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CHÁ DE CAMOMILA E LIVROS NA MOCHILA

encontro de biblioterapia ou leitura afetuosa

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QUARTO CHÁ DE CAMOMILA E LIVROS NA MOCHILA:
ENCONTRO DE BIBLIOTERAPIA OU LEITURA AFETUOSA

Como citar este material:


RODRIGUES, Daniel Garcia. 4º. Chá de camomila & livros na mochila: encontro de biblioterapia
ou leitura afetuosa. Evento on-line gratuito. Google meet. 30 de maio de 2021, às 15 horas.

Este arquivo contém textos e links de apoio para o "Quarto Chá de camomila e livros na
mochila: encontro de biblioterapia ou leitura afetuosa", bem como um ensaio
biblioterapêutico sobre o texto de experiência: o poema “Dos meus naufrágios me 2

visto”, do livro Corpos em cena, de Susanna Busato, e a transcrição de um e-mail da poeta após
o encontro. O evento on-line e gratuito aconteceu em 30 de maio de 2021, às 15 horas, no
google meet, com a participação deste mediador e mais 19 de 30 inscritos, entre eles Susanna
Busato.

O tema é o corpo, tendo como principal texto de apoio o poema já mencionado. Os


participantes inscreveram-se por meio de um formulário Google e receberam materiais e
avisos sobre o chá literário entre a data de inscrição e o evento.

Enquanto aguardavam, puderam experimentar este depoimento do xamã Claudio Tostta,


sobre o primeiro Chá de Cogumelo & Livros no Martelo, acontecido em 31 de janeiro de
2021. Tostta trabalha com chá de cogumelos, de verdade, e me ajudou a mediar esse chá
intenso, dedicado a metaleiros e roqueiros:
https://youtu.be/SxbR6ZBCy88

PARA SABER MAIS


Chá de camomila e livros na mochila: encontros de biblioterapia ou leitura afetuosa são eventos que
reúnem pessoas para lerem e desfrutarem da leitura terapêutica e troca de experiências,
impressões e reflexões a partir de poemas, contos, trechos de romances, letras de músicas e
outros textos, contando com a orientação de um mediador ou facilitador de biblioterapia.
São reuniões de pessoas e textos ou livros, em uma roda de leitura on-line.

O objetivo é sentir os textos e deixar sentimentos e percepções acontecerem, ouvindo o


outro e sendo ouvido por ele, com a mediação de um mediador de biblioterapia.
O mediador sou eu, Daniel Garcia Rodrigues, que amo cachorros, plantas, pessoas, livros,
estrelas e amo o amor acima de tudo. Desejo vivenciar com você momentos de alegria e
descoberta. Você me daria a honra?

A biblioterapia é uma área das letras associada à biblioteconomia e à psicologia, que parte
dos usos do texto como objeto de autocuidados, autoconhecimento, descobertas e trocas
afetivas, considerando a metáfora como princípio ativo capaz de transformar o texto em
remédio para alívio das dores emocionais ou instrumento de descobertas sobre a
profundidade, os sofrimentos, as dificuldades, as alegrias, os prazeres e a ternura que 3

compõem aquilo a que denominamos “vida” ou “existência” ou “condição humana”.

Nestes “chás de camomila e livros na mochila”, mediados por mim, pretendo unir pessoas
em grupos de no máximo 30 pessoas, on-line ou presencialmente (quando for possível),
expondo-as à leitura de textos com temáticas tais quais: amor, identidade, felicidade, morte,
vida, infância, envelhecimento, casamento, relacionamentos, trabalho, profissão, tempo,
sofrimento, alegria, amizade, sexualidade, homossexualidade, bissexualidade,
transexualidade, racismo, feminismo, diversidade, direitos humanos, autismo, psicopatia,
depressão, fobia social, empoderamento, resiliência, tecnologia, redes sociais, inteligência
artificial, loucura, genialidade, mediocridade etc., para que essas pessoas discutam o que os
textos lhes provocam, que sensações, ideias, pensamentos, reflexões, lembranças, memórias
e processos elas sentem a partir da leitura ou escuta dos textos.

Por tratar-se de leituras e escutas em grupos, os participantes serão estimulados à escuta e


interação com o outro, para que percebam a importância do outro enquanto elemento
definidor da identidade de cada um. A troca será incentivada porque acredito que ela
potencialize os efeitos das metáforas e símbolos contidos nos textos.

Minha função é escolher os textos e músicas, decidir a ordem em que serão lidos, e incentivar
a fala de cada um, sem impor, respeitando o silêncio dos que o desejarem. Usarei apoios de
trilhas sonoras, técnicas de respiração, relaxamento, meditação e imaginação. Além disso,
devo ouvir com respeito e acolhimento todas as impressões e desabafos, fazendo o melhor
para que cada participante realmente se sinta ouvido e conectado ao grupo, tanto quanto
possa permitir um encontro de duas ou três horas, presencial ou on-line.
É possível que sejam incentivadas atividades de escrita criativa com o objetivo de ampliar o
efeito dos textos apreciados e das falas dos participantes, sempre que houver tempo para
produções escritas daqueles que se sentirem à vontade.

SOBRE A POETA SUSANNA BUSATO E O LIVRO CORPOS EM CENA


A poeta Susanna Busato, autora dos livros Corpos em cena (Editora Patuá, 2013, finalista do
Prêmio Jabuti 2014) e Moldura de lagartas (Selo Demônio Negro, 2020), esteve conosco,
diretamente da França, na edição anterior do chá, cujo tema foi a criança interior, tendo
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como texto de experiência “A menina de lá”, conto de Guimarães Rosa. Susanna presenteou-
nos com falas belíssimas e certeiras, tornando ainda mais prazerosa a leitura do conto.

Susanna é doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho”,
Mestre em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Tem pós-doutorado em Linguística (Semiótica) pela Universidade de São Paulo. Atualmente
é Professora Assistente-doutora da Área de Literatura Brasileira no Curso de Licenciatura
em Letras (disciplinas de Poesia Brasileira II e Literatura Infantojuvenil); e no Curso de
Pedagogia (disciplina de Literatura Infantil), na Universidade Estadual Paulista "Júlio de
Mesquita Filho”. Na pós-graduação ministra a disciplina de "Vertentes e Expressões da
Literatura Brasileira" e "Literatura Brasileira: linhas de força e tensão" (com ênfase na poesia
contemporânea). Atua na Pós-Graduação em Letras na linha de pesquisa "Perspectivas
Teóricas no Estudo da Literatura". Seu projeto de pesquisa atual: "Espaços moventes e vozes
mutantes na poesia brasileira moderna e contemporânea". É líder do grupo de pesquisa GEP,
Grupo de Estudos de Poesia, cadastrado no CNPq.

TEXTOS E MÚSICAS

Dos meus naufrágios me visto


Susanna Busato

BUSATO, Susanna. Dos meus naufrágios me visto. In: BUSATO, Susanna. Corpos em cena.
São Paulo: Patuá, 2013, p. 75-6.
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ENSAIO BIBLIOTERAPÊUTICO SOBRE O POEMA “DOS MEUS


NAUFRÁGIOS ME VISTO”, DO LIVRO CORPOS EM CENA, DE SUSANNA
BUSATO.

Impressionista e pessoal quase que completamente, esta é uma interpretação


biblioterapêutica do poema de Susanna e do livro em que ele exala sua vida multicolorida e
desconcertante.

Quando o poema me viu pela primeira vez, senti uma confusão mental e sensorial, não
entendi nada direito. Havia uma explosão de cores, imagens e texturas se insinuando entre o
papel e meus olhos, mas o significado não se fazia, não se fez e não se faz por inteiro e de
modo definitivo.

Logo no primeiro verso: “Um corpete de bronze ergue”, esse corpete de bronze teimava em
ser de cobre na minha percepção, contra a minha vontade. De bronze ou de cobre, o verso
me lembrava os figurinos da cantora californiana Joanna Newsom, criados e feitos por ela
mesma e que, por si sós, emprestam aos álbuns da cantora uma aura de barroco artesanal.
Deixei-me levar pela imagem sugerida pelo verso, sem criar resistência, sendo arrastado para
um vestido xadrez que a moça usou em um show de 2010, não me lembrava a música, fui
procurar no youtube, lá estava o corpo contorcionando-se em esgares de ligeiro retardo
mental à la síndrome de down no rosto vivo e gracioso de Joanna iluminando-se conforme
os dedinhos delicados de criança, mas firmes de harpista treinada, tangiam as cordas arcaicas
desse instrumento pouco usual no pop. Da boca retorcida e bela, saía o canto ao Bebê Bétula
(Baby Birth). E o verso de Susanna mostra o osso fraturado que o corpete ergue, o corpete
ergue, porém, para ver esse osso no poema, o leitor precisa baixar os olhos e seguir na leitura,
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para frente e para baixo. Então a fratura do verso é irmã dos contorcionismos faciais da
cantora.

Enquanto escrevo, tenho a voz de Paul Valéry repetindo no oco do meu pensamento que,
ao ler um poema, logo no primeiro verso, antes de falar ou escrever sobre ele, deveríamos
manter a sensação daquela primeira impressão. Obedeço completamente, não consigo
avançar depois desse osso fraturado, enquanto a música de Joanna se desenvolve e me
mantém apaixonado pela voz da cantora-menina, quase um bebê, e percebo que em
português o som do título da música é um deleite sonoro: “bebê bétula”, com esses balbucios
explosivos e sonoros dos “bês” e do “tu” se molhando no “lá”. Em Susanna, minha
imaginação presa entre os dois versos produz a leitura talvez indevida do “bronze fraturado”,
porque essas duas palavras se ligam pela sonoridade de pedra dos encontros “br” e “fr”. As
explosões sonoras de Joanna ecoam nas pedras raladas e friccionadas de Susanna. Fico
pensando se as duas mulheres gostariam uma da outra. Torço para que sim, porque acho as
duas encantadoras e me esqueço do tempo em que eu acreditava em uma crítica à qual estava
proibida, interditada a possibilidade de escrever “acho”.

É difícil desgrudar-me das sonoridades iniciais pedregosas ou estalantes das duas autoras. O
poema de Susanna me liberta ao, continuando no paradigma do vestuário, pôr em cena o
tecido macio do veludo, que pode bem não ser tecido, ou pode ser outro tipo de tecido:
biológico, carnal. No entanto, os versos macios, o três e o quatro, são macios e quase mudos,
o que eles dizem: “O veludo se integra aos vãos/ e ao que ainda...” mantém ecoando a
aspereza dos que passaram, justamente no signo “integra”, prometendo a ligação de algo
com algo, talvez um avançar do sentido. Promessa que parece desintegrar-se naquelas
reticências e na ligeira perversidade de um “ainda” que nos prende no espaço e no tempo
desse final de verso e não nos “entrega” nada e não “integra” nada também. Pronto! O jogo
do oculta-revela aparece onde o suposto e desejado sentido não apareceu ou fingiu não
aparecer.

A sensualidade dura, metálica e escultórica do corpete de bronze transita para a sinuosa


maciez do veludo, ao menos no movimento de leitura de um verso a outro até ao vago final
dessa estrofe. A imagem desconfortável do corpete de bronze erguendo cada osso fraturado
sugeriria que a dor transita para o deleite ou o prazer nos vãos... dos genitais... femininos?,
dos versos?, das estrofes?, do poema?, da leitura que simula a vida em seu movimento
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temporal, letra a letra, fonema a fonema, segundo a segundo?

É preciso ler e reler para sentir esses movimentos e ganhar essas percepções, mesmo para
quem está fazendo uma leitura pessoal e impressionista. Sou um biblioterapeuta que também
é escritor e crítico literário. Enquanto biblioterapeuta, estou descobrindo a área. Enquanto
escritor, aceito bem os rótulos “indie”, “kitsch” e “pop” ou “subliterário”, porque tento não
dar a mínima para eles ou outros quaisquer. Enquanto crítico, costumava situar-me
confortavelmente na linha semiológica ou semiótica. O fato é que minha relação
biblioterapêutica com o poema de Susanna é marcada pela “popice” e pela semiótica. A
liberdade exigida para que os textos possam ser terapêuticos, em meu processo, é
contaminada pelo escritor e pelo crítico que sou. É possível desagradar aos membros das três
áreas e lá estarei eu no limbo mais uma vez. O limbo, porta de entrada, talvez mais que o
purgatório, seja uma fenda entre o bem e o mal, entre o inferno e o paraíso, contudo, nunca
me pareceu nada erótico, embora seu caráter de espaço “entre” permita-nos encontrar
ligeiras semelhanças entre ele e o erotismo.

O erotismo, para Roland Barthes, não está na nudez completa do corpo, mas na fenda entre
a roupa e a pele, no encontro entre a luva e o braço nu. Susanna começa a exibir melhor o
erotismo de seus versos no final da primeira estrofe, ao empregar o adjunto adverbial de
tempo “ainda” solitário, sem o verbo a que deveria modificar, emprestando-lhe uma
informação temporal. Esse silêncio da informação sibila no final da estrofe, e mais silencioso
se mostra pela sequência das reticências gerando suspense como uma peça de roupa prestes
a ser tirada, entretanto, sem alarde, sem ruído, sem espalhafato, retirada apenas e, talvez, pela
imaginação de alguns leitores.
Já na minha primeira leitura, Susanna e Joanna eram visitadas por Beth Gibbons (vocalista)
e a gloriosa caixa (Glory box) da banda Portishead, do álbum Dummy, de 1994. Uma das
canções mais sensuais das últimas décadas. A cantora reafirma diversas vezes o desejo
persistente de ser “apenas uma mulher”, e eu desejo essa mulher no poema cheio de cacos,
fractais de um ser, de um corpo, em simbiose com elementos do vestuário: corpete, saia,
meias, pregas, veludo; elementos minerais e vegetais: bronze, cristal, ciprestes; elementos
corporais: osso, derme, pele, corpo; e esses grupos de elementos vão se metamorfoseando
em labirinto, desejo e naufrágio, afastando inclusive a lógica organizadora de listas de
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elementos.

Apenas esses signos simulam elementos que poderiam ser capazes de me dar a mulher da
caixa gloriosa, todavia, a caixa de Portishead ecoa no poema de Susanna como a de Pandora.
Essa mulher sugerida pelo poema chega a doer em minhas percepções, semelhando uma
criação cubista, surrealista ou dadaísta, mais fragmentada e dolorida ao olhar que as Demoiselles
d’Avignon ou Guernica

A expressão “glory box”, pertence ao inglês australiano e ao neozelandês informais,


indicando uma caixa em que uma jovem guarda roupas, etc., em preparação para o
casamento; roupas, lençóis, etc. que uma jovem tradicionalmente coleta para usar depois de
casada. No Brasil, até a década de 1970, as jovens que desejavam se casar faziam algo
parecido: a mala de enxoval, existindo até um móvel de madeira para guardar essas roupas
para a casa: toalhas, fronhas, lençóis, colchas, tapetes, etc. O móvel era algo entre uma
cômoda e um baú.

A mulher de Glory box afirma querer desistir de ser tentação ou tentadora e render-se ao que
se espera de uma jovem mulher: que se case, que seja apenas algo por referência ao homem.
No entanto, a forma como o canto e os instrumentos produzem essas afirmações, inclusive
com “ruídos”, “defeitos” e “sujeiras sonoras” soa exatamente na direção contrária. A mulher
afirma querer deixar de ser uma tentação, embora cada suspiro, cada sopro, cada nota
materialize o erotismo do corpo no corpo da voz, ou seja, essa mulher que se fala na letra e
nos sons da música pode parecer extremamente tentadora ou perturbadora, mais tentadora
que perturbadora, se encararmos a perturbação como um certo desconforto mental e
emocional mais condizente com o corpo naufragado e despedaçado do poema de Susanna,
um poema assumidamente de destroços, desde seu título: “Dos meus naufrágios me visto”.
Entretanto, é bem provável que diante de um naufrágio, o observador, ainda que sem querer,
recomponha objetos, seres e vivências a partir dos destroços, e, como eu, ponha-se a
imaginar o que seria aquele corpo inteiro, aquelas vestes, aquelas narrativas inteiras.

Assim sendo, a mulher de Susanna se recompõe na minha percepção e traz a de Glory Box à
cena, fazendo com que eu exiba em minha tela mental a voz, o corpo, os gestos, o gingado
de Beth Gibbons, feita a criatura de Victor Franskestein, a partir dos destroços do eu lírico
do poema.
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Busato evoca em minha percepção, mais uma vez, Paul Valéry, na estrofe de encerramento
do poema dela, em que parece restar apenas a pele sobre osso, uma pele poderosa, cuja ação
se inverte: não é o osso que a rompe, é ela quem rompe o osso, mesmo fria e morta, é “exígua,
exata, / de nenhuma [nenhuma o quê?] se tinge/ e naufraga”. Essa pele, superfície do poema,
é, como propõe Valéry, a coisa mais profunda que há, pois, segundo o poeta: “O mais
profundo é a pele1”.

Paradoxal, de sons pedregosos e imagens terríveis, o naufrágio de Susanna, ainda que, em


minha percepção, apele às canções igualmente magníficas e um tanto quanto esquisitas ou
sedutoras, de Newsom e Gibbons, causa-me um profundo mal-estar por eu ser um menino
transexual e transetário, de 15 anos, andrógino e bixinha (escrito “errado” porque preciso),
vivendo no corpo de uma mulher que envelhece, aos 57 anos. Por eu ter nascido em um
corpo que jamais consegui reconhecer como “eu”, embora o aceite como “meu”, tal qual
aceitamos como nossa uma roupa emprestada que não tem nossas medidas, esse poema e
essas músicas oferecem-me a sedução do erotismo do corpo e da palavra de formas
desconfortáveis, pois eu quereria ao menos ver o corpo inteiro da mulher que se dá ao prazer,
à vida, ao homem ou a outra mulher, contudo, sou obrigado a lidar com a mulher que
destroça o bebê-bétula, o bebê-livro, a outra que apenas finge ofertar uma mala de enxoval,
quando, na verdade, oferta a caixa de Pandora, e a poeta que tece com palavras suaves e
brutas, o naufrágio do corpo fractal em que, para além do horror, cada fragmento sugere a
beleza do ser, do corpo feminino, da mulher-possibilidade.

1Apud DELLEUZE, Gilles. A lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo:
Perspectiva, 1994, p, 11.
Resta-nos a pele naufragada, mas, jamais superficial. Em Corpos em cena, mesmo supondo
certo exibicionismo prometido pelo título, nada é raso e sem importância. Nem a pele que
encerra o poema-naufrágio. Essa pele “rompe fria/ – osso em corpo – ” , funde-se ao osso,
ao corpo, porque o verbo “romper” não vem seguido de uma relação clara com um objeto
direto. O que é que ela rompe? Esse “rompe” é quase um “irrompe”, “surge”, “mostra-se”,
apesar de a poeta não ter escolhido o verbo “irromper” que, no entanto, reverbera na angústia
do sentido porque eu, leitor, quero saber quem rompe o quê. Desejo a sintaxe em linha reta
que os escombros da linguagem na estrofe e em todo o poema não me dão. Essa perturbação
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continua no quarto verso: “de nenhuma se tinge”. Pelo amor dos deOses, “de nenhuma” o
quê? Essa pele rompe algo e exibe a ruptura, é, portanto, uma pele profunda e intensa em
seus silêncios avarentos, doendo em meu corpo de menino que vibra quase
hologramaticamente dentro e fora do corpo envelhecido da mulher. Ah, a profundidade
dessa pele “osso em corpo”, em que o interno se externaliza fisicamente, provoca-me a inveja
da mulher vestida de naufrágios, entretanto, brindo à carne que não me parece mais triste.
Recorro aos estudos de Moda para completar a vivência com o poema e as letras das músicas
que tornaram a pele exposta o objeto do meu ensaio interpretativo.

A seriedade da pesquisa em Moda vem se ampliando cada vez mais nas últimas décadas.
Composta, no “espírito do tempo”, a Moda, como afirma Cristiane Mesquita (2010, p. 15),
“estetiza e interliga diversos modelos construtores de determinada sociedade, como moral,
tecnologia, arte, religião, cultura, economia etc.”. Esses sistemas, por sua vez, ajudam a
construir os mais diversos modos de ser e estar no mundo, ou seja, ajudam a construir aquilo
a que se denomina “subjetividades”:
É principalmente sobre a pele, “uma subjetividade que ganhou o lugar privilegiado
de estar ao mesmo tempo no corpo e no mundo”, que se apresenta a forma
comumente chamada indivíduo, sujeito ou mesmo de ‘eu’ ou de ‘você’ ”.
(MESQUITA, 2010, p. 15).

A pele, esse campo em que corpo e mundo se encontram, é o vetor de todos os discursos da
Moda e sobre a Moda. Aquilo que o senso comum e muitos especialistas podem considerar
obviamente superficial, nestas décadas iniciais dos novos século e milênio, assume neste
momento a consistência lírica, estética e filosófica da frase de Valéry de um modo
perfeitamente denotativo, ainda que seus aspectos metafóricos e/ou metonímicos não sejam
eclipsados pela inesperada concretude de sua realidade. Portadora da vaidade do corpo, dos
desejos do sujeito, suporte simultaneamente final e inicial das linguagens da Moda, a pele
adquire profundidade graças aos milhares de olhares que sua atuação entre o sujeito, o mundo
e os processos e fenômenos da Moda atraiu para si e para o campo de saber e existência de
tudo aquilo que compõe a vastidão de acontecimentos e conhecimentos que caracterizam e
compõem, por sua vez, a Moda.

O poema de Susanna pode ser visto como um ensaio sobre as relações entre o corpo, a pele
e o vestuário, mostrando esses discursos em cacos inter-relacionando-se nos escombros
quebrados em todas as estrofes. Apesar dos escombros e talvez exatamente por causa deles
exibe um erotismo inesperado, uma beleza de joias perdidas na lama do mar onde se deu o
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naufrágio. Susanna provoca-me a epifania de existir como corpo e ter a sensação de ser
holograma no meio do apocalipse das relações, do erotismo, da linguagem, da moda, dos
poderes, dos discursos e da subjetividade. E se a pele é o mais profundo, a profundidade do
naufrágio vinda à superfície é erótica, no sentido de que a pulsão de vida consegue impor-se
à pulsão de morte, e a poesia, assim como a moda, sempre aposta no desejo... e na morte,
simultaneamente, quase o tempo todo.

A profundidade oferecida pelo poema encanta-me pela riqueza de imagens e sonoridades,


perturba-me por sua dança quase macabra com os sentidos estilhaçados e os signos
rompidos, faz-me recordar das minhas próprias rupturas de ser desviante: transexual e
transetário. Não me oferece conforto ou acolhimento, no entanto, a beleza que nele colho
em cada caquinho-verso parece mostrar-me a minha própria beleza de ser estraçalhado pelo
gênero trocado. Encarar como belo algo que, à primeira vista, pareceria feio é a promessa de
muitas obras de arte, realizada bem poucas vezes na História da Arte. De minha parte, sou
forçado a confessar que o poema permitiu-me, sim, essa glória de espelho. Senti-me mais
bonito e em paz com minha própria estranheza, graças ao insólito vestuário do eu lírico
destroçado.

E-MAIL DA AUTORA APÓS O EVENTO


Dos chás
Bom dia, Dani!

Como sempre, o seu chá de camomila (e de outras cositas más!) tirou-me o sono e
perturbou-me. Mais desta vez por ter um poema meu tão austero pela imagem do corpete
(mais um colete mesmo) a tensionar as pulsões de dentro.
Como um corpo que se tece aos nossos olhos, os demais que ouviram e viram o poema na
tela, inseriram mais elementos nesse corpo (de papel) já tão mal ajeitado na sua ossatura de
pele (de palavra-imagem).

E você, tão simplesmente, Dani, consegue mexer os pauzinhos da mente e instigar o que
carregamos por dentro. Não, não é autoajuda. Esta é simples e boba, cheia de frases com a
função conativa a apontar como lanças os caminhos pra gente.

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Sim, é terapia. Um gesto de reestabelecer e curar, como o termo se apresenta na sua origem
grega. Mas reestabelecer o quê? Na verdade, a gente não põe nada no lugar de novo
quando lê um poema; a gente bagunça mais o que a gente achava meio arrumado.

Somos náufragos de nossos juízos, de nossas falsas ideias, de nossos desejos. A única
maneira de realizá-los, de pensar neles é vê-los na nossa frente.

E seu chá de especiarias luminescentes consegue mexer e fazer a escrita de todos brotar no
papel, bem ou mal.

Marinheiros amorosos que somos de nossos barcos-corpos, navegamos juntos, odiando


também esse mar que tanto nos salga a sede. Mas sem ele, não percorremos a pele nossa,
pois a água salgada queima e nos lembra que estamos vivos.

Obrigada por ontem e pelo que há de vir.


Beijos,
Susanna.

BABY BIRCH/BEBÊ BÉTULA– JOANNA NEWSOM


Sobre a árvore bétula: “Cabe ainda dizer que a palavra livro existe porque existem as
bétulas. Na antiguidade a casca interior da bétula – fina e quase transparente – era designada
librum (latim) e usada para escrever2”.

2 Esta e mais informações sobre a bétula podem ser encontradas aqui: FUTURO: o projecto das 100.000
árvores. Árvores com história: Bétula [Betula sp.] Disponível em
https://www.100milarvores.pt/2013/11/arvores-com-historia-betula-betula-sp-2.html. Acessado em 06 de
maio de 2021.
Vídeo:
Joanna Newsom, Baby Birch, Melkweg Amsterdam, may 30, 2010
https://www.youtube.com/watch?v=jKrpokfVR0E&list=RDjKrpokfVR0E&start_r
adio=1&t=23

Letras:
https://www.vagalume.com.br/joanna-newsom/baby-birch.html

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BEBÊ BÉTULA
Joanna Newsom
Álbum: Have one on me (Tem um comigo), 2010.

Esta é a música de Baby Birch.


Eu nunca vou te conhecer.
E por trás do que fizemos,
existe esse conhecimento de você.

Eu gostaria que pudéssemos seguir todos os caminhos.


Eu poderia passar cem anos
adorando você.
Sim, eu gostaria que pudéssemos seguir todos os caminhos,
porque eu odiava fechar
a porta para você.

Você se lembra de olhar,


nas estrelas,
tão longe em seus carros à prova de balas?
Ouvimos a ingestão rápida e lenta
da escuridão, água escura,
e o motor quebra,
e eu disse,

Que tal aquelas quebras de motor?


E, se eu morresse antes de acordar,
você vai ficar de olho no bebê Bétula?
Porque eu odiaria vê-la
cometer os mesmos erros.

Quando estava escuro,


Liguei e você veio.
Quando escureceu, vi formas.
Quando vejo estrelas, sinto, em suas mãos,
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e eu vejo estrelas,
e eu rolo, de novo.

Bem, tenha misericórdia de mim. Eu estarei maldito.


Faz muito, muito tempo
desde a última vez que te vi.
E eu nunca conheci o plano.
Já faz muito, muito tempo.
Como você está?
Seus olhos são verdes. Seu cabelo é dourado.
Seu cabelo é preto. Seus olhos são azuis.
Fechei as fileiras e voltei -
mas, você sabe, eu odiava fechar
a porta para você.

Caminhamos ao longo do lago sujo.


Ouça o ganso,
xingando-me por causa de seus ovos.
Seu pobre priminho.
Eu não quero sua borra
(Um bebezinho mexendo nas minhas pernas).

Há um ferreiro,
e há um pastor,
e há um menino açougueiro,
e há um barbeiro, que está cortando
e cortando minha única alegria.
Eu vi um coelho,
liso como uma faca,
e pálido como um castiçal,
e eu pensei que seria mais difícil que fazer,
mas eu a peguei e a esfolei rápido:
segurou ela lá,
chutando e choramingando,
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levantado, desenrolando, não cantado e azul;
disse a ela "onde quer que você vá,
coelhinho fugitivo,
Eu vou te encontrar."
E então ela correu,
como eles são susceptíveis de fazer.

Fique em paz, baby, e vá embora.

BABY BIRCH
Joanna Newsom
Album: Have One On Me, 2010.

This is the song for Baby Birch.


I will never know you.
And at the back of what we've done,
there is that knowledge of you.

I wish we could take every path.


I could spend a hundred years
adoring you.
Yes, I wish we could take every path,
because I hated to close
the door on you.

Do you remember staring,


up at the stars,
so far away in their bulletproof cars?
We heard the rushing, slow intake
of the dark, dark water,
and the engine breaks,
and I said,

How about them engine breaks?


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And, if I should die before I wake,
will you keep an eye on Baby Birch?
Because I'd hate to see her
make the same mistakes.

When it was dark,


I called and you came.
When it was dark, I saw shapes.
When I see stars, I feel, in your hand,
and I see stars,
and I reel, again.

Well mercy me. I'll be goddamned.


It's been a long, long time
since I last saw you.
And I have never known the plan.
It's been a long, long time.
How are you?
Your eyes are green. Your hair is gold.
Your hair is black. Your eyes are blue.
I closed the ranks, and I doubled back--
but, you know, I hated to close
the door on you.

We take a walk along the dirty lake.


Hear the goose,
cussing at me over her eggs.
You poor little cousin.
I don't want your dregs
(A little baby fussing all over my legs).

There is a blacksmith,
and there is a shepherd,
and there is a butcher-boy,
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and there is a barber, who's cutting
and cutting away at my only joy.
I saw a rabbit,
as slick as a knife,
and as pale as a candlestick,
and I had thought it'd be harder to do,
but I caught her, and skinned her quick:
held her there,
kicking and mewling,
upended, unspooling, unsung and blue;
told her "wherever you go,
little runaway bunny,
I will find you."
And then she ran,
as they're liable to do.

Be at peace, baby, and begone.

GLORY BOX – PORTISHEAD

GLORY BOX
Portishead
Álbum: Dummy, 1994.
Vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=4_Q1Rvwzkns&list=RD4_Q1Rvwzkns&index=1
Letras:
https://www.vagalume.com.br/portishead/glory-box-traducao.html

CAIXA DA GLÓRIA/MALA DE ENXOVAL


Portishead
Álbum: Dummy, 1994.

Estou tão cansada de jogar


18
Brincando com este arco e flecha
Vou doar meu coração
Deixe para as outras meninas jogarem
Pois tenho sido uma tentadora por muito tempo
Somente...
Me dê uma razão para amar você
Me dê uma razão para ser mulher
Eu só quero ser mulher
A partir desse momento, desencadeado
Estamos todos olhando para uma imagem diferente
Através deste novo estado de espírito
Mil flores podem florescer
Mova-se e nos dê algum espaço, sim
Me dê uma razão para amar você
Me dê uma razão para ser mulher
Eu só quero ser mulher
Então não pare de ser homem
Apenas dê uma pequena olhada
Do nosso lado quando você puder
Semeie um pouco de ternura
Não importa se você chora
Me dê uma razão para amar você
Me dê uma razão para ser mulher
Eu só quero ser mulher
É tudo que eu quero ser uma mulher
Então eu só quero ser mulher
Pois este é o começo de todo o sempre
É hora de mudar agora
(Então eu quero ser)

GLORY BOX
Portishead
Album: Dummy, 1994.

19
I'm so tired of playing
Playing with this bow and arrow
Gonna give my heart away
Leave it to the other girls to play
For I've been a temptress too long
Just...
Give me a reason to love you
Give me a reason to be a woman
I just wanna be a woman
From this time, unchained
We're all looking at a different picture
Through this new frame of mind
A thousand flowers could bloom
Move over and give us some room, yeah
Give me a reason to love you
Give me a reason to be a woman
I just want to be a woman
So don't you stop being a man
Just take a little look
From our side when you can
Sow a little tenderness
No matter if you cry
Give me a reason to love you
Give me a reason to be a woman
I just want to be a woman
It's all I want to be, a woman
So I just want to be a woman
For this is the beginning of forever and ever
Its time to move over now
(So I want to be)

Este material pode ser utilizado para fins pedagógicos e de estudo e pesquisa, desde
que citada a fonte, respeitados os direitos autorais.
Como citar este material:
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RODRIGUES, Daniel Garcia. 4º. Chá de camomila & livros na mochila: encontro de biblioterapia
ou leitura afetuosa. Reunião on-line gratuita. Google meet. 30 de maio de 2021, às 15 horas.

REFERÊNCIAS
BUSATO, Susanna. Dos meus naufrágios me visto. In: BUSATO, Susanna. Corpos em
cena. São Paulo: Patuá, 2013, p. 75-6.

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo:
Perspectiva, 1994.

FUTURO: o projecto das 100.000 árvores. Árvores com história: Bétula [Betula sp.]
Disponível em https://www.100milarvores.pt/2013/11/arvores-com-historia-betula-
betula-sp-2.html. Acessado em 06 de maio de 2021.

MESQUITA, Cristiane. Moda contemporânea: quatro ou cinco conexões possíveis. São


Paulo: Anhembi Morumbi, 2010.

NEWSOM, Joanna. Baby Birtch. In: Have one on me. Chicago, Illinois. DRAG CITY,
2010, 3CDs (124 minutos e 08 segundos).

OUAKNIN, Marc-Alain. Bibliothérapie: lire, c’est guérir. Paris: Éditions du Seuil, 1994.

PORTISHEAD. Glory box. In PORTISHEAD. Dummy. London: POLYGRAM


RECORDS, 1994. 1 CD (45minutos e 29 segundos)

SOUSA, Carla. Biblioterapia e mediação afetuosa da literatura. Florianópolis/SC. Ed.


Da Autora, 2021.
VALÉRY, Paul. Variedades. Org. e intr. João Alexandre Barbosa. Trad. Maíza Martins de
Siqueira. Posfácio de Aguinaldo José Gonçalves. São Paulo: Iluminuras, 1991.

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