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Maria Valtorta

O Evangelho
como me foi revelado

volume 1
COPYRIGHT

Tous droits réservés pour tous pays.


Título original: L’Evangelo come mi è stato rivelato.

Tradução do italiano de
Aristides Taciano Rodrigues
Revisão aos cuidados de
Roberto T. Sebok

© 2021 by Centro Editoriale Valtortiano srl.


Viale Piscicelli 89-91
03036 Isola del Liri (Fr) - Italy

ISBN 978-88-7987-365-9

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Nascimento e Vida escondida
de Maria e de Jesus.

1. Introdução. Deus quer um seio sem mácula.


“Deus me possuiu no princípio de seus caminhos.”
Salomão, Provérbios cap. 8 v. 22.

22 de agosto de 1944.
1.1
Jesus me ordena: “Pega um caderno todo novo. Copia, na primeira
folha, o ditado do dia 16 de agosto. Neste livro se falará dela”.
Obedeço e copio.

16 de agosto de 1944.
1.2
Jesus diz:
– Hoje escreve apenas isto. A pureza, na sua expressão máxima, tem
um tal valor que torna o seio de uma criatura capaz de conter o que não
podia ser contido.
A Santíssima Trindade desceu com a sua perfeição em um pequeno
espaço, habitando-o com as suas Três Pessoas, encerrando lá o seu Infinito,
sem diminuir-se com isso, pois o amor da Virgem e a vontade de Deus
dilataram este espaço até transformá-lo num Céu. Eis como essas
características se manifestaram:
Assim como no sexto dia[1], o Pai recria a Criatura, tendo uma “filha”
digna e verdadeira, feita à sua perfeita semelhança. A imagem de Deus
estava estampada em Maria de tal modo que só no Primogênito do Pai lhe
era superior. Maria pode ser chamada a “segundogênita” do Pai porque,
pela perfeição que lhe foi dada e sabida conservar, por dignidade de esposa
e mãe de Deus e também de Rainha do Céu, vem depois do Filho do Pai no
seu eterno Pensamento, que “ab aeterno” nela se compraz;
o Filho, sendo também para ela “Filho” ensinando-a, por mistério de
graça, a sua verdade e sabedoria quando ainda não era mais que um
embrião que lhe crescia no ventre;
o Espírito Santo, aparecendo entre os homens por uma antecipada
Pentecostes, por uma prolongada Pentecostes, Amor “naquela que amou”,
consolação dos homens, pelo fruto do seu ventre, santificação, pela
maternidade do Santo.
1.3
Deus, para manifestar-se aos homens, da forma nova e completa que
inicia a era da Redenção, não escolheu para seu trono um astro do céu, nem
o palácio real de um poderoso. Não quis nem mesmo as asas dos anjos
como base para seus pés. Quis um seio sem mácula.
Eva também tinha sido criada sem mancha. Mas espontaneamente quis
corromper-se. Maria, tendo vivido num mundo corrupto (Eva, ao contrário,
vivera num mundo puro) não quis prejudicar a sua inocência nem mesmo
com um pensamento voltado ao pecado. Sabia que o pecado existe. Viu os
vultos diversos e horríveis. Viu todos, até o mais horrendo vício: o deicídio.
Mas os conheceu para expiá-los e ser, eternamente, aquela que tem piedade
dos pecadores e ora por suas redenções.
1.4
Este pensamento será introdução a outras coisas santas que darei para
teu conforto e de muitos outros.
[1] sexto dia da criação, descrito em: Génesis 1,24-31.
2. Joaquim e Ana fazem um voto ao Senhor.
22 de agosto de 1944.
2.1
Vejo o interior de uma casa. Nela está sentada, junto a um tear, uma
mulher de idade. Diria, ao vê-la com os cabelos antes pretos, agora
grisalhos, e no rosto não enrugado mas já cheio daquela seriedade que vem
com os anos, que ela possa ter entre cinqüenta e cinqüenta e cinco anos.
Não mais.
Ao indicar estas idades femininas me baseio no rosto de minha mãe,
cuja imagem tenho mais que nunca presente nestes dias que me lembram os
seus últimos dias junto ao meu leito… Depois de amanhã fará um ano que
não a vejo mais… Minha mãe tinha um rosto jovial, sob os cabelos
precocemente embranquecidos. Aos cinqüenta anos eram brancos e pretos
como no fim de sua vida. Mas, exceto a maturidade do olhar, nada
denunciava os seus anos. Por isso poderia errar também ao dar às mulheres
idosas um certo número de anos.
Esta que vejo tecer, em uma sala toda clara de luz, que penetra da porta
escancarada sobre um grande pomar — diria, um sitiozinho, porque se
estende num sobe e desce, até uma encosta verde — é bonita em seus traços
decididamente hebreus. Olhos negros e profundos que, não sei porquê, me
lembram os de João Batista. Mas este olhar sendo altivo como de uma
rainha, é doce também. Como se sobre o seu coruscar semelhante ao de
uma águia fosse estendido um tênue véu azul. Doce e apenas um pouco
triste, como de quem pensa, e lamenta, as coisas perdidas. A tez é morena,
mas não excessivamente. A boca, levemente grande, é bem desenhada, e
está parada num gesto austero que porém não é duro. O nariz é comprido e
delicado, levemente inclinado para baixo. Um nariz aquilino que fica bem
com aqueles olhos. É robusta, mas não gorda. Bem proporcionada e creio
que alta, a julgar de como aparece sentada.
Parece-me que está tecendo uma cortina ou um tapete. As lançadeiras
multicolores correm rápidas sobre a trama que é marrom escuro, e o que já
está feito mostra um vago entrelaçamento de galões e rosáceas nos quais
verde, amarelo, vermelho e azul profundo se cruzam e se fundem como em
um mosaico. A mulher está vestida com uma roupa muito simples e escura.
Um roxo-avermelhado que parece igual a alguns amores-perfeitos.
2.2
Levanta-se ao ouvir bater à porta. É alta realmente. Abre.
Uma mulher lhe pede:
– Ana, queres dar-me a tua ânfora? Eu a encherei para ti.
A mulher tem consigo um menininho travesso de cinco anos que se
pendura imediatamente nos vestidos da nominada Ana, que o acaricia
enquanto vai em um outro cômodo e retorna com uma bonita ânfora de
cobre, que oferece à mulher dizendo:
– Tu és sempre boa, com a velha Ana. Deus te recompense por isto e
pelos filhos que tens e terás, tu bem-aventurada!
Ana suspira.
A mulher a olha e não sabe o que dizer por aquele suspiro; para desviar
a compaixão, que se compreende existe, diz:
– Eu te deixo Alfeu, se não te aborreces, assim posso andar mais
depressa e te encherei muitas moringas e jarras.
Alfeu está bem alegre de ficar, e explica-se o motivo. Tendo ido embora
a mãe, Ana o pega no colo e o leva ao pomar, o levanta até uma parreira de
uvas loiras como topázio e diz:
– Come, come, que são gostosas.
E o beija no rostinho sujo de suco de uva, que o menino arranca
avidamente do cacho.
Depois ri com gosto, e parece imediatamente mais jovem por causa dos
dentes bonitos que aparecem e pela alegria que lhe cobre o rosto, anulando
os anos, quando o menino diz:
– E agora o que me dás?
Ele a olha com dois olhos grandes arregalados de um cinzento azul
escuro.
Ela ri e brinca inclinando-se sobre os joelhos, dizendo:
– O que me dás se te dou… se te dou… adivinha!
O menino, batendo as mãozinhas, diz todo risonho:
– Beijos, beijos te dou, Ana bonita, Ana boa, Ana mamãe!…
Ana, ouvindo dizer: “Ana mamãe”, dá um verdadeiro grito de afeto
jubiloso e se abraça contra o pequenino, dizendo:
– Oh que alegria! Querido! Querido! Querido!
A cada “querido” um beijo desce sobre a pequena face rósea. E depois
vão a uma estante, e vai tirando de um prato pãezinhos de mel.
– Fiz os pãezinhos para ti, beleza da pobre Ana, para ti que me queres
bem. Mas, diz-me, quanto me queres bem?
E o menino, pensando naquilo que mais o impressionou, diz:
– Tanto quanto amo o Templo do Senhor.
Ana o beija ainda sobre os olhinhos espertos, sobre a boquinha
vermelha, e o menino a toca de leve como um gatinho.
A mãe vai e vem com o cântaro cheio e ri sem dizer nada. Ela os deixa
ao seu entusiasmo.
2.3
Entra do pomar um homem ancião, um pouco mais baixo que Ana,
com uma cabeça de cabelos espessos todos brancos. Um rosto claro, de
barba aparada, com dois olhos azuis como turquezas entre cílios de um
castanho claro quase loiro. Está vestido de marrom escuro.
Ana não o vê porque virou-se de costas à porta, e ele vem atrás dela
dizendo:
– E a mim nada?
Ana vira-se e diz:
– Oh Joaquim! Terminastes o teu trabalho?
Ao mesmo tempo, o pequeno Alfeu lhe abraça os joelhos dizendo:
– A ti também, a ti também!
Quando o ancião se inclina e o beija, o menino cinge-lhe o pescoço
despenteando-lhe a barba com as mãozinhas e com beijos.
Joaquim também tem o seu presente. Tira de trás das costas a mão
esquerda e lhe oferece uma maçã tão bonita que parece de cerâmica. Rindo
diz ao menino, que estende as mãozinhas avidamente:
– Espera que a corto em fatias para ti. Assim não podes. É maior do que
tu!
Com um canivete que carrega à cintura, uma faca de podador, a corta
em fatias, parecendo dar de comer a um passarinho no ninho, tal é o
cuidado com que coloca os bocados na boquinha aberta que mastiga e
mastiga.
– Mas olha só que olhos, Joaquim! Não parecem dois pedacinhos do
mar da Galiléia, quando o vento da noite lança um véu de nuvem no céu?
Ana fala apoiando uma mão nas costas do marido e apoiando-se
também levemente a si mesma, num gesto que revela um profundo amor de
esposa, um amor intacto, depois de muitos anos de casamento.
Joaquim a olha com amor e concorda dizendo:
– Maravilhosos! E aqueles caracoizinhos? Não têm a cor da palha que o
sol secou? Olha: entre eles há uma mistura de ouro e cobre.
2.4
– Ah! Se tivéssemos tido um menino, teria querido assim, com estes
olhos e estes cabelos…
Ana está inclinada, aliás, ajoelhada e com um grande suspiro, beija os
dois grandes e belos olhos cinza-azulados.
Joaquim também suspira. Mas quer consolá-la. Coloca-lhe a mão sobre
seus cabelos crespos e embranquecidos e lhe diz:
– Convém ainda esperar. Deus tudo pode. Enquanto se é vivo, o
milagre pode acontecer, especialmente quando se ama e se é amado.
Joaquim frisa muito as últimas palavras.
Mas Ana calada, desalentada, está com a cabeça inclinada para não
mostrar duas lágrimas que descem, e que somente o pequeno Alfeu vê;
admirado e angustiado por ver a sua grande amiga chorar, como faz
algumas vezes, levanta a mãozinha e enxuga aquele pranto.
– Não chores Ana! Somos felizes assim mesmo. Ao menos eu sou,
porque tenho a ti.
– Eu também. Mas não te dei um filho… Penso que desagradei ao
Senhor, já que me secou as entranhas…
– Oh minha mulher! Em que tu, santa, queres ter-lhe desagradado?
Escuta. Vamos ainda uma vez ao Templo. Por este motivo. Não só pelos
Tabernáculos. Façamos uma longa oração… Talvez te aconteça como com
Sara… ou com Ana de Elcana[2]. Muito esperaram, e se acreditavam
reprovadas por serem estéreis. Ao invés disso, nos céus de Deus,
amadurecia um filho santo para elas. Sorri, minha esposa. O teu pranto me
dói mais do que não ter prole… Levaremos Alfeu conosco e o faremos orar,
ele que é inocente… Deus ouvirá a sua e a nossa oração, nos atendendo
então.
– Sim. Façamos um voto ao Senhor. Será seu o recém-nascido.
Contanto que nos conceda… Oh! Ouvi-lo chamar-me “mamãe”!
E Alfeu, espectador admirado e inocente:
– Eu te chamo assim!
– Sim, querida alegria… mas tu tens a tua mamãe e eu… eu não tenho
nenhuma criança…
A visão termina aqui.
2.5
Entendo que iniciou o ciclo do nascimento de Maria. E estou muito
contente, porque o desejava muito. Penso que também o senhor[3] ficará
contente.
Antes que eu começasse a escrever, ouvi a Mãe dizer:
– Filha, escreve então sobre mim. Todo o teu desgosto será consolado.
Enquanto dizia isto, me pousava a mão sobre a cabeça em uma suave
carícia. Depois veio a visão. Mas a princípio, ou seja, enquanto não ouvi
chamar a senhora de cinqüenta anos por nome, não havia compreendido
estar diante da mãe da mãe e por isto da graça do seu nascimento.
[2] como com Sara, em: Génesis 17,15-21; 18,10-15; 21,1-3; com Ana de Elcana, em: 1 Samuel 1; 2,1-10. Mencionadas como
as mulheres que tiveram o Dom da maternidade mesmo sendo idosas e estéreis (Sara é mãe de Isaac, Ana de Elcana é mãe do
profeta Samuel), serão igualmente recordadas em: 104.4 -138.4 -300.2 -346.4 -473.8 -486.4 -561.15 -569.4.
[3] também o senhor é o director espiritual da escritora, o padre Romualdo M. Migliorini, da Congregação “Ordine dei Servi di
Maria”, ao qual MV se dirige com frequência. Por vezes vem favorecido um seu desejo (como em: 44.7 e em 45.10) ou lhe é
dedicado um episódio (como em: 58.1) ou lhe é dirigido um ensinamento (como em nota a 180.5 e em 234.10) ou lhe vem feita
uma confidência (como em 185.1 e 212.3). Leva a Comunhão à escritora (108.3).
3. A festa dos Tabernáculos.
Joaquim e Ana possuíam a sabedoria.
23 de agosto de 1944.
3.1
Antes de continuar, faço aqui uma observação.
A casa não me parece aquela já bem conhecida de Nazaré. Ao menos o
ambiente é muito diferente. Também o pomar é mais vasto, e além disso,
pode-se ver os campos. Não muitos, mas enfim, alguns. Depois, quando
Maria casou-se, havia só o horto, vasto mas limitado a horto, e este quarto
que vi, nunca vi em outras visões. Não sei se devo pensar que, por motivos
pecuniários, os pais de Maria se desfizeram de parte de seus pertences ou se
Maria, saindo do Templo, passou para uma outra casa, talvez presenteada
por José. Não me lembro se nas visões e lições passadas tive qualquer
indício seguro de que a casa de Nazaré fosse a casa nativa.
A minha cabeça está muito cansada. E depois, sobretudo por causa dos
ditados, eu me esqueço logo das palavras, mesmo se os comandos me
permanecem gravados na mente e a luz me permanece na alma. Mas os
pormenores se desvanecem imediatamente. Se depois de uma hora tivesse
que repetir aquilo que ouvi, com exceção de uma ou duas frases principais,
não saberia mais nada. Enquanto que as visões ficam vivas na mente,
porque tive de observá-las por mim mesma. Recebo os ditados. As visões,
ao invés, devo perceber. Por isto, elas ficam vivas no pensamento, pelo
esforço em observar as suas fases.
Esperava que houvesse um ditado sobre a visão de ontem. Em vez
disso, nada.
3.2
Começo a ver e escrevo.
Fora dos muros de Jerusalém, sobre as colinas e entre as oliveiras há
uma grande multidão. Parece uma enorme feira. Mas não existem bancas e
barracões. Não há o vozerio de charlatães e vendedores. Nem jogos. Há ali
muitas tendas de lã ásperas, certamente impermeáveis, estendidas sobre
estacas cravadas ao chão. Ligadas às estacas há ramos verdes que ornam e
refrescam. Outras tendas, ao invés, são de ramos fincados ao chão e sendo
ligadas assim: , são como pequenas galerias verdes. De baixo de cada
uma, há pessoas de toda idade e condição, e um falar tranqüilo e
concentrado, interrompido apenas por algum grito de criança.
Desce a noite e as luzes de candeiazinhas a óleo, já brilham
intensamente aqui e ali, pelo acampamento estranho. Ao redor das luzes
algumas famílias consomem a ceia. As mães estão sentadas no chão. com
os menores no colo, onde alguns, cansados, adormecem ainda com o
pedaço de pão nos dedinhos róseos, tombando a cabecinha sobre o seio
materno, como pintinhos sob a galinha; as mães terminam de comer como
podem, com uma das mãos, enquanto a outra segura o filhinho junto ao
coração. Outras famílias, ao contrário, não estão jantando ainda e
conversam na semi-escuridão do crepúsculo, esperando que a refeição fique
pronta. Alguns fogos são acesos aqui e ali, e ao seu redor as mulheres
afadigam-se. Alguma cantiga de ninar muito lenta, diria quase lamentosa,
embala uma criança que custa a adormecer.
No alto, um bonito céu sereno torna-se sempre mais azul profundo até
parecer um enorme velário de veludo macio de um azul escuro; sobre ele
lentamente, invisíveis artífices e decoradores diligentemente fixam jóias e
lamparinas, as quais isoladas, como em bizarras linhas geométricas, deixam
sobressair a Ursa maior e a menor com a sua forma de carro com a estaca
apoiada ao chão, depois que os bois foram destacados do jugo. A estrela
polar ri com todo o seu esplendor.
Percebo que é outubro porque uma voz grave de homem o diz:
– É bonito este outubro[4] como poucos o foram!
3.3
Eis Ana que vem de um fogaréu com algumas coisas entre as mãos,
estendidas sobre um grande pão bem plano que serve também de bandeja.
Preso às suas saias está Alfeu, que tagarela com a sua vozinha. Joaquim está
na soleira da sua pequena cabana de ramos falando com um homem de uns
trinta anos. (Alfeu de longe o saúda com um gritinho agudo dizendo:
“Papai”) Quando Joaquim avista Ana que se aproxima, apressa-se em
acender a candeiazinha.
Ana passa com o seu porte majestoso entre as fileiras de cabanas. Real,
mesmo se humilde, Ana não é soberba com ninguém. Levanta o menino de
uma pobre mulher, que caiu, exatamente a seus pés, ao tropeçar na sua
corrida travessa. Visto que havia sujado o rostinho de terra, ela o limpa,
consolando-o porque chora, e o devolve à mãe, que chega correndo e se
desculpa. Ana respode:
– Oh! Não é nada! Estou contente que não tenha se machucado. É um
bonito menino. Quantos anos tem?
– Três anos. É o penúltimo e logo terei um outro. Tenho seis meninos.
Agora queria uma menina… Para uma mãe é importante uma menina…
– O Altíssimo muito te consolou, ó mulher!
Ana suspira. E a outra:
– Sim. Sou pobre, mas os filhos são a nossa alegria e os maiorzinhos já
ajudam no trabalho. E tu, senhora (tudo indica que Ana seja de condição
mais elevada, pois a outra o notou) quantas crianças tens?
– Nenhuma.
– Nenhuma?! Esta não é tua?
– Não, de uma vizinha muito boa. É o meu conforto…
– Morreram ou…
– Não, nunca as tive.
– Oh!
A pobre mulher a olha com piedade.
Ana se despede com um grande suspiro e vai à sua cabana.
– Eu te fiz esperar, Joaquim! Uma pobre mulher entreteve-me; mãe de
seis filhos, imagine! E terá outro!
Joaquim suspira.
O pai de Alfeu chama o seu filho, mas este lhe responde:
– Eu fico com a Ana. Estou ajudando-a.
Todos riem.
– Deixa-o. Ele não me dá aborrecimento. Ainda não está obrigado a
observar a Lei. Estando aqui ou ali, ele não passa de um passarinho
comilão –diz Ana que senta-se com o menino no colo, ao qual dá pão com
peixe assado.
Vejo que antes de dar o peixe, parece estar lhe tirando os espinhos.
Depois serve o marido. Ela come por último.
3.4
A noite está sempre mais cheia de estrelas e as luzes sempre mais
numerosas no campo. Depois lentamente muitos candeeiros se apagam. São
daqueles que jantaram antes e que agora se põem a dormir. Também o
murmúrio diminui devagar. Vozes de meninos não se ouvem mais. Só
alguma criança de peito faz ouvir a sua vozinha de cordeirinho buscando o
leite da mamãe. A noite sopra o seu hálito sobre as pessoas, apagando
desgostos e lembranças, esperanças e rancores. Aliás, talvez Joaquim e Ana
sobrevivam tranqüilizados, seja no sono, que no sonho.
Ana o diz ao marido, enquanto embala Alfeu que começa a dormir em
seus braços:
– Esta noite sonhei que no próximo ano eu virei à Cidade Santa para
duas festas, ao invés de uma. E uma será a dádiva da minha criança ao
Templo… Oh! Joaquim!…
– Espera, espera Ana. Não ouvistes outra coisa? O Senhor não te
segredou nada em teu coração?
– Nada. Somente um sonho…
– Amanhã é o o último dia de oração. Todas as ofertas já foram feitas.
Mas as renovaremos ainda amanhã, solenemente. Convenceremos Deus
com o nosso amor fiel. Eu penso sempre que te acontecerá o mesmo que
com a Ana de Elcana.
– Queira Deus… e que houvesse logo alguém que me dissesse: “Vá em
paz. O Deus de Israel te concedeu a graça que pedistes!”
– Se a graça vier, o teu menino dir-te-á mexendo-se pela primeira vez
no teu ventre, e será voz de inocente, por isto, voz de Deus.
Agora o campo cala-se no escuro. Ana também devolve Alfeu à cabana
contígua e o põe sozinho sobre a enxerga de feno próximo aos irmãozinhos
que já dormem. E depois deita-se ao lado de Joaquim, e também a sua
lamparina se apaga. Uma das últimas estrelinhas da terra. Ficam mais
bonitas as estrelas do firmamento a velar sobre todos os que dormem.

3.5
Jesus diz:
– Os justos são sempre sábios porque, sendo amigos de Deus, vivem
em sua companhia e são instruídos por Ele, que é Infinita Sabedoria.
Os meus avós eram justos e por isto tinham a sabedoria. Podiam dizer
com verdade quanto diz o Livro[5], cantando os louvores da Sabedoria, no
livro: “Eu a amei e a procurei desde a juventude e procurei torná-la minha
esposa”.
Ana de Arão era a mulher forte de quem fala o nosso Avô[6]. E Joaquim
da estirpe do rei Davi, não tinha procurado tanto a formosura ou riqueza,
quanto a virtude. Ana possuía uma grande virtude. Todas as virtudes
reunidas num maço perfumado de flores, para tornar-se uma única
lindíssima coisa, a Virtude. Uma virtude real, digna de estar perante o trono
de Deus.
Joaquim tinha portanto desposado duas vezes a sabedoria “amando-a
mais que qualquer outra mulher”: a sabedoria de Deus encerrada no coração
da mulher justa. Ana de Arão não procurara outra coisa senão unir a sua
vida à de um homem reto, certa de que na retidão está a alegria das famílias.
Sendo a insígnia da “mulher forte” não lhe faltava nada a não ser a coroa
3.6

dos filhos, glória da mulher casada, justificação do casamento, do qual fala


Salomão. À sua felicidade não lhe faltavam senão os filhos, flores da árvore
que se une à árvore vizinha obtendo assim a abundância de novos frutos, na
qual duas bondades se fundem em uma, pois, também do lado do esposo,
nunca lhe viera nenhuma desilusão.
3.7
Ela, agora a caminho da velhice, há decênios mulher de Joaquim, era
sempre para ele “a esposa da sua juventude, a sua alegria, a cerva tão
querida, a graciosa gazela”, cujas carícias tinham sempre o fresco encanto
da primeira noite de núpcias e fascinavam docemente o seu amor,
mantendo-o fresco como uma flor que o orvalho umedece e ardente como
fogo constantemente alimentado. Por isto, em suas aflições por não terem
filhos, um dizia ao outro “palavras de consolo em pensamento e em
cuidados”.
3.8
Quando chegou a hora, a Sabedoria eterna, depois de tê-los instruído
na vida, os iluminou com os sonhos da noite, alvorada do poema de glória
que devia provir deles, Maria Santíssima, a minha mãe. Se na sua
humildade não pensaram nisto, seus corações porém, tremeram de
esperança, ao primeiro sinal evidente da promessa de Deus. Nas palavras de
Joaquim já havia certeza: “Espera, espera… convenceremos Deus com
nosso amor fiel”. Sonhavam com um filho: tiveram a mãe de Deus.
3.9
As palavras do livro da Sabedoria parecem escritas para eles: “Por ela
alcançarei glória perante o povo… por ela alcançarei imortalidade e
deixarei memória eterna àqueles que depois de mim virão”. Mas, para
conseguir tudo isto, tiveram de fazer-se discípulos de uma virtude veraz e
duradoura, imune a qualquer acontecimento. Virtude de fé. Virtude de
caridade. Virtude de esperança. Virtude de castidade. A castidade dos
esposos! Eles a possuíram; porque não é preciso ser virgem para ser casto.
E os leitos conjugais castos têm a proteção dos anjos recebendo filhos bons,
que fazem da virtude dos pais a norma de suas vidas.
3.10
Mas agora onde estão estes filhos? Hoje não se quer mais filhos e
não se quer tampouco a castidade. Por isso eu digo que o amor e o leito
conjugal estão profanados.
[4] Outubro: por vezes — assim anota Maria Valtorta na cópia dactilografada — os nomes são ditos em italiano, (por
consenguinte, traduzidos em português), para melhor compreensão do leitor. A correspondência entre os meses do calendário
hebraico, regulado pelo ano lunar, que iniciava na Primavera (como referido em 68.4), e os meses do nosso calendário, regulado
pelo ano solar, é aproximativa: 1. nisam, ou abid como em 413.6 (Março-Abril); 2. ziv ou zio como em vulgata ou em 461.7
(AbrilMaio); 3. sivan (Maio-Junho); 4. tamnuz ou tanuz como em 442.3 ou tamuz como em 461.16 (Junho-Julho); 5. ab (Julho-
Agosto); 6. elul (Agosto-Setembro); 7. tisri ou etanim (Setembro-Outubro); 8. marchesvan ou bul (Outubro-Novembro); 9. casleu
(Novembro-Dezembro); 10. tebet (Dezembro-Janeiro); 11. scebat (Janeiro-Fevereiro); 12. adar (Fevereiro-Março). O mês de
marchesvan ou bul não é jamais mencionado na obra, que talvez reserva ao oitavo mês o nome de etanim separando-o de tisri. Os
meses tinham início com o novilúnio, chamado neoménia. Para recuperar o atraso do ciclo lunar sobre o ano solar, de vez em
quando se duplicava o mês de adar e se obtinha um ano de treze meses (chamado anno embolismico em 114.8).
[5] o livro, isto é em: Sabedoria 8,2.
[6] o nosso Avô, isto é Salomão, em: Provérbios 31,10-31. Seguem citações de: Provérbios 5,18-19; Sabedoria 8,10.13.
4. Ana, com um cântico anuncia que será mãe.
No seu ventre está a alma imaculada de Maria.
24 de agosto de 1944.
4.1
Revejo a casa de Joaquim e Ana. Nada mudou no seu interior, se se
tirarem os muitos ramos floridos, colocados em ânforas aqui e ali, fruto das
podas feitas nas árvores do pomar em flor: uma nuvem que varia do branco
neve ao vermelho de certos corais.
O trabalho de Ana também é diferente. Sobre um tear menor, ela tece
algumas bonitas telas de linho, e canta, cadenciando o movimento do pé
com o canto. Canta e sorri… A quem? A si mesma, a alguma coisa que ela
vê no seu interior.
Eis o canto, lento mas alegre, que escrevi à parte para segui-lo, porque
o repete muitas vezes deleitando-se nisso, sempre mais forte e segura, como
quem encontrou um ritmo no seu coração; primeiro o murmura em surdina,
depois, segura, canta mais veloz e alto (aqui o transcrevo porque, na sua
simplicidade é muito doce):

“Glória ao Senhor onipotente que dos filhos de Davi teve amor. Glória
ao Senhor!
A sua suprema graça do Céu me visitou.
A velha planta colocou novo ramo e eu sou bem-aventurada.
Pela festa das Luzes a semente lançou a esperança;
ora a fragrância de Nisam o vê brotar.
Como a amendoeira na minha carne floresce a primavera.
O seu fruto, nesta tarde, ela sente transportar.
Naquele ramo há uma rosa, há um pomo dos mais doces.
Há uma estrela reluzente, há uma criança inocente.
Há a alegria da casa, do esposo e da esposa.
Louvor a Deus, ao meu Senhor, que teve piedade de mim.
A sua luz me disse: “Uma estrela virá a ti”.
Glória, glória! Será teu este fruto da planta,
primeiro e derradeiro, santo e puro como dádiva do Senhor.
Teu será e por causa dele venha alegria e paz sobre a terra.
Vôa, oh lançadeira. O fio se aperta sobre o tecido da criança.
Ele nasce! A Deus glorioso vá o canto do meu coração”.

Joaquim entra quando ela está para repetir pela quarta vez o seu canto.
4.2

– Estás feliz, Ana? Pareces-me um pássaro que viu a primavera. Que


canto é este? Nunca ouvi. De onde ele vem?
– Do meu coração, Joaquim.
Ana levanta-se e agora se dirige até o esposo, toda risonha. Parece mais
jovem e mais bonita.
– Não te imaginava poetisa –diz o marido, olhando-a com clara
admiração. Não pareciam dois esposos idosos. Em seus olhares, existia uma
ternura de jovens esposos–. Vim do fundo do pomar ouvindo-te cantar.
Eram anos que não ouvia a tua voz de rolinha enamorada. Queres repetir-
me aquele canto?
– Eu o repetiria mesmo que tu não me pedisses. Os filhos de Israel
sempre confiaram ao canto os clamores mais verdadeiros de suas
esperanças, alegrias e dores. Eu confiei ao canto o cuidado de dizer-me e
dizer-te uma grande alegria. Sim, também dizer a mim mesma, porque é
uma coisa imensa que, por quanto esteja certa, parece-me ainda não ser
verdadeira…
E recomeça o canto, mas chegando ao ponto: “sobre aquele ramo há
uma rosa, há uma maçã das mais doces, há uma estrela…” a sua voz bem
entoada de contralto fez-se primeiro trêmula, depois se rompe e com um
soluço de alegria olha Joaquim e, levantando os braços grita:
– Sou mãe meu deleite –e se refugia no seu coração, entre os braços
que ele estendeu para encerrarem em torno de sua feliz esposa. O mais
casto e feliz abraço que eu jamais vi, desde que estou no mundo. Casto e
ardente, na sua castidade.
E a doce repreensão entre os cabelos grisalhos de Ana:
– E não me disseste antes?
– Porque queria estar certa. Velha como sou… Saber-me mãe… Não
podia acreditar ser verdade… não queria dar-te uma desilusão mais amarga
ainda. Desde fins de dezembro sinto fazerem-se novas as minhas profundas
entranhas e brotar, como posso dizer, um novo ramo. Mas agora sobre
aquele ramo está seguro o fruto. Vês? Aquele tecido já é para aquele que
virá.
– Não é o linho que comprastes em outubro em Jerusalém?
– Sim. Eu o teci depois enquanto esperava. 4.3Esperava porque no último
dia, enquanto orava no Templo, o maior tempo que pudesse uma mulher
ficar na Casa de Deus, até a noite… Tu te recordas que eu dizia: “Ainda,
ainda um pouco.” Não podia afastar-me dali sem receber a graça! Pois bem!
Na sombra que já descia do interior do lugar sagrado, que eu olhava com
atração de alma para arrancar uma anuência do Deus presente, vi partir uma
luz, uma centelha de luz maravilhosa. Era alva como a lua, contudo tinha
em si as luzes de todas as pérolas e pedras preciosas que existem sobre a
terra. Parecia que uma das estrelas preciosas do Véu, daquelas estrelas
postas sob os pés dos querubins, se desprendesse uma e se tornasse
esplêndida, de uma luz sobrenatural… Parecia partir um fogo para além do
Véu sagrado, proveniente da própria Glória, vindo a mim veloz, e ao cortar
o ar cantasse com voz celeste dizendo: “O que pedistes venha a ti.” É por
isso que eu canto: “Uma estrela virá a ti.” Que filho será esse nosso, que se
manifesta como luz de estrela no Templo e que diz: “Eu sou” na festa das
Luzes? Que filho fez com que tu tenhas visto em mim uma nova Ana de
Elcana? 4.4Como chamaremos a nossa criança, que doce como um canto de
águas ouço falar-me no ventre com o seu pequeno coração que bate como o
de uma rolinha apanhada na cavidade das mãos?
– Se for menino o chamaremos Samuel. Se for menina Estrela. A
palavra que fortaleceu o teu canto para dar-me a alegria de saber-me pai. A
forma que escolheu para manifestar-se entre a sacra sombra do Templo.
– Estrela. A nossa estrela, porque, não sei, penso que seja mesmo uma
menina. Parece-me que carícias tão doces não possam vir senão de uma
dulcíssima filha. Eu não a carrego, não tenho nenhum sofrimento. É ela que
me carrega sobre uma vereda azul e florida, como se eu estivesse amparada
pelos santos anjos e a terra já estivesse longe… Sempre ouvi as mulheres
dizerem que conceber e gerar é sinônimo de dor. Mas eu não tenho dor.
Sinto-me forte, jovem, fresca, mais do que quando te dei a minha
virgindade na juventude distante. Filha de Deus, visto que é mais de Deus
do que nossa aquela que nasce de um tronco árido, não dá dores à sua mãe.
Ela traz somente paz e bênção: os frutos de Deus, seu verdadeiro Pai.
– Então a chamaremos Maria. Estrela do nosso mar, pérola, felicidade.
O nome[7] da primeira grande mulher de Israel. Mas esta não pecará nunca
contra o Senhor, e só a Ele dará o seu canto porque a Ele é oferecida, como
hóstia, antes de nascer.
– A Ele é oferecida, sim. Homem ou mulher que seja, depois de nos
alegrarmos por três anos com a nossa criança, nós a daremos ao Senhor.
Hóstia também nós com ela, pela glória de Deus.
Não vejo nem ouço mais nada.

4.5
Jesus diz:
– A Sabedoria, depois de tê-los iluminado com os sonhos da noite,
desceu àquela que é “vapor[8] da virtude de Deus, certa emanação da glória
do Onipotente”, e tornou-se Palavra para a estéril. Aquele que agora via
próximo o Seu tempo de redimir, Eu, o Cristo, neto de Ana, quase
cinqüenta anos depois, mediante a Palavra, farei milagres sobre as estéreis e
as doentes, sobre as endemoninhadas, sobre as desoladas, sobre todas as
misérias da terra.
No entanto, pela alegria de ter uma mãe, eis que murmuro
misteriosamente a Palavra na sombra do Templo que continha as esperanças
de Israel. Templo agora no limiar da sua vida, porque o novo e verdadeiro
Templo não contém mais as esperanças de um povo, mas a certeza de um
Paraíso para o povo de toda a terra, por todos os séculos até o fim do
mundo; Paraíso que está para vir sobre a terra. E esta Palavra opera o
milagre de tornar fecundo o que era infecundo. Dar-me uma mãe, que não
teve apenas ótima proveniência, como era seu destino, nascida de dois
santos; não teve somente um aumento contínuo da bondade pelo seu bem
querer, não teve somente um corpo imaculado, teve também o espírito
imaculado, sendo única entre as criaturas.
4.6
Tu vistes[9] a geração contínua das almas de Deus. Agora imagines
qual deva ser a beleza desta alma que o Pai almejou antes que o tempo
existisse, desta alma que constituía as delícias da Trindade, que ardia por
enfeitá-la com as suas dádivas para lhe fazer um dom a Si mesma. Ó toda
santa, que Deus criou para Si e depois para refúgio dos homens! Portadora
do Salvador, tu fostes a primeira salvação. Paraíso Vivente, com teu sorriso,
começastes a santificar a terra.
A alma criada para ser a alma da mãe de Deus! Quando, de uma mais
viva palpitação do Trino Amor, brotou esta centelha vital, jubilaram os
anjos, porque o Paraíso nunca viu luz mais viva. Como pétala de uma
empírea rosa, uma pétala imaterial e preciosa que era jóia e chama, que era
o hálito de Deus que descia para animar uma carne diferentemente das
outras, que descia com fogo tão potente que a Culpa não pode contaminá-la,
atravessando os espaços e encerrando-se num seio santo.
Ainda sem saber, a terra já tinha a sua flor. A verdadeira, única flor que
floresce eternamente: lírio e rosa, violeta e jasmim, girassol e ciclame
fundidos juntos, e com essas todas as flores da terra numa única flor, Maria,
na qual se reúne toda virtude e graça.
Em abril, a terra da Palestina parecia um enorme jardim: as fragrâncias
e as cores davam delícia ao coração dos homens. Mas a rosa mais bonita
ainda era desconhecida. Ela já era florescente a Deus no segredo do ventre
materno, já que minha mãe amou desde que foi concebida, mas só quando a
videira dá o seu sangue para fazer vinho, e o perfume dos mostos,
açucarado e forte, enche as eiras e as narinas, ela iria sorrir primeiro a Deus
e depois ao mundo, dizendo com o seu sorriso super inocente: “Eis que a
Videira, que vos dará o Cacho espremido na prensa, como Remédio eterno
contra o vosso mal, está entre vós.”
Eu disse: “Maria amou desde que foi concebida.” O que dá ao espírito
luz e conhecimento? A Graça. O que leva a Graça? O pecado de origem e o
pecado mortal. Maria, aquela sem mácula, nunca foi despojada da
lembrança de Deus, da sua proximidade, do seu amor, da sua luz, da sua
sabedoria. Ela pôde por isto, compreender e amar até quando era apenas
carne em torno de uma alma imaculada que sempre amou.
4.7
Depois, faço-te contemplar mentalmente a profundidade da
virgindade de Maria. Terás uma vertigem celeste, como quando te fiz
entender a nossa eternidade. Por enquanto, considera apenas como o trazer
no ventre uma criatura isenta da mácula da ausência de Deus, dá à mãe uma
inteligência superior e a transforma em um profeta, mesmo tendo esta mãe
concebido natural e humanamente. O profeta da sua filha, que a chama:
“Filha de Deus.” Imagina o que seria se pais inocentes concebessem filhos
inocentes, assim como Deus gostaria.
Ó homens, que vos dizeis semelhantes ao “super-homem”, mas com os
vossos vícios vos assemelhais unicamente ao “super-demônio”, neste
exemplo teríeis encontrado o meio de chegardes ao “super-homem.” Saber
permanecer sem a contaminação de satanás para deixar a Deus a
administração da vida, do conhecimento, do bem, não desejando mais do
que isto, que é pouco menos que o infinito. Deus vos teria dado poder de
gerar em uma contínua evolução até a perfeição, filhos que fossem homens
no corpo e filhos da Inteligência no espírito, ou seja triunfadores, fortes,
gigantes contra satanás, que seria derrubado muitos milhares de séculos
antes da hora em que o será, junto a todo o seu mal.
[7] nome da irmã de Aarão e de Moisés, dela se fala em: Êxodo 15,20-21; Números 12,1-15; 20,1; 26,59. Outras referências a
Maria de Aarão (ou de Moisés) encontram-se em 131.2, 525.7, 609.3.
[8] vapor..., como dito em: Sabedoria 7,25.
[9] Tu vistes, a 25 de Maio de 1944, em “Os cadernos de 1944”.
5. Nascimento de Maria. A sua virgindade
no eterno pensamento do Pai.
26 de agosto de 1944.
5.1
Vejo Ana sair no pomar. Apóia-se ao braço provavelmente de uma
parente, porque se assemelha a ela. Está muito volumosa e parece afadigada
talvez pelo afã, parecido com o que eu sinto agora.
Embora o pomar esteja na sombra, o ar ali está quente, pesado. Um ar
que se poderia cortar como uma massa mole e quente, de tão denso, sob um
impiedoso céu de um azul embaçado pela poeira suspensa nos espaços. Faz
tempo que deve ter havido estiagem, porque a terra, onde não é irrigada,
está literalmente reduzida a uma poeira finíssima, quase branca. De um
branco levemente tendente a um rosa-escuro, mais para o marrom ao pé das
plantas ou ao longo dos breves canteiros, onde banhadas crescem fileiras de
hortaliças, em torno aos roseirais, aos jasmineiros, outras flores, que estão
ao lado de uma parreira bonita cortando pela metade o jardim, até ao início
dos campos, despojados de gramináceas. Também a relva do prado,
assinalando o fim da propriedade, está chamuscada e rala. Só às margens
dela, onde há uma cerca de espinheiro-alvar selvagem, marcado pelos rubis
dos pequenos frutos, a grama é mais verde e espessa. Alí estão as
ovelhinhas com um pequeno pastor, à procura de pasto e de sombra.
Joaquim está ao redor das fileiras e das oliveiras. Com ele há dois
homens que o ajudam. Mesmo ancião, Joaquim é agil e trabalha com gosto.
Estão abrindo pequenos cercados nos limites de um campo, para dar água às
plantas sequiosas. A água abre um caminho borbulhando entre a relva e a
terra abrasada, e se estende em anéis, que por um momento parecem de um
cristal amarelado e depois são só anéis escuros de terra úmida, em torno aos
sarmentos e as oliveiras sobrecarregadas.
Ana lentamente vai na direção de Joaquim que quando a vê se apressa a
encontrá-la andando pela parreira sombreada, sob a qual abelhas de ouro
zumbem ávidas do açúcar dos grãos de uva branca.
– Chegastes até aqui?
– A casa está quente como um forno.
– E tu sofres.
– O único sofrimento é desta minha última hora de grávida. O
sofrimento de todos, homens e animais. Não te acalores demais, Joaquim.
– A água, que esperamos faz tempo e que de três dias para cá parecia
bem próxima, ainda não veio, e o campo queima. É bom para nós que temos
a nascente próxima e é muito rica de águas. Abri os canais. Um pouco de
refrigério para as plantas, que têm as folhas murchas e cobertas de poeira.
Mas é suficiente só para mantê-las vivas. Se chovesse!…
Joaquim, com a ânsia de todos os agricultores, perscruta o céu,
enquanto Ana, cansada, se abana com um leque que parece feito com uma
folha seca de palma, entrelaçada com fios multicolores que a tornam rígida.
A parente diz:
– Lá, além do grande Hermon, surgem nuvens velozes. Vento do norte.
Refrescará e talvez trará água.
– São três dias que se levanta e depois cai com o surgir da lua. Será
ainda assim.
Joaquim está desanimado.
– Voltemos para casa. Aqui também não se respira, e depois penso que
seja bom voltarmos… –diz Ana, que parece ainda mais olivácea por causa
de uma palidez que lhe veio sobre o rosto.
5.2
– Sofres?
– Não. Mas sinto aquela grande paz que senti no Templo quando me foi
dada a graça e que senti ainda quando soube que seria mãe. É como um
êxtase. Um doce sono do corpo, enquanto o espírito jubila e se aplaca em
uma paz sem comparação humana. Eu te amei, Joaquim, e quando entrei na
tua casa e disse a mim mesma: “Sou esposa de um justo”, tive paz, e assim
todas as vezes que o teu amor providencial cuidou da tua Ana. Mas esta paz
é diferente. Veja, eu creio que é uma paz como aquela que devia invadir,
como óleo que se expande e suaviza o espírito de Jacó, nosso pai, depois do
seu sonho[10] de anjos; e, melhor ainda, semelhante à paz jubilosa dos
Tobias depois que Rafael se manifestou a eles. Se me abandono a apreciá-
la, ela sempre cresce mais. É como se eu subisse pelos espaços azuis do
céu… e, não sei por que, desde que eu tenho em mim esta alegria pacífica,
eu tenho um cântico no coração, aquele do velho Tobias. Parece-me que
tenha sido escrito para esta hora… para esta alegria… para a terra de Israel
que a recebe… para a Jerusalém pecadora e agora perdoada… mas, não
rides dos delírios de uma mãe, quando digo: “Agradece o Senhor pelos teus
bens e glorifica o Deus dos séculos, a fim de que reedifiques em ti o seu
Tabernáculo”, eu penso que aquele que reedificará em Jerusalém o
Tabernáculo do Deus verdadeiro será este que está para nascer; penso ainda
que não mais do que a Cidade santa, mas pela minha criança seja
profetizado o destino quando o cântico diz: “Tu brilharás com uma luz
esplêndida, todos os povos da terra se prostrarão a ti, as nações virão a ti
trazendo presentes, em ti adorarão o Senhor e julgarão santa a tua terra,
porque dentro de ti invocarão o Grande Nome.” “Tu serás feliz nos teus
filhos, porque todos serão abençoados e se reunirão ao lado do Senhor.
Bem-aventurados aqueles que te amam e regozijam tua paz!…”; e a
primeira a regozijar sou eu, a sua mãe bem-aventurada…
Ana empalidece e se inflama como algo trazido pela luz lunar a um
grande fogo e vice-versa, ao dizer estas palavras. Doces lágrimas descem
sobre suas faces e ela nem as percebe, sorrindo de alegria. E assim vai em
direção à casa, entre o esposo e a parente, que a escutam e calam-se
comovidos.
5.3
Apressam-se porque as nuvens, impelidas por um vento forte galopam
e crescem pelo céu, e a planície torna-se escura e estremece por um aviso de
temporal. Quando alcançam à soleira da casa, um primeiro relâmpago
lívido sulca o céu e o barulho do primeiro trovão parece o rufar de um
enorme tambor que se mistura ao harpejo dos primeiros pingos sobre as
folhas secas.
Entram todos e Ana se retira, enquanto Joaquim, alcançado pelos
criados, fala, da porta, desta longa espera pela água, que é uma bênção para
a terra sedenta. Mas a alegria se transforma em temor, porque vem um
temporal violentíssimo com raios e nuvens carregadas de granizo.
– Se a nuvem rompe, a uva e as oliveiras serão esmagadas como pela
moenda. Pobres de nós!
Joaquim tem uma outra ansiedade: pela esposa para a qual chegou a
hora de dar à luz o seu filho. A parente o tranqüiliza que Ana não sofre
absolutamente nada. Mas ele está ansioso; cada vez que a parente ou outras
mulheres, entre as quais a mãe de Alfeu, saem do quarto de Ana para depois
voltarem com água quente e bacias e linhos enxutos junto ao fogo da lareira
central numa cozinha ampla, Joaquim pergunta algo, não se acalmando com
as respostas. Também a ausência de gritos de Ana o preocupa. Diz:
– Eu sou homem e nunca vi um parto. Mas lembro-me de ter ouvido
dizer que a ausência de dores é fatal…
Vem a noite, antecipada pela fúria tempestuosa que é violentíssima.
Agua torrencial, vento, raios, ali tem de tudo, menos o granizo, que foi cair
em outra parte.
Um dos criados percebe a violência e diz:
– Parece que satanás saiu do inferno com seus demônios. Olha que
nuvens negras! Sente que cheiro de enxôfre no ar, assobios, sibilos, vozes
de lamento e maldição. Se é ele, está furioso esta noite!
O outro criado ri e diz:
– Fugiu-lhe uma grande presa, ou Miguel o espancou com uma nova
faísca de Deus, e ele ficou com o chifre e o rabo cortado e queimado.
Passa correndo uma mulher e grita:
– Joaquim! Está para nascer! E foi tudo rápido e feliz!
E desaparece com uma pequena ânfora entre as mãos.
5.4
O temporal pára de improvisio depois de um último raio tão violento
que arremessa contra as paredes os três homens; e na frente da casa, no
chão do horto-jardim, fica como lembrança um buraco preto e fumegante.
Ao mesmo tempo um gemido vem de lá da porta de Ana, gemido que
parece o lamento de uma rolinha que pela primeira vez não pia, mas
arrulha. Um enorme arco-íris estende a sua listra em semicírculo sobre toda
a amplidão do céu. Surge, ou pelo menos parece surgir, do cume do Hermon
que beijado por uma lama de sol, parece de alabastro de um branco-rosado
delicadíssimo. Este arco-íris levanta-se até o mais claro céu de setembro, e,
atravessando por espaços limpos de toda impureza, sobrevoa as colinas da
Galiléia e a planície que aparece, entre duas árvores de figo, ao sul e depois
ainda um outro monte, indo pousar a sua ponta final no extremo horizonte,
lá onde uma áspera cadeia de montanhas fecha qualquer outro panorama.
– Nunca vi isso!
– Olhai, olhai!
– Parece que toda a terra de Israel esteja ligada em um círculo, mas
olhai, ali já há uma estrela, enquanto que o sol ainda não desapareceu. Que
estrela! Brilha como um enorme diamante!…
– A lua é toda plena, enquanto que ainda faltam três dias para a lua
cheia. Mas olhai como resplandece!
5.5
As mulheres chegam repentinamente, alegres com um embrulhozinho
rosado entre tecidos alvos.
É Maria, a mãe! Uma Maria pequenina que poderia dormir entre o
círculo de braços de um menino, uma Maria comprida tanto quanto um
braço, uma cabecinha de marfim tingido de um rosa tênue, com a boquinha
de carmim, que já não chora mais, mas faz o instintivo ato de sugar, tão
pequena que não se sabe como fará para pegar um mamilo, um narizinho
diminuto entre duas pequenas faces arredondadas e ao tocá-lo abrem-se os
olhinhos, dois pedacinhos do céu, dois pontinhos inocentes e azuis que
olham, mas não vêem, entre cílios delicados, de um loiro tão intenso que é
quase róseo. Também os cabelinhos sobre a cabecinha arredondada são a
cor loiro-rosado de algumas qualidades de mel quase branco.
No lugar de orelhas, duas conchinhas rosadas e transparentes, perfeitas.
E por mãozinhas… o que são aquelas duas coisinhas que agitam-se no ar e
depois vão à boca? Fechadas como agora, dois botões de rosa musgo que
separam o verde das sépalas e lhes estende a seda de um tênue rosa; abertas
como agora, duas pequenas jóias de marfim de alabastro ligeiramente
rosado, com cinco romãs pálidas no lugar das unhazinhas. Como farão
aquelas mãozinhas para enxugar tanto choro?
E os pezinhos? Onde estão? Por enquanto são só um espernear
escondido entre os linhos. Mas eis que a parente senta-se e a descobre…
Oh! Os pezinhos! Compridos uns quatro centímetros, têm por planta, uma
concha coralina, como dorso uma concha de um branco neve com
veiazinhas azuis, têm por dedinhos as obras-primas de escultura liliputiana,
são também coroados por pequenos fragmentos de pálida romã. Mas como
se encontrarão sandalinhas tão pequenas para poder estar naqueles
pezinhos, quando tais pezinhos de boneca derem os primeiros passos? E
como estes mesmos pezinhos farão tão áspero caminho e sustentarão tanta
dor, debaixo de uma cruz?
Mas agora isto não se sabe, e se ri e sorri do seu debater-se e espernear,
das perninhas bonitas torneadas, das coxas pequenas que fazem covinhas e
dobrinhas de tanto que são gorduchas, da barriguinha, uma taça emborcada
do pequeno tórax perfeito sob cuja seda cândida se vê o movimento da
respiração que certamente se ouve. O pai feliz escuta seu peitinho agora, e o
beija ao ouvir bater um coraçãozinho… Um coraçãozinho que é o mais
bonito que a terra teve nos séculos dos séculos, o único coração humano
imaculado.
E as costas? Eis que a viram, e se vê a forma dos rins e depois os
ombros gorduchos e a nuca rosada tão forte que a cabecinha se ergue sobre
o arco das pequenas vértebras, parecendo a cabecinha de um pássaro que
perscruta ao redor o mundo novo e tem um gritinho de protesto por ser
assim mostrada, ela, a pura e casta, aos olhos de tantos, ela que homem
nenhum a verá nua, a toda virgem, a santa e imaculada. Cobri, cobri este
botão de flor-de-lis que nunca se abrirá sobre a terra e que dará, ainda mais
bonita que ela, a sua flor, sempre permanecendo botão. Só nos Céus o Lírio
do Trino Senhor abrirá todas as suas pétalas. Porque no céu não há poeira
de culpa que possa involuntariamente profanar aquele candor. Porque lá em
cima deve ser acolhido, à vista de todo o Empíreo, o Deus Trinitário que
agora ocultado em um coração sem mácula, entre poucos anos estará nela:
Pai, Filho, Esposo.
Eis ali de novo entre os linhos e entre os braços do pai terreno, com
quem ela se assemelha. Não agora. Agora é um esboço de homem. Eu digo
que se lhe assemelhará quando mulher. Da mãe não tem nada. Do pai, a cor
da pele, dos olhos e certamente dos cabelos que, se agora são brancos, na
juventude eram certamente loiros como o dizem as sobrancelhas. Do pai, as
feições, feitas mais perfeitas e gentis por ser ela mulher, a mulher. Do pai o
sorriso, o olhar, o modo de mexer-se e a estatura. Pensando em Jesus, como
o vejo, acho que Ana deu a sua estatura ao Neto e a cor marfim mais
carregada da pele. Enquanto que Maria não tem aquela imponência de Ana,
um palmo mais alta e flexível, mas tem a gentileza do pai.
5.6
As mulheres também falam do temporal e do prodígio da lua, da
estrela, do imenso arco-íris, enquanto junto ao Joaquim entram onde está a
mãe feliz e lhe entregam a criancinha.
Ana sorri a um pensamento:
– É a Estrela –diz–. O seu sinal está no céu. Maria, arco de paz! Maria,
minha estrela! Maria, lua pura! Maria, nossa pérola!
– Chama-se Maria?
– Sim. Maria, estrela, pérola, luz e paz…
– Mas também quer dizer amargura… Não temes trazer-lhe desventura?
– Deus está com ela. Já era Dele antes de ser. Ele a conduzirá pelos
seus caminhos e toda amargura se transformará em um paradisíaco mel.
Agora sejas da tua mãe… ainda por um pouco, antes de seres toda de
Deus…
E a visão termina sobre o primeiro sono de Ana mãe e de Maria
criança.

27 de agosto de 1944.
5.7
Jesus diz:
– Surge e apressa-te pequena amiga. Tenho um desejo ardente de te
levar Comigo para o azul paradisíaco da contemplação da Virgindade de
Maria. Sairás com a alma jovem como se tu também fosses criada há pouco
pelo Pai, uma pequena Eva que ainda não conhece a carne. Sairás com o
espírito repleto de luz, porque tu mergulharás, na contemplação da obra-
prima de Deus. Sairás com todo o teu ser saturado de amor, porque
compreenderás como Deus sabe amar. Falar da concepção de Maria, a sem
mácula, quer dizer mergulhar-se no azul, na luz, no amor.
5.8
Vem e lê[11] as suas glórias no Livro do Avo: “Deus me possuiu no
início de suas obras, desde o princípio, antes da criação. “Ab aeterno” fui
predeterminada no princípio. Antes que fosse feita a terra, ainda não
existiam os abismos e eu já era concebida. Nem as nascentes das águas
transbordavam, nem os montes tinham-se erguido em suas grandes
dimensões, nem as colinas eram cadeias montanhosas ao sol, e eu já tinha
sido gerada. Deus ainda não tinha feito a terra, os rios, e as bases do mundo,
e eu era. Quando preparava os céus eu estava presente, quando com lei
imutável fechou sob a orla celeste o abismo, quando tornou estável no alto a
abóbada celeste e suspendeu as fontes das águas, quando fixava ao mar os
seus confins e dava leis às águas de não passar os seus limites, quando
assentava os fundamentos da terra, eu estava com Ele a dispor todas as
coisas. Sempre na alegria brincava diante Dele continuamente, brincava no
universo…”. Aplicaram estas palavras à Sabedoria, mas na realidade elas
falam dela: a bela mãe, a santa mãe, a virgem mãe da Sabedoria, que sou Eu
que te falo.
5.9
Eu quis que tu escrevesses o primeiro verso deste hino no início do
livro que fala dela, para que fosse confessada e percebida a consolação e a
alegria de Deus; a razão do constante, perfeito, íntimo regozijo deste Deus
uno e trino, que vos guia e ama, que do homem teve tantas razões de
tristeza; a razão pela qual Deus perpetuou a raça, mesmo quando, à primeira
prova[12], merecia ser destruída; a ra zão do perdão que vocês tiveram.
Ter Maria que o amasse. Oh! bem merecia criar o homem, e deixá-lo
viver, e decretar perdoá-lo, para ter a virgem bela, a virgem santa, a virgem
imaculada, a virgem enamorada, a filha dileta, a mãe puríssima, a esposa
amorosa! Muito e mais ainda vos deu e vos daria Deus para poder possuir a
criatura das suas delícias, o sol do seu sol, a flor do seu jardim. E muito
continua a dar-vos por ela, a pedido dela, pela alegria dela, porque a sua
alegria se derrama na alegria de Deus e a aumenta de esplendor que enche
de faíscas a luz, a grande luz do Paraíso; cada centelha é uma graça para o
universo, para a raça do homem, para os próprios bem-aventurados, que
respondem-lhes com um grito radiante de aleluia a cada geração de milagre
divino, criado pelo desejo do Deus Trino de ver o cintilante riso de alegria
da Virgem.
5.10
Deus quer um rei no universo que Ele havia criado do nada. Um rei
que, pela natureza da matéria, fosse o primeiro entre todas as criaturas
criadas e dotadas de matéria. Um rei que, pela natureza do espírito, fosse
quase divino, fundido na Graça como no seu inocente primeiro dia. Mas a
Mente suprema, onde são notórios todos os acontecimentos mais distantes
em séculos, cuja vista vê incessantemente tudo quanto era, é, e será,
enquanto contempla o passado e observa o presente, eis que aprofunda o
olhar no último futuro sem ignorar a morte do último homem, sem confusão
nem descontinuidade, esta Mente nunca ignorou o rei criado por Ele, para
estar ao seu lado, semidivino, no Céu, herdeiro do Pai. Ao entrar adulto no
seu reino, depois de ter vivido na casa da mãe, a terra com a qual foi feito,
durante a sua infância de Eterno, na sua jornada sobre a terra, este rei teria
cometido contra si mesmo o delito de matar-se na Graça e o latrocínio de
furtar-se do Céu.
Por que então o criara? Certamente muitos se perguntam isto. Teríeis
preferido não existir? Este dia não merecia ser vivido, por si mesmo, tão
pobre, nu e amargo pela vossa maldade, mas para conhecer e admirar a
Beleza infinita que a mão de Deus semeou no universo?
Para quem teria feito estes astros e planetas que deslizam como setas e
flechas, riscando o arco do firmamento? Ou os aparentemente lentos,
majestosos na sua corrida como bólidos, presenteando-vos com luzes e
estações como se fossem eternos, imutáveis, ainda que em contínua
mudança, oferecendo-vos uma página nova para ser lida sobre o azul, toda
noite, todo mês, todo ano, quase como dizendo-vos: “Esquecei-vos do
cárcere, deixai as vossas gravuras repletas de coisas obscuras, podres, sujas
venenosas, enganosas, blasfemadoras, corruptoras e elevai, ao menos com o
olhar na ilimitada liberdade dos firmamentos. Tende uma alma azul olhando
tão grande serenidade, criai-vos uma reserva de luz, para levar à vossa
prisão escura. Lede a palavra que nós escrevemos cantando o nosso coro
sideral mais harmonioso do que acompanhado por um órgão de catedral. A
palavra que nós escrevemos brilhando, a palavra que nós escrevemos
amando, visto que sempre temos presente Aquele que nos quis dar a alegria
de existir, e o amamos por nos ter dado este ser, este esplendor, este
deslizar, este sermos livres e belos em meio ao azul suave, além do qual
vemos um azul ainda mais sublime, o Paraíso. E do qual cumprimos a
segunda parte do preceito de amor amando a vós, o nosso próximo
universal, amando-vos doando guia, luz, calor e beleza. Lede a palavra que
nós dizemos, e é aquela sobre a qual regulamos o nosso canto, o nosso
resplandecer, o nosso riso: Deus?”
Para quem teria feito aquele líquido azul, que é um espelho para o céu,
um caminho para a terra, sorriso das águas, voz das ondas, palavra também
essa que como os sussurros de seda farfalhando, com risadinhas de crianças
serenas, com suspiros de velhos que lembram e choram, com bofetões
violentos e com chifradas, mugidos e estrondos, sempre fala e diz: “Deus?”
O mar é para vós, como o céu e os astros. E com o mar, os lagos, os rios, os
pântanos, os riachos e as nascentes puras, que servem a todos para vos
transportar, nutrir, dessedentar e purificar, e que vos servem, servindo o
Criador, sem saírem para fora dos seus limites, afogando-vos, como
mereceis.
Para quem teria feito todas as inumeráveis famílias dos animais, como
flores que voam cantando, os servos que correm, que trabalham, nutrem e
são recreação para vós, os reis?
Para quem teria feito todas as inumeráveis famílias das plantas, e das
flores que parecem borboletas, que parecem jóias e passarinhos imóveis,
dos frutos que parecem os cofres de pedras preciosas, como tapetes para
vossos pés, proteção para as vossas cabeças, recreação útil, alegria para a
vossa mente, membros, vista e olfato?
Para quem teria feito os minerais nas entranhas da terra, os sais
dissolvidos nas fontes de águas geladas ou ferventes, as fontes sulfurosas,
as iodadas, as alcalinas? Não teria sido para que alguém gozasse de tudo,
alguém que não era Deus, mas filho de Deus? O homem.
Para a alegria de Deus, para as necessidades de Deus, nada era preciso.
Deus se basta a Si mesmo. Não tem que se contemplar para alegrar-se,
nutrir-se, viver e repousar. Tudo o que foi criado não aumentou um átomo a
sua infinita alegria, sua beleza, seu poder. Mas tudo Ele fez pela sua
criatura, que Ele quis colocar como rei na Sua obra: o homem.
Para ver tão grandes obras de Deus e por reconhecimento para com o
seu poder, vale a pena viver. Como viventes deveis ser gratos. Deveríeis ter
sido gratos, mesmo se não tivésseis sido redimidos, hoje ou no fim dos
séculos, porque não obstante tenhais sido os Primeiros, singularmente, sois
até hoje prevaricadores, soberbos, luxuriosos, homicidas. Mas Deus ainda
vos concede sabor de gozar das belezas do universo e da bondade do
universo, e vos trata como se fosseis bons, filhos bons aos quais tudo é
ensinado e concedido, a fim de tornar-lhes mais doce e sadia a vida. Quanto
sabeis, vós o sabeis pela luz que Deus vos deu. Tudo quanto descobris, vós
o descobris porque Deus vô-lo indica no Bem. Porque os outros
conhecimentos e descobertas, que têm o sinal do mal, vêm do Mal supremo,
satanás.
5.11
A Mente suprema, que nada ignora, antes ainda que o homem
existisse, sabia que o homem, por si mesmo, teria sido um ladrão e um
homicida. E, já que a Bondade eterna não tem limites, antes que
acontecesse a Culpa, pensou no meio para anulá-la. E o meio seria: Eu. E o
instrumento para fazer do meio um instrumento operante seria: Maria.
Assim é que a virgem foi criada no Pensamento sublime de Deus.
5.12
Todas as coisas foram criadas para Mim, Filho dileto do Pai. Eu,
como Rei, deveria ter tido sob os meus pés de Rei divino tapetes e jóias
como nenhum palácio real jamais teve. Cantos, vozes, servos e ministros
tão numerosos ao redor de minha pessoa que nenhum soberano jamais teve.
Flores, pedras preciosas, todo o sublime, o grandioso, o gentil, o minucioso,
tudo o que é possível buscar no Pensamento de um Deus.
Mas Eu devia ser Carne, além de ser Espírito. Carne, para salvar a
carne. Carne para sublimar a carne, levando-a para o Céu, muitos séculos
antes da hora. Porque a carne, habitada pelo espírito, é a obra-prima de
Deus, e por ela, o Céu fora feito. Para ser Carne, eu tinha necessidade de
uma mãe. Para ser Deus, eu tinha necessidade de que meu Pai fosse Deus.
Eis que, então, Deus criou para Si uma esposa, e lhe disse: “Vem
comigo. A meu lado, vê tudo quanto Eu faço pelo nosso Filho. Olha e
jubila-te, virgem eterna, menina eterna, que o teu riso encha todo este
empíreo, e dê aos anjos a nota inicial, e ensina ao Paraíso uma harmonia
celeste. Eu olho para ti. E te vejo como serás, ó mulher imaculada que, por
enquanto, és apenas espírito, o espírito em que me deleito. Olho para ti, e
dou o azul do teu olhar ao mar e ao firmamento, a cor dos teus cabelos ao
trigo, a tua candura ao lírio, o tom róseo à rosa, semelhante à tua pele de
seda. Imito nas pérolas os teus dentes graciosos; olhando tua boca, faço os
doces morangos, ponho na voz rouxinóis às tuas notas, e na das rolinhas o
teu pranto. Ainda lendo os teus futuros pensamentos, ouvindo as
palpitações do teu coração, eu encontrei os modelos de arte para criar. Vem,
minha Alegria! Habita os mundos para divertimento teu, enquanto fores a
luz que se move em meu Pensamento, teus hão de ser os mundos pelo teu
sorriso, tuas as belas formações das estrelas e o colar dos astros todos.
Coloca a lua sob os teus pés gentis, cinge-te com o cinto de estrelas da Via
Láctea. As estrelas e os planetas são para ti. Vem e diverte-te, vendo as
flores que serão o divertimento do teu Menino, servindo de almofada para o
Filho do teu ventre. Vem, e vê como se criam as ovelhas e os cordeiros, as
águias e as pombas. Fica perto de mim, enquanto eu faço como uns vasos,
os mares e os rios, enquanto ergo as montanhas e as enfeito com a neve e as
florestas, enquanto semeio as searas, as árvores, as videiras, enquanto faço
para ti a oliveira, minha rainha de paz, para ti a videira, meu sarmento que
levará o Cacho eucarístico. Corre, voa, jubila-te, ó minha beleza, e que o
mundo todo, que vai sendo criado de hora em hora, aprenda contigo a me
amar, ó amorosa, e se torne mais bonito com o teu sorriso, ó mãe do meu
Filho, rainha do meu Paraíso, amor do teu Deus.” Vendo o Erro, e olhando
para a Sem Erro diz ainda: “Vem a Mim, tu que anulas a amargura da
desobediência, da ingratidão, da fornicação humana com satanás. Eu terei
contigo a desforra sobre satanás”.
5.13
Deus, Pai Criador, criara o homem e a mulher com uma lei de amor
tão perfeita, que não podeis, nem ao menos compreender. E vós vos
enganais ao pensar como teria aparecido a raça humana, se o homem não o
tivesse alcançado pelo ensinamento de satanás.
Olhai as plantas que produzem fruto e semente. Por acaso elas
conseguem ter semente e fruto por meio de uma fornicação ou de uma
fecundação em cada cem encontros conjugais? Não. Da flor masculina sai o
pólen, guiado por um complexo de leis meteóricas e magnéticas, vai ao
ovário da flor feminina. Esta se abre, o recebe e produz. Não se suja e o
rejeita depois, como vós fazeis, para poderdes gozar, no dia seguinte, da
mesma sensação. Depois de produzir não floresce, até a próxima estação e,
quando floresce, é para reproduzir.
Olhai os animais. Todos. Já vistes algum animal, macho ou fêmea, ir
um ao outro para algum abraço estéril, ou só para algum encontro lascivo?
Não. De perto ou de longe, voando, rastejando, pulando ou correndo, eles
vão, quando chega a hora, ao rito fecundativo, e não se subtraem a isso para
ficarem só no prazer, mas vão além, vão até às conseqüências sérias e
santas, que conduzem à geração da prole, o único escopo que, no homem,
semideus pela origem da Graça que Eu restituí inteira, deveria fazê-lo
aceitar a animalidade do ato necessário, uma vez que descestes um grau no
nível do animal.
Vós não fazeis como as plantas e os animais. Vós tivestes por mestre
satanás, pois o escolhestes e o desejais. As obras que praticais são dignas do
mestre que quisestes ter. Mas, se tivésseis sido fiéis a Deus, teríeis tido
santamente, sem dor, a alegria de filhos, sem vos esgotardes em cópulas
obscenas, indignas, que os próprios animais não conhecem, os animais que
não têm alma racional e espiritual.
Ao homem e à mulher, depravados por satanás, Deus quis opor o
Homem nascido de mulher tão purificada por Deus, a ponto de poder gerá-
Lo sem relação com homem. Flor que gera flor, sem necessidade de
semente, mas apenas com o beijo do Sol sobre o cálice inviolado do Lírio
que é Maria.
5.14
A desforra de Deus!
Solta os teus silvos de inveja, ó satanás, enquanto ela está nascendo.
Esta menina te venceu! Antes que tu fosses o Rebelde, o Tortuoso, o
Corruptor, já estavas vencido, e ela é a tua vencedora. Mil exércitos
alinhados nada podem contra o teu poder, e contra as tuas couraças caem as
armas das mãos dos homens, ó perene, e não há vento que possa dispersar o
mau cheiro do teu hálito. No entanto, este calcanharzinho de criança, tão
rosado, que parece o interior de uma camélia também rosada, tão liso e tão
macio que a seda é áspera comparado a ele, tão pequenino, que poderia
caber no cálice de uma tulipa e usá-la como sapatinho, eis que ele te pisa
sem medo, e te confina em teu antro. Eis que só o seu vagido já te põe em
fuga, a ti que não tens medo dos exércitos. O hálito dela purifica o mundo
do teu fedor. Estás derrotado. Só o nome dela, só o seu olhar, só a sua
pureza já são uma lança, um fulgor de raio, uma enorme pedra que te
transpassam, que te abatem, que te aprisionam no teu covil do inferno, ó
Maldito, que tiraste a Deus a alegria de ser Pai de todos os homens criados.
Foi inútil, pois, teres corrompido os que haviam sido criados inocentes,
levando-os a conhecer e a conceber sinuosidades da luxúria, privando Deus,
de ser o doador dos filhos, em suas diletas criaturas, dando-lhes regras que,
se respeitadas, teriam mantido sobre a terra um equilíbrio entre os sexos e
as raças, capaz de evitar guerras entre os povos e desventuras entre famílias.
Obedecendo, teriam conhecido o amor. Só obedecendo, teriam
conhecido e conservado o amor. Uma posse plena e tranqüila desta
emanação de Deus, que do sobrenatural desce ao inferior, para que também
a carne se alegre santamente, esta que está ligada ao espírito, criada por
Aquele que criou o espírito.
Agora, o vosso amor, ó homens, os vossos amores o que são? Ou
libidinagem vestida de amor, ou medo insanável de perder o amor do
cônjuge, seja pela libidinagem própria, ou alheia. Já não estais mais seguros
quanto à posse do coração do esposo ou da esposa, desde quando a
libidinagem entrou neste mundo. Tremeis, chorais e tornais-vos loucos de
ciúmes, até assassinos, às vezes, para vingar alguma traição, desesperados,
ou então abúlicos e até dementes.
Eis o que fizeste, satanás, aos filhos de Deus. Estes, que corrompeste,
teriam conhecido a alegria de ter filhos sem sentirem dor, a alegria de
nascer sem o medo de morrer. Mas agora estás vencido em uma mulher e
por uma mulher. De agora em diante, quem a amar, tornará a ser de Deus,
superando as tuas tentações, para poder imitar a sua pureza imaculada. De
agora em diante, não mais podendo conceber sem dor, as mães a terão para
o seu conforto. De agora em diante, as esposas a terão por guia e os
moribundos por mãe, sendo doce para eles morrer sobre aquele seio, que é
um escudo contra ti, oh Maldito, e proteção, diante do julgamento de Deus.
Maria, minha cara interlocutora, viste o nascimento do Filho da virgem
e o nascimento da virgem no Céu. Viste, pois, que para os sem culpa é
desconhecido o castigo de dar a vida e também o sofrimento de dar-se à
morte. Mas, se à inocentíssima mãe de Deus foi reservada a perfeição dos
dons celestes, a todos, que tivessem permanecido inocentes e filhos de
Deus, teria sido possível gerar sem dor e morrer sem afã, por justiça de
terem sabido unir-se e conceber sem luxúria.
A sublime desforra de Deus sobre a vingança de satanás foi a de elevar
a perfeição da criatura dileta a uma super-perfeição, capaz de anular, ao
menos nela, toda lembrança de humanidade, que fosse suscetível ao veneno
de satanás, e para a qual, não de um casto abraço de homem, mas de um
divino amplexo, que empalidece o espírito num êxtase de Fogo, lhe teria
vindo o Filho.
5.15
A virgindade da Virgem!…
Vem. Medita nesta virgindade profunda, que produz em quem a
contempla vertigens de abismo! O que é a pobre virgindade forçada da
mulher que por nenhum homem foi desposada? É menos do que nada. O
que é a virgindade daquela que quer ser virgem, para ser de Deus, mas sabe
sê-lo só no corpo e não no espírito, no qual deixa entrar muitos
pensamentos estranhos, acaricia e aceita as carícias de pensamentos
humanos? Isto já começa a ser uma máscara de virgindade, mas muito
pouco ainda. O que é a virgindade de uma enclausurada, que vive só para
Deus? É muito. Mas, mesmo assim, ainda não é uma virgindade perfeita, se
comparada com a virgindade da minha mãe.
Sempre existiu um enlace, até mesmo no mais santo. O enlace da
origem, entre o espírito e a Culpa. Só o Batismo o desfaz. Mas, é como uma
mulher separada do marido pela morte, não restitui mais em si a virgindade
total, como a virgindade dos nossos Primeiros, antes do Pecado. Uma
cicatriz permanece, e dói ao ser lembrada, e está sempre pronta para reabrir-
se em ferida, como certas doenças que periodicamente voltam com seus
vírus, ainda mais ativos. Na virgem não fica esse sinal de um enlace
dissolvido com a Culpa. Sua alma apresenta-se bonita e intacta, como
quando estava na mente do Pai, e reúne em Si todas as Graças.
É a virgem, a única, a perfeita, a completa, foi assim pensada, gerada,
querida, coroada. É eternamente a virgem, o abismo da intocabilidade, da
pureza, da graça que se perde no Abismo do qual brotou: em Deus,
intangibilidade, pureza e graça perfeitíssima.
Aí está a desforra do Deus Trino e Uno. Contra suas criaturas
profanadas, Ele ergue esta Estrela de perfeição. Contra a curiosidade
doentia, esta se esquiva, recompensada em poder amar somente a Deus.
Contra a ciência do mal, esta sublime ignorante. Nela não existe somente a
ignorância do que é um amor aviltado; não há também somente a
ignorância do amor que Deus havia dado aos esposos. E ainda mais. Nela
há a ignorância das concupiscências, herança do pecado. Nela há somente a
sabedoria gélida, mas incandescente, do Amor divino. Fogo que protege de
gelo a carne, para que se torne espelho transparente no altar onde um Deus
desposa uma virgem, e não se avilta, porque sua Perfeição abraça aquela
que, como convém a uma esposa, só em um ponto é inferior ao esposo,
sendo-lhe sujeita por ser mulher, mas é sem mancha, como Ele.
[10] sonho, narrado em: Génesis 28,10-16; seguem reenvio a: Tobias 12-13.
[11] lê, em: Provérbios 8,22-31. Assim anota Maria Valtorta numa copia dactilografada: Inspiradas ao autor dos Provérbios para
celebrar a Sabedoria, podem aplicar-se também a Maria, Mãe da Sabedoria, porque Maria foi sempre, desde sempre, pensada e
contemplada por Deus. À Sabedoria, da qual era Mãe, Maria foi sempre unida, como realça uma nota de Maria Valtorta em 196.7.
[12] primeira prova, aquela narrada em: Génesis 6-9.
6. Purificação de Ana e oferecimento de Maria,
a menina perfeita para o reino dos Céus.
28 de agosto de 1944.
6.1
Em Jerusalem, vejo Joaquim e Ana com Zacarias e Isabel saírem
juntos de uma casa, certamente de parentes ou amigos, e dirigirem-se ao
Templo, onde vão para a cerimônia da Purificação.
Ana tem nos braços a menina, toda envolta em cueiros, tendo sido antes
enrolada com um amplo tecido de lã mais leve, que deve ser macio e
quente. Com que cuidado e amor leva a sua filhinha, levantando de vez em
quando a beirada do pano fino e quente, para ver se Maria respira bem, e
depois, cobre-a bem de novo, para protegê-la do ar gelado deste dia sereno,
embora de pleno inverno.
Isabel tem alguns pacotes nas mãos. Joaquim puxa com uma corda dois
cordeiros grandes e muito brancos, que já são mais carneiros que cordeiros.
Zacarias não leva nada. Ele está muito bonito em sua veste de linho, que um
pesado manto de lã também branco, deixa entrever. Um Zacarias muito
mais jovem do que aquele visto no tempo do nascimento do Batista, em
plena virilidade, como também Isabel é agora uma mulher madura, mas
ainda de aparência jovem. Todas as vezes que Ana olha a menina, ela
também se inclina extasiada, sobre o rostinho adormecido. Muito bonita,
com um vestido azul que tende ao violeta escuro, com um véu que lhe cobre
a cabeça, descendo depois sobre os ombros e sobre o manto mais escuro
que o vestido.
Joaquim e Ana, enfim, estão realmente esplêndidos em suas vestes de
festa. Ao contrário do seu costume, ele não está com sua túnica marrom
escuro, mas com uma longa veste de um vermelho bem escuro, diríamos,
um vermelho de fundo, e as franjas colocadas em seu manto são muito
novas e bonitas. Na cabeça, ele tem também uma espécie de véu retangular,
cingido com uma tira de couro. Sua roupa é toda nova e fina.
Ana, oh! ela não se veste de escuro hoje. Está com um vestido amarelo
muito claro, quase da cor do marfim velho, ajustado à cintura, ao pescoço e
aos pulsos por meio de um cinturão que parece ser de prata e ouro. A sua
cabeça está coberta com um véu muito leve, que parece adamascado e está
preso à fronte por uma lâmina delgada e preciosa. Ao pescoço, um colar de
filigrana e nos pulsos, braceletes. Parece uma rainha, também pela
dignidade com que caminha com sua veste, em especial o manto amarelo
claro, com galões formando um bordado muito bonito, tom sobre tom.
– Parece-me estar te vendo no dia em que fostes a noiva. Eu era pouco
mais que uma menina, mas lembro-me ainda como estavas bonita e feliz –
diz Isabel.
– Mas hoje estou ainda mais… Quis pôr a mesma roupa daquele dia
para a cerimônia de hoje. Eu a guardei sempre para este dia… Já não
esperava mais poder usá-la para esta festa.
6.2
– O Senhor te amou muito… – diz Isabel com um suspiro.
– É por isso que eu Lhe dou a coisa que eu mais amo. Esta minha flor.
– Como farás para arrancá-la do seio, quando chegar a hora?
– Recordando-me que eu não a tinha, e a recebi de Deus. Estarei
sempre mais feliz agora, do que antes. Quando pensar que ela estará no
Templo, direi a mim mesma: “Reza junto ao Tabernáculo, ora ao Deus de
Israel também por sua mãe” e ficarei em paz. E ainda maior paz terei, ao
dizer: “Ela é toda Sua. Quando estes dois velhos felizes que a receberam do
Céu não estiverem mais em vida, Ele, o Eterno, lhe será eternamente Pai.”
Podes crer, eu tenho disso a firme convicção, esta pequenina não é nossa.
Nada mais eu podia fazer… Foi Ele que a colocou em meu ventre, este dom
divino para enxugar o meu pranto, confortar as nossas esperanças e atender
as nossas orações. Por isso ela é Sua. Nós somos somente os felizes
guardiães dela… e por isso Deus seja bendito!
6.3
Chegam até os muros do Templo.
– Enquanto vos dirigis para a porta de Nicanor, eu vou avisar o
sacerdote. Depois, eu virei também –diz Zacarias, desaparecendo atrás de
um arco, que dá para um grande pátio rodeado de pórticos.
A comitiva continua a encaminhar-se pelos sucessivos terraços. Porque
(não sei se já o disse) o recinto do Templo não está sobre um terreno plano,
mas vai-se elevando por degraus sucessivos sempre mais altos. A cada
lance pode-se chegar por escadarias, e em cada lance há pátios, pórticos e
portais muitos bem trabalhados, de mármore, bronze e ouro.
Antes de chegarem ao lugar combinado, eles param e vão tirar dos
pacotes as coisas que tinham levado, ou seja, pães cozidos, de formato
achatado e de pouca espessura, feitos com muita gordura, um pouco de
farinha branca, duas pombas em uma pequena gaiola de vime e grandes
moedas de prata, certas patacas tão pesadas, que por sorte não havia bolsos
naquele tempo, pois não resistiriam.
Eis a bonita porta de Nicanor, um trabalho bem acabado de entalhe,
feito de pesado bronze com lâminas de prata. Lá já se encontra Zacarias, ao
lado de um sacerdote esplêndidamente vestido de linho.
Ana recebe a aspersão de uma água, que eu suponho seja a água lustral,
e depois recebe a ordem de aproximar-se do altar do sacrifício. A menina
não está mais em seus braços. Isabel carrega, estando ainda do outro lado da
porta.
Joaquim, por sua vez, entra, atrás de sua mulher, puxando um pobre
cordeiro balindo. Faço como na purificação de Maria: fecho os olhos para
não ver degolações como esta.
Agora Ana está purificada.
6.4
Zacarias diz em voz baixa algumas palavras a um colega, o qual
concorda, sorrindo. Depois aproxima-se do grupo, que já se reuniu de novo,
congratulando-se com a mãe e o pai pela sua alegria e pela fidelidade às
promessas feitas, recebendo o segundo cordeiro, a farinha e os pães
cozidos.
– Então, esta filha está sendo consagrada ao Senhor? Que a Sua bênção
esteja com ela e convosco. Eis Ana que chega. Ela será uma de suas
mestras. É Ana de Fanuel, da tribo de Aser. Vem, mulher! Esta pequenina é
oferecida ao Templo em hóstia de louvor. E tu serás sua mestra. Submissa a
ti, ela crescerá na santidade.
Ana de Fanuel, já com os cabelos todos brancos, acaricia a menina, que
acabou de acordar e olha com seus olhos inocentes e espantados toda aquela
brancura e todo aquele ouro, que a luz do sol faz brilhar.
A cerimônia deve ter acabado. Não vi nenhum rito especial para a
oferta de Maria. Talvez fosse suficiente dizê-lo ao sacerdote e sobretudo
que o dissessem a Deus, no lugar sagrado.
6.5
– Eu gostaria de fazer a oferta ao Templo, e ir depois àquele lugar,
onde vi aquela luz no ano passado.
Vão assim para lá, acompanhados por Ana de Fanuel. Mas não entram
no Templo propriamente dito. Compreende-se que, tratando-se de mulheres
e de uma menina, não chegaram até o lugar, ao qual Maria chegou, quando
veio oferecer o seu Filho. Mas, bem perto da porta toda aberta, olham para
o interior meio escuro, de onde estão vindo doces cantos de meninas, e de
onde vem o brilho de lâmpadas preciosas, que espalham uma luz de ouro
sobre dois canteiros de cabecinhas cobertas com véus brancos, dois
verdadeiros canteiros de lírios.
– Daqui a três anos tu também estarás lá, meu Lírio –promete Ana a
Maria, que olha como que fascinada para o interior do Templo, sorrindo ao
lento canto.
– Parece até que ela compreende –diz Ana de Fanuel.– É uma linda
menina! Será querida por mim, como se fizesse parte de minhas entranhas.
Assim eu te prometo ó mãe, se a idade me permitir.
– Sim, que poderás, mulher! –diz Zacarias.– Tu a receberás entre as
meninas consagradas. Eu também estarei lá. Quero estar lá naquele dia para
dizer a ela que reze por nós desde o primeiro momento…
E olha para a sua mulher, que compreende, suspirando.
A cerimônia terminou, e Ana de Fanuel se retira, enquanto os outros
saem do Templo, conversando entre si.
Ouço a voz de Joaquim, que diz:
– Eu teria dado até todos os meus cordeiros, não só os dois melhores,
em troca desta alegria, para dar louvor a Deus!
Nada mais vejo.

6.6
Jesus diz:
– Salomão faz a Sabedoria dizer[13]: “Quem é criança, venha a mim.”
Na verdade, é da fortaleza e dos muros de sua cidade que a eterna Sabedoria
dizia à eterna menina: “Vem a mim.” Ansiava por tê-la.
Mais tarde, o Filho desta puríssima menina dirá: “Deixai vir a Mim os
pequeninos, porque deles é o Reino dos Céus, e quem não se tornar
semelhante a eles, não terá parte no meu Reino.” As vozes se perseguem e,
enquanto a voz do Céu grita à pequena Maria: “Vem a Mim”, a voz do
Homem pensa em sua mãe, ao dizê-lo: “Vinde a Mim, se souberdes ser
pequeninos.”
Dou-vos um modelo em minha mãe.
Eis a perfeita criança, do coração de pomba, simples e puro, eis Aquela
que os anos e os contatos do mundo não conseguem embrutecer pela
barbárie de um espírito corrompido, tortuoso, mentiroso. Porque Ela não
quer este espírito. Vinde a Mim, olhando para Maria.
6.7
Tu, que a estás vendo, diz-me: o seu olhar de criança é muito diferente
do olhar com que a viste aos pés da Cruz, na alegria do Pentecostes, na hora
em que suas pálpebras desceram sobre seus olhos de gazela para o seu
último sono? Não. Aqui está o olhar incerto e espantado da criança; mais
tarde será o olhar espantado e verecundo da Anunciada; mais tarde ainda, o
olhar feliz da mãe de Belém; depois, o olhar de adoradora da minha
primeira e sublime discípula; depois ainda, o olhar dilacerado da
atormentada no Gólgota; depois, o olhar radiante da Ressurreição e
Pentecostes; e, por fim, o olhar velado do sono extático da última visão.
Mas, seja que se abra às primeiras vistas, seja que se feche cansado sobre a
última luz, depois de ter visto tanta alegria e tanto horror, o olho é sereno,
puro, plácido, nesga de céu que brilha sempre de modo igual, sob a fronte
de Maria. Ira, mentira, soberba, luxúria, ódio, curiosidade, nunca o sujam
com suas nuvens de fumaça.
É o olho que olha para Deus com amor, tanto quando chora, como
quando ri. Por amor de Deus acaricia e perdoa, tudo suportando. Por amor
ao seu Deus se torna inatacável aos assaltos do Mal, que muitas vezes se
serve dos olhos para penetrar no coração. O olhar puro, repousante,
benevolente, que têm os puros, os santos, os enamorados de Deus.
Eu disse[14]: “A luz do teu corpo são os teus olhos. Se os olhos são
puros todo o teu corpo estará iluminado. Mas se os olhos são turvos, toda a
tua pessoa estará em trevas.” Os santos tiveram esse olho que é luz para o
espírito e salvação para a carne, porque como Maria, durante toda a sua
vida, não olharam senão para Deus. Ao contrário, eles sempre se
lembraram de Deus.
Explicarei a ti, pequena voz, qual é o sentido desta minha palavra.
[13] faz a Sabedoria dizer, em: Provérbios 9,4; dirá, em 378.8.
[14] Eu disse, em: Mateus 6,22-23 (174.9); Lucas 11,34-35 (413.7).
7. A pequena Maria com Ana e Joaquim.
Em seus lábios já está a Sabedoria do Filho.
29 de agosto de 1944.
7.1
Ainda vejo Ana. Desde ontem à tarde, que a estou vendo assim: ela
está sentada no começo da sombra da parreira, atenta a um trabalho de
costura. Está toda vestida de uma cor cinzento-areia, com um vestido muito
simples e solto, talvez por causa do grande calor que deve estar fazendo.
No fim da parreira, podem ver-se os ceifadores, que estão cortando o
feno. Mas ainda não deve ser o feno de maio, porque a uva já está para
colorir-se de ouro e uma macieira grande já vem mostrando os seus frutos,
entre as folhas escuras, que vão se tornando da cor de uma cera lustrosa,
amarela e vermelha. Além disso, o campo de cereais é agora um restolho
sobre o qual, ondulam leves as chamazinhas das papoulas e se levantam,
rígidas e serenas, as flores-de-lis, raiadas como uma estrela, e azuis como o
céu do Oriente.
Da parreira sombria vem vindo, à frente, uma Maria pequenina, mas já
andando ligeira e independente. Seu passo é curto, mas seguro, e suas
sandalinhas já não tropeçam nas pequenas pedras. Tem já um esboço do seu
doce passo, levemente ondulante, de pomba, e ela está parecendo mesmo
uma pombinha em seu vestidinho de linho, que desce até os tornozelos, um
vestidinho bem cômodo, franzido no pescoço por um cordãozinho azul
celeste, e com manguinhas curtas, que deixam ver os antebraços rosados e
gorduchos. Com os seus cabelinhos, que parecem de seda e de um loiro-
mel, não muito encaracolados, mas formando ondas suaves, que terminam
em um gracioso cacho; com seus olhinhos cor do céu, e o doce rostinho
levemente rosado e sorridente, ela parece um pequeno anjo. Até o ventinho
leve que lhe vai entrando pelas mangas largas, e enchendo seu vestido de
linho e fazendo-o ficar mais saliente nas costas, tudo contribui para dar à
menina o aspecto de um pequeno anjo, com as asas já entreabertas, e
prontas para voar.
Nas mãozinhas ela leva papoulas, flores-de-lis e outras florzinhas, que
crescem por entre os cereais, mas das quais eu não sei o nome. Ela vai indo
e, ao chegar perto da mãe, dá uma corridinha, solta uma vozinha festiva, e
como uma pequena rolinha, pára o seu vôo contra os joelhos da mãe, que se
abrem um pouco para recebê-la, enquanto que o trabalho, que estava sendo
feito, é posto de lado, para acolhê-la sem que ela se machuque, e os braços
estão estendidos para abraçá-la.

Até aqui ontem à tarde, e hoje de manhã reapresenta-se e continua


assim.
– Mamãe! Mamãe!
A pequena rolinha branca está agora no ninho dos joelhos maternos,
com seus pezinhos sobre a erva curta, o rostinho curvado sobre o colo
materno, e não se vê nada mais, além do ouro pálido dos cabelinhos sobre a
nuca delicada, que Ana se curva para beijar com amor.
7.2
Depois a pequena rola levanta a cabeça, e oferece as suas florzinhas.
Todas são entregues à mamãe e, para a oferta de cada flor, ela conta uma
história que ela mesma inventou.
Esta aqui, tão azul e grande, é uma estrela que desceu do céu para trazer
o beijo do Senhor para a mamãe. Aqui está: esta florzinha celeste, beija-a
bem aí no coração, e perceberás que ela tem o sabor de Deus.
Agora, esta outra, que é de um azul mais pálido, como são os olhos do
papai, tem gravado nas folhas que o Senhor quer muito bem ao papai,
porque ele é bom.
E esta aqui, tão pequenina, a única pequena que eu achei (é um
miosótis), é a que o Senhor fez para dizer a Maria que lhe quer bem.
Estas vermelhas, sabe a mamãe o que são? São os pedaços da veste do
rei Davi, molhadas no sangue dos inimigos de Israel, e semeadas nos
campos de luta e de vitória. Nasceram das fímbrias da heróica veste real,
rasgada na luta pelo Senhor.
Mas esta aqui, tão branca e graciosa, que parece formada com sete taças
de seda que olham para o céu, cheias de perfume, nasceu lá perto da fonte
(foi papai que a apanhou entre os espinhos) -Foi feita com a veste de
Salomão, quando, no mês em que sua netinha tinha nascido, há tantos anos
(oh! quantos, quantos anos antes) na pompa da alvura de suas vestes,
Salomão caminhou[15] pelo meio da multidão de Israel, diante da Arca e do
Tabernáculo, alegrando-se pela nuvem que voltou a circundar a glória do
Senhor, cantando o cântico e a oração de sua alegria.
– Eu quero ser sempre como esta flor, e, como o sábio rei, eu quero
cantar, por toda a vida, cânticos e orações diante do Tabernáculo – e aí
cessa de falar a pequena boca de Maria.
– Meu bem, como sabes estas coisas santas? Quem é que as diz a ti? O
teu pai?
– Não. Não sei quem é. Parece que eu as soube desde sempre. Mas
talvez seja alguém que eu não vejo, e que as diz a mim, talvez um dos
Anjos que Deus manda vir falar aos homens que são bons. 7.3Mamãe, me
contas outras coisas?…
– Oh! Minha filha! Sobre que fato queres saber?
Maria fica pensando; séria e recolhida como estava, que bom teria sido
que se tivesse feito o seu retrato naquela posição, para perpetuar aquela sua
expressão. Sobre o rostinho infantil se refletem as sombras de seus
pensamentos. Sorrisos e suspiros, raios de sol e sombras de nuvens,
pensando na história de Israel. Depois ela escolhe:
– Conta-me aquela[16] passagem de Gabriel falando a Daniel, na qual o
Cristo foi prometido.
E ela fica escutando, de olhos fechados, repetindo devagar as palavras
que a mãe vai dizendo, como para se lembrar melhor delas. Quando Ana
termina, Maria lhe pergunta:
– Quanto falta ainda para o Emanuel chegar?
– Cerca de trinta anos, querida.
– Mas, quanto tempo ainda falta! Nesse tempo, eu estarei no Templo…
Diz-me, se eu rezasse muito, muito, muito, dia e noite, noite e dia, e
quisesse ser só de Deus durante toda a vida, só para este fim, o Eterno não
me faria a graça de dar o Messias ao seu povo antes disso?
Ana se apressou em acrescentar estas palavras, ao ver que se
marejavam de lágrimas os cílios de ouro da sua menina:
– Não sei, querida. O Profeta diz “setenta semanas.” Creio que a
profecia não erra. Mas o Senhor é tão bom, que eu creio que, se rezares
muito, muito, muito, Ele te atenderá.
O sorriso volta ao rostinho, que está levemente erguido para a mãe, e
um raiozinho de sol está passando por entre duas folhas da videira, fazendo
brilhar as lágrimas do pranto, que já cessou, como se tivessem sido apenas
gotinhas de orvalho pendentes de finos caules do musgo dos Alpes.
7.4
– Então, eu rezarei e me farei virgem para isso.
– Mas, sabes o que significa o que estás dizendo?
– Quer dizer não conhecer o amor de homem, mas só o de Deus. Quer
dizer não ter outro pensamento, senão no Senhor. Quer dizer permanecer
menina na carne, e anjo no coração. Quer dizer não ter olhos para outra
coisa, mas só para olhar a Deus, ouvidos só para ouvi-lo, boca para louvá-
lo, mãos para oferecer-lhe hóstias, pés velozes para segui-lo, coração e vida
para doar a Ele.
– Bendita és tu! Mas, então, não terás filhos, tu, que gostas tanto das
crianças, dos cordeirinhos e das pombinhas… Sabes de uma coisa? Um
filho para uma mulher é como um cordeirinho branco e todo encaracolado,
é como uma pequena pomba, com penas sedosas, boca cor-de-coral, que
pode ser amado, beijado, e ouvi-lo dizer: “Mamãe!”
– Não importa. Eu serei de Deus. No Templo rezarei. E talvez um dia
eu verei o Emanuel. A virgem, que vai ser a mãe dele, como diz o grande
Profeta, já deve ter nascido, e já deve estar no Templo… Eu vou ser
companheira dela… e sua serva… Oh! Sim! Se, por meio da luz de Deus,
eu a puder conhecer, eu quereria ser serva dela, daquela Virgem bem-
aventurada! E, depois, ela traria o Filho a mim, e me levaria ao seu Filho, e
eu serviria a Ele também. Pensa nisto mamãe!… Eu, servindo ao
Messias!!…
Maria está dominada por este pensamento, que a sublima e a aniquila,
ao mesmo tempo. Com suas mãozinhas cruzadas sobre o pequeno peito,
com a cabecinha um pouco inclinada para a frente, e tomada pela emoção,
ela parece já uma reprodução infantil da “Anunciação”[17] que eu vi. Ela
retoma o assunto:
– Mas será que o Rei de Israel, o Ungido de Deus, me permitirá que eu
o sirva?
– Disso não tenhas dúvidas! Pois, não diz[18] o rei Salomão: “Sessenta
são as rainhas, oitenta as outras mulheres, e as pequeninas serão sem
número”? Vê como no Palácio do Rei serão sem número as meninas virgens
que servirão ao seu Senhor.
– Oh! Estás vendo agora como devo ser virgem? Eu devo. Se Ele por
mãe quer uma virgem, isso é sinal de que ele ama a virgindade, sobre todas
as coisas. Eu quero que me ame, como sua serva, pela minha virgindade,
que me vai tornar um pouco semelhante à sua mãe querida… Isto eu
quero… 7.5Queria também ser pecadora, muito pecadora, se eu não temesse
ofender ao Senhor… Diz-me, mamãe: pode-se ser pecadora por amor de
Deus?
– Mas, que é isso que estás dizendo, meu tesouro? Eu não te estou
compreendendo.
– Eu quero dizer: pecar, para poder ser amada por Deus, que se torna
nosso Salvador. Salva-se quem se perdeu. Não é verdade? Eu quereria ser
salva pelo Salvador, para ter o seu olhar de amor. Por isso, queria pecar,
mas não fazer pecado que desgoste a ele. Como é que ele pode salvar-me,
se eu não me perco?
Ana fica atordoada. Não sabe mais o que dizer.
Mas o socorro vem de Joaquim, que acabou de chegar, caminhando
sobre a grama. Por trás da sebe de arbustos baixos, ele tinha se aproximado,
sem fazer barulho.
– Ele te salvou antes, porque sabe que tu o amas, e queres amar
somente a Ele. Por isso tu já estás redimida, e podes ser virgem como
quiseres –diz Joaquim.
– É verdade, meu pai?
Maria se abraça aos joelhos do pai e olha para ele com as claras
estrelas, que são os seus olhos, semelhantes aos do pai, e tão felizes por esta
esperança que ele lhe está dando.
– É verdade, pequeno amor. Olha. Eu vinha te trazendo este passarinho,
que tinha acabado de dar o seu primeiro vôo perto da fonte. Eu teria podido
abandoná-lo, mas suas asas e suas perninhas, ainda fracas, não tinham
forças para levantá-lo e sustentá-lo em um novo vôo, nem para conservá-lo
firme sobre as pedras cobertas de musgo escorregadio. Ele teria caído
n’água. Mas eu não fiquei esperando que isso acontecesse. Peguei-o, e o
trouxe para ti. Com ele farás o que quiseres. O fato é que ele foi salvo, antes
de cair no perigo. Pois foi isso mesmo que Deus fez contigo. Agora, diz-me,
Maria: achas que eu amei mais ao pássaro, salvando-o, antes dele cair no
perigo, ou eu o teria amado mais, se o salvasse depois?
– Assim é que o amaste mais, pois não deixaste que ele se machucasse,
caindo na água gelada.
– Deus te amou mais, porque te salvou, antes que tivesses pecado.
– Então, eu também o amarei inteiramente. De todo o coração.
Passarinho lindo, eu sou como tu. O Senhor nos amou de modo igual,
dando-nos a salvação. Agora eu vou te criar, e depois te deixarei ir embora.
E tu cantarás no bosque, e eu no Templo os louvores de Deus, e nós
diremos: “Envia, envia o teu Prometido aos que o estão esperando.” 7.6Oh!
Meu papai! Quando me levarás ao Templo?
– Dentro em breve, minha pérola. Mas, não ficarás triste por ter que
deixar o teu pai?
– Muito. Mas tu irás lá… e, além disso, se não se ficasse um pouco
triste, que sacrifício haveria?
– E tu te lembrarás de nós?
– Sempre. Depois da oração para que venha o Emanuel, rezarei por vós.
Que Deus vos dê alegria e uma longa vida… até o dia no qual Ele será
Salvador. Depois, eu direi a Ele que vos tome consigo, e vos leve para a
Jerusalém Celeste.
A visão termina para mim com Maria estreitada nos laços do abraço
paterno.

7.7
Jesus diz:
– Já estou ouvindo os comentários dos doutores, em suas ironias
maliciosas, dizendo: “Como é que pode uma menina, que não tem ainda
nem três anos, falar coisas assim? Isso é um exagero.” E não refletem que
me tornam monstruoso, alterando a minha infância, atribuindo-me atos de
adulto.
A inteligência não se manifesta em todos do mesmo modo e na mesma
idade. A Igreja marcou a idade de seis anos como a idade em que começa a
responsabilidade das ações, porque essa é a idade na qual até um retardado
é capaz de distinguir o bem do mal, pelo menos de modo rudimentar. Mas
há crianças que muito antes são capazes de discernir, entender e querer,
usando de uma razão já suficientemente desenvolvida. A pequena Imelde
Lambertini, Rosa de Viterbo, Nellie Organ, Nennolina, vos sirvam de base,
ó doutores difíceis, para crerdes que minha mãe podia pensar e falar assim.
Não citei mais do que quatro nomes por acaso, no meio de milhares de
santas crianças que povoam o meu Paraíso, depois de terem raciocinado
como adultos sobre a terra, umas com mais, outras com menos idade.
7.8
Qual é a razão? Um dom de Deus. Portanto, Deus o pode dar na
medida que quiser, a quem quiser e quando quiser. A razão é uma das coisas
que mais vos tornam semelhantes a Deus, Espírito inteligente e
raciocinante. A razão e a inteligência foram graças dadas por Deus ao
homem no Paraíso terrestre. Quanto elas eram vivas, junto com a graça
ainda intacta, operando no espírito de nossos dois Primeiros Pais!
No livro de Jesus Bar Sirac está escrito[19]: “Toda sabedoria vem do
Senhor Deus, e sempre esteve com Ele, mesmo antes dos séculos.” Quanta
sabedoria teriam, então, os homens, se tivessem permanecido filhos de
Deus?
As lacunas em vossas inteligências são o fruto natural do vosso
decaimento da graça e da honestidade. Perdendo a Graça, vós vos
afastastes, por séculos, da Sabedoria. Como os meteoros, que se escondem
atrás de uma nebulosidade de muitos quilômetros, a Sabedoria não chegou
mais até vós com os seus nítidos fulgores, mas somente através de um
nevoeiro, que as vossas prevaricações foram tornando cada vez mais
graves.
Depois veio o Cristo, e vos deu a Graça, dom supremo do amor de
Deus. Mas, vós sabeis guardar esta gema tão límpida e pura? Não. Quando
não a destruis com a vossa vontade individual de pecado, a sujais com
contínuas culpas menores, as vossas fraquezas, as vossas simpatias para
com o vício, e também aquelas simpatias que não chegam ainda a ser
verdadeiros casamentos com o vício septiforme, mas, são um
enfraquecimento da luz da Graça e de sua atividade. Depois, tivestes
séculos e séculos de corrupções, para enfraquecer ainda mais a magnífica
luz da inteligência que Deus havia dado aos Primeiros, corrupções que se
repercutem como nocivas sobre o físico e sobre a mente.
7.9
Maria porém era não somente a Pura, a nova Eva, criada de novo para
a alegria de Deus: era a super-Eva, a Obra-Prima do Altíssimo, a cheia de
graça, a mãe do Verbo na mente de Deus.
“O Verbo é a Fonte da Sabedoria”, diz Jesus Bar Sirac. O Filho, então,
não terá posto a sua sabedoria sobre os lábios da própria mãe?
Se a um profeta[20] foi-lhe purificada a boca com carvões ardentes,
porque devia dizer aos homens as palavras que o Verbo, a Sabedoria, lhe
confiava, não terá o Amor à sua esposa ainda menina, mas que um dia iria
trazer em si a Palavra, a linguagem limpa e exaltada, não terá este Amor
feito com que ela não falasse mais como menina, nem mais tarde, como
mulher, mas somente e sempre como uma criatura celeste, unida à grande
luz e sabedoria de Deus?
O milagre não está em uma inteligência superior, demonstrada por
Maria em sua idade infantil, como depois aconteceu Comigo. Mas o
milagre está em poder conter em si a Inteligência infinita, que nela
habitava, dentro dos diques preparados para não assombrar as multidões e
não despertar a atenção satânica.
Ainda voltarei a falar sobre este assunto, que reaparece sempre naquele
“lembrar-se” de Deus, que é próprio dos Santos.
[15] caminhou, como se narra em: 1 Reis 8,1-5.
[16] aquela, da profecia que se encontra em: Daniel 9,20-27, e que será interpretada em 10.5 e em 41.3/4.
[17] Anunciação, é a efígie sagrada que se venera na “Basilica della Ss. Anunziata” em Florença, como veremos igualmente em
27.1.
[18] diz, em: Cântico dos Cânticos 6,8.
[19] está escrito, em: Eclesiástico 1,1-8.
[20] um profeta, isto é, Isaías, como se narra em: Isaías 6,6-7. É um facto citado muitas vezes na obra, em modo directo (como
aqui e, por exemplo, em 166.8 e em 626.2) ou indirecto (como em 364.8). Contudo, vêm recordadas as profecias messiânicas de
Isaías, como indicam as notas em 561.11 e em 577.4.
8. Maria é acolhida no Templo. Ela, em sua
humildade, não sabia que era a cheia de
sabedoria.
30 de agosto de 1944.
8.1
Vejo Maria caminhar entre o pai e a mãe, pelas ruas de Jerusalém.
Os passantes detêm-se para olhar a formosa menina, toda vestida de um
branco neve, coberta com um véu muito leve que, por seus desenhos de
ramos e de flores, mais escuros por entre os pontos mais claros do fundo,
parece-me ser o mesmo que Ana usou no dia de sua Purificação. Com esta
diferença: enquanto para Ana ele chegava só até a cintura, para a pequenina
Maria desce quase até o chão, e a envolve em uma nuvem tênue e clara de
uma extraordinária beleza.
O loiro dos cabelos soltos sobre os ombros, ou melhor, sobre a graciosa
nuca, transparece aqui e ali, nos pontos em que o véu não é adamascado,
apresentando à vista apenas o fundo, que é quase diáfano. O véu está preso
sobre a fronte por meio de uma fita de um azul muito claro sobre a qual,
certamente por obra da mamãe, estão bordadas, a fio de prata, pequenos
lírios.
O vestido de Maria, como eu disse, é alvíssimo, desce até o chão, e os
pezinhos mal se mostram, quando ela anda, com suas sandalinhas brancas.
Suas mãozinhas lembram duas pétalas de magnólia, saindo das mangas
largas. Fora o círculo azul formado pela fita, não se vê nenhuma outra cor.
Tudo é branco. Maria parece vestida de neve.
Joaquim e Ana estão vestidos, ele com a mesma roupa da Purificação e
Ana ao invés, com um vestido de cor violeta muito escuro. Até o manto,
que lhe cobre a cabeça, é de um violeta escuro. Ela o traz caído totalmente
sobre os olhos, dois pobres olhos de mãe, vermelhos de tanto chorar, que
não queriam ser vistos assim, por isso choram sob a proteção do manto.
Essa proteção serve por causa dos transeuntes e também por Joaquim que,
embora tenha sempre olhos serenos, hoje eles estão avermelhados e opacos
de lágrimas. Ele caminha, muito encurvado, debaixo do seu véu colocado
como um turbante, com as beiras laterais descendo ao longo do rosto.
Joaquim agora está, realmente, envelhecido. Quem o vê deve pensar
que ele seja o avô, talvez até bisavô daquela pequenina que leva pela mão.
O sofrimento por ter que separar-se dela faz que o pai ande como que
arrastando os pés, desanimado em todos os seus movimentos e modos, o
que o faz ficar vinte anos mais velho. Seu rosto parece o de uma pessoa
doente, além de envelhecida, tão grande é o grau do seu cansaço e de sua
tristeza, e sua boca está com um leve tremor, por entre duas rugas ao lado
do nariz, mais acentuadas hoje.
Os dois estão procurando esconder o pranto. Mas, se o podem esconder
para muitos, não o escondem de Maria que, pelo seu pequeno tamanho,
pode ver, olhando de baixo para cima e, levantando a cabecinha, olha uma
vez o pai, outra vez, a mãe. Eles se esforçam para sorrir a ela, com um
tremor na boca, aumentando o aperto de suas mãos sobre a pequenina mão,
cada vez que sua filhinha olha para eles sorrindo. Eles devem ficar
pensando: “Aí está. É esta uma vez a menos que vemos este sorriso”.
8.2
Vão andando bem devagar. Parecem querer que aquela sua viagem
dure o mais possível. Tudo serve de motivo para mais uma parada… Mas,
afinal, uma estrada uma hora tem que acabar. E esta já está no fim. No alto
deste último trecho da estrada, que vai subindo, estão os muros que rodeiam
o Templo. Ana solta um gemido e aperta com mais força a mãozinha de
Maria.
– Ana querida, eu estou contigo!
Assim diz uma voz, que vem da sombra de um arco baixo, que se
projeta sobre um cruzamento.
Isabel, que, com certeza, a estava esperando, se aproxima dela e a
aperta ao coração. Vendo que Ana está chorando, lhe diz:
– Vem, entra um pouco nesta casa amiga. Depois, iremos juntos.
Zacarias também está aqui.
Entram todos em uma morada baixa e escura, na qual se vê o clarão de
um grande fogo. A dona da casa deve ser amiga de Isabel, mas para Ana é
estranha, e então se retira dali delicadamente, deixando os recém-chegados
mais a vontade.
– Não pense que eu esteja arrependida, ou esteja dando o meu tesouro
de má vontade ao Senhor –explica-lhe Ana, entre lágrimas–, mas o
coração… oh! como o meu coração está doendo, o meu velho coração, que
vai voltar para aquela solidão dos que não têm filhos!… Se pudesses sentir
o que estou sentindo…
– Eu compreendo, minha querida Ana… Mas, tu és boa, Deus te
confortará em tua solidão. Maria rezará pela paz de sua mamãe. Não é
mesmo?
Maria acaricia as mãos maternas e as beija, e as passa em seu rosto para
ser acariciada, enquanto Ana aperta entre as suas aquele rostinho, e o beija,
repetidamente. E não se sacia de beijá-lo.
Entra Zacarias, e saúda:
– Aos justos, a paz do Senhor!
– Sim –diz Joaquim– suplica para nós a paz, pois as nossas entranhas
estão trêmulas, ao fazermos nossa oferta, como deviam estar as entranhas
de nosso Pai Abraão[21], quando subia o monte, só que nós não
encontraremos outra oferta para darmos no lugar desta. Também não
quereríamos fazer isso, pois somos fiéis a Deus. Mas estamos sofrendo,
Zacarias. Sacerdote de Deus, procura compreender-nos e não fiques
escandalizado conosco.
– Nunca. Pelo contrário, a vossa dor, que sabe não passar além do
permitido e levar-vos à infidelidade, serve para mim até como um exemplo
de amor ao Altíssimo. Mas, tende coragem! 8.3Ana, a profetisa, tomará muito
cuidado desta flor de Davi e de Arão. Neste momento ela é o único lírio de
sua estirpe santa, que Davi ainda tem no Templo, e cuidaremos dela como
de uma pérola real. Visto que os tempos vão chegando ao fim, as mães da
estirpe deveriam consagrar suas filhas ao Templo, dado que há de ser de
uma virgem, da estirpe de Davi, que nascerá o Messias. No entanto, por um
relaxamento na fé, os lugares das virgens estão vazios. São muito poucas no
Templo, e nenhuma da estirpe real, depois que Sara, a esposa de Eliseu, saiu
para se casar, há três anos. É verdade que ainda faltam seis lustros para o
fim, mas… ainda bem! Esperemos que Maria seja a primeira de muitas
outras virgens da estirpe de Davi diante do Sagrado Véu. E depois… quem
sabe…
Zacarias não diz mais nada, mas, pensativo olha para Maria. Depois,
retoma o assunto:
– Eu mesmo velarei por ela. Sou sacerdote, e lá dentro tenho as minhas
funções. E, no desempenho delas cuidarei deste anjo. Isabel também virá
muitas vezes se encontrar com ela…
– Oh! Decerto! Eu tenho tanta necessidade de Deus, e virei dizer isso a
esta menina, para que ela o transmita ao Eterno.
8.4
Ana se sente reanimada. Isabel, para aliviá-la ainda mais, lhe
pergunta:
– Esse não é o teu véu de esposa? Ou será que o fiaste de um novo
linho?
– É aquele mesmo. Eu o consagro com ela ao Senhor. Já não tenho mais
aquela vista boa… Depois, as riquezas estão muito diminuídas pelos
impostos e pelas desventuras… Nem eu podia estar fazendo pesadas
despesas. Tomei as providências necessárias só para um bom enxoval
durante o tempo que vai passar na Casa de Deus, e para depois… pois
penso que não serei eu quem a vai vestir para as núpcias… Mas quero que
tenha sido a mão de sua mamãe, ainda que fria e imóvel, a preparar-lhe para
as núpcias, fiando os linhos e as vestes de esposa.
– Oh! Por que ficar pensando estas coisas?!
– Eu estou velha, prima. Nunca me senti assim, como agora que estou
passando por esta dor. As últimas forças de minha vida foram dadas a esta
flor, quando a trouxe comigo, quando a alimentei, e agora… agora que
estou nas últimas, estou sentindo a dor de perdê-la, o que vai acabar com
minhas forças.
– Não digas uma coisa dessas. Pensa no Joaquim.
– Tens razão. Procurarei viver para o meu homem.
Joaquim fez como se não tivesse ouvido, atento como estava em ouvir
Zacarias; mas bem que ele ouviu, e dá um forte suspiro, com os olhos
marejados de lágrimas.
– Estamos entre a terça e a sexta horas. Acho que seria bom irmos
andando –diz Zacarias.
Levantam-se todos para colocarem-se os mantos e partirem.
8.5
Mas antes de saírem, Maria se ajoelha sobre a soleira, de braços
abertos. É um pequeno querubim, que implora:
– Pai! Mãe! Dai-me a vossa bênção!
A pequenina é forte, não chora. Mas seus labiozinhos tremem, e a voz,
entrecortada por um interno soluço, tem, mais do que nunca, o som do
gemido trêmulo da rolinha. Seu rostinho está mais pálido, e seus olhos têm
aquele olhar cheio de uma resignada angústia que parece sempre mais forte
até provocar-nos um profundo sofrimento. Este olhar só o verei de novo no
Calvário e junto ao Sepulcro.
Seus pais a abençoam e beijam. Uma, duas, dez vezes. Não sabem
saciar-se… Isabel chora silenciosamente, e Zacarias, por mais que não
queira demonstrá-lo está comovido.
Saem. Maria entre o pai e a mãe, como antes. Na frente, vão Zacarias e
a mulher.
Ei-los dentro dos muros do Templo.
– Vou ao Sumo Sacerdote. Vós subi até o grande terraço.
Atravessam três pátios e três átrios sobrepostos. Chegam aos pés do
grande cubo de mármore coroado de ouro. Cada cúpula, convexa como uma
enorme laranja, está brilhando agora ao sol, cujos raios incidem
perpendicularmente sobre o vasto pátio que circunda a majestosa
construção, ocupando toda a ampla esplanada, abrangendo a escadaria que
conduz ao Templo. Só o pórtico, que fica à frente da escadaria, está na
sombra, tornando a alta porta feita de bronze e ouro ainda mais escura e
majestosa, rodeada de muita luz.
Maria parece ainda mais ser feita de neve, quando anda ao sol. Agora
ela está aos pés da escadaria. Entre o pai e a mãe. Como devem estar
batendo os corações dos três! Isabel está ao lado de Ana, mas a um meio
passo atrás.
8.6
Um toque de trombetas de prata, e a porta, girando sobre as
dobradiças, parece produzir um som de cítara, ao correr sobre as esferas de
bronze. Pode-se ver agora o interior, com suas lâmpadas lá no fundo, e um
cortejo que vem saindo do interior. É um cortejo pomposo, com o soar das
trombetas de prata, nuvens de incenso e muitas luzes.
Ei-lo que chega à soleira da porta. O Sumo Sacerdote parece vir à
frente. É um ancião cheio de majestade, vestido de linho finíssimo, tendo
sobre o linho uma túnica mais curta, também de linho, sobre a qual traz
uma espécie de casula, um paramento multicolor, parecido com a planeta e
a veste dos diáconos. Nas suas vestes, as cores púrpura e ouro, roxo e
branco se alternam, e brilham como pedras preciosas ao sol; duas gemas
verdadeiras brilham ainda mais vivamente sobre os ombros. Também
parecem ser duas fivelas em seus engastes preciosos. Sobre o peito uma
larga placa reluzente com pedras preciosas presas por uma corrente de ouro.
Há ainda pingentes e ornamentos vários, que reluzem na barra da túnica
curta, enquanto o ouro lhe resplende sobre a fronte por cima da cobertura da
cabeça, fazendo lembrar os padres ortodoxos, na mitra que eles usam em
forma de cúpula, diferente da católica, que tem uma ponta.
O solene personagem avança sozinho, até o começo da escadaria,
exposto ao brilho do sol, que o torna ainda mais esplêndido. Os outros,
numa fila em semicírculo, o esperam do lado de fora da porta, à sombra do
pórtico. A esquerda, há um grupo de meninas vestidas de branco, em
companhia de Ana, a profetisa, e outras anciãs, que certamente são mestras.
O Sumo Sacerdote olha para a pequena e sorri. Ela deve estar-lhe
parecendo muito pequena, ainda mais, aos pés daquela escadaria que parece
digna de um templo egípcio! Ele eleva os braços em oração. Todos abaixam
a cabeça, como que aniquilados, diante da majestade sacerdotal que está em
comunhão com a Majestade eterna.
Depois, chegou a hora! Ele faz um sinal a Maria. E ela se separa da
mãe e do pai e sobe, vai subindo, como se estivesse fascinada. Ela sorri.
Está sorrindo, agora já à sombra do Templo, onde desce o Véu precioso…
Já está no alto da escadaria, aos pés do Sumo Sacerdote, que lhe impõe as
mãos sobre a cabeça, a vítima é aceita. Que hóstia mais pura terá tido algum
dia o Templo?
Depois o Sumo Sacerdote se volta até a porta do Templo, conservando
a mão sobre o ombro dela, como para conduzir a cordeirinha sem mácula ao
altar. Antes de fazê-la entrar, lhe pergunta:
– Maria de Davi, sabes qual é o teu voto?
Ao “sim” alto e claro, com que ela lhe responde, ele exclama:
– Entra, então. Caminha em minha presença. E sê perfeita.
Maria entra, pois, e a sombra a faz desaparecer, enquanto o grupo das
virgens e das mestras, e depois o dos levitas, a escondem cada vez mais, até
separá-la. Acabou-se…
Agora a porta também gira sobre suas dobradiças harmoniosas… Uma
pequena fresta, permite ainda que se veja o cortejo, que se vai
encaminhando para o Santo. A fresta torna-se apenas um fio. Já não se vê
mais nada. A porta é então fechada.
Ao último acorde das dobradiças sonoras, responde o soluço de dois
velhinhos e um único grito:
– Maria! Minha filha!
Depois, dois gemidos, um que chama o outro:
– Ana!
– Joaquim!
E terminam, dizendo:
– Demos glória ao Senhor, que a recebe em sua Casa, e a conduz pelo
seu caminho.
E tudo termina assim.
8.7
Jesus diz:
– O Sumo Sacerdote havia dito: “Caminha em minha presença, e sê
perfeita.” Ele não sabia que estava falando à mulher que era inferior em
perfeição só a Deus. Mas ele falava em nome de Deus e, por isso, sua
ordem era sagrada. Sempre sagrada, especialmente quando dada àquela que
é cheia de sabedoria.
Maria havia merecido que a “Sabedoria fosse ao seu encontro
mostrando-se primeiro a ela”, porque, “desde o começo de sua vida, tinha
ficado vigiando à sua porta, desejando instruir-se por amor, quis ser pura
para conseguir o perfeito amor e merecer ter a sabedoria por mestra”.
Em sua humildade, não sabia que a possuía desde antes de nascer, e que
sua união com a Sabedoria não era outra coisa, senão a continuação das
divinas palpitações do Paraíso. Ela nem podia imaginar isso. E, quando, no
silêncio do coração, Deus lhe dizia palavras sublimes, Ela humildemente
pensava que fossem pensamentos de orgulho, e, elevando a Deus seu
coração inocente, suplicava: “Tem piedade de tua serva, Senhor!”
Oh! É bem verdade que a verdadeira sábia, a virgem eterna, teve um só
pensamento, desde a aurora do seu dia: “Dirigir a Deus o seu coração, desde
a manhã de sua vida, estando atenta à vontade do Senhor, orando diante do
Altíssimo”, pedindo perdão pela fraqueza do seu coração, como sua
humildade lhe sugeria, sem saber que estava antecipando os apelos de
perdão que haveria de fazer pelos pecadores, aos pés da Cruz, em
companhia de seu Filho, quase morto.
“Quando[22], pois, o Senhor o quiser, ela ficará cheia do Espírito de
inteligência”, compreendendo, então, sua sublime missão. Por enquanto,
não é senão uma pequenina que, na sagrada paz do Templo, abraça,
tornando mais estreitos com Deus, os laços de seus colóquios, de seus
afetos e de suas recordações.
Isto é para todos.
8.8
Mas para ti, pequena Maria, não terá nada em particular para dizer-te
o teu Mestre? “Caminha na minha presença: e portanto sê perfeita.”
Modifico ligeiramente a frase sagrada fazendo dela uma ordem para ti: sê
perfeita no amor, na generosidade, no sofrer.
Olha uma vez mais para minha mãe. E medita sobre aquilo que tantos
ignoram ou querem ignorar, porque a dor é uma matéria por demais dura
para o seu paladar e o seu espírito. A dor. Maria teve-a desde as primeiras
horas da vida. Ser perfeita assim era possuir uma sensibilidade também
perfeita. Portanto mais agudo ainda devia ser o seu sacrifício, sendo, então,
mais meritório também. Quem possui pureza, possui amor, quem possui
amor possui sabedoria, quem possui sabedoria, possui generosidade e
heroísmo, porque sabe o motivo pelo qual se sacrifica.
Eleva para o alto o teu espírito, mesmo quando a cruz te perturba, te
estraçalha, te mata. Deus está contigo.
[21] Pai Abraão no sacrifício do filho Isaac, narrado em: Génesis 22,1-18, inclui também a promessa de Deus que será recordada
em 24.2.
[22] Quando… é citação de: Eclesiástico 39,6; as que precedem são ainda citações de: Provérbios 8.
9. A morte de Joaquim e de Ana foi suave
depois de uma vida de sábia fidelidade a Deus nas
provações.
31 de agosto de 1944.
9.1
Jesus diz:
– Como um rápido crepúsculo de inverno, no qual o vento forte com
neve acumula nuvens pelo céu, assim, a vida dos meus avós conheceu
rapidamente o chegar da noite, depois que o sol deles se deteve, brilhando
na sagrada cortina do Templo.
9.2
Mas, foi dito[23]: “A Sabedoria inspira vida aos seus filhos, toma sob a
sua proteção os que a procuram… Quem ama a sabedoria, ama a vida, e
quem fica vigilante para adquiri-la, haverá de gozar de sua paz. Quem a
possui, terá como herança a vida… Quem a serve, obedecerá ao Santo,
sendo muito amado por Deus… Se crer nela, a terá por herança, confirmada
pelos seus descendentes, porque ela o acompanha nas provações. Antes de
tudo, o escolhe, depois enviará sobre ele todos os temores, medos e
provações, atormentando-o com o açoite de sua disciplina, para prová-lo em
seus pensamentos e adquirir confiança nele. Depois lhe dará estabilidade,
voltando a ele por um caminho reto e o fará contente. Ela lhe descobrirá os
seus segredos, porá nele tesouros de ciência e de inteligência, que se
manifestarão em obras de justiça.”
Sim, tudo isso foi dito. Os livros sapienciais são aplicáveis a todos os
homens que neles encontram um espelho para o seu comportamento e sua
guia. Mas felizes aqueles que podem ser identificados entre os amantes
espirituais da Sabedoria.
Eu me fiz rodear de sábios, que foram meus parentes mortais. Ana,
Joaquim, José, Zacarias e ainda mais, Isabel, e depois o Batista. Acaso não
são eles verdadeiros sábios? Não falo de minha mãe, na qual a Sabedoria
fez sua morada.
9.3
Da juventude até o túmulo, a sabedoria tinha inspirado uma vida
agradável a Deus aos meus avós, protegendo-os do perigo de pecar, como
uma tenda que protege da fúria dos elementos. O santo temor de Deus é
base para a planta da sabedoria, a qual lança todos os seus ramos, até
atingir, no seu vértice, o amor tranqüilo, na sua paz, o amor pacífico, na sua
segurança, o amor seguro, na sua fidelidade, o amor fiel, na sua intensidade,
enfim, o amor total, generoso e ativo dos santos.
“Quem ama a sabedoria, ama a vida, e terá a Vida como herança”,
diz[24] o Eclesiástico. Isto está ligado à minha Palavra: “Aquele que perder
a vida por amor de Mim, salvá-la-á.” Porque não se trata da pobre vida
desta terra e, sim, da vida eterna; não se trata das alegrias de um momento,
mas das alegrias imortais.
Foi neste sentido que Joaquim e Ana amaram a sabedoria. E ela esteve
com eles nas provações.
Quantas provações! Vós que, por não serdes completamente maus,
desejaríeis não ter nunca que chorar e sofrer! Imaginem, estes justos
quantas dessas provações tiveram, embora merecessem ter Maria por filha!
A perseguição política que os expulsou da terra de Davi, empobrecendo-os
grandemente. A tristeza de ver reduzir-se a nada os anos que iam passando,
sem que uma flor lhes dissesse: “Eu serei a vossa continuação.” E, depois, o
receio de tê-la conseguido já na idade em que não tinham nenhuma certeza
de chegarem a vê-la mulher. Além disso, o dever que teriam de cumprir, de
afastá-la de seus corações, para a colocarem sobre o altar de Deus. Ainda
mais: tiveram que viver num silêncio bem mais pesado; depois de estarem
já habituados com o arrulhar de sua pombinha, com o rumor de seus
passinhos, os sorrisos e beijos de sua filhinha, ficaram agora esperando
apenas, por entre recordações, a hora de Deus. E muitas outras coisas.
Doenças, calamidades do tempo, prepotência dos poderosos, quantos duros
golpes assestados contra o frágil castelo de sua modesta propriedade. E
ainda não basta. O sofrimento da filha, que está longe deles, que vai ficar
sozinha e pobre, apesar de todos os cuidados e sacrifícios, não tendo mais
do que as sobras dos bens paternos. Como irá esta filha encontrar essas
sobras, se ficarem por muitos anos sem serem cultivadas, imobilizadas, à
sua espera? Temores, medo, provações e tentações. E fidelidade, fidelidade,
fidelidade sempre, a Deus.
9.4
E a tentação mais forte: que não se lhes negasse o conforto de terem
sua filha junto a eles quando já estivessem bem idosos. Mas, os filhos são
de Deus, antes de serem dos pais. E cada filho pode dizer isto que Eu
disse[25] à minha mãe: “Não sabes que Eu devo tratar dos interesses do Pai
do Céu?” E cada mãe, cada pai deve aprender o que fazer, olhando Maria e
José no Templo, ou Ana e Joaquim na sua casa de Nazaré, cada vez mais
despojada e mais triste, embora possua algo que não diminui nunca,
crescendo sempre mais: a santidade de dois corações, a santidade de um
casamento.
O que resta a Joaquim, já enfermo, e o que resta à sua sofredora esposa,
nas longas e silenciosas tardes de velhos a caminho da morte? Os
vestidinhos, as primeiras sandalinhas, os pobres brinquedos de sua
pequenina, que agora está longe deles, e sempre as lembranças. E, com as
lembranças, uma paz que lhes nasce no coração, quando cada um pode
dizer: “Estou sofrendo, mas cumpri o meu dever de amor para com Deus”.
Estamos, pois, diante de uma alegria sobrehumana, que brilha com uma
luz celestial, desconhecida aos filhos do mundo, e que não perde o brilho ao
cair, como pálpebra pesada sobre dois olhos moribundos, mas que, na sua
última hora, resplende ainda mais, evidenciando verdades ocultas durante
toda a vida, fechadas como borboletas em seus casulos, que só davam sinal
de sua presença por movimentos suaves, enquanto que agora podem abrir
suas asas douradas, mostrando as palavras que as adornam. A luz de suas
vidas vai-se apagando no conhecimento de um futuro feliz para eles e para
sua estirpe, com um louvor ao nome do Senhor sobre os lábios.
9.5
Assim foi a morte dos meus avós, justamente pela santa vida que
tiveram. Por sua santidade eles mereceram ser os primeiros guardiães da
amada de Deus, e, somente quando um sol maior se mostrou no ocaso de
suas vidas, eles entenderam claramente a graça que Deus lhes havia
concedido.
Por sua santidade, Ana não passou pelos sofrimentos da mulher[26] que
dá à luz, mas, sim, pelo êxtase de quem trazia consigo aquela que é a sem
culpa. Para os dois não houve aflições de agonia, mas uma languidez que
foi-se desvanecendo, assim como docemente vai-se apagando uma estrela, à
medida que o sol vem surgindo com a aurora. Eles não tiveram o conforto
de ter-me consigo, Sabedoria Encarnada, como pôde José; no entanto, Eu
era a invisível Presença que, inclinada sobre o travesseiro deles, fazendo-os
adormecer em paz, na esperança do triunfo, lhes dizia sublimes palavras.
Há quem diga: “Por que não tiveram que sofrer para gerar, nem para
morrer, sendo eles também filhos de Adão?” Eu respondo: “O Batista foi
pré-santificado só por ter chegado perto de Mim, quando estava no ventre
de sua mãe, tendo sido ele também filho de Adão, concebido com o pecado
original; não teria recebido nenhuma graça a santa mãe daquela que não
teve mancha, preservada por Deus, por trazer o próprio Deus no seu espírito
quase divino e no seu coração embrionário, sem nunca de Deus se separar,
desde que foi pensada pelo Pai, concebida num ventre, tornando a possuir
Deus plenamente no céu por uma eternidade gloriosa?” E ainda respondo:
“A reta consciência dá uma morte serena, e as orações dos santos vos
alcançam tal morte.”
Joaquim e Ana deixaram atrás de si uma vida inteira vivida numa
consciência reta, que surge então como plácido panorama, servindo-lhes de
guia para o Céu. Eles tinham a santa, em oração pelos seus pais que
estavam longe, diante do Tabernáculo de Deus, pais colocados por ela em
segundo lugar depois de Deus, que é o Bem supremo, mas que eram
amados, como a lei e o sentimento o exigiam, com um amor
sobrenaturalmente perfeito.
[23] foi dito, em: Eclesiásticos 4,11-18.
[24] diz, em: Eclesiástico 4,12-13; está ligado à minha palavra, em : Mateus 16,25; Marcos 8,35; Lucas 9,24 (346.9).
[25] Eu disse, em: Lucas 2,49 (41.12).
[26] não… sofrimentos da mulher: facto admitido — assim anota Maria Valtorta numa cópia dactilografada — também por
parte de alguns teólogos no sentido material da dor do parto; na realidade a alegria estática no dar à luz Maria predominou
sobre o natural sofrimento feminino da grávida, tanto que Ana deu à luz sem ânsias nem crueza próprias desses casos.
10. Cântico de Maria. Ela se lembrava
de tudo o que o seu espírito havia visto em Deus.
2 de setembro de 1944.
10.1
Somente ontem à tarde, sexta-feira, é que a minha mente se iluminou
para ver. Não vi outra coisa senão uma Maria bem jovem, uma Maria de, no
máximo doze anos, cujo rostinho já não tem mais aquelas rotundidades
próprias da meninice, mas vai deixando ver os contornos da mulher,
naquela forma oval que se alonga.
Também os cabelos não estão mais caídos sobre o pescoço, com seus
cachinhos leves, mas estão divididos, formando duas boas tranças de uma
cor de ouro esmaecida — parecem uma liga de prata de tão claros — e
descem passando pelos ombros e chegando até a cintura. Seu rosto agora
está mais pensativo, mais maduro, ainda que continue a ser o rosto de uma
menina, uma menina bela e pura que, toda vestida de branco, está
costurando em um pequeno quarto, também branco, de cuja janela
escancarada, pode-se ver o edifício imponente do Templo, no centro, e
depois, toda a descida dos degraus dos pátios e dos pórticos. Atrás dos
muros, que rodeiam o Templo, vê-se a cidade com suas ruas, casas e jardins
e, no fundo, o cume arredondado e verde do monte das Oliveiras.
Ela está costurando e cantando em voz baixa. Não sei se é um canto
religioso. Diz assim:

“Como uma estrela dentro da água clara


brilha-me uma luz no coração.
Desde minha infância, de mim não se separa
e suavemente ela me guia com amor.
No coração eu tenho um canto.
De onde ele virá?
Homem, tu não sabes isso.
Vem de onde repousa o Santo.
Eu olho para a minha estrela clara
e não quero coisa alguma que não seja,
mesmo a mais doce e querida,
mas que não seja esta doce luz que é toda minha.
Tu me trouxeste desde os altos Céus,
ó minha Estrela, no seio de uma mãe.
Vives agora em mim, mas por fora dos véus
te estou podendo ver, ó rosto glorioso do Pai.
Quando darás à tua serva a honra
de ser do Salvador a humilde serva?
Manda, manda-nos do Céu o Messias.
Aceita, ó Pai santo, a oferta de Maria”.

10.2
Maria se cala, sorri e suspira, e depois se inclina e se ajoelha em
oração. Seu pequeno rosto é todo uma só luz. Erguido depois para o
azul límpido de um belo céu de verão, parece atrair para si toda aquela
luminosidade, e irradiá-la de si. Ou melhor, parece que um sol escondido no
seu interior irradie suas luzes e incendeie a neve levemente rosada da face
de Maria, derramando-se sobre as coisas e o sol que brilha na terra,
abençoando e prometendo toda sorte de bens.
Enquanto Maria está para levantar-se, depois de sua amorosa oração, e
em seu rosto ainda lhe permanece a luminosidade do êxtase, entra a anciã
Ana de Fanuel, e pára, assombrada, ou, pelo menos, admirada pelo ato e
pelo aspecto de Maria.
Depois a chama:
– Maria!
E a menina se volta com um sorriso, diferente, mas sempre muito lindo,
saudando-a:
– Ana, a paz esteja contigo!
10.3
– Estavas rezando? A oração não te basta nunca?
– A oração poderia me bastar. Mas eu falo com Deus! Ana, não fazes
uma idéia como eu O sinta próximo de mim. Mais do que próximo, sinto-O
em meu coração. Deus me perdoe esta soberba. Mas eu não me sinto
sozinha. Estás vendo? Lá, naquela casa de ouro e de neve, atrás da dupla
Cortina, está o Santo dos santos. Nenhum olho, a não ser o do Sumo
Sacerdote, pode fixar-se no Propiciatório sobre o qual repousa a glória do
Senhor. Mas eu não preciso olhar, com toda a alma cheia de veneração, para
aquele duplo Véu bordado, que se move com as ondas dos cantos das
virgens e dos levitas, e guarda o perfume dos preciosos incensos, como para
tentar perfurar sua urdidura, a fim de ver transparecer o Testemunho. Sim,
também eu olho para ele! Não temas que eu não o olhe, cheia de veneração,
como fazem todos os filhos de Israel. Não temas que o orgulho me cegue, a
ponto de fazer-me pensar isto que estou te dizendo. Eu olho para ele. Não
há nenhum servo humilde no povo de Deus que olhe com mais humildade
para a Casa do Senhor, como eu, pensando ser a mais indigna de todos. O
que eu vejo? Vejo um véu. O que deve estar atrás do Véu? Um Tabernáculo.
O que há nele? Se olho em meu coração, eis que vejo Deus, que brilha em
sua glória e amor, dizendo-me: “Eu te amo”, e eu Lhe digo: “Eu te amo” e
sinto-me derreter, me deleito em cada palpitação do coração, neste beijo
recíproco… Eu estou no meio de vós, mestras e companheiras queridas.
Mas um círculo de fogo me separa de vós. Dentro do círculo estamos Deus
e eu, que vos vejo, através do Fogo de Deus, e assim vos amo… Mas não
posso amar-vos segundo a carne. Jamais poderei amar ninguém segundo a
carne. Só posso amar a Este que me ama, segundo o espírito. 10.4Eu conheço
a minha sorte. A Lei secular de Israel quer que cada menina se torne esposa,
e cada esposa mãe. Mas eu, ainda que obedecendo à Lei, obedeço uma Voz
que diz: “Eu te quero”, mas como poderei fazer isso se sou e serei virgem?
Esta tão doce e invisível Presença, que está comigo me ajudará, porque Ela
é que quer assim. Eu não temo. Não tenho mais pai nem mãe… só o Eterno
sabe como nesta dor se purificou tudo o que eu tinha de humano. Foi uma
purificação por meio de uma dor atroz. Agora não tenho ninguém, além de
Deus. A Ele obedeço, portanto, cegamente. Já teria obedecido até contra
meu pai e minha mãe, porque a Voz me instrui que quem quer acompanhá-
la deve ir além dos pais, que são amorosos guardiães, rondam os muros do
coração filial, querendo conduzi-lo à alegria, mas, segundo o modo de ver
deles… Não sabem que há outros modos que conduzem a uma alegria
infinita… Eu lhes teria deixado as vestes e o manto, para acompanhar a
Voz, que me diz: “Vem, ó minha querida, ó minha esposa!” Eu lhes teria
deixado tudo. As pérolas das lágrimas, que choraria por dever desobedecer,
e os rubis do meu sangue, dado que até a morte eu teria desafiado para
acompanhar a Voz que me chama, lhes diriam que há algo maior e mais
doce do que o amor paterno e materno. É a Voz de Deus. A Sua vontade
agora me deixou livre até do laço da piedade filial. Talvez não teria sido
propriamente um laço. Eles eram dois justos, e Deus certamente lhes falava,
como faz comigo. Eles seguiriam a justiça e a verdade. Quando penso neles,
os vejo na tranqüila espera dos Patriarcas. Apresso, com o meu sacrifício, a
chegada do Messias para abrir-lhes as portas do Céu. Sobre a terra, sou eu
que me dirijo, ou melhor, é Deus que dirige a sua pobre serva, dando-lhe as
Suas ordens. Eu as cumpro, pois cumpri-las é a minha alegria. Quando
chegar a hora, direi ao esposo o meu segredo… e ele o aceitará.
– Mas, Maria, que palavras encontrarás para persuadi-lo? Terás contra
ti o amor de um homem, a Lei e a vida.
– Eu terei Deus comigo… Deus abrirá à luz o coração do meu esposo…
A vida perderá os espinhos da sensualidade, tornando-se uma pura flor com
perfume de caridade. 10.5A Lei… Ora, Ana, não me digas que sou uma
blasfemadora. Eu acho que a Lei está para ser mudada. Por quem, dirás tu,
se a Lei é divina? Pelo único que a pode mudar. Por Deus. O tempo está
mais perto do que pensais, eu vos digo. Porque, lendo Daniel, uma grande
luz se fez em mim, partindo do fundo do meu coração, e minha mente
compreendeu o sentido das palavras misteriosas. As setenta semanas serão
abreviadas pelas orações dos justos. Foi mudado o número dos anos? Não.
A profecia não mente. A medida do tempo profético não é o curso do sol e
sim o da lua. Portanto, eu te digo: “A hora está perto, quando se ouvirá o
vagido daquele que nasceu de uma Virgem.” Oh! Se esta Luz que me ama
quisesse me dizer, já que me diz tantas coisas, onde está a feliz donzela[27]
que dará à luz o Filho de Deus, que dará o Messias ao seu povo!
Caminhando descalça, percorreria a terra, e nem o frio, nem o gelo, nem a
poeira, nem a canícula, nem as feras, nem a fome seriam para mim
obstáculos para eu chegar perto dela e dizer-lhe: “Concede à tua serva e à
serva dos servos de Cristo de viver sob o teu teto. Eu trabalharei o moinho e
a prensa. Coloca-me como escrava ao lado do moinho, ou como pastora do
teu rebanho, como a que limpa as fraldas do teu Filho, coloca-me em tuas
cozinhas, junto aos teus fornos… coloca-me onde quiseres, mas me aceita!
Que eu o possa ver! Que eu ouça a sua voz! Que dele eu receba um olhar.”
Se ela não me quisesse, como mendiga à sua porta, eu haveria de viver de
esmolas e de zombarias, ao ar livre, sujeita aos rigores do tempo, contanto
que pudesse ouvir a voz do Messias menino, o eco dos seus risos, depois
vê-lo caminhar… Talvez algum dia eu recebesse Dele a esmola de um
pão… Oh! ainda que a fome me estivesse dilacerando as entranhas, eu
estivesse desfalecendo, depois de tanto tempo sem comer, eu não comeria
aquele pão. Eu o conservaria como um saquinho de pérolas sobre o meu
coração, e o beijaria para sentir o perfume da mão do Cristo. E já não
sentiria mais fome nem frio, porque aquele contato me daria êxtase e calor,
êxtase e alimento…
10.6
– Tu deverias ser a mãe do Cristo, tu que o amas tanto assim! Será
para isso que queres permanecer virgem?
– Oh! não. Eu sou apenas miséria e pó. Não ouso levantar o olhar em
direção à Glória. É por isso que eu gosto de olhar para dentro do meu
coração mais do que para o duplo Véu, além do qual está a invisível
Presença de Jeová. Lá está o Deus terrível do Sinai. Mas aqui, em mim, eu
vejo o nosso Pai, uma Face amorosa que me sorri e me abençoa, porque eu
sou pequena como um passarinho, que o vento sustenta sem sentir peso
algum, e frágil como o caule do pequeno lírio selvagem que só sabe
florescer e exalar seu perfume, não opondo outra resistência ao vento, a não
ser a de sua perfumada e pura doçura. Deus, o meu vento de amor! Não é
por isso que permaneço virgem. Mas porque se o Filho de Deus é de uma
virgem, ao Santo do Altíssimo não pode agradar senão aquilo que no Céu
Ele escolheu por mãe e aquilo que na terra lhe fala do Pai Celeste: a Pureza.
Se a Lei meditasse isto, e os rabis que as multiplicaram em todas as
sutilezas, voltassem sua mente para horizontes mais altos, mergulhando-se
no sobrenatural, deixariam de lado o humano e o lucro, que é o que eles
procuram esquecendo-se de seu Fim supremo, orientando os seus
ensinamentos à Pureza, a fim de que o Rei de Israel a encontre ao chegar.
Com a oliveira do Pacífico, com as palmas do Triunfador, espalhai lírios,
mais lírios, muitos lírios… Quanto Sangue o Salvador não deverá derramar
para redimir-nos! Quanto sangue! Das milhares e milhares de feridas que
Isaías viu no corpo do Homem das dores, está caindo uma chuva de Sangue
como o orvalho de um vaso poroso. Que este Sangue divino não caia onde
houver profanação e blasfêmia, mas, sim, em cálices de pureza odorífera,
que o acolhem e recolhem, para depois espargi-lo sobre os doentes do
espírito, sobre os leprosos da alma, que estão mortos para Deus. Dai lírios,
dai lírios para enxugar os suores e as lágrimas do Cristo, com a cândida
veste de pétalas puras! Dai lírios e mais lírios para o ardor de sua febre de
Mártir! Oh! Onde estará aquele Lírio que te carrega? Onde estará quem te
dessedentará, em tua febre ardente? Onde estará aquela que se tornará
vermelha pelo teu Sangue, morrendo pela dor de te ver morrer? Onde estará
quem chorará pelo teu Corpo esvaído em sangue? Oh! Cristo! Cristo! Meu
suspiro!
Maria se cala, lacrimejante e esmagada.
10.7
Ana se cala por algum tempo e depois, com sua branca voz de anciã
comovida, diz:
– Tens mais alguma coisa para ensinar-me, Maria?
Maria leva um susto. Em sua humildade, ela crê que sua mestra a esteja
censurando, e diz:
– Oh! Perdão! Tu és mestra, eu sou um pobre nada. Mas esta Voz me
saiu do coração. Eu bem que a vigio, para não falar. Mas, como um rio, que
sob o impulso da onda, arrebenta os diques, eis que eu fui apanhada
transbordando. Não faças conta de minhas palavras, e castiga a minha
presunção. As palavras misteriosas deveriam ficar na arca secreta do
coração, que Deus, em sua bondade, trata tão bem. Eu sei disso, mas é tão
doce esta invisível Presença, que dela eu estou ébria… Ana, perdoa a tua
pequena serva!
Ana a abraça, e todo o seu velho rosto rugoso treme, brilhando em
prantos. As lágrimas escorrem por entre as rugas, como a água por um
terreno acidentado se transforma em um pântano que treme. Mas a velha
mestra não provoca riso. Pelo contrário, o seu pranto excita a mais alta
veneração.
Maria está entre os seus braços, com o rostinho contra o peito da velha
mestra, e tudo termina assim.

10.8
Jesus diz:
– Maria se recordava de Deus. Sonhava com Deus. Pensava estar
sonhando. Não fazia mais do que rever tudo o que o seu espírito havia visto
no fulgor do Céu de Deus, no momento em que tinha sido criada, para ser
unida à carne concebida na terra. Ela partilhava uma das propriedades de
Deus ainda que de modo bem menor, como exigia a justiça. Assim, ela
tinha a faculdade de recordar, ver e prever por atributo de uma inteligência
poderosa e perfeita, não lesada pela Culpa.
10.9
O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Uma das
semelhanças está na sua possibilidade de recordar, ver e prever, através do
espírito. Isto explica também a faculdade de ver o futuro. Muitas vezes, esta
faculdade aparece, pela vontade de Deus, de modo direto, outras vezes, vem
pela lembrança, que se ergue, como o sol da manhã, iluminando um
determinado ponto do horizonte dos séculos, como é visto no seio de Deus.
Estes são mistérios altos demais, para que os possais compreender
plenamente. Mas, pensai.
Aquela Inteligência suprema, aquele Pensamento que tudo sabe, aquela
Vista que tudo vê, que vos criou por um ato de sua vontade, com um sopro
de Seu infinito amor, fazendo-vos filhos Seus, por origem, filhos Seus
também pela meta a que fostes destinados, poderá Ele, por acaso, dar-vos
algo sem ser Ele mesmo? Ele vo-lo dá em uma medida infinitamente
pequena, porque nunca uma criatura poderia ter a capacidade do seu
Criador. Mas a medida que vos dá, ainda que em sua infinita pequenez, é
perfeita e completa.
Que tesouro de inteligência Deus deu ao homem Adão! A culpa,
certamente, diminuiu essa inteligência, mas o Meu sacrifício reintegra o
homem, e abre para vós os fulgores da Inteligência, os seus canais, a sua
ciência. Oh! Que sublimidade tem a mente humana, unida a Deus pela
Graça, participando da Sua capacidade de conhecer!… A mente humana
unida a Deus pela Graça.
Não existe outro modo. Os curiosos de segredos ultra-humanos que
pensem nisso. Todo conhecimento que não proceda de uma alma em estado
de graça — e não está em graça quem está contra a Lei de Deus, tão clara
em suas ordens — só pode provir de Satanás. Dificilmente satanás
corresponde à verdade em tudo o que se refere a assuntos humanos, e nunca
corresponde à verdade no que se refere ao sobrenatural, porque o demônio é
pai da mentira, conduzindo-vos consigo aos caminhos da mentira. Não há
nenhum outro método para conhecer a verdade, senão o método de Deus, o
qual fala, diz ou faz lembrar, assim como um pai que faz um filho recordar-
se da casa paterna, ao dizer: “Estás lembrado de quando Comigo fazias isto,
vias aquilo, ou ouvias aquilo outro? Estás lembrado de quando recebias o
meu beijo de despedida? Lembras-te de quando me viste pela primeira vez,
o sol fulgurante do meu rosto sobre a tua alma virgem, que tinha acabado de
ser criada, e estava ainda limpa do marasmo, que mais tarde te diminuiu e
degradou, quando mal acabavas de sair de Mim? Lembras-te ainda de
quando chegaste a compreender, em um sobressalto de amor, o que é o
Amor? Qual é o mistério do nosso Ser e da nossa Procedência?” Até onde a
capacidade limitada do homem em estado de graça não consegue chegar,
vem o Espírito falar-lhe e ensinar-lhe.
Contudo, para o homem possuir o Espírito, é necessária a Graça. Para
possuir a Verdade e a Ciência, é necessária a Graça. Para o homem ter o
Pai, é necessária a Graça. A Graça é a Tenda em que as Três Pessoas fazem
a sua morada, é o Propiciatório sobre o qual pousa o Eterno, e fala, não
mais de dentro da nuvem, mas revelando sua Face ao filho fiel. Os santos se
recordam de Deus, das palavras ouvidas da Mente criadora e que a Bondade
ressuscita em seus corações, para elevá-los, como águias, à contemplação
do Verdadeiro e ao conhecimento do Tempo.
10.10
Maria era a cheia de Graça. Toda a Graça, una e trina estava nela,
toda a Graça una e trina a preparava como esposa para as núpcias.
Preparava-a como o leito nupcial para a prole, divinizando-a para a sua
maternidade e missão. Ela é a que vem concluir o ciclo das profetisas do
Antigo Testamento, e abre o ciclo dos “porta-vozes de Deus”, no Novo
Testamento.
Arca da verdadeira Palavra de Deus, olhando em seu seio eternamente
inviolado, Maria descobria as palavras da ciência eterna, traçadas pelo dedo
de Deus em seu coração imaculado, e se recordava, como todos os Santos,
tê-las já ouvido, quando gerada com o seu espírito imortal de Deus Pai,
criador de toda vida. E, se não se recordava de tudo, a respeito de sua futura
missão, é porque em toda perfeição humana, Deus deixa algumas lacunas,
por divina prudência, que é bondade e merecimento, em favor da criatura.
Como uma segunda Eva, Maria precisou conquistar a sua parte de
merecimento, ao ser a mãe de Cristo, com uma fiel boa vontade, que Deus
quis ter até em seu Cristo, para fazê-lo Redentor.
O espírito de Maria estava no Céu. Sua personalidade e sua carne
estavam na terra, devendo pisar terra e carne, para chegar ao espírito e uni-
lo ao Espírito, num abraço fecundo.

Nota minha. Durante todo o dia de ontem, estive imaginando ver o


10.11

anúncio da morte dos pais de Maria, dado por Zacarias, quem saberá
porquê? Assim, também eu pensava como Jesus teria tratado a “lembrança
de Deus, por parte dos santos.” Hoje de manhã, quando começou a visão, eu
disse: “Agora vão dizer que Maria está órfã”, e já ia ficando com o coração
pequenino porque… era a minha tristeza destes dias que eu teria visto e
sentido. Pelo contrário, não há nada de tudo o que eu pensava ver ou ouvir,
nem mesmo uma só palavra. Isto me consola, porque me diz que não há
nada de mim própria, nem mesmo uma honesta sugestão sobre determinado
ponto. Tudo vem mesmo de outra fonte. Meu medo contínuo cessa… até a
próxima vez, porque este medo de ser enganada e de enganar me haverá de
acompanhar sempre.
[27] onde está a feliz donzela… Não deve maravilhar — assim anota Maria Valtorta numa cópia dactilografada — esta
ignorância de Maria quanto ao seu futuro como Mãe de Jesus. Deus, que por singular privilégio lhe havia concedido sabedoria
proporcional ao seu estado de Imaculada e de Predestinada Mãe do Verbo Encarnado, por motivos que nos são imperscrutáveis
quis que Maria ignorasse algumas coisas até ao momento oportuno de o saber. Tal conceito vem reforçado no texto de 10.10,
17.9, 108.2.
11. Maria confidencia o seu voto ao Sumo
Sacerdote.
3 de setembro de 1944.
11.1
Que noite de inferno! Parecia mesmo que os demônios estivessem
soltos sobre a terra. Canhonaços, trovões, relâmpagos, perigo, medo,
sofrimento por estar em uma cama não minha e, em meio a tudo isso, como
uma flor toda branca e suave, colocada entre labaredas e espinheiros, a
presença de Maria, que está um pouco mais adulta do que na visão de
ontem, mas sempre jovem, com as suas tranças loiras sobre os ombros, com
o seu vestido branco, com seu sorriso doce e cheio de recolhimento, um
sorriso interior, voltado para o mistério glorioso, que ela acolheu em seu
coração. Passo a noite comparando o seu suave aspecto com a ferocidade
que há no mundo, e relembrando suas palavras de ontem cedo, um canto de
viva caridade, com o ódio dos que se dilaceram.
Agora de manhã, tendo voltado ao silêncio do meu quarto, assisto a esta
cena.
11.2
Maria está sempre no Templo. Agora, ela está saindo com outras
virgens do Templo verdadeiro e propriamente dito.
Lá dentro deve ter havido alguma cerimônia, pois o cheiro do incenso
se espalha pelo ar, que está todo avermelhado por causa de um belo pôr-do-
sol, que eu diria de um outono adiantado, com um céu docemente cansado,
como um outubro sereno, inclinando-se sobre os jardins de Jerusalém, nos
quais o amarelo-ocre das folhas, estando para cair, vão derramando
manchas loiro-avermelhadas no verde-prateado das oliveiras.
A fileira, ou melhor, o cândido enxame das virgens, atravessa o pátio
dos fundos, sobe por uma escadaria, passa por uma série de pórticos, entra
em um outro pátio mais simples, quadrado, tendo uma única entrada. Deve
ser este o lugar que serve para acomodar os pequenos quartos das virgens
destinadas ao Templo, pois cada menina se dirige para a sua cela, como
uma pombinha para o seu ninho, e até parece um bando de pombas que se
separam, depois de estarem unidas respondendo a um apelo. Muitas, eu
diria todas, falam entre si em voz baixa e alegre, antes de se separarem.
Maria está calada. Somente antes de se separar das outras, ela as saúda
afetuosamente, depois se dirige para o seu pequeno quarto, que fica num
canto à direita.
Lá, ela se encontra com uma mestra também anciã, embora não tanto
11.3

quanto Ana de Fanuel.


– Maria, o Sumo Sacerdote te espera.
Maria olha para ela, ligeiramente surpresa, mas não lhe pergunta nada.
Responde só isto:
– Irei imediatamente.
Não sei se a ampla sala em que ela entra faz parte da casa do Sacerdote,
ou se faz parte dos aposentos das mulheres que trabalham no Templo. Só sei
que é uma sala vasta e muito clara, bem arrumada, onde, além do Sumo
Sacerdote, majestoso em suas vestes, estão também Zacarias e Ana de
Fanuel.
Maria faz uma grande reverência na entrada, não continuando a entrar
até que o Sumo Sacerdote lhe diga:
– Adiante, Maria. Não temas.
Maria ergue, então, de novo o corpo, e vai para a frente devagar, não
porque queira, mas por um movimento involuntário que lhe dá um ar
solene, fazendo-a parecer, de fato, uma mulher.
Ana sorri para ela, para dar-lhe coragem, e Zacarias a saúda, dizendo:
– A paz esteja contigo, prima.
O Pontífice a observa atentamente, e depois diz a Zacarias:
– Nela se vê logo a estirpe de Davi e de Arão.
– Minha filha, eu conheço a tua graça e bondade. Sei que cada dia
vieste crescendo na ciência e na graça, aos olhos de Deus e dos homens. Sei
que a voz de Deus murmura ao teu coração as mais doces palavras. Sei que
tu és a Flor do Templo de Deus e que um terceiro querubim está diante do
Testemunho, desde quando tu lá estás. Eu gostaria que o teu perfume
continuasse a subir com o incenso em cada novo dia. Mas as palavras que a
Lei diz são outras. Tu não és mais uma menina, mas uma mulher. E toda
mulher deve ser esposa em Israel, para levar ao Senhor o seu filho varão. Tu
cumprirás a ordem da Lei. Não tenhas medo, não fiques envergonhada.
Estou bem lembrado da tua realeza. A própria Lei já tutela essa condição,
quando ordena que a cada homem seja dada a mulher da sua estirpe. Ainda
que assim não fosse, assim eu o faria, para não corromper o teu nobilíssimo
sangue. Não conheces, Maria, alguém da tua estirpe, que possa ser o teu
esposo?
Maria ergue o rosto, todo ruborizado de pudor, e sobre o qual, dos cílios
das pálpebras vem brotando um primeiro sinal de pranto, e com voz
trêmula, responde:
– Ninguém.
– Mas ela não pode conhecer alguém, porque entrou aqui em sua
infância, e a estirpe de Davi tem sido perseguida e dispersa de tal modo,
que não foi possível que os diversos ramos se reunissem como em uma
fronde, formando a copa da palmeira real –diz Zacarias.
– Então, vamos deixar para Deus a escolha.
11.4
As lágrimas, até aí contidas jorram agora, e descem até à boca
trêmula, e Maria lança um olhar suplicante à sua mestra.
– Maria fez um voto ao Senhor pela sua glória e pela salvação de Israel.
Naquele tempo ela não passava de uma menina, estava aprendendo a
soletrar, e já se tinha obrigado por um voto… –diz Ana em sua ajuda.
– O teu pranto, então, é por isso? Não é por resistência à Lei?
– É por isso… e não por outra causa. Eu obedeço a ti, Sacerdote de
Deus.
– Isto vem confirmar tudo o que sempre me foi dito de ti. Há quantos
anos que fizeste essa promessa de virgindade?[28]
– Desde sempre, penso. Ainda não estava neste Templo, e já me havia
entregue ao Senhor.
– Não és tu aquela pequenina que, faz agora doze invernos, vieste
pedir-me para entrar?
– Sou eu.
– E como podes dizer que naquele tempo já eras de Deus?
– Se olho para trás, vejo-me consagrada já ao Senhor. Não posso
lembrar-me da hora em que nasci, nem de como foi que comecei a amar a
minha mãe e a dizer a meu pai: “Meu pai, eu sou tua filha”… Mas eu me
lembro, ainda que não saiba quando começou, de ter dado a Deus meu
coração. Talvez tenha sido com o primeiro beijo que eu soube dar, com a
primeira palavra que eu consegui pronunciar, com o primeiro passo que eu
fui capaz de dar… Sim, isso mesmo. Creio que a primeira recordação de
amor, vou encontrá-la no primeiro passo firme que eu consegui dar…
Minha casa… tinha um jardim cheio de flores… tinha um pomar e muitos
campos… e lá havia uma nascente, bem lá no fundo, ao sopé de um monte,
e a nascente jorrava de uma rocha escavada, que formava uma gruta… era
cheia de ervas de talos longos e finos, que ficavam penduradas como
pequenas cascatas verdes, que vinham de diversas direções e parecia que
estivesse chovendo, porque as folhinhas leves das pequenas copas
semelhantes a um bordado, tinham uma gotinha de água em cada uma que,
ao pingar, fazia o som de uma campainha, bem pequenina. E a nascente
também cantava. Lá havia passarinhos nos ramos das oliveiras e das
macieiras, que estavam na encosta acima da nascente, pombas brancas, que
vinham lavar-se no espelho límpido da água da fonte… Eu não me
lembrava mais de tudo aquilo, porque eu tinha colocado todo o meu coração
em Deus e, com exceção do pai e da mãe, amados por mim na vida e na
morte, quaisquer outras coisas da terra tinham desaparecido do meu
coração… Mas tu me estás fazendo pensar, Sacerdote… Devo descobrir
quando foi que me dei a Deus… e por isso as coisas dos primeiros anos
estão voltando à minha mente… Eu amava aquela gruta, porque, mais doce
do que o canto da água e dos passarinhos, lá eu ouvia uma Voz que me
dizia: “Vem, minha querida!” Eu amava aquelas ervas ornadas com gotas
sonoras e parecidas com lindos diamantes, porque nelas eu via o sinal do
meu Senhor, e me tornava alheia a tudo mais, ao dizer a mim mesma: “Vê
como é grande o teu Deus, ó minha alma! Aquele que fez os cedros do
Líbano, lá no Norte, fez também aqui estas folhinhas que se inclinam sob o
peso de um mosquitinho, para alegria dos teus olhos e como anteparo para
os teus pequenos pés.” Eu amava aquele silêncio das coisas puras: o vento
leve, a água prateada, o asseio das pombas… eu amava aquela paz que
velava sobre a pequena gruta, descendo das macieiras e das oliveiras, agora
todas em flor, e depois todas carregadas de frutos… E não sei… parecia que
a Voz me dissesse: “Vem, tu, minha oliva linda; vem, tu, doce maçã; vem,
tu, fonte selada; vem, tu, ó minha pomba”… Doce, o amor do pai e da
mãe… doce era a voz deles que me chamava… mas esta voz, esta voz! Oh!
No Paraíso terrestre, penso que foi assim que a ouviu aquela que foi a
culpada, e eu nem sei como foi que ela pôde preferir um sibilo a esta Voz de
amor, como pôde apetecer um outro conhecimento, que não fosse o de
Deus… Com os lábios, que ainda estavam com o cheiro do leite materno,
mas com o coração tornado ébrio pelo mel celeste, eu disse, então: “Eis-me
aqui, eu vou. Sou tua. E nenhum outro senhor terá a minha carne, senão Tu,
Senhor, como outro amor não tem o meu espírito”… Parecia-me estar
repetindo coisas já ditas e estar cumprindo um rito há tempo realizado, nem
era estranho para mim o Esposo escolhido, porque Dele conhecia já o ardor
e minha vista estava já afeita à sua luz, e minha capacidade de amar se
havia completado entre os seus braços. Quando foi? Não sei. Do lado de lá
da vida, eu diria, porque sinto que sempre o tive, e que Ele sempre me teve,
e que eu existo porque Ele me quis para alegria do seu Espírito e do meu…
11.5
Agora, eu obedeço, Sacerdote. Mas diz-me tu, como é que deverei agir.
Não tenho pai nem mãe. Sê tu o meu guia.
– Deus te dará o esposo, e santo ele há de ser, pois te entregas a Deus.
Tu contarás ao teu esposo qual é o teu voto.
– E ele aceitará?
– Assim espero. Reza, ó filha, para que ele possa compreender teu
coração. Vai agora. Deus te acompanhe sempre.
Maria se retira com Ana. Zacarias fica com o Pontífice.
Cessa assim a visão.
[28] és virgem, diz-se no sentido de: consagraste-te virgem, fizeste o voto de virgindade, como em 12.7; assim como a afirmação
me farei virgem (em 7.4) significa permanecerei virgem por minha vontade. A virgindade de Maria Ss. vem particularmente
reafirmada e celebrada em: 5.7/15 -35.10/11 -100.12 -136.6.
12. José escolhido como esposo da Virgem.
4 de setembro de 1944.
12.1
Vejo um rico salão lindamente pavimentado, com cortinas, tapetes e
móveis entalhados. Deve ainda ser também essa, uma parte do Templo,
porque vejo sacerdotes, entre os quais Zacarias, e muitos homens de várias
idades, ou seja: de vinte a cinqüenta anos, mais ou menos.
Eles estão falando animadamente uns com os outros em voz baixa.
Parecem estar ansiosos por alguma coisa, que eu ainda não sei o que seja.
Todos estão com roupas novas, ou pelo menos lavadas há pouco, como se
estivessem preparados para uma festa. Muitos tiraram o véu que lhes estava
cobrindo a cabeça, mas outros ficaram cobertos, especialmente os anciãos.
Os jovens preferem ficar com as cabeças descobertas, uns ostentando suas
cabeleiras loiro-escuras; outros, as cor de amora; alguns, as bem escuras; e
vejo uma de cor vermelho cobre. A maior parte dos jovens tem os cabelos
cortados curtos; mas há também os de longas cabeleiras que descem até os
ombros. Parece que eles não se conhecem uns aos outros, pois vejo como
estão se observando mútua e curiosamente. Mas devem ser parentes entre
si, porque pode-se notar que há um pensamento que está preocupando a
todos.
12.2
A um canto estou vendo José. Ele está falando com um velhinho
ainda robusto. José deve ter seus trinta anos. É um belo homem, de cabelos
curtos e um tanto crespos, de cor castanho escuro, como sua barba e seus
bigodes, que formam um sombreado, pondo em relevo o queixo, subindo
pelas faces, que são moreno-avermelhadas, não oliváceas, como costumam
ser os homens morenos. Ele tem os olhos escuros, bons e profundos, muito
sérios e parecendo até um pouco tristes. Mas, quando ele sorri, como está
fazendo agora, seus olhos se tornam alegres e joviais. José está todo vestido
de um marrom claro, muito simples, mas muito bem arrumado.
12.3
Agora entra um grupo de jovens levitas, colocando-se entre a porta e
uma longa e estreita mesa, que fica perto da parede. A porta, ao meio da
mesa, fica aberta. Somente uma das cortinas desce até vinte centímetros do
solo, cobrindo o vão da porta.
A curiosidade aumenta. E, ainda mais, quando uma mão afasta a cortina
para dar passagem a um levita, que traz nos braços um feixe de ramo secos,
sobre o qual foi colocado um ramo florido, com todo o cuidado. Em uma
fina camada, as pétalas brancas das flores mal se recordam de sua primeira
cor rosada, que ainda se pode ver no centro, tornando-se, porém, mais clara,
à medida que se aproxima das extremidades das delicadas pétalas. O levita
coloca o feixe de ramos sobre a mesa, com muito cuidado, para não estragar
o milagre daquele ramo florido, que está em meio a tantos ramos secos.
Um murmúrio passa pelo salão. Os pescoços se espicham, os olhares se
tornam mais atentos. Até Zacarias, com os sacerdotes que estão perto da
porta, está querendo ver. Mas não consegue.
José, no seu canto, dá apenas uma olhadela no feixe de ramos, e quando
um interlocutor lhe diz algo, faz um gesto de negação, como se estivesse
dizendo: “Impossível!”, e sorri.
12.4
Ouve-se um toque de trombeta, do outro lado da cortina. Todos se
calam, e se colocam em ordem, com o rosto virado para a saída, que agora
está completamente aberta, com a cortina deslizada pelas argolas. Entra o
Sumo Pontífice, rodeado por outros anciãos,. Todos se inclinam
profundamente. O Pontífice vai até à sua mesa, falando assim:
– Homens da estirpe de Davi, que aqui vos reunistes, em obediência a
uma ordem minha, escutai. O Senhor falou, louvores sejam dados a Ele! De
sua Glória desceu um raio e, como um sol de primavera, deu vida a um
ramo seco, que floresceu milagrosamente, enquanto nenhum outro ramo da
terra hoje está florido, no último dia das Encênias, quando ainda não se
derreteu a neve que caiu sobre as montanhas de Judá, sendo a única candura
que existe entre Sião e Betânia. Deus falou, fazendo-se Pai e tutor da
virgem de Davi, que não tem nenhum outro senão Ele para a sua tutela.
Santa menina, glória do Templo e da estirpe, mereceu a palavra de Deus
para ficar conhecendo o nome do esposo que agradou ao Eterno. Ele deve
ser muito justo, para ser o eleito do Senhor como guarda da virgem a Ele
tão querida! Por isso, a nossa dor de perdê-la se atenua, e cessa toda a nossa
preocupação quanto ao seu destino de esposa. E ao que foi indicado por
Deus confiamos com toda a segurança a virgem sobre a qual está a bênção
de Deus e nossa. O nome do esposo é José de Jacó, de Belém, da tribo de
Davi, carpinteiro em Nazaré da Galiléia. José, vem para a frente! O Sumo
Pontífice te ordena.
Grande murmúrio. Cabeças que se viram, olhos e mãos que acenam,
explosões de desilusão e expressões de alívio. Alguém, especialmente entre
os velhos, deve ter ficado alegre por não ter tido esta sorte.
José, muito vermelho e embaraçado, vai para a frente. Está agora diante
da mesa, em frente ao Pontífice, que saúda com reverência.
– Vinde todos e olhai o nome escrito sobre o ramo. Apanhe cada um o
seu próprio ramo, para que se prove que não houve fraude.
Os homens obedecem. Olham para o ramo que está delicadamente
seguro pelo Sumo Sacerdote, apanha cada um o seu próprio ramo, e uns o
despedaçam, outros o conservam. Todos observam José, há quem olhe e se
cale e outros que se felicitam. O velhinho, com quem José conversava
antes, diz:
– Eu não te havia dito, José? Quem menos se sente seguro, é o que
vence a partida!
Agora todos já passaram.
12.5
O Sumo Sacerdote entrega a José o ramo florido, e depois põe-lhe a
mão sobre o ombro, dizendo:
– A esposa que Deus te dá não é rica, tu bem o sabes. Mas possue todas
as virtudes. Procura ser sempre mais digno dela. Não há em Israel outra flor
de tão rara beleza e pureza. Agora, saí, todos vós ficando apenas José. Tu,
Zacarias, como seu parente, conduz a esposa até aqui.
Todos saem, menos o Sumo Sacerdote e José. A cortina torna a ser
baixada sobre a saída.
José, todo humilde, está junto ao majestoso Sacerdote. Há um momento
de silêncio, e depois o Sacerdote lhe diz:
– Maria precisa dizer-te um voto seu. Procuras ajudar a timidez dela.
Sejas bom para com ela.
– Porei a minha virilidade a seu serviço e nenhum sacrifício, por ela,
me será pesado. Fica certo disso.
Maria entra com Zacarias e Ana de Fanuel.
– Vem, Maria –diz o Pontífice–. Eis o esposo que Deus te destinou. É
José de Nazaré. Voltarás, pois, para a tua cidade. Agora eu vos deixo. Deus
vos dê a Sua bênção. O Senhor vos guarde e abençoe, mostrando-vos a sua
face e tendo sempre piedade de vós. Que Ele volte para vós o seu rosto e
vos dê a paz.
Zacarias sai, acompanhando o Pontífice. Ana se congratula com o
esposo e depois também sai.
12.6
Os dois noivos ficam um em frente ao outro. Maria, com o rosto
vermelho, está de cabeça inclinada. José também ruborizado, a observa,
procurando as primeiras palavras para dizer.
Finalmente um sorriso ilumina-lhe o rosto. Ele diz:
– Eu te saúdo, Maria. Eu te vi menina de poucos dias… Era amigo de
teu pai, e tenho um sobrinho, filho do meu irmão Alfeu, que era muito
amigo de tua mãe. Seu pequeno amigo, que hoje não tem mais do que
dezoito anos, quando ainda não tinhas ainda nascido era como um
homenzinho e alegrava as horas tristes de tua mãe, que o amava muito. Tu
não o conheces, porque vieste para aqui ainda pequena. Mas em Nazaré
todos te querem bem, pensam na pequena Maria e falam nela, na pequena
Maria do Joaquim, cujo nascimento foi um milagre do Senhor, que fez com
que uma estéril florescesse… Eu me lembro daquela tarde em que
nasceste… Todos nos lembramos dela pelo prodígio acontecido de uma
grande chuva que veio salvar os campos, e de um violento temporal no qual
os raios não destroçaram nem mesmo um caule de érica selvagem, e que
terminou com um arco-íris tão surpreendente, que ninguém jamais viu outro
maior, nem mais bonito. E depois… quem não se lembra da alegria do
Joaquim? Ele te levava por toda parte, mostrando-te aos vizinhos… Como
se fosses uma flor vinda do Céu, ele te admirava, e queria que todos te
admirassem. O velho pai era feliz e morreu falando de sua Maria, tão bela,
tão boa, e de suas palavras tão cheias de graça e sabedoria… Ele tinha razão
de te admirar e de dizer que não existe outra mais bela do que tu! E tua
mãe? Ela enchia com o seu canto o lugar onde era a tua casa, e parecia uma
cotovia na primavera, quando te levava em suas entranhas e, mais tarde,
quando te amamentava. Fui eu que fiz o teu berço. Um bercinho todo
entalhado com rosas, porque assim o quis tua mãe. Talvez ele ainda esteja
na casa que está fechada… Eu estou velho, Maria. Quando nasceste, eu
estava fazendo os meus primeiros trabalhos. Já fazia alguma coisa… Quem
me teria dito que eu haveria de ter-te como esposa? Talvez os teus tivessem
morrido mais alegres, pois eles eram meus amigos. Eu sepultei o teu pai,
chorando, com um coração sincero, porque ele foi para mim um bom
mestre na vida.
Maria vai erguendo devagarinho seu rosto, reanimando-se sempre mais,
ouvindo que José lhe fala assim e, quando ele se refere ao berço, ela sorri
levemente, e quando José lhe fala do pai, ela lhe estende uma mão e diz:
– Obrigada, José.
Um agradecimento tímido e suave.
José toma a mãozinha de jasmim, entre as suas mãos curtas e fortes de
carpinteiro e a acaricia com um afeto que quer encorajar sempre mais.
Talvez espere por outras palavras. Mas Maria se cala de novo. Então, é ele
que retoma a palavra:
– A casa, como sabes, está intocada, menos naquela parte que foi
demolida por ordem do Cônsul, transfomando um atalho numa estrada, para
as carruagens de Roma. Mas o campo está um pouco descuidado, aquela
parte que ficou para ti, porque, tu sabes, a doença do pai fez que se gastasse
muito do que era teu. Já são mais de três primaveras que as árvores e as
videiras não vêem a tesoura do hortelão. A terra está inculta e dura. Mas as
árvores, que te viram pequenina, estão lá ainda e, se tu me permites, eu vou
cuidar logo delas.
– Obrigada José. Mas tu já estás trabalhando…
– Trabalharei no teu pomar nas primeiras e nas últimas horas do dia.
Agora os dias estão alongando-se cada vez mais. Na primavera, quero que
tudo esteja em ordem, para tua alegria. Olha, este é um ramo da amendoeira
que está à frente da casa. Eu quis apanhar este… Há entradas por toda parte
na sebe arruinada, mas agora eu a consertarei e a farei ficar mais forte e
sólida. Eu quis apanhar este ramo, pensando que se fosse o escolhido…
(não o esperava, porque sou nazireu[29] e só obedeci por ser ordem do
Sacerdote, não por desejar as núpcias) Como eu ia dizendo, pensei que
terias tido prazer em ter uma flor do teu jardim. Ei-la aqui, Maria. Com ela
te dou o meu coração que, como esta flor, floresceu até agora para o Senhor,
florescendo agora para ti, minha esposa.
12.7
Maria pega o ramo. Está comovida, e olha para José com um rosto
sempre mais tranqüilo e radiante. Sente-se segura com ele. Por isso, quando
ele lhe disse: “Eu sou nazireu”, o rosto de Maria se iluminou, e ela se
encheu de coragem:
– Eu também sou toda de Deus, José. Não sei se o Sumo Sacerdote te
disse isto.
– Ele só me disse que és boa e pura, que me irás falar de um voto, e que
eu seja bom para contigo. Fala, Maria. O teu José quer te fazer feliz em
todos os teus desejos. Eu não te amo com a carne. Eu te amo com o meu
espírito, ó santa menina a mim dada por Deus! Vê em mim, Maria, um pai e
um irmão, mais do que um esposo. Como em um pai, confia, e como a um
irmão, tranqüiliza-te.
– Desde a minha infância, eu me consagrei ao Senhor. Eu sei que em
Israel não se faz isso. Mas eu ouvia uma Voz que me pedia a minha
virgindade como um sacrifício de amor pela vinda do Messias. Faz tanto
tempo que Israel o está esperando!… Por este motivo não é demais renuciar
à alegria de ser mãe!
José olha para ela fixamente, como se quisesse ler em seu coração, e
depois lhe pega as duas mãozinhas, que ainda estão com o ramo florido
entre os dedos, e diz:
– Eu também unirei o meu sacrifício ao teu, e amaremos tanto ao
Eterno com a nossa castidade, que Ele haverá de dar o Salvador mais
depressa à terra, permitindo-nos ver a sua Luz brilhar no mundo. Vem,
Maria. Vamos andar na frente de sua Casa, e juremos que nos haveremos de
amar como anjos se amam uns aos outros. 12.8Depois eu irei a Nazaré
preparar tudo para ti na tua casa, se achares bom ires para lá, ou então um
outro lugar, que preferires.
– Na minha casa havia uma gruta, lá no fundo. Ainda existe?
– Ainda existe, mas não é mais tua. Mas eu farei uma para ti, onde
sentirás um ar fresco, que te porás à vontade, nas horas quentes do dia. Eu a
farei, o mais possível, igual à outra. Diz-me uma coisa: quem gostarias de
ter contigo?
– Ninguém. Eu não tenho medo. A mãe do Alfeu, que sempre costuma
vir estar comigo, me fará um pouco de companhia de dia. De noite prefiro
ficar sozinha. Nada me pode acontecer de mal.
– Além disso, eu agora estarei lá. Quando devo vir te buscar?
– Quando quiseres, José.
– Então virei, logo que a casa esteja em ordem. Não vou tocar em nada.
Quero que encontres tudo como tua mãe a deixou. Mas quero que ela esteja
cheia de sol e bem limpa, para receber-te sem tristeza. Vem, Maria. Vamos
dizer ao Altíssimo que o bendizemos.
Não vejo mais nada. Mas fica em meu coração o sentido da segurança
que Maria está experimentando.
[29] nazireu ou nazarita ou nazir era o consagrado ao Senhor com o voto de nazireado ou nazareato ou nazirato que vem
ilustrado em: Números 6,1-21. O voto de nazireado (de nazir -afastado, diferente dos outros) era um voto temporário ou perpétuo
de abstinência em honra de Deus. Exigia três coisas: abstenção de qualquer bebida alcoólica, não cortar o cabelo, evitar o contacto
com os mortos. Além de José, esposo de Maria Ss., encontraremos outros nazireus, como em 156.4, em 323.7, em 363.3 (referido
ao apóstolo Tomé). Será também recordado em 94.8 e em 467.9, (nazareu) nazireado de Sansão.
13. Casamento da Virgem com José, que é
instruído
pela Sabedoria para tornar-se o guardião do
Mistério.
5 de setembro de 1944.
13.1
Como está bela Maria, entre suas amigas e mestras festivas, com as
suas vestes de esposa! No meio delas, está também Isabel.
Toda vestida com um linho alvíssimo, tão macio e fino, que parece seda
preciosa. Um cinturão, feito de ouro e prata, trabalhado a buril, é formado
por medalhões presos um ao outro por correntinhas — Cada medalhão é um
bordado feito com fios de ouro, entremeados com os de prata, que o tempo
já poliu — O cinturão cinge a fina cintura de Maria e, talvez porque ele fica
muito folgado para ela, pois ela é ainda muito jovem, está pendurado na
frente com os três últimos medalhões da ponta, descendo por entre as
pregas do vestido, que é bastante amplo, e que ela vai arrastando um pouco,
por ser comprido demais. Nos pés tem sandálias feitas de uma pele muito
branca, com fivelas de prata.
Ao pescoço, o vestido está ajustado por meio de uma correntinha com
rosetas de ouro e filigranas de prata, que reproduzem, em ponto pequeno, a
figura do cinturão e passa pelos ilhoses, que estão no amplo decote,
reunindo suas margens em várias dobras, e formando um belo adorno. O
pescoço de Maria sobressai daquela alvura cheia de dobras com a beleza de
um caule envolto em uma gaze preciosa, e parece ficar ainda mais delgado
e branco, um caule de lírio, que termina no rosto lirial, que tornou-se ainda
mais pálido e puro pela emoção. Um rosto de hóstia puríssima.
Seus cabelos já não estão mais caídos sobre os ombros. Estão
graciosamente dispostos em um laço com tranças, que alguns grampos de
prata brunida, todos feitos em bordado de filigrana no ponto mais alto,
conservam os cabelos em seu lugar. O véu materno está pousado sobre estas
tranças e recai em graciosas dobras até abaixo da lâmina preciosa, que está
cingindo a branquíssima fronte. Ele não desce até a cintura, porque Maria
não é alta como era sua mãe, e nela o véu passa abaixo dos quadris,
enquanto que em Ana chegava só até a cintura.
Maria não tem nada nas mãos, tem braceletes nos pulsos. Mas seus
pulsos são tão finos, que os pesados braceletes maternos caem até o dorso
das mãos e, se Maria as sacudisse, eles cairiam no chão.
13.2
As companheiras a estão contemplando de todos os lados, e a
admiram. Fazem um alegre chilrear de passarinhos, com os seus pedidos e
palavras de admiração.
– São de tua mãe?
– Antigos, não é?
– Que bonita, Sara, esta cintura!
– E este véu, Susana? Olha que fino! E olha estes lírios tecidos nele!
– Deixa-me ver as pulseiras, Maria! Eram de tua mãe?
– Ela as usou. Mas eram da mãe de Joaquim, meu pai.
– Oh! Vê só! Trazem o selo de Salomão, entremeado com finos
raminhos de palmeira e de oliveira, e entre eles há lírios e rosas. Oh! Quem
terá feito um trabalho tão minucioso e perfeito?
– São da Casa de Davi –explica Maria–. São usados, há séculos, pelas
mulheres da estirpe, que se tornam esposas, e ficam de herança para a
herdeira.
– Certo. Pois tu és uma filha herdeira…
– Trouxeram-te tudo de Nazaré?
– Não. Quando minha mãe morreu, minha prima levou o enxoval para
sua casa, a fim de conservá-lo melhor. E agora o trouxe para mim.
– Onde está? Onde? Mostra-o às amigas.
Maria não sabe como fazer… Ela gostaria de ser cortês, mas gostaria
também de não ficar tirando do lugar todas as peças do vestuário, colocadas
em três pesados baús.
Em sua ajuda, intervêm as mestras:
– O esposo está para chegar. Não é tempo de fazer confusão. Deixai-a
estar quieta, que a estais cansando, e ide, também vós, preparar-vos.
O enxame de tagarelas se afasta, um pouco amuado. Maria pode, então,
ouvir em paz suas mestras, que lhe dizem palavras de louvor e de bênção.
13.3
Isabel também se aproximou. E, estando Maria comovida e chorando,
porque Ana de Fanuel, beijando-a com um afeto verdadeiramente materno,
a chamou de “Filha”, Isabel lhe diz:
– Maria, tua mãe está e não está aqui. O espírito dela está exultante
junto ao teu. E olha bem, as coisas que tu estás usando te fazem sentir as
carícias dela de novo. Nelas podes sentir ainda o sabor dos beijos dela. Faz
muitos anos, no dia em que vieste ao Templo, ela me disse: “Preparei para
ela as vestes e enxoval de esposa, porque quero ser sempre eu quem há de
fiar os linhos e fazer-lhe as vestes de esposa, para não estar ausente no dia
da alegria dela.” E, sabes de mais uma coisa? Nos últimos tempos, quando
eu a acompanhava, todas as tardes ela queria acariciar as tuas primeiras
vestes e estas que agora estás vestindo, e dizia: “Aqui estou sentindo o
cheiro de jasmim da minha pequenina, e aqui eu quero que ela sinta o beijo
da sua mamãe.” Quantos beijos ela deu neste véu, que te está sombreando a
fronte! Há nele mais beijos do que fios!… E, quando vestires as roupas por
ela tecidas, pensa um pouco que, mais do que os fios, o que as formou foi o
amor de tua mãe. E aqueles colares… mesmo em horas penosas, eles foram
guardados por teu pai para ti, a fim de tornar-te bela como há de ser uma
princesa do sangue de Davi nesta hora. Alegra-te, pois, Maria. Porque não
estás órfã, os teus estão contigo, e tens um esposo que para ti é pai e mãe,
de tão perfeito que é…
– Oh! Sim. É verdade. É certo que dele não posso queixar-me. Em
menos de dois meses veio duas vezes, e hoje vem pela terceira, desafiando
chuvas e ventanias, para vir ouvir as minhas ordens… Pensa só: as minhas
ordens! Eu, que sou uma pobre mulher, e bem mais nova do que ele! Ele
nunca me negou nada. Pelo contrário, nem espera que eu lhe peça. Parece
que um anjo lhe diz o que eu desejo, e ele o diz, antes que eu fale. Na
última vez, ele disse: “Maria, acho que preferes estar na casa de teus pais.
Porque, uma vez que és filha herdeira, tu podes fazer isso, quando o
desejares. Eu irei para a tua casa. Só para guardar a cerimônia, irás ficar
uma semana na casa do Alfeu, meu irmão. Maria já te ama muito. E, na
tarde das núpcias, partirá de lá o cortejo, que te acompanhará até a tua
casa.” Não é ser gentil? Não se importou nem mesmo que ele podia estar
fazendo com que o povo ficasse falando que ele nem tem uma casa que me
agrade… Para mim será sempre bem aceita uma casa, se ele estiver nela,
pois ele é tão bom. Mas com certeza… prefiro, na verdade, a minha casa…
por causa das lembranças… Oh! Como o José é bom!
– Que é que ele falou do teu voto? Ainda não me disseste nada.
– Não fez nenhuma oposição. Pelo contrário, ao saber de minhas
razões, disse: “Eu vou unir o meu sacrifício ao teu.”
– É um jovem santo –diz Ana de Fanuel.
13.4
A essa altura, o “jovem santo” vem entrando, acompanhado por
Zacarias.
Está literalmente esplêndido. Todo em amarelo ouro, e até parece tratar-
se de algum soberano do Oriente. Um esplêndido cinturão segura por baixo
a bolsa e o punhal, a bolsa feita de marroquim bordado em ouro, e o punhal
numa bainha também de marroquim com frisos de ouro. Tem na cabeça um
turbante, que é a cobertura de costume como se vê ainda em certos povos da
África, como os beduínos, preso por um cordão precioso, um tênue fio de
ouro, ao qual estão atados pequenos maços de mirto. Ele está com um
manto novo, cheio de franjas, o que lhe dá um ar majestoso, e está
fulgurante de alegria. Nas mãos traz ainda pequenos maços de mirto florido.
– A paz esteja contigo minha esposa! –ele saúda–. A paz esteja com
todos.
E, depois de ter recebido a saudação de resposta, diz:
– Eu vi a tua alegria no dia em que te dei aquele ramo do teu jardim.
Pensei agora em trazer-te o mirto apanhado perto da gruta de que tanto
gostas. Queria trazer-te as rosas que já estão abrindo as primeiras flores em
frente à tua casa. Mas as rosas duram pouco, e com tantos dias de viagem…
Eu teria chegado aqui só com os espinhos. A ti, querida, só quero oferecer
rosas, atapetando os caminhos de flores delicadas e perfumosas, para que
sobre elas possas pôr o teu pé, para que não encontre nenhuma sujeira ou
aspereza.
– Agradeço a ti, bom homem! Como conseguiste que ele chegasse até
aqui tão viçoso e bonito?
– Eu amarrei um vaso na sela, e dentro dele pus os ramos, com as flores
ainda em botão. E, pelo caminho, as flores foram-se abrindo. E aqui estão
elas, Maria. Que a tua fronte se engrinalde de pureza, que é o símbolo da
esposa, mas que nunca será igual à pureza que tens no coração.
Isabel e as mestras enfeitam Maria com a pequena grinalda de flores
que se formou, ao fixarem no lindo arco os ramalhetes cândidos de mirto, e
vão entremeando pequenas rosas brancas que estão num vaso posto sobre
um baú.
Maria se esforça para apanhar o seu amplo manto branco e colocá-lo
puxado sobre os ombros. Mas o esposo a precede no gesto e a ajuda a fixar,
com duas fivelas de prata, o amplo manto no alto dos ombros. As mestras
arrumam as dobras com arte e amor.
13.5
Está tudo pronto. Enquanto estão esperando por algo que não sei o
que seja, José diz (ele fala aproximando-se um pouco de Maria):
– Eu estava pensando, agora mesmo, no teu voto. Eu já te disse que
quero partilhar dele contigo. Mas quanto mais nisso penso, tanto mais vou
compreendendo que não basta o nazireato temporário, ainda que seja
renovado muitas vezes. Eu te compreendi, Maria. Eu ainda não mereço a
palavra da Luz. Mas dela um murmúrio já está chegando aos meus ouvidos.
É isto que me está levando a entender o teu segredo, pelo menos em suas
linhas mais expressivas. Eu sou um pobre ignorante, Maria. Sou um pobre
operário. Não entendo de letras, nem possuo tesouros. Mas aos teus pés
quero pôr o meu tesouro. Para sempre. A minha castidade absoluta, para
poder ser digno de estar ao teu lado, ó virgem de Deus, “irmã esposa minha,
jardim fechado, fonte selada”, como diz o nosso Avô [30]que talvez tenha
até escrito o Cântico, tendo-te à frente de seus olhos… Eu serei o guardião
deste jardim de aromas no qual se encontram as mais finas frutas e do qual
jorra uma nascente de água viva, com ímpeto suave: a tua doçura, ó minha
esposa, que com sua candura me conquistaste o espírito, ó toda bela. Bela,
mais do que uma aurora, sol que resplandece, porque teu coração
resplandece, ó toda cheia de amor pelo teu Deus, e pelo mundo ao qual
queres dar o Salvador com o teu sacrifício de mulher. Vem, amada minha.
E a toma delicadamente pela mão, levando-a rumo à porta.
Todos os outros os acompanham, e do lado de fora se reúnem todas as
companheiras da festa, todas de branco e com véus.
13.6
Vão pelos pátios e pórticos, por entre a multidão que os observa, até
chegarem a um ponto, que não é ainda o Templo, mas parece quase um
salão usado para o culto, pois aí se vêem lâmpadas e rolos de pergaminho,
como nas sinagogas. Os dois esposos vão até à frente de uma estante,
semelhante a uma cátedra, e lá se detêm. Os outros se colocam em ordem
atrás deles. Ao fundo se aglomeram outros sacerdotes e os curiosos.
O Sumo Sacerdote está entrando solenemente. Há um murmúrio entre
os curiosos.
– É ele que vai celebrar o casamento?
– Sim, porque é de sangue real e sacerdotal. A esposa, Flor de Davi e
de Arão, é virgem do Templo. O esposo é da tribo de Davi.
O Pontífice põe a mão direita da esposa na do esposo, e os abençoa
solenemente:
– Que o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó esteja convosco. Que Ele
vos una e que se realize em vós a sua bênção, dando-vos Ele a sua paz e
uma numerosa descendência, uma vida longa e uma morte feliz no seio de
Abraão.
Depois ele se retira, com a mesma solenidade que entrou.
Fazem-se as promessas mútuas. Maria já é esposa de José.
Todos saem e, sempre em perfeita ordem, vão até a sala, onde é lavrado
o contrato de núpcias, no qual se diz que Maria, filha herdeira de Joaquim
de Davi e de Ana de Arão, entrega como dote ao seu esposo a sua casa com
os seus bens, os enxovais e todos os outros bens que ela herdou de seu pai.
Tudo terminou.
13.7
Os esposos saem para o pátio e o atravessam, indo para a saída, que
fica perto do quarteirão das mulheres que trabalham no Templo. Um carro
de boi bem cômodo e pesado está à espera deles. Sobre o carro está
estendido um toldo de proteção onde se encontram também os pesados baús
de Maria.
Despedidas, beijos, lágrimas, bênçãos, conselhos, recomendações e
depois Maria sobe com Isabel colocando-se no centro do carro. Na frente,
estão José e Zacarias. Já tiraram os mantos de festa, e todos se envolveram
num grande manto escuro.
O carro parte, ao trote pesado de um cavalo grande e escuro. Os muros
do Templo vão ficando longe, depois também os da cidade, e vão chegando
os campos novos e verdejantes, cheios das flores dos primeiros dias da
primavera, com as plantações já crescidas a um bom palmo do chão,
mostrando suas folhinhas leves, que à brisa ligeira formam ondas,
parecendo esmeraldas, soltando um cheiro mesclado das flores dos
pessegueiros e das macieiras, junto com cheiro de trevos e do poejo
selvagem.
Maria está chorando baixinho, debaixo do seu véu e, de vez em quando,
afasta a cortina do toldo para olhar mais uma vez o Templo, que vai ficando
sempre mais longe, e a cidade, que ela está deixando para trás…
A visão termina assim.

Jesus diz:
13.8

– Que é que diz[31] o livro da Sabedoria, cantando os louvores dela?


“Na sabedoria está, de fato, o espírito da inteligência, santo, único,
multíplice, sutil.” E continua enumerando os dotes dela, para terminar o
período com estas palavras: “… que tudo pode, tudo prevê, que compreende
todos os espíritos, inteligente, puro, sutil. A sabedoria penetra com sua
pureza, é um vapor da virtude de Deus… por isso nada há de impuro…
imagem da bondade de Deus. Mesmo sendo única, tudo pode, imutável,
renova todas as coisas, comunica-se às almas santas e forma os amigos de
Deus e os profetas.”
13.9
Tu viste como José, não por uma cultura humana, mas por uma
instrução sobrenatural, sabe ler no livro selado da virgem imaculada, e
como ele se aproxima das verdades proféticas com a sua “visão” de um
mistério sobre-humano, no qual os outros viam apenas uma virtude.
Impregnado dessa sabedoria, que é vapor da virtude de Deus, e uma certa
emanação do Onipotente, ele se dirige com espírito seguro no mar desse
mistério de graça que é Maria, aprofunda-se com ela em conversações
espirituais, nas quais, mais do que com os lábios, são seus dois espíritos que
falam um ao outro, no sagrado silêncio das almas, onde só Deus ouve as
vozes, e só as percebem aqueles que são agradáveis a Deus, porque são seus
servos fiéis, e Dele estão plenos.
A sabedoria do justo, que aumenta pela união e proximidade daquela
que é a toda graça, prepara-o para penetrar nos segredos mais altos de Deus,
e para poder cuidar e defendê-los das insídias do homem e do demônio. Por
enquanto a sabedoria lhe dá um novo vigor. Do justo faz um santo, do santo
faz um guardião da esposa e do Filho de Deus.
Sem faltar com a reverência para com o selo de Deus, ele, o casto, que
agora leva a sua castidade até um heroísmo angelical, pode ler a palavra de
fogo escrita sobre o diamante virginal, pelo dedo de Deus. Nele lê aquilo
que a sua prudência não diz, mas que é muito maior do que o que Moisés
leu nas tábuas de pedra. E, para que nenhum olho profano, nem de leve, se
atreva a tocar no Mistério, ele se põe como selo sobre o selo, como o
arcanjo de fogo sobre a entrada do Paraíso, dentro do qual o Eterno acha as
suas delícias, “passeando à brisa da tarde”, e falando com aquela que é o
seu amor, bosque de lírios em flor, aura impregnada de aromas, aragem
fresca da manhã, estrela de rara beleza, delícia de Deus. A nova Eva está lá,
diante dele, não osso de seus ossos, nem carne de sua carne, mas
companheira de sua vida, Arca viva de Deus, a qual é recebida por ele de
Deus para que a guarde, e a entregue a Deus, tão pura como quando a
recebeu.
“Esposa de Deus” era o que estava escrito naquele livro místico de
páginas imaculadas… E quando, na hora da prova, a suspeita assobiou para
ele, para atormentá-lo, como homem e como servo de Deus, sofreu como
nenhum outro, pela suspeita de ter havido um sacrilégio. Contudo, essa foi a
prova que estava por vir. Por enquanto, nesse tempo de graça, ele vê e se
coloca ao serviço sincero de Deus. Depois, virá a tempestade da provação,
como para todos os santos, a fim de serem provados e transformados em
cooperadores de Deus.
13.10
O que se lê[32] no Levítico? “Diz a Arão, teu irmão, que ele não en
tre, em momento algum, no santuário, além do Véu, diante do propiciatório,
que está sobre a Arca, porque Eu apareço sobre o propiciatório em uma
nuvem, e ele poderá morrer, se antes não tiver feito estas coisas: oferecer
um novilho pelo pecado e um carneiro em holocausto. Vestir a túnica de
linho e com calças de linho cobrir sua nudez.”
Com efeito, José entra quando Deus quer e quanto Deus quer no
santuário de Deus, além do véu que encobre a Arca, e sobre a qual paira o
Espírito de Deus, e se oferece a si mesmo, oferecendo o Cordeiro,
holocausto pelo pecado do mundo e expiação por esse pecado. E assim faz,
estando vestido de linho, e com os seus membros viris mortificados, para
abolir a sensualidade que, uma vez, no princípio dos tempos, triunfou,
lesando o direito de Deus sobre o homem, mas que agora vai ser calcada no
Filho, na mãe e no pai adotivo, para reconduzir os homens à graça e
reintegrar a Deus o seu direito sobre o homem. E faz isso com a sua
perpétua castidade.
José não estava no Gólgota? Pensais, então que ele não estava entre os
corredentores? Em verdade, vos digo que ele foi o primeiro dos
corredentores e, por isso, ele é grande aos olhos de Deus. Grande pelo
sacrifício, pela paciência, pela constância e pela fé. Qual fé foi maior do
que a de quem acreditou , sem ter visto os milagres do Messias?
13.11
Louvor seja dado ao meu pai adotivo, exemplo para vós naquilo que
mais vos falta: pureza, fidelidade e amor perfeito. Ao magnífico leitor do
Livro selado, instruído pela Sabedoria para saber compreender os mistérios
da graça e eleito para guardar a salvação do mundo contra as insídias de
todos os inimigos.
[30] diz o nosso Avô, isto é, em Salomão, em: Cântico dos Cânticos 4,12.
[31] diz, em: Sabedoria 7,22-27.
[32] se lê, em: Levítico 16,2-4.
14. Os Esposos chegam a Nazaré.
6 de setembro de 1944.
14.1
O céu muito azul, de um fevereiro sereno, se estende por sobre as
colinas da Galiléia. São amenas estas colinas que, nesta fase da virgem
menina, eu ainda não tinha visto, mas que agora já são tão familiares aos
meus olhos, como se eu tivesse nascido entre essas colinas.
Na estrada mestra agora a temperatura está agradável, por causa da
chuva que parece ter caído na noite passada. Na estrada não há poeira, nem
lama; está firme e limpa como uma rua de cidade, e vai-se estendendo por
entre duas sebes de espinheiro-alvar em flor. A neve que caiu veio trazendo
dos bosques um cheiro levemente amargo, mas depois foi desfeita pelas
singulares aglomerações dos cáctus de folhas grossas e em forma de
pequenas pás, todas rígidas e cheias de espinhos, ornadas com as grandes
granadas, que são os seus estranhos frutos, nascidos sem pedúnculos, mas
saindo diretamente das folhas, as quais, pela cor e pela forma, me fazem
lembrar das profundezas do mar, dos bosques de coral e das medusas, ou de
outros bichos dos mares profundos.
As sebes cuja função é separar as várias propriedades, estendidas em
todas as direções, formando um esquisito desenho geométrico cheio de
curvas e de ângulos, de losangos, quadrados, semicírculos e triângulos de
agudezas e obtusidades incríveis, um desenho, todo borrifado de branco,
como uma fita excêntrica estendida ao longo dos campos, como sinal de
alegria, e sobre a qual voam, piam e cantam centenas de passarinhos de toda
espécie, na alegria do amor, ou no trabalho da reconstrução de seus ninhos.
Adiante das sebes, estão os campos, com os trigais já mais crescidos do que
os dos campos da Judéia, prados já cobertos de flores. Como uma resposta
às nuvenzinhas que passam ligeiras pelo céu e que o pôr-do-sol que torna
ou róseas, ou de um lilás delicado, um roxo pervinca, um opalino azulado,
um laranja coral, assim também as centenas de nuvens vegetais, com suas
árvores frutíferas, são brancas, róseas, vermelhas, em todas as nuances das
cores branca, rosa e vermelha.
Ao suave vento da tarde, as primeiras pétalas das árvores floridas
borboleteiam pelo ar e vão caindo, parecendo enxames de pequenas
borboletas, à procura do pólen sobre as flores dos campos. Entre uma
árvore e outra, nos sarmentos das videiras ainda nuas, nas pontas, onde o
sol bate, as primeiras folhinhas vão-se abrindo aos poucos, ingênuas,
assombradas e palpitantes de vida.
Plácido em seu ocaso, o sol está para sumir no horizonte, e o céu já tão
bonito em seu azul, torna-se de um azul mais claro com os raios de luz. Lá
longe está brilhando o branco das neves do monte Hermon e de outros picos
mais afastados.
14.2
Um carro de boi está indo pela estrada. É o carro que leva José e
Maria com seus primos. A viagem está chegando ao fim.
Maria olha, com aqueles olhos cheios de ansiedade de quem quer
conhecer, ou melhor, reconhecer, aquilo que ela já viu, mas de que não se
lembra mais, e sorri, quando alguma sombra de lembrança volta à sua
memória e se detém, como uma luz que mostra esta ou aquela coisa, este ou
aquele ponto. Isabel, Zacarias e José, ajudam Maria a se lembrar, mostrando
uma elevação do terreno, ou uma ou outra casa.
Desta forma, Nazaré começa a despontar, estendida por cima das
ondulações de sua colina. Olhada pelo lado esquerdo do sol poente, Nazaré
nos mostra a cor branca rosada de suas casinhas largas e baixas com seus
terraços sobrepostos. Algumas delas, atingidas em cheio pelo sol, parecem
estar para pegar fogo, pois, a fachada fica tão vermelha com o sol, que
incendeia até a água dos regos e dos poços rasos, quase sem peitoril por
onde os cântaros com água para a casa e os odres para a horta sobem
chiando.
Meninos e mulheres aparecem à beira da estrada para olhar o carro,
saúdam José, que é muito conhecido. Mas depois ficam perplexos e
atemorizados, ao verem os outros três.
Quando chegam a entrar na pequena cidade propriamente dita, não
encontram mais nenhuma perplexidade, nem temor. Muitas pessoas, de
todas as idades, estão na entrada da cidade, sob um arco rústico com flores
e folhagens. Mal o carro de boi aponta atrás do cotovelo formado pela
última casa, construída enviesada, ouve-se um trilar de vozes agudas,
acompanhado pelo rumor de ramos e flores agitados. São as mulheres e as
crianças de Nazaré que saúdam os esposos. Os homens, mais sisudos, estão
atrás da cerca viva dos cantores, saudando-os com moderação.
O carro já foi descoberto, pois tiraram o toldo, antes de chegarem à
cidade, visto que o sol não mais incomoda, e Maria assim tem oportunidade
de ver melhor a sua terra natal. Portanto, agora ela também aparece em sua
beleza, como uma flor. Branca e loira como um anjo, ela sorri com bondade
para as crianças, que lhe jogam flores e beijos, para as jovens de sua idade,
que a chamam pelo nome, para as esposas, para as mães, para as velhas que
a abençoam cantando. Ela faz uma inclinação para os homens, e
especialmente para um que parece ser o rabino, ou a pessoa mais influente
da cidade.
Enquanto isso, o carro continua lentamente pela rua principal,
acompanhado, durante um bom tempo, pela multidão, para a qual aquela
chegada foi um agradável acontecimento.
14.3
– Aqui está a tua casa Maria –diz José, mostrando, com o chicote que
está em sua mão, uma casinha que fica precisamente ao pé de uma das
ondulações da colina, tendo aos fundos um belo e vasto jardim todo florido,
e que termina em um pequenino olival. Do outro lado, está a costumeira
sebe com o espinheiro-alvar e as cactáceas, marcando o limite da
propriedade. Os campos, que antes pertenciam a Joaquim, estão atrás da
sebe.
– Como estás vendo, te restou pouca coisa –diz Zacarias–. A doença de
teu pai foi longa e se gastou muito com ela. Também se gastou bastante
com as despesas para reparar os prejuízos dados por Roma. Estás vendo? A
estrada feita pelos romanos levou os três principais cômodos da casa,
deixando-a muito diminuída. Para torná-la mais ampla, sem que fossem
necessárias despesas excessivas, foi aproveitada uma parte do monte onde
há uma gruta. Era lá que Joaquim guardava as suas provisões, e Ana os seus
teares. Tu farás aí o que achares bom.
– Oh! Que seja pouca coisa, não tem importância! Sempre para mim
bastará. Eu vou trabalhar…
– Não, Maria. –É José que está falando–. Eu é que trabalharei. Tu não
farás mais do que tecer e costurar as coisas da casa. Eu estou jovem e forte,
e sou teu esposo. Não me faças ficar envergonhado com o teu trabalho.
– Farei como queres.
– Sim, neste ponto eu quero. Em qualquer outra coisa o teu desejo é lei.
Exceto isto.
14.4
Chegaram. O carro pára.
Duas mulheres e dois homens, respectivamente com os seus quarenta e
cinqüenta anos, estão à porta, rodeados por muitas crianças e adolescentes.
– A paz de Deus esteja contigo, Maria –diz o homem mais velho,
enquanto uma das mulheres se aproxima de Maria, a abraça e beija.
– É o meu irmão Alfeu e Maria, sua mulher, e estes são os filhos dele.
Vieram de propósito para te fazerem festa e para te dizerem que a casa deles
é tua, se quiseres –diz José.
– Sim, vem, Maria, se te for penoso ficar vivendo sozinha. O campo é
belo na primavera, e nossa casa fica no meio dos campos em flor. Entre as
outras flores, tu serás a mais bela –diz Maria de Alfeu.
– Eu te agradeço, Maria. Eu iria de muito boa vontade. Irei em alguma
oportunidade, irei sem falta para as núpcias. Mas estou com tanto desejo de
ver, de reconhecer a minha casa. Eu a deixei, quando ainda era pequena, e
tinha perdido a sua lembrança… Agora eu a reencontro… parece-me
reencontrar a minha mãe, que se foi, e o meu amado pai, com o eco de suas
palavras… e o perfume do seu último suspiro. Parece-me não estar mais
órfã, porque tenho de novo, ao redor de mim, o abraço destas paredes…
Compreende-me, Maria.
Maria está, um pouco, com pranto na voz e nos olhos.
Maria de Alfeu lhe responde:
– Como quiseres, querida. Quero que me consideres irmã e amiga e
também um pouco mãe, porque sou muito mais velha do que tu.
A outra mulher vem para a frente:
– Maria, eu te saúdo. Sou Sara, amiga de tua mãe. Eu te vi nascer. E
este é o Alfeu[33], sobrinho de Alfeu e grande amigo de tua mãe. O que eu
fiz por tua mãe, farei por ti, se quiseres. Estás vendo? A minha casa é a que
está mais perto da tua, e os teus campos agora são nossos. Mas, se quiseres
vir, faze-o a qualquer hora. Nós abriremos uma passagem na sebe, e
estaremos juntas, mesmo se estiver cada uma em sua casa. Este é o meu
marido.
– Eu vos agradeço a todos, e por tudo. Por todo o bem que desejastes
aos meus e desejais a mim. Que o Senhor Onipotente vos abençoe por isso.
14.5
As caixas pesadas são descarregadas e levadas para casa. Entram.
Agora eu reconheço a casinha de Nazaré como é vista, mais tarde, na vida
de Jesus Cristo.
Como costume, José toma Maria pela mão para entrar na casa. Na
entrada, ele lhe diz:
– Agora, na soleira desta porta, quero de ti uma promessa. Que
qualquer coisa que te aconteça, ou que te suceda, não tenhas outro amigo,
outra ajuda, para a qual te voltes, a não ser José, e que, por nenhum motivo
tenhas que ficar-te atormentando sozinha. Eu sou tudo para ti, lembra-te
disso, e será minha alegria tornar feliz o teu caminho, pois, se a felicidade
nem sempre depende do nosso poder, pelo menos posso tornar este caminho
para ti calmo e seguro.
– Prometo, José.
Abrem-se as portas e janelas. Os últimos raios de sol, curiosos, entram.
Maria tirou o manto e o véu, porque tendo, por enquanto, tirado só as
flores de mirto, ainda está com as vestes das núpcias. Sai para o jardim
florido. E fica olhando, sorri e, sempre segura pela mão de José, dá uma
volta pelo jardim. Parece estar tomando de novo posse de um lugar perdido.
José fala dos seus trabalhos:
– Estás vendo? Aqui eu fiz esta cava para receber a água da chuva, pois
estas videiras sempre sofrem com o calor. Eu cortei os ramos mais velhos
desta oliveira, para dar-lhe um novo vigor, pus no lugar definitivo estas
macieiras, porque duas delas já estavam mortas. Mais adiante, plantei duas
figueiras. Quando elas crescerem, protegerão a casa do ardor do sol e dos
olhares dos curiosos. A armação da parreira é a antiga. Nada mais fiz do
que mudar os mourões que estavam podres e trabalhar com a tesoura.
Espero que esta parreira dê muita uva. E aqui, olha — enquanto a leva,
orgulhoso, para a encosta que se ergue atrás da casa, cercando o pomar do
lado norte — aqui escavei uma pequena gruta, reforçando-a para que
quando estas plantinhas pegarem, fique quase igual àquela que tinhas. Falta
a nascente… mas eu espero trazer até aqui um fio de água da nascente. Vou
trabalhar nas longas tardes do verão, quando eu vier te ver…
14.6
– Mas como? –diz Alfeu–. Não ireis casar-vos[34] neste verão?
– Não. Maria quer fiar os tecidos de lã, as últimas coisas que estão
faltando para o enxoval. E eu estou contente que seja assim. Maria é tão
jovem, que esperar um ano, ou até mais, não é nada. Enquanto isso, ela se
vai acostumando com a casa…
– Ora, ora! Tu sempre foste um pouco diferente dos outros, e ainda
continuas o mesmo. Não sei se poderia haver alguém que não tivesse pressa
em ter por mulher uma flor, como Maria. E tu ainda queres esperar
meses!…
– Alegria longamente esperada, é alegria mais intensamente gozada –
responde José com um amável sorriso.
O irmão encolhe os ombros, e pergunta:
– E então? Quando achas que sairá o casamento?
– Quando Maria fizer dezesseis anos. Depois da Festa dos
Tabernáculos. Assim, serão doces as tardes de inverno para os novos
esposos!…
E sorri outra vez, olhando para Maria. É um sorriso suave, que faz parte
de uma combinação secreta. Faz parte de uma castidade fraterna e
consoladora.
Depois, José retorna ao seu passeio:
– Este é o quarto grande, do lado do monte. Se achas bom, dele farei a
minha oficina, quando vier aqui. Ele está perto da casa sem fazer parte dela.
Assim não perturbarei ninguém, fazendo barulho ou desordem. Mas, se
quiseres de outro modo…
– Não, José. Está muito bem assim. 14.7 Tornam a entrar em casa e
acendem as lâmpadas.
– Maria está cansada –diz José–. Deixemo-la descansar com os primos.
Todos se despedem. José fica ali ainda alguns minutos e fala com
Zacarias em voz baixa.
– Teu primo deixa contigo Isabel, por algum tempo. Estás contente? Eu
sim. Porque ela vai te ajudar… para que te tornes uma perfeita dona de
casa. Com ela poderás pôr em ordem, como gostas, as tuas coisas e tuas
alfaias, e eu virei todas as tardes também para te ajudar. Com ela poderás ir
comprar lã e o mais que for preciso. Eu responderei pela despesa. Lembra-
te que prometeste me procurar para tudo. Adeus, Maria. Dorme o primeiro
sono nesta tua casa, e o anjo de Deus torne o teu sono tranqüilo. O Senhor
esteja sempre contigo.
– Adeus, José. Que tu também estejas sob as asas do anjo de Deus.
Obrigada, José. Por tudo. Na medida que eu puder, vou te dar, com o meu
amor, uma compensação ao teu amor por mim.
José saúda os primos e sai.
E com isto cessa a visão.
[33] Alfeu, aparece rapazinho em 2.2/3 e em idade de dezoito anos em 12.6, será sempre chamado Alfeu de Sara.
[34] ireis casar-vos, que segundo o costume hebraico seguia-se ao namoro ou ao noivado, o qual consistia num contrato (vimo-lo
em 13.6) vinculativo como um matrimónio, mas a aperfeiçoar com a coabitação a partir do dia do casamento (como veremos em
26.5). De casamento por realizar se fala também em 300.2; assim como em 374.6 se fala de Anália como esposa de Samuel apesar
de não se ter realizado o casamento.
15. Como conclusão do Pré-Evangelho.
[6 de setembro de 1944.]
15.1
Jesus diz:
– O ciclo terminou. E, com este ciclo tão doce e suave, o teu Jesus te
fez sair, sem sobressaltos, para fora do tumulto destes dias. Como um
menino enfaixado em lãs macias, colocado sobre fofas almofadas, tu
também foste enfaixada por estas felizes visões, para que não sentisses, com
terror, a ferocidade dos homens, que se odeiam[35], em vez de se amarem.
Não poderias mais suportar certas coisas, eu não quero que morras por
causa delas, mas tomo conta da minha “porta-voz.”
15.2
Está para terminar no mundo a causa pela qual as vítimas foram
torturadas por todo tipo de desespero. Também para ti, Maria, cessa, por
isso, o tempo do tremendo sofrimento causado por razões tão diferentes do
teu modo de entender. Não cessará o teu sofrimento, pois és vítima. Mas,
uma parte dele, sim: essa parte cessa. Depois chegará o dia em que Eu te
direi, como disse a Maria de Magdala, quando estava morrendo[36]:
“Repousa. Agora é teu tempo de repousar. Dá-me teus espinhos. Agora é
tempo de rosas. Repousa e espera. Eu te abençôo, bendita.”
Isto eu te dizia, e era uma promessa, que tu não chegaste a
compreender, quando estava chegando o tempo em que terias ficado
mergulhada, revolvida, acorrentada, repleta até o mais profundo do teu ser,
com espinhos… Eu te repito isto agora, com uma alegria que só o Amor
que Eu sou, é capaz de fazer experimentar, ao cessar uma dor de um seu
filho querido. Isto Eu te digo agora, quando cessa aquele tempo de
sacrifício. Eu, que sei, te digo, para o mundo que não sabe, para a Itália,
para Viareggio, esta pequena aldeia, à qual tu me levaste. Medita no sentido
destas palavras, medita no agradecimento que se deve aos holocaustos, pelo
sacrifício deles.
15.3
Quando Eu te mostrei Cecília, a virgem-esposa, te disse que ela se
impregnou dos meus perfumes, arrastando o marido, o cunhado, os
escravos, os parentes e amigos. Tu não o sabes, mas Eu que sei, te digo que
fizeste a parte de Cecília neste mundo enlouquecido. Tu te saciaste de Mim,
da minha palavra. Levaste os meus ideais entre as pessoas, das quais, as que
são melhores compreenderam estes ideais, surgindo muita gente atrás de ti,
oferta como vítima. A partir daí, portanto, não aconteceu uma ruína
completa de tua pátria ou dos lugares que a ti são tão caros, porque tantas
hóstias se consumaram, seguindo o teu exemplo e o teu ministério.
Obrigado, bendita. Mas, continua ainda. Tenho muita necessidade de
salvar a terra. De comprar de novo a terra. E as moedas sois vós, como
vítimas.
15.4
A sabedoria que instruiu os santos, e te instruiu com um magistério
direto, te eleve sempre mais ao compreender a ciência da vida e colocá-la
em prática. Levanta a tua pequena tenda junto à casa do Senhor. Finca as
estacas da tua própria morada, na morada da sabedoria, sem saíres nunca
mais dela. Repousarás debaixo da proteção do Senhor, que te ama, como
um passarinho por entre ramos em flor, e Ele será teu abrigo, contra todas
as intempéries espirituais, e estarás na luz da glória de Deus, do qual
descerão para ti, palavras de paz e de verdade.
Vai em paz. Eu te abençôo, bendita”.

Logo depois, Maria diz:


15.5

– A Maria o presente da mãe, para a sua festa. Uma porção de


presentes. E, se algum espinho estiver entremeado com eles, não te
lamentes ao Senhor, que te amou, como poucos.
Eu te havia dito, desde o princípio: “Escreve sobre mim. Toda pena tua
será consolada.” Estás vendo que era verdade. Este dom estava reservado a
ti neste tempo de agitação, porque não cuidamos apenas do espírito, mas
também da matéria, que não é rainha, mas uma serva útil ao espírito, a fim
de que ele possa cumprir a sua missão.
Sê grata ao Altíssimo, que para ti é verdadeiramente Pai, até mesmo no
sentido afetivo e humano, afagando-te com êxtases suaves, para ocultar o
que poderia assustar-te.
Procura querer-me sempre bem. Eu te mostrei os segredos dos meus
primeiros anos. Agora sabes tudo de mim como mãe. Procura querer-me
bem como filha e como irmã, na qualidade de vítima. Ama a Deus Pai, a
Deus Filho, a Deus Espírito Santo com perfeição de amor.
A bênção do Pai, do Filho e do Espírito Santo que passa pelas minhas
mãos, perfuma-se com o meu amor materno, desça e repouse em ti. Que
sejas sobrenaturalmente feliz.
[35] se odeiam, porque se desencadeava a segunda guerra mundial (outras referências em 11.1 e em 606.13). A escritora foi
obrigada a evacuar de Viareggio para Sant’Andrea di Còmpito, a pequena aldeia assim chamada algumas linhas abaixo e que será
ainda mencionada em 128.6 (como Còmpito) e em anotação a 361.7.
[36] Maria de Magdala quando estava morrendo, numa visão de 30 de Março de 1944, referida no volume “I quaderni del
1944” (Os Cadernos de 1944).
16. A Anunciação.
8 de março de 1944.
16.1
Vejo o seguinte: Maria, ainda muito jovem, com a aparência no
máximo de uns quinze anos, está num pequeno quarto retangular. Um
quarto de menina. A frente de uma das duas paredes mais longas, há o
catre: uma cama baixa, sem beiral, coberta com altas esteiras ou tapetes.
Dir-se-ia que eles estão estendidos, ou sobre uma mesa, ou sobre uma
esteira de caniços, pois estão muito rígidos e retos, como acontece com as
nossas camas. Em frente de outra parede, há uma estante com uma lâmpada
de azeite, rolos de pergaminho, um trabalho de costura dobrado com
cuidado, parecendo ser um bordado.
A virgem está sentada num banco, ao lado da estante, perto da porta,
que embora esteja aberta para o jardim, está velada por uma cortina em
movimento pela brisa. Está fiando um linho muito alvo, e macio como uma
seda. Suas pequenas mãos, pouco mais escuras do que o linho, volteiam
com grande agilidade o fuso. Seu rosto juvenil e belo está levemente
inclinado, ligeiramente sorridente, como se estivesse acariciando ou
acompanhando um doce pensamento.
Há muito silêncio na casinha e no jardim. Há muita paz, tanto no
semblante de Maria, como no ambiente que a rodeia. Paz e ordem. Tudo
muito bonito e em ordem, e o ambiente, ainda que humilde no aspecto e nos
móveis, embora parecendo despojado de tudo como uma cela, tem um ar de
austeridade e realeza, pela grande nitidez e cuidado com que a colcha está
colocada sobre a pequena cama, como estão dispostos os rolos de
pergaminho, a lâmpada, a pequena jarra de cobre perto da lâmpada, com um
maço de ramos floridos, de pessegueiro ou pereira, pois, certamente, são
árvores que produzem um fruto branco, levemente rosado.
16.2
Maria se põe a cantar em voz baixa e depois eleva um pouco a voz.
Não chega a cantar alto. Mas sua voz que começa a vibrar o pequeno
quarto, traduz uma vibração de alma. Não compreendo as palavras que ela
está dizendo, certamente em hebraico. Mas, como ela repete saltiadamente
“Jeová”, eu percebo que se trata de um canto sagrado, como um salmo.
Parece que Maria está relembrando os cantos do Templo. Deve estar sendo
uma doce recordação, porque ela pousa as mãos que estão segurando o fio e
o fuso sobre o regaço, levantando a cabeça, apoiando-a para trás na parede,
com um belo enrubescimento no rosto, um olhar perdido, talvez atrás de
algum suave pensamento. Seus olhos se tornam brilhantes por uma onda de
pranto, que não chega a se derramar, mas os deixa maiores. Contudo
aqueles olhos estão sorrindo, com o pensamento da visão, que os abstraem
das coisas sensíveis. Seu rosto sobressai, das suas vestes brancas e tão
simples, pois está tão rosado, que, rodeado pelas tranças, como coroa ao
redor da cabeça, mais parece uma bela flor.
O canto de Maria se transforma em oração:
– Senhor Deus Altíssimo, não tardes a mandar o teu Servo, que venha
trazer a paz sobre a terra. Faz chegar o tempo e a virgem pura e fecunda,
para a vinda do teu Cristo. Pai Santo, concede à tua serva que possa
oferecer a sua vida para que isso aconteça sobre a terra, concede-me morrer,
depois de ter visto a Tua luz e a Tua justiça sobre a terra, sabendo que a
Redenção já se cumpriu. Ó Pai Santo, manda à terra o suspiro dos profetas.
Manda a esta tua serva o Redentor. Que no dia em que cessar a minha vida,
se abra para mim a tua morada, porque, as portas do céu já terão sido
abertas pelo teu Cristo, para todos aqueles que em Ti esperaram. Vem, ó
Espírito do Senhor! Vem aos teus fiéis, que te esperam! Vem, Príncipe da
Paz!…
Maria fica assim absorta…
16.3
A cortina tremula mais fortemente, como se alguém estivesse
agitando o ar com alguma coisa por detrás dela, ou a estivesse sacudindo, a
fim de afastá-la para um lado. Uma luz branca, como se fosse de pérola
fundida com prata pura, torna as paredes, que são de um amarelo claro,
brancas, as cores das roupas e tecidos mais vivas e o rosto de Maria, agora
soerguido, mais espiritual. O Arcanjo se prostra diante daquela luz, sem que
a cortina tenha sido afastada, frente ao mistério que está acontecendo, pois a
cortina não está mais tremulando, mas está bem esticada, ao lado dos
umbrais, como uma parede separando o interior da casa, da parte exterior.
Ele assumiu necessariamente o aspecto humano. Mas é um aspecto que
ultrapassa os limites da natureza humana. De que carne estará feita esta
figura tão bela e tão fulgurante? Com que substância Deus a terá
materializado, para que os sentidos da Virgem a percebessem? Só mesmo
Deus pode possuir essas substâncias, e usá-las de uma maneira tão perfeita.
Possui rosto, corpo, olhos, boca, cabelos e mãos, como as nossas. Mas não
são feitos de uma matéria opaca como a do nosso corpo. É uma luz que
assumiu cor de carne, de olhos, de cabelos, de lábios; uma luz que se move,
sorri, enxerga e fala.
16.4
– Ave, Maria, cheia de Graça, ave!
Sua voz é como um doce arpejo, como pérolas jogadas sobre um metal
precioso.
Maria estremece, abaixando o olhar. Estremece mais ainda, quando vê
aquela fulgurante criatura ajoelhada a cerca de um metro de distância dela,
olhando para ela com uma veneração sem limites, com as mãos cruzadas
sobre o peito.
Maria se põe de pé, encostando-se à parede. Ela se torna, ora pálida, ora
vermelha. Seu rosto exprime estupor e susto. Instintivamente une as mãos
sobre o seio, escondendo-as nas longas mangas, e se inclina quase que para
esconder, do melhor modo possível, o seu corpo. É um ato de delicado
pudor.
– Não tenhas medo… O Senhor está contigo. Bendita és tu entre todas
as mulheres.
Maria, porém, continua com medo. De onde terá vindo esse ser
extraordinário? Será ele um enviado de Deus, ou do enganador?
– Não tenhas medo, Maria! –lhe repete o Arcanjo–. Eu sou Gabriel, o
Anjo de Deus. Meu Senhor me mandou a ti. Não tenhas medo, porque
achaste graça junto de Deus. Eis que agora conceberás em teu ventre, e
darás à luz um Filho, e lhe porás o nome de “Jesus.” Ele será grande, será
chamado Filho do Altíssimo (como de fato é). O Senhor Deus lhe dará o
trono de Davi seu pai. Ele reinará para sempre na casa de Jacó e o seu
Reino nunca terá fim. Procura compreender, ó santa virgem amada do
Senhor, filha bendita do Senhor, que foste chamada para ser mãe de seu
Filho, o Qual tu gerarás.
– Como poderá acontecer isso, se eu não conheço varão? Talvez o
Senhor Deus não quer mais receber a oferta de sua serva, de ficar virgem
por amor Dele?
– Não serás mãe por obra de homem, ó Maria. Tu és a virgem eterna, a
santa de Deus. O Espírito Santo descerá sobre ti, e o poder do Altíssimo te
cobrirá com Sua sombra. Por isso, Aquele que nascer de ti, se chamará
Santo, Filho de Deus. Tudo pode o Senhor nosso Deus. Isabel, a estéril,
concebeu em sua velhice aquele que será o profeta do teu Filho, ele
preparará o caminho para teu Filho. O Senhor tirou de Isabel o seu
opróbrio, e os povos lembrarão dela, unida ao teu nome, como também o
nome do filho dela ficará unido ao do teu, até o fim dos séculos. As nações
vos chamarão bem-aventuradas, pela Graça do Senhor que veio a vós, e
especialmente a ti, pois esta Graça chegou a todos os povos por meio de ti.
Isabel já está em seu sexto mês, e o peso que ela carrega, a soergue até à
alegria. Nada é impossível para Deus, Maria, cheia de Graça. O que devo ir
dizer ao meu Senhor? Nenhuma dificuldade deverá perturbar-te. O Senhor
defenderá os teus interesses, se confiares Nele. O mundo, o Céu, o Eterno
estão esperando pela tua palavra!
Maria, por sua vez, cruzando as mãos sobre o peito, e fazendo uma
profunda inclinação, diz:
– Eis aqui a serva de Deus. Faça-se de mim conforme a sua palavra.
O Anjo cintila de alegria. Ele adora, porque certamente está vendo o
Espírito de Deus descer sobre a virgem, que está inclinada ao dar sua
resposta de assentimento, e depois desaparece, sem precisar mover a
cortina, que fica bem estendida sobre o mistério santo.
17. A desobediência de Eva e a obediência de
Maria.
5 de março de 1944.
17.1
Jesus diz:
– […][37].
Não se lê no Gênesis[38] que Deus fez o homem para dominar tudo o
que havia sobre a terra, ou seja, tudo, com exceção de Deus e dos seus
ministros angélicos? Não se lê que fez a mulher para ser companheira do
homem na alegria e na dominação de todos os seres vivos? Não se lê que
eles podiam comer de tudo, menos da árvore da ciência do Bem e do Mal?
Por quê? O que está sub-entendido nas palavras “para que domines”? O que
está sub-entendido na árvore da ciência do Bem e do Mal? Nunca vos
fizestes tais perguntas, vós que viveis perguntando tantas coisas inúteis, mas
não indagam vossa alma a respeito das verdades celestes?
A vossa alma, se estivesse viva, vos responderia. Quando ela está na
graça de Deus, está bem segura, como uma flor entre as mãos do vosso
anjo. Quando está na graça de Deus, é como uma flor beijada pelos raios do
sol, borrifada por um orvalho do Espírito Santo, que a aquece e ilumina,
que a irriga e adorna com suas luzes celestes. Quantas verdades vos diria a
vossa alma, se soubésseis conversar com ela, se a amásseis, como se ama
alguém que voz faz semelhantes a Deus, que também é Espírito. Que
grande amiga teríeis, se amásseis a vossa alma, em vez de odiá-la, ao ponto
de matá-la? Que grande e sublime amiga com a qual poderíeis falar das
coisas do céu, vós que gostais tanto de falar, e vos arruinais reciprocamente,
com amizades que, se não são indignas, pelo menos são quase sempre
inúteis, transformando-se num vazio vão e nocivo de palavras, totalmente
terrenas.
Não disse[39] Eu: “Quem me ama guardará a minha palavra e meu Pai o
amará, e viremos a ele e faremos nele morada”? A alma no estado de graça
possui o amor, possuindo então Deus, ou seja, o Pai que mantém esta alma,
o Filho que a ensina, o Espírito que a ilumina. Possui, portanto, o
Conhecimento, a Ciência, a Sabedoria. Possui a Luz. Pensai, então, nas
conversações sublimes que vossa alma poderia entabular convosco. São os
diálogos que encheram os silêncios dos calabouços, das celas, dos ermos,
dos aposentos dos enfermos santos. Souberam confortar os que estavam
encarcerados, à espera do martírio, os enclausurados por amor à busca da
Verdade, os ermitãos ansiosos pelo conhecimento antecipado de Deus, os
enfermos pela suportação. Em suma, souberam ensinar o amor à cruz.
17.2
Se soubésseis fazer perguntas à vossa alma, ela vos diria que o
significado verdadeiro, exato, vasto como a criação, da palavra “domina” é
este: “O homem deve dominar tudo, em todos os estados: o estado inferior,
que é o animal; o estado mediano, que é o moral e o estado superior, que é
o espiritual. O homem usa os três estados[40] para atingir um único fim, que
é possuir a Deus.” Merecer isto através deste férreo domínio, que subjuga
as forças do eu, tornando-as escravas deste único objetivo: merecer a
possessão de Deus. Vossa alma vos diria que Deus proibira o conhecimento
do Bem e do Mal, porque o Bem tinha sido dado por Ele às suas criaturas
gratuitamente, mas Ele desejava que o Mal vós não conhecêsseis, porque é
um fruto doce ao paladar, mas que, descendo para o sangue, desperta uma
febre que mata, produzindo uma tal ardência, que quanto mais se bebe
daquele suco mentiroso, mais se tem sede dele.
17.3
Vós me objetareis: “Então, por que o Mal foi colocado diante de
nós?” Porque é uma força que nasceu por si mesma, como nascem certos
males monstruosos até nos corpos mais sadios.
Lúcifer era um anjo, o mais belo dos anjos. Espírito perfeito, inferior
somente a Deus. No entanto em seu ser luminoso nasceu uma sombra de
soberba, que ele não tratou de dispersar, mas, ao contrário, procurou
condensar, incubando-a. Dessa incubação, nasceu o Mal. Este existia, antes
que o homem fosse criado. Deus havia precipitado o maldito incubador do
Mal para fora do Paraíso, que tinha se maculado com este Mal. Não
podendo mais sujar o Paraíso, o eterno incubador do Mal sujou a Terra.
17.4
A planta metafórica quer demonstrar esta verdade. Deus tinha dito ao
homem e à mulher: “Vós conheceis todas as leis e os mistérios da criação.
Mas não queirais usurpar-me o direito de ser o Criador do homem. Para
propagar a raça humana, bastará o meu amor, que circulará entre vós, sem
libido de sensualidade, mas pelo impulso da caridade, que suscitará novos
Adãos. Tudo eu vos dou. Só me reservo este mistério da formação do
homem.”
17.5
Satanás quis tirar esta virgindade intelectual do homem e, com sua
língua serpentina, aplacou, acariciando membros e olhos da Eva, fazendo
surgir neles reflexos e sagacidades, que antes não tinham, quando a malícia
não os tinha intoxicado ainda.
Ela “viu.” E quis experimentar. A carne foi despertada. Oh! se tivesse
chamado por Deus! Se tivesse corrido para ir dizer-lhe: “Pai, eu estou
doente. A Serpente me acariciou, e estou perturbada.” O Pai a teria
purificado, e curado com o seu hálito, que podia infundir-lhe novamente a
inocência, como lhe havia infundido a vida, fazendo-a esquecer-se do
tóxico da Serpente, colocando nela a repugnância por ela, como acontece
com aqueles que foram assaltados por algum mal, guardando uma instintiva
repugnância dele. Mas Eva não foi ao Pai. Ela voltou à Serpente. Aquela
sensação foi doce para ela: “Vendo que o fruto da árvore era bom para se
comer, bonito de se ver e agradável ao aspecto, foi apanhá-lo, e comeu.”
E “compreendeu.” A malícia já tinha começado a morder-lhe as
entranhas. Ela passou a ver com outros olhos, e a ouvir com outros ouvidos,
os usos e as vozes dos irracionais. Passou a desejá-los com uma louca
cobiça.
17.6
Ela iniciou sozinha o pecado. E o terminou com o seu companheiro.
Por isso é que sobre a mulher pesa uma pena maior. Foi por meio dela que o
homem se tornou rebelde a Deus e que ele conheceu a luxúria e a morte.
Foi por ela que ele não soube mais dominar os três reinos: do espírito,
porque permitiu que o espírito desobedecesse a Deus; da moral, porque
permitiu que as paixões o dominassem; e da carne, porque o aviltou,
submetendo-o às leis instintivas que regem os brutos. “A Serpente me
seduziu”, diz Eva. “A mulher me ofereceu o fruto, e eu o comi”, diz Adão.
A tríplice concupiscência rouba os seus três reinos do homem.
17.7
Somente a Graça pode desacorrentar o homem preso àquele monstro
impiedoso. Mas, se a Graça é viva, mantida sempre assim pela vontade do
filho fiel, ela chega a destroçar o monstro, e não é preciso temer mais nada:
nem os tiranos internos, isto é, a carne e as paixões; nem os tiranos
externos, ou seja, o mundo e os poderosos dele. Nem as perseguições. Nem
a morte. É como diz o Apóstolo Paulo[41]: “Nenhuma destas coisas eu temo,
nem amo a minha vida mais do que a mim mesmo, contanto que eu leve a
bom termo a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus, que
é o de dar testemunho do Evangelho da Graça de Deus.”
[…].

[8 de março de 1944.]
17.8
Maria diz:
– Estou na alegria, pois, desde que compreendi a missão a que Deus me
destinava, fiquei repleta de alegria. O meu coração se abriu como um lírio
que desabrocha e o sangue derramou dele, como terreno para o Embrião do
Senhor.
17.9
Alegria de ser mãe.
Eu me tinha consagrado a Deus desde a mais tenra idade, porque a luz
do Altíssimo me havia feito conhecer a causa do mal no mundo e eu quis,
por quanto estava em meu poder, anular, por mim mesma, o plano de
satanás.
Eu ainda não sabia que não possuía a mancha do pecado. Nem eu podia
pensar nisso,pois, teria sido presunção e soberba, dado que, nascida de pais
humanos, não me era lícito pretender que logo eu é que seria a escolhida
para não ter mácula.
O Espírito de Deus me tinha instruído sobre a dor do Pai, diante da
corrupção de Eva, que tinha querido aviltar-se, pois, sendo criatura por
graça, desceu ao nível de uma criatura inferior. Havia em mim a intenção de
amenizar aquela dor, reconduzindo a minha carne à pureza angélica,
conservando-me inviolada por pensamentos, desejos e contactos humanos.
Só por Ele o meu coração palpitava de amor, só a Ele eu consagrava o meu
ser. Mas, se não havia em mim o ardor da carne, contudo ainda havia o
sacrifício de não ser mãe.
A maternidade, livre de tudo o que agora a avilta, tinha sido concedida
assim pelo Pai Criador também a Eva. Uma doce e pura maternidade, sem o
peso da sensualidade! Eu a experimentei! De quantas vantagens Eva se
despojou, quando renunciou a uma riqueza de tal porte! Essa riqueza era
muito mais do que a imortalidade. E que não vos pareça um exagero dizer
isso. De fato, o meu Jesus, e com Ele eu, sua mãe, tivemos de passar pelos
langores da morte. Eu passei por ela, como alguém que, cansado, adormece
docemente, e Ele, por meio do atroz sofrimento de quem está morrendo,
porque foi condenado a isso. Portanto, também para nós houve morte. Mas
a maternidade sem pesos e sem violações só aconteceu comigo, a nova Eva,
a fim de que ela pudesse dizer ao mundo que doçura teria sido para a
mulher chamada a ser mãe, se não sentisse dor em sua carne. Ora, o desejo
dessa maternidade pura estava também na virgem toda de Deus, pois a
maternidade é a glória da mulher. Se pensardes, então, na honra que era ser
mãe para a mulher israelita, ainda mais podereis compreender o meu
sacrifício, ao consagrar-me a Deus, com a privação da maternidade.
Mas o Eterno Bem quis dar à Sua serva este dom, sem deixá-la perder o
candor que a revestia, tornando-a uma flor no seu trono. Eu me sentia
jubilosa com a dupla alegria de poder ser a mãe de um homem e, ao mesmo
tempo, ser a mãe de Deus.
17.10
AAlegria de ser aquela pela qual a paz se estabelecia entre o Céu e a
Terra.
Oh! Ter tanto desejado essa paz, por amor de Deus e do próximo, e
saber que através de mim, uma pobre serva do Todo-Poderoso, é que tal paz
viria ao mundo! Poder dizer: “Ó homens, não choreis mais, pois eu trago
em mim o segredo que vos fará felizes. Não posso lhes comunicar este
segredo, porque está selado no meu coração, assim como o Filho no meu
ventre inviolado. Mas já O trago em meio a vós, e cada hora que passa, fica
mais perto o momento em que o vereis, e conhecereis seu Nome Santo”.
17.11
A Alegria de ter contentado a Deus: a alegria do fiel que faz feliz o
seu Deus.
Oh! Sim! Ter tirado do coração de Deus a amargura da desobediência
de Eva! Da soberba de Eva! Da sua incredulidade!
17.12
Meu Jesus me explicou a culpa com que o primeiro casal se
manchou. Eu anulei aquela culpa, refazendo de modo retroativo as etapas
da descida deste casal, para depois subir de novo.
O princípio da culpa estava na desobediência: “Não comais daquela
árvore, e não toqueis nela”, Deus havia dito. Mas o homem e a mulher não
levaram em conta aquela proibição. Eles que eram os reis da criação,
podiam tocar em tudo, comer de tudo, menos daquela árvore, pois Deus
queria torná-los inferiores só aos anjos.
A árvore: meio para provar a obediência dos filhos.
O que é a obediência ao mandamento de Deus? É um bem, porque
Deus só exige o bem. O que é a desobediência? É um mal, porque põe a
alma na disposição de rebeldia, oferecendo a satanás um campo propício
para as suas operações.
Eva vai até à árvore, da qual receberia o bem, ao evitá-la, ou o mal,
aproximando-se dela. Ela é arrastada por uma curiosidade infantil que
deseja ver o que a árvore tem de especial. É levada pela imprudência, que
lhe faz conceber o mandamento de Deus como inútil, pois se sente forte e
pura, rainha do Éden, no qual tudo lhe obedece, onde nada lhe fará mal.
Esta presunção causa sua ruína. A presunção é um fermento da soberba.
Junto à árvore, ela encontra o sedutor, que se aproveita da sua
inexperiência, daquela inexperiência virgem e bela, tão mal protegida por
ela mesma, para cantar-lhe a canção da mentira: “Crês tu que isso seja um
mal? Não. Deus te disse isso porque vos quer conservar escravos do seu
poder! Pensais que sois reis? Nem liberdade tendes, como a têm os animais.
Pois aos animais foi concedido que se amem com verdadeiro amor. Mas a
vós, não. Ao animal foi concedido tornar-se criador, como Deus. Ele gerará
filhos e verá crescer sua família, à vontade. A vós, porém, é negada essa
alegria. Porque, então, ser homem ou mulher, se tendes que viver desse
modo? Sede deuses! Não sabeis que alegria é estarem ambos numa só
carne, para que dessa união se crie uma terceira criatura, e depois muitas
outras criaturas? Não acrediteis na promessa de Deus de que tereis alegria
em vossos descendentes, vendo os vossos filhos criarem novas famílias,
deixando pai e mãe, por causa delas. Deus vos deu apenas uma sombra de
vida: a verdadeira vida é conhecer as suas leis. Então, sim, sereis
semelhantes a deuses e podereis dizer a Deus: ‘Somos iguais a ti’.”
E a sedução continuou, porque não houve vontade de acabar com ela,
pelo contrário, houve vontade de continuar conhecendo o que não era lícito
ao homem conhecer. É aí que a árvore proibida se torna realmente mortífera
para a raça humana, pois dos seus ramos está o fruto da amarga sabedoria,
que vem de satanás. A mulher se torna fêmea e, com o fermento do
conhecimento satânico no coração, corrompe o companheiro, Adão.
Aviltada, pois, a carne, corrompida a moral, degradado o espírito, eles
passaram a conhecer a dor e a morte do espírito, sem a graça, e morte da
carne, sem a imortalidade. A ferida de Eva gerou o sofrimento, que não se
aplacará, enquanto não se extinguir a vida do último casal, sobre a terra.
17.13
Eu percorri, de modo regressivo, os caminhos daqueles dois
pecadores. Obedeci. Obedeci de todos os modos. Deus me pediu que eu
permanecesse virgem. Eu obedeci. Tendo amado a virgindade, que me
tornava pura como a primeira das mulheres, antes de conhecer satanás,
Deus me pediu que fosse esposa. Eu obedeci, colocando o matrimônio
naquele primeiro grau de pureza conforme o pensamento de Deus, quando
criou o primeiro homem e mulher. Convicta de que estava destinada à
solidão no matrimônio, a ser desprezada pelos outros, pela minha
esterilidade voluntária, Deus me pedia para me tornar mãe. Eu obedeci. Eu
acreditei que seria possível e que aquela palavra tinha vindo de Deus, pois,
ao ouvi-la, difundiu-se em mim uma grande paz. Não fiquei pensando: “Eu
mereci isto.” Não fiquei dizendo a mim mesma: “Agora, o mundo vai me
admirar, pois sou semelhante a Deus, criando a carne de Deus.” Não. Eu me
aniquilei na humildade.
A alegria brotou-me do coração, como um pedúnculo de roseira florida.
Mas esta viu-se bem depressa ornada com agudos espinhos, apertada no
emaranhado da dor, como aqueles ramos que ficam enrolados por alguma
trepadeira. A dor pela dor do esposo: eis a angústia na minha alegria. A dor
pela dor do meu Filho: eis o espinho na minha alegria.
Eva quis o gozo, o triunfo, a liberdade. Eu aceitei a dor, o
aniquilamento, a escravidão. Renunciei à minha vida tranqüila, ao amor do
meu esposo, à minha própria liberdade. Não conservei nada para mim. Fiz-
me a serva de Deus na carne, na moral, no espírito, confiando-me a Ele, não
só para a concepção virginal, mas para a defesa de minha honra, para a
consolação do esposo, para o meio com o qual ele pudesse entender a
purificação do matrimônio, de tal modo a fazer de nós dois os que haveriam
de restituir a dignidade perdida ao homem e à mulher.
17.14
Abracei a vontade do Senhor, por mim mesma, pelo esposo e por
meu Filho. Eu disse “sim” pelos três, certa de que Deus não teria faltado
com sua palavra, quando prometeu me socorrer na minha dor de esposa,
que está sendo julgada culpada, de mãe que gera um Filho para entregá-Lo
à dor.
Eu disse sim, e basta. Aquele “sim” anulou o “não” de Eva ao
mandamento de Deus. “Sim, Senhor, como quiseres. Conhecerei o que Tu
queres. Viverei como Tu queres. Alegrar-me-ei, se Tu quiseres. Sofrerei o
que Tu quiseres. Sim, sempre sim, meu Senhor, desde o momento em que o
Teu raio me fez mãe, até o momento em que me chamaste para Ti. Sempre
sim. Todas as vozes da carne, todas as paixões da moral, sob o peso deste
meu perpétuo sim. Acima, como num pedestal de diamante, o meu espírito,
ao qual faltam asas para voar a Ti, mas que é senhor de todo o eu domado,
servo teu. Serva na alegria, serva na dor. Sorri, ó meu Deus! Sê feliz! A
culpa foi vencida, excluída, destruída. Ela, agora sob o meu calcanhar, está
lavada em meu pranto, destruída pela minha obediência. De meu ventre
nascerá a árvore nova, que há de ter em si o Fruto, que conhecerá todo o
Mal, por tê-lo padecido em Si, e que doará todo o Bem. Os homens poderão
ir a Ele. Eu me darei por feliz, se eles colherem desse fruto, ainda que não
se lembrem que este fruto está nascendo de mim. Contanto que o homem se
salve, e que Deus seja amado, que se faça desta tua serva o que se faz do
solo sobre o qual surge uma árvore: um degrau para subir.”
17.15
Maria, é preciso saber sempre ser degrau, para que os outros subam
para Deus. Se nos pisam, não faz mal. Contanto que consigam chegar à
Cruz. É a nova árvore que tem o fruto do conhecimento do Bem e do Mal,
pois diz ao homem o que é um e outro, a fim de que ele saiba escolher e
viver. Esta árvore também tornar-se-a licor que cura os intoxicados do mal
que quiseram saborear. O nosso coração esteja sob os pés dos homens,
contanto que o número dos redimidos cresça, e que o Sangue do meu Jesus
não seja derramado sem fruto. Eis a sorte das servas do Senhor. Depois
mereceremos receber no ventre a Hóstia santa e, aos pés da Cruz,
impregnada pelo Seu Sangue e pelo nosso pranto, dizer: “Eis aqui, ó Pai, a
Hóstia imaculada, que te oferecemos pela salvação do mundo. Olha para
nós, ó Pai, unidas com ela e pelos seus merecimentos infinitos, dá-nos a tua
bênção.”
Eu te dou minhas carícias. Repousa, minha filha. O Senhor está
contigo.

17.16
Jesus diz:
– A palavra de minha mãe deveria dissipar toda e qualquer titubeação
de pensamento, até mesmo dos mais bloqueados com relação às fórmulas.
[…].
Eu chamei antes de “árvore metafórica.” Agora vou chamar de “árvore
simbólica.” Talvez compreendais melhor. O símbolo é claro: assim como os
dois filhos de Deus procederam a respeito desta árvore, se entende como
estava neles a tendência para o Bem ou para o Mal. Como a água régia
prova o ouro, a balança do ourives pesa os quilates de ouro, aquela árvore
tinha assumido uma “missão” pela ordem de Deus a seu respeito, dando a
medida de pureza do metal que era Adão e Eva.
17.17
Estou já ouvindo a vossa objeção: “Não foi rigorosa demais a
condenação, e pueril o meio usado para condená-los?”
Não foi. Uma vossa desobediência hoje, que sois os herdeiros de Adão
e Eva, é menos grave do que a deles. Vós fostes redimidos por Mim. Mas o
veneno de satanás continua sempre pronto a se reerguer, como certas
doenças que nunca saem totalmente do sangue. Os dois progenitores eram
possuidores da graça, sem nunca terem sido nem tocados pela desgraça. Por
isso eram mais fortes, mais amparados pela graça, que gerava neles
inocência e amor. O dom que Deus lhes havia dado era infinito. A queda
deles, portanto, foi bem mais grave, não obstante aquele dom.
17.18
O fruto oferecido e comido também é simbólico. Era o fruto de uma
experiência que se quis fazer contra a ordem de Deus, por instigação
satânica. Eu não havia proibido o amor aos homens. Queria unicamente que
se amassem sem malícia; como Eu os amava com a minha santidade. Eles
deviam amar-se na santidade de afetos, sem sujarem-se com a luxúria.
17.19
Não se há de esquecer que a graça é luz e quem a possui conhece o
que é útil e bom. Aquela que é cheia de graça conheceu tudo, porque a
Sabedoria a instruía. A sabedoria é graça, e ela soube guiar-se santamente.
Eva conhecia o que lhe era bom conhecer. Não mais do que isso, porque é
inútil conhecer o que não é bom. Não teve fé nas palavras de Deus e não foi
fiel à sua promessa de obediência. Acreditou em satanás, infringiu a
promessa, quis saber o que não é bom e o amou sem remorso, fazendo com
que o amor, que Eu lhe tinha dado como algo santo, se corrompesse, se
aviltasse. Anjo decaído, rolou na lama e no esterco, enquanto poderia correr
feliz entre as flores do Paraíso terrestre, vendo florescer a prole ao redor de
si, assim como uma árvore que se cobre de flores, sem precisar curvar sua
copa sobre o brejo.
17.20
Não fiqueis como os meninos tolos de que Eu falo[42] no Evangelho
os quais ouviram cantar, e taparam os ouvidos, ouviram tocar e não
dançaram, ouviram chorar, e quiseram rir. Não sejais mesquinhos, não
sejais negadores. Aceitai, aceitai a Luz sem malícia e teimosia, sem ironia e
incredulidade. A respeito deste assunto, basta por enquanto.
17.21
Para fazer-vos compreender o quanto deveis ser gratos Àquele que
morreu para elevar-vos ao céu e vencer a concupiscência de satanás, neste
tempo de preparação para a Páscoa, Eu vos quis falar do primeiro elo da
corrente com que o Verbo do Pai foi arrastado à morte, do Cordeiro Divino
no matadouro. Eu vos quis falar disso, porque agora noventa por cento entre
vós é semelhante à Eva, intoxicada pelo hálito, pela palavra de lúcifer, e não
viveis para amar-vos, mas para saciar-vos de sensualidade, não viveis para o
Céu, mas para a lama, não sois criaturas dotadas de alma e de razão, mas
cães sem alma e sem razão. Vós já matastes a alma; já depravastes a razão.
Em verdade, vos digo que os animais irracionais estão acima de vós, na
honestidade dos seus amores.
[37] [...] Este sinal indicará sempre a omissão de uma passagem não pertinente, que se encontrará referido em um dos volumes
intitulados “Os cadernos” ou então num outro ponto da obra.
[38] se lê no Génesis, é uma constante referência à história das origens (criação do universo e do homem, culpa de Adão e Eva e
suas consequências) pela qual se remete, uma vez por todas, a: Génesis 1-3. O tema da criação resplandecerá no discurso de Jesus
repetido por João em 244. 5/8 e no proferido por Jesus em 506.2, e ainda será tratado em 540.8/10 e 651.14/15. O tema do pecado
original é tratado, além do presente capítulo, em 5.14/15 -29.7/12 -45.6 -47.6 (com nota) -122.8 -126.3 -131.2 -140.3 -174.9 (com
uma extensa anotação) -188.6 -196.5 (com nota) -207.10 -242.6 (em nota) -265.4 -267.3 -286.7 -307.6/7 -317.4 -365.6 -381.6
-406.10 -412.2 -414.8 -420.10/11 -477.3 (antepenúltima linha) -511.3 -515.3 -527.7 -553.6 -554.10 (explicado em parábola)
-567.19.23 (em nota) -593.6 -596.29 (com nota) -600.36 -606 (todo o capítulo) -620.5 -635.2 -642.8 -643.2 -645.12.
[39] disse, em: João 14,23 (600.27).
[40] três estratos, como os classifica também S. Paulo em: 1 Tessalonicenses 5,23. A obra Valtortiana apresenta com frequência a
divisão tripartida do homem: corpo (ou carne, matéria, sentido, etc.), alma (ou mente, pensamento, moral, coração, etc.), espírito
(ou alma espiritual, essência espiritual, etc.). Sempre mantendo a substancial gradualidade das três partes, com frequência chama
“alma” à alma espiritual ou espírito, a ponto de dar, em 651.1, a singular definição de “parte eleita do espírito”. A divisão
tripartida do homem representa-se neste capítulo e em 35.10 -36.9 -37.8 -46.13 -47.4 -69.1.3 -80.9 -122.8 -125.2 -137.5 -174.9 (na
nota sobre o pecado original) -196.4 -204.5/6 -209.6 -212.2 -225.8 -237.2 -243.10 -272.4 -275.13 -286.7 -346.5 -406.10 -465.4
-473.9 -524.7/8 -527.7 -548.18 -555.6 (nota) -567.21 -601.1 -608.13 -610.16 -613.9 -651.4.17.
[41] diz o Apóstolo Paulo, em: Actos 20,24.
[42] Eu falo, em: Mateus, 16-17; Lucas 7,31-32 (266.12). Mesma citação em 45.9.
18. Maria anuncia a José a maternidade de Isabel
e confia a Deus a tarefa de justificar a sua.
25 de março de 1944.
18.1
Aparece-me agora a casinha de Nazaré, onde está Maria. Muito
jovem, como quando o Anjo de Deus lhe apareceu, sua imagem faz minha
alma encher-se do perfume virginal daquela morada e do perfume angélico,
que ainda permanece no ambiente ventilado pelas asas douradas do anjo. É
o perfume divino, que se concentrou em Maria, para lhe fazer mãe, e que
agora exala de sua pessoa.
Começa a entardecer, porque as sombras invadem o ambiente de onde
viera tanta luz do Paraíso.
Maria, de joelhos junto de sua pequena cama, está rezando com os
braços cruzados sobre o peito, e com o rosto muito inclinado sobre a terra.
Está ainda vestida, como estava no momento da Anunciação. Tudo está
como naquele dia. O ramo florido ainda está no vaso, e os móveis na
mesma ordem. Somente a roca e o fuso estão encostados em um canto, a
roca com sua estriga de linho, e o fuso com seu alvo fio enrolado.
Maria termina sua oração, e se levanta, com o rosto abrasado, como que
em chamas. Sua boca sorri, mas o pranto deixa os seus olhos molhados. Ela
pega a candeia e a acende, com a pederneira. Olha se tudo está em ordem
em seu pequeno aposento. Acerta a coberta da cama, que tinha saído do
lugar. Põe mais água no vaso do ramo florido, e o leva para fora, a fim de
que tome o frescor da noite. Depois torna a entrar. Toma o bordado que está
dobrado sobre um móvel da prateleira com o candeeiro e sai, fechando a
porta.
Dá alguns passos pelo jardim e pelos lados da casa, depois entra no
pequeno aposento, onde vi[43] Jesus se despedindo dela. Reconheço bem o
lugar, ainda que estejam faltando agora alguns móveis que haverá naquele
tempo. Maria desaparece, levando consigo o candeeiro para um outro
pequeno quarto, e eu fico ali com a única companhia do trabalho que ela
deixou sobre um canto da mesa. Ouço os passos ligeiros de Maria, que vai e
vem, ouço o barulho de água, como o de quem está lavando alguma coisa,
depois o barulho de quem está quebrando uns pequenos galhos, e
compreendo que ela está acendendo fogo com uns gravetos.
Depois, volta. Sai de novo para o pequeno jardim. Torna a entrar com
algumas maçãs e verduras. Põe as maçãs sobre a mesa em uma bandeja de
metal que parece ser cobre burilado. Volta para a cozinha (certamente deve
ser a cozinha). Agora a luz da lareira está projetando-se alegre pela porta
aberta, chegando até aqui dentro, e está produzindo uma dança de sombras
nas paredes.
Algum tempo depois, Maria volta, com um pãozinho escuro e uma
tigela de leite quente. Ela se assenta, e vai molhando fatias de pão no leite, e
come devagar. Depois, deixando a metade da tigela com leite, entra de novo
na cozinha, voltando com as verduras sobre as quais derrama azeite, e as
come com pão. Depois bebe o leite. Em seguida, apanha uma maçã e come.
É uma ceia de menina.
Maria vai comendo e pensando, e tem algum pensamento que a está
fazendo sorrir. Levanta-se, corre o olhar pelas paredes, parecendo querer
comunicar a elas um segredo. Mas, de vez em quando, fica séria, quase
triste. Contudo, logo em seguida volta o seu sorriso.
18.2
Ouve-se bater à porta. Maria se levanta e abre. José entra. Saúdam-se.
José se assenta sobre um banco, em frente a Maria, do outro lado da mesa.
José é um belo homem, na plenitude dos seus trinta e cinco anos,
quando muito. Seus cabelos castanho-escuros, e também sua barba da
mesma cor, emolduram o seu rosto bastante regular, com dois doces olhos
de um castanho quase preto. Ele tem a fronte espaçosa e lisa, nariz fino
levemente aquilino, faces um tanto arredondadas, de cor morena não
oliváceas, mas um pouco rosadas no centro. Ele não é muito alto. Mas é
robusto e bem feito de corpo.
Antes de sentar-se, tirou o manto que é uma peça inteira (é o primeiro
que vejo feito assim), presa à altura da garganta por um alfinete, ou coisa
semelhante, e tem um capuz. É de cor marrom clara, e parece ser de tecido
impermeável, lã não trabalhada. Parece um daqueles mantos dos
montanheses, próprio para chuva.
18.3
Mas, antes mesmo de sentar-se, ele oferece a Maria dois ovos e um
cacho de uvas, um pouco murchas, mas ainda bem conservadas. Ele sorri,
dizendo:
– Trouxeram-me estas uvas de Caná. O centurião me deu os ovos, por
um trabalho que eu fiz em seu carro. O carro estava com uma roda
quebrada, e o carpinteiro dele está doente. Os ovos são frescos. Foram
apanhados no ninho. Toma-os. Eles te farão bem.
– Amanhã os tomarei, José. Acabei de comer agora mesmo.
– Mas a uva podes chupar. É boa. Doce como mel. Eu a trouxe com
cuidado para não estragá-la. Chupa-as. Eu ainda tenho mais. Eu as trarei
amanhã em um cestinho. Esta tarde eu não podia, porque estou vindo
diretamente da casa do centurião.
– Então, não ceaste ainda?
– Não, mas não tem importância.
Maria se levanta logo, e vai para a cozinha, e volta com leite, azeitonas
e queijo.
– Não tenho outra coisa –ela diz–. Toma um ovo.
José não quer. Os ovos são para ela. Ele come com gosto o seu pão com
queijo e bebe o leite, que ainda está morno. Depois aceita uma maçã. E
termina a ceia.
Maria pega o seu bordado, depois de ter tirado as louças da mesa, e
José a ajuda na cozinha, mesmo quando ela torna a sair. Estou ouvindo
como ele se move, indo colocar cada coisa em seu lugar. Depois, atiça de
novo o fogo, porque a noite vai ser fria. Quando volta, Maria lhe agradece.
18.4
Conversam um com o outro. José conta como passou aquele dia. Fala
de seus pequenos sobrinhos. Interessa-se pelos trabalhos de Maria e por
suas flores. Promete trazer-lhe umas flores muito bonitas que o centurião
lhe prometeu.
– São flores que nós não temos por aqui. Trouxeram-lhe de Roma. Ele
me prometeu mudas. E, quando a lua for boa, eu as plantarei para ti. Elas
têm belas cores e um cheiro muito agradável. Eu as vi no verão passado,
pois florescem no verão. Vão te perfumar toda a casa. Depois, quando a lua
for boa, podarei as plantas. Logo é tempo para isso.
Maria sorri, e agradece. Ficam os dois em silêncio. José olha para a
cabeça loira de Maria, que está inclinada para o bordado. É um olhar de
amor angelical. Pois, certamente, se um anjo amasse uma mulher com amor
de esposo, seria assim que a olharia.
18.5
Maria, como alguém que toma uma decisão, põe sobre os joelhos o
bordado, e diz:
– José, eu também tenho uma coisa para te dizer: Nunca tenho nada,
pois sabes como vivo retirada. Mas hoje tenho para ti uma notícia. Tive
notícia de que nossa parenta Isabel, mulher de Zacarias, está para ter um
filho…
José arregala os olhos, e diz:
– Naquela idade?
– Naquela idade –responde Maria, sorrindo–. O Senhor tudo pode. E
agora quis dar esta alegria à nossa parenta.
– Como ficaste sabendo disso? É notícia certa?
– Veio até aqui um mensageiro. É um que não pode mentir. Eu gostaria
de ir à casa de Isabel para ajudá-la e dizer-lhe que me congratulo com ela.
Se me deres licença…
– Maria, tu és a minha esposa, e eu sou o teu servo. Tudo o que fazes é
bem feito. Quando gostarias de ir?
– Quanto antes. Mas ficarei fora alguns meses.
– E eu ficarei contando os dias, à tua espera. Vai tranqüila. Cuidarei da
casa e do pomar. Encontrarás na volta as tuas flores tão bonitas, como se
tivesses cuidado delas. Só uma coisa… espera. Eu preciso ir, antes da
Páscoa, a Jerusalém, comprar alguns objetos para o meu trabalho. Se
esperares um ou dois dias, te acompanharei na viagem. Não mais, porque eu
preciso voltar logo. Mas, daqui até lá, podemos ir juntos. Eu fico mais
tranqüilo, quando sei que não estás sozinha pelas estradas. Para a tua volta,
me mandarás notícia, e irei te buscar.
– És tão bom, José. O Senhor te recompense com as suas bênçãos, e
mantenha a dor longe de ti. Peço isso sempre a Ele.
18.6
Os dois castos esposos sorriem angelicalmente um para o outro. Faz-
se silêncio por algum tempo.
Depois, José se levanta. Torna a colocar o manto, puxa o capuz sobre a
cabeça. Saúda Maria, que também se levanta, e sai.
Maria o fica olhando, enquanto ele caminha, e dá com um suspiro,
como de pena. Depois, eleva os olhos para o céu. Certamente, está rezando.
Fecha a porta com cuidado. Dobra o bordado. Vai à cozinha. Apaga, ou
cobre o fogo. Olha se tudo está em seu lugar. Toma o candeeiro, e sai,
fechando a porta. Com a mão faz um anteparo de proteção para a chama do
candeeiro, que está tremendo pelo vento frio da noite. Entra no aposento, e
vai rezar ainda.
A visão termina assim.

Maria diz:
18.7

– Querida filha, quando, depois de cessar o êxtase, que me havia


enchido de inexprimível alegria, voltei ao uso dos sentidos nesta terra, o
primeiro pensamento que tive foi José, pensamento pungente como um
espinho de roseira, me feria o coração, enfaixado , há alguns instantes, pelas
rosas do Divino Amor, meu Esposo.
Eu já o amava, este meu santo e previdente guarda. Desde quando a
vontade de Deus, por meio da palavra de seu Sacerdote, me tinha querido
desposada a José, eu já pudera conhecer e apreciar a santidade deste justo.
Unida a ele eu tinha sentido que cessava aquela minha desorientação de
órfã, e já não tinha mais saudade do meu tempo de asilada no Templo. Para
mim ele era tão bom, como meu falecido pai. Junto dele eu me sentia
segura, como junto ao Sacerdote. Toda minha titubeação havia cessado, e
não só cessado, mas ficado esquecida, de tal modo tranquilizava-me o
coração de virgem, ao compreender que já não precisava mais titubear, pois
não tinha que temer nada da parte de José. Mais segura do que um menino
nos braços da mãe, assim estava a minha virgindade confiada a José.
18.8
Mas, e como dizer-lhe que eu era mãe? Eu procurava palavras para
dizer-lhe isso, mas era uma tarefa árdua. Eu não queria louvar-me pelo dom
de Deus, e não podia, de maneira alguma, justificar a minha maternidade,
sem dizer: “O Senhor me amou mais do que todas as mulheres, e de mim,
sua serva, me fez sua esposa.”
Enganá-lo, escondendo-lhe o meu estado, eu não queria também.
Mas, enquanto estava rezando, o Espírito, do qual eu estava plena, me
disse: “Cala-te. Confia a Mim a tarefa de justificar-te perante o esposo.”
Quando? Como? Estas coisas não lhe perguntei. Eu sempre me havia
confiado a Deus, como uma flor na onda que a transporta. Nunca o Eterno
me tinha feito ficar sem sua ajuda. Sua mão sempre me havia sustentado,
protegido e guiado, até aqui. E iria fazer tudo isso também agora.
18.9
Minha filha, como é bela e confortável a fé em nosso eterno e bom
Deus! Ele nos acolhe em seus braços como em um berço, nos leva ao
luminoso porto do Bem, como num barco, nos aquece o coração, nos
consola, nos nutre, nos dá repouso e alegria, nos dá luz e guia. A confiança
em Deus é tudo, pois Deus tudo dá a quem tem confiança Nele. Ele se dá
até a Si mesmo.
Naquela tarde levei a minha confiança de criatura à perfeição. Agora,
eu o podia fazer, porque Deus estava em mim. Antes, tinha tido a confiança
de uma pobre criatura. Sempre um nada, mesmo sendo tão amada, a ponto
de ser sem mácula. Mas agora eu tinha uma confiança divina, porque Deus
era meu: meu Esposo, meu Filho! Oh! Que alegria! Ser uma com Deus!
Não para a minha glória, mas para amá-lo com uma união total e poder
dizer-lhe: “Tu, só Tu, que estás em mim, aperfeiçoa com tua divina
perfeição tudo o que eu faço.”
Se Ele não me tivesse dito: “Cala-te”, talvez eu até tivesse ousado, com
o rosto em terra, dizer a José: “O Espírito penetrou em mim, e em mim está
a Semente de Deus.” Ele teria acreditado em mim, porque me estimava e
porque, como todos aqueles que não mentem nunca, ele acreditava que os
outros também não lhe mentissem. Sim, contanto que eu não lhe causasse
nenhuma dor no futuro, eu teria vencido a recusa de dar-me aquele louvor.
Mas obedeci à ordem divina.
Durante muitos meses, a partir daquele momento, senti a primeira
ferida em meu coração. Foi a primeira dor, na minha condição de co-
redentora. Eu a ofereci e sofri para reparar e para dar-vos uma norma de
vida nos momentos de sofrimento, quando há necessidade de silêncio em
relação a algum acontecimento que vos dê aparência de culpados, aos olhos
de quem vos ama.
18.10
Deixai a Deus a guarda do vosso bom nome e dos vossos interesses
afetivos. Merecei com uma vida santa a tutela de Deus, e depois, caminhai
tranqüilos. Ainda que todo o mundo estiver contra vós, Ele vos defenderá
junto a quem vos ama, e fará com que a verdade apareça.
Repousa agora, minha filha. E sê sempre mais minha filha.
[43] vi, visto que se trata de um episódio escrito antes e que virá inserido no seu lugar (capítulo 44) na ordem da narração. Isto
vale também para expressões análogas encontradas desde a primeira página da obra, como em 5.14 (viste o nascimento…), em 6.1
(… do que aquele visto no tempo do nascimento do Baptista), em 6.3/4 (menções à purificação de Maria), em 6.7 (várias
referências a episódios sucessivos mas já escritos), em 14.5 (agora eu reconheço a casinha de Nazaré…), e para casos
semelhantes que encontraremos, por exemplo, em: 20.1.4 -21.7 -27.1 -29.2 -31.1 -54.1 (referência ao Cenáculo) -76.8 -84.2 -106.5
-107.1 (referência a Longino) -110.4 -140.1 -155.10 -169.3 -208.10 -232.3 -234.1 -283.1 -373.4 -374.10 -411.2 (referência a
Bartolomeu) -473.1 -515.6 -549.6 -604.2 -608.11. Os episódios escritos numa ordem diversa da da sucessão dos factos, depois
restabelecida, se encontram sobretudo no ciclo inicial da Vida escondida e nos episódios finais da Paixão e da Glorificação (destes
últimos existe com frequência uma dupla versão, como explicaremos em nota a 587.13); se encontram raras vezes no amplo ciclo
central dos três anos da Vida pública, onde é o mesmo Jesus quem diz à escritora quando necessário inserir uma visão já escrita.
As explicações a respeito estão em: 43.5 -44.7/8 -468.1.
19. Maria e José dirigindo-se a Jerusalém.
27 de março de 1944.
19.1
Estou assistindo à partida deles para irem à casa da Santa Isabel.
José veio com dois burrinhos acinzentados para levar Maria: um para si
próprio e o outro para Maria. Os dois animaizinhos estão selados com selas
costumeiras; mas à sela de um deles foi acrescentado um instrumento muito
especial, que depois descubro ter sido feito para levar carga: é uma espécie
de porta-bagagem sobre o qual José pregou um pequeno cofre de madeira,
digamos, um bauzinho, que ele trouxe a Maria, para que nele pudesse pôr as
suas roupas, e a chuva não as molhasse.
Ouço Maria agradecer muito a José por este presente feito com tanta
previdência, pois neste baú ela colocou tudo o que estava num pacote, que
já havia preparado antes.
19.2
Fecham a porta da casa e põem-se a caminho. O dia já está perto de
raiar, pois estou vendo a aurora cor-de-rosa, mas só do lado do Oriente.
Nazaré ainda está dormindo. Os dois viajantes madrugadores encontram
apenas um pastor, que toca para a frente as suas ovelhinhas; elas vão
trotando e esbarrando umas nas outras, aqui e ali, encaixadas umas entre as
outras, como se fossem cunhas, berrando sem parar. Os cordeirinhos
também berram, e mais do que as ovelhas, com sua voz aguda e débil.
Mesmo precisando ir para a frente, o que eles mais gostariam de fazer seria
procurar as tetas da mãe. Mas as mães se apressam para chegar às
pastagens, e os convidam, com seu balido mais forte, a trotar com elas.
Maria fica olhando, e sorri. Ela parou para deixar passar a manada, e se
inclina sobre sua sela para acariciar os mansos animaizinhos, que vão
passando rentes ao burrinho. Quando o pastor chega perto, levando nos
braços um cordeirinho que acabou de nascer, pára perto de Maria para
saudá-la; ela sorri, acariciando o focinho rosado do cordeirinho, que berra
sem consolo, e lhe diz: “Está procurando a mamãe. Aqui está a mamãe. Ela
não te deixa, não, pequenino”. De fato, a ovelha mãe vai roçar-se no pastor,
e se levanta para lamber o focinho do seu filhote.
A manada vai passando e fazendo barulho como o da chuva sobre as
copas das árvores, deixando atrás de si a poeira levantada pelos casquinhos,
que sobem e descem, deixando as marcas de suas pegadas no chão da
estrada.
José e Maria retomam o caminho. José, com seu manto grande, Maria,
com uma espécie de xale listrado, pois a manhã está muito fria.
Ao chegarem no campo, Maria está perto de José. Pouco falam. José
pensa em seus trabalhos, e Maria continua com seus pensamentos; recolhida
como está, sorri aos pensamentos e às coisas quando, saindo um pouco
daquela sua concentração, gira o olhar sobre tudo o que a rodeia. De vez em
quando, olha para José, e um véu de seriedade e tristeza lhe ensombra o
rosto. Depois, volta-lhe o sorriso, até mesmo ao olhar para este seu esposo,
tão previdente, e de poucas palavras, mas que, quando fala, é para
perguntar-lhe se tudo vai indo bem e se não está precisando de alguma
coisa.
19.3
Agora, as estradas já estão cheias de gente, especialmente nas
vizinhanças dos povoados, e dentro deles. Mas os dois não se preocupam
com as pessoas que vão encontrando. Lá se vão eles sobre os seus bur‐
rinhos, que vão trotando com grande barulho dos guizos, e só vão parar uma
vez, à sombra de um pequeno bosque, para comer um pouco de pão e
azeitonas, beber água da fonte que desce de uma pequena gruta e, outra vez,
para se protegerem de um violento aguaceiro, que desaba de repente, de
uma nuvem muito escura.
Colocaram-se, então, ao abrigo do monte, debaixo da saliência de um
penhasco, que os protege pelo menos da chuva mais forte. Mas José faz
questão que Maria ponha o manto grande de lã impermeável sobre o qual a
água desliza sem molhá-la. Maria tem que ceder à desvelada insistência do
seu esposo que, para tranqüilizá-la a respeito de sua própria situação, põe
sobre a cabeça e sobre os ombros uma pequena manta cinzenta, que estava
sobre a sela. Era a manta do burrinho, provavelmente. Agora, Maria vai
indo, parecendo um fradezinho com um capuz, que lhe emoldura o rosto, e
com o manto marrom, que se lhe fecha à altura da garganta, e a cobre de
alto a baixo.
O aguaceiro diminui, mas se transforma numa chuva incômoda e fina.
Os dois começam de novo a andar pela estrada, que agora está toda
barrenta. Mas, como é primavera, depois de alguns minutos, o sol volta,
para tornar mais cômoda a viagem. Também os dois burrinhos estão agora
mais dispostos, batendo as patas sobre a estrada.
Não vejo nada mais, pois aqui cessa a visão.
20. Partida de Jerusalém. O aspecto místico de
Maria.
A importância da oração para Maria e José.
28 de março de 1944.
20.1
Estamos em Jerusalém. Eu a reconheço bem agora, com suas estradas
e suas portas.
Os dois esposos se dirigem ao Templo, em primeiro lugar. Reconheço a
estalagem, onde José deixou o burrinho, no dia da Apresentação no Templo.
Agora também é ali que ele deixa os dois burros, depois de tê-los feito
comer e beber, e vai adorar o Senhor, com Maria.
Depois voltam para fora. Pelo que parece, Maria e José vão para uma
casa de pessoas conhecidas. Lá fazem uma refeição, e Maria descansa até a
volta de José, que chega acompanhado de um velhinho.
– Este homem vai pelo mesmo caminho por onde vais. E é muito pouco
o que terás de andar sozinha, para chegar à casa de tua parenta. Podes
confiar nele, que eu o conheço.
20.2
Montam de novo nos burrinhos, e José sai acompanhando Maria até à
porta da cidade (não aquela pela qual entraram, mas uma outra). Lá, eles se
saúdam e Maria vai sozinha com o velhinho, que fala tanto mais, quanto
José falava menos, interessando-se por mil coisas. Maria vai-lhe
respondendo com muita paciência.
Agora ela tem, na parte dianteira de sua sela, o pequeno baú, que antes
tinha sido sempre levado pelo jumento de José, e não mais com o manto
grande. Nem mesmo o xale, pois ele está dobrado sobre o baú, e Maria está
muito bonita, em sua veste azul escura, com o seu véu branco, que a protege
do sol. Como está bonita!
O velhinho deve ser um pouco surdo porque, para fazer-se ouvir por
ele, Maria precisou falar bem alto, ela que sempre costuma falar em voz
baixa. Mas ele agora ficou cansado. Esgotou todo o seu repertório de
perguntas e de notícias, e está cochilando sobre a sela, deixando-se guiar
pelo jumento, que conhece bem a estrada.
Maria aproveita-se bem dessa trégua para recolher-se em seus
pensamentos, e rezar. Deve ser uma oração, que está cantando em voz
baixa, ao olhar o céu azul, com os braços sobre o peito, um semblante
abrasado e feliz por uma emoção interior.
Não vejo mais nada.

20.3
Também agora, quando a visão me fica suspensa, como aconteceu
ontem, fico com a mãe junto de mim, bem visível para a minha vista
interior, e tão nítida, que posso descrever a cor rosada leve de sua face, não
muito cheia, mas suavemente delicada, o vermelho vivo de sua pequena
boca, o luzir doce de seus olhos azulados, entre o loiro escuro de seus cílios.
Posso dizer como os seus cabelos, repartidos no alto da cabeça, descem
delicadamente com três ondulações de cada lado, até cobrirem a metade das
pequenas orelhas rosadas, desaparecendo, com o seu ouro pálido e
brilhante, atrás do véu que lhe cobre a cabeça. Estou vendo-a com o manto
na cabeça, vestida com a sua veste de seda paradisíaca e com seu manto
leve como um véu, embora opaco, feito do mesmo tecido que a veste.
Esta veste é ajustada ao seu pescoço por uma bainha, da qual sai um
cordão, cujas pontas formam um laço na frente, na base do pescoço, e está
apertada à altura da cintura, por um cordão mais grosso, sempre de seda
branca, que desce ao longo de cada lado com duas borlas nas pontas.
Posso dizer também que, ajustada como está ao pescoço e à cintura, a
veste forma sobre o peito sete pregas redondas e frouxas, o único enfeite de
sua roupa castíssima.
Posso dizer ainda da castidade que emana do aspecto todo de Maria, de
suas formas tão delicadas e harmoniosas, que a tornam tão angelicalmente,
mulher.
20.4
E, quanto mais a olho, tanto mais eu sofro, pensando em quanto a
fizeram sofrer, e fico perguntando, a mim mesma, como puderam deixar de
ter piedade dela, tão mansa e gentil, tão delicada, até em seu próprio
aspecto físico. Eu a fico olhando, e torno a ouvir os gritos do Calvário,
também contra ela, com todas as zombarias e gracejos grosseiros. Todas as
maldições, dirigidas a ela, por ser a mãe do condenado. Vejo-a bela e
tranqüila, agora. Mas o seu aspecto de hoje não me desfaz a lembrança de
suas trágicas feições, naquelas horas de agonia, e o seu semblante desolado
em sua casa em Jerusalém, depois da morte de Jesus. Eu queria poder
acariciá-la e beijá-la em sua face tão rósea e delicada, para tirar com o meu
beijo aquela recordação de pranto que certamente ela, como eu, também
tem.
É inimaginável a paz que sinto ao tê-la perto de mim. Penso que mor‐
20.5

rer, vendo-a, seja doce, e até mais do que a mais doce hora desta vida.
Nesse tempo em que eu não a via assim, toda para mim, sofri a sua
ausência, como a ausência de uma mãe. Agora sinto de novo a inefável
alegria, que foi minha companheira em dezembro e nos primeiros dias de
janeiro. Estou feliz, não obstante ter visto os tormentos da Paixão, que
lançam sobre toda a minha felicidade um véu de dor.
É difícil dizer e fazer compreender o que eu experimentei e o que
aconteceu a 11 de fevereiro, desde a tarde em que vi Jesus sofrer em sua
Paixão. Foi uma visão que me mudou radicalmente. Morresse eu agora, ou
daqui a cem anos, aquela visão permaneceria sempre igual na intensidade e
nos efeitos. Antes, eu pensava nas dores de Cristo. Agora, eu as vivo,
porque basta-me uma palavra, uma imagem, para eu sofrer de novo tudo o
que sofri naquela tarde, horrorizando-me com aquele seu desolado
padecimento. Mesmo quando nada me faz recordar aquilo, sinto essa
recordação me atormentar.
Maria começa a falar e eu me calo.

Maria diz:
20.6

– Vou falar pouco, porque estás muito cansada, ó minha pobre filha.
Somente quero chamar a tua atenção, e a de quem estiver lendo, sobre o
hábito constante de José, e meu também, de dar sempre o primeiro lugar à
oração. Cansaço, pressa, desgostos, ocupações eram coisas que não
impediam as orações, pelo contrário, a ajudavam até. Ela era sempre a
rainha das nossas ocupações. O nosso conforto, a nossa luz, a nossa
esperança. Se nas horas tristes, a oração era um conforto, nas horas felizes,
era um canto. Mas era sempre a amiga constante de nossa alma. Era ela que
nos fazia desprender-nos da terra deste exílio, elevando-nos ao Céu, nossa
Pátria.
Não somente eu, que já tinha Deus dentro de mim, não precisava senão
olhar para o meu interior, para adorar o Santo dos santos, mas também José
se sentia unido a Deus quando rezava, porque a nossa oração era adoração
verdadeira, com todo o nosso ser que se fundia em Deus, adorando-O e
sendo por Ele abraçado.
Olhai bem, mesmo assim, eu que tinha em mim o Eterno, não me senti
isenta de prestar um reverente obséquio ao Templo. A santidade mais alta
não exime ninguém de sentir-se nada diante de Deus, e de humilhar esse
nada, pois o Senhor no-lo permite, em um contínuo hino de louvor à Sua
glória.
20.7
Sois pobres, fracos, defeituosos? Invocai a santidade do Senhor:
“Santo, Santo, Santo!” Clamai por Ele, Santo bendito, sobre a vossa
miséria. Ele virá e derramará sobre vós a sua santidade. Sois santos e ricos
de merecimentos aos Seus olhos? Invocai, do mesmo modo, a santidade do
Senhor. Essa santidade é infinita e fará crescer sempre mais a vossa. Os
anjos, seres que estão acima das fraquezas da humanidade, não cessam um
instante de cantar o seu “Sanctus”, e a beleza sobrenatural deles aumenta,
cada vez que invocam a santidade de nosso Deus. Imitai os anjos.
Não vos priveis nunca da proteção da oração, contra a qual ficam
embotadas as armas de satanás, as malícias do mundo, os apetites da carne e
as soberbas da mente. Não deponhais nunca esta arma, pela qual se abrem
os céus, de onde chovem graças e bênçãos.
A terra está precisando de um banho de orações para limpar-se das
culpas que atraem os castigos de Deus. Mas, como são poucos os que
rezam, esses poucos precisam rezar como se fossem muitos, multiplicando
as suas orações vivas, para fazerem delas o total necessário para se obter a
graça pedida. Orações vivas, são as temperadas com verdadeiro amor e com
sacrifício.
20.8
Que tu, minha filha, sofras, principalmente porque o teu sofrimento,
unido ao meu e ao de Jesus, torna-se uma coisa boa, agradável a Deus, com
muitos merecimentos. Gosto muito do teu amor de compaixão. Queres dar-
me um beijo? Beija as chagas de meu Filho. Embalsama-as com o teu amor.
Eu senti espiritualmente as dores, a angústia e a aflição causadas pelos
flagelos, pelos espinhos e pela tortura dos cravos e da cruz. Mas, de modo
igual, eu sinto espiritualmente todas as carícias feitas ao meu Jesus: são
beijos dados a mim. Depois, vem. Eu sou a rainha do céu. Mas sou sempre
a mãe…
Maria termina a fala. E me sinto abençoada!
21. Chegada de Maria a Hebron
e seu encontro com Isabel.
1 de abril de 1944.
21.1
Estou num lugar montanhoso. Não são grandes montes, mas também
não são colinas. Eles também têm suas lombadas e grotões, como as
grandes montanhas, por exemplo, os nossos Apeninos na região da Toscana
e da Umbria. A vegetação é densa e bela, onde há, em abundância,
nascentes de águas frescas, que mantêm sempre verdes as pastagens, com as
árvores dos pomares carregadas de frutos, quase todas macieiras, figueiras e
videiras, sendo estas, ao redor das casas. Devemos estar na primavera,
porque os cachos já estão bem desenvolvidos, e os pequenos bagos da uva
já aparecem como grãos nos ramos, como bolinhas verdes. Sobre os galhos‐
das figueiras vêm aparecendo os primeiros frutos, por enquanto ainda
embrionários, mas já com o seu formato natural. Os prados se exibem,
formando um grande tapete fofo e bastante colorido. Por cima deles, pastam
as ovelhas, puxando e comendo folhas, ou repousando aqui, ou ali, como se
fossem manchas brancas sobre o mar de esmeralda formado pelas ervas.
21.2
Maria vai subindo, no seu burrinho, por uma estrada em muito bom
estado e que deve ser a estrada mestra. Ela vai subindo, porque o povoado,
que nos oferece uma vista muito agradável, fica no alto. Meu monitor
interior me diz: “Este lugar é o Hebron.” Ela falava-me de “Montana.” Não
sei o que dizer. A mim foi dito este nome. Não sei se “Hebron” é o nome
dado a toda esta região, ou ao povoado. Mas eu digo como ouço.
Maria está entrando no povoado. Há mulheres nas portas — já chegou a
tarde — e observam a chegada da forasteira. Depois começam a falar umas
com as outras sobre o que viram. Vão acompanhando a forasteira com o
olhar, e não ficam sossegadas, enquanto não a vêem parar na frente de uma
das mais belas casas, situadas bem no meio do povoado, tendo à frente um
jardim, e atrás um pomar muito bem tratado, estendendo-se o terreno depois
por um vasto prado, que sobe e desce pelas sinuosidades do monte,
acabando num bosque de árvores altas, além das quais não sei o que há.
Tudo está cercado por uma sebe de amoreiras e roseiras selvagens. Eu não
distingo bem, porque, como se sabe, a flor e a folhagem dessas moitas
espinhosas são muito parecidas e, enquanto não aparecerem os frutos nos
galhos, é fácil nos enganarmos. No lado da frente da casa, que é o lado onde
termina o povoado, a propriedade está cercada por um pequeno muro
branco, no qual se espraiam os ramos das roseiras verdadeiras, que embora
estejam ainda sem flores, estão cheias de botões. No centro há um portão de
ferro, fechado. Logo se vê que esta deve ser a casa de um dos notáveis do
povoado, ou de pessoas abastadas, porque tudo demostra, se não riqueza e
ostentação, certamente demonstra bem-estar. Tudo está em ordem.
21.3
Maria desce do burrinho e se aproxima do portão. Olha por entre as
barras. Não vê ninguém. Então, procura fazer-se ouvir. Uma pequena
senhora, mais curiosa do que as outras, a tinha acompanhado e mostra-lhe
um utensílio muito especial, que faz as vezes de uma campainha. São dois
pedaços de metal, colocados em equilíbrio sobre uma barra: sacudindo-se
esta barra, ao puxar-se uma corda, as duas peças batem uma na outra,
produzindo o som de um sino, ou de um gongo.
Maria puxa a corda, mas de um modo tão delicado, que o som
produzido é um levíssimo tinido, que ninguém ouve. Então, a mulherzinha,
uma velhota do nariz e queixo grande, com uma língua imensa, agarra a
corda e puxa muitas vezes em seguida. O barulho que ela fez com isso dava
para ressuscitar um morto.
– É assim que se faz, mulher. Pois, de outro modo, como vos poderiam
ouvir? Ficai sabendo que Isabel está velha, e Zacarias também está velho.
Além disso, agora ele, além de mudo, está também surdo. Os dois criados
estão velhos também, sabes? Nunca viestes aqui? Conheceis Zacarias?
Sereis vós talvez…
Para livrar Maria de um dilúvio de notícias e de perguntas, apareceu um
velhinho decidido, que deve ser o jardineiro, ou um agricultor, pois traz na
mão um sacho e, amarrada à cintura, uma podadeira. Ele abre o portão,
Maria entra, agradecendo à mulherzinha, mas… deixando-a sem resposta.
Que desilusão para a curiosa!
Logo que entrou, Maria disse:
– Sou Maria de Joaquim e de Ana, de Nazaré. Prima de teus patrões.
21.4
O velhinho se inclina e a saúda, e depois em voz alta, chama:
– Sara! Sara!
E torna a abrir o portão para fazer entrar o burrinho, que tinha ficado de
fora, porque Maria, para ver-se livre da pegajosa velhinha, tinha escapado
rapidamente para dentro, e o jardineiro, tão rápido como Maria, tinha
fechado o portão no nariz da importuna. Enquanto está fazendo o jumento
passar, ele diz:
– Ah! que grande felicidade e que grande desgraça aconteceram a esta
casa! Pois o céu concedeu um filho à estéril, bendito seja o Altíssimo! Mas
Zacarias, já há sete meses, voltou mudo de Jerusalém! E ele só se faz
entender por acenos, ou escrevendo. Teríeis vós sabido disso? Minha patroa
desejou ter-te aqui, em sua alegria e em sua dor. Ela sempre falava de vós
com Sara, e dizia: “Se eu tivesse a minha pequena Maria aqui comigo! Se
ela tivesse ficado ainda no Templo! Eu teria mandado Zacarias ir buscá-la.
Mas agora o Senhor quis que ela se casasse com José de Nazaré. Só ela é
que poderia me confortar nesta dor e ajudar-me a orar a Deus, pois ela é tão
boa. No Templo todos sentem saudades dela. Na festa passada, quando fui
com Zacarias a Jerusalém, para agradecer a Deus por me ter dado um filho,
ouvi as mestras dela que diziam: ‘O Templo parece estar sem os querubins
da glória, desde que a voz de Maria deixou de ser ouvida por estas
paredes’.” Sara! Sara! Minha mulher é um pouco surda. Mas vem, vem que
eu mesmo te guio.
21.5
Mas, em vez de Sara, quem aponta no alto de uma escada, que está ao
lado da casa, é uma mulher muito velhinha, já toda cheia de rugas, e com os
cabelos bem salpicados de fios brancos, cabelos que um dia devem ter sido
muito pretos, bem como os cílios e as sobrancelhas. Ela deve ter sido
morena, pela cor do seu rosto. Um contraste estranho com a sua evidente
velhice é o seu estado, já muito visível, mesmo estando com vestes amplas
e soltas. Ela olha, fazendo um anteparo com a mão, para amortecer a
claridade. Logo reconhece Maria. Levanta, então os braços para o céu, diz
um “Oh!” cheio de pasmo e de alegria, e se precipita, do melhor modo que
pode, ao encontro de Maria. Também Maria, que é sempre tranqüila em
seus movimentos, corre agora, ágil como um cervo, chega até os pés da
escada, na mesma hora em que Isabel também chega, e recebe a sua prima
sobre o coração, que com viva expansão, chora de alegria ao vê-la.
Ficam abraçadas por um instante, depois Isabel solta um “Ah!”, que é
um misto de dor e de alegria, e leva as mãos sobre o ventre avolumado.
Abaixa o rosto, empalidecendo e ruborizando-se alternadamente. Maria e o
criado estendem as mãos para sustentá-la, porque ela está vacilando, como
quem se sente mal.
Mas Isabel, depois de ter ficado um minuto como que recolhida em si
mesma, levanta um rosto de tal modo radiante, que parece rejuvenescido,
olha para Maria, sorrindo com veneração, como se estivesse vendo um anjo,
e depois se inclina em uma saudação, que vem do fundo do seu ser,
dizendo:
– Bendita és tu entre todas as mulheres! Bendito é o Fruto do teu
ventre! (ela fala assim em duas frases bem destacadas). Como foi que eu
mereci que tenha vindo a mim, Sua serva, a mãe do meu Senhor? Pois, ao
som da tua voz o menino saltou em meu ventre, como cheio de alegria,
quando eu te abracei, e o Espírito do Senhor disse ao meu coração verdades
altíssimas. Tu és bem-aventurada, Maria, porque acreditaste que para Deus
fosse possível até o impossível, segundo a nossa mente humana! Tu és
bendita porque, por causa da tua fé, farás cumprir as coisas que foram para
ti preditas pelo Senhor e preditas aos Profetas, para este tempo! Tu és
bendita, pela saúde que geras à estirpe de Jacó! Tu és bendita por teres
trazido a santidade ao meu filho que salta como um cabrito, querendo
externar sua alegria. Salta de puro júbilo em meu ventre, porque está
sentindo-se libertado do peso da culpa, chamado para ser aquele que deve
preceder sendo, para isso, santificado antes da Redenção, pelo Santo que
está crescendo em ti!
Maria, com duas lágrimas que descem como pérolas de seus olhos, que
estão rindo com a boca que sorri, com o rosto levantado para o céu e com as
mãos também elevadas, naquela postura que, mais tarde, muitas vezes vai
ser tomada por Jesus, exclama:
– Minha alma canta as grandezas do seu Senhor –e continua o cântico
como nos foi transmitido[44]. No fim, ao versículo: “Veio em socorro de
Israel, seu servo, etc.,” ela junta as mãos sobre o peito, e se ajoelha, muito
inclinada para a terra, adorando a Deus.
21.6
O criado que prudentemente tinha tratado de desaparecer dali, logo
que percebeu que Isabel não estava passando mal, mas que estava
confidenciando o seu pensamento a Maria, volta do pomar com um
imponente ancião vestido de branco, de barba e cabelos completamente
brancos, e que, com grandes gestos, e emitindo sons guturais, saúda de
longe Maria.
– Zacarias vem chegando –diz Isabel, tocando no ombro da virgem, que
está absorta em oração–. O meu Zacarias está mudo. Deus o castigou
porque ele não acreditou. Depois te contarei. Agora eu espero o perdão de
Deus, porque tu vieste a nós. Tu, ó cheia de graça!
Maria se ergue e vai ao encontro de Zacarias, inclinando-se até à terra
diante dele, beijando-lhe a fímbria da veste branca, que o cobre até o chão.
É uma veste muito ampla, presa em seu lugar na cintura por um galão
grosso e bordado.
Zacarias, por meio de gestos, dá as boas vindas a Maria e os dois, em
companhia de Isabel, entram todos em um salão térreo, vasto e bem
arrumado, onde fazem com que Maria se assente, e lhe oferecem uma taça
de leite tirado na hora, ainda espumante, com uns pãezinhos.
Isabel dá ordens à criada, que afinal também apareceu, com as mãos
enfarinhadas e com os cabelos ainda mais brancos, também por causa da
farinha que está por cima deles. Talvez ela estivesse fazendo o pão. Dá
ordens também ao criado, que percebi chamar-se Samuel, para que ele leve
o baú de Maria para um quarto que ela lhe está mostrando. Cumprem-se
todos os deveres de uma dona de casa para com a sua hóspede.
Nesse meio tempo, Maria está respondendo às perguntas que Zacarias
lhe faz, escrevendo sobre uma tabuinha encerada com um estilete. Percebo,
pelas respostas, que ele está perguntando por José, e como vai ela casada
com ele. Nesse ponto eu chego a compreender que a Zacarias foi negada
também toda luz sobrenatural a respeito do estado de Maria e de sua
condição de mãe do Messias. É Isabel que, indo para perto do seu marido, e
pondo-lhe com amor uma mão sobre o ombro, como para uma casta carícia,
lhe diz:
– Maria também é mãe. Alegra-te com a felicidade dela!
Mas não lhe fala nada mais. Olha para Maria. Maria olha para ela, sem
convidá-la a falar nada mais, e ela então se cala.

Doce, dulcíssima visão! Ela desfaz o horror que ficou em mim pela
21.7

visão do suicídio de Judas.


Ontem de noite, antes de dormir, vi o pranto de Maria, inclinada para a
pedra da unção, sobre o corpo morto do Redentor. Ela estava ao lado direito
dele, de costas para a abertura da gruta sepulcral. A luz das tochas batia em
seu rosto, e me fazia ver esse pobre rosto devastado pela dor e lavado pelo
pranto. Ela pegava a mão de Jesus e a acariciava, procurava aquecê-la,
encostando-a em sua face, e a beijava. Estendia os dedos dele… beijava-os
um por um, estes dedos que não se moviam mais. Depois acariciava o rosto,
inclinava-se para beijar-lhe a boca aberta, os olhos semifechados, a fronte
ferida. A luz avermelhada das tochas faz que pareçam ainda mais vivas as
chagas por todo aquele corpo torturado, e mais acentuadas ainda a
crueldade da tortura padecida e a realidade de estar morto.
Eu fiquei contemplando, enquanto se conservou lúcido o meu
entendimento. Depois, tendo despertado da sonolência, rezei e tratei de ficar
quieta, para dormir de verdade. Foi aí que começou a visão que acima está
descrita. Mas a mãe me disse: “Não te movas. Olha somente. Amanhã
escreverás.” No sono foi que eu sonhei tudo de novo. Despertada às 6,30,
tornei a ver tudo o que já tinha visto, acordada e em sonho. E escrevi,
enquanto ia vendo. Depois, ela veio e eu pude perguntar-lhe se devia
colocar o que se segue. São pequenas cenas inspiradas na permanência de
Maria em casa de Zacarias.
[44] transmitido, em: Lucas 1,46-55.
22. Os dias transcorridos em Hebron. Os frutos
da caridade de Maria para com Isabel.
2 de abril de 1944.
22.1
Vejo Maria costurando. Parece ser de manhã e ela está sentada na sala
térrea. Isabel vai e vem, ocupando-se com os trabalhos da casa. E, quando
entra, não deixa nunca de ir fazer uma carícia na cabeça loira de Maria, que
está parecendo ainda mais loira, agora que vejo no fundo as paredes
escuras, ao mesmo tempo em que sua cabeça está sendo iluminada por um
belo raio de sol, que entra pela porta aberta, do lado do jardim.
Isabel se inclina para olhar o trabalho de Maria e se diz encantada com
sua beleza. É o bordado que ela tinha começado em Nazaré.
– Tenho também linho para fiar –diz Maria.
– É para o teu Menino?
– Não. Para Ele eu já tinha, quando nem pensava…
Maria não continuou a falar. Mas eu entendi: “… quando não pensava
que ia ser mãe de Deus.”
– Mas agora terás que usá-lo para Ele. É um linho bonito? É fino? Os
bebês, como sabes, precisam de tecidos muito macios.
– Eu sei.
– Eu tinha começado… Comecei tarde, porque quis ter certeza antes de
tudo que não era mais do que um engano do maligno. Ainda que… sentisse
em mim uma alegria tão grande, que, não podia vir de satanás. Depois…
sofri muito. Estou velha, Maria, para ficar neste estado. 22.2Sofri muito. Tu
não sofres…
– Eu não. Nunca estive tão bem.
– Como não haveria de ser assim?! Tu… em ti não há mancha, se Deus
te escolheu para seres sua mãe. É por isso que não estás sujeita aos
sofrimentos de Eva. Aquele que geras é Santo.
– Parece-me ter no coração uma asa, e não um peso. Parece-me ter
dentro de mim todas as flores e todos os passarinhos que cantam pela
primavera, todo o mel, todo o sol… Oh! Eu estou feliz!
– Bendita és tu! Até eu, depois que te vi, comecei a não sentir mais
peso, nem cansaço, nem dor. Parece-me que fiquei mais nova, jovem, livre
das misérias de minha carne de mulher. O meu bebê, depois de ter saltado
feliz ao som da tua voz, tratou de ficar quietinho, em sua alegria. Parece-me
tê-lo dentro de mim como em um berço vivo, parece-me vê-lo dormir
satisfeito e feliz, respirando como um passarinho, alegre debaixo da asa da
mãe… 22.3Agora, sim, vou começar a trabalhar. Não me será mais pesado.
Estou enxergando pouco, mas…
– Deixa disso, Isabel. Eu me ocuparei em fiar e tecer para ti e para o teu
bebê. Eu posso fazer depressa o trabalho, pois enxergo bem.
– Mas terás também que pensar no teu…
– Oh! Mas ainda tenho bastante tempo!… Primeiro, vou pensar em ti,
que já estás perto de ter o teu pequenino, e depois pensarei no meu Jesus.
Dizer como é doce a expressão e a voz de Maria, como se lhe marejam
os olhos de um suave e feliz pranto, e como sorri, ao dizer este Nome,
olhando para o céu luminoso e azul, é coisa que está acima das
possibilidades humanas. Parece que só ao dizer “Jesus”, o êxtase a arrebata.
Isabel diz:
– Que belo nome! O Nome do Filho de Deus, nosso Salvador!
– Oh! Isabel!
Maria se torna triste, e segura as mãos que sua parenta cruzou sobre o
próprio ventre bem avolumado:
– Diz-me tu, que, quando eu cheguei, foste inspirada pelo Espírito do
Senhor, que profetizaste isto que o mundo não sabe. Diz-me: que deverá
fazer o meu Filho para salvar o mundo? Os Profetas… Oh! Os Profetas que
falam no Salvador! Isaías… estás lembrada de Isaías? “Ele é o Homem das
dores. Por suas chagas é que fomos curados. Foi transpassado e ferido por
causa de nossos crimes. O Senhor quis consumi-lo com padecimentos…
Depois de condenado, foi exaltado…” De que exaltação está falando o
Profeta? Ele é chamado o Cordeiro e eu fico pensando… no cordeiro da
Páscoa, no cordeiro de Moisés, e relaciono tudo isso com a serpente elevada
por Moisés[45] numa cruz. Isabel!… Isabel!… Que irão fazer com o meu
Filho? Que terá Ele que sofrer para salvar o mundo?
Maria chora. Isabel a consola:
– Maria, não chores. Ele é teu Filho, mas é também Filho de Deus.
Deus pensará em Seu Filho e em ti, que és a mãe dele. Se muitos vão ser
cruéis com Ele, também muitos o haverão de amar. E tantos!… Pelos
séculos dos séculos. O mundo olhará para o teu Filho, e te bendirá com Ele.
Bendirá a ti, como à fonte de onde jorra a salvação. A sorte de teu Filho!
Exaltado como Rei de todas as criaturas. Pensa nisso, Maria. Rei, porque
terá resgatado todas as criaturas e, como tal, será delas o Rei universal. Até
sobre a terra, com o tempo, Ele será amado. O meu filho irá à frente do teu,
e O amará. Assim disse o anjo a Zacarias. Zacarias escreveu isso para
mim… 22.4Ah! Que dor que eu sinto por ver assim mudo o meu Zacarias!
Mas espero que, quando o menino nascer, o pai ficará livre do seu castigo.
Reza, tu que és a sede do poder de Deus e a causa da alegria do mundo.
Para obter isso, ofereço, como posso, o meu filho: porque ele é do Senhor, e
Ele o emprestou à sua serva para dar-lhe a alegria de ser chamada “mãe.”
Para dar testemunho de tudo o que Deus me fez. Quero que ele se chame
“João.” Pois, não é uma graça o meu menino? E, não foi Deus que me deu
essa graça?
– Deus te fará essa graça, estou certa disso. Eu rezarei… contigo.
– Como eu sinto, por vê-lo mudo!… –Isabel está chorando–. Quando
ele escreve, porque não pode mais falar, parece-me que montes e mares
estejam entre mim e o meu Zacarias. Depois de tantos anos de doces
palavras, agora só há silêncio em sua boca. Agora, de modo especial,
quando seria tão belo falar daquele que está para vir. Eu me abstenho até de
falar, para não vê-lo afadigar-se naquele esforço para fazer gestos, tentando
responder-me. Tenho chorado tanto! Quanto eu tenho desejado a tua
presença aqui! O povoado todo fica olhando, falando e criticando. O mundo
é assim. Quando se tem uma dor ou uma alegria, tem-se necessidade de
alguém que compreenda, e não de alguém que critique. Agora me parece
que a vida está bem melhor. Sinto em mim uma alegria, desde que vieste
ficar comigo. Sinto que a minha provação está para ser superada, e que logo
serei totalmente feliz. Assim vai ser, não é verdade? Eu me conformo com
tudo. Mas, se Deus perdoasse o meu esposo! Se eu pudesse ouvi-lo rezar de
novo!
22.5
Maria a acaricia e conforta, e a convida, para distraí-la, a sair um
pouco pelo jardim ensolarado.
Caminham debaixo de uma parreira bem cuidada, e chegam até uma
torrinha de construção rústica, em cujos buracos os pombos fazem ninhos.
Maria joga comida para os pombos, e ri, porque eles se precipitam
sobre ela, com um contínuo arrulhar, em revoadas, formando círculos
iridescentes ao redor dela. Sobre sua cabeça, sobre os ombros, sobre os
braços e as mãos, eles vêm pousar, espichando os pecoços para, com seus
bicos rosados, catar os grãozinhos nas palmas das mãos, bicando de um
modo gracioso os lábios rosados da virgem, e seus dentes que brilham ao
sol. Maria vai tirando de um saquinho alguns dourados grãos de trigo, e os
joga, e fica sorrindo, ao ver aquele torneio, do qual participam os mais
vorazes.
– Como eles gostam de ti –diz Isabel–. Há poucos dias que estás
conosco e eles gostam de ti tanto quanto gostam de mim, que sempre tratei
deles.
O passeio prossegue, até chegarem a um recinto fechado, onde estão
umas cabras com seus cabritinhos.
– Voltaste do pasto? –pergunta Maria a um pequeno pastor que ela
acaricia.
– Sim, porque meu pai me disse: “Vai para casa, porque daqui a pouco
vai chover, e temos umas ovelhas que estão para dar cria. Providencia que
elas tenham erva enxuta e que a cama dos animais esteja preparada.” Ele lá
vem vindo.
E acena, mostrando para o outro lado do bosque, de onde está vindo um
balido continuado e trêmulo.
Maria está acariciando um cabritinho loiro como uma criança, que se
roça contra ela, e, junto com Isabel, bebe leite tirado na hora e que o
pastorzinho lhes oferece.
Chegam as ovelhas, guiadas por um pastor cabeludo como um urso.
Mas deve ser um bom homem, pois vai levando sobre os ombros uma
ovelha que se lamenta. Ele a põe no chão, devagar, e explica:
– Está para ter o cordeirinho. Já não podia mais caminhar, de tão
cansada. Eu a coloquei sobre os ombros. Tive que dar uma boa carreira para
chegar a tempo.
A ovelha, mancando por causa das dores, é conduzida até o redil pelo
menino.
Maria sentou-se sobre uma pedra, e está brincando com os cabritinhos e
os cordeiros, oferecendo-lhes folhas de trevo, que ela coloca diante de seus
focinhos rosados. Um cabritinho branco e preto põe-lhe a patinha sobre os
ombros, e lhe cheira os cabelos.
– Não é pão –diz Maria rindo–. Mas amanhã te trarei uma crosta de
pão. Fica bonzinho, por enquanto.
Também Isabel ri, agora mais tranqüilizada.

Estou vendo Maria fiando, muito ligeira, debaixo da parreira, onde as


22.6

uvas já estão aumentando de tamanho. Deve ter passado um bom tempo,


porque as maçãs já começam a avermelhar-se nos ramos, e as abelhas já
estão zumbindo ao redor dos figos maduros.
Isabel está bem volumosa, e caminha com dificuldade. Maria olha para
ela com atenção e amor. Também Maria, quando se levanta para apanhar o
fuso que caiu, parece mais arredondada nos quadris, e a expressão de seu
rosto está diferente. Está mais madura. Antes, uma menina; agora, uma
mulher.
As mulheres entram para a casa, porque a tarde vem chegando e no
quarto já estão sendo acesas as lâmpadas. Enquanto espera a ceia, Maria
está tecendo.
– Será mesmo que não ficas cansada? –pergunta Isabel, mostrando o
tear.
– Não. Podes crer.
– A mim, este calor me deixa prostrada. Já não tenho sofrido mais, mas
agora o peso é grande para os meus velhos rins.
– Coragem! Daqui a pouco estarás livre. E, então, como ficarás feliz!
22.7
Eu não vejo a hora de ser mãe. De ver o meu Menino! O meu Jesus!
Como será ele?
– Será bonito como tu, Maria.
– Não. Será mais bonito! Ele é Deus, e eu sou a serva dele. Mas eu
queria dizer: será loiro, ou será moreno? Terá uns olhos como o céu sereno,
ou como os dos cervos das montanhas? Eu faço idéia de que Ele será mais
belo que um querubim, com os cabelos encaracolados e cor de ouro, com os
olhos da cor do nosso Mar da Galiléia no momento em que as estrelas
começam a mostrar-se lá nos confins do céu; com uma boca pequenina e
vermelha como pedaço de uma romã, que se abriu, depois de ter
amadurecido ao sol; e nas faces terá um rosado como esta pálida rosa, e
duas mãozinhas, que caberiam na cavidade de um lírio, de tão pequenas e
bonitas. Seus dois pezinhos poderiam caber no côncavo de minha mão,
delicados e lisos como uma pétala de flor. Olha: eu acrescento à idéia que
eu faço Dele todas as belezas que a terra me pode sugerir. Eu já ouço a sua
voz. Será sua voz, quando chora, porque, o meu Menino haverá de chorar
um pouco, por fome ou por sono, isso será sempre uma grande dor para a
sua mãe, que não suportará, oh! não suportará ouvi-lo chorar, sem ficar com
o coração transpassado. Seu choro será como aquele balido do cordeirinho
que agora estamos ouvindo, que nasceu há poucas horas, e que está
procurando a teta e, depois, o calor da lã de sua mãe, para poder dormir. Ele
terá um sorriso que me encherá o coração enamorado pelo meu Filho de
céu. Posso ficar enamorada por Ele, porque Ele é meu Deus, e amá-lo, não
vai contra a minha virgindade consagrada. Ele será, em seu sorriso, como
esse festivo arrulhar do pombinho, feliz por ter-se saciado, e contente, por
estar em seu morno ninho. Fico pensando como serão os seus primeiros
passos… como um passarinho saltitante sobre um prado em flor. O prado
vai ser o coração de sua mamãe, que estará atenta aos seus pezinhos cor-de-
rosa, para que não esbarrem em nada que os machuque. Como haverei de
amá-lo, o meu Menino! Meu Filho! 22.8E José também o amará!
– Tu deverás dizer tudo isso a José!
O rosto de Maria fica anuviado, e ela suspira:
– Deverei dizer-lhe, sem dúvida tudo isso… Eu gostaria que o céu lhe
dissesse tudo por mim, porque é uma coisa difícil de dizer.
– Queres que lhe diga eu? Nós vamos convidá-lo para a circuncisão do
João, e…
– Não. Eu entreguei a Deus o encargo de instruir o José sobre sua sorte
feliz de ter sido escolhido para nutrir o Filho de Deus, e o Senhor fará isso.
O Espírito me disse, naquela tarde: “Cala-te. Deixa a Mim a tarefa de
justificar-te.” E Ele o fará. Deus não mente nunca. Para mim é uma grande
provação. Mas, com a ajuda do Eterno, será superada. De minha boca, com
exceção de ti, a quem o Espírito Santo o revelou ninguém, vai ficar sabendo
a benignidade que o Senhor fez para com sua serva.
– Eu sempre deixei de falar nisso até com Zacarias, que teria ficado
muito alegre, se o soubesse. Ele acha ainda que tu és mãe, mas pelas leis da
natureza.
– Eu sei. E assim quis por prudência. Os segredos de Deus são santos.
O anjo do Senhor não revelou a Zacarias a minha maternidade divina. Ele
teria podido fazê-lo, se Deus o tivesse querido, porque Deus sabia que
estava iminente o tempo da Encarnação do seu Verbo em mim. Mas Deus
conservou escondida a Zacarias esta luz de alegria, que rejeitava como
coisa impossível que em vossas idades pudésseis ter um filho. Eu me
conformei com a vontade de Deus. E tu o estás vendo. Tu ouviste o segredo
que está vivo em mim. Ele não percebeu nada. Enquanto não cair o
obstáculo, que é a sua incredulidade diante do poder de Deus, ele ficará
afastado das luzes sobrenaturais.
Isabel suspira e fica calada.
Zacarias está entrando. Oferece os rolos a Maria. É hora da oração
22.9

antes da ceia. É Maria quem reza, em voz alta, em lugar de Zacarias.


Depois, assentam-se à mesa.
– Quando não estiverdes mais aqui, como iremos sentir a falta de quem
reze por nós –diz Isabel, olhando para o seu marido mudo.
– Tu, então, já estarás rezando, Zacarias –diz Maria.
Ele sacode a cabeça e escreve:
– Não poderei mais rezar pelos outros. Tornei-me indigno disso, desde
o dia em que duvidei de Deus.
– Zacarias, tu rezarás. Deus perdoa.
O velho enxuga uma lágrima, e suspira.
Depois da ceia, Maria volta ao tear.
– Basta –diz Isabel–. Tu estás te cansando demais.
– O tempo está chegando, Isabel. Eu quero fazer para o teu menino um
enxoval digno daquele que precede ao Rei da estirpe de Davi.
Zacarias escreve:
– De quem nascerá Ele? E onde?
Maria responde:
– Onde os Profetas disseram e de quem for escolhida pelo Eterno. Tudo
o que o Senhor Altíssimo faz é bem feito.
Zacarias escreve:
– Então, vai ser em Belém! Na Judéia. Iremos lá venerá-lo, mulher. Irás
tu também a Belém, com o teu José.
E Maria, inclinando a cabeça sobre o tear, diz:
– Irei.
Assim cessa a visão.

Maria diz:
22.10

– A primeira caridade para com o próximo há de ser exercida para com


o próximo. Não penses que isso seja um jogo de palavras. Porque a caridade
se exerce para com Deus e para com o próximo. Na caridade para com o
próximo está compreendida também a que é dirigida a nós mesmos. Mas, se
nos amarmos mais do que aos outros, já não estaremos sendo caridosos, e,
sim egoístas. Mesmo nas coisas lícitas, precisamos ser tão santos, a ponto
de darmos sempre a precedência às necessidades do próximo. Ficai bem
atentos, meus filhos, que Deus compensa os generosos com os meios do seu
poder e da sua bondade.
22.11
Esta certeza me fez ir a Hebron, ajudar minha parenta no estado em
que ela se achava. E, a esta minha intenção de prestar socorro humano,
Deus, acima de toda medida, como Ele costuma fazer, uniu um dom de
socorro sobrenatural, que ninguém esperava. Eu vou para prestar ajuda
material, e Deus santifica a minha reta intenção, fazendo que ela
santificasse o fruto do ventre de Isabel, e, através dessa santificação, com a
qual o Batista foi pré-santificado, Deus suavizou os sofrimentos físicos
daquela filha de Eva já madura, que concebeu em idade não mais
apropriada.
Isabel, mulher de fé intrépida e confiante abandono à vontade de Deus,
merece compreender o mistério escondido em mim. O Espírito Santo lhe
fala, através do saltar de seu ventre que ela sente. Assim, o Batista
pronunciou o seu primeiro discurso de anunciador do Verbo, através dos
véus e das paredes formadas pelas veias e pela carne, que o separa de Isabel
e, ao mesmo tempo, o unem à sua santa mãe.
A Isabel eu não nego a minha qualidade de mãe do Senhor, pois ela é
digna de sabê-lo. A Luz se revela a ela. Negar-lhe isso teria sido negar a
Deus um louvor que era justo Lhe dar, o louvor que eu levava em mim e
que, não podendo dizer a ninguém, eu o dizia às ervas, às flores, às estrelas,
ao sol, aos pássaros canoros, às pacientes ovelhas, às águas murmurantes e
à luz de ouro que me vinha beijar, descendo do céu. Mas, rezarmos juntas, é
muito mais doce do que ficarmos dizendo, cada uma sozinha, a sua oração.
Eu teria querido que o mundo todo soubesse da minha sorte, não por mim,
mas para que o mundo se unisse a mim, em dar louvor ao meu Senhor.
Foi a prudência que me impediu de revelar a Zacarias a verdade. Teria
sido isso dar passos além do plano de Deus. Se eu era Sua esposa e mãe,
continuava a ser sempre sua serva, e não devia, porque Ele me tinha amado
sem medida, permitir-me a ousadia de me substituir a Ele, tomando o seu
lugar, por uma decisão minha.
Isabel, em sua santidade, compreende tudo isso, e se cala. Pois quem é
santo é sempre indulgente e humilde.
22.12
É preciso que o dom de Deus nos torne sempre melhores. Quanto
mais recebemos Dele, mais devemos dar. Porque, se recebemos muito, isso
é sinal de que Ele está em nós. Quanto mais Ele estiver em nós, mais
devemos esforçar-nos, para alcançar a perfeição que recebemos Dele.
Este é o motivo porque eu, deixando de lado o meu trabalho, trabalho
para Isabel. Não me deixo tomar pelo medo de não ter tempo. Deus é o
Senhor do tempo. A divina Providência nada deixa faltar a quem espera
Nele, mesmo as coisas mais comuns. O egoísmo não faz nada andar
depressa, mas atrasa. A caridade não atrasa, mas faz andar depressa. Tende
sempre isso presente.
22.13
Quanta paz na casa de Isabel! Se eu não tivesse tido sempre o
pensamento de José e do meu Menino, que era o Redentor do mundo, teria
sido feliz. Mas é que a cruz já vinha projetando sua sombra sobre a minha
vida e eu ouvia as vozes dos Profetas, como um som fúnebre…
Eu me chamava Maria. E a amargura desse nome estava sempre
misturada com as doçuras que Deus derramava em meu coração. Essa
amargura foi aumentando, até à morte de meu Filho. Mas, quando Deus nos
chama, Maria, como as escolhidas vítimas para a sua honra, então, é doce
sermos trituradas, como o grão no moinho, para que da nossa dor seja feito
o pão que fortalece os fracos, e os torna capazes de chegar ao céu!
Agora basta. Estás cansada e feliz. Descansa com a minha bênção.
[45] elevada por Moisés, como se narra em: Números 21,8-9. A citação será recorrente na obra, a partir provavelmente de 116.9.
Outros factos referentes a Moisés são anotados, uma vez por todas, em: 114.6 (prodígios) -119.4 (os dez mandamentos) -212.5
(vitelo de ouro, aliança renovada, tábua da lei) -229.3 (nascimento e infância) -295.5 (com Josué) -324.10 (fórmula de bênção)
-340.9 (passagem do Mar Vermelho) -354.9 (maná no deserto) -354.12 (arca da aliança) -411.6 (morte) -436.2 (profeta do Cristo)
-457.2 (águas de Meriba, recusa de Edom, morte de Aarão) -506.3 (manifestação divina) -588.6 (maldição) -625.6 (opressão dos
hebreus no Egipto). Outras citações no episódio da Transfiguração (capitulo 349) e em: 402.6 -483.9 -549.8 -594.6 -630.5 -635.7.
As notas sobre as leis de Moisés são chamadas de novo no índice temático, no fim do volume, intituladas “Festas hebraicas” e
“Leis”.
23. Nascimento de João Batista.
Todo sofrimento se acalma no ventre de Maria.
3 de abril de 1944.
23.1
Em meio às coisas repugnantes, que nos oferece o mundo de hoje,
desce do céu (e não sei como posso fazer, visto que sou como uma
palhinha, levada pelo vento, nestes contínuos choques contra a maldade
humana, tão destoante de tudo o que vive em mim) desce do Céu esta visão
de paz.
23.2
Continuo vendo sempre a casa de Isabel. Estamos em uma bela tarde
de verão, ainda com a claridade do sol e, no entanto já adornada também
com o arco da lua, semelhante a uma foice no céu, parecendo também com
uma vírgula de prata colocada sobre um grande pano de cor azul intensa.
As roseiras estão exalando uma agradável fragrância e as abelhas dando
os seus últimos vôos do dia, como gotas de ouro, que zumbem, através do
ar quente e parado da tarde. Dos prados vem um forte cheiro do feno que
está secando ao sol, é um cheiro de pão, do pão quente que foi tirado agora
do forno. Talvez esse cheiro venha também dos muitos tecidos que estão
estendidos para secarem, por toda parte, e que Sara está dobrando.
Maria está passeando, de braços dados com a prima. Devagar,
devagarinho, caminham para cima e para baixo, por debaixo de uma
parreira meio escura.
Maria está atenta a tudo e, mesmo quando se ocupa com Isabel, vê que
Sara está muito ocupada em dobrar de novo um longo tecido que ela tirou
de cima de uma sebe.
– Espera-me sentada aqui –diz ela à sua parenta.
E vai ajudar a velha criada, puxando o tecido para esticá-lo, e
dobrando-o depois com cuidado.
– Ainda estão com cheiro de sol, estão quentes –diz com um sorriso.
E, para fazer feliz a mulher, acrescenta:
– Este tecido, depois do branqueamento que fizeste, ficou tão bonito
como nunca. Ninguém como tu pode fazer isso tão bem.
E lá se vai Sara muito alegre com a sua carga dos tecidos fragrantes.
Maria volta a Isabel e lhe diz:
– Ainda uns poucos passos. Eles vão te fazer bem.
E, como Isabel, cansada, não quer mover-se dali, Maria lhe diz:
– Vamos só ver se os teus pombos estão todos em seus ninhos e se a
água de seus bebedouros está limpa. Depois, voltamos para casa.
23.3
Os pombos devem ser os prediletos de Isabel. Quando chegam à
frente da torrinha rústica, onde os pombos já se recolheram, as fêmeas estão
nos buracos, os machos estão diante delas e não se movem, mas, ao verem
as duas mulheres, dão ainda um sinal de saudação. Isabel fica comovida. O
seu estado de fraqueza a vence e lhe traz temores que a fazem chorar. Ela,
então se desabafa com sua prima:
– Se eu tivesse que morrer… pobres dos meus pombinhos! Tu não vais
ficar aqui. Se ficasses em minha casa, eu não me importaria de morrer. Eu
já tive a maior das alegrias que uma mulher possa ter, uma alegria que eu já
me tinha resignado a não ter nunca, e até da morte eu não tenho de que me
queixar com o Senhor, porque Ele — seja por isso bendito — me cumulou
de graças com a sua benignidade. Mas aqui está o Zacarias… e chegará o
menino. Zacarias já velho, e que se encontraria como um perdido no
deserto, sem sua mulher; o menino, tão pequenino, seria como uma flor
destinada a morrer enregelada, sem a sua mãe. Pobre menino, sem as
carícias de sua mãe!…
– Mas, por que essa tristeza? Deus te deu a glória de ser mãe, e não vai
tirá-la, logo agora que ela será plena. O pequeno João terá todos os beijos
da mamãe, e Zacarias, os cuidados de sua fiel esposa, até a mais prolongada
velhice. Vós sois dois ramos de uma mesma planta. Um não morrerá,
deixando o outro sozinho.
– Tu és boa, e me confortas. Mas eu já estou muito velha para ter um
filho. E agora, que estou para tê-lo, estou com medo.
– Oh! não! Jesus está aqui. Não precisa ter medo onde há Jesus. O meu
Menino abrandou o teu sofrimento, tu mesma o disseste, quando Ele era
ainda como uma flor em botão recém-formado. Agora, que cada vez mais
vai crescendo ele afastará de ti todo perigo, pois já vive como filho meu e
sinto bater seu coraçãozinho em minha garganta, como um filhote de
passarinho, pois o pequenino coração pulsa rápido. Deves ter fé.
– Eu tenho. Mas, se eu morrer… não deixes Zacarias logo. Eu sei que
pensas em tua casa. Mas, fica um pouco mais de tempo. Para ajudar meu
esposo nas primeiras dores.
– Eu ficarei para me felicitar pela tua alegria e a alegria dele, e só te
deixarei, quando estiveres forte e bem disposta. Fica tranqüila, Isabel. Tudo
irá bem. Tua casa não sofrerá nada, enquanto estiveres sofrendo. Zacarias,
será servido pela mais amorosa das criadas, tuas flores serão cuidadas, teus
pombos serão tratados, e encontrarás todos alegres e bonitos, para fazerem
festa para a volta da patroa. 23.4Vamos para dentro agora, pois estás ficando
pálida…
– Sim, parece-me que vou começar a sofrer de novo. Talvez tenha
chegado a hora. Maria, reza por mim.
– Eu te darei um apoio com a oração, até que o teu trabalho de parto
chegue ao fim com alegria.
As duas mulheres, a passos lentos, tornam a entrar em casa. Isabel se
retira para os seus aposentos. Maria, muito habilidosa e previdente, dá
ordens e vai preparando tudo quanto pode ser necessário, além de ir
confortar Zacarias, que está preocupado.
Na casa, onde ninguém dorme nesta noite, ouvem-se as vozes estranhas
das mulheres, que foram chamadas para ajudar. Maria também está
acordada, como um farol em noite de tempestade. A casa toda encontra nela
o seu apoio. Ela, doce e sorridente, provê a tudo. Reza. Toda vez que não é
chamada para alguma coisa, se recolhe em oração. Ela está na sala onde se
reuniam sempre para refeições e para o trabalho.
Com ela está Zacarias, que suspira, passeando perturbado. Os dois já
rezaram juntos. Depois, só Maria continua a rezar. O velho agora, cansado,
foi sentar-se em sua cadeira de braços, perto de uma mesa. Está calado e
sonolento. Maria está rezando, mas, quando vê que ele já está
completamente adormecido, com a cabeça sobre os braços cruzados e
apoiados sobre a mesa, Ela tira as sandálias para fazer menos barulho, e
caminha descalça, fazendo menos ruído do que uma borboleta, quando voa
num quarto. Pega o manto de Zacarias e o estende sobre ele, de um modo
tão delicado, que ele nada percebe, continuando a dormir com o calor da lã,
que o defende do frio da noite, que, em pequenas lufadas, vem entrando
pela porta que está quase sempre aberta. Depois, volta à oração. Reza,
sempre mais intensamente, de joelhos, com os braços levantados, quando os
gemidos de Isabel se tornam mais agudos.
23.5
Sara entra, fazendo um sinal a Maria para que saia. Maria sai, de
pés descalços, até o jardim.
– A patroa vos está chamando –diz Sara.
– Estou indo –e Maria caminha ao longo da casa, subindo depois a
escada… Parece um anjo branco, que anda durante a noite sossegada e
cheia de estrelas. Maria entra no quarto de Isabel.
– Oh, Maria! Que dor, Maria! Não aguento mais, Maria! Quanto se tem
que sofrer para ser mãe!
Maria a acaricia com amor e a beija.
– Maria! Maria! Deixa-me pôr as mãos em teu ventre!
Maria pega aquelas mãos rugosas e inchadas e as coloca sobre o
abdômen arredondado, calcando-as com suas mãozinhas lisas e delicadas.
Começa então a falar devagar, agora que as duas estão sozinhas:
– Jesus está aqui, e te está ouvindo e vendo. Tem confiança nele, Isabel,
pois o coração santo dele está batendo mais forte, e agora está agindo para o
teu bem. Eu percebo as palpitações dele, como se ele estivesse em minhas
mãos. Estou compreendendo as palavras que o Menino está dizendo: “Diz à
mulher que não tema. Ainda um pouco de dor. E depois, ao raiar do sol, no
meio de muitas rosas, que estão esperando os primeiros raios matutinos
para se abrirem sobre seus pedúnculos, a casa dela terá a rosa mais bonita,
que será João, o meu Precursor.”
Isabel, então, apoia o rosto sobre o ventre de Maria, e chora baixinho.
Maria, por algum tempo, fica assim, pois parece que a dor está
diminuindo, com uma pausa de alívio, e acena a todos para que fiquem
quietos, enquanto ela continua em pé, branca e bela, à fraca claridade da luz
de um candeeiro, como um anjo ao lado de quem está sofrendo. Ela está
rezando. Estou vendo como move os lábios. Mas, mesmo que não visse
seus lábios, eu saberia que está rezando, pela expressão arrebatada do seu
rosto.
23.6
O tempo vai passando. A dor volta outra vez a Isabel. Maria a beija
de novo, e se afasta. Desce, ágil, à luz do luar, e vai correndo ver se o velho
ainda está dormindo. Sim, ele está dormindo, e está gemendo durante o
sono. Maria faz um gesto de compaixão. E torna a pôr-se em oração.
O tempo passa. O velho desperta do seu sono, com o olhar de quem
está querendo indagar porque é mesmo que ele está ali, naquele lugar. Mas
depois se lembra. Faz, então, um gesto e solta uma exclamação gutural.
Depois escreve: “Não nasceu ainda?” Maria faz um sinal de negação.
Zacarias escreve: “Que dor! Coitada de minha mulher! Conseguirá dar à
luz, sem morrer?”
Maria segura a mão do velho, e lhe garante:
– Ao romper da aurora, daqui a pouco, o menino já terá nascido. Tudo
vai correr bem. Isabel é bem forte. E, como vai ser bonito este dia — pois
daqui a pouco já é dia — no qual o teu menino verá a luz! Será o dia mais
bonito da tua vida! o Senhor reserva grandes graças para ti, e o teu menino
é o anunciador delas!
Zacarias sacode tristemente a cabeça, e faz um sinal, mostrando sua
boca muda. Ele bem que gostaria de dizer muitas coisas, mas não pode.
Maria compreende, e responde:
– O Senhor te vai dar uma alegria completa. Crê Nele completamente,
espera Nele infinitamente, ama-O totalmente. O Altíssimo te ouvirá, por
mais que não te atrevas a esperar isso. Ele quer esta tua fé total, como para
purificar-te da tua desconfiança passada. Diz comigo em teu coração: “Eu
creio.” Diz isto a cada batida do teu coração. Os tesouros de Deus se abrem
para quem crê nele e em sua poderosa bondade.
23.7
A luz começa a penetrar pela porta semi-aberta. Maria vai abri-la
toda. A luz da aurora vai fazendo ficar toda branca a terra, coberta de
orvalho. Levanta-se um cheiro de terra úmida e de folhas verdes e, com os
primeiros chilreios, os passarinhos se chamam um ao outro, voando de um
ramo para outro.
O velho e Maria vão até à porta. Estão pálidos por causa da noite sem
dormir, e a luz da aurora os faz ainda mais pálidos. Maria torna a pôr suas
sandálias, vai até os pés da escada e fica escutando. Nesse momento, uma
mulher aparece, faz sinais, depois volta. Por enquanto, nada.
Maria vai a um quarto, e volta com leite quente, que ela dá ao velho‐
para beber, depois vai ver os pombos, e torna a desaparecer naquele
cômodo. Talvez seja a cozinha. Maria anda de um lado para outro e está
atenta a tudo. Parece ter dormido um bom sono, de tão disposta e calma que
está.
Zacarias, passeia nervosamente para baixo e para cima no jardim.
Maria olha para ele com piedade. Depois, ela entra de novo no mesmo
cômodo e, ajoelhada ao lado do tear, reza intensamente, porque o queixume
da pobre sofredora vai-se agravando mais. Maria se inclina até o chão para
suplicar ao Eterno. Zacarias volta a entrar, e, ao vê-la assim prostrada,
chora. Maria se levanta, e o toma pela mão. Ela é muito mais nova do que
ele, mas fica parecendo a mãe daquela pobre velhice desolada, e derrama
sobre ele suas palavras de conforto.
23.8
Estão assim, um junto do outro, ao sol, que vem enchendo de tons
rosados o ar matutino e assim o anúncio jubiloso os alcança:
– Nasceu! Nasceu! É homem! Feliz do pai! É homem: um homem
viçoso como uma rosa, belo como o sol, forte e bom como a mãe. Alegria
para ti, ó pai abençoado pelo Senhor, que te deu um filho, a fim de que o
possas oferecer em seu Templo. Glória a Deus, que concedeu posteridade a
esta casa! Bênção para ti e para o filho que geraste! Possa a sua
descendência perpetuar o teu nome nos séculos dos séculos, por gerações,
sempre em aliança com o Senhor Eterno.
Maria, com lágrimas de alegria, está bendizendo o Senhor. Depois, os
dois recebem o pequeno, levando ao pai para que o abençoe. Zacarias não
vai a Isabel. Recebe o menino, que está gritando desesperadamente, mas
não vai até sua mulher.
Quem vai até lá é Maria, levando com amor o pequenino, o qual de
repente fica calado, logo que ela o toma em seus braços. A parteira, que a
acompanha, observa este fato.
– Mulher –diz ela a Isabel–, teu menino calou-se de repente, quando ela
o pegou. E olha só como ele está dormindo sossegado. E o céu é que sabe
quanto ele é inquieto e forte. Agora, olha! Parece um pombinho!
Maria coloca a criança junto da mãe e a acaricia, alisando-lhe os
cabelos cinzentos.
– A rosa nasceu –diz ela em voz baixa–. E tu estás viva. Zacarias está
feliz.
– Ele já está falando?
– Ainda não. Mas espera no Senhor. Descansa agora. Eu estou ao teu
lado.

Maria diz:
23.9

– Se a minha presença santificou o Batista, não tirou a Isabel a


condenação que deriva de Eva: “Tu darás à luz os filhos com dor”, havia
dito o Eterno.
Somente eu, sem mancha, e que não tinha tido união com homem, é
que fui isenta de dar à luz com dor. A tristeza e a dor são frutos da culpa.
Eu, que era a inculpável, tive que conhecer também a dor e a tristeza,
porque eu era a co-redentora. Mas não conheci a dor, ao dar à luz. Eu não
senti essa dor.
Contudo, acredita em mim, minha filha, que nunca houve, nem haverá
dor de parto semelhante à minha dor de mártir, de uma maternidade
espiritual, que se realizou sobre o mais duro leito: o leito da minha cruz, aos
pés do patíbulo de meu Filho, que estava morrendo. Qual a mãe que foi
constrangida a dar à luz desse modo? Qual a mãe que teve de misturar o
tormento sofrido em suas entranhas dilaceradas pelos estertores de seu
Filho moribundo, com o das entranhas que se retorcem, por terem que
superar o horror de ter que dizer: “Eu vos amo. Vinde a mim, que sou vossa
mãe”? Qual a mãe que teve que dizer isso aos assassinos de seu Filho, o
Filho nascido do mais sublime amor que o céu nunca tinha visto antes, do
amor de um Deus por uma virgem, do beijo de Fogo e do abraço de Luz,
que se fizeram carne, tornando o ventre de uma mulher, o Tabernáculo de
Deus?
“Quanta dor para ser mãe!” diz Isabel. Uma grande dor, sem dúvida,
mas quase nada, em comparação com a minha dor.
23.10
“Deixa-me pôr as mãos sobre o teu ventre.” Oh! se em vossos
sofrimentos me pedísseis sempre isto!
Eu sou a eterna portadora de Jesus. Ele está no meu ventre, conforme tu
viste[46] no ano passado, que Ele é como uma Hóstia consagrada no
ostensório. Quem vem a mim, O encontra. Quem em mim se apoia, põe-se
em contato com Ele. Quem se dirige a mim, fala com Ele. Eu sou a sua
veste. Ele é a minha alma. Agora Ele está mais unido a mim, do que nos
nove meses em que crescia no meu ventre. O meu Filho está unido à sua
mãe. Acalmam-se todas as dores, florescem todas as esperanças, fluem
todas as graças de quem vem a mim, e pousa sua cabeça sobre o meu
ventre.
Eu rezo por vós. Recordai-vos disso. A felicidade de estar no céu, de
viver no raio da luz de Deus, não me deixam esquecer meus filhos
sofredores na terra. Rezo. Todo o céu está rezando. Porque o céu ama. O
céu é caridade viva. A caridade tem piedade de vós. Ainda que fossem só as
minhas orações, já seriam suficientes para as necessidades de quem espera
em Deus. Porque eu não cesso de rezar por todos vós: pelos santos e pelos
maus, para alcançar a alegria para os santos, e o arrependimento que salva
para os malvados.
Vinde, ó filhos de minha dor. Eu vos espero aos pés da cruz para dar-
vos a graça.
[46] tu viste, a 23 de Junho de 1943, em “I quaderni del 1943” (Os cadernos de 1943).
24. Circuncisão de João Batista.
Maria é uma Fonte de Graça para quem acolhe a
Luz.
4 de abril de 1944.
24.1
Vejo a casa em festa. É o dia da circuncisão.
Maria cuida que tudo esteja bonito e em ordem. Os quartos estãos
resplandescentes de luz, e os tecidos mais belos e as decorações mais lindas
esplendem por toda parte. Há muita gente. Maria se move ágil entre os
grupos, toda bela na sua mais bonita veste branca.
Isabel, reverenciada como uma matrona, sente-se feliz em sua festa. O
menino está em seu colo, farto de leite.
24.2
Chega a hora da circuncisão.
– Nós o chamaremos Zacarias. Tu já estás velho. É bom que teu nome
seja dado ao menino –dizem alguns homens.
– Nada disso! –exclama a mãe–. O nome dele é João. Ele vai ter que
dar testemunho, e é isso o que significa o seu nome, dar testemunho do
poder de Deus.
– Mas, quando foi que já houve um João entre os nossos parentes?
– Não importa. Ele deve chamar-se João.
– Que dizes, Zacarias? Queres o teu nome, não é verdade?
Zacarias faz sinal de negação. Depois, pega a tabuinha e escreve: “O
nome dele é João.” E logo que terminou de escrever, acrescenta, mas agora
com a sua língua já solta:
– Visto que Deus me fez tão grande graça, a mim, seu pai, à sua mãe e a
este seu novo servo, que vai consumir toda a sua vida pela glória do
Senhor! Ele vai ser chamado grande através dos séculos e aos olhos de
Deus, porque passará sua vida convertendo corações para o Senhor
Altíssimo. O anjo falou, e eu não acreditei. Mas agora eu creio e em mim se
faz a Luz. Ela está entre nós, e vós não a vedes. A sorte dela será não ser
vista, porque os homens têm um espírito entulhado com outras coisas e
pouco interessado nela. Mas o meu filho a verá, e falará dela, e para ela fará
que se voltem os corações dos justos de Israel. Oh! felizes aqueles que
acreditarem nessa Luz, que acreditarem sempre na Palavra do Senhor. E tu,
Bendito e Eterno Senhor, Deus de Israel, porque visitaste e remiste o teu
povo, suscitando-nos um poderoso Salvador na casa de Davi seu servo.
Segundo a promessa feita pela boca dos santos profetas, desde os tempos
antigos, de livrar-nos dos nossos inimigos e das mãos daqueles que nos
odeiam, para pôr em ação a tua misericórdia para com nossos pais, e
lembraste da tua santa aliança. Este é o juramento que fizeste ao nosso Pai
Abraão, de conceder-nos de sermos livres das mãos dos nossos inimigos, e
sem temor Te servirmos com santidade e justiça em Tua presença, durante
toda a vida, e continua até o fim[47]. (Escrevi só até aqui porque, como se
pode ver, Zacarias se dirige diretamente a Deus).
Os presentes ficam pasmados. Tanto pelo nome, como pelo milagre e
pelas palavras de Zacarias.
Isabel, que, à primeira palavra de Zacarias, deu um grito de alegria,
agora está chorando, abraçada a Maria que, feliz, a acaricia.
24.3
Não vejo a circuncisão. Vejo somente trazerem João de volta, que
grita o mais alto que pode. Nem mesmo o leite da mãe o acalma. Escoiceia
como um potrinho. Mas Maria o pega, o nina, e ele se cala, ficando
bonzinho.
– Olhai! –diz Sara–. Ele não se cala, a não ser quando ela o pega!
As pessoas vão saindo aos poucos. No quarto ficam somente Maria
com o pequenino nos braços e Isabel, toda feliz.
24.4
Zacarias entra, e fecha a porta. Olha para Maria, com lágrimas nos
olhos. Ele quer falar. Mas continua calado. Anda para a frente. Ajoelha-se
diante de Maria.
– Abençoa a este miserável servo do Senhor –diz ele–. Abençoa-o
porque tu o podes fazer, tu que o trazes em teu ventre. A palavra de Deus
me falou, na hora em que eu reconheci o meu erro e acreditei em tudo o que
me havia sido dito. Eu estou vendo a ti e a tua feliz sorte. Em ti eu adoro o
Deus de Jacó. Tu, meu primeiro Templo, onde o sacerdote, que regressa,
pode orar ao Eterno. Bendita és tu, que obtiveste graça para o mundo,
doando-lhe o Salvador. Perdoa o teu servo, se ele não viu a tua majestade.
Tu nos trouxeste todas as graças com a tua vinda, porque por onde passas, ó
cheia de graça, Deus opera os seus prodígios. Santas são as paredes, que te
abrigam, santos se tornam os ouvidos que ouvem a tua voz, e santas as
carnes por ti tocadas. Santos os corações aos quais concedes graças, ó mãe
do Altíssimo, ó virgem profetizada e esperada para dar ao povo de Deus o
Salvador.
24.5
Maria sorri, cheia de humildade. E fala:
– Louvor ao Senhor. Somente a Ele. Dele, e não de mim é que procede
toda graça. E Ele te dá essa graça, porque tu o amas. Continua no caminho
da perfeição, nos anos que ainda te restam, para mereceres o Seu Reino, que
o meu Filho abrirá para os patriarcas, para os profetas e para os justos do
Senhor. E tu, agora que podes orar diante do Santo, reza por esta serva do
Altíssimo. Porque ser mãe do Filho de Deus é uma feliz sorte. Ser mãe do
Redentor deve ser partilhar de uma dor atroz. Reza por mim que, a cada
hora que passa, sinto crescer o peso da minha dor. Durante toda a minha
vida, deverei levar comigo esse peso. Ainda que eu não veja os pormenores
deste peso, sinto que será bem maior, do que se fosse posto o mundo sobre
estes meus pobres ombros de mulher, e eu tivesse que oferecê-lo ao céu. Eu,
sozinha, pobre mulher! O meu Menino! O meu Filho! Ah! Agora o teu não
está chorando, porque o estou ninando. Mas, poderei eu ninar o meu para
acalmar sua dor?… Reza por mim, sacerdote de Deus. O meu coração está
tremendo como uma flor exposta à ventania. Eu olho para os homens, e os
amo. Mas vejo, atrás dos seus rostos aparecer o inimigo, fazendo deles
inimigos de Deus e de Jesus, o meu Filho…
A visão termina com a palidez de Maria e com suas lágrimas, que
fazem ficar brilhante o seu olhar.

24.6
Maria diz:
– Deus perdoa a quem reconhece a sua culpa, se arrependendo e se
acusando dela com humildade e coração sincero. E, não somente perdoa,
mas ainda dá uma compensação. Oh! Como o meu Senhor é bom para com
quem é humilde e sincero, com quem Nele crê e confia.
24.7
Desembaraçai o vosso espírito de tudo quanto o entulha e torna
preguiçoso. Tornai-o bem disposto para acolher a Luz; Ela é como um farol
nas trevas, um guia e conforto santo.
Oh, amizade com Deus, felicidade dos seus fiéis, riqueza que nenhuma
outra coisa iguala, quem te possui, nunca mais estará sozinho, nem sentirá o
amargor do desespero. Não eliminas a dor, ó santa amizade, porque esta foi
a sorte do Deus encarnado, e pode também ser a sorte do homem. Mas fazes
com que esta dor fique doce, apesar de amarga, e misturas a ela uma luz e
uma carícia que aliviam o peso da cruz, com um toque celeste.
Quando a Bondade Divina vos der uma graça, usai desse bem recebido
para dar glória a Deus. Não sejais como loucos que, de um objeto bom
fazem uma arma nociva, ou como pródigos que transformam sua riqueza
em miséria.
24.8
Muita dor me causais, ó filhos, pois atrás de vossos rostos, vejo
aparecer o inimigo, que se lança contra o meu Jesus. Muito sofrimento! Eu
queria ser para todos a nascente da graça. Mas muitos entre vós não querem
a graça. Pedis graças, mas, com o espírito que se privou da graça. Como a
graça pode socorrer-vos, se sois inimigos dela?
24.9
O grande mistério de Sexta-Feira Santa se aproxima[48]. Nos templos
tudo faz lembrar e celebra isto. Mas, é preciso recordá-lo e celebrá-lo nos
vossos corações, e bater no peito, como aqueles que desciam do gólgota,
dizendo: “Este é realmente o Filho de Deus, o Salvador” ou “Jesus, pelo teu
Nome, salva-nos” ou “Ó Pai, perdoa-nos.” E dizer finalmente: “Senhor, eu
não sou digno. Mas, se Tu me perdoas, vens a mim e minha alma ficará
curada.Eu não quero mais pecar, para não ficar doente e com ódio de Ti.”
Rezai, meus filhos, com as palavras do meu Filho. Rezai assim ao Pai
pelos vossos inimigos: “Pai, perdoa-lhes.” Chamai o Pai, que se retirou,
desprezado pelos vossos erros: “Pai, por que me abandonaste? Eu sou
pecador. Mas, se Tu me abandonas, perecerei. Volta, Pai Santo, para que eu
me salve.” Confia no Único que pode conservar o vosso espírito, vosso
eterno bem, ileso do demônio: “Pai, em vossas mãos entrego o meu
espírito.” Oh! Se entregais o vosso espírito a Deus humilde e
amorosamente, Ele vo-lo conduzirá como um pai conduz o seu filho
pequenino, e não permitirá que nada vos faça mal.
Jesus, em suas agonias, rezou para ensinar-vos a rezar. Eu vos faço
lembrar isso nestes dias da Paixão.
24.10
E tu, Maria, tu que estás vendo a minha alegria de mãe, e te extasias
com ela, lembra-te que eu possuí Deus, através de uma dor sempre
crescente. Esta dor desceu sobre mim com o embrião de Deus e, como uma
árvore gigantesca, cresceu até tocar o céu com o vértice, e o inferno com as
raízes, ao receber os despojos exânimes da carne da minha carne em meu
regaço, podendo eu ver nela e contar as feridas, tocando em Seu coração
rasgado, por consumar a dor até a última gota.
[47] até o fim, do cântico, referido em: Lucas 1,67-79.
[48] se aproxima, pois que, como anota Maria Valtorta numa cópia dactilografada, Maria Ss ditava essas palavras na Quarta
Feira Santa.
25. Apresentação de João Batista no Templo
e partida de Maria. O Sofrimento de José.
5-6 de abril de 1944.
25.1
Na noite entre quarta e quinta-feira da Semana Santa, eis o que estou
vendo.
De um carro cômodo ao qual está amarrado também o burrinho de
Maria, vejo descer Zacarias, Isabel e Maria, que tem nos braços o pequeno
João, e Samuel com um cordeiro e uma pomba numa cesta. Eles descem na
frente da estalagem, da qual costumam servir-se, e que deve ser a etapa
final para todos os peregrinos que vão ao Templo, pois é onde deixam os
animais.
Maria chama o homenzinho, que é o dono da estalagem, e lhe pergunta
se no dia de ontem, ou nas primeiras horas da manhã de hoje, não terá
chegado nenhum nazareno.
– Nenhum, mulher –respondeu o velhinho.
Maria fica admirada, mas não pergunta mais nada.
Ela manda que Samuel vá cuidar do burrinho, depois vai se encontrar
com os dois pais da criança, e lhes fala do atraso de José:
– Ele terá precisado ocupar-se com alguma coisa. Mas hoje certamente
virá.
Maria retoma o menino, que havia entregue a Isabel, e se dirigem para
o Templo.
25.2
Zacarias é recebido com grandes honras pelos guardas, saudado e
cumprimentado pelos outros sacerdotes. Zacarias está muito bonito hoje,
em suas vestes sacerdotais e em sua alegria de pai feliz. Parece um
patriarca. Penso que Abraão devia estar assim, quando se alegrou, ao
oferecer Isaque ao Senhor.
Vejo a cerimônia da apresentação do novo israelita e a da purificação da
mãe. Esta é ainda mais pomposa do que a de Maria, porque para o filho de
um sacerdote, os sacerdotes fazem festa. Acorrem todos, e se entregam a
uma grande atividade ao redor do grupo das mulheres e do recém-nascido.
Também o povo se aproximou com curiosidade, e estou podendo ouvir
os comentários. Visto que Maria está com o menino nos braços, enquanto
vão-se dirigindo para o lugar estabelecido, o povo está pensando ser ela a
mãe.
Mas uma mulher diz:
– Não pode ser. Não estais vendo que ela está grávida? O menino tem
apenas poucos dias de nascido, e ela já está grávida?!
– Contudo –diz um outro–. Ela não pode deixar de ser a mãe. Pois a
outra já está velha. A outra, pode ser uma parenta. Mas, naquela idade, mãe
é que ela não pode ser.
– Vamos atrás delas, e veremos quem tem razão.
E o espanto se torna geral, quando todos podem ver que quem está
cumprindo o rito da purificação é Isabel, pois ela é que está oferecendo o
cordeirinho berrador para o holocausto, e o pombo pelo pecado.
– A mãe é aquela? Viste?
– Não!
– Sim.
O povo está cochichando, ainda incrédulo. Mas está cochichando tão
alto, que vem um “Psiu” imperioso do grupo sacerdotal, que está presente à
cerimônia. As pessoas se calam por um momento, mas recomeçam a
cochichar mais forte, quando Isabel, radiante de santo orgulho, pega o
menino, e avança pelo Templo a dentro, para fazer a apresentação dele ao
Senhor.
– É ela mesmo.
– É sempre a mãe que oferece.
– Mas, que milagre é este?
– Que menino será esse, concedido por Deus àquela mulher, numa
idade tão tardia?
– Afinal, que sinal será este?
– Não sabeis? –diz alguém que chega todo ofegante–. É o filho do
sacerdote Zacarias, da estirpe de Arão, aquele que ficou mudo, enquanto
estava oferecendo o incenso no Santuário.
– Mistério! Mistério! Pois agora ele está falando de novo. O nascimento
do filho soltou a língua dele!
– Que espírito lhe terá falado, tornado morta a sua língua, para fazê-lo
acostumar-se ao silêncio sobre os segredos de Deus?
– Mistério! Qual verdade conhecerá Zacarias?
– Seria o Messias o filho dele, esperado por Israel?
– Ele nasceu na Judéia. Mas não em Belém, e não de uma virgem. O
Messias ele não pode ser.
– Quem, então?
Mas a resposta a tantas perguntas continua a ficar no silêncio de Deus,
enquanto o povo permanece na sua curiosidade.
O cerimonial terminou. Os sacerdotes festejam então a mãe e o menino.
A única pouco observada, e até evitada com aversão[49], desde quando
perceberam o seu estado, é Maria.
25.3
Acabadas todas as felicitações, quase todos vão voltando ao seu
caminho, ao passo que Maria quer voltar à estalagem, para ver se José
chegou. Ele não chegou ainda. Maria se sente desiludida, e fica pensativa.
Isabel está preocupada por ela:
– Até a hora sexta, poderemos ficar, mas depois precisamos partir, para
chegarmos em casa antes da primeira vigília. O menino está ainda muito
pequeno para estar fora de casa pela noite a dentro.
E Maria, calma e triste:
– Eu vou ficar num dos pátios do Templo. Vou procurar minhas
mestras… Não sei. Mas alguma coisa preciso fazer.
Zacarias intervém com uma idéia, que foi logo aceita:
– Vamos aos parentes de Zebedeu. José certamente vai te procurar lá, e,
ainda que ele não esteja, será fácil para ti encontrar alguém que te
acompanhe a caminho da Galiléia, porque aquela casa é um contínuo entra
e sai dos pescadores de Genezaré.
Pegam, pois o burrinho, e vão à casa dos parentes de Zebedeu, os quais,
são aqueles mesmos com quem José e Maria ficaram, há quatro meses.
As horas passam velozes, e José não aparece. Maria procura dominar
sua aflição ninando o pequeno, mas pode-se ver que continua pensativa.
Como que para esconder o seu estado, ela não tirou o manto, ainda que o
calor esteja intenso e fazendo suar a todos.
25.4
Finalmente, uma grande batida na porta anuncia a chegada de José. O
rosto de Maria se torna sereno de novo.
José a saúda, pois ela é a primeira a apresentar-se e a saudá-lo com
reverência:
– A bênção de Deus sobre ti, Maria!
– E sobre ti, José. Graças a Deus, que vieste! Eis Zacarias e Isabel que
estavam para partir, pois queriam chegar em casa antes da noite.
– O teu mensageiro chegou a Nazaré, enquanto eu estava em Caná,
fazendo uns trabalhos. Anteontem à tarde, é que recebi a notícia. E, então,
eu parti logo. Mas, mesmo caminhando sem parar, cheguei tarde, porque no
caminho o burrinho perdeu uma ferradura. Perdoa-me.
– Perdoa-me, tu, por ter ficado tanto tempo afastada de Nazaré. Mas,
estavam tão felizes de ter-me com eles, que eu quis contentá-los até agora.
– Fizeste bem, mulher. Onde está o menino?
Entram no quarto onde Isabel está dando de mamar a João, antes de
partirem. José cumprimenta os pais pela robustez do menino que, tendo sido
tirado do peito para ser mostrado a José, grita e esperneia, como se lhe
estivessem tirando a pele. Todos riem, diante dos seus protestos. Também
os parentes de Zebedeu, riem e se unem na conversação com os outros,pois
eles tinham chegado trazendo frutas frescas, leite e pão para todos e um
grande tabuleiro com peixes.
25.5
Maria fala muito pouco. Está quieta, silenciosa, sentada em seu
cantinho com as mãos no colo e por debaixo do manto. E, mesmo quando
ela toma uma taça de leite, ou ao comer um cacho de uvas com um pouco
de pão, fala pouco e pouco se move. Olha para José, com um misto de pena
e de curiosidade.
Ele também olha para ela. E, depois de algum tempo, inclinando-se
sobre o ombro dela, lhe pergunta:
– Estás cansada ou sentindo alguma coisa? Estás pálida e triste.
– Estou triste por ter que separar-me do pequeno João. Gosto dele. Eu o
tive sobre o meu coração, poucos momentos depois que nasceu…
José não pergunta mais nada.
Chegou a hora da partida de Zacarias. O carro pára à porta, e todos se
dirigem para ele. As duas primas se abraçam com amor. Maria beija duas
vezes o pequeno, antes de colocá-lo no colo da mãe, que já está sentada no
carro. Depois, saúda Zacarias, e lhe pede a bênção. Ao ajoelhar-se diante do
sacerdote, o manto se lhe desliza pelo ombro, e suas formas se tornam
visíveis, à luz intensa daquela tarde de verão. Não sei se José notou alguma
coisa naquele momento, atento como ele está em saudar Isabel. O carro
parte.
25.6
José torna a entrar em casa com Maria, que vai de novo sentar-se no
canto mais escuro.
– Se não te desagrada viajar de noite, eu proporia que partíssemos ao
pôr-do-sol. De dia o calor está forte. Mas a noite está fresca e sossegada. Eu
digo isto por ti, para não fazer-te tomar muito sol. Para mim estar exposto
ao sol é o mesmo que nada. Mas para ti…
– Como quiseres, José. Eu também acho que é bom irmos de noite.
– A casa está em pefeita ordem. E também o pequeno pomar. Verás que
belas estão as flores. Vais chegar a tempo de vê-las todas se abrindo. A
macieira, a figueira e a videira estão carregadas de frutos como nunca, e a
romãzeira, precisei até escorá-la, de tanto que os ramos estavam carregados
de frutos, já tão maduros, coisa que nunca se viu a esta altura do ano.
Depois, a oliveira… Terás azeite com fartura. Houve uma florada
milagrosa, e não se perdeu uma só flor. Todas já se tornaram pequenas
azeitonas. Quando estiverem maduras, a oliveira vai ficar parecendo cheia
de pérolas escuras. Não há pomar mais bonito do que o teu em toda Nazaré.
Até nossos parentes estão admirados. Alfeu diz que isso é um prodígio.
– Teus cuidados é que fizeram isso.
– Oh! Não. Pobre de mim. Que é que devo ter feito? Um pouco de
cuidado com as plantas, e um pouco de água nas flores… Sabes de uma
coisa? Fiz para ti uma fonte lá no fundo, perto da gruta, e construí um
tanque. Assim, não precisarás sair para ir buscar água. Conduzi a água lá
daquela nascente que está acima do olival do Matias. É uma nascente de
água pura e abundante. Eu trouxe até perto de ti um pequeno rio. Fiz
também um reguinho bem coberto, e agora a água chega no fim dele,
cantando como uma harpa. Eu ficava com dó de ti, ao ver-te ir à fonte da
cidade e voltar carregando baldes cheios d’água.
– Obrigada, José. Tu és bom.
Os dois esposos se calam agora, como se estivessem cansados. José
está cochilando. Maria está rezando.
25.7
Chega a tarde. Os hospedeiros insistem com os dois para que comam,
antes de se porem a caminho. José, então, come pão e peixe. Maria, só
frutas e leite.
Depois, eles partem. Montam em seu burrinhos. José amarrou sobre o
seu, como na vinda, o baú de Maria, e, antes que ela monte no burrinho,
verifica se a sela está bem segura. Vejo que José fica observando Maria,
quando ela monta. Mas ele não diz nada.
E a viagem se inicia, quando as primeiras estrelas começam a
tremeluzir no céu. Eles se apressam para chegarem às portas, antes que
sejam fechadas. Ao saírem de Jerusalém, tomam a estrada mestra, que vai
para a Galiléia, quando as estrelas já enchem todo o céu sereno. Há um
grande silêncio pelo campo. Ouve-se apenas o canto de algum rouxinol e o
barulho dos cascos dos dois burrinhos, que vão batendo no solo duro da
estrada, ressecada pelo calor do verão.
25.8
Maria diz:
– Estamos na vigília de Quinta-Feira Santa. A alguns parecerá fora de
propósito esta visão. Mas a tua dor de amante do meu Jesus Crucificado
está em teu coração, e aí fica, mesmo quando uma doce visão se apresenta.
Esta é como o pequeno calor que nasce de uma chama, que ainda é fogo,
mas que já não é mais fogo. O fogo é a chama. Mas não é o calor dela, pois
este não é mais do que uma derivação. Nenhuma visão beatífica ou pacífica
será capaz de tirar-te aquela dor do coração. E considera-a muito mais
querida do que a tua própria vida. Porque é o maior dos dons que Deus
possa conceder a quem crê em seu Filho. Além disso, a minha visão não é,
em sua forma pacífica, em nada discordante dos acontecimentos desta
semana.
25.9
Também o meu José teve a sua Paixão. Ela começou em Jerusalém,
quando ele percebeu o meu estado. Durou muitos dias, como aconteceu
com Jesus e comigo. E não foi espiritualmente pouco dolorosa. Mas
unicamente pela santidade de um justo, como era o meu esposo, é que ela
ficou limitada a uma forma tão cheia de dignidade e de segredo, que ficou
pouco conhecida, através dos séculos.
Oh! a nossa primeira paixão! Quem poderá falar da íntima e silenciosa
intensidade dela? Quem saberá dizer qual a minha dor, ao ver que o céu
ainda não me havia atendido em revelar o mistério a José?
Que ele ainda nada sabia, eu já tinha compreendido, ao vê-lo respeitoso
comigo, como de costume. Se ele tivesse sabido que eu trazia em mim o
Verbo de Deus, ele teria adorado o Verbo encerrado em meu ventre, com os
atos de veneração que são devidos a Deus, e que ele não teria deixado de
praticar, como eu também não me teria recusado a receber, não por causa de
mim, mas por Aquele que estava em mim, que eu em mim trazia, assim
como a Arca da aliança continha o código escrito na pedra e os vasos de
maná.
Quem pode dizer qual foi a minha luta contra o desânimo, que queria
me vencer, para me persuadir de que eu havia esperado em vão no Senhor?
Oh! Eu creio, que isso vinha da raiva de satanás! Eu senti a dúvida que
crescia em meus ombros, e que espichava suas garras geladas para
aprisionar minha alma e fazê-la deixar de orar. A dúvida, que é tão perigosa
e letal para o espírito. Letal, porque ela é o primeiro agente da doença
mortal chamada “desespero”, e contra a qual é preciso reagir com toda a
força para não perecer na alma e perder Deus.
Quem pode dizer com toda a verdade qual a dor de José, quais os seus
pensamentos, qual a perturbação que ele sentiu em seus afetos? Como um
pequeno barco apanhado por uma grande tempestade, ele se achava num
encontro entre idéias opostas, como em uma dança ao redor de reflexões,
cada uma mais pungente e mais capaz de fazer sofrer do que a outra. Ele era
um homem que, pelas aparências, só podia ter sido traído por sua mulher.
Por isso, ele via desmoronar, ao mesmo tempo, o seu bom nome e a estima
em que ele era tido naquele lugar. Por causa disso, ele se sentia apontado a
dedo e alvo de compaixão pelos habitantes da cidade, via morrerem o afeto
e a estima de que até então eu vinha gozando, diante da evidência de um
fato.
25.10
É aqui que a santidade dele resplende ainda mais brilhante do que a
minha. Eu dou testemunho disso com todo o meu afeto de esposa, porque
quero que ameis o meu José, este homem sábio e prudente, este homem
paciente e bom, que não está separado do mistério da Redenção, mas muito
unido a ele, pois, por essa dor que o consumou, ele salvou para vós o
Salvador, às custas de seu sacrifício e de sua santidade.
Tivesse ele sido menos santo, teria agido como os homens: me teria
denunciado como adúltera, para que eu fosse apedrejada, e o filho do meu
pecado morresse comigo. Tivesse ele sido menos santo, Deus não lhe teria
concedido a sua luz em tão grande provação. Mas José era santo. Seu
espírito puro vivia em Deus. A caridade nele era acesa e forte. Foi pela
caridade que ele salvou para vós o Salvador, tanto quanto ele não quis me
acusar diante dos anciãos, como também quando, deixando tudo, com uma
pronta obediência, salvou Jesus, levando-o consigo para o Egito.
25.11
Breves em número, mas grandes em intensidade, foram aqueles três
dias do sofrimento de José. E deste meu primeiro sofrimento. Porque eu
compreendia o sofrimento dele, mas não podia aliviá-lo de modo algum,
por causa da obediência ao decreto de Deus, que me havia dito: “Cala-te!”
Quando, tendo chegado a Nazaré, eu o vi sair, depois de uma curta
saudação, todo curvo e como se tivesse envelhecido em pouco tempo, e não
voltar mais a mim, como era de costume, vos digo, filhos, que o meu
coração chorou com uma dor grande e aguda. Fechada em minha casa, só,
naquela casa em que tudo me fazia recordar a Anunciação e a Encarnação, e
onde tudo me falava de José, desposado por mim em uma virgindade
imaculada, eu tive que resistir ao desconforto, às insinuações de satanás, e
ficar esperando. Orando, perdoar a suspeita de José, e ao seu gesto de justo
desdém para comigo.
Filhos, é preciso esperar, rezar, perdoar, para se obter que Deus
intervenha em nosso favor. Vivei, vós também, o vosso sofrimento. Ele é
devido às vossas culpas. Eu vos ensino como superá-lo e transformá-lo em
alegria. Esperar, além de toda medida. Rezar sem desconfiança, perdoar,
para serdes perdoados. O perdão de Deus será a paz que desejais, meus
filhos.
25.12
Nada mais, por enquanto, vos direi. Enquanto não chega o triunfo
pascoal, haverá silêncio. São estes os dias da Paixão. Tende compaixão do
vosso Redentor. Ouvi seus lamentos. Contai suas feridas e lágrimas. Cada
uma delas veio por causa de vós, e foi por vós sofrida. Que qualquer outra
visão desapareça, diante desta que vos recorda a Redenção, cumprida por
vós.
[49] com aversão, enquanto a mulher grávida era imunda segundo a lei, que prescrevia a purificação para a parturiente e a
circuncisão para o filho macho: Génesis 17,9-14; Levítico 12. O primogénito macho era consagrado ao Senhor e depois resgatado,
como prescrito em: Êxodo 13,1-2.11/16; 34,19-20; Números 3,13; 18,15-16. Para a mulher são contempladas outras impurezas em:
Levítico 15,18-30, ao qual se referirá, por exemplo, em 230.3 e 262.8. Além dos casos específicos previstos na lei (sobretudo em
matéria de matrimónio e de divórcio) a mulher geralmente suportava certos tratamentos discriminatórios por tradição rabínica,
como se realça, em nota, em 316.5.
26. José pede perdão a Maria.
Fé, caridade e humildade para receber a Deus.
31 de maio de 1944.
26.1
Depois de cinqüenta e três dias, a mãe vem mostrar-se com esta
visão, e manda que eu faça constar neste livro. A alegria se renova em mim.
Porque ver Maria é possuir a alegria.
26.2
Vejo, então, o pequeno pomar de Nazaré. Maria está fiando à sombra
de uma macieira, toda carregada de frutos, que já começam a avermelhar-se
e se parecem com bochechinhas de menino por seu formato arredondado e
por um belo cor-de-rosa.
Maria, porém, não é sem motivo que não está com seu rosto rosado,
como antes. Aquela bela cor, que lhe avivava as faces lá em Hebron,
desapareceu. Seu rosto está de uma palidez de marfim, e nele somente os
lábios ainda assinalam uma curva com um leve tom de coral. Sob as
pálpebras abaixadas, vejo duas sombras escuras, e os cantos dos olhos estão
inchados, como os de quem acabou de chorar. Não posso ver os olhos,
porque ela está com a cabeça um tanto inclinada, atenta ao trabalho, e mais
ainda, a um pensamento que a deve estar afligindo, pois ouço os seus
suspiros, como os de alguém que sofre no coração.
Está toda vestida de branco, de linho branco, porque está fazendo muito
calor, não obstante o frescor ainda intacto das flores nos estar dizendo que
ainda é de manhã. Maria está com a cabeça descoberta, e o sol, que brinca
com as folhas da macieira movidas por um vento muito suave, se filtra em
agulhas de luz, que vão pousar sobre a terra escura dos canteiros, formando
pequenos círculos de luz sobre sua cabeça loira, fazendo os seus cabelos
ficarem parecendo fios de ouro antigo.
Da casa não vem nenhum barulho, nem dos lugares vizinhos. Ouve-se
apenas o murmúrio de um fio d’água que cai dentro de um tanque, lá no
fundo do pomar.
26.3
Maria leva um susto, ao ouvir uma batida forte na porta de saída da
casa. Ela deixa ali mesmo a roca e o fuso, e se levanta para ir abrir. Ainda
que sua roupa seja solta e ampla, não consegue esconder completamente a
redondez de seu ventre.
Ei-la, agora, diante de José. Maria empalidece, até nos lábios. Agora
seu rosto está parecendo o de uma vítima exangue. Maria olha com uns
olhos como os de quem interroga tristemente. José olha para ela com uns
olhos que parecem suplicantes. Eles se calam, olhando um para o outro.
Depois, Maria abre a boca:
– A esta hora, José? Estás precisando de alguma coisa? Que me queres
dizer? Vem.
José entra, e fecha a porta. Mas não fala nada.
– Fala, José. Que queres de mim?
– Quero o teu perdão.
José se inclina, como se quisesse ajoelhar-se. Mas Maria, sempre tão
reservada em tocar nele, agora o agarra pelos ombros decididamente, e o
impede de ajoelhar-se.
A cor vai e volta ao rosto de Maria, que ora está corada, ora branca
como antes:
– O meu perdão? Não tenho nada que te perdoar, José. Só tenho que te
agradecer, mais uma vez, por tudo o que fizeste aqui dentro na minha
ausência, e pelo amor que me tens.
José olha para ela, e vejo duas grandes gotas que se formam nas
cavidades de seus olhos profundos, e ali estão como sobre a borda de um
vaso prontas para, logo em seguida, rolarem por sobre as faces e a barba de
José.
– Perdão, Maria. Eu desconfiei de ti. Agora eu sei. Sou indigno de
possuir tão grande tesouro. Faltei-te com a caridade, e te acusei em meu
coração. Acusei-te injustamente, porque não te perguntei antes a verdade.
Faltei contra a lei de Deus, não te amando como me amaria…
– Oh! não! Não faltaste!
– Sim, faltei, Maria! Se eu tivesse sido acusado de um tal delito, eu
teria me defendido. Tu… Eu não te estava concedendo o direito de te
defenderes, porque eu já estava até tomando decisões, sem te perguntar
nada. Faltei para contigo, ofendendo-te com minha suspeita. Ora, até
mesmo a suspeita já é uma ofensa, Maria. Porque quem suspeita, não
conhece. E eu não te conhecia, como devia. Mas, pela dor que eu sofri…
três dias de suplício, perdoa-me, Maria!
– Não tenho nada que te perdoar. Pelo contrário, eu é que te peço
perdão pela dor que te causei.
– Oh! Sim. Foi uma grande dor. Que dor! Olha, hoje de manhã me
disseram que sobre as têmporas meus cabelos já estão brancos e que no
rosto já estou com rugas. Estes três dias pareceram-me mais de dez anos!
Mas, por que, Maria, foste tão humilde, a ponto de calares tua glória até
26.4

diante de mim, teu esposo, e deixares assim que eu suspeitasse de ti?


José não está de joelhos, mas está tão inclinado, como se estivesse de
joelhos, e Maria, então lhe pousa a mão sobre a cabeça, e sorri. Parece o
estar absolvendo. Ela diz:
– Se eu não tivesse sido humilde de uma maneira perfeita, não teria
merecido conceber o Esperado, que vem para anular a culpa de soberba,
que arruinou o homem. Além disso, eu obedeci… Deus me pediu essa
obediência. Ela me custou tanto… por causa de ti, pela dor que dela te
adviria. Mas eu só tinha que obedecer. Eu sou a serva de Deus, e os servos
não discutem as ordens que recebem. Eles vão executá-las, José, ainda
quando os fazem chorar sangue.
Maria chora silenciosamente, enquanto vai dizendo estas palavras. E,
tão silenciosamente, que José, inclinado como está, nem percebe isso, até
que uma lágrima sua caiu no chão. Então, ele levanta a cabeça e (é a
primeira vez que o vejo fazer isso) aperta as mãozinhas de Maria com suas
mãos morenas e fortes, beija as pontas daqueles dedos rosados e tão
delicados, que despontam como botões de pessegueiro, do anel formado
pelo aperto das mãos de José.
26.5
– Agora é preciso tomar providências para que…
José não diz mais nada, mas olha para o corpo de Maria, e ela fica
ruborizada, e de repente se assenta, para não ficar assim exposta àquele
olhar que a está observando.
– Será preciso agirmos logo. Eu virei aqui. Realizaremos o
casamento… Na semana que vem. Está bem assim?
– Tudo o que fazes está bem, José. Tu és o chefe da casa, e eu sou tua
serva.
– Não. Eu sou o teu servo. Eu sou o feliz servo do meu Senhor, que está
crescendo em teu ventre. Tu és bendita entre todas as mulheres de Israel.
Esta tarde já avisarei os parentes. E depois… quando eu estiver aqui, iremos
preparando tudo para receber… Oh! como poderei eu receber a Deus em
minha casa? A Deus em meus braços? Isso me fará morrer de alegria. Eu
nunca poderei ousar nem tocar nele!…
– Tu bem que o poderás, José, como eu o poderei pela graça de Deus.
– Mas tu és tu. Eu sou um pobre homem, o mais pobre dos filhos de
Deus!…
– Jesus vem ao mundo por nós, que somos os pobres, para fazer-nos
ricos em Deus, Ele vem a nós dois, porque somos os mais pobres e
reconhecemos que o somos. Alegra-te, José. A estirpe de Davi já tem o Rei
que esperava, e a nossa casa se tornou mais faustosa do que o palácio de
Salomão, porque aqui será o céu e nós dividiremos com Deus o segredo de
paz que mais tarde os homens saberão. Crescerá entre nós, e os nossos
braços serão o berço do Redentor, que irá crescendo, e as nossas fadigas
dar-lhe-ão um pão… Oh! José! Ouviremos a voz de Deus, a chamar-nos de
“pai” e de “mãe”! Oh!…
E Maria chora de alegria. Um choro de felicidade! Enquanto isso, José,
ajoelhado agora aos pés dela, chora, com a cabeça quase escondida na
ampla veste de Maria, que desce, em muitas dobras, por sobre os simples
ladrilhos do pavimento do pequeno quarto.
A visão termina aqui.

26.6
Maria diz:
– Ninguém interprete de modo errado a minha palidez. Ela não era
causada por nenhum medo humano. Conforme o modo de tratar dos
homens, eu deveria ter de esperar o apedrejamento. Mas eu não tinha medo
disso. Eu sofria por causa de José. Também o pensamento de que ele podia
me acusar, não me perturbava por mim mesma. A única coisa que me
desagradava era que ele pudesse, se insistisse na acusação, faltar com a
caridade. Quando o vi, o sangue me foi todo ao coração, por causa disso.
Era aquele um momento em que um justo poderia ter ofendido a justiça,
ofendendo a caridade. E, que um justo cometesse uma falta, logo este que
não cometia faltas, isso me teria causado uma dor muito grande.
26.7
Se eu não tivesse sido humilde até o extremo limite, como eu disse a
José, não teria merecido trazer em mim Aquele que, para cancelar a soberba
da raça, sendo Deus, Se aniquilava até à humilhação de fazer-se homem.
26.8
Eu te mostrei esta cena, que nenhum Evangelho relata, porque eu
quero de novo chamar a atenção tão desviada dos homens sobre as
condições essenciais para agradar a Deus e recebê-lo em sua contínua vinda
aos corações.
Fé. José acreditou cegamente nas palavras do mensageiro celeste[50].
Ele não desejava outra coisa, senão crer, porque tinha a convicção sincera
de que Deus é bom e de que a ele, que havia esperado no Senhor, o Senhor
não lhe teria reservado a dor de ser um traído, um decepcionado, alguém
que fosse feito objeto de zombaria pelo próximo. Com grande dor ele não
perguntava em que devia crer a meu respeito, porque, honesto como era,
não era capaz nem de pensar que outras pessoas não fossem assim. Ele vivia
a Lei, e a Lei diz: “Ama a teu próximo como a ti mesmo.” Nós amamos a
nós mesmos tanto, que nos cremos perfeitos, até quando não o somos. Por
que, então, desamar o próximo, julgando-o imperfeito?
Caridade absoluta. Caridade que sabe perdoar, que quer perdoar.
Perdoar com antecipação, desculpando em nosso coração as fraquezas do
próximo. Perdoar na hora, dando ao culpado todas as atenuantes.
Humildade absoluta como a caridade. Saber reconhecer que se faltou,
até mesmo com um simples pensamento, e não se ter o orgulho, mais
nocivo ainda, de não querer dizer: “Eu errei”, a respeito da culpa
precedente. Todos erram, menos Deus. Quem é que pode dizer: “Eu não
erro nunca”? E há ainda uma humildade mais difícil: é a que sabe se calar a
respeito das maravilhas de Deus em nós, quando não é necessário
proclamá-las, para dar-lhe louvores por elas, a fim de não aviltar o nosso
próximo, que não recebeu tais dons especiais de Deus. Quando Deus quer,
então sim. Então Ele se revela a Si mesmo em seu servo. Isabel me “viu”
como eu era e meu esposo me conheceu pelo que eu era, quando chegou a
hora de ele conhecer isso por si mesmo.
26.9
Deixai ao Senhor o cuidado de proclamar-vos servos Seus. Ele tem
uma amorosa pressa disso, porque toda criatura que é elevada a alguma
missão particular é uma nova glória acrescentada à sua infinita, porque é
um testemunho de quanto o homem é assim como Deus o queria: uma
perfeição menor que espelha o seu Autor. Permanecei na sombra e no
silêncio, ó prediletos da graça, para poderdes ouvir as únicas palavras que
são de “vida”, e para poderdes merecer o Sol que resplende eternamente
sobre vós e em vós.
Oh! Luz felicíssima, que és Deus, que és a alegria dos teus servos,
brilha sobre estes teus servos, e que então eles exultem em sua humildade,
louvando-Te e a Ti somente, que arruínas os soberbos, e elevas os humildes,
que te amam, até os esplendores do teu Reino.
[50] palavras do mensageiro celeste, que se lêm em: Mateus 1,20-21.
27. O edito do censo. Ensinamento
sobre o amor ao esposo e sobre a confiança em
Deus.
4 de junho de 1944.
27.1
Vejo ainda a casa de Nazaré e o pequeno quarto onde habitualmente
Maria toma as suas refeições. Agora ela está trabalhando em uma tela
branca. Pára seu trabalho para acender um candeeiro, porque a tarde vem
chegando, e ela não está mais enxergando bem, com essa luz esverdeada
que está entrando pela porta semi-aberta, do lado do pomar. Maria também
fecha a porta.
Vejo como já está volumosa de corpo. Mas ainda muito bonita. Seu
passo é sempre ligeiro, e gentis são todos os seus gestos. Não há nada
daquele peso próprio da mulher, que está perto de dar à luz. Só no rosto é
que ela está mudada. Agora é “a mulher.” Antes, no tempo da Anunciação,
era uma jovenzinha de rosto sereno e inocente: um rosto inocente de
criança. Depois, na casa de Isabel, no momento do nascimento do Batista,
seu rosto já se apresentava com uma graça mais madura. Agora é um rosto
sereno, mas docemente majestoso, da mulher que atingiu sua plena
perfeição na maternidade.
Não faz lembrar mais a sua querida “Annunziata” de Florença, pai.
Quando eu era pequena, a reconhecia ali.
Agora, o rosto está mais longo e magro, e os olhos mais pensativos e
maiores. Em suma, é como Maria hoje no Céu. Porque ela retomou o
aspecto e a idade do momento em que nasceu o Salvador.
A sua eterna juventude, a qual não só não conheceu a corrupção mortal,
mas nem mesmo murchou com o passar dos anos. O tempo não teve ação
sobre ela, a nossa rainha e mãe do Senhor, que criou o tempo. Nos
tormentos da Paixão (tormentos que começaram para ela muito antes, pois
eu diria que começaram desde o início da evangelização de Jesus) ela
apareceu envelhecida, mas esse envelhecimento era como um véu colocado
pela dor sobre a sua incorruptível pessoa. De fato, desde o momento em que
reencontra Jesus ressuscitado, ela se torna novamente a criatura cheia de
vida e perfeita, que era antes da Paixão, como se tendo beijado as
Santíssimas Chagas, tivesse bebido nelas um elixir de juventude, que
anulou a ação do tempo e, mais ainda do que isto, anulou a ação da dor.
Também há oito dias que eu vi a descida do Espírito Santo, no dia de
Pentecostes, vi Maria “extraordinariamente bela, e de repente
rejuvenecida”, como escrevi, e como tinha escrito antes: “Ela parece um
anjo azul.” Os anjos não conhecem velhice. São eternamente belos com
eterna juventude, do eterno presente que é Deus e que eles refletem em si.
A juventude angélica de Maria, o anjo azul, se completa e atinge a
idade perfeita (idade que ela levou consigo para os céus, e que conservará
para sempre em seu santo corpo glorificado, quando o Espírito adorna a sua
esposa, coroando-a diante dos olhos de todos) Agora ela não está mais no
segredo de um quarto desconhecido pelo mundo, sendo testemunhada
apenas por um arcanjo.
Quis fazer esta digressão, porque me pareceu necessária. Agora volto à
descrição.
Maria, pois, tornou-se verdadeiramente “mulher”, cheia de dignidade e
de graça. Até seu sorriso é diferente, por sua doçura e majestade. Como é
bela!
27.2
José vem entrando. Parece que está vindo da cidade, porque está
entrando pela porta da casa, e não da oficina. Maria levanta a cabeça e sorri
para ele. José retribui ao sorriso dela. Mas parece que ele faz isso como
quem está cansado, preocupado. Maria observa isso. Depois, ela se levanta
para pegar o manto, que José está tirando, o dobra e o coloca sobre um baú.
José se assenta junto à mesa. Apóia um cotovelo sobre a mesa e a
cabeça sobre a palma da mão, enquanto com a outra mão, alisa a barba,
muito pensativo.
– Tens algum pensamento que te atormenta? –pergunta-lhe Maria–.
Posso te consolar?
– Tu me consolas sempre, Maria. Mas desta vez o meu grande
pensamento és… tu.
– Eu, José? O que é?
– Colocaram um edito sobre a porta da sinagoga. Está ordenado o
recenseamento de todos os palestinos. E é preciso que cada um vá
recensear-se em seu lugar de origem. Nós temos que ir a Belém…
27.3
– Oh! –interrompe Maria, pondo uma mão sobre o ventre.
– Isso te assusta, não é?
– Não, José. Não é isso. Penso nas Sagradas Escrituras[51]: Raquel, mãe
de Benjamim e mulher de Jacó, da qual nascerá a Estrela: o Salvador.
Raquel está sepultada em Belém, da qual está escrito: “E tu, Belém Efrata,
és a menor entre as terras de Judá, mas de ti sairá o Dominador.” É o
Dominador que foi prometido, da estirpe de Davi. Ele vai nascer lá…
– Achas… achas que já chegou o tempo? E, então, como faremos?
José está completamente perturbado. Ele olha para Maria com dois
olhos cheios de piedade.
Ela percebe isso, e sorri. Sorri, mais para si mesma, do que para ele. É
um sorriso que parece dizer: “É um homem justo, sim, mas um homem. E
vê as coisas como homem. Pensa como homem. Tem compaixão dele,
minha alma, e guia-o para que possa ver como homem espiritual.” Mas a
bondade de Maria a leva a tranqüilizá-lo. Não mente, porém afasta a sua
preocupação:
– Não sei, José. O tempo está muito perto. Mas não poderia o Senhor
fazê-lo chegar mais devagar, para te livrar dessa preocupação? Ele pode
tudo. Não tenhas medo.
– Mas, e a viagem? Depois, pensa só na multidão que se vai
aglomerar… Encontraremos bom alojamento? E poderemos fazer tudo, a
tempo de voltar? E se… se tivesses de dar à luz por lá, como é que
faríamos? Nós não temos casa em Belém… Não conhecemos ninguém lá…
– Não tenhas medo. Tudo irá sair bem. Deus faz que os animais
encontrem uma toca para darem cria. Queres que Ele não faça que achemos
um lugar para o nascimento do seu Messias? Nós confiamos Nele. Não é
verdade? Sempre confiamos Nele. Quanto mais forte é a provação, mais
confiamos. Como duas crianças, colocamos nossas mãos na Sua de Pai. Ele
nos guia. Estamos completamente entregues a Ele. Olha como nos conduziu
até aqui com amor. Um pai, por melhor que seja, não poderia tê-lo feito
com maior cuidado. Somos seus filhos e seus servos. Façamos a Sua
vontade. Nada de mal nos pode acontecer. Até mesmo esse edito é da
vontade Dele. Pois, afinal, quem é César? Apenas um instrumento de Deus.
Desde quando o Pai decidiu perdoar ao homem, Ele dispôs os fatos com
antecedência, para que o seu Cristo nascesse em Belém. Esta, a menor das
cidades de Judá, ainda não existia, e já a sua glória estava planejada. A fim
de que essa glória se realize, e a palavra de Deus não seja desmentida, com
o nascimento do Messias noutro lugar, bem longe daqui surgiu um
poderoso, que nos dominou, e que agora, que o mundo está em paz, quer
saber quantos são os seus súditos. Oh! O que é toda esta nossa pequena
fadiga, se pensarmos na beleza deste momento de paz? Pensa, José. Um
tempo em que não há ódio no mundo! Mas que pode ser ainda mais feliz, ao
surgir a “Estrela”, cuja luz é divina, e cujo influxo é redenção? Oh! Não
tenhas medo, José. Se as estradas são inseguras e a multidão de gente torna
difícil a nossa passagem, os anjos nos defenderão, e abrirão caminho para
nós. Não propriamente para nós, mas para o Rei deles. Se não encontramos
abrigo, eles nos farão uma tenda com suas asas. Nada nos acontecerá de
mal. Não pode acontecer: Deus está conosco.
27.4
José olha para ela, e a ouve extasiado. As rugas de sua fronte
parecem diminuir, e seu sorriso volta. Ele se levanta, já sem cansaço e sem
desânimo. Sorri.
– Bendita és tu, ó sol do meu espírito! Bendita és tu, que sabes ver tudo
através da graça, da qual estás cheia! Então, não percamos tempo. Pois é
preciso partir quanto antes e… voltar sem demora, porque aqui já está tudo
pronto para o… para o…
– Para o nosso Filho, José. Isso é o que deve ser aos olhos do mundo,
lembra-te bem disso! O Pai encobriu com mistério esta sua vinda, e nós não
devemos levantar o véu do mistério. Jesus fará isso, quando chegar a
hora…
A beleza do rosto, do olhar, da expressão e da voz de Maria, quando
pronuncia o nome de “Jesus”, é indescritível. É em êxtase. E, com este
êxtase, cessa a visão.

Maria diz:
27.5

– Não acrescento mais coisas, porque as minhas palavras já são


ensinamento.
Mas quero chamar a atenção das mulheres para um ponto. Muitas
uniões se transformam em desuniões por culpa das mulheres, que não têm
aquele amor que é tudo: gentileza, piedade, atenção para com o marido.
Sobre o homem não pesam os sofrimentos físicos que pesam sobre a
mulher. Mas sobre ele pesam todas as preocupações morais: necessidade de
trabalho, as decisões a serem tomadas, a responsabilidade diante dos
poderes constituídos e da própria família… Oh! quantas coisas pesam sobre
o homem! E quanto precisa também ele de conforto! Pois bem, o egoísmo
chega a tal ponto que ao marido cansado, desanimado, humilhado e
preocupado, a mulher ainda lhe acrescenta o peso de suas lamentações
inúteis e, às vezes, até injustas! Tudo isso, porque ela é egoísta, não ama.
Amar não é satisfazer-nos a nós mesmos, buscando a sensualidade e
outras vantagens. Amar é contentar a quem amamos, acima daquelas coisas
dos sentidos, que gostaríamos de ter e usar, dando ao espírito da pessoa que
amamos aquela ajuda de que ela tem necessidade, a fim de que sempre
possa ter as suas asas abertas, para voar pelos céus da esperança e da paz.
27.6
Outro ponto sobre o qual chamo de novo a atenção. Já falei dele. Mas
eu insisto: é a confiança em Deus.
A confiança resume as virtudes teologais. Quem tem confiança dá sinal
de que tem fé. Quem tem confiança, dá sinal de que espera. Quem tem
confiança, mostra que ama. Quando alguém ama, espera e crê em uma
pessoa, tem confiança. Do contrário, não. Deus merece esta nossa
confiança. Se a damos aos pobres homens capazes de falhar, por que a
negamos a Deus que não falha nunca?
A confiança é também humildade. O soberbo diz: “Eu mesmo faço.
Não confio nele, porque ele é um incapaz, um mentiroso, um violento…”
Mas o humilde diz: “Eu confio. Por que não haveria de confiar? Por que
haverei de pensar que sou melhor do que ele?” E, com maior razão, é assim
que ele fala de Deus: “Por que haverei de não confiar Naquele que é bom?
Por que deverei pensar que sou capaz de fazer tudo, eu mesmo?” Deus ao
humilde se doa. Mas se afasta de quem é soberbo.
A confiança é também obediência. Deus ama o obediente. A obediência
é sinal de que nós nos reconhecemos filhos Dele e que O reconhecemos
como nosso Pai. Ora, um pai não pode deixar de amar, quando é verdadeiro
pai. Deus para nós é Pai verdadeiro e Pai perfeito.
27.7
Sobre um terceiro ponto eu quero que medites. Está também
fundamentado na confiança.
Nenhum acontecimento pode suceder, se Deus não o permitir. És tu
poderoso? Assim és, porque Deus o permitiu. És tu súdito? Assim és
porque Deus o permitiu. Procura, pois, ó poderoso, não fazer deste teu
poder o teu mal. Seria sempre “teu mal” mesmo quando, a princípio, parece
ser um mal para os outros. Porque, se Deus permite, não o permite além de
certos limites, e, se passas desses limites, Deus te fere e te esmaga. Procura,
então, ó súdito, fazer desta tua condição um ímã para atrair sobre ti a
proteção celeste. Não maldigas nunca. Deixa os cuidados a Deus. Ele, que é
o Senhor de todos, pode abençoar e amaldiçoar as suas criaturas.
Vai em paz.
[51] Sagradas Escrituras, por exemplo: Génesis 35,16-20; 48,7; Números 24,17; Miqueias 5,1. O sepulcro de Raquel em 73.1.
28. A chegada a Belém.
5 de junho de 1944.
28.1
Vejo uma estrada mestra. Nela há muita gente. Também burrinhos
que vão carregando utensílios domésticos e pessoas. Burrinhos que voltam.
As pessoas esporam suas cavalgaduras, e quem vai a pé anda depressa,
porque está fazendo frio.
O ar está limpo e seco, e o céu sereno, mas no ar há um ventinho
cortante, característico do pleno inverno. O campo, depois das colheitas,
parece mais vasto, os pastos estão com a erva baixa e tostada pelos ventos
do inverno; por eles as ovelhas procuram um pouco de alimento e buscam
os raios do sol surgindo, pouco a pouco. Elas estão muito juntas umas das
outras, porque também estão com frio e balem, levantando o focinho e
olhando para o sol, como se lhe quisessem dizer: “Vem logo, que está
fazendo frio!” O terreno é cheio de ondulações, que vão se tornando cada
vez mais nítidas. Na verdade, este é um lugar de colinas. Aqui há vales
cheios de árvores e de encostas, há pequenos vales e morros. A estrada
passa pelo meio, e se dirige para sudeste.
Maria está sobre um burrinho cinzento. Está toda enrolada no pesado
manto. Na dianteira da sela está aquele instrumento, já visto na viagem para
Hebron, e por cima, está o baú com as coisas mais essenciais.
José vai caminhando, ao lado do burrinho de Maria, segurando a rédea.
– Estás cansada? –pergunta ele de vez em quando.
Maria olha para ele, sorrindo, e diz:
– Não.
Mas, na terceira vez, ela acrescenta:
– Tu, sim, que estás caminhando, é que deves estar cansado.
– Oh! Eu? Para mim isso não é nada. O que penso é que se eu tivesse
achado um outro jumento, podias estar com mais comodidade e andar um
pouco mais. Mas eu não achei. Agora todos estão precisando de
cavalgaduras. Tem coragem! Daqui a pouco, estaremos em Belém. Atrás
daquele monte está Efrata.
Calam-se. A virgem, quando não está falando, parece recolher-se em
uma oração interior. Sorri, com um sorriso manso, por algum pensamento
passageiro e, olhando as pessoas, parece não as estar vendo, isto é, não as
distingue, se trata-se de um homem, uma mulher, um velho, um pastor, um
rico ou um pobre. O que ela vê são só pessoas.
– Estás com frio? –pergunta José, porque o vento começa a soprar.
– Não, obrigada.
Mas José não se fia no que ela diz. Toca com as mãos os pés dela, que
vão pendurados aos lados do burrinho, calçados com sandálias, e que mal se
vêem apontar por debaixo da longa veste. A José eles devem estar
parecendo frios, porque ele sacode a cabeça, pega numa coberta que ia
levando a tiracolo e com ela envolve as pernas de Maria. Ele a estende
também sobre o regaço, de maneira que as mãos dela fiquem bem quentes
por debaixo da coberta e do manto.
28.2
Encontram-se com um pastor, que está atravessando a estrada com o
seu rebanho, passando do pasto da direita para a esquerda. José se inclina
para dizer-lhe alguma coisa. O pastor responde que sim. José pára o
burrinho, e depois o vai puxando pelo pasto, atrás do rebanho. O pastor
apanha uma tosca escudela de um alforje e, depois de tirar o leite de uma
ovelha grande, que está com as tetas cheias, o dá na escudela a José, que o
oferece a Maria.
– Deus vos abençoe aos dois –diz Maria–. A ti pelo teu amor, e a ti pela
tua bondade. Eu rezarei por ti.
– Estais vindo de longe?
– De Nazaré –responde José.
– E para onde ides?
– Para Belém.
– É uma viagem longa para uma mulher nesse estado. É tua esposa?
– É minha esposa.
– Já têm lugar onde ficar em Belém?
– Não.
– A coisa está feia! Belém está cheia de gente vinda de toda parte, para
o recenseamento ou de passagem para outro lugar. Não sei se encontrareis
alojamento. Tens conhecimento do lugar?
– Não muito.
– Pois bem… eu vou te ensinar… por causa dela (e acena para Maria).
Procura o albergue. Ele deve estar cheio. Mas eu falo nele somente para que
vos sirva como ponto de referência. Ele fica numa praça, a maior praça da
cidade. Vai-se até lá por esta estrada mestra. Não há engano. O albergue tem
uma fonte na frente, e é largo e baixo, com um grande portão. Ele estará
cheio. Mas, se não encontrardes lugar no albergue nem nas casas, dai a
volta por detrás do albergue, para o rumo do campo. No monte há
estrebarias, que às vezes servem para os mercadores que vão a Jerusalém e
deixam lá seus animais, quando não acham lugar no albergue. São
estrebarias, entendeis? Estão no monte e são úmidas, frias e sem porta. Mas
sempre são um refúgio, pois a mulher não pode ficar pela estrada. Talvez lá
encontreis um lugar… e feno para se poder dormir e também para o
jumento. E que Deus vos acompanhe.
– E Deus te dê alegria –responde Maria.
José por sua vez responde:
– A paz esteja contigo.
28.3
Retomam a estrada. Um vale bem maior se faz ver do alto do morro
que acabam de galgar. No vale, para cima e para baixo, pelos declives
suaves que o circundam, aparecem casas e mais casas. É Belém.
– Eis-nos, afinal, na terra de Davi, Maria. Agora descansarás, pois me
pareces tão cansada…
– Não. Eu pensava… estou pensando…
Maria agarra a mão de José e lhe diz com um alegre sorriso:
– Acho que o tempo chegou mesmo!
– Deus de misericórdia! Como vamos fazer?
– Não tenhas medo, José. Procura ficar firme. Não vês como eu estou
calma?
– Mas estás sofrendo muito.
– Oh! não. Estou cheia de alegria. Uma alegria tal, e tão forte, tão bela,
tão incontrolável, que o meu coração está batendo forte, e me está dizendo:
“Ele está nascendo! Ele está nascendo!” A cada batida, ele diz isso. É o
meu Menino, que está batendo à porta do meu coração, e está dizendo:
“mamãe, eu estou aqui e vim te dar o beijo de Deus.” Oh! Que alegria meu
José!
Mas José não se sente invadido por aquela alegria dela. Ele está
pensando na necessidade urgente de encontrar um abrigo, e aperta o passo.
De porta em porta, vai pedindo um abrigo. Nada. Tudo ocupado. Chegam
ao albergue. Está cheio, até por baixo dos pórticos rústicos, que circundam
o grande pátio interno, com gente que acampou por ali.
José deixa Maria sobre o burrinho, dentro do pátio, e sai procurando
pelas outras casas. Volta desanimado. Não se acha nada. O rápido escurecer
deste tempo de inverno já começa a se estender sobre a terra. José vai
suplicar ao albergador. Suplica aos viajantes, e lhes diz que eles são homens
e estão com saúde, e que aqui há uma mulher que está para dar à luz um
filho, e que eles tenham piedade. Mas nada.
Neste lugar está também um rico fariseu, que olha para José e Maria
com um manifesto desprezo e, quando Maria se aproxima dele, ele se
desvia dela, como se estivesse chegando perto uma leprosa. José olha para
ele, e um rubor de desdém lhe sobe ao rosto. Maria pousa a mão sobre o
pulso de José, para acalmá-lo, e lhe diz:
– Não insistas! Vamos. Deus providenciará.
28.4
Saem e vão acompanhando o muro do albergue. Dobram para uma
estradinha encaixada entre o muro e uns casebres. Andam por detrás do
albergue. Procuram. Acham umas grutas parecidas com umas adegas mais
que uns estábulos de tão baixas e úmidas que são. As mais bonitas já estão
ocupadas. José sente-se prostrado.
– Escuta, ó galileu! –grita-lhe um velho que vem vindo por detrás–. Lá
no fundo, por baixo daquele desmoronamento, existe uma toca. Quem sabe
ninguém a tenha ocupado ainda.
Eles se apressam para chegarem àquela “toca.” É mesmo uma toca. Por
entre os escombros da construção em ruína, há uma abertura depois da qual
aparece uma gruta, que nada mais é do que uma escavação feita no monte.
Parecem ser os fundamentos de antiga construção que ficaram servindo de
teto aos entulhos escorados por troncos de árvores.
Para ver melhor, pois no lugar há muito pouca luz, José pega a isca e o
fuzil e acende uma lampadinha, que ele tira do alforje, trazido por ele a
tiracolo. Entra e é saudado por um mugido.
– Vem, Maria. Está vazia. Aí dentro há somente um boi.
José sorri e diz:
– É melhor do que nada.
28.5
Maria apeia do burrinho e entra.
José pendurou a lampadinha em um prego fincado em um dos troncos
que estão ali como escoras. Por todos os lados a gruta está cheia de teias de
aranha. O solo é de terra batida e todo cheio de buracos, de pedrinhas, de
detritos, excrementos e coberto com fragmentos de palha. Lá no fundo, o
boi se vira e fica olhando com seus olhos mansos, enquanto o feno está
pendente de seus beiços. Dentro da gruta há também um assento rústico e
duas pedras a um canto, perto de uma fresta. A cor enegrecida daquele
canto nos diz que lá dentro se costuma acender fogo.
Maria se aproxima do boi. Ela está com frio. Põe as mãos no pescoço
do boi, para sentir a temperatura. O boi muge, e deixa-se ser tocado. Parece
estar compreendendo. Mesmo quando José o afasta dali para tirar mais feno
da manjedoura e fazer uma cama para Maria. A manjedoura é dupla isto é,
onde o boi come e, mais acima, numa espécie de prateleira está outro feno
de reserva. José apanha um punhado deste feno. O boi o deixa fazer tudo
isso. José arranja um lugar também para o burrinho que, cansado e com
fome, logo se põe a comer.
José descobre por ali também um cântaro emborcado e todo amassado.
Sai com este cântaro porque lá fora já descobriu um riacho. Volta trazendo
água para o burrinho. Depois, apanha um feixe de ramos que está posto
num canto, procura varrer um pouco o chão. Em seguida, estende o feno.
Faz com ele uma enxerga, perto do boi, no canto que está mais enxuto e
resguardado. Mas percebe que o feno está úmido, e dá um suspiro. Passa,
então, a procurar acender o fogo e, com uma paciência de Jó, vai
enxugando o feno, aos punhados, conservando-o perto da fonte de calor.
Maria, sentada no banco, está cansada e olha sorrindo. Está tudo
pronto. Maria se acomoda melhor sobre o feno fofo, com as costas apoiadas
em um tronco, José completa… as alfaias, estendendo o seu manto como
uma cortina sobre a abertura que serve de porta. É um resguardo muito
precário. Depois, oferece pão e queijo à virgem, e lhe dá água de um cantil
para beber.
– Dorme agora –lhe diz ele–. Eu ficarei acordado para não deixar o
fogo apagar. Por sorte, temos ainda lenha; esperemos que ela dure e seja
boa para o fogo. Assim poderemos economizar azeite para a candeia.
Maria se estende, obediente. José a cobre com o manto da própria
Maria e com a coberta que ele havia posto sobre os pés dela.
– Mas tu… ficarás com frio, tu.
– Não, Maria. Eu estou perto do fogo. Procura descansar. Amanhã tudo
será melhor.
Maria fecha os olhos sem insistir. José se acomoda em seu canto, sobre
o banco, com uns gravetos ao lado. São poucos. Não creio que durem para
muito tempo.
Na gruta estão colocados assim: Maria à direita, com as costas para a
porta, meio escondida pelo tronco e pelo corpo do boi, que está deitado
sobre um estrado de palha. José está à esquerda, virado para a porta,
portanto em diagonal, tendo o rosto voltado para o fogo, e as costas para
Maria. Mas ele, de vez em quando, se vira para olhar para ela, e a vê quieta,
como se estivesse dormindo. José vai quebrando devagar os seus gravetos,
jogando, um por um, sobre o pequeno fogo, a fim de que não se apague,
para que produza alguma luz e para que a lenha dure mais. Não se vê mais
do que uma claridade, ora mais viva, ora mais fraca, vinda do fogo, que está
se apagando, e naquela penumbra, só se destaca mesmo a brancura do boi,
do rosto e das mãos de José. Tudo o mais é apenas uma massa confusa
dentro da pesada penumbra.

– Não há ditado –diz Maria–. A visão fala por si mesma. A vós


28.6

compete compreender a lição de caridade, humildade e pureza que emana


dela. Descansa. Descansa velando, como eu velava, esperando Jesus. Ele
virá trazer-te a Sua paz.
29. Nascimento de Jesus. Eficácia salvífica
da divina maternidade de Maria.
6 de junho de 1944.
29.1
Vejo ainda o interior deste pobre refúgio rochoso, onde José e Maria
encontraram o abrigo que compartilham com animais.
Um pequeno fogo está cochilando junto ao seu guardião. Maria levanta
um pouco a cabeça da enxerga, e olha. Vê José com a cabeça inclinada
sobre o peito, como se estivesse pensando, e ela também acha que o
cansaço deva ter vencido a sua boa vontade em ficar acordado todo o
tempo. Maria sorri com um sorriso cheio de bondade e, fazendo menos
barulho do que pode fazer uma borboleta ao pousar sobre uma rosa, se põe
sentada e, depois de sentada, se põe de joelhos. Reza com um sorriso feliz
em seu rosto. Reza de braços abertos, não propriamente cruzados, mas
quase, e com as palmas viradas para o alto e para a frente. Nem parece ficar
cansada naquela penosa posição. Depois, se prostra com o rosto contra o
feno, em uma oração ainda mais intensa. É uma longa oração.
José desperta. Vê que o fogo está quase apagado e a gruta está ficando
escura. Joga um punhado de gravetos bem finos, e a chama se ergue de
novo; procura depois uns galhos mais grossos, porque o frio deve ser de
gelar. É o frio da noite serena de inverno, que entra por todos os lados da
gruta. O pobre José, perto da porta (chamamos assim de porta a abertura
sobre a qual está estendido seu manto) deve estar se enregelando. Ele
aproxima as mãos da chama, desata as sandálias, aproxima também os pés.
Procura aquecer-se. E, quando o fogo já está bem vivo, sua luz firme, vira
as costas. Mas agora não vê nada, nem mesmo a brancura do véu de Maria,
que antes formava uma linha clara sobre o feno escuro. Põe-se de pé e,
lentamente, vai-se aproximando da enxerga.
– Não estás dormindo, Maria? –ele pergunta.
Faz a mesma pergunta três vezes, até que Maria estremece, e lhe
responde:
– Estou rezando.
– Não estás precisando de nada?
– Não, José.
– Procura dormir um pouco. Ou, pelo menos, descansar.
– Vou procurar. Mas rezar não me cansa.
– Até logo, Maria.
– Até logo, José.
Maria volta à sua posição. José, para não cair de novo no sono, põe-se
de joelhos perto do fogo, e reza. Reza apertando as mãos sobre o rosto.
Tira-as, cada vez que precisa alimentar o fogo, voltando à sua fervorosa
oração. Com exceção do barulho da lenha que crepita no fogo e o do
burrinho que, de vez em quando, bate um casco no chão, não se ouve mais
nada.
29.2
Um pouco de luar está entrando por uma fenda do teto, e parece a
lâmina de alguma prata imaterial, que vai-se aproximando de Maria. A
lâmina vai-se alongando, à medida que a lua vai ficando mais alta no céu e,
finalmente a alcança. Agora, já está sobre a cabeça da orante, ornando-a
com uma auréola de luz.
Maria levanta a cabeça, como se tivesse sido chamada por uma voz do
céu, e se põe de novo de joelhos. Oh! Como é belo aqui. Maria ergue de
novo a cabeça, que parece estar brilhando, à luz branca da lua, e um sorriso
não humano a transfigura. Que é que ela estará vendo? Que estará ouvindo?
Que estará experimentando? Somente Ela poderia dizer o que está vendo,
ouvindo e o que experimentou na hora esplendorosa de sua maternidade. Eu
vejo apenas a luz crescendo sempre mais, ao redor dela. Parece descer do
Céu, saindo das pobres coisas que estão ao redor, e parece emanar dela
mesma, ainda mais.
Sua veste, de um azul escuro, parece agora de um suave celeste de
miosótis. Suas mãos e seu rosto parecem ficar de um azul muito delicado,
como os de alguém que fosse colocado sob o foco de uma imensa safira
clara. Esta cor, ainda mais tênue, me faz lembrar as cores das minhas visões
do santo Paraíso, e também a cor da chegada dos Magos, uma cor que vai-
se difundindo sobre as coisas e as vestes, purificando tudo, e tornando-as
resplandecentes.
A luz, que se desprende sempre mais do corpo de Maria, absorve a luz
da lua, e parece que ela atraia a si toda a luz do Céu. Agora ela é a
depositária da Luz. É ela que deve dar esta Luz ao mundo. E esta Luz
beatífica, incontrolável, imensurável, eterna e divina, está para ser dada, e
se anuncia como uma luz de aurora crescendo, um coro de átomos
aumentando, a maré subindo, a nuvem do incenso espalhando-se, para
descer depois como uma enchente e estender-se como um véu…
O teto, cheio de fendas, teias de aranha, entulhos que em cima se
estendem para a frente, estão em equilíbrio por um milagre da estática, esse
teto que antes era tão enegrecido, enfumaçado e repelente, está parecendo
agora o teto de uma sala real. Cada uma das grandes pedras é um bloco de
prata, cada fenda é um lampejar de opalas, cada teia de aranha é um
baldaquim precioso, confeccionado com prata e diamantes. Uma lagartixa
grande e verde, que está dormindo em letargia entre duas pedras, parece um
colar de esmeraldas esquecido por alguma rainha. Um cacho de morcegos,
também em letargia, parece um precioso lampadário de ônix. O feno, que
está na manjedoura de cima, já não é mais uma erva: são fios e mais fios de
prata pura, que tremulam no ar com a graça de uma cabeleira solta.
A manjedoura de baixo está com sua madeira de cor escura
transformada em bloco de prata brunida. As paredes estão cobertas de um
brocado no qual a alvura da seda desaparece sob o bordado opalino do
relevo, e o solo… o que é o solo agora? É um cristal que possui luz branca
acesa em si mesmo. As saliências são como rosas de luz projetadas em
homenagem ao solo; e os próprios buracos são vasos preciosos, de onde
devem emanar aromas e perfumes.
29.3
A luz vai-se tornando cada vez mais forte. Ela fica insuportável para
a vista. A virgem desaparece nela, como se estivesse sendo absorvida por
um véu incandescente… e dele surge a mãe.
Sim. Quando a luz volta a ser suportável aos meus olhos, vejo Maria
com o Filho recém-nascido nos braços. Um pequenino, todo róseo e
gorducho, que agita os braços e esperneia. Tem as mãozinhas do tamanho
de botões de rosa e seus pezinhos caberiam na corola de uma rosa. Ele solta
vagidos com sua vozinha trêmula, como a de um cordeirinho que acaba de
nascer, abrindo a boquinha, que mais parece um moranguinho selvagem, e
mostrando a linguinha que bate repetidamente contra o véu palatino. Move
a cabecinha loira, que me parece quase sem cabelos, essa cabecinha
redonda que a mamãe sustenta na palma de sua mão, enquanto olha o
Menino e o adora, chorando e rindo ao mesmo tempo, e se inclina para
beijá-lo não em sua cabecinha, mas em seu peito, onde está batendo seu
coraçãozinho, batendo por nós… é nesse coração em que um dia haverá
uma ferida. E Maria, com antecipação, já medica tal ferida, com seu beijo
imaculado de mãe.
O boi, despertado pela claridade, levanta-se, fazendo um grande
barulho com seus cascos, e muge, enquanto o burrinho vira a cabeça e urra.
É a luz que os desperta, mas eu gosto de pensar que eles quiseram saudar o
seu Criador, por si mesmos, mas também por todos os animais.
29.4
Também José que, quase extasiado, estava rezando de um modo tão
recolhido, que nem notou o que estava acontecendo ao redor, volta a si da
oração, vendo filtrar-se aquela estranha luz entre os dedos das mãos, que
estão unidas sobre o rosto. Tira, então, as mãos do rosto, levanta a cabeça e
se vira para trás. O boi, que agora se pôs de pé, está escondendo Maria. Mas
ela diz:
– José, vem cá.
José se aproxima dela. E, ao ver, pára dominado por um sentimento de
reverência, e está para cair de joelhos lá mesmo no lugar em que está. Mas
Maria insiste, dizendo:
– Vem cá, José –e, firmando a mão esquerda sobre o feno, com a direita
ela segura apertado contra o seu coração o Menino. Levanta-se então, indo
ao encontro de José, que caminha tropegamente, embaraçado pelo contraste
do seu desejo de aproximar-se e o temor de ser irreverente.
Aos pés do catre, os dois esposos se encontram e olham um para o
outro, num só e feliz pranto.
– Vem, vamos oferecer Jesus ao Pai –diz Maria.
Enquanto José se ajoelha, ela se põe de pé entre dois troncos que
sustentam o teto, levanta o Filho em seus braços, e diz:
– Eis-me aqui, Senhor. Por Ele, ó Deus, eu te digo esta palavra. Eis-me
aqui para fazer a tua vontade. Com Ele estamos eu, Maria, e José, meu
esposo. Eis-nos aqui, teus servos, Senhor! A tua vontade seja feita sempre
por nós, em toda hora e em todos os acontecimentos, para a tua glória e pelo
teu amor.
Depois, Maria se inclina e diz:
– Toma-o, José –oferecendo-lhe o Menino.
– Eu? Tu o entregas a mim? Oh! não! Eu não sou digno.
José está completamente apavorado, e se sente aniquilado, só diante da
idéia de ter que tocar em Deus.
Mas Maria insiste com ele, sorrindo:
– Tu és bem digno disso, sim. Ninguém mais do que tu. Por isso é que o
Altíssimo te escolheu. Toma-o, José, e segura-o, enquanto eu vou buscar as
roupinhas.
José, vermelho como escarlate, estende os braços e pega aquele
embrulhinho de carne que está gritando de frio e, quando já está com ele
nos braços, não se deixa mais levar pela vontade de tê-lo afastado do seu
corpo pelo respeito, mas o aperta ao coração, dizendo numa grande
explosão de pranto:
– Ó Senhor! Ó meu Deus!
Ao inclinar-se para beijar-lhe os pezinhos, percebe que eles estão frios
e, então, senta-se no chão e o põe em seu colo procurando cobri-Lo com a
veste marrom e as mãos, aquecendo-O e defendendo-O do vento frio da
noite. Ele bem que gostaria de ir para perto do fogo, mas passa por lá aquela
corrente de ar da entrada. É melhor ficar por aqui mesmo. É melhor, aliás,
ficar entre os animais, que servem de escudo contra o ar, e que produzem
calor. Assim pensando, coloca-se entre o boi e o jumento, com as costas
para a porta, inclinando-se sobre o Recém-Nascido, fazendo do seu peito
um nicho, cujas paredes laterais são: uma cabeça cinzenta com longas
orelhas e um grande focinho branco, com um nariz que solta vapor quente,
e olhos úmidos, cheios de bondade.
29.5
Maria abriu o baú, tirando linhos e cueiros. Depois foi para perto do
fogo, e aqueceu os panos. Vai então a José, envolvendo o Menino naqueles
tecidos mornos e no seu véu para proteger-lhe a cabecinha.
– Onde vamos colocá-lo agora? –ela pergunta.
José está olhando ao redor, pensativo…
– Espera! –diz ele–. Vamos afastar um pouco os animais e o feno deles.
Depois jogamos para baixo aquele feno que está no alto colocando-o aqui
dentro. A madeira da beirada protegerá o Menino do ar frio, o feno lhe
servirá de travesseiro, e o boi com o seu hálito o aquecerá um pouco. Para
isso, é melhor o boi. Ele é mais paciente e sossegado.
José põe mãos à obra, enquanto Maria nina o seu Menino, apertando-o
ao coração, conservando sua face sobre a cabecinha para dar-lhe mais
algum calor.
José atiça o fogo, sem economizar mais a lenha, para conseguir uma
boa chama, esquentar o feno, e à medida que o feno se enxuga ele o coloca
no peito, para que não se esfrie. Depois, quando já apanhou o bastante para
fazer um colchãozinho para o Menino, vai até a manjedoura e o põe, de
modo a tomar a forma de um pequeno berço.
– Está pronto! –diz ele–. Agora precisaríamos de uma coberta, para
cobrir o Menino, pois o frio está forte…
– Toma o meu manto –diz Maria.
– Mas tu ficarás com frio.
– Oh! Não faz mal! O cobertor é áspero demais. O manto é macio e
quente. Eu não tenho frio algum. Mas quero que Ele não sofra mais!
José pega, então o grande manto de lã macia, de cor azul clara, e o
coloca dobrado sobre o feno, com uma beirada que fica pendurada para fora
da manjedoura. Assim, o primeiro leito do Salvador ficou pronto.
E a mãe o leva, com passos cheios de graça e doçura, a fim de colocá-
Lo na manjedoura cobrindo-O com a beirada do manto, que ajeita também
ao redor da cabecinha descoberta, que começou a afundar-se no feno, e
estava protegida apenas pelo leve véu de Maria, contra esta aspereza.
Permanece descoberto somente o rostinho do tamanho do punho, e os dois,
inclinados sobre a manjedoura, o ficam olhando felizes, enquanto ele dorme
o seu primeiro sono, porque o calor bom dos cueiros e do feno lhe acalmou
o choro, e o doce Jesus conciliou o sono.

29.6
Maria diz:
– Eu te havia prometido que Ele te traria a paz. Estás lembrada da paz
que havia em ti nos dias do Natal? De quando me vias com o meu Menino?
Aquele era o teu tempo de paz. Agora é o teu tempo de sofrimento. Mas tu
o sabes. É no sofrimento que se conquista a paz e toda graça para nós e o
próximo. Jesus-Homem revelou-se Jesus-Deus, depois do tremendo
sofrimento da Paixão. Revelou-se como a Paz. Paz no Céu, do qual Ele
tinha vindo, derramada sobre aqueles que no mundo o amam. Mas, nas
horas da paixão, Ele, a Paz do mundo, foi privado dela. Não teria sofrido, se
tivesse tido a paz. Mas devia sofrer. Sofrer de modo completo.
29.7
Eu, Maria, redimi a mulher com a minha maternidade divina. Mas
isso não foi mais que o início da redenção da mulher. Negando-me a
quaisquer esponsais pelo voto de virgindade, eu tinha rejeitado todo prazer
de concupiscência, e merecido a graça de Deus. Isso, porém ainda não
bastava. Porque o pecado de Eva era uma árvore de quatro ramos: soberba,
avareza, gula e luxúria. Todos os quatro deviam ser cortados, a fim de
esterilizar a árvore desde as raízes.
29.8
Humilhando-me profundamente, eu venci a soberba.
Humilhei-me diante de todos. Não estou falando da minha humildade
para com Deus. Esta é devida ao Altíssimo por toda criatura. O Verbo de
Deus a teve. Eu, uma mulher, a devia ter. Mas terás já refletido por quantas
humilhações da parte dos homens eu tive que passar, sem me defender de
modo nenhum? Até José, que era justo, me havia acusado em seu coração.
Os outros, que não eram justos, tinham pecado por murmuração a respeito
do meu estado, e o barulho dessas palavras veio, como uma onda amarga,
quebrar-se contra a minha natureza humana.
Foram estas as primeiras das infinitas humilhações que a minha vida,
como mãe de Jesus e do genero humano, me fizeram sofrer. Humilhações
de pobreza, humilhações de uma fugitiva, humilhações pelas censuras dos
parentes e amigos que, não sabendo a verdade, julgavam fraco o meu modo
de ser mãe para com o meu Jesus, quando Ele se tornou jovem.
Humilhações durante os três anos do seu ministério, humilhações cruéis na
hora do Calvário, humilhações até em ter que reconhecer que eu não tinha
com que comprar o lugar e os aromas, para a sepultura do meu Filho.
29.9
Eu venci a avareza dos Progenitores, renunciando antecipadamente
ao meu Filho.
Uma mãe não renuncia nunca ao seu filho, a não ser que seja forçada.
Se essa renúncia for solicitada ao seu coração pela Pátria, pelo amor de uma
esposa, ou até pelo próprio Deus, ela sente o desejo de insurgir-se contra a
separação. É natural. O filho cresce em nosso ventre, e nunca é
completamente cortada a ligação que sua pessoa tem com a nossa. Mesmo
depois de cortado o canal vital que é o cordão umbilical, sempre fica um elo
espiritual, que nasce no coração da mãe, mais vivo e sensível do que um elo
físico, o qual se introduz no coração do filho, esticando até à dor, se o amor
de Deus, de uma criatura, da Pátria afasta o filho da própria mãe. Este elo se
despedaça, dilacerando o coração, se a morte arrebata o filho de sua mãe.
Eu renunciei ao meu Filho, desde o momento em que O tive. Dei-O a
Deus. Dei-O a vós. Eu me despojei do Fruto do meu ventre, para reparar o
furto cometido por Eva, do fruto de Deus.
29.10
Eu venci a gula, tanto do saber como do gozar, aceitando saber
unicamente o que Deus queria que eu soubesse, sem perguntar a mim
mesma nem a Ele nada mais, além do que foi dito. Acreditei sem investigar.
Venci a gula do gozar, porque neguei a mim mesma todo sabor de
sensualidade. Pus minha carne debaixo dos meus pés. Confinei a carne,
instrumento de satanás, colocando satanás debaixo de meu calcanhar, a fim
de fazer da carne um degrau para aproximar-me do Céu. O Céu! Ele era a
minha meta. Era lá que estava Deus. Deus, a minha única fome. Fome esta
que não é gula, mas sim, necessidade abençoada por Ele, o qual quer que a
tenhamos.
29.11
Eu venci a luxúria, que é a gula, convertida em voracidade, porque
todo vício não contido conduz a um vício maior. A gula de Eva, além de
reprovável em si mesma, a conduziu à luxúria. Não lhe bastou procurar a
satisfação sozinha. Quis levar o seu delito até uma refinada intensidade,
conhecendo e se fazendo mestra de luxúria para o companheiro. Eu inverti
os termos e, em lugar de descer, sempre subi. Em lugar de fazer descer, eu
sempre atraí para o alto, e do meu companheiro, um homem honesto fiz um
anjo.
Agora que eu possuía Deus, e com Ele as Suas riquezas infinitas,
apressei-me a despojar-me delas, dizendo: “Que seja feita a tua vontade
para Ele e por Ele”. Casto é aquele que se auto contém, não só na carne,
mas também nos afetos e nos pensamentos. Eu devia ser a casta, para anular
a impudica da carne, do coração e da mente. Não saí da minha reserva, para
dizer a respeito do meu único Filho na terra e único Filho de Deus no Céu:
“Ele é meu, e eu O quero.”
29.12
Contudo, isso não bastava para obter para a mulher, a paz perdida
por Eva. Aquela paz eu vo-la obtive aos pés da Cruz. Ao ver morrer Aquele
que tu viste nascer. Ao sentir minhas entranhas sendo arrancadas, ao grito
do meu Filho que estava morrendo, fiquei vazia de todo feminismo: não
mais carne, mas anjo. Maria, a virgem desposada com o Espírito, morreu
naquele momento. Ficou a mãe da graça, aquela que do seu tormento gerou
e vos deu a graça a Graça. O gênero da mulher que eu tinha voltado a
consagrar na noite de Natal, aos pés da Cruz conseguiu se tornar criatura
dos Céus.
Fiz isso por vós, negando-me qualquer satisfação, ainda que santa. Eu
fiz de vós, se o desejais, santas de Deus, vós que fostes reduzidas por Eva a
fêmeas não superiores às companheiras dos animais. Por vós eu subi. Como
fiz com José, eu vos levei para o alto. A rocha do calvário é o meu Monte
das Oliveiras. Foi dali que eu tomei o impulso para levar a alma da mulher
aos céus, de novo santificada, junto com minha carne glorificada, por ter
trazido o Verbo de Deus, e anulado em mim todo vestígio de Eva. Ela foi a
última raiz daquela árvore dos quatro ramos venenosos, com a raiz fincada
na sensualidade, que arrastou a humanidade à queda e que haverá de morder
as vossas entranhas, até ao fim dos séculos, até à última mulher. De lá, de
onde agora eu brilho no raio do Amor, eu vos chamo, e vos indico o
remédio para vós vencerdes a vós mesmas: a graça do meu Senhor e o
sangue do meu Filho.
E tu, minha porta-voz, repousa a tua alma na luz desta aurora de
29.13

Jesus, a fim de que tenhas força para as futuras crucificações, que não
te serão poupadas, porque te queremos aqui, para onde se vem através da
dor; e para tão mais alto se vem, quanto mais se suporta o sofrimento, a fim
de obter graça para o mundo.
Vai em paz. Eu estou contigo”.
30. O anúncio aos pastores, que se tornam
os primeiros adoradores do Verbo feito homem.
7 de junho de 1944. Vigília de Corpus Christi.
[…].
30.1
Mais tarde, vejo um extenso campo. A lua está no zênite e navega
mansamente por um céu apinhado de estrelas. Parecem broches de
diamantes fincados em um enorme baldaquim de veludo azul escuro; a lua,
ali no meio, sorri com sua cara toda branca, da qual descem rios de uma luz
leitosa, que torna branca também a terra. As árvores, sem folhas, parecem
mais altas e escuras, sobre um solo esbranquiçado, enquanto os pequenos
muros, que vão surgindo aqui e ali, parecem cor de leite, e uma casinha, que
se vê ao longe, parece um bloco de mármore de Carrara.
À minha direita, vejo um lugar cercado por uma sebe de espinheiros e
um muro baixo ao lado de outros dois. Este muro sustenta o teto de uma
espécie de alpendre largo e baixo, que, na parte interna do recinto está
construído: uma parte com paredes, e outra com madeira, de modo que, no
verão, as partes em madeira possam ser removidas, transformando-se o
alpendre em um grande pórtico. Desse pórtico fechado, sai, de vez em
quando um balir intermitente e curto. Devem ser ovelhinhas que estão
sonhando, ou talvez achando que já esteja próximo o dia, pela claridade da
lua. Uma claridade excessiva, tal é a intensidade, está crescendo, como se o
satélite estivesse se aproximando da terra, ou brilhando por algum
misterioso incêndio.
30.2
Um pastor chega até à porta; levando o braço sobre a fronte para
proteger os olhos, olha para cima. Parece impossível que ele tenha de se
proteger da claridade da lua. Mas está mesmo uma claridade tão viva, que
ofusca os olhos, especialmente os olhos de quem acaba de sair de um lugar
fechado e escuro. Tudo está calmo. Mas aquela luz causa espanto.
O pastor chama os companheiros. Todos vão até à porta. É um grupo de
homens cabeludos e de idades diferentes. Alguns ainda são adolescentes, e
outros já estão de cabelos brancos. Estão comentando aquele fato estranho.
Os mais jovens estão com medo, especialmente um menino dos seus doze
anos, que começa a chorar, tornando-se alvo das brincadeiras dos mais
velhos.
– De que estás com medo, seu tolo? –lhe diz o mais velho–. Não estás
vendo o ar assim parado? Nunca viste a claridade do luar? Será que
estiveste sempre debaixo da saia da mamãe, como um pintinho sob as asas
da galinha choca? Mas ainda terás que ver coisas! Uma vez eu tinha
caminhado até as montanhas do Líbano, e continuei até além destas
montanhas. Eu era jovem e andar não era pesado para mim. Naquele tempo
eu também era rico… Uma noite, vi uma luz tão clara, que pensei que Elias
estivesse voltando com seu carro de fogo. O céu parecia um grande
incêndio. Um velho, daquela época, me disse: “Algum grande
acontecimento está para sobrevir ao mundo.” Mas para nós o que de
verdade veio foi uma grande desventura: os soldados de Roma. Oh! Mas tu
verás, se sobreviveres!…
30.3
O pastorzinho, porém, não o está escutando mais. Parece que não tem
mais medo, pois deixa a soleira da porta, escapa por detrás das costas do
musculoso pastor, onde se refugiou, e sai na paragem cheia de erva, que
está na frente do alpendre. Olha para o alto, e vai caminhando como
sonâmbulo, ou hipnotizado por algo que o atrai fortemente. Chegando a um
certo ponto, ele grita: “Oh!”, e fica como que petrificado, com os braços um
pouco abertos.
Os outros olham-se assombrados.
– Mas, que é que tem aquele tolo? –diz um deles.
– Amanhã eu o mando embora, de volta para sua mãe. Não quero
doidos para guardar as ovelhas –diz outro.
E o velho, que falou há pouco, diz:
– Vamos ver, antes de julgar. Chamai também os outros que estão
dormindo, e pegai os bastões. Que não seja alguma fera ruim, ou
malandros…
Eles entram, chamando os outros pastores, e saem com tochas e
bastões. Chegam até onde está o menino.
– Lá, lá –ele murmura sorrindo–. Por cima da árvore, olhai aquela luz
que está vindo. Parece que ela vem caminhando sobre o raio da lua. Eis que
se aproxima. Como é bela!
– Eu só estou vendo um grande clarão.
– Eu também.
– Eu também –dizem os outros.
– Não. Eu estou vendo algo como um corpo –diz um dos pastores, no
qual eu reconheço ser aquele que deu a escudela de leite para Maria.
– É um… é um anjo! –grita o menino–. Eis que ele vem descendo e
chegando para perto… Ajoelhemo-nos, diante do anjo de Deus!
Um “Oh!” longo e cheio de respeito se levanta do grupo de pastores,
que, prostrando-se com o rosto por terra, parecem estar tanto mais
esmagados por aquela aparição fulgente, quanto mais velhos são. Os jovens
estão de joelhos, mas estão olhando para o anjo, que se aproxima cada vez
mais e, finalmente, paira suspenso no ar, agitando suas grandes asas,
candura de pérola na alvura do luar que o circunda, acima do muro do
recinto.
– Não temais. Não vos trago desventura. Eu vos anuncio uma grande
alegria para o povo de Israel e para todo o povo da terra.
A voz do anjo é como uma harmonia de harpa, que acompanha o canto
dos rouxinóis.
– Hoje, na cidade de Davi, nasceu o Salvador.
Ao dizer isso, o anjo abre ainda mais as suas grandes asas, e as move,
como se tivesse sentido um sobressalto de alegria, e, nesse momento uma
chuva de centelhas de ouro e de pedras preciosas parece sair dele. Um
verdadeiro arco-íris, um arco de triunfo que se forma sobre as pastagens.
– … o Salvador, que é Cristo.
O anjo cintila, com redobrada luz. Suas duas asas, agora paradas e
estendidas, com as pontas viradas para o céu, como duas velas imóveis
sobre a safira do mar, parecem duas chamas, que sobem ardendo.
– … Cristo, o Senhor!
O anjo recolhe as suas duas fúlgidas asas, e se veste com elas, como se
fossem uma sobreveste de diamante sobre uma veste de pérola; inclina-se,
como quem está adorando, com os braços cruzados sobre o coração e o
rosto, que aí desaparece, porque está inclinado sobre o peito e sob a sombra
das pontas das asas que o anjo agora dobrou. Não se vê mais que uma
alongada forma luminosa, imóvel, pelo espaço de tempo de um “Glória.”
Mas ele se move de novo. Reabre as asas, levanta o rosto, no qual a luz
se funde com um sorriso paradisíaco, e diz:
– Vós o reconhecereis por estes sinais: em uma pobre estrebaria, do
outro lado de Belém, encontrareis um menino envolto em faixas, numa
manjedoura de animais, porque, para o Messias, não foi encontrado um teto
na cidade de Davi.
Ao dizer isso, o anjo ficou sério, ou melhor, ficou triste.
30.4
Mas dos Céus vieram muitos, muitíssimos outros anjos, semelhantes
àquele primeiro, como por uma escada de anjos que descem, exultantes, e
superando a luz da lua com o seu esplendor do paraíso. Eles se reúnem ao
redor do anjo anunciador, com um grande agitar de asas e um intenso exalar
de perfumes, com um arpejar de notas, nas quais todas as vozes mais belas
da criação encontram uma recordação, mas levado à perfeição, quanto à
pureza e beleza do som. Se a pintura é o esforço da matéria para se
transformar em luz, aqui a melodia é o esforço da música para fazer brilhar
aos homens a beleza de Deus. Ouvir esta melodia é conhecer o paraíso,
onde tudo é harmonia do amor que se desprende de Deus, alegrando os
bem-aventurados, que, por sua vez, se dirigem a Deus, dizendo: “Nós te
amamos!”
O “Glória” dos anjos se espalha, sempre mais ao longe, pelo campo
silencioso e com ele vai o clarão da luz. Os passarinhos unem seu canto,
como saudação a esta luz que chegou antes da hora, e as ovelhas dão os
seus balidos, por este antecipado sol. Mas eu gosto de pensar que são os
animais que saúdam ao seu Criador, como também o boi e o jumento na
gruta. Saúdam o próprio Criador que veio até eles, para amá-los como
Homem, além de amá-los como Deus.
O canto vai diminuindo, e a luz também, enquanto os anjos vão
subindo, de volta para os céus…
30.5
… Os pastores também voltam a si.
– Ouviste?
– Vamos lá ver?
– E as ovelhas?
– Oh! Não acontecerá nada com elas! Nós vamos para obedecer à
palavra de Deus!…
– Mas, aonde iremos?
– Ele não disse que nasceu hoje? E que não achou alojamento em
Belém?
É o pastor que deu a escudela de leite, o que está falando agora.
– Vinde comigo, eu sei: encontrei a mulher, e ela me causou pena.
Ensinei um lugar para ela, pois imaginava que não iriam encontrar
alojamento. Entreguei ao homem uma escudela de leite para ela. É tão
jovem e bela, deve ser boa como o anjo que nos falou. Vinde. Vinde. Vamos
apanhar leite, queijos, cordeiros e peles curtidas. Eles devem ser muito
pobres e… que frio não estará passando Aquele cujo nome não ouso
pronunciar! E pensar que eu falei à mãe como a uma pobre esposa!…
Vão, então, até o alpendre, saindo de lá pouco depois. Um deles com
pequenas botijas de leite, outro com cestinhas de esparto trançadas,
contendo queijinhos redondos, outros com cestos nos quais se encontram,
um cordeiro balindo e peles de ovelha curtidas.
– Eu levo uma ovelha. Há um mês que ela deu cria. O leite dela está
bom. Ela lhes poderá ser útil, se a mulher não tiver leite. Pois me parecia
uma menina, tão branca!… É um rosto de jasmim, à luz da lua –diz o pastor
da escudela. É ele que vai guiando os outros.
30.6
Saem todos à luz da lua e das tochas, depois de terem fechado o
alpendre e o recinto. Vão pelas trilhas campestres, por entre sebes de
espinheiros, que estão sem folhas, por ser inverno.
Dão a volta por detrás de Belém. Chegam à estrebaria, indo pelo lado
oposto que foi Maria, de modo a não passarem diante das estrebarias mais
bonitas, sendo esta a primeira que encontram. Aproximam-se da abertura.
– Entra!
– Eu não tenho coragem.
– Entra tu.
– Não.
– Olha lá dentro, pelo menos.
– Tu, Levi, que viste o anjo primeiramente, sinal de que és melhor do
que nós, olha!
Na verdade, antes disseram que ele era doido… mas agora convém que
ele tenha a coragem que eles não têm.
O menino vacila, mas depois se decide. Aproxima-se da abertura, afasta
um pouquinho o manto, olha… e fica extasiado.
– Que é que estás vendo? –perguntam-lhe ansiosos, em voz baixa.
– Vejo uma mulher jovem e bela e um homem curvados sobre uma
manjedoura, e ouço… ouço chorar um menino pequeno, e a mulher lhe fala
com uma voz… oh! que voz!
– Que está ela dizendo?
– Ela está dizendo assim: “Jesus pequenino! Jesus, amor da tua mamãe!
Não chores meu filhinho!” Ela diz ainda: “Oh! Se eu pudesse dizer-te:
‘Toma o leite, meu pequenino!’ Mas ainda não o tenho.” Ela diz: “Tem
tanto frio, meu amor! E o feno te está espinhando. Que dor para tua mamãe
ouvir-te chorando assim, e não poder dar-te conforto!” Ela está dizendo:
“Dorme, minha alma! Parte-me o coração ao ouvir-te chorar, e ao ver-te
derramar lágrimas!”, e o beija e o aquece certamente nos pezinhos com suas
mãos, pois ela está inclinada, com as mãos para dentro da manjedoura.
– Chama! Faça com que te ouçam!
– Eu, não. Chama tu, que até aqui nos conduzistes e que a conheceis.
O pastor abre a boca, e se limita a dar um gemido.
30.7
José se vira, e vai à porta.
– Quem sois vós?
– Somos pastores. Viemos trazer-vos alimento e lã. Viemos adorar o
Salvador.
– Entrai.
Eles entram, e a estrebaria se torna mais clara por causa da luz das
tochas. Os velhos empurram os novos à sua frente.
Maria se vira e sorri.
– Vinde –ela diz–. Vinde!
E os convida com um gesto e um sorriso, segurando aquele que viu o
anjo e puxando-o para perto de si, junto à manjedoura. O menino olha, feliz.
Os outros, convidados também por José, vão à frente com os seus
presentes, e os colocam todos, com breves e comovidas palavras, aos pés de
Maria. Depois se detêm em olhar o Menino Jesus, que está chorando
baixinho, e sorriem, emocionados e felizes.
Um deles, mais corajoso, diz:
– Toma, ó mãe. É macia e limpa. Eu a tinha preparado para o meu filho
que está para nascer. Mas te dou. Envolve o teu Filho com esta lã delicada e
quente.
E lhe oferece a pele de uma ovelha, uma pele muito bonita, com muita
lã, uma lã muito clara e comprida.
Maria soergue Jesus e o enrola nela. E o mostra aos pastores que, de
joelhos sobre o feno do chão, o contemplam enlevados.
Tornam-se agora mais corajosos, e um deles propõe:
– Seria necessário dar-lhe um pouco de leite, ou melhor, água e mel.
Mas nós não temos mel, que é muito bom para os bebês. Tenho sete filhos,
e sei disso…
– Aqui está o leite. Toma-o, ó mulher.
– Mas está frio. Precisa ser quente. Onde está o Elias? Ele tem a ovelha.
Elias deve ser aquele da escudela de leite e não está. Ficou parado lá
fora, olhando por uma fenda e não podendo ser visto, por causa da
escuridão da noite.
– Quem vos guiou até aqui?
– Um anjo, que nos disse para virmos e junto com Elias, nos guiou até
aqui. Mas onde estará ele agora?
A ovelha de Elias é que, com o seu balido, denuncia-o.
– Venha para a frente, que te estamos esperando.
Ele entra com sua ovelha, envergonhado, porque todos estão de olhos
nele.
– Então, és tu? –diz José, ao reconhecê-lo.
E Maria lhe sorri, dizendo:
– És bom.
Tiram o leite da ovelha e, com a ponta de um pano mergulhado no leite
quente e espumoso, Maria molha os lábios do Menino Jesus, que suga
aquela doçura cremosa. Todos sorriem, ainda mais, quando, com a ponta do
paninho ainda entre os lábios, Jesus adormece com o bom calor da lã.
30.8
– Mas aqui não podeis ficar. Aqui faz frio e é muito úmido. E
depois… aqui tem um cheiro forte de animais. Isto não faz bem… e… não
fica bem para o Salvador.
– Eu sei –diz Maria com um grande suspiro–, mas, não há lugar para
nós em Belém.
– Coragem, Mulher! Nós vamos procurar uma casa para ti.
– Vou falar com minha patroa –diz Elias.
– Ela é boa, e vos acolherá, ainda que precisasse ceder-vos o seu
quarto. Logo que raiar o dia, vou falar com ela. Ela está com a casa cheia de
gente. Mas vos arranjará um lugar.
– Pelo menos para o meu Menino. Eu e o José estamos dormindo no
chão. Mas para o Pequenino…
– Não fiques suspirando, mulher. Nisso penso eu. Vamos dizer a muitos
o que nos disseram. Não vos faltará nada. Por enquanto, tomai o que a
nossa pobreza vos pode dar. Nós somos pastores…
– Nós também somos pobres. E não vos podemos pagar –diz José.
– Oh! Nem nós queremos! Ainda que o pudésseis, nós não
quereríamos! O Senhor já nos pagou. Ele prometeu a paz a todos. Os anjos
diziam assim: “Paz aos homens de boa vontade.” Mas a nós, Ele já a deu,
porque o anjo disse que este Menino é o Salvador, que é o Cristo, o Senhor.
Nós somos pobres e ignorantes, mas sabemos que os profetas dizem que o
Salvador será o Príncipe da Paz. E a nós Ele disse que viéssemos adorá-lo.
Com isso nos deu a Sua paz. Glória a Deus nos céus altíssimos e glória ao
seu Cristo, e bendita sejas tu, mulher, que o geraste! És santa, porque
mereceu carregá-lo no seio! Dá-nos tuas ordens, como nossa rainha, que
seremos felizes em podermos servir-te. Que é que podemos fazer por ti?
– Amar o meu Filho, e ter sempre no coração os pensamentos que
tendes agora.
– Mas, e para ti? Não desejas nada? Não tens parentes aos quais desejas
comunicar que Ele nasceu?
– Sim, eu os teria. Mas não moram perto daqui. Moram em Hebron.
– Eu vou até lá –diz Elias–. Quem são eles?
– Zacarias, o sacerdote, e Isabel, minha prima.
– Zacarias?! Oh! Eu o conheço bem. Durante o verão, eu vou por
aqueles montes, pois as pastagens por lá são muito boas e bonitas, e sou
amigo do pastor. Quando eu souber que estás alojada, irei à casa de
Zacarias.
– Obrigada, Elias.
– Não precisas agradecer. Grande honra é para mim, um pobre pastor, ir
falar ao sacerdote, e dizer-lhe: “Nasceu o Salvador.”
– Não. Tu dirás assim: “Maria de Nazaré, tua prima, manda dizer que
nasceu Jesus, e que vades a Belém.”
– Assim eu direi.
– Deus te recompense por isso. 30.9Eu me recordarei de ti, e de todos vós.
– Falarás de nós ao teu Menino?
– Sim, falarei.
– Eu sou Elias.
– Eu sou Levi.
– Eu sou Samuel.
– Eu sou Jonas.
– Eu sou Isaque.
– Eu sou Tobias.
– Eu sou Jônatas.
– Eu sou Daniel.
– Eu sou Simeão.
– Eu me chamo João.
– Eu José, e meu irmão Benjamim, somos gêmeos.
– Eu me lembrarei dos vossos nomes.
– Precisamos ir… Mas voltaremos… E te traremos outros, que virão
para adorar!
– Como voltar ao ovil, deixando este Menino?
– Glória a Deus, que já no-Lo mostrou!
– Deixa-nos beijar a roupinha dele –diz Levi com o sorriso de um anjo.
Maria ergue Jesus devagar e, sentada sobre o feno, oferece os pezinhos
envolvidos no linho, para que os beijem. Os pastores se inclinam até o chão
e beijam aqueles pés minúsculos, cobertos por um tecido. Quem tem barba,
ajeita-a primeiro, quase todos choram e, quando chega o momento de partir,
saem, relutantes, deixando alí o coração.
A visão cessa aqui, com Maria sentada sobre o feno com o Menino no
colo e José que, apoiado com um cotovelo sobre a manjedoura, olha e
adora.

Jesus diz:
30.10

– Hoje sou Eu que falo. Estás muito cansada, mas tem ainda um pouco
de paciência.
Estamos na vigília de Corpus Christi. Eu poderia falar-te da Eucaristia e
dos santos que se fizeram apóstolos do seu culto, assim como já te falei[52]
dos santos que foram apóstolos do Sagrado Coração. Mas eu quero falar-te
de uma outra coisa e de uma categoria de adoradores do meu Corpo,
precursores do culto a Ele prestado. Os pastores são os primeiros
adoradores do meu Corpo de Verbo feito Homem.
Uma vez Eu te disse isto, que é dito também pela minha Igreja. Os
Santos Inocentes são os protomártires de Cristo. Agora te digo que os
pastores são os primeiros adoradores do Corpo de Deus. Neles se
encontram todos os requisitos exigidos para vos tornardes adoradores do
meu Corpo, ó almas eucarísticas.
Fé firme: eles crêem pronta e cegamente no anjo.
Generosidade: eles dão toda a sua riqueza ao Senhor.
Humildade: eles se aproximam dos que humanamente são mais pobres
do que eles, com uma modéstia tal em seus atos, que não rebaixam os
pobres, mas se confessam seus servos.
Desejo: tudo o que não podem dar por si mesmos, esforçam-se para
encontrá-lo com apostolado e fadiga.
Prontidão na obediência: Maria deseja que Zacarias seja avisado e
Elias vai sem demora, sem pedir nenhum prazo.
Amor: enfim, eles não sabem como afastar-se, e tu dizes: “deixam alí o
coração.” E dizes bem.
Não seria necessário fazer assim também com o meu Sacramento?
30.11
Uma outra coisa, e essa é toda para ti: observa bem, a quem o anjo
primeiro se revela, e quem merece ouvir as efusões de Maria? O menino
Levi.
A quem tem alma de criança, Deus Se mostra e a Seus mistérios,
permitindo-lhe ouvir as palavras divinas e as palavras de Maria. Quem tem
alma de criança, tem também a santa coragem de Levi, para dizer: “Deixa-
me beijar o vestidinho de Jesus.” Isto ele diz a Maria. Porque é sempre
Maria que vos dá Jesus. Ela é a portadora da Eucaristia. Ela é a píxide viva.
Quem vai a Maria, Me encontra. Quem me pede a ela, recebe. O sorriso
de minha mãe, quando uma criatura lhe diz: “Dá-me o teu Jesus, para que
eu o ame”, faz que os céus mudem de cor, em um mais vivo esplendor de
alegria, pois tal é a altura do grau da sua felicidade.
Diz-lhe, pois: “Deixa-me beijar a veste de Jesus. Deixa-me beijar as
suas chagas.” Procura ter coragem para dizer ainda mais que isso. Diz
assim: “Deixa-me repousar a cabeça sobre o Coração do teu Jesus, para que
isso me faça feliz.”
Vem. E repousa. Como Jesus no berço, entre Jesus e Maria.
[52] já te falei, a 2 de Junho de 1944, em “Os cadernos de 1944”.
31. A Visita de Zacarias. Santidade
de José e obediência aos sacerdotes.
8 de junho de 1944.
31.1
Vejo o longo salão onde vi o encontro dos Magos com Jesus e a
adoração deles ao Menino. Compreendo que estou na casa hospitaleira em
que foi acolhida a sagrada Família. E é aí que assisto à chegada de Zacarias.
Isabel não veio com ele.
A dona da casa vai lá fora correndo, até a varanda, ao encontro do
hóspede que está chegando, e o conduz junto a uma porta, onde bate.
Depois, discretamente, se retira.
José abre a porta, e solta uma exclamação de júbilo, ao ver Zacarias.
Ele o faz entrar em um quarto pequeno como um corredor.
– Maria está dando de mamar ao Menino. Espera um pouco. Assenta-te,
que deves estar cansado.
José arranja lugar para o hóspede sobre sua pobre cama, assentando-se
também ao seu lado.
Ouço que José lhe pergunta sobre o pequeno João. Zacarias, lhe
responde:
– Está crescendo, viçoso como um potrinho. Mas agora sofre um pouco
por causa dos dentes. Por isso não quisemos trazê-lo. Está fazendo muito
frio. Isabel também não veio por este motivo. Ela não podia deixar o
menino sem leite. Ficou muito triste. Mas está tão forte a estação!
– Muito forte, de fato –responde José.
– O homem, que me mandastes disse-me que estáveis sem casa, quando
o Menino nasceu. Sabe-se lá quanto tereis sofrido.
– Sim, é bem verdade. Mas o nosso medo era maior do que o
incômodo. Tínhamos medo que prejudicasse o Menino. Nos primeiros dias
tivemos que ficar sem casa. Mas não faltou nada para nós, porque os
pastores levaram a boa nova aos habitantes de Belém. E foram muitos os
seus presentes. Mas faltava uma casa, faltava um aposento mais
resguardado, uma cama. Jesus chorava tanto, especialmente à noite, por
causa do vento que entrava por toda a parte. Eu fazia um pouco de fogo.
Pouco, porque a fumaça fazia o Menino tossir… e o frio continuava. Dois
animais esquentam pouco, especialmente lá onde o ar frio entra por todos os
buracos! Faltava água quente para lavar o Menino, faltava roupa seca para
trocá-lo. Oh! Ele sofreu muito! E Maria sofria ao vê-lo sofrer. Se eu
sofria… podes imaginar Sua mãe. Ela lhe dava leite e lágrimas, leite e
amor. Agora, aqui estamos melhor. Eu tinha preparado um berço muito
cômodo, e Maria o tinha completado com um colchãozinho bem macio.
Mas ficou em Nazaré! Ah! Se Ele tivesse nascido lá, teria sido diferente!
– Mas o Cristo devia nascer em Belém. Foi profetizado.
31.2
Maria, que ouvira aquelas vozes, entra. Está toda vestida de lã
branca. Tirou o vestido escuro que usara na viagem e na gruta e está toda
branca em suas vestes, como a tenho visto outras vezes. Não tem nada sobre
a cabeça e nos braços tem Jesus, que está dormindo, saciado de leite,
envolvido em suas cândidas faixas.
Zacarias se levanta, reverente, e se inclina com veneração. Depois, se
aproxima, e olha para Jesus, com os sinais do maior respeito. Está
encurvado, não tanto para vê-lo melhor, quanto para render-lhe
homenagem. Maria oferece o Menino e Zacarias o toma, com uma tal
adoração, que parece estar elevando um ostensório. É de fato Hóstia aquela
que ele tem em seus braços, a Hóstia já oferecida, e que será consumida,
depois de ter-se dado aos homens, como alimento de amor e de redenção.
Zacarias devolve Jesus a Maria.
31.3
Todos se assentam, e Zacarias repete a Maria o motivo pelo qual
Isabel não veio, e a pena que ela sentiu por isso.
– Ela tinha preparado nestes meses alguns tecidos para o teu bendito
Filho. Eu os trouxe para ti. Estão no carro, lá embaixo.
Ele se levanta e vai lá fora, voltando com um pacote grande e outro
menor. Tanto do pacote grande, que José apanhou de suas mãos, como do
outro, ele vai tirando logo os seus presentes: uma macia colcha de lã, tecida
a mão, alguns linhos e vestidinhos. Do outro pacote, vai tirando mel, uma
farinha muito branca, manteiga e maçãs para Maria, pães, amassados e
cozidos por Isabel, e muitas outras pequenas coisas, que falam do afeto
materno da prima para com a jovem mãe.
– Dirás a Isabel que lhe sou grata, e a ti também agradeço. Eu teria
muita alegria em vê-la, mas compreendo suas razões. Também gostaria de
rever o pequeno João…
– Mas o vereis na primavera. Viremos encontrar-vos.
– Nazaré é muito longe –diz José.
31.4
– Nazaré? Mas vós deveis permanecer aqui. O Messias deve crescer
em Belém. É a cidade de Davi. O Altíssimo o conduziu, por meio da
vontade de César, para vir nascer na terra de Davi, a terra santa da Judéia.
Por que, então, levá-lo para Nazaré? Vós sabeis, como os nazarenos são mal
vistos pelos judeus. Amanhã este Menino deverá ser o Salvador do seu
povo. E não fica bem que a cidade capital despreze o seu Rei, só porque Ele
vem de uma terra que ela despreza. Vós sabeis, tanto quanto eu, como é
caviloso o Sinédrio, e como são orgulhosas as três castas principais… Além
disso, aqui, perto de mim, poderei ajudar-vos um pouco, e pôr tudo o que
possuo, não só de coisas materiais, mas de dons morais, a serviço deste
Recém-Nascido. E, quando Ele estiver na idade de compreender, serei feliz
de ser-lhe o mestre, como farei ao meu menino, a fim de obter que ele,
depois de grande, me abençoe. Devemos pensar que Ele está destinado a
um futuro brilhante e que por isso, deve poder apresentar-se ao mundo com
todas as cartas, para vencer facilmente a sua partida. Ele certamente
possuirá a Sabedoria. Mas só o fato de que tenha tido por mestre um
sacerdote, o tornará mais aceito aos difíceis fariseus e aos escribas e tornará
mais fácil a sua missão.
31.5
Maria olha para José e José olha para Maria. Sobre a cabeça inocente
do Menino, que está dormindo, todo rosado e despreocupado, cruza-se uma
troca muda de perguntas. E são perguntas veladas de tristeza. Maria está
pensando em sua casinha. José pensa no seu trabalho. Aqui tudo está por
refazer, num lugar onde, até poucos dias atrás, eles eram desconhecidos.
Aqui não há nada daquelas coisas queridas, que foram deixadas lá, e
preparadas com tanto amor para o Menino.
E Maria diz:
– Que vamos fazer? Lá deixamos tudo. José havia trabalhado tanto pelo
meu Jesus, sem poupar fadiga ou dinheiro. Havia trabalhado até de noite,
porque de dia trabalhava para os outros ganhando o necessário para
comprar as madeiras mais belas, a lã mais macia, o linho mais alvo, para
Jesus. Ele tinha construído colméias e trabalhado de pedreiro, para dar à
casa uma disposição melhor, a fim de que o berço pudesse ficar no meu
quarto, e aí permanecesse até que Jesus estivesse mais crescido e o berço
daria lugar à sua cama, pois Jesus ficará comigo até a adolescência.
– José pode ir lá buscar o que deixastes.
– E onde colocá-lo? Tu sabes, Zacarias, que nós somos pobres. Não
temos mais que nosso trabalho e a casa, isto é o que nos dá sustento, sem
passarmos fome. Mas aqui… trabalho poderemos achar, talvez. Mas
teremos sempre que pensar em uma casa. Esta boa mulher não pode nos
hospedar sempre. Eu não posso sacrificar José, mais do que ele já se
sacrificou por mim!
– Oh! Eu! Para mim não é nada! Eu penso na dor de Maria. A dor de
não estar em sua casa.
Maria solta duas grandes lágrimas.
– Eu penso que aquela casa lhe deve ser querida como o Paraíso, pelo
prodígio que nela se realizou. Eu falo pouco, mas entendo muito. Se não
fosse por isso, não me afligiria. Trabalharei dobrado, eis tudo. Sou forte e
jovem para trabalhar o dobro do que costumava, para prover a tudo. Se
Maria não sofrer muito, e se tu me dizes que é bom fazer assim… aqui
estou. Farei aquilo que vos parecer mais justo. Basta que a Jesus seja útil.
– Será útil, com certeza. Pensai nisso e vereis as razões.
– Também se diz que o Messias será chamado Nazareno[53] –objeta
Maria.
– É verdade. Mas, pelo menos enquanto não estiver adulto, fazei que
Ele cresça na Judéia. Diz o Profeta: “E tu, Belém Efrata, serás a maior
porque de ti sairá o Salvador.” Não fala de Nazaré. Pode ser que aquela
denominação lhe será dada por algum motivo a nós desconhecido. Mas a
sua terra é esta.
– Tu o dizes, sacerdote, e nós… com dor, te estamos escutando… e te
atendemos. Mas, que dor!… Quando verei aquela casa, onde me tornei
mãe?
Maria chora baixinho. E eu compreendo este seu pranto. Oh! se
compreendo!
A visão me cessa com este pranto de Maria.

Depois, Maria diz:


31.6

– Tu o compreendes! Eu sei. Mas me verás chorar mais fortemente


ainda.
Por ora, eu te alivio o espírito, mostrando-te a santidade de José, que
era homem, ou seja, que não tinha outra ajuda para o seu espírito, senão a
sua santidade. Eu tinha todos os dons de Deus, na minha condição de
imaculada. Embora não o soubesse, na minha alma esses dons eram ativos e
me davam forças espirituais. Mas ele não era imaculado. A natureza
humana estava nele com todo o seu peso grave, e ele devia erguer-se para a
perfeição com todo aquele peso, à custa de contínua fadiga de todas as suas
faculdades, para poder alcançar a perfeição e ser agradável a Deus.
Oh! Meu santo esposo! Santo em todas as coisas, até nas mais humildes
coisas da vida. Santo, pela sua castidade de anjo. Santo pela sua
honestidade de homem. Santo pela sua paciência, pela sua operosidade, pela
sua serenidade sempre igual, pela sua modéstia, por tudo.
Sua santidade brilha também neste acontecimento. Um sacerdote lhe
diz: “É bom que tu te estabeleças aqui”, e ele, mesmo sabendo quão maior
será a fadiga que irá encontrar, diz: “Para mim não é nada. Penso na dor de
Maria. Se não fosse por isso, por mim eu não me afligiria. Basta que isso
seja útil a Jesus.” Jesus e Maria são os seus angélicos amores. Não amou
nada mais sobre a terra, este meu santo esposo. E desse amor, ele mesmo se
fez servo.
Já o fizeram protetor das famílias cristãs e dos trabalhadores, e de
muitas outras categorias. Mas, não somente dos agonizantes, dos esposos,
dos operários; deveria-se fazê-lo protetor, também dos consagrados. Qual
entre os consagrados da terra, a serviço de Deus, seja ele qual for, se terá
consagrado assim a serviço do seu Deus, aceitando tudo, renunciando a
tudo, suportando tudo, cumprindo tudo prontamente, com espírito alegre,
com um humor constante, como ele fez? Não, não há.
31.7
Eu te faço observar uma outra coisa, ou melhor, duas.
Zacarias é um sacerdote. José não é. Mas observa bem como aquele que
não é sacerdote tem o espírito no Céu, mais que o próprio sacerdote.
Zacarias pensa humanamente, interpretando assim as Escrituras, porque não
é a primeira vez que faz isso, e se faz guiar pelo bom senso humano. Por
isso ele foi castigado. Aqui ele está tendo uma recaída, ainda que menos
grave. Ele havia dito sobre o nascimento de João: “Como vai poder
acontecer isso, se eu já estou velho, e minha mulher é estéril?”. Agora ele
está dizendo: “Para tornar mais fácil a sua missão, o Cristo deve crescer
aqui” e, com aquela pequena raiz de orgulho, que persiste até nos melhores,
pensa em poder ser ele útil a Jesus. Não útil como quer ser José, servindo-o,
mas útil, fazendo-se mestre dele… Deus o perdoou pela boa intenção. Mas
tinha, por acaso, o “Mestre” necessidade de ter mestres?
Eu procurei fazê-lo ver a luz nas profecias, mas ele se julgava mais
douto do que eu, e usava esse seu julgamento a seu modo. Eu teria podido
insistir e vencer. Mas — e aqui está a segunda observação que desejo que
faças — eu respeitei o sacerdote pela sua dignidade, e não pelo seu saber.
31.8
O sacerdote é, geralmente, sempre iluminado por Deus. Disse
“geralmente” porque ele deve ser um verdadeiro sacerdote. Não é a veste
que consagra, é a alma. Para se julgar se alguém é verdadeiro sacerdote, é
necessário julgar o que sai de sua alma. Como disse o meu Jesus, é da alma
que saem as coisas que santificam ou contaminam, aquelas coisas que
informam todo o modo de agir de um indivíduo. Pois bem, quando alguém
é um verdadeiro sacerdote, é geralmente inspirado por Deus. Quanto aos
outros, é preciso que se tenha uma caridade sobrenatural, e que se reze por
eles.
Mas meu Filho te colocou a serviço desta redenção, e não digo mais
nada. Sê alegre, ao sofrer, para que aumentem os verdadeiros sacerdotes. E
tu, repousa na palavra de quem te guia. Crê e obedece ao seu conselho.
31.9
Obedecer salva sempre. Ainda quando não é bem perfeito o conselho que
se recebe.
Tu estás vendo. Nós obedecemos. E tudo correu bem. É verdade que
Herodes se limitou a fazer exterminar os meninos de Belém e dos arredores.
Mas satanás não teria podido impelir e propagar estas ondas de rancor até
bem mais longe, persuadindo todos os poderosos da Palestina a igual delito,
para fazer suprimir o futuro Rei dos judeus? Certamente teria podido. Teria
acontecido nos primeiros tempos de Cristo, quando a repetição dos
prodígios havia despertado a atenção das multidões e os olhos dos
poderosos. Como teríamos podido, então, se isso tivesse acontecido,
atravessar toda a Palestina, para vir da longínqua Nazaré até o Egito, a terra
hospitaleira aos hebreus perseguidos,carregando um bebê recém nascido, e
enquanto a perseguição se enfurecia? Foi muito mais fácil a fuga por
Belém, ainda que sendo uma fuga igualmente dolorosa.
A obediência salva sempre. Lembra-te disso. 31.10O respeito ao sacerdote
é sempre sinal de formação cristã. Ai! — foi Jesus que o disse — ai dos
sacerdotes que perdem sua chama apostólica! Mas ai também de quem acha
que lhe é lícito desprezá-los! Porque são eles que consagram e distribuem o
Pão verdadeiro que desce do Céu. Aquele contato os torna santos como um
cálice consagrado, mesmo se não são santos. Eles terão que responder a
Deus por isso. Vós, considerai-os como tais, e não vos preocupeis com
outras coisas. Não sejais mais intransigentes do que o vosso Senhor Jesus, o
qual, por ordem deles deixa o Céu, e desce para ser elevado por suas mãos.
Aprendei com Ele. Se eles são cegos, se são surdos, se têm a alma paralítica
e o pensamento doente, se são leprosos por muitas culpas em contraste com
a sua missão, se são Lázaros em seu sepulcro, chamai a Jesus para que os
cure e ressuscite.
Chamai-o com a vossa oração e com o vosso sofrimento, ó almas
vítimas. Salvar uma alma é predestinar a própria alma ao Céu. Mas, salvar
uma alma sacerdotal é salvar um grande número de almas, porque todo
sacerdote santo é uma rede que arrasta almas para Deus. Salvar um
sacerdote, ou seja, santificar, santificar de novo, é criar essa mística rede.
Tudo o que cair nessa rede é uma luz que se acrescenta à vossa eterna
coroa.
Vai em paz.
[53] será chamado Nazareno, como refere também Mateus 2, 23 embora não se encontre uma verdadeira confrontação nos
Profetas. Por isso parece significativa a expressão Se diz em vez do habitual Foi dito ou Está escrito. Próprio porque Nazareno
(assim chamado especialmente em 604.35 e 608.2), isto é, de Nazaré em Galileia, Jesus é chamado também Galileu, como em
404.4 (onde, portanto, vem motivada o seu nascimento na Judeia) e em outros pontos. O mesmo Jesus se define “o Galileu” em
590.21.
32. Apresentação de Jesus ao Templo.
A virtude de Simeão e a profecia de Ana.
1 de fevereiro de 1944.
32.1
Vejo sair de uma casinha muito modesta um casal de pessoas. De
uma pequena escada externa desce uma mãe muito jovem com um menino
nos braços, envolvido em um pano branco.
Reconheço esta nossa mamãe. É sempre ela, pálida e loira, elegante e
tão gentil em tudo o que faz. Está vestida de branco, com um manto azul
claro, no qual se envolve. Na cabeça traz um véu branco. Vai levando com
todo o cuidado o seu Menino.
Aos pés da escadinha, José a espera, ao lado de um burrinho cinzento.
José está todo vestido de cor marrom claro, tanto na túnica, como no manto.
Ele olha para Maria, e lhe sorri. Quando Maria chega perto do burrinho,
José passa a rédea do animal por baixo do braço esquerdo e segura, por um
momento, o Menino, que está dormindo tranqüilo, para que Maria possa
acomodar-se melhor na sela. Depois ele lhe devolve Jesus, e põem-se a
caminho.
José vai ao lado de Maria, segurando sempre o animal pela rédea, e
prestando atenção para que este vá sempre direito, e sem tropeçar. Maria
está com Jesus no colo e, como por temor de que o frio lhe possa fazer mal,
estende sobre ele um dos lados de seu manto. Os dois esposos falam pouco,
mas sorriem um para o outro freqüentemente.
A estrada, que está longe de ser um modelo de estrada, vai-se
estendendo pelo meio de um campo que, nesta estação do ano, está vazio.
Um ou outro viajante passa pelo casal, mas são raros.
32.2
Depois, eis as casas que vão aparecendo e alguns dos muros que
rodeiam as cidades. Os dois esposos entram por uma porta, começando o
percurso sobre o calçamento (muito irregular) da cidade. O caminho se
torna muito mais difícil, seja porque o trânsito os obriga a parar o burrinho
com frequência, seja porque este dá contínuas sacudidelas sobre as pedras e
os buracos, perturbando Maria e o Menino.
A estrada não é plana, é uma ladeira ainda que leve. Está apertada entre
as casas altas, de portinhas estreitas e baixas, com raras janelas, que dão
para a rua. No alto, o céu se mostra, com muitos retalhos do seu azul, entre
uma casa e outra, ou melhor, entre um e outro terraço. Em baixo, na rua, há
gente e vozerio, transeuntes que se encontram com aqueles que estão nos
seus jumentos, ou com os que conduzem jumentos com carga. Outros vão
indo atrás de alguma embaraçante caravana de camelos. Aum certo ponto,
passa uma patrulha de legionários romanos, com grande barulho de cascos e
de armas, desaparecendo atrás de um arco colocado em uma rua muito
estreita e pedregosa.
José vira para a esquerda, e entra por uma rua mais larga e mais bonita.
No fim desta vejo o muro de uma fortaleza, que eu já conheço.
Maria apeia do burrinho, junto à porta, onde há uma espécie de posto
para outros jumentos. Eu digo “posto”, porque é parecido com um barracão,
ou melhor, um telheiro, onde há palha pelo chão e umas estacas com argolas
onde se amarram os animais.
José dá algumas moedas a um homenzinho, que apareceu por ali,
conseguindo deste modo um pouco de feno e um cântaro de água tirada de
um poço velho que fica num canto, para alimentar o burrinho. Em seguida,
vai ao encontro de Maria, entrando com ela no recinto do Templo.
32.3
Dirigem-se primeiro para os pórticos, onde estão aqueles que Jesus
mais tarde fustigaria severamente: os vendedores de pombos e cordeiros e
os cambistas. José compra dois pombinhos brancos. Não troca o dinheiro.
Compreende-se que ele já tem a quantia certa.
José e Maria se dirigem a uma porta lateral, de oito degraus, como, me
parece, tenham todas as portas. É como se o cubo do Templo seja erguido
do solo. Esta porta tem um grande átrio, parecido com os portões de nossas
casas das cidades, mas seu átrio é mais amplo e adornado. Nele se
encontram à direita e à esquerda, duas espécies de altares, ou seja, duas
construções retangulares, cuja finalidade, a princípio, não compreendo bem.
Parecem baixas bacias, porque a parte interna é mais baixa do que a beirada
externa, que fica alguns centímetros mais alta.
Aparece um sacerdote, não sei se chamado por José, ou se tendo vindo
por si mesmo. Maria lhe oferece os dois pobres pombos e eu, que já sei qual
a sorte que eles vão ter, viro o olhar para o outro lado. Observo os ornatos
do pesado portal, do teto e do átrio. Mas parece-me ver, com o rabo do olho,
o sacerdote aspergir Maria com água. Deve ser água, porque não vejo
ficarem manchas em sua veste. Depois, Maria que, junto com os pombinhos
tinha dado uma porção de moedas ao sacerdote (eu me tinha esquecido de
dizer isso), entra com José no Templo verdadeiro e propriamente dito,
acompanhada pelo sacerdote.
Eu olho para todos os lados. É um lugar cheio de adornos. Esculturas
de cabeças de anjos, palmas e outros ornatos estão sobre as colunas, sobre
as paredes e o teto. A luz penetra por curiosas janelas longas e estreitas,
naturalmente sem vidros, abertas em diagonal sobre a parede. Suponho que
seja para impedir a entrada dos aguaceiros.
32.4
Maria segue até um certo ponto, onde pára. A alguns metros há
outros degraus, e acima deles há outra espécie de altar, por trás do qual, há
ainda uma construção.
Percebo agora que eu achava que estivesse no Templo, mas me
encontrava na parte que contorna o Templo verdadeiro e propriamente dito,
isto é, o Santo, dentro do qual ninguém, a não ser os sacerdotes, acho que
podem entrar. Aquilo que eu pensei que fosse o Templo não é mais do que
um vestíbulo fechado, que cerca em três partes o Templo, onde está
encerrado o Tabernáculo. Não sei se me expliquei bem. Mas não sou
arquiteta, nem engenheira.
Maria oferece ao sacerdote o Menino, que acabou de despertar e está
movendo os olhinhos inocentes ao redor de si próprio, com aquele olhar
espantado dos bebês de dias. O sacerdote o toma em seus braços, e o ergue,
virado para o Templo, junto àquela espécie de altar, que está acima dos
degraus. O rito terminou. O Menino é restituído à mamãe, e o sacerdote se
retira.
32.5
Há várias pessoas olhando, curiosas. Um velhinho encurvado abre
caminho entre essas pessoas, mancando, e apoiando-se num bastão. Deve
ter muita idade, eu diria, mais de oitenta anos. Aproxima-se de Maria,
pedindo-lhe que o deixe pegar o Menino por um instante. Maria atende ao
seu pedido, sorrindo.
Simeão pega o Menino e o beija. Eu sempre acreditei que ele
pertencesse à classe sacerdotal, mas ao invés parecer ser apenas um simples
fiel, a julgar pelas suas roupas. Jesus lhe sorri, fazendo aquela caretinha
cheia de dúvidas, característica das crianças de peito. Parece que o observa
com curiosidade, porque o velhinho está chorando e rindo ao mesmo tempo,
e suas lágrimas fazem um verdadeiro bordado de pontinhos de luz,
brilhando, enquanto vão-se insinuando por entre as rugas, enchendo de
pérolas a barba longa e branca, para a qual Jesus estende as mãozinhas. É
Jesus, mas é sempre um bebê, e tudo o que se move à sua frente lhe chama
a atenção, e lhe dá vontade de pegar para conhecer melhor, seja lá o que for.
Maria e José sorriem, e também os presentes, que elogiam a beleza do
Pequenino.
Ouço as palavras[54] do velho santo, e vejo o olhar espantado de José, o
olhar comovido de Maria e também da pequena multidão, em parte
admirada mas também comovida, tomada pela alegria pelas palavras do
velho. No meio da pequena multidão estão alguns barbudos e enfatuados
sinedritas, que balançam a cabeça, olhando para Simeão com uma
compaixão zombeteira. Devem pensar que está fora de seu juízo, pela
idade.
32.6
O sorriso de Maria se apaga e se transforma em uma acentuada
palidez, quando Simeão lhe anuncia sua futura dor. Por mais que ela já
o saiba, esta palavra lhe aflige o espírito. Ela se aproxima ainda mais de
José, em busca de conforto, apertando com sentimento o seu Menino ao
seio, bebendo, como alma sequiosa, as palavras de Ana[55] que, sendo
mulher, tem piedade do sofrimento de Maria, e lhe promete que o Eterno
amenizará com uma força sobrenatural, a hora de sua dor:
– Mulher, para aquele que deu o Salvador ao seu povo, não faltará
poder para mandar um anjo confortar-te no teu pranto. Nunca faltou a ajuda
do Senhor às grandes mulheres de Israel, e tu és bem mais do que Judite e
Jael. O nosso Deus te dará um coração de ouro puríssimo, para que possas
resistir ao mar de dor, pelo qual te tornarás a maior mulher da criação, a
Mãe. E tu, Menino, lembra-te de mim, na hora da tua missão.
E aqui cessa minha visão.

2 de fevereiro de 1944.
32.7
Jesus diz:
– Nascem dois ensinamentos para todos, da descrição que fizeste.
O primeiro: Não é a um sacerdote mergulhado nos ritos, mas o espírito
ausente, e, sim, a um simples fiel que a verdade se revela.
O sacerdote, sempre em contato com a Divindade, voltado a tudo que é
relacionado a Deus, dedicado a tudo o que está acima da carne, deveria ter
percebido logo quem era o Menino que estava sendo oferecido ao Templo,
naquela manhã. Mas, para que pudesse pressentir, precisava de um espírito
vivo. Não simplesmente de uma veste para cobrir um espírito, que, se não
estava morto, estava muito adormecido.
O Espírito de Deus pode, se quiser, trovejar e sacudir, como um raio e
um terremoto, até o espírito mais obtuso. Isto Ele pode. Mas geralmente,
visto que Ele é Espírito de ordem, dado que Deus é ordem em cada uma de
Suas Pessoas e em Seu modo de agir, Ele se expande e se comunica, não
digo só onde há merecimento suficiente para receber a sua efusão (e nesse
caso, seriam poucos os casos em que Ele se expandiria, nem mesmo tu
conhecerias as suas luzes) mas, sim, onde Ele vê “boa vontade” em merecer
a sua efusão.
Como se explica essa boa vontade? Tanto quanto possível, com uma
vida inteira em Deus. Na fé, na obediência, na pureza, na caridade, na
generosidade, na oração. Não tanto no ativismo, mas na oração. Há uma
diferença menor entre a noite e o dia, do que entre o ativismo e a oração. A
oração é comunhão de espírito com Deus, da qual, vós saís revigorados e
decididos a serdes sempre mais d’Ele. O ativismo é um hábito qualquer,
feito por diversos fins, mas sempre egoístas, deixando-vos como sois, ou
melhor, vos agrava até de uma culpa de mentira e de acídia.
32.8
Simeão tinha esta boa vontade. A vida não lhe tinha poupado
trabalhos e provações. Mas ele não perdeu a boa vontade. Os anos e as
vicissitudes não tinham enfraquecido nem abalado a sua fé no Senhor, nas
Suas promessas, e não tinham diminuido a sua boa vontade de ser sempre
mais digno de Deus. Antes que os olhos de seu servo fiel se fechassem à luz
do sol, na esperança de se reabrirem ao Sol de Deus rutilando nos Céus (que
seriam abertos, quando Eu lá subisse, após o meu martírio) Deus lhe
mandou um raio do Espírito, que o guiou ao Templo para ver a Luz do
mundo.
“Movido pelo Espírito Santo”, diz o Evangelho. Oh! Se os homens
soubessem que Amigo perfeito é o Espírito Santo! Que Guia, que Mestre!
Se amassem e invocassem, este Amor da Santíssima Trindade, esta Luz da
Luz, este Fogo do Fogo, esta Inteligência, esta Sabedoria! Muito além do
necessário, eles haveriam de saber!
Escuta, Maria; escutai, meus filhos: Simeão esperou durante toda uma
longa vida para “ver a Luz”para saber que a promessa de Deus estava
cumprida. Mas ele nunca duvidou. Nunca disse a si mesmo: “É inútil que eu
persevere em esperança e em oração.” Ele perseverou. E alcançou a graça
de “ver” o que nem o sacerdote, nem os sinedritas, cheios de soberba e
opacidade, viram: o Filho de Deus, o Messias, o Salvador naquele corpo
infantil, que lhe dava calor e sorrisos. Ele recebeu portanto o sorriso de
Deus, como primeiro prêmio de sua vida honesta e piedosa, através dos
meus lábios de Menino.
32.9
Segunda lição: As palavras de Ana. Também ela, que é profetisa, vê
o Messias em Mim, recém-nascido. Isto é natural, dada a sua capacidade de
profecia. Mas escuta, escutai o que ela, inspirada pela fé e pela caridade, diz
à minha mãe. Tirai disto luz para o vosso espírito, para que ele rejubile
neste tempo de trevas, nesta festa da Luz. “A Ruem deu um Salvador não
faltará o poder de dar o seu anjo para confortar o teu, o vosso pranto.”
Pensai que Deus deu-se a si mesmo, para anular a obra de satanás nos
espíritos. Agora não poderá Ele vencer os satanases que vos torturam? Não
poderá enxugar o vosso pranto, derrotando esses satanases e enviando-vos
de novo a paz do seu Cristo? Por que não o pedir com fé? Fé verdadeira,
poderosa, uma fé, diante da qual, o rigor de Deus, desprezado por vossas
inúmeras culpas, caia com um sorriso, trazendo o perdão como ajuda,
trazendo a sua bênção, como arco-íris sobre esta terra que está submergindo
em um dilúvio de sangue procurado por vós mesmos?
Pensai: O Pai, depois de ter castigado os homens com o dilúvio,
disse[56] a Si mesmo e ao Seu patriarca: “Não amaldiçoarei mais a terra por
causa dos homens, porque os sentidos e os pensamentos do coração do
homem estão inclinados para o mal, desde a adolescência; portanto, não
ferirei o ser vivo mais uma vez.” Ele foi fiel à Sua palavra. Não mandou
mais o dilúvio. Mas vós, muitas vezes já dissestes a vós mesmos e a Deus:
“Se nos salvarmos desta vez, se nos salvas, não faremos mais guerras,
nunca mais.” E depois sempre continuais fazendo guerras, cada vez mais
tremendas. Quantas vezes, ó homens falsos e sem respeito para com o
Senhor é a vossa palavra? No entanto, Deus vos ajudaria ainda uma vez, se
a grande massa dos fiéis o chamasse com fé e amor poderoso.
Escutai, ó vós todos — que, sendo muito poucos para contrabalançar os
muitos que estão mantendo vivo o rigor de Deus, permanecei devotos a Ele,
não obstante a hora tremenda que ameaça crescer a cada instante — e
colocai as vossas aflições aos pés de Deus. Ele saberá mandar-vos o Seu
anjo, como mandou o Salvador ao mundo. Não temais. Ficai unidos à Cruz.
Ela sempre venceu as insídias do demônio, que, por meio da ferocidade dos
homens e das tristezas da vida, procura o domínio dos homens pelo
desespero, isto é, pela separação de Deus, pois não pode apoderar-se dos
corações de outra maneira.
[54] as palavras, que são referidas em: Lucas 2,27-35.
[55] Ana, é Ana de Fanuel.
[56] disse, como é referido em: Génesis 8,21.
33. A Canção de Ninar da Virgem.
22 de novembro de 1944.
[…].
33.1
Esta manhã tive um despertar suave. Ainda estava entre as névoas do
sono, e ouvia, uma voz muito clara, que cantava docemente uma lenta
canção de ninar. Parecia uma pastoral de Natal, num ritmo vagaroso e
antigo. Eu ia acompanhando aquele motivo e aquela voz, sempre mais me
deleitando, e fui acordando, ao som daquelas ondas suaves. Finalmente,
despertei completamente, e pude compreender. Então disse: “Eu te saúdo,
Maria, cheia de graça!”, pois era a mãe que estava cantando. E ela começou
a cantar mais forte, depois de ter dito: “Eu também te saúdo. Vem, e sê
feliz!”
Eu a vi. Estava na casa de Belém, no quarto que ela ocupava, atenta em
embalar Jesus, para fazê-lo dormir. No quarto estava o tear de Maria e uns
trabalhos de costura. Parecia que Maria tivesse parado o trabalho para dar
de mamar ao Menino, trocar-lhe as faixas, ou melhor, as fraldas, pois ele já
era um bebê de meses. Diria seis ou oito meses, no máximo, e ela estava
pensando em voltar ao trabalho, assim que o Menino tivesse adormecido.
Já era fim de tarde. O pôr-do-sol estava quase terminando, espalhando
flocos de ouro pelo céu sereno. Os rebanhos voltavam ao cercado, pastando
aqui e acolá as últimas folhas de um prado florido, e baliam, levantando o
focinho.
O Menino custava a adormecer. Parecia estar um pouco inquieto, como
os bebês costumam ficar por causa do nascer dos dentes, ou por algum
outro desconforto do nascituro.
33.2
Escrevi, como pude, no escuro daquela hora matinal, num pedaço de
papel, e agora o copio aqui:

“As nuvenzinhas douradas – quais rebanhos do Senhor.


Sobre o prado todo em flor – um outro rebanho está a olhar.
Mas se eu tivesse todos os rebanhos – que estão sobre a terra
Meu cordeirinho querido – haverias de ser sempre Tu…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…
Mil estrelas reluzentes – estão no céu a olhar.
Tuas serenas pupilas – não as faças mais chorar.
Os teus olhos de safira – são as estrelas do meu coração.
O teu pranto é a minha dor! – Oh! Não chores mais…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…

Todos os anjos resplandecentes – que no Paraíso estão,


fazem coroa a Ti inocente – para encantar-se com teu rosto.
Mas Tu choras. Queres a mamãe. – Queres a mamãe, mamãe,
aqui pertinho cantando: – nana nenê, nana nenê…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…

Depois o céu se tornará cor-de-rosa – pela aurora que retorna,


e a mamãe ainda não repousa – para não te deixar chorar.
Ao despertar, dirás: “mamãe!” – “Filho!”, eu te direi,
e um beijo de amor e vida – junto ao leite te darei…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…

Sem mamãe não podes estar – nem mesmo no Céu sonhando.


Vem ficar sob o meu véu, que eu te farei dormir.
O meu peito será teu travesseiro – os meus braços o teu berço.
Não tenhas medo algum! – Eu estou aqui Contigo…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…

Eu Contigo estarei sempre. – És a vida do meu coração…


Ele dorme… Parece uma flor – pousado sobre o meu seio…
Ele dorme… Não perturbem! – seu Pai Santo estará vendo?
Esta vista enxuga o pranto – do meu doce Jesus…
Dorme, dorme, dorme, dorme…
Não chores mais…

33.3
Falar da graça desta cena, é impossível. Não é mais que uma mãe que
embala o seu pequenino. Mas é aquela mãe, e Ele é aquele Pequenino!
Poderia pensar que graça, que amor, que pureza, que Céu há nesta pequena,
grande e suave cena, que só com sua lembrança me alegra. Para confirmá-la
fica a melodia, que eu repito para mim. Para fazê-la ouvir também a ela.
Mas eu não tenho aquela voz de Maria, de prata, puríssima, a voz
virginal!… E, ao cantar, ficarei parecendo um realejo sem sonoridade. Mas,
não importa. Farei como puder. Que bela canção não seria, para ser cantada
em torno ao Berço de Natal!
A mãe antes balançava o berço. Mas depois, vendo que Jesus não se
aquietava, tomou-o no colo, sentou-se perto da janela aberta, ao lado do
bercinho e, balançando-o levemente, ao ritmo do canto, repetiu a cantiga
duas vezes, até que o pequeno Jesus fechou os olhinhos, inclinou a
cabecinha sobre o peito materno, e adormeceu assim, com o rostinho
comprimido no calor bom daquele seio, com uma das mãozinhas apoiada
sobre o seio da mãe, perto de seu rostinho rosado, e a outra mão
abandonada sobre o colo materno. O véu de Maria fazia sombra para o
santo Filhinho.
Depois Maria se levantou, com o maior dos cuidados, e colocou o seu
Jesus no bercinho, cobrindo-o com os pequenos panos, estendeu por cima
um véu para protegê-lo das moscas e do ar, e ficou parada ali,
contemplando o seu Tesouro adormecido. Maria tinha uma mão sobre o
coração, e a outra ainda apoiada sobre o berço, pronta para balançá-lo, se
houvesse algum sinal de que o menino ia despertar, e sorria, feliz, estando
um pouco inclinada, enquanto as sombras e o silêncio desciam sobre a terra
e invadiam o quartinho da Virgem.
Que paz! Que beleza! Que felicidade!
33.4
Não é uma visão grandiosa, talvez seja julgada inútil no conjunto das
outras porque não revela nada de especial. Eu sei. Mas para mim é uma
verdadeira graça, e assim a reputo, porque torna plácido o meu espírito,
puro e amoroso, como se estivesse sendo recriado pelas mãos da mãe.
Penso que também a ela será agradável por este motivo. Somos todos
“crianças.” Melhor assim! Desta forma agradamos a Jesus. Os outros,
doutos e complicados, pensem o que quiserem, e nos chamem de “pueris.”
Nós não nos preocupamos com isso, não é mesmo?
34. Adoração dos Magos. É “Evangelho da fé”.
28 de fevereiro de 1944.
34.1
Meu monitor interior me diz:
– Dá a estas contemplações[57] que terás, e ao que irei te ditar o nome
de “evangelhos da fé”, porque virão ilustrar o poder da fé e dos seus frutos,
a ti e aos outros, confirmando-vos na fé em Deus.

Vejo Belém pequena e branca, toda recolhida como uma ninhada, sob
34.2

a luz das estrelas. Duas ruas principais a cortam em cruz, uma que vem de
fora da cidade, e é a rua mestra que depois prossegue além da cidade, e a
outra, que vai de uma à outra extremidade da cidade, mas sem ultrapassá-la.
Outras vielas repartem esta pequena cidade, sem a menor norma de um
plano de ruas como nós o concebemos, pelo contrário, adaptam-se a um
solo cheio de desníveis e às casas que surgem aqui e ali, segundo os
caprichos do solo e de seus construtores. De tal modo que possam servir de
esquinas para a rua que passa ao lado, obrigando esta a ficar como uma fita
que vai-se desenrolando sinuosamente, em vez de seguir uma linha reta, que
vai daqui até lá, sem desvios. De vez em quando, aparece uma pracinha: ou
é a pracinha de uma feira, ou por ali há alguma fonte, ou, então, por causa
do costume de construir aqui e ali sem nenhuma regra, sobrou um resto
enviesado de terreno, sobre o qual já não é possível construir mais nada.
No ponto em que tive a idéia de parar um pouco, há um exemplo dessas
pracinhas irregulares. Ela deveria ser quadrada ou, pelo menos, retangular.
Mas, ao contrário, saiu um trapézio tão estranho, que ficou parecendo um
triângulo agudo, cortado perto do vértice. No lado mais longo, o da base do
triângulo, há uma construção ampla e baixa. É a maior construção da
cidade. Por fora passa um paredão liso e nu, no qual se abrem apenas dois
portões que estão bem fechados. Por dentro, ao invés, no seu largo
quadrado, abrem-se muitas janelas no primeiro plano, enquanto embaixo
ficam os pórticos, que cercam os pátios cheios de palha e de detritos
espalhados pelo chão, com tanques, onde os cavalos e outros animais são
levados para beber. Nas rústicas colunas dos pórticos existem argolas às
quais ficam amarrados os animais, e há também um grande telheiro para
abrigar os rebanhos e cavalgaduras. Compreendo que aqui é o albergue de
Belém.
Sobre os dois lados iguais há casas e casinhas, tendo algumas hortas à
frente, porque entre elas há uma que está com a fachada para a praça, e
outra com os fundos da casa para a mesma praça. Do lado mais curto,
defronte ao caravançará, há uma casinha isolada com uma pequena escada
externa que, ao meio da fachada, dá entrada para os quartos dos moradores.
Os quartos estão todos fechados, porque agora é noite. E a esta hora, não há
ninguém pelas ruas.
34.3
Vejo que a noite vai-se tornando mais clara pela luz das estrelas que
descem do céu; são tão belas no céu do Oriente, tão vivas e grandes, que até
parecem estar perto de nós, e que nos será fácil alcançá-las e tocar com a
mão essas flores que brilham no veludo do firmamento. Elevando o olhar,
tento compreender qual será a fonte deste aumento de luz. É uma estrela, de
grandeza extraordinária, que a faz parecer uma pequena lua, que vem
avançando pelo céu de Belém. As outras estrelas parecem eclipsar-se,
abrindo caminho para ela, como servas diante de sua rainha que vai
passando, pois a tal ponto ela as supera em brilho, que as faz desaparecer!
Do corpo da estrela, que parece uma grande safira clara e acesa por um sol
que está no seu interior, sai uma esteira de luz, na qual fundem-se o loiro
dos topázios, o verde das esmeraldas, o leitoso das opalas, o sanguíneo
fulgor dos rubis e o suave cintilar das ametistas, com a cor predominante da
safira. Todas as pedras preciosas da terra estão naquela esteira de luz, que
vem varrendo o céu, num movimento veloz e ondulante, como se fosse
viva. Mas a cor que predomina é a que desce do corpo da estrela: uma cor
celeste de safira clara, que tinge de prata azulada as casas, as ruas e o chão
de Belém, berço do Salvador. Já não é mais a pobre cidade, que para nós era
menos importante do que um povoado rural. Agora, é uma fantástica cidade
dos contos de fada, na qual tudo é de prata. Até a água das fontes e dos
tanques parece de diamante líquido.
Emitindo um fluxo de luz mais vivo, a estrela paira sobre a pequena
casa, que está do lado mais curto da pracinha. Nem os moradores da casa,
nem os habitantes de Belém a vêem, porque estão dormindo, e suas casas
estão fechadas; mas a estrela acelera as suas palpitações de luz, faz vibrar
sua cauda, e solta ondulações luminosas mais fortes, traçando pequenos
semicírculos no céu, que se ilumina todo com esta rede de astros que ela
arrasta consigo, numa rede de pedras preciosas, que esplendem, tingindo
nas mais indistintas cores as outras estrelas, como para comunicar-lhes uma
palavra de alegria.
A casinha está toda iluminada por este fogo líquido de gemas. O teto do
pequeno terraço, a escadinha de pedra escura, a pequena porta, tudo virou
um bloco de pura prata, polvilhado com pó de diamantes e pérolas. Nenhum
palácio real da terra jamais teve, ou terá, uma escada como esta, feita para
receber a passagem dos anjos, feita para ser usada pela mãe, que é mãe de
Deus. Seus pequenos pés de virgem imaculada podem pousar sobre aquele
cândido esplendor, os seus pequenos pés destinados a pousar sobre os
degraus do trono de Deus. Mas a virgem ainda não está sabendo de nada.
Ela está velando sobre o berço de seu Filho, rezando. Sua alma tem
esplendores que superam a estrela que está embelezando as coisas.
34.4
Da rua mestra, vem chegando uma cavalgada. Cavalos arreados ou
conduzidos a mão, dromedários e camelos, montados ou carregados com
suas cargas. O barulho dos cascos faz um rumor como o da água, quando
cai sobre as pedras de um riacho. Reunidos na praça, todos param. A
cavalgada, vista sob a luz da estrela, é fantástica em seu esplendor. Os
ornamentos de primeira classe sobre as cavalgaduras, as vestes dos
cavaleiros, o seu aspecto, as bagagens, tudo está brilhando, unindo e
reavivando, o esplendor do metal, do couro, da seda, das pedras preciosas,
dos pelos, ao brilho da estrela. Os olhos também cintilam, as bocas se
enchem de riso, porque um outro esplendor brilhou nos corações: o
esplendor de uma alegria sobrenatural.
Enquanto os servos se põem a caminho do caravançará com os animais,
três da caravana desmontam de suas cavalgaduras, que um servo logo leva
para outro lugar, dirigindo-se a pé para a casa. Prostram-se com a fronte até
o chão, beijando o pó. São três poderosos. Isto é o que nos estão dizendo as
suas vestes, riquíssimas. Um, de pele muito escura, tendo apeado de um
camelo, envolve-se todo num manto de seda brilhante, ajustado à cinta por
um aro precioso do qual pendem um punhal ou uma espada, tendo esta o
punho cravejado de pedras preciosas. Os outros, que apearam de dois
esplêndidos cavalos, estão vestidos, um de um tecido listrado muito bonito,
no qual predomina a cor amarela, com uma veste feita como um longo
dominó, ornado com capuz e cordão, parecendo um só trabalho de filigrana
de ouro, com muitos pespontos de bordados em ouro. O terceiro traz uma
espécie de camisa de seda, calças largas e longas, que se estreitam perto dos
pés e se envolve com um xale muito fino, que mais parece um jardim
florido, de tão vivas que são as flores com que está todo decorado. Na
cabeça traz um turbante preso por uma correntinha feita de engastes, com
diamantes.
Depois de terem venerado a casa onde está o Salvador, eles se
levantam, e vão até o caravançará, onde os servos já bateram à porta,
fazendo-a abrir.
Aqui cessa a visão, 34.5que recomeça, três horas depois, com a cena da
adoração de Jesus pelos Magos.
Agora, já é dia. Um belo sol resplende no céu da tarde. Um dos três
servos atravessa a praça e sobe a escadinha da pequena casa. Depois, entra.
Torna a sair. Volta ao albergue.
Saem os três sábios, acompanhados cada um pelo próprio servo.
Atravessam a praça. Os raros transeuntes viram-se para olhar os pomposos
personagens que passam pela praça lentamente e com solenidade. Entre a
entrada do servo e aquela dos três, passou-se um bom quarto de hora, e esse
tempo serviu aos moradores da casinha para se prepararem a receber os
hóspedes.
Eles se mostram agora mais ricamente vestidos do que na tarde anterior.
As sedas resplendem, as gemas brilham, um grande penacho de penas
preciosas entremeadas com fragmentos ainda mais preciosos, tremula e
cintila sobre a cabeça daquele que está com o turbante.
Os servos vão levando, um deles um cofre todo marchetado, cujas
partes mais reforçadas são de ouro burilado; o segundo leva um cálice
muito bem trabalhado, coberto com uma tampa ainda mais artística, toda de
ouro; o terceiro leva uma espécie de ânfora larga e baixa, também de ouro,
tampada com uma peça em forma de pirâmide, com um brilhante no
vértice. Devem ser coisas pesadas, porque os servos que as transportam
estão fazendo muita força, especialmente o que transporta o cofre.
Os três sobem a escada e entram. Entram em um quarto, que se estende
da rua até os fundos da casa. Vê-se a pequena horta na parte posterior da
casa, por uma pequena janela aberta ao sol. Outras portas se abrem nas duas
outras paredes, e olhando de soslaio, lá estão os proprietários: um homem e
uma mulher, três ou quatro adolescentes e crianças.
34.6
Maria está sentada com o Menino no colo, perto dela, em pé, está
José. Mas ela também se levanta e se inclina, quando vê entrar os três
Magos. Maria está toda vestida de branco. Tão bonita na sua simples veste
cândida, que a cobre da base do pescoço até aos pés, dos ombros aos
delicados pulsos, tão bonita em sua cabeça pequena e coroada de tranças
loiras, no rosto que a emoção faz ficar vivamente rosado, nos olhos que
sorriem com doçura, na boca que se abre para a saudação, dizendo: “Deus
esteja convosco”, que, por um instante, os três se detêm, impressionados.
Depois, eles dão mais alguns passos para a frente, indo prostrarem-se aos
seus pés. Pedem a ela que se assente.
Eles, por sua vez, não se sentam, por mais que ela lhes peça. Ficam de
joelhos, apoiados sobre os calcanhares. Atrás deles, também de joelhos,
estão os três servos. Estes estão logo atrás da soleira. Eles puseram diante
de si os três objetos que levaram, e estão esperando.
Os três sábios contemplam o Menino, que me parece ter de nove meses
a um ano, de tão esperto e robusto que está! Ele está sentado no colo da
mamãe, sorri e balbucia com uma vozinha de passarinho. Ele também está
todo vestido de branco, como a mamãe, com sandalinhas nos pés
minúsculos. Sua veste é muito simples: uma pequena túnica, da qual saem
os pezinhos irrequietos, as mãozinhas gorduchas que gostariam de apanhar
tudo o que os olhos vêem, e, sobretudo seu rostinho muito bonito, no qual
brilham os olhos de um azul escuro, enquanto a boca faz umas covinhas aos
lados, quando ele ri, descobrindo os primeiros dentinhos pequenos. Os
caracoizinhos de seus loiros cabelos parecem ouro puro em pó, de tão leves
e brilhantes que são.
34.7
O mais velho dos sábios fala por todos. Explica a Maria que eles
viram, numa noite no mês de dezembro passado, acender-se uma nova
estrela no céu com esplendor fora do comum. Nunca os mapas do céu
tinham trazido aquele astro, nem falado nele. O seu nome não era
conhecido, porque não tinha nome. Tendo, então, nascido do seio de Deus,
aquela estrela teria aparecido para vir dizer aos homens alguma verdade
bendita, algum segredo de Deus. Mas os homens não lhe haviam dado
importância, estando eles com a alma presa na lama. Não eram capazes de
levantar o olhar para Deus, não sabendo ler as palavras escritas por Ele,
eterno bendito, com seus astros de fogo na abóbada dos céus.
Eles a tinham visto, e se esforçaram para escutar sua voz. Deixando,
pois, de lado, mas com alegria, o pouco descanso do sono que concediam
aos seus membros, esquecendo-se até de comer, eles se haviam
aprofundado no estudo do zodíaco. As conjugações dos astros, o tempo, a
estação, o cálculo das horas passadas e das combinações astronômicas lhes
haviam dito o nome e o segredo da estrela. O seu nome: “Messias.” E o seu
segredo: “O Messias veio ao mundo.” Então, partiram para adorá-lo. Cada
um deles, sem os outros dois saberem. Por montes e desertos, vales e rios,
viajando de noite, foram tomando o rumo da Palestina, porque este era o
rumo da estrela. Para cada um deles, vindo de três pontos diferentes da
terra, ela ia naquele rumo. Eles se tinham encontrado depois, além do Mar
Morto. A vontade de Deus os tinha reunido lá, e continuaram a viagem,
juntos, se entendiam, ainda que cada um falasse a sua própria língua,
entendendo e podendo falar a língua de cada região em que se achassem,
por um milagre do Eterno.
Juntos tinham ido a Jerusalém, porque o Messias devia ser o Rei de
Jerusalém. O Rei dos judeus. Mas lá a estrela se tinha escondido, sob o céu
daquela cidade, e eles sentiram seus corações partirem-se de dor,
começando então a examinar suas consciências, para descobrirem se não
teriam deixado de merecer a proteção de Deus. Mas, tranqüilizadas suas
consciências, haviam se dirigido ao rei Herodes – perguntando-lhe em que
palácio havia nascido o Rei dos judeus, pois eles o tinham vindo adorar. O
rei, tendo reunido os príncipes dos sacerdotes e os escribas, lhes perguntou
onde se esperava que nascesse o Messias. Eles lhe responderam: “Em
Belém de Judá.”
Tomaram, pois, os Magos o rumo de Belém, e a estrela tornou a
aparecer aos seus olhos. Quando deixaram a Cidade Santa, na tarde anterior,
a estrela tinha aumentado seus esplendores, e o céu parecia um incêndio.
Depois, a estrela parou, reunindo toda a luz das outras estrelas com a sua
luz, sobre esta casa. Então, eles compreenderam que ali estava o Filho de
Deus. E agora o estavam adorando, oferecendo-lhe os seus pobres presentes
e, mais do que tudo, oferecendo-lhe os seus corações, que nunca mais
cessariam de bendizer a Deus pela graça concedida, nem de amar o seu
Filho, cuja Humanidade eles estavam vendo. Depois, iriam, na volta,
informar ao rei Herodes, porque ele também queria adorar o Menino.
34.8
– Aqui tens o ouro, como convém a um rei; aqui tens o incenso, como
convém a Deus; e aqui tens, ó mãe, a mirra, pois o teu Filho é Homem,
além de Deus e da carne e da vida humana conhecerá a amargura e a lei
inevitável da morte. Nosso amor não queria dizer-lhe estas palavras, mas
ficar sempre pensando que Ele é eterno, até em sua carne, como eterno é o
seu Espírito. Mas, ó mulher, se os nossos mapas, e também as nossas almas,
não erram, Ele é o teu Filho, é o Salvador, o Cristo de Deus, e por isso
deverá, para salvar a terra, tomar para Si o seu mal, um dos quais é o
castigo da morte. Esta resina é para aquela hora. Para que os corpos que são
santos não conheçam a putrefação da corrupção, e conservem sua
integridade até o dia da ressurreição. Que por estes nossos presentes Ele se
lembre de nós e salve a estes seus servos, dando-lhes o seu Reino. Por
enquanto, para que sejamos santificados, que a mãe, conceda o seu
Pequenino ao nosso amor, para que, beijando os seus pés, desça sobre nós a
bênção celestial.
Maria, passada a angústia em que as palavras do sábio a haviam
mergulhado, esconde, com um sorriso, a tristeza daquelas fúnebres
evocações, e lhes apresenta o Menino. Coloca-o nos braços do mais velho,
que o beija e é por ele acariciado, e depois o passa para os outros dois.
Jesus sorri, e brinca com as correntinhas e as franjas dos três e olha‐
com curiosidade o cofre aberto, cheio de uma coisa amarela que brilha, e ri,
ao ver que o sol faz uma espécie de arco-íris, ao bater sobre a brilhante
tampa da mirra.
34.9
Depois, os três entregam a Maria o Menino, e se levantam. Maria
também se levanta. Inclinam-se reciprocamente, depois que o mais novo da
ordens ao seu servo, que sai. Os três falam ainda um pouco. Não
conseguem decidir-se a se afastarem daquela casa. Em seus olhos há
lágrimas de emoção. Por fim, eles se dirigem à saída, acompanhados por
Maria e José.
O Menino quis descer e dar a mãozinha ao mais velho dos três, e
caminha assim, ajudado pela mão de Maria e do sábio, que se inclinaram
para pegá-lo pela mão. Jesus dá um passinho ainda incerto como fazem os
pequeninos e ri, batendo os pezinhos sobre os riscos que a luz do sol faz
sobre o pavimento.
Chegando à soleira (não se deve esquecer que o salão tinha o mesmo
comprimento da casa) os três se despedem, ajoelhando-se mais uma vez e
beijando os pezinhos de Jesus. Maria, inclinada sobre o Pequenino, toma-
lhe a mãozinha, e a vai guiando, fazendo-o traçar um gesto de bênção sobre
a cabeça de cada um dos Magos. É já um sinal da cruz[58], traçado pelos
dedinhos de Jesus, guiados por Maria.
Depois, os três descem a escada. A caravana já pronta os está
esperando. Os cavalos já estão arreados e seus arreios ornados brilham aos
últimos raios do sol, que está para se pôr. O povo se aglomerou na pracinha
para presenciar aquele espetáculo único.
Jesus ri e bate as mãozinhas. A mamãe o ergueu e colocou sobre o
parapeito, que limita o patamar, segurando-o com um dos braços para que
não caia. José desceu com os três e segura para cada um deles o estribo,
enquanto eles sobem em seus cavalos e no camelo.
Agora os servos e os patrões estão montados. É dada a ordem de partir.
Os três se inclinam até o pescoço da cavalgadura, em uma última saudação.
José também se inclina. Maria também o faz, e torna a guiar a mãozinha de
Jesus, em um gesto de adeus e de bênção.

34.10
Jesus diz:
– E agora? Que vos direi, ó almas, que percebeis que a fé está mor‐
rendo? Aqueles sábios do Oriente nada tinham que lhes desse a certeza da
verdade. Nada tinham de sobrenatural. Tinham apenas os cálculos
astronômicos e as suas reflexões, que a vida íntegra, que eles levaram,
tornava perfeitas. Contudo, tiveram fé. Fé em tudo: fé na ciência, fé na
consciência, fé na bondade divina.
Pela ciência, acreditaram no sinal da nova estrela, que não podia deixar
de ser “aquela”, que era esperada, havia séculos, pela humanidade: o
Messias. Pela consciência, tiveram fé na voz da mesma que, recebendo
“vozes” celestes, lhes dizia: “É aquela estrela que assinala a chegada do
Messias.” Pela bondade, tiveram fé que Deus não os teria enganado e, visto
que a sua intenção era reta, Ele os teria ajudado, de todos os modos, a
chegar até à meta desejada.
E eles tiveram êxito. Só eles, entre tantos estudiosos de sinais,
compreenderam aquele sinal, porque só eles tinham na alma a ânsia de
conhecer as palavras de Deus com um fim reto, que consistia antes de tudo
em dar imediata honra e louvor a Deus.
34.11
Não procuravam sua própria utilidade. Ao contrário, eles vão de
encontro a fadigas e despesas, e não pedem nenhuma compensação
humana. Pedem somente que o seu Deus se lembre deles e os salve para a
eternidade.
Assim como não têm nenhum pensamento de futura compensação
humana, não têm, quando decidem a viagem, nenhuma preocupação
humana. Se fôsseis vós, teríeis pensado em mil dificuldades: “Como
poderei fazer uma viagem tão grande, através de países e povos de línguas
tão diferentes? Será que vão acreditar em mim, ou irão prender-me como
espião? Que ajuda me darão, quando tiver que atravessar desertos, rios e
montanhas? E o calor? E os ventos dos planaltos? E as febres dos
pantanais? E as cheias das águas fluviais? E as comidas diferentes? E a
linguagem diferente? E… e… e…”. Assim é que raciocinais. Eles não
raciocinam assim. Mas dizem, com uma sincera e santa ousadia: “Tu, ó
Deus, lês os nossos corações, e vês qual o fim que perseguimos. Em tuas
mãos nos entregamos. Concede-nos a alegria sobre humana de adorar a tua
Segunda Pessoa, que se fez Carne para a salvação do mundo”.
Basta. Eles se põem a caminho, partindo das longínquas Índias[59].
(Jesus me diz depois que por Índias querem dizer Ásia meridional, onde
agora está a Turquia, o Afeganistão e a Pérsia). Das cadeias de montanhas
da Mongólia, sobre as quais voam somente águias e abutres, onde Deus fala
pelo zumbido dos ventos, pelo estrondo das torrentes, escrevendo mistério
sobre as páginas imensas das geleiras. Das terras onde nasce o Nilo, que vai
deslizando como uma veia verde-azul, ao encontro do coração azul do
Mediterrâneo, nem os picos, nem as selvas, nem os desertos, oceanos secos
mais perigosos do que os marinhos, nada disso detêm a marcha deles. A
estrela brilha sobre a noite deles, não lhes permitindo dormir. Quando se
procura a Deus, os hábitos animais devem ceder às impaciências e às
necessidades sobre humanas.
A estrela os chama, ora do Norte, ora do Oriente, ora do Sul, e, por um
milagre de Deus, vai guiando os três para um certo ponto, como por um
outro milagre, os reúne, depois de tantos milhares de quilômetros, naquele
ponto, e, por um outro milagre ainda, lhes dá, antecipando a sabedoria
pentecostal, o dom de se entenderem e de se fazerem entender, assim como
é no Paraíso, onde se fala uma única língua: a de Deus.
34.12
Um único momento de aflição os assalta, e é quando a estrela
desaparece, e eles, humildes, porque são realmente grandes, não pensam
que isto tenha acontecido por causa da maldade de outrem, já que os
corruptos de Jerusalém não mereceram ver a estrela de Deus. Mas, o que
eles pensam é que eles próprios não mereçam a ajuda de Deus, pondo-se a
examinarem suas consciências com tremor e com uma contrição, pronta a
pedir perdão.
Mas a sua consciência os tranqüiliza. Almas acostumadas à meditação,
eles têm uma consciência muito sensível, aperfeiçoada por uma atenção
constante, por uma introspecção aguda, que faz do seu interior um
verdadeiro espelho sobre o qual refletem as menores sombras dos
acontecimentos diários. Eles fizeram da voz que os adverte a própria
mestra, voz que grita, não só ao menor erro, mas até a uma simples
possibilidade de erro, o que é humano, como a complacência com o seu
próprio eu. Por isso, quando eles se põem diante desta mestra, diante deste
espelho tão severo e tão nítido, sabem que ele não lhes mente, mas os
encoraja, tomando novo alento.
“Oh! Que doce coisa é sentir que nada há em nós de contrário a Deus!
Sentir que Ele olha com complacência o ânimo do filho fiel e o abençoa.
Deste sentimento provém o aumento de fé e de confiança, de esperança,
fortaleza e paciência. Agora é hora de tempestade. Mas ela passará, porque
Deus me ama e sabe que eu o amo, e não deixará de ajudar-me ainda.”
Assim é que falam os que têm aquela paz, que provém de uma consciência
reta, que é a rainha de todas as suas ações.
34.13
Eu disse que eles eram “humildes, porque verdadeiramente grandes.”
Em vossa vida, ao invés, que é que acontece? Acontece que um, não porque
seja grande, mas porque é mais prepotente, se faz poderoso por sua
prepotência, nunca humilde, pela vossa insensata idolatria,. Há pobres
coitados que, só por serem mordomos de alguém arrogante, ou porteiros de
algum gabinete, funcionários de alguma repartição, servos afinal, de quem
assim os fez, costumam tomar a pose de semideuses. Tem-se pena até de
vê-los!…
Eles, os três sábios, eram realmente grandes. Em primeiro lugar, por
virtude sobrenatural; em segundo lugar, pela ciência; e, por último, pela
riqueza. Mas eles se julgam nada: pó sobre o pó da terra, se comparados
com Deus Altíssimo, que cria os mundos com um sorriso, espalhando-os
pelo espaço, como grãos de trigo, para alegrar os olhos dos anjos com os
colares de estrelas.
Mas eles se consideram nada, diante de Deus Altíssimo, que criou o
planeta, sobre o qual eles vivem, e como Escultor infinito em sua ilimitada
obra fez tudo bem diversificado, colocando, aqui uma série de colinas de
suave declive, com a força do seu polegar, acolá uma ossatura de picos e
escarpas, iguais as vértebras da terra, neste corpo desmesurado, do qual os
rios são as veias, os lagos são as pelves, os oceanos são os corações, tendo
as florestas como vestes, as nuvens como véus, as geleiras de cristal como
decorações, as turquezas e as esmeraldas como gemas, as opalas e os
berilos de todas as águas que descem cantando, com as selvas e os ventos,
formando o grande coro de louvor ao seu Senhor.
Eles se consideram nada em sua sabedoria, diante do Deus Altíssimo,
do qual vem a sua sabedoria, pois foi Ele quem lhes deu olhos, ainda mais
poderosos que suas duas pupilas, pelas quais eles vêem as coisas: os olhos
da alma, que sabem ler a palavra não escrita por mão humana nas coisas,
onde esta palavra foi gravada pelo pensamento de Deus.
Eles se consideram nada em sua riqueza: um átomo, diante da riqueza
do Dono do universo, que espalha metais e pedras preciosas nos astros e
planetas, e abundâncias sobrenaturais, riquezas inesgotáveis, no coração de
quem O ama.
34.14
Tendo eles chegado diante de uma pobre casa, na mais insignificante
das cidades de Judá, não sacodem a cabeça dizendo: “Impossível”, mas
dobram as costas, os joelhos, e especialmente o coração, e adoram. Lá, atrás
daquela pobre parede, está Deus. Aquele Deus que eles sempre invocaram,
não ousando nunca, nem de longe, esperar que o haveriam de ver. Mas que
por eles foi invocado pelo bem de toda a humanidade e pelo bem eterno
“deles” mesmos. Oh! Só isto é o que eles desejavam para si. Poderem vê-lo,
conhecê-lo, possuí-lo naquela vida que não tem nem auroras, nem
crepúsculos!
Ele está lá, atrás daquela pobre parede. Quem sabe se o seu coração de
Menino, que é também o coração de um Deus, não ouça estes três corações
que, inclinados no pó da estrada, bradam: “Santo, Santo, Santo. Bendito o
Senhor nosso Deus. Glória a Ele nos Céus altíssimos, e paz aos seus servos.
Glória, glória, glória e bênção”? Isto eles perguntam, tremendo de amor.
Por toda a noite, e na manhã seguinte preparam com a mais viva oração, o
seu espírito, para entrarem em comunhão com o Deus-Menino.
Eles não vão a este altar, que é um seio virginal, que traz em si a Hóstia
Divina, como vós ides a eles com a alma cheia de solicitudes humanas. Eles
se esquecem do sono e do alimento e se usam suas mais belas vestes, não é
para ostentação humana, mas para prestar honra ao Rei dos reis. Nos
palácios dos soberanos, os dignitários se apresentam com suas mais belas
vestes. Então, não deveriam eles ir apresentar-se a este Rei com suas vestes
de gala? Que festa maior podia haver para eles do que esta?
Oh! Lá em suas terras longínquas, muitas e muitas vezes precisaram se
adornar para prestar honras e oferecer seus préstimos a homens como eles.
Era, pois, justo que se humilhassem aos pés do Rei supremo e lá
depositassem as suas púrpuras e jóias, sedas e plumas preciosas. Pôr-lhe aos
pés, diante daqueles benditos pezinhos, as fibras da terra, as gemas da terra,
as plumas da terra, os metais da terra — que são ainda obras dele — para
que também elas, essas coisas da terra, adorem o seu Criador. Seriam felizes
se a Criancinha lhes ordenasse que se estendessem no chão, como se fossem
um tapete vivo, aos seus passinhos de Menino, e os pisasse, Ele que deixou
as estrelas por amor deles, que nada mais são do que pó.
34.15
Humildes e generosos. Obedientes às “vozes” do Alto. Essas vozes
mandam que eles levem presentes ao Rei recém-nascido. Eles levam
presentes. Não dizem: “Ele é rico, e não precisa disso. Ele é Deus, e não
conhecerá a morte”. Eles obedecem. São os primeiros que acodem à
pobreza do Salvador. Como chegou em boa hora aquele ouro, para quem
amanhã deveria sair de sua terra como fugitivo! Como foi significativa
aquela mirra, para quem, dentro em breve, seria morto. Como foi piedoso
aquele incenso, para quem teria que sentir o mau cheiro da luxúria humana
fervendo ao redor de sua infinita pureza!
Humildes, generosos, obedientes e respeitosos um para com o outro. As
virtudes geram outras virtudes. Das virtudes voltadas para Deus, nascem
virtudes para o próximo. Respeito que, no fim, é caridade. Combinaram
com o mais velho que lhe tocaria falar por todos, recebendo o primeiro
beijo do Salvador, segurando-o pela mãozinha. Os outros ainda poderão vê-
lo outras vezes. Mas ele, não. Ele está velho, e o dia de sua volta para Deus
está perto. Ele verá o Cristo, depois de sua terrível morte, e o acompanhará
junto com os outros que serão salvos, no dia da volta do Cristo para o Céu.
Mas não o verá mais nesta terra. Então, para seu viático, que lhe fique o
calor daquela mãozinha, que se confiou à sua mão enrugada.
Não há nenhuma inveja nos outros. Pelo contrário, há até um aumento
de veneração para com o mais velho dos sábios. Mais do que eles, mereceu
na certa, e por mais tempo. O Deus-Menino sabe disso. Ainda não fala, Ele
que é a Palavra do Pai, mas os Seus atos são palavras. E seja bendita a sua
inocente palavra, que mostra ser o seu predileto este velho.
34.16
Mas, ó filhos, há outros dois ensinamentos nesta visão.
A postura de José, que sabe ficar em “seu” lugar. Ele está presente
como guarda e tutor da Pureza e da Santidade. Mas não é um usurpador dos
direitos delas. É Maria, com o seu Jesus, que está recebendo homenagens e
palavras. José se alegra por ela, não ficando amargurado por ser uma figura
secundária. José é um justo: o Justo. É justo sempre, também nesta hora. As
fumaças da festa não lhe sobem à cabeça. Ele continua humilde e justo.
Ele se sente feliz pelos presentes. Não por si mesmo. Mas porque pensa
que com eles poderá fazer a vida de sua esposa e do doce Menino mais
cômoda. Não existe avidez em José. Ele é um trabalhador, e continuará a
trabalhar. Contanto que “Eles”, os seus dois amores, tenham o necessário, e
algum conforto. Nem ele nem os magos sabem que aqueles presentes vão
servir durante uma fuga e uma vida no exílio, nas quais as substâncias
desaparecem como uma nuvem impelida pelo vento… mas eles vão servir
também para quando voltarem à pátria, depois de terem perdido tudo o que
tinham deixado, os clientes, os móveis, salvando-se somente as paredes da
casa, protegida por Deus, porque nela é que Ele se uniu à virgem e se fez
Carne.
José é humilde, ele, que é guarda de Deus e da mãe de Deus, esposa do
Altíssimo, chega até a segurar o estribo para estes vassalos de Deus. José é
um pobre carpinteiro, porque a prepotência humana despojou os herdeiros
de Davi de suas propriedades reais. Mas ele é sempre da estirpe de Davi e
tem traços de rei. Também em relação a ele vale aquele dito: “Era humilde,
porque era realmente grande.”
34.17
Ainda um último, suave e significativo ensinamento.
É Maria, que segura a mão de Jesus, que ainda não sabe abençoar, e a
guia no gesto santo.
É sempre Maria que segura a mão de Jesus e a guia. Ainda hoje é
assim. Agora, Jesus sabe abençoar. Mas, às vezes, sua mão traspassada cai,
cansada e sem poder mais confiar, pois Ele sabe que é inútil abençoar. Na
verdade, vós destruís a minha bênção. Ela cai também indignada porque vós
me maldizeis. Então, é Maria que tira o desprezo feito a esta mão, ao beijá-
la. Oh! O beijo de minha mãe! Quem pode resistir a esse beijo? Depois, ela
segura o meu pulso, com seus dedos delicados, mas que são amorosamente
tão imperiosos e me força a abençoar.
Eu não posso repelir a minha mãe. Mas é preciso que vós vades à
procura dela, para fazê-la vossa advogada. Ela é minha rainha, antes de ser
vossa, e o seu amor por vós tem indulgências tais, que nem o meu conhece.
Ela, mesmo sem palavras, mas só com as pérolas do seu pranto e com a
lembrança da minha Cruz, cujo sinal ela me faz traçar no ar, defende a
vossa causa, e ainda me admoesta: “Tu és o Salvador. Salva!”
34.18
Eis, meus filhos, o “Evangelho da fé”, na aparição da cena dos
Magos. Meditai e imitai. Para o vosso bem.
[57] estas contemplações, a primeira das quais é a única a fazer parte da obra. As outras, chamadas igualmente “evangelhos da
fé”, não são episódios propriamente do “Evangelho come me foi revelado” e encontram-se no volume I Quaderni del 1944 (Os
cadernos de 1944).
[58] um sinal da cruz, que é o Tau, como Maria Valtorta anota entre parêntesis sobre uma cópia dactilografada. Letra do alfabeto
grego em forma de cruz, o “tau” é o sinal dos salvados indicado em: Ezequiel 9,4-6. Encontrá-lo-emos ainda, por exemplo, em:
397.3 -413.6 -491.3 -567.15 -635.4.11.
[59] longínquas Índias, Jesus me diz depois -assim anota Maria Valtorta em rodapé na página do caderno autógrafo -que por
Índias quer dizer Ásia meridional, onde agora se encontra o Turkemenistão, o Afganistão e a Pérsia; e acrescenta: explicações a
incluir em rodapé na folha.
35. A Fuga para o Egito. Ensinamentos
sobre a última visão ligada à vinda de Jesus.
9 de junho de 1944.
35.1
O meu espírito vê a seguinte cena.
É noite. José dorme em sua cama no seu pequeno quarto. Um sono
tranqüilo de quem descansa de muito trabalho, feito com honestidade e
capricho.
Eu o vejo na escuridão do ambiente, rompida apenas por um pouco da
luz do luar, que penetra por uma abertura da janela, encostada, mas não
totalmente fechada, como se José tivesse calor ou quisesse ter aquele pouco
de luz, para saber calcular o despontar da alvorada, levantando-se diligente.
Ele está deitado de lado e, no sono, sorri, quem sabe a qual sonho que esteja
tendo.
Mas, seu sorriso se transforma em preocupação. Ele suspira
profundamente, como se faz quando se tem um pesadelo, e acorda
sobressaltado. José se assenta sobre a cama, esfrega os olhos, e olha ao
redor de si. Olha, depois, para a janela, por onde está entrando a claridade
do luar. É noite alta, mas ele pega a roupa, que está estendida aos pés da
cama e, continuando sentado sobre a mesma, a vai vestindo sobre a túnica
branca de mangas curtas que ele trazia sobre a pele. Afastadas as cobertas,
põe os pés no chão e procura as sandálias. Depois ele as calça e amarra.
Põe-se em pé e vai até a porta, que está em frente de sua cama, não a que
está de lado e que dá para o salão onde foram recebidos os Magos.
Ele bate à porta, de leve, só um toc-toc, com a ponta dos dedos. José
deve ter ouvido que está sendo convidado a entrar, porque abre com
cuidado a porta, e a torna a encostar, sem fazer barulho. Antes de ir até à
porta, ele acendeu uma pequena candeia, de um só bico, e assim tem uma
luz para poder andar. Ele entra. Mas, em um quarto pouco maior do que o
seu, e no qual está uma caminha ao lado de um berço, ele vê uma luzinha já
acesa; a chama vacilante, que está a um canto, parece uma estrelinha de
uma luz tênue e dourada, que permite enxergar, mas sem incomodar quem
estiver dormindo.
35.2
Maria, porém, não está dormindo. Ela está ajoelhada junto ao berço,
vestida com sua veste clara, e está rezando, velando a Jesus que dorme
tranqüilo, Jesus que tem a idade em que o vi na visão dos Magos. É uma
criança de cerca de um ano, bonita, rósea e loira, que está dormindo, com a
cabecinha de cabelos encaracolados afundada no travesseiro, e com uma
mãozinha com o punho fechado, encostada na garganta.
– Não estás dormindo? –pergunta José, em voz baixa, e admirada–. Por
que? Jesus não está bem?
– Oh, não! Ele está bem. Eu estou rezando. Mas certamente depois
dormirei. Por que vieste, José?
Maria fala, permanecendo ajoelhada onde estava.
José fala em voz muito baixa, para não despertar o Menino, mas sua
voz é agitada.
– Precisamos ir embora logo daqui. Mas logo! Prepara o baú e um saco
com tudo o que puder caber nele. Eu vou preparar tudo o mais, e levarei o
mais que puder. Ao romper da aurora, fugiremos. Eu faria isso até antes,
mas preciso falar com a dona da casa…
– Mas, por que esta fuga?
– Depois, eu te falarei melhor. É por causa de Jesus. Um anjo me disse:
“Pega o Menino e a mãe, e foge para o Egito.” Não percas tempo. Eu vou
preparar o que puder.
35.3
Não há necessidade de dizer a Maria que não perca tempo. Assim que
ela ouviu falar de anjo, de Jesus e de fuga, compreendeu que está em perigo
o seu Filho, pôs-se em pé, branca como se tivesse um rosto de cera, com
uma mão posta sobre o coração, angustiada. Logo começou a mover-se,
desembaraçada e ligeira, e a arrumar as roupas no baú e num grande saco,
que ela estendeu sobre o leito, e que ainda não foi usado. Certamente está
aflita, mas não perde a cabeça, e faz tudo apressadamente, mas com ordem.
De vez em quando, ao passar por perto do berço, olha para o Menino, que
está dormindo sem saber de nada.
– Estás precisando de ajuda? –pergunta-lhe José, de vez em quando,
pondo a cabeça para dentro da porta, que está entreaberta.
– Não, obrigada –responde sempre Maria.
Somente quando o saco está cheio, e fica pesado, é que ela chama José
para ajudá-la a fechá-lo e levantá-lo da cama. Mas José não quer ser
ajudado e faz tudo sozinho, pegando o grande volume, e levando-o para o
seu quartinho.
– Pego também as cobertas de lã? –pergunta Maria.
– Pega o mais que puderes. Porque o que ficar estará perdido. Por isso,
o mais que puderes, apanha-o! Para nós vai ser bom, porque… porque
teremos pela frente uma longa viagem, Maria!…
José fica muito sentido, ao ter que dizer isso. Pode-se imaginar como
está Maria. Suspirando, ela vai dobrando suas colchas e as de José e ele as
amarra com uma corda:
– Vamos deixar os acolchoados e as esteiras –diz ele, enquanto amarra
as colchas–. Ainda que eu levasse três burrinhos, não posso sobrecarregá-
los demais. Temos que fazer uma longa e incômoda viagem, uma parte
pelas montanhas, e outra pelo deserto. Cobre bem Jesus. As noites serão
frias tanto nas montanhas, como no deserto. Apanhei os presentes dos
Magos, porque eles nos serão úteis lá embaixo. Tudo o que eu tiver gastarei
para comprar os dois burrinhos. Nós não podemos mandá-los de volta, e por
isso eu preciso adquiri-los. Eu vou, sem ficar esperando o romper da aurora.
Sei onde procurá-los. Tu, acabas de preparar tudo.
E sai. Maria recolhe ainda alguns objetos e, depois de ter ido ver Jesus,
sai e volta com duas pequenas vestes que parecem estar ainda úmidas,
talvez tenham sido lavadas no dia anterior. Ela as dobra e envolve em um
pano e as ajunta com as outras coisas. Já não há mais nada.
Ela olha ao redor e vê um brinquedo de Jesus em um canto: é uma
ovelhinha entalhada em madeira. Ela a pega com um soluço, e a beija. A
madeira está com os sinais dos dentinhos de Jesus, e as orelhas da
ovelhinha estão mordiscadas. Maria acaricia aquele objeto sem valor, feito
com uma madeira clara e comum, mas que para ela é de grande valor,
porque lhe fala do afeto de José por Jesus e lhe fala também do seu Menino.
Por isso o põe também junto com as outras coisas sobre o baú já fechado.
35.4
Agora, já não há mais nada mesmo. Só falta Jesus, que ainda está em
seu bercinho. Maria acha que é bom prepará-Lo também. Vai ao berço e o
sacode um pouco para despertá-Lo. Mas Ele dá apenas um leve sinal, e
virando-se para o outro lado, continua a dormir. Maria o acaricia de leve,
sobre os caracoizinhos. Jesus abre a boquinha para um bocejo. Maria se
inclina e o beija na face. Jesus acaba de despertar. Abre os olhos. Vê a
mamãe, e sorri, e estende as mãozinhas para o seio dela.
– Sim, amor da mamãe. Sim, o leite. Antes da hora habitual… Mas Tu
estás sempre pronto para sugar tua mamãe, meu santo cordeirinho!
Jesus ri e brinca, agitando os pezinhos para fora das cobertas, agitando
os braços com uma daquelas alegrias de criança, tão bela de se ver. Ele
apóia os pezinhos sobre o estômago da mãe, curva-se como um arco e apóia
também a cabecinha loira sobre o seu seio e, depois, se atira para trás,
rindo, com as mãozinhas agarradas aos cordõezinhos que ajustam o vestido
ao pescoço de Maria, procurando abri-lo. Em sua camisinha de linho Ele
está muito bonito, gorducho, rosado como uma flor.
Maria se inclina e, estando assim por cima do berço como uma
proteção, chora e sorri ao mesmo tempo, enquanto o Menino balbucia
aquelas palavras, de todos os bebês, que não são palavras, e entre as quais
ouve-se já clara e repetidamente a palavra “mamãe”. Ele olha para ela,
admirado por vê-la chorar. Estende uma mãozinha para as lágrimas que
caem, e se deixa molhar por aquelas carícias. Gracioso, torna a apoiar-se no
seio materno, e se encolhe todo, acariciando-o com sua mãozinha.
Maria o beija por entre os cabelos, e o pega no colo, senta-se e o veste.
O vestidinho de lã já está posto, e as sandalinhas também. Maria lhe dá de
mamar, Jesus suga contente o bom leite de sua mamãe e, quando percebe
que da direita está vindo menos, procura a esquerda, ri ao fazer isso,
olhando de alto a baixo para sua mamãe. Depois adormece de novo sobre o
seio dela. Sua bochecha rosada e gorducha está ainda contra o seio branco e
redondo.
Maria se levanta, lentamente, e o coloca sobre a colcha de seu leito.
Cobre-o com o seu manto. Volta ao berço e dobra as pequenas cobertas.
Fica pensando se não será bom pegar também o pequeno colchão. É tão
pequeno! Pode-se levar. Então, Ela o coloca, junto com o travesseiro, perto
das coisas já postas sobre o baú. Chora sobre o berço vazio a pobre mãe,
que está sendo perseguida com seu Filho.
35.5
José já está de volta.
– Estás pronta? Jesus está pronto? Pegaste as suas cobertas, a sua
caminha? Não podemos levar o berço, mas pelo menos que Ele tenha o seu
pequeno colchão, pobre Pequenino, que procuram a sua morte!
– José!
Maria dá um grito, enquanto se agarra ao braço de José.
– Sim, Maria, a sua morte. Herodes o quer morto… porque tem
medo… por causa do seu reino humano, ele tem medo deste Inocente,
aquela fera imunda. Que irá ele fazer, quando ficar sabendo que o Menino
fugiu, eu não sei. Mas nós já estaremos longe. Não creio que ele queira se
vingar, procurando-o até na Galiléia. Já lhe seria muito difícil descobrir que
nós somos galileus, e mais ainda, que nós somos de Nazaré, e quem é que
somos exatamente. A não ser que Satanás o ajude, para agradecê-lo por ser-
lhe um servo fiel. Mas… se isso acontecesse… Deus nos ajudará do mesmo
modo. Não chores, Maria. Ver-te chorar é para mim uma dor bem mais forte
do que a de ter que ir para o exílio.
– Perdoa-me, José. Não é por mim que eu choro, nem pelas poucas
coisas que vamos deixar. Eu choro por ti… Já tiveste que sacrificar-te tanto!
E agora tornas a ficar de novo sem clientes e sem casa. Quanto eu custo
para ti, ó José!
– Quanto? Não, Maria. Tu não me custas nada. Tu me consolas.
Sempre. Não fiques pensando no dia de amanhã. Nós temos as riquezas dos
magos. Elas nos ajudarão nos primeiros tempos. Depois, eu acharei
trabalho. Um operário honesto e que tenha capacidade, logo abre caminhos.
Já viste como foi aqui. As horas não me bastam para o trabalho que tenho.
– Eu sei. Mas, quem te aliviará da saudade?
– E a ti, quem te aliviará da saudade daquela casa de que tanto gostas?
– Jesus. Tendo-o, tenho o que lá tive.
– E eu, tendo Jesus, tenho a pátria a qual tenho esperado até a poucos
meses. Tenho o meu Deus. Estás vendo como não vou perder nada do que
me é mais querido sobre todas as coisas. Basta que salvemos a Jesus, que
tudo ficará conosco. Mesmo que não tivéssemos mais de ver este céu, estes
campos, nem aqueles ainda mais queridos da Galiléia, teríamos sempre
tudo, porque o temos. 35.6Vem, Maria, que o amanhecer está chegando. É
hora de irmos saudar a nossa hospedeira e pegar as nossas coisas. Tudo irá
bem.
Maria se levanta, obediente. Envolve-se no manto, enquanto José está
fazendo um último embrulho, e depois sai, transportando-o.
Maria soergue delicadamente o Menino, e o envolve com um xale,
apertando-o contra o coração. Olha para as paredes que a hospedaram
durante alguns meses, e, com uma mão, toca nelas de leve. Feliz casa, que
mereceu ser amada e abençoada por Maria!
Ela sai. Atravessa o pequeno quarto, que era de José, e entra no salão.
A dona da casa, em lágrimas, a beija e saúda, e, levantando uma das
extremidades do xale, beija na fronte o Menino, que está dormindo
tranqüilo. Descem pela escadinha externa.
Vem chegando uma primeira claridade da aurora, quando se começa a
ver alguma coisa. Naquela pouca luz, pode-se ver três burrinhos. O mais
robusto está carregado com as alfaias. Os outros, estão selados. José faz
força para acomodar bem o baú e os embrulhos sobre a albarda do primeiro.
Vejo as suas ferramentas de carpinteiro, amarradas em pacotes, dentro do
saco.
Ainda há saudações e lágrimas. Depois Maria monta no seu burrinho,
enquanto a dona da casa segura Jesus no colo, e o beija ainda, devolvendo-
O depois a Maria. José monta também, tendo antes amarrado o seu jumento
ao outro jumento, que vai com a bagagem, a fim de ficar com a mão livre
para segurar o burrinho de Maria, pelo cabresto.
A fuga tem início, enquanto Belém, que sonha ainda com a fantástica
cena dos Magos, dorme quieta, sem saber o que a espera.
E a visão cessa assim.

Jesus diz:
35.7

– Também as visões desta série terminam assim. Em boa paz com os


doutores difíceis, viemos te mostrando as cenas que precederam, que
acompanharam e que se seguiram à minha Vinda, não pelas cenas em si
mesmas, pois são muito conhecidas, por mais que tenham sido alteradas,
por elementos sobrepostos através dos séculos, sempre por causa daquele
modo de ver humano que, para dar maior louvor a Deus, e por isso é
perdoado, torna irreal o que é tão belo, se for deixado como é. Porque a
minha Humanidade e a de Maria não ficam por isso diminuídas, assim
como não fica ofendida a minha Divindade e a Majestade do Pai e o Amor
da Santíssima Trindade, por uma visão das coisas em sua realidade, mas, ao
contrário, esplendem os méritos de minha mãe e a minha humildade
perfeita. Assim como daí é que fulgura a bondade onipotente do eterno
Senhor. Mostramos estas cenas para poder aplicar a ti e aos outros o sentido
sobrenatural, que surge daí, dando-vos como norma de vida.
O Decálogo é a Lei. O meu Evangelho é a doutrina que vos torna mais
clara essa Lei e mais desejável para ser seguida. Bastariam esta Lei e esta
Doutrina para fazer os homens santos.
Mas vós estais tão embaraçados com a vossa humanidade, que (na
verdade, em vós ela ultrapassa demais ao espírito) que não podeis seguir
por estas vias, sem cair; ou então, parar, desencorajados. Dizeis a vós e a
quem queria fazer que vos adiantásseis, citando-vos os exemplos do
Evangelho: “Jesus, Maria, José (e assim por diante todos os santos) não
eram como nós. Eles eram fortes, foram logo consolados em suas dores, até
nas pequenas dores que sentiram! Eles não sentiam paixões. Eram já seres
fora da terra.”
Ah! Aquelas pequenas dores! Ah! Não sentiam as paixões!
35.8
A dor foi para nós a amiga fiel, e teve todos os mais variados
aspectos e nomes.
As paixões… Não useis erradamente um vocábulo, chamando de
“paixões” os vícios, que vos desencaminham. Chamai-os sinceramente de
“vícios” e, além disso, capitais. Quanto aos vícios, não é que os
ignorássemos. Nós tínhamos olhos e ouvidos, para ver e ouvir, e Satanás
fazia dançar esses vícios à nossa frente, mostrando-os nas obras, com a sua
imundície, ou tentando-nos com as suas insinuações. Mas a nossa vontade,
inclinada a tornar-nos agradáveis a Deus, fazia com que aquela imundície e
aquelas insinuações, em vez de satisfazerem o objetivo de Satanás,
provocasse o contrário. Quanto mais ele trabalhava, mais nós nos
refugiávamos na luz de Deus, por repugnância das trevas lamacentas,
colocada diante dos nossos olhos carnais ou espirituais.
Nós não ignoramos as paixões, no sentido filosófico. Nós amamos a
pátria, com a nossa pequena Nazaré, cidade que amamos mais do que
qualquer outra da Palestina. Nós sentimos afeto por nossa casa, pelos
parentes e amigos. Por que não haveríamos de sentir? Não nos tornamos
escravos deles, porque nada nos deve possuir, a não ser Deus. Mas fizemos
deles bons companheiros.
Minha mãe exultou de alegria, quando, quatro anos depois, voltou a
Nazaré e pôs o pé em sua casa, podendo beijar aquelas paredes, dentro das
quais o seu “sim” lhe abriu o ventre para receber o Embrião de Deus. José
saudou com alegria parentes e sobrinhos, crescidos em número e idade, e se
alegrou ao ver-se imediatamente lembrado pelos concidadãos, também por
sua capacidade profissional. Eu próprio fui sensível às amizades e sofri,
como uma crucificação moral, pela traição de Judas. Que dizer de tudo
isso? Nem minha mãe, nem José preteriram a casa ou os parentes, à vontade
de Deus.
35.9
E Eu não poupei palavras, quando foi preciso, mesmo quando
elas atraíam o ódio dos hebreus e a antipatia de Judas sobre Mim. Eu
sabia (e teria podido fazê-lo) que teria bastado dinheiro para subjugá-lo a
Mim. Não a Mim como Redentor, mas a Mim riqueza. Eu que multipliquei
os pães, podia multiplicar também o dinheiro, se quisesse. Mas Eu não tinha
vindo procurar satisfações humanas. De ninguém. Muito menos, dos que
foram chamados por Mim. Eu havia pregado a necessidade do sacrifício, do
desapego, de uma vida casta, de posições humildes. Que Mestre e que Justo
teria sido, se tivesse dado dinheiro para alimentar o sensualismo mental e
físico de alguém, como único meio para segurá-lo?
No meu Reino, os grandes se tornam assim, fazendo-se “pequenos.”
Quem quer ser “grande” aos olhos do mundo, não está preparado para
reinar no meu Reino. Esse é palha para a cama dos demônios. Porque a
grandeza do mundo está em contraste com a Lei de Deus.
O mundo chama “grandes” os que, com meios quase sempre ilícitos,
sabem ocupar as melhores posições e, para conseguirem isso, fazem do
próximo um degrau, sobre o qual sobem, pisando nele. Chama “grandes”
aqueles que sabem matar para reinar, matar moral ou materialmente e, pela
extorsão, conseguem posições e lugares, e enriquecem, sugando o sangue
dos outros em suas riquezas particulares ou coletivas. O mundo muitas
vezes chama os delinqüentes de “grandes.” Não. A “grandeza” não está na
delinquência. Está na bondade, na honestidade, no amor, na justiça. Vede os
vossos “grandes”, que frutos envenenados vos oferecem, colhidos no seu
malvado e demoníaco pomar interior!
35.10
A última visão, pois eu quero falar dela e deixar de falar de outros
assuntos que são tão inúteis, e o mundo não quer ouvir a verdade que lhe
interessa, é uma visão que ilumina um ponto particular, citado duas vezes
no Evangelho de Mateus, numa frase repetida duas vezes: “Levanta, pega o
Menino e sua mãe, e foge para o Egito.” “Levanta, pega o Menino e a mãe
Dele, e volta para a terra de Israel.” E, como viste, Maria estava sozinha
com o Menino no quarto.
A virgindade de Maria após o parto e a castidade de José são muito
combatidas, por aqueles que, por serem lama podre, não admitem que
alguém possa ser asa e luz. São infelizes, com coração tão corrompido, com
mente que se prostituiu tanto à carne, que se tornaram incapazes de pensar
que alguém como eles possa respeitar a mulher, ver nela a alma e não a
carne, elevando-se a si mesmos, vivendo em uma atmosfera sobrenatural,
apetecendo-se de Deus, e não da carne.
Pois bem. Aos negadores do belo, a estes vermes, incapazes de se
tornarem borboletas, a estes répteis cobertos pela baba de sua libidinagem,
incapazes de compreender a beleza de um lírio, a estes Eu digo que Maria
foi e permaneceu virgem, e que só sua alma foi casada com José, como o
seu espírito se uniu unicamente ao Espírito de Deus e, por obra Dele, ela
concebeu o seu Único Filho: Eu, Jesus Cristo, Unigênito de Deus e de
Maria.
Isto não é uma tradição que floresceu mais tarde, por um amoroso
respeito para com a Bem-Aventurada, que foi minha mãe. Mas é uma
verdade que, desde os primeiros tempos, foi conhecida.
Mateus não nasceu séculos depois. Ele foi contemporâneo de Maria.
Mateus não era um pobre ignorante, que tivesse vivido nas selvas, com
facilidade de acreditar em qualquer história. Era um fiscal da receita, como
diríeis hoje, ou um cobrador de gabelas, como naquele tempo dizíamos. Ele
sabia ver, ouvir, compreender, separar o verdadeiro do falso. Mateus não
ouviu as coisas por meio de terceiros. Mas ele as recolheu dos lábios de
Maria, à qual o seu amor pelo Mestre e pela verdade o havia levado a fazer
perguntas.
Não posso chegar a pensar que esses negadores da inviolabilidade de
Maria pensem que ela tenha podido mentir. Os meus próprios parentes a
teriam podido desmentir, se ela tivesse tido outros filhos, pois Tiago, Judas,
Simão e José eram condiscípulos de Mateus. Por isso seria fácil confrontar
as versões, se outras houvessem. Mateus nunca diz: “Levanta e pega tua
mulher”; ele diz: “Pega a mãe Dele.” Antes diz: “Virgem desposada a José”,
“José, seu esposo”.
35.11
Não me venham dizer que isso era um modo de falar dos hebreus,
como se dizer a palavra “mulher” já fosse uma infâmia. Não, negadores da
Pureza. Desde as primeiras palavras do Livro[60], se lê: “… e se unirá à sua
mulher”. Ela é chamada “companheira”, até o momento da consumação
sexual do casamento; mas depois é chamada “mulher”, em diversas
passagens e em diversos capítulos. E assim acontece com as esposas dos
filhos de Adão. É assim que Sara é chamada “mulher” de Abraão: “Sara,
tua mulher”; e: “Toma tua mulher e as tuas duas filhas” foi dito a Ló. E no
livro de Rute está escrito: “A moabita, mulher de Maalon.” E no primeiro
livro dos Reis está dito: “Elcana teve duas mulheres”; e, ainda mais:
“depois, Elcana conheceu sua mulher Ana”; e ainda: “Eli abençoou Elcana
e a mulher dele.” E sempre no livro dos Reis foi dito: “Bate-Seba, mulher
de Urias, o heteu, tornou-se mulher de Davi, e lhe deu um filho.” O que se
lê no livro azul de Tobias, aquilo que a Igreja canta para vós nas vossas
núpcias, para aconselhar-vos a serem santos no matrimônio? Lê-se: “Ora,
quando Tobias chegou, com a mulher e com o filho…”; e ainda: “Tobias
conseguiu fugir com o filho e com a sua mulher.”
Nos Evangelhos, isto é, nos tempos de Cristo, nos quais se escrevia
relativamente àqueles tempos antigos em linguagem moderna, não havendo,
portanto necessidade de se pensar em erros de transcrições, foi dito pelo
próprio Mateus no cap. 22: “… o primeiro, tendo-a tomado por mulher,
morreu e deixou a mulher ao irmão.” Marcos, no cap. 10: “Quem repudia a
mulher…” Lucas chama Isabel de mulher de Zacarias, quatro vezes em
seguida, e no oitavo capítulo diz: “Joana, mulher de Cusa.”
Como estais vendo, não era este nome um vocábulo proscrito para
quem estava nos caminhos do Senhor, um vocábulo imundo que não era
digno de ser proferido e, muito menos, escrito onde se trata de Deus e das
suas admiráveis obras. O anjo, dizendo: “o Menino e a mãe Dele”, vos
demonstra que Maria foi mãe verdadeira, mas não foi mulher de José. Ela
permaneceu sempre: a virgem desposada a José.
Este é o último ensinamento destas visões. É uma auréola que resplende
sobre a cabeça de Maria e de José. A virgem imaculada. O homem justo e
casto. Os dois lírios entre os quais eu cresci, ouvindo só fragrâncias de
pureza.
35.12
A ti, pequeno João[61], eu poderia falar sobre a dor de Maria por seu
duplo afastamento de sua casa e de sua pátria. Mas não há necessidade de
palavras. Compreendo que seja isso, e disso desfaleces. Dá-me a tua dor. Só
quero isto. É mais do que qualquer outra coisa que me possas dar. Hoje é
sexta-feira, Maria. Pensa na minha dor e na de Maria sobre o Gólgota, para
que possas suportar a tua cruz.
A paz e o nosso amor fiquem contigo.
[60] do Livro, ao qual seguem (em apoio aos passos citados por: Matteo 1,16.19; 2, 13.20) citações de: Génesis 2,24; 3,17; 17,15;
19,15; Rute 4,10; 1 Samuel 1,1-2.19; 2,20; 2 Samuel 11,27; Tobias 1,9.20.
[61] pequeno João, é o mais recorrente entre os nomes dados a Maria Valtorta. A sua explicação encontra-se em 70.8/9 e em
638.2.
36. A sagrada Família no Egito.
Uma lição para as famílias.
25 de janeiro de 1944 (24:00 horas).
36.1
Uma suave visão da Sagrada Família. O lugar é o Egito. Não tenho‐
dúvidas disso, porque vejo o deserto e uma pirâmide.
Vejo uma casinha de um só andar térreo, toda branca. É uma pobre casa
de gente muito pobre. As paredes são apenas rebocadas e cobertas com uma
mão de cal. A pequena casa tem duas portas, uma perto da outra, e dão para
os dois únicos cômodos da casa, nos quais, por enquanto, eu não entro. A
casinha está no meio de um pequeno terreno arenoso, cercado por bambus
fincados no chão, cerca esta muito fraca contra os ladrões; pode, quando
muito, servir para deter algum cachorro ou gato vadio. Mas, quem é que vai
ter a vontade de ir roubar, onde se vê que nem existe sombra de riqueza?
Este pequeno terreno foi pacientemente cultivado, apesar de a terra ser
árida e pobre, para nela se fazer uma pequena horta e é cercado por uma
sebe de bambus, sobre a qual, para torná-la mais firme e bonita, foram
plantadas trepadeiras, que me parecem modestos convólvulos. De um dos
lados, há uma moita de jasmim em flor e outra de rosas comuns. Vejo ali
algumas verduras muito comuns, nos poucos canteiros do centro, debaixo
de uma árvore alta, que não sei dizer qual é, mas que dá um pouco de
sombra para o terreno ensolarado e para a casinha. Nesta árvore está
amarrada uma cabrita branca e preta, que arranca e come as folhas de
alguns ramos que caíram no chão.
36.2
Ali perto, sobre uma esteira estendida no chão, está o Menino Jesus.
Parece-me ter uns dois anos, ou dois e meio no máximo. Está brincando
com pedacinhos de madeira entalhada, que parecem ovelhinhas ou
cavalinhos, e com algumas maravalhas de madeira clara, menos
encaracoladas do que os caracóis de ouro do seu cabelo. Com suas
mãozinhas gorduchas, ele procura colocar esses colares de madeira no
pescoço de seus animaizinhos.
Ele é bom e sorridente. Muito bonito. Uma cabecinha cheia de
caracoizinhos de ouro, pele clara e delicadamente rosada, olhinhos vivos,
brilhantes, muito azuis. Sua expressão natural está diferente, mas eu
reconheço a cor dos olhos do meu Jesus: são duas safiras escuras e muito
belas.
Está vestindo uma espécie de longa camisinha branca, que certamente
deve ser a sua túnica. Suas mangas vão até os cotovelos. Nos pés, por ora,
não tem nada. As minúsculas sandálias estão sobre a esteira, servindo
também de brinquedo para o Menino, que põe sobre a sola os seus
bichinhos e puxa a sandália pela correia, como se fosse um carrinho. São
sandálias muito simples: uma sola e duas correias que partem, uma da
ponta, e outra do calcanhar. A da ponta, depois se abre em duas partes, em
um certo ponto, e passa por dentro de um furo da correia, que vem do
calcanhar, para ir depois atar-se com o outro pedaço e formar uma argola no
peito do pé.
36.3
A pouca distância dali, à sombra de uma árvore, também está Maria.
Está tecendo em um tear rústico, vigiando o Menino. Vejo suas mãos
delicadas e brancas, que vão e vêm, atirando a lançadeira sobre a trama, e o
pé, calçado com sandália, movendo o pedal. Está vestida com uma túnica da
cor flor de malva: um roxo meio rosado, como o de certas ametistas. Sua
cabeça está descoberta e assim posso ver que seus cabelos loiros estão
repartidos ao meio e penteados de modo simples, em duas tranças, que lhe
formam uma bela madeixa sobre a nuca. Maria está de mangas compridas, e
um tanto estreitas. Nenhum enfeite, além de sua beleza e da sua doce
expressão. A cor da face, dos cabelos e dos olhos e a forma do rosto é
sempre a mesma quando a vejo. Parece muito jovem. Pelo sim, pelo não,
podem dar-se-lhe uns vinte anos.
A um certo momento, ela se levanta e se inclina sobre o Menino, põe-
lhe de novo as sandalinhas, e as amarra com todo o cuidado. Depois, o
acaricia e o beija sobre a cabecinha e sobre os olhinhos. O Menino balbucia
e ela responde, mas não compreendo as palavras. Depois ela volta ao seu
tear, estende um pano sobre a tela e sobre a trama, pega o banco sobre o
qual estava sentada, e o leva para casa. O Menino a segue com o olhar, sem
importuná-la, quando ela o deixa sozinho.
Vê-se que o trabalho terminou, e que a tarde está chegando. De fato, o
sol desce sobre as areias nuas, e um verdadeiro incêndio invade o céu
inteiro, atrás da longínqua pirâmide.
Maria volta. Pega Jesus pela mão, e o faz levantar-se de sua esteira. O
Menino obedece sem resistência. Enquanto a mamãe recolhe os brinquedos
e a esteira, e os leva para casa, Ele corre aos pulinhos com suas perninhas
torneadas, ao encontro da cabritinha, lançando-lhe os bracinhos ao pescoço.
A cabrita bale, e esfrega o focinho nas costas de Jesus.
Maria volta de novo. Agora está com um longo véu sobre a cabeça, e
com uma ânfora na mão. Pega Jesus pela mãozinha, e põem-se os dois a
caminho, andando ao redor da casa, para chegarem do outro lado.
Eu os acompanho, admirando a graça deste quadro. Maria, que regula o
seu passo pelo do Menino, e o Menino que vai dando pulinhos ao seu lado.
Vejo os calcanhares rosados dele, que se levantam e se põem outra vez no
chão, sobre a areia da vereda, com a graça própria das crianças. Noto que a
pequena túnica não lhe chega até os pés, mas só até a metade da barriga da
perna. A túnica é muito bonita, muito simples, ajustada à cintura por um
cordãozinho também branco.
Vejo que à frente da casa, a sebe é interrompida por uma rústica
cancela, que Maria abre para sair para a estrada. É um pequeno caminho,
desses que há nas periferias de uma cidade, ou lugarejo, no ponto em que
este se limita com os campos, que aqui são formados pela areia e por uma
ou outra casinha, pobre como esta, com algumas pequenas hortas de
escassas verduras.
Não vejo ninguém. Maria não olha para o campo e sim para o centro,
como se estivesse esperando alguém, depois se dirige para um pequeno
tanque ou poço, que está a uns dez metros, mais ou menos, e sobre o qual
algumas palmeiras fazem um círculo de sombra. Vejo que ali também o
terreno tem ervas verdes.
36.4
Agora vejo, vindo pelo caminho um homem, não muito alto, mas
robusto. Reconheço que é José, que vem sorrindo. Está mais jovem do
que quando eu o vi na visão do Paraíso. Parece ter, no máximo, quarenta
anos. Está com os cabelos e a barba crescidos e pretos, a pele bastante
bronzeada, os olhos escuros. Um rosto honesto e agradável, um rosto que
inspira confiança.
Vendo Jesus e Maria, ele apressa o passo. Traz sobre o ombro esquerdo
uma espécie de serra e uma espécie de plaina, e com a mão está segurando
outras ferramentas do seu ofício, não como as de hoje, mas quase iguais.
Parece que está voltando de algum trabalho na casa de alguém. Está com
uma roupa entre a cor avelã e o marrom, não muito comprida, que chega a
uma boa altura acima do tornozelo, e tem as mangas curtas até o cotovelo.
À cintura, tem uma cinta de couro, me parece. Uma verdadeira roupa de
trabalho. Nos pés leva sandálias atadas ao tornozelo.
Maria sorri, e o Menino solta gritinhos de alegria e estende o bracinho
que está livre. Quando os três se encontram, José se inclina, oferecendo ao
Menino uma fruta, que me parece ser uma maçã, pela cor e pela forma.
Depois lhe estende os braços, e o Menino deixa a mamãe, e vai-se aninhar
nos braços de José, curvando a cabecinha na cavidade do pescoço de José
que o beija e por ele é beijado. São gestos cheios de graça e de afeto.
Eu ia me esquecendo de dizer que Maria foi solícita em ir apanhar as
ferramentas de trabalho de José, a fim de deixá-lo com os braços livres para
poder abraçar o Menino.
Depois, José, que tinha se abaixado para poder ficar à altura de Jesus,
se levanta, pega novamente com a mão esquerda as suas ferramentas e, com
o braço direito, segura apertado contra o seu peito o pequeno Jesus. E se
dirige para a casa, enquanto Maria vai à fonte encher a sua ânfora.
Tendo entrado no recinto da casa, José põe o Menino no chão, pega o
tear de Maria e o leva para casa, depois vai tirar o leite da cabrita. Jesus
observa atentamente essas operações e a do fechamento da cabrita num
pequeno cubículo, que está ao lado da casa.
A tarde cai. Vejo o vermelho do pôr-do-sol ir-se tornando violáceo
sobre as areias que, por causa do calor, parecem tremular. A pirâmide
parece mais escura.
José entra em casa, em um dos cômodos da casa que deve ser oficina,
cozinha e sala de jantar, ao mesmo tempo. Vê-se que o outro cômodo é o
quarto de dormir. Mas nele eu não entro. Aí há uma lareira baixa, que está
acesa. Há também um banco de carpinteiro, uma pequena mesa, bancos,
prateleiras com umas poucas louças e duas candeias. Em um canto está o
tear de Maria. E muita ordem e limpeza. Morada muito pobre mas muito
limpa.
Eis uma observação que pude fazer: em todas as visões referentes à
vida humana de Jesus, notei que, tanto Ele, como Maria, como José, como
João, estão sempre ordenados e limpos em suas roupas e na cabeça. Roupas
modestas e penteados simples, mas de uma limpeza que os faz parecerem
pessoas de grande distinção.
36.5
Maria volta com a ânfora e, em seguida, fecha a porta, pois o
crepúsculo chegou de repente. O quarto é iluminado por uma candeia que
José acendeu e pôs sobre o seu banco, onde ele está trabalhando debruçado
sobre umas pequenas peças de madeira, enquanto Maria prepara o jantar. O
fogo também está clareando o quarto. Jesus, com as mãozinhas apoiadas
sobre o banco, e a cabecinha virada para cima, está observando o que José
faz.
Depois eles se aproximam da mesa, tendo rezado antes. Não fazem, é
natural, o sinal da cruz, mas rezam. É José que reza, e Maria responde. Mas
eu não entendo nada. Deve ser um salmo. Mas foi dito em uma língua que
para mim é totalmente desconhecida.
Aí é que se sentam à mesa. Agora a candeia está sobre a mesa. Maria
está com Jesus em seu colo, e o faz beber do leite da cabrita, no qual ela vai
molhando pequenas fatias de pão, tiradas de um pãozinho redondo, de
crosta escura, e escuro também por dentro. Parece pão feito com centeio ou
cevada. Deve ter muito farelo, porque está cinzento. Enquanto isso, José
está comendo pão e queijo, uma fatiazinha de queijo e muito pão. Depois
Maria coloca Jesus sentado sobre um banquinho perto dela, e põe sobre a
mesa verduras cozidas — parecem cozidas na água e temperadas como
costumamos fazer — e come ela também, depois de José ter-se servido.
Jesus, tranqüilo, está mordiscando sua maçã, e sorri, mostrando os
dentinhos brancos. O jantar termina com umas azeitonas ou com tâmaras.
Não entendo bem, porque para serem azeitonas, estão claras demais; e, para
serem tâmaras estão por demais duras. De vinho, nada. É um jantar de gente
pobre.
Mas é tão grande a paz que se respira neste quarto, que nem a visão de
um palácio real, por mais pomposo que fosse, me poderia dar uma paz
semelhante. Quanta harmonia!
36.6
Jesus nesta noite não fala. Não veio me ilustrar a cena. Ele me
ensina com o seu dom da visão, e basta. Por isso seja Ele sempre e
igualmente bendito.

26 de janeiro de 1944.
36.7
Jesus diz:
– A lição para ti e para os outros é dada pelas coisas que estás vendo. É
lição de humildade, de resignação e de boa harmonia. Posta como exemplo
a todas as famílias cristãs, e especialmente às famílias cristãs deste especial
e doloroso momento.
36.8
Tu viste uma casa pobre. O que é mais doloroso, uma casa pobre em
país estrangeiro.
Muitos, só porque são dos fiéis “passáveis”, que rezam e Me recebem
na Eucaristia, rezam e comungam pelas “suas” necessidades, não pelas
necessidades das almas e pela glória de Deus, porque é raro alguém rezar
sem ser egoísta, muitos pretenderiam ter uma vida material fácil, bem
protegida de qualquer menor sofrimento, próspera e feliz.
José e Maria tinham a Mim, Deus verdadeiro, como seu Filho e, no
entanto, não tiveram nem o pobre bem de serem pobres na própria pátria, no
lugar onde eram conhecidos, onde ao menos tinham a “própria” casinha, e
um alojamento não era uma preocupação constante entre tantas outras,
naquele lugar onde, por serem conhecidos, era mais fácil encontrar trabalho
e prover-se do necessário para a vida. Eles são dois fugitivos, e justamente
porque Me têm consigo. O clima é diferente, o lugar é diferente, tão triste
em comparação com os doces campos da Galiléia, língua e costumes
diferentes, em meio a uma população que não os conhece, e que tem a
habitual desconfiança para com desconhecidos.
Privados daqueles móveis cômodos e estimados da “sua” casinha, de
tantas coisas humildes mas necessárias que lá havia, e que não pareciam tão
necessárias, enquanto que aqui, neste nada que os rodeia, parecem tão belas,
como aquelas coisas supérfluas, que tornam as casas dos ricos deliciosas.
Com saudade da cidade e da casa, com o pensamento naquelas pobres
coisas lá deixadas, do pomar, do qual talvez ninguém esteja cuidando, da
videira e da figueira e de outras muitas árvores úteis. Com a necessidade de
prover ao alimento de cada dia, às roupas, ao fogo, dia após dia, às Minhas
necessidades de criança, à qual não se pode dar o alimento dos grandes.
Com tanto desgosto no coração. Pelas saudades, pelo amanhã, que ainda é
desconhecido, pela desconfiança de um povo que se esquiva,
principalmente nos primeiros tempos, a aceitar as ofertas de trabalho de
dois desconhecidos.
Contudo, tu viste a casa. Naquela morada paira a serenidade, o sorriso,
a concórdia, e se procura torná-la mais bela de comum acordo; também a
pobre hortinha, para que fique parecida com a que foi deixada, e mais
confortável. Nesta casa só há um pensamento: que esta terra se torne menos
hostil, menos miserável para Mim, Santo, que venho de Deus. O amor
destas pessoas de fé, que são os meus pais, amor que se manifesta em mil
cuidados, desde a cabrita que compraram a preço de muitas horas extras de
trabalho, até aos brinquedos entalhados em sobras de madeira, às frutas
apanhadas só para Mim, sem que delas eles nem provassem.
Meu querido pai da terra, como foste amado por Deus, por Deus Pai no
alto dos Céus, por Deus Filho, que se fez Salvador sobre a terra!
Naquela casa não houve nervosismos, mau humor, caras fechadas, nem
reprovações recíprocas, nem, muito menos, se falou contra Deus, que não
os cumulou com o bem-estar material. José não censura Maria por ser causa
de suas dificuldades, nem Maria censura José por ele não saber-lhe dar um
maior bem-estar. Eles se amam santamente, eis a explicação. Portanto, a
preocupação não é com o próprio bem-estar, mas cada um se preocupa com
o outro. O verdadeiro amor não conhece egoísmo. O verdadeiro amor é
sempre casto, mesmo sem castidade perfeita dos dois esposos virgens. A
castidade unida à caridade leva consigo todo um acompanhamento de
outras virtudes, fazendo de dois que se amam castamente, duas perfeições
de cônjuges.
O amor de minha mãe e de José era perfeito. Por isso ele era um
incentivo para todas as outras virtudes e especialmente para a da caridade
para com Deus, bendito em todo tempo, não obstante sua santa vontade
fosse penosa para a carne e o coração, bendito porque, acima da carne e do
coração, o espírito estava mais vivo e senhor nos dois santos. Este espírito,
com reconhecimento, exaltava o Senhor, por tê-los escolhido para serem
guardas do seu eterno Filho.
36.9
Naquela casa se rezava. Agora reza-se pouco nas casas. Nasce o dia e
chega a noite, começam-se os trabalhos, e sentai-vos à mesa sem um
pensamento dirigido ao Senhor, que vos permitiu ver um novo dia, podendo
chegar a uma nova noite, que abençoou as vossas fadigas, concedendo que
essa fadigas se tornassem o meio de conquistar aquele alimento que o fogo
cozinhou, as vestes que vestis, aquele teto, todo o necessário à vossa
natureza humana. Sempre é “bom” o que vem do bom Deus. Ainda quando
pobre e escasso, o amor lhes dá sabor e substância, esse amor que vos faz
ver o Pai que vos ama no eterno Criador.
Naquela casa há frugalidade. Haveria, mesmo que o dinheiro não
faltasse. Eles se nutrem para viver, e não para agradar à gula, com a
voracidade dos insaciáveis, com os caprichos dos gulosos, que se vão
enchendo até não poderem mais, e esbanjam seus haveres em alimentos
caros, sem um pensamento aquem tem pouco ou é privado de alimento, sem
refletirem que, se tivessem moderação, muitos poderiam ser aliviados do
tormento da fome.
Naquela casa se ama o trabalho. Ele seria amado, mesmo se o dinheiro
fosse abundante, porque no trabalho o homem obedece ao mandamento de
Deus e se livra do vício que, como hera firme, aperta e sufoca os ociosos,
como blocos imóveis de pedra. Bom é o alimento, sereno é o repouso,
contente está o coração, quando se trabalhou bem e se goza o tempo de
pausa entre um trabalho e outro. Aquele vício que tem múltiplas faces, não
se arraiga na casa e na mente de quem ama o trabalho. Não se arraigando,
então aí prospera o afeto, a estima, o respeito recíproco, e os pequenos
pimpolhos crescem numa atmosfera pura, e dão origem a futuras famílias
santas.
Naquela casa reina a humildade. Esta é uma lição de humildade para
vós, soberbos! Maria teria tido, humanamente, mil e uma razões para se
ensoberbecer fazendo-se adorar por seu cônjuge. Tantas mulheres assim
fazem, somente por serem um pouco mais cultas, ou de nascimento mais
nobre, ou mais ricas que o marido. Maria é Esposa e mãe de Deus, e, no
entanto, serve o seu cônjuge, não se fazendo servir por ele, é toda amor para
com ele. José é o chefe de casa, julgado por Deus tão digno de ser um chefe
de família, a ponto de receber de Deus a guarda do Verbo feito carne e da
Esposa do eterno Espírito. Contudo, é sempre solícito em poupar Maria de
fadigas e trabalhos, fazendo até os mais humildes trabalhos de casa, para
que Maria não se canse. Mas não só, pois procura proporcionar a Ela
alguma recreação o quanto pode, esforçando-se para tornar-lhe a casa
cômoda, e a pequena horta com flores viçosas.
Naquela casa a ordem é respeitada. Sobrenatural, moral e material.
Deus é o Chefe supremo e a Ele é prestado culto e amor: ordem
sobrenatural. José é o chefe da família e a ele é dado afeto, respeito e
obediência: ordem moral. A casa é um dom de Deus, como as vestes e os
móveis. Em todas as coisas é a Providência de Deus que se mostra, daquele
Deus que provê a lã às ovelhas, as penas aos pássaros, as ervas aos prados,
o feno aos animais, as sementes e as árvores frondosas às aves, tecendo a
veste para o lírio do vale. A casa, as vestes, os móveis são recebidos com
gratidão, bendizendo a mão divina, tratando-os com respeito como dons do
Senhor, sem olhar com descontentamento porque são pobres, sem estragar
os dons, abusando da Providência: ordem material.
36.10
Não entendeste as palavras trocadas no dialeto de Nazaré, nem as
palavras de oração. Mas as coisas vistas deram uma grande lição. Meditai-
as, ó vós todos, que agora tanto estais sofrendo por terdes falhado para com
Deus, também aquelas coisas em que não falharam nunca os santos
Esposos, que foram mãe e pai para Mim.
E tu, deleita-te com a recordação do pequeno Jesus, sorri, pensando em
seus passinhos de criança. Dentro em pouco, o verás, caminhando debaixo
de uma cruz. E será uma visão de pranto.
37. Primeira lição de trabalho dada a Jesus,
que não saiu da regra da idade.
21 de março de 1944.
37.1
Vejo aparecer, como um doce raio de sol em um dia de chuva, o meu
Jesus, pequeno menino beirando os seus cinco anos, todo loiro e bonito, na
sua simples vestezinha azul-clara que lhe desce até o meio da barriga da
perna.
Ele está brincando com terra na horta. Está fazendo montinhos e, em
cima deles, vai fincando raminhos, como se estivesse formando bosques em
miniatura. Com pedrinhas faz pequenas estradas, e depois queria fazer um
pequeno lago, aos pés de suas minúsculas colinas, e, para isso, pega o fundo
de uma vasilha velha e o enterra até a beira, depois o enche d’água com um
jarro que ele mergulha em um tanque, certamente usado como lavatório ou
para regar a pequena horta. Mas não consegue nada mais do que molhar
toda a roupa, especialmente as mangas. A água escapa da vasilha, que está
toda esburacada… e o lago continua seco.
José aparece à porta e, em silêncio, fica a olhar, por algum tempo, a
trabalheira do Menino, e sorri. De fato, é um espetáculo que faz sorrir de
alegria. Depois, para que Jesus não continue a se molhar, ele o chama. Jesus
se vira sorrindo e, vendo José, corre para ele com os bracinhos estendidos.
José, com a ponta de sua veste de trabalho enxuga as pequenas mãos
molhadas e cheias de terra, e as beija. E um doce diálogo se inicia entre os
dois.
Jesus explica o seu trabalho e o seu brinquedo, e as dificuldades que
encontrou para executá-los. Ele queria fazer um lago, como aquele de
Genezaré (Deste eu suponho que lhe haviam falado, ou que o tinham já
levado até lá). Ele queria fazer aquele lago em miniatura para seu
divertimento. Aqui, neste ponto era Tiberíades, ali Magdala, lá adiante
Cafarnaum. Esta era a estrada que, passando por Caná, ia para Nazaré. Ele
queria lançar pequenos barcos no lago — estas folhas são os barcos — e
passar para a outra margem. Mas a água está escapando…
José observa, e se interessa, como se fosse uma coisa séria. Depois ele
se propõe a fazer, no dia seguinte, um pequeno lago, não com aquela vasi‐
lha furada, mas com um pequeno tanque de madeira, bem calafetado com
breu, sobre o qual Jesus poderia lançar verdadeiros barquinhos de madeira
que José o ensinaria a fazer. 37.2Agora mesmo ele já estava trazendo
pequenas ferramentas de trabalho, apropriadas para Jesus, a fim de que Ele
pudesse aprender a usá-las, sem se cansar muito.
– Assim eu te ajudarei! –diz Jesus, com um sorriso.
– Sim, vais me ajudar, e depois te tornarás um bom carpinteiro. Vem
vê-las!
E entram na oficina. José lhe mostra um pequeno martelo, uma
serrinha, pequenas chaves de fenda, uma plaina de boneca, tudo colocado
sobre um banco de carpinteiro na relva: um banco adaptado à altura do
pequeno Jesus.
– Olha: para serrar, coloca-se esta madeira apoiada assim. Pega-se
depois a serra assim, e prestando atenção para não ir com ela sobre os
dedos, se serra. Experimenta…
E a lição começa. Jesus tornando-se vermelho, pelo esforço feito, e
apertando os lábios, vai serrando com atenção e, depois, alisa a pequena
tábua com a plaina e, ainda que tenha ficado um pouco torta, parece-lhe
bonita, e José o elogia, e o ensina a trabalhar com paciência e amor.
37.3
Maria retorna, pois certamente estava fora, e ao chegar à porta
olha. Os dois não a vêem, porque estão de costas. A mamãe sorri, ao
ver o cuidado com que Jesus trabalha com a plaina, e o afeto com que José
o ensina.
Mas Jesus deve estar sentindo aquele sorriso. Ele se vira, vê a mamãe, e
corre para ela com a sua tabuinha semi-aplainada, e lhe mostra. Maria fica
admirada, e se inclina para beijar Jesus. Ela compõe os cachinhos do cabelo
desalinhado, enxuga-lhe o suor do rosto afogueado, escuta com afeto que
Ele lhe promete fazer-lhe um banquinho, para ficar mais cômodo para ela
trabalhar.
José, em pé junto ao pequeno banco, com as mãos nas ilhargas, olha e
sorri.
Eu assisti à primeira lição de trabalho do meu Jesus. E toda a paz desta
Família santa está em mim.

Jesus diz:
37.4

– Eu te consolei, alma querida, com uma visão da minha infância, feliz


em sua pobreza, porque ela estava cercada do afeto dos dois maiores santos
do mundo.
37.5
Dizem que José foi o meu sustento. Oh! Se ele não pôde, por ser
homem, dar-me o leite, que Maria me nutriu, se desdobrou em pedaços no
trabalho, para me dar pão e conforto, tendo para comigo a gentileza de
afetos de uma verdadeira mãe. Eu aprendi dele — e nenhum aluno jamais
teve um mestre melhor — tudo o que faz de um menino, um homem. E um
homem que tem que ganhar o seu pão.
Mesmo se a minha inteligência de Filho de Deus fosse perfeita, é
preciso refletir que eu não quis sair insolitamente dos limites da minha
idade. Por isso, rebaixando a minha perfeição intelectual de Deus ao nível
de uma perfeição intelectual humana, sujeitei-me a ter um homem por
mestre, com a necessidade de alguém para me ensinar. Mesmo se tenha
aprendido com rapidez e boa vontade, isso não me tira o merecimento de
ter-me sujeitado a um homem, ao homem justo, que ensinou à minha
pequena mente, as noções necessárias para a vida.
As horas saudosas, passadas ao lado de José, para o qual foi um
brinquedo ensinar-me a ser capaz de trabalhar, Eu não me esqueço, nem
agora que estou no Céu. E, quando olho para o meu pai putativo, revejo o
pequeno pomar e a oficina fumacenta, e me parece estar vendo a mamãe
chegar com aquele seu sorriso, que transformava em ouro aquele lugar, e
nos tornava felizes.
37.6
Quanto teriam que aprender as famílias com a perfeição destes
esposos que se amaram como nenhum outro casal!
José era o chefe. A sua autoridade familiar era evidente e não discutida,
diante da qual se inclinava respeitosamente a da esposa e mãe de Deus e se
sujeitava o Filho de Deus. Tudo estaria bem, se José resolvia fazê-lo, sem
discussões, sem teimosia, sem resistências. A sua palavra era a nossa
pequena lei. E, não obstante isso, quanta humildade nele! Nunca um abuso
de poder, nunca uma vontade contra a razão, só por ser ele o chefe. A
esposa era a sua suave conselheira. E se, em sua humildade também
profunda, ela se julgava a serva de seu consorte, o consorte ia buscar na
sabedoria dela, que era a cheia de Graça, a luz que o guiava em todos os
acontecimentos.
Eu crescia como uma flor protegida por duas árvores vigorosas, entre
estes dois amores, que se entrelaçavam sobre Mim para me proteger e me
amar.
Enquanto a idade me fez ignorar o mundo, Eu não tive saudades do
Paraíso. Deus Pai e o Divino Espírito não estavam ausentes, porque Maria
estava repleta Deles. E os anjos ali moravam, porque nada os afastava
daquela casa. Um deles, pode-se dizer assim, havia assumido a carne. Era
José, alma angélica, libertada do peso da carne, somente ocupada em servir
a Deus e à sua causa, amando-O, como amam os serafins. O olhar de José!
Plácido e puro como uma estrela que não conhece as concupiscências
terrenas. Ele era o nosso repouso e a nossa força.
37.7
Muitos acham que Eu não tenha humanamente sofrido, quando a
morte veio apagar aquele olhar santo, que vigiava a nossa casa. Se Eu era
Deus e, como tal, conhecedor da feliz sorte que esperava José, não
entristecido, portanto, pela sua partida que, depois de uma breve parada no
Limbo, lhe teria aberto o Céu, contudo, como Homem chorei naquela casa,
que ficou para nós vazia da sua amorosa presença. Chorei sobre o amigo
falecido. Não teria devido chorar por este meu santo, sobre cujo peito Eu
tinha dormido, quando era pequenino, e durante tantos anos, tinha recebido
amor?
37.8
Enfim, faço observar aos pais como, sem o auxílio de uma erudição
pedagógica, José soube fazer de Mim um hábil operário. Logo que cheguei
à idade em que já podia manejar as ferramentas, sem deixar que Eu me
entregasse à ociosidade, ele me encaminhou para o trabalho, valendo-se do
meu amor por Maria para me estimular a trabalhar. Fazer objetos úteis à
mamãe. Era assim que ele me inculcava o devido respeito para com a
mamãe, que todo filho deveria ter, e sobre esta respeitosa e poderosa
alavanca, ele se apoiava ao ensinar o futuro carpinteiro.
Onde estão hoje as famílias nas quais se ensina os pequenos a amar o
trabalho, como meio de fazer algo agradável aos pais? Os filhos, agora, são
os tiranos da casa. Crescem duros, indiferentes, grosseiros para com os seus
pais. Acham que seus pais são seus servos, seus escravos. Não os amam e
são pouco amados. Porque, ao mesmo tempo que fazeis de vossos filhos
uns prepotentes caprichosos, também ficais longe deles, com um
desinteresse vergonhoso.
Os filhos são de todos, menos de vós, ó pais do século vinte. Eles são
da babá, da governanta, do colégio, se sois ricos. E são dos colegas de rua,
das escolas, se sois pobres. Mas, já não são vossos. Vós, ó mamães, os
gerais, e isso basta. Vós, ó pais, fazeis o mesmo. Mas o filho não é só carne.
Ele é mente, coração, espírito. Crede, pois, que ninguém, mais do que um
pai ou uma mãe, tem o dever e o direito de formar esta mente, este coração,
este espírito.
A família existe, e deve existir. Não existe nenhuma teoria ou
37.9

progresso que seja capaz de destruir esta verdade, sem provocar ruína. De
um instituto familiar desfeito, só podem vir futuros homens e futuras
mulheres cada vez mais depravados, e que serão causa de ruínas cada vez
maiores. Eu vos digo, em verdade, que seria melhor que não houvessem
mais casamentos e mais filhos sobre a terra, do que famílias menos unidas
do que as tribos dos macacos, famílias que não são escolas de virtude, de
trabalho, de amor e de religião, mas são caos, cada um vivendo como
engrenagens desmanteladas, que acabam se despedaçando.
Quebrai. Despedaçai. Os frutos desse vosso ato de despedaçar a forma
mais santa de vida social, vós os estais vendo e suportando. Continuai,
então, se quiserdes. Mas não vos lamenteis, se esta terra vai-se tornando
cada vez mais um inferno, morada de monstros, que devoram famílias e
nações. Vós o estais querendo. Que, então, isto vos aconteça!”
38. Maria, mestra de Jesus, de Judas e de Tiago.
29 de outubro de 1944.
38.1
Jesus diz:
– Vem pequeno João, e vê. Volta atrás, segura pela minha mão que te
conduz, aos anos da minha infância. O que vires deverá ser inserido no
Evangelho da minha infância, onde quero que seja colocada também a visão
da estadia da Família no Egito. Colocarás assim: a Família no Egito, depois
a primeira lição de trabalho do menino Jesus, depois o que agora vais
descrever, a cena da maioridade (prometida hoje 25-11)[62], por último a
visão de Jesus entre os doutores no Templo, na sua 12ª. Páscoa. Não é sem
motivo também o que agora irás ver. Mas, antes, esclarece alguns pontos e
ligações dos meus primeiros anos, e entre os parentes. É um presente para
ti, nesta festa da minha Realeza, para ti que sentes entrar-te a paz da Casa
de Nazaré, quando a vês. Escreve.

38.2
Vejo o quarto onde, habitualmente, se fazem as refeições e onde
Maria trabalha junto ao seu tear, ou com a agulha. O quarto é perto da
oficina de José, do qual se ouve o incansável trabalho. Mas neste quarto há
silêncio. Maria está costurando tiras de lã, certamente tecida por ela, com
cerca de meio metro de largura, por mais do que o dobro de comprimento, e
me parece que desse trabalho vai sair um manto para José.
Da porta aberta, que dá para o pomar-jardim, vêem-se sebes cheias de
folhas de pequenas margaridas de um azul violeta, que comumente são
chamadas “Marias” ou “Céu estrelado”, mas cujo nome científico eu não
sei. Estão floridas, e por isso deve ser outono. Mas o verde ainda está
espesso e bonito nas plantas, e as abelhas de duas colméias, que estão em
cima de um muro bem exposto ao sol, vão zumbindo, dançando e brilhando
à luz solar, indo de uma figueira para uma videira, e desta para uma
romãzeira, cheia de suas frutas redondas, que já estão se arrebentando pelo
excesso de vigor, e mostrando os colares de suculentos rubis, alinhados no
interior do escrínio verde-avermelhado, com compartimentos amarelos.
38.3
Debaixo das árvores, Jesus está brincando com dois meninos, mais ou
menos da sua idade. São de cabelos encaracolados, mas não loiros. Um,
aliás, é até moreno: uma cabecinha de cordeirinho preto, que faz aparecer
ainda mais branca a pele do rostinho redondo, no qual estão abertos dois
grandes olhos, de um azul tendente ao violáceo, muito bonitos. O outro tem
os cabelos menos encaracolados, e de uma cor castanho-escuro, olhos
castanhos e de um colorido mais moreno, mas com uma tonalidade rosada
nas faces. Jesus com a sua cabecinha loira, entre os outros dois, parece estar
nimbado por um fulgor. Eles brincam em boa harmonia com uns carrinhos
sobre os quais estão diversas mercadorias: folhas, pedrinhas, maravalhas,
pauzinhos. Fazem-se de mercadores certamente, e Jesus é que compra para
a mamãe, à qual vai levar, ora um objeto, ora outro. Maria, aceita com um
sorriso, as compras.
Mas depois a brincadeira muda. Um dos dois meninos propõe[63]:
– Vamos representar o Êxodo, atravessando o Egito. Jesus será Moisés,
eu Arão, e tu… Maria.
– Mas eu sou homem!
– Não faz mal. Faz assim mesmo. Tu és Maria, e dançarás diante do
bezerro de ouro, que vai ser aquela colméia lá.
– Eu não danço. Eu sou homem, e não quero ser mulher. Depois, eu sou
um fiel, e não quero dançar diante do ídolo.
Jesus, então, intervém:
– Vamos deixar este ponto. Vamos representar outro: quando Josué foi
escolhido para ser o sucessor de Moisés. Assim não entra aquele feio
pecado de idolatria, e Judas fica contente por ser um homem, e meu
sucessor. Assim ficas contente não é verdade?
– Sim, Jesus. Mas, então, Tu tens que morrer, porque Moisés morre,
depois. E eu não quero que Tu morras, logo Tu que me queres tão bem!
– Todos morrem… Mas Eu, antes de morrer, abençoarei a Israel, e,
como aqui estais somente vós, em vós Eu abençoarei todo Israel.
Foi aceita a proposta. Surge, porém, depois, uma dúvida. Se o povo de
Israel, depois de tanto andar, ainda teria, ou não, os carros que tinha,
quando saiu do Egito. As idéias são contraditórias.
Vão, então, recorrer a Maria.
– Mamãe, Eu digo que os israelitas tinham ainda os carros. Tiago diz
que não. E Judas não sabe a quem dar razão. Tu sabes?
– Sim, meu Filho. O povo nômade tinha ainda os seus carros. Nas
paradas os consertava. Subiam nos carros os mais fracos, onde também
eram transportadas as provisões, e coisas necessárias para o povo. Menos a
Arca, que era levada nas mãos. Tudo o mais ia nos carros.
A dúvida foi desfeita.
38.4
Os meninos vão para o fundo do pomar e, de lá, cantando salmos,
vêm vindo em direção da casa. Jesus vem na frente e, com sua vozinha
clara e afinada, canta alguns salmos. Atrás Dele vêm Judas e Tiago,
segurando por baixo uma carriolinha que está elevada ao grau de
Tabernáculo. Mas, como eles têm que fazer também a parte do povo, além
da de Arão e Josué, tiraram as suas cintas e com elas amarraram a seus pés
os outros carros em miniatura, e assim vão para frente, como se fossem
verdadeiros atores.
Percorrem toda a parreira, passam diante da porta do quarto onde está
Maria, e Jesus diz:
– Mamãe, saúda a Arca que está passando.
Maria se levanta com um sorriso, e se inclina diante do Filho, que passa
radiante, em um nimbo de sol.
Depois, Jesus vai subindo pelo lado do monte que cerca a casa, ou
melhor, o jardim. Em cima da pequena gruta, tendo-se posto em pé, Ele fala
a… Israel. Fala das ordens e promessas de Deus, indica Josué como guia e
o chama para perto de Si. Judas, por sua vez, salta sobre a gruta. Jesus o
encoraja e abençoa. Depois, manda que lhe tragam uma tabuleta… (é uma
folha grande de uma figueira), nela escreve o cântico, e o lê. Não o lê todo,
mas uma boa parte, e parece que está lendo mesmo sobre a folha. Depois,
despede-se de Josué, que o abraça chorando, e sobe mais, até chegar à beira
da saliência onde estão. De lá, abençoa todo Israel, isto é, aos dois que estão
prostrados por terra, em seguida se estende sobre a erva curta, fecha os
olhos e… morre.
38.5
Maria, que tinha ficado à porta sorrindo, quando viu que ele ficou
estendido e rígido, gritou:
– Jesus! Jesus! Levanta-te! Não fiques assim! A mamãe não te quer ver
morto!
Jesus se levanta com um sorriso, e corre para ela e a beija. Vêm
também Tiago e Judas. Eles também recebem carícias de Maria.
– Como pode Jesus lembrar-se daquele cântico tão comprido e difícil e
de todas aquelas bênçãos? –pergunta Tiago.
Maria sorri, e responde simplesmente:
– Ele tem uma memória muito boa, e está sempre muito atento quando
eu leio.
– Eu fico atento na escola. Mas, depois, me dá um sono, com toda
aquela lamentação… Será que não vou aprender nunca?
– Aprenderás, sim. Tenha paciência.
38.6
Batem à porta. José atravessa rapidamente o pomar e o quarto e abre.
– A paz esteja convosco, Alfeu e Maria!
– E a vós, paz e bênçãos.
É o irmão de José e sua mulher. Na rua está parado um carro, que veio
puxado por um burrinho forte.
– Fizestes boa viagem?
– Boa. E os meninos?
– Estão lá no pomar, com Maria.
Mas os meninos já saíram correndo para irem saudar à sua mamãe.
Vem chegando também Maria, segurando Jesus pela mão. As cunhadas se
beijam.
– Eles têm se comportado bem?
– Muito bem, e são muito queridos. Todos os parentes vão bem?
– Todos. Eles vos saúdam, e vos mandam muitos presentes de Caná.
Uva, maçãs, queijos, ovos, mel. E… José, eu achei justamente o que estavas
querendo para Jesus. Está no carro, naquela cesta redonda.
A mulher de Alfeu sorri. Inclina-se sobre Jesus, que olha para ela com
seus olhos grandes muito abertos, os beija, e diz:
– Sabes o que eu trouxe para ti? Adivinha.
Jesus pensa, e não descobre. Eu desconfio que ele faça assim de
propósito para dar a José a alegria de fazer uma surpresa. De fato, José vem
entrando, e trazendo um grande cesto redondo. Coloca-o no chão, diante de
Jesus, desata a corda que está segurando a tampa no lugar, e a levanta… e
uma ovelhinha toda branca, um verdadeiro floco de espuma, aparece
dormindo, no meio do feno bem limpo.
Jesus solta um “oh!”, admirado e feliz, e quer se precipitar sobre o
animalzinho, mas depois volta atrás, e corre até José, que ainda está
inclinado para o chão, e o abraça e beija, agradecendo-lhe.
Os priminhos olham com admiração a ovelhinha, que despertou, e está
levantando o pequeno focinho rosado e gracioso, procurando a mãe.
Puxam-na para fora do cesto, dão-lhe um punhado de trevo, que ela come,
olhando ao seu redor com seus olhos mansos.
Jesus continua a dizer:
– Para Mim! Para Mim! Obrigado, pai!
– Gostaste dela tanto assim?
– Oh! Se gostei… ela é branca, limpa… uma cordeirinha… oh!
E lança os bracinhos ao pescoço da ovelhinha, põe a cabeça loira sobre
a cabecinha branca, e fica todo feliz.
– Também para vós eu trouxe duas –diz Alfeu aos filhos–. Mas são
escuras. Vós não sois ordenados como Jesus, e teríeis tido ovelhas
desordenadas, se fossem brancas. Serão o vosso rebanho. Vós as criareis
juntas, e assim não ficareis mais batendo pernas pelas estradas, vós dois,
jogando pedras como uns moleques.
Os meninos correm para o carro, e ficam olhando as duas outras
ovelhas, mais pretas do que brancas.
Jesus ficou com a sua. Ele a leva ao pomar, dá-lhe de beber, e o
animalzinho o acompanha, como se sempre o tivesse conhecido. Jesus a
chama. Põe-lhe o nome de “Neve”, ao qual ela responde, balindo de modo
todo festivo.
Os hóspedes sentaram-se à mesa, e Maria lhes serve pão, azeitonas e
queijo. Coloca-se à mesa um jarro com cidra, ou água com mel, não sei,
mas vejo que é de um amarelo muito claro.
Falam entre si, enquanto os meninos estão brincando com os três
animais, que Jesus quis que ficassem juntos, para dar também às outras
ovelhas água e um nome:
– A tua, Judas, se chamará “Estrela”, porque tem esse sinal na testa. E a
tua, “Chama”, porque tem a cor de certas chamas de éricas murchas.
– Está aceito.
Os adultos estão conversando, (e é Alfeu quem diz):
– Espero ter resolvido assim a história das brigas dos rapazinhos. Foi a
tua idéia, José, que veio me iluminar. Eu disse: “Meu irmão quer uma
ovelhinha para Jesus, para que ele brinque um pouco. Eu pegarei mais duas
para aqueles garotos, a fim de fazer com que eles fiquem um pouco mais
quietos, e eu não precisar ter sempre questões com os outros pais, por causa
de cabeças e joelhos quebrados. Um pouco a escola, e um pouco as ovelhas,
e eu conseguirei tê-los mais quietos.” 38.7Mas neste ano tu também deverás
mandar Jesus para a escola. Já é hora.
– Eu nunca mandarei Jesus para a escola –diz Maria, decididamente.
É difícil ouvi-la falar assim, e falar antes de José.
– E por que? o Menino precisa aprender para, a seu tempo, ser capaz de
passar no exame de maioridade…
– O Menino saberá. Mas ele não vai à escola. Está decidido.
– Serias a única em Israel a fazer assim.
– Serei. Mas vou fazer assim. Não é verdade, José?
– É verdade. Para Jesus não há necessidade de ir para nenhuma escola.
Maria foi educada no Templo, e é uma verdadeira doutora no conhecimento
da Lei. Ela será a sua mestra. Eu também quero assim.
– Assim, vós acostumais mal o Rapaz.
– Não podes dizer isso. É o melhor de Nazaré. Já o ouviste chorar, fazer
birra, negar obediência, faltar com o respeito?
– Isto não. Mas assim ele se tornará, se continuar a ser viciado.
– Não é viciar os filhos tê-los perto de si. Mas isso é amá-los com bom
senso e bom coração. Assim amamos o nosso Jesus e, visto que Maria é
mais instruída que o mestre, Ela será a mestra de Jesus.
– Quando ficar homem, o teu Jesus será uma mocinha, que terá medo
até de uma mosca.
– Não será assim. Maria é uma mulher forte, e sabe educá-lo
virilmente. Eu não sou nenhum covarde, e sei dar-lhe exemplos viris. Jesus
é uma criança sem defeitos físicos nem morais. Crescerá, por isto, reto e
forte no corpo e no espírito. Fica certo disso, Alfeu. Ele não fará má figura
na família. Além disso, eu já decidi, e assim se fará.
– Maria é que terá decidido, e tu…
– E se tivesse sido assim? Não é bonito que dois que se amam estejam
prontos a ter o mesmo pensamento e a mesma vontade, porque
reciprocamente um abraça o desejo do outro, e o faz seu? Se Maria quisesse
coisas tolas, eu lhe diria: “não.” Mas ela pede coisas cheias de sabedoria, e
eu as aprovo e as faço minhas. Nós nos amamos, como no primeiro dia… e
assim faremos, enquanto estivermos vivos. Não é verdade, Maria?
– Sim, José. E não aconteça nunca, mas, se um tivesse que morrer sem
o outro, ainda assim nos amaríamos.
José acaricia a cabeça de Maria, como se fosse uma filha ainda menina,
e Ela olha para ele com seu olhar sereno e amoroso.
38.8
A cunhada intervém:
– Vós tendes razão. Se eu fosse boa para ensinar! Na escola os nossos
filhos aprendem o bem e o mal. Em casa aprendem só o bem. Mas eu não
sei… se Maria…
– Que queres dizer, cunhada? Fala com toda a liberdade. Tu sabes que
eu te amo, e fico alegre quando te posso dar um prazer.
– Eu ia dizendo… Tiago e Judas são um pouco mais velhos do que
Jesus. Eles já vão à escola… mas, pelo que eles sabem!… Jesus, ao
contrário, já sabe tão bem a Lei… Eu queria… te dizer que tivesses também
os dois, quando fores ensinar a Jesus? Eu acho que eles se tornariam
melhores e mais instruídos. Afinal, eles são primos, e que se amem como
irmãos, é justo. E eu ficaria tão feliz!
– Se José assim quer, e o teu marido também, eu estou pronta. Falar
para um e falar para três é a mesma coisa. Repassar toda a Escritura é uma
alegria. Que eles venham.
Os três meninos, que haviam entrado em silêncio, se assentam, e estão
à espera do veredicto.
– Eles vão te pôr desesperada, Maria –diz Alfeu.
– Não. Comigo são sempre bons. Não é verdade que sereis bons, se eu
vos ensinar?
Os dois correm para perto dela, um à direita, o outro à esquerda, põem-
lhe os braços ao redor dos ombros, as cabecinhas sobre os ombros, e
prometem fazer tudo para serem bons.
– Deixa-os experimentar, Alfeu, e deixa-me também experimentar. Eu
penso que não ficarás descontente com a experiência. Eles virão todos os
dias, da hora sexta até à tarde. Bastará, podes crer. Eu sei a arte de ensinar
sem cansar. Os meninos ficam quietos e se recreiam, ao mesmo tempo. É
preciso entendê-los, amá-los e ser por eles amados, para conseguir alguma
coisa deles. Vós me amais, não é verdade?
Dois grandes beijos são a resposta.
– Estás vendo?
– Eu estou vendo. Só tenho que te dizer: “Obrigado.” E, Jesus, o que
dirás vendo a mamãe ocupada com os outros? Que dizes, Jesus?
– Eu digo[64]: “Felizes os que a estão escutando e que erguem sua
morada junto da morada dela.” Como da Sabedoria, feliz quem é amigo de
minha mãe, e Eu sou feliz se aqueles que eu amo forem amigos dela.
– Mas quem é que põe estas palavras nos lábios do Menino? –pergunta
Alfeu, admirado.
– Ninguém, meu irmão. Ninguém deste mundo.
A visão cessa aqui.

Jesus diz:
38.9

– E Maria foi Minha mestra, de Tiago e de Judas. Eis porque nos


amamos como irmãos, não só pelo parentesco, mas pela ciência e por
termos crescido juntos, como três sarmentos de videira sustentados na
mesma vara. A minha mamãe! Doutora, como nenhum outro em Israel, esta
minha doce mãe. Sede da Sabedoria, e da verdadeira Sabedoria, nos
instruiu para o mundo e para o Céu. Digo: “nos instruiu”, porque Eu fui seu
aluno, não diversamente dos primos. E o “sigilo” foi mantido sobre o
segredo de Deus, contra a indagação de Satanás, mantido sob a aparência de
uma vida comum.
Ficaste alegre com esta cena suave? Agora, fica em paz. Jesus está
contigo.
[62] a cena da maioridade (prometida hoje 25-11), é um acréscimo que Maria Valtorta inseriu entre as linhas escritas a 29 de
Outubro e se refere à promessa da qual fala no início do capítulo seguinte.
[63] propõe, uma representação a extrair de: Êxodo 32, à qual vem preferida a de: Números 27,12-23; Deuteronómio 31-34.
[64] Eu digo, como em: Provérbios 8,34.
39. Preparativos para a maioridade
de Jesus e partida de Nazaré.
25 de novembro de 1944.
[…].
39.1
Tive Dele uma promessa. Eu lhe dizia:
– Jesus, como eu eu gostaria de ver a cerimônia da tua maioridade!
Ele me disse:
– Será a primeira coisa que Eu te darei, logo que pudermos estar “nós”,
sem que se perturbe o mistério. Colocarás aquela cena depois da cena de
minha mãe, minha mestra e mestra de Judas e Tiago, que te fiz ver
recentemente (29-10). E a colocarás entre esta e a Disputa no Templo.
[…].

19 de dezembro de 1944.
39.2
Vejo Maria inclinada sobre um alguidar, ou melhor, sobre uma bacia
de cerâmica, misturando alguma coisa que solta fumaça no ar frio e sereno
que enche o pomar de Nazaré.
Deve ser pleno inverno, porque, a não ser as oliveiras, todas as outras
plantas estão nuas, desprovidas de folhas. No alto, um céu muito limpo, e
também um belo sol. Mas não consegue amenizar o vento do Norte, que
puxa e faz bater uns nos outros os ramos despojados de folhas e ondular os
pequenos ramos verde-cinzentos das oliveiras.
Maria está vestida com uma pesada veste de um marrom quase preto e
amarrou na frente uma tela rústica, em lugar de um avental, para proteger
sua veste. Tira da tina o bastão com que estava mexendo um líquido, e vejo
caírem dele gotas de uma bonita cor avermelhada. Maria observa, molha
um dedo nas gotas que caem, experimenta se a cor está boa, passando-a na
tela que está sobre sua veste. Parece satisfeita.
Entra em casa, e sai com muitas meadas de uma lã muito branca.
Mergulha-as uma por uma na tina, com paciência e com habilidade.
39.3
Enquanto ela faz isso, entra, vindo da oficina de José, sua cunhada
Maria, mulher de Alfeu. Elas se saúdam e começam a falar.
– Vai indo bem? –pergunta Maria de Alfeu.
– É o que espero.
– Aquela gentia[65] me garantiu que se trata da tinta e do modo de
prepará-la como fazem em Roma. Deu a mim só porque és tu que fizeste
esses trabalhos. Ela diz que nem em Roma há quem faça bordados como tu.
Deves ter sacrificado a vista, para fazê-los…
Maria sorri, e faz um movimento com a cabeça, como para dizer:
“Coisas sem importância!”
A cunhada olha, antes de entregar a Maria as últimas meadas de lã.
– Como foi que as fiaste? Parecem cabelos, de tão finos e iguais que
são! Fazes tudo tão bem… e, como és esperta! Estas últimas meadas ficarão
mais claras?
– Sim. São para a veste. O manto é mais escuro.
As duas mulheres trabalham juntas, na tina. Depois, tiram as meadas
com uma bela cor de púrpura, e correm rápidas para irem mergulhá-las na
água gelada que enche o tanque sob uma pequena fonte, que cai dando
notinhas de música, que parecem umas risadinhas baixas. Elas enxaguam, e
tornam a enxaguar, depois estendem sobre bambus as meadas e as prendem
de um ramo a outro das árvores.
– Com este vento, logo estarão secas –diz a cunhada.
– Vamos ver o José. Lá temos fogo. Deves estar gelada –diz a mãe de
Jesus–. Foste muito boa em ajudar-me. Acabei depressa e com menos
cansaço. Eu te agradeço.
– Oh! Maria! Que não faria eu por ti? Estar perto de ti, já é uma festa!
Além disso… é para Jesus todo este trabalho. E é tão querido o teu Filho!…
A mim me parece que fico sendo também a mãe dele, se eu te ajudar a
preparar a festa de sua maioridade.
As duas mulheres entram na oficina, cheia daquele cheiro de madeira
aplainada, cheiro próprio das oficinas de carpinteiro.
39.4
Aqui a visão parou um pouco… para continuar no ato da partida de
Jesus para Jerusalém, aos seus doze anos.
Ele, muito bonito e crescido, parece ser um irmão mais novo de sua
jovem mãe. Já alcança os ombros dela, com sua cabeça loira, de cabelos
encaracolados, e cuja cabeleira, já não mais curta como era em seus
primeiros anos de vida, mas longa até abaixo das orelhas parece um
pequeno casquete de ouro todo recoberto de caracóis que brilham.
Está vestido de vermelho. Um belo vermelho de rubi claro. Uma longa
veste lhe desce até os tornozelos, deixando descobertos somente os pés
calçados de sandálias. A veste é solta, com mangas longas e largas. Perto do
pescoço, na base das mangas, na orla, está tecido um galão, cor sobre cor,
muito bonito.
(ao copiar a visão, aguardar o resto, que está no novo caderno).

20 de dezembro de 1944.
Vejo Jesus entrar com sua mamãe, na espécie de sala de jantar de
Nazaré.
Jesus é um belo jovenzinho de doze anos, alto, bem feito de corpo e
robusto, sem ser gordo. Parece mais adulto do que é, pela sua compleição.
Já está alto, tanto que atinge os ombros da mãe. Tem ainda o rosto redondo
e rosado do Jesus menino, rosto que, depois, com a idade juvenil e viril, se
emagrecerá, e se tornará de uma cor indefinida, a cor de certos delicados
alabastros, que lembram, de longe, o amarelo rosado.
Os olhos, também os olhos, são ainda de menino. Grandes, bem abertos
e com uma centelha de alegria, perdida no meio da seriedade com que
olham. Depois, eles não serão mais tão abertos… As pálpebras descerão até
a metade dos olhos, para encobrir o mal demasiado que está no mundo aos
olhos do Santo e Puro. Só nos momentos de milagres é que eles estarão bem
abertos e cintilantes, mais ainda do que agora… para expulsar os demônios
e a morte, para curar as doenças e os pecados. E não estarão mais, nem
mesmo com aquela centelha de alegria misturada com a seriedade… A
morte e o pecado lhe estarão cada vez mais presentes e próximos, e com
eles o conhecimento, também humano, da inutilidade do seu sacrifício, por
causa da má vontade do homem. Só os raríssimos momentos de alegria, por
estar com os remidos, e especialmente com os puros, meninos em sua maior
parte, farão brilhar de alegria estes olhos santos e bons.
Mas agora Ele está com sua mamãe, em sua casa, e diante Dele está
José, que lhe sorri com amor, e estão também os seus priminhos, que o
admiram, e a tia Maria de Alfeu, que o acaricia… Ele está feliz. O meu
Jesus tem necessidade de amor para ser feliz. Neste momento Ele tem amor.
Jesus está vestido com uma veste solta de lã vermelha, de tonalidade
rubi claro. Ela é macia, de textura perfeita, na sua compacta tenuidade.
Junto ao pescoço, na frente, por baixo das mangas longas e largas, e da
veste, que desce até o chão, deixando descobertos apenas os pés, que estão
calçados com sandálias novas e muito bem feitas — não as costumeiras
solas, fixadas ao pé por meio de tiras de couro — está um galão, não
bordado, mas tecido em cor mais escura sobre o vermelho rubi da veste.
Deve ser obra da mamãe, porque a cunhada a admira e elogia.
Os belos cabelos loiros já estão carregados de uma tonalidade bem
diferente de quando Ele era pequenino, agora com cintilações de cobre nas
volutas dos caracóis, que terminam abaixo das orelhas. Não são mais os
caracoizinhos curtos e leves da infância. Não são ainda os cabelos
ondulados e compridos até aos ombros, onde terminam em macias
madeixas aneladas na idade adulta. Mas já tendem mais para esta última na
cor e na forma.
39.5
– Eis aqui o nosso Filho –diz Maria, levantando a sua mão direita, na
qual está a mão esquerda de Jesus.
Parece que o está apresentando a todos e reconfirmando a paternidade
do Justo, que está sorrindo. E ela acrescenta:
– Abençoa-o, José, antes de Ele partir para Jerusalém. Não foi
necessária a bênção ritual, em sua idade de ir para a escola, primeiro passo
na vida. Mas agora que Ele vai ao Templo, para ser declarado maior de
idade, dá-lhe a bênção. E abençoa a mim também, junto com Ele. A tua
bênção… (Maria dá um soluço) O fortificará e me dará força, para me
desapegar um pouco mais Dele…
– Maria, Jesus será sempre teu. A fórmula não incidirá em nossos
mútuos relacionamentos. Nem eu vou disputá-lo contra ti, este Filho que
nos é tão caro. Ninguém como tu merece guiá-lo na vida, ó minha Santa.
Maria se inclina, pega a mão de José, e a beija. Ela é a esposa, oh! e
quão amorosa e respeitosa para com o seu consorte!
José acolhe aquele sinal de respeito e de amor com dignidade, mas
depois levanta aquela mão que foi beijada, e a coloca sobre a cabeça da
esposa, dizendo:
– Sim, eu te abençôo, ó Bendita, e a Jesus junto contigo. Vinde, minhas
únicas alegrias, minha honra e meu ideal.
José está solene. Com os braços estendidos, e as palmas das mãos
voltadas para o chão sobre as duas cabeças inclinadas, igualmente loiras e
santas, ele pronuncia a bênção:
– O Senhor vos guarde e vos abençoe. Tenha misericórdia de vós, e vos
dê a paz. O Senhor vos dê a sua bênção.
E depois diz:
– Agora vamos. A hora é propícia para a viagem.
Maria apanha um manto grande, cor de romã, coloca sobre o corpo
39.6

do Filho, e, ao fazer isso, o acaricia!


Saem e fecham a porta. Põem-se a caminho. Outros peregrinos vão
indo na mesma direção. Ao saírem da cidade, as mulheres se separam dos
homens. Os meninos vão com quem preferirem. Jesus fica com a mãe.
Os peregrinos vão salmodiando pelos belos campos, nestes alegres dias
de primavera. Prados e searas frescas e frescas as ramagens das árvores, que
floriram, há pouco. Ouvem-se os cantos dos homens pelos campos e pelas
ruas e os dos pássaros nas árvores. Córregos límpidos servem de espelho
para as flores que estão às margens e cordeirinhos saltam ao lado de suas
mães. Há paz e alegria, sob o mais belo céu de abril.
A visão cessa assim.
[65] Aquela gentia, é certamente uma mulher romana, portanto pagã. O substantivo gentio, que encontraremos com frequência, se
contrapõe a judeu e designa, segundo a terminologia hebraica, a pertença à “gente” que não é o povo eleito de Israel. À
compreensão dos gentios, enquanto pagãos, Jesus deverá adaptar o ensinamento da verdade, como se diz na nota em 154.7, no
texto de 272.5 e na nota em 406.10. E nos os pagãos Ele pode confiar mais do que nos judeus, como muitas vezes realça,
fornecendo uma base bíblica em 635.17. -Muitos episódios na obra de Valtorta mostram (especialmente no capítulo 155) como os
judeus se consideravam contaminados pelo contacto com os pagãos. Tal impureza legal tinha um fundamento em: Jeremias 10,25;
Izequiel 4,13; Oseia 9,3; e é confirmada em alguns passos neo-testamentários: João 18,28; Actos 10,28; 11,1-3; 21,27-28. Do
paganismo real fala Jesus em 116.2 e em 121.7.
40. O exame de Jesus maior de idade no Templo.
21 de dezembro de 1944.
40.1
O Templo está como em dias de festa. A multidão, entra e sai,
atravessa os pátios, os átrios, e pórticos, desaparece nesta ou naquela
construção situada nos diversos patamares, sobre os quais está espalhado o
aglomerado do Templo.
As pessoas da comitiva da família de Jesus entram também, cantando
salmos em voz baixa. Primeiro, todos os homens, depois, as mulheres. A
eles se uniram também outros, que talvez sejam de Nazaré, ou amigos que
moram em Jerusalém. Não sei.
José se afasta, depois de ter, junto com os outros, adorado o Altíssimo,
daquele ponto de onde os homens podiam ficar (as mulheres pararam no
patamar logo abaixo) e com o Filho, José atravessa novamente os pátios,
dobra para um lado, entrando numa grande sala, que parece ser uma
sinagoga. Não sei como pode ser isso. Haveria sinagogas também no
Templo? José fala com um levita e este desaparece atrás de uma cortina
listrada, para voltar depois com uns sacerdotes anciãos, penso que são
sacerdotes, certamente mestres no conhecimento da Lei, designados para
examinar os fiéis.
40.2
José apresenta-lhes Jesus. Primeiramente, os dois se inclinaram
profundamente diante dos dez doutores, que estão sentados com toda a
dignidade sobre baixos bancos de madeira.
– Este aqui –diz ele–. É meu filho. Há três luas e doze dias que ele
completou o tempo que a Lei exige para ser maior de idade. Mas eu quero
que Ele o seja segundo os preceitos de Israel. Peço-vos que observeis que,
pela sua compleição, Ele mostra que já saiu da infância e da menoridade. E
peço-vos que o examineis com benevolência e assim possais julgar como é
verdade tudo o que eu, pai dele, afirmo. Eu o preparei para esta hora e para
esta sua dignidade de filho da Lei. Ele sabe os preceitos, as tradições, as
decisões, os costumes das fímbrias e dos filactérios, sabe recitar as orações
e as bênçãos diárias. Pode, pois, conhecendo a Lei, nos seus três ramos[66]
da Halacá, do Midraxe e da Hagadá, conduzir-se como um homem. Por
isso, eu desejo ficar livre da responsabilidade por suas ações e por seus
pecados. De agora em diante, seja Ele sujeito aos preceitos, e pague por
suas faltas contra eles. Examinai-o.
– Nós o faremos. 40.3Vem para frente, menino. Qual o teu nome?
– Jesus de José, de Nazaré.
– É nazareno. Tu sabes ler?
– Sim, rabi. Sei ler as palavras escritas e as que estão encerradas nas
próprias palavras.
– Que estarias querendo dizer?
– Quero dizer que compreendo também o significado da alegoria ou do
símbolo, que se oculta debaixo de uma aparência, como a pérola, que não
aparece, mas está encerrada numa concha feia e fechada.
– Esta resposta não é comum, e é muito sábia. Raramente se ouve uma
coisa destas, saindo dos lábios de pessoas adultas; imaginem saindo da boca
de um menino, e, além disso, nazareno!
A atenção dos dez despertou. Seus olhos não perdem de vista, nem por
um instante, o belo menino loiro que olha para eles com firmeza, sem
arrogância, mas também sem medo.
– Tu estás honrando o teu mestre, que certamente devia ser muito
douto.
– A Sabedoria de Deus fez do coração dele sua morada.
– Mas, escutai bem! Feliz de ti, ó pai de um filho como este!
José, que está lá no fundo da sala, sorri, e se inclina.
40.4
Dão a Jesus três rolos diferentes, dizendo:
– Lê aquele que está envolvido com uma fita de ouro.
Jesus abre o rolo e lê. É o Decálogo. Mas, depois das primeiras
palavras, um dos juízes tira o rolo de suas mãos, e lhe diz:
– Continua, agora, de memória.
E Jesus continua, com tal segurança, que parece estar lendo. Cada vez
que fala no Senhor, inclina-se profundamente.
– Quem te ensinou isso? Por que fazes assim?
– Porque santo é esse Nome, e deve ser pronunciado com sinal interno
e externo de respeito. Ao rei, que é rei por breve tempo, seus súditos se
inclinam, mesmo não sendo este mais do que pó. Ao Rei dos reis, ao
Altíssimo Senhor de Israel, presente, ainda que não visível senão ao nosso
espírito, não se deverá inclinar toda criatura, que Dele depende com
sujeição eterna?
– Muito bem! Homem, nós te aconselhamos a fazer que teu filho seja
instruído por Hilel ou Gamaliel. É nazareno… mas as suas respostas nos
fazem esperar que Ele será um novo grande doutor.
– O filho já é maior de idade. Ele fará como quiser. Eu, se ele quiser
uma coisa honesta, não me oporei.
40.5
– Rapaz, escuta. Disseste: “Lembra-te de santificar as festas. Mas não
só por ti, mas pelo teu filho, tua filha, teu servo, tua serva, e até pelo
jumento, pois está dito que ele não fará trabalho no sábado.” Então, diz-me
uma coisa: se uma galinha põe um ovo em dia de sábado, ou se uma ovelha
dá cria, será lícito usar do fruto do ventre delas, ou será isso considerado
uma coisa má?
– Sei que muitos rabinos, o último deles Shamai, que ainda está vivo,
dizem que o ovo posto no sábado está contra o preceito. Mas Eu penso que
uma coisa é o homem, e outra é o animal, e também o que o animal faz,
como parir. Se eu obrigo o jumento a trabalhar, eu é que cometo o pecado
pelo que ele faz, porque eu o chicoteio e obrigo a trabalhar. Mas, se uma
galinha põe um ovo que amadureceu em seu ovário, ou uma ovelha gera um
filhote no sábado, porque ele já está maduro para nascer, isso não é pecado,
nem o ovo é pecado aos olhos de Deus, nem o cordeiro, que vieram à luz no
sábado.
– E por que não? Se todo e qualquer trabalho no sábado é pecado?
– Porque o conceber e o gerar correspondem à vontade do Criador, e
estão regulados pelas leis dadas por Ele a toda criatura. Ora, a galinha não
faz mais que obedecer a esta lei que diz que, depois de tantas horas para a
sua formação, o ovo está completo, e é posto. E a ovelha também não faz
mais do que obedecer às leis dadas por Aquele que tudo fez, o qual
estabeleceu que, duas vezes por ano, quando a primavera sorri para os
prados em flor, e quando os bosques estão despojados de suas folhas e o
gelo atormenta o peito do homem, que as ovelhas se acasalem, para dar-nos
depois, no tempo determinado, o leite, a carne e os queijos tão nutritivos,
justamente nos meses, em que os homens se cansam no trabalho da
colheita, ou sofrem mais pelo rigor das geadas. Portanto, se uma ovelha,
quando chega o seu tempo, dá cria, oh! isso bem pode ser uma coisa
sagrada, até diante do altar, pois é fruto da obediência ao Criador.
40.6
– Eu não continuo a examinar mais. A sabedoria dele supera a dos
adultos. E nos assombra.
– Não. Ele diz que é capaz de compreender até os símbolos. Ouçamo-
lo.
– Primeiro, diz um salmo, as bênçãos e as orações.
– E também os preceitos.
– Sim. Diz os midrashot.
Jesus diz, então, com segurança, uma ladainha de “Não fazer isso, não
fazer aquilo…” Se nós tivéssemos de ter ainda todas aquelas limitações,
rebeldes como somos, Eu vos garanto que ninguém se salvaria…
– Basta. Abre o rolo da fita verde.
Jesus abre e começa a ler.
– Mais adiante, um pouco mais.
Jesus obedece.
– Basta. Lê agora, e nos explica que é que te parece que é um símbolo.
– Na Palavra santa raramente faltam os símbolos. Nós é que não os
sabemos ver e aplicar. Eu leio[67]: 4° livro dos Reis, cap. 22,vers. 10: “Safã,
escriba, continuando a referir-se ao rei, disse: ‘O sumo sacerdote Helcias
me deu um livro.’ E, tendo Safã lido o mesmo na presença do rei, este,
depois de ouvir as palavras da Lei do Senhor, rasgou as vestes e, em
seguida, deu…”
– Continua depois dos nomes.
– “… esta ordem: ‘Ide consultar o Senhor por mim, pelo povo, por toda
Judá, a respeito das palavras deste livro, que foi achado, porque a grande ira
de Deus se acendeu contra nós, pois os nossos pais não ouviram as palavras
deste livro, para cumprirem as suas prescrições’…”
– Basta. O fato aconteceu muitos séculos antes de nós. E, então, que
símbolo encontras em um fato de uma crônica tão antiga?
– Encontro o fato de que vós não tendes tempo para o que é eterno.
Eterno é Deus, e a nossa alma, e as relações entre Deus e a alma. Por isso, o
que havia provocado o castigo naquele tempo é o mesmo que provoca os
castigos agora, e também os efeitos da culpa são iguais.
– Que queres dizer?
– Israel não sabe mais a Sabedoria, que vem de Deus. É a Ele, e não aos
pobres homens, que precisamos pedir a luz. E não se tem luz, se não se tem
a justiça e a fidelidade a Deus. Por isso é que se peca, e Deus, em sua ira,
pune.
– Então, nós não sabemos mais? Que é que estás dizendo, rapaz? E os
seiscentos e treze preceitos?
– Os preceitos existem, mas são palavras. Nós os sabemos, mas não os
colocamos em prática. Por isso não sabemos. O símbolo é este: todo
homem, em qualquer tempo, tem necessidade de consultar o Senhor para
conhecer a sua vontade e de nela confiar para não atrair sua ira.
– O rapaz é perfeito. Nem mesmo a cilada de uma pergunta insidiosa
40.7

foi capaz de perturbar sua resposta. Que ele seja levado à verdadeira
sinagoga.
Passam para uma sala mais ampla e pomposa. Aqui a primeira coisa
que lhe fazem é encurtar-lhe os cabelos. Os grandes caracóis são recolhidos
por José. Depois, apertam-lhe a veste vermelha com uma cinta comprida,
passada em diversas voltas em torno da cintura, amarram-lhe umas
fitazinhas na fronte, no braço e no manto. Elas ficam seguras por uma
espécie de broche. Depois, cantam salmos, e José, com uma longa oração,
louva ao Senhor e invoca sobre o Filho todos os bens.
A cerimônia chega ao fim. Jesus sai com José. Voltam para o lugar
onde estavam e se reúnem aos seus parentes homens, compram e oferecem
um cordeiro; depois, com a vítima já degolada, vão ao encontro das
mulheres.
Maria beija o seu Jesus. Parece que havia muitos anos que ela não o
via. Ela olha para Ele, feito agora mais homem, com aquela veste e aqueles
cabelos, e o acaricia.
Saem e tudo termina.
[66] três ramos, poderiam ser, respectivamente, o conjunto das normas de comportamento (Halakah), a série dos comentários
rabínicos da Sagrada Escritura (Midrash), os mesmos comentários expostos de forma mais acessível ao povo (Haggadah).
Encontrá-los-emos em: 197.3 -225.9 -414.4 -625.4. Da obra dos rabinos se falará em 252.10 e 335.9.
[67] Eu leio, com citação segundo a “Vulgata” (como em 35.11) que se usava no tempo da escritora. Na “neo-Vulgata”,
introduzida após o Concílio Vaticano II, os primeiros dois livros dos Reis tomaram o nome de 1 Samuel e 2 Samuel, e os
sucessivos dois livros tomaram o número de ordem de 1 Rei e 2 Reis. Além do mais: Paralipómenos tornou-se Crónicas; o
segundo livro de Esdras (conhecido também por livro de Neemias) tornou-se Neemias; Eclesiastes manteve-se Eclesiastes ou
tornou-se Qohélet; Eclesiástico tornou-se Sirácide ou Ben Sira. Enfim, sempre na neo-Vulgata, o Salmo 9 foi dividido em dois,
fazendo aumentar de uma unidade a numeração dos Salmos seguintes até 145 (transformado 146), enquanto a antiga numeração
retoma com o Salmo 147, que une os Salmos 146-147 da Vulgata. Outras diferenças entre Vulgata e neo-Vulgata vêm assinaladas
com nota onde e quando necessário: 50.9 -68.6 (sobre o nome Betsaida) -266.1 -272.4 -368.6 (sobre o termo gazofilácio) -413.3
-434.6 -439.2 -457.2 -463.2 -476.9 -487.6 -520.9 -544.8 (duas notas). O texto da presente edição da obra, que reproduz fielmente o
manuscrito original de Maria Valtorta, conserva os reenvios bíblicos segundo a “Vulgata”. No lugar das notas, que devem facilitar
a busca por parte do leitor, trazem os reenvios bíblicos segundo a “neo-Vulgata”, mesmo quando esses reenvios forem retomados
por anotações de Maria Valtorta referidas na “Vulgata”. -Na obra de Valtorta o modo de citar a Bíblia (livro, capítulo, versículos)
não é do tempo de Jesus mas do da escritora e nosso, assim como Jesus fala não na língua do seu tempo de vida terrena, mas na do
nosso tempo. Também no modo de citar a Bíblia, por conseguinte, a obra deve ser considerada como uma “tradução” para
utilidade dos seus destinatários.
41. A disputa de Jesus com os doutores no Templo.
A angústia da mãe e a resposta do Filho.
28 de janeiro de 1944.
41.1
Vejo Jesus. Já é um adolescente. Está vestido com uma túnica muito
branca, que me parece de linho, comprida até os pés. Sobre ela está posto
um manto retangular vermelho claro. Jesus está com a cabeça descoberta,
os longos cabelos descendo até a metade das orelhas, e mais escuros do que
quando o vi menino. É um rapaz robusto, muito alto para a sua idade e que,
como seu rosto está mostrando, é ainda a de um jovem.
Ele olha para mim, sorri, estendendo-me as mãos. É porém, o seu, um
sorriso parecido com aquele que nele vejo quando já homem feito: doce e
um tanto sério. Ele está sozinho. Por enquanto, não vejo outra pessoa. Está
encostado a um muro que fica acima de uma estradinha cheia de altos e
baixos, pedras e com uma cavidade ao centro, por onde certamente se forma
um córrego, no tempo da chuva. Mas agora ela está seca, porque o dia está
claro.
Tenho a idéia de ir-me encostar também ao muro, e de lá olhar ao redor
e para baixo, como Jesus está fazendo. Estou vendo um aglomerado de
casas. É um aglomerado desordenado. As casas são, umas altas, outras
baixas, e foram construídas sem a preocupação de fazê-las num mesmo
alinhamento. Fazendo uma comparação muito simples, mas com muita
semelhança, parece um punhado de pedras brancas, jogadas sobre um
terreno escuro. As ruas e vielas são como veias, no meio daquela brancura.
Aqui e ali algumas árvores estendem suas copas sobre os muros. Muitas
delas estão em flor, e muitas também já estão cobertas de folhas novas.
Deve ser primavera.
À esquerda, para quem olhar de onde estou, há um grande aglomerado
disposto em três ordens de terraços repletos de construções e torres, pátios e
séries de pórticos. No centro se ergue uma construção mais alta, majestosa,
com cúpulas redondas que brilham ao sol, como se estivessem cobertas de
metal: cobre ou ouro. O conjunto é cercado por uma muralha guarnecida de
ameias, na forma de um ,
como uma fortaleza. Uma das torres é mais alta do que as outras, e está
construída no fim de uma rua estreita e em aclive, dominando aquele grande
aglomerado. Parece uma sentinela atenta.
Jesus olha fixamente para aquele lugar. Depois, volta à sua posição
anterior, apóia as costas ao muro, como estava, olhando para um pequeno
monte, na frente do aglomerado. O pequeno monte está tomado pelas casas,
de alto a baixo. Vejo que ali termina uma rua com um arco, além do qual só
há uma rua calçada com pedras quadrangulares, irregulares e desconexas.
Não são muito grandes, não são como as pedras das estradas consulares
romanas. Mais parecem as clássicas pedras das ruas de Viareggio (não sei
se ainda existem aquelas pedras) colocadas sem nenhuma ligação entre si. É
uma estrada ruim. O rosto de Jesus fica tão sério, que eu me ponho a
procurar sobre aquele pequeno monte a causa de sua melancolia. Mas não
encontro nada de especial. Vejo somente um monte despido de tudo. E
basta. Enquanto isto, perco de vista Jesus, pois, quando me viro, Ele não
está mais ali. Com esta visão eu adormeço.
41.2
… Quando acordo, com a lembrança daquela visão no coração, tendo
recobrado um pouco as forças e a paz, porque todos estão dormindo, me
encontro em um lugar que eu nunca tinha visto antes. Nele há pátios e
fontes, séries de pórticos e casas, ou melhor, pavilhões, pois têm mais
características de pavilhões do que de casas. Há uma grande multidão de
gente, vestida à antiga moda hebraica, num forte vozerio. Olhando ao meu
redor, compreendo que estou dentro daquele aglomerado para o qual Jesus
estava olhando, porque vejo a muralha com ameias que o rodeia, a torre que
o vigia e a imponente construção, que se ergue no centro, e contra a qual
vão-se estreitando os pórticos, muito bonitos e espaçosos, sob os quais há
muita gente, tratando de uma coisa ou de outra.
Compreendo que estou no recinto do Templo de Jerusalém. Vejo
fariseus com suas compridas vestes ondulantes, sacerdotes vestidos de linho
e com uma placa preciosa na parte superior do peito e da fronte, e outros
pontos brilhantes espalhados aqui e ali sobre diversas vestes muito amplas e
brancas, ajustadas à cintura por um cinto precioso. Depois, vejo outros que
estão menos ornados, mas que devem certamente pertencer à classe
sacerdotal, e que estão rodeados por discípulos mais jovens. Compreendo
que eles são os doutores da Lei. Entre todos estes personagens, eu me
encontro desorientada, porque não sei ao certo o que estou fazendo aqui.
41.3
Aproximo-me do grupo dos doutores, onde se iniciou uma disputa[68]
teológica. Muita gente faz a mesma coisa.
Entre os “doutores” há um grupo chefiado por um homem chamado
Gamaliel e por um outro, velho e quase cego, que defende Gamaliel na
disputa. Este, que ouço ser chamado de Hilel, (coloco o h porque ouço uma
aspiração ao princípio do nome) parece-me ser mestre ou parente de
Gamaliel, porque este o trata com confiança e respeito, ao mesmo tempo. O
grupo de Gamaliel tem vistas mais largas, enquanto que um outro grupo,
mais numeroso, é dirigido por um homem que chamam de Shamai, dotado
daquela intransigência cheia de ódio retrógrado do qual o Evangelho tão
bem nos mostra.
Gamaliel, rodeado por um grupo numeroso de discípulos, fala da vinda
do Messias e, apoiando-se na profecia de Daniel, sustenta que o Messias já
deve ter nascido, porque já há cerca de dez anos que as setenta semanas
profetizadas se completaram, desde que saiu o decreto da reconstrução do
Templo. Shamai o combate, afirmando que, se é verdade que o Templo foi
reedificado, também é verdade que a escravidão de Israel aumentou, e a
paz, que haveria de trazer consigo Aquele que os Profetas chamavam
“Príncipe da Paz”, está longe de existir no mundo, especialmente em
Jerusalém, agora oprimida por um inimigo, que ousa levar a sua dominação
até dentro do recinto do Templo, que está dominado pela torre Antônia,
cheia de legionários romanos, prontos a reprimir com suas espadas qualquer
levante de independência dos patriotas.
A disputa, cheia de cavilações, dá sinais de que irá prolongar-se. Cada
um dos mestres faz ostentação de erudição, não só para vencer o rival, mas
para impor-se à admiração dos ouvintes. Esta intenção é evidente.
41.4
Do numeroso grupo dos fiéis, ouve-se sair a voz jovem de um
rapazinho:
– Gamaliel está certo!
Então começa um movimento no meio da multidão e do grupo dos
doutores. Estão procurando quem foi que disse aquelas palavras. Mas não é
preciso procurá-lo. Ele não se esconde, e vem abrindo caminho por entre a
multidão, aproximando-se do grupo dos “rabinos.” Reconheço nele o meu
Jesus adolescente. Ele está seguro do que diz, com aqueles seus dois olhos
cintilando e cheios de inteligência.
– Quem és tu? –lhe perguntam.
– Sou um filho de Israel, que vim cumprir o que ordena a Lei.
Esta resposta, audaz e firme, agrada e provoca sorrisos de aprovação e
benevolência. Interessam-se pelo pequeno israelita.
– Como te chamas?
– Jesus de Nazaré.
A benevolência diminui no grupo de Shamai. Mas Gamaliel, mais
benigno, prossegue no diálogo com Hilel. Aliás, é Gamaliel que com
deferência diz ao velho:
– Pergunta ao rapazinho alguma coisa.
– Em que é que se baseia a tua segurança? –pergunta Hilel.
(Vou pôr os nomes antes das respostas, para abreviar e tornar-se mais
claro).
Jesus:
– Na profecia, que não pode errar quanto à época e quanto aos sinais
que a acompanham, quando chega o momento da verificação. É uma
verdade que César nos está dominando. Mas o mundo estava tão em paz, e
a Palestina em tão grande calma, quando se cumpriram as setenta semanas,
que foi possível a César ordenar que se fizesse o recenseamento em seus
domínios. Ele não teria podido fazer, se houvesse guerra no Império ou
levantes na Palestina. Como aquele tempo se cumpriu, assim também está
se cumprindo o outro tempo de sessenta e duas semanas mais uma, desde a
realização do Templo, para que o Messias seja ungido e se confirme a
continuação da profecia, para o povo que não o quis. Podeis ter dúvidas?
Não vos lembrais que a estrela foi vista pelos Sábios do Oriente e que foi
parar justamente no céu de Belém de Judá, e que as profecias e as visões,
desde Jacó e após ele, indicam aquele lugar como o destinado a acolher o
nascimento do Messias, filho do filho do filho de Jacó, através de Davi, que
era de Belém? Não vos lembrais de Balaão? “Uma estrela nascerá de Jacó”.
Os Sábios do Oriente, cuja pureza e fé tornavam abertos os seus olhos e
seus ouvidos, viram a estrela e entenderam o seu nome: “Messias”, e
vieram adorar a Luz que desceu ao mundo.
41.5
Shamai, com um olhar rancoroso:
– Tu dizes que o Messias nasceu no tempo da estrela, em Belém-
Efrata?
Jesus:
– Eu o digo.
Shamai:
– Então, ele não existe mais. Não sabes, rapaz, que Herodes fez matar
todos os meninos de um dia até dois anos de idade em Belém e nos
arredores? Tu, que és tão sábio na Escritura, deves saber também isto: “Um
grito se ouviu no alto… É Raquel, que está chorando os seus filhos.” Os
vales e as colinas de Belém, que recolheram o pranto de Raquel, que estava
morrendo, ficaram cheios de pranto, e as mães choravam também sobre
seus filhos que foram mortos. Entre elas estava certamente também a mãe
do Messias.
Jesus:
– Estás enganado, ó velho! O pranto de Raquel se transformou em
hosana, porque lá onde ela deu à luz o “filho da sua dor”, a nova Raquel
deu ao mundo o Benjamim do Pai celeste, o Filho da sua destra, Aquele que
está destinado a reunir o povo de Deus sob o seu cetro, e livrá-lo da mais
tremenda escravidão.
Shamai:
– E como, se Ele foi morto?
Jesus:
– Não leste a respeito de Elias? Ele foi arrebatado no carro de fogo. E
não poderá o Senhor Deus ter salvo o seu Emanuel para que fosse o
Messias do seu povo? Ele, que abriu o mar diante de Moisés, para que
Israel passasse a pé seco para a sua terra, não terá podido mandar os seus
anjos para salvarem o seu Filho, o seu Cristo, da ferocidade do homem? Em
verdade, eu vos digo: o Cristo vive, e está entre vós, e, quando chegar a sua
hora, Ele se manifestará em seu poder.
Jesus, ao dizer estas palavras, que eu sublinho, tem na voz um som que
enche o espaço. Os seus olhos cintilam mais ainda e, com um gesto de
império e de promessa, Ele estende o braço e a mão direita, e os abaixa,
como fazendo um juramento. É um rapazinho, mas está solene como um
homem.
41.6
Hilel:
– Rapazinho, quem te ensinou estas palavras?
Jesus:
– Espírito de Deus. Eu não tenho mestre humano. Esta é a Palavra do
Senhor, que vos está falando, através dos meus lábios.
Hilel:
– Vem cá entre nós, para que eu te possa ver de perto, ó mocinho, e a
minha esperança se reavive ao contato da tua fé, e a minha alma se ilumine
ao sol da tua.
E Jesus vai, de fato, sentar-se em um banco alto entre Gamaliel e Hilel,
e lhe são levados uns rolos para que os leia e explique. É um exame em
plena regra. A multidão se aglomera e escuta.
A voz juvenil de Jesus lê:
– “Consola-te, ó meu povo! Falai ao coração de Jerusalém, consolai-a
porque a sua escravidão se acabou… Voz do que grita no deserto: preparai
os caminhos do Senhor… Então aparecerá a glória do Senhor…”
Shamai:
– Estás vendo, nazareno! Aqui se fala de escravidão que se acaba.
Nunca fomos escravos como o somos agora. Aqui se fala de um precursor.
Onde está ele? Tu estás delirando.
Jesus:
– Eu te digo que a ti, mais do que a outros, está feito o convite do
Precursor. A ti e aos teus semelhantes. De outra maneira, não verás a glória
do Senhor, nem compreenderás a palavra de Deus, porque as baixezas, as
soberbas, as duplicidades serão para ti um obstáculo para veres e ouvires.
Shamai:
– Falas assim a um mestre?
Jesus:
– Assim falo. E assim falarei até à morte. Porque, acima do que me é
útil, está o interesse do Senhor e o amor à Verdade, da qual sou Filho. E te
digo ainda, ó rabi, que a escravidão, de que fala o Profeta, e da qual Eu falo,
não é aquela que pensas, como a realeza não será aquela que pensas. Mas,
sim, é pelo mérito do Messias que o homem se tornará livre da escravidão
do Mal, que o separa de Deus, e o sinal do Cristo estará sobre os espíritos,
livres de todo jugo, e feitos súditos do Reino eterno. Todas as nações
curvarão suas cabeças, ó estirpe de Davi, diante do Rebento nascido de ti, e
que se tornou árvore que cobre toda a terra, e se levanta até o Céu. E no Céu
e na terra, toda boca louvará o seu Nome, e dobrarão o joelho, diante do
Ungido de Deus, do Príncipe da Paz, do Chefe, Daquele que se dará a si
mesmo para delícia das almas cansadas, saciará a alma faminta, do Santo
que fará uma aliança entre a terra e o Céu. Não como aquela aliança feita
com os Pais de Israel, quando Deus os tirou do Egito, tratando-os ainda
como escravos, mas imprimindo a paternidade celeste no espírito dos
homens, por meio da Graça novamente infundida pelos méritos do
Redentor, pelo qual todos os homens bons conhecerão o Senhor, e o
Santuário de Deus não será mais derribado e destruído.
Shamai:
– Não fiques blasfemando, mocinho! Lembra-te de Daniel. Ele diz que,
depois da morte de Cristo, o Templo e a Cidade serão destruídos por um
povo e por um chefe que virá. E Tu estás dizendo que o Santuário de Deus
não será mais derrubado! Respeita os Profetas!
Jesus:
– Em verdade eu te digo que aqui está Alguém que é mais do que os
Profetas, e tu não o conheces, e não o conhecerás, porque te falta a vontade.
E te digo que tudo o que Eu disse é verdade. Não conhecerá mais a morte o
verdadeiro Santuário. Mas como o seu Santificador, ressurgirá para a vida
eterna e, no fim dos dias do mundo viverá no Céu.
41.7
Hilel:
– Escuta, jovenzinho. Ageu diz: “virá o Desejado dos povos. Grande
será, então, a glória desta casa, maior do que a que coube à primeira.”
Estará ele se referindo ao Santuário de que Tu falas?
Jesus:
– Sim, mestre. Quer dizer isso. A tua retidão te leva para a Luz, e Eu te
digo: quando o Sacrifício do Cristo se consumar, terás paz, porque és um
israelita sem malícia.
Gamaliel:
– Diz-me, Jesus. A paz, de que falam os Profetas, como poderá ser
esperada, se a este povo virá a destruição pela guerra? Fala, e dá luz a mim
também.
Jesus:
– Não te lembras, mestre, o que foi que disseram aqueles que estiveram
presentes na noite do nascimento de Cristo? Não te lembras de que os
exércitos celestiais cantavam: “Paz aos homens de boa vontade”? Mas este
povo não tem boa vontade, e não terá paz. Ele desconhecerá o seu Rei, o
Justo, o Salvador, porque espera que Ele seja um rei de poderes humanos,
enquanto que Ele é o Rei do espírito. Este povo não o amará, porque o
Cristo pregará o que a este povo não agrada. O Cristo não debelará os seus
inimigos com seus carros e cavalos, mas, sim, os inimigos da alma, que
dominam, com possessão infernal, o coração do homem criado pelo Senhor.
E esta não é a vitória que Israel está esperando Dele. Ele virá, Jerusalém, o
teu Rei, cavalgando uma “jumenta e um jumentinho”, ou seja, os justos de
Israel e os gentios. Mas o jumentinho, Eu vo-lo digo, será mais fiel a Ele, e
o seguirá precedendo a jumenta, e crescerá no caminho da Verdade e da
Vida. Israel, pela sua má vontade, perderá a paz, e sofrerá em si, através dos
séculos, aquilo que fizer sofrer ao seu Rei, depois de tê-lo reduzido ao Rei
das dores, de que fala Isaías.
41.8
Shamai:
– Tua boca tem, ao mesmo tempo, cheiro de leite e de blasfêmia,
nazareno. Responde-me: E onde está o Precursor? Quando o teremos?
Jesus:
– Ele já está aqui. Não diz Malaquias: “Eis que eu mando o meu anjo a
preparar o caminho diante de Mim; e logo virá ao seu Templo o Dominador,
por vós procurado, e o Anjo do Testamento por vós desejado”? Portanto, o
Precursor virá imediatamente antes de Cristo. Ele já está aqui, como o
Cristo está. Se passassem anos entre aquele que prepara os caminhos do
Senhor e o Cristo, todos os caminhos se tornariam cheios de entulhos e
obstáculos. Deus sabe disso, e predispõe que o Precursor venha uma hora
só antes do Mestre. Quando virdes o Precursor, podereis dizer: “A missão
do Cristo começou.” E a ti Eu te digo: O Cristo abrirá muitos olhos e
muitos ouvidos, quando ele vier por estes caminhos. Mas não os teus, nem
os dos iguais a ti, que lhe dareis a morte, em troca da Vida, que Ele vos
oferece. Mas quando, mais alto do que este Templo, mais alto do que o
Tabernáculo, fechado no Santo dos santos, mais alto do que a Glória
sustentada pelos Querubins, o Redentor estiver sobre o seu trono e sobre o
seu altar, fluirão de suas mil e mil feridas maldições para os deicidas e vida
para os gentios, porque Ele, ó mestre, que disso não sabes, não é, eu repito,
Rei de um reino humano, mas de um Reino espiritual, e os seus súditos
serão somente aqueles que por seu amor souberem regenerar-se no espírito
e, como Jonas, depois de terem nascido, renascerem em outras praias: “as
de Deus”, através da geração espiritual que virá por Cristo, o qual dará à
humanidade a verdadeira Vida.
41.9
Shamai e seus acólitos:
– Este nazareno é Satanás!
Hilel e os seus:
– Não. Este jovem é Profeta de Deus. Fica comigo, Menino. A minha
velhice transfundirá tudo o que sabe ao teu saber, e Tu serás Mestre do povo
de Deus.
Jesus:
– Em verdade, te digo que, se muitos fossem como tu és, viria a
salvação para Israel. Mas a minha hora ainda não chegou. A Mim falam as
vozes do Céu, e, na solidão, Eu as devo acolher, enquanto não chegar a
minha hora. Então, com os lábios e com o sangue, falarei a Jerusalém, e
minha sorte será a dos Profetas que foram apedrejados e mortos por esta
cidade. Mas, acima do meu ser, está o Senhor Deus, ao qual Eu submeto a
Mim mesmo, como servo fiel, para que Ele faça de Mim o escabelo à sua
glória, na esperança de que Ele faça do mundo o escabelo aos pés de Cristo.
Esperai-me na minha hora. Estas pedras ouvirão de novo a minha voz, e
tremerão à minha última palavra. Felizes aqueles que naquela voz tiverem
ouvido a Deus, e crerem Nele, através dela. A estes o Cristo dará aquele
Reino que o vosso egoísmo deseja que seja um reino humano, mas que é
celeste e pelo qual Eu digo: “Eis aqui o teu servo, Senhor, que veio para
fazer a tua vontade. Consuma-a, pois Eu anseio para cumpri-la.”
E aqui, com a visão de Jesus com o rosto inflamado pelo ardor
espiritual erguido ao céu, os braços abertos, em pé, no meio dos doutores
atônitos, termina a minha visão.
(Já são 3:30 do dia 29).

29 de janeiro de 1944.
41.10
Aqui eu teria que dizer duas coisas, que lhe interessam com certeza,
e que eu havia decidido escrever, logo que saísse da visão. Mas, como há
outra coisa mais urgente, escreverei aquilo depois.
[…].
O que queria lhe dizer no começo é isto.
Ela hoje me perguntou como foi que eu pude saber os nomes de Hilel,
de Gamaliel e de Shamai.
Foi a voz, que eu chamo de “segunda voz”, que me disse estas coisas.
Uma voz ainda menos audível do que a do meu Jesus e dos outros que
ditam para mim. Estas são vozes, como já lhe disse e repito, que o meu
ouvido espiritual percebe iguais a vozes humanas. Eu as ouço doces ou
iradas, fortes ou suaves, risonhas ou tristes. Como se alguém falasse bem
perto de mim. Esta “segunda voz” é como uma luz, uma intuição que fala
no meu espírito. “No”, e não “ao” meu espírito. É uma indicação.
Assim é que, enquanto eu ia me aproximando do grupo dos disputantes,
e não sabia quem era aquele ilustre personagem que, ao lado de um velho,
disputava com tanto calor, este “alguém” me disse: “Gamaliel – Hilel”.
Sim. Primeiro Gamaliel, depois Hilel. Não tenho dúvidas. Enquanto eu
pensava quem seriam esses homens, o indicador interno me indicou o
terceiro antipático indivíduo, exatamente enquanto Gamaliel o chamava
pelo nome. E assim é que eu pude ficar sabendo quem era este de aspecto
farisaico.
[…].

22 de fevereiro de 1944.
[…].
41.11
Jesus diz:
[…].
– Voltemos muito, muito atrás. Voltemos ao Templo, onde Eu, aos doze
anos, estou disputando. Ou melhor, voltemos às ruas que levam a
Jerusalém, e de Jerusalém ao Templo.
Vê a angústia de Maria, quando, tendo-se reunido às filas dos homens e
das mulheres, viu que Eu não estava com José.
Ela não levanta a voz, em ásperas repreensões contra o esposo. Todas
as mulheres o teriam feito. Vós o fazeis por muito menos, esquecendo-vos
de que o homem é sempre o chefe da casa. Mas a dor que transparece no
rosto de Maria, magoa José, mais do que qualquer repreensão. Maria não se
abandona a cenas dramáticas. Vós, por muito menos, o fazeis, pois gostais
de ser notadas, e feitas alvos de compaixão. Mas a dor contida de Maria é
tão evidente, pelo tremor que a toma, pelo rosto que empalidece, pelos
olhos que se dilatam, que comove mais do que qualquer cena de pranto e de
clamor.
Não sente mais cansaço, nem fome. O caminho foi longo e, depois de
tantas horas, não tomou nenhum alimento! Mas ela deixa tudo. Tanto a
enxerga, que está sendo arrumada, como a comida que ia ser distribuída.
Volta atrás. É tarde, a noite desce. Não importa. Cada passo que dá leva-a
de volta a Jerusalém. Faz parar as caravanas e os peregrinos. Pergunta a
todos. José a segue e a ajuda. Um dia de caminho, voltando, e depois uma
penosa busca pela cidade.
Onde, onde poderá estar o seu Jesus? E Deus permite que ela não saiba,
durante tantas horas onde é que devia ir me procurar. Procurar um menino
no Templo, seria uma coisa sem sentido. Que teria um menino ido fazer no
Templo? No máximo, teria se perdido na cidade, e se tivesse voltado para
dentro do Templo, levado pelos seus pequenos passos, sua voz chorosa teria
chamado pela mãe atraindo a atenção dos adultos, dos sacerdotes, os quais
teriam providenciado para que se procurassem os pais dele, por meio de
avisos colocados nas portas. Mas não havia nenhum aviso. Ninguém na
cidade sabia desse Menino. Bonito? Loiro? Robusto? Mas há tantos assim!
Era muito pouco para se poder dizer: “Eu o vi. Estava em tal ou tal lugar!”
41.12
Três dias depois, símbolo de outros três dias de futura angústia, eis
que Maria, exausta, penetra no Templo, percorre os pátios e os vestíbulos.
Nada. Corre, corre a pobre mãe, no rumo de onde lhe pareceu vir uma voz
de menino. E, até os cordeiros, que estão balindo, lhe parecem o pranto do
Filho, que está procurando. Mas Jesus não está chorando. Ele está
ensinando. Neste momento, Maria ouve, do outro lado de uma barreira de
pessoas, a querida voz, que diz: “Estas pedras tremerão…” Ela tenta
atravessar a multidão, e só o consegue, depois de muito esforço. Aqui está o
Filho, de braços abertos, em pé entre os doutores.
Maria é a Virgem prudente. Mas desta vez a angústia venceu a sua
reserva. É como um dique, que enfrenta o que vier. Ela corre até o Filho, e o
abraça levantando-o do banco, pondo-o no chão, e exclama: “Oh! Por que
nos fizeste isto? Há três dias que estamos à tua procura. Tua mãe está para
morrer de dor, Filho. Teu pai está exausto de cansaço. Por que Jesus?”
Não se pergunta os “porquês” a Quem sabe os “porquês” de seu modo
de agir. Aos chamados não se pergunta “porque”, deixam tudo para seguir a
voz de Deus. Eu era a Sabedoria e sabia. Eu fui “chamado” para uma
missão, e a estava cumprindo. Acima do pai e da mãe desta terra, está Deus,
o Pai divino. Os seus interesses superam os nossos, e seus afetos são
superiores a qualquer outro. Eu digo isso a minha mãe.
Termino o ensinamento aos doutores, com o ensinamento a Maria,
Rainha dos doutores. E ela nunca mais esqueceu isso. O sol voltou ao seu
coração, quando me tomou pela mão, humilde e obediente, mas as minhas
palavras também ficaram em seu coração. Muito sol e muitas nuvens
passarão pelo céu, durante aqueles vinte e um anos, em que Eu estarei ainda
sobre a terra. E muita alegria e muito pranto se alternará em seu coração,
por outros vinte e um anos. Mas ela nunca mais me perguntará: “Por que,
meu Filho, nos fizeste isto?”
Aprendei, ó homens insolentes!
41.13
Eu expliquei e esclareci a visão, porque tu não estás em condições de
fazer mais.
[…].
[68] disputa, que incidirá sobre os passos bíblicos que listamos (como de norma) segundo ordem canónica e não na ordem das
citações: Génesis 35,16-18; Êxodo 14,21-22; 24; Números 24,17; 2 Reis 2,11; Isaías 9,5; 40,1-5; 52,13-15; 53,1-12; Jeremias
31,15; Daniel 9,24-27; Jonas 2; Miqueias 5,1; Ageu 2,7-9; Zacarias 9,9; Malaquias 3,1.
42. A morte de José. Jesus é a paz
de quem sofre e de quem morre.
5 de fevereiro de 1944, 13:30 horas.
42.1
Poderosamente, esta visão penetra em mim, enquanto eu estou
procurando corrigir o fascículo, como também o que me foi ditado sobre as
falsas religiões de agora. Vou descrevê-la, à medida que a vou vendo.
Vejo o interior de uma oficina de carpinteiro. Parece-me que duas das
paredes da oficina são formadas por paredes rochosas, como se tivesse sido
aproveitada uma gruta natural, para com ela formar os cômodos da casa.
Aqui estão justamente os lados norte e oeste, que são de rocha, enquanto
que as duas outras paredes, do sul e do leste, são de reboco, como as nossas.
No lado norte, há uma curva côncava na superfície da rocha, que foi
escavada para servir de lareira rudimentar, sobre a qual está uma panelinha
com verniz ou cola, não sei bem. A lenha, queimada durante anos naquele
lugar, tingiu tanto a parede, que ela parece alcatroada, de tão preta. Um
buraco na parede, transposto por uma espécie de grande telha inclinada,
fazia-se de chaminé aspirando a fumaça da lenha. Mas este buraco deve ter
cumprido mal a sua tarefa, porque as outras paredes também estão muito
enegrecidas, e no momento uma nuvem de fumaça, está sendo espalhada
pela oficina toda.
42.2
Jesus trabalha com umas grandes tábuas. Está aplainando-as e depois
as encosta na parede, atrás de Si. A seguir, pega uma espécie de banco, que
está preso dos dois lados no torno, o solta, olha se o trabalho está certo,
esquadreja-o em todos os sentidos e, em seguida, vai até a chaminé, pega a
panelinha, procurando algo dentro dela, com um pauzinho ou pincel, não
sei: só vejo a parte que ficou fora, parecida com um cabinho.
Jesus está com uma veste cor de avelã escura, e sua túnica é um tanto
curta, com as mangas arregaçadas acima dos cotovelos e com uma espécie
de avental na frente, no qual ele limpa os dedos, depois de ter tocado a
panelinha.
Ele está sozinho. Trabalha continuamente, mas com calma. Nenhum‐
movimento desordenado, impaciente. É exato e incessante em seu trabalho.
Não se aborrece com nada, nem com um nó na madeira que não se deixa
aplainar, nem com uma chave de parafusos (assim me parece), que lhe cai
duas vezes do banco, nem com a fumaça espalhada, que lhe deve
incomodar os olhos.
De vez em quando, Ele levanta a cabeça, e olha para a parede do lado
sul, onde há uma porta fechada, como se estivesse escutando alguma coisa.
A um dado momento, Ele abre uma porta que está na parede do lado leste, e
que dá para a rua. Vejo um pedaço de uma viela poeirenta. Parece que Ele
está esperando alguém. Depois, volta ao trabalho. Não está triste, mas está
sério. Torna a fechar a porta, e retoma o trabalho.
42.3
Enquanto está ocupado em fabricar alguma coisa, que me parece as
partes de uma roda, a mamãe entra. Ela entra por uma porta do lado sul.
Entra apressadamente e corre até Jesus. Está vestida de azul escuro, e sem
nada na cabeça. Uma simples túnica ajustada à cintura por um cordão da
mesma cor. Chama com aflição o Filho, e se apóia com ambas as mãos em
um dos seus braços, com gestos de súplica e de dor. Jesus a acaricia
passando-lhe o braço sobre o ombro, e a conforta. Depois sai com ela,
deixando logo o trabalho e tirando o avental.
Penso que o senhor quer saber também as palavras que foram ditas.
Foram bem poucas, da parte de Maria:
– Oh! Jesus! Vem, vem. Ele está mal!
Estas palavras são ditas com lábios que tremem, e com o brilho do
pranto nos olhos avermelhados e cansados. Jesus só diz: “Mãe!” Mas está
tudo nesta palavra.
Entram no quarto ao lado, todo cheio da luz do sol, que entra por uma
porta escancarada, que dá para um pequeno jardim cheio de luz e de verde,
no qual voam pombos entre a agitação, causada pelo vento, de umas roupas
que estão estendidas para secar. O quarto é pobre, mas arrumado. Há uma
enxerga, coberta com pequenos colchões (eu digo pequenos colchões
porque certamente são coisas altas e macias, mas não se trata de uma cama
como a nossa). Sobre ela, apoiado em muitos travesseiros, está José. Está
morrendo. Di-lo claramente o rosto lívido, o olhar apagado, o peito
ofegante e a imobilidade do corpo todo.
42.4
Maria se coloca à sua esquerda, pega-lhe a mão enrugada e lívida nas
unhas, a fricciona, a acaricia, a beija, enxuga-lhe com um lenço o suor, que
faz riscos que brilham nas têmporas encavadas, a lágrima, que pára no
canto do olho, e lhe banha os lábios com um pano de linho molhado em um
líquido que parece vinho branco.
Jesus se põe à direita. Soergue com agilidade e cuidado o corpo, que se
deixa cair e o endireita sobre os travesseiros, que ajeita com Maria. Acaricia
sobre a fronte o agonizante, e procura reanimá-lo.
Maria chora baixinho, sem fazer barulho, mas chora. Grandes lágrimas
rolam ao longo das faces pálidas, e até sobre a veste azul escuro, e parecem
safiras brilhantes.
José volta a si por algum tempo, olha fixamente Jesus, dá-lhe a mão,
como querendo dizer-lhe alguma coisa, e para ter, ao contato divino, força
na última provação. Jesus se inclina sobre aquela mão, e a beija. José sorri.
Depois, ele se vira, para procurar Maria, sorrindo também para ela. Maria
se ajoelha junto à cama, procurando sorrir. Mas, não se saiu bem, e curva a
cabeça. José lhe coloca a mão sobre a cabeça, com uma casta carícia, que
parece uma bênção.
Não se ouve mais nada, a não ser o esvoaçar e o arrulhar dos pombos, o
roçar das folhas, o barulho da água e, no quarto, a respiração do moribundo.
Jesus anda ao redor do leito, pega um banco e faz Maria sentar-se,
dizendo-lhe somente: “Mamãe.” Depois volta ao seu lugar e pega de novo a
mão de José entre as suas. É uma cena tão real, que eu choro com dó de
Maria.
42.5
Depois Jesus, curvando-se sobre o moribundo, em voz baixa recita
um salmo. Eu sei que é um salmo, mas agora não posso dizer qual[69].
Começa assim:
– “Protege-me, ó Senhor, porque em Ti pus a minha esperança… Em
favor dos santos, que estão na terra, ele cumpriu admiravelmente todos os
seus desejos… Bendirei ao Senhor que me dá conselhos… Tenho sempre o
Senhor diante de mim. Ele está à minha direita, para que eu não vacile. Por
isso se alegra o meu coração, e exulta a minha língua, e também meu corpo
repousará na esperança. Porque Tu não abandonarás a minha alma na
mansão dos mortos, nem permitirás que o teu santo veja a corrupção. Far-
me-ás conhecer os caminhos da vida, cumular-me-ás de alegria com a tua
face.”
José se reanima todo e, com um olhar mais vivo, sorri para Jesus e lhe
aperta os dedos.
Jesus responde com um sorriso ao sorriso e com uma carícia ao aperto
de mão, e continua docemente, curvado sobre o seu pai adotivo:
– “Quão amáveis são os teus Tabernáculos, ó Senhor. Minha alma se
consome de desejo pelos átrios do Senhor. Até o pardal tem uma casa, e a
rolinha um ninho para os seus filhotes. Eu desejo os teus altares, ó Senhor.
Felizes aqueles que habitam a tua casa… Feliz o homem que encontra em
Ti a sua força. Ele tem preparadas em seu coração as ascensões do vale de
lágrimas ao lugar escolhido. Ó Senhor, escuta a minha oração… Ó Deus,
volta o teu olhar para a face do teu Cristo…”
José com um soluço, olha para Jesus, e faz sinal de querer falar, como
para abençoá-lo. Mas não pode. Vê-se que ele está compreendendo, mas já
não pode falar. Contudo, ele se sente feliz, e olha, animado e confiante para
o seu Jesus.
Jesus continua:
– “Oh! Senhor, Tu foste propício à tua terra, livraste Jacó da
escravidão… Mostra-nos, ó Senhor, a tua misericórdia, e dá-nos o teu
Salvador. Quero ouvir o que me diz dentro de mim o Senhor Deus.
Certamente Ele falará de paz ao seu povo pelos seus santos e por quem a
Ele se volta de coração. Sim, a tua salvação está próxima… e a glória
habitará sobre a terra… A bondade e a verdade se encontraram, a justiça e a
paz se beijaram. A verdade surgiu da terra e a justiça a olhou do Céu. Sim,
o Senhor se mostrará benigno, e a nossa terra dará o seu fruto. A justiça
caminhará diante Dele, e deixará no caminho os seus rastros.” Tu viste esta
hora, ó pai, e por ela foi que te cansaste tanto. Tu ajudaste esta hora a se
formar, e o Senhor te dará a recompensa. Eu te digo isto –acrescenta Jesus,
enxugando uma lágrima de alegria, que desce lentamente pela face de José.
Depois continua:
– “Ó Senhor, lembra-te de Davi, e de toda a sua mansidão. Como ele
jurou ao Senhor: não entrarei em minha casa, não me deitarei, não darei
sono aos meus olhos, nem repouso às minhas pálpebras, nem descanso às
minhas têmporas, enquanto eu não encontrar um lugar para o Senhor, uma
morada para o Deus de Jacó… Levanta-te, ó Senhor, e vem ao teu repouso,
Tu e a Arca da tua santidade (Maria compreende, e tem uma explosão de
pranto). Sejam revestidos de justiça os teus sacerdotes, e façam festa os teus
santos. Pelo amor de Davi, teu servo, não nos negue o rosto do teu Cristo. O
Senhor prometeu a Davi com juramento, e cumprirá: ‘Porei sobre o trono o
fruto do teu seio.’ O Senhor escolheu a sua morada… Eu farei florescer o
poder de Davi, preparando uma tocha acesa para o meu Cristo.”
42.6
Obrigado, meu pai, por Mim e por minha mãe. Tu foste para Mim
um pai justo, e o Eterno te colocou como guarda do seu Cristo e da sua
Arca. Tu foste a tocha acesa por Ele e, para com o Fruto do ventre santo,
tiveste entranhas de caridade. Vai em paz, ó pai! A viúva não ficará
desamparada. O Senhor predispôs que ela não fique sozinha. Vai tranqüilo
para o teu repouso. Eu te digo.
Maria chora com o rosto curvado sobre as cobertas (parecem mantos)
estendidas sobre o corpo de José, que vai esfriando. Jesus apressa os seus
confortos, pois a respiração se torna mais difícil, e o olhar se torna
anuviado.
– “Feliz o homem que teme o Senhor, e põe nos seus mandamentos
todo o seu prazer… A justiça dele permanece nos séculos dos séculos. Entre
os homens retos, surge nas trevas como uma luz, o misericordioso, o
benigno, o justo… O justo será lembrado para sempre… A sua justiça é
eterna, o seu poder se elevará até à glória…”
Tu terás esta glória, meu pai. Logo virei buscar-te com os Patriarcas
que te precederam, para ires à glória que te espera. Que o teu espírito exulte
com esta minha palavra.
“Quem repousa no auxílio do Altíssimo, vive sob a proteção do Deus
do Céu.”
Tu já estás nesse lugar, meu pai.
“Ele me livrou do laço dos caçadores e das palavras ásperas. Ele te
cobrirá com as suas asas e debaixo de suas penas encontrarás refúgio. A sua
verdade te defenderá como um escudo, não temerás os espantos noturnos…
Não se aproximará de ti o mal… porque aos seus anjos Ele deu a ordem de
guardar-te em todos os teus caminhos. Eles te levarão em suas mãos, para
que o teu pé não tropece nas pedras. Caminharás sobre a áspide e o
basilisco, e esmagarás o dragão e o leão. Porque esperaste no Senhor, Ele te
diz, ó pai, que te libertará e protegerá. Porque elevaste a Ele a tua voz, Ele
te ouvirá, estará contigo na última tribulação, te glorificará depois desta
vida, fazendo-te ver desde agora a sua Salvação”, e fazendo-te entrar na
outra, pela Salvação que agora te está confortando e que logo, oh!, logo
virá, te repito, cingir-te com um abraço divino e levar-te Consigo, à frente
de todos os Patriarcas, lá para o lugar onde está preparada a morada do
Justo de Deus, que para Mim foi um pai bendito.
Vai, na minha frente, dizer aos Patriarcas que a Salvação já está no
mundo e que o Reino dos Céus logo será aberto para eles. Vai, pai. A minha
bênção te acompanhe.
42.7
A voz de Jesus se faz mais alta, para chegar até à mente de José,
que já se vai mergulhando nas névoas da morte. O fim é iminente. Ele
já respira com dificuldade. Maria o acaricia. Jesus se assenta sobre a beira
da cama, abraça e atrai para Si o agonizante, que exala o último suspiro,
sem fazer nenhum movimento.
É uma cena cheia de uma paz solene. Jesus coloca novamente o
Patriarca na cama e abraça Maria, que, no fim se aproximou de Jesus na
angústia que sentia.

42.8
Jesus diz:
– A todas as mulheres que estão sendo torturadas por alguma dor, Eu
ensino a imitar Maria na sua viuvez: unindo-se a Jesus.
Aqueles que pensam que Maria não sofreu as penas do coração, estão
errados. Minha mãe sofreu. Ficai sabendo disso. Santamente, porque tudo
nela era santo, mas profundamente.
Aqueles que pensam que Maria amava o seu esposo com um amor
tépido, visto que ele era um esposo para as coisas espirituais, e não para as
carnais, estão igualmente errados. Maria amava intensamente o seu José, ao
qual dedicou seis lustros (30 anos) de uma vida de fidelidade. Para Ela José
foi pai, esposo, irmão, amigo e protetor.
Agora, ela se sentia sozinha, como uma vara de videira ao qual foi
cortada a árvore em que se apoiava. Sua casa ficou como que ferida por um
raio. Ficou dividida. Antes era uma unidade na qual os membros se
sustinham um ao outro. Agora, vinha a faltar a parede mestra, sendo este o
primeiro dos golpes desferido naquela Família, sinal de que dentro em
breve o seu amado Jesus também a deixaria.
A vontade do Eterno, que tinha querido que ela fosse esposa e mãe,
agora lhe impunha a viuvez e a entrega de seu Filho. Maria diz entre
lágrimas, um dos seus sublimes “sim.” “Sim, Senhor, faça-se em mim
segundo a tua palavra.” E, para ter força naquela hora, ela Me abraça.
Sempre Maria abraçou Deus nas horas mais graves da sua vida. No
Templo, quando chamada para as núpcias; em Nazaré, quando chamada
para a Maternidade; ainda em Nazaré, derramando as lágrimas da viuvez;
em Nazaré no suplício da separação do Filho; no Calvário, em que sofreu a
tortura de Me ver morrer.
42.9
Aprendei, vós que chorais. Aprendei, vós que morreis. Aprendei, vós
que viveis para morrer. Procurai merecer as palavras que Eu disse a José.
Serão a vossa paz em vossa agonia. Aprendei, vós que morreis, a merecer a
presença de Jesus perto de vós, para vosso conforto. Mesmo se não tiverdes
merecido, ousai chamar-me para perto de vós. Eu virei. Com as mãos cheias
de graça e de conforto, o coração cheio de perdão e amor, com os lábios
cheios de palavras de absolvição e encorajamento.
A morte perde toda a sua aspereza, se ela acontecer nos meus braços.
Crede nisso. Eu não posso abolir a morte, mas posso torná-la suave para
quem morre confiando em Mim.
O Cristo disse[70] para todos vós, em sua Cruz: “Senhor, a Ti entrego o
meu espírito.” Ele o disse, pensando na sua e nas vossas agonias, nos
vossos terrores, nos vossos erros, nos vossos temores, nos vossos desejos de
perdão. Ele o disse com o coração dilacerado, antes mesmo do golpe da
lança, numa dilaceração mais espiritual do que física, para que as agonias
daqueles que morrem pensando Nele, sejam amenizadas pelo Senhor e o
espírito deles passe da morte à Vida, da dor ao júbilo eterno.
42.10
Esta, pequeno João, é a lição de hoje. Sê boa, e não temas. A minha
paz refluirá em ti sempre, através da palavra e através da contemplação.
Vem. Faz de conta que és José, que tem por travesseiro o peito de Jesus, e
Maria como enfermeira. E repousa entre nós, como um menino em seu
berço.
[69] não posso dizer qual, mas depois Maria Valtorta anota a lápis, nas próprias páginas autografas, os diversos reenvios, que
referidos à neo-Vulgata são: Salmos 16; 84; 85; 91; 112; 132.
[70] disse, em: Lucas 23,46 (609.22).
43. A conclusão da vida escondida.
10 de junho de 1944.
43.1
Maria diz:
– Antes de entregar estes cadernos, Eu quero unir a eles a minha
bênção.
Agora, basta que queiras fazer com um pouco de paciência; podereis ter
uma coleção completa da vida íntima do meu Jesus. Desde a Anunciação,
até o momento em que Ele sai de Nazaré para a pregação, tendes, não só os
ditados, mas também a ilustração dos fatos que acompanharam a vida
familiar de Jesus.
A infância, a meninice, a adolescência e a juventude do meu Filho têm
apenas uns breves traços no grande quadro de sua vida descrito pelos
Evangelhos. Neles Ele é o Mestre. Aqui é o Homem. É o Deus que se
humilha por amor do homem. 43.2E que também opera milagres, mesmo em
seu aniquilamento de uma vida comum. Ele opera em mim, que sinto a
minha alma levada à perfeição, em contato com o Filho que me cresce no
ventre. Opera na casa de Zacarias, santificando o Batista, ajudando Isabel
em seu trabalho, dando palavra e fé a Zacarias. Ele opera em José, abrindo-
lhe o espírito à luz de uma verdade, de tal modo excelsa, que por si mesmo
não podia compreender, embora fosse um justo. 43.3E, depois de mim, quem
mais foi beneficiado por esta chuva de divinos benefícios foi José.
Observa o caminho que ele percorre, um caminho espiritual, desde
quando vem para a minha casa, até o momento da fuga para o Egito. No
início, não era mais do que um homem justo do seu tempo. Depois, por
fases sucessivas, tornou-se o homem justo do tempo cristão. Adquire a fé
no Cristo, e se entrega a essa fé firme, que passa à esperança, desde aquela
frase dita no começo da viagem de Nazaré para Belém: “Como faremos?”,
frase em que ali estava todo o homem que se revela com os seus temores
humanos e as suas preocupações humanas. Na gruta, diante do nascimento,
diz: “Amanhã será melhor.” Jesus, que está para chegar, já o fortalece, com
esta esperança que, entre os dons de Deus, é um dos mais belos. E, dessa
esperança, quando o contato com Jesus o santifica, ele passa à ousadia.
Deixou-se sempre dirigir por mim, pelo respeito reverente que nutria por
mim. Agora é ele que dirige tanto as coisas materiais, como as superiores, e
decide como chefe da Família, quando é preciso decidir. Não só isso, mas
na hora penosa da fuga, depois que meses de união com o Filho de Deus o
saturaram de santidade, é ele quem conforta o meu penar, e me diz: “Ainda
que não tivéssemos mais nada, teríamos sempre tudo, porque teremos a
Ele.”
43.4
Seus milagres de graça, meu Jesus os opera nos pastores. O Anjo vai
até onde está o pastor, que um fugaz encontro comigo predispõe para a
Graça, e o leva até à Graça para que Esta o salve para sempre.
Ele os opera por onde passa, tanto no exílio, como quando volta à sua
pequena Nazaré. Porque, onde Ele estava, a santidade se expandia como o
óleo sobre um pano, como a fragrância das flores no ar, e quem por ela era
tocado, se não fosse um demônio, sentia grande desejo de santidade. Onde
há esse desejo, há raiz de vida eterna, porque quem quer ser bom, consegue
a bondade, e a bondade leva ao Reino de Deus.
43.5
Vós agora tendes, apresentada em pontos, que refletem momentos
diversos, a santa Humanidade de meu Filho. Desde o seu nascimento, até à
sua morte. E, se o Pe. M. achar bom, pode fazer deles uma ordenada
coleção dos pontos, de modo a poder formar um conjunto sem lacunas. Isso
se julgar útil fazê-lo.
Teríamos podido dar tudo junto. Mas a Providência julgou ser bom
fazer assim para ti, ó minha alma! Em todos os ditados te demos os
remédios para as tuas feridas, que haveriam de ser-te infligidas. Demos com
antecedência para te preparar. Na hora do granizo, parece que nada serve de
abrigo. Mas não é assim. A tempestade faz aflorar a humanidade, que está
adormecida e sepultada debaixo das águas espirituais, mas traz à tona
também as gemas de uma doutrina sobrenatural, que caíram no vosso
coração, e que estão esperando justamente a hora da tempestade, para
reaparecerem e dizer-vos: “Aqui estamos nós também. Lembra-te de nós”.
Há, além disso, minha alma, uma razão de bondade, além de ser de
Providência. Como terias podido, no atual estado de enfraquecimento, ver e
ouvir certas visões e ditados? Estas coisas te teriam prostrado, até te
tornarem incapaz da tua missão de “porta-voz”. Por isso, porque em nós há
bondade nós os demos antes, evitando despedaçar teu coração com visões e
palavras por demais consoantes com o teu sofrimento, e por isso intensas
até ao espasmo. Não somos cruéis, Maria. Agimos sempre de modo que vós
de nós tenhais conforto, não angústia, nem aumento de dor. Basta-nos que
vos confieis a nós. Basta-nos que digas como José: “Se ainda tenho Jesus,
tenho tudo!”, para que venhamos com os dons celestes a consolar o vosso
espírito.
43.6
Não te prometo dons, nem consolações humanas. Eu te prometo as
mesmas consolações que teve José, as sobrenaturais. Porque é bom que
todos fiquem sabendo que os presentes dados pelos Magos, na usura que
aperta pela garganta um fugitivo, sumiram rapidamente, como um
relâmpago, com a compra de uma casinha e daquele mínimo de utensílios
necessários para a vida, daqueles alimentos que eram também necessários,
que só podiam vir daquela fonte, enquanto não encontrávamos trabalho.
Na comunidade hebraica sempre todos se ajudaram mutuamente. Mas a
comunidade reunida no Egito era quase toda composta de fugitivos
perseguidos e, por isso, pobres como nós, que tínhamos ido nos juntar a
eles. Um pouco daquela riqueza que queríamos manter para Jesus, para o
nosso Jesus adulto, preservada dos gastos da instalação no Egito, foi
providencial para a nossa volta e apenas suficiente para reorganizar nossa
casa e a oficina em Nazaré, ao nosso retorno. Porque os tempos mudam,
mas a cobiça humana é sempre a mesma, servindo-se da necessidade alheia
para sugar a sua parte de maneira odiosa.
Não. Termos Jesus conosco não serviu para trazer-nos bens materiais.
Muitos de vós pretendem isto, quando apenas se sentem um pouco unidos a
Jesus. Esquecem-se de que Ele disse[71]: “Procurai as coisas do espírito.”
Tudo o mais é supérfluo. Deus provê também o alimento. Tanto aos homens
como os pássaros. Porque sabe que eles têm necessidade do alimento,
enquanto a carne for armadura em torno de vossa alma. Mas, pedi primeiro
a sua Graça. Pedi primeiro pelo vosso espírito. O resto vos será dado como
acréscimo.
Da união com Jesus, José teve, humanamente falando, angústias,
fadigas, perseguições, fome. Outra coisa não teve. Mas, visto que servia a
Jesus somente, tudo isso se transformou em paz espiritual, em sobrenatural
alegria. Eu queria trazer-vos ao ponto em que estava o meu esposo ao dizer:
“Ainda que chegássemos a não ter mais nada, teríamos sempre tudo, porque
temos Jesus.”
43.7
Eu sei. O coração se despedaça. Eu sei, a mente se ofusca. Eu sei, a
vida se consome. Mas Maria!… És de Jesus? Queres ser de Jesus? Onde,
como morreu Jesus? Menina querida, estás chorando, mas persevera na
fortaleza. O martírio não consiste na forma de tormento, mas, sim na
constância com que o mártir o suporta. Por isso, é martírio tanto uma arma,
como um sofrimento moral, quando é suportado por um mesmo objetivo.
Tu estás suportando por amor ao meu Filho. O que fazes pelos irmãos é
sempre por amor de Jesus, que os quer salvos. Por isso, o teu sofrimento é
verdadeiro martírio. Persevera nele. Não queiras fazer isso por ti mesma.
Basta — porque a aflição é forte demais para que tu possas ter ainda tanta
força para guiar-te por ti mesma e dominar também a tua humanidade
impedindo-la de chorar — basta que deixes que a dor te torture, sem
rebelar-te. Basta que digas a Jesus: “Ajuda-me!”. Aquilo que não podes
fazer, Ele o fará por ti. Permanece Nele. Sempre Nele. Não queiras sair
Dele. Se não quiseres, não sais. Se a dor for tão forte, que te impeça de ver
onde estás, tu estarás sempre em Jesus.
Eu te abençôo. Diz comigo: “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.”
Seja este sempre o teu grito. Até que, um dia, o digas no Céu. A graça do
Senhor esteja sempre contigo!
[71] disse, em: Mateus 6,33 (173.7); Lucas 12,31 (276.8).
Primeiro ano
da Vida publica de Jesus.

44. Jesus se despede de sua mãe e deixa Nazaré.


O pranto e a oração da Co-Redentora.
9 de fevereiro de 1944, 9:30 horas.
(iniciada durante a Santa Comunhão)
44.1
Vejo o interior da casa de Nazaré. Nela vejo uma sala, parece uma
sala de família, onde a Família faz suas refeições, ficando também nas
horas de descanso. É uma salinha muito pequena, com uma simples mesa
retangular que está em frente de uma espécie de arquibanco, encostado à
parede. Ele serve de assento para um dos lados da mesa. Junto às outras
paredes estão um tear e um banco, dois outros bancos e uma estante sobre a
qual estão algumas candeias e outros objetos. Uma porta abre-se para a
horta-pomar. Deve estar anoitecendo, porque não tem nada senão uma
lembrança de sol sobre a copa de uma árvore, que começa a verdejar com
suas primeiras folhas.
Jesus está à mesa. Ele está comendo, Maria o serve, indo e vindo, por
uma portinha, a qual suponho que conduz ao lugar onde está a lareira, da
qual se vê o clarão, através da porta entreaberta.
Jesus diz duas ou três vezes a Maria que se assente… e coma também.
Mas ela não quer, sacode a cabeça, sorrindo tristemente, e, depois das
verduras cozidas, que me parece estar em lugar da sopa, leva para a mesa
peixes assados, um queijo fresco, feito de leite de ovelha e em forma de
pequenas bolas parecidas com uma daquelas pedras que se encontram no
fundo dos córregos, e azeitonas pequenas e escuras. O pão, feito em
pequenas formas redondas (da largura de um prato comum) e de pouca
altura, já está sobre a mesa. É um tanto escuro, que não deve ter sido feito
sem o farelo. Jesus tem diante de Si uma ânfora com água e uma taça.
Come em silêncio, olhando para a mãe com um doloroso amor.
É visível o sofrimento de Maria. Ela vai e vem, para mostrar
compostura. Ainda há luz suficiente, mas ela acende uma candeia, e a
coloca perto de Jesus. Ao esticar o braço para isso, acaricia a cabeça de seu
Filho furtivamente, torna a abrir um alforje, que me parece feito com
aqueles tecidos feitos à mão, com lã virgem sendo, por isso, impermeável,
da cor de avelã. Ela procura dentro alguma coisa, sai para o pequeno pomar
e vai até lá no fundo, em uma espécie de esconderijo, saindo com umas
maçãs um pouco murchas, que certamente se conservaram desde o verão,
colocando-as no alforje. Depois pega um pão e um queijo e os põe junto,
por mais que Jesus não queira, dizendo que o que está lá dentro já basta.
Maria se aproxima da mesa novamente, do lado da passagem mais
estreita, à esquerda de Jesus, e fica olhando-O comer. Ela olha para Ele com
angústia, com adoração, com o rosto ainda mais pálido que de costume, que
o sofrimento faz parecer envelhecido, com os olhos maiores, marcados com
uma sombra, indício de lágrimas já derramadas. Parecem também mais
claros que de costume, como se tivessem sido lavados pelo pranto presente
neles, pronto para cair. São dois olhos cheios de dor e de cansaço.
44.2
Jesus, que come devagar e claramente contra a vontade, somente para
contentar a mãe, está mais pensativo do que habitualmente, levanta a cabeça
e a olha. Encontra um olhar cheio de lágrimas, inclinando então a cabeça
para deixá-la mais à vontade, limitando-se a segurá-la pela delicada mão
que ela está apoiando à beira da mesa. Jesus a pega com sua esquerda e a
leva até à sua própria face, e a apóia nela, por um momento, para sentir a
carícia daquela pobre mãozinha que está tremendo, depois a beija no dorso
com muito amor e respeito.
Vejo Maria levar à boca sua mão livre, a esquerda, como para sufocar
um soluço. Em seguida, ela enxuga com os dedos uma grande lágrima que
lhe escapou dos cílios, banhando-lhe a face.
Jesus continua a comer, e Maria sai rapidamente para o pequeno pomar,
onde a luz já é bem pouca, e desaparece. Jesus apóia o cotovelo esquerdo
sobre a mesa, e sobre a mão apóia a fronte mergulhando-se em seus
pensamentos, parando de comer.
Depois parece procurar escutar algo, e se levanta. Sai também Ele para
o pomar, e, ao dar uma olhada ao redor, dirige-se à direita, em relação ao
lado da casa, entrando, pela abertura de uma parede rochosa, em um quarto
que eu reconheço ser a oficina do carpinteiro, que desta vez está toda em
ordem, sem tábuas nem maravalhas, e sem o fogo aceso. Ali estão o banco
grande e os utensílios, tudo em seus lugares, só isso.
Curvada sobre o banco, Maria está chorando. Parece uma menina. Está
com a cabeça sobre o braço esquerdo dobrado, e chora sem fazer barulho,
mas com grande dor. Jesus entra devagar, e se aproxima dela, tão
levemente, que ela só percebe que Ele está ali, quando o Filho lhe pousa a
mão sobre a cabeça inclinada, chamando-a: “Mãe!”, com uma voz de
amorosa censura.
Maria levanta a cabeça, olha para Jesus, através de um véu de lágrimas,
e se apóia Nele com as duas mãos unidas, segurando-o pelo braço direito.
Jesus lhe enxuga o rosto com a beira de sua larga manga, e, depois a abraça,
atraindo-a sobre o seu coração e beijando-a na fronte. Jesus está majestoso,
parece mais viril que de costume, e Maria parece mais menina, exceto no
rosto, que está marcado pela dor.
– Vem, mãe –lhe diz Jesus, e, segurando-a apertada contra Si pelo braço
direito, dirige-se para o pomar, onde se assenta em um banco à frente da
parede da casa. O pomar está silencioso, e enfim escuro. Vê-se apenas um
belo luar e a luz que vem da sala de jantar. A noite está serena.
44.3
Jesus fala a Maria. A princípio, não entendo as palavras, apenas
murmuradas, às quais Maria, com a cabeça, assente. Depois, eu ouço:
– Faz que venham os parentes. Não fiques sozinha. Eu ficarei mais
tranqüilo, mãe, e tu sabes que preciso estar tranqüilo para cumprir a minha
missão. O meu amor não te faltará. Eu virei freqüentemente, e mandarei
avisar-te, quando estiver na Galiléia, não podendo vir até em casa. Nesse
caso, tu irás a Mim. Mãe, esta hora tinha que chegar. Ela começou aqui,
quando o Anjo te apareceu; agora ela chegou, nós devemos vivê-la, não é
verdade, mãe? Depois virá a paz, da provação superada, e a alegria.
Primeiro, precisamos atravessar este deserto como os antigos Pais fizeram
para entrarem na Terra Prometida. Mas o Senhor Deus nos ajudará, como
ajudou a eles. E nos dará a sua ajuda como um maná espiritual para nutrir o
nosso espírito no esforço da prova. Vamos dizer juntos o Pai-nosso…
Jesus se levanta, e Maria com Ele, erguendo os rostos ao céu. Duas
hóstias vivas, que brilham na escuridão.
Jesus diz lentamente, mas com voz clara, e destacando as palavras, a
oração dominical[72]. Destaca de modo especial as palavras destas frases:
“Venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade”, separando bem
estas duas frases das outras. Ele reza com os braços abertos, não
propriamente em cruz, mas como fazem os sacerdotes, quando se dirigem
ao povo, dizendo: “O Senhor esteja convosco!” Maria conserva suas mão
unidas.
44.4
Depois, voltam para a casa, e Jesus, que eu nunca vi beber vinho,
despeja em uma taça, de uma ânfora apanhada na estante, um pouco de
vinho branco e o leva para a mesa, pega Maria pela mão, e faz que ela se
assente perto Dele e beba daquele vinho, no qual molha uma pequena fatia
de pão, fazendo, depois, que ela o coma. A insistência dele é tanta, que
Maria cede. Jesus bebe o que resta do vinho. Depois disso, aperta a mãe ao
seu lado, e a segura assim junto ao seu corpo, pela parte do coração. Nem
Jesus, nem Maria estão deitados, mas sentados, como nós nos sentamos.
Não estão falando mais. Estão esperando. Maria acaricia a mão direita de
Jesus e seus joelhos. Jesus faz uma carícia ao braço e à cabeça de Maria.
44.5
Em seguida, Jesus se levanta, e Maria também, e se abraçam e se
beijam amorosamente muitas vezes. Parece que querem se deixar, mas
Maria torna a apertar contra si o seu Filho. É a Virgem Santa, mas é uma
mãe enfim, uma mãe que precisa separar-se do seu filho, sabendo qual vai
ser o fim daquela separação. Ninguém me venha mais dizer que Maria não
sofreu. Antes, acreditava pouco nisso, mas agora estou convencida.
Jesus pega o manto (azul escuro) e joga-o sobre as costas e a cabeça,
como um capuz. Depois pendura à tiracolo o alforje, de modo que não lhe
dificulte o andar. Maria o ajuda, parece que não vai terminar nunca de
ajustar-lhe a roupa, o manto e o capuz. E, enquanto assim faz, ela ainda o
acaricia.
Jesus vai até à saída, depois de ter traçado um gesto de bênção sobre a
sala. Maria o acompanha e, à porta, que já está aberta, eles se beijam de
novo.
44.6
A rua está silenciosa e solitária, toda branca ao luar. Jesus vai
caminhando. Vira-se ainda duas vezes para olhar a mãe, que ficou apoiada
ao umbral da porta, mais branca do que a lua, e soltando lágrimas que
brilham em um pranto silencioso. Jesus vai ficando cada vez mais longe,
indo pela ruazinha branca. Maria continua chorando junto à porta. Depois,
Jesus desaparece numa das curvas do caminho.
Começou o seu caminho de Evangelizador, que terminará no Gólgota.
Maria entra chorando, e fecha a porta. Também para ela começou o
caminho que a levará ao Gólgota. Tudo por nós…

44.7
Jesus diz:
– Esta é a quarta dor de Maria mãe de Deus. A primeira foi a
apresentação ao Templo; a segunda, a fuga para o Egito; a terceira, a morte
de José; a quarta, a minha separação dela.
Conhecendo o desejo do Pai, Eu te disse ontem à tarde que apressarei a
descrição das “nossas” dores para que elas se tornem conhecidas. Mas,
como estás vendo, já algumas, de minha mãe, tinham sido relatadas. Eu
expliquei a fuga[73] antes da apresentação, porque havia necessidade de
fazê-lo naquele dia. Eu sei. Tu compreendes e dirás o porquê ao Pai, de viva
voz.
44.8
É meu desejo alternar as tuas contemplações, e as minhas
conseqüentes explicações, com os ditados propriamente ditos, para aliviar o
teu espírito, dando-te a bem-aventurança de ver, e também porque assim
fica clara a diferença estilística entre o teu modo de compor e o meu.
Além disso, diante de tantos livros que falam de Mim, com tanto toca e
retoca, muda e embeleza, estes livros se tornaram irreais, agora Eu desejo
dar a quem crê em Mim, uma visão que leve à verdade do tempo da minha
vida mortal. Com isso, Eu não fico diminuído, mas ao contrário, me torno
maior na minha humildade, que se faz pão por vós, a fim de ensinar-vos a
ser humildes e semelhantes a Mim, que fui homem como vós, trazendo
Comigo, na minha veste de homem, a perfeição de um Deus. Eu devia ser
vosso Modelo, e os modelos devem ser sempre perfeitos.
Não terei nas contemplações uma linha cronológica correspondente à
dos Evangelhos. Tomarei os pontos que Eu achar mais úteis naquele dia
para ti ou para os outros, seguindo uma linha minha de ensinamento e de
bondade.
44.9
O ensinamento que vem da contemplação da minha separação é
dirigido especialmente aos pais e aos filhos que a vontade de Deus chama
para uma vida de renúncia recíproca por um amor mais alto. Em segundo
lugar, é dirigido a todos aqueles que se encontram diante de uma renúncia
difícil.
Quantas dessas não encontrais em vossas vidas! Elas são como
espinhos sobre a terra, e penetrantes ao coração. Eu sei. Mas a quem as
acolhe com resignação — prestai atenção, eu não digo: “a quem as deseja e
as acolhe com alegria” (pois isto já é perfeição); mas eu digo: “com
resignação” — elas se transformam em rosas eternas. Mas poucos são os
que as acolhem com resignação. Como uns burrinhos rebeldes, vós vos
levantais contra a vontade do Pai e teimais, se é que não procurais até ferir
com coices espirituais e mordidas, ou seja, com rebelião e blasfêmias contra
o bom Deus.
44.10
Não digais assim: “Mas eu não tinha outro bem senão este, e Deus o
tirou de mim. Eu não tinha outro amor senão este, e Deus arrebatou-o de
mim.” Também Maria, mulher gentil e amorosa até à perfeição, porque em
sua Graça Total até as formas afetivas e sensitivas eram perfeitas, não tinha
senão um bem e um amor sobre a terra: o seu Filho. Nada lhe restava, senão
Ele. Seus pais estavam mortos fazia tempo, José estava morto, havia alguns
anos. Não havia senão Eu para amá-la e fazê-la sentir que não estava
sozinha. Os parentes, por causa de Mim, de quem eles não conheciam a
origem divina, lhe eram um pouco hostis, como se fosse uma mãe que não
sabe se impor ao filho, que sai do bom-senso, que recusa os casamentos que
lhe são propostos os quais poderiam trazer prestígio para a família, e até
ajuda.
Os parentes, voz do bom senso, do senso humano ainda, que vós
chamais de bom-senso, não passam de um senso humano, isto é, egoísmo,
teriam querido estas práticas desenvolvidas na minha vida. No fundo, havia
sempre o medo de, um dia, passarem aborrecimentos por minha causa, pois
Eu já ousava exteriorizar minhas idéias, por demais sonhadoras, no pensar
deles, as quais podiam até irritar a Sinagoga. A história hebraica estava
cheia de ensinamentos sobre a sorte que tiveram os profetas. Não era fácil a
missão do profeta, pois muitas vezes acarretava a morte dele e
aborrecimentos para a sua parentela. No fundo, estavam sempre com o
pensamento de que teriam um dia de cuidar de minha mãe.
Por isso é que, ao verem que Ela não se opunha a Mim em nada, e até
parecia viver numa contínua adoração perante o Filho, isso os irritava. Esta
antipatia haveria de ir crescendo, ao longo dos três anos do ministério, até
culminar em censuras abertas, quando me encontravam no meio das
multidões, e se envergonhavam, como diziam, da minha mania de ficar
provocando as castas poderosas. Censuras a Mim e a Ela, a minha pobre
mãe!
44.11
Contudo, Maria não opôs resistência, como vós fazeis, ela que sabia
as disposições dos parentes (nem todos foram como Tiago, Judas e Simão,
nem como a mãe deles, Maria de Cléofas), prevendo as disposições futuras,
e sabendo a sua sorte durante aqueles três anos e o que a aguardava no final
deles, assim como o que Me aconteceria. Ela chorou. Quem não teria
chorado, diante da separação do filho que a amava, como Eu a amava,
diante da perspectiva dos longos dias vazios, sem a minha presença,
naquela casa solitária, diante do futuro do Filho, destinado a se bater contra
a má vontade de quem era culpado, procurando vingar-se da culpa,
ofendendo o Inocente, até matá-lo?
Chorou porque era a Co-Redentora e a mãe do gênero humano
renascido para Deus, e devia chorar por todas as mães que não sabem fazer
de suas dores de mães uma coroa de glória eterna.
Quantas mães neste mundo vêem a morte arrancar um filho dos seus
braços! Quantas mães vêem a vontade sobrenatural arrebatar-lhes um filho
de perto delas! Maria chorou por todas as suas filhas, como mãe dos
cristãos, por todas as suas irmãs, em sua dor de mãe despojada. Chorou
também por todos os filhos que, nascidos de mulher, estão destinados a
tornarem-se apóstolos de Deus, ou mártires por amor de Deus, por
fidelidade a Ele ou pela ferocidade humana.
44.12
O meu Sangue e o pranto de minha mãe são a mistura que fortalece
os marcados da sorte heróica, anulando-lhes as imperfeições, ou as faltas
cometidas por fraqueza, dando depois do martírio sofrido, a paz de Deus e,
se sofrido por Deus, a glória do Céu.
Os missionários experimentam as lágrimas como uma chama que os
aquece nas regiões onde a neve impera, como um orvalho lá onde o sol
arde. São brotadas da caridade de Maria e jorram dum coração de lírio. Suas
lágrimas têm o fogo da caridade virginal unida ao Amor e o perfumado
frescor da virginal pureza, semelhante ao da água que se recolhe no cálice
de um lírio, depois de uma noite orvalhosa.
Os consagrados as encontram[74] naquele deserto que é a vida
monástica bem entendida. É deserto porque não vive senão da união com
Deus, e qualquer outro afeto desaparece tornando-se unicamente caridade
sobrenatural, para com os parentes, os amigos, os superiores e os inferiores.
São encontradas pelos consagrados a Deus no mundo, no mundo que
não os entende e não os ama. É deserto também para eles, pois vivem como
se estivessem sozinhos, por serem tão incompreendidos e escarnecidos, por
amor de Mim.
As minhas queridas “vítimas” experimentam as lágrimas, porque Maria
é a primeira das vítimas que por amor de Jesus dá as suas lágrimas que
restauram e inebriam um maior sacrifício, às suas imitadoras, com a mão de
mãe e de Médica.
Santo pranto o de minha mãe!
44.13
Maria reza. Não se recusa a rezar, só porque Deus lhe manda uma
dor. Lembrai-vos disso. Ela reza junto com Jesus. Reza o Pai-nosso. Nosso
e vosso.
O primeiro “Pai-nosso” foi pronunciado no pomar de Nazaré para
consolar o sofrimento de Maria, para oferecer as “nossas” vontades ao
Eterno, no momento em que se estava iniciando para essas vontades o
período de uma renúncia sempre crescente, que iria culminar por Mim, na
renúncia da vida e por Maria, na morte do Filho.
Ainda que não tivéssemos nada de que pedir perdão ao Pai, contudo,
por humildade, nós, os Sem Culpa, pedimos perdão ao Pai, para sermos
perdoados e absolvidos até de algum suspiro, para podermos ir dignamente
ao encontro da nossa missão. Para ensinar-vos que quanto mais estiverdes
na graça de Deus, mais a missão é abençoada, e mais frutos ela produz. Para
ensinar-vos o respeito a Deus e a humildade. Diante de Deus Pai, até as
nossas duas perfeições de Homem e de Mulher sentiram-se um nada,
pedindo perdão. Como também pediram o “pão de cada dia”.
Qual era o nosso pão? Oh! não aquele amassado pelas mãos puras de
Maria e assado no pequeno forno, para o qual tantas vezes Eu tinha ajeitado
feixes e braçadas de lenha. Também aquele é necessário, enquanto
estivermos sobre a terra. Mas o “nosso” pão de cada dia era aquele de fazer,
dia após dia, a nossa parte da missão. Que Deus no-la desse cada dia,
porque cumprir a missão que Deus dá é a alegria do “nosso” dia, não é
verdade, pequeno João? Não dizes, tu também, que o dia te parece vazio,
parecendo não existir, se a bondade do Senhor te deixa um dia sem a tua
missão de dor?
44.14
Maria reza junto a Jesus. É Jesus quem vos justifica, meus filhos!
Sou Eu que torno aceitáveis e frutuosas as vossas orações junto ao Pai. Eu
já vos disse[75]: “Tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vos
concederá”, e a Igreja valoriza as suas orações, dizendo: “Por Jesus Cristo
nosso Senhor.”
Quando rezardes, uni-vos sempre, sempre, sempre a Mim. Eu rezarei
em alta voz por vós, cobrindo a vossa voz de homens com a minha de
Homem-Deus. Eu colocarei sobre as minhas mãos traspassadas a vossa
oração, e a elevarei até o Pai. Ela se tornará uma hóstia de preço infinito. A
minha voz, misturada com a vossa, subirá como um beijo filial ao Pai, e a
púrpura das minhas feridas tornará precioso o vosso rezar. Permanecei em
Mim, se quereis que o Pai permaneça em vós, convosco, por vós.
Terminaste a narração dizendo: “por nós…”, e querias dizer: “Por
44.15

nós que somos tão ingratos para com estes Dois que subiram ao Calvário
por nós.” Fizeste bem em colocar estas palavras. Coloca-as cada vez que Eu
te fizer ver uma das nossas dores. Sejam como um sino que toca e que
chama, convidando a meditar e a arrepender-se.
Agora basta. Repousa. A paz esteja contigo.
[72] a oração dominical, é a oração do “Pai Nosso”, que Jesus ensinará aos Apóstolos no segundo ano da sua vida pública (em
203.5). Por isso Maria Valtorta faz a seguinte anotação na sua cópia dactilografada: Se Jesus ensinou o “Pater” aos seus
discípulos, não deveria antes ensiná-lo à Mãe? Àquela Mãe que, ao receber no seio a semente de Deus, logo disse: “Se faça
segundo a sua palavra” e que tal “fiat” havia sempre repetido, mesmo para o Filho apenas nascido? O “Pater” não foi uma
improvisação de Jesus para os Apóstolos. Era a “sua” oração habitual, tanto que os Apóstolos lhe dizem: “Ensina-nos a rezar
como Tu rezas”. E era a oração comum de Jesus e de Maria. Que fosse a oração habitual de Jesus resulta também do texto de
69.5; e porque Ele a dizia com a Mãe antes de a ensinar aos discípulos (com os quais dirá e comentará pela última vez, como
Ressuscitado, em 630.21/26) é explicado também numa nota ao texto de 62.2. -ao tempo da escritora era normal recitar em latim
as orações, sendo o latim a língua da liturgia católica. As expressões latinas na obra Valtortiana não são senão fórmulas de oração
e, enquanto tal, pertencem à língua do tempo em que a obra se manifesta. Notemos como exemplo: Sanctus em 20.7, Gloria
Patri... no fim de 43.7, adveniat... e Dominus vobiscum (o Senhor esteja convosco) abaixo e em 547.4, Agnus Dei... em 46.11,
Ecce Agnus Dei em 108.3, benedicite em 176.3, Fiat em 342.9, Offerimus... em 610.14. Em particular, a oração do “Pai Nosso”
era usualmente citada como Pater ou Pater Nostro, e assim vem chamado mais abaixo (44.13) e em: 240.4 -307.8 -357.2 -405.11
-423.9 -437.5 -458.3 -477.10 -497.5 -602.12 -616.9 -636.11 -649.18 (onde é igualmente citado o Magnificat, como acontece em
649.14).
[73] fuga, poderia ser um lapso de Maria Valtorta em vez de paragem, posto que desde as datas da escrita resulta que a
apresentação foi explicada após a paragem (no Egipto) e antes da fuga (no Egipto).
[74] as encontram, repetido muitas vezes, deve entender-se encontram as lágrimas, como se deduz do que vem a seguir.
[75] Eu já vos disse, em: João 16,23 (600.26.35).
45. Pregação de João Batista e Batismo de Jesus.
A divina manifestação.
[…].
O mesmo 3 de fevereiro de 1944, à tarde.
45.1
Vejo uma planície despovoada, sem cidades e sem vegetação. Não há
campos cultivados, e bem poucos e raros são os arbustos reunidos aqui e ali
em moitas, como uma das famílias vegetais, nos lugares em que o solo, nas
camadas mais profundas está menos árido do que nos outros pontos em
geral. Faça de conta que este terreno chamuscado e inculto esteja à minha
direita, tendo eu o norte às minhas costas, e que ele se prolongue para o
lado sul, em relação a mim.
À esquerda, ao contrário, vejo um rio de margens muito baixas, que
corre lentamente, também ele de norte a sul. Pelo movimento vagaroso da
água, compreendo que não devem existir desníveis em seu leito e que este
rio corre por uma planície de tal maneira plana, que forma uma depressão.
Ali há um movimento apenas suficiente para que a água não fique
estagnada em um pântano. (A água é pouco profunda, tanto que se pode ver
o fundo. Acho que não tem mais do que um metro, no máximo, um metro e
meio. Tem uma largura como a do rio Arno, à altura de S. Miniato-Empoli,
eu diria, de uns vinte metros. Mas eu não tenho olho bom para calcular
distâncias). Também é um rio de águas azuis levemente esverdeadas nas
margens, onde pela umidade do solo há uma vegetação densa e agradável à
vista, que já ficou cansada de olhar a esqualidez das pedras e da areia que se
estende diante dela.
Aquela voz interior[76], que eu lhe expliquei que ouço, e que me indica
o que é que devo anotar e saber, me avisa que o que estou vendo é o vale do
Jordão. Eu o chamo de vale, porque é costume falar assim, quando
queremos indicar o lugar por onde corre um rio, mas no caso do Jordão, é
impróprio chamá-lo assim, porque um vale pressupõe montes, e eu aqui não
vejo montes próximos. Mas, em suma, estou junto ao Jordão, e o espaço
desolado, que observo à minha direita é o deserto de Judá. Se falamos em
deserto para querermos dizer um lugar onde não há casas nem trabalhos
feitos pelo homem, está certo, mas não o é segundo o conceito que nós
temos do deserto. Aqui não há areias onduladas do deserto como nós o
concebemos, mas somente terra nua, com pedras e detritos espalhados,
como são os terrenos aluviais depois de uma cheia. Lá, ao longe, vêem-se
algumas colinas.
Também, junto ao Jordão, reina uma grande paz, alguma coisa de
especial e de superior ao comum, igual ao que se sente nas margens do lago
Trasimeno. É um lugar que parece querer fazer-nos pensar em vôos de anjos
e em vozes celestes. Não sei dizer bem o que estou sentindo. Mas me sinto
num lugar que nos fala ao espírito.
45.2
Enquanto observo estas coisas, vejo que o cenário vai-se enchendo de
gente, ao longo da margem direita (em relação a mim) do Jordão. Há muitos
homens, vestidos de maneiras diversas. Alguns parecem homens do povo,
outros são ricos e não faltam alguns que parecem ser fariseus, pelas vestes
adornadas com franjas e galões.
No meio deles, em pé sobre um penhasco, está um homem que, ainda
que seja esta primeira vez que o vejo, reconheço logo que é o Batista. Ele
fala à multidão, e eu lhe asseguro que não é uma pregação doce. Jesus
chamou[77] Tiago e João de “os filhos do trovão”. Como chamar, então, este
veemente orador? João Batista merece o nome de raio, avalanche,
terremoto, pois o seu modo de falar e gesticular é muito impetuoso e severo.
Ele fala, anunciando o Messias e exortando o povo a preparar os
corações para a sua vinda, arrancando-lhes os embaraços, endireitando-lhes
os pensamentos. Mas é um falar vorticoso e rude. O Precursor não tem a
mão leve de Jesus, sobre as chagas dos corações. É um médico que tudo
descobre, examina, e corta, sem piedade.
45.3
Enquanto o escuto — e não repito as palavras porque são aquelas
referidas[78] pelos evangelistas, mas amplificadas em sua
impetuosidade — vejo que, ao longo de uma estradinha, pela beira da faixa
verde que acompanha o Jordão, vem se aproximando o meu Jesus. Este
caminho rústico, que é mais um atalho do que um caminho, parece ter-se
formado com a passagem das caravanas e das pessoas que, durante anos e
séculos, o têm percorrido para alcançar um ponto mais raso do rio e fácil
de ser atravessado a vau. O atalho continua do outro lado do rio, e se
perde entre o verde dos ribeirinhos.
Jesus está sozinho. Caminha lentamente, avançando em direção às
costas de João. Aproxima-se sem fazer barulho e escuta, entretanto, a voz
trovejante do Penitente do deserto, como se Jesus fosse um dos muitos que
iam a João para serem batizados, a fim de se prepararem para estarem
limpos, na chegada do Messias. Nada distingue Jesus dos outros. Nas
vestes, Ele parece um dos homens do povo, um senhor no trato e na beleza,
mas nenhum sinal divino o diferencia da multidão.
Dir-se-ia, porém, que João está sentindo a emanação de uma
espiritualidade especial. Ele se vira e, de imediato, reconhece qual é a fonte
daquela emanação. Ele desce impetuosamente do penhasco, que lhe servia
de púlpito, e, rapidamente, vai até Jesus, que estava parado a alguns metros
do grupo, apoiando-se ao tronco de uma árvore.
45.4
Jesus e João se olham por um momento. Jesus com aquele seu olhar‐
azul tão doce. João com seus olhos severos, pretos, cheios de uma luz
intensa. Vistos de perto, eles são a antítese um do outro. Os dois são altos (é
a única semelhança, em tudo o mais são diferentes). Jesus é loiro, de
cabelos compridos e penteados, com um rosto de um branco marfim, de
olhos azuis, de roupa simples, mas majestosa. João tem cabelos pretos, que
caem lisos sobre as costas, desiguais em comprimento, com uma barba
preta e rala, que lhe cobre quase todo o rosto, sem impedir que se possam
notar suas faces escavadas pelo jejum, seus olhos pretos e febris, sua pele
escura, bronzeada pelo sol e pelas intempéries, A pelugem farta que lhe
cobre o corpo seminu, com sua veste de pêlo de camelo, presa à cintura por
uma correia de pele, cobrindo o torso, descendo um pouco abaixo dos
flancos magros, deixando descobertas as costelas à direita, por onde se vê a
pele curtida pelo ar. Os dois, vistos juntos, parecem um anjo e um
selvagem.
João, depois de tê-lo perscrutado com seus olhos penetrantes, exclama:
– Eis o Cordeiro de Deus! Como é que o meu Senhor vem a mim?
Jesus lhe responde tranqüilamente:
– É para cumprir o rito da penitência.
– Nunca, meu Senhor. Eu é que devo ir a Ti para ser santificado, e Tu
vens a mim?
Jesus, pondo-lhe a mão sobre a cabeça, pois João estava curvado à sua
frente, lhe responde:
– Deixa que se faça como Eu quero, para que se cumpra toda a justiça,
para que o teu rito se torne o início de um mais alto mistério, e para que seja
anunciado aos homens que a Vítima já está no mundo.
45.5
João olha para Ele com uns olhos, que uma lágrima enternece, e o
precede em direção à beira do rio, onde Jesus tira o manto e a túnica,
ficando com uma espécie de calções curtos, para, depois, descer na água,
onde já está João, que o batiza, vertendo-lhe sobre a cabeça a água do rio,
apanhada com uma espécie de taça que o Batista traz pendurada na
cintura, e que me parece uma concha, ou a metade de uma cabaça seca, da
qual foi tirado o miolo.
Jesus é realmente o Cordeiro. Cordeiro na candura da carne, na
modéstia do trato, na mansidão do olhar.
Enquanto Jesus torna a subir à beira do rio, depois de se vestir, se
recolhe em oração, João o aponta à multidão, dando o testemunho de tê-lo
conhecido pelo sinal que o Espírito de Deus lhe tinha dado, sinal infalível
do Redentor.
Mas eu me sinto tão atraída por Jesus, ao vê-lo rezando, que não vejo
nada, a não ser esta figura de luz, contra o verde da margem.

4 de fevereiro de 1944.
45.6
Jesus diz:
– João para si mesmo não tinha necessidade do sinal. O seu espírito,
pré-santificado desde o ventre de sua mãe, possuía aquela vista da
inteligência sobrenatural, que teria sido a de todos os homens sem a culpa
de Adão.
Se o homem tivesse permanecido na graça, na inocência, na fidelidade
ao seu Criador, teria visto Deus, através das aparências externas. No
Gênesis está dito que o Senhor Deus falava familiarmente com o homem
inocente e que, diante daquela voz o homem não desfalecia, nem se
enganava, ao discerni-la. Tal era a sorte do homem: ver e compreender a
Deus, exatamente como um filho faz com o seu pai. Depois veio a culpa, e
o homem não mais ousou olhar a Deus, não mais soube ver e compreender
Deus. E o compreende cada vez menos.
Mas João, o meu primo João, tinha sido purificado da culpa, quando a
cheia de graça se curvou amorosamente para abraçar a que tinha sido
estéril, sendo agora, a fecunda Isabel. O pequenino, no seu ventre, tinha
saltado de alegria, sentindo sair de sua alma o vestígio da culpa, assim
como uma crosta cai da ferida que ficou curada. O Espírito Santo, que fez
de Maria a mãe do Salvador, Ele iniciou a Sua obra de salvação, através de
Maria, cibório vivo da salvação encarnada, por meio deste nascituro, que
estava destinado a estar unido a Mim, não tanto pelo sangue, mas também
pela missão que fez de ambos, lábios que formam a palavra. João era os
lábios, Eu era a Palavra. Ele, o Precursor no Evangelho e em seu destino de
mártir. Eu, Aquele que aperfeiçoa, com a minha divina perfeição, o
Evangelho iniciado por João, e o seu martírio, pela defesa da Lei de Deus.
João não precisava de nenhum sinal. Mas o sinal era necessário para a
obtusidade dos outros. Sobre o que teria João baseado a sua afirmação
senão sobre uma prova inegável que até os olhos dos lentos e os ouvidos
dos aborrecidos tivessem podido perceber?
45.7
Eu também não precisava de batismo. Mas a sabedoria do Senhor
tinha julgado ser aquele o momento e o modo de nos encontrarmos. Tirando
João da sua caverna, e a Mim da minha casa, Ele nos uniu naquela hora
para abrir sobre Mim os Céus, descendo a Pomba divina sobre Aquele que
teria de batizar os homens com esta Pomba, e descendo também o anúncio,
ainda mais poderoso do que o do anjo, porque era de meu Pai: “Eis o meu
Filho dileto, com o qual Eu me comprazo.” Para que os homens não
tivessem desculpas ou dúvidas se deveriam seguir-me ou em não.
45.8
As manifestações do Cristo foram muitas. A primeira depois do
nascimento foi aquela dos Magos, a segunda, no Templo, e a terceira às
margens do Jordão. Depois vieram infinitas outras, que eu te farei conhecer,
pois os meus milagres são manifestações da minha natureza divina, até a
Ressurreição e a Ascensão ao Céu.
A minha pátria encheu-se das minhas manifestações. Como semente
lançada aos quatro pontos cardeais, essas manifestações aconteceram em
todas as camadas da sociedade e em todos os lugares da vida: dos pastores,
aos poderosos, aos doutos, aos incrédulos, aos pecadores, aos sacerdotes,
aos dominadores, às crianças, aos soldados, aos hebreus, aos gentios. Ainda
agora elas se repetem. Mas, como naquele tempo, o mundo não as recebe
bem. Não recebe bem as atuais, esquecendo-se também das passadas. Pois
bem, Eu não desisto. Eu me repito para salvar-vos, para levar-vos a ter fé
em Mim.
45.9
Sabes, Maria, o que estás fazendo? Sabes o que Eu estou fazendo, ao
mostrar-te o Evangelho? Uma tentativa mais forte de trazer os homens a
Mim. Tu tens desejado isto com ardentes orações. Eu não me limito mais à
palavra. Ela os cansa e os afasta. É uma culpa, mas é assim. Recorro à
visão, a visão do meu Evangelho, e a explico para torná-la mais clara e
atraente.
A ti Eu te dou o conforto da visão. A todos Eu dou o modo de desejar
me conhecer. Se ainda não servir, e como crianças caprichosas, jogarem
fora o presente sem compreenderem o seu valor, contigo ficará o meu
presente, e a eles, a minha indignação. Poderei, mais uma vez, dar-lhes[79]
aquela antiga repreensão: “Tocamos, e não dançastes; entoamos
lamentações, e não chorastes.”
Mas, não importa. Deixemos que eles, esses inconvertíveis, acumulem
sobre suas cabeças os carvões ardentes, e voltemos às ovelhinhas, que
procuram conhecer o Pastor. Eu sou o Pastor, e tu és a vara que as conduz a
Mim.

Como vê, eu me apressei a colocar aqueles particulares[80] que, pela


45.10

sua pequenez, me haviam escapado, e que o Senhor desejou ter.


[…].
[76] Aquela voz interior, é o monitor interior (assim chamado em: 21.2 -34.1 -46.2 -55.6 -106.1 -361.1 -605.2 -607.1) ou a
segunda voz (como em 41.10) ou a voz interior (como em 47.9 e 101.1) ou a intuição interior (como na nota em 396.8) ou luz
interior (como em 608.1).
[77] chamou, em: Marco 3,17 (330.3 e 575.8).
[78] referidas, em: Mateus 3,1-12; Marcos 1,1-8; Lucas 3,3-18; João 1,19-34.
[79] dar-lhes, como em 266.12.
[80] particulares, que Maria Valtorta acrescentou inserindo-os entre as linhas autografas ou em roda pé na página autografa do
caderno e, que pusemos em itálico no texto de 45.1/5.
46. Jesus tentado por Satanás no deserto.
Como se vencem as tentações.
24 de fevereiro de 1944. Quinta-Feira depois das Cinzas.
46.1
Vejo à minha esquerda, a solidão rochosa, que eu já vi, na visão do
batismo de Jesus no Jordão. Mas devo ter penetrado bastante nela, porque
não vejo inteiramente o belo rio, vagaroso e azul, nem a veia verde que o
acompanha em suas duas margens, como que alimentada por aquela artéria
de água. Aqui só se vê solidão, grandes pedras, uma terra de tal maneira
árida, que está reduzida a um pó amarelado que, de vez em quando o vento
levanta em pequenos redemoinhos, parecidos com o sopro de alguma boca
febril, de tão quente e seco. Eles incomodam, porque a sua poeira nos
penetra as narinas e a garganta. Há algumas pequenas moitas de
espinheiros, muito raras, que não se sabe como é que podem resistir, nessa
desolação. Parecem os últimos fios de cabelo numa cabeça calva. Acima,
um céu, impiedosamente azul; em baixo, o solo árido; ao redor, penhascos e
silêncio. Eis o que vejo como natureza.
46.2
Encostado à uma grande pedra, que pela sua forma, feita para
cima e para baixo assim como tento desenhá-la, parece um princípio de
caverna, está Jesus, sentado sobre numa outra pedra, que foi arrastada para
dentro da caverna +. Protege-se assim do sol ardente.

Meu monitor interior me avisa que aquela pedra, sobre a qual o Senhor
está sentado, é também o seu genuflexório e o seu travesseiro, quando Ele
tira suas breves horas de repouso, envolto em seu manto, à luz das estrelas e
exposto ao ar frio da noite. De fato, a sacola está perto dele, a mesma que
eu o vi pegar, antes de partir de Nazaré. É tudo o que Ele tem. E, como está
dobrada e frouxa, compreendo que está vazia, sem aquele pouco alimento
que Maria havia posto nela.
Jesus está muito magro e pálido. Está sentado com os cotovelos
apoiados nos joelhos e os antebraços estendidos para a frente, com as mãos
unidas e os dedos entrelaçados. Ele está meditando. De vez em quando,
ergue o olhar, e o gira ao seu redor, olha para o sol alto, quase à pino, no
céu azul. De vez em quando, e especialmente depois de ter girado o olhar
ao redor e de tê-lo erguido em direção à luz solar, Ele fecha os olhos e se
apóia ao penhasco, que lhe serve de abrigo, como se estivesse sendo
tomado por uma vertigem.
46.3
Vejo, então, aparecer a cara feia de Satanás. Não que ele se apresente
na forma com que nós costumamos figurá-lo com chifres, rabo, etc. Parece
um beduíno, envolto em sua veste e em seu grande manto, como um
dominó mascarado. Na cabeça tem um turbante, cujas extremidades brancas
descem como uma proteção sobre os ombros e ao longo dos lados do rosto.
De modo que deste aparece um pequeno triângulo muito moreno, de lábios
finos e sinuosos, de olhos muito pretos e encavados, cheios de brilhos
magnéticos. São duas pupilas que te perscrutam até o fundo do coração,
mas nas quais não lês nada, somente esta palavra: mistério. O oposto dos
olhos de Jesus, também estes magnéticos e fascinantes e que perscrutam os
corações, mas nos quais tu também podes ler que no seu coração há amor e
bondade para contigo. O olhar de Jesus é uma carícia para a alma. Enquanto
que o olhar de Satanás é como um duplo punhal que te perfura e te queima.
46.4
Ele se aproxima de Jesus:
– Estás sozinho?
Jesus olha para ele, e não responde.
– Como vieste parar aqui? Estás perdido?
Jesus o olha novamente, e continua calado.
– Se eu tivesse água no odre, eu te daria. Mas eu também estou sem.
Meu cavalo morreu, e eu vou indo a pé até o vau do Jordão. Lá eu beberei,
e hei de encontrar alguém que me dê um pão. Eu sei o caminho. Vem
comigo. Eu te guiarei.
Jesus não levanta nem mesmo o olhar.
– Não respondes? Sabes que, se ficares aqui, morrerás? O vento está
começando a soprar. Vai vir uma tempestade. Vem comigo.
Jesus une as mãos em muda oração.
– Ah! Então, és Tu mesmo? Há tanto tempo que te procuro! Agora faz
tempo que te venho observando. Desde o momento em que foste batizado.
Estás chamando o Eterno? Ele está longe. Agora estás sobre a terra e em
meio aos homens. No meio dos homens, quem reina sou eu. Eu também
tenho dó de ti e te quero socorrer, porque és bom, e vieste sacrificar-te à toa.
Os homens te odiarão pela tua bondade. Eles só entendem, se lhes falares de
ouro, comida e sentidos. Sacrifício, dor, obediência, são para eles palavras
mortas mais do que esta terra, que está ao redor de nós. Eles são ainda mais
áridos do que esta poeira. Só a serpente pode esconder-se aqui, esperando a
hora de dar o bote; e o chacal, a hora de despedaçar sua vítima. Vem, vamos
embora. Não mereces sofrer por eles. Eu os conheço melhor do que Tu.
Satanás sentou-se de frente a Jesus e o examina com esse seu olhar‐
horrível, sorrindo com a sua boca de serpente. Jesus continua calado,
rezando mentalmente.
46.5
– Tu estás desconfiando de mim. Fazes mal. Eu sou a sabedoria da
terra. Posso ser teu mestre, para te ensinar a triunfar. Vê: o importante é
triunfar. Depois, quando nos impusermos e o mundo ficar fascinado, então
o levaremos para onde quisermos. Mas antes, é necessário fazer o que
agrada a eles. Ser como eles. Seduzi-los, fazendo-os crer que nós os
admiramos e os acompanhamos em seus pensamentos.
Tu és jovem e belo. Começa pela mulher. É sempre por ela que se deve
começar. Eu errei, induzindo a mulher à desobediência. Eu devia tê-la
aconselhado de outro modo. Eu teria feito dela um instrumento melhor, e
teria vencido a Deus. Eu fui apressado. Mas Tu! Vou te ensinar, porque
houve um dia em que eu olhei para Ti com um júbilo angelical, e um resto
daquele amor [81]ainda ficou, mas Tu, escuta-me, aproveita-te da minha
experiência! Arruma uma companheira. Porque o que não conseguires, ela
conseguirá. Tu és o novo Adão: deves ter a tua Eva.
Além disso, como podes compreender e curar as doenças da
sensualidade, se não sabes o que elas são? Não sabes que aí é que está o
ponto central do qual nasce a planta da cobiça e da prepotência? Para que é
que o homem quer reinar? Para que é que quer ser rico e poderoso? Para
possuir a mulher. Ela é como a cotovia. Ela precisa do brilho para ser
atraída. O ouro e o poder, são as duas faces do espelho que atraem as
mulheres e são as causas do mal no mundo. Olha bem: atrás de mil delitos
de diversas faces, há, pelo menos novecentos que têm suas raízes na fome
da posse da mulher, ou na vontade de uma mulher, que arde num desejo que
o homem ainda não conseguiu satisfazer ou não mais satisfaz. Se quiserdes
saber o que é a vida procura a mulher. Só depois, saberás cuidar e curar as
doenças da humanidade.
A mulher é bonita, como sabes! Não há nada de mais belo no mundo. O
homem tem o pensamento e a força. Mas, a mulher! O seu pensamento é
um perfume, seu contato é carícia de flores, sua graça é como um vinho que
desce, sua fraqueza é como uma meada de seda ou anel de cabelo de bebê
nas mãos do homem, sua carícia é uma força que se derrama sobre a nossa
inflamando-a. Acaba-se a dor, o cansaço, a aflição, quando nos colocamos
perto de uma mulher, pois ela, nos nossos braços, é como um feixe de
flores.
46.6
Mas, que tolo que eu sou! Tu estás com fome, e eu te falando da
mulher. O teu vigor está esgotado. É por isso que essa fragrância da terra,
essa flor da criação, esse fruto que dá e suscita o amor, te parece uma coisa
sem valor. Mas olha estas pedras, como são redondas e lisas, como são
douradas sob à luz do sol que desce. Não parecem pães? Tu, Filho de Deus,
só precisas dizer: “Eu quero”, para que elas se transformem em pães
cheirosos, como aqueles que as donas de casa tiram do forno para o jantar
de seus familiares. E estas acácias, tão secas, se Tu queres, não podem
encher-se de maçãs doces e de tâmaras com gosto de mel? Sacia-te, ó Filho
de Deus! Tu és o Senhor da terra. Ela se inclina para pôr-se aos teus pés,
matando a tua fome.
Não vês que empalideces e vacilas, só de ouvires falar em pão? Pobre
Jesus! Estás tão fraco, a ponto de não poderes mais tampouco fazer um
milagre? Queres que eu o faça por Ti? Não sou igual a ti. Mas alguma coisa
eu posso fazer. Ainda que por um ano eu fique privado das minhas forças,
eu as juntarei todas, pois eu te quero servir, porque Tu és bom e eu sempre
me lembro de que és o meu Deus, mesmo tendo eu desmerecido agora de
poder chamar-te assim. Ajuda-me com a tua oração para que eu possa….
– Cala-te! “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que vem
da boca de Deus.”
O demônio estremece de raiva. Range os dentes e fecha os punhos. Mas
ele se contém, e muda o ranger de dentes em um sorriso.
– Compreendo. Tu estás acima das necessidades da terra e tens aversão
a servir-te de mim. Bem que eu mereci isto. 46.7Mas, vem, então, e vê o que
está acontecendo na Casa de Deus. Vê como até os sacerdotes não se
recusam a fazer transações entre o espírito e a carne. Porque, afinal, eles são
homens, não são anjos. Faz um milagre espiritual. Eu te levo até o pináculo
do Templo, e Tu, transfigura-te em beleza lá em cima, depois, chama a
multidão de anjos, e diz a eles que façam de suas asas entrelaçadas, uma
esteira para os teus pés, e que Te levem para desceres no pátio principal.
Que todos Te vejam e se lembrem de que Deus existe. De vez em quando é
necessária uma manifestação, porque o homem tem uma memória muito
fraca, especialmente nas coisas espirituais. Bem sabes como os anjos se
sentirão felizes por poderem oferecer um apoio aos teus pés e uma escada
para desceres!
– Está escrito: “Não tentes ao Senhor teu Deus.”
– Compreendes que, mesmo com a tua aparição, não se mudariam as
coisas, e o Templo continuaria a ser um lugar de mercado e corrupção. A
tua divina sabedoria bem o sabe, como os corações dos ministros do
Templo são um ninho de víboras, que se dilaceram, contanto que consigam
prevalecer. Só podem ser dominados com força humana.
46.8
Então, vem. Adora-me. Eu te darei a terra. Alexandre, Ciro, César,
todos os maiores dominadores do passado ou do presente serão semelhantes
a chefes de umas mesquinhas caravanas, se comparados a Ti, que terás sob
o teu cetro todos os reinos da terra. Com os reinos, terás todas as riquezas,
todas as belezas da terra, mulheres, cavalos, forças armadas e templos.
Poderás erguer em qualquer lugar o teu Sinal, quando serás o Rei dos reis e
Senhor do mundo. Então, serás obedecido e venerado pelo povo e pelo
sacerdócio. Todas as castas te honrarão e te servirão, porque serás o
Poderoso, o Único, o Senhor.
Adora-me, ainda que por um só momento! Tira-me esta sede que eu
tenho de ser adorado! Foi ela que me perdeu. Mas ela ficou em mim,
queimando-me. As chamas do inferno são como o ar fresco da manhã,
comparado a este ardor que me queima interiormente. Esta sede é o meu
inferno. Um momento, um momento só, ó Cristo, Tu que és bom! Um
momento de alegria para o eterno Atormentado! Deixa-me sentir o que quer
dizer ser deus, e eu serei teu devoto e servo obediente por toda a vida, para
todas as tuas obras. Um momento! Um só momento, e não te atormentarei
mais!
Satanás se põe de joelhos, suplicando.
46.9
Jesus, ao contrário, se levantou. Tendo-se tornado mais magro nestes
dias de jejum, parece ainda mais alto. Seu rosto está cheio de severidade e
poder. Seus olhos são duas safiras ardentes. Sua voz é como um trovão, que
se repercute na cavidade do penhasco, espanlhando-se sobre o pedregal e a
planície desolada, ao dizer:
– Vai-te, Satanás. Está escrito: “Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele
servirás!”
Satanás, com um urro de condenado e com um ódio indescritível,
levanta-se com ímpeto, tremendo, ao ver-se na sua furiosa e fumante figura.
Depois, desaparece, com um novo urro de maldição.
Jesus se assenta, cansado, apoiando atrás a cabeça no penhasco.
46.10

Parece estar exausto. Está suando. Mas os seres angélicos vêm soprar
levemente, com suas asas no mormaço da caverna, purificando-o e
refrescando-o. Jesus abre os olhos, e sorri. Eu não o vejo comer. Eu diria
que Ele se nutre do aroma do Paraíso, saindo revigorado.
O sol desaparece no poente. Jesus pega o alforje vazio e, acompanhado
pelos anjos que, suspensos acima de sua cabeça, produzem uma luz suave,
enquanto a noite cai rapidamente, se encaminha para o leste, ou melhor,
para o nordeste. Já retomou sua expressão habitual, o passo firme. Só resta,
como lembrança do seu longo jejum, um aspecto mais ascético no rosto
magro e pálido e nos olhos, arrebatados, numa alegria que não é desta terra.

46.11
Jesus diz:
– Ontem estavas sem a tua força, que é a minha vontade, e eras por isso
um ser semivivo. Eu fiz que teus membros repousassem e te fiz jejuar no
único jejum que é pesado para ti: aquele da minha palavra. Pobre Maria!
Tiveste uma Quarta-Feira de Cinzas. Em tudo sentiste o sabor da cinza,
visto que estavas sem o teu Mestre. Eu não me fazia ouvir. Mas Eu estava
presente.
Nesta manhã, já que a aflição é recíproca, Eu te murmurei em teu
cochilo: “Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo, dá-nos a paz”,
e te fiz repetir isso muitas vezes, e outras tantas repeti para ti. Pensaste que
Eu ia falar sobre isto. Mas, primeiro foi o ponto que Eu já te mostrei, e que
vou comentar. Depois, hoje à tarde, te ensinarei sobre aquele outro assunto.
46.12
Satanás, como viste, se apresenta sempre com uma aparência
benévola. Com um aspecto comum. Se as almas estiverem atentas, e
sobretudo em contatos espirituais com Deus, perceberão aquele aviso, que
as tornará cautelosas e prontas para combater as insídias do diabo. Mas, se
as almas estiverem desatentas ao divino, separadas por uma carnalidade que
as domina e ensurdece, não ajudadas pela oração que as une a Deus e
derrama sua força como por um canal no coração do homem, então
dificilmente elas notam a cilada escondida sob uma aparência inócua,
caindo nela. Livrar-se, depois, é muito difícil.
46.13
Os dois caminhos mais comuns, tomados por Satanás para chegar às
almas, são a sensualidade e a gula. Ele começa sempre pela matéria.
Desmantelada e dominada esta, aí ele ataca a parte superior. Primeiro, o
moral: o pensamento com suas soberbas e cobiças; depois, o espírito,
tirando dele não só o amor — este já nem existe mais, quando o homem
substituiu o amor divino por outros amores humanos — mas também o
temor de Deus. É então que o homem se abandona de corpo e alma a
Satanás, contanto que chegue a gozar do que quer, e a gozar sempre mais.
46.14
Como Eu me comportei, tu o viste. Silêncio e oração. Silêncio.
Porque, se Satanás faz seu trabalho de sedutor e vem ao redor de nós, é
preciso suportá-lo sem tolas impaciências e temores inúteis. Mas reagir com
altivez à sua presença e com oração à sua sedução.
É inútil discutir com satanás. Ele venceria, porque é forte em sua
dialética. Só Deus o vence. Por isso é preciso recorrer a Deus, que fale por
nós, através de nós. Mostrar a satanás aquele nome e aquele sinal, não tanto
escritos em papel ou gravados em madeira, quanto escritos e gravados no
coração. O meu Nome, o meu Sinal. Rebater a satanás, somente quando
insinua que ele é como Deus, usando a palavra de Deus[82]. Ele não suporta
esta palavra.
46.15
Depois, passada a luta, vem a vitória, e os anjos servem e defendem
o vencedor do ódio de satanás. Eles o restauram com o orvalho celeste, com
a graça que tornam a derramar às mãos cheias no coração do filho fiel, com
a bênção que acaricia o espírito.
É preciso ter a vontade de vencer a satanás e fé em Deus e em sua
ajuda. Fé no poder da oração e na bondade do Senhor. Então, satanás não
pode fazer nenhum mal.
Vai em paz. Nesta tarde te alegrarei com o que ainda virá.
[81] júbilo e amor, referem-se aos anjos, espíritos puros, cuja criação e função (que exclui o privilégio, reservado ao homem, de
poder cooperar para a redenção, como se diz em 96.5) serão ilustrados em 266.11 e em nota a 428.4. Lúcifer, enquanto anjo
rebelde, teve na origem as prerrogativas angélicas. Da sua queda ou expulsão do Céu, que se entrevê em Isaías 14,12, a obra
Valtortiana trata pelo menos em: 17.3 -69.4 -96.2 -131.2 -244.6 -265.4 -317.4 -414.8 -448.2 -483.3 -486.4/5 -487.6/7 (culpa dos
anjos rebeldes sem esperança de redenção) -507.9 -515.3 -537.7. Em mérito do presente passo das tentações de Jesus, assim anota
Maria Valtorta sobre uma cópia dactilografada: O carácter serpentino de Lúcifer revela-se aqui em pleno. Cada palavra é mentira
e desejaria ser sedução. Apenas o dizer que nele há ainda um resto de amor, enquanto o ódio e apenas ódio, para Deus e o
homem, o impele para esta tentativa de arruinar e destruir o fruto da Incarnação. Tanto ódio que a sua malícia se torna
estupidez: a estupidez de pensar que se pode induzir a pecado Cristo. -Como Miguel é o nome do príncipe dos anjos (nota em
376.10), assim Lucífer tornou-se, junto com Satanás e Belzebú (e semelhantes), um dos nomes dos príncipes dos demónios; e em
243.9 vem identificado com a Serpente tentadora). Outros nomes demoníacos são “Mammona” (personificação da riqueza
material) e Leviatão (nota em 254.1).
[82] a palavra de Deus, que Jesus rebatendo Satanás, retirou de Deuteronómio 6,13.16; 8,3.
47. O encontro com João e Tiago.
João de Zebedeu é o puro entre os discípulos.
25 de fevereiro de 1944.
47.1
Vejo Jesus que caminha ao longo da faixa verde que costeia o Jordão.
Ele voltou mais ou menos ao mesmo lugar que viu o seu batismo. É perto
do vau do Jordão, que parece ser muito conhecido e freqüentado como meio
de passar-se à outra margem, na direção de Peréia. Mas o lugar, antes tão
povoado, agora parece quase deserto. Só algum viajante, a pé ou montado
em jumentos ou cavalos, é que o percorre. Jesus parece nem perceber isso.
Ele prossegue por sua estrada, subindo novamente para o norte, como que
absorto em seus pensamentos.
Ao chegar à altura do vau, encontra-se com um grupo de homens de
diversas idades, que discutem animadamente entre si, separando-se depois,
uma parte para o sul e a outra para o norte. Entre aqueles que se dirigem ao
norte, vejo João e Tiago.
47.2
João é o primeiro a avistar Jesus, monstrando-o ao irmão, e aos
companheiros. Falam eles ainda um pouco entre si e, depois, João se põe a
caminhar rapidamente para alcançar Jesus. Tiago o segue mais devagar. Os
outros não se interessam, continuando a caminhar lentamente e discutindo.
Quando João chega perto de Jesus, às suas costas, à distância de uns
dois ou três metros, grita:
– Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do mundo!
Jesus se vira, e olha para ele. Os dois estão a poucos passos um do
outro. Eles se observam. Jesus, com seu aspecto sério e indagador. João,
com seus olhos puros e risonhos, no belo rosto tão juvenil, que parece
feminino. Podem-se lhe dar uns vinte anos e, sobre a face rosada, não tem
ainda mais do que alguns poucos pelos loiros, como uma veladura dourada.
– A quem estás procurando? –pergunta Jesus.
– A Ti, Mestre.
– Como sabes que eu sou mestre?
– Foi o Batista que me disse.
– E, por que me chamas Cordeiro?
– Porque o ouvi chamar-te assim, um dia em que ias passando, há
pouco mais de um mês.
– Que queres de Mim?
– Que nos digas palavras de vida eterna, e nos consoles.
– Quem és tu?
– João de Zebedeu, sou eu, e este é Tiago, meu irmão. Somos da
Galiléia. Somos pescadores. Mas somos também discípulos de João. Ele
nos dizia palavras de vida, nós o escutávamos, porque queríamos seguir a
Deus e, com a penitência, merecer o seu perdão, preparando os caminhos do
coração para a vinda do Messias. Tu és o Messias. João o disse, porque viu
o sinal da Pomba pousar sobre Ti. Disse –nos também: “Eis o Cordeiro de
Deus.” Eu, então, digo a Ti: Cordeiro de Deus, que tiras os pecados do
mundo, dá-nos a paz, porque não temos mais quem nos guie, e nossa alma
está turbada.
– Onde está João?
– Herodes o pôs na prisão, em Maqueronte. Os mais fiéis entre os seus
discípulos tentaram libertá-lo. Mas não é possível. Nós estamos voltando de
lá. 47.3Deixa-nos ir Contigo, Mestre. Mostra-nos onde é que moras.
– Vinde. Mas sabeis o que estais pedindo? Quem me segue deverá
deixar tudo: sua casa, seus parentes, seu modo de pensar, e até a vida. Eu
vos farei meus discípulos e meus amigos, se quiserdes. Mas Eu não tenho
riquezas, nem privilégios. Sou pobre, e o serei ainda mais, até o ponto de
não ter nem onde encostar a cabeça, serei perseguido pelos lobos mais do
que uma ovelha perdida. Minha doutrina é ainda mais severa do que a de
João, porque proíbe também o ressentimento. Ela dirige-se não tanto ao
exterior, quanto ao espírito. Tereis que renascer, se quereis ser meus.
Quereis fazer assim?
– Sim, Mestre, só Tu tens palavras que nos dão luz. Elas descem e,
onde havia trevas e desolação, pois estávamos sem guia, derramam a
claridade do sol.
– Vinde, então, e vamos. Eu vos irei ensinando pelo caminho.

Jesus diz:
47.4

– O grupo dos que me haviam encontrado era numeroso. Mas só um me


reconheceu. Aquele que tinha a alma, o pensamento e a carne limpos de
toda luxúria.
Insisto no valor da pureza. A castidade é sempre fonte de lucidez de
pensamento. A virgindade também purifica, conservando a sensibilidade
intelectiva e afetiva, aperfeiçoando-a, o que só pode ser experimentado, por
quem é virgem.
47.5
Pode-se ser virgem, de muitos modos. De modo forçado,
especialmente as mulheres, quando não foram escolhidas para o casamento.
Assim devia ser também com os homens. Mas não é assim, e isso é mal,
porque de uma juventude precocemente conspurcada pela libidinagem não
poderá sair nada mais do que um chefe de família doente em seus
sentimentos e, muitas vezes, também em seu corpo.
Há uma virgindade desejada, ou seja, aquela dos que se consagram ao
Senhor, num impulso de vontade. Bela virgindade! Sacrifício agradável a
Deus! Mas nem todos sabem permanecer naquele candor do lírio que está
firme em seu pedúnculo, estendido ao céu, sem conhecer a lama do chão,
aberto somente ao beijo do sol de Deus e de seus orvalhos.
Muitos permanecem fiéis, materialmente, ao voto feito. Mas infiéis em
seu pensamento, que lamenta e deseja aquilo que eles sacrificaram. Estes
são virgens só pela metade. Se a carne está intacta, o coração não está. Seu
coração fermenta, ferve, exala fumaças de uma sensualidade, tanto mais
refinada e reprovada, quanto mais ela foi sendo criada por um pensamento
que acaricia, alimenta e aumenta continuamente imagens de satisfações
ilícitas, até para quem está livre, e quanto mais para quem está consagrado
por votos a Deus.
Aparece então, a hipocrisia do voto. Em aparência, ele existe, mas de
fato, em substância, não. E, em verdade, eu vos digo que, entre quem vem a
Mim com o seu lírio despedaçado pela imposição de um tirano e quem vem
com o seu lírio não materialmente despedaçado, mas coberto pela baba,
pelo transbordamento de uma sensualidade acariciada e cultivada, para
poder encher com ela as horas de solidão, Eu chamo de “virgem” ao
primeiro, e de “não virgem” ao segundo. Ao primeiro, dou coroa de virgem
e uma dupla coroa de martírio: uma, pela carne ferida; e outra, pelo coração
ferido por uma mutilação não desejada.
47.6
O valor da pureza é tal, que, como viste, satanás se preocupa, em
primeiro lugar, em convencer-me a que me entregue à impureza. Ele sabe
bem que a culpa da sensualidade desmantela a alma e a torna presa fácil das
outras culpas. Todo o trabalho de satanás se concentrou neste ponto capital,
para me vencer.
O pão, a fome, são as formas materiais que simbolizam o apetite, os
apetites de que satanás procura tirar proveito para os seus fins. Bem outro
era o alimento que ele me oferecia, para fazer-me cair como um bêbado aos
seus pés! Depois, teria vindo a gula, o dinheiro, o poder, a idolatria, a
blasfêmia, a abjuração de Lei divina. Mas o primeiro passo para conquistar-
me era esse. O mesmo que usou para ferir Adão[83].
47.7
O mundo escarnece dos puros. Os culpados de lascívia os golpeiam.
João Batista é uma vítima da luxúria de dois obscenos. Mas, se o mundo
tem ainda um pouco de luz, isto se deve aos puros que ainda há no mundo.
São esses os servos de Deus, que sabem compreender a Deus e repetir as
palavras Dele. Eu disse[84]: “Felizes os puros de coração, porque verão a
Deus.” Mesmo desde esta terra. Eles, cujo pensamento não é perturbado
pela fumaça da sensualidade, é que “vêem” a Deus e O ouvem, O seguem, e
O indicam aos outros.
47.8
João, filho de Zebedeu, é um puro. É o mais Puro dos meus
discípulos. Que alma de flor, em um corpo de anjo! Ele me chama com as
palavras do seu primeiro mestre, e me pede que lhe dê paz. Mas a paz, ele a
tem em si mesmo, pela sua vida pura. Eu o amei por essa sua pureza, à qual
eu confiei os ensinamentos, os segredos e a Criatura mais querida que Eu
tinha.
Ele foi o meu primeiro discípulo, que me teve amor desde o primeiro
instante em que me viu. Sua alma estava intimamente unida com a minha,
desde o dia em que ele me tinha visto passar ao longo do Jordão e me tinha
visto apontado pelo Batista. Mesmo que ele não me tivesse encontrado
depois, na minha volta do deserto, me teria procurado tanto, até conseguir
encontrar-me, porque quem é puro, é humilde e desejoso de instruir-se na
ciência de Deus, e vai, como a água que vai ao mar, àqueles que ele
reconhece serem mestres na doutrina celeste”.

47.9
Jesus ainda diz:
– Eu não quis que tu falasses sobre a tentação de sensualidade do teu
Jesus. Mesmo que a tua voz interior te fez entender o motivo de satanás
para atrair-me à sensualidade, Eu preferi falar disso. E não pensais além.
Era necessário falar. Agora vai avante. Deixa a flor de satanás sobre suas
areias. Vem atrás de Jesus, como João. Caminharás entre os espinhos, mas
encontrarás, como rosas, as gotas de sangue de Quem as derramou por ti,
para vencer a carne, também em ti.
47.10
Antecipo uma observação. Diz[85] João em seu Evangelho, falando
do encontro Comigo: “E, no dia seguinte”. Parece com isso que o Batista
me tivesse mostrado no dia seguinte ao batismo, e que, logo, João e Tiago
me seguiram, mas isso contrasta tudo o que disseram os outros evangelistas
a respeito dos quarenta dias passados no deserto. Mas deveis ler assim:
“(Tendo já acontecido a prisão de João), um dia depois os dois discípulos de
João Batista aos quais ele me havia mostrado, dizendo: ‘Eis o Cordeiro de
Deus’, ao me verem de novo, chamaram e me seguiram.” Depois da minha
volta do deserto.
Juntos voltamos às margens do lago da Galiléia, onde Eu tinha ido
refugiar-me, para, de lá, iniciar a minha evangelização. Os dois falaram de
Mim aos outros pescadores, depois de terem estado Comigo por todo o
caminho, e por um dia inteiro na casa hospitaleira de um amigo da parentela
de minha casa. Mas a iniciativa foi de João, cuja alma a vontade de
penitência e a sua pureza tinha tornado tão limpa, que era uma verdadeira
obra-prima de limpidez, sobre a qual a Verdade se refletia nitidamente,
dando-lhe também a santa audácia dos puros e dos generosos, que não
temem andarem avante, onde está Deus, onde está a verdade, a doutrina, o
caminho de Deus.
Quanto Eu o amei por essa sua simples e heróica característica!”.
[83] para ferir Adão. O homem-filho de Deus — assim anota Maria Valtorta numa cópia dactilografada — tinha já sido ferido
pela soberba da desobediência. Sobrava o homem animal, e foi ferido pela luxúria porque, perdida a Graça, pecou como homem
natural. Jesus era Deus e Homem. Intocável como Deus. Por isso, apenas como “Homem” podia ser tentado por Satanás.
[84] Eu disse, em: Mateus 5,8 (170.5.11).
[85] Diz, em: João 1,35.
48. João e Tiago falam a Pedro
sobre o encontro com o Messias.
12 de outubro de 1944.
48.1
Sobre o Mar da Galiléia vem raiando uma belíssima aurora. O céu e a
água têm brilhos rosados, pouco diferentes daqueles que esplendem
suavemente por entre os muros dos pequenos jardins do povoado lacustre,
jardins dos quais se elevam e se deixam ver, quase lançando-se sobre as
vielas as frondes despenteadas e vaporosas das árvores frutíferas.
O povoado começa a despertar, com uma ou outra mulher que vai à
fonte buscar água, ou a algum tanque lavar roupa e com os pescadores que
descarregam as cestas de peixe, fazendo negócio com os mercadores em
alta voz, que vieram de outros lugares, ou levam peixes para casa. Eu disse
um povoado, mas não é tão pequeno. É um tanto humilde, ao menos do lado
que o vejo, embora vasto e extenso na parte mais longa do lago.
48.2
João aparece no fim de uma pequena estrada, indo apressado em
direção ao lago. Tiago o segue, mas muito mais calmo. João olha os barcos
que já chegaram à margem, mas não vê aquele que está procurando. Agora
ele acaba de enxergá-lo, mas está a algumas centenas de metros da beira,
atento às manobras para atracar, e grita bem alto, levando as mãos à boca
com um longo: “Oh-é!”, que deve ser um sinal combinado entre eles. E
depois, quando percebe que o ouviram, agita os braços em gestos largos,
que indicam: “Vinde, vinde!”
Os homens do barco, pensando quem sabe o que, agarram os remos, e o
barco vai mais veloz do que só com a vela, que eles amainaram, talvez para
conseguirem ir mais depressa. Quando estão a uns dez metros da margem,
João não espera mais. Tira o manto e a veste longa, e os lança sobre a praia,
tira as sandálias, levanta a túnica, tendo-a segura com uma mão quase à
virilha, e entrando na água, vai ao encontro dos que estão chegando.
– Por que vós dois não viestes? –pergunta André. Pedro, amuado, não
diz nada.
– E tu, por que não vieste comigo e o Tiago? –responde João a André.
– Eu fui pescar. Não tenho tempo para perder. Tu desapareceste com
aquele homem…
– Eu te havia feito sinal para que fosses. 48.3É Ele mesmo. Se ouvisses
que palavras!… Ficamos com Ele o dia todo e até tarde da noite. E agora,
viemos dizer-vos: “Vinde.”
– É Ele mesmo? Estais certos disso? Nós só o vimos naquele dia em
que o Batista no-lo mostrou.
– É Ele, pois, não o negou.
– Qualquer um pode dizer o que lhe interessa para impor-se aos
crédulos. Já não é a primeira vez… –resmunga Pedro, descontente.
– Oh! Simão. Não digas assim. Ele é o Messias! Ele sabe tudo! Ele te
está ouvindo!
João ficou magoado e consternado com as palavras de Simão Pedro.
– Ora essa! O Messias! E se mostra justamente a ti, a Tiago e André!
Três pobres ignorantes! Vai querer coisas bem diferentes o Messias! Ele me
está ouvindo! Mas, meu pobre rapaz, os primeiros dias do sol da primavera
te fizeram mal. Vamos, vem trabalhar. Será melhor. Deixa de histórias.
– Ele é o Messias, eu te asseguro. João Batista dizia coisas santas, mas
este fala como Deus. Quem não for o Cristo, não pode dizer semelhantes
palavras.
48.4
– Simão, eu não sou um jovenzinho. Eu já tenho muitos anos, sou
calmo e sensato. Tu sabes disso. Eu falei pouco, mas ouvi muito nestas
horas em que estivemos com o Cordeiro de Deus, e eu te digo que
verdadeiramente ele não pode ser senão o Messias. Por que não acreditar?
Por que não querer crer? Tu o podes fazer, porque não o ouviste. Mas eu
creio. Somos pobres e ignorantes? Ele bem disse que veio para anunciar a
Boa Nova do Reino de Deus, do Reino de Paz, aos pobres, aos humildes,
aos pequenos, mais do que aos grandes. Ele disse: “Os grandes já têm as
suas delícias. Não são delícias invejáveis, se comparadas àquelas que Eu
venho trazer. Os grandes já têm seu modo de chegar a compreender,
somente pela força do estudo. Mas Eu venho aos ‘pequenos’ de Israel e do
mundo, àqueles que choram e esperam, àqueles que procuram a Luz e têm
fome do verdadeiro Maná; não é pelos doutos que a luz e os alimentos são
doados, pois o que eles dão é somente opressão, escuridão, prisão e
desprezo. Eu chamo os ‘pequenos.’ Eu vim para virar o mundo de cabeça
para baixo. Porque Eu abaixarei o que agora está no alto, e elevarei o que
agora está sendo desprezado. Quem quer verdade e paz, quem quer vida
eterna, venha a Mim. Quem ama a Luz, venha. Eu sou a Luz do mundo.”
Não foi assim que Ele disse, João?
Tiago falou de modo calmo, mas comovido.
– Sim. E Ele disse ainda: “O mundo não me amará. O grande mundo,
porque se corrompeu com vícios e comércios idolátricos. O mundo aliás,
não me quererá. Porque, como filho das Trevas, não ama a Luz. Mas a terra
não é feita só do grande mundo. Nela existem aqueles que, mesmo estando
misturados com todos, do mundo não são. Há alguns que são do mundo,
porque nele foram aprisionados como os peixes pela rede”: ele falou
justamente assim, porque nós estávamos conversando à margem do lago e
Ele apontava as redes que vinham arrastadas com os peixes para a praia.
Disse mais: “Vede. Nenhum daqueles peixes queria cair na rede. Também
os homens, intencionalmente, não iriam querer cair como presas de Mamon.
Nem mesmo os mais malvados porque estes, pela soberba que os cega, não
crêem que não tenham o direito de fazer o que fazem. O verdadeiro pecado
deles é a soberba. Deste pecado nascem todos os outros. Mas aqueles que
não são completamente maus, ainda mais não iriam querer ser de Mamon.
Eles caem por leviandade, por um peso que os arrasta para o fundo, que é a
culpa de Adão. Eu vim para tirar aquela culpa e para dar, na esperança da
hora da Redenção, uma tal força aos que em Mim crerem, que será capaz de
livrá-los do laço que os prende, tornando-os livres para Me seguirem: a Luz
do mundo!”
48.5
– Mas, então, se Ele falou mesmo assim, é preciso irmos para Ele, e
logo.
Pedro, com os seus impulsos tão sinceros, que me agradam tanto, de
repente decidiu, e já vai começando a fazer o que decidiu, apressando-se
para acabar os trabalhos da descarga, pois o barco já chegou à margem, e os
empregados já o puxaram para fora d’água, descarregando também as
redes, as cordas e o velame.
– E tu, André, por que foste tão tolo, para não teres ido com eles?
– Mas, Simão! Tu me censuraste, porque eu não consegui fazer que eles
viessem comigo. A noite inteira ficaste resmungando isso, e agora me
censuras porque eu não fui com eles?!…
– Tens razão… Mas eu não o tinha visto… E tu, sim… Deves ter visto
que Ele não é como nós… Ele deve ter alguma coisa de mais belo do que os
outros!…
– Oh! Sim –diz João–. Ele tem um rosto! Uns olhos! Não é verdade,
Tiago? Uns olhos! E uma voz!… Oh! Que voz! Quando Ele fala, dá a
impressão de que estás no Paraíso.
– Depressa, depressa! Vamos procurá-lo. Vós (fala aos empregados),
levai tudo para Zebedeu, e dizei-lhe que faça o que for preciso. Nós
voltaremos esta noite para a pesca.
Vestem-se todos de novo, e põem-se a caminho. 48.6Mas Pedro, depois de
andar uns metros pára, agarra João por um braço, e lhe pergunta:
– Disseste que Ele sabe tudo e que ouve tudo…
– Sim. Imagina que quando nós, vendo a lua alta, dissemos: “Que é que
estará fazendo o Simão?”, Ele disse: “Ele está lançando a rede e não se
conforma em ter que fazer isso sozinho, porque vós não saístes com o barco
gêmeo, justamente numa noite de tão boa pesca… Ele não sabe que, daqui a
pouco, não pescará senão com outras redes e que os peixes que apanhará
serão outros.”
– Misericórdia divina! É verdade! Então, Ele ouviu também… também
o que eu disse, julgando-O menos do que um mentiroso… Eu já não posso
ir até Ele.
– Oh! Ele é muito bom. Certamente sabe que tu pensaste assim. Ele já o
sabia. Porque, quando nós O deixamos, dizendo que viríamos a ti, Ele disse:
“Ide. Mas não vos deixeis vencer pelas primeiras palavras de escárnio.
Quem quer vir Comigo, deve saber ter a cabeça erguida, diante das
zombarias do mundo e das proibições dos parentes. Porque Eu estou acima
do sangue e da sociedade, e triunfo sobre eles. E quem está Comigo,
também triunfará eternamente.” E disse também: “Sabeis falar sem medo.
Quem vos ouvir, virá, porque é homem de boa vontade.”
– Ele falou assim? Então, eu vou. 48.7Fala, vai falando Dele, enquanto
vamos indo. Onde Ele está?
– Em uma pobre casa. Deve ser de pessoas amigas.
– Mas, Ele é pobre?
– É um operário de Nazaré. Assim Ele disse.
– E de que vive agora, se não está mais trabalhando?
– Não lhe perguntamos. Talvez os parentes O estejam ajudando.
– Melhor seria levarmos peixes, pão, frutas… alguma coisa. Vamos
perguntar a algum rabi, pois Ele é mais do que um rabi, mas de mãos
vazias!… Os nossos rabinos não querem ser assim…
– Mas Ele quer. Não tínhamos mais do que vinte moedas, eu e o Tiago
juntos, e oferecemos a Ele, como é costume fazer com os rabinos. Mas Ele
não as queria. Nós, então, insistimos e Ele disse: “Deus vo-los restitua, nas
bênçãos dos pobres. Vinde Comigo”, e prontamente as distribuiu aos
pobrezinhos, que Ele sabia onde moravam, e a nós, que estávamos
perguntando: “E para Ti, Mestre, não guardas nada?”, Ele respondeu: “A
alegria de fazer a vontade de Deus e de servir à sua glória.” Nós lhe
dissemos também: “Tu nos estás chamando, Mestre. Mas nós somos todos
pobres. Que é que te devemos trazer?” Ele nos respondeu com um sorriso,
que nos fez sentir o gosto do Paraíso: “Um grande tesouro quero de vós.”
Nós Lhe dissemos: “Mas … nada temos?” E Ele respondeu: “É um tesouro
de sete nomes, que até o mais pobre pode ter, mas o rei mais rico não pode
possuir; vós o tendes, e Eu o quero. Ouvi os nomes deste tesouro: caridade,
fé, boa vontade, reta intenção, continência, sinceridade e espírito de
sacrifício. Isto Eu quero de quem me segue, só isto, e vós o tendes. Está
dormindo como uma semente, sob um solo invernal, mas o sol da minha
primavera o fará nascer em setêmplice espiga.” Assim Ele falou.
– Ah! Isto me assegura que é o verdadeiro Rabi, o Messias prometido.
Não é duro com os pobres, não pede dinheiro… Basta isto para chamá-lo o
Santo de Deus. Vamos tranqüilos.
E tudo termina.
49. O encontro com Pedro e André
depois de um discurso na sinagoga.
João de Zebedeu, grande também na humildade.
13 de outubro de 1944.
[…].
49.1
As 14:00 horas vejo isto:
Jesus vem avante por uma estradinha, uma vereda entre dois campos.
Ele está sozinho. João, prossegue em sua direção, por um outro caminho,
por entre os campos, e enfim o alcança, passando por uma abertura entre as
sebes.
João, tanto na visão de ontem, como de hoje, é simplesmente um
jovenzinho. Um rosto rosado e imberbe de quem acaba de chegar à idade
viril e, além disso, é loiro. Por isso não tem sinal nem de bigode, nem de
barba, mas apenas o rosado das faces lisas, os lábios vermelhos com a luz
risonha do seu belo sorriso e do olhar puro, não tanto pela sua cor de
turqueza escura, quanto pela limpidez da alma virgem que transparece
neles. Os cabelos loiro-castanhos, compridos e macios, ondulam, a cada
passo veloz, quase como uma corrida.
Quando está para atravessar a sebe, ele chama:
– Mestre!
Jesus se detém, e se volta com um sorriso.
– Mestre, eu queria muito te ver! Na casa onde estás, me disseram que
tinhas vindo em direção aos campos… mas não sabia onde. Temia não te
ver.
João fala levemente inclinado, em sinal de respeito. Contudo está cheio
de um afeto confiante, em sua atitude e em seu olhar, que, estando com a
cabeça ligeiramente curvada no ombro, eleva Jesus.
– Eu vi que me estavas procurando, e vim ao teu encontro.
– Tu me viste? Onde estavas, Mestre?
– Eu estava lá.
E Jesus aponta as copas de umas árvores afastadas, que, pela cor, diria
que são oliveiras:
– Eu estava lá rezando e pensando no que Eu vou dizer esta tarde na
sinagoga. Mas Eu saí de lá, logo que te vi.
– Mas, como fizeste para me ver, se eu mal posso ver aquele lugar,
escondido como está, atrás daquela curva?
– Ainda assim o estás vendo! Eu vim ao teu encontro, porque te vi. O
que o olho não pode ver, pode o amor.
– Sim, o amor pode. 49.2Então, tu me amas, Mestre?
– E tu me amas, João, filho de Zebedeu?
– Muito, Mestre. Parece-me que sempre te amei. Antes de ter-te
conhecido, antes ainda, a minha alma te procurava, e quando eu te vi, ela
me disse: “Eis Aquele que procuras.” Eu creio que te encontrei, porque a
minha alma te sentiu.
– Tu o dizes, João, e o dizes certo. Eu também vim ao teu encontro,
porque minha alma te sentiu. Por quanto tempo me amarás?
– Para sempre, Mestre. Não quero mais amar a outros, a não ser a Ti.
– Tens pai e mãe, irmãos, irmãs, tens tua vida, e, com a vida, a mulher e
o amor. Como farás para deixar tudo isso por Mim?
– Mestre… não sei… mas me parece, se não for soberba dizer isso, que
a tua predileção tomará para mim o lugar de pai, mãe, irmãos, irmãs, e
também da mulher. De tudo, sim, de tudo estarei saciado, se me amares.
– E se o meu amor te trouxer dores e perseguições?
– Não haverá de ser nada, Mestre, se Tu me amares.
– E no dia em que Eu tivesse que morrer…?
– Não. És ainda jovem, Mestre… Por que morrer?
– Porque o Messias veio para pregar a Lei em sua verdade e para
cumprir a Redenção. A Lei aborrece o mundo, que também não quer
redenção. Por isso persegue os enviados de Deus.
– Oh! Que isto não aconteça! Não digas a quem te ama, este
prognóstico de morte!… Mas, se Tu tiveres que morrer, eu Te amarei ainda.
Deixa que eu te ame.
João tem o olhar suplicante. Mais inclinado que nunca, ele vai
caminhando ao lado de Jesus, parecendo estar mendigando amor.
Jesus pára. Olha para ele, traspassa-o com o olhar de seus olhos
profundos, e depois lhe põe a mão sobre a cabeça inclinada.
– Quero que tu me ames.
– Oh! Mestre!
João está feliz. Ainda que seus olhos estejam brilhando pelas lágrimas,
ele está sorrindo; com sua boca jovem e bem desenhada, pegando a mão
divina, beija-a nas costas e a aperta junto ao coração.
49.3
Depois eles retomam o caminho.
– Disseste que me estavas procurando…
– Sim. Para dizer-te que os meus amigos querem te conhecer… e
também porque… oh! porque eu sentia vontade de estar Contigo de novo!
Fazia poucas horas que eu te havia deixado… mas já não podia mais estar
sem Ti.
– Então, terás sido um bom anunciador do Verbo?
– Tiago também, Mestre, falou de Ti, de maneira… convincente.
– De maneira que até aquele que desconfiava — nem é culpado porque
a prudência era a causa de sua reserva — também se persuadiu. Vamos
agora fazê-lo ficar completamente convicto.
– Ele estava com um pouco de medo…
– Não! Medo de Mim, não! Eu vim para os bons e mais ainda para
quem está no erro. Eu quero salvar. Não condenar. Com os honestos serei
todo misericórdia.
– E com os pecadores?
– Também. Por desonestos Eu entendo aqueles que têm a desonestidade
espiritual e, hipocritamente, se fingem bons, enquanto fazem obras más.
Fazem tais coisas, de tal modo, para o seu próprio proveito e para se
aproveitarem do próximo. Com esses Eu serei severo.
– Oh! Então Simão pode estar seguro. É sincero como nenhum outro.
– Assim me agrada, e quero que sejais todos.
– Simão quer dizer-te muitas coisas.
– Eu o ouvirei, depois que tiver falado na sinagoga. Mandei avisar os
pobres e os doentes, além dos ricos e os sadios. Todos precisam da Boa
Nova.
49.4
O povoado está próximo. Alguns meninos brincam na estrada e um
deles, correndo, vem chocar-se contra as pernas de Jesus e teria caído, se
Ele não o segurasse com presteza. O menino chora mesmo assim, como se
se tivesse se machucado, mas Jesus, tomando-o nos braços, diz:
– Um israelita que chora? Que deveriam fazer os milhares e milhares de
crianças, que se tornaram homens, atravessando o deserto, atrás de Moisés?
Contudo foi mais para eles do que para os outros justamente para estes é
que fez descer o maná tão doce, porque o Altíssimo ama os inocentes e
provê o necessário a estes anjinhos da terra, a estes passarinhos sem asas,
como faz com os pássaros da mata e dos telhados. Gostas de mel? Sim?
Pois bem, se fores bom, comerás de um mel mais doce do que aquele das
tuas abelhas.
– Onde? Quando?
– Quando, depois de uma vida de fidelidade a Deus, fores para Ele.
– Eu sei que não irei para lá, enquanto não vier o Messias. Minha mãe
me diz que, por ora, nós de Israel somos todos como Moisés, e morremos,
vendo de longe a Terra Prometida. Ela diz que estamos ali, à espera de
podermos entrar, e que só o Messias nos fará entrar.
– Mas que pequeno israelita esperto! Pois bem, Eu te digo que, quando
morreres, entrarás logo no Paraíso, porque o Messias já terá aberto as portas
do Céu. Mas precisas ser bom.
– Mamãe! Mamãe!
O menino escorrega dos braços de Jesus e corre ao encontro de uma
jovem esposa, que regressa com uma ânfora de cobre.
– Mamãe! O novo Rabi me disse que eu irei logo para o Paraíso,
quando eu morrer, e que vou comer muito mel… mas se eu for bom. Eu vou
ser bom!
– Queira Deus! Desculpa, Mestre, se ele te aborreceu. É muito levado.
– A inocência não causa aborrecimento, mulher. Deus te abençoe,
porque és uma mãe que educa os filhos no conhecimento da Lei.
A mulher fica toda vermelha, diante do elogio, e responde:
– A bênção de Deus também para Ti.
E desaparece com o seu pequeno.
49.5
– As crianças Te agradam, Mestre?
– Sim, porque são puras… sinceras… e amorosas.
– Tens sobrinhos, Mestre?
– Eu só tenho minha mãe… Mas nela está a pureza, a sinceridade, o
amor dos pequeninos mais santos, junto à sabedoria, justiça e fortaleza dos
adultos. Eu tenho tudo em minha mãe, João.
– E Tu a deixaste?
– Deus está acima até da mais santa das mães.
– Eu irei conhecê-la?
– Sim. Tu a conhecerás.
– E ela me amará?
– Sim, te amará, porque ela ama a quem ama o seu Jesus.
– Então, não tens irmãos?
– Eu tenho primos, por parte do marido de minha mãe. Mas cada
homem para mim é irmão, e Eu vim para todos. 49.6Eis-nos diante da
sinagoga. Eu entro, e tu virás a Mim depois com os teus amigos.
João sai dali, e Jesus entra em uma sala quadrada, onde há velas em um
triângulo, como de costume, e estantes com rolos de pergaminho. A
multidão já está ali, em expectativa e em oração. Também Jesus está
rezando. O povo está cochichando e comentando atrás Dele, que se curva
para saudar o chefe da sinagoga, pedindo depois que lhe dêem um rolo.
Jesus começa a leitura. Diz:
– Estas coisas o Espírito Santo me faz ler para vós. No capítulo sétimo
do livro de Jeremias se lê[86]: “Assim diz o Senhor dos exércitos, o Deus de
Israel: ‘Corrigi os vossos costumes e os vossos afetos e, então, habitarei
convosco neste lugar. Não vos fiqueis iludindo com as palavras vãs por vós
repetidas: aqui está o Templo do Senhor, o Templo do Senhor, o Templo do
Senhor. Porque, se melhorardes os vossos costumes e os vossos afetos, se
fizerdes justiça entre o homem e o seu próximo, se não oprimirdes o
estrangeiro, o órfão e a viúva, se não derramardes neste lugar sangue
inocente, se não fordes atrás dos estrangeiros, para a vossa desventura,
então Eu habitarei convosco neste lugar, na terra que Eu dei a vossos pais,
por séculos e séculos’.”
Ouvi, ó vós de Israel. Eis que Eu venho esclarecer-vos sobre as
palavras de luz que a vossa alma ofuscada não sabe mais ver e
compreender. Ouvi. Muito pranto desce sobre a terra do povo de Deus, e
choram os velhos que se lembram das glórias antigas, choram os adultos
curvados pelo jugo, choram os jovens, que não têm um futuro de glória.
Mas a glória da terra nada é, se comparada a uma glória, que nenhum
opressor, que não seja Mamon ou a má vontade, vos podem arrebatar.
Por que chorais? Como é que o Altíssimo, que sempre foi bom para
com o seu povo, agora virou o olhar para o outro lado, negando aos seus
filhos de verem o seu Rosto? Não será Ele mais o Deus que abriu o mar e
por ele fez passar Israel, conduzindo-o e nutrindo-o pelas areias,
defendendo-o contra os inimigos, para desviar-se do caminho do Céu, assim
como Ele deu a nuvem aos corpos, deu a Lei para as almas? Não será mais
Ele o Deus que adoçou as águas e fez cair o maná para os que estavam
extenuados? Não é Ele o Deus que vos quis estabelecer nesta terra,
firmando convosco uma aliança de Pai para filhos? Então, por que é que
agora o estrangeiro vos feriu?
Muitos de vós murmuram: “Aqui está o Templo!” Não basta termos o
Templo, indo rezar a Deus nele. O primeiro templo, está no coração de cada
homem, onde a oração santa deve ser feita. Mas, ela não pode ser santa, se
antes o coração não se emenda, como também os costumes, os afetos, as
normas de justiça para com os pobres, para com os servos, para com os
parentes, para com Deus.
Agora, olhai. Eu vejo ricos, de coração duro, que fazem ricas ofertas no
Templo, mas que não sabem dizer ao pobre: “Irmão, eis aqui um pão e um
dinheiro. Aceita-o. De coração para coração, e que a minha ajuda não te
humilhe, como também para mim não cause soberba.” Eis, Eu estou vendo
pessoas rezando, lamentando-se com Deus, porque não as ouve
prontamente, mas que depois, com um coração de pedra, respondem “Não!”
ao necessitado, que às vezes com seu sangue lhes pede: “Escutai-me.” Aí
está, Eu vejo que vós chorais, porque a vossa bolsa foi espremida pelo
dominador. Mas depois vós espremeis o sangue daquele que odiais, e ao
esvaziar um corpo do seu sangue e de sua vida, vós não tendes horror.
Ó, vós de Israel! O tempo da Redenção chegou. Mas preparai seus
caminhos em vós com a boa vontade. Sede honestos, bons, amai-vos uns
aos outros. Ricos, não desprezeis; mercadores, não defraudeis; pobres, não
invejeis. Sois todos de um sangue e de um Deus. Sois todos chamados a um
mesmo destino. Não fecheis para vós, com os vossos pecados, o Céu que o
Messias vos abrir. Tereis errado até aqui? Agora, não erreis mais. Que cesse
todo erro.
A Lei que volta aos dez mandamentos iniciais é simples, boa, fácil, mas
devem estar mergulhados na luz do amor. Vinde. Eu vos mostrarei quais são
os amores: amor, amor, amor. Amor de Deus por vós e de vós por Deus.
Amor para com o próximo. Sempre amor, porque Deus é Amor e aqueles
que sabem viver o amor são filhos do Pai. Eu estou aqui para todos e para
dar a luz de Deus a todos. Eis aqui a Palavra do Pai, que se faz alimento em
vós. Vinde, provai, mudai o sangue do espírito com este alimento. Que todo
veneno caia. Que toda concupiscência morra. Uma glória nova vos é
oferecida, aquela eterna, e a ela virão os que fizerem da Lei de Deus
assunto de um verdadeiro estudo para os seus corações. Começai pelo amor.
Não existe coisa maior. Mas, quando souberdes amar, já sabereis tudo, e
Deus vos amará, e o amor de Deus significa ajuda contra toda tentação.
A bênção de Deus esteja sobre aquele que volta para Ele um coração
cheio de boa vontade.
Jesus se cala. O povo cochicha. A reunião se dissolve depois dos hinos
cantados, muitos salmodiando-os.
49.7
Jesus sai para a pequena praça. João, Tiago, Pedro e André estão à
porta.
– A paz esteja convosco –diz Jesus, acrescentando–: O homem, para ser
justo, precisa não julgar sem antes conhecer. Mas é também honesto em
reconhecer a sua culpa. Simão, quiseste me ver? Eis-me aqui. E tu, André,
por que não vieste antes?
Os dois irmãos se olham, embaraçados. André murmura:
– Eu não ousava…
Pedro, vermelho, não diz nada. Mas, quando ouve Jesus dizer ao irmão:
“Faríeis mal em vir? Só o mal não se deve ousar fazer” ele intervém
sincero:
– Fui eu. Ele queria trazer-me logo a Ti. Mas eu… disse… sim. Eu
disse: “Não creio” e não quis vir. Oh! Agora estou melhor!…
Jesus sorri. Depois diz:
– E, pela tua sinceridade, Eu te digo que te amo.
– Mas eu… eu não sou bom… não sou capaz de fazer aquilo que
disseste na sinagoga. Eu sou iracundo, e, se alguém me ofende… Eu sou
cobiçoso e gosto de ter dinheiro… No meu mercado de peixe… não é
sempre… nem sempre eu tenho ficado sem cometer alguma fraude. Sou
ignorante. Tenho pouco tempo para seguir-te, para ter a luz. Como farei? Eu
gostaria de me tornar como Tu dizes… mas…
– Não é difícil, Simão. Sabes um pouco a Escritura? Sim? Pois bem,
pensa no profeta Miquéias. Deus quer de ti aquilo que diz[87] Miquéias. Não
te pede que arranques o coração, nem que sacrifiques os afetos mais santos.
Por enquanto, não te pede isto. Um dia, sem que Deus te peça, darás até a ti
mesmo a Deus. Mas Ele espera que o sol e o orvalho façam de ti, que és
ainda um fio de erva, uma palmeira forte e gloriosa. Por enquanto, Ele te
pede isto: praticar a justiça, amar a misericórdia, e tomar todo o cuidado em
seguir o teu Deus. Esforça-te para fazer isso, o passado de Simão será
cancelado e tu te tornarás um homem novo, o amigo de Deus e do seu
Cristo. Não serás mais Simão. Serás Cefas. Pedra firme sobre a qual me
apóio.
– Isto me agrada. Isto eu entendo. A Lei é assim… é assim… eu não sei
mais cumpri-la como fazem os rabinos!… Mas, isto que Tu dizes, sim.
Parece-me que vou conseguir. E Tu me ajudarás. Moras aqui? Eu conheço o
dono da casa.
– Eu estou aqui. Mas agora irei para Jerusalém, e depois pregarei pela
Palestina. Vim para isso. Mas virei aqui freqüentemente.
– Eu virei ouvir-te ainda. Quero ser teu discípulo. Um pouco de luz
entrará na minha cabeça.
– Sobretudo no coração, Simão. No coração. E tu, André, não dizes
nada?
– Eu ouço, Mestre.
– Meu irmão é tímido.
– Mas se tornará um leão. A noite está chegando. Deus vos abençoe e
vos dê uma boa pesca. Ide.
– Paz a Ti.
E vão embora.
49.8
Mal saíram, Pedro diz:
– O que terá Ele querido dizer antes, quando falou[88] que eu hei de
pescar com outras redes e que farei outras pescas?
– Por que não lhe perguntaste? Querias dizer tantas coisas e, afinal,
quase não falaste.
– Eu… estava com vergonha. Ele é tão diferente de todos os outros
rabinos!
– Agora vai para Jerusalém… –João diz isso com muita saudade e
desejo–. Eu queria perguntar-lhe se me deixava ir com Ele, mas… não tive
coragem…
– Vai dizer-lhe isso, rapaz –diz Pedro–. Nós o deixamos assim… sem
uma palavra de amor… Que pelo menos Ele saiba que nós o admiramos.
Vai, vai, que eu falo com teu pai.
– Posso ir, Tiago?
– Vai.
João vai e volta correndo… e jubiloso.
– Eu disse a Ele: “Queres-me Contigo em Jerusalém?” Ele me
respondeu: “Vem, amigo!” Amigo, Ele me disse! Amanhã a esta hora virei
para cá. Ah! Em Jerusalém com Ele!…
… A visão termina.

Como motivo para esta visão, disse-me Jesus esta manhã (14 de
49.9

outubro):
– Quero que tu e todos observeis o comportamento de João. É um lado
seu que sempre passa desapercebido. Vós o admirais porque ele é puro,
amoroso, fiel. Mas não notais que foi grande também sua humildade. Ele,
artífice da vinda de Pedro a Mim, modestamente se cala neste particular.
O apóstolo de Pedro e, por isto, o primeiro dos meus apóstolos, foi
João. O primeiro a reconhecer-me, o primeiro a dirigir-me a palavra, o
primeiro a seguir-me, o primeiro a pregar sobre Mim. No entanto, estais
vendo o que ele diz? Diz[89] assim: “André, irmão de Simão Pedro, era um
dos dois, que tinham ouvido as palavras de João, e tinham seguido a Jesus.
O primeiro, com quem se encontrou foi com o seu irmão, Simão, ao qual
disse: ‘Encontramos o Messias’, e o levou a Jesus.”
Justo, além de bom, ele sabe que André se angustia por ter um caráter
fechado e tímido, que gostaria de fazer muitas coisas mas não consegue, e
João quer que o reconhecimento da sua boa vontade chegue a ele, na
memória dos pósteros. João quer que André apareça como o primeiro
apóstolo de Cristo junto a Simão, perto do irmão, não obstante a sua timidez
e acanhamento lhe terem dado alguma derrota em seu apostolado.
49.10
Quem, entre aqueles que fazem alguma coisa por Mim, sabem imitar
João, sem se autoproclamarem apóstolos insuperáveis, sem pensar que o
seu êxito provém de um complexo de coisas, não somente santidade, mas
também audácia humana, sorte e, ocasionalmente, encontram-se com outros
menos audazes e felizardos, embora talvez mais santos?
Quando vós vos saís bem no que fazeis de bom, não vos glorieis, como
se o mérito fosse todo vosso. Dai louvor a Deus, Senhor dos operários
apostólicos, tende os olhos limpos e o coração sincero para ver e para dar a
cada um o aplauso que lhe cabe. Olhos limpos para discernir os apóstolos
que cumprem o holocausto, e que são as primeiras e verdadeiras alavancas
no trabalho dos outros. Só Deus vê estes que, tímidos, parecem nada fazer,
mas, ao contrário, são os raptores do fogo do céu, que ataca os audazes. Um
coração sincero para saber dizer: “Eu trabalho. Mas este ama mais do que
eu, prega melhor do que eu, se imola, como eu não sei fazer, e como Jesus
disse[90]: ‘… dentro do próprio quarto, com a porta fechada para rezar em
segredo’. Eu, que vejo a sua humilde e santa virtude, quero torná-la
conhecida, e dizer: ‘Eu sou instrumento ativo; este é força que me põe em
movimento, porque, ligado a Deus como ele, que é para mim canal de força
celeste’.”
A bênção do Pai, que desce para recompensar o humilde, que em
silêncio se imola para dar força aos apóstolos, descerá também sobre o
apóstolo que sinceramente reconhece a sobrenatural e silenciosa ajuda que
lhe vem do humilde, e o seu mérito, que a superficialidade dos homens não
nota.
Aprendei todos.
49.11
É o meu predileto? Sim. Mas não tem também esta semelhança
Comigo? Puro, amoroso, obediente, mas também humilde. Eu me espelhava
nele, via nele as minhas virtudes. Eu o amava por isso, como um segundo
Eu. Via sobre ele o olhar do Pai que o reconhecia como um pequeno Cristo.
E minha mãe me dizia: “Nele sinto ter um segundo filho. Parece-me estar
vendo a Ti, reproduzido em um homem.”
Oh! a cheia de sabedoria como te conheceu, ó meu dileto! Os céus
azuis de vossos corações de pureza se fundiram em um único velário para
me dar proteção de amor, e tornarem-se assim um só amor, antes ainda que
Eu desse minha mãe a João, e João à minha mãe. Eles se amaram, porque se
reconheceram semelhantes: filhos e irmãos do Pai e do Filho.
[86] se lê, em: Jeremias 7,3-7.
[87] quer de ti aquilo que diz, em: Miqueias 6,8.
[88] quando falou, o que João lhe referiu em 48.6.
[89] Diz, em: João 1,40-42.
[90] disse, em: Mateus 6,6 (172.5/6).
50. Em Betsaida na casa de Pedro.
O encontro com Filipe e Natanael.
15 de outubro de 1944.
[…].
50.1
Mais tarde (às 9:30 horas) preciso descrever isto.
João bate à porta da casa onde Jesus está hospedado. Aparece uma
mulher, que ao vê-lo, vai chamar Jesus.
Saúdam-se com a saudação da paz. E depois:
– Vieste sem demora, João –diz Jesus.
– Eu vim para dizer-te que Simão Pedro te pede que passes por
Betsaida. Ele falou de Ti a muitos. Esta noite não fomos pescar. Ficamos
rezando, como sabemos, e renunciamos ao lucro porque… o sábado ainda
não havia terminado. Esta manhã estivemos andando pelas ruas, falando de
Ti. Há pessoas que gostariam de te ouvir. Irás então, Mestre?
– Vou. Mesmo se Eu deva ir a Nazaré, antes de Jerusalém.
– Pedro te levará de Betsaida a Tiberíades, com seu barco. Assim irás
mais depressa.
–Então, vamos.
Jesus pega o manto e o alforje. Mas João lhe toma este último. Lá se
vão os dois, depois de terem saudado a dona da casa.
50.2
A visão me mostra a saída do povoado e o começo da viagem para
Betsaida. Mas não ouço discursos, ao contrário, a visão tem uma
interrupção, mas continua, na entrada de Betsaida. Compreendo que é essa
a cidade, porque vejo Pedro, André e Tiago, junto com algumas mulheres
que estão esperando Jesus na entrada do povoado.
– A paz esteja convosco. Eis-me aqui.
– Obrigado, Mestre, por nós e pelos que Te estão esperando. Hoje não é
sábado, mas, dirás tuas palavras aos que estão esperando para Te ouvir?
– Sim, Pedro. Eu o farei. Na tua casa.
Pedro está exultante:
– Então, vem. Esta é minha mulher, esta é a mãe do João, e estas são as
amigas delas. Mas há outros também à tua espera: são parentes e amigos
nossos.
– Avisa-os que partirei de tarde, mas que antes falarei a eles.
Deixei de dizer que, tendo eles partido de Cafarnaum ao pôr-do-sol, os
vi chegar a Betsaida pela manhã.
– Mestre, eu Te peço. Fica uma noite em minha casa. O caminho para
Jerusalém é longo, mesmo que eu o encurte para Ti, com o barco até
Tiberíades. Minha casa é pobre, mas honesta e amiga. Fica conosco esta
noite.
Jesus olha para Pedro e para os outros, que estão todos esperando a
resposta. Jesus os olha perscrutador. Depois, sorri e diz:
– Sim.
Nova alegria para Pedro.
Muitas pessoas estão olhando das portas, fazendo sinais com os olhos.
Um homem chama Tiago pelo nome, fala-lhe baixo, indicando Jesus. Tiago
anui, e o homem vai conversar com outros, que ficaram esperando numa
encruzilhada.
Entram na casa de Pedro. Uma cozinha grande e enfumaçada. Em um
canto há redes, cordas e cestas para a pesca. No meio, a lareira larga e baixa
que, por enquanto, está apagada. Das duas portas opostas se vê a rua e o
pequeno pomar com uma figueira e uma videira. Do outro lado da rua, vê-
se o cérulo das ondas do lago. Além do pomar, está a parede escura de outra
casa.
– Ofereço a Ti o que tenho, Mestre, e como sei…
– Melhor e mais não poderias, porque me ofereces com amor.
Dão a Jesus água para se refrescar e depois, pão e azeitonas. Jesus
prova uns poucos bocados, mais para mostrar que aceita, depois recusa,
agradecendo.
Do outro lado do pomar e da rua alguns meninos estão observando com
curiosidade. Mas não sei se são filhos de Pedro. Só sei que, de vez em
quando, ele lhes dá uns olhares ameaçadores, para barrar os pequenos
invasores. Jesus sorri, e diz:
– Deixa-os à vontade.
– Mestre, queres descansar? Ali é o meu quarto, aquele é o de André.
Escolhe. Não faremos barulho, enquanto descansas.
– Por acaso, não tens um terraço?
– Sim. A videira faz um pouco de sombra, mesmo que esteja ainda
quase sem folhas.
– Leva-me, então, ao terraço. Prefiro descansar lá em cima. Lá,
pensarei e rezarei.
– Como quiseres. Vem.
Do pequeno pomar, uma escadinha sobe para o teto, que é um terraço
limitado por um baixo muro. Aqui também há redes e cordas. Mas quanta
luz do céu e quanto azul do lago!
Jesus se assenta em um banco, com as costas apoiadas ao muro. Pedro
lida com uma vela, que estende perto da videira para fazer uma proteção
contra o sol. Há brisa e silêncio. Jesus está visivelmente gostando.
– Eu já me vou, Mestre.
– Vai. Tu e João, ide dizer que, ao pôr-do-sol, falarei aqui.
Jesus fica só e faz uma longa oração. Exceto dois casais de pombos,
que vão e vêm dos ninhos, e um gorjeio de pássaros, não há barulho nem
pessoas em torno de Jesus que reza. As horas passam calmas e serenas.
50.3
Depois, Jesus se levanta, dá uns passos pelo terraço, olha o lago, sorri
para uns meninos que estão brincando na rua e que lhe sorriem, olha a rua,
na direção da pracinha, que fica a uns cem metros da casa. Depois desce.
Vai até a cozinha:
– Mulher, vou passear à beira do lago.
Sai, e de fato vai para a beira do lago, junto dos meninos. E lhes
pergunta:
– O que estais fazendo?
– Nós queríamos brincar de guerra. Mas ele não quer e, então, vamos
brincar de pesca.
O “ele” que não quer é um homenzinho de corpo delgado, mas com um
rosto que revela grande perspicácia. Talvez ele perceba que, delgado como
é, ao fazer “a guerra”, poderia sair perdendo, e por isso, defende a paz.
Jesus aproveita o assunto para falar aos meninos:
– Ele tem razão. A guerra é um castigo de Deus para a punição dos
homens, e sinal de que o homem não é mais verdadeiro filho de Deus.
Quando o Altíssimo criou o mundo, fez todas as coisas: o sol, o mar, as
estrelas, os rios, as plantas, os animais, mas não fez as armas. Criou o
homem, e lhe deu olhos para que tivesse olhares de amor, boca para dizer
palavras de amor, ouvido para ouvi-las, mãos para dar socorro e carícias,
pés para correrem velozes até o irmão necessitado, e coração capaz de amar.
Deu ao homem a inteligência, a palavra, os afetos, os gostos. Mas não deu o
ódio. Por que? Porque o homem, criatura de Deus, devia ser amor, como
Deus é Amor. Se o homem tivesse continuado a ser criatura de Deus, teria
permanecido no amor, e a família humana não teria conhecido nem guerra
nem morte.
– Mas ele não quer brincar de guerra, porque perde sempre (eu já tinha
adivinhado isso).
Jesus sorri, e diz:
– Não é preciso não querer aquilo que nos prejudica, só porque nos
prejudica. Mas é preciso não querer uma coisa, quando ela prejudica a
todos. Se um, diz: “Eu não quero isto, porque vou perder”, ele é egoísta. Ao
contrário, o bom filho de Deus diz: “Irmãos, eu sei que vou ganhar, mas eu
vos digo: não vamos fazer isso, porque vós teríeis prejuízo.” Oh! Como esse
compreendeu bem o mandamento principal! Quem sabe me dizer qual é?
Em coro, as onze bocas dizem:
– “Amarás o teu Deus com todo o teu ser e ao teu próximo como a ti
mesmo.”
– Oh! Sois uns meninos muito inteligentes! 50.4Ides todos à escola?
– Sim.
– Quem é o mais inteligente?
– Ele.
É o magrinho, que não quer brincar de guerra.
– Como te chamas?
– Joel.
– É um grande nome! Ele diz[91]: “… o fraco diga: ‘sou forte’.” Mas
forte no quê? Na lei do verdadeiro Deus, para estar entre aqueles que Ele
vai julgar como santos seus, no vale da decisão final. Mas esse juízo já está
perto. Não no vale da decisão, mas no monte da Redenção. Lá, entre o sol e
a lua, escurecidos de horror, e as estrelas tremendo num pranto de piedade,
serão julgados e separados os filhos da Luz, dos filhos das Trevas. Toda
Israel saberá que o seu Deus veio. Felizes aqueles que o tiverem
reconhecido. A eles mel, leite e águas claras lhes descerão aos corações, e
os espinhos se tornarão rosas eternas. Quem de vós quer estar entre aqueles
que vão ser julgados santos de Deus?
– Eu! Eu! Eu!
– Amareis, então, o Messias?
– Sim! Sim! A Ti! A Ti! Nós Te amamos! Nós sabemos quem és!
Simão e Tiago nos disseram, e nossas mães também. Leva-nos Contigo!
– Na verdade, Eu vos levarei, se fordes bons. Nada mais de palavras
feias, nem atitudes prepotentes, nem brigas, ou respostas más aos pais.
Oração, estudo, trabalho, obediência. Eu vos amarei e virei estar convosco.
Os meninos estão todos em círculo em volta de Jesus. Parece uma
corola de cores matizadas, apertada ao redor de um longo pistilo azul
escuro.
50.5
Um homem já maduro aproximou-se curioso. Jesus se vira para
acariciar um menino, que lhe está puxando a veste, e o vê. Fita-o
intensamente. O homem o saúda, enrubescendo, mas não diz nada.
– Vem, segue-me!
– Sim, Mestre.
Jesus abençoa os meninos e, ao lado de Filipe (chama-o pelo nome),
volta para casa. Sentam-se no pequeno pomar.
– Queres ser meu discípulo?
– Quero… mas não ouso ter esperança de o ser.
– Eu te chamei.
– Então, eu sou. Eis-me aqui.
– Sabias de Mim?
– André me falou de Ti. Ele me disse: “Aquele por quem tu suspiravas,
chegou.” Porque André sabia que eu vivia suspirando pelo Messias.
– A tua espera não foi decepcionada. Ele está diante de ti.
– Meu Mestre e meu Deus!
– És um israelita de reta intenção. Por isso Eu me manifesto a ti.
50.6
Um outro teu amigo está esperando, também ele um sincero israelita.
Vai dizer-lhe: “Encontramos Jesus de Nazaré, filho de José, da estirpe de
Davi, Aquele de quem falaram Moisés e os Profetas.” Vai!
Jesus ficou sozinho, até que Filipe volta com Natanael-Bartolomeu.
– Eis um verdadeiro israelita, no qual não há fraude. A paz esteja
contigo, Natanael!
– Como me conheces?
– Antes que Filipe fosse chamar-te, Eu te vi debaixo da figueira.
– Mestre, Tu és o Filho de Deus, Tu és o Rei de Israel!
– Porque Eu disse ter-te visto, enquanto pensavas debaixo da figueira,
tu crês? Verás coisas bem maiores do que esta. Em verdade Eu vos digo que
os céus estão abertos, e pela fé, vereis os anjos descerem e subirem sobre o
Filho do homem: Eu que te falo.
– Mestre! Eu não sou digno de tão grande favor!
– Crê em Mim, e serás digno do Céu. Queres crêr?
– Quero, Mestre.
A visão tem aqui uma interrupção e continua sobre o terraço cheio de
50.7

gente; outras pessoas estão no pequeno pomar de Pedro. Jesus está falando.
– Paz aos homens de boa vontade. Paz e bênção às suas casas, às suas
mulheres, aos seus filhos. A graça e a luz de Deus reine nelas e nos
corações que nelas habitam.
Vós desejastes ouvir-me. A Palavra está falando. Fala aos honestos com
alegria, fala aos desonestos com dor, fala aos santos e aos puros com
deleite, fala aos pecadores com piedade. Ela não se nega. Veio para
derramar-se como um rio, que irriga as terras necessitadas de água, às quais
leva refrigério com suas ondas, e alimento com o seu limo.
Vós desejais saber o que se requer para ser discípulos da Palavra de
Deus, do Messias que é o Verbo do Pai, que vem reunir Israel, para ouvir
novamente as palavras do imutável e santo Decálogo, e se santifique com
elas, purificando o homem quanto ele puder por si mesmo, para a hora da
Redenção e do Reino.
Aí está. Falo aos surdos, aos cegos, aos mudos, aos leprosos, aos
paralíticos, aos mortos: “Levantai-vos, ficai curados, ressurgi, caminhai,
abram-se em vós os rios da luz, da palavra, do som, para que possais ver,
ouvir e falar de Mim.” Mais do que aos corpos, Eu falo aos vossos espíritos.
Homens de boa vontade, vinde a Mim sem temor. Se o espírito está ferido,
Eu o curo. Se está doente, Eu o torno são. Se está morto, Eu o ressuscito. Eu
quero só a vossa boa vontade.
Será difícil o que Eu vos estou pedindo? Não. Eu não vos imponho as
centenas e centenas de preceitos dos rabinos. Eu vos digo: Guardai o
Decálogo. A Lei é una e imutável. Muitos séculos se passaram desde a hora
na qual essa lei foi dada bela, pura, fresca como um filho recém-nascido,
como uma rosa que acaba de se abrir sobre a haste. Simples, limpa, suave
para se seguir. No correr dos séculos, as culpas e as tendências a
complicaram com outras leis menores, com pesos e restrições, com
excessivas e penosas cláusulas. Eu vos reporto à Lei, assim como o
Altíssimo a deu. Mas Eu vos peço para o vosso bem, recebei-a com o
coração sincero dos verdadeiros israelitas daquele tempo.
Vós, os humildes, murmurais, mais com os corações do que com os
lábios, que a maior culpa está nos homens importantes. Eu sei. No
Deuteronômio se diz tudo o que deve ser feito: não era necessário nada
mais. Mas não julgueis quem pede aos outros, e não a si. Vós façais tudo o
que Deus diz. E sobretudo, esforçai-vos para serdes perfeitos nos dois
mandamentos principais. Se amardes a Deus com todo o vosso ser, não ireis
cometer pecado, que é uma dor causada a Deus. Quem ama não quer causar
dor. Se amardes o próximo como a vós mesmos, não sereis mais que filhos
respeitosos para com os vossos pais, esposos fiéis aos consortes, homens
honestos nos negócios, sem violências com os inimigos, sem mentira nos
vossos depoimentos, sem inveja de quem possui, sem concupiscência, sem
luxúria para com a mulher do próximo. Não querendo fazer aos outros o
que não quereríeis que fosse feito a vós, não roubaríeis, não mataríeis, não
caluniaríeis, não entraríeis, como os cucos, nos ninhos dos outros.
Mas, ao contrário, Eu vos digo: “Levai à perfeição a obediência aos
dois preceitos de amor: amai também os vossos inimigos.”
Oh! Como vos amará o Altíssimo, que tanto ama o homem, que se
tornou inimigo Dele pela culpa de origem e por seus pecados individuais, a
ponto de enviar-lhe o Redentor, o Cordeiro, que é o seu Filho, Eu que vos
falo, Eu, o Messias prometido, para remir-vos de toda culpa, se souberdes
amar como Ele.
Amai. Que o amor seja para vós escada por onde, tendo-vos tornado
anjos, subireis, como viu Jacó, até o Céu, ouvindo o Pai dizer a todos e a
cada um: “Eu serei o teu protetor por onde andares, e te reconduzirei a esta
cidade: ao Céu, ao Reino Eterno.”
A paz esteja convosco.
50.8
O povo diz palavras de uma aprovação comovida, e se afasta
lentamente. Ficam Pedro, André, Tiago, João, Filipe e Bartolomeu.
– Partes amanhã, Mestre?
– Amanhã, ao alvorecer, se não te desagrada.
– Desagradar-me que Tu vás, sim. Mas por causa da hora, não. É, aliás,
propícia.
– Irás pescar?
– Esta noite, quando sair a lua.
– Fizeste bem, Simão Pedro, por não teres ido pescar na noite passada.
O sábado ainda não havia terminado. Neemias, em suas reformas, quis
que[92] em Judá fosse respeitado o sábado. Ainda agora muita gente aos
sábados põe em movimento as prensas, carrega fardos, transporta vinho e
frutas, vende e compra peixes e cordeiros. Vós já tendes seis dias para isso.
O sábado é do Senhor. Só uma coisa podeis fazer aos sábados: praticar a
bondade para com o próximo. Mas o lucro deve ser absolutamente excluído
dessa ajuda. Quem por causa do lucro viola o sábado, não pode ter senão o
castigo de Deus. Faz uma coisa de utilidade? Vai ter que descontá-la com as
perdas nos outros seis dias. Faz uma coisa sem utilidade? Então, em vão
cansou o seu corpo, não lhe concedendo o descanso que a Inteligência
estabeleceu para ele, deixando alterar-se pela ira o seu espírito por ter-se
afadigado inutilmente, chegando até a praguejar. Enquanto que o dia de
Deus há de ser passado com o coração unido a Deus, em doce oração de
amor. É preciso ser fiel em tudo.
– Mas… os escribas e os doutores, que são tão severos conosco… não
trabalham aos sábados, nem mesmo dão um pão ao próximo, para não ter o
trabalho de estender o braço para dá-lo… mas a usura, eles praticam
também nos sábados. Será por não ser um trabalho material, que a usura se
pode praticar aos sábados?
– Não. Nunca. Nem no sábado, nem em nenhum outro dia. Quem
pratica a usura, é desonesto e cruel.
– Então, os escribas e os fariseus…
– Simão, não julgues. Tu não faças assim.
– Mas eu tenho olhos para ver…
– Existirá só mal para se ver, Simão?
– Não, Mestre.
– Assim sendo, por que olhar só o mal?
– Tens razão, Mestre.
50.9
– Então, amanhã, na alvorada, partirei com João.
– Mestre…
– Que tens a dizer, Simão?
– Mestre… vais a Jerusalém?
– Tu já estavas sabendo disso.
– Eu também vou lá pela Páscoa… e também André e Tiago…
– Então? Queres dizer que gostarias de ir Comigo. Mas, e a pesca? E o
teu ganha-pão? Me disseste que gostas de ter dinheiro, e Eu vou ficar por lá
muitos dias. Primeiro, vou ver minha mãe. Para lá irei na volta, onde me
deterei a pregar. Como farás, então?
Pedro fica perplexo, combalido… mas depois se decide:
– Por mim… eu vou também. Prefiro a Ti, que ao dinheiro!
– Eu também vou.
– Eu também.
– E nós também, não é Filipe?
– Então, vinde. Vós me ajudareis.
– Oh! –Pedro fica excitado só com a idéia de ajudar a Jesus–. Como
faremos?
– Depois Eu vos direi. Não tereis que fazer mais do que Eu vos disser,
para fazer bem. O obediente sempre faz bem. Agora, vamos rezar, e depois
cada um irá para a sua casa.
– E Tu, Mestre, que irás fazer?
– Eu vou rezar ainda. Eu sou a Luz do mundo, mas sou também o Filho
do homem. Devo por isso sempre alcançar a Luz, para ser o Homem que
redime o homem. Rezemos.
Jesus diz um salmo. É aquele que começa assim:
– “Quem repousa na ajuda do Altíssimo, viverá sob a proteção do Deus
do Céu. Dirá ao Senhor: ‘Tu és o meu protetor, o meu refúgio. És o meu
Deus, Nele a minha esperança. Ele me livrou do laço dos caçadores e das
palavras ásperas’ etc…”. Eu o encontro no livro 4°[93]. É o segundo do livro
4°, parece-me ser o de n° 90 (se é que leio bem os números romanos).
A visão termina assim.
[91] diz, em: Joel 4,10; e dos versículos sucessivos são retiradas as imagens do juízo.
[92] quis que, em: Neemias 13,15-22.
[93] livro 4°, porque a Bíblia usada por Maria Valtorta traz a antiga sub-divisão em 5 livros da colectânea dos Salmos. O segundo
salmo do quarto livro é o Salmo 90, tornado Salmo 91 na numeração das versões modernas.
51. Maria manda Judas Tadeu
convidar Jesus para as bodas de Caná.
17 de outubro de 1944.
51.1
Vejo a cozinha de Pedro. Nela, além de Jesus, estão Pedro e sua
mulher, Tiago e João. Parece que eles acabaram de jantar, faz pouco tempo
e estão conversando. Jesus se interessa pelos assuntos da pesca.
André entra, e diz:
– Mestre, está aí fora o homem, que mora com alguém que se diz teu
primo.
Jesus se levanta, vai até à porta e diz:
– Entrem!
E, quando, à luz da candeia e das chamas da lareira, vê entrar Judas
Tadeu, exclama:
– Tu, Judas?!
– Eu mesmo, Jesus.
Beijam-se. Judas Tadeu é um belo homem, na plenitude de sua beleza
viril. Alto, se bem que não como Jesus, bem proporcionado em sua
robustez, moreno, como era José, quando jovem, de um oliváceo, não
térreo, com olhos que têm alguma coisa em comum com os de Jesus,
porque são de uma cor azul, mas tendente à pervinca. Tem uma barba
quadrada e escura, cabelos em desalinho, menos encaracolados que os de
Jesus, escuros como a barba.
– Eu venho de Cafarnaum. Fui até lá com um barco, depois também
vim até aqui desta forma, para chegar mais depressa. É tua mãe que me
manda a Ti. Ela manda dizer: “Susana se casa amanhã. Eu te peço, Filho,
que vás ao casamento.” Maria vai tomar parte na festa e com ela minha mãe
e meus irmãos. Todos os parentes estão convidados. Só Tu estarias ausente,
e os parentes te pedem que vás para fazer contentes os noivos.
51.2
Jesus se inclina levemente, abrindo um pouco os braços, e diz:
– O desejo de minha mãe para Mim é lei. Mas também Susana e os
parentes. Eu irei. Só… me desagrada por causa de vós… –e olha para Pedro
e os outros–. São os meus amigos –explica ao primo. E vai dizendo os
nomes, começando por Pedro.
Por último diz:
– E este é o João.
O diz de um modo todo especial, que atrai o olhar mais atento de Judas
Tadeu, e faz enrubescer o seu predileto. Termina a apresentação, dizendo:
– Amigos, este é Judas, filho de Alfeu, meu primo-irmão, segundo o
modo de falar do mundo, porque é filho do irmão do esposo de minha mãe.
É um bom amigo meu no trabalho e na vida.
– Minha casa está aberta para ti, como para o Mestre. Assenta-te! –e,
depois, voltando-se para Jesus, Pedro diz:
– E então? Não iremos mais Contigo para Jerusalém?
– Certamente que ireis. Depois da festa das núpcias, Eu irei para lá.
Somente que não me deterei mais em Nazaré.
– Fazes bem, Jesus. Porque tua mãe é minha hóspede por alguns dias.
Foi combinado assim, e para lá ela irá depois das núpcias.
Assim falou o homem de Cafarnaum.
– Assim faremos, então. Agora, com o barco de Judas, Eu irei a
Tiberíades, e de lá a Caná, e com o mesmo voltarei a Cafarnaum com minha
mãe e contigo. No dia seguinte ao próximo sábado, tu irás, Simão, se ainda
quiseres ir, e iremos a Jerusalém pela Páscoa.
– Claro que irei! Aliás, irei no sábado, para Te ouvir na sinagoga.
51.3
– Já estás ensinando, Jesus? –pergunta Judas Tadeu.
– Sim, primo.
– E que palavras! Ah! Não se ouvem sair dos lábios de outros!
Judas suspira. Com a cabeça apoiada na mão e com o cotovelo firmado
sobre o joelho, ele olha para Jesus e suspira. Parece querer falar, mas não
tem coragem.
Jesus o estimula:
– Que tens, Judas? Por que me olhas e suspiras?
– Não é nada.
– Não. Nada não pode ser. Não sou mais o Jesus que tu amavas?
Aquele para quem não tinhas segredos?
– Sim, que o és! Que falta me fazes, Tu, Mestre do teu primo mais
velho!…
– E, então? Fala.
– Eu queria dizer-te… Jesus… sê prudente… tens uma mãe… que só
tem a Ti… Tu queres ser um “rabi” diferente dos outros, e Tu sabes, melhor
do que eu, que… que as castas poderosas não permitem que as coisas sejam
diferentes daquelas de costume, por eles estabelecidas. Conheço o teu modo
de pensar… é santo… mas o mundo não é santo… e persegue os santos…
Jesus… Tu sabes qual a sorte do teu primo, o Batista… Está na prisão, e, se
ainda não morreu, é porque aquele sórdido Tetrarca tem medo da multidão e
do raio de Deus. Tão sórdido e supersticioso, como cruel e libidinoso. Tu…
que farás? A que sorte queres ir de encontro?
– Judas, isto me estás perguntando, tu que conheces tão bem o meu
pensamento? Estás falando por ti mesmo? Não. Não mintas. Alguém te
mandou, e, certamente, minha mãe não foi, para vires me dizer estas
coisas…
Judas abaixa a cabeça, e se cala.
– Fala, primo.
– Meu pai… e com ele José e Simão… sabes… para o teu bem… pelo
afeto por Ti e por Maria… não vêem com bons olhos aquilo que estás
querendo fazer… e… e gostariam que Tu pensasses em tua mãe…
51.4
– E tu, que pensas disso?
– Eu… Eu…
– Tu estás sendo combatido pelas vozes do alto e da terra. Não digo
pelas vozes daqui de baixo. Digo vozes da terra. Também Tiago está assim
ainda mais do que tu. Mas Eu vos digo que acima da terra está o céu, acima
dos interesses do mundo está a causa de Deus. Precisais mudar vosso modo
de pensar. Quando souberdes fazer isso, sereis perfeitos.
– Mas… e tua mãe?
– Judas, ninguém melhor do que ela teria o direito de me chamar de
volta aos meus deveres de Filho, segundo a luz da terra, ou seja, ao meu
dever de trabalhar para ela, a fim de atender às suas necessidades materiais,
ao meu dever de assistência e conforto, ficando sempre perto da mãe. Mas
ela não me pede nada disso. Desde que me teve, ela sabia que teria que me
perder, para depois encontrar-me de novo, e de um modo muito mais amplo
do que o do pequeno círculo da família. Desde então, ela vem-se
preparando para isso. Esta vontade absoluta de se doar a Deus não é
novidade no seu sangue. Sua mãe a ofereceu ao Templo, antes que ela
sorrisse à luz. Ela se doou a Deus, e me contou isso inúmeras vezes quando,
tinha-me junto ao seu coração, nas longas tardes de inverno, ou nas claras
noites de verão cheias de estrelas, falando-me da sua infância santa, desde
as primeiras luzes da sua aurora no mundo. Doou-se a Deus ainda mais,
quando me teve, para que eu estivesse aqui a caminho da missão que me
vem de Deus. Em uma certa hora, todos me deixarão; talvez por poucos
minutos, mas a covardia se apoderará de todos, e pensareis que teria sido
melhor para vossa segurança, se nunca me tivésseis conhecido. Mas ela,
que compreendeu e que sabe, Ela estará sempre comigo. Vós tornareis a ser
meus por meio dela. Com a força de sua segura e amorosa fé, ela vos atrairá
a si, e depois vos tornará a atrair para Mim, porque Eu estou na mãe, e ela
está em Mim, e Nós em Deus. Isto Eu queria que compreendêsseis, todos
vós, parentes segundo o mundo, amigos e filhos segundo o sobrenatural. Tu
e os outros, não sabeis quem é minha mãe. Mas, se o soubésseis, não a
criticaríeis em vosso coração por não saber ter-me subjugado a ela, mas a
veneraríeis como a amiga mais íntima de Deus, a poderosa que tudo pode
no coração do Eterno Pai, e sobre o Filho do seu coração. Certamente Eu
irei a Caná. Quero fazê-la feliz. Compreendereis melhor depois desta hora.
Jesus está imponente e persuasivo.
Judas o olha atentamente. Fica pensando. E diz:
– Eu também certamente irei Contigo, junto com estes, se me
quiseres… porque sinto que Tu dizes coisas justas. Perdoa a minha cegueira
e a dos meus irmãos. És muito mais santo do que nós!…
– Não tenho rancor de quem não me conhece. Não tenho rancor nem de
quem me odeia. Mas sinto dor pelo mal que alguém se faz a si mesmo. 51.5O
que tem naquela sacola?
– A veste que a mãe te manda. Amanhã há uma grande festa. Ela pensa
que o seu Jesus precise da veste para não fazer má figura entre os
convidados. Ela fiou, incansavelmente, das primeiras horas do dia até às
últimas, cada dia, para te preparar esta veste. Mas não terminou o manto.
Ficaram faltando as franjas. Ela ficou desolada por isso.
– Não é preciso. Eu vou com esta, e aquela guardarei para Jerusalém. O
Templo é ainda mais do que uma festa de casamento.
– Ela ficará feliz.
– E vós, se quereis estar ao amanhecer no caminho de Caná, precisais
partir logo. A lua surge, e será boa a travessia –diz Pedro.
– Então, vamos. Vem, João. Eu te levo Comigo. Simão Pedro, Tiago e
André, até logo. Eu vos espero na tarde de sábado em Cafarnaum. Adeus,
mulher. Paz a ti e à tua casa.
Jesus sai com Judas e João. Pedro os acompanha até à beira do lago, e
ajuda na manobra de partida do barco.
Termina a visão.

51.6
Jesus diz:
– Quando for a hora de fazer um trabalho em ordem, será inserido aqui
a visão das bodas de Caná. Põe a data (16.1.44).
52. As bodas de Caná. O Filho, não mais sujeito
à mãe, realiza, a pedido dela, o primeiro milagre.
Tarde de 16 de janeiro de 1944. As bodas de Caná.
52.1
Vejo uma casa. Uma característica casa oriental — um cubo branco,
mais largo do que alto, com raras aberturas — transposta por um terraço,
que serve de telhado, cercada por um pequeno muro de mais ou menos um
metro de altura e sombreada pela parreira de uma videira, que sobe até o
alto e estende os seus ramos além da metade deste ensolarado terraço. Uma
escada externa, ao longo da fachada, vai até uma porta que se abre a meia
altura da fachada. Em baixo, no térreo, há portas baixas e poucas, não mais
do que duas de cada lado, que dão para quartos baixos e escuros. A casa
surge em meio a uma espécie de eira, mais um espaço gramado do que uma
eira, tendo ao centro um poço. Ali há figueiras e macieiras. A casa tem a
sua frente que dá para a rua, mas não está junto à rua. Fica um pouco para
dentro do terreno e um atalho, pelo meio da grama, faz a ligação com a rua,
que parece uma rua mestra.
Dir-se-ia que a casa está na periferia de Caná: casa cujos donos são
camponeses que vivem no meio do seu sitiozinho. O campo se estende além
da casa, com as suas distâncias verdejantes e plácidas. Faz um belo sol e o
céu está de um azul muito claro. Em princípio, não vejo outra coisa. É uma
casa solitária.
52.2
Depois, vejo duas mulheres com longas vestes e um manto, que serve
também de véu, irem pela rua e em seguida pelo atalho. Uma delas é mais
velha, terá seus cinqüenta anos, veste-se de escuro, uma cor pardo-marrom,
como o da lã natural. A outra está com uma veste mais clara, de um amarelo
claro com um manto azul; parece ter uns trinta e cinco anos. É muito bonita,
esbelta, e tem um porte cheio de dignidade, mesmo sendo muito gentil e
humilde. Quando ela está mais perto, posso notar a cor pálida do seu rosto,
os olhos azuis e os cabelos loiros, que aparecem sob o véu que lhe cobre a
fronte. Reconheço nela Maria, mãe de Jesus. Quem é a outra, que é morena
e mais velha, eu não sei. Falam entre si, e ela sorri. Quando estão próximas
da casa, alguém, certamente encarregado de receber os que vão chegando,
dá o aviso e vêm homens e mulheres ao encontro das duas, todos com
roupas de festa e fazendo grandes demonstrações de alegria pela vinda
delas, especialmente por Maria, mãe de Jesus.
A hora parece ser matutina, eu diria lá pelas nove, talvez antes, porque
o campo tem ainda aquele aspecto fresco das primeiras horas do dia, por
causa do orvalho que faz mais verde a relva e pelo ar, não ainda embaçado
pela poeira. A estação parece-me primaveril, porque os prados não estão
com a relva abrasada do verão, e os campos têm os trigos ainda novos e
sem espigas, tudo verde. As folhas da figueira e da macieira estão verdes e
até tenras ainda, assim como as da videira. Mas, não vejo flores na macieira
e não vejo frutos nem na macieira, nem na figueira, nem na videira. Sinal de
que a macieira já floriu, mas há pouco tempo e os seus frutos ainda não se
vêem.
52.3
Maria, muito festejada, ladeada por um idoso que parece ser o
dono da casa, sobe pela escada externa e entra em uma ampla sala, que
parece ocupar todo ou boa parte do andar de cima.
Parece-me compreender que os cômodos do térreo são os verdadeiros
dormitórios, as despensas, os depósitos, as adegas, e que este seja o
ambiente reservado para ocasiões especiais, como festas excepcionais, ou
trabalhos que exijam muito espaço; ou também para depósito de produtos
agrícolas. Nas festas, retiram tudo o que ocupa o espaço e enfeitam, como
fizeram hoje, com ramos verdes, esteiras e mesas preparadas. No centro
está uma mesa suntuosa, sobre a qual há ânforas e pratos cheios de frutas.
Ao longo da parede da direita, em relação a mim que estou olhando, está
uma outra mesa preparada, mas de modo mais simples. Ao longo da parede
da esquerda, está uma espécie de longo aparador, sobre o qual há pratos
com queijos e outros alimentos que me parecem pães cozidos cobertos com
mel e doces. No chão, sempre junto a esta parede, há outras ânforas e
três[94] grandes vasos em forma de bilha de cobre (mais ou menos). Eu os
chamaria de jarras.
Maria escuta com benevolência tudo o que lhe dizem. Depois, bem
disposta, tira o manto e vai ajudar a terminar os preparativos da mesa. Eu a
vejo ir e vir, arrumando as cadeiras-leitos, endireitando as grinaldas de
flores, dando melhor aspecto às fruteiras, examinando se nas candeias não
está faltando óleo. Ela sorri e fala muito pouco e em voz baixa. Mas escuta
muito e com muita paciência.
Um grande barulho de instrumentos musicais (na verdade pouco
harmônicos) ouve-se na rua. Todos, menos Maria, correm lá fora. Vejo
entrar a noiva, toda ataviada e feliz, rodeada pelos parentes e amigos, ao
lado do noivo, que foi o primeiro a correr ao seu encontro.
52.4
Neste ponto a visão tem uma mudança. Vejo, ao invés da casa, uma
aldeia. Não sei se é Caná ou outra aldeia vizinha. E vejo Jesus com João e
um outro, que me parece Judas Tadeu, mas sobre este segundo eu poderia
estar me enganando. Quanto a João, não há engano. Jesus está vestido de
branco e com um manto azul escuro. Ouvindo o barulho dos instrumentos,
o companheiro de Jesus pergunta qualquer coisa a um homem do povo e
leva a informação a Jesus.
– Vamos fazer feliz minha mãe –diz então, Jesus, sorrindo.
E se encaminha através dos campos, com os dois companheiros, em
direção da casa. Esqueci de dizer que tenho a impressão de que Maria seja
parente ou muito amiga dos parentes do noivo, pois pode-se ver que está em
confidência com eles.
Quando Jesus chega, conforme o costume, o que está de sentinela avisa
aos outros. O dono da casa, acompanhado por seu filho, que é o noivo, e por
Maria, desce ao encontro de Jesus e o saúda respeitosamente. Saúda
também os outros dois; o noivo faz o mesmo.
Mas o que me agrada é a saudação cheia de amor e de respeito de
Maria ao seu Filho, e vice-versa. Não são grandes expansões, mas é um
olhar especial que acompanha as palavras de saudação: “A paz esteja
contigo”, e um sorriso tal, que vale por cem abraços e cem beijos. O beijo
treme nos lábios de Maria, mas não chega a ser dado. Ela somente põe a sua
mão branca e pequena sobre o ombro de Jesus e toca de leve num caracol
de sua longa cabeleira. É uma carícia de namorada cheia de pudor.
52.5
Jesus sobe ao lado da mãe, seguido pelos discípulos e pelos donos da
casa, e entra na sala do banquete onde as mulheres estão atarefadas em
colocar os assentos e os pratos para os três hóspedes, inesperados, ao que
me parece. Eu diria que a vinda de Jesus era incerta e que a de seus
companheiros era absolutamente imprevista.
Ouço distintamente a voz cheia, viril e dulcíssima do Mestre, dizer, ao
entrar na sala:
– A paz esteja nesta casa, e a bênção de Deus sobre todos vós.
É uma saudação coletiva a todos os presentes e cheia de majestade.
Jesus, com seu aspecto e sua estatura, domina todos os outros. É um
hóspede, fortuito, mas parece o rei do banquete, mais do que o esposo, mais
do que o dono da casa. Ainda que humilde e condescendente, é aquele que
se impõe.
Jesus toma um lugar à mesa do centro, com o noivo, a noiva, os
parentes dos noivos e os amigos mais influentes. Os dois discípulos, por
respeito ao Mestre, são convidados a sentar-se à mesma mesa.
Jesus está com as costas viradas para a parede, onde estão as grandes
jarras e os aparadores.
Observo uma coisa. Exceto as respectivas mães dos esposos, e também
Maria, nenhuma outra mulher está sentada àquela mesa. Todas as mulheres
estão na outra mesa, viradas para a parede, fazendo um barulho como se
fossem cem, e são servidas depois de terem sido servidos os esposos e os
hóspedes importantes. Jesus está perto do dono da casa e tem à sua frente
Maria, a qual está sentada ao lado da noiva.
O banquete começa. Eu vos asseguro que apetite não falta, nem sede.
Aqueles que pouco se sobressaem são Jesus e sua mãe, a qual, além disso,
fala muito pouco. Jesus fala um pouco mais. Mas, ainda que seja comedido
em suas palavras, não é, no seu escasso falar, nem carrancudo nem
desdenhoso. É um homem cortês, mas não um conversador. Quando é
interrogado, responde; se alguém fala com Ele, Ele se interessa, dá o seu
parecer, mas depois se recolhe, como alguém habituado a meditar. Sorri,
não ri nunca. E, se ouve alguma brincadeira muito leviana, faz como se não
a tivesse ouvido. Maria se alimenta na contemplação do seu Jesus, e assim
também João, que está na ponta da mesa, atento aos lábios do seu Mestre.
52.6
Maria nota que os serventes cochicham com o mordomo e que este
está embaraçado; então, ela percebe o que é que está acontecendo de
desagradável.
– Filho –ela fala baixinho, chamando a atenção de Jesus com aquela
palavra–. Filho, eles não têm mais vinho.
– Mulher, o que ainda há entre Mim e ti?
Jesus, ao dizer esta frase, sorri ainda mais docemente e Maria também
sorri; fazem como duas pessoas que sabem uma verdade que é para elas um
alegre segredo ignorado por todos os outros.

Jesus me explica o significado da frase.


52.7

– Aquele “ainda”, que muitos tradutores omitem[95], é a chave da frase


e a explica em seu verdadeiro significado.
Eu era o Filho sujeito à mãe até o momento em que a vontade do meu
Pai me mostrou que havia chegado a hora de ser o Mestre. Desde o
momento em que teve início a minha missão eu não era mais o Filho sujeito
à mãe, mas o Servo de Deus. Estavam rompidos os laços morais para com a
minha genitora. Estes tinham sido mudados em outros mais altos e todos se
haviam refugiado no espírito. Aquele chamava sempre o nome de “mamãe”
Maria, a minha santa. O amor não teve parada, nem esfriamento; ao
contrário, nunca ele foi tão perfeito como quando, separado dela como por
uma segunda filiação, ela me deu ao mundo para o mundo, como Messias,
como Evangelizador. Essa sua terceira, sublime e mística maternidade se
deu quando, na angústia do Gólgota, ela gerou-Me à Cruz fazendo de Mim
o Redentor do mundo.
“Que é que ainda há entre Mim e ti?” Antes, Eu era teu, unicamente
teu. Tu me davas ordens, Eu obedecia. Eu te estava “sujeito”. Agora Eu sou
da minha missão.
Será que Eu não disse[96] isto? “Quem, tendo posto a mão no arado,
vira-se para trás para saudar a quem fica, não é apto para o Reino de Deus.”
Eu tinha posto a mão no arado para abrir com a relha não as glebas, mas os
corações para semear neles a Palavra de Deus. Eu teria levantado aquela
mão, somente quando me tivessem arrancado de lá para pregá-la na cruz e
abrir com o meu torturante prego, o coração do meu Pai, fazendo sair o
perdão para a humanidade.
Aquele “ainda”, geralmente esquecido, queria dizer o seguinte: “Tudo
tens sido para Mim, ó mãe, enquanto Eu fui unicamente o Jesus de Maria de
Nazaré, e tudo és em meu espírito; mas, desde que Eu sou o Messias
esperado, sou de meu Pai. Espera um pouco ainda que, terminada a missão,
serei de novo todo teu; ter-me-ás de novo nos braços, como quando Eu era
menino e ninguém te disputará mais este teu Filho, considerado um
opróbrio da humanidade, a qual te jogará os despojos dele, para cobrir-te a
ti também do opróbrio de ser a mãe de um condenado à morte. E depois,
Me terás de novo, triunfante, depois me terás para sempre, triunfante Tu
também, no Céu. Mas agora Eu sou de todos os homens. E sou do Pai que a
eles me enviou.”
Eis o que quer dizer aquele “ainda”, pequeno e tão denso de
significado.

Maria pede aos serventes:


52.8

– Fazei aquilo que Ele vos disser.


Maria já tinha lido nos olhos sorridentes de seu Filho o assentimento
velado pelo grande ensinamento a todos os “vocacionados.”
E Jesus ordena aos serventes:
– Enchei as bilhas de água.
Vejo os serventes enchê-las com a água trazida do poço (ouço o ranger
do sarilho, que leva para baixo e para cima o balde gotejante). Vejo o
mordomo, com olhos de grande espanto, servir-se daquele líquido, prová-lo
com atos de ainda maior espanto, saboreá-lo e falar ao dono da casa e ao
noivo (eles estavam perto).
Maria está ainda olhando para o Filho e sorrindo; depois, ao receber um
sorriso Dele, inclina a cabeça, enrubescendo levemente. Ela está feliz.
Pela sala passa um murmúrio, as cabeças se voltam todas para Jesus e
Maria, alguns se levantam para vê-los melhor, outros vão ver as bilhas. Faz-
se um grande silêncio. Depois se ergue um coro de louvores a Jesus.
Mas Jesus se levanta e diz uma palavra:
– Agradecei a Maria.
E, em seguida, sai do banquete. Os discípulos o seguem. Já na porta,
Ele repete:
– A paz esteja nesta casa e a bênção de Deus sobre vós, –e
acrescenta–: Mãe, Eu te saúdo.
Cessa a visão.

Jesus me instrui assim:


52.9

– Quando Eu disse aos discípulos: “Vamos fazer feliz minha mãe”, Eu


tinha dado àquela frase um sentido mais alto do que o que parecia. Não a
felicidade de me ver, mas de ser ela a iniciadora de minha atividade de fazer
milagres e a primeira benfeitora da humanidade. Lembrai-vos disso sempre.
O meu primeiro milagre aconteceu por causa de Maria. O primeiro. Sinal de
que Maria é a chave dos milagres. Eu não recuso nada à minha mãe, e pela
sua oração antecipo também o tempo da graça. Eu conheço minha mãe, a
segunda em bondade depois de Deus. Eu sei que conceder-vos uma graça é
fazê-la feliz, porque ela é a Toda Amor. Eis porque Eu disse, Eu que tudo
sabia: “Vamos fazê-la feliz.”
Além disso, Eu quis manifestar o seu poder ao mundo, junto com o
meu. Destinada a ser unida a Mim na carne — pois nós fomos uma só
carne: Eu nela, e ela ao redor de Mim, como as pétalas de um lírio ao redor
do pistilo perfumado e cheio de vida —; unida a Mim na dor, porque
estivemos sobre a cruz: Eu com a carne e ela com seu espírito, assim como
o lírio exala perfume com sua corola e com a essência extraída dela, era
justo que estivesse unida a Mim no poder que se mostra ao mundo.
Digo a vós o que Eu disse àqueles convidados: “Agradecei a Maria. Foi
por ela que tivestes o dom dos milagres e as minhas graças, e especialmente
as do perdão.”
Repousa em paz. Nós estamos contigo.
[94] três, é corrigido em seis numa cópia dactilografada, com escritura que não se pode dizer de Maria Valtorta, com certeza.
[95] omitem, ao traduzir as palavras que estão em: João 2,4.
[96] disse, em: Lucas 9,62 (178.4 e 276.6).
53. A expulsão dos vendedores do Templo.
24 de outubro de 1944.
[…].
53.1
Vejo Jesus que vai entrando no recinto do Templo, com Pedro, André,
João, Tiago, Filipe e Bartolomeu.
Há uma grande multidão, tanto dentro, como fora do Templo. Grupos
de peregrinos chegam de todos os pontos da cidade. Do alto da colina, sobre
a qual está construído o Templo, vêem-se as ruas da cidade, estreitas e
tortas, a fervilhar de gente. Parece que por entre o branco monótono das
casas tenha sido estendida uma fita movediça de mil cores. Sim. A cidade
tem o aspecto de um bizarro brinquedo, feito de fitas matizadas, entre dois
fios brancos, e todas convergentes até o ponto onde brilham as cúpulas da
Casa do Senhor.
Mas no interior há… uma verdadeira feira. Todo recolhimento que
havia no lugar santo se acabou. Uns correm, outros chamam, outros fazem
negócios com seus cordeiros, gritam e imprecam por causa do preço
exorbitante, enquanto outros empurram os pobres animais, que balem, para
dentro dos recintos (são divisões rudimentares, feitas com cordas ou com
estacas, em cuja entrada está o vendedor, ou o dono que seja, à espera dos
compradores). Pauladas, balidos, blasfêmias, reclamações, insultos aos
empregados não solícitos nas operações de ajuntamento e escolha dos
animais e aos compradores que regateiam os preços, ou que vão-se embora.
E maiores insultos àqueles que, previdentes, levaram o seu cordeiro.
Ao redor das bancas dos cambistas, outro vozerio. Compreende-se que
o Templo funcionava como… Bolsa e Bolsa negra; não sei se é sempre ou
só neste tempo da Páscoa. O valor das moedas não era fixo. Havia um valor
legal, certamente terá havido, mas os cambistas impunham um outro,
apropriando-se de um tanto, marcado arbitrariamente pelo câmbio das
moedas. E eu vos asseguro que eles não brincavam nessas operações de
usura! Quanto mais alguém era pobre e vinha de longe, mais era depenado.
Os velhos, mais que os jovens e os provenientes de fora da Palestina, mais
que os velhos.
Os pobres velhinhos olhavam e tornavam a olhar para o seu pecúlio
ajuntado, Deus sabe com quanto trabalho, durante um ano inteiro; agora
eles o tiravam e o recolocavam junto ao peito cem vezes, indo de um
cambista a outro, e acabavam voltando ao primeiro que então se vingava da
inicial desistência deles aumentando o ágio do câmbio… e então, por entre
suspiros, as grandes moedas caíam das mãos de seus donos e passavam para
as garras do usurário sendo trocadas por moedas menores. Depois era outra
tragédia nas escolhas, nos cálculos e suspiros diante dos vendedores de
cordeiros, os quais, aos velhinhos já meio cegos, impingiam os cordeiros
mais míseros.
53.2
Vejo voltar dois velhinhos, ele e ela empurrando um pobre
cordeirinho que deve ter sido achado defeituoso pelos sacrificadores.
Pranto, súplicas, maus tratos e palavrões se cruzam, sem que o vendedor se
comova.
– Pelo que estais dispostos a gastar, ó galileus, é até muito bonito o que
eu vos dei. Ide embora! Ou dai-me mais cinco moedas para receberdes um
mais bonito.
– Em nome de Deus! Somos pobres e velhos! Queres impedir-nos de
fazer a Páscoa, que talvez seja a última para nós? Não te basta o que
quiseste cobrar por um pequeno animal?
– Saí do caminho, ó sujos! Está se aproximando de mim o velho José.
Ele me honra com a sua preferência. Deus esteja contigo! Vem, escolhe!
Entra no recinto aquele que é chamado o velho José, o de Arimatéia, e
pega um magnífico cordeiro. Ele passa, soberbo e pomposo em suas vestes,
sem olhar para os pobres que gemem à porta, aliás, na entrada do recinto.
Quase choca-se com eles, especialmente quando sai com o cordeiro gordo
que vai balindo.
53.3
Mas Jesus também já está perto. Também Ele já fez a sua compra;
Pedro, que provavelmente foi quem fez o negócio por Ele, vem puxando
um cordeiro pequeno.
Pedro queria ir logo ao lugar onde se faz o sacrifício. Mas Jesus se
afasta dali indo para o seu lado direito, em direção aos dois velhinhos‐
assustados que estão chorando, hesitantes, nos quais a multidão esbarra, e
aos quais o vendedor insulta.
Jesus, que é tão alto que as cabeças dos dois velhinhos ficam à altura do
seu coração, põe uma mão sobre o ombro da mulher e pergunta:
– Por que choras, mulher?
A velhinha se vira e vê este jovem alto, solene em sua bela veste
branca, com um manto também branco, tudo novo e limpo. Ela deve tomá-
lo por um doutor, tanto pelas vestes, como pelo aspecto; admirada, porque
os doutores e sacerdotes não fazem caso do povo nem protegem o povo
contra a avidez dos vendedores, ela diz a razão por que estão chorando.
Jesus se volta ao homem dos cordeiros:
– Troca este cordeiro para estes fiéis. Ele não é digno do altar, como
também não é digno que tu te aproveites de dois velhinhos porque são
fracos e indefesos.
– E Tu, quem és?
– Um justo.
– A tua fala e a dos teus companheiros mostram que és um galileu.
Pode haver algum justo na Galiléia?
– Faz o que estou te dizendo, e sejas justo.
– Ouvi! Ouvi o galileu defensor dos seus semelhantes! Ele quer ensinar
a nós no Templo!
O homem ri e zomba imitando o sotaque dos galileus, que é o sotaque
judaico mais cantado e o mais rico de doçura, ao menos assim me parece.
Pessoas os rodeiam e outros vendedores e cambistas tomam a defesa de seu
companheiro contra Jesus.
Entre os presentes há dois ou três rabinos irônicos. Um deles pergunta:
– Tu és doutor? (de modo, capaz de fazer até Jó perder a paciência).
– Tu o disseste.
– O que é que ensinas?
– Ensino o seguinte: a fazer da Casa de Deus casa de oração e não um
lugar de usura e de comércio. Isto é o que Eu ensino.
53.4
Jesus está terrível. Parece o arcanjo posto à porta do Paraíso perdido.
Não tem espada flamejante na mão, mas tem raios em seus olhos e com eles
fulmina os escarnecedores e os sacrílegos. Na mão não tem nada. Só a sua
santa ira. E com esta, caminhando rápido e com imponência por entre as
bancas, esparrama as moedas que estavam cuidadosamente empilhadas
conforme os seus valores; vira mesas e mesinhas; tudo vai caindo, com
estrondo, ao chão, entre um grande barulho de metais ricocheteando, de
madeiras que se batem percutindo e gritos de ira, de susto e de aprovação.
Depois, arrancando das mãos dos que cuidam dos animais, as cordas com
que eles prendiam os bois, as ovelhas e cordeiros em seus lugares, faz com
elas um açoite bem duro, cujos nós, que formam os laços corrediços, se
transformam em flagelos. Levanta-o, gira e abaixa, sem piedade. Sim, vos
asseguro: sem piedade.
Aquela saraivada imprevista golpeia cabeças e costas. Os fiéis se
afastam, admirados da cena; os culpados são perseguidos até o muro
externo e põem-se a correr, deixando no chão o dinheiro e atrás de si os
animais grandes e pequenos, numa grande confusão de pernas, de chifres e
de asas; uns correm, outros voam indo embora; mugidos, balidos, arrulhos
de pombos e rolas, junto a risadas e gritos dos fiéis, que vão atrás dos
usurários em fuga, superam até o lamentoso coro dos cordeiros que
certamente estão sendo degolados em algum outro pátio.
53.5
Chegam correndo os sacerdotes, com os rabinos e os fariseus. Jesus
está ainda no meio do pátio, de volta da sua perseguição. O açoite está
ainda em sua mão.
– Quem és tu? Como tomas a liberdade de fazer isso, perturbando as
cerimônias prescritas? De qual escola provéns? Nós não te conhecemos
nem sabemos quem és.
– Eu sou Aquele que posso. Tudo Eu posso. Desmanchai este Templo
que Eu o erguerei de novo para dar louvores a Deus. Eu não perturbo a
santidade da Casa de Deus e das cerimônias, mas vós a perturbais,
permitindo que sua morada se torne sede de usurários e vendedores. Minha
escola é a escola de Deus. A mesma que teve todo Israel pela boca do
Eterno que falava a Moisés. Vós não me conheceis? Me conhecereis. Não
sabeis de onde Eu venho? Vós o sabereis.
53.6
E, voltando-se para o povo, sem dar mais atenção aos sacerdotes, alto
na veste branca, com o manto aberto e flutuante nas costas, com os braços
abertos como um orador no ponto mais alto do seu discurso, ele diz:
– Ouvi, ó vós de Israel! No Deuteronômio, está dito[97]: “Tu
constituirás juízes e magistrados em todas as portas… e eles julgarão o
povo com justiça sem penderem para nenhum lado. Tu não terás acepção de
pessoas nem aceitarás presentes, porque os presentes cegam os olhos dos
sábios e alteram as palavras dos justos. Com justiça seguirás o que for justo,
a fim de que vivas e possuas a terra que o Senhor teu Deus te tiver dado.”
Ouvi, ó vós de Israel! No Deuteronômio está dito: “Os sacerdotes e os
levitas e todos aqueles da tribo de Levi não terão parte na herança com o
resto de Israel, porque devem viver dos sacrifícios ao Senhor e das ofertas
que a Ele são feitas; nada terão das posses dos seus irmãos, porque o Senhor
é a herança deles.
Ouvi, ó vós de Israel! No Deuteronômio está dito: “Não emprestarás
com juros a teu irmão, nem dinheiro nem grãos, nem qualquer outra coisa.
Poderás emprestar com juros ao estrangeiro; ao teu irmão, ao invés,
emprestarás sem juros aquilo de que ele precisar.”
Isto disse o Senhor.
Agora estais vendo que sem justiça para com o pobre é como se julga
em Israel. Não é para aquele que é justo, mas é para o forte que se inclinam;
e ser pobre, ser povo, quer dizer ser oprimido. Como pode o povo dizer:
“Quem nos julga é justo”, se ele vê que só os poderosos são respeitados e
ouvidos, enquanto que o pobre não tem quem o ouça? Como pode o povo
respeitar o Senhor, se vê que não o respeitam aqueles que mais deviam
fazê-lo? É respeito ao Senhor a violação dos seus mandamentos? Por que,
então, os sacerdotes em Israel têm posses e aceitam presentes dos
publicanos e dos pecadores, os quais assim fazem para terem benévolos os
sacerdotes, assim como estes fazem para terem um abastado cofre?
Deus é a herança dos seus sacerdotes. Para esses Ele, o Pai de Israel é o
Pai que, mais do que nunca, provê o alimento, como é justo. Mas não mais
do que o justo. Ele não prometeu aos seus servos do Santuário nem bolsas
nem posses. Na eternidade terão o Céu pela sua justiça, como o terão
Moisés, Elias, Jacó e Abraão. Mas nesta terra não devem ter senão a veste
de linho e o diadema de ouro incorruptível: pureza e caridade; e que o
corpo seja servo do espírito, que é servo do verdadeiro Deus, e não seja o
corpo senhor do espírito e contra Deus.
Foi-me perguntado com que autoridade Eu faço isto. E eles, com que
autoridade profanam o mandamento de Deus e permitem, à sombra dos
muros sagrados, a usura contra os irmãos de Israel que aqui vêm para
obedecer à ordem divina? Foi-me perguntado de que escola é que Eu venho
e respondi: “Da escola de Deus.” Sim, Israel, Eu venho a ti, e te reporto a
esta escola santa e imutável.
53.7
Quem quer conhecer a Luz, a Verdade, a Vida, quem quer ouvir de
novo a Voz de Deus falando ao seu povo, venha a Mim. Vós seguistes
Moisés, através dos desertos, ó vós de Israel. Segui-me, que Eu vos levo,
através de um deserto bem mais tristonho, ao encontro da verdadeira Terra
feliz. Por um mar aberto, ao comando de Deus, a essa vos levo. Levantando
o meu Sinal, de todo mal Eu vos curo.
A hora da Graça chegou. Os Patriarcas a esperaram e morreram
esperando-a. Predisseram-na os Profetas e morreram nesta esperança.
Sonharam com ela os justos e morreram confortados por este sonho. Agora,
ela surgiu.
Vinde. “O Senhor vai julgar o seu povo e fazer misericórdia aos seus
servos”, como prometeu pela boca de Moisés.
O povo, apinhado ao redor de Jesus, ficou de boca aberta, escutando-o.
Depois, todos comentam as palavras do novo Rabi e fazem perguntas aos
seus companheiros.
Jesus se encaminha para um outro pátio separado deste por uma série
de pórticos. Os amigos o seguem e a visão termina.
[97] está dito, em: Deuteronómio 16,18-20; 18,1-2; 23,20-21.
54. O encontro com Judas de Keriot e com Tomé.
Simão Zelote curado da lepra.
26 de outubro de 1944.
54.1
Jesus está junto aos seus seus discípulos. Tanto no outro dia, como
hoje, não vejo Judas Tadeu que também havia dito querer ir a Jerusalém
com Jesus.
Devem ainda estar sendo celebradas as festas pascais, pois vê-se muita
gente pela cidade. Está anoitecendo e muitos se apressam em ir para as suas
casas.
Jesus também está indo para a casa onde está hospedado. Não é a casa
do Cenáculo, que fica mais na cidade, ainda que nas imediações desta. A
casa onde está Jesus hospedado é uma verdadeira casa de campo entre
bastas oliveiras. Da rústica pracinha, que está à sua frente, vêem-se as
árvores que descem pelos declives ao longo da colina, detendo-se num
lugar onde há um pequeno córrego de poucas águas, que se vai por entre
uma enseada que está entre duas colinas pouco altas. Sobre uma das colinas
está o Templo, sobre a outra só oliveiras e mais oliveiras. Jesus está no
começo do declive desta branda colina, que sobe suavemente, na mansidão
de suas árvores pacíficas.
– João, aí fora estão dois homens esperando o teu amigo –diz um
homem já de idade que deve ser o camponês ou o dono do olival. Diria que
João o conhece.
– Onde estão? Quem são?
– Não sei. Um deles certamente é judeu. O outro… eu não saberia
dizer. Não perguntei a ele.
– Onde estão?
– Na cozinha, esperando e… e… sim… há também um outro que está
todo cheio de feridas… Eu o mandei esperar lá porque… não queria que ele
fosse um leproso… Diz ele que quer ver o Profeta que falou no Templo.
Jesus, que até aquele momento havia permanecido calado, diz:
– Vamos primeiro a esse. Diz aos outros que venham, se quiserem.
Falarei aqui no olival com eles.
E se dirige para o ponto indicado pelo homem.
– E nós? Que fazemos? –pergunta Pedro.
– Vinde, se quiserdes.
Um homem todo coberto está encostado ao pequeno muro rústico que
54.2

sustenta um outeiro, bem perto do limite do sítio. Deve ter subido ali por
um pequeno atalho que lá conduz costeando o córrego.
Quando vê Jesus vir em sua direção, grita:
– Para trás, para trás! Mas também piedade!
E descobre o seu tronco, deixando cair a veste. Se o rosto já está
coberto de crostas, o tronco é um bordado de chagas. Algumas já reduzidas
a buracos fundos, outras simplesmente como queimaduras vermelhas,
outras esbranquiçadas e lúcidas como se sobre elas tivesse um vidro branco.
– És leproso! Que queres de Mim?
– Não me amaldiçoes! Não me apedrejes! Disseram-me que na outra
tarde Te manifestaste como Voz de Deus e Portador da Graça. Disseram-me
que Tu asseguraste que, erguendo o teu sinal, curas com ele todos os males.
Ergue-o sobre mim. Eu venho dos sepulcros… lá… Eu rastejei como uma
serpente por entre as sarças da beira do córrego para chegar até aqui sem ser
visto. Esperei que a tarde chegasse para poder vir, porque na penumbra vê-
se menos quem eu sou. Eu ousei… encontrei este, que é da casa e que é
muito bom. Ele não me matou. Somente me disse: “Espera junto ao muro.”
Tem piedade, Tu também!
Visto que Jesus se aproxima (sozinho, porque os seis discípulos e o
dono do lugar, com os dois desconhecidos, estão longe e mostram
claramente aversão) diz ainda:
– Não te adiantes mais! Não mais! Eu estou infeccionado!
Mas Jesus prossegue. Olha para ele com tanta piedade, que o homem se
põe a chorar, ajoelha-se com o rosto quase ao chão e geme, dizendo:
– O teu sinal! O teu sinal!
– Ele será elevado, quando chegar a sua hora. Mas, a ti Eu digo:
levanta-te! Sê curado. Eu quero. E sê tu o meu sinal nesta cidade que
precisa conhecer-me. Levanta-te. Eu te digo! E não peques mais, em
reconhecimento a Deus!
O homem se levanta devagar. Parece que ele emerge por entre as ervas
altas e floridas como de um lençol do túmulo… e está curado. Ele se olha,
aos últimos raios da luz do dia. Está mesmo curado. E grita:
– Eu estou limpo! Oh! Que é que devo fazer agora por Ti?
– Obedecer a Lei. Vai ao sacerdote. Sê bom daqui em diante. Vai.
O homem faz um movimento para se jogar aos pés de Jesus, mas ele se
lembra de que ainda está impuro, segundo a Lei, e se detém. Mas ele beija
suas próprias mãos e manda o beijo a Jesus e chora. De alegria.
54.3
Os outros estão imobilizados, como que petrificados. Jesus volta as
costas ao curado e, sorrindo, os faz voltarem a si.
– Amigos, não era mais que uma lepra da carne. Mas vós vereis cair a
lepra dos corações. Sois vós que me procurais? –diz aos dois
desconhecidos–: Eis-me aqui. Quem sois?
– Nós Te ouvimos na outra tarde… no Templo. E Te procuramos pela
cidade. Um que se diz teu parente, nos disse que estavas aqui.
– Por que me estais procurando?
– Para seguir-te, se nos quiseres, porque Tu tens palavras de verdade.
– Para seguir-me? Mas sabeis para onde me dirijo?
– Não Mestre. Mas com certeza para a glória.
– Sim. Mas para uma glória que não é da terra. Para uma glória que tem
sua sede no Céu e que se conquista com a virtude e o sacrifício. Por que
quereis me seguir? –torna a perguntar.
– Para termos parte na tua glória.
– Segundo o Céu?
– Sim, segundo o Céu.
– Nem todos podem chegar ali. Porque Mamon arma ciladas aos
desejosos do Céu, mais do que aos outros. E só quem sabe querer
fortemente é quem resiste. Por que seguir-me se o seguir-me quer dizer uma
luta contínua com o inimigo que está em nós, com o mundo inimigo e com
o Inimigo, que é Satanás?
– Porque assim quer o nosso espírito, que ficou conquistado por Ti. Tu
és santo e poderoso. Nós queremos ser teus amigos.
– Amigos!!!
Jesus se cala e suspira. Depois, olha fixo àquele que sempre vinha
falando e que agora deixou cair o manto da cabeça apresentando-a toda
descoberta. É Judas de Keriot.
– Quem és tu, que falas melhor do que um homem do povo?
– Sou Judas, de Simão. Sou natural de Keriot. Mas sou do Templo (ou
estou no Templo). Espero o Rei dos judeus; vivo sonhando com ele. Rei te
reconheci na palavra e Rei te vi no gesto. Toma-me Contigo.
– Tomar-te? Agora? Tão depressa? Não.
– Por que, Mestre?
– Porque é melhor pesar-nos a nós mesmos, antes de pegarmos
caminhos muito íngremes.
– Não crês em minha sinceridade?
– Tu o disseste. Eu creio no teu impulso. Não creio na tua constância.
Pensa nisso, Judas. Agora Eu vou-me embora, e voltarei para a festa de
Pentecostes. Se estiveres no Templo, me verás. Pesa-te a ti mesmo. 54.4E tu,
quem és?
– Um outro que te viu. Queria estar contigo. Mas agora sinto temor.
– Não. A presunção é uma ruína. O temor pode ser um obstáculo, mas,
se ele vem da humildade, pode até ajudar. Não temas. Pensa, tu também, e,
quando Eu vier…
– Mestre, tu és muito santo. Tenho medo de não ser digno. Não de outra
coisa. Porque sobre o meu amor eu não temo.
– Como te chamas?
– Tomé, chamado o Dídimo.
– Eu me lembrarei do teu nome. Vai em paz.
Jesus se despede deles e se retira para a casa onde está hospedado, para
o jantar.
54.5
Os seis, que já estão com Ele, querem saber de muitas coisas.
– Por que, Mestre, fizeste diferença entre os dois?… Porque uma
diferença houve! Os dois tinham o mesmo impulso… –pergunta João.
– Amigo, também o mesmo impulso pode ter diversa substância e
produzir efeito diferente. É verdade que os dois têm o mesmo impulso. Mas
um não é igual ao outro, quanto ao fim a que visam. E aquele que parece o
menos perfeito é o mais perfeito, porque não está seduzido pela glória
humana. Ele me ama, porque me ama.
– Eu também.
– E eu também.
– E eu.
– E eu.
– E eu.
– E eu.
– Eu sei. Eu conheço quem sois.
– Então, somos perfeitos?
– Oh! Não! Mas, assim como Tomé, vós também o sereis, se
permanecerdes em vossa vontade de amor. Perfeitos?! Oh! Meus amigos! E
quem é perfeito, a não ser Deus?
– Tu o és.
– Em verdade vos digo que não sou perfeito por Mim, se pensais que
Eu sou um profeta. Nenhum homem é perfeito. Mas perfeito Eu sou, porque
Este que vos está falando é o Verbo do Pai. Ele é parte[98] de Deus, é o seu
Pensamento, que se faz Palavra. Eu tenho a Perfeição em Mim. E deveis
crer que Eu sou assim, se credes ser Eu o Verbo do Pai. Contudo vós estais
vendo, amigos. Eu quero ser chamado o Filho do homem[99] porque
aniquilo a Mim mesmo, pondo em minhas costas todas as misérias do
homem para levá-las comigo, primeiro ao meu patíbulo e depois de tê-las
levado, anulá-las, mas não por as ter tido como minhas. Que peso, amigos!
Mas, Eu o levo com alegria. Levá-lo é a minha alegria porque sendo o Filho
da humanidade, tornarei a humanidade filha de Deus, como foi no primeiro
dia.
Jesus fala docemente, sentado à pobre mesa, com as mãos que
gesticulam calmamente sobre a mesma, o rosto um pouco inclinado,
iluminado de alto a baixo pela luz de uma pequena candeia colocada sobre a
mesa. Ele sorri levemente, já Mestre na imponência e tão amigo no trato.
Os discípulos o escutam atentos.
54.6
– Mestre, por que é que o teu primo, mesmo sabendo onde moras,
não veio?
– Ah! Meu Pedro!… Tu serás uma das minhas pedras, a primeira. Mas
nem todas as pedras são fáceis de se usar. Já viste os mármores do palácio
pretório? Arrancados, com muito trabalho, do seio das montanhas, agora
fazem parte do Pretório. Por outro lado, olha aquelas pedras, que estão
brilhando lá longe à luz do luar, por entre as águas do Cedron. Elas vieram
por si mesmas para o leito do rio e se alguém as quiser, elas logo se deixam
levar. O meu primo é como as primeiras pedras da qual falo… O seio do
monte, a família, o disputa Comigo.
– Mas eu quero ser em tudo como as pedras do Cedron. Por Ti, estou
pronto a deixar tudo: casa, esposa, pesca, irmãos. Tudo, Rabi, por Ti.
– Eu sei, Pedro. Por isto Eu te amo. Mas Judas também virá.
– Quem? Judas de Keriot? Não o levo muito em conta. É um belo
moço, mas… eu prefiro… prefiro a mim mesmo…
Riem-se todos da piada de Pedro.
– Não há nada para rir. Quero dizer que prefiro um galileu franco, rude,
um pescador, mas sem fraude, a… homens da cidade que… não sei… Mas
o Mestre entende o que eu quero dizer.
– Sim, entendo. Mas não julgues. Temos necessidade uns dos outros
nesta terra e os bons estão misturados com os maus, como as flores em um
campo. A cicuta está ao lado da saudável malva.
54.7
– Eu queria perguntar uma coisa….
– Qual, André?
– João me contou o milagre feito em Caná… Nós tínhamos muita
esperança de que Tu fizesses um deles em Cafarnaum… e Tu disseste que
não farias milagre, se antes não tivesses cumprido a Lei. Por que então o
fizeste em Caná? E por que não em tua pátria?
– Toda obediência à Lei é união com Deus e, por isso, um aumento de
nossa capacidade. O milagre é a prova da união com Deus, da presença
benévola e consciente de Deus. Por isso Eu quis cumprir o meu dever de
israelita antes de iniciar a série de prodígios.
– Mas Tu não estavas obrigado pela Lei.
– Por que? Como Filho de Deus, não. Mas, como filho da Lei,
sim. Israel, por enquanto, só me conhece como tal… E, mesmo depois,
quase todo Israel me conhecerá como tal, aliás, como menos ainda. Mas Eu
não quero dar escândalo a Israel e por isso obedeço a Lei.
– Tu és santo.
– A santidade não exclui a obediência. Ao contrário, a aperfeiçoa. Além
de tudo mais, é preciso dar o exemplo. Que diríeis de um pai, de um irmão
mais velho, de um mestre, de um sacerdote, que não desse bom exemplo?
– E então, o caso de Caná?
– Em Caná, era a alegria que à minha mãe devia ser dada. Caná é a
antecipação que se deve à minha mãe. Ela é a antecipadora da Graça. Aqui
Eu presto honra à Cidade santa, fazendo dela publicamente o lugar do início
do meu poder de Messias. Mas lá, em Caná, Eu prestava honra à santa de
Deus, à toda santa. O mundo me tem por meio dela. É justo que para ela
seja feito o meu primeiro prodígio no mundo.
54.8
Batem à porta. É Tomé de novo. Ele entra e se lança aos pés de Jesus.
– Mestre… eu não posso ficar esperando a tua volta. Deixa-me ficar
Contigo. Eu sou cheio de defeitos, mas tenho este amor, único, grande,
verdadeiro, o meu tesouro. Ele é teu, é para Ti. Deixa-me Mestre…
Jesus põe-lhe a mão sobre a cabeça.
– Fica, Dídimo. Segue-me. Felizes aqueles que são sinceros e de
vontade firme. Benditos sois vós. Para Mim sois mais do que parentes,
porque me sois filhos e irmãos, não segundo o sangue, que morre, mas
segundo a vontade de Deus e a vossa vontade espiritual. Agora Eu digo que
não tenho parente mais chegado do que aquele que faz a vontade de meu
Pai; e vós a fazeis, porque quereis o bem.
Assim termina a visão. 54.9São 16:00 horas, e já caem sobre mim as
sombras do malestar que sinto que será violento, lógica conseqüencia da
penosa hora de ontem…
Mas também em 24 de Outubro estava muito mal. Tanto que, terminada
a visão, escrita com uma dor de cabeça própria de meningite, não tive
coragem de acrescentar que vi finalmente Jesus vestido como me aparece
quando é todo para mim: de uma suave veste de lã branca quase da cor
marfim e com o manto igual. A veste que trazia[100] na sua primeira
manifestação em Jerusalém como Messias.
[98] Ele é Parte, a entender-se não como “porção”, mas como “pertença”. Diferente do homem, que pertence a Deus não por
natureza mas por semelhança (nota em 167.9), Jesus pertence a Deus por natureza, ou seja, é Deus como o Pai (Ele dirá em 487.4:
“Eu sou dele, sou sua parte e um Todo com Ele”) . Ainda por natureza Jesus é também Homem, sendo Ele a Palavra encarnada do
Pai. Por isso, não no ser um profeta (como disse acima) está a sua perfeição, mas em ser o Homem-Deus, o qual pela parte humana
foi completado com o superar das tentações (como dirá em 80.10 e como resulta no fim da nota em 174.9). Sobre as duas
naturezas, divina e humana, de Jesus, são fundamentais os discursos dos capítulos 487 e 506.
[99] Filho do homem, é provavelmente o mais recorrente dos títulos atribuídos a Jesus e que Jesus atribui a Si próprio. O seu
significado genérico é ilustrado em 343.4; mas o seu significado messiânico encontra-se aqui e, por exemplo, em 126.3 e em
603.1.
[100] veste que trazia, em 53.3.
55. Um encargo confiado a Tomé.
27 de outubro de 1944.
55.1
Esta manhã, voltando de um pesadíssimo sofrimento de muitas horas,
enquanto rezo esperando que chegue o dia, retomo a visão.
Digo retomo, porque estamos ainda no mesmo ambiente: a cozinha‐
larga e baixa, escura em suas paredes enfumaçadas, mal iluminada pela
chama de uma candeia colocada sobre uma mesa rústica, longa e estreita, à
qual estão sentadas oito pessoas — Jesus, os seis discípulos, mais o dono da
casa — quatro de cada lado.
Jesus ainda virado sobre o seu banco — por aqui não há outros
assentos, senão bancos sem espaldar com três pés, como é costume nas
casas de campo — está falando ainda com Tomé. A mão de Jesus desceu da
cabeça de Tomé para o ombro. Jesus diz:
– Levanta-te, amigo. Já jantaste?
– Não, Mestre. Andei poucos minutos com o outro que estava comigo e
depois o deixei e voltei atrás dizendo-lhe que eu queria falar com o leproso
curado…Mas eu falei assim porque pensava que ele certamente teria
recebido com desdém a idéia de aproximar-se de um impuro. E adivinhei.
Mas eu estava procurando era a Ti, não o leproso… Eu queria dizer-Te:
“Toma-me contigo!”… Andei vagueando para baixo e para cima, pelo
olival, até que um jovem me perguntou o que é que eu estava fazendo. Ele
deve ter pensado que eu era alguém mal intencionado… Ele estava junto a
uma pilastra, no lugar em que começa o sítio.
O dono da casa sorri.
– É o meu filho –explica ele, e depois acrescenta–: Ele fica de guarda
no lagar. Temos nas cavernas, sob o lagar, ainda quase toda a colheita deste
ano. Foi uma colheita muito boa. Deu-nos muito óleo. Nas épocas em que
se reúnem grandes multidões, sempre aparecem alguns malandros que
saqueiam os lugares sem guarda. Há oito anos, pela Parasceve, roubaram-
nos tudo. Desde então, nos revezamos cada noite, para fazermos uma boa
guarda. A mãe dele foi levar-lhe a janta.
– Pois bem, disse-me ele: “Que queres?”, e o disse em um tom que,
para salvar minhas costas das pauladas, expliquei rápido: “Estou
procurando o meu Mestre, que mora aqui.” E ele então me respondeu: “Se é
verdade o que estás dizendo, vai até à minha casa.” E me acompanhou até
aqui. Foi ele que bateu à porta, e só foi embora depois de ter ouvido as
minhas primeiras palavras.
– Moras longe daqui?
– Estou em um alojamento do outro lado da cidade, perto da porta
Oriental.
– Estás sozinho?
– Eu estava com os parentes. Mas eles foram à casa de outros parentes,
no caminho de Belém. Eu fiquei para Te procurar, noite e dia, até Te
encontrar.
Jesus sorri, e diz:
– Então, ninguém te espera?
– Não, Mestre.
– A estrada é longa, a noite é escura, as patrulhas romanas estão
rondando pela cidade. Eu te digo: se queres, fica conosco.
– Oh! Mestre!
Tomé está feliz.
– Arranjai-lhe, vós, um lugar. E dai alguma coisa ao irmão.
Do seu, Jesus dá o pedaço de queijo que estava à sua frente. E explica a
Tomé:
– Nós somos pobres, e a janta já está quase no fim. Mas quem dá, tem
bom coração.
E a João, sentado ao seu lado, ele diz:
– Dá o lugar ao amigo.
João se levanta logo e vai sentar-se junto ao canto da mesa, perto do
dono da casa.
– Assenta-te, Tomé. Come.
55.2
E depois diz a todos:
– Assim fareis sempre, amigos, pela lei da caridade. O peregrino já está
protegido pela Lei de Deus. Mas agora, em meu nome, mais ainda o
devereis amar. Quando alguém vos pedir um pão, um gole de água, um
abrigo em nome de Deus, deveis dá-lo neste mesmo nome. E tereis de Deus
a recompensa. Isto deveis fazer com todos. Também com os inimigos. E
esta é a Lei nova. Até agora vos tinha sido dito: “Amai aqueles que vos
amam, e odiai aos inimigos.” Eu vos digo: “Amai também aqueles que vos
odeiam.” Oh! Se soubésseis como sereis amados por Deus, se amardes
como Eu vos digo! Portanto, quando alguém diz: “Eu quero ser vosso
companheiro a serviço do Senhor Deus verdadeiro, e seguir o seu
Cordeiro”, então ele deve ser para vós mais querido do que um irmão de
sangue, porque estareis unidos por um vínculo eterno: o vínculo do Cristo.
– Mas, e se depois chega um que não é sincero? E disser: “Eu quero
fazer isto ou aquilo”, é fácil. Mas nem sempre a palavra corresponde à
verdade –diz Pedro, um tanto irritado.
Não sei o que há, mas ele não está com o seu costumeiro humor jovial.
– Pedro, escuta. Tu falas com bom senso e com justiça. Mas, vê bem: é
melhor pecar pela bondade e pela confiança do que pela desconfiança e
pelo rigor. Se fizeres um benefício a um indigno, que mal te acontecerá?
Nenhum. Mas, ao contrário, o prêmio de Deus estará sempre preparado para
ti, enquanto que para ele haverá um desmerecimento, por ter traído a tua
confiança.
– Não acontece nenhum mal? As vezes quem é indigno não se contenta
só com a ingratidão, mas vai além, e chega também a prejudicar na estima,
nos bens e na própria vida.
– É verdade. Mas isso diminuiria o teu merecimento? Não. Ainda que
todos acreditassem nas calúnias, ainda que ficasses mais pobre do que Jó,
ainda que um homem cruel te tirasse a vida, que é que seria mudado aos
olhos de Deus? Nada. Aliás, haveria sim uma mudança. Mas para o teu
bem. Deus uniria aos méritos de tua bondade os méritos do teu martírio
intelectual, financeiro ou físico.
– Bem. Está bem! Então, será assim.
Pedro não fala mais. Ele está amuado e com a cabeça apoiada na mão.
55.3
Jesus se volta para Tomé:
– Amigo, Eu te falei antes, lá no olival: “Quando Eu voltar por aqui, se
ainda quiseres, serás meu.” Agora Eu te digo: “Estás disposto a fazer um
favor a Jesus?”
– Sem dúvida.
– Mas, e se esse favor exigir de ti um sacrifício?
– Servir a Ti não é nenhum sacrifício. Que queres?
– Eu queria te dizer… mas poderias ter teus negócios, teus afetos…
– Nada, nada. Eu tenho a Ti! Fala.
– Escuta. Amanhã, com as primeiras horas do dia, o leproso sairá dos
sepulcros para encontrar quem vai avisar ao sacerdote. Mas, antes disso, tu
irás aos sepulcros. É uma caridade. E dirás em alta voz: “Ó tu, que ontem
foste limpo, vem para fora! Fui mandado a ti por Jesus de Nazaré, o
Messias de Israel, Aquele que te curou.” Faz que o mundo dos “mortos e
vivos” conheça o meu Nome e vibre de esperança, e quem à esperança unir
a fé, venha a Mim, para que Eu o cure. É a primeira forma da limpeza que
Eu trago, da ressurreição, da qual Eu sou dono. Um dia Eu darei uma
limpeza bem mais profunda… Um dia os sepulcros selados deixarão
escapar os mortos verdadeiros, que aparecerão para se rirem com as órbitas
de seus olhos vazios, com as mandíbulas descobertas pelo júbilo longínquo,
e entretanto sentido pelos esqueletos, dos espíritos liberados do Limbo de
espera. Eles aparecerão para se rirem diante dessa sua libertação, e para
vibrarem, sabendo a quem é que a devem… Vai tu! Ele virá ao teu
encontro. Tu farás o que vai te pedir que faças. O ajudarás em tudo, como
se fosse teu irmão. E lhe dirás também: “Quando estiveres completamente
purificado, iremos juntos pela estrada do rio, além de Doco e de Efraim. Lá
o Mestre Jesus te espera e me espera, para dizer-nos em que é que o
devemos servir.”
– Assim farei. E o outro?
– Quem? O Iscariotes?
– Sim, Mestre.
– Para ele persiste o meu conselho. Deixa-o decidir por si e por longo
tempo. Evita até de encontrá-lo.
– Estarei junto ao leproso. No vale dos sepulcros só os imundos é que
vagueiam ou os que têm contatos de piedade para com eles.
55.4
Pedro resmunga alguma coisa. Jesus ouve.
– Pedro, que tens? Ou estás calado, ou resmungas. Pareces descontente.
Por que?
– Eu estou descontente. Nós somos os primeiros, e Tu não fazes um
milagre para nós. Nós somos os primeiros, e Tu te sentas ao lado de um
estrangeiro. Nós somos os primeiros e Tu dás encargos a ele, e não a nós.
Nós somos os primeiros e… sim, é isso mesmo, e parece que somos os
últimos. Por que vais esperá-los no caminho do rio? Certamente para dar a
eles alguma missão. Por que a eles e não a nós?
Jesus olha para ele. Não está irado. Ao contrário, sorri, como se sorri a
um rapazinho. Levanta-se, vai lentamente até Pedro, põe-lhe a mão sobre o
ombro, e diz, sorrindo:
– Pedro! Pedro! És um grande velho menino!
E a André, sentado perto do irmão, diz:
– Vai para o meu lugar –assenta-se ao lado de Pedro, cingindo-o com o
braço pelas costas e lhe fala, segurando-o assim contra o seu ombro:
– Pedro, está te parecendo que Eu cometo injustiça, mas não é injustiça
o que faço. É, ao contrário, uma prova de que sei o que valeis. Olha bem.
Quem é que precisa de provas? Aquele que ainda não está firme. Pois bem,
Eu sabia que vós estáveis tão firmes Comigo, que não senti necessidade de
dar-vos provas do meu poder. Aqui em Jerusalém são necessárias as provas,
aqui onde o vício, a irreligião, as políticas e muitas coisas do mundo
ofuscam os espíritos a ponto de eles não poderem ver a Luz que passa. Mas
lá, sobre o nosso belo lago, tão puro sob um límpido céu, lá, entre pessoas
honestas e desejosas do bem, não são necessárias as provas. Ali tereis os
milagres. Derramarei sobre vós chuvas de graças. Mas, olha como vos
tenho estimado: Eu vos tomei Comigo sem exigir provas e sem achar
necessidade de vo-las dar, porque Eu sei quem sois. Queridos, tão queridos
e tão fiéis a Mim.
Pedro se acalma:
– Perdoa-me, Jesus.
– Sim, Eu te perdôo, porque o teu amuo é amor. Mas, não tenhas mais
inveja, Simão de Jonas. Sabes o que é o coração do teu Jesus? Já viste o
mar, o verdadeiro mar? Sim? Pois bem, o meu coração é bem mais vasto do
que o grande mar. Nele há lugar para todos. Para toda a humanidade. E o
pequenino encontra lugar, como o maior dos grandes. O pecador encontra
amor, como o inocente. A eles Eu dou uma missão. Com toda a certeza.
Queres probir-me de dá-la? Eu é que vos escolhi. Não fostes vós. Portanto,
Eu sou livre para julgar como empregar-vos. E, se a estes Eu os deixo aqui
com uma missão — que pode também ser uma prova, como pode ser uma
misericórdia o lapso de tempo concedido ao Iscariotes — podes tu reprovar-
me? Sabes se para ti não estarei reservando uma maior? E não é a mais bela
aquela de ouvires Eu te dizer: “Tu virás Comigo”?
– É verdade, é verdade! Eu sou um animal! Perdão…
– Sim. Tens todo o perdão. Oh! Pedro!… Mas Eu vos peço a todos: não
fiqueis mais discutindo sobre merecimentos e postos. Eu teria podido nascer
rei. Nasci pobre, em uma estrebaria. Teria podido ser rico. Vivi do trabalho
e agora da caridade. Contudo, crede-o, amigos, não há ninguém maior aos
olhos de Deus do que Eu. Do que Eu, que estou aqui como servo do
homem.
– Servo Tu? Nunca.
– Por que, Pedro?
– Porque eu é que serei o teu servo.
– Ainda que tu me servisses, como uma mãe serve ao seu filhinho, Eu
vim para servir ao homem. Para ele Eu serei o Salvador. Que serviço existe
igual a este?
– Oh! Mestre! Tu nos explicas tudo. E o que nos parecia escuro, logo se
torna claro.
– Estás contente agora, Pedro? 55.5Então, deixa-me acabar de falar com
Tomé. Estás certo de que reconhecerás o leproso? Lá só ele é que está
curado; mas poderia ele já ter partido com a luz das estrelas, para encontrar
algum viajante solícito. E pode ser que algum outro, ansioso para entrar na
cidade e ver seus parentes, se apresente no lugar dele. Escuta bem como ele
é. Eu estava perto dele e, no crepúsculo, ainda pude vê-lo bem. Ele é alto e
magro. É de cor escura, como um mestiço, tem os olhos profundos e muito
pretos, sob sobrancelhas brancas, cabelos brancos como o linho e bastante
encaracolados, nariz longo, achatado na ponta como o dos líbios, lábios
grossos, especialmente o inferior, e salientes. É tão oliváceo que os lábios
são um pouco tendentes ao violáceo. Na fronte traz uma cicatriz antiga que
lhe ficou e será a única mancha, agora que ficará limpo das crostas e
imundície.
– Então é um velho, se já está com a cabeça toda branca.
– Não Filipe. Parece, mas não é. Foi a lepra que o fez ficar encanecido.
– Que há com ele? Terá um sangue mestiço?
– Talvez, Pedro. Tem uma semelhança com os povos da África.
– Então será ele israelita?
– Disso saberemos depois. E se ele não for?
– Ora, se não fosse, já teria ido embora. Já é muito ter merecido ser
curado.
– Não, Pedro. Ainda que seja idólatra, Eu não o rejeitarei. Jesus veio
para todos. E, na verdade, te digo que os povos das trevas ultrapassarão os
filhos do povo da Luz…
Jesus suspira. Depois se levanta. Dá graças ao Pai com um hino e
abençoa.
A visão cessa assim.
55.6
Incidentalmente faço notar que o meu monitor interior me disse,
desde ontem à tarde, quando eu estava vendo o leproso: “É Simão, o
apóstolo. Verás a vinda dele e a de Tadeu ao Mestre.” Esta manhã, depois
da Comunhão (é sexta-feira), eu abro o missal e vejo que justamente hoje é
a vigília da festa dos Santos Simão e Judas, e o Evangelho de amanhã fala
sobre a caridade quase repetindo as palavras ouvidas por mim, antes, na
visão. Mas Judas Tadeu, por enquanto, não o vi.
56. Simão Zelote e Judas Tadeu unidos na sorte.
28 de outubro de 1944.
56.1
Sois mesmo belas, ó margens do Jordão, assim como éreis no tempo
de Jesus! Eu vos vejo e me deleito na vossa majestosa paz verde-azulada,
soante de águas e frondes com um tom doce como melodia.
Estou andando por uma estrada muito longa e também muito bem
conservada. Deve ser uma estrada mestra, ou melhor, militar, traçada pelos
romanos para convergir as diversas regiões com a capital. Perto dela desliza
o Jordão, mas ela não passa exatamente ao longo dele. Está separada do rio
por uma zona silvestre, que parece cumprir a finalidade de reforçar as beiras
oferecendo alguma resistência às águas nos tempos de cheia. Do outro lado
da estrada os bosques continuam, de modo que a rua parece um túnel
natural, sobre o qual se entrelaçam os ramos frondosos. É um bom lugar de
descanso para os viajantes nestas regiões de sol ardente.
O rio, e naturalmente também a rua, têm, no ponto em que me
encontro, uma curva lenta, de modo que eu vejo a continuação da margem
frondosa, como se fosse uma muralha verde destinada a represar um açude
de águas tranqüilas. Parece quase um lago de um parque senhoril. Mas a
água não é a água parada de um lago. Ela desliza, se bem que lentamente. E
a prova disso é o sussurro que ela faz contra os primeiros caniços, os mais
audazes que nasceram justamente ali em baixo no leito do rio, e a
ondulação que têm as longas fitas formadas por suas folhas, suspensas
sobre a superfície da água e movidas por ela. Há também um grupo de
salgueiros com flexíveis ramos pendentes, que confiaram as pontas de suas
cabeleiras verdes ao rio que parece penteá-las com a graça de uma carícia,
estendendo-as suavemente ao fio da água corrente.
Há silêncio e paz na hora matutina. Só os cantos, os chamados dos
pássaros, o sussurro das águas e frondes e um grande brilho do orvalho
sobre a erva verde, alta, que está entre as árvores; elas ainda não estão
endurecidas e amareladas pelo sol do verão, mas tenras e novas para
nascerem, depois da primaveril efusão de águas que vêm nutrir a terra, até à
profundidade, de umidade e de sucos vitais.
56.2
Três viajantes estão parados nesta volta da estrada bem no meio da
curva. Estão olhando para baixo e para cima, para o sul, onde está
Jerusalém e para o norte, onde fica a Samaria. Perscrutam entre a colunata
das árvores, para ver se chega alguém que estão esperando. São eles Tomé,
Judas Tadeu e o leproso curado. Estão conversando.
– Não estás vendo nada?
– Eu não.
– Nem eu.
– No entanto este aqui é o lugar.
– Tens certeza disso?
– Toda certeza, Simão. Um dos seis me disse enquanto o Mestre se
afastava entre as aclamações da multidão, depois do milagre de um aleijado
que pedia esmola, que foi curado junto à porta dos Peixes: “Nós agora
vamos para fora de Jerusalém. Espera-nos a cinco milhas entre Jericó e
Doco, na curva do rio, ao longo da rua arborizada.” É esta. Disse também:
“Lá nós estaremos dentro de três dias, ao romper do dia.” Já é o terceiro dia,
e a quarta vigília nos apanhou aqui.
– Ele virá? Talvez teria sido melhor segui-lo, a partir de Jerusalém.
– Não podias ainda andar por entre a multidão, Simão.
– Se meu primo disse que vem até aqui, até aqui virá. Ele cumpre
sempre o que promete. É só esperar.
56.3
– Tu sempre estiveste com Ele?
– Sempre. Desde quando Ele voltou a Nazaré foi para mim um bom
companheiro. Sempre estivemos juntos. Somos da mesma idade, sendo eu
um pouco mais velho. Além disso, dos meus irmãos eu era o preferido do
pai Dele, irmão de meu pai. Também a mãe me queria muito bem. Eu cresci
mais com ela do que com minha mãe.
– Ela te queria… Então agora não te quer mais o mesmo bem?
– Oh! Sim. Mas nós temos estado um pouco divididos desde que Ele se
fez profeta. Meus parentes não gostam disso.
– Quais parentes?
– Meu pai e os dois filhos mais velhos. O outro está titubeante… Meu
pai está muito velho e não tive coragem de irritá-lo. Mas agora… agora, não
mais. Agora eu vou onde o coração e a mente me levam. Vou a Jesus. Creio
que não ofendo a Lei fazendo assim. Mas já… se não fosse justo o que eu
quero fazer Jesus me diria. Eu farei o que Ele disser. É lícito a um pai criar
obstáculos a um filho no caminho do bem? Se eu sinto que ali está a
salvação, por que impedir-me de tê-la? Por que os pais, às vezes, são nossos
inimigos?
Simão suspira, como quem se lembra de coisas tristes e inclina a
cabeça, mas não fala.
É Tomé quem responde:
– Eu já superei esse obstáculo. Meu pai me ouviu e me compreendeu.
Ele me abençoou dizendo: “Vai. Que esta Páscoa seja para ti a libertação da
escravidão de uma expectativa. Feliz de ti que podes crer. Eu espero. Mas,
se for Ele mesmo, e ao segui-lo perceberes que é, vem dizer ao teu velho
pai: ‘Vem. Israel já tem o Esperado’.”
– És mais feliz do que eu. E dizer que nós temos vivido ao seu lado!…
E não cremos, logo nós da família!… E dizemos, ou melhor, eles dizem:
“Ele perdeu o juízo!”
56.4
– Olhai, lá vem um grupo de pessoas –grita Simão–. É Ele, é Ele!
Reconheço a sua cabeça loira! Oh! Vinde. Vamos correr!
E põem-se a caminhar em passos rápidos para o sul. Agora que o alto
do arco foi alcançado, as árvores escondem o resto da rua, de modo que os
dois grupos se encontram quase de frente quando menos esperam. Jesus
parece estar subindo do rio, porque está entre as árvores da margem.
– Mestre!
– Jesus!
– Senhor!
Os três gritos do discípulo, do primo e do curado ressoam cheios de
adoração e de festiva acolhida.
– Paz a vós!
Eis a bonita, inconfundível voz, cheia, sonora, tranqüila, expressiva,
clara, viril, doce e incisiva:
56.5
– Tu também estás aqui, meu primo Judas?
Eles se abraçam. Judas chora.
– Por que este pranto?
– Oh! Jesus! Eu quero estar Contigo!
– Eu te esperei sempre. Por que não vieste?
Judas inclina a cabeça e fica calado.
– Eles não quiseram! E agora?
– Jesus, eu… eu não posso obedecer a eles. Eu quero obedecer somente
a Ti.
– Mas Eu não te dei uma ordem.
– Não. Tu, não. Mas é a tua missão que nos dá ordem! É Aquele que Te
mandou que fala aqui, no meio do meu coração, e me diz: “Vai a Ele!” É
aquela que te gerou e que para mim tem sido uma mestra suave que, com
seu olhar de pomba, me diz, sem fazer uso de palavras: “Sê de Jesus!”
Poderei eu não fazer conta daquela voz excelsa que me perfura o coração?
Desta oração de santa que certamente me suplica para o meu bem? Só
porque eu sou teu primo por parte de José, não deverei Te conhecer por
aquilo que és, enquanto o Batista Te conheceu, aqui, nas margens deste rio,
ele que nunca Te havia visto, e Te saudou como o “Cordeiro de Deus”? E
eu, eu que cresci junto Contigo, eu que procurei tornar-me bom Te
imitando, eu que me tornei filho da Lei pelo merecimento de tua mãe, e que
dela aprendi, não os seiscentos e treze preceitos dos rabinos, além da
Escritura e das orações, porém a alma disso tudo, eu não deveria ser capaz
de nada?
– E o teu pai?
– Meu pai? Não lhe falta pão nem assistência, e depois… Tu me dás o
exemplo. Tu tiveste o pensamento no bem do povo, mais do que no
pequeno bem de Maria. E ela está sozinha. Diz-me, Tu, meu Mestre, não é
lícito talvez, sem faltar com o respeito, dizer a um pai: “Pai, eu te amo. Mas
acima de ti está Deus, e a Ele eu sigo”?
– Judas, meu parente e amigo, Eu te digo: tu estás bem adiantado no
caminho da Luz. Vem. É lícito falar ao pai assim quando é Deus que chama.
Não há nada acima de Deus. Até as leis do sangue cessam, ou seja,
sublimam-se, porque com as nossas lágrimas damos aos pais, às mães, uma
ajuda muito maior e por coisas mais eternas do que a jornada do mundo.
Conosco os conduzimos para o Céu e pelo mesmo caminho do sacrifício
dos afetos, os levamos para Deus. Portanto, fica, Judas. Eu te esperei e
estou feliz por reaver-te, amigo da minha vida nazarena.
Judas está comovido.
56.6
Jesus se volta para Tomé:
– Obedeceste fielmente. É a primeira virtude do discípulo.
– Eu vim para ser-te fiel.
– E o serás. Eu te digo. Vem, tu que estás envergonhado na sombra.
Não temas.
– Meu Senhor!
O ex-leproso está aos pés de Jesus.
– Levanta-te. Qual o teu nome?
– Simão.
– Qual a tua família?
– Senhor… era poderosa… eu também era poderoso… mas o ódio de
seitas e… erros da juventude estragaram o seu poder. Meu pai… Oh! Devo
falar contra ele que me custou lágrimas, e não para o céu. Tu o vês, já viste
que presente ele me deu!
– Ele era leproso?
– Não. Não era leproso, como eu também não. Mas era doente de uma
enfermidade de outro nome, que nós de Israel costumamos pôr junto com
outros diversos tipos de lepra. Ele… — naquele tempo a sua casta ainda
triunfava — e ele viveu e morreu prestigiado em sua casa. Eu… se Tu não
me tivesses salvado, iria morrer nos sepulcros.
– Tu és sozinho?
– Sozinho. Eu tenho um servo fiel que cuida de tudo o que me resta.
Mandei já um aviso a ele.
– E tua mãe?
– Ela… morreu.
O homem parece embaraçado. Jesus o observa atentamente:
– Simão, tu me disseste: “Que devo fazer por Ti?” E agora Eu te
respondo: “Segue-me”.
– Imediatamente, Senhor!… Mas… mas eu… deixa que eu Te diga
uma coisa. Eu sou, eu era chamado “Zelote”[101] pela casta, e “cananeu” por
minha mãe. Tu vês. Eu sou escuro. Em mim eu tenho sangue de escrava.
Meu pai não tinha filhos de sua mulher e me teve de uma escrava. A mulher
dele, boa mulher, me criou como filho e cuidou de mim em minhas muitas
doenças até morrer…
– Aos olhos de Deus, não há escravos ou libertos. Aos seus olhos só há
uma escravidão: a do pecado. E Eu vim para removê-la. Eu vos chamo a
todos porque o Reino é de todos. Tens cultura?
– Tenho. Eu tinha também o meu lugar entre os grandes. Isso, enquanto
o meu mal ficou escondido sob as roupas. Mas, quando subiu ao rosto…
meus inimigos aproveitaram-se de meu mal para me confinarem entre os
“mortos.” No entanto, como disse um médico de Cesaréia, romano, a quem
eu fui consultar, a minha não era verdadeira lepra, mas uma impigem
hereditária, pelo que bastava que eu não procriasse para não propagá-la.
Posso eu não maldizer meu pai?
– Deves não maldizê-lo. Ele te fez todos os males…
– Oh, sim. Dilapidador dos bens, vicioso, cruel, sem coração nem afeto.
Ele me negou a saúde, as carícias, a paz, me carimbou com um nome de
desprezo e com uma doença que é uma marca de opróbrio… De tudo ele se
fez dono. Também do futuro de seu filho. Tudo ele me tirou: até a alegria de
ser pai.
– Por isso é que Eu te digo: “Segue-me.” Ao meu lado, e seguindo-me,
encontrarás Pai e filhos. Levanta o olhar, Simão. Lá o verdadeiro Pai te está
sorrindo. Olha pelos espaços da terra, pelos continentes, pelas regiões. Há
neles filhos e filhos, filhos de alma para os sem filhos. Estão à tua espera e
a espera de muitos outros como tu. Sob o meu sinal não há mais abandonos.
No meu sinal não há mais solidões nem diferenças. É um sinal de amor. E
amor dá. 56.7Vem, Simão, que não tiveste filhos. Vem, Judas, que deixas teu
pai por amor de Mim. Eu vos uno na sorte.
Ele está com os dois junto a si. Tem as mãos sobre os seus ombros,
como quem toma posse, como para impor um jugo comum. Depois, diz:
– Eu vos uno. Mas agora vos separo. Tu, Simão, ficarás aqui, com
Tomé. E prepararás com ele os caminhos da minha volta. Daqui a não muito
tempo Eu voltarei e quero que povos e povos me esperem. Dizei aos
doentes, e tu o podes dizer, que vai chegar Aquele que cura. Dizei aos
povos que esperam, que o Messias está entre o seu povo. Dizei aos
pecadores que já há quem perdoa a fim de dar a força para subir…
– Mas, seremos capazes disso?
– Sim. Basta que faleis assim: “Ele já chegou. Ele vos está chamando.
Ele vos espera. Ele vem trazer-vos a graça. Ficai aqui prontos para vê-lo”; e
às palavras, acrescentai a narração do que já sabeis. E tu, Judas, meu primo,
vem Comigo e com estes. Mas tu ficarás em Nazaré.
– Por que, Jesus?
– Porque deves preparar-me o caminho em minha pátria. Achas que é
uma missão pequena? Na verdade, não há nenhuma outra mais grave…
Jesus suspira.
– E eu conseguirei?
– Sim e não. Mas isso será suficiente para justificar-nos.
– Justificar-nos de quê? E junto à quem?
– Junto a Deus. Junto à pátria. Junto à família. Não poderão censurar-
nos, porque temos oferecido o bem. E se a pátria e a família desprezarem o
que fazemos, não teremos culpa de sua perdição.
– E nós?
– Vós, Pedro? Vós voltareis às redes.
– Por que?
– Porque Eu vos instruirei lentamente e virei buscar-vos quando vos
achar preparados.
– Mas Te veremos, então?
– Com certeza. Eu virei a vós freqüentemente, ou vos farei chamar,
quando Eu estiver em Cafarnaum. Agora, saudai-vos, amigos, e vamos. Eu
vos abençôo, a vós que ficais. Minha paz esteja convosco.
E termina a visão.
[101] “Zelote” pela casta, a dos zelotes, assim chamados pelo seu zelo em observar a lei e em opor-se a toda a dominação
estrangeira sobre o povo eleito. Mas o significado da expressão escapa a Maria Valtorta, que em rodapé à página autografa anota:
quem são os zelotes? Igualmente ignoradas pela escritora as palavras “sciemanflorasc” (em 503.9/10) e “gulal” (em 542.7).
57. Em Nazaré com Judas Tadeu
e com outros seis discípulos.
31 de outubro de 1944.
57.1
Jesus chega com o primo e os seis discípulos nas proximidades de
Nazaré. Do alto do outeiro onde se encontram vê-se a pequena cidade,
branca entre o verde, subindo e descendo pelas encostas sobre as quais ela
está construída, um doce ondular de encostas, num ponto apenas percebido
e noutro, mais acentuado.
– Já chegamos, amigos. Eis ali a minha casa. Minha mãe lá está, porque
a fumaça se está levantando da casa. Talvez ela esteja fazendo o pão. Eu
não vos digo: “Ficai”, porque penso que deveis estar ansiosos para chegar
em vossas casas. Mas, se quiserdes partir o pão Comigo e conhecer aquela
que João já conhece, então, Eu vos digo: “Vinde.”
Os seis, que já estavam tristes pela iminente separação, voltam a ficar
alegres, e aceitam de coração.
– Então vamos.
Descem rapidamente a pequena colina e pegam a rua mestra. A tarde
vem chegando. Ainda faz calor, mas as sombras já descem sobre o campo,
onde os cereais já estão amadurecendo.
Entram na cidade. Mulheres que vão e vêm da fonte, homens às soleiras
das pequenas oficinas, ou nas hortas, saúdam a Jesus e a Judas.
Os meninos se aglomeram ao redor de Jesus.
– Já voltaste?
– Agora vais ficar aqui?
– Quebrou-se de novo a roda do meu carrinho.
– Sabes, Jesus? Nasceu minha irmã e deram a ela o nome de Maria.
– O mestre me disse que eu sei tudo e que sou um verdadeiro filho da
Lei.
– Sara não está porque está com a mãe muito doente. Chora porque tem
medo.
– Meu irmão Isaque se casou. Houve uma grande festa.
Jesus escuta, acaricia, elogia, promete ajudar.
57.2
E assim chegaram à casa. E sobre a soleira já está Maria, que foi
avisada por um rapazinho atencioso.
– Meu Filho!
– Mãe!
Os dois se abraçam. Maria, muito mais baixa que Jesus, está com a
cabeça apoiada no alto do peito do Filho, fechada entre o círculo dos seus
braços. Ele a beija sobre os cabelos loiros. Entram em casa.
Os discípulos, incluindo Judas, ficam lá fora, para deixarem livres os
dois em suas primeiras expansões.
– Jesus, meu Filho!
A voz de Maria está trêmula, como a de quem está com as lágrimas na
garganta.
– Por que estás assim, mãe?
– Ó Filho! Disseram-me… No Templo estavam os galileus, os
nazarenos, naquele dia… Eles voltaram… E contaram… Ó Filho!…
– Mas tu o estás vendo, mãe! Eu estou bem. Nenhum mal veio sobre
Mim. Só veio a glória a Deus em sua Casa.
– Sim. Eu sei, Filho do meu coração. Sei que foi como o toque da
trombeta, despertando os que dormem. E, pela glória de Deus, eu me sinto
feliz… feliz que este meu povo desperta para Deus. Eu não te censuro… eu
não te ponho obstáculo… eu te compreendo… e… e fico feliz… mas eu te
gerei, eu, meu Filho!…
Maria está ainda envolvida pelo abraço de Jesus e falou, com as
mãozinhas abertas e apoiadas sobre o peito do Filho, a cabeça levantada
para Ele, os olhos mais brilhantes pelo pranto que está prestes a descer;
agora se cala, apoiando novamente a cabeça sobre o peito Dele. Parece uma
rolinha cinzenta, vestida como está com uma veste acinzentada, sob a
proteção de duas fortes asas de candor, pois Jesus ainda está com sua veste
e o manto branco.
– Mãe! Pobre mãe! Querida mãe!…
Jesus a beija outra vez. 57.3Depois, diz:
– E então, não estás vendo? Eu estou aqui e não estou sozinho. Tenho
Comigo os meus primeiros discípulos, e ainda outros que ficaram na Judéia.
Também o primo Judas está Comigo e agora me segue…
– Judas?
– Sim, Judas. Eu sei porque é que estás admirada. Certamente, entre os
que falaram do que aconteceu, estavam Alfeu com seus filhos… e não erro
se disser que eles me criticaram. Mas, não tenhas medo. Hoje é assim,
amanhã não será mais assim. O homem tem que ser cultivado como a terra
e onde hoje há espinhos, amanhã haverá rosas. Judas, que tu amas, já está
Comigo.
– Onde ele está agora?
– Ali fora, com os outros. Tens pão para todos?
– Sim, Filho. Maria de Alfeu está junto ao forno desenfornando os
pães. Muito boa é Maria para comigo; especialmente numa hora destas.
– Deus lhe dará glória!
Vai até à porta e chama:
– Judas! Tua mãe está aqui! Amigos, vinde!
Eles entram e saúdam. Judas beija Maria. Só depois corre em direção à
sua mãe.
Jesus diz os nomes dos outros cinco: Pedro, André, Tiago, Natanael e
Filipe; porque João, já conhecido de Maria, saudou-a logo depois de Judas,
inclinando-se e recebendo dela a bênção.
57.4
Maria os saúda e os convida a se sentarem. Ela é a dona da casa e,
mesmo adorando com o olhar o seu Jesus, ocupa-se com os hóspedes;
parece que sua alma continua a falar, com os olhos, ao seu Filho. Ela queria
ir buscar água para matarem a sede. Mas Pedro dispara:
– Não, mulher. Não posso permitir isso. Assenta-te perto do teu Filho, ó
mãe santa. Eu irei; nós iremos refrescar-nos lá na horta.
Chega Maria de Alfeu toda corada e enfarinhada e saúda Jesus, que a
abençoa; depois leva os seis até à horta, ao tanque, e volta feliz.
– Oh! Maria! –diz à Virgem–. Judas me falou. Como estou contente!
Por Judas e por ti, minha cunhada. Eu sei que os outros vão ralhar comigo.
Mas não me importa. Serei feliz no dia em que souber que todos eles são de
Jesus. Nós, mães, sabemos… percebemos o que é bom para os filhos. E eu
percebo que o bem de meus filhos és Tu, Jesus.
Jesus lhe faz uma carícia sobre a cabeça, sorrindo.
Voltam os discípulos. Maria de Alfeu lhes serve um pão cheiroso,
azeitonas e queijo. Leva também uma pequena ânfora de vinho tinto que
Jesus serve aos seus amigos. É sempre Jesus quem oferece e depois
distribui.
57.5
Um pouco embaraçados, a princípio, os discípulos depois se tornam
mais corajosos e falam de suas casas, da viagem a Jerusalém e dos milagres
acontecidos. Agora eles estão cheios de zelo, de afeto. Pedro procura fazer
de Maria uma sua aliada, para conseguir que sejam logo tomados por Jesus
sem ter que esperar até que chequem em Betsaida.
– Fazei tudo que Ele diz –exorta ela, com um suave sorriso–. Esta
espera vos será mais útil do que uma aliança imediata. O meu Jesus faz bem
tudo que faz.
A esperança de Pedro morre. Mas ele se resigna e se sai bem. Só faz
esta pergunta:
– Essa espera durará muito?
Jesus olha para ele com um sorriso, mas não diz nada.
Maria interpreta aquele sorriso como um bom sinal, e diz:
– Simão de Jonas, Ele está sorrindo… e por isso, eu te digo: rápido,
como o vôo de uma andorinha sobre o lago será o tempo da tua obediente
espera.
– Obrigado, mulher.
57.6
– Não falas nada, Judas? E tu, João?
– Estou olhando para ti, Maria.
– E eu também.
– Eu também olho para vós e… sabeis de uma coisa? Está vindo à
minha lembrança uma hora que já vai longe. Também eu, naquele tempo,
tinha sempre três pares de olhos fixados em meu rosto com amor. Lembras-
te Maria, dos meus três discípulos?
– Oh! Se me lembro! É verdade! Também agora, há três quase da
mesma idade que olham para ti com todo amor que podem ter. E este aqui,
o João, eu penso, me parece o Jesus daquele tempo: tão loiro e rosado, o
mais novo de todos.
Os outros querem saber, e as recordações e anedotas fluem em meio à
conversação, enquanto o tempo passa. Chega a tarde.
– Meus amigos, Eu não tenho cômodos. Mas ali é a oficina onde eu
trabalhava. Se quiserdes abrigar-vos nela… Mas lá só há os bancos do
ofício.
– Leito confortável é este para pescadores acostumados a dormir sobre
estreitas tábuas. Obrigado, Mestre. Dormir debaixo do teu teto é honra e
santificação.
Retiram-se com muitas saudações. Judas também se retira com sua mãe
e vão para sua casa.
Neste quarto ficam Jesus e Maria, sentados sobre o arquibanco, à luz de
uma pequena candeia, um braço ao redor das costas do outro. Jesus narra e
Maria escuta contente, trêmula e feliz…
Assim cessa a visão.
58. Cura de um cego em Cafarnaum
após uma lição de pesca aplicada às almas.
7 de outubro de 1944.
58.1
Jesus diz, e logo a tranqüilidade penetra em mim; e a alegria dessa
tranqüilidade luminosa torna-me risonho o coração:
– Vê como lhe agradam os episódios dos cegos. Demos-lhe um outro
deles.
E eu vejo.
58.2
Vejo um belíssimo pôr-do-sol de verão. O sol encheu de fogo todo o
poente e o lago de Genezaré tornou-se uma imensa laje incandescente sob
um céu aceso.
As ruas de Cafarnaum mal começam a se encher de gente: mulheres
que vão à fonte, homens, pescadores que preparam as redes e os barcos para
a pesca noturna, meninos que correm brincando, pequenos jumentos que
vão indo para o campo com seus cabazes, talvez para trazerem verduras.
Jesus aparece em uma porta que dá para um pequeno pátio sombreado
por uma videira e uma figueira, além do qual há uma viela pedregosa que
margeia o lago. Deve ser a casa de Pedro (ao invés, é a casa da sogra de
Pedro)[102], porque ele está com André à margem; estão no barco
preparando as cestas e as redes para os peixes, pondo em ordem os bancos e
os rolos de cordas. Tudo, em suma, o que é necessário para a pesca. André
o está ajudando, indo e vindo da casa ao barco.
58.3
Jesus interpela o seu apóstolo:
– Vai ser boa a pesca?
– O tempo está favorável. A água está calma, e a lua vai ser clara. Os
peixes emergirão das profundezas e a minha rede os arrastará consigo.
– Iremos sozinhos?
– Oh! Mestre! Como queres que façamos, com este sistema de redes, se
ficarmos sozinhos?
– Eu nunca pesquei e espero que tu me ensines.
Jesus vai descendo muito devagar em direção ao lago e pára à margem
da areia grossa e pedregosa, junto ao barco.
– Vê, Mestre: é assim que se faz. Eu saio ao lado do barco de Tiago,
filho de Zebedeu e vamos assim, um ao lado do outro até o ponto bom para
a pesca. Depois se desce a rede. Nós costumamos segurar uma ponta. Tu a
queres segurar, me disseste isto.
– Sim, se me disseres o que devo fazer.
– Oh! Basta tomar cuidado com a descida. Que a rede vá descendo
devagar e sem fazer nós. Devagar, porque estaremos em áreas de pesca e
qualquer movimento muito brusco pode espantar os peixes. E sem nós, para
que a rede não fique fechada, pois ela deve ir sendo aberta como uma bolsa,
ou como um véu, se te agrada assim, que vai sendo enchida pelo vento.
Depois, quando a rede já foi toda descida, iremos remando devagar, ou
iremos com a vela, conforme for necessário, fazendo um semicírculo sobre
o lago; quando o vibrar da estaca de segurança nos disser que a pesca foi
boa, dirigiremos o barco para a terra e lá perto da beira içaremos a rede; não
antes, para não nos arriscarmos a ver escapar a presa, nem depois para não
estragar os peixes nem as redes sobre as pedras. Neste ponto é preciso ter
olhos atentos porque os barcos devem estar muito próximos para que de um
se possa recolher a ponta da rede dada pelo outro, mas sem se bater para
não esmagar o saco cheio de peixes. 58.4Eu confio em Ti, Mestre, pois este é
o nosso pão. Olhos na rede, para que não se arrebente com as sacudidas. Os
peixes defendem a sua liberdade com fortes golpes de cauda e se forem
muitos… Tu entendes… São pequenos animais, mas reunidos em dez, em
cem, em mil, tornam-se fortes como o Leviatã.
– É como acontece com as culpas, Pedro. Sendo a primeira, aindanão é
irreparável. Mas, se alguém não toma cuidado, não limitando-se àquela, vai
acumulando, acumulando… acabará acontecendo que aquela pequena
culpa, talvez uma simples omissão, uma simples fraqueza, vai se tornando
sempre maior, passe a ser um hábito, e se transforme em um vício capital.
Às vezes, começa-se por um olhar concupiscente e se termina por um
adultério consumado. Às vezes, por uma falta de caridade de palavras
contra um parente, acaba-se por uma violência contra o próximo. Ai de
quem começa e deixa que as culpas aumentem de peso, por seu número!
Tornam-se perigosas e prepotentes como a própria Serpente infernal e
arrastam para o abismo da Geena.
– Falas bem, Mestre… Mas, somos tão fracos!
– Advertência e oração para ser fortes e obter ajuda e uma firme
vontade de não pecar. Depois, uma grande confiança na amorosa justiça do
Pai.
– Tu dizes que Ele não será muito severo com o pobre Simão?
– Com o velho Simão, Ele até que podia ser severo. Mas com o meu
Pedro, o homem novo, o homem do seu Cristo… não, Pedro. Ele te ama e te
amará.
– E eu?
– Também tu, André; e contigo, João e Tiago, Filipe e Natanael. Vós
sois os meus primeiros eleitos.
58.5
– Virão outros? Tem o teu primo, e na Judéia…
– Oh! Muitos. O meu Reino está aberto a todo o gênero humano e em
verdade Eu te digo que mais abundante do que a mais abundante de tuas
pescas será a minha nas noites dos séculos… Porque cada século é uma
noite, na qual é guia e luz, não a pura luz do Orion ou aquela da navegante
lua, mas, a palavra de Cristo e a Graça que Dele virá; noite que conhecerá a
aurora de um dia sem fim, de uma luz na qual todos os fiéis irão viver, de
um sol que revestirá os eleitos e os fará belos, eternos, felizes como uns
deuses. Deuses menores, filhos de Deus Pai e semelhantes a Mim… Por
enquanto, não podeis compreender. Mas em verdade Eu vos digo que a
vossa vida cristã vos concederá semelhança com o vosso Mestre, e
resplandecereis no Céu pelos próprios sinais dele. Pois bem, Eu terei, não
obstante a inveja de Satanás e a vontade fraca do homem, uma pesca mais
abundante do que a tua.
– Mas, só nós é que seremos teus apóstolos?
– Ciumento, Pedro? Não. Não o sejas. Outros virão, e no meu coração
haverá amor para todos. Não sejas avarento, Pedro. Tu ainda não sabes
Quem te ama. Já contaste alguma vez as estrelas? E as pedras do fundo
deste lago? Não. Não poderias. Mas, menos ainda, irias poder contar as
palpitações de amor de que é capaz o meu coração. Pudeste alguma vez
contar quantas vezes este mar beija a margem com o seu beijo de ondas no
curso de doze luas? Não. Não poderias. Mas, menos ainda poderias contar
as ondas de amor que deste coração se derramam para beijar os homens.
Esteja certo, Pedro, do meu amor.
Pedro pega a mão de Jesus e a beija. Está comovido.
André olha e não ousa fazer o mesmo. Mas Jesus lhe põe a mão por
entre os cabelos e lhe diz:
– Também te amo muito. Na hora da tua aurora, verás, refletido na
abóbada do céu, sem que precises levantar teus olhos, o teu Jesus
sorridente, que te dirá: “Eu te amo. Vem”; e a tua passagem por essa aurora
te será mais doce do que a entrada numa câmara nupcial…
58.6
– Simão! Simão! André! Estou chegando…
João chega apressado:
– Oh! Mestre! Eu te fiz esperar?
João olha para Jesus com seu olhar amoroso.
Responde Pedro:
– Verdadeiramente, eu já estava começando a pensar que não viesses
mais. Prepara logo o teu barco. E Tiago?…
– Aí está… nós ficamos atrasados por causa de um cego. Ele estava
pensando que Jesus estivesse em nossa casa e foi para lá. Então, nós lhe
dissemos: “Ele está em algum outro lugar. Talvez amanhã Ele te cure.
Espera.” Mas ele não queria esperar. Tiago lhe dizia: “Tens esperado tanto a
luz, que te custa esperar mais uma noite?” Mas ele não quer saber de
razões…
– João, se tu fosses cego, não terias pressa de rever a tua mãe?
– Ah! Sem dúvida!
– E então? Onde está o cego?
– Ele vem vindo com o Tiago. Está agarrado ao manto de Tiago e não o
solta. Mas vem vindo devagar, porque a margem é pedregosa, ele tropeça…
Mestre, me perdoas, por ter sido duro?
– Sim. Mas para compensar, vai ajudar o cego e o traz a Mim.
João vai correndo.
Pedro sacode um pouco a cabeça, mas se cala. Olha para o céu que
começa a ficar azul depois de ter estado tanto tempo cor de cobre; olha para
o lago, olha para os outros barcos que já saíram para a pesca e suspira.
– Simão?
– Mestre?
– Não tenhas medo. Terás uma pesca abundante, ainda que saias por
último.
– Desta vez também?
– Todas as vezes que tiveres caridade Deus usará para contigo da graça
de abundância.
58.7
– Eis o cego.
O pobre homem avança entre Tiago e João. Ele tem nas mãos um
bastão, mas não está servindo-se dele agora, pois acha mais seguro confiar
nos dois.
– Pronto, homem! O Mestre está na tua frente.
O cego se ajoelha:
– Meu Senhor, piedade!
– Queres ver? Levanta-te. Desde quando és cego?
Os quatro apóstolos se agrupam ao redor dos dois.
– Faz sete anos, Senhor. Antes, eu via bem e trabalhava. Eu era ferreiro
em Cesaréia Marítima e ganhava bem. O porto, os muitos negócios, sempre
precisavam de mim para trabalhos. Mas, ao bater um ferro de âncora, e
podes fazer idéia de como devia estar vermelho para se tornar macio ao
golpe, soltou-se um estilhaço incandescente e me queimou um olho. Eu já
estava com os dois doentes por causa do calor da forja. Perdi o olho que foi
atingido e o outro também se foi, três meses depois. Acabei com minhas
economias e agora vivo de caridade…
– És sozinho?
– Tenho esposa e três filhos pequenos… de um deles eu nem sei como é
o rosto… e tenho minha mãe, já idosa. Contudo, agora é ela e minha mulher
que ganham para um pouco de pão; com isto e com a esmola que eu ajunto,
não se morre de fome. Se me curasses!… Eu voltaria ao trabalho. Não
desejo senão trabalhar, como um bom israelita e dar um pão àqueles que eu
amo.
– E vieste a Mim? Quem foi que te contou?
– Um leproso que Tu curaste aos pés do monte Tabor, quando ias de
volta para o lago, depois daquele tão belo discurso.
– Que foi que ele te disse?
– Que Tu podes tudo. Que és a saúde dos corpos e das almas. Que és
luz para as almas e para os corpos porque és a Luz de Deus. Ele, o leproso,
havia ousado misturar-se com a multidão, correndo o risco de ser
apedrejado, todo envolvido num manto, porque ele te havia visto passar
dirigindo-se para o monte; o teu rosto tinha colocado em seu coração uma
esperança. Ele me disse: “Eu vi naquele rosto qualquer coisa que me disse:
‘Ali está a saúde. Vai!’ E eu fui.” E assim me repetiu o teu discurso,
dizendo-me que Tu o curaste, tocando-o com a tua mão sem repugnância.
Ele estava voltando dos sacerdotes depois da purificação. Eu o conhecia,
porque eu já tinha trabalhado para ele, quando ele tinha uma loja em
Cesaréia. Eu vim perguntando por Ti pelas cidades e povoados. Agora Te
achei… Tem piedade de mim!
58.8
– Vem. É bem viva ainda a luz para alguém que vem da escuridão.
– Vais curar-me, então?
Jesus o guia em direção à casa da sogra de Pedro, à pouca luz que ainda
há no pequeno pomar e o põe à sua frente, mas de tal modo que os olhos, ao
ficarem curados, não fossem ter como primeira visão, o lago, ainda todo
cheio de reflexos de luz. O homem parece um menino muito dócil, deixa
Jesus fazer como quer, sem lhe perguntar o porquê.
– Pai! A tua luz a este filho!
Jesus estendeu as mãos sobre a cabeça do homem que está de joelhos.
Ele fica assim por um instante. Depois Jesus molha as pontas dos dedos na
saliva e, com a direita, toca-as de leve sobre os olhos abertos, mas sem vida.
Um instante. Em seguida, o homem move as pálpebras e as esfrega
como quem sai do sono, mas está ainda com uma névoa nos olhos.
– Que estás vendo?
– Oh! Oh!… oh, Deus eterno! Parece-me… parece-me… oh! que eu
estou vendo… estou vendo a tua veste… é vermelha, não é? E uma mão
branca… e uma cinta de lã… oh! bom Jesus… estou vendo cada vez
melhor, vou-me acostumando a ver… Ali está a erva do chão… aquilo
certamente é um poço, e ali está uma videira…
– Levanta-te, amigo.
O homem, que chora e ri ao mesmo tempo, se levanta e, depois de um
instante de luta entre o respeito e o desejo, ergue o rosto e encontra o olhar
de Jesus. Um Jesus sorridente, cheio de piedade e de amor. Deve ser muito
belo recuperar a vista e ver, como primeiro sol, aquele rosto! O homem dá
um grito e estende os braços. É um ato instintivo. Mas ele se refreia.
Mas é Jesus quem lhe abre os braços e atrai para Si o homem, que é
muito mais baixo do que Ele.
– Vai agora para tua casa, sê feliz e justo. Vai com a minha paz.
– Mestre, Mestre! Senhor! Jesus! Santo! Bendito! A luz… Eu vejo…
vejo tudo… Ali está o lago azul e o céu sereno, e os últimos raios de sol, e
lá a primeira sombra da lua… Mas o azul mais belo e sereno eu o vejo nos
teus olhos e em Ti vejo a beleza do sol mais verdadeiro, e resplandecer a
pureza da mais santa lua. Astro dos doentes, Luz dos cegos, Piedade viva e
operante!
– Luz dos espíritos, Eu sou. Sê tu um filho da Luz.
– Sempre, Jesus. A cada batida da minha pálpebra sobre a pupila
renascida, eu renovarei este juramento. Sê bendito Tu e o Altíssimo!
– Bendito seja o Altíssimo Pai! Vai!
E o homem vai feliz, andando com passos firmes, enquanto Jesus e os
pasmados apóstolos, descem em dois barcos e começam a manobra da
navegação.
E a visão termina.
[102] (ao invés, é a casa da sogra de Pedro), é a rectificação de Maria Valtorta sobre uma cópia dactilografada; da sogra, nas
primeiras linhas de 58.8, é um acréscimo de Maria Valtorta sobra a mesma cópia dactilografada. Das duas casas de Pedro (a
própria em Betsaida e a da sogra em Cafarnaum) se falará em vários pontos do capítulo 60.
59. O endemoninhado curado
na sinagoga de Cafarnaum.
2 de novembro de 1944.
59.1
Vejo a sinagoga de Cafarnaum. Ela já está cheia pela multidão que
encontra-se em expectativa. Pessoas que estão à porta olham com
freqüência para a praça ainda ensolarada, se bem que a tarde já vem
chegando.
Finalmente, ouve-se um grito:
– Eis o Rabi.
As pessoas viram-se todas para a porta, os mais baixos se levantam nas
pontas dos pés, ou procuram lançar-se para a frente. Algumas discussões,
alguns empurrões, não obstante as repreensões partidas dos encarregados da
sinagoga e dos maiorais da cidade.
– A paz esteja sobre todos os que procuram a Verdade!
Jesus está na entrada e saúda abençoando, com os braços estendidos
para a frente. A luz bem forte que há na praça cheia de sol faz com que sua
figura alta se destaque, aureolando-a de luz. Jesus tirou sua veste branca
ficando, como é o costume, com outra azul escura. Ele avança entre a
multidão, que se abre e se fecha ao redor Dele, como a onda ao redor de um
navio.
59.2
– Eu estou doente, cura-me! –geme um jovem, que pelo aspecto, me
parece estar tuberculoso e que segura Jesus pela veste.
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça e diz:
– Confia. Deus te ouvirá. Deixa agora que Eu fale ao povo, depois virei
a ti.
O jovem o deixa ir e fica quieto.
– Que foi que Ele te disse? –pergunta-lhe uma mulher que está com um
menino nos braços.
– Disse-me que depois de ter falado ao povo virá a mim.
– Então, vai te curar?
– Não sei. Ele me disse: “Confia.” Eu espero.
– Que foi que Ele disse? Que foi que Ele disse?
A multidão quer saber. E a resposta de Jesus vai sendo comentada entre
o povo.
– Então, eu vou buscar o meu menino.
– E eu vou trazer aqui o meu velho pai.
– Oh! Se o Ageu quisesse vir! Eu vou tentar… mas ele não virá.
59.3
Jesus chegou ao seu lugar. Saúda o chefe da sinagoga e é saudado por
ele. É um homenzinho baixo, gordo e de idade. Para falar a ele, Jesus
precisa inclinar-se. Parece uma palmeira que se curva sobre um arbusto
mais largo do que alto.
– Que queres que eu te dê? –pergunta o arqui-sinagogo.
– O que quiseres, ou melhor, o que apanhares. O Espírito te guiará.
– Mas… estás preparado?
– Estou. Dá-me um qualquer. Repito: O Espírito do Senhor guiará a
escolha para o bem deste povo.
O arqui-sinagogo estende a mão sobre a pilha dos rolos, tira um, abre-o,
e pára num certo ponto.
– Este –diz ele.
Jesus pega o rolo e lê o ponto indicado[103]:
– Josué: “Levanta-te e santifica o povo, e diz a eles: ‘Santificai-vos
para amanhã, porque diz o Senhor Deus de Israel, o anátema está no meio
de vós, ó Israel; tu não poderás estar à frente dos teus inimigos, enquanto
não for tirado do meio de ti quem se tiver contaminado com tal delito’.”
Ele pára, enrola o volume, e o entrega de volta.
A multidão está muito atenta. Somente se ouve a voz de alguém que
murmura:
– Vamos ouvir hoje das boas contra os inimigos!
– É o Rei de Israel, o Prometido, que reúne o seu povo!
59.4
Jesus estende os braços em seu costumeiro gesto oratório. O silêncio
se torna completo.
– Quem veio para santificar-vos se levantou. Ele saiu do segredo da
casa onde se preparou para esta missão. Ele se purificou para dar-vos
exemplo de purificação. Tomou sua posição frente aos poderosos do
Templo e ao povo de Deus e agora está entre vós. Sou Eu. Não como alguns
entre vós pensam e esperam, com uma mente enevoada e com um fermento
no coração. Mais alto e maior é o Reino do qual Eu sou o futuro Rei e ao
qual Eu vos chamo.
Eu vos chamo, ó vós de Israel, antes de qualquer outro povo, porque
vós sois os que, nos pais dos pais, tiveram a promessa desta hora e aliança
com o Senhor Altíssimo. Mas não será com multidões armadas nem com
ferocidades sangrentas que este Reino vai ser formado; e nele não entrarão
os violentos, nem os prepotentes, nem os soberbos, os iracundos, os
invejosos, os luxuriosos, os avarentos, mas os bons, os mansos, os
continentes, os misericordiosos, os humildes, os que têm amor ao próximo e
a Deus, os pacientes.
Israel! Não é contra os inimigos de fora que és chamado a combater.
Mas contra os inimigos de dentro. Contra aqueles que estão no coração de
cada um de vós. No coração de dezenas e dezenas de milhares de filhos
teus. Tirai o anátema do pecado de todos os vossos corações um por um, se
quereis que amanhã Deus vos reúna e vos diga: “Povo meu, para ti o Reino
que não será mais derrotado, nem invadido, nem emboscado pelos
inimigos.”
Amanhã. Que amanhã é este? Dentro de um ano ou de um mês? Oh!
Não procureis. Não procureis, com uma sede doentia, saber o que está para
acontecer, usando para isso de meios que têm o sabor de uma culpável
feitiçaria. Deixai aos gentios o espírito pitônico. Deixai ao Deus eterno o
segredo do seu tempo. Vós de amanhã, o amanhã que surgirá depois desta
hora da tarde, e a que virá à noite, que surgirá com o canto do galo, vinde
purificar-vos na verdadeira penitência.
Arrependei-vos dos vossos pecados para serdes perdoados e preparados
para o Reino. Tirai de vós o anátema do pecado. Cada um tem o seu. Cada
um tem aquele que é contrário aos dez mandamentos de salvação eterna.
Examinai-vos cada um com sinceridade e encontrareis o ponto em que
errastes. Humildemente tende dele um arrependimento sincero. Tende a
vontade de arrepender-vos. Não só com palavras. De Deus não se zomba e a
Deus não se engana. Mas arrependei-vos com vontade firme, que vos leve a
mudar de vida, a entrar de novo na Lei do Senhor. O Reino dos Céus vos
espera. Amanhã.
Amanhã? Estais perguntando. Oh! É sempre um amanhã solícito a hora
de Deus, ainda que ela chegue ao fim de uma vida longa como a dos
Patriarcas. A eternidade não tem por medida de tempo o correr lento da
clepsidra. E aquelas medidas de tempo que vós chamais dias, meses, anos,
séculos, são palpitações do Espírito eterno, que vos mantêm vivos. Mas, vós
sois eternos em vosso espírito e deveis, para o vosso espírito, ter o mesmo
método de medição do tempo que o vosso Criador tem. Então, dizeis:
“Amanhã será o dia da minha morte.” Aliás, não morte para os fiéis. Mas
repouso de espera, à espera do Messias, que abrirá as portas do Céu.
E, em verdade, vos digo que, entre os aqui presentes, só vinte e sete é
que morrerão e deverão esperar. Os outros estarão já julgados, antes da
morte, e a morte será sua passagem para Deus ou para Mamon, sem
demora, porque o Messias já veio, está entre vós e vos chama para dar-vos a
Boa Nova, para instruir-vos na Verdade e para salvar-vos no Céu.
Fazei penitência! O “amanhã” do Reino dos Céus é iminente. Que ele
vos encontre limpos, a fim de vos tornardes possuidores do dia eterno.
A paz esteja convosco.
59.5
Para contradizê-lo, levanta-se um empertigado e barbudo israelita.
Ele diz:
– Mestre, tudo o que dizes me parece em contraste com tudo o que está
dito[104] no segundo livro dos Macabeus, glória de Israel. Lá está dito: “É de
fato sinal de grande benevolência não permitir aos pecadores que fiquem
andando por muito tempo atrás de seus caprichos, mas dar-lhes logo o
castigo. O Senhor não faz como as outras nações, que as espera com
paciência, para puni-las quando chegar o dia do Juízo, quando estiver cheia
a medida dos pecados.” Tu ao invés, falas como se o Altíssimo pudesse ser
muito lento em punir-nos, esperando-nos como os outros povos, no tempo
do Juízo, quando estiver cheia a medida dos pecados. Verdadeiramente os
fatos te desmentem. Israel está punido, como diz o histórico dos Macabeus.
Mas, se fosse como dizes, não há uma divergência entre a tua doutrina e a
que está encerrada na frase que eu te disse?
– Quem és, Eu não sei[105]. Mas, seja quem fores, Eu te respondo. Não
há divergência na doutrina, mas no modo de interpretar as palavras. Tu as
interpretas segundo o modo humano. Eu, segundo aquele do espírito. Tu,
representante da maioria, vês tudo com referências ao presente e ao
transitório. Eu, representante de Deus, tudo explico, e aplico ao que é eterno
e sobrenatural. Javé vos feriu sim, no presente, na soberba e na injustiça de
ser um “povo”, segundo a terra. Mas, como vos tem amado e usado de
paciência para convosco, mais do que com todos os outros, concedendo-vos
o Salvador, o seu Messias, para que o escuteis, e vos salveis, antes da hora
da ira divina! Não quer mais que sejais pecadores. Mas, se no transitório
Ele vos feriu, vendo que a ferida não sara, mas ao contrário, torna sempre
mais obtuso o vosso espírito, eis que Ele vos manda, não punição, mas
salvação. Vos manda Aquele que vos cura e vos salva. Eu, que vos falo.
59.6
– Não achas que estás sendo ousado ao professar-te representante de
Deus? Nenhum dos Profetas ousou tanto. E Tu… Quem és, Tu que estás
falando? E com ordem de quem falas?
– Os Profetas não podiam falar deles mesmos o que Eu de Mim mesmo
falo. Quem sou Eu? Sou o Esperado, o Prometido, o Redentor. Já ouviste
aquele que o precede dizer: “Preparai o caminho do Senhor… Eis que o
Senhor Deus vem… Como um pastor apascentará o seu rebanho, sendo
também o Cordeiro da verdadeira Páscoa.” Entre vós estão aqueles que
ouviram do Precursor estas palavras, e viram o céu relampejar com uma luz
que descia em forma de pomba, e ouviram uma voz que falava, dizendo
quem Eu era. Por ordem de quem Eu falo? Daquele que é, e que me envia.
– Tu podes estar dizendo isto, mas podes também ser um mentiroso, ou
um iludido. As tuas palavras são santas, mas às vezes, Satanás tem palavras
enganosas, tingidas de santidade, para induzir em erro. Nós não te
conhecemos.
– Eu sou Jesus de José, da estirpe de Davi, nascido em Belém Efrata,
segundo as promessas, chamado nazareno, porque minha casa é em Nazaré.
Isto segundo o mundo. Segundo Deus, sou o seu Enviado. Os meus
discípulos sabem disso.
– Oh! Os teus discípulos! Eles podem falar o que quiserem e o que Tu
os mandas dizer.
– Um outro falará, um que não me ama, e dirá quem Eu sou. Espera aí,
que Eu vou chamar um dos que estão aqui presentes.
59.7
Jesus olha para a multidão, que está espantada com esta discussão,
irritada e dividida entre correntes opostas. Jesus olha para ela, procurando
alguém com seus olhos de safira, e depois chama com voz forte:
– Ageu, vem para a frente. Eu te ordeno.
Há um grande murmúrio entre a multidão, que se abre, para deixar
passar um homem, todo sacudido pelo tremor e sustentado por uma mulher.
– Conheces este homem?
– Sim. É o Ageu de Malaquias, aqui de Cafarnaum. É possuído por um
espírito mau, que o desatina em fúrias repentinas.
– Todos vós o conheceis?
A multidão grita:
– Sim, sim.
– Poderá alguém aí dizer que ele já esteve conversando Comigo, ainda
que por poucos minutos?
A multidão grita:
– Não, não, ele é quase um idiota, e não sai nunca de casa, e nunca
ninguém te viu lá.
– Mulher, traze-o aqui diante de Mim.
A mulher o empurra e o arrasta, enquanto o pobre homem treme
fortemente.
O arqui-sinagogo adverte a Jesus:
– Estai atento! O demônio vai atormentá-lo… e então se arroja, arranha
e morde.
A multidão abre caminho, comprimindo-se contra as paredes.
Agora os dois estão frente a frente. É um momento de luta. Parece que
o homem, acostumado a ficar mudo, sente dificuldade para falar, e gane,
mas depois sua voz toma a forma de palavras:
– Que há entre nós e Ti, Jesus de Nazaré? Por que vieste atormentar-
nos? Por que vieste exterminar-nos, Tu, Senhor do Céu e da terra? Eu sei
quem és: o Santo de Deus. Ninguém, na carne, foi maior do que Tu, porque
em tua carne de homem está encerrado o Espírito do eterno Vencedor. Já me
venceste em…
– Cala-te! Sai deste homem. Eu te ordeno!
O homem é tomado como que de um estranho paroxismo. Ele se agita
aos arrancos, como se alguém o estivesse maltratando com empurrões e
safanões, grita com uma voz desumana, espuma, em seguida é jogado ao
chão, do qual depois se levanta assombrado e curado.
59.8
– Ouviste? Que respondes agora? –pergunta Jesus ao seu opositor.
O homem barbudo e empertigado encolhe os ombros e, vencido, vai-se
embora sem responder. O povo zomba dele e aplaude a Jesus.
– Silêncio. O lugar é sagrado! –diz Jesus, e depois ordena–: Venha a
Mim o jovem a quem prometi a ajuda de Deus.
Aproxima-se o doente. Jesus o acaricia:
– Tiveste fé! Sê curado. Vai em paz e sê justo.
O jovem dá um grito. Quem sabe o que estará sentindo? Ele se prostra
aos pés de Jesus e os beija, agradecendo:
– Obrigado por mim e por minha mãe!
Vêm outros doentes: um menino com as perninhas paralisadas. Jesus o
toma nos braços, o acaricia e o põe no chão… e o solta. E o menino não cai,
mas sai correndo ao encontro da mãe que, chorando, o recebe sobre o seu
coração e o bendiz com grande voz “o Santo de Israel.” Vem depois um
velhinho cego guiado pela filha. Também ele é curado com uma carícia
feita sobre as órbitas doentes.
A multidão se transforma num tumulto de bênçãos.
Jesus se afasta sorrindo e ainda que Ele seja alto, não conseguiria abrir
caminho entre a multidão se Pedro, Tiago, André e João não trabalhassem
generosamente com os seus cotovelos abrindo uma passagem do canto onde
estão até Jesus e depois o protegessem até à saída para a praça onde já não
há mais sol.
Assim termina a visão.
[103] o ponto indicado, o de: Josué 7,13.
[104] está dito, em: 2 Macabeus 6,13-14.
[105] Quem és, Eu não sei, Esta afirmação de Jesus vem explicada com a seguinte nota de Maria Valtorta sobre uma cópia
dactilografada: o Cristo, como Deus e como Santo dos santos, penetrava nas consciências e via e conhecia os seus segredos mais
escondidos (introspecção perfeita); como Homem conhecia apenas segundo o modo humano as pessoas e os locais, quando seu
Pai e sua própria natureza divina não consideravam útil conhecer locais e pessoas sem perguntar. Sobre a mesma cópia
dactilografada Maria Valtorta põe a seguinte nota às palavras Ageu! Vem para a frente ..., que estou ao início de 59.7: Aqui,
devendo dar prova ao fariseu da sua omnisciência divina, chama por nome o desconhecido Ageu, que está endemoninhado,
enquanto na página precedente, como Homem, tinha dito ao fariseu: “Eu não sei quem sejas”. As duas notas de Maria Valtorta
terão confirmação no texto de 224.2, 357.3, 527.4/6, 554.7 e justificam as declarações de “ignorância” por parte de Jesus que
encontraremos, por exemplo, em: 73.7 – 75.3 – 362.2 – 365.10 – 376.9 – 377.2 – 382.5 – 395.2 – 406.9 – 413.8 – 433.5 – 472.4 –
488.5 – 583.23 – 584.6. – Uma segunda explicação sobre as “ignorâncias” de Jesus é dada a propósito de uma série de perguntas
que Ele dirige a Annalia em 156.3. A relativa nota de Maria Valtorta, colocada sobre uma cópia dactilografada, diz: “Jesus sabia e
recordava, mas queria que as almas se abrissem com a máxima liberdade e confiança.” Esta explicação encontra confirmação no
texto de 128.1 e de 153.1, para além de uma singular expressão do Iscariota em 468.4: “Sei que Tu sabes mas esperas que eu
diga”. – Uma terceira explicação encontra-se numa longa nota de Maria Valtorta a propósito da afirmação de Jesus: “Quem seja
não sei”, que se encontra em 175.5. Trazemos de novo a parte essencial da nota autografa, que ocupa quatro páginas de uma folha
inserida numa cópia dactilografada: “E o Pai eterno, para provar os corações e separar os filhos de Deus, da Luz, dos filhos da
carne e das trevas, permitia, na presença dos apóstolos, dos discípulos e das multidões, lacunas na omnividência do Filho, iguais
a estas perguntas e respostas: ‘Quem é esse? Eu não o conheço…’ E isto para os homens. Mas também para o seu Filho bem-
amado, e prepará-lo para a grande obscuridade da hora das trevas, ao abandono do Pai, horas terríveis nas quais Jesus foi o
Homem, e o Homem rejeitado do Pai, tornou-se ‘Anátema para nós’.” A explicação dada por Maria Valtorta é confirmada pelas
palavras do Apóstolo João no contexto de 334.2/3 enquanto se refere aos corações a serem provados. No que diz respeito à
preparação do Filho amado na hora das trevas, é confirmada e aprofundada em 582.14, 598.4, 602.5, 603.4, e é uma explicação
que confere um significado profundo a alguma indecisão de Jesus (como em 302.4.7) e sobretudo às suas desconcertantes
incertezas encontradas em 339.4 e em 464.14. – Feitas as acima mencionadas e motivadas excepções, a obra valtortiana apresenta
Jesus omnisciente e omnividente, ou presciente e previdente, como vem explicitamente declarado em: 48.6 – 60.7 – 78.3 – 80.9.10
– 89.2 – 117.5 – 133.2 – 149.1/2 – 160.6 – 174.7 – 203.1 – 204.4 – 218.1 – 220.4 – 224.2 – 236.5 – 317.3/5 – 329.14 – 335.13 –
340.5 – 351.4 – 357.3 – 371.9 – 387.3 – 391.8 – 406.11 – 409.3 – 411.8 – 471.3 – 473.5 – 503.2 – 522.5 – 524.8 – 525.2 – 531.10
últimas linhas – 531.20 últimas linhas – 532.4.6 – 534.9 – 540.7 – 548.27 – 555.4 – 561.14 – 563.5 – 565.3/4 – 566.18 –
567.18.21 – 580.2 – 587.5..8 – 595.6 – 602.4/5.
60. Cura da sogra de Simão Pedro.
3 de novembro de 1944.
60.1
Pedro fala a Jesus:
– Mestre, eu queria pedir-te que vás à minha casa. Não tive coragem de
dizer isso no sábado passado. Mas… queria que fosses.
– Em Betsaida?
– Não, aqui… na casa de minha mulher, quero dizer, a casa nativa.
– Por que tens esse desejo, Pedro?
– Ah!… por muitas razões… e, além disso, hoje me disseram que
minha sogra está doente. Se quisesses curá-la, talvez te…
– Acaba de falar, Simão.
– Eu queria dizer… se Tu te aproximasses, ela acabaria… sim, em
suma, Tu sabes, uma coisa é ouvir falar de alguém e outra é vê-lo e ouvi-lo
e, se essa pessoa depois fica sã, então…
– Então, também o ódio se acaba, queres dizer.
– Não, ódio não. Mas Tu sabes… o povoado está dividido em muitos
pareceres e ela… não sabe a quem dar razão. Vai, Jesus.
– Eu vou. Vamos. Avisarás aos que estão esperando que da tua casa
falarei a eles.
60.2
Vão até uma casa baixa, mais baixa ainda do que a de Pedro em
Betsaida e ainda mais próxima ao lago. Está separada deste por uma
pequena faixa da margem e creio que nas borrascas as ondas venham a
morrer contra as paredes da casa que, se é baixa, é em compensação bem
espaçosa, como se fosse habitada por mais pessoas.
Na horta-pomar, que está à frente da casa, perto do lago, nada mais há
do que uma videira já velha e nodosa que se estende em uma rústica
parreira e uma velha figueira que os ventos do lago curvaram em direção à
casa. A fronde despenteada da árvore roça as paredes e bate contra as
venejiadas das janelinhas que estão fechadas para servirem de proteção
contra o sol forte que bate sobre a baixa casa. Nada mais há além desta
figueira e desta videira e de um poço raso com um muro esverdeado.
– Entra, Mestre.
Algumas mulheres estão na cozinha, umas ocupadas em consertar as
redes, outras em preparar a comida. Elas saúdam a Pedro e depois se
inclinam confusas diante de Jesus; entretanto, olham-no de soslaio, com
curiosidade.
– A paz esteja nesta casa. Como vai a doente?
– Fala, tu que és a nora mais velha –dizem três mulheres a uma que está
enxugando as mãos na barra da veste.
– A febre está forte, muito forte. Nós fizemos com que o médico a
visse, mas ele disse que ela está velha para sarar e que quando aquele mal
dos ossos chega ao coração e dá febre, especialmente naquela idade, o
doente morre. Ela não está comendo mais… Eu procuro fazer-lhe comidas
boas, mesmo agora, vê Simão? Eu lhe estava preparando aquela sopa de
que ela gostava tanto. Escolhi o peixe melhor que peguei com os cunhados.
Mas acho que ela não vai poder comer. E depois… está tão inquieta! E se
lamenta, grita, chora, pragueja…
– Tende paciência, como se fosse vossa mãe e tereis merecimento
diante de Deus. 60.3Levai-me a ela.
– Rabi… Rabi… não sei se ela irá querer te ver. Não quer ver a
ninguém. Eu nem tenho coragem de dizer-lhe: “Agora vou te trazer o Rabi.”
Jesus sorri sem perder a calma. Depois se vira para Pedro:
– Cabe a ti, Simão. Tu és homem, e o mais velho dos genros, como me
disseste. Vai.
Pedro faz uma careta muito significativa mas obedece. Ele atravessa a
cozinha, entra em um quarto; através da porta fechada atrás dele, eu o ouço
conversar com uma mulher. Depois, põe a cabeça e uma mão fora da porta e
diz:
– Vem, Mestre. Anda depressa!
E acrescenta, em voz mais baixa, só o tanto necessário para ser
entendido:
– Antes que ela mude de idéia.
Jesus atravessa rápido a cozinha e abre a porta toda. De pé, à porta, Ele
diz a sua doce e solene saudação:
– A paz esteja contigo.
Em seguida, entra, não obstante não tenha recebido resposta. Vai para
perto da enxerga sobre a qual está estendida uma pequena mulher toda
grisalha, descarnada e ofegante pela forte febre que lhe torna corado o rosto
abatido.
Jesus se inclina para o pequeno leito e sorrindo para a velhinha, diz:
– Que estás sentindo?
– Eu estou morrendo!
– Não. Não estás morrendo. Podes crer que Eu te posso curar?
– E por que irias fazer isso? Não me conheces.
– Por causa de Simão, que pediu a mim… e também por causa de ti,
para dar tempo à tua alma de ver e amar a Luz.
– Simão? Ele faria melhor em… Como Simão foi capaz de pensar em
mim?
– Porque ele é melhor do que pensas. Eu o conheço e sei. Eu o conheço
e estou contente por vir atendê-lo.
– E, então, tu me curarias? Não vou mais morrer?
– Não, mulher. Por enquanto não morrerás. Podes crer em Mim?
– Creio, creio. Basta-me não morrer!
60.4
Jesus sorri ainda. E a pega pela mão. A mão enrugada e de veias
inchadas desaparece na mão juvenil de Jesus que se endireita e toma aquele
aspecto de quando faz um milagre; exclama:
– Sê curada! Eu quero! Levanta-te!
Solta-lhe a mão que recai sem que a velha se lamente, enquanto que
antes, mesmo tendo-a Jesus pegado com muita delicadeza, só de tê-la
movido já tinha sido causa de um lamento por parte da enferma.
Houve um breve tempo de silêncio. Depois a velha exclama com voz
forte:
– Oh! Deus de nossos pais! Mas eu não tenho mais nada! Estou curada!
Vinde! Vinde!
Acorrem as noras.
– Mas olhai! –dizia a velha–. Eu me movo, e não sinto mais dor! E não
tenho mais febre! Vede como estou com saúde. E o coração não se parece
mais com o martelo do ferreiro. Ah! Não vou mais morrer!
E não tem nenhuma palavra para o Senhor!
Mas Jesus não leva isso em consideração. Ele diz à mais velha das
noras:
– Vesti-a para que se levante. Ela já pode levantar-se.
E vai-se encaminhando para sair.
Simão, mortificado, se vira para a sogra:
– O Mestre te curou. E não lhe dizes nada?
– Está certo! Não pensei nisso. Obrigada. Que posso fazer para mostrar-
te o meu agradecimento?
– Ser boa, muito boa. Porque o Eterno foi bom para contigo. E, se não
te for muito incômodo, deixa-me repousar hoje em tua casa. Percorri nesta
semana todos os povoados vizinhos e cheguei ao despertar desta manhã.
Estou cansado.
– Certo! Certo! Fica, sim, se assim te agrada.
Mas não existe muito entusiasmo em suas palavras.
60.5
Jesus, com Pedro, André, Tiago e João vai sentar-se no pomar.
– Mestre!…
– Que há, meu Pedro?
– Eu estou mortificado.
Jesus faz um gesto, como se dissesse: “Deixa para lá.” Depois, diz:
– Não é esta a primeira nem será a última que não sinto um
reconhecimento imediato. Mas Eu não peço reconhecimento. Basta-me dar
às almas o modo de se salvarem. Faço o meu dever. A elas cabe fazer o
delas.
– Ah! Então já houve outros assim? Onde?
– Simão curioso! Mas Eu quero te contentar, embora não goste de
curiosidades inúteis. Foi em Nazaré. Lembras-te da mãe de Sara? Estava
muito doente quando chegamos a Nazaré e nos disseram que a menina
estava chorando. Para não fazer dela, que é boa e dócil, uma órfã e amanhã
uma enteada, fui procurar a mulher… Eu queria curá-la. Mas, ainda não
tinha posto os pés na casa dela, quando o seu marido e um irmão me
expulsaram, dizendo: “Vai embora, vai embora! Não queremos
aborrecimentos com a sinagoga.” Para eles, para muitos, Eu já sou um
rebelde… mas Eu a curei do mesmo jeito… por causa de seus filhos. E à
Sara, que estava na horta, Eu disse, acariciando-a: “Eu curo tua mãe. Vai
para casa. Não chores mais.” E a mulher ficou curada no mesmo instante; a
menina foi dizer isso a ela, e também ao pai e ao tio… E foi castigada por
ter falado Comigo. Eu sei, porque a menina veio correndo atrás de Mim,
quando Eu já ia deixando o povoado… Mas não importa.
– Eu faria com que ela ficasse doente de novo!
– Pedro!
Jesus está severo:
– É isso que Eu ensino a ti e aos outros? Que foi que ouviste dos meus
lábios desde a primeira vez que me ouviste? De que é que Eu tenho sempre
falado como primeira condição para serdes meus verdadeiros discípulos?
– É verdade, Mestre. Eu sou um verdadeiro animal. Perdoa-me. Mas…
não posso suportar que não te amem!
– Ó Pedro, verás um desamor bem maior! Quantas surpresas terás,
Pedro! Há pessoas que o mundo chamado “santo” despreza como
publicanos, e que, ao invés, serão exemplos para o mundo, e um exemplo
não seguido por aqueles que as desprezam. Há gentios que estarão entre os
meus maiores fiéis. Há meretrizes que se tornam puras, por vontade e por
penitência. Pecadores que se emendam…
– Escuta, que se emende um pecador… ainda pode ser. Mas uma
meretriz e um publicano!…
– Tu não acreditas?
– Eu não.
– Estás errado, Simão. 60.6Mas, eis tua sogra que está vindo a nós.
– Mestre… eu te peço que te assentes à minha mesa.
– Obrigado, mulher. Deus te recompense por isto.
Entram na cozinha e se assentam à mesa e a velha serve aos homens
com grande distribuição de peixe ensopado e assado.
– Não há mais do que isso –ela se desculpa.
E, para não perder o costume, diz a Pedro:
– Os teus cunhados fazem até demais, sozinhos como ficaram, desde
quando foste para Betsaida! E ao menos se prestasses a fazer mais rica a
minha filha… Mas ouço dizer que freqüentemente estás ausente e que não
vais pescar.
– Eu sigo o Mestre. Estive com Ele em Jerusalém e aos sábados estou
com Ele. Não perco o tempo em farras.
– Mas não ganhas nada com isso. Farias melhor, já que queres ser o
servo do Profeta, que venhas para cá de novo. Pelo menos aquela pobre
criatura, que é a minha filha, enquanto tu ficas aí te fazendo de santo, terá
os parentes que lhe matem a fome.
– Mas, não te envergonhas de falar assim diante Dele que te curou?
– Eu não o critico. Ele faz o seu trabalho. Eu critico é a ti, que vives
como um mandrião. Afinal, tu não serás nunca um profeta, nem um
sacerdote. És um ignorante e um pecador, és um bom para nada.
– Tens razão, porque Ele está aqui, senão…
– Simão, tua sogra te deu um ótimo conselho. Podes pescar também
aqui. Pescavas também antes em Cafarnaum, pelo que ouço. Podes voltar
até agora.
– E morar aqui de novo? Mas Mestre, Tu não…
– Bom, meu Pedro, se ficares aqui estarás no barco sobre o lago, ou
Comigo. Por isso, para ti que diferença há entre estar ou não estar nesta
casa?
Jesus pôs a mão sobre o ombro de Pedro e parece que a calma de Jesus
passa para Pedro que já estava fervendo.
– Tens razão. Sempre tens razão. É assim que eu vou fazer. Mas… e
estes? –e mostra João e Tiago, seus sócios.
– Não poderão vir eles também?
– Oh! O nosso pai, e principalmente a nossa mãe, estarão sempre mais
felizes, se souberem que estamos Contigo, do que com eles. Eles não
criarão obstáculos.
– Talvez também Zebedeu virá –diz Pedro.
– É mais que provável. E com eles outros. Viremos, Mestre. Viremos
sem falta.
60.7
– Está aqui Jesus de Nazaré? –pergunta um menininho que aparece à
porta.
– Está sim. Entra.
Vem à frente um menino, que eu reconheço como um daqueles das
primeiras visões em Cafarnaum; justamente como aquele que, brincando
por entre os pés de Jesus, prometeu que seria bom… para comer o mel do
Paraíso.
– Pequeno amigo, vem cá –lhe diz Jesus.
O menino, um pouco amedrontado no meio de tanta gente que está
olhando para ele, se encoraja e corre para Jesus que o abraça, o põe sobre os
joelhos e lhe dá um pedacinho do seu peixe sobre uma fatiazinha de pão.
– Aqui está, Jesus. Isto é para Ti. Ainda hoje aquela pessoa me disse:
“Hoje é sábado. Vai levar isto para o Rabi de Nazaré e diz ao teu amigo que
reze por mim.” Ela sabe que és o meu amigo!…
O menino ri feliz, e come o seu pão com peixe.
– Muito bem, pequeno Tiago! Dirás àquela pessoa que as minhas
orações sobem ao Pai por ela.
– É para os pobres? –pergunta Pedro.
– Sim.
– Será o presente de costume? Vamos ver.
Jesus lhes entrega a bolsa. Pedro despeja as moedas e as conta:
– Sempre a mesma grande importância! Mas, quem é essa pessoa? Diz-
me, menino! Quem é?
– Eu não o devo dizer, e não o direi.
– Que malcriado! Vamos, sê bom que eu te darei umas frutas.
– Eu não o direi nem se me insultares nem se me acariciares.
– Mas ouvi só que língua!
– O Tiago tem razão, Pedro. Ele mantém a palavra dada. Deixa-o em
paz.
– Tu, Mestre, sabes quem é essa pessoa?
Jesus não responde. Ele se entretém com o menino, a quem dá outro
pedacinho de peixe assado, já bem limpo das espinhas. Mas Pedro insiste e
Jesus precisa responder:
– Eu sei tudo, Simão.
– E nós, não o podemos saber?
– E tu, nunca vais ficar curado deste teu defeito?
Jesus censura, mas sorri. E acrescenta:
– Logo o saberás. Porque como o mal gosta de ficar oculto e nem
sempre pode permanecer assim, o bem, ainda que queira ficar oculto, para
ter seu merecimento, um dia será descoberto para a glória de Deus, cuja
natureza brilha em um filho seu. A natureza de Deus é o amor. E essa
pessoa o compreendeu, porque ama o seu próximo. Vai, Tiago. Vai levar
àquela pessoa a minha bênção.
Assim termina a visão.
61. Jesus faz o bem aos pobres depois de ter
contado
a parábola do cavalo amado pelo rei.
4 de novembro de 1944.
61.1
Jesus subiu a um monte de cestas e cordas que está à entrada do
pomar da casa da sogra de Pedro. O pomar está apinhado de gente. Também
há gente junto à margem do lago, uns sentados, outros sobre os barcos que
foram puxados para a terra. Parece que Ele já vinha falando por algum
tempo, porque seu discurso já vai bem adiantado. Eu o ouço:
– … Certamente vós muitas vezes, em vosso coração, já tereis pensado
assim. Mas não é bem assim. O Senhor não faltou à benignidade para com o
seu povo, ainda que este tenha faltado à fidelidade para com Ele mil e dez
mil vezes.
Ouvi esta parábola. Ela vos ajudará a entender.
Um rei tinha muitos e esplêndidos cavalos em suas estrebarias. Mas ele
gostava de um deles com uma estima toda especial. Antes de possuí-lo, o
rei o tinha almejado muito; depois, tendo-o adquirido, colocou-o num lugar
delicioso, para onde ele se dirigia, com os olhos e o coração, só para tornar
a ver aquele seu predileto, sonhando fazer dele um dia a maravilha do seu
reino. E, quando o cavalo, rebelando-se contra todos os comandos, havia
desobedecido e fugido para outro patrão, o rei, ainda que com dor, em seu
rigor, tinha prometido ao rebelde o perdão, depois de tê-lo castigado. E, fiel
a isso, mesmo de longe, velava sobre o seu predileto, mandando-lhe
presentes e guardas que o conservassem com a lembrança do dono em seu
coração.
Mas o cavalo, ainda que sofrendo por estar exilado do reino, não era
constante, como o rei o era, em amar e desejar o perdão completo. E, se em
certos tempos era bom, em outros tempos era mau; nem o bom era maior do
que o mau. Pelo contrário. Contudo, o rei tinha paciência; com censuras e
carícias procurava fazer do seu cavalo mais querido um dócil amigo.
Quanto mais o tempo passava, mais o animal se mostrava rebelde. Invocava
o seu rei, chorava sob o chicote dos outros patrões, mas não queria ser
verdadeiramente do rei. Não tinha vontade de o ser. Esgotado, oprimido e
gemente, não era capaz de dizer: “Por culpa minha é que estou assim”, mas
acusava ao seu rei.
Este, depois de ter tentado de tudo, recorreu a uma última prova. “Até
agora, disse, eu mandei mensageiros e amigos. Agora vou mandar o meu
próprio filho. Ele tem o mesmo coração meu e falará com o mesmo amor
que eu, terá carícias e presentes semelhantes aos que eu tinha; aliás, ainda
mais doces, porque meu filho sou eu mesmo, mas sublimado no amor.” E
mandou o seu filho.
Esta é a parábola. 61.2Agora dizei-me vós: Achais que o rei amava o seu
animal preferido?
O povo responde a uma só voz:
– Infinitamente o amava.
– Podia o animal lamentar-se do seu rei, por todo o mal que sofreu, por
tê-lo abandonado?
– Não, não podia –responde a multidão.
– Respondei-me ainda ao seguinte: aquele cavalo, segundo o vosso
parecer, como terá recebido o filho do rei, que ia para resgatá-lo, curá-lo e
levá-lo novamente para o lugar de delícias?
– Com alegria, naturalmente, com reconhecimento e afeto.
– Mas, se o filho do rei tiver dito ao cavalo: “Eu vim para isto e para
fazer-te isto, mas tu precisas ser bom, obediente, cheio de boa vontade e fiel
a mim”, que achais que o cavalo terá respondido?
– Oh! Não é preciso perguntar! Ele terá respondido que sabia bem o
que lhe custava ser expulso do reino e que queria ser como o filho do rei
dizia.
– Então, segundo vós, qual era o dever daquele cavalo?
– Ser ainda melhor do que lhe estava sendo pedido, mais afetuoso, mais
dócil, para ser perdoado do mal passado, em reconhecimento pelos bens
obtidos.
– E se ele não tivesse feito assim?
– Seria digno de uma morte, porque seria pior do que uma fera
selvagem.
– Amigos, vós julgastes bem. Mas fazei também vós como quereríeis
que o cavalo fizesse. Vós, homens, criaturas prediletas do Rei dos Céus,
Deus, meu Pai e vosso; vós a quem, depois dos Profetas, foi mandado por
Deus o seu próprio Filho, sede, oh! sede — eu vos conjuro pelo vosso bem
e porque vos amo como só um Deus pode amar, aquele Deus que está em
Mim para operar o milagre da Redenção — sede, ao menos, como vós
julgais que deve ser aquele animal. Ai daquele que rebaixa a si próprio,
homem, a um grau inferior ao do animal! Mas, se ainda podia haver
desculpa para aqueles que até o momento presente estavam
pecando — porque muito tempo e muita poeira do mundo já passaram,
desde quando foi dada a Lei, e sobre esta se pousou — agora já não podeis
mais. Eu vim para trazer-vos de novo a palavra de Deus. O Filho do homem
está entre os homens para levá-los novamente a Deus. Segui-me. Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida.
61.3
Ouve-se o murmúrio de costume por entre a multidão.
Jesus, então, ordena aos discípulos:
– Fazei que os pobres venham para a frente. Para eles Eu tenho a rica
oferta de alguém que a eles se recomenda para obter o perdão de Deus.
Vêm avante três velhinhos esfarrapados, dois cegos e um encolhido;
depois uma viúva com sete meninos macilentos.
Jesus os olha fixamente um por um, sorri para a viúva e especialmente
para os orfãozinhos. Antes diz a João:
– Que essas pessoas sejam colocadas lá no pomar. Quero falar com
elas.
Mas Ele se torna severo, com os olhos flamejantes, quando a Ele se
apresenta um dos velhinhos. Porém, não diz nada no momento.
Jesus chama Pedro e faz com que ele lhe dê a bolsa recebida pouco
antes e uma outra cheia de moedas menores, esmolas diversas recolhidas
entre os bons. Despeja tudo sobre o banco que está junto ao poço, conta e
divide. Faz seis partes: uma delas bem grande, toda com moedas de prata;
cinco menores em dimensão, com muito bronze e só uma ou outra moeda
grande. Chama os pobrezinhos doentes e lhes pergunta:
– Não tendes nada a dizer-me?
Os cegos se calam. Mas o encolhido diz:
– Que Aquele de quem vens te proteja.
E nada mais.
Jesus lhe põe a esmola na mão sã. O homem lhe diz:
– Que Deus te recompense. Mas, mais do que isto, eu de Ti queria a
cura.
– Tu não a pediste.
– Sou pobre, um verme que os grandes pisam, não ousava esperar que
Tu tivesses piedade de um mendigo.
– Eu sou a Piedade que se inclina sobre toda miséria que clama por
Mim. Não rejeito ninguém. Não peço mais do que amor e fé, para dizer:
“Eu vou te atender.”
– Oh! Meu Senhor! Eu creio! Eu te amo! Salva-me, então! Cura o teu
servo!
Jesus põe a mão sobre aquele dorso curvado e a faz deslizar como que
acariciando-o; diz então:
– Quero que sejas curado.
O homem se endireita, ágil e íntegro, com palavras de bênçãos infinitas.
61.4
Jesus dá a esmola aos cegos, e espera um momento para despedi-
los…depois os deixa ir.
Chama os velhos. Dá ao primeiro uma esmola e o conforta ajudando-o
a pôr na cinta as moedas.
Jesus se interessa piedoso pelas desventuras do segundo, que lhe conta
a doença de uma filha:
– Só tenho essa! E agora ela está morrendo. Que será de mim? Oh! Se
Tu pudesses ir lá! Ela não pode vir, não se mantém em pé. Queria… Mas
não pode. Mestre, Senhor, Jesus, tem piedade de nós!
– Onde moras, pai?
– Em Corozaim. Pergunta por Isaque de Jonas, chamado o Adulto. Irás
mesmo? Não te vais esquecer da minha desventura? E curarás a minha
filha?
– Podes crer que Eu a possa curar?
– Oh! Se eu creio! Por isso é que Te estou falando dela.
– Vai para casa, pai. Tua filha estará à porta para te saudar.
– Mas ela está de cama e não pode levantar-se há três… Ah!
Compreendi! Oh! Obrigado, Rabi! Bendito és Tu e Aquele que Te enviou!
Louvor a Deus e ao seu Messias!
O velho vai chorando, coxeando, o mais rápido que pode. Mas quando
já está quase saindo do pomar, ele diz:
– Mestre, mas irás assim mesmo à minha pobre casa? Isaque Te espera
para beijar-te os pés, lavá-los com suas lágrimas e oferecer-te o pão do
amor. Vai Jesus, eu falarei de Ti aos da cidade.
– Irei. Vai em paz e sê feliz.
61.5
Vem para a frente o terceiro velhinho, que parece o mais esfarrapado.
Mas Jesus só tem agora o monte maior de moedas. E Ele chama em voz
alta:
– Mulher, vem com os teus pequeninos.
A mulher, jovem e macilenta, vem para a frente, de cabeça inclinada.
Parece uma galinha choca, entre a sua triste ninhada.
– Desde quando és viúva, mulher?
– Faz três anos, na lua de Tisri.
– Quantos anos tens?
– Vinte e sete.
– São todos filhos teus?
– Sim, Mestre, e… e não tenho mais nada. Tudo se acabou… como
posso trabalhar, se ninguém me quer com todos estes pequeninos?
– Deus não abandona nem o verme que Ele criou. Ele não te
abandonará, mulher. Onde moras?
– Perto do lago, a três estádios fora de Betsaida. Ele me disse que
viesse… Meu marido morreu no lago, era pescador.
“Ele” é André, que ficou corado, e querendo desaparecer.
– Fizeste bem, André, em dizer à mulher que viesse a Mim.
André se anima e murmura:
– O homem era meu amigo, era bom, e morreu durante uma
tempestade, perdendo também seu barco.
– Toma mulher. Isto te ajudará por muito tempo; depois virá outro sol
no teu dia. Sê boa, educa na Lei os teus filhos e não te faltará a ajuda de
Deus. Eu te abençôo, a ti e aos teus pequenos.
E os acaricia um por um com grande piedade.
A mulher vai-se com o seu tesouro apertado sobre o coração.
61.6
– E a mim? –pergunta o velhinho que ficou por último.
Jesus olha para ele, e se cala.
– Nada para mim? Não és justo! A ela deu seis vezes mais do que aos
outros e a mim nada. Mas… e era mulher!
Jesus olha para ele e se cala.
– Olhai todos se está havendo justiça! Eu venho de longe, porque me
disseram que aqui se dava dinheiro; depois, estou vendo aqui quem ganha
demais e a mim não se dá nada. Um pobre velho que é doente! E quer que
se creia Nele!…
– Velho, não te envergonhas de mentir assim? Estás com a morte atrás
de ti, e mentes; procuras roubar de quem está com fome. Por que queres
roubar dos irmãos a esmola que Eu recebi para distribuir com justiça?
– Mas eu…
– Cala-te! Deverias já ter compreendido pelo meu silêncio e pelo meu
ato que Eu havia te conhecido; e,então, seguir o meu exemplo de silêncio.
Por que queres que Eu te envergonhe?
– Eu sou pobre.
– Não. Tu és um avarento e um ladrão. Vives para o dinheiro e para a
usura.
– Eu nunca emprestei com usura. Deus é minha testemunha.
– E isto não é usura, e da mais feroz, roubar de quem tem
verdadeiramente necessidade? Vai. Arrepende-te. Para que Deus te perdoe.
– Eu te juro…
– Cala-te! Eu te ordeno. Foi dito: “Não jurarás em falso.” Se Eu não
tivesse respeito pelos teus cabelos brancos, Eu daria uma busca em ti e em
teu peito acharia uma bolsa cheia de ouro, que é o teu coração. Vai-te
embora.
Mas agora o velhinho, envergonhado, vendo-se descoberto em seu
segredo, vai-se embora sem que seja necessário o som de trovão que há na
voz de Jesus.
A multidão o ameaça, o escarnece e o insulta como a um ladrão.
– Calai-vos! Se ele errou não queirais vós também errar. Ele falta com a
sinceridade, é um desonesto. Vós, se o insultardes, faltais com a caridade.
Ao irmão, que comete uma falta, não se insulta. Cada um tem o seu pecado.
Ninguém é perfeito, a não ser Deus. Eu precisei envergonhá-lo, porque não
é lícito ser ladrão e, menos ainda, ladrão que rouba dos pobres. Mas só o
Pai é que sabe quanto sofri por dever fazer isso. Vós também sofrei com
isso, ao verdes que um de Israel falta contra a Lei procurando defraudar o
pobre e a viúva. Não sejais cobiçosos. Que o vosso tesouro seja a vossa
alma, não o dinheiro. Não sejais perjuros. Que a vossa linguagem seja
sincera e honesta como as vossas ações. A vida não é eterna e a hora da
morte chega. Vivei de modo que na hora da morte a paz possa estar em
vosso espírito. A paz de quem viveu como um justo. Ide para as vossas
casas…
61.7
– Piedade, Senhor! Este meu filho é mudo, por causa de um demônio
que o maltrata.
– E este meu irmão é semelhante a um animal imundo: ele se revolve
na lama e come excrementos. E um espírito maligno o arrasta; ele, mesmo
sem querer, faz coisas imundas.
Jesus se dirige para o grupo que o está implorando. Ele ergue os braços
e ordena:
– Sai deles. Deixai a Deus as suas criaturas.
Entre gritos e barulho, os dois infelizes ficam curados. As mulheres que
os conduziam prostram-se dando louvores a Deus.
– Ide para as vossas casas e sede reconhecidos a Deus. A paz esteja
com todos. Ide.
A multidão vai-se, comentando os fatos. Os quatro discípulos colocam-
se ao redor do Mestre.
– Amigos, em verdade Eu vos digo que em Israel estão todos os
pecados, e os demônios aí fizeram sua morada. E não são possessões só
aquelas que tornam mudos os lábios e levam os homens a viver como
animais comendo sujeiras. Mas as mais verdadeiras e numerosas são
aquelas que tornam os corações mudos para a honestidade e para o amor,
fazendo deles um antro de vícios imundos. Oh! Meu Pai!
Jesus, abatido, se assenta.
– Estás cansado, Mestre?
– Cansado não, meu João. Mas desolado pelo estado dos corações e
pela pouca vontade de se emendarem. Eu vim… mas o homem… o
homem… oh! Meu Pai!…
– Mestre, eu Te amo, nós todos Te amamos.
– Eu sei disso. Mas sois tão poucos… e meu desejo de salvar é tão
grande!
Jesus abraça João e mantém a cabeça dele sobre a sua. Está triste.
Pedro, André, Tiago, ao redor Dele, olham-no com amor e tristeza.
E a visão cessa assim.
62. Jesus procurado pelos discípulos
enquanto reza na noite.
5 de novembro de 1944.
62.1
Vejo Jesus sair, fazendo o menor barulho possível da casa de Pedro
em Cafarnaum. Compreende-se que Ele pernoitou lá para contentar o seu
Pedro.
É ainda noite alta. O céu parece um bordado de estrelas. O lago reflete
apenas este brilho; mais que vê-lo, se adivinha este lago tranqüilo que
dorme sob as estrelas, pelo suave sussurro das águas sobre o seu leito.
Jesus encosta novamente a porta, olha o céu, o lago, o caminho. Pensa
um pouco, e depois se encaminha, não ao longo do lago, mas em direção ao
povoado, percorrendo-o em parte, indo depois para o campo. Entra nele,
caminha, aprofundando-se ali; pega uma vereda que leva às primeiras
ondulações de um terreno plantado com oliveiras, se introduz nesta paz
verde e silenciosa e lá vai prostrar-se em oração.
É uma oração ardente! Ele reza de joelhos e, em seguida, como que
fortalecido, põe-se de pé e reza ainda, com o rosto erguido para o alto, um
rosto ainda mais espiritualizado pela nascente luz que vem de uma serena
aurora de verão. Reza agora sorrindo, enquanto que antes suspirava forte
como se estivesse sob o peso de algum grande sofrimento moral. Reza com
os braços abertos. Parece uma cruz viva, alta, angélica, de tão suave que é.
Parece abençoar todo o campo, o dia que nasce, as estrelas que
desaparecem, o lago que se revela.
62.2
– Mestre! Procuramos tanto a Ti! Vimos a porta encostada pelo lado
de fora, quando voltamos da pesca e pensamos que tivesses saído. Mas não
te encontrávamos. Enfim, um camponês que estava enchendo suas cestas
para levá-las para a cidade foi quem nos informou. Nós estávamos te
chamando: “Jesus! Jesus!”, e ele nos disse: “Estais procurando o Rabi que
fala às multidões? Ele se foi por aquele caminho acima em direção ao
monte. Ele deve estar no olival do Miquéias, porque vai lá freqüentemente.
Eu já o vi outras vezes.” Ele tinha razão. Por que saíste assim tão cedo,
Mestre? Por que não descansaste? Talvez a cama não estava cômoda…
– Não, Pedro. A cama estava cômoda e o quarto muito bom. Mas Eu
costumo fazer assim freqüentemente para soerguer o meu espírito e para
unir-me ao Pai. A oração é uma força para si e para os outros. Tudo se
consegue com a oração. Se não a graça, que nem sempre o Pai concede — e
não se deve pensar que isto seja desamor, mas sempre crer que isso é uma
coisa querida por uma Ordem que rege as sortes de cada homem, cujo
escopo é o bem — certamente a oração dá paz e equilíbrio, para poder
resistir a tantas coisas que incomodam sem sair do caminho santo. É fácil,
sabes, Pedro, ter a mente ofuscada e o coração agitado pelas coisas que nos
circundam! E com uma mente ofuscada e um coração agitado, como pode-
se ouvir a Deus?
– É verdade. Mas nós não sabemos rezar! Não sabemos dizer as bonitas
palavras que Tu dizes.
– Dizei aquelas que sabeis, como as sabeis. Não são as palavras, mas os
movimentos que as acompanham, que tornam as orações agradáveis ao Pai.
– Nós gostaríamos de rezar como Tu rezas.
– Eu vos ensinarei a rezar também. Eu vos ensinarei[106] a mais santa
das orações. Mas, para que ela não seja uma fórmula vazia sobre os vossos
lábios, Eu quero que o vosso coração tenha já em si pelo menos um mínimo
de santidade, de luz, de sabedoria… Por isso é que Eu vos instruo. Depois
Eu vos ensinarei a santa oração. 62.3Queríeis alguma coisa de Mim, vós que
Me andastes procurando?
– Não, Mestre. Mas há muitos que estão querendo muito de Ti. Já
chegou gente que veio de perto de Cafarnaum; eram pessoas pobres,
doentes, pessoas angustiadas, homens de boa vontade, com o desejo de se
instruirem. Nós lhes dissemos, visto que nos perguntavam de Ti: “O Mestre
está cansado e dormindo. Ide-vos embora. Voltai no próximo sábado.”
– Não, Simão. Isto não se diz. Não existe só um dia para a piedade. Eu
sou o Amor, a Luz, a Salvação todos os dias da semana.
– Mas… até agora, falaste só aos sábados.
– Porque Eu era ainda desconhecido. Mas, à medida que Eu for ficando
conhecido, todos os dias serão de efusão de Graça e de graças. Em verdade,
Eu te digo que virá um tempo em que nem o espaço de tempo, que é
concedido a um pássaro para repousar sobre um ramo e saciar-se de
grãozinhos, será dado ao Filho do homem para o seu repouso e sua
alimentação.
– Mas assim ficarás doente! Nós não permitiremos isso. Tua bondade
não deve fazer-te infeliz.
– E tu achas que Eu possa me tornar infeliz por isso? Oh! Mas se o
mundo todo viesse a Mim para me ouvir, para chorar os seus pecados e as
suas dores sobre o meu coração, para ser curado na alma e no corpo, e Eu
me consumisse em falar-lhe, em perdoá-lo, em derramar sobre ele o meu
poder, aí sim, então Eu seria muito feliz, Pedro, a ponto de nem mais
recordar com saudade do Céu, no qual Eu estava no Pai!… 62.4De onde eram
esses que vieram a Mim?
– De Corozaim, de Betsaida, de Cafarnaum; até de Tiberíades e de
Gergesa tinham vindo; e das centenas e centenas de pequenas cidades
espalhadas entre uma e outra.
– Ide a eles e dizei-lhes que estarei em Corozaim, em Betsaida e nas
cidades entre esta e aquela.
– Por que não em Cafarnaum?
– Porque Eu sou para todos e todos me devem ter; e depois… lá está o
velho Isaque que me espera… Não fique ele desiludido em sua esperança.
– Tu nos esperas aqui, então?
– Não. Eu vou e vós ficais em Cafarnaum para encaminhar as
multidões para Mim; depois Eu virei.
– Nós vamos ficar sozinhos…
Pedro está preocupado.
– Não fiques preocupado. Que a obediência te faça alegre e com ela
tenhas a persuasão de seres a Mim um discípulo útil. E contigo e, como tu,
estes outros.
Pedro e André, com Tiago e João, se tranqüilizam. Jesus os abençoa, e
se separam.
Assim termina a visão.
[106] Eu vos ensinarei... Se alguém — assim anota Maria Valtorta numa cópia dactilografada — possa ter feito ou faça excepção
[= objecção] ao “Pai” dito por Jesus e Maria na noite do adeus [em 44.3], considere esta resposta. Maria não tinha necessidade
de ser preparada para rezar com a oração de Cristo. Os apóstolos sim. Por isso Jesus disse o “Pai” com Maria antes de com os
discípulos porque Ela era cheia de Graça, de Luz e Sabedoria, e os discípulos não.
63. O leproso curado perto de Corozaim.
6[107] de novembro de 1944.
63.1
Com a precisão de uma fotografia perfeita, tenho diante de minha‐
vista espiritual, desde esta manhã, antes até da aurora, um pobre leproso.
Este é verdadeiramente um farrapo humano. Eu não saberia dizer que
idade ele pode ter, de tão devastado está pelo mal. Definhado, seminu,
mostra o seu corpo reduzido ao estado de uma múmia corroída, com as
mãos e os pés retorcidos, e já lhe faltando algumas partes, de tal modo que
aquelas pobres extremidades nem parecem mais ser de um corpo humano.
As mãos, como garras e retorcidas, mais parecem patas de algum monstro
alado; os pés parecem quase cascos de boi, de tão decepados e
desfigurados.
E a cabeça, então!… Eu creio que só alguém que tivesse ficado
insepulto e mumificado pelo sol e pelo vento é que poderia ter ficado com
uma cabeça semelhante a esta. Poucos fios de cabelo ainda lhe restam,
espalhados aqui e ali, agarrados a uma pele amarelenta e cheia de crostas,
parecendo poeira seca sobre uma caveira. Olhos apenas entreabertos e
muito encovados, lábios e nariz roídos pelo mal, mostrando já as cartilagens
e as gengivas; as orelhas são dois embrionários pavilhões em ruínas e sobre
tudo isto, está uma pele ressequida, amarela como certos caulins, sob a qual
os ossos penetram. Parece que recebeu a incumbência de reunir esses
pobres ossos dentro do seu saco sujo, todo cheio de remendos de cicatrizes
ou dilacerações de feridas já apodrecidas. Uma ruína!
Penso até em uma Morte que esteja vagante pela terra e recoberta por
uma pele mirrada sobre o esqueleto, envolvida em um manto sujo todo em
tiras e tendo na mão, não a foice, mas um bastão cheio de nós, certamente
arrancado de alguma árvore.
Ele está à porta de uma caverna afastada da estrada, uma verdadeira
espelunca, tão desmoronada que nem sei dizer se no princípio foi um
sepulcro, ou uma cabana de lenhadores, ou os restos de alguma casa
demolida. Ele olha para a estrada, que está a uns cento e poucos metros do
seu antro, uma estrada mestra poeirenta e ainda cheia de sol. A perder de
vista, sol, poeira e solidão reinam sobre a estrada. Muito mais acima, a
noroeste, deve haver um povoado, ou cidade. Vejo as primeiras casas.
Estará à distância de pelo menos um quilômetro.
O leproso olha e suspira. Depois, pega uma tigela quebrada, enche-a
com água de um córrego e bebe. Entra em um emaranhado de sarças, atrás
do antro, inclina-se, arranca do chão umas raízes selvagens. Volta ao
córrego, limpa-as da poeira mais grossa com a sua água escassa, e as come
devagar, levando-as até à boca com dificuldade por causa de suas mãos
arruinadas. As raízes devem estar duras como uns gravetos. Custa a
mastigá-las e muitas ele até cospe, sem as poder engolir embora procure
ajudar-se bebendo uns goles de água.
63.2
– Onde estás, Abel? –grita uma voz.
O leproso estremece e tem algo sobre os lábios parecido com um
sorriso. Mas estão de tal modo reduzidos aqueles lábios, que é também
informe esta sombra de sorriso. Responde com uma voz estranha, estridente
(me faz pensar no grito de certos pássaros dos quais ignoro o nome exato):
– Estou aqui! Eu pensei que tu não viesses mais! Pensei que tivesse te
acontecido algum mal; fiquei triste… Se tu também me faltares, que restará
ao pobre Abel?
Ao dizer isso, ele caminha em direção à estrada até o ponto em que,
segundo a Lei, ele podia chegar e, por isso, a uma certa distância, ele se
detém.
Pela estrada vem vindo um homem, quase correndo, de tão rápido que
vem.
– Mas és tu mesmo, Samuel? Oh! Se não és tu, a quem eu espero, sejas
lá quem fores, não me faças mal!
– Sou eu, Abel, sou eu mesmo. E são. Olha como eu corro. Estou
atrasado, eu sei. E já estava com pena de ti. Mas, quando souberes… Oh!
Tu ficarás feliz! E aqui te trago, não só os costumeiros pedaços de pão, mas
um pão inteiro, fresco e bom, todo para ti; trago também um bom peixe e
um queijo. Tudo para ti. Quero que faças festa, meu pobre amigo, para
preparar-te para uma festa maior.
– Mas, como é que estás assim tão rico? Eu não entendo…
– Agora vou te contar.
– E estás são. Nem pareces mais Tu!
63.3
– Então escuta. Eu soube que em Cafarnaum estava aquele Rabi que
é santo, e para lá fui…
– Pára, pára, eu estou infeccionado.
– Oh! Não tem importância! Não tenho mais medo de nada.
O homem, que outro não é senão aquele pobre encolhido curado e
ajudado por Jesus no pomar da sogra de Pedro, chegou de fato com o seu
passo rápido a poucos passos do leproso; falou, caminhando e rindo feliz.
Mas o leproso lhe diz ainda:
– Pára, em nome de Deus. Se alguém te vê…
– Eu vou parar. Olha, vou colocar aqui as provisões. Come, enquanto
eu falo.
Ele põe sobre uma pedra grande um pequeno embrulho e o abre.
Depois, dá um passo atrás, enquanto o leproso avança e se atira sobre o
alimento inusitado.
– Oh! Quanto tempo faz que eu não comia assim! Como é bom! E eu
pensando que iria dormir com o estômago vazio. Não veio hoje um
piedoso… nem mesmo tu… Eu mastiguei algumas raízes…
– Pobre Abel! Eu estava pensando. Mas dizia: “Bom. Agora, ele deve
estar triste, mas depois ficará feliz!”
– Feliz, sim, por esta comida tão boa. Mas depois…
– Não! Serás feliz para sempre.
O leproso sacode a cabeça.
– Escuta, Abel. Se puderes ter fé, serás feliz.
– Mas fé em quem?
– No Rabi. No Rabi que me curou.
– Mas eu sou leproso e estou no fim! Como poderá me curar?
– Oh! Ele pode. É santo.
– Sim. Também Eliseu curou Naamã, o leproso[108]… eu sei… Mas
eu… Eu não posso ir ao Jordão.
– Tu serás curado, sem precisar de água. Escuta: este Rabi é o Messias,
entendes? O Messias! É o Filho de Deus. E cura todos aqueles que têm fé.
Ele diz: “Eu quero”, e os demônios fogem, e os membros se endireitam, e
os olhos cegos vêem.
– Oh! Se eu tivesse fé! Mas como posso ver o Messias?
– Eis-me aqui… eu vim para isso. Ele está lá, naquele povoado. Sei
onde estará nesta tarde. Se quiseres… Eu disse: “Eu falo a Abel, e se Abel
sente que tem fé o conduzo ao Mestre.”
– Estás louco, Samuel? Se eu me aproximar das casas, serei apedrejado.
– Não nas casas. A tarde está para cair. Eu te levarei até aquele pequeno
bosque e depois irei chamar o Mestre. Eu te levarei…
– Vai, vai logo! Eu vou por mim mesmo até aquele ponto. Caminharei
no fosso, entre a sebe, mas tu vai, vai… Oh! vai, meu bom amigo! Se
soubesses o que é ter este mal e o que é esperar sarar!… O leproso não
pensa em mais nada, nem em comer. Ele chora e gesticula, implorando ao
amigo.
– Eu vou, e tu vais.
O ex-encolhido vai embora correndo.
63.4
Abel desce com dificuldade no fosso que costeia a estrada, todo cheio
de sarças que cresceram no fundo seco. Ali há apenas um fio de água ao
centro. A tarde desce enquanto o infeliz escorrega por entre as sarças,
sempre alerta se ouve qualquer passo. Duas vezes agacha-se no fundo: a
primeira, por causa de um cavaleiro que percorre a trote a estrada; a
segunda, por causa de três homens que vão levando cargas de feno para o
povoado. Depois ele prossegue.
Mas Jesus e Samuel chegam antes dele ao pequeno bosque.
– Daqui a pouco ele estará aqui. Ele anda devagar por causa das feridas.
Tem paciência!
– Não tenho pressa.
– Tu o curarás?
– Ele tem fé?
– Oh!… Ele estava morrendo de fome e estava vendo aquele alimento
depois de anos de abstinência; no entanto, depois de ter comido poucos
bocados, deixou tudo para correr aqui.
– Como tu o conheceste?
– Sabes… eu vivia de esmolas, depois da minha desventura,
percorrendo os caminhos, indo de um lugar para outro. Por aqui eu passava
cada sete dias quando conheci aquele pobrezinho… num dia em que,
constrangido pela fome, ele impeliu-se, sob um temporal, que teria posto
em fuga até os lobos, indo até o caminho que leva ao povoado, a procura de
alguma coisa. Buscava entre as imundícies, como um cão. Eu tinha pão
seco no alforje, donativo de pessoas boas; dividi ao meio com ele. Desde
então, somos amigos e cada semana eu o reabasteço. Com aquilo que
tenho… se tenho muito, dou muito; se pouco, pouco. Faço o que posso,
como se fosse meu irmão. E é desde aquela tarde em que me curaste,
bendito sejas Tu, que eu venho pensando nele… e em Ti.
– Tu és bom, Samuel; por isso a graça te visitou. Quem ama merece
tudo de Deus. 63.5Mas eis ali qualquer coisa entre as ramagens…
– És tu, Abel?
– Sou eu.
– Vem. O Mestre está te esperando aqui, debaixo da nogueira.
O leproso emerge do fosso, sobe para a borda, atravessa-a e entra pelo
prado. Jesus, com as costas apoiadas em uma nogueira muito alta, o espera.
– Mestre, Messias, Santo, tem piedade de mim!
E se lança todo entre a relva, aos pés de Jesus. Com o rosto no chão, diz
ainda:
– Ó meu Senhor! Se queres, podes limpar-me!
Depois, toma coragem para pôr-se de joelhos, estende os braços
esqueléticos, com aquelas mãos retorcidas e ergue o rosto ossudo e
devastado… As lágrimas descem das órbitas doentes para os lábios
corroídos.
Jesus o olha com muita piedade. Olha para aquela sombra de homem
que o mal horrendo devora, que só uma verdadeira caridade pode suportar
perto de si de tão repugnante e mal cheiroso que ele está. Contudo, eis que
Jesus lhe estende uma mão, a sua sã e bonita mão direita, como que para
acariciar o pobrezinho.
Este, sem se levantar, afasta-se sobre seus calcanhares, e grita:
– Não me toques! Tem piedade de Ti!
Mas Jesus dá um passo à frente. Solene, bom, suave, Ele pousa os seus
dedos sobre aquela cabeça carcomida pela lepra e diz, com voz baixa e
cheia de amor, mas imperiosa:
– Eu quero! Fica limpo!
A mão ainda permanece, por alguns minutos, sobre a pobre cabeça.
– Levanta-te. Vai ao sacerdote. Cumpre tudo o que a Lei prescreve. E
não fales do que Eu te fiz: somente sê bom. Não peques mais. Eu te
abençôo.
– Oh! Senhor! Abel! Mas tu estás curado!
Samuel, que vê a metamorfose do amigo, grita de alegria.
– Sim. Está são. Ele o mereceu por sua fé. Adeus. A paz esteja contigo.
– Mestre! Mestre! Mestre! Eu não te deixo! Não posso te deixar.
– Faze tudo o que a Lei quer. Depois nos veremos ainda. Pela segunda
vez esteja sobre ti a minha bênção.
Jesus se põe a caminho, fazendo sinal a Samuel para que fique. E os
dois amigos choram de alegria, enquanto, à luz de um quarto de lua, voltam
à caverna para uma última parada naquele antro de desventura.
Assim cessa a visão.
[107] 6 é de incerta leitura do manuscrito original, onde pareceria corrigido em 8. Precisamos que as datas, colocadas por Maria
Valtorta no início de cada capítulo, vêm mencionadas de modo uniforme, isto é, mantendo o nome do mês mesmo quando Maria
Valtorta indica o mês com o número de ordem, e acrescentando o ano se Maria Valtorta o omite.
[108] Eliseu curou Naamã, o leproso, como se narra em: 2 Reis 5,1-14.
64. O paralítico curado em Cafarnaum.
9 de novembro de 1944.
[…].
No mesmo dia 9 de novembro, logo depois.
64.1
Vejo as margens do lago de Genezaré. E vejo os barcos dos
pescadores, arrastados para a margem. Junto a eles estão Pedro e André,
ocupados em consertar as redes, que os empregados levam, gotejantes,
depois de as terem enxaguado no lago, para limpá-las dos detritos que nelas
ficaram presos. À distância de uns dez metros, João e Tiago, encurvados
sobre seu barco, estão ocupados a pô-lo em ordem, ajudados por um
empregado e por um homem de seus cinqüenta a ciqüenta e cinco anos, que
eu penso ser Zebedeu, porque o empregado o chama de “patrão”, e porque
ele é muito parecido com Tiago.
Pedro e André, de costas para o barco, trabalham em silêncio para
reatar os fios e as bóias de sinal. De vez em quando, trocam algumas
palavras, a respeito do trabalho deles que, pelo que eu pude entender, foi
infrutífero.
Pedro se queixa, não pela bolsa vazia, nem pelo trabalho inútil, mas
diz:
– Isso me aborrece porque… como faremos para alimentar aqueles
pobrezinhos? A nós só são feitas raras ofertas, e aquelas dez moedas e sete
dracmas que recolhemos nestes quatro dias, nelas eu não toco. Só o Mestre
me deve indicar a quem e como vão ser dadas aquelas moedas. E até o
sábado Ele não volta! Se eu tivesse feito uma boa pesca!… O peixe mais
miúdo, eu o cozinharia, e o daria àqueles pobres… e, se alguém em casa
resmungasse, eu não daria importância a isso. Os sãos podem ir procurá-lo.
Mas os doentes!…
– Aquele paralítico, por exemplo!… Andaram tanto para trazê-lo
aqui… –diz André.
– Escuta, meu irmão. Eu penso… que não se pode estar divididos, e não
sei porque o Mestre não nos quer sempre com Ele. Ao menos… eu não
veria mais estes pobrezinhos que não posso socorrer, e quando eu os visse
poderia lhes dizer: “Ele está aqui.”
64.2
– Estou aqui!
Jesus se aproximou deles devagar caminhando sobre a areia molhada.
Pedro e André dão um pulo. Gritam:
– Oh! Mestre!
Chamam os outros:
– Tiago! João! O Mestre! Vinde!
Os dois chegam correndo. E todos abraçam Jesus. Um lhe beija a veste,
outro as mãos; João ousa passar-lhe um braço ao redor da cintura e pousar a
cabeça sobre o seu peito. Jesus o beija sobre os cabelos.
– De que estáveis falando?
– Mestre… dizíamos que Te desejaríamos aqui.
– Para que, amigos?
– Para ver-te e vendo-te, te amar e, depois, por causa dos pobres e
doentes. Estão à tua espera há dois ou mais dias… Eu fiz o que podia.
Coloquei-os lá, estás vendo aquela cabana naquele campo inculto? Lá os
operários do barco trabalham fazendo reparos. Lá coloquei abrigado um
paralítico, um que tem febre alta, e um menino que está morrendo sobre o
seio de sua mãe. Eu não podia mandá-los à tua procura.
– Fizeste bem. Mas, como pudeste socorrê-los e quem foi que os
trouxe? Me disseste que são pobres.
– É verdade, Mestre. Os ricos têm carros e cavalos. Os pobres, só as
pernas. Não podem ir atrás de Ti diligentes. Eu fiz o que pude. Olha: este é
o donativo que eu recebi. Mas não toquei em nenhuma moeda. Tu é que
farás isso.
– Pedro, tu podias tê-lo feito. Certo… Meu Pedro, me desagrada saber
que por causa de Mim tu tenhas que sofrer censuras e passar canseiras.
– Não, Senhor. Não deve desagradar-te isso. Eu não tenho dor. Somente
o que me desagrada é não ter podido fazer maior caridade. Mas, podes crer,
eu fiz, todos nós fizemos tudo o que pudemos.
– Eu sei. Sei que trabalhaste e sem resultado. Mas, se não há comida, a
tua caridade permanece viva, ativa e santa aos olhos de Deus.
64.3
Uns meninos chegaram gritando:
– O Mestre está aqui! O Mestre está aqui! Eis aqui Jesus! Eis aqui
Jesus!
Abraçam-se a Ele, que os acaricia, mesmo falando com os discípulos.
– Simão, Eu vou entrar em tua casa. Tu e vós ide dizer que Eu vim;
depois, trazei-me os doentes.
Os discípulos saem rapidamente em diferentes direções. Mas, que Jesus
já tenha chegado, toda Cafarnaum o sabe, graças aos pequeninos que
parecem umas abelhas ao formarem enxame e que, depois, partem da
colméia para as mais diversas flores: as casas, neste caso, as ruas, as praças.
Eles vão e vêm festivos, levando a notícia às mamães, aos transeuntes, aos
velhos sentados ao sol; depois voltam para serem acariciados por Aquele
que os ama. Um deles, audaz, diz:
– Fala a nós, para nós hoje, Jesus! Nós te queremos bem, Tu sabes, e
somos melhores que os homens.
Jesus sorri para o pequeno psicólogo e promete:
– Falarei especialmente para vós.
E, seguido pelos pequenos, vai até à casa, entra, saudando com a sua
saudação de paz:
– A paz esteja nesta casa.
O povo se aglomera na grande sala posterior, destinada às redes, cabos,
cestas, remos, velas e provisões. Vê-se que Pedro a colocou à disposição de
Jesus, amontoando tudo em um canto, para dar mais espaço. O lago não se
vê daqui. Ouve-se dele apenas o marulho lento. O que se vê é só o muro
esverdeado do pomar, onde está a velha videira e a figueira frondosa. As
pessoas estão até na estrada, transbordando da sala para o pomar, e deste
para a estrada.
64.4
Jesus começa a falar. Na primeira fila — tendo aberto caminho com
gestos prepotentes e graças ao temor que deles tem o povo — estão cinco
pessoas… influentes. Paludamentos, vestes ricas e soberba, os denunciam
como fariseus e doutores. Mas Jesus quer ter ao seu redor os seus pequenos.
Uma coroa de rostinhos inocentes, de olhos luminosos, de sorrisos
angelicais, levantados para Ele. Jesus fala, e ao falar, acaricia de vez em
quando a cabecinha encaracolada de um menininho que está sentado aos
seus pés, com a cabeça encostada aos seus joelhos sobre o bracinho
dobrado. Jesus fala sentado sobre um grande monte de cestas e redes.
– “O meu dileto desceu ao seu jardim, ao canteiro dos aromas, a
apascentar por entre os jardins e a colher lírios… ele que se deleita entre os
lírios”, diz Salomão[109] de Davi, do qual Eu venho, Eu, o Messias de Israel.
O meu jardim! Qual jardim mais bonito e mais digno de Deus e do Céu,
onde as flores são os anjos criados pelo Pai? Contudo, não. Um outro
jardim quis o Filho unigênito do Pai, o Filho do homem, porque pelo
homem Eu tenho a carne, sem a qual Eu não poderia redimir[110] as culpas
da carne do homem. Um jardim que poderia ser pouca coisa inferior ao
celeste, se do Paraíso terrestre se tivessem espalhados, como mansas
abelhas de uma colméia, os filhos de Adão, os filhos de Deus, para povoar a
terra com uma santidade toda destinada ao Céu. Mas o Inimigo semeou
abrolhos e espinhos no coração de Adão e os abrolhos e os espinhos desse
coração extravasaram sobre a terra. Agora, já não há jardim, mas um mato
áspero e cruel, no qual mora a febre e se aninha a serpente.
Mas o Dileto do Pai também tem ainda um jardim nesta terra, sobre a
qual impera Mamon. O jardim no qual Ele vai nutrir-se do seu celeste
alimento: amor e pureza; o canteiro do qual Ele colhe as flores que lhe são
caras, no qual não há mancha de sensualidade, de cobiça, de soberba. Estes.
(Jesus acaricia o maior número de crianças que pode, passando sua mão
sobre aquela coroa de cabecinhas atentas, uma única carícia que os toca de
leve e os faz sorrir de alegria). Eis os meus lírios.
Não teve Salomão, em sua riqueza, veste mais bonita do que o lírio que
perfuma o vale, nem diadema de graça mais delicado e esplêndido do que
aquele que tem o lírio em seu cálice de pérola. No entanto, para o meu
coração, não há lírio que valha o que vale um destes. Não há canteiro, não
há jardim de ricos, todo cultivado com lírios, que Me valha o que vale um
só destes puros, inocentes, sinceros, simples pequeninos.
Ó homens, ó mulheres de Israel! Ó vós, grandes e humildes, pelo censo
ou por vosso cargo, ouvi! Vós estais aqui porque quereis conhecer-me e
amar-me. Então ficai sabendo qual é a primeira condição para serdes meus.
Eu não vos digo palavras difíceis. Não vos dou exemplos mais difíceis
ainda. Eu só vos digo: “Tomai a estes como exemplo.”
Quem entre vós não tem em casa um filho, um sobrinho, um pequeno
irmão ainda na infância, na meninice? Não é um descanso, um conforto, um
vínculo entre os esposos, entre os parentes, entre os amigos, um destes
inocentes, cuja alma é pura como uma aurora serena, cujo rosto afugenta as
nuvens e incute esperanças e cujas carícias enxugam lágrimas e infundem
força de vida? Por que é que existe neles tanto poder? Neles, ainda fracos,
indefesos e ignorantes? Porque têm Deus em si, têm a força e a sabedoria de
Deus. A verdadeira sabedoria: sabem amar e crer. Sabem crer e querer.
Sabem viver nesse amor e nessa fé. Sede como eles: simples, puros,
amorosos, sinceros, crentes.
Não há sábio em Israel que seja maior do que o menor destes, cuja alma
é de Deus e dela é o seu Reino. Benditos pelo Pai, amados pelo Filho do
Pai, flores do meu jardim, a minha paz esteja convosco e com aqueles que
vos imitarem por meu amor.
Jesus terminou.
64.5
– Mestre! – grita Pedro do meio da multidão–, aqui estão os doentes.
Dois podem esperar que Tu saias, mas este está comprimido por esta
multidão e, além disso, não se aguenta mais… E nós não podemos passar.
Devo mandá-lo de volta?
– Não. Descei-o pelo telhado.
– Está bem. Vamos fazer isso já.
Ouve-se o barulho dos pés sobre o telhado baixo da sala que não sendo
propriamente uma parte da casa não tem por cima nenhum assentamento
com argamassa, mas somente um telhadinho de madeira coberto de
cascalhos semelhantes a ardósia. Mas não sei que pedra era. Eles fazem
uma abertura e, por meio de cordas, fazem descer a pequena padiola sobre a
qual está o doente. Desce exatamente diante de Jesus. O povo se aglomera
mais ainda para ver.
– Tiveste grande fé, e contigo também quem te trouxe.
– Oh! Senhor! Como não ter fé em Ti?
– Portanto, Eu te digo: filho (o homem é muito jovem) são-te
perdoados todos os teus pecados.
O homem o olha chorando… talvez se sinta um pouco decepcionado,
porque esperava a cura do corpo.
Os fariseus e os doutores cochicham entre si, torcendo o nariz, a fronte
e a boca, com desdém.
– Por que estais murmurando, e mais ainda com o coração do que com
os lábios? Segundo vós é mais fácil dizer ao paralítico: “Estão perdoados os
teus pecados”, ou dizer-lhe: “Levanta-te, pega a tua cama e anda”? Vós
pensais que só Deus pode perdoar os pecados. Mas não sabeis responder o
que é mais importante, porque este, tendo perdido a tal ponto a saúde do
corpo, gastou seus haveres para recuperá-la, sem nada conseguir. Não o
pode, a não ser por Deus. Ora, para que saibais que tudo Eu posso, para que
saibais que o Filho do homem tem poder sobre a carne e sobre a alma, na
terra e no Céu, Eu digo a este: “Levanta-te, toma a tua cama e anda. Vai
para a tua casa e sê santo.”
O homem sente um choque, dá um grito, põe-se de pé, lança-se aos pés
de Jesus, beija-os e os acaricia, chora e ri; com ele os parentes e a multidão
que, depois, se abre para deixá-lo passar, como se fosse em triunfo, e o
segue toda festiva. A multidão, não os cinco invejosos, que vão-se embora,
altivos e duros como estacas.
64.6
Assim pôde entrar a mãe com seu pequenino: uma criança ainda de
peito, esquelética. Ela o estende, e diz só isto:
– Jesus, Tu amas a estes. Tu o disseste. Por este amor e por Tua mãe!…
–e chora.
Jesus pega o bebê que está mesmo à morte, coloca-o sobre o seu
coração, mantém-no assim por um momento, com aquele rostinho céreo, os
lábios arroxeados e as pálpebras já fechadas, leva-o de encontro à sua boca.
Mantém-no assim por um momento…, e quando o afasta de sua barba loira,
o rostinho já está rosado, a boquinha já faz um daqueles sorrisos incertos,
como as crianças fazem, os olhinhos olham ao redor, vivos e curiosos, as
mãozinhas, antes fechadas e abandonadas, apalpam entre os cabelos e a
barba de Jesus que ri.
– Oh! Meu filho! –grita a mãe feliz.
– Pega-o, mulher. Sê feliz e boa.
E a mulher pega o filho renascido e o aperta ao seio. O pequenino
reclama logo os seus direitos ao alimento e procura, abre, encontra e mama,
mama, ávido e contente.
Jesus abençoa e dá uns passos até à porta onde está o doente de febre
alta.
– Mestre! Sê bom!
– E tu também. Usa a saúde na justiça.
Jesus o acaricia e sai.
64.7
Volta à margem, seguido, precedido, louvado por muitos que
suplicam:
– Nós não te ouvimos falar. Não pudemos entrar. Fala a nós também.
Jesus faz sinal que sim e como a multidão o aperta, a ponto de quase
sufocá-lo, ele entra no barco de Pedro. Não basta. O assédio é premente.
– Leva o barco para o mar e afasta-te um pouco da margem.
A visão termina aqui.
[109] diz Salomão, em: Cântico dos cânticos 6,2-3.
[110] sem a qual Eu não poderia redimir, não porque fosse indispensável a encarnação para redimir, mas porque essa
corresponde à vontade do Pai à qual adere a obediência do Filho: isto deduz-se de todo o contexto da obra valtortiana. A realidade
da encarnação do Verbo é afirmada, por exemplo, em 207.11 e em 587.3; e a sua razão de ser é explicada em: 69.5 – 96.5 (o
redentor não podia ser um anjo) – 126.3 – 167.13 – 281.16 – 444.7 – 487.6 – 498.5 –567.23. (Significado bem diferente tem a
encarnação da qual trataremos em nota a 587.3).
65. A pesca milagrosa
e a eleição dos quatro primeiros apóstolos.
10 de novembro de 1944.
65.1
E recomeça com as palavras de Jesus:
– Quando chega a primavera e tudo floresce, o homem do campo diz,
contente: “Terei muito fruto.” E jubila em seu coração por esta esperança.
Mas, da primavera até o outono, do mês das flores ao das frutas, quantos
dias, quantos ventos e chuvas, sol e borrascas haverão de passar e, às vezes,
guerra ou crueldade da parte dos poderosos, as doenças das plantas e
doenças do homem do campo, pelo que as plantas — não mais cavadas e
reforçadas, regadas, podadas, sustentadas, limpas — que prometiam muito
fruto, entristecem e morrem ou totalmente ou na sua colheita!
Vós me estais seguindo. Vós me amais. Vós, como as plantas na
primavera, vos ornais com bons propósitos e com amor. Na verdade, Israel,
esta aurora do meu apostolado está como os nossos doces campos no
luminoso mês de Nisam. Mas, ouvi. Como um ardor de estiagem, virá
Satanás a queimar-vos com o seu hálito, pois tem inveja de Mim. Virá o
mundo com o seu vento gelado para gelar o vosso florescer. Virão as
paixões, como tempestades. Virá o tédio, como uma chuva obstinada. Todos
os inimigos meus e vossos virão para esterilizar tudo o que deveria vir desta
vossa santa inclinação de florescer em Deus. Eu vos aviso porque sei.
Mas, será que tudo, então, estará perdido quando Eu, como agricultor
doente — mais do que doente, morto — não mais poderei dar a vós
palavras e milagres? Não. Eu semeio e cultivo, enquanto for o meu tempo.
Depois, sobre vós crescerá e amadurecerá, se tomardes os necessários
cuidados.
Olhai para aquela figueira da casa de Simão, filho de Jonas. Quem a
plantou, não encontrou o ponto certo e propício. Plantada junto ao úmido
muro do norte, já teria morrido se não tivesse, por si mesma, tratado de se
defender para viver. E procurou sol e luz. Lá está ela, toda dobrada, mas
forte e orgulhosa, que bebe desde a aurora o sol, e dele extrai suco para as
suas centenas e centenas de doces frutos. Defendeu-se sozinha. Disse: “O
Criador me quis para dar alegria e alimento ao homem. Eu quero que a sua
vontade tenha a minha por companheira!” Uma figueira! Uma planta que
não fala! Uma planta sem alma! E vós, filhos de Deus, filhos do homem,
seríeis menos do que uma planta?
Tomai bom cuidado para dar frutos de vida eterna. Eu vos cultivo e por
fim vos darei um suco, o mais poderoso que existe. Não deixeis, não deixeis
que Satanás ria sobre as ruínas do meu trabalho, do meu sacrifício e da
vossa alma. Procurai a luz. Procurai o sol. Procurai a força. Procurai a vida.
Eu sou a Vida, Força, Sol, Luz de quem me ama. Aqui estou para levar-vos
para o lugar de onde vim. Aqui falo para chamar-vos todos e mostrar-vos a
Lei dos dez mandamentos que dão a vida eterna. Com conselho de amor, Eu
vos digo: “Amai a Deus e ao próximo.” É a primeira condição para se
realizar todos os outros bens. O mais santo dos dez mandamentos: Amai.
Aqueles que amarem em Deus, a Deus e o próximo, pelo Senhor Deus terão
na terra e no Céu a paz como sua morada e sua coroa.
O povo com custo afasta-se, depois da bênção de Jesus. Não há doentes
nem pobres.
65.2
Jesus diz a Simão:
– Chama também os outros dois. Vamos para o lago, lançar a rede.
– Mestre, eu estou com os braços cansados por ter lançado e levantado
a rede a noite inteira e por nada. O peixe está nas profundezas e quem sabe
onde.
– Faz o que te digo, Pedro, e escuta sempre a quem te ama.
– Farei o que me estás dizendo, em respeito à tua palavra –e chama em
voz alta os empregados e também Tiago e João–: Vamos sair para a pesca.
O Mestre assim quer.
E enquanto eles vão se afastando, diz a Jesus:
– Porém, Mestre, Te asseguro de que esta hora não é propícia. A esta
hora, quem sabe onde é que os peixes estão descansando!…
Jesus, sentado à proa, sorri e cala-se.
Fazem um arco de círculo sobre o lago e depois lançam a rede. Poucos
minutos de espera; depois o barco começa a receber uns solavancos
estranhos, dado que o lago está liso como se fosse de vidro fundido sob um
sol já alto.
– Mas isto é peixe, Mestre! –diz Pedro com os olhos arregalados.
Jesus sorri, e cala-se.
– Iça, iça a rede! –ordena Pedro aos empregados. Mas o barco inclina-
se para o lado da rede:
– Ohé! Tiago! João! Depressa! Vinde! Com os remos! Depressa!
Eles correm, e os esforços dos dois grupos conseguem içar a rede sem
estragar os peixes.
Os barcos se aproximam. Estão até juntos. Um cesto, dois, cinco, dez.
Estão todos cheios e ainda há muitos peixes saltitantes na rede: prata e
bronze vivos que se movem para fugir da morte. Então, não há senão um
remédio: despejar o resto no fundo dos barcos. Eles o fazem e o fundo é
toda uma agitação de vidas em agonia. Os pescadores estão no meio desta
abundância que lhes ultrapassa os tornozelos e os barcos afundam além da
linha de imersão por causa do peso excessivo.
– Para a terra! Vira! Força! Põe a vela! Cuidado com o fundo! Varas
prontas para amortecer o choque! O peso é demais!
65.3
Enquanto dura a manobra Pedro não reflete. Mas, quando chegam à
terra, ele o faz. E compreende. Por isso fica perturbado:
– Mestre! Senhor! Afasta-te de mim! Eu sou um homem pecador. Não
sou digno de estar perto de Ti!
Ele está de joelhos sobre o úmido leito do rio. Jesus olha para ele e
sorri.
– Levanta-te! Segue-me! Eu não te deixo mais! De agora em diante
serás pescador de homens e contigo estes teus companheiros. Não temais
nada mais. Eu vos chamo. Vinde!
– Já, Senhor. Vós ocupai-vos dos barcos. Levai tudo para Zebedeu e
para o meu cunhado. Vamos. Todos por Ti, Jesus! Bendito seja o Eterno por
esta escolha.
E a visão termina.
66. Judas de Keriot no Getsêmani torna-se
discípulo.
28 de dezembro de 1944, 12:00 horas.
[…].
66.1
Pela tarde, vejo Jesus… debaixo das oliveiras… Ele está sentado
sobre uma saliência do terreno em sua posição habitual, com os cotovelos
apoiados nos joelhos, os antebraços para a frente e as mãos juntas. Cai a
tarde, a luz diminui sempre mais no basto olival. Jesus está sozinho. Ele
tirou o manto como se sentisse calor e sua veste branca põe uma nota clara
no verde do lugar que o crepúsculo já vai tornando muito escuro.
Um homem desce por entre as oliveiras. Parece estar procurando
alguma coisa ou alguém. É alto, vestido com uma roupa de cor alegre, um
amarelo rosado, que torna mais vistoso o grande manto, todo de franjas
ondulantes. Não o vejo bem no rosto, porque a pouca luz e a distância não
me permitem e também porque ele tem uma ponta do manto caído sobre o
rosto. Quando vê Jesus, faz um gesto, como para dizer: “Lá está Ele!” e
apressa o passo. A poucos metros de distância, saúda-o:
– Salve, Mestre!
Jesus se vira de repente e levanta o rosto, porque o recém-chegado está
na saliência superior. Jesus o olha sério e eu diria triste.
O outro repete:
– Eu te saúdo, Mestre. Sou Judas de Keriot. Não me reconheces? Não
te lembras de mim?
– Eu me lembro e reconheço. És aquele que me falaste, junto com
Tomé, na Páscoa passada.
– E ao qual Tu disseste: “Pensa e saiba decidir antes da minha volta.”
Eu me decidi. Eu venho.
– Por que vens, Judas?
Jesus está mesmo triste.
– Porque… eu já te disse na outra vez o porquê. Porque eu sonho com o
reino de Israel e em ti eu vi o rei.
– Para isso vens?
– Para isso. Coloco-me a mim mesmo e tudo o que possuo: capacidade,
conhecimento, amizades, trabalho, ao teu serviço e a serviço da tua missão
para reconstituir Israel.
Os dois agora estão de frente, próximos, de pé, e se olham fixamente.
Jesus com uma seriedade que chega a ser tristeza, o outro, exaltado pelo seu
sonho, sorridente, belo e jovem, leviano e ambicioso.
– Eu não te procurei, Judas.
– Eu vi. Mas eu Te estava procurando. São dias e dias que eu venho‐
colocando pessoas às portas, para me anunciarem a tua chegada. Eu
pensava que virias com os teus seguidores e que, por isso, teria sido fácil
notar-te. Ao invés… Compreendi que já havias chegado porque um grupo
de peregrinos te estava bendizendo por teres curado um doente. Mas
ninguém sabia me dizer onde estavas. Então, eu me lembrei deste lugar. E
vim. Se eu não tivesse Te encontrado aqui, eu teria me resignado a não Te
encontrar mais…
– Achas que tenha sido um bem para ti o teres-me encontrado?
– Sim, visto que te procurava, te desejava, te quero.
– Por que? Por que Me procuraste?
– Mas eu já disse a Ti, Mestre! 66.2Não me compreendeste?
– Eu te compreendi sim. Mas quero que tu também me compreendas,
antes de Me seguires. Vem. Falaremos enquanto caminhamos.
E se põem a caminhar, um ao lado do outro, para cima e para baixo,
pelas estradinhas que entrecortam o olival.
– Tu Me segues por uma idéia que é humana, Judas. Eu te devo
dissuadir disto. Eu não vim para isto.
– Mas, não és Tu o que foi designado para ser o Rei dos judeus? Aquele
de quem falaram os Profetas? Surgiram já outros. Mas a eles faltavam
muitas coisas e caíram como folhas que o vento não levanta mais. Tu tens a
Deus Contigo, tanto que operas milagres. Onde está Deus, o bom êxito da
missão está garantido.
– Falaste bem. Eu tenho Deus Comigo. Eu sou o seu Verbo. Sou aquele
que foi profetizado pelos Profetas, prometido aos Patriarcas, esperado pelas
multidões. Mas, por que, ó Israel, te tornaste tão cego e surdo, a ponto de
não saberes mais ler nem ver, ouvir e compreender a verdade dos fatos? O
meu Reino não é deste mundo, Judas. Dissuade-te disso. À Israel Eu venho
trazer a Luz e a Glória. Mas não a luz e a glória da terra. Eu venho para
chamar os justos de Israel ao Reino. Porque é de Israel e com Israel que há
de se formar e vir a planta da vida eterna, cuja linfa será o Sangue do
Senhor, a planta que se estenderá por toda a terra, até o fim dos séculos. Os
meus primeiros seguidores são de Israel. Os meus primeiros confessores, de
Israel. Mas também os meus perseguidores são de Israel. Também os meus
carrascos, de Israel. E também o meu traidor, de Israel…
– Não, Mestre. Isto não acontecerá nunca. Se todos te traírem, eu ficarei
Contigo, e te defenderei.
– Tu, Judas? E sobre o que se funda esta tua segurança?
– Sobre a minha honra de homem.
– Isso é uma coisa mais frágil do que uma teia de aranha, Judas. É a
Deus que devemos pedir a força para sermos honestos e fiéis. O homem!…
O homem faz obras de homem. Para fazer obras do espírito — e seguir o
Messias em verdade e justiça significa fazer obra de espírito — é preciso
matar o homem e fazê-lo renascer. És tu capaz disso?
– Sim, Mestre. Além disso… Nem todo Israel te amará. Mas carrascos
e traidores ao seu Messias não sairão de Israel. Israel te espera, há séculos!
– Mas dele sairão. Lembra-te dos Profetas. As palavras deles… e o seu
fim. Eu estou destinado a decepcionar a muitos. E tu és um deles. Judas, tu
tens à tua frente, um manso, um pacífico, um pobre, que pobre quer
permanecer. Eu não vim para impor-me e para fazer guerra. Eu não disputo
aos fortes e poderosos nenhum reino, nenhum poder. Eu só disputo a
Satanás as almas e venho para quebrar as correntes de Satanás com o fogo
do meu amor. Eu venho para ensinar misericórdia, sacrifício, humildade,
continência. Eu te digo, e a todos digo: “Não tenhais sede de riquezas
humanas, mas trabalhai pelas moedas eternas.” Desilude-te Judas, se pensas
que sou um triunfador sobre Roma e sobre as castas que imperam. Os
Herodes, como os Césares podem dormir tranqüilos enquanto Eu falo às
multidões. Eu não vim para arrancar cetros de ninguém… e o meu cetro,
eterno, já está pronto. Mas ninguém, que não fosse amor, como Eu sou, iria
querer empunhá-lo. 66.3Vai Judas, e medita.
– Estarás me rejeitando, Mestre?
– Eu não rejeito ninguém, pois quem rejeita não ama. Mas, diz-me,
Judas: que nome darias ao ato de alguém que, sabendo-se doente de um mal
contagioso, dissesse a um inocente que se aproxima para beber do seu
cálice: “Pensa no que estás fazendo”? O nome seria ódio, ou amor?
– Eu diria que é amor porque não quer que o inocente arruíne sua
saúde.
– Então dá este nome também ao meu ato.
– Posso arruinar minha saúde indo Contigo? Nunca!
– Podes arruinar mais do que a saúde porque pensa bem isso, Judas,
pouco será imputado a quem se tornar assassino, pensando que está fazendo
justiça, e assim pensando, porque não conhece a Verdade; mas muito será
imputado a quem, tendo-a conhecido, não só não a segue, mas se faz até
inimigo dela.
– Eu não serei esse tal. Toma-me Contigo, Mestre. Não me podes
recusar. Se és o Salvador e vês que eu sou um pecador, uma ovelha
desviada, um cego fora do caminho certo, por que é que recusas salvar-me?
Toma-me Contigo. Eu te seguirei até à morte…
– Até à morte! É verdade. Isto é verdade. Depois…
– Depois, o quê, Mestre?
– O futuro está no seio de Deus. Vai. Amanhã nos tornaremos a ver,
junto à porta dos Peixes.
– Obrigado, Mestre. O Senhor esteja Contigo.
– E que a sua misericórdia te salve.
E tudo termina.
67. O milagre das lâminas quebradas à porta dos
Peixes.
31 de dezembro de 1944.
67.1
Vejo Jesus que vai andando sozinho por uma estrada sombreada.
Parece um fresco e pequeno vale, rico de águas. Digo um pequeno vale,
porque está levemente encaixado entre pequenas elevações do solo e no
centro corre um riacho.
O lugar está deserto na hora matutina. Deve ter acabado de surgir o dia,
um belo dia sereno de início de verão e não se ouve mais nada exceto o
canto dos pássaros entre as árvores e o arrulhar lamentoso das rolas
selvagens, que fazem seus ninhos nas fendas do monte sem vegetação.
Especialmente entre as oliveiras da colina da esquerda, enquanto que a
outra, mais despojada, tem arbustos baixos de lentisco, acácias espinhosas,
agaves, etc.. Também o pequeno rio de águas escassas e limitadas ao centro
do álveo, parece não fazer rumor algum e se vai, refletindo em suas águas o
verde circunstante, pelo qual parece de esmeralda escura.
Jesus atravessa o rio por uma pinguela — é um tronco semi-aplainado,
jogado sobre o rio, sem apoio, sem segurança — e prossegue na outra
margem.
Agora já se vêem os muros e as portas; também vendedores de
hortaliças e mantimentos, que vão se aglomerando às portas, ainda
fechadas, para entrar na cidade. Ouve-se um grande zurrar de burros e
brigas entre eles; também os seus donos não estão para brincadeiras.
Insultos e até algumas pancadas voam, não só sobre os lombos dos burros,
mas também sobre cabeças humanas.
67.2
Dois homens estão numa briga séria, porque o burro de um deles
resolveu passar bem, comendo toda uma bonita cesta de alface do burro do
outro. Talvez não seja mais do que um pretexto para algum antigo rancor. O
fato é que de sob as vestes curtas até às barrigas das pernas, eles já tiraram
dois cutelos pequenos e da largura de um palmo: parecem umas adagas
quebradas, mas bem pontiagudas, e que brilham ao sol. Gritos de mulheres
e vozerio de homens. Mas ninguém intervém para apartar os dois, que estão
prontos para o rústico duelo.
Jesus, que procedia pensativo, levanta a cabeça, vê o que está
acontecendo e, a passos rápidos, se põe entre os dois.
– Parem, em nome de Deus! –ordena.
– Não! Eu quero acabar com este maldito cão!
– Eu também! Gostas de franjas? Farei para ti uma franja com as tuas
tripas.
Os dois rodeiam Jesus, esbarrando nele, insultando-o para que saia do
meio, procurando golpearem-se, sem o conseguirem, porque Jesus, com
sábios movimentos do seu manto, desvia os golpes e impede que acertem o
alvo. O manto de Jesus já está rasgado.
O povo grita:
– Vem para cá, nazareno, antes que te tirem do meio.
Mas Ele não se move de lá e procura induzir os dois à calma,
evocando-os a Deus. Inútil! A ira enlouquece os dois contendedores.
Jesus emite um milagre. Ordena-lhes pela última vez:
– Eu vos mando que deixeis disso!
– Não! Retira-te daqui! Pega o teu caminho, nazareno!
Jesus então estende as mãos, com o seu aspecto de potência fulgurante.
Não diz uma palavra. Mas as lâminas caem esmigalhadas no chão, como se
fossem de vidro e se tivessem chocado contra uma rocha.
Os dois homens olham para os cabos curtos e inúteis que ficaram entre
os dedos. O espanto embota a ira. A multidão também grita de espanto.
67.3
– E agora? –pergunta Jesus, severo–. Onde está a vossa força?
Até os soldados que estavam de guarda à porta, tendo chegado quando
ouviram os últimos gritos, olham assombrados; um deles se inclina para
apanhar os fragmentos das lâminas e os experimenta sobre a unha,
incrédulo que fossem de aço.
– E agora? –repete Jesus–. Onde está a vossa força? Sobre o que é que
baseáveis o vosso direito? Sobre estes pedaços de metal que agora estão
quebrados no meio da poeira? Sobre estes pedaços de metal que não tinham
outra força, senão a do pecado da ira contra um irmão, tirando de vós, por
aquele pecado, toda a bênção de Deus e, portanto, toda força? Oh! Infelizes
daqueles que se baseiam em meios humanos para vencer e não sabem que
não é a violência, mas a santidade que nos faz vitoriosos sobre a terra, e
mais além dela! Porque Deus está com os justos.
Ouvi, ó vós todos de Israel, e vós também, soldados de Roma. A
Palavra de Deus fala a todos os filhos do homem, e não será o Filho do
homem que irá recusá-la aos gentios.
O segundo dos preceitos do Senhor é o preceito do amor para com o
próximo. Deus é bom e nos seus filhos quer benevolência. Quem não é
benevolente com o seu próximo, não pode dizer-se filho de Deus e não pode
ter Deus consigo. O homem não é um animal irracional, que se arroja e
morde pelo direito de fazer uma presa. O homem tem uma razão, e uma
alma. Pela razão deve saber conduzir-se como homem. Pela alma deve
saber conduzir-se como santo. Quem assim não faz, coloca-se abaixo dos
animais, desce ao abraço com os demônios, porque ele endemoninha sua
alma com o pecado da ira.
Amai. Eu não vos digo outra coisa. Amai ao vosso próximo, como o
Senhor Deus de Israel o quer. Não sejais sempre do sangue de Caim. E por
que é que o sois? Por poucas moedas, vós podíeis agora ser uns homicidas.
Outros, por uns poucos palmos de terra. Por uma posição melhor. Por uma
mulher. Que são estas coisas? Eternas? Não. Duram muito menos do que a
vida, a qual dura um instante da eternidade. E que é que perdeis, seguindo
essas coisas? A paz eterna, que está prometida aos justos e que o Messias
vos trará, junto com o seu Reino. Vinde para o caminho da Verdade. Segui a
Voz de Deus. Amai-vos. Sede honestos. Sede continentes. Sede humildes e
justos. Ide e meditai.
67.4
– Quem és Tu, que falas semelhantes palavras e quebras as espadas
só com a tua vontade? Só há um que pode fazer estas coisas: o Messias.
Nem mesmo João Batista é mais do que Ele. Por acaso, és Tu o Messias? –
perguntam-lhe uns três ou quatro.
– Eu sou.
– Tu? Tu és aquele que cura os doentes e pregas a Deus pela Galiléia?
– Sou Eu.
– Eu tenho minha velha mãe que está morrendo. Salva-a!
– E eu, estás vendo? Estou perdendo as forças pelas dores que sinto.
Tenho filhos ainda pequenos. Cura-me!
– Vai para a tua casa. Tua mãe, esta tarde, te preparará a tua janta; E tu,
sê curado. Eu quero!
A multidão dá um grito. E depois lhe perguntam:
– O teu Nome? Qual o teu Nome?
– Jesus de Nazaré!
– Jesus! Jesus! Hosana! Hosana!
A multidão está exultante. Os burros podem fazer aquilo que quiserem
que ninguém se preocupa mais. As mães chegam lá do meio da cidade,
compreende-se que a notícia já correu e erguem seus pequeninos. Jesus
abençoa e sorri. E procura romper o círculo que o aclama, para entrar na
cidade, e ir aonde quer. Mas a multidão não quer saber disso.
– Fica conosco! Na Judéia! Na Judéia! Nós também somos filhos de
Abraão! –grita.
67.5
– Mestre!
Judas corre para Jesus.
– Mestre, me precedestes. Mas, que é que está acontecendo?
– O Rabi fez um milagre! Na Galiléia não; aqui, aqui o queremos
conosco.
– Estás vendo, Mestre? Todo Israel Te ama. É justo que Tu fiques
também aqui. Por que Te esquivas?
– Eu não me esquivo, Judas. Eu vim justamente só para que a rudeza
dos discípulos galileus não aborreça a sutileza judéia. Eu quero reunir todas
as ovelhas de Israel sob o cetro de Deus.
– Por isso é que eu Te disse: “Toma-me Contigo.” Eu sou judeu, e sei
como tratar os meus iguais. Ficarás, então, em Jerusalém?
– Por poucos dias. Para esperar um discípulo que também é judeu.
Depois, Eu irei pela Judéia…
– Oh! Eu irei Contigo. Eu Te acompanharei. Irás ao meu povoado. Eu
Te levarei à minha casa. Irás, Mestre?
– Irei… 67.6Do Batista, tu que és judeu, e vives perto dos poderosos, não
sabes nada?
– Sei que ele está ainda na prisão, mas que o querem soltar, porque a
multidão está ameaçando fazer um motim se não lhe for restituído o seu
profeta. Tu o conheces?
– Eu o conheço.
– Tu o amas? Que pensas dele?
– Penso que não houve ninguém mais do que é igual a Elias.
– Achas que ele é verdadeiramente o Precursor?
– Ele o é. É a estrela da manhã que anuncia o sol. Felizes daqueles que
são preparados para o Sol, através da sua pregação.
– João é muito severo.
– Não é mais para com os outros do que para consigo mesmo.
– Isto é verdade. Mas é difícil segui-lo em sua penitência. Tu és melhor
e é fácil amar-te.
– No entanto…
– No entanto, Mestre?
– No entanto, como ele é odiado por sua austeridade, Eu o serei pela
minha bondade, porque tanto uma como a outra anunciam a Deus e Deus é
mal visto pelos maus. Mas está escrito que assim seja. Como ele Me
precede na pregação, assim me precederá na morte. Ai, porém, daqueles
assassinos da Penitência e da Bondade.
– Por que Mestre, sempre esta tristeza de previsões? A multidão te ama,
como estás vendo…
– Porque é uma coisa certa. A multidão humilde sim, me ama. Mas a
multidão não é toda humilde, feita só de humildes. Mas a minha não é
tristeza. É a tranqüila visão do futuro e a adesão à vontade do Pai que me
mandou para isto. E para isto Eu vim. Eis-nos diante do Templo. Eu vou ao
Bel Nidrash, para ensinar as multidões. Se queres, fica.
– Eu ficarei ao teu lado. Não tenho senão esta meta: Servir-te e fazer-te
triunfar.
Entram no Templo, e tudo termina.
68. Jesus, no Templo com o Iscariotes, ensina.
1 de janeiro de 1945.
68.1
Vejo Jesus que, tendo Judas a seu lado, entra no recinto do Templo, e,
depois de terem superado o primeiro terraço, ou escalão, se preferis chamá-
lo assim, detém-se num ponto onde há uma série de pórticos, que rodeiam
um amplo pátio, pavimentado com mármore de diversas cores. O lugar é
muito bonito e cheio de gente.
Jesus olha ao redor de si e vê um lugar que lhe agrada. Mas, antes de
dirigir-se para lá, diz a Judas:
– Chama-me o magistrado do lugar. Devo fazer-me reconhecer, para
que não se diga que Eu falto com os costumes e o respeito.
– Mestre, Tu estás acima dos costumes e ninguém mais do que Tu tem
o direito de falar na Casa de Deus. Tu, o seu Messias.
– Eu sei disso, tu o sabes, mas eles não sabem. Eu vim, não para
escandalizar, nem para ensinar a violar não só a Lei, mas também os
costumes. Pelo contrário, Eu vim justamente para ensinar o respeito, a
humildade, a obediência e para acabar com os escândalos. Por isso Eu
quero pedir para poder falar em nome de Deus, fazendo-me reconhecer pelo
magistrado do lugar como digno de fazer isso.
– Mas na outra vez não fizeste assim.
– Na outra vez ardeu em Mim o zelo pela Casa de Deus, profanada por
muitas coisas. Na outra vez era o Filho do Pai[111], o Herdeiro que, em
nome do Pai e por amor à minha Casa, agia em sua majestade, à qual os
magistrados e sacerdotes são inferiores. Agora Eu sou o Mestre de Israel e
ensino a Israel também isso. Além disso, Judas, crês tu que o discípulo seja
maior do que o Mestre?
– Não, Jesus.
– E tu, quem és? E quem sou Eu?
– Tu, o Mestre, eu, o discípulo.
– E então, se reconheces que assim são as coisas, porque queres ensinar
o Mestre? Vai e obedece. Eu obedeço a meu Pai. Tu obedeces ao teu
Mestre. Primeira condição do Filho de Deus: obedecer sem discutir,
pensando que o Pai não pode dar senão ordens santas. Primeira condição do
discípulo: obedecer ao Mestre, pensando que O Mestre sabe e não pode dar
senão ordens justas.
– É verdade. Perdoa. Eu obedeço.
– Eu perdôo. Vai. E Judas, escuta ainda uma coisa: recorda-te disto.
Recorda-te disto sempre, no futuro.
– De obedecer? Sim.
– Não. Lembra-te de que Eu fui respeitoso e humilde para com o
Templo, ou seja, com as castas poderosas. Vai.
Judas olha para Jesus pensativamente, interrogativamente… mas não
ousa perguntar mais nada. E vai-se pensativo.
68.2
… Ele volta com um personagem muito bem trajado.
– Eis, Mestre, o magistrado.
– A paz esteja contigo. Eu peço para poder ensinar, entre os rabinos de
Israel, a Israel.
– És Tu rabi?
– Eu sou.
– Quem foi o teu mestre?
– O Espírito de Deus, que me fala com a sua sabedoria e me ilumina
com sua luz sobre todas as palavras dos textos sagrados.
– És então, maior do que Hilel, Tu que, sem mestre, dizes saber toda a
doutrina? Como pode alguém se formar, se não tem quem o forme?
– Como se formou Davi, o pastorzinho desconhecido, e que se tornou o
rei poderoso e sábio pela vontade do Senhor.
– Qual o teu Nome?
– Jesus de José de Jacó, da estirpe de Davi, e de Maria de Joaquim, da
estirpe de Davi, e de Ana de Arão, Maria, a Virgem desposada no Templo,
porque era órfã, pelo Sumo Sacerdote, segundo a lei de Israel.
– Quem prova isso?
– Ainda devem estar aqui os levitas, que se recordam do fato e que
foram contemporâneos de Zacarias, da classe de Abias, o meu parente.
Interroga-os, se duvidas da minha sinceridade.
– Eu creio em Ti. Mas, quem me prova que sejas capaz de ensinar?
– Escuta-me e tu mesmo julgarás.
– Estás livre para fazeres isso… Mas… não és nazareno?
– Eu nasci em Belém de Judá, no tempo do recenseamento ordenado
por César. Proscritos por ordens injustas, os filhos de Davi estão em toda a
parte. Mas a estirpe é de Judá.
– Sabes… os fariseus… toda a Judéia… pela Galiléia…
– Eu sei. Mas podes ficar tranqüilo. Em Belém Eu vi a luz, em Belém
Efrata, de onde vem a minha estirpe e se agora vivo na Galiléia, não é senão
para que se cumpra o que foi determinado…
O magistrado se afasta alguns metros, indo atender a alguém que o
chamou.
68.3
Judas pergunta:
– Por que não disseste que és o Messias?
– As minhas palavras o dirão.
– Qual era a profecia que se devia cumprir?
– A reunião de todo Israel sob o ensinamento da palavra de Cristo. Eu
sou o Pastor de que falam os Profetas, e venho para reunir as ovelhas de
todas as regiões, venho para curar as doentes e levar para uma pastagem
boa as errantes. Para Mim não há Judéia ou Galiléia, Decápolis ou Iduméia.
Só há uma coisa: o Amor, que olha com um só olhar e une em um único
abraço para salvar…
Jesus está inspirado. Parece emitir raios de tão sorridente que está em
seu sonho. Judas o olha admirado.
As pessoas, curiosas, se aproximam dos dois, cuja imponência diferente
atrai e impressiona.
Jesus abaixa o olhar, sorri para esta pequena mulidão com aquele seu
sorriso, cuja doçura nenhum pintor jamais conseguirá reproduzir, e nenhum
crente, que não o tenha visto, poderá imaginar como é. Ele diz:
– Vinde, se sentis o desejo de palavra eterna.
68.4
Ele se dirige sob um arco do pórtico e, encostado a uma coluna,
começa a falar. Toma como tema o fato daquela manhã.
– Esta manhã, ao entrar em Sião, vi que por umas poucas moedas dois
filhos de Abraão estavam prontos para se matarem. Em nome de Deus, Eu
teria podido amaldiçoá-los, porque Deus diz: “Não matarás”, e diz também
que quem não lhe obedece em sua Lei, será maldito. Mas Eu tive piedade
da ignorância deles a respeito do espírito da Lei, e somente impedi o
homicídio, para dar-lhes oportunidade de se arrependerem, conhecerem a
Deus, o servirem em obediência, amando, não somente a quem os ama, mas
também aos seus inimigos.
Sim, Israel. Um dia novo surge para ti e também se torna mais
luminoso o preceito do amor. Porventura começa o ano com o nebuloso
Etanim, ou com o triste Casleu de dias curtos como um sonho e de noites
longas como numa doença? Não, ele começa com o florido, ensolarado e
alegre Nisam, no qual tudo ri e o coração do homem, ainda que fosse o mais
pobre e triste, se abre à esperança porque vem o verão, os cereais, o sol, as
frutas; doce é dormir também sobre um prado em flor tendo as estrelas por
candeias e fácil o nutrir-se, porque cada gleba produz erva ou fruto para
matar a fome do homem.
Eis aqui, ó Israel. Terminou o inverno, o tempo da espera. Agora é a
alegria da promessa que se cumpre. O Pão e o Vinho em breve estarão
prontos para matar a tua fome. O Sol está no meio de ti. A este Sol, tudo
toma um fôlego mais amplo e mais doce, até o preceito da nossa Lei, o
primeiro e mais santo dos preceitos: “Ama a teu Deus e ama ao teu
próximo.”
Na relativa luz que até aqui te foi concedida, te foi dito — não terias
podido fazer mais, porque sobre ti ainda pesava a irritação de Deus, pela
culpa do desamor de Adão — te foi dito: “Ama aqueles que te amam e
odeia ao teu inimigo.” E inimigo para ti era não somente quem ultrapassava
as fronteiras de tua pátria, mas também quem havia faltado para contigo em
particular, ou que te parecia ter faltado. Onde o ódio aninhava-se em todos
os corações visto que, qual é o homem que, querendo ou não, não ofende ao
seu irmão? E qual o que alcança a velhice, sem ser ofendido?
Eu vos digo: amai também aos que vos ofendem. Fazei isto pensando
que Adão, e por meio dele todos os homens, são prevaricadores perante
Deus, e não há ninguém que possa dizer: “Eu não ofendi a Deus.” Contudo,
Deus perdoa, não uma mas dez e dez vezes perdoa, mas mil e dez mil vezes
perdoa; e disso é prova o fato de o homem ainda estar existindo sobre a
terra. Perdoai, pois, como Deus perdoa. E, se não o podeis fazer por amor
para com o irmão que vos prejudicou, fazei-o pelo amor de Deus, que vos
dá pão e vida, que vos ampara nas necessidades da terra, e predispôs cada
acontecimento para proporcionar-vos a paz eterna em seu seio. Esta é a Lei
nova, a Lei da primavera de Deus, do tempo florido da Graça vinda entre os
homens, do tempo que vos dará o Fruto sem par, que vos abrirá as portas do
Céu.
68.5
A voz que falava no deserto já não se ouve. Mas muda não está.
Ela fala ainda a Deus por Israel e fala ainda a todo israelita reto de
coração. Diz — diz depois de os haver ensinado a fazer penitência para
preparar os caminhos ao Senhor que vem, a ter caridade, dando o supérfluo
a quem não tem nem o necessário, a ter honestidade, não extorquindo ou
vexando — ela vos diz: “Está entre vós o Cordeiro de Deus, Aquele que tira
os pecados do mundo, Aquele que batizará com o fogo do Espírito Santo.
Ele limpará a sua eira, e recolherá o seu trigo.”
Sabei conhecer Aquele que o Precursor vos indica. Seus sofrimentos
operam diante de Deus para dar-vos luz. Vede. Abram-se os vossos olhos
espirituais. Conhecei a Luz que vem. Eu recebo a voz do Profeta que
anuncia o Messias e, com o poder que me vem do Pai, Eu a amplifico e vos
uno ao meu poder, vos chamo para a verdade da Lei. Preparai os vossos
corações à graça da Redenção que está próxima. O Redentor está entre vós.
Felizes aqueles que forem dignos de ser redimidos, porque terão tido boa
vontade.
A paz esteja convosco.
Alguém pergunta:
– És Tu discípulo do Batista, para falares dele com tanta veneração?
– Fui batizado por ele nas águas do Jordão, antes que ele fosse preso.
Eu o venero, porque ele é santo aos olhos de Deus. Em verdade Eu vos digo
que entre os filhos de Abraão não há outro maior em graça do que ele.
Desde a sua vinda, até à sua morte, os olhos de Deus estarão pousados sem
nenhum desdém, sobre este bendito.
– Ele te deu a certeza sobre o Messias?
– Sua palavra, que não mente, mostrou aos presentes o Messias, que já
vivia entre os homens.
– Onde? Quando?
– Quando foi a hora de mostrá-lo.
68.6
Mas Judas se sente no dever de dizer à direita e à esquerda:
– O Messias é Ele, que vos fala. Eu vo-lo testifico, eu que o conheço e
sou o seu primeiro discípulo.
– É Ele?! Oh!…
O povo se afasta amedrontado. Mas Jesus é tão afável que voltam a se
aproximar.
– Pedi a Ele algum milagre. Ele é poderoso. Ele cura. Ele lê nos
corações. Responde a todas as perguntas.
– Fala a Ele por mim, que eu estou doente. Meu olho direito está morto
e o esquerdo está secando.
– Mestre.
– Judas.
Jesus que estava acariciando uma menininha, se volta.
– Mestre, este homem está quase cego e quer ver. Eu disse a ele que Tu
podes curá-lo.
– Eu posso, para quem tem fé. Tu tens fé, homem?
– Eu creio no Deus de Israel. Venho aqui para jogar-me na piscina de
Betsaida[112]. Mas sempre tem alguém que me precede.
– Podes crer em Mim?
– Se creio no anjo da piscina, não deverei crer em Ti, que o teu
discípulo diz que és o Messias?
Jesus sorri. Molha o dedo com a saliva e o roça no olho doente.
– Que estás vendo?
– Estou vendo as coisas sem aquela névoa de antes. E o outro, não o
curas?
Jesus sorri de novo. Repete o ato sobre o olho cego.
– Que estás vendo? –pergunta Ele, tirando a ponta do dedo da pálpebra
caída.
– Ah! Senhor de Israel! Estou vendo, como quando eu, ainda menino,
corria pelos prados! Sê Tu eternamente bendito!
O homem chora, prostrado aos pés de Jesus.
– Vai. Sê bom, agora, em reconhecimento a Deus.
68.7
Um levita, que chegou quase ao fim do milagre, pergunta:
– Com que poder fazes estas coisas?
– Tu me perguntas? Mas Eu te digo, se responderes à minha pergunta.
Segundo a tua opinião: é maior um profeta que anuncia o Messias, ou o
próprio Messias?
– Que pergunta! O Messias é maior: é o Redentor prometido pelo
Altíssimo!
– Então, por que os Profetas fizeram milagres? Com que poder?
– Com o poder que Deus dava a eles para provarem às multidões que
Deus estava com eles.
– Pois bem, com o mesmo poder, Eu faço milagres. Deus está Comigo,
Eu estou com Ele. Eu provo às multidões que assim é e que o Messias bem
pode, com maior razão e medida, o que podiam os Profetas.
O levita vai-se embora pensativo, e tudo termina.
[111] Na outra vez era o Filho do Pai… Agora Eu sou o Mestre… Também aqui — assim anota Maria Valtorta numa cópia
dactilografada — resultam as duas Naturezas unidas numa única Pessoa, mas bem distintas: Deus e Homem.
[112] Betsaida (e por vezes Betseida), é dita na obra Valtortiana, assim como nas versões da “vulgata”, seja a piscina de Jerusalém
(João 5,2) como a cidade sobre o lago de Genezaré (João 1, 44). Nas modernas versões da Bíblia, a piscina é dita Bethesda ou
Betzaetà.
69. Jesus instrui Judas Iscariotes.
3 de janeiro de 1945.
69.1
Ainda Jesus e Judas que, depois de terem rezado no lugar mais
próximo do Santo, concedidos aos israelitas varões, saem do Templo.
Judas queria ficar com Jesus. Mas esse desejo encontra oposição da
parte do Mestre.
– Judas, Eu desejo estar sozinho nas horas noturnas. Na noite o meu
espírito obtém do Pai o seu alimento. Oração, meditação e solidão são para
mim mais necessárias do que alimento material. Aquele que quiser viver
pelo espírito, e levar outros a viver essa mesma vida, deve preterir a carne,
Eu diria quase matá-la nas suas prepotências, para dar todos os seus
cuidados ao espírito. Todos devem fazer assim, Judas. Também tu, se
queres verdadeiramente ser de Deus, ou seja, do sobrenatural.
– Mas nós somos ainda desta terra, Mestre. Como podemos descuidar-
nos da carne, dando todos os cuidados ao espírito? Isto que estás dizendo
não é uma antítese ao mandamento de Deus: “Não matarás”? Neste não está
compreendido também o não matar-se? Se a vida é um dom de Deus,
devemos amá-la, ou não?
– Responderei a ti como não responderia a uma pessoa simples, para a
qual basta fazer levantar o olhar da alma, ou da mente, a esferas
sobrenaturais, para levá-lo conosco, como num vôo, até os reinos do
espírito. Mas tu não és uma pessoa simples. Tu te formaste em ambientes
que te refinaram… mas que também te corromperam com suas sutilezas e
com suas doutrinas. Lembras-te de Salomão, Judas? Ele era um sábio, o
mais sábio daqueles tempos. Lembras-te do que ele disse[113], depois de ter
conhecido todo o saber? “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Temer a
Deus e observar os seus mandamentos, para o homem isso é tudo.” Agora
Eu te digo que é preciso saber tirar dos alimentos a nutrição, mas não
veneno. E, se compreendemos que um alimento nos está sendo prejudicial,
porque há em nós reações pelas quais aquele alimento é nefasto, sendo ele
mais forte do que os nossos bons humores que o poderiam neutralizar, é
preciso não fazer mais uso desse alimento, mesmo sendo gostoso ao
paladar. É melhor um simples pão e água de fonte do que os pratos
complicados da mesa do rei, nos quais há drogas que perturbam nosso
organismo e envenenam.
– Que é que eu devo deixar, Mestre?
– Tudo aquilo que sabes que te faz mal. Porque Deus é Paz e se
quiseres andar no caminho de Deus deves desembaraçar a tua mente, o teu
coração e a tua carne de tudo o que não é paz e que traz consigo
perturbação. Eu sei que é difícil reformar-se a si mesmo. Mas Eu estou aqui
para ajudar-te a fazê-lo. Estou aqui para ajudar o homem a se tornar filho de
Deus, a recriar-se, como em uma segunda criação, uma autogênese desejada
por ele mesmo. 69.2Mas deixa que Eu te responda o que perguntaste para que
não digas que ficaste no erro por minha culpa. É verdade que o suicidar é o
mesmo que matar. A vida, tanto a própria, como a dos outros, é um dom de
Deus, e só a Deus, que no-la deu, está reservado o direito de tirá-la. Quem
se mata, confessa sua soberba e a soberba é abominada por Deus.
– Confessa sua soberba? Eu diria que o seu desespero.
– E que é desespero, senão soberba? Pensa bem, Judas. Por que é que
uma pessoa se desespera? É, ou porque as desventuras recrudescem sobre
ela e essa pessoa quer vencê-las sozinha e não consegue, ou então porque
ela é culpada e julga que Deus não pode perdoá-la. No primeiro e no
segundo caso, não é talvez a soberba que está prevalecendo? A pessoa, que
quer agir sozinha, não tem a humildade de estender a mão ao Pai e dizer-
lhe: “Eu não posso, mas Tu podes. Ajuda-me, que de Ti eu tudo espero.”
Aquela outra pessoa que diz: “Deus não pode me perdoar”, fala assim
porque quer medir a Deus por si mesma e sabe que alguém, ofendido como
aquele a quem ela ofendeu, não poderia perdoá-la. Ou seja, é soberba
também aqui. O humilde se compadece e perdoa, mesmo se sofre pela
ofensa recebida. O soberbo não perdoa. É soberbo porque não sabe inclinar
a cabeça e dizer: “Pai, eu pequei, perdoa ao teu pobre filho culpado.” Mas
não sabes, Judas, que tudo será perdoado pelo Pai se for pedido o perdão
com um coração sincero e contrito, humilde e cheio de boa vontade de
renovação no bem?
– Mas certos delitos não são perdoados. Não podem ser perdoados.
– És tu quem diz isso. E assim será, se o homem assim quiser. Mas em
verdade, oh!, em verdade Eu te digo que, mesmo depois do delito dos
delitos, se o culpado corresse aos pés do Pai — Ele se chama Pai para isso,
Judas, e é um Pai de perfeição infinita — e chorando lhe suplicasse o
perdão, oferecendo-se à expiação, mas sem desespero, o Pai lhe daria o
modo de expiar para poder merecer o perdão e salvar sua alma.
69.3
– Então, Tu dizes que os homens que a Escritura cita[114], e que
suicidaram, fizeram mal.
– Não é lícito fazer violência contra ninguém, nem contra si mesmo.
Fizeram mal. Em seu relativo conhecimento do bem, em certos casos eles
terão tido ainda a misericóridia de Deus. Mas, desde quando o Verbo tiver
esclarecido toda a verdade e dado força aos espíritos com o seu Espírito,
desde então, não haverá mais perdão para quem morre em desespero. Nem
no momento do juízo particular, nem depois de muitos séculos na Geena, no
dia do Juízo final, nem nunca. Será isso uma dureza de Deus? Não: é
justiça. Deus dirá: “Tu julgaste, tu, criatura dotada de razão e de ciência
sobrenatural, criada livre por Mim, tu julgaste seguir o caminho que
escolheste, e disseste: ‘Deus não me perdoa. Estou separado Dele para
sempre. Julgo que devo por mim mesmo aplicar-me justiça pelo meu delito.
Saio da vida para fugir dos remorsos’, sem pensar que os remorsos não te
teriam mais atingido, se tu tivesses vindo ao meu seio paterno. E, como tu
mesmo te julgaste, que te advenha; Eu não violento a liberdade que te dei.”
Isto dirá o Eterno ao suicida. Pensa nisso, Judas. A vida é um dom e
deve ser amada. Mas que dom é? Um dom santo. E, então, que ela seja
amada santamente. A vida dura, enquanto a carne aguenta. Depois começa
a grande Vida, a Vida eterna. De bem-aventurança para os justos e de
maldição para os não-justos. A vida é uma meta ou um meio? É um meio.
Serve para chegar ao fim, que é a eternidade. E, então, damos à vida o tanto
que lhe sirva para durar e para servir o espírito em sua conquista.
Continência da carne em todos os seus apetites, em todos. Continência da
mente em todos os seus desejos, em todos. Continência do coração em
todas as paixões do que é humano. Ilimitado, ao invés, há de ser o ímpeto
pelas paixões que são do Céu: o amor a Deus e ao próximo, a vontade de
servir a Deus e ao próximo, a obediência à Palavra divina, o heroísmo no
bem e na virtude.
69.4
Eu te respondi, Judas. Ficaste persuadido? Basta-te esta explicação?
Sê sempre sincero e se não souberes ainda bastante – pergunta: Eu estou
aqui para ser Mestre.
– Eu compreendi, e para mim basta. Mas… é muito difícil fazer o que
compreendi. Tu o podes, porque és santo. Mas eu… Sou um homem,
jovem, cheio de vitalidade…
– Eu vim para os homens, Judas. Não para os anjos. Os anjos não
precisam de mestre. Eles vêem a Deus. Vivem no seu Paraíso. Não ignoram
as paixões dos homens porque a Inteligência, que é a Vida deles, os faz
conhecedores de tudo, mesmo aqueles que não são anjos da guarda de um
homem. Mas, espirituais como são, não podem ter senão um pecado, como
um deles teve, e arrastou consigo os menos fortes na caridade: a soberba,
flecha que desfigurou Lúcifer, o mais bonito dos arcanjos, e fez dele o
monstro horripilante do Abismo. Eu não vim para os anjos, os quais, depois
da queda de Lúcifer, se horrorizam só diante da sombra de um pensamento
de orgulho. Mas Eu vim para os homens. Para fazer dos homens, anjos.
O homem era a perfeição de tudo o que foi criado. Ele tinha do anjo o
espírito e do animal a completa beleza em todas as suas partes animais e
morais. Não havia criatura que o igualasse. Era o rei da terra, como Deus é
o Rei do Céu; um dia, aquele dia em que ele teria adormecido pela última
vez sobre a terra, ele se tornaria rei com o Pai no Céu. Satanás arrancou as
asas do anjo-homem e colocou nele garras de fera e veementes desejos de
imundícies; fez dele alguém que mais tem o nome de homem-demônio, do
que o de homem somente. Eu quero cancelar a deturpação feita por Satanás,
anular a fome corrompida da carne infectada, restituir as asas ao homem,
levá-lo a tornar a ser rei, co-herdeiro do Pai e do celeste Reino. Eu sei que o
homem, se quiser, pode fazer tudo o que digo, para voltar a ser rei e anjo.
Eu não vos mandaria fazer coisas que não pudésseis fazer. Eu não sou um
desses retóricos que pregam doutrinas impossíveis. 69.5Eu assumi uma
verdadeira carne para poder saber, sentindo-as na carne, quais são as
tentações do homem.
– E os pecados?
– Tentados, todos podem ser. Pecadores, só os que o querem ser.
– Nunca pecaste, Jesus?
– Eu nunca quis pecar. E isto, não só porque Eu sou o Filho do Pai.
Mas assim Eu quis e vou querer, para mostrar ao homem que o Filho do
homem não pecou porque não quis pecar e que o homem, se não quiser,
pode não pecar.
– Nunca foste tentado?
– Tenho trinta anos, Judas. E não vivi em um caverna sobre um monte.
Mas entre os homens. E, ainda que tivesse estado no lugar mais solitário da
terra, pensas que as tentações não teriam vindo? Tudo temos em nós: o bem
e o mal. Tudo levamos em nós[115]. Sobre o bem, passa o sopro de Deus,
que o acende como um turíbulo que leva agradáveis e sacros incensos. E
sobre o mal, Satanás sopra e o acende com uma fogueira de um ardor feroz.
Mas a vontade atenta e a oração constante são como a areia úmida sobre o
ardor do inferno: ela o sufoca e domina.
– Mas, se nunca pecaste, como podes julgar os pecadores?
– Eu sou homem, e sou o Filho de Deus. Tudo o que Eu poderia ignorar
como homem, e julgar mal, Eu o conheço e julgo como Filho de Deus. E
afinal!… Judas, responde a esta minha pergunta: alguém que está com
fome, sofre mais ao dizer: “Agora vou sentar-me à mesa”, ou quando diz:
“Não há comida para mim”?
– Sofre mais no segundo caso, porque só o saber que está privado dela,
já o faz sentir o cheiro da comida e suas entranhas se torcem de desejo.
– Aí está. A tentação é mordente como esse desejo, Judas. Satanás o
torna ainda mais agudo, perfeito e sedutor, do que qualquer ato já praticado.
Além disso, o ato dá satisfação mas, às vezes, também causa náuseas;
enquanto que a tentação não cai, mas, como uma árvore podada, lança uma
fronde mais robusta.
– E nunca cedeste?
– Nunca cedi.
– Como te foi possível isso?
– Eu disse: “Pai, não me exponhas à tentação.”
– Como? Tu, o Messias, Tu que operas milagres, pediste a ajuda do
Pai?
– E não só a ajuda, Eu lhe pedi que não me exponha à tentação. Pensas
tu que porque Eu sou Eu, já posso deixar de contar com o Pai? Oh! Não!
Em verdade Eu te digo que o Pai concede tudo ao Filho, mas também que o
Filho recebe tudo do Pai. E te digo que tudo o que for pedido em meu nome
ao Pai, será concedido. 69.6Mas, eis-nos ao Get-Sammi, onde moro. Já são
visíveis as primeiras oliveiras além dos muros. Tu moras para lá de Tofet. A
noite já vem chegando. Não te convém subir até lá. Nós nos veremos
novamente amanhã no mesmo lugar. Adeus. A paz esteja contigo.
– A paz esteja Contigo também, Mestre… Mas eu queria dizer-te ainda
uma coisa. Eu te acompanharei até o Cedron, depois voltarei para trás. Por
que moras num lugar tão humilde como aquele? Sabes, o povo olha tantas
coisas. Não conheces ninguém na cidade, que tenha uma bela casa? Eu, se
quiseres, poderei levar-te à casa de amigos. Eles te hospedarão, porque são
meus amigos; e seriam moradas mais dignas de Ti.
– Achas isso? Eu não acho. O digno e o indigno existem em todas as
castas. E, sem faltar com a caridade, mas para não ofender a justiça, Eu
digo que o indigno, e maliciosamente indigno, está muitas vezes no meio
dos grandes. Não é preciso, nem útil serem poderosos para serem bons, ou
para esconder o pecado aos olhos de Deus. Tudo deverá mudar sob o meu
sinal. E será grande, não quem é poderoso, mas quem é humilde e santo.
– Mas, para ser respeitado, para se impor…
– Herodes é respeitado? E César, é respeitado? Não. Eles são tolerados
e amaldiçoados pelos lábios e pelos corações. Sobre os bons, ou também
sobre os que somente têm desejo de bondade, podes crer, Judas, que Eu
saberei me impor, mais com a modéstia, do que com a imponência.
– Mas, então… desprezarás sempre os poderosos? Assim, farás deles
teus inimigos! E eu estava pensando em falar de Ti a muitos que eu conheço
e que têm um nome…
– Eu não desprezarei a ninguém. Irei aos pobres como aos ricos, aos
escravos como aos reis, aos puros como aos pecadores. Mas, se é verdade
que ficarei grato a quem me der pão e abrigo em minhas fadigas, seja qual
for o abrigo e o alimento, Eu darei sempre preferência ao que é humilde. Os
grandes já têm muitas alegrias. Os pobres não têm mais que uma reta
consciência, um amor fiel, os filhos, e verem-se ouvidos pelos que são mais
do que eles. Eu serei sempre inclinado para os pobres, os aflitos e os
pecadores. Eu te agradeço pela tua boa vontade. Mas deixa-me neste lugar
de paz e oração. Vai. E Deus te inspire o que é bom.
Jesus deixa o discípulo e se introduz entre as oliveiras, e tudo termina.
[113] disse, em: Qohélet 1,1-2; 12,8.13.
[114] cita, por exemplo em: Juizes 9,54; 1 Samuel 31,4-5; 2 Samuel 17,23; 1 Rei 16,18; 2 Macabeus 14,41-46.
[115] Tudo temos em nós: o bem e o mal. Tudo levamos em nós. Estas afirmações são correctas enquanto referidas à condição
humana no geral. Todavia, Maria Valtorta corrigiu-as, numa cópia dactilografada, da seguinte forma, que parece mais conforme à
natureza humano-divina d’Aquele que fala: Tudo temos em torno a nós: o bem e o mal. Tudo podemos acolher em nós.
70. No Getsêmani com João de Zebedeu.
Uma comparação entre o Predileto e Judas de
Keriot.
4 de janeiro de 1945.
70.1
Vejo Jesus que se dirige à baixa casinha branca, que fica no meio do
olival. Um jovenzinho o saúda. Parece ser ele do lugar porque tem nas mãos
as ferramentas de podar e de sachar.
– Deus esteja Contigo, Rabi. O teu discípulo João veio e agora partiu
novamente para ir ao teu encontro.
– Faz muito tempo?
– Não. Ele apenas passou aquele caminho. Nós pensávamos que Tu
virias do lado de Betânia…
Jesus, rápido, toma o caminho, contorna o outeiro, vê João que desce
quase correndo em direção à cidade e o chama.
O discípulo se vira e, com o rosto iluminado pela alegria, grita:
– Oh! Meu Mestre! –e volta correndo.
Jesus lhe abre os braços e os dois se abraçam afetuosamente.
– Eu ia procurar-te… Pensávamos que tinhas estado em Betânia, como
havias dito.
– Sim. Eu queria fazer assim. Devo começar a evangelizar também os
arredores de Jerusalém. Mas depois me entretive na cidade… para instruir
um novo discípulo.
– Tudo o que fazes é bem feito, Mestre. E é bem sucedido. Estás
vendo? Agora mesmo, de repente nos encontramos.
Os dois caminham, tendo Jesus um braço sobre as costas de João que,
sendo mais baixo do que Ele, o olha de baixo para cima, contente com
aquela intimidade. E assim eles voltam para a casinha.
– Há muito tempo que vieste?
– Não, Mestre. Eu parti de Doco, ao amanhecer, junto com Simão, ao
qual eu disse aquilo que Tu desejavas. Depois, paramos juntos nos campos
de Betânia, repartimos o alimento, e falamos de Ti aos camponeses que lá
encontramos. Quando o sol já estava menos quente nos separamos. Simão
foi à casa de um amigo, o qual quer falar de Ti. É o dono de quase toda a
Betânia. Simão o conhece de antes, desde quando eram vivos os pais de um
e do outro. Mas amanhã Simão virá para cá. Disse-me para falar-te que é
feliz em servir-te. Simão é muito capaz. Eu gostaria de ser como ele. Mas
sou um moço ignorante.
– Não, João. Tu também fazes muito bem.
– Estás mesmo contente com o teu pobre João?
– Muito contente, meu João. Muito.
– Oh! Meu Mestre!
João se inclina, num impulso, para pegar a mão de Jesus e a beija e a
passa pelo rosto como uma carícia.
70.2
Chegaram à casinha. Entram na cozinha baixa e fumacenta. O dono o
saúda:
– A paz esteja Contigo.
Jesus responde:
– Paz a esta casa, a ti e a quem vive contigo. Tenho Comigo um
discípulo.
– Teremos pão e óleo para ele também.
– Eu trouxe peixe seco que Tiago e Pedro me deram. E, passando por
Nazaré, tua mãe me deu pão e mel para Ti. Caminhei sem parar, mas agora
o pão já deve estar duro.
– Não tem importância, João. Ele terá sempre o sabor das mãos da
minha mãe.
João vai tirando os seus tesouros do alforje que ele tinha posto em um
canto. E vejo preparar o peixe seco de uma maneira estranha. Eles o
molham por poucos instantes, em água quente, depois o untam e assam
sobre as chamas.
Jesus abençoa a comida e, com o discípulo, assenta-se à mesa. Estão ali
também o dono da casa, que ouço ser chamado Jonas, e seu filho. A mãe
vai e vem, levando o peixe, azeitonas pretas, verduras cozidas e temperadas
com óleo. Jesus também põe na mesa o mel. E o oferece à mãe, estendendo-
o com o pão.
– É da minha colméia –diz–. Minha mãe é quem cuida das abelhas.
Come dele. É bom. És tão boa para Comigo, Maria, que mereces este e
mais outro–, diz Ele depois, ao ver que a mulher não queria privá-lo do
doce mel.
O jantar chega logo ao fim entre breves conversações em que todos
participam. Assim que termina, depois de ter agradecido pelo alimento,
Jesus diz a João:
– Vem. Vamos sair um pouco até o olival. A noite está morna e clara.
Será agradável estar um pouco lá fora.
O dono da casa diz:
– Mestre, eu te saúdo. Estou cansado e meu filho também está cansado.
Nós vamos dormir. Eu deixo a porta encostada e a candeia sobre a mesa. Já
sabes como fazer.
– Vai então, Jonas, e apaga a candeia. Há um luar tão claro, que nós
enxergaremos até sem levar luz.
– Mas o teu discípulo, onde é que vai dormir?
– Comigo. Em minha esteira há lugar também para ele. Não é verdade,
João?
João, à idéia de dormir ao lado de Jesus, fica extasiado.
70.3
Saem para o olival. Mas antes, João pegou qualquer coisa no saco
que está no canto. Caminham um pouco e chegam a um ponto de onde se vê
toda Jerusalém.
– Sentemo-nos aqui, e vamos conversar –diz Jesus.
Mas João prefere ir sentar-se aos pés de Jesus, sobre a erva cortada;
está com o braço pousado sobre os joelhos do Mestre, com a cabeça
apoiada sobre o braço, olhando de vez em quando para o seu Jesus. Parece
um menino perto da pessoa para ele mais querida.
– É bonito também aqui, Mestre. Olha como a cidade parece grande de
noite. Maior do que de dia.
– É porque a luz da lua fez desaparecer os contornos. Vê, parece que os
limites se alargam nesta luminosidade prateada. Olha a cúpula do Templo lá
em cima. Não parece estar suspensa no ar?
– Parece que os anjos a estão transportando sobre suas asas de prata.
Jesus suspira.
– Por que suspiras, Mestre?
– Porque os anjos abandonaram o Templo. Seu aspecto de pureza e
santidade está limitado às paredes. Aqueles que deviam dar-lhe a
alma — porque cada lugar tem sua alma, ou seja, o espírito para o qual ele
foi erguido, e o Templo tem, deveria ter, alma de oração e santidade — são
os primeiros a tirar-lhe. Não se pode dar o que não se tem, João. E, se
muitos são os sacerdotes e os levitas que lá vivem, deles não há nem um
décimo que seja apto para dar vida ao Lugar Santo. Morte é o que dão.
Comunicam a ele a morte que está no seu espírito, morto ao que é santo.
Eles têm as fórmulas. Mas não têm a vida delas. São cadáveres que estão
quentes só pela putrefação que os está inchando.
– Eles te fizeram mal, Mestre?
João está com muita pena.
– Não. Ao contrário, me deixaram falar, quando pedi para fazê-lo.
– Tu o pediste? Por que?
– Porque não quero ser Eu aquele que inicia a guerra. A guerra virá
assim mesmo. Porque a alguns Eu farei um tolo medo humano, e para
outros, eu serei uma censura. Mas isto deve estar no livro deles. Não no
meu.
70.4
Fazem um pouco de silêncio e depois João volta a falar:
– Mestre, eu conheço Ana e Caifás. Por necessidades de negócios,
minha família manteve um relacionamento com eles e quando estive na
Judéia por causa de João, eu ia também ao Templo, e eles eram bons aos
filhos de Zebedeu. Meu pai sempre se lembra deles com o melhor peixe.
Virou até um costume, sabes? Quando se quer tê-los como amigos,
continuar a tê-los, é preciso fazer assim…
– Eu sei.
Jesus está sério.
– Pois bem. Se achas bom, eu falarei de Ti ao Sumo Sacerdote. E
depois… se quiseres, eu conheço um que está tratando de negócios com
meu pai. É um rico comerciante de peixe. Ele tem uma casa bonita e
grande, perto do Hípico, porque são pessoas ricas, mas são também muito
boas. Para Ti ficaria mais cômodo e Te cansarias menos. Para se vir aqui
deve-se passar também por aquele subúrbio de Ofel tão mal cuidado e
sempre cheio de burros e de rapazes briguentos.
– Não, João. Eu te agradeço. Mas estou bem aqui. Estás vendo quanta
paz? Eu disse isto também ao outro discípulo que me fazia a mesma
proposta. Ele dizia: “Para seres melhor considerado.”
– Eu o dizia para que Tu não te cansasses muito.
– Eu não me canso. Caminharei muito e não me cansarei nunca. Sabes
o que é que me cansa? O desamor. Oh! aquele, que peso! É como se Eu
tivesse um peso no coração.
– Eu te amo, Jesus.
– Sim. E tu me alivias. Eu te quero muito bem, João, e te quererei
sempre, porque tu não me trairás nunca.
– Trair-te? Oh!
– Contudo, haverá muitos que me trairão… 70.5João, escuta. Eu te disse
que parei aqui para instruir um novo discípulo. É um jovem judeu instruído
e conhecido.
– Então, terás com ele muito menos trabalho do que conosco, Mestre.
Estou contente por teres alguém mais capaz do que nós.
– Pensas tu que me dará menos trabalho?
– Ora, se é menos ignorante do que nós, Te compreenderá melhor e Te
servirá melhor, especialmente se Te amar melhor.
– Aí está. Disseste bem. Mas o amor não depende da instrução e nem da
formação. Um virgem ama com toda a força do seu primeiro amor. Isso
também se dá com a virgindade do pensamento. E o amado penetra e se
imprime mais em um coração e em um pensamento virgem do que em um
no qual já estiveram outros amores. Mas, se Deus quiser… Escuta, João. Eu
te peço que sejas amigo dele. O meu coração treme, ao colocar-te, cordeiro
insonso, junto a alguém já experimentado na vida. Mas também se acalma,
porque sabe que tu serás cordeiro, mas também águia e se o experimentado
quiser fazer-te tocar o chão, sempre lamacento, o chão do bom sentido
humano, tu, com um bater de asas, saberás livrar-te e querer só o azul e o
sol. Por isto te peço que… — conservando-te como és — sejas amigo do
novo discípulo, que não vai ser muito amado por Simão Pedro e também
pelos outros, para lhe transfundires o teu coração…
– Oh! Mestre! Mas já não bastas Tu?
– Eu sou o Mestre ao qual não se dirá tudo. Tu és o condiscípulo, um
pouco mais jovem, com o qual é mais fácil abrir-se. Eu não estou dizendo
que me venhas repetir tudo o que ele te disser. Abomino os espias e os
traidores. Mas o que te peço é que o evangelizes com a tua fé e tua
caridade, com a tua pureza, João. É uma terra corrompida por águas mortas.
Há de ser seca com o sol do amor, purificada com a honestidade de
pensamentos, desejos e obras e cultivada com a fé. E tu podes fazer isso.
– Se achas que eu posso… oh! sim. Se Tu dizes que eu posso fazer isso,
isso farei. Por amor a Ti…
– Obrigado, João.
70.6
– Mestre, falaste de Simão Pedro. E voltou-me à lembrança o que eu
devia dizer-te primeiro, mas que a alegria de ouvir-te tinha afastado do meu
pensamento. Quando voltamos a Cafarnaum, depois do Pentecostes,
encontramos logo a importância de costume daquele desconhecido. O
menino a tinha entregue à minha mãe. Eu a dei a Pedro e ele me devolveu
dizendo que a usasse um pouco para a volta e a parada em Doco e que o
restante o levasse a Ti, pois podias estar precisando… porque Pedro
também pensava que aqui não tens comodidade… mas Tu dizes que tens…
Eu não tirei senão duas moedas para dois pobrezinhos que encontrei perto
de Efraim. Quanto ao mais, vim passando com o que minha mãe me havia
dado e com o que me deram algumas pessoas boas, às quais eu preguei o
teu Nome. Aqui está a bolsa.
– Amanhã a distribuiremos aos pobres. Assim, também Judas irá
aprendendo os nossos costumes.
– O teu primo veio? Como fez para chegar aqui tão rápido? Ele estava
em Nazaré e não me disse que partiria…
– Não. Judas é o novo discípulo. Ele é de Keriot. Mas tu o viste pela
Páscoa, aqui, naquela tarde da cura de Simão. Ele estava com Tomé.
– Ah! É aquele?
João fica um pouco admirado…
– É ele. E Tomé, que está fazendo?
– Ele obedeceu as tuas ordens deixando Simão Cananeu e, indo pela
estrada do mar, foi ao encontro de Filipe e Bartolomeu.
– Sim, Eu quero que vos ameis sem preferências, ajudando-vos
reciprocamente, suportando-vos um ao outro. Ninguém é perfeito, João.
Nem os jovens, nem os velhos. Mas, se tiverdes boa vontade, chegareis à
perfeição, e o que faltar, Eu colocarei em vós. Vós sois como os filhos de
uma santa família. Dentro dela há muitos caráteres diferentes. Um é forte,
outro é calmo, outro é corajoso, outro é tímido, um é impulsivo, outro é
muito cauteloso. Se todos fossem iguais, seríeis uma força em um caráter e
deficiências em todos os outros. Enquanto que, como estais, formais uma
união perfeita, porque vos completais mutuamente. O amor vos une, vos
deve unir, o amor por causa de Deus.
– E por Ti, Jesus.
– Primeiro por causa de Deus, e depois por amor ao seu Cristo.
– Eu… que é que eu sou na nossa família?
– És a paz amorosa do Cristo de Deus. 70.7Estás cansado, João? Queres
voltar? Eu fico aqui para rezar.
– Eu também fico para rezar Contigo. Deixa-me ficar para rezar
Contigo.
– Então fica.
Jesus diz os salmos e João o acompanha. Mas a voz dele vai sumindo, e
o apóstolo acaba adormecendo com a cabeça sobre o colo de Jesus, que
sorri e estende o seu manto sobre as costas do adormecido e depois continua
a rezar, mentalmente.
A visão termina assim.

70.8
Depois Jesus diz:
– Ainda um paralelo entre o meu João e um outro discípulo. Paralelo no
qual sai sempre mais nítida a figura do meu predileto.
Ele é aquele que se despoja do seu modo de pensar e de julgar, para ser
“o discípulo.” É aquele que se doa, sem querer de si nem mesmo uma
molécula — do si mesmo antecedente à eleição. Judas é aquele que não
quer se despojar de si mesmo. A sua doação é, por isso, uma doação irreal.
Ele traz consigo o seu eu doente de soberba, de sensualidade, de cobiça.
Conserva o seu modo de pensar. Com isso ele neutraliza os efeitos da
doação e da Graça.
Judas é o chefe da família de todos os apóstolos fracassados. E são
tantos! João é o chefe da família dos que se fazem hóstias por meu amor.
Ele é o teu modelo.
Eu e minha mãe somos as Hóstias excelsas. Alcançar-nos é difícil,
aliás, impossível, porque o nosso sacrifício foi de uma aspereza total. Mas o
meu João! É a hóstia imitável por todas as classes dos meus amadores:
virgem, mártir, confessor, evangelizador, servo de Deus e da mãe de Deus,
ativo e contemplativo, é um exemplo para todos. É aquele que ama.
Observa os diferentes modos de raciocinar. Judas investiga, argumenta,
teima, e, mesmo quando parece estar cedendo, na realidade está
conservando ainda o seu modo de pensar. João se julga um nada, aceita
tudo, não pergunta as razões, e se sente bem pago se puder me fazer feliz.
Eis o exemplo.
70.9
Não é verdade que te sentiste toda cheia de paz, diante daquela sua
simples e querida amorosidade? Oh! O meu João! E o meu pequeno João
que Eu quero seja sempre mais parecido com o meu dileto. Aceita tudo,
dizendo sempre como o Apóstolo: “Tudo aquilo que fazes é bem feito,
Mestre”, para merecer ouvir sempre que se lhe diga: “És a minha amorosa
paz.” Preciso de consolo Eu também, Maria. Dá-me. O meu Coração seja o
teu repouso.
71. Judas Iscariotes apresentado a João e a Simão
Zelote.
6 de janeiro de 1945.
71.1
Vejo Jesus com Judas Iscariotes, dando uns passos, para cima e para
baixo, junto a uma das portas do recinto do Templo.
– Estás certo de que ele virá? –pergunta Judas.
– Estou certo. Ele ia partir ao amanhecer de Betânia e no Get-Sammi ia
encontrar-se com o meu primeiro discípulo…
Uma pausa, depois Jesus se detém e olha fixamente para Judas. Coloca-
se em sua frente. Perscruta-o. Em seguida põe-lhe uma mão sobre o ombro
e lhe pergunta:
– Por que é Judas, que não me dizes o teu pensamento?
– Que pensamento? Não tenho um pensamento especial neste
momento, Mestre. Perguntas eu te faço até demais. E certamente não te
podes queixar do meu mutismo.
– Faz-me muitas perguntas e me dás muitas informações sobre a cidade
e seus habitantes. Mas não me abres a tua alma. Que importância queres
que tenham para Mim informações sobre o seu patrimônio e a estrutura
desta ou daquela família? Eu não sou um mandrião que tenha vindo aqui
por passatempo. Tu sabes porque é que Eu vim. E bem podes compreender
que me importa antes de tudo, ser o Mestre dos meus discípulos. Por isso
quero da parte deles sinceridade e confiança. 71.2Teu pai te amava, Judas?
– Sim, me amava muito. Eu era o seu orgulho. Quando eu voltava da
escola, e também mais tarde, quando eu voltava de Jerusalém para Keriot,
ele queria que eu lhe contasse tudo. Interessava-se por tudo o que eu fazia e
se eram coisas boas, se alegrava, se eram coisas menos boas, me animava.
Se — alguma vez, como sabes, todos erram — eu tinha cometido algum
erro e recebido alguma repreensão, ele me fazia ver toda a justiça da
repreensão recebida e quanto eu havia errado. Mas o fazia tão docemente…
parecia um irmão maior. E terminava sempre assim: “Isto eu te digo, porque
quero que o meu Judas seja um justo. Quero ser abençoado através do meu
filho…” Meu pai…
Jesus que ficou o tempo todo fitando atentamente o discípulo,
sinceramente emocionado com a evocação da memória de seu pai, lhe diz:
– Aí está, Judas, fica certo de tudo o que te digo. Nenhuma obra fará
mais feliz o teu pai do que a de seres meu fiel discípulo. O espírito de teu
pai exultará, lá onde está esperando a Luz — porque, se assim ele te
educou, justo deve ter sido — vendo-te meu discípulo. Mas, para o seres,
deves dizer-te a ti mesmo: “Reencontrei o meu pai que eu tinha perdido, um
pai que parecia um irmão mais velho, eu o encontrei no meu Jesus e a Ele,
como ao meu pai amado que eu ainda choro, direi tudo, para ter dele guia,
bênção ou mansa repreensão.” Queira o Eterno e tu, sobretudo tu, queiras
agir de tal modo, que Jesus só possa te dizer: “És bom, Eu te abençôo.”
– Oh! Sim Jesus, sim. Se Tu me amares muito, eu saberei tornar-me
bom, como Tu queres, e como meu pai queria. E minha mãe não terá mais
aquele espinho no coração. Ela dizia sempre: “Estás agora sem guia, meu
filho, e ainda tens tanta necessidade!” Quando ela souber que tenho a Ti!
– Eu te amarei, como nenhum outro homem poderia, Eu te amarei
muito, te amo muito. Não me decepciones.
– Não, Mestre, não. Eu era cheio de contrastes: invejas, ciúmes, manias
de querer ser o primeiro, a sensualidade, tudo se chocava em mim contra os
sentimentos bons. Queres ver? Agora há pouco, Tu me causaste uma dor.
Ou seja, Tu, não. O que a causou foi a minha natureza má… Eu pensava
que era o teu primeiro discípulo… e Tu me disseste que já tens um outro.
– Tu mesmo o viste. Não te lembras de que no Templo, pela Páscoa, Eu
estava com muitos galileus?
– Pensava que fossem amigos… Eu pensava que eu fosse o primeiro
escolhido para tal condição e por isso, o predileto.
– Não há distinções em meu coração entre os últimos e os primeiros. Se
o primeiro cometesse falta, e o último fosse um santo, aí então, aos olhos de
Deus é que se faria uma distinção. Mas Eu, Eu amarei da mesma forma,
com um amor feliz ao santo e com um amor sofredor ao pecador. 71.3Mas eis
João que chega com Simão. João, o meu primeiro. Simão, aquele do qual te
falei dois dias atrás. Simão e João, tu já os viste. Um era doente…
– Ah! O leproso! Eu me lembro. Já é o teu discípulo?
– Desde o dia seguinte.
– E comigo, por que tanta espera?
– Judas?!
– É verdade. Perdão.
João viu o Mestre e o mostra a Simão. Apressam o passo. A saudação
de João é um beijo trocado com o Mestre. Simão, ao invés, prostra-se ao
pés de Jesus e os beija, exclamando:
– Glória ao meu Salvador! Abençoa o teu servo para que as suas ações
sejam santas aos olhos de Deus, e eu lhe possa dar glória para bendizê-lo
por ter-me dado a Ti!
Jesus lhe põe a mão sobre a cabeça:
– Claro que Eu te abençôo para agradecer-te por teu trabalho. Levanta-
te, Simão. Eis, João; eis, Simão: este é o último discípulo. Ele também quer
seguir a Verdade. Por isso, é irmão de todos vós.
Saúdam-se, os dois judeus com uma indagação recíproca e João com
sua expansão.
– Estás cansado, Simão? –pergunta Jesus.
– Não, Mestre. Junto com a saúde, veio-me um vigor que eu ainda não
conhecia.
– E sei que o estás empregando bem. Tenho falado com muitos e todos
me falaram de ti como daquele que já os instruiu sobre o Messias.
Simão sorri contente:
– Ontem mesmo, à tarde, falei de Ti com uma pessoa que é um israelita
honesto. Espero que um dia o conheças. Gostaria que fosse eu quem Te
conduzisse a ele.
– Isto não é impossível.
Judas intervém:
– Mestre, Tu me prometeste ir comigo à Judéia.
– E irei. Simão continuará a instruir as pessoas sobre a minha vinda. O
tempo é breve, amigos, e o povo é numeroso. 71.4Agora Eu vou com Simão.
A tarde, vós dois ireis ao meu encontro pela estrada do Monte das Oliveiras
e distribuiremos dinheiro aos pobres. Ide.
Jesus, sozinho com Simão, lhe pergunta:
– Aquela pessoa de Betânia é um verdadeiro israelita?
– Um verdadeiro israelita. Há nele todas as idéias predominantes, mas
ele tem também uma verdadeira ânsia pelo Messias. E quando eu lhe disse:
“Ele já está entre nós”, ele respondeu imediatamente: “Feliz de mim, que
vivo nesta hora!”
– Iremos a ele um dia para levar a bênção à sua casa. Viste o novo
discípulo?
– Eu vi. É jovem e parece inteligente.
– Sim. Ele é. Tu, que és judeu, mais do que os outros será compatível
de suas idéias.
– É um desejo, ou uma ordem?
– É uma ordem serena. Tu, que sofreste, és capaz de ter mais
indulgência. A dor ensina tantas coisas!
– Se me mandas, eu serei todo indulgência para com ele.
– Sim, isto mesmo. Talvez o meu Pedro, e não só ele, fique um pouco
escandalizado, ao ver como trato e me preocupo com este discípulo. Mas
um dia eles entenderão… quanto mais alguém é mal formado, mais precisa
de cuidados. Os outros… oh! os outros vão-se formando também por si,
somente por contato. Eu não quero fazer tudo por Mim. Peço a vontade do
homem e a ajuda dos outros para formar um homem. Eu vos chamo para
que me ajudeis… e vos fico agradecido pela ajuda.
– Mestre, estás supondo que dele te venham decepções?
– Não. Mas ele é jovem e cresceu em Jerusalém…
– Oh! Perto de Ti ele se corrigirá de todos os vícios desta cidade…
Estou certo disso. Eu, já velho e tornado insensível pelo fastio da vida,
tornei-me completamente novo, desde o dia em que Te vi…
Jesus murmura:
– E assim seja.
E depois, em voz alta:
– Vem Comigo ao Templo. Vou evangelizar o povo.
E a visão termina.
72. Em direção a Belém com João,
Simão Zelote e Judas Iscariotes.
7 de janeiro de 1945.
72.1
Vejo Jesus que, desde o amanhecer, sempre junto à mesma porta, se
une aos discípulos Simão e Judas. Jesus já estava com João. Eu o ouço
dizer:
– Meus amigos, Eu vos peço que venhais Comigo pela Judéia. Se não
vos custar demais, especialmente para ti, Simão.
– Por que, Mestre?
– Porque é áspero o caminho pelos montes judaicos… e talvez ainda
mais áspero será para ti, o encontrar com alguns dos que te tenham feito
mal.
– Quanto ao caminho, eu Te garanto uma vez mais que depois que me
curaste fiquei mais forte do que um jovem e nenhum trabalho me cansa,
ainda mais quando ele é feito por Ti; agora, melhor ainda, Contigo. Quanto
ao encontro com quem me tiver prejudicado, não existe mais aspereza de
ressentimentos e nem de sentimentos no coração de Simão, desde quando
ele se tornou teu. O ódio caiu junto com as escamas do meu mal. E não sei,
podes crê-lo, se devo dizer-te que fizeste um milagre maior ao curar-me a
carne corroída, ou a alma queimada pelo rancor. Penso que não estou errado
ao dizer que o milagre maior foi este último. É sempre menos fácil que
fique curada uma chaga do espírito… e Tu curaste a minha num instante.
Isto é milagre. Porque, num instante não fica curado, por mais que o queira
com todas as suas forças, o homem que está doente de um hábito moral, se
Tu não anulares aquele hábito com a tua vontade santificante.
– Não estás errado em teu julgamento.
72.2
– Por que não o fazes assim com todos? –pergunta Judas, um pouco
ressentido.
– Mas Ele o faz, Judas. Por que falas assim ao Mestre? Não percebes
que estás diferente, desde que te aproximaste Dele? Eu era discípulo de
João, o Batista. Mas me achei todo mudado, desde quando Ele me disse:
“Vem!”
João, que geralmente não intervém, e especialmente se tem que fazer
diante do Mestre não o faz nunca, desta vez não é capaz de ficar calado.
Doce e afetuoso, ele pousou uma mão sobre o braço de Judas, como para
acalmá-lo, e lhe fala muito preocupado e persuasivo. Depois, se dá conta de
que falou antes de Jesus, se enrubesce e diz:
– Perdão, Mestre. Falei no teu lugar… mas queria… queria que Judas
não Te desse um desgosto.
– Sim, João. Mas ele não me deu desgosto como discípulo. Quando o
for, então, se ele persistir em seu modo de pensar, me dará um desgosto. 72.3O
que me entristece é constatar quanto o homem está corrompido por Satanás,
que lhe desvia o pensamento. Todos, sabeis? Todos tendes o pensamento
perturbado por ele! Mas virá, oh! virá o dia em que tereis em vós a Força de
Deus, a Graça, tereis a Sabedoria, com o seu Espírito… Então, tereis tudo
para julgar com justiça.
– E todos nós julgaremos com justiça?
– Não, Judas.
– Mas, estás falando para nós, discípulos, ou para todos os homens?
– Falo referindo primeiro a vós, depois a todos os outros. Quando for a
hora, o Mestre elegerá seus operários e os enviará pelo mundo…
– Já não estás fazendo isso?
– Por enquanto, o que Eu quero é que digais: “O Messias já está entre
nós. Vinde a Ele.” Então, Eu vos farei capazes de pregar em meu nome, de
realizar milagres em meu nome…
– Oh! Também milagres?
– Sim, sobre os corpos e sobre as almas.
– Oh! Como seremos então admirados!
Judas fica exultante, com esta idéia.
72.4
– Não estaremos mais com o Mestre então, mas… eu terei sempre
medo de fazer aquilo que é de Deus, com capacidade de homem –diz
João, e olha para Jesus pensativamente e também um pouco triste.
– João, se o Mestre der licença, eu queria te dizer o que penso –diz
Simão.
– Dize-o ao João. Eu desejo que vos aconselheis mutuamente.
– Como é que sabes que é um conselho?
Jesus sorri e fica calado.
– Pois bem. Então eu te digo, João, que não deves, não devemos temer.
Apoiamo-nos em sua sabedoria de Mestre santo, e em sua promessa. Se Ele
diz: “Eu vos enviarei”, é sinal de que Ele sabe que pode enviar-nos, sem
que isso prejudique a Ele e a nós, ou seja, à causa de Deus, que todos nós
consideramos querida, como uma esposa recém-casada. Se Ele nos promete
que vestirá a nossa miséria intelectual e espiritual com os fulgores do poder
que o Pai lhe dá em favor de nós, devemos estar certos de que Ele o fará e
de que nós o poderemos, não por nós mesmos, mas pela sua misericórdia.
No entanto, certamente tudo isso acontecerá, se nós não formos orgulhosos,
nem colocarmos desejo humano em nosso trabalho. Eu penso que, se
corrompermos a nossa missão, que é toda espiritual, com elementos que são
terrestres, então não se cumprirá também a palavra de Cristo. Não por sua
incapacidade, mas porque nós estrangularemos essa capacidade com o laço
da soberba. 72.5Não sei se me explico bem.
– Tu te explicas muito bem. Eu é que estava errado. Mas, sabes… eu
penso que, no fundo, o fato de desejarmos ser admirados como discípulos
do Messias, e tão dele, a ponto de termos merecido fazer o que Ele faz, seja
mais um desejo de realçar a poderosa figura do Cristo, junto aos povos.
Louvor ao Mestre, que tem tais discípulos, isto é o que quero dizer –
responde-lhe Judas.
– Nem tudo está errado no que dizes. Mas… olha, Judas. Venho de uma
casta que é perseguida por… por ter compreendido mal o que é, e como
deve ser o Messias. Sim. Se nós o tivéssemos esperado, com uma justa
visão do seu ser, não teríamos caído em erros, que são blasfêmias à Verdade
e rebelião à lei de Roma; por isso, por Deus e por Roma fomos punidos.
Nós quisemos ver no Cristo um conquistador e um libertador de Israel, um
novo Macabeu[116], e maior do que Judas… Só isto. E, por que? Porque
mais do que dos interesses de Deus, nós temos cuidado dos nossos
interesses: da pátria e dos cidadãos. Oh! santo também é o interesse da
pátria. Mas, que é ela, diante do Céu eterno? Quanto pensei e vi: vi a
verdadeira figura do Messias… a tua, Mestre humilde e bom, a tua, Mestre
e Rei do espírito, a tua, o Cristo, Filho do Pai e que ao Pai conduzes e não
aos palácios feitos de pó, não às deidades de barro. Primeiro nas longas
horas de perseguição e depois nas de segregação quando, fugitivo, me
escondia nas tocas dos animais selvagens partilhando com eles cama e
comida para escapar das forças romanas e sobretudo da delação dos falsos
amigos; ou quando, esperando a morte, já sentia o cheiro do sepulcro na
minha caverna de leproso. Tu… oh! Como me é fácil seguir-te… Porque,
perdoa a minha ousadia que se proclama justa, porque te vejo como antes
pensei que eras, eu te reconheço, eu logo Te reconheci. Sim, não foi um
conhecimento de Ti, mas um reconhecer Alguém que minha alma já havia
conhecido…
– Por isto é que te chamei… e por isto te levo Comigo, agora, nesta
minha primeira viagem pela Judéia. 72.6Quero que tu completes o
reconhecimento… e quero que também estes, que a idade torna menos
capazes de chegar à verdade, por meio de uma meditação severa, saibam
como foi que o Mestre deles chegou até esta hora… Depois entendereis.
Eis-nos à vista da torre de Davi. A porta Oriental fica lá perto.
– Sairemos por ela?
– Sim, Judas. Em primeiro lugar, vamos a Belém. Ao lugar onde Eu
nasci… É bom que o saibais… para dizê-lo aos outros. Isto também faz
parte do conhecimento do Messias e da Escritura. Encontrareis as profecias
escritas nas coisas, com voz não mais de profecia mas de história. Vamos
dar uma volta ao longo das casas de Herodes…
– A velha raposa malvada e luxuriosa.
– Não julgues. Deus é quem julga. Vamos por aquele caminho, por
entre estas hortaliças. Pararemos à sombra de uma árvore, perto de alguma
casa hospitaleira enquanto o sol estiver quente. Depois, prosseguiremos o
nosso caminho.
A visão termina.
[116] um novo Macabeu, isto é, um novo Judas Macabeu, o chefe dos judeus das quais gestas se fala especialmente em: 1
Macabeus 3,1-26.
73. Em Belém, na casa de um camponês
e na gruta do Nascimento.
8 de janeiro de 1945.
73.1
Uma estrada na planície pedregosa, poeirenta, seca pelo sol do verão.
Ela se estende entre possantes oliveiras, todas carregadas de pequenas
azeitonas, que mal acabaram de formar-se. O chão, nos lugares não pisados,
tem ainda um tapete de miúdas florzinhas das oliveiras, que caíram depois
da fecundação.
Jesus, com os três, anda em fila indiana, ao longo da beira da estrada,
onde a sombra das oliveiras conservou a erva ainda verde e, por isso, ali há
menos pó.
A estrada tem uma dobra em ângulo reto, além da qual sobe levemente
em direção a um vale em forma de grande ferradura, sobre a qual estão
espalhadas numerosas casas e casinhas, de modo a formar uma pequena
cidade. Justamente no ponto em que a estrada faz esta curva, há uma
construção em forma de cubo, por onde se entra através de uma cúpula
baixa. Ela está toda fechada, e parece abandonada.
– Lá está o sepulcro de Raquel –diz Simão.
– Então, já estamos quase chegando. Vamos entrar logo na cidade?
– Não, Judas. Antes vos mostrarei um lugar… Depois, entraremos na
cidade e, visto que ainda é dia claro e a noite vai ser de luar, poderemos
falar à população. Se ela quiser escutar.
– E ela não vai querer te escutar?
73.2
Chegaram ao sepulcro, antigo, mas bem conservado, bem caiado.
Jesus se detém para beber em um poço rústico ali perto.
Oferece-lhe água uma mulher que veio apanhá-la. Jesus lhe pergunta:
– És de Belém?
– Eu sou. Mas agora em tempo de colheita estou com o meu marido
neste campo, cuidando das hortas e dos pomares. E Tu, és galileu?
– Nasci em Belém, mas moro em Nazaré da Galiléia.
– Perseguido, também Tu?
– Minha família. Mas, por que dizes “também Tu”? Entre os belemitas,
há muitos perseguidos?
– E não sabes disso? Quantos anos tens?
– Trinta.
– Então nasceste justamente quando… oh! que desventura! Mas, por
que foi nascer aqui, Aquele?
– Quem?
– Ora, aquele que se dizia o Salvador. Maldição aos tolos que,
embriagados com cerveja, viram anjos nas nuvens, ouviram nos balidos das
ovelhas e nos zurros dos burros vozes do Céu e, nas névoas da embriaguez,
confundiram três miseráveis como sendo os mais santos da terra. Maldição
para eles! E para os que creram neles.
– Mas, com todas as tuas maldições, não me explicaste ainda o que foi
que aconteceu. Por que amaldiçoas?
– Porque… Mas escuta, para onde queres ir?
– Para Belém com os meus amigos. Tenho umas coisas a fazer lá.
Preciso saudar velhos amigos e levar-lhes a saudação de minha mãe. Mas
antes, Eu queria saber muitas coisas, porque estivemos fora, nós da família,
por muitos anos. Nós deixamos a cidade, quando Eu ainda estava com
poucos meses.
– Então, foi antes da nossa desventura. 73.3Escuta, se não ficas aborrecido
com a casa de um camponês, vem dividir conosco o pão e o sal. Tu e os
teus companheiros. Falaremos durante o jantar e eu vos darei alojamento
até amanhã de manhã. Minha casa é pequena. Mas, sobre a estrebaria há
muito feno amontoado. A noite é quente e serena. Se quiseres, podes
dormir.
– O Senhor de Israel recompense a tua hospitalidade. Eu irei com
alegria à tua casa.
– O peregrino traz consigo a bênção. Vamos. Mas eu preciso ainda ir
despejar seis ânforas de água sobre as verduras, que nasceram há pouco.
– Eu te ajudarei.
– Não. Tu és um senhor. Teus modos o dizem.
– Eu sou um operário, mulher. Este aqui é um pescador. Estes, judeus,
gente de posses e bem colocados. Eu, não.
E pega uma ânfora bojuda pousada perto do baixíssimo murinho do
poço, a amarra e desce-a.
João o ajuda. Os outros também não querem ficar atrás e dizem à
mulher:
– Onde estão tuas hortaliças? Mostra-nos que para lá levaremos as
ânforas.
– Deus vos abençoe! Estou com os rins machucados pelo cansaço.
Vinde.
E enquanto Jesus está tirando do poço a sua ânfora, os três desaparecem
por uma vereda abaixo… Depois voltam com as suas ânforas vazias,
enchem-nas, e vão novamente. E assim fazem, não três, mas bem umas dez
vezes. E Judas ri, dizendo:
– Ela deve estar cansada de abençoar-nos. Nós levamos tanta água para
as suas verduras que, pelo menos por dois dias, a terra estará úmida e a
mulher não precisará machucar os seus rins.
Quando ele volta pela útima vez, diz:
– Mestre, creio porém, que vamos nos dar mal.
– Por que, Judas?
– Porque a briga dela é com o Messias. Eu lhe disse: “Não blasfemes.
Não sabes que a maior graça para o povo de Deus é o Messias? Jeová o
prometeu a Jacó e a todos os profetas e justos de Israel. E tu o odeias?” E
ela me respondeu: “Não a Ele. Mas aquele que foi chamado ‘Messias’ por
uns pastores bêbados e por uns malditos adivinhos do Oriente.” E já que o
Messias és Tu…
– Não importa. Eu sei que estou colocado à prova e contradição de
muitos. E tu lhe disseste que sou Eu?
– Não. Eu não sou tolo. Eu quis salvar as tuas e as nossas costas.
– Fizeste bem. Não por causa das costas. Mas porque desejo
manifestar-me quando julgar que seja o momento justo. Vamos.
Judas o guia até às hortaliças.
73.4
A mulher despeja as últimas três ânforas e depois os conduz a uma
rústica construção que está no meio do pomar.
– Entrai –diz ela–. Meu marido já está em casa.
Eles entram em uma cozinha baixa e enfumaçada.
– A paz esteja nesta casa –saúda Jesus.
– Quem quer que sejas, a bênção para Ti e para os teus. Entra –
responde o homem.
E antes vai buscar uma bacia com água, para que os quatro se
refresquem e se lavem. Em seguida, todos entram e se assentam junto a uma
mesa tosca.
– Eu vos agradeço por minha mulher. Ela me falou. Eu nunca tinha me
aproximado de galileus; me diziam que eles eram rudes e briguentos. Mas
vós fostes gentis e bons. Vós já estáveis cansados… e ter ainda que
trabalhar daquele modo. Estais vindo de longe?
– De Jerusalém. Estes são judeus. Eu e este outro somos da Galiléia.
Mas, podes crer, homem, o bom e o mau estão em toda parte.
– É verdade. Eu, no meu primeiro encontro com os galileus, encontro o
bom. Mulher, traz a comida. Não tenho outra coisa a não ser pão, verdura,
azeitonas e queijo. Eu sou camponês.
– Eu também não sou um senhor. Eu sou carpinteiro.
– Tu? Com estes modos?
A mulher intervém:
– O hóspede é de Belém, como eu te disse, e são perseguidos ele e os
seus; talvez tenham sido ricos e instruídos, como o eram Josué de Ur,
Matias de Isaque, Levi de Abraão… pobres infelizes!
– Ninguém te perguntou nada. Perdoa-a. As mulheres são mais
faladeiras do que os pássaros à tarde.
– Eram famílias belemitas?
– Como? Não sabes quem eram, tu que és de Belém?
– Nós fugimos, quando Eu tinha poucos meses…
A mulher, que deve ser mesmo faladeira, torna a falar:
– Ele foi-se embora, antes do massacre.
– É. Estou vendo. De outro modo, não estaria mais no mundo. Não
voltaste mais por aqui?
– Não.
73.5
– Que infelicidade! Poucos encontrarás daqueles que, como me disse
Sara, Tu queres conhecer e saudar. Muitos foram mortos, muitos fugiram,
muitos… ah! estão dispersos, e nunca se soube se foram mortos no deserto,
ou se faleceram no cárcere, em punição por sua rebelião. Mas foi rebelião?
E quem ficaria passivo deixando que degolassem tantos inocentes? Não,
não é justo que ainda estejam vivos o Levi e o Elias, enquanto tantos
inocentes morreram!
– Quem são esses dois, e que foi que fizeram?
– Mas… ao menos da matança ficaste sabendo. A matança feita por
Herodes… Mais de mil crianças[117] na cidade, um outro milhar nos
campos. E todos, aliás, quase todos varões, porque naquela fúria, no escuro,
no conflito que se armou, os ferozes pegaram, arrancaram dos berços, dos
leitos maternos, das casas assaltadas, até as menininhas, e as transpassaram
como filhotinhos de gazela, transformados em alvos por um arqueiro. Pois
bem, e tudo isso por que? Porque um grupo de pastores que, para vencerem
o frio da noite, por certo beberam bastante cerveja, foram tomados pelo
delírio, e disseram ter visto anjos, ouvido canções, recebido indicações… e
disseram a nós de Belém: “Vinde. Adorai. O Messias nasceu.” Pensa: o
Messias em uma caverna! Em verdade, devo dizer que embriagados fomos
todos, eu também, então adolescente e minha mulher, que naquele tempo
tinha poucos anos… porque todos nós acreditamos, e em uma pobre mulher
galiléia quisemos ver a Virgem parturiente da qual falaram os Profetas.
Mas, se ela estava na companhia de um rude galileu! O marido certamente.
Se ela era sua mulher, como podia ser a “Virgem”? Em suma, acreditamos.
Presentes, adorações… casas abertas para hospedá-los… Oh! Como
souberam representar bem a parte deles! Pobre Ana! Perdeu os bens e a
vida, e também os filhos de sua filha, a primeira, a única que se salvou,
porque casada com um comerciante de Jerusalém, mas perderam os bens,
sua casa foi queimada, e todo o seu sítio foi arrasado por ordem de Herodes.
Agora, é um campo inculto, sobre o qual pastam os rebanhos.
– Tudo culpa dos pastores?
– Não, também dos três bruxos, que vieram dos reinos de Satanás.
Talvez fossem compadres dos três… E nós, tontos, considerávamos aquilo
tudo como uma honra para nós! E aquele pobre arqui-sinagogo! Nós o
matamos porque ele jurou que as profecias punham o selo da verdade nas
palavras dos pastores e dos magos…
– Tudo culpa, então, dos pastores e dos magos?
– Não, galileu. Nossa também. Da nossa credulidade. Havia tanto
tempo que se esperava o Messias! Séculos de espera. Muitas desilusões nos
últimos tempos, por causa dos falsos Messias. Um deles era galileu, como
Tu, um outro se chamava Teúdas. Mentirosos! Messias eles! Não eram mais
do que ávidos aventureiros, à caça de fortuna! A lição devia ter-nos feito
mais espertos. Ao invés…
73.6
– E então, por que maldizer todos, os pastores e os magos? Se vos
julgais tolos vós também, então deveríeis maldizer-vos também. Mas a
maldição não é permitida pelo preceito do amor. Maldição atrai maldição.
Tendes certeza de que estais com a verdade? Não poderia ser que os
pastores e os magos tivessem dito a verdade, a eles revelada por Deus? Por
que querer crer que eles eram mentirosos?
– Porque os anos da profecia não se tinham completado. Depois
percebemos… depois que o sangue, que avermelhou a água de nossos
tanques e rios, nos abriu os olhos do pensamento.
– E não poderia o Altíssimo, por um excesso de amor para com o seu
povo, antecipar a vinda do Salvador? Sobre o que foi que os magos
basearam suas afirmações? Disseram-me que eles vinham do Oriente…
– Nos cálculos que fizeram sobre uma nova estrela.
– E não está escrito[118]: “Uma estrela nascerá de Jacó, e uma vara se
levantará de Israel”? E Jacó não é o grande patriarca, e não fez ele uma
parada nesta terra de Belém, que para ele era tão querida como a pupila de
seus olhos, por ter aí morrido a sua querida Raquel? Além disso, não foi
dito pela boca do profeta: “Um broto despontará da raiz de Jessé, e uma flor
nascerá dessa raiz”? Isai, o pai de Davi nasceu aqui. O broto da estirpe,
cortada perto da raiz pela usurpação dos tiranos, não é a “Virgem”, que dará
à luz o Filho, não tido de homem, porque então não seria mais virgem, mas
da vontade divina, onde Ele será “o Emanuel”, porque, como Filho de
Deus, será Deus e levará por isso Deus entre o seu povo, como diz o seu
nome? E não será anunciado, como diz a profecia, aos povos das trevas, ou
seja, aos pagãos “por uma grande luz”? E a estrela vista pelos magos não
poderia ser a estrela de Jacó, a grande luz das duas profecias, a de Balaão e
a de Isaías? E a própria matança realizada por Herodes não faz parte das
profecias? “Um grito foi ouvido no alto… É Raquel que chora os seus
filhos.” Estava marcado que as lágrimas fizessem gemer os ossos de Raquel
em seu sepulcro em Efrata, quando, por meio do Salvador, tivesse chegado
a recompensa ao povo santo. Lágrimas que depois se transformariam em
um riso celeste, como o arco-íris, que é formado pelas últimas gotas do
temporal, mas diz: “Eis um tempo sereno que vos é concedido.”
– Tu és muito douto. És rabi?
– Eu sou.
– Eu estou percebendo. Há luz e verdade nas tuas palavras. Mas… oh!
muitas feridas ainda sangram nesta terra de Belém por causa do verdadeiro
ou do falso Messias… Eu não o aconselharia a vir mais aqui. A terra o
rejeitaria, como se rejeita um enteado por causa do qual morreram os filhos
verdadeiros. Mas agora… se era Ele… já está morto como os outros que
foram degolados.
73.7
– Onde estão morando agora Levi e Elias?
– Tu os conheces?
O homem suspeita de alguma coisa.
– Eu não os conheço. O rosto deles para Mim é desconhecido. Mas são
infelizes e Eu sempre tive dó dos infelizes. Quero ir procurá-los.
– Pois, sim. Serás o primeiro, depois de quase seis lustros. Eles ainda
são pastores e trabalham para um rico herodiano de Jerusalém que se
apropriou de muitos bens dos mortos… Há sempre quem ganha! Tu os
encontrarás com os rebanhos nos altos que ficam perto de Hebron. Mas,
dou-te um conselho: não te deixes ver pelos belemitas falando com eles.
Ficarias prejudicado. Nós os suportamos porque aí está o herodiano.
Senão…
– Oh! Que ódio! Por que odiar?
– Porque é justo. Eles nos fizeram mal.
– Acreditavam estarem fazendo o bem.
– Mas fizeram mal. E mal a eles advenha. Devíamos matá-los, como
eles fizeram; matar por sua estultícia. Mas nós estávamos apatetados, e
depois… lá estava o herodiano.
– Se ele não estivessse lá, então, depois do primeiro, ainda compatível
impulso de vingança, vós os teríeis matado?
– Mesmo agora, nós os mataríamos, se não tivéssemos medo do patrão
deles.
– Homem, Eu te digo: não odeies. Não desejes o mal. Não desejes fazer
o mal. Aqui não há culpa. Mas ainda que houvesse, perdoa. Em nome de
Deus, perdoa. Vai dizer isto aos outros belemitas. Quando cair o ódio de
vossos corações, virá o Messias; o conhecereis, então, porque Ele está vivo,
Ele já existia, quando se deu a matança. Eu vo-lo digo. Não por culpa dos
pastores e dos magos, mas por culpa de Satanás é que aconteceu a matança.
O Messias nasceu aqui e veio trazer a Luz à terra de seus pais. Filho de mãe
virgem, da estirpe de Davi, nas ruínas da casa de Davi abriu para o mundo o
rio das graças eternas, abriu a Vida ao homem…
– Fora, fora! Sai daqui! Tu, seguidor desse falso Messias, que só podia
ser falso, porque trouxe a desventura a nós de Belém. Tu o defendes,
portanto…
– Silêncio, homem. Eu sou judeu, e tenho amigos altamente colocados.
Poderia fazer-te arrepender do insulto, dispara Judas, segurando o
camponês pela veste e sacudindo-o, com violência e ira.
– Não, não, fora daqui! Não quero aborrecimentos nem com belemitas,
nem com Roma, nem com Herodes. Ide embora, malditos, se não quereis
que vos deixe com uma marca. Fora!…
– Vamos, Judas. Não reajas! Deixemo-lo no seu ódio. Deus não penetra
onde há rancor. Vamos.
– Sim. Vamos. Mas vós me pagareis.
– Não, Judas. Não fales assim. Eles são cegos… Haverão tantos no meu
percurso…
73.8
Saem, seguindo Simão e João, que já estão fora conversando com a
mulher, atrás do canto da estrebaria.
– Perdoa ao meu marido, Senhor. Eu não esperava causar este
transtorno… Eis aqui, pega. Tu os tomarás amanhã cedo. São frescos,
foram postos hoje. Não tenho outra coisa… Perdão. Onde irás dormir? (E
dá-lhe uns ovos).
– Não penses nisso. Eu sei para onde ir. Vai em paz pela tua bondade.
Adeus.
Caminham alguns metros em silêncio. Depois, Judas explode:
– Mas Tu não te fizeste adorar! Por que não fizeste que se curvasse até
à lama, aquele sujo blasfemador? Até o chão! Abatido por ter faltado contra
Ti, que és o Messias… Oh! Eu o teria feito! Os samaritanos têm que ser
incinerados com o milagre. Só isso os convence.
– Oh! Quantas vezes terei que ouvir falar isso! Se Eu devesse incinerar
a todos os que pecam contra Mim!… Não, Judas. Eu vim para criar. Não
para destruir.
– É. Mas, enquanto isso, os outros Te destroem.
Jesus não rebate.
Simão pergunta:
– Para onde vamos agora, Mestre?
– Vinde Comigo. Eu conheço um lugar.
– Mas, se nunca estiveste aqui, desde o tempo em que fugiste, como o
conheces? –pergunta Judas, ainda irritado.
– Eu conheço. Não é bonito. Mas nele Eu já estive uma vez. Não é em
Belém… mas um pouco afastado… Vamos virar para aquele lado.
Jesus vai na frente, depois Simão, depois Judas, por último João…
73.9
Em silêncio, interrompido apenas pelo barulho das sandálias sobre as
pedrinhas do caminho, quando se ouve um soluço.
– Quem está chorando? –pergunta Jesus, virando-se.
E Judas:
– É o João. Ele ficou com medo.
– Não. Não fiquei com medo. Eu já estava com a mão na faca que trago
na cintura… Mas eu me lembrei de tua palavra: “Não mates, perdoa.”
Sempre falas assim…
– E então por que choras? –pergunta Judas.
– Porque sofro, ao ver que o mundo não quer Jesus. Não o reconhece, e
não o quer conhecer. Oh! É uma grande dor! É como se me enfiassem no
coração uns espinhos de fogo. É como se eu tivesse visto alguém pisar em
minha mãe ou cuspir no rosto de meu pai… É mais ainda do que isso… É
como se tivesse visto os cavalos romanos comendo na Arca Santa, e irem
repousar no Santo dos Santos.
– Não chores, meu João. Tu o dirás por esta e por infinitas outras vezes:
“Ele era a Luz, que veio para brilhar entre as trevas, mas as trevas não o
compreenderam. Veio ao mundo, que por Ele tinha sido feito, mas o mundo
não o conheceu. Veio à sua cidade, à sua casa, e os seus não o receberam.”
Oh! Não chores assim!
– Isto não sucede na Galiléia! –suspira João.
– E muito menos na Judéia –rebate Judas–. Jerusalém, que é a capital,
há três dias, estava dando hosanas a Ti, Messias. Aqui… lugar de rudes
pastores, camponeses e hortelãos… não pode ser tomado por base. Afinal,
os galileus também não serão todos bons. De resto, Judas o falso Messias,
de onde era? Dizia-se…
– Basta, Judas. Não convém inquietar-se. Eu estou calmo. Que vós
também assim estejais. Judas, vem cá. Eu preciso falar contigo.
Judas se aproxima dele.
– Pega a bolsa. Tu farás as despesas de amanhã.
– E agora, onde iremos hospedar-nos?
Jesus sorri, e se cala.
73.10
A noite já desceu. A lua cobre tudo de candura. Os rouxinóis cantam
entre as oliveiras. Um rio passa como uma fita de prata sonante. Dos
prados, que foram roçados, vem o cheiro do feno: quente, eu diria um
cheiro sensual. Ouve-se um ou outro mugido. Um ou outro balido. E
estrelas e mais estrelas sem conta, uma sementeira de estrelas sobre o
velário do céu, um dossel de gemas vivas, estendido sobre as colinas de
Belém.
– Mas, por aqui… só há ruínas. Para onde nos estás levando? A cidade
fica daquele lado.
– Eu sei. Vem. Segue o rio, atrás de Mim. Ainda uns poucos passos, e
depois… depois vou te oferecer a hospedagem do Rei de Israel.
Judas encolhe os ombros, e se cala.
Mais uns poucos passos. Em seguida, aparece um amontoado de casas
desmoronadas. Restos de moradia… Um antro entre duas fendas do
paredão.
Jesus diz:
– Trouxestes o acendedor? Acendei.
Simão acende um pequeno candeeiro que tirou do seu alforje, e o
entrega a Jesus.
– Entrai –diz o Mestre levantando a pequena luz–. Entrai. Este é o
quarto onde nasceu o Rei de Israel.
– Estás brincando, Mestre! Isto aqui é uma fétida caverna. Ah! Eu aqui
não fico mesmo! Tenho nojo de tudo isso. Este lugar é úmido, frio, fétido,
cheio de escorpiões, e talvez até de serpentes…
– Contudo… Amigos, aqui, na noite do dia 25, das Encênias, da
Virgem nasceu Jesus Cristo, o Emanuel, o Verbo de Deus feito Carne por
amor do homem: Eu, que vos falo. Também naquele tempo, como hoje, o
mundo se fez surdo às vozes do Céu, que falavam aos corações… e rejeitou
a mãe… e aqui… Não, Judas, não desvies com desgosto o teu olhar
daquelas corujas esvoaçantes, daquelas lagartixas, daquelas teias de aranha,
e não soergas com repugnância a tua bonita veste bordada para que não se
arraste no chão, que está coberto de excrementos dos animais. Aquelas
corujas são as filhas das filhas daquelas que foram os primeiros brinquedos
sacudidos diante dos olhos do Menino, para o qual os anjos cantavam o
“Glória” ouvido pelos pastores, não embriagados, senão por uma alegria
extática, uma verdadeira alegria. Aquelas lagartixas, com sua cor de
esmeralda, foram as primeiras cores que passaram pelas pupilas de meus
olhos, as primeiras, depois do candor do rosto e das vestes de minha mãe.
Aquelas teias de aranha foram dossel de meu berço real. Este chão… oh! tu
o podes pisar sem desprezo… Ele está coberto de excrementos, mas está
santificado pelos pés dela, a santa, a grande santa, a pura, a inviolada, a
puérpera deípara, aquela que deu à luz porque devia dar à luz, deu à luz,
porque Deus, não o homem, lhe mandou, e a fez ficar grávida de si. Ela, a
sem mácula, pisou neste chão. Tu o podes pisar. E, pela planta dos teus pés,
queira Deus que te suba ao coração a pureza por ela aqui derramada….
Simão está ajoelhado. João vai diretamente à manjedoura, e chora
73.11

com a cabeça nela apoiada. Judas está estarrecido… Depois é vencido pela
emoção e, sem mais pensar em sua bonita veste, prostra-se no chão, segura
a ponta da veste de Jesus, a beija e bate no peito, dizendo:
– Oh! Misericórdia, bom Mestre, da cegueira do teu servo! Minha
soberba cai por terra… eu Te vejo como és. Não o rei que eu pensava. Mas
o Príncipe eterno, o Pai do século futuro, o Rei da paz. Piedade, meu
Senhor e meu Deus! Piedade!
– Sim. Toda a minha piedade! Agora vamos dormir onde dormiu o
Infante e a virgem, onde João tomou agora o lugar da mãe em adoração,
onde Simão está parecendo o meu pai adotivo. Ou, se assim preferis, Eu vos
falarei daquela noite….
– Oh! Sim, Mestre. Faze-nos conhecer o teu florescer!
– Para que seja uma pérola de luz em nossos corações. E para que o
possamos narrar ao mundo.
– E venerar tua mãe, não somente por ser mãe, mas por ser… oh! por
ser a virgem!
Primeiro falou Judas, depois Simão e, por fim João, com um rosto que
está chorando e rindo, lá junto à manjedoura!…
– Vinde sobre o feno. Ouvi…
E Jesus narra como foi a noite do seu nascimento:
– … estando a mãe já perto do tempo de dar à luz, foi, por ordem de
César Augusto, feito um edito pelo delegado imperial Públio Sulpício
Quirino, quando era governador da Palestina Sêncio Saturnino. O edito era:
que se fizesse o recenseamento de todos os habitantes do Império. Aqueles
que não fossem escravos deviam ir para os seus lugares de origem, para se
inscreverem nos registros do Império. José, esposo da mãe, era da estirpe de
Davi, e de Davi era a mãe. Obedecendo, por isso, ao edito, deixaram Nazaré
para virem até Belém, berço da estirpe real. O tempo estava frio…
Jesus continua a narração e tudo cessa neste ponto.
[117] mil crianças…, Assim escreve Maria Valtorta num folheto que inseriu no fascículo da cópia dactilografada: Em mérito aos
Inocentes mortos no massacre de Erodes: Número exacto é 32. Desses, 18 foram mortos na cidade de Belém e 14 nos campos
próximos de Belém. Entre os mortos figuram também 6 crianças do sexo feminino, não identificadas como fêmeas pelos sicários,
dado que estavam, machos e fêmeas, vestidos todos de igual modo, e também pela pressa de matar e pela escuridão da noite.
Como sempre acontece, o camponês exagera e desvirtua a verdade das coisas. E assim, muitas legendas falsas se criaram
substituindo-se à verdade. Exclusa a consideração sobre o exagero do camponês, a nota de Maria Valtorta é a transcrição, não de
todo textual e provavelmente feita de mente, de uma nota de 28 de Fevereiro de 1947 (mencionada no volume “Os Cadernos de
1945 a 1950”), da qual discorda nos números: 320 em vez de 32, 188 em vez de 18, 132 em vez de 14, 64 em vez de 6.
[118] está escrito, em: Génesis 35,15-20; Números 24,15-17; 1 Samuel 17,12; Isaías 7,14; 9,1; 11,1; Jeremias 31,15. Os reenvios
bíblicos, de que fizemos o elenco por ordem canónica dos livros, compreendem seja as expressões citadas que os eventos
apresentados.
74. No albergue de Belém e nos escombros da casa
de Ana.
9 de janeiro de 1945.
74.1
As primeiras horas de uma luminosa manhã de verão. O céu tinge-se
de cor-de-rosa em algumas tênues nuvenzinhas, que parecem feitas de gaze
desfiada sobre um tapete de cetim azul. Por toda parte ouve-se o canto dos
pássaros, já embriagados pela luz… pardais, melros, pintarroxos cantam,
chilreiam, brigam por um pedacinho de erva seca, por uma lagarta, por um
raminho a ser levado ao ninho, a ser enfiado no papinho, a servir de poleiro.
As andorinhas se arrojam do céu ao pequeno rio, para lavar seus alvos
peitos, tingidos, em cima, de ferrugem, e, alegres pelo frescor da água,
apanham algum mosquito ainda dormente sobre o talo da erva, e fendem o
ar como uma lâmina brunida, chilreando alegres.
Duas lavandiscas, vestidas de uma seda cinzenta, passeiam graciosas
como duas senhoritas, ao longo da beira do riacho, conservando erguida a
cauda, ornada com veludinhos negros; vão espelhar-se na água, acham-se
bonitas, retomam o passeio, escarnecidas por um melro, verdadeiro gaiato
do bosque, que assobia atrás delas, com o seu comprido bico amarelo. Em
uma ramosa macieira silvestre, que se ergue solitária junto às ruínas, um
rouxinol chama insistentemente sua companheira, e somente se cala quando
a vê chegar com uma comprida lagarta, que se torce, no aperto do bico fino.
Dois pombos de torre, provavelmente evadidos de algum pombal da cidade,
e que escolheram uma morada livre nas fendas de um torreão em ruínas,
abandonam-se às suas expansões, ele, sedutor, garganteando, e ela
arrulhando pudica.
Jesus, com os braços cruzados sobre o peito, olha para todos estes
alegres animaizinhos e sorri.
– Já estás pronto, Mestre? –pergunta Simão às suas costas.
– Já estou pronto. Os outros ainda estão dormindo?
– Ainda estão.
– São jovens… Fui tomar um banho no rio… Uma água fresca que
desanuvia a mente…
– Agora eu vou.
Enquanto Simão, vestido apenas com uma curta túnica, toma seu banho
e depois põe a roupa, aparecem Judas e João.
– Deus te salve, Mestre. Estamos atrasados?
– Não. A manhã ainda está começando. Mas agora preparai-vos logo e
vamos.
Os dois tomam banho, e se vestem com a túnica e o manto.
Jesus, antes de pôr-se a caminho, arranca umas florzinhas nascidas
entre as fendas de duas pedras e as coloca em uma caixinha de madeira, na
qual já estão outras coisas, que eu não distingo bem. Ele explica:
– Vou levá-las para a mãe. Ela gostará muito… 74.2Vamos.
– Aonde vamos, Mestre?
– A Belém.
– Ainda? Parece-me que por lá não encontraremos bons ares…
– Não importa. Vamos. Quero mostrar-vos o lugar onde os Magos
apearam e onde Eu estava.
– Então escuta. Perdoa, sim, Mestre? Mas deixa-me falar. Vamos fazer
uma coisa. Em Belém, e no albergue, deixa que eu faça o discurso e as
perguntas. Para vós, galileus, não há muito amor na Judéia, e aqui ainda
menos do que em outros lugares. Então, vamos fazer assim: Tu e João
pareceis galileus até na veste. Tendes uma veste muito simples. E depois…
esses cabelos! Por que teimais em conservá-los tão compridos? Eu e Simão
daremos a vós os nossos mantos, e usaremos os vossos. Tu, Simão, darás o
teu a João. E eu ao Mestre. Eis… assim. Estás vendo? Num momento
ficareis parecendo um pouco mais judeus. Agora, isto.
Judas tira o seu capuz — é um pedaço de tela com listras amarelas,
marrons, vermelhas, verdes, como o manto, todas alternadas, estando preso
em seu lugar por um cordão amarelo — e o coloca na cabeça de Jesus,
ajeitando-o ao longo das faces, para esconder os longos cabelos loiros. João
fica com o verde bem escuro de Simão:
– Oh! Agora está melhor! Eu tenho um senso prático.
– Sim, Judas. Tu tens o senso prático. É verdade. Toma cuidado, porém,
para que ele não supere o outro senso.
– Qual, Mestre?
– O senso espiritual.
– Não! Mas em certos casos é bom sabermos ser mais políticos do que
embaixadores. E escuta… Sê bom ainda… é para o teu bem… Não me
desmintas se eu disser algumas coisas… algumas coisas… que não são
verdade, é isso.
– Que é que estás querendo dizer? Por que mentir? Eu sou a Verdade, e
não quero mentira, nem em Mim, nem em torno a Mim.
– Oh! Eu não direi senão meias mentiras. Direi que estamos todos
voltando de lugares distantes, do Egito talvez, e que desejamos ter notícias
de amigos queridos. Direi que somos judeus que estamos de volta de um
exílio… No fundo, em tudo há um pouco de verdade… e depois, quem está
falando sou eu… mentira mais, mentira menos…
– Mas, Judas! Para que enganar?
– Deixa para lá, Mestre! O mundo se rege sobre mentiras. E algumas
vezes elas são necessárias. Bem, para fazer-te contente, eu direi só que
viemos de longe e que somos judeus. Isto é verdade, são três quartos da
verdade. E tu, João, não fales nunca, porque te trairias.
– Eu ficarei calado.
– Depois… se as coisas forem andando bem… então diremos o resto.
Mas não tenho muitas esperanças. Eu sou astuto, e pego as coisas no ar.
– Eu estou vendo, Judas. Mas, Eu preferiria que fosses simples.
– Pouco adianta. No teu grupo eu serei aquele das missões difíceis.
Deixa-me agir.
Jesus está pouco propenso, mas cede.
74.3
Eles vão. Passam ao longo das ruínas, depois vão beirando um
paredão sem aberturas, além do qual se ouve o zurrar, o mugir, o relinchar,
o balir e aquele rinchar escangalhado dos camelos ou dromedários. O
paredão tem um canto. Eles o contornam. Ei-los na praça de Belém. O
tanque da fonte está no centro da praça, que tem a forma enviesada de
sempre; contudo, é diferente no lado oposto ao albergue. Lá, onde estava a
casinha, na qual, quando penso, vejo-a ainda toda de prata pura, sob os raios
da Estrela, é um campo aberto, cheio de escombros. Somente a pequena
escada está ainda, de pé, com o seu pequeno terraço. Jesus olha e suspira.
A praça está cheia de pessoas em volta dos vendedores de mantimentos,
utensílios, tecidos, etc., que estenderam sobre esteiras, ou colocaram em
cestas suas mercadorias, todas postas no chão, e estão eles também
acocorados no centro de seu… negócio, quando não estão gritando e
gesticulando em pé, em altercação com algum comprador seguro.
– É dia de feira –diz Simão.
A porta, ou melhor, o portão do albergue está aberto de par em par, e
por ele sai uma fila de burros carregados de mercadorias.
Judas entra primeiro. Olha ao seu redor. Arrogante, ele agarra um
pequeno moço de estrebaria, sujo e sem camisa, ou seja, vestido apenas
com uma veste de baixo, sem mangas e que chega até os joelhos:
– Rapaz! –grita–. O patrão! Já! Vai rápido, que eu não estou
acostumado a esperar.
O rapaz vai correndo, arrastando atrás de si uma vassoura de limpeza.
– Mas Judas! Que modos!
– Silêncio, Mestre. Deixa-me agir. É preciso que acreditem que somos
uns ricaços da cidade.
Chega correndo o patrão, que quase quebra as costas, em mesuras
diante de Judas, que está todo imponente, no manto vermelho escuro de
Jesus, sobre sua rica veste amarelo-ouro, toda cheia de cintas e franjas.
– Homem, nós viemos de longe. Somos judeus das comunidades
asiáticas. Este aqui, nascido em Belém, está sendo perseguido e procura os
seus amigos daqui. E nós viemos com Ele. Estamos chegando de Jerusalém,
onde adoramos o Altíssimo na sua Casa. Pode dar-nos algumas
informações?
– Senhor… o teu servo… Tudo por ti. Manda.
– Queremos saber de muitos… e especialmente de Ana, que tinha casa
defronte do teu albergue.
– Oh! Coitada! Ana não será mais por vós encontrada, a não ser no seio
de Abraão. E, com ela, os seus filhos.
– Foi morta? Por que?
– Não sabeis da matança de Herodes? O mundo todo falou dela, e até
César o definiu como “um porco que se nutre de sangue.” Ai! Que foi que
eu disse! Não me denuncieis! És mesmo judeu?
– Eis o sinal da minha tribo. E então? Fala.
– Ana foi morta pelos soldados de Herodes, com todos os seus filhos,‐
menos uma.
– Mas, por que? Era tão boa!
– Tu a conheceste?
– Muito.
Judas mente descaradamente.
– Ela foi morta, por ter hospedado aqueles que se diziam pai e mãe do
Messias… 74.4Vem cá, neste quarto… As paredes têm ouvidos, e falar de
certas coisas… é perigoso.
Entram em um pequeno quarto escuro e baixo. Assentam-se num baixo
sofá.
– Pois é… eu tive um bom faro. Não é sem motivo que eu sou
albergueiro. Eu nasci aqui, sou filho de filhos de albergueiros. Tenho a
malícia no sangue. Por isso, eu não quis recebê-los. Talvez um buraco para
eles eu teria encontrado. Mas… galileus, pobres, desconhecidos… ah! não!
O Ezequias não cai nessa! E depois… eu sentia… sentia que eram
diferentes… aquela mulher… com uns olhos… não, não, ela devia ter o
demônio dentro de si, e que lhe falava. E ela o trouxe aqui… a mim não,
mas na cidade. Ana era mais inocente do que uma ovelhinha, e os hospedeu
poucos dias depois, já com o Menino. Diziam que ele era o Messias… Oh!
Quanto dinheiro eu ganhei naqueles dias! Mais do que durante o
recenseamento! Vinham também aqueles que não estavam obrigados a vir
para o recenseamento. Vinham do mar, e até do Egito, para ver… e isso
durante meses! Quanto eu ganhei!… Por último, vieram três reis, três
poderosos, três magos… sei lá! Foi um verdadeiro cortejo! Não acabava
mais! Ocuparam-se todas as estrebarias, e pagaram em ouro, o feno que
dava para um mês, e foram embora no dia seguinte, deixando tudo aí. E,
quantos presentes deram aos empregados nas estrebarias, às mulheres, e a
mim! Oh!… Eu, do Messias, verdadeiro ou falso, só posso falar bem. Ele
me fez ganhar moedas aos montes. Prejuízos eu não tive. Mortos tampouco,
porque eu tinha acabado de me casar. Portanto… Mas os outros!
74.5
– Queremos ver os lugares da matança.
– Os lugares? Mas todas as casas foram lugar de matança. Até várias
milhas ao redor de Belém, houve mortos. Vinde comigo.
Sobem uma escada até um grande terraço sobre o teto. Do alto se vê um
grande campo e toda Belém[119] estendida como um leque aberto sobre suas
colinas.
– Estais vendo os pontos destruídos? Ali foram queimadas também as
casas, porque os pais defenderam os seus filhos, com armas. Estais vendo lá
aquela espécie de poço coberto de hera? Aquilo é o que restou da sinagoga.
Queimada com o arqui-sinagogo, que havia afirmado ser aquele o Messias.
Queimada pelos sobreviventes, enlouquecidos por causa da morte de seus
filhos. Quantos aborrecimentos tivemos depois… E lá, e lá, e lá… estais
vendo aqueles sepulcros? São das vítimas… Parecem ovelhinhas
espalhadas entre o verde, a perder de vista… Todos os inocentes e os pais e
as mães dos mesmos… Estais vendo aquele tanque? Era vermelha a sua
água depois que nele os sicários limparam suas armas e suas mãos. E aquele
rio, lá atrás, vós o vistes? Chegou a ficar cor-de-rosa, por causa da grande
quantidade de sangue que ele recebeu das cloacas… E ali, eis, ali… na
frente. Aquilo é o que resta de Ana.

Jesus chora.
– Tu a conhecias bem?
Responde Judas:
– Ela era como uma irmã para a sua mãe. Não é verdade, amigo?
Jesus responde somente:
– Sim.
– Compreendo –diz o albergueiro, e fica pensativo.
74.6
Jesus se inclina para falar mais baixo com Judas.
– O meu amigo queria andar sobre aquelas ruínas –diz Judas.
– Pois vá. Elas são de todos!
Eles descem. Saúdam, e vão. O hospedeiro fica decepcionado. Talvez
esperasse ganhar alguma coisa.
Atravessam a praça. Sobem pela escadinha que sobrou.
– Daqui –diz Jesus– minha mãe me fez saudar os Magos, e daqui
descemos, para irmos ao Egito.
Algumas pessoas estão olhando os quatro sobre as ruínas. Uma delas
pergunta:
– Serão parentes da morta?
– Amigos.
Uma mulher grita:
– Não façais mal à morta, ao menos vós, como os outros seus amigos
fizeram mal a ela enquanto viva, e depois escaparam salvos.
Jesus está ereto no corredor, junto à parede que o limita, e por isso a
uma boa altura, cerca de dois metros, acima da praça, com o vazio atrás de
si. Um vazio cheio de sol, que o nimba todo e faz ainda mais cândida a
veste de linho alvíssimo, que o cobre sozinho, agora que o manto
escorregou-lhe das costas e está aos pés Dele como uma base multicor.
Atrás ainda, o fundo verde e desordenado daquilo que foi a horta e o campo
de Ana, agora transformado em um matagal coberto de escombros
espalhados.
74.7
Jesus estende os braços. Judas, que vê o gesto, diz:
– Não fales! Não é prudente!
Mas Jesus enche a praça com sua voz potente:
– Homens de Judá! Homens de Belém, ouvi! Ouvi, ó vós, mulheres da
terra consagrada a Raquel! Ouvi a alguém que vem de Davi que,
perseguido, sofreu, e que tornado digno de falar, fala, para dar-vos luz e
conforto. Ouvi.
As pessoas param de gritar, discutir, comprar, e se ajuntam.
– É um rabi!
– Certamente vem de Jerusalém.
– Quem é?
– Que belo homem!
– Que voz!
– Que modos!
– E, além disso, se é da descendência de Davi!
– Então é nosso.
– Ouçamos, ouçamos!
Toda a praça está agora perto da escadinha, que parece um púlpito.
– No Gênesis está escrito[120]: “Eu porei inimizade entre ti e a mu‐
lher… esta te esmagará a cabeça, e tu armarás ciladas ao seu calcanhar.” E
está escrito ainda: “Eu multiplicarei os teus sofrimentos e as tuas
gestações… e a terra produzirá abrolhos e espinhos.” Esta foi a condenação
do homem, da mulher e da serpente.
Tendo vindo de longe para venerar o túmulo de Raquel, ouvi no vento
da tarde, no orvalho da noite, no lamento do rouxinol pela manhã, repetir-se
os soluços da antiga Raquel[121], pelas tantas bocas das mães de Belém
encerradas nos sepulcros, ou nos corações. E ouvi o rugir da dor de Jacó, na
dor dos viúvos, que ficaram sem suas esposas, porque a dor as matou… Eu
choro convosco. Mas ouvi, ó irmãos da minha terra. Belém, terra bendita, a
menor das cidades de Judá, mas a maior aos olhos de Deus e da
humanidade porque berço do Salvador, como diz Miquéias[122], exatamente
por ser assim, por ser destinada a ser o tabernáculo sobre o qual pousaria a
Glória de Deus, o Fogo de Deus, o seu Amor encarnado, desencadeou o
ódio de Satanás.
“Porei inimizade entre ti e a mulher. Ela te manterá sob o seu pé, e tu
armarás ciladas ao seu calcanhar.” Que inimizade há maior do que aquela,
que tem em mira os filhos, que são o coração do coração da mulher? E qual
é o mais forte pé do que aquele da mãe do Salvador? Eis porque foi natural
a vingança de Satanás vencido, o qual, não ao calcanhar, mas ao coração
das mães, pela Mãe, ocorreu a sua insídia.
Oh! Multiplicados sofrimentos, ao perderem os filhos, depois de tê-los
dado à luz! Oh! Terríveis espinhos de ter semeado e suado pela prole e
serem pais sem terem mais a sua prole! Mas jubila, Belém! O teu sangue
mais puro, o sangue dos inocentes, fez um caminho de fogo e de púrpura
para o Messias…
74.8
A multidão, que vinha sempre mais rumorejando, desde quando Jesus
falou no Salvador, e depois na mãe Dele, agora mostra um sinal mais claro
de agitação.
– Cala-te, Mestre –diz Judas–. E vamos embora.
Mas Jesus não lhe dá ouvidos, e continua:
– … para o Messias, que a Graça de Deus Pai salvou dos tiranos, a fim
de conservá-lo para a salvação do povo e…
Uma voz estridente de mulher grita:
– Cinco, cinco deles eu tinha dado à luz, e mais nenhum está em minha
casa! Pobre de mim!
E grita histericamente. É o começo da algazarra.
Uma outra se revolve na poeira, rasga as vestes, mostra uma de suas
mamas mutilada no bico, e grita:
– Aqui, aqui sobre esta mama é que degolaram o meu primogênito! A
espada cortou-lhe o rosto, juntamente com o bico do meu seio. Oh! O meu
Eliseu!
– E eu? E eu? Eis ali o meu palácio! Três túmulos em um, velados pelo
pai. Marido e filhos juntos. Eis, eis!… Se aqui está o Salvador, que ele me
devolva os filhos, me devolva o esposo, me salve do desespero e de
Belzebu, me salve!
Todos gritam.
– Os nossos filhos, os maridos, os pais! Devolva-os, se é que está aqui!
Jesus move os braços, impondo silêncio.
– Irmãos da minha terra, Eu gostaria de devolver-vos vossos filhos em
sua própria carne. Mas Eu vos digo: Sede bons, resignados, perdoai,
esperai, alegrai-vos em uma esperança, jubilai em uma certeza. Logo
reavereis os vossos filhos, anjos no Céu, porque o Messias está para abrir as
portas dos Céus e, se fordes justos, a morte será Vida que vem e Amor que
volta…
– Ah! És Tu o Messias? Dize-o em nome de Deus!
Jesus abaixa os braços, com aquele seu gesto suave, manso, que parece
um abraço, e diz:
– Eu o sou!
– Fora! Fora! Então é por tua culpa!
Passa voando uma pedra, por entre assobios e escárnios.
74.9
Judas dá um belo salto… oh! se ele tivesse sido sempre assim!
Coloca-se na frente do Mestre, de pé sobre o muro do terraço, o manto
desdobrado, e recebe, destemido, as pedradas, e até uma que lhe sangra, e
grita para o João e o Simão:
– Levai Jesus embora. Levai-o para atrás daquelas árvores. Depois eu
irei. Ide, em nome do Céu!
E para a multidão:
– Cães hidrófobos! Eu sou do Templo, e ao Templo e a Roma vos
denunciarei.
A multidão, por um momento, sente medo. Mas depois recomeça o
apedrejamento, por sorte, inábil. E Judas, impassível o recebe, respondendo
com afrontas às maldições do povo. Aliás, agarra no ar uma das pedras e a
remete sobre a cabeça de um velhote, que grita, como uma pega que está
sendo depenada viva. E, como estão tentando subir até o seu pedestal, ele,
rápido, pega um galho seco, que está no chão (agora ele desceu do muro), e
desce o galho sobre costas, cabeças, mãos, sem piedade.
Chegam as milícias e, com suas lanças, vão abrindo caminho:
– Quem és? Por que essa briga?
– Um judeu está sendo agredido por estes plebeus. Estava comigo um
rabino conhecido dos sacerdotes. Ele estava falando a estes cães. E eles
escaparam das correntes, e nos atacaram.
– Quem és tu?
– Judas de Keriot, que já fui do Templo, e agora sou discípulo do Rabi
Jesus da Galiléia. Sou amigo do fariseu Simão, do saduceu Jocanã, do
conselheiro do Sinédrio José de Arimatéia, e, enfim, isto podes conferir, de
Eleazar ben Ana, o grande amigo do Procônsul.
– Irei verificar. Para onde vais?
– Vou com meu amigo para Keriot, e depois para Jerusalém.
– Vai. Nós defenderemos tuas costas.
Judas estende a mão com umas moedas para o soldado. Deve ser uma
coisa ilícita… mas usual, porque o soldado as pega, rápido e cauteloso, o
saúda e sorri. Judas desce do seu pódio e vai aos saltos pelo campo inculto,
e alcança os companheiros.
– Estás muito ferido?
– Coisa de nada, Mestre. Depois, foi por Ti… Mas eu também bati.
Devo estar todo sujo de sangue…
– Sim, na face. Aqui há um fio de água.
João molha um paninho e lava a face de Judas.
– Lamento Judas… Mas vê… também dizer a eles que éramos judeus,
segundo o teu senso prático…
– São uns animais. Creio que terás ficado persuadido disso, Mestre. E
que não insistirás.
– Oh! Não. Não por medo. Mas porque é inútil, por enquanto. Quando
não nos querem, não os maldizemos, mas nos retiramos, rezando pelos
pobres loucos, que estão morrendo de fome, e não enxergam o Pão. Vamos
por este caminho remoto. Creio que podemos tomar o caminho para
Hebron. Para os pastores, se os encontrarmos.
– Para levarmos mais pedradas?
– Não. Para dizer a eles: “Sou Eu”.
– Ah! Então é certo que vão bater em nós. Há trinta anos que estão
sofrendo por tua causa!….
– Veremos.
E lá se vão por um pequeno bosque compacto, sombreado, fresco, e eu
os perco de vista.
[119] Belém, da qual Maria Valtorta esboçou uma pequena carta num pedaço de papel de linhas, no verso do qual escreveu as duas
linhas que pusemos no alto do desenho: Se não me engano na primeira parte (porque não o vi nas visões) vejo Belém assim. As
palavras no desenho são, além das dos quatro pontos cardeais: Jerusalém – estrada principal (duas vezes) – estrada secundária
percorrida por Jesus – primeira leve ondulação do solo – IIº arco de colinas – perímetro de Belém – fonte – pousada – gruta –
sepulcro de Raquel – casa de camponês.
[120] está escrito, em: Génesis 3,14-19.
[121] soluços da antiga Raquel, como em: Jeremias 31,15.
[122] diz Miqueias, em : Miqueias 5,1.
75. Jesus reencontra os pastores Elias e Levi.
11 de janeiro de 1945.
75.1
As montanhas vão ficando muito mais altas e selvosas do que aquelas
de Belém, e elevam-se cada vez mais, em uma verdadeira cadeia de
montanhas.
Jesus sobe na frente de todos, lançando o olhar à frente, em torno, como
se procurasse alguma coisa. Ele não fala. Escuta mais as vozes da mata do
que a dos discípulos, que vão alguns metros atrás Dele, conversando entre
si.
Ouve-se ao longe um cincerro, mas o vento traz o seu som até Jesus.
Ele sorri, e se volta para os outros:
– Estou ouvindo as ovelhas –diz Ele.
– Onde, Mestre?
– Parece-me que na direção daquela colina. Mas o bosque não me deixa
ver.
João não diz nada. Tira o seu hábito — os mantos, todos os estão
levando a tiracolo, enrolados, porque estão acalorados — e, só com a túnica
curta, se abraça a um tronco alto e liso, que eu diria de um freixo, e sobe,
vai subindo… até que vê:
– Sim, Mestre. Há muitos rebanhos e três pastores lá atrás daquele
bosque.
Depois, ele desce, e vão tranqüilos.
– Serão eles?
– Nós perguntaremos, Simão, e se não são eles, nos dirão alguma coisa.
Eles se conhecem entre si.
Depois de andarem cerca de uns cem metros, aparece um grande pasto
verde, todo cercado por grossas e velhas árvores. 75.2Muitas ovelhas estão
sobre o prado ondulado, pastando a basta erva. Três homens as estão
olhando. Um deles é velho, já todo encanecido, os outros têm, um os seus
trinta, e o companheiro seus quarenta anos, mais ou menos.
– Cuidado, Mestre. São mandriões… –aconselha Judas, ao ver que
Jesus apressou o passo.
Mas Jesus nem lhe responde. E vai alto, bonito, com o sol poente lhe
batendo no rosto, e com sua veste branca. Parece um anjo, de tão luminoso
que está…
– A paz esteja convosco, amigos, Ele saúda, quando chega na entrada
do prado.
Os três se viram, espantados. Há um silêncio. Depois, o mais velho
pergunta:
– Quem és?
– Alguém que te ama.
– Serias o primeiro, depois de tantos anos. De onde vens?
– Da Galiléia.
– Da Galiléia? Oh!
O homem o olha atentamente. Os outros também já se aproximam.
– Da Galiléia –repete o pastor, e acrescenta em voz baixa, falando para
si mesmo–: Ele também tinha vindo da Galiléia… De que lugar, Senhor?”
– De Nazaré.
– Oh! Diz-me, então. Terá voltado para lá um menino, com uma mulher
chamada Maria e um homem chamado José, um menino ainda mais bonito
do que a sua mãe, que flor mais bonita nunca se viu nas encostas de Judá?
Um menino nascido em Belém de Judá, no tempo do edito? Um menino
que fugiu depois, para a grande sorte do mundo. Um menino, que eu daria a
vida para saber se ainda está vivo, se já é um homem feito!
– Por que dizes que foi a grande sorte do mundo o ter Ele fugido?
– Porque Ele era o Salvador, o Messias, e Herodes queria matá-lo. Eu
não estava aqui, quando Ele fugiu com o pai e a mãe… Quando fiquei
sabendo da matança, e voltei… — porque eu também tinha filhos (um
soluço), Senhor, e uma mulher… (soluço) e ouvi dizer que estavam mortos
(outro soluço), mas eu te juro pelo Deus de Abraão, por causa Dele eu
tremia mais do que pela minha própria carne — fiquei sabendo que Ele
tinha fugido, e nem pude fazer perguntas; nem pude ir recolher os corpos
dos meus filhos degolados… Perseguido a pedradas, como se fosse um
leproso, um imundo, um assassino… e precisei fugir para os bosques, levar
uma vida de lobo… até que encontrei um patrão. Oh! Ana não existe
mais… É duro e cruel… Se uma ovelha se aleija, se o lobo me pega um
cordeiro, ou eu vou ser espancado até o sangue, ou vão tirar-me o meu
pouco ganho, ou vou trabalhar nos bosques para os outros, fazer qualquer
coisa, mas pagando sempre três vezes mais do que o justo valor. Mas não
importa. Eu sempre tenho dito ao Altíssimo: “Deixa-me ver o teu Messias,
deixa-me pelo menos saber que Ele está vivo, e tudo o que tenho sofrido é
nada.” Senhor, eu te disse como fui tratado pelos belemitas e como estou
sendo tratado pelo patrão. Eu podia ter retribuído ao mal com mal, ou
praticar o mal, roubando, para não ter que sofrer com o patrão. Mas, eu só
quis perdoar, sofrer, ser honesto, porque os anjos haviam dito: “Glória a
Deus nos Céus altíssimos, e paz na terra aos homens de boa vontade.”
– Foi assim mesmo que os anjos disseram?
– Sim, Senhor, podes crê-lo Tu, ao menos Tu, que és tão bom. Fica
sabendo Tu, pelo menos, e crede que o Messias já nasceu. Ninguém quer
mais crer nisso. Mas os anjos não mentem… e nós não estávamos bêbados,
como disseram. Este, que estás vendo, naquele tempo era um menino, e foi
o primeiro a ver o anjo. Ele só bebia leite. Será que o leite pode embriagar?
Os anjos disseram: “Hoje na cidade de Davi nasceu o Salvador, que é
Cristo, o Senhor. E vós o reconhecereis pelo seguinte: Encontrareis um
Menino deitado em uma manjedoura, envolvido em faixas.”
– Foi assim mesmo que falaram? Não tereis entendido mal? Não
estareis enganados, depois de tanto tempo?
– Oh! Não! Não é verdade, Levi? Para não nos esquecermos daquelas
palavras — e nem o poderíamos, porque eram palavras do Céu, e foram
escritas com o fogo do Céu em nossos corações — todas as manhãs, todas
as tardes, quando o sol surge, quando brilha a primeira estrela, nós as
dizemos como oração, como pedido de bênção, para termos força e
conforto, em nome Dele e da mãe.
– Ah! Vós dizíeis: “O Cristo”?
– Não, Senhor. Nós dizemos: “Glória a Deus nos Céus altíssimos e paz
na terra aos homens de boa vontade, por Jesus Cristo que nasceu de Maria
em uma estrebaria em Belém e que, envolvido em faixas, estava em uma
manjedoura, Ele que é o Salvador do mundo.”
75.3
– Mas em suma, a quem vós procurais?
– A Jesus Cristo, Filho de Maria, o Nazareno, o Salvador.
– Sou Eu.
Jesus resplandece ao dizer isso, manifestando-se a esses seus firmes
amadores. Firmes, fiéis, pacientes.
– Tu! Oh! Senhor, Salvador, Nosso Jesus!
Os três se prostram por terra e beijam os pés de Jesus chorando de
alegria.
– Levantai-vos. Levanta-te Elias, e tu, Levi, e tu que não sei quem és.
– José, filho de José.
– Estes são os meus discípulos: João, galileu, Simão e Judas, judeus.
Os pastores não estão mais com o rosto por terra, mas estão ainda de
joelhos, largados para trás sobre os calcanhares, e adoram o Salvador com
olhos de amor, com lábios que tremem de emoção, com rostos
embranquecidos ou avermelhados pela alegria.
Jesus se assenta sobre a relva.
– Não, Senhor. Sobre a relva, Tu não, ó Rei de Israel!
– Deixai, amigos. Eu sou pobre. Para o mundo, Eu sou carpinteiro. Só
sou rico de amor que tenho para com o mundo, e do amor que os bons me
dão. Eu vim para estar convosco, para partir convosco o pão da tarde, para
dormir ao vosso lado sobre o feno, e receber de vós um conforto…
– Oh! Conforto! Nós somos rudes e perseguidos.
– Eu também sou perseguido. Mas vós me dais o que Eu procuro: amor,
fé e esperança que resiste através dos anos, e ainda dá flor. Estais vendo?
Vós soubestes esperar, crendo sem dúvidas que era Eu. E Eu vim.
– Oh! Sim! Vieste. Agora, mesmo que eu morra, não tenho nada mais
que me dê aquela pena por uma coisa que foi esperada, e não tida.
– Não, Elias. Tu viverás, até depois do triunfo de Cristo. Tu, que viste a
minha aurora, deves ver também o meu fulgor. 75.4E os outros? Vós éreis
doze: Elias, Levi, Samuel, Jonas, Isaque, Tobias, Jônatas, Daniel, Simeão,
João, José e Benjamim. Minha mãe me dizia sempre os vossos nomes.
Como sendo dos meus primeiros amigos.
– Oh!
Os pastores estão cada vez mais comovidos.
– Onde estão os outros?
– O velho Samuel morreu de idade, há vinte anos. José foi morto por ter
combatido à porta do recinto, para dar tempo à esposa, que havia dado à luz
poucas horas antes, para fugir com este aqui, que eu recolhi por amor ao
amigo, e para… para ter ainda meninos ao meu redor. Também a Levi eu
tomei comigo… Ele era um dos perseguidos. Benjamim é hoje pastor nas
terras do Líbano, junto com Daniel. Simeão, João e Tobias, que agora
tomou o nome de Matias em memória de seu pai, também ele assassinado,
são discípulos de João. Jonas está na planície de Esdrelon, a serviço de um
fariseu. Isaque está com os rins quebrantados, vive em uma miséria
absoluta, e mora sozinho em Juta. Nós o ajudamos, como podemos… mas
vivemos perseguidos, e o que lhe podemos dar é como gotas de orvalho em
um incêndio. Jônatas agora é servo de um dos grandes de Herodes.
– Como pudestes, especialmente Jônatas, Jonas, Daniel e Benjamim ir
trabalhar nesses serviços?
– Eu me lembrei de Zacarias, teu parente… Tua mãe me tinha mandado
a ele. E, quando nos encontramos nos desfiladeiros da Judéia, fugitivos e
malditos, eu os levei a ele. Ele foi bom. Protegeu-nos, matou-nos a fome.
Procurou um patrão para nós. Fez o que pôde. Eu já havia pego todo o
rebanho de Ana, encampado pelo herodiano… e fiquei com ele[123]…
Tendo-se feito homem, o Batista, e começado a pregar, Simeão, João e
Tobias o acompanharam.
– Mas agora o Batista está preso.
– Sim. Mas eles estão de ronda perto de Maqueronte, com um punhado
de ovelhas, para não levantar suspeitas, dadas por um homem rico,
discípulo de João, teu parente.
– Eu gostaria de vê-los todos.
– Sim, Senhor. Nós iremos dizer a eles: “Vinde. Ele está vivo. Ele se
lembra de nós e nos ama.”
– E vos quer entre os seus amigos.
– Sim, Senhor.
– Mas, antes, nós iremos a Isaque. E Samuel e José, onde estão
sepultados?
– Samuel está em Hebron. Ficou a serviço de Zacarias. José… não tem
sepultura, Senhor. Ele foi queimado com a casa.
– Não entre as chamas dos cruéis, mas entre as chamas do Senhor, e na
glória, logo ele haverá de estar. Eu vo-lo digo. A ti, José, filho de José, Eu
te digo. Vem cá, para que Eu te beije e para dizer um obrigado ao teu pai.
– E os meus meninos?
– São anjos, Elias. Anjos que repetirão o “Glória”, quando o Salvador
for coroado.
– Coroado Rei?
– Não. Coroado Redentor. Oh! Cortejo dos justos e santos! E, na frente,
as falanges, brancas e purpurinas dos pequenos mártires! E, abertas as
portas do Limbo, eis que subiremos juntos ao Reino, onde não há morte. E
depois, vós ireis e reencontrareis vossos pais, mães e filhos no Senhor!
Crede.
– Sim, Senhor.
– Chamai-me Mestre. 75.5A tarde cai, a primeira estrela já está nascendo.
Diz a tua oração antes da janta.
– Eu não. Diz tu.
– Glória a Deus nos Céus altíssimos, e paz na terra aos homens de boa
vontade, que mereceram ver a Luz e servi-la. O Salvador está entre eles. O
Pastor da estirpe real está no meio do seu rebanho. A Estrela da manhã já
surgiu. Jubilai-vos, ó justos! Jubilai no Senhor. Ele, que fez a abóbada dos
céus, e os semeou de estrelas, Ele que pôs, como limite para as terras, os
mares, Ele que criou os ventos e o orvalho e regulou o curso das estações
para dar pão e vinho aos seus filhos, eis que vos manda agora um Alimento
mais alto: o Pão vivo que desce dos Céus, o Vinho da Videira eterna. Vinde,
vós, primícias dos meus adoradores. Vinde conhecer o Pai em verdade, para
o seguirdes na santidade e terdes Dele o prêmio eterno.
Jesus rezou de pé, com os braços estendidos, enquanto os discípulos e
os pastores ficaram de joelhos.
Depois é servido o pão e uma escudela de leite tirado na hora, e como
são três as escudelas, ou cabaças, não sei, primeiro comem Jesus, Simão e
Judas. Depois João, ao qual Jesus passa a sua escudela, com Levi e José.
Por último come Elias.
As ovelhas já não estão mais pastando, elas se reúnem em um grande
grupo cerrado à espera de serem levadas ao seu cercado. Mas, ao contrário,
vejo que os pastores as levam para o bosque, debaixo de um rústico galpão,
feito de ramos tapados com cordas. E cuidam solícitos de preparar o feno
que vai servir de cama para Jesus e os discípulos. Acendem-se as fogueiras,
talvez por causa dos animais selvagens.
Judas e João, cansados, se deitam, e pouco depois estão dormindo.
Simão queria fazer companhia a Jesus. Mas, pouco depois, também ele está
dormindo, sentado sobre o feno e com as costas apoiadas a uma estaca.
75.6
Ficam acordados Jesus e os pastores. E falam: de José, de Maria, da fuga
para o Egito, da volta… E depois destas perguntas de amor, as perguntas
mais altas: que fazer para servir a Jesus? Como poderão fazer isso, eles,
rudes pastores?
E Jesus os instrui e explica:
– Agora Eu irei pela Judéia. Vós sereis sempre informados pelos
discípulos. Depois Eu vos farei vir. No entanto, reuni-vos. Fazei que um
saiba notícias do outro e da minha presença no mundo, como Mestre e
Salvador. Como puderdes, fazei que todos saibam disso. Não vos prometo
que acreditarão em vós. Eu sofri escárnio e maus tratos. Vós também os
sofrereis. Mas, assim como soubestes ser fortes e justos nesta espera, sede-o
mais ainda, agora que sois meus. Amanhã iremos para Juta, depois para
Hebron. Podeis ir?
– Oh! Sim. As estradas são de todos e os pastos são de Deus. Só Belém
está interditada pelo ódio injusto. Os outros lugares sabem… mas só
zombam de nós, chamando-nos “beberrões.” Por isso pouco poderemos
fazer aqui.
– Eu vos chamarei a um outro lugar. Não vos abandonarei.
– Por toda a vida?
– Por toda a minha vida.
– Não. Eu morrerei antes, Mestre. Sou velho.
– Pensas tu assim? Eu não. Um dos primeiros rostos que Eu vi foi o teu,
Elias. E será um dos últimos. Levarei Comigo na pupila o teu rosto
transtornado de dor pela minha morte. Mas depois será o teu a levar no
coração o raiar de uma manhã triunfal, e com ele esperarás a morte… A
morte: o encontro eterno com Jesus que tu adoraste pequenino. Também
então os anjos cantarão o Glória: “pelo homem de boa vontade.”
Não ouço mais nada, a doce visão se ofusca. Termina.
[123] Eu já havia pego todo o rebanho de Ana , encampado pelo herodiano... e fiquei com ele..., significa: O rebanho que
pastava por conta de Ana foi tomado por erodiano e, por conseguinte, passei ao serviço dele.
76. Em Juta na casa do pastor Isaque.
Sara e os seus meninos.
12 de janeiro de 1945.
76.1
Um fresco vale sonante de águas que vão em direção ao sul, entre
saltos e espumas de um pequeno córrego de prata, que borrifa o seu risonho
frescor sobre os pequenos pastos das margens, mas parece até que sua linfa
suba pelas encostas, de tanto que estão verdes: um esmeralda matizado no
seu verde, que do solo sobe, através das moitas e arbustos do cerrado até às
copas das árvores altas, entre as quais estão muitas nogueiras, que formam
o bosque propriamente dito, todo ele entrecortado por zonas abertas de
terreno, que são planaltos verdes de erva densa, pasto sadio e forte para os
rebanhos.
Jesus desce com os seus discípulos e com os três pastores, a caminho
do córrego. Pacientemente Ele pára, quando tem que esperar uma ovelha
que se atrasa, ou um dos pastores que deve correr atrás de alguma que se
desvia. É realmente o Bom Pastor agora. Ele também se muniu de uma vara
comprida, para afastar as ramagens das amoreiras, do espinheiro-alvar e das
plantas trepadeiras, que se estendem por todas as partes e procuram se
agarrar às vestes dos passantes. E isso completa a sua figura pastoral.
– Estás vendo? Juta é lá em cima. Agora atravessaremos o córrego; há
um vau que no verão serve, sem recorrer à ponte. Teria sido mais rápido vir
por Hebron. Mas Tu não quiseste.
– Não. Hebron fica para depois. Primeiro se vai sempre a quem está
sofrendo. 76.2Os mortos não sofrem mais, quando foram justos. E Samuel era
um justo. Portanto, para os mortos, que precisam de orações, não é
necessário estar perto dos seus ossos para dar-lhes (orações). Que são os
ossos? São uma prova do poder de Deus, que com o pó criou o homem.
Mas nada além disso. O animal também tem ossos. O esqueleto de todos os
animais é menos perfeito que o do homem. Somente o homem, o rei da
criação, tem uma posição ereta, de um rei sobre os seus súditos, com um
rosto que olha para a frente e para o alto, sem precisar torcer o pecoço; para
o alto, onde está a morada do Pai. Mas são sempre ossos. Pó que ao pó
retorna. A Bondade eterna decidiu reconstituí-lo, no Dia eterno, para dar
uma alegria ainda mais viva aos bem-aventurados. Pensai, não só os
espíritos serão reunidos e se amarão como e muito mais do que sobre a
terra, mas também se alegrarão por poderem ver-se de novo com aqueles
aspectos que tiveram na terra: os meninos de cabelos encaracolados, e
queridos como os teus, Elias, os pais e as mães com um coração e com um
rosto que era todo amor, como os vossos, Levi e José. Aliás, para ti, José,
será um conhecer finalmente, aqueles rostos dos quais sentias falta. Já não
haverá mais órfãos, não mais viúvos entre os justos, lá em cima… O
sufrágio aos mortos, se pode prestar em qualquer lugar. É a oração de um
espírito pelo espírito de alguém que nos era próximo, ao Espírito perfeito
que é Deus, e que está em toda parte. Oh! Santa liberdade de tudo isso que é
espiritual! Não há distâncias, nem exílios, nem prisões, nem sepulcros…
Nada que divida ou que acorrente, em uma impotência penosa, aquilo que
está fora e acima das correntes da carne. Vós ides, aos vossos diletos, com a
melhor parte de vós mesmos. E eles, com sua melhor parte, vêm a vós. E
tudo — dessa efusão de espíritos que se amam — gira ao redor do Fulcro
eterno, Deus: Espírito perfeitíssimo, Criador de tudo quanto foi, é e será,
amor que vos ama e vos ensina a amar… 76.3Mas eis-nos ao vau, Eu creio.
Vejo uma fileira de pedras emergir da pouca água.
– Sim, é aquele, Mestre. Em tempo de cheia, é uma sonante cascata.
Agora, não há mais do que sete pequenos córregos que passam, rindo, entre
as seis grandes pedras do vau.
De fato, seis grandes pedras, bastante esquadrejadas, estão estendidas à
distância de um bom palmo entre elas, no fundo do córrego, e a água, antes
unida em um única fita brilhante, se divide em sete fitas menores,
apressando-se, risonhas, a reunirem-se além do vau, em um único frescor
que escorre murmurando por entre os cascalhos do fundo.
Os pastores vigiam a passagem das ovelhas, que parte delas atravessa
sobre as pedras, e parte prefere entrar na água, à altura de não mais do que
um palmo, e beber desta diamantina onda que espuma e ri.
Jesus passa sobre as pedras, e atrás Dele os discípulos. Retomam o
caminho na outra margem.
76.4
– Tu me disseste que queres que Isaque fique sabendo que estás aqui,
mas isso sem precisares entrar no povoado?
– Sim, assim quero.
– Então, é bom que nos separemos. Eu irei até ele. Levi e José ficarão
com o rebanho e convosco. Eu vou subir por aqui. Irei mais depressa.
E Elias começa a subir pela encosta, em direção a um branquear de
casas que brilham ao sol, lá no alto. Parece-me que estou seguindo-o. Ei-lo
às primeiras casas. Pega uma viela entre as casas e as hortas. Anda uma
dezena de metros. Depois, vira para uma rua mais larga, e desta entra em
uma praça.
Eu não disse que tudo isso aconteceu nas primeiras horas da manhã.
Digo agora, para explicar que na praça ainda há a feira, e as donas de casa e
vendedores gritam ao redor das árvores que fazem sombra à praça.
Elias vai firme, até ao ponto onde a praça volta a ser rua, uma rua muito
bonita. Talvez a mais bonita do povoado. Num canto há um casebre, ou
melhor, um quarto com a porta aberta. Quase à porta, está uma pobre cama,
e em cima dela um doente muito magro que, lamentosamente pede uma
esmola a cada passante.
Elias entra como um foguete:
– Isaque… sou eu.
– Tu? Eu não estava te esperando. Vieste aqui na lua passada.
– Isaque… Isaque… Sabes por que eu vim?
– Não sei… Estás comovido… Que aconteceu?
– Eu vi Jesus de Nazaré, homem, já rabi. Ele veio procurar-me… e nos
quer ver. Oh! Isaque! Estás mal?
De fato, Isaque deixou-se cair como se morresse. Mas depois se
recobra:
– Não. Esta notícia… Onde está Ele? Como está? Oh! Se eu pudesse
vê-lo!
– Ele está lá em baixo, no vale. E me manda dizer-te assim, exatamente
assim: “Vem, Isaque, que Eu te quero ver e abençoar.” Agora, eu vou
chamar alguém que me ajude a levar-te lá em baixo.
– Assim Ele disse?
– Assim. Mas, que é que estás fazendo?
– Eu vou.
Isaque afasta as cobertas, move as pernas inertes, lança-as fora da
enxerga, e as apóia no chão, levanta-se, ainda incerto, cambaleante. Tudo
em um instante, sob os olhos arregalados de Elias… que finalmente
compreende e grita…
Aí aparece uma mulherzinha curiosa. Vê o enfermo de pé, que se cobre
com um cobertor, não encontrando outra coisa, e sai correndo, gritando
como uma galinha.
– Vamos. Saiamos daqui, para fazermos mais depressa, antes que a
multidão comece a se ajuntar… Depressa, Elias.
E saem correndo pelo portãozinho de uma pequena horta, situada atrás,
empurram o fecho de ramos secos, e estão fora; seguem por uma viela
miserável, descem depois por uma estradinha entre as hortas, e desta
passam para os prados e pequenos bosques até o córrego.
76.5
– Eis ali Jesus –diz Elias, indicando-o–. É aquele alto, bonito, loiro,
vestido de branco, com o manto vermelho….
Isaque corre, abre caminho por entre o rebanho que está pastando, e
com um grito de triunfo, de alegria, de adoração, prostra-se aos pés de
Jesus.
– Levanta-te, Isaque. Eu vim. Para trazer-te paz e bênção. Levanta-te
para Eu conhecer o teu rosto.
Mas Isaque não pode levantar-se. Emoções demais ao mesmo tempo, e
está, em seu choro feliz, com o rosto no chão.
– Vieste depressa. Nem perguntaste a ti mesmo se podias…
– Tu me disseste para vir… e eu vim.
– Tampouco fechou a porta, nem recolheu as esmolas, Mestre.
– Não importa. Os anjos velarão a casa dele. Estás contente, Isaque?
– Oh! Senhor!
– Chama-me Mestre.
– Sim, Senhor, meu Mestre. Ainda que não tivesse ficado curado, teria
já ficado feliz, só por Te ver. Como pude encontrar tanta graça junto a Ti?
– Pela tua fé e paciência, Isaque. Eu sei quanto sofreste…
– Nada, nada! Mais nada! Eu Te encontrei! Estás vivo! Estás aqui!
Estás mesmo aqui… O resto, todo o resto é passado. Mas, Senhor e Mestre,
agora não vais mais embora, não é?
– Isaque, tenho que evangelizar todo Israel. Eu vou… Mas, se Eu não
posso ficar, tu sempre podes servir e seguir-me. 76.6Queres ser meu discípulo,
Isaque?
– Oh! Mas eu não serei um bom discípulo!
– Saberás tu declarar quem Eu sou? E confessá-lo, apesar dos escárnios
e ameaças? E dizer que Eu te chamei, e tu vieste?
– Mesmo que Tu não o quisesses, eu diria tudo isso. Nisto eu Te
desobedeceria, Mestre. Perdoa-me, se eu digo isto.
Jesus sorri.
– E então, estás vendo que estás bom para seres meu discípulo?
– Oh! Se for só para fazer isso! Eu pensava que fosse mais difícil. Que
precisava ir para a escola dos rabinos, para servir a Ti, o Rabi dos rabis… e
ir para a escola depois de velho…
De fato, o homem tem pelo menos, cinqüenta anos.
– A escola tu já fizeste, Isaque.
– Eu? Não.
– Tu, sim. Não tens continuado a crer e a amar, a respeitar e bendizer a
Deus e ao próximo, a não ter invejas, a não desejar o que é dos outros, e
também o que era teu e não o tinhas mais, a não falar senão a verdade,
ainda que isso te prejudicasse, a não fornicar com Satanás, fazendo
pecados? Não tens feito tudo isso, nestes trinta anos de desventura?
– Sim, Mestre.
– Então estás vendo. A escola tu já fizeste. Continua assim, e
acrescenta a isso a revelação de minha presença no mundo. Não há outra
coisa a fazer.
– Eu já tenho falado de Ti, Senhor Jesus. Aos meninos que vinham a
mim, quando eu, quase inválido, cheguei a este povoado, pedindo um pão e
fazendo ainda algum trabalho de tosquia ou preparação de laticínios, e
depois, quando vinham ao redor de minha cama, quando a doença se
agravou e fez que ficasse paralítico da cintura para baixo. Eu falava de Ti
aos meninos de então, e aos meninos de agora, filhos daqueles… Os
meninos são bons, e crêem sempre.. Eu lhes falava de quando tinhas
nascido… dos anjos… da Estrela e dos Magos… e de tua mãe… Oh! Diz-
me: Ela ainda está viva?
– Está viva, e te saúda. Ela sempre me falava de vós.
– Oh! Se eu pudesse vê-la!
– Tu a verás. Um dia irás à minha casa. Maria te saudará: amigo.
– Maria… sim. Dizer esse nome é como ter mel na boca. 76.7Há uma
mulher em Juta, agora ela é mulher, e se tornou mãe do seu quarto filho,
mas tempos atrás era uma menina, uma das minhas pequenas amigas… e
aos seus filhos ela deu os nomes de Maria e José aos dois primeiros e, não
ousando chamar o terceiro de Jesus, deu-lhe o nome de Emanuel, como um
bom augúrio para si mesma, para sua casa e para Israel. E está pensando no
nome que haverá de dar ao quarto, que nasceu há seis dias. Oh! Quando ela
souber que eu estou curado! E que Tu estás aqui! Sara é boa como o pão da
mamãe, e bom é também o seu esposo, Joaquim. E os seus parentes? Por
causa deles é que eu estou ainda vivo. Eles sempre me deram abrigo e
ajuda.
– Vamos a eles pedir-lhes um abrigo para as horas de sol, e levar-lhes a
bênção por sua caridade.
– Por aqui, Mestre. É mais cômodo para o rebanho e para esquivar-nos
das pessoas, certamente excitadas. A velha que viu quando eu me pus de pé,
com certeza, já falou.
76.8
Seguem o córrego, o deixam mais ao sul, para pegarem um caminho
que sobe bastante íngreme, contornando um esporão da montanha,
semelhante a um quebra-mar de navio. Agora o córrego vai em direção
contrária para quem sobe, e desliza no fundo entre duas ordens de
montanhas, que se entrecortam, formando um vale acidentado e bonito.
Reconheço o lugar. Ele é inconfundível. É aquele da visão que eu tive
de Jesus e os meninos[124], na primavera passada. O pequeno muro, de
pedras soltas, delimita a propriedade que pende para o vale. Eis os prados
com as macieiras, as figueiras, as nogueiras, eis a casa, branca sobre o
verde, com sua ala saliente que protege a escada, formando um pórtico e um
alpendre, eis a pequena cúpula sobre a parte mais alta, eis a horta-jardim
com o poço, a parreira e os canteiros…
Um grande vozerio sai da casa. Isaque vai à frente. Entra. Chama em
voz alta:
– Maria, José, Emanuel! Onde estais? Vinde a Jesus.
Correm três pequeninos: uma menina de quase cinco anos e dois
meninos dos quatro aos dois, o último com um passo ainda um pouco
incerto. Ficam de boca aberta diante do… renascido. Depois, a menina
grita:
– Isaque! Mamãe! Isaque está aqui! A Judite viu bem!
De um quarto onde há o grande vozerio, sai uma mulher; é a mãe em
flor, morena, alta, formosa, de uma visão longínqua, muito bonita em suas
vestes de festa: uma veste de linho muito alvo, como uma rica camisa, que
desce em dobras até os tornozelos, apertada aos flancos opulentos por um
xale com listras matizadas, que lhe modela os quadris estupendos, recaindo
em franjas até a parte posterior dos joelhos, e ficando entreaberto na frente,
depois de ter-se cruzado, à altura da cintura, sob uma fivela de filigrana.
Um véu leve, com ramos de roseira, colorido, sobre um fundo de marfim
está fixado, sobre as tranças pretas, como um pequeno turbante, e depois
desce da nuca, com ondas e dobras, pelas costas e o peito. Conservam-no
firme na cabeça uma pequena coroa de medalhinhas unidas por uma
pequena corrente entre elas. Brincos pesados, em forma de anéis, descem
das orelhas, e um colar de prata, que passa entre os ilhoses da veste, ajusta a
túnica ao pescoço. Nos braços, pesados braceletes de prata.
– Isaque! Mas como? Judite… estava já pensando que o sol a tivesse
feito endoidecer… Tu estás caminhando! Mas que foi que aconteceu?
– O Salvador! Oh! Sara! Ele está aqui! Ele já veio!
– Quem? Jesus de Nazaré? E onde está Ele?
– Ali! Atrás da nogueira. E Ele manda perguntar se tu o recebes!
– Joaquim! Mãe! Vinde todos! O Messias está aqui!
Mulheres, homens, rapazes, meninos, todos vão correndo, gritando…
mas, quando vêem Jesus, alto e majestoso, perdem toda aquela coragem, e
ficam como que petrificados.
– A paz a esta casa e a todos vós. A paz e a bênção de Deus.
Jesus caminha devagar, sorridente, em direção ao grupo:
– Amigos, quereis hospedar o Viajante?
E sorri ainda mais.
O seu sorriso vence os receios. O esposo cria coragem para falar:
– Entra, Messias. Nós já Te amávamos, sem Te conhecer. Mais ainda Te
amaremos conhecendo-Te. Nossa casa está em festa por três motivos hoje:
por Ti, por Isaque e pela circuncisão do meu terceiro filho homem.
Abençoa-o, Mestre. Mulher, traze aqui o menino! Entra, Senhor.
76.9
Entram numa sala preparada para a festa. Mesas e iguarias, tapetes e
ramagens por todos os lados.
Sara volta com um belo recém-nascido nos braços. E o apresenta a
Jesus.
– Deus esteja sempre com ele. Que nome tem?
– Nenhum. Esta é Maria, este é José, este é Emanuel, e este… ainda
não tem nome…
Jesus fita os dois esposos próximos, e sorri:
– Procurai um nome. Se hoje vai ser circuncidado…
Os dois se olham, olham para Ele, abrem a boca, a fecham, sem dizer
nada. Todos estão atentos.
Jesus insiste:
– Há tantos nomes grandes, doces, benditos, tem a história de Israel. Os
mais doces e benditos já foram dados. Mas talvez ainda haja algum.
Juntos, os dois esposos irrompem:
– O teu, Senhor!
E a esposa termina, dizendo:
– Mas é santo demais…
Jesus sorri e pergunta:
– Quando será circuncidado?
– Estamos esperando o homem que fará a circuncisão.
– Eu estarei presente à cerimônia. Entrementes, vos agradeço pelo meu
Isaque. Agora ele não tem mais necessidade dos bons. Mas os bons ainda
têm necessidade de Deus. Destes ao terceiro filho o nome de “Deus
conosco.” Mas vós já tínheis a Deus, quando tivestes caridade para com o
meu servo. Sede benditos. Na terra e no Céu vosso ato será lembrado.
– Isaque parte, agora? Ele vai nos deixar?
– Ficais tristes por isso? Mas ele deve servir a seu Mestre. Contudo, ele
voltará, e Eu também virei. Enquanto isso, vós falareis do Messias… Há
tantas coisas a dizer para convencer o mundo! 76.10Mas eis o esperado.
Entra um pomposo personagem, com um ajudante. Saudações e
inclinações.
– Onde está o menino? –pergunta ele com altivez.
– Está aqui. Mas saúda o Messias. Ele está aqui.
– O Messias?… Aquele que curou o Isaque? Eu sei. Mas… Falaremos
dele depois. Estou com muita pressa. Vejamos o menino e o seu nome.
Os presentes estão mortificados pelos modos do homem. Mas Jesus
sorri, como se aquelas grosserias não fossem para Ele. Pega o menino, toca
em sua pequena fronte com seus dedos bonitos, como que para consagrá-lo,
e diz: “O seu nome é Jesai”, e o devolve ao pai que, com o homem soberbo
e outros, vai a um quarto próximo. Jesus fica onde está, até que eles voltam
com o menino, que grita desesperadamente.
– Dá-me o pequenino, mulher. Ele não chorará mais –diz Jesus para
consolar a mãe angustiada. O menino, colocado sobre os joelhos de Jesus,
de fato se cala.
Jesus forma um grupo com os pequeninos todos ao seu redor, e depois
com os pastores e os discípulos. Fora há um balir de ovelhas que Elias
colocou em um cercado. Na casa há um barulho de festa. Levam a Jesus e
aos seus, doces e bebidas. Mas Jesus os distribui aos pequeninos.
– Não bebes, Mestre? Não aceitas? É dado de coração.
– Eu sei Joaquim, e de coração o aceito. Mas deixa que primeiro Eu
faça contentes os pequeninos. Eles são a minha alegria…
– Não repares naquele homem, Mestre.
– Não, Isaque. Eu rezo para que ele veja a Luz. João, leva os dois
meninos para que vejam as ovelhinhas. 76.11E tu, Maria, vem mais perto, e
diz-me: Quem sou Eu?
– Tu és Jesus, Filho de Maria de Nazaré, nascido em Belém. Isaque te
viu e me pôs o nome de tua mamãe, para que eu seja boa.
– Boa como o anjo de Deus, pura mais do que um lírio desabrochado
no cume da montanha, piedosa como o levita mais santo deve ser, para
imitá-la. Serás assim?
– Sim, Jesus.
– Fala “Mestre” ou “Senhor”, menina.
– Deixa que me chame com o meu Nome, Judas. Só passando por
lábios inocentes é que não perde o som que tem sobre os lábios de minha
mãe. Todos, nos séculos, dirão esse nome, mas uns por um interesse, outros
por outro, e muitos para blasfemá-lo. Só os inocentes, sem malícia e sem
ódio, o dirão com um amor igual ao desta menina e ao de minha mãe. Os
pecadores também me chamarão, quando pedirem misericórdia. Mas minha
mãe e os pequeninos! Por que me chamas Jesus? –pergunta, acariciando a
pequenina.
– Porque eu te quero bem… como ao papai, à mamãe e aos meus
irmãozinhos –diz ela, abraçando os joelhos de Jesus, e rindo com o rostinho
erguido.
Jesus se inclina e a beija… e assim tudo termina.
[124] visão .... de Jesus e os meninos, escrita a 7 de Fevereiro de 1944 e que será introduzida no capítulo 396. Tinha sido excluída
das duas primeiras edições da obra.
77. Em Hebron na casa de Zacarias.
O encontro com Aglae.
13 de janeiro de 1945.
77.1
– A que hora chegaremos? –pergunta Jesus, que caminha no centro
do grupo, precedido pelas ovelhas que vão pastando a erva da beira do
caminho.
– Por volta da hora terceira. São cerca de dez milhas –responde Elias.
– E depois iremos a Keriot? –pergunta Judas.
– Sim. Iremos lá.
– E não era mais rápido, se tivéssemos ido de Juta a Keriot? Não deve
estar muito longe. Não é verdade, pastor?
– Duas milhas a mais, pouco mais, ou pouco menos.
– Assim vamos fazer mais de vinte milhas à toa.
– Judas, por que estás assim inquieto? –diz Jesus.
– Inquieto não, Mestre. Mas me tinhas prometido que irias à minha
casa…
– E lá irei. Mantenho sempre as minhas promessas.
– Mandei avisar a minha mãe… e além disso, Tu o disseste: com nosso
espírito podemos estar unidos aos mortos.
– Eu o disse. Mas Judas, reflete: tu, por Mim, ainda não sofreste. Estes
são trinta anos que sofrem, e nunca traíram nem mesmo a lembrança de
Mim. Nem mesmo a lembrança. Não sabiam se Eu estava vivo ou morto…
contudo, permaneceram fiéis. Lembravam-se de Mim quando recém-
nascido, quando menino que só sabia chorar e querer leite… no entanto,
sempre me veneraram como Deus. Por minha causa, eles foram ofendidos,
amaldiçoados, perseguidos como um opróbrio da Judéia, contudo a cada
ofensa recebida, a sua fé não vacilava, não se extinguia, mas lançava raízes
ainda mais profundas, tornando-se cada vez mais vigorosa.
77.2
– A propósito. Há alguns dias que eu estou com uma pergunta me
queimando os lábios. Esses são amigos teus e de Deus, não é verdade? Os
anjos os abençoaram com a paz do Céu, não foi? Eles permaneceram justos,
contra todas as tentações, não é mesmo? Explica-me então, por que é que
foram infelizes? E Ana? Foi morta por ter querido bem a Ti….
– Tu deduzes, por isso, que o meu amor e que amar a Mim traz
infortúnio.
– Não… mas….
– Mas é assim. Lamento ver-te tão fechado para a Luz e tão preocupado
com o que é humano. Não, deixa estar, João, e também tu, Simão. Prefiro
que ele fale. Eu não censuro nunca. Só quero abertura de almas, para poder
introduzir nelas a luz. Vem cá, Judas. Escuta. Tu partes de um juízo comum
a muitos viventes e a muitos que viverão. Eu disse: juízo. Deveria dizer:
erro. Mas, posto que o fazes sem malícia, por ignorância do que é a
verdade, não é um erro, mas somente um juízo imperfeito, como o pode ser,
aquele de um menino. E vós sois meninos, pobres homens! E Eu estou aqui,
Mestre, para fazer de vós adultos, capazes de discernir o verdadeiro do
falso, o bom do mau, o melhor do que é bom. Portanto, escutai. O que é a
vida? É um tempo de espera, Eu diria é o limbo do Limbo, que Deus Pai
vos dá para provar se vossa natureza é de filhos bons ou de bastardos, e
para destinar-vos, conforme as vossas obras, a um futuro que não terá mais
esperas nem provas. Agora, dizei-me, vós: Seria justo que alguém que teve
o bem extraordinário de poder servir a Deus de uma maneira especial,
possua também por toda esta vida um bem contínuo? Não vos parece que já
recebeu muito, e que por isso pode dizer-se feliz, mesmo se nas coisas
humanas não é feliz? Não seria injusto que aquele que já tem a luz da divina
manifestação no coração e o sorriso da consciência que o aprova, tenha
também honras e bens terrenos? E não seria até imprudente?
77.3
– Mestre, eu digo que seria até profanador. Por que colocar alegrias
humanas onde Tu estás? Quando alguém tem a Ti — e estes te têm tido,
eles, os únicos ricos em Israel, por terem tido a Ti há trinta anos — não
deve ter nenhuma outra coisa. Não se coloca coisas humanas no
Propiciatório… e o vaso consagrado só serve para os usos sagrados. Estes
são consagrados, desde o dia em que viram o teu sorriso… e nada, não,
nada que não sejas Tu, deve entrar nos corações que têm a Ti. Fosse eu
como eles! –diz Simão.
– Porém tu, bem que te apressaste em tomar posse dos teus bens, depois
de teres visto o Mestre e teres sido curado –responde ironicamente Judas.
– É verdade. Eu disse e fiz isso. Mas sabes por que? Como é que podes
julgar, se não sabes tudo? O meu agente recebeu ordens claras. Agora que
Simão, o Zelote, está curado — e os seus inimigos não podem mais
prejudicá-lo segregando-o, nem persegui-lo, porque ele agora é somente de
Cristo, e não de nenhuma seita: ele tem Jesus, e basta — pode dispor de
seus haveres, que um homem fiel e honesto lhe conservou. E eu, dono deles
ainda por uma hora, dei ordens que fossem reformados para receber mais
dinheiro na venda, e poder dizer… não, isto eu não digo.
– Os anjos o dizem por ti, Simão, e o escrevem no livro eterno –diz
Jesus.
Simão olha para Jesus. E os dois olhares se encontram, um admirado, o
outro abençoante.
– Como sempre, eu não tenho razão.
– Não, Judas. Tu tens o senso prático. Tu mesmo o dizes.
– Oh! Mas com Jesus!… Também Simão Pedro estava apegado ao
senso prático, e agora ao invés!… Tu também, Judas, te tornarás como ele.
Faz pouco tempo que estás com o Mestre, nós há mais tempo, e já
melhoramos –diz João, sempre afável e conciliador.
– Ele não me quis. De outra forma, eu já estaria sendo seu desde a
Páscoa.
Judas está mesmo nervoso hoje. Jesus corta o assunto, dizendo a Levi:
– Tu já estiveste na Galiléia?
– Sim Senhor.
– Tu irás Comigo para conduzir-me à Jonas. Tu o conheces?
– Sim. Na Páscoa sempre nos víamos. Eu ia à casa dele.
José inclina a cabeça, mortificado. Jesus vê:
– Juntos não podeis ir. O Elias ficaria sozinho com as ovelhas. Mas tu
irás Comigo até o passo de Jericó, onde nos separaremos por algum tempo.
Depois te direi o que terás que fazer.
– E para nós, nada mais?
– Vós também, Judas, vós também.
77.4
– Já se vêem as casas –diz João, que vai alguns passos na frente dos
outros.
– É Hebron. Abrange dois rios com seu dorso. Estás vendo, Mestre?
Aquele casarão, lá ao longe, entre todo aquele verde, um pouco mais alto
que os outros? É a casa de Zacarias.
– Vamos apressar o passo.
Percorrem rapidamente os últimos metros da estrada, entram na cidade.
Os pequenos cascos das ovelhas parecem castanholas sobre as pedras
irregulares da rua, neste ponto calçada de maneira bem rudimentar. Chegam
à casa. As pessoas olham aquele grupo de homens de diferentes aspectos,
na idade e na veste, entre o branco das ovelhas.
– Oh! Como está mudada! Aqui era a cancela –diz Elias.
Agora, ao invés da cancela, há um portão de ferro, que impede a vista, e
como o muro é mais alto do que um homem, nada se vê.
– Talvez seja aberto na parte de trás. Vamos.
Dão a volta em um grande quadrilátero, ou melhor, um grande
retângulo, mas o muro é igual em todos os lados.
– Este muro foi feito, há pouco tempo –diz João, observando-o–. Ele
está sem avarias, e no chão ainda há pedras calcárias.
– Não vejo nem mesmo o sepulcro… Ele era perto do bosque. Agora o
bosque ficou do lado de fora do muro e… e parece que é de todos. Aqui
todos vêm tirar a lenha.
Elias está perplexo.
77.5
Um homem, um lenhador, já velhinho, de baixa estatura, mas
robusto, que observa o grupo, pára de serrar um tronco abatido, e se
aproxima do grupo:
– A quem procurais?
– Queríamos entrar na casa, para rezarmos no sepulcro de Zacarias.
– Não há mais sepulcro. Não estais sabendo disso? Quem sois?
– Eu sou amigo do pastor Samuel. Ele…
– Não é preciso, Elias –diz Jesus.
Elias se cala.
– Ah! O Samuel!… Sim! Mas, desde que João, filho de Zacarias, foi
levado para a prisão, a casa não é mais sua. E é uma pena, porque ele fazia
com que todo o ganho dos seus haveres fosse dado aos pobres de Hebron.
Certa manhã, veio um homem da corte de Herodes, expulsou Joel, lacrou as
entradas, depois voltou com uns operários e começou a levantar o muro…
Naquele canto lá é que estava o sepulcro. Ele não o quis… e uma manhã o
encontramos todo destruído, e meio espalhado pelo chão… os pobres ossos
misturados… Nós os recolhemos como foi possível… Agora estão numa
única arca… E na casa do sacerdote Zacarias, aquele sujo tem as suas
amantes. Agora, ele está com uma atriz de Roma. Por isso levantou o muro.
Não quer que se veja… A casa do sacerdote, um lupanar! A casa do milagre
e do Precursor! Porque certamente ele o é… mesmo não sendo ele o
Messias. E quantos aborrecimentos tivemos por causa do Batista! Mas ele é
o nosso grande! Verdadeiramente grande! Desde o seu nascimento houve
milagre. Isabel, velha como um cardo seco, tornou-se fértil como as
macieiras no mês de Adar, primeiro milagre. Depois, veio uma prima dela,
que era uma santa, para servi-la e para soltar a língua do sacerdote. Ela se
chamava Maria. Lembro-me dela. Ainda que não a visse, a não ser
raramente. Como foi, eu não sei. Conta-se que, para fazer Isabel feliz, ela
teria deixado Zacarias pousar a boca muda sobre o seu ventre cheio, ou que
ela teria introduzido os seus dedos na boca dele. Não sei bem. O certo é
que, depois de nove meses de silêncio, Zacarias falou, louvando o Senhor e
dizendo que o Messias já estava na terra. Não deu mais explicações. Mas
minha mulher garante — ela estava presente naquele dia — que Zacarias
disse, louvando ao Senhor, que o seu filho iria à sua frente. Agora eu digo:
não é como as pessoas crêem. João é o Messias, que vai diante do Senhor,
como Abraão, de Deus. Eis. Não tenho razão?
– Tens razão, quanto ao que diz respeito ao espírito do Batista, que
sempre procede adiante de Deus. Mas não tens razão quanto ao que diz
respeito ao Messias.
– Então aquela, que se dizia mãe do Filho de Deus — e quem disse isto
foi Samuel — não é verdade que o era? Não nasceu ainda?
– Sim, ela o era. O Messias nasceu, precedido por aquele que, no
deserto, levantou sua voz, como disse o Profeta[125].
– És tu o primeiro que afirma isso. João, na última vez que Joel lhe
levou uma pele de ovelha, como fazia cada ano ao chegar o inverno, ao ser
interrogado a respeito do Messias, não disse: “Ele já está aí.” Quando o
disser…
– Homem, eu fui discípulo de João, e o ouvi dizer: “Eis o Cordeiro de
Deus” indicando… –diz João.
– Não, não. O Cordeiro é ele. Verdadeiro Cordeiro, que cresceu por si
mesmo, quase sem necessidade de pai e mãe. Assim que se tornou filho da
Lei, isolou-se nas cavernas dos montes que olham para o deserto e ali
cresceu, falando com Deus. Isabel e Zacarias morreram e ele não veio. Para
ele, pai e mãe era Deus. Não há santo maior do que ele. Perguntai a toda a
cidade de Hebron. Samuel o dizia, mas os belemitas devem ter tido razão. O
santo de Deus é João.
– Se alguém te dissesse: “O Messias sou Eu”, que dirias tu? –pergunta
Jesus.
– Eu o chamaria de “blasfemador”, e o afugentaria a pedradas.
– E se ele fizesse um milagre para provar que o era?
– Eu diria que ele era um “endemoninhado.” O Messias virá quando
João se revelar na sua verdadeira identidade. O próprio ódio de Herodes é a
prova. Ele, o astuto, sabe que João é o Messias.
– Mas João não nasceu em Belém.
– Quando ele for solto, depois de ter anunciado por si mesmo o seu
próximo advento, manifestar-se-á em Belém. Também Belém o espera.
Enquanto… oh! vai falar aos belemitas de algum outro Messias, se tens
coragem… e verás.
– Tendes uma sinagoga?
– Sim. Basta ir direto daqui a duzentos passos por esta rua. Não há erro.
Fica perto da arca dos despojos violados.
– Adeus. E que o Senhor te ilumine.
Eles se vão. Voltam à parte da frente.
77.6
No portão está uma mulher jovem e descaradamente vestida. É muito
bonita:
– Senhor, queres entrar na casa? Entra!
Jesus a fita, severo como um juiz, e não fala nada.
Quem fala é Judas, neste ponto apoiado por todos:
– Volta para dentro, despudorada! Não nos profanes com o teu hálito,
cadela faminta!
A mulher enrubesce vivamente e inclina a cabeça. Confusa, procura
desaparecer dali, escarnecida pelos moleques e pelos passantes.
– Quem será tão puro, para dizer: “Eu nunca desejei a maçã oferecida
por Eva”? –diz Jesus severo.
E acrescenta:
– Indicai-me um e sauda-lo-ei “santo”. Nenhum? E então, se não por
aversão, mas por fraqueza, vos sentis incapazes de aproximar-vos dela,
retirai-vos. Eu não obrigo os fracos a entrarem em luta desigual. Mulher, eu
queria entrar. Esta casa foi de um parente meu. Para Mim, ela é querida.
– Entra, Senhor, se não tens nojo de mim.
– Deixa a porta aberta. Para que o mundo possa ver, e não fique
murmurando…
Jesus passa sério, solene. A mulher se inclina, subjugada, e não ousa
mover-se. Mas as chalaças da multidão a ferem fundo. Ela foge correndo
até o fundo do jardim, enquanto Jesus vai até ao pé da escada, olha de
soslaio as portas entreabertas, mas não entra. Depois vai ao lugar onde era o
sepulcro e onde agora é uma espécie de pequeno templo pagão.
– Os ossos dos justos, ainda que estejam secos e dispersos, destilam um
bálsamo purificador, e espalham sementes de vida eterna. Paz aos mortos
que viveram no bem! Paz aos puros que dormem no Senhor! Paz aos que
sofreram, mas não quiseram conhecer os vícios! Paz aos verdadeiros
grandes do mundo e do Céu! Paz!
77.7
A mulher, costeando uma sebe que a protege dos olhares, alcança
Jesus:
– Senhor!
– Mulher!
– Qual o teu nome, Senhor?
– Jesus.
– Nunca ouvi este nome. Eu sou romana, atriz e bailarina. Em nada
mais eu sou perita, a não ser em lascívias. Que quer dizer o teu Nome? O
meu é Aglae e… e quer dizer: vício.
– O meu quer dizer: Salvador.
– Como é que salvas? E a quem?
– A quem tem vontade de salvação. Eu salvo ensinando os homens a ser
puros, a querer a dor, mas com honra, e o bem a todo custo.
Jesus lhe fala sem aspereza, mas tampouco sem virar-se para a mulher.
– Eu estou perdida.
– Eu sou Aquele que procura os perdidos.
– Eu estou morta.
– Eu sou Aquele que dá vida.
– Eu sou sujeira e mentira.
– Eu sou a Pureza e a Verdade.
– Tu és também a Bondade, Tu, que não me olhas, não me tocas e não
me pisas. Tens piedade de mim…
– Tem, tu, primeiro, piedade de ti. Da tua alma.
– O que é a alma?
– É o que do homem o faz um deus e não um animal. O vício, o pecado
a mata e, com a alma morta, o homem vira um animal repelente.
– Poderei ver-te ainda?
– Quem me procura, me encontra.
– Onde moras?
– Onde os corações precisam de médico e de remédio para se tornarem
honestos.
– Então… eu não te verei mais… Eu vivo num meio onde não se quer
saber de médico, nem de remédio, nem de honestidade.
– Nada impede que vás ao lugar em que Eu estiver. O meu Nome será
gritado pelas ruas, e chegará a ti. Adeus.
– Adeus, Senhor. Deixa que eu te chame “Jesus”. Oh! Não por
familiaridade!… Mas para que entre em mim um pouco de salvação. Eu sou
Aglae, lembra-te de mim.
– Sim. Adeus.
A mulher fica lá no fundo do jardim. Jesus sai muito sério. Olha para
todos. Vê perplexidade nos discípulos e zombaria nas pessoas de Hebron.
Um criado fecha o portão.
77.8
Jesus vai reto pela rua. Bate à porta da Sinagoga.
Aparece um velhinho hostil. Não dá a Jesus nem tempo para falar:
– A sinagoga está interditada, neste lugar santo, para aqueles que
negociam com as meretrizes. Fora!
Jesus se volta sem falar, e continua a caminhar pela rua. Seus discípulos
vão atrás. Até sairem de Hebron. Então começam a falar.
– Mas foste Tu que o quiseste, Mestre! –diz Judas–. Uma meretriz!
– Judas, na verdade te digo que ela vai te superar. E agora, tu, que me
queres censurar, que é que me dizes a respeito dos judeus? Nos lugares mais
santos da Judéia, fomos escarnecidos e expulsos… Mas é assim mesmo.
Virá o tempo em que Samaria e os Gentios adorarão o verdadeiro Deus, e o
povo do Senhor estará sujo de sangue e de um delito… de um delito em
comparação do qual aquele das meretrizes, que vendem sua carne e sua
alma, será pouca coisa. Não pude rezar sobre os ossos de meus primos e do
justo Samuel. Mas não importa. Repousai, ossos santos, jubilai, ó espíritos
que neles habitáveis. A primeira ressurreição está próxima. Depois virá o
dia em que sereis mostrados aos anjos, como sendo os dos servos do
Senhor.
Jesus se cala e tudo termina.
[125] como disse o Profeta, isto é: Isaías 40,3.
78. Em Keriot. Morte do velho Saul.
14 de janeiro de 1945.
78.1
Tenho a impressão de que a parte mais íngreme, ou seja, o nó mais
apertado das montanhas da Judéia, fica entre Hebron e Juta. Mas eu poderia
também estar enganada e ser este um vale mais amplo e aberto que se abra
sobre largos horizontes, do qual sobressaem montanhas isoladas, e não mais
a cadeia. Talvez seja uma depressão entre duas cadeias, não sei. É a
primeira vez que a vejo, e disto pouco entendo. Culturas diversas em
campos não vastos, mas bem cultivados com cereais: cevada, centeio em
quase todos eles, e também belos vinhedos nas partes mais ensolaradas.
Além disso, mais ao alto há bonitos bosques de pinheiros, abetos e outras
árvores das selvas. Uma estrada… razoável, conduz a uma pequena vila.
– Este é um subúrbio de Keriot. Peço-te que venhas até a minha casa de
campo. Minha mãe te espera lá. Depois iremos para Keriot –diz Judas, que
nem sabe mais o que está dizendo, de tão agitado que está.
Não disse que agora estão juntos só Jesus com Judas, Simão e João. Os
pastores não estão. Talvez tenham ficado nos pastos de Hebron, ou tenham
voltado para Belém.
– Como quiseres, Judas. Mas podíamos parar também aqui para
conhecermos tua mãe.
– Oh! Não! É um casebre. Minha mãe só vem aqui no tempo da
colheita. Fora desse tempo, está em Keriot. Por acaso, não queres que a
minha cidade te veja? Não queres trazer a ela a tua luz?
– Claro que Eu quero, Judas. Mas tu já sabes que Eu não reparo na
humildade do lugar que me hospeda.
– Mas hoje és meu hóspede… e Judas sabe ser hospitaleiro.
Caminham ainda alguns metros entre casinhas esparsas pelo campo, e
mulheres e homens aparecem, chamados pelos meninos. É evidente que
uma certa curiosidade foi despertada. Judas deve ter feito algum anúncio de
propaganda.
– Eis a minha pobre casa. Perdoa a sua pobreza.
Mas a casa não é nenhum casebre: é um cubo com um só andar, mas
grande e bem cuidado, no meio de um pomar basto e viçoso. Uma
estradinha particular, toda muito limpa, vai da estrada até à casa.
– Permites de eu vá na frente, Mestre?
– Vai.
Judas parte.
– Mestre, Judas fez as coisas em grandes proporções –diz Simão–. Eu
já suspeitava disso. Mas agora tenho certeza. Tu dizes, Mestre, e dizes bem:
espírito, espírito… Mas ele… ele não quer saber disso. Não Te entenderá
nunca… ou então, muito tarde –corrige-se, para não causar dor a Jesus.
Jesus suspira e se cala.
78.2
Judas sai com uma mulher que tem cerca de cinqüenta anos. Ela é
bem alta, não como o filho, ao qual deu os seus olhos pretos e os cabelos
encaracolados. Mas os olhos dela são mansos, um tanto tristes, enquanto
que os de Judas são imperiosos e astutos.
– Eu te saúdo, ó Rei de Israel –diz ela, prostrando-se em uma
verdadeira saudação de súdita–. Concede à tua serva de hospedar-te.
– Paz a ti, mulher. E Deus esteja contigo e com o teu filho.
– Oh! Sim! Com o meu filho!
É mais um suspiro do que uma resposta.
– Levanta-te, mãe. Eu também tenho uma mãe, e não posso permitir
que tu me beijes os pés. Em nome de minha mãe, Eu te beijo, mulher. Ela é
tua irmã… no amor e no destino doloroso de mães de marcados.
– Que queres dizer, Messias? –pergunta Judas, meio inquieto.
Mas Jesus não responde. Está abraçando a mulher, a qual ele levantou
do chão benignamente, e a está beijando na face. Depois, segurando-a pela
mão, vai em direção à casa.
Entram em uma sala fresca, à qual fazem sombra umas leves cortinas
listradas. Ali estão preparadas bebidas e frutas frescas. Antes porém, a mãe
de Judas chama uma serva, e esta traz água e toalha. A patroa queria
descalçar Jesus e lavar-lhe os pés empoeirados. Mas Jesus se opõe:
– Não, mãe. A mãe é uma criatura muito santa, especialmente quando é
honesta e boa como tu és, para permitir que tome a atitude de uma escrava.
A mãe olha para Judas… um olhar estranho. Depois, sai dali.
Jesus refrescou-se. Quando está para pôr de novo as sandálias, a mulher
volta com um par de sandálias novas:
– Eis, nosso Messias. Creio tê-las feito bem… como Judas queria… Ele
me disse: “Um pouco mais compridas do que as minhas, e da mesma
largura.”
– Mas por que, Judas?
– Não me queres permitir que Te ofereça um presente? Não és o meu
Rei e meu Deus?
– Sim, Judas. Mas não devias dar tanto incômodo à tua mãe. Tu sabes
como Eu sou…
– Eu sei. És santo. Mas deves aparecer como Rei santo. Assim é que
nos devemos impor. No mundo, que em dez partes tem nove de tolos, é
preciso impor-se com a presença. Eu sei.
Jesus amarrou as sandálias novas, feitas de pele vermelha nas correias
perfuradas e na parte superior que sobe até o tornozelo. Muito mais bonitas
do que as suas sandálias simples de operário, e semelhantes às sandálias de
Judas, que são como uns sapatinhos, nos quais aparecem somente pedaços
dos pés.
– Também a veste, meu Rei. Eu a tinha preparado para o meu Judas…
Mas ele te doa. É de linho, fresco e novo. Permite a uma mãe te vestir…
como se fosse o seu filho.
Jesus torna a olhar para Judas… mas não rebate. Ele solta a bainha da
veste no pescoço, fazendo recair das costas a ampla túnica, permanecendo
com a tunicela de baixo. A mulher lhe coloca a bela veste nova. Oferece-lhe
um cinto, que é um galão muito bordado, do qual parte um cordão, que
termina em abundantes franjas. Jesus certamente se sentirá bem nas vestes
frescas e sem poeira. Mas não parece muito feliz. Enquanto isso, os outros,
por sua vez, se lavaram.
– Vem, Mestre. São do meu pobre pomar. Este é o hidromel que minha
mãe prepara. Tu, Simão, talvez prefiras este vinho branco. Toma. É da
minha vinha. E tu, João? O mesmo que o Mestre?
Judas exulta em poder servir nos belos cálices de prata, em mostrar que
é alguém que pode.
A mãe pouco fala. Olha… olha… olha para o seu Judas… e mais ainda
olha para Jesus… e quando Jesus, antes de comer, lhe oferece a mais bela
das frutas (parecem-me grandes damascos, são frutos amarelo-
avermelhados e não são maçãs) e lhe diz: “Primeiro, sempre a mãe”, seus
olhos se enchem de lágrimas.
– Mamãe, tudo mais já foi feito? –pergunta Judas.
– Sim, meu filho. Acho que fiz tudo bem. Mas eu cresci sempre aqui e
não sei… não sei quais os usos dos reis.
– Que usos, mulher? Que reis? Mas que fizeste, Judas?
– Mas não és Tu o prometido Rei de Israel? É hora de o mundo Te
saudar como tal, e isto deve acontecer pela primeira vez aqui, na minha
cidade, na minha casa. Eu Te venero como tal. Por amor a mim e por
respeito ao teu nome de Messias, de Cristo, de Rei, que os Profetas, por
ordem de Javé Te deram, não me desmintas.
78.3
– Mulher, amigos. Eu vos peço. Preciso falar com Judas. Devo dar-
lhe ordens precisas.
A mãe e os discípulos se retiram.
– Judas, que fizeste? Tão pouco me entendestes até aqui? Por que
rebaixar-me a ponto de fazer de Mim apenas um poderoso da terra, aliás,
um que luta para ser poderoso? E não compreendes que isso é uma ofensa à
minha missão, ou melhor, um obstáculo? Sim. Não o negues. Obstáculo.
Israel está sujeito a Roma. Tu sabes o que acontece quando quer levantar-se
contra Roma alguém que parecia chefiar o povo e que se tornou suspeito de
criar uma guerra de libertação. Tu ouviste, e ouviste nestes dias mesmo,
como se usou de crueldade para com um Pequenino, só por se supor que ele
seria o futuro rei, segundo o mundo. E tu! E tu! Oh! Judas! Mas que esperas
de alguma minha soberania carnal? Que esperas? Eu te dei tempo para
pensares e decidires. Eu te falei bem claro, desde a primeira vez. Também te
rejeitei, porque Eu sabia… porque Eu sei, sim, porque Eu sei, Eu leio, Eu
vejo o que há em ti. Por que me queres seguir, se não queres ser como Eu
quero? Vai-te embora, Judas. Não faças mal a ti mesmo, nem a Mim… Vai.
É melhor para ti. Não és um operário apto para esta obra… Ela é muito alta
para ti. Em ti há soberba, há cobiça em todos os três ramos; há
prepotência… até tua mãe precisa te temer…; há tendência para a
mentira… Não. Não é assim que deve ser o meu seguidor. Judas, Eu não te
odeio. Eu não te amaldiçôo. Somente te digo, e com dor de quem vê que
não pode mudar alguém que ama, somente te digo: vai pela tua estrada, abre
caminho no mundo, posto que é o que tu queres, mas não fiques Comigo. O
meu caminho!… O meu palácio real! Oh! Que angústia há neles! Sabes
onde é que serei Rei? Quando serei proclamado Rei? Quando Eu for
levantado no madeiro infame, e por púrpura terei o meu Sangue, por coroa
uma grinalda de espinhos, por insígnia um cartaz de escárnio, por
trombetas, címbalos, órgãos e cítaras, para saudar o Rei proclamado, Eu
ouvirei as blasfêmias de um povo inteiro: do meu povo. E sabes por obra de
quem, tudo isso? De um que não me terá entendido. Que nada terá
entendido. Coração de bronze vazio, cuja soberba, sensualidade, e avareza
terão destilado os seus humores, e estes terão gerado um nó de serpentes
que servirão como correntes para Mim e… como maldição para ele. Os
outros não sabem tão claramente a minha sorte. E, te peço, não digas qual é.
Que isto fique entre Mim e ti. Afinal… é uma censura… e tu te calarás,
para não teres que dizer: “Eu fui censurado…” Entendeste, Judas?
78.4
Judas está roxo, de tão vermelho. Está em pé, diante de Jesus. Está
confuso, de cabeça baixa… Depois, se lança de joelhos, e chora, com a
cabeça sobre os joelhos de Jesus:
– Eu te amo, Mestre. Não me rejeites. Sim. Eu sou soberbo. Sou um
tolo. Mas, não me mandes embora. Não, Mestre. Será esta a última vez que
eu falho. Tu tens razão. Eu não refleti. Mas também neste erro, há amor. Eu
queria prestar-te tanta honra… e que os outros também te prestassem…
porque eu te amo. Há três dias que Tu disseste: “Quando errais sem malícia,
por ignorância, não é erro, mas um julgamento imperfeito, como o dos
meninos, e Eu estou aqui para fazer de vós adultos.” Eis, Mestre, eu estou
aqui sobre os teus joelhos… me disseste que serias um pai para mim…
sobre os teus joelhos como aqueles de meu pai, e te peço perdão, e te peço
que faças de mim um “adulto” e um adulto santo… Não me mandes
embora, Jesus, Jesus, Jesus… Nem tudo em mim é maldade. Tu estás
vendo, por Ti, eu deixei tudo e vim. Tu és mais do que as honras e as
vitórias que eu obtinha, quando a serviço de outros. Tu, sim, Tu és o amor
do pobre, infeliz Judas, que queria dar-te somente alegria e que, ao
contrário, Te está dando dor…
– Basta, Judas. Mais uma vez, Eu te perdôo…
Jesus parece estar fadigado…
– Eu te perdôo, esperando… esperando que, daqui para diante, me
compreendas.
– Sim, Mestre. Sim. Mas agora… agora… não me humilhes sob o peso
de um desmentido, que faria de mim um alvo de zombaria. Toda Keriot
sabe que eu viria com o Descendente de Davi, o Rei de Israel… e esta
minha cidade se preparou para receber-te… Eu pensei que estivesse agindo
bem… para mostrar-te e como fazer para sermos temidos e obedecidos… e
fazer que vejam isto também o João, o Simão e, através deles, os outros que
Te amam, mas Te tratam como um seu igual… Minha mãe também seria
escarnecida como mãe de um filho mentiroso e louco. Por ela, meu
Senhor… e Te juro que eu…
– Não jures a Mim. Jura a ti mesmo, se podes, que não pecarás mais
neste ponto. Por tua mãe e pelos teus concidadãos, não lhes farei a desfeita
de ir-me embora sem parar por aqui. Levanta-te.
– E que é que vais dizer aos outros?
– A verdade…
– Não!
– A verdade: que te dei ordens para hoje. Há sempre um modo de se
dizer a verdade, com caridade. Vamos. Chama tua mãe e os outros.
Jesus está um tanto severo. Nem volta a sorrir, senão quando Judas
volta com a mãe e os discípulos. A mulher perscruta a Jesus. Mas o vê
benigno. Se tranqüiliza. Tenho a impressão de ser ela uma alma que sofre.
– Vamos a Keriot? Eu já descansei e te agradeço, ó mãe, por toda a tua
bondade. O Céu te recompense e te dê, pela caridade que tiveste para
Comigo, descanso e alegria ao esposo que ainda choras.
A mulher procura beijar-lhe a mão, mas Jesus, põe-lhe a mão sobre a
cabeça com uma carícia, e não permite.
– O carro está pronto, Mestre. Vem.
Lá fora, de fato, está chegando um carro puxado por bois, um carro
bonito e cômodo, sobre o qual foram colocados alguns travesseiros para
servirem de assento, e, no alto, está armado um toldo de estofo vermelho.
– Sobe, Mestre.
– Primeiro a mãe.
A mulher sobe e depois Jesus e os outros.
– Aqui, Mestre. (Judas não o chama mais rei).
Jesus se assenta na frente, e ao seu lado Judas. Atrás, a mulher e os
discípulos. O condutor aguilhoa os bois, e os incita, caminhando ao lado
deles.
78.5
O trajeto é curto. Uns quatrocentos metros, ou pouco mais, e em
seguida eis que se vêem as primeiras casas de Keriot, que me parece uma
discreta cidadezinha. Um menininho olha, na rua cheia de sol, e depois
parte como um foguete. Quando o carro alcança as primeiras casas, os
notáveis do lugar e o povo lá estão para recebê-lo com bandeiras e ramos,
ramos e bandeiras pelas ruas, de casa em casa. Gritos de júbilo, e
reverências até o chão. Jesus, sentado no alto do seu oscilante trono, não
pode deixar por menos: saúda e abençoa a todos.
O carro prossegue e depois vira, além de um praça, em uma rua, pára
diante de uma casa, cujo portão já está escancarado, e nele estão duas ou
três mulheres. Param. Descem.
– A minha casa é tua, Mestre.
– Paz a ela, Judas. Paz e santidade.
Entram. Depois do vestíbulo, há uma grande sala com sofás baixos e
móveis entalhados. Com Jesus e os outros, entram os notáveis do lugar.
Reverências, curiosidade, uma recepção pomposa.
Um velho imponente pronuncia um discurso:
– Grande é a ventura da terra de Keriot por ter-te em seu seio, ó Senhor.
Grande ventura! Dia feliz! Ventura por ter-te, e ventura por ver que um filho
seu é teu amigo e ajudante. Bendito seja ele, que te conheceu antes de
qualquer outro! E Tu, sê cem vezes bendito, por te teres manifestado, Tu, o
Esperado por gerações e gerações. Fala, Senhor e Rei. Os nossos corações
esperam a tua palavra, como a terra sedenta do ardente verão espera a
primeira chuva mansa de setembro.
– Obrigado, seja quem fores. Obrigado. E obrigado a estes cidadãos que
ao Verbo do Pai, ao Pai do qual Eu sou o Verbo, abriram os seus corações.
Para que saibais que não é ao Filho do homem, que vos fala, mas ao Senhor
Altíssimo é que vão rendidas graças e honra por este tempo de paz com que
Ele reata sua quebrantada paternidade com os filhos do homem. Louvemos
o Senhor verdadeiro, o Deus de Abraão, que teve piedade e amor para com
o seu povo, e lhe concede o Redentor prometido. Não a Jesus, servo da
eterna Vontade, mas glória e louvor a esta Vontade de amor.
– Tu falas como um santo… Eu sou o sinagogo. Hoje não é sábado.
Mas vem até a minha casa para nos explicar a Lei, Tu, sobre o qual, mais do
que o óleo da consagração dos reis, foi derramada a unção da Sabedoria.
– Eu irei.
– O meu Senhor talvez esteja cansado.
– Não, Judas. Nunca me canso de falar de Deus e nunca desejoso de
decepcionar os corações.
– Então, vem –insiste o sinagogo–. Toda Keriot lá fora, está Te
esperando.
– Vamos.
Saem. Jesus está entre Judas e o arqui-sinagogo. Ao seu redor vão os
notáveis e uma grande multidão. Jesus vai passando e abençoando.
78.6
A sinagoga fica na praça. Entram. Jesus vai ao lugar de quem ensina.
Começa a falar, todo cândido na esplêndida veste, o rosto inspirado e os
braços estendidos, no seu gesto habitual.
– Povo de Keriot, o Verbo de Deus fala. Ouvi. Este que vos fala não é
outro, senão a Palavra de Deus. A sua soberania vem do Pai, e ao Pai
voltará, após ter evangelizado Israel. Abram-se os corações e as mentes à
Verdade, a fim de que o erro não se aninhe e não nasça confusão.
Isaías disse[126]: “Toda rapina feita com tumulto e as vestes encharcadas
de sangue serão queimadas pelo fogo. Eis que nasceu-nos um pequenino,
foi-nos dado um Filho. Em seus ombros Ele tem o principado. Eis o seu
nome: Admirável, Conselheiro, Deus Forte, Pai do século futuro, Príncipe
da Paz.” Este é o meu Nome. Deixemos aos Césares e aos Tetrarcas as suas
presas. Eu farei rapina. Mas não rapina que mereça a punição do fogo. Pelo
contrário, Eu arrancarei do fogo de Satanás presas e mais presas, para levá-
las ao Reino da paz, do qual Eu sou Príncipe, e ao século futuro: o tempo
eterno, do qual sou Pai.
– Deus, diz ainda Davi[127], de cuja estirpe Eu provenho, como estava
predito por aqueles que viram, por sua santidade agradável a Deus e
escolhida para falar de Deus, “escolheu somente um… meu filho… mas a
obra é grandiosa, por que se trata, não de preparar a casa para um homem,
mas para Deus.” Assim é. Deus, o Rei dos reis, escolheu somente um: o seu
Filho, para construir, nos corações, a sua casa. E já preparou o material. Oh!
Quanto ouro de caridade! E cobre, e prata, e ferro, e madeiras raras, e
pedras preciosas! Todos estão acumulados em seu Verbo, e Ele os usa para
construir em vós a morada de Deus. Mas se o homem não ajuda ao Senhor,
inutilmente o Senhor quererá construir a sua casa. Ao ouro se responde com
o ouro. À prata com a prata, ao cobre com o cobre, ao ferro com o ferro. Ou
seja, dá-se amor por amor, continência para servir a Pureza, constância para
ser fiéis, força para não se dobrar. Em seguida levar hoje a pedra, amanhã a
madeira: hoje o sacrifício, amanhã a obra, e construir. Sempre construir o
templo de Deus em vós.
O Mestre, o Messias, o Rei do eterno Israel, do eterno povo de Deus,
vos chama. Mas quer que estejais limpos para a obra. Abaixo as soberbas: a
Deus o louvor. Abaixo os pensamentos humanos: de Deus é o Reino.
Humildes, dizei Comigo: “Todas as coisas são tuas, ó Pai. Teu é tudo o que
é bom. Ensina-nos a conhecer-Te e a servir-Te em verdade.” Dizei: “Quem
sou eu?” E reconhecei que sereis alguma coisa, somente quando fordes
moradas purificadas, às quais Deus pode descer e nelas descansar.
Sendo todos peregrinos e estrangeiros nesta terra, sabei reunir-vos e ir
rumo ao Reino prometido. O caminho são os mandamentos, cumpridos não
por temor do castigo, mas por amor a Ti, ó Pai Santo. Arca, um coração
perfeito, no qual há o nutritivo maná da sabedoria e onde floresce a vara da
vontade pura. E, para que a casa seja luminosa, vinde à Luz do mundo. Eu
vo-la trago. Trago-vos a Luz. Nada mais do que isto. Não possuo riquezas e
não prometo honras que são da terra. Mas possuo todas as riquezas
sobrenaturais do meu Pai, e aos que seguiram a Deus em amor e caridade,
Eu prometo a honra eterna do Céu.
A paz esteja convosco.
78.7
As pessoas, que escutaram atentas, cochicham um pouco inquietas.
Jesus fala com o sinagogo. Unem-se ao grupo também outras pessoas,
talvez os notáveis.
– Mestre… mas não és Tu o Rei de Israel? Haviam-nos dito…
– Eu o sou.
– Mas Tu disseste…
– Que não possuo nem prometo as riquezas do mundo. Não posso dizer
senão a verdade. Assim é. Eu sei o vosso pensamento. Mas o erro vem de
um erro de interpretação e de um grande respeito vosso para com o
Altíssimo. Foi-vos dito: “Vem o Messias”, e vós pensastes, como muitos em
Israel, que Messias e rei fossem a mesma coisa. Levantai mais alto o
espírito. Observai este belo céu de verão. Parece-vos que termina ali, o seu
limite, ali onde o ar parece uma abóbada de safira? Não. Além estão os
estratos mais puros, os azuis mais límpidos até àquele inimaginável do
Paraíso, onde o Messias conduzirá os justos que morreram no Senhor. A
mesma diferença existe entre a realeza messiânica, em que acreditam os
homens, e aquela que é real: toda divina.
– Mas, poderemos nós, pobres homens, levantar o espírito até onde Tu
dizes?
– Basta que o queirais. E, se o quiserdes, eis que Eu vos ajudarei.
– Como Te devemos chamar, se não és rei?
– Mestre, Jesus, como quiserdes. Mestre Eu sou, e sou Jesus, o
Salvador.
78.8
Um velho diz:
– Ouve, Senhor. Há tempo, há muito tempo, quando saiu o edito,
chegou até aqui a notícia de que o Salvador havia nascido em Belém… e eu
fui até lá em companhia de outros… Vi um pequeno Menino, em tudo igual
aos outros… Mas eu o adorei, por fé. Depois soube que havia um homem
santo, que se chamava João. Qual é o Messias verdadeiro?
– Aquele que tu adoraste. O outro é o seu Precursor. Grande santo aos
olhos do Altíssimo, mas não é o Messias.
– Eras Tu?
– Era Eu. E que foi que viste em torno à minha pessoa recém-nascida?
– Pobreza e limpeza, honestidade e pureza. Um operário gentil e sério
chamado José, operário, mas da estirpe de Davi. Uma jovem mãe, loira e
gentil, chamada Maria, diante de cuja graça empalidecem as rosas mais
belas de Engadi e parecem disformes os lírios dos canteiros reais. E um
Menino de grandes olhos da cor do céu, cujos cabelos pareciam fios de ouro
pálido… E não vi mais nada… E ouço ainda a voz da mãe me dizer: “Pelo
meu Filho eu te digo: seja o Senhor contigo até o encontro eterno, e a sua
Graça venha ao teu encontro em tua estrada.” Estou com oitenta e quatro
anos… a estrada está chegando ao fim… Não esperava mais encontrar a
Graça de Deus. Mas, ao invés, Te encontrei… e agora não desejo mais ver
outra luz que não seja a tua. Sim. Eu Te vejo como és, sob esta veste de
piedade que é a carne que assumiste. Eu Te vejo! Ouvi a voz deste que ao
morrer vê a Luz de Deus!
As pessoas se aglomeram ao redor do idoso inspirado, que está no
grupo de Jesus e que, não mais sustentando-se em sua bengala, levanta os
braços trêmulos, a cabeça toda encanecida, com uma barba comprida e
repartida, uma verdadeira cabeça de patriarca ou profeta.
– Eu vejo Este: O Eleito, o Supremo, o Perfeito, descido aqui por força
do Amor, subir de volta à destra do Pai, e tornar-se Um com Ele. Mas eis!
Não Voz e Essência incorpórea, como Moisés viu o Altíssimo, e como o
Gênesis diz que os nossos Primeiros o conhecessem e com Ele falassem, no
vento da tarde. Como verdadeira Carne o vejo subir ao Eterno. Carne
fulgurante! Carne gloriosa! Oh! pompa de Carne divina! Oh! Beleza do
Homem-Deus! É o Rei! Sim. É o Rei. Não de Israel: do mundo. A Ele se
inclinam todas as realezas da terra e todos os cetros e coroas se anulam no
fulgor do seu cetro e de suas jóias. Uma coroa, uma coroa Ele tem em sua
fronte. Um cetro, um cetro Ele tem em sua mão. Sobre o peito tem um
racional: pérolas e rubis de um esplendor nunca visto estão nele. Chamas
dele saem como de uma fornalha sublime. Em seus pulsos há dois rubis, e
uma fivela de rubis está sobre os seus santos pés. Luz, luz dos rubis! Olhai,
ó povos, o Rei eterno! Eu Te vejo! Eu Te vejo! Eu subo Contigo… Ah!
Senhor! Nosso Redentor! A luz cresce no meu olho da alma… O Rei está
adornado com o seu próprio Sangue! A coroa é uma coroa de sangrentos
espinhos, o cetro é uma cruz… Eis o homem! Ei-lo! És Tu!… Senhor, pela
tua imolação, tem piedade do teu servo. Jesus, à tua piedade, entrego o meu
espírito.
O velho, até então em pé, tornado jovem no fogo do profetizar, prostra-
se de repente, e cairia, se Jesus prontamente não o amparasse contra o seu
peito.
– Saul!
– Saul está morrendo!
– Socorro!
– Correi.
– Paz ao justo que morre –diz Jesus, que lentamente se ajoelhou para
poder sustentar melhor o velho cada vez mais pesado.
Faz-se silêncio. Depois, Jesus o deposita completamente no chão. E se
endireita.
– Paz ao seu espírito. Morreu vendo a Luz. Na expectativa, que será
breve, ele já verá a face de Deus, e será feliz. Não há morte, ou seja,
separação da vida, para aqueles que morrem no Senhor.
78.9
As pessoas, depois de algum tempo, afastam-se comentando. Ficam
os maiorais, Jesus, os seus discípulos e o sinagogo.
– Ele profetizou, Senhor?
– Os seus olhos viram a Verdade. Vamos.
Saem.
– Mestre, Saul morreu investido pelo Espírito de Deus. Nós, que o
tocamos, estamos puros, ou impuros?
– Impuros.
– E Tu?
– Eu, como os outros. Eu não mudo a Lei. A Lei é lei, e o israelita a
observa. Nós ficamos impuros[128]. Entre o terceiro dia, e o sétimo nos
purificaremos. Alé lá, estamos impuros. Judas, Eu não volto passando por
tua mãe. Não levo impureza na sua casa. Faz que ela seja avisada por
alguém que o possa fazer. Paz a esta cidade. Vamos.
Nada mais vejo.
[126] Isaías disse, em: Isaías 9,4-5.
[127] diz ainda David, em: 1 Crónicas 29,1.
[128] Nós ficamos impuros, por ter tocado um morto, como vem estabelecido em: Números 19,11-22, que compreende as regras
para purificar-se. Ainda a propósito dos contactos com um morto, são contemplados casos específicos em: Levítico 21,1-4; 22,4-7;
Números 6,6-12; 9,6-12; 31,19-20; Ezequiel 44,25-27; Ageu 2,13. A presente nota deve valer por todas as vezes que se apresenta
um caso similar de “impureza legal”. – No fim de cada volume o leitor encontrará o índice temático para consultar as notas
principais e de ligação, que são distribuídas nos dez volumes da obra.

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