.
150. Em Nazaré na casa da Mãe,
a qual deverá seguir o Filho.
30 de abril de 1945.
150.1 Jesus está sozinho. Caminha ligeiro pela estrada mestra, que passa
perto de Nazaré e entra na cidade, dirigindo-se para a sua casa. Quando está
próximo dela, vê sua Mãe, que por sua vez, também está indo para casa,
tendo a seu lado o sobrinho Simão, que está carregado de feixes de
gravetos. Jesus a chama:
– Mãe!
Maria se vira, exclamando:
– Oh! Meu bendito Filho!
E ambos correm um para o outro, enquanto Simão, tendo colocado no
chão os seus feixes, imita Maria, dirigindo-se para o primo, a quem saúda
cordialmente.
– Minha Mãe, Eu vim. Estás contente agora?
– Muito, meu Filho. Mas… se for só porque eu te pedi é que, eu te digo
que não te é permitido seguir a voz do sangue, mais do que a de tua missão.
– Não, Mãe. Eu vim também para outras coisas.
– Então é verdade mesmo, meu Filho? Eu achava, eu queria achar que
fossem palavras mentirosas e que Tu não fosses odiado tanto…
As lágrimas estão nas palavras e nos olhos de Maria.
– Não chores, Mãe. Não me dês este sofrimento. Eu preciso do teu
sorriso.
– Sim, Filho, sim. É verdade. Tu vês tantos rostos duros de inimigos,
que tens necessidade de muito amor e sorriso. Mas aqui, estás vendo? Aqui
há quem te ama por todos…
Maria, que se apoia levemente no Filho, que a segura abraçada pelas
costas, vai caminhando lentamente para casa, e procura sorrir, para tirar
todo o sofrimento do coração de Jesus.
Simão tornou a apanhar os seus feixes e caminha ao lado de Jesus.
– Estás pálida, Mãe. Fizeram-te sofrer muito? Estiveste doente? Tens-te
cansado muito?
– Não, Filho. Não. Não tive nenhum sofrimento. A única pena foi a de
estares longe e não seres amado. Mas aqui, comigo, todos são muito bons.
Não falo da Maria e do Alfeu; esses Tu sabes que são. Mas até Simão, estás
vendo como ele é bom? É sempre assim. Tem sido a minha ajuda nestes
meses. Agora me abastece de lenha. É muito bom. E José também, sabes?
Tantos pensamentos bondosos para com a sua Maria.
– Deus te abençoe, Simão e também abençoe ao José. E, que ainda não
me ameis como ao Messias, Eu vo-lo perdoo. Oh! Mas vireis ao amor de
Mim, o Cristo! Mas, como poderia Eu perdoar-vos, se não a amásseis?
– Amar Maria é uma justiça e uma paz, Jesus. Mas Tu também és
amado… só que nós tememos muito por Ti.
– Sim. Vós me amais humanamente. Ireis ter o outro amor.
– Mas Tu também, meu Filho, estás pálido e emagrecido.
– Sim. Pareces mais velho. Eu também o estou vendo –observa Simão.
150.2 Entram em casa e Simão, tendo posto os feixes em seu lugar, retira-
se discretamente.
– Filho, agora que estamos sós, diz-me a verdade. Toda a verdade. Por
que foi que te expulsaram?
Maria fala, conservando as mãos sobre os ombros do seu Jesus e olha
fixamente para o seu rosto emagrecido.
Jesus tem um sorriso doce e cansado:
– Porque procurava levar o homem à honestidade, à justiça, à
verdadeira religião.
– Mas quem te acusa? O povo?
– Não, Mãe. Os fariseus e os escribas, com exceção de alguns justos
entre eles.
– Mas que fizeste para atrair as acusações deles?
– Disse a verdade. Não sabes que é o maior erro, junto aos homens?
– E que terão podido dizer para justificar suas acusações?
– Mentiras. As que sabes e outras mais.
– Dize-as à tua Mãe. E põe toda a tua dor no meu seio. Um seio de mãe
está acostumado com a dor, e fica feliz em passar por ela, contanto que
possa tirá-la do coração do filho. Dá-me a tua dor, Jesus. Põe-te aqui, como
quando eras pequenino, e deixa aqui toda a tua amargura.
Jesus se assenta em um banquinho aos pés de sua Mãe e conta tudo o
que aconteceu naqueles meses na Judeia. Sem rancor, mas sem encobrir
nada.
Maria o acaricia nos cabelos, com um heroico sorriso nos lábios que
luta contra o brilho das lágrimas, que estão em seus olhos azuis.
Jesus fala também da necessidade de aproximar-se das mulheres para
redimi-las e o pesar que sente por não poder fazê-lo, devido à maldade
humana.
Maria concorda e depois decide:
– Filho, não me deves negar o que eu quero. De agora em diante, eu irei
Contigo, quando fores para longe. Em qualquer tempo e estação. E em
qualquer lugar. Eu te defenderei da calúnia. Só a minha presença fará cair a
lama. E Maria virá comigo. Ela o deseja muito. Isto se torna necessário
junto do Santo e contra o demônio e o mundo: o coração das mães.
151. Em Caná na casa de Susana, que
se tornará discípula. O oficial do rei.
1 de maio de 1945.
151.1 Talvez Jesus se tenha dirigido para o lago. O certo é que chega a
Caná, e vai até a casa de Susana. Com Ele vão os seus primos.
Enquanto estão naquela casa, onde tomam descanso e refeição, e
enquanto, ouvido como sempre deveria sê-lo, por seus parentes ou amigos
de Caná, Jesus ensina com simplicidade àquelas boas pessoas e consola os
sofrimentos do esposo de Susana — que parece enferma, porque não está
presente e ouço falar insistentemente do seu sofrimento — entra um homem
bem vestido e se prostra aos pés de Jesus.
– Quem és? Que queres?
Enquanto o homem ainda suspira e chora, o dono da casa puxa Jesus
pela orla da veste e lhe sussurra:
– É um oficial do Tetrarca. Não confies muito nele.
– Fala, pois. Que queres de Mim?
– Mestre, eu soube que tinhas voltado. Eu te esperava, como se espera a
Deus. Vai depressa a Cafarnaum. O meu filho está de cama, tão doente, que
as suas horas estão contadas. Eu vi o teu discípulo João. Por ele eu soube
que tinhas vindo aqui. Vai, vai logo, antes que seja tarde demais.
– Como? Tu que és servo do perseguidor do santo de Israel, podes crer
em Mim? Vós não credes no Precursor do Messias. Como, então, podeis
crer no Messias?
– É verdade. Estamos no pecado de incredulidade e de crueldade. Mas
tem piedade de um pai! Eu conheço Cusa. E vi Joana. Antes e depois do
milagre. E acreditei em Ti.
– Sim! Sois uma geração tão incrédula e perversa, que, sem sinais e
prodígios, não acreditais. Falta-vos a primeira qualidade necessária para
obter o milagre.
– É verdade. Tudo isso é verdade! Mas Tu estás vendo… Eu creio em
Ti agora e te peço: vai, vai logo a Cafarnaum. Eu providenciarei para Ti um
barco em Tiberíades, a fim de que possas ir mais rápido. Mas vai, antes que
meu menino morra! –e chora desoladamente.
– Eu não vou, por enquanto. Mas tu, vai para Cafarnaum. A partir deste
momento, o teu filho está curado e vivo.
– Deus te abençoe, meu Senhor. Eu creio. Mas, como quero que toda a
minha família te preste uma homenagem, vai depois à minha casa em
Cafarnaum.
– Irei. Adeus. A paz esteja contigo.
O homem sai com pressa e ouve-se, pouco depois, o trotar de um
cavalo.
151.2 – Mas aquele menino ficou mesmo bom? –pergunta o esposo de
Susana.
– E tu és capaz de crer que Eu esteja mentindo?
– Não, Senhor. Mas Tu estás aqui e o menino está lá.
– Para o meu espírito não há barreiras, nem distâncias.
– Oh! Meu Senhor, que transformaste a água em vinho no meu
casamento, transforma então o meu pranto em sorriso. Cura a minha
Susana.
– Que me darás em troca disso?
– A soma que quiseres.
– Eu não sujo o que é santo com o sangue de Mamon. Pergunto ao teu
espírito o que ele me dará.
– Até a mim mesmo, se quiseres.
– E se Eu te pedisse, sem palavras, um grande sacrifício?
– Meu Senhor, eu te peço a saúde corporal de minha esposa e a
santificação de todos nós. Creio que para obter isso, não posso achar nada
grande demais…
– Tu estás angustiado por causa de tua mulher. Mas, se Eu a fizesse
voltar à vida, conquistando-a para sempre como discípula, que dirias tu?
– Eu diria… que Tu tens o direito de fazer isso… e que… eu imitarei a
Abraão na prontidão ao sacrifício.
– Disseste bem. 151.3Ouvi todos: aproxima-se o tempo do meu sacrifício.
Como uma água ele corre veloz, sem parar, até à foz. Eu preciso cumprir
tudo o que devo cumprir. A dureza humana me vem fechando muitos
campos de missão. Minha Mãe e Maria de Alfeu irão Comigo, quando Eu
for para longe, por entre as populações que não me amam ainda, ou que não
me amarão nunca. Minha sabedoria sabe que as mulheres poderão ajudar o
Mestre nesse campo fechado. Eu vim para redimir a mulher também e, no
século futuro, em meu tempo, ver-se-ão mulheres, semelhantes a
sacerdotisas, servindo ao Senhor e aos servos de Deus. Eu escolhi os meus
discípulos. Mas, para escolher as mulheres, que não estão livres, Eu devo
pedir isso aos pais e aos maridos. Queres tu fazer isso?
– Senhor… eu amo a Susana. E até agora, a tenho amado mais como
carne do que como espírito. Mas com os teus ensinamentos, já alguma coisa
se mudou em mim, e olho para minha mulher como alma, além de que
como corpo. A alma é de Deus e Tu és o Messias, Filho de Deus. Não te
posso contestar o teu direito sobre o que é de Deus. Se Susana quiser
seguir-te, eu não lhe criarei dificuldades. Somente te peço, opera o milagre
de curá-la em sua carne e a mim nos meus sentidos…
– Susana está curada. Dentro de poucas horas, ela virá dizer-te a sua
alegria. Deixa que a alma dela siga o seu impulso, sem falar nada do que Eu
disse agora. Verás como a alma dela virá espontaneamente a Mim, assim
como a chama tem a tendência de subir. Nem por isso morrerá o seu amor
de esposa. Mas se elevará ao mais alto grau, que é aquele de amar-se com a
melhor parte: com o espírito.
– Susana te pertence, Senhor. Ela ia morrer, e lentamente, com fortes
dores. E, uma vez que estivesse morta de fato, a teria perdido nesta terra.
Sendo como Tu dizes, eu a terei ainda ao meu lado para conduzir-me
consigo pelos teus caminhos. Deus deu-a para mim e Deus a tira de mim.
Que o Altíssimo seja bendito, quando dá e quando retém.
152. Maria Salomé é acolhida como discípula.
2 de maio de 1945.
152.1 Jesus está em uma casa que compreendo ser a de Tiago e João, pelo
que estão dizendo os que nela se encontram. Com Jesus, além dos dois
apóstolos, estão Pedro e André, Simão Zelote, Iscariotes e Mateus. Os
outros não os vejo.
Tiago e João estão felizes. Vão e vêm entre a mãe deles e Jesus, como
umas borboletas que não sabem qual a flor que hão de preferir, entre duas
igualmente amadas, e Maria Salomé acaricia os seus dois rapagões, a cada
vez que dela se aproximam, toda contente, enquanto Jesus sorri.
Devem ter acabado de tomar a refeição, porque a mesa ainda está posta.
Mas os dois querem que Jesus coma uns cachos de uva branca, tida em
conserva pela mãe e que deve ser doce como o mel. Que é que eles não
dariam a Jesus!
152.2 Mas Salomé quer dar e receber alguma coisa que seja mais do que
uvas e carícias. E depois de ter parado um pouco, pensativa, olhando para
Jesus e olhando para Zebedeu, decide. Vai ao Mestre, que está sentado com
as costas apoiadas na mesa e ajoelha-se diante Dele.
– Que queres, mulher?
– Mestre, Tu decidiste que tua Mãe e a mãe de Tiago e Judas vão
Contigo e também Susana vai, e certamente também a grande Joana de
Cusa irá. Todas as mulheres que te veneram irão, se qualquer uma pode ir
Eu quereria ir também. Leva-me, Jesus. Eu te servirei com amor.
– Tu tens que cuidar do Zebedeu. Não o amas mais?
– Oh! Se o amo! Mas eu amo mais a Ti. Oh! Não quero dizer que te
amo como homem. Tenho sessenta anos e há quase quarenta que estou
casada, e nunca vi outro homem, que não fôsse o meu. Louca, agora que
sou uma velha, não vou ficar. Nem, porém, pela velhice, morre o meu amor
pelo meu Zebedeu. Mas Tu… Eu não sei falar. Sou uma pobre mulher. Falo
como sei. E é isto, ao Zebedeu eu amo com tudo o que era antes. Mas a Ti
eu amo com tudo aquilo que soubeste fazer vir em mim com as tuas
palavras e com as que me foram ditas por Tiago e por João. E é uma coisa
bem diferente… mas tão bela.
– Não será tão bela como o amor de um ótimo esposo.
– Oh! Não. É o muito mais!! Oh! Não leves a mal, Zebedeu !Eu te amo
ainda com toda mim mesma. Mas a Ele eu amo com alguma coisa que é
ainda Maria, mas que não é mais Maria, a pobre Maria tua esposa, mas é
mais do que isto… Oh! eu nem sei explicar!
Jesus sorri para a mulher, que não quer ofender ao marido, mas não
pode calar-se, diante do seu grande e novo amor. Também o Zebedeu sorri
gravemente, aproximando-se da mulher que, continuando de joelhos, vira-
se sobre si mesma para olhar, ao esposo e a Jesus, alternadamente.
– Mas sabes, Maria, que terás que deixar a tua casa? Tu, que aqui
cuidas de tantas coisas! Os teus pombos… as tuas flores… e esta videira
que produz aquela uva doce de que tanto te orgulhas… e as tuas colmeias,
as mais famosas do povoado… e não mais aquele tear, no qual fizeste tantos
tecidos e tanta lã para os teus queridos… E os netinhos? Como farás, sem
os teus pequenos netos?
– Oh! Mas meu Senhor! Que queres que sejam as paredes, os pombos,
as flores, a videira, as colmeias, o tear? Tudo isso são coisas boas, queridas,
mas tão pequenas, comparadas a Ti e ao amor a Ti?! Os netinhos… é, sim.
Será uma pena não poder fazê-los dormir no colo e ouvir que me estão
chamando… mas Tu és mais! Oh! se és mais do que todas as coisas de que
falaste! E, se elas, mesmo tomadas todas juntas, e por minha fraqueza,
fossem tão queridas como Tu, ou mais do que seguir-te e servir-te, eu,
chorando, as lançaria de lado com lágrimas de mulher, para seguir-te com o
sorriso da minha alma. 152.3Leva-me, Mestre. Dizei isto a Ele, vós, João e
Tiago… e tu, meu esposo. Sede bons. Ajudai-me, vós todos!
– Tudo bem. Irás tu também com as outras. Eu quis fazer-te meditar
bem sobre o passado e o presente, sobre o que vais deixar e sobre o que vais
assumir. Mas vem, Salomé. Já estás madura para entrar na minha família.
– Oh! Madura! Eu sou menos que uma criança! Mas Tu me perdoarás
os erros e me segurarás pela mão. Tu… Porque, grosseira como eu sou, de
tua Mãe e da Joana eu terei muita vergonha. De todos eu terei vergonha.
Menos de Ti. Porque Tu és o Bom e tudo compreendes, de tudo tens pena,
tudo perdoas.
153. As mulheres dos discípulos a serviço de Jesus.
3 de maio de 1945.
153.1 – Que é que tens, Pedro? Pareces estar descontente –pergunta Jesus,
enquanto vai caminhando por uma estradinha do campo, sob ramos floridos
das amendoeiras, que anunciam ao homem que o tempo mais feio terminou.
– Estou pensando, Mestre.
– Estás pensando. Eu vejo. Mas o teu semblante diz que não estás
pensando em coisas alegres.
– Mas Tu, que sabes tudo de nós, já estás sabendo que coisas são.
– Sim. Já sei. Também Deus Pai sabe as necessidades do homem, mas
quer da parte do homem a confiança dele em expor as próprias necessidades
e em pedir ajuda. Eu posso dizer-te que não tens razões para ficares assim
inquieto.
– Então, a minha mulher não é por Ti menos estimada?
– De modo algum, Pedro. E por que haveria de ser? São tantas no Céu
as moradas de meu Pai. São tantas na terra as mansões do homem. E, desde
que sejam santamente feitas, todas são abençoadas. Poderia Eu dizer que
serão malvistas por Deus todas as mulheres que não seguem as Marias e
Susana?
– Não. Pois também minha mulher crê no Mestre, mas não segue o
exemplo das outras –diz Bartolomeu.
– Tampouco a minha com as filhas. Ficam em casa, mas sempre prontas
a dar hospedagem, como fizeram ontem –diz Filipe.
– Creio que minha mãe fará igualmente. Não pode deixar tudo… ela é
sozinha –diz Iscariotes.
– É verdade. É verdade. Eu estava assim triste porque me parecia que a
minha fôsse assim… assim pouco… oh! não sei dizer!
– Não a critiques, Pedro. É uma mulher honesta –diz Jesus.
153.2 – Ela é muito tímida. A mãe dela dominou todas as filhas e noras,
como quem dobra umas palhas –diz André.
– Mas, depois de tantos anos comigo, devia mudar!
– Oh! Irmão! Tu também não és muito doce, sabes? Sobre um tímido,
tu produzes o efeito de uma grossa trave entre as pernas. A minha cunhada
é muito boa e, só já ter suportado com paciência a mãe com a sua ruindade,
e a ti com a tua prepotência, prova o que eu digo.
Riem todos da conclusão tão sem rodeios de André e do rosto admirado
de Pedro, ao ouvir que o chamam de prepotente.
153.3 Jesus também ri, com gosto. Depois diz:
– As mulheres fiéis, que não podem deixar a casa para seguir-me,
servem-me do mesmo modo, ficando em suas casas. Se todas tivessem
querido vir Comigo, Eu teria precisado mandar a algumas que ficassem
onde estavam. Agora que as mulheres vão unir-se a nós, Eu devo pensar
também nelas. Não seria decente, nem prudente que as mulheres ficassem
sem uma morada, andando para cá e para lá. Nós, em qualquer lugar
podemos ficar. A mulher tem outras necessidades e precisa de um abrigo.
Nós podemos ficar numa só enxerga. Elas não poderiam ficar no meio de
nós. Tanto pelo respeito, como pela prudência, por causa da compleição
mais delicada delas. Não se deve nunca tentar a Providência e a natureza,
além dos limites. Agora, Eu farei de todas as casas amigas, onde estiver
uma de vossas mulheres, um abrigo para as suas irmãs. Da tua, Pedro; da
tua, Filipe; da tua, Bartolomeu; e da tua, Judas. Não podemos impor às
mulheres o incessante andar, que nós faremos. Mas as colocaremos à espera
no lugar do reencontro, do qual partiremos todas as manhãs, para voltarmos
todas as tardes. A elas daremos instrução nas horas de descanso, e o mundo
não poderá mais murmurar, se outras infelizes criaturas vierem a Mim, nem
me será impedido poder ouvi-las. As mães e as esposas, que nos seguirem,
serão colocadas como defesa de suas irmãs e de Mim contra a maledicência
do mundo. Vós estais vendo que Eu estou fazendo uma rápida viagem de
saudação por onde tenho amigos ou por onde sei que terei amigos. Isso não
é por Mim. Mas pelas mais fracas entre os discípulos que, com a sua
fraqueza, ampararão a nossa força e a tornarão útil junto a tantas e tantas
criaturas.
– Mas agora vamos para Cesareia, como disseste. E lá quem mora?
– As criaturas que tendem para o verdadeiro Deus estão em todos os
lugares. A primavera já se anuncia neste candor rosado das amendoeiras em
flor. Os dias gelados terminaram. Dentro de poucos dias Eu terei
estabelecido os pontos de etapa e de abrigo para as discípulas e
recomeçaremos, então, nossas viagens, espalhando a palavra de Deus sem
preocupação para com as irmãs, sem medo da calúnia, e a paciência delas
será para vós uma lição e a doçura delas também. Para a mulher também
está chegando a hora de sua reabilitação. De virgens, de esposas e de mães
santas haverá uma grande florada na minha Igreja.
154. Jesus em Cesareia Marítima fala aos galeotes.
O encontro com Claudia Prócula.
Aliviado o cansaço da “porta voz”.
4 de maio de 1945.
154.1 Jesus está no centro de uma praça ampla e muito bonita, que
continua em uma estrada bem larga, quase um prolongamento da praça, até
à beira do mar. Uma galera deve ter deixado, há pouco, o porto e se dirige
para o alto mar, sob o impulso do vento e dos remos. Uma outra está
precisando fazer as manobras para entrar no porto, pois as velas são arriadas
e os remos são usados só de um lado, para que o barco possa ir tomando a
posição mais conveniente. Da praça não se vê o porto. Mas deve estar perto.
Aos lados da praça estão alinhadas grandes casas com seus muros
característicos e que quase não têm aberturas. Não há lojas.
– Aonde vamos agora? Tu quiseste vir aqui, em vez de ir para o lado
oriental e aqui é lugar de pagãos. Quem queres que te fique ouvindo? –
censura Pedro.
– Vamos lá, naquele canto virado para o mar. Lá Eu falarei.
– Às ondas.
– As ondas também foram criadas por Deus.
Eles vão. Agora estão justamente no canto e veem o porto, no qual
entra lentamente a galera vista antes e que está atracando em seu lugar.
Alguns marinheiros estão descansando ao longo do cais. Um ou outro
vendedor de frutas se arrisca a ir até o navio romano para vender suas
mercadorias. E nada mais.
154.2 Jesus com as costas apoiadas num muro, parece estar mesmo
falando às ondas. Os apóstolos, pouco satisfeitos com aquela situação, estão
ao redor Dele, uns de pé, outros sentados, aqui e ali, em umas pedras,
esperando que elas lhes sirvam de bancos.
– Tolo é o homem que vendo-se poderoso, sadio, feliz, diz: “De que
mais eu preciso? E de quem? De ninguém. Nada me falta, eu me basto; por
isso, as leis ou decretos de Deus, ou de moral, para mim não existem. A
minha lei é a de fazer o que eu posso, sem pensar se isso é bem ou mal para
os outros.”
Um vendedor, ouvindo aquela voz sonora, vira-se e vai em direção de
Jesus, que continua:
– Assim fala o homem e assim fala a mulher sem sabedoria e sem fé.
Mas, se com isto mostra que tem alguma força, mais ou menos poderosa,
igualmente denuncia ter um parentesco com o Mal.
Alguns homens descem da galera e de outros barcos e se dirigem para
Jesus.
– O homem mostra, não com palavras, mas com fatos, que tem um
parentesco com Deus e com a virtude, quando reflete que a vida é mais
mutável do que a onda do mar, que agora está plácida e amanhã está
furiosa. Igualmente o bem-estar e o poder de hoje pode amanhã ser miséria
e impotência. E que fará então, o homem privado da união com Deus?
Quantos naquela galera foram um dia alegres e poderosos, e agora são
escravos e considerados réus! Réus, por isso duas vezes escravos: da lei
humana, que inutilmente é escarnecida, porque ela existe e pune os seus
transgressores, e de satanás, que para sempre se apodera do culpado que
não consegue odiar a sua culpa.
154.3 – Salve, Mestre! Como é que estás aqui? Não me conheces?
– Deus venha a ti, Públio Quintiliano. Estás vendo? Eu vim.
– E justamente aqui no bairro romano. Eu não esperava mais ver-te.
Mas tenho prazer em ouvir-te.
– Eu também. Naquela galera há muitos que trabalham com os remos?
– Há muitos. A maior parte são prisioneiros de guerra. Eles te
interessam?
– Eu gostaria de ir para perto daquele navio.
– Vem. Saí daí, vós –ordena aos poucos que se aproximaram e que se
afastam logo, resmungando impropérios.
– Podes deixá-los. Estou acostumado a ser apertado entre o povo.
– Até aqui, eu posso. Não além. A galera é militar.
– Para Mim, basta. Deus te recompense.
Jesus recomeça a falar, enquanto o romano parece estar montando
guarda a seu lado, todo esplêndido em sua veste.
– Fostes feitos escravos por um doloroso acontecimento, ou seja,
escravos uma só vez. Escravos enquanto dura a vida. Mas cada lágrima que
cai nas correntes que vos prendem, cada golpe que desce, escrevendo uma
nova dor em vossas carnes, suaviza o peso das algemas, embeleza o que não
morre, abre, enfim, a porta da paz de Deus, que é amigo dos seus pobres
filhos infelizes e que lhes dará tanta alegria, quanto receberem aqui de dor.
Das amuradas da galera aparecem alguns homens da tripulação, que
estão escutando. Os galeotes, naturalmente, não aparecem. Mas com certeza
estão ouvindo chegar até eles, por todos os buracos das cavilhas, a voz
potente de Jesus, que se espalha pelo ar tranquilo desta hora de maré baixa.
Públio Quintiliano, tendo sido chamado por um soldado, foi embora.
– Eu quero dizer a estes infelizes que Deus ama, que sejam resignados
em sua dor, e que não a considerem mais do que uma chama que bem
depressa vai derreter as correntes da galera e da vida, consumando em um
desejo de Deus este pobre dia que é a vida, dia escuro, borrascoso, cheio de
medos e de privações, para entrar no dia de Deus, luminoso, sereno, sem
medos nem langores. Na grande paz, na infinita liberdade do Paraíso, vós
entrareis, ó mártires de uma penosa sorte, contanto que saibais ser bons em
vosso sofrimento e aspireis por Deus.
154.4 Públio Quintiliano volta com outros soldados, e atrás dele vem uma
liteira transportada por escravos e para a qual os soldados procuram achar
um lugar.
– Quem é Deus? Eu falo a gentios que não sabem quem é Deus. Falo a
filhos de povos subjugados que não sabem quem é Deus. Em vossas
florestas, ó gauleses, ó íberos, ó trácios, ó germanos, ó celtas, tendes uma
aparência de Deus. A alma, espontaneamente, se inclina para a adoração,
porque se lembra do Céu. Mas não sabeis encontrar o verdadeiro Deus, que
colocou uma alma em vossos corpos, uma alma igual a que temos nós de
Israel, igual a dos romanos poderosos que vos subjugaram, uma alma que
tem os mesmos deveres e os mesmos direitos para o Bem e à qual o Bem,
ou seja, o verdadeiro Deus, será fiel. Sede também vós fiéis ao Bem. O deus
ou os deuses que até aqui adorastes, aprendendo o nome dele ou deles nos
joelhos maternos; o deus que agora talvez nem penseis mais, porque dele
não vos veio nenhum conforto em vossos sofrimentos, e que talvez
chegueis a odiar e maldizer no desespero de vossa jornada, não é o Deus
verdadeiro. O Deus verdadeiro é Amor e Piedade. Eram assim, por acaso,
os vossos deuses? Não. Eles também eram dureza, crueldade, mentira,
hipocrisia, vício, ladroagem. E agora eles vos deixaram sem aquele mínimo
de conforto, que é esperança de serem amados e a certeza de um descanso,
depois de tanto sofrer. Assim é, porque os vossos deuses não existem. Mas
Deus, o Deus verdadeiro, que é Amor e Piedade, e o qual Eu vos afirmo que
existe com certeza, é Aquele que fez os céus, os mares, os montes, as
florestas, as plantas, as flores, os animais, o homem. É Aquele que ao
homem vitorioso inculca a piedade e o amor, como Ele é, para com os
pobres da terra.
154.5 Ó poderosos, ó patrões, pensai que viestes todos de uma única
árvore. Não vos enfureçais contra aqueles que, por uma desventura, foram
parar em vossas mãos, e sede humanos até para com aqueles que, por algum
delito, tiveram que ir para o banco da galera. Muitas vezes o homem peca.
Ninguém deixa de ter culpas, mais ou menos secretas. Se pensásseis nisto,
seríeis muito bons para com os irmãos que, menos afortunados do que vós,
foram punidos por culpas, que vós também tendes cometido, ficando
impunes.
A justiça humana é uma coisa tão incerta no julgar, que ai de nós se a
divina fôsse assim. Há réus que não parecem sê-lo e há inocentes que são
julgados como réus. Não vamos perguntar o por que. Isto seria acusação
muito forte contra o homem injusto e cheio de ódio para com o seu
semelhante! Há réus que o são de verdade, mas que foram levados ao delito
por forças poderosas que, em parte, os livram da culpa. Por isso, vós, que
estais colocados na direção das galeras, sede humanos. Acima da justiça
humana, há uma Justiça divina, bem mais alta. É a Justiça do Deus
verdadeiro, do Criador tanto do rei, como do escravo, da rocha, como do
grão de areia. Ele olha para vós, tanto para vós do remo, como para vós,
prepostos à tripulação, e ai de vós se fordes cruéis sem razão. Eu, Jesus
Cristo, o Messias do Deus verdadeiro, vo-lo asseguro: Ele, à vossa morte,
vos amarrará a uma galera eterna, entregando o açoite manchado de sangue
aos demônios, e sereis torturados e golpeados, como vós torturastes.
Porque, se é lei humana que o réu seja punido, é preciso que na punição não
se passe da medida. Sabei recordar-vos disso. O poderoso de hoje pode ser
o miserável de amanhã. Só Deus é eterno.
Eu queria mudar vosso coração e queria, sobretudo, destruir as
correntes, entregar-vos à liberdade e à pátria que perdestes. Mas, irmãos
galeotes, que não estais vendo o meu rosto, e dos quais Eu não ignoro o
coração com todas as suas feridas, pela liberdade e a pátria deste mundo
que Eu não vos posso dar, ó pobres homens escravos dos poderosos, Eu vos
darei uma liberdade mais alta e uma Pátria. Por vós Eu me tornei
prisioneiro e sem pátria, por vós darei a Mim mesmo em resgate, por vós,
também por vós, que não sois o opróbrio da terra, como sois chamados, mas
sim, a vergonha do homem que esquece a medida, no rigor da guerra e da
justiça, Eu farei uma nova lei sobre a terra e uma doce morada no Céu.
Lembrai-vos do meu Nome, ó filhos de Deus, que estais chorando. É o
nome do Amigo. Dizei esse nome em vossos sofrimentos. Ficai seguros de
que, se me amardes, me tereis, mesmo se nesta terra não nos virmos mais.
Eu sou Jesus Cristo, o Salvador, o vosso Amigo. Em nome do verdadeiro
Deus Eu vos conforto. Que venha logo a paz sobre vós.
154.6 A multidão, a maior parte romana, aglomerou-se ao redor de Jesus,
cujos conceitos novos deixaram a todos atordoados.
– Por Júpiter! Tu me fizeste pensar em coisas novas, nas quais eu nunca
havia pensado. Mas que acho certas…
Públio Quintiliano olha para Jesus, pensativo e, ao mesmo tempo,
enlevado.
– Assim é, amigo. Se o homem fizesse uso do pensamento, nunca
chegaria a cometer delito.
– Por Júpiter! Por Júpiter! Que palavras! Quero lembrar-me delas! Tu
disseste: “Se o homem fizesse uso do pensamento…”
– … nunca chegaria a cometer delito.
– Mas é verdade! Por Júpiter! Mas, sabes que és um grande?!
– Todos os homens, se o quisessem, poderiam ser como Eu, se
estivessem todos unidos a Deus.
O romano continua a repetir: “Por Júpiter”, cada vez com maior
admiração.
Mas Jesus lhe diz:
– Poderia Eu dar um conforto àqueles galeotes? Eu tenho dinheiro…
uma fruta, um consolo, para que saibam que Eu os amo.
– Dá-me aqui. Eu o posso fazer. Além disso, há lá uma dama que tem
muito poder. Vou perguntar a ela.
Públio vai até à liteira e fala junto às cortinas entreabertas, por uma
fresta. Depois volta:
– Estou com plenos poderes. Eu providencio à distribuição, de modo
que os encarregados não se aproveitem para abusar. E será a única vez que
um soldado imperial terá usado de piedade para com os escravos de guerra.
– A primeira. Não a única. Um dia virá, no qual não haverá mais
escravos; e, antes ainda, os meus discípulos descerão para o meio dos
galeotes e os escravos, chamando-lhes de irmãos.
Uma outra série de “Por Júpiter” vão pelos ares calmos, enquanto
Públio espera ter fruta e vinho suficiente para os galeotes.
154.7Em seguida, antes de subir para a galera, aproxima-se do ouvido de
Jesus e lhe diz:
– Lá dentro está Cláudia Prócula. Ela gostaria de ouvir-te ainda.
Entretanto, ela quer perguntar-te uma coisa. Vai lá”.
Jesus vai em direção da liteira.
– Salve, Mestre.
A cortina é afastada um pouco, mostrando uma bela mulher dos seus
trinta anos.
– Que venha a ti o desejo de sabedoria.
– Tu disseste que a alma se recorda dos Céus. Então, é eterna essa coisa
que vós dizeis que há em nós?
– É eterna. Por isso ela se lembra de Deus[82]. De Deus que a criou.
– Que é a alma?
– A alma é a verdadeira nobreza do homem. Tu és gloriosa, porque és
dos Cláudios. O homem o é mais, porque é de Deus. Em ti corre o sangue
dos Cláudios, a família poderosa, mas que teve uma origem e terá um fim.
No homem, pela alma, está o sangue de Deus. Porque a alma é o sangue
espiritual — sendo Deus um puríssimo Espírito — do Criador do homem:
de Deus eterno, poderoso, santo. O homem é, pois, eterno, poderoso, santo,
pela alma que há nele e que está viva, enquanto estiver unida a Deus.
– Eu sou pagã. Portanto, não tenho alma…
– Tu a tens. Mas está envolvida em um letargo. Desperta-a para a
Verdade e para a Vida…
– Adeus, Mestre.
– Que a Justiça te conquiste. Adeus.
154.8 – Como estais vendo, até aqui Eu tive ouvintes –diz Jesus aos
discípulos.
– Sim. Mas, a não ser os romanos, quem mais te terá entendido? São
uns bárbaros!
– Quem? Todos. A paz está neles e lembrar-se-ão de Mim muito mais
do que muitos outros em Israel. Vamos à casa que nos hospeda para
tomarmos a refeição.
– Mestre, aquela mulher é a mesma que me falou naquele dia[83] em
que curaste aquele doente. Eu a vi e a reconheci –diz João.
– Vede, pois, que também aqui havia quem nos estava esperando. Mas
não me pareceis estar muito satisfeitos. Muito Eu terei feito, no dia em que
vos tiver persuadido que não foi só para os hebreus, mas para todos os
povos, que Eu vim, e que para todos vos preparei. Mas Eu vos digo:
Recordai-vos de tudo do vosso Mestre. Nenhum fato existe, por mais
insignificante que pareça, que não tenha que tornar-se um dia uma regra no
apostolado.
Ninguém responde e Jesus tem um sorriso triste de compaixão.
Esta manhã Jesus sorriu triste também para mim… Tinha-me vindo
154.9
um desconforto tão grande, que eu me pus a chorar por muitas coisas, não
sendo a última entre elas o cansaço de escrever e escrever com a convicção
de que tanta bondade de Deus e tanto trabalho do pequeno João sejam
mesmo inúteis. E eu, chorando, invoquei a meu Mestre e, visto que por sua
bondade veio exclusivamente para mim, disse-lhe o meu pensamento.
Ele fez um movimento de ombros, como de quem diz: “Deixa que se
perca o mundo com suas histórias”, e depois me acariciou, dizendo:
– E então? Não quererias continuar a ajudar-me? O mundo não quer
conhecer as minhas palavras? Pois bem, contemo-las entre nós, para minha
alegria em repeti-las a um coração fiel e para a tua alegria em ouvi-las. Os
cansaços do apostolado!! Mais cansativos do que os de qualquer outro
trabalho! Tiram a luz ao dia mais sereno e a doçura ao mais doce alimento.
Tudo se torna cinza e lama, náusea e fel. Mas, ó minha alma, são estas as
horas em que nos sobrecarregamos com o cansaço, com as dúvidas, com
esta miséria dos mundanos que morrem por não terem o que nós temos. E
são as horas em que mais atuamos. Eu disse a ti também no ano passado.
“Mas para que?”, pergunta a si mesma a alma submersa com as coisas que
submergem o mundo, ou seja, as ondas levantadas por satanás. E o mundo
se afoga. Mas a alma pregada com o seu Deus na cruz não afoga. Pode
perder por um instante a luz e afunda na onda enjoativa do cansaço
espiritual, mas depois emerge mais viçosa e mais bela. As tuas palavras “Eu
não presto mais para nada” são consequência desse cansaço. Tu não
prestarias mais para nada. Mas Eu sou sempre Eu e por isto tu prestarás
sempre para cumprir tua tarefa de porta-voz. É certo que se Eu visse como o
meu dom, em vez de ser usado como uma gema de grande peso e valor,
fôsse escondido com avareza, ou usado com imprudência ou, por indolência
não tratado com cuidado para protegê-lo com aquelas garantias que a
maldade humana, nestes casos, impõe para tutelar o dom e a criatura,
através da qual o dom é dado, Eu diria o meu “Basta”. E, dessa vez, sem
voltar atrás. Basta para todos, mas não para a minha pequena alma, que hoje
parece mesmo uma florzinha debaixo de um aguaceiro. E podes, com estas
carícias, duvidar que Eu te ame? Vamos! Tu me ajudaste no tempo da
guerra. Ajuda-me agora também… Há tanta coisa para se fazer.
E eu me acalmei, sob a carícia da longa mão e do sorriso tão doce do
meu Jesus, cândido como sempre, quando é todo para mim.
[82] e lembra de Deus… sangue de Deus. Deus, por bondade infinita e paterna – assim anota MV numa cópia datilografada –
faz que em cada alma de homem haja um estímulo verso a Fonte de onde provém; o que dá origem à lei natural mesmo no
selvagem. Falando a pagãos ou ignorantes, Jesus usa termos materiais, como “sangue”, para melhor entendimento. Quanto à lei
natural, em 288.4 se demonstrará que essa vem refletida nos dez mandamentos.
[83] me falou naquele dia, como se referiu já em 116.1.
155. Cura da pequena romana em Cesaréia e
desacordo sobre os contatos com os pagãos.
5 de maio de 1945.
155.1 Jesus diz:
– Pequeno João, vem Comigo, pois quero que escrevas uma lição para
os consagrados de hoje. Vê e escreve. Jesus está ainda em Cesareia
Marítima.
Não está mais naquela praça de ontem, mas num lugar mais central,
155.2
do qual, porém, ainda se vê o porto e os navios. Aqui há muitas lojas e
outras casas comerciais e, como até no chão, neste espaço sem calçamento,
estão esteiras com várias mercadorias, concluo estar nos arredores do
mercado, que talvez localizava-se perto do porto e dos armazéns, para
comodidade dos que chegam por mar e dos compradores de mercadorias
trazidas por mar. Há um grande barulho e o vaivém da multidão.
Jesus espera com Simão e os primos, que os outros tenham comprado
os alimentos de que necessitam. Alguns meninos olham curiosamente para
Jesus, que os acaricia docemente, enquanto fala com os seus apóstolos.
Jesus diz:
– Não me agrada ver o descontentamento porque Eu me estou
aproximando dos gentios. Mas Eu não posso senão fazer o que devo e ser
bom com todos. Esforçai-vos por serdes bons, pelo menos vós três e João;
os outros irão atrás de vós por imitação.
– Mas como se faz para ser bons com todos? Afinal, eles nos
desprezam e oprimem, não nos entendem, são cheios de vícios… –escusa-
se Tiago do Alfeu.
– Como se faz? Tu estás contente por teres nascido do Alfeu e da
Maria?
– Sim. Com certeza. Por que me perguntas isso?
– E se tivesses sido interrogado por Deus, antes de seres concebido,
terias querido nascer deles?
– Mas, sim. Eu não entendo…
– E se, ao invés, tivesses nascido de um pagão, e ouvisses que te
acusavam por teres querido nascer de um pagão, que é que terias
respondido?
– Eu teria dito… teria dito: “Eu não tenho culpa de uma coisa destas.
Eu nasci dele, mas podia ter nascido de um outro.” Eu teria dito: “Vós sois
injustos em vossa acusação. Se não faço o mal, por que é que me odiais?”
– Tu o disseste. Também estes, que vós desprezais porque são pagãos,
podem dizer a mesma coisa. Tu não tens merecimento por teres nascido do
Alfeu, um verdadeiro israelita. Deves agradecer por isso somente ao Eterno,
porque te fez um grande presente e, por reconhecimento e humildade,
procurar levar ao verdadeiro Deus outros que não receberam este presente.
155.3É preciso ser bom.
– É difícil amar a quem não se conhece!
– Não. Presta atenção. Tu, ó pequenino, vem aqui.
Aproxima-se um pequenino de uns oito anos, que estava brincando em
um canto com outros dois meninos. É um menino robusto, de cabelos muito
escuros, mas de uma pele muito alva.
– Quem és?
– Eu sou Lúcio, Caio Lúcio de Caio Mário, sou romano, filho do
decurião da guarda, que ficou aqui, depois que foi ferido.
– E aqueles, quem são?
– São Isaque e Tobias. Mas não se deve dizer isto, porque não se pode.
Eles apanhariam.
– Por que?
– Porque eles são hebreus e eu sou romano. Não podemos estar juntos.
– Mas tu estás com eles. Por que?
– Porque nos queremos bem. Brincamos sempre juntos, com os dados e
com o saltarelo. Mas nós estamos escondidos.
– E a Mim, quererias bem? Eu também sou hebreu, e não sou um
menino. Pensa: Eu sou um Mestre, isto é, um Sacerdote.
– E a mim que importa? Se me queres bem, eu te quero bem. E bem eu
te quero porque Tu me queres bem.
– Como é que o sabes?
– Porque és bom. Quem é bom quer bem.
– Eis, amigos. O segredo para amar. Ser bons. Então se ama, sem
pensar se isso faz parte, ou não, de uma religião.
E Jesus, segurando pela mão o pequeno Caio Lúcio, vai acariciar os
pequenos hebreus, que ficaram assustados e foram esconder-se atrás de um
corredor, e lhes diz:
– Os meninos bons são anjos. Os anjos têm uma só Pátria: o Paraíso.
Têm uma só religião: a do único Deus. Têm um só Templo: o Coração de
Deus. Sede amigos sempre, como os anjos.
– Mas se eles nos veem, nos batem…
Jesus sacode tristemente a cabeça e não rebate…
155.4Uma mulher alta e formosa chama Lúcio e ele deixa Jesus, gritando:
“É a mamãe!”, e à mulher ele grita:
– Tenho um amigo grande, sabes? É um Mestre!!!
A mulher não se afasta com o filho, ao contrário, vai até Jesus e lhe
pergunta:
– Salve! Não és Tu o homem da Galileia, que ontem falou no porto?
– Sou Eu.
– Espera-me aqui, então. Eu volto logo, e se vai com o seu pequeno.
Entrementes, os outros apóstolos também chegaram, todos, com
exceção de Mateus e de João, e perguntam:
– Quem é ela?
– É uma romana, penso eu –responde Simão e os outros.
– Que é que ela queria?
– Ela disse que a esperasse aqui. Logo saberemos.
Algumas pessoas, neste meio tempo, foram chegando perto e curiosas
esperam.
A mulher volta com outros romanos.
– Então, Tu és o Mestre? –pergunta um, que parece ser servo de alguma
casa senhoril.
E, tendo obtido a confirmação, pergunta:
– Sentirias repugnância em curar uma filha pequena de uma amiga de
Cláudia? A menina está à morte, porque se sente sufocada e nem o médico
sabe de que é que ela está morrendo. Ontem à tarde estava boa. Esta manhã
em agonia.
– Vamos.
Dão uns poucos passos por um caminho que vai em direção ao lugar
em que estiveram ontem e chegam ao portão, todo aberto, de uma casa que
parece habitada por romanos.
– Espera um momento.
O homem entra depressa e logo depois torna a aparecer, dizendo:
– Vem.
155.5 Mas antes ainda que Jesus pudesse entrar, sai de lá uma jovem de
aspecto senhoril, mas em condições mais que visíveis de uma grande
aflição. Tem nos braços uma pequenina criatura de poucos meses, quase
inerte, lívida como alguém que se está sufocando. Eu diria que estava com
uma difteria mortal e já em seus últimos momentos de vida. A mulher se
refugia no peito de Jesus, como um náufrago que se apega a um rochedo. O
seu pranto é tal, que não a deixa falar.
Jesus pega a criaturinha, que está com pequenos movimentos
convulsivos, com as mãozinhas cor de cera e as unhas já roxas e a levanta.
A cabecinha dela cai para trás, sem força. A mãe, sem soberba de romana
diante do hebreu, deixou-se cair na poeira aos pés de Jesus e soluça, com o
rosto erguido, os cabelos meio soltos, os braços estendidos tocando na veste
e no manto de Jesus. Atrás dela e ao redor, os romanos da casa e as hebreias
da cidade estão olhando.
Jesus molha o seu dedo indicador direito em sua saliva e o põe na
boquinha anelante, introduzindo-o para baixo. A menina se debate e torna-
se mais escura ainda. A mãe grita: “Não! Não!” e parece alguém que se
contorce sob uma lâmina que a traspassa. As pessoas suspendem a
respiração.
Mas o dedo de Jesus sai de lá envolvido por uma pelota de membranas
purulentas e a menina não mais se debate e, depois de uma pequena ameaça
de choro, se acalma, com um sorriso inocente, agitando as mãozinhas e
movendo os lábios como um passarinho que pipila, batendo as pequenas
asas, à espera de que se lhe dê comida.
– Toma, mulher. Dá-lhe o leite. Ela está curada.
A mãe está de tal modo atordoada, que pega a pequenina e estando
como está, na poeira, beija-a e a acaricia, dá-lhe o peito e, como uma louca,
se esquece de tudo que não seja a sua pequenina.
Um romano pergunta a Jesus:
– Mas como foi que pudeste? Eu sou o médico do Procônsul e sou
douto. Procurei remover o obstáculo. Mas ele estava em baixo, muito em
baixo!! E Tu… assim…
– Tu és douto. Mas contigo não está o Deus verdadeiro. Que Ele seja
bendito por isso! Adeus.
E Jesus põe-se em movimento, como querendo sair dali.
155.6Mas eis que um pequeno grupo de israelitas se sente na necessidade
de intervir:
– Como foi que te permitiste aproximar-te dos estrangeiros? Eles são
corruptos, são impuros, e todos os que se aproximam deles ficam como
eles.
Jesus os olha — são três — fixo, severo e depois fala:
– Não és tu o Ageu? O homem de Azoto, que veio aqui no mês de Tisri
passado procurar fazer negócios com o mercador, que tem seu posto nos
alicerces da fonte velha? E tu, não és o José de Ramá, que vieste até aqui
para consultar o médico romano, e tu bem sabes, como Eu sei, o por quê? E
então? Não vos sentis impuros?
– Um médico nunca é estrangeiro. Ele cura o corpo, e o corpo é igual
para todos.
– A alma o é, com maior razão do que o corpo. Afinal, que foi que Eu
curei? O corpo inocente de um pequenino e, por este meio, espero curar as
almas não inocentes dos estrangeiros. Como médico e como Messias,
posso, portanto, aproximar-me seja lá de quem for.
– Não o podes.
– Não, Ageu? E tu, por que tratas com o mercador romano?
– Não me aproximo dele, senão com a mercadoria e o dinheiro.
– E, uma vez que não tocas na sua carne, mas somente aquilo que foi
tocado pela sua mão, achas que não te contaminas. Oh! Como sois cegos e
cruéis!
155.7 Ouvi, todos. Justamente no livro do Profeta do qual esse traz o
nome, está escrito[84]: “Apresenta aos sacerdotes esta questão sobre a Lei:
‘Se um homem leva uma carne santificada na dobra de sua veste e com ela
toca depois no vinho ou nas comidas, no pão, ou no óleo ou outros
alimentos, ficarão eles santificados?’ E os sacerdotes responderam: ‘Não’.
Então Ageu disse: ‘Se alguém, que ficou imundo por ter tocado em um
morto, tocar em uma destas coisas, ficará ela contaminada?’ E os sacerdotes
responderam: ‘Sim’.
Por esta astuciosa, mentirosa e incoerente maneira de agir, vós impedis
e condenais o Bem e só aceitais o que vos traz vantagens. Então cessa o
desprezo, a repugnância, a náusea. Vós discernis, desde que não vos traga
prejuízo pessoal, se uma coisa é imunda ou torna impuro, e se aquela outra
não o é. E como podeis, bocas mentirosas, professar que, se aquilo que é
santificado por ter tocado numa carne ou coisa santa, não santifica aquilo
que toca, aquilo que tocou coisa imunda possa tornar imundo aquilo que
toca?
Não compreendeis que vos estais desmentindo a vós mesmos, ó
mentirosos ministros de uma Lei de Verdade, ó aproveitadores da mesma,
que a torceis como uma corda, conforme achais que podeis tirar dela
alguma vantagem, ó fariseus hipócritas que, sob um pretexto religioso,
quereis desafogar o vosso rancor humano, completamente humano, ó
profanadores do que é de Deus, ó insultadores e inimigos do Mensageiro de
Deus? Em verdade, em verdade Eu vos digo que todos os vossos atos, todas
as vossas conclusões, todos os vossos movimentos, têm como motivo um
completo mecanismo de astúcia, ao qual servem de rodas e de molas, de
pesos e tirantes, os vossos egoísmos, as vossas paixões, as vossas
insinceridades, os vossos ódios, as vossas sedes de dominar, as vossas
invejas.
Que vergonha! Avarentos, tremebundos, rancorosos, vós viveis com o
medo orgulhoso de que alguém vos supere, mesmo quando não são da
vossa casta. E mereceis, então, ser como aquele do qual tendes medo e
raiva! Vós, como diz Ageu, que, de um montão de vinte alqueires fazeis um
de dez, e de cinquenta barris fazeis vinte, embolsando a vantagem da
diferença, enquanto, e pelo exemplo a ser dado ao homem, e pelo amor a
ser prestado a Deus, deveríeis ao monte dos alqueires e ao monte dos barris,
não tirar, mas acrescentar, do vosso bolso, em favor de quem tem fome, e
mereceis ser esterilizados pelo vento abrasador, pela ferrugem e pelo
granizo em todas as obras de vossas mãos.
Quem são entre vós os que vêm a Mim? Estes, estes que para vós são
esterco e imundície, estas supremas ignorâncias, que nem sabem que há um
verdadeiro Deus, eles vêm a Quem traz presente este Deus, nas palavras e
nas obras. Mas vós, mas vós! Vós vos fizestes um nicho, e aí estais. Áridos,
frios como ídolos à espera dos incensos e adorações. E, visto que vos credes
uns deuses, parece-vos inútil pensar no verdadeiro Deus, assim como deve
ser pensado, e vos parece perigoso que outros, que não sois vós, ousem
fazer o que vós não ousais. Vós não podeis, na verdade, ousá-lo, porque
sois uns ídolos. E porque sois servos do ídolo. Mas, quem ousa, pode,
porque não ele, mas Deus opera nele.
155.8 Ide! Ide dizer a quem vos enviou atrás de meus calcanhares, que Eu
desprezo os mercadores, que acham não ser contaminação vender as
mercadorias, ou a pátria, ou o Templo àqueles de quem recebem dinheiro.
Dizei a esses que Eu sinto repugnância dos brutos, que só têm o culto da
própria carne e do próprio sangue e pela cura destes não acham ser
contaminação aproximarem-se de um médico estrangeiro. Ide dizer que a
medida é igual e que não há duas medidas. Ide dizer que Eu, o Messias, o
Justo, o Conselheiro, o Admirável, Aquele que terá sobre si o Espírito do
Senhor com seus sete dons, Aquele que não julgará pelo que aos olhos
parece ser, mas pelo que é segredo de corações, Aquele que não condenará
pelo que ouve com os ouvidos, mas pelas vozes espirituais que ouvirá no
interior de cada homem, Aquele que tomará a defesa dos humildes e julgará
os pobres com justiça, Aquele que Eu sou, porque isto Eu sou, já estou
julgando e punindo os que sobre a terra são somente terra, e o sopro da
minha respiração, fará morrer o ímpio e exterminará o seu covil, enquanto
que haverá Vida e Luz, Liberdade e Paz para aqueles que, desejosos de
justiça e de fé, virão ao meu monte santo, para se saciarem da Ciência do
Senhor. Isto é Isaías[85], não é verdade?
O meu povo! Todo ele vem de Adão, e Adão vem de meu Pai. Todo ele,
pois, é obra do Pai e a todos tenho o dever de reunir ao Pai. E Eu os
conduzo a Ti, ó Pai santo, eterno, poderoso. Eu os conduzo a Ti estes filhos
errantes, depois de havê-los reunido, chamando-os com palavras de amor,
reunindo-os sob a minha vara de pastor, parecida com a que Moisés
levantou contra as serpentes mortíferas, para que Tu tenhas o teu Reino e o
teu povo. Nem faço distinções, porque no fundo de cada vivente Eu vejo
um ponto que brilha mais do que o fogo: a alma, uma centelha de Ti, ó
eterno Esplendor. Ó meu eterno desejo! Ó minha incansável vontade!
Isto Eu quero. Com isto Eu me queimo. Uma terra que cante, toda, o
teu Nome. Uma humanidade que te chame Pai. Uma redenção que salve a
todos. Uma vontade fortificada que faça todos obedientes à tua vontade.
Um triunfo eterno, que encha o Paraíso com um hosana sem fim… Oh!
Multidão dos Céus!! Aí está. Eu vejo o sorriso de Deus… e este é o prêmio
contra todas as durezas humanas.
155.9 Os três fugiram, sob a saraivada de reprovações. Os outros todos,
romanos ou hebreus, ficaram de boca aberta. A mulher romana, com a
pequenina, saciada de leite que dorme tranquila no colo materno, ficou lá
onde estava, quase aos pés de Jesus, e chora de alegria materna e de
comoção espiritual. Muitos estão chorando, por causa da arrasadora
conclusão de Jesus que, em seu êxtase, parece flamejar.
E Jesus, abaixando o olhar e o espírito do Céu para a terra, vê a
multidão, vê a mãe… e, ao passar, depois de um gesto de adeus a todos,
toca de leve com a mão a jovem romana, como que a abençoá-la por sua fé.
E vai-se embora com os seus, enquanto o povo, ainda assombrado, fica
onde está…
155.10 (A jovem romana, se não for alguém muito parecida, é uma das
romanas que estavam com Joana do Cusa no caminho do Calvário[86].
Mas, como ninguém aqui a chamou pelo nome, fico na incerteza.)
[84] está escrito, em: Ageu 2,11-13; segue outra citação de: Ageu 2,16.
[85] é Isaías, isto é: Isaías 11,1-5.
[86] no caminho do Calvário, em 608.9 (visão escrita dois meses antes e que está no décimo volume). Trata-se, como veremos
em 167.3, da romana Valeria como a filhinha Faustina.
156. Anália, a primeira das virgens consagradas.
6 de maio de 1945.
156.1 Jesus, junto a Pedro, André e João, bate à porta de sua casa em
Nazaré. A Mãe abre logo, e seu rosto se ilumina com um fúlgido sorriso, ao
ver o seu Jesus.
– Em boas horas voltas, meu Filho! Desde ontem tenho comigo uma
pomba pura que te está esperando. Ela veio de longe. E quem a acompanha
não podia ficar por mais tempo. Eu, já que ela pedia um conselho, disse-lhe
o que podia. Mas só Tu, meu Filho, és a Sabedoria. Bem-vindos vós
também. Vinde logo tomar alguma coisa.
– Sim. Ficai aqui. Eu vou logo a esta criatura que me está esperando.
A curiosidade está viva nos três, mas de modo diferente. Pedro está
olhando de soslaio para todas as direções, como se estivesse querendo
enxergar além das paredes. João parece querer ler, no sorridente rosto de
Maria, o nome da desconhecida. André, que está muito corado, ao invés,
olha para Jesus com toda a firmeza de suas pupilas, e uma súplica muda
treme em seu olhar e em seus lábios.
Mas Jesus não se incomoda com nenhum deles. Enquanto os três se
decidem a entrar na cozinha, onde Maria lhes oferece alimentos e o calor do
fogo, Jesus levanta a cortina que fecha a abertura que conduz para o jardim
e vai até lá.
Doces raios de sol tornam ainda mais aéreos e irreais os ramos da alta
amendoeira do jardim, que estão todos floridos. Ela é a única que está
florida e, sendo a mais alta das plantas do jardim, rica em sua veste de seda
branco-rosada e em contraste com a pobreza nua das outras — a pereira, a
macieira, a figueira, a videira, a romãzeira, todas ainda sem viço e sem
folhas — pomposa em seu véu espumoso e vivo, contra a humildade
cinzenta e monótona das oliveiras, parece, com seus longos ramos, ter
capturado uma pequena e levíssima nuvem, que se perdeu pelo campo azul
do céu, e que com ela se tenha enfeitado, para dizer a todos:
– As núpcias da primavera estão aí! Exultai, vós plantas, vós animais. É
a hora dos beijos com os ventos, com as abelhas, ó flores. É hora dos beijos
sob os telhados, ou nos pequenos bosques cerrados, ó passarinhos de Deus,
ó cândidas ovelhas. Hoje beijos, amanhã a prole, para perpetuar a obra do
Criador, nosso Deus.
Jesus, com os braços cruzados sobre o peito, de pé e ao sol, sorri àquela
graça pura e plácida, que é o jardim materno com seus canteiros de lírios,
que se mostram como os primeiros em suas touceiras de folhas, com suas
roseiras ainda despidas, com a oliveira prateada, com outras famílias de
flores espalhadas por entre os humildes canteiros de legumes e verduras,
que mal começam a verdejar. Puro, bem arrumado, delicado, parece ele
também, exalar o candor da virgindade perfeita!
156.2 – Filho, vem no meu quarto. Eu a trarei para Ti, pois ela fugiu lá
para o fundo, ao ouvir tantas vozes.
Jesus entra no pequeno quarto da Mãe, sempre o casto, castíssimo
quartinho, que ouviu as palavras do diálogo com o anjo, e de onde emana,
mais ainda do que do jardim, o aroma virginal, angelical, santo, Daquela
que ali mora há anos e do Arcanjo que nele venerou a sua Rainha. Já se
passaram mais de trinta anos, ou só ontem é que se deu o encontro? Ainda
hoje uma roca segura o seu macio e meio prateado novelo de fios e, no fuso,
ainda está o fio. Um bordado está dobrado sobre a mesa, ao lado da porta,
entre um rolo de pergaminho e uma ânfora de cobre, que conserva dentro
um espesso ramo de amendoeira florido. Agora também a cortina listrada,
que tremula ao vento, está descida sobre o mistério da virginal morada, e a
cama, arrumada num canto, tem sempre o aspecto da cama de uma menina
que mal acabou de chegar aos limiares da juventude. Que sonhos irão haver
e já terão havido sobre aquele baixo travesseiro??
A cortina é levantada lentamente pela mão de Maria. Jesus que, com as
costas voltadas para a porta, de pé, contemplava aquele ninho de pureza,
vira-se.
– Eis, meu Filho. Eu a conduzo a Ti. É uma cordeira. E Tu és o seu
Pastor.
E Maria, que entrou segurando pela mão uma jovenzinha morena e
delgada, que fica muito corada, ao aparecer na presença de Jesus, retira-se
docemente, deixando cair de novo a cortina.
156.3 – A paz esteja contigo, menina.
– A paz… Senhor…
A menina, muito emocionada, fica sem palavras, mas se ajoelha com a
cabeça inclinada para o chão.
– Levanta-te. Que queres de Mim? Não tenhas medo…
– Não é medo… mas… agora que estou diante de Ti… depois de o ter
querido tanto… tudo o que me parecia fácil e necessário dizer-te… eu não
sei mais… não me parece mais o que era… Eu sou uma tola… perdoa-me,
meu Senhor…
– Pedes graça para a terra? Precisas de milagre? Tens almas para
converter? Não? E então? Vamos, fala! Tiveste tanta coragem, e agora ela te
falta? Não sabes que Eu sou Aquele que aumenta a fortaleza? Sim? Tu o
sabes? E então, vamos, fala, como se Eu fôsse teu pai. És jovem. Quantos
anos tens?
– Dezesseis, meu Senhor!
– De onde vens?
– De Jerusalém.
– Como te chamas?
– Anália.
– É o nome querido de minha avó e de tantas outras santas mulheres de
Israel, e com ele, formando um só[87], é o da boa, fiel, amorosa e mansa
mulher de Jacó. Ele será de bons augúrios para ti. Serás uma esposa e mãe
exemplar. Não? Estás sacudindo a cabeça? Estás chorando? Terás sido
rejeitada? Não é isso? Terá morrido o teu prometido? Ainda não foste
escolhida?
A jovenzinha sacode sempre a cabeça. Jesus dá um passo, a acaricia e a
faz levantar a cabeça e olhar para Ele… O sorriso de Jesus vence a
ansiedade da jovenzinha.
Ela se encoraja.
– Meu Senhor, eu seria esposa e feliz, e por mérito teu. Não me
conheces, meu Senhor? Eu sou aquela doente[88] de tuberculose, aquela
noiva que estava à morte, e que Tu curaste, a pedido do teu João… Depois
da tua graça, eu… eu passei a ter um outro corpo: um corpo são, em lugar
daquele que antes tinha, moribundo, e passei a ter outra alma… Não sei.
Não me sentia mais ser eu mesma… A alegria de estar curada e, com isso, a
certeza de poder casar-me — pois era o meu sentimento o de, naquele
sofrimento mortal, não poder chegar a ser esposa — não duraram mais do
que as primeiras horas. E depois…
A jovenzinha vai-se tornando cada vez mais desembaraçada, encontra
de novo as palavras e as ideias, perdidas na perturbação de estar sozinha
com o Mestre…
– … E depois senti que não devia ser só egoísta, e só pensar: “Agora
serei feliz”, mas que devia pensar em alguma coisa melhor, e que viesse a
Ti e a Deus, teu e meu Pai. Qualquer pequena coisa, mas que quisesse dizer
que eu estava agradecida. Pensei muito, e quando no sábado seguinte vi o
noivo, disse-lhe: “Escuta, Samuel. Sem o milagre eu estaria morta dentro de
alguns meses e tu me terias perdido para sempre. Agora, eu queria oferecer
a Deus um sacrifício, eu junto contigo, para dizer a Deus que o louvo e lhe
agradeço.” E Samuel disse logo, pois ele me ama: “Vamos juntos ao
Templo, para imolar a vítima.” Mas não era isto o que eu queria. Sou pobre,
uma pobre pessoa do povo, meu Senhor. Pouca coisa sei, e menos ainda
posso. Mas através de tua mão, pousada sobre o meu peito doente, alguma
coisa veio, não só nos pulmões corroídos, mas dentro do coração. Nos
pulmões chegou a saúde e no coração, a sabedoria. Compreendi, então, que
o sacrifício de um cordeiro não era o sacrifício desejado pelo meu espírito,
que te… que te amava.
A mocinha se cala, e fica corada, depois dessa sua declaração de amor.
156.4 – Continua sem temor. Que é que queria o teu espírito?
– Queria oferecer um sacrifício digno de Ti, Filho de Deus! E então… e
então eu pensava que haveria de ser uma coisa espiritual, como são as
coisas de Deus, ou seja, um sacrifício de ficar esperando as núpcias por
amor de Ti, meu Salvador. Grande alegria são as núpcias, sabes? É uma
grande coisa, quando as pessoas se amam! É um desejo e uma ânsia de
realizá-las!! Mas eu não era mais aquela de poucos dias antes. Não queria
mais isto como a coisa mais bela… E eu disse isto a Samuel… e ele me
compreendeu. Ele também quis fazer-se nazareno por um ano, começando
do dia que teria sido aquele das núpcias, ou seja, um dia depois das
calendas de Adar. Nesse meio tempo, ele veio à tua procura para amar
Quem lhe havia dado a noiva, para amá-lo e conhecê-lo: a Ti. E te
encontrou, depois de muitos meses, em Águas Belas. Eu também estava
lá… e a tua palavra acabou de mudar-me o coração. Agora não me basta
mais o voto de antes… Como aquela amendoeira ali fora que, que debaixo
de um sol sempre mais quente, renasceu depois de ter estado morta durante
meses, e soltou flores, depois soltará folhas, e depois frutos, assim eu
sempre fui progredindo na sabedoria do que é melhor. Na última vez, já
decidida e certa do que eu queria — durante todos aqueles meses pensei
nisso — na última vez que eu fui às Águas Belas, Tu não estavas mais lá…
Haviam-te expulsado. Chorei tanto e tanto rezei, que o Altíssimo me
atendeu, persuadindo minha mãe a mandar-me aqui, com um parente, que
estava indo para Tiberíades a fim de conversar com os cortesãos do
Tetrarca. O feitor dissera-me que havia te encontrado. Encontrei tua Mãe…
e as palavras dela, só de ouvi-las e ficar ao seu lado nestes dois dias,
acabaram de amadurecer o fruto da tua graça.
A mocinha está ajoelhada… como diante de um altar, com os braços
cruzados sobre o peito.
– Está bem. 156.5Mas, que é que queres exatamente? Que te posso Eu
fazer?
– Senhor, eu queria… queria uma grande coisa. E só Tu, Doador da
vida e da saúde, podes dá-la a mim, porque eu penso que isto que me podes
dar, Tu também o podes tirar… Eu queria que a vida que me deste, Tu a
tirasses de mim durante o ano do meu voto, antes que ele termine…
– Mas por quê? Não agradeces a Deus pela saúde recebida?
– Muito! E sem medida! Mas só por um motivo: porque, vivendo por
sua graça e por teu milagre, compreendi o que é melhor.
– E que é?
– Que o melhor é viver como os anjos. Como a tua Mãe, meu Senhor…
como Tu vives… Como vive o teu João… os três lírios, as três chamas
brancas, as três bem-aventuranças da terra, Senhor. Sim. Porque penso que
é bem-aventurança possuir a Deus e que Deus seja possuído pelos puros. O
puro, eu creio que é um céu, com o seu Deus no centro e os anjos ao
redor… Oh! Meu Senhor! Isto eu queria!! Pouco eu te ouvi, e pouco à tua
Mãe, ao discípulo e ao Isaque. De outros não me aproximei, que me
dissessem as tuas palavras.. Mas me parece que meu espírito está sempre te
ouvindo, e que Tu és o seu Mestre… tenho dito, meu Senhor…
– Anália, muito é o que pedes e muito é o que dás… Filha,
compreendeste a Deus e a perfeição à qual pode chegar a criatura, para
tornar-se semelhante ao Puríssimo e para agradá-lo.
Jesus toma entre as suas mãos o rosto moreno da moça, ajoelhada e lhe
fala, estando inclinado sobre ela:
– Aquele que nasceu de uma Virgem — porque não podia fazer seu
ninho, a não ser sobre um manípulo de lírios — fica enojado, filha, da
tríplice libidinagem do mundo, e ficaria arrasado de tanto nojo, se o Pai,
que sabe de que é que vive o seu Filho, não interviesse, com amorosos
auxílios, para sustentar minha alma angustiada. Os puros são a minha
alegria. Tu me dás aquilo que o mundo me tira com a sua insaciável
baixeza. Por isso, bendito seja o Pai e tu, menina. Vai tranquila. Alguma
coisa virá acontecer e a tornar eterno o teu voto. Sejas tu um dos lírios
espalhados pelos caminhos ensanguentados do Cristo.
156.6 – Oh! Meu Senhor… eu queria ainda uma coisa…
– Qual?
– Não estar aqui presente à tua morte… Eu não poderia ver morrer
Aquele que é a minha Vida.
Jesus sorri docemente e com a mão enxuga duas fileiras de lágrimas
que descem sobre o rostinho moreno.
– Não chores. Os lírios não são nunca usados no luto. Tu estarás rindo,
com todas as pérolas de tua coroa angélica, quando vires o Rei coroado,
entrando em seu Reino. Vai. O Espírito do Senhor te ensine entre uma e
outra das minhas vindas. Eu te abençoo com as chamas do eterno Amor.
Jesus vai até o jardim e chama:
– Mãe! Eis uma pequena filha, toda para ti. Agora está feliz. Mas tu,
mergulha-a nos teus candores, agora e todas as vezes que formos à Cidade
Santa, para que seja uma neve de pétalas celestes, espalhada sobre o trono
do Cordeiro.
E Jesus volta para os seus, enquanto Maria acaricia a mocinha,
permanecendo com ela.
156.7 Pedro, André e João o olham interrogativamente. E o rosto
resplendente de Jesus lhes diz que Ele está feliz.
Pedro não se contém e pergunta:
– Com quem estiveste falando tanto, meu Mestre? E que foi que ouviste
para estares tão luminoso de alegria?
– Com uma mulher na aurora de sua vida; com aquela que será a aurora
para muitas outras que virão.
– Quem?
– As virgens.
André murmura a si mesmo:
– Não é ela…
– Não. Não é ela. Mas não te canses de rezar, com paciência e bondade.
Cada palavra de tua oração é como um chamamento, uma luz na noite, e a
ajuda e guia.
– Mas a quem é que meu irmão está esperando?
– Está esperando uma alma, Pedro. É uma grande miséria, que ele quer
transformar em uma grande riqueza.
– E onde a foi encontrar o André, que nunca se move, nunca fala, nunca
tem iniciativas?
– Em meu caminho. Vem Comigo, André. Vamos à casa do Alfeu,
bendizê-lo entre os seus muitos netos. Vós, esperai-me na casa de Tiago e
de Judas. Minha Mãe precisa ficar sozinha durante o dia todo.
E, andando assim, uns por aqui, outros por ali, o segredo envolve a
alegria da primeira consagrada à virgindade por amor de Cristo.
[87] formando um só, porque nele estão unidos o nome de Ana e o nome de Lia.
[88] aquela doente encontrada em 85.6 e 86.4/5.
157. A nova missão da mulher
No discurso às discípulas em Nazaré
7 de maio de 1945.
157.1 Jesus ainda está em Nazaré, na sua casa. Ou melhor, está onde foi a
oficina do carpinteiro.
Com Ele estão os doze apóstolos e, além deles, aí estão Maria, Maria
mãe de Tiago e de Judas, Salomé, Susana e, uma novidade, Marta. Uma
Marta muito aflita, com claros sinais de choro em seus olhos. Uma Marta
desambientada, atemorizada por estar assim sozinha junto de outras
pessoas, e sobretudo da Mãe do Senhor. Maria procura familiarizá-la com
as outras e tirar dela aquela sensação de mal-estar, que percebe estar
sofrendo. Mas as suas carícias parecem estar sempre mais a angustiar o
coração da pobre Marta. Rubor e grandes lágrimas se alternam sob o véu,
descido sobre a sua dor e seu mal-estar.
Entra João com Tiago de Alfeu.
– Não está, Senhor. Ela foi com seu marido, hospedar-se na casa de
uma amiga. Isto é o que nos disseram os servos –diz João.
– Certamente, ela sentirá muito. Mas sempre poderá ver-te e receber as
tuas instruções, termina Tiago de Alfeu.
– Está bem. O grupo das discípulas não está como Eu desejava. Mas
vós estais vendo: no lugar de Joana, que está ausente, acha-se aqui Marta,
filha de Teófilo, irmã de Lázaro.
Os discípulos sabem quem é Marta. Minha Mãe também. Tu também,
Maria, e talvez até tu, Salomé, já saibais pelos vossos filhos quem é Marta,
não tanto como mulher, segundo o mundo, mas como criatura aos olhos de
Deus. Tu, Marta, por tua vez, sabes quem são estas, que te consideram irmã
e que te amarão muito. Irmã e filha. Disto tens muita necessidade, ó boa
Marta, para teres também aquele conforto humano de afetos bons, que Deus
não condena, mas que deu ao homem para aliviá-lo nas canseiras da vida. E
Deus te trouxe para aqui justamente na hora por Mim escolhida para
estabelecer a base, Eu poderia dizer o tecido, na qual bordareis a vossa
perfeição de discípulas.
157.2 Discípulo quer dizer aquele que segue a disciplina do Mestre, da
sua doutrina. Por isso, em sentido amplo, serão chamados discípulos todos
aqueles que agora, e nos séculos futuros, seguirão a minha doutrina. E para
não inventar muitos nomes, como: “Discípulos de Jesus segundo os
ensinamentos de Pedro ou de André, de Tiago ou de João, de Simão ou de
Filipe, de Judas ou de Bartolomeu, ou de Tomé e Mateus”, dir-se-á um só
nome que os unirá com um único sinal: “cristãos”[89]. Mas, por entre a
grande massa dos que obedecem a minha disciplina, Eu já escolhi os
primeiros, e depois os segundos, e assim se fará através dos séculos, em
memória de Mim. Como no Templo, e até antes, desde Moisés, houve um
Pontífice, os sacerdotes, os levitas, os prepostos aos diversos serviços, os
ofícios e encargos, os cantores e assim por diante, o mesmo haverá no meu
Templo novo, tão grande como a terra inteira, duradouro como ela, haverá
os maiores e os menores, todos úteis, todos a Mim diletos e, além disso,
haverá mulheres, uma categoria nova, que Israel sempre desprezou,
confinando-as aos cantos das virgens no Templo ou às instruções das
mesmas virgens no Templo. E nada mais do que isso.
Não fiqueis discutindo se isso era justo. Na religião fechada de Israel e
naquele tempo de ira, aquilo era justo. Toda desonra caía sobre a mulher,
origem do pecado. Na religião universal de Cristo e no tempo do perdão,
tudo isso muda. Toda a Graça se reuniu numa Mulher e Ela a deu à luz ao
mundo, a fim de que ele fôsse redimido. A mulher, portanto, não é mais
objeto de desprezo para Deus, mas a ajuda de Deus. E, por meio da Mulher
dileta do Senhor, todas as mulheres podem tornar-se discípulas do Senhor,
não somente como a massa, mas como sacerdotisas menores, coadjutoras
dos sacerdotes, aos quais podem dar muita ajuda, junto aos mesmos e aos
fiéis e aos infiéis e junto àqueles que não se deixam levar a Deus pelo
ressoar da palavra santa e sim, pelo sorriso santo de uma discípula minha.
157.3 Vós me pedistes para vir, como vêm os homens, atrás de Mim. Mas
vir somente, escutar somente, pôr em prática somente, é pouco demais para
Mim, em comparação com o que Eu espero e quero de vós. Fazer aquelas
coisas seria procurar a vossa santificação. Uma grande coisa. Mas ainda não
me basta. Eu sou Filho do Absoluto e dos meus prediletos quero o absoluto.
Quero tudo, porque Eu dei tudo.
Além disso, não somente Eu, mas também assim está o mundo. Esta
coisa tremenda, que é o mundo. Deveria ser tremendo na santidade. Uma
santidade ilimitada, em número e poder. Santidade da multidão dos filhos
de Deus. Ao invés, é terrível por sua maldade. Sua complexa maldade é
realmente sem limites, pelo número de suas manifestações e por seu poder
de praticar o vício. Todos os pecados existem no mundo, que não é mais a
multidão dos filhos de Deus, mas é a multidão dos filhos de satanás e
sobretudo vivo está o pecado que traz em si o mais claro sinal de sua
paternidade: o ódio. O mundo odeia. Quem odeia vê o mal até nas coisas
mais santas e quer fazer ver, também, a quem não vê. Se perguntásseis ao
mundo para que é que Eu vim, ele não vos diria: “Para fazer o bem e
remir.” Mas vos diria: “Para corromper e usurpar.” Se perguntásseis ao
mundo que é que ele pensa de vós que me seguis, ele não diria: “Vós o
seguis para santificar-vos e para dar um conforto ao Mestre com santidade e
pureza.” Mas diria: “Vós o seguis porque estais seduzidas pelo homem.”
Assim é o mundo. E Eu vos digo também isto, para medirdes tudo,
antes de mostrar-vos ao mundo como discípulas eleitas, como os troncos
das gerações das futuras discípulas, cooperadoras dos servos do Senhor.
Tomai bem o vosso coração nas mãos e dizei-lhes, a este vosso coração
sensível de mulheres, que vós, e ele convosco, sereis feitos objetos de
zombarias, sereis caluniadas, cuspidas, espezinhadas pelo mundo, pelo
desprezo, pela mentira, pela crueldade do mundo. Perguntai-lhe se ele se
sente capaz de receber todas aquelas feridas sem gritar de indignação,
maldizendo aqueles que o ferem. Perguntai-lhe se ele se sente capaz de
arrostar o martírio moral da calúnia, sem chegar a odiar os caluniadores e a
Causa pela qual será caluniado. Perguntai-lhe se, abeberado e recoberto
pelo ódio do mundo, saberá sempre emanar amor e se, envenenado pelo
absinto, saberá espremer mel se, sofrendo toda espécie de torturas pelas
incompreensões, pelo escárnio, pela maledicência, saberá ainda continuar a
sorrir, mostrando com a mão o Céu, sua meta, para a qual — por uma
caridade feminina, materna até nas mocinhas, materna também mesmo
quando foi prestada a pessoas de idade muito avançada, que poderiam ser
vossos avós, mas que são espiritualmente uns meninos, que mal acabam de
nascer, e incapazes de compreender e de se orientarem no caminho, na vida,
na verdade e na sabedoria, que Eu vim dar, dando a Mim mesmo: Caminho,
Vida, Verdade, Sabedoria divina — perguntai-lhe se, mesmo assim, haverá
de querer levar os outros. Eu vos amarei do mesmo modo, ainda que me
digais “Não tenho força para isso, Senhor, para desafiar o mundo inteiro por
amor a Ti.”
157.4 Ontem uma menina me pediu que Eu a imolasse, antes que chegue
para ela a hora das núpcias — porque ela acha que me ama como Deus há
de ser amado, ou seja, com toda ela mesma — na perfeição de uma doação
absoluta. E Eu farei o que ela quer. Ocultei-lhe a hora, para que a alma não
trema de medo, e a carne ainda mais que a alma. A sua morte será
semelhante à da flor, que fecha sua corola em uma tarde, achando que vai
abri-la de novo no dia seguinte, mas não a abre mais, porque o beijo da
noite aspirou a sua vida. E Eu o farei, conforme o seu desejo, antecipando
de poucos dias, antes do meu, o seu sono da morte. Para não fazê-la esperar
no Limbo, esta minha primeira virgem, e encontrá-la logo que Eu morrer…
Não choreis! Sou o Redentor… Mas esta mocinha santa, não me pediu
para seguir-me; não se limitou ao hosana depois do milagre, mas soube
aproveitar-se do milagre como de uma moeda posta a juros, passando da
gratidão humana a uma gratidão sobrenatural, de um desejo terreno a um
ultraterreno, mostrando um amadurecimento de espírito superior à de quase
todos. Digo “quase”, porque entre vós, que me estais ouvindo, há perfeições
iguais e até superiores. Ao contrário, mostrou o desejo de completar sua
transformação de jovenzinha em anjo, no segredo de sua casa. E Eu
também a amo tanto, que, nas horas de desgosto pelo que o mundo me faz,
lembrar-me-ei desta doce criatura, bendizendo ao Pai por estas flores de
amor e de pureza com que o Pai me enxuga as lágrimas e os suores de
Mestre de um mundo que não me quer.
157.5Mas, se quiserdes, se tiverdes a coragem de permanecerdes
discípulas eleitas, eis que Eu vos mostro o trabalho que havereis de fazer
para justificar a vossa presença e eleição junto a Mim e junto aos santos do
Senhor.
Vós podeis fazer tanto junto aos vossos semelhantes e para com os
ministros do Senhor. Fiz menção disso[90] à Maria do Alfeu, há muitos
meses. Grande é a falta que faz a mulher junto ao altar de Cristo! As
infinitas misérias do mundo podem ser curadas por uma mulher, muito mais
e melhor do que por um homem, sendo depois levadas ao homem, para que
sejam completamente sanadas. Para vós abrir-se-ão muitos corações,
especialmente os femininos, a vós, ó mulheres discípulas. Deveis acolhê-
los, como se fossem filhos queridos e desencaminhados, que voltam à casa
paterna e que não ousam encarar o pai. Sereis vós que reconfortareis o
culpado e aplacareis o juiz. Muitos virão a vós, à procura de Deus. Vós os
acolhereis, como peregrinos cansados, dizendo-lhes: “Aqui é a casa do
Senhor. Ele virá logo”, e ao mesmo tempo, os circundareis com o vosso
amor. Se não Eu, um meu sacerdote virá.
A mulher sabe amar. Ela foi feita para o amor. Ela rebaixou o amor,
fazendo dele uma fome de sensualidade, mas no fundo de sua carne está
sempre prisioneiro o verdadeiro amor, a joia da alma dela: o amor libertado
da lama acre da sensualidade e dotado de asas e de perfumes angélicos,
dotado de uma chama pura e da lembrança de Deus, da sua origem, que
vem Dele, e de Sua criação. A mulher — a obra-prima da bondade, ao lado
da obra-prima da criação, que é o homem: “E agora seja dada a Adão uma
companheira para que ele não se sinta sozinho” — não deve abandonar os
Adãos. Tomai, portanto, esta faculdade de amar e usai-a no amor do Cristo
e pelo Cristo junto ao próximo.
Sede toda caridade junto aos culpados arrependidos. Dizei-lhes que não
tenham medo de Deus. Como não saberíeis fazer isso, vós que sois mães e
irmãs? Quantas vezes os vossos pequeninos, os vossos irmãozinhos não
estiveram doentes e precisando do médico! E tinham medo. Mas vós, com
carícias e com palavras de amor, tirastes aquele medo e eles, com as
mãozinhas na vossa, mas deixaram-se tratar, sem terem mais o medo de
antes. Os culpados são os vossos irmãos e filhos doentes e temem a mão do
médico e o que ele vai dizer… Não. Não é assim. Dizei-lhe, vós que sabeis
quanto Deus é bom, que Deus é bom e não é preciso temê-lo. Ainda que Ele
seja firme e decidido, ao dizer: “Não deves nunca mais fazer isto”, não
expulsará a quem já fez o mal e ficou doente. Mas tratará dele para que
fique são.
Sede mães e irmãs ao lado dos santos. Eles também têm necessidade de
amor. Cansar-se-ão e se consumirão na evangelização. Não poderão
conseguir tudo o que é preciso fazer. Ajudai-os, vós, discretas e cuidadosas.
A mulher sabe trabalhar. Em casa, por entre as mesas e as camas, junto aos
teares e tudo mais que é necessário para a vida diária. O futuro da Igreja
será uma contínua ida dos peregrinos aos lugares de Deus. Sede vós as
caridosas hospedeiras, que tomais para vós as coisas mais humildes, a fim
de deixardes livres os ministros de Deus para continuarem a obra do
Mestre.
Depois virão os tempos difíceis, sangrentos, ferozes. Os cristãos, até os
santos, passarão horas de terror e de fraqueza. O homem nunca é muito
forte para sofrer. A mulher, ao invés, tem sobre o homem esta verdadeira
realeza do saber sofrer. Ensinai isso ao homem, sustentando-o nessas horas
de medo, de desconforto, de lágrimas, de canseiras e sangue. Em nossa
história temos exemplos de magníficas mulheres que souberam fazer atos
de uma audácia libertadora. Temos Judite, Jael. Mas acreditai que nenhuma
delas é maior, até agora, do que a mãe que foi mártir oito vezes[91], sete em
seus filhos e uma em si mesma, no tempo dos Macabeus. Mais tarde haverá
uma outra… Mas depois que essa tiver vindo, tornar-se-ão frequentes as
mulheres heroínas da dor e na dor, as mulheres conforto dos mártires e
mártires elas próprias, as mulheres anjos dos perseguidos, as mulheres,
sacerdotisas mudas, que pregarão a Deus com seu modo de viver e que, sem
outra consagração a não ser a que elas receberam do Deus-Amor, serão, oh!
serão consagradas e dignas de o serem.
157.6 Estes são em linhas muito esquemáticas, os vossos principais
deveres. Eu não terei muito tempo para dedicar a vós em particular. Mas
vós vos formareis, ouvindo-me. E mais vos formareis sob a guia perfeita da
minha mãe.
Ontem esta mão materna (e Jesus pega na sua a mão de Maria)
conduziu até Mim a jovem de que Eu vos falei e ela me disse que somente
por tê-la ouvido e ficado ao seu lado durante poucas horas, já tinha
amadurecido o fruto da graça recebida, levando-o à perfeição. Não é a
primeira vez que minha mãe trabalha pelo Cristo seu Filho. Tu e tu, meus
discípulos, e também meus primos, sabeis quem é Maria na formação das
almas a Deus e o podeis dizer àqueles ou àquelas que tiverem o temor de
não terem sido preparados por Mim para a missão ou de não o serem ainda
suficientemente, quando Eu não estiver mais entre vós.
Ela, a minha mãe, estará convosco agora, nas horas da minha ausência,
e depois, quando Eu não estiver mais entre vós. Ela fica convosco, e com
ela, a Sabedoria em todas as suas virtudes. Segui, de agora em diante, todos
os seus conselhos.
157.7 Ontem à tarde, quando ficamos sozinhos, Eu, sentado perto dela,
como quando era criança, com a cabeça sobre seu ombro tão doce e tão
forte, minha mãe me disse: “Como é doce ser a Mãe do Redentor!”
Tínhamos falado da jovem que partiu nas primeiras horas da tarde, com um
sol, mais radioso do que aquele do firmamento, encerrado em seu coração
virginal: o seu segredo santo.
Sim, como é doce, quando a criatura que vai ao Redentor é já uma
criatura de Deus, na qual só existe a mancha original, que só pode ser
lavada por Mim. O amor lavou todas as outras pequenas manchas de
imperfeição humana. Mas, minha doce mãe, puríssima guia das almas para
o teu Filho, Estrela santa de orientação, Mestra suave dos santos, piedosa
Nutriz de pequeninos, Cura salutar dos enfermos, nem sempre irão a ti estas
criaturas que não repugnam à santidade… Mas as lepras, mas os horrores,
mas o mau cheiro, os emaranhamentos de serpentes ao redor de coisas
imundas rastejarão até aos teus pés, ó Rainha do gênero humano, para te
gritarem: “Piedade! Socorre-nos! Leva-nos ao teu Filho!”, e terás que
colocar esta tua cândida mão sobre as chagas, inclinar-te com os teus
olhares de pomba paradisíaca sobre as deformidades infernais, aspirar o
fedor do pecado, e não fugir. Ao contrário dizes, acolher sobre o coração
esses mutilados por satanás, esses abortos, estas podridões, e lavá-los com o
teu pranto, e trazê-los a Mim… E então, dirás: “Como é difícil ser a mãe do
Redentor!” Mas tu o farás, porque és a mãe… Eu beijo e abençoo estas tuas
mãos, das quais virão a Mim tantas criaturas, e cada uma será uma glória
para Mim. Mas, antes de ser minha, ela será uma glória tua, ó mãe Santa.
157.8 Vós, queridas discípulas, segui o exemplo da minha mestra e
também de Tiago e de Judas e de todos aqueles que querem formar-se na
graça e na sabedoria. Segui a sua palavra. É a minha palavra, tornada mais
doce. Nada é preciso acrescentar a ela porque é a palavra da mãe da
Sabedoria.
E vós, meus amigos, aprendei das mulheres a humildade e a constância,
e humilhando a soberba do homem, não desprezando as mulheres
discípulas, mas temperai a vossa força, e poderia dizer também, a vossa
dureza e intransigência, ao contato da doçura das mulheres. E, sobretudo,
aprendei delas a amar, a crer e a sofrer pelo Senhor, porque em verdade vos
digo que elas, as fracas, se tornarão as mais fortes na fé, no amor, na
coragem, no sacrificarem-se pelo seu Mestre, que elas amam com todo o
próprio ser, sem nada pedirem, sem nada pretenderem, dando-se por bem
pagas, ao me amarem para poder dar-me conforto e alegria.
Ide agora para as vossas casas ou para as casas em que estais
hospedadas. Eu fico com minha mãe. Deus esteja convosco.
157.9 Todos vão-se embora, menos Marta.
– Tu fica, Marta. Eu já falei com o teu servo. Hoje não é Betânia que
hospeda. Mas a pequena casa de Jesus. Vem. Comerás ao lado de Maria e
dormirás no quartinho junto ao seu. Comerás ao lado de Maria e dormirás
no quartinho junto ao dela. O espírito de José, que foi o nosso conforto, te
confortará, enquanto descansas, e amanhã voltarás para Betânia, mais forte
e firme, para preparar também lá mulheres discípulas, à espera daquela mais
querida a Mim e a ti. Não tenhas dúvida, Marta. Eu nunca faço promessas
em vão. Mas para se fazer de um deserto cheio de víboras um bosque do
paraíso, precisa-se de tempo… O primeiro trabalho não se vê. Parece até
que nada aconteceu. Mas a semente já foi lançada. As sementes. Todas.
Depois virá o pranto, para fazer o que faz a chuva, que abre as sementes…
E as árvores boas virão… Vem!! Não chores mais!
[89] cristãos é o nome que aos discípulos será dado pela primeira vez em Antióquia, como se lê em: Atos 11,26. Jesus, o Cristo, o
prediz aqui (se dirá…) assim como em 280.5 (os crentes virão chamados “cristãos”), em 362.3 (todos aqueles que terão nome de
cristãos), em 596.17 (tal será o nome dos meus súditos). Como profecia pode ser considerado mesmo quando Ele chama Maria
Santíssima “Mãe dos Cristãos” (em 44.11, mas especialmente em 618.5) e qualquer outra ocasião em que o nome de cristãos (ou
mesmo o de católicos, como em 444.5) aparece na obra.
[90] Fiz menção disso a Maria de Alfeu, em 95.6.
[91] mãe que foi mártir oito vezes, segundo a citação de: 2 Macabeus 7. Por outro, a figura de Judite é apresentada em: Judite 8-
16; a de Jael em: Juízes 4,17-22; 5,24-27. A esta última liga-se a figura da profetiza Débora, mencionada em 525.7 em relação ao
relato de: Juízes 4, ì4-16; 5. São mulheres de Israel que a obra recorda ainda em: 32.6 – 91.5 – 176.3 – 373.4 – 414.1 – 420.11 –
439.2 – 470.5 – 472.10 – 525.5.7 – 544.8 – 559.6 – 561.9.12 – 588.6 – 600.21.25 – 613.10 – 638.19.
158. No lago de Genezaré com Joana de Cusa.
8 de maio de 1945.
158.1 Jesus está no lago sobre o barco de Pedro, atrás de dois outros
barcos. Um deles é um comum barco de pesca, gêmeo ao de Pedro; e o
outro é um barco ligeiro, rico, para esporte. É o barco de Joana de Cusa.
Mas a dona dele não está em seu barco. Ela está aos pés de Jesus, no
rústico barco de Pedro. Diria que o acaso os reuniu em algum ponto da
praia florida de Genezaré, que é muito bonita nesta aparição da primavera
palestina, que espalha as suas nuvens de amendoeiras em flor e põe pérolas
de futuras flores sobre as pereiras e macieiras, romãzeiras e marmeleiros,
todas, todas as árvores mais ricas e graciosas na flor e no fruto. Quando o
barco passa rente a uma orla ensolarada, já se mostram os milhões de
botões, que vêm irrompendo sobre os ramos, esperando florescer, enquanto
as pétalas precoces das amendoeiras, borboleteiam pelo ar quieto, até
pousarem sobre as águas claras.
As margens, entre a erva nova que parece uma seda de um verde alegre,
estão pontilhadas pelos olhos de ouro dos ranúnculos, pelas estrelas raiadas,
rígidos sobre seus caules. Ao lado das margaridinhas, como pequenas
rainhas coroadas, sorriem leves, plácidos como as íris das crianças, os
miúdos miosótis, azuizinhos, tão graciosos, e parecem estar dizendo “sim,
sim” ao sol, ao lago, às ervas irmãs, que estão felizes em florescer e em
florescer sob os olhos cerúleos do seu Senhor.
Neste começo de primavera, o lago ainda não tem aquela opulência que
o tornará triunfante nos meses sucessivos; ainda não tem aquela pompa
suntuosa, eu diria sensual, das milhares e milhares de roseiras, rígidas ou
flexíveis, que formam moitas nos jardins ou cobertura nos muros; dos mil e
mil corimbos; dos citisos e das acácias, das milhares e milhares de fileiras
das plantas tuberosas em flor, das milhares e milhares de estrelas
amareladas nos citrinos; de todo este fundir-se de cores e perfumes,
agressivos, suaves, inebriantes, que fazem um cenário e um estímulo ao
anseio humano de gozar, que profana, profana demais este canto da terra tão
puro, que é o lago de Tiberíades, o lugar escolhido há séculos para ser o
teatro do maior número dos prodígios de nosso Senhor Jesus.
158.2 Joana olha para Jesus que está absorto na beleza do seu lago galileu
e o rosto dela sorri, repetindo como espelho fiel o sorriso Dele.
Nos outros barcos estão conversando. Neste há silêncio. O único rumor
é o surdo, dos pés descalços de Pedro e de André, que controlam as
manobras do barco, e o suspiro da água, que vai sendo fendida pela proa, e
que sussurra suas dores ao costado da embarcação, para depois transformar-
se em riso, ao chegar à popa, à medida que a ferida vai-se tornando a fechar
em uma esteira de prata, que o sol faz brilhar, como se tivesse sido feita
com pó diamantino.
Finalmente, Jesus deixa a sua contemplação e volta o olhar para a sua
discípula. Ele lhe sorri e lhe pergunta:
– Estamos quase chegando, não é verdade? E tu dirás que o teu Mestre
é um companheiro muito pouco amável. Eu não te disse uma palavra.
– Mas eu as li em teu rosto, Mestre, e percebi tudo que ias dizendo a
estas coisas que estão ao nosso redor.
– E que é que Eu ia dizendo?
– Amai, sede puros, sede bons. Porque de Deus viestes, e da mão Dele
nada saiu de mau e de impuro.
– Leste bem.
– Mas, meu Senhor, as ervas farão assim. Os animais também. O
homem… Por que é que ele não o faz, ele que é o mais perfeito?
– Porque o dente de satanás só penetrou no homem. Ele pretendeu
destruir o Criador, no seu prodígio maior, mais semelhante a Ele.
158.3 Joana inclina a cabeça e pensa. Parece alguém que está na dúvida e
fica avaliando duas vontades opostas. Jesus a observa. Enfim, ela levanta a
cabeça e diz:
– Senhor, indignar-te-ias em aproximar-te de minhas amigas pagãs? Tu
sabes… O Cusa é da Corte. E o Tetrarca — e mais ainda, a verdadeira
dominadora da Corte: Herodíades, a cuja vontade se dobram todas as
disposições de Herodes, para… acompanhar a moda, para se mostrarem
mais finos do que os outros palestinos, para serem protegidas por Roma,
adorando Roma e tudo mais que é romano — vivem namorando com os
romanos da casa proconsular… e quase no-los impõe. Na verdade, preciso
dizer que elas não são mulheres piores do que nós. Também entre nós, e
nestas mesmas margens, há algumas delas que desceram bem em baixo. E
que é que poderemos falar, se não falarmos a respeito de Herodíades??
Quando eu perdi o meu filho e fiquei doente, elas foram muito boas para
comigo, que não as havia procurado. E depois permaneceu a amizade. Mas
se Tu me dizes que é um mal, eu a desfaço. Não? Obrigada, Senhor.
Anteontem eu estava em casa de uma dessas amigas. Era a minha uma
visita de amizade e de um dever por parte do Cusa. Havia uma ordem do
Tetrarca que… quereria voltar aqui, mas que não se sente muito seguro e
então… trava mais relações interesseiras com Roma, para ter suas costas
protegidas. Aliás… eu te peço… Tu és parente do Batista, não é verdade?
Diz então a ele, para não confiar demais e que não saia nunca dos confins
da Samaria. Antes, se não lhe causar desdém, por lá se esconda por algum
tempo. A serpente se aproxima do cordeiro e o cordeiro tem muito o que
temer. De tudo. Que ele esteja alerta, Mestre. E que não se saiba que eu
disse isto. Seria a ruína do Cusa.
– Fica tranquila, Joana. Eu avisarei ao Batista por um meio bom, sem
prejudicar a ninguém.
– Obrigada, Senhor. Eu quero te servir… mas com isto não queria
prejudicar o meu esposo. Antes… eu… não poderei estar sempre Contigo.
Algumas vezes eu deverei ficar, porque ele assim quer, e é justo…
– Poderás ficar, Joana. Entendo tudo. Não digas mais nada, pois não é
preciso.
– Porém, nas horas de maior perigo para Ti, quererás que eu esteja por
perto?
– Sim, Joana. Certamente.
– Oh! Como me pesava uma coisa destas, ter que dizê-la e a estar
dizendo! Mas agora estou aliviada…
– Se tiveres fé em Mim, estarás sempre confortada. 158.4Mas tu falavas
de uma tua amiga romana…
– Sim. Ela é muito íntima de Cláudia e creio que deva ser sua parente.
Ela gostaria de falar Contigo, pelo menos ouvir-te falar. E não só ela. E
agora, que Tu curaste a menina de Valéria, e a notícia veio rápido como o
relâmpago, o desejo nelas está ainda mais vivo. No banquete da outra tarde
havia muitas vozes a teu favor e contra Ti. Porque estavam presentes
também alguns herodianos e saduceus… ainda que, se lhes fôsse feita a
pergunta, eles o negariam… e havia lá também algumas mulheres… ricas
e… não honestas. Estava lá… eu sinto muito dizê-lo, porque sei que Tu és
amigo do irmão… mas estava lá Maria Madalena com o seu novo amigo e
uma outra mulher, grega, eu creio, e licenciosa como ela. Sabes… é
costume entre os pagãos que as mulheres estejam à mesa com os homens e
isso é muito… muito… Que coisa mais embaraçosa! A gentileza de minha
amiga escolheu para mim como companheiro o meu próprio esposo e isso
me deixou muito aliviada. Mas as outras… Oh!! Pois bem. Falava-se de Ti,
porque o milagre em favor da Faustina deu bastante o que falar e, enquanto
os romanos admiram em Ti o grande médico ou mago — perdoa, Senhor
—, os herodianos e os saduceus jogavam veneno sobre o teu Nome; e
Maria, oh! Maria! Que horror!! Começou com o escárnio e depois… Não,
isto não te quero dizer. Por isso, chorei a noite inteira…
– Deixa-a. Ela ficará sã.
– Mas ela está boa, sabes?
– Na carne. O resto está todo intoxicado. Ficará sã.
– Tu o estás dizendo… As romanas, sabes como são… disseram: “Nós
não tememos feitiços, nem acreditamos em fábulas. Queremos julgar por
nós mesmas”; e depois me disseram: “Não poderíamos ouvi-lo?”
– Diz a elas que no fim da lua de Shebat Eu estarei em tua casa.
– Eu o direi, Senhor. Crês que virão a Ti?
– Há todo um mundo a ser refeito nelas. Primeiro, é preciso destruir e
depois edificar. Mas não é uma coisa impossível. 158.5Joana, eis a tua casa
com o seu jardim. Trabalha nela pelo teu Mestre, como Eu te disse. Adeus,
Joana. O Senhor esteja contigo. Eu te abençoo em seu nome.
O barco chega à terra. Joana implora:
– Não vens mesmo?
– Agora não. Preciso reavivar as chamas. Com poucos meses de
ausência, elas quase se apagaram. E o tempo voa.
O barco para no pequeno golfo, que penetra no jardim de Cusa. Servos
acorrem para ajudar a patroa a descer. O barco patronal vem atrás do de
Pedro até à prancha, depois que João, Mateus, Iscariotes e Filipe saíram
dele e subiram para o de Pedro, o qual, em seguida, lentamente se afasta,
retomando o seu navegar em direção à margem oposta.
159. Discurso em Gergesa sobre a sinceridade na
fé.
A resposta sobre o jejum aos discípulos do Batista.
9 de maio de 1945.
159.1 Jesus fala em uma cidade que eu nunca vi. Assim ao menos me
parece, porque são todas elas mais ou menos iguais no estilo e é difícil
diferenciá-las à primeira vista. Também aqui uma estrada margeia o lago e
os barcos estão aí arrastados para a margem. Casas e casinhas estão
alinhadas para lá da estrada, mas aqui as colinas estão muito mais afastadas
e, por isso, a pequena cidade está em uma sorridente planície, que se
prolonga pelas margens orientais do lago, ficando protegida contra os
ventos pelo baluarte dos outeiros, e por isso é toda tépida pelo sol que aqui,
mais ainda do que em outros campos, aumenta a florescência das árvores.
Parece que o discurso já tenha começado, porque Jesus diz:
– … É verdade. Vós dizeis: “Não te abandonaremos nunca, porque
abandonar-te seria abandonar a Deus.” Mas, ó povo de Gergesa, lembra-te
de que nada é mais mutável do que o pensamento humano. Eu estou
convicto que neste momento realmente vós estais tendo este pensamento. A
minha palavra e o milagre que aconteceu vos entusiasmaram neste sentido
e, neste momento, estais sendo sinceros em tudo o que estais dizendo.
[92].
159.2Mas Eu vos recordo um episódio
Poderia citar mil deles antigos e novos. Vou citar-vos somente este.
Josué, servo do Senhor, antes de morrer, reuniu ao seu redor todas as
tribos com os seus chefes, príncipes, juízes e magistrados e lhes falou, na
presença do Senhor, lembrando-lhes todos os benefícios e prodígios feitos
pelo Senhor, através do seu servo. E depois de ter enumerado todas essas
coisas, convidou-os a repudiarem todo deus que não fôsse o Senhor, ou pelo
menos a serem sinceros em sua fé, escolhendo com sinceridade, ou o
verdadeiro Deus, ou os deuses da Mesopotâmia e dos Amorreus, de modo
que houvesse uma nítida separação entre os filhos de Abraão e os
paganizantes.
Sempre é melhor um erro com convicção do que uma hipócrita
profissão e misturas de fé, o que é uma afronta a Deus e uma morte aos
espíritos. E nada é mais fácil e comum do que essa mistura. A aparência é
boa; debaixo dela está a substância não boa. Ainda agora, filhos, ainda
agora, aqueles fiéis que misturam a observância da Lei com o que a Lei
proíbe, aqueles infelizes, que vacilam como bêbados entre a fidelidade à Lei
e o interesse de negócios e compromissos com os que estão fora da Lei e
dos quais esperam alguma vantagem, aqueles sacerdotes, ou escribas, ou
fariseus. Eles não fazem mais do serviço de Deus a meta de suas vidas, mas
sim, uma astuta política para triunfar sobre os outros e ter todo o poder,
sobre os outros mais honestos; e isto, porque são servos não de Deus, mas
de um poder que eles sabem que é forte e precioso aos seus propósitos, não
são senão hipócritas, que misturam o nosso Deus com os deuses
estrangeiros.
O povo respondeu a Josué: “Nunca aconteça que nós abandonemos o
verdadeiro Deus para servir a deuses estrangeiros.” Josué disse a eles o que
Eu acabei de vos dizer sobre o santo ciúme do Pai, em sua vontade de ser
amado com exclusividade por nós com todo o nosso ser, e de sua justiça em
punir os que são mentirosos.
Punir! Deus pode punir, como pode premiar. Não é preciso que se tenha
morrido para se receber um prêmio ou um castigo. Olha, povo hebreu, se
Deus, depois de haver-te dado tanto, livrando-te dos Faraós, levando-te a
salvo através do deserto e das ciladas dos inimigos, permitindo que te
tornasses uma grande e temida nação, rica de glórias não te puniu depois
nem uma, nem duas, nem dez vezes pelas tuas culpas! E olha o que te
tornaste agora! E Eu, que te vejo precipitar na mais sacrílega das idolatrias,
vejo também em que abismo estás para precipitar-te, por este teu perseverar
sempre nas mesmas culpas. E Eu te chamo a atenção por isso, ó povo, que
és duas vezes meu, por ser Eu o Redentor e por ter nascido de ti. Não é
ódio, não é rancor, não é intransigência. É de amor este meu chamado,
ainda que seja severo.
159.3 Josué então disse: “Vós sois testemunhas disto: vós escolhestes o
Senhor”, e todos responderam: “Sim”. E Josué, sábio, além de destemido,
sabendo quanto é fraca a vontade do homem, escreveu no Livro todas as
palavras da Lei e da aliança e as colocou no Templo e também neste
santuário do Senhor, que está em Siquém, em que naquela ocasião se
guardava o Tabernáculo, colocou uma grande pedra como testemunha,
dizendo: “Esta pedra, que ouviu as vossas palavras ao Senhor, ficará aqui
como testemunha, para que não possais negar e mentir ao Senhor vosso
Deus.”
Uma pedra, por maior e mais dura que seja, sempre pode ser
pulverizada pelo homem, por um raio ou pela erosão das águas e do tempo.
Mas Eu sou a Pedra angular e eterna. E não posso sofrer destruição. Não
mintais a esta Pedra viva. Não a ameis só porque faz prodígios. Amai-a
porque por Ela chegareis ao Céu. Eu gostaria que fôsseis mais espirituais,
mais fiéis ao Senhor. Não digo por Mim. Eu não sou outra coisa, senão a
Voz do Pai. Se me espezinhardes, ferireis Aquele que me enviou. Eu sou o
Meio. Ele é Tudo. Recolhei de Mim e conservai em vós tudo o que é santo,
para que possais ir a este Deus. Não ameis o Homem, amai o Messias do
Senhor, não pelos milagres que faz, mas porque quer fazer em vós o milagre
íntimo e sublime da vossa santificação”.
159.4 Jesus abençoa e se encaminha em direção a uma casa.
Está quase na soleira quando é barrado por um grupo de homens
anciãos, que o saúdam com respeito, dizendo:
– Podemos fazer-te uma pergunta, Senhor? Somos discípulos de João.
Como ele sempre fala de Ti, e também chegou até nós a fama dos teus
prodígios, tivemos vontade de conhecer-te Agora, depois de termos te
ouvido, surgiu diante de nós uma pergunta que te queremos fazer.
– Dizei qual é. Se sois discípulos de João, já deveis estar no caminho da
santidade.
– Tu disseste, quando estavas falando das idolatrias comuns entre os
fiéis, que há pessoas entre nós que fazem comércio entre a Lei e os que
estão fora da Lei. Porém, Tu também és amigo deles. Sabemos que não
desprezas os romanos. E então?
– Não o nego. Mas podeis vós dizer que o faço para obter alguma
vantagem? Podeis dizer que os acaricio, para conseguir deles, ainda que
seja só uma proteção?
– Não, Mestre. E disso estamos mais do que certos. Mas o mundo não é
composto só por nós, que só queremos crer no mal que vemos e não naquilo
que nos é apontado como mal. Agora, diz-nos quais as razões que tornam
plausível o aproximar-se aos gentios. Diz-nos, como norma para nós e para
tua defesa, se alguém te caluniar em nossa presença.
– É um mal, que se façam contatos, com intenções humanas. Não é
mal, quando nos aproximamos deles para levá-los ao Senhor nosso Deus.
Eu faço assim. Se vós fôsseis pagãos, poderia demorar-me para explicar
como todos os homens vêm de um único Deus. Mas vós sois hebreus e
discípulos de João. Por isso, sois a flor dos hebreus, e não precisais de que
Eu vos explique isso. Podeis, portanto, compreender e crer que é meu dever,
sendo Eu o Verbo de Deus, levar a sua palavra a todos os homens, filhos do
Pai universal.
– Mas eles não são filhos, porque são pagãos…
– Pela graça, eles não são. Pela fé errada, eles não o são. É verdade.
Mas, enquanto Eu não vos tiver redimido, o homem, ainda que seja hebreu,
terá perdido a graça, estará privado dela, porque a mancha de origem será
um impedimento para que os raios inefáveis da graça desçam até os
corações. Contudo, pela criação, o homem é sempre filho. De Adão,
primeiro antepassado de toda a humanidade, vêm tanto os hebreus como os
romanos, e Adão é filho do Pai que lhe deu sua semelhança espiritual.
– É verdade. 159.5Uma outra pergunta, Mestre. Por que os discípulos de
João fazem grandes jejuns e os teus não? Não queremos dizer que Tu não
devas comer. Também o profeta Daniel foi santo aos olhos de Deus, ainda
que tenha sido um dos grandes na corte da Babilônia, e Tu és mais do ele.
Mas eles…
– Muitas vezes uma coisa, que não se consegue com rigorismo,
consegue-se com alguma cordialidade. Há pessoas que nunca viriam ao
Mestre, e o Mestre deve ir a elas. Outros há, que viriam ao Mestre, mas se
envergonham de ir no meio da multidão. Também a esses o Mestre deve ir.
E, desde que eles me digam: “Vem ser meu hóspede, para que eu possa
conhecer-te”, Eu vou, tendo em mente não o gozo da mesa opulenta e das
conversas às vezes tão penosas para Mim, mas ainda e sempre, o interesse
de Deus. Isto quanto a Mim. E, visto que frequentemente ao menos uma das
almas, de que Eu me aproximo se converte, e cada conversão é como uma
festa de núpcias para a minha alma, assim os meus discípulos, os amigos do
Esposo — que sou Eu — jubilam-se com o Esposo e Amigo. É uma grande
festa da qual tomam parte todos os anjos do Céu e que é abençoada pelo
eterno Deus. Quereríeis ver os amigos de luto, enquanto Eu jubilo?
Enquanto Eu estou com eles? Mas tempo virá em que não me terão mais. E
então, farão um grande jejum. 159.6Para tempos novos, métodos novos. Até
ontem, com o Batista eram as cinzas da Penitência. Hoje, é o doce maná da
Redenção, da Misericórdia, do Amor. Não poderiam aqueles métodos estar
enxertados no meu, como também o meu não poderia ter sido usado então;
apenas ontem. Porque ainda a Misericórdia não existia na terra. Agora
existe. Não mais o Profeta, mas o Messias está na terra, ao qual tudo foi
deferido por Deus. A cada tempo as coisas que lhe sejam úteis. Ninguém
cose um pedaço de pano novo em uma veste velha, porque de outro modo,
especialmente ao lavá-la, o pano novo encolhe e arrebenta a veste velha e o
rasgão se torna ainda maior. Igualmente ninguém põe vinho novo em odres
velhos, porque, se assim fizer, o vinho arrebenta os odres, incapazes de
suportar a efervescência do vinho novo, o qual se derrama fora dos odres
que arrebentaram. Mas o vinho velho, que já passou por todas as suas
mudanças, é colocado em odres velhos, e o novo em novos. Porque uma
força há de ser enfrentada por outra igual. Assim é agora. A força da nova
doutrina aconselha métodos novos para difundi-la. E Eu, que sei disso, faço
uso deles.
159.7 – Obrigado, Senhor. Agora estamos contentes. Reza por nós. Nós
somos uns odres velhos. Poderíamos resistir à tua força?
– Sim. Porque o Batista vos preparou e porque as orações dele, com as
minhas, vos tornarão capazes de tudo. Ide com a minha paz, e dizei a João
que Eu o abençoo.
– Mas… no teu parecer, é melhor para nós estarmos com o Batista ou
Contigo?
– Enquanto ainda há vinho velho, bebam dele se agrada ao paladar
acostumado ao seu sabor. Depois… como a água podre, que está por toda
parte, vos dará nojo, então passareis a gostar do vinho novo.
– Achas que o Batista vai ser preso de novo?
– Com certeza. Eu já mandei a ele um aviso. Ide, ide. Alegrai-vos com
o vosso João, enquanto podeis e fazei-o feliz. Depois, amareis a Mim. E
isso também vos será penoso… porque ninguém, depois de acostumado
com o vinho velho, vai querer logo o vinho novo. Ele diz: “O velho era
melhor”. E, de fato, Eu terei sabores especiais, que vos parecerão ásperos.
Mas apreciareis, dia por dia, o sabor vital. Adeus, amigos. Deus esteja
convosco.
[92] um episódio, o referido em: Josué 24,1-28.
Segundo ano
da Vida pública de Jesus.
(continuação)
17 de maio de 1945.
165.11 Diz Jesus:
– Estás mal, e Eu te deixo quieta. Somente te faço observar como uma só frase que se omite ou uma
palavra mal transcrita pode mudar tudo. E tu, escrevente, estás atenta e podes consertar logo. Pensa, pois,
e compreende como vinte séculos puderam privar de partes, não prejudiciais à doutrina, mas, sim, à
facilidade para se entender o Evangelho, o Evangelho apostólico. Isto — uma obra que, se remontarmos às
origens, descobrimos estar ainda a serviço da Desordem — explica muitas coisas e serve aos filhos da
Desordem para muitas outras coisas. E tu estás vendo como é fácil cair em erro de transcrição… Pequeno
João, fica quieto, hoje. Tu és uma flor quebrada. Passarei depois Eu para restaurar a tua haste. Deus está
contigo.
[3] cantou para mim as verdades celestes: Estas palavras do Apóstolo do amor – assim escreve MV em uma cópia datilografada – ilustrando muito bem o
mistério da casa de Deus em nós. No santuário da alma, o Espírito Divino se encontra com o nosso espírito e Deus fala e se revela na alma, instruindo-a ao
amor d’Ele e assim comunicando a Sua semelhança mais viva, transformando-a n’Ele, não substancialmente, porque só Deus é Deus, mas por participação.
Nessa cópia datilografada, o trecho 170.1, MV insere a seguinte nota: o Espírito de Deus tanto mais ilumina e revela quanto mais pode fazer morada em um
espírito puro, vazio de “nada” que preenche o homem não espiritual. Quando o homem libera o seu “eu” das coisas terrenas e passageiras, então Deus
preenche de Si aquele vazio e o homem, tornando-se puro – melhor seria se se conservasse assim –, vê e compreende Deus intelectualmente;
misteriosamente o possui como é possuído e como pode ser enquanto o homem está ainda em seu exílio, o possui pelo ardente desejo ao qual responde o
desejo de Deus de possuir os seus filhos, isto é, constitui o pequeno paraíso da Terra, arauto da bem-aventurança eterna e completa do Céu. O tema dessa
posse divina, contrária aquela diabólica, será tratado em 88.2 - 149.6 - 166.9/11 - 224.3/4 - 356.6 - 597.3 - 602.8 - 649.6 - 650.10.
[4] está narrado em: 2 Crônicas 29.
166. Os milagres após a eleição apostólica.
Primeira pregação de Simão, o Zelote, e de João.
18 de maio de 1945.
166.1 Jesus, ao descer até o meio da encosta, vai-se encontrando com muitos dos seus discípulos, e
também com muitos outros que, pouco a pouco foram se unindo aos discípulos e que vieram até este lugar
longe das estradas, pela necessidade de algum milagre e pelo desejo de ouvir a palavra de Deus. Eles
vieram, confiando nas informações que lhes deram outras pessoas, ou por algum piedoso instinto de suas
almas. Eu acho que os anjos da guarda é que guiavam estes homens desejosos de Deus, a chegarem até o
Filho de Deus. E acho também que, dizendo isso, não estou criando nenhuma lenda. Pois, se pensarmos com
que pronta e astuta constância satanás levava os inimigos a Deus e ao seu Verbo, naqueles momentos em
que o espírito demoníaco podia mostrar aos homens alguma aparência de culpa no Cristo, que nos seja
lícito poder pensar — é mais que lícito, é justo — que os anjos não sejam inferiores aos demônios, e possam
levar a Cristo os espíritos não demoníacos.
A todos esses que O esperam, sem sentirem canseiras nem temores Ele distribui a todos prodigamente o
socorro dos milagres e o socorro da palavra. Quantos milagres! Uma florada igual à que embeleza as
saliências do monte: milagres grandes, como aquele de um menino, tirado gravemente queimado de um
palheiro em chamas, e trazido até aqui numa padiola. Era um monte de carne queimada, que gemia com
dificuldade, debaixo do pano com que o cobriram, pois tão repulsivo era o seu aspecto, de tão queimado que
estava, já quase morrendo. Jesus o curou, bafejando-o por cima com o seu hálito e refazendo os lugares das
queimaduras, que foram se reconstituindo completamente, a ponto de o menino levantar-se, nu como
estava, e sair correndo para sua mamãe, que, chorando de alegria, acariciou suas carnes totalmente
curadas, sem nem sinal do fogo, beijando-lhe os olhos, que todos pensavam estivessem queimados, mas
que, pelo contrário, estavam vivos e cintilantes de alegria. Seus cabelos ficaram somente mais curtos, mas
não destruídos, como se a labareda tivesse feito neles um trabalho de navalha, e não de destruição.
Também houve o pequeno milagre de um velhinho tossidor, que dizia:
– Não por mim, mas porque devo servir de pai para os meus netinhos órfãos, não podendo trabalhar a
terra com algo parado aqui na garganta, que me sufoca…
Depois, o milagre não visível, mas que certamente aconteceu, pois é lembrado pelas palavras de Jesus:
– Entre vós, há alguém que está chorando com a alma, e não tem coragem de Me dizer com a palavra
“Tem compaixão!” Mas Eu lhe respondo: “Seja como pedes. Toda a compaixão. Para que saibas que Eu sou
a Misericórdia.” De minha parte só te digo “Tem generosidade.” Sê generoso para com Deus. Arranca toda
ligação com o passado. Deus está te ouvindo; vai, então, a Ele com um coração livre, com um amor total.
Quem quer que seja, por entre o povo, ele ou ela ao qual foram dirigidas estas palavras, eu não sei.
166.2 Jesus diz ainda:
– Estes são os meus apóstolos. São outros tantos Cristos, porque para isto os escolhi. Dirigi-vos a eles
com confiança. Eles sabem, por Mim, tudo o que é necessário para as vossas almas…
Os apóstolos olham para Jesus completamente assombrados. Mas Ele sorri, e continua:
– … darão às vossas almas uma luz de estrela e o conforto do orvalho, a fim de impedir-vos de ficar
enlanguescendo nas trevas. Depois, Eu virei, e vos darei plenitude de sol e de ondas, toda a sabedoria para
tornar-vos fortes e felizes, com uma fortaleza e alegria sobrenaturais. A paz esteja convosco, meus filhos.
Eu estou sendo esperado por outros, mais infelizes e mais pobres do que vós. Mas não vos deixo sozinhos.
Deixo convosco os meus apóstolos, e é como se deixasse os filhos do meu amor confiados aos cuidados das
mais amorosas e confiáveis nutrizes.
Jesus faz um gesto de despedida e de bênção, e se põe a caminho, abrindo passagem por entre a
multidão, que não quer deixá-lo partir, e é então que se dá o último milagre. Uma velhinha semi-paralitica,
que vem sendo conduzida por seu neto, e agita festivamente o braço direito, antes inerte, gritando:
– Ele apenas passou roçando em mim com o seu manto, e eu estou curada! Eu nem lhe havia pedindo,
porque já estou velha… Mas Ele teve dó do meu desejo secreto. Com o manto, com uma fímbria dele, que
me roçou pelo braço perdido, me curou! Oh! Que grande Filho teve o nosso Santo Davi! Glória ao seu
Messias. Mas, olhai! Olhai! Minha perna também ficou boa, como o braço… Oh! Parece-me que estou com
vinte anos!
Tendo todos corrido ao redor da velhinha, que está proclamando com todo o seu fôlego a sua felicidade,
Jesus pode se afastar, sem ser impedido. Os apóstolos vão atrás dele.
166.3 Quando chegam a um lugar deserto, quase na planície, pelo meio de uma quiçaça fechada, ao redor
do lago, param por um momento. Jesus também parapara e diz:
– Eu vos abençôo! Voltai para o vosso trabalho, até que Eu venha, como vos disse.
Pedro, até agora sempre calado, não aguenta mais:
– Mas, Senhor meu, que foi que fizeste? Por que dizer que nós temos tudo o necessário para as almas? É
verdade. Tu nos disseste muitas coisas. Mas nós somos uns cabeçudos; eu, pelo menos… de tudo o que me
deste ficou pouco, ficou muito pouco. É como alguém que, de uma refeição só tem no estômago, o mais
pesado. O resto não existe mais.
Jesus sorri abertamente:
– E, onde foi o resto da comida?
– Eu não sei. Só sei que, se eu como uns pratinhos delicados, depois de uma hora parece-me não ter
mais nada no estômago. Ao passo que, se comer umas raízes pesadas ou umas lentilhas com óleo, oh! que
trabalhão para mandá-las para baixo!
– Certo! Mas, podes crer que as raízes e as lentilhas, que parecem satisfazer-te mais, são as que menos
substância têm: é tudo uma escória que passa, mas com pouca vantagem. Agora, os pratinhos, que depois
de uma hora nem os percebes mais, estão, não no teu estômago, mas já estão no teu próprio sangue.
Quando um alimento foi digerido, não fica mais no estômago, mas seu suco está no sangue, sendo mais útil.
Agora, a ti e aos teus companheiros vos parece que de tudo o que Eu vos disse nada mais haja em vós?
Talvez vos estejais lembrando dos assuntos que fazem vibrar a vossa natureza particular: os violentos se
lembram dos assuntos de violência; os meditativos, dos assuntos de meditação; os amorosos, dos assuntos
cheios de amor. Sem dúvida, é assim mesmo. Mas, crede-me: tudo está em vós. Mesmo, se pensais que
tenha desaparecido. Vós o absorvestes. Vosso pensamento se desenrolará, como um fio multicor,
fornecendo-vos as tintas suaves ou severas, conforme fordes precisando. Não tenhais medo. Pensai também
que Eu sei o que faço e que nunca vos mandaria, se os considerasse incapazes. Adeus. Pedro. Eia! Sorri!
Tem fé! Um belo ato de fé na Sabedoria Onipresente. Adeus a todos. O Senhor fica convosco.
E rapidamente Jesus os deixa espantados e inquietos.
166.4 – Pois é. É preciso obedecer –diz Tomé.
– Ah! Sim! Oh! Pobre de mim! Quase que saio correndo atrás dele… –murmura Pedro.
– Não. Não faças isso. A obediência é amor a Ele –diz Tiago de Alfeu.
– E vamos começar, enquanto Ele está aí por perto, e pode aconselhar-nos, se errarmos. Isso é
elementar, e também é uma santa prudência. Nós temos que ajudá-lo –aconselha Zelotes.
– É verdade. Jesus está um tanto cansado. É preciso ajudá-lo um pouco, como pudermos. Não basta
andar carregando sacos, preparando camas e comida. Isto qualquer um pode fazer. Mas ajudá-lo, como Ele
quer, na sua missão –confirma Bartolomeu.
– Tu falas bem, porque és instruído. Mas eu… Sou quase um ignorante… –geme Tiago de Zebedeu.
- Ó Deus! Aí estão chegando os que estavam lá em cima! Como é que vamos fazer? –exclama André.
E Mateus diz:
– Perdoai-me, se eu, o mais miserável de todos, vos dou um conselho. Não seria melhor orar ao Senhor,
em vez de ficarmos assim a lamentar-nos de certas coisas que com lamentos não se consertam? Vamos,
Judas, tu que conheces tão bem a Escritura, dize aí para todos nós a oração[5] de Salomão para alcançar a
Sabedoria. Logo! Antes que eles cheguem.
E Tadeu, com sua bela voz de barítono, começa:
– “Deus dos meus pais, Senhor de misericórdia, que tudo criaste…” –etc. etc…, e chega até o ponto em
que se lê: “pela sabedoria foram salvos todos aqueles que a Ti, Senhor, agradaram, desde o princípio.”
Mal tendo tempo, antes que o povo chegue, e os envolva e os assalte com mil perguntas como: “Aonde é
que foi o Mestre? Quando Ele voltará?” E a mais difícil de ser respondida: “Como faremos para acompanhar
o Mestre, não com as pernas, mas com as almas pelas trilhas que levam ao Caminho de que Ele fala?”
Com esta pergunta, os apóstolos ficam embaraçados. Olham-se uns aos outros, e Iscariotes responde:
– Seguindo a perfeição –como se esta fosse uma resposta capaz de explicar tudo!…
Tiago de Alfeu, mais humilde e mais moderado, fica pensando e depois diz:
– A perfeição de que fala o meu companheiro consegue-se obedecendo à Lei. Porque a Lei é justiça e a
justiça é perfeição.
166.5 O pessoal ainda não está contente, e um chefe pergunta:
– Mas nós somos pequenos no bem, como crianças. As crianças não sabem ainda o significado do Bem e
do Mal, não distinguem um do outro. Nós, neste caminho que Ele nos indica, estamos ainda tão rudes, que
somos incapazes de distinguir. Nós tínhamos um caminho conhecido. O caminho antigo que nos haviam sido
ensinado nas escolas. Era difícil, longo, medonho! Agora, pelas palavras dele, percebemos que é como
aquele aqueduto, que estamos vendo daqui. Por baixo dele passa o caminho dos animais e do homem, e por
cima, por sobre os arcos leves, exposto ao Sol e ao azulperto dos ramos mais altos, que fazem ruído e
cantam com o vento e com os passarinhos, há um outro caminho liso, tão limpo e tão luminoso, quanto
escabroso, sujo e escuro é o debaixo. Ele é um caminho para a água límpida e cantante, que é uma bênção.
Esta água que vem de Deus, acariciada por tudo o que é de Deus: raios de Sol e de estrelas, copas novas de
árvores, flores, asas de andorinhas. Nós gostaríamos de subir para aquele caminho mais alto, e que é o
dele, mas não sabemos, porque estamos fincados embaixo, sob o peso de toda a construção antiga. Como
faremos?
É um jovem dee vinte e cinco anos, moreno, robusto, olhar inteligente, com o aspecto menos popular em
meio à maioria dos presentes. Ele tem o apoio de um outro já mais maduro.
Iscariotes, alto como é, o vê, e sussurra:
– Vamos logo. Falai bem. Aí estão Hermes com Estêvão, o predileto do Gamaliel.
Estas palavras vêm perturbar completamente os apóstolos.
166.6 Enfim, Zelotes responde:
– O arco da construção não existiria, se não houvesse uma base no caminho escuro. Esta é a fonte de
onde nasce o arco que leva ao azul, do qual estás desejoso. As pedras fincadas no chão, que suportam o
peso, e não desfrutam da visão dos raios e dos vôos, elas não deixam de saber que estas duas coisas
existem, porque, de vez em quando, uma andorinha desce com um grito até à lama, e vem acariciar a base
do arco, e desce também um raio do sol ou de estrela, para dizer quanto é belo o firmamento. Foi assim que
nos séculos passados desceu, de tempos em tempos, uma palavra do céu como promessa, um raio celeste
de sabedoria, para acariciar as pedras oprimidas pela ira divina. Pois as pedras eram necessárias. Não são,
nunca foram, nem serão inúteis nunca. Sobre elas elevou-se lentamente o tempo e a perfeição do
conhecimento humano, até chegar à liberdade do tempo presente e à sabedoria do conhecimento sobre-
humano.
Já estou lendo a objeção, que está escrita em teu rosto. É a mesma que todos nós tivemos, antes que
soubéssemos compreender que esta é a nova Doutrina, a Boa Nova pregada àqueles que, por um processo
retrógrado, não conseguiram tornar-se adultos. Não acompanharam o elevar-se das pedras do saber, mas
ficaram cada vez mais obscurecidos, como um muro que se mergulha num abismo sem luz.
Nós, para sairmos desta doença de obscurecimento sobrenatural, devemos libertar corajosamente a
pedra fundamental de todas as outras pedras, sobrepostas a ela. Não tenhais medo de demolir o que é um
muro alto, mas que não tem a linfa pura da nascente eterna. Voltai para a base. Ela não deve ser mudada.
Vem de Deus. É imóvel. Antes de tirar as pedras, porque nem todas são más e inúteis, tirai a prova de cada
uma, ao som da palavra de Deus. Se o som delas não discorda da palavra, conservai-as, e usai-as de novo na
construção. Mas, se nelas perceberdes o som desafinado da voz humana, ou o som dilacerante da voz de
satanás despedaçai as pedras más. Não há perigo de enganar-vos porque, se a voz é de Deus, seu som é de
amor, e, se a voz é humana, seu som é de sensualidade, e, se a voz é de satanás, é uma voz de ódio. Eu digo
despedaçai, porque é caridade não deixar atrás os germes e outros objetos maus, que possam seduzir o
viandante, induzi-lo a fazer uso deles, ficando prejudicado. Quebrai literalmente cada coisa que foi vossa
tanto em obras, como em escritos, ensinamentos ou atos, se ela não for boa. É melhor ficar com pouco,
ganhando altura de apenas um côvado, com pedras boas, do que chegar a alguns metros, mas com pedras
más. Os raios do Sol e as andorinhas descem até sobre os muros de pedras soltas, que pouco se elevam do
chão, e as flores humildes da beira do caminho com facilidade conseguem acariciar as pedras baixas.
Enquanto as pedras soberbas, que querem elevar-se, inúteis e escabrosas, não recebem mais do que os
arranhões, das sarças, e o abraço das ervas venenosas. Demoli para reconstruir e subir, avaliando a
bondade de vossas antigas pedras, ao som da voz de Deus.
166.7 – Falas bem, meu homem. Mas, como subir? Nós te dissemos que somos menos que umas crianças.
Quem nos fará subir por uma coluna tão a pino? Nós vamos avaliar as pedras, ao som da palavra de Deus,
despedaçando as menos boas. Mas, como subir? Só pensar nisso nos dá vertigem! –diz Estevão.
166.8 João, que ficou o tempo todo escutando, de cabeça inclinada e sorrindo para si mesmo, levanta um
rosto iluminado, tomando a palavra.
– Meus irmãos! Só pensar em subir me dá vertigem. É verdade. Quem está dizendo que é preciso
procurar atingir as alturas diretamente? Não são só os pequenos, mas nem os adultos, podem fazer isso.
Somente os anjos podem projetar-se no azul, porque eles estão livres de todo peso da matéria. Só os heróis
da santidade podem fazer isso.
Nós temos alguém, que ainda está vivo neste mundo tão envilecido, que sabe ser herói de santidade
como os antigos de que Israel se gloria, quando os Patriarcas eram amigos de Deus, e a palavra do Código
eterno era a única obedecida por toda criatura integra. João, o Precursor, ensina como é que se atinge as
alturas diretamente. E João é um homem. Mas a Graça que o fogo de Deus lhe comunicou, purificando-o
desde o ventre de sua mãe, do mesmo modo que foi purificado pelo Serafim o lábio do Profeta a fim de que
ele pudesse preceder ao Messias, sem deixar o fedor da culpa original sobre o caminho real do Cristo, deu a
João asas de anjo que a penitência fez crescer, abolindo, o peso de humanidade que a natureza de nascido
de mulher lhe havia conservado. É daí que João, de sua caverna onde prega a penitência, e do seu corpo no
qual arde o espírito desposado com a Graça, se projeta, ao ápice do arco, além do qual está Deus, o
Altíssimo Senhor nosso Deus. Dominando os séculos passados, o presente e o futuro, pode anunciar, com
voz de profeta e com olhos de águia, capazes de fixar o Sol eterno: “Eis o Cordeiro de Deus, O que tira os
pecados do mundo”, morrendo depois desse seu canto sublime, que será usado, não só no tempo limitado,
mas no tempo sem fim na Jerusalém eterna e feliz, para aclamar a Segunda Pessoa, invocá-la nas misérias
humanas, e cantar-lhe hosanas nos fulgores eternos.
166.9 O Dulcíssimo Cordeiro deixou a sua luminosa morada dos Céus, nos quais Ele é Fogo de Deus em
abraço de fogo. Oh! eterna geração, do Pai que concebe com Pensamento ilimitado e santíssimo o seu
Verbo, absorvendo-o, produz uma fusão de amor que cria o Espírito de Amor, no qual se concentra o Poder e
a Sabedoria! Mas o Cordeiro de Deus, que deixou a sua puríssima e incorpórea forma, para encerrar sua
pureza infinita, sua santidade, sua natureza divina em carne mortal, sabe que nós não somos os purificados
pela Graça. Sabe que não poderíamos, como a águia que é João, projetar-nos às alturas, ao cume onde está
Deus Uno e Trino. Nós somos pequenos pássaros dos telhados e da rua, somos andorinhas que tocam o
azul, e vivem comendo insetos; somos cotovias, que querem cantar para imitar os anjos, mas diante deste
canto, o nosso se torna um frêmito desafinado de cigarra de verão. O Doce Cordeiro de Deus, que veio para
tirar os pecados do mundo, sabe muito bem tudo isso. Porque, não sendo mais o Espírito Infinito dos Céus,
porque limitado na carne mortal, a sua infinidade não fica diminuída, e tudo conhece, sendo a sua sabedoria
sempre infinita.
E eis que agora Ele nos está ensinando o seu caminho. O caminho do amor. Ele é o Amor que, por
misericórdia se faz carne. Eis que agora este Amor Misericordioso cria para nós um caminho por onde até
os pequeninos podem subir. Ele, não por necessidade, mas para nos ensinar, o percorre por primeiro a
nossa frente. Ele nem teria necessidade de abrir as asas para voar, pois estaria intimamente unido ao Pai. O
seu espírito, eu vo-lo garanto, está encerrado aqui, nesta pobre terra, embora sempre com o Pai, porque
Deus tudo pode, e Ele é Deus. Mas Ele está à frente, deixando atrás de Si os aromas da santidade, o ouro e
o fogo do amor. Observai o seu caminho. Oh! Como chega até ao ápice do arco! Como é tranquilo e seguro!
Não segue em linha reta, mas numa espiral. É mais longo o caminho, e o seu sacrifício de amor
misericordioso, se revela assim, quando Ele se detém por amor dos fracos. Sendo mais longe é mais
apropriado à nossa miséria. A subida para o Amor, para Deus, é simples, como simples é o Amor. Mas é
profunda, porque Deus é um abismo inatingível, se Ele não se abaixasse para fazer-se atingível, para sentir-
se beijar pelas almas enamoradas dele. –(João fala e chora, sorrindo com a boca, no êxtase da revelação que
faz de Deus)–. É longo o caminho simples do Amor, porque o Abismo, que é Deus, não tem fim. Pode-se
subir, até quanto quiser. O Abismo Admirável chama o nosso abismo miserável. Chama com as suas luzes,
dizendo: “Vinde a Mim!” Oh! O convite de Deus! Convite de Pai!
166.10 Ouvi! Ouvi! Dos Céus abertos, porque Cristo escancarou as suas portas, com os anjos da
Misericórdia e do Perdão na expectativa da Graça, enviando luzes, perfumes, cantos e orvalhos, a fim de
seduzir santamente os corações dos homens, com palavras suavíssimas. É a voz de Deus que fala: “A vossa
inocência? É a vossa melhor moeda! Eu gostaria que todos vós vos tornásseis pequenos, para possuirdes a
humildade, a sinceridade e o amor das crianças, o confiante amor infantil para com o pai. Sereis incapazes?
Esta é a minha glória! Oh! Vinde. Eu nem vos peço para, avaliar o som das pedras boas ou más. Dai-as a
Mim! Eu as escolherei, e vós vos reconstruireis. Será uma subida para a perfeição? Oh! não, meus
pequenos filhos. Aqui com a mão na mão do meu Filho, vosso Irmão, ao lado dele, subi…” Subir! Ir a Ti,
Eterno Amor! Tomar a tua semelhança, isto é o Amor!
Amar! Aí está o segredo!… Amar! Dar-se. Amar! Aniquilar-se, Fundir-se. A Carne? A dor? Não é nada. E
o tempo? Não é nada. Até o pecado se torna um nada, se eu o dissolvo no teu fogo, ó Deus! Só o Amor é
tudo. O Amor. O Amor que nos deu o Verbo Encarnado nos dará todo o perdão. Amar é uma coisa que
ninguém sabe melhor do que as crianças. E ninguém é mais amado do que uma criança.
166.11 Ó tu, que eu não conheço, mas que queres conhecer o Bem para distingui-lo do Mal, para teres o
azul, o Sol celeste, tudo o que é alegria sobrenatural, ama, e o terás. Ama a Cristo. Morrerás na vida, mas
ressuscitarás no espírito. Com um espírito novo, sem teres mais necessidade de fazer uso de pedras, serás
por toda a eternidade um fogo que não morre. Sua chama sobe. Ela não precisa de degraus nem de asas
para subir. Livra o teu eu de toda construção, coloca em ti Amor. Inflamar-te-ás. Deixa que isso aconteça
sem restrições. Excita, pelo contrário, aumenta a chama, com todo o teu passado de paixões, de saber. Na
chama se destruirá o que for menos bom, e o que é metal nobre, se tornará puro. Joga-te, ó irmão, no amor
ativo e jubiloso da Trindade. Compreenderás isto que agora te parece incompreensível, porque
compreenderás a Deus, que é compreensível somente por aqueles que se entregam, sem medida, ao seu
fogo sacrificador. Fixar-te-às finalmente em Deus, num abraço de chama, rezando por mim, a criança de
Cristo, que ousou falar-te do Amor.
166.12 Estão todo estupefatos: os apóstolos, os discípulos e os fiéis… O interpelado está pálido, enquanto
que João está cor de purpura, não tanto pelo cansaço, como pelo amor.
Enfim, Estêvão dá um grito:
– Bendito sejas tu! Mas, diz-me quem és?
João faz um gesto que me faz lembrar muito a Virgem no Ato da Anunciação, diz em voz baixa, curvando-
se em adoração dAquele de quem fala:
– Eu sou João. Em mim estás vendo o menor de todos, entre os servos do Senhor!
– Mas, quem foi o teu mestre, antes desta hora?
– Alguém, que é Deus, pois eu recebi o leite espiritual de João, pressantificado de Deus, nutro-me do pão
de Cristo, do Verbo de Deus, e bebo do fogo de Deus, que me vem dos Céus. Glória seja ao Senhor!
– Ah! mas eu não vos deixo mais. Nem a ti, nem a este não deixo a ninguém. Tomai-me convosco!
– Quando… Oh! Aqui está Pedro, que é o nosso chefe –e João segura o atordoado Pedro, e o proclama
assim “o primeiro.”
Pedro reencontra a si mesmo:
– Filho, para uma grande missão, é necessária uma severa reflexão. Este é o nosso anjo e acende, a
chama. Mas é preciso saber se a chama em nós será duradoura. Mede-te a ti mesmo. Depois vem ao Senhor.
Nós te abriremos o coração como a um irmão caríssimo. Por enquanto, se quiseres conhecer melhor a nossa
vida, fica. Os rebanhos de Cristo podem crescer sempre para serem escolhidos os verdadeiros cordeiros
entre falsos carneiros.
Com isto, chega ao fim a primeira manifestação apostólica.
[5] oração que está em Sabedoria 9.
167. O encontro com as romanas
no jardim de Joana de Cusa.
19 de maio de 1945.
167.1 Jesus, com a ajuda de um barqueiro, que o acolheu em seu barco, desembarca pela prancha do
jardim de Cusa. Um jardineiro já O viu e vai ao seu encontro para abrir a cancela, que barra aos estranhos
o ingresso na propriedade ao lado do lago, - uma cancela alta e forte escondida por uma sebe, muito viçosa
e alta, com loureiros e buxos, do lado externo, o do lago, e de rosas de todas as cores do lado interno da
casa. As esplêndidas roseiras ornam com flores as copas bronzeadas dos loureiros e dos buxos, insinuam-se
pelo meio das ramagens, atravessam aparecendo do outro lado, ou ultrapassam completamente a barreira
verde, fazendo cair seus ramos floridos para além da sebe. Só num ponto, na altura duma alameda, a barra
se apresenta nua, abrindo-se para dar passagem.
– A paz a esta casa e a ti Joana. Onde está a tua patroa?
– Está com as amigas. Vou já chamá-la. Há três dias que estão Te esperando pelo receio de chegarem
atrasadas.
Jesus sorri. O criado vai correndo chamar Joana. Enquanto isso, Jesus caminha lentamente para o lugar
que lhe foi mostrado pelo criado, admirando o belíssimo jardim, o belíssimo roseiral, que Cusa mandou
formar para sua mulher. São rosas de todas as cores, tamanhos e formas, plantadas nesta enseada bem
resguardada do lago, sorrindo, precoces e esplêndidas. Há também pés de outras flores. Mas elas ainda não
floriram, e sua presença é pouco notada, diante da quantidade das roseiras.
167.2 Joana vem chegando. Ela nem pôs no chão um pequeno cesto com rosas até a metade, ou deixou a
tesoura, e assim vai correndo, com os braços estendidos, ágil e gentil em sua rica veste de lã leve de um
cor-de-rosa muito claro, cujos frisos estão presos por um arranjo de broches e fivelas em filigrana de prata,
sobre os quais brilham algumas pálidas granadas.
Por cima de seus cabelos negros e ondulados, um diadema em forma de mitra, também de prata e com
granadas, está segurando um véu de linho muito ligeiro, também cor-de-rosa, que recai para trás, deixando
descobertas as pequenas orelhas, das quais pendem pesados brincos parecidos com o diadema. O rosto é
risonho, o pescoço é delicado, onde brilha um colar trabalhado com a mesma arte de todos os outros
adornos preciosos.
Ela deixa cair o seu cesto aos pés de Jesus, e se ajoelha, entre as rosas espalhadas, para beijar-lhe a
veste.
– A paz esteja contigo, Joana. Eu vim.
– Eu estou feliz. Elas também vieram. Oh! Agora me parece ter feito mal. Como fareis para entender-
vos? Elas são pagãs mesmo!
Joana está um pouco agitada.
Jesus sorri, e põe-lhe a mão sobre a cabeça:
– Não tenhas medo. Nós nos entenderemos muito bem. E tu agiste muito bem. O encontro produzirá
muitas flores de bem, como o teu jardim produz rosas. Apanha agora estas pobres rosas, que deixaste cair,
e vamos ao encontro das tuas amigas.
– Oh! Rosas, nós temos bastantes! Eu tratava delas para passar o tempo e, além disso, porque as minhas
amigas são assim… assim… tão voluptuosas. Gostam das flores, como se fossem… não sei…
– Mas Eu também gosto de flores! Estás vendo como já encontramos um assunto para nos entendermos
Eu e elas? Vamos! Vamos apanhar estas esplêndidas rosas…
E Jesus se inclina, para dar o exemplo.
– Tu, não. Tu não, Senhor! Mas, se queres mesmo… está feito.
167.3 Caminham até um quiosque, que é formado por um entrelaçamento multicor de roseiras. Da soleira,
três romanas estão espreitando: Plautina, Valéria e Lídia. A primeira e a última estão perplexas, enquanto
Valéria sai correndo para fora, e se inclina, dizendo:
– Salve, ó Salvador da minha pequena Fausta!
– Paz e luz a ti e as tuas amigas.
As amigas se inclinam sem dizerem nada.
Já conhecemos Plautina, alta, imponente, com belos olhos negros, um pouco dominadores, por baixo de
uma fronte lisa e muito alva, um nariz reto, perfeito, a boca um pouco saliente, mas bem feita, queixo
arredondado e distinto, que me faz lembrar certas estátuas, muito belas, de imperatrizes romanas. Pesados
anéis reluzem em suas belas mãos e grandes braceletes de ouro circundam seus braços, torneados como
das estátuas nos pulsos e nos cotovelos, que expõem à luz um branco rosado, liso e perfeito, fora das
mangas curtas e drapejadas.
Lídia, por sua vez, é loura, mais delicada e mais nova. Sua beleza não é imponente como a de Plautina,
mas tem toda a graça de uma juventude feminina ainda um pouco agreste. Uma vez que estamos diante de
um tema pagão, eu poderia dizer que, se Plautina parece a estátua de uma imperatriz, Lídia poderia ser
uma Diana, ou uma ninfa de aspecto pudico e gentil.
Valéria, agora que não está naquele desespero em que a vimos em Cesareia, aparece na sua beleza de
jovem mãe, com suas formas um pouco avolumadas, mas ainda bastante juvenis, com aqueles olhos
tranquilos da mãe feliz por poder nutrir e ver crescer, o seu filhinho. De cor róseo-acastanhada, ela tem um
sorriso comedido, mas muito agradável.
Tenho a impressão de que sejam damas de grau inferior ao de Plautina, pois até no seu modo de olhá-la,
denotam veneração de rainha.
167.4 – Estáveis cuidando das flores? Continuai, continuai. Poderemos falar, mesmo enquanto colheis estas
esplêndidas obras do Criador, que são as flores, e enquanto as dispondes com a habilidade em que Roma é
mestra, ao preparar vasos tão belos em que lhes prolonga a breve vida… Se ficamos admirados, ao
olharmos para este botão, que mal começa a abrir o sorriso de suas pétalas de um amarelo rosado, como
poderíamos deixar de ficar tristes, ao vê-lo morrer? Mas, oh! como ficariam pasmados os judeus, se me
ouvissem dizer isso! Contudo, é porque, até na natureza das flores, sentimos alguma coisa de vida. Ver o
fim delas nos causa dó. Entretanto, a planta é mais sábia do que nós. Ela sabe que, de cada ferida de um
dos seus talos cortados, nasce um novo broto, que produzirá uma nova rosa. Eis por que nossa mente deve
recolher este ensinamento, e fazer, do amor um pouco sensual pela flor, um estímulo para pensar em coisas
mais altas.
– Que coisas, Mestre? –pergunta Plautina, que o escuta atentamente, seduzida pelo pensamento
elegante do Mestre hebreu.
– Assim como a planta não morre, enquanto a sua raiz estava nutrida pelo solo, assim a humanidade não
morre, quando termina a vida terrena de um ser ela sempre ela solta novas flores. Um pensamento ainda
mais alto para bendizermos o Criador: enquanto uma flor, desde que tenha morrido, não mais revive, o que
é triste, o homem, por mais adormecido que esteja em seu último sono, não está morto, mas vivo, com uma
vida ainda mais brilhante, recebendo a vida eterna e o esplendor do Criador que o formou. 167.5 Por isso,
Valéria, se a tua menina tivesse morrido, não terias perdido as carícias dela. Sobre a tua alma teria sempre
descido o beijo da tua filha, separada de ti, mas não esquecida do teu amor. Estás vendo como é doce ter
uma fé na vida eterna? Onde está agora a tua pequenina?
– Naquele berço coberto. Eu nunca me separei, porque o amor para com o marido e pela filha eram as
duas metas de minha vida. Agora que sei o que é vê-la morrer, não a deixo nem por um instante.
Jesus se dirige para a cadeira sobre a qual está colocado algo como um bercinho de madeira, coberto
por uma rica colcha. Ele a descobre, e olha a pequenina adormecida, que o ar, que está soprando sobre ela
um pouco mais vivo, acaba por despertar. Seus olhinhos se abrem espantados, e um sorriso de anjo faz
abrir a boquinha, enquanto as mãozinhas se abrem, desejosas de agarrar os cabelos ondulados de Jesus, e
um chilrar de passarinho assinala a formação de um discurso no pensamento dela. Enfim, solta a grande e
universal palavra:
– Mamãe!
– Pegue-a, pegue-a –diz Jesus, que se afasta para deixar que Valéria possa inclinar-se sobre o berço.
– Mas ela vai te aborrecer!… Eu vou chamar uma escrava e mandar que a leve pelo jardim.
– Aborrecer? Oh! Não. As crianças nunca aborrecem. São sempre minhas amigas.
– Tens filhos ou sobrinhos, Mestre? –pergunta Plautina, que está observando o sorriso com que Jesus
está provocando a pequenina para fazê-la sorrir.
– Não tenho filhos nem sobrinhos. Mas amo as crianças, como amo as flores. Porque elas são puras e
sem malícia. Eu até te peço, dá-me, ó mulher, a tua pequenina. Apertar contra o coração um pequeno anjo é
tão doce para Mim.
E Jesus se assenta com a pequenina, que olha para Ele, e despenteia a sua barba. Depois ela acha
melhor brincar com as franjas do seu manto e com o cordão da sua túnica, aos quais ela dedica um longo e
misterioso discurso.
167.6 Plautina diz:
– A nossa boa e sábia amiga, uma das poucas que não nos despreza, nem sente corromper-se em nossa
companhia, ela deve ter-te dito que tínhamos o desejo de ver-te e ouvir-te para termos uma ideia do que
realmente és. Porque Roma não crê em fábulas… Por que estás sorrindo, Mestre?
– Depois Eu te direi. Continua.
– Porque Roma não crê em fábulas, e quer julgar com ciência e consciência, antes de condenar ou
exaltar. O teu povo tanto te exalta, como te calunia, na mesma medida. As tuas obras levariam a exaltar-te.
As palavras de muitos hebreus levariam a tomar-te por um delinquente. As tuas palavras são solenes e
sábias, como as de um filósofo. Roma tem muito amor às doutrinas filosóficas e… devo dize-lo, os nossos
filósofos atuais não tem uma doutrina que satisfaça, mesmo porque o modo de vida deles não corresponde
ao que eles ensinam.
– Eles não podem ter um modo de vida que corresponda à sua doutrina.
– Porque eles são pagãos, não é?
– Não. Porque são ateus.
– Ateus? Eles tem os seus deuses.
– Nem deuses têm mais, mulher. Eu te faço lembrar dos antigos filósofos, os maiores. Eram pagãos, eles
também, mas, não obstante isso, que elevação de vida houve entre eles! Estava misturada com o erro,
porque o homem é levado a errar. Mas, quando eles se viram diante dos maiores mistérios: a vida e a morte,
quando estiveram colocados diante do dilema da Honestidade ou da Desonestidade, da Virtude ou do Vício,
do Heroísmo ou da Covardia, e pensaram que, se se inclinassem para o mal, isso seria um mal para a pátria
e para os cidadãos, com uma vontade de gigantes, jogaram para longe de si as garras dos maus pólipos e,
livres e santos, souberam querer o Bem, a qualquer custo. Este Bem não é outra coisa senão Deus.
167.7– Dizem que Tu és Deus. É verdade?
– Eu sou o Filho do Deus Verdadeiro, feito carne, sem deixar de ser Deus.
– Mas, o que é Deus? Deve ser o maior dos mestres, se for como Tu.
– Deus é muito mais do que um mestre. Não limiteis a ideia sublime da Divindade, limitando-a à de
sabedoria.
– A sabedoria é uma divindade. Nós temos Minerva. É a deusa do saber.
– Vós tendes também Vênus, deusa do prazer. Podereis admitir que um deus, isto é, um ser superior aos
mortais, tenha elevado até à perfeição tudo o que há de mais feio nos mortais? Podereis pensar que alguém,
que é eterno, tenha para sempre as pequenas, mesquinhas e vis delicias dos que só têm uma hora de
tempo? Fazendo delas a meta de sua vida? Não pensais que esse céu, que vós chamais de Olimpo, e onde
estão fermentando os sucos mais azedos da humanidade, possa ser sujo? Se olhais para o vosso céu, que é
que vedes? Luxurias, delitos, ódios, guerras, furtos, bebedeiras, trapaças, vinganças. Quando quereis
celebrar as festas de vossos deuses, o que fazeis? Orgias. Qual o culto que prestais a eles? Onde está a
verdadeira castidade das consagradas a Vesta? Sobre que código divino os vossos pontífices se apoiam,
para julgar? Que palavras os vossos áugures podem ler no vôo dos pássaros ou no estrondo do trovão? E as
sangrentas vísceras dos animais sacrificados, que resposta podem dar aos vossos arúspices? Tu disseste:
“Roma não crê em fábulas.” Então, por que Roma crê que doze pobres homens, levando um porco ao redor
dos campos, com uma ovelha e um touro imolados, possam o tornar oferta propícia a Ceres, se vós tendes
inúmeras divindades, uma odiando a outra, acreditando nas vinganças delas? Não. Deus é uma coisa bem
diferente. Ele é Eterno, é Único e Espiritual.
– Mas Tu dizes que és Deus, e és carne.
– Há ainda um altar sem deus, na pátria dos deuses. A sabedoria humana o dedicou ao Deus
desconhecido. Porque os sábios, os verdadeiros filósofos, entreviram que havia alguma coisa, além do
cenário histórico, criado pelas eternas crianças que são os homens com espíritos enfaixados por vendas de
erro. Se estes sábios intuíram haver algo além do cenário mentiroso, alguma coisa de verdadeiramente
sublime e divino, que fez tudo o que existe, e do qual vem tudo que há de bom no mundo, agora eles
quiseram um altar para o Deus desconhecido, que pressentiam ser o Verdadeiro Deus. Como podeis dar o
nome de deuses aos que deuses não são, e dizer que sabeis o que na realidade não sabeis? Procurai, pois,
saber o que é Deus, para poderdes conhecê-Lo e honrá-Lo. 167.8 Deus é Aquele que do seu pensamento fez
tudo do nada. Será que vos deixais persuadir e satisfazer só com a fábula das pedras que se transformaram
em homens? Em verdade há homens mais duros e malvados do que a pedra, e há pedras mais úteis do que o
homem. Mas, para ti, Valéria, não é mais doce, ao olhares para esta tua pequenina e pensar assim: “É uma
vontade viva de Deus, por Ele criada e formada, por Ele dotada de uma segunda vida que não morre, de
modo que eu a terei ainda, a minha pequena Fausta, por toda a eternidade, se eu crer no Deus Verdadeiro”,
em vez de dizer: “Estas carnes rosadas, estes cabelos mais finos do que fios de uma teia aranha, será que
tudo isso vem de uma pedra?” Ou haverá de dizer: “Eu sou em tudo semelhante à loba, à fêmea do cavalo,
brutalmente me acasalo, brutalmente gero, brutalmente crio, e esta filha é fruto do meu instinto bruto, é
bruto como eu. Amanhã, quando ela morrer, quando eu também morrer, seremos duas carniças, que se
desfazem com fedor, e que nunca mais se verão?” Dize-me! O teu coração de mãe que é que acharia destas
duas razões?
– Certamente a segunda, não, Senhor! Se eu tivesse sabido que Fausta não era uma coisa que pudesse
ser desfeita para sempre, a minha dor teria sido menos impiedosa. Porque eu teria dito: “Eu perdi uma
pérola. Mas ela ainda existe. E eu a encontrarei de novo.”
– Tu disseste tudo. 167.9Quando eu vim ao vosso encontro, a vossa amiga me disse que se admirava da
vossa paixão pelas flores. E tinha medo que isso pudesse Me desagradar. Mas Eu lhe garanti que não: “Eu
também gosto de flores e, por causa disso, vamos entender-nos muito bem.” Mas quero levar-vos a amar as
flores, como levo Valéria a amar a sua filha, da qual, estou certo de que ela vai cuidar com muito mais
cuidado, agora que ela sabe que a filha tem uma alma, que éuma pequena parte de Deus[6], encerrada na
carne que a sua mãe lhe deu, uma pequena parte que não morre e que a mãe encontrará no céu, se crer no
Verdadeiro Deus. Assim, também vós. Olhai esta rosa tão linda. A púrpura, que embeleza a veste do
imperador é menos esplêndida do que uma destas pétalas, que não só é alegria para os olhos, por sua cor,
mas tambémpelo tatopelo olfato.e perfume. Olhai esta também, e esta outra, e mais esta. A primeira parece
sangue que jorrou de um coração, a segunda, é neve que acabou de cair, a terceira é ouro pálido, a última
perece ter sido feita com esta doce face infantil, que aí está sorrindo para Mim. A primeira está rígida sobre
o seu grosso pedúnculo quase sem espinhos, fortemente vermelha no meio da folhagem, como se tivesse
sido borrifada de sangue; a segunda tem poucos ramos com espinhos e umas folhas opacas e pálidas ao
longo do pedúnculo; a terceira é flexível como um junco e tem umas folhas pequenas e brilhantes, como se
fossem cera verde; a última parece cercar o caminho contra qualquer assalto à sua corola rosada, tão
coberta está de espinhos. Parece uma lima com arestas pontiagudas. Pensai agora. Quem fez isto? Como?
Quando? Onde? E este lugar como era na noite dos tempos?
Não era nada. Era uma agitação informe de vários elementos. Alguém (Deus) disse: “Eu quero”, e os
elementos se separaram um do outro, unindo-se por famílias. Outra vez soaram as palavras “Eu quero”, e os
elementos se coordenaram um com o outro, como a água por entre terras; ou um sobre o outro, como o ar e
a luz sobre o planeta que estava criado. Ainda um “Eu quero”, e apareceram as plantas. Depois vieram as
estrelas, depois os animais e, finalmente o homem. Para que o homem sentisse prazer, com encantadores
brinquedos do filho predileto, Deus deu as flores, os astros, e, finalmente deu a alegria de procriar não
aquilo que morre, mas aquilo que sobrevive à morte, pelo dom de Deus, que é a alma. Estas rosas são
outras muitasvontades do Pai. Seu infinito poder se manifesta numa infinidade de belezas.
167.10 Não é fácil dizê-lo, porque o assunto vai chocar-se contra o bronze maciço das vossas crenças. Mas
Eu espero que, como este é o nosso primeiro encontro, já nos tenhamos entendido um pouco. Que a vossa
alma se debruce sobre o que Eu vos disse. Tereis perguntas a fazer? Fazei-as. Estou aqui para esclarecê-las.
A ignorância não é uma vergonha. Vergonha é persistir na ignorância, quando há alguém que possa
esclarecer as dúvidas.
E Jesus, como se fosse o mais experiente dos pais, sai do quiosque, segurando pela mão a pequenina,
que já está dando seus primeiros passos, em direção a um repuxo de água esguichando ao sol.
167.11 As mulheres ficam onde estão, conversando entre si. Joana, indecisa entre dois desejos, fica na
porta do quiosque…
Finalmente, Lídia se decide, e atrás dela, vão as outras, até Jesus, que está rindo, porque a menina quer
pegar o pequeno arco-íris que o sol forma com a água, e não consegue pegar nada mais do que a luz. Mas
ela insiste, com todo o seu pipilar de um pintinho, saindo dos seus pequenos lábioscor-de-rosa.
– Mestre… eu não compreendi porque é que disseste que os nossos mestres não podem ter formas de
vida boas, visto que são ateus. Eles crêem no Olimpo, mas crêem…
– Eles não têm nada mais de que uma exterioridade em sua crença. Só quando eles verdadeiramente
creram. ter um pouco o reflexo de Deus. Como os verdadeiros sábios creram naquele Desconhecido de que
Eu falei, naquele Deus que satisfazia as suas almas, mesmo sem ter nome, e mesmo sem perceberem o que
estavam querendo, enquanto tiveram voltado o seu pensamento para este Ser, muito superior, muito
superior aos pobres deuses cheios de humanidade da baixa humanidade , que o paganismo criou, eles,
tiveram, um pouco, o reflexo de Deus. A alma é um espelho que reflete, um eco que responde.
– Reflete o quê, Mestre?
– Deus.
– Eis uma grande palavra!
– É uma grande verdade.
167.12 Valéria, que está seduzida pelo pensamento da imortalidade, pergunta:
– Mestre, explica-me onde está a alma de minha menina. Eu beijarei o lugar como um sacrário e o
adorarei, porque é um lugar de Deus.
– A alma! É como esta luz que a tua Faustina está querendo segurar, mas não pode, porque ela é
incorpórea. Ela existe. Eu, tu e tuas amigas a vemos. A alma é visível em tudo aquilo que diferencia o
homem do bruto. Quando a tua pequena te disser os seus primeiros pensamentos, aquela inteligência é a
sua alma dela que se revela. Quando ela te amar, não com o instinto, mas com a razão, aquele amor é a sua
alma. Quando ela crescer, bela ao teu lado, não somente no corpo, mas na virtude, que aquela beleza é a
sua alma. Não adores a alma, mas a Deus que a criou, a Deus que de toda alma boa quer fazer um trono
para Si.
– Mas, onde fica essa coisa incorpórea e sublime no coração? no cérebro?
– Fica no todo do homem. Ela contém o homem, e é contida nele. Quando ela vos deixa, sois cadáveres
Quando ela é morta, pelo delito do homem contra si mesmo, estais condenados, separados de Deus para
sempre.
– Portanto, Tu admites que o filósofo que disse que somos “imortais” tinha razão, ainda que ele fosse
pagão? –pergunta Plautina.
– Eu não o admito. Mais do que isso, digo que é um artigo de fé. A imortalidade da alma, isto é, a
imortalidade da parte superior do homem é o mistério mais certo e mais consolador para quem crê. É ele
que nos dá a certeza de onde viemos, para onde vamos, de quem somos , e nos tira o amargor das
separações.
167.13 Plautina fica pensando profundamente. Jesus a observa, calando-se. Depois, ela pergunta:
– E Tu, tens uma alma assim?
Jesus responde:
– Com toda a certeza.
– Mas, Tu és, ou não és, Deus?
– Sou Deus. Já disse. Agora assumi natureza de homem. Sabes por quê? Porque só com este sacrifício os
problemas, que para a vossa razão são insuperáveis seriam solucionados.Depois de ter derrubado o erro,
livrando o pensamento, podia livrar também a alma de uma escravidão que, por enquanto, não te posso
explicar. Para isso encerrei a Sabedoria e, a Santidade em um corpo. Espalho a Sabedoria, como uma
semente como o pólen aos ventos, e a Santidade que sai de uma preciosa ânfora quebrada, escorrerá sobre
o mundo, na hora da Graça, santificando os homens. Então o Deus Desconhecido ficará conhecido.
– Mas Tu já és conhecido. Quem puser em dúvida o teu poder e a tua sabedoria, é mau ou mentiroso.
– Conhecido, Eu sou. Mas estamos apenas na aurora. O meio-dia é que vai ser cheio do conhecimento de
Mim.
– Qual será o teu meio-dia? Um triunfo? Eu o verei?
– Na verdade, será um triunfo. Tu estarás lá. Porque em ti há náusea daquilo que sabes, e apetite do que
não sabes. Tua alma tem fome.
– É verdade. Tenho fome da verdade.
– Eu sou a Verdade.
– Entrega-te, então a esta esfaimada.
– Basta que venhas à minha mesa. A minha palavra é pão de verdade.
167.14 – Mas, que dirão os nossos deuses, se os abandonamos? Não se vingarão de nós? –pergunta Lídia
aterrorizada.
– Mulher: já viste uma manhã nevoada? Os prados desaparecem, debaixo de um vapor que os esconde.
Depois vem o sol, o vapor se dissolve, e os prados aparecem mais belos. Assim são os vossos deuses, uma
névoa do pobre pensamento humano que, não conhecendo Deus e tendo necessidade de crer, porque a fé é
o estado permanente e necessário do homem, criou para si esse Olimpo, uma verdadeira fábula sem
fundamento. Assim os vossos deuses, ao nascer do sol, à chegada do Deus Verdadeiro, se dissolverão em
vossos corações, sem fazer mal a ninguém. Porque eles não existem.
– Vai ser preciso ouvir-te ainda… muito… Estamos completamente diante do desconhecido. O que Tu
dizes é novo.
– Mas te repugna? Não podes aceitá-lo?
Plautina responde com firmeza:
– Não. Agora me sinto mais orgulhosa do pouquinho que sei, e que César não sabe, do que do meu
nome.
– Então, persevera. 167.15Eu vos deixo com a minha paz.
– O quê? Não ficas aqui, meu Senhor?
Joana está desolada.
– Não. Tenho muito que fazer…
– Oh! Eu te queria falar do meu sofrimento!
Jesus se põe a caminho, depois das saudações das romanas, vira-se e diz:
– Vem até a barca, para me dizeres os teus problemas.
Joana vai com Ele. E diz:
– Cusa está querendo mandar-me por algum tempo a Jerusalém, e eu estou sofrendo por isso. Ele quer
assim, porque não quer que eu fique mais longe, já que agora estou sã…
– Tu também estás criando em ti névoas inúteis! –Jesus já está com o pé sobre a barca–. Se pensasses
que dessa forma poderás hospedar-me e acompanhar-me com mais facilidade, irias ficar contente, dizendo:
“Foi a Bondade que pensou nisso.”
– Oh! é verdade, meu Senhor. Eu nem tinha pensado nisso.
– Pensa, então! Obedece, como uma mulher de valor. A obediência te dará o prêmio de ter-me contigo na
próxima Páscoa, e a honra de ajudar-me a evangelizar as tuas amigas. A paz esteja sempre contigo!
A barca se afasta, e tudo termina.
[6] pequena parte de Deus mostra-se diferente em partícula nascida de Deus em correção pouco clara de MV em uma cópia datilografada na qual MV
inseriu ainda a seguinte nota: Partícula não compreendida como “fragmento de Deus” penetra em nós, mas “lugar-trono”, “sede”inserida ou “aliada”(do
“sopro da vida” do qual fala o v. 7 do II cap. do Gênesis) de Deus, portanto coisa de Deus, vinda de Deus ao homem. São Tomás de Aquino a chama de “uma
capacidade” de Deus que Deus preenche de Si, porque nós participamos da sua vida divina. A explicação de MV deve-se ter presente – junto com o texto de
10.9 – cada vez que na obra se fala da alma como “parte” ou “partícula” de Deus. Esta se liga com as notas que se encontram em: 4.6 - 54.5 - 165.4 - 170.4 -
365.16 - 444.4 - 463.4 - 524.7 - 537.11
168. Aglaé na casa de Maria em Nazaré.
20 de maio de 1945 Pentecostes.
168.1 Maria está trabalhando tranquilamente na confecção de um tecido. A tarde já chegou, todas as
portas já estão fechadas, e uma candeia de três bicos está iluminando o pequeno quarto de Nazaré,
especialmente a mesa, junto à qual a Virgem está sentada. O tecido parece que vai ser um lençol, e cai para
os lados do banco e dos joelhos de Maria até o chão, e ela, vestida de um azul escuro, ela parece estar
saindo de um montão de neve. Está sozinha, tecendo com rapidez, com a cabeça inclinada ao seu trabalho,
e a luz faz brilhar o alto de sua cabeça com reflexos de um ouro pálido. Assim, o lado do seu rosto fica na
penumbra. No quarto bem arrumado reina o maior silêncio.
Na rua deserta não há barulho algum. Nem tampouco da horta nesta noite. A porta pesada do quarto,
onde Maria trabalha, e onde costuma tomar suas refeições, receber os amigos, dando passagem à horta,
está fechada, impedindo que se ouça o rumor da pequena fonte, cuja água se apressa em entrar no tanque.
Reina o mais profundo silêncio. Eu gostaria de saber por onde anda o pensamento da Virgem, enquanto
suas mãos trabalham com tal rapidez.
Ouve-se uma batida leve na porta que dá para a rua. Maria levanta a cabeça, e escuta… A batida foi tão
de leve, que Maria deve ter pensado ser algum animal noturno, ou o vento. Volta a inclinar a cabeça sobre o
seu trabalho. Mas a batida se repete, mais clara. Maria, então, se levanta, e vai até à porta. Antes, porém,
de abrir, ela pergunta:
– Quem está batendo?
Responde uma voz meio sumida:
– Uma mulher. Em nome de Jesus, tem dó de mim.
Maria abre logo a porta, levantando a luz, para reconhecer a peregrina. Mas ela vê um montão de
panosem nenhuma feição. É um pobre embrulho, que está profundamente inclinado. dizendo:
– Ave, Senhora!
E torna a repetir:
– Em nome de Jesus, tem piedade de mim.
– Entra, e dize-me o que queres. Eu não te conheço.
– Ninguém e muitos me conhecem, ó Senhora. O vício me conhece. A Santidade me conhece. Eu estou
precisando agora que a Piedade me abra os braços. A Piedade és tu… –e chora.
– Mas, então, entra… E dize-me… Já falaste bastante para que eu compreenda que és uma infeliz… Mas
quem és, eu ainda não sei. Qual o teu nome, irmã.
– Oh! Não. Irmã, não. Eu não posso ser tua irmã. Tu és a mãe do Bem… eu… eu sou o Mal… –e chora
cada vez mais forte, sob o seu manto caído escondendo-secompletamente.
Maria põe a candeia sobre uma cadeira, pega a mão da desconhecida, que está ainda ajoelhada na
soleira da porta, e a obriga a levantar-se.
168.2 Maria não a conhece… Eu, sim. É a Mulher Velada das águas Belas. Ela se levanta, humilhada,
tremendo agitada pelo pranto, e ainda se recusa a entrar, dizendo:
– Eu sou uma pagã, Senhora. Para vós hebreus, sou sujeira, mesmo se fosse santa. Dupla sujeira, porque
eu sou uma meretriz.
– Se tu vens a mim, se estás procurando meu Filho por meio de mim, então já não és mais do que um
coração que se arrepende. Esta casa acolhe a quem tem nome de Dor –e a puxa para dentro, fecha a porta,
põe de novo a candeia sobre a mesa, oferece-lhe uma cadeira, e lhe diz:
– Fala.
Mas a Velada não quer sentar-se; um pouco inclinada, ela continua a chorar. Maria, doce e majestosa,
está diante dela. Rezando, ela espera que o choro se acalme. Eu a vejo rezar com todo o seu ser, ainda que
nela não se note nenhum sinal de oração. Nem em suas mãos, que estão segurando entre si as mãos da
Velada, nem nos lábios, que permanecem fechados.
Finalmente o choro se acalma. A Velada enxuga o rosto com seu véu, diz:
– Contudo, eu não vim de tão longe para ficar desconhecida. Está na hora da minha redenção., Eu devo
despir-me, para mostrar-te de quantas chagas meu coração está coberto. E… tu és mãe… e a mãe dele…
Por isso, terás dó de mim.
– Sim, minha filha.
– Oh, sim. Chama-me de filha!… Eu tinha uma mãe… e a abandonei… Depois me disseram que ela
morreu de dor por isso. Eu tinha um pai… ele me amaldiçoou… Ainda diz a todos da cidade: “Eu não tenho
mais filha”… –(O choro volta com violência. Maria empalidece de dó. Mas põe-lhe a mão sobre a cabeça
para confortá-la). A velada continua:– Não terei mais ninguém que me chame de filha!… Sim, acaricia-me
assim, como me fazia a minha mãe… quando eu era pura e boa… Deixa que eu beije esta tua mão, e
enxugue com ela o meu pranto. Porque meu choro sozinho não me lava. Quanto eu chorei, desde que
compreendi!… Antes também eu havia chorado, porque é um horror ser somente carne desfrutada e
insultada pelo homem. Mas aqueles eram choros de animal espancado, que odeia a quem o tortura, e se
revolta contra ele, e eu me emporcalhava sempre mais, porque mudava de dono, mas não mudava os meus
hábitos bestiais. Faz oito meses que eu venho chorando… porque eu compreendi… a minha miséria, a
minha devassidão. Eu estou coberta, saturada dela e tenho nojo… Mas o meu pranto, sempre mais
consciente, não me lava. Ele se mistura com a minha devassidão, e não a lava. Oh! Mãe! Enxuga-me tu
deste pranto, e eu ficarei limpa, a ponto de poder aproximar-me do meu Salvador!
– Sim, minha filha, sim. Senta-te. Aqui, comigo. Fala tranquilamente. Deixa todo o teu peso aqui sobre
estes meus joelhos de mãe.
E Maria se assenta.
168.3Mas a mulher velada deixa-se cair a seus pés,querendo falar-lhe assim. Começa em voz baixa:
– Eu sou de Siracusa… Estou com vinte e seis anos… Era filha de um intendente, como diríeis vós. Nós
dizemos procurador de um grande senhor romano. Eu era filha única. Vivia feliz. Morávamos perto da beira-
mar, numa casa de campo muito bonita, da qual meu pai era o intendente. De vez em quando vinha o dono
da casa de campo, ou sua mulher, e os filhos… Eles nos tratavam bem e eram bons para comigo. As moças
brincavam comigo… Minha mãe se sentia feliz… e estava orgulhosa de mim. Eu era bonita… inteligente…
tudo me saia bem. Mas eu gostava mais das coisas frívolas, do que das coisas boas. Em Siracusa há um
grande teatro… Bonito… amplo. Serve para passatempos e para comédias… Nas comédias e tragédias são
muito usadas as dançarinas. Elas dão, com suas danças mudas, o significado do que o coro executa. Tu não
sabes… mas também com as mãos, com os movimentos do corpo, podemos exprimir os sentimentos de um
homem agitado por qualquer paixão… Jovenzinhos e mocinhas são instruídos para serem comediantes em
determinadas representações. Eles devem ser bonitos, como deuses e ágeis como borboletas… Eu gostava
muito de subir para um ponto um pouco mais alto, de onde se podia ver com facilidade as danças das
dançarinas. Depois, eu ia repetir nos prados floridos, sobre as areias louras de minha terra e no jardim da
casa de campo, aquilo que eu havia visto. Ora eu parecia uma estátua feita com arte, ora um vento que
passa voando, pois eu aprendia a ficar parada como estátua, ou correr voando, quase sem tocar no chão.
Minhas amigas ricas me admiravam… e minha mãe se sentia orgulhosa…
A Mulher Velada fala, recorda, revê, sonha com o passado, e chora. Seus soluços são como vírgulas
entre suas palavras.
– Um dia… era o mês de maio… toda Siracusa estava em flor. Pouco antes haviam terminado as festas, e
eu tinha ficado entusiasmada com uma das danças executadas no teatro. Os patrões me haviam levado para
lá com as suas filhas. Eu tinha catorze anos… Naquela dança as dançarinas deviam representar as ninfas da
primavera correndo para adorarem a Ceres, dançavando coroadas com rosas… A veste era um véu muito
transparente, uma rede de fios como os da teia de aranha, sobre a qual as rosas estavam espalhadas… Na
dança elas pareciam Hebes aladas de tão rápidas que passavam com seus corpos maravilhosos que podiam
ser vistos por entre as charpas do véu florido que se abriam, e formavam asas atrás delas… Eu estudei
aquela dança… e um dia…
168.4 A Mulher Velada chora ainda mais forte… Depois continua.
– Eu era bonita. Ainda sou. Olha.
E ela se põe de pé, joga rapidamente o véu para trás, deixando cair o manto. Quem fica assombrada sou
eu, porque vejo aparecer, de debaixo daquelas vestes, Aglaé, belíssima, mesmo com uma veste simples, e
arranjo de suas tranças muito simples, mesmo sem suas jóias, sem peças pomposas, uma verdadeira flor de
carne, delgada mas perfeita, dona de um rosto deslumbrante, de uma cor moreno pálida, com olhos de
veludo, cheios de fogo.
Ela torna a ajoelhar-se diante de Maria:
– Eu era bonita, para minha desventura. Estava louca. Naquele dia eu me vesti com véus, e as moças,
minhas senhoras, me ajudaram, pois elas gostavam de me ver dançar… Fui vestir-me em um trecho de
praia, onde as areias eram fulvas, bem diante do mar azul. Sobre a praia, que naquele trecho estava
deserta, havia flores nativas brancas e amarelas, com o perfume forte das amendoeiras, da baunilha, de
carne que acabou de ser lavada. Também dos quintais vinham ondas de um perfume penetrante, que enchia
os roseirais de Siracusa, até o mar e a areia. O sol fazia sair cheiro de todas as coisas… uma espécie de
pânico me subiu à cabeça. Eu me considerava também uma ninfa, e adorava… a quem? A terra fecunda? O
sol fecundador? Não sei. Pagã, no meio de pagãos, acho que eu adorava a sensualidade, o meu despótico
rei, que eu não sabia que tinha, e era mais poderoso do que um deus… Coroei-me com rosas apanhadas no
jardim… e dancei… Estava ébria de luz, de perfumes, do prazer de ser jovem, ágil e bonita. Dancei… e fui
vista. Vi que estava sendo olhada. Mas não me envergonhei de aparecer nua diante dos dois olhos cobiçosos
de um homem. Pelo contrário, eu me comprazia em levantar ainda mais os meus voos… Aquele prazer por
ser admirada, dava-me asas… Isso foi a minha ruína. Três dias depois, eu fiquei sozinha, porque os patrões
haviam partido, voltando para a sua morada em Roma. Mas eu não fiquei em casa… Aqueles olhos
admiradores me haviam feito conhecer uma outra coisa, além da dança…Haviam-me revelado a
sensualidade e o sexo.
Maria faz um gesto involuntário de desagrado, e Aglaé o percebe.
– Oh! Mas tu és pura! E talvez eu te esteja causando repugnância…
– Fala, fala, minha filha. É melhor a Maria do que a Ele. Maria é um mar que lava…
– Sim. É melhori. Quem me disse isso fui eu mesma, quando fiquei sabendo que Ele tinha uma mãe…
Porque, primeiro, vendo-o tão diferente dos outros homens, o único que é todo espiritual — agora sei que o
espírito existe — antes eu não teria podido dizer de que era feito o teu Filho, sendo assim sem sensualidade,
ainda mesmo sendo homem. Dentro de mim, pensei que Ele não tinha mãe, mas que tivesse descido sobre a
terra, para salvar as misérias, das quais eu sou a maior…
168.5 Todos os dias eu passei a voltar àquele lugar, esperando ver de novo aquele homem jovem, moreno,
bonito… E algum tempo depois eu o tornei a ver… Ele me falou. E me disse: “Vem comigo para Roma. Eu te
levarei à corte imperial, e tu serás a pérola de Roma.” Eu respondi; “Sim, eu serei a tua mulher fiel. Vem a
casa de meu pai.” Ele riu, zombeteiro, e me beijou. Depois disse: “Minha mulher, não. Tu serás uma deusa,
e eu teu sacerdote, e te revelarei os segredos da vida e do prazer.” Eu estava louca, era uma menina. Mas,
ainda que fosse uma menina, já conhecia o que é a vida… eu era ladina. Estava louca, mas ainda não
depravada… e senti repulsa pela proposta dele. Escapei dos braços dele, fugindo para casa… Mas não falei
à minha mãe… não fui capaz de resistir ao desejo de revê-lo. Os beijos dele me tinham feito ficar mais
louca… E eu voltei. Mal eu tinha chegado àquela praia solitária, quando ele me abraçou, beijando-me com
frenesi, dando-me uma chuva de beijos, de palavras de amor e de perguntas: “Neste amor não está tudo?
Não é ele mais doce do que um enlace? Que outra coisa queres tu? Podes viver sem isto?”
Oh! Mãe!… Eu fugi, naquela mesma tarde, com aquele sórdido patrício… e passei a ser como um trapo,
que alguém calca sob o peso de sua animalidade… Não passei a ser uma deusa, mas uma lama. Não uma
pérola, mas um estrume. Não foi a vida a me revelar, mas a sujeira da vida, a infâmia, a repugnância, a dor,
a vergonha, e a infinita miséria de não ser mais minha… E depois… veio a queda total. Depois de seis meses
de orgia, cansado de mim, ele passou a novos amores, e eu me vi na rua. Desfrutei da minha capacidade de
dançarina…Já sabia que minha mãe havia morrido de dor e que eu não tinha mais casa, nem tinha mais pai.
Um mestre de dança me acolheu em seu ginásio. Ele me aperfeiçoou… aproveitou-se de mim… lançando-
me, como flor experiente em toda sorte de artes da sensualidade, no meio do corrompido patriciado de
Roma. A flor, já suja, caiu em uma cloaca. Foram dez anos de descida para o abismo. Sempre mais para
baixo. Depois fui trazida para cá para alegrar os ócios de Herodes, e fui aprisionada pelo novo patrão. Oh!
Não existe cão seguro por uma corrente, que esteja mais acorrentado do que uma de nós! Não existe patrão
de latido mais brutal, do que o homem que possui uma mulher! Mãe… tu estás tremendo. Eu te estou
causando horror!
Maria leva sua mão ao coração, como se ele estivesse ferido. Mas ainda responde:
– Não. Tu, não. Mas o que causa horror é o Mal que domina tanto a terra. Continua, minha pobre filha.
– Ele me levou a Hebron… Era eu livre? Era eu rica? Sim, porque não estava no cárcere, e vivia afogada
no meio das jóias. Eu não podia ver senão quem ele queria, já não tinha mais direito sobre mim mesma.
168.6 Um dia chegou um homem a Hebron: era o Homem, o teu Filho. Aquela casa era amada por Ele. Eu
fiquei sabendo disso, e o convidei a entrar. Shamai não estava lá… Da janela, eu tinha já ouvido palavras de
alguém que me haviam perturbado o coração. Mas, eu te juro, ó mãe, que não foi a carne que me impeliu a
ir ao teu Jesus. Foi o que Ele me revelou, que me impeliu, lá da soleira da casa, desafiando as chalaças do
vulgo, a dizer-lhe: “Entra”. Foi a alma, que descobri ter. Ele me disse: “O meu nome quer dizer Salvador. Eu
salvo quem tem a boa vontade de ser salvo. Eu salvo as pessoas, ensinando-as a serem puras, a querer essa
dor, mas com honra, e o Bem a todo custo. Eu sou o que procura os perdidos, o que dá a vida. Eu sou
Pureza e Verdade.” Ele me disse que eu também tinha uma alma e que a havia matado com o meu modo de
viver. Mas Ele não me amaldiçoou, nem zombou de mim! Nunca olhou para mim! Foi o primeiro homem que
não me sugou com um olhar ávido, pois eu tenho comigo a tremenda maldição de atrair os homens. Disse-
me que quem O procura O encontra porque Ele está onde há necessidade de Médico e de remédio. Depois
Ele foi-se embora. Mas as suas palavras ficaram para sempre. Eu dizia a mim mesma: “O seu nome quer
dizer Salvador”, como para curar-me. As suas palavras e os seus amigos, os pastores, ficaram comigo . Eu
dei o primeiro passo, dando-lhes esmola e pedindo orações… Depois…fugi…
Que santa fuga foi aquela! Fugi do pecado, em busca do Salvador. Estava certa de encontrá-lo, pois Ele
me havia prometido. Mandaram-me a um homem chamado João, como se fosse Ele. Mas não era. Um
hebreu me falou que eu fosse às Águas Belas. Eu vivia da venda do ouro que possuía. Nos meses em que
estive vagando, tive que conservar coberto o meu rosto, para não ser apanhada de novo, porque, na
verdade, a Aglaé estava sepultada debaixo daquele véu. A antiga Aglaé estava morta. O que estava por
baixo daquele véu era a alma dela, ferida e esgotada, à procura do seu médico. Muitas vezes eu tive que
escapar da sensualidade do macho, mesmo estando quase anulada, naquela veste. Até um dos amigos do
teu Filho foi um deles…
168.7 Em Águas Belas, eu vivia como um animal: pobre, mas feliz. O orvalho e o rio me limparam menos do
que as suas palavras.. Oh! Não perdi nenhuma delas! Certa vez Ele perdoou um homem assassino. Eu
ouvi… e fui até Ele para gritar-lhe: “Perdoa a mim também…” Uma outra vez, Ele falou da inocência
perdida… Oh! Como chorei de saudade! Outra vez Ele curou um leproso…e eu estava para gritar: “Limpa-
me do meu pecado…” Outra vez, Ele curou um louco, que era romano… e eu chorei… Aquilo me fez dizer
que as pátrias passam, mas o Céu fica. Em certa tarde tempestuosa, ele me acolheu em sua casa… depois
fez que o feitor me hospedasse… e, por um menino, mandou-me dizer: “Não chores…” Oh! Que bondade a
dele! Oh! Que miséria a minha! Tão grandes as duas, que eu nem ousava levar minhas misérias, para pô-las
aos pés dele… não obstante um dos seus companheiros me instruísse, numa certa noite, sobre a infinita
misericórdia do teu Filho. Depois, apanhado em uma emboscada por alguém que via pecado no desejo duma
alma renascida, o Salvador partiu… Eu fiquei esperando por ele… Mas também ficou a vingança esperando-
o alguémmais indigno do que eu de olhar para Ele. Pois eu pequei como pagã contra mim mesma, ao passo
que eles pecam já conhecendo Deus contra o Filho de Deus… Bateram em mim, mais do que com pedradas,
feriram-me com acusação, mais do que na carne, me feriram na minha pobre alma, levando-a ao desespero.
Oh! Que luta terrível tive eu que sustentar contra mim mesma! Contundida, sangrando, ferida, com
febre, sem ter mais o meu Médico, sem casa nem pão, olhei para trás e para diante… O passado me dizia:
“Volta!” O presente me dizia: “Mata-te!” O futuro, porém, me dizia: “Espera!” E eu esperei… Não me matei.
Se Ele me expulsasse, eu o faria, porque não quero mais ser o que eu era!… Eu me arrastei até um
povoado, pedindo abrigo…Mas lá me reconheceram. Como um animal, eu tive que fugir para um lado e
para outro, sempre perseguida, escarnecida, sempre amaldiçoada, porque queria ser honesta, e porque
tinha decepcionado àqueles que, usando-me, queriam ferir o teu Filho. Acompanhando o rio, fui subindo até
a Galileia, e cheguei até aqui… Tu não estavas aqui… Então, fui até Cafarnaum. Mal tinha acabado de sair
de lá, um velho me viu. Era um dos inimigos dele, e me quis tomar como prova de acusação contra o teu
Filho, mas, como eu me pus a chorar, sem reagir, me disse: “Tudo poderia mudar para ti, se quisesses ser
minha amante e minha cúmplice na acusação do Rabi de Nazaré. Bastaria que tu dissesses, diante dos
meus amigos, que Ele era teu amante…” Eu fugi dali, como alguém que vê abrir-se uma moita de flores sob
o desenroscar-se da serpente.
168.8 Cheguei então a compreender que não posso ir aos pés dele… e vim lançar-me aos teus. Aqui estou:
calca-me com os pés, eu sou lama. Aqui estou: expulsa-me, eu sou pecadora. Eis-me aqui: dize o meu nome:
meretriz. Tudo eu aceitarei de ti. Mas, tem dó de mim, tu, ó Mãe. Pega a minha pobre alma suja, e leva-a a
Ele. Em tuas mãos seria um delito colocar a minha luxúria. Mas só nelas ela ficará protegida do mundo, que
a deseja, e se transformará em penitência. Dize-me o que fazer. Dize-me como devo fazer para não ser mais
Aglaé. O que eu devo mutilar em mim? O que eu devo arrancar de mim, para não ser mais pecado, não mais
sedução, a fim de não ter mais o que temer de mim mesma e dos homens? Deverei arrancar os olhos?
Deverei queimar os lábios? Devo cortar a língua? Os olhos, os lábios, a língua me têm servido para fazer o
mal. Eu não quero mais o mal e estou disposta a punir, aos olhos, lábios e língua, sacrificando-me. Ou
queres que eu arranque os quadris, que me impeliram aos amores perversos? Ou as vísceras insaciáveis,
cujo despertar eu temo sempre? Dize-me, dize-me o que é que se faz para nos esquecermos de que somos
mulheres, e como é que se faz para fazer que eles se esqueçam que somos mulheres?
Maria está perturbada. Elachora, sofre, mas o único sinal de sua dor são as lágrimas que caem sobre a
arrependida.
– Eu quero morrer perdoada. Eu quero morrer, não pensando em nada mais, a não ser no Salvador.
Quero morrer com a sua Sabedoria como amiga e já não posso ficar perto dela, porque o mundo está de
olhos para acusar-nos, a mim e a Ele…
Aglaé chora, caída completamente por terra, como um trapo.
168.9 Maria põe-se de pé, murmurando:
– Como é difícil ser redentores! –e está quase sem fôlego.
Aglaé, que ouve aquele murmúrio, e compreende o que está acontecendo, geme, dizendo:
– Estás vendo? Estás vendo que tu também sentes asco? Agora, vou-me embora. Tudo se acabou para
mim!
– Não, minha filha. Tudo não acabou. Para ti, agora é que começa. Escuta, ó pobre alma. Não estou
gemendo por ti. Mas pelo mundo cruel. Eu não te deixo ir embora, mas te recolho, pobre andorinha que a
tempestade fez vir bater contra as minhas paredes. Eu te levarei a Jesus, e Ele te dará o caminho da tua
redenção…
– Eu não espero mais… O mundo tem razão. Eu não posso ser perdoada.
– Pelo mundo, não. Mas por Deus, sim. Deixa que eu te fale em nome do Supremo Amor, que me deu um
Filho, para eu dar ao mundo. Ele me tirou da feliz ignorância da virgindade consagrada, para que o mundo
tivesse o Perdão. Ele me tirou sangue, não do parto, mas do coração, ao revelar-me que o meu Filho é a
Grande Vitima. Olha para mim, minha filha. Neste coração há uma grande ferida. Há mais de trinta anos ele
vem gemendo, e a ferida se dilata sempre mais, e o consome. Sabes como ela se chama?
– Dor.
– Não. Amor. E o amor é o que me faz sangrar para que o meu Filho não fique sozinho na obra da
salvação. É o amor que põe em mim fogo, a fim de que eu possa purificar aqueles que não têm coragem de
ir até o meu Filho. É o amor que me dá pranto, para que eu lave os pecadores. Tu querias as minhas
carícias. Eu te dou as minhas lágrimas, que te tornam branca, para poderes olhar o meu Senhor. Não
choresassim! Não és a única pecadora que vem ao Senhor, sendoredimida. Já houve outras e haverá outras.
Tens dúvidas de que Ele possa te perdoar? Não ves em todas essas coisas que te aconteceram uma
misteriosa disposição da Bondade Divina? Quem foi que te conduziu para a Judeiaeia? Quem te levou a
João? Quem te colocouà janela naquela manhã? Quem acendeu uma luz fazendo-te conhecer as suas
palavras? Quem te deu a capacidade de compreender que a caridade, unida à oração de quem recebeu um
beneficio, obtém o auxíliodivino? Quem foi que te deu força para fugires da casa de Shamai? Quem te deu
forças para perseverares nos primeiros dias, até a chegada dele? Quem te levou pelo seu caminho? Quem te
tornou capaz de viver como penitente, para limpares a tua alma? Quem te deu uma alma de mártir ,uma
alma cheia de fé, de perseverança e do desejo da pureza?…
Sim, não fiques sacudindo a cabeça. Pensas que só é puro quem não conheceu a sensualidade? Pensas
que a tua alma não pode tornar-se de novo virgem e bela? Oh! Minha filha! Mas, entre a minha pureza, que
já é toda uma graça do Senhor, e a tua heróica subida refluente para atingir outra vez o alto da pureza
perdida, podes acreditar que a tua é maior. Tu a estás construindo: lutando contra a sensualidade, a
necessidade e o hábito. Em mim ela é um dote tão natural, como a respiração. Tu tens que cortar as asas
dos pensamentos, dos afetos e da carne, para não lembrares, nem desejares, e para não consentir. Eu… oh!
por acaso pode uma criaturinha de poucas horas ter desejos carnais? Terá ela algum merecimento por isso?
Assim sou eu. Eu não sei o que seja esta trágica fome que fez da humanidade, vítima. Eu não conheço outra
coisa, senão a fome santíssima de Deus. Enquanto que tu não conhecias esta fome e tiveste que aprender
por ti mesma. Mas tu dominaste a outra, por amor a Deus, que é o teu único amor agora. Sorri, ó filha da
divina misericórdia! Meu Filho está fazendo em ti o que Ele te disse em Hebron. E já o fez. Tu já estás
salva, porque tiveste boa vontade de salvar-te, porque aprendeste o que é a pureza, a dor e o Bem. Tua
alma renasceu. Sim. Só precisas da palavra dele, que te diga em nome de Deus: “Estás perdoada.” Isto eu
não posso dizer. Mas te dou o meu beijo, como promessa e princípio do perdão…
Ó Espírito Eterno, um pouco de Ti há sempre em tua Maria! Deixa que Ele te derrame, ó Espírito
Santificador, sobre a criatura que chora e que espera. Pelo nosso Filho, ó Deus de Amor, salva esta que de
Deus espera a salvação. A Graça, da qual disse o Anjo que Deus me cumulou, desça, por um milagre, sobre
esta, e a conforte, até que Jesus, o Salvador Bendito, o Supremo Sacerdote, a absolva em nome do Pai, do
Filho e do Espírito…
168.10 Já é noite, minha filha. Estás cansada e ferida. Vem. Descansa. Amanhã partirás. Eu te encaminharei
para uma família de gente honesta. Porque muitos estão vindo agora para cá. Eu te darei uma veste muito
semelhante à minha. Ficarás parecendo uma hebreia. E, como eu só tornarei a ver o meu Filho na Judeia, já
que a Páscoa se aproxima e na Lua Nova de abril estaremos em Betânia, nessa ocasião eu falarei de ti. Vai
para a casa de Simão, o Zelotes. Lá me encontrarás, e eu te levarei a Ele.
Aglaé ainda está chorando. Mas agora já está mais tranquila. Ela sentou-se no chão. Também Maria
voltou a sentar-se. Aglaé pousa a cabeça sobre os joelhos dela e beija-lhe as mãos… Depois, ainda geme:
– Eles irão me reconhecer…
– Oh! Não. Não tenhas medo. As tuas vestes já estavam muito conhecidas. Mas eu vou te arrumar para
esta tua viagem em busca de Perdão, e ficarás como a virgem que vai para as núpcias: diferente, e
desconhecida da multidão, que nem suspeita do rito. Vem. Eu tenho um pequeno quarto, ao lado do meu.
Nele já se alojaram santos e peregrinos, desejosos de ir para Deus. Ele hospedará a ti também.
Aglaé procura apanhar sua capa e seu véu.
– Deixa isso aí. São as vestes da pobre Aglaé, quando perdida. Mas agora não está mais… e dela nem
mesmo as vestes devem existir mais. Estas vestes ouviram tantas palavras de ódio… e o ódio faz tão mal
quanto o pecado.
Saem as duas para a horta, que está no escuro, entram depois no quartinho de José. Maria acende a
pequena candeia, que está sobre uma mesinha, acaricia mais uma vez a arrependida, fecha a porta, e, com
as três chamas de sua candeia, alumia para ver onde vai pôr a capa toda rasgada de Aglaé, de tal modo que
nenhum visitante amanhã possa ver.
169. Primeiro Discurso da Montanha:
a missão dos apóstolos e dos discípulos.
22 de maio de 1945.
169.1 Jesus está andando sozinho ligeiro, por uma estrada principal. Vai na direção de um monte, que é
bom descrever, porque somente com um gráfico, creio que não conseguirei. O gráfico[7] é assim:
Portanto, este monte, que se ergue perto da estrada principal, que sai do lago para o oeste, depois de
um certo trecho, tem o seu começo propriamente dito com uma elevação pequena e suave, que se prolonga
a uma grande distância. Ela está num planalto, do qual se pode ver o lago e a cidade de Tiberíades ao sul, e
outras, elevadas, menos belas, ao norte. Depois, o monte começa a erguer-se de modo bem acentuado, até
terminar num pico, para depois abaixar-se de novo formando um outro pico semelhante, tomando a forma
curiosa de uma sela.
Jesus começa a subida para o planalto por uma vereda ainda bastante aprazível, chegando a um
pequeno lugarejo, cujos habitantes com certeza cultivam esse pequeno altiplano onde o trigo está
começando a soltar espigas. Jesus atravessa o povoado, depois continua a andar entre os campos e os
prados, todos cobertos de flores e de frutos, carregados para a futura colheita.
O dia está sereno e mostra as belezas na natureza circunvizinha. Além da montanha solitária, para a
qual Jesus se dirige, vê-se, ao norte, o cume imponente do Hermon, cujo pico parece uma enorme pérola,
posta sobre uma base de esmeraldas, de tão alvo que é aquele pico, encapuzado de neve, enquanto a
encosta se mostra verde, por causa dos bosques que a cobrem. Depois do lago, até o Hermon, está a
planície verde do lago Meron, que daqui não se pode ver, há outros montes na direção de Tiberíades, no
lado ocidental. Mais montes que se esboçam ao longe e outras planícies suaves. Ao sul, além da estrada
principal, estou vendo colinas, que talvez escondam Nazaré. Quanto mais se sobe, mais a vista se espraia.
Daqui não vejo o que há ao ocidente, porque o monte à frente é como uma parede.
169.2 O primeiro que Jesus encontra é o Apóstolo Filipe, que parece estar de sentinela.
– Mestre? Tu estás aqui? Nós te esperávamos na estrada. Eu estou aqui esperando os companheiros, que
foram procurar leite com os pastores do lugar. Lá em baixo, na estrada, está Simão com Judas de Simão, e
também Isaque e… oh! Aí vêm eles. Vinde! Vinde! O Mestre está aqui!
Os Apóstolos, que descem com frascos e odres, põem-se a correr. Os mais jovens, naturalmente, chegam
primeiro. A festa que fazem ao Mestre é comovente. Finalmente, estão todos reunidos e, enquanto Jesus
sorri, todos querem falar para contar…
– Nós te esperávamos na estrada!
– Tínhamos pensado que nem virias hoje.
– Há muita gente, sabes?
– Oh! Nós estávamos muito receosos, porque aí estão escribas e alguns discípulos de Gamaliel…
– Senhor! Tu nos deixaste justamente no exato momento! Eu nunca tive tanto medo como naquela hora.
Não me faças mais uma brincadeira dessas!
Pedro se lamenta, e Jesus sorri, e pergunta:
– Aconteceu-vos alguma coisa de mal?
– Oh! Não! Pelo contrário…Oh! Meu Mestre! Mas, sabes que João tomou a palavra?… Parecia até que
eras Tu que falavas nele. Eu… nós estávamos estupefatos… Este rapaz que, há um ano, só era capaz de
jogar a rede… oh!
Pedro ainda está admirado, e sacode o sorridente João, que fica calado:
– Vede bem se é possível que este rapazinho tenha, com esta boca sorridente, dito aquelas palavras!
Parecia Salomão.
– Também Simão falou bem, meu Senhor! Ele portou-se mesmo como o “chefe” –diz João.
– Claro! Ele me pegou, e me pôs lá… Dizem que eu falei bem. Que seja. Eu não sei… porque, entre o
espanto pelas palavras de João e o medo de falar no meio de tanta gente, e obrigar-Te a fazer uma triste
figura, eu estava desorientado…
– De obrigar-me a fazer feio? A Mim? Mas, se eras tu que estavas falando, a triste figura tu é que a
terias feito, Simão –provoca-o Jesus.
– Oh! Por mim… Não me importava comigo mesmo. Eu não queria é que escarnecessem de Ti, como de
um tolo, por haveres tomado um idiota para ser teu apóstolo.
Jesus está radiante de alegria por causa da humildade e do amor de Pedro. Mas pergunta somente isto:
– E os outros?
– O Zelota também falou bem. Mas ele… já se sabe. Este aqui é que foi a surpresa! Pois agora, desde que
estivemos naquela oração, o rapaz parece estar sempre com a alma no Céu.
– É verdade. É verdade.
Todos confirmam as palavras de Pedro. Depois continuam a contar.
– Sabes de uma coisa? Agora há dois discípulos que, segundo o parecer de Judas de Simão, são muito
importantes. Judas está sempre muito ocupado. É natural. Ele conhece muitos daqueles que estão no alto e
sabe lidar com eles. Gosta de falar… E fala bem. Mas o povo prefere ouvir Simão, e aos teus irmãos e,
sobretudo, este rapaz. Ontem ainda, um homem me disse: “Como fala bem este jovem — era de judas que
estava falando —, mas eu prefiro a ti.” Oh! Coitado! Preferir logo a mim, que só sei dizer quatro palavras!…
Por que é que vieste por aqui? O lugar combinado para o nosso encontro era lá na estrada onde ficamos.
– Porque eu sabia que vos teria encontrado aqui. 169.3Agora escutai. Descei e ide dizer aos outros que
venham. Também aos discípulos conhecidos. Que o povo não venha hoje. Quero falar somente a vós.
– Então, é melhor deixar tudo para a tarde. Quando o sol já está se pondo, o povo costuma espalhar-se
pelas aldeias vizinhas, e volta na manhã seguinte, para ficar te esperando. Se não… quem vai poder deter
esse povo?
– Está bem. Façam assim, então. Eu vos fico esperando lá no cume. As noites já não estão frias.
Poderemos dormir até ao ar livre.
– Onde quiseres, Mestre. Basta que estejas conosco.
Os discípulos se afastam, e Jesus começa de novo a subir até o cume, que é aquele já visto na visão do
ano passado[8], no fim do Sermão da Montanha, no primeiro encontro com a Madalena. O panorama vai-se
tornando ainda mais amplo, à medida que vai ficando mais iluminado pelo pôr-do-sol que está começando.
Jesus se assenta sobre uma pedra e se recolhe em meditação. E fica assim, até que o barulho dos passos na
vereda começam a fazê-lo perceber que os apóstolos já estão de volta. A tarde já chegou. Mas, naquela
altitude, o sol ainda continua a extrair odores de todas as ervas e pequenas flores. Os lírios selvagens têm
um cheiro forte, e os altos pedúnculos dos narcisos estão projetando para fora as suas estrelas e seus
botões, como se quisessem atrair as orvalhadas.
Jesus se põe de pé, e saúda com a sua saudação de costume:
– A paz esteja convosco.
Muitos são os discípulos que vão subindo com os apóstolos. Isaque vai à frente deles, com o seu sorriso
de asceta brilhando em seu rosto delgado. Todos se ajuntam ao redor de Jesus, que agora está saudando, de
um modo particular, Judas Iscariotes e Simão, o Zelota.
– Quis que viésseis todos comigo, para estar algumas horas convosco e para falar a vós somente. Tenho
algumas coisas para dizer-vos, a fim de preparar-vos, sempre melhor, para a missão. Vamos tomar a
refeição, e depois falaremos. Assim, durante o nosso sono, nossas almas continuarão a saborear a doutrina.
Terminam a ceia frugal e depois se ajuntam em círculo ao redor de Jesus, que se assentou em uma
grande pedra. São eles mais ou menos uma centena, talvez até mais, somando os discípulos e os apóstolos.
Uma coroa de rostos atentos, que as chamas de dois fogos iluminam, dando-lhes um ar misterioso.
169.4 Jesus fala baixo, fazendo gestos calmos, com um rosto que está parecendo mais branco, porque está
em realce pelo azul escuro de sua veste, exposta ao fraco luar da lua nova, que vem subindo justamente ao
lado do Senhor, uma lua ainda parecendo uma pequena vírgula no céu, ou uma pequena lâmina de luz
acariciando o Senhor do Céu e da terra.
– Eu vos quis aqui, assim em particular, porque vós sois os meus amigos. Eu vos chamei, depois da
primeira prova feita pelos doze, tanto para ampliar o círculo dos meus discípulos ativos, como também para
ouvir de vós as primeiras reações do serdes dirigidos por quem Eu vos dou como meus continuadores. Sei
que tudo correu bem. Eu apoiava as almas dos apóstolos com minha oração, que tinham uma nova força na
mente e no coração. Uma força que não procede de estudo humano, mas do abandono completo em Deus.
169.5 Os que mais deram são os que mais se esqueceram de si mesmos. E esquecerem-se de si mesmos é
uma coisa difícil. O homem é feito de recordações. As que falam mais alto são as recordações do próprio eu.
É preciso fazer uma distinção. Há o eu espiritual, dado pela alma que se recorda de Deus e de sua origem
em Deus, e há o eu inferior, da carne, que se recorda de mil exigências, ou de si mesma, ou das paixões.
Visto serem tantas as vozes que formam um coro, que vence a voz solitária do espírito, que recorda sua
nobreza de filho de Deus, se o espírito não for bem robusto. Por essa recordação santa, que é necessário
estimular sempre mais, conservando-a viva e forte, como perfeitos discípulos, é preciso esquecer-se de si
mesmos, de todas as suas recordações, exigências e medrosas reflexões do eu humano.
Nesta primeira prova, com os meus doze, aqueles que mais se doaram foram os que mais se esqueceram
de si mesmos. Esquecidos, não só do seu passado, mas também de sua limitada personalidade.Os que não
se recordaram mais do que eram, ao ponto de se unirem a Deus, e não terem medo. Medo de nada. Por que
a severidade de alguns? Porque se recordaram dos seus escrúpulos habituais, de suas considerações
habituais, de suas habituais prevenções. Por que o laconismo de outros? Porque eles se lembraram de suas
incapacidades doutrinárias, e recearam pela sua imagem ou pela minha. Por que ainda as vistosas exibições
de outros? Porque eles se lembraram de sua habitual soberba, de seu desejo de se mostrarem, de serem
aplaudidos, de sobressaírem, de serem “alguma coisa.” Enfim, porque o repentino desejo de revelar-se de
outros, com uma oratória rabínica, firme, persuasiva, triunfal? Porque eles, e só eles, souberam lembrar-se
de Deus assim como os que até agora foram humildes e procuravam não serem observados, enfim, no
momento certo, souberam assumir a dignidade do primado que lhes fora conferida, e que eles não quiseram
exercer, por temor de estarem presumindo demais. As primeiras três categorias lembraram-se do eu
inferior. A outra, a quarta, do eu superior, e não tiveram medo. Sentiam que Deus estava com eles, que
Deus estava neles, e não temeram. Oh! Santa audácia de quem está com Deus!
169.6 Agora, pois, escutai, apóstolos e discípulos. Os apóstolos, já ouviram estes conceitos. Mas agora os
entendereis, mais em profundidade. Os discípulos, não ouviram ainda, ou só ouviram fragmentos. Esculpi-os
no vosso coração. Porque Eu sempre precisarei de vós, uma vez que, o rebanho de Cristo, cada vez mais,
está aumentando. O mundo sempre vos atacará, crescendo nele os lobos contra Mim, e contra o meu
rebanho. Eu quero pôr em vossas mãos as armas para a defesa da Doutrina e do meu rebanho. O que basta
para o rebanho não é suficiente para vós, pequenos pastores. Se é compreensível que as ovelhas cometam
erros, ao comerem ervas que fazem o sangue ficar amargo, ou os seus desejos tornarem-se loucos, não se
pode compreender que vós cometais os mesmos erros, levando muitos rebanhos para a sua perdição. Pensai
bem, onde houver um pastor ídolo que só cuida de si mesmo, as ovelhas morrem envenenadas ou assaltadas
pelos lobos.
169.7 Vós sois o sal da terra e a luz do mundo. Mas, se deixásseis de cumprir vossa missão, tornar-vos-íeis
um sal insípido e inútil. Nada poderia restituir-vos sabor, uma vez que Deus não vos pode dar, visto que,
tendo-o recebido como dom de Deus, vós lhe tirastes o gosto, lavando-o com as águas insípidas e sujas da
humanidade, adoçando-o com a corrompida doçura da sensualidade, misturando ao puro sal de Deus os
detritos da soberba, da avareza, da gula, da luxúria, da ira, da preguiça, de modo que apenas um grãozinho
de sal resista para cada sete grãozinhos de seus vícios. O vosso sal já não é mais do que uma mistura de
pedras, onde desaparece o pobre grãozinho perdido; de pedras que gritam embaixo do dente, que deixam
na boca um gosto de terra, e fazem repugnante e desagradável a comida. Nem mesmo para outros usos
inferiores serve, pois seria nocivo até para qualquer outro uso humano, uma sabedoria mergulhada nos sete
vícios. O sal, então, já não serve mais, senão para ser jogado fora, e pisado pelos pés descuidados do povo.
Quantas, quantas pessoas vão poder pisar assim nos homens de Deus! Porque estes, que foram chamados,
terão permitido que o povo descuidado pisasse neles, porque não têm mais a substância à qual se pede
socorro com um sabor escolhido, de coisas do céu, mas serão apenas detritos.
Vós sois a luz do mundo. Vós sois como este cume, que foi o último a receber o sol, e é o primeiro a
pratear-se com a lua. Quem está colocado no alto, brilha, e é visto, porque até o olho mais desatento para,
de vez em quando, para nas alturas. O olho material, que se costuma dizer ser espelho da alma, reflete a
aspiração da alma, uma aspiração muitas vezes inadvertida, mas sempre viva, enquanto o homem não for
um demônio, aspiração do alto, onde a razão instintiva coloca o Altíssimo. E buscando o Céu, pelo menos
alguma vez na vida, ergue os olhos para as alturas.
Eu vos peço que vos recordeis do que todos nós fazemos, desde a nossa infância, quando entramos em
Jerusalém. Onde colocamos os nossos olhares? No monte Mória, coroado pelo triunfo do mármore e pelo
ouro do Templo. E quando estamos dentro do recinto? Nas cúpulas preciosas que resplandecem ao sol.
Tudo o que é belo no sagrado recinto, tudo o que há nos seus átrios, nos seus pórticos e pátios! Mas os
olhares correm depois para cima. Ainda vos peço que vos recordeis quando se está a caminho. Para onde se
dirige o nosso olho, como que para nos esquecermos das grandes distâncias do caminho, da monotonia, do
cansaço, do calor ou da lama? Para os picos, mesmo se pequenos, mesmo se distantes. Com que alívio os
vemos aparecer, quando estamos em uma planície plana e uniforme! Aqui há lama? Lá há esplendor. Aqui
há mormaço? Lá existe frescor. Aqui há limitação para o olho. Lá há a amplidão. Basta olhar para eles, e o
dia já nos parece menos quente, a lama menos pegajosa, menos triste o caminhar. Por isso, se uma cidade
brilha no alto de um monte, não há olho que não a admire. Dir-se-ia que até um lugarejo fica embelezado, se
se coloca, quase aéreo, no cume de uma montanha. É por isso que na verdadeira e nas falsas religiões,
sempre que tenha sido possível, os templos eram postos em lugares altos e, se não havia um monte ou
colina, fazia-se para eles um pedestal de pedra, construindo, às custas de braços, a elevação sobre a qual
colocar o templo. Por que se faz isso? Porque se quer que o templo seja visto, para elevar, com a sua visão,
o pensamento para Deus.
Igualmente, Eu disse que vós sois uma luz. Quem acende uma luz à noite em sua casa, onde a coloca?
No buraco debaixo do forno? Na gruta que serve de adega? Ou fechada dentro de um cofre? Ou,
simplesmente e somente, a abafamos sob o alqueire? Não. Porque, então, seria inútil acendê-la. Mas coloca-
se a luz no alto de uma viga, ou pendurada em um gancho, para que estando alto, ilumine toda a sala e a
todos os habitantes nela. Mas, justamente porque o que está sendo posto no alto tem a incumbência de
fazer-nos lembrar de Deus, e de produzir luz, é que deve estar à altura da tarefa a ser cumprida.
169.8 Vós deveis lembrar-vos do Verdadeiro Deus. Tomai, pois, cuidado com o paganismo septiforme. Do
contrário, vos tornareis lugares altos profanos, com pequenos bosques consagrados a este ou aquele deus,
e arrastareis para o vosso paganismo, aqueles que vos consideram templos de Deus. Vós deveis portar a luz
de Deus. Um pavio sujo, sem azeite, produz fumaça, e não luz, solta mau cheiro, não claridade. Uma luz
escondida atrás de um quartzo sujo não cria a beleza esplendida, não cria o fúlgido jogo de luz sobre o
lúcido mineral. Mas definha atrás do véu da fumaça escura que torna o diamantífero anteparo opaco.
A luz de Deus brilha onde há vontade de polir diariamente as escórias que o próprio trabalho, com seus
contatos, e reações, e desilusões, produz. A luz de Deus brilha, onde o pavio está imerso em abundante
líquido de oração e de caridade. A luz de Deus, se multiplica em infinitos esplendores, conforme são as
perfeições de Deus, das quais, cada uma suscita no santo, uma virtude praticada heroicamente, se o servo
de Deus conserva limpo o cristal inatacável de sua alma, longe da fumaça escura de toda fumacenta má
paixão. Cristal inatacável! Inatacável! (Jesus troveja neste fechamento, e a voz ribomba no anfiteatro
natural). Somente Deus tem o direito e o poder de riscar este cristal, e de escrever nele com o diamante de
sua vontade, o seu Santíssimo Nome. Então, esse Nome se torna um ornamento, que provoca viva cintilação
de sobrenaturais belezas, sobre o cristal puríssimo.
Mas, se o estulto servo do Senhor perdendo o controle de si, e a visão de sua missão, toda e unicamente
sobrenatural, se deixa imprimir falsos ornamentos, arranhões e não incisões — misteriosas e satânicas
figuras, feitas pela garra de fogo de satanás — então não, a lâmpada admirável já não resplende mais bela e
sempre integra, mas se quebra e se arruína, sufocando a chama, sob os detritos do cristal quebrado, ou, se
não se quebra, faz um emaranhado de sinais, de inequívoca natureza, nos quais a fuligem se deposita, e
neles penetra, estragando-os.
169.9 Ai, três vezes ai dos pastores que perdem a caridade, que se recusam a subir cada dia para elevar o
rebanho, que o está esperando para subir. Eu os golpearei, derrubando-os do seu lugar, apagando até o fim
a sua fumaça.
Ai, três vezes ai dos mestres que rejeitam a Sabedoria, para se saturarem de uma ciência
frequentemente contrária, sempre soberba, às vezes satânica, porque os faz homens, enquanto — ouví bem
e acreditai —, enquanto o destino de todo homem é tornar-se semelhante a Deus, com a santificação que faz
do homem um filho de Deus, o mestre, o sacerdote deveria ter, nesta terra, o aspecto de filho de Deus. De
criatura, toda alma e perfeição, deveria ter o aspecto. Deveria ter, para aspirar a Deus, os seus discípulos.
Maldição aos mestres de doutrina sobrenatural que se tornam ídolos de saber humano.
Ai, sete vezes ai aos mortos de espírito entre os meus sacerdotes, aos que com a insipidez, com o torpor
de uma carne meio viva, com os que são cheios de alucinadas aparições de tudo o que existe, exceto do
Deus Uno e Trino, cheios de cálculos de tudo, exceto do sobre-humano desejo de aumentar as riquezas dos
corações, e de Deus, vivem nas coisas humanas, mesquinhas, torpes, arrastando através de suas águas
mortas os que os seguem, acreditando serem “vida”. Maldição de Deus para os corruptores do meu
pequeno e amado rebanho. Não àqueles que perecem por vossa negligência, ó inadimplentes servos do
Senhor, mas a vós, de todas as horas e de todos os tempos, e por todas as contingências, e por todas as
consequências, Eu pedirei contas e exigirei punição.
Recordai-vos destas palavras. E agora ide. Eu vou para cima. Vós ide dormir. Amanhã, para o rebanho, o
Pastor abrirá as pastagens da Verdade.
[7] gráfico, no qual são legíveis, além dos quatro pontos cardeais, o vilarejo da primeira elevação do monte e da passagem principal aos pés do monte. A
leste, pouco legível, o início da passagem principal à margem do lago de Genezaré e Tiberíades. A nordeste, o sinal em forma de cone poderia indicar a
posição do monte Hermon.
[8] visão do ano passado que estará em 174.11/14.
170. Segundo discurso da Montanha:
o dom da Graça e as bem-aventuranças.
24 de maio de 1945.
170.1 Jesus está falando aos apóstolos, colocando cada um deles no seu lugar, para dirigirem a multidão e
cuidar dela, pois o povo está subindo desde as primeiras horas da manhã, com seus doentes trazidos nos
braços ou em padiolas, enquanto outros vêm arrastando-se em suas muletas. No meio do povo estão
Estêvão e Herma.
O ar está limpo e um pouquinho frio, mas o sol vai temperando logo essa pequena aspereza do ar da
montanha que, por um lado, torna o sol mais suave, e, por outro, tira vantagem sobre ele, soprando com o
frescor de sua pureza, sem, porém, incomodar. Algumas pessoas se assentam sobre pequenas e grandes
pedras, espalhadas pelo pequeno vale, que fica entre os dois cumes, enquanto outras continuam esperando
que o Sol enxugue a erva coberta de orvalho, para se assentarem no chão. É muita gente, vindo de todas as
regiões da Palestina, de todas as condições. Os apóstolos somem no meio da multidão, mas, como abelhas
que vão e vem dos prados para a colmeia, de vez em quando voltam até o Mestre, para darem notícias, para
fazerem perguntas, ou pelo prazer de serem olhados de perto pelo Mestre
Jesus sobe um pouco mais acima do prado, que está no fundo do pequeno vale, e, encostando-se a um
paredão da montanha, começa a falar.
170.2 – Muitos me tem perguntado, durante todos estes anos de pregação: “Mas, tu, que dizes ser o Filho
de Deus, dize-nos o que é o Céu, o que é o Reino, e o que é Deus. Nós temos ideias confusas sobre isto. Nós
sabemos que existe o Céu, com Deus e com os Anjos. Mas nunca veio ninguém de lá para nos dizer como é,
e assim ele fica fechado aos justos.” Perguntaram-me também o que é o Reino e o que é Deus. Eu tenho me
esforçado para explicar-vos o que é o Reino e o que é Deus. Digo que tenho me esforçado, não porque seja
difícil explicá-lo, mas porque é difícil fazer-vos aceitar a verdade que se choca contra um edifício de ideias
acumuladas no correr dos séculos, no que diz respeito a Deus, pela sublimidade de sua Natureza.
Outros ainda, me perguntaram: “Se isto é o Reino, e isto é Deus, como conquistá-los?” Também isso Eu
procurei explicar-vos, incansavelmente, o verdadeiro espírito da Lei do Sinai. Quem consegue possuir esse
espírito, consegue possuir o Céu. Mas, para explicar-vos a Lei do Sinai, é preciso fazer ouvir o tom forte do
Legislador e do seu Profeta, os quais, prometem bênçãos aos observantes da Lei e ameaçam os
desobedientes com tremendas penas e maldições. A Epifania do Sinai foi terrível, e isso se reflete em toda a
Lei, refletindo-se em todos os séculos, e em todos os espíritos.
Mas Deus não é apenas Legislador. Deus é Pai. Um Pai de imensa bondade.
Os vossos espíritos, enfraquecidos pelo pecado original, pelas paixões, pelo vosso egoísmo e dos outros,
fazendo com que estes vos tornem espíritos irritados, e os vossos vos tornem espíritos fechados, não podem
elevar-se à contemplação das infinitas perfeições de Deus e, principalmente, de sua bondade, porque esta é
a virtude que, junto ao amor, menos aparece nos mortais. A bondade! Oh! É doce ser bons, sem ódio, sem
invejas, sem soberbas! Ter olhos que só olham para amar, e mãos que se estendem em gesto de amor, e
lábios que não proferem senão palavras de amor, coração, principalmente, cheio somente de amor, levando
olhos, mãos e lábios a fazerem atos de amor!
170.3 Os mais doutos sabem de que dons Deus tinha enriquecido Adão, não só para ele mesmo, como para
os seus descendentes. Até os mais ignorantes dos filhos de Israel sabem que temos o espírito. Só os pobres
pagãos não sabem que nós temos esse hóspede real, este sopro vital, esta luz celeste, que santifica e
vivifica o nosso corpo. Mas os mais doutos conhecem os dons dados ao homem; ao espírito do homem! Deus
não fez enriquecer menos o espírito do que a carne, o sangue da criatura, feita com um pouco de lama e
com o seu hálito. Como deu dons naturais de beleza e integridade, de inteligência e de vontade, de
capacidade de amor recíproco, assim deu também dons morais, com a sujeição dos sentidos à razão, de
modo que, na liberdade e no domínio de si mesmo e da própria vontade, que Deus havia dado aAdão, não se
insinuava o malvado cativeiro dos sentidos e das paixões. Amar-se, o querer, o prazer na justiça era livre
sem o que vos torna escravos, fazendo-vos sentir o mordente do veneno que satanás espalhou e vomita,
levando-vos para fora do álveo límpido para os campos lamacentos, para os brejos podres, onde fermentam
a febre da sensualidade carnal e moral. Porque, ficai sabendo que é sensualidade até a concupiscência por
pensamento. Eles tiveram dons sobrenaturais, isto é, a Graça santificante, o destino superior, a visão de
Deus.
170.4 A Graça santificante: é a vida da alma. É o que há de mais espiritual em nossa alma. A Graça nos faz
filhos de Deus, nos preserva da morte do pecado, e, quem não está morto, “vive” na casa do Pai: no Paraíso;
no meu Reino, o Céu. O que é essa Graça que santifica, que dá Vida e o Paraíso? Oh! Não useis de muitas
palavras! A Graça é o Amor. Portanto a Graça é Deus. É Deus, que admirando-se a Si mesmo na criatura
criada perfeita, se ama, se contempla, se deseja, dá a Si mesmo, para multiplicar o que tem, e tornando-se
feliz assim, e amando-se naqueles que são outros Ele mesmo.
Oh! Filhos! Não priveis a Deus desse seu direito. Não roubeis de Deus essa sua posse! Não decepcioneis
a Deus nesse seu desejo! Pensai que Ele age por amor. Ainda que vós não o fôsseis, Ele seria sempre
Infinito, o seu poder não ficaria diminuído. Mas Ele, ainda que completo em sua medida infinita,
incomensurável, não quer para Si (não o poderia porque é já o Infinito) mas pela Criação, sua criatura, Ele
quer aumentar o amor por tudo que essa Criação contém, por isso vos dá a Graça: o Amor, para que vós, em
vós, o leveis à perfeição dos santos, e derrameis este tesouro, tirado do tesouro que Deus vos deu com a sua
Graça e acrescido de todas as vossas obras santas, com toda a vossa vida heróica de santos, no oceano
infinito onde Deus está, isto é, no Céu.
Ó divinos, divinos, divinos mananciais do Amor! Vós existis, e ao vosso ser não é dada a morte, porque
sois eternos como Deus, sendo deuses[9].
Vós existireis, e ao vosso ser não se dará fim, porque, imortais como os santos espíritos, que vos
nutriram abundantemente, voltando para vós enriquecidos, com seus próprios méritos. Vós viveis e nutris,
vós viveis e enriqueceis, vós viveis e formais a santíssima Comunhão dos espíritos, de Deus, Espírito
Perfeitíssimo, e de todos, desde o pequenino que acaba, de nascer, sugando pela primeira vez o leite
materno.
Não me critiqueis em vossos corações, ó homens doutos! Não digais: “Ele é louco, e é mentiroso! Porque
como um louco ele fala da Graça em nós, privados dela pela culpa. Ele mente, dizendo que já somos uma só
coisa com Deus.” Sim, a culpa existe; a separação também existe. Mas, diante do poder do Redentor, a
Culpa, separação cruel que se fez entre o Pai e seus filhos, cairá por terra, como muralha, sacudida pelo
novo Sansão. Eu já a agarrei e a estou sacudindo, e ela já está aluindo, e satanás está tremendo de raiva, de
impotência, não podendo fazer nada contra o meu poder, sentindo que lhe são arrebatadas tantas presas,
tornando mais difícil arrastar o homem para o pecado. Porque, quando Eu vos tiver levado ao meu Pai,
quando, ao filtrar-se o meu Sangue, e pela minha dor, fordes limpos e fortificados, tornar-se-á em vós viva,
ativa e poderosa a Graça e vós sereis triunfadores, se o quiserdes. Deus não vos força, nem quanto ao
pensamento, nem quanto à vossa santificação. Vós sois livres. Mas Deus vos dá forças. Ele vos dá a
liberdade, mesmo no império de satanás. Deveis escolher: submeter-vos ao jugo infernal, ou pôr asas de
anjos em vossas almas. Tudo depende de vós, na minha companhia como vosso irmão, para guiar-vos e
alimentar-vos com a comida imortal.
170.5 “Como se pode conquistar a Deus e o seu Reino por um caminho mais suave do que o do Sinai?”,
assim vós dizeis. Não há outro caminho. O caminho é aquele. Contudo, devemos olhar para ele, não através
da cor da ameaça, mas sim, através da cor do amor. Nós dizemos: “Ai de mim, se eu não fizer isto!”,
continuamos tremendo, esperando o pecado, pensando que somos incapazes de deixar de pecar. Digamos:
“Feliz de mim, se eu fizer isto!”, e, com um impulso de sobrenatural alegria, jubilosos lancemo-nos nos
braços desta felicidade, que nasce da observância da Lei, como corola de rosa nascida duma moita de
espinhos.
“Feliz de mim, se eu for pobre de espírito, porque, então, o Reino dos Céus é meu!
Feliz de mim, se eu for manso, porque herdarei a Terra!
Feliz de mim, se eu for capaz de chorar sem revolta, porque serei consolado!
Feliz de mim, se mais do que do pão e do vinho para saciar a fome, eu tiver fome e sede de justiça. A
Justiça me saciará!
Feliz de mim, se eu for misericordioso, porque a divina misericórdia será usada para comigo!
Feliz de mim, se eu for puro de coração, porque Deus se inclinará para o meu coração puro, e eu O
verei!
Feliz de mim, se eu tiver um espírito de paz, porqueserei chamado, por Deus, de seu filho. Na paz está o
amor, e Deus é Amor que ama a quem é semelhante a Ele!
Feliz de mim se, por fidelidade à justiça, eu for perseguido, porque, para compensar-me das
perseguições terrenas, Deus, meu Pai, me dará o Reino dos Céus.
Feliz de mim, se eu for ultrajado, e for acusado mentirosamente, por reconhecer-me teu filho, ó Deus!
Disso me deve provir alegria, não desolação, porque isso me iguala aos teus melhores servos, os Profetas,
perseguidos por essa mesma razão; e com os quais eu creio firmemente que hei de compartilhar a mesma
grande recompensa, eterna, no Céu, que é meu.”
Olhemos assim para o caminho da salvação. Através da alegria dos santos.
170.6 “Feliz de mim, se eu for pobre de espírito”:
Oh! riquezas, brasas de Satanás, a quantos delírios levais! Nos ricos e nos pobres. O rico que vive para o
seu ouro: o ídolo infame do seu espírito arruinado. O pobre que vive do ódio ao rico! Porque o rico tem o
ouro e, ainda que o pobre não cometa materialmente nenhum homicídio, lança suas maldições sobre os
ricos, desejando-lhes toda espécie de mal. Não basta deixar de fazer o mal, é necessário também não
desejar fazê-lo. Quem diz maldições rogando pragas e desejando a morte, não é muito diferente de quem
mata materialmente, porque nele existe o desejo de ver morrer aquele a quem ele odeia. Em verdade, Eu
vos digo que o desejo não é senão um ato retido, como alguém que já foi concebido no ventre, mas ainda
não foi expelido para fora. O desejo mau envenena e corrompe, porque dura mais tempo do que o ato
violento e vai mais ao fundo do que o próprio ato.
O pobre de espírito, se for rico, não peca por causa do ouro, mas, com o seu ouro, faz a sua santificação,
pois o transforma em amor. Amado e bendito, ele é semelhante às fontes, que dão vida nos desertos,
doando-se com generosidade, alegres por doarem-se, acalmando os desesperos. Se é pobre, está contente
com a sua pobreza, e come o seu pão adoçado pela alegria de saber-se livre dos ardores do ouro, e dorme o
seu sono, livre de pesadelos, levantando-se descansado, para o seu tranquuilo trabalho, que lhe parece
sempre leve, quando é feito sem avidez e sem inveja.
As coisas que tornam um homem rico são o ouro para as coisas materiais, e os afetos, para as coisas
morais. Pelo ouro entende-se não só as moedas, mas também as casas, os campos, as jóias, os móveis, os
rebanhos, tudo, afinal, que faz a vida materialmente rica. Pelas afeições, entende-se os laços do sangue e do
casamento, as amizades, as riquezas intelectuais, os cargos públicos. Como estais vendo, se para aquela
primeira categoria o pobre pode dizer: “Oh! Quanto a mim, basta que eu não tenha inveja de quem tem
posses já estando no meu lugar, pois sou pobre, sendo necessariamente colocado aqui”, o pobre, a segunda
categoria também o pobre tem que tomar cuidado, porque , até o mais miserável dos homens, pode tornar-
se pecaminosamente rico em espírito. Todo aquele que se afeiçoa demais a alguma coisa, peca.
Vós direis: “Mas, então, devemos odiar o bem que Deus nos deu? Se assim for, por que é que Ele manda
amar o pai, a mãe, a esposa, os filhos, dizendo: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’?”
Fazei aqui uma distinção. Devemos amar o pai, a mãe, a esposa, e o próximo, na medida dada por Deus:
“como a nós mesmos.”
Enquanto que Deus deve ser amado sobre todas as coisas, com todo o nosso ser. Não temos que amar a
Deus como amamos os mais queridos dos nossos próximos, a mãe, porque nos amamentou, a esposa,
porque dorme sobre o nosso peito e cria-nos os filhos: mas, sim, amar a Deus com todo o nosso ser: isto é,
com toda a capacidade de amar que existe no homem: amor de filho, amor de esposo, amor de amigo. Oh!
não vos escandalizeis Com o amor de pai! Sim, porque pelas coisas de Deus devemos ter os mesmos
cuidados que um pai tem para com os seus filhos, para os quais guarda com amor os bens, fazendo-os
aumentar, e se ocupa e se preocupa com o seu crescimento físico e cultural, e com o seu bom êxito nos
negócios do mundo.
O amor não é um mal, nem deve tornar-se um mal. As graças que Deus nos concede não são um mal,
nem devem tornar-se um mal. Elas são amor. Por amor nos foram dadas. É preciso usar com amor estas
riquezas que Deus nos concede, tanto em afetos, como em bens. Somente quem não faz delas os seus
ídolos, mas meio para servir Deus em santidade, mostrando não ter um apego pecaminoso a elas. Procura,
pois, a Santa pobreza do espírito, que se despoja de tudo, para ficar mais livre, a fim de conquistar a Deus
Santo, que é a Suprema Riqueza: conquistar a Deus quer dizer ter o Reino dos Céus.
170.7 “Feliz serei eu se for manso”.
Isto pode parecer estar em contraste com os exemplos que vemos na vida de cada dia. Os que não são
mansos é que parecem triunfar nas famílias, nas cidades, nas nações. Mas, será mesmo um verdadeiro
triunfo o deles? Não. É o medo que aparentemente inclina os subjugados diante do déspota, mas isso não é
mais do que um véu colocado sobre a efervescência da revolta contra o tirano. Os iracundos e prepotentes
não possuem os corações de seus familiares, ou dos concidadãos, ou de seus súditos. Os mestres do: “Eu
disse, e está dito!” Não conquistam inteligências e espíritos para as suas doutrinas. Eles criam apenas
autodidatas, que vivem buscando e rebuscando uma chave capaz de abrir as portas fechadas de uma
sabedoria e de uma ciência, justamente oposta à que lhes está sendo imposta.
Os sacerdotes que não se entregam à conquista dos espíritos, com doçura, paciência, humildade, amor.
Não estão levando almas para Deus. Mais parecem uns guerreiros armados, que se lançam a um assalto
feroz, avançando impetuosamente e com intransigência contra as almas… Oh! pobres almas! Se elas fossem
santas, não teriam necessidade de vós, sacerdotes, para chegarem à luz. Pois já a teriam consigo. Se fossem
justos, não teriam necessidade de vós, juízes para serem contidos pelo freio da justiça, pois já a teriam em
si. Se fossem sãos, não precisariam de quem os curasse. Por isso sede mansos. Não façais que as almas
fujam, espavoridas. Mas, atraí-as com amor. Porque a mansidão é amor, assim como o é a pobreza de
espírito.
Se assim fordes, conquistareis a Terra, levando para Deus o lugar, que era de satanás, porque a vossa
mansidão, que, além de ser amor, é também humildade, vence o ódio e a soberba, matando nos ânimos o rei
abjeto da soberba e do ódio.E então, o mundo será vosso, isto é, de Deus, pois sereis justos, ao
reconhecerdes Deus como Senhor Absoluto da criação, ao Qual há de ser dado todo louvor, e entregue tudo
o que é seu.
170.8“Feliz serei eu, se souber chorar sem revoltar-me.”
A dor está sobre a terra. A dor arranca lágrimas ao homem. Antes não existia a dor. Mas o homem a
colocou sobre a terra e, por uma depravação de sua inteligência, esforça-se por descobrir o modo de
aumentá-la sempre, de todos os modos. Além das doenças e das desventuras provindas de raios, de
tempestades, de avalanchas, de terremotos, eis que o homem, para sofrer, mas principalmente para fazer
sofrer — pois gostaríamos somente que os outros sofressem por meios estudados por nós para fazer
sofrer — eis, então, que o homem inventa armas mortíferas sempre mais tremendas e danos morais cada
vez mais astuciosos. Quantas lágrimas o homem faz o outro derramar, por instigação do seu rei oculto, que
é satanás! Pois bem. Em verdade, Eu vos digo que essas lágrimas não o diminuem, mas levam o homem à
perfeição.
O homem é um menino descuidado, despreocupado superficial, alguém nascido com inteligência tardia,
enquanto o pranto não o tornar adulto, reflexivo e inteligente. Somente os que choram, ou que já choraram,
sabem amar e compreender. Amar os irmãos que choram, compreendê-los em suas dores, ajudá-los com
bondade, sabendo por experiência quanto se sofre, estando sozinho no pranto. E sabe amar a Deus porque
se compreende que fora de Deus tudo é dor, porque compreende que a dor se mitiga, se for chorada sobre o
coração de Deus, compreendendo que o choro resignado, não quebranta a fé, não torna árida a oração, que
não conhece o que é revolta, mas muda de natureza, transformando-se a dor em consolação.
Sim. Os que choram amando o Senhor, serão consolados.
170.9 “Feliz serei eu, se tiver fome e sede de justiça.”
Desde o momento em que nasce, até o momento em que morre, o homem se inclina avidamente para o
alimento. Ele abre a boca, quando nasce, para agarrar o bico do seio, abre os lábios para engolir algum
sustento, numa aflição de agonia. Trabalha para se alimentar. Ele faz da terra um enorme mamilo, do qual
suga insaciável aquilo que morre. Mas, que é o homem? Um animal? Não. É um filho de Deus. Ele está aqui
no exílio por poucos ou muitos anos. Mas sua vida não termina com a mudança da sua morada.
Existe uma vida na vida, assim como em uma noz existe o miolo. A noz é o miolo, e não a casca. Se
semeardes uma casca de noz, nada nasce. Mas, se semeardes a casca com sua polpa, nascerá uma grande
árvore. Assim é o homem. Não é a carne que se torna imortal, é a alma. Ela é nutrida para alcançar a
imortalidade, onde, por amor, elalevará também a carne, na feliz ressurreição. O alimento da alma é a
sabedoria, e a justiça. Como uum alimento líquido, elas são absorvidas, fortalecendo a alma, e quanto mais
se prova delas, mais cresce a santa avidez de possuir a sabedoria e de conhecer a justiça. Contudo, há de
chegar um dia no qual a alma, insaciável nesta santa fome, ficará saciada. Chegará esse dia. Deus se dará
ao seu filho e o apertará diretamente ao seu seio, e o filho, nascido para o Paraíso se saciará da mãe
admirável, que é o próprio Deus, não sabendo mais o que é fome, mas repousando feliz sobre o seio divino.
Nenhuma ciência humana iguala esta ciência divina. A curiosidade da mente pode ser satisfeita, mas não a
necessidade do espírito. Pelo contrário, na diversidade dos sabores, o espírito sente desgosto, vira a boca
para longe do amargo mamilo, preferindo passar fome a encher-se com um alimento, que não tenha vindo
de Deus.
Não tenhais medo, ó sedentos e famintos de Deus! Sejais fiéis e sereis saciados por Aquele que vos ama.
170.10 “Feliz serei eu, se for misericordioso.”
Quem é entre os homens o que pode dizer: “Eu não preciso de misericórdia?” Ninguém. Pois bem, se até
na antiga Lei está dito[10]: “Olho por olho e dente por dente” por que não se pode dizer na Nova Lei: “Quem
for misericordioso, encontrará misericórdia?” Todos precisam de perdão.
Pois bem! não é a fórmula e a forma de um rito, figuras externas concedidas por causa da opaca
mentalidade humana. Ela não obtêm o perdão. É o rito interno do Amor, isto é, o rito da misericórdia:
Porque, se foi imposto o sacrifício de um bode ou de um cordeiro e a oferta de algumas moedas, isto foi
feito porque na base de todo mal se encontram duas raízes: a avidez e a soberba. A avidez é punida com a
despesa para a aquisição da oferta; e a soberba com a evidente confissão do rito: “Eu celebro este
sacrifício, porque pequei.” Também se fez isso para percorrer os tempos e os sinais dos tempos. No sangue
que se espalha está a figura do Sangue que vai ser derramado, para cancelar os pecados dos homens.
Feliz, pois, daquele que sabe ser misericordioso com os famintos, com os nus, com os que não têm casa,
com os maiores miseráveis, que possuem mau caráter, fazendo-os sofrer e também os que com ele
convivem. Tende misericórdia. Perdoai, compadecei-vos, socorrei, instruí, amparai. Não vos fecheis em uma
torre de cristal, dizendo: “Eu sou puro, e não desço no meio dos pecadores.” Não digais: “Eu sou rico e feliz
e não quero ouvir falar das misérias dos outros.” Tomai cuidado, porque, mais depressa do que a fumaça,
que se dissipa no ar por algum forte vento, pode desvanecer-se também a vossa riqueza, a vossa saúde, o
vosso bem-estar familiar. E lembrai-vos de que o cristal serve de lente, e aquilo que, ao misturar com a
multidão, poderia passar inobservado, se vos colocardes numa torre de cristal, sozinhos, separados,
recebendo luz de todos os lados, não podeis mais conservar escondido.
Misericórdia também para levar a termo um sacrifício de expiação secreto e continuo, para com ele
obter misericórdia.
170.11 “Feliz de mim, se eu for puro de coração.”
Deus é pureza. O Paraíso é um reino de pureza. Nada de impuro pode entrar no céu, onde está Deus.
Por isso, se fordes impuros, não podereis entrar no Reino de Deus. Mas,que alegria! Uma alegria
antecipada, concedida pelo Pai aos filhos! Quem é puro já tem, nesta terra, um começo do céu, porque Deus
se inclina para o puro, e o homem vê o seu Deus nesta terra. Ele não conhece o sabor dos amores humanos,
mas experimenta, até ao êxtase, o sabor do amor divino, podendo dizer: “Eu estou contigo, e Tu estás em
Mim, por isso eu te possuo e conheço como esposo amabilíssimo de minha alma.” Crede-me, quem possui a
Deus, realiza também em si mudanças substanciais inexplicáveis, fazendo-o santo, sábio, forte. Sobre seus
lábios florescem palavras, e seus atos assumem poderes, que não são da criatura, mas de Deus que vive
nela.
O que é a vida daquele que vê a Deus? É felicidade. E quereríeis privar-vos de tão grande dom, por
causa de fétidas impurezas?
170.12 “Feliz serei eu, se tiver um espírito de paz.”
A paz é uma das características de Deus. Deus está na paz. Porque a paz é amor, enquanto que a guerra
é ódio. Satanás é ódio. Deus é paz. Ninguém pode se dizer filho de Deus, e nem pode Deus dizer que um
homem será seu filho, se este tiver um espírito irascível, sempre pronto a desencadear tempestades. E
mais: não pode dizer-se filho de Deus quem, ainda não sendo um desencadeador de tempestades, contudo,
não contribuindo em nada, com a grande paz, que acalma as tempestades levantadas por outros. Quem é
pacífico, difunde a paz, mesmo sem falar nada. Senhor de si, ouso dizer até senhor de Deus[11], ele O leva
como uma lâmpada leva a sua luz, como um turíbulo que vai soltando os seus perfumes, como um odre que
transporta o seu líquido, e brilha a luz nas névoas fumegantes dos rancores, purifica o ar das invejas, se
acalmam as ondas enfurecidas das contendas, por meio deste óleo suave, que é o espírito de paz, que
emana dos filhos de Deus.
Fazei com que os homens venham a chamar-vos com este nome.
170.13 “Feliz de mim, se eu for perseguido por amor da Justiça.”
O homem é tão endemoninhado que odeia o bem onde quer que se encontre, que odeia quem é bom,
como se, sendo bom, mesmo calado, o acuse e censure. De fato a bondade de alguém evidencia ainda mais
a maldade do malvado. De fato, a fé de quem verdadeiramente crê, faz que apareça mais viva a hipocrisia
do que só finge crer. Na verdade, não pode deixar de ser odiado pelos injustos quem, com seu modo de
viver, é uma testemunha constante da justiça. Então, acontece que o mau se enfurece contra os amigos da
justiça. Também aqui acontece como nas guerras. O homem progride na arte satânica de perseguir, muito
mais do que na arte santa de amar. Mas, só pode perseguir quem tem vida curta. Pois o eterno, que existe
no homem, escapa da armadilha, adquirindo pela perseguição uma vitalidade ainda mais vigorosa. A vida
foge das feridas que abrem as veias ou dos sofrimentos que consomem o perseguido. Mas o sangue faz a
púrpura do futuro rei e os sofrimentos são como outros tantos degraus para subir ao trono que o Pai
preparou para os seus mártires, o trono régio do Reino dos Céus.
“Feliz serei eu, se for ultrajado e caluniado.”
170.14
Fazei com que vosso nome possa ser escrito só nos livros do Céu, nos quais não há nomes, feitos das
mentiras humanas, que louvam os que não merecem louvor. Mas, com justiça e amor, estão escritas as
obras dos bons, para dar-lhes o prêmio prometido por Deus.
Antes de nosso tempo, os profetas foram caluniados e ultrajados. Mas, quando forem abertas as portas
dos céus, eles entrarão na Cidade de Deus, com a imponência de reis, e, diante deles, os anjos se inclinarão,
cantando cheios de alegria. Vós também, os ultrajados e caluniados por terdes sido de Deus, tereis o triunfo
no céu. Quando o tempo terminar e o Paraíso estiver completo, todas as lágrimas serão estimadas, porque
por elas tereis conquistado a glória eterna, que Eu, em nome do Pai, vos prometo.
Ide. Amanhã eu vos falarei ainda. Fiquem aqui agora somente os doentes para que Eu os socorra em
seus sofrimentos. A paz esteja convosco, e a meditação sobre a salvação, através do amor, vos encaminhe
pela estrada, cujo fim é o céu.
[9] sendo deuses. Em uma cópia datilografada MV direciona a Salmo 82,6; Romanos 8,16; 2 Pedro 1,4; e explica com a seguinte nota a expressão “Portanto
são outros Si mesmos” de dezesseis linhas mais a cima: Justamente São Tomás de Aquino diz que Deus não pode fazer maiores obras dividas das três
realizadas: a Encarnação do Filho, a Maternidade da Santa Virgem e a divinização da alma humana. E Santo Agostinho: “As almas são divinamente
associadas, por meio do Pai, ao mistério da geração eterna e, por meio do Pai e do Filho, a manifestação do Espírito Santo.” Assim a alma divinizada pela
Graça é divinizada pela participação com as Três Pessoas, e este é a obra-prima do Amor Infinito que nos eleva de criatura a criatura divinizada.
[10] está dito em Exodo 21,24-25; Levítico 24,19-20; Deuteronômio 19,21. É a conhecida “lei de talião” que será citada outras vezes de 171.4 a 566.9.
[11] senhor de Deus, porque, como explica MV em uma nota em uma cópia datilografada, Deus ama de tal forma os pacíficos – que são totalmente
caridade, porque caridade inspira sentimento de paz, e a paz restabelece o amor entre os irmãos os quais o egoísmo pertubou – que parece realmente
colocar-se ao serviços deles, para ajudá-los neste mistério de paz que difunde um dos seus atribuos mais doces entre os homens.
171. Terceiro sermão da montanha:
os conselhos evangélicos que aperfeiçoam a Lei.
25 de maio de 1945
171.1 Continua o Sermão da Montanha.
O lugar e a hora são sempre os mesmos. O povo aumentou ainda mais. A um canto, está um romano, ao
lado de uma trilha, como se estivesse querendo ouvir, mas sem excitar repulsa na multidão. Eu o distingo
pela veste curta e a capa. Lá estão ainda Estêvão e Herma.
Jesus vai vagarosamente para o seu lugar, a fim de começar a falar.
– Por tudo o que Eu vos disse ontem, não deveis ficar pensando que Eu tenha vindo abolir a Lei. Não.
Visto que Eu sou Homem, e compreendo as fraquezas do homem, o que Eu quis foi encorajar-vos a segui-la,
dirigindo os vossos olhares espirituais para o Abismo luminoso não para o abismo escuro. Porque, se o
medo do castigo pode fazer alguém deter-se, três em dez vezes, a certeza do um prêmio o arremessa para
frente sete em dez vezes. Daí se vê que a confiança faz mais do que o medo. Eu quero que tenhais uma
confiança plena, firme, para que possais fazer não sete em dez partes de bem, mas dez em dez, para
conquistardes este prêmio santíssimo que é o Céu.
Eu não mudo nem uma letra da Lei. Quem foi que a deu, entre raios, no Sinai? O Altíssimo.
Quem é o Altíssimo? O Deus Uno e Trino.
De onde foi que Ele a tirou? Do Seu pensamento. Como foi que a deu? Com a sua Palavra.
Por que foi que a deu? Pelo seu Amor.
Vede, pois que a Trindade estava presente. O Verbo, obediente como sempre ao Pensamento e ao Amor,
falou pelo Pensamento e pelo Amor.
Poderia Eu desmentir-me a Mim mesmo? Não poderia. Mas Eu posso, já que tudo posso, completar a
Lei, torná-la divinamente completa. Não como fizeram os homens que, durante séculos ao invés de
tornarem completa, a fizeram indecifrável, impossível de ser cumprida, sobrepondo leis e preceitos,
procedentes do seu pensamento, conforme suas vantagens, jogando todo esse entulho para apedrejar e
sufocar, para soterrar e esterilizar a Lei Santíssima, dada por Deus. Poderá uma planta sobreviver, se
estiver sempre mergulhada em avalanchas, em escombros e inundações? Não. A planta morre. A lei está
morta em muitos corações, sufocada debaixo das avalanchas de exageradas superestruturas. Eu vim para
resgatá-la e ao desenterrará-la, ressuscitando-a , eis que Eu faço dela não mais uma lei, mas uma Rainha.
171.2 As rainhas promulgam as leis. As leis são obras das rainhas, mas não são mais do que as rainhas. Eu,
pelo contrário, faço da Lei rainha: Eu a completo, coroando-a, colocando no seu ápice a grinalda dos
conselhos evangélicos. Primeiro era a ordem. Agora é mais que a ordem. Antes era o necessário. Agora é
mais do que o necessário;. ela é a perfeição. Quem a desposa, assim como Eu vo-la dou, no mesmo instante
se torna rei, porque alcançou o que há de “perfeito”, porque não só se tornou obediente, mas heróico isto é,
santo, sendo a santidade a soma das virtudes levadas ao ápice, o ponto mais alto que possa ser atingido por
uma criatura. São virtudes heroicamente amadas e servidas, com um completo desapego de tudo o que é
apetite ou reflexão humana. Eu poderia dizer que o santo é aquele para o qual o amor e a vontade servem
de obstáculo para qualquer outra, que não seja Deus. Não distraído por outra visão inferior, ele tem as
pupilas do coração firmes no Esplendor Santíssimo que é Deus, no qual ele vê, a agitação dos irmãos que,
suplicantes, lhe estendendo as mãos, pois tudo é em Deus. E, sem afastar o olhar de Deus, o santo se inclina
para atender aos irmãos que lhe suplicam. Contra a carne, contra as riquezas, contra as comodidades, ele
ergue o seu ideal: servir. O santo fica pobre? Fica diminuído? Não. Ele chegou a possuir a sabedoria e a
riqueza verdadeiras. Por isso, possui tudo. Não sente cansaço, porque, se é verdade que produza
continuamente, também é verdade que ele é nutrido continuamente. Porque, se é verdade que compreenda
a dor do mundo, também é verdade que se alimenta com a alegria do Céu. Ele se nutre de Deus, se alegra
em Deus. Ele é a criatura que compreendeu o sentido da vida.
Como estais vendo, Eu não mudo, nem mutilo a Lei, como também não a corrompo com superposições
de fermentantes teorias humanas. Mas a completo. Ela é o que é, e assim será até o último dia, sem que
dela se mude uma só palavra, ou se tire um só preceito. Ela está coroada pela perfeição. Para ter-se a
salvação, basta aceitá-la como foi dada. Para ter uma imediata união com Deus, é preciso vivê-la, como Eu
aconselho. Mas, visto que os heróis são uma exceção, Eu falarei para as almas comuns, para a massa das
almas, para que não se diga que, buscando a perfeição, eu desconheça o necessário. De tudo o que Eu digo,
guardai bem isto: quem se permite violar um só entre os menores destes mandamentos será considerado o
menor no Reino dos Céus. Aquele que levar outros a violar será considerado o menor pelo que fez e por
aqueles que tiver levado à violação. Ao passo que aquele que, com sua vida e suas obras, ainda mais do que
com as palavras, tiver persuadido outros a obedecerem, este será grande no Reino dos Céus. Sua grandeza
aumenta a cada um daqueles que ele leve a obedecer e assim a santificar-se.
171.3 Eu sei que isto será desagradável para muitos. Mas Eu não posso mentir, ainda que a verdade que Eu
vou dizer crie inimigos.
Em verdade, Eu vos digo que, se a vossa justiça não for criada de novo, separarando-se completamente
da pobre e erroneamente chamada justiça, ensinada pelos escribas e fariseus; se não fordes de verdade
mais justos que os fariseus e escribas, que pensam que são justos quando aumentam as fórmulas, mas sem
procurar uma mudança substancial em seus espírito, não entrareis no Reino.
Guardai-vos dos falsos profetas e dos que ensinam o erro. Eles vêm a vós com veste de cordeiro, mas são
lobos ferozes. Vêm vestidos de santidade, mas são zombadores de Deus, pois dizem que amam a verdade,
mas se nutrem com a mentira. Observai-os bem, antes de acompanhá-los.
O homem tem uma língua, com que pode falar, tem olhos, com que vê, tem mãos, com que faz sinais.
Mas ele tem uma outra coisa, que dá testemunho mais verdadeiro do quem ele é: são os seus atos. O que é
um par de mãos juntas em oração, se com elas depois o homem se entrega ao roubo e à fornicação? De que
valem dois olhos que, querendo passar por inspirados, viram-se para todos os lados, se, depois dessa
comédia, fixam-se, cobiçosos, numa mulher, ou num inimigo, seja para a luxúria, ou para o homicídio? O
que é a língua, que conta uma mentirosa canção de louvor, e seduz com suas palavrinhas melosas, enquanto
nas vossas costasela vos calunia, sendo capaz de jurar falso, só para vos fazer passar por alguém
desprezível? Que é a língua, que faz longas orações hipócritas, e depois , rapidamente, arrasa a boa fama
do próximo, ou seduz a sua boa fé? Dá náusea. Dão náusea estes olhos e estas mãos mentirosas. Mas os
atos do homem, seus verdadeiros atos , isto é, o seu modo de comportar-se em família, no comércio, no
trato com o próximo e com os seus criados, podem dar o testemunho: “Este é um servo de Deus.” Porque as
ações santas são o fruto de uma verdadeira religião.
Uma árvore boa não dá frutos maus, e uma árvore má não dá frutos bons. Estas moitas de espinho, por
acaso poderão dar-vos uvas saborosas? E aqueles cardos, ainda mais espinhosos, poderão dar-vos um dia,
figos maduros e tenros? Não, porque, em verdade, colhereis das primeiras poucas e ásperas frutinhas, e um
fruto que não se pode comer é o que virá daquelas flores, pois mesmo estando em flor, já estão cercadas de
espinhos. O homem que não é justo, poderá talvez incutir respeito com sua aparência, mas só com ela.
Também aquele pé de cardo que parece de penas, como um floco de finos fios de prata, que o orvalho
recobriu, de tais diamantes. Mas, se, distraidamente, tocardes nele, vereis que não se trata de nenhum
floco, mas de um monte de espinhos, que ferem o homem, fazem mal às ovelhas e, por isso, os pastores os
arrancam de seus pastos, e os jogam no fogo aceso a noite, para queimar até as sementes. É uma medida
justa e previdente. Eu não vos digo: “Matai os falsos profetas e os fiéis hipócritas.” Antes, vos digo: “Deixai
isso para Deus.” Eu vos digo: “Estai atentos, afastai-vos deles para não vos envenenardes com os seus
sucos.”
171.4 Como Deus há de ser amado, Eu vos disse ontem. Insisto em dizer como o próximo há de ser amado.
Noutros tempos se dizia[12]: “Amarás o teu amigo e odiarás o teu inimigo.” Não. Não é assim. Isto era
bom nos tempos em que o homem não tinha o conforto do sorriso de Deus. Agora chegaram tempos novos,
nos quais Deus ama tanto o homem, que lhe manda o seu Verbo para redimi-lo. Agora o Verbo está falando.
É a graça que já está se difundindo. Depois, o Verbo consumará o sacrifício de paz e de redenção, e a graça
não só se difundirá, mas será dada a todos os espíritos que crêem no Cristo. Por isso é preciso elevar à
perfeição o amor ao próximo, a tal ponto que já não se faça diferença entre o amigo e o inimigo.
Estais sendo caluniados? Amai e perdoai. Recebestes agressões ou pancadas? Amai e oferecei a outra
face a quem vos esbofeteia, e pensai que é melhor que a ira se desafogue em vós, que a sabeis suportar, do
que em algum outro, que iria vingar-se. Fostes roubados? Não fiqueis pensando: “Este meu próximo é um
cobiçoso”, mas pensai com caridade: “Este meu pobre irmão é um necessitado”, e dai-lhe até a túnica, se já
vos tirou a capa. Assim fareis que fique impossível para ele cometer um duplo furto, pois não terá mais
necessidade de tirar a túnica de outro. Vós dizeis: “Mas poderia ser um vício, e não uma necessidade.” Está
bem; mas dai assim mesmo. Deus vos recompensará por isso, e o que for injusto será castigado. Mas muitas
vezes — e isso relembra tudo o que Eu disse ontem sobre a mansidão — vendo-se tratado assim, o vício sai
do coração do pecador, e ele se redime, chegando até a reparar o seu furto com a entrega do que roubou.
Sede generosos com aqueles que, mais honestos, em vez de roubar-vos, vos pedem o que precisam. Se
os ricos fossem realmente pobres de espírito, como vos ensinei ontem, não haveria essas lamentáveis
desigualdades sociais, causas de tantas desventuras humanas. Pensai sempre: “Mas se eu estivesse em
necessidade, como é que eu receberia a recusa de uma ajuda?” Agi de acordo com a resposta do vosso eu.
Fazei aos outros o que gostaríeis que vos fosse feito, e não façais aos outros o que não gostaríeis que vos
fosse feito.
Antiga é aquela palavra: “Olho por olho, dente por dente”, palavra que não está nos dez mandamentos,
mas que foi colocada depois, porque o homem privado da graça é uma fera tal, que só pode compreender a
vingança. Mas aquela palavra antiga está anulada por esta nova: “Ama quem te odeia, reza por quem te
persegue, perdoa a quem te calunia, fala bem de quem fala mal de ti, faze o bem a quem te prejudica, sê
paciente com o briguento, condescendente com quem te aborrece, ajuda de boa vontade a quem recorre a
ti, e não uses de usura com ele, não vivas criticando nem julgando os outros.” Vós não sabeis em que
condições são praticadas suas ações pelos homens. Em toda espécie de socorro, sede generosos, sede
misericordiosos. Quanto mais dardes mais vos será dado, e uma medida bem cheia e calcada será despejada
por Deus no seio de quem for generoso. Deus, não só vos dará conforme tiverdes dado, mas muito mais.
Procurai amar e fazer-vos amar. As brigas acabam custando muito mais do que entrar num entendimento
amigável. Viver em amizade é como um mel, que deixa por muito tempo o seu gosto na língua.
171.5 Amai, amai! Amai amigos e inimigos, para serdes semelhantes ao vosso Pai, que faz chover sobre os
bons e sobre os maus, fazendo descer a luz do sol sobre justos e injustos, reservando-se o direito de dar sol
e orvalhadas eternas, ou fogo e saraivadas infernais, no dia em que os bons vão ser separados como espigas
escolhidas, entre os feixes da colheita. Não basta amar aos que vos amam, dos quais esperais retribuição.
Isso não tem merecimento: é uma alegria, até os homens honestos por natureza sabem fazer. Os próprios
publicanos e pagãos fazem assim. Mas vós, amai como Deus ama, amai por respeito a Deus, que é o Criador
também dos que são vossos inimigos ou pouco amáveis para vós. Eu quero em vós a perfeição do amor, e
por isso Eu vos digo: “Sede perfeitos, como perfeito é vosso Pai, que está nos Céus.”
Tão grande é o preceito do amor para com o próximo e do aperfeiçoamento do amor para com o
próximo, que Eu não vos digo mais como se dizia: “Não matar,” porque aquele que mata será condenado
pelos homens. Mas Eu vos digo: “Não vos ireis”, porque um juízo mais alto que o dos homens, está acima de
vós, e leva em conta também as ações imateriais. Quem tiver insultado o irmão, será condenado pelo
Sinédrio. Quem o tiver tratado como louco, e portanto o tiver prejudicado, será condenado por Deus. É
inútil fazer oferta ao altar, se antes por Deus não se fez sacrifício dos próprios rancores no interior do
coração, e não se cumpriu o rito santíssimo de saber perdoar. Por isso, quando estiveres para fazer uma
oferta a Deus, se tu te lembrares de que tens uma falta contra teu irmão, ou de que ainda estás guardando
rancor pela falta dele, deixa a tua oferta aí, diante do altar, faze primeiro a imolação do teu amor próprio,
reconcilia-te com o teu irmão, e depois vem para diante do altar, então só agora é que o teu sacrifício será
santo. Um bom acordo é sempre o melhor que se pode fazer. O juízo dos homens é sempre incerto. Quem,
teimosamente, se aventura a crer nele, poderia perder a causa, devendo pagar ao adversário até a última
moeda, ou apodrecer na cadeia.
Em tudo levantai o olhar para Deus. Perguntai a vós mesmos: “Terei eu o direito de fazer o que Deus não
faz comigo?” Porque Deus não é tão inexorável e obstinado como vós. Ai de vós, se Ele o fosse! Ninguém se
salvaria. Que esta reflexão vos leve a ter sentimentos de mansidão, de humildade, de piedade. Não vos
faltará a recompensa da parte de Deus, nesta vida e na outra..
171.6 Aqui, diante de Mim, há também uma alma que me odeia, e que não tem coragem de dizer-me:
“Cura-me!”, porque ele sabe que eu conheço os seus pensamentos. Mas Eu digo: “Que se faça o que estás
querendo. Assim como te estão caindo as escamas dos olhos, que caiam também do teu coração o rancor e
as trevas.” Ide todos com a minha paz. Amanhã vos falarei de novo.
A multidão vai-se dispersando aos poucos, talvez esperando ouvir algum grito pelo milagre feito. Mas
não há nenhum grito.
Até os apóstolos e os discípulos mais antigos, que ainda estão na montanha, perguntam:
– Mas, quem era? Não terá sido curado? –e insistem com o Mestre, que ficou de pé com os braços
cruzados, vendo a multidão se afastando.
Mas Jesus, a princípio, não responde. Depois diz:
– Os olhos ficaram curados. Mas a alma, não. Ela não pode, porque está cheia de ódio.
– Mas, quem será? Será talvez aquele romano?
– Não. É um infeliz.
– Mas, por que, então, o curaste? –pergunta Pedro.
– Deveria Eu fulminar a todos os outros como ele?
– Senhor… eu sei que Tu não queres que eu diga: “sim”, e por isso eu não o digo… mas eu estou
pensando assim… e é o mesmo…
– É a mesma coisa, Simão de Jonas. Mas fica sabendo que então… Oh! quantos corações cheios de
escamas de ódio Eu tenho ao redor de Mim! Vem Vamos para o alto, olharmos o nosso belo mar da Galileia.
Eu e tu sozinhos.
[12] se dizia em: Levítico 19,18 na primeira parte; na segunda parte tem-se em: Siraque 12,1-7. Todavia, a afirmação de Jesus é referida textualmente em
Mateus 5,43.
172. Quarto sermão da Montanha:
o juramento, a oração, o jejum.O velho Ismael e Sara.
26 de maio de 1945.
172.1 Continua o Sermão da Montanha.
No mesmo lugar e na mesma hora. A multidão, menos o romano, é a mesma, talvez até com mais gente,
porque muitos se colocaram até no começo das trilhas, do pequeno vale.
Jesus fala:
– Um dos erros mais encontrados no homem é a falta de honestidade para consigo mesmo. Sendo o
homem dificilmente sincero e honesto, criou para si um freio, obrigando-o a usar o caminho escolhido. É um
freio que o acaba deixando como um cavalo indomável para mudar o caminho conforme o seu gosto, ou
deixa-se levar completamente, fazendo com que sinta-se mais cômodo, sem pensar que pode receber a
desaprovação de Deus, dos homens e de sua própria consciência.
Esse freio se chama juramento. Mas entre pessoas honestas não é necessário o juramento, por isso não
foi Deus quem vo-lo ensinou. Ao contrário, Ele até vos disse: “Não levantar falso testemunho”, sem
acrescentar mais nada. Porque o homem deveria ser sincero, sem necessidade de mais nada, além da
fidelidade à sua palavra. Quando, no Deuteronômio, se fala dos votos, mesmo quanto partem de um coração
que se julga unido a Deus, sendo os votos necessidade ou reconhecimento, ainda assim, está escrito[13]:
“Uma vez que uma palavra saiu dos teus lábios, tu a deves sustentar, fazendo tudo o que prometeste ao
Senhor teu Deus, tudo o que por tua vontade, e por tua boca disseste” Sempre se fala de palavra dada,
bastando tal palavra. Aquele que sente a necessidade de jurar, é porque não confia em si mesmo e no que
os outros pensam a seu respeito. Quem pede um juramento mostra, desconfiança da sinceridade e
honestidade do outro.
Como estais vendo, o hábito de jurar é consequência da desonestidade moral do homem. É uma
vergonha para o homem. É uma dupla vergonha, porque o homem não seria nem mesmo a essa coisa
vergonhosa, que é ter que jurar, zombando de Deus com a mesma facilidade com que zomba do próximo,
chega até a jurar falso, com toda facilidade e tranquilidade.
172.2 Poderá haver coisa mais abjeta do que um perjuro? Usando, por vezes, uma fórmula sagrada,
chamando Deus como cúmplice e fiador, ou usando os nomes dos seus entes mais queridos: do pai, da mãe,
da mulher, dos filhos, dos seus mortos, da sua própria vida e de seus órgãos mais preciosos, em apoio de
sua palavra mentirosa, induz o próximo a prestar-lhe fé. E assim o consegue enganar. Ele é um sacrílego,
um ladrão, um traidor, um homicida. De quem? De Deus, porque ele mistura a Verdade com a infâmia de
sua mentira, zombando, diz: “Fere-me, desmente-me, se puderes. Tu estás aí, enquanto eu estou aqui,
rindo.” Oh! Se estais rindo, continuai a rir, mentirosos e zombadores! Haverá um momento em que não
rireis mais, será quando Aquele, a quem todo poder foi dado, vos aparecerá, terrível em sua majestade.
Somente com o seu aparecimento aterrorizar-vos-á, só com seu olhar vos fulminará, antes, antes mesmo
que sua voz vos precipite em vosso destino eterno, marcando-vos com a sua maldição.
É um ladrão, porque se apropria da estima que não merece. O próximo, impressionado pelo juramento,
se entrega a ele, e a serpente se adorna com isso, fingindo ser o que não é. Ele é um traidor, porque com
juramento promete uma coisa que pretende não cumprir. É um homicida, porque ou mata a honra do seu
semelhante, tirando-lhe a estima, ou mata a sua alma, porque o perjuro é um pecador abjeto aos olhos de
Deus, que, mesmo quando não vemos a verdade, ele vê. Deus não pode ser enganado, nem com palavras
falsas, nem com ações hipócritas. Ele vê. Nem por um instante perde de vista nenhum dos homens. Não
existe fortaleza tão bem munida, nem porão que seja tão profundo, que o olhar de Deus não consiga
penetrar. Até no vosso interior, na fortaleza que o homem traz ao redor do seu coração, Deus penetra. Ele
vos julga, não pelo que jurais, mas pelo que fazeis.
172.3 Por isso, depois que o juramento foi colocado em evidência, como freio à mentira e à facilidade de
faltar com a palavra dada, substituo aquela ordem[14] por outra: Já não digo, como os antigos: “Não jures
falso, mas guarda os teus juramentos”, mas Eu vos digo: “Não jureis nunca nem pelo Céu, que é o trono de
Deus, nem pela terra, que é o escabelo de seus pés, nem por Jerusalém e o seu Templo, que são a cidade do
grande rei e a Casa do Senhor, nosso Deus.”
Não jureis nem pelos túmulos dos antepassados, nem por suas almas. Os túmulos estão cheios das
partes inferiores do homem, partes que os animais também têm, e as almas, deixai-as em suas moradas.
Fazei que não sofram, nem se horrorizem, se são almas de justos que já estão no conhecimento antecipado
de Deus. Ainda que seja um conhecimento antecipado, um conhecimento parcial, pois que, até o momento
da Redenção, não possuirão ainda Deus na plenitude de seus esplendores, não podem deixar de sofrer, ao
verem que sois pecadores, Se eles não são justos, não aumenteis o seu tormento,lembrando-o, com o vosso
pecado, do pecado deles. Deixai os santos mortos em paz; deixai os mortos não santos, em suas penas. Não
tireis nada de uns, nem acrescenteis nada aos outros. Por que apelar aos mortos? Eles não podem falar. O
mortos santos não podem, porque a caridade os proíbe; deveriam vos desmentir infinitas vezes. Os
condenados também não, porque o Inferno não abre as suas portas, e os condenados não abrem as bocas, a
não ser para maldizer. A voz de todos fica sufocada pelo ódio de Satanás e dos satanases, pois os
condenados são satanases.
Não jureis nem pela cabeça do pai, nem pela mãe, nem pela esposa e filhos inocentes. Não tendes
direito de fazer isso. Serão eles, por acaso, uma moeda ou uma mercadoria? Serão eles como uma
assinatura de um documento? Eles são mais e são menos do que estas coisas. São sangue e carne do teu
sangue, ó homem, mas são também criaturas livres, e tu não podes usar delas como de um aval para o teu
juramento falso. Serão eles menos do que uma assinatura tua, porque tu és inteligente, livre e adulto, tu
não és um incapaz ou uma criança, que não sabe o que faz, precisando ser representada pelos pais. Tu és
tu: um homem dotado de razão e, por isso, és responsável por tuas ações, e deves agir por ti mesmo, dando
como aval para tuas ações e para tuas palavras, a tua honestidade e a tua sinceridade, a estima que
soubeste fazer nascer no teu próximo, e não a sinceridade dos parentes e a estima que eles tem dos outros.
Os pais são responsáveis os pais pelos filhos? Sim, mas somente enquanto eles são menores. Depois, cada
um é responsável por si mesmo. Nem sempre nascem justos de justos, e nem sempre uma mulher santa é
casada com um homem santo. Por que, então, usar como base de garantia, a justiça de quem está ao vosso
lado? De um pecador também podem nascer filhos santos e, enquanto inocentes, todos são santos. Por que,
então, buscar a ajuda de quem que é puro para aprovar um ato impuro, que é o vosso juramento, que
pretendeis violar?
Não jureis, nem mesmo pela vossa cabeça, pelos vossos olhos, vossa língua e vossas mãos. Não tendes
esse direito. Tudo quanto tendes é de Deus. Vós sois guardiães provisórios, banqueiros dos tesouros morais
ou materiais que Deus vos concedeu. Por que, então, usar o que não é vosso? Podeis pôr mais um fio de
cabelo em vossa cabeça, ou mudar a cor de vossos cabelos? Se não podeis fazer isso, por que é que usais,
então, a vossa vista, a palavra, a liberdade de vossos membros para dar força a um vosso juramento? Não
desafieis a Deus. Ele poderia pegar-vos em vossa palavra, e fazer ficarem secos os vossos olhos, assim como
pode secar as vossas árvores frutíferas, ou arrebatar-vos os filhos, arrancar as vossas casas, a fim de que
vos lembreis de que Ele é o Senhor e de que vós sois um súditos, sendo um maldito o que se faz de si
mesmo um ídolo, a ponto de julgar-se mais do que Deus, desafiando-o com suas mentiras.
172.4 O vosso falar seja sim, sim; e não, não. Nada além disso. O que se diz além disso é sugerido pelo
Maligno, para rir-se de vós, que, não podendo lembrar de tudo o que dissestes, caís em mentiras, tornando-
se objeto de zombaria, sendo conhecidos como mentirosos. Sinceridade, meus filhos. Tanto nas palavras,
como na oração.
Não façais como os hipócritas que, quando oram, gostam de ficar nas sinagogas, ou nos cantos das
praças, para serem vistos pelos homens, elogiados como homens piedosos e justos, enquanto depois, no
interior das famílias, são culpados diante de Deus e diante do próximo. Não refletis que isso é um
juramento falso? Porque quereis vos afirmar o que não é verdade, com a intenção de conquistar uma
estima, que não mereceis? A oração hipócrita tem a intenção de dizer: “Em verdade, eu sou santo. Juro
diante dos olhos dos que me veem, e que não podem mentir, dizendo que não me viram orando.” Como um
véu estendido sobre a maldade latente, a oração feita com tais intenções se torna uma verdadeira
blasfêmia.
Deixai que Deus vos proclame santos, e fazei que toda a vossa vida proclame, em lugar de vós “Este é
um servo de Deus.” Mas vós por amor a vós mesmos, calai-vos. Não façais de vossa língua, movida pela
soberba, objeto de escândalo para os olhos dos anjos. Melhor seria que vos tornásseis mudos, naquele
mesmo instante, se é que não tendes força para dominar o orgulho e a língua, vos auto-proclamando justos
e agradáveis a Deus. Deixai para os soberbos e os falsos esta pobre glória. Deixai para os soberbos e os
falsos essa efêmera recompensa. Pobre recompensa! Ela será como eles desejam não terão outra, porque
não se pode ter. A verdadeira glória, a do Céu, é eterna e justa, ou é a glória não verdadeira, a da terra, que
dura durante a vida de um homem, ou até menos, e , sendo injusta, é será cobrada, depois desta vida, sendo
paga com uma punição humilhante.
172.5 Ouvi como deveis orar, com os lábios e com o trabalho, com todo o vosso ser, pelo impulso do
coração que ama, a Deus, e o sente como pai, lembrando quem seja o Criador e quem é a criatura,
colocando-se na presença de Deus com um amor reverencial, tanto quando ora, como quando fazem
negócios, tanto quando anda, como quando descansa, tanto quando ganha, como quando distribui os seus
bens. Eu disse por impulso do coração. É esta a qualidade primeira e essencial. Porque tudo vem do
coração, como o coração assim será a mente, assim será a palavra, o olhar e a ação.
O homem justo tira o bem do seu coração de justo e, quanto mais dá, mais acha para dar, porque sem
doar o bem feito cria um novo bem, assim como o sangue que se renova na circulação das veias, voltando
ao coração enriquecido com novos elementos apanhados com o oxigênio que absorveu e com o suco dos
alimentos que assimilou. Enquanto isso, o homem perverso, do seu coração tenebroso, cheio de fraudes e
venenos, não pode tirar senão fraudes e venenos, que sempre mais vão aumentando, fortalecidos pelas
culpas que vão se acumulando, assim como no homem bom vão-se acumulando as bênçãos de Deus. Podeis,
pois, acreditar que a exuberância do coração é que transborda dos lábios e se manifesta nas ações.
Fazei que vosso coração seja humilde, puro, amoroso, confiante, sincero. Amai a Deus com o amor
pudico que uma virgem tem para com o seu esposo. Em verdade, eu vos digo que todas as almas são como
virgens desposadas pelo Eterno Amor, pelo Deus nosso Senhor. Esta terra é o tempo do noivado, tempo no
qual o anjo, que guarda todo homem, é o paraninfo espiritual e todas as horas e as contingências da vida
são servas, que preparam o enxoval das núpcias. A hora da morte é a hora em que se completam as
núpcias, quando vem o conhecimento, o abraço, a fusão e, com a veste de verdadeira esposa, a alma pode
levantar o seu véu e lançar-se nos braços do seu Deus, sem que, por amar assim ao seu esposo, induza
outros a escândalo.
Mas, por enquanto, ó almas sacrificadas no laço do noivado com Deus, quando quiserdes falar com o
esposo, ponde-vos na paz da vossa morada, na paz da vossa morada interior, e falai, como anjos de carne
ladeados pelo Anjo da Guarda, falai ao Rei dos Anjos.
Falai ao vosso Pai no segredo do vosso coração, do vosso quarto interior. Deixai fora tudo o que é do
mundo: o desejo de quererdes ser vistos e de edificar, os escrúpulos das longas orações cheias de palavras,
palavras monótonas, cheias de tibieza e pálidas em amor.
172.6 Por caridade! Livrai-vos das medidas no orar. Na verdade, há alguns que perdem horas em um
monólogo, que repetem, apenas com os lábios, não passando de solilóquio, pois nem o Anjo da Guarda ouve,
de tão grande é o rumor vazio para o qual se procura achar remédio, aprofundando-se em uma ardente
oração em favor de um ignorante protegido. Em verdade, há alguns que não fariam uso diferente daquelas
horas, mesmo se Deus lhes aparecesse, dizendo: “A salvação do mundo depende de que tu abandones esta
linguagem sem vida, buscando, simplesmente, água num poço para derramá-la no solo, por Meu amor e dos
teus semelhantes.” Em verdade, há alguns que acham que é mais importante o seu monólogo do que o ato
delicado de quem acolhe um visitante ou socorre um necessitado. São almas que caíram na idolatria da
oração.
A oração é um ato de amor. Amar é coisa que se pratica, tanto quando se ora, como quando se faz o pão;
tanto meditando, como prestando assistência a um enfermo; tanto fazendo uma peregrinação ao Templo,
como cuidando das necessidades da família; tanto sacrificando um cordeiro, como sacrificando até os
nossos justos desejos de recolhimento junto ao Senhor. Basta que nos impregnemos completamente de
amor e as nossas ações com o amor. Não tenhais medo! O pai está vendo. O Pai compreende. Ele está
ouvindo. Ele concede. Quantas graças são concedidas por apenas um só e perfeito suspiro de amor! Quanta
abundância por um sacrifício íntimo, feito com amor. Não sejais como os pagãos. Deus não precisa que lhe
digais o que Ele deve fazer, porque vós estais necessitando daquilo. Isto os pagãos podem dizer aos seus
ídolos, que não os podem entender. Não vós a Deus, ao Deus, o verdadeiro Deus espiritual, que não é
somente Deus e Rei, mas é vosso Pai, e sabe, o que precisais antes mesmo que lho peçais.
172.7Pedi, e vos será dado, procurai e achareis, batei, e vos será aberto. Porque quem pede, recebe; quem
procura, acha e será aberta a porta a quem nela toca. Quando um vosso filho vos estende a mão, e diz “Meu
pai, estou com fome”, será que lhe dareis uma pedra? Será que lhe dareis uma cobra, quando ele vos pede
um peixe? Não, mas vós lhes dais pão e peixe, e além disso, o acariciais e abençoais, porque para o pai é
um prazer alimentar o filho, vê-lo feliz sorrindo. Se, pois, vós, que tendes o coração imperfeito, sabeis dar
presentes bons aos vossos filhos, por um amor natural, que até os animais têm para com as suas crias,
quanto mais o vosso Pai que está nos Céus concederá àqueles que lhas pedirem as coisas boas e
necessárias para a sua vida. Não tenhais medo de pedir, e não tenhais medo de ficar sem receber!
Mas, Eu quero vos alertar para um erro muito comum, não façais como os fracos na fé e no amor, os
pagãos da verdadeira religião, porque mesmo entre os que têm fé há pagãos, cuja pobre religião é um
emaranhado de superstições e de fé, um edifício arruinado pela metade, no qual se infiltraram as ervas
parasitas de toda espécie, a ponto de encher-se de gretas, destruindo-se. Enfraquecidos e pagãos,
percebem que sua fé está morrendo, se não forem atendidos.
Vós pedis. Achais que é justo pedir. De fato, para aquele momento não deixaria de ser justa aquela
graça. Mas a vida não termina naquele momento. O que é bom hoje pode não ser amanhã. Disso vós não
sabeis, porque vós só conheceis o presente. Isso é também uma graça de Deus. Mas Deus, conhece também
o futuro. Muitas vezes, para poupar-vos um sofrimento maior, deixa de atender uma oração. No meu ano de
vida pública, mais de uma vez ouvi os corações gemerem: “Quanto eu sofri, quando Deus não me ouviu.
Mas agora eu digo: ‘Foi bom assim, porque aquela graça me teria impedido de chegar a esta hora de Deus.”
Eu ouvi outros dizer, ou mesmo reclamarem para Mim: “Por que, Senhor, não me ouves? A todos ouves, e a
mim, não?” Mesmo sentindo a dor de ver que sofriam, precisei dizer: “Eu não posso” pois se os atendesse,
seria obstacularo vôo deles para a vida perfeita.
Também o Pai, às vezes, diz “Não posso.” Não porque não possa fazê-lo imediatamente. Mas porque não
o quer fazer, em vista das consequências futuras. Ouvi: Um menino está doente das vísceras. A mãe chama
o médico, e o médico lhe diz: “Para que ele fique bom, é preciso que faça um jejum absoluto.” O menino
chora, grita, suplica, parece extremamente debilitado. A mãe, sempre compadecida, une os seus lamentos
ao do filho. Acha que o médico é muito rigoroso, com aquela proibição total de alimento: Mas o médico
continua intransigente. Afinal, ele diz: “Mulher, eu sei o porquê e tu não sabes. Queres que o teu filho
morra, ou que eu o salve?” A mãe diz em alta voz: “Eu quero que ele viva!” Então, diz-lhe o médico: “Eu não
posso permitir que ele se alimente. Pois ele morreria.” Também o Pai, às vezes, diz assim. Vós, ó mães
compadecidas do vosso eu, não quereis vê-lo sofrer por lhe ter sido negada uma graça. Mas Deus diz: “Eu
não posso. Seria isso o teu mal.” Mas chegará o dia ou virá a eternidade, na qual se dirá: “Obrigado, meu
Deus, por não terdes dado ouvidos à minha tolice.”
172.8 Tudo o que Eu disse sobre a oração, digo-o também sobre o jejum. Quando jejuardes, não fiqueis com
aquele ar triste, como costumam fazer os hipócritas, que sabem desfigurar o próprio rosto, a fim de que o
mundo fique sabendo que eles estão jejuando, ainda que não seja verdade. Também esses já receberam a
sua recompensa, com o louvor do mundo, e não terão outra. Mas vós, quando jejuardes, tomai um ar alegre,
lavai bem o vosso rosto, para que ele apareça vistoso e liso, ungi vossa barba e perfumai vossos cabelos,
conservando nos lábios o sorriso dos bem nutridos. Oh! Pois na verdade, não há alimento que nutra tanto
quanto o amor! Quem jejua com espírito de amor, se nutre de amor! Em verdade vos digo que, ainda que o
mundo vos chame de “vaidosos” ou “publicanos”, o vosso Pai está vendo o vosso heróico segredo, e vos dará
uma dupla recompensa: uma, pelo jejum, e a outra, pelo sacrifício de não procurar ser louvados por causa
dele.
172.9 Agora, ide dar comida ao vosso corpo, depois de terdes nutrido a vossa alma. Aqueles dois
pobrezinhos fiquem conosco. Eles serão os hóspedes benditos, que darão sabor ao nosso pão. A paz esteja
convosco.
Os dois pobrezinhos ficam. São uma mulher muito magra e um velho já bem velho. Mas eles não estão
juntos. Estavam ali por acaso, reunidos com os outros, e tinham ficado em um canto, deprimidos,
estendendo inutilmente suas mãos aos que passavam diante deles. Jesus vai diretamente a eles, que não
têm coragem de aproximarem-se, e os toma pelas mãos, levando-os para o centro do grupo dos discípulos,
Estão debaixo de uma tenda que Pedro ergueu num canto, e sob a qual eles talvez poderão abrigar-se de
noite e fazer suas reuniões nas horas mais quentes do dia. É um galpão coberto de folhagem e de… capas.
Mas está servindo para o que queriam, mesmo sendo tão baixo que Jesus e Iscariotes, os dois mais altos,
têm que encurvarem-se para entrarem nele.
– Aqui está o pai, e aqui está uma irmã. Trazei tudo o que temos. Enquanto vamos tomar a nossa
refeição, ouviremos a história deles.
Pessoalmente, Jesus vai servindo os dois, que envergonhados, discorrem as lamentações de suas
narrações. O velho tinha ficado sozinho, depois que a filha foi-se embora para longe com seu marido,
esquecendo-se do pai. A velha também ficou sozinha, depois que a febre matou seu marido, deixando-a
doente.
– O mundo nos despreza, porque somos pobres –diz o velho–. Eu vivo pedindo esmolas para ajuntar
dinheiro para a Páscoa. Estou com oitenta anos. Sempre eu fiz a Páscoa, e esta pode ser a última vez. Mas
não quero ir para o seio de Abraão com nenhum remorso. Eu perdôo à minha filha, assim como espero ser
perdoado. Quero fazer a minha Páscoa.
– Longo é o caminho, pai.
– Mais longo é o do Céu, se se faltar ao rito.
– Andas sozinho? E se te sentires mal pelo caminho?
– O Anjo de Deus me fechará os olhos.
Jesus o acaricia na cabeça trêmula e branca, e pergunta à mulher:
– E tu?
– Eu procuro trabalho. Se eu fosse bem alimentada, ficaria curada dessas febres. Curada, poderia
trabalhar até nos trigais.
– Crês que só o alimento te curaria?
– Não. Temos também a Ti… Mas eu sou uma pobre coisa, uma coisa pobre demais para poder pedir
piedade.
– Se Eu te curasse, que quererias depois?
– Nada mais. Já teria tido muito mais do que eu possa esperar.
Jesus sorri, e lhe dá um pedaço de pão molhado em um pouco de água e vinagre, que serve de bebida. A
mulher o come sem falar, e Jesus continua a sorrir.
172.10 A refeição termina logo. Era tão frugal! Apóstolos e discípulos estão à procura de sombra nas
encostas, nas moitas. Jesus fica no galpão O velho encostou na parede forrada de erva e, cansado, pega no
sono.
Pouco depois, a mulher, que também se havia afastado para procurar uma sombra e descansar, vem para
Jesus, que lhe sorri, encorajando-a. Ela se aproxima com timidez embora alegre, até chegar perto da tenda.
Depois sente-se vencida pela alegria e dá os últimos passos com rapidez, deixando-se cair de bruços, com
um grito meio sufocado:
– Tu me curaste! Bendito! É a hora do grande calafrio e eu não o tenho mais. Oh! –e beija os pés de
Jesus.
– Tens certeza de que estás curada? Eu não te falei isto. Pode ter sido um acaso…
– Oh! Não! Agora compreendo o teu sorriso, quando me deste aquele pão. O teu poder penetrou em mim
com ele. Eu nada tenho para dar-te em troca, a não ser o meu coração. Manda à tua serva, Senhor, e ela te
obedecerá até à morte.
– Sim. Estás vendo aquele velho? Está sozinho e é um justo. Tu tinhas um marido, e a morte o levou. Ele
tinha uma filha, e o egoísmo a tirou dele. Ele está pior do que tu. Mas não diz imprecações. Não é justo que
fique vivendo sozinho em suas últimas horas. Sê tu para ele uma filha.
– Sim, meu Senhor.
– Mas, olha bem, que isto significa trabalhar por dois.
– Agora eu estou forte, e o farei.
172.11 – Vai, então, até lá, à beira daquele barranco, e dize ao homem, que está descansando, aquele que
está vestido de cinzento, que venha até Mim.
A mulher vai sem demora, e volta com Simão, o Zelotes.
– Vem cá, Simão. Preciso falar-te. Tu, fica esperando aí, mulher.
Jesus se afasta a alguns metros dali.
– Achas que Lázaro teria dificuldades em receber mais uma empregada?
– Lázaro? Mas eu acho que ele nem sabe quantos são os seus empregados! Um a mais, um a menos!…
Quem é?
– Aquela mulher. Eu a curei e…
– Basta, Mestre. Se Tu a curaste, é sinal de que a amas. E o que amas para ele é sagrado. Podes deixar
comigo, que eu respondo em lugar dele.
– É verdade. O que Eu amo é sagrado para Lázaro. Tu disseste bem. Por isso Lázaro se tornará santo,
porque, amando o que Eu amo, amará a perfeição. Eu quero pôr aquele velho na companhia daquela
mulher, e fazer que aquele patriarca faça com alegria a sua última Páscoa. Eu quero muito bem aos velhos
santos e, se lhes posso dar um passamento sereno, fico feliz.
– Tu queres bem também as crianças…
– Sim, e os doentes…
– E os que estão chorando…
– E os que estão sozinhos…
– Oh! Mestre meu! Mas, não percebes que queres bem a todos? Até os teus inimigos?
– Eu não percebo isso, Simão. Amar é a minha natureza. Olha, o Patriarca está acordando. Vamos dizer-
lhe que ele fará a sua Páscoa com uma filha perto dele, sem sentir mais falta de pão.
Eles voltam à tenda, onde a mulher os espera, e vão juntos os três até o velho, que está sentado,
amarrando as sandálias.
– Que estás fazendo, pai?
– Vou descer para o vale. Espero encontrar abrigo para a noite. Amanhã vou pedir esmola pela estrada, e
depois sempre descendo, dentro de um mês, se eu não morrer, estarei no Templo.
– Não.
– Não devo ir? Por quê?
– Porque o bom Deus não quer. Não irás sozinho. Esta mulher irá contigo. Ela te levará para onde Eu
disser, e sereis acolhidos, por amor de Mim. Farás a tua Páscoa, sem te cansares. A tua cruz, já a levaste,
pai. Deixa-a agora. Recolhe-te em ação de graças ao bom Deus.
– Mas, por quê?…por quê?… eu… eu não mereço tudo isso… Tu… uma filha… É mais do que se me
desses vinte anos… Para onde é que me envias?…
O velho está chorando por detrás da moita de sua grande barba.
– Irás para a casa de Lázaro de Teófilo. Não sei se o conheces.
– Oh! Eu sou dos confins da Síria, e me lembro de Teófilo. Mas… Oh! Filho bendito de Deus, deixa que
eu te abençoe!
Jesus, sentado como está na relva, bem na frente do velho, de fato se curva para deixar que o velho, todo
solene, lhe imponha as mãos sobre a cabeça, trovejando, com sua voz cavernosa de ancião, as palavras da
antiga bênção[15]:
– O Senhor te abençoe e te guarde. O Senhor te mostre a sua face e tenha misericórdia de ti. O Senhor
volte o seu rosto para ti e te dê a sua paz.
Jesus, Simão e a mulher respondem juntos:
– Assim seja.
[13] está escrito em Deuteronômio 23,24.
[14] ordem que está em Levítico 19,12.
[15] benção que está em Números 6,24-26.
173. Quinto sermão da Montanha:
o usodas riquezas, a esmola, a confiança em Deus.
27 de maio de 1945.
173.1 O mesmo Sermão da Montanha.
A multidão vai aumentando sempre, à medida que vão passando os dias. Há homens, mulheres, velhos,
crianças, ricos e pobres. Está sempre presente o casal Estêvão e Herma, não ainda unido, por enquanto, e
misturado com os velhos discípulos capitaneados por Isaque. Está também presente o novo casal, que se
formou ontem: o velhinho e a mulher. Eles estão bem na frente, perto do seu Consolador, e os seus rostos
estão muito mais aliviados do que ontem. O velho, como que para compensar-se dos muitos meses ou anos
em que ficou abandonado pela filha, já pôs sua mão rugosa sobre os joelhos da mulher, e esta lho acaricia,
por aquela necessidade inata da mulher moralmente sadia de tomar atitudes maternais.
Jesus passa por perto deles, para subir ao seu rústico púlpito e, ao passar, acaricia a cabeça do velhinho,
que olha para ele como se já o visse vestido como Deus. Pedro diz alguma coisa a Jesus, que lhe faz um
sinal, como se estivesse dizendo: “Não tem importância.” Mas eu não compreendo o que é que o apóstolo
está dizendo. Ele está perto de Jesus, ao qual vêm unir-se depois também Judas Tadeu e Mateus. Os outros
estão espalhados pelo meio da multidão.
173.2 – A paz esteja com todos vós!
Ontem Eu falei da oração, do juramento, do jejum. Hoje quero instruir-vos sobre outras perfeições, que
também são oração, confiança, sinceridade, amor, religião.
A primeira, de que hoje falo é sobre o justo uso das riquezas, a serem transformadas, pela boa vontade
do servo fiel, em muitos outros tesouros no Céu. Os tesouros da terra não duram. Mas os tesouros do Céu
são eternos. Vós amastes o que é vosso? Ficais tristes por terdes que morrer, e não poderdes mais cuidar de
vossos bens, tendo que deixá-los? Então, transportai-os para o Céu! Vós dizeis: “No Céu não entra o que é
da terra, e Tu nos ensinas que o dinheiro é a coisa mais suja da terra. Como, então poderemos transportá-lo
para o Céu?” Não. Não podeis transportar as moedas, que são coisas materiais, para o Reino, onde tudo é
espiritual. Mas podeis levar convosco o fruto das moedas. Quando dais a um banqueiro o vosso ouro, por
que o fazes? Para que possa produzir frutos. Certamente não quereis privar-vos dele, nem mesmo
momentaneamente, nem quereis que o banqueiro vo-lo entregue tal qual o recebeu. Mas vós quereis que
sobre dez talentos ele vos entregue dez mais um, ou até mais. Se for assim, ficais felizes, e falais bem do
banqueiro. Se não for assim, vós dizeis: “Ele é um homem honesto, mas é um tolo.” E, se acontecer que, em
vez de dez mais um, ele vos entregue nove, dizendo “Eu perdi o resto”, vós o denunciais, e o colocais na
cadeia.
Donde provém o fruto do dinheiro? Por acaso o banqueiro semeia o vosso dinheiro para fazê-lo crescer?
Não. O fruto provém de um acertado manejo dos negócios, de tal modo que, por meio de hipotecas ou
empréstimos a juros, o dinheiro aumente no ágio justo pedido em favor do ouro emprestado. Não é assim?
Pois bem. Então ouvi: Deus vos dá riquezas terrenas. A alguns dá muitas, a outros dá somente aquelas de
que precisam para viver, e vos diz: Agora é contigo. Eu as dei. Usa delas como meio para chegares a um
fim, como o meu amor o deseja, para o teu bem. Eu as confio a ti. Não para que delas faças um mal. Pela
estima que tenho por ti, por reconheceres os meus dons, faze que os teus bens frutifiquem para a
verdadeira Pátria.
173.3 E está aí o método para se chegar a esse fim.
Não queirais acumular os vossos tesouros na terra, vivendo por eles, sendo cruéis, malditos pelo
próximo e por Deus por causa deles. Não vale a pena. Eles estão sempre sem segurança na terra. Os
ladrões sempre podem roubar-vos. O fogo pode destruir vossas casas. As doenças nas plantas e nos
rebanhos podem acabar com o vosso gado e os vossos pomares. Quantas coisas perseguem os vossos bens.
Ainda que eles sejam imóveis e inatacáveis, como as casas e ouro, podem estar sujeitos a se deteriorarem,
como todos os seres vivos, os vegetais e os animais. Por mais que sejam estofos preciosos, estão sujeitos à
desvalorização. Um raio que cai nas casas, o fogo e a água. Os ladrões, a ferrugem, a seca, os roedores, os
insetos nas lavouras; a vertigem dos cavalos, as febres, os desconjuntamentos das pernas e a peste dos
animais, traças e camundongos nos tecidos preciosos e nos móveis de estimação; a erosão produzida pela
oxidação das vasilhas, dos lustres e grades artísticas; tudo, tudo está sujeito a deteriorização.
Mas, se vós fazeis um bem sobrenatural, de todos estes bens terrenos, logo ele fica a salvo de toda a
deteriorização do tempo, dos homens e das intempéries. Fazei para vós tesouros no Céu, lá onde não
entram ladrões, e onde não acontecem desventuras. Trabalhai com amor misericordioso com todas as
misérias da terra. Acariciai as vossas moedas, e até beijai-as, se quiserdes, alegrando-vos com as colheitas
que melhoram, com os vinhedos carregados de cachos, com as oliveiras que se inclinam sob o peso de
numerosíssimas azeitonas, com as ovelhas de seios fecundos e mamas cheias. Fazei tudo isso. Mas, não de
modo estéril, não de modo humano. Fazei-o com amor e admiração, com gozo e com a mentalidade
sobrenatural.
“Obrigado, meu Deus pelas moedas, colheitas, plantas, pelas ovelhas, pelos negócios. Obrigado, ovelhas,
plantas, prados, negócios, que me servis tão bem. Sede benditos todos, porque por tua bondade, ó Eterno, e
por vossa bondade, ó coisas, é que eu posso fazer tanto bem a quem tem fome, a quem está nu, a quem não
tem casa, a quem está doente, sozinho…. No ano passado eu fiz o bem por dez. Neste ano — mesmo que eu
tenha dado muito em esmolas, tenho ainda mais dinheiro e minhas colheitas foram mais gordas e os meus
rebanhos, mais numerosos — eu, então, darei duas, três vezes o que eu dei no ano passado. Do mesmo
modo que todos, até os privados de seus próprios bens, participem da minha alegria, e gozem e bendigam
comigo a Ti, Senhor Eterno.” Esta é a oração do justo. A oração unida à ação, que transporta os vossos bens
para o Céu. Não só vo-los conserva para sempre, mas vos faz encontrá-los, aumentados pelos frutos santos
do amor.
Tende o vosso tesouro no Céu, para que tenhais o vosso coração além do perigo, pois não somente o
ouro, as casas os campos e os rebanhos podem passar por desventuras, mas o vosso coração pode ser
insidiado, despojado, queimado e morto pelo espírito do mundo. Se assim fizerdes, tereis vosso tesouro em
vosso coração, porque tereis Deus em vós, até o feliz dia no qual estareis n’Ele.
173.4 Mas, para não diminuir o fruto da caridade, tomai cuidado em serdes caridosos, com espírito
sobrenatural. Como Eu disse da oração e do jejum, assim digo da beneficência e de todas as outras boas
obras que possais fazer.
Conservai o bem que fazeis longe da violação pela sensualidade do mundo, conservai-o virgem dos
louvores humanos. Não profaneis a rosa perfumada pela vossa caridade e boas obras, verdadeiro turíbulo
de perfumes agradáveis ao Senhor. O que profana o bem é o espírito de soberba, o desejo de serdes vistos
fazendo o bem e a procura de elogios. A rosa da caridade fica contaminada e corroída pelas grandes lesmas
viscosas do orgulho satisfeito, e no turíbulo caem palhas fedorentas da liteira na qual o soberbo se
pavoneia, como um animal bem alimentado.
Oh! Aquelas beneficiências feitas só para dar o que falar! Pois, melhor mesmo, teria sido não fazê-las!
Quem não as faz, peca por dureza de coração. E quem as faz, querendo que seja conhecida a importância
que deu e o nome de quem a recebeu, está pedindo a esmola de um louvor, e peca por soberba, tornando
conhecida a sua oferta, como se dissesse: “Estais vendo quanto eu posso?”; peca por falta de caridade,
porque humilha o beneficiado, tornando o seu nome conhecido; e peca por avareza espiritual, querendo
acumular elogios humanos… que são palhas, palhas, nada mais do que palhas Fazei que Deus e os seus
anjos vos louvem.
Vós, quando derdes esmola, não fiqueis tocando a trombeta em vossa frente, para chamar a atenção dos
que estão passando e para serdes elogiados, como os hipócritas que querem ser aplaudidos pelos homens e
por isso só dão esmolas onde possam ser vistos por muitos. Estes já receberam a sua recompensa, e não
receberão a de Deus. Não incorrais na mesma culpa e na mesma presunção. Mas, quando derdes esmola,
que não saiba a vossa mão esquerda o que a direita está fazendo, porque a vossa esmola escondida e
discreta há de ser. e, depois esquecei-vos dela. Não fiqueis olhando continuamente para vós mesmos, depois
de terdes feito aquele ato, inchando-vos com ele, como faz o sapo, que se olha nas águas do brejo, com
olhos anuviados, e vendo refletidos na água parada as nuvens, as árvores e o carro parado perto da
margem, vendo-se tão pequeno, diante de todas aquelas coisas, começa a encher-se de ar, até estourar.
Também a caridade que fizestes não é nada, em comparação com a infinita Caridade de Deus. E, se
quisésseis tornar-vos semelhante a Ele e tornar grande a vossa pequena caridade, para igualar-se à dele,
vos encheríeis do vento do orgulho, e acabaríeis perecendo.
Esquecei-vos disso. Até do ato em si mesmo, esquecei-vos. Estará sempre presente uma luz, uma voz,
um mel, e vos tornará o dia luminoso, doce e feliz. Porque aquela luz será o sorriso de Deus, aquele mel
será paz espiritual, que também é Deus, e aquela voz é a voz de Deus-Pai que vos dirá “Obrigado.” Ele vê o
mal oculto e vê o bem escondido, e vos dará a recompensa, Eu vo-lo…
173.5 – Mestre, Tu estás mentindo, com estas palavras!
O insulto, odiento e repentino, vem lá do centro da multidão. Todos se viram para o lado de onde veio
aquela voz. Cria-se uma grande confusão.
Pedro diz:
– Bem que eu te havia dito! Quando há um deles no meio… nada mais corre bem!
Do meio da multidão saem assobios e murmúrios contra o insultador. Jesus é o único que está calmo. Ele
cruzou os braços sobre o peito e está de pé sobre sua pedra, vestido com sua veste azul escura e com o sol
batendo-lhe no rosto.
O insultador continua, sem se preocupar com a reação da multidão:
– És um mau mestre, porque ensinas o que não praticas e…
– Cala a boca! Vai-te embora! Cria vergonha! –grita a multidão.
E diz ainda:
– Vai para os teus escribas. Para nós, o Mestre basta. Que os hipócritas fiquem com os hipócritas!
Mestres falsos! Agiotas!
E continuariam, mas Jesus diz, com sua voz de trovão:
– Silêncio. Deixai que ele fale –e o povo para de gritar, mas fica cochichando suas ameaças,
acompanhadas de olhares ferozes.
– Sim. Tu ensinas o que não fazes. Dizes que se deve dar esmolas sem ser vistos, e ontem, na presença
do povo todo, disseste a dois pobres: “Ficai aqui, que matarei vossa fome.”
– Eu disse: “Que fiquem os dois pobrezinhos. Eles serão os hóspedes bem-vindos, e darão sabor ao nosso
pão.” Nada mais. Eu não quis dizer que ia matar-lhes a fome. Quem é tão pobre, que não tenha pelo menos
um pão? A alegria era oferecer-lhes uma boa amizade.
– Ora! Mais esta. És astuto, e sabes fazer-te um cordeiro!…
O velhinho se ergue, vira-se, e levantando o seu bastão, grita:
– Língua infernal, que acusas o Santo, achas talvez que sabes tudo, e que podes acusar só pelo que
sabes. Como não sabes quem é Deus, e quem é este que estás insultando, assim também não sabes o que
Ele faz. Somente os Anjos e o meu coração cheio de júbilo o sabem. Ouvi, ó homens, ouvi todos, e ficai
sabendo se Jesus é o mentiroso e o soberbo que este lixo do Templo está querendo dizer. Ele…
– Cala a boca, Ismael! Cala-te por amor de Mim. Se Eu te fiz feliz, faze-me feliz, calando-te –pede-lhe
Jesus.
– Eu te obedeço, Filho Santo. Mas deixa-me dizer ainda só isto: A benção do velho israelita fiel está
sobre Aquele que, da parte de Deus, me beneficiou, e Deus a colocou sobre os meus lábios, por mim e por
Sara, minha nova filha. Mas sobre tua cabeça não haverá benção. Eu não te amaldiçoo. Não quero com uma
maldição sujar minha boca, que deve dizer a Deus “Acolhe-me.” Eu não fiz uso dela nem mesmo para quem
me renegou, e por isso eu já recebi a recompensa divina. Mas teremos quem faça as vezes do Inocente
acusado e de Ismael, amigo de Deus que o beneficia.
Um coro de gritos encerra o discurso do velho, que torna a sentar-se. E o homem sai dali, afastando-se
rapidamente, indo embora, perseguido pelas ameaças.
Depois a multidão grita para Jesus:
– Continua, continua, Mestre Santo! Nós escutamos somente a Ti, e Tu nos escutas. Não àqueles
malditos corvos!! Eles estão com ciúmes. Porque nós te amamos mais que eles! Mas em Ti há Santidade.
Neles há maldade. Fala, fala! Estás vendo: não desejamos mais que a tua palavra. Casas, negócios? Nada
disso, para que possamos ouvir-te!
Está bem. Eu vou falar. Mas não ligueis para isso. Rezai por aqueles infelizes. Perdoai, como Eu perdôo.
Porque, se perdoardes as faltas dos homens, também o vosso Pai do Céu vos perdoará dos vossos pecados.
Mas, se guardardes rancor e não perdoardes os homens, também o vosso Pai não vos perdoará. E todos
precisam do perdão.
173.6 Eu vos estava dizendo que Deus vos dará recompensa, mesmo se vós não lhe pedirdes um prêmio
pelo bem que fizestes. Mas vós não façais o bem para terdes recompensa, para terdes uma fiança no dia de
amanhã. Vós não façais o bem medindo, nem retidos pelo medo, dizendo: “Depois, ainda sobrará para mim?
Se não sobrar, quem é que me ajudará? Será que encontrarei quem faça por mim o que estou fazendo pelo
outro? E, quando eu não tiver mais nada para dar, serei ainda amado?”
Olhai bem: Eu tenho amigos poderosos entre os ricos, e amigos entre os miseráveis da terra. Em
verdade, Eu vos digo que não são os amigos poderosos os mais amados. Eu vou a eles, não por amor a Mim,
ou por ser uma vantagem para Mim. Mas, sim, porque deles eu posso receber muito para quem não tem
nada. Eu sou pobre. Não possuo nada. Gostaria de ter todos os tesouros do mundo e transformá-los em pães
para quem está com fome, em casas para quem está sem casa, em roupas para quem está nu, em remédios
para quem está doente. Vós me direis: “Mas Tu podes curar.” Sim. Isto e outras coisas Eu posso. Mas nem
sempre há fé, e Eu não posso fazer o que faria e poderia fazer, se encontrasse nos corações alguma fé em
Mim. Eu quereria fazer o bem também a esses que não têm fé. E, visto que eles não pedem milagre ao Filho
do homem, eu quereria, de homem para homem, prestar-lhes socorro. Mas Eu não tenho nada. Por isso,
estendo a mão a quem tem e peço: “Fazei-me uma caridade, em nome de Deus” Aí está porque é que tenho
muitos amigos da alta sociedade. Amanhã, quando Eu não estiver mais na terra, ainda existirão os pobres, e
Eu não estarei para realizar milagres aos que tem fé, nem dar esmolas e levá-los à fé. Mas, então, os meus
amigos ricos terão aprendido, pois estiveram em contato comigo, como é que se faz beneficência, e os meus
apóstolos terão aprendido a pedir esmolas por amor dos irmãos também pelo contato que tiveram comigo..
Assim os pobres serão sempre socorridos.
Pois bem. Ontem recebi mais do que tudo que me foi dado por todos aqueles que têm, de alguém que
não tem nada.. É um amigo tão pobre como Eu. Ele me deu uma coisa que não se compra com nenhuma
moeda, e me fez feliz, fazendo-me lembrar das horas serenas de minha infância e juventude, quando, cada
tarde, sobre minha cabeça se impunham as mãos do Justo, e Eu ia descansar com sua bênção, que ficava
guardando o meu sono. Ontem este meu amigo pobre me fez rei, com a sua bênção. Vede que o que ele me
deu nenhum dos meus amigos ricos nunca me deu. Por isso, não tenhais medo. Mesmo se não tiverdes o
poder do dinheiro, contanto que tenhais amor e santidade, podereis fazer o bem a quem é pobre e está
cansado ou aflito.
173.7 E por isso vos digo: não vos preocupeis por receio de terdes pouco. Vós tereis sempre o necessário.
Não fiquem preocupados, pensando no futuro. Ninguém sabe quanto de futuro tem ainda à sua frente. Não
fiqueis pensando no que havereis de comer para sustentar-vos na vida, nem com que vos vestireis para
esquentar o vosso corpo. A vida do vosso espírito é bem mais preciosa do que o ventre e os membros e vale
muito mais do que o alimento e as vestes. E o vosso Pai sabe disso. Que vós também o saibais. Olhai as aves
do céu: não semeiam, nem colhem, nem acumulam nos celeiros e, no entanto, não morrem de fome, porque
o Pai do Céu as nutre. Vós, homens, criaturas prediletas do Pai, valeis muito mais do que elas.
Quem de vós, com toda a vossa inteligência, seria capaz de aumentar um côvado em vossa altura? Se
não conseguis aumentar a vossa altura nem um palmo, como podeis pensar em mudar as vossas condições
futuras, aumentando as vossas riquezas, para garantir uma longa e próspera velhice? Podeis dizer à morte
“Tu só me virás buscar quando eu quiser?” Não o podeis. Para que então, viver preocupados com o
amanhã? Por que ficar tristes por medo de não ter o que vestir? Olhai como crescem os lírios do campo:
eles não se cansam, não fiam, nem tecem, não visitam os vendedores de tecidos para suas compras, no
entanto, Eu vos asseguro que nem mesmo Salomão, com toda a sua glória, nunca se vestiu como um deles.
Ora, se Deus veste assim a erva, que hoje existe e amanhã irá servir para aquecer o forno, ou para a
pastagem do rebanho, terminando sempre em cinza, ou esterco, quanto mais não proverá para vós, que sois
seus filhos?
Não sejais pessoas de pouca fé. Não vos angustieis, porque o futuro é incerto, nem dizei: “Quando eu
ficar velho, que é que vou comer? Que é que vou beber? Com que vou me vestir?” Deixai essas
preocupações para os pagãos, que não têm a sublime certeza da paternidade divina. Vós a tendes e sabeis
que o Pai conhece as vossas necessidades, e vos ama. Confiai, pois, nele. Procurai primeiro as coisas
verdadeiramente necessárias: a fé, a bondade, a caridade, a humildade, a misericórdia, a pureza, a justiça,
a mansidão, as três e as quatro virtudes principais, e todas as outras também, de modo que possais ser
amigos de Deus com direito ao seu Reino: Eu vos asseguro que tudo o mais vos será dado em acréscimo,
sem que vós o peçais. Não há rico mais rico nem seguro mais seguro do que o santo. Deus está com ele. E o
santo está com Deus. Para o seu corpo não pede nada e Deus o provê do necessário. Mas ele trabalha para
o seu espírito, e Deus se dá a Si Mesmo a ele aqui neste mundo, e lhe dá o Paraíso, depois desta vida.
Não fiqueis sofrendo por algo que não merece o vosso sofrimento. Afligi-vos, sim, por serdes imperfeitos,
mas não por terdes poucos bens terrenos. Não vos preocupeis com o dia de amanhã. O dia de amanhã
pensará a por si mesmo, e vós pensareis nele quando o estiverdes vivendo. Por que pensar nele desde hoje?
A vida já não está bem cheia das lembranças tristes de ontem e dos pensamentos desagradáveis de hoje,
para sentirdes ainda necessidade de viver com o pesadelo do dia de amanhã? Deixai para cada dia os seus
problemas! Existirão sempre mais sofrimentos, do que nós quereríamos nesta vida, sem que precisemos
aumentar os sofrimentos presentes com o pensamento do futuro! Dizei sempre a grande palavra de Deus:
“Hoje.” Sede seus filhos à sua semelhança. Dizei, pois com Ele: “Hoje.”
E hoje Eu vos dou a minha benção. Que ela vos acompanhe até o começo do novo hoje, isto é, amanhã, e
então Eu vos darei de novo a paz em nome de Deus.
174. Sexto sermão da Montanha:
a escolha entre o bem e o mal, o adultério, o divórcio.
Chegada inoportuna de Maria de Magdala.
25 de maio de 1943.
174.1 Em uma radiosa alvorada, com um ar mais límpido que de costume, através do qual parece que as
distâncias se aproximam, ou que as coisas estejam sendo vistas através de uma lente, que torna nítidos os
menores detalhes, o povo se prepara para ouvir o Mestre.
Dia a dia a natureza vai-se mostrando mais bela e se reveste da rica veste da primavera, que na
Palestina me parece ser entre março e abril, porque, depois desse tempo, a natureza começa ter o aspecto
do verão, com os grãos já maduros e as folhas já crescidas e formadas. Agora há flores por toda parte. Do
alto do monte, que por sua vez, já se revestiu de flores, até nos pontos menos aptos para florescer, vê-se a
planície, onde as ondas dos trigais ainda se dobram ao soprar do vento, o qual lhes dá o movimento de um
vagalhão verde, tingido superficialmente por um ouro pálido nas pontas das espigas, produzindo seus grãos
entre as arestas espinhosas. Acima deste ondular de messes ao vento suave as árvores frutíferas estão de
pé, em sua veste de pétalas (mais se parecem com enormes pincéis de pó de arroz, ou então com bolinhas
de gaze branca, de um róseo muito tênue, e um róseo mais carregado, vermelho vivo). Recolhidas em suas
vestes de penitentes ascéticas, as oliveiras rezam, e sua oração vai transformando em um cair de neve, por
enquanto ainda incerto, de umas florzinhas brancas.
O Hermon é um alabastro róseo em seu cume, que o Sol beija, e do alabastro descem dois fios de
diamantes (daqui parecem fios) dos quais o Sol tira um cintilar quase irreal, indo depois enfurnar-se por
baixo das galerias verdes dos bosques, não se vendo mais nada além dovale, onde formam cursos d’água
que, certamente, irão ao lago Meron, daqui invisível, saindo dele com as belas águas do Jordão, para depois
lançarem-se novamente no safira claro do Mar da Galileia, que é um contínuo tremular de escamas
preciosas para as quais o Sol serve de engaste e de chama. Parece que os veleiros, que deslizam por este
espelho tranquilo e magnífico, com sua moldura de jardins e campinas maravilhosas, estejam sendo guiados
pelas nuvenzinhas leves, que navegam no outro mar do céu.
Verdadeiramente todo ser criado ri neste dia de primavera e a esta hora da manhã.
174.2O povo aflui sem parar. Sobem de todos os lados: velhos, sadios, doentes, crianças, esposos, que
pensam em iniciar as suas vidas com as bênçãos da Palavra de Deus, mendigos, pessoas de bem, que
chamam os apóstolos para dar-lhes suas ofertas para aqueles que nada têm e parece que se confessam, pois
procuram um lugar escondido para isto. Tomé apanhou um dos sacos de viagem, despejando nele
tranquilamente todo esse tesouro de moedas, como se fosse comida para os frangos e vai levar tudo para
perto da pedra na qual Jesus está falando. Dá uma de suas alegres risadas, dizendo:
– Alegra-te, Mestre! Hoje há para todos!
Jesus sorri, e diz:
– Vamos começar logo, a fim de que os que estão tristes fiquem logo felizes. Tu e teus companheiros
separai os doentes e os pobres e trazei-os aqui para a frente.
Isto acontece em um tempo relativamente curto, pois é preciso verificar os diversos casos, e duraria
muito tempo, sem a ajuda de Tomé que, com a sua voz potente, de pé, de cima de uma pedra para poder ser
visto, grita:
– Todos aqueles que têm sofrimento no corpo fiquem à minha direita, lá onde há sombra.
O Iscariotes o imita, também ele dotado de uma voz não comum em potência e beleza que, por sua vez,
grita:
– E todos os que acham que têm direito à esmola, venham aqui, a minha volta. E cuidai bem de não
mentir, porque os olhos do Mestre lêem nos corações.
A multidão põe-se em movimento, para dividir-se assim em três partes: os que estão doentes, os que são
pobres e os que somente desejam a doutrina.
174.3 Mas, entre estes últimos, primeiro dois e depois três, parecem ter necessidade de alguma coisa, que
não é a saúde nem o dinheiro, mas, é mais necessária do que estas coisas. Uma mulher e dois homens.
Olham, olham para os apóstolos e não ousam falar. Passa Simão, o Zelotes, com seu aspecto severo; passa
Pedro, muito atarefado e vai conversando com uns dez moleques, aos quais promete dar azeitonas, se eles
se comportarem bem até o fim, ou então uma surra se ficarem fazendo barulho enquanto o Mestre estiver
falando; passa Bartolomeu, já ancião e muito sério; passa Mateus e Filipe, que levam nos braços um
aleijado que teria tido muito trabalho para atravessar a multidão compacta; passam os primos do Senhor
amparando um mendigo quase cego e uma velha pobrezinha, que chora enquanto conta a Tiago os seus
males; passa Tiago de Zebedeu com uma pobre menina nos braços, certamente doente que ele tomou da
mãe, que o segue aflita, para impedir que a multidão faça algum mal a ela. Os últimos a passar são os que
eu poderia chamar de “indivisíveis”, André e João, porque se João, em sua serena natureza de menino
santo, estaria junto com os companheiros, André, pelo seu grande acanhamento, prefere estarr com seu
antigo companheiro de pesca e de fé em João Batista. Estes dois ficam perto do começo das duas filas
principais, para encaminharem a multidão a os seus lugares. Mas agora, no monte, não se veem mais
peregrinos pelos caminhos cheios de pedras, e os dois se reúnem junto ao Mestre com as últimas ofertas
recebidas.
Jesus está inclinado sobre os doentes, e os hosanas da multidão festejam cada milagre. Uma mulher, que
parece estar sofrendo muito, ousa puxar João pela veste, enquanto ele está conversando alegremente com
André. Ele se inclina e pergunta:
– Que queres, mulher?
– Desejaria falar com o Mestre…
– Tens alguma doença? Pobre não és…
– Não tenho doença e não sou pobre. Mas estou precisando dele… porque existem doenças sem febre e
misérias sem pobreza. E a minha… a minha… –e chora.
– Escuta, André. Esta mulher tem um sofrimento em seu coração e desejaria ir dizê-lo ao Mestre. Como
faremos?
André olha para a mulher, e diz:
– Certamente é alguma coisa que faz sofrer ao revelar-se…
A mulher faz com a cabeça o sinal que sim. Então, André continua:
– Não chores… João, procura levá-la atrás da nossa tenda. Eu levarei o Mestre até lá.
João, com seu sorriso, pede que abram caminho para ele poder passar, enquanto André vai na direção
oposta, para Jesus. Aqueles movimentos deles são observados por dois homens aflitos, e um deles parou
João e o outro André e, pouco depois, tanto um como o outro estão juntos com João e com a mulher detrás
do tapume de ramos que serve de parede para a tenda.
174.4 André alcança Jesus, no momento em que este está curando um aleijado, que levanta as muletas
como dois troféus, ágil como um bailarino, apregoando a sua bênção. André sussurra:
– Mestre, lá atrás do nossa tenda, há três que estão chorando. Mas o mal deles é do coração, e não pode
ser conhecido por outros…
– Está bem. Tenho ainda esta menina e esta mulher. Depois irei. Vai dizer-lhes que tenham fé.
André vai, enquanto Jesus se inclina sobre a menina, que a mãe tomou de novo no colo.
– Como te chamas? –pergunta-lhe Jesus.
– Maria.
– E Eu, como me chamo?
– Jesus –responde a menina.
– Quem sou Eu?
– O Messias do Senhor, que veio para fazer o bem aos corpos e às almas.
– Quem te disse isto?
– A mamãe e o papai, que esperam em Ti pela minha vida.
– Vive e sê boa.
A menina, que acho ter sido doente da espinha, pois mesmo com sete anos ou mais, não se movia senão
com as mãos, e toda apertada em grossas e duras faixas, das axilas até os quadris (podem-se ver as faixas,
porque a mãe abriu o vestidinho da menina para mostrá-las), fica ainda assim como estava há alguns
minutos. Depois tem um sobressalto, desliza do colo materno para o chão, e corre até Jesus, que está
curando a mulher, cujo caso não compreendo.
Os doentes já foram todos atendidos, e são eles que gritam com mais força no meio daquela multidão
que aplaude ao “Filho de Davi, glória de Deus e nossa.”
174.5 Jesus vai agora para a tenda.
Judas de Keriot grita:
– Mestre, e estes?
Jesus se vira, e diz:
– Esperem onde estão. Eles também serão consolados.
Com passos rápidos, se dirige para trás do tapume, ao lugar onde estão, André e João e os sofredores.
– Primeiro, a mulher. Vem comigo entre estas sebes. Fala sem medo.
– Senhor, meu marido me abandonou por uma prostituta. Eu tenho cinco filhos, e o último está com dois
anos… Minha dor é grande… penso nos filhos… Não sei se ele os quererá, ou se os deixará comigo. Os
filhos homens, pelo menos o primeiro, quererá que fique com ele… e eu, que o dei a luz, não poderei mais
ter a alegria de vê-lo? E, que ficarão eles pensando do pai e de mim? De um dos dois eles hão de pensar
mal. E eu não gostaria que eles ficassem julgando o seu pai…
– Não chores. Eu sou o Senhor da Vida e da Morte. Teu marido não se casará com aquela mulher. Vai em
paz, e continua a ser boa.
– Mas… não o vais matar? Oh! Senhor, eu o amo!
Jesus sorri:
– Eu não matarei ninguém. Mas haverá quem faça o seu trabalho. Fica sabendo que o demônio não é
mais que Deus. Retornando à tua cidade, saberás que alguém matou a criatura maldosa, de tal modo, que o
teu marido compreenderá o que estava fazendo e te amará com um renovado amor.
A mulher beija-lhe a mão, que Jesus pôs sobre sua cabeça, e vai embora.
174.6 Vem um dos dois homens.
– Eu tenho uma filha, Senhor. Infelizmete, ela foi a Tiberíades com algumas amigas e foi como se ela
houvesse aspirado um veneno. Voltou para casa como ébria. Agora quer ir embora com um grego… e
depois… Mas, por que me nasceu esta filha? Sua mãe está com tamanha dor que talvez morrerá… Eu…
somente as tuas palavras, que eu ouvi no inverno passado é que ainda me impedem de matá-la. Mas, eu te
confesso, o meu coração já a amaldiçoou.
– Não. Deus, que é Pai, não amaldiçoa senão um pecado completo e obstinado. Que queres de Mim?
– Que tu a faças cair em si.
– Eu não a conheço, e ela certamente não vem até Mim.
– Mas Tu podes mudar o coração dela também de longe! Sabes quem me manda a Ti? Joana de Cusa.
Estava partindo para Jerusalém, quando eu fui ao seu palácio para perguntar se conhecia esse grego
infame. Eu pensava que ela não o conhecesse, porque é boa, ainda que more em Tiberiades, mas, como
Cusa lida com os pagãos… Não o conhece. Mas me disse: “Vai até Jesus. Ele, estando bem longe de mim,
fez voltar o meu espírito e me curou da minha tuberculose com aquele gesto. Ele curará também o coração
da tua filha. Eu rezarei e tu, tem fé. Eu tenho fé.” Tu estás vendo. Tem piedade, Mestre.
– Tua filha, nesta tarde, irá chorar sobre os joelhos de sua mãe, pedindo perdão. E tu também, sê bom,
como a mãe: perdoa. O passado morreu.
– Sim, Mestre. Seja como Tu queres, e que sejas bendito.
Ele se vira para ir embora… mas depois volta a trás:
– Perdoa, Mestre, mas estou com muito medo… A luxúria é um verdadeiro demônio! Dá-me um fio da tua
veste. Eu o colocarei no travesseiro de minha filha. Enquanto ela estiver dormindo, o demônio não a
tentará.
Jesus sorri, e sacode a cabeça… mas atende ao homem, dizendo-lhe:
– É para que fiques tranquilo. Mas podes crer que, quando Deus diz “Eu quero”, o diabo vai-se embora,
sem que seja preciso mais nada. Quer dizer que terás isto como uma lembrança de Mim –e lhe dá um
pequeno floco de suas franjas.
174.7 Vem o terceiro homem:
– Mestre, meu pai morreu. Mas nós pensávamos que ele possuísse riqueza em dinheiro. Mas nada disso
encontramos. Isso ainda seria um mal menor, porque entre nós irmãos não nos falta o pão. Mas eu, sendo o
primogênito, morava com meu pai. Agora os outros dois irmãos estão me acusando de ter feito desaparecer
as moedas e querem mover uma ação contra mim, como se eu fosse ladrão. Tu estás vendo o meu coração.
Eu não roubei nem um vintém. Meu pai guardava seu dinheiro em um cofre, dentro de uma caixinha de
ferro. Quando ele morreu, abrimos a caixinha e nela nada havia. Então eles disseram: “Esta noite, enquanto
estávamos dormindo, tu a apanhaste.” Não é verdade. Ajuda-me a manter a paz e a estima entre nós.
Jesus olha para ele, fitando-o bem, e sorri.
– Por que estás sorrindo, Mestre?
– Porque o culpado foi o teu pai, uma culpa de criança quando esconde o seu brinquedo, por medo de
que o apanhem.
– Mas ele não era avarento. Podes crer. Ele fazia o bem.
– Eu sei… Mas já estava muito velho… São doenças de velhos. Ele queria conservar o dinheiro para vós e
vos pôs em choque, por causa de um amor exagerado. Mas a caixinha está enterrada aos pés da escada da
adega. Eu te digo isto, para que fiques sabendo que Eu sei. Enquanto Eu estou te falando, por um mero
acaso, o teu irmão menor estava batendo no chão, com raiva, e fez que a caixa vibrasse e a descobriram,
ficando eles confusos e arrependidos por te terem acusado. Volta para casa tranquilo e sê bom para com
eles. Não lhes digas nada pela falta de estima deles para contigo.
– Não, Senhor. Eu nem irei agora. Eu ficarei aqui para te ouvir. Irei amanhã.
– E se ficarem com o teu dinheiro?
– Tu dizes que não devemos ser avarentos. Eu não quero ser. Basta-me que haja paz entre nós. Afinal, eu
nem sabia quanto dinheiro havia na caixinha e não ficarei aflito com nenhuma notícia que me derem,
mesmo que seja diferente da verdade. Penso até que aquele dinheiro podia estar perdido… Como eu teria
vivido antes, viverei agora, se eles me negarem o que é meu. Basta que não me chamem de ladrão.
– Estás já bem adiantado no caminho de Deus. Segue assim, e a paz esteja contigo.
Ele também parte contente.
174.8 Jesus se volta para a multidão, para os pobrezinhos, e distribui as esmolas segundo as suas próprias
medidas. Agora todos estão contentes, e Jesus pode falar.
– A paz esteja convosco.
Quando Eu vos explico os caminhos do Senhor é para que os sigais. Poderíeis vós, ao mesmo tempo, ir à
direita e à esquerda? Não poderíeis. Porque, se tomais um, deveis abandonar o outro. Mesmo que se
tratasse de dois caminhos próximos um do outro, poderíeis insistir em caminhar com um pé em um e o
outro pé no outro, mas acabaríeis cansando-vos ou errando, ainda que se tratasse de uma aposta. Contudo,
entre o caminho de Deus e o de satanás existe uma grande distância, que torna sempre maior, justamente
como aqueles dois caminhos que desembocam aqui, mas que, a cada passo, ao descer para o vale, ficam
sempre mais longe um do outro, porque um vai para Cafarnaum e o outro para Ptolomaida.
A vida é assim, desliza lá do alto, entre o passado e o futuro, entre o mal e o bem. No centro está o
homem, com a sua vontade e o seu livre arbítrio. Nas extremidades, de um lado está Deus e o Céu; do
outro, está satanás e o Inferno. O homem pode escolher. Ninguém o obriga. Não se diga “satanás tenta”,
como desculpa para as descidas pelo caminho de baixo. Também Deus tenta, com o seu amor que é bem
forte; com as suas palavras, que são bem santas; com as suas promessas, que são bem sedutoras! Por que,
então, deixar-se tentar só por um dos dois e logo por aquele que nenhum merecimento tem para ser
escutado? As palavras, as promessas, o amor de Deus não serão suficientes para neutralizar o veneno de
satanás?
Olhai bem como isto depõe contra vós. Quando alguém é física e fortemente são, não é imune aos
contágios, mas os supera com facilidade. Contudo, se alguém está doente e, portanto, enfraquecido,
perecerá quase com certeza, se alguma nova infecção lhe sobrevier e, ainda que ele sobreviva a ela, estará
mais doente do que antes, porque não tem, em seu sangue, a força para destruir os germes infecciosos,
completamente. O mesmo se diga para a parte superior. Se alguém é moral e espiritualmente são e forte,
sabe que não está isento da tentação, mas o mal não criará raízes nele. Quando ouço alguém dizer: “Eu me
aproximei disto e daquilo, lendo algo ou procurando convencer alguém do bem que tinha o mal na mente e
no coração, ou no livro lido, isso penetrou em mim.” Concluo: “Demonstra assim que já tinhas preparado o
terreno favorável para aquela penetração. Isso demonstra que és um fraco, sem energia moral e espiritual.
Porque até de nossos inimigos devemos tirar algum bem. Observando os erros deles, devemos aprender a
não cair nos mesmos. O homem inteligente não se torna joguete da primeira doutrina que ouve. O homem
saturado de uma doutrina encontrar em si mesmo lugar para outras. Isto explica a dificuldade para
persuadir pessoas que estão convictas de outras doutrinas a seguirem a verdadeira Doutrina. Mas se tu me
dizes que mudas de pensamento, ao menor sopro de vento, Eu vejo que estás cheio do vazio, tens a tua
fortaleza espiritual cheia de fendas, os diques do teu pensamento estão furados em mil pontos e por eles
estão saindo as águas boas e entrando as contaminadas, e tu ficas tão pasmado e apático, que nem te dás
conta do que está acontecendo, nem tomas providências. És um infeliz.”
Por isso, sabei escolher o bom entre os dois caminhos e prosseguir, resistindo, resistindo, resistindo aos
aliciamentos da sensualidade, do mundo, da ciência e do demônio. A meia fé, os comprometimentos, os
pactos entre os opostos, deixai-os para os homens do mundo. Não deviam existir nem mesmo entre os
homens honestos. Mas vós, pelo menos vós, ó homens de Deus, não os tenhais. Nem com Deus, nem com
Mamon podeis fazer esses pecar, porém façam nem convosco mesmos, porque não teriam valor. As vossas
ações mescladas do que é bom com o que não é bom, não teriam nenhum valor. As ações completamente
boas viriam a ser depois anuladas pelas não boas. As más vos levariam diretamente aos braços do inimigo.
Não as façais, pois. Mas, sede leais no vosso serviço.
Ninguém pode servir a dois senhores que pensem diferentemente. Ou amará a um para odiar o outro, ou
vice-versa. Não podeis ser igualmente de Deus e de Mamon. O espírito de Deus não pode conciliar com o
espírito do mundo. Um sobe, o outro desce. Um santifica, o outro corrompe. Se estais corrompidos, como
podereis agir com pureza? A sensualidade se acende nos corrompidos e, atrás da sensualidade, as outras
fomes.
[16] os olhos da
174.9 Vós já sabeis como Eva se corrompeu, depois Adão, por meio dela. Satanás beijou
mulher e os seduziu assim, de modo que toda a aparência, até então pura, tornou-a impura, passando a
despertar estranhas curiosidades. Em seguida, satanás beijou-lhe os ouvidos e os fez ficar abertos a
palavras de uma ciência até então desconhecida: a dele. Também a mente de Eva quis conhecer o que não
era necessário. Depois, satanás, aos olhos e à mente despertados para o Mal, mostrou o que antes não
tinham visto nem compreendido, e tudo em Eva foi despertado e corrompido e a Mulher, indo ao Homem,
revelou-lhe o seu segredo e persuadiu Adão a que provasse do novo belo fruto e que até agora era proibido.
Beijou-o com a boca e as pupilas as quais havia então a desordem de satanás. A corrupção penetrou em
Adão que viu, através dos olhos, desejando o que era proibido e o mordeu, com a companheira, caindo da
grande altura em que estava, na lama.
Quando alguém está corrompido, arrasta o outro para a corrupção, a não ser que o outro seja um santo,
no verdadeiro sentido da palavra.
Atentos com os vossos olhares, homens. Tanto com os olhares dos olhos como os da mente. Os olhos,
uma vez corrompidos, não podem deixar de corromper o resto. Os olhos são a luz do corpo. Luz do coração
é o teu pensamento. Mas, se os teus olhos não forem puros (pela sujeição dos órgãos ao pensamento, os
sentidos se corrompem por um pensamento corrompido), tudo em ti ficará ofuscado, e névoas sedutoras
criarão em ti fantasmas impuros. Tudo é puro naqueleque tem pensamentos e olhares puros. A luz de Deus
desce como senhora onde não há obstáculos postos pelos sentidos. Mas se, por uma decisão, tu educaste os
teus olhos a uma visão desordenada, tudo em ti se tornará trevas. Inutilmente olharás até para as coisas
mais santas. No escuro, elas não serão mais do que trevas, e tu farás obras das trevas.
174.10 Por isso, filhos de Deus, guardai-vos contra vós mesmos. Vigiai-vos atentamente contra todas as
tentações. Que sejamos tentados não é mal. O atleta se prepara para a vitória pela luta. Mal é ser vencidos
por sermos despreparados e desatentos. Eu sei que tudo serve para tentar. Eu sei que a defesa enerva. Eu
sei que a luta cansa. Mas coragem! Pensai no que podeis adquirir com estas coisas! Por uma hora de prazer,
seja lá de que qualidade for, quereis perder uma eternidade de paz? Que é que vos deixa o prazer da carne,
do ouro e do pensamento? Nada. Que é que adquiris, repudiando-os? Tudo. Eu falo a pecadores, porque o
homem é pecador. Pois bem, dizei-me a verdade: depois de terdes satisfeito a sensualidade ou o orgulho, ou
a avareza, vos sentistes mais viçosos, mais contentes, mais seguros? Na hora que vem depois daquela
satisfação — e que é sempre uma hora de reflexão —, sereis mesmo, sinceramente, felizes? Eu não provei
esse pão da sensualidade. Mas Eu respondo por vós: “Não! Paixão, descontentamento, incerteza, náusea,
medo, inquietação. Eis o suco espremido da hora passada.” Mas Eu vos peço. Mesmo se digo “Nunca façais
isto”, também vos digo: “Não sejais inexoráveis com os que erram.” Recordai-vos que sois todos irmãos,
feitos de carne e de alma. Pensai que muitas são as causas pelas quais alguém é induzido a pecar. Sede
misericordiosos para com os pecadores e com bondade levantai-os e conduzi-os a Deus, mostrando que o
caminho por eles percorrido é cheio de perigos da carne, da mente e do espírito. Fazei isto, e recebereis um
grande prêmio. Porque o Pai que está nos Céus é misericordioso com os bons, sabendo dar o cêntuplo por
um. Por isso Eu vos digo…
(E aqui Jesus me diz que devo copiar a visão ditado, de 12 de agosto de 1944, B 961, da 35ª linha até o
fim , isto é, até a partida de Madalena: “e ri de raiva e de escárnio.” Depois continuará o que vem em
seguida, naturalmente omitindo[17] este parêntesis).
– Olha e escreve. É o Evangelho da Misericórdia[18] o que Eu dou a todos, especialmente àquelas que se
reconhecerem na pecadora e que convido a segui-la, na redenção.
Jesus, de pé sobre uma pedra, fala a uma grande multidão. É um lugar alpestre: uma colina solitária,
entre dois vales. A colina tem o cume em forma de jugo, ou melhor, para que fique mais claro: tem forma de
uma corcova de camelo, de modo que, a poucos metros do cume, há um anfiteatro natural, no qual a voz
ressoa clara como numa sala de concertos bem construída. A colina está toda coberta de flores. Deve ser
agora uma estação boa. As plantações nas planícies começam a ficar louras e a chegar ao ponto da foice. Ao
norte, um monte alto brilha, com a sua geleira exposta ao sol. Logo abaixo, a leste, está o Mar da Galileia,
que daqui parece um espelho despedaçado em numerosas escamas, das quais cada uma é uma safira acesa
pelo sol. Ofusca, com o seu tremular azul e ouro, sobre o qual não se reflete senão alguma nuvem cheia de
flocos, velejando por um céu muito limpo e a sombra fugidia de algum barco a vela. Atrás do lago de
Genezaré, uma série de planícies, a perder de vista que, por uma leve névoa baixa (talvez a evaporação do
orvalho pois ainda deve ser manhã em suas primeiras horas), pois as ervas da montanha têm ainda um ou
outro diamante de orvalho aqui e ali, nos seus caules. Parece uma continuação do lago, mas com tintas
semelhantes a uma opala com veios verdes e, mais, mais atrás há uma cadeia de montanhas, com uma costa
caprichosa, que lembra um desenho de nuvens no céu sereno.
A multidão está sentada, uns na relva, outros sobre grandes pedras ou estão em pé. O colégio Apostólico
não está completo. Vejo Pedro e André, João e Tiago e escuto chamar os outros dois, Natanael e Filipe. Há
também um outro, que não é do grupo. Talvez tenha chegado por último. Chamam-no Simão. os outros não
estão aqui. A não ser que eu não os esteja enxergando por causa da grande multidão.
Faz pouco tempo que o Sermão começou. Compreendo que é o Sermão da Montanha. Mas as bem-
aventuranças já foram enunciadas. Eu até diria que o sermão já está chegando ao fim, porque Jesus diz:
– Fazei isto e tereis um grande prêmio. Porque o Pai que está nos Céus é misericordioso para com os
bons e sabe dar o cêntuplo por um. Por isso, Eu vos digo…
174.12 Acontece, então, um grande movimento no meio da multidão, que está apinhada no caminho para o
planalto. As cabeças dos que estão mais perto de Jesus se viram, e a atenção se desvia dele. Jesus para de
falar e dirige seu olhar ao mesmo lugar que os outros. Ele está belo e sério em sua veste de azul escuro,
com os braços cruzados sobre o peito, e o Sol está roçando por sua cabeça, com o primeiro raio que
ultrapassa o pico oriental da colina.
– Abri caminho, ó plebeus, grita uma voz irada de homem. Abri caminho para a beleza que vai passar… e
então, vêm para a frente quatro janotas muito embelezados, dos quais um é certamente romano, porque
está com uma toga romana, e trazem, como em triunfo, nas mãos cruzadas para formar um assento, Maria
de Mágdala, que é ainda a grande pecadora.
Ela ri, com sua belíssima boca, jogando para trás a cabeça com uma cabeleira que parece de ouro, cheia
de tranças e caracóis, seguros por grampos de alto preço e por uma lâmina de ouro coberta de pérolas, que
lhe rodeia o alto da fronte como diadema, do qual descem cachinhos leves, para sombrear os olhos,
esplendidos que se tornam ainda maiores e mais sedutores pelo engenhoso arranjo. O diadema desaparece
atrás das orelhas, embaixo das tranças que descansam seu peso sobre um pescoço muito alvo e
completamente descoberto. Aliás… o descoberto vai muito além do pescoço. Os ombros estão descobertos
até as espáduas e o peito ainda muito mais. A veste está suspensa nos ombros por duas correntinhas de
ouro. Não há mangas O conjunto está coberto, por assim dizer, por um véu cuja única função é proteger a
pele do bronzeado do sol. A veste é muito leve e a mulher, atirando-se contra um ou outro dos seus
adoradores, é como se se atirasse nua sobre eles. Tenho a impressão de que o romano seja o preferido,
porque a ele, de preferência, é que se dirigem as risadinhas e os seus olhares, sendo quem recebe a cabeça
dela no ombro.
– Já contentamos a deusa –diz o romano–. Roma serviu de cavalgadura para a nova Vênus. Lá está o
Apolo que querias ver. Seduze-o, então… Mas deixa para nós também umas migalhas das tuas carícias.
Maria ri e, com um movimento rápido e provocador, pula no chão, descobrindo os pezinhos calçados de
sandálias brancas com fivelas de ouro e um belo pedaço de perna. Sua veste é muito larga, feita de lã, mas
leve como um véu, muito alva, presa a cintura mas muito embaixo, à altura dos quadris, com um cinturão
todo feito com broches de ouro articulados. A veste cobre tudo. A mulher fica como se fosse uma flor de
carne, uma flor impura que brotou, por uma obra de magia, no verde planalto, no qual há lírios e narcisos
selvagens em grande quantidade.
Ela está mais bonita do que nunca. Sua boca, pequena e purpurina, parece um cravo brotando na
brancura de dentes perfeitos. Seu rosto e seu corpo poderiam agradar ao mais incontentável pintor ou
escultor, tanto por suas cores, como em suas formas. De peito amplo e de flancos na medida justa, com uma
cintura flexível e equilibrada em relação aos flancos e ao peito, parece uma deusa, como disse o romano,
uma deusa esculpida em um mármore levemente rosado, sobre o qual se estende o tecido leve sobre os
flancos, para dali cair para frente em numerosas dobras. Tudo nela é estudado para agradar.
Jesus a olha elafixamente. Ela sustenta com arrogância aquele olhar enquanto ri e se contorce
levemente pelas cócegas que lhe está fazendo o romano sobre os ombros e o seio, que estão descobertos,
com um lírio apanhado entre as ervas. Maria, com uma irritação estudada, não verdadeira, torna a levantar
o véu, dizendo: “Respeito ao meu candor”, o que faz que os quatro disparem em uma fragorosa risada.
Jesus continua a fixá-la. Mal o barulho das risadas termina, Jesus, como se a aparição daquela mulher
tivesse reacendido as chamas do sermão, que antes já se ia acalmando para terminar, começa de novo, e
não olha mais para ela. Ele olha agora para os seus ouvintes, que parecem embasbacados e escandalizados
com o que aconteceu.
174.13 Jesus retoma:
– Eu disse que deveis ser fiéis à Lei, humildes, misericordiosos, que deveis amar não só os irmãos de
sangue, mas também o irmão nascido do homem como vós. Eu vos disse que o perdão é mais útil do que o
rancor, que a compaixão é melhor do que a inexorabilidade. Mas agora Eu vos digo que não se deve
condenar se não somos isentos daquele pecado que estamos sendo levados a condenar. Não façais como os
escribas e os fariseus, que são severos para com todos, mas não consigo mesmos, quando chamam de
impuro o que é externo e só pode contaminar exteriormente, mas depois acolhem a impureza no mais
profundo do coração.
Deus não está com os impuros. Porque a impureza corrompe o que é propriedade de Deus: a alma, e
especialmente a alma dos pequenos, que são os anjos espalhados na terra. Ai daqueles que arrancam suas
asas com a crueldade de feras demoníacas e derrubam estas flores do Céu na lama, fazendo-as conhecer o
sabor da matéria! Ai deles!… Melhor seria que morressem queimados por um raio, do que cometerem um
pecado destes!
Ai de vós, ricos e gozadores! Porque é justamente em vós que fermenta a maior impureza, para a qual o
ócio e o dinheiro servem de cama e travesseiro! Agora vós estais fartos. O alimento das concupiscências vos
chega até a garganta e vos sufoca. Mas havereis de ter fome. Uma fome tremenda, insaciável, sem
atenuação e para sempre. Agora estais ricos. Quanto bem poderieis fazer com vossa riqueza! Mas, com ela,
fazeis grande mal a vós mesmos e aos outros. Havereis de conhecer uma pobreza atroz, durante um dia que
não terá fim. Agora estais rindo. Pensais que sois triunfadores. Mas as vossas lágrimas encherão os tanques
da Geena para sempre.
Onde se aninha o adultério? Onde está a corrupção das jovens? Há quem tenha até duas ou três camas
para o desregramento, além da sua própria de esposo. Sobre essas camas ele derrama o seu dinheiro e o
vigor de um corpo dado por Deus, cheio de saúde, para trabalhar pela família e não se esgotar em sujas
uniões, que o colocam abaixo de um animal imundo?
Já ouvistes o que foi dito: “Não cometas adultério.” Mas Eu vos digo que quem tiver olhado para uma
mulher desejando-a, ou olhar para um homem desejando-o, ainda que fique só no desejo, já cometeu
adultério em seu coração. Nenhuma razão justifica a fornicação. Nenhuma. Nem o abandono e o repúdio
por parte do marido. Nem a compaixão para com a repudiada. Vós tendes uma só alma. Quando ela estava
unida a uma outra por um pacto de fidelidade, seja-lhe fiel. Porque senão, o belo corpo pelo qual pecais irá
convosco para as chamas intermináveis, ó almas impuras. Antes mutilar o corpo do que matá-lo para
sempre, condenando-o. Voltai atrás, ó homens, ó ricos, ó latrinas dos vermes do vício! Voltai, homens, para
que não causeis repugnância ao Céu…
174.14 Maria, que a princípio escutava, mostrando um rosto cheio de sedução e de ironia, de vez em
quando até dando umas risadinhas de zombaria, ao fim do discurso, está com o rosto sombrio, de tanta
raiva. Compreende que, sem olhar para ela, é a ela que Ele está falando. Sua ira se torna cada vez mais
torva e rebelde e, por fim, ela não resiste. Envolve-se, despeitada, no seu véu e, acompanhada pelos olhares
da multidão que zomba dela e pela voz de Jesus que a persegue, põe-se a correr pela encosta abaixo,
deixando pedaços de suas vestes por entre os cardos e as moitas de roseiras caninas que estão à beira do
caminho, e ri agora de raiva e de escárnio.
Não vejo nada mais. Mas Jesus diz:
Verás ainda.
– Em verdade, Eu vos digo que jamais encontrei uma fé tão grande em Israel! Oh! É mesmo verdade![24]
“O povo, que ia caminhando nas trevas, viu uma grande luz. Sobre os que moravam na escura região da
morte, a luz resplandeceu”, e ainda: “O Messias, tendo erguido sua bandeira sobre as nações, as irá
reunir!” Oh! Meu Reino! Verdadeiramente, elas afluirão para ti em um número incalculável! Muito mais que
todos os camelos de Madiã e de Efa e os transportadores do ouro e incenso de Sabá, mais numerosos do
que todos os rebanhos de Cedar, e os carneiros de Nabaiot, numerosos serão aqueles que hão de vir a ti, e o
meu coração se dilatará de alegria, quando Eu vir que estão vindo a Mim os povos do mar e as potências
das nações. As ilhas me estão esperando para Me adorar e os filhos dos estrangeiros é que construirão as
paredes de minha Igreja, cujas portas estarão sempre abertas para acolher os reis e a força das nações e
para santificá-las em Mim. Isto, que Isaías viu, certamente vai-se cumprir[25]. Eu vos digo que muitos virão
do Oriente e do Ocidente para sentarem-se com Abraão, Isaac e Jacó no Reino dos Céus, enquanto que os
filhos do Reino serão lançados nas trevas lá fora, onde haverá choro e ranger de dentes.
– Então, será que estás profetizando que os pagãos serão iguais aos filhos de Abraão?
– Iguais, não. Superiores. Não vos desgosteis com isso, isso vai ser por culpa vossa. Não Eu, mas os
Profetas o dizem, e os sinais já o confirmam. 177.5Agora, alguém de vós vá até a casa do centurião, para
verificar como de fato o servo dele está curado, pois a fé do romano o merecia. Vamos. Talvez em casa haja
doentes esperando a minha ida.
Jesus com os apóstolos e mais um ou outro vão à casa em que Ele tem ficado nos dias em que está em
Cafarnaum, pois a maior parte do povo, com um grande vozerio, se dirige precipitadamente para a casa do
centurião.
[24] É mesmo verdade o que se lê em Isaías 9,1; 11,12.
[25] vai-se cumprir o que é profetizado em Isaías 60,6-11.
178. Três homens que querem seguir Jesus.
3 de junho de l945.
[…]
178.1 Estou vendo Jesus, que se dirige para a beira do lago com seus onze, porque falta sempre João.
Muitas pessoas o rodeiam: entre elas se encontram muitas que estavam na montanha, principalmente
homens, que foram procurá-lo em Cafarnaum, para ouvirem ainda a sua palavra. Bem que gostariam de
detê-lo ali. Mas Ele diz:
– Eu sou de todos. Há muitos que precisam ter-Me consigo. Voltarei. Vós Me encontrareis. Mas agora
deixai-me partir.
Ele sente muita dificuldade para caminhar entre a multidão, que se apinha em um caminho estreito. Os
apóstolos se esforçam, fazendo jogo de ombros para ver se conseguem abrir caminho. Mas é como que um
chocar-se de alguém contra uma substância mole que, logo em seguida, toma a forma que tinha antes.
Alguns ali se inquietam, mas não adianta nada.
178.2 A margem já está à vista, quando, depois de muito trabalho, um homem de meia idade e de condição
civil consegue aproximar-se do Mestre e, para lhe chamar a atenção, toca em seu ombro.
Jesus se vira e para, dizendo:
– Que queres?
– Eu sou escriba. Mas o que há nas tuas palavras não pode ser comparado a nada de tudo o que há em
nossos preceitos. Eu me senti conquistado por elas. Mestre, eu não Te deixo mais. Seguirte-ei para onde
fores. Qual é o teu caminho?
– O caminho do Céu.
– Não é desse caminho que eu estou falando. O que estou perguntando é: Para onde vais? Depois destas,
quais são as tuas casas, para que eupossa encontrar-Te sempre?
– As raposas têm suas tocas e os pássaros do ar os seus ninhos. Mas o Filho do Homem não tem onde
possa pousar a cabeça. A minha casa é o mundo, por toda parte onde houver espíritos necessitados de
instrução, ou misérias para aliviar, ou pecadores para redimir.
– Por toda parte, então?
– É como disseste. Poderias tu, doutor de Israel, fazer o que por amor de Mim estão fazendo estes
pequeninos? Aqui o que se exige é sacrifício e obediência, caridade para com todos, espírito de adaptação
em tudo e com todos. Porque a condescendência atrai. Porque, quem deseja curar, precisa inclinar-se sobre
cada ferida. Depois teremos a pureza do Céu. Mas aqui ainda estamos na lama, e é preciso tirar da lama, na
qual estamos pisando, as vítimas que estão submersas. Não cinjas as vestes, nem encurte-as porque em
algum lugar a lama está mais funda. A pureza deve estar em nós. Estejamos saturados dela, de tal modo
que em nós nada mais possa entrar. Podes fazer tudo isso?
– Pelo menos, deixa-me experimentar.
– Experimenta. Eu rezarei para que sejas capaz.
178.3 Jesus põe-se de novo em movimento e, atraído por dois olhos estãovoltados para Ele, diz a um jovem
alto e robusto, que tinha parado para deixar passar o cortejo, mas parece estar se dirigindo para outra
parte:
– Segue-me.
O jovem leva um susto, muda de cor, pisca os olhos como ofuscado por uma luz e depois abre a boca
para falar, não encontrando-o logo resposta para dar. Enfim diz:
– Eu Te seguirei. Mas meu pai morreu em Corozaim, e preciso ir sepultá-lo. Deixa que eu vá fazer isso e
depois virei.
– Segue-me. Deixa que os mortos sepultem os seus mortos. Tu já sentes um forte desejo da Vida. Há
tempo que tens esse desejo. Não fiques chorando, por ter a Vida criado um vácuo ao redor de ti, a fim de
ter-te como seu discípulo. As mutilações do afeto são raízes das asas que nascem no homem, que se
transformou em servo da Verdade. Deixa que a corrupção siga os seus rumos. Levanta-te para o Reino do
que é incorrupto. Nele encontrarás também a pérola incorruptível do teu pai. Deus chama e passa. Amanhã
não encontrarás mais o coração que tens hoje e o convite de Deus. Vem. Vai anunciar o Reino de Deus.
O homem, encostado a um pequeno muro, está com os braços caídos, e neles estão penduradas algumas
bolsas, cheias de unguentos e de tiras; sua cabeça está inclinada, mergulhada na dúvida entre dois amores:
o devido a Deus e o devido a seu pai.
Jesus fica esperando e olhando para ele, depois segura uma criança e a aperta ao coração, dizendo:
– Fala comigo: “Eu Te bendigo, ó Pai, e invoco a tua luz para aqueles que choram nas névoas da vida. Eu
Te bendigo, ó Pai, e invoco a tua força para quem é como uma criança, necessitada de ser carregada. Eu Te
bendigo, ó Pai, e invoco o teu amor para que se esqueçam de tudo que não sejas Tu, todos aqueles que em
Ti encontrariam, todo o seu bem aqui e no Céu, mas não sabem crer.”
E o menino, um inocente de quatro anos, repete com sua vozinha, as palavras santas, com suas
mãozinhas juntas e postas em posição de oração pela mão direita de Jesus, que as segura pelo pulso
gorducho como talos de flores.
O homem, então se decide. Dá a um companheiro os seus embrulhos e vai até Jesus, que põe no chão o
menino, abraça depois o jovem, fazendo isso para animá-lo e ajudá-lo no esforço que está fazendo.
178.4 Um outro homem lhe pergunta:
– Eu também gostaria de ir contigo como ele. Mas, antes de ir, quereria ir despedir-me dos meus
parentes. Tu me permites?
Jesus olha fixamente para ele, e responde:
– Muitas raízes estão fincadas no ser humano. Arranca-as e, se não o consegues, corta-as. Para o serviço
de Deus deve-se ir com liberdade espiritual. Nada há de servir de armadilha para quem se doa.
– Mas, Senhor, a carne e o sangue são sempre carne e sangue! Pouco a pouco eu chegarei à liberdade de
que estás falando…
– Não. Não o farias nunca. Deus é tão exigente, quanto é infinitamente generoso em recompensa. Se
queres ser discípulo, precisas abraçar a cruz e vir. Se não for assim, fica-se no número dos simples fiéis.
Não é um caminho cheio de pétalas de rosas o caminho do servo de Deus. Mas é um caminho intransigente
em suas exigências. Ninguém, que tiver posto as mãos ao arado para arar os campos dos corações e semear
a semente da doutrina de Deus, pode mais voltar atrás, para ir olhar o que deixou e o que perdeu, ou
aquelas coisas que podia possuir, seguindo um caminho comum. Trabalha em ti mesmo. Torna-te mais viril
contigo mesmo, e depois vem. Por enquanto, não.
Chegaram à beira do lago. Jesus sobe para a barca de Pedro, ao qual, em voz baixa, diz algumas
palavras. Vejo que Jesus está sorrindo e Pedro fica muito admirado. Mas não diz nada. Sobe também para a
barca o homem que deixou de ir sepultar o seu pai para acompanhar a Jesus.
179. A parábola do semeador.
Em Corozaim com o novo discípulo Elias.
4 de junho de 1945.
179.1 Diz-me Jesus, mostrando-me a correnteza do Jordão, ou melhor, a entrada do Jordão no lago de
Tiberíades, no ponto em que se estende a cidade de Betsaida sobre à beira direita do rio para quem olha
para o norte:
– Agora a cidade não parece mais estar a beira do lago, mas um pouco adentro, no interior. Isso
desorienta os estudiosos. A explicação deve procurar-se no assoreamento do lago por este lado, devido ao
humus e aos desmoronamentos depositados pelo rio durante vinte séculos e os aluviões que desceram das
colinas de Betsaida. Antes, a cidade era justamente na desembocadura do rio no lago, e até as barcas mais
pequenas, nas estações das águas abundantes, iam rio acima por um bom trecho, quase até a altura de
Corozaim, e o rio propriamente dito servia de porto e de abrigo em ambas as margens para as barcas de
Betsaida, nos dias em que havia alguma tempestade no lago. Isto não é para ti, a quem pouco importa, mas
para os doutores difíceis. Agora, adiante!
179.2 As barcas dos Apóstolos, tendo transposto o breve trajeto do lago, que separa Cafarnaum de
Betsaida, atracaram na cidade. Mas outras barcas as acompanharam e muitas pessoas desembarcam para
se reunirem àqueles de Betsaida, que vieram saudar o Mestre, que está agora entrando na casa de Pedro,
onde está de novo a mulher, que eu suponho que tenha preferido a solidão a ficar ouvindo as continuas
queixas da mãe contra seu marido.
O povo, do lado de fora, reclama em altas vozes a presença do Mestre e isto faz que Pedro fique
bastante inquieto, subindo ao terraço para acalmar os cidadãos, dizendo-lhes também que é preciso ter
respeito e educação. Pois ele, gostaria de estar como o seu Mestre com alegria e paz agora que está na sua
casa e pelo contrário, não acha tempo nem para oferecer-lhe um copo d’água com mel e as muitas outras
coisas que Pedro mandou a mulher trazer… e fica resmungando.
Jesus, sorrindo, olha para ele, sacode a cabeça, dizendo:
– Parece que tu não me vês nunca, e que é uma coisa extraordinária estarmos juntos!
– Mas, é isso mesmo! Quando nós vamos por esse mundo afora, acaso estamos a sós? Nem por sonho!
Entre mim e Ti há todo um mundo com os teus doentes, com os teus aflitos, os teus ouvintes, os teus
curiosos, os teus caluniadores, teus inimigos, e nós dois estamos sós. Mas aqui Tu estás comigo, na minha
casa e eles deveriam compreender isso.
Está realmente inquieto.
– Mas Eu não vejo diferença, Simão. O meu amor é o mesmo, a minha palavra é a mesma. Que Eu a diga
em particular ou que a diga para todos, não é a mesma coisa?
179.3 Pedro confessa, então, o seu grande desgosto:
– É que eu sou um grande ignorante, um grande distraído. Quando Tu falas em uma praça, em uma
montanha, no meio daquele povão todo, eu não sei por que, entendo tudo, mas depois não me lembro de
mais nada. Eu disse isso também aos meus companheiros e eles me deram razão. Os outros, quero dizer, as
pessoas do povo que Te ouvem, Te entendem e se recordam do que disseste. Quantas vezes temos ouvido
alguém dizer: “Eu não fiz mais isto, porque Tu disseste que não era para fazer” ou então: “Eu vim, porque
uma vez Te ouvi dizer tal coisa, e aquilo me despertou a consciência.” Mas nós… Não sei não! É como a
água corrente, que passa, e não para. As margens não a detêm mais, porque a água passou. Vem outra
água, sim, sempre outra, e sempre tanta. Mas passa, passa, passa… E eu fico pensando, com terror, que, se
for como Tu dizes, isto é, chegará o momento em que Tu não estarás mais aqui para fazeres como o rio e…
e eu… Que poderei dar eu a quem tiver sede, se não guardo nem uma gota do muito que me dás?
Os outros também apoiam as lamentações de Pedro, queixando-se de que não retêm mais nada de tudo o
que ouviram, quando eles gostariam tanto de lembraremse de tudo, para poderem responder as muitas
perguntas que lhes são feitas.
Jesus apenas sorri e responde:
– Mas não é assim que Me parece. Pois o povo está muito contente também com vocês…
– Oh! Sim! Pelo que nós fazemos! Abrir-te caminho, dar cotoveladas para isso, transportar os doentes,
recolher as esmolas, e dizer: “Sim, o Mestre é aquele!” Grande coisa, na verdade!
– Não te faças mais feio do que és, Simão.
– Eu não me faço mais feio. Eu me conheço.
– É esta a mais difícil das sabedorias. Mas Eu quero tirar de ti esse grande medo. Quando Eu tiver
falado, e vós não tiverdes podido compreender tudo, e reter tudo, perguntai, sem medo de me aborrecerdes
ou importunardes. Temos sempre nossas horas a sós. Nessas horas, abri-me os vossos corações. Eu dou
tantas coisas a tanta gente. O que Eu não haveria de dar a vós, que Eu amo de tal modo, que nem Deus
poderia amar mais? Tu falaste das ondas que vão e das quais nada mais fica na praia. Chegará o dia no qual
perceberás que cada uma daquelas ondas deixou na beira da praia uma semente e que cada semente se
tornou uma árvore. Tu terás diante de ti flores e plantas para todos os casos, e ficarás espantado contigo
mesmo, e dirás: “Mas, que foi que o Senhor me fez?”, porque, quando chegar esse tempo, já estarás livre da
escravidão do pecado, e as tuas virtudes atuais terão se aperfeiçoado até atingirem uma grande altura.
– Tu o estás dizendo, Senhor, e eu fico tranquilo com estas tuas palavras.
179.4 – Agora, vamos a quem nos está esperando. Vinde. A paz esteja contigo, mulher. Vou ser teu hóspede
esta tarde.
Saem todos, e Jesus dirigi-se para o lago, a fim de não ser esmagado pela multidão. Pedro está
manobrando com cuidado, para afastar a barca até alguns metros da beira, de modo que a voz de Jesus
possa ser ouvida por todos e haver um espaço entre Ele e os ouvintes.
– De Cafarnaum até aqui, Eu vim pensando no que vos iria dizer. Encontrei quais eram as palavras
adequadas, ao relembrar os fatos desta manhã.
Vós vistes os três homens que vieram a Mim. Um veio espontaneamente, outro, porque foi convidado por
Mim, e o terceiro, porque entusiasmou-se de repente. Vistes também que daqueles três Eu fiquei só com
dois. Por que será? Teria Eu visto um traidor no terceiro? Em verdade, não. Vi nele alguém ainda
despreparado. Pelas aparências, o que parecia mais despreparado era o que agora está aqui ao meu lado,
pois tinham a intenção de sepultar o seu pai. Mas o mais despreparado era o terceiro.
Este estava tão preparado que mesmo sem saber, fez um sacrifício bem heróico. O heroísmo em seguir a
Deus é sempre uma prova de forte preparação espiritual. Isto é o que explica alguns fatos surpreendentes,
que acontecem ao redor de Mim. Os mais preparados para receber Cristo, seja qual for a sua casta ou
cultura, costumam vir a Mim com uma prontidão e uma fé absoluta. Os menos preparados ficam
observando-me, como se Eu fosse um homem que foge do comum ou então me estudam com desconfiança e
curiosidade, ou ainda, me atacam e me denigrem, acusando-me de várias coisas. As diversas atitudes estão
na proporção da falta de preparação dos espíritos.
No povo eleito se deveria encontrar, por toda parte, espíritos prontos para receber o Messias, em cuja
espera ansiaram em desejos os Patriarcas e os Profetas, o Messias, que finalmente veio, precedido e
acompanhado por todos os sinais profetizados, o Messias, cuja figura espiritual se delineia sempre mais
clara, por meio de milagres visíveis nos membros e nos elementos e milagres invisíveis, realizados nas
consciências dos que se convertem e nos pagãos que se voltam para o Verdadeiro Deus. Mas não é assim.
Pois a prontidão em seguir o Messias é fortemente obstaculada, justamente pelos filhos deste povo, e é
doloroso dizer-se, que é tanto mais, assim quanto mais se sobe às classes mais altas deste mesmo povo. Eu
não digo isto para vos escandalizar. Mas sim, para induzir-vos a rezar e a refletir. Por que acontece isso?
Por que os pagãos e os pecadores procuram mais o meu caminho? Por que eles acolhem mais o que Eu digo,
e os outros não? É porque os filhos de Israel ficam ancorados, como ostras que produzem pérolas, no lugar
em que nasceram. Porque estão saturados, empanturrados, obesos com af sabedoria deles, e não sabem
abrir caminho para a minha, jogando fora o supérfluo, para dar lugar ao necessário. Os outros não têm esta
escravidão. São pobres pagãos, ou pobres pecadores, ainda soltos como barcos à deriva, são pobres que
não possuem tesouros próprios, mas somente fardos de êrros ou pecados, dos quais se despojam com
alegria, logo que conseguem compreender o que é a Boa Nova, e sentem nela um mel fortificante muito
diferente da insípida mixórdia dos seus pecados.
179.5 Ouvi, e talvez podereis compreender melhor como obter frutos diferentes de uma mesma obra.
Um semeador saiu para semear. Eram muitos campos e de diferentes qualidades. Ele tinha herdado de
seu pai alguns onde havia deixado proliferar plantas espinhosas. Outros haviam sido adquiridos por ele, que
os comprara do jeito em que estavam, de um dono negligente, deixando tais como eram. Outros ainda,
haviam sido entrecortados por estradas, pois o homem era comodista e não queria andar muito para ir de
um lugar para outro. Enfim, havia alguns, os mais próximos da casa, dos quais ele tomava cuidado, só para
que dessem um aspecto agradável à frente da casa. Estes estavam limpos de pedregulhos, de espinhos, de
grama e assim por diante.
O homem, pois, tomou o seu saco de grãos para ir semear grãos da melhor qualidade, e começou a
semeadura. A semente caiu no terreno bom, fofo, arado, limpo e adubado, próximo à casa. Caiu também nos
campos entrecortados por caminhos e trilhas, além de cortá-los, levava a sujeira da poeira árida na terra
fértil. Outras sementes caíram sobre os campos, onde a inépcia do homem tinha deixado que crescessem
plantas espinhosas. Agora o arado as havia revirado, e nem parecia que elas estivessem mais ali, mas
estavam, porque somente o fogo é que é a radical destruição das ervas más, impedindo-as de nascer. As
últimas sementes caíram nos campos comprados recentemente, e que ele tinha deixado como estavam, sem
ará-los em profundidade, sem limpá-los de todas as pedras afundadas na terra, fazendo com ela um
pavimento duro no qual não conseguiam agarrar-se as tenras raízes.
Depois, tendo semeado todas as sementes, voltou para casa, e disse: “Agora está tudo bem. É só esperar
a colheita.”
179.6 E assim se alegrava quando, com o correr dos meses, podia ver, à frente de sua casa, o trigo que ia
germinando e crescendo… oh! crescia como um tapete macio e já ia soltando espigas… Parecia um mar,
amarelando e batendo espigas contra espigas, cantando hosanas ao sol. O homem dizia: “Como este campo,
devem estar todos os outros. Preparemos as foices e os celeiros. Quanto pão! Quanto ouro!”
Estava feliz.
Cortou o trigo dos campos mais próximos, depois passou aos que herdou do pai, mas ele os tinha
deixado virar mato. O homem ficou muito aborrecido. todos os grãos haviam nascido, porque os campos
eram bons e a terra adubada pelo pai estava gorda e fértil. Mas sua fertilidade tinha sido boa também para
as plantas espinhosas, que ficaram cobertas pela terra, reviradas com ela, mas não esterilizadas. Elas
tinham renascido e formado um verdadeiro forro de ramagens cheias de espinhos, através das quais o trigo
não tinha podido passar para cima, a não ser uma espiga aqui, outra acolá, e morreu quase todo sufocado.
O homem disse: “Eu fui negligente com este campo. Mas nos outros não havia espinheiros, e deverão
estar melhores.” Passou então aos campos recentemente adquiridos. Lá seu espanto cresceu, até
transformar-se em tristeza. Finas e já ressecadas, as folhas do trigo estavam espalhadas por toda parte,
como feno seco. Feno seco! “Mas, como? Como foi isso?” Gemia o homem. “No entanto, aqui não há
espinhos! Além disso, a semente do trigo era a mesma. Aqui também ela tinha nascido, e o trigal estava tão
viçoso, que dava alegria ver! Pode-se ver ainda como suas folhas estavam bem formadas e em grande
número. Por que será que aqui o trigo todo morreu sem produzir espigas?” E, com grande tristeza, pôs-se a
cavar o solo, para ver se encontrava ninhos de toupeiras, ou outras pragas. Insetos e roedores, não havia
nada. Mas, que quantidade de pedras! Um verdadeiro pedregal! Os campos estavam literalmente
calcetados com escamas de pedras, e a pouca terra que as cobria era um engano. Oh! Se tivesse afundado
mais o arado, enquanto era tempo! Oh! Se ele tivesse feito escavações, antes de aceitar aqueles campos e
de comprá-los como se fossem bons! Oh! Pelo menos, depois daquele erro de adquirir o que era oferecido,
sem ter-se informado da boa qualidade deles, se ele os tivesse melhorado, à custa do cansaço de seus rins!
Mas agora já era tarde quaisquer queixumes eram inúteis.
O homem pôs-se de pé, arrasado, e dali foi para os campos entrecortados por pequenos caminhos, feitos
para sua comodidade… E rasgou suas vestes de tristeza. Aqui não havia nada. Absolutamente nada… A
terra escura do campo estava coberta por uma ligeira camada de pó branco… O homem se agachou no
chão, e gemia dizendo: “Mas, por quê? Aqui não há espinhos, nem pedras, pois estes campos, antes já eram
nossos. Meu avô, meu pai, eu, sempre os possuímos e, por anos e anos, os fertilizamos. Neles eu abri
estradas, terei tirado alguma terra do campo, mas isso não é o que o terá feito ficar estéril assim…” Ainda
estava ele chorando, quando recebeu, para sua tristeza, a resposta, dada por um cerrado bando de
passarinhos esfomeados, vindos dos campospara os caminhos a procura de sementes de trigo, e outras… O
campo havia-se transformado numa rede de pequenos caminhos, em cujas beiras o trigo semeado tinha
caído, atraindo muitos passarinhos, que, primeiro comeram os grãos na estrada e depois os plantados no
campo, até o ultimo grão.
Desse modo, a semente, igual para todos os campos, havia produzido cem por um, em outro sessenta,
em outro trinta e em outro nada. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
A semente é a Palavra: é igual para todos. O lugar onde cai a semente são os vossos corações. Cada um
aplique a si a parábola e compreenda. A paz esteja convosco.
179.7 Depois, virando-se para Pedro, diz:
– Vamos subir o rio até onde puderes, e depois atraca do outro lado.
E, depois que as duas barcas navegam por um pequeno trecho do rio, param junto à margem. Jesus se
senta, perguntando ao novo discípulo:
– Quem ainda ficou em tua casa?
– Minha mãe com meu irmão mais velho, que se casou há cinco anos. Minhas irmãs estão espalhadas
pela região. Meu pai era muito bom. Minha mãe lamenta desoladamente.
O jovem para bruscamente, porque sente que um soluço lhe está vindo do coração.
Jesus o segura pela mão e lhe diz:
– Eu sei o que é esta dor, eu vi também minha mãe chorar. Por isso, Eu te compreendo…
O arrastar-se da barca sobre a areia faz que aquele discurso seja interrompido, possibilitando a descida
a terra. Aqui não se vêem mais as colinas baixas de Betsaida, que quase mergulham o focinho no lago, mas
vê-se uma planície cheia de messes que se estende desta margem oposta à Betsaida, para a direção norte.
– Estamos indo a Meron? –pergunta Pedro.
– Não. Vamos tomar o caminho dos campos.
Os campos, muito bonitos e bem conservados, mostram espigas ainda verdes, mas já bem formadas.
Todas estão à mesma altura e com o leve ondular que lhes imprime o vento fresco, que vem do norte,
parecem formar um outro pequeno lago, ao qual servem de velas as árvores, que se erguem aqui e ali,
cheias de passarinhos que chilreiam.
– Estes campos não são como os da parábola –observa o primo Tiago.
– É verdade. Não são. Os passarinhos não os devastaram, neles não há espinheiros nem pedras. Que
belo trigal! Dentro de um mês estará maduro… e dentro de dois, estará pronto para a foice e o celeiro –diz
Judas Iscariotes.
– Mestre, eu quero que Te lembres do que disseste em minha casa. Tu falaste tão bem! Mas eu estou
começando a ter em minha cabeça umas nuvens confusas como as lá de cima… –diz Pedro.
– Esta tarde te explicarei. 179.8Agora, já estamos vendo Corozaim.
Jesus olha fixamente para o novo discípulo, dizendo:
– A quem dá será dado. O fato de receber não tira o mérito do doador. Leva-me ao vosso sepulcro e à
casa de tua mãe.
O jovem se ajoelha, beijando, entre lágrimas, as mãos de Jesus.
– Levanta-te. Vamos. O meu espírito ouviu o teu pranto. Quero fortificar-te no heroísmo com o meu amor.
– Isaac, o Adulto, me havia falado quanto Tu eras bom. Isaac, sabes? Aquele cuja filha Tu curaste. Ele foi
o meu apóstolo. Mas estou vendo que a tua bondade é ainda maior do que tudo o que me disseram.
– Nós vamos também saudar o Adulto para agradecer-lhe por me haver dado um discípulo.
Chegaram a Corozaim, e é justamente a casa de Isaac a primeira que se encontra. O velho, que está
voltando para casa, ao ver o grupo de Jesus com os seus, e entre eles o jovem de Corozaim, levanta os
braços, com seu bastãozinho na mão, ficando de boca aberta, como se tivesse perdido o fôlego. Jesus sorri,
e o seu sorriso faz voltar a voz ao velho.
– Deus Te bendiga, Mestre! Como é que fui ter esta honra?
– Para te dizer “obrigado.”
– Mas, obrigado por quê, meu Deus? Eu é que devo dizer-te esta palavra. Entra, entra. Oh! Que pena
que minha filha esteja longe, ajudando a sogra. Ela se casou, sabes? Eu recebi todas as bênçãos depois de
ter-te encontrado! Uma vez que ela ficou curada, logo depois voltou de longe aquele rico parente, viúvo,
com a criança que precisavam de uma mãe… Oh! mas eu já te contei estas coisas! Minha cabeça está
ficando velha. Perdoa-me.
– Tua cabeça é sábia, e se esquece até de gloriar-se pelo bem que faz ao Mestre. Esquecer-se do bem
feito é sabedoria. Mostra humildade e confiança em Deus.
– Mas eu… não saberia…
– Este discípulo, não é por ti que eu o tenho?
– Oh!… Mas eu não fiz nada, sabe? Só disse a verdade… e estou contente que Elias esteja contigo.
Depois ele se vira para Elias, e diz:
– Tua mãe, depois de um primeiro momento de assombro, teve o seu pranto enxugado, ao saber que eras
do Mestre. Mas teu pai não deixou de ter dignas condolências. Faz pouco tempo que foi enterrado.
– E o meu irmão?
– Ele cala-se… Tu sabes… para ele foi duro ver que estavas ausente… pelo povoado… Ele ainda pensa
assim.
O jovem se volta para Jesus:
– Tu o disseste. Mas eu não queria que ele estivesse morto… Faze que ele se torne vivo como eu e a teu
serviço.
Os outros não compreendem, e olham como querendo fazer uma pergunta, mas Jesus responde:
– Não percas a esperança, e persevera.
Depois, abençoa Isaac, indo embora, apesar das pressões para não fazê-lo.
179.9 Param primeiro junto ao sepulcro fechado, e rezam. Depois, através de um vinhedo ainda com a
metade para ser vindimada, vão até a casa de Elias.
O encontro entre os irmãos é um tanto cheio de reservas. O mais velho se sente ofendido, e quer fazer
que se saiba isso. O menor se sente humanamente culpado, e não reage. Mas a chegada da mãe que, sem
dizer uma palavra, se prostra e beija a orla da veste de Jesus, serena de novo o ambiente e os ânimos. A
ponto de quererem prestar uma homenagem ao Mestre. Mas Ele não aceita nada, e diz somente:
– Que vossos corações sejam justos, um para com o outro, como justo é aquele pelo qual chorais. Não
ponhais uma marca humana no que é sobre-humano: a morte e a escolha para uma missão. A alma do justo
não se agitou, ao ver que o filho não estava presente à sepultura do seu cadáver. Mas ela até ficou tranquila
por causa da segurança do futuro de seu Elias. O pensamento do mundo não venha perturbar a graça da
escolha. Se o mundo pôde ficar admirado, por não vê-lo junto ao funeral do pai, os anjos exultaram por vê-lo
ao lado do Messias. Sede justos. E tu, mãe, que sejas consolada com isso. Educaste com sabedoria, e teu
filho foi chamado pela Sabedoria. Eu vos abençôo a todos. A paz esteja convosco agora e sempre.
Voltam ao caminho, e o retornam atéao rio, e daí até Betsaida. O homem, Elias, não se demorou nem um
instante na soleira da casa paterna. Depois do beijo de adeus dado à mãe, acompanhou o Mestre com a
simplicidade com que um menino acompanha o seu verdadeiro pai.
180. Debate na cozinha de Pedro em Betsaida.
Explicação da parábola do semeador.
Notícia da segunda prisão do Batista.
7 de junho de 1945.
180.1 Eis-nos de novo na cozinha de Pedro. A ceia deve ter sido abundante, porque os pratos com os restos
de peixe, de carne, de queijos, de frutas secas ou murchas, e de fogaças de mel, estão amontoados sobre
uma espécie de aparador, que nos lembra um pouco as nossas masseiras toscanas, e as ânforas com os
cálices estão ainda espalhados na mesa.
A mulher de Pedro deve ter feito milagres, para fazer ficar contente o marido, e deve ter trabalhado o
dia inteiro. Agora, cansada mas alegre, elaestá em seu cantinho, ouvindo o que dizo homem e os outros. Ela
está olhando para o seu Simão, que para ela deve ser um grande homem, ainda que um pouco exigente, e,
quando agora o ouve falar com palavras novas naquela boca que antes só falava de barcas, de redes, de
peixes e de dinheiro, ela chega até a pestanejar, como se estivesse deslumbrada por um excesso de luz.
Pedro, seja pela alegria de ter Jesus à sua mesa, ou por causa da abundante ceia que foi servida, está
mesmo bem disposto esta tarde, e até já revela o futuro Pedro pregando às multidões.
Não sei qual foi a observação que foi feita por um companheiro que deu origem àquela resposta
escultural de Pedro, quando disse:
– Acontecerá com eles como com os construtores da torre de Babel[26]. A soberba deles provocará o
desabamento de suas teorias, e ficarão esmagados.
André objeta ao irmão:
– Mas Deus é misericórdia. Impedirá o desabamento para dar tempo ao arrependimento.
– Nem penses nisso. Como coroamento da soberba deles, porão em prática calúnia e perseguição. Oh!
Eu já estou vendo perseguição sobre nós para dispersar-nos como testemunhas detestáveis. E, visto que
estarão atacando, com insídias, a Verdade, Deus tomará a Si fazer a vingança e eles perecerão.
– E nós teremos forças para resistir? –pergunta Tomé.
– Aí está… por mim mesmo, eu não teria. Mas confio nele –e mostra Jesus, que está escutando calado,
com a cabeça um pouco inclinada, como para conservar escondidas as expressões do seu rosto.
– Eu penso que Deus não nos dará provas superiores às nossas forças –diz Mateus.
– Ou, pelo menos, aumentará as nossas forças, em proporção às provas –termina Tiago de Alfeu.
– Ele já está fazendo isso. 180.2Eu era rico e poderoso. Se Deus não tivesse querido me conservar para
algum fim seu, eu teria perecido no desespero, ao ser perseguido e leproso. Eu teria me enfurecido contra
mim próprio… Mas, ao contrário, sobre o meu desabamento completo desceu uma riqueza nova, que eu
nunca antes tinha possuído: a riqueza de uma persuasão: “Deus existe!” Primeiro, Deus… Sim, eu tinha fé,
eu era um fiel israelita. Mas era uma fé formal. Parecia que o prêmio da fé fosse sempre inferior às minhas
virtudes. Eu me permiti até discutir com Deus, porque me julgava ainda alguma coisa sobre a terra. Simão
Pedro tem razão. Eu também estava construindo uma torre de Babel com louvores a mim mesmo e com as
satisfações do meu eu. Quando tudo desabou em cima de mim, e me tornei um verme esmagado pelo peso
de toda esta inutilidade humana, aí eu não discuti mais com Deus, mas comigo mesmo, com este louco eu, e
acabei por demolí-lo. E, quanto mais eu fazia isso, abrindo a estrada para o que eu penso ser Deus imanente
em nosso ser de criaturas terrestres, aí eu adquiria uma força, uma riqueza nova. A certeza de que eu não
estava só e de que Deus velava pelo homem vencido pelo homem e pelo mal.
– Segundo o teu modo de ver, que é que pensas que é Deus, quando dizes: “o Deus imanente em nosso
ser de criaturas terrestres”? Que queres dizer? Eu não te compreendo, dizer isso me parece uma heresia.
Deus é aquele que nós conhecemos através da Lei e dos Profetas. Não existe outro –diz, um tanto severo,
Judas Iscariotes.
– Se João estivesse aqui, ele te explicaria melhor do que eu. Mas eu vou falar-te como sei. Deus é aquele
que conhecemos através da Lei e dos Profetas. É verdade. Mas, em que o conhecemos? Como?
Judas de Alfeu dispara:
– Pouco e mal. Ainda que o conhecessem os Profetas, que sobre ele escreveram para nós. Nós temos de
Deus uma ideia confusa que transpira dos escombros do que foi acumulado pelas seitas…
– Seitas? Mas de que estás falando? Nós não temos seitas. Nós somos filhos da Lei. Todos –diz Iscariotes,
indignado e agressivo.
– Os filhos das leis. Não da Lei. Há uma pequena diferença. Do singular para o plural. Mas na realidade:
nós somos filhos daquilo que criamos, e não daquilo que Deus nos deu –rebate Tadeu.
– As leis nasceram da Lei –diz Iscariotes.
– Também as doenças nascem de nosso corpo, e não me quererás dizer que elas sejam coisas boas –
replica Tadeu.
– Mas, deixai-me saber que é que é o Deus imanente do Simão Zelotes.
O Iscariotes, não tendo podido rebater à observação de Judas de Alfeu, procura levar a questão para o
ponto de partida.
180.3 Simão Zelotes diz:
– Os nossos sentidos sempre precisam de um termo para compreenderem uma ideia. Cada um de nós,
falo de nós que cremos, crê por força de fé no Altíssimo, Senhor e Criador, Deus Eterno que está no Céu.
Mas todos os seres também precisam desta fé nua, virgem, incorpórea, que é suficiente para os anjos, que
vêem e amam a Deus espiritualmente, compartilhando com Ele a natureza espiritual, tendo a capacidade de
ver a Deus. Mas nós precisamos criar para nós uma figura de Deus, figura essa que é feita das qualidades
essenciais que damos a Deus, para podermos dar, então, um nome à sua perfeição absoluta, infinita. Quanto
mais a alma se concentra, mais consegue chegar à exatidão no conhecimento de Deus. Eis aqui o que eu
digo: o Deus imanente. Eu não sou um filósofo. Talvez tenha usado mal a palavra. Mas, em resumo, para
mim o Deus imanente é o sentir, perceber Deus em nosso espírito, sentí-lo e percebê-lo, já não mais como
uma ideia abstrata, mas como uma real presença, doadora de uma fortaleza e de uma paz nova.
– Está bem. Mas como é que o sentias? Que diferença há entre sentir pela fé e sentir pela imanência? –
pergunta, um pouco irônico, Iscariotes.
– Deus é segurança, rapaz. Quando tu o sentes, como diz Simão com aquela palavra que eu não entendo
literalmente, mas cujo sentido eu entendo — e podes crer que o nosso mal é entender somente a letra, e
não o espírito das palavras de Deus — quer dizer que consegues captar, não só o conceito da majestade
terrível, mas da paternidade dulcíssima de Deus. Quer dizer que percebes o seguinte: quando todo o mundo
te julgar e condenar com injustiça, Um só, Ele, o Eterno que é Pai, não te julgará, mas te absolverá e
consolará. Quer dizer que sentes que, quando o mundo todo te odeiar, tu sentirás em ti um amor maior do
que o mundo todo. Quer dizer que, mesmo estando segregado em um cárcere, ou em um deserto, sentirás
sempre que Um te fala, e te diz: ‘Sejas santo, para que sejas como o teu Pai.’ Quer dizer que pelo amor para
com este Deus Pai, que finalmente se chega a sentir tal, se aceita, se trabalha, se toma ou se deixa, sem
medidas humanas, pensando somente em pagar amor com amor, em copiar ao mais próximoDeus com suas
próprias ações –diz Pedro.
– Tu és um soberbo! Copiar Deus! Isso não te é permitido –sentencia Iscariotes.
– Não é soberba. O amor leva à obediência. Copiar Deus me parece um modo de obedece-lhe, pois Deus
diz que nos fez à sua imagem e semelhança –replica Pedro.
– Ele nos fez. Nós não devemos ir acima disso.
– És um infeliz se pensas assim, caro rapaz. Tu te esqueces de que nós somos decaídos e que Deus quer
recolocar-nos no ponto em que estávamos.
180.4 Jesus toma a palavra:
– Ainda mais do que isso, Pedro, Judas e vós todos. Ainda mais. A perfeição de Adão era ainda suscetível
de crescimentopelo amor que o teria levado à imagem sempre mais exata do seu Criador. Adão, sem a
mancha do pecado, teria sido como um limpidíssimo espelho de Deus. Por isso, Eu digo: “Sede perfeitos,
como perfeito é o Pai que está nos Céus.” Como o Pai. Portanto, como Deus. Pedro falou muito bem. Simão
falou muito bem também. Eu vos peço que vos recordeis das palavras deles e as apliqueis às vossas almas.
A mulher de Pedro quase que desmaia pela alegria de ouvir que seu marido é elogiado. Ela chora, atrás
do seu véu, tranquila e feliz. Pedro parece que está para ter um ataque de apoplexia, de tão vermelho que
ficou. Ele fica calado por uns momentos, e depois diz:
– Está bem. Então, dá-me o prêmio. A parábola de hoje cedo…
Os outros também se unem a Pedro, dizendo:
– É verdade. Tu nos prometeste. As parábolas servem bem para fazer-nos compreender as comparações.
Mas nós achamos que elas têm um sentido superior às comparações. 180.5Por que falas a eles em parábolas?
– Porque não lhes foi concedido entender mais do que o que eu explico. A vós foi concedido muito mais,
porque vós, meus apóstolos, deveis conhecer o mistério; e por isso vos é concedido entender os mistérios do
Reino dos Céus. Por isso, Eu vos digo: “Perguntai, quando não entenderdes o sentido de uma parábola.” Vós
dais tudo, e tudo vos é dado, para que, por vossa vez, possais dar tudo. Vós dais tudo a Deus: afetos, tempo,
interesse, liberdade, vida. Deus tudo vos dá para compensar-vos e tornar-vos capazes de dar tudo, em nome
de Deus, a quem vos seque. Assim, a quem deu, será dado com abundância. Mas a quem não deu, ou só deu
parcialmente, ou não deu nada, até o que ele tem lhe será tirado.
Eu lhes falo em parábolas para que vendo, vejam apenas o que a sua vontade de aderir a Deus os faz
ver. É ouvindo, sempre, por aquela mesma vontade de adesão, ouçam e compreendam. Vós estais vendo!
Muitos ouvem a minha palavra, mas poucos aderem a Deus. Seus espíritos estão carentes de boa vontade.
Neles se cumpre a profecia[27] de Isaias: “Ouvireis com os ouvidos, e não entendereis; olhareis com os
olhos, e não vereis.” Porque este povo tem um coração insensível, duro de ouvido, e tem os olhos fechados
para não verem e não ouvirem, para não entenderem com o coração e não se converterem, para que Eu os
cure. Mas vós sois felizes por vossos olhos que vêem e pelos vossos ouvidos que ouvem e pela vossa boa
vontade! Em verdade Eu vos digo, que muitos Profetas e muitos justos desejaram ver o que estais vendo, e
não viram, ouvir o que estais ouvindo, e não ouviram. Eles se consumiram no desejo de compreender o
mistério das palavras, mas, ao apagar-se a luz das profecias, eis que as palavras ficaram como carvões
apagados até para o santo que as tinha recebido.
Somente Deus revela-se a Si mesmo. Quando a sua luz se retrai, tendo atingido a sua meta, que era a de
fazer brilhar a luz do mistério, a incapacidade de entender cobre a real verdade da palavra recebida, como
as faixas de uma múmia. Por isso é que Eu te disse hoje cedo: “Um dia virá em que encontrarás tudo o que
Eu te dei.” Agora, não podes reter tudo na memória. Mas depois a luz virá sobre ti, e não só por um
instante, mas por um inseparável conúbio do Espírito Eterno com o teu, pelo qual se tornará infalível o teu
ensinamento no que se refere ao Reino de Deus. Assim como em ti, também nos teus sucessores, se viverem
de Deus como de um único pão[28].
180.6Agora, ouvi o sentido da parábola.
Temos quatro espécies de campos: os férteis, os espinhosos, os pedregosos e os cheios de trilhas. Temos
também quatro espécies de espíritos.
Temos os espíritos honestos, os espíritos de boa vontade, preparados por ela e pelos bons trabalhos de
um apóstolo, de um “verdadeiro” apóstolo; porque há apóstolos que têm o nome, mas não o espírito de
apóstolos, e são mais mortíferos para as vontades em formação, do que os passarinhos, os espinhos e as
pedras. Eles fazem uma tal desordem com as suas intransigências, com as suas pressas, com as suas
censuras, com suas ameaças, que afastam os outros para sempre de Deus. Outros espíritos são o oposto
com uma rega contínua de benignidades intempestivas, fazem murchar as sementes em um terreno frouxo
demais. Com sua desvirilização, desvirilizam as almas de que cuidam. Mas fiquemos com os verdadeiros
apóstolos, isto é, com os de Deus. Esses são paternais, misericordiosos, e, ao mesmo tempo, fortes como é o
seu Senhor. Pois bem. Os espíritos preparados por eles e pela sua própria boa vontade, são comparáveis aos
campos férteis, limpos de pedras e espinhos, sem grama e joio, e neles prospera a palavra de Deus, e toda
palavra — a semente — cria haste e espiga, dando cem, ou sessenta e além ou ainda trinta por cento. Entre
os que Me seguem, haverão esses? Certamente. E serão santos. Entre eles haverá pessoas de todas as
castas e de todos os lugares, e até pagãos, que darão cem por cento pela sua boa vontade, unicamente por
ela, pela boa vontade de um apóstolo ou discípulo que os prepara.
Os campos espinhosos são aqueles nos quais o descuido deixou penetrar os espinhosos enredos dos
interesses pessoais, que sufocam a boa semente. É preciso que se vigie sempre, sempre, sempre. Não digas
nunca: “Oh! Eu já estou formado, semeado, e por isso, posso ficar tranquilo, que hei de dar semente de vida
eterna.” É preciso que se vigie: a luta entre o Bem e o Mal é continua. Já tereis observado uma tribo de
formigas que quer fazer seu ninho em uma casa? Ora, elas estão em cima do fogão. A mulher não deixa
mais as comidas lá, mas as coloca na mesa; e elas, então, farejam o ar, e vão dar um assalto à mesa. A
mulher põe as comidas no guarda-comida, e elas, pelo buraco da fechadura, passam para dentro do guarda-
comida. A mulher pendura no forro as suas provisões. e elas fazem um comprido trilho ao longo das
paredes e dos sarrafos, descem pela corda e comem. A mulher as queima, escalda, envenena. Depois disso
fica sossegada, pensando ter acabado com elas. Oh! Se não vigiar, que surpresa! Aí vêm vindo as últimas
que nasceram, e vamos começar tudo de novo. Assim é, enquanto se vive. É preciso que se vigie para
extirpar as plantas daninhas, logo que germinam. Caso contrário, elas formam uma coberta de espinheiros
e sufocam o trigo. Os cuidados com as coisas do mundo e o engano das riquezas criam o enredo, sufocam a
planta da semente de Deus, e não deixam que ela produza espiga.
Eis agora os campos cheios de pedras. Quantos haverá em Israel! São aqueles que pertencem aos “filhos
das leis”, como disse o meu irmão Judas com muita exatidão. Não está neles a pedra única do Testemunho,
não está a Pedra da Lei. Está o pedregal das pequenas, pobres e humanas leis criadas pelos homens. São
tantas, que o seu peso transforma a Pedra da Lei em cacos. É uma ruína que impede qualquer enraizamento
de semente. A raiz não é mais nutrida. Não há terra. Não há seiva. A água a faz murchar, porque está sobre
um pavimento de seixos, o Sol enche de forte calor aqueles seixos, queimando as plantinhas. São os
espíritos dos substituidores da simples doutrina de Deus por suas complicadas doutrinas humanas. Eles até
que recebem com alegria a minha palavra. No momento ficam emocionados e seduzidos por ela. Mas
depois… Precisa um esforço heróico para aplainar e limpar o campo, a alma e a mente de todo aquele
pedregal de retóricos. Só assim a semente criaria raiz e se tornaria uma planta vigorosa. Mas assim como
está… não produz nada. Basta um simples medo de represália humana. Basta a reflexão: “E depois? Que
farão de mim os homens poderosos?” E a pobre semente, não nutrida, fica agonizante. Basta que todo
aquele pedregal comece a agitar-se com seu som vazio de centenas e centenas de preceitos, que tomam o
lugar do Preceito, para que o homem pereça logo junto com a semente recebida… Israel está cheio destes.
Isto vem explicar-nos que ir para Deus é uma coisa que está na razão inversa da potência humana.
Finalmente, há os campos cheios de trilhas, de poeira e desnudos. São os campos dos mundanos, dos
egoístas. A comodidade é a sua lei, e o prazer é o seu fim. Nada de fadiga, mas dormir, rir, comer… O
espírito do mundo reina sobre estes. A poeira do mundanismo cobre o terreno deles, que se torna baldio. Os
passarinhos, ou seja, as dissipações, precipitam-se sobre os mil caminhos abertos para lhes tornar mais
fácil a vida. O espírito do mundo, isto é, o Maligno, bica e destrói todas as sementes que caem neste
terreno, aberto a todas as sensualidades e leviandades.
180.7 Entendestes? Tendes alguma outra coisa a perguntar? Não? Então podemos descansar para
partirmos amanhã, rumo a Cafarnaum. Eu devo ir ainda a um lugar, antes de começar a viagem para
Jerusalém, pela Páscoa.
– Passaremos ainda por Arimateia? –pergunta Iscariotes.
– Não é certo. Depende dos…
Bateram na porta com violência.
– Quem é que pode ser a uma hora destas? –diz Pedro, levantando-se para abrir.
Apresenta-se João. Agitado, empoeirado, com claros sinais de pranto no rosto.
– Tu aqui? –gritam todos–. Mas, que foi que aconteceu?
Jesus, que se levantou, diz somente:
– Onde está a mãe?
João, indo para a frente, para ajoelhar-se aos pés do seu Mestre, estendendo os braços como para pedir
socorro, diz:
– A mãe está bem, mas está em pranto como eu e como muitos outros, e Te pede que não andes
acompanhando o Jordão pelo nosso lado. Ela me mandou voltar por isso, porque… porque João, o teu primo,
está preso…
E João chora, enquanto um grande alvoroço se forma entre os presentes.
Jesus empalidece profundamente, mas não fica agitado. Ele diz somente:
– Levanta-te, e conta.
– Eu ia descendo com a mãe e as mulheres. Também Isaac e Timoneu estavam conosco. Três mulheres e
três homens. Eu obedeci à tua ordem de levar Maria a João… ah! Tu bem sabias que era o último adeus!…
Que devia ser o último adeus… O temporal de alguns dias atrás nos fez parar por umas poucas horas. Mas
foi o suficiente para que João não pudesse mais ver Maria… Chegamos à hora sexta e ele já havia sido
preso, ao cantar do galo…
– Onde? Como? Por quem? Na sua caverna? –todos perguntam, todos querem saber.
– Ele foi traído!… Usaram do teu Nome para traí-lo!
– Que horror! Mas, quem terá sido? –gritam todos.
João estremece, ao falar em voz baixa este horror, que nem o ar devia ouvir, e confessa:
– Por um dos discípulos dele…
O alvoroço chega ao auge. Uns maldizem, outros choram, outros, apavorados, ficam como estátuas.
180.8 João se agarra ao pescoço de Jesus, e grita:
– Eu temo por Ti! Por Ti! por Ti! Os santos têm os seus traidores, que pelo ouro se vendem, pelo ouro e
por medo dos grandes, por sede de um prêmio, por… por obediência a satanás. Por mil, mil coisas. Oh!
Jesus, Jesus, Jesus! Que dor! Ele foi o meu primeiro mestre! Foi o meu João que me levou a Ti!
– Está bem! Está bem! Nada Me acontecerá, por enquanto.
– E depois? E depois? Eu olho para mim… olho para vocês… fico com medo de todos, e até de mim.
Deverá estar entre nós o teu traidor…
– Estás doido? Achas que não o reduziríamos a pedaços? –grita Pedro.
Iscariotes:
– Oh! Doido, de verdade! Eu é que não o serei, nunca. Mas, se eu me sentisse tão fraco, a ponto de
chegar a sê-lo, eu me mataria. Melhor é fazer isso, do que ser homicida de Deus.
Jesus se livra do abraço apertado de João e sacode rudemente Iscariotes, dizendo:
– Não fiques aí blasfemando! Nada te poderá enfraquecer, se tu não o quiseres. Se isso acontecesse,
trata de chorar, e não cometas um delito, além do deicídio. Quem por si mesmo se exaure de Deus, torna-se
fraco.
180.9 Depois, volta para João, que está chorando com a cabeça sobre a mesa, e diz:
– Fala com ordem. Eu também estou sofrendo. Ele era o meu sangue e o meu Precursor.
– Eu só pude ver os discípulos, uma parte deles, consternados e furiosos contra o traidor. Os outros
foram acompanhar João até à cadeia, para estarem perto dele na hora da morte.
– Mas, ele ainda não morreu… na outra vez, ele pôde fugir –assim procura confortá-lo Zelotes, que quer
muito bem a João.
– Não morreu ainda. Mas vai morrer –responde o João.
– Sim. Morrerá. Ele o sabe, como Eu sei. Desta vez nada e ninguém o salvará. Quando será, Eu não sei.
Só sei que não sairá vivo das mãos de Herodes.
– Sim, de Herodes. Ele tinha ido por aquela garganta, pela qual nós passamos, quando estávamos
voltando para a Galileia, que fica entre os montes Hebal e Garizim, porque assim é que lhe falou o traidor:
“O Messias está à morte, tendo sido assaltado por inimigos. E Ele está querendo ver-te para te confiar um
segredo.” Ele foi com o traidor e mais alguns outros. Na sombra do vale estavam os homens armados de
Herodes que o prenderam. Os outros fugiram, levando a notícia aos discípulos, que ficaram perto de Enon.
Eles mal tinham acabado de chegar, quando cheguei eu com a mãe. O mais horrível é que se tratava de
alguém das nossas cidades, e que os fariseus de Cafarnaum foram à frente do conluio para prendê-lo. Eles
tinham estado com ele, dizendo que Tu tinhas sido seu hóspede, e que Tu estavas de partida para a Judeia…
Ele não teria saído do seu refúgio, a não ser por causa de Ti…
180.10 Um silêncio sepulcral cai sobre a narração de João. Jesus parece estar esgotado, com os olhos de um
azul bem escuro quase embaçados. Ele está de cabeça inclinada, com a mão ainda sobre o ombro de João, e
sua mão está sendo sacudida por um leve tremor. Ninguém ousa falar.
Jesus rompe o silêncio:
– Vamos para a Judeia, por um outro caminho. Amanhã preciso ir a Cafarnaum. O quanto antes.
Descansai. Eu vou subir entre as oliveiras. Preciso estar só.
Sai sem dizer nada.
– Certamente Ele vai chorar –murmura Tiago de Alfeu.
– Vamos acompanhá-lo, irmão –diz Judas Tadeu.
– Não. Deixai-o chorar. Nós somente, sairemos devagar, à escuta. Temo insídias em toda parte –responde
Zelotes.
– Sim. Vamos. Nós pescadores iremos pela margem. Se alguém vier do lago, nós o veremos. Vós ide
pelas oliveiras. Certamente Ele está em seu lugar de costume, perto da nogueira. Quando chegar a aurora,
prepararemos as barcas para partirmos rapidamente. Que raça de serpentes! Eh! Eu disse! Fala, tu, agora
rapaz! A Mãe está em lugar seguro?
– Oh! Sim! Também os pastores, discípulos de João, foram com ela… não veremos mais o nosso João!
– Cala-te! Cala-te! Parece-me o canto do cuco… Um precede o outro e… e…
– Pela Arca Santa! Calai-vos! Se falais ainda de desventuras para o Mestre, eu começo por vós, fazendo-
vos sentir o sabor do meu remo nos rins! –grita Pedro, enfurecido–. Vós –diz ele depois aos que vão pelas
oliveiras–, apanhai bastões, galhos grossos, pois lá no lenheiro há bastante, e espalhai-vos, armados com
eles. O primeiro que se aproximar de Jesus para fazer mal a Ele, seja morto.
– Discípulos! Discípulos! É preciso tomar cuidado com os novos!
–exclama Filipe.
O novo discípulo se sente ferido, e pergunta:
– Estais dúvidando de mim? Ele me escolheu e me quis.
– De ti, não. Mas daqueles que são escribas e fariseus, e dos seus adoradores. De lá virá a ruína. Podeis
crer.
Saem e se espalham, uns para o lado das barcas, outros por entre as oliveiras das colinas, e tudo
termina.
[26] torre de Babel a qual estória está em Gênesis 11,1-9.
[27] profecia que está em Isaías 6,9-10.
[28] se viverem de Deus como único pão: esta condição colocada a infalibilidade pontifícia deve ter provocado uma objeção da parte do Padre Migliorini,
ao qual MV transmite a resposta dada por Jesus escrevendo-a, com a data de 30 de junho de 1945, em duas faces de um folheto que encontramos inserido
entre as páginas manuscritas do caderno.
181. A parábola do joio e do trigo.
8 de junho de 1945.
181.1 Uma alvorada clara transforma o lago em uma grande pérola e recobre as colinas com uma névoa
branca e leve como um véu de musselina, através do qual podem se ver, revestidas de um certo ar de
nobreza, as oliveiras, as nogueiras, as casas e o cimo dos lugarejos, que ficam à beira do lago. As barcas
deslizam serenas e silenciosas para Cafarnaum. Mas, num certo momento, Pedro vira a barra do timão de
um modo tão rude, que a barca se inclina para um lado.
– Que é que estás fazendo? –pergunta-lhe André.
– Estou vendo a barca de um solitário. Está saindo agora de Cafarnaum. Eu tenho bons olhos e, desde
ontem à tarde, estou farejando como um sabujo. Não quero que nos vejam. Vou voltar para o rio. Vamos a
pé.
A outra barca também acompanhou a manobra, mas Tiago, que está ao timão, pergunta a Pedro:
– Por que estás fazendo isso?
– Eu te direi. Vem comigo.
Jesus, que está sentado na popa, só percebe a mudança, quando já estão perto do Jordão.
– Mas, que é que estás fazendo, Simão? –pergunta Ele.
– Vamos descer aqui. Há um chacal rondando por aí. Hoje não se pode ir a Cafarnaum. Primeiro, vou eu,
para escutar um pouco. Eu com Simão e Natanael. Três pessoas dignas contra três pessoas indignas… a
não ser que as haja mais indignas.
– Não fiques vendo emboscadas por toda parte, agora. Aquela não é a barca do Simão, o fariseu?
– É ela mesmo.
– Ela não foi usada na captura de João!
– Eu não estou sabendo de nada.
– Ele é sempre respeitoso para comigo.
– Eu não estou sabendo de nada.
– Tu me fazes ficar parecendo um covarde.
– Eu não estou sabendo de nada.
Ainda que Jesus não esteja com vontade de rir, acaba sorrindo pela santa teimosia de Pedro.
– Mas a Cafarnaum temos que ir. Se não hoje, mais tarde…
– Eu te disse que primeiro, vou eu e escuto e… conforme o que acontecer… farei ainda… será um
espinho grosso demais para se engolir… mas eu o farei por amor de Ti… Eu irei… irei ao centurião pedir
proteção…
– Não. Não é preciso isso!
A barca para sobre a prainha deserta, que fica na frente de Betsaida. Todos descem.
– Vinde, vós dois. Vem, tu também, Filipe. Vós, mais moços, ficai aqui. Vamos estar logo de volta.
O novo discípulo Elias suplica:
– Vem à minha casa, Mestre. Ficarei feliz em hospedar-Te…
– Vou, sim. Simão, tu me alcançarás na casa de Elias. Adeus, Simão. Vai, mas sejas bom, prudente e
misericordioso. Vem cá para que Eu te beije e abençoe.
Pedro não garante que vá ser bom, paciente nem misericordioso. Ele se cala e troca um beijo com o
Mestre.
Zelotes, também Bartolomeu e Filipe trocam o beijo de despedida, e as duas comitivas se separam, indo
em direções opostas.
181.2 Entram em Corozaim, quando a aurora já se transformou em pleno dia. Não há nenhum ramo de erva
que não esteja brilhando, salpicado pelas gemas do orvalho. Os passarinhos cantam por toda parte. O ar é
puro e fresco, e parece ter um cheiro de leite, de um leite mais vegetal do que animal. É o cheiro dos grãos,
que se formam nas espigas e nas amendoeiras carregadas de frutas… é um cheiro que eu já senti nas
frescas manhãs dos campos férteis da planície de Pádua.
Logo chegam à casa de Elias. Mas em Corozaim muitos estão sabendo que o Mestre chegou e, quando
Jesus põe o pé na soleira de uma casa, uma mulher corre para Ele, gritando:
– Jesus, Filho de Davi, tem dó de minha filha!
Ela vem trazendo nos braços uma menina com cerca de dez anos, já cor de cera e magríssima. Mais do
que cor de cera, ela está toda amarelada.
– Que é que tem tua filha?
– É a febre. Ela pegou a febre nas pastagens ao longo do Jordão. Porque nós somos pastores de um
homem rico. Eu fui chamada pelo pai para ficar perto da doente. Ele voltou para os montes. Mas Tu sabes
que com esta doença não se pode ficar em lugares altos. Como, então, vou poder ficar aqui? Até agora o
patrão me deixou neste lugar. Mas eu cuido da lã e dos partos. Está chegando o tempo de trabalho para os
pastores. Seremos mandados embora, ou separados, se eu tiver que ficar. E verei morrer minha filha, se eu
tiver que ir para o Hermon.
– Tens fé no meu poder?
– Eu falei com Daniel, pastor de Eliseu. Ele me disse: “O nosso Menino cura todos os males. Vai ao
Messias.” Eu vim do lado de lá do Meron, com esta menina nos braços, à tua procura. Eu não teria parado
de caminhar, enquanto não te encontrasse…
– Pois agora não caminhes mais, a não ser para voltares para a tua casa, para o trabalho tranquilo. A tua
filha está curada, porque Eu assim quero. Vai em paz.
A mulher olha para a filha, e olha para Jesus. Talvez ela esteja esperando ver a filha, gorda e corada no
mesmo instante. Também a menina arregala diante de Jesus seus olhos cansados, que antes ela conservava
fechados, e sorri.
– Não tenhas medo, mulher. Eu não te engano. A febre desapareceu para sempre. De dia para dia ela se
irá tornando mais viçosa. Deixa que ela ande. Ela não cambaleará mais, nem sentirá canseira.
A mãe põe no chão a menina, que já fica de pé, bem firme e cada vez mais alegre. Por fim, ela gorjeia
com sua voz de prata:
– Bendize o Senhor, minha mãe! Eu estou bem sã. Eu o sinto –e, em sua simplicidade de pastorinha e de
menina, ela se lança ao pescoço de Jesus e o beija. A mãe, reservada, como o exige a idade, prostra-se, e
beija a veste do Senhor, bendizendo-o.
– Ide. Lembrai-vos do benefício recebido de Deus, e sede boas. A paz esteja convosco.
181.3 Mas as pessoas já estão se reunindo no pequeno jardim da casa do Elias, e estão pedindo a palavra
do Mestre. Ainda que Jesus não esteja muito disposto a fazê-lo, entristecido por causa da prisão do Batista e
pelo modo como elefoi presoa, contudo Ele se dá por vencido e, à sombra das árvores, começa a falar.
– Ainda neste belo tempo dos trigais que estão soltando espigas, Eu vos quero propor uma parábola,
tomada dos grãos. Ouvi-a.
O Reino dos Céus é semelhante a um homem que semeou boa semente em seu campo. Mas, enquanto o
homem e seus empregados dormiam, veio um inimigo dele, espalhou sementes de joio nos sulcos e foi-se
embora. A princípio, ninguém percebeu nada. Veio o inverno com as chuvas e as geadas, veio o fim do mês
de Tebet, e as sementes germinaram. Era um verdor de grandes folhas tenras, que mal tinham despertado.
Em sua infância inocente, pareciam todas iguais. Veio o mês de Shebat, depois o de Adar, e as plantas se
formaram, e começaram a mostrar suas espigas. Aí é que se viu que aquele verdor não era só do trigo, mas
também do joio, que estava bem enroscado, com seus tentáculos, fininhos e pegajosos, nas hastes do trigo.
Ao verem isso, os empregados foram, à casa do patrão e lhe disseram: “Senhor, que semente foi que
semeaste? Não foi uma semente escolhida, separada de quaisquer outras sementes?”
“Certamente. Eu escolhi os grãos todos iguais em suas formas. E, se houvesse outras sementes, eu as
teria visto.”
“Como é, então, que nasceu tanto joio no meio do trigo?”
O patrão pensou, depois disse: “Algum inimigo meu fez isso para prejudicar-me.”
Os empregados ainda lhe perguntaram: “Não queres que nós vamos por entre os sulcos e, com
paciência, apanhemos as espigas do joio e arranquemos? Manda, que iremos.”
Mas o patrão lhes respondeu: “Não. Vós poderíeis, ao fazer o que dizeis, arrancar junto o trigo e,
certamente, ofenderíeis as espigas ainda tenras. Deixai, pois que um e outro fiquem juntos até o fim da
colheita. Naquela ocasião, eu direi aos ceifadores: ‘Passai a foice em tudo junto; depois, antes de amarrar
os feixes, agora que a secura do tempo tornou quebradiças as hastes do joio e que, ao mesmo tempo já
estão bem formadas e duras as espigas, agora, sim, separai o joio do trigo, e fazei com ele uns feixes à
parte. Vós os queimareis depois, e eles vão servir de adubo para o solo. Ao mesmo tempo, vós levareis o
trigo puro para os celeiros, e ele vai servir para se fazer um pão muito bom, e para humilhar o inimigo, que
só terá ganhado isto: ficar abjeto aos olhos de Deus pelo seu ódio’.”
Agora, refleti entre vós como frequentemente acontece, e como é grande a semeadura do Inimigo em
vossos corações. Compreendei como é preciso vigiar, com paciência e constância, para fazer que seja pouco
o joio que se misture ao trigo escolhido. O destino do joio é ser queimado. Quereis vós ser queimados, ou
tornar-vos cidadãos do Reino? Pois bem. Que saibais sê-lo. O bom Deus vos dá a Palavra. O Inimigo está
vigiando para torná-la nociva, porque a farinha de trigo misturada com a farinha de joio dá um pão amargo
que faz mal ao estômago. Saibais, com boa vontade, se houver joio em vossa alma, separá-lo para jogá-lo
fora, a fim de que não sejais indignos de Deus.
Ide, meus filhos. A paz esteja convosco.
181.4 As pessoas se afastam lentamente. No pequeno jardim ficaram os oito apóstolos com Elias, seu
irmão, a mãe e o velho Isaac, que sente a alma alimentar-se, quando olha para o seu Salvador.
– Vinde ao Meu redor, e ouvi. Eu vos explico o sentido completo da parábola, que tem ainda dois
aspectos, além daquele de que Eu falei à multidão.
Num sentido universal, a parábola tem esta aplicação: o campo e o mundo. A semente boa são os filhos
do Reino de Deus, semeados por Deus sobre o mundo, à espera de chegarem ao seu limite, quando serão
cortados pela Falcífera, e levados ao Dono do mundo, para que entrem novamente em seus celeiros. O joio
são os filhos do Maligno, espalhados, por sua vez, pelo campo de Deus, com a intenção de causar tristeza ao
Dono do mundo e de estragar as espigas de Deus. O Inimigo de Deus o semeou de propósito, através de um
sortilégio, porque o diabo verdadeiramente desnatura o homem, até fazer dele uma criatura sua, que
semeia, para tirar do caminho a outros, que ele ainda não foi capaz de tornar seus escravos. A colheita, ou
melhor, a formação dos feixes e o transporte dos mesmos até os celeiros é o fim do mundo. Os que fazem
essa tarefa são os anjos. Foi mandado a eles que reúnam as criaturas cortadas, e separem o trigo do joio e,
como na parábola ele é queimado. Assim serão queimados no fogo eterno no Juízo Final os condenados.
O Filho do homem mandará que sejam tirados do seu Reino todos os causadores de escândalos e de
iniquidades. Porque então o Reino será no Céu e na terra, e entre os cidadãos do Reino na terra estarão
misturados muitos filhos do Inimigo. Estes atingirão, como foi dito[29] também pelos Profetas, a perfeição
do escândalo e da abominação em todos os ministérios da terra, e darão grandes aborrecimentos aos filhos
do espírito. No Reino de Deus, nos Céus, já terão sido expulsos os corruptos, porque a corrupção não entra
no Céu. Agora, pois, os Anjos do Senhor e, impunhando a foice por entre as fileiras da última colheita,
cortarão e separarão o trigo do joio, e jogarão este na fornalha ardente, onde há choro e ranger de dentes,
mas levando consigo os justos, o trigo escolhido, para a Jerusalém Eterna, onde eles brilharão como sóis no
Reino de meu e vosso Pai.
181.5Isto, no sentido universal. Mas para vós há um outro ainda, e vem responder às perguntas que,
especialmente como ontem à tarde, costumais fazer. Vós estáveis perguntando a vós mesmos: “Mas, então,
no meio do grupo dos discípulos pode existir traidores?”, e tremeis de horror e de medo em vossos
corações. Eles podem existir. Disso Eu estou certo.
O Semeador espalha a boa semente. Neste caso, mais do que espalhar, poder-se-ia dizer que ele “colhe.”
Porque o Mestre, que seja Eu ou que tenha sido o Batista, havia escolhido os seus discípulos. Como foi que
houve extraviados? Não, mas pelo contrário, eu falei mal quando chamei os discípulos de sementes. Vós
poderíeis entender-me mal. Eu vou chamá-los, então de “campo.” Tantos discípulos, tantos campos
escolhidos pelo Mestre para formarem a área do Reino de Deus, os bens de Deus. Com esses o mestre se
afadiga, para cultivá-los, a fim de que produzam cem por cento. Ele toma todos os cuidados. Todos. Com
paciência. Com amor.Com sabedoria. Com canseiras. Com constância. Ele olha também as tendências más
deles. A aridez e cobiça deles. Vê as teimosias e as fraquezas deles. Mas, fica esperando, espera sempre, e
fortalece a sua esperança com a oração e a penitência porque os quer levar à perfeição.
Mas os campos estão abertos. Não são um jardim fechado, cercado por muros como uma fortaleza, do
qual só o mestre é o dono, e no qual só ele pode penetrar. Estão abertos. Colocados no centro do mundo, no
meio do mundo e todos podem aproximar-se deles, todos podem entrar neles. Todos e tudo. Oh! Oh! Mas
não é só o joio que é a semente má semeada. O joio: este poderia ser o símbolo da leviandade amarga do
espírito do mundo. Mas aí nascem, lançados pelo Inimigo, todas as outras sementes. Aí estão as urtigas. Aí
as tiriricas. Aí as cuscutas. Aí os cipós-chumbo. Aí, enfim as cicutas e os tóxicos. Por quê? Por quê? Que são
eles?
As urtigas: são os espíritos irritantes, indomáveis, que ferem, por uma superabundância de venenos, e
causam tanto mal-estar. As tiriricas significam os parasitas que esgotam o mestre, pois só sabem rastejar e
sugar, aproveitando-se do trabalho dele e prejudicando aos cheios de vontade, que certamente colheriam
maiores frutos, se seu mestre não fosse perturbado e distraído pelos cuidados que dele exigem as tiriricas.
Os cipós-chumbo, inertes, que só se levantam do chão, aproveitando-se do trabalho dos outros. As cuscutas
são um tormento no caminho, já difícil, do mestre, e um tormento para os discípulos fiéis que o
acompanham. Elas se agarram a nós, espetam, ferem, arranham, só causam desconfiança e sofrimento. Os
tóxicos: são os delinquentes que estão entre os discípulos, aqueles que chegam a trair e a apagar a vida,
como a cicuta e outras ervas venenosas. Por acaso, já tereis visto como elas são bonitas com as suas
florzinhas, que depois se transformam em bolinhas brancas, vermelhas ou roxo azuladas? Quem diria que
aquela corola estrelada, cândida ou levemente rosada, com seu coraçãozinho de ouro, quem haveria de
dizer que aqueles corais de todas as formas, tão parecidos com aquelas frutinhas que são a delícia dos
passarinhos e das crianças, sejam capazes de, quando maduras, dar a morte? Ninguém. Mas os inocentes aí
caem. Crêem que todos são bons como eles… colhem os frutos, comem e morrem.
Acham que todos são bons como eles! Oh! que verdade que sublima o mestre e condena o seu traidor!
Como? A bondade não desarma? Não torna inofensivo o querer-mal? Não. Não o torna mais assim, porque o
homem, que tombou como presa do Inimigo, tornou-se insensível a tudo o que é superior. E tudo o que é
superior muda de aspecto para ele. A bondade é vista como uma fraqueza, em que é permitido pisar, e
refina sua má vontade, refina o desejo de degolar, como, em uma fera, só o sentir cheiro do sangue.
Também o mestre é sempre um inocente, e deixa que seu traidor o envenene, porque não quer e não deixa
os outros pensar que um homem seja capaz de dar a morte a quem é inocente.
181.6 Dos discípulos, que são os campos do mestre, é que vêm os inimigos. E são muitos. O primeiro é
satanás. Os outros são os servos dele, isto é, os homens, as paixões, o mundo e a carne. Aí está o discípulo
mais fácil de ser atingido por eles, porque ele não está completamente ao lado do Mestre, mas está em cima
do muro, entre o Mestre e o mundo. Ele não sabe, não quer separar-se completamente das coisas do
mundo, da carne, das paixões e do demônio, para estar completamente com quem o leva para Deus. Sobre
ele o mundo e a carne, as paixões e o demônio espalham suas sementes. O ouro, o poder, a mulher, o
orgulho, um medo de ser mal julgado pelo mundo e um espírito de utilitarismo. “Os grandes é que são os
mais fortes. E por isso eu os sirvo, para tê-los como amigos.” E se tornam delinquentes e condenados por
causa de coisas tão mesquinhas!…
Por que o Mestre, que está vendo a imperfeição do discípulo, ainda que não queira render-se a este
pensamento: “Este vai ser o meu matador”, não o elimina imediatamente do meio dos discípulos? Isto vós
perguntais:
Porque é inútil fazer isso.. Se o fizesse não impediria que ele continuasse seu inimigo e agora dupla e
prontamente seu inimigo, pela raiva ou pela dor de ter sido descoberto, ou por ser expulso. Dor. Sim.
Porque às vezes o mau discípulo não percebe que o é. É tão sutil a obra do demônio, que ele nem a percebe.
Ele fica endemoninhado, sem nem suspeitar de que está sendo submetido a essa operação. Raiva. Sim.
Raiva por estar sendo conhecido pelo que realmente é, quando ele não está inconsciente do trabalho de
satanás, e de seus adeptos: são os homens que tentam o fraco em suas fraquezas, para tirar do mundo o
santo, que, só por sua santidade, comparada às maldades deles, já os ofende. E, então, o santo ora e se
abandona a Deus. “O que Tu permites se faça, seja feito”, diz ele. Somente acrescenta esta cláusula:
“Contanto que sirva para o teu fim.” O santo sabe que virá a hora em que serão expulsos de suas colheitas
os joios daninhos. Por quem? Pelo mesmo Deus, que não permite nada além do que é útil para o triunfo de
sua vontade de amor.
181.7 – Mas, se Tu admites que sempre é satanás e os adeptos dele… parece que a responsabilidade do
discípulo diminua –diz Mateus.
– Nem penses nisso. Se o Mal existe, existe também o Bem. E existe no homem o discernimento e, com
ele, a liberdade.
– Tu dizes que Deus não permite nada além de tudo o que é útil para o triunfo de sua vontade de
amor[30]. Portanto, também esse erro é útil, se Ele o permite, e serve para um triunfo da vontade divina
–diz Iscariotes.
– E tu argumentas, como Mateus, que isto justifica o delito do discípulo. Deus havia criado o leão sem
ferocidade e a serpente sem veneno. Agora, um é feroz e a outra venenosa. Mas Deus os separou do homem
por isso. Medita sobre isso e tira as conclusões. Vamos para casa. O Sol já está forte demais. Parece que
vem aí o começo de um temporal. E vós estais cansados por causa de uma noite sem dormir.
– A casa tem uma sala alta, bem ampla e fresca. Nela podereis repousar, diz Elias.
Todos sobem pela escada externa. Mas só os apóstolos se estendem sobre as esteiras para repousar.
Jesus sai no terraço, sombreado num canto por um carvalho muito alto, e fica absorto em seus
pensamentos.
[29] foi dito, por exemplo em Daniel 9,27; 11,31.36; 12,11.
[30] Deus não permite nada além de tudo o que é útil para o triunfo da sua vontade de amor. A este propósito, MV escreveu um folheto (depois
inseriu na cópia datilografada) uma nota que termina assim: também se Deus permite que o homem cumpra o que voluntariamente escolhe, e o que
seleciona e confirma-o em graça, ou
julga-o merecedor de castigo, a sua [do homem] culpa não vem diminuída por nenhum motivo. Porque, se é verdade que o homem, sob o impulso de Deus ou
do estímulo de Satanás, pode fazer o bem e o mal, não é menos verdade que apenas Deus seria seguido em seus convites de amor ao homem que d’Ele
recebeu todos os dons naturais, morais e sobrenaturais, atos a fazer dele um filho de Deus erguido ao Céu. Ainda sobre este argumento, os discursos de
Jesus em 174.8 e 176.4 e a disputa entre os apóstolos em 243.9.
182. Sermão para alguns pastores
com o pequeno órfão Zacarias.
9 de junho de 1945.
182.1 A volta de Pedro só se deu na manhã seguinte. Ele está mais calmo, desde a partida, porque só achou
boa acolhida em Cafarnaum, e a cidade limpa e livre da presença de Eli e Joaquim.
– Devem ser eles que promoveram aquele conluio. Porque eu perguntei a alguns amigos, quando eles
saíram de lá e fiquei sabendo que eles não tinham voltado, depois de terem estado com o Batista, fingindo-
se penitentes. E eu creio que nem voltarão logo, agora que eu disse que eles estiveram presentes à prisão…
Há um grande alvoroço por causa desta prisão do Batista. E eu cuidarei de fazer que isso fique sabido até
pelos mosquitos… É esta para nós a melhor arma. Encontrei também o fariseu Simão e… Mas, se ele é
como me pareceu ser, parece-me bem disposto. Ele me disse: “Aconselha o Mestre a não ir acompanhando o
Jordão pelo vale ocidental. O outro lado é mais seguro”, disse ele , destacando bem as palavras. E terminou
dizendo: “Eu não te vi. Nem te falei nada. Lembra-te disso. E toma cuidado para o meu bem, para o teu e o
de todos. Dize ao Mestre que eu sou amigo dele”, e olhava para o alto, como se estivesse falando ao vento.
Sempre, mesmo quando fazem coisas boas, eles são falsos… e até direi que são estranhos, para não ter a
tua desaprovação. Mas… eu também fui fazer uma sondagenzinha no centurião. Eu lhe disse assim: “Vai
bem o teu criado?” e tendo recebido resposta afirmativa, eu lhe disse também: “Ainda bem! Trata de
conservá-lo são, porque já estão armando emboscadas ao Mestre. O Batista já foi preso…” e o romano
pegou o assunto no vôo. Homem esperto que ele é, assim respondeu “Onde houver uma insígnia, haverá um
guarda para protegê-lo e haverá alguém que lembre aos israelitas que, sob o domínio de Roma, não são
permitidos os conluios, sob pena de morte ou das galés.” Eles são pagãos. Mas eu quase o beijei. Eu gosto
das pessoas que compreendem e agem. Podemos ir andando, então.
– Então vamos. Mas não era preciso nada disso –diz Jesus.
– Era preciso. Era preciso!
Jesus se despede da família hospitaleira e também do novo discípulo, ao qual Ele deve ter dado suas
instruções.
182.2 Agora estão de novo sozinhos, o Mestre com os apóstolos, e vão indo pelas campinas frescas, por um
caminho que Jesus tomou, para grande surpresa de Pedro, que queria tomar um outro.
– Por aqui vamos ficar mais longe do lago…
– Mas chegaremos sempre em tempo para fazer o que devo fazer.
Os apóstolos não falam mais e estão indo para uma vila pequenina, um punhado de casas espalhadas
pela campina. Ouve-se um grande barulho dos sininhos dos rebanhos, que vão indo para as pastagens das
montanhas. Quando Jesus para, a fim de deixar passar um rebanho mais numeroso, os pastores acenam
para Ele e se reúnem em grupo. Fazem perguntas uns aos outros, mas ficam só nisso.
Então Jesus é que quebra o silêncio e as incertezas, atravessando o rebanho que parou para comer a
erva que por ali está bem viçosa. Ele vai diretamente acariciar um pastorzinho, que está no centro de um
grande grupo de ovelhas lanudas e berrantes. Ele lhe pergunta:
– Elas são tuas?
Jesus sabe muito bem que elas não são do rapazinho, mas quer fazê-lo falar.
– Não, Senhor. Eu trabalho com aqueles lá. E estes rebanhos são de muitos donos. Nós estamos todos
reunidos por causa dos bandidos.
– Como te chamas?
– Zacarias, filho de Isaac. Mas meu pai morreu, e eu estou trabalhando, porque minha mãe tem outros
três mais novos do que eu.
– Faz muito tempo que ele morreu?
– Há três anos, Senhor… e eu não sei mais rir, porque a mamãe está sempre chorando, e eu não tenho
mais quem me acaricie… Eu sou o primeiro filho, e a morte de meu pai fez que eu me tornasse homem,
quando eu era ainda menino… Eu não tenho que chorar, mas ganhar… Mas é difícil!
De fato, até agora mesmo as lágrimas estão descendo sobre aquele rostinho sério demais para a idade
que tem.
Os pastores se aproximam e os apóstolos também. Agora é um grupo de homens, no meio de um mover-
se de ovelhas.
– Não estás sem pai, Zacarias. Tu tens um Pai Santo, que está no Céu, e que te ama sempre, se fores
bom, e o teu pai não cessou de te amar, pois ele está no seio de Abraão. Precisas crer nisto. E, por causa
dessa fé, precisas ser sempre melhor.
Jesus fala com doçura e acaricia o menino.
182.3 Um pastor cria coragem, e pergunta:
– Tu és o Messias, não é mesmo?
– Sim. Eu sou. Como é que me conheces?
– Fiquei sabendo que estás andando pela Palestina, e que dizes palavras santas. É por isso que Te
reconheço.
– Vós ides para longe?
– Vamos para os montes altos. O calor está chegando… Não irás dizer algumas palavras para nós? Lá em
cima, onde nós estamos, quem fala para nós são somente os ventos e, às vezes também o lobo, que faz
carnificinas, como fez com o pai de Zacarias. Nós temos desejado ver-te, durante o inverno todo, mas nunca
pudemos encontrar-te.
– Vamos, então, para a sombra daquele pequeno bosque. Lá Eu vos falarei.
E Jesus vai à frente, segurando o pastorzinho pela mão e acariciando com a outra as cordeirinhas, que
estão levantando o focinho e soltando balidos. Os pastores reúnem o rebanho debaixo de um bosque de
árvores para o corte e, enquanto as ovelhas se deitam para ruminar ou então ficam apanhando folhas ou se
esfregando nos troncos, Jesus começa a falar.
182.4 – Vós me dissestes: “Lá em cima, onde estamos, só nos falam os ventos e, às vezes, o lobo que faz
carnificinas.” O que acontece lá em cima, acontece também nos corações por obra de Deus, ou do homem,
ou de satanás. Por isso, vós podeis ter lá em cima o que poderíeis ter em qualquer outro lugar.
Conheceis bem a Lei, para saber os dez mandamentos? E tu também, menino? Então já sabeis o que é
suficiente. Se vós praticardes com fidelidade todas as ordens que Deus vos deu, sereis santos. Não vos
queixeis por estar longe do mundo. É por isso que estais preservados de muitas corrupções. E Deus não
está longe de vós, mas até mais perto naquela solidão, onde Ele vos faz ouvir sua voz na voz dos ventos que
Ele criou, nas ervas e nas águas, do que entre os homens. Este rebanho vos ensina uma grande, ou até
muitas grandes virtudes. Ele é manso e obediente. Ele se contenta com pouco e agradece pelo que recebe.
Ele sabe amar e ser reconhecido para com quem cuida dele e o ama. Fazei vós também a mesma coisa,
dizendo: “Deus é o nosso Pastor, e nós somos as ovelhas do seu rebanho. Os olhos dele estão sobre nós. Ele
nos guarda e nos concede, não o que é uma fonte de vícios, mas o que é necessário para a vida.” Conservai
o lobo longe do coração. Esse lobo são os homens maus, que talvez vos incitem e seduzam para más ações,
por ordem de satanás. É o próprio satanás, que vos tenta para o pecado, a fim de rasgar-vos em pedaços.
Vigiai. Vós, pastores, sabeis quais os costumes do lobo. Ele é tão astuto, quanto simples e inocentes são
as ovelhas. Ele se aproxima devagar, depois de ter observado, lá do alto, os costumes do rebanho, vem
deslizando por entre as moitas, vem-se avizinhando e, para não chamar a atenção, ele até se imobiliza
depois, como se fosse uma pedra. Não fica ele parecendo mesmo uma grande pedra que tivesse vindo
rolando por cima das ervas? Mas depois, quando tem certeza de que ninguém está vigiando, ele salta e dá
suas dentadas. O mesmo faz satanás. Ele vos vigia, para ficar sabendo quais são os vossos pontos fracos;
depois, anda ao redor de vós, fica parecendo inofensivo e até como se não estivesse por ali, olhando para
outras coisas, enquanto, na verdade, está de olhos sobre vós e, de repente, salta para arrastar-vos ao
pecado e, algumas vezes, consegue. Mas junto a vós está um médico e um piedoso: Deus e o vosso anjo. Se
vos feristes, se caístes doentes, não vos afasteis deles, como faz o cão que ficou doente de raiva. Mas, ao
contrário, chorando, gritai-lhes: “Ajudai-me.” Deus perdoa a quem se arrepende, e vosso anjo está pronto a
suplicar a Deus por vós, e convosco.
182.5 Amai-vos uns aos outros, e amai este menino. Cada um de vós deve sentir-se um pouco como pai
deste órfão. A presença de um menino entre vós sirva para moderar todos os vossos atos com o freio santo
do respeito para com a criança. E a vossa presença junto a ele sirva para substituir o pai que a morte lhe
tirou. É preciso amar ao próximo. Este pequeno é para vós o próximo que Deus vos confia de um modo
especial. Educai-o para que seja bom e cheio de fé, para que seja honesto e sem vícios. Ele é muito mais do
que uma destas ovelhas. Pois bem. Se vós tomais cuidado delas, porque são do patrão, que vos castigaria se
deixásseis que elas se perdessem, quanto mais deveis tomar cuidado desta alma que Deus vos confia, em
nome dele e do pai morto. A condição de órfão em que ele está é bem triste. Não a torneis ainda mais
pesada, querendo aproveitar-vos de sua condição de pequenino só para fazê-lo trabalhar. Pensai que Deus
está vendo os atos e as lágrimas de cada homem, e toma nota de tudo para premiar e para punir.
E tu, menino, lembra-te de que não estás nunca sozinho. Deus te vê e a alma do teu pai também. Quando
alguma coisa te perturbar, ou te aconselhar a fazer o mal, dize assim: “Não. Não quero ser órfão para
sempre.” E tu o serias, se condenasses o teu coração, pecando.
Sede bons. Eu vos abençôo para que todo bem esteja convosco. Se tivéssemos que ir pelo mesmo
caminho, eu vos teria falado mais longamente. Mas o Sol já se levanta, e vós tendes que ir e Eu também.
Vós ides pôr as ovelhas ao abrigo do calor e Eu livrar os corações de um outro ardor ainda mais terrível.
Rezai para que eles reconheçam em Mim o seu Pastor. Adeus, Zacarias. Sê bom. A paz esteja convosco.
Jesus beija o pastorzinho e o abençoa e, enquanto o rebanho lentamente vai tomando o caminho, Ele o
acompanha com o olhar, depois retoma o seu caminho.
182.6 – Disseste que vamos tirar os corações de um outro ardor… Aonde é que vamos? –pergunta
Iscariotes.
– Por enquanto, vamos até aquele ponto sombreado, por onde passa aquele rio. Aí tomaremos a refeição.
E depois ficareis sabendo aonde vamos.
Jesus diz:
– Inserireis aqui o segundo momento da conversão de Maria Madalena, que aconteceu no ano passado,
aos 12 de agosto de 1944 (B964) (título: Pedro, não a insultes. Reza pelos pecadores).
183. Cura de um homem ferido
na casa de Maria de Magdala.
[12 de agosto 1944.]
183.1 O Colégio Apostólico completo está ao redor de Jesus. Sentados sobre a relva, em meio ao frescor de
um pequeno capão de mata e à beira de um rio, todos estão comendo pão e queijo e bebendo da água do
rio, que é fresca e limpa. Suas sandálias, cheias de poeira, bem que estão dizendo que muito caminho já foi
feito por eles e que os discípulos não pediriam coisa melhor do que repousar deitados na relva alta e fresca.
Mas o incansável Caminhante não pensa como eles. Pois, mal acha que já passou a hora do maior calor,
Ele logo se levanta, desce sobre a estrada e olha… Depois vira-se e diz simplesmente:
– Vamos.
Chegados a uma encruzilhada, ou melhor, a uma encruzilhada dupla, onde quatro estradas poeirentas se
unem, Jesus toma decididamente a que vai para a direção nordeste.
– Vamos voltar para Cafarnaum? –pergunta Pedro.
Jesus responde unicamente:
– Não.
– Então, vamos indo para Tiberíades? –insiste Pedro que quer saber.
– Também não.
– Mas esta estrada vai para o Mar da Galileia… e lá estão Tiberíades e Cafarnaum…
– E lá está também Magdala –diz Jesus com um rosto meio sério, para tentar acalmar a curiosidade de
Pedro.
– Magdala? Oh!…
Pedro fica um pouco escandalizado, o que me faz pensar que aquela cidade tinha uma má fama.
– Vamos a Magdala. Sim. A Magdala. Julgas-te honesto demais para entrar lá? Pedro, Pedro! Por meu
amor terás que entrar não somente em cidades de prazeres, mas em verdadeiros lupanares… O Cristo não
veio para salvar os que estão salvos, mas para salvar os perdidos… e tu serás “Pedra” ou Céfas e não Simão
para isso. Tens medo de contaminar-te? Não. Nem mesmo este, estás vendo? (e mostra João na flor da
juventude), nem mesmo este vai ficar prejudicado. Ele não, porque não quer. Como também tu não queres,
nem teu irmão, nem o irmão de João… como nenhum de vós, por enquanto, quer. Enquanto não se quer, não
acontece nada de mal. Mas é preciso não querer forte e constantemente. Força e constância se adquirem do
Pai orando com sinceridade de intenções. Nem todos vós sabereis, no futuro, orar sempre assim… Que
dizes, Judas? Não confies demais em ti mesmo. Eu, que sou o Cristo, oro constantemente para ter força
contra satanás. Serás tu mais do que Eu? O orgulho é uma fenda pela qual satanás penetra. Sê vigilante e
humilde, Judas. Mateus, tu conheces bem o lugar, dize-me: será melhor entrar por este caminho, ou há
outro?
– Depende, Mestre. Se queres ir para a Magdala dos pescadores e dos pobres, o caminho é este. Pois
aqui já entraremos nos bairros populares. Mas, — eu não acho, é apenas para Te dar uma resposta
ampla — mas, se queres dirigir-te aos bairros onde estão os ricos, então é preciso deixar a estrada, daqui a
uns cem metros e tomar uma outra, porque as casas dos ricos já estão, mais ou menos a esta altura, e
teríamos que voltar atrás…
– Então, voltaremos para trás, porque é à Magdala dos ricos que Eu quero ir. Que foi que disseste,
Judas?
– Nada, Mestre. Esta é a segunda vez que me fazes esta pergunta, em pouco tempo. Mas eu nada falei,
em nenhuma das duas vezes.
– Com os lábios, não. Mas falaste, murmurando, com o teu coração. Tu murmuraste com o teu hóspede:
o coração. Não é necessário ter uma outra pessoa com quem falar, para falar. Muitas palavras nós as
dizemos a nós mesmos… Mas é preciso não cometer murmuração ou calúnia nem mesmo com o nosso
próprio eu.
183.2 O grupo caminha, agora em silêncio. A estrada, de estrada mestra se transforma em avenida, com
uma pavimentação de pedras, que têm um palmo quadrado de tamanho. Vão aparecendo as casas cada vez
mais ricas e bonitas, por entre hortas e jardins viçosos e floridos. Tenho a impressão de que a Magdala
elegante fosse para os palestinenses uma espécie de lugar de lazer, como certas pequenas cidades dos
nossos lagos lombardos: Streza, Gardone, Pallanza, Bellagio etc. etc. Aos ricos palestinenses estão
misturados os romanos, que certamente vieram de outros lugares, como Tiberíades ou Cesareia, onde, ao
redor do governador, terão estado certamente os funcionários e negociantes, a fim de exportarem para
Roma as coisas mais belas produzidas pela Colônia da Palestina.
Jesus vai indo sempre adiante, com a segurança de quem já sabe por onde deve ir. Ele vai margeando o
lago, para cujas praias estão viradas as casas com os seus jardins. Um triste coro de prantos sai de uma rica
morada. São vozes de mulheres e de crianças, e, muito aguda, uma voz feminina está gritando:
– Filho! Filho!
Jesus se volta, e olha para os seus apóstolos. Judas vai para a frente.
– Tu, não, lhe diz Jesus. Tu, Mateus. Vai e pergunta.
Mateus vai e volta:
– Uma briga, Mestre. Um homem está morrendo. É um judeu. Quem o feriu, escapou. Era um romano.
Correram para lá a mulher do ferido, a mãe dele e as crianças pequenas… Mas ele está morrendo.
– Vamos.
– Mestre… Mestre… o fato aconteceu na casa de uma mulher… que não é a mulher dele.
– Vamos!
183.3 Pela porta aberta, eles entram em um vestíbulo largo e comprido, que dá para um bonito jardim.
Parece que as divisões da casa são feitas por aquela espécie de peristilo coberto e muito rico, com plantas
verdes em vasos, com estátuas e objetos entalhados. É um conjunto de sala e jardim de inverno. Em um
quarto, cuja porta está escancarada para o lado do vestíbulo, estão mulheres chorando. Jesus entra seguro.
Não dá, porém, a sua saudação de costume.
Entre os homens que estão presentes, há um mercador que deve conhecer Jesus, porque, logo que o vê,
diz:
– É o Rabi de Nazaré –e o saúda com respeito.
– José, que aconteceu?
– Mestre, um golpe de punhal no coração… Ele está morrendo.
– Por que foi?
Uma mulher parda e despenteada se levanta — ela estava de joelhos ao lado do moribundo, cuja mão, já
inerte, ela estava segurando — e, com olhos de uma louca, ela diz com voz estridente:
– Por causa dela, por causa dela… Ela o endemoninhou… Não tinha mais mãe, nem esposa nem filhos! O
inferno te tenha, satanás!
Jesus levanta os olhos, acompanhando aquela mão, que está tremendo e acusando, e vê, num canto,
perto da parede vermelho-escura, Maria de Magdala , mais impudente do que nunca, eu diria vestida… com
nada na metade do corpo, pois está semi-nua, da cintura para cima, com uma espécie de redinha de malhas
hexagonais, com coisinhas redondas, que parecem pequenas pérolas. Mas ela está num lugar meio escuro,
e eu não a vejo bem.
Jesus torna a baixar os olhos. Maria, sentindo-se açoitada pela indiferença, levanta-se, pois estava quase
agachada, e procura tomar algum modo.
– Mulher –diz Jesus à mãe–. Não fiques praguejando. Responde-me. Para que é que o teu filho estava
nesta casa?
– Eu já o disse: Porque ela o fez ficar doido. Ela.
– Silêncio. Portanto, ele também estava em pecado, porque estava cometendo adultério, e era um pai
indigno destes inocentes. Logo, merece seu castigo. Nesta e na outra vida não há misericórdia para quem
não se arrepende. Mas Eu tenho dó da tua dor, mulher, e destes inocentes. 183.4Tua casa fica longe?
– A uns cem metros.
– Levantai o homem daí, e levai-o para lá.
– Não é possível, Mestre –diz o mercador José–. Ele está para morrer.
– Faze o que Eu mandei.
Passam uma mesa por baixo do corpo do moribundo, e o cortejo sai lentamente, atravessa a rua e entra
num jardim sombreado. As mulheres continuam a chorar rumorosamente. Logo que entram no jardim, Jesus
se vira para a mãe.
– Podes perdoar? Se tu perdoares, Deus perdoa. É preciso ficar com o coração bom, para conseguir a
graça. Este pecou e pecará ainda. Melhor para ele seria morrer, porque, se viver, tornará a cair no pecado e
deverá responder também pela falta de reconhecimento para com Deus que o salva. Mas tu e estes
inocentes (e mostra a mulher e as crianças) cairíeis no desespero. Eu vim para salvar, e não para deixar que
se percam. Homem, Eu te digo: Levanta-te e fica são.
O homem recupera a vida e abre os olhos, vê a mãe, os filhos, a mulher e, envergonhado, inclina a
cabeça.
– Meu filho, meu filho –diz a mãe–. Estavas morto, se Ele não te salvasse. Volta a ti mesmo. Não fiques
delirando por causa de uma…
Jesus interrompe as palavras da velha:
– Mulher, cala-te. Usa da misericórdia que para contigo foi usada. Tua casa está santificada pelo
milagre, que é sempre uma prova da presença de Deus. Por isso é que Eu não o pude fazer onde havia o
pecado. Procura saber, pelo menos tu, conservá-la assim, mesmo que este não o saiba fazer. Toma cuidado
dele agora. É justo que ele sofra um pouquinho. Se boa, mulher. É vós pequenos. Adeus.
Jesus pousou a mão sobre a cabeça das duas mulheres e dos pequeninos.
183.5 Depois Ele sai, passando por diante de Madalena, que acompanhou o cortejo até o limite da rua, e
ficou encostada a uma árvore. Jesus dá passos mais vagarosos como para esperar que os discípulos
cheguem, mas eu acho que Ele esteja fazendo assim para dar à Maria a oportunidade de fazer algum gesto.
Mas ela não o faz.
Os discípulos alcançam Jesus, e Pedro não pôde conter-se, sem dizer, por entre os dentes, um apelido
apropriado a Maria. Esta, querendo mostrar altivez, explode numa risada como sinal de seu muito pobre
triunfo.
Mas Jesus, tendo ouvido a palavra de Pedro, se volta, severo para ele:
– Pedro. Eu não insulto. Tu também não insultes. Reza pelos pecadores. Nada mais.
Maria interrompe o estridor de sua risada, inclina a cabeça e foge, como uma gazela, em direção de sua
casa.
184. O pequeno Benjamim de Magdala
e duas parábolas sobre o Reino dos Céus.
10 de junho de 1945.
184.1 O milagre deve ter acontecido há pouco, pois dele os apóstolos estão falando, e também os
moradores da cidade o estão comentando e mostrando uns aos outros o Mestre que vai saindo, bem
aprumado e severo, para a periferia da cidade, a parte dos pobres.
Ele para junto a uma casinha, da qual sai pulando um menino, seguido por sua mãe.
– Mulher, deixas-me entrar no teu jardim e parar um pouco nele, até que o sol perca um pouco a força
do seu calor?
– Entra, Senhor. Até para a cozinha, se quiseres. Eu Te trarei água e alguma coisa para comer.
– Não te incomodes. Basta-me ficar neste jardim sossegado.
Mas a mulher quer oferecer água misturada com não sei o quê, e depois fica dando uns giros pelo
jardim, como se estivesse desejosa de falar, mas sem coragem. Ela está olhando suas verduras, mas é uma
simulação. Na realidade, ela está olhando é para o Mestre, e fica aborrecida com o menino que, com os
seus gritos, quando consegue apanhar uma borboleta ou outro inseto, não lhe permite ouvir o que Jesus
está dizendo. Ela fica inquieta com isso e chega a dar um tapa no menino que, então, grita ainda mais forte.
Jesus, que estava respondendo ao Zelotes — (que lhe fizera a pergunta: “Achas que Maria tenha ficado
abalada com isso?”) — com estas palavras: “Bem mais do que pode vos parecer…”, vira-se e chama para
perto de si o menino, que vem correndo para chorar sobre os joelhos de Jesus.
A mãe o chama:
– Benjamim, vem cá. Não fiques incomodando os outros!
Mas Jesus diz:
– Deixa-o, deixa-o. Ele se comportará bem e te deixará sossegada.
Depois, diz ao menino:
– Não chores. A mamãe não te fez mal. Somente te fez obedecer, ou melhor, queria te fazer obedecer.
Por que é que ficavas gritando, quando ela queria silêncio? Talvez ela se sinta mal, pois os teus gritos a
incomodam.
O menino, muito esperto, e com aquela insuperável sinceridade dos meninos, que é o desespero dos
grandes, diz:
– Não. Não se sente mal. Mas queria ouvir o que estavas dizendo… Ela o disse a mim. Mas eu, que
queria vir até perto de Ti, fazia aquele barulho de propósito, para que Tu olhasses para mim.
Todos se riem, e a mulher fica muito corada.
– Não te enrubesças, mulher. 184.2Vem cá. Tu querias me ouvir falar. Por quê?
– Porque és o Messias. Não podes ser senão o Messias, com o milagre que fizeste… E eu tinha um
grande desejo de ouvir-te. Eu nunca posso ir para fora de Magdala, porque eu… tenho um marido difícil, e
cinco crianças. O mais novo está com quatro meses… e Tu nunca vens aqui.
– Eu vim, e justamente à tua casa. Como estás vendo.
– Por isso é que eu queria ouvir-te.
– Onde está o teu marido?
– No mar, Senhor. Se não se pesca, não se tem o que comer. Eu tenho apenas esta pequena horta: ela dá
para sete pessoas? Mas, assim mesmo, Zaqueu ainda quereria dizer que desse…
– Tem paciência, mulher. Todos têm a sua cruz.
– Ah! Não! As que são sem vergonha só têm o prazer. Já viste o que fazem as sem-vergonhas? Elas
gozam, e fazem sofrer. Elas não despedaçam os seus rins com o trabalho e gerar filhos, não criam bolhas
manuseando a enxada, nem esfolam suas mãos com a potassa da lixívia. Elas são bonitas, viçosas. E não são
atingidas pela condenação que Eva recebeu. Antes, são a nossa condenação, porque os homens… Tu
compreendes…
– Sim, Eu te compreendo. Mas, fica sabendo que elas também têm uma cruz pesada. E é a mais pesada.
Pois é uma cruz que não se vê. É a cruz da consciência que as reprova, do mundo, que escarnece delas, dos
que são do seu sangue, pois eles as repudiam, e de Deus que as amaldiçoa. Elas não são felizes, podes crer.
Não despedaçam seus rins na procriação, nem no trabalho, nem ficam com feridas nas mãos por trabalhar.
Mas sentem-se despedaçadas da mesma forma, e com vergonha. O coração delas é uma chaga viva. Não
tenhas inveja da aparência delas, do seu frescor, da sua aparente serenidade. Tudo isso é um véu cobrindo
uma ruína, que remorde e não dá paz. Não tenhas inveja do sono delas, tu, ó mãe honesta, que sonhas com
os teus inocentes… Elas têm o pesadelo em seus travesseiros. E amanhã, quando estiverem na agonia ou na
velhice, terão o remorso e o terror.
– É verdade. Perdoa-me… 184.3Deixas-me ficar aqui?
– Fica. Vamos contar uma bela parábola ao Benjamim, e aqueles que já não são crianças a aplicarão a si
mesmos e à Maria de Magdala. Escutai.
Em vós há uma dúvida sobre a conversão de Maria para o Bem. Nenhum sinal nela dá a entender que
ela queira dar passos nesse sentido. Descarada e desavergonhada, ela, consciente de sua posição e de seu
poder, já ousou até desafiar as pessoas, como quando foi até à soleira de uma porta, onde se estava
chorando por causa dela. A uma censura de Pedro, ela respondeu ainda com uma risada. Ao meu olhar, que
a convida, respondeu com uma atitude de soberba. Vós talvez teríeis querido, uns por amor para com
Lázaro, outros por amor para comigo, que Eu falasse a ela diretamente, numa conversa demorada com ela,
para dominá-la com o meu poder e mostrando assim a minha força de Messias Salvador. Não. Não é preciso
tudo isso. Eu o disse[31] a uma pecadora, há muitos meses. As almas devem agir por si mesmas. Eu passo,
jogando a semente. Em segredo, a semente trabalha. E a alma fica respeitada nesse trabalho. Se a primeira
semente não vingar, semeia-se uma segunda, depois outra… e só nos retiramos dali, quando tivermos
provas suficientes de que o semear ali é inútil. E se reza. A oração é como um orvalho sobre as glebas: ela
as conserva fofas e nutridas, a fim de que a semente possa germinar. Não fazes assim, mulher, com as tuas
verduras?
184.4 Agora escutai a parábola do trabalho de Deus nos corações, para fundar neles o seu Reino. Porque
cada coração é um pequeno Reino de Deus na terra. Mais tarde, depois da morte, todos esses pequenos
reinos se aglutinarão em um só, no incomensurável, santo e eterno Reino dos Céus.
O Reino de Deus nos corações é criado pelo Divino Semeador. Ele vai aos seus terrenos, — pois o
homem é de Deus e, por isso, cada homem inicialmente, é dele — e ali espalha a sua semente. Depois vai
para outros terrenos, para outros corações. Os dias vêm depois das noites, e as noites depois dos dias. Os
dias trazem sol ou chuvas e, neste caso, raios do amor divino e a efusão da Divina Sabedoria, que fala ao
espírito. As noites trazem estrelas e silêncio repousantes: em nosso caso são os chamados luminosos de
Deus e o silêncio para o nosso espírito, a fim de que a alma possa entrar em recolhimento e medite.
A semente, nessa sucessão de atos providenciais, imperceptíveis e poderosos, se incha, se fende, lança
raízes, firma-se no terreno, solta as primeiras folhinhas, e cresce. Tudo isso ela faz sem ajuda do homem. A
terra, espontaneamente, faz nascer da semente a erva, depois a erva se torna forte e capaz de sustentar a
espiga que já vem saindo; depois essa espiga se ergue, se entumece, endurece, torna-se loira, perfeita e
bem granada. Quando fica de todo madura, o semeador volta para passar-lhe a foice, porque para aquela
semente chegou o tempo da perfeição. Não poderia ela evoluir mais, e por isso é colhida.
Nos corações minha palavra faz esse mesmo trabalho. Eu falo dos corações que dão acolhida à semente.
Mas o trabalho neles é lento. É preciso não estragar tudo pelo atabalhoamento. Que esforço faz a pequena
semente para fender-se e para fincar suas raízes na terra! Até para um coração duro e selvagem, é penoso
um trabalho destes. Ela precisa abrir-se, deixa-se revirar, acolher coisas novas, cansar-se em alimentá-las,
ter aparências diferentes, porque está coberta só com coisas humildes, mas úteis, e não com as mais
atraentes, pomposas e exuberantes, que a cobriam antes. Deve contentar-se em trabalhar com humildade,
sem atrair a admiração, mas sim para o que for útil dentro do Plano divino. Deve fazer uso de todas as suas
capacidades, para crescer e formar a espiga. Deve abrasar-se de amor, para tornar-se grão. E quando,
depois de ter superado os respeitos humanos, que são tão molestos, depois de ter-se cansado e sofrido,
depois de ter-se acostumado à sua nova veste, ei-la precisando despojar-se dela, por meio de um corte sem
piedade. É dar tudo para ter tudo. Ficar despojada para ser revestida no Céu com a estola dos Santos. A
vida do pecador, que se torna santo, é o mais longo, o mais heróico e glorioso dos combates. Eu vo-lo digo.
184.5 Por tudo o que Eu vos disse, compreendei que Eu tinha que agir para com Maria, como faço. Por
ventura, foi de modo diferente que Eu agi contigo, Mateus?
– Não, meu Senhor.
– E, dize-me a verdade: o que te persuadiu foi a minha paciência, ou os ralhos severos dos fariseus?
– Foi a tua paciência, tanto que eu aqui estou. Os fariseus, com seus desprezos e seus anátemas, me
tornavam desdenhoso e, por desdém, eu fazia ainda mais mal, do que tudo o que eu havia feito até então.
Isto é o que acontece. Ficamos mais enrijecidos quando, estando em pecado, ouvimos que nos chamam de
pecadores. Mas quando, em vez de um insulto, recebemos uma carícia, ficamos atordoados e depois
choramos… e, quando se chora, a couraça do pecado cede e se desfaz. Ficamos, então, nus diante da
Bondade, e suplicamos, com todo o coração, que nos cubra com Sua veste.
– Disseste bem. 184.6Benjamim, gostaste da história? Sim? Muito bem. E a mamãe onde está?
Quem responde é Tiago de Alfeu:
– Ela saiu, no fim da parábola, e foi correndo por aquela estrada.
– Terá ido ao mar, para ver se vem vindo o seu esposo –diz Tomé.
– Não. Ela foi à casa da vovó buscar meus irmãozinhos. Mamãe os leva para lá, a fim de poder
trabalhar –diz o menino, que está apoiado, muito confiadamente, nos joelhos de Jesus.
– E tu estás aqui, homem? Deves ser uma bela víbora, para estares aqui sozinho –observa Bartolomeu.
– Eu sou o mais velho, e já a ajudo…
– Tu a ajudas a ganhar o Paraíso, coitada dela! Quantos anos tens? –pergunta Pedro.
– Dentro de três anos, serei filho da Lei –diz, todo ufano, o menino.
– Sabes ler? –pergunta Tadeu.
– Sim… mas leio devagar, porque… porque o mestre me põe para fora todos os dias…
– Bem que eu dizia –diz Bartolomeu.
– Mas eu faço assim, porque o mestre é velho e feio, e diz sempre as mesmas coisas, e faz a gente
dormir! Se fosse como Ele (e mostra Jesus), eu prestaria atenção. Tu também bates em quem está dormindo
ou brincando?
– Eu não bato em ninguém. Mas digo aos meus alunos: “Ficai bem atentos, para o vosso bem e por amor
de Mim” –responde Jesus.
– Aí. Assim, sim. Por amor, sim. Mas não por medo.
– Mas, se tu te tornares bom, o mestre te quererá bem.
– Tu só queres bem a quem é bom? Há pouco disseste que tiveste paciência com este aqui, que não era
bom…
A lógica do menino é muito exigente.
– Eu sou bom para com todos. Mas, quem procura tornar-se bom é muito, muito amado por Mim e com
ele Eu sou bom, muito bom.
O menino fica pensando… depois levanta a cabeça e pergunta a Mateus:
– Como foi que fizeste para te tornares bom?
– Eu quis bem a ele.
184.7 O menino pensa ainda, depois olha os doze, e diz a Jesus:
– Todos estes são bons?
– Certamente que o são.
– Tens certeza disso? Algumas vezes eu quero passar por bom, mas é quando quero “aprontar” alguma
arte bem grande.
Todos soltam uma fragorosa risada. Ri-se também o homenzinho, que está quase se confessando. Ri-se
também Jesus, que o aperta contra o coração e o beija.
O menino, já muito amigo de todos, quer brincar, e diz:
– Agora eu vou dizer-te quem aqui é bom –e começa a sua escolha.
Olha para todos, e vai direto a João e André, que estão mais perto dele, e diz:
– Tu e tu. Vinde cá.
Depois, separa os dois Tiagos e os ajunta aos dois já separados. Em seguida separa Tadeu. Fica muito
tempo pensativo, diante de Zelotes e de Bartolomeu, e diz:
– Sois velhos, mas sois bons –e os ajunta aos outros.
Olha para Pedro, que está passando por aquele exame e está fazendo uns esgares com os olhos, e o acha
bom. Também Mateus passa pelo exame, e assim Filipe. A Tomé ele diz:
– Você ri muito. Eu estou falando sério. Não sabes que meu mestre diz que quem fica sempre rindo, erra
na hora da prova?
Mas, afinal, Tomé também passa, com nota baixa, mas passa no exame. Depois o menino volta para
Jesus.
– Ei, moleque. Aqui estou eu. Eu não sou uma árvore. Sou jovem e belo. Por que não me examinas? –diz
Iscariotes.
– Porque não me agradas. Mamãe diz que, quando uma coisa não nos agrada, não devemos tocar nela.
Deixamo-la sobre a mesa, e que a apanhem outros, que talvez gostem dela. E ela diz também que, se
alguém nos oferece uma coisa de que não gostamos, não se deve dizer: “Não me agrada”, mas se diz:
“Obrigado, não estou com fome.” Eu não tenho fome de ti.
– Mas, como? Olha, se disseres que eu sou bom, eu te darei esta moeda.
– Que é que eu vou fazer com ela? Que é que eu vou comprar com uma mentira? Mamãe diz que o
dinheiro, conseguido com enganos, vira palha. Uma vez eu consegui, com uma mentira, que minha avó me
desse uma didracma para eu comprar umas fogaças com mel, e de noite a moeda virou palha. Eu a tinha
colocado ali naquele buraco, por baixo da porta, para apanhá-la no outro dia, pela manhã, mas lá só
encontrei um punhado de palha.
– Mas, porque é que não sou bom? Que é que eu tenho? O pé rachado? Serei tão feio assim?
– Não. Tu me causas medo.
– Mas, por quê? –pergunta Iscariotes, aproximando-se dele.
– Eu não sei. Deixa-me. Não me toques ou eu vou te arranhar.
– Que porco espinho! Está louco.
Judas ri mal.
– Não louco. Tu és mau –e o menino vai refugiar-se no colo de Jesus, que o acaricia sem dizer nada.
Os apóstolos conversam sobre o acontecido, que não é de bom augúrio para Iscariotes.
184.8 Nesse ínterim, vem vindo uma mulher com uma dúzia de pessoas, e depois vêm chegando outras, e
mais outras.
Já serão umas cinquenta. Todas pobres.
– Falarias a estas pessoas? Pelo menos um pouquinho. Esta é a mãe do meu marido, e estes são os meus
filhos. Aquele homem ali é o meu marido. Fala uma palavra, Senhor –suplica-lhe a mulher.
– Sim. Para agradecer-te a hospitalidade, Eu a direi.
A mulher entra em casa, onde seu filhinho de peito está reclamando dela o que precisa, e ela se assenta
sobre a soleira da casa para dar-lhe de mamar.
– Ouvi. Aqui sobre os meus joelhos, estou com um menino, que falou, há pouco, com muita sabedoria.
Ele disse: “Todas as coisas obtidas por meio de enganos se tornam palha.” Foi sua mamãe que lhe ensinou
esta verdade.
Não é fábula. É verdade eterna. Nunca se sai bem quem age sem honestidade. Porque a mentira nas
palavras, nos atos, na religião, é sempre sinal de aliança com satanás, mestre da mentira. Não acrediteis
que as obras feitas para conseguir o Reino dos Céus sejam obras espetacularmente vistosas. Mas são atos
contínuos e comuns, feitos com um fim sobrenatural de amor. O amor é a semente da planta que, nascendo
em vós, cresce até o Céu, e na sombra dela nascem todas as outras virtudes. Eu a compararei a um
pequenino grão de mostarda. Como é pequenino! É uma das menores sementes que o homem semeia. E, no
entanto, olhai como, depois que a planta cresceu, se torna forte e viçosa, e quantos frutos produz. Não cem
por cento, mas cem por um. É a menor. Mas é a mais diligente para trabalhar. Quantas vantagens ela vos
traz.
Assim é o amor. Se vós encerrásseis em vosso seio uma semente de amor para com o vosso Santíssimo
Deus e para com o vosso próximo e, sob a guia do amor, fizesseis as vossas orações, nunca ficaríeis contra
nenhum preceito do Decálogo. Não mentiríeis a Deus com uma falsa religião de práticas e não de espírito.
Não mentiríeis ao próximo com uma conduta de filhos ingratos, de esposos adúlteros, ou também exigentes
demais, de ladrões nos negócios, de mentirosos na vida, de violentos para com quem é vosso inimigo. Olhai,
nesta hora de calor, quantos passarinhos vieram refugiar-se por entre os ramos deste jardim. Daqui a
pouco, aquele sulco de mostardas, que por enquanto estão pequenas, será um chilreio só. Todos os
passarinhos virão para a proteção e a sombra daquelas plantas tão viçosas e agasalhadoras, e os filhotes
dos passarinhos aprenderão a treinar suas asas, justamente no meio daquela ramalhada, que lhes serve de
escada e de rede, para subirem e para não caírem. Assim é o amor, a base do Reino de Deus.
Amai e sereis amados. Amai e tereis compaixão. Amai e não sereis cruéis, querendo mais do que é lícito
de quem depende de vós. Amor e sinceridade para obter a paz e a glória dos Céus. Do contrário, como disse
Benjamim, toda a vossa ação praticada, enquanto estais mentindo ao amor e à verdade, mudar-se-à para
vós em palha para ser a vossa cama no Inferno. Não vos digo outras coisas. Só vos digo isto: tende sempre
presente o grande preceito do amor e sede fiéis a Deus Verdade e à verdade em todas as vossas palavras,
atos e sentimentos, porque a verdade é filha de Deus. Um contínuo trabalho em vosso aperfeiçoamento,
assim como a semente continuamente cresce, até chegar à sua perfeição. É um trabalho feito no silêncio, na
humildade, com paciência. Ficai certos de que Deus vê as vossas lutas e vos premia mais por um egoísmo
vencido, por uma palavra profana retida, por uma exigência não imposta, do que se estivésseis numa
batalha, matando o inimigo. O Reino dos Céus, do qual sereis possuidores, se viverdes como justos, é
construído com as pequenas coisas de cada dia. Com a bondade, com a moderação, com a paciência, com o
contentar-vos com o que tendes, com a tolerância recíproca, com o amor, o amor, o amor.
Sede bons. Vivei em paz uns com os outros. Não murmureis. Não julgueis. Deus, então estará convosco.
Eu vos dou a minha paz, como bênção e como agradecimento pela fé que tendes em Mim.
184.9 Depois, Jesus se vira para a mulher, e diz:
– Deus abençoe particularmente a ti, porque és uma santa mulher e uma santa mãe. Persevera na
virtude. Adeus, Benjamim. Sê sempre amante da verdade, e obedece à tua mãe. Abençôo a ti e aos teus
irmãozinhos, e a ti, mãe.
Um homem vem para a frente. Ele está confuso, e gagueja.
– Mas, mas… estou comovido por tudo o que disseste de minha mulher… Eu não sabia.
– Não tens olhos e intelecto, talvez?
– Tenho.
– Por que não fazes uso deles? Queres que Eu os desanuvie?
– Já fizeste isso, Senhor. Mas eu quero bem a ela, sabes? É que a gente se habitua… e… e…
– E pensa que seja permitido pretender demais, porque o outro é melhor do que nós. Não faças mais
isso. Estás sempre em perigo com o teu ofício. Não tenhas medo de tempestades, se Deus estiver contigo.
Mas, se for a injustiça que está contigo teme fortemente. Compreendeste?
– Mais do que disseste. Eu vou procurar obedecer-te… Eu não sabia… –e olha para a sua mulher, como
se a estivesse vendo pela primeira vez.
Jesus abençoa e sai pela pequena estrada. E toma o caminho que vai para a campina.
[31] Eu o disse, em 79.6.
185. A tempestade acalmada
Um ensinamento no fato antecedente.
30 de janeiro de 1944.
[…].
185.1 Agora que todos estão dormindo, eu vou lhe contar a minha alegria.
Eu “vi” o Evangelho de hoje. Imagine que esta manhã, ao lê-lo, eu disse a mim mesma: “Eis um episódio
evangélico que eu nunca chegarei a ver, porque ele pouco se presta para ser objeto de uma visão.” Ao
contrário, quando menos eu estava pensando nele, justamente ele é que veio encher-me de alegria.
185.2 Eis aqui o que vi.
Um barco à vela, não grande demais, mas também não pequeno, um barco de pesca, dentro do qual
poderiam comodamente mover-se cinco ou seis pessoas, vai sulcando as águas de um belo lago de uma cor
azul intensa.
Jesus está dormindo na popa. Está vestido de branco, como de costume. Está com a cabeça encostada no
braço esquerdo e, por baixo do braço e da cabeça, colocou o seu manto azul-escuro, dobrado em muitas
dobras. Está sentado (não deitado) no fundo do barco, apoiando a cabeça naquela parte do tablado, que fica
na extremidade da popa. Não sei que nome lhe dão os marinheiros. Dorme tranquilamente. Está muito
cansado. Está tranquilo.
Pedro está no timão, André se encarregou das velas, João e mais dois outros, que eu não sei quem são,
estão pondo em ordem as amarras e as redes no fundo do barco, como se tivessem a intenção de preparar-
se para uma pesca, talvez à noite. Eu diria que já está chegando a tarde, pois o sol já vai descendo no
ocidente. Os discípulos todos estão com as suas túnicas sungadas, fazendo que elas fiquem parecendo
bolsas ao redor da cintura, presas por meio de um cinto, a fim de que eles possam ficar mais livres em seus
movimentos,e para poderem passar para cá e para lá pelo barco, por cima dos remos e dos bancos, dos
cestos e das redes, sem que as vestes os estorvem. Todos tiraram os seus mantos.
185.3 Vejo que o céu está escurecendo e que o sol vai-se escondendo atrás de nuvens negras de temporal,
que apareceram de repente, surgindo por detrás da extremidade de uma colina. O vento as impele
velozmente para o lago. Por enquanto, o vento está alto e o lago ainda se conserva tranquilo, só que vai
ficando mais escuro e sua superfície começa a enrugar-se. Ainda não se formaram ondas, mas as águas já
começam a encrespar-se.
Pedro e André observam o céu e o lago e predispõem as manobras para o acostamento à margem.
Mas o vento irrompe sobre o lago e, em poucos minutos, tudo ferve e espuma. São ondas, que se chocam
umas contra as outras, que batem contra o barco, levam-no até o alto e o tornam a baixar, torcem-no para
todos os lados, impedem as manobras com o timão, ao mesmo tempo que o vento não deixa que se possa
fazer uso da vela, que é arriada.
Jesus dorme. Nem os passos dos apóstolos, nem suas vozes excitadas, e nem mesmo o chocar-se das
ondas contra os lados e a proa, conseguem despertá-lo. Seus cabelos esvoaçam ao vento e alguns borrifos
de água o atingem. Mas Ele dorme. João, da proa, vai correndo até a popa e o cobre com seu manto, que ele
tirou de debaixo do tablado. E o cobre com um delicado amor.
A tempestade se torna cada vez mais perigosa. O lago está escuro, como se nele se tivesse derramado
tinta, estriado pela espuma das ondas. O barco começa a encher-se de água e cada vez mais e é empurrado
pelo vento para o mar alto. Os discípulos suam nas manobras e no jogar fora do barco a água que as ondas
nele despejam. Mas nada adianta. Chapinham com suas pernas até a metade dentro d’água e a barca vai
ficando cada vez mais pesada.
185.4 Aí Pedro perde a calma e a paciência. Entrega a seu irmão o timão e, cambaleando, vai até Jesus, e o
sacode vigorosamente.
Jesus acorda e levanta cabeça.
– Salva-nos, Mestre, estamos para perecer! –lhe grita Pedro (é preciso gritar para se fazer ouvir).
Jesus olha fixamente para o seu discípulo, olha para os outros, e depois olha para o lago.
– Crês que Eu vos possa salvar?
– Vamos logo, Mestre –grita Pedro, enquanto uma verdadeira montanha de água, que veio lá do centro
do lago, se dirige velozmente para o pobre barco. Parece mais uma tromba d’água, de tão alta e espantosa
que é.
Os discípulos, que a estão vendo chegar, se ajoelham e se agarram onde e como podem, certos de que já
chegou o seu fim.
Jesus se levanta. Fica de pé sobre o tablado da proa. É uma figura toda de branco sobre a cor de
chumbo da tempestade. Ele estende os braços para o vagalhão, e diz ao vento:
– Firma-te e cala-te
E à água:
– Aquieta-te. Eu o quero.
E o vagalhão se desfaz em espuma, que cai sem fazer nenhum mal, dando um último rugido, que vai se
atenuando até tornar-se um leve murmúrio, enquanto que o vento se transformava em um assobio e, depois,
num último suspiro. E, sobre o lago, agora em paz, volta a serenidade do céu, a esperança e a fé nos
corações dos discípulos.
Não posso descrever a majestade de Jesus. É necessário vê-la para a compreender. Com alegria a
contemplo em meu interior, porque me está presente neste momento e fico pensando como era tranquilo
aquele sono de Jesus e quão poderoso o seu império sobre os ventos e as ondas!
185.5 Jesus diz depois:
– Eu não comento para ti o Evangelho, no sentido em que todos o comentam. Eu te esclareço sobre o
que vem antes da passagem evangélica. Por que é que Eu estava dormindo? Será que Eu não sabia que a
borrasca estava para desabar? Sim, Eu o sabia. Só Eu o sabia. E, então por que dormia?
Os apóstolos eram homens, Maria. Animados de boa vontade, mas ainda tão “homens.” O homem se crê
sempre capaz de tudo. E, quando ele é realmente capaz de uma coisa, age com uma conduta muito briosa e
arrogante, confiando em sua “capacidade.” Pedro, André, Tiago e João eram bons pescadores e, por isso, se
julgavam insuperáveis nas manobras como marinheiros. Eu para eles era um grande Rabi; mas, como
marinheiro, era um nada.
Por isso Me julgavam incapaz de ajudá-los e, quando subiam ao barco, para atravessar o Mar da Galileia,
me pediam sempre que ficasse sentado, pois Eu não era capaz de fazer nenhuma outra coisa. É verdade que
também o afeto deles era causa disso, porque não queriam que Eu me cansasse em trabalhos braçais. Mas
a arrogância deles por sua capacidade superava até o seu afeto. Eu não me imponho, Maria, a não ser em
casos excepcionais. Geralmente, Eu vos deixo livres, e espero. Naquele dia, cansado e tendo-me eles
sugerido que descansasse, isto é,que deixasse que eles fizessem as manobras, pois eles tinham tanta
prática, então Eu me pus a dormir. Ao meu sono estava misturada também a constatação de como o homem
é “homem” e quer fazer tudo por si mesmo, sem perceber que Deus nada pede, a não ser ajudá-lo. Eu via
naqueles “surdos espirituais”, naqueles “cegos espirituais” todos os surdos e cegos do espíritos, que,
através de séculos e mais séculos, se arruinariam “por quererem fazer tudo por si mesmos”, quando eles
tinham a Mim, inclinado sobre as necessidades deles, à espera de ser chamado por eles, para ajudá-los.
Quando Pedro gritou: “Salva-nos!”, minha angústia cessou, como cai uma pedra que se solta no ar. Eu
não sou “homem”, sou o Deus-Homem. Não atuo como vós atuais. Vós, quando alguém rejeitou vosso
conselho ou vossa ajuda, e o vedes depois em dificuldades, ainda que não sejais tão maus para vos
alegrardes com aquilo, sempre o sois para ficardes desdenhosamente indiferentes olhando para ele, sem
vos comoverdes com o seu grito de ajuda
E, com este modo de proceder, vós lhe estais querendo dizer: “Quando eu queria te ajudar, tu não o
quiseste? Pois agora, vira-te!” Mas Eu sou Jesus. Sou o Salvador. E, de fato, Eu salvo, Maria. Salvo sempre,
mal Me invocam.
185.6 Os pobres homens poderiam objetar: “E então, por que permites que se formem tempestades
isoladas ou generalizadas?”
Se Eu, com o meu poder destruísse o Mal, qualquer que ele fosse, vós chegaríeis a acreditar que sois
autores do Bem, o que na realidade seria um dom meu, e nunca mais vos lembraríeis de Mim. Nunca mais.
Tendes necessidade da dor, ó meus pobres filhos, para fazer-vos lembrar de que tendes um Pai. Foi assim
que aconteceu com o filho pródigo, que só se lembrou de que tinha um pai, quando a fome o afligiu.
As desventuras servem para que persuadidos do vosso nada: da vossa insensatez, que é a causa de
tantos erros, da vossa maldade, que é causa de tantos lutos e dores; das vossas culpas, causa de punição,
que dais a vós mesmos; e da Minha existência, do meu poder e da Minha bondade. Isto é o que vos diz o
Evangelho de hoje. É o “vosso” Evangelho da presente hora, meus pobres filhos.
Chamai-Me. Jesus só dorme quando está angustiado, ao ver-se não amado por vós. Chamai-Me e virei.
[…].
186. Os dois endemoninhados da região dos Gerasenos.
11 de junho de 1945.
186.1 Aqui vai colocada a visão da tempestade acalmada, tida a 30 de janeiro de 1944. Depois a seguinte
visão.
186.2 Jesus, tendo atravessado o lago de noroeste para sudeste, recomenda a Pedro que faça o
desembarque perto de Hipos. Pedro obedece sem discutir, descendo com a barca até a foz de um riozinho,
que a primavera e o último temporal fizeram que ficasse cheio e barulhento, e que desemboca no lago,
passando por uma garganta áspera e rochosa, como é a costa toda nesta região. Os empregados cuidam da
segurança das barcas — há um deles em cada barca — e recebem a ordem de ficarem esperando até a
tarde, para voltarem a Cafarnaum.
– E ficai como peixes com quem vos interroga –aconselha Pedro–. A quem vos perguntar onde está o
Mestre, respondei firmes: “Eu não sei.” E a quem quiser saber para onde Ele foi, dizei o mesmo. Tudo é
verdade. Vós não sabeis.
Separam-se, e Jesus começa a subida por um íngreme caminho, que cada vez mais se eleva, por entre os
rochedos, até ficar quase a pino. Os apóstolos o acompanham por aquele caminho difícil, até chegarem ao
alto da escarpa, que se estende por um planalto coberto de carvalhos, debaixo dos quais muitos porcos
estão pastando.
– Que animais fedorentos! –exclama Bartolomeu–. Eles nos impedem a passagem…
– Não. Não nos impedem. Há lugar para todos –responde calmamente Jesus.
Afinal, os guardas dos porcos, vendo os israelitas, procuram juntar os animais debaixo dos carvalhos,
deixando livre o caminho. E os apóstolos passam, fazendo mil caretas, por entre as sujeiras deixadas pelos
porcos, que estão continuamente fuçando, já bem gordos e procurando engordar ainda mais.
Jesus passou, sem conversar com ninguém, mas apenas dizendo aos pastores da manada:
– Deus vos pague por vossa gentileza.
Os guardas, pobre gente pouco menos suja do que os seus porcos, mas, em compensação, muito mais
magra do que eles, estão olhando, espantados, o que está acontecendo e depois cochicham entre eles. Um
deles diz:
– Não é israelita?
E a isto os outros respondem:
– Não estás vendo as vestes com franjas?
O grupo dos apóstolos se reúne, agora que todos já podem andar em grupo, indo por uma vereda bem
mais larga.
186.3 O panorama é muito bonito. Elevado umas poucas dezenas de metros acima do lago, permite que se
veja todo o espelho d’água, com as cidades espalhadas pelas margens. Tiberíades se distingue por suas
belas construções, bem em frente do lugar em que se acham os apóstolos. Abaixo daqui, aos pés da escarpa
basáltica, a pequenina praia mais parece uma pequena almofada de verdura, enquanto que, na margem
oposta, de Tiberíades até a desembocadura do Jordão, há uma planície bastante ampla e pantanosa, por
causa das águas do rio, — que parece a custo retomar a correnteza, depois de ter parado no lago, — mas,
de tal modo cheia de todas as ervas e moitas nos lugares mais pantanosos, e de tal modo povoada por
pássaros aquáticos das mais variadas cores, como se estivessem recobertos de jóias, que, ao olhar para
aquele lugar, mais parece um jardim. Os pássaros levantam vôo do meio das ervas e dos caniços, e vão por
sobre o lago, mergulham aqui e ali para arrancarem das águas algum peixe, levantam-se em seguida mais
brilhantes, porque a água limpou e reavivou as cores de suas penas, e voltam para a planície florida, sobre
a qual o vento está brincando de fazer aparecer as cores dela. Por aqui já há bosques de carvalhos muito
altos, debaixo dos quais a erva é macia e cor de esmeralda e, para lá desta faixa de bosques, o monte torna
a subir do outro lado de um grande vale, fazendo um íngreme cocuruto rochoso, sobre o qual estão
incrustadas as casas, construídas sobre os degraus de pedra. Creio que o monte forme um todo com seus
muros, servindo suas cavernas como moradias, uma mistura de cidade de trogloditas e de cidade comum.
É característica, com esta subida para os patamares, para os quais o telhado das casas do patamar
inferior fica à altura da entrada térrea das casas do patamar superior. Dos lados, por onde o monte é mais
íngreme, tão íngreme que nele nenhuma construção pode ser feita, há cavernas, fendas profundas e
descidas que se inclinam para o vale. Em tempos de aguaceiros, aquelas descidas devem tornar-se outras
tantas pequenas e lindas torrentes. Pedras de todos os tamanhos, roladas para o vale pelos aluviões,
formam um caótico pedestal para o pequeno monte, tão áspero e selvagem, corcovado e petulante, como
um senhor que quer ser respeitado a todo custo.
– Aquela não será Gamala? –pergunta Zelotes.
– Sim, é Gamala. Tu a conheces? –diz Jesus.
– Eu estive lá, quando eu estava fugitivo em certa noite, já faz muito tempo. Depois veio a lepra, e eu
não saí mais dos sepulcros.
– Até aqui foste perseguido? –pergunta Pedro.
– Eu estava vindo da Síria, para onde tinha ido em busca de proteção. Mas me descobriram e somente a
fuga para estas terras me podia livrar de ser capturado. Depois, fui descendo devagar, mas sempre
ameaçado, cheguei ao deserto de Tecué, e de lá — já leproso — fui para o vale dos mortos. Assim a lepra me
livrou dos inimigos…
– Eles eram pagãos, não é? –pergunta Iscariotes.
– Quase todos. Poucos hebreus para os negócios, e depois uma mistura de crenças, ou de
incredulidades, para dizer tudo. Mas eles não foram maus para com o fugitivo.
– Lugares de bandidos! Que gargantas! –exclamam muitos.
– Sim. Mas, podeis acreditar que mais bandidos há do outro lado
–diz João, ainda impressionado com a prisão do Batista.
– Do outro lado há bandidos, mesmo entre aqueles que querem levar nome de justos –termina o seu
irmão.
186.4 Jesus toma a palavra:
– No entanto, vamos nos aproximando deles, sem sentirmos arrepios. Ao passo que vós virastes para o
outro lado os vossos rostos, porque tínheis que passar pelo meio daqueles animais.
– Mas eles são imundos…
– O pecador o é muito mais. Os animais são feitos assim e não são culpados de o serem. Mas o homem
sim é responsável por tornar-se imundo com o pecado.
– Mas, então, por que é que por nós foram classificados como animais imundos[32]? –pergunta Filipe.
– Já uma vez fiz menção disso. Nessa ordem há uma razão sobrenatural, e outra natural. A primeira é
para ensinar ao povo eleito a saber viver, tendo sempre presente a lembrança de sua eleição e a dignidade
do homem, até mesmo em uma ação comum, como o comer. O homem selvagem come de tudo. Basta
encher a barriga. O homem pagão, mesmo que não seja um selvagem, também come de tudo, sem pensar
que a alimentação exagerada e refinada fomenta vícios e tendências que aviltam o homem. Os pagãos
chegam até a se deixarem levar a este frenesi de prazer que, para eles, é quase uma religião.
Os mais cultos entre vós sabem das festas obscenas em honra dos deuses deles e que degeneram em
uma orgia de libidinagem. O filho do povo de Deus deve saber conter-se e, na obediência e na prudência,
aperfeiçoar-se a si mesmo, tendo sempre presente a sua origem e o seu fim: Deus e o Céu.
A razão natural nos diz que não devemos excitar o sangue com alimentos que conduzem a calores
indignos do homem, ao qual não se nega que possa ter um amor, até carnal, mas ele deve temperá-lo
sempre com o frescor da alma, que tende para o Céu, e fazer, por isso, um amor, e não uma sensualidade,
daquele sentimento que une o homem à companheira, na qual ele deve ver a sua semelhante, e não uma
fêmea. Mas os pobres animais não são culpados de serem porcos, nem dos efeitos que a carne dos porcos
pode, a longo prazo, produzir no sangue. Menos culpados ainda, são os homens que tomam conta dos
porcos. Se forem honestos, que diferença haverá, na outra vida, entre estes e o escriba que vive inclinado
sobre os livros, mas que, infelizmente, não aprende, por meio deles, a ser bom? Em verdade, Eu vos digo,
que veremos guardadores de por cos entre os justos, e escribas entre os injustos. 186.5Mas que
desmoronamento é este?
Todos se afastam daquele lado do monte, porque pedras e terriço vêm rolando ou dando saltos pelo
declive e, assombrados, olham em torno de si.
– Eis, Eis! Eis lá! Dois… completamente nus… eles vêm vindo para nós, e gesticulam. São doidos…
– Ou endemoninhados –responde Jesus a Iscariotes, que viu primeiro os dois possessos que vinham vindo
para Jesus.
Eles devem ter saído de alguma das cavernas do monte. Estão urrando. Um deles, mais rápido na
corrida, se precipita sobre Jesus. Parece um passarão estranho, despojado de penas, de tão ágil que é, e faz
com os braços movimentos de vôo, como se seus braços fossem asas. E vem cair aos pés de Jesus, gritando:
– Quem és Tu, ó Dono do Mundo? Que tenho que fazer contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Terá já
chegado a hora do nosso castigo? Por que vieste atormentar-nos antes do tempo?
O outro endemoninhado, ou porque estivesse privado da fala, ou porque possuído por um demônio que o
faz ficar lerdo, não faz nada mais do que jogar-se de bruços e ficar chorando baixinho e depois, tendo ido
sentar-se, fica como se fosse inerte, entretendo-se com as pedras e com seus pés desnudos. O demônio
continua a falar pela boca do primeiro, que se contorce no chão, em um paroxismo de terror. Dir-se-ia que
ele quer reagir, mas não pode fazer outra coisa senão adorar, atraído e, em seguida, repelido pelo poder de
Jesus. Ele urra:
– Eu Te conjuro em nome de Deus, para de me atormentar. Deixa-me ir embora!
– Sim. Mas para fora deste homem. Espírito imundo, sai deles, e dize-me o teu nome.
– Legião é o meu nome, porque somos muitos. Dominamos estes, há muitos anos e, por meio deles,
arrebentamos laços e correntes, e não há força humana que possa com os dois. Eles são um terror por
causa de nós, que deles nos servimos para blasfemar contra Ti. Neles nós nos vingamos do teu anátema.
Rebaixamos o homem abaixo das feras, para zombarmos de Ti, e não existe lobo, nem chacal ou hiena, nem
abutre ou vampiro semelhante a estes, que são dominados por nós. Mas, não nos expulses. O inferno é
horrível demais!…
– Saí! Em nome de Jesus, saí!
Jesus tem uma voz de trovão e seus olhos dardejam esplendores.
– Deixa-nos pelo menos entrar[33] naquela manada de porcos, que encontraste lá atrás.
– Ide.
Com um urro infernal os demônios se separam dos dois infelizes e, por entre um repentino turbilhão de
vento, que faz os carvalhos balançarem como se fossem frágeis hastes, caem sobre aquele grande número
de porcos que, com estridores verdadeiramente demoníacos, põem-se a correr, endemoninhados que estão,
chocando-se uns com os outros, ferindo-se, mordendo-se e, enfim, precipitando-se no lago quando, tendo
chegado ao cume do alto rochedo, não encontram mais nenhum outro lugar para nele se refugiarem, a não
ser na água, que está lá em baixo. Enquanto isso, os guardas dos porcos, profundamente perturbados e
desolados urram de espanto, e os animais, em número de várias centenas vão, em precipitações sucessivas,
caindo nas águas tranquilas, agitando-as e transformando-as em uma fervura de espumas, e vão-se
submergindo aqui e flutuando, pondo à mostra suas barrigas redondas e seus focinhos pontudos, com uns
olhos cheios de terror e, por fim, se afogam.
Os pastores, urrando ainda, correm para a cidade.
186.6 Os apóstolos, depois de terem ido ao lugar da calamidade, voltam dizendo:
– Não se salvou nenhum. Prestaste a eles um feio serviço!
Jesus, com calma, responde:
– É melhor que morram dois mil porcos do que um só homem. Arranjai umas vestes a estes. Não podem
ficar assim.
O Zelotes abre um saco e dá uma de suas vestes. Tomé dá a outra. Os dois estão ainda um pouco
aturdidos, como se tivessem acabado de sair de um sono pesado, cheio de pesadelos.
– Dai-lhes alimento. Que voltem a viver como homens.
E, enquanto os dois comem pão com azeitonas que lhes é dado e bebem do frasco de Pedro, Jesus os
observa.
Finalmente, falam:
– Quem és Tu? –diz um deles.
– Jesus de Nazaré.
– Não te conhecemos, diz o outro.
– Mas a vossa alma me conheceu. Levantai-vos agora e ide para as vossas casas.
– Temos sofrido muito, penso eu, mas não me lembro bem. Quem é este? –diz o que falava por meio do
demônio, e mostra seu companheiro.
– Eu não sei. Ele estava contigo
– Quem és? E por que estás aqui –pergunta ao companheiro.
O que tinha estado como mudo e que ainda é o mais lerdo, diz:
– Eu sou Demétrio. Aqui é Sidon?
– Sidon está à beira do mar, homem. Aqui estás do outro lado do lago da Galileia.
– E por que estou aqui?
Ninguém pode dar uma resposta.
186.7 Vêm chegando umas pessoas, acompanhadas pelos pastores. Parecem cheias de medo e curiosas.
Mas, ao verem os dois já vestidos e bem dispostos, seu assombro aumenta.
– Aquele é Marcos de Josias. E aquele é filho do mercador pagão!…
– E aquele é o que os curou e fez perecer os nossos porcos porque os demônios entraram neles –dizem
os guardas dos animais.
– Senhor, Tu és poderoso, nós o reconhecemos. Mas já nos fizeste mal demais. Foi um prejuízo de muitos
talentos. Vai-te embora, nós te pedimos, e que o teu poder não vá fazer que se rache o monte, e que ele se
afunde no lago. Vai-te embora…
– Eu vou. Eu não me imponho a ninguém –e Jesus volta pelo caminho já feito, sem discutir.
Acompanham-no, indo atrás dos apóstolos, o endemoninhado que falava. Atrás, a certa distância, muitos
cidadãos, para verem se parte realmente.
186.8 Vão andando de novo pelo caminho íngreme e voltam à foz do riozinho, perto das barcas. Os
habitantes da cidade ficam na beira, olhando. O que ficou livre vai descendo, atrás de Jesus.
Nas barcas os empregados estão aterrorizados. Eles viram a chuva dos porcos caindo no lago, e ainda
estão vendo os corpos que vão boiando, sempre em maior número, cada vez mais inchados, com suas
barrigas redondas viradas para cima e suas patas curtas, ressecadas como quatro estacas fincadas em uma
grande bexiga cheia de gordura.
– Mas, que foi que aconteceu? –perguntam eles.
– Depois, vo-lo diremos. Agora, soltai as barcas, e vamos… Para onde, Senhor? –pergunta Pedro.
– Para o golfo de Tariqueia.
O homem, que os acompanhou, agora que os está vendo subir para as barcas, suplica:
– Leva-me contigo, Senhor.
– Não. Vai para tua casa; os teus têm o direito de te verem. E conta a eles as grandes coisa que te fez o
Senhor e como Ele teve dó de ti. Essa gente do território precisa ter fé. Acende as chamas da fé, em
reconhecimento para com o Senhor. Vai. Adeus.
– Conforta-me pelo menos com a tua bênção, e que o demônio não se apodere de mim outra vez.
– Não tenhas medo. Se não queres, ele não virá. Mas Eu te abençôo. Vai em paz.
As barcas se afastam da beira, indo em direção do leste para oeste. Somente agora, enquanto vão
fendendo as ondas cobertas pelas vítimas suínas, é que os habitantes da cidade que não quiseram o Senhor
se retiram da beira, e vão-se embora.
Aqui no verso está a figura do lugar[34].
[32] imundos são ditos dos porcos em: Levítico 11,7; Deuteronômio 14,8. (É de observar o propósito, o batibecco em 292.1). A classificação dos animais
puros e daqueles impuros, com as relativas prescrições, está em: Gênesis 7,2-3; Levítico 11; Deuteronômio 14,3-21.
[33] Deixa-nos pelo menos entrar… O pedido interessante será interpretado com ingenuidade por Pedro em 203.3.
[34] figura do lugar, que MV desenhou na página seguinte, última do caderno manuscrito, e que reproduzimos na página a seguir. Os nomes das cidades
em torno do lago, circulando da esquerda para a direita, são Tariquea, Tiberíades, Mágdala, Carfanaum, Betsaida, Gerguesa, Ippo. Ao sul de Ippo, depois do
pequeno rio, estão assinalados o Lugar de desembarque no lago e Gamala, no interior. Entre aquele e esta estão os pontinhos, assim justificados em ca: O
lugar pontilhado são os bosques de carvalhos. Ao norte, é Corozaim.
187. Indo a Jerusalém pela Páscoa.
De Tariqueia até o monte Tabor.
12 de junho de 1945.
187.1 Jesus se despede das barcas, dizendo: “Não voltarei atrás” e, acompanhado pelos seus, através da
região que parecia muito fértil, vista da margem oposta, dirige-se para um monte, que aparece na direção
sudoeste.
Os apóstolos vão indo em silêncio, falando um com o outro, somente com os olhos, pouco entusiasmados
com o caminho pelo meio dessa região bonita, mas selvagem, cheia de carriços que se agarram aos pés, de
caniços que fazem chover sobre as cabeças uma chuvinha do orvalho que ficou retido pelas fendas por
entre suas folhas; de caroços de frutas secas, que lhes batem no rosto; de salgueiros frágeis que batem por
toda parte nos corpos dos viandantes, fazendo-lhescócegas; de traidoras passagens no terreno, onde há
ervas que parecem ter nascido em um solo sólido, mas, ao invés disso, escondem poças d’água nas quais os
pés afundam, pois elas não são mais que uns aglomerados de rabos-de-raposa e de outras amarantáceas,
nascidas em pequenos charcos e tão cerradas, que escondem o elemento em que nasceram.
Jesus, do lugar em que está, parece alegrar-se com todo aquele verde de mil tons, com todas aquelas
flores, pelas quais eles passam roçando, ou que estão erguidas e se agarram às outras para subir, que
soltam delicados festões cobertos de graciosos convólvulos de uma cor rosa-malva tênue ou formam um
tapete azul muito bonito para as milhares de corolas de miosótis palustres, que abrem seus cálices perfeitos
em corolas brancas, róseas ou azuis, por entre as largas folhas chatas dos nenúfares. Jesus admira os
penachos dos caniços do brejo, sedosos e cor de pérola e se inclina alegre para observar a delicadeza dos
rabos-de-raposa, que formam um véu de esmeralda sobre as águas. Jesus para, extasiado, diante dos ninhos
que os pequenos pássaros constróem, com um ir e vir feliz, acompanhado de trilos, de pulos, de um cansaço
contente, dos flocos de lã arrancada às sebes que, por sua vez, as tinham arrancado dos rebanhos, que por
ali passaram… Ele parece a pessoa mais feliz que possa haver. Onde está o mundo com as suas maldades,
falsidades, dores e insídias? O mundo está do lado de lá deste oásis verde e florido, onde tudo é perfumado,
tudo brilha, tudo ri e canta. Aqui está a terra criada pelo Pai e não profanada pelo homem, e aqui pode-se
até esquecer o homem.
187.2 Ele quer repartir sua felicidade com os outros. Mas não encontra um terreno propício. Os corações
estão cansados e exacerbados, cheios de tanta má vontade que a querem revirar sobre as coisas e até sobre
o Mestre, com um mutismo fechado, semelhante àquele ar parado, que precede um temporal. Somente o
primo Tiago, o Zelote e João se interessam pelo que interessa a Jesus. Pois os outros não são mais do que…
uns ausentes, para não dizer hostis. Talvez, para não murmurar, fazem silêncio entre si. Mas, por dentro,
cada um deve estar falando, até demais.
Uma mais viva exclamação de admiração, diante da jóia viva que é um pequeno pombo do mato, que
vem voando e trazendo para a companheira um peixinho cor de prata, é justo aquilo que os faz abrir as
bocas.
Jesus diz:
– Mas, poderá haver coisa mais gentil?
Pedro responde:
– Talvez mais gentil não… mas eu Te garanto que mais cômoda é a barca. Aqui estamos também na
umidade e, em compensação, não temos comodidade…
– Eu preferiria ir pela estrada caravaneira, a ir… por este jardim, se é que Te agrada chamá-lo assim, e
estou completamente de acordo com Simão –diz Iscariotes.
– A estrada caravaneira, vós não a quisestes –responde Jesus.
– É certo. Mas eu não teria entregado os pontos aos gerasenos. Eu teria ido embora de lá, mas teria
continuado do outro lado do rio, indo por Gadara, por Pela, e por ali abaixo, sempre para baixo –resmunga
Bartolomeu.
E o seu grande amigo Filipe termina:
– As estradas, afinal, são de todos, e por elas poderíamos caminhar nós também.
– Amigos, amigos! Eu estou tão aflito, estou tão enojado… Não aumenteis meus sofrimentos com as
vossas mesquinharias! Deixai-me procurar um pouco de consolo nas coisas que não sabem odiar…
A censura, doce em sua tristeza, toca os apóstolos.
– Tens razão, Mestre. Nós somos indignos de Ti. Perdoa a nossa estultice. Tu és capaz de ver a beleza,
porque és santo e olhas com os olhos do coração. Nós, carniça, sentimos somente esta carniça… Mas, não
repares. Podes crer que, ainda que estivéssemos em um paraíso, sem Ti estaríamos tristes. Mas, contigo…
oh, é sempre mais belo para o coração. Somente os nossos membros é que se recusam
–murmuram muitos.
187.3 – Daqui a pouco, sairemos daqui e encontraremos um chão mais cômodo, ainda que menos fresco –
promete Jesus.
– Aonde iremos, precisamente? –pergunta Pedro.
– Levar a Páscoa aos que sofrem. Há tempo que o queria fazer. Mas não pude. Eu o teria feito, ao voltar
da Galileia. Agora, que me obrigam a andar por caminhos não escolhidos por nós, Eu vou abençoar os
pobres amigos de Jonas.
– Mas assim vamos perder tempo! A Páscoa já está perto! Sempre nos atrasamos por diversas causas.
E um outro coro de lamentações se levanta até o céu. Não sei como Jesus pode ter tanta paciência… E,
sem censurar a ninguém, Ele diz:
– Eu vos peço. Não me crieis obstáculos! Compreendei minha necessidade de amar e de ser amado. Só
tenho este conforto na terra: o amor e fazer a vontade de Deus.
– E vamos por aqui? Não seria melhor irmos para Nazaré?
– Se Eu vos tivesse proposto isso, vós vos teríeis revoltado. Ninguém pensará que estou por estes
lugares, e faço-o por vós que… tendes medo.
– Medo? Ah! Isso, não. Estamos prontos até a combater por Ti.
– Pedi ao Senhor que não vos faça passar por uma prova. Eu sei que sois rixentos, invejosos, tendes o
desejo de ofender a quem Me ofende, de mortificar o próximo. Tudo isso Eu sei. Mas que sejais corajosos,
isso não sei. Por Mim, Eu teria caminhado até sozinho e pelos caminhos comuns, e nada me teria
acontecido, porque ainda não é a hora. Mas tenho piedade de vós. E tenho obediência para com minha mãe
e também isto: não quero causar desgosto ao fariseu Simão. E não lho causarei. Mas eles causarão desgosto
a Mim.
– E daqui para onde iremos? Eu não tenho prática nestes lugares
–diz Tomé.
– Chegaremos ao Tabor, iremos ao lado dele por um trecho e, passando perto de Endor, iremos a Naim, e
de lá iremos pela planície de Esdrelon. Não tenhais medo!… Doras, o filho de Doras e Jocanã já estão em
Jerusalém.
187.4 – Oh! Como deve ser bonito! Dizem que do cume, do ponto mais alto, se pode avistar o Grande Mar, o
de Roma. Isso me agrada muito! Vais levar-nos a vê-lo?
João faz a pergunta, com o seu rosto de menino bom levantado para Jesus.
– Por que é que te agrada tanto vê-lo? –pergunta Jesus, acariciando-o.
– Não sei. Porque é grande, e não se vê o seu fim… Ele me faz pensar em Deus… Quando estivemos no
Líbano, eu vi o mar pela primeira vez, porque nunca tinha estado a não ser ao longo do Jordão ou então em
nosso pequeno mar… e chorei de emoção. Que azul! Quanta água! E sua água não extravasa nunca!… Que
coisa maravilhosa! E os astros, que fazem caminhos de luz sobre o mar… Oh! Não riais de mim! Fiquei
olhando o caminho de ouro do Sol até ficar ofuscado, o caminho de prata da Lua até não ter mais nos olhos
senão aquele candor fixo, e via como eles se iam dissipando e sumindo ao longe, muito longe. E aqueles
dois caminhos falavam comigo. Eles me diziam: “É Deus que está naquelas lonjuras sem fim, e estes são os
caminhos de fogo e de pureza que uma alma deve seguir, a fim de ir para Deus. Vem. Mergulha no infinito,
remando por estes dois caminhos e encontrarás o Infinito.”
– És um poeta, João –diz admirado Tadeu.
– Não sei se isto é poesia. Só sei que acende o coração.
– Mas tu já viste o mar também em Cesareia e Ptolomaida, e bem de perto. Nós estávamos à beira dele.
Não vejo necessidade de fazer uma viagem tão grande para ir ver outra água do mar. Afinal, nós nascemos
na água… –observa Tiago de Zebedeu.
– E nela estamos ainda agora, infelizmente! –exclama Pedro que, tendo-se distraído por uns instantes,
para ficar ouvindo João, não viu uma poça traiçoeira, e nela tomou um verdadeiro banho…
Todos se riem, a começar pelo próprio Pedro.
Mas João responde:
– É verdade. Mas, visto lá de cima, ele é mais belo. Podemos ver mais e mais longe. Ficamos pensando
com mais profundidade e amplitude… Ficamos desejando, sonhando…
E, em verdade, João já está sonhando… Olha para a frente e sorri ao seu sonho. Parece uma rosa cor de
carne, coberta por um orvalho miudinho, a tal ponto sua pele lisa e clara de jovem louro se torna da cor de
um veludo purpurino e se cobre de um leve suor, que a torna ainda mais parecida com uma pétala de rosa.
– Que queres? Com que estás sonhando? –pergunta Jesus, em voz baixa, ao seu predileto, e parece um
pai que interroga docemente um querido filhinho, que lhe está contando um doce sonho seu. Fala
exatamente à alma de João, Jesus, tão doce no interrogar, para não estragar o sonho do seu amoroso
discípulo.
– Eu quero andar por aquele mar infinito… ir a outras terras que estão para lá dele… Eu quero ir para
falar de Ti… Estou sonhando… sonhando em ir até Roma, até a Grécia, até os lugares escuros, para levar-
lhes a luz… de modo que os que vivem nas trevas, venham a ter contato contigo e vivam em comunhão
contigo, ó Luz do mundo… Sonho um mundo melhor… para fazê-lo melhor por meio do conhecimento de Ti,
isto é, por meio do conhecimento do Amor, que torne bons, puros, que torne heróico um mundo que se
possa amar em teu Nome e — acima do pecado, da carne, do vício da mente, acima do ouro, acima de todas
as coisas, — exalte o teu Nome, a tua Fé, a tua Doutrina… sonho de estar eu com estes meus irmãos, indo
pelo mar de Deus, Te levando por estradas de luz… como, há tempo, Tua mãe te trouxe dos Céus para nós…
Sonho… sonho que sou um menino que, não conhecendo nada mais que o amor, permanece sereno, até
quando vai de encontro aos tormentos… e canta para dar coragem aos adultos, que ficam pensando demais,
e vai adiante… ao encontro da morte, com um sorriso… ao encontro da glória, com a humildade de quem
não sabe bem o que está fazendo e que só sabe ir até Ti, Amor.
Os apóstolos ficaram com a respiração parada, durante a extática confissão de João… Firmes no lugar
em que estavam, olham para o mais jovem, que está falando com os olhos velados pelas pálpebras, como
por um véu lançado sobre o ardor que sobe do coração e olham para Jesus, que se transfigura na alegria de
reencontrar-se tão completo no seu discípulo…
Quando João se cala, ficando um pouco inclinado, — e faz-nos lembrar a graça da Anunciação da
Humilde Virgem em Nazaré — Jesus o beija na fronte, dizendo:
– Iremos ver o mar, para fazer-te sonhar ainda com a vinda do meu Reino ao mundo.
187.5 – Senhor… depois disseste que vamos para Endor. Contenta, então, também a mim… para que passe
a minha amargura pelo julgamento daquele menino… –diz Iscariotes.
– Oh! Ainda pensas naquilo? –pergunta Jesus.
– Sempre. Eu me senti diminuído aos teus olhos e aos dos companheiros. Fico pensando em que estareis
pensando…
– Como esquentas a cabeça por nada! Eu nem me lembrava mais daquela inépcia, e certamente os
outros também não. E tu no-lo vens recordar. És um menino acostumado às caricias e a palavra duma
criança pareceu a teus olhos a condenação dum juiz. Mas não é esta a palavra que deves temer, e sim as
tuas ações e o juízo de Deus. Mas, a fim de persuadir-te que continuas a ser-me caro como antes e como
sempre, Eu te digo que te irei contentar. Que queres ir ver em Endor? É um pobre lugar colocado entre
penhascos…
– Leva-me até lá, e eu te direi.
– Está bem. Mas toma cuidado, para não sofreres depois por isso…
– Se para este não pode ser um sofrimento ir ver o mar, a mim não pode fazer mal ir ver Endor.
– Ver?… Não. Mas é o desejo daquilo que se procura ver, ao ver, é que pode fazer mal. Mas iremos lá…
E retomam a estrada, dirigindo-se para o Tabor, cujo vulto já vai aparecendo cada vez mais perto,
enquanto o seu solo se vai despojando daquela sua aparência palustre e se tornando sólido e de vegetação
mais rara, deixando lugar para outras árvores mais altas, ou moitas de clematites e de cardos, que estão
rindo com suas folhas novas e suas flores precoces.
188. Em Endor. A espelunca da maga o
encontro com Félix, depois chamado João.
13 de junho de 1945.
188.1 O Tabor agora já ficou para trás dos caminhantes. Já passou. Por uma planície fechada entre este
monte e um outro que está defronte dele, o grupo vai caminhando, falando da subida que todos fizeram,
ainda que, a princípio, os mais velhos quisessem esquivar-se dela. Mas agora todos estão contentes por
terem estado lá em cima. O caminho agora é fácil, pois é uma estrada mestra bem cômoda. O tempo está
fresco e acho que eles passaram a noite nas encostas do Tabor.
– Ali é Endor –diz Jesus, mostrando um pobre povoado agarrado às primeiras elevações deste outro
grupo de montanhas–. Quereis mesmo ir até lá?
– Se quiserdes me fazer ficar contente… –responde Iscariotes.
– Então, vamos.
– Mas, teremos que caminhar muito? –pergunta Bartolomeu que, pela idade, não deve estar com muita
vontade de fazer excursões panorâmicas.
– Oh! não! Mas, se queres ficar… –diz Jesus.
– Sim, sim. Ficai aqui. Basta que eu vá com o Mestre –apressa-se a dizer Judas Iscariotes.
– Agora, eu quereria saber que belezas vamos ver antes de decidir. Do alto do Tabor vimos o mar e,
depois do discurso do rapaz, devo confessar que passei a vê-lo com bons olhos pela primeira vez, e passei a
vê-lo como Tu o vês: com o coração. E agora eu gostaria de saber se vou aprender alguma coisa. E, então,
eu vou, ainda que tenha de cansar-me –diz Pedro
– Estás ouvindo, Judas? Tu não dissestes ainda as tuas intenções. Mas, por gentileza para com os
companheiros, dizei-as agora –sugere Jesus.
– Mas não foi a Endor que Saul quis ir[35], para consultar a pitonisa?
– Sim. E então?
– Sim, Mestre, eu gostaria de ir àquele lugar e ouvir-te falar sobre Saul.
– Oh! Nesse caso, eu também vou –diz Pedro entusiasmado.
– Então, vamos.
Terminam com passos rápidos o último trecho da estrada mestra, depois a abandonam, para tomarem
uma estrada secundária, que vai diretamente até Endor.
188.2 É um pobre lugar, como disse Jesus. As casas estão como que enraizadas nas encostas que, depois,
para lá do povoado, se tornam mais ásperas. Os moradores são pobres. Em sua maior parte, eles cuidam do
pastoreio, pelas pastagens do monte e por entre os bosques dos carvalhos seculares. Há uns poucos campos
de aveia, ou de cereais semelhantes, e nas faixas de terra que podem ser aproveitadas, há alguns pés de
macieiras e de figueiras. Poucas são as videiras ao redor das casas e que enfeitam um pouco os muros com
sua cor escura, dando a entender que aqui é um pouco úmido.
– Agora, vamos perguntar onde era o lugar da pitonisa –diz Jesus.
E faz parar uma mulher, que está voltando da fonte com suas ânforas.
A mulher olha para Ele com curiosidade, depois responde com grosseria:
– Não sei. Tenho outras coisas bem mais importantes do que essas histórias –e o deixa no ar.
Jesus se dirige a um velhinho, que está entalhando um pedaço de madeira.
– A pitonisa?… Saul?… Quem é que pensa mais nisso? Mas, espera… Aqui há um que estudou, e talvez
saiba… Vem.
E o velhinho sai manquejando, por um caminho estreito e cheio de pedras, até chegar a uma casa muito
pobre e baixa.
– Ele está aqui. Eu vou entrar e chamá-lo.
Pedro, mostrando as galinhas, que estão ciscando em um quintal muito sujo, diz:
– Este homem não é israelita.
Mas, não diz mais nada, porque o velhinho já está de volta, acompanhado por um homem caolho, sujo e
desalinhado, como tudo o que há em sua casa. O velhinho diz:
– Estais vendo? Este homem diz que é para lá daquela casa desmoronada. Há uma trilha, depois um
pequeno regato, depois um bosque e umas cavernas, e a mais alta delas, a que tem ainda uns muros
desmoronados em um dos lados, é a que estais procurando. Não foi assim que disseste?
– Não. Fizeste uma grande confusão. Deixa, que eu irei com estes forasteiros.
O homem tem uma voz áspera e gutural, que aumenta a má impressão que ele já causa.
188.3 Ele se envereda pela trilha. Pedro, Filipe e Tomé fazem repetidos sinais a Jesus, para que não vá.
Mas Jesus não lhes dá atenção. E vai adiante com Judas, atrás do homem, enquanto os outros o
acompanham… de má vontade.
– És israelita? –pergunta o homem.
– Sim.
– Eu também, ou quase, ainda que não pareça. Mas estive muito tempo em outras cidades e apanhei os
costumes! Que estes tolos por aí condenam. Sou melhor que os outros. Mas eles me chamam de demônio,
porque eu leio muito, crio galinhas, que vendo aos romanos e sei curar por meio de ervas. Quando jovem,
por causa de uma mulher, me agarrei com um romano, — naquele tempo eu estava em Cíntio — e o
apunhalei. Ele morreu, eu lá perdi um olho e o que eu possuía e fui condenado ao cárcere por muitos anos…
para sempre. Mas eu sabia curar, e curei a filha do guarda. Isto valeu-me a amizade dele e um pouco de
liberdade. Eu usei dela para fugir. Eu fiz mal, porque o homem certamente teve que perder a vida por causa
da minha fuga. Mas a liberdade parece mais bela enquanto somos prisioneiros…
– Então, não é bela depois?
– Não. É melhor o cárcere, onde estamos sós, do que o contato com homens que não nos concedem estar
sós, e que estão ao redor de nós para odiar-nos…
– Tu estudaste os filósofos?
– Eu era mestre em Cíntio… Eu era prosélito…
– E agora?
– Agora sou nada. Vivo na realidade. E odeio, como fui e estou sendo odiado.
– Quem é que te odeia?
– Todos e Deus em primeiro lugar. Ela era minha mulher… e Deus permitiu que ela me traísse e
arruinasse. Eu era livre e respeitado e Deus permitiu que eu me tornasse um presidiário. O abandono de
Deus e a injustiça dos homens fez desaparecer Aquele e estes. Aqui não há mais nada… –E bate na cabeça e
no peito–. Isto é, aqui na cabeça está o pensamento, o saber. É aqui que não há mais nada –e cospe com
desprezo.
– Estás enganado. Aí tens ainda duas coisas.
– Quais?
– A lembrança e o ódio. Tira-os. 188.4Sejas verdadeiramente vazio… e Eu te darei uma coisa nova para pôr
aí.
– Que é?
– O amor.
– Ah! Ah! Ah! Tu me fazes rir. Há trinta e cinco anos que eu não ria mais, meu homem. Desde que eu tive
a prova de que a mulher estava me traindo com o romano mercador de vinhos. O amor! O amor a mim! É
como se eu jogasse jóias aos meus frangos! Eles morreriam de indigestão, se não conseguissem passá-las
adiante junto com as fezes. Comigo é a mesma coisa. O teu amor seria para mim um peso, se eu não
pudesse digeri-lo…
– Não, homem! Não digas isso!
Jesus lhe põe a mão sobre o ombro, verdadeira e manifestamente aflito.
O homem olha para Ele, com o seu único olho, e o que ele vê naquele rosto, de tão grande doçura e
beleza, o faz emudecer e mudar de expressão. Do sarcasmo ele passa para uma seriedade profunda, e desta
para uma verdadeira tristeza. Ele inclina a cabeça, e depois, pergunta com uma voz diferente:
– Quem és?
– Jesus de Nazaré, o Messias.
– Tu?!
– Eu. Não sabias nada sobre Mim, tu que lês tanto?
– Eu sabia… Mas não que estavas vivo, e não… oh! sobretudo eu não sabia disto! Não sabia que eras
bom para com todos… assim… até com os assassinos… Perdoa tudo o que eu te disse… a respeito de Deus e
do amor… Agora compreendo porque é que me queres dar o amor… Porque sem o amor o mundo é um
inferno, e Tu, o Messias, queres fazer dele um paraíso.
– Um paraíso em todos os corações. Dá-me a lembrança e o ódio, que te tornam doente, e deixa que Eu
ponha em teu coração o amor.
– Oh! Se eu te houvesse conhecido antes. Mas, quando eu matava, certamente não tinhas nascido… Mas
depois… depois, quando fiquei livre, como livre é a serpente da floresta, eu vivi para envenenar com o meu
ódio.
– Mas fizeste também coisas boas. Não disseste que curavas por meio de ervas?
– Sim. Para que me tolerassem. Mas, quantas vezes lutei com a vontade de envenenar por meio de
filtros!… Estás vendo? Eu vim me refugiar aqui porque… aqui é um lugar onde nada se sabe do mundo, e
que o mundo também não conhece. É um lugar maldito. Noutros lugares eu era odiado e odiava, e tinha
medo de ser reconhecido… Mas eu sou mau.
– Tens ainda uma mágoa por teres feito mal ao guarda da prisão. Não vês que tens ainda alguma
bondade? Não és mau… Estás somente com uma grande ferida aberta, e ninguém a cura… A tua bondade
foge dela, como o sangue das feridas. Mas, se houver quem cuide de ti e cure a tua ferida, meu pobre
irmão, a tua bondade — não mais eliminada à medida que se forma — cresceria em ti…
O homem chora de cabeça inclinada, mas sem o mínimo sinal de que está chorando. Só Jesus, que vai
caminhando ao lado dele, é que o vê. Mas não lhe diz mais nada.
188.5 Chegam a uma espelunca, que é formada por escombros de desmoronamentos e cavernas naturais
no monte. O homem procura tornar firme sua voz e diz:
– Pronto, é aqui. Podes entrar.
– Obrigado, amigo. Sê bom.
O homem não diz mais nada e fica onde está, enquanto Jesus com os seus, tendo conseguido passar por
umas grandes pedras, que certamente eram pedaços de muros bem fortes, espantando os lagartos e outros
animais feios, entram em uma grande gruta de paredes enfumaçadas, com grafitos nas pedras,
representando ainda os signos do zodíaco e histórias semelhantes. Em um canto enfumaçado há uma
cavidade, e em baixo um buraco, como se fosse um esgoto para escoamento de líquidos. Os morcegos
decoram o forro com seus grandes cachos, que causam arrepios, e um mocho, espantado pela luz do facho
que Tiago acendeu, para ver se está pisando sobre escorpiões e víboras, — se sente incomodado e agita
suas asas acolchoadas, fechando bem seus olhos atingidos por aquela luz. Ele está empoleirado dentro da
cavidade e um fedor de ratos mortos, de doninhas, de passarinhos em putrefação a seus pés mistura-se com
o mau cheiro do estrume e do solo úmido.
– Um belo lugar, na verdade! –diz Pedro–. Era melhor o teu Tabor e o teu mar, rapaz!
E depois, virando-se para Jesus:
– Procura contentar logo Judas, porque aqui… não é bem a sala real de Antipas!
– Vamos logo. Que é mesmo que queres saber? –pergunta a Judas de Keriot.
– Está bem… Eu quereria saber se, e porque Saul pecou, por vir até aqui. Quereria saber se é possível
que uma mulher seja capaz de evocar os mortos. Quereria saber se… Oh! Fala Tu, afinal. E eu te farei
perguntas!
– Isso vai longe. Vamos, pelo menos, lá para fora, ao Sol, por cima das pedras… Assim ficaremos livres
desta umidade e deste fedor
–pede Pedro.
E Jesus consente. Assentam-se como podem por sobre os muros desmoronados.
– O pecado de Saul não foi o único pecado dele. Mas foi precedido e acompanhado por muitos outros.
Todos graves. Sua dupla ingratidão para com Samuel, que o ungiu rei, e que depois se eclipsa, para não
dividir com o Rei a admiração do povo. Ele foi ingrato mais vezes ainda para com Davi, que o livrou de
Golias, que poupou sua vida na caverna de Engadi e em Áquila. Foi culpado por muitas desobediências e
por escândalos dados ao povo. Foi culpado por ter causado dor a Samuel, seu benfeitor, faltando à caridade.
Culpado por ciúme e atentado contra Davi, outro benfeitor seu e, enfim, pelo delito que neste lugar ele
cometeu.
– Contra quem? Aqui ele não matou ninguém.
– Matou sua própria alma, acabou de matá-la aqui dentro. 188.6Por que estás abaixando a cabeça?
– Porque estou pensando, Mestre.
– Estás pensando. Eu estou vendo. Em que estás pensando? Por que querias vir? Não foi por pura
curiosidade de estudioso, confessa-o.
– Sempre se ouve falar de magos, de necromancias, de espíritos evocados… Eu queria ver se descobria
alguma coisa… Eu gostaria de saber como acontece… Eu penso que nós, destinados a impressionar para
atrair, deveríamos ser um pouco necromantes. Tu és Tu, e o fazes com o teu poder. Mas nós temos que
pedir tal poder e uma ajuda, para fazer coisas estranhas, que se imponham…
– Oh! Não estás doido? Que é que estás dizendo? –gritam muitos.
– Calai-vos. Deixai-o falar. Não é doideira o que ele tem.
– Sim. Enfim me parecia que aqui chegando, um pouco de magia daquele tempo, pudesse penetrar em
mim, e tornar-me um dos grandes. Isso interessaria a Ti, podes crer.
– Sei que és sincero neste teu desejo atual. Mas te respondo com palavras eternas, porque são do Livro,
e o Livro existirá enquanto existir o homem. Acreditado ou escarnecido, impugnado em nome da verdade ou
da derrisão, existirá, existirá sempre.
Foi dito: “E Eva, pois que o fruto da árvore era bom de se comer e belo de se ver, o colheu e comeu dele,
e deu dele ao marido. E, então, os olhos deles se abriram e, percebendo que estavam nus, fizeram para si
cintos… E Deus disse: ‘Como foi que percebestes que estáveis nus? Somente por terdes comido do fruto
proibido.’ E os expulsou do Paraíso de delícias.” E no livro de Saul está escrito: “Samuel, aparecendo, disse-
lhe: ‘Por que me perturbaste me fazendo evocar? Por que me fazer perguntas, uma vez que o Senhor se
afastou de ti? O Senhor te tratará como eu te disse… porque tu não obedeceste à voz do Senhor’.”
Meu filho, não estendas a mão para o fruto proibido. Pois somente aproximar-se dele já é uma
imprudência. Não tenhas a curiosidade de conhecer as coisas ultra-terrenas, por temor de que não se
apegue a ti o satânico veneno. Foge das coisas ocultas e das coisas que não se explicam. Só uma coisa há de
ser acolhida com santa fé: Deus. Mas o que não é de Deus, e não é explicável com as forças da razão, ou
não pode ser feito com as forças do homem, foge daquilo, foge, para que não se abram para ti as fontes da
malícia, e tu não consigas compreender que estás “nu”. Nu: repelente na humanidade misturada com
satanismo. Por que queres pasmar-te com prodígios obscuros? Pasma com a tua santidade, e que ela seja
luminosa, como as coisas que vêm de Deus. Não tenhas desejo de rasgar os véus, que separam os vivos dos
mortos. Não inquietes os defuntos. Escuta-os, se são sábios, enquanto estiverem sobre a terra, e venera-os
com a tua obediência, até depois de sua morte. Mas não perturbes sua segunda vida. Quem não obedece à
voz do Senhor, perde o Senhor. E o Senhor proibiu o ocultismo, a necromancia, o satanismo em todas as
suas formas. Que queres saber a mais de quanto a Palavra já te disse? Que queres fazer a mais do que tudo
o que a tua bondade e o meu poder já te concedem operar? Não desejes o pecado, mas sim a santidade,
filho. Não te sintas humilhado. Agrada-me que tu te reveles em tua humanidade. O que agrada a ti, agrada
também a muitos, a muitos demais. Somente uma coisa: o motivo que apresentas para este teu desejo “ser
poderoso a fim de atrair para Mim”, tira muito peso dessa humanidade, e faz que ela crie asas. Mas são as
asas de pássaro da noite. Não, meu Judas. Põe asas solares, põe asas de anjo em teu espírito. Só com o
vento delas, atrairás os corações, e os transportarás, com o teu exemplo, para Deus. Podemos continuar a
andar?
– Sim, Mestre. Eu errei.
– Não. Tu foste um indagador… Destes o mundo estará sempre cheio. Vem, vem. Vamos sair deste lugar
de mau cheiro. Vamos ao encontro do Sol! Dentro de poucos dias é Páscoa, e depois iremos à casa de tua
mãe, à tua casa honesta, à tua santa mãe. Oh! Quanta paz!
Como sempre, a lembrança da mãe, o elogio do Mestre à mãe, fazem que Judas fique calmo.
188.7 Saem das ruínas e começam a descer pelo caminho por onde vieram. O homem caolho ainda está ali.
– Ainda estás aqui? –pergunta Jesus, como se não estivesse vendo o rosto vermelho pelas muitas
lágrimas derramadas.
– Eu estou aqui. Se me permites, eu Te acompanho. Preciso dizer-te uma coisa…
– Vem, então, comigo. Que queres dizer-me?
– Jesus… Eu acho que para ter força de falar e de fazer a magia santa de mudar a mim mesmo, de
chamar à vida a minha alma morta, como a pitonisa evocou Samuel para Saul, eu devo dizer o teu Nome,
tão doce como o teu olhar, santo como a tua voz. Tu me deste uma vida nova, e ela está ainda informe,
ainda incapaz de nada, como a de um recém-nascido, que acaba de ser gerado. Agita-se ainda entre os
apertos duma casca malvada. Ajuda-me a sair da minha morte.
– Sim, amigo.
– Eu… eu reconheci que tenho ainda um pouco de humanidade em meu coração. Não sou totalmente
uma fera, e ainda posso amar e ser amado, perdoar e ser perdoado. O teu amor, o teu amor que é perdão,
me ensina isso. Não é verdade que é assim?
– Sim, amigo.
– Então… leva-me contigo. Eu era Félix! Que ironia! Mas Tu me darás um novo nome. Para que o
passado fique realmente morto. Eu Te acompanharei como um cão vagabundo, que finalmente achou um
dono. Serei o teu escravo, se quiseres. Mas, não me deixes sozinho…
– Sim, amigo.
– Que nome pões em mim?
– Um nome de que Eu gosto muito: João. Porque tu és a graça que o Senhor faz.
– Me tomas contigo?
– Por enquanto, sim. Depois me acompanharás com os discípulos. Mas, e a tua casa?
– Eu não tenho mais casa. Deixarei para os pobres tudo o que tenho. Dá-me somente amor e pão.
– Vem.
E Jesus se vira, chamando os apóstolos:
– Meus amigos, e especialmente tu, Judas, recebei o meu “obrigado.” Por meio de ti, por meio de vós,
uma alma vem para Deus. Aqui está o novo discípulo. Vem conosco até que possamos confiá-lo aos irmãos
discípulos. Ficai felizes por terdes encontrado um coração, e bendizei a Deus comigo.
Muito felizes, na verdade, não parecem ter ficado os doze. Mas fazem cara boa, por obediência e
cortesia.
– Se me permites, eu vou na frente. Encontrar-me-às na soleira da casa.
– Então, vai.
O homem parte, correndo. Parece ser outro.
– E agora, que estamos sós, Eu vos ordeno, isto Eu vos ordeno, que sejais bons para com ele, e não faleis
do seu passado, seja lá a quem for. Quem falasse, ou quem faltasse à caridade para com o irmão redimido,
seria, no mesmo instante, rejeitado por Mim. Entendestes bem? E, vede como o Senhor é bom! Tendo vindo
até aqui por um fim humano, Ele ainda nos concede que voltemos daqui tendo obtido um fato sobrenatural.
Oh! Eu me alegro pela alegria que há agora lá no Céu por causa do novo convertido.
188.8 Chegam diante da casa. Na soleira, com uma veste escura e limpa e uma capa nas mesmas
condições, com um par de sandálias novas e um saco de bom tamanho nas costas, lá está o homem. Ele
fecha a porta e depois — coisa estranha em um homem que se poderia julgar de todo insensível — ele pega
uma pequena galinha branca, talvez a predileta, que se agacha mansinha nas mãos dele e a beija, chora, e
depois a põe no chão.
– Vamos… e perdoa-me. Mas estes meus frangos me amaram. Eu falava com eles… e eles me
entendiam…
– Eu também te entendo… e te amo. Muito. Eu te darei todo o amor que, durante trinta e cinco anos, o
mundo te negou…
– Oh! Eu sei. Eu o estou sentindo! Por isso, eu vou. Mas tem compaixão do homem que… que ama um
animal… que lhe foi mais fiel do que o homem…
– Sim… sim. Não penses mais no passado. Terás muito o que fazer! E, com a tua experiência, farás muito
bem. Simão, vem cá, e tu, Mateus. Estás vendo? Este foi mais do que um prisioneiro, foi um leproso. Este
foi um pecador. A estes Eu amo, porque sabem compreender os pobres corações… Não é verdade?
– Pela tua bondade, Senhor. Mas, podes crer, amigo, que tudo se anula no servi-lo. Só a paz permanece –
diz Zelotes.
– Sim. A paz e uma nova juventude ocupam o lugar onde estava uma velhice de vício e de ódio. Eu era
publicano. Mas agora sou apóstolo. Temos diante de nós o mundo. E estamos instruídos sobre ele. Não
somos mais os rapazes levianos, que passam perto do fruto danoso e da planta que se inclina, e não vemos a
realidade. Nós sabemos. Podemos evitar o mal, e ensinar os outros a evitá-lo. E sabemos endireitar o que
está inclinado. Porque sabemos que alívio foi termos sido socorridos. E sabemos quem socorre: É Ele, diz
Mateus.
– É verdade! É verdade! Vós Me ajudareis. Obrigado. É como se eu passasse de um lugar escuro e fétido
para o ar livre, de um prado todo florido… Eu experimentei uma alegria semelhante, quando saí, já livre,
finalmente livre, depois de vinte anos de cárcere e de um trabalho brutal nas minas de Anatólia, e me
encontrei, — eu havia fugido numa tarde tempestuosa — encontrei-me no alto de um monte áspero, mas
aberto, cheio de sol, ao alvorecer, e coberto de bosques odoríferos… A liberdade! Mas agora é mais ainda.
Tudo em mim se dilata! Fazia quinze anos que eu já estava sem os grilhões… E agora eles caíram!… 188.9
Aqui é a casa do velho que vos levou a mim. Homem! Ó homem!
O velhinho se aproxima e fica maravilhado, ao ver que o caolho está limpo, em roupa de viagem e com
um rosto sorridente.
– Toma. Esta é a chave da minha casa. Eu vou-me embora para sempre. Eu te agradeço, porque tu és
meu benfeitor. Tu me deste de novo a família. Faze do que é meu tudo que quiseres… e cuida dos meus
frangos. Não os maltrates. Todos os sábados, vem um romano comprar os ovos… Eles te darão alguma
vantagem… Trata bem das minhas galinhazinhas… e Deus te pague por isso.
O velhinho está assombrado. Ele pega a chave e fica de boca aberta.
Jesus diz:
– Sim, faze como ele diz e Eu também te ficarei agradecido. Em nome de Jesus, Eu te abençôo.
– O Nazareno! Então, és Tu! Misericórdia! Eu falei com o Senhor! Mulheres, mulheres! Homens! O
Messias está entre nós!
Ele grita como uma águia e as pessoas vem correndo, de todos os lados.
– Abençoa! Abençoa! –gritam todos.
E outros dizem:
– Fica conosco!
E outros ainda:
– Aonde vais? Pelo menos, dize-nos aonde vais.
– Vou a Naim. Ficar aqui Eu não posso.
– Nós vamos Te acompanhar. Estás de acordo?
– Vinde. E a quem fica, paz e bênção.
Encaminham-se para a estrada mestra. E vão por ela.
188.10 O homem, que caminha próximo a Jesus, e que se sente cansado sob o seu saco, atrai a curiosidade
de Pedro.
– Mas, que há de tão pesado aí dentro? –ele pergunta.
– Minhas roupas… e alguns livros… Os meus amigos, depois dos frangos. Não pude separar-me. E
pesam.
– É, a ciência pesa! E se pesa! E a quem ela agrada, então!
– Foram os livros que não deixaram que eu ficasse doido.
– É! Deves mesmo querer-lhes bem. Mas, que livros são?
– Filosofia, história, poesia grega e romana…
– Bonitos, bonitos. Devem ser bonitos. Mas achas que vais poder andar com eles nas costas?
– Talvez eu consiga até separar-me deles. Mas, tudo de uma vez, não se pode fazer, não é mesmo,
Messias?
– Chama-me Mestre. Sim. Não se pode. Mas Eu vou arrumar um lugar onde poderás dar abrigo aos teus
amigos, os livros. Eles te poderão servir para discutires com os pagãos sobre Deus.
– Oh! Como tens o pensamento livre de toda restrição!
Jesus sorri, e Pedro exclama:
– Mas, sem dúvida alguma. Ele é a própria Sabedoria!
– E a Bondade, podes crer. E tu és culto?
– Eu? Oh! Sou muito culto. Eu já distingo uma carpa de uma sardinha e a minha cultura para ai. Eu sou
pescador, meu amigo!
E Pedro se ri, humilde e sincero.
– Sê um homem honesto. Esta é uma ciência que cada um por si aprende. Mas é muito difícil de se
conseguir. Tu me agradas.
– Tu também me agradas. Porque és sincero. Até em te acusares. Eu perdôo tudo, ajudo a todos. Mas
sou um inimigo desapiedado dos falsos. Eles me dão arrepios.
– Tens razão. O falso é um delinquente.
– Um delinquente. Assim disseste. Dize-me, não terás confiança em mim, para me entregares um pouco
esse saco? E, fica certo de que eu não vou fugir com os livros… Tu me pareces estar muito cansado.
– Vinte anos de trabalho na mina acabam com a gente. Mas, por que queres cansar-te tu?
– Porque o Mestre nos ensinou a amar-nos como irmãos. Dá aqui. E segura estes meus trapos. O meu é
leve. Nele não há história, nem poesia. A minha história, a minha poesia é diferente do que falaste: é Ele, o
meu Jesus, o nosso Jesus.
[35] quis ir, como se narra em 1 Samuel 28,3-25; 1 Crônicas 10,13-14; Siraque 46,20; com analogia em Reis 21,6; Isaías 8,19-20. A história de Saul e dos
seus “muitos outros” pecados, como se diria em 188.5 (e ainda em outros passos, como em 263.2), é sobretudo em 1 Samuel 9-31. – A prática da divinização,
ou magia, ou magia negra, é proibida em Levítico 19,26-31; 20,6.27; Deuteronômio 18,9-14. O epíteto da feiticeira, resurge o nome de um deus pagão (Apolo
Pizio). O “espírito píton” (o “pitônico” como em 352.11) é próprio dos pagãos (como se vê em 59.4 e 129.3). Satanás “fala sobre as lavras dos pítons” (como
se dirá em 420.10). Resulta da obra que a seita dos saduceus, fortemente hostil a Jesus e contrária a sua doutrina (como se pode notar em 356.5, 406.9 e
594.6/7), era dedicada a práticas similares às quais também se sentia atraído Judas Iscariotes. Uma repreensão aos necromantes em 503.7.
189. Em Naim. Ressurreição do filho da viúva.
14 de junho de 1945.
189.1 Naim devia ter uma certa importância nos tempos de Jesus. Não é uma cidade muito grande, mas
bem construída, fechada dentro do seu cinturão de muros. Ela se estende por uma colina risonha, de pouca
altitude, e é uma ramificação do pequeno Hermon que, do alto, domina uma planície muito fértil, que se vai
alargando para a direção do noroeste[36].
Para quem vem de Endor, chega-se até aqui, depois de ter passado a vau um pequeno rio, que deve ser
um afluente do Jordão. Mas daqui não se vê mais o Jordão, e nem mesmo o seu vale, porque algumas
colinas o escondem, fazendo um arco, que parece um ponto de interrogação virado para leste.
Jesus para lá se dirige, por uma estrada mestra, que liga as regiões do lago ao Hermon e aos seus
povoados. Atrás de Jesus vão caminhando muitos dos habitantes de Endor, conversando animadamente uns
com os outros.
A distância que separa o grupo dos apóstolos dos muros já é bem reduzida: no máximo uns duzentos
metros. E, já que a estrada mestra vai em linha reta, rumo a uma das portas da cidade, e como essa porta
está escancarada, pois já é pleno dia, pode-se ver logo o que está acontecendo do outro lado dos muros. E é
assim que Jesus, que estava conversando com os apóstolos e com o novo convertido, vê que, por entre um
grande barulho de carpideiras e de semelhantes conjuntos orientais, vem chegando um cortejo fúnebre.
– Vamos lá ver, Mestre? –dizem muitos. E, do meio dos habitantes de Endor, muitos já se precipitaram
para ir ver.
– Vamos nós também –diz Jesus, condescendendo.
– Oh! deve ser um rapaz, porque, olha só quantas flores e fitas estão sobre o caixão –diz Judas de Keriot
a João.
– Ou então será uma virgem –responde João.
– Não. É certo que se trata de um jovenzinho, por causa das cores que eles colocaram no caixão. Além
disso, faltam os mirtos… –diz Bartolomeu.
O funeral vai saindo para fora dos muros. Seja o que for que estiver no caixão, que vai sustentado no
alto sobre os ombros dos portadores, é o que não se pode ver. Presume-se que lá esteja um corpo estendido,
com suas faixas, e coberto com um lençol, pois pelo que as saliências revelam pode-se compreender que é o
corpo de alguém que já tinha chegado ao ponto mais alto de seu crescimento, porque é um corpo do
comprimento do caixão.
Ao lado do caixão, uma mulher de véu, amparada por parentas ou amigas, vai caminhando e chorando. É
o único choro verdadeiro, no meio dessa comédia de choronas. E, quando uma pedra faz que um dos
portadores tropece, ou um ressalto do solo faz que se sacuda o caixão, a mãe geme: “Oh! Não! Ide devagar!
Sofreu tanto este meu menino!”, e levanta sua mão trêmula para acariciar a beira do caixão, — fazer mais
que isso ela não pode — e, não podendo fazer nada mais, ela beija os véus ondulantes e as fitas, que o vento
de vez em quando agita, e que passam rolando por aquele vulto imóvel.
– Aquela é a mãe –diz Pedro, todo compungido e já com o brilho de uma lágrima em seus olhos atentos e
bons.
Mas ele não é o único que está com lágrimas nos olhos por causa daquela tristeza. Também Zelotes,
André e João, e até o sempre alegre Tomé, estão com os olhos brilhando. Todos, todos mesmo, estão
comovidos. Judas Iscariotes murmura:
– Se fosse eu! Oh! Pobre de minha mãe…
189.2 Jesus, cujos olhos são de uma doçura perturbadora, de tão profundos que são, vai indo para perto do
caixão.
A mãe, que já está soluçando mais forte, porque o cortejo já está quase chegando junto ao sepulcro
aberto, O afasta com violência, ao ver que Jesus procura tocar no caixão. No seu delírio, quem saberia de
que ela está com medo? Ela grita:
– É meu! –e, com uns olhos de louca, olha para Jesus.
– Eu sei, mãe. É teu.
– É o meu filho único. Por que logo ele é que foi morrer, ele que era bom e querido e a minha alegria de
viúva? Por quê?
Aí a multidão das carpideiras aumenta o seu choro pago, para fazerem coro com a mãe, que continua a
dizer:
– Por que ele, e não eu? Não é justo que quem gerou veja perecer a sua semente. A semente precisa
viver, porque senão, para que terá servido que estas vísceras se tenham rasgado para darem à luz um
homem? –e bate em seu próprio ventre, feroz e desatinada.
– Não faças assim! Não chores, mãe.
Jesus a segura pelas mãos, com um forte aperto, e as prende com sua esquerda, enquanto, com a
direita, toca no caixão, dizendo aos portadores:
– Parai e ponde o caixão no chão.
Os portadores obedecem, abaixando a caminha, que fica apoiada no chão por seus quatro pés.
Jesus agarra o lençol, que está cobrindo o morto e o joga para trás, deixando descoberto o cadáver. A
mãe externa sua dor, gritando o nome de seu filho e parece-me que ela está dizendo:
– Daniel!
Jesus, sempre conservando as mãos maternas na sua, se endireita, mostra-se imponente, no fulgor de
seus olhares como quando Ele opera seus maiores milagres, e, abaixando a mão direita, ordena, com toda a
força de sua voz:
– Jovenzinho, Eu te digo: Levanta-te!
189.3 O morto, do jeito que estava enfaixado, levanta-se e se assenta sobre a caminha e chama:
– Mamãe!
Ele a chama com a voz gaguejante e assustada de uma criança espavorida.
– Ele é teu, mulher. Eu o entrego em nome de Deus. Ajuda-o a livrar-se da mortalha. E sede felizes.
E Jesus dá sinais de que vai retirar-se dali. Mas, como? A multidão o detém junto ao catre, sobre o qual
está inclinada a mãe, que está enfiando os dedos por entre as faixas, para ir mais depressa, porque o
lamento de seu menino continua a implorar-lhe:
– Mamãe! Mamãe!
Por fim, a mortalha foi desfeita, desfeitas foram as faixas, já a mãe e o filho podem abraçar-se, e o fazem
sem dar atenção aos bálsamos que se vão colando neles, e que a mãe vai tendo que tirar do querido rosto,
das queridas mãos, usando as faixas, e depois, não tendo com que revesti-lo, a mãe tira o seu próprio manto
e o envolve nele, e tudo o que ela faz vai servindo ao mesmo tempo para acariciá-lo…
189.4 Jesus olha para ela… olha para este quadro de amor que se formou ao lado da caminha, que agora já
não é mais fúnebre, e chora.
Judas Iscariotes vê esse pranto e pergunta:
– Por que estás chorando, Senhor?
Jesus vira o rosto para ele, e diz:
– Estou pensando em minha mãe…
O breve colóquio faz que a mulher volte ao seu Benfeitor. Ela pega pela mão o filho e o segura, porque
ele está como alguém que ainda não acabou de sair de um torpor, continuando este em seus membros, e ela
se ajoelha, dizendo:
– Tu também, meu filho. Vamos bendizer a este Santo, que te restituiu à vida e à tua mãe –e se inclina
para beijar a veste de Jesus, enquanto a multidão dá hosanas a Deus e ao seu Messias, já conhecido como
quem ele é, porque os apóstolos e os habitantes de Endor tomaram eles próprios a incumbência de dizer
quem é aquele que operou o milagre.
E a multidão toda, então, exclama:
– Bendito seja o Deus de Israel. Bendito seja o Messias, que é o seu Enviado. Bendito seja Jesus, Filho de
Davi. Um grande Profeta surgiu entre nós! Deus verdadeiramente veio visitar o seu povo! Aleluia! Aleluia!
189.5 Finalmente, Jesus consegue escapar daquele aperto, e entrar na cidade. A multidão o acompanha, e
o persegue, exigente em seu amor.
Chega correndo um homem, e saúda a Jesus com uma profunda inclinação:
– Eu te peço que pares em minha casa.
– Não posso. A Páscoa me proíbe qualquer parada, além daquelas que estão marcadas.
– Daqui a pouco é o pôr-do-sol, e hoje e sexta-feira…
– É exatamente ao pôr-do-sol que Eu preciso chegar à minha etapa. Mas Eu te agradeço da mesma
forma. E não me detenhas…
– Mas eu sou o sinagogo.
– E com isto queres dizer que tens este direito. Homem: bastava que Eu me atrasasse uma hora e aquela
mãe não teria reavido o filho. Eu vou aonde outros infelizes me estão esperando. Não atrases com egoísmo
a alegria deles. Eu virei, com certeza, outra vez e ficarei contigo em Naim mais dias. Agora, deixa-me ir.
O homem não insiste mais. E somente diz:
– Está dito. Eu fico Te esperando.
– Sim. A paz esteja contigo e com os moradores de Naim. E também à vós de Endor paz e bênção. Voltai
para vossas casas. Deus vos falou por meio do milagre. Fazei que entre vós aconteçam, por força do amor,
muitas ressurreições para o bem em todos os corações.
Houve um último coro de hosanas. Depois a multidão deixa Jesus ir, e Ele atravessa diagonalmente a
cidade, indo sair na campina, tomando caminho para Esdrelon.
[36] direção do noroeste. Segue o desenho no qual MV escreveu Planície Esdrelon a oeste, Tabor a norte, abaixo Naim e Endor e mais abaixo Pequeno
Ermon.
190. Chegada a planície de Esdrelon
ao pôr-de-sol de sexta-feira.
15 de junho de 1945.
190.1 Começou o pôr do Sol com um céu avermelhado, na hora em que Jesus já ia também começando a
ver os campos de Jocanã.
– Apressemos o passo, meus amigos, antes que o sol desapareça. E tu, Pedro, vai, com o teu irmão,
avisar aos nossos amigos, os de Doras.
– Eu vou lá, sim, também para poder ver se o filho está mesmo fora.
Pedro diz a palavra “filho” de tal modo, que só ela vale por um longo discurso. E lá se vai.
Enquanto isso, Jesus vai andando mais devagar, olhando ao seu redor, para ver se enxerga algum dos
camponeses de Jocanã. Mas só se vêem os campos férteis, com as espigas já bem formadas.
Finalmente, lá do lugar do trabalho, onde estão limpando o vinhedo, levanta-se um rosto suado, e de lá
vem um grito:
– Oh! Senhor bendito! –e o camponês sai correndo para fora do vinhedo e vai prostrar-se diante de
Jesus.
– A paz esteja contigo, Isaías!
– Oh! Até de meu nome te recordas?
– Eu o tenho escrito no coração. Levanta-te. Onde estão os teus companheiros?
– Estão lá pelos pomares. Mas vou avisá-los agora mesmo. Vais ser nosso hóspede, não é? O patrão não
está e poderemos fazer-te uma festa. E, depois, um pouco pelo medo, um pouco pela alegria se tornou
melhor. Imagina! Ele até nos deu o cordeiro este ano e nos permitiu ir ao Templo! Ele nos deu apenas seis
dias… mas nós correremos pela estrada… Nós também em Jerusalém… Imagina só!…. E devemos isso a Ti.
O homem subiu até o sétimo céu, pela alegria de ter sido tratado como homem e como israelita.
– Eu nada fiz, que eu saiba… –diz Jesus sorrindo.
– Como, não? Pois fizeste. Doras, e depois os campos de Doras e estes, ao contrário, tão bonitos este
ano! Jocanã soube da tua vinda, e ele não é bobo. Ele tem medo e… e tem medo.
– De quê?
– Medo de que lhe aconteça o que aconteceu a Doras, tanto em sua vida como em seus bens. Já viste os
campos de Doras?
– Estou vindo de Naim…
– Então, não viste. Estão todos arruinados (O homem diz isso em voz baixa, mas destacando bem as
palavras, como quem quer confidenciar uma coisa horrível em segredo). Todos arruinados. Não há feno,
nem cereais, nem frutas. As videiras secaram, os pomares secaram… Morto… Tudo está morto… como em
Sodoma e Gomorra… Vem, vem, que te mostro tudo.
– Não é preciso. Eu vou até aqueles camponeses…
– Mas não estão mais lá. Então, não ficaste sabendo? Ele os espalhou, ou mandou embora a todos,
Doras, filho de Doras, e os que ele espalhou pelos outros lugares das campinas deles têm a obrigação de
não falar de Ti, sob pena de açoites… Ora, que não falem de Ti! Vai ser difícil! Até Jocanã nos disse isso.
– Que foi que ele disse?
– Ele disse assim: “Eu não quero ser tão estulto como Doras, e não vos digo: ‘Não quero que faleis do
Nazareno’. Seria inútil, porque vós o faríeis do mesmo modo, e eu não vos quero perder, matando-vos como
uns animais debaixo dos açoites. Mas eu vos digo: ‘Sede bons, como certamente o Nazareno vos ensina, e
dizei-lhe que eu vos trato bem’. Pois eu não quero ser também um amaldiçoado.” Ele está vendo bem o que
está acontecendo com estes campos, depois que Tu os abençoaste, e o que são aqueles outros campos,
depois que Tu os amaldiçoaste. 190.2Oh! Ali estão aqueles que me araram o campo[37]… –e o homem vai
correndo ao encontro de Pedro e André.
Mas Pedro o saúda brevemente, e continua o seu caminho, depois grita:
– Oh! Mestre! Não há mais nenhum. São todos rostos novos. Tudo está devastado. Em verdade, ele
poderia até deixar de ter camponeses por aqui. Aqui é pior do que no Mar Salgado!…
– Eu sei. Isaías me disse.
– Mas, vem ver! Que vista!…
Jesus o contenta, dizendo primeiro a Isaías:
– Agora estarei convosco. Avisa aos companheiros. E não vos incomodeis. Comida, Eu tenho. Basta-nos
um feneiro para dormirmos e o vosso amor. Eu irei logo.
A vista dos campos de Doras é realmente desoladora. Campos e prados áridos e nus, secos os vinhedos,
destruídas as folhagens e os frutos nas árvores por milhões de insetos de toda espécie. Também perto da
casa o jardim-pomar mostra o aspecto desolado de um bosque que está morrendo. Os camponeses andam
para cá e para lá, arrancando ervas más, esmagando lagartas, lesmas e semelhantes, sacudindo os ramos e
segurando por debaixo deles bacias cheias de água, para afogar as pequenas borboletas, os pulgões e
outros parasitas, que estão por cima das folhas que sobraram, e que chupam a planta até fazê-la morrer.
Procuram um sinal de vida nos sarmentos dos vinhedos. Mas estes se despedaçam de secos, mal são
tocados e, às vezes, se quebram na base, como se uma serra lhes tivesse cortado as raízes. O contraste com
os campos de Jocanã, com os vinhedos e pomares dele, é muito forte; a desolação dos campos malditos
sempre se torna mais violenta, se for comparada com a fertilidade dos outros.
– Quão pesada é a mão do Deus do Sinai –murmura Simão Zelotes.
Jesus faz um sinal como para dizer: “Oh, se é!” Mas não diz nada. Somente faz esta pergunta:
– Como é que aconteceu isto?
Um dos camponeses responde por entre dentes:
– Toupeiras, gafanhotos, vermes… Mas, vai-te! O vigia é fiel a Doras… Não queiras nos prejudicar…
Jesus dá um suspiro, e vai-se embora.
Outro camponês diz, ficando inclinado para escorar uma macieira, na esperança de salvá-la:
– Nós iremos a Ti amanhã… quando o vigia for para Jezrael fazer a oração… iremos à casa de Miqueias…
Jesus faz um gesto de benção, e se vai.
190.3 Quando ele chega de volta à encruzilhada, lá estão todos os camponeses de Jocanã, festivos, felizes,
e rodeiam o seu Mestre, levando-o às suas pobres casas.
– Viste o que há por lá?
– Eu vi. Amanhã virão os camponeses de Doras.
– Está bom, enquanto as hienas vão rezar… Fazemos assim todos os sábados… e falamos sobre Ti, pelo
que ficamos sabendo por Jonas, por Isaac, que frequentemente vem nos ver, e pelo discurso de Tirsi. O que
sabemos, falamos. Porque não se pode deixar de falar de Ti. E, quanto mais falamos, tanto mais se sofre e é
proibido fazer isso. Aqueles pobres… cada sábado bebem a vida. Mas nesta planície, quantos há que tem
necessidade de saber, pelo menos saber de Ti, e que não podem vir até aqui…
– Eu pensarei também neles. E vós, sede benditos, pelo que estais fazendo.
O Sol vai entrando, enquanto Jesus também entra numa cozinha esfumaçada. Começa o repouso do
sábado.
[37] aqueles que me araram o campo em 109.4.
191. O dia de sábado em Esdrelon. O pequeno
Jabé a parábola do rico Epulão.
16 de junho de 1945.
191.1 – Entrega a Miqueias o tanto de dinheiro com que amanhã ele possa reembolsar tudo o que hoje ele
tomou emprestado dos camponeses desta zona –diz Jesus a Judas Iscariotes, que vem administrando os…
bens comuns.
Depois, Jesus chama André e João, e os manda a dois pontos, dos quais se pode ver a estrada, ou as
estradas que vêm de Jezrael. Chama em seguida a Pedro e Simão, e os manda ir ao encontro dos
camponeses de Doras, com a ordem de detê-los perto do limite das duas propriedades. Por fim, Ele diz a
Tiago e Judas:
– Apanhai os alimentos e vinde.
Os camponeses de Jocanã os acompanham: mulheres, homens e crianças, levando os homens duas
pequenas ânforas. Pequenas é um modo de dizer, e devem estar cheias de vinho. Elas são mais do que
ânforas, são, antes, grandes jarras, contendo mais ou menos uns dez litros cada uma. (Peço sempre que não
tomem as minhas medidas como artigos de fé). Vão até o lugar onde um viçoso vinhedo, que já está coberto
de folhas novas, marca o fim das propriedades de Jocanã. Para lá há um largo fosso conservado cheio
d’água, sabe Deus com que trabalho.
– Estás vendo? Jocanã entrou em litígio com Doras por causa disto. Jocanã dizia: “A culpa é do teu pai,
de estar tudo arruinado. Se não queria adorá-lo, pelo menos o devia temer, e não ficar provocando-o.” E
Doras urrava e parecia um demônio, e dizia: “Tu ainda salvaste tuas terras por causa deste fosso. Os bichos
não puderam atravessá-lo…” E Jocanã dizia: “E, então, como é que tens agora tantas ruínas, quando antes
os teus campos eram os mais belos de Esdrelon? Isso é o castigo de Deus, podes crer. Vós passastes da
medida. Esta água? Sempre aí esteve. Mas não foi ela que me salvou.” E Doras urrava: “Isto prova que
Jesus é um demônio.” “É um justo”, urrava Jocanã. E foram andando para a frente mais um pouco, enquanto
tiveram fôlego, e depois Jocanã fez, com grandes despesas, uma derivação de águas da torrente e uma
escavação para procurar outras águas no solo, e fazer toda uma série de fossos no limite entre ele e o
parente, e mandou fazê-los mais fundos, e a nós disse o que te dissemos ontem… Afinal, ele está feliz com
tudo o que aconteceu. Ele tinha muita inveja de Doras… Agora, ele espera poder comprar tudo, porque
Doras acabará vendendo tudo por dois vinténs.
191.2 Jesus ouve com benignidade todas essas confidências e, ao mesmo tempo, vai atendendo aos pobres
camponeses de Doras, que não tardam a chegar e a se prostrarem no chão, logo que vêem Jesus, que está
abrigado à sombra de uma árvore.
– A paz a vós, amigos. Vinde. Hoje a sinagoga é aqui e Eu sou o sinagogo. Mas antes quero ser o vosso
pai de família. Sentai-vos ao redor de Mim, para que Eu vos dê algum alimento. Hoje tendes convosco o
esposo, e façamos um banquete de núpcias.
Jesus, então, descobre uma cesta, e dela vai tirando pães, que Ele vai distribuindo aos espantados
camponeses de Doras e, de uma outra cesta, vai tirando os alimentos que pôde encontrar: queijos,
verduras, que Ele mandou cozinhar e um pequeno cabrito ou cordeirinho, cozido inteiro, e que Ele vai
repartindo com os pobres infelizes. Depois, despeja o vinho no cálice rústico, e o faz circular para que todos
bebam.
– Mas por quê? Mas por quê? E eles? –dizem os de Doras, mostrando os de Jocanã.
– Eles já receberam.
– Mas, que despesa! Como pudeste?
– Ainda há gente boa em Israel –diz Jesus sorrindo.
– Mas hoje é sábado…
– Agradecei a este homem –diz Jesus, mostrando o homem de Endor–. Foi ele quem procurou o cordeiro.
Tudo o mais foi fácil conseguir.
Os pobrezinhos estavam devorando — esta é a palavra — um alimento que fazia tempo que não viam.
191.3 Mas um deles, já um tanto idoso, que segura a seu lado um menino de uns dez anos, está comendo e
chorando.
– Por que, pai, estás fazendo assim? –pergunta Jesus.
– Porque a tua bondade é demais…
O homem de Endor diz, então, com aquela sua voz gutural:
– É verdade… e faz chorar. Mas é um choro sem amargura…
– É sem amargura. É verdade. E depois… eu quereria uma coisa. Este meu choro é também um desejo.
– Que queres, pai?
– Estás vendo este menino? É meu neto. Veio ficar comigo depois da avalanche deste inverno. Doras nem
ficou sabendo que ele veio ficar comigo, porque eu o faço viver como se fosse um animal, no mato, e só aos
sábados é que o vejo. Se Doras o descobrir, ou o expulsará, ou o porá a trabalhar… e, então, ele vai ser
tratado pior do que um animal de carga, este pobre herdeiro do meu sangue… Pela Páscoa o mandarei com
Miqueias a Jerusalém, para se tornar filho da Lei… e depois?… É o filho da minha filha…
– Mas, em vez disso, não o darias a Mim? Não chores. Eu tenho muitos amigos, homens honestos, santos
e sem filhos. Eles o educarão santamente, no meu Caminho…
– Oh! Senhor! Desde que ouvi falar de Ti, eu desejei isso. E eu pedia ao santo Jonas, ele que sabe o que
quer dizer pertencer a este patrão, que salvasse o meu neto desta morte…
– Menino, tu irias comigo?
– Sim, meu Senhor. E não te darei aborrecimentos.
– Então está bem.
191.4 – Mas… a quem é que o vais dar? –pergunta Pedro, puxando Jesus pela manga–. A Lázaro mais este?
– Não, Simão. Mas, há tantos sem filhos…
– Entre eles, também eu…
O rosto de Pedro parece até ficar mais afilado, pelo desejo.
– Simão, Eu já te disse[38]. Tu deves ser o “pai” de todos os filhos que Eu vou te deixar como herança.
Contudo, não deves estar preso a nenhum filho teu próprio. Mas, não fiques contrariado com isso. Tu és
muito necessário ao Mestre, para que o Mestre possa afastar-te de Si, por causa de algum afeto. Eu sou
exigente, Simão. Sou exigente, mais do que um esposo muito ciumento. Eu te amo com toda a predileção e
te quero ter todo para Mim e de Mim.
– Está bem, Senhor… Está bem… Seja feito como Tu queres.
O pobre Pedro é heróico em sua adesão a esta vontade de Jesus.
– Será o filho da minha nascente Igreja. Não está bem? De todos e de ninguém. Será o “nosso” menino.
Ele nos acompanhará, quando as distâncias o permitirem, ou virá a nós, e os tutores dele serão os pastores,
eles que em todos os meninos amam ao “seu” menino Jesus. Vem cá, menino. Como te chamas?
– Jabé de João, e sou de Judá –diz com segurança o menino.
– Sim, nós somos judeus –confirma o velho–. Eu trabalhava nas terras de Doras, na Judeia, e minha filha
se casou com um homem daqueles lados. Ele estava trabalhando nos bosques, perto de Arimateia, e, neste
inverno…
– Eu vi o triste acontecimento[39].
– O menino salvou-se, porque naquela noite ele estava na casa de um parente distante…
verdadeiramente ele tem esse nome, Senhor. Eu disse isso logo à minha filha: “Por que há de ser este? Não
te lembras mais do antigo[40]?” Mas o marido quis chamá-lo assim, e ficou sabendo Jabé.
– “O menino invocará o Senhor, e o Senhor o abençoará, e dilatará os seus confins e a mão do Senhor
está sobre a mão dele, e ele não será oprimido pelo mal.” Isto lhe concederá o senhor, para te consolar a ti,
pai, aos espíritos dos mortos, e confortar o órfão.
191.5 E agora, que já separamos as necessidades do corpo das necessidades da alma, com um ato de amor
ao menino, escutai a parábola, que eu criei para vós.
Há tempo, havia um homem muito rico. As roupas mais bonitas eram as dele e, em seus hábitos de
púrpura e de bisso, ele se pavoneava pelas praças e em sua casa, respeitado pelos cidadãos como o homem
mais poderoso da cidade, e pelos amigos que o estimulavam em sua soberba, para disso tirarem alguma
vantagem. Suas salas estavam abertas todo dia para esplêndidos banquetes nos quais a multidão dos
convidados, todos eles ricos e, portanto não necessitados, se inclinavam, em adoração diante do rico
Epulão. Seus banquetes eram célebres pela abundância de alimentos e de vinhos excelentes.
Mas naquela mesma cidade havia um mendigo, um grande mendigo. Grande em sua miséria, como o
outro era grande em sua riqueza. Mas, por debaixo da crosta da miséria humana do mendigo Lázaro, estava
escondido um tesouro ainda maior do que a miséria dele e do que a riqueza de Epulão. Esse tesouro era a
santidade verdadeira de Lázaro. Ele nunca havia transgredido a Lei, nem mesmo impelido pela necessidade
e, sobretudo, tinha obedecido ao preceito do amor para com Deus e para com o próximo. Ele, como sempre
fazem os pobres, aproximava-se da porta dos ricos para pedir uma esmola e não morrer de fome. E cada
tarde, ele ia até à porta de Epulão, esperando receber dele pelo menos as migalhas dos pomposos
banquetes que se davam nas riquíssimas salas. Ele se deitava na rua, perto da porta e ficava esperando
pacientemente. Mas se Epulão percebia que ele estava lá, mandava que o expulsassem, porque aquele
corpo coberto de feridas, desnutrido, com roupas rasgadas, era uma coisa muito triste para ser vista pelos
convidados. Assim dizia Epulão. Na verdade, porém, era porque aquela vista de miséria e de bondade era
uma reprovação contínua para ele. Mais compassivos do que ele, eram os seus cães, bem alimentados,
usando colares preciosos, que se aproximavam do pobre Lázaro e lhe lambiam as chagas, ganindo de
alegria pelas carícias que ele lhes fazia, e que chegavam até a levar-lhe dos sobejos das ricas mesas, e
assim Lázaro se ia recuperando da desnutrição com o que lhe levavam aqueles animais, pois, se dependesse
do homem, ele já estaria morto, já que o homem não lhe permitia nem mesmo entrar nas salas, depois do
banquete, para recolher as migalhas caídas das mesas.
191.6 Um dia Lázaro morreu. Ninguém ficou sabendo disso na terra, ninguém o chorou. Epulão, até pelo
contrário, se alegrou por não ver naquele dia, nem depois, aquela miséria que ele dizia ser “uma vergonha”
junto à soleira de sua casa. Mas no Céu os Anjos perceberam isso. E, em seu último suspiro, em sua
choupana pobre e necessitada de tudo, estavam presentes as coortes celestes que, em meio a um fulgurar
de luzes, recolheram a alma dele, levando-a, com cântico de hosanas, ao seio de Abraão.
Pouco tempo depois, morreu Epulão. Oh! Que funerais faustosos! A cidade toda, que soubera de sua
agonia e se aglomerava na praça em que ficava a morada dele, ou para que se notasse que era amiga
daquele “grande”, ou por curiosidade, por algum interesse junto aos herdeiros, foi unir-se ao pesar da
família, e os uivos subiram ao céu, e com os uivos do luto os elogios mentirosos feitos ao “grande”, ao
“benfeitor”, ao “justo” que havia morrido.
Mas, poderá a palavra do homem mudar o juízo de Deus? Poderá alguma apologia humana cancelar tudo
o que está escrito no livro da Vida? Não, não pode. O que está julgado, julgado está, o que foi escrito,
escrito está. E, mesmo tendo um enterro solene, Epulão teve o seu espírito sepultado no inferno.
E, então, naquele cárcere horrível, bebendo e comendo fogo e trevas, encontrando ódio e torturas por
toda parte e em todos os instantes daquela eternidade, ele levantou os olhos ao Céu. Ao Céu, que ele tinha
podido entrever[41], no meio de um esplendor fulgurante, em uma fração de minuto, e cuja beleza indizível
se lhe fazia agora presente, para ser tormento, entre os tormentos atrozes. E viu, lá no alto, a Abraão. Ele
estava lá longe, mas fúlgido, bem-aventurado… e em seu seio, também fúlgido e bem-aventurado, estava o
pobre Lázaro, que outrora fora desprezado, quando era repulsivo, miserável, e agora?… E agora, cheio da
beleza da luz de Deus e de sua santidade, rico de amor de Deus, e admirado, não pelos homens, mas pelos
Anjos de Deus.
Então, Epulão gritou gemendo: “Pai Abraão, tem dó de mim! Manda Lázaro, pois não posso esperar que
tu mesmo o faças, que ele molhe a ponta do dedo dele na água, e venha pousá-lo sobre a minha língua, para
refrescá-la, porque eu estou numa grande aflição, por causa deste fogo, que está me queimando!”
Abraão lhe respondeu: “Recorda-te, meu filho, que tu tiveste todos os bens em vida, enquanto que
Lázaro teve todos os males. Ele ainda soube fazer do mal um bem, enquanto tu não soubeste de teus bens
fazer nada que não fosse mal. Por isso, é justo que agora ele seja aqui consolado e que tu sofras. Além
disso, não é mais possível fazer o que pedes. Os santos estão espalhados pela terra, para que os homens
deles tirem alguma vantagem. Mas, quando, não obstante essa vizinhança o homem continua a ser o que
é, — no teu caso, um demônio — aí é inútil recorrer depois aos santos. Agora, nós estamos separados. As
ervas nos campos estão misturadas. Mas desde que foram cortadas pela foice, ficam separadas as boas das
más. Assim é que acontece convosco e conosco. Estivemos juntos na terra, e nos expulsastes e nos
atormentastes de todos os modos e, indo contra o amor, vós esquecestes de nós. Agora estamos separados.
Entre vós e nós há um abismo tão grande, que os que quiserem passar daqui para vós não o podem fazer;
nem vós que aí estais, podeis atravessar o tremendo abismo, para virdes até nós.”
191.7 Epulão, chorando mais fortemente, gritou: “Pelo menos, ó pai santo, manda, eu to peço, manda que
Lázaro vá à casa de meu pai. Eu tenho cinco irmãos. Eu nunca compreendi o amor, nem mesmo para com
meus parentes. Mas agora, agora eu compreendo que coisa horrível é não sermos amados. Além disso, aqui
onde estou só existe ódio, e agora é que compreendo, por aquele instante de tempo em que minha alma
pôde ver a Deus, o que é o Amor. Não quero que os meus irmãos venham a sofrer o que eu estou sofrendo.
Eu fico aterrorizado por causa deles, pois eles levam a vida que eu levei. Oh! Manda lázaro dizer-lhes
onde eu estou e porque aqui estou e que o inferno existe, e é atroz, e que quem não ama a Deus e ao
próximo vem para o inferno. Manda-o! Para que, em tempo, eles se precavenham, e não tenham que vir
para cá, para este lugar de eterno tormento.”
Mas Abraão lhe respondeu: “Os teus irmãos têm Moisés e os Profetas. Que eles os ouçam.”
E, com um gemido de alma torturada, respondeu Epulão: “Oh! Pai Abraão! Se um morto for falar com
eles, ficarão mais impressionados… Escuta-me! Tem piedade!”
Mas Abraão disse: “Se eles não quiseram escutar a Moisés e aos Profetas, não acreditarão, nem que
alguém ressuscite dos mortos, por uma hora, para ir dizer a eles palavras de Verdade. E, além disso, não é
justo que um bem-aventurado deixe o meu seio, para ir receber ofensas dos filhos do inimigo. O tempo das
injúrias para ele já passou. Agora ele está na paz, e aí fica, por ordem de Deus, que vê a inutilidade de uma
tentativa de conversão para aqueles que não crêem nem na palavra de Deus, e não a põem em prática.”
Esta é a parábola, cujo sentido é tão claro, que nem precisa de explicação.
191.8 Aqui verdadeiramente viveu, conquistando a santidade de um novo Lázaro, meu Jonas, cuja glória
diante de Deus é evidente, pela proteção que ele dá a quem espera Nele. A vós sim, Jonas pode vir, como
protetor e amigo, e virá se fordes sempre bons. Eu desejaria, e vos digo o que Eu disse[42] a ele na
primavera passada, Eu desejaria ajudar-vos a todos até com bens materiais, mas não posso, e esta é a
minha dor. Eu só posso mostrar-vos o Céu. Não posso senão ensinar-vos a grande sabedoria da resignação e
prometer-vos o Reino futuro. Não odieis nunca, por nenhuma razão. O ódio é forte no mundo. Mas o ódio
tem sempre um limite. Já o amor não tem limite, nem de poder, nem de tempo. Amai, pois, a fim de que
possais possuí-lo para a vossa defesa e conforto nesta terra, e como um prêmio no Céu. É melhor serdes
Lázaros do que Epulões, podeis acreditar. Procurai chegar a crer nisto e sereis bem-aventurados.
Não queirais ver no castigo destes campos uma palavra de ódio, ainda que os fatos o podiam justificar.
Não leiais mal o milagre. Eu sou o Amor, e não o teria ferido. Mas, visto que o Amor não podia dobrar o
Epulão cruel, Eu o abandonei à Justiça, e ela fez a vingança do mártir Jonas, e dos seus irmãos. Vós
aprendei isto do milagre. Que a Justiça está sempre vigilante, até quando parece estar ausente, e que,
sendo Deus o Senhor de todas as criaturas, pode servir-se, para a aplicação da Justiça, das mais pequeninas
delas, como as lagartas e as formigas para morderem o coração do cruel e do avarento e fazê-lo morrer, ao
vomitar o veneno que o sufoca.
191.9 Eu vos abençôo agora. Mas por vós rezarei em cada nova aurora. E tu, pai, não tenhas mais
preocupações com o cordeiro que me confias. Eu o trarei a ti, de vez em quando, para que possas alegrar-te
em vê-lo crescendo na sabedoria e na bondade pelos caminhos de Deus. Será o teu cordeiro desta tua pobre
Páscoa, o mais agradável dos cordeiros apresentados ao altar do Senhor. Jabé, saúda a teu velho pai, depois
vem ao teu Salvador, ao teu Bom Pastor, A paz esteja convosco!
– Oh! Mestre! Bom Mestre! Vais deixar-nos!…
– Sim. É doloroso. Mas não fica bem que o guarda vos encontre aqui. Eu vim aqui justamente para evitar
punições. Obedecei por amor ao Amor, que vos aconselha.
Os infelizes se levantam com lágrimas nos olhos e vão para a sua cruz. Jesus os abençoa ainda e depois,
com a mão do menino na sua e com o homem de Endor do outro lado, volta pelo mesmo caminho por onde
veio à casa de Miqueias, acompanhado por André e por João que, tendo feito o seu turno de guarda, vão
unir-se aos coirmãos.
[38] Eu já te disse em 104.5. O anterior alusão a Lázaro está ligada ao fato de 172.11.
[39] Eu vi o triste acontecimento em 139.2.
[40] do antigo, segundo a citação que segue, trata-se de 1 Crônicas 4,9-10.
[41] levantou os olhos ao Céu. Ao Céu, que ele tinha podido entrever… e cuja beleza indizível… deve se entender no sentido que MV corrigiu em
uma cópia datilografada: levantou o olhar ao Limbo dos santos que havia visto... e o qual já de indizível pacífica beleza...
[42] disse em 89.1.
192. Uma predição feita a Tiago de Alfeu. Chegada
a Enganim, depois de uma parada em Magedo.
17 de junho de l945.
192.1 – Senhor, aquele cimo é o Carmelo? –pergunta-lhe o primo Tiago.
– Sim, irmão. Aquela é a cadeia do Carmelo, e o cume mais alto é o que dá nome à cadeia.
– De lá de cima também deve ser bonito ver o mundo. Já estiveste lá?
– Já estive uma vez sozinho, no começo da minha pregação. Foi aos pés do Carmelo que Eu curei meu
primeiro leproso. Mas iremos até lá juntos, para nos lembrarmos de Elias…
– Obrigado, Jesus. Tu me compreendeste, como sempre.
– E, como sempre, Eu te aperfeiçoo, Tiago.
– Por quê?
– O porquê está escrito no Céu.
– Não me dirias, meu irmão, Tu que lês o que está escrito no Céu?
Jesus e Tiago vão andando um ao lado do outro, e só o pequeno Jabé, sempre levado pela mão de Jesus,
pode ouvir a conversação confidencial dos primos, que sorriem um para o outro, olhando-se nos olhos.
Jesus, passando um braço por sobre as costas de Tiago, para puxá-lo mais para perto, pergunta-lhe:
– Queres tu saber mesmo? Está bem, Eu irei te dizer, por meio de uma adivinhação e, quando achares a
chave dela, ficarás sabendo. Escuta[43]: “Tendo-se reunido os falsos profetas no Monte Carmelo, Elias
aproximou-se do povo, e disse: ‘Até quando ficareis mancando dos dois lados? Se o Senhor é Deus, segui-o;
se é Baal, segui-o’. O povo nada respondeu. Elias, então, continuou a dizer ao povo: ‘Dos profetas do Senhor
só fiquei eu’.” E a única força deste solitário era para gritar: “‘Ouve-me, ó Senhor Deus, ouve-me, a fim de
que este povo reconheça que Tu és o Senhor Deus, e que tornaste a converter os seus corações’. Aí o fogo
do Senhor caiu, e devorou o holocausto.” Meu irmão, agora adivinha!
Tiago fica pensando, de cabeça inclinada, e Jesus o olha sorrindo. Fazem alguns metros assim, depois
Tiago pergunta:
– Tem alguma coisa que ver com Elias, ou com o meu futuro?
– Com o teu futuro, naturalmente…
Tiago continua a pensar, depois murmura:
– Estaria eu destinado a convidar Israel para seguir de verdade por um caminho? Estaria eu chamado
para ser o único sobreviventes em Israel? Se for assim, queres dizer que os outros serão perseguidos e
dispersos e que… e que… eu rezarei a Ti pela conversão deste povo… como se fosse um sacerdote… como
se eu fosse uma vítima… Mas, se for assim, queima-me desde já, Jesus…
– Já o estás sendo. Mas serás arrebatado pelo Fogo, como Elias[44]. Sobre isso é que iremos, Eu e tu
sozinhos, conversar lá no Carmelo.
– Quando? Depois da Páscoa?
– Depois de uma Páscoa, sim. E nessa ocasião, te direi muitas coisas…
192.2 Um bonito riozinho, que vai correndo para o mar e que ficou cheio com as chuvas da primavera e
com as neves derretidas, faz que eles parem ali.
Pedro chega correndo, e diz:
– A ponte é mais lá em cima, por onde passa a estrada que de Ptolomaida vai para Enganim.
Jesus volta docilmente atrás e atravessa o riozinho por uma forte ponte de pedra. Logo depois, vão
aparecendo outras montanhas e colinas, mas de pequena importância.
– Estaremos esta tarde em Enganim? –pergunta Filipe.
– Com certeza. Mas agora nós estamos com o menino. Estás cansado, Jabé? –pergunta-lhe Jesus
amorosamente–. Sê sincero como um anjo.
– Um pouco, Senhor. Mas vou fazer força para andar.
– Este menino está debilitado –diz com sua voz gutural o homem de Endor.
– Sem dúvida nenhuma –exclama Pedro–. Com a vida que vem levando nestes últimos meses. Vem que eu
te levo nos braços.
– Oh! Não, senhor. Não te canses. Eu ainda posso caminhar.
– Vem, vem, com certeza não és pesado. Pareces um passarinbo mal alimentado –e Pedro o levanta,
pondo-o montado sobre seus ombros robustos e segurando-o pelas pernas.
Vão andando depressa, porque o sol já está forte, convidando-os e os estimulando a chegarem logo às
colinas sombreadas.
192.3 Param em um lugar, que eu ouço chamar de Magedo, para aí tomarem alimento e descanso, ao lado
de uma fonte muito fresca e barulhenta por causa da grande quantidade de água que dela brota em uma
bacia de pedra escura. Mas ninguém do lugar se interessa por aqueles viandantes, que são anônimos entre
os muitos outros peregrinos, mais ou menos ricos, que vão indo a pé ou em seus burrinhos e mulas, rumo a
Jerusalém, para a Páscoa. Já há aí um ar de festa e muitos meninos, que estão entre os peregrinos, vão
muito contentes, com o pensamento na cerimônia da maioridade.
Dois rapazinhos, de condições abastadas, que vieram brincar perto da fonte, enquanto aí está Jabé com
Pedro, que o traz consigo, agradando-o com mil coisinhas, perguntam ao rapazinho:
– Tu também estás indo para te tornares filho da Lei?
Jabé responde timidamente:
– Sim –mas vai esconder-se quase por detrás de Pedro.
– Este é o teu pai? Tu és pobre, não é?
– Eu sou pobre, sim.
Os dois meninos, talvez filhos de fariseus, ficam olhando para ele de um modo irônico e curioso, e dizem:
– Logo se vê.
E de fato se vê… Sua roupinha é bem mísera! Talvez o menino cresceu, mas, não obstante que a orla da
veste de cor marron desbotada pelas intempéries, tenha sido desfeita, o vestido mal chega a metade de
suas perninhas morenas, deixando assim bem descobertos os pés mal calçados com duas desconformes
sandálias, presas aos pés por umas cordinhas, que os devem torturar bastante.
Os meninos, desapiedados por aquele egoísmo próprio de muitos meninos e pela crueldade dos meninos
que não são bons, dizem:
– Oh! Então não terás uma roupa nova para a tua festa! Mas nós, sim!… Não é, Joaquim? A minha é toda
vermelha, com capa da mesma cor. Ele tem a dele da cor do céu e teremos sandálias com fivelas de prata,
um cinto precioso e um talete, seguro por uma lâmina de ouro e…
– … e um coração de pedra, digo eu –dispara Pedro, que acabou de refrescar seus pés e de apanhar água
para todos os odres–. Vós sois maus, rapazinhos. A cerimônia e a veste não valem nem uma rã, se o coração
não for bom. Eu prefiro o meu menino. Saí soberbos! Ide para os ricos e tende respeito para com quem é
pobre e honesto. 192.4Vem, Jabé. Esta água é boa para os teus pezinhos cansados. Vem, que eu te lavo. Depois
tu caminharás melhor. Oh! Estas cordinhas, como te fizeram mal! Não deves caminhar mais. Eu te levarei
nos braços, até chegarmos a Enganim. Lá eu vou encontrar um vendedor de sandálias e comprar para ti um
par de sandálias novas.
E Pedro lava e enxuga aqueles pezinhos que, há tempo, não recebiam tantas carícias.
O menino olha para ele, fica dúvidando, mas acaba encurvando-se sobre o homem, que lhe está atando
as sandálias, e o abraça com os seus bracinhos descarnados, e diz:
– Como és bom! –e o beija sobre os cabelos grisalhos.
Pedro fica comovido. Ele se assenta no chão, lá mesmo na terra molhada, do jeito que está, e põe o
menino em seu colo, dizendo:
– Então, chama-me de “pai.”
Forma-se um conjunto cheio de ternura. Jesus se aproxima com os outros. Mas antes, os dois
orgulhozinhos de há pouco, que lá tinham permanecido como curiosos, perguntam:
– Então, ele não é teu pai?
– Para mim, ele é pai e mãe –diz com firmeza Jabé.
– Sim, querido. Disseste bem: pai e mãe. E, meus caros senhorinhos, eu vos garanto que ele não irá mal
vestido para a cerimônia. Terá ele também uma veste de rei, vermelha como o fogo, e com um cinto verde
como a erva e um talo pequeno branco como a neve.
Ainda que a mistura não seja de todo harmoniosa, contudo ela espanta os dois vaidosos, e os põe em
fuga.
– Que estás fazendo, Simão, aí no molhado? –pergunta Jesus com um sorriso.
– No molhado? Ah! Sim. Agora é que eu percebi. Que é que estou fazendo? Eu me faço cordeiro de novo,
com a inocência no coração. Ah! Mestre! Mestre! Bem! Vamos andando. Mas me deves deixar fazer assim
com este pequeno. Depois, o cederei. Mas, enquanto não for um verdadeiro israelita, é meu.
– Mas, sim. E tu serás dele sempre o tutor como um velho pai. Está bem assim? Vamos, para podermos
estar à tarde em Enganim, sem precisarmos fazer o menino correr demais.
– Eu o levo. Minha rede pesa mais do que ele. Ele não pode caminhar assim, com estas duas solas
furadas. Vem.
E, carregando-se com o seu filhinho, Pedro retoma feliz o seu caminho, cada vez mais sombreado, por
entre bosques de várias frutas, subindo suavemente pelas colinas das quais a vista se espraia por sobre a
fértil planície de Esdrelon.
192.5 Já chegaram às vizinhanças de Enganim, — que deve ser uma bela cidadezinha, bem abastecida de
água que vem transportada das colinas por um aqueduto aéreo, provavelmente obra romana — quando o
rumor de um pelotão de soldados, que vem chegando, faz que eles se refugiem à beira do caminho. Os
cascos dos cavalos fazem barulho no caminho que, aqui nos subúrbios da cidade, apresenta uma aparência
de pavimentação, que mal aflora da poeira acumulada junto com detritos, sobre uma rua que nunca viu uma
vassoura.
– Salve, Mestre! Como? Por aqui? –grita Públio Quintiliano, apeando do cavalo e aproximando-se de
Jesus com um sorriso aberto, segurando o cavalo pela rédea. Seus soldados põem-se a andar aos passos,
para acompanharem seu superior.
– Estou indo a Jerusalém para a Páscoa.
– Eu também. Reforça-se a guarda durante as festas, mesmo porque Pôncio Pilatos vem à cidade para
elas, e também porque lá está Cláudia. Nós somos a vanguarda dela. As ruas são tão sem segurança! E as
águias espantam os chacais –diz o soldado –rindo-se e olhando para Jesus.
Depois, continua em voz baixa:
– A guarda este ano é dobrada, para proteger as costas do imundo Antipas. Há um grande
descontentamento pela prisão do Profeta. Descontentamento em Israel, por reflexo, também entre nós.
Mas… já providenciamos: vai chegar ao Sumo Sacerdote e seus cúmplices… um suave… tocar de flautas.
E, ainda em voz baixa, ele termina:
– Vai tranquilo. Todos aqueles unhões já se recolheram às suas patas. Ah! Ah! Eles têm medo de nós.
Basta limpar a garganta e já pensam que é um rugido. Vais falar em Jerusalém? Vem perto do pretório.
Cláudia fala de Ti como de um grande filósofo. É bom para Ti, porque… o procônsul é a Cláudia.
192.6Ele olha ao redor de si, e vê Pedro carregado, vermelho e suado.
– E esse menino?
– É um órfão que tomei comigo!
– Mas aquele teu homem se cansa demais! Menino, tens medo de ir alguns metros a cavalo? Eu te porei
debaixo da clâmide, e irei devagar. E te entregarei a… a este homem, quando estivermos às portas da
cidade.
O menino não faz resistência. Deve ser manso como um cordeiro e Públio o levanta consigo para a sela.
E, quando está dando ordens aos soldados para irem devagar, vê o homem de Endor, fixa nele os olhos, e
diz:
– Tu por aqui?
– Sou eu. Parei de vender ovos aos romanos. Mas os frangos ainda estão lá. Agora, eu estou com o
Mestre…
– Que bom para ti. Com isto terás mais conforto. Adeus. Salve, Mestre. Vou esperar-te naquela moita de
árvores.
E esporeia o cavalo.
– Tu o conheces? E ele te conhece? –perguntam muitos ao João de Endor.
– Sim. Eu era fornecedor de frangos. Antes, ele não me conhecia. Mas, certa vez, fui chamado ao
comando em Naim, para fixar as cotas, e ele estava lá. Desde então, quando eu ia a Cesareia comprar livros
ou utensílios, ele sempre me saudou. Ele me chama de Cíclope ou Diógenes. Não é mau homem e, por mais
que eu tenha ódio aos romanos, contudo não o ofendi, porque ele podia me ser útil.
– Ouviste, Mestre? Produziu bom efeito o meu discurso ao centurião de Cafarnaum. Agora vou mais
tranquilo –diz Pedro.
Chegam a um capão de mato, a cuja sombra a patrulha apeou dos cavalos.
– Agora, vou entregar o menino. Quais são as tuas ordens, Mestre?
– Nenhuma, Públio. Que Deus se manifeste a ti.
– Salve –e ele monta de novo e esporeia o cavalo, sendo acompanhado pelos seus com um grande
barulho das ferraduras dos cascos e das couraças dos soldados.
192.7 Entram na cidade, e Pedro, com o seu pequeno amigo, vai comprar as sandalinhas.
– Aquele homem morre de vontade de ter um filho –diz Zelotes, e termina:– Ele tem razão.
– Eu os darei aos milhares. Agora, vamos procurar abrigo, para prosseguirmos viagem amanhã à
primeira aurora.
[43] Escuta, e segue a citação que se trata de 1 Reis 18,20-22.26-38.
[44] como Elias em 2 Reis 2,11.
193. Chegada a Siquém depois de dois dias de caminho.
18 de julho de 1945.
193.1 Pelos caminhos, cada vez mais cheios de peregrinos, Jesus continua, indo para Jerusalém. Um
aguaceiro, que desceu de noite, formou um pouco de lama nas estradas, mas, em compensação, abaixou a
poeira e tornou o ar mais claro. As campinas parecem agora jardins bem cuidados pelo jardineiro.
Vão indo todos bem dispostos, porque puderam descansar bastante na parada, e porque o menino, agora
com suas sandalinhas novas, não sofre com a viagem, mas, ao contrário, cada vez mais se vai acostumando
com os companheiros, fala com um e com outro, conta a João que seu pai se chamava João, e sua mãe Maria e
que, por isso, ele gosta muito de João.
– Mas também –termina ele–, quero bem a todos, e, no Templo, vou rezar muito, tanto por vós, como pelo
Senhor Jesus.
É comovente ver como este grupo de homens, em sua maior parte sem filhos, tenham ares paternais e
cheios de cuidado para com o menor dos discípulos de Jesus. Até o homem de Endor se enternece em seu
aspecto, quando obriga o pequeno a beber um ovo, ou quando entra pelos bosques, que tornam verdes as
colinas e as montanhas, sempre mais altas, fendidas por grandes vales, em cujo fundo passa a estrada mestra,
para ir apanhar raminhos ligeiramente ácidos de sarça, ou talos cheirosos do funcho selvagem, trazendo-os
para o pequeno, a fim de matar-lhe a sede, sem enchê-lo de água. Também assim o vemos, quando ele não o
deixa ficar pensando na duração da viagem, fazendo-o observar as vistas e panoramas que vão se
apresentando.
O antigo pedagogo de Cíntium, arruinado pela maldade humana, revive por este menino, que é uma miséria
como ele mesmo também é, e vai desfazendo as rugas de sua desventura e de suas amarguras com este sorriso
bom que agora mostra. Se Jabé, agora com suas sandalinhas novas, já se sente menos infeliz e com sua carinha
menos triste, na qual não sei se não terá sido alguma mão apostólica que terá tido o cuidado de cancelar todos
aqueles sinais da vida selvagem levada por ele durante tantos meses, arrumando-lhe agora os cabelos, até aqui
descuidados, mas agora aparados e macios, depois de uma boa lavada, até o homem de Endor que ainda fica
um pouco perplexo, quando ouve que o estão chamando pelo nome de João, sacudindo depois a cabeça, com
um sorriso de compaixão para com a sua fraca memória, até ele também está bem diferente. A cada dia que
passa, seu rosto vai perdendo aquela dureza que tinha antes e vai adquirindo uma seriedade, que não causa
mais medo. Naturalmente, estas duas misérias que revivem pela bondade de Jesus, giram agora, pelo seu amor,
ao redor de seu Mestre. Os companheiros são queridos para eles, mas Jesus… Quando Ele olha para eles, ou
fala com eles, a expressão do rosto deles se torna inteiramente feliz.
193.2 Depois de terem atravessado o grande vale e, em seguida, uma colina verde e muito bonita, do alto da
qual se pode avistar a planície de Esdrelon — e isto faz que o menino suspire:
– Que estará fazendo o meu velho pai?
E faz que ele termine com um suspiro bem triste e um brilho de lágrimas em seus olhos castanhos:
– Oh! Ele está bem menos feliz do que eu… e ele é tão bom! –e o lamento do menino lança um ar de tristeza
sobre todos os rostos.
E aqui se começa a descer para um vale fértil cheio de campos cultivados e de oliveiras, e um vento brando
está fazendo cair a neve das florzinhas das videiras e das oliveiras mais precoces. E a planície de Esdrelon se
perde de vista para sempre.
Uma parada para a refeição, e de novo se toma o caminho para Jerusalém. Mas, ou deve ter chovido muito
ou, então, aqui é um lugar rico em águas subterrâneas, pois as pradarias estão parecendo mais um grande
brejo, visto que a água está brilhando por entre a folhagem cerrada, e sobe até alcançar a estrada um pouco
mais acima e, no entanto, não deixa por isso de ser muito lamacenta. Os adultos sungam as vestes, para que
elas não virem crostas de barro, enquanto Judas Tadeu põe sobre os ombros o menino, para que ele descanse e
para que possam atravessar mais depressa aquela zona inundada e talvez doentia. O dia já está no fim e eles,
depois de terem rodeado novas colinas e superado outro vale rochoso e enxuto, entram por uma região elevada
sobre um planalto rochoso e, abrindo caminho por entre os muitos peregrinos, vão procurar alojamento em
uma espécie de albergue muito rústico: é uma grande tenda, debaixo da qual foi posta palha abundante. e nada
mais.
Pequenas lâmpadas acesas aqui e ali iluminam as ceias das famílias dos peregrinos, famílias pobres como a
dos apóstolos, porque os ricos, em geral, já levantaram suas tendas fora do povoado, evitando os contatos com
os populares do lugar e com os pobres peregrinos.
Cai a noite e o silêncio….O primeiro que começa a dormir é o menino: ele se encolhe, cansado, no colo de
Pedro, que, depois, vai colocá-lo sobre a palha e o cobre com cuidado.
Jesus reúne os adultos para uma oração, depois cada um se joga sobre a palha, para descansar da longa
jornada.
193.3 No dia seguinte, a comitiva apostólica, que saiu de manhã, à tarde já está para entrar em Siquém, tendo
atravessado Samaria, de tão belo aspecto, cercada por muros, coroada por belos e majestosos edifícios, ao
redor dos quais se comprimem belas casas, enfileiradas. Tenho a impressão de que a cidade, como Tiberíades,
tenha sido reconstruída há pouco, e conforme os usos de Roma. Ao redor, do outro lado dos muros, há uma
faixa de terras muito férteis e bem cultivadas.
A estrada que da Samaria conduz a Siquém, vai se desenrolando e descendo, de um outeiro para outro, com
uma série de muros de arrimo para o terreno, o que me faz lembrar das colinas de Fiésole, com uma vista
magnífica para as verdes montanhas do sul e para uma planície muito bonita, que se estende para o oeste[45].
A estrada se inclina para descer até o vale, mas, de vez em quando, volta a subir, para atravessar outras
colinas, do alto das quais tem-se a visão da terra da Samaria, com suas belas culturas de oliveiras, de trigais,
de vinhedos, sobre os quais vigiam lá do alto das colinas os bosques de carvalhos e de outras árvores de tronco
alto, que devem ser providenciais contra os ventos que, vindos das gargantas, tendem a formar turbilhões, que
acabariam com as culturas. Esta região me faz lembrar muito aqueles pontos do nosso Apenino aqui perto da
Amiata, quando os nossos olhos contemplam, ao mesmo tempo, as culturas comuns e as de cereais da Marema,
e as colinas festivas, e os montes severos, que se elevam bem mais altos, no interior. Agora, não sei como está
a Samaria. Naquele tempo era muito bonita .
Agora, eis que, entre dois altos montes, os mais altos da região, vê-se, ao longo de um dos lados, um vale e,
no centro dele, muito férteis e com águas abundantes, estão as terras de Siquém. É aqui que Jesus e os seus
são alcançados pela faustosa caravana da corte do Cônsul, que está de viagem para as festas de Jerusalém.
Uns escravos vão a pé, outros vão em carros para tomarem cuidado com o transporte da mobília… Meu Deus,
quanta coisa podiam levar atrás de si naquele tempo! E, com os escravos, carros verdadeiros, carregados com
um pouco de tudo, e até de liteiras completas e carros para viagens: são carros amplos, de quatro rodas, com
um bom molejo, cobertos, para que neles se abriguem as damas… E depois, outros carros e escravos…
Um toldo está sendo afastado, sustentado por uma mão de uma mulher cheia de jóias, e aparece, então, o
perfil severo de Plautina, que saúda sem dizer nada, mas com um sorriso. A mesma coisa faz Valéria, que está
com sua pequenina entre os joelhos, toda animada, dando gritos e risadinhas. O outro carro de viagem, mais
pomposo ainda, passa sem que nenhum toldo seja afastado. Mas, depois de ter passado, faz-se ver, na parte
traseira do carro, o rosto rosado de Lídia, que faz um gesto de inclinação. E a caravana se distância…
193.4 – Viajam bem eles! –diz Pedro, cansado e suado–. Mas, se Deus nos ajudar, depois de amanhã, à tarde, já
estaremos em Jerusalém.
– Não, Simão. Eu preciso afastar-me do caminho e ir pelo Jordão.
– Mas, por quê, Senhor?
– Por causa do menino. Ele está muito triste e muito mais triste ficaria, ao ver o monte do triste
acontecimento.
– Mas não o vamos ver! Ou melhor, vamos vê-lo do outro lado… e… eu cuido de mantê-lo distraído. Eu e
João… Com pouca coisa ele se distrai, o pobre pombinho sem ninho. Mas, ir pelo Jordão, nunca! É melhor por
aqui. Melhor por aqui. Caminho direto. Mais breve. Mais seguro. Não. Não. Este, este. Tu o vês? Também as
romanas o fazem. Ao longo do mar e do rio se exalam as febres, com estas primeiras chuvas do verão. Por aqui
é saudável. E depois… Quando iremos chegar, se por lá se prolongar a viagem? Pensa um pouco em que aflição
ficará tua mãe depois do triste acontecimento com o Batista!…
Pedro vence e Jesus concorda.
– Repousaremos logo e bem então, e amanhã bem ao alvorecer partiremos, para estarmos depois de
amanhã à tarde no Getsêmani. No dia seguinte, sexta-feira, iremos à mãe, em Betânia, onde descarregaremos
os livros de João, que nos cansaram não pouco, e iremos encontrar Isaac, ao qual daremos este pobre irmão…
– E o menino, dá-lo-às logo?
Jesus sorri:
– Não. Eu o darei à minha mãe, a fim de que o prepare para a “sua” festa. Depois, o teremos conosco pela
Páscoa. Mas, após isso, deveremos deixá-lo também… Não te apegues demais! Ou melhor: ama-o, como se
fosse um teu filho, mas com espírito sobrenatural. Tu vês: ele é débil e se cansa. A Mim também me teria
agradado instruí-lo e fazê-lo crescer nutrido por Mim na Sabedoria. Mas Eu sou o Incansável, e Jabé é muito
novo e muito fraco para passar pelas nossas fadigas. Nós iremos pela Judeia, depois voltaremos a Jerusalém
em Pentecostes, depois iremos… iremos evangelizando… E o en contraremos de novo no verão em nossa terra.
193.5Eis-nos às portas de Siquém. Vai adiante com o teu irmão e com Judas de Simão, para procurar alojamento.
Eu irei para a praça do mercado, e lá te esperarei.
E se separam, enquanto Pedro sai correndo à procura de um abrigo, e enquanto os outros vão caminhando
com dificuldade pelas estradas cheias de gente, que grita e gesticula, de burros, de carros, todos indo para
Jerusalém para a Páscoa iminente. As vozes, os chamados, as imprecações se misturam aos urros dos asnos,
fazendo tudo um rumor, que ribomba forte sob os arcos lançados de uma casa para outra, fazendo um rumor
parecido com aquele que se ouve em certas conchas, quando as encostamos ao ouvido. O eco vai de uma
abóbada para outra, onde as sombras já se vão adensando, e o povo, como uma água, que vai sendo
empurrada, espraia-se pelas ruas e por elas vai entrando à procura de alguma área coberta, de alguma praça
ou de algum lugar onde possa passar a noite…
Jesus, segurando o menino pela mão, está encostado a uma árvore, esperando Pedro na praça que, àquela
hora, já está sempre cheia de vendedores.
– Que ninguém nos veja, nem nos reconheça –diz Iscariotes.
– Como reconhecer um grãozinho num montão de areia? –responde Tomé–. Não está vendo que mundão de
gente?
Pedro já está de volta:
– Fora da cidade, há uma tenda com feno. E não achei outra.
– Não iremos atrás de outra. É até bonita demais para o Filho do homem.
[45] para o oeste. No desenho que segue, MV escreveu, além dos quatro pontos cardiais (que se lêem por extenso porque foi escrito em lápis): planície, Samaria
e montes do sul.
194. Revelação feita ao pequeno Jabé
durante a viagem de Siquém a Berot.
19 de junho de 1945.
194.1 Como um rio que vai continuamente se avolumando, ao receber novos afluentes, assim está a
estrada, que vai de Siquém a Jerusalém, tornando-se cada vez mais cheia de peregrinos à medida que, por
outras estradas secundárias, os povoados vão despejando nela os fiéis que se dirigem à Cidade Santa. E isso
ajuda a Pedroa conservar distraído o menino, que vai passando agora por perto das colinas onde nasceu e
sob cujas glebas desmoronadas estão enterrados os seus pais, sem que ele o perceba.
Depois de uma longa marcha, interrompida depois que Silo, toda alcantilada lá no alto do seu monte, foi
deixada à esquerda, para tomar alimento e descanso ao som de águas puras e cristalinas, os peregrinos
põem-se de novo a caminho, ultrapassam um pequeno monte calcário um tanto escalvado, sobre o qual o sol
bate sem misericórdia. Começa-se a descida, através de uma série de vinhedos belíssimos, que lançam seus
festões sobre os barrancos dos montes calcários, mas totalmente expostos ao sol.
Pedro está com um sorriso meio dissimulado e faz sinal para Jesus, que também está sorrindo. O menino
não percebe nada, atento como ele está em ouvir a João de Endor, que lhe conta histórias de outras terras
por ele vistas e nas quais crescem uvas dulcíssimas, que não servem tanto ao vinho quanto para fazer doces
melhores do que as fogaças de mel.
194.2 Eis uma nova subida muito íngreme, porque a comitiva, deixando a estrada mestra, poeirenta e cheia
de gente, preferiu entrar por um atalho, que vai pelo meio do mato. E, tendo chegado ao alto, vêem brilhar,
lá ao longe, mas bem visível, um mar que resplende, suspenso sobre um aglomerado branco, que talvez
sejam casas alvejadas pela cal.
– Jabé –chama-o Jesus–, vem cá. Estás vendo aquele ponto de ouro? É a Casa do Senhor. Lá tu vais jurar
obediência à Lei. Tu a conheces bem?
– Mamãe me falou dela e meu pai me ensinou os preceitos. Eu sei ler… e acho que sei o que “eles” me
ensinaram antes de morrer.
O menino, que correra sorrindo para atender ao chamado de Jesus, agora está chorando, com a cabeça
baixa e a mão tremendo na mão de Jesus.
– Não chores. Escuta. Sabes onde estamos? Aqui é Betel. Foi aqui que o santo Jacó teve o seu sonho
angélico. Tu o conheces? Lembras-te dele?
– Sim, Senhor. Ele viu uma escada que ia da terra ao Céu e por ela, para baixo e para cima, iam e
vinham os anjos. E a mamãe me dizia que, na hora da morte, se tivermos sido sempre bons, veremos a
mesma coisa e se poderia ir, por aquele escada, até a Casa de Deus. Muitas coisas dizia-me minha mãe…
Mas agora não me dirá mais nada… eu as tenho todas aqui e é tudo o que tenho dela…
As lágrimas descem daquele rostinho triste.
– Não chores assim! Escuta, Jabé. Eu também tenho uma mãe, que se chama Maria, e que é santa e boa
e sabe dizer muitas coisas. É mais sábia do que um mestre, melhor e mais bela do que um anjo. Agora nós
estamos indo à casa dela. Ela vai gostar muito de ti. Vai dizer-te muitas coisas. E, depois, com ela está a
mãe de João, que também é boa e também se chama Maria. E a mãe do meu irmão Judas, também ela doce
como um pão de mel e também chamada Maria. Elas gostarão muito de ti. Muito mesmo. Porque tu és um
bom menino e por amor de Mim, porque te amo tanto. Depois, tu crescerás com elas e, quando cresceres,
serás um santo de Deus, pregarás como um doutor sobre Jesus, que te deu de novo uma mãe aqui e que
abrirá as portas do Céu para tua falecida mãe, para o teu pai, e que as abrirá também para ti, quando
chegar a tua hora. Tu nem terás necessidade de subir pela comprida escada dos Céus, na hora da tua
morte. Já terás subido por ela, durante a tua vida, procurando ser um bom discípulo, e te encontrarás lá, à
porta aberta do Paraíso, e Eu também lá estarei, e te direi: “Vem, meu amigo e filho de Maria”, e estaremos
juntos.
O sorriso luminoso de Jesus, que vai caminhando um pouco inclinado, para ficar mais perto do rostinho
levantado do menino, que caminha ao lado com sua mãozinha na dele, e aquela história maravilhosa
enxugam as lágrimas do menino, e fazem despontar um sorriso.
194.3 O menino, que está bem longe de ser um tolo, mas que somente está atordoado pela grande dor e
privação que sofreu, interessado por aquela história, pergunta:
– Mas, Tu dizes que abrirás as portas dos Céus. Não estão elas fechadas pelo grande Pecado? A mamãe
me dizia que ninguém podia entrar, enquanto não tivesse vindo o perdão, e que os justos o estavam
esperando no Limbo.
– É isto mesmo. Mas depois Eu irei para o Pai, depois de ter pregado a palavra de Deus e… ter obtido
para vós o perdão, e Eu direi “Pai meu, agora Eu cumpri toda a tua vontade. Agora quero o meu prêmio
pelo meu sacrifício. Que venham os justos, que estão esperando o teu Reino.” E o Pai me dirá: “Que seja
como Tu queres.” E, então, Eu descerei para chamar todos os justos e o Limbo abrirá as suas portas, ao
som da minha voz, e sairão exultantes os santos Patriarcas, luminosos Profetas, as mulheres abençoadas de
Israel e depois, sabes quantos meninos? Será como um prado florido de meninos de todas as idades! E,
cantando, eles virão atrás de Mim, subindo para o belo Paraíso.
– E lá estará também a minha mamãe?
– Com toda a certeza!
– Tu não me disseste que ela estará lá contigo na porta do Céu, quando eu também tiver morrido…
– Ela, e com ela o teu pai não terão necessidade de estar junto àquela porta. Como anjos fulgentes, eles
alçarão sempre seus vôos do Céu para a terra, de Jesus até o pequeno Jabé e, quando tu estiveres para
morrer, eles farão como estão fazendo aqueles dois passarinhos ali, naquela sebe. Estás vendo-os?
Jesus toma o menino nos braços, para que ele veja melhor:
– Estás vendo como eles estão sobre os seus pequenos ovos? Estão esperando que os ovos se abram, e
depois estenderão as asas sobre sua ninhada para protegê-la de todo mal e, em seguida, quando ela já tiver
crescido e estiver pronta para o vôo, eles os sustentarão com suas fortes asas, levando-os para cima, para
cima, ainda mais para acima… rumo ao sol. Os teus pais farão assim contigo.
– Será assim mesmo?
– Assim mesmo.
– Mas, Tu dirás a eles que se lembrem de vir?
– Não haverá necessidade disso, porque eles te amam. Mas Eu lhes direi.
– Oh! Como eu te quero bem!
O menino, ainda nos braços de Jesus, abraça-se ao pescoço dele e o beija com uma expansão de tanta
alegria, que causa comoção a quem vê. Jesus retribui o beijo, e o põe no chão.
194.4 – Oh! Está bem. Agora, vamos para a frente. Para a Cidade Santa. Devemos chegar amanhã pela
tarde. Por que tanta pressa? Sabes me dizer? Por que não depois de amanhã?
– Não. Não seria a mesma coisa. Porque amanhã é Parasceve e, depois do pôr do sol, não se pode andar
mais do que seis estádios. Além disso não se pode, porque já começou o sábado e seu repouso.
– Portanto, no sábado se fica à toa.
– Não. Faz-se a oração ao Senhor Altíssimo.
– Como ele se chama?
– Adonai. Mas os santos podem dizer o seu nome.
– Também os meninos bons. Dize-o, se o sabes.
– Jaave –(O pequeno o pronuncia com um J suave e um A muito longo).
– E por que se faz a oração do Senhor Altíssimo no sábado?
– Porque Ele assim ordenou a Moisés, quando lhe deu as tábuas da Lei.
– Ah! Sim? E que foi que Ele disse?
– Ele ordenou que se santificasse o sábado: “Trabalharás durante seis dias, mas no sétimo dia
repousarás, e farás repousar, porque assim fiz Eu também depois da criação.”
– Como? O Senhor descansou? Ter-se-á cansado ao criar? E Ele criou mesmo? Como o sabes? Eu sei que
Deus não se cansa nunca.
– Ele não se cansa , porque Deus não caminha, nem move os braços. Mas assim fez para ensinar a Adão,
e a nós, e para ter um dia em que pensemos nele. E Ele criou tudo, com toda a certeza, Assim o diz o Livro
do Senhor.
– Mas, o Livro foi escrito por Ele?
– Não. Mas é a verdade. É preciso crer nele, para não ir para a companhia de Lúcifer.
– Disseste-me que Deus não caminha, nem move os braços. Como foi, então, que Ele criou? Como é Ele?
É uma estátua?
– Não é um ídolo. É Deus. E Deus é… deixa-me pensar e recordar como dizia minha mamãe, e, melhor
ainda do que ela, aquele homem que vai em teu nome ao encontro dos pobres em Esdrelon… A mamãe me
dizia, para fazer-me compreender a Deus: “Deus é como o meu amor por ti. Não tem corpo, mas existe.” E
aquele homenzinho, com um sorriso muito doce, dizia: “Deus é um espírito Eterno, Uno e Trino e a Segunda
Pessoa se fez carne por amor de nós pobres e tem o nome de…” Oh! Meu Senhor! Agora é que eu penso
nisso… és Tu!
E o menino, assombrado, prostra-se por terra, adorando.
Correm todos para perto dele, pensando que ele tivesse caído, mas Jesus faz um sinal de silêncio, pondo
o dedo sobre os lábios, depois diz:
– Levanta-te, Jabé. Os meninos não devem ter medo de Mim!
O menino levanta a cabeça, e fica olhando para Jesus com uma expressão diferente, como de medo Mas
Jesus sorri, e lhe estende a mão, dizendo:
– Tu és um sábio, ó pequeno israelita. 194.5Continuemos o exame entre nós. Agora que Me reconheceste,
sabes se no Livro se fala de Mim?
– Oh! Senhor! Do princípio até aqui. Ele todo fala de Ti. Tu és o Salvador prometido. Agora compreendo
porque é que abrirás as portas do Limbo. Ah! Senhor! Senhor! E me quererás bem mesmo?
– Sim, Jabé.
– Não. Não mais Jabé, Dá-me um nome que queira dizer que Tu me amaste, que Tu me salvaste…
– Eu vou escolher o nome junto com minha mãe. Está bem?
– Mas que queira dizer justamente isso. E o tomarei, a partir do dia em que me tornar filho da Lei.
– Tomá-lo-às, a partir daquele dia.
Betel foi superada e, em um pequeno vale fresco e de água boa, fazem uma parada para tomarem a
refeição.
Jabé ficou meio aturdido pela revelação, e está comendo em silêncio, aceitando com veneração, todos os
bocados que Jesus lhe vai oferecendo. Mas, pouco a pouco, ele se reanima e, especialmente depois de ter
jogado uma bela partida com João, enquanto os outros estão descansando sobre a erva verde, volta a Jesus,
junto com o sorridente João e os três fazem um pequeno e lindo grupo.
– Não me disseste quem fala de Mim no Livro.
– Os Profetas, Senhor. E, antes ainda, fala disso o Livro, desde quando Adão foi expulso do Paraíso, e
depois a Jacó, e a Abraão e a Moisés… Oh! Meu pai me dizia que tinha ido a João — não a este, mas ao
outro João, o do Jordão — e que ele, o grande profeta, te chamava de cordeiro… agora, sim, eu compreendo
que o cordeiro de Moisés… que a Páscoa és Tu!
João o estimula:
– Mas qual Profeta que profetizou melhor do que ele?
– Isaías e Daniel. Mas… eu gosto mais de Daniel, agora que eu Te amo como a meu pai. Posso dizer uma
coisa? Dizer que Te amo como a meu pai? Sim? Pois bem; agora eu prefiro Daniel.
– Por quê? Quem fala muito de Cristo é Isaías.
– Sim. Mas ele fala das dores de Cristo. Daniel, ao contrário, fala do belo anjo e da tua vinda. É
verdade… ele também diz que o Cordeiro será imolado. Mas eu penso que o Cordeiro era imolado com um
golpe só. Não como dizem Isaías e Davi. Eu chorava sempre quando os ouvia ler e mamãe não me falou
mais neles.
O menino está quase chorando, ainda agora, enquanto acaricia a mão de Jesus.
– Não penses por hora. Escuta. Sabes os preceitos?
– Sim, Senhor. Acho que os sei. No bosque eu os ficava repetindo, para não me esquecer deles e para
ouvir as palavras de mamãe e de papai. Mas agora não choro mais (na verdade, sua pupilas já estão
brilhando muito), porque agora eu tenho a Ti.
João sorri e se abraça a Jesus, dizendo:
– São as minhas próprias palavras! Todos os pequenos de coração falam a mesma coisa.
– Sim. Porque as palavras deles vêm de uma única Sabedoria. 194.6Agora precisamos ir andando, de modo
que possamos chegar a Berot bem cedo. A multidão vai crescendo e o tempo está ameaçador. Os abrigos
vão ser tomados de assalto. E Eu não quero que fiqueis doentes.
João chama os companheiros e se recomeça a marcha para Berot, atravessando uma planície não muito
cultivada mas também não completamente árida, como era o pequeno monte por onde passaram, depois de
Silo.
195. Uma lição de João de Endora
Iscariotes e chegada a Jerusalém.
20 de junho de 1945.
195.1 O céu está ameaçando chuva, e Pedro me parece Eneias invertido, porque ele, em vez de estar
levando embora o próprio pai, tem sobre os ombros o pequeno Jabé, bem coberto agora com o capote de
Pedro. A cabecinha se vê aparecer acima da cabeça branca de Pedro, que está com os braços do pequeno ao
redor de seu pescoço e rindo, enquanto vai chapinhando nas pequenas poças de água barrenta.
– Podia nos ter poupado esta –murmura Iscariotes, nervoso por causa da água que cai do céu e da que o
chão espirra em sua roupa.
– Ora! Poderíamos estar livres de muitas coisas! –responde João de Endor, fitando bem o belo Judas com
o seu olho único que, eu creio, vale por dois.
– Que queres dizer?
– Pretendo dizer que é inútil exigir que os elementos tenham cuidado conosco, quando nós não o temos
com os nossos semelhantes e em assuntos bem mais graves do que umas duas gotas de água ou algum
salpico de lama.
– É verdade. Mas eu gosto de entrar na cidade bem arrumado e limpo. Tenho muitas amizades entre os
grandes.
– Toma cuidado, então, para não levares algum tombo.
– Estás querendo provocar-me?
– Naão! Mas eu sou um velho mestre e… um velho aluno. Desde que nasci, estou aprendendo. Primeiro,
eu aprendi a vegetar, depois fui observando a vida, depois conheci as amarguras da vida, procurei
exercitar-me inutilmente numa justiça, a de ir “sozinho” contra Deus e contra a sociedade. Deus me
castigou com o remorso, a sociedade com os grilhões e, por isso justiçado, por fim, acabei sendo eu. Mas
agora eu aprendi, estou aprendendo a “viver.” Agora, sendo mestre e aluno, bem podes entender que me
seja natural ficar repetindo as lições.
– Mas eu sou apóstolo…
– E eu sou um infeliz, eu sei, e não deveria tomar a liberdade de permitir-me ensinar a ti. Mas, vê bem:
ninguém nunca sabe o que é que vai ser. Eu pensava que iria morrer como um honesto e venerado
pedagogo em Chipre, e me tornei um homicida e um encarcerado. Mas, quando eu puxava minha faca para
tirar vingança e quando arrastava minhas correntes odiando o universo, se alguém me tivesse dito que eu
iria virar um discípulo do Santo, teria ficado em dúvida quanto à sanidade mental de quem o tivesse dito. E,
no entanto, tu estás vendo! Por isso, quem sabe se a ti, apóstolo, eu não poderia dar alguma boa lição. Lição
dada pela minha experiência. Não pela minha santidade. Eu nem penso nisso.
– Tem razão aquele romano de chamar-te de Diógenes.
– Está bem. Mas porém Diógenes procurava um homem e não o encontrou. E eu, mais feliz do que ele,
encontrei uma serpente onde pensava que estivesse uma mulher e um cuco onde eu pensava que estivesse
um homem amigo. Mas, depois de ter andado vagando durante tantos anos e de me ter tornado louco ao
verificar isso, encontrei o Homem, o Santo.
– Eu não conheço outra sabedoria, a não ser a de Israel.
– Se assim é, já tens com que salvar-te. Mas é que agora tens também a ciência, a Sabedoria de Deus.
– É a mesma coisa.
– Oh! Não. É como um dia nublado, comparado a um cheio de sol.
– Afinal, o que queres é ensinar-me? Eu não tenho desejo disso.
– Deixa-me falar! Antes, falava aos meninos: eram distraídos. Depois, às sombras: me maldiziam. Depois
eu falei aos frangos: eram já melhores do que os dois primeiros, muito melhores. Agora, eu falo comigo
mesmo, porque ainda não posso falar com Deus. Por que queres impedir que o faça? Eu só tenho meia vista,
uma vida estragada nas minas, um coração doente há tantos anos. Deixa, pelo menos, que não fique estéril
a minha mente.
– Jesus é Deus.
– Eu sei disso, eu creio. Mais do que tu. Porque eu renasci por obra dele, e tu não. Mas, por mais que Ele
seja o Bom, é sempre Ele: é Deus e o pobre infeliz que eu sou não ousa tratá-lo com a familiaridade com que
tu o tratas. Fala-lhe a minha alma… mas o lábio não ousa. A alma, eu penso que Ele a ouça em seus prantos
de reconhecimento e de penitente amor.
195.2 É verdade, João, Eu ouço a tua alma –diz Jesus, entrando no meio da conversa dos dois. Judas
enrubesce de vergonha e o homem de Endor, de alegria–. Eu ouço a tua alma, é verdade. E também o
trabalho da tua mente. Disseste bem. Quando estiveres formado em Mim, ficarás muito alegre por teres
sido mestre e aluno atento. Fala, fala, até contigo mesmo…
– Uma vez, Mestre, e não há muito tempo, me disseste que não é bom ficar falando com seu próprio eu –
observa, impertinente, Judas.
– É verdade. Eu o disse[46]. Mas foi porque tu estavas fazendo murmuração com o teu próprio eu. Este
homem não fica murmurando: ele medita, e com boa intenção. Ele não faz mal.
– Em resumo: eu estou errado! –diz Judas, agressivo.
– Não. O que tens são sombras no coração. Mas nem sempre se pode estar sereno. Os camponeses
desejam a chuva. É uma caridade rezar para que ela venha. Também esta é uma caridade. Mas olha: eis um
belo arco-íris que de Atarot termina o seu arco em Ramá. Estamos já além de Atarot: o triste e grande vale
foi superado. Aqui está tudo cultivado, tudo está sorrindo por baixo deste sol, que vem rasgando as nuvens.
Quando estivermos em Ramá, já estaremos a trinta e seis estádios de Jerusalém. Nós a veremos de novo
depois daquela colina, que marca o lugar onde houve aquela horrenda libidinagem, cometida pelos
gabaonitas[47]. Uma coisa horrível é a mordida da carne, Judas…
Judas não responde, mas se afasta dali, chapinhando com raiva pelas pequenas poças de água suja.
195.3 – Mas, que é que ele tem hoje? –pergunta Bartolomeu.
– Cala-te, antes que Simão de Jonas ouça. Evitemos discussões e… não exasperemos Simão. Ele está tão
feliz com o seu menino!
– Sim, Mestre. Mas não fica bem. Eu vou dizer-lhe.
– Ele é jovem, Natanael. Tu também o foste…
– Sim… mas… Ele não deve faltar-te com o respeito!
E, sem querer, ele levanta a voz.
Aí Pedro chega:
– Que está acontecendo? Quem é que falta com o respeito? Será o novo discípulo? –e olha para João de
Endor, que se havia retirado discretamente, logo que compreendeu que Jesus estava corrigindo o discípulo,
e está agora conversando com Tiago de Alfeu e Simão Zelotes.
– Nem por sombra! Ele é respeitoso como uma menina.
– Ah! Está bem. Senão… era o olho dele que corria perigo. Então… então, é Judas…
– Escuta. Simão, não poderias ir cuidar do teu pequeno? Tu o tiraste de mim, e ainda queres preocupar-
te com uma conversação amigável entre Mim e Natanael. Não te parece que queres preocupar-te com
coisas demais?
Jesus sorri de um modo tão sereno, que Pedro fica na dúvida sobre o seu juízo. Ele olha para
Bartolomeu… mas este já levantou o rosto aquilino e está perscrutando o céu… Pedro sente cair a suspeita.
O aparecimento da Cidade, já bem perto, visível agora em toda a sua beleza de colinas, de oliveiras, de
casas, e especialmente pelo Templo, esta vista que deve ter sido sempre causa de emoção e de orgulho para
os israelitas, acaba por distraí-lo completamente. O sol já bem quente de abril da Judeia, bem depressa
enxugou as pedras da rua consular. Agora, as poças d’água precisam ser procuradas. Os apóstolos estão se
arrumando, à beira da rua, descendo as vestes que tinham sungado, lavando em um córrego de águas
claras, os pés cheios de barro, pondo em ordem os cabelos e vestindo suas capas. O mesmo faz Jesus. E vejo
que todos estão fazendo assim.
195.4 A entrada em Jerusalém devia ser uma coisa importante. Apresentar-se diante dos muros, nestes dias
de festa, era como apresentar-se diante de um soberano. A Cidade Santa era a “Verdadeira” rainha dos
israelitas. Eu o compreendo bem neste ano em que posso notar, nesta rua consular, as turbas e o seu
comportamento. Aqui os cortejos das diferentes famílias se põem em ordem, as mulheres todas juntas, os
homens em outro grupo, os meninos em um dos grupos ou no outro, mas todos sérios e, ao mesmo tempo,
serenos. Alguns tornam a dobrar a capa mais usada e tiram dos sacos de viagem uma outra nova, ou trocam
de sandálias. Depois disso, até seu modo de andar muda e se torna mais solene e até mesmo religioso. Em
cada um dos grupos há um solista, que dá o tom, e os hinos são entoados, os antigos e gloriosos hinos de
Davi. As pessoas agora se olham com olhares melhores, como que abrandadas por terem visto a Casa de
Deus, e olham para esta Casa Santa, este enorme cubo de mármore, encimado pelas cúpulas douradas e
colocado como uma pérola no centro do recinto do Templo.
Aqui — na comitiva apostólica que assim está formada: na frente, Jesus e Pedro, tendo entre eles o
menino; atrás vem Simão, Iscariotes e João; depois André, que obrigou João de Endor a ficar entre ele e
Tiago de Zebedeu; na quarta fila, os dois primos do Senhor, com Mateus; por último, Tomé com Filipe e
Bartolomeu — aqui é Jesus quem entoa, com sua poderosa e belíssima voz, de um ligeiro tom barítono,
misto — para torná-lo mais belo — a vibração de tenor, e Judas Iscariotes responde. Ele é um tenor puro.
João, com sua voz límpida de quem é ainda muito jovem. As duas vozes dos barítonos, que são os primos de
Jesus, e a de quase baixo de Tomé, que é de um barítono tão grave, que quase não é mais tal. Os outros,
dotados de vozes menos belas, acompanham em surdina o coral cheio, formado por aqueles que são os
virtuoses do grupo. (Os salmos são aqueles conhecidos, chamados graduais[48]).
O pequeno Jabé, com uma vozinha de anjo, por entre as vozes robustas dos homens, canta muito bem,
talvez porque conheça melhor do que os outros, o salmo 121:
– Alegrei-me por aquilo que me foi dito: ‘Iremos à Casa do Senhor’.
Verdadeiramente tudo está iluminado pela alegria no rostinho que, há bem poucos dias, estava muito
triste.
Eis que os muros já estão perto. Aqui está a Porta dos Peixes. Aí estão as ruas apinhadas de gente.
Logo irão eles para o Templo para uma primeira oração. Depois é a paz, paz do Getsêmani, depois a ceia
e o descanso.
A viagem a Jerusalém terminou.
[46] Eu o disse a ele em 183.1.
[47] libidinagem, cometida pelos gabaoitas narrada em Juízes 19,22-28.
[48] graduais são ditos nos Salmos 120-134 segundo a nova numeração. O Salmo 121, citado mais abaixo, tornou-se Salmo 122.
196. O dia de sábado no Getsêmani. Jesus fala sobre
a mãe e dos amores de diferentes potências.
21 de junho de 1945.
196.1 A manhã do sábado foi ocupada, na maior parte do tempo, em restaurar os corpos cansados e limpar
as roupas cheias de poeira e amarrotadas pela viagem. Nas amplas cisternas do Getsêmani, que a água da
chuva foi enchendo, e no Cedron, cujas águas cantam ao bater nas pedras, espumando, cheio como ele está
pelas chuvas dos últimos dias, há tanta água que é um verdadeiro convite a quem a vê. Por isso, os
peregrinos, um depois do outro, sem terem medo da água fria, descem para mergulhar e depois, tornando a
vestir-se da cabeça aos pés, com os cabelos ainda um pouco corridos, por causa da água da torrente, tiram
água das cisternas para despejá-la em tanques de bom tamanho, onde estão as roupas, separadas pelas
cores.
– Oh! Muito bem –diz contente Pedro–. Ali elas já ficarão menos sujas e Maria as poderá lavar com
menos cansaço. –(Suponho que seja a mulher que mora no Getsêmani)–. Só tu, pequenino, não podes mudar
de roupa. Mas amanhã…
De fato, o menino tem uma vestezinha limpa, tira-a de sua sacolinha, uma sacolinha que mal daria para
o enxoval de uma boneca, de tão pequena que é. Mas a vestezinha que ele tirou, está ainda mais desbotada
e rasgada do que a outra e Pedro olha para ela preocupado e murmurando:
– Como é que eu vou fazer para levá-lo pela cidade? Eu poderia dividir em duas a minha capa, porque
com uma capa… ele se cobriria todo.
Jesus, que ouviu este solilóquio paterno, diz:
– É melhor fazer que ele descanse agora. Esta tarde iremos a Betânia…
– Mas eu quero comprar a roupa para ele. Eu lhe prometi…
– Tu o farás com certeza. Mas é melhor aconselhar-se antes com a mãe. Tu sabes… as mulheres… têm
mais capacidade do que nós nas compras… e ela se sentirá feliz por ocupar-se com um menino… Vós ireis
juntos!
A ideia de ir junto com Maria fazer as compras arrebata o apóstolo taté o sétimo céu. Não sei se Jesus
lhe expressou todo o seu pensamento, ou se omitiu uma parte , ou seja, aquela que tivesse dito que a mãe
tem um gosto mais apurado para evitar certos conjuntos horríveis de cores. Mas o fato é que Ele consegue
o seu escopo sem precisar deixar aborrecido seu Pedro.
196.2 Eles se espalham pelo olival, que está muito bonito, neste sereno dia de abril. A chuva dos dias
passados parece ter prateado as oliveiras e semeado flores, pois lindamente as copas estão brilhando ao sol
e bem numerosas são as florzinhas aos pés das oliveiras. Os passarinhos cantam e voam de todos os lados.
A cidade se estende por ali afora, na direção oeste para quem olha daqui[49].
Não se vê o formigueiro humano, que está pelo meio dela, mas vêem-se as caravanas, que vão indo para
a Porta dos Peixes e para outras portas, cujo nome eu não sei, deste lado leste, e que depois são engolidas
pela cidade, como se ela fosse um ventre esfaimado.
Jesus está passeando e observando Jabé, que alegre está brincando com João e com os mais jovens.
Também Iscariotes, depois de passada a sua raiva de ontem, está alegre e brincando. Os mais velhos
observam e sorriem.
– Que dirá a tua mãe deste menino? –pergunta Bartolomeu.
– Eu acho que Ela dirá: “É muito fraquinho” –diz Tomé.
– Oh! Não. Ela dirá: “Pobre menino” –responde Pedro.
– Ela Te dirá, pelo contrário: “Estou contente, porque Tu o amas”
–objeta Filipe.
– A mãe nunca teria dúvidado disso. Mas eu creio que Ela não dirá nada. Ela o receberá em seu
coração –diz Zelotes.
– E Tu, Mestre, que dizes que Ela dirá?
– Ela fará o que vós estais dizendo. Mas muitas coisas, ou melhor, todas Ela as pensará, e ao beijá-lo dirá
só: “Que tu sejas bendito!”, e cuidará dele como se fosse um passarinho que caiu do ninho. 196.3Um dia, Ela
me contou o que aconteceu, quando Ela era uma menininha. Ainda não tinha três anos, porque ainda não
estava no Templo, e seu coração se partia de amor, produzindo, como a flor ou a azeitona esmagadas na
prensa, todos os seus óleos ou os seus perfumes. E, em seu delírio de amor, dizia à sua mãe que queria ser
virgem para agradar mais ao Salvador, mas que teria gostado de ser pecadora, para poder ser salva e ficava
quase chorando, porque a mãe não a compreendia e não sabia dizer-lhe como é que se pode ser “pura” e
“pecadora”, ao mesmo tempo. Quem a tranquilizou foi seu pai, que lhe mostrou um pequeno passarinho,
que ele tinha conseguido salvar quando estava em perigo, à beira de uma fonte. O pai, então, com o
passarinho, criou uma parábola[50], dizendo-lhe que Deus a tinha salvado de um modo antecipado e que,
por isso, Ela lhe devia dar graças duas vezes. E a pequena Virgem de Deus, a grandíssima Virgem Maria,
exerceu pela primeira vez sua maternidade espiritual sobre aquele pequeno ser caído do ninho, que Ela
pôde lançar ao vôo, quando ficou forte, mas que nunca mais abandonou o jardim de Nazaré e lá ficou ainda,
consolando com seus vôos e seus pios, a triste casa e os tristes corações de Ana e de Joaquim, quando
Maria esteve no Templo. O passarinho morreu pouco antes da morte de Ana… Ele tinha cumprido sua
tarefa… 196.4Minha mãe tinha feito voto de virgindade por amor. Mas tinha, sendo uma criatura perfeita, a
maternidade no sangue e no espírito. Porque a mulher foi feita para ser mãe. E é até uma aberração,
quando ela se faz de surda aos apelos desse instinto, que é amor de segunda potência…
Pouco a pouco, os outros foram chegando para perto.
– Que queres dizer, Senhor, quando falas de amor de segunda potência? –pergunta Judas Tadeu.
– Meu irmão, há muitos amores e de diversas potências. Há um amor de primeira potência: é o que se dá
a Deus. Depois, o amor de segunda potência: é esse amor materno, ou paterno, porque, se o primeiro é todo
espiritual, este é espiritual em duas partes, e carnal por uma. É verdade que no homem se mistura, sim, o
sentimento afetivo humano, mas sempre predomina o superior, porque um pai e uma mãe, sadia e
santamente tais, não dão somente alimento e carícias à carne de seu filho, mas também alimento e amor à
mente e ao espírito dele. E, tanto é verdade o que digo que quem se dedica à infância, ainda que seja
apenas para instruí-la, acaba por amá-la como sua carne.
– De fato, eu amava muito aos meus discípulos –diz João de Endor.
– Já compreendi que devias ter sido um bom mestre, ao ver como tratas Jabé.
O homem de Endor se inclina, e beija a mão de Jesus, sem dizer nada.
– Continua, por favor, a tua classificação dos amores –pede-lhe Zelotes.
– Existe o amor pela companheira: é um amor de terceira potência, porque é feito — falo sempre dos
sadios e santos amores — pela metade de espírito e pela metade de carne. O homem para a esposa é um
mestre e um pai, além de esposo. e a mulher, para o esposo, é um anjo e uma mãe, além de esposa. Estes
são os três amores mais elevados.
196.5 – E o amor ao próximo? Não estás enganado? Ou terás esquecido dele? –pergunta Iscariotes.
Os outros olham espantados para ele e ameaçadores por causa da observação que ele fez.
Mas Jesus, placidamente, responde:
– Não, Judas. Mas presta atenção. Deus há de ser amado porque é Deus e, por isso, não há necessidade
de explicação para persuadir a prestar esse amor. Ele é o que é, ou seja: o Tudo; e o homem é o nada, que
se torna participante do Tudo pela alma que nele foi infundida pelo Eterno — sem a alma, o homem seria
um dos muitos animais brutos, que vivem na terra, nas águas e no ar — e que deve adorá-lo por dever, e
para merecer sobreviver no Tudo, isto é, para merecer fazer parte do Povo santo de Deus no Céu, cidadão
da Jerusalém, que não conhecerá profanações e destruições, nunca mais.
O amor do homem, e especialmente o da mulher, aos filhos, é indicado como uma ordem nas palavras de
Deus a Adão e Eva, depois de tê-los abençoado, vendo que havia feito “coisa boa”, naquele longínquo sexto
dia, o primeiro sexto dia da criação. E Ele lhes disse: “Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra…”
Vejo a tua não formulada objeção e respondo assim dado que na criação, antes da culpa, tudo era
regulado e baseado no amor, essa multiplicação dos filhos teria sido amor, um amor santo, puro, poderoso e
perfeito. E Deus o deu como primeira ordem, ao homem: “Crescei e multiplicai-vos.” Amai, pois, depois de
Mim, aos vossos filhos. O amor, como agora existe, esse amor atual gerador de filhos, antes não existia. A
malícia não existia e não existia a execrável fome da sensualidade. O homem amava a mulher, e a mulher ao
homem, de um modo natural, não natural segundo a natureza como nós a entendemos, ou melhor, como vós
homens a entendeis, mas segundo a natureza de filhos de Deus: sobrenaturalmente[51].
Que doces os primeiros dias de amor entre os dois, que eram irmãos, porque nascidos do mesmo Pai, e
que, no entanto, eram esposos, e que, ao se amarem, olhavam um para o outro com os olhos inocentes de
dois gêmeos no berço; e o homem sentia um amor de pai para com sua companheira “osso de seus ossos e
carne de sua carne”, assim como é o filho em relação a seu pai. E a mulher conhecia a alegria de ser filha,
isto é, protegida por um amor bem alto, porque sentia ter em si alguma coisa daquele maravilhoso homem
que a amava, com inocência e angélico ardor, nos belos prados do Éden!
Depois, na ordem dos mandamentos dados por Deus, com um sorriso para os seus queridos pequeninos,
vem aquilo que o próprio Adão, dotado pela Graça de uma inteligência, que só era menor que a de Deus,
decreta, falando da companheira do homem, e nela, de todas as mulheres, o decreto do pensamento de
Deus, que se refletia nítido no tenro espelho do espírito de Adão, e florescia no pensamento e na palavra:
“O homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne.”
Se não houvesse os três pilares dos três amores acima referidos, teríamos podido ter o amor ao
próximo? Não. Não o teríamos podido. O amor a Deus torna Deus amigo, e ensina o amor. Quem não ama a
Deus, que é bom, com toda a certeza não pode amar ao próximo que, em sua maior parte, é defeituoso. Se
não houvesse amor conjugal e paternidade no mundo, não teríamos o próximo, porque os próximos são os
filhos nascidos dos homens. Estás persuadido disso?
– Sim, Mestre. Eu não havia refletido.
– De fato, é difícil voltar atrás, subindo para as nascentes. O homem já está pregado, há muitos séculos e
milênios, na lama, e aquelas nascentes estão bem lá nos cumes! A primeira delas é uma nascente que vem
de um abismo de altura: É Deus… Mas Eu vos tomo pela mão e vos levo às nascentes. Eu sei onde elas
estão…
196.6 – E os outros amores? –perguntam juntos Simão Zelotes e o homem de Endor.
– O primeiro da segunda série, é o do próximo. Na realidade, é o quarto em potência. Segue o amor à
ciência. Depois vem o amor ao trabalho.
– E basta?
– E basta.
– Mas há ainda muitos outros amores! –exclama Judas Iscariotes
– Não. Há outras fomes. Mas não são amores. São desamores. São a negação de Deus e a negação do
homem. Por isso, não podem ser amores, visto que são negações, e a negação é o ódio.
– Se eu me nego a consentir no mal, isso é ódio? –pergunta Iscariotes.
– Infelizes de nós! Mas tu és mais capcioso do que um escriba. Queres dizer-me o que tens? Será o ar
fino da Judeia que te está beliscando os nervos como uma caimbra? –exclama Pedro.
– Não. Eu gosto de instruir-me e de ter muitas ideia s, mas claras. Aqui é fácil falar e logo com os
escribas. Não quero ficar sem argumentos.
– E achas que podes, no momento em que precisares, puxar para fora o fio da cor de que estás
precisando do saco que vais atulhando com todos estes trapos? –pergunta Pedro.
– Trapos, as palavras do Mestre? Estás blasfemando!
– Ora, não me queiras parecer escandalizado. Na boca do Senhor não são trapos; mas, uma vez que
sejam mal usadas por nós, tornam-se tais. Experimenta tu pôr um linho fino na mão de um menino… Não
leva muito tempo, ele já será um trapo sujo e imprestável. Isto acontece conosco… Agora se pretendes
pescar, no momento bom, um trapinho que te interessa, entre este trapinho e o que é sujo, não sei aonde
poderás chegar.
– Não penses nisso. Esses assuntos são meus…
– Oh! Está certo. que não penso. Já tenho que pensar muito nos meus. E depois!… Eu me contento que
não prejudiques o Mestre. Porque, neste caso, pensarei também nos teus assuntos…
– Quando eu lhe prejudicar, tu farás assim. Mas isso não acontecerá nunca, porque eu sei fazer as
coisas… Eu não sou um ignorante…
– Mas eu o sou, sei disso. Mas, justamente porque sei, não fico acumulando nada, para o ficar
ostentando, quando chega o bom momento. Mas nessa hora eu me recomendo a Deus e Deus me ajudará
por amor ao seu Messias, de quem eu sou o último dos servos e o mais fiel.
– Fiéis somos todos nós! –rebate, arrogante, Judas.
– Oh! Malvado! Por que ofendes o meu pai? Ele é velho e bom. Não deves. És um homem mau e me
causas medo –diz Jabé, muito sério, rompendo o silêncio atento em que estava.
– Já são dois! –diz em voz baixa Tiago de Zebedeu, dando uma cotovelada em André.
Ele falou baixo, mas Iscariotes ouviu.
– Vê, Mestre, se as palavras do estulto menino de Magdala não terão deixado um sinal? –diz Judas aceso
de raiva.
196.7 – Mas não seria mais bonito continuar a lição do Mestre, em vez de ficarmos parecendo uns cabritos
irritados? –pergunta o pacífico Tomé.
– É verdade, Mestre. Continua a falar-nos de tua mãe. É tão cheia de luz a sua infância. Ela nos torna a
alma virgem por reflexo e eu, um pobre pecador, tenho tanta necessidade disso! –exclama Mateus.
– Que é que Eu vos devo dizer? Há tantos episódios, um mais doce do que o outro…
– Ela os contou?
– Alguns. Mas muitos mais José: foi a mais bela narração feita a Mim quando criança, e também Alfeu de
Sara, que era pouco mais velho que minha mãe e foi amigo dela nos breves anos em que ela esteve em
Nazaré.
– Oh! Então, conta… –suplica-lhe João.
Todos se põem ao redor dele, sentados à sombra das oliveiras, com Jabé no centro, olhando fixamente
para Jesus, como se estivesse ouvindo uma paradisíaca lenda.
– Eu vos falarei da lição de castidade que deu minha mãe, poucos dias antes de ir para o Templo, ao seu
pequeno amigo e a muitos outros.
Havia-se casado naquele dia uma moça de Nazaré, parente de Sara, e Joaquim e Ana também tinham
sido convidados para a festa das núpcias.Com eles foi a pequena Maria que, junto com outras crianças,
tinha o encargo de jogar pétalas desfolhadas sobre caminho da esposa. Dizem que era belíssima de
pequena, e todos a disputavam, depois da festiva entrada da noiva. Era muito difícil ver Maria, porque ela
vivia sempre em casa, pois gostava muito de uma pequena gruta que dizia ser a “dos seus esponsais”, mais
do que qualquer outro lugar. Por isso, quando era vista — loura, rosada e graciosa —, era cumulada de
carícias. Chamavam-na de “A Flor de Nazaré”, ou então “A Pérola da Galileia”, ou ainda “A Paz de Deus”,
lembrando o enorme arco-íris, que se tinha formado, de repente, ao primeiro vagido dela. E ela era, de fato,
tudo o que diziam e mais ainda. É a Flor do Céu e da Criação, é a Pérola do Paraíso, e a Paz de Deus… Sim,
a Paz. Eu sou o Pacífico, porque sou Filho do Pai e filho de Maria: A Paz Infinita e a Paz Suave.
Naquele dia todos a queriam beijar e tomar no colo. E ela, esquivando-se aos beijos e aos contatos, disse
com uma delicada gravidade: “Eu vos peço: Não me amarroteis.” Eles pensaram que Ela estava falando de
sua veste de linho, cingida à cintura com uma faixa azul, e também nos pequenos pulsos, no pescoço, ou
então da pequena grinalda com florzinhas azuis com que Ana a tinha coroado, para conservar em seu lugar
os cachinhos do cabelo.
E, assim pensando, eles lhe garantiram que não amarrotariam nem a veste nem a grinalda.
Mas ela, segura, como uma pequena mulher de três anos, de pé, no meio de um círculo de adultos,
disse-lhes séria: “Não estou pensando no que se repara. Estou falando da minha alma. Ela é de Deus. E não
quer ser tocada, a não ser por Deus.” Então lhe disseram: “Nós beijamos a ti, não a tua alma.” E Ela: “O
meu corpo é templo da alma, e o sacerdote nele é o espírito. O povo não é admitido no recinto sacerdotal.
Eu vo-lo peço. Não entreis no recinto de Deus.”
Alfeu, que já tinha então mais de oito anos, e que a amava muito, encontrando-a perto da pequena gruta,
ocupada em apanhar flores, lhe perguntou: “Maria, quando fores mulher, não me quererias como esposo?”
Nele ainda estava viva a lembrança da festa de núpcias à qual estivera presente. E ela: “Eu te amo muito.
Mas, não olho para ti como para um homem. Vou dizer-te um segredo. Eu só vejo a alma dos vivos. Aquela
eu amo de todo o coração. Mas, nada mais eu vejo senão Deus, como ‘Verdadeiro Vivente’ ao qual poderei
entregar-me a mim mesma.”
Aí está um episódio.
– “Verdadeiro Vivente!” Sabes que esta é uma palavra profunda!
–exclama Bartolomeu.
E Jesus, com humildade e com um sorriso:
– Ela era a mãe da Sabedoria.
– Era?… Mas não estava só com três anos?
– Era. Desde a sua concepção, eu já vivia nela, sendo eu Deus[52] , em sua Unidade e Trindade
perfeitíssima.
196.8 – Mas, desculpa-me se eu, um culpado, ouso falar: então Joaquim e Ana sabiam que Ela era a virgem
escolhida? –pergunta Judas Iscariotes.
– Eles não sabiam.
– E então, como é que Joaquim pôde dizer que Deus a tinha salvado com antecipação? Isto não se refere
ao privilegio dela quanto à culpa?
– Refere-se. Mas Joaquim falava pela boca de Deus, como todos os profetas. Ele também não
compreendeu a sublime verdade sobrenatural, que o espírito punha em seus lábios. Porque Joaquim era um
justo. A ponto de merecer aquela paternidade. E era um homem humilde. Pois não há justiça onde existe
soberba. Ele era justo e humilde. Consolou a filha por seu amor de pai. Instruiu-a pela sabedoria de
sacerdote, pois ele o era, na qualidade de tutor da Arca de Deus. Ele a consagrou como Pontífice, com o
mais honroso dos títulos: “A sem Mancha.” Dia virá em que um outro já encanecido sacerdote dirá ao
mundo: “Ela é a concebida sem pecado”, e entregará ao mundo dos crentes esta verdade, como um artigo
de fé incontestável, para que no mundo que virá, um mundo que se irá afundando sempre mais numa
situação cinzenta e nebulosa, de heresias e de vícios, possa brilhar, plenamente conhecida, a Toda Bela de
Deus, coroada de estrelas, vestida com a luz da Lua, que é menos pura que a Dela, apoiada sobre os astros,
Rainha de todo Criado e do Incriado. Porque Deus-Rei tem Maria por Rainha, no seu Reino.
– Então, Joaquim era um profeta?
– Era um justo. Sua alma disse como um eco, aquilo que Deus dizia à sua alma amada por Deus.
196.9 – Quando iremos a esta “Mamãe”, Senhor? –pergunta, com uns olhos cheios de desejo, Jabé.
– Hoje de tarde. Que dirás a ela, quando a vires?
– “Eu te saúdo, mãe do Salvador.” Está bem assim?
– Muito bem, confirma Jesus, acariciando-o.
– Mas hoje não vamos ao Templo? –pergunta Filipe.
– Antes de irmos para Betânia, iremos ao Templo. E tu ficarás aqui. Não é verdade?
– Sim, Senhor.
A mulher de Jonas, guarda do olival, que veio se aproximando pouco a pouco, diz:
– Por que não o levas? O menino está desejando isso.
Jesus a fita com insistência, sem dizer nada.
A mulher compreende e diz:
– Já compreendi. Mas devo ter ainda uma pequena capa, a do Marcos. Vou buscá-la –e sai correndo,
depressa.
Jabé puxa João por uma manga:
– Os mestres serão muito exigentes?
– Oh! Não. Não tenhas medo. Depois não é para hoje. Em poucos dias, estando com a mãe, serás mais
sábio do que um doutor –encoraja-o João.
Os outros ouvem e sorriem diante da apreensão de Jabé.
– Mas quem é que vai apresentá-lo, como se fosse pai dele? –pergunta Mateus.
– Eu. É natural. A não ser que… o mestre queira apresentá-lo
–diz Pedro.
– Não, Simão. Não farei isso. Deixo para ti essa honra.
– Obrigado, Mestre. Mas estarás lá Tu também?
– Certamente. Todos estaremos lá. É o “nosso” menino…
Maria de Jonas está de volta, com uma capa roxo-escura, ainda em boas condições. Mas, que cor! Ela
mesma o diz:
– Marcos não a quis mais usar por que a cor não lhe agradava.
Com toda a razão. A capa é horrorosa! E o pobre Jabé, já de cor azeitonada como é, parece um afogado,
vestido com aquele roxo… Mas ele não se vê… e por isso está feliz com aquela capa, com a qual vai poder
enfeitar-se como adulto..
– A refeição está pronta, Mestre. A servente tirou agora mesmo o cordeiro do espeto.
– Então, vamos.
E, descendo do lugar onde estão, entram na ampla cozinha para a refeição.
[49] quem olha daqui. Segue o desenho que MV fez a lápis preto com parciais sobreposições em vermelho e azul e com o contorno a caneta em alguns
nomes. Ao centro é o Templo com Casas fincadas e, em semicírculo a esquerda, Subúrbios e casas mais esparsas, fechado como um todo em duplo cerco do
qual é a explicação em rodapé: (o cerco vermelho e azul são o muro). No “muro” se lê porta ao lado da indicação norte e uma outra porta em direção ao
sudeste. Fora dos “muros”: Cedron e Getsemani a leste, Casas e Casas ao sul, fiumicello e Gólgota a oeste.
[50] parábola em 7.5.
[51] sobrenaturalmente, sem as leis ordenadas de Deus – assim anota MV em uma cópia datilografada – inerentes a multiplicação e população da Terra, se
unisse a desordem da malícia, antes de “se substituir”. E anota na margem: Assim que o homem permanecer em ordem, não teriam origem nele os venenos
da tríplice concupisciência que o fizesse delirante, depois rebelde, depois decaído.
[52] sendo eu Deus: Maria, Santuário perpétuo e puríssimo onde o Deus Uno e Trino fez morada perpétua – assim anota MV em uma cópia datilografada –
não foi nunca separada da Sabedoria: o Verbo de Deus esteve sempre n’Ela, verdadeira Arca portadora da Palavra Eterna, e nenhuma criatura a conhecee
como Ela a conhece; esta Palavra que é Sabedoria Divina que se fez carne n’Ela e que ainda sempre esteve n’Ela.
197. No Templo com José de Arimateia.
A hora da incensação.
22 de junho de 1945.
197.1 Pedro está realmente solene, quando entra, em seu papel de pai, no recinto do Templo, segurando
Jabé pela mão. Ele parece ter ficado mais alto, de tão empertigado que vai indo.
Atrás, em grupo, vão entrando todos os outros. Jesus é o último, entretido em uma séria conversa com
João de Endor, que parece estar com vergonha de entrar no Templo.
Pedro pergunta ao seu protegido:
– Nunca estiveste aqui?
E tem por resposta esta frase:
– Quando eu nasci, pai. Mas não me lembro de nada.
O que faz Pedro rir à vontade, e ele repete a resposta para os seus companheiros que se riem também,
dizendo bonachões e chistosos:
– Talvez estavas dormindo, e por isso… –ou então: –Somos todos como tu. Não nos lembramos de quando
viemos até aqui, depois de termos nascido.
197.2 Também Jesus faz a mesma pergunta ao seu protegido, e recebe resposta semelhante, ou quase. Pois
João de Endor diz:
– Éramos prosélitos, e aqui cheguei nos braços de minha mãe, justamente na Páscoa, porque nasci nos
primeiros dias de Adar, e minha mãe, que era judia, pôs-se em viagem logo que pôde, para oferecer em
tempo o seu filho, do sexo masculino, ao Senhor. Talvez depressa demais… porque ela ficou doente e não
sarou mais. Eu tinha menos de dois anos, quando fiquei sem minha mãe. Foi a primeira desventura de
minha vida. Mas eu que era o seu primogênito, me tornei unigênito, por causa da doença dela; mas ela
estava tão ufana, porque morria por ter obedecido à Lei! Meu pai me dizia: “Ela morreu contente, por ter-te
oferecido no Templo…” Pobre mãe! Que foi que ofereceste? Um futuro assassino…
– João, não fales assim. Naquele tempo eras Félix, e agora és João. Tem presente a grande graça que
Deus te fez, e para sempre. Mas abandona o aviltamento pelo que foste. Não voltaste mais ao Templo?
– Oh! Sim. Aos doze anos e, desde então, sempre, enquanto… enquanto eu pude fazê-lo… Depois,
quando teria podido fazê-lo, não o fiz mais, porque já te disse qual era o culto que eu praticava; era só um:
o do ódio… E também por isso não tenho coragem de encaminhar-me para cá. Eu me sinto um estranho na
Casa do Pai… Eu o abandonei por tempo demais…
– Tu voltas aqui, seguro pela mão por Mim, que sou o Filho do Pai. Se Eu te conduzo para diante do altar
é porque sei que tudo está perdoado.
João de Endor tem um soluço áspero, e diz:
– Obrigado, meu Deus!
– Sim. Dá graças ao Altíssimo. Estás vendo como tinha espírito profético a tua mãe, uma verdadeira
israelita? Tu és o filho homem consagrado ao Senhor e jamais resgatado. És meu, és de Deus, discípulo e,
por isso, futuro sacerdote do teu Senhor na nova era e nova religião, que terá um nome tirado do meu: Eu
te absolvo de tudo, João. Anda tranquilo para a frente, indo para o Santo. Em verdade, Eu te digo que, entre
todos os que moram neste recinto, há muitos mais culpados e mais indignos do que tu de se aproximarem
do altar…
197.3 Enquanto isso, Pedro se esforça para explicar ao pequeno as coisas mais dignas de serem observadas
no Templo, mas chama em seu socorro outros mais cultos, especialmente Bartolomeu e Simão, porque ele
se acha bem à vontade com estes anciãos, nesse seu papel de pai.
Eles estão perto do gazofilácio para fazerem as suas ofertas, quando José de Arimateia os chama:
– Vós estais aqui? Desde quando? –diz ele depois das saudações recíprocas.
– Desde ontem à tarde.
– E o Mestre?
– Está ali com um novo discípulo. Daqui a pouco, virá.
José olha para o menino, e pergunta a Pedro:
– É teu netinho?
– Não… Sim… Afinal, não é nada do meu sangue, mas muito na fé e tudo no amor.
– Não te entendo bem…
– É um órfãozinho… mas nada do meu sangue. Um discípulo… porém muito na fé. Um filho… porém
tudo no amor. O Mestre o acolheu… e eu o acaricio. Deve tornar-se maior de idade por estes dias…
– Já tem doze anos? Tão pequenino?
– É… mas o Mestre o dirá… José, tu és bom… um dos poucos bons que há aqui dentro… Dize-me uma
coisa: estarias disposto a ajudar-me a resolver este problema? Tu sabes… eu o estou apresentando como se
fosse meu filho. Mas eu sou galileu e tenho em mim uma lepra feia…
– Lepra? –exclama José, apavorado e afastando-se.
– Não tenhas medo!… Estou com a lepra de ser de Jesus! E é a mais odiosa para os do Templo, a não ser
para poucas exceções.
– Naão! Não digas isso!
– É verdade e está dita. Por isso, eu temo que eles tratarão com crueldade o pequeno, por causa de mim
e de Jesus! Pois eu não sei como é que ele sabe a Lei, o Hagadã e o Midrashot. Jesus diz que ele sabe bem…
– Ora! mas se é Jesus quem o diz! Não tenhas medo!
– Bem que gostariam dar-me um aborrecimento! aqueles!
– Vejo que queres muito bem a este pequeno. Tu o tens sempre contigo?
– Eu não posso!… Vivo caminhando… O menino é pequeno e franzino…
– Mas eu iria de boa vontade contigo… –diz Jabé, que ficou mais confiante pelas palavras carinhosas de
José.
Pedro está radiante de alegria… Mas ainda diz:
– O Mestre diz que não se deve, e não o faremos… Mas, de qualquer maneira, nós nos veremos… José…
tu me ajudas?
– Mas, como não? Eu irei contigo. Diante de mim, não cometerão injustiças. Quando iremos? 197.4Oh!
Mestre! Dá-me a tua bênção!
– A paz esteja contigo, José. Tenho muito prazer em ver-te, e com boa saúde
– Eu também, Mestre, e também os amigos te verão com alegria. Estás no Getsêmani?
– Estava. Depois da oração, irei para Betânia.
– À casa de Lázaro?
– Não. À casa de Simão. Estou também com minha mãe, com a mãe dos meus irmãos e a de João e Tiago.
Irás lá ver-me?
– Ainda perguntas?! Grande alegria e grande honra. Eu te agradeço por isso. Eu irei com vários amigos!
…
– Vai devagar, José, com, esses amigos!… –aconselha Simão Zelotes.
– Oh! Vós já os conheceis. A prudência diz: “Que as paredes não ouçam.” Mas, quando vós os virdes,
compreendereis que são amigos.
– Então…
– Mestre, Simão de Jonas estava me falando sobre a cerimônia do pequeno. Tu chegaste na hora em que
eu lhe estava perguntando quando pretendeis realizá-la. Eu também quero estar lá.
– Será na quarta-feira, antes da Páscoa. Quero que ele faça a sua Páscoa, já como filho da Lei.
– Muito bem. Está entendido. Eu virei apanhar-vos em Betânia. Mas, na segunda-feira eu virei com os
amigos.
– Está dito.
– Mestre, eu vou deixar-te. A paz esteja contigo. Está na hora do incenso[53].
– Adeus, José. A paz esteja contigo. 197.5Vem, Jabé. Esta é a hora mais solene do dia. Há outra análoga de
manhã. Mas esta é ainda mais solene. A manhã inicia o dia. E é bom que o homem bendiga ao Senhor, para
ser abençoado durante o dia, em todos os seus trabalhos. Mas a tarde é ainda mais solene. A luz diminui,
cessa o trabalho, a noite vem chegando. A luz que diminui faz lembrar a queda no mal e de fato as ações
pecaminosas realizam-se quase sempre de noite. E porque? Porque o homem, não estando mais ocupado
com o trabalho, mais facilmente se deixa rodear pelo Maligno com seus chamarizes e pesadelos. Por isso, é
bom, depois de termos dado graças a Deus, por ter-nos protegido durante o dia, que lhe supliquemos para
que se afastem de nós os fantasmas da noite e as tentações. A noite, o sono… símbolo da morte. Mas, felizes
daqueles que, tendo vivido com a bênção do Senhor, adormecem, não nas trevas, mas em uma luminosa
aurora. O sacerdote, que oferece o incenso, assim o faz por todos nós. Ele reza por todo o povo, em
comunhão com Deus, e Deus lhe confia a sua bênção para o povo de seus filhos. Estás vendo como é grande
o ministério do sacerdote?
– Eu gostaria… Parecer-me-ia estar mais perto da mamãe…
– Se fores sempre um bom discípulo e um bom filho de Pedro, tu o serás. Agora, vem. As trompas estão
anunciando que a hora chegou. Vamos com veneração louvar a Javé. (Jesus diz assim, com o “J” longo: um
Jieovee muito cantado, com os últimos “e” muito abertos, como se fossem quase um a, mas o que vem
depois do “J” é muito fechado).
[53] incenso que no Templo queimava da manhã ao pôr do sol como está prescrito em Êxodos 30,7-8.
198. O encontro com a mãe em Betânia.
Jabé tem seu nome trocado por Margziam.
23 de junho de 1945.
198.1 Através da sombreada estrada, que liga o Monte das Oliveiras a Betânia, — e eu poderia dizer que o
monte chega com suas ramificações verdes até às campinas de Betânia — Jesus com os seus vai
caminhando solícito, para a cidade de Lázaro. Ele ainda não entrou, mas já está sendo reconhecido, e os
estafetas voluntários vão correndo por todos os lados, a fim de darem notícia de sua chegada. Por causa
deles, eis que, por um lado, vão-se pondo em movimento Lázaro com Maximino, Isaac com Timoneo e José
do outro; em terceiro lugar vem vindo Marta com Marcela e esta levanta seu véu para curvar-se e beijar a
veste de Jesus e logo depois vão chegando Maria de Alfeu com Maria Salomé, que prestam sua veneração
ao Mestre e depois abraçam seus filhos e, enquanto o pobre Jabé sempre levado pela mão de Jesus, agitado
por todos estes que chegam de todos os lados, observa espantado e João de Endor, sentindo-se um estranho,
vai para trás do grupo e fica separado, eis que vem se aproximando pelo caminho que conduz à casa de
Simão, a mãe.
Jesus abandona a mão de Jabé e, delicadamente, vai deixando para trás os amigos, apressando-se em ir
ao encontro dela. As conhecidas palavras rasgam os ares, e ressoam, como um solo de amor, pelo meio do
murmúrio da multidão: “Filho!”; “Mamãe!” E se beijam, mas no beijo de Maria vê-se a ânsia de quem ficou
temendo por muito tempo e agora — desfazendo-se o terror que a infernizou —, sente o cansaço pelo
esforço feito, mede em toda a sua extensão o perigo em que incorreu…
Jesus a acaricia, Ele que compreende e diz:
– Além do meu anjo, Eu tinha o teu, mãe, a velar sobre Mim. Assim, nada de mal me podia acontecer.
– Louvores sejam dados ao Senhor. Mas Eu sofri tanto!
– Eu queria vir mais depressa, mas tive que fazer outro caminho, para obedecer a ti. E foi bom, porque a
tua ordem, minha mãe, como sempre, floresceu para produzir o bem.
– Foi a tua obediência, Filho!
– Foi a tua ordem sábia, minha mãe…
E sorriem como dois enamorados.
Mas, será possível que esta mulher seja a mãe deste Homem? Onde estão os dezesseis anos de
diferença? O frescor e a graça do rosto e do corpo virginal fazem de Maria a irmã do seu Filho, que está na
plenitude de sua belíssima virilidade.
– E não me perguntas por que é que tudo floresceu para produzir um bem? –pergunta-lhe Jesus, sempre
sorrindo.
– Eu sei que meu Jesus não esconde nada de mim.
– Mamãe querida!
E a beija de novo…
As pessoas se conservaram longe, à distancia de alguns metros, e fazem como se não estivessem
observando aquela cena. Mas eu tenho certeza que nenhum desses olhos, que parecem estar olhando para
outro lado, deixe de estar olhando, de soslaio para uma cena de tão grande suavidade.
198.2 Quem está olhando, mais que todos é Jabé, que Jesus deixou, quando foi abraçar sua mãe, e que
ficou sozinho porque, desde que começaram a atropelar-se com perguntas e respostas, não prestaram mais
atenção no pobre menino… Ele fica olhando, olhando, depois inclina a cabeça, luta contra o choro… mas,
enfim, não aguenta mais e explode em um choro, gemendo: “Mamãe! Mamãe!”
Todos, então, e, em primeiro lugar, Jesus e Maria, e todos os outros, procuram remediar o caso e saber
quem é o menino. Maria de Alfeu chega e também Pedro — eles estavam juntos — e ambos dizem:
– Por que estás chorando?
Mas antes que, em seu forte pranto, Jabé possa achar fôlego para falar, Maria já correu e o tomou nos
braços, dizendo:
– Sim, meu filhinho, é a mamãe! Não chores mais… desculpa, se eu não te vi antes. Aqui está, meus
amigos, o meu filhinho…
Compreende-se que Jesus, naqueles poucos metros que andou até o menino, deve ter dito a Maria: “É
um pobre orfãozinho que Eu tomei comigo.” E todo o resto Maria compreendeu logo.
O menino ainda está chorando, mas agora menos inconsolável e, visto que Maria o tem nos braços e o
beija, acaba até por sorrir, com o seu rostinho banhado pelo pranto.
– Vem cá, que eu te enxugo todas estas lágrimas. Não deves chorar mais. Dá-me um beijo…
Jabé… não desejava senão aquilo, e, depois de receber tantas carícias até de homens barbudos, ele se
aconchega agora no calor do afeto, beijando a face lisa de Maria.
198.3 Mas Jesus saiu procurando e já avistou João de Endor, e vai buscá-lo lá em seu cantinho afastado. E,
enquanto todos os outros apóstolos saúdam Maria, Jesus chega até perto dela, segurando pela mão João de
Endor, e diz:
– Eis, mãe, o outro discípulo. Estes dois filhos, foi a tua ordem que os conseguiu.
– A tua obediência, meu Filho –repete Maria, e depois cumprimenta o homem, dizendo–: A paz esteja
contigo.
O homem, o rústico e inquieto homem de Endor, que já mudou tanto, desde aquela manhã em que um
capricho de Iscariotes levou Jesus até Endor, acaba agora de despojar-se do seu passado, enquanto se
inclina para Maria. Eu acho que é assim, de tal forma o rosto que se levanta, depois daquela profunda
inclinação, aparece sereno, verdadeiramente “pacificado.”
198.4 Põem-se todos a caminho da casa de Simão. Maria, com Jabé nos braços, Jesus, segurando pela mão
João de Endor, e depois, ao redor e atrás ,estão Lázaro e Marta, os apóstolos com Maximino, Isaac, José e
Timoneu.
Entram na casa, em cuja soleira o velho servo de Simão venera a Jesus e a seu patrão.
– A paz esteja contigo José, e com esta casa –diz Jesus, levantando a mão para abençoar, depois de tê-la
posto sobre a cabeça já branca do velho servo.
Lázaro e Marta, depois da primeira alegria, ficaram um pouco tristes e Jesus pergunta:
– Por que, amigos?
– Porque Tu não estás conosco e porque todos vêm a Ti, menos a alma que nós quereríamos que fosse
tua.
– Animai-vos com paciência, na esperança e na oração. Além disso, Eu estou convosco. Esta casa!… Esta
casa não é mais do que o ninho, ao qual o Filho do Homem voará todos os dias para os queridos amigos,
que estão tão perto no espaço, mas que, considerando-se sobrenaturalmente o assunto, estão infinitamente
mais perto no amor. Vós estais no meu coração, e Eu estou no vosso. Pode-se estar mais perto do que
estando assim? Mas, nesta tarde, estaremos juntos. Vinde sentar-vos à minha mesa.
– Oh! pobre de mim! E eu fico aqui me balançando. Vem cá, Salomé. Temos muito que fazer!
O grito de Maria de Alfeu faz todos sorrirem, enquanto a boa parenta de Jesus se levanta prontamente
para ir ao seu trabalho.
Mas Marta logo lhe diz:
– Não te preocupes, Maria, pela comida. Eu vou dar ordens. Tu, prepara somente as mesas. Eu vou te
mandar cadeiras suficientes e tudo mais que for preciso. Vem Marcela. Eu volto logo, Mestre.
198.5 – Eu vi José de Arimateia, Lázaro. Segunda-feira ele vai vir aqui com uns amigos.
– Oh! Então, naquele dia serás meu!
– Sim. Ele vem para estarmos juntos, mas também para combinarmos uma cerimônia, que diz respeito a
Jabé. João: leva o menino para o terraço. Ele vai se divertir.
João de Zebedeu, sempre obediente, levanta-se logo do seu lugar e, pouco depois, já se ouve a voz do
menino e o barulho de seus pezinhos, no terraço que está ao redor da casa.
– O menino –explica Jesus à mãe, aos amigos, às mulheres, entre as quais está Marta, que andou voando
para não perder nem um minuto da alegria de estar perto do Mestre–, é neto de um dos camponeses de
Doras. Eu passei por Esdrelon…
– É verdade que os campos estão uma desolação, e que ele os quer vender?
– Que estão uma desolação, estão. Quanto à venda, não estou sabendo. Um dos camponeses de Jocanã
me falou do assunto. Mas não sei se é coisa certa.
– Se ele os vendesse… eu os compraria de boa vontade, para ter neles um abrigo para Ti, também
dentro daquele ninho de serpentes.
– Não sei se conseguirás. Jocanã está disposto a ficar com eles.
– Isso veremos… Mas, continua o que ias dizendo. De que camponeses se trata? Os que tinha antes, ele
os esparramou todos.
– É verdade. Os de agora estão vindo de suas terras na Judeia, pelo menos o velho, que é parente do
menino. O menino era mantido no bosque, como um animal selvagem, a fim de que Doras não o visse… e
esteve lá desde o inverno…
– Oh! pobre menino! Mas por quê?
As mulheres estão todas comovidas.
– Porque o pai e a mãe dele ficaram sepultados pela avalancha nas vizinhanças de Emaús. Todos: o pai, a
mãe e os irmãozinhos. Ele ficou vivo, porque não estava em casa. Levaram-no para a casa do avô. Mas, que
podia fazer um camponês de Doras? Tu, Isaac, falaste de Mim, como de um salvador, também para este
caso.
– Eu fiz mal, Senhor? –pergunta humildemente Isaac.
– Fizeste bem. Deus assim queria. O velho me deu o menino, que está até para tornar-se maior de idade
por estes dias.
– Oh! pobrezinho! Tão pequeno, com doze anos?! O meu Judas tinha quase o dobro de altura, quando
estava nesta idade… E Jesus? Que flor! –diz Maria de Alfeu.
E Salomé:
– Meus filhos também eram bem mais fortes!
Marta murmura:
– De fato, é bem pequenino! Eu pensava que nem tivesse ainda dez anos.
– É isso. A fome é bruta. E ele deve ter passado fome desde que nasceu. Agora, então… Que é que o
velho lhe iria dar, se lá todos estão morrendo de fome? –diz Pedro.
– Sim, ele sofreu muito. Mas ele é muito bom e inteligente. Eu o tomei para consolar o velho e o menino.
198.6 – Tu o vais adotar? –pergunta Lázaro.
– Não. Não posso.
– Então, eu fico com ele.
Pedro vê desvanecer-se sua esperança, e solta um bem claro e verdadeiro gemido:
– Senhor! Tudo para ele?
Jesus sorri:
– Lázaro, tu já fizeste tanto e Eu te sou agradecido por isso. Mas este menino não o posso confiar a ti. É
o “nosso menino.” De todos nós. É a alegria dos apóstolos e do Mestre. Além disso, aqui ele cresceria no
meio da riqueza. E Eu lhe quero dar de presente o meu manto real: “a honesta pobreza.” Aquela que o Filho
do homem quis para Si, para poder aproximar-se de todas as grandes misérias, sem humilhar ninguém. Tu
tiveste, há pouco tempo, um presente meu…
– Ah! sim. O velho patriarca e sua filha. Muito ativa a mulher e o velho é muito bom.
– Onde estão eles agora? Quero dizer: em que lugar?
– Estão aqui, em Betânia. Achas que eu iria afastar de mim a bênção que me enviaste? A mulher
trabalha com o linho. O trabalho com ele exige mãos ligeiras e experientes. O velho, visto que ele só quer
mesmo é trabalhar, eu o mandei tomar conta das colmeias. Ontem — não é verdade, mana? — ele estava
com a barba toda cor de ouro. As abelhas, tendo enxameado, tinham-se agarrado todas àquele barba e ele
estava conversando com elas, como com umas filhas. Ele está feliz.
– Eu faço ideia! Que tu sejas bendito! –diz Jesus.
– Obrigado, Mestre. 198.7Mas aquele menino vai fazer-te gastar! Tu me permitirás, pelo menos…
– Eu estou pensando em sua veste para a festa –grita Pedro.
Todos se riem da impulsividade do grito.
– Está bem. Mas haverá necessidade também de outras roupas. Simão, sê bom. Eu também não tenho
filhos. Deixa que eu e Marta nos consolemos, tratando das pequenas vestes a serem feitas.
Pedro, tendo sido assim rogado, de repente se comove, e diz:
– As vestes… sim. Mas a veste para quarta-feira, dela eu trato. O Mestre já me prometeu, e até disse que
eu devo ir com a mãe comprá-la amanhã.
Pedro diz tudo isso por medo de que haja alguma mudança em seu desfavor.
Jesus sorri, e diz:
– Sim, mãe. Eu te peço que vás amanhã com Simão. Senão, este homem acaba morrendo de aflição. Tu o
aconselharás na escolha.
– Eu disse: veste vermelha e cinta verde. Ficará muito bem. Pelo menos melhor do que a cor que ele tem
agora.
– Vermelho ficará muito bem. Também Jesus estava vestido de vermelho. Mas eu diria que ficaria melhor
sobre o vermelho uma cinta vermelha, ou pelo menos, bordada em vermelho –diz Maria com doçura.
– Eu dizia assim, porque estou vendo como Judas, que é moreno, fica muito bem com aquelas fitas
verdes sobre o hábito vermelho…
– Mas elas não são verdes, amigo –diz, rindo, Iscariotes.
– Não? Então, de que cor são?
– Esta cor é chamada “veio de ágata.”
– E, que queres que eu entenda disso?! A mim me pareceu verde. É a cor que eu vejo nas folhas!
Maria intervém com benignidade:
– Simão tem razão. É exatamente a cor que as folhas tomam, com as primeiras chuvas de Tisri…
– Aí está! E, assim como as folhas são verdes, eu dizia que era verde –termina, contente, Pedro.
A Virgem Suave fez haver paz e alegria até numa pequena coisa como esta.
198.8 – Quereis chamar o pequeno? –pede Maria.
E o menino chega logo, junto com João.
– Como te chamas? –pergunta Maria, acariciando-o.
– Eu sou… eu era Jabé. Mas agora estou esperando o nome…
– Tu o estás esperando?
– Sim. Jabé está querendo um nome que queira dizer que Eu o salvei. Tu procurarás esse nome, minha
mãe. Um nome de amor e salvação.
Maria fica pensando… e depois diz:
– Marjiziam (Maarhgziam). Tu és a pequena gota do mar dos salvados de Jesus. Agrada-te? Assim ele faz
pensar em mim e na Salvação.
– É muito bonito –diz contente o menino.
– Mas, este, não é um nome de mulher? –pergunta Bartolomeu.
– Com um L no fim, em lugar do M, quando este esboço de homem se tornar um adulto, podereis mudar
o seu nome em nome de homem. Por enquanto, vai levar o nome que lhe deu a Mamãe. Está bem?
O menino diz que sim, e Maria o acaricia.
A cunhada lhe pergunta:
– Esta lã é bonita –e toca na capinha de Jabé–, mas tem uma cor! Que achas? Eu a tingirei de vermelho
escuro. Ficará bem.
– Amanhã de tarde faremos isso. Porque amanhã é que ele vai receber sua veste nova. Agora não
podemos tirar esta.
Marta diz:
– Virias comigo, menino? Te levo aqui perto, para ver muitas coisas e depois retornamos aqui…
Jabé não recusa. Ele nunca recusa nada… mas parece que está com um pouco de medo de ir com uma
mulher quase desconhecida. Ele diz, entre tímido e delicado:
– João poderia ir comigo?
– Sem dúvida!
E lá se vão. 198.9E, enquanto eles estão ausentes, as conversações entre os vários grupos continuam. São
narrações, comentários, suspiros por causa da dureza humana.
Isaac conta tudo o que ele pôde ficar sabendo do Batista. Há quem diga que ele está em Maqueronte, e
quem diga que está em Tiberíades. Os discípulos ainda não voltaram…
– Mas, eles não o haviam acompanhado?
– Sim. Mas, perto de Doco, os captores atravessaram o rio com o prisioneiro e não se sabe se depois
subiram para o lago ou se desceram para Maqueronte. João, Matias e Simeão puseram-se em seu encalço,
para saberem, e certamente não o abandonarão.
– E tu, Isaac, com certeza não abandonarás este novo discípulo. Por enquanto, ele está comigo. Quero
que faça a Páscoa comigo.
– Eu a farei em Jerusalém, na casa da Joana. Ela me viu, e me ofereceu um quarto para mim e os meus
companheiros. Todos irão este ano. E estaremos com Jônatas.
– Virão também os do Líbano?
– Também. Mas talvez não poderão vir os discípulos de João.
– Sabes que virão os de Jocanã?
– É verdade? Estarei junto à porta, junto aos sacerdotes que fazem as imolações. Eu os verei e levarei
comigo.
– Podes esperá-los, lá pela última hora. Pois eles têm, um tempo contado. Mas têm o cordeiro.
– Eu também. Magnífico! Foi Lázaro quem o deu. Imolaremos este; e o outro, o deles, servir-lhes-á para
a volta.
198.10 – Está entrando de novo Marta com João e o menino, vestido este com uma pequena veste de linho
branco e uma sobreveste vermelha. Sobre o braço traz umo manto também vermelho.
– Estás reconhecendo isto, Lázaro? Estás vendo como tudo serve?
Os dois irmãos sorriem.
Jesus diz:
– Eu te agradeço, Marta.
– Oh! Senhor meu! Eu tenho a mania de ficar guardando tudo. Eu a herdei de minha mãe. Tenho ainda
muitas vestes do meu irmão. Muito queridas, porque foram tocadas pela minha mãe. De vez em quando, eu
tiro uma parte delas para algum menino. Agora, vou dá-la a Margziam. São um pouco compridas, mas
podem ser encurtadas. Lázaro, quando se tornou maior de idade, não as quis mais… Um bonito capricho,
próprio de crianças… e que venceu porque minha mãe adorava o seu Lázaro.
A irmã o acaricia com amor e Lázaro pega sua belíssima mão, beija-a e diz:
– E tu, não?
Sorriem um para o outro.
– Foi providencial isto –observam muitos.
– Sim, o meu capricho deu bom resultado. Talvez me será perdoado por isso.
A ceia está pronta, e cada um vai para o seu lugar…
198.11 Já é noite, quando Jesus pode falar em paz com sua mãe. Eles subiram para o terraço e, sentados em
cadeiras um ao lado da outra, com a mão na mão, falam e escutam um ao outro. Primeiro é Jesus, que narra
as coisas que aconteceram. Depois, é Maria que diz:
– Meu Filho, depois da tua partida, logo depois, veio à minha casa uma mulher… Ela estava Te
procurando. Uma grande miséria. E uma grande redenção. Mas essa criatura tem necessidade do teu
perdão, para ser firme em sua resolução. Eu a confiei à Susana, dizendo que era uma das curadas por Ti. É
verdade. Eu a poderia ter comigo, se nossa casa não fosse o que é, um verdadeiro mar, onde todos
navegam, e muitos com más intenções. E a mulher já está com repugnância pelo mundo. Queres saber
quem é?
– É uma alma. Mas, dize-me o seu nome, para que Eu possa acolhê-la sem erro.
– É Aglaé. É a romana, dançarina e pecadora, que Tu começaste a salvar no Hebron, que Te procurou e
Te encontrou em Águas Belas e que, por sua renascida honestidade, já tem sofrido. E quanto!… Ela me
disse tudo… Que horror!…
– O seu pecado?
– Este é…., diria, mais ainda; que horror é o mundo! Oh! Meu Filho! Desconfia dos fariseus de
Cafarnaum! Daquela infeliz eles queriam servir-se para Te fazerem mal. Até dela…
– Eu sei, mãe… Onde está Aglaé?
– Chegará com Susana, antes da Páscoa.
– Está bem. Eu falarei com ela. Estarei aqui todas as tardes, menos na tarde do dia da Páscoa, que Eu
devo consagrar à família, Eu a atenderei. Basta detê-la aqui, se ela vier. É uma grande redenção, como
disseste. E tão espontânea! Em verdade, Eu te digo que em poucos corações a minha semente se enraíza
com a força com que se enraizou nesse terreno infeliz. E depois André ajudou o crescimento, até a sua
completa formação.
– Ele me disse.
– Mãe, que foi que sentiste, ao te aproximares daquela ruína?
– Senti asco e alegria. Parecia-me estar à beira de um abismo do inferno, mas, ao mesmo tempo, me
sentia sendo transportada ao azul. Como Tu és Deus, meu Jesus, quando realizas esses milagres!
Ficam calados por baixo das estrelas luminosíssimas e na brancura de um quarto de lua que já está
quase cheia. Calados, e repousando um no amor da outro.
199. Com os leprosos de Siloan e de Ben Hinon.
Pedro ganha Margziam por mediação de Maria.
24 de junho de 1945.
199.1 A esplendida manhã convida realmente a dar um passeio, a deixar as camas e as casas e os moradores
da casa do Zelotes, como abelhas ao primeiro sol, surgem muito cedo e partem para respirar o ar puro do
pomar de Lázaro, que fica ao redor da pequena casa hospitaleira. Logo se ajuntam também os que estão
hospedados com Lázaro, isto é, Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, André e Tiago de Zebedeu. O sol entra
festivo por todas as janelas e portas escancaradas, e os quartos, simples e limpos, vão-se vestindo com uma
tinta de ouro, que aviva as cores das vestes, e faz brilhar também as cores dos cabelos e das pupilas.
Maria de Alfeu e Salomé estão atentas em servir a estes homens, que estão com um apetite notável. Maria,
por sua vez, está observando um dos criados de Lázaro, enquanto ele vai compondo os cabelinhos de
Margziam, cortando-os com mais habilidade do que tinha feito o primeiro cabeleireiro dele:
– Por enquanto, fica assim –diz ele–. Depois, quando tiveres oferecido a Deus a tua cabeleira de menino, eu
a encurtarei como se deve. Quando chegar o calor, te sentirás melhor, sem cabelos no pescoço. E eles ficarão
mais fortes. Agora, estão secos e frágeis, descuidados. Estás vendo, Maria? Eles precisam de cuidados. Agora
vou untá-los, para conservá-los em seu lugar. Estás sentindo, menino, que cheirinho bom? É o óleo que Marta
usa. Amêndoa, palma, miolo do que há de mais fino e com essência rara. Isto faz muito bem. Minha patroa
disse que eu guardasse este potinho para o menino. E, então, ele está aqui. Agora, ficas parecendo o filho do
rei.
E o servo, que deve ser o barbeiro da casa de Lázaro, dá uma palmadinha na face de Margziam, saúda
Maria, e vai-se embora satisfeito.
– Vem cá, que eu vou te vestir –diz Maria ao menino que, por enquanto, está só com uma tunicazinha de
mangas curtas, que eu creio que seja a camisa ou o que naqueles tempos fazia as vezes dela.
E, pela boa qualidade do linho, compreendo que ela fazia parte do enxoval de Lázaro, quando criança.
Maria tira a toalha com que Margziam estava quase enfaixado, e o reveste com a saia feita de linho, franzida
na raíz do pescoço e nos pulsos, e com a sobreveste vermelha, de lã, com um amplo decote e mangas largas. O
linho, muito alvo, aparece no decote e nas mangas de tecido vermelho e opaco. A mão de Maria deve ter
trabalhado a noite inteira para prover a tudo, regulando o comprimento das vestes e das mangas, e agora está
tudo bem, especialmente depois que Maria o cingiu na cintura com a faixa macia, que termina em um floco de
lã branca e vermelha. O menino nem parece mais aquele ser pobrezinho de poucos dias atrás.
– Agora, vai brincar, sem sujar-te, enquanto eu vou me preparar
–diz Maria, acariciando-o.
E o menino sai, pulando de contente, para ir procurar os seus grandes amigos.
199.2 O primeiro a vê-lo é Tomé:
– Mas, como estás bonito! Vestido de noivo! Tu me fazes desaparecer –diz o alegre Tomé, gorducho e
tranquilo.
E o toma pela mão, dizendo:
– Vem cá, vamos ao lugar onde estão as mulheres. Elas estavam te procurando, para ensinarem o que deves
dizer ou fazer.
Entram na cozinha, e Tomé passa um susto nas duas Marias, gritando com o seu vozeirão para elas que
estavam inclinadas e viradas para os seus pequenos fornos:
– Aqui está um jovenzinho que quer vos ver –e rindo-se, apresenta o menino, que estava escondido atrás do
seu volumoso corpo.
– Oh! querido! Vem cá, que eu te dou um beijo! Olha, Salomé, como ele está bonito –exclama Maria de
Alfeu.
– É verdade. Agora, só falta ele ficar mais robusto. Mas disso cuidarei eu. Vem cá, que eu também te beijo –
responde Salomé.
– Mas Jesus vai confiá-lo aos pastores –objeta Tomé.
– Isso, nem por sombra! Neste ponto o meu Jesus erra. Que é que quereis fazer, que é que, vós homens,
sabeis fazer? Brigar — porque, seja dito de passagem, sois, antes de tudo, uns briguentos… como uns cabritos,
que se amam, mas dão chifradas uns nos outros, — sabeis comer, falar, ter mil necessidades e querer que o
Mestre preste toda atenção em vós… caso contrário ficais amuados… E os meninos precisam é das mamães.
Não é verdade… como te chamas?
– Margziam.
– Ah! Mais esta! Bendita a minha Maria! Ela podia ter-te dado um nome mais fácil!
– É quase como o dela! –exclama Salomé.
– Sim. Mas o dela é mais simples. Ele não tem aquelas três letras no meio… Três são demais…
Iscariotes acabou de entrar, e diz:
– Ela pôs o nome certo, em seu significado, segundo a linguagem antiga, não adulterada.
– Está bem. Mas é difícil, e eu tiro uma delas, e digo Marziam. Assim é mais fácil e o mundo não virá abaixo
por isso. Não é verdade, Simão?
E Pedro, que ia passando diante da janela, conversando com João de Endor, se aproxima, e diz:
– Que desejas?
– Estava dizendo que eu chamo o menino de Marziam. É mais fácil.
– Tens razão, mulher. Se a mãe me permite, eu também o chamarei assim. Mas, como estás bem! Mas, eu
também, hein? Olhem só!
De fato, ele está todo escovado, barbeado nas faces, com cabelos e barba alinhados e untados, a veste não
amarrotada, as sandálias parecendo novas, de tão limpas e tornadas brilhantes, não sei com quê. As mulheres
o admiram, e ele se ri contente.
O menino acabou de comer, e sai para ir andar com o seu grande amigo, a quem ele dá sempre o nome de
“Pai.”
199.3 Eis Jesus que vem da casa de Lázaro, junto com o mesmo e, ao menino que vai correndo ao seu
encontro, Ele diz:
– A paz esteja entre nós, Margziam. Demo-nos o beijo da paz.
Lázaro, saudado pelo menino, dá-lhe um docinho.
Todos se reúnem ao redor de Jesus. Também, Maria, revestida com uma veste de lã cor de turquesa, sobre a
qual cai um amplo manto mais escuro, vem vindo sorridente em direção de seu Filho.
– Podemos ir então –diz Jesus–. Tu, Simão, com minha mãe e o menino, se é que estás mesmo disposto a
gastar, ainda mais agora que Lázaro já proveu a tudo.
– Mas, sem dúvida! E depois… poderei dizer que pude, pelo menos uma vez, caminhar ao lado de tua mãe.
Uma grande honra.
– Então, vai. E tu, Simão, me acompanharás. Vamos aos teus amigos leprosos…
– De verdade, Mestre? Nesse caso, se me permites, irei na frente correndo, para reuni-los. Depois me
encontrarás. Já sabes onde eles estão…
– Está bem. Vai. Os outros façam o que quiserem. Estais todos livres até quarta-feira pela manhã. Nesse dia,
à hora terça, estajam todos junto à Porta Dourada.
– Eu irei contigo, Mestre –diz João.
– Eu também –diz Tiago, irmão dele.
– E nós também –dizem os dois primos.
– Eu irei também –diz Mateus e, com ele, André.
– E eu? Eu gostaria de ir também… mas tenho que ir às compras, e não posso ir convosco… –diz o Pedro, na
dúvida entre duas vontades.
– Pode-se fazer tudo. Primeiro, vamos aos leprosos e, nesse ínterim, minha mãe vai com o menino a uma
casa amiga em Ofel. Depois nós a encontraremos, e tu vais com ela, enquanto Eu e os outros vamos à casa de
Joana. Nos reuniremos no Getsêmani para a refeição, e depois, perto do pôr do sol, estaremos aqui.
– Eu, se me permites, vou à casa de alguns amigos… –diz Judas Iscariotes.
– Mas Eu já disse. Fazei o que quiserdes.
– Então, vou ver meus pais. Talvez meu pai já tenha vindo. Se tiver, eu o trarei a Ti –diz Tomé.
– E nós dois, que achas, Filipe? Poderíamos ir à casa do Samuel.
– Disseste bem –responde ele a Bartolomeu.
– E tu, João? –pergunta Jesus ao homem de Endor–. Preferes ficar aqui, para pôr em ordem os teus livros, ou
ir comigo?
– Na verdade, eu gostaria de ir contigo… Meus livros… já me agradam menos. Prefiro ler em Ti, o livro vivo.
– Então, vem. Adeus, Lázaro, a…
– Mas, eu vou também. Minhas pernas estão um pouco melhor, e eu te deixarei depois da visita aos leprosos
e irei esperar-te em Getsêmani.
– Vamos. A paz esteja convosco, mulheres.
Até às vizinhanças de Jerusalém, vão indo todos juntos. Depois, eles se separam, indo Iscariotes, por sua
própria conta, entrando na cidade provavelmente por aquela porta que fica perto da fortaleza Antônia,
enquanto que Tomé, com Filipe e Natanael, andam ainda algumas dezenas de metros com Jesus e os
companheiros e depois entram na cidade pelo subúrbio de Ofel junto com Maria e o menino.
199.4 – E agora vamos àqueles infelizes! –diz Jesus e, virando as costas para a cidade, se dirige para um lugar
desolado, situado nas encostas de uma colina rochosa, que fica entre as duas estradas, que vão de Jericó para
Jerusalém.
É um lugar estranho, parecendo-se mais com um conjunto de escadarias, depois da primeira subida, acima
da qual se chega a um caminho, de tal modo que o primeiro lance fica a pique, pelo menos uns três metros
acima do caminho, e igualmente o segundo. Tudo aqui é aridez e morte… Uma grande tristeza.
– Mestre –grita Simão Zelotes–, eu estou aqui. Para aí, que eu vou te ensinar o caminho…
E Zelotes, que tinha se encostado à rocha, procurando um pouco de sombra, vai para a frente, e conduz
Jesus por um caminho em degraus, que vão no rumo do Getsêmani, mas apartado dele pela estrada que, do
Monte das Oliveiras vai para Betânia[54].
– Já chegamos. Entre os sepulcros de Siloan eu vivi, e aqui estão os meus amigos. Só uma parte deles. Os
outros estão em Ben Hinon mas não podem vir… Teriam que atravessar a estrada, e seriam vistos.
– Nés iremos a eles também.
– Obrigado! Por eles e por mim.
– Eles são muitos?
– O inverno matou a maior parte. Mas aqui ainda há cinco daqueles aos quais eu havia falado. Eles estão te
esperando. Lá estão eles, ao lado da sua prisão…
Devem ser uns dez monstros. Digo “devem ser”, porque se cinco são bem visíveis de pé, os outros, ou pela
cor cinzenta da pele, ou pela deformidade do rosto, ou porque assomam apenas por cima do pedregal, podem
ser tão mal divisados, que tanto poderiam ser mais, como menos. Entre os que estão em pé, só há uma mulher.
Quem diz isto são somente os seus cabelos já embranquecidos e descuidados, que caem, duros e sujos, pelas
costas até à cintura. Mas, quanto aos outros, não se distingue sexo, porque a doença, muito adiantada, já os
reduziu a esqueletos, destruindo todas as curvas femininas e, nos homens, só um ainda mostra leves traços de
bigodes e barba. Os outros já foram rapados pela doença destruidora.
Eles gritam:
– Jesus, Salvador nosso, tem piedade de nós! –e estendem suas mãos deformadas ou cheias de feridas–.
Jesus, Filho de Davi, tem piedade!
– Que quereis que Eu vos faça? –diz Jesus, levantando o rosto para aquelas misérias.
– Que Tu nos salves do pecado e da doença.
– Do pecado salva a vontade e o arrependimento…
– Mas se Tu queres, podes cancelar os nossos pecados. Pelo menos, cancela os nossos pecados, se não
queres curar os nossos corpos.
– Se Eu vos disser: “Escolhei uma das duas coisas”, qual delas quereis?
– O perdão de Deus, Senhor. Para ficarmos menos desolados.
Jesus faz um sinal de aprovação, com um luminoso sorriso, depois levanta os braços, e grita:
– Que sejais atendidos. Assim quero.
Atendidos! Pode ser quanto ao pecado, ou quanto à doença, ou quanto às duas coisas, e os cinco infelizes
ficam sem saber. Mas, quem não ficou assim foram os apóstolos, que não podem fazer outra coisa, senão gritar
hosanas, ao verem a lepra ir desaparecendo rapidamente, assim como desaparece um floco de neve, quando
cai no fogo. E então, os cinco compreendem que foram completamente atendidos. E seu grito ressoa como uma
exclamação de vitória. Abraçam-se uns aos outros e jogam beijos a Jesus, já que ainda não podem ir precipitar-
se a seus pés. E depois se dirigem aos companheiros, dizendo:
– Vós ainda não quereis crer? Mas que espécie de infelizes sois?
– Bons! Sede bons. Os pobres irmãos precisam pensar. Não lhes digais nada. A fé não se impõe, mas se
prega com a paz, a doçura, a paciência, a constância. É isso que fareis, depois de vossa purificação, como
Simão fez convosco. Aliás o milagre, por si só já é uma pregação.. Vós, curados, ireis quanto antes mostrar-vos
ao sacerdote. Vós, doentes, aguardai-nos pela tarde. Iremos trazer-vos comida. A paz esteja convosco.
Jesus desce de novo para o caminho, acompanhado pelas bênçãos de todos.
199.5 – Agora, vamos para Ben Hinon –diz Jesus.
– Mestre… eu gostaria de ir. Mas estou vendo que não posso. Eu vou para o Getsêmani –diz Lázaro.
– Vai, vai, Lázaro. A paz esteja contigo.
Enquanto Lázaro lentamente vai se pondo a caminho, o apóstolo João diz:
– Mestre! eu vou com ele. É cansativo e o caminho não é muito bom. Depois te alcançarei em Ben Hinon.
– Então, vai. Vamos.
Passam pelo Cedron. Costeiam o lado sul do Monte Tofet e entram pelo pequeno vale coberto de sepulcros e
de lixo, sem uma árvore nem um abrigo contra o sol, que neste lado sul derrama todos os seus fogos,
abrasando as pedras destes degraus infernais, em cujas bases soltam fumaça incêndios fedorentos, que
aumentam ainda mais o calor. Dentro desses sepulcros, parecidos com fornos crematórios, há pobres corpos
que vão se consumindo… Siloan deve ser um lugar muito feio no inverno, com toda essa umidade que tem, e já
quase virado para o norte. Mas aqui deve ser horrível é no verão…
Simão Zelotes, solta um grito de chamado e, primeiro três, da comitiva, depois dois, depois um e mais um,
vão chegando como podem, até o limite marcado. Aqui há duas mulheres, e uma vem trazendo pela mão uma
criança de aspecto horroroso, pois a lepra a atacou principalmente no rosto. Ela já está cega… Há também um
homem de aspecto nobre, apesar de sua miserável condição. Ele é que toma a palavra por todos:
– Bendito seja o Messias do Senhor, que desceu até à nossa Geena, para dela tirar os que nele esperam.
Salva-nos, Senhor, porque perecemos! Salva-nos, Salvador! Ó rei da estirpe de Davi, Ó Rei de Israel, tem
piedade dos teus súditos. Ó rebento de Jessé, do qual foi dito que no seu tempo não haverá mais mal, estende a
tua mão para recolher estes restos do teu povo. Faze desaparecer de nós esta morte, enxuga as nossas
lágrimas, pois assim foi dito de Ti. Chama-nos, Senhor, às tuas pastagens excelentes, para as tuas águas doces,
pois nós estamos cheios de sede. Leva-nos para as colinas eternas, onde não há mais culpa nem dor. Tem
piedade, Senhor…
– Quem és tu?
– Sou João, um do Templo. Fui contaminado, talvez por um leproso. Como vês, faz pouco tempo que a
doença me pegou. Mas estes aí!… Alguns estão há anos esperando a morte e esta menininha está desde
quando ainda não sabia andar. Ela nem sabe que é uma criação de Deus. Tudo o que ela conhece, tudo de que
ela se lembra, entre as maravilhas de Deus, são estes sepulcros, este sol desapiedado e as estrelas da noite.
Piedade para os culpados e para os inocentes, Senhor, nosso Salvador.
E todos se ajoelharam, estendendo as mãos.
Jesus chora ao ver tanta miséria, depois abre os braços, e grita:
– Pai, Eu quero: saúde, vida, vista e santidade para eles.
Fica ainda rezando intensamente, de braços abertos, com todo o seu espírito. Ele parece adelgaçar-se e
elevar-se na oração, como uma chama branca de amor, branca e poderosa, por entre os poderosos raios de
ouro que o sol emite.
– Mamãe, eu estou vendo!
É o primeiro grito, e a este correspondem os da mãe, que aperta contra o coração a menina curada, depois
os gritos dos outros e dos apóstolos… O milagre foi feito.
– João, tu, sacerdote, guiarás os companheiros no rito. A paz esteja convosco. A vós também traremos
alimentos, lá pela tarde.
Abençoa, e faz como quem vai tomar o caminho de volta.
Mas o leproso João lhe grita:
– Sobre os teus passos eu quero ir. Dize-me o que devo fazer e onde ir pregar sobre Ti!
– Nesta terra desolada e nua, que precisa converter-se ao Senhor. Que a cidade de Jerusalém seja o teu
campo. Adeus.
199.6 – E agora vamos à mãe –diz depois aos apóstolos.
– Mas, onde está ela? –perguntam muitos.
– Em uma casa que João sabe. Na casa da menina que foi curada[55] no ano passado.
Entram na cidade, percorrem boa parte do populoso bairro de Ofel e vão até uma casinha branca. Jesus
entra, com sua doce saudação, na casa, cuja porta está semi-aberta e de lá sai a voz suave de Maria, a voz
argêntea de Anália e a voz grossa da mãe dela. A menina prostra-se adorando, a mãe ajoelha-se. Maria se
levanta.
Gostariam de deter lá o Mestre com sua mãe. Mas Jesus, prometendo voltar em outro dia, abençoa e se
despede. Pedro vai indo com Maria, todo feliz. Os dois estão segurando o menino pela mão, e parecem uma
pequena família feliz. Muitos se viram e olham para eles. Jesus observa como eles vão andando, e sorri.
– Simão está feliz –exclama Zelotes.
– Por que estás sorrindo, Mestre? –pergunta Tiago de Zebedeu.
– Porque naquele grupo estou vendo uma grande promessa.
– Que promessa, Irmão? Que estás vendo? –pergunta Tadeu.
– Vejo o seguinte: Que poderei ir-me embora tranquilo, quando chegar a hora. Que não preciso temer pela
minha Igreja. Ela, então, ainda estará pequena, como Margziam. Mas nela estará minha mãe, segurando-a
assim pela mão e a fazer para com ela as vezes da mãe, e nela estará Pedro, fazendo as vezes do Pai. Em sua
mão honesta e cheia de calos, posso colocar sem preocupações, a mão da minha Igreja nascente. Ele lhe dará a
força da sua proteção. E minha mãe, a força do seu amor. E a Igreja crescerá… como Margziam… Ele é
verdadeiramente o menino-símbolo! Deus abençoe minha mãe, meu Pedro e o menino deles e nosso! Agora,
vamos à casa de Joana…
199.7 … E novamente, pela tarde, já estamos na casinha de Betânia. Muitos, cansados, já se retiraram. Mas
Pedro anda para lá e para cá pelo caminho, levantando frequentemente os olhos para o terraço, onde estão
sentados, conversando, Jesus e Maria. João de Endor, por sua vez, está conversando com Zelotes, estando os
dois sentados debaixo de uma romãzeira toda florida.
Maria já falou muito, porque ouço Jesus dizer:
– Tudo o que me disseste é bem justo e de tudo considerarei a justiça. Também acho que é justo o teu
conselho dado à Anália. Que o homem o tenha acolhido com tanta presteza é bom sinal. Na verdade, a alta
Jerusalém está cheia de obtusosidade, de ódio e, Eu poderia até, dizer, de sujeira. Mas, no meio do seu povo
humilde, há pérolas de um valor desconhecido. Fico alegre porque Anália está feliz. É uma criatura mais do
Céu, do que da terra e talvez o homem, que agora entrou no conceito do espírito, tenha intuição disso e preste
a isso um respeito quase de veneração. Seu pensamento de ir para outro lugar, a fim de não perturbar, com
algum sobressalto humano, o cândido voto da menina, o está demonstrando.
– Sim, meu Filho. O homem percebe o perfume das virgens… Eu me lembro de José. Eu não sabia de que
palavras devia fazer uso. Ele não conhecia o meu segredo… E, no entanto, ele me ajudou a dizê-lo, com a sua
percepção de santo. Ele tinha sentido o odor da minha alma… Não vês também João?… Que paz!… E todos o
procuram… O próprio Judas de Keriot, por mais que… Não, meu Filho. Judas não mudou. Eu sei e Tu sabes.
Nós não falamos, porque não queremos ser nós que começamos a guerra. Mas, ainda que não falemos, nós o
sabemos… e, mesmo que não falemos, os outros estão enxergando… Oh! Meu Jesus! Contaram-me os jovens
hoje, em Getsêmani, o episódio de Magdala e o da manhã de sábado… A inocência fala… porque ela vê pelos
olhos do seu anjo. Mas os velhos também entrevêem… Não deixam de ter razão. É um ser esquivo… Tudo nele
é esquivança… e eu tenho medo dele, e tenho sobre os lábios as mesmas palavras do Benjamim de Magdala e
do Margziam no Getsêmani, porque tenho pelo Judas a mesma repugnância que por ele sentem as crianças.
– Nem todos podem ser como João!
– Nem eu pretendo isso. Isso seria um paraíso na terra. Mas, estás vendo, Tu me falaste do outro João… Um
homem que matou… mas que só me causa dó. Judas me dá medo.
– Ama-o, minha mãe! Ama-o por amor de Mim!
– Sim, meu Filho. Mas nem meu amor servirá. Será apenas mais um sofrimento para mim e uma culpa para
ele.. Oh! Para que foi ele entrar! Perturba a todos e ofende a Pedro, que é digno de todo respeito.
199.8 – Sim. Pedro é muito bom. Por ele Eu faria qualquer coisa, pois ele o merece.
– Se ele te ouvisse, diria com aquele seu sorriso bom e sincero: “Ah! Senhor, isso não é verdade!” E teria
razão.
– Por quê, mãe?
Mas Jesus está sorrindo porque já compreendeu.
– Porque Tu o não contentas, dando-lhe um filho. Ele me contou todas as suas esperanças, os seus desejos…
e as tuas recusas.
– E não te disse as razões com que as justifiquei?
– Sim, ele as disse, e acrescentou: “É verdade… mas eu sou um homem, um pobre homem. Jesus teima em
querer ver em mim um grande homem. Mas eu sei que não sou mais do que um ser mesquinho e, por isso… me
poderia dar um menino. Eu me casei para ter um… e vou morrer sem ter.” E, mostrando o menino que, feliz
pela veste para ele comprada por Pedro, o havia beijado, dizendo-lhe: “Meu pai amado”, disse-me: “Vê, quando
este pequenino que, há somente dez dias, eu nem conhecia ainda, fala-me assim, eu me sinto mais maleável do
que manteiga, e mais doce do que o mel, e até choro porque… cada dia que passa, ele quer me levar embora
este menino…”
Maria se cala, observando Jesus, estudando-lhe o semblante, esperando uma palavra… Mas Jesus colocou o
cotovelo sobre o joelho, a cabeça encostada na palma da mão e está também calado, olhando para a grande
extensão verde do pomar.
Maria pega a mão dele e a acaricia, dizendo:
– Simão tem esse seu grande desejo… Enquanto eu ia andando com ele, não parou de falar-me nisso, e com
razões tão justas, que… eu não pude dizer nada para fazê-lo calar-se. Eram as mesmas razões, nas quais
pensamos todas nós, mulheres e mães. O menino não é robusto. Se ele tivesse sido como eras Tu… Oh! então
teria podido ir ao encontro da vida, como um discípulo sem medo. Mas é tão fraquinho!… Muito inteligente,
muito bom… e nada mais. Quando um pombinho é delicado, não se pode lançá-lo ao vôo logo, como se faz com
os fortes. Os pastores são bons… mas são sempre homens. Os meninos precisam das mulheres. Por que não o
deixas com Simão? Enquanto lhe negas um filho nascido dele, eu compreendo o motivo. Um pequenino nosso é
para nós como uma âncora. E Simão, destinado a tão grande sorte, não pode ter âncoras que o detenham.
Contudo, deves convir que ele deva ser o ‘pai’ de todos os filhos que Tu lhe deixarás. E, como haveria ele de
ser pai, se não tiver treinado com um menino? Um pai deve ser manso. E Simão é bom, mas manso, não. Ele é
impulsivo e intransigente. Não há nada como uma criaturinha, que lhe possa ensinar a arte sutil da compaixão
para com quem é fraco… Pensa nesta sorte de Simão… Afinal, é o teu sucessor! Oh! tenho afinal que dizer esta
palavra cruel! Mas, pela grande dor que me custa dizê-la escuta-me. Eu nunca te aconselharia uma coisa que
não fosse boa. Margziam… Tu queres fazer dele um perfeito discípulo… Mas ele ainda é um menino. Tu… Terás
que ir embora, antes que ele se torne um homem. A quem, então, o entregarás para completar sua formação,
senão a Simão? Afinal, pobre Simão, Tu sabes quanto tem sofrido, também por causa de Ti, da parte de sua
sogra Contudo ele não recuperou nem um grãozinho do seu passado, da liberdade que tinha, há um ano, para
ser deixado em paz pela sogra, que nem Tu pudeste mudar. E aquela pobre criatura, que é a mulher dele? Oh!
Ela tem um grande desejo de amar e de ser amada. A mãe… Oh! O marido? Um amável prepotente. Nunca um
afeto que lhe seja dado sem tantas exigências… Pobre mulher!… Deixa-lhe o menino. Escuta, Filho. Por
enquanto, o levamos conosco. Eu também virei para a Judeia. Tu me levarás contigo à casa de minha
companheira no Templo e quase nossa parenta, porque é descendente de Davi. Ela mora em Betsur. Eu a irei
ver de boa vontade, se é que ainda vive. Depois, ao voltarmos para a Galileia, o daremos à Púrpura. Quando
estivermos nas vizinhanças de Betsaida, Pedro o tomará. E, quando viermos para longe, o menino ficará com
ela. Ah! Mas Tu agora estás sorrindo! Então contentarás à tua mamãe. Obrigada, meu Jesus.
– Sim. Seja feito como Tu queres.
199.9 Jesus se levanta, e grita com força:
– Simão de Jonas, vem aqui.
Pedro dá um salto, e vai correndo pelos degraus.
– Que queres, Mestre?
– Vem aqui, homem usurpador e corruptor!
– Eu? Por quê? Que foi que eu fiz, Senhor?
– Tu corrompeste minha mãe. Para isso é que querias estar sozinho. Que devo te fazer?
Mas Jesus está sorrindo e Pedro fica mais tranquilo.
– Oh! –diz ele–, me fizeste ficar com medo! Mas agora estás rindo… Que queres de mim, Mestre? A vida? É
só o que tenho, pois me tomaste tudo… Mas, se a queres, eu a dou.
– Eu não quero tirar-te nada. Mas quero te dar. Mas não fiques te gloriando pela vitória e não contes o
segredo aos outros, ó homem matreiríssimo, que vences o Mestre com a arma da palavra materna. Tu ficarás
com o menino, mas…
Jesus não fala mais, porque Pedro, que se havia ajoelhado, põe-se rapidamente de pé e beija Jesus com
tanto ímpeto, que lhe embargou a palavra.
– Agradece a ela, não a Mim. Mas, lembra-te que isso te deve servir de ajuda e não de estorvo…
– Senhor, não terás que arrepender-te por este presente… Oh! Maria! Que Tu sejas sempre bendita, santa e
boa…
E Pedro, que de novo caiu de joelhos, está chorando de verdade e beijando a mão de Maria.
[54] para Betânia. Segue o desenho de MV que colocou no centro da Pequena Montanha, em que está três vezes escrito acima leprosos; no norte, o Getsêmani
do qual sai a Estrada mais curta para Betânia e Jericó; além disso escreveu a lápis Aqui o monte das Oliveiras; a oeste corre o Cedron; depois traçou a Estrada
mais longa para Betânia e Jericó.
[55] menina que foi curada em 86.4/5, virgem consagrada em 156.3/5.
200. Aglaé em colóquio com o Salvador.
26 de junho de1945.
200.1 Jesus torna a entrar sozinho em casa de Zelotes. A tarde já está chegando plácida e serena, depois
de um dia de muito sol. Jesus aparece à porta da cozinha, saúda, e depois sobe para o quarto superior, já
preparado para a ceia, a fim de lá meditar. Não parece estar muito alegre o Senhor. Ele está suspirando
repetidas vezes, e andando para lá e para cá, lançando, de vez em quando, um olhar por sobre a campina
vizinha, que pode ser vista através das muitas portas desta vasta sala, que tem a forma de um cubo,
colocado sobre o térreo. Ele sai, também para passear sobre o terraço, fazendo a volta ao redor da casa, e
para no lado detrás dela, a fim de olhar para João de Endor que, de modo cortês, está tirando água de um
poço, para oferecê-la à atarefada Salomé. Jesus olha, sacode a cabeça e suspira.
A força do seu olhar atrai João, que se volta para ver o que há, e pergunta:
– Mestre, estás precisando de mim?
– Não. Eu somente estava olhando para ti.
– João é bom. Ele me ajuda –diz Salomé.
– Também por essa ajuda, Deus lhe darà recompensa.
Jesus, depois destas palavras, entra de novo no quarto e se assenta
200.2 Está tão absorto, que nem percebe o barulho das muitas vozes e do tropel dos muitos passos pelo
corredor da entrada, e depois, de dois passos mais leves de alguém que sobe pela escadinha externa e que
se aproxima do salão. Só quando Maria o chama é que Ele levanta a cabeça.
– Meu Filho, chegou a Susana de Jerusalém com a família, e logo Aglaé me acompanhou. Queres atendê-
la, enquanto estamos sós?
– Sim, mãe. Vou atendê-la já. E que ninguém suba, enquanto não terminar tudo. Espero ter acabado,
antes da volta dos outros. Mas Eu te peço que cuides para que não haja curiosidades indiscretas… em
ninguém… e especialmente em Judas de Simão.
– Estarei atenta, e cuidarei disso…
Maria sai, para voltar pouco depois, segurando Aglaé pela mão, não mais embrulhada em seu manto
cinzento e com o seu véu caído para a frente, não mais com suas sandálias altas e cheias de fivelas e fitas,
que ela antes usava, mas totalmente transformada como mulher hebreia, pelas sandálias planas e baixas,
muito simples como as de Maria, com a veste de um azul escuro, sobre a qual está posta o manto, e com um
véu branco, colocado como fazem as mulheres hebreias do povo, isto é, posto simplesmente na cabeça, com
uma parte jogada para as costas, de modo que o rosto fica coberto por ele, mas não completamente. O
hábito comum, como é usado por muitíssimas mulheres, e estando ela no meio de um grupo de galileus,
tudo isso tornava possível que Aglaé deixasse de ser reconhecida.
Ela entra de cabeça inclinada, enrubescendo a cada passo que dá, e acho que, se Maria não a fosse
puxando docemente para Jesus, ela se teria ajoelhado na soleira.
– Aqui está, meu Filho, aquela que vinha te procurando há tanto tempo. Escuta-a –diz Maria, ao chegar
perto de Jesus, e depois se retira, abaixando os toldos sobre as portas escancaradas e fechando a que
estava mais perto da escadinha.
200.3 Aglaé se separa da sacola que trazia nas costas e, em seguida se ajoelha aos pés de Jesus, em meio a
uma grande explosão de choro. Ela se estende no chão, chorando, com a cabeça apoiada nos braços
cruzados sobre a terra.
– Não chores assim. Já não é mais tempo disso. Tu devias chorar, quando estavas com ódio de Deus. Mas
não agora que o amas e por Ele és amada.
Mas Aglaé continua a chorar…
– Não acreditas que é assim?
Sua voz está procurando um caminho, por entre os soluços:
– Eu o amo, é verdade, como sei e como posso. Mas, por mais que eu saiba e creia que Deus é Bondade,
não ouso esperar de obter o seu amor. Eu pequei demais… Talvez eu o terei um dia… Mas preciso chorar
muito ainda… Por enquanto, estou sozinha no meu amor. Estou sozinha… mas já não é a solidão
desesperada dos anos passados. É uma solidão cheia do desejo de Deus e, por isso nem é mais
desesperada… mas é tão triste, tão triste…
– Aglaé, como tu ainda conheces mal o Senhor! Este desejo dele te serve de prova de que Deus
corresponde ao teu amor, de que Ele é teu amigo, que te chama e te convida, que te quer. Deus é incapaz de
permanecer inerte, diante do desejo de uma criatura sua, porque aquele desejo foi inspirado àquele coração
por Ele, o Criador e Senhor de toda criatura. Ele o inspirou, porque amou com um amor privilegiado a alma
que agora o deseja. O desejo de Deus vem sempre antes do desejo da criatura, porque Ele é Perfeitíssimo e,
por isso, o seu amor é bem mais habilidoso e abrasado do que o amor da criatura.
– Mas, como Deus pode amar-me, se eu sou lama?
– Não fiques procurando entender isso com a tua inteligência. É um abismo de misericórdia,
incompreensível para a mente humana. Mas onde a inteligência do homem não pode compreender,
compreende a inteligência do amor, o amor do espírito. Este compreende e penetra firmemente no mistério
que é Deus e no mistério dos relacionamentos da alma com Deus. Entra, Eu te digo. Entra, porque Deus o
quer.
– Oh! não, Senhor! Tudo o que me disseste[56] em Hebron se realizou.
Tu me salvaste, como o teu Nome diz. Tu procuraste a mim pobre alma perdida. Tu deste a vida a esta
alma que eu trazia morta em mim. Tu me disseste que, se eu tivesse te procurado teria te encontrado. E foi
verdade. Tu me disseste que estás por toda parte, onde o homem está precisando de médico e de remédio.
E é verdade tudo, tudo o que disseste à pobre Aglaé, desde aquelas palavras daquela manhã de junho, até
as outras ditas em Águas Belas…
– Então, deves crer também nestas.
– Sim, eu creio, eu creio. Mas, Tu me dirás: “Eu te perdôo!”
– Eu te perdôo em nome de Deus e de Jesus.
– Obrigada… 200.4Mas agora… Agora que devo fazer? Dize-me, Salvador meu, que é que eu devo fazer
para ter a vida eterna? Os homens se corrompem só ao olhar para mim… Eu não posso viver com esse
calafrio contínuo de pensar que vou ser descoberta e tentada… Nesta viagem, eu vinha tremendo, diante
dos olhares dos homens… Eu não quero mais pecar, nem fazer pecar. Dize-me que caminho devo seguir.
Seja qual for, eu o seguirei. Tu estás vendo que eu sou forte até nos sofrimentos. E, mesmo que por grandes
sofrimentos eu encontrasse a morte, não tenho medo dela. Eu até a chamarei de “minha amiga”, porque me
tirará dos perigos. Fala, meu Salvador.
– Vai para um lugar deserto.
– Onde, Senhor?
– Onde quiseres. Aonde te levar o teu espírito.
– Será capaz de fazer isso o meu espírito, só agora formado?
– Sim, porque Deus vai te conduzir.
– E, quem me falará ainda de Deus?
– A tua alma ressuscitada, por enquanto.
– Não te verei nunca mais?
– Sobre a terra, nunca mais. Mas, daqui a pouco, terei te redimido completamente e, então, virei ao teu
espírito a fim de preparar-te para subires a Deus.
– Como vai acontecer a minha completa redenção, se eu não vou te ver mais? Como a darás?
– Morrendo por todos os pecadores.
– Oh! Não! Tu, morreres!
– Para dar-vos a vida, devo dar-me a morte. É para isso que Eu vim em forma humana. Não chores… Tu
te encontrarás comigo logo, onde Eu estiver, depois do meu sacrifício e do teu.
– Meu Senhor! Também eu haverei de morrer por Ti?
– Sim. Mas de outro modo. Tua carne irá morrendo, hora por hora, e pelo desejo da tua vontade. Há
quase uma ano que ela já vem morrendo. Quando estiver completamente morta, eu te chamarei.
– Terei eu a força de destruir minha carne culpada?
– Na solidão em que vais estar e onde satanás te assaltará com a violência do seu ódio, quanto mais tu
fores sendo dos Céus, mas encontrarás um meu apóstolo, que foi pecador e depois foi redimido.
– Esse, então, não será aquele bendito, que me falava de Ti? Ele é muito honesto para ter sido pecador.
– Não é aquele. É um outro. Ele te encontrará na hora certa. E te dirá tudo o que ainda não podes saber.
Vai em paz. A bênção de Deus esteja sobre ti.
200.5 Aglaé, que todo aquele tempo tinha ficado de joelhos, curva-se para beijar os pés do Senhor. Não tem
coragem para mais do que isso. Depois, agarra sua sacola, vira-a de boca para baixo. E dela caem vestes
simples, um saquinho que retine e uma ânfora de um fino alabastro róseo.
Aglaé recoloca as vestes, apanha o saquinho e diz:
– Isto é para teus pobres. É o resto das minhas jóias. Reservei somente algumas moedas para as
despesas durante a viagem… mesmo que Tu não me tivesses dito, eu teria ido para algum lugar afastado. E
isto é para Ti. É menos suave que o perfume da tua santidade. Mas é tudo o que pode dar de melhor a terra.
E eu me servia disto para fazer o pior… Aí está. Deus me conceda exalar perfume, pelo menos como este,
na tua presença, no Céu –e destampa a ânfora, tirando-lhe a rolha preciosa e derramando o conteúdo no
chão.
Um perfume fino de rosas se levanta, em ondas, dos ladrilhos, que ficaram impregnados com aquela
essência de alto preço.
Aglaé recolhe a ânfora vazia.
– Para lembrança desta hora –diz ela, e depois se curva para tornar a beijar os pés de Jesus, levanta-se e
vai saindo dali, andando para trás. Acaba de sair e fecha a porta.
Ouvem-se os seus passos, que vão-se afastando em direção da escada e sua voz que troca algumas
palavras com Maria. Depois o rumor das sandálias que vão descendo pela escada e, por fim, nada mais. De
Aglaé só resta o saquinho aos pés de Jesus e o aroma penetrante, que se espalhou por todo o quarto.
Jesus se levanta… apanha o saquinho e o põe no peito, vai até uma abertura virada para a estrada e
sorri, ao ver a mulher que vai indo, sozinha, no seu manto de hebreia, a caminho de Belém. Ele faz um
gesto de bênção, depois vai ao terraço e chama:
– Mamãe.
Maria sobe prontamente pela escada.
– Tu a fizeste feliz, meu Filho. Ela lá se foi, cheia de fortaleza e de paz.
– Sim, mãe. Quando André voltar, manda-o a Mim, por primeiro.
200.6 O tempo passa… Ouvem-se as vozes dos apóstolos, que estão de volta… André chega correndo:
– Mestre, precisas de mim?
– Sim. Vem cá. Ninguém precisará saber disso, mas a ti é justiça que se o diga. André, obrigado em
nome de Deus e de uma alma.
– Obrigado? Por quê?
– Não estás sentindo este perfume? É a lembrança da Mulher Velada. Ela veio. Está salva.
André fica vermelho como um morango, cai de joelhos e não acha palavras… Por fim, ele diz:
– Agora, estou contente. Bendito seja o Senhor!
– Sim. Levanta-te. Não digas aos outros que ela veio.
– Guardarei silêncio, Senhor.
– Agora vai. Escuta: está aí ainda Judas de Simão?
– Sim, ele quis vir conosco… contando… muitas mentiras. Por que é que ele faz assim, Senhor?
– Porque é um jovem viciado. Dize-me a verdade: vós brigastes com ele?
– Não. O meu irmão se sente feliz demais com o seu menino, para ter vontade de brigar. E os outros… Tu
sabes… são mais prudentes. Com certeza, em nossos corações ficamos muito aborrecidos. Mas depois da
ceia ele vai embora… Outros amigos… diz ele. Oh! e despreza as meretrizes!…
– Sê bom, André. Tu também deves estar feliz esta tarde…
– Sim, Mestre. Eu também tenho a minha invisível, mas doce paternidade. Eu já me vou.
200.7 Passa mais algum tempo, e depois sobem em grupo os apóstolos com o menino e João de Endor.
Acompanham-nos as mulheres, com os diversos pratos e as luzes. Por último, vem Lázaro com Simão. Logo
que entram na sala, exclamam:
– Ah! Era daqui que saía! –e farejam o ar saturado de um perfume de rosas, saturado, por mais
escancaradas que estejam as portas–. Mas, quem foi que perfumou assim esta sala? Terá sido Marta? –
perguntam muitos.
– Minha irmã não saiu de casa hoje, depois do jantar, responde Lázaro.
– Quem terá sido, então? Algum sátrapa assírio? –caçoa Pedro.
– O amor de uma redimida –diz Jesus, sério.
– Ela podiaela ter poupado esta inútil exibição de redenção e dar tudo o que gastou aos pobres. Eles são
tantos e sabem que nós lhes damos. Eu não tenho mais nem um vintém, diz, irritado, Iscariotes. E ainda
temos que comprar o cordeiro, alugar a sala para o Cenáculo e…
– Mas eu vos ofereci tudo!… –diz Lázaro.
– Mas não é justo. O rito perde a beleza. A Lei diz: “Tomarás o cordeiro para ti e tua casa.” Não diz:
“Aceitarás o cordeiro.”
Bartolomeu se vira, de repente, abre a boca, mas logo a fecha. Pedro fica vermelho, pelo esforço feito
para calar-se. Mas Zelotes, que está em sua casa, acha que pode falar, e diz:
– Essas são sutilezas rabínicas… Eu te peço que deixes de lado isso tudo e, em compensação, conserves
o respeito para com o meu amigo Lázaro.
– Muito bem, Simão! –Pedro — se não fala — é capaz de explodir–. Muito bem. Parece-me também que
aqui se esqueçe um pouco demais de que só o Mestre tem o direito de ensinar…
Pedro diz aquelas palavras “que aqui se esquece”, com um esforço verdadeiramente heróico, para não
dizer: “que Judas se esquece”.
– É verdade… mas estou nervoso. Desculpa, Mestre.
– Sim. Eu também te respondo. A gratidão é uma grande virtude. Eu sou muito grato a Lázaro. Assim
como aquela redimida foi grata a Mim. Eu espalho sobre Lázaro o perfume da minha bênção, também por
aqueles, entre os meus discípulos, que não sabem fazer isso. Eu, chefe de todos vós. A mulher derramou a
meus pés o perfume de sua alegria de ser salva. Ela reconheceu o Rei, e veio ao Rei, antes de muitos
outros, sobre os quais o Rei tem feito a efusão de muito mais amor do que sobre ela. Deixai que ela faça o
que fez, e não a critiqueis. Ela não poderá estar presente à minha aclamação, nem à minha unção. A cruz
dela já está em suas costas. Pedro, tu disseste que parecia ter passado por aqui algum sátrapa assírio. Em
verdade, Eu te digo que, nem mesmo o incenso dos Magos, tão puro e precioso, era mais suave do que este.
A essência deste foi dissolvida no pranto, e por isso é que ela é tão penetrante: a humildade sustém o amor
e o torna perfeito. Vamos sentar-nos à mesa, amigos…
E, com o oferecimento da refeição, cessa a visão.
[57] Está dito em Êxodo 22,21-23; Deuteronômio 14,28-29; 16,11; 24,17-21; 26,12-13; 27,19; Isaías 1,17. Outras vezes na obra (por exemplo em 229.3 e
557.6) lembrou-se o dever de amar e socorrer o órfão e a viúva. A prescrição do Êxodo será citada textualmente em 335.14.
202. Uma repreensão a Judas Iscariotese
a chegada dos camponeses de Jocanã.
27 de junho de 1945.
202.1 Estamos na vigília da Páscoa. Sozinho com os seus apóstolos, porque as mulheres não se uniram ao
grupo, Jesus está esperando a volta de Pedro, que foi levar o cordeiro pascal para ser sacrificado. Enquanto
estão esperando e Jesus está falando ao menino sobre Salomão, eis que Judas vem atravessando o grande
pátio. Ele está com um grupo de jovens, falando com grandes e espalhafatosos gestos e com poses
estudadas. Seu manto se agita continuamente e ele o move com a gravidade própria de um sábio… Creio
que Cícero não devia ter sido mais pomposo, quando pronunciava os seus discursos…
– Olha lá Judas! –diz Tadeu.
– Está com um grupo de escribas –observa Filipe.
E Tomé diz:
– Vou ouvir o que ele está dizendo –e vai, sem esperar que Jesus diga o seu previsível não.
Jesus… Oh! com que rosto está Jesus! Tem o rosto de um verdadeiro sofrimento e de um severo
julgamento. Margziam, que estava olhando para Ele desde antes, enquanto Ele doce e suavemente lhe
falava do grande rei de Israel, nota esta mudança, quase fica espantado com ela e sacode a mão de Jesus,
para fazê-lo cair em si, e diz:
– Não fiques olhando! Olha para mim, que gosto muito de Ti.
202.2 Tomé consegue chegar perto de Judas, sem ser visto por ele, e o acompanha durante alguns passos.
Não sei o que ele ouve dizer, só sei que ele solta uma repentina exclamação, tão alta, que faz que muitos se
virem para ele, especialmente Judas, que fica lívido de raiva:
– Mas, que grande quantidade de rabis tem Israel! Eu me felicito contigo, ó nova luz de sabedoria!
– Eu não sou uma pedra. Mas uma esponja. Eu absorvo. E, quando o desejo dos que têm fome de
sabedoria o quer, eis que eu me espremo para eles com todos os meus sucos de vida.
Judas está bombástico e desdenhoso.
– Mais me pareces um eco fiel. Contudo, o eco, para continuar a ressoar, precisa estar perto da voz,
senão, ele morre, meu amigo. E parece-me que tu estás te afastando dela. Ele está lá. Não queres ir?
Judas se torna de todas as cores, com o rosto cheio de ódio e de repugnância, como em seus piores
momentos. Mas ele se domina. E diz:
– Eu vos saúdo, amigos. Eis-me aqui contigo, Tomé, meu caro amigo. Iremos logo ao Mestre. Eu não
sabia que Ele estava no Templo. Se eu o tivesse sabido, ter-me-ia posto à procura dele –e passa o braço ao
redor das costas de Tomé, como se sentisse por ele um grande afeto.
Não obstante, Tomé, plácido, mas não simplório, não se deixa ludibriar por aquelas manifestações… e
pergunta, dissimulando-se um pouco:
– Como? Não estás sabendo que é a Páscoa? E tu achas que o Mestre não seja fiel à Lei?
– Oh! Isso nunca! Mas, no ano passado, ele se mostrava, falava. Eu me lembro, como se fosse hoje. Ele
me atraiu pela sua violência de rei… Agora… parece-me que Ele perdeu o seu vigor. Tu não achas?
– Eu não acho. Parece-me que alguém perdeu a estima.
– Da missão dele, é verdade, tu dizes bem.
– Não. Tu me entendeste mal. Ele perdeu a estima dos homens. E tu és um dos que contribuem para
isso. Cria vergonha!
Tomé não está mais rindo. Está de poucas palavras, mas ao dizer “Cria vergonha” fere mais que uma
chicotada.
– Vê bem como falas! –ameaça Iscariotes.
– Vê bem como ages! Aqui estamos como dois judeus, sem testemunhas. E por isso eu falo. E torno a
dizer-te: “Cria vergonha!” Agora cala-te. Não te faças de ator, nem de choramingas, porque senão eu vou
falar diante de todos. 202.3Lá vem o Mestre e os companheiros. Controla-te.
– A paz esteja contigo, Mestre…
– A paz esteja contigo, Judas de Simão.
– É tão bom para mim achar-te aqui… Precisaria falar-te…
– Então, fala.
– Sabes… eu queria dizer-te… Não podes me ouvir separado?
– Estás entre os companheiros.
– Mas eu queria falar só contigo.
– Em Betânia Eu fico sozinho com quem me quer e procura. Mas tu não me procuras. Tu me evitas…
– Não, Mestre. Não podes dizer isso.
– Por que é que ontem ofendeste a Simão, a Mim, e conosco ao José de Arimateia, os companheiros,
minha mãe e as outras?
– Eu? mas eu nem vos vi.
– Não quiseste ver-nos. Porq ue não vieste, como combinado, para abençoar o Senhor Deus por um
inocente acolhido na Lei? Responde! Nem sentiste o dever de avisar que não vinhas.
– Lá vem meu pai –grita Margziam, que vê de longe a Pedro, que vem vindo de volta, com o seu cordeiro
já degolado, destripado e enrolado em sua pele–. Oh! Com ele vem vindo Miqueias e os outros. Eu vou,
posso ir ao encontro deles, para ouvir o que estão falando do meu velho pai?
– Vai, meu filho –diz Jesus, acariciando-o.
E acrescenta, tocando no ombro do João de Endor:
– Eu te peço, acompanha-o e… procura entretê-lo um pouco.
E volta-se de novo para Judas:
– Responde-me, agora. Eu estou esperando.
– Mestre, uma obrigação imprevista… indispensável… Senti dor por isso, mas…
– Mas, será que em toda esta Jerusalém não havia alguém para trazer tua justificação, se é que tinhas
alguma? Isto já era uma culpa. Eu te faço lembrar que ultimamente um homem deixou de ir sepultar o seu
pai para acompanhar-me, que estes meus irmãos deixaram a casa paterna, entre anátemas.. para seguir-
me., e que Simão e Tomé, e com eles André, Tiago, João, Filipe e Natanael deixaram suas famílias; e Simão
Cananeu a sua riqueza, para dar-ma. E Mateus, o pecado para Me seguir. Eu poderia continuar com cem
nomes. Há quem abandona a vida, a própria vida para seguir-me no Reino dos Céus. Mas, posto que não és
generoso sê, ao menos, educado. Não tens caridade, mas procura ter, pelo menos, um modo de proceder de
homem. Imita, já que eles te agradam, os fariseus falsos, que me atraiçoam, que nos atraiçoam mostrando-
se muito educados. O teu dever era de te conservares para nós ontem, de não ofenderes Pedro, que Eu exijo
que seja respeitado por todos. Mas, pelo menos que tivesses procurado mandar um aviso.
– Eu errei. 202.4Mas agora vinha justamente à procura de Ti para dizer-te que, sempre pela mesma causa,
amanhã não poderei vir. Tu sabes… Eu tenho amigos de meu pai e me…
– Basta. Vai, então, com eles. Adeus.
– Mestre… estás irritado comigo? Tu me disseste que me tratarias como um pai… Eu sou um jovem
estouvado, mas um pai perdoa…
– Eu te perdôo, sim. Mas, vai-te embora. Não fiques fazendo esperar-te os amigos do teu pai, assim como
Eu não faço que me fiquem esperando os amigos do santo Jonas.
– Quando deixarás Betânia?
– No fim dos ázimos. Adeus.
Jesus se vira, e se dirige para os camponeses, que estão em êxtase, diante da transformação que
notaram em Margziam. Ele dá alguns passos, e depois para, diante da consideração de Tomé:
– Por Javé! Ele queria ver-te na violência de um rei. E saiu bem servido!…
– Eu vos peço que todos vós vos esqueçais do incidente, assim como Eu faço violência a mim mesmo
para esquecer-me dele. Eu vos ordeno o silêncio com Simão de Jonas, com João de Endor e com o pequeno.
Por motivos que vossa inteligência é bem capaz de compreender, é bom não entristecer nem escandalizar
aqueles três. E também silêncio em Betânia, com as mulheres. Lá está minha mãe. Lembrai-vos disso.
– Fica tranquilo, Mestre.
– Faremos tudo para reparar o mal.
– E para consolar-te também –dizem todos.
– Obrigado… 202.5Oh! A paz esteja com todos vós. Isaac vos encontrou. Estou contente por isso. Passai em
paz a vossa Páscoa. Os meus pastores serão outros tantos bons irmãos convosco. Isaac, antes que se vão,
acompanha-os por Mim. Eu os quero abençoar de novo. Vistes o menino?
– Oh! Mestre! Como ele está bem! E mais forte já. Oh! Nós vamos contar isso ao velho. E como ele ficará
feliz com isso! Disse-nos este justo que Jabé agora é filho dele… é uma providência. Nós diremos tudo, tudo.
– Dizei também que eu já sou filho da Lei. E que me sinto feliz. E que me lembro sempre dele. E que ele
não chore nem por mim nem pela mamãe. Eu a tenho perto de mim, e ele também a tem como um anjo e a
terá sempre, até a hora de sua morte, e se Jesus já tiver aberto as portas dos Céus, eis que, então a mamãe,
mais bela do que um anjo, virá ao encontro do velho pai e o conduzirá a Jesus. Foi Ele quem o disse. Vós lhe
direis? E sabereis dizê-lo bem?
– Sim, Jabé.
– Não. Agora sou Margziam. A mãe do Senhor deu-me este nome. É como se dissesse o nome dela. Ela
gosta muito de Mim. Ela me põe na cama todas as noites, e me faz dizer as orações que fazia seu Menino
dizer. Ela me desperta com um beijo, me veste e me ensina muitas coisas. E Ele também. Mas penetram
dentro tão suavemente que se aprendem sem fadiga Ele é o meu Mestre!
O menino se abraça a Jesus com tal adoração de ato e de expressão que comove quem o vê.
– Sim, vós direis tudo isso, e também que o velho não perca a esperança. Este anjo está rezando por ele,
e Eu o abençôo. Também a vós Eu vos abençôo. Ide. A paz esteja convosco.
Os grupos se separam, indo cada um para o seu lado.
203. A oração do “Pai Nosso”.
28 de junho de 1945.
203.1 Jesus sai com os seus de uma casa perto dos muros, e creio que sempre no bairro de Bezeta, a fim de
sair para fora dos muros, devendo passar primeiro diante da casa de José, que está próxima da Porta, que
eu ouvi ser chamada Porta de Herodes. A cidade está semi-deserta, nesta noite plácida e enluarada.
Compreendo que já foi consumada a Páscoa em uma das casas de Lázaro que, contudo, não é, de modo
algum, a casa do Cenáculo. Esta é realmente como uma antípoda daquela. Uma está ao norte, a outra ao sul
de Jerusalém.
Na porta da casa, Jesus se despede, com garbo gentil, de João de Endor, que Ele deixa como proteção
para as mulheres, e a quem agradece por essa proteção. Beija Margziam, que também veio até à porta, e
depois põe-se a caminho para fora da Porta chamada Porta de Herodes.
– Aonde vamos, Senhor?
– Vinde comigo. Eu vos levo comigo, para coroarmos a Páscoa com uma pérola rara e desejada. Por isso
é que Eu quis estar somente convosco. Os meus apóstolos! Obrigado, amigos, pelo vosso grande amor por
Mim. Se pudésseis ver como isso me consola, ficaríeis admirados. Vede: Eu vivo entre contínuos atritos e
desilusões. Desilusões para vós. Para Mim, persuadi-vos disso, Eu não tenho nenhuma desilusão, pois não
me foi concedido o dom de ignorar… Também por isso, Eu vos aconselho a deixar-vos guiar por Mim. Se Eu
permito isto ou aquilo, não crieis obstáculos. Se Eu não intervenho para pôr fim a uma coisa, não penseis
em fazê-lo vós. Cada coisa a seu tempo. Tende confiança, sobretudo em Mim.
Estão no canto nordeste do recinto murado. Eles vão contornando os muros e rodeando o Monte Mória,
até o ponto em que, por uma pequena ponte, já podem atravessar o Cedron.
– Vamos indo para o Getsêmani? –pergunta Tiago de Alfeu.
– Não. Mais acima. Sobre o Monte das Oliveiras.
– Oh! Será belo! –diz João.
– Seria agradável também para o menino –murmura Pedro.
– Oh! Para aqui viremos muitas outras vezes. Ele já estava cansado. Afinal, é um menino. Eu quero dar-
vos uma grande coisa, porque agora é justo que a tenhais.
203.2 Vão subindo por entre as oliveiras, deixando à direita o Getsêmani, e subindo ainda pelo monte, até
chegarem ao cume, sobre o qual as oliveiras, com suas frondes, formam um pente, que cicia, ao soprar do
vento.
Jesus para, e diz:
– Paremos… Meus caros, tão caros como discípulos e como meus continuadores no futuro, vinde para
perto de Mim. Um dia, e não foi um dia só, vós me dissestes[58]: “Ensina-nos a rezar como Tu rezas. Ensina-
nos, como João ensinou aos dele, a fim de que nós, discípulos, possamos rezar com as mesmas palavras com
que o Mestre reza.” E Eu sempre vos respondi: “Eu farei isso, quando vir em vós um mínimo de preparação
suficiente, a fim de que vossa oração não seja uma fórmula vazia, com palavras humanas, mas uma
verdadeira conversa com o Pai.” A este ponto já chegamos. Vós já sois possuidores do que basta, para
poderdes conhecer as palavras dignas de serem ditas a Deus. Eu vo-las quero ensinar nesta tarde, na paz e
no amor que existem entre nós, na paz e no amor de Deus e com Deus, porque nós já cumprimos o preceito
pascal, como verdadeiros israelitas, e à ordem divina sobre o amor para com Deus e para com o próximo.
203.3Um entre vós sofreu muito nestes dias. Sofreu por um ato não merecido, e sofreu pelo esforço que fez
sobre si mesmo, para conter a indignação que aquele ato provocou. Sim, Simão de Jonas, vem aqui. Não
houve nenhum frêmito do teu coração honesto, que por Mim tenha ficado desconhecido, e não houve
sofrimento teu de que Eu não tenha participado contigo. Eu e os teus companheiros…
– Mas Tu, Senhor, foste muito mais ofendido do que eu! E esse era para mim um sofrimento muito maior,
não, muito mais sensível… nem mesmo… mais… mais… Eis: que Judas tenha tido nojo de participar da
minha festa me fez mal a mim, como homem. Mas ter que ver que estavas entristecido, aí é que sofri o
dobro… Mas devo dizer e, se o faço por soberba, dize-o a mim, devo dizer que sofri com minha alma… e isso
faz que soframos mais.
– Não é soberba, Simão. Sofreste espiritualmente, porque Simão de Jonas, pescador da Galileia, se está
transformando no Pedro de Jesus, Mestre do espírito, pelo qual também os seus discípulos se tornam ativos
e sábios no espírito. É por esse teu progresso na vida do espírito, e por esse vosso progredir, que Eu vos
quero esta noite ensinar a oração. Quanto estais mudados, desde aquela parada solitária[59] para cá!
– Todos Senhor? –pergunta Bartolomeu, um pouco incrédulo.
– Compreendo o que queres dizer… Mas Eu falo agora a vós onze, não a outros.
– Mas, que tem Judas de Simão, Mestre? Nós não o compreendemos mais. Ele parecia tão mudado e
agora, desde que nós deixamos o lago… –diz desolado André.
– Cala-te, meu irmão. A chave do mistério eu a tenho. Nele se apegou um pedacinho de Belzebu. Ele foi
procurá-lo na caverna de Endor, para maravilhar-se, e… ficou servido. O Mestre disse naquele dia… Em
Gamala os demônios entraram nos porcos… Em Endor, os demônios saídos daquele infeliz, que era João,
entraram nele… Compreende-se… compreende-se… Deixa-me dizê-lo, Mestre! Já está aqui em cima, na
garganta, e se eu não o disser, ele não sai e eu vou envenenar-me com ele…
– Simão, sê bom!
– Sim, Mestre… eu te garanto que não serei indelicado com ele. Mas digo e penso que, sendo Judas um
viciado, — todos nós já entendemos isso — é um pouco semelhante ao porco… e compreende-se que os
demônios escolheram de boa vontade os porcos para serem… as casas para as quais se mudaram. Eis, já o
disse.
– Tu dizes que é assim? –pergunta Tiago de Zebedeu.
– E que outra coisa queres que seja? Não houve nenhuma razão para se tornar tão intratável. Pior do
que em Águas Belas! Lá eu ainda podia pensar que era o lugar e a estação que o fizessem ficar nervoso.
Mas agora…
203.4 – Há uma outra razão, Simão…
– Dize qual é, Mestre. Eu ficarei contente se puder mudar de opinião a respeito do companheiro.
– Judas é ciumento. É inquieto por ciúme.
– Ciumento? De quem? Não tem mulher e, mesmo que a tivesse, e ainda que fosse com as mulheres, eu
creio que nenhum de nós teria desprezo para com o condiscípulo…
– É ciumento de Mim. Considera: Judas se alterou depois de Endor e depois de Esdrelon. Ou seja,
quando viu que Eu me ocupei com João e Jabé. Mas agora João, principalmente João, vai-se afastar,
passando de Mim para Isaac e verás que ele voltará a ficar alegre e bom.
– É… Está bem. Mas, não me quererás dizer que ele não está tomado por algum demoniozinho… E,
sobretudo… Não, o digo! E mais que tudo, não me quererás dizer que ele melhorou nos últimos meses.
Ciumento eu também era no ano passado… Eu não teria querido ninguém mais além de nós seis, — os
primeiros seis, — Te recordas? Agora… Agora… deixa-me invocar a Deus somente uma vez, como
testemunha do meu pensamento. Agora digo que me sinto feliz, quanto mais aumentam os discípulos ao
redor de Ti. Oh! eu quereria ter todos os homens para trazê-los a Ti, e todos os meios para poder acudir a
quem tem necessidade de Ti, a fim de que não seja a miséria que crie obstáculos a quem quiser vir a Ti.
Deus está vendo se eu estou dizendo a verdade. Mas, por que sou assim agora? Porque eu me deixei mudar
por Ti. Ele… não mudou. Pelo contrário… olha lá, Mestre… Um demoniozinho tomou conta dele…
– Não o digas. Não o penses. Reza para que ele sare. O ciúme é uma doença…
– Doença que, a teu lado se cura, se o quisermos. Ah! Eu vou suportá-lo, por causa de Ti… Mas, que
fadiga!…
– Por ela te dei como prêmio o menino. E agora vou te ensinar a rezar…
– Oh! Sim, meu irmão. Vamos falar disso… e o meu homônimo seja lembrado só como alguém que tem
necessidade disso. Parece-me que ele já está recebendo o seu castigo: Neste momento ele não está
conosco! –diz Judas Tadeu.
203.5 – Ouví. Quando rezardes! dizei assim: “Pai nosso, que estás no Céu, santificado seja o teu Nome,
venha o teu Reino na Terra, como o é no Céu e, na Terra, como no Céu, seja feita a tua Vontade. Dá-nos hoje
o nosso pão de cada dia, perdoa-nos as nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores, não nos
deixes cair em tentação, mas livra-nos do Maligno.”
Jesus se levantou para dizer a oração, e todos o imitaram, atentos e comovidos.
– Não é preciso nada mais, meus amigos. Nestas palavras está contido como num anel de ouro tudo
quanto é necessário ao homem para o espírito, a carne e o sangue. Com isto pedis o que é útil para aquele e
para estes. E, se fizerdes o que pedis, conseguireis a vida eterna. É uma oração tão perfeita, que os
vagalhões das heresias e o curso dos séculos não conseguirão embotá-la. O cristianismo será esmigalhado
pela mordedura de satanás, e muitas partes da minha carne mística serão arrancadas, separadas, formando
células por si mesmas, no vão desejo de criar para si um corpo perfeito como será o Corpo místico de
Cristo, ou seja, o que é formado por todos os fiéis unidos na Igreja apostólica, que será, enquanto existir a
terra, a única verdadeira Igreja. Mas estas pequenas partes separadas, privadas por isso dos dons que eu
deixarei à Igreja mãe para nutrir os meus filhos, continuarão a se chamar sempre de cristãos, prestando
culto ao Cristo, e sempre se recordarão, mesmo em seu erro, de que vieram do Cristo. Pois bem. Elas
também rezarão com esta oração universal. Lembrai-vos bem dela. Meditai nela continuamente. Aplicai-a às
vossas ações. Não há necessidade de mais nada para que vos santifiqueis. Se alguém estivesse sozinho,
num lugar de pagãos, sem igrejas, sem livros, teria tudo que se pode saber para meditar, nesta oração, e
uma igreja aberta em seu coração por esta oração. Teria uma regra e uma santificação segura.
203.6 “Pai nosso.”
Eu o chamo “Pai.” Pai, Ele é do Verbo, Pai é do Encarnado. Assim quero que o chameis, porque vós sois
Um comigo, se permanecerdes em Mim. Houve um tempo em que o homem devia jogar-se de rosto no chão,
para suspirar, por entre temores de espanto: “Deus!” Quem não crê em Mim e em minha palavra, ainda está
neste temor paralisante… Observai no Templo. Não Deus, mas até a lembrança de Deus está escondida aos
olhos dos fiéis, atrás de um tríplice véu. Separações por distância, separações por véus, tudo foi usado e
aplicado para dizer a quem reza: “Tu és barro. Ele é Luz. Tu és abjecto. Ele é Santo. Tu és escravo. Ele é
Rei.”
Mas agora!… Levantai-vos! Aproximai-vos! Eu sou o Sacerdote Eterno. Eu posso tomar-vos pela mão e
dizer: “Vinde.” Eu posso agarrar os véus da tenda e abri-las, escancarando as portas do lugar inacessível, e
até agora fechado. Fechado? Por quê? Fechado pela culpa, sim. Mas, mais fechado ainda pelo pensamento
aviltado dos homens. Por que fechado, se Deus é Amor, se Deus é Pai? Eu posso, Eu devo, Eu quero levar-
vos não para o pó, mas para o azul; não para longe, mas para perto; não em vestes de escravos, mas de
filhos, sobre o coração de Deus. “Pai! Pai”, vós dizeis. E não vos canseis de dizer esta palavra. Não sabeis
que, cada vez que a dizeis, o Céu cintila pela alegria de Deus? Não diríeis que nesta oração, feita com
verdadeiro amor, já teríeis feito a oração agradável ao Senhor? “Pai! Meu Pai! dizem os pequenos a seu pai.
É a palavra que aprendem a dizer primeiro: “Mãe, pai.” Vós sois os pequeninos de Deus. Eu vos gerei do
velho homem que éreis e que Eu destruí com meu amor, para fazer nascer o homem novo, o cristão.
Chamai, pois, com a primeira palavra que os pequeninos conhecem e falam, ao Pai Altíssimo, que está nos
Céus.
203.7 “Santificado seja o teu Nome.”
Oh! O nome mais santo e suave que qualquer outro nome. Nome que o terror do culpado vos ensinou a
esconder debaixo de um outro. Não, não mais digais Adonai, não mais. É Deus. É Deus que, num excesso de
amor, criou a Humanidade. A Humanidade de agora em diante, com os lábios purificados pelo banho que Eu
preparo, que ela o chame por seu Nome, reservando-o para a hora de compreender com plenitude da
sabedoria o verdadeiro significado deste Incompreensível, quando intimamente unida com Ele, a
Humanidade, em seus filhos melhores, tiver sido elevada ao Reino que Eu vim estabelecer[60].
203.8 “Venha o teu Reino assim na terra como no Céu.”
Desejai com todas as vossas forças este advento. Seria a alegria sobre toda a terra, se ele viesse. O
Reino de Deus nos corações, nas famílias, entre os cidadãos, entre as nações. Sofrei, fatigai-vos, sacrificai-
vos por este Reino. Seja a terra um espelho que reflita em cada um a vida dos Céus. Ele virá. Um dia tudo
isso virá. Séculos e séculos de lágrimas e sangue, de erros, de perseguições, de escuridão rompida por raios
de luz, que irradiam do Farol místico da minha Igreja — que, se é uma barca, que não será submersa, é
também uma rocha irremovível, frente a todos os vagalhões, e alta vai conservar a Luz, a minha Luz, a Luz
de Deus — aqueles séculos precederão o momento no qual a terra possuirá o Reino de Deus. E será então
como o flamejar intenso de um astro que, tendo chegado ao ponto mais perfeito de sua existência, se
desagrega, como uma flor descomunal dos jardins etéreos, para exalar, em palpitações rutilantes, a sua
existência e o seu amor aos pés do seu Criador. Mas, que virá, virá. Depois disso, será o Reino Perfeito, feliz
e eterno no Céu.
203.9“E na terra como no Céu seja feita a tua Vontade.”
A anulação da própria vontade pela de outra pessoa só se pode fazer, quando se alcançou o perfeito
amor para com aquela criatura. O anulamento da própria vontade pela de Deus somente se pode fazer
quando se alcançou a posse das virtudes teologais, em grau heróico. No Céu, onde tudo é sem defeitos, faz-
se a vontade de Deus. Sabei, pois, vós filhos do Céu, fazer o que se faz no Céu.
203.10 “Dá-nos o pão nosso de cada dia.”
Quando estiverdes no céu, vós vos nutrireis somente de Deus. A felicidade será o vosso alimento. Mas
aqui ainda tendes necessidade de pão. E sois os pequeninos de Deus. Portanto, é justo dizer: “Pai, dá-nos o
pão.” Tendes medo de não serdes ouvidos? Oh! Não! Considerai. Se um de vós tem um amigo e, dando-se
conta de que está sem pão para matar a fome de um outro amigo ou de um parente, que chegou à casa
dele, lá pelo fim da segunda vigília da noite, e for ao amigo, e lhe disser: “meu amigo, empresta-me três
pães, porque um hóspede chegou lá em casa, e eu não tenho nada para dar-lhe de comer”, poderá
acontecer que ele ouça esta resposta, que vem lá de dentro da casa: “Não me aborreças, porque a porta já
está fechada, as aldravas já estão trancadas, os meus filhos já estão dormindo ao meu lado. Não posso
levantar-me para dar-te o que queres”? Não. Se ele recorreu a um verdadeiro amigo, e se insiste, receberá
o que está pedindo. E o receberia também, mesmo que tivesse recorrido a um amigo não muito bom. Ele
receberia por causa de sua insistência, porque o solicitado de tal favor ia se apressar em dar-lhe tudo o que
ele quisesse, contanto que não o importunasse mais.
Mas vós, orando ao Pai, não estais recorrendo a um amigo da terra, e sim, ao Amigo Perfeito, que é o Pai
do Céu. Por isso, Eu vos digo: “Pedi, e vos será dado; procurai, e encontrareis; batei, e se vos abrirá.” De
fato, a quem pede, é dado, quem procura, acaba por encontrar, e a quem bate, a porta se abre. Quem, entre
os filhos dos homens, é visto pondo uma pedra na mão de quem está pedindo ao pai um pão? E quem é visto
dar uma cobra, em vez de um peixe assado? Seria um delinquente o pai que assim fizesse com seus filhos.
Eu já o disse[61], e o repito, para persuadir-vos e terdes sentimentos de bondade e confiança. Assim como
ninguém, de são juízo, daria um escorpião em lugar de um ovo, assim, com quanto maior bondade Deus não
vos dará o que pedis? Porque Ele é bom, enquanto que vós, uns mais, outros menos, sois maus. Pedi, pois,
com um amor humilde e filial o vosso pão ao Pai.
203.11 “Perdoa-nos as nossas dívidas como nós as perdoamos aos nossos devedores.”
Há dívidas materiais, e dívidas espirituais. E há também as dívidas morais. É dívida material a moeda ou
a mercadoria que, tomada emprestada, não foi restituída. É dívida moral a estima tirada e não devolvida, O
amor querido e não dado. É dívida espiritual a obediência a Deus, do qual muito se exigiria, e ao qual se dá
bem pouco, e o amor para com Ele. Ele nos ama e deve ser amado, assim como se ama uma mãe, uma
esposa, um filho, do qual se exigem tantas coisas. O egoísta quer ter e não dar. Mas o egoísta está entre os
antípodas do céu. Temos dívidas com todos. Desde Deus até o parente, e deste até o amigo, do amigo até o
próximo, ao criado e ao escravo, sendo todos eles seres como nós. Ai de quem não perdoa! Não será
perdoado. Deus não pode, por justiça, perdoar a dívida que o homem tem para com ele que é Santíssimo, se
o homem não perdoa a seu semelhante.
203.12 “Não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do Maligno.”
O homem, que não sentiu necessidade de participar conosco da Ceia da Páscoa, me perguntou, há
menos de um ano; “Como? Tu pedistes para não seres tentado, e para seres ajudado na tentação, contra ela
mesma?” Nós dois estávamos sozinhos… e Eu respondi[62]. Depois, éramos quatro em um lugar solitário, e
Eu ainda respondi. Mas ainda não adiantou, porque em um espírito muito resistente é preciso insinuar-se,
demolindo a má fortaleza de sua obstinação. E, por isso, o direi ainda uma, dez, cem vezes, até que tudo
chegue ao fim.
Mas vós, não encouraçados em infelizes doutrinas e em paixões ainda mais infelizes, rezai com
humildade para que Deus impeça as tentações. Oh! A humildade! Conhecer-se pelo que se é. Sem aviltar-se,
mas procurando conhecer-se. Dizer: “Eu poderia ceder, mesmo que não me pareça poder fazê-lo, porque eu
sou um juiz imperfeito de mim mesmo. Portanto, Pai meu, se for possível, liberta-me das tentações
conservando-me perto de Ti, para não permitir ao Maligno fazer-me mal.” Porque, recordai-vos disso, não é
Deus que tenta para o Mal, mas é o Mal que tenta. Rezai ao Pai para que Ele ajude a vossa fraqueza, a tal
ponto, que ela não possa ser induzida em tentação pelo Maligno.
203.13Já o disse, meus queridos. Esta é a minha segunda Páscoa entre vós. No ano passado, partimos
somente o pão e o cordeiro. Neste ano vos dou a oração. Outros presentes terei para as outras minhas
Páscoas entre vós, para que, quando Eu tiver ido para onde o Pai quer, vós tenhais uma lembrança de Mim,
Cordeiro, em todas as festas do Cordeiro de Moisés.
Levantai-vos e vamos. Entraremos de novo na cidade, ao amanhecer. Em tempo: amanhã, tu, Simão e tu,
meu irmão (indica Judas) ireis buscar as mulheres e o menino. Tu, Simão de Jonas, e vós outros, ficareis
comigo, até que estes voltem. Depois, iremos juntos para Betânia.
E descem até o Getsêmani, em cuja casa entram para descansar.
[58] me dissestes, por exemplo em 62.2, 119.10, 149.3.
[59] parada solitária, aquela de 164.3/4, dos quais os efeitos foram evidenciados em 165.5.
[60] vim estabelecer. Assim anota MV em uma cópia datilografada: Como Jesus “revelou o Pai” (João 1,18) durante o seu ministério de Mestre e do modo
que podia revelá-lo aos seres vivos, assim será sempre pelo Verbo, Filho do Pai, que os cidadão do Reino de Deus conhecerão a Deus.
[61] o disse a ele em 172.7.
[62] respondi em 69.5; Eu ainda respondi em 80.8/10.
204. A fé e a alma são explicadas
aos pagãos com a parábola dos templos.
29 de junho de 1945.
204.1Na paz do sábado, Jesus está descansando perto de um campo de linho todo em flor, pertencente a
Lázaro. Ele está mais do que perto, eu diria que Ele está submerso no meio do linho e, sentado à beira de
um sulco, absorto em seus pensamentos. Junto dele só se vê alguma silenciosa borboleta, ou alguma
lagartixa rastejando e que olha para Ele com seus olhinhos de azeviche, levantando a cabecinha triangular
para cima da garganta clara e palpitante. E nada mais. Nesta hora já adiantada do meio-dia, cala-se até o
menor sopro de vento por entre as altas hastes.
De longe, talvez lá do jardim de Lázaro, está fazendo-se ouvir o canto de uma mulher e, junto com ele,
os gritos festivos de um menino, que está brincando com algum outro. Depois, uma, duas, três vozes
exclamam: “Mestre!” “Jesus!”
Jesus volta a si e se levanta. E, por mais que o linho, em seu completo crescimento, já esteja bem alto,
Jesus emerge bem por cima deste mar verde e azul.
– Lá está Ele, João –grita Zelotes.
E João, por sua vez, chama:
– Mãe, o Mestre está aqui, no meio do linho.
E, enquanto Jesus vai-se aproximando do caminho que vai para as casas, eis que Maria chega perto dele.
– Que queres, mãe?
– Meu filho, chegaram pagãos com umas mulheres. Dizem que ficaram sabendo por Joana que estavas
aqui. Dizem também que Te ficaram esperando durante todos estes dias, perto da fortaleza Antônia…
– Ah! Compreendi! Eu já vou. Onde estão eles?
– Na casa de Lázaro, em seu jardim. Ele é amado pelos romanos e não tem repugnância por eles, como
nós temos. Ele os fez entrar, com os seus carros, no amplo jardim, para não escandalizar a ninguém.
– Está bem, mãe. 204.2São soldados e damas romanas. Eu sei.
– E que quererão de Ti?
– Aquilo que muitos de Israel não querem: Luz.
– Mas, que pensarão sobre como és e quem és? Deus, talvez?
– Deus, do modo deles, sim. Para eles é fácil acolher a ideia de uma encarnação de um deus em carne
mortal, mais do que para nós.
– Então, conseguiram crer na tua fé…
– Ainda não, minha mãe. Primeiro é preciso destruir a deles. Por enquanto, Eu sou para eles um sábio,
um filósofo, como eles dizem. Mas, ou por este desejo veemente de conhecer doutrinas filosóficas, ou
porque essa tendência deles para crer que é possível a encarnação de um deus, Eu sou muito ajudado a
levá-los à verdadeira Fé. Podes crer, eles são mais ingênuos, em seus pensamentos, do que muitos em
Israel.
– Mas, serão eles sinceros? Dizem que o Batista…
– Não. Se dependesse deles, João estaria livre e em segurança. Quem não é rebelde, é deixado
sossegado. Antes, te digo, para eles o ser profeta — eles os chamam de filósofos, porque toda elevação da
sabedoria para deles é sempre filosofia — é uma garantia para serem respeitados. Não fiques preocupada,
minha mãe. Dali não me virá mal…
– Mas os fariseus… se souberem, que irão dizer, até de Lázaro? Tu… és Tu, e deves levar a palavra ao
mundo. Mas Lázaro!… Já é tão ofendido por eles…
– Mas ele é intocável. Eles sabem que ele é protegido por Roma.
– Eu Te deixo, meu Filho. Aí vem Maximino, para levar-te aos pagãos –e Maria, que havia caminhado ao
lado de Jesus durante todo aquele tempo, se retira ligeira, indo para a casa de Zelotes, enquanto Jesus
entra por um portãozinho de ferro, aberto no muro do jardim, em uma parte mais afastada dele, lá onde o
jardim se transforma em pomar, isto é, perto do lugar onde, mais tarde, haveria de ser sepultado Lázaro.
Lá está também Lázaro e ninguém mais:
– Mestre, tomei a liberdade de hospedá-los…
– Fizeste bem. Onde estão?
– Lá naquela sombra de buxos e loureiros. Como vês, estão afastados pelo menos uns quinhentos metros
da casa.
– Está bem, está bem. 204.3Que a luz venha a todos vós!
– Salve, Mestre! –assim o saúda Quintiliano, vestido como civil.
As mulheres se levantam para saudá-lo. São Plautina, Valéria e Lídia, e mais uma, já idosa, que não sei
quem seja, se é da mesma condição, ou de condição inferior. Todas estão vestidas de modo muito simples e
nada as distingue.
– Nós quisemos ouvir-te. Tu não vieste mais. Eu estava… de guarda à tua chegada. Mas não consegui Te
ver.
– Eu também não vi mais um soldado, que me tratou amigavelmente na Porta dos Peixes. Chamava-se
Alexandre…
– Alexandre? Não tenho certeza se é aquele. Mas sei que, tempos atrás, tivemos que remover, para
acalmar os judeus, um soldado culpado de… ter falado contigo. Agora ele está em Antioquia. Mas talvez
volte. Puxa! Como são aborrecidos os… os que querem dar ordens, logo agora que nos estão submetidos! É
preciso, então, agir com muita habilidade, antes que as coisas piorem… Eles nos tornam a vida difícil, podes
crer… Mas Tu és bom e sábio. Vais falar para nós? Talvez daqui a pouco eu tenha que deixar a Palestina.
Gostaria de ter alguma coisa de Ti como lembrança.
– Eu vos falarei. Nunca decepcionei. Que quereis saber?
Quintiliano olha para as mulheres, como quem pergunta…
– O que quiseres, Mestre –diz Valéria.
204.4 Plautina se levanta de novo, e diz:
– Estive pensando muito… teria que conhecer tantas coisas… tudo, para julgar. Mas, se me for permitido
fazer uma pergunta, eu gostaria de saber como é que se constrói uma fé, a tua, por exemplo, sobre um
terreno que Tu disseste que está destituído da verdadeira fé. Disseste que as nossas crenças são vazias.
Então, ficamos sem nada. Como chegar a ter fé?
– Vou tomar como exemplo uma coisa que vós tendes. Os templos. Os vossos edifícios sagrados,
verdadeiramente belos e cuja única imperfeição é a de serem dedicados ao nada, eles vos podem ensinar
como é que se pode chegar a ter uma fé e onde colocar a fé. Vede bem. Onde são eles construídos? Que
lugar é possivelmente escolhido para eles? Como são construídos? Geralmente estão em áreas espaçosas,
livres e elevadas. E, se não for espaçosa e livre, então se faz que fique sendo, faz-se a demolição de tudo o
que a estorva ou que lhe cria obstáculos. Se o lugar não é elevado, então se faz que fique mais alto,
construindo pedestais mais altos que os de costume, de três degraus, que são usados para os templos já
colocados sobre alguma elevação natural. Fechados em um recinto sagrado, quase sempre formado por
colunatas e pórticos, dentro dos quais estão encerradas as árvores consagradas aos deuses, fontes e
altares, as estátuas e estelas são precedidas somente pelo propileu, depois do qual está o altar, onde são
feitas as preces ao nume. Diante deste, há um lugar para o sacrifício, porque o sacrifício vem antes da
oração. Muitas vezes, e especialmente nos mais grandiosos, o peristilo os circunda de uma grinalda de
mármores preciosos. Na parte interna, há um vestíbulo anterior, externo ou interno em relação ao peristilo,
a cela do nume e o vestíbulo posterior. Mármores, estátuas, frontões, acrotérios e tímpanos, todos limpos,
preciosos, decorados, que fazem do templo um edifício muito nobre até para as vistas mais incultas. Não é
assim?
– Assim é, Mestre. Tu os viste e estudaste muito bem –confirma e elogia Plautina.
– Mas, pelo que consta, nunca saíste da Palestina –exclama Quintiliano.
– Não saí nunca para ir a Roma nem a Atenas. Mas não ignoro a arquitetura da Grécia nem a de Roma,
nem o gênio do homem que decorou o Partenon. Eu estava presente, porque Eu estou em toda parte, onde
há vida e manifestação de vida. Lá, onde um sábio estiver pensando, um escultor esculpindo, um poeta
compondo, uma mãe cantando sobre um berço, um homem se cansando sobre os sulcos, um médico lutando
contra as doenças, um vivente respirando, um animal vivendo, uma árvore vegetando, lá estou Eu junto com
Aquele do qual Eu venho. No estrondo do terremoto ou no fragor dos raios, na luz das estrelas ou no fluxo
das marés, no vôo da águia ou no zumbido do mosquito, Eu estou com o Criador Altíssimo.
– De forma que… Tu… Tu sabes tudo? E o pensamento e as obras dos homens? –pergunta Quintiliano.
– Eu sei.
Os romanos olham um para o outro, assombrados.
204.5 Um longo silêncio, e depois, timidamente, Valéria faz este pedido:
– Desenvolve o teu pensamento, Mestre, para que saibamos o que fazer.
– Sim. A fé se constrói, como se constróem os templos, dos quais tanto vos orgulhais. Faz-se espaço para
o templo e liberdade ao redor dele. E se procura uma elevação para ele.
– Mas, onde é que está o templo, para que nele se coloque a fé, esta verdadeira deidade? –pergunta
Plautina.
– Não é uma deidade a fé, Plautina. É uma virtude. Não existem deidades na verdadeira fé. Mas só há
um único e verdadeiro Deus.
– Então, Ele fica lá em cima sozinho no seu Olimpo? E que é que Ele faz, se está sozinho?
– Ele se basta a Si mesmo, e se ocupa com todas as coisas que existem na criação. Eu te disse antes: até
no zumbido do mosquito Deus está presente. Não duvides, Ele não se aborrece. Ele não é um pobre homem,
dono de um imenso império, mas que se sente odiado e no qual vive tremendo. Ele é o Amor, e vive amando.
Sua vida é um contínuo Amor. Ele se basta a Si mesmo, porque é infinito e poderosíssimo, é a Perfeição.
Mas, tantas são as coisas criadas que vivem por sua contínua vontade, que Ele não tem tempo para
aborrecer-se. O aborrecimento é o fruto do ócio e do vício. No Céu do verdadeiro Deus não há ócio, nem
vício. Mas, dentro de pouco tempo, Ele terá, além dos Anjos, que agora o servem, um povo de justos, que se
alegram nele e esse povo sempre se irá tornando mais numeroso, com os que crerem no verdadeiro Deus,
nos tempos futuros.
– Os Anjos seriam os gênios? –pergunta Lídia.
– Não. São seres espirituais, como é Deus que os criou.
– E os gênios, então, que é que são?
– Do modo que vós os imaginais, são mentira. Eles não existem, do modo que os imaginais. Mas, por
essa necessidade instintiva do homem de procurar a verdade, — e isto por um estímulo da alma, que está
viva e presente até nos pagãos e que neles está sofrendo, porque está decepcionada em seus desejos,
porque está esfomeada em sua saudade do Deus Verdadeiro, de quem só ela se recorda, no corpo em que
ela mora e que é guiado por uma mente pagã, — vós também percebestes que o homem não é somente
carne, mas que ao seu corpo perecível está unida alguma coisa imortal. Também o perceberam as cidades e
as nações. Por isso é que credes, e sentis a necessidade de crer nos “gênios.” E dais a vós mesmos um gênio
individual, o da família, o da cidade, o das nações. Vós tendes o “gênio de Roma.” Tendes o “gênio do
imperador.” E os adorais como a divindades menores. Entrai na verdadeira fé. Tereis o conhecimento e a
amizade do vosso anjo, ao qual deveis veneração, mas não adoração. Só Deus deve ser adorado.
204.6 – Tu disseste: “Estímulo da alma que está viva e presente, até nos pagãos, e sofrendo neles, porque
decepcionada.” Mas a alma, de quem vem? –pergunta Públio Quintiliano.
– Vem de Deus. Ele é o Criador.
– Mas, não nascemos nós da mulher que se uniu a um homem? Também os nossos deuses foram gerados
assim.
– Os vossos deuses não existem. Eles são os fantasmas produzidos pelo vosso pensamento, que sente a
necessidade de crer. Porque esta necessidade é mais imperiosa do que a de respirar. Até mesmo quem diz
que não crê, ainda crê. Em alguma coisa ele crê. O simples fato de dizer: “Eu não creio em Deus” pressupõe
alguma outra fé. Em si mesmo, talvez, em sua própria mente soberba. Mas, crer, se crê sempre. É como o
pensamento. Se vós dizeis: “Eu não quero pensar”, ou então: “Eu não creio em Deus”, só por estas duas
frases que dizeis, já estais mostrando que pensais que não quereis crer n’Aquele que pensais que existe, e
no qual não quereis pensar. Quanto ao homem, para serdes exatos em exprimir o conceito, deveis dizer
assim: “O homem é gerado, como todos os animais, pela união entre macho e fêmea. Mas a alma, isto é,
aquela coisa que faz a diferença entre o animal-homem e o animal bruto, essa vem de Deus. Ele a cria, cada
vez que um homem é gerado, ou melhor, é concebido em um seio, e a une a esta carne que, se assim não
fosse, seria simplesmente a carne de um animal.”
– E nós a temos? Nós, pagãos? Pelo que dizem os teus conterrâneos, não pareceria… –diz, irônico,
Quintiliano.
– Todos os nascidos de mulher a têm.
– Mas, Tu disseste que o pecado a mata. Como pode, então, estar ela viva em nós pecadores? –pergunta
Plautina.
– Vós não pecais contra a fé, pois credes que estais na Verdade. Quando conhecerdes a Verdade, se
persistirdes no erro, aí estareis pecando. Igualmente, muitas coisas que para os israelitas são pecado para
vós não são. Porque nenhuma lei divina vo-lo proíbe. O pecado é quando alguém, conscientemente, se
rebela contra a ordem dada por Deus e diz: “Sei que o que faço é mal. Mas eu quero fazê-lo assim mesmo.”
Deus é justo. Ele não pode punir a quem faz o mal, pensando que está fazendo o bem. Ele castiga a quem,
tendo tido modo de conhecer o Bem e o Mal, escolhe este último, e nele persiste.
– Então, em nós a alma está viva e presente?
– Sim.
– Ela sofre? Pensas mesmo que ela se lembra de Deus? Nós não nos lembramos do útero que nos trouxe.
Nem poderíamos dizer como ele era por dentro. A alma, se eu entendi bem, é espiritualmente gerada por
Deus. Poderá ela recordar-se disso, se o corpo não se lembra do longo tempo em que esteve no útero?
– A alma não é bruta, Plautina. O feto, sim. Tão é verdade que a alma é dada quando o feto já é
formado[63]. A alma é a eterna e espiritual, semelhança de Deus. Eterna, desde o momento em que é criada,
enquanto que Deus é o perfeitíssimo Eterno e, por isso, não tem princípio no tempo, e também não terá fim.
A alma, lúcida, inteligente, espiritual, obra de Deus, se lembra[64]. E sofre, porque tem desejo de Deus, o
Verdadeiro Deus, do qual ela vem, e tem fome de Deus. Aí está porque é que ela estimula o corpo
entorpecido a procurar aproximar-se de Deus.
204.7 – Então, nós temos uma alma, como a têm aqueles que vós chamais os “justos” do vosso povo? E é
igual mesmo à deles?
– Não, Plautina. Conforme o sentido que estás querendo dizer, ela muda. Se queres falar quanto à
origem e natureza de nossas almas, elas são em tudo iguais às de nossos santos. Mas, se queres referir-te à
formação, então Eu te digo que aí elas são diferentes. Se queres referir-te à perfeição alcançada antes da
morte, então a diferença pode ser absoluta. Mas isso não acontece só convosco, que sois pagãos. Também
um filho do nosso povo pode ser absolutamente diferente de um santo, na vida futura. A alma passa por três
fases. A primeira é a de sua criação. A segunda é a da recriação. A terceira, da perfeição. A primeira é
comum a todos os homens. A segunda é própria dos justos que, com sua vontade, levam a alma a um
renascimento ainda mais completo, unindo suas boas ações à bondade da obra de Deus, e tornam por isso a
alma já espiritualmente mais perfeita do que a primeira, formando, entre a primeira e a terceira um elo de
conjunção. A terceira é própria dos bem-aventurados, ou santos, se assim vos agrada dizer, os quais
passaram milhares e milhares de graus acima da alma inicial deles, adaptada ao homem, e dela fizeram um
ser capaz de repousar em Deus.
204.8 – Como é que podemos dar espaço, liberdade e elevação para a alma?
– Destruindo as coisas inúteis que tendes no vosso eu. Livrando-o de todas as ideia s erradas e, com os
detritos dessas demolições, fazer uma elevação para o templo soberano. A alma vai sendo levada cada vez
mais para o alto, pelos três degraus.
Oh! Vós romanos gostais dos símbolos. Olhai agora os três degraus, à luz do símbolo. Eles podem dizer-
vos os seus nomes: penitência, paciência, perseverança. Ou então: humildade, pureza, justiça. Ou ainda:
sabedoria, generosidade e misericórdia. Ou enfim o esplendido trinômio: fé, esperança, caridade. Olhai
ainda o símbolo da cinta que, adornada e robusta, cinge a área do templo. É preciso saber rodear a alma,
rainha do corpo, templo do espírito eterno, com uma barreira que a defenda, sem, no entanto, impedir-lhe
os raios da luz, nem oprimi-la com a vista de sujeira. Uma cinta segura e lavrada, livre do desejo do amor ao
que é inferior: a carne e o sangue, e voltada para o que é superior: o espírito. Lavra-a com a vontade.
Apara-lhe os cantos, cuida das rachaduras, tira as manchas, reforça os veios fracos do mármore de nosso
eu, a fim de que ele seja perfeito, ao redor da alma. E, ao mesmo tempo, da cinta colocada como defesa do
templo, faze um misericordioso refúgio para os mais infelizes, que não conhecem o que é a caridade. Os
pórticos são a efusão do amor, da piedade, do desejo de que os outros venham a Deus, semelhantes a
braços amorosos, que servem de véu para o berço de um órfão. E, para lá da cinta, as plantas mais belas e
mais cheirosas, homenagem ao Criador. Semeai sobre o terreno, que antes estava nu, e depois, cultivai as
plantas, que são as virtudes de todos os nomes. A segunda cinta, viva e florida, ao redor do sacrário. E,
entre as plantas, entre as virtudes, estão as fontes, outro amor, outra purificação, antes de aproximar-se do
propileu, perto do qual, e antes de subir ao altar, deve-se fazer o sacrifício da carnalidade, um esvaziar-se-
se em sangue das luxúrias. E depois ir além, passar ao altar, para aí colocar a oferenda, e depois aproximar-
se da cela onde está Deus, superando o vestíbulo. E a cela o que será? Uma abundância de riquezas
espirituais, porque nunca nada é demais para fazer cornijas para Deus. Entendestes? –perguntastes-me
como se constrói a fé. E Eu vos disse: “Segundo o método pelo qual se levantam os templos.” Vedes que é
verdade. 204.9Tendes ainda alguma coisa a dizer-me?
– Não, Mestre. Eu acho que Flávia escreveu as coisas que disseste. Cláudia as quer saber. Não as
escreveste?
– Exatamente –diz a mulher, passando-lhe as tabuinhas enceradas.
– Está gravado. Teremos tempo para relê-las –diz Plautina.
– É cera. Apaga-se. Escrevei-as em vossos corações. Não se apagarão mais.
– Mestre, são escombros de templos vazios. Nós os jogamos contra a tua palavra, para enterrá-los. Mas
é um longo trabalho –diz Plautina, com um suspiro.
E termina dizendo:
– Lembra-te de nós em teu Céu…
– Ficai certas de que Eu o farei. Eu vos deixo. Ficai sabendo que a vossa vinda foi para Mim muito
agradável. Adeus, Públio Quintiliano. Lembra-te de Jesus de Nazaré.
As mulheres o saúdam, e vão por primeiro. Depois, pensativo, vai indo Quintiliano. Jesus olha para eles,
que vão indo em companhia de Maximino, que os guia até onde estão os carros.
204.10 – Que achas, Mestre? –pergunta Lázaro.
– Acho que há muitos infelizes neste mundo.
– Eu sou um deles.
– Por que, meu amigo?
– Porque todos vem a Ti e Maria não. A ruína dela será maior?
Jesus olha para ele, e sorri.
– Tu estás sorrindo? Não tens pena de que Maria ainda continue inconvertível? Não tens dó de mim, que
estou sofrendo? Marta não faz outra coisa, senão chorar, desde a tarde de segunda-feira. Quem era aquela
mulher? Não sabes que, durante um dia inteiro, ficamos esperando que fosse ela?
– Eu estou sorrindo, porque tu és uma criança impaciente… E sorrio porque acho que estais
desperdiçando vossas forças e vossas lágrimas. Se tivesse sido ela, Eu teria ido correndo para vos dizer.
– E, então, não era ela mesmo?
Jesus exclama:
– Oh! Lázaro!…
– Tens razão. Paciência. Paciência ainda!… Eis aíi, Mestre, as jóias que me deste para vender.
Transformaram-se em dinheiro para os pobres. Eram muito belas. De mulher.
– Eram daquela mulher.
– Eu imaginava. Ah! Se tivessem sido de Maria… Mas ela, mas ela!… Eu perco a esperança, meu
Senhor!…
Jesus o abraça, e fica um pouco sem dizer nada. Depois, Ele diz:
– Eu te peço que não fales destas jóias, seja com quem for. Ela deve desaparecer das admirações e dos
apetites, como uma nuvem que o vento leva para outro lugar, sem deixar delas nenhum traço no azul.
– Fica tranquilo, Mestre… e, em compensação, trazei-me Maria, a nossa infeliz Maria…
– A paz esteja contigo, Lázaro. O que Eu prometi, o farei.
[63] Tão é verdade que a alma é dada quando o feto já é formado é uma frase que MV acrescentou sucessivamente no caderno manuscrito, depois de
ter escrito o embrião sim sobre a palavra o feto sim. Como norma MV escreveu de imediato sem repensar. Porque aqui se trata de um remanejamento
insólito que poderia não estar de acordo com a afirmação da linha vinte-cinco mais acima: Ele a cria [Deus cria a alma] toda vez que um homem é gerado, ou
melhor, é concebido em um seio, e a semente nesta carne, que seria senão somente animal. Vê-se a nossa nota em 290.9 que reencaminha as outras notas
(incluída nesta) sobre a infusão da alma.
[64] A alma... se lembra, como já indicou mais acima em 204.5, além disso em 94.7 - 121.7 - 154.7 (com nota) - 157.5 - 169.5 - 344.7 (nas palavras de uma
criança) - 428.4 (com nota) - 534.6 (nas palavras de um idoso) - 554.10 - 556.8. Maria Santíssima, pois, “não fui nunca privada da lembrança de Deus”, como
se lê em 4.6 e como foi ilustrado em 10.8/10 e nas últimas linhas de 11.4. Da alma de Maria Santíssima se fala ainda em 136.6 e em 348.9/10. Uma
explicação luminosa sobre a conhecida “lembrança das almas”, que é diferente daquela concebida por Sócrates, é de 8 de setembro de 1945 e se encontra
no volume “I quaderni dal 1945 al 1950” (Os cadernos de 1945 a 1950).
205. Primeiros trabalhos para João de Endor.
A parábola do filho pródigo. O Iscariota
reconduzido a Jesus por Maria Ssma.
30 de junho de 1945.
205.1 – João de Endor, vem aqui comigo. Eu preciso falar-te –diz Jesus, aparecendo à porta de saída.
O homem vai logo, deixando o menino, ao qual estava ensinando alguma coisa:
– Que queres dizer-me, Mestre? –pergunta ele.
– Vem aqui para cima comigo.
Sobem para o terraço, vão sentar-se do lado mais abrigado pois, mesmo que esteja ainda de manhã, o
sol já está bem forte. Jesus corre o olhar pela campina cultivada, cujos grãos cada dia mais vão se tornando
dourados e cujas árvores já ostentam seus frutos. Ele parece estar querendo ir buscar um pensamento
naquela metamorfose vegetal.
– Escuta, João. Hoje Eu acho que virá Isaac, para trazer-me os camponeses de Jocanã, antes da partida
deles. Eu disse a Lázaro que empreste a Isaac um carro, para que possam apressar sua volta, sem ficarem
com temor de chegar com algum atraso, pois isso poderia provocar contra eles algum castigo. E Lázaro vai
fazê-lo. Pois Lázaro faz tudo o que Eu lhe digo. Mas de ti Eu quero uma outra coisa. Eu tenho aqui uma
importância, que me foi dada por uma criatura para os pobres do Senhor. Geralmente é um dos meus
apóstolos que é encarregado de tomar conta das moedas e de dar esmolas. Quase sempre é Judas de Keriot
e, vez por outra, os outros. Judas está ausente. Os outros, não quero que fiquem sabendo o que quero fazer.
Desta vez, nem Judas o saberia. E tu o irás fazer em meu nome…
– Eu, Senhor? Eu? Oh! Não sou digno disso!…
– Tu precisas acostumar-te a trabalhar em meu nome. Não vieste para isto?
– Sim. Mas eu pensava que devia trabalhar para reconstruir a minha pobre alma.
– E Eu te estou oferecendo o meio para isso. Em que foi que pecaste? Contra a Misericórdia e o Amor.
Com o ódio, destruíste a tua alma. Com o amor e a misericórdia, tu a reconstruirás. Para isso, Eu estou te
dando o material. Eu te aproveitarei particularmente nas obras de misericórdia e de amor. Tu também és
capaz de curar, tu és capaz de falar. Por isso, estás apto para teres cuidado das infelicidades físicas e
morais, e tens capacidade para fazê-lo. Começarás com esta obra. Toma a bolsa. Tu a darás a Miqueias e
aos seus amigos. Faze dela partes iguais. Mas, fazei-as do modo que Eu te estou dizendo. Divide-a em dez
partes. Depois, delas darás quatro partes a Miqueias, uma para ele, uma para Saulo, uma para Joel e uma
para Isaías. E as outras seis as entregarás a Miqueias para que as dê ao velho pai de Jabé, para ele e para
os seus companheiros. Eles poderão ter assim algum conforto..
– Está bem. Mas, que explicações hei de dar a eles?
– Dirás assim: “Isto é para que vos recordeis de orar por uma alma que está se redimindo!”
– Mas, poderão pensar que seja eu! Não é justo!
– Por quê? Não queres te redimir?
– Não é justo que eles pensem que o doador seja eu.
– Deixa, e faze como Eu estou dizendo.
– Obedeço…mas, pelo menos, permite-me pôr, eu também alguma coisa.. Tanto… agora não preciso de
mais nada. Livros, eu não compro mais, frangos para criar, não tenho mais. Para mim basta tão pouca
coisa… Toma, Mestre. Eu vou guardar somente um mínimo para as despesas com as sandálias…
Ele tira de uma bolsa, que trazia na cintura, muitas moedas e as ajunta com as moedas de Jesus.
– Deus te abençoe pela tua misericórdia… 205.2 João, daqui a pouco nos separaremos, porque tu irás ficar
com Isaac.
– Sinto muito por isso, Mestre. Mas obedeço.
– Eu também sinto por te afastares. Mas Eu tenho muita necessidade de discípulos peregrinantes. Eu já
não basto. Dentro em pouco, enviarei os apóstolos depois mandarei os discípulos. E tu farás um grande
bem. Eu te reservarei para missões especiais. Enquanto isso, irás te formando com Isaac. Ele é muito bom e
o espírito de Deus verdadeiramente o instruiu, durante sua longa enfermidade. Ele é um homem que
sempre perdoou tudo… Afinal, deixar-nos não quer dizer não vermo-nos mais. Nós nos encontraremos
frequentemente e todas as vezes que nos reencontrarmos, falarei especialmente para ti lembra-te disso…
João se inclina sobre si mesmo, esconde o rosto com as mãos e, com um áspero ataque de choro, geme,
dizendo:
– Oh! então, dizei-me logo alguma coisa que me persuada de que estou perdoado… de que posso servir a
Deus… Se tu soubesses, agora que caiu a fumaça do ódio, como estou vendo a minha alma… e como… e
como penso em Deus…
– Eu sei disso, não chores. Permanece na humildade, mas não te aviltes. O aviltamento ainda é soberba.
Procura ter somente, somente a humildade. Eia! Não chores.
João de Endor se acalma, pouco a pouco.
Depois de ter ficado calmo, Jesus lhe diz:
– Vem, vamos para debaixo da ramagem espessa daquelas macieiras, e vamos reunir-nos com os
companheiros e as mulheres. Eu falarei a todos, e te direi como é que Deus te ama.
Descem, e vão ajuntando-se os outros, à medida que se aproximam, e vão se sentando em círculos, à
sombra do pomar. Também Lázaro, que estava falando com Zelotes, aproxima-se do grupo. São vinte
pessoas ao todo.
205.3 – Ouvi. É uma bela parábola, que vos guiará com sua luz, em muitos casos.
Um homem tinha dois filhos. O mais velho era sério, trabalhador, amoroso, obediente. O segundo era
mais inteligente que o mais velho, pois este na verdade tinha pouca acuidade de espírito, e se deixava guiar
para não ter que se cansar ao tomar decisões. Em compensação, porém, o mais jovem era rebelde, dado a
passatempos, amante do luxo e do prazer, dissipador e preguiçoso. A inteligência é um grande dom de
Deus. Mas é um dom que precisa ser usado com sabedoria. Se assim não for, ele se torna como certos
remédios que, quando são mal usados, não curam, mas matam. O pai estava no seu direito e no seu dever, e
o exortava sempre a levar uma vida de um modo mais ajuizado. Mas isso não adiantava nada, ao contrário,
provocava da parte dele más respostas e um maior enrijecimento em suas próprias más ideias.
Afinal, um dia, depois de uma discussão mais violenta, o filho mais novo disse: “Dá-me a minha parte nos
bens. Assim não precisarei mais ficar ouvindo tuas repreensões, nem os queixumes do irmão. Cada um com
o que é seu e fica tudo acabado.” “Olha bem,” respondeu o pai, “que tu logo ficarás arruinado. E então, que
farás? Pensa bem, que eu não irei ser injusto, procurando ficar a teu favor, e não tomarei um vintém do teu
irmão para te dar.” “Não irei pedir nada. Fica certo disso. E dá-me a minha parte.”
O pai mandou avaliar as terras e os objetos de valor e, visto que o dinheiro e as jóias valiam tanto como
as terras, deu ao mais velho os campos e os vinhedos, os rebanhos e as oliveiras, e ao mais novo o dinheiro
e as jóias, que o jovem logo vendeu, transformando tudo em dinheiro. E, tendo feito isso, dentro de poucos
dias, foi-se embora para um lugar muito distante, onde passou a viver como um ricaço, esbanjando tudo o
que possuía em farras e patuscadas de toda espécie, querendo passar por filho de um rei, pois ele se
envergonhava de dizer: “Eu sou um camponês”, renegando assim a condição de seu pai. Festinhas, amigos
e amigas, boas vestes, vinho, jogatina…uma vida dissoluta… Bem depressa ele percebeu que o dinheiro ia
diminuindo e que a miséria ia chegando. E, com a miséria, para torná-la mais penosa, sobreveio àquele
lugar uma grande carestia, que acabou com o resto do dinheiro que ele ainda tinha.
205.4 Ele teria querido voltar para o pai. Mas era orgulhoso, e não quis. Foi, então, a um dos ricos do lugar,
que tinha sido seu amigo nos bons tempos, e lhe suplicou: “Recebe-me entre os teus servos, lembrando-te
de quando gozavas com as minhas riquezas.” Agora, vede vós como o homem é estulto! Ele prefere ir
colocar-se debaixo do chicote de um patrão, a ir dizer ao seu pai “Perdoa-me! Eu errei!” Aquele jovem havia
aprendido tantas coisas inúteis, com sua inteligência perspicaz, mas não tinha querido aprender aquela
palavra[65] do Eclesiástico: “Como é infame aquele que abandona o seu pai, e como é maldito por Deus
aquele que faz sua mãe ficar preocupada.” O rapaz era inteligente, mas não sábio.
O homem a quem ele havia se dirigido, em compensação pelo muito que ele havia gozado às custas do
estulto jovem, mandou este estulto ir tomar conta de seus porcos — pois lá era terra de pagãos, onde havia
muitos porcos — mandou que ele fosse apascentar em suas propriedades umas manadas de porcos. Imundo,
esfarrapado, fedorento e esfomeado, — pois a comida estava escassa para todos os servos, especialmente
para os empregados menos classificados, como era ele, um estrangeiro e, além disso, um porqueiro que era
tratado como objeto de zombaria, — ele via como os porcos se saciavam com as bolotas de carvalho, e
suspirava: “Ah! Se eu pudesse, pelo menos, encher a barriga com esses frutos! Mas eles são muito amargos!
Nem a fome faz com que eles pareçam bons.” E chorava, pensando nos festins feitos pouco tempo atrás, por
entre risadas, cantos e danças… depois pensava nas refeições honestas, mas bem nutritivas, de sua casa,
que agora estava tão longe: …Pensava nas porções que o pai imparcialmente distribuía a todos, reservando
sempre o menos para si, alegre por ver o apetite sadio de seus filhos… Pensava também nas partes que
eram distribuídas aos servos por aquele justo, e suspirava: “Os empregados de meu pai, até os menos
classificados, têm pão em abundância, e eu fico aqui morrendo de fome…”
Um grande trabalho de reflexão, uma longa luta para acabar com aquele orgulho…
205.5 E, afinal, chegou o dia em que, tendo renascido para a humildade e para a sabedoria, ele se pôs de
pé, e disse: “Eu vou voltar para o meu pai! É uma estultice minha este orgulho, que me mantém aqui preso.
E por quê? Por que ficar sofrendo assim no corpo, e mais ainda no coração, quando eu posso obter o perdão
e ter alívio? Eu vou voltar para o meu pai. Está dito. E, que lhe direi eu? Ah! Sim. Direi o que nasceu aqui
dentro, nesta baixeza, no meio destas sujeiras, sofrendo as mordeduras da fome! E eu lhe direi: ‘Meu pai,
eu pequei contra o Céu e contra ti e não sou mais digno de ser chamado teu filho; trata-me, pois, como o
último dos teus empregados, mas tolera-me debaixo do teu teto. Que eu possa te ver passando…’ Eu não
poderei dizer-lhe: ‘porque eu te amo’. Ele não acreditaria. Mas eu o direi com minha vida e ele
compreenderá e, antes de morrer, ainda me abençoará. Oh! Isso eu espero. Porque meu pai me ama.” E, ao
voltar de tarde para o povoado, ele foi despedir-se do patrão e depois, pedindo esmola pelo caminho, voltou
para sua casa. Já se vêem os campos do pai… e a casa… e o pai, que estava dirigindo os trabalhos, já
envelhecido, emagrecido pelos sofrimentos, mas sempre bom… O culpado, olhando aquilo que tinha sido
causado por ele, parou atemorizado… mas o pai, correndo o olhar ao redor de si, o viu, e correu ao seu
encontro, pois o filho ainda estava longe e, chegando perto dele, lançou-lhe os braços ao pescoço e o beijou.
Somente o pai havia reconhecido naquele mendigo aviltado o seu filho, e só mesmo ele é que tinha tido um
movimento de amor.
O filho, apertado entre aqueles braços, com a cabeça sobre o ombro paterno, murmura, por entre
soluços: “Pai, deixa que eu me jogue aos teus pés.” “Não, meu filho! Aos pés, não! Mas sobre o meu
coração, que tanto sofreu na tua ausência e que precisa reviver, ao sentir o teu calor sobre o meu peito.” E
o filho, chorando ainda mais fortemente, disse: “Oh! meu pai! Eu pequei contra o Céu e contra ti, e já não
sou digno de ser chamado por ti de filho. Mas, permite-me viver entre os teus servos, debaixo do teu
telhado, vendo-te, comendo o teu pão, servindo-te, sentindo o teu hálito. A cada bocado de pão, a cada teu
respiro, irá se reformando o meu coração, tão corrompido, e me tornarei honesto…”
Mas o pai, segurando-o sempre abraçado, o levou até onde estavam os servos, que se haviam
aglomerado à distancia, e que de lá estavam observando, e lhes diz: “Depressa, trazei aqui a túnica mais
bonita, os frascos com água de cheiro, dai-lhe um banho, perfumai-o, vesti-lhe a túnica, ponde-lhe sandálias
novas e um anel no dedo. Depois, ide pegar um vitelo gordo, e matai-o. E que se prepare um banquete.
Porque este meu filho estava morto e agora ressuscitou, estava perdido e foi reencontrado. Eu quero que
agora ele também reencontre aquele seu simples amor de quando era pequeno. Que o meu amor e a festa
da casa pela sua volta o façam reencontrar. Ele precisa compreender que para mim ele é sempre o querido
caçula, como o era em sua longínqua infância, quando ele caminhava ao meu lado, fazendo-me ser feliz com
o seu sorriso e o seu balbuciar.” E, como o patrão mandou, assim fizeram os servos.
205.6 O filho mais velho estava no campo e não estava sabendo de nada, enquanto não voltou. À tarde,
voltando para casa, viu que ela estava toda iluminada, e ouviu o som dos instrumentos de música e das
danças, que saía da casa. Chamou, então, um dos servos, que ia correndo muito atarefado, e lhe disse: “Que
é que está acontecendo?” E o servo respondeu: “O teu irmão voltou! E teu pai fez matar o vitelo gordo,
porque pôde reaver o filho com saúde, curado do seu grande mal, e mandou que se preparasse um
banquete. Só estamos te esperando para começar.” Mas o primogênito, encolerizado, porque lhe parecia
uma injustiça toda aquela festa para o mais jovem que, além de ser mais jovem, ainda tinha sido mau, não
quis entrar, e até estava querendo afastar-se de casa.
Mas o pai, avisado disso, saiu correndo para fora, e o alcançou, tentando convencê-lo a entrar e pedindo-
lhe que não tornasse amarga a sua alegria. O primogênito respondeu a seu pai: “E não queres que eu fique
descontente? Tu estás fazendo uma injustiça, e tratando com desprezo ao teu primogênito. Eu, desde que
pude trabalhar, sempre te servi, e isto há muitos anos. Eu nunca desobedeci a uma ordem tua, nem mesmo
a um teu desejo. Eu sempre estive perto de ti e te amei por dois, para fazer-te ficar curado da ferida feita
por meu irmão. E tu não me deste nem um cabrito para eu fazer uma festa com os meus amigos. E, para
este, que te ofendeu, que te abandonou, que foi um preguiçoso e um esbanjador, e que agora está de volta,
porque veio impelido pela fome, tu o cobres de honrarias, e matas para ele o vitelo mais bonito. Vale a pena
sermos trabalhadores e sem vícios! Isto tu não devias fazer!” O pai disse-lhe, então, apertando-o contra o
seu seio: “Oh! Meu filho! Poderás tu crer que eu não te amo, porque não estendi uma faixa festiva em honra
de tuas boas ações? As tuas ações já são santas por si mesmas, e por elas o mundo te elogia. Mas este teu
irmão, pelo contrário, precisa ser realçado na estima do mundo e em sua própria estima. Acreditarás tu que
eu não te amo, só porque não te dei um prêmio visível? Mas, de manhã e de tarde, em todos os meus
respiros e pensamentos, tu estás presente em meu coração e, a cada momento, eu te abençôo. Tu tens o
prêmio contínuo de estares sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era justo que nos
banqueteássemos e fizéssemos uma festa, por este teu irmão, que estava morto ressuscitou para o Bem,
que estava perdido voltou ao nosso amor.” E o primogênito deu-se por vencido.
205.7 Assim, meus amigos, é que acontece na Casa do Pai. E quem sabe que está como o filho mais novo da
parábola pense também que, se o imitar, voltando para o Pai, o Pai lhe dirá: “Não aos meus pés. Mas sobre
o meu coração, que sofreu pela tua ausência, e que agora está feliz pela tua volta.” Quem está na condição
de filho primogênito e sem culpa com o Pai, não seja ciumento da alegria paterna, mas participe dela,
dando amor ao irmão redimido.
Eu já falei. Fica aqui, João de Endor, e tu, Lázaro. Os outros vão preparar as mesas. Nós iremos logo.
Todos se retiram. Quando Jesus, Lázaro e João ficam sozinhos, Jesus diz a Lázaro e João:
– Assim se fará com a alma querida que tu esperas, Lázaro, e assim está sendo feito com a tua, João. A
bondade de Deus está acima de qualquer medida…
205.8 Os apóstolos, juntos com a mãe e as mulheres, vão indo para a casa, precedidos por Margziam, que
vai dando seus pulinhos na frente. Mas logo ele volta e pega Maria pela mão, dizendo-lhe:
– Vem comigo. Tenho uma coisa para dizer-te em segredo.
E Maria o contenta. Desviam-se para o lado do poço, que está num canto do pequeno pátio todo coberto
por uma latada bem espessa, que sobe da terra como um arco, para o rumo do terraço. Atrás dela está
Iscariotes.
– Judas, que queres? Vai, Margziam…Fala… Que queres?
– Eu estou culpado… Não tenho coragem de ir ao Mestre, nem de me encontrar com os companheiros…
Ajuda-me…
– Eu te ajudarei. Mas, não pensas na grande dor que estás causando? Meu Filho chorou por tua causa. E
os companheiros sofreram com isso. Mas, vem. Ninguém te dirá nada. E, se podes, não recaias mais nestas
culpas. É coisa indigna de um homem, e um sacrilégio contra o Verbo de Deus.
– E tu, mãe, me perdoas?
– Eu? Eu não valho nada para ti, que te julgas tão grande. Eu sou a menor das servas do Senhor. Como
podes te preocupar comigo, se não tens dó do meu Filho?
– Porque eu também tenho uma mãe e, se tiver o teu perdão, acho que terei o dela.
– Ela não sabe dessa tua culpa.
– Mas ela me tinha feito jurar que fosse bom para o Mestre. Eu sou um perjuro. Estou ouvindo a
reprovação da alma de minha mãe.
– Estás ouvindo isso? E o lamento do Pai e do Verbo, não o ouves? Tu és um infeliz, Judas. Semeias a dor
em ti mesmo e em quem te ama.
Maria está muito séria e triste. Ela fala sem azedume, mas de modo muito sério. Judas chora.
– Não chores. Mas trata de melhorar. Vem.
E o toma pela mão e assim entra na cozinha. Grande é o espanto de todos. Mas Maria procura evitar
qualquer palavra impiedosa. Ela diz:
– Judas voltou. Fazei como o primogênito, depois do discurso do pai. João, vai avisar Jesus.
João de Zebedeu sai correndo.
Um silêncio desce sobre a cozinha… Depois, Judas diz:
– Perdoai-me Simão, em primeiro lugar. Tens um coração tão paterno. Eu também sou um órfão.
– Sim, sim, eu te perdôo. Por favor. Não fales mais nisso. Somos irmãos… e não me agradam estes altos
e baixos de perdões pedidos e de recaídas feitas. Aviltam a quem as faz e quem os dá. Aí vem Jesus. Vai até
Ele. E basta.
Judas vai indo, enquanto Pedro, não podendo fazer outra coisa, se põe, impetuosamente, a rachar umas
achas secas.
[65] aquela palavra que está em Siracide 3,16.
206. Com duas parábolas sobre o Reino
dos Céus termina a permanência em Betânia.
1º de julho de 1945.
206.1 Na presença dos camponeses de Jocanã, de Isaac e de muitos discípulos, das mulheres, entre as
quais Maria, mãe de Jesus e Marta, e muitos de Betânia, Jesus fala. Todos os apóstolos estão presentes. O
menino, sentado em frente de Jesus, não perde uma palavra. O discurso deve ter começado há pouco, pois o
povo ainda está chegando…
Diz Jesus:
– … é por causa desse temor tão forte, que Eu estou percebendo em muitos, que quero vos propor uma
boa parábola. Boa, para os homens de boa vontade, desagradável, para os outros. Mas estes têm o modo de
acabar com o gosto desagradável. Que se tornem eles também de boa vontade e a reprovação que a
parábola suscita nas consciências, deixará de existir.
206.2 O Reino dos Céus é a casa do esposalício feito entre Deus e as almas. O Momento da entrada nele é o
dia das bodas.
Agora, escutai, então. Entre nós há o costume de que as virgens acompanhem o esposo, quando ele
chega, para levá-lo, entre luzes e cânticos, até à casa nupcial, junto com a sua amada esposa. Quando o
cortejo deixa a casa da esposa, que vai coberta com um véu e que, comovida, sai, dirigindo-se para o seu
lugar de rainha, em uma casa que não é a dela, mas que vai tornar-se dela, desde o momento em que ela se
torna uma só carne com o seu esposo, o cortejo das virgens, que em sua maior parte são amigas da esposa,
corre ao encontro dos dois felizes esposos, para rodeá-los com um halo de luzes.
Aconteceu, pois, que em um lugar celebraram-se esponsais. Enquanto os esposos, com os parentes e
amigos, estavam sapateando na casa da esposa, dez virgens foram para o seu lugar, no vestíbulo da casa do
esposo, prontas para saírem ao encontro dele, quando um longínquo som de címbalos e de cânticos
estivesse avisando que os esposos já tinham saído da casa da esposa para irem para a casa do esposo. Mas
o banquete na casa dos esponsais se prolongou muito, e assim chegou a noite. As virgens, como sabeis,
seguram sempre as lâmpadas acesas, para não ficarem perdendo tempo no momento principal. Pois bem.
Entre estas dez virgens, que deviam segurar as lâmpadas acesas e bem luzentes, havia cinco sábias e cinco
estultas. As sábias, cheias de prudência, tinham-se munido de pequenos vasos cheios de azeite, para
poderem alimentar suas lâmpadas, se a duração da espera fosse mais longa do que era previsível. Enquanto
que as estultas se limitaram só a encher, quando muito, suas pequenas lâmpadas.
Uma hora passou, e mais outra hora. Alguns discursos, histórias e palavras jocosas foram alegrando o
tempo de espera. Mas depois, não sabiam mais o que dizer, nem o que fazer. E, aborrecidas, ou também
simplesmente cansadas, as dez moças resolveram sentar-se mais comodamente, com as lâmpadas acesas e
bem próximas e, pouco a pouco, pegaram no sono.
206.3 Quando chegou a meia noite, ouviu-se um grito: “Eis o esposo chegando, ide-lhe ao encontro!”
Àquela ordem, as dez moças se levantaram, puseram os véus e as grinaldas e correram depois para a
pequena mesa, onde estavam as lâmpadas. Cinco destas já se estavam apagando. O pavio, não encontrando
mais azeite, pois este se havia acabado, estava já soltando fumaça, com uns lampejos cada vez mais fracos e
pronto para apagar-se, ao menor sopro de vento. Mas as outras cinco lâmpadas, alimentadas antes do sono
pelas virgens prudentes, estavam com suas chamas ainda bem vivas e mais vivas ainda ficaram pela nova
quantidade de azeite que colocaram sobre o pavio.
“Oh!”, imploravam as estultas, “dai-nos um pouco do vosso azeite, porque senão as nossas lâmpadas se
apagam, só ao movê-las daqui. As vossas já estão bonitas…” Mas as prudentes responderam: “Fora há o
vento da noite e o orvalho está caindo em grossas gotas. O azeite nunca é bastante para formar uma chama
forte, capaz de resistir aos ventos e à umidade. E, se nós vos dermos do nosso, vai acontecer que nossas
luzes também possam começar a vacilar. E bem triste ficaria o cortejo das virgens, sem o palpitar daquelas
chamazinhas! Ide, pois, ide correndo ao vendedor mais perto, pedi, batei à porta, fazei que ele se levante
para vos vender.”
E elas, apressadas, amarrotando os véus, sujando as vestes, perdendo as grinaldas, por terem que
esbarrar uma na outra, correndo, procuravam seguir o conselho das companheiras.
Mas, enquanto iam indo comprar o azeite, eis que já aparecem, lá no começo da rua, o esposo e a
esposa. As cinco virgens, tendo nas mãos suas lâmpadas acesas, correram ao encontro deles e, no meio
delas, os esposos entraram na casa, para o fim da cerimônia, momento este em que as virgens deveriam
acompanhar a esposa até a câmara nupcial. A porta, então, foi fechada, depois da entrada dos esposos, e
quem fora estava, fora permaneceu. E assim para as cinco estultas que, chegadas enfim com o azeite,
encontraram a porta fechada. Inutilmente bateram nela, machucando as mãos e gemendo: “Senhor, senhor
abre-nos. Nós somos do cortejo das núpcias. Somos as virgens propiciatórias, escolhidas para trazer honra
e fortuna ao teu tálamo.” Mas o esposo, lá do alto da casa, deixando por um momento os convidados mais
íntimos, dos quais ele se despedia, enquanto a esposa entrava na câmara nupcial, disse: “Em verdade, eu
vos digo que não vos conheço. Não sei quem sois. Os vossos rostos não estavam presentes ao redor da
minha amada, festejando-a. Vós sois umas usurpadoras. Que sejais, pois, deixadas fora da casa das
núpcias.” E as cinco estultas, chorando, foram-se embora, pelas estradas escuras, com suas lâmpadas já
inúteis, com suas vestes amarrotadas, os véus rasgados, as grinaldas desmanchadas ou perdidas…
206.4 E agora, ouvi a admoestação encerrada na parábola.
Eu vos disse, no princípio, que o Reino dos Céus é casa dos esponsais feitos entre Deus e as almas. Para
as núpcias celestes, são chamados todos os fiéis, porque Deus ama todos os seus filhos. Uns antes, outros
depois, chegam ao momento dos esponsais, e chegar a esse momento é uma grande sorte.
Mas agora escutai ainda. Vós sabeis como as moças consideram uma honra e uma sorte serem chamadas
para ficarem como servas, ao redor da esposa. Apliquemos ao nosso caso o papel dos personagens e
compreendereis melhor. O esposo é Deus. A esposa é a alma de um justo que, tendo passado o período do
noivado na casa do Pai, isto é, na dependência e obediência da e à doutrina de Deus vivendo segundo a
justiça, é levada à casa do Esposo para as núpcias. As servas virgens são as almas dos fiéis que, segundo o
exemplo deixado pela esposa, — ter sido escolhida pelo esposo por suas virtudes é sinal de que ela era um
exemplo vivo de santidade — procuram chegar àquela mesma honra, santificando-se.
206.5 Elas estão com veste branca, limpa e nova, em brancos véus, coroadas de flores. Elas têm lâmpadas
acesas nas mãos. As lâmpadas estão bem limpas, tendo um pavio alimentado com azeite do mais puro, para
que não seja mal-cheiroso.
Com veste branca. A justiça firmemente praticada, produz uma veste cândida e bem depressa chegará o
dia em quê será candidíssima, sem nenhuma lembrança, nem de longe, de mancha, com um candor
sobrenatural, um candor angélico.
Em veste limpa. É preciso, junto com a humildade, ter sempre limpa a veste. É muito fácil embaçar a
pureza do coração. E quem não é puro de coração não pode ver a Deus. A humildade é como uma água que
lava. O humilde se dá conta logo, porque tem olhos não embaçados pelas fumaças do orgulho, de estar com
suas vestes enodoadas, e corre para o Senhor, e diz: “u tirei a limpeza deste meu coração. Eu choro para
limpar-me. A teus pés venho chorar. E tu, ó meu Sol, alveja com os teus benignos perdões, com os teus
paternos amores, esta minha veste!”
Em veste nova. Oh! O frescor do coração! As crianças o possuem por um dom de Deus. Os justos o têm
por dom de Deus e por sua própria vontade. E os santos o têm por dom de Deus e por sua vontade elevada
até o grau de heroísmo. Mas os pecadores, com uma alma dilacerada, queimada, envenenada,
emporcalhada, será que não poderão nunca mais ter uma veste nova? Oh! Sim, que podem ter. Começam a
tê-la desde o momento em que olham para si mesmos com aversão, depois a aumentam, quando se decidem
a mudar de vida e a aperfeiçoam quando se lavam com a penitencia, e se desintoxicam, e se medicam, e
recompõem a sua pobre alma e, com a ajuda de Deus, que não nega socorro a quem lhe pede uma santa
ajuda, e com a própria vontade, elevada ao super-heroismo, — porque neles o necessário não é ficar
tomando conta do que eles têm, mas de reconstruir o que eles demoliram e para isso há uma dupla, tripla e
sétupla fadiga — e, finalmente, com uma penitência incansável e implacável para com o eu que foi pecador,
fazem voltar sua alma a um novo frescor como na infância, frescor precioso pela experiência que os faz
mestres de outros, que são[66] agora como eram eles há tempo, ou seja, pecadores.
Em brancos véus. A humildade! Eu disse[67]: “Quando rezais ou fazeis penitência, procurai que o mundo
não o perceba.” Nos livros sapiênciais está escrito: “Não é bom revelar o segredo do Rei.” A humildade é o
véu cândido posto como defesa do bem que se faz e do bem que Deus nos concede. Não é a glória pelo
amor ao privilégio que Deus concede, nem é a estulta glória humana. O dom seria imediatamente retomado.
Mas é um canto interior do coração ao seu Deus: “Minha alma canta a tua grandeza, ó Senhor… porque Tu
voltaste o teu olhar para a baixeza da Tua serva.”
Jesus faz uma breve pausa, e lança um olhar para sua mãe que, por debaixo do seu véu, se ruboriza e se
inclina profundamente, como para compor os cabelos do menino que está sentado aos seus pés, mas, na
verdade, o faz para ocultar uma sua comovida lembrança…
– Coroada de flores. A alma deve entretecer para si sua grinalda diária de atos virtuosos porque, ao
conspecto do Altíssimo, não se devem apresentar coisas murchas, nem se deve estar com aspecto
desmazelado. Diária, Eu disse. Porque a alma não sabe quando Deus-Esposo pode aparecer para dizer-lhe:
“Vem.” Por isso não nos cansemos nunca de renovar a coroa. Não tenhais medo As flores ficam murchas.
Mas as flores das coroas virtuosas não murcham. O Anjo de Deus, que cada homem tem ao seu lado,
recolhe estas grinaldas de cada dia e as leva para o Céu. E lá elas servem como um trono ao novel bem-
aventurado, quando ele entrar, como esposa, na casa nupcial.
206.6 Tem as lâmpadas acesas. E é para honrar o esposo, e para se guiarem no caminho. Como é fulgente a
fé, e que doce amiga ela é! Produz uma chama brilhante, como uma estrela, uma chama que ri, porque tem
segurança em sua certeza, uma chama que torna luminoso até o instrumento que a rege. Até a carne do
homem, nutrido pela fé, parece, desde esta terra, tornar-se mais luminosa e espiritual e imune de uma
murchidão precoce. Porque quem crê, se rege pelas palavras e pelas ordens de Deus, para chegar a possuir
a Deus, que é o seu fim e, por isso, foge de toda corrupção, não sofre perturbações, nem temores, nem
remorsos, e não é obrigado a nenhum esforço, para recordar-se de suas mentiras, ou para esconder suas
más ações, e se conserva belo e jovem pela bela incorrupção de santo. Uma carne e um sangue, uma mente
e um coração limpos de toda luxúria, para conterem o azeite da fé e para produzirem uma luz sem fumaça.
Uma constante vontade para alimentar sempre esta luz. A vida de cada dia, com as suas desilusões,
verificações, contatos, tentações, atritos, tende a diminuir a fé. Não. Não deve acontecer. Ide cada dia às
fontes do azeite suave, do azeite espiritual, do azeite de Deus.
Lâmpada pouco alimentada pode ser apagada pelo menor vento, pode ser apagada pelo pesado orvalho
da noite. A noite… A hora das trevas, do pecado e da tentação, chega para todos. É a noite para a alma.
Mas, se esta se conserva a si mesma cheia de fé, não pode a chama ser apagada pelo vento do mundo, pela
caligem da sensualidade.
Enfim, vigilância, vigilância, vigilância. Quem for imprudente, e fiar-se em si mesmo, dizendo: “Oh! Deus
virá em tempo, enquanto eu estiver lúcido”, quem se põe a dormir, em vez de vigiar e for dormir, desprovido
de tudo o que é necessário para poder levantar-se prontamente, ao primeiro chamado, quem deixa para o
último momento o trabalho de ir prover-se do azeite da fé, ou do pavio forte da boa vontade, incorre no
perigo de ter que ficar fora, quando o Esposo chegar. Vigiai, pois, com prudência, com constância, com
pureza, com confiança, para estardes sempre prontos para o chamado de Deus, porque, na realidade, não
sabeis quando Ele virá.
206.7 Meus caros discípulos, Eu não quero induzir-vos a tremer por causa de Deus, mas, antes, a terdes fé
em sua bondade. Tanto vós que ficais, como vós que ides, pensai que, se fizerdes o que fizeram as virgens
sábias, sereis chamados, não somente para fazer o cortejo ao Esposo, mas, como a jovem Ester, que foi feita
rainha[68] no lugar de Vasti, sereis escolhidos e eleitos como esposas, tendo o Esposo “encontrado em vós
toda graça e favor, mais do que em todos os outros.” Eu vos abençôo, a vós que ides. Levai em vós e para
vossos companheiros esta minha palavra. A paz do Senhor esteja sempre convosco.
Jesus se aproxima dos camponeses, para saudá-los ainda, mas João de Endor lhe sussurra:
– Judas já está aí…
– Não importa. Acompanha-os até o carro, e faze o que Eu te disse que faças.
A multidão se dispersa lentamente. Muitos falam a Lázaro… E este se dirige a Jesus que, tendo deixado
os camponeses, vem na direção dele, e diz:
– Mestre, antes que nos deixes, fala-nos ainda… Isto desejam os corações de Betânia.
– A tarde está chegando. Mas é plácida e serena. Se quiserdes reunir-vos sobre os fenos ceifados, Eu vos
falarei, antes de deixar este lugar amigo. Ou, então, amanhã bem cedo. Porque já chegou a hora da
despedida.
– Mais tarde! Hoje mesmo! –gritam todos.
– Como quiserdes. Ide agora. Na metade da primeira vigília, Eu vos falarei.
206.8 … É incansável de fato — enquanto o sol desaparece, deixando como lembrança uma vermelhidão no
céu, com o primeiro, incerto e solitário trilar dos grilos, — Jesus se põe a caminho pelo meio de um prado,
há pouco ceifado, e no qual as ervas cortadas, que já estão murchando, formam um tapete de uma
fragrância aguda e suave. Acompanham-no os apóstolos, as Marias, Marta e Lázaro com os de sua casa,
Isaac com os seus discípulos, eu diria até que com toda a Betânia. Entre os seus servos está o velhinho com
a mulher, aqueles dois que, no Monte das Bem-aventuranças, acharam também um conforto para os seus
dias.
Jesus para, a fim de abençoar o patriarca que, chorando, vai beijar-lhe a mão e acaricia o menino, que
vai caminhando ao lado de Jesus, e dizendo-lhe:
– Feliz de ti, que o podes acompanhar sempre! É uma grande felicidade! Sobre tua cabeça está suspensa
uma coroa… Oh! Feliz de ti!
206.9 Quando todos já estão em seus lugares, Jesus começa a falar:
– Já tendo ido embora os nossos pobres amigos, que tinham necessidade de muito conforto em sua
esperança, ou melhor, em sua certeza de que basta saber pouco para serem admitidos no Reino, de que
basta um mínimo de verdades com as quais a boa vontade trabalha, Eu agora me dirijo a vós, muito menos
infelizes, porque estais em condições materiais muito melhores e com maiores auxílios do Verbo. O meu
amor vai a eles, só com o pensamento. Mas aqui ,a vós, o meu amor vem também com a palavra. Por isso,
vós estais sendo tratados na terra como no Céu, com maiores exigências, porque a quem mais foi dado,
mais dele será exigido. Eles, os nossos pobres amigos, que estão de volta às suas galés, não podem ter
senão um mínimo de bens, mas têm, em compensação, um máximo de dores. Por isso são somente para eles
as promessas de benignidade, já que qualquer outra coisa para eles seria supérflua. Em verdade, Eu vos
digo que a vida deles é penitência e santidade e que nada mais lhes deve ser imposto. Também, em verdade
Eu vos digo que, semelhantes às virgens sábias, eles não terão deixado que se apaguem suas lâmpadas, até
que chegue a hora do chamado.
Deixá-la apagar-se? Não. A luz delas é todo o bem deles. Eles não podem deixá-la apagar-se.
206.10 Em verdade, Eu vos digo que, assim como Eu estou no Pai, os pobres estão em Deus. É por isso que
Eu, o Verbo do Pai, quis nascer pobre, e viver pobre. Porque, entre os pobres, Eu me sinto mais próximo do
Pai, que ama os pequeninos e é amado por eles com todas as suas forças. Os ricos têm muitos amigos. Os
pobres vivem sozinhos. Os ricos têm muitas consolações. Os pobres não tem consolações
Os ricos têm muitos divertimentos. Os pobres só têm trabalho. Os ricos têm o dinheiro, que lhes torna
tudo fácil. Os pobres, além de tudo, ainda têm que levar a cruz, que é o temor das doenças e da carestia,
que para eles só trazem a fome e a morte. Mas os pobres tem Deus consigo. Ele é amigo deles. É o
consolador deles. É Ele quem os consola com as esperanças do Céu, quando eles sofrem as penas do
momento presente. É Ele a quem eles podem dizer — e o sabem dizer, e o dizem justamente porque são
pobres, humildes e sós —: ‘Socorre-nos, ó Pai, com a tua misericórdia.’
Tudo o que Eu estou dizendo aqui nesta terra de Lázaro, meu amigo e amigo de Deus, se bem que ele
seja tão rico, pode até parecer estranho. Mas Lázaro é uma exceção entre os ricos. Lázaro chegou a ter
aquela virtude, muito difícil de ser encontrada na terra e ainda mais difícil de ser praticada para
ensinamento dos outros. A virtude de estar livre das riquezas. Lázaro é justo. Lázaro não se ofende. Ele não
pode ofender-se, porque sabe que ele é o rico-pobre e por isso não é atingido pela minha velada censura.
Lázaro é justo e reconhece que no mundo dos grandes as coisas são como Eu digo. Por isso, Eu falo e digo:
em verdade, em verdade, Eu vos digo que é muito mais fácil que esteja em Deus um pobre do que um rico.
E, no Céu do meu e vosso Pai, muitos lugares vão ser ocupados por aqueles que na terra foram desprezados
porque eram tão miúdos como grãos de poeira em que pisamos.
Os pobres conservam no coração as pérolas, que são as palavras de Deus. Elas são o seu único tesouro.
Quem tem uma só riqueza toma todo o cuidado com ela. Quem tem muitas, vive aborrecido e desatento, e
se torna soberbo e sensual. Por tudo isso, ele não admira com olhos humildes e cheios de amor o tesouro
que Deus lhe deu, mas o confunde com outros tesouros, que são preciosos só na aparência, tesouros que
são as riquezas desta terra, e fica pensando: “Já é muito o que eu faço, ao ficar ouvindo as palavras de um
que é carne e ossos como eu!” E os sabores das sensualidades fazem ficar obtusa a sua capacidade de
saborear o que é sobrenatural. Fortes sabores!… Sim, mas o que eles são é muito bem temperados, para
misturar tudo com seu fedor e sabor de podridão…
206.11 Mas, ouvi. E, então, compreendereis melhor como os requintes, as riquezas e as devassidões
impedem a entrada no Reino dos Céus.
Uma vez um rei fez a festa do casamento de seu filho. Podeis imaginar que festa houve no palácio.
Tratava-se do filho único do rei que, tendo-se tornado núbil, estava se casando com sua dileta. O rei, seu
pai, quis que tudo fosse alegria, ao redor da alegria de seu filho e de sua bem amada. Entre os muitos atos
do programa da festa, constava também um grande banquete. E ele o preparou com tempo, cuidando de
todos os pormenores do mesmo, para que a festa saísse muito bonita e digna das núpcias de um filho do rei.
Mandou com antecedência a seus servos que fossem dizer aos amigos e aliados, e também aos magnatas
do seu reino que o casamento estava marcado para aquela data de tarde, e que eles estavam convidados e
que viessem abrilhantar as festas do filho do rei. Mas os amigos, os aliados e os magnatas do reino não
aceitaram o convite.
Então o rei, na dúvida se os primeiros servos haviam ou não, falado como deviam, mandou ainda outros
servos, para insistirem, dizendo: “Nós vo-lo pedimos. Vinde à festa. Já está tudo pronto. O salão está
preparado, os vinhos mais preciosos já foram trazidos de diversos lugares, nas cozinhas já estão preparados
os bois e os animais cevados para serem cozidos, as escravas já estão amassando a farinha para fazer os
doces, e outras estão esmagando as amêndoas nos almofarizes, para confeitarem os mais finos petiscos aos
quais elas misturam os mais raros aromas. As dançarinas e os melhores tocadores de instrumentos foram
contratados para a festa. Portanto, vinde, a fim de que todos esses preparativos não tenham sido inúteis.”
Mas os amigos, os aliados e os grandes, uns se recusaram e outros disseram: “Nós temos mais o que
fazer”, enquanto que outros ainda fingiram aceitar mas, na hora, foram tratar de seus interesses, uns no
campo, outros em seus negócios, e outros em outras coisas de pouca importância. E, finalmente, houve
também alguns que, aborrecidos com aquela insistência, pegaram os servos do rei e os mataram para os
fazer calar, porque eles ficavam só repetindo: “Não negues ao rei uma coisa destas, porque poderias sair-te
mal.”
Os servos voltaram ao rei e lhe contaram tudo e o rei se encheu de indignação, mandando seus soldados
punir os assassinos de seus servos e castigar os outros que haviam desprezado o seu convite, e ficou
esperando, para recebê-los bem, aos que prometeram ir. Mas, quando chegou a tarde do dia da festa, na
hora marcada, ninguém havia chegado.
206.12 O rei, irado, chamou os seus servos e disse-lhes: “Não há de acontecer que meu filho fique sem os
festejos nesta tarde de suas núpcias. O banquete está pronto, mas os convidados não são dignos dele. Seja
como for, o banquete nupcial de meu filho haverá de realizar-se. Ide agora pelas praças e pelas estradas,
colocai-vos nas encruzilhadas, fazei parar a quem estiver passando, reuni os que pararem e trazei-os todos
para cá. E que o salão se encha com os que vêm para a festa.”
Os servos lá se foram. Tendo saído pelas estradas, e tendo-se uns espalhados pelas praças ou se
colocado nas encruzilhadas, foram ajuntando a todos os que foram encontrando, bons e maus, ricos e
pobres e os levaram para a morada do rei, fornecendo-lhes também os meios para que pudessem
comparecer à festa e entrar no salão do banquete do casamento. Depois os fizeram entrar e o salão ficou
cheio de convidados, como o rei queria.
Mas, resolvendo o rei entrar no salão, para ver se já se podia começar a festa, viu lá dentro um homem
que, mesmo com a ajuda que os servos lhe haviam oferecido, não estava com a veste própria para uma festa
de casamento. E o rei lhe perguntou: “Como foi que entraste aqui sem a veste de núpcias?” E o homem não
soube o que responder, porque de fato não tinha motivos para desculpar-se. Então, o rei chamou os servos e
lhes disse: “Pegai este homem, amarrai-o de pés e mãos e expulsai-o para fora de minha morada, que ele
fique lá no escuro e na lama gelada. Que lá ele fique chorando e rangendo os dentes, como ele mereceu por
sua ingratidão e pela ofensa que me fez, e mais do que a mim, ao meu filho, entrando aqui com esta veste
andrajosa e suja, logo aqui no salão do banquete, onde só deve entrar quem é digno de estar neste lugar e
na festa de meu filho.”
206.13 Como estais vendo, as preocupações do mundo, as avarezas, as sensualidades, as crueldades atraem
a ira do rei e fazem que esses filhos das preocupações nunca mais entrem na casa do Rei. E vede também
que, até entre os convidados pela bondade do seu filho, há castigados.
Quantos há assim, nos dias de hoje, nesta terra à qual Deus enviou o seu Verbo!
Aos aliados, aos amigos, aos grandes do seu povo Deus realmente os convidou, por meio dos seus
servos, e mais ainda os fará convidar, com um convite insistente, à medida que a hora das minhas núpcias
for-se avizinhando. Mas não aceitarão o convite, porque são falsos aliados, falsos amigos, não são grandes
senão de nome, pois a baixeza mora neles.
Jesus vai elevando cada vez mais a voz, e seus olhos, à luz de um fogo, que foi aceso entre Ele e os
ouvintes, para iluminar a noite, pois nela não há luar, estando a lua em minguante e levantando-se mais
tarde, lançam uns lampejos de luz como se fossem duas pedras preciosas.
– Sim, a baixeza mora neles. Por tudo isso, eles não compreendem que é um dever e uma honra para
eles que aceitem o convite do Rei.
Soberba, dureza e libidinagem formam um baluarte em seu coração. E — maus como são, — tem ódio de
Mim, e por isso não querem vir às minhas núpcias. Não querem vir. Preferem às núpcias os conúbios com a
política suja, com o dinheiro ainda mais sujo e com a sujíssima sensualidade. Eles preferem ir fazer os seus
cálculos cheios de astúcia, ficar conspirando numa conspiração traiçoeira, preferem o ardil e o delito.
Eu condeno tudo isso em nome de Deus. Odeia-se por isso a voz que fala e as festas a que ela convida. É
neste povo que devem ser procurados os que matam os servos de Deus: os Profetas, que são seus servos até
hoje, os meus discípulos, que são os servos, de agora em diante. Neste povo é que são escolhidos os que
querem trapacear com Deus, e dizem: “Sim, nós vamos”, enquanto, em seu interior, pensam assim: “Não
vou, nem por sombra!” De tudo isso há em Israel.
E o Rei do Céu, a fim de que o Filho possa ostentar a magnificência de suas núpcias, mandará recolher
nas encruzilhadas aqueles que nem são amigos, que nem são grandes, nem aliados, mas são simplesmente
pessoas que vão passando. Já — por minha mão, pela minha mão de Filho e de servo de Deus — a colheita
começou.
Sejam quais forem, eles virão… E já vieram. E Eu os ajudo a ficarem limpos e belos para a festa das
núpcias. Mas haverá, Oh! para sua infelicidade, haverá quem até da generosidade de Deus, que lhe dá
perfumes e vestes reais, para fazê-lo parecer o que ele não é: alguém rico e digno, haverá quem, de toda
essa bondade se aproveitará para, como um indigno, seduzir, tirar vantagem… É um indivíduo vesgo de
espírito, abraçado pelo polvo repugnante de todos os vícios… e até subtrairá alguns perfumes e vestes para
obter com essas coisas algum lucro ilícito, usando delas não para as núpcias do Filho, mas para as suas
núpcias com satanás.
Pois bem. Isto acontecerá. Porque muitos são os chamados, mas poucos os que, por saberem perseverar
em atender ao chamado, chegam a ser eleitos. Contudo, também acontecerá que a estas hienas, que
preferem as podridões a um nutrimento vivo, haverá de ser infligido o castigo de serem tocados para fora
do salão do banquete para o meio das trevas e de uma lama de um brejo eterno, onde satanás faz ouvir a
sua estridente e horrível risada por todos os triunfos conseguidos contra uma alma, e nos quais se ouve
também o eterno pranto desesperado dos mentecaptos, que foram atrás do delito, em vez de
acompanharem a Bondade, que os havia chamado.
206.14 Levantai-vos, e vamos descansar. Eu vos abençôo, ó cidadãos de Betânia, a todos vós. Eu vos
abençôo e vos dou a minha paz. Eu abençôo em particular a ti, ó Lázaro, meu amigo, e a ti, Marta. Abençôo
aos meus discípulos antigos e novos, que Eu mando pelo mundo para chamar, para convidar para as núpcias
do Rei. Ajoelhai-vos, para que Eu vos abençoe a todos. Pedro, dize a oração que Eu vos ensinei e vem dizê-la
aqui ao meu lado, de pé, porque assim há de ser feita por quem para isso foi destinado por Deus.
A assembleia toda se ajoelha sobre o feno, ficando em pé somente Jesus em sua veste de linho, com toda
a sua altura e beleza, e Pedro, em sua veste marrom escura, inflamado pela emoção, um pouco trêmulo e
que reza, com uma voz não bonita, mas viril, recitando devagar, por medo de errar: “Pai nosso…”
Ouvem-se alguns soluços… de homem, de mulher…
Margziam está ajoelhado justamente ao lado de Maria, que está segurando suas mãozinhas juntas. Olha
com um sorriso angelical para Jesus, e diz baixinho:
– Olha mãe é belo! E como é belo também o pai. Parece estarmos no Céu. Será que minha mãe está aqui
vendo?
E Maria, em um sussurro, que termina com um beijo, responde:
– Sim, querido. Ela está aqui. E está aprendendo a oração.
– E eu? Também eu a aprenderei?
– Ela a sussurrará à tua alma, enquanto estiveres dormindo, e eu a repetirei durante o dia.
O menino deixa cair para trás a cabecinha morena sobre o peito de Maria e fica assim, enquanto Jesus
abençoa com a solene bênção mosaica de sempre.
Depois todos se levantam, indo cada um para a sua própria casa. Só Lázaro é que acompanha ainda
Jesus, entrando com Ele na casa de Simão, para estar mais algum tempo com Ele. Entram também todos os
outros. Iscariotes se coloca em um canto meio escuro, contrariado. Não tem coragem de ficar perto de
Jesus, como fazem os outros…
206.15 Lázaro se congratula com Jesus. Ele diz:
– Oh! Sinto muito vê-lo partir. Mas estou mais contente do que se te tivesse visto partir anteontem!
– Por que, Lázaro?
– Porque me parecias estar muito triste e cansado… Não falavas nada e pouco sorrias…Ontem e hoje te
tornaste o meu santo e doce Mestre e isto me dá muita alegria…
– Eu o era, mesmo estando calado…
– Tu o eras. Mas Tu és serenidade e palavra. Nós queremos isto de Ti. É nestas fontes que bebemos a
nossa força. E agora estas fontes pareciam estar secas. Nossa sede nos estava atormentando. Tu estás
vendo como até os pagãos ficaram espantados e vieram procurá-las…
Iscariotes, do qual se havia aproximado João de Zebedeu, se atreve a perguntar:
– É isso. Já também a mim me haviam feito esta pergunta. Porque eu estava junto à fortaleza Antônia,
esperando ver-te.
– Tu sabias onde Eu estava, responde Jesus curtamente.
– Eu sabia. Mas eu pensava que não terias decepcionado a quem Te estava esperando. Também os
romanos ficaram decepcionados. Não sei por que fizeste assim…
– E és tu que me fazes esta pergunta? Não estarás tu a par das intenções do Sinédrio, dos fariseus e de
outros ainda, a meu respeito?
– Por quê? Terias tido medo?
– Medo não. Náusea. 206.16No ano passado, quando Eu estava sozinho, um só contra todo mundo, que nem
mesmo sabia se Eu era um Profeta, Eu mostrei que não tinha medo. E tu foste uma conquista daquela
minha coragem. Eu fiz que se ouvisse a minha voz contra todo mundo que urrava contra Mim; fiz ouvir a
voz de Deus a um povo que se tinha esquecido dela; purifiquei a Casa de Deus das sujeiras materiais que
estavam nela, não esperando que pudesse limpá-la das bem mais graves sujeiras morais que se tinham
aninhado nela, porque Eu não ignoro o futuro dos homens, mas para cumprir o meu dever, pelo zelo da
Casa do Senhor Eterno, transformada em uma praça barulhenta de revendedores, usurários e ladrões e
para sacudir do torpor aqueles que muitos séculos de desleixo sacerdotal tinham feito cair num letargo
espiritual. Foi o toque de recolher para o meu povo, a fim de levá-lo para Deus. Este ano Eu voltei.. E pude
ver que o Templo é sempre o mesmo… E que está pior ainda. Já não é mais uma espelunca de ladrões, mas
um lugar de conspiração. Depois se tornará sede do delito, depois um lupanar e finalmente, será destruído
por uma força maior que a de Sansão, esmagando uma casta indigna de ser chamada santa. É inútil falar
naquele lugar, no qual, eu peço que te lembres, foi-me proibido falar. Povo desleal! Povo envenenado em
seus chefes, povo que ousa interditar que a Palavra de Deus fale em sua Casa! Foi-me proibido. Eu me calei
por amor aos pequeninos. Não é ainda a hora de me matarem. Muitos precisam de Mim, e os meus
apóstolos ainda não estão fortes para receberem em seus braços a minha prole: o Mundo. Não chores, mãe,
perdoa, tu que és boa, a necessidade que teu Filho tem de falar a Verdade, que Eu sou, a quem quer ou
pode iludir-se… Eu me calo… Mas, ai daqueles por causa dos quais Deus se cala!… Ó mãe, ó Margziam, não
choreis!… Isto Eu vos peço. Ninguém chore.
Mas, na realidade todos mais ou menos estão chorando e com muita dor.
Judas, pálido como um morto, em sua veste amarela e vermelha com listras, ainda se atreve a falar com
uma voz choramingante e ridícula:
– Podes crer, Mestre, que eu estou assombrado e entristecido… Não sei o que queres dizer… Eu não
estou sabendo de nada… É verdade que eu não vi nenhum do Templo. Eu rompi relacionamento com
todos… Mas, se Tu estás dizendo, deve ser verdade…
– Judas, não viste nem Sadoc?
Judas inclina a cabeça, murmurando:
– É um amigo… Como tal eu o vi. E não como um dos do Templo…
206.17 Jesus não lhe dá resposta. Mas vira-se para Isaac e para João de Endor, aos quais faz ainda
recomendações sobre o trabalho deles.
Entretanto, as mulheres estão confortando Maria, que está chorando, e ao menino, que também chora,
ao ver Maria chorar.
Até Lázaro e os apóstolos estão entristecidos. Mas Jesus vai até eles. Ele retomou o seu doce sorriso e,
enquanto abraça a mãe e acaricia o menino, diz:
– E agora Eu vos saúdo, a vós que ficais. Porque amanhã cedo nós partiremos. Adeus, Lázaro. Adeus,
Maximino. José, Eu te agradeço por toda cortesia feita à minha mãe e às discípulas enquanto aguardavam
por mim. Agradeço por tudo. Adeus, Lázaro, abençoa também à Marta em meu nome. Logo Eu voltarei.
Vem, minha mãe, vamos descansar. E tu também, Maria e Salomé, se é que vós também quereis ir.
– Com certeza, nós iremos –dizem as duas Marias.
– Então, para a cama. A paz esteja com todos. Deus esteja convosco!
Jesus faz um gesto de bênção e sai, segurando pela mão o menino e abraçado com sua mãe…
A permanência em Betânia terminou.
[66] que são é em um acréscimo nosso; eu disse em 172.5/8; foi citado em Tobias 12,7.
[67] Eu disse em 172.5/8; está escrito em Tobias 12,7.
[68] foi feita rainha como se narra em Ester 2, 1-18. Ao personagem de Ester se faz alusão ainda em 136.2 e 414.1.
207. Na gruta de Beléma mãe
relembra o nascimento de Jesus.
3 de julho de 1945.
207.1 Deixada Betânia, ao primeiro riso da aurora, Jesus vai rumo a Belém com sua mãe, com Maria de
Alfeu e com Salomé, acompanhado pelos apóstolos e tendo à sua frente o menino, que encontra motivo de
alegria em tudo o que vê: as borboletas que despertam, os passarinhos que cantam ou vão dando bicadas
pela estrada, as flores que resplendem com os diamantes das orvalhadas, o aparecimento de um rebanho no
qual há muitos cordeirinhos berrando. Passada a torrente que fica ao sul de Betânia, toda uma espuma
risonha por entre as pedras, a comitiva se dirige para Belém por entre duas séries de colinas, todas verdes
com suas oliveiras e vinhedos, com pequenos campos dourados pelas messes, que já começaram a ser
colhidas. O vale está fresco e o caminho bastante cômodo.
Simão de Jonas põe-se à frente, unindo-se ao grupo de Jesus e pergunta:
– Por aqui se vai a Belém? João diz que na outra vez o fizera por outra estrada.
– É verdade –diz Jesus–. Mas é porque estávamos vindo de Jerusalém. Indo-se por aqui o caminho é mais
curto. No sepulcro de Raquel, que as mulheres querem ver, nós nos separaremos, como decidistes há
tempo. Depois, nos reuniremos em Betsur, onde minha mãe deseja permanecer.
– É verdade, nós o dissemos… Mas seria muito bonito, se fôssemos todos juntos… especialmente com a
mãe… porque a Rainha de Belém e da Gruta é ela e ela sabe tudo muito bem… Ouvindo as palavras dela,
seria outra coisa, aí está.
Jesus sorri, olhando para Simão, que insinuou delicadamente o seu desejo.
– Que gruta, pai? –pergunta Margziam.
– A gruta onde nasceu Jesus.
– Oh! Que bonito! Eu também vou lá.
– Seria bonito de fato! –dizem Maria de Alfeu e Salomé.
– Muito bonito!… Seria voltar atrás… ao tempo em que o mundo não te conhecia, é verdade, mas
também ainda não te odiava… Seria encontrar de novo o amor dos simples, que não souberam senão crer e
amar, com humildade e fé… Seria depor este peso de amargura, que me oprime o coração, quando sei como
és odiado e colocar esse peso lá no teu berço .. Lá deve ter ficado ainda a doçura do teu olhar, da tua
respiração, daquele teu sorriso incerto, lá… e fariam caríicias ao meu coração… Ele está tão amargurado!…
Maria fala baixo, com saudade e tristeza.
– Então, iremos lá, minha mãe. Guia-me, tu. Hoje és tu Mestra e eu a criança que aprende.
– Oh! Filho! Não! Tu és sempre o Mestre!
– Não, minha mãe. Simão de Jonas falou bem. Na terra de Belém, a Rainha és tu. É lá o teu primeiro
castelo. Maria, da estirpe de Davi, guia este pequeno povo por entre tuas moradas.
Iscariotes ia falar, mas resolve calar-se. Jesus, que nota aquele ato e o interpreta, diz:
– Se alguém, por cansaço ou por outro motivo, não quiser ir, prossiga por Betsur livremente.
Mas ninguém diz nada.
207.2 Prosseguem a estrada, através do fresco vale que vai na direção leste-oeste. Depois se dirigem
levemente para o norte, a fim de costearem uma colina, que vem aparecendo à frente e alcançam assim o
caminho que de Jerusalém vai para Belém, justamente perto do cubo, encimado por uma pequena cúpula
redonda, que é a da tumba de Raquel. Todos se aproximam dela para rezar com reverência.
– Foi aqui que paramos eu e José… Está tudo igual ao que era naquele tempo. Só a estação é que era
diferente. aquele era um dos dias frios do mês de Casleu. Havia chovido e as estradas tinham ficado
alagadas. Depois, veio um vento gelado, pois talvez de noite tivesse caído geada. As estradas estavam
duras, mas todas com sulcos feitos pelos carros e pelas multidões, e eram como um mar cheio de buracos e
o meu burrinho se fatigava muito…
– E tu não, minha mãe?
– Oh! eu Te tinha comigo!… –e olha para Ele com um rosto tão feliz, que comove.
Depois toma de novo a palavra:
– A tarde já vinha chegando e José estava muito preocupado… Um vento cada vez mais forte vinha se
levantando, um vento que cortava… As pessoas se apressavam a caminho de Belém, esbarrando umas nas
outras, e muitos diziam palavras injuriosas ao meu burrinho, porque ele ia muito devagar, procurando os
lugares onde podia pôr os cascos… Mas é que ele parecia que soubesse que havias Tu… e que estavas
dormindo o teu último sono no berço do meu seio. Fazia frio… Mas o que eu sentia era um forte calor. Eu
percebia que vinhas vindo. Que vinhas vindo? Poderias dizer: “Eu estava lá, minha mãe, com nove meses.”
Sim. Mas agora era como se estivesses vindo dos Céus. Os Céus se abaixavam, se abaixavam sobre mim e
eu via os esplendores deles… Eu via incendiar-se a Divindade, em sua alegria pelo teu próximo nascimento
e aqueles fogos me penetravam, me incendiavam também, me levavam para fora de mim mesma… de
tudo… Frio… vento… pessoas… nada! Eu só via a Deus… De vez em quando, com esforço, eu conseguia
fazer voltar o meu espírito por sobre a terra, e sorria para José, que tinha medo de que o frio e a fadiga me
fizessem mal e ia guiando o burrinho com cuidado, para que ele não tropeçasse, e me envolvia de novo na
coberta, para que não me resfriasse… Mas nada podia acontecer. As sacudidas, eu nem percebia. Parecia-
me estar andando por um caminho estrelado, por entre nuvens cândidas e sendo sustentada por anjos… E
eu sorria… Primeiro para Ti… Eu olhava para Ti, através da barreira da carne e estavas dormindo com os
punhozinhos fechados em teu leitozinho de rosas vivas, meu botão de lírio… Depois, sorria para o esposo,
que estava tão aflito, tão aflito, para encorajá-lo. Depois para as pessoas, que ainda não sabiam estarem já
respirando na áura do Salvador…
Paramos junto à tumba de Raquel para dar um pouco de descanso ao burrinho e para comer um pouco
de pão com azeitonas, que eram as nossas provisões de pobres. Mas Eu não tinha fome. Não podia ter fome.
Era alimentada pela minha alegria. 207.3Pusemo-nos de novo a caminho. Vinde. Vou mostrar-vos onde
encontramos o pastor… Não tenhais medo de que eu me engane. Eu revivo aquela hora e encontro de novo
cada lugar, porque vejo tudo através de uma grande luz angélica. Talvez a multidão angélica está de novo
aqui, invisível aos olhos dos corpos, mas visível para as almas, com seu luminoso candor e tudo se revela,
tudo é mostrado. Eles não podem enganar-se, e me vão conduzindo…para alegria minha e para alegria
vossa. Aí está: daquele campo para este, veio Elias com as suas ovelhas e José foi pedir-lhe leite para mim.
E ali, naquele prado, nós paramos, enquanto ele tirava o leite quente e restaurador, e dava seus conselhos a
José.
Vinde, vinde… Ali está, ali está o caminho do último pequeno vale, antes de Belém. Fomos por este,
porque a estrada principal, nas proximidades da cidade, estava numa grande confusão de pessoas e
cavalgaduras…
207.4 Eis Belém! Oh! A querida! Querida terra de meus pais, que me deste o primeiro beijo de meu Filho!
Tu te abriste, boa e fragrante, como o pão do qual tens o nome[69], para dar o Pão Verdadeiro ao mundo que
está morrendo de fome! Tu me abraçaste como uma mãe, tu, na qual ficou o amor materno de Raquel, Terra
Santa da Belém davídica, primeiro Templo do Salvador, a Estrela da Manhã, nascida de Jacó, a fim de
mostrar a rota dos Céus a toda a humanidade. Olhai para ela e vede como está bela nesta primavera! Mas,
mesmo então, ainda que os campos e os vinhedos estivessem despojados, ela estava bela! Um leve véu de
geada voltava a brilhar, a tremeluzir sobre os galhos nus, e eles se tornavam como que polvilhados com
diamantes, como se estivessem enrolados em um impalpável véu do Paraíso. Cada casa soltava fumaça por
sua chaminé, pois a hora da ceia estava próxima. E a fumaça, subindo pela encosta até o perímetro,
mostrava a cidade, ela também coberta com um véu… Tudo era casto, recolhido à espera de… de Ti, de Ti,
Filho. A terra percebia que estavas vindo. E até os belemitas Te teriam percebido, porque maus eles não
são, por mais que não o acrediteis. Eles não podiam hospedar-nos… Nas casas de Belém se comprimiam,
arrogantes como sempre, surdos e soberbos, aqueles que ainda hoje o são, e esses tais não poderiam
perceber a tua presença… Quantos fariseus, saduceus, herodianos, escribas, essênios havia lá! Oh! O serem
eles uns obcecados agora, é coisa que já vem de terem sido duros de coração então. Eles fecharam o
coração ao amor para com a sua pobre irmã naquela tarde… e permaneceram, e permanecem nas trevas.
Eles rejeitaram a Deus, desde então, rejeitando o amor ao próximo.
207.5 Vinde. Vamos à gruta. Entrar na cidade, é inútil. Os maiores amigos do meu Menino já não estão
mais lá. Fica a natureza amiga, com suas pedras, com o seu rio e sua lenha para fazer fogo. A natureza, que
percebeu a vinda do seu Senhor… Então, vinde sem temor. Vai-se por aqui… Lá estão os escombros da
Torre de Davi. Oh! querida por mim mais do que um palácio. Benditas ruínas! Bendito rio! Bendita planta
que, como por milagre, foste despojada pelo vento de tantos ramos, para que pudéssemos achar lenha e
fazer fogo!
Maria desce, ligeira, para a gruta, atravessa o pequeno rio por uma pinguela que serve de ponte, corre
pelo descampado que está diante dos escombros, cai de joelhos na entrada da gruta, inclina-se e beija o
chão. Acompanham-na todos os outros. Estão comovidos… O menino, que não a deixa um instante, parece
estar ouvindo uma maravilhosa história e os seus olhinhos negros bebem as palavras e os gestos de Maria,
não perdendo um só deles.
Maria torna a levantar-se, e entra, dizendo:
– Tudo, tudo como naquele tempo!… Só que naquele tempo era noite… José fez fogo quando entrei.
Então, só então, descendo do burrinho é que eu senti como estava cansada e gelada… Um boi me saudou e
eu fui até ele para sentir um pouco de calor e para descansar sobre o feno… Aqui, onde estou, José
espalhou mais feno, para fazer-me uma cama e o enxugou para mim, como para Ti, meu Filho, diante das
chamas do fogo aceso naquele canto… pois José era bom como um pai, em seu amor de esposo-anjo… E,
segurando-nos pelas mãos, como dois irmãos perdidos no escuro da noite, comemos nosso pão e queijo.
Depois, ele foi avivar o fogo, tirando o seu capote para tapar uma abertura… Na verdade, desceu um véu
diante da glória de Deus, que descia dos Céus, e eras Tu, meu Jesus… e eu fiquei sobre o feno, ao calor dos
dois animais, envolvida em meu manto e com a capa de lã… Ó meu querido esposo! Naquela hora de ânsia e
de temor na qual eu estava sozinha, diante do mistério da primeira maternidade, que é plena do
desconhecido para uma mulher, e para mim, naquela única maternidade, plena também de mistério, como
teria sido o de ver o Filho de Deus saindo da carne mortal, ele, José, foi para mim como uma mãe, foi um
anjo… foi o meu conforto… então e sempre…
207.6 Depois veio o silêncio e o sono que envolveram a José… para que ele não visse aquilo que era para
mim o beijo diário de Deus… E, para mim, depois de um intervalo para as necessidades humanas,
sobrevêm-me as ondas desmesuradas de um êxtase, vindas do mar do Paraíso e que me elevavam de novo
para cima das cristas luminosas, cada vez mais altas, levando-me para cima, mais para cima consigo, para
um oceano de luz, de luz, de alegria, de paz, de amor, até que me encontrei perdida no mar de Deus, do seio
de Deus… Uma voz veio ainda da terra: “Estás dormindo, Maria?” Oh! Ela vinha de tão longe! Parecia mais
um eco, uma lembrança da terra! E tão fraca, que a alma não se agita, e nem sei com que palavras respondi
enquanto subo, vou subindo ainda por este abismo de fogo, de felicidade infinita, de uma precognição de
Deus… até Ele, Ele… Oh! Mas és Tu que nasceste, ou sou Eu que nasci dos Trinos fulgores, naquela noite?
Fui eu que Te dei, ou foste Tu que me deste o sopro da vida? Eu não sei…
Depois a descida, de um coro a outro coro, de um astro a outro astro, de um estrato a outro estrato,
doce, lenta, feliz, tão plácida como uma flor levada para o alto por uma águia e depois solta no ar e vai
descendo lentamente nas asas do ar, tornando-se mais bela por uma gota de chuva que brilha como uma
pedra preciosa, por um pedacinho do arco-íris arrebatado ao céu, esse reencontra no torrão natal… É o
meu diadema: Tu! Tu sobre o meu coração…
Sentada aqui, depois de ter-te adorado de joelhos, eu te amei. Finalmente, Te pude amar sem as
barreiras da carne, e daqui eu me movi para levar-te ao amor daquele que, como eu, era digno de estar
entre os primeiros a amar-te. E aqui, entre duas rústicas colunas, eu te ofereci ao Pai. E foi aqui que
descansaste, pela primeira vez, sobre o coração de José… Depois, eu te enfaixei e, juntos, nós te colocamos
aqui… Eu te balançava, enquanto José enxugava o feno ao fogo e o conservava quente, para depois pô-lo
sobre o teu peito e, em seguida, ficávamos te adorando nós dois, assim, inclinados sobre Ti como agora,
bebendo a tua respiração, olhando até onde o aniquilamento do amor pode conduzir, chorando as lágrimas
que certamente no Céu se choram, pela alegria inexaurível de ver sempre a Deus.
207.7 Naquela sua recordação, Maria ia e vinha, mostrando os lugares, ardente em seu amor, com um
brilho de lágrimas em seus olhos azuis e um sorriso de alegria em sua boca, inclinando-se de verdade sobre
o seu Jesus, que agora está sentado ali sobre uma pedra grande, enquanto Ela vai-se lembrando de tudo e o
beija por entre os cabelos, chorando e adorando-o, como então…
– E depois, os pastores, que entravam aqui para adorar, com seu bom coração e com o grande suspiro da
terra, que aqui com eles entrava, com aquele odor de humanidade, de rebanhos e de feno. Fora e por toda
parte, os anjos para adorar-Te com seu amor, os cantos deles que a criatura humana é incapaz de repetir, e
com o amor dos Céus, com aquele ar de Céu que entrava com eles, que eles traziam junto com os seus
fulgores… Foi o teu nascimento bendito!…
Maria ajoelhou-se ao lado do Filho, e está chorando de emoção, com a cabeça inclinada sobre os joelhos
dele. Ninguém, por algum tempo, tem coragem de falar. Mais ou menos emocionados, os presentes olham
ao redor, uns para os outros, como se, por entre as teias de aranha e as pedras escabrosas, eles esperassem
ir vendo pintada a cena, que havia sido descrita…
Maria recobra a coragem e diz:
– Eis. Eu falei do infinitamente simples e infinitamente grande nascimento do meu Filho. Com meu
coração de mulher, mas não com a sabedoria de mestre. Outra coisa não há, porque foi a maior coisa da
Terra, escondida por debaixo das aparências mais comuns.
207.8 – Mas, e o dia seguinte? E depois dele? –perguntam muitos, entre os quais as duas Marias.
– No dia seguinte? Oh! Muito simples! Fui a mãe que dá leite ao seu menino, que o lava e enfaixa, como
fazem todas as outras mães. Eu esquentava a água buscada no rio, sobre o fogo que era aceso ali fora, a fim
de que a fumaça não fizesse aqueles dois olhinhos azuis chorar e, depois, no canto mais abrigado da gruta,
em uma velha gamela, eu lavava o meu Filho e o enrolava em panos frescos. Depois, eu ia ao rio lavar os
paninhos e os estendia ao sol… Em seguida, alegria das alegrias, eu punha Jesus ao peito e Ele sugava,
tornando-se mais corado e feliz. No primeiro dia, à hora do maior calor, fui sentar-me ali fora, para vê-lo
bem. Aqui a luz não entra direta, mas se filtra, e a luz e as chamas dão às coisas uma aparência esquisita.
Eu fui lá para fora, ao sol, e olhei para o Verbo Encarnado. Foi então que a mãe conheceu o Filho, a Serva
de Deus ao seu Senhor. Aí eu fui mulher e adoradora…. Depois, a casa de Ana… aqueles dias junto ao teu
berço, os teus primeiros passos, a primeira palavra. Mas isso foi depois, a seu tempo… E nada, nada foi
igual à hora do teu nascimento… Só no retorno para Deus reencontrarei aquela plenitude…
– Mas… deixar para partir assim, na última hora! Que imprudência! Por que não esperar? O decreto
previa também uma data mais afastada, para os casos excepcionais, como os de nascimentos e doenças.
Alfeu falou assim… –disse Maria de Alfeu.
– Esperar? Oh! Não. Naquela tarde em que José trouxe a notícia, eu e Tu, meu Filho, saltamos de
alegria. Era o chamado, porque aqui, somente aqui é que devias nascer, como os Profetas haviam dito. E
aquele decreto de improviso foi como um céu piedoso para José, pois acabava até com a lembrança da
suspeita dele. Era aquilo que eu esperava para Ti, para ele, para o mundo judaico e para o mundo futuro,
até o fim dos séculos. Estava dito[70]. E, como estava dito, aconteceu. Esperar! Pode a esposa aceitar uma
espera para o sonho de suas núpcias? Por que esperar?
– Mas… por tudo o que podia acontecer… –diz ainda Maria de Alfeu.
– Eu não tinha medo nenhum. Eu descansava em Deus.
– Mas, tu sabias que tudo teria sido assim?
– Ninguém me havia dito isso, nem eu pensava nisso, tanto assim, que para encorajar José, eu deixei que
ele ficasse dúvidando, e a vós também, sobre se já era, ou não, o tempo do nascimento. Mas eu sabia, isto
eu sabia, que na festa das Luzes nasceria a Luz do mundo…
– E tu, então, minha mãe, por que não acompanhaste Maria? E o pai, por que não pensou nisso? Vós
também devíeis ter vindo aqui. Hoje não viemos todos? –pergunta sério Judas Tadeu.
– Teu pai tinha decidido que viria depois das Encênias, e disse isto ao irmão dele. Mas José não quis
esperar.
– Mas tu, ao menos… –retruca ainda Tadeu.
– Não a censures, Judas. De comum acordo, achamos justo descer um véu sobre o mistério deste
nascimento.
– Mas José sabia que ele teria acontecido com aqueles sinais? Se nem tu sabias, como podia ele saber?
– Nós não sabíamos de nada, a não ser que Ele devia nascer.
– E então?
– E então a Sabedoria divina nos guiou assim, como era justo. O nascimento de Jesus, sua presença no
mundo, devia aparecer privada de tudo o que fosse extraordinário e provocasse a ira de satanás… E vós
estais vendo como o ódio atual de Belém para com o Messias é uma consequência da primeira manifestação
de Cristo. O rancor do demônio usou da revelação para fazer derramar sangue e, pelo sangue derramado,
fazer nascer o ódio. 207.9 Estás contente, Simão de Jonas, tu que não dizes nada e quase nem respiras mais?
– Muito… e a tal ponto que me parece que estou fora do mundo, em um lugar ainda mais santo, do que
se estivesse do outro lado do véu do Templo… A tal ponto, que agora que eu te vi neste lugar, e com a luz
daquele tempo, eu fico temeroso por haver-te tratado com respeito, sim, mas como uma grande mulher,
sempre mulher. Agora… agora eu não terei coragem de te chamar como antes: “Maria.” Antes, eras para
mim a mamãe do meu Mestre. Agora, agora que eu te vi sobre as alturas daquelas ondas celestes, que eu te
vi como Rainha, eu miserável, faço assim, como um escravo que sou –e se joga no chão para beijar os pés de
Maria.
Nesse momento, Jesus lhe fala:
– Simão, levanta-te. Vem cá, bem perto de Mim.
Pedro vai, então, para a esquerda de Jesus, porque Maria está à direita.
– Que é que somos agora nós? –pergunta Jesus.
– Nós? Ora, somos Jesus, Maria e Simão.
– Está bem. Mas, quantos somos?
– Três, Mestre.
– Portanto, é uma trindade. Um dia[71] no Céu à Divina Trindade veio um pensamento: “Agora chegou o
tempo de o Verbo ir à terra”, e, em uma palpitação de amor, o Verbo veio à terra. Separou-se, pois do Pai e
do espírito Santo. Veio trabalhar na terra. No Céu, os Dois que ficaram contemplaram as obras do Verbo e
se conservaram mais unidos do que nunca, para assim unirem o Pensamento e o Amor, a fim de ajudar a
Palavra que trabalha na terra. Um dia virá em que do Céu baixará esta ordem: “Já é tempo para que Tu
voltes, porque tudo já se cumpriu”, e então, o Verbo voltará aos Céus, assim (e Jesus dá um passo para trás,
deixando Maria e Pedro onde eles estavam) do alto dos Céus, contemplará as obras dos dois que ficaram na
terra, os quais, por um movimento santo, se unirão mais do que nunca, para unirem o poder e o amor, e
fazer deles um meio para que se cumpra o desejo do Verbo: A redenção do mundo através do perpétuo
ensinamento de sua Igreja. E o Pai, Filho e espírito Santo farão dos seus raios uma corrente para ajuntar
cada vez mais os dois que ficaram na terra: minha mãe, é o amor; e tu, o poder. Deverás, pois, tratar bem
Maria como rainha, sim, mas não como um escravo. Que te parece?
– A mim me parece o que Tu quiseres. Eu estou aniquilado. Eu, ficar com o poder? Oh! Se é que eu sou o
poder, então sim é que eu me devo apoiar nela! Oh! Mãe do meu Senhor, não me abandones nunca, nunca,
nunca…
– Não tenhas medo. Eu te terei sempre pela mão, do mesmo modo como fazia com o meu Menino, até
que Ele se tornou capaz de andar sozinho.
– E depois?
– E depois eu te socorrerei com a oração. Coragem, Simão. Nunca duvides do poder de Deus. Dele não
duvidei eu nem José. E nem tu deves dúvidar. Deus dá sua ajuda a cada hora, desde que permaneçamos
humildes e fiéis. 207.10Agora, vinde aqui fora, à beira do rio, à sombra daquela árvore boa que, se o verão já
tivesse chegado, vos estaria dando agora suas maçãs, além de sua boa sombra. Vinde. Vamos comer, antes
de nos pormos a caminho… Para onde, meu Filho?
– Para Jala. Fica perto. E amanhã iremos a Betsur.
Assentam-se à sombra da macieira, e Maria se coloca justamente na frente do tronco robusto.
Bartolomeu olha fixamente para ela, tão jovem e animada pela evocação feita, recebendo do Filho o
alimento que Ele abençoou, sorrindo para Ele com uns olhos cheios de amor, murmura:
– “A sombra dele eu me assentei, e seu alimento é doce ao meu paladar.”
Judas Tadeu é quem lhe responde:
– É verdade. Ela está lânguida de amor. Mas não se há de dizer que sob uma macieira é que ela foi
despertada.
– E, por que não, meu irmão? Que sabemos nós dos segredos do Rei? –responde Tiago de Alfeu.
E Jesus, sorrindo:
– A nova Eva foi concebida pelo Pensamento, aos pés da árvore do Paraíso, para que com o seu sorriso e
com o seu pranto, afugentasse a serpente e desintoxicasse a intoxicada fruta. Ela se fez assim a árvore do
fruto redentor. Vinde, amigos e comei dele. Porque nutrir-se alguém de sua doçura é nutrir-se com o mel de
Deus.
– Mestre, responde a um meu antigo desejo de saber: O Cântico, que nós estamos citando[72] tem a
previsão dela? –pergunta Bartolomeu, enquanto Maria está ocupada com o menino, e conversando com as
mulheres.
– Desde o principio do Livro se fala dela, e dela se falará nos livros que vierem depois, até que a palavra
do homem se mude no sempiterno hosana da eterna Cidade de Deus –e Jesus se vira para as mulheres.
– Como se percebe que é de Davi! Que sabedoria, que poesia! –diz Zelotes, falando com os
companheiros.
207.11 – Aí está, intervém Iscariotes que, estando ainda sob a impressão do dia anterior, pouco está
falando, mas procurando situar-se naquela liberdade em que vivia antes: Aí está. Eu quereria entender por
que é mesmo que precisou haver a Encarnação. Somente Deus pode falar, de modo a derrotar satanás. Só
Deus pode ter o poder de redenção. E disto eu não duvido. Mas, eis que me parece que o Verbo podia
aviltar-se menos do que tudo o que Ele fez, ao nascer como todos os homens, ao sujeitar-se às misérias da
infância, e assim por diante. Não teria Ele podido aparecer em forma humana, já adulto, com a aparência
de adulto? Ou, então, se Ele queria mesmo uma mãe, que a escolhesse, mas adotiva, como Ele fez para o
pai? Parece que uma vez eu lhe fiz estas perguntas, mas Ele não me respondeu amplamente, se é que não
me estou lembrando.
– Faze-lhe a pergunta agora, uma vez que estamos no assunto
–diz Tomé.
– Eu, não. Eu o fiz ficar inquieto e ainda não me sinto perdoado. Perguntai-lho vós por mim.
– Mas, perdão! Nós aceitamos tudo sem tantos esclarecimentos e logo nós é que devemos fazer-lhe
perguntas? Isso não é justo! –responde-lhe Tiago de Zebedeu.
– Que é que não é justo? –pergunta Jesus.
Fazem silêncio, e depois Zelotes se faz intérprete de todos, e repete as perguntas de Judas de Keriot e as
respostas dos outros.
– Eu não conservo rancor. É a primeira coisa que Eu digo. Faço as observações que devo, sofro e perdôo.
Isto para quem está com medo, que é ainda o fruto de sua perturbação. E, quanto à Encarnação real por
Mim feita, Eu digo: “É justo que tenha sido assim.” No futuro muitos e muitos cairão em erros sobre minha
Encarnação, atribuindo-me justamente as formas errôneas que Judas quereria que Eu tivesse assumido. Um
homem aparentemente robusto, quanto ao corpo, mas na realidade um fluido, como um jogo de luz,
segundo o qual, eu poderia ser ou deixar de ser carne. E então seria ou não seria uma maternidade a de
Maria. Na verdade, Eu sou carne e, em verdade, Maria é a mãe do Verbo Encarnado. Se a hora do
nascimento não foi mais que um êxtase, é porque Ela é a nova Eva, sem o peso da culpa e sem a herança do
castigo. Mas não foi um aviltamento para Mim o repousar nela. Por ventura, estava aviltado o maná, por
estar fechado no Tabernáculo? Não. Pelo contrário, ele estava sendo honrado por estar naquela morada.
Outros dirão que Eu, não sendo Carne real, não sofri e não morri, durante o tempo em que estive na terra.
Sim. Não podendo eles negar que Eu aqui estive, negarão a minha Encarnação real ou a minha Divindade
verdadeira. Não, porque, em verdade, Eu sou um com o Pai eternamente e estou unido a Deus como carne,
uma vez que o Amor tenha atingido o inatingível em sua Perfeição, revestindo-se de Carne para salvar a
carne. A todos esses erros quem responde é a minha vida inteira, que se sujeitou a tudo o que é comum
entre os homens, exceto ao pecado. Nascido, sim, Eu sou dela. E para o vosso bem. Vós não sabeis quanto
fica temperada a Justiça, desde que Ela tenha a mulher como sua colaboradora. Eu te fiz contente, Judas?
– Sim, Mestre.
– Faze o mesmo comigo!
Iscariotes inclina a cabeça confuso e talvez também comovido por tão grande bondade.
A permanência se prolonga, à sombra fresca da macieira. Uns estão dormindo, outros cochilando. Mas
Maria volta à gruta e Jesus a acompanha…
[69] o pão do qual tens o nome, porque Belém significa casa do pão.
[70] estava dito em Miquéias 5,1-2; o decreto era o edital do recenseamento como foi visto em 27.2.
[71] Um dia... Com o objetivo de estabelecer um paralelismo entre Trindade celeste (Pai, Filho, Espírito Santo) e Trin
[72] estamos citando de Cântico dos cânticos 2,3-5; 8,5.
208. Maria Ssma. revê o pastor Elias e
com Jesus vai à casa de Elisa em Betsur.
4 de julho de 1945.
208.1 – Quase com certeza os encontraremos, se nos conservarmos andando por algum tempo na estrada
que vai para Hebron. Eu vos peço isto: Andai dois a dois, à procura deles, pelos caminhos das montanhas.
Daqui até às piscinas de Salomão, depois de lá até Betsur. Nós vos acompanharemos. Esta é a zona de
pastagem deles –diz o Senhor aos doze, e eu compreendo que Ele está falando dos pastores.
Os apóstolos se apressam em andar, cada um com o companheiro de sua preferência e só a dupla quase
inseparável de João e André é que não se une, porque os dois vão a Iscariotes e lhe dizem:
– Eu vou contigo.
E Judas responde:
– Sim, vem André. É melhor assim, João. Eu e tu seremos dois que já conhecemos os pastores. É melhor,
então que vás com qualquer outro.
– Que venha comigo o rapaz –diz Pedro, deixando Tiago de Zebedeu que, sem protestar, vai com Tomé,
enquanto Zelotes vai com Judas Tadeu, Tiago de Alfeu com Mateus e os inseparáveis Filipe e Bartolomeu,
vão por conta deles. O menino fica com Jesus e com as Marias.
A estrada é fresca e bela entre os montes todos verdes, por causa das diferentes culturas, dos bosques e
dos prados. Encontram-se os rebanhos que, à luz dourada da aurora, vão às pastagens.
A cada batida do cincerro, Jesus para de falar e olha. Depois, pergunta aos pastores se Elias, o pastor
belemita, está por aqueles lugares. Compreendo que Elias já está sendo chamado “o belemita.” Ainda que
outros pastores também o sejam, ele é, por direito, ou por caçoada, “o belemita.” Mas ninguém sabe. Eles
respondem, parando o rebanho, e cessando de tocar suas rústicas flautas.
Os jovens, quase todos, tem estas flautas toscas feitas de caniço, e isso faz que Margziam fique
extasiado, até que um pastor velho e bom resolve dar-lhe a de seu neto, dizendo:
– Ele fará outra para si.
E Margziam sai dali feliz com o seu instrumento a tiracolo, ainda que, por enquanto não saiba tocar.
208.2 – Eu gostaria muito de encontrá-los! –exclama Maria.
– Nós os encontraremos com certeza. Nesta estação, estão sempre perto de Hebron.
O menino se interessa por estes pastores, que viram Jesus Menino e faz mil perguntas a Maria, que lhe
explica tudo, com muita paciência e bondade.
– Mas, por que foi que os castigaram? Eles só tinham feito o bem
–pergunta o menino, depois que lhe foram contadas as desventuras por que eles passaram.
– Porque muitas vezes o homem comete erros, acusando os inocentes de um mal que na realidade foi
feito por outro. Mas, visto que eles eram bons, e souberam perdoar, Jesus os ama muito. É preciso saber
perdoar sempre.
– Mas, todos aqueles meninos que foram mortos, como fizeram para perdoar a Herodes?
– Eles são pequenos mártires, Margziam, e os mártires são santos. Eles não somente perdoam ao seu
carrasco, mas o amam, porque ele abre para eles o Céu.
– Então, eles estão no Céu?
– Não, por enquanto não. Mas estão no Limbo, para serem a alegria dos Patriarcas e dos Justos.
– Por quê?
– Porque disseram, quando chegaram com suas almas tingidas de sangue: “Eis-nos aqui, nós somos os
arautos do Cristo Salvador. Alegrai-vos, vós que estais esperando, porque Ele já está na terra.” E todos os
amam porque eles são os portadores dessa boa nova.
– Meu pai me disse que a boa nova é também a palavra de Jesus. Então, quando meu pai for para o
Limbo, depois de a ter dito sobre a terra, e eu também irei para lá, seremos nós também amados?
– Tu não irás para o Limbo, pequenino.
– Por quê?
– Porque Jesus já terá voltado para os Céus, e os terá aberto, e todos os bons, na hora de sua morte, irão
logo para o Céu.
– Eu vou ser bom, assim prometo. E Simão de Jonas? Ele também, não é? Porque eu não quero ficar
órfão pela segunda vez.
– Ele também, com certeza. Mas no Céu ninguém é órfão. Lá temos Deus. Deus é tudo. Nem aqui nós
somos órfãos. Porque o Pai está sempre conosco.
– Mas, Jesus, naquela bela oração que Tu me ensinaste de dia e minha mãe de noite, diz: “Pai nosso que
estais nos Céus.” Nós ainda não estamos no Céu. Como, então podemos estar com Ele?
– Porque Deus está em toda parte, meu filho. Ele vela sobre o menino que nasce e sobre o velho que
morre. O menino que está nascendo neste momento, no ponto mais remoto da terra, tem consigo os olhares
e o amor de Deus, e os terá até à morte.
– Ainda que ele seja mau, como Doras?
– Sim. Ainda que o seja.
– Mas Deus, que é bom, como pode amá-lo, se Doras é tão mau e faz chorar ao meu velho pai?
– Deus olha para ele com desgosto e com dor. Mas, se ele se arrependesse. Ele lhe diria o que o pai da
parábola disse ao filho arrependido. 208.3Tu deverias rezar para que ele se arrependa e…
– Oh! Não, mãe! Eu rezarei para que ele morra! –diz impetuosamente o menino.
Por mais que esta saída seja pouco… angélica, o ímpeto do menino é tão veemente e tão sincero, que os
outros têm que fazer esforço para não rir.
Mas depois Maria assume de novo a sua doce seriedade de Mestra:
– Não, meu querido. Isto não deves fazer a um pecador. Deus não te ouviria e até olharia para ti com
severidade. Nós devemos desejar para o próximo, ainda que ele seja muito mau, o maior bem. A vida é um
bem porque dá ao homem o modo de adquirir méritos aos olhos de Deus.
– Mas, se alguém é mau, o que adquire são pecados.
– Reza-se para que ele se torne bom.
O menino fica pensando… mas não entende muito esta lição sublime e conclui:
– Doras não se tornará bom, mesmo se eu rezar. Ele é mau demais. Ainda que comigo rezassem todos os
meninos mártires de Belém, ele não se tornaria bom. Não sabes que… não sabes que… que um dia ele
bateu com uma barra de ferro em meu velho pai, porque o encontrou sentado na hora do trabalho? Meu pai
não podia levantar-se, porque se sentia mal, e ele… bateu nele até deixá-lo quase morto e depois lhe deu
ainda um pontapé no rosto… Eu vi tudo, porque estava escondido atrás de uma sebe… Eu tinha ido até lá
porque ninguém me tinha levado pão já havia dois dias, e eu estava com fome…E u tive que fugir de lá, para
não me perceberem, pois eu estava chorando, ao ver meu pai sendo tratado daquele modo, com a barba
cheia de sangue, e como se estivesse morto… Eu sai de lá chorando e pedindo pão… mas aquele pão, eu o
encontrei sempre foi aqui… aquele tinha sabor do sangue e das lágrimas de meu pai e também das minhas,
e de todos os que são torturados, e não podem amar a quem os tortura. Eu, gostaria de bater em Doras,
para que ele sentisse o que são as batidas, eu gostaria de deixá-lo sem pão, para que ele ficasse sabendo o
que é a fome, e quereria fazê-lo trabalhar, ao ardor do sol, ou na lama, sob as ameaças dos vigilantes e sem
comer, para que ele ficasse sabendo o que está dando aos pobres… Eu não lhe posso querer bem, porque…
ele está matando a meu santo pai, e eu, se não vos encontrasse, de quem haveria de ser depois?
O menino, tomado por uma dor convulsiva, grita e chora, tremendo, agitado, com seus pequenos punhos
fechados, dando socos no ar, já que não pode dá-los no carrasco.
As mulheres estão assombradas e comovidas, e procuram acalmá-lo. Mas ele está, de fato, numa crise
de dor, e não ouve o que lhe falam. Ele grita:
– Eu não posso, não posso amá-lo e perdoá-lo. Eu o odeio, eu o odeio por todos, o odeio!…
Causa dó e medo. 208.4É a reação da criatura que sofreu demais.
E Jesus diz:
– Este é o maior dos delitos de Doras: levar um inocente a odiar…
Mas depois Ele toma nos braços o menino, e lhe diz:
– Escuta, Margziam. Queres tu um dia ficar com a mamãe, o pai, os irmãozinhos e o velho pai?
– Siiim…
– Nesse caso não podes odiar ninguém. No Céu não entra quem odeia. Não podes rezar, por enquanto,
por Doras? Está bem: não rezes, mas também não odeies. Sabes o que tens que fazer? Não deves nunca
virar-te para trás, para ficar pensando no passado…
– Mas meu pai, que está sofrendo, não está no passado…
– É verdade. Mas olha, Margziam experimenta rezar assim: “Pai nosso, que estais nos Céus, pensa Tu
naquilo que é desejo meu…” Verás que o Pai te escuta do melhor dos modos. E, mesmo que matasses Doras,
que farias? Perderias o amor de Deus, o Céu, a união com teu pai e tua mãe, e não livrarias das penas o
velho que amas. Dize-lhe: “Tu sabes como eu amo ao velho pai e como amo a todos aqueles que são
infelizes. Pensa nisso, Tu que tudo podes.” Como? Então não queres pregar a Boa Nova? Mas ela fala de
amor e de perdão! Como podes tu dizer a um outro: “Não odeies. Perdoa”, se tu não sabes amar e perdoar?
Deixa, deixa que o bom Deus aja, e verás como tudo Ele predispõe bem. Tu farias isso?
– Sim, porque te quero bem.
Jesus beija o menino e o põe no chão. O episódio fica superado e a estrada também.
208.5 Os três grandes vales escavados na rocha do monte, obra verdadeiramente grandiosa, brilham na
superfície limpidíssima e na queda d’água que cai do primeiro vale para o segundo, e deste para o terceiro,
que já é, na verdade um pequeno lago, que depois canaliza a água por vários tubos, que vão para cidades
distantes. Mas, pela umidade do solo nesta área, desde a nascente até às piscinas, e destas até o solo, todo
o monte é de uma fertilidade incrível, e possue flores mais compostas do que aquelas selvagens, rindo pelas
encostas verdes, juntamente com ervas perfumadas e raras. Parecem até terem sido aqui semeadas pelo
homem, como as flores dos jardins e as ervas perfumadas que, com o sol que as aquece, espargem pelo ar
seus aromas de canela, cânfora, cravo, alfazema e outros odores sutis, fragrantes, fortes, suaves, numa
fusão maravilhosa dos melhores odores da terra. Eu diria que é uma sinfonia de perfumes, porque
realmente é o poema das ervas e das flores, em suas cores e fragrâncias.
Todos os apóstolos estão sentados à sombra de uma árvore carregada de grandes flores brancas cujo
nome eu não sei, com enormes campânulas de esmalte branco, penduradas, balançando ao menor sopro de
vento e, a cada sopro, é uma onda de fragrância que se espalha. Não sei qual é o nome desta árvore. Pela
flor, ela me faz lembrar daquele arbusto que há na Calábria e ao qual lá dão o nome de “bottaro”, mas
certamente no tronco não, porque esta aqui é uma árvore alta, de tronco robusto, mas não um arbusto.
Jesus os chama, e eles acorrem.
– Encontramos quase de repente José, que estava voltando de uma feira. Esta tarde estarão todos em
Betsur. Nós aqui nos reunimos, chamando-nos em altas vozes, e aqui ficamos nesta sombra fresca –explica
Pedro.
– Que lugar bonito! Parece um jardim! Entre nós estávamos discutindo se é mesmo natural, ou não, e
uns teimam em uma opinião e outros na outra –diz Tomé.
– A terra da Judeia tem essas maravilhas –diz Iscariotes, que em tudo se sente inevitavelmente levado a
ensoberbecer-se, até com as flores e as ervas.
– Sim, mas…eu creio que se, por exemplo, o jardim de Joana de Tiberíades ficasse abandonado e se
tornasse selvagem, a Galileia também teria a maravilha de esplendidas rosas, por entre ruínas
–diz Tiago de Zebedeu.
– E não estás errado. Nesta zona é que ficavam os jardins de Salomão, tão célebres no mundo daquele
tempo como os seus palácios. Talvez foi aqui que ele sonhou o Cântico dos Cânticos, aplicando à Cidade
Santa todas as belezas que cresceram aqui por sua vontade
–diz Jesus.
– Então, eu tinha razão! –diz Tadeu.
– Tinhas razão. Sabes, Mestre? Ele estava citando Eclesiastes, reunindo a ideia dos jardins à dos vales, e
terminava dizendo[73]: “Mas ele percebeu que tudo é vaidade, e nada dura sob o sol, a não ser a Palavra do
meu Jesus” –diz o outro irmão Tiago.
– Eu te agradeço. Mas agradeçamos também a Salomão, sejam ou não dele as flores originais
certamente são dele os tanques que fornecem água às ervas e aos homens. Seja ele bendito. Vamos agora
até aquele grande roseiral desgrenhado, que já foi uma galeria florida, entre uma árvore e outra. Lá nós
pararemos. Já estamos quase com meio caminho feito.
208.6 … E a viagem recomeça, por volta da hora nona, quando as sombras se alongam, a partir de cada
árvore desta zona tão bem cultivada por toda parte. Parece que o caminho vai passando por um imenso
jardim botânico, porque todas as espécies de plantas, as que têm troncos ou frutas, ou as que são
ornamentais estão aqui representadas. Os trabalhadores da terra estão por todos os lados, mas não se
interessam pela comitiva, que vai passando. Aliás, não é uma só. Pois outros grupos de hebreus estão pela
estrada, de volta das festas pascais.
A estrada é muito boa, apesar de ter sido aberta por entre os montes, e os panoramas, sempre variados,
tiram a monotonia da viagem. Pequenos rios e torrentes são como vírgulas de prata, que escorrem e vão
escrevendo palavras, que depois eles cantam em seus mil meandros, que se entrecortam, que mergulham
pelos bosques abaixo ou vão esconder-se em cavernas, para depois saírem delas ainda mais belos. Parece
que estão brincando com as plantas e as pedras, como crianças alegres.
Até Margziam, agora, já tendo ficado mais calmo, está brincando, tentando tocar o seu instrumento,
para imitar os passarinhos. Mas, na verdade, os dele não são cantos, mas lamentos muito desafinados, que
me parecem ser muito desagradáveis aos mais exigentes da comitiva, isto é, Bartolomeu, por sua idade e
Judas de Keriot por muitos motivos. Mas nenhum deles fala claramente e o menino continua a emitir seus
assobios, pulando para cá e para lá. Só duas vezes é que ele mostra ao longe, algum lugarejo aninhado
entre os bosques, e diz: “Será o meu?” tornando-se então muito pálido.
Mas Simão, que o conserva perto de si, responde:
– O teu está muito longe daqui. Vem, vamos tentar apanhar aquela flor e levá-la para Maria –e assim o
distrai.
208.7 O pôr do sol começa, quando Betsur já vem aparecendo sobre a colina e, quase de repente, na
estrada secundária, que tomaram para virem, eis que os rebanhos dos pastores vêm chegando com os
pastores. Mas, quando Elias vê que Maria também está lá, levanta os braços com espanto e fica nessa
posição, nem podendo crer no que está vendo.
– A paz esteja contigo, Elias. Sou eu mesma. Havia sido prometido a ti, mas em Jerusalém não foi
possível ver-nos…Não pense mais nisso. Agora nos estamos vendo –diz Maria com doçura.
– Oh! Mãe, mãe!…
Elias nem acha o que dizer. Depois, finalmente encontra:
– Agora! Minha Páscoa eu vou fazê-la agora… É o mesmo, e melhor ainda.
– Mas, é verdade, Elias. Nós fizemos uma boa venda. E agora bem que podemos matar um cordeirinho.
Oh! Sede bem-vindos à nossa pobre mesa… –Pede Levi, e também José.
– Nesta tarde estamos cansados. Deixai para amanhã. Escutai. Conheceis uma certa Elisa casada com
Abraão de Samuel?
– Sim. Ela está na casa dela em Betsur. Mas Abraão morreu e, no ano passado morreram os filhos dele.
O primeiro morreu com uma doença que durou poucas horas, e ninguém ficou sabendo de que foi que ele
morreu. O outro foi-se indo lentamente e nada cortou a doença. Nós lhe dávamos o primeiro leite de uma
cabra, porque os médicos diziam que isso era bom para o doente, e ele bebia muito leite que lhe era levado
por todos os pastores, pois sua pobre mãe o tinha mandado procurar com todos os que tivessem no rebanho
alguma cabra de primeiro leite. Mas não adiantou nada. Quando voltamos à planície, o jovem já nem se
alimentava mais. E, quando voltamos, no mês de Adar, já havia duas luas que ele tinha morrido.
– Pobre de minha amiga! No Templo ela me queria bem. Era-me parenta num antepassado. Era tão boa.
Saiu para ir casar-se com Abraão, ao qual estava prometida desde pequena, dois anos antes de mim! E
lembro quando ela veio fazer a oferta do seu primogênito ao Senhor. Ela mandou me chamar, não a mim
sozinha, mas me quis depois sozinha, por mais tempo… E agora, ela é que está sozinha…Oh! Preciso
apressar-me em ir consolá-la! Vós, ficai aqui. Eu vou com Elias, e entrarei sozinha. A dor exige respeito ao
redor de si…
– Nem Eu posso ir, mãe?
– Tu podes sempre. Mas os outros… Nem mesmo tu, pequenino. Seria uma dor. Vem, vem, Jesus!
– Esperai-nos na praça do povoado. Procurai um abrigo para a noite. Adeus –ordena Jesus a todos.
208.8 E, sozinhos com Elias, Jesus e a mãe vão até uma espaçosa casa, toda fechada e silenciosa, a cuja
porta o pastor bate com o seu cajado. Uma serva mostra o rosto por uma janelinha, perguntando quem é.
Maria vai à frente e diz:
– Maria de Joaquim e seu Filho, de Nazaré. Vai dizer isto à tua patroa.
– É inútil. Ela não quer ver ninguém. Quer chorar até morrer.
– Experimenta.
– Não. Eu sei como ela me repele, quando procuro distraí-la. Não quer saber de ninguém, nem ver a
ninguém, não quer falar com ninguém. Ela fica falando com a lembrança dos filhos.
– Vai, mulher, eu te ordeno. Dize a ela: “Aí está a pequena Maria de Nazaré, aquela que no Templo era
como tua filha…” Verás que ela me quer.
A mulher lá se vai, sacudindo a cabeça.
Maria explica ao Filho e ao pastor:
– Elisa era muito mais velha do que eu. Ficava esperando no Templo a volta do seu esposo, que tinha ido
ao Egito ver uns negócios de herança e por lá ficou até uma idade bem avançada. Ela tem quase dez anos
mais do que eu. As mestras costumavam dar às pequeninas algumas discípulas mais adultas, que as
guiassem… e ela foi a minha companheira-mestra. Era boa e… aí vem vindo a mulher.
De fato, a criada vem correndo, admirada, e abre um portão bem largo:
– Entra, entra –diz ela.
E depois, em voz baixa:
– Bendita sejas se a fizeres sair daquele quarto.
Elias se despede, e entram Maria e o Filho.
– Mas este homem, na verdade… Por piedade! Tem a idade de Levi…
– Deixa-o entrar. É meu Filho e a consolará mais do que eu.
A mulher encolhe os ombros e vai na frente, pelo longo vestíbulo de uma bela, mas triste casa. Tudo aí
está limpo, mas tudo parece morto…
208.9 Uma mulher alta, mas que vem vindo inclinada e com vestes escuras, vem adiante, na penumbra.
– Elisa! Querida! Eu sou Maria! –diz Maria, correndo ao seu encontro e abraçando-a.
– Maria? Tu… Pensava que tu também tinhas morrido. Tinham-me contado… quando foi? Não me lembro
mais… Eu estou com um vazio aqui na cabeça… Tinham-me dito que tu estavas morta, com muitas outras
mães, depois da vinda dos Magos. Mas quem foi que me disse que eras a mãe do Salvador?
– Talvez os pastores…
– Oh! Os pastores!
A mulher tem uma explosão de pranto cheio de aflição:
– Não me fales naquele nome. Ele me faz lembrar a última esperança para a vida de Levi… E, no
entanto… sim… um pastor me falou do Salvador e eu matei meu filho, levando-o ao lugar onde se dizia que
estava o Messias, perto do Jordão. Mas lá não havia ninguém… e o meu filho voltou a tempo para morrer…
O cansaço, o frio…eu o matei… Mas eu não quis ser uma assassina. Diziam-me que Ele, o Messias, curava
as doenças… e eu lá fui para conseguir a cura. Agora meu filho me acusa de tê-lo matado…
– Não, Elisa. És tu que pensas assim. Escuta. Eu creio que teu filho, ao contrário, foi quem me tomou
pela mão e me disse: “Vai à casa de minha mãe. Leva-lhe o Salvador. Eu estou melhor aqui do que na terra.
Mas ela só dá ouvidos ao seu pranto e não pode ouvir as palavras que eu lhe sussurro por entre beijos, a
pobre da minha mãe, que está possuída por um demônio, que a tenta para levá-la ao desespero, porque
quer nos ver separados. Enquanto que, se ela se resignar e crer que Deus tudo faz para um bom fim,
estaremos unidos para sempre com o pai e com o irmão. Jesus pode fazer isso.” E eu vim… com Ele… Não o
queres ver?…
Maria assim falou, conservando sempre entre os seus braços a desventurada, beijando-a sobre os
cabelos cinzentos e com uma doçura que só ela pode ter.
– Oh! Se fosse verdade! Mas, por que, por que, então, Daniel não foi a ti, para dizer-te que viesses
antes?…Mas, quem foi que me disse, há tempo, que tu estavas morta? Não me lembro…não me lembro…
também por isso eu fiquei esperando, para ir ao Messias. Mas me haviam dito que Ele tinha morrido, Ele, tu
e todos em Belém…
– Não fiques pensando em quem disse isto. 208.10Vem, olha, aqui está o meu Filho. Vem até Ele. Faze que
fiquem contentes teus filhos e tua Maria. Sabes que estávamos sofrendo ao te vermos assim?
E a leva para Jesus que se tinha colocado num ângulo escuro e só agora vem adiante, iluminado agora
por uma luz que a empregada pendurou em um alto escrínio.
A pobre mãe levanta a cabeça… e ali vejo que Elisa esteve também sobre o Calvário, entre as piedosas
mulheres. Jesus lhe estende as mãos com um gesto de convite, todo cheio de amor. A desventurada reluta
um pouco, depois lhe confia as suas mãos e, por fim, de repente, se abandona ao peito de Jesus, gemendo:
– Dize-me, dize-me que eu não tenho culpa da morte de Levi! Dize-me que eles não estão perdidos para
sempre! Dize-me que logo estarei com eles!…
– Sim, sim. Escuta. Eles estão cheios de uma grande alegria, neste momento em que tu estás em meus
braços. Dentro de pouco tempo, eu irei até eles e que devo dizer-lhes então: Que tu não te conformas com o
Senhor? É isto que Eu devo dizer? As mulheres de Israel, as mulheres de Davi, tão fortes, tão sábias, será
que vão ser desmentidas por ti? Não. Tu estás sofrendo, mas é porque ficaste sofrendo sozinha. A tua dor e
tu. Tu e a dor. Não podes suportar assim. Não te lembras das palavras[74] de esperança a respeito daqueles
que a morte nos tomou? “Eu vos trarei de vossos sepulcros e vos conduzirei para a terra de Israel. E vós
ficareis sabendo que Eu sou o Senhor, quando Eu tiver aberto as vossas tumbas e vos tiver tirado dos
vossos sepulcros. Quando Eu tiver infundido em vós o meu espírito, vós tereis vida.” A terra de Israel, para
os justos que dormiram no Senhor, é o Reino de Deus. Eu o abrirei e o darei aos que o estão esperando.
– E ao meu Daniel também? E também ao meu Levi?… Ele tinha tanto medo da morte!… Não podia nem
pensar em ficar longe de sua mamãe. Por isto eu queria morrer e ir ao lado dele para o sepulcro…
– Mas no sepulcro eles não estavam com a sua parte viva. Lá estavam as coisas mortas, que não te
podiam ouvir. Eles estão no lugar de espera…
– Mas existe mesmo? Oh! Não fiques escandalizado comigo. A minha memória lá se foi com o pranto!
Estou com a cabeça cheia pelo rumor do pranto e dos estertores dos filhos. Que estertores! Que estertores!
Eles me dissolveram o cérebro. Não tenho nada mais do que aqueles estertores aqui dentro…
– Mas Eu vou colocar-te aí dentro as palavras da vida. Semearei a Vida, porque Eu sou a Vida, onde está
o fragor da morte. Lembra-te do grande Judas Macabeu, que quis que se oferecesse um sacrifício pelos
mortos, pensando corretamente que eles estão destinados a ressurgir, e que é preciso acelerar a chegada
da paz para eles, por meio de oportunos sacrifícios. Se Judas Macabeu não tivesse tido a certeza da
ressurreição, teria ele rezado, ou feito rezar pelos mortos? Mas, ao contrário, como está escrito[75], ele
pensou como é grande a recompensa que está reservada àqueles que morrem piedosamente, como
certamente aconteceu com os teus filhos… Vês, pois, como estás dizendo sim? Portanto, não desesperes.
Mas santamente reza pelos teus mortos a fim de que os seus pecados sejam cancelados, antes da minha ida
a eles. E, se assim for feito, irão comigo para o Céu. Porque Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida, e
conduzo, e digo a Verdade e dou a Vida a quem crê em minha Verdade, e me segue. Dize-me: Os teus filhos
acreditavam na vinda do Messias?
– Com certeza, Senhor. Eles haviam aprendido de mim esta crença.
– E Levi acreditava que era possível a cura por minha vontade?
– Sim, Senhor. Nós esperávamos em Ti, mas… não adiantou. Ele morreu desconsolado, depois de ter
esperado tanto…
O pranto da mãe recomeça, mais calmo, mas mais desolado em sua calma, do que estava, em sua fúria
de antes.
– Não digas que não adiantou. Quem crê em Mim, ainda que tenha morrido, viverá para sempre… 208.11A
tarde vem caindo, mulher. Eu vou reunir-me aos meus apóstolos. Eu te deixo a minha mãe…
– Oh! Fica Tu também!… Tenho medo que, indo-te embora, me assalte de novo aquele tormento….
Começando apenas a acalmar-se a tempestade, ao som das tuas palavras…
– Não tenhas medo! Tens Maria contigo. Amanhã, Eu virei de novo. Eu tenho que ir dizer algumas coisas
aos pastores. Posso dizer a eles que venham para a tua casa?
– Oh! Sim. Eles vinham até aqui no ano passado, por causa do meu filho… Atrás da casa há um jardim e,
depois dele, há um pátio rústico. Eles podem ir para lá, como faziam, para recolher os seus rebanhos…
– Está bem. Eu virei. Sê boa. Lembra-te de que Maria no Templo estava confiada a ti. Eu também a
confio, por esta noite.
– Sim. Fica tranquilo. Eu cuidarei dela,… Tenho que ir pensar na ceia dela, no seu descanso… Há quanto
tempo, não penso nestas coisas! Maria, queres dormir no meu quarto, como fazia Levi em sua doença? Eu,
no leito do filho e tu no meu. E, então, me parecerá estar ouvindo novamente a sua respiração… Ele ficava
sempre segurando a minha mão…
– Sim, Elisa. Mas antes vamos falar de muitas coisas.
– Não. Tu estás cansada. Precisas dormir.
– Tu também.
– Oh! Eu! Há meses que não tenho dormido… Fico chorando… chorando… Já nem sei fazer outra coisa!
– Mas nesta noite vamos rezar, depois vamos para a cama, e tu dormirás… Dormiremos de mãos dadas,
nós duas também. Vai, pois, meu Filho, e reza por nós…
– Eu vos abençôo. A paz esteja convosco e com esta casa!
E Jesus vai com a empregada, que está assombrada e só fica repetindo:
– Que milagre, Senhor! Que milagre! Depois de tantos meses, ela falou, ela pensou! Oh! Que coisa
admirável!… Diziam que ela ia morrer louca… E eu ficava com pena dela, porque é muito boa.
– Sim, é boa, e por isso Deus a ajudará. Adeus, mulher. A paz esteja contigo também.
Jesus sai pela estrada semi-escura, e tudo termina.
[73] dizendo como em Qoèlet 1,2-3.
[74] palavras que estão em Ezequiel 37,12-14.
[75] como está escrito em 2 Macabeus 12,43-46.
209. A fecundidade da dor no sermão
de Jesus perto da casa de Elisa em Betsur.
5 de julho de 1945.
209.1 A notícia de que Elisa se decidiu sair de sua tristeza trágica deve ter se espalhado pelo povoado a tal
ponto que, quando Jesus, acompanhado pelos apóstolos e discípulos, vai indo para a casa de Elisa,
atravessando o povoado, muitas pessoas o estão observando atentamente e até perguntam a um e a outro
dos pastores a respeito dele, e por que é que nunca veio a este lugar, e sobre quem são aqueles que estão
na companhia dele, e quem é aquele menino, e aquelas mulheres, e que remédio foi que Ele deu à Elisa,
para livrá-la das trevas da loucura assim de repente, mal Ele apareceu e que fará lá, e que dirá… E quem
quer fazer mais perguntas, que as faça.
A última pergunta feita é esta:
– Não poderíamos ir lá nós também?
À qual respondem os pastores:
– Isto nós não sabemos. É preciso perguntar ao Mestre. Ide a Ele.
– E se Ele nos tratar mal?
– Ele não trata mal nem aos pecadores. Ide, ide. Ele ficará contente, se fordes.
209.2 É um grupo de pessoas, mulheres e homens, adultos na maior parte, da idade de Elisa, que trocam
ideia s uns com os outros, depois andam para a frente e vão aproximando de Jesus, que está falando com
Pedro e Bartolomeu, e o chamam, meio receosos:
– Mestre…
– Que quereis? –pergunta Bartolomeu.
– Falar com o Mestre para perguntar-lhe…
– Venha a vós a paz. Que perguntas quereis fazer-me?
Eles criam coragem, diante do sorriso dele e dizem:
– Nós todos somos amigos da Elisa e dos da casa dela. Ouvimos dizer que ela está curada. Quereríamos
vê-la. E ouvir-te falar. Podemos ir lá?
– Ouvir-me falar, sim, com certeza. Mas irdes vê-la, não, meus amigos. Fazei este sacrifício pela amizade
que tendes a ela, fazei o sacrifício da vossa curiosidade. Pois é também isso que estais sentindo. Tende
respeito por uma grande dor que não pode ser perturbada.
– Mas ela não está curada?
– Ela está voltando para a claridade…Mas, quando acaba uma noite, será que chega de repente o meio-
dia? E, quando se acende um fogão que estava apagado, achais vós que as labaredas se levantarão fortes,
num instante? Pois assim acontece com Elisa. Porque, se um vento inesperado se lança sobre a pequena
chama, que começou a surgir, ele não a apaga? Portanto, tende prudência. A mulher está uma ferida só. Até
a amizade pode exasperá-la, e ela tem necessidade de repouso, de silêncio, de uma solidão que não seja
mais trágica, como a em que estava ontem, e sim uma solidão resignada, a fim de que ela encontre a si
mesma.
– E, então, quando será que a poderemos ver?
– Mais depressa do que pensais. Porque ela já está a caminho da saúde. Mas, se soubésseis como é
difícil sair daquelas trevas! Elas são piores do que a morte. E, quem sai delas, dentro de si sente a vergonha
de ter estado nelas e de que os outros o fiquem sabendo.
– És médico?
– Sou o Mestre.
Chegaram diante da casa.
Jesus se dirige aos pastores:
– Ide para o pátio. Quem quiser pode ir convosco. Mas ninguém faça barulho lá, e não vá além do pátio.
Tomai cuidado, vós também, diz Ele aos apóstolos, a fim de que tudo assim se faça. E vós (fala à Salomé e à
Maria do Alfeu), cuidai do menino para que não faça barulho. Adeus.
Jesus bate à porta, enquanto os outros dobram a esquina, e entram por uma ruazinha, indo para onde
deviam ir.
209.3 A serva abre a porta. Jesus entra, recebendo as repetidas inclinações dela.
– Onde está tua patroa?
– Com tua mãe… e, imagina! Já desceu até o jardim! É uma coisa! Uma coisa incrível! E, ontem de tarde,
ela veio até à sala das refeições…Estava chorando, mas veio. Eu gostaria de vê-la tomar também alimentos,
em vez de ficar tomando aqueles pingos de leite, como costuma fazer, mas ainda não consegui!
– Ela os tomará. Não fiques insistindo. Sê paciente, até em teu amor para com a patroa.
– Sim, meu Salvador. Eu farei tudo o que mandares.
Eu creio que, de fato, se Jesus mandasse àquela mulher fazer as coisas mais estranhas, ela as faria sem
discutir, pois de tal modo ela se persuadiu de que Jesus é Jesus, e de que tudo o que Ele faz é bom. No
momento, ela o está acompanhando através de uma vasta horta-jardim, cheia de fruteiras e de flores. Mas,
se as fruteiras cuidaram de si mesmas, para se vestirem de folhas e de flores, para fazerem que suas
frutinhas vinguem e aumentem em volume, as pobres plantas que dão flores e que não recebem cuidados
há mais de uma ano, viraram um pequeno e emaranhado matagal, onde as plantas mais delicadas e de
pouca altura ficaram sufocadas sob o peso das mais fortes. Canteiros, caminhos, tudo desapareceu em um
único e caótico emaranhado. Só lá no fundo, onde a necessidade da empregada a fez semear verduras e
legumes, é que ainda há um pouco de ordem.
Maria está com Elisa, debaixo de uma trepadeira completamente despojada de folhas, e que deixa cair
até o chão seus sarmentos e gavinhas. Jesus para e fica olhando para sua jovem mãe, que, com arte
finíssima, desperta e dirige a mente de Elisa para coisas bem diferentes das que eram até ontem os
pensamentos da desolada mulher.
A empregada vai até sua patroa, e lhe diz:
– O Salvador chegou.
As mulheres se dirigem para Ele, uma com um doce sorriso e a outra com um rosto cheio de cansaço e
perturbado.
– A paz esteja convosco. Que belo é este jardim…
– Era belo… –diz Elisa.
– E a terra fértil. Olha quantas frutas bonitas estão a caminho de amadurecer! E quantas flores nestas
roseiras! E lá adiante? São lírios?
– Sim, ao redor de um tanque, onde gostavam muito de brincar os meus filhinhos. Naquele tempo estava
tudo em ordem… Agora tudo está arruinado. E já nem parece mais o jardim dos meus filhos.
– Dentro de poucos dias, vai ficar como antes. Eu te ajudarei. Não é, Jesus? Tu me deixas por alguns dias
aqui com Elisa. Temos muito que fazer…
– Tudo o que queres, Eu quero.
Elisa olha para Ele, e murmura:
– Obrigada.
Jesus a acaricia na cabeça encanecida e depois se despede, para ir aos pastores
209.4 As mulheres ficam no jardim, mas, pouco depois, quando ouvem a voz de Jesus, que se espalha pelo
ar tranquilo, saudando os presentes, Elisa, como se estivesse atraída por uma força irresistível, se aproxima
lentamente de uma sebe muito alta, do outro lado da qual está o pátio. Jesus fala primeiro aos três pastores.
Ele está bem perto da sebe, tendo à sua frente os apóstolos e aqueles cidadãos de Betsur, que o
acompanharam. As Marias com o menino estão sentadas a um canto.
Jesus diz:
– Mas vós estais obrigados por contrato, ou podeis sair do serviço a qualquer tempo?
– Eis. Verdadeiramente, somos trabalhadores livres. Mas, deixar o serviço de repente, logo agora que os
rebanhos precisam de tantos cuidados, agora que é difícil encontrar pastores, não nos parece bonito.
– Bonito não é. Mas não é necessário que seja já. Eu vo-lo estou dizendo com tempo, a fim de que tomeis
as providências com justiça. Eu vos quero livres, para unir-vos aos discípulos e para que me ajudeis…
– Oh! Mestre!…
E os três entram num êxtase de alegria.
– Mas, seremos capazes? –dizem eles depois.
– Disso não tenhais dúvida. Agora, está entendido, não o podeis fazer. Mas, logo que o puderdes, uni-vos
a Isaac.
– Sim, Mestre.
– Ide agora para o meio dos outros. 209.5Vou dizer duas palavras ao povo.
E, tendo deixado os pastores, dirige-se à multidão:
– A paz esteja convosco. Ontem Eu ouvi falar de dois infelizes. Um, ainda na aurora da vida e o outro, no
fim: duas almas que choravam na desolação.
Eu chorei com elas em meu coração, vendo quanta dor existe nesta terra e como só Deus pode aliviá-la.
Deus! Só o conhecimento exato de Deus, de sua grande e infinita bondade, da sua constante presença, das
suas promessas. Eu vi como o homem pode ser torturado pelo homem e como pode ser atropelado pela
morte com desolações, nas quais trabalha satanás, para aumentar a dor e para produzir ruínas. Eu disse,
então, a Mim mesmo: “Não devem os filhos de Deus sofrer com esta tortura das torturas. Demos o
conhecimento de Deus a quem não o tem, demo-lo de novo a quem o esqueceu, envolvido nas tempestades
da dor.” Mas Eu vi também que, por Mim só, Eu não basto mais para satisfazer às infinitas necessidades dos
irmãos. E decidi chamar a muitos, em número cada vez maior, a fim de que todos os que têm necessidade
do conforto do conhecimento de Deus o possam ter.
Estes doze são os primeiros. Como meus seguidores, são capazes de conduzir até Mim e, por isso, ao
conforto, todos aqueles que estão encurvados sob os pesos de dores grandes demais. Em verdade, Eu vo-lo
digo: Vinde a Mim todos os que estais angustiados, desgostosos, com o coração ferido, cansados, e Eu
compartilharei da vossa dor e vos darei paz. Vinde, por meio dos meus apóstolos, por meio dos meus
discípulos e discípulas, que cada dia aumentam com novos voluntários. Encontrareis o consolo em vossas
dores, companhia em vossas solidões, o amor dos irmãos para fazer-vos esquecer o ódio do mundo,
encontrareis, como mais alto do que todos, como mais consolador do que todos, como o companheiro
perfeito, o amor de Deus. Não dúvidareis de mais nada. E nunca mais direis: “Para mim, tudo acabou!” Mas
direis: “Tudo para mim está começando, num mundo sobrenatural, que abole as distâncias e acaba com as
separações” e pelo qual os filhos órfãos serão reunidos aos seus pais, levados ao seio de Abraão, e os pais e
as mães, as esposas e os viúvos, reencontrarão os filhos perdidos, e o consorte perdido.
209.6 Nesta terra da Judeia, aqui perto de Belém de Noemi, Eu vos lembro que o amor alivia a dor e traz
alegria. Olhai, vós que estais chorando, para a desolação de Noemi[76], depois que sua casa ficou sem
homens. Ouvi suas palavras de desconsoladas despedidas a Orfa e a Rute: “Voltai daqui para a casa de
vossa mãe. Que o Senhor use de misericórdia convosco, como vós usastes para com aqueles que morreram
e para comigo…” Ouvi as suas cansadas insistências. Já não esperava mais nada da vida aquela que, tempos
atrás, era a bela Noemi, e que agora era a trágica Noemi, esmagada pela dor, só esperava voltar aos
lugares em que tinha sido feliz no tempo de sua juventude, entre o amor do marido e os beijos dos filhos,
para lá morrer. Ela dizia: “Ide, ide. É inútil ficar comigo… Eu estou como morta…Minha vida já não é mais
aqui, e sim, lá na outra vida, onde eles estão. Não sacrifiqueis mais a vossa juventude, ao lado de uma coisa
que está morrendo. Porque realmente eu sou ‘uma coisa’. Tudo me é indiferente. Deus me tomou tudo. Eu
sou uma angústia. E faria a vossa angústia… e esta me pesaria no coração. E o Senhor me pediria contas.
Ele, que tanto já me feriu, porque ter-vos vivas junto de mim já morta, seria um egoísmo meu. Portanto, ide
para vossas mães…”
Mas Rute ficou para consolar aquela dolorosa velhice. Rute havia compreendido que há dores sempre
maiores do que a nossa, e que sua dor de jovem viúva era menor do que a da mulher que havia perdido,
além do marido, os dois filhos; assim como a dor do menino órfão, que se vê obrigado a viver pedindo
esmola, sem receber nunca mais as carícias, e nunca mais os bons conselhos, é bem maior do que a da mãe
privada dos filhos; assim como a dor de quem, por um complexo de motivos, chega a ter ódio do gênero
humano, e vê em cada homem um inimigo, que ele deve temer e do qual se defender é ainda maior do que
as outras dores, porque envolve, não somente a carne, o sangue e a mente, mas até o espírito com os seus
deveres e direitos sobrenaturais, e o leva a perder-se. Quantas mães sem filhos, e filhos sem mãe há neste
mundo! Quantas viúvas sem prole existem, para terem piedade das velhices solitárias! Quantos há, que
ficaram privados de seus amores, para se dedicarem totalmente aos infelizes, segundo a necessidade que
sentem de amor, combatendo assim o ódio, dando a si mesmo, dando sempre amor à Humanidade infeliz,
que está, sempre mais, sofrendo, porque está sempre odiando.
209.7 A dor é cruz, mas também é asa. O luto despoja, mas é para revestir. Levantai-vos, vós que estais
chorando! Abri os olhos, saí de vossos pesadelos, saí das trevas, dos egoísmos! Olhai…O mundo é como uma
terra árida e inculta, onde se chora e se morre. E ele grita: ‘Acudi-me!’ O mundo grita pela boca dos órfãos,
dos doentes, dos que estão sozinhos, dos que não sabem o que fazer, e pelas bocas daqueles que uma
traição ou uma crueldade tornaram prisioneiros do rancor. Ide a estes que estão gritando. Esquecei-vos dos
esquecidos. Fazei a cura dos doentes! Esperai entre os desesperados. O mundo está aberto às boas
vontades de servir a Deus no próximo e de conquistar o Céu: a união com Deus e a reunião com aqueles
pelos quais choramos. Aqui é o campo das competições. Lá está o triunfo.
Vinde. Imitai Rute, estando ao lado de todas as dores. Dizei, vós também: “Eu estarei convosco até à
morte.” E, se vos respondem essas desventuras que se julgam incuráveis: “Não me chameis Noemi, mas
chamai-me Mara, porque Deus me cumulou de amarguras”, persisti. E Eu, em verdade, vos digo que um
dia, pela vossa persistência nessas desventuras ainda exclamarão: “Seja bendito o Senhor, que tirou minha
amargura, minha desolação, minha solidão, por obra de uma criatura, que soube fazer sua dor produzir
frutos bons. Deus a abençoe para sempre, porque ela foi a minha salvadora.”
O ato bom de Rute para com Noemi, pensai nisso, deu ao mundo o Messias, porque de Davi, filho de
Isaí, de Isaí, filho de Obed veio o Messias, como Obed de Booz, Booz de Salmon, Salmon de Naasson,
Naasson de Aminadab, Aminadab de Aram, Aram de Esron, Esron de Farés, e eles vieram para povoar os
campos de Belém, preparando os antepassados do Senhor. Todo ato bom dá origem a grandes coisas nas
quais vós nem pensais. O esforço de alguém contra o seu egoísmo pode provocar uma tal onda de amor, que
é capaz de subir, subir, conservando em sua pureza aquele que a provocou, até o ponto de levá-lo ao pé do
altar, ao coração de Deus.
Deus vos dê a paz.
E Jesus, sem voltar ao jardim pelo portãozinho, aberto na sebe, toma cuidado para que ninguém se
aproxime da sebe, do outro lado da qual se ouve um grande pranto… Só depois quando todos aqueles de
Betsur foram-se embora, distancia-se com os seus, sem perturbar aquele pranto salutar…
[76] Noemi, cuja história, junto com aquela de Rute, está no breve livro de Rute.
210. As inquietações de Judas Iscariotes,
durante a viagem para Hebron.
6 de julho de 1945.
210.1 – Mas eu não creio que queirais fazer uma peregrinação a todos os lugares históricos de Israel, diz,
irônico, Iscariotes, que está discutindo em um grupo em que se encontram Maria de Alfeu e Salomé, além
de André e Tomé.
– Por que não? Quem o proíbe? –pergunta Maria de Cléofas.
– Ora, eu. Minha mãe está me esperando há tanto tempo…
– Ora, vai-te para tua mãe. Nós te buscaremos depois –diz Salomé, e parece acrescentar mentalmente:
“Ninguém ficará triste por tua ausência.”
– Isso não. Eu, por mim, vou com o Mestre. Já não mais está aqui a mãe, como estava previsto. E isso em
verdade não ia ser feito, porque havia sido prometido que ela estaria aqui.
– Ela se deteve em Betsur para uma boa obra. Aquela mulher estava bem infeliz.
– Jesus a podia ter curado de repente, sem precisar fazê-la recuperar-se pouco a pouco. Não sei porque
agora Ele não está gostando mais de fazer seus retumbantes milagres.
– Se Ele fez assim, deve ter suas santas razões –diz calmamente André.
– Ora, essa! É assim que Ele perde os seus prosélitos. 210.2A permanência em Jerusalém! Que desilusão!
Quanto mais há coisas pomposas, mais Ele se esconde na sombra. Tanto que eu esperava poder ver e
combater.
– Perdoa a pergunta… Mas, que querias ver e que querias combater? –pergunta Tomé.
– O quê? A quem? Queria ver suas obras milagrosas, e depois enfrentar quem diz que Ele é falso ou um
endemoninhado. Por que isso se diz, compreendes? dizem que se Belzebu não o sustém, Ele não passa de
um pobre homem. E, visto que o humor caprichoso de Belzebu é conhecido e sabemos que ele se deleita em
pegar e soltar, como faz o leopardo com a sua presa e, visto que os fatos justificam este pensamento, eu fico
inquieto, ao pensar que Ele não faz nada. E, que bela figura nós fazemos! Os apóstolos de um Mestre…todo
doutrina, isso é inegável, mas nada mais que isso.
A brusca parada de Judas depois da palavra “Mestre” nos faz pensar que, depois daquela palavra
quisesse soltar alguma grosseria.
As mulheres estão estarrecidas, e Maria de Alfeu, como parenta de Jesus, lhe fala, então bem claro:
– Eu não me admiro disso, mas, sim, de que Ele ainda te tolere, rapaz!
Mas André, o sempre manso André, perde a paciência e, muito corado, encolerizado, muito semelhante
às vezes ao seu irmão, grita:
– Vai-te embora! E não digas mais de estar fazendo o papel de bobo por causa do Mestre. E quem te
chamou? A nós, Ele nos quis. Mas a ti não. Tiveste que insistir muitas vezes para que te aceitasse. Tu te
impuseste. Não sei quem me segura para não relatar tudo aos outros…
– Convosco não se pode falar nunca. Tem razão os que vos chamam de briguentos e ignorantes
– Eis que também eu não compreendo, de verdade, onde tu encontras o erro do Mestre. Eu não sabia
desses humores caprichosos do Demônio. Pobrezinho! Certamente deve ser um trôpego. Se fosse de uma
inteligência equilibrada, não se rebelaria contra Deus… Mas, eu vou tomar nota –disso caçoa dele Tomé,
para afastar uma tempestade que vem se avizinhando.
– Não brinques, porque eu não estou brincando. Podes, acaso, dizer que em Jerusalém Ele se fez notar?
Afinal, até Lázaro já disse isto.
A risada de Tomé é ribombante. Depois, ainda rindo, e com um riso que já desorientou Iscariotes, Tomé
diz:
– Ele não fez nada? Vai perguntar isso aos leprosos de Siloan e de Hinon. Isto é, em Hinon não se
encontra mais nenhum, porque todos foram curados. Se tu não estavas lá, foi porque estavas com pressa de
ir ficar com os teus… amigos, e por isso é que não sabes, mas isso não impede que, pelos vales de
Jerusalém, e também por muito outros, ecoem os hosanas dos curados –termina, falando sério, Tomé.
210.3 E acrescenta, com severidade:
– Tu estás doente da bílis, meu amigo. E ela te faz sentir gosto amargo, e ver a cor verde por toda parte.
Ela deve elaser em ti uma doença intermitente. E podes crer que é pouco agradável conviver com alguém
como tu. Precisas mudar. Eu não irei dizer nada a ninguém e, se estas boas mulheres me quiserem escutar,
ficarão caladas como eu, e assim também fará André. Mas tu, procura mudar. Não creias que estás
desiludido, porque aqui não há desilusão. Não creias seres necessário porque o Mestre sabe fazer tudo
sozinho. Não queiras tu ser o mestre do Mestre. Se Ele, até para aquela pobre mulher que é Elisa, agiu
assim, é sinal de que estava bem fazer assim. Deixa que as serpentes cuspam à vontade. Não fiques
querendo encarregar-te para servires de mediador entre eles e Ele, e muito menos fiques pensando que te
rebaixas por estares com Ele. Ainda que Ele não curasse nem mesmo um simples resfriado, Ele seria
sempre poderoso. Só sua palavra já é um continuo milagre. E conserva-te em paz. Nós não temos arqueiros
atrás de nós. Chegaremos — Oh! se chegaremos — a convencer o mundo de que Jesus é Jesus. E fica
tranquilo também, porque, se Maria prometeu ir à casa de tua mãe, ela irá. E, nesse ínterim, nós vamos
peregrinando por estas belas regiões, e isto é o nosso trabalho! E trabalho eficiente. Procuramos contentar
também as discípulas, indo com elas ver o túmulo de Abraão, a árvore dele e, depois, o túmulo de Jessé e…
que mais foi que dissestes?
– Dizem que aqui é o lugar onde morreu Adão e onde Abel foi morto…
– São as conhecidas lendas sem sentido!… –resmunga Judas.
– Daqui a um século dirão que a Gruta de Belém é uma lenda, e dirão muitas outras coisas! 210.4E depois,
perdoa-me! Tu quiseste ir àquela caverna fedorenta lá em Endor, a qual, deves estar de acordo comigo, não
fazia parte de nenhuma série de lendas piedosas. Não te parece? E elas vêm aqui, onde se diz que estão o
sangue e as cinzas dos santos. Endor nos deu João de Endor e talvez…
– Boa aquisição, João –zomba Iscariotes,
– Pelo rosto, certamente não o é. Mas na alma pode ser melhor do que nós.
– Mais esta! Com aquele passado que teve!
– Cala-te! O Mestre disse que não devemos ficar recordando.
– É mais cômodo. Eu queria ver, se eu fizesse alguma das coisas que ele fez, se vós não o ficaríeis
recordando!
– Adeus, Judas. É melhor que fiques sozinho. Estás muito inquieto. Pelo menos, se soubesses o que tens!
– O que tenho, Tomé? O que tenho é que estou vendo sermos nós preteridos pelos primeiros que
vieram[77]. O que tenho é que vejo preferir todos a mim. O que eu tenho é que eu noto como se fica
esperando que eu não esteja aqui para se ensinar a rezar. E queres que coisas como estas me agradem?
– Não agradam. Mas, eu te faço observar que, se tu tivesses vindo conosco para a Ceia da Páscoa, lá
estarias tu também conosco no Monte das Oliveiras, quando o Mestre nos ensinou a oração. E não vejo
também em que é que tenhamos sido preteridos pelos primeiros que vieram. Estás falando porque está
conosco aquele inocente? Ou porque conosco está aquele infeliz que é João?
– Por causa de um e do outro. Jesus quase nem nos fala mais. Olha para Ele justamente neste momento:
Lá está Ele, que passa tanto tempo a falar, a falar com o menino. Deve-se esperar ainda um bom tempo,
antes que se possa trazê-lo para o meio dos discípulos! E o outro, não será nunca discípulo. Muito
orgulhoso, culto, endurecido e de más tendências…E, no entanto é “João para cá, João para lá…”
– Pai Abraão, conserva-me a paciência! E em que te parece estar o Mestre preferindo os outros a ti?
– Mas, não estás vendo nem agora? Quando chegou o tempo de deixarmos Betsur, depois de uma
permanência para instruir três pastores, que podiam muito bem ser instruídos por Isaac, eis aí quem é que
Ele deixa com sua mãe! Eu ? Tu? Não. Deixa Simão. Um velho, que quase não fala!…
– Mas o pouco que ele diz, ele o diz sempre bem –retruca Tomé, que agora está sozinho, visto que as
mulheres com André se afastaram, passaram para a frente, apressadas, como para evitar que tenham que
fazer uma parte do caminho todo sozinhas.
210.5 Os dois apóstolos estão tão excitados, que nem percebem que Jesus se aproxima, porque o barulho
dos passos dele fica abafado pela grande quantidade de poeira que há na estrada. Mas, se Ele não fez
barulho, os dois, ao contrário, estão urrando por dez e Jesus ouve. Atrás dele estão Pedro, Mateus, os dois
primos do Senhor, Filipe e Bartolomeu e os dois filhos de Zebedeu, que vão levando, entre os dois,
Margziam.
Jesus diz:
– Disseste bem, Tomé. Simão fala pouco, mas o pouco que fala, ele o diz sempre bem. Ele tem uma
mente pacata e um coração honesto. E, sobretudo, tem uma grande boa vontade. Por isso, Eu o deixei com
minha mãe. É um verdadeiro gentil-homem e, ao mesmo tempo, é alguém que sabe viver, que sofreu muito,
e que está velho. Por isso, — falo porque suponho que haja aqui alguém a quem lhe pareça injusta a minha
escolha — por isso ele era o mais apto para ficar. Eu não podia, Judas, permitir que minha mãe ficasse
sozinha ao lado de uma mulher ainda doente. E era justo que a deixasse. A mãe completará a obra iniciada
por Mim. Mas Eu não podia nem mesmo deixá-la com os meus irmãos, nem com André, Tiago e João e,
menos ainda, contigo. Se não compreendes a razão disso, não sei o que dizer…
– Porque é tua mãe, é jovem, é bela, e o povo…
– Não. As pessoas sempre terão a lama no pensamento, nos lábios e nas mãos, mas especialmente no
coração. As pessoas desonestas, que vêem em todos, os sentimentos que elas têm em si. Mas Eu não estou
tratando da lama delas.. A lama cai por si mesma depois que seca. Mas Eu preferi Simão, porque já é velho
e não teria trazido de novo à lembrança da desolada mulher os seus filhos mortos. Vós jovens os teríeis
trazido de novo à lembrança dela com a vossa juventude… Simão sabe velar, sem fazer perceber sua
presença, não exige nunca nada, sabe compadecer-se, sabe vigiar sobre si mesmo. Eu podia escolher Pedro.
Quem melhor do que ele para ficar perto de minha mãe? Mas ele ainda é muito impulsivo. Vede que Eu
estou dizendo isso na cara dele e ele não se perturba com isso. Pedro é sincero e ama a sinceridade, mesmo
quando fica prejudicado. Eu poderia escolher Natanael. Mas ele nunca esteve na Judeia. Simão, ao
contrário, a conhece bem e será muito útil para guiar a mãe até Keriot. Ele sabe também onde está a tua
casa de campo e a da cidade, e não fará…
210.6 – Mas… Mestre! Mas tua mãe irá mesmo à casa da minha?
– Mas Eu já o disse. E, quando uma coisa se diz, se faz. Nós iremos indo devagar, fazendo paradas para
evangelizar estes povoados. Não queres que Eu evangelize a tua Judeia?
– Oh! sim, Mestre… Mas eu acreditava… eu pensava…
– Mas, mais do que tudo, tu mesmo buscavas teus sofrimentos nas quimeras com que vives sonhando.
Na segunda fase da lua do mês de Ziv, estaremos todos na casa de tua mãe. Nós, quer dizer, também minha
mãe com Simão. Por enquanto, Ela está evangelizando Betsur, cidade da Judeia, assim como Joana está
evangelizando Jerusalém e, com ela, fazem a mesma coisa uma menina e um sacerdote, que já foi leproso,
assim como Lázaro com Marta e o velho Ismael estão evangelizando Betânia, assim como em Juta está
evangelizando Sara e, em Keriot certamente está falando do Messias tua mãe. Não podes absolutamente
dizer que Eu deixo a Judeia sem quem lhe leve as palavras. Mas, ao contrário, eu dou a ela, fechada e
petulante mais que as outras regiões, as palavras mais doces, que são as das mulheres, além das de Isaac,
que é santo, e as de Lázaro, meu amigo. As mulheres, que às palavras unem aquela arte própria da mulher,
que é mestra em levar as almas para o ponto que quer. Não dizes mais nada? Por que é que estás quase
chorando, menino caprichoso? Que te adianta viveres te envenenando com as sombras? Tens ainda motivo
para inquietações? Vamos! Fala…
– Eu sou mau… e Tu és tão bom. Tua bondade sempre me impressiona, porque é sempre tão serena, tão
nova… Eu… eu nada sei dizer, quando a encontro em meu caminho.
– Disseste a verdade. Nem o podes saber. Mas é porque não é nem serena, nem nova. Ela é eterna,
Judas. Ela é onipresente, Judas… 210.7Oh! Estamos chegando às vizinhanças de Hebron, e Maria e Salomé,
com André, nos estão fazendo grandes gestos. Vamos. Estão falando com uns homens. Devem ter-lhes
perguntado onde é que ficam os lugares históricos. Tua mãe rejuvenesce, meu irmão, com esta reevocação!
Judas Tadeu sorri ao Primo, que por sua vez também sorri.
E Pedro:
– Rejuvenescemos todos! Parece-me estar na escola. Mas é uma bela escola! Melhor do que a daquele
resmungão do Eliseu. Lembras-te dele, Filipe? Mas também aprontávamos das nossas! Aquela história das
tribos! “Dizei as cidades das tribos!”… “Não as dissestes em coro… Tornai a dizer…” “Simão, pareces uma
rã adormecida. Ficas sempre atrás dos outros. Começai de novo.” Ai de mim. Eu me havia transformado
todo em nomes de cidades de tempos muito remotos e não sabia mais nada. Mas aqui! Aqui se aprende de
verdade! Sabes, Margziam? Qualquer dia destes, o teu pai vai fazer o exame, pois agora ele sabe…
Todos se riem, enquanto vão indo na direção de André e das mulheres.
[77] pelos primeiros que vieram, aqui e algumas linhas mais abaixo, são, na verdade, os últimos que vieram (primeiros do presente ao passado, últimos do
passado ao presente).
211. Volta a Hebron, terra do Batista.
7 de julho de 1945.
211.1 Todos estão sentados em círculo num pequeno bosque perto de Hebron e, enquanto estão comendo,
conversam uns com os outros. Judas, agora que tem certeza de que Maria irá à casa de sua mãe, voltou às
suas melhores disposições de espírito, e está procurando cancelar a lembrança dos seus maus humores no
trato com os seus companheiros e as mulheres, com mil cortesias. Ele deve ter andado pelo povoado para
fazer compras e conta que encontrou o lugar muito diferente do que era, do ano passado para cá:
– A notícia da pregação e dos milagres de Jesus chegou até aqui. E o povo começou a refletir sobre
muitas coisas. Tu sabes, Mestre, que por estes lados há uma propriedade de Doras? Também a mulher de
Cusa tem aqui nestes montes algumas terras e um castelo que é propriedade dela, um dote que recebeu.
Vê-se que, um pouco ela e um pouco os camponeses de Doras, pois aqui devem estar alguns deles vindos de
Esdrelon, prepararam o terreno. Ele, Doras, mandou que eles se calassem. Mas eles!… Eu acho que, nem
diante dos tormentos, ficariam calados. Causou grande espanto a morte do velho fariseu, sabes? E também
a ótima saúde de Joana, que veio até aqui antes da Páscoa. Ah! E depois, para servir a Ti, esteve também
aqui o amante da Aglaé. Sabes que ela fugiu, pouco depois de termos passado por aqui? E que ele virou um
demônio contra muitos inocentes, para vingar-se? E de tal modo, que os pobres começaram a pensar em Ti
como em um libertador dos oprimidos e te desejam. Quero dizer os melhores…
– Libertador dos oprimidos! De fato Eu sou. Mas num sentido sobrenatural. Ninguém tem uma visão
justa de Mim entre aqueles que me vêem com o cetro e o machado na mão, como um rei ou um justiceiro,
segundo o espírito da terra. Mas é certo que vim para libertar das opressões. Do pecado, a mais grave, das
doenças, das desolações; das ignorâncias e do egoísmo. Muitos terão que aprender que não é justo oprimir
porque a sorte os colocou no alto. Mas que, pelo contrário, se deve usar essa alta posição para elevar quem
está embaixo.
– Lázaro faz isso e também Joana. Mas são dois contra centenas… –diz desoladamente Filipe.
– Os rios não são largos na nascente, como o são em sua desembocadura. Poucas gotas, um fio de água,
mas depois… Há rios que parecem mares em sua foz.
– Como o Nilo, não é? Tua mãe me falava coisas de quando estiveste no Egito. Ela sempre me dizia: “É
um mar, podes crer, um mar verde-azul. Vê-lo, no tempo das cheias, até parece um sonho!”, e ela me falava
das plantas, que pareciam levantar-se da água, e também de todo aquele verdor, que parecia ter nascido da
água, quando ela baixava… –diz Maria de Alfeu.
– Pois bem, Eu vo-lo digo: Como acontece com a torrente do Nilo, que antes era um fio d’água, e depois
se torna o gigante que é, assim também o que agora é um fiozinho na grossura, que se inclina com amor e
por amor para os pequeninos, se tornará em seguida uma grande multidão. Joana, Lázaro, Marta, e depois,
quantos, quantos!
Jesus vê esses que serão misericordiosos para com os irmãos, e sorri, absorto em sua visão.
211.2 Judas confidencia que o sinagogo queria vir com ele, mas que ele não se atreveu a tomar uma
decisão por si mesmo:
– Tu te lembras, João, como ele nos expulsou[78] no ano passado?
– Sim, eu me lembro… Mas digamos isto ao Mestre.
E Jesus, tendo sido interrogado, diz que eles entrarão em Hebron. Se os quiserem, se os chamarem,
pararão lá. Senão, passarão adiante, sem parar:
– Assim, nós veremos também a casa do Batista. De quem ela é agora?
– De quem a quiser, penso eu. Shamai foi-se embora e não voltou mais. Ele levou seus empregados e
móveis. Os moradores, para se vingarem de suas injustiças, derrubaram o muro e a casa agora é de todos.
Pelo menos, o jardim. Lá se reúnem para venerarem o Batista. Dizem que Shamai tenha sido assassinado.
Não sei porque… parece que por causa de mulheres…
– Alguma trama podre da corte, certamente!… –murmura Natanael por entre a barba.
211.3 Levantam-se e vão indo para Hebron, rumo à casa do Batista. Quando estão chegando a ela, vêm
vindo alguns moradores num grupo compacto. Eles vêm vindo para a frente um pouco incertos, curiosos e
meio desconfiados. Mas Jesus os saúda com um sorriso. Eles, então se animam, se dividem, e do grupo sai
aquele sinagogo descortês do ano passado.
– A paz esteja contigo –saúda-o logo Jesus–. Permites que permaneçamos na tua cidade? Estou com
todos os meus discípulos prediletos e com as mães de alguns deles.
– Mestre, mas Tu não guardas rancor de nós, nem de mim?
– Rancor? Não sei o que é isso, nem sei porque o haveria de ter.
– No ano passado eu Te ofendi.
– Ofendeste a um Desconhecido e achavas que tinhas o direito de fazê-lo. Depois compreendeste e te
arrependeste de tê-lo feito. Mas isso é coisa passada. E, assim como o arrependimento anula a culpa, assim
o presente anula o passado. Agora para ti Eu não sou mais o Desconhecido. Que sentimentos tens agora
para comigo?
– De respeito, Senhor. De…desejo…
– Desejo? Que queres de Mim?
– Conhecer-te mais do que eu te conheço.
– Como? De que modo?
– Através da tua palavra e das tuas obras. Chegou até aqui a notícia de Ti, da tua doutrina, do teu poder,
e foi dito que Tu não és alheio à libertação do Batista. Tu não o odiavas, nem procuravas suplantar, a nosso
João!… Ele mesmo não negou que é por causa de Ti que ele voltou a ver o vale do Santo Jordão. Nós
estivemos com ele, falando-lhe de Ti, e ele nos disse: “Vós não sabeis o que foi que rejeitastes. Eu devia
amaldiçoar-vos, mas eu vos perdôo, porque Ele me ensinou a perdoar e a ser humilde. Mas, se não quereis
ser amaldiçoados pelo Senhor e por mim, seu servo, amai ao Messias. E não tenhais dúvidas. O testemunho
dele é este: espírito de paz, amor perfeito, sabedoria superior a qualquer outra, doutrina celeste, humildade
absoluta, potência em cada coisa, humildade total, castidade angelical. Não podeis enganar-vos. Quando
estiverdes respirando a paz ao lado de um homem que se chama Messias, quando beberdes amor, — amor
que dele emana — quando passardes das vossas trevas para a luz e vir que os pecadores são perdoados, as
carnes serdes curadas, então dizei: ‘Este é realmente o Cordeiro de Deus!’” Nós sabemos que as tuas obras
são as de que fala nosso João. Por isso, perdoa-nos, ama-nos, dá-nos aquilo que o mundo espera de Ti.
– Estou aqui para isto. Venho de muito longe para dar também à cidade de João o que Eu dou a todos os
lugares que me acolhem. Dizei-me o que desejais de Mim.
– Nós também temos doentes e somos ignorantes. Especialmente no que se refere ao amor e à bondade.
João, no seu amor total a Deus, tem uma mão de ferro e uma palavra de fogo, e quer dobrar a todos, como
um gigante que dobra uma haste de erva. Muitos ficam desanimados, porque o ser humano é mais pecador
do que santo. É difícil sermos santos!…Tu… dizem que não dobras, mas que ajudas, que não cauterizas,
mas que aplicas bálsamo, que não esmigalhas, mas acaricias. Sabe-se que és paterno com os pecadores e és
poderoso sobre as doenças, sejam quais forem, também e sobretudo as do coração. Os rabis não sabem
mais fazer isso.
211.4 – Trazei-me os vossos doentes, e depois reuni-vos neste jardim abandonado e profanado pelo pecado,
depois de ter sido feito um templo pela Graça que nele habitou.
Os hebronitas partem dali em todas as direções, como andorinhas, e fica só o sinagogo, que entra com
Jesus e os discípulos até para lá do muro do jardim, indo à sombra de uma trepadeira misturada com
roseiras e videiras, que ali cresceram, como bem lhes pareceu. Os hebronitas apressam-se em voltar. E com
eles já vem sendo trazido um paralítico em uma padiola, uma jovem cega, um mudinho e dois doentes que
eu não sei o que têm, e que vêm acompanhados pelos que os ajudam.
– A paz esteja contigo –diz Jesus, saudando a cada um dos doentes, que vão se aproximando dele.
E, depois, a doce pergunta:
– Que quereis que Eu vos faça?
E aí vem o coro das lamentações desses infelizes e no qual cada um quer contar a sua própria história.
Jesus, que estava sentado, levanta-se, e vai até o mudinho, cujos lábios Ele molha com sua saliva, e lhe
diz a grande palavra:
– Abre-te.
E, enquanto a diz, molha também as pálpebras não separadas da cega com o dedo ainda molhado de
saliva. Depois dá a mão ao paralítico, e lhe diz:
– Levanta-te!
E, por fim, impõe a mão aos dois doentes, dizendo:
– Ficai sãos, em nome do Senhor!
E o mudinho, que antes só gemia, diz agora claramente:
– Mamãe! –enquanto que a jovem já bate as pálpebras, agora abertas para a luz, e faz com os dedos um
abrigo contra o sol, que ela ainda não conhecia, e chora e ri, esfregando os olhos, porque não está
acostumada com a luz, e olha de novo para as copas das árvores, para a terra, para as pessoas e para Jesus.
O paralítico desce com facilidade da padiola, e os seus bondosos portadores a levantam agora vazia,
para mostrar aos que estão longe que a graça fora concedida, enquanto os dois doentes estão chorando de
alegria, e se ajoelham para venerar ao seu Salvador.
A multidão está fazendo uma alvoroço frenético de hosanas. Tomé, que está perto de Judas, olha para ele
de um modo tão intenso, e com uma expressão tão clara, que ele lhe responde:
– Eu era um estulto, perdoa-me.
211.5 Quando cessou a gritaria, Jesus começa a falar.
– O Senhor falou a Josué, dizendo: “Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Separai as cidades para os
fugitivos e dos quais Eu vos falei por meio de Moisés, para que nelas possa refugiar-se quem
involuntariamente tiver matado alguém, para que ele possa escapar da ira de algum parente próximo, que
queira vingar o sangue derramado.” E Hebron é uma daquelas cidades.
Sempre foi dito: “E os mais velhos da cidade não entregarão o inocente a quem o estiver procurando
para matá-lo, mas o acolherão e lhe darão morada e aí ficará ele até o julgamento, e enquanto não morrer o
Sumo Sacerdote que estiver em função. Depois disso, ele poderá entrar em sua cidade e em sua casa.”
Nesta lei[79] já se leva em consideração o amor misericordioso para com o próximo. Esta lei foi imposta por
Deus, porque não é lícito condenar o acusado, sem ouvi-lo, nem é lícito matar em momento de ira.
Pode-se também dizer o mesmo a respeito dos delitos e acusações morais. Não é lícito acusar a quem
não se conhece, nem julgar, sem ter ouvido o acusado. Mas hoje às acusações e condenações pelas culpas
de costume, ou pelas culpas possíveis, acrescenta-se a elas uma nova série: a que se refere e se põe contra
os que vêm em nome de Deus. Durante séculos, ela se repetiu contra os Profetas, e agora volta a repetir-se
contra o Precursor de Cristo e contra Cristo. Vós o vedes. Atraído com uma cilada para fora do território de
Siquém, o Batista está esperando a morte nos cárceres de Herodes, porque ele jamais se dobrará diante da
mentira ou do compromisso e poderá ser despedaçada a sua vida e cortada sua cabeça, mas não se poderá
despedaçar a sua honestidade, nem separar sua alma da Verdade, à qual ele tem servido fielmente em todas
as suas diversas formas, divinas, sobrenaturais ou morais que sejam. Igualmente se persegue Cristo, com
dupla e décupla fúria, porque Ele não se limita a dizer: “Não te é permitido” a Herodes, mas lhe troveja o
seguinte: “Não te é permitido”, e por toda parte onde, entrando, encontra pecado, ou sabe que existe o
pecado, sem excluir nenhuma categoria, em nome de Deus e pela honra de Deus.
211.6 Como jamais pode acontecer isto? Não haverá mais servos de Deus em Israel? Sim, os há. Mas são
“ídolos.”
Na carta de Jeremias[80] aos exilados estão ditas, por entre muitas outras coisas, também estas. E sobre
estas chamo a vossa atenção, porque cada palavra do livro é um ensinamento que, desde o momento em
que o Espírito a faz escrever, por causa de um fato presente, ela se refere a um fato que virá no futuro.
Portanto, o que está escrito é isto: “Logo que entrardes em Babilônia, vereis deuses de ouro, de prata, de
pedra, de madeira… Tomai cuidado para não imitardes o modo de agir dos estrangeiros, e para não terdes
medo, não temê-los… Dizei em vosso coração: ‘É preciso adorar somente a Ti, ó Senhor.’” E a carta
enumera as particularidades desses ídolos, que têm uma língua feita por algum artífice, e não se podem
servir dela para reprovar os seus falsos sacerdotes, que os despojam, para revestir com o ouro do ídolo as
meretrizes, quando não acontece que tirem aquele ouro, que foi profanado pelo suor da prostituição, para
revestir o ídolo. Estes ídolos, que a ferrugem ou as traças podem roer e que ficam limpos e bem arrumados,
só se o homem lhes lavar a cara e os tornar a vestir, já que eles não podem fazer nada por si mesmos apesar
de ter cetro ou machado na mão. E termina o Profeta: “Por isso, não os temais.” E continua: “Inúteis, como
vasos quebrados, são estes deuses. Seus olhos estão cheios da poeira levantada pelos pés dos que entram
no templo e são conservados bem fechados: como se estivessem num sepulcro, ou como quem ofendeu o
rei, porque qualquer um pode despojá-los de suas vestes preciosas. Eles não vêem a luz das lâmpadas e, por
isso, estão no templo como vigas, e as candeias não lhes servem senão para enfumaçá-los, enquanto as
corujas, as andorinhas e outros passarinhos voam por cima da cabeça deles e a cobrem de vírgulas com os
seus excrementos e os gatos nela fazem seus ninhos, com as vestes deles, e as rasgam. Por tudo isso, não
devem ser temidos. São coisas mortas. Nem mesmo o ouro lhes serve para nada. É uma amostra, e se não
for polido, não brilha, assim como os deuses não sentiram nada, quando alguém os fabricou. Nem o fogo
conseguiu despertá-los. Eles foram comprados por preços fabulosos. E são transportados para onde o
homem quer, porque são vergonhosamente fracos… Por que, então, são chamados deuses? Por que são
adorados com ofertas e com uma pantomima de cerimônias falsas, não sinceras da parte de quem as faz,
nem acreditadas por quem as vê. Se um mal ou um bem lhes é feito, eles permanecem inertes, são
incapazes de eleger ou destronar um rei, não podem dar riquezas nem fazer o mal, não podem salvar um
homem da morte, nem salvar o fraco do prepotente. Eles não têm piedade das viúvas e dos órfãos. São
semelhantes às pedras da montanha…”
A carta diz mais ou menos isso.
211.7 Eis. Nós também temos ídolos, e não mais santos, nas fileiras do Senhor. E por isto é que o Mal pode
levantar-se contra o Bem. O mal que suja de esterco a inteligência e o coração dos que não são mais santos
e se aninha em suas falsas vestes de bondade.
Não sabem mais falar as palavras de Deus. É natural! Eles têm uma língua feita pelo homem, e falam
palavras de homem, quando não falam palavras de satanás, e não sabem nada mais do que censurar os
inocentes e os pobres, mas calam-se onde vêem corrupção nos poderosos. Porque todos são corruptos, e
não podem acusar-se um ao outro das mesmas culpas. Ávidos são, não do Senhor, mas de Mamon,
trabalham aceitando o ouro da luxúria e do delito, trocando-o, roubando-o, tomados por um frenesi, que
passa por cima de todos os limites e de tudo. Toda a poeira se aninha sobre eles, fermenta sobre eles e, se
eles mostram uma cara limpa, os olhos de Deus estão vendo como está sujo o seu coração. A ferrugem do
ódio e o verme do pecado os rói, e eles não sabem fazer nada para se salvarem. Desfecham suas maldições,
como cetros e machados, mas não sabem que eles é que estão amaldiçoados. Fechados em seus
pensamentos e em sua ira, como cadáveres em seus sepulcros, ou prisioneiros em seu cárcere, lá estão,
agarrando-se às barras, por medo de que alguma mão os tire de lá, porque lá dentro esses mortos são ainda
alguma coisa: são múmias, não mais do que múmias com aparência humana, mas com corpo reduzido a
madeira seca, enquanto que lá fora seriam objetos ultrapassados para um mundo que procura a vida, que
sente necessidade da vida, como o menino sente da mãe e quer quem lhe dê vida, e não os fedores da
morte.
Eles estão no Templo, sim, e a fumaça das lâmpadas, isto é, das honras, os enfumaça, mas a luz não
desce até eles. E todas as paixões se aninham neles como passarinhos e gatos, enquanto que o fogo de sua
missão não lhes dá o místico tormento de estarem sendo abrasados pelo fogo de Deus. Eles são refratários
ao Amor. O fogo da caridade não os incendeia, assim como a caridade não os veste com seus áureos
esplendores. A caridade para com o próximo é a forma; e a caridade que vem de Deus e do homem é a
fonte. Porque Deus se afasta do homem que não ama e, por isso, essa primeira fonte para de jorrar e ao
afastar o homem do homem malvado, para de jorrar também a segunda fonte. Tudo é tirado, pela Caridade,
do homem sem amor. Deixam-se comprar por um preço maldito e deixam se levar para onde as vantagens e
o poder querem.
Não, Não é permitido! Não existe moeda para comprar a consciência, e especialmente a dos sacerdotes
e dos mestres. Não é permitido ter condescendência com as coisas fortes da terra, quando elas querem
levar-nos a praticar atos contrários ao que é ordenado por Deus. Isto seria uma impotência espiritual, mas
está escrito[81]: “O eunuco não entrará na assembleia do Senhor.” Se, pois, não pode fazer parte do povo de
Deus quem é impotente por natureza, poderá ser ministro o que é impotente em seu espírito? Porque, em
verdade Eu vos digo que muitos sacerdotes e mestres já estão atormentados por um culpável eunuquismo
espiritual, já mutilados em sua virilidade espiritual. São muitos. E são demais!
211.8 Meditai. Observai. Confrontai. Vereis que temos muitos ídolos e poucos ministros do Bem que é
Deus. E aí está por que é que pode acontecer que as cidades refúgios já não sejam mais refúgio. Nada mais
é respeitado em Israel, e os santos morrem, porque os não santos os consideram odiosos.
Mas Eu vos convido: “Vinde.” Eu vos chamo em nome do vosso João, que está sofrendo, porque foi santo;
que recebeu o golpe, porque vai à minha frente e porque procurou limpar as sujeiras dos caminhos por
onde passa o Cordeiro. Vinde servir a Deus. O tempo está próximo. Não fiqueis despreparados para a
Redenção. Fazei que a chuva caia sobre o terreno semeado. Senão, ele terá sido semeado em vão. Vós, vós
de Hebron, deveis ir à frente! Aqui vós convivestes com Zacarias e Isabel: os santos que mereceram do Céu,
João. Aqui João espalhou o perfume da graça com sua verdadeira inocência de pequenino e, do seu deserto,
vos enviou os incensos anticorruptores de sua graça, que se tornou um prodígio de penitência. Não
decepcioneis o vosso João. Ele elevou o amor ao próximo a um nível quase divino, em que ele ama o último
habitante do deserto, como ama a vós, seus conterrâneos. Mas é certo que para vós ele suplica a Salvação.
E a Salvação é seguir a Voz do Senhor e crer em sua Palavra. Desta cidade sacerdotal, vinde em massa para
o serviço de Deus. Eu estou passando e vos chamando. Não sejais inferiores às meretrizes, às quais basta
uma palavra de misericórdia, para deixarem o caminho que percorreram antes, e virem para o Caminho do
Bem.
Foi-me perguntado, quando aqui cheguei: “Mas Tu, não conservas rancor de nós?” Rancor? Oh! Não. Eu
conservo é amor a vós. E conservo a esperança de ver-vos nas fileiras do meu povo. Do povo que Eu
conduzo para Deus, neste novo êxodo para a verdadeira Terra Prometida: para o Reino de Deus, do outro
lado do Mar Vermelho das sensualidades e desertos do pecado, livres de toda espécie de escravidão, para a
Terra eterna, cheia de delícias, repleta de paz…
Vinde! Este é o Amor que passa. Qualquer um pode acompanhá-lo, porque, para ser acolhidos por Ele,
não se precisa mais do que de boa vontade.
211.9 Jesus terminou em meio a um silêncio de estupefação. Parece que muitos ficaram sopesando as
palavras que ouviram e que ainda as estejam saboreando, percebendo melhor seu gosto profundo, e
comparando suas vidas com elas.
Enquanto isso acontece, e Jesus, cansado e com calor, se assenta para falar com João e Judas, ouve-se
um clamor do outro lado do muro do jardim. Uns gritos confusos, e que depois se tornam mais claros:
– Está aí o Messias? Está?
E tendo recebido a resposta, ei-los já levando para Ele um estropiado, que até parece um S de tão
contorcido que está.
– Oh! É Massala!
– Mas está muito estropiado! Que será que ele espera?
– Aí vem vindo a mãe dele! Uma infeliz!
– Mestre, o marido a rejeitou, por causa deste aborto de homem que é o filho, e ela vive aqui de
caridade. Mas já está velha, e pouco mais viverá…
O aborto de homem, como disseram bem, está agora na frente de Jesus. Este não pode vê-lo no rosto, de
tão encurvado e contorcido que ele está. Parece a caricatura de um homem-chipanzé, ou de um camelo
imitando o homem. A mãe, velha e infeliz, nem pode falar, mas somente geme, e solta estas palavras:
– Senhor…Senhor…eu creio…
Jesus põe suas mãos sobre as costas encurvadas do homem, que lhe chega só até a cintura, levanta o
rosto para o Céu, e troveja:
– Levanta-te e caminha pelos caminhos do Senhor –e o homem leva uma sacudidela, e depois se põe de
pé, como o mais perfeito dos homens.
Foi tão rápido o movimento, que parece terem sido quebradas algumas molas que o estivessem
sujeitando àquela posição anômala. Agora ele chega até às costas de Jesus, olha para Ele, e depois cai de
joelhos, junto com a mãe, beijando os pés do seu Salvador.
O que aconteceu por entre a multidão nem se pode dizer… E, não obstante toda a vontade em contrário,
Jesus é constrangido a permanecer em Hebron, porque as pessoas estão dispostas a pôr barreiras nas
saídas da cidade, para impedir que Ele se vá.
Jesus entra na casa do velho sinagogo, que está completamente mudado desde o ano passado…
[78] nos expulsou em 77.8.
[79] Nesta lei, o qual se refere a citação que precede (de Josué 20,1-6), se refere as cidades de refúgio, onde encontrava abrigo o homicida involutário, que
de tal modo vinha liberado da lei da vingança(a qual será feita alusão a Tadeu em 566.8, última linha, talvez referindo-se ao Gênesis 9,6 e alguns dos passos
que nos referimos novamente mais abaixo). As cidades de refúgio eram seis, entre as quais Hebron (como aqui) e Cedes (como em 342.1.2.7.9). Faziam parte
das 48 cidades levíticas nas quais moravam os levitas. As prescrições que se referem a uma e outra são em Êxodo 21,12-13; Números 35; Deuteronômio
4,41-43; 19,1-13; Josué 20-21.
[80] carta de Jeremias que está em Baruc 6.
[81] está escrito em Deuteronômio 23,2.
212. Uma onda de amor por Jesus,
quando Ele, em Juta, fala na casinha de Isaac.
8 de julho de 1945.
212.1 Juta inteira acorreu ao encontro de Jesus, com flores selvagens de suas encostas e com as primícias
de suas culturas, além dos sorrisos de suas crianças e as bênçãos de seus cidadãos. E, antes mesmo que
Jesus chegasse a pôr o pé no povoado, viu-se rodeado por aquelas boas pessoas que, avisadas por Judas de
Keriot e por João, que haviam sido mandados à frente, acorreram com tudo o que tinham encontrado de
melhor, para prestar honras ao Salvador e sobretudo com seu amor.
Jesus não para de abençoar, com gesto e com palavra, as pessoas adultas ou jovens, que o apertam de
todos os lados e querem beijar-lhe as vestes ou as mãos e lhe põem nos braços as crianças de peito para
que Ele as abençoe com um beijo. A primeira a fazê-lo é Sara, que lhe põe sobre o coração o seu pimpolho,
que é Jesaí.
De tão impetuoso que é, o amor lhe estorva o andar e, no entanto, ele é como uma onda, que o vai
levando. Eu creio que Jesus vai indo para a frente, mais levado por esta onda, do que por seus próprios pés
e, certamente, também seu coração vai sendo levado bem alto, no céu azul, pela alegria que lhe dá este
amor. Ele está com o rosto refulgente como nos momentos da mais viva alegria do Homem-Deus. Não é
aquele rosto cheio de poder com aquele olhar magnetizador das horas dos milagres, nem o rosto majestoso,
de quando manifesta a sua união continua com o Pai e nem mesmo aquele rosto severo, de quando
repreende uma culpa. Todas essas vezes seu rosto refulgia com diferentes luzes, mas esta de agora é a luz
das horas de distensão de todo o seu eu, que é atacado por todos os lados, obrigado a tomar cuidado
sempre e com todos os gestos ou palavras suas ou dos outros, envolvido em todas as ciladas do mundo que,
como uma maléfica teia de aranha, lançam os seus fios satânicos ao redor da Divina Borboleta, que é o
Homem-Deus, esperando refrear-lhe o vôo e aprisionar-lhe o espírito, a fim de que não salve o mundo;
amordaçar-lhe a palavra, para que não ensine às bem grandes e culpáveis ignorâncias da terra; amarrar
suas mãos, para que essas mãos de Sacerdote Eterno não santifiquem os homens, que o demônio e a carne
tornaram depravados; vendar-lhe os olhos, para que, com a perfeição do seu olhar, que é como um imã, que
é perdão, que é amor, que é um fascínio que vence todas as resistências, que não sejam a resistência de um
perfeito satanás, não atraiam para Ele os corações.
212.2 Oh! Não estão também agora e sempre assim contra Cristo, por obra dos inimigos de Cristo? Assim
não estão a Ciência e a Heresia, o Ódio e a Inveja, os inimigos da Humanidade, como ramos intoxicados de
uma planta boa, não fazem tudo isso para que a Humanidade morra, esses que a odeiam mais ainda do que
com todo o ódio que eles têm de Cristo, porque a odeiam ativamente, privando-a de sua alegria, procurando
descristianizá-la, enquanto que a Jesus nada podem tirar, sendo Ele Deus, e eles pó?
Sim. Eles o fazem. Mas Cristo se refugia nos corações fiéis e de lá olha, de lá fala, de lá abençoa a
Humanidade, e depois… e depois se dá a esses corações e eles atingem o Céu com sua bem-aventurança,
ainda que permaneçam aqui, mas incendiando-se, até terem com isto um delicioso tormento em todo o seu
ser: nos sentidos e nos órgãos, nos sentimentos e no pensamento e, finalmente, no espírito… Lágrimas e
sorrisos, gemidos e canto, o desfalecimento e até uma pressa de viver são os nossos companheiros, mais do
que companheiros, são o nosso próprio ser, porque, como os ossos estão na carne, e as veias e os nervos por
baixo da epiderme, e tudo faz um só homem, assim, igualmente, todas essas coisas incendiadas, nascidas
por ter-se dado Jesus a nós, estão em nós, na nossa pobre humanidade. E, que somos nós, naqueles
momentos que não poderiam durar para sempre, porque, se durassem mais do que aquele tanto,
morreríamos queimados e despedaçados? Nós não somos mais homens. Não somos mais os animais dotados
de razão, que vivem sobre a terra.. Somos, somos, ó Senhor! Deixa que eu o diga uma vez, não por soberba,
mas para cantar as tuas glórias, porque o teu olhar me queima, e me faz delirar…E, então, nos tornamos
serafins. E por que de mim não saem chamas e ardores sensíveis para as pessoas e a matéria, assim como é
nas aparições dos condenados? Por que, se é verdade que o fogo do inferno é tão forte, que, só um reflexo,
saído de um condenado, pode queimar a madeira e derreter os metais, que não será o teu fogo, ó Deus, que
tens tudo o que há de infinito e perfeito?
Não morremos de febre, não nos queimamos com ela, não nos consumimos de febre pelos males da
carne. Tu é que és nossa febre, ó Amor. E com este nos queimamos, com este morremos, com este nos
consumimos, com este e por este se dilaceram as fibras do coração, que não pode resistir a tudo isso. Mas,
eu disse mal, porque o amor é um delírio, o amor é uma cascata que arrebenta os diques, e desce
derrubando tudo o que não é ele, o amor é um apinhar-se de sensações, todas elas verdadeiras, na mente,
todas presentes, mas nossa mão não pode transcrevê-las, de tão rápida que é a mente em traduzir o
pensamento e os sentimentos que o coração experimenta. Não é verdade que morremos. Nós vivemos. E de
uma vida decuplicada. De uma vida dupla, vivendo como homens e como bem-aventurados: a vida da terra e
a vida do Céu. Alcança-se e se supera, Oh! disso estou certa, uma vida sem defeitos, sem diminuições nem
limitações que Tu, Pai, Filho e Espírito Santo, Tu, Deus Criador, Uno e Trino, tinhas dado a Adão, como um
prelúdio da vida depois da assunção a Ti, para gozar no Céu, depois de uma tranquila passagem do Paraíso
Terrestre para o Celeste, e uma passagem feita nos amorosos braços dos anjos, assim como foi o doce sono
e o doce surgir de Maria ao Céu, para ir a Ti, a Ti, a Ti! Vivemos a verdadeira vida.
E depois nos encontramos aqui e nos envergonhamos de ter andado por tantos outros lugares, e
dizemos: “Senhor, eu não sou digno de tudo isso. Perdoa, Senhor”, e batemos no peito, porque aterrorizados
pelo temor de termos tido soberba, e descemos um véu mais espesso sobre o esplendor que, se não
continua a chamejar de novo, com um ardor poderoso, por ter dó do nosso ser limitado, recolhe-se, porém,
ao centro do nosso coração, pronto a reinflamar-se poderoso para um novo momento de bem-aventurança
querida por Deus. Desce-se o véu sobre o Sacrário, onde está Deus ardente em seus fogos, em suas luzes,
em seus amores… e extenuados e também regenerados, recomeçamos a andar como…embriagados por um
vinho forte e suave, que não torna obtusa a nossa razão, mas nos preserva de ter olhos e pensamentos para
o que não seja o Senhor, Tu, meu Jesus, anel de união entre a nossa miséria e a Divindade, meio de
redenção para a nossa culpa, Criador de felicidade para a nossa alma, Tu, Filho que, com tuas mãos feridas,
colocas as nossas mãos entre as mãos espirituais do Pai e do Espírito, para que estejamos em Vós, agora e
sempre. Amém.
212.3 Mas, por onde eu andei, enquanto Jesus me queima, queimando os habitantes de Juta com o seu
olhar de amor? Vossa Rev.ma terá notado que não falo mais de mim ou muito raramente. Quantas coisas eu
poderia dizer. Mas o cansaço e a fraqueza física que me oprimem logo depois dos ditados e o pudor
espiritual sempre mais forte, quanto mais para a frente eu vou, me persuadem, me obrigam a calar-me. Mas
hoje… eu subi alto demais e o ar da estratosfera faz que percamos o controle… Eu fui muito acima da
estratosfera… e não pude mais controlar-me… Além disso, eu creio que, se nos calássemos sempre, nós que
estamos dominados por este redemoinho de amor, acabaríamos por explodir como projéteis, ou melhor,
como caldeiras superaquecidas e fechadas.
Perdoa-me padre. E agora, vamos para frente.
212.4 Jesus entra em Juta, e é conduzido à praça da feira, e desta à pobre casinha em que Isaac foi
perdendo suas forças, durante trinta anos… Explicam-lhe:
– Aqui vimos todos para falar de Ti e para rezar como em uma sinagoga, a mais verdadeira. Porque foi
aqui que começamos a conhecer-te e aqui as orações de um santo te chamaram até nós. Entra. Vê como nós
dispusemos as coisas.
A casinha, composta no ano passado só de três pequenas aberturas, que eram os quartos, a primeira era
aquele em que Isaac enfermo vivia de esmolas, a segunda era um esconderijo, e a terceira uma pequena
cozinha, que dava para o pátio, tornaram-se um ambiente único, e nele há bancos para os que aqui se
reúnem. No pátio há uma pequena barraca em que foram colocados os poucos trastes de Isaac, como
relíquias, e o respeito dos habitantes de Juta tornou menos desolado o pátio, colocando eles nele plantas
trepadeiras que agora, com suas flores, cobrem a rusticidade do lugar e formam um começo de trepadeira,
que vai subindo por cordas estendidas sobre o pátio, até a altura do teto baixo.
Jesus os elogia, e diz:
– Aqui podemos permanecer. Eu vos peço somente a hospedagem para as mulheres e o menino.
– Oh! Mestre nosso! Isso não acontecerá nunca! Para aqui viremos contigo e Tu nos falarás, mas, Tu e os
teus sede nossos hóspedes. Concede-nos esta bênção de podermos hospedar a Ti e aos servos de Deus. Só
nos desagrada que eles não sejam tantos quanto as casas…
Jesus concorda e sai da casinha, indo para a casa de Sara, que não cede a ninguém o seu direito de
hospedar, para a refeição, a Jesus e aos seus…
212.5… Jesus fala na casa de Isaac. As pessoas enchem a sala e o pátio, e se comprimem também na praça,
enquanto Jesus, para ser ouvido por todos, põe-se no meio da sala de tal forma, que sua voz se espalha
tanto no pátio como na praça. Ele deve Ele estar tratando de algum assunto que lhe levaram por qualquer
pergunta ou acontecimento. Ele diz:
– … Mas não tenhais dúvida disso. Como diz[82] Jeremias, eles reconhecerão, pelas provações, como é
doloroso e amargo terem abandonado o Senhor. Para certos delitos, meus amigos, não há salitre nem
potassa, que consigam tirar a nódoa que eles deixam, nem mesmo o fogo do inferno é capaz de tirar aquela
nódoa. Ela é indelével.
Também aqui é necessário reconhecer a justiça das Palavras de Jeremias. Realmente, os nossos grandes
de Israel parecem as jumentas selvagens das quais fala o Profeta. Acostumados com o deserto de seus
corações. Porque, podeis crer, enquanto alguém estiver com Deus, ainda que seja pobre como Jó, ainda que
esteja sozinho, ainda que esteja nu, nunca está sozinho, nunca é pobre, nunca está despojado, nunca é um
deserto. Mas, eles tiraram Deus dos seus corações, e, por isso, se acham num árido deserto. Como as
jumentas selvagens, que farejam no vento o cheiro dos machos, que aqui, no caso, pela libidinagem deles,
tem o nome de poder ou dinheiro, além da luxúria verdadeira e propriamente dita, e acompanham aquele
cheiro, até chegarem ao delito. Sim. Eles o acompanham, e ainda mais o acompanharão. Eles não sabem
que estão, não com os pés, mas com o coração exposto às flechas de Deus, que vingará o seu delito. Como,
então, não haverão de ficar confusos o rei e os príncipes, os sacerdotes e os escribas que, na verdade,
disseram e dizem àquilo que nada é, ou, pior ainda, àquilo que é o pecado: “Tu és meu pai. Tu me geraste!”
Em verdade, em verdade, Eu vos digo[83] que Moisés quebrou com ira as tábuas da Lei, ao ver o povo na
idolatria e, depois de subir de novo ao monte, orou, adorou e conseguiu. E isto, há muitos séculos. Mas
ainda não acabou, nem acabará. Ao contrário, cresce como fermento posto na farinha a idolatria no coração
dos homens. Agora, quase cada um dos homens tem o seu próprio bezerro de ouro. A terra é um matagal de
ídolos, porque cada coração virou um altar e dificilmente se encontra Deus sobre ele. Quem não tem uma
paixão maligna tem outra, quem não tem uma concupiscência tem uma outra com outro nome. Quem não é
todo pelo ouro é todo por alguma posição, quem não é todo pela carne é todo pelo egoísmo. Quantos “eus”
transformados em bezerros de ouro, não são adorados nos corações! Virá, por isso, um dia em que eles,
golpeados, clamarão ao Senhor e ouvirão dele esta resposta: “Vira-te para os teus deuses. Eu não te
conheço.”
Eu não te conheço. Terrível é esta palavra, quando dita por Deus a um homem. Deus criou o homem
como uma raça, e conhece cada homem em particular. Quando, pois, Ele diz: “Eu não te conheço”, isso é
sinal de que Ele apagou, com a força de sua vontade, aquele homem de sua lembrança. Eu não te conheço!
Será Deus severo demais por proferir este veredito? Não. O homem gritou ao Céu: “Eu não te conheço!”, e
o Céu respondeu ao homem: “Eu não te conheço”, com a fidelidade de um eco…
212.6 E, meditai: o homem é obrigado a conhecer a Deus por um dever de gratidão e por respeito para com
a sua própria inteligência.
Por gratidão: Deus criou o homem, dando-lhe o dom inefável da vida e provendo-o do dom superinefável
da graça. Perdida esta por própria culpa, o homem ouve que lhe é feita uma grande promessa: “Eu te darei
de novo a Graça.” É Deus que foi ofendido, que fala assim ao seu ofensor, como se fosse ele, Deus, o
culpado, obrigado a dar uma reparação. E Deus mantém a promessa. Eis que aqui estou para dar de novo a
Graça ao homem. Deus não se limita a dar o sobrenatural, mas faz descer até nós sua Essência Espiritual, a
fim de prover às grosseiras necessidades da carne e do sangue do homem, dá-lhe o calor do sol, o refrigério
da água, os grãos dos cereais, as videiras, as árvores de todas as espécies, os animais de todas as espécies.
Assim o homem recebeu de Deus todos os meios para conservar a vida. Deus é o seu Benfeitor. É preciso
que lhe sejamos reconhecidos e lhe mostremos isso, esforçando-nos por conhece-lo.
Por respeito para com nossa própria razão. O mentecapto e o idiota não são gratos para com quem cuida
deles, porque não compreendem os cuidados em seu verdadeiro valor, e há quem os lava ou lhes põe a
comida na boca, a quem os guia ou os põe na cama, a quem os vigia para que não se exponham aos perigos.
Eles ainda lhes tem ódio, porque, bestiais como são por causa de sua doença, acham ainda que aqueles
cuidados são torturas. O homem que está em falta contra Deus é alguém que se desonra a si mesmo, a um
ser dotado de razão. Só os idiotas e os doidos é que não conseguem distinguir o seu pai de um estranho, o
benfeitor de um inimigo. Mas o homem inteligente conhece o seu pai e o seu benfeitor e se compraz em
conhecê-lo sempre melhor, mesmo naquelas coisas que ele ignora, porque aconteceram antes que ele
nascesse ou que recebesse os benefícios do pai ou do benfeitor. Assim deve-se fazer também com o Senhor,
a fim de mostrar-lhe que somos inteligentes, e não brutos. Mas muitos em Israel são semelhantes a estes
doidos que não reconhecem o seu pai e o seu benfeitor.
Jeremias pergunta a si mesmo: “Poderá, acaso, a virgem esquecer-se de seus ornamentos e uma esposa
do seu cinto?” Oh! Sim. Israel está constituído por estas virgens doidas, por essas esposas impudicas, que
se esquecem dos seus ornamentos honestos e da cintura para usarem ouropéis, como as meretrizes. E isso
se encontra em medida sempre maior, quanto mais se sobe até às classes que deveriam ser as mestras do
povo. E a reprovação de Deus, — com sua irritação e o seu pranto,— lhes é dirigida “Por que te esforças em
mostrar tua boa conduta, e procurar amor, tu, que, ao contrário, ensinas as malícias e os teus modos de
fazer, e fizeste que se encontrassem, nas abas das tuas vestes, o sangue dos pobres e dos inocentes?”
212.7 Amigos, a distância é um bem e é um mal. Estar muito longe dos lugares, onde com facilidade Eu
falo é um mal, porque vos impede de ouvir as palavras da Vida. E vós vos queixais disso. Pois é verdade.
Mas é um bem, porque vos conserva afastados dos lugares em que fermenta o pecado, onde ferve a
corrupção, onde as ciladas sibilam, tramando contra Mim, estorvando-me em minha obra e insinuando
dúvidas e mentiras nos corações a respeito de Mim. Mas Eu prefiro que estejais longe a que estejais
corrompidos. Eu proverei à vossa formação. Vós estais vendo que Deus proveu, antes que nós nos
conhecêssemos e, por isso, nos amássemos. Eu já era conhecido, antes que nós nunca nos tivéssemos visto.
Isaac foi o vosso anunciador. Eu vou mandar muitos Isaques para dizer-vos as minhas palavras. E ficai
sabendo também que Deus pode falar em toda parte a sós com o espírito do homem e fazê-lo crescer em
sua doutrina.
Não tenhais medo de que, por estardes sozinhos, isso vos possa fazer cair em erros. Não. Se não
quiserdes, não sereis infiéis ao Senhor e ao seu Cristo. Afinal, quem de verdade não pode ficar longe do
Messias, fique sabendo que o Messias lhe abre o coração e os braços, e lhe diz: “Vem.” Vinde, vós, que
quereis vir. Permanecei, vós, que quereis ficar. Mas, pregai o Cristo, tanto uns como os outros, com uma
vida honesta. Pregai contra a desonestidade, que se aninha em muitos corações. Pregai isto contra a
leviandade dos muitíssimos que não sabem permanecer fiéis e que se esquecem dos seus ornamentos e
cintos das almas chamadas para as núpcias com Cristo. Vós me dissestes, felizes: “Desde quando Tu vieste,
nós não tivemos mais doentes nem mortos. A tua bênção nos protegeu.” Sim grande coisa é a saúde. Mas,
fazei que a minha vinda de agora vos faça a todos sãos de espírito, e sempre e em tudo. Para isso, Eu vos
abençôo e vos dou a minha paz, a vós e aos vossos filhos, aos campos, às casas, às messes, aos rebanhos, às
árvores frutíferas. Servi-vos de tudo isso com santidade, não vivendo para essas coisas, mas por meio delas,
dando o supérfluo a quem não tem e adquirindo vós assim a medida calcada das bênçãos do Pai e um lugar
no Céu. Ide. Eu fico para rezar…
9 de julho [1945].
212.8 Releio o que escrevi ontem, para colocar no lugar certas palavras incompreensíveis, por piedade dos
teus olhos, Padre. Reler isto me deixa desolada… é tão inferior àquilo que experimentei enquanto descrevia
o meu estado de ânimo! Porém, agora eu, para ajudar-me a dizer o que o Senhor me fazia experimentar e
pelo medo de dizer mal, e para ter um alívio — porque é também um sofrimento, sabes? — eu chamava o
meu São João. Dizia-lhe: “Tu sabes bem estas coisas. Tu as experimentastes. Ajuda-me.” Nem me faltou a
sua presença, o seu sorriso de eterno menino bom e a sua carícia. Mas agora sinto que a minha pobre
palavra é tão inferior ao sentimento que experimentava… Tudo quanto é humano é palha, o ouro é somente
o sobrenatural. Mas o humano não o pode nem mesmo descrever.
[82] diz em Jeremias 2 que trata de apostasia de Israel.
[83] Eu vos digo, recordando o quanto se narra em Êxodo 32-34.
213. Em Keriot Jesus faz uma profecia
e lá começa a pregação dos apóstolos.
[9 de julho de 1945.]
[84], morto,
213.1 Vejo o interior da sinagoga de Keriot. No mesmo lugar em que Saul foi estendido no chão
depois de ter visto a futura gloria de Cristo. E neste lugar, num grupo compacto, do qual emergem Jesus e
Judas — que são os mais altos, e ambos com os rostos cintilantes, um por causa do seu amor e o outro pela
alegria de ver que a sua cidade é sempre fiel ao Mestre e que se honra com a pompa e as honrarias que lhe
são prestadas, — aí estão os notáveis de Keriot e, depois, mais longe de Jesus, mas apinhados como
sementes em uma sacola, os moradores estão enchendo tanto a sinagoga, que mesmo estando abertas as
suas portas, nela mal se pode respirar. E, para lhe prestarem suas honras, para ouvirem o Mestre, acabam
por fazerem todos uma grande confusão, e um barulho tal, que já não se pode ouvir nada.
Jesus suporta tudo aquilo, e se cala. Mas os outros se inquietam, dão gritos, e dizem:
– Silêncio!
Contudo, o grito deles se perde no meio do grande barulho, como um grito lançado sobre uma praia, em
hora de tempestade.
Judas, porém, não fica só em palavras. Ele sobe numa cadeira alta e começa a bater umas nas outras as
lâmpadas que estão penduradas em feixes. O metal oco ressoa, as correntinhas retinem como instrumentos
musicais, ao baterem também umas nas outras. Então as pessoas se acalmam e, finalmente, se pode ouvir
Jesus falar.
Ele diz ao sinagogo:
– Dá-me o décimo rolo daquela estante.
E, tendo-o recebido, o desenrola e o dá ao sinagogo, dizendo:
– Lê o capítulo 4º do livro II dos Macabeus.
Obediente, o sinagogo lê. E as vicissitudes de Onias, e os erros de Jasão, as traições e furtos de Menelau
vão passando assim diante do pensamento dos presentes. O capitulo terminou. O sinagogo olha para Jesus,
que o ficou escutando atentamente.
213.2 Jesus faz sinal de que basta, e depois, se dirige ao povo:
– Na cidade do meu caríssimo discípulo Eu não vou dizer minhas costumeiras palavras de ensinamento.
Permaneceremos aqui alguns dias e Eu quero que seja ele quem vo-las diga. Porque daqui é que Eu quero
que tenha começo o contato direto, o contato contínuo entre os apóstolos e o povo. Isso foi decidido lá na
alta Galileia, e lá já começou a brilhar. Mas a humildade dos meus discípulos fez que depois eles se
retirassem para a sombra, porque eles têm medo de não saberem fazê-lo bem e de ficarem usurpando o
meu lugar. Não. Eles devem fazê-lo, e o farão bem, e ajudarão ao seu Mestre. Aqui, pois, unindo em um
único amor os confins da Galileia e da Fenícia com as terras de Judá, que são as mais meridionais e se
limitam com os países do sol e das areias, aqui é que deve ter começo a verdadeira pregação apostólica.
Porque o Mestre já não basta para atender às necessidades das multidões. E porque é justo que as
águiazinhas deixem o ninho e dêem os seus primeiros vôos, enquanto o sol está com elas, e as asas robustas
dele as sustentam.
Por isso Eu, nestes dias, serei vosso amigo e vosso conforto. Eles serão a palavra, e irão espargindo as
sementes que Eu lhes dei. Eu não direi por isso, palavras de ensinamento público, mas vos darei uma coisa
privilegiada. Uma profecia. Eu vos peço que vos lembreis dela pelos tempos futuros, quando o
acontecimento mais horrível da História tiver ofuscado o sol e, nas trevas, pode ser que os corações sejam
arrastados a um julgamento errado. Não quero que vós sejais induzidos a erro, vós, que, desde os primeiros
momentos, fostes bons para comigo. Não quero que o mundo possa dizer “Keriot foi inimiga de Cristo.” Eu
sou justo. Não posso permitir que a crítica, tanto a invejosa, como a enamorada de Mim, possa, cada uma
delas incentivada por seus sentimentos, acusar-vos de culpas contra Mim. E, assim como não se pode, em
uma família numerosa, pretender que os filhos sejam iguais em santidade, assim também não se pode
pretender que o sejam os habitantes de uma cidade populosa. Mas seria uma grande falta de caridade, se
alguém dissesse, por causa de um filho mau, ou por causa de um dos habitantes, que não era bom: “Toda a
família, ou toda a cidade está amaldiçoada.”
Portanto, ouvi, e lembrai-vos disso, sede sempre fiéis e, como Eu vos amo tanto, que quero defender-vos
de qualquer acusação injusta, assim, vós, procurai saber amar aos que não têm culpa. Sempre. Sejam quem
forem. Seja qual for o parentesco que eles tenham com os culpados.
213.3 Agora, escutai. Virá um tempo em que em Israel aparecerão delatores do tesouro e da pátria, e eles,
na esperança de se tornarem amigos dos estrangeiros, falarão mal do verdadeiro Sumo Sacerdote,
acusando-o de aliança com os inimigos de Israel, e de atos maus contra os filhos de Deus. E, para
conseguirem isso, serão capazes de cometer delitos e de atribuir a responsabilidade por eles ao Inocente. E
tempo virá, sempre em Israel, no qual, mais ainda que nos tempos de Onias, um infame, conspirando para
ser ele o Pontífice, irá procurar os poderosos de Israel e os corromperão com o ouro, ainda mais infame, de
suas palavras mentirosas e, ao mesmo tempo, alterará a verdade dos fatos; não falará contra as culpas,
mas, pelo contrário, irá atrás de suas indignas metas, pôr-se-á a corromper os costumes, para ter, como
presas mais fáceis, os espíritos privados da amizade com Deus. Tudo para atingir a sua meta. E conseguirá.
Oh! Com certeza! Porque, se na própria morada do monte Moriá não estão mais os ginásios do ímpio Jasão,
eles estão nos corações dos habitantes do monte que, como garantia, estão dispostos a vender uma coisa
que é bem mais do que um terreno, e que é a própria consciência deles. Os frutos do erro antigo são vistos
agora e, quem tiver olhos para ver, verá isso acontecer no lugar onde deveria haver caridade, pureza,
justiça, bondade, religião santa e profunda. Mas, se esses são os frutos que já fazem tremer, os frutos
nascidos das sementes destes não só serão objeto de tremor, mas de maldição divina.
E eis-nos chegados à verdadeira profecia. Em verdade Euvos digo: Por aquele que se apoderou de um
posto e da confiança, por meio de jogadas calculadas e astutas é que será entregue, por dinheiro, às mãos
dos inimigos, o Sumo Sacerdote, o Verdadeiro Sacerdote. Arrastado para a cilada por meio de um gesto de
afeto, será mostrado aos carrascos por meio de um gesto de amor, e Ele será morto sem preocupações com
a justiça. Que acusações serão feitas a Cristo, pois é de Mim que estou falando, para justificarem o direito
de matá-lo? E que sorte estará reservada para os que isso fizerem? Uma sorte, na mesma hora e de horrível
justiça. Uma sorte não individual, mas coletiva, para os cúmplices do traidor. Uma sorte mais distante, e
ainda mais horrível do que a do homem que o remorso levará a coroar o seu espírito de demônio com um
último delito contra si mesmo. Porque aquilo em um momento terminará. Mas este último castigo será
longo, terrível. Encontrai-o nesta frase: “E, aceso em ira, ordenou que Andrônico fosse despojado de sua
púrpura e morto no lugar onde havia cometido a impiedade contra Onias.” Sim. A raça sacerdotal será
punida em seus filhos e também nos executores. E o destino da massa de cúmplices, podeis lê-lo nestas[85]
palavras. “A voz deste sangue grita a Mim da terra. Agora, pois, tu serás maldito…” E ela será dita por Deus
a todo um povo que não terá sabido guardar o dom do Céu. Porque, se é verdade que Eu vim para redimir,
ai daqueles que forem assassinos, e não redimidos, no meio deste povo, que recebeu como primeira
redenção a minha Palavra.
Já o disse. Lembrai-vos disso. E, quando ouvirdes dizer que Eu sou um malfeitor, dizei: “Não. Ele já o
disse. Isto é o que foi marcado e se está cumprindo. Ele é a Vítima morta pelos pecados do mundo…”
213.4 A sinagoga se esvazia, e todos saem falando e gesticulando, e o seu assunto é a profecia e a estima
que Jesus tem por Judas. Os habitantes de Keriot estão exaltados pela honra que lhes deu o Messias, ao
escolher a terra de um apóstolo, e logo do apóstolo de Keriot, para iniciar lá o ministério apostólico, e
começando pelo dom da profecia. Ainda que seja triste, é uma grande honra tê-la ouvido e, ainda mais, com
as palavras de amor que a precederam…
Na sinagoga ficam Jesus e os grupo dos apóstolos. E passam para o pequeno jardim, que fica entre a
sinagoga e a casa do sinagogo. Judas sentou-se e está chorando.
– Por que estás chorando? Não vejo motivo para isso… –diz o outro Judas.
– Mas vede bem. Quase que eu faria também o que ele está fazendo. Vós ouvistes? Agora é preciso que
falemoos nós… –diz Pedro.
– Mas nós já falamos um pouco lá no monte. Sempre o iremos fazendo melhor. Tu e João logo já fostes
capazes –diz Tiago de Zebedeu para encorajar.
– O pior é comigo… mas Deus me ajudará. Não é mesmo, Mestre? –pergunta André.
Jesus estava enrolando os rolos, que ia levando consigo, vira-se e diz:
– Que é que estáveis dizendo?
– Que Deus me ajudará, quando eu tiver que falar. Eu procurarei repetir as tuas palavras do melhor
modo que eu puder. Mas meu irmão está com medo e Judas está chorando.
– Estás chorando? Por quê? –pergunta Jesus,
– Porque verdadeiramente eu pequei. André e Tomé o podem dizer. Eu falei mal de Ti e Tu me fizestes
bem, ao chamar-me de “caríssimo discípulo” e querendo que eu seja mestre aqui… Quanto amor!…
– Não sabias que Eu te amava?
– Sim. Mas… Obrigado, Mestre. Não murmurarei nunca mais, porque realmente eu sou as trevas e Tu és
a Luz.
O sinagogo volta, convidando-os a entrar em casa e, enquanto vai, ele diz:
– Estou pensando nas tuas palavras. Se eu compreendi bem, assim como encontraste em Keriot um
predileto, nosso Judas de Simão, também profetizas que aqui encontrarás um indigno. Isso me aflige. Mas,
menos mal, porque Judas compensará o outro…
– Com todo o meu ser –diz Judas, que já recobrou o domínio de si mesmo.
Jesus nada diz, mas olha para os seus interlocutores, e faz um gesto, abrindo os braços, como para dizer:
“Assim é.”
[84] em que Saul foi estendido no chão em 78.8.
[85] nestas, isto é, nas palavras que se leem em Gênesis 4,10-11, enquanto as outras citações são de 2 Macabeus 4, como se disse no início.
214. A mãe de Judas confidencia-se à mãe de Jesus,
que chegou a Keriot acompanhada por Simão Zelotes.
10 de julho de 1945.
214.1 Jesus está para ir colocar-se à mesa na bela casa de Judas, junto com todos os seus. E diz à mãe de
Judas, que acaba de chegar de sua casa de campo, para hospedar dignamente o Mestre:
– Não, mãe. Tu também precisas estar conosco. Aqui estamos como uma família. Não será este um
banquete frio e cerimonioso de hóspedes ocasionais. Eu te tomei um filho, assim como Eu te tomo como
mãe, porque és muito digna disso. Não é verdade, amigos, que assim nos sentiremos todos mais contentes e
mais à vontade?
Os apóstolos e as duas Marias concordam com prazer. E a mãe de Judas, com um grande brilho em suas
pupilas, vai sentar-se entre o seu filho e o Mestre, que tem à frente as duas Marias, com Margziam entre
elas. O servente chega com as iguarias, que Jesus oferece e abençoa, depois distribui, pois neste ponto a
mãe de Judas é inflexível. E Jesus distribui, sempre começando por ela, o que cada vez mais comove a
mulher, enche de orgulho Judas e, ao mesmo tempo, o faz ficar pensativo.
A conversação é sobre diversos assuntos e Jesus procura fazer que se interesse por eles a mãe de Judas,
e que ela se familiarize com as duas discípulas.
214.2 Para isso muito ajuda Margziam, que declara já querer muito bem à mãe de Judas, “porque ela se
chama Maria, como todas as mulheres que são boas.”
– E àquela, que nos está esperando lá no lago, não quererás bem, meu malvadinho? –pergunta Pedro,
meio sério.
– Oh! Muito bem, se ela for boa.
– Disto podes estar certo. Todos o dizem, e eu também devo dizê-lo, pois, se foi sempre mansa com sua
mãe e comigo, é sinal de que é boa. Mas ela não se chama Maria, meu filho. Ela tem um nome esquisito,
que foi o pai dela que lhe pôs e que é o nome da coisa que lhe havia dado riqueza e, por isso, a quis chamar
de Púrpura. Porque a púrpura é bela e preciosa. Minha mulher não é bela, mas é preciosa por sua bondade.
E eu lhe quis bem, porque ela era muito tranquila, casta e silenciosa. Três virtudes…hein?!, que não se
encontram facilmente! Eu tinha olhado para ela, desde quando ela era menina. Eu descia para Cafarnaum
com o peixe e a via junto às redes, ou à beira da fonte e também na horta da casa. Trabalhando calada, ela
não era como uma borboleta leviana, que voa para um lado e para outro, nem como uma franga,
descontrolada e que vira os olhos para onde ouve cantar o galo. Ela nunca levantava a cabeça, quando
ouvia vozes de homem, e, quando eu, apaixonado por sua bondade e pela beleza de suas tranças, que eram
as suas únicas belezas, e também compadecido por sua condição de escrava em família, quando eu lhe
dirigi as primeiras saudações, — ela estava então com dezesseis anos, — ela me respondeu com dificuldade,
baixando ainda mais o seu véu e conservando-se ainda mais retirada em sua casa. Assim é. Levou tempo
para que eu não era um bicho-papão e para lhe enviar o paraninfo!… Mas eu não me arrependo. Poderia eu
dar uma volta por toda a terra, que outra como ela eu não encontraria. Não é verdade, Mestre, que ela é
boa?
– Muito boa. Estou certo de que Margziam vai gostar dela, ainda que ela não se chame Maria. Não é,
Margziam?
– Sim. Ela se chama “mamãe.” E as mamães são boas e são amadas.
214.3 Depois, Judas conta o que fez durante o dia. Compreendi que ele foi avisar à mãe da chegada deles e
que depois, começou a falar pelas campinas de Keriot, tendo por companheiro André. Em seguida, ele diz:
– Mas amanhã eu gostaria que viésseis todos: Eu não quero brilhar por mim mesmo. Iremos, quanto
possível, um judeu e um galileu. Eu com João, por exemplo e Simão com Tomé. Se o outro Simão viesse!
Mas vós dois, (e mostra os filhos de Alfeu), podeis ir juntos. Eu tenho dito, mesmo a quem não queria saber,
que vós sois os irmãos do Mestre. E vós dois também (e mostra Filipe e Bartolomeu) podeis ir juntos. Eu
tenho dito que Natanael é um rabi que se pôs a acompanhar o Mestre. É uma coisa que impressiona. E…
vós três estais sobrando. Mas se Zelotes vier, pode-se fazer uma dupla a mais. Depois nos iremos
revezando, porque quero que conheçam a todos vós…
Judas está entusiasmado:
– Eu falei sobre o Decálogo, Mestre, procurando pôr em destaque especialmente aquelas partes nas
quais esta região mais falta…
– Não tenhas a mão pesada, Judas. Eu te peço isto. Tem sempre presente que mais consegue a doçura do
que a intransigência, e que tu também és homem. Por isso, examina-te, e reflete como é fácil que tu
também caias e como te irritas, ao fazeres censuras muito severas –diz Jesus, enquanto a mãe de Judas
inclina a cabeça, ficando muito corada.
– Não tenhas medo, Mestre. Eu me esforço por imitar-te em tudo. Mas no povoado, que daqui estamos
vendo por aquela porta, (estão comendo com as portas abertas, e vê-se um belo horizonte daqui desta
câmara sobrelevada) há um doente que quereria ficar são. Mas, não se pode transportá-lo. Poderias ir
comigo?
– Amanhã, Judas. Amanhã cedo, sem falta. E, se houver outros doentes, dizei-me ou trazei-os a Mim.
– Queres mesmo fazer o bem à minha terra, Mestre?
– Sim. Para que não se diga que Eu tenha sido injusto com quem não me fez mal. Eu faço o bem até aos
maus! Por que, então, não o faria aos bons de Keriot? Quero deixar uma lembrança indelével de Mim…
– Mas, como? Não voltaremos mais aqui?
– Voltaremos ainda, mas…
214.4 – Aí vem a mãe, a mãe com Simão! –diz o menino, que vê Maria e Simão subindo pela escada que vai
para o terraço, no qual está o quarto.
Todos se põem de pé e vão ao encontro dos dois que estão chegando. Há um rumor de exclamações, de
saudações, de cadeiras arrastadas. Mas nada desvia Maria de ir saudar primeiro a Jesus, depois à mãe de
Judas, que se inclinou profundamente e que Maria procura fazer que se reerga e abraça como se fosse uma
amiga reencontrada por ela depois de ausência.
Tornam a entrar no quarto e Maria de Judas manda mais alimentos para os que chegaram depois.
– Aqui está, meu Filho, a saudação de Elisa.
E dá um pequeno rolo a Jesus, que o abre e lê, dizendo depois:
– Eu já sabia. Eu estava certo disso. Obrigado, mamãe. Por Mim e por Elisa. Tu és verdadeiramente a
saúde dos enfermos!
– Eu? Tu, meu Filho. Não eu.
– Tu. E és a minha maior ajuda.
Depois se vira para os apóstolos e as discípulas, e diz:
– Elisa escreve: “Volta, minha Paz! Eu quero, não só amar-te, mas servir-te.” E foi assim que livramos da
angústia e da melancolia uma criatura e ganhamos uma discípula. Nós voltaremos lá, sim.
– Ela quer conhecer também as discípulas. Vai chegando pouco a pouco, mas sem paradas. Pobre
querida! Tem ainda alguns momentos de um desmaio medonho. Não é, Simão? Um dia ela quis
experimentar sair comigo, mas viu um amigo de seu Daniel… e tivemos muito trabalho para acalmar o seu
pranto. Mas Simão é muito inteligente! E me sugeriu que chamasse Joana, visto que ela tem o desejo de
voltar para o mundo, mas que o mundo de Betsur é cheio demais de lembranças para ela. E foi ele mesmo
chamá-la. Ela tinha acabado de chegar, depois das festas, a Beter, voltando para perto de seus esplêndidos
roseirais da Judeia. Diz Simão que para ele foi um sonho poder atravessar aquelas colinas cheias de
roseiras, e que isso o fazia pensar que estava no Paraíso. Ela veio logo. Ela pôde compreender e ter
compaixão de uma mãe que chora por seus filhos. Elisa se lhe afeiçoou muito e eu vim. Joana quer persuadi-
la a sair de Betsur e a ir para o seu castelo. E ela conseguirá, porque é doce como uma pomba, mas firme
em seus propósitos como o granito.
– Iremos a Betsur na volta, e depois nos separaremos. Vós, discípulas, ficareis com Elisa e Joana por
algum tempo. Nós iremos pela Judeia e nos reencontraremos em Jerusalém, na Festa do Pentecostes…
214.5 Maria, mãe de Jesus e Maria, mãe de Judas estão juntas. Não na casa da cidade, mas na do campo.
Estão sozinhas. Os apóstolos com Jesus estão fora, as discípulas com o menino estão andando pelo pomar e
se ouvem suas vozes, unidas ao rumor de panos batidos nos tanques de lavar roupa. Talvez elas estejam
fazendo a lavação enquanto o menino está brincando.
A mãe de Judas está sentada num quarto meio escuro ao lado de Maria, e lhe está falando:
– Estes dias de paz ficarão em mim como um doce sonho. Eles são tão breves! Tão breves! Eu
compreendo que não devemos ser egoístas e que é justo que vades àquela pobre mulher e a tantos outros
infelizes. Mas, se eu pudesse! Se eu pudesse fazer o tempo parar ou, então, ir convosco!… Mas eu não
posso. Não tenho outros parentes a não ser meu filho, e devo tomar conta dos bens da casa…
– Compreendo… Separar-te do teu filho é uma dor. Nós mães gostaríamos de estar sempre com os filhos.
Mas quando nós os damos por alguma razão bem grande, não os perdemos. Nem mesmo a morte nos tira os
filhos, se eles estiverem e se nós estivermos, em graça aos olhos de Deus. Mas nós os temos ainda neste
terra, mesmo quando a vontade de Deus no-los tira de nossos seios para dá-los ao mundo para o seu bem.
Podemos sempre encontrar-nos com eles e até o eco de suas almas nos faz como que uma carícia ao
coração, porque as obras deles são perfume de sua alma.
214.6 – Que é o teu Filho para ti, mulher? –pergunta em voz baixa Maria de Judas.
E Maria, mãe de Jesus, segura responde:
– É a minha alegria.
– A tua alegria!… –e depois vem uma explosão de pranto, enquanto a mãe de Judas se inclina sobre si
mesma, como para esconder o pranto. Sua fronte se abaixa quase até os joelhos, de tanto que ela se
inclinou.
– Por que estás chorando, minha pobre amiga? Por quê? Dize-o a mim. Eu sou feliz em minha
maternidade, mas sei também compreender as mães não felizes…
– Sim. Não felizes! E eu sou uma delas. Teu Filho é a tua alegria…O meu é a minha dor: tem sido, ao
menos. Agora, desde quando está com o teu Filho, ele me aflige menos. Oh! Entre todas as que rezam pelo
teu santo Filho, para que Ele se saia bem e triunfe, não existe nenhuma, depois de ti, ó bem-aventurada,
que reze tanto como esta infeliz, que te está falando… Dize-me a verdade: que pensas tu do meu filho? Nós
somos duas mães, uma na frente da outra: entre nós está Deus. E estamos falando de nossos filhos. Tu não
podes deixar de achar fácil falar do teu. Eu…eu devo fazer força contra mim mesma para falar do meu.
Mas, na verdade, quanto bem, ou quanta dor me pode provir de estar falando dele. Pois, ainda que seja
doloroso, sempre será um consolo ter falado.
Aquela mulher de Betsur ficou quase doida, por causa da morte de seus filhos, não foi? Mas eu te juro
que, às vezes, pensei e penso, quando olho para o meu Judas belo, sadio, inteligente, mas não bom, não
virtuoso, não direito de espírito, não sadio em seus sentimentos, que eu preferiria chorá-lo morto, a sabê-
lo… a sabê-lo muito desagradável a Deus. Tu, então, dize-me: Que pensas do meu filho? Sê sincera. Há mais
de um ano que esta pergunta me vem queimando o coração. Mas, fazer eu esta pergunta a quem? Aos
moradores da cidade? Eles não sabiam ainda que o Messias estava na terra e que Judas queria andar na
companhia dele. Eu sabia disso. Ele o havia dito, quando veio aqui depois da Páscoa, exaltado, violento
como sempre, quando se apodera dele algum capricho e, como sempre, desprezando os conselhos de sua
mãe. Perguntar aos amigos dele de Jerusalém? Uma santa prudência e uma piedosa esperança me detinham
de fazer isso. Eu não queria dizer a eles, aos quais não posso amar, porque tudo eles são, menos santos, o
seguinte: “Judas está acompanhando o Messias.” E eu esperava que aquele capricho acabasse, como muitos
outros, como todos os outros, custando talvez lágrimas e desolações como por mais de uma mocinha que,
aqui e em outros lugares ele namorou, pensando em si só e depois jamais tomou por esposa.
Não sabes que há lugares aonde ele não vai mais, porque poderia encontrar lá um justo castigo?
Também ser ele do Templo foi um capricho dele. Ele não sabe o que quer. Nunca. O pai dele, Deus lhe
perdoe, o estragou. Eu nunca tive voz, diante dos dois homens da minha casa. Eu só tive que chorar, e viver
com humilhações de toda sorte… Quando Joana morreu — e, ainda que ninguém o dissesse, eu sei que ela
morreu de dor, quando, depois de ter esperado durante toda a sua juventude, Judas declarou que ele não
queria mulher, ao passo que depois ficou sabido que ele tinha mandado amigos a Jerusalém para
perguntarem a uma mulher rica, e que possuía empórios até Chipre para sua filha — eu tive que chorar
muito, muito, por causa das censuras da mãe da mocinha morta, como se eu fosse cúmplice do meu filho.
Não. Eu não sou. Mas eu nem sou nada para ele.
No ano passado, quando o Mestre esteve aqui, compreendi que Ele havia entendido… e quis falar com
ele. Mas é doloroso e ainda mais para uma mãe, é doloroso ter que dizer: “Temei o meu filho: é um
avarento, um duro de coração, um viciado, um soberbo, um inconstante.” E ele é isto. Eu… eu rezo para que
teu Filho faça um milagre, Ele que faz tantos, faça um milagre sobre meu Judas… Mas tu, dize-me tu: que é
que pensas dele?
214.7Maria, que, nesse meio tempo ficou calada e com uma expressão de dor e piedade, diante deste
lamento materno, ao qual seu espírito reto não pode desmentir, diz em voz baixa:
– Pobre mãe!… Que é que eu penso? Sim, o teu filho não é aquela alma límpida de João, nem manso
como André, nem firme como Mateus, que quis mudar, e mudou. É… instável, sim, é assim. Mas nós
rezaremos muito por ele, eu e tu. Não chores. Talvez no teu amor de mãe, que gostaria de gloriar-se de seu
filho, tu o estejas vendo mais disforme do que é…
– Não! Não! Eu vejo o que é verdade e fico com muito medo.
O quarto está cheio com os lamentos e o pranto da mãe de Judas e, naquela meia escuridão, o rosto
branco de Maria fica parecendo mais pálido, depois dessa confissão materna, que faz que se tornem
evidentes aquelas coisas de que já suspeitava a mãe do Senhor.
Mas ela se domina. Atrai a si aquela mãe não feliz, e a acaricia, enquanto esta, tendo rompido os diques
de toda reserva, vai narrando, de modo confuso e cansativo, todas as durezas, exigências e violências de
Judas, e termina dizendo:
– Eu fico envergonhada por causa dele, quando me vejo tratada, como se fosse merecedora dos atos de
amor do teu Filho! Eu não os peço. Mas tenho a certeza de que, além de os fazer por sua bondade, Ele os
faz, mais para dizer, com aqueles gestos, a Judas: “Lembra-te de que é assim que se trata a mãe.” Agora,
neste momento, ele parece muito bom… Oh! Se fosse verdade! Ajuda-me, ajuda-me com a tua oração, tu,
que és santa, para que o meu filho não seja indigno da grande graça que Deus lhe concedeu! Se ele não me
quer amar, não sabe ser agradecido a mim que o dei à luz e o criei, não é nada. Mas que ele saiba amar
realmente a Jesus, que saiba servi-lo com fidelidade e reconhecimento. Se assim não for… então, que Deus
lhe tire a vida. Eu prefiro vê-lo no sepulcro… eu o teria para mim finalmente porque, desde que chegou ao
uso da razão, muito pouco ele foi meu. Melhor morto do que um mau apóstolo. Posso rezar assim? Que
achas?
– Reza ao Senhor que faça o que for melhor. Não chores mais. Eu já vi meretrizes e pagãos aos pés do
meu Filho, e com eles publicanos e pecadores. Tornaram-se todos cordeiros, pela sua Graça. Espera, Maria,
espera. Os sofrimentos das mães salvam os filhos, não sabes disso?
E, com esta piedosa pergunta, tudo termina
215. Em Betgina falam Filipe e André.
A cura da filha lunática do albergador.
11 de julho de 1945.
215.1 Não vejo nem a volta a Betsur, nem os roseirais de Beter, que eu tanto desejava ver. Jesus está
sozinho com os apóstolos. Não está aqui nem Margziam, que ficou certamente com Maria e as discípulas.
Estamos em um lugar muito montanhoso mas também muito rico de vegetação, com bosques de coníferas,
ou melhor, de pinhos, e o cheiro de suas resinas se espalha por toda parte, balsâmico e vitalizante. E,
através destes montes verdes, Jesus vai caminhando, com as costas viradas para o oriente, junto com os
seus.
Ouço que estão falando de Elisa, que apareceu muito mudada, e persuadida a acompanhar Joana em sua
propriedade de Beter, pela bondade de Joana. Ouço também que estão falando da nova excursão que vão
fazer, indo para as férteis planícies, que ficam perto da beira-mar. Os nomes das glórias passadas vêm à
tona, relembram-se histórias, fazem-se perguntas, dão-se explicações e travam-se discussões pacíficas.
– Quando estivermos no cume deste monte, Eu vos mostrarei lá do alto todas as regiões que vos
interessam. Delas podereis tirar pensamentos para as palavras que ireis dizer ao povo.
– Mas, como haveremos de fazer isso, Senhor? Eu não sou bom para isso –geme André, e a ele se
associam Pedro e Tiago–. Nós somos os mais incapazes!
– Oh! Para isso eu também não sou melhor. Se fosse de ouro e prata, eu poderia falar, mas destas
coisas… –diz Tomé.
– E eu? quem era eu? –pergunta Mateus.
– Mas tu não tens medo do publico, tu sabes discutir –replica André.
– Mas é sobre outros assuntos –responde Mateus.
– Ah! Isso é!… Mas… Afinal tu já sabes o que eu quero dizer, e faze de conta que eu já tenha dito. A
verdade é que tu vales mais do que nós –diz Pedro.
– Mas, meus caros, não há necessidade de tratar de coisas muito altas. Dizei simplesmente aquilo que
pensais, mas com a vossa convicção. Podeis crer que, quando alguém fala com convicção, persuade
sempre –diz Jesus.
E Judas de Keriot suplica:
– Dá-nos, Tu, muitas dicas. Pois uma ideia bem sugerida pode servir para muitas coisas. Estes lugares
ficaram sem nenhuma palavra a respeito de Ti, penso eu. Porque ninguém aqui dá sinais de conhecer-te.
– É porque por aqui passa muito aquele vento que vem do monte Moriá…Ele produz esterilidade –
responde Pedro.
– É porque aqui ainda não se semeou nada. Mas nós semearemos –retruca Iscariotes, seguro, sentindo-
se feliz com seus primeiros bons êxitos.
215.2 Chegaram ao alto do monte. Um amplo panorama se abre lá em cima e mais bonito ainda é vê-lo,
estando à sombra das árvores bem copadas, que coroam o cume, tão cheio de cores e tão luminoso, e que é
como um sobrepor-se de cadeias de montanhas, que vão para todos os rumos, como se fossem vagalhões
petrificados de um oceano batido por ventos contrários, que depois se transforma em um golfo de águas
tranquilas, ao ter-se acalmado, e se torna um mar de uma luminosidade sem limites, que está à frente de
uma vasta planície, na qual se ergue, solitário como um farol na entrada de um porto, um outro pequeno
monte.
– Eis aí. Esta região que se estende por todo o cume, como se quisesse aproveitar sozinha todo o sol,
este lugar, onde vamos fazer uma permanência; é como o centro de um grande círculo, no qual há muitos
lugares históricos[86]. Vinde aqui. Lá está (ao norte) Gerimot. Estais lembrados de Josué? A derrota dos reis
que queriam atacar o acampamento de Israel, que se havia tornado forte por sua aliança com os
Gabaonitas. E, perto de Betsames, a cidade sacerdotal de Judá, na qual foi restituída a Arca pelos filisteus,
com ex-votos de ouro, exigidos do povo pelos adivinhos e sacerdotes para obterem a libertação dos flagelos
que atormentavam os culpados filisteus. E lá está, toda cheia de sol, Saraá, a terra de Sansão e, um pouco
mais a leste, Tamna, onde ele se casou e fez tantas proezas e tantas loucuras. E lá Azeca e Socot outrora
território filisteu.
Mais abaixo ainda, esta Zanoé, uma das cidades de Judá. E aqui, voltai-vos, eis o Vale do Terebinto, onde
Davi se bateu com Golias. E, mais para lá está Maceda, onde Josué derrotou os Amorreus. Olhai ainda.
Estais vendo aquele monte solitário, no meio da planície que, tempos antes, havia sido dos filisteus? Lá fica
Gat, terra de Golias e lugar de refúgio para Davi, perto de Áquis, quando ele fugiu da louca ira de Saul, e
onde o sábio rei se fingiu de louco, porque o mundo preserva os loucos contra os sábios. Aquele horizonte
aberto são as planícies da fertilíssima terra dos filisteus. Nós passaremos por ela até Ramlá. E agora
estamos entrando em Betgina. Tu, tu mesmo, Filipe, que estás olhando para Mim com esses olhos
suplicantes, tu irás com André pelo povoado. Enquanto vós ides, nós permanecemos junto à fonte ou na
praça do povoado.
– Oh! Senhor! Não nos mandes sozinhos. Vem, Tu, conosco! –pedem-lhe os dois.
– Ide, Eu mandei. A obediência vos ajudará mais do que a minha presença.
215.3 … E então, Filipe e André lá se vão, ao acaso, pelo povoado, até encontrarem um pequeno albergue,
mais uma estrebaria do que um albergue, e lá dentro estão intermediários, fazendo negócios de cordeiros
com alguns pastores. Eles entram e param desorientados no meio do pátio rodeado de pórticos muito
rústicos.
Aproxima-se deles o albergador:
– Que desejais? Alojamento?
Os dois se consultam com um olhar, um olhar muito desconfiado. Muito provavelmente deve ter
acontecido que, de tudo o que haviam combinado dizer, não encontram mais nenhuma palavra. Mas é o
próprio André quem se lembra primeiro, e responde:
– Sim, alojamento para nós e para o Rabi de Israel.
– Qual rabi? Há tantos rabis. Mas são muito senhores. Eles não vêm aos povoados dos pobres, para
trazerem sua sabedoria aos pobres. São os pobres que devem ir a eles, e ainda é um favor, quando nos
suportam perto deles!
– O Rabi de Israel é um só. Ele vem justamente para trazer a Boa Nova aos pobres e, quanto mais pobres
e pecadores forem, tanto mais Ele os procura e se aproxima deles –responde docemente André.
– Mas então não vai amealhar dinheiro.
– Não vai à procura de riquezas. É pobre e bom. Considera cheio o dia em que consegue salvar uma
alma –responde ainda André.
– Hum! É a primeira vez que eu ouço dizer que um rabi é bom e pobre. O Batista é pobre, mas é severo.
Todos os outros são severos e ricos, ávidos como umas sanguessugas. Vós ouvistes? Vinde aqui vós que
andais pelo mundo. Estes homens estão dizendo que há um Mestre pobre e bom, que vem à procura dos
pobres e dos pecadores.
– Ah! Deve ser aquele que se veste de branco como um essênio. Eu já o vi, faz algum tempo, em Jericó –
diz um dos intermediários.
– Não. Aquele é sozinho. Deve ser aquele de quem falava Tomé, porque, por acaso, ouviu falar dele com
os pastores do Líbano –responde um pastor alto e musculoso.
– Sim! Com certeza! E ainda vem até aqui, ele que estava no Líbano! Por estes teus olhos de gato! –
exclama outro.
Enquanto o albergador fala com os seus clientes e os escuta, os dois apóstolos ficaram lá, no meio do
pátio, como duas estacas.
215.4 Mas, afinal, um homem diz:
– Ei! Vós, Vinde aqui. Quem é? De onde vem esse que vós dizeis?
– É Jesus de José, de Nazaré –diz sério, Filipe, e fica como quem espera ser escarnecido.
Mas André acrescenta:
– É o Messias prometido. E eu vos conjuro, para o vosso bem: ouvi-o! Vós falastes no Batista. Pois bem,
eu fui um discípulo dele, e foi ele quem nos mostrou Jesus, quando ia passando, e nos disse: “Ali está o
Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo.” E, quando Jesus desceu para ser batizado no Jordão,
abriram-se os céus e uma Voz gritou: “Este é o meu Filho amado, no qual ponho as minhas complacências”,
e o Amor de Deus desceu sobre a cabeça dele, brilhando, sob a forma de uma pomba.
– Estás vendo? É o Nazareno mesmo! Mas, dizei-me uma coisa, vós que vos dizeis amigos dele…
– Amigos, não: apóstolos, discípulos é o que somos, e mandados por Ele para anunciar sua chegada a fim
de que, quem precisa de salvação vá a Ele –corrige André.
– Está bem. Mas, dizei-me uma coisa. Ele é mesmo como alguns dizem, um santo, e mais santo que o
Batista, ou é um demônio, como dizem uns outros? Vós, que aqui estais juntos, se sois discípulos dele, não
deveríeis estar todos juntos? Dizei porque e com sinceridade. É verdade que Ele é um dissoluto e um
beberrão? Que ama as meretrizes e os publicanos? Que Ele é um nigromante e que, durante a noite, evoca
os espíritos para saber os segredos corações?
– Mas, por que perguntas isto a estes homens? –pergunta se é verdade que Ele é bom. Estes dois
poderão levar a mal e, quando forem embora, irão dizer ao Rabi os nossos maus juízos e seremos
amaldiçoados por Ele. Nunca se sabe!… Seja Deus ou o diabo que Ele seja, é melhor tratá-lo bem.
Agora é Filipe que fala:
– Nós vos podemos responder com sinceridade, porque não há nada de feio a esconder. Ele é o nosso
Mestre, é o Santo dos santos. O seu dia é passado nos trabalhos do ensinamento. Incansável, Ele vai de
lugar em lugar, procurando os corações. Ele passa a noite rezando por vós. Não despreza a mesa e a
amizade, mas não para a sua própria vantagem e sim, para fazer que se aproximem os que de outro modo
não o fariam. Ele não rejeita os publicanos nem as meretrizes. Mas somente para redimi-los. Ele marca o
seu caminho com milagres de redenção e milagres sobre as doenças. A Ele obedecem os ventos e o mar.
Mas não precisa de ninguém para operar prodígios, nem de evocar espíritos para conhecer os corações.
– E como pode? Tu disseste que os ventos e o mar lhe obedecem? Mas eles são coisas sem
entendimento. Como pode dar ordens a eles? –pergunta o albergador.
– Responde-me, homem: no teu parecer, é mais difícil dar ordens ao vento e ao mar, ou à morte?
– Por Javé! Mas à morte não se dão ordens! No mar se pode jogar azeite, pode-se usar contra ele as
velas, pode-se, se tiver juízo, não querer andar sobre ele. Ao vento se podem opor as fechaduras das portas.
Mas à morte não se dão ordens. Não há azeite que a acalme. Não há vela que, colocada em nosso
barquinho, faça que ele fique tão rápido, que possa escapar da morte. E para ela não existem fechaduras.
Quando ela quer vir passa, mesmo se usarmos ferrolhos. E ninguém dá ordens a esta rainha!
– E, no entanto, o mestre lhe dá ordens. Não somente quando ela já está perto. Mas até também quando
ela já pegou alguém. Um moço de Naim já estava para ser entregue à boca horrível do sepulcro e Ele disse:
“Eu te digo: levanta-te!”, e o jovem voltou à vida. Naim não fica nos confins do mundo. Vós podeis ir lá e ver.
– Mas assim, na presença de todos?
– Sobre a estrada, na presença de toda Naim.
215.5 O albergador e seus clientes olham um para o outro, em silêncio. Depois o albergador diz:
– Não será só para os amigos que Ele faz aquelas coisas?
– Não, homem. Para todos os que crêem nele, e não só para eles. Ele é a Piedade sobre a terra. Ninguém
se dirige a Ele sem receber nada. Ouvi, todos vós. Não há entre vós alguém que esteja sofrendo e chorando
por doenças na família, por problemas, por remorsos, tentações, ignorâncias? Ide a Ele, o Messias da Boa
Nova. Ele está aqui hoje. Amanhã estará noutro lugar. Não deixeis passar, sem vos aproveitardes dela, a
Graça do Senhor que passa, diz Filipe, que foi ficando cada vez mais convincente.
O albergador desgrenha os cabelos, abre e fecha a boca, aperta as franjas da cintura… e, finalmente,
diz:
– Eu vou experimentar!… Eu tenho uma filha. Até o verão passado, ela estava bem. Depois, tornou-se
lunática. Vive como uma fera muda em um canto, fica sempre lá e com dificuldade é que a mãe a pode
vestir ou pôr-lhe comida na boca. Os médicos dizem que o cérebro dela se queimou por ter tomado sol
demais, e outros dizem que foi por algum amor contrariado. O povo acha que ela está endemoninhada. Mas
como, se ela é uma jovenzinha que quase não saiu daqui? Onde foi que esse demônio a pegou? Que diz
sobre isso o teu Mestre? Que o demônio pode pegar até um inocente?
Filipe lhe responde com segurança:
– Sim, para atormentar os parentes e levá-los ao desespero.
– E… Ele cura os lunáticos? Poderei esperar isso?
– Deves crer –diz prontamente André.
E conta o milagre dos gerasenos, depois termina:
– Se os que eram uma legião nos corações dos pecadores, tiveram que fugir assim, como não haverá de
fugir o que penetrou à força no coração de uma jovenzinha? Eu te digo, homem: para quem espera nele, o
impossível se torna fácil como o respirar. Eu vi as obras do meu Senhor e dou testemunho do seu poder.
– Oh! Então, quem de vós pode ir chamá-lo?
– Eu mesmo, homem. Espera-me daqui a pouco.
E André vai sem demora, enquanto Filipe fica falando.
215.6 Quando André vê Jesus, parado debaixo de um alpendre para proteger-se do sol implacável, que
enche a pequena praça do povoado, corre ao encontro dele, e lhe diz:
– Vem, vem, Mestre. A filha do albergador é lunática. O pai te pede que a cures.
– Mas ele me conhecia?
– Não, Mestre. Nós procuramos fazer que te conhecesse…
– E o conseguistes. Quando alguém chega a crer que Eu possa curar um mal sem precisar de remédio, já
está adiantado na fé. E vós tendes medo de não saber fazer. Que foi que dissestes?
– Eu nem saberia te dizer. Nós dissemos o que pensamos de Ti e de tuas obras. Sobretudo, dissemos que
Tu és o Amor e a Piedade. O mundo te conhece tão mal!
– Mas vós me conheceis bem. É o que basta.
215.7 Chegaram ao pequeno albergue. Todos os clientes estão à porta, cheios de curiosidade, e no meio,
com Filipe, está o albergador, que continua a falar consigo mesmo.
Quando ele vê Jesus, corre ao encontro dele, dizendo:
– Mestre, Senhor, Jesus… eu…eu creio, eu creio tanto que Tu és Tu, que sabes tudo, que tudo vês, que
tudo conheces, que tudo podes e tanto eu creio, que te digo: Tem piedade da minha filha, ainda que eu
tenha muitas culpas no meu coração. Que não caia sobre a minha filha o castigo por ter sido eu desonesto
na minha profissão. Mas juro que não serei mais avarento. Tu estás vendo o meu coração com o seu
passado e com o pensamento que agora tem. Perdão e piedade, Mestre, e eu falarei de Ti a todos os que
vierem até à minha casa.
O homem está de joelhos.
Jesus lhe diz:
– Levanta-te, e persevera nos sentimentos de agora. Leva-me à tua filha.
– É uma estrebaria, Senhor. O mormaço faz que ela fique ainda mais doente. E ela não quer sair.
– Não importa. Eu irei até onde ela está. Não é o mormaço. É que o demônio percebe que Eu estou
chegando.
Entram no pátio e dele passam para uma estrebaria escura e todos vão atrás. A moça, despenteada,
muito magra, está se agitando no canto mais escuro e, logo que vê Jesus, grita:
– Para trás, para trás! Não me venhas perturbar. Tu és o Cristo do Senhor e eu um dos golpeados por Ti.
Deixa-me sossegado. Por que sempre vens atrás de meus passos?
– Sai dela. Vai-te embora. Eu o quero. Entrega a Deus a tua presa e cala-te!
Um urro dilacerante, um pulo e o relaxar-se de um corpo sobre a palha… e depois se ouvem, calmas,
tristes, admiradas, as perguntas: “Onde é que estou? Por que é que estou aqui? Quem são estas pessoas?” e
depois esta invocação “Mamãe” da jovem que se sente envergonhada por estar sem véu e com uma veste
rasgada, diante da vista de muitos olhos estranhos.
– Oh! Senhor Eterno! Mas ela está curada!…
E, coisa estranha de ver-se no rubicundo e corado albergador, um pranto de menino… Ele está feliz, e
chora sem saber de nada mais, a não ser beijar as mãos de Jesus, enquanto a mãe chora, no meio de uma
coroa de filhos assombrados, e beija a sua primogênita, que ficou livre do demônio.
Os presentes estão todos num vozear e outros estão chegando para ver o prodígio. O curral está cheio.
– Fica conosco, Senhor. A tarde está chegando. Permanece debaixo do meu teto.
– Homem, nós somos treze.
– Ainda que fôsseis trezentos, não faria mal. Eu sei o que queres dizer. Mas o Samuel, avarento e
desonesto, morreu, Senhor. Foi-se embora também o meu demônio. Agora, aqui está um novo Samuel.
Continuará a ser o albergador. Mas como um santo. Vem, vem comigo, para que eu te honre como a um rei,
como a um deus. Pois Tu o és. Oh! Bendito seja o sol de hoje que te trouxe a mim.
[86] lugares históricos, onde foram narrados os fatos em Josué 10; Juízes 13-16; 1 Samuel 4-6; 17; 18; 27.
216. A infidelidade dos discípulos
na parábola do assoprador.
12 de julho de 1945.
216.1 Uma planície batida pelo sol, que abrasa os grãos maduros e extrai deles um odor que já lembra o do
pão. É o odor do sol, das barrelas, das messes. É o odor do verão.
Porque cada estação, eu poderia dizer cada mês, e até cada hora do dia, tem o seu odor, assim como
cada localidade tem o seu para alguém que tiver os sentidos muito apurados e o sentido de observação
muito agudo. É muito diferente o odor de um dia de inverno, com um vento cortante, do odor pastoso de um
dia nublado de inverno, ou do odor que a neve espalha. E, como são diferentes desses o odor da primavera
que está para chegar e que se prenuncia assim, com um perfume que não é perfume, mas que é bem
diferente do odor do inverno. Levantamo-nos certa manhã, e sentimos que paira no ar um odor que antes
não havia: é o primeiro suspiro da primavera. E acima, mais acima, vamos subindo e passando pelo odor
das árvores frutíferas, que estão com flores, depois pelos dos jardins, das colheitas, até o odor quente das
vindimas e, entre eles, como para um intervalo, o odor da terra depois de um temporal…
E as horas? Seria tolice dizer que o odor da aurora é como o do meio-dia e que este é como o da tarde,
ou da noite. O primeiro é fresco e virginal, o outro é risonho e alegre, e o outro, ainda cansado é também
saturado de tudo o que, durante o dia, exalou seus odores. O último, o da noite, é pacato, recolhido, como
se a terra fosse um enorme berço, recolhendo seus pequeninos para o repouso.
E os lugares? Oh! o odor da beira-mar, tão diferente das manhãs e das tardes, dos meio-dias e das
noites, das borrascas e do tempo sereno, das regiões pedregosas e daquelas do litoral plano! E o odor das
algas, que ficam descobertas depois das marés, quando fica parecendo que o mar tenha aberto as suas
vísceras, para fazer-nos aspirar o odor do seu fundo. Como é diferente este odor daquele das planícies do
interior, e este daqueles das colinas, e este daquele dos altos montes.
É tão grande a imensidão do Criador, que só Ele foi capaz de imprimir um sinal ou de luz, ou de cor, ou
de perfume, ou de som, ou de forma, ou de altura sobre cada uma das inumeráveis criaturas que criou. Ó
Beleza Infinita do Universo, eu não te vejo mais do que assim, através das visões e da lembrança de tudo o
que vi , amando a Deus e rezando a Ele, passando pelo meio de suas obras, e pela alegria, que só de vê-las
os davam, como és imensa, poderosa, inexaurível e livre de cansaços! Disso não tens, e isso não dás. Pelo
contrário, o homem até se renova, ao olhar para ti, ó Universo do meu Senhor, e se torna melhor, mais puro,
e se eleva, e se esquece. Oh! Poder ficar sempre olhando para Ti e esquecer-nos dos homens em sua parte
inferior e amá-los na e pela sua alma, e para conduzi-los a Deus!
E eis que, acompanhando Jesus, que vai com os apóstolos por esta planície cheia de messes, eu fico
divagando de novo, deixando-me levar pela alegria de falar do meu Deus em suas esplêndidas obras. É
amor também isto, porque a criatura louva nas criaturas o que nelas ama, ou louva, simplesmente à
criatura que ela ama. E assim é também entre a criatura e o Criador. Quem o ama, o louva, e quanto mais o
ama, tanto mais o louva em Si mesmo e por suas obras. Mas agora imponho silêncio ao meu coração, e vou
atrás de Jesus, não como adoradora, mas como cronista fiel.
216.2 Jesus vai, pois, pelo meio das messes. O dia está quente. A região, deserta. Não se vê um homem
pelos campos. Só espigas maduras e árvores aqui e ali. Sol, grãos, passarinhos, lagartixas, moitas verdes,
com as folhas imóveis no ar tranquilo: isto é o que eu vejo ao redor de Jesus. Para os lados das duas
extremidades da estrada mestra, que Jesus vai percorrendo, e que é como uma fita poeirenta e
deslumbrante, por entre o ondular dos trigais, há de um lado um pequeno povoado e do outro uma fazenda.
Nada mais.
Todos vão andando em silêncio, sob o intenso calor. Eles tiraram seus mantos, mas certamente ainda
estão sentindo calor como antes, pois estão com roupas de lã, ainda que leves. Só Jesus, os dois primos e
Judas Iscariotes é que estão vestidos de linho branco ou cânhamo. Com certeza, a veste de Jesus e a de
Iscariotes são de linho branco. As outras, dos filhos de Alfeu, pela sua espessura me parecem mais pesadas
do que as de linho e são tingidas com uma cor de marfim carregada, justamente como a que tem o
cânhamo, quando não alvejado. Os outros vão como de costume, enxugando o suor com o pano de linho,
que lhes serve de véu para a cabeça.
Chegam a um pequeno grupo de árvores, em uma encruzilhada. Param debaixo daquela sombra e, com
avidez, bebem de seus odres.
– Está quente, como se tivesse sido tirada do fogo –resmunga Pedro.
– Se aqui houvesse pelo menos um riacho. Mas nada, nada! –suspira Bartolomeu–. Daqui a pouco, não
tenho mais nada.
– Estou quase dizendo que é melhor a montanha –geme Tiago de Zebedeu, congestionado pelo calor.
– Melhor do que tudo é a barca. Fresca, cômoda, limpa ah!
O coração de Pedro se lembra do seu lago e de sua barca.
– Todos vós tendes razão. Mas os pecadores estão tanto na montanha, como na planície. Se não nos
tivessem expulsado de Águas Belas, e nos perseguido, vindo atrás de nós, Eu teria vindo aqui entre os
meses de Tebet e Shebat. Mas, logo estaremos andando ao longo da beira-mar. Lá o ar é temperado pelo
vento do largo –anima-os Jesus.
– Eh! Precisamos disso. Aqui estamos parecendo uns peixes que estão morrendo. Mas, como fazem os
trigais para estarem tão bonitos, se não há água? –pergunta Pedro.
– Por aqui há águas subterrâneas. Elas conservam úmido o terreno –explica Jesus.
– Melhor seria que estivessem do lado de cima, do que no de baixo. Que vou fazer com elas, se estão
debaixo da terra? Eu não sou uma raiz! –diz o impetuoso Pedro, enquanto todos se riem.
Mas depois Judas Tadeu fica sério, e diz:
– É egoísta o solo, como o são os ânimos e é árido também. Se nos tivessem deixado parar naquele lugar
e passar lá o sábado, teríamos sombra, água e repouso. Mas eles nos expulsaram…
– Até alimento teríamos tido. Mas nem isto. Eu estou com fome. Se aqui houvesse frutas. Mas as árvores
frutíferas estão perto das casas. E quem é que vai até elas? Se todos forem do mesmo humor que aqueles
de lá… –diz Tomé, acenando para o povoado que deixaram atrás, a leste.
– Toma o meu alimento. Eu nunca tenho muita fome –diz Zelotes.
– Tomai também o meu –diz Jesus–. Quem estiver com mais fome, coma.
Mas, tendo sido postos juntos os alimentos de Jesus, de Zelotes e de Natanael, vê-se que dão uma
pequena quantidade e os olhos assustados de Tomé e também os dos jovens, estão dizendo isso. Mas eles se
calam, e vão pondo na boca os pequeninos pedaços.
Zelotes, com paciência, vai até um ponto, onde uma parte verde sobre o terreno queimado faz pensar
que lá haja umidade. E, de fato, no fundo do leito seco de um rio, há ainda um fio d’água, que em breve está
para desaparecer. Zelotes dá um grito para os que estão longe, a fim de que eles vão àquele refrigério, e lá
se vão todos, correndo, passando pela sombra descontinua das árvores crescidas à margem do fio d’água,
que já está quase enxuto, e lá eles podem refrescar os pés poeirentos, lavar o rosto suado e, mesmo antes
de encher seus odres já vazios e deixá-los depois dentro d’água, na parte em que está sombreada, para
conservar a água fresca. Assentam-se depois aos pés de uma árvore e, cansados, põem-se a cochilar.
216.3 Jesus olha para eles com amor e compaixão e meneia a cabeça
Surpreende-o nessa atitude, Zelotes, o qual tinha ido beber mais uma vez e pergunta-lhe:
– Que tens, Mestre?
Jesus se levanta, vai até Zelotes e, passando o braço ao redor dele, o vai levando consigo até debaixo de
uma outra árvore, e lhe diz:
– Que Eu tenho? Estou aflito por causa do vosso cansaço. Se Eu não soubesse o que estou fazendo de
vós, não teria mais paz, por vos estar dando tantos incômodos.
– Incômodos? Não, Mestre! É a nossa alegria! Tudo perde o valor, quando viemos contigo. Estamos todos
felizes, podes crer. Ninguém está com saudades, ninguém…
– Cala-te, Simão. A humanidade até nos bons reclama. E, humanamente falando, não deixais de ter razão
de reclamar. Eu vos tirei de vossas casas, de vossas famílias, dos vossos negócios, e vós viestes, pensando
que acompanhar-me seria uma coisa bem diferente…Mas a vossa reclamação de agora, a vossa reclamação
interior, se acalmará um dia e só então compreendereis que terá sido bom ter andado no meio das neblinas
e do barro, no meio da poeira e ao calor do sol, perseguidos, cheios de sede, cansados, sem alimento, atrás
de um Mestre perseguido, desamado, caluniado…e mais coisas ainda. Tudo, então vos irá parecer belo!
Porque, então, pensareis de um outro modo e vereis tudo esclarecido por outra luz. E me bendireis por vos
ter conduzido pelo meu caminho difícil…
– Estás triste, Mestre. E o mundo pode justificar a tua tristeza. Mas, nós não. Nós estamos todos
contentes…
– Todos? Tens certeza disso?
– Pensas tu em outra coisa?
– Sim, Simão. Em outra coisa. Tu estás sempre contente. Tu compreendeste. Muitos outros, não. Estás
vendo aqueles que estão dormindo? Sabes quantos pensamentos eles estão esgaravatando, até durante o
sono? E também todos aqueles que estão entre os discípulos? Crês tu que eles são fiéis, até tudo se
consumar?
Olha: vamos jogar aquela velha brincadeira, que certamente já brincaste, tu também, quando eras
menino (e Jesus apanha uma flor seca de dente-de-leão, bem redonda, de um pé que se ergue por entre as
pedras, e que já ficou completamente maduro. Leva-a delicadamente até perto da boca, sopra-a, e a flor se
desmancha em minúsculos para-quedas, que ficam voando pelo ar, vagueando, cada um com o seu guarda-
sol para cima, e a prumo, preso por um pequenino cabo.) Estás vendo? Olha… Quantos são os que tornaram
a cair em meus braços, como se estivessem enamorados de Mim? Podes contá-los… São vinte e três. Eles
eram pelo menos três vezes mais. E os outros? Olha. Uns ainda estão vagueando, outros já caíram por
serem mais pesados, outros sobem, porque são orgulhosos com seus penachos de prata, outros caem na
lama, que nós fizemos com os nossos odres, Somente… Olha, olha… Até dos vinte e três, que estavam sobre
os meus joelhos, sete lá se foram. Bastou aquele zangão chegar até aqui com o seu vôo, para fazê-los sair
voando também!… O que eles temiam? Ou por quem é que foram seduzidos? Talvez pelo ferrão, ou pelas
belas cores pretas e amarelas, ou pela garbosa aparência, pelas asas iridescentes… Eles lá se foram… Lá se
foram, atrás de alguma beleza mentirosa… Simão, assim vai acontecer com os meus discípulos. Uns, por
serem irrequietos, outros, por inconstância, outros por pesadume, outros por orgulho, outros por
leviandade, outros porque gostam da lama, outros por medo ou por ingenuidade ir-se-ão embora. Crês tu
que todos aqueles que agora me dizem “Eu vou contigo”, que Eu os encontrarei a meu lado, na hora
decisiva da minha missão? Eram certamente mais de setenta os penachinhos da flor seca de dente-de-leão,
que o Pai criou para Mim… e agora em meus braços há só sete, porque os outros lá se foram, levados por
esta onda de vento, que fez dizer sim aos pedúnculos mais leves. Assim vai ser. E fico pensando nas lutas
que há em vós para que me sejais fiéis.
216.4 Vem aqui, Simão. Vamos ali olhar aquelas libélulas, que estão dançando a flor d’água. A não ser que
prefiras ir descansar.
– Não, Mestre. As tuas palavras me entristecem. Mas eu espero que o leproso curado, o homem
perseguido, ao qual Tu deste a reabilitação, o solitário ao qual tu deste uma companhia, o necessitado de
afeto ao qual abriste o Céu e o mundo, a fim de que ele encontrasse e desse amor, não te abandonarão…
Mestre… que pensas de Judas? No ano passado Tu choraste comigo por causa dele. Depois… não sei, não…
Mestre, deixa lá aquelas duas libélulas, olha para mim, escuta-me. Eu não direi nada a ninguém. Nem aos
companheiros. Nem aos amigos. Mas a ti, sim. Eu não consigo amar Judas. E me confesso disso. É ele
mesmo quem rejeita o meu desejo de amá-lo. Não é que ele me despreze, não. Pelo contrário, ele até que
trata com cortesia o velho Zelotes, que ele percebe ser mais experiente do que os outros no conhecimento
dos homens. Mas é o modo como ele faz as coisas. Ele te parece sincero? Dize-o a mim.
Jesus fica em silêncio por um momento, como se estivesse fascinado pelas duas libélulas que, pousadas
à flor d’água, fazem um pequeno arco-íris, com suas asas membranosas e iridescentes, um arco-íris muito
útil, que serve para atrair algum mosquito curioso, que logo é pego por um dos dois animaizinhos que, por
sua vez, logo também é pego no vôo por um sapo achatado, ou uma rã, que a pega no vôo e a devora junto
com o mosquito que havia sido agarrado antes.
Jesus se move, levantando-se de novo, porque tinha ficado quase deitado para poder ver os dramas da
natureza, e diz:
– Assim é. A libélula tem suas robustas maxilas para poder nutrir-se com as ervas, e suas asas robustas
para derrubar os mosquitos. E a rã tem a garganta larga, para engolir as libélulas. Cada um tem o seu, e faz
uso do que tem. Vamos, Simão. Os outros despertam.
– Senhor, não me respondeste. Não o quiseste fazer.
– Mas, sim que te respondi. Meu velho sábio, medita que encontrarás[87]…
Jesus sobe do leito do rio e vai procurar os discípulos, que estão despertando e que já o estão
procurando.
[87] medita que encontrarás. A chave interpretativa pode ser encontrada ligando o precedente “Cada um tem o seu, e usa o seu” com o passo de Mateus
12,33-35 e com o texto de 219.4 e 222.5.
217. As espigas apanhadas no dia de sábado.
13 de julho de 1945.
217.1 Ainda estão no mesmo lugar, mas o sol está menos implacável, porque o fim do dia se aproxima.
– Precisamos andar para chegarmos àquela casa –diz Jesus.
E lá se vão. Afinal, chegam à casa. Pedem pão e alguma coisa para restaurarem as forças. Mas o feitor
os rechaça duramente.
– Raça de filisteus! Víboras! São sempre os mesmos! Nasceram daquele tronco e dão frutos venenosos –
resmungam os discípulos, esfomeados e cansados–. Que vos seja dado o que nos dais.
– Mas, por que faltais com a caridade? Não estamos mais no tempo do talião. Vinde para a frente. Ainda
não é noite e não estais morrendo de fome. Um pouco de sacrifício, para que estas almas cheguem a ter
fome de Mim –anima-os Jesus.
Os discípulos, porém, e eu acho que mais por despeito, do que por uma fome insuportável, entram por
um campo adentro e põem-se a colher espigas e as debulharem com as palmas das mãos, e começam a
comê-las.
– São boas, Mestre –grita Pedro–. Não vais apanhar delas? Além disso, elas têm um duplo sabor… Eu
quereria comer um campo inteiro cheio delas.
– Tens razão. Assim eles se arrependeriam de não nos terem dado pão –dizem os outros, e vão
caminhando pelo meio das espigas e comendo à vontade.
Jesus vai caminhando sozinho pela estrada poeirenta. Uns cinco ou seis metros atrás, estão Zelotes com
Bartolomeu, e vão falando um com o outro.
217.2 Em uma outra encruzilhada, onde uma estrada secundária atravessa a estrada mestra, lá está,
parado naquele ponto, um grupo de carrancudos fariseus, que certamente estão de volta das funções do
sábado, das quais eles participam no lugarejo que se vê lá no fundo da estrada secundária, um lugar largo e
plano, como se fosse um grande animal escondido em sua toca.
Jesus os vê, olha para eles, manso e sorridente, e os saúda:
– A paz esteja convosco!
Em vez de responder à saudação, um dos fariseus lhe pergunta, com arrogância:
– Quem és?
– Jesus de Nazaré.
– Estais vendo que é Ele? –diz um dos outros.
Nesse meio tempo, Natanael e Simão se aproximaram do Mestre, enquanto os outros, caminhando por
entre os sulcos, vêm vindo para o caminho. Estão ainda mastigando e com as conchas das mãos cheias de
grãos de trigo.
O fariseu que falou primeiro, talvez o mais poderoso, volta a falar com Jesus, que parou na expectativa
de ouvir o resto:
– Ah! Então és o famoso Jesus de Nazaré? Como foi que chegaste até aqui?
– Porque aqui também há almas para salvar.
– Para isso bastamos nós. Nós sabemos salvar as nossas e sabemos salvar as dos que dependem de nós.
– Se é assim, fazeis bem. Mas Eu fui enviado para evangelizar e salvar.
– Enviado! Enviado! E quem é que prova isso? Certamente que não o provam as tuas obras.
– Por que é que dizes isto? Não te importas com a tua Vida?
– Ah! Agora, sim. Tu és aquele que dá a morte àqueles que não te adoram. Queres, então, matar toda a
classe sacerdotal, a dos fariseus, a dos escribas e muitas outras, porque elas não te adoram e não te
adorarão nunca. Nunca, compreendes? Nunca nós, os eleitos de Israel, haveremos de adorar-te. E também
não te amaremos.
– Eu não vos forço a me amar. Eu vos digo: “Adorai a Deus” porque…
– Isto é, a Ti, porque tu és Deus, não é? Mas nós não somos os piolhentos populares galileus, nem os
tolos da Judeia, que andam atrás de Ti, esquecendo-se dos nossos rabis…
– Não te preocupes, homem. Eu não peço nada. Eu cumpro a minha missão, ensino a amar a Deus, e
torno sempre a repetir o Decálogo, porque ele está por demais esquecido e, pior ainda, está sendo mal
aplicado. Eu quero dar a Vida. A Vida Eterna. Eu não desejo para ninguém a morte corporal nem muito
menos, a morte espiritual. A Vida que Eu te perguntava se não te importavas em perder, era a da tua alma,
porque Eu amo a tua alma, mesmo quando ela não me ama. E fico angustiado, ao ver que tu a matas,
quando ofendes o Senhor, desprezando o seu Messias.
O fariseu parece ter sido invadido por uma convulsão, pelo tanto que está agitado: ele descompõe suas
vestes, desfia as franjas, tira o turbante, desgrenha os cabelos, e grita:
– Ouvi! ouvi! A mim, a Jônatas de Uziel, descendente direto de Simão, o Justo, a mim é que se vem dizer
uma coisa destas! Eu, ofender ao Senhor! Não sei quem me segura, que eu não te amaldiçoe, mas…
– É o medo quem te segura. Mas, faze o que queres. Por isso não é que irás ser reduzido a cinzas. A seu
tempo o serás e me invocarás então. Mas, entre Mim e ti, haverá, então, um pequeno rio vermelho: o meu
Sangue.
– Está bem. 217.3Mas, enquanto isso, Tu, que te dizes santo, por que é que permites certas coisas? Tu, que
te dizes Mestre, por que é que não instruis os teus apóstolos antes dos outros? Olha para eles ali atrás de
Ti!… Olha para eles, que estão ainda com o instrumento do pecado nas mãos! Não os estás vendo? Eles
apanharam espigas e hoje é sábado. Apanharam espigas que não eram deles. Violaram o sábado e ainda
roubaram.
– Nós estávamos com fome. Nós pedimos ao lugar aonde chegamos ontem à tarde, que nos dessem
alojamento e comida. Mas eles nos rechaçaram. Somente uma velhinha nos deu do seu pão e um punhado
de azeitonas. Que Deus lhe dê cem vezes mais, porque ela nos deu tudo o que tinha, pedindo somente uma
benção. Caminhamos uma milha, depois paramos, como é de lei, e bebemos a água de um rio. Em seguida,
quando chegou o pôr do sol, fomos àquela casa… Fomos expulsos de lá. Estás vendo que em nós havia
vontade de obedecer à Lei –responde Pedro.
– Mas não o fizestes. No sábado não é lícito fazer trabalho manual e nunca é permitido apanhar o que é
dos outros. Eu e os meus amigos ficamos escandalizados com isso.
– Mas Eu, não. Não lestes[88] como Davi, em Nob, apanhou os pães sagrados da Proposição, para
alimentar-se a si e aos seus? Os pães estavam consagrados a Deus em sua casa, reservados, por uma ordem
eterna, aos sacerdotes. Está dito[89]: “Pertencerão a Aarão e a seus filhos, que os comerão no lugar santo,
porque são uma coisa santíssima.” No entanto, Davi os apanhou para si e para os seus companheiros,
porque estava com fome. Agora, pois, se o santo rei entrou na casa de Deus e comeu os pães da Proposição
num sábado, ele a quem não era permitido comer deles e contudo isso não lhe foi imputado como pecado,
porque Deus continuou, mesmo depois disso, a tratá-lo como seu querido, como podes tu dizer que nós
somos pecadores, se colhemos no terreno de Deus as espigas que cresceram e amadureceram por vontade
dele, as espigas que pertencem também aos passarinhos, e tu negas que delas se possam alimentar os
homens, filhos do Pai? –pergunta Jesus.
– Eles haviam pedido aqueles pães. Não os apanharam sem pedir. E isso muda o aspecto da coisa. Além
disso, não é verdade que Deus não imputou aquilo a Davi como pecado. Deus o golpeou duramente.
– Mas não foi por isso. Pela luxúria, pelo recenseamento, e não por… –responde Tadeu.
– Oh! Basta. Não é permitido, e não é permitido! Não tendes direito de fazê-lo e o não fareis. 217.4Ide-vos
embora! Não vos queremos em nossas terras. Não precisamos de vós. Não sabemos o que fazer de vós.
– Nós iremos embora –diz Jesus, não permitindo aos seus discípulos de retrucar.
– E para sempre recordai-o! Que nunca mais Jonatas de Uziel te encontre em sua frente. Fora!
– Sim. Fora. Contudo, ainda nos encontraremos. E, então, será Jonatas quem me quererá ver, para
repetir a condenação e para livrar para sempre de Mim o mundo. Mas, então, será o Céu que te dirá: “Não
te é permitido fazer isso” e aquele “não te é permitido” te soará no coração como o ressoar de uma buzina
durante toda a vida, e além da vida. Assim como, nos dias de sábado, os sacerdotes no Templo violam o
repouso sabático e não cometem pecado, assim nós, servos do Senhor, podemos, uma vez que o homem nos
nega amor, buscar amor e socorro no Pai Santíssimo, sem com isto cometer faltas. Aqui está alguém que é
muito maior do que o Templo, e pode apanhar o que quiser de tudo o que houver na natureza, porque Deus
tudo fez para servir de escabelo para sua Palavra. E Eu, não só apanho, como dou. Assim, as espigas do Pai,
colocadas nesta imensa mesa que é a Terra, como a Palavra, Eu apanho e dou. Aos bons, como aos maus.
Porque Eu sou a Misericórdia. Mas vós não sabeis o que é Misericórdia. Se soubésseis o que quer dizer esse
meu “ser Misericórdia”, compreenderíeis também que Eu não quero mais do que ela. Se vós soubésseis o
que é a Misericórdia, não teríeis condenado os inocentes. Mas vós não sabeis. Vós não sabeis nem mesmo
que Eu não vos condeno, vós não sabeis que Eu vos perdoarei, e que até pedirei perdão ao Pai por vós.
Porque Eu quero a Misericórdia e não o castigo. Mas vós não sabeis. Não quereis saber. É este um pecado
maior do que aquele que me atribuís e que dizeis que estes inocentes cometeram. Afinal ficai sabendo que o
sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado, e que o Filho do homem é dono até do sábado.
Adeus…
E Jesus se vira para os discípulos:
– Vinde. Vamos procurar uma cama entre as areias, que já estão perto. Sempre teremos como
companheiras as estrelas, e nos dará sustento o orvalho. Deus proverá, Ele que mandou o maná para Israel,
alimentará a nós também, a nós pobres, mas fiéis a Ele.
E Jesus deixa assim no ar o grupo odiento, e lá se vai com os seus discípulos, enquanto a tarde vai
chegando com as suas primeiras sombras violáceas…
Encontram finalmente uma sebe de figueiras da Índia, em cuja copa, arrepiada com suas pazinhas
agressivas, estão figos, começando a ficar maduros Mas tudo é bom para quem está com fome. E, ferindo-
se, os discípulos vão colhendo os mais maduros, e vão andando, até que os campos terminam em umas
dunas arenosas. Ouve-se lá ao longe um rumor de mar.
– Permaneçamos aqui. A areia está fofa e quente. Amanhã, entraremos em Ascalon –diz Jesus e todos
caem cansados aos pés de uma alta duna.
[88] lestes em 1 Samuel 21,1-7.
[89] Está dito em Levítico 24,9. Pecados verdadeiros de Davi o qual alude Tadeu, foram a luxúria (já em 94.7) e o recencemento (em 2 Samuel 24,1-17; 1
Crônicas 21,1-17).
218. Chegada a Ascalon, cidade dos filisteus.
14 de julho de 1945.
218.1 A aurora vem chegando, com o seu hálito fresco, para despertar os adormecidos; Eles se levantam de
suas camas de areia, sobre as quais dormiram, ao abrigo de uma duna coberta por umas poucas ervas
secas, e sobem para a parte mais alta dela. Uma profunda costa arenosa está à frente deles, enquanto, um
pouco para um lado e um pouco para outro, há terrenos cultivados e bonitos. O leito de um rio sem água
põe em realce, com suas pedras brancas, o louro da areia e, com sua brancura de ossos dessecados, ele vai
até o mar, que daqui se vê reluzir lá longe, com seus vagalhões avolumados pela maré alta da manhã e
tornados ainda mais altos por um pouco do vento mistral, que está soprando e penteando o oceano.
Caminham à beira da duna até chegarem à torrente seca e a atravessam, e começam de novo a andar,
em diagonal, por sobre as dunas, que vão afundando debaixo dos seus pés, e que assim, todas onduladas,
mais parecem uma continuação do mar, agora com matérias sólidas e enxutas, em vez de suas águas
movediças. Chegam depois à praia úmida, e podem já andar mais depressa, enquanto João se deixa
hipnotizar, ao olhar o mar sem confins, que começa a luzir com os primeiros lampejos do sol e fica
parecendo estar bebendo aquela beleza, vai ficando com os olhos ainda mais azuis, e Pedro, mais prático,
tira as sandálias, sunga a veste, e vai patinhando nas pequenas ondas da margem, procurando achar algum
carangueijinho, ou algum molusco para chupar. Uma bela cidade marítima, a uns dois bons quilômetros de
distância, se estende à beira-mar por sobre o rochedo em forma de meia Lua e para além do qual o vento e
as borrascas transportaram as areias. E o rochedo, agora que a água, depois da maré, se retirou, fica
descoberto também aqui, obrigando os passantes a voltar a andar sobre as areias enxutas, para não
machucarem os seus pés nus nas pedras.
– Por onde vamos entrar, Senhor? Daqui se vê uma muralha bem compacta. Pelo mar não podemos
entrar. A cidade está no ponto mais fundo do arco –diz Filipe.
– Vinde. Eu sei por onde se entra.
– Já estiveste aqui?
– Uma vez, quando Eu era pequenino e Eu nem me lembraria mais. Mas Eu sei por onde se passa.
– É estranho! Eu já notei isso muitas vezes… Tu não erras nunca de caminho. Algumas vezes somos nós
que te fazemos errar. Mas Tu! Sempre parece que Tu tenhas estado no lugar onde te moves –observa Tiago
de Zebedeu.
Jesus sorri, mas não responde. 218.2Ele vai sem hesitações até um pequeno subúrbio rural, onde os
hortelãos cultivam verduras para a cidade. As chácaras e as hortas estão bem distribuídas e bem cuidadas,
e as mulheres e os homens as cultivam, e estão agora despejando água nos sulcos, água que tiram dos
poços com um grande trabalho para os braços, ou, então, com o velho e chiador sistema dos baldes,
elevados por um pobre burrinho que, com um tapa-olhos, fica andando ao redor do poço. Mas eles não
dizem nada. Jesus os saúda:
– Paz a vós.
E as pessoas permanecem, se não hostis, indiferentes.
– Senhor, aqui vamos correr o perigo de morrer de fome. Eles nem entendem a tua saudação. Agora,
quem vai experimentar sou eu –diz Tomé.
E fala ao primeiro hortelão que vê, dizendo-lhe:
– Custa caro a tua verdura?
– Não mais do que as das outras hortas. Cara ou não, conforme estiver mais ou menos gorda a bolsa.
– Disseste bem. Mas, como estás vendo, eu não morro por deixar de comer. Sou gordo e corado, mesmo
sem as tuas verduras. Sinal de que a minha bolsa é uma boa teta. Em poucas palavras: nós somos treze, e
podemos comprar. Que é que tens para vender?
– Ovos, verduras, amêndoas temporãs e maçãs já murchas, porque apanhadas há tempo, azeitonas… o
que quiseres.
– Dá-me ovos, maçãs e pão para todos.
– Pão, eu não tenho. Tu o achas na cidade.
– Eu estou com fome agora, e não com fome daqui a uma hora. Não creio que não tenhas pão.
– Não tenho. A mulher o está fazendo. Mas, estás vendo lá aquele velho? Ele sempre tem bastante,
porque, como mora perto da estrada, muitos peregrinos lhe pedem. Vai a Ananias, e pede-lhe. Agora, vou
buscar os ovos. Mas, olha que custam um denário cada dois.
– Ladrão. Será que as tuas galinhas põem ovos de ouro?
– Não. Mas não é bonito ficar no meio do fedor da galinhada e, de graça não se fica lá. Além disso, vós
não sois judeus? Então, pagai.
– Fica com eles para ti. Está bem pago –e Tomé lhe vira as costas.
– Eh! Ó homem, vem aqui. Eu tos dou por menos. Três por um denário.
– Nem quatro. Bebe-os tu, e que te dêem um nó na garganta.
– Vem cá. Escuta. Quanto queres dar?
O hortelão vai atrás do Tomé.
– Nada. Não os quero mais. Eu queria fazer uma ligeira refeição, antes de ir para a cidade. Mas é
melhor assim. Não perderei a voz nem o apetite para poder cantar as histórias dos reis e para tomar uma
boa refeição no albergue.
– Eu lhes dou a uma didracma cada dois.
– Puxa! És pior do que uma mutuca. Dá-me os teus ovos. E que sejam frescos. Se não, eu volto aqui e
faço teu nariz ficar mais amarelo do que já está –e Tomé já vai levando pelo menos duas dúzias de ovos na
dobra da capa–. Vistes? As despesas sou eu que as farei daqui em diante, nesta terra de ladrões. Eu sei
como lidar com eles. Eles vêm cheios de dinheiro para comprar de nós para as suas mulheres, e os
braceletes que compram nunca são grossos demais, e nos preços pechincham dias inteiros. Mas eu me
vingo. 218.3Agora, vamos àquele outro escorpião. Vem, Pedro. E tu, João, segura os ovos.
Vão indo até o velho, que tem uma horta comprida, ao lado da estrada mestra, que, vindo do norte,
passando rente às casas do subúrbio, conduz à cidade. É uma estrada bonita, bem calçada, certamente obra
dos romanos. A porta da cidade, do lado oriental, já está perto e, para além dela, se vê que a estrada
continua reta. É realmente artística, transformada em uma dupla série de pórticos sombreados, sustentados
por colunas de mármore, a cuja sombra fresca o povo caminha, deixando o centro da estrada para os
jumentos, os camelos, os carros e os cavalos.
– Bom dia! Aqui vende pão? –pergunta Tomé.
O velho, ou não ouve, ou não quer ouvir. Na verdade, a chiadeira que a nora faz é tão forte, que chega a
criar confusão.
Pedro, perde a paciência, e grita:
– Segura o teu Sansão! Pelo menos ele poderá tomar fôlego, para que não acabe morrendo aqui, diante
de meus olhos. E escuta-nos!
O homem faz o burrinho parar, e fica olhando de lado para o seu interlocutor, mas Pedro o desarma,
dizendo:
– E, então? Não será justo pôr o nome de Sansão em um burrinho? Se és filisteu, bem que te deves
alegrar, porque é uma ofensa a Sansão[90]. E, se és de Israel, te deves alegrar, porque nos faz lembrar uma
das derrotas dos filisteus. Logo, como estás vendo…
– Eu sou filisteu, e me orgulho disto.
– Fazes bem. Eu também te louvarei, se nos deres pão.
– Mas, não és tu judeu?
– Eu sou cristão.
– Que lugar é esse?
– Não é um lugar. É uma pessoa. Eu sou dessa pessoa.
– És escravo dela?
– Eu sou livre mais do que qualquer outro homem, porque quem é daquela pessoa não depende senão de
Deus.
– Dizes a verdade? Não depende nem de César?
– Que César! Que é o César em comparação com Aquele que eu acompanho e ao qual pertenço, e em
nome do qual eu te peço um pão?
– Mas, onde está esse poderoso?
– É aquele homem lá, que está olhando para cá e sorrindo. É Cristo, o Messias. Nunca ouviste falar dele?
– Sim, o rei de Israel. Vencerá Roma?
– Roma só? Ele vencerá o mundo todo, e até o Inferno.
– E vós sois os generais dele? Vestidos assim? Talvez para fugirdes às perseguições dos pérfidos judeus.
– Sim e não. Mas, dá-me um pão, que, enquanto vamos comendo, eu te explicarei.
– Pão só? Eu te darei também água, vinho, cadeiras à sombra, a ti, ao teu companheiro e ao teu Messias.
Chama-o.
E Pedro sai, movendo rapidamente as pernas, até Jesus:
– Vem, vem. O velho filisteu nos dá o que queremos. Mas eu creio que ele nos acutilará com perguntas…
Eu lhe disse quem és…mais ou menos, eu lho disse. Mas ele está bem disposto.
218.4 Vão todos para a horta, onde o homem já colocou uns bancos ao redor de uma mesa tosca, debaixo
de uma viçosa trepadeira de videira.
– A paz a ti, Ananias. Que a terra produza flores por tua caridade, e te dê abundantes frutos.
– Obrigado. A paz a Ti. Senta-te, sentai-vos. Anibe! Nubi! Pão, vinho, água. Depressa –ordena o velho a
duas mulheres, certamente africanas, pois uma é totalmente negra, dos lábios grossos e cabelos
encarapinhados, e a outra é bem escura, mas já de um tipo mais europeu.
E o velho explica:
– São as filhas das escravas de minha mulher. Ela morreu e morreram as que tinham vindo com ela. Mas
as filhas ficaram. É o alto e o baixo Nilo. Minha mulher era de lá. Proibido, não? Mas eu não ligo para isso.
Eu não sou de Israel, e as mulheres de raça inferior são mansas.
– Não és de Israel?
– Eu o sou, mas forçado, porque Israel está sobre o nosso pescoço, como um jugo. Mas… tu és israelita,
e ficarás ofendido com isto que te estou dizendo?
– Não. Eu não me ofendo. Gostaria somente que tu escutasses a voz de Deus.
– Ele não nos fala.
– Tu é que dizes isto. Eu te falo, e é a voz dele.
– Mas Tu és o rei de Israel.
As mulheres, que já vêm chegando com pão, água e vinho, e ao ouvir falar de “rei”, param, surpresas,
olhando para aquele jovem louro, sorridente, cheio de dignidade, que o patrão chamou de “rei”, e depois
procuram retirar-se, mas quase que rastejando, por causa do respeito.
– Obrigado, mulheres. E a paz também para vós.
Depois, dirigindo-se de novo ao velho:
– Elas são jovens… Podes, pois, continuar o teu trabalho.
– Não. A terra está molhada, e pode esperar. Fala um pouco. Anibe, para o asno, e leva-o para a sombra.
E tu, Nubi, vai despejar os últimos baldes, e depois… Tu ficas conosco, Senhor?
– Não te incomodes com outras coisas. Pois para Mim, basta-me tomar um pouco de alimento, e depois
vou entrar em Ascalon.
– Eu não fico incomodado. Vai, pois, Tu à cidade. Mas de tarde, volta, que vamos partir o pão e
compartilhar do sal. E vós, ide depressa: tu a fazer o pão, e tu, vai chamar o Geteu e dizer-lhe que mate um
cabrito, e o prepare para a tarde. Ide.
E as duas mulheres lá se vão, sem dizerem nada.
218.5 – De forma que, então, és rei? Mas, e as tuas armas? Herodes é cruel em tudo o que faz. Ele nos
reconstruiu Ascalon. Mas foi para glória dele. E agora… Mas as vergonhas de Israel, Tu as conheces melhor
do que Eu. Como farás?
– Eu não tenho outra arma, senão a que vem de Deus.
– Será a espada de Davi?
– A espada da minha palavra.
– Oh! Pobre ingênuo! Ela perderá a ponta e perderá o fio, ao encontro do bronze dos corações.
– Assim achas? Eu não tenho em vista um reino deste mundo. Para vós todos Eu tenho em vista o Reino
dos Céus.
– Para nós todos? Até para mim, um filisteu? Até para as minhas escravas?
– Para todos. Para ti e para elas. E até para o selvagem, que está no centro das florestas da África.
– Queres formar um reino desse tamanho? E por que é que o chamas dos Céus? Poderias chamá-lo Reino
da Terra.
– Não. Não erres em compreender. O meu é o Reino do Verdadeiro Deus. Deus está no Céu. Por isso é o
Reino do Céu. Cada homem é uma alma vestida de corpo, mas a alma só pode viver nos Céus. Eu quero
cuidar da alma, livrá-la dos erros e dos ódios, e conduzi-la para Deus pelo caminho da bondade e do amor.
– Isto me agrada muito. Os outros, eu a Jerusalém não vou, mas sei que os outros de Israel, há muitos
séculos não falam assim. Queres dizer que Tu não nos odeias?
– Eu não odeio a ninguém.
O velho fica pensando… depois pergunta:
– E as duas escravas, terão elas também uma alma como vós de Israel?
– Com toda a certeza. Elas não são feras que tenham sido capturadas. São criaturas infelizes. Devem ser
amadas. Tu as amas?
– Não as trato mal. Quero obediência, mas não faço uso do açoite, e as alimento bem. Animal não bem
nutrido não pode trabalhar, costuma-se dizer. Mas também o homem mal alimentado não é um bom negócio.
Além disso, são nascidas aqui em casa. Eu as vi pequeninas. Agora ficam só elas, porque eu sou muito
velho, sabes? Quase oitenta. Elas e Geteu são o resto de minha casa de tempos passados. Eu me afeiçoei a
elas como a móveis de minha propriedade. Elas é que me fecharão os olhos…
– E depois?
– Depois… Ora! Eu não sei. Irão trabalhar como criadas, e nossa casa se desfará. Isso me desagrada. Eu
a fiz abastada, com o meu trabalho. Esta terra se tornará arenosa, estéril… Esta vinha… Nós a plantamos,
eu e a mulher. Aquele roseiral… é egípcio, Senhor. Sinto nele o odor da minha esposa… Parece-me um
filho… o único filho que está sepultado aos pés dele, já transformado em pó… Dores… Melhor morrer jovem
e não ficar vendo isto, e a morte que vem chegando…
– O teu filho não está morto, nem a tua mulher. O espírito deles continua vivo. O que deles morreu foi a
carne. A morte não deve espantar. É vida a morte para quem espera em Deus, e vive como justo. Pensa
nisto. Eu vou à cidade. Voltarei esta tarde, e vou pedir-te aquele pórtico para dormir com os meus.
– Não, Senhor. Eu tenho muitos quartos vazios. E os ofereço.
Judas põe sobre a mesa algumas moedas.
– Não. Não as quero. Eu sou desta terra mal vista por vós. Mas talvez sejam melhor do que aqueles que
nos dominam. Adeus, Senhor.
– A paz a ti, Ananias.
As duas escravas, junto com Geteu, um musculoso camponês já ancião, vieram para vê-lo partir.
– A paz também a vós. Sede bons. Adeus.
E Jesus toca de leve nos cabelos encarapinhados de Nubi e nos claros e estendidos da Anibe, sorri para
o homem, e lá se vai.
218.6Pouco depois, entram em Ascalon, passando pelo dúplice pórtico, que vai diretamente para o centro
da cidade, uma imitação de Roma, com tanques e fontes, com praças como a do Foro, com torres ao longo
dos muros, e sobretudo com o nome de Herodes lá colocado por ele mesmo, para aplaudir-se, visto que os
ascalonitas não o aplaudem. Há muito movimento e cresce muito, a cada hora que passa, e vai ficando perto
a parte central da cidade, uma cidade aberta, bem arejada, com fundos iluminados e virados para o mar,
que fica parecendo fechado como uma turquesa em uma tenaz de coral cor-de-rosa, pelo meio das casas
espalhadas no arco profundo, que faz parte da costa, sem chegar a ser um golfo, mas um verdadeiro arco,
uma porção do círculo que o sol ilumina todo, dando-lhe um tom róseo muito suave.
– Vamos dividir-nos em quatro grupos. Eu vou, ou melhor, deixo que vades. Depois, Eu escolherei. Ide.
Depois da hora nona, Eu vos encontrarei, junto à Porta, pela qual tivermos entrado. Sede prudentes, e
tende paciência.
E Jesus fica olhando como eles vão andando, e Ele permanece sozinho com Judas Iscariotes, que já
declarou que a esses não vai dizer nada, porque são piores do que os pagãos. Mas, quando percebe que
Jesus quer ficar andando para lá e para cá, sem falar, então ele muda de pensamento, e diz:
– Desagrada-te ficar sozinho? Eu iria com Mateus, Tiago e André, que são os menos capazes…
– Então, vai. Adeus.
E Jesus vai andando pela cidade, percorrendo-a no sentido do comprimento e da largura, como um
desconhecido, por entre as pessoas atarefadas, que nem prestam atenção nele. Somente dois ou três
meninos levantam a cabeça, curiosos, e uma mulher desonestamente vestida, que vai decididamente ao
encontro dele, com um sorriso cheio de subentendidos. Mas Jesus olha para ela de um modo tão sério, que
ela fica corada, e abaixa os olhos, indo-se embora dali. Tendo ela chegado a um canto, vira-se ainda, e, visto
que um homem do povo, que observou a cena, lhe lança uma palavra mordaz de zombaria por sua derrota,
ela se enrola em seu próprio manto, e foge.
Os meninos, ao contrário, andam ao redor de Jesus, olham para Ele, sorriem ao seu sorriso. Um mais
corajoso pergunta:
– Quem és?
– Jesus –responde Ele, acariciando-o.
– Que fazes?
– Estou esperando uns amigos.
– São de Ascalon?
– Não. Da minha terra e da Judeia.
– És rico? Eu, sim. Meu pai tem uma bela casa e dentro está fazendo tapetes. Vem ver. É aqui perto.
E Jesus vai sozinho com o menino, entrando por um longo corredor, que mais parece uma estrada
coberta. No fundo, tornado mais vivo por causa da penumbra do corredor, está brilhando um escorço de
mar, muito iluminado pela luz do Sol.
218.7 Aí encontram uma menina muito magra, que está chorando.
– É Dina. É pobre, sabes? Minha mãe lhe dá comida. A mãe dela não pode mais trabalhar. O pai já
morreu, no mar. Foi numa tempestade, quando de Gaza ele ia para o porto do Grande Rio, a fim de levar
umas mercadorias e apanhar outras. Mas, como as mercadorias eram do meu pai, e o pai da Dina era um
marinheiro nosso, minha mãe agora cuida delas. Mas, há tanta gente que ficou assim sem pai… Que dizes
Tu? Deve ser triste ficar órfãos e pobres. Aqui está a minha casa. Não digas a eles que eu estava na rua. Eu
devia agora estar na escola. Mas eu fui mandado para fora, porque eu estava fazendo os companheiros rir,
com isto aqui… –e ele puxa para fora de sua veste um boneco entalhado em madeira em uma tabuinha fina
e, na verdade, muito engraçado, apresentado com uma barba e um nariz muito caricaturados.
Jesus tem um sorriso, que lhe tremula sobre os lábios, mas se refreia, e diz:
– Não é o professor, é? Nem algum parente, não fica bem.
– Não. É o sinagogo dos judeus. Ele é velho e feio, e nós sempre zombamos dele.
– Isso também não está direito. Certamente ele é muito mais velho do que tu e…
– Oh! É um velho corcunda e quase cego, mas é tão feio!… Eu não tenho culpa se ele é feio!
– Não. Mas tens culpa por zombares de um velho. Também tu, quando fores velho, serás feio, porque
ficarás encurvado, terás poucos cabelos, serás meio cego, caminharás com uma bengala e terás uma cara
como aquela. E, então? Terás prazer se algum menino sem respeito zombar de ti? E, depois, para que
perturbar o mestre e os companheiros? Não fica bem. Se teu pai soubesse disso, te castigaria, e tua mãe
ficaria aborrecida. Eu não direi nada a eles, contanto que me dês logo duas coisas: a promessa de não
cometer mais essas faltas e que me dês esse boneco. Quem foi que o fez?
– Eu mesmo, Senhor… –diz, envergonhado, o menino, já agora consciente da gravidade de suas
travessuras…
E acrescenta:
– Eu gosto muito de entalhar a madeira! Algumas vezes eu reproduzo as flores dos tapetes, ou os
animais que neles estão representados. Sabes?… Aqueles dragões, as esfinges, e outros animais ainda…
– Estas coisas tu podes reproduzi-las. Há tantas coisas bonitas neste mundo! E, então, prometes que me
dás este boneco? Se não, não somos mais amigos. Eu o conservarei como lembrança de ti, e rezarei por ti.
Como te chamas?
– Alexandre. E Tu, o que me dás?
Jesus fica embaraçado. Ele tem sempre muito pouco! Mas depois se lembra de ter uma fivela muito
bonita, na gola de uma de suas túnicas, e a procura no saco, encontra e tira, e a dá ao menino.
– E agora vamos. Mas, presta atenção: mesmo que Eu me vá embora, Eu sei de tudo do mesmo modo. E,
se Eu ficar sabendo que estás fazendo o mal, Eu volto aqui, e conto tudo à mamãe.
E o pacto ficou feito.
218.8 Eles entram na casa. Depois do vestíbulo, há um amplo pátio, e este é cercado de três lados por
umas salas grandes, onde estão os teares.
A criada foi abrir, surpresa por ver o menino chegar acompanhado por um desconhecido, e vai avisar à
patroa. E esta, uma mulher de aparência gentil, chega correndo, e pergunta:
– Mas será que o meu filho sentiu-se mal?
– Não, mulher. Ele me trouxe para ver os teus teares. Eu sou um forasteiro.
– Queres fazer compras?
– Não. Eu não tenho dinheiro. Mas tenho amigos, que gostam de coisas bonitas, e que têm dinheiro.
A mulher olha curiosamente para este homem que confessa, assim sem rodeios, que é pobre, e lhe diz:
– Eu pensava que fosses um senhor. Tens os modos e os ares de um grão senhor.
– Mas, em vez disso, Eu sou simplesmente um rabi galileu: Jesus, o Nazareno.
– Nós fazemos negócios, e não temos prevenções. Vem e olha!
E o leva a olhar os seus teares, onde umas moças trabalham, sob a direção da patroa. Os tapetes são
realmente dignos de ser apreciados, seja pelos desenhos, seja pelas cores. São de uma boa espessura,
macios. Parecem canteiros em flor, ou um caleidoscópio de pedras preciosas. Outros misturaram às flores
figuras alegóricas como hipogrifos, sereias, dragões, e até mesmo grifos heráldicos semelhantes aos nossos.
Jesus se mostra admirado:
– És muito inteligente. Fiquei contente por ter visto tudo isso. E fiquei contente porque tu és boa.
– Como sabes disso?
– Se vê, e o menino me falou de Dina. Deus te recompense por isso. Ainda que tu não creias, estás já
muito perto da Verdade, já que tens em ti a caridade.
– Qual verdade?
– A do Senhor Altíssimo. Quem ama ao próximo, e para com a família e os dependentes exercita a
caridade, e a estende até aos mise ráveis, já tem em si a Religião. 218.9Aquela ali é a Dina, não é mesmo?
– Sim. A mãe dela está para morrer. Depois, eu ficarei com ela, mas não para trabalhar nos teares. Ela é
ainda muito pequena e frágil. Vem aqui, Dina, a este senhor.
A menina, com o rostinho triste das crianças infelizes, aproxima-se dele timidamente.
Jesus a acaricia, e lhe diz:
– Tu me levas à tua mãe? Gostarias que ela ficasse sã, não é verdade? Então, leva-me a ela. Adeus,
mulher. E, adeus, Alexandre. E sê bom.
E Jesus sai com a menina pela mão.
– És tu só? –ele pergunta.
– Tenho três irmãozinhos. O último não conheceu o pai.
– Não chores. És capaz de crer que Deus pode curar tua mãe? Tu sabes, não é mesmo, que há um só
Deus, que ama os homens que Ele criou, e especialmente as crianças boas? E que Ele tudo pode?
– Eu sei, Senhor. Antes, o meu irmão Tolmé ia à escola, e na escola, nós nos misturamos com os judeus.
E assim ficamos sabendo muitas coisas. Sei que Ele existe, e que se chama Javé, e que nos puniu, porque os
filisteus foram maus para com Ele. Disso nos acusam sempre as crianças hebreias. Mas, eu não existia
ainda, nem minha mãe, nem meu pai. Por que então?… –e o pranto lhe embarga a palavra.
– Não chores. Deus te ama e me trouxe aqui por causa de ti e da tua mamãe. Sabes que os israelitas
esperam o Messias, que deve vir para fundar o Reino dos Céus? O Reino de Jesus Redentor e Salvador do
mundo?
– Eu o sei, Senhor. E nos ameaçam, dizendo: “Ai de vós!”
– E sabes que é que o Messias fará?
– Fará grande a Israel, e nos tratará muito mal.
– Não. Ele redimirá o mundo, tirará o pecado, ensinará a não pecar, amará aos pobres, os doentes, os
aflitos, irá a eles, ensinará aos ricos, aos sãos e aos felizes a amá-los, recomendará que sejam bons, para
terem a vida eterna e feliz no Céu. Isto Ele fará. E não oprimirá a ninguém.
– E, como se ficará sabendo que é Ele?
– Porque Ele amará a todos, curará os doentes que crêem nele, redimirá os pecadores, e ensinará o
amor.
– Oh! Se Ele estivesse aqui, antes que minha mãe morra! Como eu haveria de crer! Como eu o pediria!
Eu iria procurá-lo, até que o encontrasse, e lhe diria: “Eu sou uma pobre menina sem pai, minha mãe está
para morrer, e eu espero em Ti”, e tenho a certeza de que, ainda que eu seja uma filisteia, Ele me atenderia.
É uma fé simples e forte a que vibra na voz da menina. Jesus sorri, olhando para a pobrezinha, que vai
andando a seu lado. Ela não está vendo este sorriso luminoso, porque está olhando para a frente, para a
casa que já está perto…
218.10 Chegam a um casebre muito pobre, no fundo de um beco sem saída.
– É aqui, Senhor. Entra…
Um quartinho miserável, um colchão de palha, tendo sobre ele um corpo mirrado, três pequeninos com
idades entre dez e três anos, sentados perto do colchão. A miséria e a fome transparecem em cada canto.
– A paz a ti, mulher. Não te movas. Não queremos te incomodar. Encontrei a tua filha, e fiquei sabendo
que estás doente. E Eu vim. Gostarias de ficar sã?
A mulher, com um fio de voz, responde:
– Oh! Senhor!… mas, para mim tudo se acabou!… –e chora.
– Tua filha chegou a crer que o Messias poderia curar-te. E tu?
– Oh! Eu também creria. Mas, onde está o Messias?
– Sou Eu, que estou falando contigo.
E Jesus, que estava inclinado sobre o colchão, murmurando suas palavras perto do rosto da pobre
prostrada, ergue o busto, e diz em voz alta:
– Eu quero. Fica curada.
Os meninos quase que ficam amedrontados com a imponência dele e estão, os três rostinhos
espantados, fazendo uma coroa ao redor da enxerga da mãe. Dina junta e aperta as mãos sobre seu
pequeno peito. Uma luz de esperança, de felicidade, brilha em seu rostinho. Ela está arquejante, de tão
grande que é a sua emoção. Está de boca aberta, querendo dizer uma palavra, que seu coração está
murmurando, e, quando vê que sua mãe, que antes estava da cor da cera e abandonada, agora, como se
uma força a puxasse para si e se transfundisse nela, quando vê a mãe que ergue o busto para sentar-se
depois, sempre com os olhos fixos no Salvador, e se põe de pé, então Dina é que dá um grande grito de
alegria. “Mamãe!” Afinal, ela disse a palavra que lhe estava enchendo o coração!… E, depois, outra:
“Jesus!” E, abraçando a mãe, a obriga a ajoelhar-se, dizendo:
– Adora, adora! É Ele aquele que o mestre de Tolmé dizia ser o Salvador profetizado.
– Adorai o verdadeiro Deus, sede bons, lembrai-vos de Mim. Adeus.
E rapidamente Ele sai, enquanto as duas, muito felizes, ainda estão prostradas no chão…
[90] Sansão, cujaas ações empreendidas contra os filisteus são narradas em Juízes 14-16. Além disso, as lutas entre Israel e os filisteus, as quais muitas
vezes se aludem no presente capítulo e nos sucessivos (a ultima vez em 221.9), são o argumento dominante de 1Samuel 4-7; 13-14; 17; 23; 28; 31.
219. Diversos frutos da pregação
dos apóstolos na cidade de Ascalon.
15 de julho de 1945.
219.1 Obedientes à ordem recebida, os pequenos grupos dos apóstolos vão chegando, um depois do outro,
para perto da porta da cidade. Jesus ainda não está lá. Mas logo Ele também vem chegando por uma
ruazinha, que fica à beira do muro.
– O Mestre deve ter tido boa sorte –diz Mateus–. Olhai como Ele vem sorrindo.
Eles vão ao encontro dele, e saem todos juntos pela porta, para pegarem de novo a estrada mestra, que
tem aos seus lados as hortas do subúrbio.
Jesus lhes pergunta:
– E então? Como foi a vossa ida? Que foi que fizestes?
– Foi muito mal –respondem juntos Iscariotes e Bartolomeu.
– Por quê? Que vos aconteceu?
– Aconteceu que pouco faltou para nos apedrejarem. E nós tivemos que escapar deles. Vamos embora
desta terra de bárbaros. Vamos voltar para onde gostam de nós. Eu aqui não falo mais. Eu já não queria
falar. Mas, depois, eu me deixei convencer, e Tu não me detiveste. E, no entanto, Tu sabes as coisas…
Iscariotes está inquieto.
219.2 – Mas, que foi que sucedeu contigo?
– Eu tinha ido com Mateus, Tiago e André. Nós nos tínhamos dirigido para a praça dos Julgamentos,
porque lá há gente fina e que tem tempo a perder, ouvindo a quem fala. Mas nós decidimos que Mateus é
que iria falar, por ser o mais apto para falar aos publicanos e aos clientes deles. E ele começou a falar,
dizendo a dois, que estavam discutindo por disputarem um campo, em uma herança muito complicada:
“Não vos odieis por uma coisa que perece, por uma coisa que não podeis levar convosco para a outra vida.
Mas amai-vos, a fim de poderdes gozar dos bens eternos, conseguidos sem outra luta, a não ser contra as
más paixões, que por nós devem ser vencidas, e assim nos tornarmos vencedores e possuidores do Bem.”
Tu dizias assim, não é verdade? E depois ele continuou, enquanto dois ou três se aproximaram para
escutar: “Escutai a Verdade, que ensina estas coisas ao mundo para que o mundo tenha paz. Vós estais
vendo quanto se sofre por isso. Por esse excessivo interesse pelas coisas que morrem. Mas a terra não é
tudo. Existe também o Céu, e no Céu está Deus, assim como na terra agora já está o Messias, o qual nos
manda vir anunciar-vos que o tempo da Misericórdia chegou, e que não há pecador que possa dizer: ‘Eu
não serei atendido’, porque, se alguém tem um verdadeiro arrependimento, recebe perdão, é atendido, é
amado e convidado para o Reino de Deus.”
Muitas pessoas já se haviam ajuntado, e havia os que escutavam com respeito, havia os que faziam
perguntas, e perturbavam Mateus. Eu já não dou respostas, para não estragar o discurso. Eu falo, e
respondo a cada um no fim. Que eles guardem na memória o que querem dizer, e se calem. Mas Mateus
queria responder logo!… E até nós éramos interrogados. Mas havia também os que zombavam dele,
dizendo: “Eis aí mais um doido! Certamente ele vem daquela toca que é Israel. Os judeus são uma praga,
que se alastra por toda parte! Eis aí, aí estão as suas eternas lorotas. Eles têm a Deus por compadre. Escuta
o que estão dizendo. Deus está no fio da espada deles e na acidez de sua linguagem. Ei-los aí! Aí estão eles!
Agora estão tirando para o baile o seu Messias. É mais algum outro frenético, que vai nos atormentar, como
sempre foi nos séculos passados. Que a peste acabe com Ele e com sua raça!”
Então, eu perdi a paciência. Puxei para trás Mateus, que estava ainda falando e sorrindo como se lhe
estivessem prestando honras, e comecei a falar eu, tomando Jeremias[91] como base para o meu discurso:
“Eis que as águas vem subindo do norte, e se tornarão uma torrente que inunda tudo…” “Ao rumor delas,
eu disse, — porque a punição de Deus sobre vós, raça malfazeja, terá o rumor de muitas águas e serão
forças armadas e celestes fundibulários do Céu, todos mobilizados por ordem dos chefes do Povo de Deus,
para punir-vos por vossa obstinação — ao rumor delas, vós perdereis o vigor, cairão as vossas soberbas,
vossos corações, vossos braços, afetos, tudo. Sereis exterminados como uns restos da ilha do pecado, porta
do Inferno! Vós vos ensoberbecestes, porque vossa cidade foi reconstruída por Herodes? Mas sereis ainda
mais arrasados, até o ponto de vos tornardes calvos sem remédio, assim ficareis; feridos por todos os
castigos em vossas cidades e vilas, nos vales e nas planícies. A profecia não morreu ainda…” E, eu queria
continuar, mas eles se arrojaram contra nós, e, somente porque uma providencial caravana ia passando por
uma estrada é que pudemos salvar-nos, pois as pedras já estavam começando a voar. Acertaram os camelos
e os cameleiros, e se formou uma confusão, e pudemos escapar dela por um fio. Depois ficamos parados em
um patiozinho do subúrbio. Ah! Eu não venho mais aqui…
219.3 – Mas, desculpa, tu os ofendeste! A culpa é tua! Agora se compreende por que vieram tão hostis para
nos expulsarem! –exclama Natanael.
E continua:
– Escuta, Mestre. Nós, isto é, Simão de Jonas, Eu e Filipe tínhamos ido para o lado da torre voltada para
o mar. Lá havia marinheiros e capitães, que estavam carregando mercadorias para Chipre, para a Grécia e
até para mais longe. Eles estavam maldizendo o sol, a poeira, o cansaço. Blasfemavam contra sua sorte de
filisteus, escravos dos prepotentes, como eles diziam, quando podiam ser reis. Eles blasfemavam contra os
Profetas, o Templo e todos nós. Eu queria ir-me embora de lá, mas Simão não quis, e disse: “Não, pelo
contrário. Pois são justamente estes pecadores de quem nos havemos de aproximar. O Mestre faria assim e
também nós devemos fazê-lo.” “Então, fala tu a eles”, dissemos eu e Filipe. “E, se eu não o sei fazer?”, disse
Simão. “Então nós te ajudaremos”, respondemos nós. E então, Simão foi, sorridente, para o lado de dois,
que estavam suados, e se haviam sentado sobre um grande fardo, que eles não conseguiam içar para o
navio, e lhes disse: “Está pesado, não é?” “Mais do que pesado é o nosso cansaço. E precisamos terminar a
carga, porque o capitão assim o quer. Ele não quer zarpar na hora da calmaria, porque nesta tarde o mar
vai ficar muito agitado, e precisamos já ter ultrapassado os escolhos, para que não haja mais perigos.”
“Escolhos no mar?” “Sim. Lá naquele ponto em que a água está fervendo. São lugares perigosos.” “São as
correntes, não? É isso. O vento do sul lá vira a ponta, e bate contra aquela corrente…” “És marinheiro?”
“Sou pescador. De água doce. Mas a água é sempre água. E o vento é sempre vento. Bebi água mais de uma
vez, e minha carga foi para o fundo mais de uma vez. Bonito, mas perigoso é o nosso trabalho: mas em
todas as coisas existe o belo e o perigoso, o bom e o mau. Nenhum lugar é só de maus, e nenhuma raça é só
de cruéis. Com um pouco de boa vontade, sempre todos se põem de acordo, e sempre se encontra gente
boa por toda parte. Vamos! Eu vos quero ajudar.” E Simão chama Filipe, dizendo: “Força! Pega de lá, que eu
pego de cá, e essa boa gente nos guia até lá, por dentro do navio, até à estiva.” Os filisteus não queriam.
Mas, depois deixaram fazer. Tendo levado para o lugar o fardo e mais alguns que estavam sobre a ponte,
Simão começou a elogiar o navio, a falar bem do mar, da cidade tão bonita, vista do mar, a interessar-se
pela navegação marítima e por cidades de outras nações. E todos ao redor se puseram a agradecer-lhe e a
elogiá-lo… até que um deles lhe perguntou: “Mas de onde és tu? Serás nilótico?” “Não, sou do Mar da
Galileia. Mas, como estais vendo, não sou um tigre.” “É verdade. Estás procurando trabalho?” “Sim.” “Eu te
aceito, se quiseres. Vejo que és um marinheiro muito capaz, diz o capitão.” “Mas, em vez disso, eu te
aceito.” “A mim? Mas, não disseste que estás procurando trabalho?” “É verdade. O meu trabalho é levar os
homens ao Messias de Deus. Tu és um homem. És, pois, para mim um trabalho.” “Mas, eu sou filisteu!” “E,
que quer dizer isso?” “Quer dizer que vós nos odiais, nos perseguis, desde o tempo dos tempos. Os vossos
chefes sempre o disseram…” “Os Profetas, não é? Mas agora os Profetas são vozes que não urram mais.
Agora o único e grande santo é Jesus. Ele não urra, mas chama com voz amiga. Ele não amaldiçoa, mas
abençoa. Ele não traz doenças, mas as tira. Ele não odeia, e não quer que se odeie. Mas, pelo contrário, ele
ama a todos, e quer que amemos até aos inimigos. No seu reino não haverá mais vencedores e vencidos,
não mais escravos e livres, não mais amigos e inimigos. Não haverá mais essas distinções que fazem mal e
que vieram da maldade humana; mas só existirão os seguidores dele, isto é, pessoas que vivem no amor, na
liberdade, vitoriosas sobre tudo o que é peso e dor. Eu vos peço que queirais crer em minhas palavras, e
sentir desejo dele. As profecias foram escritas. Mas Ele é ainda maior do que os Profetas; e, para quem o
ama, as profecias terminaram. Estais vendo esta vossa bela cidade? Mais bela ainda a reencontraríeis no
Céu, se chegásseis a amar a Nosso Senhor Jesus, o Cristo de Deus.”
Assim dizia Simão, bondoso e inspirado ao mesmo tempo, e todos o estavam escutando com atenção e
respeito. Sim, respeito. Depois, por uma rua, se desentocaram, e saíram gritando uns moradores armados
com paus e pedras, e nos viram, e pela veste conheceram que éramos forasteiros, agora compreendo,
forasteiros da tua raça, Judas, e ficaram pensando que éramos da tua sociedade. Se não nos protegessem
aqueles que eram do navio, estaríamos mal arranjados. Eles desceram até o mar uma chalupa e nos
levaram, fazendo-nos desembarcar na praia que fica perto dos jardins do sul, e nós estamos voltando de lá
junto com os que lá cultivam flores para os ricos daqui. 219.4Mas tu, Judas, estragas tudo! Que modo é aquele
teu de insultar?
– Mas é verdade.
– É preciso saber usar dela. Pedro também não disse mentiras, mas soube falar –rebate Natanael.
– Oh! Eu! Eu procurei pôr-me no lugar do Mestre, e pensei: “Ele seria delicado assim. Então, eu
também…” –diz simplesmente o Pedro.
– Eu gosto do estilo forte. É mais próprio de um rei.
– É a tua ideia de sempre! Tu não tens razão, Judas. Já faz um ano que o Mestre vem te corrigindo nesta
ideia . Mas não aceitas as correções. Tu também estás obstinado no erro, como estes filisteus, aos quais
queres te impor –acusa-o Simão Zelotes.
– Quando foi que Ele me corrigiu por isso? Além disso, cada um faz uso do modo que tem.
Simão Zelotes sente até um sobressalto, ao ouvir estas palavras e olha para Jesus, que está calado, e
que, diante daquele olhar que traz lembranças, responde a ele com um leve e compreensivo sorriso.
– Isto não é razão –diz calmamente Tiago de Alfeu, e continua:– Nós estamos aqui para corrigir-nos,
antes de corrigir os outros. O Mestre foi antes o nosso mestre. E não o teria sido, se não tivesse querido
que nós mudássemos os nosso hábitos e ideias.
– Ele era Mestre por sua sabedoria…
– Era, ou é? –diz sério Tadeu.
– Quantas cavilações! É, sim, é.
– Ele é Mestre por tudo o mais. E não somente por sua sabedoria. O seu ensinamento se dirige a tudo
que há em nós. Ele é perfeito e nós imperfeitos. Esforcemo-nos, pois, para o sermos também –aconselha
mansamente Tiago de Alfeu.
– Não acho que eu tenha tido culpa. É porque são de uma raça maldita. Todos são uns perversos.
– Não. Não podes dizer isso –prorrompe Tomé–. 219.5João foi aos mais baixos de todos os pecadores, que
levavam os peixes para as feiras. E, olha aqui este saco úmido. É peixe do mais saboroso. Eles dispensaram
o que podiam ganhar, para no-lo dar. E, por temor de que o peixe pescado pela manhã, à tarde já não
estivesse mais fresco, eles voltaram ao mar, e quiseram que nós fôssemos com eles. Parecia que estávamos
no Mar da Galileia, e eu te garanto que, se o lugar nos fazia lembrar dele, também o faziam as barcas
cheias de rostos atentos, e o que mais fazia lembrar dele era João. Ele parecia um outro Jesus. As palavras
saíam dele doces como o mel, de sua boca risonha, e seu rosto cintilava como um outro sol. Como ele estava
semelhante a Ti, Mestre! Eu fiquei comovido. Nós ficamos durante três horas no mar, na expectativa de que
as redes, estendidas sobre as boias, estivessem cheias de peixes, e foram três horas de felicidade. Depois,
eles queriam Te ver. Mas João disse: “Eu vos prometo um novo encontro em Cafarnaum”, como se lhes
tivesse dito: “Eu vos prometo um novo encontro na praça de vossa cidade.” E eles também prometeram:
“Nós iremos”, e tomaram nota. E nós tivemos que lutar para não sermos carregados com peixe demais. E
eles nos deram do peixe mais fino. Vamos cozinhá-lo. Hoje de tarde teremos um grande banquete, para
refazer-nos do jejum de ontem.
– Mas, que foi que falaste ainda? –pergunta Iscariotes, dolorosamente surpreso.
– Nada de especial. Eu falei de Jesus –responde João.
– Mas, como tu falas dele! João também citou os profetas. Mas os virou de cabeça para baixo –explica
Tomé.
– De cabeça para baixo? –pergunta, espantado, Iscariotes.
– Sim. Tu dos profetas extraíste a aspereza, e João a doçura. Porque, afinal, até o rigor deles é amor, um
amor exclusivo, violento, se assim o queres dizer, mas é sempre um amor para com as almas, que
desejariam todas ser fiéis ao Senhor. Não sei se já refletiste nisto, tu, que foste educado entre os escribas.
Eu, sim, ainda mais por ser um ourives. Também o ouro há de ser martelado e acrisolado, mas é para torná-
lo mais bonito. Não é por ódio mas por amor. Assim os profetas são para com as almas. Eu compreendo isso,
talvez justamente porque sou ourives. Ele citou Zacarias, em sua profecia[92] contra Hadraque e Damasco,
e chegou àquele ponto: “À vista disso, Ascalon será tomada pelo espanto, Gaza ficará coberta de grande
tristeza, e também Acaron, porque desvaneceu-se sua esperança. Gaza não terá mais rei”, e se pôs a
explicar como tudo isso aconteceu, porque o homem se afastou de Deus, e, falando da vinda do Messias,
que é um perdão por amor, prometeu que, de uma pobre realeza, como os filhos da terra desejam para a
sua nação, os homens, que seguirem o Messias em sua doutrina, chegarão a ter uma realeza eterna e
infinita no Céu. Dizer isso, não é nada. Mas, ouvir isso! Parecia estar ouvindo uma música e subir, levado
pelos anjos. E eis que os Profetas, que a ti deram pauladas, a nós nos deram peixes de fino sabor.
Judas se cala, desorientado.
219.6 – E vós? –pergunta Jesus aos primos e ao Zelotes.
– Nós fomos até os estaleiros, onde os calafates trabalham. Nós também preferimos ir aos pobres. Mas
também havia ricos filisteus, que exerciam a supervisão da construção de seus navios. Não sabíamos quem
é que deveria falar, e então fizemos o jogo dos pontos, como fazem os meninos. Judas estendeu sete dedos,
eu quatro, e Simão dois. Então tocou a Judas. E ele falou –explica Tiago de Alfeu.
– E que foi que disseste? –perguntam todos.
– Eu me fiz conhecer francamente pelo que eu sou, dizendo-lhes que à hospitalidade deles eu pedia a
bondade de acolher a palavra do peregrino, que via neles seus irmãos, pois tinham uma origem e um fim
comuns, e a esperança não comum, mas cheia de amor, de poder levá-los comigo à casa do Pai e dar-lhes o
nome de “irmãos” para sempre, na grande alegria do Céu. Eu disse depois: “Está dito[93] em Sofonias, o
nosso Profeta: ‘A região do mar será lugar de pastores… e aí eles terão suas pastagens e, de tarde, irão
repousar nas casas de Ascalon’”, e eu desenvolvi o pensamento, dizendo: “O Pastor Supremo já chegou ao
meio de vós. Não veio armado de flechas, mas de amor. E Ele vos estende os braços, e vos mostra as suas
pastagens santas. Não se lembra do passado, senão para ter compaixão dos homens pelo grande mal que
fazem a si mesmos e que já se fizeram, como uns meninos loucos, com o ódio, enquanto podiam estar livres
de tão grande dor se eles o amassem uns aos outros, pois eles são irmãos: Esta terra, eu disse, será lugar
de pastores santos, os servos do Pastor Supremo, que já sabem que aqui terão os seus pastos mais viçosos e
os melhores rebanhos, e os corações deles, na tarde de suas vidas, poderão repousar, pensando nos vossos
corações e nos dos vossos filhos, mais familiares do que as casas amigas, porque terão como patrão a Jesus,
nosso Senhor.” Eles me compreenderam. Fizeram-me perguntas, ou melhor, fizeram-nos perguntas. E
Simão narrou a sua cura e, meu irmão, a tua bondade para com os pobres. E a prova, ei-la aqui: Esta bolsa
gorda para os pobres, que iremos encontrando pelo caminho. Também a nós, os Profetas não nos fizeram
mal.
Iscariotes nem toma mais fôlego.
219.7– Pois bem –Jesus o conforta–, na outra vez, Judas já fará melhor. Ele achou que fazia o bem, fazendo
assim. E, tendo assim agido para um fim honesto, não pecou de nenhum modo. E eu estou contente também
com ele. Agir como apóstolo não é fácil. Mas depois vai-se aprendendo. Uma coisa me desagrada. não ter
tido esse dinheiro antes, e não vos ter encontrado. Ter-me-ia ele servido para socorrer uma família infeliz.
– Podemos voltar atrás. Ainda é cedo… Mas, desculpa, Mestre. Como encontraste a família? Que lhe
fizeste Tu? Será que não a evangelizaste?
– Eu? Eu fiquei passeando. Com o silêncio, Eu disse a uma meretriz: “Deixa o teu pecado.” Encontrei um
menino, um tanto levado, e o evangelizei, trocando presentes com ele. Eu dei a fivela que Maria Salomé me
havia pregado na veste, em Betânia, e ele me deu este trabalho feito por ele –e Jesus tira das dobras da
veste o boneco caricatural.
Todos o observam e se riem.
– Depois, eu fui ver uns esplêndidos tapetes que um homem de Escalon faz para vender no Egito e em
outras partes… depois fui consolar uma menina sem pai, e curar a mãe dela… E basta.
– E te parece pouco?
– Sim. Porque havia necessidade também de dinheiro, e Eu não o tinha.
– Mas, voltemos lá dentro, nós que… não demos aborrecimento a ninguém –diz Tomé.
– E o teu peixe –diz, caçoando, Tiago de Zebedeu.
– O peixe? Está aqui. Vós que tendes… o anátema em cima! Ide ao velho que nos hospeda, começai a
prepará-lo. E nós vamos à cidade.
– Sim –diz Jesus–. Mas Eu vos mostrarei de longe a casa. Nela haverá pessoas. Eu não irei. Eles me
entreteriam. Não quero ofender o hospedeiro que nos atende, faltando ao seu convite. A descortesia é
sempre uma falta de caridade.
Iscariotes abaixa ainda mais a cabeça, e fica arroxeado, de tanto que muda de cor, lembrando-se de
quantas vezes ele caiu naquela falta.
Jesus continua:
– Vós, ide à casa, e perguntai pela menina, não há outra menina, senão ela, e não podeis errar. Dareis a
ela esta bolsa, e lhe direis: “Esta é Deus que te manda, porque soubeste crer. É para ti, a mamãe e os
irmãozinhos.” Não digais nada mais. E voltai logo para trás. Vamos.
E o grupo se divide, indo Jesus com João, Tomé e os primos para a cidade, enquanto os outros vão para a
casa do hortelão filisteu.
[91] Jeremias, em seu oráculo contra os filisteus: Jeremias 47.
[92] profecia que está em Zacarias 9,1-8.
[93] Está dito na profecia de Sofonias 2,4-7.
220. Os idólatras de Magdalgade
o milagre sobre a parturiente.
16 de julho de 1945.
220.1 Ascalon e suas hortas já são apenas uma recordação. Nas horas frescas de uma esplêndida manhã,
virando as costas para o mar, Jesus se dirige com os seus para umas colinas muito verdes, de pouca altura
mas muito aprazíveis, que se elevam da planície fértil. Seus apóstolos, descansados e satisfeitos, estão
muito alegres e falando de Ananias, das suas escravas, de Ascalon, do vozerio que havia na cidade, quando
eles voltaram para levar o dinheiro para Dina.
– Estava escrito que eu haveria de passar pelo pega-pega dos filisteus. O ódio e o amor têm as mesmas
manifestações, se quiserdes. E eu, que não havia sofrido pelo ódio filisteu, por pouco não sou ferido pelo
amor. Por pouco não nos prendem aqueles exaltados por causa do milagre, para fazer-nos dizer onde estava
o Mestre. E que gritaria! Não foi, João? A cidade fervia como um caldeirão. Os que estavam inquietos não
queriam ouvir razões, e queriam ir à procura dos judeus para espancá-los, enquanto os que tinham recebido
benefícios, ou os amigos deles, queriam persuadir os primeiros que era um deus que tinha passado. Que
confusão! Vão discutir durante dois meses. O pior é que eles discutem mais com um pau na mão, do que
com a língua. Mas…que fazer? Eles se entendem. Façam o que quiserem –diz Tomé.
– Mas… eles não são maus… –observa João.
– Não. Eles são apenas obcecados por muitas coisas –responde Zelotes.
Jesus não fala durante um bom tempo da viagem. Depois, Ele diz:
– Agora Eu vou àquele lugarejo, lá no alto do monte, e vós continuareis até Azoto. Prestai atenção. Sede
corteses, afáveis, pacientes. Mesmo que escarneçam de vós, suportai-o em paz, como ontem fazia Mateus, e
Deus vos ajudará. Ao pôr do sol, saí e ide para perto do brejo, que fica nas cercanias de Azoto. Lá nos
encontraremos.
– Mas, Senhor, eu não te deixo sozinho –exclama Iscariotes–. São uns violentos estes!… É uma
imprudência.
– Não precisais temer nada por Mim.. Vai, vai, Judas, e sê prudente tu. Adeus. A paz esteja convosco.
Os doze lá se vão, não muito entusiasmados. Jesus olha como eles vão indo, depois toma o caminho da
colina, fresco, sombreado, coberto de bosques de nogueiras, de oliveiras, de figueiras, de vinhedos bem
cultivados e já com promessas de uma boa colheita. Nos lugares em que o terreno se inclina para a planície,
há pequenos sítios com cereais e, pelas encostas, pastam as cabras louras sobre a erva verde.
220.2 Jesus alcança as primeiras casas da região. Está para entrar, quando se encontra com um estranho
cortejo. São mulheres que gritam em altas vozes, homens a vozear, cantando um canto triste e alternado,
em altas vozes, e todos executando uma espécie de dança, ao redor de um bode que vai à frente, com os
olhos vendados, já ferido, vertendo sangue nos joelhos, por ter tropeçado e caído nas pedras do caminho.
Um outro grupo, igualmente vociferando e gritando alto, agita-se ao redor de um simulacro esculpido, que
na verdade é muito feio, e conserva levantadas umas frigideiras com brasas acesas, que eles alimentam
jogando em cima resina e sal, pelo menos é o que parece, porque as primeiras soltam um cheiro de
terebentina, e o segundo dá estalos, como faz o sal. Um último grupo rodeia um santarrão diante do qual se
inclinam continuamente, gritando:
– Pela tua força! –(os homens).
– Só tu podes! –(mulheres).
– Suplica ao deus! –(homens).
– Tira o feitiço! –(mulheres).
– Comanda a mãe!
– Salva a mulher!
Depois todos juntos, com um uivo de bruxos:
– Morte à maga!
E, em seguida, de novo, com uma variante:
– Pela tua força!
– Só tu podes!
– Ordena ao deus!
– Que ele faça ver!
– Comanda o bode!
– Que mostre a feiticeira!
E, com um uivo de condenados:
– Que odeia a casa de Fará!
220.3 Jesus faz parar um dos do último grupo, e pergunta com doçura:
– Que acontece? Eu sou um forasteiro…
O homem, enquanto a procissão parou um pouco para bater no bode, para jogar resina sobre as brasas,
e para tomarem fôlego, explica:
– A esposa de Fará, o grande de Magdalgad, está morrendo de parto. Uma que a odeia, pôs nela um
feitiço. Suas vísceras deram um nó e o filho não pode nascer Procuramos a feiticeira para matá-la. Só assim
a esposa de Fará será salva e, se não encontramos a feiticeira, sacrificaremos o bode para impetrar
misericórdia da deusa mãe. –(Pode-se então compreender que aquela garatuja de boneco é um deusa…)
– Parai. Eu sou capaz de curar a mulher e de salvar o filho. Dizei isso ao sacerdote –diz Jesus ao homem
e a outros dois que se aproximam dele.
– És médico?
– Mais ainda.
Os três abrem a multidão, e vão ao sacerdote idólatra. E lhe falam. A notícia corre. A procissão, que
tinha recomeçado a andar, para. O sacerdote, imponente em seus farrapos multicores, faz um sinal a Jesus e
lhe diz:
– Jovem, vem cá!
E, quando Jesus já está perto, lhe diz:
– É verdade o que dizes? Olha bem que, se o que dizes não acontece, nós pensaremos que o espírito da
feiticeira se incorporou em Ti e te mataremos no lugar dela.
– É verdade. Levai-me logo à mulher e, enquanto isso, dai-me o bode. Preciso dele. Tirai-lhe as vendas e
trazei-o aqui.
Eles assim fazem. O pobre animal, espantado, cambaleando, sangrando, é levado a Jesus, que o acaricia,
passando-lhe a mão sobre o espesso pelo negro.
– Mas agora é preciso que me obedeçais, sem exceção. Vós o fareis?
– Sim! –grita a multidão.
– Vamos. Não griteis mais, não queimeis resinas. Eu o ordeno.
220.4 Vão indo, entram no povoado e, por um caminho que é o melhor, chegam a uma casa que fica no
meio de um pomar. Uivos e choros saem pelas portas escancaradas e, acima de tudo, ouve-se o lamento
triste e atroz da mulher, que não pode dar à luz o filho.
Correm para ir avisar Fará, que vem na frente, lívido, ladeado por mulheres que choram e por uns
inúteis santarrões, que vêm queimando incenso e folhas em duas frigideiras.
– Salva minha mulher!
– Salva minha filha!
– Salva-a, salva-a! –gritam, um por um, o homem, a velha e a multidão.
– Eu a salvarei, e com ela, o teu filho, pois vai ser um menino e muito viçoso, com dois olhos cor de
azeitona que está amadurecendo, e a cabeça coberta de cabelos pretos como esta lã.
– Como é que sabes disso? Será que vês? Até nas vísceras?
– Em tudo Eu vejo e penetro. Tudo Eu conheço e posso. Eu sou Deus.
Se tivesse mandado um raio, teria produzido menos efeito. Todos se jogam no chão como mortos.
– Levantai-vos. Escutai. Eu sou o Deus poderoso, e não suporto outros deuses diante de Mim. Acendei
um fogo e jogai nele aquela estátua.
A multidão se revolta. Começam a dúvidar do “deus” misterioso que ordena a queima da deusa. Os mais
irados são os sacerdotes.
Mas Fará e a mãe da esposa, aos quais interessa muito a vida da mulher, opõem-se à multidão hostil. E
como Fará é o grande do povoado, a multidão refreia a sua ira. Mas o homem pergunta:
– Como posso crer que Tu és um deus? Dá-me um sinal, e eu mandarei que se faça tudo o que quiseres.
– Olha. Estás vendo as feridas deste bode? Estão abertas, não estão? Estão sangrando, não é? O animal
está quase morrendo, não está? Pois bem. Eu quero que não seja mais assim… Aí está. Olha, agora.
O homem se inclina e olha… e grita:
– Está sem as feridas!
E se joga no chão gritando:
– A minha mulher, a minha mulher!
Então o sacerdote da procissão diz:
– Teme Fará. Não conhecemos quem é este. Teme a vingança dos deuses!
O homem fica tomado por dois medos: dos deuses, da mulher… e pergunta:
– Quem és Tu?
– Eu sou aquele que sou, no Céu e na Terra. Toda força me está sujeita, todo pensamento é por Mim
conhecido. Os habitantes do Céu me adoram, os habitantes do Inferno me temem. E os que crêem em Mim
verão realizar-se todo prodígio.
– Eu creio! Eu creio… O teu nome!
– Jesus Cristo, o Senhor Encarnado. Ponde aquele ídolo no fogo! Não suporto deuses na minha frente.
Que se apaguem aqueles turíbulos. Não tendes mais do que o meu Fogo, que pode e quer. Obedecei, ou Eu
porei fogo em vosso ídolo vazio e me irei embora, sem salvar ninguém.
É terrificante o aspecto de Jesus, vestido com sua veste de linho, e de cujos ombros pende o manto azul,
cuja cauda se arrasta atrás dele, enquanto seu braço está elevado, num gesto de comando, e seu rosto está
fulgurante. Ficam com medo dele, ninguém diz mais nada… No meio daquele silêncio, só se ouve o uivo,
cada vez mais fraco e dilacerante, da sofredora. Mas eles demoram em obedecer. O rosto de Jesus se torna
ainda mais insuportável ao ser olhado. É realmente um fogo que queima matérias e espíritos. E as
frigideiras de cobre são as primeiras a sofrer por vontade dele. Os que as estão segurando precisam jogá-
las fora, porque não resistem mais ao calor delas.. E, no entanto, os carvões parecem estar apagados…
Depois, são os portadores do ídolo que precisam pôr no chão a cadeirinha que eles estavam sustentando
nos ombros por meio de varais, porque a madeira deles vai sendo reduzida a carvão, como se alguma
misteriosa chama os estivesse lambendo e, logo que a padiola foi posta no chão, pega fogo. O povo foge,
aterrorizado…
220.5 Jesus se vira para Fará:
– Podes agora crer de fato no meu poder?
– Eu creio, creio. Tu és o Deus Jesus.
– Não, Eu sou o Verbo do Pai, de Javé de Israel, vindo em Carne e Sangue, Alma e Divindade para
redimir o mundo e para dar-lhe a fé no Deus verdadeiro, uno, trino, que está nos céus altíssimos. Venho dar
ajuda e misericórdia aos homens para que deixem o Erro e cheguem à Verdade, que é o único Deus de
Moisés e dos profetas. Podes crer ainda?
– Creio. Creio!
– Eu vim trazer o Caminho, a Verdade e a Vida aos homens, vim abater os ídolos, ensinar a sabedoria.
Por Mim o mundo terá redenção, porque Eu morrerei por amor do mundo e pela salvação eterna dos
homens. Podes crer ainda?
– Creio. Eu creio!
– Eu vim para dizer aos homens que eles, se crêem no Deus Verdadeiro, terão a vida eterna no Céu,
junto ao Altíssimo, que é o Criador de todos os homens, animais, plantas e astros. Podes crer ainda?
– Creio! Creio!
Jesus nem entra na casa. Somente ergue os braços para o lado do quarto da sofredora, com as mãos
estendidas, como fez na ressurreição de Lázaro, e grita:
– Sai à Luz, a fim de que conheças a Luz Divina e, por ordem da Luz, que é Deus!
É uma ordem trovejante, à qual, um momento depois, faz eco um grito de triunfo, que em seu som é
como um gemido de alegria e depois se ouve o queixoso choro de um recém-nascido, um queixume que
sempre vai crescendo, como pela força que vai aumentando.
– Teu filho já está chorando e saudando a terra. Vai a ele, e dize-lhe, agora e depois, que a pátria não é
esta terra, mas é o Céu. Educa-o, e tu cresce com ele, para o Céu. Esta é a Verdade, que está falando
contigo, e estas (e mostra as frigideiras de cobre, enroladas como folhas secas, inúteis para qualquer uso,
jogadas no chão, e as cinzas que mostram o lugar onde estava a padiola do ídolo) são a Mentira, que não
ajuda nem salva. Adeus.
E faz sinal de quem vai embora.
220.6 Mas uma mulher vem correndo com um recém-nascido cheio de vida, enrolado em um pano, e
gritando:
– É um menino, Fará. É belo, robusto, tem os olhos cor de amora, como as azeitonas quando
amadurecem, e os cachinhos mais pretos do que os de um cabrito sagrado. E a mulher, feliz, está
descansando. Não está mais sofrendo, como se nada tivesse acontecido. Foi uma coisa repentina, quando já
estava quase morrendo… e depois daquelas palavras…
Jesus sorri e, visto que o homem lhe apresenta o recém-nascido, Ele lhe toca na cabeça com as pontas
dos dedos. As pessoas, menos os sacerdotes que foram embora, indignados ao verem a defecção de Fará,
todas se aproximam curiosas para verem o recém-nascido e olharem para Jesus.
Fará gostaria de dar-lhe objetos e dinheiro pelo milagre. Mas Jesus diz com doçura e firmeza:
– Nada. O milagre não se paga, a não ser com a fidelidade a Deus, que o concedeu. Eu fico somente com
este bode, como lembrança da tua cidade.
E vai-se com o bode, que sai trotando perto dele, como se Jesus fosse o seu dono, curado, feliz,
berrando, como para dizer a sua alegria por estar com alguém que não bate nele… Descem assim os
barrancos da colina, para pegarem de novo a estrada mestra, que vai para Azoto….
220.7 Quando à tarde, ao lado do brejo sombreado, Jesus vê que os discípulos vêm vindo, a admiração é
dos dois lados, deles por verem Jesus com aquele bode, e dele, por vê-los com aqueles rostos humilhados de
quem não conseguiu fazer o que queria.
– Foi um desastre, Mestre! Eles não nos bateram. Mas nos expulsaram para fora da cidade. Andamos
vagando pela campina e pagando bem caro é que conseguimos achar comida. E, no entanto, procuramos
agir com doçura… –dizem eles, desolados.
– Não tem importância. Também em Hebron, no ano passado, nos expulsaram, e desta vez até que nos
prestaram honras. Não deveis desanimar.
– E Tu, Mestre? E este animal? –perguntam eles.
– Eu fui à Magdaldad. Queimei um ídolo e os turíbulos dele, fiz nascer um menino, preguei o Verdadeiro
Deus por meio de milagres e apanhei para Mim o bode, que estava destinado ao rito idolátrico, como
pagamento. Pobre animal. Ele estava todo ferido!
– Mas agora está bem! É um animal muito bonito.
– É um animal sagrado, oferecido ao ídolo… Um animal são. Sim. O primeiro milagre para convencê-los
de que Eu era o poderoso e não o pedaço de madeira deles.
– E que vais fazer dele?
– Vou levá-lo para Margziam. Ontem um boneco, hoje um bode. Eu o farei feliz.
– Mas queres que ele vá atrás de Ti até Beter?
– Certamente. Nada vejo de horroroso nisso. Se Eu sou o Pastor, poderei ter um bode. Depois o daremos
às mulheres. E irão assim para a Galileia. Encontraremos uma cabrita. Simão, tu te tornarás pastor de
cabritas. Melhor seria que fossem ovelhas… Mas o mundo é mais de bodes, que de cordeiros… Isto é um
símbolo, meu Pedro. Lembra-te disso. Com o teu sacrifício, farás dos bodes, cordeiros. Vinde. Cheguemos
até aquela vila, por entre os pomares. Encontraremos alojamento ou nas casas ou nos feixes de palha que
estão amarrados nos campos. E amanhã iremos a Jábnia.
Os apóstolos estão admirados, entristecidos, desanimados. Admirados dos milagres, entristecidos por
não terem estado lá e desanimados por sua incapacidade, enquanto que Jesus é capaz de tudo. Mas Ele,
pelo contrário, está muito contente!… E chega a persuadi-los de que “nada é inútil. Nem mesmo a derrota.
Porque ela serve para formar-vos na humildade, enquanto que falar serve para fazer ressoar um nome, que
é o meu e para deixar uma lembrança nos corações.”
E está tão convincente e luminoso em sua alegria, que eles também se tranquilizam.
[…]
221. As prevenções dos apóstolos contra
os pagãos e a parábola do filho disforme.
17 de julho de 1945.
221.1 – De Jábnia iremos a Acron? –perguntam, quando vão indo por uma campina muito fértil, onde os
trigais estão dormindo o seu último sono ao sol, ao grande sol que os fez amadurecer, estendidos em feixes
pelos campos roçados, e tristes como imensos leitos fúnebres, agora que não estão mais vestidos de
espigas, mas de toneladas de trigo, esperando ser transportadas para outro lugar.
Mas, se os campos estão despojados, os pomares estão com veste de festa, com os frutos apressando-se
para amadurecer, passando do verde ainda duro das frutinhas, para o mais tenro, amarelado ou rosado,
tornado lustroso como por uma cera do fruto quando fica maduro, ou então os figos, abrindo os escrínios,
arrebentando, em sua pele elástica, o muito doce escrínio do fruto-flor, e mostrando, para lá da fenda verde-
branca, ou roxa e branca, a gelatina transparente e coberta de sementinhas mais escuras do que a polpa.
As oliveiras, a qualquer ventinho leve, sacodem as suas gotas ovais de jade, presas a um pecíolo fino, por
entre o verde prateado de suas ramagens, e as nogueiras solenes, conservam firmes os seus pedúnculos, os
seus frutos, que incham por entre a casca felpuda, enquanto os amendoais acabam de amadurecê-los
dentro do invólucro, que enruga o seu veludo e muda a cor dele, e as videiras entumecem seus bagos, ou já
há até algum cacho, situado em posição favorável, que se atreve já até a acenar para o topázio transparente
e para o rubi futuro do cacho maduro, enquanto as cactáceas da planície ou das encostas próximas se
alegram com suas decorações, de dia para dia mais vivas, com seus óvulos de coral, que foram
artisticamente colocados por algum alegre decorador no vértice das espátulas polpudas, que parecem
mãos, fechadas em pequenas bainhas pungentes que estendem para o céu os frutos que elas criaram e
amadureceram.
Palmeiras isoladas e alfarrobeiras viçosas fazem que nos lembremos muito da vizinha África e, enquanto
as primeiras fazem ressoar as castanholas de suas folhas duras como um pente redondo, as outras já se
vestiram de um esmalte verde escuro e ficam empertigadas, em sua compostura, trajadas com uma veste
muito bela. Cabras louras e cabras negras, altas, ágeis, com longos chifres recurvos, de olhos mansos e
atentos, estão pastando cactáceas, assaltando as piteiras carnosas e estes enormes pincéis de folhas duras
e grossas que, como alcachofras abertas a partir do centro do coração, irrompem do candelabro da
catedral, do caule gigante com sete braços, sobre o qual está em chamas a flor amarela e vermelha de
agradável perfume.
A África e a Europa se dão as mãos, ao cobrirem o solo de belezas vegetais 221.2e, mal o grupo dos
apóstolos deixa a planície para tomar um caminho que vai subindo por uma colina literalmente coberta de
vinhedos, nesta sua encosta virada para o mar, — costa pedregosa, calcária, sobre a qual a uva vai tornar-se
uma coisa preciosa, provinda da transformação de seu suco em xarope — eis que o mar, o meu mar, o mar
de João, o mar de Deus, se mostra em sua vestimenta de seda rugosa e azul, e fala das lonjuras, do infinito,
do poder, enquanto canta com o céu e com o sol o trio das glórias criadoras. E a planície se ostenta toda,
em toda a sua ondulada beleza, como imitações de colinas com poucos metros de altura, misturadas com
áreas planas, com dunas de ouro, até às cidades e povoados da beira-mar, brancas em contraposição ao
azul.
– Como é belo! Como é belo! –murmura, extático, João.
– Mas, meu Senhor! Este rapaz vive de azul. Deves destiná-lo a ele. Parece estar vendo a esposa, quando
vê o mar! –diz Pedro, que não faz muita diferença entre a água do mar e a do lago. E ri, bondosamente.
– Ele já está destinado, Simão. Todos vós tendes o vosso destino.
– Oh! Que bom! E a mim, para onde me mandas?
– Oh! Tu!…
– Dize-o a mim, sê bom!
– Para um lugar maior do que a tua e a minha cidade juntas, do que Magdala e Tiberíades juntas.
– Lá, então, eu me perderei.
– Não tenhas medo. Ficarás parecendo uma formiga sobre um grande esqueleto. Mas, indo e vindo,
incansavelmente, ressuscitarás o esqueleto.
– Não estou entendendo nada. Fala mais claro.
– Entenderás, entenderás!… –e Jesus sorri.
– E eu?
– E eu?
Todos querem saber.
– Eu farei assim.
Jesus se inclina — estão ao longo da beira saibrosa de uma torrente, ainda muito cheia d’água no seu
centro — e apanha um punhado de saibro muito fino. Depois o joga para o ar e ele cai, esparramando-se em
todas as direções:
– Vede aqui. Só este grãozinho de areia me ficou por entre os cabelos. Vós também assim sereis
espalhados.
– E Tu, meu irmão, representas a Palestina, não é? –pergunta sério, Tiago de Alfeu.
– Sim.
– Eu queria saber quem será o que vai ficar na Palestina –pergunta ainda Tiago.
– Toma este grãozinho de lembrança –e Jesus dá o grãozinho, que ficou entre os seus cabelos, ao seu
primo Tiago, e sorri.
– Não poderias deixar-me na Palestina? Eu sou o mais apto, porque sou o mais grosseiro e, em nossa
casa, eu ainda me viro. Mas fora!… –diz Pedro.
– Tu, pelo contrário, és o menos apto para ficares aqui.
221.3 Em vós existe uma prevenção contra o resto do mundo, e achais que é mais fácil evangelizar em
terras de fiéis, do que nas dos idólatras e pagãos. Mas é justamente o contrário. Se refletísseis sobre o que
nos oferece a verdadeira Palestina, em suas classes altas e também, ainda que menos, em seu povo, e se
pensásseis que aqui, nos lugares em que o nome da Palestina é odiado, também o é o de Deus,
desconhecido em sua verdadeira expressão, e aqui fomos recebidos, certamente não pior do que na Judeia,
na Galileia, na Decápole, as vossas prevenções cessariam, e vós veríeis que é bem verdade o que Eu digo,
ao dizer que é mais fácil convencer aos que não conhecem ao Deus Verdadeiro, do que aos do Povo de Deus,
com sua idolatria cheia de sofismas, culpados mas que, orgulhosamente, ainda se julgam perfeitos, e que o
que são querem continuar a ser. Quantas pedras preciosas, quantas pérolas os meus olhos estão vendo,
onde vós só vedes terra e mar!
A terra das multidões que não são Palestina. O mar da Humanidade, que não é Palestina, e que, como
mar, não pede mais que acolher os que procuram, para que lhes sejam dadas essas pérolas e que, como
terra, só pede para ser rebuscada, para que ela deixe que suas pedras preciosas sejam apanhadas. Os
tesouros estão por toda parte. Mas é preciso procurá-los. Cada torrão pode estar escondendo um tesouro, e
estar nutrindo uma semente, todas as profundidades podem estar escondendo uma pérola. E então?
Pretendereis talvez que o mar entrasse em uma grande perturbação em seu fundo, com grandes borrascas,
até ao ponto de arrancar aos barrancos submarinos as ostras perolíferas, para abri-las depois sob o peso da
batida de seus vagalhões, e oferecê-las assim, na praia, aos preguiçosos e aos medrosos que não querem
correr perigos? Pretenderíeis que a terra fizesse uma planta de um grão de areia, e vos desse frutos, sem
que désseis a ela uma semente? Não, meus queridos! É preciso esforço, trabalho, ousadia. Mas, sobretudo,
não devem existir prevenções.
221.4 Vós, Eu o sei, desaprovais, uns mais, outros menos, esta viagem por entre os filisteus. Nem mesmo as
glórias, que estas terras nos recordam, as glórias de Israel de que nos falam estes campos, fecundados pelo
sangue hebreu derramado pela grandeza de Israel, daquelas cidades que foram arrebatadas uma por uma
das mãos dos que as dominavam, para coroar com elas a Judá, e fazer com elas uma nação poderosa, são
capazes de fazer-vos amar esta peregrinação E não vos digo que não vale para isso nem a ideia de estar
preparando o terreno para que seja acolhido o Evangelho e a esperança de salvar espíritos. Nem vos quero
dizer, entre as razões que apresento às vossas mentes, o quanto foi conforme a justiça esta viagem.
Está ainda por demais acima de vós este pensamento. A ele chegareis um dia. E, então, direis: “Nós
pensávamos que fosse um capricho, pensávamos que fosse uma pretensão, pensávamos que fosse pouco
amor do Mestre para conosco aquilo de ficar fazendo-nos andar por tão longe, por caminhos longos e
difíceis, até correndo o risco de passar por situações perigosas. Mas, ao contrário, era amor, era previsão,
era um aplainar de caminho para agora, que não o temos mais e que nos sentimos ainda mais desnorteados.
Porque naquele tempo éramos como uns sarmentos, que vão para todas as direções, mas sabem que quem
os está alimentando é a videira, e que ali perto está sempre a estaca robusta que a pode amparar, e agora
somos sarmentos que devem criar trepadeira por si mesmos, tirando alimento, sim, da cepa da videira, mas
sem terem mais a estaca a que se apoiarem.” Isto é o que vós direis e, então Me agradecereis.
E, além disso!… Não é bonito irmos assim, deixando cair centelhas de luz, notas de música, corolas
celestes, perfumes da verdade, a serviço e em louvor de Deus, sobre regiões envoltas nas trevas, em
corações mudos, sobre espíritos áridos como desertos, para vencermos os fedores da Mentira, e fazermos
isso juntos, assim, Eu e vós, o Mestre e os Apóstolos, todos um só coração, um só desejo, uma só vontade?
Que Deus seja conhecido e amado. Que Deus recolha todos os povos debaixo do seu pavilhão. Que onde ele
estiver, todos estejam. Esta é a esperança, o desejo, a fome de Deus e esta é a esperança, a desejo, a fome
dos espíritos, pois não são eles de raças diversas, mas são de uma única raça: a raça que Deus cria. E que,
sendo todos filhos de um único Deus, têm os mesmos desejos, as mesmas esperanças, a mesma fome do
Céu, da Verdade, do Amor real…
221.5 Parece que séculos de erro mudaram o instinto dos espíritos. Mas não é assim. O erro envolve as
mentes. Porque as mentes estão unidas à carne, e se ressentem do veneno que foi inoculado por satanás na
parte animal do homem. E assim o erro pode envolver o coração, porque também ele está inserido na carne,
e se ressente dos tóxicos que estão nela. A tríplice concupiscência morde os sentidos, os sentimentos e o
pensamento. Mas o espírito não está inserido na carne. E ficará atordoado pelos socos que satanás e a
concupiscência lhe dão. Ele ficará quase cegado pelos baluartes da carne e pelos borrifos de sangue
fervente do animal-homem, no qual ele está entranhado. Mas não mudou o seu desejo do Céu, de Deus. Não
pode mudar.
Estais vendo a água pura desta torrente? Ela desceu do céu, e ao céu voltará, por meio das evaporações
das águas, sob a ação do vento e do sol. Desce e torna a subir. O elemento não se consome, mas volta às
suas origens.
O espírito volta às origens. Esta água que está aqui entre estas pedras, se soubesse falar, vos diria que
deseja voltar ao alto, para ser impelida pelos ventos, através dos belos campos do firmamento, leve, branca
ou também cor de rosa, nas auroras, ou cor de cobre pálido, ao pôr do sol, ou arroxeada como uma flor nos
crepúsculos, quando as estrelas já estão presentes; e ela vos diria que gostaria de servir de crivo para as
estrelas, que ficam olhando através das clareiras dos cirros, a fim de fazer que os homens se lembrem do
Céu ou, então, de véu para que a Lua não veja as maldades da noite, em vez de ficar aqui encerrada em
diques, ameaçada de ser transformada em lama, constrangida a ficar vendo conúbios de cobras e de rãs,
quando ela ama tanto a liberdade solitária, na atmosfera. Também os espíritos, se ousassem falar, diriam
todos a mesma coisa: “Dai-nos Deus! Dai-nos a Verdade!” Mas não o dizem porque sabem que o homem não
lhes presta atenção, não os compreende, ou zomba da súplica dos “grandes mendicantes”, dos espíritos que
procuram a Deus, por causa de sua tremenda fome. A fome da Verdade.
221.6 Estes idólatras, estes romanos, estes ateus, estes infelizes que, ao andar encontramos e que sempre
encontrareis, estes desprezados em seus desejos de Deus, ou por política, ou por um egoísmo familiar, ou
por uma heresia nascida de um coração podre, e proliferada numa nação, eles têm fome. Eles estão com
fome! Eu tenho piedade deles. E, não teria Eu piedade, sendo Este que sou? Se Eu provejo o alimento para
o homem e para o pássaro, tendo piedade deles, porque não iria Eu ter piedade dos espíritos, para os quais
se colocaram obstáculos para não serem do Verdadeiro Deus, e que estendem os braços de seus espíritos,
dizendo: “Estamos com fome!”? Achais que eles são maus? Que sejam uns selvagens? Incapazes de
chegarem a amar a Religião de Deus e a Deus? Estais enganados. São espíritos à espera de amor e de luz.
Esta manhã fomos despertados pelos berros ameaçadores do bode, que queria afugentar aquele
canzarrão, que veio me farejar. E vós ficastes rindo, olhando como o bode fazia movimentos ameaçadores
com os seus chifres, depois de ter arrebentado a cordinha com que estava amarrado na árvore, debaixo da
qual nós dormíamos, vindo colocar-se entre Mim e o cão, com apenas um salto, sem pensar que podia ser
atacado e degolado por aquele molosso, numa luta desigual, em defesa de Mim. Igualmente os povos, que a
vossos olhos parecem bodes selvagens, saberão lançar-se corajosamente na defesa da fé em Cristo, quando
ficarem sabendo que Cristo é Amor, que os convida a acompanhá-lo. Convida-os. Sim. E vós deveis ajudá-los
a vir.
221.7 Ouvi uma parábola.
Um homem se casou, tendo tido muitos filhos de sua mulher. Mas um deles nasceu defeituoso no corpo
e, pelas aparências, era de raça diferente. O homem achou aquilo uma desonra e não teve amor para com
ele, ainda que o filho fosse inocente. O menino cresceu sem ser cuidado, entre os mais desclassificados dos
servos e por isso até os irmãos o consideravam inferior a eles. A mãe, tendo morrido ao dá-lo à luz, não
podia controlar a dureza do pai, nem impedir o desprezo dos irmãos, corrigir as ideia s erradas, nascidas do
pensamento selvagem do menino. Ele era uma pequena fera, mal suportada naquela casa pelos filhos que
eram estimados.
O menino assim tornou-se homem. E, tendo chegado ao uso da razão com algum atraso, foi atingindo
finalmente a maturidade e compreendeu que não era ser filho viver daquele modo nos currais, receber um
pedaço de pão e uma veste rasgada e nunca um beijo, nunca uma palavra, nunca um convite para entrar na
casa paterna. E ele sofria, sofria, gemendo em sua toca: “Pai! Pai!” E mordia o seu pão, mas ficava com uma
grande fome em seu coração. Cobria-se com a veste, mas um grande frio lhe ficava no coração. Tinha por
amigos os animais e alguns piedosos da região. Mas tinha a solidão em seu coração. “Pai! Pai!”… Ouviam-no
os servos, os irmãos, os concidadãos, gemendo sempre daquele modo, como louco. É “louco”, diziam.
Enfim um servo ousou ir até ele, que já se tinha tornado como uma fera, e lhe disse: “Por que não te vais
jogar aos pés do pai?” “Eu o faria, mas não tenho coragem.” “Por que não vais para casa?” “Eu tenho
medo.” “Mas, tu gostarias de ir?” “Oh! Sim! Porque é disso que eu tenho fome, e por isso que eu tenho frio
e me sinto sozinho como num deserto. Mas eu nem sei como se vive na casa de meu pai.” Aquele servo bom
começou, então, a instruí-lo, a torná-lo melhor de aparência, a tirar-lhe aquele horror de ser malvisto pelo
pai, dizendo-lhe: “Teu pai te quereria, mas não sabe se gostas dele. Tu o evitas sempre… Tira de teu pai o
remorso por ter agido de um modo severo demais e o pesar dele por saber que vives fora de casa. Vem. Os
irmãos também não querem mais zombar de ti, porque eu narrei-lhes a tua dor.”
E certa tarde o filho foi, guiado por aquele servo bom, à casa do pai, e gritou: “Meu pai, eu te amo!
Deixa-me entrar!…”
O pai, que, já velho e triste, estava pensando em seu passado e em seu futuro eterno, soluçou, ao ouvir
aquela voz, e disse: “A minha dor se atenua, afinal, porque na voz do filho deficiente eu ouvi a minha, e o
amor dele é prova de que ele é sangue do meu sangue, e carne da minha carne. Que ele venha, pois, tomar
o seu lugar junto aos seus irmãos, e bendito seja o servo bom que fez ficar completa a minha família, pondo
o filho rejeitado no meio de todos os filhos do pai.”
221.8 Esta é a parábola. Mas na aplicação dela vós deveis pensar que o Pai dos deficientes espirituais é
Deus — porque deficientes espirituais são os cismáticos, os hereges, os separados, — e Deus foi
constrangido a usar de rigor pelas deficiências voluntárias, que eles mesmos quiseram. Mas o amor dele
nunca falha no que promete. Ele os espera. Levai-os a Ele. É o vosso dever.
Eu já vos ensinei a dizer: “Dai-nos hoje o nosso pão, ó Pai nosso.” Mas, sabeis vós o que quer dizer
“nosso”?
Não quer dizer vosso, de vós doze. Não é vosso, como discípulos de Cristo. Mas é vosso como homens.
Para os presentes e para os futuros. Para os que conhecem a Deus e para os que não o conhecem. Para os
que amam a Deus e ao seu Cristo, e para os que não o amam ou o amam mal. Eu pus sobre os vossos lábios
a oração por todos. Eu vos disse que a minha oração é universal e que durará, enquanto durar a terra. Mas
vós deveis rezar universalmente, unindo as vossas vozes e os vosso corações de apóstolos e discípulos da
Igreja de Jesus àquelas e àqueles que pertencem a outras Igrejas, que serão cristãs mas não apostólicas. E
deveis insistir, porque sois irmãos, vós na casa do Pai, eles fora da casa do Pai comum, com a sua fome, sua
saudade, até que seja dado a eles, como a vós o “pão” verdadeiro, que é o Cristo do Senhor, servido nas
mesas apostólicas, e não em outras mesas em que é servido misturado com alimentos impuros. Perseverai,
até que o Pai tenha dito a estes irmãos “deficientes”: “A minha dor se atenua em vós, em vossa voz Eu ouvi
a voz e as palavras do meu Unigênito e Primogênito. Sejam benditos os servos, que vos trouxeram à Casa
do vosso Pai, para que a minha Família fique completa.” Servos de um Deus infinito, deveis pôr a infinidade
em todas as vossas intenções.
Entendestes?
221.9Eis Jábnia. Certa vez, daqui foi levada a Arca para Acron, que não pôde guardá-la, e a remeteu para
Betsames. A Arca torna a ir a Acron. João, vem comigo. Vós permanecei em Jábnia e sabei refletir e falar. A
paz esteja convosco.
E Jesus lá se vai com João e com o bode que, berrando, vai também atrás deles, como um cão.
222. Um segredo do apóstolo João.
18 de julho de 1945.
222.1 As colinas, depois de Jábnia, em direção de oeste para leste com respeito à Estrela Polar, vão
aumentando em sua altitude e atrás vêem-se surgindo sempre outras mais altas, cada vez mais altas. Lá ao
longe, à derradeira luz da tarde, vão perfilando as lombadas verdes e arroxeadas das montanhas da Judeia.
O dia já declinou rapidamente, como acontece nos lugares meridionais. Da exibição do vermelho do pôr do
sol, passou o dia, em menos de uma hora, ao primeiro cintilar das estrelas, e parece impossível que aquele
incêndio do sol tenha se apagado tão depressa, cobrindo a cor de sangue do céu com uma veladura que, a
cada momento vai-se tornando mais espessa e da cor de uma ametista sanguínea e, pouco depois, de um
malva desbotado, que vai-se tornando transparente, a ponto de fazer que apareça um céu irreal, já não mais
azul e sim verde, um verde pálido, que vai-se fazendo fosco, da cor verde-azulada das aveias novas, prelúdio
do anil, que perdurará durante a noite, com seu manto real bordado e recoberto de diamantes.
As primeiras estrelas já estão sorrindo, do lado do oriente, para a foicinha da lua, que está em seu
primeiro quarto. A terra fica embelezada, exposta sempre mais à luz dos astros, e no silêncio dos homens.
Agora cantam os seres que não pecam: os rouxinóis, as águas harpejantes, as copas que sussurram, os
grilos com os seus violinos, os sapos que fazem a marcação com os seus oboés, cantando ao sereno. Talvez
estejam cantando também às estrelas, que estão lá em cima… A elas que estão mais perto dos anjos do que
nós.
O incêndio do calor se apaga sempre mais no ar da noite, que é úmido de orvalho tão doce às ervas, aos
homens e aos animais!
222.2 Jesus, que ficou esperando ao pé de uma colina pelos apóstolos que saíam de Jábnia, para onde João
tinha ido chamá-los, está falando agora bem de frente com Iscariotes, entregando-lhe umas sacolas com
moedas e dando-lhe instruções sobre o modo de reparti-las. Atrás dele está João, que segura o bode e fica
calado, entre Zelotes e Bartolomeu. Estes estão falando de Jábnia, onde fizeram proezas André e Filipe.
Atrás ainda, vão todos os outros, num grupo barulhento, que vai fazendo comentários sobre as aventuras na
terra dos filisteus, mostrando claramente a sua alegria pela volta para a Judeia, para Pentecostes.
– Mas, será que iremos logo mesmo? –pergunta Filipe, cansado de correr por cima de areias quentes
como fogo.
– Assim disse o Mestre. E tu o ouviste –responde Tiago de Alfeu.
– Meu irmão certamente o sabe. Mas parece estar desvairado. O que terão andado fazendo nestes
últimos cinco dias é um mistério
–disse Tiago de Zebedeu.
– É verdade. E eu não suporto mais o desejo de saber. Pelo menos, como recompensa por aquele…
purgante lá em Jábnia. Cinco dias, atentos a cada palavra, a cada olhar ou a cada passo, para não ter que
enfrentar adversidades imprevistas –diz Pedro.
– Mas, afinal, nos saímos bem. Começamos a saber agir –diz contente Mateus.
– Na verdade… eu tremi duas ou três vezes. Aquele bendito rapaz, que é Judas do Simão!… Será que não
aprenderá nunca a controlar-se? –diz Filipe.
– Só quando ele ficar velho. Contudo, se o quisermos entender, ele faz suas coisas com boa intenção. Tu
o ouviste? Até o Mestre já disse isto. Ele o faz por zelo… –diz, desculpando-o André.
– Vá, que seja! Mas o Mestre falou assim, porque Ele é a Bondade e a Prudência. Mas eu acho que Ele
não o aprova –diz Pedro.
– O Mestre não mente –rebate Tadeu.
– Mentir, não. Mas sabe colocar em suas respostas toda a prudência que nós não sabemos colocar nas
nossas, e diz a verdade, sem fazer sangrar o coração de ninguém, sem excitar irritações, sem suscitar
reprovações. Ah! Ele é Ele! –suspira Pedro.
222.3 Faz-se silêncio, enquanto vão caminhando sob a claridade, sempre mais notável, da lua. Pedro diz a
Tiago de Zebedeu:
– Procura chamar João. Não sei por que nos evita.
– Eu o direi logo: porque ele sabe que nós vamos atormentá-lo, por querermos saber –responde Tomé.
– Sim! E ele está com os dois mais prudentes e sábios –confirma Filipe.
– Pois bem, experimenta assim mesmo, Tiago, tu que és bom –insiste Pedro.
E Tiago, condescendendo, chama por três vezes João, que não ouve ou faz sinal de que não está ouvindo.
Vira-se, ao invés, Bartolomeu, ao qual Tiago diz:
– Fala ao meu irmão que venha aqui.
E, em seguida, a Pedro:
– Mas eu não sei se ficaremos sabendo!
João, obediente, vai logo, e pergunta:
– Que quereis?
– Saber se daqui vamos diretamente para a Judeia –diz o seu irmão.
– Assim disse o Mestre. Quase não queria voltar atrás, a partir de Acron, mas queria que eu vos fosse
chamar. Depois, porém, achou melhor ir até às ultimas encostas… Afinal, daqui também se pode ir à Judeia.
– Por Modin?
– Por Modin.
– É uma estrada sem segurança. Lá os malfeitores ficam esperando caravanas e dão golpes –objeta
Tomé.
– Ah! Mas com Ele!… Nada resiste a Ele!…
João levanta para o céu o rosto arrebatado em possíveis recordações, e sorri.
Todos observam isso, e Pedro diz:
– Dize-me uma coisa: estarás lendo alguma bonita história no céu estrelado, quando ficas com essa cara?
– Eu? Não…
– Vá, que assim seja. Até as pedras estão vendo que ficas fora deste mundo. Dize-me: Que foi que
aconteceu contigo em Acron?
– Ora, nada, Simão. Eu te garanto. Eu não estaria feliz se tivesse acontecido alguma coisa dolorosa.
– Dolorosa, não. Pelo contrário!… Vamos, fala!
– Mas eu não tenho nada para dizer, além do que o que Ele disse. Foram bons como pessoas
assombradas pelos milagres. Aí está tudo, tal como Ele disse.
222.4 – Não.
E Pedro sacode a cabeça:
– Não, Tu não sabes mentir. És límpido como a água da fonte. Não. Estás mudando de cor. Eu te conheço
desde quando eras menino. Nunca poderás mentir. Seja pela incapacidade do coração, do pensamento, da
tua língua e até da pele, que muda de cor. Por isso é que eu te quero muito bem, e sempre te quis. Eia, vem
cá, ao teu velho Simão de Jonas, ao teu amigo. Lembras-te de quando eras um rapazinho e eu já era
homem? De como eu te acariciava? Querias as histórias e os barquinhos de cortiça “que nunca vão para o
fundo”, como tu dizias, e que te serviam para ires longe… Também agora vais longe, e deixas na margem o
pobre Simão. E a tua barquinha nunca irá para o fundo. Ela lá se vai, cheia de flores, como aquelas que
lançavas ao mar, quando menino, em Betsaida, no rio, para que o rio as levasse para o lago e elas lá se
fossem, se fossem… Lembras-te disso? Eu te quero bem, João. Todos te queremos bem. Tu és a nossa vela.
Tu és a nossa barca que não vai ao fundo. Tu nos levas no teu rasto. Por que não nos contas o prodígio de
Acron?
Pedro falou, segurando, com seu braço, João apertado pela cintura, mas ele procura evitar a pergunta,
dizendo:
– E tu, que és o chefe, por que não falas às multidões com esta intensidade persuasiva de que fazes uso
ao falares comigo? Elas é que precisam ficar convencidas. Eu, não.
– Porque contigo eu me sinto à vontade. Eu te amo. A elas eu não conheço –desculpa-se Pedro.
– E não as amas. Aí está o teu erro. Ama-as, ainda que não as conheças. Dize a ti mesmo: “Elas são do
nosso Pai.” Verás que te parecerá conhecê-las e as amarás. Vê nelas outros tantos Joões…
– É fácil dizer. Como se as cobras e os ouriços pudessem ser trocados por ti, ó eterno menino.
– Oh! Não! Eu sou como os outros.
– Não, irmão. Não como os outros. Nós, se tirarmos talvez Bartolomeu, André e Zelotes, já teríamos
contado até às ervas o que nos aconteceu e que nos faz felizes. Tu estás calado. Mas a mim, ao teu irmão
mais velho o deves dizer. Eu sou para ti como um pai –diz Tiago de Zebedeu.
– O Pai é Deus, o Irmão é Jesus, e a mãe é Maria…
– De modo que o sangue para ti não vale mais nada? –grita inquieto Tiago.
– Não te inquietes. Eu bendigo o sangue e o seio que me formaram: o pai e a mãe. E bendigo a ti, meu
irmão, igual no sangue. Os primeiros, porque me geraram e me educaram para que eu pudesse seguir o
Mestre, e a ti, porque o segues. A mãe, desde quando se tornou discípula, eu a amo de dois modos: com a
carne e o sangue, como filho; e com o espírito, como condiscípulo dela. Oh! Que alegria por estarmos
unidos no amor dele!
222.5 Jesus voltou atrás ao ouvir a voz alterada de Tiago, e as últimas palavras o esclareceram sobre o
assunto:
– Deixem em paz João. Inutilmente o atormentais. Ele tem muita semelhança com a minha mãe. E não
vai falar.
– Dize-o Tu, então Mestre –suplicam-lhe todos.
– Está bem, é isto. Eu trouxe João comigo, porque é o mais apto para tudo o que Eu queria fazer. Por ele
Eu tenho sido ajudado, e ele aperfeiçoado. É isto.
Pedro, Tiago, irmão de João, Tomé e Iscariotes, se olham, torcendo um pouco a boca, desiludidos.
E Judas Iscariotes não se limita a ficar desiludido. Ele diz:
– Para que aperfeiçoá-lo, se ele já é o melhor?
Jesus lhe responde:
– Tu disseste: “Cada um tem o seu modo e faz uso dele.” Eu tenho o meu. João tem o dele, muito
semelhante ao meu. O meu não pode aperfeiçoar-se. Mas o dele, sim. E isto Eu quero que aconteça, pois é
bom que assim seja. E por isso Eu o tomei comigo. Porque Eu tinha necessidade de alguém que tivesse
aquele modo e aquele espírito. Por isso, não fiqueis de mau humor nem com curiosidade. Vamos a Modin. A
noite está serena, fresca e clara. Vamos caminhar, enquanto houver luar, e depois dormiremos até a aurora.
E levarei os dois Judas para venerar a tumba[94] dos Macabeus, dos quais eles têm o nome glorioso.
– Nós sozinhos contigo! –diz, feliz, Iscariotes.
– Não. Com todos. Pois a visita à tumba dos Macabeus será feita por vós. Para que os saibais imitar
sobrenaturalmente, lutando e vencendo em um campo todo espiritual.
[94] tumba, dos quais se falam em 1 Macabeus 2,70; 9,19; 13,23-30.
223. Um sermão de Jesus evita o assalto
dos salteadores a uma caravana nupcial.
19 de julho de 1945.
223.1 – No lugar, ao qual estamos indo, falarei Eu, diz o Senhor, enquanto a comitiva cada vez mais vai
penetrando pelos vales, que agridem o monte com os seus caminhos difíceis, pedregosos, estreitos, subindo
e descendo, perdendo de vista os horizontes aqui, para torná-los a ver mais adiante, chegando a um vale
mais profundo, por uma descida muito íngreme, na qual somente o bode se sente à vontade, como disse
Pedro. A comitiva toma um descanso para tomar a sua refeição, perto de uma fonte muito rica de águas.
Outras pessoas estão espalhadas pelos prados e pelos pequenos bosques, também tomando suas
refeições, como Jesus e os seus. Este deve ser um lugar preferido para permanências, por estar ao abrigo
dos ventos, com prados macios e águas. São peregrinos, que vão para Jerusalém, viajantes que talvez se
dirijam ao Jordão, mercadores de cordeiros destinados ao Templo, pastores com os seus rebanhos. Alguns
fazem a viagem em suas cavalgaduras, mas a maior parte a pé.
223.2 Chega também uma caravana nupcial, toda enfeitada festivamente. Os ouros transluzem por debaixo
do véu que envolve a noiva, que é pouco mais do que uma menina, e vem acompanhada por duas matronas,
que estão cintilantes por seus braceletes e colares, e por um homem, talvez o padrinho, além de dois outros
servos. Eles chegaram em jumentos cheios de franjas e de guizos, e se afastam para um canto onde vão
comer, como se tivessem medo de que os olhos dos presentes violassem a pequena noiva. O padrinho, ou
parente que seja, monta guarda, ameaçador, enquanto as mulheres comem.
Na verdade, há uma grande curiosidade e, com a desculpa de ir pedir um pouco de sal, ou uma faca, um
pouquinho de vinagre, sempre há alguém que vá a este ou àquele para perguntar se a noiva é conhecida, e
para onde está indo, e tantas outras coisas bonitas desse gênero…
E há um que, de fato, sabe de onde ela vem e para onde vai, e se sente muito feliz em contar tudo o que
sabe, estimulado por um outro, que lhe refresca sempre a garganta, derramando dentro dela um vinho
generoso. Em alguns minutos, chegam a ser contados até os mais secretos particulares das duas famílias,
do enxoval, que a noiva traz naqueles caixotes, das riquezas que a esperam na casa do noivo, e assim por
diante. Chega-se também a saber que a noiva é filha de um rico mercador de Jope, e que vai ser esposa do
filho de um rico mercador de Jerusalém, e que o esposo já foi na frente dela, para ornar a casa das núpcias,
na iminência de sua chegada, e que aquele que a acompanha é o amigo do noivo, sendo ele também filho de
um mercador, chamado Abraão, que é quem lapida os diamantes e as pedras preciosas, enquanto que o
noivo é ourives, o pai da noiva é mercador de lã, telas, tapetes, tendas…
223.3 E, como o falador está perto do grupo dos apóstolos, Tomé escuta, e pergunta:
– Será talvez Natanael de Levi o noivo?
– É ele mesmo. Tu o conheces?
– Conheço bem o pai através de assuntos de negócios, Natanael conheço um pouco menos. É um
matrimônio rico!
– Feliz noiva! Está coberta de ouro. Abraão, parente da mãe da noiva e pai do amigo do noivo, foi
generoso, assim como o noivo e o pai dele. Dizem que naquelas caixas há um valor de muitos talentos de
ouro.
– Saúde! –exclama Pedro, e dá um curto assobio.
Depois, acrescenta:
– Vou ver de perto se a mercadoria principal corresponde ao resto –e se levanta, junto com Tomé, e vão
dar uma volta ao redor do grupo nupcial, olhando bem para as três mulheres, um montão de tecidos e de
véus, do meio dos quais emergem as mãos e os pulsos cheio de jóias e escapam umas cintilações das
orelhas e dos pescoços, olham para o fanfarrão do padrinho, que parece querer repelir algum assalto de
corsários contra a virgenzinha, de tanto que ele está bancando o valentão.
Ele olha com maus olhos até para os dois apóstolos. Mas Tomé lhe pede que saúde, em nome de Tomé,
chamado Dídimo, a Natanael de Levi. E assim se fez a paz, e tanto se fez, que, enquanto ele está falando, a
noivinha encontra um modo de fazer-se admirar, levantando-se para que o seu manto e o seu véu caiam, e
ela possa aparecer em toda a sua beleza de corpo e de vestes, e na sua riqueza de ídolo. Terá ela uns quinze
anos, quando muito, e um par de olhos muito sabidos.
Ela se move, muito afetada, apesar da recomendação das matronas, corta as pontas das tranças, e as
arruma de novo, com a ajuda de grampos de alto preço, aperta a cintura embelezada com pedras preciosas,
se desata, se desfia, desata e coloca de novo as sandálias cuja forma é de sapatinhos, bem fechados no peito
do pé com fivelas de ouro e, nesse ínterim, procura mostrar sua magnífica cabeleira cor de amora, suas
belas mãos e delicados braços, a cintura gentil, o peito e os quadris bem feitos, o pezinho sem defeitos, e
todas as jóias, que tilintam, e mostram suas facetas às ultimas horas do dia e às chamas das primeiras
fogueiras.
223.4 Pedro e Tomé voltam para trás. E Tomé diz:
– É uma bela moça.
– É uma perfeita namoradeira. Será… mas o teu amigo Natanael logo ficará sabendo que há alguém
esquentando-lhe a cama, enquanto ele esquenta o ouro para trabalhá-lo. E o amigo dele é um grande bobo.
E ele lhe confiou bem a sua noivinha! –termina Pedro, indo sentar-se entre os companheiros.
– A mim não me agradou aquele homem, que fazia falar àquele outro bobo. Quando ele chegou a saber
tudo o que queria saber, foi-se embora pelo morro acima… Estes lugares são maus. E este é o tempo bom
para os golpes dos malandros. As noites agora são de luar. O calor cansa. As árvores estão copadas. Hum!
Este lugar não me agrada –resmunga Bartolomeu–. Seria melhor prosseguir.
– E aquele imbecil que falou de tantas riquezas! E aquele outro que se faz de herói, é o guardião das
sombras, e não vê os verdadeiros corpos!… Pois bem, eu vou cuidar da fogueira. Quem vem comigo? –diz
Pedro.
– Eu, Simão –responde Zelotes–. Eu resisto bem ao sono.
Muitos do campo, especialmente os viajantes que andam sozinhos, já se levantaram e foram-se embora,
pouco a pouco. Ficaram os pastores de rebanhos, a comitiva dos noivos, o grupo dos apóstolos e três
mercadores de cordeiros, que já estão dormindo. Também a noivinha está dormindo, com as matronas,
debaixo de uma tenda que os servos montaram. Os apóstolos estão procurando um lugar, Jesus fica sozinho
em oração, os pastores fazem um grande fogo no centro do descampado onde estão. Pedro e Simão fazem
um outro perto do caminho que vai para um despenhadeiro, onde foi-se encafuar aquele homem que fez
Bartolomeu suspeitar.
223.5 Passam as horas e, quem não está roncando, está cabeceando. Jesus reza. O silêncio é total. Parece
que está calada até a fonte, que brilha ao luar, estando a Lua já alta no céu, iluminando muito bem o
descampado, enquanto os declives ficam na sombra da ramagem espessa.
Um cão dos pastores começa a rosnar. Um dos guardas do rebanho levanta a cabeça. O cão se põe de pé
e levanta o pelo sobre o dorso, colocando-se em posição de defesa e de escuta. Ele está até tremendo,
enquanto seu rosnar surdo, que está fervendo dentro dele, vai-se tornando sempre mais forte. Simão
também levanta a cabeça e sacode Pedro, que está cochilando. Um sussurro cauteloso vem vindo do lado do
bosque.
– Vamos ao Mestre. Vamos trazê-lo para a nossa companhia –dizem os dois.
Nesse ínterim, o guarda desperta os companheiros. Todos estão à escuta, e sem fazer barulho. Jesus
também se levantou, antes mesmo de ser chamado, e vai de encontro aos dois apóstolos. Reúnem-se eles
com os companheiros e, por isto, perto dos pastores, cujo cão dá sinais cada vez mais claros de agitação.
– Chamai os que estão dormindo. Todos. Dizei-lhes que venham, sem fazerem barulho, e especialmente
as mulheres e os servos com os cofres. Dizei-lhes que talvez sejam os malandros. Mas, não o digais às
mulheres. Dizei-o a todos os homens.
Os apóstolos se espalham, obedecendo ao Mestre, que diz aos pastores:
– Alimentai o fogo, que ele fique bem forte e faça uma chama bem viva.
Os pastores obedecem e, como parecem estar agitados, Jesus lhes diz:
– Não temais. Não vos será tirado nem um floco de lã.
Sobrevêm os mercadores, e sussurram:
– Lá se foram os nossos ganhos! –e acrescentam um rol de impropérios contra os governadores romanos
e judeus que não limpam o mundo dos ladrões.
– Não temais. Não perdereis nem um centavo –conforta-os Jesus.
Chegam as mulheres chorando, espavoridas, porque o corajoso padrinho, por entre os tremores de um
medo fenomenal, as aterroriza, dizendo:
– É a morte. A morte pela mão dos salteadores!
– Não temais. Não sereis atingidas nem mesmo com um olhar
–encoraja-as Jesus, levando as mulheres para o centro do pequeno conjunto de homens e animais
espantados.
Os asnos zurram, o cão uiva, as ovelhas balem, as mulheres soluçam, os homens dizem imprecações ou
desmaiam pior do que as mulheres, em uma cacofonia causada pelo espanto. Jesus está calmo, como se
nada houvesse acontecido. O sussurro no bosque nem se pode mais ouvir, no meio desta vozeria. Mas, que
no bosque estão os malfeitores, que vêm se aproximando, é o que estão denunciando os galhos, que vão
sendo quebrados e as pedras que descem rolando.
– Silêncio! –manda Jesus. E o manda de um modo tal, que logo se faz silêncio.
223.6 Jesus deixa o seu lugar, e vai na direção do bosque, no fim do descampado. Depois Ele se vira para o
bosque, e começa a falar.
– A malvada fome do ouro arrasta os homens a sentimentos muito baixos. Por causa do ouro, o homem
se desvela mais do que por outras coisas. Vede quanto mal semeia, com o seu fascinante e inútil resplendor,
este metal. Eu creio que da cor dele seja o ar do Inferno, pois ele é de natureza infernal, desde quando o
homem se tornou pecador.
O Criador o tinha deixado nas vísceras deste enorme lápis-lazuli que é a terra, criada por sua vontade, a
fim de que fosse útil ao homem com os seus sais, e servisse para embelezar os seus templos. Mas satanás,
tendo beijado os olhos de Eva e mordido o eu do homem, pôs um sabor de malefício no metal inocente. E
desde então pelo ouro se mata e se peca. Por ele a mulher se torna namoradeira e facilmente cai no pecado
carnal. Por ele o homem se torna ladrão, usurpador, homicida, duro para com o próximo e para com sua
alma, que ele despoja de sua verdadeira herança, para dar a si mesmo uma coisa efêmera, a alma por ele
depredada em seu tesouro eterno, para dar a si mesmo umas poucas escamas brilhantes que, quando
chegar a morte, vão ser abandonadas.
223.7 Ó vós, que por causa do ouro pecais mais ou menos levemente, mais ou menos gravemente, e tanto
mais pecais e tanto mais vos rides de tudo o que vos foi ensinado por vossa mãe e por vossos mestres, isto
é, que existe um prêmio e um castigo para as obras praticadas durante esta vida, e assim não refletis que
por este pecado perdereis a proteção de Deus, a vida eterna, a alegria, e tereis remorsos, maldição no
coração, o medo por companheiro, o medo das punições humanas, que são sempre um nada, em
comparação com o medo que deveríeis ter, e não tendes, o santo medo dos castigos de Deus? Não refletis
que poderíeis ter um fim terrível para os vossos crimes, se eles chegarem ao delito. E um fim ainda pior,
porque eterno, se os vossos crimes por amor do ouro, embora sem chegarem ao derramamento do sangue,
mas desprezaram a lei do amor e do respeito ao próximo, negando, por avareza, o socorro a quem tem
fome, roubando postos, ou pesos, ou dinheiro, por cobiça? Não. Não pensais nisso. Dizeis “Tudo é loucura!
Eu esmaguei estas loucuras sob o peso do meu ouro. E elas não vivem mais.” Não são loucuras. São
verdades.
Não digais: “Pois bem, uma vez que eu morra, tudo se acabou.” Não. Aí é que tudo começa. A outra vida
não vai ser um abismo sem pensamento e sem recordação do passado vivido e sem aspirações a Deus, que
vós credes: será uma pausa para esperar a libertação pelo Redentor. A outra vida é uma espera feliz para os
justos, espera paciente para os que estão sofrendo e espera horrível para os condenados. Para os primeiros,
no Limbo; para os segundos, no Purgatório e para os últimos, no Inferno. E, enquanto para os primeiros a
espera cessará com a entrada nos Céus atrás do Redentor, para os segundos, depois daquela hora, se
tornará uma espera confortada pela esperança, enquanto que para os terceiros o que os entristecerá será a
terrível certeza de uma condenação eterna. Pensai nisso, vós que pecais. Nunca é tarde para arrepender-
vos. Mudai o veredito, que está sendo escrito no Céu, com um verdadeiro arrependimento. A região dos
mortos seja para vós não um inferno, mas uma penitente espera, pelo menos esta, seja por vós desejada.
Não escuridão, mas crepúsculo de luz. Não tortura, mas saudade. Não um desespero, mas esperança.
223.8 Ide. Não procureis lutar contra Deus. Ele é o Forte e o Bom. Não desonreis o nome dos vossos pais.
Ouvi como aquela fonte gemeu, um gemido parecido com aquele que despedaça o coração de vossa mãe,
quando ela fica sabendo que sois assassinos. Ouvi como o vento está uivando no desfiladeiro. Parece vos
estar ameaçando e amaldiçoando. É assim que vos amaldiçoa o vosso pai pela vida que levais. Ouvi como o
remorso uiva em vossos corações. Por que quereis sofrer, se poderíeis ser serenamente pagos com um
pouco sobre a terra, e com tudo no Céu? Dai paz aos vossos espíritos. Dai paz aos homens que temem, que
devem ter medo de vós, como de feras! Dai a paz a vós mesmos, ó verdadeiros infelizes! Levantai vossos
olhares para o Céu, afastai de vossa boca o alimento venenoso, purificai vossas mãos, que estão deixando
pingar o sangue de irmãos, purificai os vossos corações.
Eu tenho fé em vós. Por isso é que vos falo. Porque, se todo o mundo vos odeia e vos teme, Eu não vos
odeio, nem vos temo. Eu somente vos estendo a mão, para dizer-vos: “Levantai-vos. Vinde. Voltai cheios de
mansidão para o meio dos homens, homens entre homens.” Tão pouco Eu vos temo, que agora vou dizer
também a todos estes: “Voltai para o vosso descanso. Sem rancor para com os pobres irmãos. Rezai por
eles. Eu fico aqui a fim de olhar por eles com olhos de amor, e vos juro que nada mais acontecerá. Porque o
amor desarma os violentos, e sacia os ávidos. Seja bendito o Amor, a força verdadeira do mundo. Força
desconhecida e poderosa. Força que é Deus.”
E, dirigindo-se a todos:
– Ide, ide. Não temais. Lá não há mais malfeitores, mas homens assustados e homens que choram. Quem
chora não faz mal. Deus queira que, como estão agora, eles permanecessem. Seria a redenção deles.
224. No apóstolo João atua o amor. Chegada a Beter.
20 de julho de 1945.
224.1 A comitiva apostólica passou por uma mudança em seu acompanhamento animal. Aqui não está mais
o bode e , em lugar dele, estão uma ovelha e dois cordeirinhos. A ovelha, gorda e com os úberes cheios, e
com dois cordeirinhos alegres como dois meninos. É um pequenino rebanho que, por ter um aspecto menos
cabalístico do que o do bode, que era muito preto, agrada mais a todos.
– Eu vos havia dito que viria uma cabra, para fazer de Margziam um pequeno pastor feliz. Mas, em vez
da cabra, já que de cabras não quereis saber, eis que vieram as ovelhas. E são brancas. Justamente como
Pedro sonhava.
– Mas é certo! Parecia-me estar trazendo comigo Belzebu –diz Pedro.
– De fato, desde quando ele esteve conosco, sucederam-nos coisas bem desagradáveis. Era o feitiço que
nos acompanhava –confirma irritado Iscariotes.
– Era, então, um bom feitiço, porque, que foi que aconteceu mesmo de mal? –diz calmamente João.
Todos se dirigem a ele, como para censurá-lo por sua cegueira.
– Mas não viste em Modin como fomos escarnecidos?
– E a ti parece nada aquela queda que o meu irmão levou? Ele podia ter ficado arruinado. Como
poderíamos fazer para levá-lo para fora de lá, se ele tivesse quebrado as pernas ou a espinha?
– E ontem de noite, achaste bonito aquele interlúdio?
– Eu vi tudo, considerei tudo, e bendisse ao Senhor, porque não nos aconteceu nada de mal. O mal veio
em direção a nós, mas depois fugiu, como sempre, e certamente aquele encontro serviu para deixar
sementes de bem, tanto em Modin, como perto dos vinhateiros, que acorreram com a certeza de encontrar
pelo menos um ferido, e com o pesar de terem sido sem caridade, tanto assim, que quiseram fazer uma
reparação. O mesmo se diga perto dos ladrões de ontem à noite. Eles não fizeram nada de mal, e nós, isto é,
Pedro, ganhou as ovelhas em troca do bode e, como presente por terem todos sido salvos, os pobres têm
agora muito dinheiro pelas bolsas a nós dadas pelos mercadores e pelas ofertas das mulheres. E todos, e
isto é o que vale mais, todos receberam bem as palavras de Jesus.
– João está com a razão –dizem Zelotes e Judas Tadeu.
E este último assim termina:
– Parece mesmo que cada coisa aconteça por um claro conhecimento do que está para acontecer.
Encontrarmo-nos justamente lá, e com atraso por causa da minha queda, junto com aquelas mulheres
cheias de jóias, junto com aqueles pastores com um rebanho gordo, junto àqueles mercadores carregados
de dinheiro, magníficas presas para os ladrões! 224.2Meu irmão, dize-me a verdade: Sabias que tudo isso iria
acontecer? –pergunta Tadeu a Jesus.
– Eu já vos disse muitas vezes que Eu leio nos corações e que, quando o Pai não dispõe de modo
diferente, Eu não deixo de saber o que deve acontecer.
– Mas, às vezes, por que fazes erros, como aquele de ir ao encontro dos fariseus hostis, ou a cidades
completamente hostis? –pergunta Judas Iscariotes.
Jesus olha para ele fixamente, e depois lhe diz calmamente e devagar:
– Não são erros, são necessidades de minha missão. Do médico precisam os doentes, e do Mestre os
ignorantes. Tanto estes, como aqueles, às vezes repelem o médico e o mestre. Mas este, se for um bom
médico e um bom mestre, continua a ir a quem os repele, porque o dever dele é ir. E Eu vou. Quereríeis vós
que onde Eu me apresento caíssem todas as resistências. Eu o poderia fazer. Mas Eu não violento ninguém.
Eu persuado. A coerção só é usada em casos muito excepcionais, e só quando os espíritos, iluminados por
Deus, chegam a compreender que ela pode servir para persuadir de que Deus existe e que Ele é mais forte,
ou então em caso de uma salvação coletiva.
– Será como o caso de ontem à noite? –pergunta Pedro.
– Ontem à noite, aqueles ladrões ficaram com medo, vendo que estávamos bem acordados para recebê-
los –diz, com evidente desprezo, Iscariotes.
– Não. Eles ficaram persuadidos pelas palavras –diz Tomé.
– Sim! Assim te parece! São, na verdade, as almas ternas que se persuadem com duas palavras, ainda
que sejam de Jesus. Eu sei daquela vez que fomos assaltados, eu com toda a família e muitos de Betsaida,
no desfiladeiro de Adonim! –responde Filipe.
– Mestre, dize-me uma coisa. Desde ontem estou querendo te perguntar. Mas, afinal, foram as tuas
palavras, ou a tua vontade que não deixaram acontecer nada? –pergunta Tiago de Zebedeu.
Jesus sorri e se cala.
Responde Mateus:
– Eu creio que tenha sido a sua vontade, que superou a dureza daqueles corações, e chegou a paralisá-
la, a fim de poder falar e salvar.
– Eu também acho que é assim. É por isso que Ele quis ficar lá sozinho, olhando para o bosque. Ele os
tinha subjugados pelo seu olhar, com sua confiança neles, e com sua calma, estando desarmado. Ele não
tinha nem um pau!… –diz André.
– Está bem. Tudo isso somos nós que dizemos. São ideia s nossas. Eu quero saber o que o Mestre diz –
diz Pedro.
Começa, então, entre eles uma discussão calorosa, que Jesus os deixa entabular, entre os que dizem que,
tendo Jesus declarado que não força a ninguém, logo ele não terá usado de violência, nem mesmo com
aqueles ladrões. E quem diz isso é Bartolomeu, enquanto Iscariotes, apoiado, ainda que levemente por
Tomé, diz que ele não pode crer que o olhar de um homem possa fazer tudo aquilo.
Mateus o rebate, dizendo:
– Pode tudo aquilo, e mais ainda. Eu fui convertido pelo seu olhar, antes mesmo do que por suas
palavras.
Os sim e os não entram em contraste, com violência, ficando cada qual obstinado em sua tese. João se
cala, como Jesus, e fica sorrindo, com a cabeça inclinada, para esconder o seu sorriso. Pedro volta ao
assalto, porque nenhuma das razões dos companheiros o persuade. Ele pensa e diz que o olhar de Jesus é
diferente do de qualquer outro homem, e quer saber se é porque Jesus é o Messias, ou se é porque Ele é
sempre Deus.
224.3 Jesus, então, fala:
– Em verdade, Eu vos digo que não somente Eu, mas quem quer que seja que esteja unido a Deus com
uma santidade, uma pureza, uma fé sem rachaduras, poderá fazer o que Eu fiz e mais ainda. O olhar de um
menino, se o seu espírito estiver unido ao de Deus, pode fazer desabar os templos vãos, sem fazer uso da
sacudida de Sansão, pode instilar a mansidão às feras e aos homens-feras, pode repelir a morte, vencer as
doenças do espírito, como a palavra de um menino unido ao Senhor, e feito instrumento do Senhor, pode
também curar as doenças, tirar o veneno das serpentes e operar qualquer milagre. Porque Deus opera nele.
– Ah! Agora entendi –diz Pedro.
E olha, olha, olha para João. E depois ele termina todo um raciocínio que tinha consigo, dizendo em alta
voz:
– Eis! Tu, Mestre, pudeste, porque és Deus, e porque és Homem unido a Deus. E assim sucede com
quem sabe chegar, ou já conseguiu chegar a estar unido a Deus. Eu compreendi.
– Mas, não perguntas a ti mesmo qual a chave desta união, qual o segredo deste poder. Nem todos
dentre os homens chegam a isso, e, no entanto, todos eles têm os mesmos requisitos para o conseguirem.
– É isto! Mas onde está a chave dessa força para unir-se a Deus e para dominar as coisas? Uma oração,
ou palavras secretas…
– Há pouco, Judas de Simão acusava o bode de ser o culpado de todas as coisas más que nos
aconteceram. Não há feitiços que dependam dos animais. Acabai com as superstições, que ainda são
idolatrias, e que podem causar desventuras. E, visto que não há fórmulas para fazer feitiços, não há
também palavras cabalísticas para operar milagres. O que existe é só o amor. Como Eu disse ontem de
tarde, o amor acalma os violentos e sacia os ávidos. O Amor é Deus. Com Deus em vós, plenamente
possuído, pelo merecimento de um amor perfeito, o olho se transforma em fogo que queima todos os ídolos,
e derruba os simulacros, a palavra se torna Poder. E ainda: o olho torna-se arma que desarma. Não se
resiste a Deus, ao Amor. Somente o demônio resiste, porque é ódio perfeito, e com ele resistem também os
seus filhos. Os outros, os débeis possuídos por alguma paixão, mas que não se venderam voluntariamente
ao demônio, não resistem a ele. Seja qual for a religião deles, o absenteísmo deles quanto a qualquer fé,
seja qual for o seu nível de baixeza espiritual, são golpeados pelo Amor, que é o grande Vitorioso. Procura
chegar a isto logo, e farás, então, o que fazem os filhos de Deus, os portadores de Deus.
224.4 Pedro não tira os olhos de João: Tomé, Zelotes, os filhos de Alfeu, Tiago e André, estão com a
inteligência desperta e indagadora.
– Mas, então, Senhor –diz Tiago de Zebedeu–, que aconteceu com o meu irmão? Tu falas dele. É ele o
menino que faz milagres? É isto? É assim?
– Que ele fez? Ele virou uma página do livro da vida, leu e conheceu novos mistérios. Nada mais. Ele vos
precedeu, porque ele não fica parado, a pensar em todos os obstáculos, a medir todas as dificuldades, a
calcular todas as vantagens. Mas não vê mais a terra. Vê a Luz e se dirige para ela. Sem fazer paradas.
Mas, deixai-o como está. As almas, que consomem mais chamas, não se perturbam em seu ardor, que alegra
e consome. Precisa deixá-las arder. É suma alegria e sumo cansaço. Deus lhes concede instantes de noite,
porque sabe que o ardor mata as almas-flores, como o faz com as flores dos campos. Deixai sossegado o
atleta do amor, quando Deus assim o deixa. Imitai os mestres de educação física, que concedem aos seus
alunos os necessários descansos… Quando tiverdes chegado, vós também, ao ponto a que ele já chegou, e
até além, porque ireis além tanto vós como ele, então compreendereis a necessidade do respeito, do
silêncio, da penumbra, que experimentam aquelas almas de que o Amor fez suas presas e seus
instrumentos. Não fiqueis agora pensando: “Então, eu terei prazer em ser assim conhecido, e João é um
tolo, pois as almas do próximo, como as dos meninos, querem deixar-se seduzir pelo maravilhoso.” Não.
Quando tiverdes chegado a esse ponto, tereis o mesmo desejo de silêncio e de penumbra que João tem
agora. E, quando Eu não estiver mais no meio de vós, lembrai-vos de que, quando precisardes julgar a
respeito de uma conversão ou de uma atitude de santidade, devereis sempre usar como medida a
humildade. Se em alguém continua a haver orgulho, não vos enganeis, pensando que ele esteja convertido.
E, se em alguém, ainda que seja chamado de “santo”, reinar a soberba, ficai certos de que santo ele não é.
Poderá ele, como um charlatão e um hipócrita, viver bancando o santo, e até simular milagres. Mas ele não
é. A aparência é hipocrisia, e os prodígios dele são satanismo. Compreendestes?
– Sim, Mestre…
Todos se calam, muito pensativos. Mas, se as bocas estão fechadas, podem adivinhar-se os pensamentos
claros, pelos seus olhares e por suas expressões. Uma grande vontade de saber tremula, como uma aragem,
ao redor deles…
224.5 Zelotes se esforça para entreter os companheiros, a fim de ter tempo para falar-lhes em particular, e
certamente para aconselhá-los a se calarem. Eu tenho a impressão de que Zelotes exerce muito este
ministério no grupo dos apóstolos. Ele é o moderador, o conciliador, o conselheiro dos companheiros, além
de ser o que compreende muito bem o Mestre. Agora, ele diz:
– Estamos já nas terras de Joana. Aquele lugar em forma de berço é Beter. Aquele palácio sobre aquele
cume é o seu castelo natal. Estais sentindo no ar este perfume? São os roseirais que, com o sol da manhã,
começam a exalar seu perfume. A tarde, então, é que se espalha fortemente a fragrância. Mas agora é tão
belo vê-los, nesta frescura da manhã, ainda recobertos pelo orvalho, como milhões de diamantes, jogados
sobre milhões de botões, que se abrem. Quando o sol está para se pôr, colhem-se todas as flores chegadas a
um desabrochar completo. Vinde. Quero mostrar-vos, de uma pequena elevação, a vista dos roseirais que
transbordam do cume, como de uma cascata para baixo, pelos barrancos da outra vertente. É uma cascata
de flores que depois, torna a subir, como uma onda, por sobre duas outras colinas. É um anfiteatro, um lago
de flores. É esplêndido. O caminho é mais íngreme. Mas vale a pena ir por ele, porque daquela beira se
domina todo este paraíso. E chegaremos logo também ao castelo. Lá Joana vive livre, no meio dos seus
camponeses, a única guarda para tanta riqueza. Mas eles amam tanto a sua patroa que faz destes vales um
éden de beleza e de paz, que eles valem muito mais do que os guardas de Herodes. Eis, olha, Mestre. Olhai
amigos.
E, com um gesto, mostra um semicírculo de colinas invadidas pelos roseirais.
De todos os lados, por onde os olhares pararem verão roseiras e mais roseiras debaixo das árvores
plantadas para formarem um abrigo contra o vento, contra os raios muito ardentes do sol e as chuvas de
pedra. O sol bate e o ar passa de um lado para outro, até por debaixo desta coberta ligeira que mais parece
um véu, mas que não abafa, conservando-se dentro das regras seguidas pelos jardineiros, e por baixo vivem
felizes os mais belos roseirais do mundo. São milhares e milhares de plantas de todas as espécies de rosas.
Roseiras anãs, roseiras baixas, altas, altíssimas. Colocadas em tufos, como almofadas bordadas com flores
aos pés das árvores, sobre prados de ervas muito verdes, ou em sebes, ao longo dos caminhos, ao lado dos
rios, em círculos, ao redor dos tanques de irrigação, espalhadas por este parque em parte formado por
colinas, ou, então, enroladas nos troncos das árvores, com suas cabeleiras floridas, que se lançam de um
tronco a outro, formando festões e grinaldas. Uma coisa verdadeiramente de sonho. Todos os tamanhos,
bem como as matizes, aí estão presentes, e se trançam, pondo as cores do marfim perto do ardor cor de
sangue de outras corolas, e reinando soberanas pelo número, as verdadeiras rosas da cor das maçãs do
rosto das crianças, que se esfumam nos contornos, passando para o branco matizado de rosa.
Todos ficam impressionados com tão grande beleza.
– Mas, que se faz com tudo isso? –pergunta Filipe.
– Goza-se disso –responde Tomé.
– Não. Daí também se tiram essências, dando trabalho a centenas de servos, jardineiros e de
empregados nas prensas das essências… Os romanos as procuram com avidez. Jônatas já me dizia isso,
quando me mostrou as contas da última colheita. 224.6Mas lá vem Maria de Alfeu com o menino. Eles nos
viram e estão chamando as outras…
De fato, eis que Joana e as duas Marias vêm vindo, precedidas por Margziam, que desce correndo, com
os braços já em posição de abraço, em direção de Jesus e de Pedro. As mulheres, ligeiras, se prostram
diante de Jesus.
– A paz esteja com todas vós. E minha mãe, onde está?
– Entre os roseirais, Mestre. Com Elisa. Oh! Elisa está bem curada! Ela já pode enfrentar o mundo e
seguir-te. Obrigada por me teres usado para isso.
– Obrigado Eu a ti, Joana. Estás vendo como era útil vir para a Judeia? Margziam, eis dois presentes
para ti. Este belo boneco e estas belas ovelhinhas. Eles te agradam?
O menino perdeu até o fôlego de alegria. Ele se inclina para Jesus, que se inclinou para dar-lhe o
boneco, e ficou assim curvado para poder olhá-lo no rosto e o aperta ao pescoço, beijando-o com toda a
veemência possível.
– Assim te faças humilde como as ovelhinhas e te tornes depois um bom pastor para os que crerem em
Jesus. Não é verdade?
Margziam diz sim, sim, sim, com o fôlego entrecortado e com os olhos lúcidos de júbilo.
– Agora, vai a Pedro, que Eu vou para minha mãe. Eu estou vendo lá longe a orla do véu dela, que lá vai
correndo ao longo de uma sebe de roseiras.
E corre para ir a Maria, recebendo-a sobre o coração, numa das curvas do caminho. Depois do primeiro
beijo, Maria explica, ainda ansiosa:
– Aí atrás vem Elisa… Eu corri para te beijar, porque deixar de abraçar-te, meu Filho, eu não podia… e
beijar-te diante dela eu não queria… Ela está muito mudada. Mas o coração sempre dói, diante das alegrias
dos outros, que para sempre a ela são negadas. Ei-la chegando aí.
Elisa dá rapidamente os últimos passos, e se ajoelha para beijar a veste de Jesus. Não é mais aquela
triste mulher de Betsur. Mas uma velha austera, marcada pela dor e, contudo, imponente pelos sinais que a
dor lhe deixou no rosto e no olhar.
– Que Tu sejas bendito, meu Mestre, agora e sempre, por me teres devolvido aquilo que tinha perdido.
– Sempre mais paz a ti, Elisa. estou contente por encontrar-te aqui. Levanta-te.
– Eu também estou contente. Tenho muitas coisas para te dizer, para te pedir, Senhor.
– Para isso teremos o tempo todo, porque Eu permanecerei aqui alguns dias. Vem, que Eu vou te fazer
conhecer os condiscípulos.
– Oh! Então, já compreendeste o que eu queria dizer? Isto é, que eu quero renascer para uma vida nova:
a tua. Quero refazer minha família: a tua. Quero ter filhos: os teus. Como Tu disseste, quando falavas em
Noemi, lá em minha casa, em Betsur. Sou eu uma nova Noemi, em tua graça, meu Senhor. Que Tu sejas
bendito por isso. Não estou mais na amargura, nem infecunda. Ainda vou ser mãe. E, se Maria o permitir,
um pouco tua mãe também, além de a ser dos filhos de tua doutrina.
– Sim. Tu o serás. Maria não ficará ciumenta por isso e Eu te amarei, de tal modo que não fiques
chorando por teres vindo. Vamos agora àqueles que querem dizer-te que te amam como irmãos.
E Jesus a toma pela mão, levando-a para perto de sua nova família.
A viagem para a espera do Pentecostes chegou ao fim.
225. O paralítico da piscina de Betsaida
e a discussão sobre as obras do Filho de Deus.
21 de julho de 1945.
225.1 Jesus está em Jerusalém, e se encontra precisamente nas adjacências da fortaleza Antônia. Com Ele
estão todos os apóstolos, menos Iscariotes. Uma grande multidão se dirige, apressada, para o Templo.
Todos estão com vestes de festa, tanto os apóstolos, como os outros peregrinos, e, por isso, eu acho que
eram os dias de Pentecostes. Muitos pedintes de esmola se misturam ao povo, queixando-se de suas
misérias, com cantos tristes e monótonos que comovem os corações, e procuram os melhores pontos, aos
lados das portas do Templo, ou nas encruzilhadas, das quais o povo se dirige para ele. Jesus passa, fazendo
o bem a estes miseráveis, que só pensam em fazer uma exposição completa de suas misérias, além da
narração de cada uma delas.
Tenho a impressão de que Jesus já tinha estado no Templo, porque ouço que os apóstolos estão falando
de Gamaliel, que teria feito como se não os visse, ainda que Estêvão, um dos seus ouvintes, lhe tivesse dado
notícia da passagem de Jesus por ali.
Estou ouvindo Bartolomeu, que pergunta aos seus companheiros:
– Que terá querido dizer aquele escriba com aquelas palavras: “Um grupo de carneiros não bons nem
para o corte?”
– Deverá ter falado de qualquer negócio dele –responde Tomé.
– Não. Ele se referia a nós. Eu vi logo. E, além disso, a segunda frase dele vinha confirmar a primeira.
Ele disse com sarcasmo: “Daqui a pouco, o Cordeiro vai ser Ele, primeiro tosado, e depois morto.”
– Sim, eu também ouvi isto –confirma André.
– É verdade. E eu estou queimando de vontade de voltar lá atrás e perguntar ao companheiro do escriba
o que ele sabe de Judas de Simão –diz Pedro.
– Ora, ele não sabe nada! Desta vez Judas não está aqui porque está realmente doente. Nós sabemos
disso. Talvez ele tenha até sofrido muito com a viagem que fez. Nós somos mais fortes do que ele. Aqui foi
que ele viveu comodamente. Ele facilmente se cansa –responde Tiago de Alfeu.
– Sim, nós sabemos disso. Mas aquele escriba disse: “Está faltando o camaleão do grupo.” O camaleão
não é aquele que muda de cor todas as vezes que quer? –pergunta Pedro.
– Sim, Simão. Mas certamente quiseram falar assim por causa das sempre novas roupas dele. Pensa
nisto. Ele é jovem. Tenhamos pena dele –diz, conciliador, Zelotes.
– Isso também é verdade. Mas!… que frases curiosas essas –conclui Pedro.
– Sempre fica parecendo que estão nos ameaçando –diz Tiago de Zebedeu.
– É que nós sabemos que estamos ameaçados, e passamos a ver ameaças até onde não há… –observa
Judas Tadeu.
– E vemos culpas até onde elas não existem –termina Tomé.
– É certo. A suspeita é feia… Quem sabe como estará hoje Judas. Neste meio tempo ele estará se
aproveitando daquele paraíso, com aqueles anjos… Também eu continuaria aqui, até ficar doente, para
depois ter todas aquelas delícias! –diz Pedro.
E Bartolomeu lhe responde:
– Nós esperamos que ele fique bom logo. Precisamos terminar a viagem, porque o calor nos persegue.
– Oh! Cuidados não lhe faltam, e, além disso… o Mestre providencia –garante André.
– Ele estava com muita febre, quando o deixamos. Não sei como é que ela veio assim… –diz Tiago de
Zebedeu.
E Mateus lhe responde:
– Como é que veio a febre! Porque ela tem que vir. Mas, não há de ser nada. O Mestre não está
preocupado. Se tivesse visto alguma coisa grave, não teria deixado o castelo da Joana.
225.2 De fato, não está preocupado. Ele conversa com Margziam e João, enquanto vai à frente distribuindo
esmolas. Com certeza vai explicando ao menino muitas coisas, pois eu estou vendo que Ele lhe mostra uma
ou outra coisa. Ele se dirigiu para o fim dos muros do Templo, no canto noroeste. Lá está uma grande
multidão, que vai indo para um lugar cheio de pórticos, situado à frente de uma porta, que eu ouço ser
chamada “Porta do Rebanho.”
– Esta aqui é a Probática, a piscina de Betsaida. Agora, olha bem a água. Estás vendo como está parada?
Daqui a pouco, verás como ela se põe em movimento e sobe, chegando até àquela marca úmida. Tu a estás
vendo? Aí, então, desce o Anjo do Senhor, e a água o percebe e o venera como pode. Ele dá uma ordem à
água, para que ela cure o homem que estiver pronto para mergulhar nela. Estás vendo quantas pessoas?
Mas são muitos os que ficam distraídos, e não notam o primeiro movimento da água. Ou, então são os mais
fortes que, sem caridade, afastam os mais fracos. Não se deve nunca estar distraído diante dos sinais de
Deus. É preciso estar com a alma sempre vigilante, porque nunca se sabe quando Deus vai-se mostrar, ou
vai mandar o seu anjo. E nunca devemos ser egoístas, nem mesmo por causa da saúde. Muitas vezes, por
estarem discutindo de quem é a vez, ou quem é que precisa mais, esses pobres infelizes perdem o benefício
da vinda do anjo.
Jesus explica pacientemente a Margziam, que fica olhando para ele com uns olhos bem arregalados,
atentos e, enquanto isso, os tem voltados também para a água.
– Pode-se ver o anjo? Eu gostaria de vê-lo.
– Levi, que era um pastor da tua idade, o viu. Olha bem, tu também e fica preparado para louvá-lo.
O menino não se distrai mais. Seus olhares estão dirigidos para a água e para acima da água,
alternativamente, e não ouve nada, não vê nada mais. Enquanto isso, Jesus está olhando aquele pequeno
grupo de enfermos, cegos, estropiados, paralíticos, que estão esperando. Também os apóstolos estão
observando atentamente. O sol faz jogos de luz na superfície da água e invade, como um rei, as cinco
ordens de pórticos, que estão ao redor das piscinas.
– Ei-lo aí! –grita Margziam–. A água vem subindo e se move e brilha. Que luz! Eis o Anjo!… –e o menino
se ajoelha.
De fato, com o movimento do líquido na piscina que parece crescer por um fluxo, que se torna
repentinamente grande elevando a água até às bordas, ela está brilhando como um espelho exposto ao sol.
Por um instante, se manifesta um clarão ofuscante.
Um coxo está preparado para mergulhar na água e para dela sair, pouco depois, com uma perna que
estava encolhida por uma grande cicatriz e agora perfeitamente curada. Os outros se lamentam, e discutem
com o recém curado, dizendo que afinal ele não estava agora mais impedido de trabalhar, mas eles sim. E a
balbúrdia continua.
225.3 Jesus olha ao redor, e vê um paralítico em seu pequeno leito, que está chorando baixinho. Vai para
perto dele, inclina-se e o acaricia, perguntando-lhe:
– Estás chorando?
– Sim. Ninguém pensa jamais em mim. Aqui estou sempre, aqui estou. Todos ficam curados, e eu não. Há
trinta e oito anos que estou deitado de costas, gastei tudo o que tinha, meus parentes morreram e agora eu
sou um peso para um meu parente de longe e que me traz para cá todas as manhãs, e me vem apanhar pela
tarde… Mas, como lhe deve ser pesado fazer isso! Oh! Eu gostaria antes morrer!
– Não fiques triste! Já tiveste tanta paciência e tanta fé! Deus te atenderá.
– Assim espero… Mas sempre há momentos de desânimo. Tu és bom. Mas os outros… Quem já foi
curado, poderia, como um agradecimento a Deus, ficar aqui para socorrer os pobres irmãos…!
– De fato, deveria fazer isso. Mas, não fiques com raiva deles. Eles nem pensam nisso. Não é má vontade
deles. É a alegria por terem ficado curados que os torna egoístas. Perdoa-os…
– Tu és bom. Tu não farias como eles fazem. Eu me esforço com as mãos para ir-me arrastando até lá,
quando a água da piscina se põe em movimento. Mas vai sempre alguém na minha frente e na beira eu não
posso ficar, pois lá eu seria pisoteado. E, mesmo que eu estivesse lá, quem me desceria? Se eu te tivesse
visto antes, eu te teria pedido…
– Queres mesmo ficar bom? Então, levanta-te! Pega o teu pequeno leito e anda!
Jesus se levantou de novo para dar esta ordem e até parece que Ele, ao levantar-se, com isso levantou o
paralítico, porque este se põe de pé e depois dá uns dois ou três passos, quase sem acreditar no que está
fazendo, e vai atrás de Jesus, que já se vai afastando dali, e, uma vez que vê que está andando de verdade,
dá um grito, que faz que todos se virem para ele.
– Mas, quem és tu? Em nome de Deus, dize-o a mim. És talvez o Anjo do Senhor?
– Eu sou mais do que um anjo. O meu nome é Piedade. Vai em paz.
Todos se aglomeram. Todos querem ver. Querem falar. Querem ficar sãos. Mas chegam os guardas do
Templo, que eu creio que vigiam também a piscina, e desfazem aquela aglomeração barulhenta, ameaçando
a todos com punições.
O paralítico apanha o seu pequeno leito: são dois varais sobre dois pares de pequenas rodas e um pano
rasgado pregado nos varais, e ele lá se vai todo feliz, gritando para Jesus:
– Eu ainda te encontrarei de novo. Não me esquecerei do teu nome e do teu rosto.
225.4 Jesus, misturando-se com a multidão, vai saindo em outra direção, para o rumo dos muros.
Ele ainda não chegou a passar pelo ultimo pórtico, quando chegam uns como se estivessem impelidos
por algum vento furioso. São os componentes de um grupo de judeus das piores castas, todos
mancomunados no desejo de dizer uns desaforos a Jesus. Eles procuram, olham, perscrutam. Mas não
conseguem ficar sabendo bem de que se trata, e Jesus lá se vai, enquanto ficam decepcionados pelas
informações dos guardas, assaltam o pobre, mas feliz curado, e o repreendem:
– Por que vais levando esta cama? Hoje é sábado. Isso não te é permitido.
O homem olha para eles e diz:
– Eu não sei de nada. Só sei que aquele que me curou me disse: “Pega a tua cama e anda.” Disto eu sei.
– Só pode ser um demônio, porque te mandou violar o sábado. Como era ele? Quem era? É judeu? É
galileu? É um prosélito?
– Eu não sei. Ele estava aqui. Viu-me chorando, e veio para perto de mim. Ele me curou. Depois, foi-se
embora, levando um menino pela mão. Acho que era filho dele, porque pela idade Ele pode ter um filho
daquele tamanho.
– Um menino? Então, não é Ele!… Como é que Ele disse que se chamava? Não lhe perguntaste? Não
mintas!
– Ele me disse que se chama Piedade.
– Tu és bobo. Isso não é nome de gente!
O homem encolhe os ombros e vai-se embora.
Os outros dizem:
– Era Ele com certeza. Os escribas Anias e Zaqueu o viram no Templo.
– Mas Ele não tem filhos!
– Mas é Ele. Ele estava com os discípulos.
– Mas Judas que conhecemos bem não estava com Ele. Os outros… podem ser uns quaisquer.
– Não. Eram eles.
E a discussão continua, enquanto os pórticos vão-se enchendo de enfermos…
[…]
225.5 Jesus torna a entrar no Templo, por outro lado, o lado do oeste, que é aquele que está mais defronte
da cidade. Os apóstolos o acompanham. Jesus olha ao redor de Si e finalmente vê o que estava procurando:
Jônatas que, por sua vez, também o estava procurando.
– Está melhor, Mestre. A febre baixou. Tua mãe diz que espera poder vir até o próximo sábado.
– Obrigado, Jônatas. Tu foste pontual.
– Nem tanto. Maximino de Lázaro me deteve. Ele está Te procurando. Foi ao pórtico de Salomão.
– Vou encontrar-me com ele. A paz esteja contigo. Leva a minha paz à minha mãe e às discípulas e
também a Judas.
E Jesus se dirige logo ao pórtico de Salomão, onde, de fato, encontra Maximino.
– Lázaro soube que estás aqui. Ele quer Te ver, para dizer-te uma grande coisa. Virás?
– Sem dúvida. E logo. Podes dizer-lhe que me espere nesta semana.
Também Maximino vai-se embora, depois de poucas palavras mais.
– Vamos rezar ainda, já que pudemos voltar até aqui, diz Jesus, e vai para o átrio dos hebreus.
Mas, perto do átrio, Ele se encontra com o paralítico que foi curado e que foi dar graças ao Senhor. O
miraculado o avista no meio da multidão e o saúda com alegria, e lhe conta tudo o que aconteceu junto à
piscina, depois de sua saída de lá.
E termina, dizendo:
– Depois, perguntou-me um, que estava espantado por me ver são, quem és Tu. Tu és o Messias, não é
verdade?
– Eu o sou. Mas, ainda que tivesses ficado curado pela água, ou por outro poder, terias sempre o mesmo
dever para com Deus. O dever de usar a saúde para fazer boas obras. Tu estás curado. Vai, vai, então com
boas intenções, empenhar-te de novo nas atividades da vida. E não peques nunca mais. Que Deus não tenha
que te punir mais ainda. Adeus. Vai em paz.
– Eu já estou velho… não sei nada… Mas gostaria de acompanhar-te para te servir, e para saber. Tu me
queres?
– Eu não rejeito ninguém. Pensa nisso, antes de vir. E, se estiveres decidido mesmo, vem.
– Ir aonde? Não sei aonde vais…
– Pelo mundo. Em qualquer lugar encontrarás discípulos que te guiem a Mim. O Senhor te ilumine para
o que for melhor.
Jesus vai para o seu lugar, e se põe a rezar… 225.6Eu não sei se o curado vai por si mesmo aos judeus ou
se são eles que o fazem parar, a fim de lhe perguntarem se aquele que estava falando com ele é o que o
curou. Só sei que o homem está falando com os judeus, e depois sai dali, e eles vão para perto da escada
por onde deve descer Jesus a fim de passar para os outros pátios, e sair do Templo.
Sem dirigir-lhe nenhuma saudação, quando Jesus chega, eles lhe dizem:
– Então, Tu continuas a violar o sábado, apesar de todas as repreensões que te têm sido feitas? E ainda
queres que te respeitem como a um enviado de Deus?
– Enviado? Mais ainda: como Filho. Porque Deus é meu Pai. Se não me quereis respeitar, deixai de fazê-
lo. Mas nem por isso Eu vou deixar de cumprir a minha missão. Não existe um só momento em que Deus
pare de agir. Nesta mesma hora o meu Pai está agindo e Eu também faço, porque um bom filho faz o que o
seu pai está fazendo, e porque para agir aqui nesta terra é que Eu vim.
Algumas pessoas se aproximam para ouvirem a discussão. Entre elas há pessoas que conhecem a Jesus,
outras que foram beneficiadas, outras que o estão vendo pela primeira vez; alguns o amam, outros o
odeiam, muitos estão incertos. Os apóstolos formam um núcleo com o Mestre. Margziam está ficando com
medo, e já está fazendo uma carinha de choro.
Os judeus, uma mescla de escribas, fariseus e saduceus, proclamam o seu escândalo:
– Até a isso te atreves! Oh! Ele se diz Filho de Deus! Um sacrilégio! Deus é Aquele que é e não tem
filhos! Chamai Gamaliel! Chamai Sadoc! Reuni os rabis, para que ouçam e o refutem.
– Não vos agiteis. Chamai-os, e eles vos dirão, se é que sabem, que Deus é Uno e Trino: Pai, Filho e
Espírito Santo, e que o Verbo, ou seja, o Filho do Pensamento, veio, como havia sido profetizado, para salvar
Israel e o mundo do Pecado. O Verbo sou Eu. Sou o Messias prometido. Portanto, não há nenhum sacrilégio
em dar Eu ao Pai o nome de meu Pai. 225.7Vós vos inquietais, porque Eu faço milagres, porque com isso
atraio para Mim as multidões, e as convenço. Vós me acusais de ser um demônio, porque opero prodígios.
Mas Belzebu está, há séculos, no mundo e, na verdade, não lhe faltam devotos adoradores… Por que então,
ele não faz o que Eu faço?
O povo murmura:
– É verdade. É verdade. Ninguém faz o que Ele faz.
Jesus continua:
– Eu vo-lo digo: é porque Eu sei o que ele não sabe, e posso o que ele não pode. Se Eu faço obras de
Deus, é porque Eu sou seu Filho. Por si mesmo, ninguém pode chegar a fazer senão o que viu fazer. Eu, o
Filho, não posso fazer senão o que vi ser feito pelo Pai, pois Eu sou Um com Ele, desde os séculos dos
séculos, não diferente dele nem na natureza, nem no poder. Todas as coisas que o Pai faz, Eu, que sou seu
Filho, também as faço. Nem Belzebu nem outros podem fazer aquilo que Eu faço. Porque Belzebu e os
outros não sabem aquilo que Eu sei. O Pai Me ama, a Mim seu Filho, e Me ama sem medida, como Eu O
amo. Por isso, Ele me mostrou e Me mostra tudo o que Ele faz, para que Eu faça o que Ele faz, Eu nesta
terra, neste tempo de Graça, e Ele no Céu, desde antes que existisse o Tempo na terra. E Ele me mostrará
obras cada vez maiores, a fim de que Eu as faça, e vós fiqueis maravilhados. O Pensamento dele é
inesgotável em pensar. E Eu o imito sendo indefectível em cumprir o que o Pai pensa e quer com o seu
pensamento.
225.8 Vós ainda não sabeis quantas coisas o Amor cria inesgotavelmente. Nós somos o Amor. E não há
limitação para Nós, nem existe coisa que não possa ser aplicada sobre os três graus do homem: o inferior, o
superior, o espiritual. De fato, assim como o Pai ressuscita os mortos e lhes dá a vida, igualmente Eu, o
Filho, posso dar a vida a quem Eu quiser. Antes, pelo amor infinito que o Pai tem para com o Filho, me é
concedido não só dar a vida à parte inferior, mas também à superior, livrando o pensamento do homem e o
seu coração dos erros mentais e das más paixões, e à parte espiritual, dando ao espírito ficar livre do
pecado. Porque o Pai não julga a ninguém, mas deu todo o julgamento ao Filho, sendo o Filho quem, com o
seu próprio sacrifício, comprou a humanidade para redimi-la. E isso o Pai faz por justiça, porque a quem
paga com sua moeda, é justo que seja dado, e para que todos honrem ao Filho, como honram ao Pai.
Ficai sabendo que, se separais o Pai do Filho, ou o Filho do Pai, e não vos lembrais do Amor, vós não
amais a Deus, como deve ser amado com verdade e sabedoria, mas praticais uma heresia, dando culto a um
só, quando os três são uma admirável Trindade. Por isso, quem não honra o Filho é como se deixasse de
honrar o Pai, porque o Pai, Deus, não aceita que só uma parte de Si seja adorada, mas quer que o seu Todo
seja adorado. Quem não honra o Filho, não honra o Pai, que O enviou, por pensamento perfeito de amor. E,
portanto, nega que Deus saiba fazer obras justas. Em verdade, Eu vos digo que quem escuta a minha
palavra, e crê naquele que Me enviou, tem a vida eterna, e não é fulminado pela condenação, mas passa da
morte para a vida, porque crê em Deus e aceita a minha palavra, quer dizer, infunde em si a vida que não
morre.
Está chegando a hora, e até para muitos já chegou, na qual os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e
quem a tiver ouvido ressoar vivificadora no fundo de seu coração, esse viverá. 225.9Que dizes tu, escriba?
– Eu digo que os mortos não ouvem mais nada, e que Tu estás louco.
– O Céu irá te persuadir de que não é assim, e que o teu saber é um nada, em comparação com o de
Deus. Vós tendes a tal ponto humanizado as coisas sobrenaturais, que não sabeis mais dar às palavras nada
além de um significado imediato e terreno. Vós ensinastes o Hagadá, em fórmulas fixas, vossas, sem vos
esforçardes para compreender as alegorias em suas verdades, e agora, em vosso espírito, cansado de ser
oprimido por uma humanidade que quer triunfar sobre o espírito, não credes mais nem naquilo que
ensinais. E esta é a razão pela qual não podeis mais lutar contra as forças ocultas.
A morte, de que Eu estou falando, não é a morte da carne, mas do espírito. Hão de vir aqueles que
ouvirão com seus ouvidos a minha palavra e a acolherão em seus corações, e a porão em prática. Esses,
ainda que mortos no espírito, reaverão a vida, porque a minha Palavra é Vida que se infunde neles. E Eu a
posso dar a quem Eu quero, porque ela em Mim é perfeição de Vida visto que o Pai tem em Si a Vida
Perfeita, e assim também o Filho teve do Pai a Vida em Si mesmo, perfeita, completa, eterna, inesgotável e
transmissível. E, com a Vida, o Pai me deu o poder de julgar, pois o Verbo do Pai é o Filho do homem, pode e
deve julgar o homem. E não fiqueis maravilhados por esta primeira ressurreição, a espiritual, que Eu opero
com a minha Palavra. Vereis outras mais fortes, mais fortes do que os vossos sentidos pesados, porque em
verdade Eu vos digo que não há coisa maior do que a invisível mas real ressurreição de um espírito. Bem
depressa virá a hora, na qual os sepulcros serão penetrados pela voz do Filho de Deus, e todos os que estão
neles a ouvirão. E os que fizeram o bem, de lá sairão a fim de irem para a ressurreição da Vida Eterna,
enquanto que os que fizeram o mal irão para a ressurreição da eterna condenação.
Isto Eu não digo que faço e não o farei por Mim mesmo, só por minha vontade, mas pela vontade do Pai
unida à minha. Eu falo e julgo conforme o que ouço e o meu juízo é reto porque Eu não procuro a minha
vontade mas a vontade daquele que me enviou. Eu não estou separado do Pai. Eu estou nele e Ele está em
Mim. E Eu conheço o seu Pensamento, e o traduzo em palavras e ação.
225.10 Tudo que Eu digo para dar testemunho de Mim mesmo não pode ser aceito pelo vosso espírito
incrédulo, que não quer ver em Mim outra coisa que um homem semelhante a todos vós. Também há um
outro que testemunha por Mim, e que vós dizeis que venerais como grande profeta. Eu sei que seu
testemunho é verdadeiro. Mas vós, que dizeis venerá-lo, não aceitais o seu testemunho porque é contrário
ao vosso pensamento que é meu inimigo. Vós não aceitais o testemunho do homem justo, do último profeta
de Israel porque, naquilo que vos agrada, dizeis que ele não é mais do que um homem e que pode errar. Vós
mandastes interrogar João, esperando que Ele dissesse de Mim o que vós desejáveis, isto é, o que de Mim
pensáveis, aquilo que vós de Mim quereis pensar. Mas João deu testemunho da verdade e vós não a
pudestes aceitar. Porque o profeta diz que Jesus de Nazaré é o Filho de Deus, vós, no segredo de vossos
corações, porque tendes medo da multidão, dizeis que o profeta é um doido, como o é Cristo. Eu, porém,
não recebo testemunho de homem, seja mesmo o mais santo de Israel. Eu vos digo: ele era a lâmpada
ardente e luminosa, mas vós quisestes, por pouco tempo, gozar de sua luz. Quando aquela luz se projetou
sobre Mim, para fazer-vos conhecer o Cristo por aquilo que Ele é, deixastes que a lâmpada fosse colocada
debaixo de um alqueire e, antes ainda, levantastes entre ela e vós um muro, para não verdes, à luz dela, o
Cristo do Senhor.
Eu sou grato a João pelo seu testemunho, e grato lhe é o Pai. E João terá um grande prêmio por esse seu
testemunho, ardendo também por isso no Céu, o primeiro sol que brilhará entre todos os homens lá em
cima, brilhando como brilharão todos os que tiverem sido fiéis à Verdade e tiverem fome de Justiça. Mas Eu
tenho um testemunho maior do que o de João. E esse testemunho são as minhas obras. Porque as obras que
o Pai me deu para fazer, Eu faço, e elas dão testemunho de que o Pai me mandou, dando-me todo o poder. E
assim, é o próprio Pai que me mandou, quem dá testemunho em meu favor. Vós nunca ouviste-lhe voz nem
vistes a sua Face. Mas Eu o vi e O vejo, a ouvi e a ouço. Vós não tendes morando em vós a sua palavra,
porque não credes naquele que Ele mandou..
Vós investigais as Escrituras, porque credes obter, pelo conhecimento delas, a Vida Eterna. E não
percebeis agora que são justamente as Escrituras que falam de Mim? E como, então, continuais a não
querer vir a Mim, para terdes a Vida? Eu vo-lo digo: é porque quando qualquer coisa é contrária às vossas
ideia s inveteradas, vós as rejeitais. Falta-vos a humildade. Não podeis chegar a dizer: “Eu errei. Aquele ou
este livro diz o que é certo e eu estou errado.” Foi assim que fizestes com João, assim com as Escrituras,
assim com o Verbo que vos está falando. Não podeis mais ver e compreender porque estais enfaixados com
a soberba e atordoados com as vossas vozes.
225.11 Pensais que Eu assim vos fale, porque Eu quero ser por vós glorificado? Não. Sabei-o, Eu não
procuro nem quero glória que venha dos homens. Aquilo que Eu procuro e quero é a vossa salvação eterna.
Esta é a glória que Eu procuro. A minha glória de Salvador, que não pode existir se Eu não tiver salvados,
que aumenta quanto mais salvos Eu tiver, que me há de ser prestada pelos espíritos salvos e pelo Pai,
Espírito Puríssimo.
Mas vós não sereis salvos. Eu vos conheci por aquilo que sois. Vós não tendes em vós o amor de Deus.
Sois sem amor. E por isso não vindes ao Amor que vos fala e não entrareis no Reino do Amor. Lá vós sois
desconhecidos. O Pai não vos conhece, porque vós não me conheceis a Mim que estou no Pai. Não quereis
me conhecer. Eu vim em nome do meu Pai, e vós não me recebeis, enquanto estais prontos a receber a
qualquer um que venha em seu próprio nome, contanto que vos diga o que vos agrada. Dizeis que sois
almas de fé? Não. Não o sois. Como podeis crer, vós que mendigais a glória uns dos outros, e não procurais
a glória dos Céus, que só de Deus procede? A glória que é a Verdade, não jogo de interesses que param
sobre a terra e que acariciam somente a humanidade viciosa dos degradados filhos de Adão.
Eu não vos acusarei ao Pai. Não penseis nisto. Já há quem vos acusa: Moisés no qual vós esperais. Ele
vos repreenderá por não crerdes nele, porque não credes em Mim, pois ele escreveu sobre Mim e vós não
me reconheceis segundo o que sobre Mim ele deixou escrito[95]. Vós não acreditais nas palavras de Moisés,
que é o grande sobre o qual jurais. Como podeis, então, crer nas minhas, nas do Filho do homem, no qual
não tendes fé? Humanamente falando, isso é lógico. Mas aqui estamos no campo do espírito e estão em
confronto com as vossas almas. Deus as observa à luz das minhas obras e confronta as ações que fazeis com
o que vim ensinar. E Deus vos julga.
Eu me vou. Por muito tempo não me encontrareis. E acreditai isto não é um triunfo, mas é um castigo.
Vamos.
E Jesus abre a multidão, em parte muda, em parte sussurrando aprovações, que o medo dos fariseus
reduz a uns simples sussurros, e se vai.
[95] ele deixou escrito como em Deuteronômio 18,15-19.
Segundo ano
da Vida pública de Jesus.
(continuação)
… Diz Jesus:
232.10
– Aqui colocareis a parábola da ovelhinha tresmalhada, contada em 14-
08-1944.
[6] não te deixei imundo, pela descrição de Levítico 15,19.25.
[7] visão distante, de 7 de março de 1944 que encontraremos inserida no capítulo 352.
233. Parábola da ovelhinha tresmalhada
ouvida também por Maria de Magdala.
[12 de agosto de 1944.]
233.1Jesus fala às multidões. Tendo subido à margem arborizada de uma
pequena torrente, Ele está falando a muitas pessoas, espalhadas pelo campo,
onde o trigo acabou de ser ceifado, e mostra ainda o aspecto triste dos
restolhos queimados.
Já chegou a tarde. O crepúsculo vem descendo, mas a Lua também já
vem subindo. É uma bela e clara tarde de um começo de verão. Alguns
rebanhos estão voltando para o redil, e o din-don das campainhas já se
mistura com o forte cantar dos grilos ou das cigarras, em um contínuo cri,
cri, cri…
Jesus busca o assunto nas manadas que vão passando. Ele diz:
– O vosso Pai é como um pastor cuidadoso. Como faz o bom pastor?
Ele procura pastos bons para as suas ovelhinhas, e as pastoreia onde não há
cicutas nem tóxicos, mas trevos de bom sabor, poejos aromáticos e amargos
e saudáveis agriões. Procura os lugares onde, junto com o alimento, haja
também algum pequeno regato de águas frescas e limpas, haja sombra de
árvores, e onde não encontre cobras pelo meio do verdor das ervas. Ele não
procura de preferência as pastagens mais viçosas, porque sabe que nelas é
fácil encontrar a cilada das serpentes e das ervas nocivas, mas prefere as
pastagens da montanha, onde as orvalhadas conservam sempre limpas e
frescas as pequenas ervas, enquanto o Sol as mantém sempre limpas de
répteis, lá onde o ar está sempre em movimento e é bom, e não pesado e
insalubre como o ar da planície. O bom pastor observa uma por uma as suas
ovelhas. Trata delas, quando estão doentes e faz curativos nelas, quando
estão feridas. Ele grita com a que ficaria doente, por estar comendo demais,
e a outras que pegariam alguma doença por ficarem muito tempo em
lugares encharcados ou muito isolados, ele as chama para irem para outro
lugar. E, se uma está sem apetite e não come, ele procura para ela ervas
ligeiramente ácidas e aromáticas, capazes de despertar-lhe o apetite e lhe dá
com sua mão, conversando com ela, como com uma pessoa amiga.
Assim é que faz o bom Pai, que está nos Céus, com os seus filhos
errantes sobre a terra. Seu amor é a vara que os reúne e a voz que os guia, e
as pastagens são a sua Lei, e seu redil é o Céu.
Mas acontece que uma ovelhinha se afastou dele. Quanto Ele a
233.2
amava! Ela era nova, pura, cândida, como uma nuvem em céu de abril. O
pastor olhava para ela com muito amor, pensando em quanto bem Ele podia
fazer a ela e quanto amor dela podia receber.
Mas ela o abandona.
Havia passado por ali um tentador, ao longo da estrada que vai
margeando a pastagem. Ele não vinha vestido de um modo austero, mas
com uma veste de mil cores. Não vinha com cinturão de couro, com um
machado e uma faca pendurados, mas, sim, com um cinturão de ouro, tendo
pendurados nele guizos de prata, de sons melodiosos como a voz do
rouxinol e ampolas de perfumes que inebriam…Não trazia um bordão,
como os bons pastores, para reunir e defender as ovelhas e que, quando não
basta o bordão, estão prontos a defendê-las com o machado e a faca e a até
com sua vida. Mas aquele tentador, que havia passado, tinha nas mãos um
turíbulo brilhante por suas pedras preciosas, das quais subia fumaça, que é
de mau cheiro e perfume ao mesmo tempo, mas que atordoa tanto como as
joias, que são lapidadas, sim, mas totalmente falsas! Ele estava
deslumbrante. E ia cantando e deixando cair punhados de um sal que
brilhava sobre a terra escura.
Noventa e nove ovelhas olharam, e pararam. A centésima, a mais nova
e querida, dá um pulo, e desaparece, indo atrás do tentador. O pastor bem
que a chama. Mas ela não volta. E lá vai, mais rápida do que o vento, para
alcançar aquele que passou e, para ter forças para correr, ela experimentou
daquele sal. E, quando ele ia descendo por dentro dela, a queimou. Então,
um delírio estranho fez que ela procurasse água profundas e verdes em
matas escuras. E, nas matas, indo atrás do tentador, ela vai-se entranhando,
sobe e desce, e cai… uma, duas, três vezes. E uma, duas, três vezes. ela
sente, ao redor do seu pescoço, o abraço viscoso dos répteis, e, querendo
beber, bebe daquelas águas impuras. E querendo alimentar-se, morde ervas
que têm o brilho de uma baba repugnante.
233.3Que faz, entretanto, o bom pastor? Ele fecha em lugar seguro as outras
noventa e nove, e depois põe-se a caminho, e não para de andar, enquanto
não encontra os rastros da que se perdeu. E, como ela não volta a ele, que
está confiando aos ventos as palavras com que a chama, ele continua a ir em
busca da perdida. E chega a vê-la lá ao longe, estonteada por entre as
espirais dos répteis, e já tão tonta, que nem sente mais saudade do rosto que
a ama. Até ainda zomba dele. E ele a torna a olhar, culpada por haver
penetrado, como uma ladra, em casa alheia, tão culpada, que nem tem mais
coragem de olhar para ele… Contudo, o pastor não se cansa… e vai.
Procura-a, procura-a, e a acompanha, seguindo os seus rastros. Vai
chorando sobre os sinais deixados por ela: são flocos de lã: traços de alma;
traços de sangue: delitos diversos; sinais bem diferentes, sujeiras, provas de
sua luxúria. Ele vai indo até que a alcança.
Ah! Eu te encontrei, querida, eu te alcancei. Que caminhada eu fiz por
causa de ti! Para tornar a levar-te para o redil. Não inclines tua fronte
aviltada. O teu pecado está sepultado em meu coração. Ninguém, a não ser
eu, que te amo, ficará sabendo disso. Eu te defenderei das críticas dos
outros, eu te cobrirei com a minha pessoa, para servir-te de escudo contra as
pedras dos acusadores. Vem. Estás ferida? Oh! Mostra-me as tuas feridas.
Eu as conheço. Mas eu quero que tu as mostres, com a confiança que tinhas
quando eras pura, e olhavas para mim, teu pastor e deus, com olhos
inocentes. Aqui estão elas. Todas elas têm um nome. Como são profundas!
Como foram feitas estas tão profundas, que chegam ao fundo do coração?
Foi o Tentador, eu sei. E ele, que não usa bordão nem machado, mas que
fere ainda mais fundo com a sua mordida envenenada, e, atrás dela,
continuam ferindo as joias falsas do seu turíbulo: aquelas que te seduziram
por seu brilho… e que eram os enxofres do inferno, trazidos à luz, para
queimar-te o coração. Olha, quantas feridas! Quanta lã rasgada, quanto
sangue, quanta sarça.
233.4Ó pobre, pequena alma iludida! Mas, dize-me: Se eu te perdôo, me
amarás ainda? Mas, dize-me: Se eu te estendo os braços, tu virás para cá?
Mas, dize-me: Tens sede de amor bom? E, então! Vem, e nasce de novo.
Volta para as pastagens santas. Chora. O teu com o meu pranto lavam as
manchas deixadas pelo teu pecado, e eu, para alimentar-te, visto que tu
estás consumida pelo mal, que te queimou, abro o meu peito, abro minhas
veias, e te digo: “Alimenta-te, mas vive!”
Vem, que eu te tomo nos braços: Iremos mais bem dispostos às
pastagens santas e seguras. Tudo haverás de esquecer desta hora de
desespero. E as tuas noventa e nove irmãs se alegrarão pela tua volta,
porque, eu te digo, a minha ovelhinha tresmalhada, que eu fui procurar,
tendo que andar até tão longe, e que eu afinal alcancei, que eu salvei, pois
maior festa se faz entre os bons por um tresmalhado que volta, do que por
noventa e nove justos que jamais se afastaram do redil.
Jesus nenhuma vez se virou para olhar para o caminho, que está
223.5
atrás dele, e pelo qual acaba de chegar, por entre as penumbras da tarde,
Maria de Magdala, ainda elegantíssima, mas vestida muito mais
simplesmente, coberta com um véu escuro, que uniformiza os seus gestos e
suas formas. Mas, quando Jesus fala: “Eu te encontrei, querida”, Maria põe
as mãos debaixo do véu, e chora baixo, mas continuamente. As pessoas não
a veem, porque ela está para além do barranco, que fica à beira da estrada.
Quem a vê é somente a Lua, que já vai alta, e o espírito de Jesus… o qual
me diz:
– O comentário está na visão. Mas Eu te falarei dele ainda. Agora
repousa, porque é tarde. Eu te abençôo, Maria fiel.
234. Comentário de três episódios
sobre a conversão de Maria de Magdala.
13 de agosto de 1944
234.1Diz Jesus:
– Desde janeiro, desde quando Eu te fiz ver a ceia na casa de Simão, o
leproso, tu, e quem te guia, desejastes conhecer mais sobre Maria de
Magdala e que palavras Eu tive para ela. Sete meses depois, Eu vos
descubro estas páginas do passado, para contentar-vos e para dar uma
norma àqueles que devem saber inclinar-se sobre estas leprosas da alma, e
uma palavra que conceda a essas infelizes, que se sufocam em seu sepulcro
de vícios, ao tentarem sair dele.
234.2Deus é bom. Ele é bom com todos. Ele não mede com medidas
humanas. Não faz diferença entre pecado e pecado mortal. O pecado o
entristece, seja ele qual for. O arrependimento o faz ficar alegre e pronto
para perdoar. A resistência à graça o torna inexoravelmente severo, porque
a Justiça não pode perdoar ao impenitente, que morre assim mesmo com
todos os auxílios que tiver recebido para que se convertesse.
Mas, nas conversões que falharam, se não a metade, pelo menos quatro
décimos têm como causa primeira o descuido dos que estão à frente do
trabalho de conversão, por um zelo mal entendido e mentiroso que, como
um toldo descido sobre um real egoísmo e orgulho, pelos quais ficam eles
tranquilos em seu próprio abrigo, sem descerem para o meio da lama, a fim
de arrancar dela um coração. “Eu sou puro. Eu sou digno de respeito. Não
vou aos lugares onde há corrupção moral, nem onde me podem faltar com a
reverência.” Mas quem fala não assim ao acaso não leu o Evangelho[8]
naquele ponto onde está dito que o Filho de Deus veio para converter os
publicanos e as meretrizes, além das pessoas honestas que assim o eram,
ainda que somente segundo a Lei Antiga? Não pensará esse tal que o
orgulho é uma impureza da mente, e que a falta de caridade é uma impureza
do coração? Ficarás vilipendiado? Eu já o fui antes, e mais do que tu, e Eu
era o Filho de Deus. Deverás andar com tuas vestes sobre as imundícies? E
Eu, não toquei com as minhas mãos esta imundície, para pô-la de pé e
dizer-lhe: “Caminha por este novo caminho”?
Não vos lembrais do que Eu disse aos vossos primeiros predecessores?
“Em qualquer cidade ou vila em que entrardes, informai-vos sobre quem há
nela que o mereça, e ficai na casa dele.” Isto, para que o mundo não fique
murmurando. O mundo que é fácil demais para ver o mal em todas as
coisas. Mas Eu acrescentei: “Ao entrardes nas casas, — ‘casas’, Eu disse, e
não ‘casa’ — saudai-as dizendo: ‘Paz a esta casa’. Se a casa for digna, a paz
virá sobre ela e, se não for digna, voltará para vós.” Isto é para ensinar-vos
que, enquanto não houver uma prova certa de impenitência, deveis ter para
com todos um mesmo coração. E Eu completei o ensinamento, dizendo: “E,
se algum não vos recebe e não escuta as vossas palavras, ao sairdes
daquelas casas e daquelas cidades, sacudi a poeira que ficou pegada à sola
de vossos pés.” A fornicação nos bons, pelos quais a Bondade é
constantemente amada, faz que eles sejam como um dado de vidro liso, e
ela não é mais do que pó. Um pó que, basta que o sacudamos, ou que
sopremos sobre ele, para que ele voe, sem deixar nenhuma lesão.
Sede verdadeiramente bons. Formai um só bloco, com a Bondade
eterna no centro. E nenhuma corrupção será capaz de subir para vos sujar, a
não ser nas solas de vossos pés, pois estão apoiados no chão. A alma fica
muito ao alto. A alma de quem é bom e de quem é uma coisa só com Deus.
A alma está no Céu. Até lá não chegam nem a poeira nem a lama, nem
mesmo quando esta é jogada com ódio contra o espírito do apóstolo. A
carne pode ferir-vos. Ferir-vos, quer dizer, materialmente, moralmente,
perseguindo-vos, porque o Mal odeia o Bem, ou ofendendo-vos. E que tem
isso? Eu não fui ofendido também? Não fui ferido? Mas será que aqueles
golpes ou aquelas palavras obscenas ficaram gravadas em meu Espírito?
Será que o perturbaram? Não. Será como uma cusparada lançada contra um
espelho, ou como uma pedra jogada contra a polpa suculenta de uma fruta:
deslizam sem conseguirem penetrar, ou penetram, mas somente na
superfície, sem ferirem o germe que está dentro do caroço, e, pelo contrário,
até o ajudam a nascer, porque é mais fácil sair para fora de uma massa já
meio aberta, do que de uma completamente fechada. É morrendo que o grão
germina e que o apóstolo produz. Morrendo materialmente, às vezes,
morrendo quase diariamente, num sentido metafórico, porque com isso fica
mais do que machucado o eu do homem. E isso não é morte: é Vida. Triunfa
o espírito sobre a morte da humanidade.
234.3Vinda a Mim por um capricho de ociosa, que não sabe como encher
suas horas de ócio, os seus ouvidos atordoados pelas mentirosas gentilezas
de quem a acarinhava com hinos à sensualidade, para poder tê-la como
escrava, aos seus ouvidos ressoou a voz límpida e severa da Verdade. Da
Verdade que não tem medo de ser escarnecida e incompreendida e que fala
suas palavras olhando para Deus. E, como um coro de sinos em festa, todas
as vozes se fundiram na Palavra. São as vozes usadas para ressoarem nos
Céus, no azul livre do ar, propagando-se por vales e colinas, planícies e
lagos, para fazer lembradas as glórias do Senhor e suas festividades.
Não vos lembrais do repicar festivo dos sinos em festa, que nos tempos
de paz tornava tão alegre o dia dedicado ao Senhor? O sino maior dava com
seu badalo que suscitava o som, o primeiro toque em nome da Lei divina.
Ele dizia: “Eu estou falando em nome de Deus, Juiz e Rei.” E depois os
sinos menores arpejavam: “que é bom, misericordioso e paciente”, até que
chegou a vez do sino mais sonoro, com sua voz de anjo, dizer: “cujo amor o
leva a perdoar e a compadecer-se, para vos ensinar que o perdão é mais útil
do que o rancor, e que é melhor ter compaixão do que ser inexorável. Vinde
a quem perdoa. Tende fé em quem se compadece”.
Eu também, depois de ter feito que seja lembrada a Lei, que foi pisada
pela pecadora, fiz cantar a esperança do perdão. Como uma faixa verde e
azul de seda, eu a sacudi por entre as tintas pretas, para que aí ela colocasse
as suas reconfortantes palavras. O perdão! Ele é uma orvalhada sobre o
ardor em quem está culpado. A orvalhada não é o granizo que fere, como
uma flecha, que golpeia, ricocheteia e depois vai-se, sem penetrar, matando
a flor. O orvalho desce de um modo tão leve, que a flor, ainda que seja
muito delicada, não o sente pousar sobre suas pétalas de seda. Mas depois
ela bebe o frescor dele e se restaura. O orvalho vai pousar também junto às
raízes, sobre a gleba esturricada, e vai até além… É uma umidade de
lágrimas, e um pranto das estrelas, amoroso pranto das nutrizes sobre os
filhos que têm sede e que desce, esse mesmo, restaurador, junto com o leite
gostoso e fecundo. Oh! Os mistérios dos elementos que trabalham para ele,
mesmo quando o homem descansa, ou quando peca!
O perdão é como este orvalho. Ele traz consigo, não somente a limpeza,
mas os sucos vitais, arrebatados, não dos outros elementos, mas das lareiras
divinas.
Depois, após a promessa de perdão, eis a Sabedoria que fala, e diz o
que é ou não é lícito, e nos chama e sacode. Não o faz por dureza. Mas pela
solicitude materna de salvar. Quantas vezes a vossa pederneira se faz ainda
mais impenetrável e agressiva para com a Caridade que sobre vós se
inclina!… Quantas vezes a evitais, quando Ela vos quer falar!… Quantas
vezes não zombais dela! Quantas vezes a odiais!… Se a Caridade usasse
para convosco os modos que usais para com Ela, o que seria de vossas
almas?! Mas, vede como é o contrário. Ela é a Incansável Caminhante, que
vem à procura de vós. Ela vem procurar-vos, mesmo quando vos entocais
em vossas nojentas tocas.
234.4Por que Eu quis ir àquela casa? Por que não operei nela o milagre?
Para ensinar aos apóstolos como agir, desafiando os preconceitos e as
críticas para cumprir um dever tão alto, que está acima dessas coisinhas do
mundo.
Por que Eu disse a Judas aquelas palavras? Os apóstolos eram muito
homens. todos os cristãos são muito homens, até os santos da terra o são,
ainda que de maneira menor. Alguma coisa de humano persiste até nos
perfeitos. Mas os apóstolos ainda não eram perfeitos. Os pensamentos deles
estavam cheios do que é humano. Eu os levava para o alto. Mas o peso da
humanidade deles os puxava para baixo. Para fazer que eles descessem
sempre menos, Eu devia colocar no caminho da subida algumas coisas
próprias para parar a descida, de modo tal, que, indo de encontro a elas, eles
parassem, meditassem e repousassem, para depois subirem mais, até além
do limite anterior. Coisas que fossem de primeira qualidade, a fim de
persuadi-los de que Eu era Deus. Por exemplo, a introspecção das almas, a
vitória sobre os elementos, os milagres, a transfiguração, a ressurreição e a
ubiquidade.
Eu estive na estrada de Emaús, enquanto estava no Cenáculo e, a hora
daquelas duas presenças, verificadas pelos apóstolos e discípulos, foi uma
das razões que mais os impressionou, soltando-os de seus laços e dirigindo-
os para os caminhos de Cristo.
Mais do que para Judas, que já incubava em si o plano da morte, Eu
falei para os outros onze. Que Eu era Deus, era o que Eu necessariamente
devia fazer brilhar diante dos olhos deles, não por orgulho, mas por
necessidade de sua formação. Eu era Deus e Mestre. Aquelas minhas
palavras diziam que Eu era isto. Eu me revelo com uma faculdade extra-
humana, e ensino uma perfeição: não ter discursos maus, nem mesmo com o
nosso interior. Pois que Deus está vendo e Deus deve ver um interior puro,
para poder nele descer e aí fazer sua morada.
Por que não operei o milagre naquela casa? Para fazer que todos
compreendessem que a presença de Deus exige um ambiente puro. Pelo
respeito à sua excelsa majestade. Para falar sem a palavra nos lábios, mas
com uma palavra ainda mais profunda, ao espírito da pecadora, e dizer-lhe:
“Estás vendo, infeliz? Estás tão suja, que tudo ao redor de ti fica sujo. Tão
sujo, que aí Deus não pode operar. Tu estás suja mais do que estes. Porque
tu repetes a culpa de Eva e ofereces o fruto aos Adãos, tentando-os,
afastando-os do Dever. Tu, ministra de satanás”.
Por que não quero que seja chamada “satanás” pela mãe angustiada?
Porque nenhuma razão justifica o insulto e o ódio. A primeira necessidade,
a primeira condição para termos Deus conosco é não termos rancor e
sabermos perdoar. A segunda necessidade é sabermos reconhecer que
também nós, e quem é nosso, somos culpados. Não vejamos somente a
culpa dos outros. A terceira necessidade é sabermos conservar-nos gratos e
fiéis, depois de termos recebido graças, e fazendo o que é justo para com o
Eterno. Infelizes daqueles que, depois de receberem a graça, ficam piores
do que cães, pois já não se lembram do seu Benfeitor, enquanto que o
animal se lembra dele!
234.5Eu não disse uma palavra à Madalena. Como se ela fosse uma
estátua, Eu a olhei por um instante, e depois a deixei. Voltei para os “vivos”,
que Eu queria salvar. A ela, uma matéria morta como e mais do que um
mármore esculpido, Eu a envolvi com uma indiferença aparente. Mas Eu
não disse nem uma palavra, nem fiz ato algum que não tivesse como alvo
principal a sua pobre alma, que Eu queria redimir. E a última palavra: “Eu
não insulto. Não insultes. Reza pelos pecadores. E Nada mais”, é como uma
grinalda de flores que se terminou, e tal palavra vai juntar-se com a
primeira palavra, que foi dita lá sobre o monte: “O perdão é mais útil do
que o rancor, e a compaixão do que a inexorabilidade.” E a fecharam, à
pobre infeliz, em um círculo aveludado, fresco, perfumado pela bondade,
fazendo-a perceber como servir a Deus é diferente daquela feroz escravidão
a satanás, e como é suave o perfume celeste, em comparação com o fedor
da culpa, e como é repousante ser amados santamente, em comparação com
ser possuídos satânicamente.
Vede como o Senhor usa de medidas em seu querer. Ele não exige
conversões fulminantes. Não pretende ter de um coração o absoluto. Sabe
esperar. E sabe contentar-se. E, enquanto espera que a perdida encontre de
novo o caminho, que a louca encontre a razão, Ele se contenta com tudo o
que lhe puder dar à mãe transtornada pela dor.
Eu não lhe pergunto mais do que isto: “Podes perdoar?” Quantas outras
coisas Eu teria tido que perguntar-lhe, para torná-la digna do milagre, se Eu
tivesse que julgar conforme as medidas humanas. Mas Eu meço
divinamente as vossas forças. Aquela pobre mãe transtornada já estaria
fazendo muito, se conseguisse perdoar. E Eu lhe pergunto somente isto,
naquela hora. Depois, entregando-lhe o filho, lhe digo: “Sê santa, e faze
santa a tua casa.” Mas, enquanto o espasmo a transtorna, não lhe peço senão
o perdão para a culpada. Não se pode exigir tudo de quem, pouco antes,
estava no nada das trevas. Aquela mãe viria depois à luz total, e com ela a
esposa e os meninos. No momento, aos seus olhos, cegos de tanto chorar,
era preciso que se fizesse chegar o primeiro crepúsculo da luz: o perdão,
que é a aurora do dia de Deus.
234.6Dos presentes, só um — não estou contando Judas, pois falo dos
cidadãos lá acolhidos e não dos meus discípulos — só um não teria vindo à
Luz. Estes malogros estão juntos com as vitórias do apostolado. Há sempre
alguém por quem o apóstolo se afadiga em vão. Mas essas derrotas não o
devem fazer perder o alento. O apóstolo não deve pretender conseguir tudo.
Contra ele há forças adversas, que têm muitos nomes, e que, como
tentáculos de polvos, pegam de novo a presa, que ele lhes havia arrebatado.
O merecimento do apóstolo permanece igual. Infeliz do apóstolo que diz:
“Eu sei que lá não poderei converter, e por isso, não vou.” Esse é um
apóstolo de bem pouco valor.
É preciso ir, mesmo que entre mil só um se salve. Sua jornada
apostólica será frutuosa com aquele homem, como se fossem mil. Porque
ele terá feito tudo o que podia, e Deus lhe dá o prêmio por isso. É preciso
também pensar que onde o apóstolo não pode conseguir conversões, porque
os que precisam da conversão estão por demais seguros pelas garras do
demônio e, quando as forças do apóstolo são inferiores ao esforço que delas
se requer, nesse caso Deus pode intervir. E, então? Quem é mais do que
Deus?
234.7Outra coisa que o apóstolo deve absolutamente praticar é o amor.
Amor manifesto. Não somente o amor secreto, que existe no coração dos
irmãos. Aquele basta para os bons irmãos. Mas o apóstolo é operário de
Deus, e não deve limitar-se a rezar: deve agir. Agir com amor. Com grande
amor. O rigor paralisa o trabalho do apóstolo e o movimento das almas para
a Luz. Não rigor, mas amor.
O amor é a veste de amianto, que torna uma pessoa inatacável pelas
labaredas das paixões. O amor é a saturação de essências preservadoras, que
impedem que a podridão humano-satânica penetre em nós. Para se
conquistar uma alma, é preciso saber amá-la. Para se conquistar uma alma é
preciso levá-la a amar. Amar o Bem, repudiando os seus próprios pobres
amores de pecado.
Eu queria a alma de Maria. E, como para ti, pequeno João, Eu não me
limitei a falar de minha cátedra de Mestre. Eu desci para procurá-la pelos
caminhos do pecado. Eu a acompanhei e persegui com o meu amor. Doce
perseguição! Entrei, Eu-Pureza onde estava ela-impureza.
Não tive medo de escândalo, nem para Mim, nem para os outros.
Escândalo em Mim não podia entrar, porque Eu era Misericórdia. E esta
chora, sim, sobre as culpas, mas não fica escandalizada por elas. Infeliz do
pastor que se escandaliza, e atrás deste para-vento, se entrincheira para
abandonar uma alma! Não sabeis que as almas estão mais dispostas do que
os corpos a ressurgir e que a palavra piedosa e amorosa, que diz: ‘Minha
irmã, levanta-te para o teu bem’, opera muitas vezes o milagre? Eu não
tinha medo do escândalo dos outros. Diante dos olhos de Deus, o que Eu
fazia estava justificado. Diante dos olhos dos bons estava compreendido. O
olho mau no qual fermenta malícia, evaporando-se de um interior
corrompido, não tem valor. Ele acha culpa até em Deus. Não vê ninguém
perfeito, a não ser ele mesmo. Por isso, Eu não o curava.
234.8As três fases da salvação de uma alma são:
Ser o mais íntegros, quanto for possível, para poder falar sem o temor
de ficar obrigados ao silêncio. Falar a toda uma multidão, de tal modo que a
nossa palavra apostólica, dita às turbas que se aglomeram ao redor da barca
apostólica, dita às turbas que se aglomeram ao redor da barca mística, vá
fazendo círculos como a onda, atingindo sempre pontos mais distantes, até
chegar à beira lamacenta, onde estão estendidos aqueles que se estancaram
na lama, e não se preocupam com o conhecimento da Verdade. Este é o
primeiro trabalho, para romper a crosta da gleba dura e prepará-la para
receber a semente. Isto é o mais difícil para quem o faz e para quem o
recebe, porque a palavra deve, como um vômer cortante, ferir para abrir. E
na verdade Eu vos digo que o coração do apóstolo bom se fere e derrama
seu sangue, pela dor de ter que ferir para abrir. Mas também esta dor é
fecunda. Com o sangue e o pranto do apóstolo, torna-se fértil a gleba
inculta.
Segunda qualidade: Operar também naquele lugar em que alguém,
menos compenetrado de sua missão, dela teria fugido. Sacrificar-se no
esforço de arrancar a cizânia, a tiririca e os espinheiros para pôr a nu o
terreno arado a fim de fazer brilhar sobre eles, como o Sol, o poder de Deus
e sua bondade e, ao mesmo tempo, trabalhando como juiz e como médico,
ser severo, sem deixar de ser compassivo, saber parar numa pausa de espera
para dar tempo às almas de superar a crise, meditar, decidir.
Terceiro ponto: Não só com a alma que no silêncio se arrependeu,
chorando e pensando nos seus erros, ousa vir timidamente, temerosa de ser
expulsa, até chegar ao apóstolo. Que o apóstolo tenha um coração maior do
que o mar, um coração mais doce do que um coração de mãe, mais
enamorado que um coração de esposo, e o abra todo, para fazer que fluam
dele ondas de ternura. Se tivésseis Deus em vós, Deus que é Caridade,
encontraríeis facilmente as palavras de caridade a serem ditas às almas.
Deus falará em vós e por vós e, como o mel que escorre de um favo e
bálsamo que flui de uma ampola, o amor chegará até os lábios ressequidos e
enfastiados, chegará aos espíritos feridos, e será alívio e remédio.
234.9Fazei que os pecadores vos amem, ó vós, doutores das almas. Fazei
que sintam o sabor da Caridade celeste e se rendam a Ela, cheios do desejo
de não procurarem nunca mais outro alimento. Fazei que sintam na vossa
doçura um tal alívio, que o procurem para todas as suas feridas. É preciso
que a vossa caridade expulse para longe deles todo o temor, porque, como
diz a epístola[9] que leste hoje: “O temor supõe o castigo, e quem teme, não
está perfeito na caridade.” Mas não o está também aquele que faz temer.
Não digais “Que foi que eu fiz?” Não digais “Vai-te embora” Não digais
“Tu não podes gostar do amor bom.” Mas, dizei assim, dizei-o em meu
nome “Ama, e eu te perdôo.” Dizei “Vem, os braços de Jesus estão
abertos.” Dizei “Prova deste Pão angélico e desta Palavra, e esquece-te do
piche do inferno e das zombarias de satanás.” Fazei-vos como animais de
carga para suportar as fraquezas dos outros. O apóstolo terá de suportar as
suas e as dos outros. E, enquanto estiverdes vindo a Mim, trazendo nos
ombros as ovelhas feridas, tranquilizai a estas errantes, e dizei-lhes: “Tudo
está esquecido, a partir deste instante.” Dizei: “Não tenhas medo do
Salvador. Ele veio do Céu para ti, precisamente para ti. Eu não sou mais do
que uma ponte para levar-te a Ele, que está te esperando, do outro lado do
rio da absolvição penitencial, para conduzir-te às suas pastagens santas,
cujos princípios estão aqui nesta terra, mas continuam depois, com uma
beleza eterna que nutre e faz feliz nos Céus.”
234.10Eis o comentário. A vós pouco interessa, a vós, ó ovelhas fiéis ao
Bom Pastor. Mas, se a ti, ó pequena esposa, trouxe um aumento de
confiança, para o Pai haverá ainda mais luz, na sua luz de juiz, e para
muitos será um estímulo para irem ao Bem. Mas será uma orvalhada que
penetra e que nutre, da qual Eu falei, e que faz reviverem as flores que
estavam murchas.
Levantai vossas cabeças. O Céu está acima. Vai em paz, Maria. O
Senhor está contigo.
[8] o Evangelho, do qual seguem citações mais ou menos textuais em Mateus 9,10-13 (Marcos 2,15-17; Lucas 5,29-32); em
Mateus 21,31; Lucas 19,9-10; e em Mateus 10,11-14 (Marcos 6,10-11; Lucas 9,4-5; 10,5-6.10-11).
[9] a epístola, isto é 1 João 4,18.
235. Marta tem a certeza da conversão
de sua irmã Maria.
29 de julho de 1945.
235.1Jesus já está para subir à barca, nesta clara aurora de verão, que está
despetalando rosas sobre a seda encrespada do lago, quando chega Marta
com sua criada:
– Oh! Mestre! Escuta-me, por amor de Deus.
Jesus desce de novo para a beira, e diz aos apóstolos:
– Ide esperar-me perto da torrente. E, nesse ínterim, ide preparando
tudo para a missão em Magedan. A Decápole também está esperando minha
palavra. Ide.
E, enquanto a barca vai-se afastando, e chega ao alto-mar, Jesus vai
caminhando ao lado de Marta, respeitosamente acompanhada por Marcela.
Afastam-se assim do povoado, indo pela margem que, de repente,
depois de uma faixa de areia coberta de ervas selvagens e ralas, cobre-se de
vegetação e deixa a linha horizontal para se aproximar da vertical, dando
um assalto sobre as costas que estão se espelhando no lago.
235.2Quando chegam a um lugar solitário, Jesus diz, sorrindo:
– Que queres me dizer?
– Oh! Mestre… esta noite, mal havia terminado a segunda vigília,
Maria voltou para casa. Ah! Mas eu ia me esquecendo de dizer que ela me
havia dito, enquanto estávamos comendo, à hora sexta: “Não gostarias de
emprestar-me uma das tuas vestes e uma capa? Ficarão para mim um pouco
curtas. Mas eu deixarei a veste solta, e farei que o manto desça até
embaixo…” Eu lhe disse: “Apanha o que quiseres, minha irmã”, e o
coração me batia forte, porque antes, no jardim, eu havia dito, ao falar com
Marcela: “A tarde, precisamos estar em Cafarnaum, porque hoje o Mestre
vai falar à multidão”, e eu tinha visto Maria soluçando, mudando de cor,
sem saber mais ficar quieta, mas indo e voltando sozinha, como alguém que
está sofrendo, aflita, na hora de decidir-se… mas sem saber ainda o que vai
aceitar ou o que vai rejeitar.
Depois da refeição, ela foi ao meu quarto e tomou a veste mais escura
que eu tinha, a mais modesta, experimentou-a, e pediu à nutriz que
abaixasse toda a orla, porque ela estava muito curta. Ela a havia
experimentado, mas havia confessado, chorando: “Não sou mais capaz de
costurar. Eu me esqueci de tudo o que é útil e bom…” E me jogou os braços
ao pescoço, dizendo: “Reza por mim.” Ela só saiu ao pôr do sol… Quanto
eu rezei, para que ela não se encontrasse com ninguém, que a impedisse de
vir aqui, para que a tua palavra fosse compreendida por ela, e para que ela
conseguisse estrangular definitivamente o monstro que a está
escravizando… Olha: eu pus na minha cintura a tua cinta, bem apertada por
baixo das outras e, quando eu sentia o aperto do couro duro em minha
cintura, que não estava acostumada com cintas duras como aquela, eu dizia:
“Ele é mais forte do que tudo.”
Depois, com o carro se vai depressa, e assim viemos eu e Marcela. Não
sei se nos viste no meio da multidão… Mas, que dor, que espinho no
coração por não estar vendo Maria. Eu pensei: “Ela se arrependeu. Deve ter
voltado para casa. Ou então… ou então ela fugiu, não podendo resistir mais
ao meu domínio sobre ela, como ela mesma me havia pedido.” Eu estava Te
ouvindo, e chorando por baixo do meu véu. Aquelas palavras pareciam
próprias para ela… e ela não as estava ouvindo! Assim pensava eu, que não
a estava vendo. Voltei para casa desconsolada. É verdade. Eu te desobedeci,
porque me havias dito: “Se ela vier, espera-a em tua casa.” Mas, considera o
meu coração, Mestre! Era a minha irmã que vinha a Ti. Podia eu deixar de
vê-la, se eu estava perto de Ti? E depois!… Tu me havias dito; “Será
despedaçada.” Eu queria estar perto dela logo, para ampará-la…
Eu estava ajoelhada, em lágrimas e oração, no meu quarto, e já havia
passado muito da segunda vigília, quando ela entrou. Entrou de modo tão
silencioso, que dela não ouvi nada mais, a não ser quando ela se lançou
sobre mim, sobre minhas costas, dando-me um apertado abraço, e dizendo:
“É verdade tudo o que tu dizes, minha bendita irmã. E até muito mais do
que tudo o que dizes. Sua misericórdia é muito maior. Oh! Marta minha!
Não tens mais necessidade de conter-me. Já não me verás mais cínica e
desesperada! Não me ouvirás mais dizer: ‘É para não ficar pensando!’
Agora, eu quero pensar. Eu sei em que pensar. Na Bondade que se fez
carne. Tu rezavas, minha irmã, certamente rezavas por mim. Mas tu já estás
com tua vitória na mão. A tua Maria não quer mais pecar, mas renasce
agora. Ela está aqui. Olha-a bem no rosto. Porque agora é uma Maria nova,
com um rosto lavado pelo pranto, pela esperança e pelo arrependimento.
Podes agora beijar-me, minha pura irmã. Não há mais em meu rosto sinais
de vergonhosos amores. Ele disse que ama a minha alma. Porque a ela é que
Ele falava, e dela. A ovelhinha tresmalhada era eu. Ele disse, escuta se eu
digo bem. Tu o conheces, e sabes como é aquele modo de falar do
Salvador…”, e me repetiu, de um modo perfeito, a tua parábola!
É tão inteligente Maria! Muito mais do que eu. E tem boa memória. Foi
assim que eu te ouvi duas vezes. E, se sobre os teus lábios aquelas palavras
eram santas e adoráveis, sobre os lábios dela eram para mim santas,
adoráveis e amáveis, porque vinham dos lábios de uma irmã, da minha
irmã, que foi reencontrada, que voltou ao redil familiar, como me dizia.
Estávamos abraçadas uma com a outra, sentadas sobre uma esteira no chão,
como quando éramos meninas e estávamos assim no quarto da mamãe, ou
junto ao tear em que ela tecia e onde bordava os seus esplêndidos tecidos.
Estávamos assim, não separadas pelo pecado, e me parecia que mamãe
também estava lá presente com o seu espírito. Chorávamos sem sentir dor,
mas, ao contrário, com muita paz! Beijávamo-nos felizes… E depois Maria,
cansada pela viagem feita a pé, com emoção por tantas coisas juntas,
acabou adormecendo entre os meus braços e com a ajuda da nutriz, a pus
para dormir em minha cama… e lá a deixei, e corri para cá…, e Marta,
feliz, beija as mãos de Jesus.
235.3– E Eu também te digo o que Maria te disse: “Tens a tua vitória na
mão”, vai e sê feliz. Vai em paz. Continua com um tratamento cheio de
doçura e prudência para com a renascida. Adeus, Marta. Faze que fique
sabendo disso Lázaro, que lá embaixo está angustiado.
– Sim, Mestre. Mas Maria, quando virá para o meio de nós discípulas?
Jesus sorri, e diz:
– O Criador fez o mundo em seis dias, e no sétimo descansou.
– Compreendo. É preciso ter paciência…
– Paciência, sim. Não fiques suspirando. Isto também é uma virtude. A
paz esteja convosco, mulheres. Ver-nos-emos em breve –e Jesus as deixa,
indo para o lugar onde a barca o está esperando perto da margem.
Diz Jesus:
235.4
– A qui colocareis a visão da ceia na casa do Fariseu Simão, recebida a
21 de janeiro de 1944.
236. A ceia na casa de Simão, o fariseu,
e o perdão a Maria de Magdala.
21 de janeiro de 1944.
236.1Para conforto do meu complexo sofrimento e para fazer-me
esquecer das maldades dos homens, meu Jesus me concede esta suave
contemplação.
Vejo uma sala muito rica. Um rico lampadário de muitos bicos pende
no centro, e está todo aceso. Nas paredes há tapetes muito bonitos, vem na
sala cadeiras entalhadas e incrustadas com marfim, há laminações preciosas
e também móveis muito belos.
No centro está uma grande mesa quadrada, formada por quatro mesas
unidas assim . A mesa certamente foi assim preparada por causa dos
muitos convidados (todos homens), e está coberta com toalhas muito finas e
tendo sobre ela uma rica baixela. Há também ânforas e taças preciosas, e
muitos criados se movem ao redor dela, levando as iguarias e escasseando
os vinhos. No centro do quadrado não há ninguém. Estou vendo o
pavimento no qual se reflete a luz do lampadário a óleo. Do lado externo,
ao contrário, há muitos sofás-camas, todos ocupados pelos comensais.
Parece-me estar no canto semi-escuro, colocado no fundo da sala, perto
de uma porta que está escancarada para fora, mas, ao mesmo tempo,
fechada por um pesado tapete ou arrás, que está pendente de sua arquitrave.
No lado mais distante da porta, isto é aqui está o dono da casa com
os convivas mais importantes. Ele é um homem já de idade, vestido com
uma ampla túnica branca, apertada na cintura por um cinturão bordado. Sua
veste tem ainda no pescoço e no fundo das mangas e da própria veste orlas
de bordado aplicado, como se fossem fitas ou galões, se assim quiserdes
chamá-los. Mas o rosto desse senhor de idade não me agrada. É um rosto
mau, frio, soberbo e cobiçoso.
No lado oposto, em frente dele, está o meu Jesus. Eu o estou vendo de
lado, e quase diria que, pelas costas. Ele está com sua veste branca, com
sandálias, longas como sempre.
Noto que, tanto Ele, como todos os comensais, não estão sentados,
como eu pensava que iam ficar naqueles sofás-camas, isto é,
perpendicularmente à mesa. Mas eles estão colocados paralelamente. Na
visão das núpcias de Caná eu não tinha dado muita importância a este
particular. Eu tinha visto que comiam estando apoiados sobre o cotovelo
esquerdo, mas me parecia que estivessem menos deitados, talvez porque os
leitos eram menos luxuosos, e muito mais curtos. Estes são verdadeiros
leitos, e se parecem com os modernos divãs turcos.
Jesus está perto de João e, visto que Jesus está apoiado no cotovelo
esquerdo,(como todos), resulta que a posição dos dois é assim:
.
Entre a mesa e o corpo do Senhor, João tem o seu cotovelo virado para
a virilha do Mestre, de modo a não estorvá-lo para comer, mas que lhe
permite, se ele quiser, apoiar-se em seu peito.
Nenhuma mulher está presente. Todos estão conversando, e o dono da
casa, de vez em quando, se vira, com afetada condescendência e com
evidente consideração, para Jesus. Está claro que ele quer demonstrar a
todos os presentes que ele está prestando a Jesus uma grande honra, ao tê-lo
convidado a vir à sua rica casa, convidando a Ele, que é um pobre profeta,
julgado até por alguns um pouco exaltado…
Vejo que Jesus lhe responde com cortesia, pacatamente. Ele sorri, com
aquele seu leve sorriso, a quem o interroga, sorri com um sorriso luminoso
a quem lhe fala, ou que somente fica olhando para Ele, como João.
236.2Vejo que se levanta o rico toldo, que cobre o vão da porta, e que
entra uma mulher ainda jovem, muito bonita, ricamente vestida e
cuidadosamente penteada. Sua cabeleira, loura e abundante, faz-lhe na
cabeça um fino ornato de cachos entrelaçados com arte. Parece trazer na
cabeça um elmo de ouro todo em relevos, pois a cabeleira brilha, e é farta.
Tem uma veste que, se eu a comparasse com a que sempre vemos na
Virgem Maria, diria que é muito excêntrica e complicada. Fivelas nos
ombros, joias para segurar os frisados no alto do peito, pequenas correntes
de ouro para contornar o próprio peito, cintura com broches de ouro e
pedras preciosas. Uma veste procaz, que põe em relevo as linhas de um
corpo muito bem feito. Na cabeça, ela tem um véu tão fino, que não cobre
nada. Tudo para pôr em destaque a sua afetação, e basta. Nos pés tem umas
sandálias muito ricas, com fivelas de ouro, feitas com pele vermelha e com
laços trançados nos tornozelos.
Todos, menos Jesus, se viram, olhando para ela. João a observa por um
instante, depois se volta para Jesus. Os outros fixam nela os olhos, com
aparentes e malignos desejos. Mas a mulher não olha para eles, por nenhum
motivo, nem se incomoda com o murmúrio que ela despertou com sua
entrada, nem pelo piscar de olhos de todos os presentes, menos de Jesus e
de seu discípulo. Jesus aparenta não estar percebendo nada. E continua a
falar, terminando a conversação que havia começado com o dono da casa.
A mulher vai para o lado de Jesus, e se ajoelha perto dos pés do Mestre.
Ela põe no chão um pequeno vaso, em forma de ânfora muito bojuda, tira o
véu da cabeça, corta a ponta do alfinete precioso que o conservava preso
aos cabelos, tira dos dedos os anéis, e coloca tudo sobre o sofá-cama, perto
dos pés de Jesus, depois toma entre as suas duas mãos os pés, primeiro o
direito, depois o esquerdo, tira deles as sandálias e as coloca no chão, em
seguida beija, no meio de uma grande explosão de pranto, aqueles pés, e os
apoia contra a sua fronte e os acaricia, enquanto suas lágrimas caem como
uma chuva, que brilha à luz do lampadário e rega a pele daqueles pés
adoráveis.
236.3Jesus volta lentamente a cabeça, e seu olhar azul escuro vai pousar,
por um instante, naquela cabeça inclinada. É um olhar que absolve. Depois,
torna a olhar para o centro. Deixa-a livre em seu desabafo.
Mas os outros, não. Eles estão zombando dela, piscando os olhos e
ridicularizando-a. E o fariseu põe-se, então, sentado, por um momento, para
poder ver melhor, e está com um olhar cheio de desejos e, ao mesmo tempo,
aborrecido, irônico. Cheio de desejos da mulher. Esse sentimento dele é
evidente. E ele está aborrecido, porque ela entrou lá, tomando tanta
liberdade, que até poderia fazer os outros pensarem que aquela mulher é…
alguma hóspede que frequenta sempre a sua casa. E é um olhar irônico,
quando dirigido a Jesus…
Mas a mulher não percebe nada. Ela continua a chorar muito, mas sem
gritar. São grandes lágrimas, e um ou outro soluço. Depois, ela se
despenteia, tirando os grampos de ouro, que prendiam o complicado
penteado, vai pôr também esses grampos perto dos anéis e do alfinete. As
madeixas de ouro rolam pelas costas abaixo. Ela as segura com as duas
mãos, leva-as para cima de seu peito, e as passa sobre os pés molhados de
Jesus, até vê-los enxutos. Em seguida, mergulha os dedos no pequeno vaso,
tira dele uma pomada amarelo escura e muito cheirosa. É um perfume entre
o do lírio e o da angélica, e que se espalha por toda a sala. A mulher
continua a mergulhar os dedos no pequeno vaso e, sem ter mãos a medir,
vai passando e espalmando a pomada, beijando os pés e acariciando-os.
Jesus, de vez em quando olha para ela com grande e amorosa piedade.
João que se virou, espantado, quando ouviu aquele pranto, não sabe mais
apartar seus olhares do grupo, de Jesus e da mulher. Olha, alternativamente,
para um e para a outra. O rosto do fariseu se torna cada vez mais
carrancudo.
[10] do Evangelho e as ouço
236.4Ouço aqui as conhecidas palavras
acompanhadas por um tom e um olhar, que fazem ao velho irado abaixar a
cabeça.
Ouço as palavras de absolvição à mulher, que lá se vai, deixando aos
pés de Jesus as suas joias. Ela enrolou o véu ao redor da cabeça, colocando
nele do melhor modo que pôde, sua cabeleira despenteada. Jesus, ao dizer-
lhe: “Vai em paz”, põe-lhe a mão sobre a cabeça inclinada, por um instante.
Mas com um gesto de grande bondade.
22 de janeiro de 1944
236.8Hoje passei o dia todo pensando no ditado de Jesus de ontem à
tarde, e em tudo o que eu via, e compreendia, mesmo se não dito.
No entanto, por digressão, lhe digo que os discursos dos comensais, por
aqueles que eu entendia, isto é, aqueles particularmente referentes a Jesus,
tratavam de fatos do dia: os romanos, a Lei transgredida por eles, e depois,
da missão de Jesus como Mestre de uma nova escola. Mas, sob aquela
aparente benevolência, compreende-se que eram perguntas viciosas e
capciosas, feitos para arrastá-lo e fazê-lo cair em alguma cilada. Coisa não
fácil, porque Jesus, com poucas palavras, dava-lhes sempre uma resposta
justa e conclusiva para cada discurso.
A pergunta, por exemplo, em qual escola ou seita particular fez-se
Mestre novo, respondeu simplesmente:
– Na escola de Deus. É a Ele que Eu sigo na sua santa Lei e é dele que
eu cuido, fazendo assim que a estes pequenos (e olhava para João, e em
João olhava para todos os retos de coração) ela seja renovada em toda a sua
essência assim como foi no dia em que o Senhor a promulgou no Sinai. Eu
levo de novo os homens para a Luz de Deus.
A uma outra, sobre o que é que Ele pensava do abuso de César, que se
fizera dominador da Palestina, Ele havia respondido:
– César é o que é, porque Deus o quer assim. Recorda o profeta Isaías.
Não chama[11] ele, por inspiração divina, Assur de ‘bastão’ de sua cólera? A
vara que pune o povo de Deus, que muito se afastou de Deus, e tem a
mentira como sua veste e seu espírito? E não diz que, depois de tê-lo usado
como punição, o despedaçará, porque ele abusou no cumprimento de sua
tarefa, tornando-se soberbo e feroz demais?
Estas foram as duas respostas que mais me impressionaram.
236.9Esta tarde, depois, meu Jesus me diz, sorrindo:
– Eu te deverei chamar como Daniel. És a dos desejos e a que me é
cara, porque desejas tanto o teu Deus. E poderei continuar a dizer-te o que
foi dito[12] a Daniel pelo meu anjo: “Não tenhas medo porque, desde o
primeiro dia em que aplicaste o teu coração a compreender e a afligir-te na
presença de Deus, foram ouvidas as tuas preces e Eu vim por causa delas.”
Mas aqui não é o Anjo que fala. Sou Eu que te falo: Jesus.
Sempre, ó Maria, Eu venho quando alguém “aplica seu coração a
compreender.” Eu não sou um Deus duro e severo. Eu sou a Misericórdia
Viva. E, mais rápido do que o pensamento, Eu vou a quem se dirige a Mim.
236.10Também à pobre Maria de Magdala, tão mergulhada em seu pecar, Eu
fui veloz, com o meu espírito, logo que senti surgir nela o desejo de
compreender o seu estado de trevas. E Me fiz Luz para ela.
Falava a muitos naquele dia, mas, na verdade, eu falava somente para
ela. Eu não via senão ela, que se havia aproximado trazida por um impulso
da alma que se revoltava contra a carne, que a tinha subjugada. Eu não via
nada mais que ela, com seu pobre rosto em tempestade, com seu sorriso
forçado que escondia debaixo de uma veste de esperança e de uma alegria
mentirosa, e era um desafio ao mundo e a ela mesma todo aquele pranto
interior. Eu não via senão ela, bem mais envolvida nas sarças da ovelhinha
tresmalhada da parábola, ela que se afogava no desgosto de sua vida, vindo
à tona d’água como aquelas ondas imensas, que trazem consigo as águas lá
do fundo.
Eu não disse grandes palavras, nem toquei num assunto indicado por
ela, pecadora bem conhecida, para não mortificá-la e não constrangê-la a
fugir, a se envergonhar ou a vir. Eu a deixei em paz. Eu deixei que a minha
palavra e o meu olhar descessem sobre ela e lá fermentassem para fazerem
daquele impulso de um instante o seu glorioso futuro de santa. Eu lhe falei
com uma das mais doces parábolas: um raio de luz e de bondade emitido
mesmo para ela.
236.11E, naquela tarde, enquanto colocava os pés na casa do rico soberbo,
na qual a minha palavra não podia fermentar em futura glória porque morta
pela soberba farisaica, já sabia que ela haveria de vir, depois de ter chorado
tanto em seu quarto de vício, e já haver decidido o seu futuro, à luz daquele
pranto.
Os homens, incendiados pela luxúria, ao vê-la entrar, estremeceram em
suas carnes e insinuado com o pensamento. Todos a desejaram, menos os
dois ‘puros’ do banquete: Eu e João. Todos achavam que ela tivesse vindo
por um daqueles caprichos fáceis que, verdadeira possessão diabólica, a
lançavam em imprevistas aventuras. Mas satanás estava então vencido. E
todos, então, com inveja, pensaram, vendo que ela não olhava para eles, que
ela tivesse vindo por causa de Mim. O homem suja sempre também as
coisas mais puras quando ele é somente homem de carne e sangue. Somente
os puros veem de modo correto porque neles não há pecado que lhes
perturbe o pensamento.
236.12Mas que o homem não compreenda, não te deve assustar, Maria.
Deus compreende. E isso basta para o Céu. A glória que vem dos homens
não aumenta nem um grama a glória que é a sorte dos eleitos no Paraíso.
Lembra-te disso sempre.
A pobre Maria de Magdala foi sempre julgada mal em seus atos bons.
Não o tinha sido em suas ações más porque estas eram iscas da luxúria, que
se ofereciam à fome insaciável dos libidinosos. Criticada e julgada mal em
Naim, na casa do fariseu, criticada e censurada em Betânia[13], na casa dela.
Mas João, que diz uma grande palavra, dá a razão desta última crítica:
“Judas… porque era ladrão.” Eu digo: “O fariseu e os seus amigos, porque
eram luxuriosos.” Aí está, vês? A cobiça da sensualidade, a cobiça do
dinheiro levantam a voz para criticar uma ato bom. Os bons não criticam.
Nunca. Eles compreendem.
Mas, Eu repito, a crítica do mundo não importa. O que importa é o
julgamento de Deus.
[…].
[10] palavras, aquelas de Lucas 7,40-50.
[11] chama… diz…, em Isaías 10, 5-26.
[12] foi dito, em Daniel 10, 12.
[13] em Betânia, em 586.7; dá a razão, em João 12,6.
237. O pedido de operários para a messe
e a parábola do tesouro escondido no campo.
Marta teme ainda pela irmã Maria.
29 de julho de 1945.
237.1Jesus está no caminho que, do lago Meron vai para o lago da
Galileia. Estão Ele, Zelotes e Bartolomeu perto de uma torrente, reduzida
agora a um fio d’água, e parece que está esperando, à sombra de árvores
copadas, aos que vão chegando dos dois lados contrários.
O dia está muito quente e, no entanto, muitas pessoas foram
acompanhando os três grupos dos que devem ter pregado pelas campinas e
guiado os doentes para o grupo de Jesus, reservando-se eles o direito de
pregar sobre Ele aos que estão sãos. Muitos miraculados estão formando
juntos um grupo feliz, sentados por entre as árvores, e neles a alegria é tão
grande, que nem sentem o cansaço produzido pelo calor, pela poeira e pela
luz deslumbrante, coisas essas que molestam bastante todas os outros.
Quando o grupo, chefiado por Judas Tadeu, chega em primeiro lugar
perto de Jesus, pode-se ver bem o cansaço de todos os que formam o grupo
e o acompanham. Em último lugar, vem o grupo chefiado por Pedro e no
qual há muitas pessoas de Corozaim e de Betsaida.
– Conseguimos, Mestre. Mas seria necessário que houvesse muitos
grupos…Tu estás vendo. Já não se pode mais fazer longas caminhadas por
causa do calor. E, então, como iremos fazer? Parece que o mundo vai-se
alargando, e nós precisamos ser em maior número para podermos percorrer
os povoados e atingir maiores distâncias. Eu nunca imaginei que a Galileia
fosse tão grande. Nós estamos num canto dela, num canto mesmo, e não
conseguimos evangelizá-la, de tão vasta que ela é e de tão grandes que são
as necessidades e os desejos de Ti –suspira Pedro.
– Não é que o mundo cresceu, Simão. O que cresce é o conhecimento
do nosso Mestre –responde Tadeu.
– Sim, é verdade. Olha, quanta gente. Alguns deles nos acompanham
desde a manhã. Nas horas quentes fomos abrigar-nos em um bosque. Mas,
mesmo agora que já vem chegando a tarde, é penoso caminhar. E estes
pobrezinhos estão muito mais longe de casa do que nós. Se tudo cresce
sempre assim, nem sei o que vamos fazer… –diz Tiago de Zebedeu.
– Em outubro, virão também os pastores –comenta André.
– Ah! Sim. Pastores, discípulos, belas coisas! Mas eles só sabem dizer:
“Jesus é o Salvador. Ele está lá.” Nada mais do que isso –responde Pedro.
– Mas, pelo menos, o povo ficará sabendo onde encontrá-lo. Agora, ao
contrário. Nós vamos para um lugar, e eles correm para lá. E, quando eles
vem vindo para cá, nós vamos para outro lugar, e eles têm que ir correndo
atrás de nós. E fazer isso, levando crianças e doentes, não é nada cômodo.
237.2Jesus fala:
– Tens razão, Simão Pedro. Eu também tenho compaixão destas almas,
dessas multidões. Para muitos, o não poderem achar-me em um certo
momento pode ser até causa de alguma irreparável desventura. Olhai como
eles estão cansados e desnorteados, os que ainda não têm certeza da minha
verdade, e como estão esfaimados os que já saborearam a minha palavra, e
não sabem mais ficar sem ela, pois nenhuma outra palavra é capaz de os
satisfazer. Parecem ovelhas sem pastor, que vagam, não encontrado quem as
guie e as apascente. Mas eu providenciarei. Contudo, vós haveis de ajudar-
me com todas as vossas forças espirituais, morais e físicas. Não mais em
grupos numerosos, mas dois a dois é que devereis andar. E mandaremos
dois a dois os discípulos melhores. Porque a messe é realmente grande. Ah!
Neste verão Eu vos prepararei para essa grande missão. Lá pelo mês de
Tamus, estaremos juntos com Isaque e com todos os melhores discípulos. E
Eu vos prepararei. Ainda não bastareis. Porque, se a messe é realmente
grande, os operários, por sua vez, são poucos. Rogai, pois, ao Dono da terra
que mande muitos operários para a sua messe.
– Sim, meu Senhor. Mas não mudará muito a situação destes que te
procuram –diz Tiago de Alfeu.
– Por quê, meu irmão?
– Porque esses, que estão te procurando, procuram não somente
doutrina e a palavra da Vida, mas também a cura de suas doenças, de suas
enfermidades, para toda fraqueza, que a vida ou satanás trazem para sua
parte inferior ou superior. E isto, só Tu podes fazer, porque em Ti está o
poder.
– Aqueles que estão unidos a Mim chegarão a fazer o que Eu faço, e os
pobres serão socorridos em todas as suas misérias. Mas ainda não tendes em
vós o que é necessário para fazer isso. Esforçai-vos para vos superardes a
vós mesmos, a conculcar a vossa humanidade, para que triunfe o vosso
espírito. Assimilai não somente a minha palavra, mas o espírito dela, isto é,
santificai-vos por ela, e depois, tudo podereis. E agora vamos dizer a eles a
minha palavra, visto que não querem ir-se embora, se Eu não lhes tiver
dado a palavra de Deus. Depois, voltareis a Cafarnaum. Lá também estarão
os que nos esperam…
237.3– Senhor, mas é verdade que Maria Madalena pediu perdão a Ti na
casa do fariseu?
– É verdade, Tomé.
– E Tu o deste? –pergunta Filipe.
– Eu o dei.
– Mas fizeste mal! –exclama Bartolomeu.
– Por quê? Era um arrependimento sincero, e merecia perdão.
– Mas não devias dá-lo naquela casa, publicamente… –censura
Iscariotes.
– Mas Eu não vejo em que é que errei.
– Erraste nisto: Tu sabes quem são os fariseus e quantas cavilações eles
têm na cabeça, como eles te vigiam, como te caluniam, como te odeiam.
Um deles Tu tinhas como teu amigo em Cafarnaum, era Simão. E Tu
chamas para ir à casa dele uma prostituta, para profanar a casa do amigo
Simão e dar-lhe um escândalo.
– Eu não a chamei. Ela é que foi lá. Não era uma prostituta. Era uma
arrependida. Isso muda muito. Se não se tinha nojo de aproximar-se dela
antes, nem de desejá-la sempre, e até em minha presença, também agora
que ela não é mais uma carne, mas uma alma, não se deve ter nojo de vê-la
entrar para ajoelhar-se aos meus pés, e para chorar acusando-se, aviltando-
se naquela humilde confissão pública, que era o que aquele pranto
significava. Simão fariseu teve sua casa santificada por um grande milagre:
a ressurreição de uma alma. Na praça de Cafarnaum, há cinco dias, ele me
perguntava: “De milagre, só fizeste aquele?”, e ele mesmo respondia:
“Certamente que não”, e tinha ele muito desejo de ver um deles. E Eu lhe
dei. Eu o escolhi para ser a testemunha, o paraninfo daqueles esponsais da
alma com a Graça. Ele deve estar orgulhoso.
– Pelo contrário, com isso ele ficou escandalizado. Talvez tenhas
perdido um amigo.
– Eu achei uma alma. Vale a pena perder um homem e a sua pobre
amizade de homem, para pôr uma alma na amizade com Deus.
– É inútil. Contigo não se pode conseguir uma reflexão humana.
Estamos na terra, Mestre! Lembra-te disso. Ainda estão vigentes as leis e as
ideias da terra. Tu queres agir com o método do Céu, e te moves no teu
Céu, que tens no coração, e tudo queres ver através das luzes do Céu. Pobre
Mestre meu! Como és divinamente inepto para viveres entre nós perversos!
E Judas Iscariotes o abraça, admirado e desolado, e termina dizendo:
– E eu sinto muito, porque, indo atrás de uma exagerada perfeição, Tu
estás criando uma grande quantidade de inimigos.
– Não te compadeças Judas. Está escrito que assim seja. Mas, como é
que sabes que Simão ficou ofendido?
– Eu não disse que ficou ofendido. Mas a mim e a Tomé ele deu a
entender que aquilo não estava bem. Não devias convidá-la a ir à casa dele,
pois lá só entram pessoas honestas.
– Bom. Quanto à honestidade dos que vão à casa do Simão, deixemo-la
de lado –diz Pedro.
E Mateus acrescenta:
– Eu poderia dizer que o suor das prostitutas escorreu muitas vezes por
sobre os pavimentos de Simão, o fariseu, por sobre as mesas e por outros
lugares.
– Mas não publicamente –rebate Iscariotes.
– Não. Com a hipocrisia encarregada de o esconder.
– Olha que, então, tudo muda.
– O que também muda é a entrada de uma prostituta, que entra para
dizer: “Eu deixo o meu pecado infame.” É bem diferente de outra que entra
para dizer: “Eis-me aqui para ti, a fim de praticarmos o pecado juntos.”
– Mateus está com a razão –dizem todos.
– Sim. Ele tem razão. Mas eles não pensam como nós. É preciso que
façamos tratos com eles, e nos adaptemos a eles, para podermos tê-los
como amigos.
– Isso, nunca, Judas. Na verdade, na honestidade, na conduta moral não
existem adaptações nem tratos –troveja Jesus.
E termina:
– Afinal, Eu sei que agi bem e para o bem. E basta. 237.4Vamos despedir-
nos daqueles pobres cansados.
E Ele vai até aqueles que estão espalhados por baixo das árvores, e que
estão olhando na direção dele, cheios do desejo de ouvi-lo.
– A paz esteja com todos vós, que atravessastes muitos estádios,
debaixo de um sol ardente, para virdes ouvir a Boa Nova. Em verdade, Eu
vos digo que vós estais começando a compreender realmente o que é o
Reino de Deus e quão preciosa é a posse dele, a felicidade de a ele
pertencer. Assim é que todo cansaço para nós perde a importância, quando
para os outros ele a conserva. Porque o espírito é que dá ordens em nós, e
ele diz à carne: “Alegra-te porque eu te oprimo. É para a tua felicidade que
eu o faço. Quando estiveres reunido a mim, depois da ressurreição final, tu
me amarás por eu te ter calcado aos pés, e verás tu em mim o teu segundo
salvador.” Não é assim que fala o vosso espírito? Mas, certamente, que ele
o diz! Vós agora apoiais as vossas ações no ensinamento das minhas
parábolas antigas. Mas agora vou dar-vos outras luzes, para fazer que vos
torneis cada vez mais enamorados por este Reino, que vos espera e cujo
valor é incomensurável.
Ouvi: Um homem, tendo ido a um campo apanhar terriço para a sua
pequena horta, ao escavar com muito esforço a terra dura, encontrou, por
baixo de algumas camadas da terra, um filão de metal precioso. Que faz
então aquele homem? Recobre com a terra a descoberta feita, não lhe
importa trabalhar mais ainda, porque a descoberta bem merece a fadiga.
Depois, ele vai para casa, conta as riquezas que tem em dinheiro e em
outras coisas, e estas últimas ele vende, para ter em mãos muito dinheiro.
Em seguida, ele vai ao dono do campo e lhe diz: “O teu campo me agrada.
Quanto queres para vender-me?” “Mas eu não o estou vendendo”, diz o
outro. Então o homem oferece-lhe somas cada vez maiores e
completamente fora de qualquer proporção com o valor do campo, e
termina seduzindo o dono dele, o qual fica pensando: “Este homem é um
louco! Mas, desde que ele o é, eu vou tirar vantagem disso. Eu vou pegar a
soma que ele me está oferecendo. Não estou praticando usura, porque é ele
quem a quer dar. Com ela, eu comprarei, pelo menos, outros três campos, e
mais bonitos”, e faz a venda, convencido de ter feito um esplêndido
negócio. Mas, ao contrário, o outro é que faz um esplêndido negócio,
porque ele se priva de bens que podem ser levados pelo ladrão, ou ser
perdidos, ou gastos, e procura obter um tesouro que, além de ser verdadeiro
e natural, é inesgotável. Vale, pois, a pena, sacrificar tudo o que ele tem,
para fazer essa aquisição, ficando ele, por enquanto, só com a posse do
campo, mas na realidade passando a possuir para sempre aquele tesouro
encerrado nele.
Vós já entendestes o negócio. Fazei, então como o homem da parábola.
Deixai as riquezas efêmeras, para possuirdes o Reino dos Céus, vendei-as
aos estultos do mundo, cedei-as a eles, aceitai até que se riam de vós por
isso que, aos olhos do mundo, pode parecer um modo tolo de negociar.
Fazei assim, sempre assim, e o vosso Pai, que está nos Céus, com muita
alegria vos dará um dia o vosso lugar no Reino.
Voltai para as vossas casas, antes que chegue o sábado e, durante o dia
do Senhor, pensai na parábola do tesouro, que é o Reino dos Céus. A paz
esteja convosco.
237.5O povo vai-se espalhando lentamente pelas estradas e caminhos da
campina, enquanto Jesus vai indo para Cafarnaum, ao cair da tarde.
Ele chega lá, já de noite. Atravessam em silêncio a cidade, à luz do
luar, a única luz que ainda clareia as vielas escuras e mal calçadas. Entram
assim, em silêncio, na pequena horta ao lado da casa, julgando que todos já
estão na cama. Mas, não é assim, porque uma luz está ainda acesa na
cozinha, e lá se vem três sombras, que se tornam movediças por causa do
movimento da chamazinha, e se projetam sobre a pequena parede branca do
forno, que fica perto.
– Aí há gente que te espera, Mestre. Mas desse modo não podemos
continuar. Eu vou dizer-lhes que estás muito cansado. Enquanto isso, vai,
Tu, para o terraço.
– Não, Simão. Eu vou à cozinha. Se Tomé deteve essas pessoas, é sinal
de que houve um motivo sério.
Enquanto isso, os de dentro ouviram a conversa, e Tomé, dono da casa,
vai até a soleira.
– Mestre, aqui está aquela dama. Ela já está esperando desde ontem, ao
pôr do sol. Ela está com um criado.
E depois ele diz a meia voz:
– Ela está muito agitada. E chora sem parar…
– Está bem. Dize-lhe que vá lá para cima. Onde foi que ela dormiu?
– Ela não queria dormir. Mas, finalmente, se retirou por algum tempo,
já de madrugada, para o meu quarto. E o criado eu fiz que fosse dormir em
um dos vossos leitos.
– Tudo bem. Que durma nesta noite também. E tu dormirás na minha.
– Não, Mestre. Eu irei para o terraço e dormirei nas esteiras. E dormirei
um bom sono, do mesmo jeito.
237.6Jesus sobe para o terraço. E a Marta também sobe.
– A paz esteja contigo, Marta.
Um soluço foi a resposta.
– Estás chorando ainda? Não estás bem?
A cabeça de Marta faz sinal que não.
– Mas, que há, então?
Uma longa pausa se faz, cheia de soluços. Enfim, depois de um
gemido, ela diz:
– Já faz muitas noites, que Maria não voltou. E não se sabe onde está.
Nem eu, nem Marcela, nem a nutriz a encontramos… Ela tinha saído
conduzindo o carro. Estava toda pomposa em suas vestes… Oh! Ela não
tinha querido pôr de novo as minhas!… Não estava seminua, nem daquelas
de antes, mas era muito provocante nestas… Ouros e perfumes ela levou
consigo…e não voltou mais. Mandou embora o criado, logo que chegou
perto das primeiras casas de Cafarnaum, dizendo-lhe: “Eu voltarei com
outra companhia.” Mas não voltou mais. Ela nos enganou. Ou, então, ela se
sentiu sozinha, talvez tentada… ou lhe aconteceu algum mal… Ela não
voltou mais…
E Marta cai de joelhos chorando, com a cabeça inclinada sobre o
antebraço, colocado sobre um monte de sacos vazios.
Jesus olha para ela, e diz, devagar e com firmeza, como um dominador:
– Não chores. Maria veio a Mim, há três dias. Ela me ungiu os pés com
bálsamo, e pôs aos meus pés todas as suas joias. Consagrou-se assim, e para
sempre, tomando lugar entre as minhas discípulas. Não a fiques denegrindo
em teu coração. Ela te superou.
– Mas onde, onde está, então, a minha irmã? –grita Marta, erguendo um
rosto transtornado–. Por que é que ela não voltou para casa? Teria sido
assaltada? Terá talvez tomado uma barca para ir se afogar? Ou, talvez,
algum amante rejeitado a raptou? Oh! Maria! A minha Maria! Eu a havia
reencontrado, e logo a perdi?
Marta está mesmo fora de si. Ela nem pensa mais que os que estão lá
em baixo a possam estar ouvindo. Nem pensa mais que Jesus pode dizer-lhe
onde é que está a sua irmã. Ela se desespera, sem refletir em nada mais.
237.7Jesus a segura pelos pulsos e a obriga a ficar quieta e a ouvi-lo,
dominando-a com sua alta estatura e com seu olhar magnético.
– Basta. Eu quero que tenhas fé em minhas palavras. Quero de ti
generosidade. Entendeste?
E não a deixa ir, senão quando ela se tranquiliza um pouco.
– Tua irmã foi saborear sua alegria, envolvendo-se em uma solidão
santa, porque nela há o supersensível pudor dos redimidos. Eu já te havia
dito antes. Ela não pode suportar o olhar doce, mas indagador, dos parentes,
a respeito de sua veste nova de esposa da Graça. E isto que Eu digo é
sempre verdade. Tu deves crer em Mim.
– Sim, Senhor, sim. Mas minha Maria foi demais, foi demais escrava do
demônio. Ele, de repente a pegou de novo, ele…
– Ele se está vingando em ti por ter perdido para sempre a sua presa. Eu
devo, então, ficar vendo como tu, a forte, te tornas presa dele por essa
ansiedade louca, sem razão de ser? Devo crer que, por causa dela, que agora
crê em Mim, tu tenhas que perder a tua bela fé, que Eu sempre conheci?
Marta, olha bem para Mim. Escuta-me. Não escutes satanás. Não sabes que,
quando é obrigado a soltar uma presa, por causa de uma vitória de Deus
contra ele, começa logo a agir, este incansável torturador dos seres, este
incansável ladrão dos direitos de Deus, para encontrar outras presas? Não
sabes que são as torturas de um terceiro, que resiste aos assaltos porque é
bom e fiel, que são elas que consolidam a cura de um outro espírito? Não
sabes que nada está desligado de tudo o que acontece e existe na criação,
mas que tudo segue uma lei eterna de dependências e de consequências,
pelas quais o ato de um tem repercussões naturais e sobrenaturais
vastíssimas?
237.8Tu choras aqui, tu que conheces a dúvida atroz, e permaneces fiel ao
teu Cristo, mesmo nesta hora tenebrosa. Lá, em um lugar próximo e
desconhecido por ti, Maria sente desfazer-se a última dúvida que ela tinha
sobre a totalidade do perdão recebido, e o seu pranto se muda em sorriso, e
as suas sombras em luz. Foi o teu tormento que a guiou para lá, onde ela
está em paz, lá onde se regeneram as almas, junto da Genetriz sem mancha,
junto daquela que é tanto Vida, que obteve a graça de ter dado ao mundo o
Cristo, que é a Vida. Tua irmã está na casa de minha Mãe. Ah! Não é ela a
primeira que vai recolher as velas naquele porto de paz, depois que o raio
suave da viva Estrela Maria a chamou àquele seio de amor por amor, mudo
mas ativo, do seu Filho! Tua irmã está em Nazaré.
– Mas, como é que ela foi parar lá, se não conhece a tua Mãe, nem a tua
casa?… Sozinha… E de noite!… Assim… Sem meios… Com aquelas
roupas…Com um longo caminho a fazer…Como?
– Como? Como vai a andorinha cansada até o ninho nativo,
atravessando mares e montes, enfrentando tempestades, nevoeiros e ventos
contrários? Como vão as andorinhas aos lugares de invernagem? Elas vão
por um instinto que as guia, pelo calor que as atrai, pelo sol que as chama.
Ela também foi correndo para o raio de Sol que a chamava… para a Mãe
universal. E a veremos chegar no fim da madrugada, feliz, tendo saído para
sempre das trevas, com uma Mãe a seu lado, a minha, e para que nunca
mais fique órfã. Podes tu crer nisto?
– Sim, meu Senhor.
Marta está como que fascinada. De fato, Jesus foi realmente um
dominador. Alto, ereto e levemente inclinado sobre Marta, que está
ajoelhada, Ele falou devagar, mas de um modo incisivo, como se o fizesse
para infundir-se a si mesmo na discípula transtornada. Poucas vezes eu o vi
tão poderoso assim para persuadir com a palavra um dos seus ouvintes. Mas
no fim, que luz, que sorriso em seu rosto.
– E agora, vai descansar. Em paz.
E Marta lhe beija as mãos, e desce, tranquilizada.
[…].
238. A chegada a Cafarnaum, sob um temporal,
de Maria Santíssima com Maria Madalena.
30 de julho de 1945.
238.1– Talvez haja tempestade hoje, Mestre. Vês aquelas listras cor de
chumbo, que vem avançando de trás do monte Hermon? E vês como já se
encrespa a superfície do lago? Escuta agora como está soprando o vento
norte, alternando seu sopro com as grandes lufadas quentes do siroco. Olha
o redemoinho do vento: sinal certo de tempestade.
– Daqui a quanto tempo, Simão?
– Antes que termine a hora de prima. Olha como os pescadores já se
apressam em voltar. Perceberam que o lago está rosnando. Daqui a pouco
ele estará também cor de chumbo, depois estará cor de piche, e, então, virá
a fúria.
– Mas ele parece estar tão calmo! –diz, incrédulo, Tomé.
– Tu entendes de ouro, e eu de água. Será como eu te digo. Esta não é
nenhuma tempestade imprevista. Ela se prepara com sinais muito claros. A
água está calma na superfície, com apenas aquela encrespadura, que mais
parece uma brincadeira. Mas, se estivéssemos na barca! Ouviríeis, como se
estivessem batendo na quilha, milhares de juntas de dedos, e sacudindo, de
um modo estranho, a barca. A água já está fervendo por debaixo. Espera o
sinal do céu, e depois verás o resto!… Deixa que o vento norte faça um nó
com o siroco! E depois!… Olá, mulheres! Retirai as roupas que havíeis
estendido nos varais, e procurai abrigar os vossos animais. Daqui a pouco,
vão cair pedras e baldes de água.
De fato, o céu vai-se tornando cada vez mais esverdeado, com uns
veios de ardósia, pela invasão contínua de lâminas de nuvens, que parecem
arrotadas pelo velho Hermon. Elas repelem a aurora, onde esta já tiver
chegado, como se as horas caminhassem para trás, voltando a trazer a noite,
em vez de andarem para a frente, para o meio-dia. Somente um feixe de
raios de sol persiste ainda em querer escapar obliquamente de detrás da
barricada das nuvens de piche, e lança uma irreal pincelada de um amarelo
esverdeado sobre o cume de uma colina a sudoeste de Cafarnaum. O lago já
se mudou de azul para um preto azulado, e as primeiras espumas, por entre
pequenas ondas, fracas, esmiuçadas, parecem de um branco imaginário
sobre aquela água escura. Sobre o lago não há mais nenhuma barca. Os
homens se apressaram em levar para cima da areia das praia suas barcas,
em guardar as redes, ou então, se são camponeses, em tirar dali os
mantimentos, em firmar as estacas e amarras, em fechar os animais nos
estábulos e currais, e as mulheres vão às pressas até as fontes, antes da
chuva, ou tratam de reunir seus meninos, que se levantaram muito cedo, e
os levam para suas casas, fecham as portas, solícitas como galinhas chocas,
quando percebem que o granizo vem perto.
238.2– Simão, vem comigo. Chama também o criado da Marta e Tiago,
meu irmão. Apanha um pano largo. Largo e espesso. Duas mulheres vêm
vindo pelo caminho, e precisamos ir ao encontro delas.
Pedro olha, curioso, para Jesus, mas obedece, sem perda de tempo. Ele
já está na estrada, quando eles, correndo, atravessam o povoado, indo para o
sul, e o Pedro pergunta:
– Mas, quem são elas?
– Minha Mãe e Maria de Magdala.
A surpresa é tão grande, que Pedro fica parado, como se estivesse
pregado no chão, e diz:
– Tua Mãe e Maria de Magdala?! As duas juntas?!
Depois se põe a correr, porque Jesus não parou, nem pararam o criado
nem Tiago. Mas Pedro torna a dizer:
– Tua Mãe e Maria de Magdala?! Juntas!… Mas, desde quando?
– Desde quando outra coisa ela não é, senão Maria de Jesus. Anda
depressa, Simão. Estão caindo os primeiros pingos…
E Pedro se esforça para ir ao lado desses seus companheiros, todos
mais altos e ligeiros do que ele. Na estrada esturricada a poeira já se levanta
em nuvens, por causa de um vento que se vai tornando a cada instante mais
forte, um vento que rasga a superfície do lago, e que deixa ver uma enorme
caldeira, no furor da ebulição. Ondas da altura de pelo menos um metro,
que vão para todos os rumos, e se chocam umas com as outras, crescem e se
confundem, separam-se depois, correndo em direções opostas, à procura de
alguma outra onda, contra a qual se possam chocar, com um perfeito duelo
entre as espumas, entre as cristas, entre as corcovas bojudas, entre as
fervuras, os mugidos, entre as bofetadas que dão até contra as mais
próximas da beira. Quando as casas impedem a vista do lago, ele faz notar
sua presença com o seu fragor, que supera o assobio do vento, que já está
dobrando as árvores, arrancando-lhes as folhas e fazendo cair seus frutos, e
o grande estrondo das longas trovoadas, ameaçadoras, precedidas por
relâmpagos cada vez mais frequentes e mais fortes.
– Quem sabe quanto medo terão aquelas mulheres –diz Pedro,
respirando com dificuldade.
– Minha Mãe, não. A outra, não sei. Mas, com certeza, se não andarmos
depressa, elas vão se molhar muito.
238.3Já passaram algumas centenas de metros de Cafarnaum, quando, por
entre nuvens de poeira, no meio do primeiro barulho de um aguaceiro, que
vem descendo oblíquo e violento, regando o ar escuro e tornando-se em
seguida uma verdadeira catarata, que se reparte em gotas, que nos tiram a
visão, que nos cortam o fôlego, e aí se veem duas mulheres correndo,
procurando abrigo debaixo de alguma árvore copada.
– Lá estão elas! Vamos correr!
Mas, por mais que seu amor por Maria dê asas a Pedro, ele, com suas
pernas curtas, e certamente não de bom corredor, chega perto, só quando
Jesus e Tiago já abrigaram as mulheres debaixo de um pesado pedaço de
vela.
– Aqui não se pode ficar. Há perigos de raios, e daqui a pouco a estrada
vai virar um rio. Vamos, Mestre. Pelo menos até a primeira casa –diz Pedro,
ofegante.
Eles vão, com as mulheres no meio, segurando o pano sobre as cabeças
e as costas delas.
238.4A primeira palavra que Jesus diz a Madalena, que ainda está com a
roupa daquela tarde no banquete de Simão, com um manto da Mãe de Jesus
sobre os ombros, é esta:
– Estás com medo, Maria?
Ela, que sempre esteve de cabeça inclinada, por baixo do véu, que é a
sua cabeleira, desalinhada por causa da corrida, inclina ainda mais a cabeça,
e murmura:
– Não, Senhor.
Também a Mãe de Jesus perdeu os grampos, e parece uma menina, com
as tranças caindo pelas costas abaixo. Mas sorri para o seu Filho, que está a
seu lado, e lhe fala com aquele sorriso.
– Estás muito molhada, Maria –lhe diz Tiago de Alfeu, tocando no véu
e na capa da Senhora.
– Não faz mal. Agora não nos estamos molhando mais. Não é verdade,
Maria? Ele nos salvou até da chuva –diz docemente Maria a Madalena,
percebendo a dificuldade em que ela está. E esta faz com a cabeça sinal que
sim.
– Tua irmã vai ficar contente por tornar a ver-te. Ela está em
Cafarnaum. E estava te procurando –diz Jesus.
Maria levanta por um momento a cabeça, e fixa seus belos olhos no
rosto de Jesus, que lhe vai falando no mesmo modo natural com que fala às
outras discípulas. Mas ela não diz nada. Está arrasada com tantas emoções.
Jesus termina:
– Estou contente por tê-la entretido. Eu vos deixarei ir, depois de ter-vos
abençoado.
238.5A palavra se perdeu no estampido seco de um raio, que caiu ali
perto. Madalena fica espantada. Leva as mãos ao rosto e se inclina numa
explosão de choro.
– Não tenhas medo! –conforta-a Pedro–. Agora já passou. E, com Jesus,
nunca é preciso ter medo.
Também Tiago, que vai indo ao lado direito de Madalena, diz:
– Não chores. As casas já estão perto.
– Não estou chorando por medo… Estou chorando, porque Ele disse
que vai me abençoar… Eu…eu… –e não pode dizer mais nada.
A Mãe de Jesus intervém para acalmá-la, dizendo:
– Tu, Maria, já superaste o teu temporal. Não penses mais nele. Agora
tudo é serenidade e paz. Não é verdade, meu Filho?
– Sim, minha Mãe. É tudo verdade. Daqui a pouco voltará o sol, e tudo
ficará bonito, limpo, fresco como ontem. Também para ti, Maria.
A Mãe continua, segurando a mão de Madalena:
– Direi a Marta as tuas palavras. Estou contente por poder vê-la logo, e
dizer-lhe como a sua Maria está cheia de boa vontade.
Pedro, patinando na lama, e suportando o dilúvio com paciência, sai de
debaixo do refúgio, para ir até uma casa, a fim de pedir abrigo.
– Não, Simão. Nós todos preferimos voltar para a nossa casa. Não é
verdade? –diz Jesus.
Todos estão de acordo, e Pedro volta para debaixo do pano.
238.6Cafarnaum está deserta. Quem reina aí agora, como donos, são o
vento, a chuva, os trovões, os relâmpagos, e agora o granizo, que bate e
salta sobre os terraços e as fachadas. O lago está terrível e ameaçador. As
casas perto dele estão sendo batidas pelas ondas, porque a prainha
desapareceu, e as barcas, amarradas perto das casas, parecem ter
naufragado, de tão cheias que estão de água, que cada novo vagalhão ainda
aumenta, fazendo que delas transborde o que já lá estava.
Entram, correndo, na horta que se transformou em um enorme charco,
no qual estão boiando detritos sobre a água barrenta, e de lá passam para a
cozinha, onde estão todos reunidos.
O grito de Marta, quando vê sua irmã segura pela mão por Maria, é um
grito agudo. Ela vai se abraçar ao pescoço da irmã, sem nem perceber como
fica molhada ao fazer isso, e ao beijá-la, e a chama:
– Mirí, Mirí, alegria minha! –talvez fosse esse o apelido carinhoso que
davam a Madalena, quando era pequena.
Maria chora, se inclina, com a cabeça sobre o ombro da irmã, cobrindo
a veste escura de Marta com um pesado véu de ouro, a única coisa brilhante
naquela cozinha escura, onde está apenas um pequeno fogo de gravetos,
para quebrar o escuro da treva, que a lampadazinha acesa não é capaz de
vencer.
Os apóstolos estão indiferentes, e assim também estão o dono e a dona
da casa, que apareceram por terem ouvido o grito da Marta, mas que, depois
de um momento de curiosidade, dali se afastam discretamente.
238.7Depois, quando a fúria dos abraços se acalmou um pouco, Marta se
lembra de Jesus, de Maria, da estranheza por virem assim todos juntos, e
pergunta à irmã, à Mãe de Jesus, e eu não saberia dizer a quem ela o fazia
com mais insistência:
– Mas, como? Por que todos juntos?
– Por causa do temporal, Marta, que nos fez ficar perto uns dos outros.
Eu fui com Simão, Tiago e teu criado, ao encontro das duas peregrinas.
Marta está tão espantada, que nem reflete no fato de Jesus ir com tanta
segurança ao encontro delas e não faz esta pergunta:
– Mas Tu estavas sabendo?
É Tomé quem pergunta isso a Jesus. Mas não recebe resposta, porque
Marta diz à sua irmã:
– Mas como estavas com Maria?
Madalena inclina a cabeça. A Mãe de Jesus a socorre, segurando-a pela
mão, e dizendo:
– Ela veio até minha casa como uma peregrina, que vai até um lugar,
onde lhe pode ser ensinado o caminho para chegar à meta. E ela me disse:
“Ensina-me o que devo fazer para ser de Jesus.” Oh! Como nela há uma
vontade verdadeira e total, logo ela compreendeu e entendeu essa sabedoria.
E eu a achei logo pronta para poder ser tomada pela mão, assim, e
trazê-la até a Ti, meu Filho, a ti, boa Marta, a vós, irmãos discípulos, e
dizer-vos: “Aqui está a discípula e a irmã, que não dará senão alegrias
sobrenaturais ao Senhor e aos seus irmãos.” Procurai acreditar em mim, e
amá-la todos, como Jesus e eu a amamos.
238.8Então, os apóstolos se aproximam, saudando a nova irmã. Não se exclui
também alguma curiosidade… Mas, que fazer? São ainda homens…
Mas o bom senso de Pedro toma então a palavra:
– Tudo vai bem, Vós garanti a ela ajuda e uma amizade santa. Primeiro
seria necessário pensar que a Mãe e a irmã estão muito molhadas. Nós
também, na verdade, estamos… Mas o caso delas é pior. Seus cabelos estão
pingando água, como os salgueiros depois do furacão, suas vestes estão
sujas de barro e molhadas. Vamos acender um fogo, vamos arranjar umas
vestes e preparar uma comida quente…
Todos se põem a trabalhar, e Marta leva para o quarto as duas
ensopadas viandantes, enquanto, já estando aceso o fogo, estenderam diante
dele as capas, os véus e as vestes encharcadas. Não sei como se arranjam
para prover tudo. Só sei que Marta, tendo-se lembrado de novo de sua
energia de ótima dona de casa, vai e vem, cuidando de tudo, com bacias e
água quente, com tigelas de leite quente, com vestes emprestadas pela
patroa, para socorrer as duas Marias…
239. A parábola dos peixes, a parábola da pérola
e o tesouro dos ensinamentos antigos e novos.
31 de julho de 1945.
239.1Estão todos reunidos na ampla sala superior. O temporal violento se
dissolveu em uma chuva persistente, que já vai ficando mais fina, até quase
parar, e dali a pouco engrossa de novo, com uma fúria renovada. O lago
certamente não está azul hoje, mas amarelento, com listras de espuma
branca, quando vem vindo um vento com aguaceiro. As colinas, todas
escorrendo água, umas com suas folhagens ainda inclinadas para baixo,
ainda cobertas de água, com alguns ramos quebrados pelo vento e muitas
folhas arrancadas pelo granizo, mostrando pequenos regatos por todos os
lados, com águas amarelentas, que vão transportando para o lago as folhas e
as pedras arrancadas dos declives. A própria luz do sol está meio ofuscada,
esverdeada.
Na sala, sentadas perto de uma janela virada para as colinas, estão
Maria com Marta e Madalena, com mais duas mulheres que eu não sei
exatamente quem são. Mas eu tenho a impressão de que já seriam
conhecidas de Jesus, de Maria e dos apóstolos, porque elas se sentem muito
à vontade com todos. E certamente assim estão, mais do que Madalena, que
está quieta, com a cabeça inclinada, sentada entre a Virgem e Marta. As
roupas, enxugadas ao fogo, e agora limpas do barro, já foram vestidas de
novo. Mas digo mal. Foi vestida pela Virgem a dela, de lã azul escura.
Madalena está com uma veste emprestada, curta e estreita para ela, que é
alta e de belas formas. Ela procura compensar os defeitos da veste, usando
por cima dela a capa de sua irmã. Maria Madalena recolheu o cabelo em
duas tranças, dando com elas um nó sobre a nuca, feito de qualquer modo,
porque para segurar aquele peso seriam necessários bem mais do que
aqueles poucos grampos, enfiados um aqui, outro ali. De fato, depois disso,
eu sempre vi que Maria Madalena ajuda os grampos com uma fitinha, que
fica parecendo um leve diadema, desaparecendo, por causa de sua cor de
palha, no ouro dos cabelos dela.
No outro lado da sala, sentados, uns em escabelos, outros nos peitoris
das janelas, estão Jesus com os apóstolos e o dono da casa. Está faltando o
criado de Marta. Pedro e os outros pescadores estão estudando o tempo,
fazendo prognósticos sobre o dia seguinte. Jesus escuta, ou responde a uma
ou outra pergunta.
– Se eu tivesse sabido disso, eu teria dito à minha mãe que viesse. É
bom que a mulher logo esteja à vontade com as companheiras –diz Tiago de
Zebedeu, olhando para o lado das mulheres.
– Como, se tivesses sabido? 239.2Pois, então, a mãe não veio com
Maria? –pergunta Tadeu ao irmão Tiago.
– Eu não sei. Também eu estou fazendo essa pergunta.
– Não estará ela sentindo-se mal?
– Maria teria dito.
– Eu vou perguntar-lhe isso –e Tadeu vai falar com as mulheres.
Ouve-se a voz clara de Maria, que responde:
– Ela está bem. Fui eu que lhe evitei alguma falta de cuidado com este
calor. Nós saímos por aí, como duas meninas, não foi, Maria? Maria veio à
tarde, já escuro, e, na manhã seguinte, partimos. Eu apenas disse a Alfeu:
“Toma a chave. Voltarei logo. Dize isto à Maria.” E vim para cá.
239.3– Nós voltaremos juntos, Mãe. Logo que o tempo ficar bom, e Maria
já tiver uma veste, nós iremos, todos juntos, através da Galileia,
acompanhando as irmãs até o caminho mais seguro. Assim ficarão
conhecidas também por Porfíria, por Susana, por vossas mulheres e filhas,
por Filipe e Bartolomeu.
É muito bom esse modo de dizer “serão conhecidas”, para não dizer
“Maria será conhecida.” E também é uma saída magistral, que vem derrubar
todas as prevenções e restrições mentais a respeito da redimida. O Senhor a
impõe, vencendo as relutâncias deles, a vergonha dela, tudo. Marta tem
agora um ar sereno em seu rosto. Maria Madalena fica corada e tem um
olhar suplicante, reconhecido, mas perturbado. Que sei eu? Maria, Mãe de
Jesus, está com o seu habitual sorriso suave.
– Aonde iremos em primeiro lugar, Mestre?
– A Betsaida. Depois iremos por Magdala, Tiberíades, Caná e Nazaré.
De lá, passando por Jáfia e Semeron, iremos a Belém da Galileia, depois a
Sicaminon e a Cesareia…
Jesus interrompeu suas palavras, diante da explosão de pranto de
Madalena. Ele levanta a cabeça, olha para ela, e continua, como se nada
houvesse acontecido:
– Em Cesareia encontrareis o vosso carro. Eu dei ordem assim ao servo,
e de lá ireis para Betânia. E ver-nos-emos depois, na Festa dos
Tabernáculos[14].
Madalena se recompõe logo, e não responde às perguntas de sua irmã,
mas sai da sala e se retira, talvez para a cozinha, por um pouco de tempo.
– Maria está sofrendo, Jesus, ao ouvir que deve ir a certas cidades. É
preciso entendê-la… Eu o estou dizendo mais por causa dos discípulos que
por Ti, Mestre –diz humildemente, e preocupada, Marta.
– É verdade, Marta. Mas assim deve acontecer. Se ela não enfrentar
logo o mundo, e não acabar de uma vez com aquele horrível tirano, que é o
respeito humano, ela ficará paralisada em sua conversão. E isso acontecerá
logo e também conosco.
239.4– Dentre nós, ninguém dirá nada a ela. Eu te garanto, Marta, por
mim e por todos os meus companheiros –promete Pedro.
– Com toda certeza! Nós a rodearemos como a uma irmã. Assim nos
disse Maria que ela é, e assim o será para nós –confirma Tadeu.
– E, além disso… Todos somos pecadores, e o mundo não nos poupou
também. Por isso, já compreendemos as lutas dela, diz Zelotes.
– Eu, mais do que todos, a compreendo. Nos lugares onde pecamos é
muito meritório vivermos. As pessoas sabem quem somos!… É um
tormento. Mas é também uma justiça e uma glória resistir ali. Justamente
porque é evidente em nós o poder de Deus, nós somos objeto de
conversões, até mesmo sem fazermos uso de palavras –diz Mateus.
– Estás vendo, Marta, como tua irmã é compreendida por todos, e
amada por todos. E o será cada vez mais. Ela se tornará um sinal indicador
para muitas almas culpadas e assustadas. É uma grande força até para os
bons. Porque Maria, quando tiver arrebentado as últimas correntes de sua
natureza humana, será um foco de amor. E não terá feito nada mais do que
ter dado uma nova direção à exuberância dos seus sentimentos. Terá
elevado essa sua poderosa faculdade de amar a um plano sobrenatural. E,
nesse plano, ela operará prodígios. Eu vo-lo garanto. Por enquanto, ela
ainda está perturbada. Mas vereis como cada dia irá ficando mais tranquila
e forte, em sua nova vida. Na casa de Simão, Eu disse: “Muito lhe é
perdoado, porque ela muito ama.” E agora Eu vos digo que, em verdade,
tudo lhe é perdoado, porque ela amará com todas as suas forças, com sua
alma, seu pensamento, seu sangue, sua carne, até o holocausto, o seu Deus.
– Feliz dela, que merece tais palavras! Eu quereria merecê-las, eu
também –suspira André.
– Tu? Tu as mereces já. 239.5Vem cá, meu pescador! Eu te quero contar
uma parábola, que parece que foi feita pensando em ti.
– Mestre, espera um pouco. Eu vou buscar Maria. Ela deseja tanto saber
a tua doutrina!…
Enquanto Marta sai, os outros dispõem em ordem as cadeiras,
formando com elas um semicírculo ao redor de Jesus.
Voltam as duas irmãs e tomam um lugar perto da Mãe Santíssima.
Jesus começa a falar:
– Uns pescadores saíram para o lago e jogaram sua rede ao mar. Depois
do tempo necessário, puxaram a rede para bordo. Com muito trabalho eles
iam assim fazendo a sua pesca, por ordem do patrão, que os havia
encarregado de abastecer sua cidade de peixes de boa qualidade, dizendo-
lhes assim: “Mas os peixes que fazem mal e os de qualidade inferior, não
deveis nem levá-los para terra. Jogai-os de novo no mar. Outros pescadores
os pescarão e, como eles são pescadores de um outro patrão, levarão os
peixes para a cidade dele, para que lá se coma o que faz mal e o que faz
ficar sempre mais feia a cidade do meu inimigo. Na minha cidade, que é
bela, ilustre e santa, não deve entrar nada de malsão.”
Puxada, pois, para bordo a rede, os pescadores começaram o trabalho
da separação. Os peixes eram muitos diversos, de aspecto, tamanho e cores.
Havia alguns muitos bonitos, mas cuja carne era cheia de espinhas, ou de
sabor desagradável, ou que tinham o bucho cheio de lodo, de vermes ou de
ervas podres, que aumentavam o mau gosto de suas carnes. Outros eram de
aparência feia, com um focinho que mais parecia a carranca de um
delinquente ou de um monstro visto em um pesadelo. Mas os pescadores
sabiam que a carne deles era especial. Outros, porque eram sem
importância, passaram despercebidos. Os pescadores trabalhavam,
trabalhavam. As cestas já estavam cheias de peixes especiais então, e na
rede estavam os peixes insignificantes. “Já basta. As cestas estão cheias.
Vamos jogar todo o resto no mar”, disseram muitos pescadores.
Mas um pescador, que pouco tinha falado até aí, enquanto os outros
falavam bem ou mal de cada peixe que lhes chegava às mãos, ficou a
rebuscar na rede e, por entre a miuçalha sem importância, descobriu ainda
dois ou três peixes, que ele foi colocar por cima de todos os outros, nas
cestas. “Mas, que é que estás fazendo”, perguntaram-lhe os outros. “As
cestas já estão cheias e bonitas. Tu as queres estragar, pondo por cima delas,
e atravessado, esse pobre peixe aí! Parece até que tu o queiras premiar
como o mais bonito!” “Deixai-me agir. Eu conheço esta raça de peixes e sei
o seu rendimento e que prazer dão.”
Esta é a parábola, que termina com a bênção do patrão ao pescador
paciente, esperto e silencioso, que soube separar, no grande montão, quais
eram os melhores peixes.
239.6Agora escutai a aplicação da parábola.
O patrão da cidade bonita, ilustre e santa é o Senhor. A cidade é o
Reino dos Céus. Os pescadores são os meus apóstolos. Os peixes do mar
são a humanidade, na qual estão presentes todas as categorias de pessoas.
Os peixes bons são os santos.
O patrão da cidade feia é satanás. A cidade feia é o Inferno. Os
pescadores dele são o mundo, a carne, as paixões más, encarnados nos
servos de satanás, sejam espirituais, isto é, demônios, sejam os homens que
corrompem aos seus semelhantes. Os peixes maus são a humanidade que
não é digna do Reino dos Céus: são os condenados.
Entre os pescadores de almas para a Cidade de Deus, sempre haverá os
que imitarão aquela capacidade cheia de paciência do pescador que sabe
perseverar na procura, precisamente nas diversas camadas da humanidade,
onde os outros seus companheiros, mais impacientes, apanharam somente
as coisas boas que apareceram à primeira vista. E infelizmente haverá
também pescadores que, enquanto aquele trabalho de separação exigia
atenção e silêncio, para ouvir as vozes das almas e as indicações
sobrenaturais, não verão os peixes bons e os perderão. E haverá também os
que por demasiada intransigência, repelem as almas que não são perfeitas
em suas aparências exteriores, mas que são ótimas em tudo mais.
Que vos importa, se um dos peixes que pegardes para Mim, mostrar
sinais de lutas passadas, apresentando mutilações resultantes de tantas
causas, se depois elas não prejudicam ao seu espírito? Que vos importa, se
um desses, para livrar-se do Inimigo, feriu-se, e se apresenta com essas
feridas, se o seu interior mostra a sua clara vontade de ser de Deus? Almas
provadas, almas garantidas. Mais do que aquelas, que são como crianças
salvaguardadas por meio de faixas, do berço ou da mãe, e que dormem
saciadas e boas, ou que sorriem tranquilas, mas podem mais tarde, com o
uso da razão, com a idade e com as vicissitudes da vida que vão
aumentando, dar até dolorosas surpresas de desvios morais.
239.7Eu vos recordo a palavra do filho pródigo. Outras delas ouvireis
ainda, porque Eu sempre estudarei para difundir em vós um discernimento
reto: quanto ao modo de avaliar as consciências e de escolher a maneira
como guiá-las, que são singulares, e cada uma delas tem o seu modo
especial de sentir e de reagir às tentações e aos ensinamentos. Não penseis
que seja fácil o discernimento dos espíritos. É totalmente o contrário.
Precisa-se ter um olho espiritual, completamente iluminado pela luz divina,
precisa-se ter uma inteligência que tenha infusa em si a Sabedoria divina,
precisa-se possuir as virtudes em grau heroico e, como primeira entre todas,
a caridade. Precisa-se ter a capacidade para concentrar-se na meditação,
porque a alma é como um texto obscuro, que há de ser lido e meditado.
Precisa-se ter união contínua com Deus, esquecendo-nos de todos os
interesses egoístas. Viver pelas almas e por Deus. Superar as prevenções, os
ressentimentos, as antipatias. Ser doces como pais, férreos como guerreiros.
Doces para aconselhar e encorajar. E férreos para dizer: “Isto não é
permitido, não o faças. Ou, então: Isto é bom que se faça, e tu o farás.”
Porque, pensai bem nisto, muitas almas serão jogadas nos tanques infernais.
Mas não serão somente almas de pecadores. Também almas de pescadores
evangélicos haverá lá: são as daqueles que faltaram com o seu ministério,
contribuindo para a perdição de muitos espíritos.
Chegará o dia, o último dia da terra e o primeiro da Jerusalém perfeita e
eterna, no qual os anjos, como os pescadores da parábola, separarão os
justos dos maus, para que à ordem inexorável do Juiz, os bons vão para o
Céu e os maus para o fogo eterno. Então é que se tornará conhecida a
verdade a respeito dos pescadores e dos pescados, cairão por terra as
hipocrisias, e aparecerá o povo de Deus como é, com os seus chefes e os
salvos pelos seus chefes. Veremos, então, que muitos entre os mais sem
importância pelo seu exterior, ou os maltratados em seu exterior, estarão
nos esplendores do Céu e que os pescadores calmos e pacientes serão os
que mais terão feito, brilhando agora com suas pedras preciosas, que serão
tantas, quantos forem os seus salvos.
A parábola foi contada e explicada.
239.8– E meu irmão?! Oh! Mas…
Pedro olha para ele… depois olha para Madalena…
– Não, Simão, por ela eu não tenho merecimento. Foi o Mestre sozinho
que o fez –diz, sincero, André.
– Mas os outros pescadores, os de satanás, eles ficam, então, com as
sobras? –pergunta Filipe.
– Eles tentam pegar os melhores, os espíritos capazes de maior prodígio
de Graça e usam desses mesmos homens para consegui-lo, além das suas
tentações. Ainda há muitos neste mundo que, por um prato de lentilhas,
renunciam à primogenitura!
– Mestre, outro dia Tu nos dizias que muitos são os que se deixam
seduzir pelas coisas do mundo. Seriam também eles dos que pescam para
satanás? –pergunta Tiago de Alfeu.
– Sim, meu irmão. Naquela parábola o homem se deixou seduzir pelo
muito dinheiro, que lhe podia dar muitos prazeres, perdendo o direito ao
Tesouro do Reino. Mas, na verdade, Eu vos digo que sobre cem homens só
um terço sabe resistir à tentação do ouro, ou a outras seduções e desse terço
só a metade é que sabe fazê-lo de uma maneira heroica. O mundo morre
asfixiado pelo agravamento voluntariamente aceito dos laços do pecado.
Vale mais estar despojado de tudo, do que ter riquezas irrisórias e ilusórias.
Procurai saber fazer como fazem os sábios joalheiros, os quais, tendo
sabido que em certo lugar foi pescada uma pérola raríssima, não se
preocupam mais em ter ou não ter tantas pequeninas alegrias em seus
cofres, mas se despojam de tudo, para conseguirem aquela pérola
maravilhosa.
– E, então, por que Tu mesmo pões diferenças nas missões que dás aos
que te acompanham e dizes que nós temos que considerar as missões como
dons de Deus? Então, seria necessário renunciar também a elas, porque elas
são como migalhas, em comparação com o Reino dos Céus –diz
Bartolomeu.
– Migalhas, não. Elas são meios. Migalhas elas seriam, ou melhor
ainda, seriam ciscos de palha suja, caso se tornassem uma meta humana na
vida. Aqueles que trabalham para terem uma posição, ainda que santa, com
a finalidade de conseguirem vantagens humanas, fazem de sua posição um
cisco, uma palha suja. Mas fazei de vossa missão uma obediente aceitação,
um dever cumprido com alegria, um holocausto total e, então, a
transformareis em uma pérola raríssima. A missão é um holocausto, se for
cumprida sem reservas, é um martírio e uma glória. A missão pinga
lágrimas, suor, sangue, mas forma uma coisa de eterna realeza.
239.9– Tu sabes de fato responder a tudo!
– Mas, me tereis compreendido? Compreendeis o que Eu digo, mas com
comparações que Eu vou buscar nas coisas de cada dia, iluminadas, porém,
por uma luz sobrenatural, que delas tira explicações para coisas eternas?
– Sim, Mestre.
– Lembrai-vos, então do método para instruir as turbas. Porque este é
um dos segredos dos escribas e dos rabis. Lembrarem-se. Em verdade Eu
vos digo que qualquer um de vós, instruído na Sabedoria de possuir o Reino
dos Céus, é semelhante a um pai de família, que tira para fora do seu
tesouro o que serve para a família, usando coisas antigas ou coisas novas,
mas todas com o único fito de procurar o bem-estar de seus próprios filhos.
A chuva cessou. Deixemos em paz as mulheres, e vamos ao velho Tobias,
que está para abrir os seus olhos espirituais para as auroras do além. A paz
esteja convosco, mulheres.
[14] Tabernáculos quer dizer pela a festa dos tabernáculos. As principais festas hebraicas, frequentemente mencionadas na obra,
são a Páscoa (nota em 375.3), que era celebrada no plenilunio di Nisan (março-abril) e que era seguida da Páscoa suplementar, no
décimo quarto dia do mês sucessivo, para aqueles que não puderam participar (nota em 566.17); Pentecostes, ou festa da Semana
(como é chamada, por exemplo, em 416.2), cinquenta dias depois da Páscoa; os Tabernáculos (mencionados pela primeria vez em
2.4), ou festa das Cabanas, ao fim das colheitas de outono; as Encenias, ou festa das Luzes, ou da Purificação (como é dita, por
exemplo, em 132.1, ou da Dedicação do Templo (como em 526.5), o 25 de Casleu (novembro-dezembro). Disse Maria Ss. em
207.8: “… eu sabia… que na festa das luzes a Luz do mundo nasceria.” Origem e ritual das festas hebraicas são nos livros do
Êxodo, do Levítico, dos Números e do Deuteronômio.
240. Em Betsaida, com Porfíria e Marziam,
que ensinam a Madalena a oração de Jesus.
1º de agosto de 1945.
240.1Voltou o tempo sereno sobre o Mar da Galileia. Tudo agora está até
mais bonito do que antes da tempestade, porque tudo está de novo limpo da
poeira. A atmosfera está de uma claridade perfeita, e o olho, observando o
firmamento, tem a impressão de que ele ficou mais alto e mais leve… um
velário quase transparente, estendido entre a terra e os fulgores do Paraíso.
O lago espelha este azul perfeito e se ri, tranquilo, com suas águas cor de
turquesa.
É um início de aurora. Jesus, com Maria, Marta e Madalena, sobe para
a barca de Pedro. Com Ele estão, além de Pedro e André, também Zelotes,
Filipe e Bartolomeu. Mateus, Tomé, os primos de Jesus e Iscariotes estão na
outra barca de Tiago e João. Rumam direto para Betsaida. É um trajeto
breve, e o vento está a favor. Por isso, o percurso se faz em poucos minutos.
Quando já estão para chegar, Jesus diz a Bartolomeu e a Filipe, este
inseparável daquele:
– Ireis avisar as vossas mulheres. Hoje Eu irei à vossa casa.
E fita os dois de um modo significativo.
– Assim será, Senhor. Não concedes nem a mim, nem a Filipe que Te
tenhamos por hóspede?
– Não pararemos aqui, senão até o pôr do sol, pois Eu não quero privar
Simão Pedro da alegria de estar com Marziam.
A barca já está passando rente pela beira, e para. Descem, e Filipe e
Bartolomeu e se afastam dos companheiros, para irem ao povoado.
– Aonde irão eles dois? –pergunta Simão ao Mestre, que desceu por
primeiro e está ao lado dele.
– Foram avisar as mulheres deles.
– Eu vou, então, também avisar à Porfíria.
– Não é preciso. Porfíria é tão boa, que não é necessário prepará-la para
nada. Seu coração só tem doçura para dar.
Simão Pedro fica contente, por ouvir aquele louvor à sua esposa, e não
diz mais nada.
Nesse ínterim, já desceram as mulheres, para as quais foi colocada uma
tábua, a fim de servir de prancha, e agora estão indo para a casa de Simão.
240.2 Quem as vê por primeiro é Marziam, que está saindo com as suas
ovelhinhas para levá-las a pastar a erva fresca, sobre as primeiras encostas
de Betsaida e, com um grito de alegria, dá a notícia, correndo para ir
refugiar-se no peito de Jesus, que se inclina para beijá-lo. Depois, ele vai a
Pedro. Sai correndo para lá também Porfíria, com as mãos enfarinhadas, e
se inclina para saudar.
– A paz esteja contigo, Porfíria. Tu não nos esperavas tão cedo. Mas Eu
quis trazer-te minha Mãe e duas discípulas, além de minha bênção. Minha
Mãe estava desejando ver o menino. E ele já está nos braços dela. As
discípulas desejavam conhecer-te… Esta é a mulher de Simão. A discípula
boa e silenciosa, ativa mais do que muitas outras, em sua obediência. Estas
são Maria e Marta de Betânia. Duas irmãs. Querei-vos bem.
– Aqueles que me apresentas são para mim mais queridos do que se
fossem meus parentes, Mestre. Vem. A minha casa fica mais bonita, cada
vez que nela pões os pés.
Maria se aproxima sorrindo, e abraça Porfíria, dizendo-lhe:
– Eu vejo que em ti está verdadeiramente viva a mãe. O menino cresceu
e está feliz. Obrigada.
– Oh! Mulher abençoada mais que qualquer outra! Eu sei que por ti é
que eu tive a alegria de ser chamada mamãe. E tu ficas sabendo que não te
darei o desgosto de deixar de sê-lo, com tudo o que de melhor houver em
mim. Entra, entra com as irmãs…
240.3Marziam fica olhando curiosamente para Madalena. Por sua cabeça
passam muitos pensamentos, e, enfim, ele diz:
– Mas… em Betânia tu não estavas…
– Não estava lá. Mas agora lá estarei sempre –diz Madalena,
enrubescida, e esboçando um sorriso.
E acaricia o menino, dizendo:
– Ainda que nos conheçamos só agora, tu me queres bem?
– Sim, porque és boa. Tu choraste, não é mesmo? É por isso que és boa.
E te chamas Maria, não é verdade? Minha mãe também se chamava assim e
era boa. E todas as mulheres que se chamam Maria são boas –e assim
termina, para não entristecer Porfíria e Marta–, mas há boas também entre
aquelas que têm outro nome. Tua mamãe, como se chamava?
– Euquéria… e era muito boa –e duas grandes lágrimas caem dos olhos
de Maria de Magdala.
– Estás chorando porque ela morreu? –pergunta o menino e a acaricia,
tocando em suas bonitas mãos, cruzadas sobre a veste escura, certamente
uma veste de Marta, adaptada para ela, pois pode-se ver que a aba foi
abaixada.
E ele acrescenta:
– Mas não precisas chorar. Afinal, não estamos sozinhos, sabes? As
nossas mamães estão sempre perto de nós: Jesus diz assim. E são como
anjos da guarda. Jesus diz isso também. E, se formos bons, elas vêm ao
nosso encontro, quando morremos e então, subimos para Deus nos braços
da mamãe. Isso é verdade, sabes? Foi Ele que disse.
Maria de Magdala dá um abraço apertado no seu pequeno consolador
dizendo:
– Reza, então, para que eu me torne boa assim.
– Mas tu não o és? Com Jesus só andam os que são bons…E, quando
ainda não o somos bem, aprendemos a sê-lo, para aprendermos a ser os
discípulos de Jesus, porque não se pode ensinar o que não se sabe. Não se
pode dizer: “Perdoa”, se primeiro nós não perdoamos. Não se pode dizer
Deves amar ao teu próximo, se antes mão o amamos. 240.4Tu já sabes a
oração de Jesus?
– Não.
– Ah! É verdade. Estás há pouco tempo com Ele. É uma oração muito
bonita, sabes? Diz todas estas coisas. Escuta como é bonita.
E Marziam vai dizendo, devagar, o “Pai-nosso”, com sentimento e fé.
– Como tu a sabes bem! –diz, admirada, Maria de Magdala.
– Ela me foi ensinada por minha mãe de noite e pela Mamãe de Jesus de
dia. E, se quiseres, eu te ensinarei. Queres vir comigo? As ovelhinhas estão
balindo. Estão com fome. Agora eu vou levá-las ao pasto. Vem comigo. Eu
te ensinarei a rezar e te tornarás boa –e a segura pela mão.
– Mas, eu não sei se o Mestre quer…
– Vai, vai, Maria. Tens por amigo um inocente e cordeirinhos. Então,
vai. Tranquilamente…
Maria de Magdala sai com o menino e é vista, quando vai-se afastando
dali, precedida pelas três ovelhinhas. Jesus fica olhando… e todos os outros
ficam olhando.
– Pobre de minha irmã! –diz Marta.
– Não tenhas dó dela. É uma flor que reergue o pedúnculo, depois da
tempestade. Estás ouvindo?… Ela ri… A inocência conforta sempre.
241. Vocação da filha de Filipe.
Chegada a Magdala e parábola da dracma
perdida.
2 de agosto de 1945.
241.1A barca vai bordejando, de Cafarnaum até Magdala.
Maria de Magdala está, pela primeira vez, em sua postura de
convertida: está sentada no fundo da barca, aos pés de Jesus que, por sua
vez, está modestamente sentado em um dos bancos da própria barca. O
rosto de Maria está hoje muito diferente do de ontem. Ainda não é aquele
rosto radiante da Madalena, quando vai correndo ao encontro de Jesus,
todas as vezes que Ele vai a Betânia, mas é já um rosto livre de temores e
de tormentos, e seus olhos, que antes estavam aviltados por tudo o que antes
havia de desavergonhado, agora estão sérios, mas seguros e, nessa sua
honrada seriedade, brilha de vez em quando uma centelha de alegria, ao
ouvir Jesus, quando fala com os seus apóstolos, ou com sua Mãe, ou com
Marta.
Eles estão falando da bondade de Porfíria, tão simples e tão amorosa,
referindo-se também à acolhida afetuosa de Salomé e das mulheres de
Bartolomeu e de Filipe, e este mesmo diz:
– Se não fossem elas ainda tão jovens e a mãe que não quer saber delas
pelas estradas, elas também te acompanhariam, Mestre.
– As almas delas me acompanham. Isso é também um amor santo…
241.2Filipe, escuta-me: A tua filha maior está para casar-se, não é verdade?
– Sim, Mestre. Bons esponsais e um bom esposo. Não é mesmo,
Bartolomeu?
– É verdade. Eu o garanto, porque conheço a família. Não pude aceitar
que fosse eu que houvesse de cuidar desse negócio, mas eu teria aceitado,
se não tivesse sido chamado pelo Mestre e com toda a tranquilidade, para
formar uma família santa.
– Mas a moça me pediu para não fazer nada disso.
– O noivo não lhe agrada? Ela está enganada. Mas a juventude está
louca. Espero que ela mude de ideia. Não há motivo para rejeitar um noivo
tão bom. A não ser que… Não, não pode ser –diz Filipe.
– A não ser o quê? Acaba de falar, Filipe –provoca-o Jesus.
– A não ser que esteja amando a outro. Mas isso não é possível! Ela não
sai de casa e, mesmo em casa, ela vive muito retirada. Não é possível!
– Filipe, há amantes que penetram até nas casas mais fechadas; há os
que sabem falar àquelas que eles amam, apesar de todas as barreiras e
vigias; há os que derrubam todos os obstáculos de viuvez, de meninice, de
estarem bem guardadas, ou… de outra coisa ainda e que pegam aquelas que
eles querem. E há amantes que não podem ser recusados. Porque eles são
prepotentes no que querem. Porque são sedutores, para vencerem todas as
resistências, ainda que fosse a do demônio. E tua filha está amando um
desses. E é o mais poderoso.
– Mas, quem é? Será um da corte de Herodes?
– Aquilo não é poder!
– Será um… um da casa do Procônsul, algum patrício romano? Eu não
o permitirei, de jeito nenhum. O sangue puro de Israel não terá contato com
um sangue impuro. Ainda que eu precisasse matar minha filha. 241.3Não
sorrias, Mestre! Eu sofro!
– Porque és como um cavalo irrequieto. Estás vendo sombras onde só
há luzes. Mas, fica tranquilo. Até o procônsul não passa de um servo e
servos são os amigos dele e servo é até o César.
– Ora, tu estás brincando, Mestre! Tu só me quiseste fazer passar medo.
Porque não há ninguém maior do que César, nem mais patrão do que ele.
– Aqui estou Eu, sou Eu, Filipe.
– Tu? Quererás Tu desposar minha filha?
– Não. Mas a alma dela. Eu sou o amante que penetro nas casas mais
fechadas e nos corações ainda mais fechados, com sete e mais chaves. Sou
Eu que sei falar, apesar de todas as barreiras e vigias. Sou Eu que derrubo
todos os obstáculos, e apanho o que Eu quero apanhar, entre os puros e
pecadores, entre as virgens e as viúvas, entre os que estão livres dos vícios e
os que estão escravizados por eles. E a todos Eu dou uma única e nova
alma, regenerada, bem-aventurada e eternamente jovem. São os meus
esponsais. E ninguém pode recusar-se a dar-me minhas doces presas. Nem
o pai, nem a mãe, nem os filhos e nem mesmo satanás. Seja o caso em que
Eu fale à alma de uma moça, como é a tua filha ou de um pecador
mergulhado no pecado e preso por satanás com sete correntes, a alma virá a
Mim… E nada e ninguém me arrebata mais. Nem nenhuma riqueza ou
poder, ou alegria do mundo é capaz de transmitir a alegria perfeita que é a
daqueles que se casam com a minha Pobreza, com a minha Mortificação.
Nus de todos os pobres bens, mas revestidos de todo Bem Celeste.
Contentes com a serenidade de quem pertence a Deus, somente a Deus… E
eles são os donos da terra e do Céu. Da terra, porque a dominam e do Céu,
porque o conquistam.
– Mas, na nossa Lei nunca houve isso! –exclama Bartolomeu.
– Despoja-te do velho homem, Natanael. Quando Eu te vi pela primeira
vez, Eu te saudei[15], dizendo que eras o perfeito israelita, sem fraudes. Mas
agora tu és de Cristo, não de Israel. Sê assim sem fraudes e sem ciladas.
Reveste-te desta nova mentalidade. Senão, não serás capaz de compreender
muitas das belezas da redenção, que Eu vim trazer a toda a humanidade.
Filipe intervém, dizendo:
– E minha filha, Tu dizes que foi chamada por Ti? E que fará ela agora?
De fato, eu não a nego a Ti. Mas quero saber, também para poder ajudá-la
naquilo para que tiver sido chamada…
– Para levar os lírios de um amor virginal no jardim de Cristo. Haverá
muitas dessas nos séculos futuros! Muitas! Serão canteiros de incensos para
contrabalançar as sentinas dos vícios. Serão almas que oram, para
contrabalançar os blasfemadores e os ateus. É uma ajuda para todas as
infelicidades humanas e uma alegria para Deus.
241.4Maria de Magdala abre a boca para fazer uma pergunta e a faz,
enrubescendo ainda, mas já com mais franqueza do que nos outros dias:
– E nós, as ruínas, que Tu estás reerguendo, que é que vamos ser?
– O que são as irmãs virgens…
– Oh! Não pode ser! Nós andamos pisando em muita lama e… não pode
ser.
– Maria, Maria! Jesus nunca perdoa pela metade. Ele te disse que te
perdoou. E assim é. Tu, e todos aqueles, que como tu pecaram e que o meu
amor perdoa e desposa, perfumareis, orareis, amareis, confortareis, tornadas
agora cônscias do mal e preparadas para curá-lo onde ele estiver, sereis
almas que aos olhos de Deus são mártires. E queridas, portanto, como as
virgens.
– Mártires? De que modo, Mestre?!
– Contra vós mesmas, e pelas lembranças do passado, mártires por sede
de amor e de expiação.
– Devo crer isso?
Madalena olha para todos os que estão na barca, pedindo uma
confirmação para a sua esperança, que começa a acender-se.
– Pergunta a Simão. Eu falei[16] de ti e de vós pecadores em geral, em
uma noite estrelada, em teu jardim. E os teus irmãos todos te podem dizer
se a minha palavra não cantou para todos os redimidos os prodígios da
Misericórdia e da conversão.
– Falou-me disso, com sua voz de anjo, até o menino. Eu voltei com a
alma tranquilizada por aquela lição dele. Ele me fez conhecer-te melhor
ainda do que minha irmã, e de tal modo, que hoje eu me sentia mais forte
para enfrentar Magdala. Agora que Tu me dizes isto, eu sinto crescer em
mim a fortaleza. Eu dei escândalo ao mundo. Mas, eu te juro, meu Senhor,
que agora o mundo, ao olhar para mim, chegará a compreender o que é o
teu poder.
Jesus põe, por um momento, a mão sobre a cabeça dela, enquanto
Maria Santíssima lhe sorri, como só Ela sabe fazer: com um sorriso de
Paraíso.
241.5Aí já está Magdala, que se estende à beira do lago, com o sol
surgindo em sua frente, com o monte Arbela às suas costas e que a protege
dos ventos, o vale estreito, alcantilado e selvagem, do qual desemboca uma
torrente no lago e que avança do lado do ocidente, com suas costas a pique,
cheias de uma beleza fascinante e rústica.
– Mestre –grita João, da outra barca–, aqui está o vale do nosso
retiro… –e o seu rosto brilha, como se por dentro ele tivesse o sol.
– É o nosso vale, sim. Tu o reconheceste bem.
– Não se pode deixar de lembrar dos lugares onde se conheceu a
Deus[17] –responde João.
– Então, eu vou lembrar-me sempre deste lago. Porque sobre ele é que
Te conheci. Sabes, Marta, que eu vi o Mestre[18], certa manhã?
– Sim. E por pouco todos não foram para o fundo, nós e vós. Mulher,
podes acreditar também que os teus remadores não valiam nem um
vintém –diz Pedro, que está fazendo a manobra para aproar.
– Não valiam nada nem os remadores, nem os que estavam com eles…
Mas sempre foi aquele o primeiro encontro e por isso tem um grande valor.
Depois, eu te vi sobre o monte, depois em Magdala, depois em
Cafarnaum… Tantos encontros, quantas as correntes arrebentadas… Mas
Cafarnaum foi o lugar mais belo. Foi lá que me libertaste…
241.6Descem para a terra, para onde já desceram os da outra barca. Eles
entram na cidade.
A curiosidade simples ou… sem simplicidade, dos magdalenses deve
ser como uma tortura para Madalena. Mas ela tudo suporta heroicamente,
acompanhando o Mestre, que vai na frente, no meio de todos os seus
apóstolos, enquanto que as três mulheres vão atrás deles. O murmúrio é
forte. Não falta a ironia. Todos aqueles que, enquanto Maria era a senhora
que mandava em Magdala, a respeitavam pela aparência, por temor das
represálias, agora que eles a estão vendo e sabem que ela se afastou para
sempre dos seus poderosos amigos, agora humilde e casta, eles tomam a
liberdade de demonstrar-lhe o seu desprezo e de dirigir-lhe apelidos nada
agradáveis.
Marta, que está sofrendo tanto quanto ela por isso, pergunta-lhe:
– Queres ir embora para casa?
– Não. Eu não deixo o Mestre. E a Ele, antes que a casa seja purificada
de todos os vestígios do passado, não o convidarei para entrar nela.
– Mas, tu sofres, irmã.
– Eu fiz por merecê-lo.
É preciso aceitar o sofrimento: o suor que desce do rosto, e o rubor que
o cobre até no pescoço não são devidos somente ao calor.
Atravessam toda Magdala, indo pelos quarteirões pobres, até chegarem
à casa em que ficaram[19] na outra vez. A mulher fica espantada, quando, ao
levantar a cabeça do lavadouro para ver quem é que a está saudando, se
encontra de frente com Jesus e a bem conhecida senhora de Magdala, não
mais naquela sua pompa, não mais cheia de joias, mas com um véu leve de
linho na cabeça, vestida de um roxo pervinca, com uma veste fechada à
altura do pescoço, estreita e que se está vendo que não é dela, ainda que a
tenham adaptado para parecer que o fosse, enrolada em uma pesada capa
que, com aquele calor, deve estar sendo para ela um suplício.
– Permites-me parar em tua casa e falar daqui aos que me
acompanham? –(Isto queria dizer “falar a toda Magdala”, porque a
população em peso formou acompanhamento ao grupo dos apóstolos.)
– E, ainda me perguntas, Senhor? Mas a minha casa é tua.
E se dá ao trabalho de levar cadeiras e bancos às mulheres e aos
apóstolos. Passando ela por perto de Madalena, faz-lhe uma inclinação,
como uma escrava.
– Paz a ti, minha irmã, lhe responde ela.
E a surpresa da mulher chega a tal ponto, que ela deixa cair o pequeno
banco, que estava em suas mãos. Mas ela não diz nada. Contudo, aquele ato
me fez pensar que Maria antes devia ter tratado os seus súditos de um modo
soberbo. E aquela mulher acaba de ficar mesmo assombrada, quando ouve
Madalena perguntar-lhe como vão os meninos, onde eles estão, e se a pesca
tem sido boa.
– Estão bem…Uns estão na escola e outros com minha mãe. A pesca
está boa. Meu marido te levará os dízimos…
– Não é mais preciso. Usa-os com os teus meninos. Queres deixar-me
ver o pequenino?
– Vem.
241.7As pessoas se aglomeram na rua. Jesus começa a falar:
– Uma mulher tinha dez dracmas em sua bolsa. Mas, tendo feito um
movimento, a bolsa caiu-lhe do seio e se abriu, e as moedas saíram rodando
pelo chão. Ela as recolheu, com a ajuda das vizinhas que estavam presentes
e contou as moedas. Eram nove. Não puderam encontrar a décima. Visto
que a tarde já vinha chegando, e começava a escurecer, a mulher acendeu a
candeia, e a colocou no chão. Depois pegou uma vassoura e começou a
varrer, com muita atenção para ver se a moeda havia rolado para longe do
lugar onde caiu. Mas não havia meio de achar a dracma. Então, as amigas
foram-se embora, já cansadas de tanto procurar. Aí a mulher teve a ideia de
mover do lugar a caixa-banco, o armário e o pesado cofre. Tirou com
cuidado as ânforas e jarros, que estavam colocados numa cavidade, ao pé da
parede. Mas não se achava a dracma. Então, a mulher se pôs de gatinhas e
foi procurar no monte do lixo varrido e ajuntado perto da porta da casa, para
ver se a dracma teria rodado para fora da casa, indo misturar-se com as
folhas rejeitadas das verduras. E lá, afinal, acabou achando a dracma, toda
suja, quase coberta com o lixo, que caiu depois sobre ela.
A mulher, muito alegre, foi lavá-la, e a enxugou. Ela estava mais bonita
agora, do que antes. E a mulher foi mostrá-la às vizinhas, que ela chamou
de novo, em alta voz, e que se haviam retirado, depois de a terem ajudado
nas primeiras buscas, dizendo: “Ei-la aqui! Estais vendo? Vos me estáveis
aconselhando a não me cansar mais. Mas eu resisti, e encontrei a dracma,
que eu tinha perdido. Alegrai-vos, pois, comigo, que ainda não tive a dor de
perder nem um só dos meus tesouros.”
241.8Também o vosso Mestre, e com Ele os seus apóstolos, faz como a
mulher da parábola. Ele sabe que um movimento pode fazer cair um
tesouro. Cada alma é um tesouro e satanás, que é invejoso de Deus, provoca
os maus movimentos para fazer cair as pobres almas. Há alguns que, ao
caírem, param perto da bolsa, isto é, afastam-se pouco da Lei de Deus, que
recolhe as almas na guarda dos mandamentos. E há os que vão parar mais
longe, isto é, afastam-se mais ainda de Deus e de sua Lei. Enfim, há os que
saem rodando até o lixo, até às sujeiras, à lama. E lá acabariam perecendo,
ao serem queimados nos fogos eternos, assim como as imundícies
costumam ser queimadas em lugares apropriados.
O Mestre sabe disso, e procura incansavelmente as moedas perdidas.
Ele as procura em todos os lugares, com amor. Elas são os seus tesouros.
Ele não se cansa, nem sente nojo de nada. Mas Ele as busca, rebusca, move
as coisas de seus lugares, varre, até encontrar. E, uma vez encontrada, lava a
alma encontrada com o seu perdão e chama os amigos, todo o Paraíso e
todos os bons da terra, e lhes diz: “regozijai-vos comigo, porque encontrei o
que se tinha perdido e está agora mais bonito do que antes, porque o meu
perdão o tornou novo.”
Em verdade Eu vos digo que se faz muita festa no Céu, alegram-se os
anjos de Deus e os bons da terra por um pecador que se converte. Em
verdade, Eu vos digo que não há coisa mais bela do que as lágrimas do
arrependimento. Em verdade Eu vos digo que só os demônios é que não
sabem, não podem alegrar-se por esta conversão, que é um triunfo de Deus.
E também vos digo que o modo como um homem acolhe a conversão de
um pecador é a medida de sua bondade e de sua união com Deus.
A paz esteja convosco.
As pessoas entendem a lição, e olham para a Madalena, que foi sentar-
se na porta com o pequenino nos braços, talvez para ter um modo de
controlar-se. A multidão vai-se dispersando lentamente, permanecendo
somente a dona da casa e sua mãe, rodeada pelos meninos. Falta Benjamim,
que ainda está na escola.
[15] eu te saudei, em 50.6.
[16] falei…, in 136.2.
[17] onde se conheceu a Deus, em 165.3/4.
[18] eu vi o Mestre, em 98.2/3.
[19] em que ficaram, em 184.1.
242. Discurso sobre a Verdade ao romano Crispo,
único ouvinte de Jesus em Tiberíades.
3 de agosto de 1945.
242.1Quando a barca para no pequeno porto de Tiberíades, acorrem, para
ver quem está chegando alguns desocupados, que estavam passeando perto
do molhe. Há pessoas de toda classe e de todas as nacionalidades. Por isso
às longas vestes hebraicas, de todas as cores, às cabeleiras e às barbas
imponentes dos israelitas misturam-se às vestes de lã cândida, mais curtas e
deixando os braços nus. vêm os de rostos imberbes, os de cabelos curtos, os
romanos robustos, os de vestes ainda mais curtas que cobrem os corpos
delgados e efeminados dos gregos, que parecem haver assimilado até as
poses da arte de sua longínqua nação, e estão aí como estátuas de deuses
descidas sobre a terra em corpos humanos de homens, envolvidos em
túnicas macias, com rostos clássicos por baixo de cabeleiras eriçadas e
perfumadas, com braços cobertos de braceletes, que brilham, agitados por
movimentos estudados.
Muitas mulheres do prazer estão misturadas a estas duas últimas classes
de pessoas, já que os romanos e os helenos não ficam em dúvidas, quando
querem expor os seus amores nas praças e nas ruas, enquanto que os
palestinos se abstém disso, mas vão praticar depois alegremente o seu amor
livre com as mulheres do prazer nas casas delas. Isto se nota claramente,
porque as cortesãs, mesmo com a cara feia que fazem para elas os que por
elas são interrogados, chamam, familiarmente pelo nome, diversos hebreus,
entre os quais nunca falta algum fariseu, enfeitado com grandes borlas.
242.2Jesus vai se dirigindo para a cidade, justamente para o ponto, onde a
multidão dos mais elegantes se reúne com maior densidade. Essa multidão
elegante, composta principalmente de romanos e gregos, com alguma
participação dos cortesãos de Herodes e de outros, os quais eu acho que são
grandes mercadores da costa fenícia, dos lados de Sidon e de Tiro, porque
estão falando sobre cidades, sobre empórios e navios. As termas têm seus
pórticos exteriores cheios dessas pessoas elegantes e ociosas, que perdem
assim o seu tempo, discutindo sobre assuntos muitos pequenos, por
exemplo, sobre qual é o discóbolo favorito ou o atleta mais ágil e
harmonioso na luta greco-romana. Ou, então, estão falando de modas e
banquetes, ou marcando encontros para excursões alegres, indo convidar as
mais belas cortesãs, ou as damas que saem perfumadas e encaracoladas das
termas ou dos palácios, revezando-se neste centro de Tiberíades, todo de
mármore e artístico como um salão.
Naturalmente, a passagem do grupo vai suscitando grande curiosidade e
esta se torna até anormal, quando alguém reconhece Jesus, por tê-lo visto
em Cesareia, ou alguém reconhece Madalena, por mais que ela vá indo toda
recoberta com a capa e com um véu branco bem descido sobre a fronte e
sobre as faces, estando assim velada e de cabeça inclinada, bem pouco
podendo-se ver de seu rosto.
– É o Nazareno, que curou a menina de Valéria –diz um romano.
– Eu gostaria de ver um milagre –responde-lhe outro romano.
– Eu gostaria de ouvi-lo falar. Dizem que é um grande filósofo. Vamos
pedir-lhe que fale? –pergunta um grego.
– Não te metas nisso, Teódato. Ele fala nas nuvens. Talvez agradasse a
algum escritor de tragédias, para fazer uma sátira –responde um outro
grego.
– Não te incomodes, Aristóbulo. Parece que agora ele está descendo das
nuvens, e tratando da realidade. Estás vendo como ele vem vindo escoltado
por mulheres jovens e belas? –diz, em tom de zombaria, um romano.
242.3– Mas aquela é Maria de Magdala! –grita um grego.
Depois chama os outros:
– Lúcio! Cornélio! Tito! Olhai lá Maria!
– Mas, não é ela! Maria desse jeito! Estás ébrio?
– É ela, eu te garanto. Não posso enganar-me, ainda que ela esteja assim
mascarada.
Romanos e gregos se aglomeram, indo no rumo do grupo dos
apóstolos, que vão atravessando obliquamente a praça cheia de pórticos e
de fontes. Também algumas mulheres se unem a esses curiosos, e é
justamente uma delas que vai quase até debaixo do rosto de Maria, para vê-
la melhor e fica tomada de grande surpresa, ao ver que é ela mesma.
Ela pergunta:
– Que fazes com essa roupa aí? e se ri, zombeteira.
Maria para, se endireita, levanta uma mão e descobre o rosto, jogando o
véu para trás. É Maria de Magdala, senhora poderosa sobre tudo o que é
desprezível e dona de suas impressões, que agora aparece.
– Sou eu, sim –diz ela com sua voz clara e com os lampejos de seus
bonitos olhos–. Sou eu. E eu tirei o véu, para que não fiqueis pensando que
eu estou com vergonha, por estar com estes santos.
– Oh! Oh! Maria com os santos! Mas, sai daí! Não fiques te aviltando a
ti mesma –diz a mulher.
– Aviltada eu fui até agora. Daqui para a frente, não mais.
– Mas, não estás doida? Ou será um capricho? –diz a mulher.
Um romano diz, escarnecendo e piscando os olhos:
– Vem comigo: Eu sou mais belo e mais alegre do que aquela carpideira
de bigodes que anestesia a vida, e faz dela um funeral.
– Bela é a vida. É um triunfo. É uma orgia de alegria. Vem. Eu saberei
fazer mais do que todos os outros para tornar-te feliz –diz ele, um jovem
romano de rosto vulpino, ainda que belo, e procura tocar nela.
– Para trás! Não me toques. Disseste bem: a vida que levais é uma
orgia. E das mais vergonhosas. Eu tenho nojo dela.
– Oh! Oh! Mas, até pouco tempo atrás, essa era a tua vida –responde o
grego.
– Agora ela se faz de virgem –diz, ridicularizando-a, um herodiano.
– Tu vais estragar os santos! O teu Nazareno vai perder a auréola por
causa de ti: Vem conosco –insiste um romanos.
– Vinde vós comigo atrás Dele. Deixai de serem animais e tornai-vos
pelo menos homens.
Um coro de risadas e zombarias o apoia.
Só um velho romano é que diz:
– Respeitai uma mulher. Ela é livre de fazer o que quer. Eu a defendo!
– Olhai o demagogo! Ouvi-o! Será que te fez mal o vinho de ontem à
noite? –pergunta um jovem.
– Não. Ele é hipocondríaco, porque está com dor nas costas –lhe
responde um outro.
– Vai ao Nazareno para que as raspe.
– Eu vou mas é para que Ele me raspe a lama, que eu apanhei em
contato convosco –responde o ancião.
– Oh! Crispo que se corrompeu aos sessenta anos –dizem rindo muitos,
que estão formando um círculo ao redor dele.
242.4Mas o homem chamado Crispo não se preocupa por ser feito objeto
de zombaria, e põe-se a caminhar atrás de Madalena, que já alcançou o
Mestre, e vão indo agora à sombra de um edifício muito bonito, que se
estende em forma de êxedra sobre dois lados de uma praça.
E Jesus já está discutindo com um escriba, que o censura por estar em
Tiberíades e com aquela companhia.
– E tu, por que é que estás aqui? Tu me censuras por estar Eu em
Tiberíades. Mas Eu te digo que também em Tiberíades, e até mais do que
em outros lugares, existem muitas almas necessitadas de salvação –
responde-lhe Jesus.
– Eles não vão ser salvos: São gentios, pagãos, pecadores.
– Foi para os pecadores que Eu vim. Para fazer que conheçam o
verdadeiro Deus. Vim para todos. Até por ti Eu vim.
– Eu não preciso de Mestres, nem de redentores. Eu sou puro e douto.
– Se, pelo menos o fosses o tanto quanto é necessário para conheceres o
teu estado!
– E Tu, para saberes quanto ficas prejudicado, andando em companhia
de uma meretriz!
– Eu te perdôo, também em nome dela. Ela, com sua humildade, anula o
seu pecado. Tu, pela tua soberba, duplicas a tua culpa.
– Eu não tenho culpas.
– Tens a maior delas. Tu não tens amor.
– O escriba diz: “Raca”, e vira-lhe as costas.
– Foi por minha culpa, Mestre –diz Madalena.
E, vendo a palidez da Virgem Maria, ela geme:
– Perdoa-me. Eu estou fazendo que insultem ao teu Filho. Eu vou sair
daqui…
– Não. Fica tu onde estás. Eu quero assim –diz Jesus com voz incisiva e
com um relampejar tal em seus olhos, e um ar de domínio em toda a sua
pessoa, que se torna impossível olhar para Ele.
E depois diz mais docemente:
– Tu, fica onde estás. E, se alguém não suporta a tua vizinhança, que se
vá embora, ele sozinho.
E Jesus põe-se de novo a caminho, dirigindo-se para a parte ocidental
da cidade.
242.5– Mestre! –chama o romano corpulento e já ancião, que defendeu
Madalena.
Jesus se vira.
– Chamam-te mestre, eu também te chamo assim. Eu desejaria ouvir-te
falar. Eu sou meio filósofo e meio gozador da vida. Mas talvez Tu poderias
fazer de mim um homem honesto.
Jesus olha para ele fixamente, e lhe diz:
– Estou deixando a cidade, onde reina a baixeza da animalidade humana
e onde é soberano o escárnio.
E começa a caminhar.
O homem vai atrás dele, suando e se cansando, porque o passo de Jesus
é ligeiro, e ele é gordo e já de idade, e meio pesado, por causa de seus
vícios. Pedro, que vira para trás, avisa Jesus disso:
– Deixa-o caminhar. Não te preocupes.
Pouco depois, é Iscariotes que diz:
– Mas aquele homem vem atrás de nós. Isso não pode ser!
– Por quê? Tu dizes por piedade, ou por outro motivo?
– Por piedade dele? Não. Porque, lá mais ao longe, vem vindo e nos
acompanhando aquele escriba de antes, com outros judeus.
– Deixa que o façam. Mas seria melhor que tivesses mais piedade dele
do que de ti.
– De Ti, Mestre.
– Não. De ti, Judas. Procura ser sincero em compreender teus
sentimentos e em manifestá-los.
– Eu, na verdade, estou com piedade do velho também. Ele está
cansado, sabes, por vir vindo atrás de Ti –diz Pedro, suando.
– Para se ir atrás da Perfeição, é preciso cansar-se, Simão.
O homem os acompanha, incansável, procurando estar perto das
mulheres, às quais, porém, não dirige jamais a palavra.
242.6Madalena chora silenciosamente sob seu véu.
– Não chores, Maria –conforta-a a Senhora, tomando-a pela mão–. Mais
tarde o mundo te respeitará. Os primeiros dias são os mais penosos.
– Oh! Não é por mim. Mas por Ele. Se eu tivesse que fazer-lhe mal, eu
nunca me perdoaria. Ouvistes o que o escriba disse? Eu o estou
prejudicando.
– Pobre filha! Mas, não sabes que estas palavras silvam, como outras
tantas serpentes, ao redor dele, desde quando tu nem pensavas em vir a Ele?
Disse-me Simão que o acusavam disso, desde o ano passado, por ter curado
uma leprosa, que havia sido pecadora e que Ele só viu no momento do
milagre e nunca mais, mais velha do que eu, que sou Mãe dele. Mas, não
sabes que Ele teve que fugir de Águas Belas, porque uma tua irmã infeliz
tinha ido até lá para redimir-se? Como queres que o acusem, se Ele é sem
pecado? Com mentiras. E onde encontrá-las? Na missão dele entre os
homens. Um ato bom é tomado como prova de culpa. E, qualquer coisa que
meu Filho fizesse, para eles seria sempre culpa. Se Ele se fechasse em um
deserto, ainda seria dito culpado por não cuidar do povo de Deus. Ele vai ao
meio do povo de Deus e é culpado por fazer assim. Para eles, Ele é sempre
culpado.
– Eles são odiosamente maus, então!
– Não. Eles são obstinadamente fechados à Luz. Ele, o meu Jesus, é o
Eterno Incompreendido. E sempre, sempre mais o será.
– E tu não sofres com isso? Pareces estar tão serena.
– Cala-te. É como se o meu coração estivesse enfaixado com espinhos
ardentes[20]. A cada respiração, eu sinto a ponta deles. Mas, que Ele não o
saiba! Eu me faço ver assim, para sustentá-lo com a minha serenidade. Se a
sua Mãe não o conforta, onde o meu Jesus poderá encontrar conforto?
Sobre qual seio poderá Ele inclinar sua cabeça, sem que ela fique ferida, e
receba uma ferida ou uma calunia por fazê-lo? Portanto, é muito justo que
eu, por cima dos espinhos que me laceram o coração e das lágrimas que eu
bebo nas horas de solidão, que eu ponha um macio manto de amor, ponha
um sorriso, a qualquer custo, para deixá-lo mais tranquilo, até que… até que
a onda de ódio for tal que nada mais o poderá ajudar. Nem mesmo o amor
da Mãe.
Maria está com dois fios de lágrimas, que escorrem por seu rosto
pálido.
As duas irmãs, comovidas, olham para Ela.
– Mas Ele tem a nós, que o amamos. Depois, os apóstolos… –diz Marta
para consolá-la.
– Ele vos tem, sim. E tem os apóstolos…Ainda muito aquém do que
eles lhe devem… E a minha dor é mais forte, porque eu sei que Ele sabe de
tudo…
– Então saberá Ele também que eu quero obedecer-lhe até à minha
imolação, se for preciso? –pergunta Madalena.
– Ele o sabe. Tu és para Ele uma grande alegria, em seu duro caminho.
– Oh! Mãe.
E Madalena segura a mão de Maria e a beija, emocionada.
242.7Tiberíades termina nas hortas do subúrbio. Para além delas, começa
o caminho poeirento, que vai para Caná, limitado, de um lado pelos
pomares, e do outro por uma série de prados e de campos ressecados pelo
verão.
Jesus entra por um pomar, e para à sombra de umas plantas copadas. As
mulheres o alcançam, e depois delas também o romano ofegante, que não
está aguentando mais. Ele fica um pouco afastado, não fala, mas fica
olhando.
– Enquanto descansamos, vamos comer –diz Jesus–. Lá adiante há um
poço e perto dele mora um camponês. Ide pedir-lhe água.
Lá se vão João e Tadeu. Voltam com uma moringa gotejando água,
acompanhados pelo camponês, que lhes ofereceu também figos muito
bonitos.
– Deus te recompense por tudo isso, dando-te saúde e uma boa colheita.
– Deus te proteja. Tu és o Mestre, não é?
– Eu sou.
– Vais falar aqui?
– Não há quem o deseje.
– Eu, Mestre. Mais do que a água, que é boa para quem está com sede –
grita o romano.
– Estás com sede?
– Muita. Eu vim atrás de Ti, desde a cidade.
– Não faltam em Tiberíades fontes de água pura.
– Não me entendas mal, Mestre, nem faças como se me entendesses
mal. Eu vim atrás de Ti para ouvir-te falar.
– Mas, por quê?
– Não sei por que, nem como. Foi ao ver esta mulher –(e mostra
Madalena)–. Eu não sei. Mas alguma coisa me dizia: “Este te dirá o que
ainda não sabes.” E eu vim.
– Dai ao homem água e figos. Que ele se restaure, quanto ao corpo.
– E quanto à mente?
– A mente se restaura com a Verdade.
– Foi por isso que eu vim atrás de Ti. Tenho procurado a verdade em
todos os ramos do saber. Só encontrei corrupção. Até nas melhores
doutrinas, há sempre alguma coisa não boa. Eu me aviltei, a ponto de
tornar-me um homem enojado e enojante, sem outro futuro senão a hora em
que vivo.
Jesus olha para ele fixamente, enquanto vai comendo o pão e os figos,
que os apóstolos lhe levaram.
A refeição terminou.
242.8 Jesus, permanecendo sentado, começa a falar, como se estivesse
dando uma simples lição aos seus apóstolos. O camponês também está
perto dele.
– Muitos são os que procuram a Verdade, durante toda a vida, sem
chegarem a encontrá-la. Ficam parecendo loucos, que querem ver, mesmo
tendo uma corrente de bronze sobre os olhos, e ficam apalpando e
procurando, de um modo convulsivo, e de tal maneira, que sempre vão se
afastando da Verdade, ou então a escondem, despejando sobre ela coisas
que a procura louca deles vai removendo de sua frente, ou faz sair para fora
dali. Não lhes pode acontecer senão assim, porque vão procurar a verdade
onde ela não pode estar.
Para encontrar a Verdade, é preciso unir a inteligência com o amor e
olhar as coisas, não somente com olhos sábios, mas também com olhos
bons. Porque vale mais a bondade do que a sabedoria. Aquele que ama,
sempre consegue achar um caminho para chegar à verdade.
Amar não quer dizer gozar de uma carne, ou pela carne. Isso não é
amor. É sensualidade. Amor é o afeto de um espírito a outro espírito, de
uma parte superior a outra parte superior, pelo qual na companheira não se
há de ver uma escrava, mas a geradora dos filhos, só isto, ou seja, a metade,
que forma com o homem um todo, que é capaz de criar uma vida, e mais
vidas, e até a companheira que é mãe, irmã e filha do homem, que é mais
fraco do que um recém-nascido e mais forte do que um leão, conforme os
casos, e que, como mãe, irmã, filha, é amada com um respeito confiante e
protetor. O que não é como estou dizendo, não é amor. É vício. Não leva
para o alto, mas para baixo. Não para a luz, mas para as trevas. Não para as
estrelas, mas para a lama. Amar a mulher, para saber amar ao próximo.
Amar ao próximo para saber amar a Deus.
242.9Então se terá encontrado o caminho da verdade. A Verdade está
aqui, ó homens que a estais procurando. A Verdade é Deus. A chave para
compreender o que é preciso saber está aqui.
A doutrina, que é sem defeito, é a de Deus somente. Como pode o
homem achar resposta para suas perguntas, se ele não tiver Deus para lhe
responder? Quem é que pode revelar os mistérios do universo, para falar,
por enquanto, só e simplesmente deles, senão o Criador Supremo que fez o
universo? Como compreender esse prodígio vivo que é o homem, esse ser
em que se une a perfeição animal com a perfeição imortal, que é a alma,
pela qual somos deuses, se tivermos em nós viva a alma, isto é, livre
daquelas culpas que aviltariam até um bruto, e que o homem comete e ainda
se vangloria de cometer?
Eu vos digo as palavras[21] de Jó, ó procuradores da verdade: “Interroga
os jumentos, e eles te instruirão, os passarinhos, e eles te mostrarão. Fala à
terra, e ela te responderá, aos peixes, e eles te farão saber.”
Sim, a terra, esta terra verdejante e florida, estas frutas que entumecem
nas árvores, estes passarinhos que criam seus filhotes, estas correntes de
vento, que distribuem as nuvens pelo céu, este sol que não se esquece de
nascer desde séculos e milênios, tudo fala de Deus, tudo explica Deus, tudo
revela e desvela Deus. Se a ciência não se apoia em Deus, torna-se erro, e
não mais nos eleva, mas avilta. O saber não é corrupção, mas religião.
Quem sobe por Deus, não cai, porque sente a própria dignidade e porque
crê no seu futuro eterno. Mas é preciso procurar o Deus real. Não os
fantasmas, que deuses não são, mas simplesmente delírios de homens ainda
envolvidos nas faixas da ignorância espiritual, pela qual não há nem sombra
de sabedoria em suas religiões, nem sombra de verdade em suas crenças.
242.10Qualquer idade é boa para nos tornarmos sábios. E é ainda em Jó
que está escrito[22]: “Ao chegar a tarde, te surgirá uma espécie de luz do
meio-dia e, quando pensares que estás acabado, surgirás como a estrela da
manhã. Estarás cheio de confiança pela esperança do que te aguarda.”
Basta a boa vontade de achar a verdade e, mais cedo ou mais tarde, ela
se deixará encontrar. Mas, uma vez que tenha sido achada, ai de quem não a
seguir e ficar imitando os cabeçudos de Israel que, tendo já nas mãos o fio
condutor para encontrarem a Deus, isto é, todas as coisas que de Mim foram
ditas no Livro, não querem render-se à Verdade, e a odeiam, acumulando
em suas inteligências e em seus corações os entulhos do ódio e das fórmulas
e não sabem que, por causa do peso demais, a terra se abrirá debaixo dos
pés deles, que acham que seus pés são pés de triunfadores, mas que não são
mais do que pés de escravos dos formalismos, do ódio, dos egoísmos, e que
eles serão engolidos, precipitando-se no lugar para onde vão os culpados,
conscientes de um paganismo mais culpável ainda do que o dos povos que,
por si mesmos, arranjaram para si uma religião, que lhes sirva de norma
para regularem suas vidas.
Mas é que Eu, assim como não rejeito aos que se arrependem entre os
filhos de Israel, assim também não rejeito nem mesmo a estes idólatras, que
creem naquilo que lhes foi dado para crer, mas que dentro de si, em seu
interior, gemem dizendo: “Dai-nos a Verdade!”
Tenho dito. Agora, repousemos nesta relva, se é que o homem no-lo
242.11
permite. De tarde, iremos para Caná.
– Senhor, eu Te deixo. Mas, como não quero profanar a ciência que me
deste, partirei esta tarde de Tiberíades. Deixo esta terra. retiro-me com o
meu criado para as costas da Lucânia. Lá eu tenho uma casa. Compreendo
que não podes dar mais ao velho epicurista. Mas, com o que me deste, já
tenho com que reconstruir o meu pensamento. E… Tu, ora ao teu Deus pelo
velho Crispo. O teu único ouvinte em Tiberíades. Reza, para que, antes do
estreito de Libitina, eu possa ouvir-te de novo e, com a capacidade que eu
acho poder criar em mim por tuas palavras, compreender-te melhor e
compreender a Verdade. Salve, Mestre.
Ele saúda à moda romana. Mas depois, passando por perto das
mulheres, sentadas um pouco de lado, inclina-se para Maria de Magdala, e
lhe diz:
– Obrigado, Maria. Foi bom que eu te conhecesse. Ao teu velho
companheiro de festins tu deste o tesouro que ele procurava. Se eu chegar
ao ponto em que já estás, eu o deverei a ti. Adeus.
E vai-se embora.
Madalena aperta as mãos sobre o coração, com um rosto espantado e
radiante de alegria. Depois, de joelhos, vai-se arrastando até diante de Jesus.
– Oh! Senhor! Senhor! Então, é mesmo verdade que eu posso conduzir
ao bem? Oh! Meu Senhor! Isto já é bondade demais!
E, inclinando-se com o rosto sobre a relva, beija os pés de Jesus,
lavando-os de novo com o seu pranto, agora pelo reconhecimento da grande
amorosa de Magdala.
[20] É como se o meu coração estivesse enfaixado com espinhos ardentes. Ainda entre os católicos – assim se inicia uma longa
nota de MV, escrita sobre quatro lados de uma folha dobrada e inserida em uma cópia datilografada – existem alguns que dizem
que Maria Ss., como era a Plena de Graça, conheceu apenas o gáudio enquanto não teve a herança da dor, já que este era um dos
castigos consequentes a Culpa e hereditariedade de Adão, decaído do seu estado de Graça. Eles não acharão, portanto, corretas
as palavras dessa frase de Maria, Virgem e Mãe, assim como julgarão inadmissível a sua tortura da noite de Sexta-feira Santa.
Consideram – assim prossegue a nota manuscrita de MV, da qual reportamos somente uma parte – que, como é verdade que pela
sua concepção imaculada, Maria deveria ser isenta da dor, assim como foi isenta da corrupção da morte, é ainda verdade que,
como Corredentora, Ela “deveria” sofrer, no seu coração e no seu espírito imaculado, quanto o seu Filho partiu na carne, no
coração e no espírito Ss. De fato, próprio pela plenitude de todos os dons divinos que estão nela, Ela compreende que as suas
privilegiadas e “únicas” condições de Imaculada e de Mãe de Deus foram concedidas em vista da Paixão do Redentor, e que
assim essa sua especialíssima condição de glória, segundo unicamente à infinita glória de Deus, lhe foi dada a preço do Sacrifício
do Filho de Deus e seu, do derramamento total daquele Sangue divino e da imolação daquela Carne divina que foram formados
no seu seio virginal, com seu sangue virginal, e que foram nutridos pelo seu leite virginal. Ainda este conhecimento era causa de
dor. Dor que se fundia ao gáudio, igualmente vasto e profundo como a dor. Porque com ele “que foi posto como sinal de
contradição entre os homens” (Lucas 2,34) foi causa de contraste de alegria e dor imensuráveis também pela Mulher: sua Mãe.
Ainda: sempre pela plenitude dos dons divinos que estavam nela, Maria conheceria antecipadamente ou contemporaneamente e
intelectualmente todo o complexo sofrimento do seu Filho. Sobre a alma da Imaculada, plena da Luz de Deus, se projetou sempre
a sombra dolorosa da Cruz e de todas as lutas e obstáculos que precederiam a Paixão e aflição de seu Jesus […]. Reportaremos
outros trechos da mesma nota, que todavia não a exaurem, no rodapé de 612.7, a justificação da “Angústia de Maria no Sepulcro”
e do “Lamento da Virgem”.
[21] as palavras, que estão em Jó 12,7-8.
[22] está escrito, em Jó 11,17-18.
243. Em Caná, na casa de Suzana.
As expressões, os gestos e a voz de Jesus.
Disputa entre os apóstolos sobre possessões.
4 de agosto de 1945.
243.1Na casa de Caná a festa pela chegada de Jesus é pouco menor do
que foi a das bodas do milagre. Agora faltam os músicos, não estão aqui os
convidados, a casa não está enfeitada com flores e ramos verdes, não está
com mesas para numerosos convivas nem está aí o mestre de cerimônias,
junto às credencias e às hídrias cheias de vinho. Mas tudo isso que falta é
compensado pelo amor, que agora é prestado, em sua justa forma e medida,
não propriamente ao hóspede, e talvez até um pouco parente, mas que não
deixa de ser um homem, mas ao Hóspede Mestre, do qual já se conhece a
verdadeira Natureza, cuja palavra se venera como coisa divina. Por isso, os
corações em Caná amam com todas as suas forças ao Grande Amigo, que se
fez ver com sua veste de linho, na entrada do jardim, por entre o verde da
terra e o vermelho do pôr-do-sol, embelezando todas as coisas com a sua
presença, comunicando sua paz, não somente aos espíritos, aos quais dirige
sua saudação, mas também às coisas.
Na realidade, até parece que para todas as partes, para onde ele volta os
seus olhos azuis, por lá se estende um véu de paz solene e cheia de alegria.
Pureza e paz fluem de suas pupilas, assim como flui a sabedoria de sua
boca, e o amor de seu coração.
A quem ler estas páginas parecerá impossível tudo o que eu digo. E, no
entanto, o mesmo lugar que, antes da vinda de Jesus, era um lugar comum,
ou melhor era um lugar de um intenso movimento de negócios, o que
costuma excluir aquela paz que se pressupõe livre das aflições do trabalho,
não somente, mal Ele chega, se transforma num lugar cheio de nobreza e
até o trabalho se torna uma coisa bem ordenada, que não pode excluir nele a
presença de um pensamento sobrenatural, que esteja intimamente ligado até
aos trabalhos manuais. Não sei se me explico bem.
243.2Jesus nunca está carrancudo, nem mesmo nas horas de maior
desgosto por alguma coisa que lhe acontece, mas está sempre
majestosamente exemplar e comunicando essa sua exemplaridade
sobrenatural ao próprio lugar em que Ele se move. Jesus não é nunca
folgazão, nem pedante, com o rosto desfigurado por risos imoderados, nem
com o rosto de um hipocondríaco, nem mesmo nos momentos de maior
alegria ou de maior aborrecimento.
O seu sorriso é inimitável. Nenhum pintor será capaz de o reproduzir. É
como se fosse uma luz, que emana do seu coração, uma luz radiosa, nas
horas de maior alegria por alguma alma que se redime ou por alguma outra
que se aproxima da perfeição. É um sorriso que eu diria um sorriso cor-de-
rosa, quando Ele aprova as ações espontâneas dos seus amigos e discípulos
e se alegra com a vizinhança deles. É um sorriso sempre semelhante as
cores, como o azul, um sorriso angélico, quando Ele se inclina para as
crianças, a fim de ouvi-las, a fim de ensiná-las ou abençoá-las. Um sorriso
cheio de piedade, quando Ele olha para qualquer miséria da carne ou do
espírito. Enfim, é um sorriso divino, quando Ele fala do Pai e de sua Mãe,
ou olha para esta Mãe puríssima, ou a escuta.
Não posso dizer que o tenha visto hipocondríaco, nem mesmo nas horas
de maior dor. No meio das torturas por ser traído, entre as angústias do suar
sangue, nos espasmos da Paixão e, se a tristeza faz que diminua o fulgor de
seu doce sorriso, contudo ela não é capaz de destruir aquela paz, que parece
um diadema, feito com pedras preciosas e fulgentes e posto sobre sua fronte
honrada, que é como luz a brilhar diante de sua divina Pessoa.
E assim eu não posso dizer que o tenha visto entregar-se a imoderadas
alegrias. Não fica por fora de um riso bom, quando o caso o requer, mas
retoma, logo em seguida, a sua costumeira serenidade. E, quando Ele ri,
rejuvenesce prodigiosamente, chegando a ficar com o rosto como o de um
jovem de vinte anos, e parece que o mundo também rejuvenesce com o seu
belo riso bom, sonoro e bem entoado.
Igualmente eu não posso dizer que o tenha visto fazer apressadamente
as coisas. Tanto quando Ele fala, como quando se move, Ele o faz sempre
de um modo tranquilo, ainda que nunca seja vagaroso, nem negligente.
Talvez seja porque, como Ele é alto, pode dar passos longos, sem que para
isso precise correr, para percorrer grandes distâncias, e igualmente Ele pode
alcançar, com facilidade, objetos que estão longe dele, sem precisar
levantar-se para alcançá-los. O certo é que, até em seu modo de mover-se,
Ele é senhoril e majestoso.
E sua voz? É assim: eu há dois anos que o ouço falar por alguns
momentos e, no entanto, algumas vezes perco o fio do assunto, porque eu
fico me concentrando no estudo de sua voz. E o bom Jesus, com paciência,
repete o que já disse e fica olhando para mim com o seu sorriso de Mestre
bom para não deixar que nos ditados fiquem mutilações devidas à grande
felicidade em que eu fico ao escutar a voz dele, ao saboreá-la, ao estudar o
seu tom e o seu fascínio. Mas, depois de dois anos, ainda não sei dizer
precisamente qual seu tom. Excluo absolutamente o som de baixo, como
excluo também o de tenor ligeiro. Mas estou sempre incerta sobre se é uma
poderosa voz de tenor ou a de um perfeito barítono, de uma gama vocal
muito ampla. Eu diria que é isso, porque sua voz atinge algumas vezes
notas de bronze, até quase acolchoadas, especialmente quando fala a dois
com um pecador, para levá-lo de novo à Graça, ou quando indica às turbas
os desvios humanos. Portanto, quando se trata de analisar e pôr no índice as
coisas proibidas, de descobrir as hipocrisias, o bronze se torna mais claro, e
se faz cortante como o estampido de um trovão, ao impor a Verdade e a sua
vontade, até chegar a cantar, como faz o ouro batido pelo martelo de vidro;
quando Ele se eleva cantando hinos de Misericórdia, ou para cantar as
grandezas das obras de Deus ou, então, quando envolve de amor este
timbre, para falar à Mãe ou da Mãe. Verdadeiramente, pois, está envolvida
no amor essa sua voz, em um amor reverencial de Filho e com um amor a
Deus, que louva a sua melhor obra. E este tom, ainda que menos marcado, é
o de que Ele usa para falar aos prediletos e aos convertidos e às crianças. E
não se cansa nunca, ainda mesmo no mais longo de seus discursos, porque é
uma voz que reveste e completa o pensamento e a palavra, dando-lhes
poder e doçura, à medida que for preciso.
E eu fico, às vezes, com a caneta na mão, a escutar, depois vejo que o
pensamento já foi muito para a frente e que é impossível agarrá-lo… e fico
ali… enquanto o bom Jesus não o repete, como faz quando eu tenho que
interromper, para ensinar a suportar com paciência as coisas, ou as pessoas
molestas que eu lhe faço pensar quanto elas me “molestam”, ao tirarem-me
da felicidade de estar ouvindo a Jesus.
243.3Agora, em Caná, Jesus está agradecendo a Susana pela hospitalidade
que ela deu à Aglaé. Eles estão à parte, debaixo de um viçoso suporte
carregado de cachos, que já estão amadurecendo, enquanto os outros estão
tomando uma refeição na ampla cozinha.
– A mulher era muito boa, Mestre. Ela não foi nenhum peso para nós.
Quis ajudar-me, sempre que eu ia fazer a lavação, na limpeza da casa para a
Páscoa, como se ela fosse uma criada, e trabalhou, eu te garanto, como uma
escrava para me ajudar a terminar as vestes pascais. Era prudente e se
afastava de todas as pessoas que chegavam e com o meu marido procurava
não permanecer. Pouco falava na presença da família, comia pouco.
Levantava-se antes de começar o dia para se arrumar antes que os homens
se levantassem, e eu achava já o fogo sempre aceso e a casa varrida. Mas,
quando ficávamos sozinhas, ela me perguntava sempre por Ti e me pedia
que lhe ensinasse os salmos da nossa religião. Ela dizia: “Para eu saber orar,
como ora o Mestre.” E agora, ela já parou de sofrer? Porque ela sofria
muito. De tudo tinha medo e vivia suspirando e chorando. E agora, ela está
feliz?
– Sim. Está sobrenaturalmente feliz. Está livre dos medos. Está em paz.
Eu ainda te quero agradecer pelo bem que lhe fizeste.
– Oh! Meu Senhor! Que bem foi esse? Eu não lhe dei mais do que amor
em teu nome, porque outra coisa não sei fazer. Era uma pobre irmã. Eu o
compreendia. E, por gratidão para com o Altíssimo, que me conservou em
sua graça, eu a amei.
– E tu fizeste mais do que se lhe tivesses pregado no Bel Midrash.
Agora tens aqui outra daquelas. Já a reconheceste? E quem é por aqui que
não a conhece?
– Ninguém, é verdade. Mas ainda vós não conheceis, vós e as deste
lugar, a segunda Maria, a que será sempre de sua vocação. Sempre. Eu te
peço que acredites.
– Tu o dizes. Tu sabes. Eu creio.
– Dize também: “Eu amo.” Eu sei que é mais difícil compadecer-se de
alguém e perdoar a quem cometeu uma falta, sendo dos nossos tal pessoa,
do que um outro que tem a desculpa de ser pagão. Mas, se a dor foi forte
por ver apostasias em uma família, mais forte seja a compaixão e o perdão.
Eu perdoei por todo Israel –termina Jesus, marcando bem as palavras.
– E eu perdoarei da minha parte. Porque penso que um discípulo deve
fazer o que o seu Mestre faz.
– Estás com a verdade e Deus se alegra por isso. 243.4Vamos aos outros.
A tarde está chegando. Será agradável o repouso, com o silêncio da tarde.
– Não nos dirás nada, Mestre?
– Ainda não sei.
Entram na cozinha, onde estão preparadas as comidas e as bebidas para
a próxima ceia. Susana vai para a frente, dizendo, com o leve rubor do seu
rosto juvenil:
– Querem as minhas irmãs vir comigo para a sala de cima? Devemos
preparar logo as mesas, porque precisamos arrumar as enxergas para os
homens. Eu poderia fazer isso sozinha. Mas me tomaria muito tempo.
– Eu vou também, Susana –diz a Virgem.
– Não. Bastamos nós, e servirá para nos conhecermos, porque o
trabalho nos irmana.
Elas saem juntas, enquanto Jesus, depois de ter bebido da água, tratada
com não sei qual xarope, vai sentar-se com a Mãe, com os apóstolos e os
homens da casa, ao frescor sob a sombra do suporte, deixando livres as
serventes e a patroa anciã para acabarem de preparar a comida.
243.5Ouvem-se, vindos da sala de cima, as vozes das três discípulas, que
estão preparando as mesas. Susana está contando o milagre que aconteceu
no dia do seu casamento. E Maria de Magdala responde:
– Mudar a água em vinho é sinal de ter grande poder. Mas mudar uma
pecadora em discípula é sinal de ter maior poder ainda. Queira Deus que eu
faça como aquele vinho: que eu me torne sempre melhor.
– Nem tenhas dúvida disso. Ele mudou tudo de um modo perfeito. Já
houve uma que, além de tudo, era pagã, convertida por Ele em seus
sentimentos e em sua fé. E, então, para ti, que já és de Israel, podes duvidar
que isso aconteça contigo?
– Houve uma? Era jovem?
– Era jovem. Belíssima.
– E onde está ela agora? –pergunta Marta.
– Só o Mestre sabe.
– Ah! Então é aquela de que te falei. Lázaro estava com Jesus naquela
tarde[23] e ouviu as palavras ditas por ela. Que perfume havia naquela sala!
Lázaro ficou com ele em sua roupa durante muitos dias. E, no entanto,
Jesus disse que o perfume do coração da convertida era, pelo seu
arrependimento, mais duradouro ainda. Quem sabe para onde ela terá ido?
Eu acho que foi para o deserto…
– Ela no deserto e era estrangeira. E eu aqui e sou conhecida. A
expiação dela era no deserto, e a minha consiste em viver no meio do
mundo que me conhece. Eu não invejo a sorte dela, porque estou com o
Mestre. Mas espero poder imitá-la um dia, para ficar sem nada que me
afaste dele.
– Tu o deixarias?
– Não. Mas Ele diz que irá embora. E, então, o meu espírito o
acompanhará. Com Ele eu posso desafiar o mundo. Sem Ele, eu teria medo
do mundo. Então, eu colocarei o deserto entre mim e o mundo.
– E eu e Lázaro, como faremos?
– Fareis como fizestes em vossa dor: Vós vos amareis e me amareis. E
sem ficardes envergonhados. Porque então estareis sozinhos, mas estareis
sabendo que eu estou com o Senhor. E que no Senhor eu vos amarei.
– É forte e purificada Maria, em suas decisões –comenta Pedro, que
estava ouvindo.
E Zelotes responde:
– É uma lâmina reta, como foi seu pai. De sua mãe ela herdou as
feições. Mas do pai tem o espírito indomável.
E aquela, que tem esse espírito indomável, desce agora, ágil, indo para
onde estão os companheiros, para dizer-lhes que as mesas estão prontas.
243.6A campina desaparece na noite serena, mas, por enquanto, sem luar.
Somente uma fraca claridade dos astros serve para ajudar a ver os vultos
escuros das árvores e os vultos brancos das casas. Nada mais. Alguns
pássaros noturnos estão voando com seu vôo mudo, ao redor da casa de
Susana, procurando mosquitos e passando rente às pessoas, que estão
sentadas no terraço, ao redor de uma candeia que projeta uma fraca luz
amarelenta sobre os rostos que se voltam para Jesus. Marta, que deve ter um
grande medo de morcegos, solta um grito cada vez que algum grande
morcego passa por perto dela. Jesus, por sua vez, se preocupa com as
mariposas, que a luz da candeia atrai e, com sua longa mão, procura afastá-
las da chama.
– São animais muito estúpidos, tanto estas como aqueles –diz Tomé–.
Os primeiros nos tomam por grandes mosquitos e os segundo acham que
esta chama é o sol e se queimam. Eles não têm nem a sombra de cérebro.
– São animais. Queres que eles raciocinem? –pergunta Iscariotes.
– Não. Eu quereria que eles tivessem pelo menos o instinto.
– Eles não tem tempo para tê-lo. Eu estou falando das mariposas.
Porque, depois da primeira metamorfose, são belas, mas mortas. Seu
instinto só se revela e se torna forte, depois das primeiras trabalhosas
surpresas –comenta Tiago do Alfeu.
– E os morcegos? Eles deviam ter o instinto, porque eles vivem por
alguns anos. Eles são estúpidos, é isto –rebate Tomé.
– Não, Tomé. Não são mais estúpidos do que os homens. Também os
homens se parecem com morcegos estúpidos, muitas vezes. Eles voam, ou
melhor, esvoaçam, como bêbados, ao redor de coisas que não servem senão
para fazer sofrer. 243.7Eis aqui: meu irmão, com uma boa sacudida do seu
capote, já derrubou um. Dá-me –diz Jesus.
Tiago de Zebedeu, a cujos pés caiu o morcego que agora, espavorido,
agita-se pelo chão e movendo-se com dificuldade, pega-o com dois dedos
por uma de suas asas membranosas e, segurando-o pendurado, como se
fosse um trapo sujo, o coloca no colo de Jesus.
– Aqui está o imprudente. Deixemo-lo aqui e vereis que ele se recobra,
mas não se corrige.
– É um salvamento inútil, Mestre. Eu acabaria de matá-lo –diz
Iscariotes.
– Não. Por quê? Ele também tem uma vida e a defende –responde-lhe
Jesus.
– Não me parece. Ou ele não sabe que a tem ou, então, não a defende.
Pois ele a põe em perigo!
– Oh! Judas! Judas! Como serias severo com os pecadores, com os
homens! Porque os homens sabem que têm esta vida e uma outra vida e não
têm dúvidas em colocar em perigo tanto uma quanto a outra.
– Temos, então, duas vidas?
– A do corpo e a da alma, tu sabes disso.
– Ah! Eu pensei que te estivesses referindo às reencarnações. Alguns
creem nelas.
– Não existe reencarnação. Mas há duas vidas. No entanto, o homem
põe em perigo todas as suas duas vidas. Se tu fosses Deus, como é que
julgarias os homens, que são dotados de razão, além do instinto?
– Julgaria severamente. A menos que fosse algum mentecapto.
– Não levarias em conta as circunstâncias, que tornam alguns
moralmente loucos?
– Eu não as levaria em conta.
– Assim sendo, de alguém que conhece a Deus e a Lei e, no entanto
peca, dele não terias piedade?
– Não teria piedade. Porque o homem deve dominar-se.
– Deveria.
– Deve, Mestre. É uma vergonha imperdoável que um adulto caia em
certos pecados, especialmente e ainda mais, se não tiver sido obrigado por
alguma força.
– A que pecados te referes?
– Aos da sensualidade, em primeiro lugar. É uma degradação que não
tem remédio…
Maria de Magdala inclina a cabeça… E Judas continua:
– E um modo de corromper os outros também, porque do corpo dos
impuros sai como que fermento, que perturba até os puros e os leva a imitá-
los…
243.8Enquanto Madalena vai inclinando cada vez mais a cabeça, Pedro
diz:
– Oh! Devagar! Não sejas tão severo! A primeira a cometer esta
imperdoável vergonha foi Eva. E não me queiras dizer que ela foi
corrompida por algum fermento impuro saído de algum luxurioso. No
entanto, tu sabes que, por minha conta, nada se agita, mesmo se sento ao
lado de um luxurioso. Isso é lá com eles…
– A vizinhança suja sempre a gente. Se não a carne, a alma, o que é pior
ainda.
– Tu me pareces um fariseu! Mas, desculpa-me: se for assim, será
preciso que nos fechemos dentro de uma torre de cristal e lá fiquemos
lacrados.
– E fica certo, Simão, de que isso em nada te ajudaria. Na solidão, as
tentações são muito mais terríveis –diz Zelotes.
– Oh! Ainda bem. Ficaria tudo só em sonhos. Nada mal –responde
Pedro.
– Nada mal? Mas não sabes que a tentação leva-nos ao pensamento e
este à procura de algum meio para satisfazer, de algum modo, ao instinto
que grita e que esse meio termo prepara o caminho para um refinamento no
pecado, no qual se une a sensualidade com o pensamento? –interroga
Iscariotes.
– Não entendo nada disso, caro Judas, talvez porque eu nunca me tenha
entregue a certos pensamentos, como tu dizes, sobre certas coisas. Só sei
que, pelo que me parece, sempre estivemos bem longe dos morcegos e que
é bom que tu não sejas Deus. Se assim não fosse, tu ficarias sozinho no
Paraíso com toda a tua severidade. 243.9Que dizes a isso, Mestre?
– Eu digo que é bom não sermos muito incondicionais, porque os anjos
do Senhor ouvem as palavras dos homens e as registram nos livros eternos.
Poderia ser desagradável, para algum de vós, ouvir que se lhe diz: “Que te
seja feito conforme julgaste.” Eu digo que, se Deus me mandou, é porque
Ele quer perdoar todas as culpas de que o homem se arrepende, sabendo
como ele é fraco por causa de satanás. Judas, responde-me: admites que
satanás pode apoderar-se de uma alma, a ponto de exercer sobre ela uma
coerção tal que diminua o pecado dela aos olhos de Deus?
– Não admito isso: satanás só pode atacar a parte inferior do homem.
– Mas, tu estás blasfemando, Judas de Simão! –dizem quase juntos
Zelotes e Bartolomeu.
– Por quê? Em quê?
– Desmentindo a Deus e ao Livro. Neste se lê[24] que Lúcifer atacou até
a parte superior e Deus, por boca do seu Verbo, já o disse infinitas vezes –
responde Bartolomeu.
– Foi dito também que o homem tem o livre arbítrio. Isto significa que
sobre a liberdade humana de pensar e de sentir, satanás não pode fazer
violência. Nem Deus a faz.
– Deus não, porque é Ordem e Lealdade. Mas satanás, sim, porque ele é
a Desordem e o ódio –replica Zelotes.
– O Ódio não é o sentimento oposto à Lealdade. Dizes mal.
– Digo bem, porque só Deus é Lealdade, e, por isso, não falta à palavra
dada, para deixar o homem livre em suas ações. O demônio não pode
mentir a esta palavra, pois não prometeu ao homem liberdade de arbítrio.
Mas também é verdade que isso é Ódio, e ele se arremessa entre Deus e o
homem, e assim se arremessa, indo contra a faculdade intelectiva do
homem e contra a carne dele, levando para a escravidão essa liberdade a
homens que por ele, fazem coisas que, se eles estivessem livres de satanás,
não fariam –afirma Simão, Zelotes.
– Eu não admito isso.
– Mas, e então os endemoninhados? Tu negas a evidência –grita Judas
Tadeu.
– Os endemoninhados são surdos, ou mudos ou loucos. Mas não
luxuriosos.
– Tens somente este vício em tua lembrança? –pergunta, irônico, Tomé.
– Porque é o mais espalhado e o mais baixo.
– Ah! Eu pensava que fosse o que conhecias melhor –diz Tomé, rindo.
Mas o outro se põe de pé, de repente, como se quisesse reagir. Depois,
ele se domina e desce a escadinha, afastando-se e indo através dos campos.
243.10Um silêncio… Depois, André diz:
– A ideia dele não está totalmente errada. Dir-se-ia que satanás, de fato,
domina seus possessos somente nos sentidos corporais: os olhos, os
ouvidos, a fala e o cérebro. Mas, então, Mestre, como se explicam certas
maldades? Por acaso, não são elas possessões? Por exemplo, o caso de
Doras?…
– O caso de Doras, como dizes, para não faltar à caridade com ninguém,
e Deus por isso te dê a recompensa, como o caso de Maria, como todos e
ela em primeiro lugar, pensemos, depois nas alusões claras e contra
caridade feitas por Judas, são os casos dos possuídos mais completamente
por satanás, que estende o seu poder sobre os três graus do homem. As
possessões mais tirânicas e sutis, das quais se livram somente aqueles que
estão tão pouco degradados no espírito, que ainda sabem compreender os
convites da Luz. Doras não foi um luxurioso. Mas, mesmo assim, não soube
ir ao Libertador. Aí está a diferença. Porque, enquanto nos lunáticos, nos
mudos, nos surdos ou nos cegos, por obra do demônio, os parentes
procuram e pensam em trazê-los a Mim, nesses outros, possuídos em seus
espíritos é somente o espírito deles que trata de procurar a liberdade. Por
isso, esses são perdoados além de serem libertados. Porque a vontade deles
é que iniciou a possessão pelo Demônio. E agora vamos descansar. Maria,
tu que sabes que é estar presa, reza por aqueles que se oferecem
intermitentemente ao Inimigo, fazendo pecado e causando dor.
– Sim, meu Mestre. E sem rancor.
– A paz esteja com todos. Deixemos aqui a causa de tão grande
discussão. Que a Treva esteja com a treva lá fora, na noite. E nós, entremos
de novo, para dormirmos sob o olhar dos anjos.
E Jesus põe no chão o morcego, que faz as primeiras tentativas abaixo
de um banco. Depois Jesus se retira com os apóstolos para o salão de cima,
enquanto as mulheres, com os donos da casa, descem para o térreo.
[23] naquela tarde, em 200.7.
[24] se lê, interpretando o texto do Gênesis 3,1-15; Foi dito também, em Siraque 15,14 e, implicitamente, em qualquer lugar que
se fale de livre escolha entre bem e mal, a começar por nos remeter anteriormente ao livro do Gênesis.
244. João repete o discurso de Jesus sobre a
criação
e sobre os povos que esperam a Luz.
5 de agosto de 1945
244.1Todos estão subindo por atalhos sombreados, que vão para Nazaré.
Os declives das colinas Galileias parecem ter sido criados nesta manhã, pois
a última tempestade os lavou e o orvalho os conserva cheios de luz e
frescor, brilhando todos ao primeiro sol. O ar está tão puro, que nos permite
ver todos os pormenores dos montes mais ou menos próximos e nos dá uma
sensação de leveza e boa disposição.
Quando se chega ao lado de uma colina, nossos olhos se divertem,
diante de uma vista do lago muito bonita à luz desta manhã. Todos
admiram, fazendo como Jesus. Mas Maria Madalena logo vira o olhar
daquele para outro ponto, procurando alguma coisa em outra direção. Seus
olhos vão pousar sobre os vértices das montanhas, que estão a noroeste do
ponto em que ela se acha, mas parece não ter achado o que desejava.
Susana, que também está presente, lhe pergunta:
– Que estás procurando?
– Eu quereria reconhecer o monte onde encontrei[25] o Mestre.
– Pergunta a Ele.
– Oh! Não vale a pena que eu o perturbe. Ela está agora falando
justamente com Judas de Keriot.
– Que homem, aquele Judas! –sussurra Susana.
Ela não diz mais nada, mas o resto se entende.
– Aquele monte, certamente não está perto desta estrada. Mas uma vez
eu te levarei até lá, Marta! Era uma manhã como esta, com tantas flores…
Havia muita gente… Oh! Marta! E eu tive coragem de mostrar-me a todos
com esta veste de pecado e com aqueles amigos… Não. Não podes ficar
ofendida pelas palavras de Judas. Elas são por mim merecidas. Tudo aquilo
eu mereci. E neste sofrimento está a minha expiação. Todos se lembram,
todos têm o direto de dizer-me a verdade. E eu devo calar-me. Oh! Se as
pessoas pensassem antes de pecar. Quem me ofende agora é o maior amigo,
porque ele me ajuda a expiar.
– Mas isto não quer dizer que ele não tenha cometido uma falta. Mãe,
teu filho está mesmo contente com este homem?
– É preciso rezar muito por ele. Assim diz ele.
244.2João deixa os apóstolos para ir ajudar as mulheres em uma
passagem escabrosa, sobre a qual as sandálias deslizam e principalmente
porque o caminho tem muitas pedras lisas espalhadas, parecendo escamas
de ardósia avermelhada e uma ervinha clara e dura, coisas essas que são
muito traiçoeiras para os pés, que nelas não encontram firmeza. Zelotes faz
como João e, arrimando-se a eles dois, as mulheres conseguem ultrapassar
aquele ponto difícil.
– É um pouco cansativo este caminho. Mas não tem poeira e a multidão.
Além disso, é mais curto –diz Zelotes.
– Eu o conheço, Simão –diz Maria–. Eu fui àquele pequeno povoado,
que está a meia encosta, com os meus sobrinhos, quando Jesus foi expulso
de Nazaré –diz Maria Santíssima e suspira.
– Mas, visto daqui, o mundo é belo. Lá estão o Tabor e o Hermon, e no
norte os montes de Arbela e, mais longe, o grande Hermon. É pena que não
se veja daqui o mar, como se vê do Tabor –diz João.
– Estiveste lá?
– Sim, com o Mestre.
– João, com seu amor pelo infinito, nos obteve uma grande alegria,
porque Jesus, lá no alto, falou de Deus com um arrebatamento nunca antes
ouvido. Depois, quando já tínhamos obtido tudo isso, ainda obtivemos uma
grande conversão. Tu também o ficarás conhecendo, Maria. E o teu espírito
se sentirá fortalecido, ainda mais do que já estiver. Encontramos um homem
endurecido no ódio, embrutecido pelos remorsos, e Jesus fez dele alguém,
que eu não hesito em dizer que será um grande discípulo. Como tu, Maria.
244.3Porque, podes crer é também verdade o que eu te digo, nós pecadores
somos os mais dispostos a ceder ao Bem, que nos atrai, porque sentimos a
necessidade de ser perdoados até por nós mesmos –diz Zelotes.
– É verdade. Mas tu és muito bom, quando dizes “nós pecadores.” Tu
podes ter sido um infeliz, mas não um pecador.
– Todos nós somos, uns mais outros menos, e quem pensa que o é
menos está mais sujeito a tornar-se pecador, se é que ainda não o é. Todos
nós somos. Mas os maiores pecadores, que se convertem, são os que sabem
ser sem limites no Bem, como o foram no mal.
– O teu conforto me alivia. Sempre foste um pai para os filhos de
Teófilo, tu mesmo.
– E, como um pai, eu me alegro por ver-vos, os três, como amigos de
Jesus.
– Onde foi que encontrastes aquele discípulo, grande pecador?
– Foi em Endor, Maria. Simão quer atribuir ao meu desejo de ver o mar
o merecimento por muitas coisas belas e boas. Mas, se João, o ancião, veio
até Jesus, não foi por merecimento de João, o estulto. Foi por merecimento
de Judas de Simão –diz sorrindo o filho de Zebedeu.
– Foi ele quem o converteu? pergunta duvidosa, Marta.
– Não. Mas foi ele que quis que fôssemos a Endor e…
– Sim. Para vermos a caverna da maga… É um homem muito esquisito,
Judas de Simão… Precisa-se aceitá-lo como é… E João de Endor foi quem
nos guiou até a caverna, e depois ficou conosco. Mas, meu filho, o
merecimento será sempre teu, porque sem aquele teu desejo de infinito, não
teríamos tomado aquele caminho, nem teria vindo a Judas de Simão o
desejo de ir àquela estranha busca.
244.4– Eu gostaria de saber o que foi que Jesus disse no alto do
Tabor[26]…
como eu gostaria de reconhecer o monte onde o vi –suspira Maria
Madalena.
– O monte é aquele sobre o qual parece estar-se acendendo agora o sol,
por causa daquela pequena lagoa, usada pelos rebanhos e que recolhe as
águas das nascentes. Nós estávamos mais acima, no ponto em que o cume
parece rachado por alguma gigantesca picareta, que tivesse querido pôr em
fila as nuvens e encaminhá-las para outros lugares. Quanto às palavras que
Jesus disse, eu creio que João te poderá dizer.
– Oh! Simão! Quando é que um rapaz vai poder repetir as palavras de
Deus?
– Um rapaz, não. Mas tu, sim. Experimenta. Por consideração para com
tuas irmãs e para comigo, que te quero bem.
244.5João fica muito vermelho, quando começa a repetir o discurso de
Jesus.
– E Ele disse: “Eis a página infinita sobre a qual as águas correntes vêm
escrever a palavra ‘Creio’. Pensai no caos do Universo, antes que o Criador
quisesse ordenar os elementos e estabelecer entre eles a maravilhosa
sociedade que deu aos homens a terra e tudo o que ela contém, e ao
firmamento os astros e os planetas. Nada de tudo isso existia antes. Nem
como um caos informe, nem como coisa já feita em ordem. E Deus a fez.
Portanto, Ele fez primeiro os elementos. Pois eles são necessários, ainda
que às vezes nos pareçam nocivos.
Mas pensai bem e sempre. Não há nenhuma pequena gota de orvalho
que não tenha a sua boa razão de ser. Não há inseto, por pequeno e molesto
que seja, que não tenha sua boa razão de ser. E assim também não existe
montanha, por mais monstruosa que seja, vomitando de suas vísceras fogo e
pedras incandescentes, que não tenha sua boa razão de ser. Não existe
ciclone sem motivo. E não há, passando das coisas para as pessoas, não há
acontecimento, não há pranto, não há alegria, não há nascimento, não há
morte, não há esterilidade ou maternidade fecunda não há longo convívio
nem rápida viuvez, não há desventuras de misérias e doenças, como
também não há prosperidade de meios e de saúde, que não tenha a sua boa
razão de ser, ainda que assim não pareça à miopia e soberba do homem, que
vê e julga com todas as suas cataratas e com todas as névoas que
acompanham as coisas imperfeitas. Mas o Olho de Deus, mas o Pensamento
sem limitações de Deus, vê e sabe. O segredo para se viver imunes dessas
dúvidas estéreis, que nos fazem ficar nervosos e nos exaurem, que
envenenam os nossos dias na terra, está em saber crer que Deus tudo faz por
amor e não na estulta intenção de atormentar por atormentar.
244.6Deus havia criado os anjos. E uma parte deles, por não terem
querido acreditar que já estava bom o nível de glória em que Deus os havia
colocado, se haviam rebelado e, com seus espíritos queimados pela falta de
fé em seu Senhor, haviam tentado assaltar o trono inacessível de Deus. Às
harmoniosas razões dos anjos que tinham fé, eles haviam oposto a sua
discordância, o seu pensamento injusto e pessimista, e esse pessimismo, que
é falta de fé, os tinha transformado de espíritos de luz, como haviam sido
feitos, em espíritos das trevas.
Vivam para sempre aqueles que, no Céu como na terra, sabem
fundamentar seus pensamentos em um pressuposto cheio de luz. Nunca se
enganarão completamente, ainda que os fatos os estivessem desmentindo.
Não se enganarão, pelo menos no que se refere aos seus espíritos, os quais
continuarão a crer, a esperar, a amar acima de tudo a Deus e depois ao
próximo, permanecendo por isso com Deus pelos séculos dos séculos.
O Paraíso já tinha ficado libertado desses orgulhosos pessimistas, os
quais viam como escuras até as mais luminosas obras de Deus, assim como
na terra os pessimistas veem escuras até as ações mais sinceras e brilhantes
do homem, ou por quererem viver separados em uma torre de marfim, ou
por se crerem os únicos perfeitos, eles se auto-condenam a uma prisão
escura, que termina nas trevas do reino inferior, o reino da negação. Porque
o pessimismo é negação
244.7Deus, pois, fez o conjunto dos seres criados. E, como, para
compreender o mistério glorioso de Nosso Ser Uno e Trino, é necessário
saber crer e ver que, desde o princípio, o Verbo existia, e estava junto de
Deus, unidos pelo Amor perfeitíssimo, que só podem expandir dois, que são
Deus sendo Um, assim igualmente para se ver o conjunto dos seres criados
como ele é, é necessário olhá-lo com os olhos da fé, porque no seu ser,
assim como um filho traz em si o indelével reflexo do pai, assim o conjunto
dos seres criados tem em si o indelével reflexo do seu Criador. Veremos,
então, que também aqui, no princípio foi o céu e a terra, depois foi a luz,
comparável ao amor. Porque a luz é alegria, como o é também o amor. E a
luz é a atmosfera do Paraíso. E o Ser incorpóreo, que é Deus, é Luz, e é o
Pai de toda luz intelectiva, afetiva, material, espiritual, assim no céu, como
na terra.
No princípio foi o céu e a terra, e por eles foi dada a luz, e pela luz
todas as coisas foram feitas. E, como no Céu altíssimo foram separados os
espíritos de luz dos espíritos das trevas, assim, no conjunto dos seres
criados, foram separadas as trevas da luz, e foram feitos o dia e a noite e o
primeiro dia, conjunto dos seres criados, foi, com sua manhã e sua tarde,
com seu meio-dia e sua meia-noite. E, quando o sorriso de Deus, a luz,
voltou depois da noite, eis que a mão de Deus, a sua poderosa vontade, se
estendeu sobre a terra informe e vazia, se estendeu por sobre o céu, onde
vagavam as águas, um dos elementos já libertados do caos, e quis que o
firmamento separasse o vaguear desordenado das águas entre o céu e a
terra, para que houvesse um véu aos fulgores do paraíso, medida às águas
superiores, para que sobre a agitação dos metais e dos átomos, não caíssem
dilúvios sobre a terra, arrancando e desregrando as coisas que Deus reunia.
A ordem estava estabelecida no céu. E a ordem se fez sobre a terra, pela
ordem que Deus deu às águas espalhadas pela terra. E o mar se fez. Ei-lo.
Sobre ele, como sobre o firmamento, está escrito: ‘Deus existe.’ Seja qual
for a intelectualidade de um homem e a sua fé ou a sua falta de fé, diante
desta página, na qual brilha uma partícula do infinito que é Deus, na qual
está testemunhado o seu poder — porque nenhum poder humano e nenhum
assentamento natural de elementos podem repetir, nem mesmo na menor
medida, um prodígio igual, — o homem é obrigado a crer. A crer não só no
poder, mas na bondade do Senhor, que por este mar dá alimento e estradas
ao homem, dá sais salutíferos, dá moderação para o sol e espaço para os
ventos, dá sementes à terra, uma distante da outra, dá vozes às tempestades,
para que eles chamem de novo essa formiga, que é o homem em
comparação com o infinito que é o seu Pai, e dá-lhe meios para elevar-se,
contemplando mais altas visões, em mais altas esferas.
244.8Três são as coisas que mais falam de Deus na criação que é toda
testemunho dele: A luz, o firmamento e o mar. A ordem astral e
meteorológicas, reflexo da ordem divina; a luz, que só um Deus podia
fazer; o mar, a potência que só Deus, depois de tê-lo criado, podia pôr
dentro de firme limites, dando-lhe movimento e voz, sem que por isso,
como um turbulento elemento de desordem, ele cause prejuízo à terra, que o
suporta em sua superfície.
Penetrai o mistério da luz, que nunca se consome. Levantai o olha-r
para o firmamento, onde estão rindo as estrelas e os planetas. Abaixai o
vosso olhar para o mar. Vede-o como ele é. Não há separação. Mas há uma
ponte entre os povos que estão em outras praias, invisíveis, até
desconhecidas, mas que é necessário crer que existem, só porque são deste
mar. Deus não faz nada inútil. Por isso Ele não teria feito essa infinidade, se
ela não tivesse como limite lá, para lá do horizonte, que nos impede de ver,
outras terras, povoadas por outros homens, vindas todas de um único Deus,
levadas para lá por vontade de Deus, para povoarem continentes e regiões,
levadas por tempestades e correntes marítimas. E esse mar leva em suas
ondas, nas vozes de suas águas e de suas marés, apelos que vêm de longe.
Existem caminhos, não separações.
A ânsia que produz uma doce angústia em João é este apelo dos irmãos
longínquos. Quanto mais o espírito se torna dominador da carne, tanto mais
ele é capaz de ouvir as vozes dos espíritos que estão unidos, mesmo quando
divididos, assim com os ramos que brotaram de uma única raiz estão
unidos, mesmo quando um não vê o outro, porque algum obstáculo se
interpõe entre eles.
Olhai o mar com olhos de luz. Nele cevareis terras e terras, espalhadas
ao longo das praias, dentro de seus limites e pelo interior, terras e mais
terras ainda, e de todas vem este grito: ‘Vinde! Trazei-nos a luz que vós
possuís. Trazei-nos a vida que vos é dada. Dizei ao nosso coração a palavra,
que nós ignoramos, mas que sabemos que é a base do universo: o amor.
Ensinai-nos a ler a palavra que vemos traçada sobre as páginas infinitas do
firmamento e do mar: Deus. Iluminai-nos para que vejamos que uma luz
viva é mais e mais verdadeira ainda do que aquela que avermelha os céus e
enche de pedras preciosas o mar. Dai às nossas trevas a Luz que Deus vos
deu, depois de tê-la gerado com o seu amor, e a deu a vós, mas para todos,
assim como a deu aos outros, mas para que eles a dessem à terra. Vós sois
os astros, nós a poeira. Mas, formai-vos assim como o Criador com o pó da
terra formou o homem para que a povoasse, adorando-o agora e sempre, até
que chegue a hora em que não existirá mais a terra, mas venha o Reino. O
Reino da luz, do amor, da paz, assim como a vós o Deus vivo disse que
virá, porque nós também somos filhos deste Deus e pedimos para conhecer
o nosso Pai.’
E, por caminhos do infinito, aprendei a andar. Sem temores e sem
desprezos. Indo ao encontro dos que clamam e choram. Indo àqueles que
vos causarão até tristeza, porque sentem Deus, mas não sabem adorar a
Deus, e que, no entanto, vos darão glória, porque vós sereis grandes e,
quanto mais possuirdes o amor, mais o sabereis dar, levando à verdade os
povos que vos esperam.”
244.9 Jesus falou assim, muito melhor do que eu disse. Mas pelo menos
esse é o seu conceito.
– João, tu fizeste uma repetição exata do Mestre. Só deixaste o que Ele
disse sobre o teu poder de compreender a Deus, pela tua generosidade de
doar-te. Tu és bom, João. És o melhor entre nós, Fizemos a viagem, sem
dar-nos conta disso. Lá está Nazaré sobre suas colinas. O Mestre está
olhando para nós e sorrindo. Unamo-nos a Ele para entrarmos juntos na
cidade.
– João –diz a Virgem Maria–. Deste um grande presente à Maria.
– Eu também. À pobre Maria, você abriu horizontes infinitos…
– De que é que estavam falando tanto? –pergunta Jesus aos que estão
chegando.
– João repetiu o teu discurso no Tabor. De um modo perfeito. E nós
ficamos felizes.
– Fico contente que a Mãe tenha ouvido, Ela que traz um nome, ao qual
o mar não é estranho, e possui uma caridade vasta como o mar!
– Meu Filho, Tu a possuis como homem, e isso ainda não é nada, em
comparação com a tua infinita caridade de Verbo de Deus. Meu doce Jesus!
– Vem, minha Mãe, para o meu lado. Como quando voltávamos de
Caná ou de Jerusalém, quando Eu era menino, e tu me seguravas pela mão.
E olham-se com olhares de amor.
[25] onde encontrei, em 174.11/14.
[26] no alto do Tabor… A obra não nos mostrou quando pararam sobre o monte, mas somente a ida (em 187.5) e o seu retorno
(em 188.1).
245. Uma acusação dos nazarenos a Jesus,
afastada com a parábola do leproso curado.
6 de agosto de 1945.
245.1A primeira parada que Jesus faz em Nazaré é na casa de Alfeu. Está
para entrar na horta, quando se encontra com Maria de Alfeu, que está
saindo com duas ânforas de cobre para ir à fonte.
– A paz esteja contigo, Maria! –diz Jesus, e abraça a parenta que,
expansiva como sempre, o beija com um grito de alegria.
– Vai ser certamente este um dia de paz e de alegria, meu Jesus, porque
Tu vieste! Oh! filhos meus caríssimos! Que felicidade a minha em ver-vos,
que felicidade para a vossa mãe –e beija afetuosamente os seus filhos, que
estavam logo atrás de Jesus–. Ficais comigo hoje, não é verdade? Eu já
estou com o forno aceso para os pães. E ia indo apanhar água, para não ter
que interromper a cozedura do pão.
– Mamãe, nós vamos buscar –dizem os filhos, tomando conta das
ânforas.
– Como eles são bons, não é verdade, Jesus?
– Muito bons, confirma Jesus.
– Mas, são bons também para contigo, não é verdade? Porque, se eles
tivessem que amar-te menos do que a mim, seriam para mim menos
queridos.
– Não tenhas medo, Maria. Eles só me dão alegria.
– Estás sozinho? Maria foi-se embora assim de repente… Eu também
teria ido lá. Ela estava com uma mulher… É uma discípula?
– Sim. A irmã da Marta.
– Oh! Que Deus seja bendito por isso! Tanto que eu rezei para isso!
Onde está ela?
– Ei-la que vem vindo aí, com minha Mãe, Marta e Susana.
De fato, as mulheres estavam dando uma volta pela rua, acompanhadas
pelos apóstolos. Maria de Alfeu corre ao encontro delas, e exclama:
– Como eu me sinto feliz, por ter-te como irmã! Eu deveria chamar-te
“minha filha”, porque tu és jovem, e eu já estou velha. Mas eu te chamo
com o nome para mim tão querido, desde quando eu assim chamo à minha
Maria. Querida. Vem. Deves estar cansada… Mas certamente também tu
estás feliz –e beija Madalena, segurando-a depois pela mão, como para
fazê-la compreender, ainda mais, quanto lhe quer bem.
A beleza viçosa da Madalena fica posta ainda mais em destaque, ao
lado da figura emagrecida de Maria de Alfeu.
– Hoje, todos na minha casa. Eu Não vos deixo ir embora.
E, com um suspiro profundo, que lhe vem involuntariamente, escapa-
lhe também esta confissão:
– Eu estou sempre tão sozinha! Quando não está aqui a minha cunhada,
passo os dias bem triste e solitária.
– Estão ausentes os teus filhos? –pergunta Marta.
Maria de Alfeu fica ruborizada, e suspira:
– Com suas almas, sim. Ainda. Ser discípulos une e separa. Mas, assim
como tu vieste, Maria, também eles virão –e enxuga uma lágrima.
Olha depois para Jesus, que a observa com piedade e se esforça para
sorrir e perguntar:
– São assuntos longos, não é verdade?
– Sim, Maria. Mas tu os verás.
– Eu esperava… Depois que Simão… Mas depois ficou sabendo de
outras coisas e ele voltou a ficar hesitante. Ama-o igualmente, Jesus!
– E, podes pôr isto em dúvida?
Maria, enquanto fala, prepara a refeição para os peregrinos, sem dar
ouvidos a todos os que lhe estão dizendo que não é preciso nada daquilo.
– Deixemos as discípulas em paz, diz Jesus, e termina: E vamos andar
pela cidade.
– Tu te vais? Será que não virão os outros filhos?
– Amanhã Eu fico o dia inteiro aqui. E assim estaremos juntos. Agora
vamos ver os amigos. A paz esteja convosco, mulheres. Adeus, minha Mãe.
245.2Nazaré já está alvoroçada pela chegada de Jesus e, com aquele
apêndice, que é Maria de Magdala. Uns se precipitam sobre a casa de Maria
de Alfeu, outros sobre a de Jesus para o verem, mas, tendo encontrado
fechada esta última, voltam todos para Jesus, que lá vai atravessando
Nazaré, indo para o centro da cidade. Esta tem sido sempre fechada ao
Mestre. Uma parte irônica, outra parte incrédula, alguns grupos com
evidente maldade se distinguem por suas palavras ofensivas e o vão
acompanhando por curiosidade, mas sem amor, ao seu grande Filho, que
Nazaré não compreende. Até nas perguntas que lhe dirigem não há amor,
mas incredulidade e zombaria. Ele, porém, não dá sinal de se importar com
aquilo, mas com doçura e mansidão vai respondendo a quem lhe fala.
– Dás a todos, mas pareces um filho sem vínculos com a tua pátria, pois
a ela não dás.
– Estou aqui para dar o que pedirdes.
– Mas gostas mais de não ficar aqui. Seremos nós mais pecadores do
que os outros?
– Não existe pecador, por mais que o seja, que Eu não queira converter.
E vós não sois mais pecadores do que os outros.
– Mas nem Tu estás dizendo que somos melhores do que os outros. Um
bom filho sempre diz que sua mãe é melhor do que as outras, mesmo se ela
não for. Será que Nazaré é tua madrasta?
– Eu não digo nada. Calar-nos é regra de caridade para com os outros e
para conosco mesmos, quando não se pode dizer que alguém é bom, e
quando não se quer mentir. Mas meu louvor a vós estaria prestes a brotar de
meus lábios, contanto que viésseis ouvir minha doutrina.
– Então, queres ser admirado?
– Não. Somente quero ser ouvido e acreditado, para o bem de vossas
almas.
– Então, fala! E Te ouviremos!
– Dizei-me sobre o que é que devo falar.
Um homem, de seus quarenta e cinco anos, diz:
– Aí está! Eu gostaria que Tu entrasses em minha casa e me explicasses
um ponto.
– Eu já vou lá, Levi.
E vão para a sinagoga, enquanto o povo se aglomera atrás do Mestre e
do sinagogo, enchendo logo completamente a sinagoga.
[27]:
245.3O sinagogo pega um rolo e lê
– “Ele fez subir a filha do Faraó da cidade de Davi para a casa que
havia feito para ela, porque dizia: ‘A minha mulher não deve morar na casa
de Davi, rei de Israel, pois ela foi santificada, quando nela entrou a arca do
Senhor’.” É isso aí. Eu quereria saber de Ti como é que julgas: se aquela
medida foi justa, ou não, e por quê?
– Sem dúvida, ela foi justa, porque o respeito à casa de Davi,
santificada porque nela havia entrado a arca do Senhor, assim o exigia.
– Mas, sendo ela mulher de Salomão, isso não tornava a filha de Faraó
digna de viver na casa de Davi? A mulher não se torna, segundo a palavra
de Adão, “osso dos ossos” do marido e “carne de sua carne”? Se assim é,
como há de poder profanar, se não profana o seu esposo?
– Foi dito[28] no primeiro livro de Esdras: “Vós pecastes, desposando
mulheres estrangeiras, e acrescentando mais este delito aos outros muitos de
Israel.” E uma das causas da idolatria de Salomão se deve justamente a
esses conúbios com mulheres estrangeiras. Deus havia dito: “Elas, as
estrangeiras, perverterão os vossos corações, até fazer-vos acompanhar os
estrangeiros.” E as consequências disso nós as conhecemos.
– Mas, no entanto, ele não se perverteu por ter desposado a filha do
Faraó, já que chegou até a julgar com sabedoria que ela não devia ficar na
casa santificada.
– A bondade de Deus não pode ser medida pela nossa. O homem,
depois de uma culpa, não perdoa, ainda que ele mesmo seja sempre o mais
culpado. Deus não é inexorável, depois de uma primeira culpa. Contudo,
não permite que impunemente o homem se endureça no mesmo pecado. Por
isso, Deus não o pune na primeira queda, e aí lhe fala ao coração. Mas
pune, quando a sua bondade não é aproveitada para converter-se, mas é
considerada pelo homem como uma fraqueza. Aí é que desce sobre o
homem a punição, porque de Deus não se zomba. Osso de seus ossos, carne
de sua carne, a filha do Faraó havia colocado as primeiras sementes da
corrupção no coração do Sábio, e vós sabeis que uma doença se manifesta,
não enquanto só há um germe no sangue, mas quando o sangue já está
corrompido por muitos germes, que se multiplicam, a partir daquele
primeiro. A queda do homem para baixo sempre tem seu começo em
alguma leviandade, que aparentemente era inócua. Depois disso, a
condescendência com o mal vai aumentando. Forma-se o hábito de deixar a
consciência transigir, de descuidar-se dos deveres e da obediência a Deus, e,
pouco a pouco, se chega aos grandes pecados, como Salomão chegou até à
idolatria, provocando o cisma, cujas consequências perduram até hoje.
245.4– Então, Tu dizes que se há de dar a maior atenção e prestar o maior
respeito às coisas consagradas?
– Sem dúvida.
– Explica-nos, pois, mais isso. Tu te dizes a Verdade de Deus. É
verdade?
– Eu o sou. Ele me mandou vir trazer à terra a boa nova a todos os
homens, e para que Eu os redima de todo pecado.
– Tu, pois, se o és, és mais do que a Arca. Porque não na glória que se
vê sobre a Arca, mas em Ti mesmo é que está Deus.
– Tu os estás dizendo, e é verdade.
– E, então, por que te profanas?
– Foi para dizer-me isto que me trouxeste aqui? Mas Eu me compadeço
de ti. De ti e de quem te estimulou a falar. Eu Não deveria justificar-me,
porque qualquer justificação seria espezinhada pelo vosso ódio. Mas Eu, a
vós que Me censurais por falta de amor a vós e de profanação de minha
pessoa, a vós eu darei uma justificação.
245.5Ouvi. Eu sei o que estais querendo dizer. Mas Eu vos respondo:
“Vós estais errados.” Assim como Eu abro os braços para os que estão
morrendo, a fim de trazê-los de novo à vida e chamo os mortos para dar-
lhes a vida, igualmente Eu abro os braços para os verdadeiros moribundos e
chamo os mais verdadeiros mortos, os pecadores, para levá-los à Vida
Eterna, e ressuscitá-los, se é que já estão podres, para que não morram mais.
Mas Eu vos contarei uma parábola.
Um homem, por causa de muitos vícios, tinha-se tornado leproso. A
sociedade dos homens o afastou do seu convívio e o homem, vivendo em
uma solidão impiedosa, começou a meditar em seu estado e em seus
pecados que o reduziram àquele triste estado. Passaram-se muitos anos
assim e, quando menos se esperava, o leproso ficou são. O Senhor usou de
misericórdia para com ele por causa de suas muitas orações e lágrimas. Que
é que aquele homem está fazendo agora? Pode voltar para sua casa, porque
Deus usou de misericórdia para com ele? Não. Ele deve ir mostrar-se ao
sacerdote, o qual, depois de tê-lo observado atentamente por certo tempo,
faz que ele vá purificar-se, depois de fazer um primeiro sacrifício de dois
pássaros. E depois não de uma só, mas de duas lavagens de suas roupas, o
curado volta ao sacerdote com os cordeirinhos sem mancha e a cordeirinha,
com a farinha e o óleo prescritos. O sacerdote o conduz então à porta do
Tabernáculo. É, então que o homem fica religiosamente readmitido no seio
do povo de Israel. Mas, dizei-me vós: quando ele vai a primeira vez ao
sacerdote, para que vai?
– Para ser purificado uma primeira vez, e assim poder cumprir a
purificação maior, que é a que o readmite no seio do povo santo!
– Disseste bem. Mas, então ele ainda não está completamente
purificado?
– Oh! Não. Ainda lhe falta muito para isso. Tanto em seu corpo, como
em sua alma.
– Como, então, que ele tem a coragem de aproximar-se do sacerdote na
primeira vez, quando ainda está completamente imundo e, na segunda vez,
aproxima-se até do Tabernáculo?
– Porque o sacerdote é o meio necessário para que ele possa ser
readmitido entre os viventes.
– E o Tabernáculo?
– Porque só Deus é capaz de cancelar as culpas e é de fé crer que, além
do santo Véu repousa Deus em sua glória, e de lá concede o seu perdão.
– Mas, então, o leproso curado não está ainda sem culpa, quando ele vai
aproximar-se sacerdote e do Tabernáculo?
– Não. Certamente que Não.
– Homens de pensamento torto e de coração não limpo, por que então
Me acusais, se Eu, o Sacerdote e o Tabernáculo me deixo aproximar dos
leprosos do espírito? Por que tendes duas medidas para julgar? Sim, a
mulher, que estava perdida, como Levi, o publicano, aqui presente agora
com a sua nova alma e como seu novo ofício e com esses outros e outras,
que vieram antes desses e estão agora ao meu lado. Aqui eles podem ficar,
porque agora foram readmitidos no seio do povo do Senhor. E eles foram
trazidos para perto de Mim pela vontade de Deus, que colocou em Mim o
poder de julgar e de absolver, de curar e ressuscitar. Seria uma profanação,
se neles continuasse a existir sua idolatria, assim como continuou na filha
do Faraó, mas profanação não é o fato de terem eles abraçado a doutrina,
que Eu trouxe à terra e pela qual eles ressuscitaram para a Graça do Senhor.
245.6Homens de Nazaré, que estendeis armadilhas para Mim, por não vos
parecer possível que em Mim esteja a Sabedoria verdadeira e a justiça do
Verbo do Pai, Eu vos digo: “Fazei como os pecadores.” Na verdade, eles
estão ganhando de vós, ao saberem eles ir à Verdade. E Eu vos digo ainda:
“Não fiqueis recorrendo a grosseiras armadilhas, para poderdes lutar contra
Mim.” Não façais isso. Pedi, e Eu vos darei, como dou a cada um que vem
a Mim, a Palavra da Vida. Acolhei-me como a um filho desta nossa terra.
Eu não guardo rancor de vós. As minhas mãos estão cheias de carícias e o
meu coração do desejo de instruir-vos e fazer-vos contentes. Tanto Eu estou
assim que, se Me quiserdes, Eu passarei entre vós o meu sábado, instruindo-
vos na lei Nova.
A multidão está com ideias contrárias. Mas acaba prevalecendo a
curiosidade ou o amor e muitos gritam:
– Sim, sim. Amanhã aqui. Nós te ouviremos.
– Rezarei para que de noite caia a crosta que está oprimindo os vossos
corações. Para que caiam todas as prevenções e, livres delas, possais
compreender a Voz de Deus, que veio trazer o Evangelho a toda a terra, mas
com o desejo de que a primeira região capaz de acolhê-la seja a cidade onde
Eu cresci. A paz esteja com todos vós.
[27] lê, em 2 Crônicas 8,11.
[28] Foi dito, em Esdras 10,10; havia dito, em Deuteronômio 7,3-4; 1 Re 11,1-2.
246. Um apólogo para os cidadãos de Nazaré,
que permanecem incrédulos.
7 de agosto de 1945.
246.1Ainda na sinagoga de Nazaré, mas em dia de sábado, Jesus, tendo
lido o apólogo[29] contra Abimeleque, termina com estas palavras:
“saia dele um fogo, e devore os cedros do Líbano.” Depois entrega o
rolo ao sinagogo.
– O resto não o lês? Seria bom para fazer compreender o apólogo –diz o
sinagogo.
– Não é preciso. O tempo de Abimeleque já vai longe. Eu quero aplicar
ao momento de hoje o antigo apólogo.
Ouvi, pessoas de Nazaré. Vós já sabeis, pela instrução do vosso
sinagogo, o qual em seu tempo foi instruído por um rabi e este por um outro
também, e assim pelos séculos, e sempre com o mesmo método e com as
mesmas conclusões, com as aplicações do apólogo contra Abimeleque. De
Mim ouvireis uma outra aplicação. E Eu vos peço, além disso, que saibais
usar a vossa inteligência, e que não fiqueis como as cordas, que passam
pelas roldanas do poço e, enquanto não estão estragadas, vão da roldana até
a água e da água até a roldana, sem poderem mudar nunca o percurso. O
homem não é uma corda amarrada, nem uma ferramenta mecânica. O
homem é dotado de um cérebro inteligente e deve poder usar dele
espontaneamente, conforme as necessidades e as circunstâncias.
Porque, se a letra da palavra é eterna, as circunstâncias mudam.
Infelizes daqueles mestres que não sabem querer ter a satisfação de extrair,
vez por vez, um ensinamento novo, isto é, o espírito que as palavras antigas
e sábias contém sempre. Serão semelhantes a ecos, que nada mais podem,
se não repetir, talvez dez e dez vezes uma mesma palavra, sem acrescentar a
ela nenhuma outra deles mesmos.
246.2As árvores, ou seja, a humanidade, representada pelo bosque, onde
estão reunidas todas as espécies de árvores, de arbustos e de ervas, sentem a
necessidade de ser conduzidas por alguém que receba o peso do todas as
glórias, mas também, e um peso bem maior, o de todos os ônus da
autoridade para ser o responsável pela felicidade ou infelicidade dos
súditos, o responsável junto aos súditos, junto aos povos vizinhos e, o que é
terrível, junto de Deus. Porque as coroas e proeminências sociais, sejam
elas quais forem, são dadas aos homens, é verdade, mas permitidas por
Deus, pois, sem a condescendência dele, nenhuma força humana pode
impor-se. Isto é o que explica as impensáveis e imprevistas mudanças de
dinastias, que pareciam eternas, e de potências que pareciam inabaláveis,
mas que, quando passaram da medida em que deviam ser castigo para os
povos, ou prova para eles, foram destruídas pelos mesmos, por permissão
de Deus, e voltaram ao nada, ao pó, e às vezes à lama do fundo de uma
cloaca.
Eu disse: os povos sentem a necessidade de elegerem alguém que arque
com toda a responsabilidade para com os súditos, para com as nações
vizinhas e para com Deus, e isso é o que há de mais terrível.
Porque, se o julgamento feito pela história já é terrível e em vão é que
se alegam os interesses do povo para mudá-lo, porque os acontecimentos e
os povos futuros o farão voltar à sua primeira e terrível verdade. Mas, mais
rigoroso é o juízo de Deus, o qual não sofre pressões de ninguém, e não está
sujeito a mudanças de humor e de apreciação, como frequentemente estão
os homens e, muito menos, está sujeito a erros de julgamento. Seria, pois,
necessário que os eleitos para serem chefes de povos e criadores da história
agissem com a justiça heróica, própria dos santos, para não ficarem
infamados pelos séculos futuros e punidos por Deus pelos séculos dos
séculos.
246.3Mas voltemos ao apólogo de Abimeleque. Portanto, as árvores
quiseram eleger um rei e, para isso, foram convidar a oliveira. Mas a
oliveira, uma árvore sagrada e consagrada para usos sobrenaturais, por
causa do seu óleo, que se queima diante do Senhor e que é uma parte
importante nos dízimos e nos sacrifícios, a oliveira, que oferece o seu
líquido a fim de se fazer o bálsamo santo para a unção do altar, dos
sacerdotes e do rei e que é passado com suas propriedades, que eu diria
quase taumatúrgicas, nos corpos e por sobre os corpos dos doentes, ela
respondeu: “Como eu vou poder faltar com a minha vocação santa e
sobrenatural, para aviltar-me em coisas da terra?”
Oh! Que bela resposta a da oliveira! Porque ela nunca é bem aprendida
nem praticada por todos aqueles que Deus elegeu para uma santa missão,
pelo menos por eles: Eu disse “pelo menos”? Por que na verdade ela teria
sido dita a todos os homens como resposta às sugestões do demônio, uma
vez que todo homem é rei e filho de Deus, dotado de uma alma, que o faz
tal, régio, filialmente divino, chamado a um destino sobrenatural. Existe
uma alma que em nós é um altar e uma casa. É o altar de Deus, é a casa
onde o Pai dos Céus desce para receber nosso amor e reverência de filhos e
súditos. Cada homem tem uma alma e, sendo cada alma um altar, ela faz do
homem que a tem um sacerdote, um guarda do altar, como está escrito[30]
no Levítico: “O Sacerdote não se contamine.” Portanto, o homem teria o
dever de responder à tentação do demônio, do mundo e da carne: “Posso eu
deixar de ser espiritual, para ocupar-me de coisas materiais e
pecaminosas?”
246.4Então as árvores se dirigiram à figueira, convidando-a a reinar sobre
elas. Mas a figueira respondeu: “Como poderei eu renunciar à minha doçura
e aos meus frutos tão delicados, para ir ser vosso rei?”
Muitos se dirigem a quem é manso, para o terem como rei. Não é bem
pela admiração de sua mansidão, mas porque eles esperam que, sendo ele
tão pacífico, acabe sendo um rei de burla, do qual se pode esperar que esteja
de acordo com tudo e, na companhia deles, permitir a si mesmo toda
espécie de desregramentos. Mas a mansidão não é fraqueza. É bondade. Ela
é justa. É inteligente. Firme. Não confundas nunca a mansidão com a
fraqueza. A primeira é uma virtude, a segunda, um defeito. E, justamente
por ser virtude, a primeira comunica a quem a possui uma retidão de
consciência que lhe torna possível resistir às solicitações e seduções
humanas, que se preocupam em fazê-la ceder aos seus interesses, que não
são os interesses de Deus, permanecendo fiel ao seu destino, custe o que
custar.
O que é afável em seu espírito não rebaterá nunca com aspereza as
censuras dos outros, não repelirá com dureza aos que se lhe opõem. Mas,
pedindo perdão e sorrindo, dirá sempre: “Meu irmão, deixa-me em minha
boa sorte. Aqui estou para consolar-te e ajudar-te, não para tornar-me rei,
como tu pensas, porque de uma única realeza eu cuido e com ela me
preocupo: com minha alma e com a tua, isto é, com uma realeza espiritual.”
246.5As árvores foram depois à videira, para pedir-lhe que ela fosse o rei
delas. Mas a videira respondeu: “Como posso eu renunciar a ser a alegria e
a força, para ir reinar sobre vós?”
Ser rei, tanto pelas responsabilidades, como pelos remorsos, pois mais
raro do que o diamante preto é o rei que não peca, e por isso vive carregado
de remorsos. É uma coisa que sempre traz consigo tristezas espirituais. O
poder seduz, até o dia em que, como um farol longínquo, ele estiver
brilhando. Mas, quando se chega perto, vê-se que não é nenhuma estrela,
mas a luz de um vaga-lume.
E ainda: o poder não é mais do que uma força, amarrada pelas mil
cordas de mil interesses, que se agitam ao redor de um rei. Interesses dos
cortesãos, interesses dos aliados, interesses pessoais e dos parentes.
Quantos reis juram a si mesmos, enquanto o óleo os está consagrando: “Eu
vou ser imparcial”, e depois não o sabem ser? Como uma árvore poderosa,
que não se revolta com o primeiro abraço da hera macia ou delicada, e diz:
“Ela é muito fraquinha, e não me pode fazer mal”, e fica até contente em ser
por ela engrinaldada e por agir como protetora, ajudando-a em sua subida,
assim muitas vezes eu poderia dizer: sempre o rei cede ao primeiro abraço
de um interesse palaciano, de um aliado, de uma pessoa ou de um parente
que a ele se dirige, e fica contente em poder ser um generoso protetor dele.
“É tão pouca coisa!”, diz ele, mesmo quando a consciência lhe brada:
“Cuidado!” E pensa que aquilo não lhe possa fazer mal, nem ao seu
governo, nem ao seu bom nome. A árvore também pensava assim. Mas
chega o dia em que, tendo lançado um broto atrás do outro e que vão
crescendo em força e em comprimento e crescendo na voracidade de sugar
as linfas do solo e subir para a conquista da luz e do sol, a hera acaba
abraçando aquela que era uma árvore poderosa, e a domina, sufoca e mata.
A hera que antes era tão fraquinha! Enquanto que a árvore era tão forte!
Também com os reis é assim. Um primeiro compromisso com a própria
missão, um primeiro encolher de ombros à voz da consciência, porque os
louvores são doces, porque o ar de protetor procurado lhe agrada, e chega o
momento em que o rei não reina, mas reinam os interesses dos outros, que o
aprisionam e amordaçam, chegando a sufocá-lo e até o suprimirem, quando
veem que ele não tem pressa de morrer.
Até o homem comum, que sempre é um rei em seu espírito, se perde, se
aceita outras realezas menores, por soberba, por avidez. E perde a sua
serenidade espiritual, que lhe vem de sua união com Deus. Porque o
Demônio, o mundo e a carne podem dar um ilusório poder e prazer, mas à
custa da alegria espiritual, que vem da união com Deus.
Alegria e força dos pobres em espírito, bem merecidas, de modo que o
homem sente a necessidade de dizer: “E como poderei eu querer tornar-me
um rei em minha parte inferior se, ao fazer aliança convosco, eu perco a
força e a alegria interior e o Céu e sua verdadeira realeza?” E podem,
também dizer, esses infelizes pobres em espírito que eles só têm em mira
possuir o Reino dos Céus e que desprezam qualquer outra riqueza que não
seja aquele Reino? E podem até dizer: “E, como posso voltar à missão, que
é a de amadurecer os sucos fortificantes e que alegram esta humanidade,
nossa irmã, que vive no árido deserto da animalidade e que se sente
necessitada de ser dessedentada, para não morrer, para ser nutrida com
sucos vitais, como um menino que precisa da nutriz? Nós somos as nutrizes
da humanidade que perdeu o seio de Deus, que vagueia, estéril e doente, e
que chegaria a uma morte desesperada, até aos negros ceticismos, se não
nos encontrasse a nós que, com a alegre operosidade dos que estão livres de
todo laço terreno, para os tornarmos persuadidos de que há uma Vida, uma
Alegria, uma Liberdade, uma Paz. Não podemos renunciar a esta Caridade
por causa de qualquer interesse mesquinho.”
246.6Então, as árvores foram ao espinheiro. Ele não as repeliu. Mas
impôs condições severas: “Se me quereis como rei, vinde ficar debaixo de
mim. E, se não o quiserdes fazer, depois de me terdes eleito, eu farei de
cada espinho um tormento aceso, e queimarei a todos vós, até os cedros do
Líbano.”
Ai estão as realezas que o mundo ainda aceita como verdadeiras! A
prepotência e a ferocidade são, para a humanidade corrompida, tomadas por
uma verdadeira realeza, enquanto que a mansidão e a bondade são tomadas
como estultícia e baixos sentimentos. O homem não se submete ao Bem,
mas se submete ao Mal. Por este ele é seduzido. E por ele, em seguida, é
queimado.
246.7Este é o apólogo de Abimeleque.
Mas Eu agora vos proponho um outro. Não longe de vós, nem tratando
de fatos acontecidos longe daqui. Mas aqui bem perto. Eles estão aqui
presentes.
Os animais pensaram em eleger para si um rei. E, como eram espertos,
pensaram em eleger para si um rei que não lhes desse medo por ser forte ou
feroz.
Não escolheram o leão e nenhum dos felinos. Disseram que não
queriam as águias, com seus grandes bicos e nenhuma outra ave de rapina.
Desconfiaram do cavalo que, com sua rapidez, podia alcançá-los e ficar
vigiando suas ações, e desconfiaram ainda mais do burro, cuja aparência
eles conheciam, mas de cujas fúrias repentinas e de seus cascos fortes
também eles sabiam. Ficaram horrorizados só de pensar em ter como rei o
macaco, sabido demais e vingativo. Com a desculpa de que a serpente tinha
servido a satanás para seduzir o homem, disseram que não a queriam como
rei, ainda que ela tivesse variegadas cores e elegância em seus movimentos.
Na verdade, eles não a quiseram, porque conheciam aquele seu deslizar
silencioso, o forte poder de seus músculos e o terrível efeito de seu veneno.
Arranjar para ser rei um touro ou outro animal provido de chifres? De
maneira nenhuma! “Pois o diabo também os tinha”, diziam eles. Eles
pensavam: “Se nos rebelarmos um dia, ele acaba conosco por meio de seus
chifres.”
Depois de terem rejeitado muitos, viram um cordeirinho gordo e
branco, pulando alegre em um prado verde e dando focinhadas na teta
redonda da mãe. Ele não tinha chifres, mas tinha olhos mansos como o céu
de abril. Era manso e simples. Com qualquer coisa ele se contentava. Com a
água de um pequeno rio, onde ele bebia, mergulhando nela o seu pequeno
focinho rosado. Com as florzinhas dos mais diversos sabores, que lhe
satisfaziam os olhos e o paladar. E com a erva viçosa, sobre a qual era tão
bom deitar-se, quando já estava saciado. Com as nuvens que pareciam
outros tantos carneirinhos, que estivessem vagando por aqueles prados
azuis, lá no alto, e o estivessem convidando a brincar com eles correndo
pelo prado, como elas estavam fazendo pelo céu. E sobretudo com as
carícias da mãe, que ainda lhe permitia alguma chupada morna, lambendo-
lhe, nesse ínterim, a lã branca com sua língua cor-de-rosa. E, com um redil
seguro e bem abrigado contra os ventos, com uma cama bem fofa e
cheirosa, na qual era tão bom dormir, ao lado da mãe.
“Ele é muito fácil de contentar-se. Não tem armas nem veneno. É um
ingênuo. Façamos dele o nosso rei.” E o fizeram rei. Eles gloriavam-se
disso, porque ele era bonito e bom, admirado pelos povos vizinhos e amado
pelos súditos, por sua paciente mansidão.
246.8Passou-se o tempo, e o cordeiro se tornou um carneiro, e disse:
“Agora já é tempo de eu reinar realmente. Agora eu tenho plena posse do
conhecimento da minha missão. A vontade de Deus, que permitiu que eu
fosse eleito rei, foi-me formando depois para esta missão, dando-me a
capacidade de reinar. Portanto, é justo que eu a exerça de modo perfeito,
também para não me descuidar dos dons de Deus.”
E, vendo ele que alguns súditos faziam coisas contrárias à honestidade
dos costumes, à caridade, ou contra a doçura, a lealdade, a morigeração, a
obediência, o respeito, a prudência e assim por diante, levantou a voz para
admoestá-los.
Os súditos se riram do seu balido sábio e doce, que não amedrontava
como o rugido dos felinos, nem como o grito agudo dos abutres, quando
descem rápidos sobre sua presa, nem como o sibilar da serpente e nem
mesmo como o ladrar continuo do cão que quer incutir temor.
O cordeiro, tendo-se tornado um carneiro, não se limitou mais só a ficar
balindo. Mas foi atrás dos culpados, para reconduzi-los aos seus deveres. Aí
a serpente se lhe escapou, por entre as patas. A águia levantou vôo,
deixando-o a ver navios. Os felinos com uma patada o foram afastando do
caminho e ainda o ameaçaram: “estás vendo o que é que está nesta pata
felpuda? São as nossas garras.” Os cavalos e todos os animais corredores
em geral, puseram-se a galopar ao redor dele, em sinal de zombaria. Os
fortes elefantes e outros paquidermes, com um golpe de suas trombas o
jogavam para lá e para cá, enquanto os macacos, lá do alto das árvores, o
alvejavam com os seus projéteis.
O cordeiro, que se transformou em carneiro, finalmente perdeu a
paciência, e disse: “Eu não queria usar meus chifres, nem a minha força.
Porque eu também tenho uma força neste pescoço, que vai ser usado como
modelo de uma máquina para abater obstáculos na guerra. Eu não queria
fazer uso dela, porque eu prefiro agir com amor e pela persuasão. Mas,
visto que não cedeis diante destas armas, eu vou fazer uso da força, porque,
se vós faltais com o vosso dever para comigo e para com Deus, eu não
quero faltar com o meu dever para com Deus e para convosco. Aqui eu fui
colocado para guiar-vos, a fim de que a Justiça e o Bem, ou seja, a Ordem,
aqui reinem.”
E castigou com os seus chifres, de leve, porque ele era bom, um
cachorrinho latidor, que continuava a aborrecer os vizinhos e, depois, com
seu fortíssimo pescoço, arrombou a porta, que dava para uma cova, onde
um porco gordo e egoísta tinha acumulado comida, com prejuízo para os
outros, e também derrubou uma moita de lianas, escolhida por dois
luxuriosos macaquinhos para os seus ilícitos amores.
246.9“Este rei tornou-se forte demais. Ele quer realmente reinar. Quer que
vivamos como sábios. Isto não nos agrada. É preciso destroná-lo”,
decidiram eles.
Mas um astuto macaquinho deu este conselho: “Não façamos nada, a
não ser o que tenha pelo menos a aparência de ser um motivo justo. Senão,
iremos fazer uma feia figura aos olhos dos povos e seremos mal vistos por
Deus. Examinemos, pois, cada ação do cordeiro que se tornou carneiro, a
fim de podermos acusá-lo, quando nada, com certa aparência de justiça.”
“Eu me encarrego disso”, disse a serpente. “E eu também”, disse o
macaco. A serpente, deslizando por entre as ervas e o macaco ficando nas
copas das árvores, não perderam mais de vista o cordeiro que se fez
carneiro e, todas as tardes, quando ele se retirava para meditar e descansar
dos trabalhos da missão e pensar nas medidas a serem adotadas e nas
palavras a serem usadas para dominar a rebelião e acabar com os pecados
de seus súditos, estes, menos algum raro que ainda se conservava honesto e
fiel, reuniam-se para escutar as notícias dadas pelos dois espiões e traidores.
Porque eles eram isso também.
A serpente diz ao seu rei: “Eu te acompanho porque te amo e, se eu
visse que estás sendo atacado, quero poder defender-te.” O macaco diz ao
rei: “Como eu te admiro! Eu quero te ajudar. Olha: daqui eu estou vendo
que, para lá daquele prado, estão cometendo pecado. corre!”, e depois, dizia
aos companheiros: “Hoje também ele tomou parte no banquete de uns
pecadores. Ele fingiu ir lá para convertê-los, mas depois, na realidade,
tornou-se cúmplice das orgias deles.” E a serpente ainda acrescentou: “Ele
esteve fora do seu povo, aproximando-se de borboletas, moscardos e lesmas
visguentas. É um infiel. Faz negócios com estrangeiros e imundos.”
Assim eles falavam às costas do inocente, pensando que ele não
soubesse de nada. Mas o espírito do Senhor, que o havia preparado para a
sua missão, o iluminava e fazia conhecer as conjurações de seus súditos.
Ele teria podido fugir, indignado, amaldiçoando-os. Mas o cordeiro era
manso e humilde de coração. Ele os amava. Tinha a culpa de amá-los. E
tinha a culpa maior ainda de continuar amando e perdoando, em sua missão,
mesmo que isso lhe valesse a morte, para cumprir a vontade de Deus. Oh!
Que culpas eram estas aos olhos dos homens! Eram imperdoáveis! E tanto
assim o eram, que lhe causaram a condenação.
“Que seja morto, para ficarmos livres de sua opressão.” E a serpente se
encarregou de matá-lo, pois o traidor é sempre a serpente…
246.10Este é o outro apólogo. A ti cabe entendê-lo, ó povo de Nazaré! Eu,
pelo amor que me liga a ti, faço votos que permaneças, quando muito, no
grau de um povo hostil e não mais do que isto. O amor à terra, para a qual
Eu vim, quando era pequenino, na qual Eu cresci, amando-vos e recebendo
amor, faz-me dizer a todos vós: “Não sejais mais hostis. Não façais que a
história diga: ‘De Nazaré é que saiu o seu traidor e os seus juízes iníquos’.”
Adeus. Sede retos no julgar e constantes no querer. A primeira coisa é
para todos vós, que sois meus concidadãos. A segunda é para aqueles entre
vós, que não estão perturbados por pensamentos desonestos. Eu me vou…
A paz esteja convosco.
E Jesus, no meio de um pesado silêncio, quebrado apenas por duas ou
três vozes, que o aprovam sai, tristemente, de cabeça inclinada, da sinagoga
de Nazaré.
246.11Os apóstolos o acompanham. Como últimos, atrás dos outros, estão
os filhos de Alfeu. E os olhos deles não são olhos de um manso cordeiro…
Olham severamente para a multidão inimiga, e Judas Tadeu não hesita em ir
colocar-se de pé, na frente do seu irmão Simão, para dizer-lhe:
– Eu pensava ter um irmão mais honesto e de caráter mais forte.
Simão inclina a cabeça e se cala. Mas o outro irmão, com as costas
protegidas por outros de Nazaré, diz:
– Envergonha-te por ofenderes ao teu irmão mais velho!
– Não. Eu me envergonho é de vós. De todos vós. Não é uma madrasta.
Mas esta Nazaré é uma madrasta depravada para com o Messias. Mas ouvi
a minha profecia. Tereis que chorar tantas lágrimas, que elas formarão uma
fonte. Mas elas não bastarão para lavar dos livros da história o nome
verdadeiro desta cidade e o vosso. Sabeis qual é? “Estultícia.” Adeus.
Tiago faz uma saudação mais ampla, como que augurando-lhes uma luz
de sabedoria. E saem juntos com Alfeu de Sara e dois jovenzinhos que, se
os estou reconhecendo bem, são os dois guias[31], que cuidaram dos dois
burrinhos, quando foram ao encontro de Joana de Cusa, que estava
morrendo.
246.12A multidão, que ficou dolorosamente surpresa, murmura:
– Mas, onde foi buscar tanta sabedoria?
– E os milagres, como os faz? Porque fazê-los, Ele os faz. Toda a
Palestina fala deles.
– Não é Ele o filho do José, o carpinteiro? Todos nós o vimos
trabalhando no banco do carpinteiro de Nazaré, fazendo mesas e camas,
consertando rodas e fechaduras. Ele nunca foi à escola e só sua Mãe foi sua
mestra.
– Isso também foi outro escândalo, que nosso pai criticava –diz José de
Alfeu.
– Mas também os teus irmãos terminaram a escola com Maria de José.
– É. O meu pai foi fraco para com a mulher –responde ainda José.
– E, portanto, também o irmão do teu pai?
– Ele também.
– Mas Ele é mesmo filho do carpinteiro?
– E não o estás vendo?
– Oh! Há muitas pessoas que se parecem. Eu penso que Ele é um desses
que são considerados parentes, mas não o são.
– Quem é que fala agora em Jesus de José?
– Pensais que a Mãe dele não o conheça?
– Aqui estão os irmãos e as irmãs dele e todos o dizem seu parente. E,
dizei-me vós dois: não é verdade isso?
Os dois anciãos, filhos de Alfeu, dizem que sim.
– Então Ele ficou doido ou endemoninhado, porque o que Ele diz não
pode ser dito por um operário.
– Seria necessário não dar-lhe ouvidos. Pois sua pretensa doutrina, ou é
delírio ou possessão.
246.13… Jesus está parado na praça, à espera de Alfeu de Sara, que está
conversando com um homem. E, enquanto Ele espera, um dos guias dos
burros, que havia ficado junto à porta da sinagoga, lhe conta as calúnias que
foram ditas dentro dela.
– Não fiques triste. Um profeta quase nunca é honrado em sua pátria e
por sua casa. O homem é tão estulto, que acha que para serem profetas, seja
necessário ser como seres de fora desta vida. E os concidadãos e os
familiares conhecem-no mais do que os outros e se recordam da
humanidade do concidadão e parente deles. Mas, a verdade haverá de
triunfar sempre. E agora Eu te saúdo. A paz esteja contigo.
– Obrigado, Mestre, por teres curado minha mãe.
– Tu o merecias, porque soubeste crer. Meu poder fica inerte aqui,
porque aqui não há fé. Vamos, meus amigos. Amanhã de manhã partiremos.
[29] o apólogo, que está em Juízes 9,8-15.
[30] está escrito em Levítico 21,1-4.
[31] os dois guias em 102.5/8.
247. Maria Santíssima ensina
a Madalena sobre a oração mental.
8 de agosto de 1945.
247.1– Onde vamos terminar a nossa etapa, meu Senhor? –pergunta Tiago
de Zebedeu, enquanto vão caminhando por uma garganta entre duas colinas
muito verdes, e cultivadas da base até o alto.
– Terminá-la-emos em Belém da Galileia. Mas, nas horas mais quentes,
pararemos no monte que fica acima de Meraba[32]. Assim teu irmão ficará
feliz, mais uma vez, ao ver o mar –e Jesus sorri.
Depois, Ele termina:
– Nós homens podíamos ter andado mais, mas temos atrás de nós as
discípulas, que nunca se queixam, mas que nós não devemos deixar que
fiquem cansadas demais.
– Elas nunca se queixam, é verdade. Nós nos queixamos mais
facilmente –admite Bartolomeu.
– E, no entanto, talvez estejam até menos acostumadas do que nós a este
tipo de vida… –diz Pedro.
– Talvez seja porque elas gostem deste tipo de vida –diz Tomé.
– Não, Tomé. Elas o fazem com gosto, por amor. Podes crer que nem
minha Mãe, nem as outras donas de casa, como Maria de Alfeu, Salomé e
Susana, deixem de boa vontade o seu gênero de vida para virem pelos
caminhos do mundo e pelo meio do povo. E Marta e Joana, quando esta
também vier, não acostumadas ao cansaço, não o fariam de boa vontade, se
o amor não as estimulasse. 247.2E, quanto à Maria de Magdala, só um
poderoso amor é que lhe pode dar a força para sofrer esta tortura –diz Jesus.
– Por que lha impuseste, então, se sabes que é uma tortura? –pergunta-
lhe Iscariotes–. Não é coisa boa para ela e não o é para nós.
– Nada mais do que a demonstração evidente e indubitável de sua
mudança é o que podia persuadir o mundo. Seu afastamento do passado foi
completo. É completo.
– Isto é o que vamos ver. É cedo ainda para se dizer isso. Quando
transformamos em hábito um certo gênero de vida, dificilmente poderemos
afastar-nos completamente dele. Amizades e saudades nos fazem voltar a
ele –diz Iscariotes.
– Tu tens saudades, então, de tua vida de antes? –pergunta-lhe Mateus.
– Eu… não. Mas digo por dizer. Eu sou eu, um homem, amigo do
Mestre e… Afinal, eu tenho em mim meios que me servem para persistir
em meus propósitos. Mas ela é uma mulher, e que mulher! E, além disso,
ainda que ela fosse bem firme, sempre é um pouco desagradável tê-la
conosco. Se tivéssemos que encontrar rabis, sacerdotes ou grandes fariseus,
podeis crer que não seria agradável para nós o comentário deles. Eu, só de
pensar nisso, já me sinto envergonhado.
– Não te contradigas, Judas. Se realmente cortaste os pontos que te
ligavam ao passado, por que tanto te preocupas por causa de uma pobre
alma que quer acompanhar-nos para completar a sua transformação para o
Bem?
– Ora, por amor, Mestre. Porque eu faço tudo por amor. Para contigo.
– Então, aperfeiçoa-te neste teu amor. Um amor, para ser verdadeiro
amor, nunca há de ser exclusivista. Quando alguém sabe amar somente um
objeto que ele ama, mostra que não está no verdadeiro amor. O amor
perfeito ama, com as devidas gradações, a todo o gênero humano, e até os
animais e os vegetais, as estrelas e as águas, porque vê tudo em Deus. Ama
a Deus, como é de dever, e ama tudo em Deus. Olha que o amor
exclusivista muitas vezes é egoísmo. Fica, pois, sabendo chegar a amar
também aos outros por amor.
– Sim, Mestre.
O objeto daquela discussão continua, contudo, com as outras mulheres
que estão perto de Maria, sem que esta pense que está sendo causa de tão
grande discussão.
247.3Chegam ao povoado de Jafa, e o atravessam até o outro lado, sem
que nenhum cidadão mostre desejo de acompanhar o Mestre ou de detê-lo.
Continuam depois, e os apóstolos estão inquietos, por causa da
indiferença do lugar. Jesus procura acalmá-los.
O vale continua na direção oeste, e mostra lá no fim um outro povoado,
situado junto à base de um outro monte.
Também este povoado, que eu ouço ser chamado de Meraba, está
indiferente. Só alguns meninos se aproximam dos apóstolos, enquanto estão
apanhando a água, que jorra de uma fonte límpida, ao lado de uma casa.
Jesus os acaricia, perguntando-lhes os seus nomes, e os meninos perguntam
o dele e quem é Ele, para onde vai, e que faz. Aproxima-se também um
mendigo meio cego, já velho, encurvado, e estende a mão para receber a
esmola, que de fato recebe.
A marcha recomeça com a subida de uma colina, que interrompe o vale
e no qual ela despeja as águas dos seus pequenos riachos, agora reduzidas a
uns fios d’água, ou somente a umas pedras queimadas pelo sol. Mas a
estrada é boa, aberta a princípio por entre bosques de oliveira, e depois de
outras plantas, que entrecruzam os seus ramos, formando uma galeria verde
sobre a estrada. Chegam ao alto da colina, que é coroada por um sussurrante
bosque de freixos, se não me engano. E lá eles se assentam para descansar e
tomar algum alimento. E, com o alimento e o descanso, também gozam do
prazer para as suas vistas, porque o panorama é muito bonito, com a
cordilheira do Carmelo à esquerda de quem olha para o oeste, e no lugar
onde termina a mesma cordilheira do Carmelo, aparece uma cordilheira
muito verde, onde podem ser vistos todos os tons mais belos do verde. Aí
vê-se o cintilar do mar, um mar aberto, sem fim, que se estende como pano
agitado por leves ondinhas, que se movem para o norte, indo lavar as praias
da ponta do promontório formado pela última ramificação do Carmelo, e
sobem no rumo de Ptolomaida e de outras cidades, até se perderem de vista,
em uma fina neblina, para os lados da Siro Fenícia. Mas não se vê o mar do
lado sul do promontório do Carmelo, porque a cordilheira, mais alta do que
a colina que nela se encontra, nos esconde a vista dele daqui[33].
Diz Jesus:
273.8
– Aqui colocareis a visão de 4 de março de 1944: Jesus que caminha
sobre as águas.
[71] disseste, em 259.3/6.
274. Jesus caminha sobre as águas.
Sua prontidão em socorrer quem o invoca.
4 de março de 1944.
[…]
274.1A tarde já vai bem avançada, já é quase noite, e plantas parecidas
com oliveiras, que estão espalhadas por sobre uma colina, daqui mal estão
podendo ser vistas. Mas, à luz mais clara, podem ser outras coisas. Afinal,
são árvores não muito altas, frondosas e contorcidas, como costumam ser as
oliveiras.
Jesus está sozinho. Vestido de branco, e com o seu manto azul escuro.
Sobe e se adentra entre as plantas. Caminha com passos longos e firmes.
Não vai andando muito depressa, mas, por causa do comprimento do seu
passo, percorre sempre uma boa distância, mesmo quando vai sem pressa.
Caminha até chegar a uma espécie de balcão natural, do qual se descortina
o lago, todo sereno, à luz das estrelas, que pouco a pouco vão enchendo a
abóbada celeste com seus focos de luz. O silêncio envolve Jesus com um
abraço que convida ao repouso, e o separa das multidões e da terra,
fazendo-o perder a lembrança delas e unindo-o ao Céu que parece estar
descendo para adorar o Verbo de Deus, e para acariciá-lo com a luz de seus
astros.
Jesus está orando em sua posição habitual: de pé, com os braços abertos
em cruz. Tem atrás de si uma oliveira, e parece já estar crucificado sobre o
seu tronco escuro. As folhas estão pouco acima dele, pois Jesus é alto, e
elas substituem, com um nome parecido ao de Cristo, a tabuleta da cruz. Lá
estava escrito “Rei dos Judeus.” Aqui está escrito “Príncipe da Paz” A
pacífica oliveira fala precisamente a quem é capaz de entender.
Jesus ora por muito tempo. Depois se assenta junto ao barranco, que
fica ao pé da oliveira, sobre uma grossa raiz, que por ali se estendeu, e toma
sua posição de costume, com as mãos cruzadas e os cotovelos postos sobre
os joelhos. Medita. Quem saberá qual o divino colóquio que Ele entretém
com o Pai e com o Espírito nesta hora em que se acha sozinho e pode ficar
todo em Deus! Deus com Deus!
Parece-me que muitas horas se passem assim, porque estou vendo que
as estrelas mudaram de posição, e muitas delas já desapareceram no
ocidente.
274.2 Justamente, enquanto um esboço de luz, ou melhor, de claridade,
pois não se pode ainda chamar de luz, se desenha no extremo horizonte do
oeste, um arrepio de vento sacode a oliveira. Depois cessa. Em seguida, ele
volta mais forte. E vem vindo, após pausas entrecortadas, mas sempre com
maior ímpeto. A luz da aurora mal e mal começou, e está fazendo esforço
para abrir caminho pelo meio de um amontoado de nuvens escuras, que
estão vindo cobrir o céu, impelidas por rajadas de vento cada vez mais
fortes. O barulho da folhagem e a zoeira das águas estão enchendo agora o
ar que, pouco antes, estava tão silencioso.
Mas antes, me parece que esteja surgindo uma borrasca como aquela[72]
já vista na visão da tempestade. O rumo das frondes e o bater das águas
enchem agora o espaço, pouco antes tão quieto.
Jesus desperta de sua meditação. Levanta-se. Olha para o lago. Procura
pela superfície dele, à luz das poucas estrelas que ainda restam e da pobre
aurora enfermiça, e vê a barca de Pedro, na qual vão remando com grande
esforço e procurando alcançar a margem oposta, mas sem conseguirem.
Jesus se envolve em seu manto, cobrindo-se bem, e sungando a barra, que
está suspensa, e, vendo que ela lhe cria dificuldade para descer, Ele a leva
para cima da cabeça, fazendo com ela uma espécie de capuz, e desce
depressa, não pela estrada por onde tinha vindo, mas por uma trilha mais
curta, que vai em linha reta para o lago. E Ele vai indo assim, com tão
grande velocidade, que parece estar voando.
Ao chegar à margem, que está sendo açoitada pelas águas, que estão
fazendo sobre a areia uma orla de espuma flocosa e que chia, Ele prossegue
o seu caminho, apressado, como se não estivesse caminhando sobre um
elemento líquido e movediço, mas sobre o pavimento mais liso e sólido da
terra. Agora Ele se tornou luminoso. parece que a pouca luz, que ainda está
vindo das últimas e agonizantes estrelas e da aurora tempestuosa, se
concentra nele, e que por Ele seja recolhida, formando uma fosforescência
ao redor de seu corpo, que avança rapidamente. Ele vai quase voando sobre
as ondas, sobre aquelas cristas de espuma, por sobre as dobras escuras,
entre uma e outra onda, com seus braços estendidos para frente, com o
manto que, pelo vento, fica inflado aos lados de sua face, mas que esvoaça,
o tanto quanto pode, por mais que esteja apertado junto ao corpo, como se
fosse o bater de uma asa.
274.3Os apóstolos o veem, e lançam um grito de medo, que o vento leva
até Jesus.
– Não temais. Sou Eu.
A voz de Jesus, mesmo tendo ido contra o vento, espalhou-se por sobre
o lago, sem dificuldade.
– És Tu mesmo, Mestre? –pergunta Pedro–. Se és Tu, manda que eu vá
ao teu encontro, caminhando sobre as águas, como Tu.
Jesus sorri e diz:
– Vem!
E diz isso simplesmente, como se fosse mais natural do mundo
caminhar sobre a água.
E Pedro, seminu como está, isto é, com uma túnica curta e sem manto,
dá um salto da barca e vai para Jesus.
Mas, quando ele já está a uns cinquenta metros da barca, e a quase
outros tantos de Jesus, fica tomado pelo medo. Até aquele ponto, ele ia indo
impulsionado pelo amor. Agora, sua natureza humana o domina… e ele
teme por sua própria pele. Como alguém colocado sobre chão escorregadio,
ou melhor, sobre areia movediça, ele começa a bambolear, a bracejar e a
afundar. E, quanto mais braceja, com mais medo vai ficando, e mais vai
afundando.
274.4Jesus parou, e está olhando para ele. Está sério. Está esperando. Mas
nem estende uma das mãos, pois continua com as duas juntas sobre o peito,
e não dá mais nem um passo, não diz nem uma palavra.
Pedro vai afundando. Já desapareceram seus tornozelos, suas canelas,
os joelhos, e as águas já estão atingindo sua virilha, já vão alcançando sua
cintura. O terror já está em seu rosto. É um terror que paralisa até o
pensamento. Ele não passa de carne com medo de se afogar. Não pensa nem
em pôr-se a nadar. Nada. Fica apatetado de medo.
Finalmente, ele resolve olhar para Jesus. E bastou olhar para Ele, e logo
começou a raciocinar, a compreender onde está a salvação.
– Mestre, Senhor, salva-me.
Jesus abre os braços e, como que transportado pelo vento ou pela onda,
precipita-se no rumo do apóstolo, e lhe estende a mão, dizendo:
– Oh! Que homem de pouca fé! Por que duvidaste de Mim? Por que
quiseste fazer tudo por ti mesmo?
Pedro, que havia agarrado convulsivamente a mão de Jesus, nem
responde. Somente olha para Ele, para ver se Ele está com raiva. Olha para
Ele com uma mistura de um resto de medo e de arrependimento.
Mas Jesus sorri e o conserva bem seguro pelo pulso, até que, tendo
alcançado a barca, transpõem a borda dela, e entram. E Jesus ordena:
– Ide para a margem. Este aqui está todo molhado.
E sorri, olhando para o discípulo humilhado.
As ondas se espraiam para facilitar a arribação, e a cidade, vista outra
vez do alto de uma colina, já vem aparecendo para lá da margem. A visão
termina aqui.
Jesus diz:
297.5
– E a viagem, a segunda grande viagem dos apóstolos, está terminando.
Agora estão voltando para as conhecidas campinas da Galiléia.
Pobre Maria, estás mais extenuada do que João de Endor. Eu te autorizo
a omitir as descrições dos lugares. Tudo isso temos dado para os
pesquisadores curiosos. E sempre haverá “pesquisadores curiosos.” Nada
mais. Por enquanto, basta. A força se esvai. Conserva-a para a palavra. Com
o mesmo ânimo que Eu verificava a inutilidade de muitas das minhas
fadigas, verifico também a inutilidade de muitas das tuas fadigas. Por isso,
Eu te digo: “Conserva-te somente para a palavra.”
Tu és o “porta-voz.” Oh! Como é verdade que para ti se repete aquele
ditado[3]: “Nós tocamos músicas, e vós não cantastes; nós soltamos
lamentações, e vós não chorastes.” Tens repetido somente as minhas
palavras e os doutores difíceis torceram o nariz. Uniste às minhas palavras
as tuas descrições. E eles ainda encontram o que dizer. E tu estás extenuada.
Eu te direi quando terás que descrever a viagem. Somente Eu.
Estás para fazer um ano que Eu te feri. Não queres, antes que o ano se
complete, repousar de novo no meu coração? Vem, então, minha pequena
mártir…
[3] ditado, em 265.13.
298. O socorro aos órfãos Maria e Matias
e os ensinamentos que lhe derivam.
8 de outubro de 1945.
298.1 Revejo o lago Meron, em um dia de chuva cinzento. Barro e
nuvens. Silêncio e nevoeiros. O horizonte desaparece na névoa. As
cordilheiras do Hermon estão cobertas pelas formações de nuvens baixas.
Mas deste lugar — um pequeno planalto situado um pouco acima do
pequeno lago de cor cinzento-amarelada, por causa do barro que desce de
mil riozinhos, que nas enchentes transbordam, e pelo céu de um novembro
cheio de nuvens — vê-se bem este pequeno espelho de água formado pelo
Alto Jordão, que se alarga depois, para ir formar o outro lago maior, que é o
de Genezaré.
A tarde vem descendo, sempre mais triste e chuvosa, enquanto Jesus
vai indo pela estrada, que atravessa o Jordão, depois do lago Meron, para,
em seguida, entrar por um caminho estreito, e dirigir-se a uma casa…
(Jesus diz:
– Neste ponto colocareis a visão dos órfãos Matias e Maria, que teve
lugar a 20 de agosto de 1944).
20 de agosto de 1944.
298.2 Uma outra doce visão de Jesus e duas crianças.
Eu digo assim, porque estou vendo Jesus passando por um caminho
estreito, situado entre dois campos, que há pouco devem ter sido semeados,
pois a terra ainda está fofa e escura, como quando faz pouco tempo que
recebeu as sementes, mas ele procura ficar firme para acariciar a dois
pequeninos: um menino, que não tem mais do que quatro anos, e uma
menina que terá oito ou nove. Devem ser umas crianças muito pobres, pois
estão vestidas com umas roupinhas desbotadas e esfarrapadas, e tem uns
rostinhos tristes e definhados pelos sofrimentos.
Jesus não pergunta nada. Ele somente olha fixamente para eles,
enquanto os acaricia. Depois, se apressa em ir para uma casa, que fica no
fim do caminho. É uma casa de campo, mas bem situada, com uma escada
externa, que sobe do chão para o terraço, no qual há uma latada de videira,
que agora está despida de cachos e de folhas. Somente uma ou outra folha,
já amarelada, está pendente e sendo balançada pelo vento úmido de um
triste dia de outono. No parapeito da casa uns pombos estão arrulhando, e
esperando a chuva que o céu cinzento e todo nublado está prometendo.
Jesus, acompanhado pelos seus, empurra a cancela vermelha, que está
no muro de pedras soltas, ao redor da casa, e entra pelo pátio, nós diríamos
pelo terreiro onde está o poço e, a um canto, também está o forno. Acho que
este deve ser aquele pequeno quarto, de paredes enegrecidas pela fumaça,
que até agora mesmo dele está saindo, e que o vento está fazendo descer
para o chão.
Tendo ouvido o barulho dos passos, uma mulher aparece à porta da
casa, e vendo Jesus, o saúda com alegria, e vai correndo avisar aos de casa.
E eis que um homem, já velhinho e gordo, se apresenta à porta e se
apressa a ir a Jesus:
– Que grande honra e alegria, Mestre, poder ver-te –ele o saúda.
Jesus também diz a sua saudação:
– A paz esteja contigo.
E acrescenta:
– A tarde está chegando, e a chuva já vem perto. Eu te peço abrigo e um
pão para Mim e para os meus discípulos.
– Entra, Mestre. A minha casa é tua. O servo já está para desenfornar o
pão. Fico muito feliz em poder oferecê-lo com o queijo do leite de minhas
ovelhas e com os frutos de meus terrenos. Entra, entra, que o vento está
úmido e frio…
E, muito atencioso, segura aberta a porta, e se inclina, quando Jesus vai
passando. 298.3Mas depois, de repente, muda de tom, para dirigir-se a alguém
que ele está vendo, e lhe diz, cheio de ira:
– Ainda estás aqui? Vai-te embora. Aqui não há nada para ti. Vai-te!
Entendeste? Aqui não há lugar para vagabundos…
E resmunga por entre dentes.
– … E talvez até ladrões como tu.
Uma vozinha chorosa responde:
– Tem piedade, senhor. Um pão, pelos menos, para o meu irmãozinho.
Nós estamos com fome…
Jesus, que tinha entrado na ampla cozinha, muito vistosa, por causa da
grande lareira, que serve também de fogão para alumiá-la, vai até a entrada.
Já mudou o seu rosto. Severo e triste agora, ele pergunta, não ao
hospedeiro, mas em geral, parecendo estar falando à eira silenciosa, ou à
figueira despojada de folhas, ou ao poço escuro:
– Quem é que está com fome?
– Eu, Senhor. Eu e o meu irmão. Um pão somente, e nós iremos
embora.
Jesus está do lado de fora, na eira, que vai ficando mais sombria, por
causa do crepúsculo e de uma chuva que está para cair.
– Vêm cá –diz Ele.
– Tenho medo, Senhor.
– Vem, te digo. Não tenhas medo de Mim.
Da parte detrás da casa, aponta a pobre menina. À pequena e miserável
túnica com que ela está vestida, vem agarrado o seu irmãozinho. Eles vêm
vindo cheios de medo. Lançam um olhar tímido para Jesus, outro olhar
espavorido para o dono da casa, que está olhando para eles de soslaio, e
dizendo:
– São uns vagabundos, Mestre. E ladrões. Há pouco, eu encontrei este
esgaravatando perto do lagar. Certamente queria roubar. Ninguém sabe de
onde eles vêm. Não são deste lugar.
Jesus lhe presta atenção, por assim dizer. Olha, com um olhar muito
fixo para a menina, que está com um rosto macilento e com as trancinhas
despenteadas, com dois rabichos por detrás das orelhas, amarrados sobre a
nuca com uma tirinha de trapo. Mas o rosto de Jesus não está severo ao
olhar para a menina. Ele está triste, mas sorri para encorajá-la.
– É verdade que querias roubar? Dize a verdade.
– Não, Senhor. Eu tinha pedido um pouco de pão, porque estou com
fome. Mas não me deram. Então, eu vi uma crosta de pão, untada com óleo,
lá no chão, perto do lagar, e fui apanhá-la. Eu estou com fome, Senhor.
Ontem me foi dado somente um pão, e eu o guardei para Matias… Por que
não nos colocaram juntos com a mamãe no sepulcro?
A menina chora desconsoladamente, e o irmãozinho faz como ela.
– Não chores.
Jesus a consola, acariciando-a, e puxando-a para Si:
– Responde-me: de onde és?
– Da planície de Esdrelon.
– E vieste até aqui?
– Sim, Senhor.
– Faz muito tempo que morreu a tua mãe? E pai, tu não tens?
– Meu pai foi morto pelo sol, no tempo da colheita, e a mamãe na lua
passada… ela e o menino que ia nascer morreram…
E o choro aumentou.
– Não tens nenhum parente?
– Nós viemos de muito longe! Não éramos pobres… Depois o pai
precisou pôr-se a serviço de outros. Agora ele está morto, e minha mãe com
ele.
– Quem era o patrão dele?
– O fariseu Ismael.
– O fariseu Ismael!… –(não se pode reproduzir o modo como Jesus
repetiu esse nome)–. Vieste embora por tua vontade, ou foi ele que te
mandou?
– Ele me mandou, Senhor. Ele disse: “Que vão para a estrada os cães
esfaimados.”
298.4– E tu, Jacó, por que não deste pão a estas crianças? Um pão, um
pouco de leite e um punhado de feno para se deitarem nele, nessa canseira
em que estão?
– Mas… Mestre… o pão que eu tenho é a conta para mim… o leite é
pouco… e tê-los em casa… Esses aí são como animais vadios. Se fizermos
cara boa para eles, eles não se vão embora…
– Então, estão te faltando lugar e alimento para estes dois infelizes?
Podes dizer isso sem mentir, Jacó? A colheita grande, o vinho em
quantidade, o óleo em abundância, as frutas que tornam famosa a tua
propriedade este ano, para que foi que tudo isso veio? Tu ainda te lembras?
No ano passado, a chuva de pedras havia arruinado os teus bens, e tu
estavas pensativo, pensando em tua vida… Eu vim[4], e te pedi um pão…
Tu me havias ouvido falar um dia e me tinhas permanecido fiel… e, em teu
sofrimento, me abriste o coração e a casa, e me deste um pão e um abrigo. E
Eu, ao sair, que te disse, na manhã seguinte? Jacó, tu compreendeste a
Verdade. Sê sempre misericordioso, e acharás misericórdia. Pelo pão que
deste ao Filho, do homem, estes campos te darão riquezas de cereais e,
carregados, como se sobre eles estivessem os grãos da areia do mar, assim
serão os teus olivais, carregados de azeitonas. E ficarão inclinadas até o
chão, pelo peso das maçãs, as tuas macieiras. Tudo isso tu tiveste, e és o
mais rico desta região, neste ano. E tu estás negando um pão a duas
crianças!…
– Mas, Tu eras o Rabi…
– Justamente porque Eu o era é que Eu podia fazer das pedras pães.
Mas estes, não. Eu te digo: verás um novo milagre, e te virá um castigo, um
grande castigo. Mas, então, batendo no peito, dize: “Eu o mereci.”
298.5 Jesus volta-se para as crianças:
– Não choreis. Ide àquela planta, e colhei.
– Senhor, mas ela não tem nada –objeta a menina.
– Vai.
A menina vai e volta com umas maçãs vermelhas e bonitas, que ela
recolheu em suas vestes.
– Comei, e vinde comigo.
E diz aos apóstolos:
– Vamos levar estes dois pequeninos à Joana de Cusa. Ela sabe lembrar-
se dos benefícios recebidos, e é misericordiosa, por amor a quem foi
misericordioso. Vamos.
O homem, espantado e humilhado, tenta fazer-se perdoar:
– Já é noite, Mestre, a chuva pode cair, enquanto vais pelo caminho.
Entra de novo em minha casa. A serva já vai desenfornar o pão… Ela dará
também para estes…
– Não é preciso. Tu o darias, não por amor, mas por medo do castigo
prometido.
– Não é então este (e mostra as maçãs apanhadas na árvore, que antes
estava nua, e que os esfaimados comem avidamente), não é, então, este o
milagre?
– Não.
Jesus está muito severo.
– Oh! Senhor, Senhor, tem piedade de mim. Já compreendi. Tu me
queres punir nas colheitas! Tem piedade, Senhor!…
– Nem todos aqueles que me chamam Senhor me terão, porque não é na
palavra, e sim no ato, que se dá testemunho de amor e respeito. Terá
piedade, quem a tiver tido.
– Eu te amo, Senhor.
– Não é verdade. Ama-me quem ama, porque assim Eu ensinei. Tu não
amas senão a ti mesmo. Quando me amares como Eu ensinei, o Senhor
voltará. 298.6Agora Eu me vou. A minha parada é para fazer o bem, para
consolar os aflitos e enxugar as lágrimas dos órfãos. Como uma galinha
estende as asas sobre os seus pintinhos indefesos, assim Eu estendo o meu
poder sobre aqueles que sofrem e que estão sendo atormentados. Vinde,
crianças. Logo tereis casa e pão. Adeus, Jacó.
E, não contente só por ir, faz ainda que alguém tome nos braços a
menina cansada. É André que a pega e a envolve em seu manto. E Jesus
pega o menino e vão indo pelo caminhozinho, já no escuro, com as suas
cargas, que eles vão levando por piedade e que não choram mais.
Pedro diz:
– Mestre! Grande felicidade foi para estes, que Tu tenhas chegado.
Mas, para Jacó!… Que lhe farás, Mestre?
– Justiça. Ele conhecerá, não a fome, porque está com seus celeiros
cheios para muito tempo ainda. Mas a restrição, pois não darão semente os
grãos semeados, e as macieiras e as oliveiras ficarão cobertas só de folhas.
Estes inocentes, não de Mim, mas do Pai, receberam pão e casa. Porque o
meu Pai é Pai também dos órfãos. É Ele que dá ninho e comida aos
passarinhos dos bosques. Eles podem dizer, e todos os miseráveis com eles,
os miseráveis que sabem permanecer como “filhos inocentes e amorosos”
que em sua pequena mão foi posto por Deus o alimento, e que com sua guia
paterna Ele os conduz para uma casa hospitaleira.
A visão cessa assim, e eu fico numa grande paz.
298.7Diz Jesus:
– Esta é mesmo para ti, ó alma que choras, olhando para as cruzes do
passado e as nuvens do futuro. O Pai terá sempre pão para pôr na tua mão e
ninho para recolher sua pomba chorosa.
Para todos é o ensinamento de que Eu sei ser o “Senhor” com justiça.
Mas não se me engana, nem se me adula, com uma saudação mentirosa.
Aquele que fecha o coração para o irmão, fecha o coração para Deus, e
Deus para ele.
É o primeiro dos mandamentos, ó homem: Amor e amor. Quem não
ama, mente ao dizer-se cristão. É inútil a freqüência aos sacramentos e aos
ritos, inútil é a oração, se falta a caridade. Tornam-se fórmulas e até
sacrilégios. Como podeis ir ao Pão eterno e matar com ele vossa fome,
quando negastes pão ao faminto? Será mais precioso o vosso pão do que o
meu? Será mais santo? hipócritas! Eu não uso de uma medida, ao entregar-
me à vossa miséria, e vós, que sois miséria, não tendes piedade das misérias
que são, aos olhos de Deus, não odiosas, como as vossas. Porque aquelas
são desventuras, e as vossas são pecado. Muitas e muitas vezes me dizeis:
“Senhor, Senhor”, a fim de me tornardes benigno para com os vossos
interesses. Mas, não dizeis por amor ao próximo. Vós não fazeis nada em
nome do Senhor pelo próximo.
Olhai: na coletividade e na individualidade, que é que vos deu a vossa
religião mentirosa e vossa verdadeira falta de caridade? O abandono de
Deus. E o Senhor voltará, quando souberdes amar como Eu ensinei. Mas
para vós, pequeno rebanho dos que sofrem sendo bons, Eu digo: “Nunca
sois órfãos. Nunca sois abandonados. Antes deveria não existir Deus, do
que faltar com a Providência para com os seus filhos. Estendei a mão: o Pai
vos dá tudo como ‘pai’, isto é, com um amor que não avilta. Enxugai vossas
lágrimas. Eu vos tomo e vos levo, porque tenho piedade da vossa fraqueza.”
O mais amado das criaturas é o homem. Quereis duvidar se o Pai será mais
piedoso para com um passarinho, do que para com o homem? Ele o será
mais para com o homem fiel, Ele, que é longânime também para com o
pecador, e lhe dá tempo e modo de ir a Ele? Oh! Se o homem
compreendesse quem é Deus!
Vai em paz, Maria. Tu me és querida como os dois orfãozinhos que
viste, e mais ainda. Vai em paz. Eu estou contigo.
[…]
21 de agosto de 1944.
298.8 Diz Maria:
– Maria, fala a Mãe. O meu Jesus falou da infância do espírito[5], um
dos requisitos necessários para a conquista do Reino. Ontem eu te mostrei
uma página da sua vida de Mestre. Tu viste meninos. Uns pobres meninos.
Não havia outras coisas a dizer? Sim. E eu as vou dizer. A ti, que eu quero
tornar sempre mais querida para Jesus. É um detalhe, no quadro que falou
ao teu espírito, para o espírito de muitos. Mas os detalhes, é que fazem ficar
bonito um quadro, são eles que revelam a capacidade do pintor e a
sabedoria do observador. Eu quero fazer-te notar a humildade do meu Jesus.
Aquela pobre menina, em sua ignorante simplicidade, não trata de
modo diferente o pecador, que tem um coração de pedra, e o meu Filho. Ela
não entende o que é Rabi, nem o que é Messias. É pouco menos do que uma
selvagem, que viveu nos campos, em uma casa onde desprezavam o Mestre,
porque o fariseu Ismael desprezava o meu Jesus e, por isso, ela nunca ouviu
falar dele, e nunca o tinha visto.
O pai e a mãe dela, alquebrados por um trabalho duro, que o cruel
patrão exigia deles, não tinham tido tempo nem modo de levantar a cabeça
dos torrões das glebas, que eles esboroavam. Talvez já tivessem ouvido,
enquanto estavam ceifando o feno ou as messes, ou colhendo frutas e
cachos de uvas, ou quebrando azeitonas no duro trabalho das moendas,
algum clamor de hosanas e, então, terão levantado por um momento a
cabeça cansada. Mas o medo e o cansaço terão feito abaixarem-se de novo
aquelas cabeças, como sob um jugo. Eles tinham morrido, pensando que o
mundo fosse somente ódio e dor. Enquanto que, pelo contrário, o mundo era
amor e bem, desde quando os santíssimos pés do meu Jesus o passaram a
calcar. Pobres servos de um desapiedado patrão, eles morreram, sem terem
encontrado, nem uma vez, o olhar e o sorriso do meu Jesus, nem ouviram a
sua palavra, que dava uma tal riqueza ao espírito que, por ela, os indigentes
se sentiam como que enriquecidos os esfaimados saciados, os doentes sãos
os que sofriam consolados.
Pois bem. Jesus não diz: “Eu, que sou o Senhor, te digo: Faze isto.” Ele
se conserva anônimo.
E aquela pequena, tão ignorante que não compreendia nada, nem
mesmo diante do milagre da macieira despojada até de folhas, mas que
enche um dos seus ramos de maçãs para matar a fome deles, ela o continua
a chamar “Senhor”, como chamava a Ismael de patrão e a Jacó de cruel. Ela
se sente atraída pelo bom Senhor, pois a bondade sempre atrai. E mais nada.
Ela o acompanha com confiança. E passa a amá-lo de repente, como por um
instinto, pobre pequeno ser, perdido neste mundo, e numa ignorância
desejada pelo mundo, do grande mundo dos poderosos e gozadores, que
querem deter nas trevas os inferiores, a fim de poderem torturá-los à
vontade e tirar deles o maior proveito.
298.9Saberá, pois, quem era aquele “Senhor” que, pobre como ela, sem
casa nem alimento, sem mãe, pois tudo havia deixado por amor aos
homens, até daquela migalha de homem que era ela, pobre criatura ainda
pequena, aquele Senhor que lhe havia dado frutos miraculosos, querendo
tirar-lhe dos lábios e do coração o amargor da maldade humana, que cria o
ódio dos miseráveis contra os poderosos, por meio de um fruto do Pai, não
com um pedaço de pão oferecido tardiamente e que para ela teria tido
sempre um sabor de dureza e de pranto.
Verdadeiramente aquelas maçãs recordavam a do Paraíso Terrestre. Um
fruto que apareceu no ramo para o Bem e para o Mal, teria significado a
redenção de todas as misérias e, antes de todas, a da ignorância de Deus,
para os dois orfãozinhos, e significado o castigo para aquele que,
conhecendo já a Palavra, tinha agido como se não a conhecesse. Saberá pois
da boa mulher que a acolheu em nome de Jesus, quem era Jesus, que para
ela foi muitas vezes Salvador. Salvador da fome, das intempéries, dos
perigos do mundo e da culpa original.
Mas para ela Jesus sempre teve a luz daquele dia, e naquela luz sempre
lhe apareceu: o Senhor bom, de uma bondade incrível, o Senhor que tinha
carícias e dons, o Senhor que a tinha feito esquecer de que não tinha pai
nem mãe, que estava sem casa e sem roupa, porque Ele é doce como uma
mãe, e lhes havia dado um ninho em seu cansaço e uma coberta para a sua
nudez, com a veste do seu peito e o seu manto e os de outras pessoas boas
que estavam com Ele.
Uma luz paternal e suave, que não pereceu sob as ondas das lágrimas,
nem mesmo quando ela ficou sabendo que Ele estava sendo atormentado
sobre uma cruz, nem mesmo quando, como uma das pequenas fiéis da
primitiva Igreja, ela viu em que se havia transformado o rosto do seu
“Senhor”, debaixo das pancadas e dos espinhos, e quando pensou como
estava Ele agora no Céu, à direita do Pai. Uma luz que lhe sorriu, em sua
última hora na terra, conduzindo-a sem temor para o seu Salvador, uma luz
que lhe sorriu de novo, e tão inefavelmente doce, no fulgor do Paraíso.
298.10Jesus olha assim também para ti. Procura vê-lo sempre, como a tua
longínqua homônima, e sê feliz por este amor dela. Sê simples, humilde,
fiel como a pobre pequena Maria, que ficaste conhecendo. Vê até onde ela
chegou, apesar de ser uma pobre e pequena ignorante de Israel: chegou ao
Coração de Deus. O amor se lhe revelou, como a ti, e ela se tornou douta na
verdadeira Sabedoria.
Tem fé, fica em paz. Não há miséria que o meu Filho não possa
transformar em riqueza e não há solidão que Ele não possa preencher, como
não há falta que Ele não possa cancelar. O passado não existe, quando o
amor o anula. Mesmo que tenha sido um passado horrendo. Queres tu
temer, se não teve medo Dimas, o ladrão[6]? Ama,ama, e não tenhas medo
de nada.
A Mãe te deixa a sua bênção.
[4] Eu vim, en 110.5.
[5] falou da infância do espírito em um “ditado” no mesmo dia, o que é relatado no livro “I quaderni del 1944” (Os Cadernos de
1944).
[6] Dimas, o ladrão 609.11/14.
299. A entrega dos órfãos
Maria e Matias a Joana de Cusa.
11 de outubro de 1945.
299.1 O lago de Tiberíades está todo como uma grande escama cinzenta.
Parece estar feito de um mercúrio fosco de tão pesado que ele se mostra
nesta calmaria, pois mal permite o sinal de umas poucas ondas grandes, que
chegam até aqui cansadas, e nem mais produzem espuma, mas param e se
acalmam, logo depois de terem tentado mover-se, mas vão ajuntar-se às
outras águas sem nenhum brilho, por baixo de um céu sem esplendor.
Pedro e André estão dando voltas ao redor de sua barca. Tiago e João
também estão perto da deles, e estão preparando a partida na praiazinha de
Betsaida. Sente-se o cheiro das ervas e da terra encharcadas de água, e
vêem-se nevoas ligeiras sobre a superfície coberta de ervas, para o lado de
Corozaim. A tristeza de novembro se deixa ver em todas as coisas.
299.2 Jesus sai da casa de Pedro, segurando pelas mãos os pequenos
Matias e Maria, que a mão da Porfíria, com um cuidado maternal, fez que
ficassem bem alinhados, trocando a veste de Maria por uma de Marziam.
Mas Matias, como está ainda muito pequeno para poder ganhar aquele
mesmo presente fica, por enquanto, tremendo dentro da sua sovada túnica
de algodão, e de tal modo, que a compassiva Porfíria volta para casa e sai
de lá trazendo um pedaço de coberta e com ele envolve o menino, como se
a coberta fosse um manto. Jesus lhe agradece, enquanto ela se ajoelha na
despedida e se afasta, depois de um ultimo beijo nos dois órfãos.
– Por mais meninos que tivesse, ela ficaria também com estes –comenta
Pedro, que estava observando a cena e que, por sua vez, se inclina para
oferecer às duas crianças um pedaço de pão recoberto com mel, que ele
tinha guardado debaixo de um dos bancos da barca, o que faz André rir e
dizer:
– Logo tu, hein? Chegaste até a roubar mel da tua mulher para dar um
pouco de alegria a estes dois.
– Roubado! Roubado! O mel é meu!
– Sim, mas a minha cunhada está com ciúme, porque é para Marziam.
E tu, que sabes disso, penetraste, descalço como um ladrão, na cozinha, na
noite passada, para apanhar o tanto necessário para preparar aquele pão. Eu
te vi, meu irmão, e ri, porque tu estavas olhando para todos os lados, como
um menino que está com medo das palmadas da mãe.
– Grande espião –diz, rindo, Pedro, abraçando seu irmão que, por sua
vez, o beija, dizendo:
– Meu caro espertalhão!
Jesus observa e sorri abertamente, estando entre as duas crianças, que
estão devorando o seu pão.
299.3 Do interior de Betsaida chegam os outros oito apóstolos. Talvez
estivessem como hóspedes de Filipe e Bartolomeu.
– Depressa! –grita Pedro, e pega num só abraço as duas crianças, para
levá-las à barca, sem que elas molhem seus pezinhos nus–. Não tendes
medo, não é verdade? –pergunta ele, enquanto vai chapinhando na água,
com suas pernas curtas e robustas, nu como está, até um bom palmo acima
dos joelhos.
– Não, senhor –diz a menina, mas agarrando-se convulsivamente ao
pescoço de Pedro e fechando os olhos, quando ele a coloca na barca, que
está balançando com o peso de Jesus, que nela acabou de entrar. O menino,
mais corajoso ou mais assombrado, nem pode falar.
Jesus vai sentar-se, e puxa para perto de Si os dois pequeninos,
recobrindo-os com o grande manto, que parece uma asa estendida para
proteger dois pintinhos.
Seis em uma barca, seis na outra, já estão todos a bordo. Pedro tira a
tábua de embarque e, com um vigoroso empurrão na barca, para que ela vá
mais para o meio da água e, dando um salto, pula para bordo, sendo imitado
por Tiago na barca dele. Aquele empurrão e o pulo de Pedro fizeram
balançar muito a barca, e a pequenina geme: “Mamãe!”, escondendo o rosto
no colo de Jesus e agarrando-se aos joelhos dele. Mas a barca já vai indo
suavemente, ainda que seja muito trabalhoso para Pedro, André e o
empregado, que precisam remar, ajudados por Filipe, que faz o trabalho de
quarto remador. A vela está pendurada, pois nesta calmaria pesada e úmida,
ainda não pode ser usada. Todo o trabalho há de ser feito com os remos.
– É um belo vogar! –grita Pedro para os da outra barca, na qual ocupa o
lugar de quarto homem Iscariotes, com uma voga bem feita, que Pedro
elogia.
– Força, Simão! –responde Tiago–. Força, ou te venceremos. Judas é
forte como um das galeras. Bravo, Judas!
– Sim. Vamos fazer-te o chefe da equipagem –confirma Pedro, que vai
vogando por dois.
E se ri, dizendo:
– Mas, por Simão de Jonas, não fiqueis torcendo para que ele se
apodere do primeiro lugar. Aos vinte anos, eu já era chefe dos remadores
nas apostas que havia entre vários lugares.
E, alegre, continua remando com os seus companheiros:
– Oh! Vamos! Oh! Para a frente!
E as vozes se esvaem pelo meio silencioso do lago, que está deserto
nesta hora da manhã.
299.4 As crianças já vão criando coragem. Continuando ainda debaixo do
manto, elas levantam seus rostinhos, uma de um lado, e a outra do lado de
lá do Mestre, que as segura abraçadas, e já estão esboçando a sombra de um
sorriso. Estão interessadas em olhar o trabalho dos remadores. E trocam
seus comentários.
– Parece que anda em um carro sem rodas –diz o menino.
– Não. Em um carro sobre as nuvens. Olha! Parece estar caminhando
no céu. Olha! Vamos subir em uma nuvem –diz Maria, ao ver que a barca
mergulha num lugar onde se reflete uma grande nuvem fofa. Ela se ri
levemente. Mas o sol vem interromper aquela meia penumbra e, ainda que
seja um pálido sol de novembro, as nuvens estão douradas, e o lago as
reflete muito brilhantes.
– Oh! Que bonito! Agora vamos para o fogo. Oh! Que bonito! Bonito –
e o menino bate as mãozinhas.
A menina, porém, se cala e depois explode num choro. Ela, soluçando,
explica:
– A mamãe recitava uma poesia, um salmo, não sei, para conservar-nos
bons, a fim de que pudéssemos rezar, ainda que com tantas dores… e
recitava aquela poesia que fala de um Paraíso, que vai ser como um lago
cheio de luz, de um fogo suave, onde só haverá Deus e alegria, e para onde
irão todos os que são bons… quando tiver vindo o Salvador… Este lago
dourado me faz lembrar isto… A minha mamãe!
Matias também está chorando. E todos se compadecem dele.
299.5 Levanta-se um murmúrio de várias vozes, e, mais alta do que o
lamento dos orfãozinhos, ouve-se a voz de Jesus:
– Não choreis. A vossa mamãe vos conduziu a Mim, e ela está aqui
conosco, enquanto Eu vos levo a uma mamãe sem filhos. Ela ficará muito
contente por ter duas crianças, em lugar do filho dela, que está onde está a
vossa mamãe. Porque ela também chorou, vós sabeis? Morreu o seu
pequenino, como morreu a vossa mamãe…
– Oh! Então, nós vamos a ela e o pequenino irá ficar com a nossa
mamãe! –diz Maria.
– É assim mesmo. E sereis todos felizes.
– Como é essa mulher? O que ela faz? Ela é camponesa? Tem um
patrão bom?
Os pequenos se interessam.
– Não é camponesa, mas tem um jardim cheio de rosas, e é boa como
um anjo. Tem um bom marido. Também ele vos quererá bem.
– Achas que sim, Mestre? –pergunta Mateus, um pouco incrédulo.
– Tenho certeza. E ficareis persuadidos disso. Há algum tempo, Cusa
queria Marziam para fazer dele um cavaleiro.
– Ah! Isto, não –grita Pedro.
– Marziam será um cavaleiro de Cristo. Somente isso, Simão. Fica
tranqüilo.
O lago fica cinzento outra vez. Levanta-se um pé de vento, que enruga
as águas. Estendem a vela, e a barca vai agora em linha reta e mais rápida.
Mas as crianças de tal modo estão sonhando com a nova mãe, que nem
sentem medo.
299.6 Passam por Magdala, com suas casas brancas pelo meio do verde.
Passam em frente à campina, que fica entre Magdala e Tiberíades. Já
aparecem as primeiras casas de Tiberíades.
– Para onde vamos Mestre?
– Para o pequeno porto de Cusa.
Pedro se vira e dá ordens ao empregado. A vela vai descendo, enquanto
a barca se aproxima do pequeno porto e depois vai entrando por ele, indo
parar junto ao pequeno molhe, acompanhada pela outra. Estão paradas, uma
ao lado da outra, como duas patinhas cansadas. Desembarcam todos, e João
vai correndo na frente, para avisar aos jardineiros.
Os pequeninos se agarram sem medo a Jesus e Maria, com um suspiro,
puxando a veste de Jesus, lhe pergunta:
– Será boa mesmo?
João já voltou:
– Mestre, um servo já está abrindo a cancela. Joana já se levantou.
– Está bem. Esperai todos aqui. Eu vou à frente.
E Jesus vai sozinho. Os outros o ficam olhando ir, e estão fazendo
comentários, uns mais, outros menos favoráveis sobre o que Jesus quer
fazer. Não faltam dúvidas nem críticas. Mas do lugar em que eles estão não
vêem mais do que a corrida de Cusa, que se inclina até o chão, na soleira da
cancela e, em seguida, entra pelo jardim, à esquerda de Jesus. Depois não se
vê mais nada.
299.7 Mas eu vejo. Vejo Jesus que vai lentamente, ao lado de Cusa, que
lhe mostra toda a sua alegria em tê-lo como hóspede:
– Minha Joana ficará muito alegre. E eu também. Ela está sempre
melhor. Ela me falou da viagem. Que triunfos, meu Senhor!
– Não ficaste apreensivo?
– Joana está feliz. Eu fico alegre por vê-la assim. Eu podia ter ficado
sem ela, há meses, Senhor.
– Podias. Eu ta restituí. Procura ser grato a Deus por isso.
Cusa olha para Ele dolorosamente surpreso… e depois murmura:
– É uma censura, Senhor?
– Não. É um conselho. Sê bom, Cusa.
– Mestre, eu sou servo do Herodes.
– Eu sei. Mas a tua alma não é serva de ninguém, a não ser de Deus, se
tu quiseres.
– É verdade, Senhor. Eu vou me corrigir. As vezes, sou vítima do
respeito humano…
– Tu o terias tido no ano passado, quando querias salvar Joana?
– Ah! Não. À custa de perder até toda a honra, eu teria me dirigido a
quem achasse que a podia salvar.
– Faze o mesmo pela tua alma Ela é mais preciosa ainda do que Joana.
299.8Ei-la que vem.
Apressam o passo, indo para ela, que vem correndo pela avenida, ao
encontro deles.
– Mestre meu! Eu não esperava ver-te tão cedo. Que bondade essa a
tua, que te traz até à tua discípula?
– Uma necessidade, Joana.
– Uma necessidade? Qual é? Fala e, se pudermos, te ajudaremos –
dizem os dois ao mesmo tempo.
– Encontrei ontem de tarde, em uma estrada deserta, duas pobres
crianças… uma menina pequena e um meninozinho…, Descalços,
esfarrapados, famintos, sozinhos… e os vi, quando um homem, que tem um
coração de lobo, os expulsava, como se fossem lobos. Eles estavam
morrendo de fome… Àquele homem Eu havia dado um bem-estar no ano
passado. E ele agora negava um pão a dois órfãos. Pois eles são órfãos.
Órfãos, e indo pelos caminhos do mundo cruel. Esse homem terá o seu
castigo. Quereis vós ter a minha bênção? Eu vos estendo a mão. Sou um
mendigo de amor para estes órfãos sem casa, sem roupas, sem alimento,
sem amor. Quereis vós ajudar-me?
– Mas, Mestre, Tu o pedes? Dize o que queres, quanto queres, dize
tudo –diz, impetuoso, Cusa.
E Joana não fala, mas, com as mãos colocadas sobre o coração, com
uma lágrima sobre os longos cílios e um sorriso de desejo sobre seus lábios
vermelhos, ela espera, e assim fala mais do que se estivesse falando.
Jesus olha para ela, e sorri:
– Desejaria que aquelas crianças tivessem uma mãe, um pai, uma casa.
E que a mãe tivesse o nome de Joana…
Não teve tempo de acabar, porque o grito de Joana é como o de alguém
que ficou livre de uma prisão, enquanto ela se prostra para beijar os pés do
seu Senhor.
– E tu, Cusa, que dizes a isso? Acolhes em meu nome, estes meus
diletos, queridos, oh! muito mais queridos do que jóias para o meu coração?
– Mestre, onde estou eu? Leva-me a eles e, por minha honra, eu te juro
que, desde o momento em que eu puser minha mão sobre as cabeças
inocentes deles, eu os amarei como um verdadeiro pai, em teu nome.
– Então, vinde. Eu sabia que não viria perder meu tempo. Vinde. Eles
são rústicos e espantados, mas são bons. Acreditai em Mim, que vejo os
corações e o futuro. Eles darão paz e união à vossa união, não somente
agora, mas também no futuro. No amor a eles vós vos encontrareis. Seus
inocentes abraços serão a melhor cal para a vossa casa de esposos. E o Céu
estará sobre vós, benigno e misericordioso sempre para com a vossa
caridade. Já estão do lado de fora da cancela. Estamos vindo de Betsaida…
Joana não escuta mais nada. Ela corre na frente, movida pelo desejo
ardente de acariciar crianças.
E ela o faz, caindo de joelhos, para apertar contra o seu seio os dois
orfãozinhos, beijando-os em suas faces macilentas, enquanto eles ficam
olhando, espantados, a bela senhora de ricas vestes. E olham também para
Cusa, que os acaricia, e pega Matias nos braços. E ficam olhando o belo
jardim e os servos que vão chegando… E olham a casa, que abre os seus
vestíbulos cheios de riquezas para Jesus e para os seus apóstolos. Olham
para Ester, que os cobre de beijos.
Um mundo de sonhos abriu-se para os pequeninos desamparados…
Jesus observa e sorri.
300. Com escribas e fariseus
na casa do ressuscitado de Naim.
12 de outubro de 1945.
300.1 A cidade de Naim está em grande festa, pois hospeda Jesus pela
primeira vez, depois do milagre[7] do jovem Daniel, que foi por Ele
ressuscitado.
Precedido e acompanhado por um grande número de pessoas, Jesus
atravessa, bendizendo, a cidade. Àqueles de Naim, se uniram pessoas de
outros lugares, provenientes de Cafarnaum, onde tinham ido procurá-lo e de
onde tinham sido encaminhados para Caná, de onde vieram para Naim.
Tenho a impressão de que, agora que Jesus já tem muitos discípulos, Ele já
constituiu com eles uma espécie de rede de informações, de tal modo que os
peregrinos, que o estiverem procurando, o possam encontrar, apesar dos
seus constantes deslocamentos, ainda que de poucas milhas cada dia,
conforme o permitam as estações e os dias curtos. E, entre essas pessoas,
que vêm de outros lugares para procurá-lo, não faltam os fariseus e
escribas, aparentemente muito cerimoniosos…
300.2 Jesus é hóspede na casa do jovem ressuscitado. Na mesma casa
estão reunidos os notáveis da cidade. E a mãe de Daniel, vendo os escribas
e fariseus — sete, como os vícios capitais —, com muita humildade os
convida, desculpando-se por não poder oferecer-lhes uma casa mais digna.
– Aqui está o Mestre, aqui está o Mestre, mulher. Isto dá valor até a
uma espelunca. Mas a tua casa é bem mais do que uma espelunca, e nós
nela entramos, dizendo: “Paz a ti e à tua casa.”
De fato, a mulher, embora não seja uma ricaça, desdobrou-se em
quatro, para honrar Jesus. Certamente devem ter entrado em competição
todos os ricaços de Naim, que se puseram de acordo para prepararem a casa
e a mesa. E as suas respectivas esposas estão olhando furtivamente de todos
os lados, a comitiva, que vai passando pelo corredor de entrada e dirigindo-
se para duas salas, que estão em frente uma da outra, e nas quais a dona da
casa mandou colocar as mesas. Talvez tenham pedido somente isso, porque
houve um empréstimo de louça e de cadeiras, e uma prestação de serviço
junto aos fornos, mais para poderem ver de perto o Mestre e respirar onde
Ele respira. E agora estão deixando-se ver aqui e ali, coradas, enfarinhadas,
encinzadas, ou com as mãos gotejando, conforme as suas incumbências na
cozinha. Elas fazem sinais com seus olhares umas para as outras, pegam
seus retalhos do olhar divino, suas migalhas da voz divina, bebem a doce
bênção e a doce figura, com o olhar e os ouvidos, e voltam ainda mais
coradas para os seus fornos, para suas masseiras e suas pias: felizes.
Felicíssima aquela que com a dona da casa, oferece a bacia para as
abluções aos hóspedes de respeito. Ela é uma jovenzinha, de cabelos e
olhos morenos, mas com uma tonalidade difusa de rosa. E ainda mais rosa
ela fica, quando a dona da casa informa a Jesus que ela é noiva do seu filho,
e que logo vai ser o casamento.
– Nós esperamos a tua vinda para realizá-lo, a fim de que a casa toda
fosse santificada por Ti. Abençoa-a, então, para que ela seja uma boa
mulher nesta casa.
Jesus a olha e, como a noivinha já se inclina, lhe impõe as mãos,
dizendo:
– Refloresçam em ti as virtudes de Sara, Rebeca[8] e Raquel e de ti
sejam gerados verdadeiros filhos de Deus, para sua glória e para alegria
desta casa.
Já Jesus e os notáveis todos se purificaram e entram na sala do
banquete com o jovem dono da casa, enquanto os apóstolos, com outros
homens de Naim, menos influentes, entram na sala da frente. E o banquete
começa.
300.3 Pelas conversas, entendo que, antes que tivesse início a visão, Jesus
havia pregado e curado em Naim. Mas osfariseus e os escribas pouco se
detêm sobre isso, enquanto estão enchendo de perguntas os que são de
Naim para saber pormenores da doença de que havia morrido Daniel e
quantas horas eram decorridas desde a hora da morte até a hora de sua
ressurreição, e se ele tinha sido completamente embalsamado etc. etc.
Jesus se afasta de todas essas indagações falando com o ressuscitado,
que está muito bem e come com grande apetite. Mas um fariseu chama
Jesus, para perguntar-lhe se Ele tinha conhecimento de qual era a doença de
Daniel.
– Eu estava vindo de Endor por pura casualidade, desejando contentar
Judas de Keriot como havia contentado João Zebedeu. Eu não sabia nem
mesmo que teria que passar por Naim, quando comecei o caminho para a
peregrinação pascal –respondeu Jesus.
– Ah! Então, não tinhas ido de propósito para Endor –pergunta,
espantado, um escriba.
– Não. Eu não tinha, então, a menor vontade de ir para lá.
– E, então, como é que foste?
– Eu já disse: porque Judas de Simão queria ir.
– E por que este capricho?
– Para ver a gruta da maga.
– Talvez Tu lhe tivesses falado…
– Não. Eu não tinha motivo.
– Eu quero dizer… talvez explicaste, junto com aquele episódio[9],
outros sortilégios, para fazer a iniciação dos teus discípulos em…
– Em quê? Para iniciar na santidade não é preciso fazer peregrinações.
Uma cela ou uma pradaria deserta, um pico de montanha ou uma casa
solitária, servem do mesmo modo. Basta que em quem ensina haja
austeridade e santidade, e em quem ouve, a vontade de santificar-se. É isto
o que Eu ensino, e não outra coisa.
– Mas os milagres que agora fazem estes teus discípulos não são mais
do que prodígios e…
– E vontade de Deus. Somente isto. E, quanto mais santos eles se
tornarem, mais milagres farão. Com a oração, o sacrifício e a obediência
deles a Deus. Não com outras coisas.
– Tens certeza disso? –pergunta um escriba, segurando o queixo com a
mão e medindo a Jesus de alto a baixo com o seu olhar.
E o tom com que ele fala é discretamente irônico e até compassivo.
– Estas são as armas que Eu dei a eles e estas as doutrinas. Portanto, se
entre eles, e são muitos, houver algum que se corromperá com práticas
indignas, por soberba ou outros motivos, não será de Mim que eles terão
recebido este conselho. Eu posso rezar para ver se redimo o culpado. Posso
impor-me a mim mesmo duras penitências expiatórias para obter de Deus
os auxílios, especialmente com as luzes de sua Sabedoria, para que se veja o
erro. Eu posso jogar-me a seus pés, para suplicar-lhe, com todo o meu amor
de Irmão, Mestre e Amigo, a fim de que deixe a culpa. Nem Eu pensaria
estar me aviltando ao fazer isso, porque o preço de uma alma é tão grande,
que vale a pena sofrer todas as humilhações para conquistá-la. Mais do que
isso não posso fazer. E se, não obstante, a culpa continuar, o pranto e o
sangue escorrerão dos meus olhos e de meu coração de Mestre e Amigo
traído e incompreendido.
Que doçura, e que tristeza na voz e no aspecto de Jesus!
Escribas e fariseus olham-se uns aos outros. Fazem uma troca de
olhares, mas não dizem mais nada sobre o assunto.
300.4 Interrogam o jovem Daniel. Se recorda que é a morte? Que sentiu
ao voltar à vida? O que viu naquele intervalo entre a morte e a vida?
– Eu sei que estava gravemente doente, e que passei pela agonia. Oh! É
uma coisa terrível Não me façais pensar nela!… E, no entanto, virá o dia
em que de novo passarei por ela! Oh! Mestre!…
E, aterrorizado, olha para Ele, empalidecendo, ao pensar em ter que
morrer de novo. Jesus o conforta com doçura, dizendo:
– A morte é, por si mesma, uma expiação. Tu, morrendo duas vezes,
ficarás completamente limpo das manchas, e gozarás imediatamente do
Céu. Mas, que este pensamento te faça viver como santo, de modo que haja
em ti somente culpas involuntárias e veniais.
Aí os fariseus voltam a atacar:
– Mas, que foi que sentiste ao voltares à vida?
– Nada. Eu encontrei-me vivo e são, como se tivesse despertado de um
sono longo e pesado.
– Mas te lembras de teres morrido?
– Eu me lembrava de que tinha estado muito doente, tendo chegado à
agonia, e basta.
– E que lembranças tens do outro mundo?
– Nenhuma. Não tenho nada. É um buraco negro, um espaço vazio em
minha vida… Nada.
– Então, para ti não existem o Limbo, nem o Purgatório, nem o
Inferno?
– Quem é que diz que não existem? Certamente eles existem. Mas eu
não me recordo deles.
– Mas, tu tens a certeza de teres estado morto?
Neste ponto, reagem violentamente todos os habitantes de Naim:
– Se ele estava morto? Que quereis mais do que isso? Quando o
colocamos no caixão, o corpo dele já estava começando a cheirar mal. E,
então? Com todos aqueles bálsamos e aquelas faixas, até um gigante estaria
morto.
– Mas tu não te lembras de teres estado morto?
– Eu já disse que não.
O jovem começa a impacientar-se, e acrescenta:
– Que estais querendo concluir com lúgubres discursos? Que uma
cidade inteira estivesse fingindo, ao dizer que eu estava morto, inclusive
minha mãe e minha noiva, que estava ao lado de minha cama quase morta
de tristeza, e eu, tendo sido enfaixado, embalsamado, sem que nada daquilo
fosse verdade? Que dizeis vós? Diríeis que em Naim todos fossem crianças
ou idiotas, que queriam divertir-se? Minha mãe, em poucas horas, ficou de
cabelos brancos. Minha noiva teve que passar por um tratamento, porque a
tristeza e a alegria a haviam tornado quase louca. E vós ainda duvidais? E
para que haveríamos feito uma coisa dessas?
– Para que? É verdade. Para que o teríamos feito? –dizem os de Naim.
300.5 Jesus não diz nada. Ele se entretém pegando e examinando a toalha
da mesa, como faria alguém que estivesse distraído ou fora do assunto. Os
fariseus não sabem o que dizer… Mas Jesus, de repente, abre a boca,
quando a conversação terminou e o assunto ficou esgotado, e diz:
– A razão é a seguinte: Esses aí (e mostra os fariseus e os escribas)
querem dizer que a tua ressurreição não foi nada mais do que um plano
combinado e bem feito para aumentar a estima que as multidões já sentem
por Mim. Eu teria sido o idealizador do plano, e vós os meus cúmplices,
para mentir a Deus e ao próximo. Não. Eu deixo os embustes para os que
não têm nenhuma dignidade. Eu não tenho necessidade de feitiçarias, nem
de estratagemas, brincadeiras e cumplicidades para ser o que sou. Por que
quereis vós negar a Deus o poder de restituir a alma a um corpo de carne?
Se Ele a dá quando começa a formar-se a carne, se cria as almas, uma de
cada vez, não poderá dar-lha de novo, quando a alma, voltando à carne pela
oração do seu Messias, pode ser um estímulo para a volta à verdade por
parte de numerosas multidões? Podeis negar a Deus o poder de operar
milagres? Por que lho quereis negar?
– És Tu Deus?
– Eu sou quem sou. Os meus milagres e a minha doutrina dizem quem
Eu sou.
– Mas, então, por que é que este não se lembra de nada, quando os
espíritos que são evocados sabem dizer como são as coisas no além-
túmulo?
– Porque esta alma fala a verdade, já santificada como está pela
penitência de uma primeira morte, ao passo que o que dizem os
necromantes não é verdade.
– Mas Samuel…
– Mas Samuel veio por ordem de Deus, e não da feiticeira, para trazer
ao que foi infiel à Lei a palavra da verdade da parte do Senhor, porque
ninguém pode rir-se das suas ordens.
300.6 – E, então, por que os teus discípulos fazem isso?
A voz arrogante de um fariseu, que quer realçar vivamente o tom da
mesma, chama a atenção dos apóstolos, que estão na sala da frente,
separados desta apenas por um corredor, que tem a largura de pouco mais
de um metro e que não tem portas, nem cortinas pesadas. Ao perceberem
que parecia que estavam sendo chamados, eles se levantam e, sem fazerem
barulho, vão até o corredor, e ficam escutando.
– Em que ponto eles o estão fazendo? Explica-te bem e, se a tua
acusação for verdadeira, Eu os avisarei a fim de que não façam mais uma
coisa contrária à Lei.
– Em que ponto o fazem, eu o sei e comigo muitos outros o sabem. Mas
Tu, que ressuscitas os mortos, e te dizes mais que um profeta, descobre-o
por Ti mesmo. Certamente nós te diremos. Afinal, Tu tens olhos para verem
muitas outras coisas, feitas quando não devem ser feitas, ou não feitas
quando o deveriam ser, faltas essas cometidas pelos teus discípulos. E Tu
não cuidas disso.
– Quereis indicar-me algumas delas?
– Por que os teus discípulos transgridem as tradições[10] dos antigos?
Hoje nós os ficamos observando. Hoje mesmo! Faz menos de uma hora.
Eles entraram na sala deles para comer, e não se purificaram, lavando antes
as mãos!
Se os fariseus tivessem dito: “e antes degolaram alguns cidadãos,” não
teriam proferido aquelas palavras em um tom de tão profundo horror, como
eles fizeram.
300.7 – Vós os ficastes observando, sim. Há tantas coisas que podemos
ver. Coisas belas e coisas boas. Coisas que nos levam a bendizer o Senhor
por ter-nos dado a vida, para que tivéssemos ocasião de vê-las, e porque Ele
criou e permitiu a existência daquelas coisas. Mas vós não as observais. E,
como vós, muitos outros. Mas vós perdeis o tempo e a paz, ao procurardes
ir atrás das coisas não boas.
Sois semelhantes a chacais, ou melhor, a hienas, que vão correndo,
guiadas pelas emanações de algum fedor, sem que o vosso faro seja capaz
de sentir as dos perfumes, que vem transportados pelo vento, que passa
pelos jardins cheios de aromas. As hienas não gostam dos lírios e das rosas,
dos jasmins e da cânfora, dos cinamomos e dos cravos. Para elas estes são
odores desagradáveis. Mas o fedor de um corpo já podre, que está lá no
fundo de um precipício ou à beira de uma rodovia, sepultado debaixo das
moitas, onde o jogou um assassino, ou lançado pela tempestade sobre
alguma praia deserta, inchado, arroxeado, arrebentado, horrível, oh! esse é o
perfume agradável para as hienas! Elas ficam farejando o vento da tarde,
que condensa e transporta consigo todos os odores, que o sol destilou das
coisas que ele aqueceu, para perceberem este especial e convidativo odor.
E, depois de descobrirem o rumo dele, e marcarem bem a direção, partem
correndo, com o focinho levantado, com os dentes já descobertos, tremendo
os maxilares, mostrando um riso histérico, lá se vão para o lugar onde está a
carniça podre. E o cadáver, seja ele de homem ou de algum quadrúpede, de
alguma cobra esmagada pelo camponês, ou de alguma fuínha morta pela
caseira, ou mesmo que seja um simples rato, oh! como isso lhes agrada. E
naquele fedor que está fermentando é que elas mergulham os seus dentes e
comem o seu jantar, lambendo depois os seus beiços…
Há homens que se santificam cada dia? Isto não é coisa que interesse!
Mas se um só homem faz algum mal, ou se mais de um deixa de cumprir,
não um mandamento divino, mas uma prática humana — chamai-a, se
quiserdes, tradição, preceito, mas é sempre uma coisa humana —, eis que
então se vai observá-lo. Vai-se também atrás de alguém que é suspeito… só
para se divertir com isso, ao ver-se que a suspeita é realidade.
300.8 Então, respondei-me vós, respondei-me vós, que até aqui viestes,
não por amor, nem por fé, não por honestidade, mas com uma intenção
maldosa. Respondei-me: por que é que vós transgredis o mandamento de
Deus por uma vossa tradição? Não querereis vós dizer-me que uma tradição
é mais do que um mandamento? Pois bem. Deus disse[11]: “Honra a teu pai
e à tua mãe, e quem amaldiçoar o pai e a mãe é réu de morte.” E vós, ao
contrário, dizeis: “Todo aquele que tiver dito ao seu pai e à sua mãe:
‘Korban’, não está mais obrigado a usar aquilo em favor do pai ou da mãe.”
Portanto vós, com a vossa tradição, anulastes um mandamento de Deus.
Hipócritas! Bem que disse de vós o profeta Isaías[12], profetizando:
“Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim,
e, por isso, eles me honram em vão, ensinando doutrinas e mandamentos
humanos.”
Vós, enquanto vos descuidais dos preceitos de Deus, ficais com as
vossas tradições dos homens, com as vossas lavaduras de ânforas e cálices,
de pratos e das mãos, e outras coisas semelhantes. Enquanto justificais a
ingratidão e a avareza de um filho, com oferecer-lhe o pretexto da oferta de
um sacrifício, para não dar um pão a quem o gerou e está necessitado de
ajuda, e ele tem a obrigação de honrá-los, porque são seus genitores, ficais
escandalizados porque alguém não lava as mãos. Vós alterais e violais a
palavra de Deus, para obedecerdes a palavras feitas por vós e por vós
estabelecidas como preceitos. Vós assim vos proclamais mais justos do que
Deus. Vós vos arrogais o direito de legisladores, enquanto que só Deus é o
Legislador para o seu povo. Vós…
E Ele continuaria, mas o grupo inimigo se retira, debaixo de uma
saraivada de acusações, e sai esbarrando nos apóstolos e em todos os que
estavam reunidos no corredor, como hóspedes e ajudantes da dona da casa,
que para lá tinham sido atraídos pelo forte tom da voz de Jesus.
300.9 Jesus, que se havia posto em pé, torna a sentar-se, fazendo sinal aos
presentes para que entrem todos para onde Ele está e lhes diz:
– Escutai-me todos, e entendei bem esta verdade. Não há nada fora do
homem que, entrando nele, possa contaminá-lo. Mas o que sai do homem,
isso é o que o contamina. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça e use de sua
razão para compreender e use de sua vontade para agir. E agora, vamos.
Vós de Naim, perseverai no bem, e esteja sempre convosco a minha paz.
Jesus se levanta, saúda em particular os donos da casa, e lá se vai pelo
corredor. Mas Ele vê as mulheres amigas que, reunidas em um canto, o
olham pasmadas, e vai diretamente a elas, dizendo-lhes:
– Paz a vós também. Que o Céu vos pague por me terdes assistido com
um amor que não me deixou ter saudade da mesa de minha Mãe. Eu percebi
o vosso amor de mães em cada migalha de pão, em cada iguaria ou assado,
nos doces com mel, no vinho fresco e perfumado. Querei-me sempre bem
assim, ó boas mulheres de Naim. E, em outra vez, não vos canseis tanto por
Mim. Basta-me um pão e um punhado de azeitonas, temperado com o vosso
sorriso materno e o vosso olhar honesto e bom. Sede felizes nas vossas
casas, porque o reconhecimento do Perseguido está sobre vós e Ele parte
consolado pelo vosso amor.
As mulheres, felizes, mas, assim mesmo, chorando, estão todas de
joelhos, e Ele, ao passar, toca levemente nos cabelos brancos ou pretos de
cada uma, como a abençoá-las. Depois sai, e retoma o caminho…
As primeiras sombras da tarde já estão descendo e escondendo a
palidez de Jesus, amargurado por tantas coisas.
[7] do milagre narrado no capítulo 189.
[8] Rebeca era a esposa de Isaac e mãe de Esaú e Jacó, como narrado em Gênesis 24; 25,19-28.
[9] episódio tratado no capítulo 188 com referências bíblicas nas notas.
[10] transgridem as tradições, não a lei. A Lei Mosaica prescrevia para os sacerdotes a ablução das mãos para atos de adoração,
como em Êxodo 30,19-21; 40,30-32. Mas foi a tradição de impor a todos os judeus lavarem as mãos antes de cada refeição, como
também vemos em 160.2 e 414.5/7.
[11] disse, em Êxodo 20,12; 21,17; Levítico 20,9; Deuteronômio 5,16; Korban é um termo hebraico para o que foi oferecido no
templo.
[12] Bem que disse… Isaías, em Isaías 29,13.
301. Parábola das frontes destronadas
e explicação da parábola sobre a impureza.
13 de outubro de 1945.
301.1 Jesus não volta para outro lugar, mas para Endor. Ele pára na
primeira casa do povoado e que é mais um aprisco do que uma casa. Mas,
justamente por ser assim, com estábulos baixos, fechados, cheios de feno, é
que ele pode abrigar os treze peregrinos. O dono dela, um homem rústico
mas bom, se apressa em arranjar uma candeia e um baldezinho de leite
espumoso, além de uns pães de forma muitos escuros. Depois, ele se retira,
sendo abençoado por Jesus, que fica sozinho com os seus doze.
Jesus oferece e distribui o pão e, na falta de tigelas ou cálices, cada um
ensopa suas fatias de pão no baldezinho e bebe, quando está com sede,
diretamente do mesmo. Jesus bebe somente um pouco de leite. 301.2Ele está
sério e silencioso… E a tal ponto que, tendo terminado a refeição e matado
a fome, que nos apóstolos não falta nunca, eles acabam percebendo o
mutismo dele.
André é o primeiro a perguntar:
– Que tens, Mestre? Pareces-me triste ou cansado…
– Não digo que não.
– Por quê? Por causa daqueles fariseus? Mas já devias ter-te
acostumado com eles… Quase que eu já me acostumei, eu que… deixa para
lá! Tu sabes como eu era nas primeiras vezes que eu tratava com eles. Eles
cantam sempre aquela sua canção!… As serpentes não sabem senão sibilar,
na verdade, e nunca nenhuma delas será capaz de imitar o canto do
rouxinol. A gente acaba não fazendo mais caso deles –diz Pedro, um pouco
por convicção, e um pouco para tranqüilizar a Jesus.
– E é desse modo que se perde o controle, e se cai em uma de suas
armadilhas. Eu vos peço que não vos acostumeis nunca a ouvir as vozes do
Mal, como se fossem umas vozes inofensivas.
– Oh! Está bem! Mas, se é só por isso que estás triste, fazes mal. Tu
estás vendo como o mundo te ama –diz Mateus.
– Mas, será só por isso que estás triste assim? Dize-o a mim, bom
Mestre. Ou será que te contaram mentiras ou insinuaram calúnia, suspeitas,
que sei eu? Até a respeito de nós que te amamos –pergunta solícito e
carinhoso, Iscariotes, abraçando com um braço a Jesus, que está sentado no
feno, ao lado dele.
301.3Jesus vira o rosto para o lado de Judas. Seus olhos têm um brilho
fosforescente, à luz trêmula da candeia, colocada acima do chão, no meio
do círculo formado pelos que estão sentados em cima do feno, posta sobre
uma cadeira baixa e redonda. Jesus olha bem fixamente para Judas de
Keriot e, ao olhar para ele, lhe pergunta:
– E tu achas que eu sou tão tolo para aceitar as insinuações, sejam elas
de quem forem, a ponto de perturbar-me com elas? São as realidades, Judas
de Simão, o que me perturba –e o olhar de Jesus não deixa, nem por um
instante, de se cravar, direto como um estilete, na pupila morena de Judas.
– Então, quais as realidades que te perturbam? –insiste seguro
Iscariotes.
– Aquelas que Eu vejo no fundo dos corações, e que Eu leio nas frontes
destronadas.
Jesus dá um forte destaque a esta palavra. Todos ficam alvoroçados:
– Destronadas? Por quê? Que queres dizer?
– Um rei é destronado, quando é indigno de ficar no trono, e a primeira
coisa que lhe é tirada é a coroa, que está em sua fronte, sendo aí o lugar
mais nobre do homem, o único animal que tem a fronte levantada para o
céu, pois ele é animal em sua parte material, mas sobrenatural por ser
dotado de uma alma. Mas, não é necessário que se seja rei sobre um trono
terreno, para que se deva ser destronado. Todo homem é rei por sua alma e
o trono dele é no Céu. Mas, quando um homem prostitui a sua alma, e se
torna um animal, então ele se destrona. O mundo está cheio de frontes
destronadas, que não estão mais levantadas para o Céu, mas inclinadas para
o Abismo, e tornadas mais pesadas, por causa da palavra que Satanás
esculpiu nelas. Quereis saber qual é? É a que eu leio sobre as frontes. Nelas
está escrito: “Vendido!” E, para que não tenhais dúvidas sobre quem é o
comprador, Eu vos digo que é Satanás, por si mesmo ou os seus
trabalhadores que estão no mundo.
– Eu compreendo! Aqueles fariseus, por exemplo, são empregados de
um outro empregado maior do que eles, o qual é empregado de Satanás! –
diz convicto Pedro.
Jesus não contesta nada.
301.4 – Mas… Sabe, Mestre, que aqueles fariseus, depois de terem ouvido
aquelas tuas palavras, saíram de lá escandalizados? Quando iam saindo,
deram de encontro comigo, e o diziam. Foste muito áspero –observa
Bartolomeu.
E Jesus replica:
– Mas muito mesmo. Não é culpa minha, mas deles, se certas
coisasdevem ser ditas. E é ainda uma caridade minha dizê-las. Toda planta,
não plantada por meu Pai celeste, vai ser arrancada. Pois é planta não
plantada por Ele, inútil carcaçacheia de ervas parasitas que sufocam as
outras, que as oprimem, espinhosas, querendo abafar a semente da Verdade
Santa. É uma caridade extirpar essas tradições e preceitos, que sufocam o
Decálogo e o desfiguram, e o tornam inerte e impossível de ser observado.
Para as almas honestas é uma caridade fazê-lo. E, quanto àqueles teimosos
cabeçudos, fechados a toda ação e conselho do Amor, deixai-os fazer… e
sejam seguidos por aqueles que são, por seu espírito e suas tendências,
semelhantes a eles. São cegos que guiam outros cegos. Se um cego guia
outro cego, só poderão cair os dois no mesmo buraco. Deixai-os, que se
nutram de suas contaminações, às quais dão o nome de “pureza.” Elas não
os podem mais contaminar, porque não fazem mais do que deitar-se na
matriz, de onde provêm.
301.5 – Isto que agora estás dizendo é a continuação de tudo o que
disseste na casa do Daniel, não é mesmo? Que não é o que entra no homem
o que o contamina, mas sim o que sai dele –pergunta, pensativo, Simão
Zelotes.
– Sim –diz brevemente Jesus.
Pedro, depois de alguns momentos de silêncio, — pois a seriedade de
Jesus enregela até os caracteres mais expansivos —, pergunta:
– Mestre, eu, e não eu somente, não compreendi bem a parábola.
Explica-a um pouco para nós. Como é que o que entra não contamina, e o
que sai é que contamina? Eu, se pego uma ânfora limpa, e a encho com
água suja, a contamino. Portanto, o que entra na ânfora a contamina. Mas,
se uma ânfora cheia de água limpa, eu derramar daquela água no chão, eu
não contamino a ânfora, porque da ânfora sai água pura. E, então?
301.6 E Jesus:
– Nós não somos ânforas, Simão. Não somos ânforas, amigos. E nem
tudo é puro no homem! Mas, será que vós também já estais sem
inteligência? Refleti no caso que os fariseus apresentavam para vos acusar.
Eles diziam que vós vos contamináveis, porque leváveis alimento à boca
com mãos empoeiradas, suadas, sujas, afinal. Mas, aquele alimento para
onde ia? Passava da boca para o estômago, e deste para o ventre, e do
ventre para a cloaca, depois de ter cumprido o seu ofício, que é o de nutrir a
carne, somente ela, e indo acabar, como é justo que acabe, em um esgoto.
Não é isso que contamina o homem!
O que contamina o homem é aquilo que é dele, unicamente dele, gerado
e parido pelo eu dele. Quer dizer, aquilo que ele tem em seu coração, e que
do coração sai para os lábios e para a cabeça, e vai corrompendo o
pensamento e a palavra, e contaminando o homem todo. É do coração que
vêm os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os
furtos, os falsos testemunhos e as blasfêmias. É do coração que vêm as
avarezas, as libidinagens, as soberbas, as invejas, as iras, os apetites
imoderados, os ócios pecaminosos. É do coração que vêm os estímulos para
todas as ações. E se o coração é mau, elas serão más como o coração. Todas
as ações: desde as idolatrias até as murmurações não sinceras… Todas estas
coisas más, que procedem do interior para o exterior, contaminam o
homem, mas não o comer sem lavar as mãos. A ciência de Deus não é uma
coisa vulgar, uma lama pisada por todos os pés. Mas é uma coisa sublime,
que vive nas plagas estelares e que de lá desce com raios de luz, para dar
aos justos informações sobre si. Não queirais, pelo menos vós, arrancá-la
dos céus, para aviltá-la na lama…
Ide descansar agora. Eu saio para ir rezar.
302. Em Magdala, antes de enviar
todos à família para as Encênias.
14 de outubro de 1945.
302.1 Chuva e mais chuva.Os apóstolos, pouco satisfeitos com isso de
estarem sempre tomando chuva, perguntam a Jesus se não seria melhor irem
abrigar-se em Nazaré, que não ficava longe… e Pedro diz:
– Depois se poderia partir de lá com as crianças…
O “não” de Jesus é tão terminante, que ninguém mais ousa insistir
Jesus vai à frente, sozinho. Os outros vão atrás, em dois grupos,
amuados.
Depois, Pedro não agüenta mais e vai para perto de Jesus.
– Mestre, queres-me perto de Ti?
– Tu me és sempre querido, Simão. Vem.
Pedro então se tranqüiliza. Ele põe-se a trotear ao lado de Jesus que,
com os seus longos passos, transpõe grandes distâncias com facilidade. Dali
a pouco ele diz:
– Mestre, teria sido bom se tivéssemos o menino durante a festa…
Jesus não responde.
– Mestre, por que não me fazes feliz?
– Simão, tu estás correndo o risco de Eu ter que tirar-te o menino.
– Não! Senhor! Por quê?
E Pedro fica espantado com essa ameaça e entristecido.
– Porque Eu não quero que tu fiques ligado a coisa alguma. Eu te disse
quando Eu te concedi Marziam. Mas tu te estás encalhando na areia com
esta tua afeição.
– Não é pecado amar. E amar Marziam. Tu também o amas,
– Mas esse amor não me impede de entregar-me todo à minha missão.
Não te lembras das minhas palavras sobre os afetos humanos? Os meus
conselhos tão claros, tão claros que são até ordens, para quem quiser pôr as
mãos ao arado? Será que estás ficando cansado, Simão de Jonas, de ser
heroicamente meu discípulo?
A voz de Pedro já está enrouquecida pelo pranto, quando ele responde:
– Não Senhor. Eu me lembro de tudo e não estou cansado. Mas eu
tenho a impressão de que seja o oposto… És Tu que estás cansado de mim,
do pobre Simão, que deixou tudo para te acompanhar…
– Que achou tudo ao acompanhar-me, é o que queres dizer.
– Não… Sim… Mestre… Sou um pobre homem, eu…
– Eu sei. E é justamente por isso que Eu te estou aperfeiçoando. É para
fazer de um pobre homem um homem, e deste homem um santo, o meu
Apóstolo, a minha Pedra. Eu sou duro para tornar-te duro. Eu não quero te
ver mole, como esta lama. Eu quero te ver como um bloco esquadrejado,
perfeito. Não te lembras do Sábio[13]? Ele diz que quem ama é severo.
302.2Mas compreende-me. Compreende-me, pelo menos tu. Não estás vendo
como estou sendo oprimido, entristecido por tantas incompreensões, com
tantos e tantos fingimentos demais com tantos desamores e as ainda mais
numerosas desilusões?
– Está sendo assim, Mestre? Oh! Divina Misericórdia! E eu nem me
dava conta disso! Que grande animal eu sou!… Mas, desde quando? Por
quem te estão sendo feitas essas coisas? Dize-o a mim…
– Não adianta. Nada poderias fazer. Nem Eu posso fazer nada…
– Deveras, eu não poderia fazer nada para aliviar-te?
– Eu já te disse: compreender que a minha severidade é amor. Ver em
cada ato meu a teu respeito o amor.
– Sim, sim. Não falo mais. Caro Mestre meu! Não falo mais. E Tu,
perdoa a este grande animal que eu sou. Dá-me uma prova de que me
perdoas mesmo…
– Uma prova! Na verdade, deveria bastar-te o meu sim. Mas Eu te darei
a prova. Escuta: Eu não posso ir a Nazaré, porque em Nazaré estão João de
Endor e Síntique, além de Marziam. E Eu não quero que se saiba disso.
– Nem nós? Por quê?… Ah!… Mestre?! Mestre?! Estarás temendo de
algum de nós?
– A prudência ensina que, quando se quer manter uma coisa em
segredo, já é demais que duas pessoas saibam dela. Pode-se fazer mal até
com uma palavra descuidada. E nem todos, e nem sempre vós sois
ponderados.
– É verdade. Eu também não sou. Mas, quando eu quero, sei calar-me.
E agora vou calar-me. Oh! Se vou… Não serei mais o Simão de Jonas, se
eu não souber calar-me. Obrigado, Mestre, pela tua estima. Esta, sim, que é
uma grande prova de amor… 302.3Então, agora vamos para Tariquéia?
– Sim. Depois, com as barcas, para Magdala. Preciso receber o ouro das
jóias.
– Estás vendo que eu sei calar-me? Eu nunca disse nada para Judas,
sabes?
Jesus não comenta a interrupção de Pedro. E continua:
– Depois que Eu receber o ouro, vos porei todos em liberdade, até o dia
depois das Encênias. Se Eu quiser algum de vós, chamar-vos-ei a Nazaré.
Os judeus, menos Simão Zelotes, acompanharão as irmãs de Lázaro e as
outras servas, e também Elisa de Betsur, até à casa de Betânia. Depois irão
para as Encênias em suas casas. Para Mim, bastará que estejam de volta
pelo fim do Shebat, quando voltaremos a peregrinar, Somente tu ficas
sabendo isto, não é, Simão Pedro?
– Sim, só eu fico sabendo. Mas… Tu também deverás dizê-lo…
– Eu o direi no momento oportuno. Agora, vai aos teus companheiros e
fica certo do meu amor.
Pedro obedece contente e Jesus volta a aprofundar-se em seus
pensamentos.
Diz Jesus:
324.11
– E o tormento causado por um homem, não querido senão por um
homem mau, cumpriu-se parando, como um curso d’água que pára em um
lago, depois de ter feito o seu percurso…
Eu te faço observar como até Judas de Alfeu, mais alimentado pela
Sabedoria do que os outros, dê a passagem de Isaías sobre os meus
sofrimentos de Redentor, uma explicação humana. E assim estava todo
Israel, que se recusava a aceitar a realidade profética, e contemplava as
profecias sobre as minhas dores como alegorias e símbolos. O grande erro,
pelo qual, na hora da Redenção bem poucos em Israel souberam ainda ver o
Messias naquele Condenado.
A Fé não é somente uma coroa de flores. Ela também tem espinhos. E é
santo aquele que sabe crer nas horas de glória, como nas horas trágicas, e
sabe amar, tanto quando Deus o cobre de flores, como quando o coloca
sobre espinhos.
[36] respondei, a partir de: Números 24,17-19.
[37] profecia, que está em: Daniel 9,22-27.
[38] seu servo dele. A re-evocação do Apóstolo André é completada com a explicação dada por Jesus em 49.9.
[39] Rafael é o anjo que se revela a Tobias (Tobias 5,4; 12,15), no contexto da história de Tobias 5-13, para que a obra repete
várias vezes em 5.2 - 632.33. Uma citação do texto é em 229.3.
[40] Depois de dezenas de dias (como reiterou no fim do discurso com as palavras após a ausência) é uma afirmação que
confirma a explicação dada em 47.10 no tempo entre a manifestação na Jordânia o encontro com os primeiros discípulos.
[41] foi dito em Êxodo 3,14.
[42] Como são belos… citação de Isaías 52,7. Os discursos dos oito apóstolos são, quase todos, baseados no capítulo 52 do livro
do profeta Isaías.
[43] a Bênção mosaica, feita em 108.6, 363.3 prolongada e algumas vezes mencionada ou mostrada no trabalho (Jesus vai usar a
fórmula em 397.4) , é encontrada em Números 6,22-27.
325. Os oito apóstolos se reúnem a Jesus perto de
Aqzib.
10 de novembro de 1945.
325.1 Jesus — um Jesus muito magro e pálido, muito triste, eu diria, e
sofredor — está lá no cume, justamente no cume mais alto de um pequeno
monte, sobre o qual está também um povoado. Mas Jesus não está no
povoado, que fica no cume, e sim, virado para a encosta do sudeste. Jesus
se encontra em uma pequena saliência do monte, a mais alta, que se projeta
para o noroeste. É mais leste do que norte[44].
Jesus, olhando, como agora está fazendo, para diversos lados, vê uma
cadeia de montes ondulados que, no extremo noroeste e no sudeste
mergulha suas últimas ramificações no mar, ao sudeste do Carmelo, que
daqui se vê bem, lá ao longe, ainda que com pouca nitidez, nos dias serenos
e sem nuvens. A noroeste, como um cabo que penetra nas águas, parecendo
o esporão de um navio, muito semelhante às montanhas dos Alpes
Apuanos, por seus veios rochosos, que se embranquecem ao sol. Desta
cadeia ondulada de montes descem torrentes e pequenos rios, todos bem
cheios de água nesta estação, e que, através da planície da costa, correm
para irem jogar-se ao mar. Perto da ampla baía de Sicaminon, o mais
galhardo deles, o Kison, desemboca no mar, depois de ter formado um
espelho d’água, no ponto de confluência de um outro riozinho, já perto da
foz. O Sol do meio-dia, nos dias serenos, faz sair dos cursos d’água
cintilações de topázio ou safiras, enquanto que o mar se transforma numa
enorme safira, listrado com leves colares de pérolas.
O lugar é assim:
A primavera do sul já vem dando sinais de sua chegada, com as folhas
novas, que estão irrompendo das borbulhas entreabertas, ainda tenras,
luzidias, como direi, virginais, de tão novas que estão, ainda não
conhecedoras do que é a poeira e do que são as tempestades, as mordidas
dos insetos e os contatos com o homem. E os ramos das amendoeiras já
estão cheios de flocos de uma espuma branco-rosada, tão macios, que
parecem uma coisa aérea, e dão a impressão de que querem separar-se do
seu tronco natal para saírem navegando à vela, através do ar sereno, como
se fossem pequeninas nuvens.Também os campos da planície, não muito
vasta mas muito fértil, compreendida entre o cabo noroeste e o que está ao
sul, estão mostrando um delicado verdejar de trigais, que levam embora
toda a tristeza dos campos que há bem pouco tempo estavam nus.
Jesus fica olhando. Do ponto em que Ele está podem ver-se três
estradas. A que sai do povoado e vem terminar ali é uma estradazinha só
para uma pessoa, e as outras duas, que descem do povoado e se bifurcam
em direções opostas vão, uma para o noroeste, e a outra para o sudoeste.
Quanto Jesus tem sofrido. Traz em Si todos os sinais da penitência
feita, muito mais do que quando jejuou no deserto. Naquele tempo Ele era
um homem pálido, mas ainda jovem e de aspecto alegre. Agora é o homem
exausto por causa de um sofrimento complexo, que lhe abate tanto as forças
físicas como as morais. Seus olhos estão muito tristes, com uma tristeza
mansa e séria ao mesmo tempo. Suas faces, sutilizadas, fazem ressaltar
ainda mais a espiritualidade do seu perfil, de fronte alta, nariz longo e reto,
com boca e lábios completamente privados de sensualidade. Um rosto tão
angélico, que exclui toda materialidade. Está com a barba mais longa que
de costume, crescida até sobre as faces, chegando a confundir-se com os
cabelos caídos sobre as orelhas, de modo que de seu rosto são visíveis
apenas a fronte, os olhos, o nariz e os zigomas delicados e de uma cor de
marfim, nada tendo de róseo. Está com os cabelos penteados de modo
simples, pois ficaram como sem vida, e conservam como recordação do
antro em que Ele esteve, muitos pedacinhos de folhas e de raminhos secos,
que ficaram enredados em seus longos cabelos. Sua veste e seu manto,
amarrotados e empoeirados, denunciam, também eles o lugar selvagem a
que foram levados e onde não puderam ser cuidados por muitos dias.
325.2 Jesus fica olhando… O sol do meio-dia o faz sentir calor e parece
que Ele sente prazer com isso, porque parece estar evitando a sombra de
uns carvalhos para ir expor-se ao sol. Mas, por mais que seja um sol bem
claro e sem nuvens, não pode conseguir que seus esplendores se reflitam em
seus cabelos empoeirados, em seus olhos cansados, nem faz aparecerem as
cores de seu rosto emagrecido.
Não é o sol que o restaura, nem lhe aviva as cores. Mas, sim, é a vista
dos seus caros apóstolos, que vêm subindo gesticulando e olhando para o
povoado, da estrada que vem do noroeste, e que é a mais plana. Então vem
a metamorfose. Os olhos se lhe avivam, o rosto parece tornar-se menos
macilento, tomando uma esfumatura de tom róseo, que se vai estendendo
pelas faces, e mais ainda, até o sorriso, que o enche de luz. Ele abre os
braços, que estavam cruzados, e exclama “Ó meus queridos!” Ele diz isso
levantando o rosto, passando um olhar sobre as coisas, como para
comunicar sua alegria aos caules, às plantas, ao céu sereno e ao ar, que já
está com um sabor de primavera.
Ele puxa o manto até ficar bem apertado ao redor de seu corpo, para
não ser agarrado pelas varetas das moitas, e vai descendo rapidamente por
um atalho, indo ao encontro deles, que vêm subindo, e que não o viram
ainda.
Quando chega ao alcance da voz, Ele os chama, para fazê-los parar em
sua ida para o povoado.
Eles ouvem o chamado, lá ao longe. Talvez do ponto onde estão não
podem ainda ver Jesus, cujas vestes escuras se confundem com o verde
escuro do bosque, que cobre a encosta. Eles olham para os lados,
gesticulam… Jesus torna a chamar… Finalmente, numa clareira do bosque,
Ele aparece aos olhos deles, ao sol, como se já os quisesse abraçar.
Então, ouve-se um grande grito, que ecoa por toda a encosta: “É o
Mestre!”, e, numa grande corrida por sobre a ladeira íngreme, por fora do
caminho, lá se vão eles, arranhando-se, tropeçando, ofegantes, não sentindo
mais o peso dos sacos, nem o cansaço da caminhada… levados pela alegria
de revê-lo.
325.3 Naturalmente, os primeiros a chegar são os mais jovens, mais ágeis,
isto é os dois filhos de Alfeu, com seus passos firmes de quem nasceu sobre
as colinas, João e André, que vão correndo como dois cervos, rindo-se de
tão felizes. Eles caem a seus pés, amorosos e reverentes, felizes, sumamente
felizes. Depois chega Tiago de Zebedeu e, por último, quase juntos, os três
menos capazes de correr e de subir montanhas: Mateus, o Zelotes e, por
fim, o próprio Pedro.
Mas este abre passagem — oh! como abre — para chegar até o Mestre,
que está apertado entre as pernas dos primeiros que chegaram e que não se
cansam de beijar-lhe as vestes ou as mãos, que Ele deixou entregues a eles.
Pega energicamente João e André agarrados, como ostras a um penhasco, às
vestes de Jesus e, ofegante pelo cansaço, os afasta o tanto necessário para
que possa cair aos pés de Jesus, dizendo:
– Oh! Mestre meu! Agora, torno a viver, finalmente! Eu já não podia
mais. Estou envelhecido e magro, como se tivesse estado muito doente.
Olha se não é verdade, Mestre…
E levanta a cabeça, para deixar-se ver por Jesus. Contudo, ao fazer isso,
vê como Jesus está mudado e põe-se de pé, gritando:
– Mestre? Mas que foi que fizeste? Ó tolos! Olhai só! Não estais vendo
nada? Jesus esteve doente!… 325.4Mestre, Mestre meu, que foi que
aconteceu? Dize-o a teu Simão!
– Nada, amigo.
– Nada? Com esse rosto. Então, te fizeram mal?
– Nada disso, Simão.
– Não é possível! Ou estiveste doente, ou foste perseguido! Eu estou
vendo!…
– Eu também. Também Eu te estou vendo, emagrecido e envelhecido,
de fato. Por que então, estás assim –pergunta sorrindo o Senhor ao seu
Pedro, que o está perscrutando, como se quisesse descobrir a verdade pelos
cabelos, pela pele, pela barba de Jesus.
– Más eu sofri, eu. E não o nego. Acreditas que tenha sido agradável
ficar vendo aquela grande dor?
– Tu o disseste. Eu também sofri pelo mesmo motivo…
– Terá sido mesmo só por isso, Jesus? –pergunta, compadecido e
afetuoso, Judas de Alfeu.
– Pela dor, sim, meu irmão. Pela dor causada pela necessidade de
mandar embora…
– E pela dor de ter sido obrigado a isso por…
– Eu te peço!… Silêncio. Para mim é mais querido o silêncio a respeito
de minha ferida do que qualquer outra palavra que queira consolar-me,
dizendo “Eu sei o que sofreste”. Afinal, ficai todos sabendo, eu sofri por
muitas coisas, e não só por esta. E se Judas não me tivesse interrompido, Eu
o teria dito.
Jesus está muito sério, ao dizer isso. Todos ficam atemorizados.
Mas Pedro é o primeiro a retomar a palavra, e pergunta:
– E onde estiveste, Mestre? Que fizeste?
– Eu estive em uma gruta… rezando… meditando… para fortificar o
meu espírito, para conseguir a fortaleza para vós em vossa missão, por João
e Síntique em seu sofrimento.
– Mas onde estiveste? Onde? Sem roupas, sem dinheiro! Como foi que
viveste.
Simão está agitado.
– Em uma gruta. Eu não precisava de nada.
– E a comida? E o fogo? E a cama? Tudo, afinal! Eu esperava que
fosses, pelo menos hospedar-te, como um peregrino que perdeu o caminho,
em Jeftael ou em outro lugar, afinal, em alguma casa. Isso já me dava um
pouco de paz. Mas, e então? Dizei-o vós, se não era o meu tormento ficar
pensando que Ele estava sem roupas, sem comida e sem meios de consegui-
la, e sobretudo sem isto, que é a vontade de ir procurá-la. Ah! Jesus! Isso
não devias ter feito! E não o farás nunca mais! Eu não te deixarei mais
sozinho nem por uma hora. Eu vou coser-me à tua veste para ir atrás de Ti,
como se fosse a tua sombra, quer queiras, quer não. Só ficarei separado de
Ti, se eu morrer.
– Ou se Eu morrer.
– Oh! Tu, não. Tu não deves morrer antes de mim. Não digas isso. Será
que me queres ver completamente triste?
– Não. Pelo contrário, Eu quero estar contigo, com todos, alegrarme
nesta bela hora que me torna a trazer os meus queridos, os meus prediletos
amigos. Vede. Eu já me sinto melhor, só porque o vosso amor sincero me
alimenta, me aquece e me consola muito.
E Ele os acaricia a um por um, enquanto os rostos deles brilham, com
um sorriso feliz, e seus olhos reluzem, e tremem seus lábios de tanta
emoção por aquelas palavras, e eles perguntam:
– É verdade, Senhor?
– É mesmo assim, Mestre?
– Somos assim por Ti tão queridos?
– Sim. Sois tão queridos assim! 325.5 Tendes alimento convosco?
– Sim. Eu calculava que Tu estivesses esgotado e o vim adquirindo pelo
caminho. Tenho pão e carne assada, tenho leite, queijos e mel. Além disso,
tenho um odre com vinho generoso e também ovos para Ti. Tomara que não
se tenham estragado.
– Está bem. Vamos sentar-nos, então, aqui sob este belo sol e vamos
comer. Enquanto vamos comendo, me falareis…
Assentam-se ao sol, em uma saliência do terreno e Pedro abre a sacola
e observa os seus tesouros:
– Está tudo salvo –exclama ele–. Até o mel de Antigônio. E, por que
não? Eu não o disse? Ainda que na volta tivéssemos sido colocados dentro
de uma barrica e tivéssemos vindo rolados por algum doido ou trazidos em
uma barca sem remos, e talvez até furada na hora da tempestade, teríamos
chegado sãos e salvos… Mas na ida! Eu sempre mais me convenço de que
antes era o Demônio que nos criava obstáculos. Para não nos deixar
acompanhar aqueles pobrezinhos…
– É verdade. Agora ele não tinha mais aquele motivo –confirma o
Zelotes.
– Mestre, Tu fizeste penitência por nós? –pergunta João, que até se
esquece de comer para ficar contemplando Jesus.
– Sim, João. Eu vos acompanhei com o pensamento. Eu percebi os
vossos perigos e as vossas aflições. Eu vos ajudei como pude…
– Oh! Eu o percebi. Eu até vo-lo disse. Estais lembrados?
– Sim. É verdade –confirmam todos.
– Pois bem. Agora vós me entregais o que Eu vos dei.
– Tu jejuaste, Senhor? –pergunta André.
– Sem dúvida! Ainda que tivesse querido comer, estando em uma gruta,
e sem dinheiro, como quererias que Ele comesse? –responde Pedro.
– Por causa de nós. Como eu sinto com isso –diz Tiago de Alfeu.
– Oh! Não. Não vos aflijais com isso! Não foi só por causa de vós. Foi
também pelo mundo todo. 325.6Como Eu fiz, quando iniciei a minha missão,
assim fiz também agora. Naquela vez, Eu fui, no fim, socorrido pelos anjos.
Agora, sou socorrido por vós. E, podeis crer, Eu tenho uma dupla alegria.
Porque nos anjos é insubstituível o ministério da caridade. Mas nos homens
ele é menos fácil de cumprir-se. Vós o estais exercendo. E, por meu amor,
vos transformastes de homens em anjos, tendo escolhido a santidade apesar
de tudo. Por isso, me fazeis feliz como Deus e como Homem-Deus. Porque
me dais o que é de Deus: a Caridade, e me dais o que é do Redentor: a
vossa elevação à Perfeição. Isto me vem de vós e é mais nutritivo do que
qualquer alimento. Também naquele tempo, no deserto, Eu fui nutrido pelo
amor, após o jejum. E por ele fui restaurado. Assim acontece agora. Todos
nós tivemos que sofrer. Eu e vós. Mas não foi um sofrimento inútil. Eu
creio, eu sei que esse sofrimento vos ajudou mais que um ano inteiro de
ensinamento. A dor, a meditação sobre o que pode fazer de mal o homem a
um seu semelhante, a piedade, a fé, a esperança que tivestes que exercitar, e
estando sozinhos, vos fizeram amadurecer, como meninos que se tornaram
homens…
– Oh! Sim. Eu me tornei velho. Não serei mais o Simão de Jonas que
eu era quando partimos. Compreendi como é dolorosa, cansativa, em sua
beleza, a nossa missão… –suspira Pedro…
– Pois bem, agora que estamos aqui juntos, 325.7contai-me…
– Fala tu, Simão. Tu sabes falar melhor do que eu –diz Pedro ao
Zelotes.
– Não. Tu, como um valoroso chefe, conta por todos –responde o outro.
E Pedro começa, dizendo como introdução:
– Mas vós ajudai-me.
Ele conta ordenadamente até a partida para Antioquia. Depois começa a
narrar como foi a volta:
– Estávamos todos sofrendo, sabes? Nunca mais me esquecerei das
últimas palavras daqueles dois…
Pedro enxuga com as costas da mão duas grandes lágrimas, que
irrompem imprevistas…
– Eles me pareceram o último grito de alguém que está se afogando…
Mas, afinal, falai vós… eu não posso… –e se levanta, indo um pouco para
longe dali, para ver se consegue controlar sua emoção.
Fala, então, Simão Zelotes:
– Nós não falamos, nenhum de nós, por muito tempo, na viagem… Não
podíamos falar… A garganta nos doía, pelo tanto que estava cheia de
pranto… E nós não queríamos chorar… porque, se tivéssemos começado,
ainda que fosse um só, tudo haveria terminado. Eu tinha pego as rédeas,
porque Simão de Jonas, para não deixar que se percebesse que ele estava
chorando, foi para o fundo do carro e estava revistando as sacolas. Nós
paramos em um pequeno povoado, a meio caminho, entre Antioquia e
Selêucia. Por mais que a lua fosse se tornando clara, tanto mais a noite ia se
tornando alta também, e nós, pouco práticos como éramos, resolvemos
parar lá. E ficamos cochilando, vestidos como estávamos. Não comemos,
nenhum de nós… porque não podíamos. Nós estávamos pensando naqueles
dois… Aos primeiros clarões da aurora, atravessamos a ponte e, antes da
hora de tércia, chegamos a Selêucia. Levamos o carro e o cavalo ao
albergador e — era um homem muito bom — nos aconselhamos com ele a
respeito do navio. Ele disse: “Eu mesmo vou ao porto, Sou conhecido lá, e
conheço as pessoas.” E assim ele fez. Descobriu três navios que estavam de
partida para estes portos. Mas sobre um deles estavam certos seres que não
quisemos ter como vizinhos. Assim no-lo disse o homem, que o ficou
sabendo pelo capitão do navio. O segundo era de Ascalon, e não queria
fazer escala para nós em Tiro, a não ser que nós pagássemos uma soma, que
nós não tínhamos mais. O terceiro era um navio pequeno, muito sem
conforto, carregado de madeira em toras. Era uma pobre barca sem
equipagem, e creio eu que com muita miséria. Por isso, ainda que se
estivesse dirigindo para Cesaréia, consentiu em parar em Tiro,
desembolsando nós um dia de comida e de pagamento a toda a tripulação.
Isso nos convinha. Eu, na verdade, e comigo estava Mateus, me achava com
um pouco de medo. É tempo de tempestades… e Tu sabes o que foi que
encontramos na ida. Mas Simão Pedro disse: “Não acontecerá nada.” Então,
subimos para bordo. Parecia que as velas do navio eram anjos, de tão macio
e veloz que ele ia. Foi menos da metade do tempo que gastamos na ida para
chegarmos a Tiro, e o capitão foi tão bom que nos consentiu levar a barca a
reboque, até perto de Ptolemaida. Dentro dela desceram Pedro e André,
com João, para as manobras. Mas era muito simples… Não como na ida…
Em Ptolemaida nos separamos. E estávamos tão contentes, que lhe demos
até dinheiro além do ajustado, antes de descermos todos para a barca, onde
já estavam nossas coisas. Em Ptolemaida paramos um dia, e depois viemos
para cá… Mas não nos esqueceremos mais do que sofremos. Simão de
Jonas tem razão.
– Não temos razão também nós, ao dizermos que o demônio nos criava
obstáculos na ida? –perguntam alguns deles.
– Tendes razão. 325.8Agora, escutai. A vossa missão se acabou. Agora
vamos voltar para Jeftael, onde esperaremos Filipe e Natanael. E é preciso
irmos logo. Depois virão os outros… Enquanto isso, iremos evangelizando
por aqui, nos confins da Fenícia, e na própria Fenícia. Mas tudo o que
aconteceu fique sepultado para sempre nos nossos corações. A nenhuma
pergunta se dará resposta.
– Nem mesmo a Filipe e a Natanael? Eles sabem que nós viemos
contigo…
– Eu lhes falarei. Eu sofri muito, meus amigos, e vós o vistes. Eu
paguei com o meu sofrimento a paz de João e de Síntique. Fazei que o meu
sofrimento não seja inútil. Não aumenteis com mais um peso o que Eu já
tenho sobre os meus ombros. Eu já tenho tantos!… E o peso deles cresce
dia a dia, hora por hora… Dizei a Natanael que Eu sofri muito. Dizei-o
também a Filipe, e que eles sejam bons. Dizei-o aos outros dois. Mas não
digais nada mais do que isto. Dizer que compreendestes que Eu sofri, e que
Eu vo-lo confirmei, é verdade. Não é preciso dizer mais.
Jesus fala, muito cansado… Os oito olham para Ele, compadecidos, e
Pedro ousa acariciá-lo na cabeça, estando por detrás dele. Jesus levanta a
cabeça e olha para o seu bom Simão, com um sorriso de afetuosa tristeza.
– Oh! Não posso ver-te assim! Parece-me, e tenho a impressão de que a
alegria da nossa união cessou e que dela só resta a santidade. Enquanto isso,
vamos indo para Aqzib. Lá tu mudarás a roupa, rasparás a barba e pentearás
os cabelos. Assim, não. Não te posso ver assim… Pareces-me alguém que
escapuliu de mãos cruéis, um espancado, um exausto… Pareces-me o
Abel[45] de Belém da Galiléia, libertado de seus inimigos…
– Sim, Pedro. Mas é o coração do teu Mestre que está maltratado… e
ele não ficará bom nunca mais… será sempre mais ferido. Vamos…
325.9 João suspira:
– Isso me desagrada… Eu teria querido contar a Tomé, tão amigo de
tua Mãe, o milagre da canção e do ungüento…
– Tu o dirás um dia… Agora, não. Tudo vós direis um dia. Só então é
que podereis falar. Eu mesmo vos direi: “Ide dizer tudo o que sabeis.” Mas,
por enquanto, saibam ver no milagre a verdade. É esta: o poder da fé. Tanto
João, como Síntique acalmaram o mar e curaram o homem, não com
palavras, nem pelo ungüento. Mas pela fé com que eles usaram o nome de
Maria e o ungüento feito por ela. E ainda: isto aconteceu porque, ao redor
da fé deles, estava a vossa, a de todos vós, e a vossa caridade. Caridade para
com o ferido. Caridade para com o cretense. A um vós quisestes conservar a
vida e ao outro dar a fé. Mas, se ainda é fácil curar os corpos, é coisa bem
dura curar os espíritos. Não há doença mais difícil de ser debelada do que a
espiritual…
E Jesus dá um forte suspiro.
Estou vendo Aqzib. Pedro vai à frente com Mateus para achar
alojamento. Acompanham-no os outros, muito juntos ao redor de Jesus. No
ocidente o sol vai descendo com rapidez, enquanto eles vão entrando no
povoado.
[44] norte. Acompanham, o manuscrito original, as palavras o lugar é assim e no esboço de MV: eles relatam na página virada
para as necessidades de layout de página. No esboço se lê, no lado oeste (de cima para baixo): Mar Mediterrâneo, Ptolemaida,
Sicaminon, Quisom, Carmelo, e na encosta leste: Aczibe, aqui embaixo deve ser Jiftael. Também vamos ver os quatro pontos
cardeais.
[45] Abel, o jovem protagonista do episódio narrado em 248.5/11.
326. Uma permanência em Aqzib.
11 de novembro de 1945.
326.1 – Senhor, esta noite eu fiquei pensando… Por que queres tu vir para
tão longe, para depois voltar para os confins da Fenícia? Deixa que eu vá
com um outro. Eu vou vender o Antônio… Isso me desagrada, mas agora
ele não tem uso e ficaria dando na vista. E eu irei ao encontro de Filipe e de
Bartolomeu. Eles não podem passar senão por aquela estrada, e com certeza
me encontrarei com eles… E tu podes ficar certo de que eu não falarei. Eu
Não quero dar-te tristeza. Tu, fica repousando aqui com os outros, e assim
deixamos todos aquela estrada de Jeftael, e vamos mais depressa –diz
Pedro, enquanto vão saindo da casa onde dormiram.
E já estão parecendo menos magros, porque mudaram de roupa e suas
barbas e cabelos foram postos em ordem por uma mão habilidosa.
– Teu pensamento é bom. Não me oponho a que o realizes. Vai, então,
com os companheiros que quiseres.
– Com Simão, então. Senhor, abençoa-nos.
Jesus os abraça, dizendo:
– Com um beijo. Ide.
Ficam olhando como eles vão descendo ligeiros para a planície.
– Como é bom Simão de Jonas! Nestes dias eu o apreciei, como nunca
havia feito antes –diz Judas Tadeu.
– Eu também –diz Mateus–. Ele nunca é egoísta, nunca soberbo, nunca
exigente.
– Nunca se prevaleceu de ser ele o chefe. Pelo contrário! Parecia o
último de nós, mesmo quando se conservava em seu posto –acrescenta
Tiago de Alfeu.
– A nós isso não espanta. Há anos que o conhecemos. Ele é impetuoso,
mas tem um grande coração. Além disso, é tão honesto –diz Tiago de
Zebedeu.
– Meu irmão é bom, ainda que seja um pouco rude. Mas, desde quando
veio ficar com Jesus, sua bondade cresceu o dobro. Eu tenho um caráter
muito diferente e por isso, às vezes ele se impacientava. Mas era porque
compreendia que eu sofria com aquele caráter. Era para o meu bem que se
impacientava. Quando se chega a compreendê-lo, concorda-se com ele –diz
André.
– Nestes dias nos entendemos sempre bem e fomos todos um só
326.2
coração –afirma João.
– É verdade! Também eu notei isso. Durante o mês inteiro, e em
momentos de ansiedade, nunca tivemos desentendimentos… Enquanto
que,às vezes… não sei por que… –fica falando sozinho Tiago de Zebedeu.
– Por quê? Ora, é fácil de entender-se! Porque estamos firmes em nossa
intenção. Perfeitos, ainda não. Mas firmes, sim. E, por isso, aceitamos o
bem que alguém propõe ou rejeitamos o mal que alguém nos mostra como
tal, quando antes não o tínhamos conseguido ver assim por nós mesmos. E
por quê? Não é difícil dizê-lo. Porque nós oito temos um só pensamento:
fazer todas as coisas de modo a dar alegria a Jesus. Eis aí tudo –exclama
Tadeu.
– Eu não creio que os outros tenham outro pensamento –diz,
conciliador, André.
– Não. Nem Filipe, nem Bartolomeu, ainda que este esteja já com muita
idade e esteja muito por Israel. E também não Tomé, ainda que seja muito
mais homem do que espírito. Eu seria injusto para com esses, se os acusasse
de… Jesus, bem que tens razão. Perdoa. Mas, se soubesses o que é para
mim ficar vendo o que estás sofrendo. E tudo por causa dele! Eu sou teu
discípulo como todos os outros. Mas, além disso, sou teu irmão e teu amigo,
e o sangue quente de Alfeu está em mim. Jesus, não fiques olhando para
mim, assim sério e triste. Tu és o Cordeiro, e eu… o leão… E podes crer
que muito me custa o refrear-me, para não rasgar com uma patada esta rede
de calúnias que te envolve e derrubar o abrigo no qual está escondido o
verdadeiro inimigo. Eu gostaria de ver qual é a realidade do rosto espiritual
dele, ao qual eu dou um nome… mas pode ser que assim o esteja
caluniando. Nele eu deixaria um tal sinal, se eu conseguisse conhecê-lo sem
possibilidade de engano, que lhe tiraria para sempre a vontade de fazer-te
mal –diz com veemência Tadeu, que foi detido por um olhar de Jesus,
quando ia começando a falar.
Tiago de Zebedeu lhe responde:
– Terias que deixar esse sinal na metade da população de Israel!… Mas
Jesus irá para frente do mesmo modo. Tu viste nestes dias como nada se
pode contra Jesus. 326.3Que vamos fazer agora, Mestre? Já falaste aqui?
– Não. Há menos de um dia que eu cheguei a estas encostas, Eu dormi
na mata.
– Será porque eles não te aceitaram?
– O coração deles rejeitou o Peregrino… Eu estava sem dinheiro…
– Então, eles são de uns corações de pedra. Eles teriam medo de quê?
– De que Eu fosse um ladrão… mas não importa. O Pai, que está nos
Céus, me fez encontrar uma cabra, perdida ou fujona. Vinde cá, que Eu vo-
la mostro. Ela está no meio do mato com o seu cabritinho. A cabra não
fugiu ao ver que Eu me aproximava dela. Mas me deixou até espremer o
leite em minha boca… como se Eu também fosse um filhote dela. Eu dormi
perto dela, com o cabritinho quase sobre o meu coração. Deus é bom para
com o seu Verbo!
Vão indo para aquele lugar de ontem, para um capão de mato bem
fechado e cheio de espinheiros. Um carvalho secular, que eu não sei como
pode ainda estar vivo com esta rachadura na base, como se o terreno se
tivesse aberto e tivesse partido em dois o seu forte tronco, tudo enfaixado
por heras verdes e por sarças que agora estão sem folhas. E Jesus está no
meio disso tudo. Perto dali está pastando a cabra com o seu cabritinho e,
vendo tantos homens aponta para eles os seus chifres, como uma defesa.
Mas depois ela reconhece Jesus e se acalma. Eles lhe oferecem migalhas de
pão e se afastam.
– Eu dormi ali –explica Jesus–. E ali Eu teria ficado, se vós não
tivésseis vindo. Eu já estava com fome. A finalidade do jejum havia
terminado… Não era preciso ficar insistindo por causa de outras coisas que
não têm mais jeito…
Jesus está triste de novo… Os seis se olham de soslaio, mas nada
dizem.
– E agora? Aonde vamos?
– Vamos ficar aqui, por hoje. Amanhã desceremos para pregar na
estrada de Ptolemaida e depois iremos para os confins da Fenícia, para
voltarmos para cá, antes do sábado.
E devagar vão voltando para o povoado.
327. Nos confins da Fenícia. Discurso sobre
a igualdade dos dons e parábola do fermento.
[Sem data]
327.1 A estrada, que da Fenícia vai para Ptolemaida, é uma bela estrada,
de traçado em linha reta, na planície, entre o mar e os montes. E, pelo modo
como é conservada, deve ser muito freqüentada. Em muitos pontos é
atravessada por estradas menores que, dos povoados do interior, se dirigem
para os da costa, tem diversas encruzilhadas, junto às quais há, quase
sempre, uma casa, um poço e uma rudimentar alveitaria, que atende
também aos quadrúpedes, que possam estar precisando de ferraduras.
Jesus percorre um bom trecho da estrada uns dois quilômetros ou mais
com os seis que ficaram com Ele, sempre vendo as mesmas coisas. Afinal,
Ele pára perto de uma dessas casas com poço e alveitaria, em uma
encruzilhada, ao lado de uma torrente, sobre a qual há uma ponte que, por
robusta que seja, tem apenas a largura que basta para um carro, e assim faz
que nela seja o ponto de parada forçada para quem vai e para quem vem,
porque os que vêm de lados opostos não podem passar ao mesmo tempo. E
isto serve de pretexto aos que por ali passam, pessoas de raças diferentes,
pelo que eu estou podendo deduzir, por exemplo, fenícios e israelitas
verdadeiros e autênticos, e que têm ódio uns aos outros, para se
encontrarem ali, com uma única intenção: a de rogarem pragas a Roma…
Sem Roma eles não teriam nem aquela ponte e, com a cheia da torrente, não
teriam também nem podido passar. Mas, não importa! O opressor é sempre
odiado, ainda que ele faça coisas úteis!
Jesus pára perto da ponte, no lado cheio de sol onde está a casa que, do
lado da torrente, fica perto da malcheirosa alveitaria, na qual estão forjando
as ferraduras para um cavalo e dois burros, que perderam as que iam
levando. O cavalo está atrelado a um carro romano, no qual estão alguns
soldados, que se deleitam em fazer caretas para os hebreus, que lhes rogam
pragas. E a um velho narigudo, mais irado do que os outros, uma verdadeira
língua viperina que eu acho que de boa vontade iria morder os romanos
para envenená-los, eles lhe atiram em cima uma mãozada de estrume de
cavalo… Imaginai o que aconteceu! O velho hebreu sai dali gritando, como
se o tivessem infectado de lepra e a ele se unem em coro outros hebreus. Os
fenícios gritam, zombeteiros:
– Gostastes do maná novo? Comei, comei, a fim de terdes fôlego para
gritar contra os que são bons demais para convosco, víboras hipócritas.
Os soldados escarnecem deles… Jesus cala.
O carro romano finalmente parte, e os soldados saúdam ao ferrador
com este grito:
– Salve, ó Tito, e que passes bem!
O homem, um garboso ancião, tem um pescoço de touro, um rosto
imberbe, uns olhos muito pretos, ao lado de um nariz volumoso, sob o
alpendre de uma fronte saliente e ampla, um pouco calva pois são poucos os
cabelos e, nos pontos em que existem, são curtos e um pouco crespos. Ele
levanta o martelo, num gesto de despedida, depois se vira de novo para a
bigorna, sobre a qual um jovem acabou de pôr um ferro em brasa, enquanto
um outro rapaz está queimando o casco de um burrinho, a fim de prepará-lo
para a próxima ferração.
327.2 – São quase todos romanos estes ferradores, ao longo das estradas.
São soldados que ficaram por aqui, depois de terem prestado o serviço
militar. E aqui eles ganham… Não estão impedidos nunca de cuidar dos
animais… E um burro pode perder a ferradura antes do pôr-do-sol do
sábado, ou no tempo das Encênias… –observa Mateus.
– Aquele que ferrou para nós o Antônio era casado com uma hebréia –
diz João.
– As mulheres tolas são em maior número do que as mulheres sábias –
sentencia Tiago de Zebedeu.
– E os filhos, de quem são? De Deus, ou do paganismo? –pergunta
André.
– São do cônjuge mais forte, quase sempre –responde Mateus–. Mas,
uma vez que a mulher não seja uma apóstata, eles são hebreus, porque o
homem, estes homens, consentem que assim seja. Eles não são muito
fanáticos, nem com o seu Olimpo. Eu acho que eles não crêem em nada
mais, a não ser na necessidade do seu ganho. Eles são cheios de filhos.
– Suas uniões, porém, são desprezíveis. Eles não têm uma fé, uma
verdadeira pátria… são malvistos por todos… –diz Tadeu.
– Não. Estás enganado. Roma não os despreza. Pelo contrário, os ajuda
sempre. Eles lhe servem mais agora do que quando portavam as armas. Eles
penetram entre nós mais pela corrupção do sangue, do que pela violência.
Quem sofre, quando isso acontece, é a primeira geração. Depois eles se
espalham e… o mundo se esquece… –diz Mateus, que parece muito bem
informado.
– Sim, os filhos são os que sofrem. Mas também as mulheres hebréias
assim unidas… Sofrem por elas mesmas e pelos seus filhos. Tenho dó
deles. Ninguém lhes fala mais de Deus. Mas isto não será mais assim no
futuro. Então, não haverá mais tais separações entre criaturas e nações,
porque as almas estarão unidas numa só Pátria: a minha –diz Jesus, que até
aqui havia ficado calado.
– Mas, então, elas estarão mortas!… –exclama João.
– Não. Elas serão acolhidas em meu Nome. Não haverá mais romanos,
nem líbios, nem gregos, nem pônticos, nem ibéricos, nem gauleses, egípcios
nem hebreus, mas almas de Cristo. E ai daqueles que quiserem distinguir as
almas, todas por Mim igualmente amadas, e pelas quais, de modo igual, Eu
terei sofrido, sejam quais forem as suas pátrias terrenas. Aquele que assim
fizesse demonstraria não ter compreendido a Caridade, que é universal.
Os apóstolos percebem a censura que está nestas palavras, inclinam
suas cabeças, e ficam calados…
327.3 O barulho da marreta batida na bigorna cessou, e já se vão
espaçando mais as marteladas sobre o casco do último burro. Jesus
aproveita, então, para levantar a voz e fazer-se ouvir pela multidão.
Parece que Ele está continuando a falar o que estava dizendo aos
apóstolos. Na realidade, porém, Ele está falando aos que vão passando, e
talvez também aos que estão dentro da casa, certamente algumas mulheres,
porque o barulho que de lá está vindo pelos ares é de vozes femininas.
– Ainda que pareça não haver parentesco, ele sempre existe entre os
homens. É aquele parentesco por parte do único Criador, que foi o mesmo
para todos. E, se depois os filhos de um Pai único se foram separando, isso
não significa que se alterou o liame de origem, assim como não fica
mudado o sangue de um filho, quando ele abandona a casa paterna. Nas
veias de Caim estava o sangue de Adão, mesmo depois que seu delito o
obrigou a fugir pelo mundo afora. E nas veias dos filhos nascidos depois
das dores de Eva, que gemeu sobre o cadáver de seu filho assassinado,
estava o mesmo sangue que circulava nas do distante Caim.
A mesma coisa, e ainda com mais razão, se pode falar sobre a
igualdade entre os filhos do Criador.
Estão eles dispersos? Sim. Estão exilados? Sim. São culpados? Sim.
Falam eles outras línguas, e crêem em outra fé, por nós não aceitas? Sim.
Estão eles corrompidos por suas uniões com os pagãos? Sim. Mas a alma
deles veio de Um só, e há de ser sempre ela, ainda que ferida, desviada,
exilada, corrompida… Ainda que seja um motivo de dor para Deus Pai, ela
é sempre uma alma por Ele criada.
327.4 Os filhos bons de um Pai muito bom devem ter sentimentos bons.
Bons para com o Pai, bons para com os irmãos, tais como eles se tornaram,
porque são filhos de um mesmo Pai. Bons para com o Pai, procurando
consolá-lo em sua dor, fazendo voltar a Ele os filhos causadores de sua dor,
ou porque são pecadores, ou se tornaram apóstatas, ou porque são pagãos.
Bons para com os próprios homens, porque eles têm uma alma, que veio do
Pai, e está encerrada num corpo culpado, embrutecida, tornada obtusa por
alguma religião errada, mas sempre uma alma do Senhor, igual à nossa.
Lembrai-vos, ó vós de Israel, de que não há ninguém, ainda que fosse o
idólatra mais afastado de Deus, por sua religião idolátrica, ainda que fosse o
mais pagão entre os pagãos, ele não estaria absolutamente privado de um
traço de sua origem. Lembrai-vos, ó vós, que errastes, ao afastar-vos da
justa Religião, descendo a uma mistura de sexos que a nossa Religião
condena[46] e, ainda que vos pareça que o que era Israel já morreu em vós, e
morreu sufocado pelo amor a um homem de fé e raça diferente, morto não
está. É alguém que ainda está vivo. É Israel. E vós tendes o dever de soprar
sobre esse fogo que está morrendo, de sustentar a labareda, que subsiste
ainda por vontade de Deus, para fazê-la crescer acima do amor carnal. Este
acaba com a morte. Lembrai-vos disso. E vós, vós, quem quer que sejais,
que estais vendo, e muitas vezes ficais horrorizados, ao verdes os híbridos
conúbios de filhas de Israel com alguém de outra raça ou de outra fé,
lembrai-vos que tendes a obrigação, o dever de ajudar com caridade a irmã
extraviada, para que ela reencontre os caminhos do Pai.
Esta é a nova Lei, santa e agradável ao Senhor: que os seguidores do
Redentor redimam onde houver alguém para ser redimido, a fim de que
Deus sorria pelas almas que voltam à casa Paterna, e para que não fique
estéril ou muito vilipendiado o sacrifício do Redentor.
327.5 Para fazer que muita farinha fermente, a dona de casa toma um
pouquinho da massa feita na semana que passou. Oh! Apenas uma migalha
é tirada da grande quantidade de massa. E ela a enterra na montanha de
farinha e conser-va tudo isso ao abrigo dos ventos contrários, à temperatura
morna e propícia da casa.
Fazei assim, vós, que sois seguidores do Bem, fazei assim vós, ó
criaturas, que vos afastastes do Pai e do seu Reino. Dai vós, por primeiro,
uma migalha do vosso fermento para aumentar e ajudar as moléculas da
justiça que ainda subsistem nelas. E vós e elas conservai o fermento novo
ao abrigo dos ventos contrários do Mal, na temperatura agradável da
Caridade, conforme o vosso estado: se ela é que manda em vós como
senhora, ou se ainda se esforça para estar viva em vós, por mais que já
esteja moribunda. Fechai ainda as paredes da casa de uma falta de religião a
respeito daquilo que está fermentando no coração a uma pessoa que tem a
vossa mesma fé, mas está tão desviada, que se sinta ainda amada por Israel,
ainda filha de Sião e irmã nossa, para que assim fermentem todas as boas
vontades e venha às almas e para as almas todas o Reino dos Céus.
327.6 – Mas, quem é? Mas, quem é? –perguntam as pessoas, que não
estão mais com pressa de passar, mesmo que a ponte já esteja livre, e
também de continuar a viagem, depois de já a terem atravessado.
– É um rabi.
– Um rabi de Israel.
– Quem? Aqui nos confins da Fenícia? É a primeira vez que isto
acontece!
– No entanto, assim é. Aser me disse que Ele é aquele a quem chamam
o Santo,
– Então, talvez esteja procurando refugiar-se entre vós, porque lá o
estão perseguindo.
– Eles são como certos répteis!
– Que bom que Ele venha para o meio de nós. Fará milagres…
Enquanto isso, Jesus se afastou, tomou um caminho através dos
campos, e lá se vai…
[46] condena, como em Gênesis 24,1-8; Deuteronômio 7,3-4; 1 Reis 11,1-13, Esdras 9-10, Neemias 13,23-29; Malaquias 2,11-12.
Várias vezes, o trabalho mostra que os casamentos mistos (aqui chamado: mistura de sexos… de diferentes credos e de raça
diferente) foram reprovados pelos judeus em relação à letra da lei, cujo real significado é revelado nos ensinamentos de Cristo,
como aqui e em 245.3 e 323.8.
328. Até Alexandrecene, dos irmãos de Hermion.
12 de novembro de 1945.
328.1 Chegam de novo à estrada, depois de um longo giro através dos
campos e depois de terem atravessado a torrente, passando por uma
pinguela de tábuas chiantes, que só serve mesmo para passagens de
pessoas: é mais uma passarela, do que uma ponte.
E a marcha continua pela planície, que vai se tornando sempre mais
estreita, porque as colinas avançam sobre o litoral, e tanto, que depois se
passar por mais uma torrente, que também tem sua ponte romana, a estrada
deixa a planície, para continuar no monte, bifurcando-se na ponte com uma
outra menos íngreme, que se estende para o nordeste por um vale, enquanto
este, por onde Jesus quer ir, seguindo a indicação do cipo romano:
“Alexandrecene – m.v°”.
É uma verdadeira e propriamente dita escada no monte rochoso e
escarpado, que mergulha seu focinho agudo no Mediterrâneo, que se vai
desdobrando sem-pre mais à vista, à medida que se sobe. Só os pedestres e
os burros é que percorrem esta estrada, esta escadaria, como seria melhor
dizer. Mas talvez se-ja porque ela serve para se atalhar muito, pois é
também muito batida e as pessoas estão observando, curiosas, este grupo de
galileus, tão pouco vistos por aqui, e que a vão percorrendo.
– Este deve ser o cabo da tempestade –diz Mateus, mostrando o
promontório, que se lança no mar.
– Sim, lá embaixo está o povoado, do qual o pescador nos falou[47] –
confirma Tiago de Zebedeu.
– Mas, quem terá feito esta estrada?
– Quem sabe de quando é? Obra fenícia, talvez…
– Lá do alto veremos Alexandrecene, para lá da qual está o Cabo
Branco. Lá verás muito mar, meu João! –diz Jesus, pondo um braço ao
redor das costas do apóstolo.
– Ficarei alegre com isso. Mas, daqui a pouco, chega a noite. Onde
iremos parar?
– Em Alexandrecene. Estás vendo? A estrada já começa a descer. Mais
abaixo ela é plana até à cidade, que se pode ver lá em baixo.
[48]… Como poderemos fazer
328.2 – É a cidade da mulher de Antigônio
para contentá-la? –diz André.
– Sabes, Mestre, ela nos disse: “Ide a Alexandrecene. Meus irmãos têm
empórios lá, e são prosélitos. Fazei que eles ouçam falar do Mestre. Nós
também somos filhos de Deus…”, e chorava, porque é pouco tolerada como
nora… de tal modo, que nunca os irmãos vão a ela, e ela não tem notícias
deles… –explica João.
– Nós iremos procurar os irmãos da mulher. Se eles nos acolherem
como peregrinos, nós teremos meios de fazê-la contente…
– Mas, como faremos para dizer que a vimos?
– Ela é dependente de Lázaro. E nós somos amigos de Lázaro –diz
Jesus.
– É verdade. Tu falarás…
– Sim. Mas apressai o passo, para encontrarmos a casa. Sabes onde é?
– Sim. Perto do Castelo. Eles têm muito relacionamento com os
romanos, aos quais vendem muitas coisas…
– Está bem.
328.3 Terminam rapidamente a estrada, toda plana, bonita, uma
verdadeira estrada consular, que certamente vai unir-se com as do interior,
ou melhor, que certamente continua para o interior, depois de ter lançado
suas ramificações rochosas em escadarias, ao longo da costa e a cavaleiro
do promontório.
Alexandrecene é mais uma cidade militar do que civil. Ela Deve ter
uma importância estratégica, que eu não sei qual é. Agachada como ela está
entre dois promontórios, mais parece uma sentinela colocada de guarda
naquele trecho do mar. Agora, que os olhares já podem ver um e outro cabo,
pode-se ver também como sobre eles é grande o número de torreões
militares, que formam uma corrente com os da planície e os da cidade,
onde, perto da costa, se ergue o imponente castelo.
Entram na cidade, depois de terem atravessado uma outra pequena
torrente, situada justamente perto das portas, e se dirigem para o molhe da
fortaleza, de aspecto severo, olhando, curiosos, ao redor de si, e sendo
também curiosamente observados.
Os soldados são em grande número, e parece que têm bom
relacionamento com os cidadãos, o que faz que os apóstolos fiquem
murmurando por entre dentes:
– Gente fenícia! Gente sem honra!
328.4 Chegam aos armazéns dos irmãos de Hermion, enquanto os últimos
fregueses estão saindo carregados com as mais variadas mercadorias, que
podem ser desde os panos, tecidos para enxugar louças, até o feno, o óleo e
os mantimentos que estão nos celeiros e depósitos. O cheiro dos couros, das
especiarias, das palhas, de lãs ainda não trabalhadas, enche o amplo espaço,
através do qual se chega ao pátio, vasto como uma praça, sob cujos pórticos
estão os diversos depósitos.
Aparece um homem barbudo e moreno.
– Que quereis? Alimentos?
– Sim… e também alojamento, se não ficas aborrecido por alojar
peregrinos. Estamos vindo de longe, e nunca estivemos por aqui. Acolhe-
nos em nome do Senhor.
O homem olha atentamente para Jesus, que falou em nome de todos. O
homem o perscruta… Depois diz:
– Para dizer a verdade, eu não costumo dar alojamento. Mas Tu me
agradas. És galileu, não é mesmo? São melhores os galileus do que os
judeus. Nestes há muita bazófia. Eles não nos perdoam porque temos um
sangue não puro. Fariam eles melhor se procurassem ter uma alma pura.
Vem, entra para cá que eu já volto. Vou fechar, porque já é noite.
De fato, a luz já é de crepúsculo, e o é ainda mais no pátio, que está
atrás do poderoso castelo.
Entram em uma sala e vão-se assentando em umas cadeiras espalhadas
por aqui e por ali.
O homem já está de volta com dois outros, um mais velho e outro mais
novo. Ele lhes mostra os hóspedes, que se levantam saudando, e diz:
– Aí estão. Que vos parece? A mim me parecem honestos…
– Sim. Fizeste bem –diz o mais velho ao seu irmão.
E depois, virado para os hóspedes, ou melhor, para Jesus, que
claramente está dando a entender que é o chefe, e lhe pergunta:
– Como vos chamais?
– Jesus de Nazaré, Tiago e Judas, também de Nazaré. Tiago e João de
Betsaida, e também André e Mateus, que é de Cafarnaum.
– Como é que viestes parar aqui? Estais sendo perseguidos?
– Não. Estamos evangelizando. Já percorremos mais de uma vez a
Palestina, da Galiléia até a Judéia, de um até o outro mar. E até no além-
Jordão, na Auranítida já estivemos. Agora, viemos até aqui… para ensinar.
– Um rabi aqui? Para nós isso é espantoso, não é mesmo, Filipe e
Elias? –pergunta o mais velho.
– E muito. De que casta sois vós?
– De nenhuma. Eu sou de Deus. Crêem em Mim os bons do mundo. Eu
sou pobre, amo os pobres, mas não desprezo os ricos, aos quais Eu ensino o
amor e a misericórdia, o desapego das riquezas, assim como ensino aos
pobres a amar a sua pobreza, confiando em Deus, que não deixa ninguém
perecer. 328.5Entre os amigos ricos e discípulos meus está Lázaro de
Betânia…
– Lázaro? Temos uma irmã casada com um servo dele.
– Eu sei. Também por isso é que Eu vim. Para dizer-vos que ela vos
manda saudações, e vos ama.
– Tu a viste?
– Eu não. Mas estes que estão comigo, e que foram mandados por
Lázaro a Antigônio.
– Oh! Que é que estais dizendo? Que Hermion está fazendo? Ela está
feliz mesmo?
– O esposo e a sogra gostam muito dela. O sogro a respeita… –diz
Judas Tadeu.
– Mas não lhe perdoa o sangue da mãe. Dize isto também!
– Ele está para lhe perdoar. Ele nos disse grandes louvores a respeito
dela. Ela tem quatro meninos muito bonitos e bons. Isto a faz muito feliz.
Mas ela os traz sempre no coração e disse que virá trazer-vos o Mestre
Divino.
– Mas… como… Tu és o… És aquele que chamam o Messias, és Tu?
– Eu sou.
– És verdadeiramente o… Disseram-nos em Jerusalém que Tu és e que
Te chamam o Verbo de Deus. É verdade?
– Sim.
– Mas Tu o és para aqueles de lá, ou para todos?
– Para todos. Podeis crer que Eu sou Aquele?
– Crer não custa nada, e ainda menos quando se espera que a coisa que
se crê pode tirar-nos o que nos faz sofrer.
– É verdade, Elias. Mas, não digas assim. É um pensamento muito
impuro, muito mais do que o sangue mestiço. Alegra-te, não pela esperança
de que caia o que te faz sofrer como homem, pelo desprezo dos outros, mas
alegra-te pela esperança de conquistar o Reino dos Céus.
– Tens razão. Eu sou um meio pagão, Senhor…
– Não te rebaixes. Eu amo também a ti e por ti também Eu vim.
– Eles devem estar cansados, Elias. Tu os estás detendo com
328.6
discursos. Vamos para a ceia e depois leva-os ao lugar do repouso. Aqui não
há mulheres… Nenhuma de Israel nos quis e nós queríamos uma delas…
Perdoa, pois, se a casa te parecer fria e desabitada.
– O vosso bom coração a tornará ornada e aquecida.
– Quanto tempo ficas por aqui?
– Não mais de um dia. Eu quero ir para Tiro e Sidon, e gostaria de estar
em Aqzib, antes do sábado.
– Não podes, Senhor! Sidon está longe!
– Amanhã Eu gostaria de falar aqui.
– A nossa casa é como um porto. Sem sair dela, terás ouvintes ao teu
gosto e tanto mais, porque amanhã a feira é grande.
– Então vamos e que o Senhor vos recompense pela vossa caridade.
[47] falou conosco no passeio de barco a partir de Ptolemaida a Tiro, 318.5.
[48] da mulher Antigonio, nas dez linhas mencionadas abaixo, é Hermione, encontrada em 323.8.
329. No mercado de Alexandrecene.
A parábola dos operários da vinha.
13 de novembro de 1945.
329.1 O pátio dos três irmãos está pela metade na sombra e com a outra
metade iluminada pelo sol. Ele está cheio de pessoas, que vão e vêm para
fazerem suas compras, enquanto do lado de fora do portão, na pequenina
praça, ouve-se o vozerio da feira de Alexandrecene, em um confuso ir e vir
de adquirentes e compradores, de burros, de ovelhas, cordeiros, galinhas.
Porque se entende que aqui eles encontrem menos dificuldades e, com os
frangos trazidos para a feira, não se precisa ter medo de contaminações. Os
relinchos, os balidos, o cacarejar das galinhas e o canto dos galos novos se
misturam com as vozes dos homens em um alegre coro que, de vez em
quando, faz ouvir algumas notas agudas e dramáticas, por causa de alguma
altercação.
Também no pátio dos irmãos há um murmúrio e não falta alguma
altercação, ou por causa do preço, ou porque algum freguês pegou alguma
coisa que um outro já tinha a intenção de pegar. Não faltam as lamentações
nem a voz chorosa dos mendigos que, perto do portão da praça, recitam a
ladainha de suas misérias, com uma voz cantada e triste, como o gemido de
um moribundo.
Os soldados romanos vão e vêm, como se fossem os donos das lojas e
da praça. Acho que eles estão a serviço da ordem, porque estão armados, e
nunca estão sozinhos, indo por entre os fenícios, que estão todos armados.
Também Jesus vai e vem pelo pátio, dando algumas voltas com os seis
apóstolos, como quem está esperando o momento oportuno para falar.
Depois Ele desce por um instante até à praça, passando por perto dos
mendigos, aos quais dá uma esmola. O povo se diverte por alguns minutos a
olhar o grupo dos galileus, e muitos ficam perguntando quem serão aqueles
homens estrangeiros. Mas há alguém que se informa, tendo ido perguntar
aos três irmãos, que são os hospedeiros deles.
Um novo murmúrio surge agora, o dos que vão acompanhando os
passos de Jesus, que lá se vai tranqüilamente, acariciando os meninos que
vai encontrando em seu caminho. Entre os que estão falando em voz baixa,
não faltam também os sorrisos de escárnio e os apelidos pouco agradáveis
para os hebreus. Mas também não falta o desejo honesto de ouvir falar o
“Profeta”, o “Rabi”, o “Santo”, o “Messias de Israel”, pois com estes nomes
é que o estão mostrando, conforme o grau de sua fé e a retidão de seu
coração.
329.2 Ouço a voz de duas mães:
– Mas é verdade?
– Disse Daniel a mim mesma. Ele falou em Jerusalém com pessoas que
viram os milagres do Santo.
– Sim, está bem. Mas será assim mesmo esse homem?
– Oh! Daniel me disse que não pode ser senão Ele, pelo que Ele está
falando.
– Então… que achas? Ele me concederá a graça, ainda que eu seja
apenas uma prosélita?
– Eu diria que sim… Experimenta. Talvez Ele não volte mais aqui entre
nós. Experimenta, experimenta! Mal, certamente não te fará!
– Eu vou –diz a mulherzinha, deixando no ar o vendedor de louças, do
qual ela queria comprar umas tigelas, mas o vendedor, que estava ouvindo a
conversa das duas, irritado pelo bom negócio que ficou frustrado,
decepcionado se dirige contra a mulher, que lá ficou parada, cobrindo-a de
insultos, e dizendo: “Maldita prosélita. Sangue de judia. Mulher vendida”,
etc. etc.
Ouço a voz de dois homens sérios e barbudos:
– Eu gostaria de ouvi-lo. Dizem que é um grande Rabi.
– Um Profeta, deves dizer. Maior que o Batista. Elias me disse certas
coisas! Certas coisas! Elias o sabe, porque ele tem uma irmã casada com o
servo de um ricaço de Israel e, para ter notícias dela, costuma fazer
perguntas aos companheiros de serviço. E o tal ricaço é muito amigo do
Rabi…
Um terceiro, talvez um fenício que, estando ali perto, ouviu o que
estavam dizendo, intromete o seu rosto esguio e satírico entre os dois e diz,
zombeteiro:
– Bela santidade! Temperada com riquezas! Pelo que eu sei, o Santo
deveria viver pobremente!
– Cala-te, Doro, língua maldizente. Não és digno tu, um pagão, para
julgar tais coisas.
– Ah! Então vós é que sois dignos disso, e especialmente tu, Samuel!
Farias bem, se me pagasses aquilo que me estás devendo!
– Ora, veja! E não me fiques rodeando, ó vampiro, seu cara de fauno!
Ouço um velho meio cego, que está acompanhadode uma menininha, e
que pergunta:
– Onde está, onde está o messias?
E a menininha diz:
– Abri caminho para o velho Marcos. Por favor, dizei ao velho Marcos
onde está o Messias!
Foram duas vozes: a senil, fraca e trêmula. E a da menina, clara e firme.
E elas se espalham pela praça inutilmente, até que, afinal, um outro homem
diz:
– Quereis ir ao Rabi? Ele voltou e foi para a casa de Daniel. Lá está Ele
parado, e está conversando com os mendigos.
329.3 Ouço dois soldados romanos, que dizem:
– Deve ser o que os judeus estão perseguindo, aqueles boas peças!
Basta que se olhe para Ele e logo se vê que é melhor do que eles.
– É por causa disso que Ele lhes desagrada!
– Vamos dizê-lo ao alferes. Esta é a ordem.
– És muito tolo, ó Caio. Roma trata com desconfiança os cordeirinhos e
os suporta. Mas eu diria que ela acaricia os tigres. –(Cipião)[49].
– Não me parece, Cipião! A Pôncio se mata facilmente! –(Caio).
– Sim… mas ele não fecha sua casa às aduladoras hienas que o
bajulam. –(Cipião).
– Isto é política, Cipião! É política! –(Caio).
– É vileza, Caio, e estultícia. Deste ele deveria fazer-se amigo. Para ter
uma ajuda com que manter obediente essa canalha asiática. Ele não serve
bem a Roma, Pôncio, pois deixa de tratar bem a este para ir adular os
maus. –(Cipião).
– Não fiques criticando o Procônsul. Nós somos soldados, e o superior
é sagrado como um deus. Nós juramos obediência ao divo César, e o
Procônsul é um representante dele. –(Caio).
– Está bem, enquanto se trata de um dever para com a Pátria, sagrada e
imortal. Mas não em nosso foro interno. –(Cipião).
– Mas a obediência vem do juízo. Se o teu juízo se rebela contra uma
ordem e a critica, já não estarás obedecendo completamente. Roma se apóia
sobre a nossa obediência cega para defender suas conquistas. –(Caio).
– Pareces um tribuno, e falas bem. Mas eu te faço observar que, se
Roma é rainha, escravos é que não somos. Somos súditos. Roma não tem,
não pode ter cidadãos escravos. É uma escravidão querer impor silêncio às
razões dos cidadãos. Eu digo que a minha razão julga que Pôncio faz mal
em não cuidar deste israelita e em não dar-lhe o nome de Messias, Santo,
Profeta, o que quiseres. E acho que posso fazer isso, porque com isso não
diminui a minha fidelidade a Roma, nem meu amor a ela. Mas, mesmo sem
isso, acho que Ele ensina o respeito às leis e aos Cônsules, como está
fazendo, e que assim coopera para o bem-estar de Roma. –(Cipião).
– Tu és muito culto, Cipião… Terás um futuro. Já vais indo à frente. Eu
sou apenas um pobre soldado. No entanto, estás vendo aquilo lá adiante?
Há uma aglomeração ao redor do Homem. Vamos dizê-lo aos chefes
militares. –(Caio).
329.4 De fato, perto do portão dos três irmãos, há uma multidão de
pessoas em torno de Jesus que, por causa de sua altura, pode ser bem visto.
Pouco depois, de repente, ouve-se um grito, e o povo começa a agitar-se.
Outros vêm correndo da feira, enquanto alguns, do meio da multidão, saem
correndo pela praça e para outros lados. Ouvem-se perguntas… respostas…
– Que aconteceu?
– Que há?
– O Homem de Israel curou o velho Marcos!
– A névoa dos olhos dele se desfez.
Enquanto isso, Jesus entrou no pátio, acompanhado por um grande
número de pessoas. Mancando, no meio daquele acompanhamento, vai indo
um dos mendigos, um pouco coxo, que mais se arrasta com as mãos do que
anda com as pernas. Mas, se suas pernas estão tortas e sem força a tal ponto
que sem suas bengalas ele não iria para a frente, contudo, a força dele está
em sua voz estentórea:
– Santo, Santo! Messias! Rabi! Tem piedade de mim!
Ele grita até perder o fôlego, e sem parar.
Duas ou três pessoas se viram para ele, e lhe dizem:
– Não precisas ficar perdendo o fôlego! Marcos é hebreu, e tu, não.
– Para os verdadeiros israelitas, Ele concede graças. Mas não para os
filhos de um cão!
– Mas minha mãe era hebréia…
– Mas Deus a feriu, e te deu a ela como um monstro por causa do
pecado dela. Fora, filho de uma loba! Volta para o teu lugar, fica em tua
lama!…
O homem se encosta ao muro, abatido, apavorado pela ameaça dos
punhos que lhe estão mostrando…
Jesus pára, vira-se, e fica olhando. E diz:
– Homem, vem cá!
O homem olha para Ele, olha para os que o estão ameaçando… e não
tem coragem de ir para a frente.
Jesus abre caminho por entre uma pequena aglomeração e vai até ele.
Pega-o pela mão, põe a mão sobre o ombro dele, e lhe diz:
– Não tenhas medo. Vem para frente comigo.
E, olhando para aqueles malvados, diz com seriedade:
– Deus é de todos os homens que o procuram e que são
misericordiosos.
Eles entendem aquela antífona, e agora são eles que ficam no
acompanhamento, ou melhor, que ficam parados onde estão.
Jesus torna a virar-se. E os vê lá, confusos, querendo irem-se embora, e
lhes diz:
– Não. Vinde, vós também. Será bom também para vós, para endireitar
e fortalecer as vossas almas, como Eu endireito e fortaleço a este, porque
ele soube ter fé. Homem, Eu te digo, fica curado da tua enfermidade.
E deixa de continuar com a mão sobre o ombro do aleijado, depois de
este ter tido como que uma sacudida.
O homem se endireita, firme sobre as pernas, joga fora as muletas, já
desgastadas pelo uso. E grita:
– Ele me curou! Louvado seja Deus e minha mãe! –e depois se ajoelha
para beijar a orla da veste de Jesus.
329.5O tumulto criado pelos que querem ver e pelos que já viram e estão
comentando, chega ao auge. No fundo do corredor, que vai da praça para o
pátio, as vozes ecoam como se estivessem saindo de um poço, e o eco que
elas produ-zem se nota quando elas se chocam contra as muralhas do
Castelo.
As milícias começam a temer que tenha surgido alguma briga — pois
isto é fácil acontecer nestes lugares, aonde vêm encontrar-se tantas raças e
religiões — e um pelotão de soldados vem abrindo caminho rudemente,
perguntando o que foi que aconteceu.
– Um milagre, um milagre! Jonas, o aleijado, foi curado. Lá está ele
perto do Homem galileu.
Os soldados olham uns para os outros. E nada falam, enquanto a
multidão não passa toda, e atrás dela não se amontoou outra, formada pelos
que estavam nos armazéns e na praça, na qual podem ver-se os que ficaram:
são os vendedores, que estão com raiva, por causa da imprevista dispersão
dos fregueses, o que vai estragar a feira daquele dia. Depois, vendo passar
um dos três irmãos, perguntam:
– Filipe, sabes o que está fazendo agora o Rabi?
– Está falando, ensinando e é lá no pátio –diz Filipe todo contente.
Os soldados trocam idéias:
– Vamos ficar aqui, ou vamo-nos embora?
– O alferes disse que vigiemos…
– A quem? Ao Homem? Mas, por Ele, poderíamos apostar com os
dados, sendo o prêmio uma ânfora de vinho de Chipre –diz Cípião, aquele
que antes estava defendendo Jesus, diante de seu companheiro.
– Eu diria que Ele é que tem necessidade de ser protegido e não o
direito de Roma! Vós o estais vendo lá? Entre os nossos deuses, nenhum é
tão manso e, contudo, de um aspecto tão viril. Essa canalha não é digna de
tê-lo. E os indignos sempre são maus. Fiquemos aqui a protegê-lo. Se for
preciso, lhe salvaremos as costas e acariciaremos as destes galeotes –diz,
meio sarcástico e meio admirado, um outro.
– Dizes bem, Prudente, e até para que Prócoro, o alferes, que vive
sonhando com sublevações contra Roma… e promoções para si, em
recompensa e por merecimento, por sua constante vigilância, em favor da
saúde do divo César e da deusa Roma, mãe e senhora do mundo, a fim de
que ele se persuada de que aqui vai conquistar braçadeiras ou coroas… Vai
chamá-lo, Acio.
329.6 Um jovem soldado sai correndo e volta correndo, para dizer:
– Prócoro não vem. Ele mandou o triário Aquila…
– Bem! Bem! É melhor do que o próprio Cecílio Máximo. Aquila
serviu na África, na Gália, e esteve nas florestas vorazes, que nos levaram o
Varo e suas legiões. Ele conhece os gregos e os bretões e tem bom faro para
distinguir… Oh! Salve! Eis aqui o glorioso Aquila! Vem, ensina-nos a nós,
pobrezinhos, a compreender o valor das pessoas!
– Viva o Aquila, mestre das milícias! –gritam todos, dando afetuosas
sacudidas no velho soldado que tem o rosto cheio de cicatrizes, e assim
como está no rosto, do mesmo modo estão os seus braços nus e as barrigas
das pernas nuas.
Ele sorri com benevolência, e exclama:
– Viva Roma, mestra do mundo! E não eu, um pobre soldado. Afinal,
que está havendo?
– É preciso vigiar aquele homem alto e louro, como o cobre mais claro.
– Bem. Mas, quem é Ele?
– Dizem que é o Messias. Chama-se Jesus, e é de Nazare. É aquele,
sabes, pelo qual foi dada a ordem…
– Hum!… Será… mas parece-me que vamos correndo atrás das nuvens.
– Dizem que Ele quer fazer-se rei e suplantar Roma. Já o denunciaram
o Sinédrio e os Fariseus, os Saduceus, e os Herodianos a Pôncio. Tu sabes
que os hebreus têm esta minhoca na cabeça e, volta e meia, aparece um
rei…
– Sim, sim… Mas, se é para isso! Seja lá como for, vamos ouvir o que
Ele está dizendo. Parece-me que Ele está se preparando para falar.
– Fiquei sabendo pelo soldado que está com o centurião que o Públio
Quintiliano lhe falou dele como de um filósofo divino… As mulheres
imperiais são entusiastas dele… –diz um outro soldado, ainda jovem.
– Eu creio. Eu seria também um entusiasta dele se eu fosse uma mulher,
e o quereria em minha cama!… –diz, rindo-se de contente, um outro jovem
soldado.
– Cala a boca, seu sem vergonha! A luxúria te está carcomendo –caçoa
um outro.
E a ti não, Fábio? Ana, Sira, Alba, Maria… –caçoa um outro.
– Silêncio, Sabino. Ele está falando e eu quero escutar –ordena o
triário.
E todos se calam.
329.7Jesus subiu sobre uma caixa colocada encostada à parede. Por isso,
Ele está bem visível a todos. Sua doce saudação já se espalhou pelos ares e
foi seguida por estas palavras: “Filhos de um único Criador, ouvi!” e depois
prossegue, no meio de um auditório atento:
– O Tempo da Graça chegou para todos, não só para Israel, mas para
todo o mundo. Homens hebreus, cada qual por motivos diferentes, os
prosélitos, os fenícios, os pagãos, todos vós, ouvi a Palavra de Deus,
compreendei a Justiça, conhecei a Caridade. Se tiverdes Sabedoria, Justiça e
Caridade, tereis os meios de chegardes ao Reino de Deus, àquele Reino que
não é exclusivamente para os filhos de Israel, mas é para todos aqueles que,
de agora em diante, amarem o Verdadeiro e único Deus, e crerem na palavra
do seu Verbo.
329.8 Escutai. Eu vim de muito longe, não com planos de usurpador, nem
com a violência do conquistador. Eu vim somente para ser o Salvador de
vossas almas. O domínio, as riquezas, os cargos, não me seduzem. Tudo
isso para mim é nada, e nem olho para isso. Ou melhor, Eu só olho para ter
dó deles, pois fazem compadecer-me, pois são outras tantas correntes para
conservarem prisioneiro o vosso espírito, impedindo-o de ir ao Senhor
Eterno, único, Universal, Santo e Bendito. Eu olho para todos esses, e me
aproximo deles, como quem tem que lidar com as maiores misérias. E
procuro curá-los do seu fascinante e cruel engano, que seduz os filhos do
homem, para que eles possam usar de suas coisas com justiça e santidade,
não como armas cruéis, que ferem e matam o homem, e até, em primeiro
lugar, o espírito de quem não usa delas retamente.
Mas, em verdade, Eu vos digo, para Mim é mais fácil curar um corpo
disforme do que uma alma deformada. Para mim é mais fácil dar luz aos
olhos apagados, saúde a um corpo moribundo, do que dar luz aos espíritos e
saúde às almas doentes. Por que assim? Porque o homem perdeu de vista o
verdadeiro fim de sua vida, e se ocupa só com o que é transitório.
O homem não sabe, ou não se lembra, ou então se lembra mas não quer
obedecer a esta santa injunção do Senhor e digo também para os pagãos que
me estão ouvindo de fazer o Bem, que tanto é Bem em Roma, como em
Atenas, na Gália como na África, porque a lei moral existe debaixo de todos
os céus e em todas as religiões, em todos os corações. E as religiões, desde
a de Deus até a da moral individual, nos dizem que a parte melhor de nós
sobrevive, e que a segunda, como tiver vivido nesta vida, terá marcada
também qual será a sua sorte na outra.
Portanto o fim do homem é conquistar a paz na outra vida. Não certas
coisas como a folgança, a usura, a prepotência, o prazer, que sendo por tão
pouco tempo, são coisas que nem podem ser levadas em conta, em
comparação com uma eternidade de tormentos bem duros. E, apesar disso,
o homem não quer saber desta verdade, não quer lembrar-se dela. Se ele
não sabe dela, é menos culpado. Se não se lembra dela, é culpado até certo
ponto, porque a luz da verdade deve ser mantida acesa, como um facho
santo, nas mentes e nos corações. Mas, se dela não quer recordar-se e,
quando ela brilha, ele fecha os olhos para não vê-la, considerando-a
desagradável como a voz de um reitor pedante, nesse caso a culpa dele é
grave, muito grave.
329.9 E, no entanto, Deus perdoa, se a alma renuncia à sua má ação e
toma o propósito de procurar chegar, por todo o resto de sua vida, ao
verdadeiro fim do homem, que é conquistar para si a paz eterna no Reino do
verdadeiro Deus. Tereis vindo até hoje por uma má estrada? Estais
desanimados e pensando que já é tarde para retomar o bom caminho? Estais
desconsolados e dizendo “Eu não sabia nada disso! e, por isso, sou agora
um ignorante e não sei o que fazer”? Não. Não fiqueis pensando que tudo
acontece como com as coisas materiais, e que seja preciso muito tempo e
muita fadiga para fazer de novo o que já foi feito, mas agora com santidade.
A bondade do Eterno e verdadeiro Senhor Deus é tão grande, que não exige
de vós que volteis para trás e percorrais todo o caminho já feito, até
chegardes àquela encruzilhada onde começastes a errar, deixando o
caminho justo, para irdes pelo injusto. Aquela bondade é tanta que, no
momento em que vós disserdes: “Eu quero estar com a Verdade”, isto é, eu
quero ser de Deus, porque Deus é a Verdade, então Deus, por um milagre
todo espiritual, infunde em vós a Sabedoria, pela qual vós, de ignorantes,
vos tornais possuidores da Ciência sobrenatural, de modo igual ao daqueles
que já a possuem há anos.
Sabedoria é querer Deus, amar Deus, cultivar o espírito, inclinar-se para
o Reino de Deus, renunciando a tudo que é carnal, ao que é mundo, ao que
é de Satanás. Sabedoria é obedecer à Lei de Deus, que é uma Lei de
Caridade, de obediência, de Continência, de Honestidade. Sabedoria é amar
a Deus com todo o nosso ser e amar ao próximo como a nós mesmos. Estes
são os dois indispensáveis elementos para sermos sábios com a Sabedoria
de Deus. E no próximo estão, não só os que são de nosso sangue, da nossa
raça ou religião, mas estão todos os homens, ricos ou pobres, sábios ou
ignorantes, hebreus, prosélitos, fenícios, gregos, romanos…
329.10 Jesus foi interrompido por um urro ameaçador de alguns fanáticos.
Jesus olha para eles, e diz:
– Sim, isso é amor. Eu não sou um Mestre servil. Eu falo a verdade,
porque assim devo fazer, a fim de semear em vós o que é necessário para
terdes a vida eterna. Quer gosteis, quer não, Eu vo-lo devo dizer, para
cumprir com o meu dever de Redentor. Portanto, amai ao próximo. Todo o
próximo. Com um amor santo. Não com um sujo concubinato de interesses,
pelo qual se transforma em “anátema” o romano, o fenício ou o prosélito,
ou vice-versa, enquanto que, se o interesse for a sensualidade ou o dinheiro,
a cobiça da sensualidade ou da vantagem em dinheiro que surgirem entre
vós, aí, então, não é mais “anátema.”
Ouve-se um outro rumorejar da multidão, e os romanos, de seu posto de
observação no átrio, exclamam:
– Por Júpiter! Como fala bem este homem!
Jesus deixa que o rumor se acalme e continua:
– Amar ao próximo, como gostaríamos de ser amados. Porque nós não
gostamos de ser maltratados, de passar por vexames, de ser roubados,
oprimidos, caluniados, insultados. Até a susceptibilidade nacional ou
individual, que nós temos, os outros também a têm. Não façamos, pois, uns
aos outros o mal, o mal que não gostaríamos que nos fosse feito.
Sabedoria é obedecer, é obedecer aos dez Mandamentos de Deus:
“Eu sou o Senhor teu Deus. Não tenhas outro deus, além de Mim. Não
tenhas ídolos, e não lhes prestes culto.
Não uses o Nome de Deus em vão. É o Nome do Senhor teu Deus, e
Deus punirá a quem usa dele sem razão, ou para fazer imprecações, ou para
garantia de algum ato pecaminoso.
Lembra-te de santificares as festas. O sábado é consagrado ao Senhor,
que nesse dia repousou da Criação e o abençoou e santificou.
Honra a teu pai e à tua mãe, a fim de que vivas em paz por longos anos
sobre a terra, e eternamente no Céu.
Não matar.
Não cometer adultério.
Não roubar.
Não levantar falso testemunho contra o teu próximo.
Não desejar a casa, nem a mulher, nem o servo, nem a serva, nem o boi,
o asno, nem nenhuma outra coisa que pertença ao teu próximo.”
Isto é a sabedoria. Quem faz assim é sábio, e conquista a Vida e o
Reino sem fim. Desde hoje, pois, procurai viver segundo a Sabedoria,
dando assim mais importância a ela, do que às coisas podres da terra.
329.11 Que estais dizendo? Falai. Estais dizendo que já está tarde? Não.
Ouvi ainda uma parábola. Um patrão, ao despontar do dia, saiu para
contratar trabalhadores para a sua vinha e combinar com eles em pagar-lhes
um denário por dia. Depois saiu novamente à hora de tércia e, pensando que
os trabalhadores contratados pela manhã ainda eram poucos, e vendo pela
praça muitos desocupados, à espera de quem os contratasse, chamou-os e
lhes disse:
“Ide para a minha vinha, que eu vos pagarei o que eu prometi aos
outros.” E eles para lá se foram.
Saiu o homem outra vez pela hora sexta, e pela nona, e ainda viu
outros, e lhes disse:
“Quereis trabalhar para mim? Eu pagarei um denário por dia aos meus
trabalhadores.” E eles aceitaram, e foram.
Saiu o dono da vinha finalmente, lá pela undécima hora e viu outros
que por ali estavam despreocupadamente tomando os últimos raios do sol.
“Que estais fazendo aqui, assim despreocupados? Não tendes vergonha
de ficar assim, sem fazerdes nada o dia inteiro?”, perguntou-lhes ele.
“Ninguém nos assalariou por dia. Teríamos querido trabalhar, ganhar
nosso pão. Mas ninguém nos chamou para a sua vinha.”
“Está bem. Eu vos chamo para a minha vinha. Ide, e recebereis o
mesmo pagamento que os outros.” Ele assim disse, porque era um patrão
bom e tinha dó da humilhação de seu próximo.
Quando chegou a tarde e terminado o trabalho, o homem chamou o seu
feitor, e lhe disse:
“Chama os trabalhadores e paga-lhes o salário como foi combinado,
mas começa pelos que chegaram por último, que são os mais necessitados,
pois nem tiveram durante o dia o alimento que os outros receberam uma e
mais vezes e que, além disso, foram os que, por reconhecimento para com a
minha compaixão, trabalharam mais do que os outros. Eu os estava
observando. Despacha-os para que possam ir tomar o merecido descanso,
gozando com os seus familiares do fruto do seu trabalho.”
E o feitor fez como o patrão lhe ordenou, dando a cada um deles um
denário.
Por último chegaram os que haviam trabalhado desde a primeira hora
do dia, e ficaram admirados por receberem eles também só um denário, e
começaram a queixar-se uns com os outros e com o feitor, e este disse:
“Eu recebi esta ordem. Ide reclamar com o patrão e não comigo.”
E eles foram, e disseram:
“Tu não estás sendo justo! Nós trabalhamos doze horas, desde antes do
orvalho até o meio-dia, pelo meio do orvalho, e depois expostos ao sol
ardente e em seguida dentro da umidade da tarde, e tu nos deste tanto como
àqueles preguiçosos que trabalharam só uma hora!… Por que isso?”, e um
especialmente levantava a voz, dizendo-se traído e usado indignamente.
“Meu amigo, em que fui injusto contigo? Que eu combinei contigo pela
manhã? Foi um dia de trabalho contínuo e o salário de um denário. Não é
verdade?”
“Sim, é verdade. Mas tu pagaste o mesmo tanto àqueles, por um
trabalho muito menor…”
“Tu não estiveste de acordo com aquele pagamento e não o julgaste
justo?”
“Sim. Estive de acordo, porque os outros trabalhavam por menos.”
“Foste maltratado aqui por mim?”
“Não. Em consciência, não.”
“Eu te concedi um descanso durante o dia e a comida, não é verdade?
Três refeições eu te dei. E, tanto a comida como o descanso, não estavam
combinados. Não é verdade?”
“Sim. Não estavam combinados.”
“Por que, então, os aceitaste?”
“Mas… Tu já o disseste: ‘Preferi assim para não fazer que vos canseis,
tendo que voltar às vossas casas’. E a nós nem parecia verdade aquilo… A
tua comida era boa. E era uma economia, era…”
“Era uma graça que eu vos dava gratuitamente e que ninguém podia
pretender receber. Não é verdade?”
“É verdade.”
“Então, eu vos fiz o bem. Por que, então, vos estais queixando? Eu que
deveria queixar-me de vós que, compreendendo como devíeis proceder com
um patrão bom, estáveis trabalhando com preguiça, enquanto estes últimos,
que vieram depois de vós, tendo recebido o benefício de uma só refeição e
os últimos até sem nenhuma refeição, trabalharam com mais afinco,
fazendo, em menos tempo, o mesmo tanto de trabalho feito por vós em doze
horas. Eu vos teria traído, se tivesse partido ao meio o salário para pagar
também a estes últimos. Mas não foi assim. Por isso, pega o que é teu, e
vai-te! Estarias querendo vir à minha casa para me impores o que queres?
Eu faço o que quero e o que é justo. Não queiras ser malvado, nem tentar-
me para que eu seja injusto. Eu sou bom.”
329.12 Ó vós todos que estais ouvindo, em verdade Eu vos digo que Deus
Pai a todos os homens propõe este mesmo contrato, e promete uma
recompensa igual. A quem com diligência se põe a serviço do Senhor, Ele
dará um tratamento com justiça, ainda que o trabalho seja pouco, por estar
próxima a morte. Em verdade, Eu vos digo que nem sempre os primeiros
serão os primeiros no Reino dos Céus, e que veremos últimos serem
primeiros e primeiros serem últimos. Lá veremos homens que não são de
Israel e mais santos do que muitos em Israel. Eu vim para chamar a todos,
em nome de Deus. Mas, se muitos são chamados, poucos são os escolhidos,
porque poucos são os que desejam a Sabedoria.
Não é sábio quem vive do mundo e da carne, e não de Deus. Não é
sábio nem para a terra, nem para o Céu. Porque na terra se criam inimigos,
punições, remorsos. E, quanto ao Céu, esse para eles fica perdido para
sempre.
Eu repito: sede bons para com o próximo, seja ele quem for. Sede
obedientes, deixando para Deus o direito de punir a quem não é justo e o de
dar or-dens. Sede continentes, sabendo resistir à sensualidade e honrados,
sabendo resistir ao ouro, e coerentes, sabendo dizer o anátema a quem o
merece, e não a quem assim vos parece, a não ser para estreitar depois
contactos com algum objeto que antes foi amaldiçoado como idéia. Não
façais aos outros o que vós não quereríeis que a vós fosse feito, e por isso…
329.13 – Fora, fora daqui, enfadonho profeta! Tu estragaste a nossa
feira!… Tu nos tiraste os clientes!… –urram os vendedores, irrompendo
dentro do pátio…
E aqueles que haviam rumorejado no pátio, diante dos primeiros
ensinamentos de Jesus, — eles não são todos fenícios, mas também
hebreus, que estão presentes, e eu não sei por qual motivo, nesta
cidade — todos se unem aos vendedores para insultar e ameaçar e,
sobretudo para expulsar… Jesus não lhes agrada, porque Ele não aconselha
a fazer o mal…
Ele cruza os braços e fica olhando. Está triste. Mas cheio de dignidade.
As pessoas, divididas em dois partidos, começam a brigar, uns
defendendo e outros ofendendo o Nazareno. Ouvem-se impropérios,
louvores, maldições e gritos dos que dizem:
– Têm razão os fariseus. Tu és um vendido a Roma, um amigo dos
publicanos e das meretrizes.
E também os que dizem:
– Calai-vos, línguas blasfemas! Vós é que estais vendidos a Roma,
fenícios do inferno!
– Vós sois o Satanás!
– Que o inferno vos engula.
– Fora! Fora!
– Fora, vós que vindes fazer feira aqui, seus usurários –e assim por
diante.
Aí os soldados intervêm, dizendo:
– Em vez de incitador, Ele é que é provocado.
E, com suas lanças, expulsam todos para fora do pátio, e fecham o
portão.
Só ficam os três irmãos prosélitos e os seis discípulos com Jesus.
– Mas, como foi que tivestes a idéia de fazê-lo falar? –pergunta o triário
aos três irmãos.
– Eles também falam a tantos! –responde Elias.
– Sim. E não acontece nada, porque eles pregam o que agrada ao
homem. Mas este não prega isso. E por isso é indigesto…
O velho soldado fica olhando atento para Jesus, que desceu do seu
lugar e está em pé, como alguém que está pensando.
Do lado de fora, a multidão continua a discussão. Então, do quartel vão
saindo outros soldados, e com eles está o próprio centurião. Batem no
portão e o fazem abrir, enquanto alguns se põem a repelir, tanto aos que
gritam: “Viva o Rei de Israel!”, como aos que o amaldiçoam.
O centurião vem para frente, apreensivo. Ataca, encolerizado, o velho
Aquila:
– É assim que tu defendes Roma? Deixando que aclamem um rei
estrangeiro numa terra que lhe está sujeita?
O velho saúda com aspereza, e responde:
– Ele estava ensinando respeito e obediência e falava de um reino não
desta terra. Por isso é que o odeiam. Porque Ele é bom e respeitoso. Não vi
motivo para impor silêncio a quem não estava ofendendo à nossa lei.
O centurião se acalma, e resmunga:
– Trata-se, então, de uma nova sedição desta canalha fedorenta… Bem.
Dái ao homem a ordem de ir-se embora logo. Não quero aborrecimentos
aqui. Cumpri esta ordem, escoltai-o até fora da cidade, logo que a estrada
estiver livre. Que Ele vá para onde quiser. Até para o inferno, se quiser. Mas
que saia de minha jurisdição. Compreendestes?
– Sim. Nós o faremos.
O centurião vira as costas, fazendo brilhar vivamente sua couraça, faz
uma onda no ar com seu manto de púrpura, e lá se vai, sem nem olhar para
Jesus.
329.14 Os três irmãos dizem ao Mestre:
– Isto nos desagrada.
– Vós não tendes culpa. E não temais. Daí não virá nenhum mal para
vós. Eu vo-lo digo…
Os três mudam de cor… Felipe diz:
– Como sabe desse nosso medo?
Jesus sorri docemente, e um raio de sol ilumina seu rosto triste:
– Eu sei o que existe nos corações e no futuro.
Os soldados foram expor-se ao sol, na expectativa, olhando de soslaio
uns para os outros, e fazem comentários…
– Poderão eles amar-nos, se odeiam até Aquele ali, que não os oprime?
– E que faz milagres, devias dizer…
– Por Hércules! Quem foi aquele de nós que tinha vindo para avisar que
havia um indiciado a ser vigiado?
– Foi Caio!
– Logo o zelador! E, enquanto isso, nós perdemos o rancho, e eu
prevejo que vou perder o beijo de uma menina!… Ah!
– Epicurista! Onde está a beldade?
– Certamente não é a ti que eu vou dizer, amigo!
– Está atrás do oleiro nos alicerces. Eu sei. Eu te vi, uma tarde
destas… –diz um outro.
329.15 O triário, como quem está passeando, vai até Jesus, anda ao redor
dele, olha para Ele e torna a olhar. Não sabe o que dizer… Jesus lhe sorri,
para encorajá-lo. O homem não sabe o que fazer… Mas se aproxima mais.
Jesus aponta para as cicatrizes:
– Foram feridas? Então és um valente e um fiel…
O velho soldado fica corado pelo elogio.
– Tens sofrido muito por amor à tua Pátria e ao teu imperador… Não
gostarias de sofrer um pouco por uma Pátria maior, que é o Céu? Por um
imperador eterno, que é Deus?
O soldado sacode a cabeça, e diz:
– Eu sou um pobre pagão, mas não está dito que eu também não chegue
lá, pela undécima hora. E quem vai me instruir? Tu estás vendo… Eles te
expulsam. E estas, sim, são feridas que fazem mal, e não as minhas!… Pelo
menos, eu devolvi as minhas aos inimigos. Mas tu, o que dás a quem te
fere?
– Dou o perdão, soldado. O perdão e amor.
– Eu estou com a razão. A suspeita contra ti é estulta. Adeus, galileu.
– Adeus, romano.
329.16 Jesus fica sozinho até que voltem os três irmãos e os discípulos
com uns alimentos que eles, os irmãos, oferecem aos soldados, enquanto os
discípulos os oferecem a Jesus. Comem ao sol, sem vontade, enquanto os
soldados comem e bebem com alegria.
Depois, um soldado sai dali, e vai dar uma olhada pela praça silenciosa.
– Podemos ir, grita ele. Todos já foram embora. Lá estão somente as
patrulhas.
Jesus se levanta mansamente, abençoa e conforta os três irmãos, com os
quais ele marca um encontro pela Páscoa, no Getsêmani, e depois sai no
meio de quatro soldados, com os seus discípulos humilhados que vêm vindo
atrás dele. Eles percorrem a estrada vazia, até chegarem à campina.
– Salve, galileu –diz o triário.
– Adeus, Aquila. Eu te peço: não façais mal a Daniel, a Elias e a Filipe.
Só Eu é que fui o culpado. Dize isto ao centurião.
– Eu não digo nada. A esta hora, ninguém mais está pensando nisso, e
os três irmãos é que nos fornecem bens, especialmente aquele vinho de
Chipre do qual o centurião gosta mais do que a vida. Fica em paz. Adeus.
Eles se separam, os soldados voltam para o outro lado das portas e
Jesus com os seus tomam o caminho que vai pela campina silenciosa, na
direção do leste.
[49] Cipião e Caio, nomes repetidos entre parênteses em cada linha de diálogo, são tomadas a partir da transcrição datilografada,
pois o manuscrito original simplesmente relata as iniciais S e C, escrito a lápis.
330. Tiago e João, “filhos do trovão”.
Para Aqzib com o pastor Anás.
14 de novembro de 1945.
330.1 Jesus caminha por uma região muito montanhosa. Não são montes
altos, mas é um contínuo subir e descer por colinas e um fluir de torrentes,
alegres nesta estação fresca, e agradáveis, límpidas como o céu, ainda
novinhas, como as primeiras folhinhas, que sempre vão-se tornando mais
numerosas sobre os ramos. Mas, por mais que a estação seja bela e alegre, a
ponto de aliviar-nos o coração, não parece que Jesus esteja muito aliviado
em seu espírito, e menos ainda do que Ele, os Apóstolos. Eles vão indo
muito silenciosos, pelo fundo de um vale. Só os pastores e os rebanhos é o
que se apresenta a seus olhos. Jesus, porém, nem parece vê-los.
Um suspiro desconsolado de Tiago de Zebedeu e suas palavras
imprevistas, nascidas de um pensamento aflitivo, é que chama a atenção de
Jesus… Tiago diz:
– Derrotas… e mais derrotas! Parecemos uns amaldiçoados…
Jesus lhe põe a mão sobre o ombro:
– Não sabes que esta é a sorte dos melhores?
– É. Eu sei disso, desde que estou contigo! Mas, de vez em quando,
seria bom termos alguma coisa diferente, e antes nós a tínhamos, para
animar de novo os corações e a fé…
330.2 – Estás duvidando de Mim, Tiago?
Grande é a dor que há nas palavras trêmulas do Mestre.
– Naaão!…
O “não” dele, na, verdade, não tem muita firmeza.
– Mas, que estás duvidando, estás. De que é, então, que estás
duvidando? Já não me amas como antes? Ao veres que fui expulso, ou feito
objeto de zombaria, ou somente perdido por estes confins da Fenícia, foi
isso que enfraqueceu o teu amor?
Há um pranto cheio de temor nas palavras de Jesus, ainda que não haja
soluços nem lágrimas. É a própria alma dele que está chorando.
– Isto não, Senhor meu. Pelo contrário, o meu amor por Ti está
crescendo mais, quando Te vejo incompreendido, não querido, abatido,
aflito. E, para não ver-te assim, para poder mudar o coração dos homens, eu
estaria pronto a dar a minha vida em sacrifício. Tu deves crer em mim. Não
fiques me triturando o coração, já tão aflito, com essa dúvida de pensar que
eu não te amo. Porque senão… Senão, eu poderei sair do sério, voltarei
atrás e tirar vingança de quem te está fazendo sofrer, para provar-te que te
amo, para tirar de Ti esta dúvida, e, se eu for preso ou morto, pouco me
importará. Para mim bastará o ter-te dado uma prova de amor.
– Oh! Filho do trovão! Para que tanta impetuosidade? Queres, então,
ser um raio exterminador?
Jesus sorri do ardor e dos propósitos de Tiago.
– Oh! Pelo menos te vejo sorrir! Isto já é um fruto destes meus
propósitos. Que dizes, João? Deveremos pôr em prática o meu pensamento
para consolar o Mestre abatido por tantas rejeições?
– Oh! Sim. Vamos nós. Vamos voltar a falar. E, se o insultarem ainda
como um rei de palavras, rei de ludíbrio, rei sem dinheiro, rei louco,
batamos duro, para que percebam que o rei tem também um exército de
fiéis, e que estes não estão dispostos a ser escarnecidos. A violência é útil
em certos casos. Vamos, meu irmão!
E nem parece ó doce João, de tão raivoso que está.
330.3 Jesus se põe entre os dois, segura-lhes os braços para retê-los e diz:
– Ora, escutai só o que estão dizendo! E o que que preguei durante todo
este tempo! Oh! Surpresa das surpresas. Até João, a minha pomba, se me
tornou um gavião. Olhai bem para ele, todos vós, e vede como está feio,
perturbado, desgrenhado e com as feições desfiguradas pelo ódio. Oh! Que
vergonha! E ainda ficais admirados, se os fenícios ficam indiferentes, se os
hebreus estão irados, se os romanos me ordenam que saia, quando vós, os
primeiros, ainda não compreendestes nada, depois destes dois anos que
estais comigo, agora que vos transformais em fel, pelo ódio que trazeis no
coração, quando pondes para fora de vossos corações a minha doutrina de
amor e de perdão, e a expulsais como uma coisa sem valor, e acolheis,
como vossa boa aliada, a violência! Oh! Pai Santo! Isto, sim, que é uma
derrota! Em vez de serdes como outros tantos gaviões, que afiam os bicos e
as garras, não seria melhor que fosseis anjos, orando ao Pai, para Ele dar
um conforto ao seu Filho? Quando foi que já se viu um temporal produzir o
bem, com os seus raios e suas saraivadas? Pois bem. Como lembrança deste
vosso pecado contra a Caridade, como lembrança de quando Eu vi aparecer
em vosso rosto o animal-homem, em lugar do homem-anjo, que Eu quero
ver sempre em vós, Eu vos darei um sobrenome: “os filhos do trovão.”
Jesus está meio sério, enquanto está falando aos dois inflamados filhos
de Zebedeu. Mas sua censura cessa, diante do arrependimento deles e, com
um rosto iluminado pelo amor, Ele os aperta contra seu coração, dizendo:
– E nunca mais fiqueis feios assim. E obrigado, pelo vosso amor. E
também pelo vosso, meus amigos, diz ainda Jesus, virando-se para André,
Mateus e os dois primos. Vinde cá, para que Eu vos abrace também. Mas
vós não sabeis que, se não houvesse outra coisa, a não ser a alegria de fazer
a vontade de meu Pai e de ter o vosso amor, Eu seria sempre feliz, ainda
que o mundo todo me esbofeteasse? Estou triste, mas não é por mim, pelas
minhas derrotas, como vós as chamais, mas por compaixão para com as
almas, que rejeitam a Vida. Aí está. Agora estamos todos contentes, não é
verdade, ó grandes meninos que vós sois? Eia, então. 330.4Ide àqueles
pastores, que estão tirando o leite de suas ovelhas, e pedi-lhes um pouco de
leite, em nome de Deus. Não tenhais medo, acrescenta Ele, ao ver o olhar
desanimado dos apóstolos. Obedecei com fé. Recebereis leite, e não
pauladas, mesmo que o homem seja um fenício.
E os seis vão indo, enquanto Jesus os fica esperando na estrada. E,
nesse ínterim, Jesus fica rezando, o triste Jesus que ninguém quer…
Retornam os apóstolos, com um pequeno balde de leite, e dizem:
– Ele mandou dizer-te que vás até lá, que ele precisa te falar, pois ele
não pode deixar lá as cabras inquietas, só com os pequenos pastores.
Jesus diz:
– Então, vamos ate lá para comermos o nosso pão.
E lá se vão todos, beirando o despenhadeiro, em cujas bordas estão se
dependurando as cabras aventureiras.
330.5 – Eu te agradeço pelo leite que me deste. Que queres de Mim?
– Tu és o Nazareno, não é mesmo? Aquele que faz milagres?
– Eu sou aquele que prega a Salvação Eterna. Eu sou o Caminho para
ir-se ao Deus Verdadeiro, sou a Verdade que se doa, a Vida que vivifica.
Não sou um feiticeiro, que faz prodígios. Os milagres são as manifestações
da minha bondade e da vossa fraqueza, que sente necessidade de provas
para crer. Mas, o que queres de Mim?
– É o seguinte: Há dois dias, Tu não estavas em Alexandrecene?
– Sim. Por quê?
– Eu também estava lá com os meus cabritos, e quando percebi que
havia lá uma briga, procurei sair de lá, porque é costume lá suscitarem
brigas para, na hora delas, roubarem o que está nas feiras. Todos são
ladrões: os fenícios… e os outros também. Eu não deveria dizer isso,
porque sou filho de pai prosélito e de mãe síria, sendo prosélito eu também.
Mas é verdade. Bom. Voltemos ao caso. Eu me havia colocado em um
grande curral com os meus animais, esperando pelo carro de meu filho. E, à
tarde, ao sair da cidade, encontrei uma mulher que estava chorando, com
uma filha pequenina nos braços. Ela tinha andado oito milhas, para chegar a
Ti, Porque ela mora fora, nas campinas. Eu lhe perguntei o que ela tinha. É
uma prosélita. Tinha ido para vender e comprar. Tinha ouvido falar de Ti. E
a esperança havia crescido em seu coração. Então, ela foi correndo até sua
casa, e apanhou a menina. Mas, quando se leva peso, tem-se que caminhar
devagar! Quando ela chegou ao empório dos irmãos, Tu não estavas mais
lá. Contudo, eles, os irmãos, lhe disseram: “Eles o expulsaram daqui. Mas
Ele nos disse ontem de tarde que fará de novo uma permanência em Tiro.”
Eu — também sou pai — então, eu lhe disse: “Vai, pois, até lá.” E ela me
respondeu: “E, se, depois de tudo o que aconteceu, Ele resolver ir por
outros caminhos, para voltar à Galiléia?” E eu lhe disse: “Escuta: ou Ele vai
por aquele caminho, ou pelo outro dos confins. Eu pastoreio entre Rohob e
Lesendam, justamente aos lados da estrada que serve de limite entre aqui e
Neftali. Se eu o vir, lhe direi. Palavra de prosélito.” E acabei de te dizer.
– E Deus que te pague por isso. Eu irei à mulher. 330.6Pois devo voltar a
Aqzib.
– Vais a Aqzib? Então, podemos viajar juntos, se tu não desprezas a um
pastor.
– Eu não desprezo a ninguém. Para que vais a Aqzib?
– Porque os cordeiros estão lá… A não ser que não os tenha mais.
– Por quê?
– Porque por lá está passando a doença. Não sei se foi feitiçaria ou
outra coisa. Só sei que a minha bela manada ficou doente. Por isso eu
trouxe para cá as cabras, que ainda estão sãs, para separá-las das ovelhas.
Aqui estarão com dois filhos. Agora eu estou na cidade, fazendo as
compras. Mas vou voltar para lá… para vê-las morrer, as minhas belas
ovelhas lanudas…
O homem suspira… Olha para Jesus, e se desculpa:
– Falar destas coisas a Ti, que és quem és, e afligir a Ti, que já vives
aflito pelo modo como te tratam, é uma espécie de estultícia. Mas as
ovelhas são afeto e dinheiro para nós, sabes?
– Eu compreendo. Mas elas ficarão sãs. Tu não as fizeste ver por quem
entende do assunto?
– Oh! Todos me disseram a mesma coisa: “Mata-as, e vende suas peles.
Não há mais nada a fazer.” E ainda me ameaçaram, se eu as deixar
vagueando por aí. Eles têm medo de que a doença pegue nas deles. Por isso,
devo conservá-las fechadas… e morrem em maior número. Eles são maus,
sabes? aqueles de Aqzib.
Jesus diz simplesmente:
– Eu sei.
– Eu digo que fizeram feitiço contra elas…
– Não. Não creias nessas histórias… Quando vierem os teus filhos, vais
partir logo?
– Logo. Daqui a momentos, estarão aqui. 330.7Estes são os teus
discípulos? São só estes?
– Não, tenho ainda outros.
– E por que eles não vêm aqui? Uma vez, perto de Meron, encontrei um
grupo deles. O chefe deles era um pastor. Assim se dizia. Um alto, robusto,
chamado Elias… Foi em outubro, me parece. Antes ou depois dos
Tabernáculos. Agora, ele te deixou?
– Nenhum discípulo me deixou.
– Haviam-me dito que…
– Que foi?
– Que Tu… que os fariseus… Afinal, que os discípulos te haviam
deixado por medo, e porque Tu eras um…
– Demônio. Dize-o logo. Eu sei. Duplo mérito é o teu que, mesmo
assim, ainda crês.
– E por este mérito você não poderia… mas talvez eu esteja pedindo
uma coisa sacrilega….
– Diga. Se for maléfica, te direi.
– E, por esse mérito, não poderias, de passagem, abençoar o meu
rebanho?
O homem está muito ansioso…
– Eu abençôo o teu rebanho. Este… –e levanta a mão, abençoando os
cabritos espalhados–,… e também o das ovelhas. Acreditas que minha
bênção as salve?
– Como salvas os homens das doenças, assim poderás salvar também os
animais. Dizem que és o Filho de Deus. As ovelhas foram criadas por Deus.
Por isso elas são coisas do Pai. Eu… Eu não sabia se era respeitoso fazer
este pedido. Mas, se podes, faze-o, Senhor, e eu levarei ao Templo grandes
ofertas de louvor. Ou melhor, darei a Ti para os pobres. E será muito bom.
Jesus sorri, e fica calado.
330.8 Chegam os filhos do pastor e, pouco depois, Jesus com os seus e o
velho partem, deixando os jovens tomando conta das cabras.
Vão indo rápidos, querendo chegar logo a Quedes, para saírem de lá o
quanto antes, procurando alcançar a estrada que do mar vai para o interior.
Deve ser a mesma que se bifurca aos pés do promontório, por onde
passaram, quando iam para Alexandrecene. Pelo menos é assim que
compreendo pelas palavras do pastor aos discípulos. Jesus está na frente,
sozinho.
– Será que não teremos outros aborrecimentos? –pergunta Tiago de
Alfeu.
– Quedes não depende daquele centurião. Está fora dos confins da
Fenícia. Os centuriões, basta não irritá-los, pois se desinteressam pelas
religiões.
– Além disso, nós não vamos parar lá…
– Seríeis capazes de fazer mais de trinta milhas em um dia? –pergunta o
pastor.
– Oh! Nós somos peregrinos perpétuos!
Vão indo sempre para frente. Já chegaram a Quedes. E Quedes já vai
ficando para trás, sem incidentes. Pegam a estrada direta. Num cipo está
marcado: Aqzib. O pastor observa isso, e diz:
– Amanhã estaremos lá. Esta noite vireis ficar comigo. Conheço
cidadãos dos vales, mas muitos estão nos confins da Fenícia… Bem!
Atravessaremos a fronteira. E certamente não seremos logo descobertos…
Oh! A vigilância deles! Melhor seria que a praticassem com os ladrões…
O sol vai descendo, e os vales não servem para ajudar a manter a
claridade, pois estão cheios de bosques. Mas o pastor tem muita prática, e
vai com segurança.
330.9 Chegam a uma pequena vila, ou melhor, a um punhado de casas.
– Se eles nos hospedarem aqui, são israelitas. Estamos já nos confins.
Se não nos quiserem, iremos para outro lugar, que é fenício.
– Eu não tenho prevenções, homem.
Batem à porta de uma casa.
– És tu, Anás? Vens com amigos? Vem, vem, e Deus esteja contigo –diz
uma mulher muito velha.
Entram em uma cozinha grande, alumiada por um fogo. Uma família
numerosa, com pessoas de todas as idades, está reunida a mesa do jantar,
mas amigavelmente arranja lugares para os recém-chegados.
– Este é Jonas. Esta é a mulher dele, os filhos, netos e as noras. Uma
família de patriarcas fiéis ao Senhor –diz o pastor Anás a Jesus.
E depois, virando-se para o velho Jonas:
– E este, que está comigo é o rabi de Israel. É aquele que tu desejavas
conhecer.
– Eu bendigo a Deus por poder hospedá-lo e por ter lugar nesta tarde. E
bendigo ao Rabi, que veio à minha casa, e lhe peço a bênção.
Anás explica que a casa de Jonas é como um albergue para os
peregrinos que do mar vão para o interior.
Assentam-se todos na cozinha quente e as mulheres servem aos recém-
chegados. Aí reina um respeito tão grande, que quase ninguém se move.
Mas Jesus resolve o problema, chamando ao redor de Si, depois da refeição,
os muitos meninos que logo se tornam seus amigos. E, atrás deles, naquele
breve espaço de tempo que separa a ceia do repouso, vão-se tornando
corajosos os homens da casa, narrando o que ficaram sabendo sobre o
Messias, e fazendo perguntas sobre o que há de novo.
E Jesus corrige, confirma, explica com bondade, em uma conversação
amistosa, até que os peregrinos e os familiares vão tomar seu repouso,
depois que Jesus abençoou a todos.
331. A fé da mulher Cananéia
e outras conquistas. Chegada a Aqzib.
15 de novembro de 1945.
331.1 – O Mestre está contigo? –perguntou o velho camponês Jonas a
Judas Tadeu, que vem entrando na cozinha, onde o fogo já está aceso para
esquentar o leite e para aquecer o ambiente, que está friozinho nestas
primeiras horas de uma belíssima manhã de fim de janeiro, creio, ou de
início de fevereiro, belíssima, mas um tanto dolorosa.
– Ele deve ter saído para orar. Ele sai muitas vezes ao romper da aurora
quando sabe que vai poder ficar sozinho. Daqui a pouco virá. Por que
perguntas?
– Eu perguntei isso também aos outros, que agora já se espalharam por
aí a procurá-lo, porque há uma mulher, do outro lado, com minha mulher.
Ela é do povoado do outro lado da fronteira, e eu nem sei dizer como foi
que ela pôde ficar sabendo que o Mestre está aqui. Mas ela já sabe. E quer
falar com Ele.
– Está bem. Ela falará. Talvez seja aquela que Ele está esperando, com
uma filhinha doente. Ela deve ter sido guiada pelo seu espírito.
– Não. Ela está sozinha. Não tem outros filhos consigo. Eu a conheço,
porque os lugares são muito próximos… e o vale é de todos. Eu, pois, acho
que não há necessidade de sermos cruéis com os vizinhos, se forem
fenícios, para servirmos ao Senhor. Poderei estar errado, mas…
– O Mestre o diz sempre também que devemos ser bondosos com
todos.
– Ele é bondoso, não é verdade?
– É.
– Disse-me Anás que agora mesmo foi maltratado. Mal, sempre mal…
Na Judéia, como na Galiléia, em todos os lugares… Mas, por que Israel é
tão mau com o seu Messias? Quero dizer, os maiorais de Israel, entre nós.
Porque o povo o ama.
– Como é que tu sabes dessas coisas?
– Oh! Vivo aqui, longe. Mas eu sou um fiel israelita. Basta ir às festas
de preceito no Templo para saber tudo o que há de bem ou de mal! E o bem
se fica sabendo menos do que o mal. Porque o bem é humilde, e não se
louva a si mesmo. Deveriam ser os que receberam o benefício os que
haveriam de proclamá-lo. Mas poucos são os agradecidos, depois de terem
recebido a graça. O homem aceita o benefício e o esquece… o mal, ao
contrário, toca fortemente as suas trombetas e faz que se ouçam as suas
palavras mesmo por aqueles que não as querem ouvir. Vós, que sois os seus
discípulos, não sabeis quanto se fala mal do Messias e o quanto é acusado
no Templo! Não se tem mais lições dos escribas a não ser sobre isto. Eu
acho que se tornaram um livro de lições sobre como acusar o Mestre e de
fatos que podem ser aceitos como objetos de acusação. E é preciso ter-se a
consciência muito reta, e firme, e livre para se poder resistir e julgar com
sabedoria. Ele sabe dessas manobras?
– Ele sabe de todas. E nós também, uns mais, outros menos, sabemos
delas. Mas Ele não estremece por isso. E continua a sua obra e os discípulos
ou os que têm fé nele aumentam cada dia.
– Queira Deus que eles assim permaneçam até o fim. Mas o homem é
mutável em seu pensamento. E fraco… 331.2Eis, o Mestre vem para casa com
três discípulos.
O velho sai, acompanhado por Judas Tadeu, a fim de venerar Jesus que,
cheio de dignidade, vai-se aproximando da casa.
– A paz esteja contigo, neste dia e sempre, Jonas.
– Glória e paz estejam sempre contigo, Mestre.
– A paz a ti Judas. André e João ainda não voltaram?
– Não. Eu nem ouvi quando eles saíram. A nenhum dos dois. Eu estava
cansado e dormindo um sono pesado.
– Entra Mestre. Entrai. O ar está fresco esta manhã. Lá no bosque devia
estar muito frio. Ali há leite quente para todos.
Estão bebendo o leite e, a não ser Jesus, todos estão ensopando um bom
pedaço de pão no leite, quando acabam de chegar André e João juntos com
Anás, o pastor.
– Ah! Tu estás aqui? Tínhamos tornado a dizer que não te havíamos
encontrado… –exclama André.
Jesus faz sua saudação de paz aos três, e acrescenta:
– Depressa. Apanhai as vossas coisas e vamos partir, pois Eu quero
nesta tarde estar pelo menos nas faldas do monte de Aqzib. Esta tarde
começa o sábado.
– Mas, e as minhas ovelhas? –pergunta o pastor perplexo.
Jesus sorri, e responde:
– Estarão curadas, desde que foram abençoadas.
– Mas, eu fico do lado leste do morro! Tu vais para o poente, para
chegar à casa da mulher…
– Deixa Deus agir e Ele proverá a tudo.
331.3 A refeição terminou e os apóstolos estão subindo, para irem apanhar
suas sacolas de viagem, preparando-se para a partida.
– Mestre… Aquela mulher, que é de lá… não a vais atender?
– Não tenho tempo, Jonas. A viagem é longa e, afinal, Eu vim para
atender às ovelhas de Israel. Adeus, Jonas. Deus te pague pela tua caridade.
A minha bênção sobre ti e sobre todos os teus parentes. Vamos.
Mas o velho se põe a gritar, com toda a força de seus pulmões:
– Filhos! Mulheres! O Mestre está partindo. Venham aqui!
E, como uma ninhada de pintinhos espalhada sobre um palheiro que
vem correndo ao grito da galinha que os chama, assim, de todas as partes da
casa, vêm correndo mulheres e homens, que estavam fazendo alguma coisa,
ou ainda meio dormindo, e os meninos seminus, com um rostinho risonho,
pois acabaram de sair do sono… Eles se reúnem ao redor de Jesus, que está
no meio do terreiro, enquanto as mães envolvem em suas amplas saias os
meninos, a fim de protege-los do ar ou então os apertam em seus braços, até
que alguma servente chegue com os vestidinhos, que logo são postos neles.
331.4 Mas vem vindo também uma que não é da casa. É uma pobre
mulher chorosa, envergonhada… Ela vem andando encurvada, quase se
arrastando e, tendo chegado perto do grupo, em cujo centro está Jesus, ela
se põe a gritar:
– Tem piedade mim, ó Senhor, Filho de Davi! Minha filha está sendo
muito atormentada pelo demônio, que a faz praticar coisas vergonhosas.
Tem piedade, porque eu sofro muito, e todos zombam de mim por isso. É
como se minha filha tivesse culpa pelo que ela faz… Tem piedade, Senhor,
Tu que tudo podes. Levanta a tua voz e a tua mão, e dá ordem ao espírito
imundo para que saia da Palma. Eu só tenho essa filha, e sou viúva… Oh!
Não te vás, Senhor! Tem piedade!
Jesus, de fato, tendo acabado de abençoar um por um dos membros da
família, depois de ter repreendido os adultos por terem falado de sua
vinda, — e depois deles se desculparem, dizendo: “Não fomos nós que
falamos, podes crê-lo, Senhor!” — Ele se vai, inexplicavelmente severo
para o lado da pobre mulher, que vai-se arrastando sobre os joelhos, com os
braços estendidos em um gesto de súplica, ansiosa, enquanto vai dizendo:
– Eu, eu te vi, quando estavas atravessando a torrente, eu ouvi que
alguém te chamou “Mestre.” Então, eu vim vindo atrás de Ti, por entre as
moitas, e ouvi as conversas deles. E fiquei sabendo quem és… E esta
manhã eu vim, mas como era ainda noite para estar aqui, fiquei na soleira
como um cachorrinho, até que Sara se levantou e me fez entrar. Oh! Senhor,
tem piedade! Piedade de uma mãe e de uma menina!
Mas Jesus vai andando ligeiro, surdo a todo chamado. Os da casa dizem
a mulher:
– Resigna-te! Ele não quer te ouvir. Ele disse: É para os de Israel que
Ele veio…
Mas ela se levanta, desesperada e, ao mesmo tempo, cheia de fé, e
responde:
– Não, Eu tanto hei de pedir que Ele me ouvirá.
E se põe a acompanhar o Mestre, sempre gritando em suas súplicas, que
atraem para as portas das casas da vila todos os que já despertaram e que,
como os da casa de Jonas, se põem a acompanhá-la, para verem como vai
terminar aquilo.
331.5 Enquanto isso, os apóstolos olham atônitos uns para os outros, e
murmuram:
– Por que será que Ele faz isso? Ele nunca fez assim!…
E João diz:
– Em Alexandrecene, contudo, Ele curou aqueles dois.
– Mas eles eram prosélitos, responde Tadeu.
– E esta vai tratar de que agora?
– Ela também é prosélita –diz o pastor Anás.
– Oh! Mas quantas vezes ele curou também aos gentios ou pagãos! E a
menina romana, então? –diz desconsolado André, que não se conforma com
a dureza de Jesus para com a mulher cananéia.
– Eu vou dizer-vos por que é –exclama Tiago de Zebedeu–. É porque o
Mestre foi desdenhado. Sua paciência tem limites, diante de tantos ataques
da maldade humana. Não estais vendo como Ele está mudado? Ele tem
razão! De agora em diante, Ele vai dedicar-se somente àqueles que Ele
conhece. E faz bem!
– Sim. Mas, por enquanto, essa aí vem gritando atrás de nós e um
grande acompanhamento de pessoas vem atrás dela. Se Ele quiser passar
por inobservado, achou agora o meio de chamar a atenção até das
plantas… –resmunga Mateus.
– Vamos dizer-lhe que a mande embora… Olhai daqui que belo cortejo
vem vindo às nossas costas! Se chegarmos assim à estrada consular,
estamos bem arranjados! E esta mulher, se Ele não a mandaembora, não vai
nos deixar… –diz Tadeu, importunado, que também se vira, e intima à
mulher–: Cala-te, e vai-te embora!
E a mesma coisa faz Tiago de Zebedeu. Mas ela não se impressiona
com as ameaças e as injunções, e continua a suplicar.
– Vamos dizer ao Mestre que a expulse, visto que Ele não a quer
atender. Assim não pode continuar! –diz Mateus, enquanto André murmura:
“Pobrezinha!”
E João fica repetindo sem parar:
– Eu não estou entendendo… Eu não estou entendendo…
João está atordoado com o modo de agir de Jesus. Mas, apressando o
passo, eles já alcançaram Jesus, que vai indo ligeiro como um perseguido.
– Mestre! Por favor, manda embora aquela mulher! É um escândalo!
Ela vem gritando atrás de nós. Está mostrando com o dedo a todos nós. A
estrada está ficando sempre mais cheia de passantes, e muitos vão-se
colocando atrás dela. Dize a ela que se vá embora.
– Dizei-o, vós. Eu já lhe dei resposta.
– Ela não escuta. Vamos, fora! Dize-lhe assim Tu. E com severidade.
331.6 Jesus pára e se vira. A mulher entende que isto é um sinal de que
vai ser atendida e acelera o passo, levanta o tom, já agudo, de sua voz, com
um rosto que empalidece, por causa da esperança que cresce.
– Cala-te, mulher. E volta para tua casa. Eu já te disse: “Eu vim para as
ovelhas de Israel”. Para curar as doentes, e ir buscar as perdidas. Tu não és
de Israel.
Mas a mulher já está a seus pés, e os beija, adorando-o, segurando-o
pelos tornozelos, como se ela fosse uma náufraga, que encontrou um
penhasco de salvação, e que geme:
– Senhor, ajuda-me! Tu o podes, Senhor. Dá ordem ao demônio, Tu que
és Santo… Senhor, Senhor, Tu és o dono de tudo, da graça e do mundo.
Tudo te está sujeito, Senhor. Eu o sei. Eu o creio. Lança mão, pois, do que é
o teu poder, e usa dele em favor de minha filha.
– Não fica bem tomar o pão dos filhos da casa e jogá-los aos cães da
rua.
– Eu creio em Ti. E crendo, de cão da rua eu me tornei um cão da casa.
Eu te disse: Eu vim antes da aurora deitar-me na soleira da porta da casa
onde estavas e, se tivesses saído por lá, terias tropeçado em mim. Mas Tu
saíste pelo outro lado, e não me viste. Não viste este pobre cão torturado,
cheio de fome da tua graça, que esperava entrar, rastejando, para onde Tu
estavas para beijar-te os pés e assim pedir-te que não o rejeitasses…
– Não fica bem jogar o pão dos filhos aos cães –repete Jesus.
– Mas os cães entram na sala, onde o dono da casa está, e comem com
os filhos, comem o que cai da mesa ou os restos do que eles dão aos
familiares e que não vai mais ser usado. Eu não te peço que me trates como
filha nem que me faças sentar-me à tua mesa. Mas dá-me pelo menos as
migalhas…
331.7 Jesus sorri. Oh! Como se transfigura o seu rosto neste sorriso de
alegria!… As pessoas, os apóstolos, a mulher olham, admirados, para Ele…
percebendo que alguma coisa está para acontecer.
E Jesus diz:
– Oh! Mulher! Grande é a tua fé! E com ela tu consolas o meu espírito.
Vai, pois, e que te seja feito como queres. Desde este momento, o demônio
saiu de tua filhinha. Vai em paz. E, visto que de um cão perdido, soubeste
querer passar a ser um cão da casa, que saibas, por isso, no futuro, ser filha,
sentada à mesa do Pai. Adeus.
– Oh! Senhor! Senhor! Senhor!… Eu quereria sair correndo para ir ver
a minha Palma querida… E quereria ficar contigo, seguir-te! Ó Bendito! Ó
Santo!
– Vai, vai, mulher. vai em paz.
E Jesus retoma o seu caminho, enquanto a cananéia, mais ligeira do que
uma menina, vai correndo pela estrada por onde veio, acompanhada pela
multidão curiosa por ver o milagre…
– Mas, por que, Mestre, fizeste que ela ficasse pedindo tanto, para só
depois atendê-la? –pergunta Tiago de Zebedeu.
– Por tua causa, e por causa de todos vós. Isto não é uma derrota, Tiago.
Aqui Eu não fui expulso, escarnecido, amaldiçoado… Que isto reerga o
vosso espírito abatido. Eu já recebi hoje o meu alimento saborosíssimo. E
por ele bendigo a Deus. 331.8E agora vamos a essa outra, que sabe crer e
esperar com fé firme.
– E as minhas ovelhas, Senhor? Pouco faltou para que eu tivesse que
tomar um outro caminho, que não é o teu, a fim de ir para as minhas
pastagens… –pergunta de novo o pastor Anás.
Jesus sorri, mas não responde.
É agradável andar, agora que o sol aqueceu o ar e faz brilhar como
esmeraldas as pequeninas folhas novas nos bosques e as ervas nos prados,
transformando em engastes os cálices das flores, pelas gotas de orvalho, que
brilham nas auréolas multicores destas florzinhas dos campos. E Jesus lá se
vai, sempre sorrindo. E os apóstolos, de repente reanimados, o seguem
sorrindo…
Chegam à encruzilhada. O pastor Anás, preocupado, diz:
– Aqui eu deveria Te deixar… Não vais mesmo curar as minhas
ovelhas? Eu também tenho fé e sou prosélito… Tu me prometes, pelos
menos, que irás lá depois do sábado?
– Oh! Anás! Mas, não entendeste ainda que as tuas ovelhas já estão
curadas desde a hora em que Eu levantei as mãos para o rumo de Lesendão?
Vai, pois, tu também, para ver o milagre e bendizeres o Senhor.
Acho que a mulher de Ló[50], quando ficou transformada em uma
estátua de sal, não terá ficado diferente do pastor, que permaneceu na
posição em que estava: um pouco encurvado, como quem se inclina, e com
a cabeça virada, a fim de poder olhar para Jesus e com um braço meio
estendido no ar… Ele também está parecendo uma estátua, e poderia ter por
baixo este letreiro: “O suplicante.” Mas, logo depois, ele se reergue, e em
seguida se prostra, dizendo:
– Bendito sejas Tu! Tu, que és bom! Tu, que és Santo!… E eu te
prometi muito dinheiro e agora não tenho aqui senão umas poucas
dracmas… Vai, vai à minha casa depois do sábado…
– Eu irei. Não por causa do dinheiro, mas para abençoar-te de novo pela
tua fé simples. Adeus, Anás. A paz esteja contigo.
E eles se separam.
– E esta também não é uma derrota, meus amigos! Pois também aqui
Eu não fui escarnecido, expulso, nem amaldiçoado… 331.9Vamos, depressa!
Há uma mãe que nos está esperando há dias.
E a marcha continua, com uma pequena parada para comer pão com
queijo e beber água de uma fonte…
O sol está no meio-dia, quando se vê aparecer a bifurcação do caminho.
– Lá está o começo da escada de Tiro, lá no fundo –diz Mateus.
E ele se alegra, ao pensar que a maior parte do percurso já está feita.
Encostada justamente no cipo romano está uma mulher. Aos pés dela,
sobre um pequeno colchão, está uma menininha de uns sete ou oito anos. A
mulher está olhando para todas as direções. Olha para a escada no rochedo.
Olha para caminho de Ptolemaida. Olha para este por onde vai Jesus e, de
vez em quando, se inclina para acariciar a menina e para proteger-lhe a
cabeça com um pano contra os raios do sol e para recobrir-lhe os pés e as
mãos com o seu xale…
– Lá está a mulher! Mas onde terá ela dormido nestes dias? –pergunta
André.
– Talvez naquela casa perto da encruzilhada. Não há outras casas por
perto –responde Mateus.
– Ou então, ao sereno da noite –diz Tiago de Alfeu.
– Não. Ela não faria isso por causa da menina –pondera o irmão dele.
– Oh! Contanto que conseguisse a graça!… –diz João.
331.10 Jesus não fala. Mas sorri. Todos estão em fila, com Ele no centro,
estando três de um lado e três do outro, ocupando toda a largura da estrada,
nesta hora em que há uma parada dos passantes, porque eles costumam ir
almoçar no ponto em que estiverem quando chega o meio-dia.
Jesus sorrri lá do alto de sua estatura e beleza, no centro do grupo. E
parece que toda a luz do sol tenha vindo concentrar-se em seu rosto, de tão
radioso que ele está. Parece mesmo estar até emitindo raios de luz.
A mulher levanta os olhos… Eu já estou à distância de uns cinqüenta
metros. Talvez o que tenha atraído a atenção dela, que estava distraída pelo
choro da filha, possa ter sido o olhar de Jesus, que estava fixado sobre ela.
Ela fica olhando… depois leva as mãos para sobre o coração, em um gesto
involuntário de ânsia e sobressalto.
Jesus sorri ainda mais. Ele está com aquele sorriso luminoso,
inexplicável, e que deve estar dizendo muitas coisas à mulher que, ansiosa
mas também sorridente, comose já tivesse sido atendida, inclina-se para
pegar a sua pequenina e, colocando-a sobre o seu colchão, com os braços
estendidos, como se a estivesse oferecendo a Deus, anda para a frente e,
chegando junto aos pés de Jesus, se ajoelha, levantando o mais que pode a
menina a Ele apresentada, a qual fica olhando, extasiada, o belíssimo rosto
de Jesus.
A mulher nada diz. E o que deve dizer de mais profundo do que com
todo seu aspecto?…
E Jesus só diz uma palavra, pequena mas poderosa e cheia de alegria,
como o “faça-se” de Deus na criação do mundo:
– Sim.
E pousa a mão sobre aquele pequeno peito que lhe está sendo
apresentado.
E a menina, dando um grito, como a calhandra, ao ver-se livre da
gaiola, diz: “Mamãe!” e, de repente, se assenta, põe-se de pé e abraça sua
mãe que, ela sim, está exausta e cambaleia, e está para cair de costas, em
um desmaio causado pelo cansaço, pela ânsia que chega ao fim, pela
alegria, que é uma sobrecarga para as forças do coração, já enfraquecido
pelas muitas dores que ela vinha sofrendo.
Jesus está pronto para socorrê-la. É uma ajuda certamente mais valiosa
do que a da menininha que, sobrecarregando com o seu peso os membros
maternos, com certeza não é o melhor meio de sustentar a mãe sobre os
joelhos. Jesus faz que ela se assente e lhe transfunde forças… E fica
olhando para ela, enquanto umas lágrimas mudas vão descendo por aquele
rosto cansado e feliz da mulher.
331.11 Depois é que lhe vêm as palavras:
– Obrigada, meu Senhor! Obrigada e bendito sejas! A minha esperança
está coroada… Eu te esperei tanto tempo… Mas agora estou feliz…
A mulher, tendo passado aquele seu meio desmaio, torna a ajoelhar-se,
adorando e tendo na sua frente a pequenina que foi curada, e que Jesus está
acariciando. E ela explica:
– Fazia dois anos que lhe havia apodrecido um osso na espinha,
paralisando-a e levando-a lentamente para a morte, no meio de grandes
dores. Nós fizemos que a vissem os médicos de Antioquia, de Tiro, de
Sidon, e até de Cesaréia e de Panéades, e gastamos tanto com os médicos e
com remédios que foi preciso vender a casa que tínhamos na cidade para
irmos na do campo, despedindo os empregados da casa e conservando
somente os da lavoura, e tendo agora que vender até aqueles produtos que
consumíamos… Mas nada disso adiantava. Foi então que eu Te vi. E fiquei
sabendo do que havias feito em outros lugares. Fiquei esperando que eu
também fosse receber uma graça… E a recebi! Agora, vou voltar para casa,
leve e cheia de alegria… e levarei esta alegria para o meu esposo… Ao meu
Tiago, que foi quem me pôs no coração a esperança, ao contar-me o que
aconteceu, pelo teu poder, na Galiléia e na Judéia. Oh! Se não tivéssemos
ficado com medo de não encontrar-te, teríamos vindo com a menina. Mas
Tu estás sempre na estrada…
– Foi caminhando que Eu cheguei a ti… Mas, onde permaneceste
nestes dias?
– Naquela casa… Mas de noite ficava lá somente a menina. Lá mora
uma boa mulher, que tomava conta dela para mim. E eu fiquei sempre aqui,
com medo de que tu passasses de noite.
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça:
– És uma boa mãe. Deus te ama por isso. Estás vendo como Ele te
ajudou em tudo.
– Oh! Sim. Eu o percebi justamente quando eu vinha vindo. Eu já vinha
vindo da casa para a cidade, esperando encontrar-te, já com pouco dinheiro
e sozinha. Depois, seguindo o conselho do homem, eu vim até este lugar.
Mandei um recado para casa e vim… e nunca me faltou nada. Nem pão,
nem abrigo, nem forças.
– Sempre com aquele peso nos braços? Não podias usar alguma
carroça?… –pergunta, compadecido, Tiago de Alfeu.
– Não. Ela teria sofrido muito e podia morrer com aquilo. Foi nos
braços da mamãe que veio a minha Joana à Graça.
Jesus acaricia as duas sobre os cabelos:
– Ide, então, e sede sempre fiéis ao Senhor. O Senhor esteja convosco e
convosco esteja a minha paz.
Jesus volta a tomar a estrada que vai para Ptolemaida.
– Esta também não é uma derrota, meus amigos. E também aqui Eu não
fui expulso, nem escarnecido, nem amaldiçoado.
331.12 Seguindo pela estrada direta, logo chegaram ao posto do alveitar,
ao lado da ponte. O ferrador romano está descansando ao sol, sentado junto
ao muro da casa. Ele reconhece Jesus e o saúda. Jesus responde à saudação
e acrescenta:
– Deixas-me parar aqui para descansar um pouco e comer um pouco de
pão?
– Sim, Rabi. Minha mulher te queria ver… porque eu falei a ela
também do ponto que ela não tinha ouvido do teu discurso da outra vez.
Ester é hebréia. Mas eu não tinha coragem de te dizer, pois sou romano. Eu
te teria mandado atrás dela…
– Chama-a, então.
E Jesus se assenta no banco, que está junto à parede, enquanto Tiago de
Zebedeu distribui pão e queijo…
Sai uma mulher dos seus quarenta anos, confusa, corada de vergonha.
– A paz esteja contigo, Ester. Tiveste o desejo de conhecer-me. Por
quê?
– Por causa daquilo que disseste… os rabis nos desprezam a nós que
nos casamos com um romano… Mas eu tenho filhos, e os levei todos ao
Templo, e os do sexo masculino foram todos circuncidados. Eu disse isto
antes a Tito, quando ele me queria… E ele é bom… Deixa-me sempre agir
a respeito dos filhos. Os usos, os ritos, tudo aqui é hebraico… Mas os rabis,
os arquisinagogos nos amaldiçoam. Tu, não… Tu tens palavras de
compaixão para conosco… Oh! Sabes o que vem a ser isso para nós? É
como se sentíssemos ao redor de nós os braços do pai e da mãe a nos
repudiar e amaldiçoar, a serem severos para conosco… É como pôr de novo
os pés na casa abandonada e não nos sentirmos estranhos nela… Tito é
bom. Para as nossas festas ele fecha o posto de alveitar, com grande perda
de dinheiro, e me acompanha com os filhos ao Templo. Porque ele diz que
sem religião não se pode ficar. Ele diz que a dele é a da família e do
trabalho, como antes era a do dever de soldado… Mas eu… Senhor… eu te
quis falar por causa de uma coisa… Tu disseste[51] que os seguidores do
verdadeiro Deus devem tirar um pouco do seu fermento santo e colocá-lo
em boa farinha, para fazê-la fermentar santamente. Eu, com o meu esposo,
fizemos isso. Eu procurei, nestes vinte anos que estamos juntos, melhorar a
alma dele, que é boa, com o fermento de Israel. Mas ele não se decide
nunca… e já está velho… Eu o desejaria comigo na outra vida… Unidos na
fé, como estamos no amor… O que possuímos é suficiente, e graças a Deus
por isso! Mas isso eu quereria… Que rezes pelo meu esposo! Que ele seja
do verdadeiro Deus…
– Ele o será. Fica segura. Tu pedes uma coisa santa e a terás. Tu
compreendeste os deveres da mulher para com Deus e para com o esposo.
Assim fossem todas as esposas! Em verdade, Eu te digo que muitas
deveriam imitar-te. Continua a ser assim e terás a alegria de ter o teu Tito a
teu lado na oração, e no Céu. 331.13Mostra-me os teus filhos.
A mulher chama sua numerosa prole:
– Jacó, Judas, Levi, Maria, João, Ana, Elisa, Marcos.
Depois, ela entra na casa e sai de lá com um que está aprendendo a
andar e com outro de três meses, quando muito.
– E este é Isaque e esta pequenina é Judite –diz ela, terminando a
apresentação.
– Que abundância! –diz sorrindo, Tiago de Zebedeu.
E Judas exclama:
– Seis homens! E todos circuncidados! E com nomes puros! Bravo!
A mulher está feliz, e elogia Jacó, Judas e Levi, que ajudam o pai
“todos os dias, menos o sábado, dia em que Tito trabalha apenas para
colocar as ferraduras já feitas”, diz ela. E elogia Maria e Ana, “ajudantes da
sua mamãe.” Mas não deixa de elogiar também os quatro menores “bons e
sem teimosias. Tito me ajuda a educá-los, ele que foi um soldado
disciplinado”, diz ela, olhando com um olhar afetuoso o homem que,
encostado ao umbral com uma mão no flanco, escutou tudo o que a mulher
disse com um sorriso bom em seu rosto aberto, e que agora se envaidece ao
ouvir como são lembrados os seus méritos de soldado.
– Muito bem. A disciplina das armas não é mal vista por Deus, quando
se cumpre com humanidade o próprio dever de soldado. Tudo consiste em
ser sempre moralmente honestos em todos os trabalhos, para ser sempre
virtuosos. Esta disciplina de tua vida passada, na qual formas os teus filhos,
deve preparar-te para iniciar um serviço mais alto: o serviço de Deus. Agora
separamo-nos. Apenas tenho tempo de chegar a Aqzib, antes que termine o
pôr-do-sol. Paz a ti, Ester, e à tua casa. Sejais, daqui a pouco, todos do
Senhor.
A mãe e os filhos se ajoelham, enquanto Jesus levanta a mão,
abençoando. O homem, como se fosse de novo o soldado de Roma diante
do imperador, perfila-se, rígido, fazendo a saudação romana.
331.14 E vão… Depois de terem andado alguns metros, Jesus põe a mão
sobre o ombro de Tiago:
– E, uma vez mais, a quarta vez neste dia, Eu te faço notar que isto não
é uma derrota, não é ser expulso, escarnecido, amaldiçoado… E agora, que
dizes?
– Que eu sou um estulto, Senhor –diz impetuosamente, Tiago de
Zebedeu.
– Não. Tu, como todos vós, sois ainda e sempre humanos demais e
tendes todas as alternativas de quem está dominado mais por sua
humanidade, do que pelo espírito. O espírito, quando é soberano, não se
altera por qualquer soprinho de vento, que nem sempre é uma aragem
perfumada… Poderá sofrer, mas não se perturba. Eu rezo sempre para que
vós chegueis a essa soberania do espírito. Mas vós me deveis ajudar com o
vosso esforço… Pois bem! Nossa viagem terminou. Nela Eu semeei aquele
tanto que é necessário para preparar o vosso trabalho, quando fordes vós os
evangelizadores. Agora podemos ir para o repouso sabático com a
consciência de termos cumprido o nosso dever. E vamos esperar os
outros… Depois iremos… ainda… sempre… até que tudo se complete…
[50] a mulher de Ló, em Gênesis 19,26, que faz parte do episódio da destruição de Sodoma: Gênesis 19,1-29.
[51] Tu disseste, em 327.5.
332. A sofrida separação de Bartolomeu,
que com Filipe se encontra com o Mestre.
17 de novembro de 1945.
332.1 Jesus se reuniu com os seis em uma sala, onde estão umas caminhas
muito pobres, colocadas umas ao lado das outras. o espaço que fica livre
entre elas é só para alguém poder passar de um lado para o outro da sala.
Eles estão comendo sua comida bem simples, sentados nas camas, porque
não há mesas, nem cadeiras. E João, em certo momento, vai sentar-se no
peitoril da janela, à procura dos raios do sol. E foi assim que ele foi o
primeiro a ver os que estavam sendo esperados: Pedro, Simão, Filipe e
Bartolomeu, que vinham vindo para casa. Ele os chama, e depois corre para
fora, acompanhado por todos. Fica lá somente Jesus, cujo único movimento
foi o de pôr-se em pé e virar-se, olhando para o lado da porta…
Entram os que chegaram. A vivacidade de Pedro já era de esperar-se,
bem como a profunda reverência de Simão Zelotes. O que causa surpresa é
a atitude de Filipe e, mais ainda, a de Bartolomeu. Eles entram, eu diria que
quase com temor, com ansiedade e, apesar disso, Jesus lhes abre os braços
para dar e receber deles o beijo da paz, que Ele já deu a Pedro e a Simão,
que caíram de joelhos e inclinaram suas cabeças até o chão para beijarem os
pés de Jesus, e que assim ficam… enquanto os suspiros de Bartolomeu
mostram que ele está chorando em silêncio, aos pés de Jesus.
– Por que toda esta ansiedade, filho de Tolmai? Não vieste aos braços
do Mestre? E tu, Filipe, por que é que estás com tanto medo? Se Eu não
soubesse que sois dois homens honestos, em cujo coração não tem lugar a
malícia, Eu poderia suspeitar que tivésseis alguma coisa. Mas não há nada
disso. E então? Coragem! Eu estava desejando tanto o vosso beijo e ver o
olhar límpido dos vossos olhos fiéis…
– Nós também, Senhor… –diz Bartolomeu, levantando o rosto pelo
qual estão descendo as lágrimas–. Nós nada mais temos desejado senão a
Ti, e ficamos perguntando um ao outro em que poderíamos ter-te
desagradado para merecermos ficar separados todo este tempo. E nos
parecia uma injustiça… Mas agora ficamos sabendo… Oh! Perdão, Senhor!
Nós te pedimos perdão. Especialmente eu, porque Filipe foi separado de Ti
por mim. Eu já pedi a Filipe. Eu, eu é que sou o culpado, eu, o velho
israelita duro para renovar-se, fui eu que te fiz ficar triste…
Jesus se inclina e o pega, e o levanta à força, levantando também Filipe
e, ao mesmo tempo o abraça, e lhe diz:
– Mas, de que é que te acusas? Tu não fizeste mal. Nenhum mal! Nem
Filipe. Vós sois os meus queridos apóstolos e hoje Eu me sinto bem feliz
por ter-vos comigo, reunidos para sempre…
– Não, não… 332.2Durante muito tempo, nós ficamos sem saber qual o
motivo pelo qual com justiça Tu perdeste a confiança em nós, até o ponto
de excluir-nos da tua família apostólica. Mas agora já o estamos sabendo…
e te pedimos perdão, perdão, perdão, especialmente eu, ó Jesus, meu
Mestre…
E Bartolomeu o olha com ansiedade, com amor, com compaixão. Idoso
como ele está, parece mais um pai que olha para um filho aflito, que fica
olhando para o seu rosto emagrecido por um sofrimento que ele não havia
percebido antes, pois em seu rosto não havia notado o emagrecimento, o
envelhecimento… E novas lágrimas gotejam das faces de Bartolomeu. E ele
exclama:
– Mas, que foi que te fizeram. Que te fizeram para fazer-nos a todos
sofrer deste modo? Fica parecendo que um mau espírito tenha entrado no
meio de nós para perturbar-nos, para tornar-nos tristes, enfraquecidos,
apáticos, estultos… Tão estultos, que não percebíamos que Tu estavas
sofrendo… Ao contrário, servia para aumentar o teu sofrimento com as
nossas asperezas, obtusidades, respeitos humanos e a velhice, que é própria
da humanidade… Sim o homem velho triunfou em nós sempre, sem que a
tua Vitalidade perfeita nunca nos tenha podido renovar. É isto, isto é o que
não me deixa ter paz! Com todo o meu amor, eu não soube renovar-me, e
compreender-te, e seguir-te… Eu Te segui só materialmente… Enquanto
que tu querias que te seguíssemos espiritualmente e coubéssemos na tua
perfeição… para tornar-nos capazes de perpetuar-te… Oh! Mestre meu!
Mestre meu, que te irás embora um dia, depois de tantas lutas, insídias,
desgostos, dores e com a dor de saber que não estamos ainda preparados!…
E Bartolomeu reclina sua cabeça sobre o ombro dele e chora,
completamente desconsolado, arrependido por verificar agora que foi um
discípulo obtuso.
– Não te rebaixes, Natanael. Tu vês tudo como umas coisas enormes,
que te surpreendem. Mas o teu Jesus sabia que vós sois homens… e nada
exige de vós, a não ser o que vós possais dar. Oh! Vós me daríeis tudo.
Tudo mesmo. Mas agora vós deveis crescer, formar-vos. É um trabalho
lento. Mas Eu sei esperar. E eu me alegro com o vosso crescimento. Porque
este há de ser um crescimento contínuo na minha Vida. Também o teu
pranto, também a concórdia daqueles que estavam comigo, também a
compaixão que vem depois das asperezas, que faziam parte da vossa
natureza, inclinada aos egoísmos e a avareza de espírito, também a vossa
seriedade atual, tudo isso são fases do crescimento vosso em Mim.
Coragem, pois. Fica com a paz que sou Eu. Fica todo. Com a tua
honestidade, a tua fé, a tua generosidade, o teu amor sincero. Iria Eu
duvidar do meu sábio filho de Tolmai, e de Filipe, tão equilibrado e fiel?
Isso Seria ser injusto com meu Pai, que me concedeu poder ter-vos entre os
meus mais queridos. 332.3Mas agora… Coragem, vamos sentar-nos aqui e
quem descansou pense nos irmãos cansados e famintos, dando-lhes comida
e conforto. E, enquanto isso, contai ao vosso Mestre e aos irmãos o que eles
não estão sabendo.
E Ele se assenta em sua caminha, tendo a seu lado Filipe e Natanael,
enquanto Pedro e Simão se assentam na cama ao lado, virados para Jesus,
joelhos contra joelhos.
– Fala tu, Filipe. Eu já falei. E tu tens sido mais justo do que eu durante
este tempo…
– Oh! Bartolomeu! Justo! Eu apenas tinha compreendido que não era
má vontade ou volubilidade do Mestre para conosco o não nos ter Ele
querido… E eu procurava com isso dar-te paz… afastando-te do
pensamento sobre coisas que depois teriam te feito sofrer por tê-las
pensado, e do remorso… Eu disso tinha um só remorso… Por ter-te detido,
quando querias desobedecer ao Mestre, quando querias acompanhar Simão
de Jonas, que ia para Nazaré buscar Marziam… Depois… eu te vi sofrer
tanto no corpo e na alma, que dizia: “Teria sido melhor se eu o deixasse
fazer o que queria. O Mestre lhe teria perdoado a desobediência e
Bartolomeu não iria envenenar ainda mais a sua alma com estas idéias”…
Mas, tu estás vendo! Se tivesses ido não terias mais a chave do mistério… e
talvez a tua suspeita sobre a volubilidade do Mestre não se teria desfeito
nunca. Assim, ao contrário.
– Assim, ao contrário, cheguei a compreender. 332.4Mestre, Simão de
Jonas e Simão Zelotes, que eu crivei de perguntas, querendo saber muitas
coisas para obter a confirmação de muitas já sabidas, só me disseram isto:
“O Mestre tem sofrido muito e está muito magro e envelhecido. E todo
Israel, a começar por nós, tem culpa disso. Ele nos ama e perdoa. Mas
deseja que não se fale no passado. Por isso eu vos aconselho a não
perguntar e não falar…” Mas eu quero falar. Perguntar, não perguntarei.
mas preciso dizer. Para que Tu saibas. Porque nada te deve ser te escondido
daquilo que existe na alma do teu apóstolo. Um dia — Simão e os outros
estavam fora havia alguns dias — veio a mim Miguel de Caná. Meio
parente, muito amigo e companheiro de estudos desde a infância… Ele,
tenho certeza, veio de boa fé. Queria saber como é que eu tinha ficado em
casa… enquanto que os outros tinham partido. E ele me disse: “Então, é
verdade? Tu te separaste porque, como bom israelita, não podes ficar
aprovando certas coisas. E de boa vontade te deixam separado dos outros, a
começar por Jesus de Nazaré, porque eles têm certeza de que tu não os
ajudarias nem mesmo com a cumplicidade do silêncio. Fazes bem. Eu
reconheço em ti o homem que eras há tempo. Eu pensava que te tivesses
corrompido, renegando Israel. Fazes bem para o teu espírito e para o teu
bem-estar, e para os teus. Porque tudo o que está acontecendo não vai ser
perdoado pelo Sinédrio e serão perseguidos os que tomaram parte nisso.” E
eu lhe disse: “Mas, de que tu estás falando? Eu te disse que tinha recebido a
ordem de ficar em casa, seja por causa da estação, seja para encaminhar
para Nazaré os eventuais peregrinos, ou dizer a eles que esperassem o
Mestre no fim do sábado em Cafarnaum, e tu estás falando de separações,
de cumplicidades, de perseguições? Explica-te!…”.Não é verdade, Filipe,
que eu falei assim?
Filipe faz sinal que sim.
– Então –continua Bartolomeu–, Miguel me disse que era sabido que tu
te rebelavas contra o conselho e a ordem dos sinedritas, conservando
contigo João de Endor e uma grega… Senhor, eu te causo tristeza, não é
verdade? E, no entanto, eu preciso falar. Eu te pergunto: é verdade que
estavam em Nazaré?
– Sim. É verdade.
– É verdade que eles partiram contigo?
– Sim. É verdade.
– Filipe, Miguel tinha razão? Mas, como é que ele podia estar sabendo?
– Ora, deixa para lá! São aquelas serpentes que fizeram parar a mim e a
Simão, e talvez a muitos outros. São as conhecidas víboras –diz Pedro com
veemência.
Jesus, ao invés, diz calmamente:
– Não te disse mais nada? Sê sincero com o teu Mestre, até o fim.
– Nada mais. Ele queria sondar-me. E eu menti a Miguel. Eu lhe disse:
“Até a Páscoa estarei em minha casa”, por medo Por medo que me
seguissem, que… não sei… por medo de fazer-te mal… E foi então que
cheguei a compreender porque foi que me deixaste… Tu havias percebido
que eu estava ainda demais em Israel… –Bartolomeu torna a chorar–… e
duvidaste de mim…
– Não. Isto não. Absolutamente. Tu não eras necessário naquela hora
junto aos teus companheiros, mas o eras, e tu o estás vendo, em Betsaida. A
cada um a sua missão. E cada idade tem as suas fadigas…
– Não, não! Não me separes mais por nenhuma fadiga, Senhor. Não te
preocupes com nada… Tu és bom. Mas eu quero estar contigo. É uma
punição estar longe te Ti. E eu, estulto, incapaz de tudo, podia pelo menos
te consolar, quando não podia fazer outra coisa. Eu compreendi… Tu
mandaste embora estes com aqueles dois. Não digas a mim. Não quero
saber. Mas percebo que é assim e o digo. Pois bem, então eu teria podido e
devia estar contigo. Mas Tu não me tomaste, para punir-me por estar eu tão
indisposto a tornar-me “novo”. Mas eu te juro, Mestre, que o que eu sofri
me renovou e que nunca mais verás o velho Natanae!
– Portanto, tu estás vendo como o sofrimento termina para todos em
alegria. 332.5E agora vamos lentamente ao encontro de Tomé e Judas. Sem
esperar que eles vão para lá onde foram mandados. Depois, continuaremos
a ir com eles… Temos muito que fazer!… Amanhã nos poremos a caminho.
Vamos logo.
– E farás bem. Porque o tempo está mudando do lado do norte. Ai de
nossas culturas… –diz Filipe.
– É certo. As últimas chuvas de pedra queimaram e reduziram a uns
fiapos as campinas. Se tivesses visto, Senhor. Parecia que o fogo tivesse
passado por certos lugares. E o curioso é que a calamidade fez mesmo
como eu disse: reduziu a fiapos –diz Pedro.
– Enquanto não estáveis aqui, houve muitas chuvas de pedras. Um dia,
no meado da Lua de Tebet, parecia um flagelo. Disseram-me que na
planície muitos vão ter que semear de novo. Antes, fazia calor. Mas, desde
então, procuramos com prazer o sol. Voltamos para trás… Que sinais
estranhos! Que serão eles? –pergunta Filipe.
– Nada mais que efeitos das lunações. Não fiques pensando nisso. Não
são estas coisas que nos haverão de impressionar. Afinal, nós estamos indo
para a planície e estará bonito por lá. Faz frio, mas não é muito e, em
compensação, temos a estiagem. Vinde, pois. No terraço há um bom sol.
Vamos ficar lá em cima, descansando, todos juntos….
333. Com dez apóstolos, a caminho de Sicaminon.
18 de novembro de 1945.
333.1 – E agora, que já contentamos o pastor, que faremos? –pergunta
Pedro, que está sozinho com Jesus, enquanto os outros estão formando um
grupo, alguns metros atrás.
– Vamos voltar para a estrada da margem, e ir para Sicaminon.
– Sim? Eu pensava que iríamos para Cafarnaum!…
– Não é preciso, Simão de Jonas. Não é preciso. Notícias de tua mulher
e do menino, tu já as tiveste, e por Judas… será mais simples ir ao encontro
deles.
– É bem verdade, Senhor. Não vem ele pela estrada do interior, que
passa pelo rio e pelo lago? É a mais curta e mais conservada…
– Mas ele não vem por ela. Lembra-te de que ele deve cuidar dos
discípulos, e estes estão muito espalhados pelo lado do poente, durante esta
estação que, além de tudo mais, está tão fria de novo.
– Está bem, está bem. Se Tu o dizes… Para mim, basta-me estar
contigo, e ver-te menos triste. E… não estou com nenhuma pressa de
encontrar Judas de Simão. Oxalá não o encontrássemos!… Estivemos tão
bem só entre nós!…
– Simão! Simão! É esta a tua caridade fraterna?
– Senhor… esta é a minha verdade –diz Pedro, com sinceridade. E o
diz com um ímpeto tal, e com tal expressão, que Jesus tem que fazer
esforço para não rir. Mas, como é que se pode repreender a um homem
assim tão sincero e fiel?
Jesus prefere calar-se, mostrando um muito grande interesse pelas
encostas que ficam a sua esquerda, à medida que a planície vai aparecendo,
cada vez mais plana, à direita. Atrás deles, no grupo dos nove também estão
falando e João está parecendo um bom pastor, pois ele vai levando um
cordeiro nas costas, talvez um presente do pastor Anás.
Depois de algum tempo, Pedro torna a perguntar:
– E não se vai a Nazaré?
– Certamente iremos até lá. Minha Mãe terá prazer em saber como foi a
viagem de João e Síntique.
– E também por ver-te!
– E também por ver-me.
– Será que a terão deixado em paz?
– Logo o saberemos.
– Mas, por que será que depois eles ficaram tão obstinados? Há tantos
como João também na Judéia e, no entanto… ou melhor, amuados por
causa de Roma, tomam precauções e se escondem.
– Persuade-te de que não é por João que o fazem, mas porque ele é um
libelo de acusação contra Mim.
– Mas eles não o encontrarão mais! Tu tens feito tudo bem… Tu nos
mandaste sozinhos… e por mar… primeiro em uma pequena barca, por
algumas milhas, e depois para além dos confins, em um navio… Oh! Foi
tudo bem! Eu espero que tenham ficado desnorteados.
– E assim ficarão.
– Eu estou curioso é por ver Judas de Keriot para perguntar-lhe quais
são as suas predições astrológicas, em que ele vê o céu cheio de ventos e
signos, e ver se ele…
– Mas, afinal de contas…
– Tens razão. É como um prego fincado aqui dentro, e bate na testa.
333.2 Jesus, para distraí-lo, chama todos os outros e faz que eles notem a
inexplicável destruição feita pela saraiva e pelo frio, quando já se pensava
que este já não viria mais neste ano… Uns dizem uma coisa, outros dizem
outra, todos querendo ver naquilo um sinal do castigo divino para a
insolente Palestina, que não acolhe o Senhor. E os mais doutos citam fatos
semelhantes, contados nas histórias antigas, enquanto os mais jovens e
menos cultos ficam ouvindo, espantados e atentos.
Jesus sacode a cabeça:
– É o efeito da Lua e dos ventos, que vêm de longe. Eu já vo-lo disse.
Nas regiões setentrionais produziu-se um fenômeno, cujas conseqüências
estão atingindo outras grandes regiões.
– Mas, por que, então, alguns dos campos estão bonitos?
– A saraiva faz assim.
– Mas não poderia ser um castigo para os mais obstinados?
– Poderia. Mas não o é. Ai de nós, se o fosse…
– Ficaria árida e desolada toda a nossa Pátria, não é verdade, Senhor? –
diz André.
– Mas, nas profecias está escrito, numa linguagem simbólica, que sairá
mal quem não acolher o Messias. Poderiam mentir os profetas?
– Não, Bartolomeu. E o que foi escrito acontecerá. Mas o Altíssimo é
tão infinitamente bom, que espera ainda mais do que o que está
acontecendo agora, para punir. Sede bons, vós também, sem ficardes
desejando sempre punições para os duros de coração e de entendimento.
Desejai para eles a conversão, não a punição. 333.3João, entrega o cordeiro a
um companheiro, e vem cá, vem olhar o teu mar, dali do alto daquelas
dunas de areia. Eu também vou para lá.
E, de fato, eles estão agora em uma estrada bem perto do mar, separada
deles apenas por uma larga faixa de dunas onduladas, sobre as quais se
balançam umas palmeiras esguias, ou vegetam umas descabeladas
tamareiras, lentiscos e outras árvores dos areais.
Jesus vai com João. Mas, quem o deixa? Ninguém. E logo estão todos
lá em cima, ao sol que traz alegria, à vista do mar sereno e risonho…
A cidade de Ptolemaida está ali bem perto, como suas casas brancas.
– Vamos entrar nela? –pergunta Judas de Alfeu.
– Não é preciso. Permaneceremos nas primeiras casa para comer. Quero
estar a tarde em Sicaminon. Talvez encontraremos Isaque.
– Quanto bem ele está fazendo, não? Ouviste o que disseram Abel, João
e José?
– Sim. Pois todos os discípulos são muito habilidosos. Eu bendigo por
isso ao meu Pai, noite e dia. Todos vós… As minhas alegrias, minhas horas
de paz, as minhas seguranças…
E olha para eles com tanto amor, que aos dez vêm lágrimas aos olhos…
E é diante deste olhar de amor, que cessa a minha possibilidade de ver.
334. Tomé e Judas Iscariotes
também se reúnem ao grupo apostólico.
19 de novembro de 1945.
334.1 O vale do Kison, ainda que o sol esteja brilhando num céu sem
nuvens, tem um ar áspero, parecendo estar sendo penteado por um vento
gelado que varre as colinas setentrionais e arruína as tenras culturas, que
estão todas arrepiadas e se enroscam, de tão queimadas que estão e
destinadas a morrer no seu novo verde.
– E durará ainda muito tempo este frio? –pergunta Mateus, enrolando-
se ainda mais em sua capa, sob a qual aparece apenas um pouquinho do seu
rosto, isto é, os olhos e o nariz.
Com a voz sufocada pela capa, que também está segurando até sobre a
boca, responde-lhe Bartolomeu:
– Talvez pelo resto da lua.
– Estamos bem arranjados, agora! Mas, paciência! Ainda bem que em
Nazaré ficaremos em casas hospitaleiras… E, enquanto isso, tudo passará.
– Sim, Mateus. Mas para mim já passou ao ver Jesus menos abatido.
Não te parece que Ele está mais alegre? –pergunta André.
– Está, sim. Mas eu… escuta, parece-me impossível que Ele tenha
ficado tão emagrecido, só por aquilo que nós sabemos. Será mesmo que não
houve nada de novo, e que vós saibais? –pergunta Filipe.
– Nada. Nada mesmo. Eu te digo que nos confins sírio-fenícios Ele teve
até muita alegria por aqueles espíritos cheios de fé, e fez até os milagres de
que já te falamos –afirma Tiago de Alfeu.
– Ele tem estado muito com Simão de Jonas nestes últimos dias. E
Simão mudou muito. Ora, mas vós também mudastes. Não sei, não… Vós
estais mais austeros, esta é a verdade –diz Filipe.
– Mas te faz esta impressão!… Na realidade me parece que
continuamos a ser o que éramos antes. Certamente que ver o Mestre assim
entristecido por causa de tantas coisas, isso não nos causou prazer e também
ao percebermos como se encheram de ódio contra Ele… Mas nós o
defenderemos… Oh! Não lhe farão nada se nós estivermos com Ele.
334.2Ontem de tarde eu lhe disse, depois de ter ouvido o que estava dizendo
Hermes, que é um homem sério e digno de fé: “Tu não deves ficar mais
sozinho. Tu já tens os discípulos que, como estás vendo, trabalham, e
trabalham bem, e que estão sempre aumentando. Por isso, nós estaremos
contigo. Não te digo que Tu tenhas que fazer tudo. Já é tempo de socorrer-
te, meu irmão. Mas Tu ficarás conosco, como fez Moisés, sobre o monte, e
nós nos bateremos por Ti, prontos para o que vier e para defender-te, até
com meios materiais. O que aconteceu com João Batista não te deverá te
acontecer.” Porque, afinal, se os discípulos do Batista não se tivessem
reduzido a dois ou três tímidos, ele não teria sido preso. Nós somos doze
como fundo de resistência, e eu quero persuadir a se unirem a nós e a se
conservarem perto de nós pelo menos alguns dos discípulos mais fiéis e
mais enérgicos. Os que estavam com João em Maqueronte, por exemplo.
Gente de fé e de coragem. João, Matias e também José. Sabeis que aquele
jovem promete muito? –diz Tadeu.
– Sim. Isaque é um anjo, mas toda a sua força está no espírito. José,
porém, é forte também no corpo. E eles têm a mesma idade que nós.
– E é rápido para aprender. Tu ouviste o que disse Hermes? “Se este
homem tivesse estudado, seria um rabi, além de ser um justo.” E Hermes
sabe o que diz.
– Mas eu… teria perto também Estevão e Hermes e o sacerdote João.
Pelo conhecimento que eles têm da Lei e do Templo. Sabeis o que será a
presença deles diante dos escribas e fariseus? Um controle, um freio… E as
pessoas que estão em dúvida terão que dizer: “Vede como não faltam os
melhores de Israel ao redor do Rabi, como seus alunos e servos” –diz Tiago
de Alfeu.
– Tens razão. Vamos dizer isso ao Mestre. Ouvistes o que Ele disse
ontem: “Vós deveis obedecer, mas tendes também a obrigação de abrir o
vosso coração a Mim e dizer o que vos parece justo. Para que vos habitueis
a saber dirigir o futuro… E Eu, se vir que estais dizendo o que é justo,
aceitarei os vossos pensamentos” –diz o Zelotes.
– Talvez Ele o faça também para mostrar-nos que nos ama, visto que
estamos todos mais ou menos convictos de sermos nós a causa dos seus
sofrimentos –observa Bartolomeu.
– Ou então Ele está realmente cansado por ter que pensar em tudo, e
por estar sozinho a tomar decisões, a assumir responsabilidades. Talvez
também Ele reconheça que sua santidade perfeita é… eu diria, quase uma
imperfeição, ao considerar quem Ele tem pela frente: um mundo que não é
santo. Nós não somos santos, perfeitos. Somos apenas um pouco menos
desonestos que os outros… e, por isso, mais capazes de responder aos que
são quase como nós –diz Simão Zelotes.
– E de conhecê-los, deves dizer! –acrescenta Mateus.
– Oh! Como tais, eu estou certo de que Ele também os conhece. E até
os conhece melhor do que nós, porque Ele lê nos corações. Estou tão
convicto disso, como de estar vivo –diz Tiago de Zebedeu.
– E então? Por que às vezes Ele faz como faz, indo ao encontro de
aborrecimentos e perigos? –pergunta André, desolado.
– Aí está! Nem sei o que responder –diz Tadeu, encolhendo os ombros.
E, com ele, fazem a mesma confissão os outros.
334.3 João está calado. E o seu irmão o provoca:
– Tu, que sabes sempre tudo de Jesus, — às vezes ficais parecendo dois
namorados — Ele nunca te disse porque é que faz assim?
– Sim. Faz até pouco tempo que lhe perguntei. E Ele sempre me
respondeu: “Porque devo fazer. Eu preciso agir como se o mundo todo fosse
composto de criaturas ignorantes mas boas. A todos Eu ofereço a mesma
doutrina, e assim se separarão os filhos da Verdade dos filhos da Mentira.”
E Ele me disse ainda: “Estás vendo, João? Este é como um primeiro juízo,
não o universal, coletivo, mas particular.Tomando por base suas ações de fé,
de caridade e de justiça, serão separados os cordeiros dos cabritos. E isso
continuará também depois, quando Eu não estiver mais aqui. Mas aqui
estará a minha Igreja, pelos séculos dos séculos, até o fim do mundo. O
primeiro juízo das pessoas humanas se fará no mundo, no qual os homens
agem livremente, tendo diante de si o Bem e o Mal, a Verdade e a Mentira.
Assim como o primeiro juízo foi feito no Paraíso Terrestre, diante da árvore
do bem e do Mal, que foi violada pelos que desobedeceram a Deus. Depois,
quando vier a morte de cada um, será ratificado o juízo, que já foi escrito no
livro das ações humanas por uma Mente que não tem nenhum defeito. Por
fim, virá o Grande Juízo, o Terrível, e então, novamente serão julgados, em
massa, os homens. Desde Adão até o último homem. Julgados por aquilo
que eles tiverem querido para eles livremente nesta terra. Porque, se Eu
selecionasse por Mim quem merece a Palavra de Deus, o Milagre, o Amor,
e quem não merece, e Eu poderia fazer isso por direito divino e por minha
divina capacidade, os excluídos, mesmo os que fossem de Satanás,
gritariam, fortemente, no dia do juízo particular de cada um: ‘O culpado é o
Teu Verbo, que não quis nos ensinar’. Mas isto eles não irão poder dizer…
Ou melhor, eles o dirão, mas mentindo, mais uma vez. E por isso, serão
julgados.”
– Então, os que não acolhem a doutrina merecem ser condenados? –
pergunta Mateus.
– Isto eu não sei, se todos os que não crerem serão mesmo condenados.
Se vós estais lembrados, falando a Síntique, Ele deu a entender que aqueles
que agem honestamente nesta vida não serão condenados, ainda que creiam
em outras religiões. Mas nós lhe podemos perguntar. É certo que Israel, que
conhece o Messias e que agora crê parcialmente, e mal, no Messias, ou que
o rejeita, será severamente julgado.
334.4 – O Mestre fala muito contigo e tu sabes muitas coisas, que nós não
sabemos –observa o seu irmão Tiago.
– A culpa é tua e vossa. Eu lhe faço perguntas com simplicidade.
Algumas vezes lhe pergunto certas coisas, que devem fazer que o seu João
fique parecendo um grande estulto. Mas não me importa parecer isso.
Basta-me saber qual o pensamento dele e tê-lo em mim para fazê-lo meu.
Deveríeis fazer assim, vós também. Mas sempre tendes medo. Ora, medo de
quê? De ser ignorantes? De ser superficiais? De ser cabeçudos? Deveríeis
ter medo somente de estardes ainda despreparados quando Ele for-se
embora. Ele sempre diz isso… e eu sempre digo a mim mesmo, a fim de
preparar-me para a separação… mas já percebo que ela sempre será uma
grande dor…
– Nem me faças pensar nisso! –exclama André.
E os outros lhe fazem eco, suspirando.
– Mas, quando isso acontecerá, Ele diz sempre: “Dentro em breve.”
Mas breve pode ser dentro de um mês, ou daqui a uns anos. Ele é muito
jovem e o tempo passa rapidamente… Que estás sentindo, irmão? Estás
ficando muito pálido… –pergunta Tadeu a Tiago.
– Nada, nada! Eu estava pensando… –diz logo Tiago de Alfeu, que está
com a cabeça inclinada.
E Tadeu se inclina para vê-lo bem:
– Mas, tu estás com lágrimas nos olhos! Que tens?…
– Nada mais do que vós tendes… Eu estava pensando em nós, quando
estivermos sozinhos.
334.5 – Oh! Mas que tem Simão de Jonas para ir assim correndo na
frente, como um mergulhão em dia de tempestade? –pergunta Tiago de
Zebedeu, mostrando Pedro, que deixou Jesus sozinho e lá se foi, correndo e
gritando palavras que o vento não permite ouvir.
Apressam o passo e vêem que Pedro, tendo entrado por um pequeno
caminho, que vem de Séforis, que já está perto (assim dizem os discípulos
uns aos outros, perguntando se ele está indo a Séforis por ordem de Jesus, e
por aquele atalho). Mas depois, observando bem, vêem que os dois únicos
viandantes, que estão vindo da cidade para a estrada mestra, são Tomé e
Judas.
– Que é isso? Eles estão aqui? Logo aqui? Oh! Que estão fazendo por
aqui? De Nazaré, caso lá estivessem, deveriam ir para Caná, e de lá para
Tiberíades… –ficam perguntando muitos.
– Talvez eles estivessem vindo à procura dos discípulos. Esta era a
missão deles –diz prudentemente o Zelotes, que percebe como a suspeita
está levantando sua cabeça de serpente, despertada nos corações de muitos.
– Apressemos o passo. Jesus está sozinho e parece que nos espera… –
aconselha Mateus.
Eles lá se vão e chegam perto de Jesus ao mesmo tempo que Pedro,
Judas e Tomé. Jesus está muito pálido, a ponto de João lhe perguntar:
– Estás sentindo alguma coisa?
Mas Jesus lhe sorri e faz um sinal de que não, enquanto saúda os dois,
que voltaram depois de uma ausência bem prolongada.
Ele abraça primeiro Tomé, vistoso e alegre como sempre mas que se
torna sério, ao olhar para o Mestre, que está evidentemente mudado, e lhe
pergunta, preocupado:
– Estiveste doente?
– Não, Tomé. Não é nada. E tu, tens estado bem e feliz?
– Eu, sim, Senhor. Sempre bem e feliz. Só Tu é que faltavas para fazer
feliz o meu coração. Meu pai e minha mãe te agradecem por me teres
mandado a eles por algum tempo. Meu pai estava um pouco doente e,
então, quem foi trabalhar fui eu. Estive em casa de minha gêmea e fiquei
conhecendo o sobrinho pequenino, e fiz que lhe pusessem o nome que Tu
me disseste.Depois veio Judas e me fez andar como uma rolinha no tempo
dos amores, para baixo e para cima, por onde houvessem discípulos. Ele já
tinha andado, e não pouco, por sua conta. Mas agora, quem vai falar é ele,
pois ele trabalhou por dez e merece que Tu o escutes.
Jesus o deixa ir e aguarda a vez de Judas, que pacientemente ficou
esperando, e agora anda para frente, intrépido, desembaraçado, como um
triunfante. Jesus o traspassa com seu olhar de safira. Mas o beija, e por ele é
beijado, do mesmo modo como aconteceu com Tomé. E as palavras que
profere são afetuosas:
– E tua mãe, Judas, ficou contente por ter-te com ela? Está bem aquela
santa mulher?
– Sim, Mestre, e te bendiz por lhe teres mandado o seu Judas. Ela
queria mandar-te uns presentes. Mas, como poderia eu transportá-los
quando tinha que andar por montes e vales? 334.6Podes ficar tranqüilo,
Mestre. Todos os grupos de discípulos que eu visitei estão trabalhando
santamente. A idéia se propaga sempre mais. Eu pessoalmente quis
controlar as repercussões dela sobre os mais poderosos escribas e fariseus.
Muitos deles eu conhecia e outros eu fiquei conhecendo agora, por amor a
Ti. Eu me aproximei de saduceus, de herodianos… Oh! Eu te garanto que a
minha dignidade ficou bem prejudicada… Mas foi por teu amor. Isto e
outras coisas eu farei. Recebi rejeições desdenhosas e anátemas. Mas
também consegui suscitar simpatias em alguns que estavam com
prevenções a teu respeito. Não quero os teus elogios. Basta-me ter feito o
meu dever, e agradeço ao Eterno por me ter sempre ajudado. Tive que
lançar mão do milagre em certos casos. Mas Tu nos dizes que amemos e
tenhamos paciência… Eu assim fiz para honra e glória de Deus e para a tua
alegria. Eu espero que muitos obstáculos sejam afastados para sempre e
ainda mais porque, sob minha palavra de honra, eu garanti que junto a Ti,
não havia mais do que dois que faziam muita sombra. Depois me veio um
escrúpulo de ter afirmado o que eu não sabia com certeza. E, então, eu quis
verificar, para poder tomar providências, a fim de não ser apanhado em
mentira, pois isso me teria posto sob suspeita para sempre no meio dos que
se deviam converter… Imagina! Até de Anás e Caifás eu me aproximei…
Oh! Eles quiseram reduzir-me a pó com suas censuras… Mas eu fiquei tão
humilde e persuasivo, que eles acabaram tendo que me dizer: “Pois bem. Se
as coisas de fato são assim… Nós pensávamos que fossem diferentes. Os
reitores do Sinédrio, que podiam saber delas, no-las referiam todas ao
contrário, e…”
– Não quererás dizer que José e Nicodemos tenham sido uns
mentirosos –interrompe o Zelotes, que se conteve até aquele ponto, mas não
além dele, e está lívido pelo esforço que fez.
– E quem esta dizendo isso? Ao contrário! José me viu quando eu ia
saindo da casa de Anás, e me disse: “Por que estás assim mudado?” E eu,
então lhe contei tudo e como, seguindo o conselho dele e de Nicodemos,
Tu, Mestre, tinhas afastado o galeote e a grega. Porque tu os afastaste, não é
verdade? –diz Judas, olhando fixamente para Jesus, com aqueles seus olhos
de azeviche brilhantes e fosforescentes.
Parece querer perfurá-lo com o olhar, para ler o que Jesus fez.
Jesus, que o tem sempre em sua frente e muito perto, diz, com calma:
– Peço que continues o teu relato, pois me interessa muito. É uma
relação exata que pode ser muito útil.
– Ah! Então, como eu ia dizendo, Anás e Caifás mudaram de opinião, o
que já é muito para nós. Não é verdade? Além disso!… Oh! eu não quero
fazer-vos rir! Mas, será que estais sabendo que os rabis me tomaram à parte,
e me fizeram passar por um novo exame, como se eu fosse ainda um menor
de idade, que vai tornar-se de maior idade? E, que exame! Bem. Eu os
persuadi e eles me deixaram ir embora. Então, eu tive a suspeita e o medo
de ter dito alguma coisa que não era verdade. E pensei em tomar Tomé
comigo e ir de novo onde se encontravam alguns dos discípulos, ou então,
onde se podia presumir que se tivessem abrigado João e a grega. Estive na
casa de Lazáro, na de Manaem, no palácio de Cusa, na casa da Elisa de
Betsur, em Beter, nos jardins da Joana, no Getsêmani, no caminho de
Salomão, do outro lado do Jordão, em “Águas Belas”, na casa do
Nicodemos, na de José…
– Mas não os viste?
– Sim. E ele me havia garantido que nunca tinha visto aqueles dois.
Mas sabes… Eu queria certificar-me… Em poucas palavras: eu inspecionei
todos os lugares onde eu podia ter suspeitas de que lá ele estivesse. E não se
creia que eu sofresse por não encontrá-lo. Seríeis injustos comigo. Todas as
vezes — e Tomé o pode confirmar — todas as vezes que eu saía de um
lugar, sem tê-lo encontrado, e nem mesmo sem ter obtido nenhuma noticia
dele, eu dizia: “Louvado seja o Senhor”, e ainda: “ó Eterno, faze que eu não
o encontre nunca mais!” Isso mesmo! E minha alma suspirava… O último
lugar a que fui foi Esdrelon… 334.7Ah! A propósito. Ismael ben Fabi, que
mora em seu palácio nas campinas de Magedo, deseja ter-te como seu
hóspede… Mas eu, se estivesse em teu lugar, não iria lá…
– Por queê? Eu irei sem falta. Também Eu estou com desejo de vê-lo. E
até iremos logo lá. Em vez de irmos a Séforis, iremos a Esdrelon e depois a
Magedo, depois de amanhã, que é a vigília do sábado, e de lá iremos para a
casa de Ismael.
– Assim não, Senhor! Por queê? Achas que ele te ama?
– Mas, se tu te aproximaste dele e o tornaste favorável a Mim, por que
é que não queres que Eu vá lá?
– Eu não me aproximei dele… Ele estava nos campos e me reconheceu.
Mas eu, — não é, verdade, Tomé? — eu queria fugir, quando o vi. Mas não
pude, porque ele me chamou pelo nome. Eu… eu não posso fazer outra
coisa, senão aconselhar-te a não ires nunca a nenhum fariseu, ou escriba ou
outros semelhantes. Não é coisa útil para Ti. Fiquemos entre nós, sozinhos
com o povo, e basta. Fiquemos também com Lázaro, Nicodemos, José…
será um sacrifício… Mas é melhor fazê-lo para não criar ciúmes e iras,
fornecendo armas às críticas… À mesa se fala. E eles trabalham
maldosamente com as tuas palavras. Mas, voltemos a João… Eu ia indo
para Sicaminon, visto que Isaque, que eu encontrei nos confins da Samaria,
me havia jurado não tê-lo mais visto desde outubro.
– E Isaque jurou a verdade. Mas tudo o que me aconselhas, sobre os
contatos com os escribas e fariseus, está em contradição com tudo o que
disseste antes. Tu me defendeste… Foi isto que fizeste, não é verdade? Tu
disseste: “Eu destruí muitas prevenções a respeito de Ti.” Tu disseste isto,
não é verdade?
– Sim, Mestre.
– E, então, por que não posso Eu mesmo terminar a defesa de Mim
mesmo? Então, iremos à casa de Ismael. E tu, agora, volta para trás, e vai
até ele, para avisá-lo. Contigo irão André, Simão Zelotes e Bartolomeu. Nós
iremos descansar com os camponeses. Quanto a Sicaminon, nós iremos lá.
Nós éramos onze. E te afirmamos que João não está conosco. E ele não está
também nem em Cafarnaum, nem em Betsaida, nem em Tiberíades, nem
em Magdala, nem em Nazaré, nem em Corozaim, nem em Belém da
Galiléia, e assim por diante em todas as etapas, que talvez tivesses a idéia
de fazer, para… teres a certeza da presença de João entre os discípulos ou
em casas amigas.
334.8 Jesus fala calmo, em tom natural… Contudo, alguma coisa deve
haver nele que esteja perturbando Judas, pois este muda de cor por um
instante. Jesus o abraça, como se fosse beijá-lo. E, enquanto assim está
fazendo, rosto contra rosto, lhe sussurra em voz baixa:
– Desgraçado! Que fizeste com tua alma?
– Mestre… eu…
– Vai-te! Tens o mau cheiro do inferno, mais ainda do que o próprio
Satanás! Cala-te!… E arrepende-te, se o podes.
Judas… eu teria saído dali precipitadamente. Mas ele! O descarado
ainda diz em voz alta:
– Obrigado Mestre. Mas eu te peço, antes que me vá: dá-me duas
palavras em segredo.
Todos se afastam muitos metros.
– Por que, Senhor, me disseste aquelas palavras? Tu me fizeste sofrer…
– Porque elas são a verdade. Quem faz comércio com Satanás, apanha o
mau cheiro de Satanás.
– Ah! É por causa da necromancia? Oh! Que medo me fizeste. É uma
brincadeira. Não é mais do que uma brincadeira de menino curioso. E me
serviu para aproximar-me dos saduceus e perder a vontade disso. Portanto,
estás vendo que me podes absolver em perfeita paz. São coisas inúteis,
quando se tem o teu poder. Tinhas razão. Vamos, Mestre! A minha culpa é
tão leve!… Grande é a tua sabedoria. Mas, quem foi que te disse isso?
Jesus olha para ele muito sério e não responde.
– Mas, me viste mesmo com o pecado no coração? –pergunta Judas, um
pouco amedrontado.
– E me repugnaste. Vai! E não digas mais nada.
Jesus lhe vira as costas, voltando-se para os seus discípulos, aos quais
ordena que mudem de caminho, dando antes as despedidas a Bartolomeu, a
Simão e a André, que já estão alcançando Judas, e vão indo a passos
rápidos, enquanto que os que ficam vão indo lentamente, sem conhecerem a
verdade que só Jesus conhece.
E tanto eles a desconhecem, que ainda ficam elogiando Judas por sua
atividade e sagacidade. E o honesto Pedro, com toda a sua sinceridade, se
acusa do pensamento temerário que ele tinha em seu coração contra o
condiscípulo.
Jesus sorri com um sorriso manso, um pouco cansado, como se
estivesse absorto e ouvisse apenas o tagarelar dos seus companheiros, que
das coisas sabem apenas aquele tanto que lhes permite saber a natureza
humana deles.
335. A falsa amizade de Ismael ben Fabi
e o hidrópico curado em dia de sábado.
11 de setembro de 1944.
335.1 Vejo Jesus caminhar rapidamente por uma estrada mestra, que o
vento frio de uma manhã de inverno está varrendo e endurecendo. Os
campos, de um lado e do outro da estrada, tem apenas uma rala penugem
das plantações que despontam, uma coberta verde na qual há uma promessa
de futuro pão, mas uma promessa na qual mal se acaba de pensar. Há sulcos
sombreados ainda privados deste verde abençoado, e somente os que estão
nos pontos mais ensolarados é que mostram um verdejar muito leve e já
festivo porque fala da próxima primavera. As árvores frutíferas ainda estão
nuas, nem mesmo um broto desabrocha sobre os seus ramos escuros.
Somente as oliveiras possuem seu eterno cinzento verde, tristes tanto sob o
sol de agosto como sob esta claridade do começo de uma manhã de inverno.
E, junto com elas, mostram seu verde, um verde pastoso de cerâmica que
acabam de ser pintadas, as folhas carnudas das cactáceas.
Jesus caminha, como de costume, a dois ou três passos à frente dos
discípulos. Todos estão bem cobertos com suas capas de lã.
Em certo ponto, Jesus pára e se vira, interpelando os discípulos:
– Conheceis bem este caminho?
– O caminho é este, mas onde está a casa não se sabe, porque ela fica
para dentro do terreno… Talvez esteja lá adiante, onde se vêem aquelas
oliveiras…
– Não. Deve ser mais lá para o fundo, onde estão aquelas árvores
grossas e sem folhas…
– Devia haver uma estrada para os carros…
Em suma, não sabem nada de preciso. Pessoas pela estrada ou pelos
campos não se vêem. Vão indo ao acaso, para frente, procurando o
caminho.
Encontram uma casinha de gente pobre, com dois ou três pequenos
campos ao redor. Uma mocinha vem trazendo água de um poço.
– Paz a ti, menina –diz Jesus, parando no limite marcado pela sebe,
onde há uma passagem, para quem vai e para quem vem.
– Paz a ti. Que queres?
– Uma informação. Onde é a casa de Ismael, o fariseu?
– Estás fora da estrada, Senhor. Deves voltar até a encruzilhada, e
tomar a estrada que vai para o ponto do pôr-do-sol. Mas tens que caminhar
muito, porque deves voltar até a encruzilhada, e depois andar e andar. Já
comeste? Está fazendo frio, e o estômago vazio o faz sentir mais. Entra, se
quiseres. Nós somos pobres. Mas Tu também não és rico. Por isso podes
adaptar-te. Vem.
E grita com sua voz aguda:
– Mamãe!
335.2 Aparece na soleira uma mulher dos seus trinta e cinco, quarenta
anos. Tem um rosto honesto, mas um pouco triste. Traz nos braços um
menino de uns três anos, meio despido.
– Entra! O fogo está aceso. Eu te darei leite e pão.
– Eu não estou sozinho. Estou com estes amigos.
– Que entrem todos e a bênção de Deus esteja com os peregrinos que eu
hospedo.
Entram em uma cozinha baixa e escura que alegra um fogo vivo.
Sentam-se aqui e ali sobre caixa-bancos rústicos.
– Agora, eu vos vou preparar… É manhã… Não pus ainda nada em
ordem. Desculpai-me.
– Vives sozinha?
É Jesus quem pergunta.
– Tenho marido e filhos. Sete. Os dois maiores estão ainda na feira de
Naim. Eles devem ir lá porque meu marido está doente. Uma grande dor!…
As meninas me ajudam. Este é o menorzinho. Tenho um outro, só um pouco
maior.
O pequenino, agora vestido com sua pequena túnica, corre de pés
descalços para Jesus e o olha curiosamente. Jesus lhe sorri. A amizade está
feita.
– Quem és tu? –pergunta, confiante, o menino.
– Sou Jesus.
A mulher se vira para olhá-lo atentamente. Permaneceu com um pão
nas mãos, entre o fogão e a mesa. Abre a boca para falar, mas depois cala.
O menino continua:
– Para onde vais?
– Pelos caminhos do mundo.
– Fazendo o que?
– Abençoando os meninos bons e as casas deles, onde são fiéis à Lei.
A mulher torna a fazer um gesto. Depois ela faz um sinal a Judas
335.3
Iscariotes, que é o que está mais perto dela. Ele se inclina para a mulher que
pergunta:
– Mas, quem é teu amigo?
E Judas, inchado, (fica parecendo que o Messias é quem é pelo
merecimento e bondade dele):
– É o Rabi da Galiléia, Jesus de Nazaré. Não o sabias, mulher?
– Este é caminho fora de mão e eu tenho tantos sofrimentos!… Mas
poderei dizer a Ele?
– Podes –diz tranqüilamente Judas.
Parece-me um desses grandes do mundo, quando concedem
audiência…
Jesus continua a falar com o menino, que lhe pergunta se Ele também
tem meninos.
Enquanto a menina já vista e uma outra um pouquinho maior estão
trazendo leite e vasilhas, a mulher vai para perto de Jesus. Fica um pouco
hesitante, depois dá um grito sufocado:
– Jesus, piedade do meu marido!
Jesus se levanta. A ultrapassa com sua altura, mas a olha com tanta
bondade que ela se anima.
– Que queres que Eu faça?
– É muito doente. Inchado como um odre, não pode dobrar-se e
trabalhar. Não acha descanso porque se sufoca e fica impaciente… E nós
temos meninos ainda pequenos…
– Queres que eu o cure? Mas, por que o queres de Mim?
– Porque Tu és Tu. Eu não te conhecia, mas ouvi falar de Ti. A sorte te
trouxe à minha casa depois de ter-te procurado três vezes em Naim e Caná.
Por duas vezes estava também meu marido. Procurava-te, ainda que viajar
de carro o fizesse sofrer muito… Agora mesmo ele está fora com o irmão
dele… Deram-nos a notícia de que o Rabi, depois de sair de Tiberíades, iria
para a Cesaréia de Filipe… E ele foi para lá, a fim de esperar-te…
– Eu não fui a Cesaréia. 335.4Vou até o fariseu Ismael e depois irei em
direção ao Jordão…
– Tu, que és bom, vais à casa do Ismael?
– Sim. Porque?
– Porque… Porque… Senhor, eu sei que Tu dizes de não julgar, de
perdoar e amar-nos. Eu nunca te vi. Mas tenho procurado saber de Ti o mais
que eu podia e pedia ao Eterno que eu pudesse ouvir-te pelo menos uma
vez. Não quero fazer coisa que te desagrade… Mas, como podes deixar de
julgar Ismael e amá-lo? Eu não tenho nada de comum com ele e por isso
nada tenho a perdoar-lhe. As insolências que ele nos dirige quando encontra
a nossa pobreza em seu caminho, a sacudimos para longe de nós com a
mesma paciência com que sacudimos a lama e a poeira que ele nos joga
quando ele passa veloz com suas carruagens. Mas amá-lo, e não julgá-lo, é
difícil demais… Ele é muito mau!
– É muito mau com quem?
– Com todos. Oprime os servos, empresta com usura e exige
cruelmente. Só se ama a si mesmo. É o homem mais cruel desta região. Não
merece, Senhor!
– Eu sei. Tu dizes a verdade.
– E Tu vais lá?
– Ele me convidou.
– Desconfia, Senhor. Ele não terá feito por amor. Não te pode amar… E
Tu… não o podes amar.
– Eu amo até os pecadores, mulher. Eu vim para salvar a quem se
perdeu…
– Mas a este não salvarás. Oh! Perdão por ter julgado! Tu sabes… Tudo
o que fazes está bem. Perdoa à minha língua estulta e não me castigues.
– Eu não te castigo. Mas não o faças mais. Ama mesmo aos malvados.
Não pela sua malvadeza, mas porque é com o amor que se obterá a
misericórdia que converte. Tu és boa e desejosa de o ser ainda mais. Tu
amas a verdade, e a Verdade, que te está falando, te diz que te ama, porque
és piedosa, segundo a Lei[52], para com o hóspede e o peregrino e assim é
que tens educado os teus filhos. Deus será a tua recompensa. 335.5Eu devo ir
à casa de Ismael que me convidou para mostrar-me a muitos amigos seus
que me querem conhecer. Eu não posso atender mais do que a teu marido,
saibas, já está no caminho de retorno. Mas, dize a ele que sofra ainda um
pouco e vá logo à casa do Ismael. Vai tu também. Eu o curarei.
– Oh! Senhor!…
A mulher está de joelhos aos pés de Jesus, e olha para Ele, rindo e
chorando. Depois ela diz:
– Mas hoje é sábado!…
– Eu sei. Eu preciso que seja um sábado para que possa dizer alguma
coisa a Ismael a respeito disso. Tudo o que eu faço, o faço com um fim
claro e sem erro. Ficai sabendo disso todos, também vós, meus amigos, que
estais com medo e quereríeis que eu seguisse uma conduta segundo as
conveniências humanas, para não ficar prejudicado em nada. É o amor que
vos guia. Eu o sei. Mas precisais saber amar melhor do que amais. Não
desprezando nunca os interesses divinos por causa do interesse do vosso
amado. Mulher: Eu vou e te vou atender. A paz seja perene nesta casa, onde
se ama a Deus e sua lei e é respeitado o cônjuge e educada santamente a
prole, onde o próximo é amado e procurada a Verdade. Adeus.
Jesus pousa a mão sobre a cabeça da mulher e das duas jovenzinhas,
depois se inclina para beijar os meninos menores e sai.
Agora um sol de inverno tempera a aspereza do ar. Um rapazinho de
uns quinze anos, está esperando com um carro rústico muito desconjuntado.
– Só tenho este, Senhor. Mas sempre irá mais depressa, e com mais
comodidade.
– Não, mulher. Conserva descansado o cavalo, para irdes com ele à
casa de Ismael. Mostra-me somente a estrada mais breve.
O rapazinho se põe a seu lado e, por campos e prados, vão em direção
de uma ondulação do terreno, além da qual há uma grande depressão de
alguns hectares, bem cultivada, ao no centro da qual há uma bonita casa
larga e baixa, cercada por uma faixa de jardim bem tratado.
– A casa é aquela, Senhor, diz o rapaz. Se não precisas mais de mim,
vou voltar para casa, a fim de ajudar minha mãe.
– Vai, e sê sempre um bom filho. Deus está contigo.