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Gabriela Guimarães*
Alessandro de Magalhães Gemino**
Nataly Netchaeva Mariz∗∗∗
Resumo
O trabalho descrito nas linhas a seguir trata do primeiro ano de inserção da residência de psicologia
no setor da reumatologia bem como das experiências que puderam ser recolhidas durante esse
período a partir de dois casos clínicos trabalhados ao longo do texto. A experiência torna-se
extremamente significativa não só pela possibilidade de diálogo a partir de uma abordagem
psicanalítica presente no setor de um hospital universitário, lugar onde convivem diversas
especialidades, como também pela inauguração da inserção do residente em formação em um setor
que possui uma sintomatologia tão afinada a fenômenos de ordem psíquica, fato este que torna
nosso campo de trabalho bastante rico e permeável a intervenções que geram efeitos visíveis em
uma enfermaria. Uma proposta de trabalho da Psicologia na área ainda está em construção nesse
momento e a presente exposição pretende demarcar o início dessa trajetória.
Palavras-chave: Residência; Psicologia; Reumatologia; Lúpus; Psicanálise.
Introdução
*
Psicóloga. Residente do primeiro ano do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar do IP-UERJ (2018).
**
Professor Adjunto. IP/UERJ.
*** Psicóloga Clínica. Doutora em Psicologia (PUC/RJ).
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Uma breve apresentação do setor se faz necessária visto que a presença de um Residente de
Psicologia nesse espaço é nova e seu relato pode contribuir para um olhar cartográfico dessa
enfermaria e, ao mesmo tempo, atento às singularidades das demandas que se apresentam. A
enfermaria da Reumatologia conta com seis leitos e uma equipe multiprofissional que está em
contato diariamente para discussão de casos, o round propriamente dito, que é caracterizado por
uma reunião mais formal para discussão dos casos com pelo menos um representante de cada
categoria, costuma ocorrer às segundas feiras pela manhã. Durante esse round a equipe passa por
cada um dos leitos e um dos residentes de medicina fica responsável por apresentar o caso. Um
primeiro estranhamento se deu nesse momento por participar coletivamente de um round em
hospital universitário que tem por hábito direcionar esse olhar mais científico ao paciente internado
diante de uma equipe que o estuda e observa.
No entanto, apesar desse primeiro estranhamento, percebi o quanto a equipe sinalizava a
necessidade de um saber que não fosse estritamente científico, mas que apontava para algo da
realidade do sujeito que incluía fatores psicossociais envolvidos, participação da família, existência
de conflitos conjugais etc. A partir disso foi possível reconhecer que a inserção de um psicólogo na
equipe teria a função de dar voz a essa subjetividade, frequentemente encoberta pelo lugar de objeto
que o paciente pode ocupar no Hospital Universitário. A maioria dos pacientes internados no setor
são mulheres diagnosticadas com Lúpus nas mais diferentes faixas etárias e apresentando cada uma,
uma maneira singular de manifestar a doença tanto no corpo quanto no discurso. Por mais que
também componham a especialidade Reumatologia outras doenças tais como: Esclerodermia,
Artrite reumatoide, fibromialgia, Gota, etc. Para além da especificidade da doença, questões que
dizem respeito ao gênero e ao papel que cada uma dessas mulheres com Lúpus ocupa socialmente,
bem como na família, também se impõem em relação à possibilidade de adesão e ao próprio
prognóstico da doença.
Segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), existem dois tipos principais de
lúpus: O cutâneo e o Sistêmico. No caso do LES (Lúpus Eritematoso Sistêmico) a pessoa pode ter
diferentes tipos de sintomas em vários locais do corpo, um ou mais órgãos internos costumam ser
acometidos, enquanto no de tipo cutâneo as manifestações costumam ser manchas ou feridas na
pele, especialmente nas partes mais expostas à luz solar. O ambulatório de reumatologia do HUPE
costuma dividir seus dias de atendimento por tipo clínico, existe o dia do lúpus leve, por exemplo,
que nas palavras da equipe, quase sempre evolui em algum momento da vida para manifestações
que acabam configurando-o como grave. Estressores psicossociais costumam ser apontados pela
equipe em questão como possíveis eventos desencadeadores ou reativadores da doença e a equipe
de reumatologia costuma expressar extrema preocupação quando situações desse tipo ocorrem e,
para tal, acabam acionando o serviço de psicologia. Como foi o caso de Maria.
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Enquanto o corpo biológico obedece às leis da distribuição anatômica dos órgãos e dos
sistemas funcionais, constituindo um todo em funcionamento, isto é, um organismo, o corpo
psicanalítico obedece às leis do desejo inconsciente, constituindo um todo em
funcionamento coerente com a história do sujeito (Fernandes, 2003, p.3).
Enquanto o corpo biológico obedece às leis da distribuição anatômica dos órgãos e dos
sistemas funcionais, constituindo um todo em funcionamento, isto é, um organismo, o corpo
psicanalítico obedece às leis do desejo inconsciente, constituindo um todo em funcionamento
coerente com a história do sujeito (Fernandes, 2003, p.3). A História da paciente que escolhi
chamar de Nice se inicia na enfermaria a partir de um quadro de má circulação de nome “isquemia”
que é bastante comum em pacientes portadores de Lúpus, a síndrome de Raynaud também
associada ao quadro dessa paciente e de muitos outros casos na enfermaria diz respeito a um
exagero na resposta a temperaturas mais frias que acaba promovendo uma redução do fluxo
sanguíneo para a pele (isquemia). No caso da síndrome de Raynaud além de se manifestar de forma
mais intensa em temperaturas mais frias, situações de exposição a estresse intenso também podem
vir a promover uma reação exagerada desse fenômeno. Essa explicação torna-se pertinente no caso
de Nice, pois além de haver outras mulheres internadas na mesma enfermaria e com a mesma
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síndrome, existiram também outros fatores, talvez psicossociais que tenham ocasionado em seu
caso uma resposta ainda mais exagerada que as demais levando à uma medida de tratamento mais
extrema em seu caso.
Durante meu primeiro contato com Nice a mesma estava acompanhada do marido e me
contou com bastante receptividade como havia sido seu percurso até o hospital. Devido ao quadro
de isquemia que apresentou e a síndrome de Raynaud associada, Nice diz que essa não foi sua
primeira internação e muito menos a primeira vez que sentia dor. Estava com o pé enfaixado e
mesmo após todas as medicações utilizadas para melhorar a circulação, seu corpo não havia reagido
de maneira esperada e passaria, portanto, por uma cirurgia cuja decisão foi bastante difícil para ela,
que consistia na amputação de uma parte de seu pé, já necrosada na época.
A equipe solicitou imediatamente suporte psicológico para a mesma no momento pré-
operatório Nice disse já ter sofrido e chorado bastante em relação a isso, que se fosse necessário,
preferia passar pela cirurgia à continuar sentindo dor. A equipe de cirurgia vascular compareceu ao
setor para conversar com ela a respeito de como seria a intervenção e Nice estava, apesar de
receosa, feliz pois finalmente iria para casa. Durante seu discurso trouxe resignação em passar por
essa cirurgia dizendo também que não seria a primeira vez que perderia alguma coisa, e
imediatamente começa a me mostrar algumas falanges dos dedos que já havia perdido em função
dessa isquemia e que foram “caindo”, segundo ela. Quando pergunto sobre algum incômodo que
isso possa ter tido na época ela diz que para sua auto-imagem foi bastante ruim, mas que o que mais
a afetou foi ter ficado longe da filha que teve dificuldades em reconhecê-la após o longo período em
que ficou hospitalizada.
Foi chegado então o dia da cirurgia e Nice foi para o centro cirúrgico pela manhã e retornou
no mesmo dia pelo fim da tarde. Ao passar no setor no fim do turno, Nice dizia estar bem e que
naquele momento não estava sentindo dor, que ficaria apenas mais alguns dias para ver o processo
de cicatrização. Uma semana depois ao longo dos atendimentos Nice começa a demonstrar
preocupação, pois as dores não haviam cessado e dizia ter receio de que algo tivesse dado errado.
Ao longo dos dias, com muito pesar a equipe médica se reúne com a cirurgia vascular e percebe que
o dano havia sido mais severo do que pensavam e que seria necessária uma nova intervenção, isto é,
uma região ainda maior e considerável precisaria ser amputada, além do pé. Ao fazerem esse
comunicado a Nice qualquer sinal de resignação se esvaiu e imediatamente entristeceu. Após a
saída da equipe médica Nice diz que as dores continuam e que toda a preparação que havia feito
tinha sido em vão, quando pergunto a Nice o que mais dói a mesma aponta para o peito e diz: “meu
coração.”
A partir desse momento, todos os dias estive atendendo-a em função da gravidade do caso e
consequente mobilização da equipe médica. A função da psicologia durante esse período consistiu
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em mediar a relação de Nice com a equipe e de fazer uma ponte entre a paciente e a cirurgia
vascular. Nice queria saber “Por que não haviam cortado tudo de uma vez?” e, nesse movimento,
também expandiu o discurso para suas relações com a família ao dizer que após a cirurgia retornaria
para sua cidade natal no Maranhão e que se o marido quisesse acompanhá-la com os filhos seria
bom, mas, caso não quisesse, terminariam e os próprios filhos também poderiam ficar. Não havia
sido apenas o corte da perna em questão, estava em evidência também um corte nas relações e nos
vínculos que trazia de forma marcada no discurso após a necessidade de passar por uma segunda
intervenção física. A partir da saída de uma posição passiva para uma ativa em que “se a cortam,
agora, por outro lado, era ela quem cortava”. A pergunta de Nice, no entanto, era pertinente, “por
que não haviam cortado logo tudo?” e a partir de reuniões que se deram no espaço da reumatologia
as equipes conseguiram passar para a mesma a intenção de preservá-la, que não era possível
anteverem o resultado de uma intervenção caso não começassem a partir de uma área menor. Essa
comunicação entre as equipes de certo modo a apaziguou e Nice passou a fazer então outras
perguntas relacionadas à possibilidade de seu marido sentir vergonha de empurrar sua cadeira de
rodas e de como ela se relacionaria com o adjetivo deficiente a partir de então, perguntas estas que
exigiam uma construção tanto de Nice quanto da própria equipe que buscou à sua forma responder
essas questões oferecendo à mesma a possibilidade futura de uma prótese que a fez ter esperanças
de retomar sua vida novamente.
Considerações finais
Referências bibliográficas
Fernandes, M. H. (2003). O Corpo (1ª ed., Vol. 1). São Paulo: Casa do Psicólogo.
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Freud, S. (1996). O Estranho. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud.(Vol. XVII). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em
1919).
Lima, N. R. (2009). Lúpus em mulheres e a construção discursiva da doença: A feminilidade e
oadoecer feminino como uma inscrição dos afetos no corpo. Tese de doutorado, Universidade do
Minho, Braga, Portugal.
Nery, F. G., Borba, E. F., & Neto, F. L. (2004). Influência do Estresse Psicossocial no Lúpus
Eritematoso Sistêmico. Revista Brasileira de Reumatologia. 44, 355-361.Recuperado em
22/08/2018 em: <https://www.reumatologia.org.br>
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