Você está na página 1de 2

Alberto Caeiro

Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,

Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,


Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que
conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.
O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as
outras estão sujas.
Brinca! Pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta.
12-4-1919
“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando
Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
- 77.
1ª publ. in “Poemas Inconjuntos”. In Athena, nº 5. Lisboa: Fev.
1925.
Alberto Caeiro
XXIV - O que nós vemos das coisas são as coisas.

XXIV

O que nós vemos das coisas são as coisas.


Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,


Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),


Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
13-3-1914
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro.
Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e
Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
- 50.
“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan.
1925.

Você também pode gostar