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Santidade em perspectiva bíblica

Para se fazer a aproximação que se tem em vista, faz-se necessário, então, buscar
uma noção inicial do conceito de santidade que sirva como referência mais ampla de
como as questões podem se encontrar. Assim, vislumbra-se nas raízes bíblicas do tema
da santidade este parâmetro inicial, uma vez que é na Bíblia que se encontra a base de fé
e prática comum a todos os cristãos, enquanto as recepções feitas pelos diversos grupos
e tradições confessionais ao longo dos séculos são aspectos mais particulares de cada
grupo.
Seguindo neste propósito, o verbete escrito por Wright para o Anchor Bible
Dictionary,1 traz a informação de que, no Antigo Testamento (AT), a raiz hebraica da
palavra (“qadosh”, transliterado) que denota “santidade” (“ser santo”, “santificar”) tem
mais de 850 ocorrências. Existem ainda sinônimos cujas traduções se relacionam com
“dividir”, “dedicar”, “contribuir”, “devotar”. Já o antônimo do termo traz a noção de
“profanar”, “dessacralizar”, “cometer sacrilégio”. A maior incidência se encontra nos
chamados escritos sacerdotais.
Nos textos veterotestamentários em geral, a ideia de santidade está ligada ao
próprio Deus, em quem se encontra sua manifestação ideal e é sua fonte. A santidade
não é própria da criação, mas vem da palavra do Deus criador. Entretanto, por ser um
atributo de Deus, toda a criação – e especialmente o povo que é participante da aliança –
é convocada a não perder de vista a santidade de Deus e do nome divino, ou seja, sua
honra, reputação e glória.
Assim, a tarefa de “santificar” a Deus e seu nome é ainda mais premente aos
líderes do povo. O pecado, que desonra a Deus e entristece seu espírito (tido no AT
como aspecto de seu caráter), pode levar ao seu afastamento do povo. Por isto, além de
obedecer aos mandamentos, é necessário que o povo bendiga, santifique, e se regozije
em Deus e em seu nome. Ademais, deve imitar a santidade de Deus guardando os
mandamentos, que possuem um caráter sacro. Em contrapartida, Deus revela sua
santidade no sustento do povo e por meio de atos miraculosos. Não se descarta ainda
atos de tipo punitivos que também revelem esse caráter divino. Este Deus, então, que é
O Santo, não admite nenhum concorrente, sendo o único a quem se deve devotar e sua
suprema santidade pode causar tanto espanto ao ponto de, inclusive, afastar pessoas que
devem oferecer-lhe devoção, quando não seguros de sua retidão perante Deus.

1 WRIGHT, D. P., Holliness, p. 237-249.


Com base neste caráter único de Deus, o AT apresenta gradações de santidade a
pessoas, lugares, objetos, funções, etc. Quanto maior a relação desses elementos e
indivíduos com aquilo que expressa alguma revelação do santo Deus, maior o grau de
santidade que lhes são imputados. E, uma vez que a santidade de algo está sempre
sujeita de ser violada, existe uma grande preocupação em se prescrever meios de se
considerar legítimo ou não que algo ou alguém seja considerado santo.
Como expressão disto, convém destacar um dos considerados mais importantes
conjuntos de preceitos da “Torá” é o chamado “código da santidade” (Lv 17-26). 2 Trata-
se de um documento que remete a antigas tradições de Israel que, representando o
caráter separado (santo) daquele povo, também define, a partir de uma série de
preceitos, uma identidade para ele. Kilian afirma que o documento, incorporado à
tradição sacerdotal, “representa a concepção programática para a restauração prometida
da comunidade santa do Deus santo”. 3 Entretanto, deve-se ter em mente que a questão
da santidade permeia todo o Antigo Testamento.
Sobre a recepção do conceito no Novo Testamento (NT),4 assim como em outros
documentos cristãos primitivos, a noção de santidade é proveniente de uma família de
palavras – hagios/hagianzen – traduzidas comumente também por “santo” ou “fazer
santo”. Hagios tem como correspondentes: sactus, em latim; ouaab, em copta; qd, em
siríaco. Existem outros termos gregos que se relacionam com pureza, porém, devido ao
vasto uso por adeptos de religiões helenísticas, não foram amplamente usados pelos
escritores do NT, nem por muitos outros dos primeiros cristãos. Ademais, historiadores,
retóricos, filósofos e comediantes que escreviam em grego clássico também se referiram
àquilo que é “santo”, sejam os templos e santuários, ou os ritos de mistérios, ou ainda os
juramentos e contratos, além da vida moral e da pátria. Encontram-se ainda, em escritos
helenísticos, referências a Jerusalém como sendo uma cidade santa.
Iniciando pelos evangelhos sinóticos, o uso de “santo” é atribuído às maravilhas
de Deus, ao Seu nome, ou para qualificar alguém que exercia um ministério ao Seu
serviço (Jesus, João, anjos ou profetas hebreus), enquanto em Atos Jesus é identificado
como alguém “separado” por Deus e recintos do templo também são tidos como
“santos”. Além do mais, os próprios seguidores de Jesus partilham da santidade de Deus
e também são designados “santos” desde o início do cristianismo judaico.

2 KILIAN, R., O Documento sacerdotal, p. 309.


3 KILIAN, R., O Documento sacerdotal, p. 313.
4 Esta abordagem é dependente do conteúdo encontrado em: HODGSON Jr., R., “Holliness”, In: The
Yale Anchor Bible Dictionary, vol. 3, p. 249-254.
Contudo, é com Paulo que a noção é popularizada. Os primeiros cristãos em geral
são designados “santos”,5 embora a igreja de Jerusalém ocupe um status especial, 6 assim
como aqueles que acompanharão o Senhor em seu retorno. Também a vida santa, para
Paulo, está em conformidade com as normas morais e éticas estabelecidas no mundo
judaico helenístico. Do judaísmo de seu tempo, toma emprestada a noção de que
Templo, Lei, Escritura, certas formas de ritual e o espírito de Deus são santos. Em
escritos mais tardios, a noção paulina da santidade deu lugar a um tipo de descrição de
uma qualidade proeminente da vida cristã cotidiana.
Quanto ao restante do NT, no evangelho de João e na escola de discípulos que se
formou em torno dele, a santidade desempenha um papel mais importante apenas em
Apocalipse, designando principalmente os mártires que guardaram os mandamentos
como forma peculiar de testemunho (martyria). Em Hebreus, a santidade é a qualidade
suprema do mundo celestial, que tem Jesus como sumo sacerdote, que realizou um
sacrifício definitivo de si mesmo, estabelecendo uma nova aliança celestial. Os santos,
então, são aqueles separados por meio deste novo pacto, possuindo uma nova identidade
e novo propósito moral. É a eclesiologia que fornece a principal referência para a
santidade em 1 Pedro. Já 2 Pedro e Judas usam a santidade para descrever uma
característica importante da vida comum e da fé do povo de Deus.
Em suma, pode-se afirmar que, tanto no AT, como no NT, “santo” é um atributo
divino comunicado às pessoas (Seu povo), objetos, locais ou instituições que são
separados por Ele para refletir e testemunhar Sua presença e governo sobre o mundo.
Quanto mais identificados são esses elementos e mais podem sinalizar Deus, “O Santo”,
sendo este seu caráter único e supremo, mais apropriada é a designação de “santo” em
relação a eles. Assim, a partir desta premissa, pode-se perceber melhor qual seja a
relação entre santidade, unidade dos cristãos e o cuidado ecológico, sendo que este tema
nas Escrituras está relacionado com a ideia da criação de Deus que reflete Sua glória e
reino.

5 GNILKA, J., Teología del Nuevo Testamento, p. 114.


6 SCHMIDT, K. L., Igreja. In: A igreja no Novo Testamento, p. 16.

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