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LAMM

O broto

Desconhecido
O SONHO

- Bom dia.

- Bom dia. A Anastasia está acordada?

- Sim, mas está no banho. Como o senhor vai?

- Bem, apesar das dores na coluna que nunca param. E você, como
está? Ontem escutei alguns barulhos vindo da sua casa, eram
alguns gritos de desespero. O que aconteceu?

- Tive um pesadelo muito real, porém, não convém contar, é


demasiado longo.

- Não tem problema algum, tenho tempo de sobra.

- Eu adoraria contar, porém acabei de colocar a chaleira no fogo e


temo que me alongue demais nessa conversa, o que pode fazer a
água derramar sobre o fogão.

- Então seja rápido, meu rapaz, não faça mais delongas e apenas
conte, não deixe esse velho curioso.

- Está bem, já que insiste. Porém, me prometa algo

- O que?
- Jamais irá contar essa história para outrem.

- É tão grave assim?

- Apenas prometa, verá a sua densidade após escuta-la.

- Está bem, eu prometo.

- Irei narrar como uma história, talvez isso facilite a compreensão

- Faça como quiser

- Entre os carvalhos e as heras terrestres, vejo nascer no coração


sombrio da floresta um esplendor capaz de revelar os segredos
escarlates do abismo. Chegamos aqui; uma pacata vila arde em
chamas, implorando por água, neve e tudo o mais que se oponha a
combustão da lenha. A fumaça se espalha e toma aquela pequena
população, angustiada com o sheol que ilumina o céu, fazendo a
visão voltada para o cerúleo sangrar. A chama motriz daquela
aldeia estava sendo lentamente afogada conforme a lenha
queimava. O trigo se torna nada e todos os ramos queimados fazem
a quarta-feira de cinzas bater na porta. Almas perdidas choram,
mas o seu desafogar é insuficiente para calar Vesúvio. Ninguém faz
nada, pois não há o que fazer. As mulheres gritam e choram em
desespero; homens tentam apagar o fogo, mas desistem após
alguns tocarem a chama da grande ave. A pequena igreja arde,
mas arde tão fortemente que dizem que os seus gritos podem ser
escutados até do outro lado do país. As inicias derretem e o sangue
que pintava as iniciais “A∴A” se liquefaz. As lágrimas de Changeling
corriam da fonte que ficava ao lado da igreja, porém, de repente ele
secou. Os carvalhos se curvaram perante a grandeza do pequeno
broto. “Quem é aquele que vem?”, exclamam as senhoras, todas
amedrontadas com a grandeza que sobrepujava a terra. Ao chegar
na vila, tudo se acalmou. O fogo se ajoelhou e gritou: “oh, Senhor,
Senhor, cumpri o que me disseste e fiz cair em chamas os
monumentos orvalhados que profanam o Vosso nome”. Ele olha e
acena, fazendo o fogo sumir instantaneamente, reduzindo sua
própria existência ao pó, tornando-o igual as suas vítimas. As
lágrimas de tristeza voltaram a correr, porém, gritaram: “Meu

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Senhor, livra-me do sofrer inefável, dessa mácula infindável e
impossível de ser tirada por mim ou por quem quer que seja. Só o
Senhor pode me livrar dessa tão dolorosa mazela. Transforma-me
em sangue, oh Grande Sol, transforma-me em rubro coração
apaixonado, Deus de amor.” Assim se fez. A fonte passou a escorrer
sangue, fazendo o último homem ajoelhar, incrédulo com a devoção
que a terra prestava a esse ser.

- Quem era o Changeling?

- Ainda não vê sobre o que falo?

- Não totalmente; creio que está falando sobre devotos do demônio


que são suprimidos por Cristo, nosso Senhor.

- Está correto, mas não é apenas isso. As vezes, caro amigo, os


mistérios estão na matéria, não na alma.

- Por que diz isso?

- Conheces tua filha, minha mulher?

- Conheço.

- Sabe sobre o seu caráter?

- Com toda certeza que sim.

- E sobre os seus acidentes?

- Também.

- O senhor sabia que na coxa direita dela, bem próximo da virilha,


existe um corte de mais ou menos 6cm?

- Não, não sabia. Por que ela tem esse corte?

- Eis aí um mistério. Isso te desperta interesse?

- Claro.

- Mas não julgavas saber quem ela era?

- Conhecemos a pessoa através da sua maioria, não dos detalhes


ocultos.

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- Justamente; o seu corpo retém marcas que a sua alma esconde.
Sem conhecer o seu corpo, jamais saberia desse detalhe. Os
acidentes também são parte de quem somos, por isso escondem as
marcas do segredo, assim como as dores e pesares. A diferença do
corpo para a alma nesse quesito? A forma como somos afetados. As
marcas são diferentes.

- É, talvez tenha razão. Enfim, continue com a história.

- Tudo bem. Após essa demonstração clara de soberania sobre


aquela região, todos os moradores começaram a adorar aquele
misterioso Homem, cuja identidade já sabemos qual é. Uma das
mulheres pergunta o seu nome e ele diz: “Eu sou o cordeiro.” A
mulher treme e todos ao seu redor permanecem atônitos com essas
palavras. O Homem caminha em direção a elas, segurando o ombro
da mais nova entre todas, Ekaterina, de 16 anos. Ela olha para Ele
e diz: “Senhor, por muito tempo de minha curta vida eu temi o
Vosso nome, porém, agora vejo a Vossa grandeza. Tira-me das
trevas, ó Cordeiro de misericórdia. Livra-me da escuridão e da noite
serena, o lar dos predadores das pequenas almas sonâmbulas.”
Após proferir tais palavras, a menina tem a cabeça levantada para
cima com um sutil toque em seu queixo. Ela está olhando para Ele,
o seu coração está repleto de alegria. Todos na vila caem em
prantos e desesperos, pois percebem que o fim para as suas
crenças e mentiras chegou. O Lamm Gottes voltou. “SAIA, SAIA,
SAIA COM A VOSSA PAIXÃO”, grita a mão de Ekaterina,
desesperada e segurando a mão de sua filha. Ela levanta, retira o
braço de sua mãe, beija a sua testa e diz: “mamãe, lembre-se de
mim”. Sua mãe permanece furiosa, se arremessando aos pés de
Ekaterina, sempre repetindo que a memória é uma mentira, um
flagelo, um tormento. “As mentiras do Lamm é sobre amor sem
Sodom-Apfel, sobre memória sem dor, sobre o júbilo sem gozo. Ele
mente, minha pequena, Ele mente!” Eka, que já estava prestes a
sair da vila quando sua mãe fez isso, se abaixa lentamente e diz:
“Memórias são marcas do mundo, fotografadas pelo corpo e
guardadas na alma. O que é o homem sem a lembrança? A principal
qualidade da nossa essência é a razão, porém, o que seria da razão
sem a memória? Até mesmo o prazer carnal seria inútil, visto que

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jamais recordaríamos dos benefícios que a luxúria trouxe para o
corpo, tornando o mais ímpio dos homens sempre infeliz, pois não
pode alegrar-se com as memórias de seu gozo carnal. A memória é
esperança, razão, medo sofrimento, mas antes de tudo, ela é vida.
Um homem sem passado é um homem sem presente, não existe
acontecimento sem causa, assim como não existe o amanhã sem o
ontem. O benefício do aprendizado estar em reter o que foi
ensinado, não apenas em ouvir. Como teríamos esperança se não
houvesse lembrança? Melhorar não é apenas um desejo, é uma
memória. Se não estamos bem, lembramos daqueles que estão, do
seu gozo nas virtudes alcançadas, do seu espírito digno e nobre.
Buscamos ser através do que foi. Sou o que sou porque lembro do
que fui e dos que foram antes de mim”. Em uma breve pausa, ela
olha para seus vizinhos e diz: “a carne é breve, a alma é póstuma.
O meu espírito anuncia algo além de mim, eu não posso renegar o
universo que rege o mundo que pisamos. Vejam, não somos apenas
desejo, não somos apenas imperfeições, somos também alegria.
Mãe, acha que tua carne sente o prazer que escorre após o coito?
Não seria tua alma a lamentar-se por estar em comunhão com o
mundo, e a senhora, uma amante da dor, se banha com o prazer e
com a angústia de vossa alma? As chamas que antes eram a luz
dos nossos desejos, trouxe o Lamm, o pesadelo para a vida
daqueles que vivem para o mundo. As lágrimas que bebíamos
viraram sangue, o trigo que comíamos é pó. Não há casa, não há
alimento, não há líquido. Mas, aqui existe frio, fome e sede. Mãe,
não vê que as profecias estavam erradas? Ele não trouxe o escudo
que era previsto, mas sim a espada. Agora, digam-me: pra onde ir?
De fato, para onde alguém de nós poderá fugir de sua mão
poderosa? Qual mundo dará refúgio a quem dele desertou? Aonde
irei e me esconderei de sua face? Se subo até o céu, aí estás; se
vou até aos confins da terra, aí está a tua direita; se deito nos
abismos, aí está o teu espírito. Para onde alguém pode se retirar?
Para onde fugir, longe daquele que tudo abrange?” Todos na vila
ficaram calados, sofrendo silenciosamente com a dolorosa profecia
cumprida. Ekaterina se levanta e caminha junto com Ele, mas antes
de ir embora ela diz: “Voltarei para levar comigo aqueles que
buscam alegria além da carne”. Os carvalhos voltam ao normal e

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eles somem na floresta obscura, que clareia a cada passo do filho
do Homem.

- Qual a moral dessa história?

- Pense um pouco e verá. Preciso ir, sua filha está me chamando,


eu deixei o café no fogo.

O final

O princípio

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